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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MAPA DOS OSSOS / James Rollins
O MAPA DOS OSSOS / James Rollins

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Março de 1162
Os soldados do arcebispo desapareceram nas sombras do vale lá embaixo. Atrás deles, no alto do desfiladeiro glacial, cavalos guinchavam, alvejados e trespassados por flechas. Homens gritavam, berravam, urravam. O estrépito de aço soava tão claro quanto os sinos de uma capela.
Mas não era a obra de Deus que se fazia ali.
A retaguarda tem de agüentar-se firme.
Frei Joachim segurou as rédeas de sua égua enquanto ela escorregava de ancas pela íngreme ladeira. A carroça com a carga havia chegado em segurança ao fundo do vale. Mas a verdadeira segurança ainda estava a uma légua de distância.
Se ao menos conseguissem alcançá-la...
Com as mãos cerradas nas rédeas, Joachim instigou sua cambaleante égua até o fundo do vale. Atravessou chapinhando um riacho gélido e arriscou uma olhadela para trás.
Apesar de a primavera ter-se anunciado, o inverno ainda prevalecia nos lugares mais altos. Os picos dos montes brilhavam intensamente ao sol poente. A neve refletia a luz, enquanto a geada se derramava dos picos escanhoados num turbilhão denso. Porém, ali nos desfiladeiros encobertos pelas sombras, a neve derretida transformara o chão da floresta num lodaçal. Os cavalos moviam-se com dificuldade até os machinhos e a cada passo corriam o risco de fraturar um osso. À frente, a carroça estava atolada quase até os eixos.
Joachim açoitou sua égua a fim de juntar-se aos soldados próximos à carroça.
Outra parelha de cavalos havia sido atada na frente. Homens empurravam atrás. Eles tinham de alcançar a trilha que atravessava a cadeia de montanhas seguintes.
- Eia! - gritou o condutor da carroça, fazendo estalar o chicote.
O cavalo-guia jogou a cabeça para trás e em seguida ergueu-se de encontro à cangalha. Nada aconteceu. Correntes retesaram-se, cavalos resfolegaram, expelindo pelas narinas fumaça branca no ar frio, e homens gritaram palavras obscenas.
Devagar, bem devagar, a carroça saiu do atoleiro com o som de sucção de uma ferida aberta no peito. Afinal, ela se movia de novo. Cada atraso cobrara seu preço em sangue. Os moribundos gemiam no desfiladeiro atrás deles.
A retaguarda deve agüentar-se firme um pouco mais.
A carroça seguiu em frente, subindo de novo. Os três grandes sarcófagos de pedra na plataforma aberta da carroça deslizaram contra as cordas que os mantinham presos no lugar.
Se alguma delas rebentasse...
Frei Joachim alcançou a carroça que atolara.
Seu irmão de ordem, Franz, aproximou-se em seu cavalo.
- A trilha à nossa frente está livre.
- As relíquias não podem ser levadas de volta para Roma. Precisamos chegar à fronteira alemã.
Franz inclinou ligeiramente a cabeça, em sinal de compreensão. As relíquias já não estavam seguras em solo italiano, não com o verdadeiro papa exilado na França e o falso residindo em Roma.
A carroça subia mais rápido agora, encontrando terreno mais firme a cada movimento. Todavia, ela não avançava mais depressa do que um homem era capaz de andar. Joachim continuou a observar a serra distante, olhando fixamente por sobre a parte traseira de sua montaria.
Os sons de batalha haviam-se reduzido a gemidos e soluços, ecoando sinistramente pelo vale. O ruído de espadas havia cessado por completo, indicando a derrota da retaguarda. Joachim esquadrinhou o vale, mas sombras densas impregnavam as alturas. A barreira de pinheiros negros ocultava tudo. Em seguida, ele avistou um clarão prateado. Uma figura solitária apareceu, iluminada por uma nesga da luz do sol, a armadura cintilando.
Joachim não precisou ver o dragão vermelho pintado no peitoral do homem para reconhecer o lugar-tenente do papa negro. O profano sarraceno adotara o nome de batismo Ferrabrás, em homenagem a um dos paladinos de Carlos Magno. Ele era pelo menos um palmo mais alto do que todos os seus homens. Um verdadeiro gigante. Sangue cristão manchava suas mãos mais do que as de qualquer outro homem. Batizado no ano anterior, o sarraceno agora era aliado do cardeal Otaviano1, o papa negro que adotara o nome de Vítor IV.
Ferrabrás permaneceu na nesga da luz do sol, sem fazer qualquer tentativa de acossá-los.
O sarraceno sabia que havia chegado tarde demais. A carroça afinal galgou a crista da serra e chegou à trilha ressequida e cheia de sulcos lá no alto. Eles agora avançariam rapidamente. O solo ale-mão estava apenas a uma légua dali. A emboscada do sarraceno fracassara.
Um movimento chamou a atenção de Joachim.
Ferrabrás tirou um arco enorme de um dos ombros, negro como as sombras. Pôs lentamente a flecha na corda, encaixou-a, e em seguida inclinou-se para trás e puxou-a com toda a força.
Joachim franziu o cenho. O que ele esperava ganhar com uma flecha emplumada?
O arco vergou-se, e a flecha voou, descrevendo uma curva sobre o vale, perdida por um momento à luz do sol acima da cadeia de montanhas. Joachim, tenso, perscrutou o céu. Em seguida, tão silenciosa quanto um falcão que mergulha, a flecha acertou o alvo, despedaçando-se no sarcófago do meio.
Inacreditavelmente, a tampa do sarcófago partiu-se com um estrondo. As cordas desprenderam-se quando o sarcófago rachou, espalhando fragmentos ao redor. Agora soltos, todos os três sarcófagos deslizaram em direção à traseira aberta da carroça.
Homens avançaram, tentando impedir que os sarcófagos de pedra se espatifassem no chão. Mãos estenderam-se. A carroça parou. No entanto, um dos sarcófagos inclinou-se demais. Caiu e esmagou um soldado, fraturando sua perna e pélvis. Os gritos estridentes do pobre homem retumbaram no ar.
Franz aproximou-se às pressas, apeando do cavalo. Ele juntou-se aos homens na tentativa de tirar o sarcófago de pedra de cima do soldado - e, mais importante ainda, colocá-lo de volta na carroça.
O sarcófago foi erguido, o homem viu-se livre, mas o sarcófago era pesado demais para ser levantado até a altura da carroça.
- Cordas! - gritou Franz. - Precisamos de cordas!
Um dos homens que seguravam o sarcófago escorregou. Este tornou a cair, dessa vez de lado, e a tampa de pedra abriu-se.
O som do tropel de animais ergueu-se atrás deles. Na trilha. Chegando rápido. Joachim olhou para trás, sabendo o que encontraria. Cavalos, espumando e luzindo ao sol, precipitavam-se sobre eles. Embora distantes um quarto de légua, era evidente que todos os cavaleiros usavam trajes negros. Mais homens do sarraceno. Era a segunda emboscada.
Joachim simplesmente continuou montado. Não havia como escapar.
Franz ofegou - não por causa do apuro em que se encontravam, mas por causa do conteúdo do sarcófago que caíra. Ou, antes, pela falta dele.
- Vazio! - exclamou o jovem frade. - Ele está vazio.
O choque fez Franz erguer-se de um salto. Ele subiu o assoalho da carroça e fitou com os olhos arregalados o interior do sarcófago despedaçado pela flecha do sarraceno.
- Nada outra vez - disse Franz, caindo de joelhos. - As relíquias? Que desgraça é esta?
O jovem frade olhou nos olhos de Joachim e entendeu a falta de surpresa.
- Você sabia.
Joachim olhava fixamente para trás, na direção dos cavalos que se aproximavam numa carreira desabalada. A caravana deles fora um ardil, uma manobra para enganar os homens do papa negro. O verdadeiro portador partira um dia antes, com uma parelha de mulas, levando as relíquias legítimas envoltas num pano grosso e escondidas num feixe de feno.
Joachim virou-se para olhar para Ferrabrás no outro lado do vale. O sarraceno poderia sentir o cheiro de sangue nesse dia, mas o papa negro nunca teria as relíquias.
Nunca.

 






Época atual
22 de julho, 23:46h
Colônia, Alemanha


À medida que a meia-noite se aproximava, Jason passou seu iPod2 para Mandy.
- Ouça, é o novo single do Godsmack. Ainda não foi lançado nos Estados Unidos. Não é o máximo?
A reação não foi a que Jason esperava. Mandy deu de ombros, inexpressiva, porém pegou os fones de ouvido que ele lhe oferecia. Ela escovou para trás as pontas dos cabelos negros, tingidas de rosa, e ajustou os fones aos ouvidos. O movimento fez sua jaqueta abrir o suficiente para revelar a marca de seus seios, do tamanho de uma maçã, pressionados contra a camiseta preta com estampa dos Pixies.
Jason olhou fixamente.
- Não estou ouvindo nada - disse Mandy com um suspiro cansado, arqueando uma sobrancelha para ele.
Oh! Jason voltou a se concentrar no seu iPod e apertou a tecla Play.
Ele inclinou-se para trás apoiando-se nas mãos. Os dois estavam sentados numa relva fina que emoldurava a praça de pedestres, chamada Domvorplatz3. Ela circundava a imponente catedral gótica, o Kölner Dom4. Situada na Colina da Catedral, dela se avistava toda a cidade.
Jason contemplou a extensão das flechas gêmeas, decoradas com figuras de pedra, esculpidas em fileiras de relevos de mármore que iam do religioso ao arcano. Agora, iluminada à noite, a catedral dava a estranha sensação de algo antigo que se erguia das entranhas da terra, de algo que não era deste mundo.
Enquanto ouvia a música que escapava do iPod, Jason observava Mandy. Alunos do Boston College, ambos estavam em férias de verão e viajavam de mochila pela Alemanha e pela Áustria. Com eles viajavam dois outros amigos, Brenda e Karl, mais interessados nos bares da cidade do que em assistir à missa da meia-noite. Contudo, Mandy fora educada como católica romana. As missas à meia-noite na catedral restringiam-se a alguns dias santos seletos, e o próprio arcebispo de Colônia participava delas, como a da Festa dos Três Reis Magos dessa noite. Mandy não queria perdê-la.
Embora Jason fosse protestante, concordara em acompanhá-la.
Enquanto eles esperavam a chegada da meia-noite, a cabeça de Man-dy movia-se ligeiramente ao som da música. Jason gostava do modo como as mechas de cabelo caídas na testa dela oscilavam de um lado para outro, do modo como o lábio inferior dela se projetava num beicinho enquanto ela se concentrava na música. Subitamente, ele sentiu um toque em sua mão. Mandy havia chegado o braço mais para perto, roçando de leve a mão sobre a dele. Os olhos dela, no entanto, permaneciam fixos na catedral.
Jason prendeu a respiração.
Nos últimos dez dias, ambos deram-se conta de que saíam juntos cada vez com mais freqüência. Antes da viagem, não passavam de conhecidos. Mandy era a melhor amiga de Brenda desde o ginásio, e Karl era colega de quarto de Jason. Os respectivos amigos deles, namorados recentes, não queriam viajar sozinhos, caso seu relacionamento incipiente azedasse durante a viagem.
Não azedara.
Por isso Jason e Mandy muitas vezes acabavam passeando sozinhos.
Não que Jason se importasse. Ele estudava história da arte na faculdade. Mandy especializava-se em estudos europeus. Ali seus estéreis compêndios acadêmicos adquiriam materialidade e contornos, peso e solidez. Por terem em comum um entusiasmo semelhante pela descoberta, um achava que o outro era uma companhia de viagem descomplicada.
Jason manteve os olhos desviados do toque dela, mas um de seus dedos aproximou-se dos de Mandy. Será que a noite acabara de ficar um pouco mais animada?
Infelizmente, a canção logo chegou ao fim. Mandy sentou-se mais ereta, afastando a mão para tirar os fones de ouvido.
- Nós deveríamos entrar - sussurrou ela, apontando com a cabeça para a fila de pessoas que entravam pela porta da catedral. Ela levantou-se e abotoou a jaqueta - um casaco sóbrio -por sobre a camiseta chamativa.
Jason ficou junto de Mandy enquanto ela alisava a saia, que ia até os tornozelos, e penteava para trás das orelhas as pontas cor-de-rosa dos cabelos. Num piscar de olhos, ela se transformou de uma estudante universitária meio punk numa colegial católica séria.
Jason ficou embasbacado com a súbita transformação. De jeans pretos e jaqueta clara, ele de repente sentiu-se malvestido para assistir a um serviço religioso.
- Você está ótimo - disse Mandy, parecendo adivinhar a preocupação dele.
- Obrigado - murmurou ele.
Eles pegaram seus pertences, jogaram as latas de Coca-Cola vazias numa lixeira próxima e atravessaram a pavimentada Domvorplatz.
- Guten Abend 5 - saudou-os à porta um diácono de batina preta - Willkommen.6
- Danke 7- murmurou Mandy enquanto eles subiam as escadas.
Adiante, a luz de velas irradiava-se através da entrada da catedral, bru-xuleando sobre os degraus de pedra, o que aumentava a sensação de tempo e antiguidade. Um pouco mais cedo nesse dia, enquanto visitava a catedral, Jason ficara sabendo que a pedra fundamental da catedral fora lançada no século XIII. Era difícil compreender essa amplitude de tempo.
Banhado pela luz de velas, ele alcançou as maciças portas lavradas e seguiu Mandy até o vestíbulo da frente. Ela umedeceu levemente os dedos na água benta de uma pia e fez o sinal-da-cruz. Jason sentiu-se repentina-mente desconfortável, com uma aguda consciência de que aquela não era a sua fé. Ele era um intruso, um transgressor. Receava dar um passo em falso, ficar embaraçado e, por sua vez, deixar Mandy embaraçada.
- Me acompanhe - disse Mandy. - Eu quero conseguir um bom lugar, mas não muito perto.
Jason a seguiu. Quando ele entrou na igreja propriamente dita, o mal-estar logo deu lugar ao espanto. Apesar de já ter estado no interior da catedral e aprendido muitas coisas sobre a história e a arte da construção, ele ficou impressionado pela mera imponência do espaço. A longa nave central estendia-se por 120 metros à sua frente, seccionada ao meio por um transepto de noventa metros, formando uma cruz com o altar no centro.
No entanto, não eram nem o comprimento nem a largura da catedral que prendiam sua atenção, mas sua altura impossível. Seus olhos erguiam-se cada vez mais, guiados por ogivas, por longas colunas e pelo teto abobadado. Milhares de velas deixavam um rastro de finas espirais de fumaça, que subiam em direção ao céu, tremulando das paredes, que recendiam a incenso.
Mandy conduziu-o em direção ao altar. Adiante, as áreas do transepto em cada lado do altar haviam sido isoladas com cordas, mas havia muitos lugares vazios na nave central.
- O que você acha daqui? - disse ela, parando no meio do corredor. Ela deu um breve sorriso, meio de agradecimento, meio de timidez.
Ele assentiu com a cabeça, emudecido pela beleza natural dela, uma Madona de preto.
Mandy segurou a mão dele e puxou-o até o fim do banco, junto à parede. Ele acomodou-se no assento, satisfeito com a relativa privacidade.
Ela continuou a segurar a mão de Jason, que sentia o calor de sua palma.
A noite sem dúvida estava ficando animada.
Por fim, uma sineta tocou e um coro começou a cantar. Era o começo da missa. Jason seguiu o exemplo de Mandy: ficando de pé, ajoelhando-se e sentando-se numa elaborada coreografia de fé. Ele não entendia nada daquilo, mas descobriu-se fascinado, ficando absorto na pompa: os padres de batina balançando turíbulos de incenso, o hino cantado na procissão que acompanhou a chegada do arcebispo com sua mitra alta e vestimentas guarnecidas de dourado, os cânticos entoados pelo coro e pelos paroquianos, a iluminação das velas da festa.
E por toda a parte a arte se transformava num componente da cerimônia tanto quanto os participantes. Uma escultura de madeira de Maria com o menino Jesus, chamada de Madona de Milão, irradiava antigüidade e graça. No outro lado do corredor, uma estátua de mármore de São Cristóvão sustentava nos braços uma criancinha com um sorriso beatífico. E elevando-se acima de tudo estavam os maciços vitrais bávaros, agora escuros, mas ainda resplandecentes com a luz de velas refletida, criando jóias a partir do vidro comum.
Mas nenhuma obra de arte era mais espetacular do que o sarcófago de ouro atrás do altar, trancado em vidro e metal. Embora fosse apenas do tamanho de uma arca grande e tivesse sido construído na forma de uma igreja em miniatura, o relicário era o objeto mais importante a catedral, o motivo para a construção de um templo tão imponente, o ponto focal da fé e da arte. Ele protegia a mais sagrada das relíquias da igreja. De ouro maciço, o relicário fora feito muito antes de começar a construção da catedral. Desenhado por Nicolas de Verdun no século XIII, o sarcófago era considerado o melhor exemplo de obra em ouro medieval existente.
Enquanto Jason continuava seu exame cuidadoso, a missa foi-se aproximando aos poucos do fim, marcada por sinetas e orações. Chegou afinal a hora da comunhão, a fração do pão eucarístico. Os paroquianos lentamente saíram em fila de seus bancos e percorreram os corredores para receber o corpo e o sangue de Jesus Cristo.
Quando chegou a vez de Mandy, ela ergueu-se junto com as outras pessoas que estavam em seu banco, tirando de mansinho a mão da de Jason.
- Eu volto já - sussurrou ela.
Jason olhou para seu banco vazio e para a lenta procissão que seguia rumo ao altar. Ansioso pela volta de Mandy, levantou-se para esticar as pernas. Aproveitou esse momento para observar cuidadosamente as estátuas que flanqueavam um confessionário. Agora de pé, também se arrependeu de ter consumido a terceira lata de Coca-Cola. Olhou para trás, para o vestíbulo da catedral. Havia um toalete público fora da nave.
Olhando ansiosamente para trás, ele foi o primeiro a avistar um grupo de monges entrando pelos fundos da catedral, marchando em fila através de todas as portas dos fundos. Conquanto usassem batinas pretas completas, capuzes e faixas à cintura, Jason percebeu de imediato que havia algo de estranho. Eles se moviam depressa demais, com uma convicta precisão militar, deslizando furtivamente para as sombras.
Seria a última parte da pompa?
Uma olhadela pela Catedral revelou mais figuras encobertas junto a outras portas, até mesmo além do transepto isolado com cordas ao lado do altar. Embora mantivessem a cabeça curvada numa atitude pia, parecia que estavam de guarda.
O que estava acontecendo?
Ele avistou Mandy perto do altar no instante em que ela recebia a comunhão. Havia apenas um punhado de paroquianos atrás dela. O corpo e o sangue de Cristo, Jason quase conseguia entender as palavras pelo movimento dos lábios.
Amém, ele mesmo respondeu.
A comunhão terminou. Os últimos paroquianos voltaram para seus lugares, inclusive Mandy. Jason acenou-lhe com a mão, a fim de que ela se acomodasse no banco, e em seguida sentou-se ao lado dela.
- O que significam todos estes monges? - perguntou, inclinando-se para a frente.
Ela se ajoelhara com a cabeça curvada. Sua única resposta foi um som para fazê-lo silenciar-se. Ele voltou a sentar-se. A maioria dos paroquianos também estava ajoelhada, com a cabeça inclinada. Só uns poucos como Jason, os que não haviam comungado, permaneceram sentados. À frente, o padre terminou de arrumar tudo, enquanto o idoso arcebispo estava sentado no alto de seu estrado elevado, o queixo de encontro ao peito, meio adormecido.
O mistério e a pompa haviam-se extinguido no coração de Jason. Talvez fosse apenas a pressão da bexiga, mas tudo o que ele queria era sair dali. Chegou a estender a mão para o cotovelo de Mandy, a fim de insistir com ela para saírem.
A movimentação adiante o deteve. Os monges em cada lado do altar sacaram armas de sob as dobras do tecido. O cinza metálico brilhou com o óleo à luz das velas, Uzis de cano curto, equipadas com longos silenciadores pretos.
O som dos disparos, menos ruidoso do que a tosse em staccato de um fumante inveterado, difundiu-se pelo altar. Cabeças ergueram-se ao longo dos bancos. Atrás do altar, o padre, vestido de branco, dançou sob os impactos. Parecia que estava sendo bombardeado por cápsulas de tinta - cápsulas de tinta carmesim. Ele tombou sobre o altar, derramando o cálice de vinho junto com seu próprio sangue.
Após um silêncio atordoante, os paroquianos começaram a gritar. As pessoas levantaram-se bruscamente. O idoso arcebispo tropeçou no seu tablado, erguendo-se horrorizado. O movimento repentino arremessou sua mitra no chão.
Monges precipitaram-se pelos corredores... por trás e pelos lados, gritando ordens e vociferando em alemão, francês e inglês.
Bleiben Sie in Ihren Sitzen...8 Ne bouge pas...9
As vozes eram abafadas, os rostos sob os capuzes estavam obscurecidos por meias de seda preta usadas como máscaras. Mas as armas em punho enfatizavam suas ordens.
Continuem sentados senão vocês morrem!
Mandy voltou a sentar-se com Jason e estendeu-lhe a mão. Ele apertou os dedos dela e olhou ao redor, incapaz de piscar. Todas as portas estavam fechadas, guardadas.
O que estava acontecendo?
Dentre o bando de monges armados próximos à entrada principal surgiu uma figura, vestida como os outros, apenas mais alta, dando a impressão de levantar-se como se houvesse sido chamada. Seu manto parecia-se mais com uma capa. Sem dúvida um líder, ele não portava armas quando andou a passos largos e com audácia pelo corredor central da nave.
Ele encontrou-se com o arcebispo no altar. Seguiu-se uma acalorada discussão. Jason logo percebeu que eles falavam em latim. O arcebispo de repente recuou horrorizado.
O líder deu um passo para o lado. Dois homens aproximaram-se. As armas reluziram. O objetivo não era matar. Eles atiraram contra a placa que lacrava o relicário de ouro. O vidro trincou e encheu-se de buracos, mas resistiu. À prova de balas.
- Ladrões... - sussurrou Jason.
Tratava-se de um roubo elaborado.
O arcebispo parecia extrair força da obstinação do vidro, tornando-se mais confiante. O líder dos monges estendeu a mão, ainda falando em latim. O arcebispo meneou a cabeça.
- Lassen Sie dann das Blut Ihrer Schafe Ihre Hände beflecken - disse o homem, falando agora em alemão.
Deixe o sangue de suas ovelhas manchar suas mãos.
O líder acenou para dois monges na frente. Eles flanquearam o receptáculo lacrado e ergueram grandes discos de metal em cada lado da estrutura. O efeito foi instantâneo.
O debilitado vidro à prova de balas explodiu de dentro para fora como se impelido por algum vento despercebido. A bruxuleante luz de velas, o sarcófago tremeluziu. Jason sentiu uma pressão súbita, um estalido interno nos ouvidos, como se as paredes da catedral repentinamente houvessem sido empurradas para dentro, esmagando tudo. A pressão fez ensurdecer seus ouvidos; sua visão se comprimiu.
Ele virou-se para Mandy.
A mão dela ainda apertava com força a sua, mas seu pescoço estava arqueado para trás, a boca escancarada.
- Mandy...
Do canto dos olhos, ele viu outros paroquianos fixos na mesma posição desoladora. A mão dela começou a tremer na sua, vibrando como o tweeter de um alto-falante. Lágrimas escorriam pelo rosto dela, tornando-se sanguinolentas enquanto ele observava. Ela não respirava. Seu corpo então teve uma contração espasmódica e enrijeceu, deixando livre a mão dele, porém não antes de ele sentir um choque elétrico das pontas dos dedos dela para os seus.
Ele ficou de pé, horrorizado demais para sentar-se.
Um fino rastro de fumaça erguia-se da boca de Mandy.
Os olhos dela estavam revirados e já começavam a enegrecer nos cantos.
Morta.
Jason, mudo de terror, esquadrinhou a catedral. O mesmo estava acontecendo em toda a parte. Apenas alguns fiéis haviam escapado: duas crianças pequenas, imprensadas entre os pais, choravam e gritavam de desespero. Jason reconheceu os não afetados. Aqueles que não haviam comungado.
Como ele.
Ele recuou para as sombras junto à parede. Seu movimento passara momentaneamente despercebido. Suas costas encontraram uma porta que não estava sendo guardada pelos monges. Não uma porta de verdade.
Jason abriu-a o suficiente para entrar de mansinho no confessionário.
Ele caiu de joelhos, agachando-se e abraçando a si mesmo.
Preces vieram-lhe aos lábios.
Então, também de maneira súbita, terminou. Ele o sentiu na cabeça. Um estalido. Um alívio da pressão. As paredes da catedral suspirando de volta.
Ele chorava. Lágrimas frias desciam-lhe pelo rosto.
Ele arriscou-se a dar uma espiada por um orifício na porta do confessionário.
Jason olhou fixamente, obtendo uma visão clara da nave e do altar. O ar recendia a cabelos queimados. Gritos e lamentos ainda ecoavam, mas agora o coro vinha de algumas gargantas apenas. Dos que estavam vivos. Um vulto, a julgar por seus trajes esfarrapados um sem-teto, saiu aos tropeços de um banco e desceu correndo pela nave lateral. Antes de dar dez passos, foi atingido na parte de trás da cabeça. Um único disparo. Seu corpo estatelou-se no chão.
Oh! meu Deus... oh! meu Deus...
Reprimindo os soluços, Jason continuou com os olhos fixos no altar.
Quatro monges ergueram o sarcófago de ouro de seu estojo estilhaçado.
O corpo do padre assassinado foi empurrado do altar com os pés e substituído pelo relicário. O líder tirou um grande saco de tecido de sob o seu manto. Os monges abriram a tampa do relicário e puseram o conteúdo em pé no saco. Depois de esvaziado, o sarcófago inestimável foi jogado no chão e abandonado com um estrondo.
O líder pendurou sua carga no ombro e dirigiu-se ao corredor central com as relíquias roubadas.
O arcebispo gritou com ele. De novo em latim. Parecia uma maldição.
A única reação do homem foi um aceno de braço.
Outro monge aproximou-se por trás do arcebispo e apontou uma pistola para a parte de trás da cabeça dele.
Jason abaixou-se para não ver mais nada.
Ele fechou os olhos. Outros disparos soaram pela catedral. Esporádicos. Os gritos de repente cessaram. A morte espalhou-se silenciosamente pela catedral quando os monges massacraram os poucos sobreviventes.
Jason manteve os olhos fechados e rezou.
Pouco antes, ele avistara o escudo de armas sobre o manto do líder. A capa negra do homem rasgou-se quando ele levantou o braço, revelando um desenho vermelho por baixo: um dragão enrascado, a cauda em volta do próprio pescoço. Jason não conhecia o símbolo, mas este possuía um toque exótico, mais oriental do que europeu.
Além da porta do confessionário, um silêncio de pedra abateu-se sobre a catedral.
O som de passos com botas aproximou-se de seu esconderijo.
Jason apertou ainda mais os olhos, contra o horror, contra a impossibilidade, contra o sacrilégio.
Tudo por um saco de ossos.
E, embora a catedral houvesse sido construída em torno desses ossos, e inúmeros reis houvessem se curvado diante deles, e até mesmo aquela missa fosse uma festa em homenagem àqueles homens há muito mortos - a Festa dos Três Reis Magos -, uma pergunta aflorou antes de tudo à mente de Jason.
Por quê?
Por toda a catedral havia imagens dos Três Reis Magos - de pedra, vidro e ouro. Num painel, eles conduziam camelos através de um deserto, guiados pela Estrela de Belém. Noutro, era representada a adoração do Cristo menino, exibindo figuras ajoelhadas ofertando os presentes de ouro, incenso e mirra.
Mas Jason fechou a mente a tudo aquilo. Tudo o que ele conseguia imaginar era o último sorriso de Mandy. O toque suave dela.
Tudo acabado.
As botas pararam do lado de fora da porta do confessionário.
Ele clamou em silêncio por uma resposta para toda aquela carnificina.
Por quê?
Por que roubar os ossos dos Reis Magos?


DIA UM




CAPÍTULO 1

Atrás da bola oito1



24 de julho, 04:34h
Frederick, Maryland

O sabotador havia chegado.
Grayson Pierce avançou devagar em sua motocicleta por entre os edifícios escuros que formavam o coração do Forte Derrick. Ele manteve a moto em marcha lenta. O ruído do motor elétrico era mais baixo do que o de uma geladeira. As luvas pretas que ele usava combinavam com a tinta da moto, um composto de níquel-fósforo chamado NPL Super Black. Essa tinta absorvia uma quantidade maior da luz visível, fazendo com que o preto comum parecesse simplesmente cintilante. Seu macacão de tecido e seu capacete rígido também eram escuros.
Curvado sobre a moto, ele se aproximou do fim da aléia. Adiante abria-se um pátio, um vazio escuro emoldurado pelos edifícios de alvenaria que compunham o Instituto Nacional do Câncer, um anexo do Instituto de Pesquisa Médica de Doenças Infecciosas do Exército americano (USAMRIID2 na sigla em inglês). Ali a guerra do país contra o bioterrorismo era travada em 5.500m2 de laboratórios de contenção máxima.
Gray desligou o motor, mas continuou sentado, o joelho esquerdo apoiado na sacola. Ali dentro estavam os setenta mil dólares. Ele permaneceu na aléia, evitando o pátio aberto. Preferia a escuridão. Já fazia bastante tempo que a Lua havia se posto, e só dali a 22 minutos o Sol nasceria. Até mesmo as estrelas permaneciam encobertas pelos indícios remanescentes da tempestade de verão da noite anterior.
Será que seu estratagema daria certo?
Ele subvocalizou ao microfone que trazia à garganta.
- Mula para Águia. Cheguei ao lugar do encontro. Vou continuar a pé.
- Recebido e entendido. Estamos acompanhando você por satélite.
Gray resistiu ao impulso de olhar para cima e acenar. Ele detestava ser observado, vigiado, mas esse negócio era importante demais. Conseguira obter uma concessão: ir ao encontro sozinho. Seu contato era desconfiado. Foram necessários seis meses para amaciá-lo, para arrumar intermediários na Líbia e no Sudão. Não fora nada fácil. O dinheiro não comprava muita confiança. Especialmente nesse negócio.
Ele pegou a sacola com o dinheiro e pendurou-a no ombro. Cauteloso, empurrou à moto para um canto abrigado da luz no outro lado, estacionou-a e passou uma perna por cima do assento.
Desceu a aléia.
Àquela hora, poucos olhos estavam alertas, e a maioria deles eram apenas eletrônicos. Todos os seus documentos de identificação haviam sido inspecionados no Portão da Fazenda Velha, a entrada de serviço da base. E agora ele tinha de confiar em que seu subterfúgio durasse o tempo necessário para escapar à vigilância eletrônica.
Ele deu uma olhadela no mostrador fosforescente de seu relógio de mergulhador Breitling: 04:45h. O encontro estava marcado para dali a 15 minutos. Muita coisa dependia de seu êxito ali.
Gray chegou a seu destino, o Edifício 470, deserto àquele hora, aguardando demolição no mês seguinte. Com segurança precária, o edifício era perfeito para o encontro, embora a escolha do lugar também fosse singularmente irônica. Na década de 1960, esporos de antraz haviam sido produzidos no interior do edifício, em cubas e tanques imensos, fermentando cepas de morte bacteriana, até a cervejaria tóxica ser desativada em 1971. Desde então, o edifício fora abandonado, transformando-se num depósito gigantesco do Instituto Nacional do Câncer.
Porém, mais uma vez, o negócio do antraz seria conduzido sob aquele teto. Ele olhou para cima. Todas as janelas estavam escuras. Ele tinha de encontrar o vendedor no quarto andar.
Chegando à porta lateral, abriu a fechadura com um cartão eletrônico fornecido pelo seu contato na base. No ombro, trazia a segunda parte do pagamento do homem; a primeira parte fora transferida um mês antes para a conta bancária dele. Gray também carregava um punhal de plástico carbonizado, de trinta centímetros comprimento, numa bainha de pulso oculta.
Sua única arma.
Ele não poderia correr o risco de entrar com qualquer outra coisa pelo portão de segurança.
Gray fechou a porta e dirigiu-se ao poço da escada, situado à direita. A única luz na escada provinha do sinal de SAÍDA vermelho. Ele estendeu a mão para o seu capacete de motociclista e acionou o modo de visão noturna. O mundo iluminou-se em tons de verde e prata. Ele subiu rapidamente a escada até o quarto andar.
No alto, empurrou a porta na plataforma e entrou.
Ele não fazia a menor idéia de onde deveria encontrar-se com o seu contato. Apenas que teria de aguardar o sinal do homem. Parou para tomar fôlego junto à porta, inspecionando o espaço à sua frente. Ele não gostava daquilo.
O poço da escada abria-se no canto do edifício. Um corredor estendia-se bem em frente; o outro dobrava à esquerda. Portas de escritório de vidro fosco revestiam as paredes internas; janelas rasgavam a externa. Ele continuou sempre em frente, a passos lentos, alerta a qualquer sinal de movimento.
Uma torrente de luz atravessou uma das janelas, derramando-se sobre ele.
Ofuscado pela visão noturna, ele encostou-se à parede, voltando para a escuridão. Será que o tinham visto? O fluxo de luz penetrou nas outras janelas, uma após a outra, indo até o saguão diante dele.
Encostado à parede, ele olhou através de uma das janelas. Ela dava para o amplo pátio em frente do edifício. No outro lado do caminho, observou um Humvee3 descer lentamente a rua. Seu holofote varria o pátio.
Uma patrulha.
Será que a vigilância assustaria seu contato?
Praguejando em silêncio, Gray esperou que o jipe terminasse sua ronda. A patrulha desapareceu por um momento, passando por trás de uma estrutura volumosa que se elevava do meio do pátio lá embaixo. Ela se parecia com uma nave espacial enferrujada, mas na verdade era uma esfera de contenção de aço de um milhão de litros, com a altura de três andares, apoiada numa dezena de pernas que lhe serviam de pedestal. Escadas e plataformas circundavam a estrutura enquanto ela era reformada, uma tentativa de devolvê-la à sua antiga glória, quando era uma instalação de pesquisas para a Guerra Fria. Até mesmo o passadiço de aço que outrora rodeara o equador da esfera fora reposto.
Gray sabia o apelido da esfera gigante na base.
Bola Oito.
Um sorriso sem graça vincou seus lábios quando ele se deu conta de sua situação desfavorável.
Encurralado atrás da bola oito...
A patrulha por fim reapareceu além da estrutura, cruzou lentamente a parte da frente do pátio e afastou-se.
Satisfeito, Gray prosseguiu em direção ao fim do corredor. Um conjunto de portas de vaivém duplas bloqueava a passagem, mas suas vidraças finas revelavam uma sala maior além. Ele avistou alguns tanques altos e esguios de metal e vidro. Um dos antigos laboratórios. Sem janelas e às escuras.
Deviam ter percebido sua aproximação.
Uma luz diferente tremeluzia lá dentro, incandescente, forte o bastante para que Gray desligasse sua visão noturna. O clarão de uma lanterna. Piscou três vezes.
Um sinal.
Ele se encaminhou para a porta de vaivém, abriu um dos lados com um dedo do pé e esgueirou-se pela abertura estreita.
- Aqui - disse com calma uma voz.
Era a primeira vez que Gray ouvia a voz de seu contato. Antes, o som dela sempre fora amortecido eletronicamente, um nível paranóico de anonimato.
Era uma voz feminina. A revelação aguçou sua cautela. Ele não gostava de surpresas.
Seguiu através de um labirinto de mesas com cadeiras empilhadas em cima. Ela estava sentada a uma das mesas, sobre a qual outras cadeiras ainda estavam amontoadas. Exceto uma. No lado oposto da mesa. A cadeira moveu-se quando a mulher chutou uma de suas pernas.
- Sente-se.
Gray supusera que fosse encontrar um cientista nervoso, alguém que tencionava receber um salário extra. Traição por dinheiro estava se tornando cada vez mais comum entre as mais destacadas instituições de pesquisa.
O USAMRIID não era exceção... só que mil vezes mais letal. Cada frasco à venda, se fosse adequadamente aerossolizado numa estação do metrô ou num terminal de ônibus, era capaz de matar milhares de pessoas.
E ela estava vendendo 15 deles.
Ele acomodou-se na cadeira, pondo a sacola com o dinheiro sobre a mesa.
A mulher era asiática... não, eurasiática. Seus olhos eram mais abertos e sua pele tinha um profundo e belo bronzeado. Ela usava um macacão de gola alta, não muito diferente do dele, apertando um corpo esbelto e gracioso. Um pingente de prata pendia de seu pescoço, reluzente contra o macacão, exibindo um minúsculo amuleto com um dragão enrascado. Gray observou-a atentamente. As feições da Dama do Dragão, em vez de tensas e circunspectas como as dele, pareciam entediadas.
É claro que a Sig Sauer de 9mm apontada para o peito dele e equipada com um silenciador poderia ser a fonte da confiança dela. Mas as palavras que ela proferiu em seguida é que na verdade fizeram seu sangue gelar.
- Boa-noite, comandante Pierce.
Ele sobressaltou-se ao ouvir seu nome.
Se ela sabia que...
Ele já estava em movimento... mas era tarde demais.
A arma disparou à queima-roupa.
O impacto projetou seu corpo para trás, levando junto a cadeira. Ele caiu de costas, embaraçado nas pernas da cadeira. A dor comprimiu seu peito, tornando impossível respirar. Ele sentiu o gosto de sangue na língua.
Traído...
Ela contornou a mesa e debruçou-se sobre a sua forma estatelada, a arma ainda apontada, não lhe deixando nenhuma chance. O pingente de prata com o dragão balançava e cintilava intensamente.
- Suspeito que você esteja gravando tudo isto através do seu capacete, comandante Pierce. Talvez até transmitindo para Washington... para a Sigma. Você não se incomoda se eu tomar emprestado um pouco do tempo de transmissão, não é mesmo?
Ele não estava em condições de objetar.
A mulher inclinou-se um pouco mais sobre ele.
- Nos próximos dez minutos, a Guilda fechará todo o Forte Detrick. Contaminará a base inteira com antraz. É o troco pela interferência da Sigma na nossa operação em Omã. Mas devo a seu diretor, Painter Crowe, algo mais. Algo pessoal. Isto é pela minha companheira de ação, Cassandra Sanchez.
A arma deslocou-se para a viseira do capacete dele.
- Sangue por sangue.
Ela puxou o gatilho.



05:02h
Washington, d.c.

A setenta quilômetros de distância, a alimentação do satélite extinguiu-se.
- Onde está a câmera de reserva dele? - Painter Crowe manteve a voz firme, reprimindo uma litania de imprecações. O pânico de nada lhes adiantaria.
- Continua desligada há dez minutos.
- Você pode restabelecer a conexão?
O técnico fez que não com a cabeça.
- Perdemos a alimentação principal da câmera no capacete dele. Mas ainda temos a vista aérea da base transmitida pelo satélite NRO.4
O rapaz indicou outro monitor. Ele exibia uma imagem em preto e branco do Forte Detrick, filmada de cima, focalizando um pátio quadrangular rodeado por edifícios.
Painter andava de um lado para outro diante da sucessão de monitores. Tudo fora uma armadilha, direcionada contra a Sigma e visando a ele em particular.
- Alertem a segurança do Forte Detrick.
- Senhor?
A pergunta era do vice-diretor, Logan Gregory.
Painter entendeu a hesitação de Logan. Apenas um pequeno número de pessoas no poder sabia da Sigma e dos agentes que nela trabalhavam: o presidente, os chefes da junta e seus supervisores imediatos na DARPA.5 Depois do estremecimento entre os membros da alta administração no ano anterior, a organização estava sob intensa vigilância.
Erros não seriam tolerados.
- Eu não poria um agente em risco - disse Painter. - Chame-os de volta.
- Sim, senhor.
Logan dirigiu-se a um telefone no outro lado da sala. O homem parecia mais um surfista da Califórnia do que um importante estrategista: cabelos louros, bronzeado, em boa forma, mas começando a ficar com a barriga meio flácida. Painter era sua sombra mais escura, meio indígena americano, cabelos pretos, olhos azuis. Mas não era bronzeado. Ele não sabia quando vira o sol pela última vez.
Painter precisava sentar-se, baixar a cabeça até os joelhos. Ele havia assumido o controle da organização apenas oito meses atrás. E a maior parte desse tempo fora gasta na reestruturação e no reforço da segurança depois da infiltração do grupo por um cartel internacional conhecido como Guilda. Fora impossível dizer quais informações haviam sido recolhidas, vendidas ou disseminadas durante esse tempo, de modo que tudo teve de ser expurgado e reconstruído a partir do zero. Até o comando central deles havia sido transferido de Arlington para um labirinto subterrâneo em Washington.
Na verdade, Painter chegara cedo naquela manhã, a fim de desembalar caixas em seu novo escritório, quando recebeu a chamada de emergência do reconhecimento por satélite.
Ele observou com atenção o monitor do satélite NRO.
Uma cilada.
Ele sabia o que a Guilda andava fazendo. Quatro semanas antes, ele havia começado a pôr agentes secretos em campo de novo, os primeiros em mais de um ano. Foi um teste experimental. Duas equipes. Uma em Los Alamos, investigando o desaparecimento de um banco de dados nucleares... e a outra em seu próprio quintal, no Forte Detrick, apenas a uma hora de Washington.
O ataque da Guilda procurava abalar a Sigma e seu líder. Para provar que a Guilda ainda tinha conhecimentos para arruinar aos poucos a Sigma. Era um artifício para obrigar a Sigma a recuar novamente, a se reorganizar, talvez a se dissolver. Com o grupo de Painter fora de ação, a Guilda tinha maior chance de operar com impunidade.
Isso não devia acontecer.
Painter parou de andar de um lado para outro e voltou-se para o vice-diretor, a pergunta inteligível em seu rosto.
- Eu continuo tendo interrupções - disse Logan, apontando para os fones de ouvido. - Estão ocorrendo interrupções de comunicação intermitentes em toda a base.
Sem dúvida, obra da Guilda também...
Frustrado, Painter debruçou-se sobre o console e olhou fixamente para o dossiê da missão. No alto do arquivo de papel-manilha, estava impressa uma única letra grega.
?
Em matemática, sigma representava "a soma de todas as partes", a unificação de conjuntos díspares num todo. Também simbolizava a organização que Painter dirigia: a Força Sigma.
Operando sob os auspícios do DARPA - o setor de pesquisa e desenvolvimento do Departamento de Defesa -, a Sigma servia de braço armado secreto da agência no mundo, desenvolvida para salvaguardar, adquirir ou neutralizar tecnologias vitais à segurança dos Estados Unidos. Os membros de sua equipe eram um quadro ultra-secreto de ex-soldados das Forças Especiais que haviam sido escolhidos a dedo e matriculados em rigorosos programas de doutoramento de curta duração, abrangendo uma vasta gama de disciplinas científicas, constituindo uma equipe militarizada de agentes secretos com formação técnica.
Ou, em termos mais simples, cientistas assassinos.
Painter abriu o dossiê à sua frente. A ficha do líder da equipe era a primeira do arquivo.
Dr. e comandante Grayson Pierce.
A fotografia do agente encarava-o do canto superior direito. Tratava-se de uma foto do rosto do homem tirada durante seu ano de prisão em Leavenworth. Cabelos escuros cortados bem curtos à navalha, olhos azuis sempre zangados. Sua herança galesa era evidente nos ossos malares pronunciados, nos olhos arregalados e na mandíbula forte. Mas sua tez corada era inteiramente texana, queimada pelo sol que pairava acima das áridas colinas do Condado de Brown.
Painter não se deu o trabalho de correr os olhos pela ficha de mais de 2,5 centímetros de espessura. Ele conhecia os detalhes. Gray Pierce entrara para o Exército aos 18 anos, para os Rangers aos 21, e servira com distinção em campo e fora dele. Então, aos 23 anos, foi submetido à corte marcial por agredir um oficial superior. Painter conhecia os detalhes e os antecedentes dos dois na Bósnia. E, levando os acontecimentos em consideração, ele talvez tivesse feito o mesmo. No entanto, as regras eram duras nas Forças Armadas. O condecorado soldado passou um ano em Leavenworth.
Porém, Gray Pierce era valioso demais para ser posto de lado para sempre.
Seu treinamento e suas habilidades não poderiam ser desperdiçados.
A Sigma o recrutara três anos antes, logo após sair da prisão.
Agora Gray era um joguete entre a Guilda e a Sigma.
Alguém prestes a ser esmagado.
- Consegui entrar em contato com a segurança da base! - exclamou Logan, o alívio soando em sua voz.
- Entenda-se com eles...
- Senhor! - O técnico levantou-se de um salto, ainda preso a seu console pelo fio dos fones de ouvido. Ele olhou para Painter. - Diretor Crowe, eu estou captando um sinal de alimentação de áudio.
- O quê...? - Painter aproximou-se do técnico. Ele ergueu uma das mãos para manter Logan a distância.
O técnico aumentou o volume da alimentação nos alto-falantes.
Uma voz metálica chegou até eles, embora a alimentação de vídeo continuasse funcionando mal.
Formou-se uma palavra.
"Váparaoinfernosuafilhadaputademerda..."



05:07h
Frederick, Maryland
Gray libertou um calcanhar, acertando a mulher no diafragma. Ele sentiu um agradável baque de carne, mas não ouviu nada. Seus ouvidos zuniam por causa do impacto da bala contra seu capacete de Kevlar.6 O tiro havia transformado a viseira numa teia de aranha. Seu ouvido esquerdo ardeu quando o painel eletrônico entrou em curto-circuito com uma explosão de estática.
Ele ignorou tudo isso.
Erguendo-se, tirou furtivamente o punhal carbonizado da bainha de pulso e mergulhou sob uma fila de mesas próxima. Outro disparo, com o som de um tossido alto, reverberou em seus ouvidos. Lascas de madeira desprenderam-se do canto da mesa.
Ele limpou a outra extremidade e ficou agachado em alerta enquanto esquadrinhava a sala. Seu chute havia derrubado a lanterna da mulher, que rolou no chão, espalhando sombras por toda a parte. Ele passou os dedos pelo peito. O impacto no corpo causado pelo primeiro disparo da assassina ainda queimava e doía.
Mas não havia sangue.
A mulher gritou-lhe das sombras.
- Colete de proteção líquido.
Gray abaixou-se ainda mais, tentando localizar a mulher. O mergulho sob a mesa havia danificado o visor frontal interno de seu capacete. Suas imagens holográficas oscilavam de maneira incoerente pelo interior da viseira do capacete, interferindo em suas linhas de visão, mas ele não ousou tirar o capacete. Este oferecia a melhor proteção contra a arma que a mulher ainda empunhava.
O capacete e seu macacão.
A assassina tinha razão. Colete de proteção líquido. Desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisas do Exército americano em 2003. O tecido de seu macacão fora impregnado com um fluido espessante ao corte - micro-partículas duras de sílica suspensas numa solução de polietilenoglicol. Durante o movimento normal, ele agia como um líquido, mas, ao ser atingido por uma bala, o material solidifica-se num escudo rígido, evitando a penetração. O macacão acabara de salvar a sua vida.
Pelo menos por ora.
A mulher voltou a falar, com uma calma fria, enquanto dava a volta lentamente em direção à porta.
- Eu preparei o edifício com C47 e TNT. Foi bastante fácil, porque a estrutura vai ser demolida. O Exército foi muito legal em ter instalado os fios elétricos com antecedência. Foi necessário apenas fazer uma pequena alteração no detonador para transformar a implosão do edifício numa explosão que causará uma corrente de ar ascendente.
Gray imaginou a resultante coluna de fumaça e os escombros erguendo-se bem alto no céu matinal.
- Os frascos de antraz... - murmurou, mas alto o suficiente para que ela ouvisse.
- Parecia adequado usar a própria demolição da base como um sistema de descarga tóxica.
Deus do céu, ela havia transformado o edifício inteiro numa bomba biológica.
Com os ventos fortes, não era só a base que corria perigo, mas toda a cidade de Frederick, nas imediações.
Gray mexeu-se. Ela precisava ser detida. Mas onde ela estava?
Ele então andou devagar em direção à porta, atento à arma dela, mas não poderia deixar isso detê-lo. Havia muita coisa em jogo. Ele tentou ligar o modo de visão noturna, porém tudo o que obteve foi o estalido de outra centelha próximo ao ouvido. O visor do campo visual prosseguia com sua errática produção de lampejos, ofuscação e perturbação dos olhos.
Merda.
Ele abriu o fecho com o polegar e puxou o capacete.
A recente corrente de ar cheirava a mofo e a anti-séptico ao mesmo tempo. Permanecendo abaixado, ele segurou o capacete numa das mãos e o punhal na outra. Alcançou a parede de trás e precipitou-se para a porta. Conseguia ver bastante bem para perceber que a porta de vaivém não havia se mexido. A assassina ainda estava na sala.
Mas onde?
E o que poderia fazer para detê-la? Ele apertou o cabo do punhal. Arma de fogo contra punhal. As chances não eram nada boas.
Sem o capacete, ele divisou um deslocamento de sombras perto da porta. Parou, ficando completamente imóvel. Ela estava agachada a um metro da porta, protegida por uma mesa.
Uma luz aquosa filtrava-se do saguão, irradiando-se através das vidraças das portas de vaivém. A aurora aproximava-se, iluminando a passagem além. A assassina teria de se expor para fugir. Por enquanto, ela aferrava-se às sombras do laboratório sem janelas, sem saber se o seu oponente estava armado ou não.
Gray tinha de parar de fazer o jogo da Dama do Dragão.
Com um gesto largo, jogou seu capacete no lado oposto do laboratório. Este caiu no chão com um estrondo e tinido de vidro, despedaçando um dos velhos tanques.
Ele correu em direção ao lugar onde ela estava. Só dispunha de segundos.
A mulher saiu de seu esconderijo e girou para disparar na direção do barulho. Ao mesmo tempo, saltou graciosamente em direção à porta, parecendo usar o coice de sua arma para impulsioná-la.
Gray não pôde deixar de ficar impressionado - mas não o bastante para que isso o retardasse.
Com o braço já erguido, arremessou o punhal no ar. Com peso e equilíbrio perfeitos, a lâmina carbonizada voou com precisão certeira.
Ele atingiu a mulher bem na concavidade da garganta.
Gray continuou seu ataque impetuoso.
Só então é que se deu conta de seu erro.
O punhal ricocheteou inofensivamente e caiu no chão com um estardalhaço.
Colete de proteção líquido.
Não era de admirar que a Dama do Dragão soubesse a respeito do macacão dele. Ela também usava um igual.
Todavia, o ataque frustrou o salto. Ela caiu com um meio estrondo, torcendo claramente um joelho. Mas sempre a assassina experiente, jamais perdia seu alvo de vista.
A um passo de distância, apontou a Sig Sauer para o rosto de Gray.
E dessa vez ele não estava de capacete.



05:09h
Washington, D.C.

- Perdemos contato de novo - disse o técnico desnecessariamente.
Painter ouvira o ruído da queda um momento antes, e então tudo ficou em completo silêncio na alimentação do satélite.
- Eu ainda estou em contato com a segurança da base - disse o vice-diretor pelo telefone.
Painter tentou juntar os fragmentos da cacofonia que ouvira pela linha.
- Ele arremessou seu capacete.
Os outros dois homens o encararam.
Painter observou o dossiê aberto diante de si. Grayson Pierce não era tolo. Além de sua destreza militar, o homem antes de tudo chamara a atenção da Sigma por causa de seus testes de aptidão e inteligência. Ele sem dúvida estava acima da média, muito acima, mas havia soldados com escores ainda mais altos. O fator decisivo que levou a recrutá-lo havia sido seu comportamento estranho enquanto esteve preso em Leavenworth. Apesar dos trabalhos forçados do campo, Grayson iniciara um rigoroso regime de estudo: em química avançada e taoísmo. Essa disparidade na escolha de seus objetos de estudo despertara a curiosidade de Painter e do ex-diretor da Sigma, o dr. Sean McKnight.
De muitas formas, ele se revelou uma contradição ambulante: um galês que vivia no Texas, um estudante do taoísmo que ainda trazia consigo um rosário, um soldado que estudava química na prisão. Essa singularidade de seu espírito é que lhe havia assegurado admissão na Sigma.
Mas essas características distintivas tinham seu preço.
Grayson Pierce não trabalhava bem com outras pessoas. Tinha profunda aversão ao trabalho de equipe.
Como agora. Fazendo o trabalho sozinho. Contra o protocolo.
- Senhor? - insistiu o vice-diretor.
Painter respirou fundo.
- Só mais dois minutos.



05:10h
Frederick, Maryland

O primeiro tiro passou assobiando por sua orelha.
Gray teve sorte. A assassina disparara depressa demais, antes de estar devidamente pronta. Gray, ainda fazendo sua investida, conseguiu sair do caminho. Um tiro na cabeça não era tão fácil quanto os filmes faziam parecer.
Ele atracou-se com a mulher e imprensou a arma dela entre os dois. Mesmo que ela disparasse, ele ainda teria uma boa probabilidade de sobreviver.
Só que doeria pra diabo.
Ela disparou, comprovando este último ponto de vista.
A bala atingiu a coxa esquerda dele. Parecia o golpe de um martelo, ferindo até a medula. Ele gritou. E por que diabos não haveria de gritar? Doía pra caralho. Porém, ele não largou a Dama do Dragão. Usou sua ira para dar uma cotovelada na garganta dela. Mas o colete de proteção enrijeceu, protegendo-a.
Maldição.
Ela tornou a apertar o gatilho. Ele era mais pesado do que ela, mais musculoso do que ela, mas ela não precisava da força de punhos e joelhos. Tinha à sua disposição o poder da artilharia moderna. O impacto inesperado da bala se fez sentir nas suas entranhas. Com a dor espicaçando-o até a espinha dor-sal, ele acabou perdendo o fôlego. Ela movia lentamente a arma para cima.
A Sig Sauer tinha um pente de 15 cartuchos. Quantos disparos ela havia feito? Com certeza, ainda tinha o suficiente para esmagá-lo.
Ele precisava pôr um fim àquilo.
Inclinou a cabeça para trás e acertou o rosto dela com a testa. Mas ela não era nenhuma novata em pancadaria. Virou a cabeça, recebendo o golpe no lado do crânio. No entanto, isso deu a ele tempo suficiente para chutar um fio que pendia da mesa próxima. A luminária de leitura presa a ela espatifou-se no chão. A cúpula de vidro verde estilhaçou-se.
Abraçando com força a mulher, ele a rolou sobre a luminária. Era esperar demais que o vidro penetrasse no macacão dela. Mas não era esse o objetivo dele.
Ele ouviu o estalido da lâmpada da luminária sob o peso de ambos.
Ótimo.
Flexionando as pernas sob o próprio corpo, Gray pulou para fora. Era uma tentativa arriscada. Ele voou em direção ao interruptor ao lado da porta de vaivém.
Um tossido da pistola acompanhou uma pancada na região dorsal de sua coluna.
Seu pescoço arqueou-se violentamente para trás. Seu corpo chocou-se com a parede. Quando ele ricocheteou, sua mão tocou o quadro de luz e, com um movimento rápido, ligou o interruptor. Luzes bruxulearam pelo laboratório, instáveis. Instalação elétrica ruim.
Ele voltou em direção à assassina.
Não tinha a expectativa de eletrocutar sua adversária. Isso também só acontecia nos filmes. Não era esse o seu objetivo. Em vez disso, ele esperava que a última pessoa que usara a escrivaninha houvesse deixado a luminária ligada.
Mantendo-se de pé, ele virou-se.
A Dama do Dragão estava sentada sobre a luminária quebrada, o braço estendido para ele, a arma fazendo mira. Ela puxou o gatilho, mas errou o alvo. Uma das vidraças da porta de vaivém estilhaçou-se.
Gray afastou-se para o lado, ficando fora de alcance. A mulher não podia seguir seu rastro. Ela estava rigidamente paralisada no lugar, incapaz de mover-se.
- Colete de proteção líquido - disse ele, repetindo as palavras que ela pronunciara antes. - O líquido é adequado para um macacão flexível, mas também possui uma desvantagem.
Ele aproximou-se dela todo empertigado e tomou-lhe a arma.
- O polietilenoglicol é um álcool, um bom condutor de eletricidade. Mesmo uma pequena descarga, como a da lâmpada quebrada, flui em segundos sobre um macacão. E, como no caso de qualquer ataque, o macacão reage.
Ele chutou-lhe a canela. O macacão estava duro feito uma rocha.
- (^_^)/ Ele enrijece no corpo.
O próprio macacão dela transformara-se em sua prisão.
Ele a revistou rapidamente quando ela fez menção de fugir. Com esforço, ela poderia avançar devagar, mas não mais do que o Homem de Lata enferrujado de O Mágico de Oz.
Ela entregou os pontos. Seu rosto estava ruborizado pelo esforço.
- Você não vai encontrar nenhum detonador. Está tudo num cronômetro. Ajustado para... - Os olhos dela baixaram para o relógio de pulso. - ...daqui a dois minutos. Você jamais desativará todas as cargas.
Gray observou o número no relógio dela cair abaixo de 02:00h.
A vida dela também estava presa àquele número. Ele vislumbrou o medo em seus olhos - assassina ou não, ela também era humana e temia sua própria mortalidade -, mas todo o seu rosto endureceu-se, harmonizando com seu macacão rígido.
- Onde você escondeu os frascos?
Ele sabia que ela não lhe diria. Mas prestou atenção aos olhos dela. Por um momento, as pupilas moveram-se ligeiramente para cima, depois o focalizaram.
O teto.
Fazia sentido. Ele não precisava de nenhuma outra confirmação. O antraz - Bacillus anthracis - era sensível ao calor. Se ela quisesse que o fluxo de esporos tóxicos se disseminasse para fora em virtude da explosão, os frascos teriam de estar num lugar bem alto, para serem pegos pelo violento deslocamento inicial de ar e lançados em direção ao céu. Ela não poderia correr o risco de que o calor da explosão incinerasse a bactéria transformada em arma.
Antes que ele se movesse, ela cuspiu nele, acertando-o na bochecha.
Ele não se deu o trabalho de limpar o rosto.
Não tinha tempo.
01:48.
Ele empertigou-se e correu para a porta.
- Você jamais vai conseguir! - ela gritou atrás dele.
De algum modo, ela sabia que ele estava indo atrás da bomba biológica, e não fugindo para salvar a própria vida. E, por alguma razão, isso o irritava. Provavelmente, ela o conhecia bem o bastante para fazer aquela suposição.
Ele desceu a toda o corredor externo e deslizou para o poço da escada. Subiu às pressas os dois lances para chegar à porta que dava para o teto. A saída fora modificada para se enquadrar aos padrões da OSHA.8 Uma barra de emergência bloqueava a porta, que servia para uma rápida evacuação, sem causar pânico, no caso de incêndio.
Pânico definia muito bem aquele momento.
Ele golpeou a barra, fazendo disparar um alarme Klaxon, e saiu para o cinza-escuro do alvorecer. O teto era de alcatrão e papel. Areia rangia sob seus pés. Ele sondou a área. Havia muitos lugares para esconder os frascos: respiradouros, canos de exaustão, antenas de satélite.
Onde?
Seu tempo esgotava-se.



05:13h
Washington, D.C.

- Ele está no teto! - exclamou o técnico, espetando um dedo no monitor do satélite NRO.
Painter inclinou-se um pouco mais e viu uma figura minúscula aparecer na tela. O que Grayson estava fazendo no teto? Painter esquadrinhou a área próxima.
- Algum sinal de perseguição?
- Nenhum que eu possa detectar, senhor.
Logan falou pelo telefone.
- A segurança da base relata um alarme de incêndio no Edifício 470.
- Ele deve ter disparado o alarme de evacuação - interpôs o técnico.
- Você pode chegar mais perto? - perguntou Painter.
O técnico fez que sim com a cabeça e acionou um interruptor. A imagem deu um zoom em Grayson Pierce. Ele estava sem o capacete. Sua orelha esquerda parecia manchada, ensangüentada. Ele permanecia de pé junto à entrada.
- O que ele está fazendo? - perguntou o técnico.
- A segurança da base está começando a agir - informou Logan.
Painter balançou a cabeça, mas uma fria certeza o congelou.
- Diga à segurança da base que é para ficar de fora. Mande-os evacuar qualquer pessoa próxima àquele edifício.
- Senhor?
- Faça o que eu mandei.



05:14h
Frederick, Maryland

Gray perscrutou o teto mais uma vez. O Klaxon de emergência continuava a gemer. Ele o ignorou, seguindo em frente. Tinha de pensar como sua presa.
Agachou-se. Havia chovido na noite anterior. Ele imaginou que só recentemente a mulher havia plantado os frascos, após o aguaceiro. Olhou com bastante atenção e notou onde a areia que a chuva afofara se interrompia. Não era muito difícil, porque ele sabia que ela havia passado por aquela porta. Era o único acesso ao teto.
Ele seguiu as pegadas dela.
Elas conduziam através do teto até um exaustor coberto.
Lógico.
O cano do exaustor serviria como a chaminé perfeita para expelir os esporos quando os andares inferiores do edifício explodissem, criando uma zarabatana tóxica.
Ajoelhando-se, ele viu onde ela havia mexido na tampa, desfazendo uma antiga camada de ferrugem. Ele não tinha tempo para procurar armadilhas. Puxou o exaustor com um grunhido.
A bomba estava dentro do cano. Os 15 frascos de vidro estavam dispostos em raios ao redor de uma pelota central de C4, suficiente para estilhaçar os recipientes. Ele olhou fixamente para o pó branco que enchia cada tubo. Mordendo o lábio inferior, estendeu a mão e, com extremo cuidado, tirou a bomba da abertura estreita do cano. Um cronômetro fazia a contagem regressiva.
00:54.
00:53.
00:52.
Livre do cano do exaustor, Gray empertigou-se. Checou rapidamente a bomba. Fora montada de uma forma que tornava impossível sua violação. Ele não tinha tempo para decifrar os fios e os componentes eletrônicos. A bomba ia explodir. Ele tinha de afastá-la do edifício, afastá-la da zona de explosão, de preferência, afastá-la de si.
00:41.
Uma única chance.
Ele colocou a bomba num bolso de náilon sobre um dos ombros e caminhou até a fachada do edifício. Holofotes convergiam para o edifício, atraídos pelo alarme. A segurança da base jamais chegaria ali a tempo.
Ele não tinha escolha.
Precisava livrar-se daquilo... a sua própria vida não importava.
Recuando vários passos da beira do teto, respirou fundo, em seguida correu a toda a velocidade em direção à fachada do edifício. Chegando à beira do teto, deu um longo salto, projetando-se por sobre o parapeito de tijolos.
Ele voou de uma altura de seis andares.



05:15h
Washington, D.C.

- Deus do céu! - exclamou Logan quando Grayson pulou do teto.
- Ele é doido de pedra - acrescentou o técnico, ficando de pé de um salto.
Painter simplesmente observou a manobra suicida do homem.
- Ele está fazendo o que deve fazer.



05:15h
Frederick, Maryland

Gray manteve as pernas sob o corpo, os braços estendidos em busca de equilíbrio. Ele mergulhava em direção ao solo. Recitou as leis da física: velocidade, trajetória e análise de vetores não o traíam.
Ele preparou-se para o impacto.
Dois andares abaixo e a 18 metros de distância, o teto esférico da Bola Oito erguia-se ao seu encontro. A esfera de contenção de um milhão de litros cintilava com o orvalho da manhã.
Ele girou no ar, fazendo um esforço violento para cair em pé.
Então o tempo acelerou. Ou ele.
Seus pés calçados com botas tocaram a superfície da esfera. O colete de proteção líquido cimentou em torno de seus calcanhares, protegendo-o contra uma fratura. O ímpeto projetou-o para a frente, de bruços, com os braços e as pernas estendidos. Porém, ele não atingira o centro do teto da esfera, apenas a curva da estrutura mais próxima do Edifício 470.
Seus dedos arranharam a superfície, mas não havia como agarrar-se, nenhuma tração.
Seu corpo deslizou pelo aço orvalhado, ficando ligeiramente oblíquo. Ele abriu as pernas, os dedos dos pés movendo-se em busca de fricção. Então passou do ponto sem retorno, em queda livre pelo lado escarpado.
Com a face pressionada contra o aço, não viu o passadiço até atingi-lo. Sua perna esquerda colidiu com ele, em seguida seu corpo tombou atrás dela. Ele caiu apoiado nas mãos e nos joelhos no alto do andaime de metal construído em volta do equador do globo de aço. Ficou em pé, as pernas trêmulas pelo esforço e pelo terror.
Ele não conseguia acreditar que ainda estivesse vivo.
Esquadrinhou a curva da esfera enquanto tirava a bomba biológica do bolso. A superfície da esfera de contenção era repleta de portinholas, outrora usadas pelos cientistas para observar seus experimentos biológicos no interior. Em todos os anos de uso regular, nenhum agente patogênico jamais escapara.
Gray rezou para que o mesmo acontecesse naquela manhã.
Ele olhou de relance para a bomba em sua mão: 00:18.
Sem tempo para xingar, correu ao longo do passadiço externo, à procura de uma portinhola. Encontrou-a a meio hemisfério de distância. Uma porta de aço com uma portinhola. Precipitou-se para ela, agarrou a maçaneta e puxou-a com força.
Ela recusou-se a mover-se.
Trancada.

05:15h
Washington, D.C.

Painter observou Grayson puxar com força a portinhola da esfera gigante. Notou o esforço frenético, reconheceu e entendeu a urgência. Ele vira o dispositivo explosivo ser recuperado do cano do exaustor. Sabia o objetivo da missão da equipe de Grayson: servir de isca para uma pessoa suspeita de traficar agentes patogênicos usados como armas.
Painter não tinha dúvidas sobre a forma de morte dentro da bomba.
Antraz.
Era evidente que Grayson não conseguira desativar o dispositivo e procurava desfazer-se dele de uma maneira segura.
Ele não estava tendo sorte.
De quanto tempo dispunha?



05:15h
Frederick, Maryland

00:18
Grayson voltou a correr. Talvez houvesse outra portinhola. Ele avançou pesadamente ao redor do passadiço. Tinha a impressão de que corria com botas de esquiar, os calcanhares ainda cimentados no macacão.
Contornou outro meio hemisfério.
Outra portinhola surgiu adiante.
- EI, VOCÊ! PARADO AÍ!
A segurança da base.
A veemência e o rugido do megafone quase o fizeram obedecer.
Quase.
Ele continuou correndo. A luz de um holofote espalhou-se sobre ele.
- PARE, SENÃO VAMOS ATIRAR!
Ele estava sem tempo para negociar.
Ouviu-se um barulho ensurdecedor de tiros do lado da esfera, alguns zunindo longe do passadiço. Nenhum perto dele. Tiros de advertência.
Ele alcançou a segunda portinhola, agarrou a maçaneta, girou-a e puxou-a com força.
Ela emperrou por um instante, em seguida abriu-se com um estalido. Ele suspirou de alívio.
Arremessou o dispositivo no interior oco da esfera, bateu a porta, trancando-a, apoiou as costas contra ela e foi deslizando até sentar-se.
- EI, VOCÊ AÍ! FIQUE ONDE ESTÁ!
Ele não tinha intenção de ir a lugar algum. Estava feliz onde estava. Sentiu um pequeno solavanco nas costas. A esfera soou como um sino badalando. O dispositivo explodira no interior, contido de maneira segura.
Mas era apenas o início de coisas piores que estavam por vir.
Como o embate de deuses titânicos, uma série de explosões dissonantes sacudiu o chão.
Bum... bum... bum...
Em seqüência, cronometradas, orquestradas.
Era a demolição programada do Edifício 470.
Mesmo insulado no outro lado da esfera, Gray sentiu a ligeira sucção do ar, depois um forte assobio de deslocamento quando o edifício inspirou pela última vez, para logo expirar. Uma densa parede de poeira e detritos arremessou-se para fora quando o edifício desabou. Gray olhou para o alto a tempo de ver uma possante nuvem de fumaça e poeira surgir repentinamente acima, crescendo e espalhando-se ao vento.
Mas a morte não viajava nessa brisa.
Uma última explosão ressoou do edifício agonizante. Ouviu-se um estrondo de tijolos e brita, uma avalanche de pedras. O solo agitou-se embaixo dele... e então ele ouviu um novo som.
O guincho de metal.
Sacudidas pelas explosões, com os alicerces abalados, duas das pernas que sustentavam a Bola Oito estalaram e curvaram-se, como se a esfera estivesse tentando ajoelhar-se. Toda a estrutura pendeu do edifício, em direção à rua.
Mais pernas estalaram.
E, uma vez iniciado, não havia como parar aquilo.
A esfera de contenção de um milhão de litros tombou em direção à fila de jipes da segurança.
Com Gray bem embaixo dela.
Ele tomou impulso e subiu com dificuldade pelo passadiço que se inclinava, esforçando-se para escapar ao impacto. Percorreu vários degraus, mas o caminho logo ficou íngreme demais, à medida que a esfera continuava a cair verticalmente. O passadiço transformou-se numa escada. Ele cravou os dedos na estrutura de metal e golpeou com as pernas o suporte das grades. Lutou para sair de sob a sombra do peso esmagador da esfera.
Fez uma última e desesperada investida, segurando firme, sem ceder um centímetro sequer.
A Bola Oito atingiu o gramado da frente do pátio e bateu na terra gredosa encharcada pela chuva. O impacto fez o passadiço voar, arremessando Gray de seu poleiro. Ele foi projetado por vários metros e caiu de costas na grama macia. Estivera a apenas poucos metros do solo.
Sentou-se e apoiou-se num dos cotovelos.
A fileira de jipes da segurança recuou quando a esfera caiu na direção deles.
Mas eles não permaneceriam afastados. E ele não deveria ser pego.
Gray levantou-se com um gemido e tropeçou rumo à nuvem de fumaça do edifício que desabara. Só então ele ouviu os alarmes soando por toda a base. Livrou-se do macacão enquanto caminhava, passando o crachá de identificação para seus trajes civis por baixo. Correu para o outro lado do pátio, para o edifício mais próximo, para onde deixara a motocicleta.
Encontrou-a intacta.
Jogando uma perna sobre o assento, girou a chave na ignição. O motor ronronou alegremente de volta à vida. Ele estendeu a mão para o acelerador, em seguida parou. Alguma coisa fora pendurada no guidom. Libertou o objeto, olhou-o por um momento e então o enfiou num dos bolsos.
Maldição...
Ele reduziu a velocidade do motor e avançou devagar em sua moto para um beco próximo. O caminho parecia livre no momento. Ele curvou-se, acelerou rapidamente e disparou por entre os edifícios escuros. Ao chegar à Rua Porter, fez uma curva fechada à esquerda, mudando rápido de direção, inclinando o joelho esquerdo para fora a fim de manter o equilíbrio. Apenas alguns carros dividiam a rua com ele. Nenhum deles parecia ser um veículo da Polícia Militar.
Gray ziguezagueou por entre eles e partiu a toda a velocidade em direção à parte mais rural da base que circundava Nallin Pond, uma região de pastagens com colinas de ondulações suaves e trechos cobertos com floresta de madeira de lei.
Ele esperaria o pior do tumulto passar e depois se mandaria. Por ora, estava seguro. Todavia, sentiu no bolso o peso do objeto, deixado como ornamento em sua moto.
Um cordão de prata... com um pingente exibindo um dragão.



05:48h
Washington, D.C.

Painter afastou-se do console do satélite. O técnico havia vislumbrado a fuga de Grayson de motocicleta quando ele surgiu do meio da nuvem d fumaça e poeira. Logan ainda estava ao telefone, transmitindo a informação através de uma série de canais secretos, dando o sinal de fim de alerta. Encoberto de cima, o problema na base seria atribuído a falha de comunicação, instalação elétrica defeituosa, equipamento em deterioração.
A Força Sigma jamais seria mencionada.
O técnico em satélites mantinha seu fone de ouvido no lugar.
- Senhor, há um telefonema do diretor da DARPA.
- Transfira-o para cá.
Painter pegou outro auscultador. Ele ouviu quando a comunicação desordenada foi desviada.
O técnico fez um aceno de cabeça para ele quando o silêncio na linha pareceu adquirir vida. Embora ninguém falasse, Painter quase podia sentir seu mentor e comandante.
- Diretor McKnight? - disse ele, suspeitando de que o homem estivesse telefonando para fazer um interrogatório após o término da missão.
Sua suspeita estava errada.
Ele percebeu o estresse na voz do outro homem.
- Painter, acabei de receber algumas informações secretas da Alemanha. Mortes estranhas numa catedral. Precisamos de uma equipe no local ao anoitecer.
- Tão rápido?
- Os detalhes seguirão dentro de 15 minutos. Mas vamos precisar do seu melhor agente para chefiar essa equipe.
Painter olhou para o monitor do satélite. Observou a motocicleta deslizar pelas colinas, tremeluzindo através do esparso abrigo de árvores.
- Talvez eu tenha esse homem. Mas posso perguntar a razão da urgência?
- Recebi um telefonema hoje de manhã solicitando que a Sigma investigasse o assunto na Alemanha. O seu grupo foi especificamente convocado.
- Convocado? Por quem?
Para fazer com que o dr. McKnight perdesse o sangue-frio, tinha de ser alguém da importância do presidente. Porém, mais uma vez, a suposição de Painter estava errada.
O diretor explicou.
- Pelo Vaticano.






CAPÍTULO 2

A cidade eterna



24 de julho, meio-dia
Roma, Itália

O almoço que ela combinara havia furado.
A tenente Rachel Verona desceu a escada estreita que conduzia ao subsolo da Basílica de São Clemente. A escavação sob a igreja vinha sendo feita havia dois meses, supervisionada por uma pequena equipe de arqueólogos da Universidade de Nápoles.
- Lasciate ogni speranza... - murmurou Rachel.
Sua guia, a professora Lena Giovanna, líder do projeto, virou-se, olhando-a de relance. Era uma mulher alta, de pouco mais de 50 anos, mas sua corcunda a fazia parecer mais velha e mais baixa. Deu a Rachel um sorriso cansado.
- Quer dizer então que a senhora conhece Dante Alighieri. Lasciate ogni speranza, voi ch'entrate! Abandonai toda a esperança, vós que aqui entrais.
Rachel sentiu uma pontada de embaraço. De acordo com Dante, essas palavras estavam escritas nos portões do Inferno. Ela não tivera a intenção de que suas palavras fossem ouvidas, mas a acústica ali embaixo quase não permitia privacidade.
- Não queria ofendê-la, professora.
Um riso abafado foi a resposta.
- Não me ofendi, tenente. Só fiquei surpresa de encontrar alguém na polícia militar versado na Divina Comédia, de Dante. Mesmo alguém que trabalhe para a Tutela Patrimonio Culturale dos Carabinieri.
Rachel entendeu o equívoco. Era bastante comum julgar como farinha do mesmo saco todos os membros do Corpo de Carabinieri. A maioria dos civis apenas via os homens e as mulheres uniformizados vigiando ruas e edifícios, armados com fuzis. Porém, ela ingressara nos carabinieri não como policial militar, mas com pós-graduação em psicologia e história da arte. Fora recrutada para o Corpo de Carabinieri logo após sair da universidade e passou mais dois anos estudando direito internacional na escola de formação de oficiais. Fora escolhida a dedo pelo general Rende, diretor da unidade especial responsável pela investigação de roubos de obras de arte e antigüidades, a Tutela Patrimonio Culturale.
Chegando ao fim da escada, Rachel pisou numa poça de lama. A tempestade dos últimos dias havia inundado o nível subterrâneo. Ela olhou para baixo irritada. Pelo menos, a poça só chegava até os calcanhares.
Ela usava um par de galochas emprestadas grandes demais, próprias para um homem. Carregava na mão esquerda seus novos escarpins Ferra-gamo, presente de aniversário da mãe. Não se atreveu a deixá-los na escada. Sempre havia ladrões por perto. Se ela perdesse os sapatos ou eles ficassem enlameados, sua mãe sempre voltaria a tocar no assunto.
A professora Giovanna, por outro lado, usava um macacão prático, um traje mais adequado para explorar ruínas alagadas do que a calça azul-marinho e a blusa de seda com estampa florida. Mas quando o pager de Rachel disparou 15 minutos antes, ela estava indo encontrar-se com a mãe e a irmã para almoçarem juntas. Não tivera tempo de voltar a seu apartamento e vestir o uniforme dos carabinieri. Ela tampouco acalentava a esperança de ainda participar daquele almoço.
Por isso seguira direto para ali, onde se encontrou com alguns carabinieri. Deixou os policiais militares na basílica enquanto começava a investigar o roubo.
Em alguns aspectos, Rachel estava contente pelo adiamento temporário. Ela protelara por muito tempo a comunicação à mãe de que ela e Gino haviam terminado. Na verdade, seu ex-namorado se mudara havia mais de um mês. Rachel já podia imaginar a deliberada decepção nos olhos da mãe, seguida pelos ruídos costumeiros, que significavam Eu lhe avisei, sem dizer em voz alta o que pensava. E sua irmã mais velha, casada havia três anos, ficaria girando intencionalmente no dedo a aliança de diamantes e sacudindo a cabeça de maneira circunspecta.
Nenhuma delas ficara satisfeita com a escolha profissional de Rachel.
- Como é que você vai prender um marido, sua maluca? - dissera sua mãe, erguendo os braços. - Você corta seus lindos cabelos curtos demais e dorme com uma arma. Nenhum homem pode competir com isso.
Por causa disso, Rachel raras vezes saía de Roma para visitar a família em Castel Gandolfo, na zona rural, onde esta se estabelecera após a Segunda Guerra Mundial, à sombra da residência de verão do papa. Só a sua avó é que a compreendia. Ambas tinham o mesmo amor por antigüidades e armas de fogo. Enquanto crescia, Rachel ouvira avidamente suas histórias sobre a guerra: relatos horripilantes misturados com humor negro. Sua nonna até mantinha uma Luger P-08 nazista na mesa-de-cabeceira, untada e polida, uma relíquia furtada de um guarda de fronteira durante a fuga de sua família. Para aquela mulher idosa não havia sapatinhos de bebê de tricô.
- É logo ali em frente - disse a professora. Ela chapinhou em direção a uma entrada reluzente. - Meus alunos estão tomando conta do sítio.
Rachel foi atrás de sua guia, chegou à entrada baixa e, curvando-se, entrou. Aprumou-se numa sala parecida com uma caverna. Iluminada por lanternas elétricas e de carbureto, a abóbada do telhado descrevia um arco acima, construída de blocos talhados de tufo vulcânico presos grosseiramente com argamassa. Uma gruta feita por mãos humanas. Sem dúvida, um templo romano.
Enquanto chapinhava na sala, Rachel também estava muito cônscia da importância da basílica acima. Dedicada a São Clemente no século XII, a igreja fora erguida sobre uma basílica mais antiga, cuja construção remontava ao século IV. Mas mesmo essa igreja antiga ocultava um mistério mais profundo: as ruínas de um pátio de edifícios romanos do século I, incluindo aquele templo pagão. Esse tipo de sobreposição de construções não era raro, uma religião soterrando outra, uma estratificação da história romana.
Ela sentiu um arrepio familiar percorrê-la, sofrendo a pressão do tempo de forma tão concreta quanto o peso das pedras. Embora um século soterrasse outro, ele ainda estava ali. A história primitiva da humanidade preservada em pedra e silêncio. Ali havia uma catedral tão rica quanto a que se erguia acima.
- Estes são meus dois alunos da universidade - disse a professora. - Tia e Roberto.
Na penumbra, Rachel seguiu o olhar da professora e olhou para baixo, descobrindo as formas agachadas do rapaz e da moça, ambos de cabelos pretos e também vestindo macacões sujos de lama. Eles estavam identificando com etiquetas fragmentos de cerâmica e agora se erguiam para cumprimentá-las. Ainda segurando os sapatos numa das mãos, Rachel apertou-lhes a mão. Embora tivessem idade para estar na universidade, pareciam ter pouco mais de 15 anos. Por outro lado, talvez fosse porque ela tivesse acabado de comemorar seu 30º aniversário e todos parecessem estar rejuvenescendo, menos ela.
- Por aqui - disse a professora, e conduziu Rachel a um vão na parede do outro lado. - Os ladrões devem ter agido durante a tempestade da noite passada.
A professora Giovanna apontou a lanterna para uma figura de mármore de pé num nicho distante. A estátua tinha um metro de altura - ou teria, se não estivesse faltando a cabeça. Restavam apenas um torso, pernas e um falo de pedra ereto. Um deus da fertilidade romano.
A professora balançou a cabeça, desolada.
- Uma tragédia. Era a única peça de estatuária intacta descoberta aqui.
Rachel entendeu a frustração da mulher. Estendendo a mão livre, ela deslizou-a sobre o coto do pescoço da estátua. Seus dedos sentiram uma aspereza familiar.
- Serra para metal - murmurou.
Era a ferramenta dos ladrões de sepulturas modernos, fácil de esconder e de manejar. Com um instrumento simples como aquele, ladrões haviam furtado, danificado e destruído obras de arte por toda Roma. O roubo acontecia em questão de segundos, muitas vezes à vista de todos, enquanto o curador estava de costas. E a recompensa valia o risco. O tráfico de antigüidades roubadas revelara-se um negócio lucrativo, superado apenas pelo tráfico de drogas, pela lavagem de dinheiro e pelo comércio de armas. A tal ponto que, em 1992, os militares criaram o Comando Carabinieri Tutela Patrimonio Culturale, a Polícia do Legado Cultural. Trabalhando ao lado da Interpol, eles procuravam deter essa onda.
Rachel agachou-se diante da estátua e sentiu uma ardência familiar na boca do estômago. Aos poucos, a história romana estava sendo apagada. Era um crime contra o próprio tempo.
- Ars longa, vita brevis - sussurrou, uma citação de Hipócrates. Uma de suas prediletas. A arte é longa, a vida é breve.
- É mesmo - disse a professora com a voz cheia de dor. - Era um achado magnífico. A cinzelagem, o detalhe sutil, a obra de um mestre artesão. Desfigurá-la de uma forma tão selvagem...
- Por que os sacanas não roubaram a estátua inteira? - perguntou Tia. - Pelo menos ela teria sido preservada intacta.
Rachel bateu de leve na protuberância fálica da estátua com um de seus sapatos.
- Apesar deste cabo, o objeto é grande demais. O ladrão já deve ter um comprador internacional. Seria mais fácil contrabandear apenas a cabeça através da fronteira.
- Existe alguma esperança de recuperá-la? - perguntou a professora Giovanna.
Rachel não fazia falsas promessas. Das seis mil peças de antigüidade roubadas no ano anterior, apenas umas poucas haviam sido recuperadas.
- Vou precisar de fotografias da estátua intacta para informar a Interpol, de preferência as que dêem destaque à cabeça.
- Temos um banco de dados digital - disse a professora Giovanna. - Posso enviar fotos por e-mail.
Rachel fez um sinal afirmativo com a cabeça e permaneceu concentrada na estátua decapitada.
- Ou Roberto simplesmente poderia nos dizer o que fez com a cabeça.
Os olhos da professora voaram para o rapaz.
Roberto recuou.
- O qu-quê?
Seu olhar pasmado percorreu a sala, pousando de novo em sua professora.
- Professore... creia-me, eu não sei de nada. Isto é loucura.
Rachel continuou a examinar atentamente a estátua decapitada - e a única pista de que dispunha. Ela havia pesado a vantagem de usar seus trunfos agora ou na delegacia. Mas isso implicaria entrevistar todo o mundo, tomar depoimentos, uma montanha de papéis. Ela fechou os olhos, pensando no almoço, para o qual já estava atrasada. Além disso, se tinha qualquer esperança de reaver a peça, a rapidez poderia revelar-se essencial.
Abrindo os olhos, falou com a estátua.
- Você sabia que 64% dos roubos arqueológicos têm como cúmplices pessoas que trabalham no sítio?
Ela voltou-se para o trio.
A professora Giovanna franziu o cenho.
- A senhora não acha mesmo que Roberto...
- Quando vocês descobriram a estátua? - perguntou Rachel.
- Há dois dias. Mas eu divulguei nossa descoberta no website da Universidade de Nápoles. Muitas pessoas sabiam.
- Mas quantas pessoas sabiam que o sítio ficaria desprotegido durante a tempestade da noite passada? - Rachel continuava concentrada numa pessoa. - Roberto, você tem algo a dizer?
O rosto dele era uma máscara congelada de incredulidade.
- Eu... não... eu não tenho nada a ver com isto.
Rachel desprendeu seu rádio do cinto.
- Então você não se importa se revistarmos seus aposentos. Talvez para encontrarmos uma serra de metal, algo com bastantes vestígios de mármore em seus dentes para combinar com esta estátua.
Um olhar selvagem familiar penetrou nos olhos dele.
- Eu... eu...
- A pena mínima é de cinco anos de prisão - ela pressionou. - Obbligatorio.
À luz da lanterna, ele empalideceu visivelmente.
- Isto é, a menos que você coopere. Pode-se obter clemência.
Ele meneou a cabeça, mas não estava claro o que negava.
- Você teve sua chance.
Ela aproximou o rádio dos lábios. O chiado da estática ecoou ruidosamente no espaço abobadado quando ela apertou o botão.
- Não!
Roberto ergueu a mão, interrompendo-a, como ela suspeitou que ele faria. Ele baixou o olhar para o chão.
Fez-se um longo silêncio. Rachel não o quebrou. Deixou o ambiente ficar pesado.
Por fim, Roberto deixou escapar um leve soluço.
- Eu... tinha dívidas... dívidas de jogo. Eu não tive escolha.
- Dio mio - disse a professora, levando uma das mãos à testa. - Ah, Roberto, como é que você pôde?
O estudante não tinha resposta.
Rachel conhecia a pressão exercida sobre o rapaz. Não era incomum. Ele era apenas um broto insignificante numa organização muito maior, tão amplamente difundida e entranhada que jamais poderia ser extirpada por completo. O máximo que Rachel poderia esperar era continuar arrancando as ervas daninhas.
Ela levou o rádio aos lábios.
- Carabiniere Gerard, estou indo para aí com alguém que tem informações extras.
- ...capito, Tenente...
Ela desligou o rádio. Roberto estava de pé com as mãos encobrindo o rosto, a carreira arruinada.
- Como a senhora soube? - perguntou a professora.
Rachel não se deu o trabalho de explicar que não era raro membros do crime organizado assediarem, solicitarem ou forçarem a cooperação de pessoas que trabalhavam em sítios arqueológicos. Essa corrupção era indiscriminada, pegando desprevenidos os que de nada suspeitavam, os ingênuos.
Ela afastou-se de Roberto. Com freqüência, era apenas uma questão de discernir quem era o ponto fraco na equipe de pesquisa. Com o rapaz, ela fizera uma suposição com base na experiência e depois exercera pressão a fim de ver se estava certa. Fora um risco usar seus trunfos cedo demais. E se tivesse sido Tia em vez de Roberto? Durante o tempo que Rachel teria gastado seguindo pistas falsas, Tia poderia ter advertido seus compradores. Ou, e se tivesse sido a professora Giovanna, aumentando seu salário na universidade vendendo sua própria descoberta? Havia tantas maneiras pelas quais tudo poderia ter dado errado. Porém, Rachel havia aprendido que era preciso correr riscos para obter recompensa.
A professora Giovanna continuava a encará-la com a mesma pergunta nos olhos. Como ela soubera, para acusar Roberto?
Rachel deu uma olhadela para o falo de pedra da estátua. Só havia uma pista - mas uma pista e tanto.
- Não é apenas a cabeça de cima que vende bem no mercado negro. Existe uma imensa demanda de arte antiga de natureza erótica. Ela vende quase quatro vezes mais do que as peças mais conservadoras. Suspeito que nenhuma de vocês duas teria tido qualquer problema em serrar esse apêndice proeminente, mas, por algum motivo, os homens são relutantes. Eles encaram isso de uma maneira muito pessoal.
Rachel balançou a cabeça e se dirigiu à escada que conduzia à basílica.
- Eles nem ao menos castram seus próprios cães



13:34h

Ainda assim, atrasadíssima...
Dando uma olhada no relógio, Rachel cruzou às pressas a praça com calçamento de pedras em frente à Basílica de São Clemente. Ela tropeçou numa pedra solta, deu alguns passos tropeçando, mas conseguiu manter o equilíbrio. Olhou de relance para trás, para a pedra, como se ela fosse culpada, e em seguida para os dedos dos pés.
Merda!
Um arranhão enorme danificara a borda externa de seu sapato.
Erguendo os olhos para o céu, perguntou-se qual santo ofendera. Àquela altura, elas deviam estar na fila para pegar um número.
Ela continuou a cruzar a praça, esquivando-se de um grupo de ciclistas que se dispersavam em torno dela como pombos assustados. Andava com mais cautela, lembrando-se das sábias palavras do imperador Augusto.
Festina lente. Apressa-te devagar.
Só que o imperador Augusto não teve uma mãe que vivia enchendo o saco dele.
Ela afinal alcançou seu Mini Cooper estacionado no canto da praça. O sol a pino fazia-o refletir um prateado ofuscante. Ela deu um sorriso, o primeiro do dia. O carro era outro presente de aniversário. Que ela dera a si mesma. As pessoas só faziam 30 anos uma vez na vida. Foi um pouco extravagante, sobretudo a opção pelo estofamento de couro e pelo modelo sedã conversível.
Mas era a alegria de sua vida.
Essa poderia ser uma das razões por que Gino a abandonara um mês atrás. O carro a inspirava muito mais do que o homem com quem ela dividia sua cama. Fora um bom negócio. O carro estava mais disponível emocionalmente.
Além do mais... era conversível. Ela era uma mulher que gostava de flexibilidade - se não podia obtê-la de seu homem, obtê-la-ia de seu carro.
Se bem que hoje estava quente demais para fazer topless.
Uma pena.
Ela abriu a porta, mas, antes de entrar no veículo, o telefone celular tocou no seu cinto.
O que seria agora?
Provavelmente era o carabiniere Gerard, em cujos cuidados ela acabara de deixar Roberto. O estudante estava a caminho da Delegacia Parioli para ser interrogado. Ela deu uma olhada no número de telefone no visor do aparelho. Reconheceu o código de discagem internacional - 3906 -, mas não o número.
Por que alguém do Vaticano estava lhe telefonando?
Rachel levou o aparelho ao ouvido.
- Aqui quem fala é a tenente Verona.
Uma voz familiar respondeu.
- Como a minha sobrinha predileta está passando hoje... além de irritar a mãe dela?
- Tio Vigor?
Ela sorriu. Seu tio, mais conhecido como monsenhor Vigor Verona, era diretor do Instituto Pontifício de Arqueologia Cristã. Mas ele não estava ligando de seu gabinete na universidade.
- Telefonei para a sua mãe, pensando que você estivesse com ela. Mas parece que um carabiniere não tem horário fixo de trabalho. Um fato, creio, do qual a sua querida mãe não gosta.
- Estou indo para o restaurante neste momento.
- Ou iria... se eu não tivesse telefonado.
Rachel apoiou uma das mãos no carro.
- Tio Vigor, o que você está...
- Já transmiti seu pedido de desculpas à sua mãe. Em vez do almoço, ela e sua irmã vão se encontrar com você para um jantar no início da noite. No II Matriciano. Você vai pagar, é claro, por causa do transtorno.
É claro que Rachel pagaria - e de muitas outras formas do que apenas em euros.
- O que significa tudo isto, tio?
- Preciso que você venha me encontrar no Vaticano. Imediatamente. Um passe estará à sua espera na Porta de Sant'Ana.
Ela deu uma olhada no relógio. Teria de cruzar meia Roma.
- Tenho de me encontrar com o general Rende na minha delegacia para acompanhar uma investigação já iniciada.
- Já falei com o seu comandante. Ele aprovou a sua vinda aqui. Na verdade, você vai ficar à minha disposição uma semana inteira.
- Uma semana?
- Ou mais. Eu lhe explicarei quando você chegar aqui.
Ele lhe deu instruções sobre o local onde queria que ela o encontrasse. O cenho dela franziu-se, mas, antes que ela pudesse fazer mais perguntas, seu tio se despediu.
- Ciao, mia bambina.
Sacudindo a cabeça, ela entrou no carro.
Uma semana ou mais?
Parecia que, quando o Vaticano falava, até os militares lhe davam ouvidos. Além do mais, o general Rende era amigo da família havia duas gerações. Ele e o tio Vigor eram próximos como irmãos. Não foi por mero acaso que Rachel chamara a atenção do general e fora recrutada ao sair da Universidade de Roma. Seu tio vinha cuidando dela desde a morte de seu pai num acidente de ônibus 15 anos antes.
Sob a tutela dele, ela passara muitos verões explorando os museus de Roma, hospedando-se na companhia das freiras de Santa Brígida, não muito distante da Universidade Gregoriana, mais conhecida como il Greg, onde o tio Vigor havia estudado e ainda lecionava. E, embora seu tio pudesse ter preferido que ela entrasse para o convento e seguisse seu exemplo, ele reconhecera que ela era endiabrada demais para uma profissão tão pia e a encorajara a seguir sua paixão. Ele também insulara nela outro veneno durante aqueles longos verões: o respeito e o amor pela história e pela arte, em que as maiores expressões da humanidade estavam cimentadas em mármore e granito, óleo e tela, vidro e bronze.
E agora parecia que seu tio ainda tinha algo para ela.
Pondo às pressas um par de óculos de sol de lentes azuis, ela entrou na Via Labicano e seguiu em direção ao maciço Coliseu. O tráfego engarrafou nas proximidades desse ponto turístico, mas ela ziguezagueou através de algumas ruelas estreitas e repletas de veículos estacionados de forma irregular. Ia a grande velocidade, engatando as marchas com a perícia de um piloto de Grande Prêmio. Reduziu a marcha quando se aproximou da entrada de uma praça circular onde cinco ruas convergiam num círculo insensato. Os visitantes consideravam os motoristas de Roma rabugentos, sem paciência e lentos. Rachel achava-os indolentes.
Ela se meteu entre um caminhão com carroceria aberta e excesso de carga e um utilitário Mercedes G500 quadrado. Seu Mini Cooper parecia um pardal adejando entre dois elefantes. Numa manobra rápida, ela ultrapassou o Mercedes, preencheu o espaço exíguo à frente dele, levou uma buzinada, mas já estava longe. Ela contornou rapidamente a praça e entrou na artéria principal que conduzia em direção ao rio Tibre.
Enquanto descia a toda a velocidade a ampla rua, ela mantinha um olho fixo no fluxo de veículos em todos os lados. Mover-se com segurança pelas ruas de Roma exigia menos cautela do que planejamento estratégico. Em conseqüência desse cuidado, Rachel prestou atenção à sua traseira.
O sedã preto BMW entrou de novo em posição, cinco carros atrás.
Quem a estava seguindo... e por quê?



14:05h

Quinze minutos mais tarde, Rachel entrou num estacionamento subterrâneo fora dos muros do Vaticano. Enquanto descia, ela esquadrinhou a rua atrás de si. O BMW preto desaparecera pouco depois de ela ter cruzado o rio Tibre. Ainda não havia nenhum sinal dele.
- Obrigada - disse ao telefone celular. - O carro foi embora.
- Você tem certeza?
Era o suboficial de sua delegacia. Ela havia telefonado enquanto era seguida e mantido o telefone ligado.
- Acho que sim.
- Quer que enviemos uma patrulha?
- Não é preciso. Há carabinieri de guarda na praça. Eu estarei bem a partir daqui. Ciao.
Ela não sentia o menor embaraço por ter dado um alarme falso. Não seria ridicularizada. O Corpo de Carabinieri encorajava certo grau de paranóia saudável entre seus membros de ambos os sexos.
Rachel encontrou uma vaga para estacionar, desceu do carro e trancou a porta. Todavia, ela manteve o telefone celular na mão. Teria preferido a 9mm. No alto da rampa, ela saiu do estacionamento e tomou o rumo da Praça de São Pedro. Embora se aproximasse de uma das obras-primas arquitetônicas do mundo, ficou de olho nas ruas e becos próximos.
Não havia nenhum sinal do BMW.
Talvez os ocupantes do carro fossem apenas turistas examinando os pontos turísticos da cidade num automóvel de luxo com ar-condicionado e não a pé, no calor intenso do meio-dia. O verão era a alta temporada, e todos os visitantes acabavam indo ao Vaticano. Era muito provável que fosse esse o motivo por que ela pensou estar sendo seguida. Não foi dito que todos os caminhos conduzem a Roma?
Ou, pelo menos nesse caso, todo o tráfego.
Satisfeita, ela pôs o telefone celular no bolso e cruzou a Praça de São Pedro em direção ao outro lado.
Como de costume, seus olhos percorreram toda a extensão da praça. No outro lado da Praça de Travertino, erguia-se a Basílica de São Pedro, construída sobre o túmulo do santo martirizado. Sua cúpula, projetada por Michelangelo, era o ponto mais alto de toda a Roma. Em cada lado, a colunata dupla de Bernini estendia-se em dois arcos amplos, emoldurando a praça em forma de buraco de fechadura situada no meio. De acordo com Bernini, a colunata representava os braços de São Pedro estendendo-se para acolher os fiéis na congregação. No alto desses braços, 140 santos de pedra empoleiravam-se e contemplavam o espetáculo embaixo.
E que espetáculo.
O que antes fora o circo de Nero continuava a ser um circo.
Ao redor, vozes tagarelavam em francês, árabe, polonês, hebraico, holandês, chinês. Grupos de turistas aglomeravam-se em ilhas em torno de guias; excursionistas de pé, com braços em torno dos ombros, davam sorrisos forçados ao posarem para fotografias; alguns devotos estavam de pé ao sol, com a Bíblia aberta nas mãos, a cabeça curvada em orações. Um minúsculo grupo de suplicantes coreanos ajoelhava-se nas pedras, todos trajando amarelo. Por toda a praça, ambulantes convenciam a multidão, vendendo moedas papais, rosários perfumados e crucifixos abençoados.
Rachel chegou gratamente ao outro lado da praça e aproximou-se de uma das cinco entradas do complexo principal: a Porta de Sant'Ana. A porta mais próxima de seu destino.
Ela se dirigiu a um dos membros da Guarda Suíça. Como era tradicional naquela porta, ele trajava um uniforme azul-escuro com colarinho branco, completado por uma boina preta. Ele perguntou o nome dela, verificou seus documentos de identificação e olhou de alto a baixo seu corpo esguio como se não acreditasse que ela fosse uma tenente dos Carabinieri. Depois de satisfeito, ele mecanicamente a conduziu para o lado, a alguém da Vigilanza, a Polícia do Vaticano, onde lhe entregaram um crachá plastificado.
- Mantenha-o sempre consigo - advertiu o policial.
Munida do crachá, ela seguiu a fila de visitantes pela porta e pela Via del Pellegrino.
A maior parte da cidade-estado era interditada ao público. Os únicos espaços públicos eram a Basílica de São Pedro, os Museus do Vaticano e os Jardins. Não se tinha acesso ao resto dos cem acres sem permissão especial.
Mas um setor era verdadeiramente território proibido a todos, com exceção de uns poucos.
O Palácio Apostólico, residência do papa.
O destino dela.
Rachel marchou entre os alojamentos de tijolos amarelos da Guarda Suíça e as paredes de rocha cinza da Igreja de Sant'Ana. Nada havia ali da majestade do mais sagrado dos estados sagrados, apenas uma calçada abarrotada e uma fila de carros congestionada, um engarrafamento dentro da Cidade do Vaticano. Passando pela tipografia pontifícia e pelo correio, ela se dirigiu à entrada do Palácio Apostólico.
À medida que se aproximava, ela examinou a estrutura de tijolos cinzentos. Mais parecia um edifício governamental utilitário do que a sede da Santa Sé. E seu aspecto era enganador. Até mesmo o telhado. Parecia sem vida e monótono, quase banal. Porém, ela sabia que no alto do Palácio Apostólico havia um jardim oculto, com chafarizes, caminhos cobertos de caramanchões e arbustos podados com esmero. Tudo ficava camuflado atrás de um teto falso, protegendo Sua Santidade do olhar fortuito lá embaixo e da mira possante de qualquer assassino lá fora na cidade.
Para ela, o Palácio Apostólico representava o Vaticano em geral: misterioso, secreto, até mesmo ligeiramente paranóico, mas no fundo um lugar de beleza simples e devoção.
E talvez se pudesse dizer o mesmo dela. Apesar de ser, no geral, uma católica relapsa, que só ia à missa nos dias santos, ela ainda tinha uma essência de fé que permanecia inalterável.
Ao chegar ao posto de segurança diante do palácio, Rachel mostrou o crachá mais três vezes aos membros da guarda suíça. Enquanto o fazia, ela se perguntou se aquilo era algum sinal de reconhecimento que remontava à tripla negação de Cristo por Pedro antes de o galo cantar.
Afinal, ela ingressou no palácio propriamente dito. Um guia a esperava, um seminarista americano chamado Jacob. Ele era um homem rijo de vinte e poucos anos, com os cabelos louros já rareando, e vestia calça preta de linho e camisa branca, abotoada em cima.
- Por favor, siga-me. Recebi instruções para conduzi-la ao monsenhor Verona. - Ele teve uma cômica reação tardia ao ver o passe de visitante dela e gaguejou com surpresa. - Tenente Verona? A senhora... a senhora é parenta do monsenhor?
- Ele é meu tio.
Um rápido aceno de cabeça enquanto ele se refazia.
- Desculpe-me. Só me disseram que esperasse uma oficial dos Carabinieri. - Ele fez um sinal com a mão para que ela o seguisse. - Sou aluno e assistente do monsenhor Verona na Greg.
Ela acenou com a cabeça. A maioria dos alunos de seu tio o reverenciava. Ele era profundamente devotado à Igreja, mas ainda conservava um forte ponto de vista científico. Na porta de seu gabinete na universidade, havia até uma placa com a mesma inscrição que um dia adornou a porta de Platão: Não deixeis que entre quem não souber geometria.
Rachel foi conduzida através da entrada do palácio. Ela logo se perdeu. Estivera ali antes apenas uma vez, quando seu tio estava sendo promovido a diretor do Instituto Pontifício de Arqueologia Cristã. Ela havia participado da audiência privada do papa. Mas o lugar era gigantesco, com 1.500 cômodos, milhares de escadas e vinte pátios. E agora, em vez de subirem em direção à residência do papa no último andar, eles estavam descendo.
Ela não entendia por que seu tio lhe pedira que o encontrasse ali, e não em seu gabinete na universidade. Teria ocorrido um roubo? Se era isso, por que ele não lhe contou por telefone? Por outro lado, ela sabia muito bem do rígido Código de Silêncio do Vaticano. Ele constava do direito canônico. A Santa Sé sabia guardar seus segredos.
Eles afinal chegaram a uma porta pequena, indefinida.
Jacob abriu-a para ela.
Rachel entrou numa estranha câmara kafkiana. Com uma iluminação estéril, a câmara era comprida e estreita, mas o teto era alto. Encostado às paredes, arquivos e gavetas de aço cinza iam do chão ao teto. Uma escada alta de biblioteca, necessária para alcançar as gavetas mais altas, estava encostada numa parede. Embora perfeitamente limpo, o espaço cheirava a poeira e velhice.
- Rachel! - seu tio chamou de um canto. Ele estava de pé próximo a um padre sentado a uma escrivaninha num canto. Acenou para que ela se aproximasse. - Você veio rápido, minha querida. Também, pudera, eu já andei de carro com você antes. Algum acidente?
Ela sorriu para ele e aproximou-se da escrivaninha. Notou que o tio não estava usando os trajes costumeiros - jeans, camiseta e cardigã -, e sim roupas mais formais, condizentes com o seu posto: uma batina preta com debruns e botões purpúreos. Ele chegou a passar óleo nos cachos de cabelos grisalhos e aparara bem curto o cavanhaque.
- Este é o padre Torres - apresentou seu tio -, o zelador oficial dos ossos.
O ancião levantou-se. Era baixo e atarracado, todo vestido de preto, com um colarinho romano. Um leve sorriso insinuou-se em seu rosto.
- Prefiro o título de "reitor das relíquias".
Rachel observou a altíssima parede de arquivos. Ela ouvira falar daquele lugar, o depósito de relíquias do Vaticano, mas jamais estivera ali antes. Ela rechaçou um calafrio de repulsa. Catalogados e armazenados em todas as gavetas e prateleiras estavam fragmentos de santos e mártires: ossos dos dedos, mechas de cabelos, frascos com cinzas, pedaços de vestimentas, pele mumificada, fragmentos de unhas, sangue. Poucas pessoas sabem que, pelo direito canônico, todo e qualquer altar católico deve conter uma relíquia sagrada. E, com novas igrejas e capelas sendo erguidas regularmente no mundo inteiro, a função daquele padre era embalar e enviar por FedEx pedaços de ossos ou outros restos terrenos de vários santos.
Ela jamais entendera a obsessão da Igreja por relíquias. Isso simples-mente a deixava arrepiada. Mas Roma estava repleta delas. Algumas das mais espetaculares e incomuns encontravam-se ali: o pé de Maria Madalena, as cordas vocais de Santo Antônio, a língua de São João Nepomuceno, os cálculos biliares de Santa Clara. Até mesmo o corpo inteiro de São Pio X, ex-papa, jazia na Basílica de São Pedro, numa urna de bronze. A mais desconcertante de todas, no entanto, era uma relíquia preservada num santuário em Calcata: o suposto prepúcio de Jesus Cristo.
Ela recobrou a fala.
- Roubaram alguma coisa aqui?
O tio Vigor ergueu um braço para seu aluno.
- Jacob, você poderia nos trazer alguns cappuccinos?
- É claro, monsenhor.
O tio Vigor esperou Jacob sair e fechou a porta. Seu olhos então pousaram em Rachel.
- Você soube do massacre em Colônia?
A pergunta a pegou desprevenida. Ela havia corrido o dia todo e tivera poucas oportunidades de assistir ao noticiário, mas fora impossível não saber dos assassinatos à meia-noite na Alemanha na noite anterior. Os detalhes continuavam vagos.
- Apenas o que foi noticiado no rádio - respondeu.
Ele acenou com a cabeça.
- A Cúria aqui vem recebendo antecipadamente informações secretas do que está sendo divulgado. Oitenta e quatro pessoas foram mortas, entre elas o arcebispo de Colônia. Mas a forma como elas morreram está sendo mantida longe do público por enquanto.
- O que você quer dizer?
- Algumas foram executadas a tiros, mas a grande maioria parece ter sido eletrocutada.
- Eletrocutada?
- Essa é a análise provisória. Ainda não dispomos dos resultados das autópsias. Alguns corpos ainda estavam fumegando quando as autoridades chegaram.
- Santo Deus! Como...?
- Essa resposta terá de esperar. A catedral está fervilhando de investigadores de todo tipo: criminologistas, detetives, legistas, até eletricistas. Há equipes da BKA1 alemã, especialistas em terrorismo da Interpol e agentes da Europol. Porém, como o crime ocorreu numa catedral católica romana, território santificado, o Vaticano invocou sua Omerta.
- O Código de Silêncio.
Ele confirmou com um grunhido.
- A Igreja está cooperando com as autoridades alemãs, mas também está limitando o acesso, tentando evitar que a cena se transforme num circo.
Rachel balançou a cabeça.
- Mas o que tudo isso tem a ver com o fato de você ter me chamado aqui?
- Pela investigação inicial, parece existir apenas um motivo. O relicário de ouro da catedral foi arrombado.
- Eles roubaram o relicário.
- Não, esse é que é o problema. Deixaram para trás o estojo de ouro maciço. Um objeto inestimável. Roubaram apenas seu conteúdo. Suas relíquias.
O padre Torres aparteou:
- E não apenas quaisquer relíquias, mas os ossos dos Reis Magos bíblicos.
- Reis Magos... os Três Reis Magos da Bíblia? - a voz de Rachel não conseguiu disfarçar sua incredulidade. - Eles roubam os ossos, mas deixam o estojo de ouro. Com certeza o relicário alcançaria melhor preço no mercado negro do que os ossos.
O tio Vigor suspirou.
- Por solicitação do secretário de Estado, vim aqui para avaliar a procedência dessas relíquias. Elas têm um passado ilustre. Os ossos vieram para a Europa por causa do entusiasmo de Santa Helena, mãe do imperador Constantino, pela coleta de relíquias. Na condição de primeiro imperador cristão, Constantino enviara sua mãe em peregrinações para coletar relíquias sagradas. A mais famosa, é claro, é a Cruz Verdadeira de Cristo.
Rachel havia visitado a Basílica da Santa Cruz de Jerusalém, na Colina de Latrão. Numa sala nos fundos, protegidas por vidro, estavam as relíquias mais famosas coletadas por Santa Helena: uma trave da Cruz Verdadeira, um cravo usado para crucificar Jesus e dois espinhos de sua dolorosa coroa. Ainda havia muita controvérsia quanto à autenticidade dessas relíquias. A maioria acreditava que Santa Helena havia sido enganada.
Seu tio prosseguiu:
- Mas também não se sabe que a rainha Helena viajou além de Jerusalém, regressando sob circunstâncias misteriosas com um grande sarcófago de pedra e dizendo ter recuperado os corpos dos Três Reis Magos. As relíquias foram conservadas numa igreja em Constantinopla, mas, depois da morte de Constantino, foram transferidas para Milão e enterradas numa basílica.
- Mas eu pensei que você tivesse dito Alemanha...
O tio Vigor ergueu uma das mãos.
- No século XII, o imperador Frederico Barba-Roxa da Alemanha saqueou Milão e roubou as relíquias. As circunstâncias em torno disso estão envoltas numa confusão de boatos. Mas todas as histórias terminam com as relíquias em Colônia.
- Até ontem à noite - acrescentou Rachel.
O tio Vigor fez que sim com a cabeça.
Rachel fechou os olhos. Ninguém falou, o que lhe permitiu pensar. Ela ouviu a porta do depósito abrir-se. Manteve os olhos fechados, não querendo perder sua linha de raciocínio.
- E os assassinos? - disse. - Por que não roubaram os ossos quando a igreja estava vazia? A ação deve ter sido planejada como um ataque direto à Igreja. A violência contra os fiéis indica um motivo secundário de vingança - não apenas roubo.
- Muito bem.
Uma voz diferente soou da entrada.
Sobressaltada, Rachel abriu os olhos. Ela imediatamente reconheceu os trajes usados pelo recém-chegado: a batina preta com uma capa curta nos ombros, a faixa larga ao redor dos quadris, escarlate para combinar com o solidéu.
Também reconheceu o homem nesses trajes.
- Cardeal Spera - disse, inclinando a cabeça.
Ele acenou para que ela se erguesse, seu anel de ouro faiscando. O anel o distinguia como cardeal, mas ele também usava um segundo anel, igual ao primeiro, na outra mão, que representava seu posto como secretário de Estado do Vaticano. Ele era siciliano, de cabelos e tez escuros. Também era jovem para um cargo tão respeitado, nem sequer completara 50 anos de idade.
Ele deu um sorriso caloroso.
- Monsenhor Verona, vejo que você não estava errado a respeito da sua sobrinha.
- Teria sido inadequado da minha parte mentir para um cardeal, especialmente para um que também é o braço direito do papa. - O tio dela aproximou-se e, em vez de castamente beijar ambos os anéis do homem, deu-lhe um forte abraço. - Como Sua Santidade está lidando com a notícia?
O rosto do cardeal contraiu-se com um meneio de cabeça.
- Depois do nosso encontro esta manhã, entrei em contato com Sua Eminência em São Petersburgo. Ele tomará um avião de volta amanhã de manhã.
Depois do nosso encontro... Agora Rachel entendia por que seu tio estava usando roupas formais. Ele estivera em reunião com o secretário de Estado.
O cardeal Spera prosseguiu:
- Eu vou providenciar a resposta oficial do papa com o Sínodo de Bispos e o Colégio de Cardeais. Em seguida, tenho de me preparar para o serviço memorial de amanhã, que será celebrado ao pôr-do-sol.
Rachel sentiu-se oprimida. Embora o papa fosse o chefe do Vaticano, seu monarca absoluto, o verdadeiro poder do Estado estava nas mãos daquele único homem, seu primeiro-ministro oficial. Ela notou o seu olhar de fadiga, o modo como mantinha os ombros tensos demais. Era evidente que ele estava exausto.
- E a sua pesquisa trouxe alguma coisa à tona aqui? - perguntou o cardeal.
- Sim, trouxe - respondeu o tio Vigor sombriamente. - Os ladrões não estão de posse de todos os ossos.
Rachel perturbou-se.
- Ainda há mais?
O tio virou-se para ela.
- Foi por isso que viemos aqui averiguar. Parece que a cidade de Milão, após o saque dos ossos por Barba-Roxa, passou os últimos séculos reivindicando sua volta. Para se pôr um ponto final à questão, alguns dos ossos dos Reis Magos foram enviados de volta a Milão em 1906, para a Basílica de Santo Eustórgio.
- Graças a Deus - disse o cardeal Spera. - Então eles não estão de todo perdidos.
O padre Torres disse em voz alta:
- Devíamos providenciar para que eles fossem enviados imediatamente para cá. Guardados em segurança no depósito.
- Até que possamos providenciar isso, mandarei reforçar a segurança na basílica - disse o cardeal. Ele gesticulou para o tio Vigor. - Na sua viagem de volta de Colônia, quero que você faça uma escala em Milão e recolha os ossos.
O tio Vigor concordou com a cabeça.
- Ah, eu também consegui marcar um vôo mais cedo - continuou o cardeal. - O helicóptero levará ambos ao aeroporto daqui a três horas.
Ambos?
- Tanto melhor. - O tio Vigor virou-se para Rachel. - Parece que vamos ter de desapontar sua mãe mais uma vez. Tudo indica que não vai haver nenhum jantar em família.
- Eu vou... nós vamos a Colônia?
- Como núncios do Vaticano - respondeu o tio.
Rachel tentou manter o raciocínio. Núncios eram os embaixadores do Vaticano no exterior.
- Núncios de emergência - corrigiu o cardeal Spera. - Temporários, cuidando desta tragédia específica. Vocês estão sendo apresentados como observadores passivos, para representarem os interesses do Vaticano e nos manterem informados. Eu preciso de olhos aguçados lá. Alguém familiarizado com roubos de antigüidades. - Ele acenou com a cabeça para Rachel. - E alguém com um vasto conhecimento dessas antigüidades.
- De qualquer modo, esse é o nosso disfarce - disse o tio Vigor.
- Disfarce?
O cardeal Spera franziu o cenho, um tom de advertência insinuando-se em sua voz.
- Vigor...
O tio dela voltou-se para o secretário de Estado.
- Ela tem o direito de saber. Eu pensei que isso já tivesse sido decidido.
- Você decidiu.
Os dois homens olharam fixamente um para o outro. Por fim, o cardeal Spera suspirou e, com o aceno de um braço, abrandou-se.
O tio Vigor virou-se para Rachel.
- A nomeação como núncios é apenas uma cortina de fumaça.
- Então o que nós...?
Ele contou a ela.



15:35h

Ainda aturdida, Rachel esperou que seu tio terminasse uma breve conversa particular com o cardeal Spera do lado de fora. Ao lado, o padre Torres punha nas prateleiras vários volumes que haviam sido empilhados em sua escrivaninha.
Finalmente, seu tio voltou.
- Eu esperava comer um brioche com você, mas, como o tempo é exíguo, nós temos de nos aprontar. Você deve trazer uma maleta para viagens curtas, seu passaporte e o que mais possa precisar para um ou dois dias no exterior.
Rachel manteve-se firme.
- Espiões do Vaticano? Vamos investigar como espiões do Vaticano?
O tio Vigor ergueu as sobrancelhas.
- Você está mesmo tão surpresa assim? O Vaticano, um país soberano, sempre teve um serviço secreto, com funcionários e agentes em tempo integral. Eles têm sido usados para se infiltrarem em grupos que disseminam o ódio, em sociedades secretas, em países hostis, onde quer que os interesses do Vaticano estejam ameaçados. Walter Ciszek, um padre que servia sob o codinome Vladimir Lipinski, brincou de gato e rato com a KGB por anos a fio, antes de ser capturado e passar mais de vinte anos numa prisão soviética.
- E nós acabamos de ser recrutados para esse serviço?
- Você foi recrutada. Eu trabalho há mais de 15 anos para o serviço secreto.
- O quê?
Rachel quase engasgou com as palavras.
- Existe melhor disfarce para um agente do que um arqueólogo respeitado e culto prestando um humilde serviço ao Vaticano? - O tio acenou para que ela saísse. - Venha. Vamos tratar de pôr tudo em ordem.
Rachel saiu tropeçando atrás do tio, tentando vê-lo com novos olhos.
- Nós vamos nos encontrar com um grupo de cientistas americanos. Como nós, eles também vão investigar o ataque em segredo, concentrando-se mais nas mortes, deixando-nos encarregados do roubo das relíquias.
- Eu não estou compreendendo. - Aquilo era uma atenuação e tanto da verdade. - Por que todo este subterfúgio?
O tio parou e a puxou para dentro de uma capelinha lateral. Ela era pouco maior do que um closet, o ar recendendo a incenso velho.
- Apenas umas poucas pessoas sabem disto - disse ele. - Mas uma pessoa sobreviveu ao ataque. Um rapaz. Ele ainda está em estado de choque, mas se recuperando aos poucos. Está internado num hospital em Colônia, sob guarda.
- Ele testemunhou o ataque?
Um aceno afirmativo de cabeça foi a resposta.
- O que ele descreveu pareceu loucura, mas não pôde ser ignorado. Todas as mortes - ou melhor, a morte dos que sucumbiram à eletrocução - ocorreram num único momento. Os moribundos tombaram onde estavam sentados ou ajoelhados. O rapaz não soube explicar como isso aconteceu, mas foi inflexível em relação a quem.
- A quem matou os paroquianos?
- Não, a quem sucumbiu, que membros da congregação tiveram uma morte tão horrível.
Rachel esperou uma resposta.
- Os eletrocutados, por falta de uma palavra mais adequada, foram apenas aqueles que receberam a Santa Eucaristia durante a comunhão.
- O quê?
- Foi a hóstia da comunhão que os matou.
Ela sentiu um calafrio. Caso se difundisse a informação de que as hóstias de algum modo eram culpadas, poderia haver repercussões em todo o mundo. O santo sacramento inteiro poderia ficar ameaçado.
- As hóstias foram envenenadas, contaminadas de alguma forma?
- Ainda não sabemos. Mas o Vaticano quer respostas imediatamente. E a Santa Sé as quer primeiro. E sem os recursos necessários para este nível de investigação clandestina, especialmente em solo estrangeiro, eu cobrei uma pequena dívida a um amigo que trabalha no serviço secreto militar dos Estados Unidos, alguém em quem eu tenho plena confiança. Hoje à noite uma equipe dele estará no local.
Rachel pôde apenas acenar com a cabeça, emudecida pelas revelações das últimas horas.
- Acho que você estava certa, Rachel - disse o tio Vigor. - Os assassinatos em Colônia foram um ataque direto à Igreja. Mas eu creio que este é apenas um movimento inicial num jogo muito maior. Mas que jogo está sendo jogado?
Ela acenou com a cabeça.
- E o que os ossos dos Reis Magos têm a ver com isto?
- Exatamente. Enquanto você junta suas coisas, eu vou às bibliotecas e aos arquivos. Já tenho uma equipe de eruditos examinando minuciosamente todas as referências aos Três Reis Magos. Quando o helicóptero decolar, terei um dossiê completo sobre eles.
O tio Vigor aproximou-se dela, deu-lhe um forte abraço e sussurrou ao seu ouvido:
- Você ainda pode recusar. Eu não teria menos consideração por você.
Rachel balançou a cabeça, recuando.
- Como diz o adágio, fortes fortuna adiuvat.
- A fortuna de fato ajuda os corajosos.
Ele a beijou gentilmente no rosto.
- Se eu tivesse uma filha como você...
- Você seria excomungado. - Ela beijou-lhe a outra face. - Agora vamos.
O tio conduziu-a para fora do Palácio Apostólico, e então seus caminhos se separaram: ele seguiu para as Bibliotecas e ela, para a Porta de Sant'Ana.
Pouco depois, quase sem se dar conta da passagem do tempo, Rachel foi até seu Mini Cooper, estacionado na garagem subterrânea, e entrou no veículo. Saiu a toda do estacionamento, dobrou uma esquina estreita com os pneus cantando e entrou no tráfego. Checou tudo o que precisaria, enquanto tentava manter a um mínimo qualquer especulação.
Ela cruzou o rio Tibre e seguiu em direção ao centro da cidade. Com a mente distraída, ela não notou quando seu perseguidor voltou. Apenas que ele estava de volta.
Seus batimentos cardíacos aceleraram-se.
O BMW preto estava cinco carros atrás dela, acompanhando cada um de seus movimentos em torno de carros mais lentos e de pedestres ainda mais lentos. Ela deu algumas guinadas rápidas, não o bastante para alertar seu perseguidor de que ele havia sido descoberto, apenas sua costumeira imprudência controlada. Ela precisava ter certeza.
O BMW manteve a velocidade.
Agora ela sabia.
Maldição.
Rachel cortou caminho pelas travessas e becos mais estreitos. As ruas estavam congestionadas. A coisa virou uma perseguição de carro em câmera lenta. Ela subiu numa calçada a fim de passar comprimindo-se por um trecho em que o tráfego havia parado. Avançando devagar para a próxima rua transversal, uma via de pedestres, dobrou nela. Pedestres assustados saíram aos pulos de seu caminho. Carrinhos de compras tombaram. Palavras obscenas voaram. Uma fatia de pão acertou seu pára-brisa traseiro, atirada por uma matrona particularmente enfurecida.
Na próxima rua de tráfego intenso, ela engatou a segunda e percorreu a toda um quarteirão, deu outra guinada e mais outra. Aquela parte de Roma era um labirinto de becos. Seu perseguidor não tinha como segui-la.
Saindo na Via Aldrovandi, ela contornou o Jardim Zoológico Giardino. Ela ficou de olhos nos espelhos retrovisores. Escapara à perseguição... pelo menos por ora.
Deixando livre uma das mãos, ela pegou o telefone celular. Apertou a tecla de discagem rápida para a Delegacia Parioli. Precisava de reforços.
Enquanto o telefone chamava, Rachel saiu da artéria principal e entrou de novo nas ruelas, evitando correr riscos. Quem ela havia irritado? Como membro da Polícia do Legado Cultural, ela possuía muitos inimigos entre as facções do crime organizado que traficavam antigüidades roubadas.
A linha telefônica deu uns estalidos, zumbiu, e então tudo o que ela ouviu foi o silêncio. Ela verificou o visor do telefone. Estava numa área em que o sinal era fraco. As sete colinas de Roma e seus cânions de mármore e tijolos prejudicavam a intensidade do sinal.
Ela pressionou o botão Redial.
Enquanto orava ao santo padroeiro da recepção dos sinais de telefonia celular, ela usou o tempo para refletir se deveria voltar para casa, mas decidiu o contrário.
Ela estaria mais segura no Vaticano até partir para a Alemanha.
Entrando na Via Salaria, a antiga Estrada do Sal, uma das principais artérias de Roma, ela afinal ouviu a ligação completar-se.
- Delegacia Parioli, boa-tarde.
Antes que pudesse responder, Rachel avistou um vulto preto.
O BMW apareceu de repente ao lado do Mini Cooper.
Um segundo carro surgiu no outro lado.
Idêntico, exceto que esse era branco.
Não fora apenas um perseguidor, mas dois. Concentrada no conspícuo carro preto, ela deixara de notar o branco. Um erro fatal.
Os dois carros aproximaram-se súbita e impetuosamente dela, imprensando-a entre eles com um guincho de metal e tinta. As janelas traseiras deles já haviam sido baixadas. Os canos grossos de submetralhadoras projetaram-se para fora.
Ela pisou nos freios, metal guinchou, mas ela estava entalada. Não havia escapatória.




CAPÍTULO 3

Segredos



24 de Julho, 10:25h
Washington, D.C.

Ele tinha de sair dali.
No vestiário do ginásio, Grayson Pierce vestiu um par de shorts de ciclista e em seguida deslizou pela cabeça uma camisa de futebol folgada. Ele estava sentado no banco e amarrava seus tênis.
Atrás dele, a porta do vestiário abriu-se. Ele olhou para trás enquanto Monk Kokkalis entrava, uma bola de basquete embaixo de um braço e um boné de beisebol com a aba para trás. Com apenas 1,60 metros de altura, Monk parecia um pit bull usando um blusão de moletom. Todavia, ele se revelou um jogador impetuoso e ágil. A maioria das pessoas subestimava-o, mas ele tinha um talento incomum para entender um adversário, para ludibriar a defesa, e quase nunca perdia um arremesso da bola.
Monk jogou a bola de basquete na caixa do equipamento - tornando a fazer um arremesso perfeito - e em seguida foi até seu armário. Ele tirou o blusão de moletom, enrolou-o e atirou-o no armário.
Ele olhou para Gray.
- É isso o que você está usando para se encontrar com o comandante Crowe?
Gray ficou de pé.
- Estou indo visitar a minha família.
- Eu pensei que o gerente de operações havia nos dito que era para não sairmos daqui.
- Esqueça isso.
Monk ergueu uma sobrancelha. As sobrancelhas espessas eram os únicos pêlos em sua cabeça raspada. Ele preferia manter o visual que lhe fora inspirado pelos Green Berets.1 O homem também tinha outros atributos de sua vida militar pregressa: cicatrizes enrugadas de ferimentos causados por balas, três delas, no ombro, na coxa e no tórax. Era o único de sua equipe que sobrevivera a uma emboscada no Afeganistão. Durante sua convalescença nos Estados Unidos, a Sigma o recrutara por causa de seu QI de gênio e o submetera a uma reciclagem profissional por meio de um programa de doutorado em medicina legal.
- Você já foi liberado pelos médicos? - perguntou Monk.
- Apenas contusões e algumas costelas feridas.
Junto com o ego ferido, ele acrescentou em silêncio, apontando com o dedo a mancha dolorida abaixo da sétima costela.
Gray já dera seu depoimento, gravado em videoteipe. Ele conseguira a bomba, mas não a Dama do Dragão. A única pista de um importante esquema de tráfico de armas biológicas havia escapado. Ele havia enviado o pingente dela com o amuleto em forma de dragão para os legistas, a fim de detectarem vestígios de impressões digitais. Ele não esperava que encontrassem alguma coisa.
Ele pegou sua mochila do banco.
- Vou levar meu bipe comigo. Estou apenas a 15 minutos daqui de metrô.
- E você vai deixar o diretor esperando?
Gray deu de ombros. Ele estava farto: o depoimento após a missão, o exame médico minucioso, e agora essa misteriosa convocação pelo diretor Crowe. Ele sabia que merecia uma reprimenda. Não deveria ter entrado sozinho no Forte Detrick. Tinha sido uma decisão errada. Ele sabia disso.
Mas ainda flutuando na onda de adrenalina do quase desastre daquela manhã, Gray não poderia sentar-se ocioso e simplesmente esperar. O diretor Crowe fora a uma reunião no quartel-general da DARPA em Arlington. Ninguém soubera informar quando ele estaria de volta. Nesse ínterim, Gray precisava mover-se, descarregar um pouco de energia.
Ele pendurou nas costas sua pequena mochila de ciclista.
- Você soube quem mais foi convocado para a reunião com o diretor? - perguntou Monk.
- Quem?
- Kat Bryant.
- É mesmo?
Um aceno de cabeça.
Fazia apenas dez meses que a capitã Kathryn Bryant ingressara na Sigma, porém já concluíra um programa de curta duração em geologia. Havia boatos de que ela também estava terminando de cursar uma disciplina de engenharia. Ela seria apenas o segundo agente com dois cursos de doutoramento. Grayson era o primeiro.
- Então não pode ser uma designação para uma missão - disse Gray. - Eles não mandariam alguém tão inexperiente para o campo.
- Nenhum de nós é assim tão inexperiente. - Monk pegou uma toalha e foi em direção aos chuveiros. - Ela veio do serviço secreto da Marinha. Serviço sujo, é o que dizem.
- Dizem um monte de coisas - Gray murmurou e dirigiu-se à saída.
Apesar do número de QIs altos, a Sigma era um antro de fofocas como qualquer outra empresa. Até mesmo as convocações daquela manhã tinham sido acompanhadas de uma torrente de memorandos e uma nova chamada dos agentes. É claro que parte daquela atividade era o resultado direto da missão de Gray. A Guilda havia atacado um de seus membros. As especulações abundavam. Houve um novo vazamento, ou a emboscada havia sido planejada com base em informações secretas antigas, antes da transferência da Sigma do quartel-general da DARPA em Arlington para Washington e do expurgo de suas operações lá?
De qualquer forma, outro boato persistia nos corredores da Sigma: uma nova missão estava sendo planejada, comandada por um chefão, uma missão de vital interesse nacional. Além disso, não parecia que ele iria a qualquer lugar em breve. Ficaria esquentando o banco por algum tempo.
Portanto, ele poderia com igual razão cumprir seus outros compromissos.
Saindo do ginásio, Gray seguiu a passos largos através do labirinto de corredores até o hall dos elevadores. O espaço ainda recendia a tinta fresca e cimento velho.
A fortaleza subterrânea do comando central da Sigma fora outrora um bunker e um abrigo nuclear. Fora um lugar onde um importante conselho consultivo se abrigara durante a Segunda Guerra Mundial, mas fazia muito tempo que fora abandonado e fechado. Poucos sabiam de sua existência, enterrado sob a meca da comunidade científica de Washington: a área onde estavam os museus e os laboratórios que formavam a Smithsonian Institution.
Agora o labirinto subterrâneo tinha novos inquilinos. Para o mundo em geral, era apenas outro lugar onde se reunia um conselho consultivo. Muitos de seus membros trabalhavam nos laboratórios da Smithsonian Institution, fazendo pesquisas e utilizando os recursos à mão. O novo local para a sede da Sigma fora escolhido por causa de sua proximidade de todos os laboratórios de pesquisa, que cobriam uma vasta gama de disciplinas. Teria sido caro demais duplicar todas as várias instalações. Assim, a Sigma fora enterrada no coração da comunidade científica de Washington. A Smithsonian Institution transformou-se num recurso e num disfarce.
Gray pressionou a mão contra a placa de segurança da porta do eleva-dor. Uma linha azul escaneou as impressões de sua palma. As portas abri-ram-se com um assobio. Ele entrou e pressionou o botão de cima, no qual estava inscrito TÉRREO. O elevador subiu silenciosamente a partir do quarto andar.
Ele mal sentia o escaneamento sobre o seu corpo, uma busca privativa de dados eletrônicos ocultos. Ele ajudava na prevenção do furto de in-formações do centro de comando. Mas tinha suas desvantagens. Durante a primeira semana ali, Monk fizera disparar um alerta geral do sistema depois de entrar distraidamente com um MP3 player digital após uma corrida à tarde.
As portas se abriram numa área de recepção com uma aparência comum, na qual havia dois guardas armados e uma recepcionista. Poderia passar pelo saguão de um banco. Mas a quantidade de vigilância e de contramedidas mais avançadas rivalizava com as do Forte Knox. Uma segunda entrada do bunker, um grande acesso de serviço, igualmente guardado, ficava oculta num complexo de oficinas privadas, a oitocentos metros de distância. Sua motocicleta estava sendo consertada lá. Por isso ele estava indo a pé para a estação do metrô, onde deixava uma bicicleta guardada para emergências.
- Bom-dia, dr. Pierce - disse a recepcionista.
- Olá, Melody.
A moça não sabia o que na verdade havia lá embaixo, acreditando na história inventada sobre o conselho consultivo, também chamada Sigma. Apenas os guardas sabiam a verdade. Eles acenaram com a cabeça para Gray.
- O senhor vai ficar fora o dia todo? - perguntou Melody.
- Apenas uma hora, mais ou menos.
Ele introduziu sua carteira de identidade holográfica na leitora junto ao balcão, em seguida pressionou o polegar contra a tela, registrando sua saída do centro de comando. Ele sempre achara que as contramedidas de segurança ali eram excessivas. Já não eram.
A fechadura da porta externa desengatou.
Um dos guardas abriu a porta, saiu e a manteve aberta para Gray.
- Bom-dia, senhor - disse o guarda enquanto Gray saía.
Bom dificilmente descrevia seu dia até então.
Um longo corredor apainelado estendia-se à frente, seguido por um único lance de escada que conduzia às áreas públicas do edifício. Entrando num grande saguão, ele passou por um grupo de turistas japoneses guiados por um tradutor e guia. Nenhum deles lançou-lhe um segundo olhar.
Fale sobre esconder-se à vista de todos.
Enquanto cruzava o chão de ladrilhos, ele ouviu o discurso do guia de turismo, pronunciado maquinalmente, repetido milhares de vezes.
- O Castelo Smithsonian foi terminado em 1855, e a pedra fundamental foi lançada pelo presidente James Polk. É a maior e a mais antiga das construções que compõem a Instituição e antigamente abrigava o museu de ciências e os laboratórios de pesquisa originais, mas hoje serve de escritório administrativo e Centro de Informações para os 15 museus da Instituição, para o Zoológico Nacional e para muitos locais de pesquisa e galerias. Sigam-me, por favor. Em seguida...
Gray chegou às portas externas, uma saída lateral do Castelo Smithso-nian, e avançou para a liberdade. Ele apertou os olhos, protegendo-os do sol forte. Quando ergueu o braço, sentiu uma ferroada de protesto de suas costelas. O efeito do Tylenol com codeína devia estar passando.
Atingindo a extremidade dos jardins muito bem-cuidados, ele voltou o olhar para o castelo. Apelidado por causa de seus parapeitos, torrinhas, agulhas e torres de tijolos vermelhos, era considerado uma das melhores estruturas da revivescência do gótico nos Estados Unidos e formava o coração da Smithsonian Institution. O bunker havia sido escavado embaixo dele, construído quando a torre sudoeste foi completamente destruída por um incêndio em 1866, exigindo sua reconstrução a partir do chão. O labirinto secreto havia sido acrescentado na reforma e acabou se transformando no abrigo nuclear subterrâneo, destinado a proteger os cérebros mais brilhantes de sua geração... ou pelo menos os de Washington, D.C.
Ele agora ocultava o comando central da Sigma.
Com uma última olhadela para a bandeira americana tremulando acima da torre mais alta, Gray seguiu pelo passeio arborizado rumo à estação do metrô.
Ele tinha outras responsabilidades além de manter os Estados Unidos seguros.
Algo que negligenciara por muito tempo.



16:25h
Roma, Itália

Os dois BMWs continuavam a imprensar o Mini Cooper. Por mais que Rachel lutasse, não conseguia se libertar.
As armas nos bancos traseiros moveram-se para a frente.
Antes que os agressores pudessem abrir fogo, Rachel tentou forçar o carro a parar e puxou o freio de mão. O carro deu um solavanco com um guincho de metal dilacerando-se. O espelho retrovisor estilhaçou-se. O esforço fez os pistoleiros perderem a mira, mas não foi suficiente para libertar o carro, preso entre os outros dois.
Os BMWs continuavam a arrastar seu carro para a frente.
Com o Mini Cooper agora transformado em peso morto, Rachel mergulhou para o assoalho do veículo, apoiando o lado esquerdo do corpo na alavanca de mudança de marcha. Uma saraivada de balas estilhaçou a janela do lado do motorista, atravessando o banco no qual ela estivera sentada.
Ela não teria tanta sorte uma segunda vez.
À medida que a velocidade se reduzia, Rachel acionou os controles do teto conversível. As janelas começaram a baixar e o teto de tecido dobrou-se para trás. O vento assobiava dentro do carro.
Ela rezou para que a distração momentânea lhe desse o tempo de que precisava. Juntando as pernas sob o corpo, pulou o console central e usou a borda da porta do carona para passar através do teto semi-aberto. O sedã branco ainda estava comprimido contra o lado do carona. Ela subiu para o teto e ficou meio agachada.
Àquela altura, a velocidade reduzira-se a menos de 30km/h.
Balas assobiavam vindas de baixo.
Ela atirou-se do teto, voando em direção a uma fila de carros estacionados na beira da rua. Atingiu o longo teto de um Jaguar, deslizou de barriga pela lateral do veículo e caiu numa cambalhota estridente no outro lado.
Atordoada, ela ficou deitada imóvel. A grande quantidade de carros estacionados a protegia da rua aberta. A meio quarteirão de distância, incapazes de frear com bastante rapidez, os BMWs de repente rugiram e, com o cantar de pneus, saíram a toda a velocidade.
A distância, Rachel ouviu o uó-uó das sirenes da polícia.
Ficando de costas, ela tateou o cinto à procura do telefone celular. A capa estava vazia. Ela estava telefonando quando os atacantes investiram contra ela.
Oh! meu Deus...
Ela esforçou-se para levantar-se. Não receava que os assassinos voltassem. Muitos carros já estavam parando, bloqueados pelo seu Mini Cooper parado na rua.
Rachel tinha uma preocupação maior. Ao contrário da primeira vez, ela conseguira vislumbrar a placa do BMW preto.
SCV 03681.
Ela não precisava fazer uma busca nos registros para saber a origem do carro. As placas especiais eram emitidas por apenas uma agência.
SCV significava Stato della Città del Vaticano.
Estado da Cidade do Vaticano.
Ela fez mais um esforço para levantar-se, a cabeça doendo. Sentiu o gosto de sangue de um lábio rachado. Não tinha importância. Se foi atacada por alguém com relações com o Vaticano...
Ficou de pé com o coração esmagado. Um medo impulsionador a fez recuperar as forças. Outro alvo estava com certeza em perigo.
- Tio Vigor...



11:03h
Takoma Park, Maryland

- Gray! É você?
Grayson Pierce enganchou sua bicicleta num ombro e subiu os degraus da varanda da casa de seus pais, um bangalô com uma varanda de madeira e um amplo e saliente telhado de duas águas.
Ele gritou através da porta de tela aberta.
- Sim, mamãe!
Ele encostou a bicicleta no balaústre da varanda, recebendo um protesto de suas costelas. Telefonara para casa da estação do metrô, avisando a mãe a tempo de sua chegada. Ele mantinha uma mountain bike Trek trancada na estação local para ocasiões como aquela.
- O almoço está quase pronto.
- O quê? Você está cozinhando? - Ele abriu a porta de tela, cujas dobradiças soltaram um grito de dor. Ela se fechou com um estalo atrás dele. - Será que os milagres nunca cessam?
- Não me venha com suas impertinências, meu rapaz. Eu sou inteiramente capaz de fazer sanduíches. Presunto e queijo.
Ele passou pela sala de estar com seus móveis de carvalho Craftsman2, uma mistura de bom gosto do moderno com o antigo. Não deixou de notar a fina camada de poeira. Sua mãe nunca fora muito chegada ao serviço doméstico, passando a maior parte do tempo lecionando, primeiro num ginásio jesuíta no Texas e agora como professora assistente de ciências biológicas na Universidade George Washington. Fazia três anos que seus pais haviam-se mudado para Washington, para o tranqüilo bairro histórico de Takoma Park, com suas graciosas casas vitorianas e cabanas mais antigas cobertas com telhas de madeira. Gray tinha um apartamento a alguns quilômetros de distância, na Piney Branch Road. Ele queria estar perto de seus pais, para ajudar sempre que possível.
Sobretudo agora.
- Onde está papai? - perguntou ele ao entrar na cozinha e ver que seu pai não estava em casa.
Sua mãe fechou a porta da geladeira, uma jarra de leite na mão.
- Lá fora na garagem. Fazendo outra casa de pássaros.
- Não, mais uma?
Ela franziu o cenho para ele.
- Ele gosta disso. Isso o mantém longe de encrenca. Seu terapeuta diz que é bom para ele ter um hobby.
Ela passou com duas bandejas de sanduíches.
Sua mãe viera direto do gabinete na universidade. Ela ainda usava o blazer azul sobre uma blusa branca, os cabelos louro-acinzentados puxados para trás e presos com grampos. Bem-cuidados, professorais. Mas Gray notou o canto macilento dos olhos dela. Ela parecia mais cansada, mais magra.
Ele pegou as bandejas.
- O trabalho em madeira de papai pode ajudá-lo, mas tem de ser sempre casas de pássaros? Há pássaros demais em Maryland.
Ela sorriu.
- Coma os seus sanduíches. Você quer um pouco de picles?
- Não.
Eles eram sempre assim. Conversas banais para evitarem os assuntos mais graves. Mas certas coisas não podiam ser adiadas para sempre.
- Onde o encontraram?
- Lá perto da 7-Eleven em Cedar. Ele ficou confuso. Acabou pegando a estrada errada. Mas teve bastante presença de espírito para telefonar para John e Suz.
Os vizinhos deviam ter então ligado para a mãe de Gray, e ela por sua vez lhe telefonara, preocupada, quase em pânico. Porém, cinco minutos mais tarde, ela voltara a telefonar. O pai dele estava em casa e bem. No entanto, Gray sabia que era melhor dar um pulo até lá para uma breve visita.
- Ele ainda está tomando seu Aricept? - perguntou.
- É claro. Eu verifico se ele o toma todas as manhãs.
Seu pai recebera o diagnóstico de mal de Alzheimer, nos estágios mais precoces, pouco depois de seus pais terem-se mudado para lá. Havia começado com pequenos lapsos de memória: o lugar onde havia colocado as chaves, números de telefone, os nomes dos vizinhos. Os médicos disseram que a mudança do Texas podia ter provocado sintomas que tinham estado latentes. A mente dele passara por um período difícil catalogando todas as novas informações após a mudança de um lado a outro do país. Mas cabeçudo e determinado, ele se recusara a voltar. De vez em quando, junto com o esquecimento vinham discussões banais por causa da raiva frustrada. Não que alguma vez tivesse sido difícil para seu pai cruzar essa linha.
- Por que você não leva a bandeja dele? - perguntou a mãe. - Eu tenho de dar um telefonema para o gabinete.
Gray estendeu a mão e pegou os sanduíches, deixando-a pousar sobre a dela por um instante.
- Talvez nós tenhamos de conversar sobre aquela enfermeira que dorme no emprego.
Ela meneou a cabeça - não só negando a necessidade, mas também simplesmente recusando-se a discuti-la. Ela tirou a mão da dele. Gray já deparara com aquela resistência antes. Seu pai não admitiria isso, e sua mãe achava que era responsabilidade dela cuidar dele. Mas isso estava repercutindo nas atividades domésticas, em sua mãe, na família inteira.
- Quando Kenny esteve aqui da última vez? - perguntou ele.
Seu irmão mais novo administrava uma loja de computadores recém-inaugurada na Virgínia, logo após a divisa, seguindo o exemplo do pai como engenheiro - porém elétrico, não de indústria petrolífera.
- Você conhece o Kenny... - sua mãe disse. - Deixe-me dar-lhe um pouco de picles para o seu pai.
Gray sacudiu a cabeça. Ultimamente Kenny vinha falando em se mudar para Cupertino, na Califórnia. Ele tinha desculpas para a necessidade da mudança, mas, por baixo de tudo, Gray sabia a verdade. Seu irmão simplesmente queria fugir, dar o fora. Pelo menos Gray compreendia aquele sentimento. Ele fizera a mesma coisa, entrando para o Exército. Devia ser um traço de caráter da família Pierce.
Sua mãe passou-lhe o vidro de picles para abrir.
- Como vão as coisas no laboratório?
- Bem - respondeu.
Ele abriu a tampa, tirou um pepino condimentado com endro e colocou-o na bandeja.
- Eu estive lendo sobre um monte de cortes no orçamento da DARPA.
- Meu emprego não está em risco - assegurou-lhe.
Nenhum de seus parentes sabia de seu papel na Sigma. Eles achavam que ele simplesmente fazia pesquisa de baixo nível para as Forças Armadas. Ele não tinha autorização para contar-lhes a verdade.
Com a bandeja na mão, Gray dirigiu-se para a porta dos fundos.
Sua mãe observou-o.
- Ele vai ficar contente de ver você.
Se ao menos eu pudesse dizer o mesmo...
Gray encaminhou-se para a garagem lá nos fundos. Ele ouviu os sons estridentes de uma emissora de country music saindo pela porta aberta. Isso trouxe de volta lembranças de line dancing 3 em Muleshoes. E outras recordações menos agradáveis.
Ele ficou de pé à entrada da garagem. Seu pai estava curvado sobre um pedaço de madeira preso no torno, desbastando uma quina com a plaina manual.
- Pai - disse.
Seu pai empertigou-se e virou-se. Ele tinha a mesma altura de Grayson, porém era mais atarracado, com ombros e costas mais largos. Trabalhara nas jazidas de petróleo enquanto terminava a faculdade, obtendo um utilíssimo diploma em engenharia de indústria de petróleo. Tudo correra bem até que um acidente de trabalho num poço cortou sua perna esquerda na altura do joelho.
O acordo feito com a empresa e a incapacidade permitiram-lhe aposentar-se aos 47 anos.
Fazia 15 anos que isso acontecera.
Metade da vida de Grayson. A metade ruim.
Seu pai virou-se para ele.
- Gray? - Ele removeu o suor da testa, cobrindo-a de pó de serra. O cenho franziu-se. - Não havia necessidade de percorrer todo o caminho até aqui.
- De que outra forma estes sanduíches chegariam até você?
Ele ergueu a bandeja.
- Foi sua mãe quem os fez?
- Você conhece a mamãe. Ela se esforçou ao máximo.
- Então é melhor eu comê-los. Não posso censurar o hábito.
Ele saiu da bancada e mancou com a perna rígida por causa da prótese até uma geladeira nos fundos.
- Cerveja?
- Daqui a pouco eu tenho de voltar para o trabalho.
- Uma cerveja não vai matar você. Tenho algumas garrafas daquela droga de Sam Adams de que você gosta.
Seu pai era mais chegado à Budweiser e à Coors. Porém, o fato de ter estocado sua geladeira com Sam Adams eqüivalia mais ou menos a um tapinha nas costas. Talvez até a um abraço.
Ele não pôde recusar.
Gray pegou a garrafa e usou o abridor embutido na extremidade da bancada para abri-la. Seu pai andou de lado e apoiou um quadril num banco. Ele ergueu sua própria garrafa, uma Budweiser, num brinde.
- É uma merda ficar velho... mas sempre há cerveja.
- É verdade.
Gray tomou um gole profundo. Ele não tinha certeza se devia misturar codeína com álcool - de mais a mais, fora uma manhã muito longa.
Seu pai encarou-o. O silêncio ameaçava tornar-se rapidamente incômodo.
- Quer dizer então - disse Gray - que você não consegue mais achar o caminho para casa.
- Foda-se - respondeu ele afetando raiva, amenizada por um sorriso largo e um aceno de cabeça. Seu pai gostava de conversa franca. Ir direto ao assunto, como ele costumava dizer. - Pelo menos eu não fui um maldito delinqüente.
- Você não consegue esquecer minha prisão em Leavenworth. Disso você continua a se lembrar.
Seu pai apontou a garrafa de cerveja para ele.
- Eu vou me lembrar enquanto puder.
Seus olhos se encontraram. Ele viu algo cintilar por trás da zombaria de seu pai, algo que ele raras vezes tinha visto antes. Medo.
O relacionamento deles nunca fora fácil. Seu pai passara a beber muito depois do acidente e a ter graves crises de depressão. Era difícil para um engenheiro de indústria petrolífera do Texas transformar-se de repente em dona de casa, criando dois meninos enquanto a esposa ia trabalhar. Em compensação, ele administrava a casa como um campo de instrução. E Gray sempre gostou de experimentar seus limites, um rebelde inato.
Até que, aos 18 anos, Gray simplesmente fizera as malas e entrara para o Exército, partindo no meio da noite.
Depois disso, os dois não se falaram por dois anos.
Aos poucos, a mãe dele conseguira reconciliá-los. Todavia, restara uma tensão desconfortável. Uma vez ela dissera:
- Vocês dois são mais parecidos do que diferentes.
Grayson não ouvira palavras mais assustadoras.
- Esta cerveja é uma merda - seu pai disse suavemente, quebrando o silêncio.
- A Budweiser com certeza é - Grayson ergueu sua garrafa de cerveja. - É por isso que eu só bebo Sam Adams.
Seu pai deu um sorriso largo.
- Você é um filho-da-puta.
- Foi você quem me criou.
- E eu suponho que é preciso um para reconhecer outro.
- Eu nunca disse isso.
Seu pai virou os olhos.
- Por que você se dá o trabalho de vir aqui?
Porque eu não sei até quando você vai se lembrar de mim, pensou, mas não ousou dizê-lo em voz alta. Restara um aperto em seu peito, um ressentimento antigo que ele não conseguia esquecer por completo. Havia palavras que queria dizer, queria ouvir... e uma parte dele sabia que o tempo estava se esgotando.
- Onde você arrumou estes sanduíches? - seu pai perguntou, dando uma mordida e falando com a boca cheia. - Eles estão ótimos.
Gray manteve o rosto impassível.
- Mamãe os fez.
Seguiu-se um estremecimento de confusão.
- Ah... é?
Seus olhos voltaram a encontrar-se. O medo brilhou com mais intensidade no olhar de seu pai... e a vergonha. Ele perdera parte de sua virilidade 15 anos atrás e agora se defrontava com a perda de sua humanidade.
- Pai... eu...
- Beba a sua cerveja.
Gray ouviu um tom áspero de raiva familiar e recuou.
Ele bebeu sua cerveja sentado em silêncio, nenhum deles capaz de falar. Talvez sua mãe tivesse razão. Eles eram parecidos demais.
Seu bipe afinal tocou na sua cintura. Gray pegou-o rapidamente e viu o número da Sigma.
- É do escritório - murmurou Gray. - Eu... eu tenho uma reunião à tarde.
Seu pai acenou com a cabeça.
- Eu tenho de voltar a me ocupar desta maldita casa de pássaros.
Eles deram um aperto de mão, dois adversários constrangidos que não admitiam competição.
Gray retornou à casa, despediu-se da mãe e pegou sua bicicleta. Ele montou e saiu pedalando rapidamente em direção à estação do metrô. O número de telefone no seu bipe fora seguido por um código alfanumérico.
?911.
Uma emergência.
Graças a Deus.



17:03h
Cidade do Vaticano

A busca da verdade por trás dos Três Reis Magos havia-se transformado numa trabalhosa escavação arqueológica - porém, em vez de desenterrarem sujeira e rocha, o monsenhor Vigor Verona e sua equipe de arquivistas pesquisavam em livros e pergaminhos que se depedaçavam. A equipe de scrittori havia feito o minucioso trabalho preliminar na biblioteca principal do Vaticano; agora Vigor esquadrinhava à procura de pistas dos Reis Magos uma das áreas mais guardadas da Santa Sé: o Archivio Segretto Vaticano, os infames Arquivos Secretos do Vaticano.
Vigor desceu a passos largos o longo corredor subterrâneo. Cada lâmpada se acendia quando ele se aproximava e apagava-se quando ele passava, mantendo uma poça de luz em torno dele e de seu jovem aluno, Jacob. Eles cruzaram todo o Depósito de Manuscritos principal, apelidado de carbonile, ou bunker. Construído em 1980, o salão de concreto tinha a altura de dois andares, com cada piso separado por um assoalho de metal reticulado, ligado um ao outro por escadas íngremes. De cada lado, quilômetros de prateleiras de aço continham vários regestra de arquivos: resmas de documentos e pergaminhos amarrados. Na parede oposta erguiam-se as mesmas prateleiras de metal, só que lacradas e trancadas por trás de portas de arame, que protegiam material mais sensível.
Havia um ditado sobre a Santa Sé: o Vaticano tinha segredos demais... mas não o bastante. Vigor duvidou da última parte do ditado à medida que andava a passos largos pelo imenso depósito. Ele guardava segredos demais, até de si mesmo.
Jacob carregava um laptop com um banco de dados sobre o tema pesquisado.
- Quer dizer então que não havia apenas três Reis Magos? - perguntou enquanto eles se encaminhavam para a saída do bunker.
Eles haviam ido até ali a fim de digitalizar uma fotografia de um vaso agora guardado no Kircher Museum. Ela representava não três, mas oito reis. Porém, mesmo esse número variava. Uma pintura no cemitério de São Pedro mostrava dois, e uma numa cripta em Domitilla exibia quatro.
- Os Evangelhos nunca foram precisos em relação ao número de Reis Magos - disse Vigor, sentindo o cansaço do longo dia manifestar-se. Ele achava útil debater grande parte de seus pensamentos, pois acreditava firme-mente no método socrático. - Apenas o Evangelho de Mateus se refere diretamente a eles, e mesmo assim de maneira vaga. A suposição comum de três origina-se do número de presentes que os Reis Magos traziam: ouro, incenso e mirra. Na verdade, talvez eles nem sequer fossem reis. A palavra magos vem do grego magoi, ou "feiticeiros".
- Eles eram feiticeiros?
- Não como poderíamos pensar. A conotação de magoi não implica feitiçaria, e sim a prática da sabedoria oculta. A maioria dos estudiosos da Bíblia, hoje, acredita que eles eram astrólogos zoroastrianos da Pérsia ou da Babilônia. Eles interpretaram as estrelas e previram a vinda de um rei para o Ocidente, pressagiada pelo nascimento de um único corpo celeste.
- A Estrela de Belém.
Ele assentiu.
- Apesar de todas as pinturas, a estrela não foi um evento particular-mente insólito. De acordo com a Bíblia, ninguém em Jerusalém sequer a notou. Não até os Reis Magos procurarem Herodes e chamarem sua atenção para ela. Os Reis Magos haviam imaginado que um rei recém-nascido, conforme anunciado pelas estrelas, devia ser filho da realeza. Mas o rei Herodes ficou chocado ao ouvir essa notícia e lhes perguntou quando eles tinham visto a estrela nascer. Ele então usou livros hebraicos sagrados de profecia para indicar onde esse rei poderia ter nascido. Ele mandou os Reis Magos para Belém.
- Então Herodes lhes disse aonde ir.
- Sim, disse, e os mandou como espiões. Apenas a caminho de Belém, de acordo com Mateus, a estrela reapareceu e guiou os Reis Magos até a criança. Em seguida, advertidos por um anjo, eles partiram sem dizer a Herodes quem era a criança ou onde ela estava. A partir daí começou a matança dos inocentes.
Jacob apressou-se para manter o passo.
- Mas Maria, José e o recém-nascido já tinham fugido para o Egito, advertidos também por um anjo. O que aconteceu aos Reis Magos?
- O quê, na verdade?
Vigor havia passado a maior parte da última hora procurando textos gnósticos e apócrifos com referências aos Reis Magos, do Proto-Evangelho de Tiago ao Livro de Sete. Se os ossos tinham sido roubados, havia alguma motivação além do lucro puro e simples? O conhecimento poderia revelar-se a melhor arma deles nesse caso.
Vigor deu uma olhada no relógio. Seu tempo estava se esgotando, mas o Prefeito dos Arquivos continuaria a busca, criando o banco de dados com Jacob, que transmitiria as descobertas deles por e-mail.
- E quanto aos nomes históricos dos Reis Magos? - perguntou Jacob. - Gaspar, Melquior e Baltazar?
- Mera suposição. Os nomes apareceram pela primeira vez na Excerpta Latina Barbari, no século VI. Outras referências se seguem a essa, mas creio que se trata mais de contos de fadas do que de relatos factuais; no entanto, talvez valha a pena segui-las. Vou deixar isso para você e o Preffetlo Alberto pesquisarem.
- Farei o melhor possível.
Vigor franziu o cenho. Era uma tarefa desanimadora. Além disso, aquilo de fato tinha importância? Por que roubar os ossos dos Reis Magos?
A resposta lhe escapava. E Vigor não tinha certeza se a verdade seria encontrada em meio aos cinqüenta quilômetros de prateleiras que formavam os Arquivos Secretos. Mas um consenso começara a se formar a partir de todas as pistas. Factuais ou não, as histórias dos Reis Magos sugeriam uma vasta riqueza de conhecimentos ocultos, que só certa seita de magos conhecia.
Mas quem foram eles realmente?
Mágicos, astrólogos ou sacerdotes?
Vigor passou pela Sala dos Pergaminhos, recebendo um bafo fresco de inseticida e fungicida. Os zeladores deviam ter acabado de borrifá-los. Ele sabia que alguns dos documentos raros na Sala dos Pergaminhos estavam ficando roxos, sucumbindo a um fungo roxo resistente, o que os deixava em sério perigo de se perderem para sempre.
Tantas outras coisas ali também estavam ameaçadas... e não apenas pelo fogo, por fungos ou por negligência, mas pelo mero volume. Apenas metade do material armazenado ali havia sido catalogada. E a cada ano mais material era acrescentado, enviado em grande quantidade pelos embaixadores do Vaticano, pelas sés metropolitanas e pelas paróquias.
Era impossível manter tudo em boas condições.
Os próprios Arquivos Secretos haviam-se disseminado como um tumor maligno, criando metastases a partir de suas salas originais para velhos sótãos, criptas subterrâneas e celas vazias nas torres. Vigor passara seis meses pesquisando os arquivos de espiões do Vaticano anteriores - os que tinham vindo antes dele, agentes colocados em posições governamentais no mundo inteiro -, muitos escritos em código, fazendo um relato oficial de intriga política abarcando mil anos.
Vigor sabia que o Vaticano era tanto uma entidade política quanto uma entidade espiritual. E inimigos de ambas procuravam solapar a Santa Sé. Mesmo hoje em dia. Padres como Vigor é que serviam de mediadores entre o Vaticano e o mundo. Guerreiros secretos, que se mantinham firmes. E, embora ele talvez não concordasse com tudo o que fora feito no passado ou mesmo no presente, sua fé permanecia sólida... como o próprio Vaticano.
Ele sentia orgulho do serviço que prestava ao papado.
Impérios podiam ascender e cair. Filosofias podiam ir e vir. Mas, no fim, o Vaticano persistia, subsistia, continuava impassível e inabalável. Ele era história, tempo e fé preservados em pedra.
Exatamente ali, muitos dos maiores tesouros do mundo estavam protegidos, trancados nas caixas-fortes subterrâneas, nos cofres, nos cubículos e nos armários de madeira escura - chamados armadi - dos Arquivos. Numa gaveta estava uma carta de Mary Stuart no dia anterior à sua decapitação; noutra, as cartas de amor entre o rei Henrique VIII e Ana Bolena. Havia documentos relacionados com a Inquisição, com o julgamentos de bruxas, com as Cruzadas, com cartas de um clã da Pérsia e de uma imperatriz Ming.
Porém, o que Vigor procurava agora não estava tão guardado.
Exigia apenas uma longa subida.
Havia mais uma pista que ele queria investigar antes de ir para a Ale-manha com Rachel.
Vigor chegou ao pequeno elevador de acesso às salas superiores dos Arquivos, chamadas de piani nobli, ou andares nobres. Segurou a porta para Jacob, fechou-a e pressionou o botão. Com um estremecimento e um sola-vanco, o pequeno elevador subiu.
- Aonde estamos indo agora? - perguntou o rapaz.
- À Torre del Venti.
- A Torre dos Ventos? Por quê?
- Um antigo documento é conservado lá. Um exemplar da Descrição do Mundo4 do século XVI.
- O livro de Marco Polo?
Ele fez que sim com a cabeça enquanto o elevador estremecia e parava. Eles saíram num longo corredor.
Jacob apressou-se para acompanhar o passo.
- O que as aventuras de Marco Polo têm a ver com os Reis Magos?
- Nesse livro, ele relata mitos da antiga Pérsia relacionados com os Reis Magos e com o que aconteceu a eles. Tudo converge para um presente que lhes foi dado pelo Cristo menino. Uma pedra de grande poder. Em torno dessa pedra, os Reis Magos supostamente fundaram uma fraternidade mística de sabedoria arcana. Eu gostaria de pesquisar esse mito.
O corredor terminava na Torre dos Ventos. As salas vazias dessa torre haviam sido incorporadas aos Arquivos Secretos. Infelizmente, a sala que Vigor procurava situava-se bem no alto. Ele amaldiçoou a inexistência de elevadores e começou a subir a escada escura.
Ele interrompeu a preleção, economizando o fôlego para a longa subida. A escada em espiral dava voltas e mais voltas. Eles prosseguiram em silêncio até os degraus afinal darem numa das câmaras mais singulares e extraordinárias do Vaticano.
A Sala da Meridiana.
Jacob esticou o pescoço para contemplar os afrescos que adornavam as paredes e os tetos circulares, descrevendo cenas da Bíblia com querubins e nuvens acima. Um único feixe de luz, que entrava através de um buraco de cerca de cinqüenta centímetros na parede, atravessava o ar poeirento e incidia sobre o assoalho de mármore da sala, gravado com os signos do zodíaco. Uma linha demarcando o meridiano estendia-se de um lado ao outro do assoalho. A sala era o observatório solar do século XVI usado para se criar o calendário gregoriano e onde Galileu tentara provar sua tese de que a Terra girava em torno do Sol.
Infelizmente, ele fracassara - sem dúvida, um momento deplorável entre a Igreja Católica e a comunidade científica. Desde então, a Igreja vinha tentando compensar sua miopia.
Vigor parou por um instante para recuperar o fôlego após a longa su-bida. Removeu o suor da testa e encaminhou Jacob a uma câmara adjacente à Sala da Meridiana. Uma estante maciça cobria a parede dos fundos, apinhada de livros e regestra encadernados.
- De acordo com o índice principal, o livro que procuramos deve estar na terceira prateleira.
Jacob avançou, tropeçando no fio que se estendia de um lado ao outro da soleira.
Vigor ouviu o fio retesando-se, mas não teve tempo de avisá-lo.
O dispositivo incendiário explodiu, projetando o corpo de Jacob para fora, de encontro a Vigor.
Eles caíram de costas enquanto um muro de chamas rugia para fora, rolando sobre eles, como o hálito de enxofre de um dragão.


CAPÍTULO 4

Do pó ao pó




24 de julho, 12:14h
Washington, D.C.

A missão recebera prioridade carmesim, designação negra e protocolos de segurança cor de prata. O diretor Painter Crowe balançou a cabeça diante do código de cores. Algum burocrata havia visitado muitas vezes uma loja da Sherwin-Williams.
Todas as designações reduziam-se a uma conclusão: Não fracassem. Quando questões de segurança nacional estavam envolvidas, não havia segundo lugar, nenhuma medalha de prata, nenhum segundo colocado.
Painter sentou-se à sua mesa de trabalho e reviu o relatório de seu ge-rente de operações. Tudo parecia em ordem. Credenciais conferidas, códigos de segurança atualizados, checagem do equipamento concluída, horários do satélite coordenados e milhares de outros detalhes providenciados. Ele correu um dedo pela análise de custos projetada. Na semana seguinte, tinha uma reunião com os chefes da junta.
Ele esfregou os olhos. Aquilo se transformara na sua vida: montanhas de papéis, planilhas eletrônicas e estresse. O dia estava sendo estafante. Primeiro a emboscada da Guilda, agora uma operação internacional a ser deslanchada. Todavia, uma parte dele excitava-se com os novos desafios e responsabilidades. Ele herdara a Sigma de seu fundador, Sean McKnight, agora diretor-geral da DARPA. Painter não queria decepcionar seu mentor. A manhã inteira ambos haviam discutido a emboscada no Forte Detrick e a missão prestes a ter início, elaborando estratégias como nos velhos tempos. Sean ficara surpreso com a escolha do líder da equipe por Painter, mas essa decisão cabia a ele.
Portanto, a missão estava planejada.
Restava apenas instruir os agentes. O vôo tinha sido marcado para as duas da tarde. Não havia muito tempo. Um jato particular já estava sendo abastecido e carregado em Dulles, cortesia da Kensington Oil, um disfarce perfeito. O próprio Painter providenciara o transporte, pedindo um favor à sra. Kara Kensington. Ela ficara contente em ajudar a Sigma de novo.
- Vocês, americanos, não conseguem fazer nada sozinhos? - ela o repreendera.
O intercomunicador tocou na sua mesa.
Ele apertou o botão.
- Pode falar.
- Diretor Crowe, os drs. Kokkalis e Bryant estão aqui.
- Mande-os entrar.
Uma campainha soou na porta quando a fechadura se abriu. Monk Kokkalis entrou primeiro, mas segurou a porta para Kathryn Bryant. A mulher era pelo menos um palmo mais alta do que o atarracado ex-Green Beret. Ela se movia com a graça de uma leoa de força reprimida. Seus cabelos castanho-avermelhados, batendo nos ombros, estavam trançados e eram tão sóbrios quanto seus trajes: tailleur azul-marinho, blusa branca, escarpins de couro. Seu único lampejo de cor era um alfinete na lapela adornado com pedras preciosas, um sapo minúsculo. Ouro esmaltado de esmeralda. Algo que combinava com o lampejo de seus olhos verdes.
Painter sabia por que ela usava o alfinete de ouro. O sapinho fora um presente de uma equipe anfíbia de que ela participara durante uma operação de reconhecimento dos fuzileiros navais para o serviço secreto da Marinha. Ela salvara dois homens, demonstrando sua perícia com um punhal. Mas um colega de equipe jamais voltou. Ela usava o alfinete em memória dele. Painter acreditava que havia mais coisas nessa história, mas a ficha dela não fornecia mais detalhes.
- Por favor, sentem-se - disse Painter, cumprimentando ambos com um aceno de cabeça. - Onde está o comandante Pierce?
Monk mexeu-se na cadeira.
- Gray... o comandante Pierce teve uma emergência na família. Ele acabou de chegar. Ele estará aqui num instante.
Dando-lhe cobertura, Painter pensou. Ótimo. Era um dos motivos por que ele escolhera Monk Kokkalis para aquela missão, colocando-o como parceiro de Grayson Pierce. As habilidades de um complementavam as do outro - porém, mais importante ainda, as personalidades de ambos combinavam. Monk podia ser um pouco sério, agir de acordo com o regulamento, enquanto Grayson era mais reacionário. No entanto, Grayson prestava atenção a Monk, muito mais do que a qualquer outro membro da Sigma. Ele temperava o aço em Gray. Monk tinha uma forma de fazer piadas e de ser indulgente que se revelara tão convincente quanto qualquer argumento bem debatido. Eles formavam uma boa dupla.
Por outro lado...
Painter observou como Kat Bryant estava sentada rígida, ainda alerta. Ela não estava nervosa, e sim cautelosa, com um quê de excitação. Ema-nava confiança. Talvez demais. Ele havia decidido incluí-la naquela missão mais por causa de sua experiência na área de inteligência do que por estar estudando engenharia no momento. Ela possuía experiência com protocolos na União Européia, em particular na região do Mediterrâneo. Conhecia vigilância microeletrônica e contra-espionagem. Porém, mais importante ainda, tinha relações com um dos agentes do Vaticano que estariam supervisionando a investigação em conjunto, o monsenhor Verona. Os dois haviam trabalhado juntos na investigação de uma quadrilha internacional especializada no roubo de objetos de arte.
- Nós bem que podíamos tirar esta papelada do caminho enquanto aguardamos o comandante Pierce.
Painter passou dois volumosos dossiês numa pasta preta, um para Br-yant e o outro para Kokkalis. Um terceiro estava à espera de Pierce.
Monk olhou de relance para o ? prateado gravado na pasta.
- Isto completará todos os detalhes mais sutis desta operação.
Painter bateu de leve na tela sensível ao toque embutida no tampo de sua mesa de trabalho. As três telas planas Sony - uma atrás de seu ombro, uma à esquerda e outra à direita - mudaram de vistas panorâmicas de paisagens montanhosas reproduzidas em alta definição para o mesmo ? prateado. - Eu mesmo vou dar as instruções da missão, em vez do gerente de operações de costume.
- Compartimentar as informações secretas - disse Kat suavemente, o sotaque sulista suavizando a aspereza das consoantes. Painter sabia que ela podia fazer todos os vestígios de seu sotaque desaparecerem quando necessário. - Por causa da emboscada.
Painter acenou afirmativamente com a cabeça.
- As informações estão sendo restringidas antes de uma checagem sistemática dos nossos protocolos de segurança.
- E mesmo assim vamos partir para uma nova missão? - perguntou Monk.
- Não temos escolha. Ordem do...
O zumbido do intercomunicador interrompeu-o. Painter apertou o botão.
- Diretor Crowe - anunciou sua secretária -, o dr. Pierce chegou.
- Mande-o entrar.
A porta abriu-se, fazendo soar a campainha, e Grayson Pierce entrou a passos largos. Ele usava uma calça Levi's, sapatos pretos de couro e uma camisa branca engomada. Seus cabelos estavam escorridos, ainda molhados após o banho.
- Sinto muito - disse Grayson, parando entre os dois outros agentes. Certa dureza em seus olhos desmentia qualquer arrependimento sincero. Ele manteve uma postura rígida, pronto para uma reprimenda.
E ele bem que a merecia. Após a violação da segurança, agora não era hora de dar uma banana ao comando. Contudo, certo grau de insubordinação sempre fora tolerado no comando da Sigma. Aqueles homens e mulheres eram os melhores entre os melhores. Não se podia pedir a eles que agissem com autonomia em campo e depois esperar que se curvassem à autoridade totalitária ali dentro. Era necessário uma mão hábil para equilibrar as duas coisas.
Painter encarou Grayson. Com a segurança intensificada, ele sabia muito bem que o homem havia recebido um telefonema urgente de sua mãe e saído do centro de comando. Por trás do olhar firme e impassível do outro, Painter notou uma fadiga embaciada. Seria devido à emboscada ou à situação em casa? Será que ele estava apto para esta nova missão?
Grayson não interrompeu o contato visual. Simplesmente esperou.
O motivo da reunião ia além do fornecimento de instruções. Era também um teste.
Painter apontou para uma cadeira.
- A família é importante - disse ele, liberando o homem. - Mas não deixe o seu atraso se tornar um hábito.
- Não, senhor.
Grayson dirigiu-se à cadeira e sentou-se, mas seus olhos moveram-se rapidamente dos monitores de tela plana com o logotipo da Sigma para os dossiês no colo de seus colegas. Uma ruga formou-se entre suas sobrancelhas. A falta de reprimenda havia-o perturbado. Ótimo.
Painter empurrou a quarta pasta na direção de Grayson.
- Estávamos começando as instruções sobre a missão.
Ele pegou a pasta. Um olhar de cautelosa perplexidade estreitou seus olhos, mas ele ficou em silêncio.
Painter inclinou-se para trás e tocou de leve na tela em sua mesa de trabalho. Uma catedral gótica apareceu na tela esquerda, uma foto do exterior. Uma vista do interior apareceu à direita. Corpos jaziam estatelados por toda a parte. Por trás de seu ombro, ele sabia que a foto de um contorno de giz demarcava um altar, ainda manchado de sangue, delineando a posição escarrapachada de um padre assassinado. Padre Georg Breitman.
Painter observou os olhares dos agentes percorrerem as imagens.
- O massacre em Colônia - disse Kat Bryant.
Painter fez que sim com a cabeça.
- Ele ocorreu quase no fim de uma missa de meia-noite em comemoração do dia da festa dos Três Reis Magos bíblicos. Oitenta e cinco pessoas foram mortas. O motivo parece ser um simples roubo. O inestimável relicário da catedral foi arrombado. - Painter exibiu rapidamente outras imagens do sarcófago de ouro e dos restos estilhaçados de seu receptáculo de segurança. - O único objeto roubado foi o conteúdo do relicário. Os supostos ossos dos Reis Magos bíblicos.
- Ossos? - perguntou Monk. - Deixam para trás um estojo de ouro maciço e levam um punhado de ossos? Quem faria uma coisa dessas?
- Ainda não se sabe. Só uma pessoa sobreviveu ao massacre. - Painter exibiu uma imagem de um rapaz sendo levado para fora numa padiola, outra do mesmo rapaz num leito de hospital, os olhos abertos, mas vidrados de choque. - Jason Pendleton. Americano. Vinte e dois anos. Foi encontrado escondido num confessionário. Quando ele foi descoberto, o que dizia quase não fazia sentido, mas, após um regime de sedativos, foi capaz de fornecer um relato provisório. O grupo envolvido usava batinas e mantos como os monges. Ele não conseguiu ver nenhum rosto. Eles tomaram a catedral de assalto. Armados com fuzis. Várias pessoas foram fuziladas, entre elas o padre e o arcebispo.
Mais fotos moveram-se rapidamente através das telas: ferimentos à bala, mais demarcações a giz, uma teia de fios vermelhos marcando a trajetória dos tiros. Parecia uma típica cena de um crime, apenas com um pano de fundo incomum.
- E como isto envolve a Sigma? - perguntou Kat.
- Houve outras mortes. Mortes inexplicáveis. Para arrombarem o receptáculo de segurança, os assaltantes utilizaram um dispositivo que não só estilhaçou os vidros à prova de metal e de balas, mas também, pelo menos de acordo com o sobrevivente, desencadeou uma onda de morte pela catedral.
Painter estendeu a mão e apertou uma tecla. Nas três telas apareceram fotos de vários cadáveres. A expressão dos agentes continuou impassível. Todos eles já tinham visto sua cota de morte. Os corpos estavam contorcidos, as cabeças jogadas para trás. Uma imagem era um close-up de um dos rostos. Os olhos estavam abertos, as córneas haviam ficado opacas, enquanto rastros negros de lágrimas sanguinolentas filtravam-se dos cantos. Os lábios estavam contraídos, congelados num ricto de agonia, os dentes à mostra, as gengivas sangrando. A língua estava inchada, rachada, enegrecida dos lados.
Monk, com seus conhecimentos de medicina em geral e de medicina legal em particular, ficou mais ereto, os olhos apertados. Ele podia fazer o papel do palhaço distraído, mas era um observador perspicaz, sua maior vantagem.
- Nas suas pastas estão os laudos cadavéricos completos - disse Painter. - A conclusão inicial dos legistas é a de que as mortes foram devidas a algum tipo de ataque epileptiforme. Um evento convulsivo extremo combinado com hipertermia severa, interferindo na temperatura central e resultando numa liqüefação total das superfícies externas do cérebro. Todos morreram com o coração contraído, espremido com tal intensidade que não se pôde achar sangue nas cavidades. O marca-passo de um homem explodiu no peito dele. Uma mulher com um pino de metal num fêmur foi encontrada horas mais tarde com a perna ainda em chamas, ardendo de dentro para fora.
Os agentes mantiveram o rosto estóico, mas Monk estreitou um olho e a tez de Kat parecia ter empalidecido. Até mesmo Grayson olhava um pouco fixamente demais para as imagens, sem piscar.
Mas Gray foi o primeiro a falar.
- E nós estamos seguros de que as mortes estão relacionadas com o dispositivo utilizado pelos ladrões.
- Tão seguros quanto podemos estar. O sobrevivente relatou que sentiu uma intensa pressão na cabeça quando o dispositivo foi acionado. Ele a descreveu como a sensação que se tem num avião que está descendo. Sentiu-a nos ouvidos. As mortes ocorreram nesse momento.
- Mas Jason sobreviveu - disse Kat, respirando fundo.
- Algumas outras pessoas também. Mas as que não haviam sido afetadas foram fuziladas em seguida pelos criminosos. Assassinadas a sangue-frio.
Monk piscou.
- Quer dizer então que algumas pessoas sucumbiram, outras não. Por quê? Havia alguma coisa em comum entre as vítimas dos ataques?
- Só uma. Um fato observado até por Jason Pendleton. Os únicos que sofreram os ataques parecem ter sido os que receberam a comunhão.
Monk piscou.
- Foi por esse motivo que o Vaticano entrou em contato com as autoridades americanas. E o pessoal do comando passou esse abacaxi para nós.
- O Vaticano - disse Kat.
Painter decifrou a compreensão nos olhos dela. Ela agora entendia por que fora escolhida a dedo para aquela missão, interrompendo seu programa de doutoramento em engenharia.
Ele prosseguiu.
- O Vaticano receia as repercussões, caso se torne de conhecimento geral que algum grupo pode estar visando ao serviço de comunhão. Talvez envenenando as hóstias. Eles querem respostas o mais breve possível, mesmo que isso signifique submeter-se ao direito internacional. A equipe de vocês vai trabalhar com dois agentes secretos ligados à Santa Sé. O objetivo deles é descobrir por que toda essa matança parecia ter o propósito de encobrir o roubo dos ossos dos Reis Magos. Será que foi um gesto puramente simbólico? Ou havia mais a ser roubado?
- E qual a nossa meta final? - perguntou Kat.
- Descobrir as pessoas que cometeram o crime e que dispositivo elas utilizaram. Se ele pôde matar de uma maneira tão específica e direcionada, temos de saber com o que estamos lidando e quem controla isso.
Grayson permanecera quieto, fitando as imagens horripilantes com um olhar mais do que clínico.
- Veneno binário - murmurou afinal.
Painter olhou para ele. Seus olhos encontraram-se, refletindo-se uns nos outros, ambos de um azul tempestuoso.
- O que foi que você disse? - perguntou Monk.
- As mortes - respondeu Grayson, voltando-se para ele. - Elas não foram desencadeadas por um único evento. A causa tinha de ser dupla, exigindo um fator intrínseco e um fator extrínseco. O dispositivo - o fator extrínseco - desencadeou a convulsão em massa. Mas só os que comungaram é que reagiram. Portanto, deve haver um fator intrínseco até agora desconhecido.
Grayson virou-se para Painter.
- Serviram vinho durante o serviço?
- Só a alguns paroquianos. Mas eles também receberam a hóstia. - Painter esperou, observando a estranha rapidez de raciocínio do homem, vendo-o chegar a uma conclusão que os peritos tinham levado muito mais tempo para alcançar. Havia um motivo além de músculos e reflexos por que Grayson havia atraído a atenção de Painter.
- As hóstias devem ter sido envenenadas - disse Grayson. - Não existe outra explicação. Alguma coisa foi intrinsecamente plantada nas vítimas através do consumo das hóstias. Uma vez contaminadas, elas estavam suscetíveis seja lá a que força gerada pelo dispositivo. - Os olhos de Grayson voltaram a encontrar-se com os de Painter. - As hóstias foram examinadas a fim de se saber se estavam contaminadas?
- Não havia no conteúdo do estômago das vítimas o suficiente para uma análise adequada, mas sobraram hóstias do serviço. Elas foram enviadas a laboratórios em toda a União Européia.
- E?
Àquela altura, a fadiga embaciada havia desaparecido dos olhos do homem, substituída por uma atenção precisa como o laser. Ele sem dúvida ainda estava apto para o serviço. Mas o teste ainda não terminara.
- Nada foi encontrado - prosseguiu Painter. - As análises não revelaram nada além de farinha de trigo, água e os ingredientes usuais para se fazerem hóstias não levedadas.
A ruga aprofundou-se entre as sobrancelhas de Grayson.
- Isso é impossível.
Painter ouviu a obstinada rispidez da voz dele, quase beligerante. O homem continuava firmemente confiante em sua avaliação.
- Deve haver alguma coisa - Grayson insistiu.
- Os laboratórios da DARPA também foram consultados. Os resultados deles foram os mesmos.
- Eles estavam errados.
Monk estendeu um braço par acalmá-lo.
Kat cruzou os braços, encerrando a discussão.
- Então deve haver outra explicação para...
- Besteira - disse Grayson, interrompendo-a. - Todos os laboratórios estavam errados.
Painter refreou um sorriso. Ali estava o líder esperando para revelar-se no homem: com raciocínio agudo, obstinadamente confiante, disposto a ouvir, mas que não mudava com facilidade de opinião uma vez que metia algo na cabeça.
- Você tem razão - disse Painter afinal.
Enquanto os olhos de Monk e de Kat se arregalavam de surpresa, Grayson simplesmente recostou-se em seu assento.
- Nossos laboratórios aqui de fato encontraram algo.
- O quê?
- Eles calcinaram completamente a amostra, reduzindo-a a seus componentes, e separaram todos os componentes orgânicos. Em seguida, removeram cada oligoelemento à medida que o espectrômetro de massa o media. Mas, depois que tudo foi separado, ainda havia em suas balanças um quarto do peso seco do que restara da hóstia. Um pó seco esbranquiçado.
- Não estou entendendo - disse Monk.
Grayson explicou.
- O pó que restou não pôde ser detectado pelo equipamento de análise.
- Ele estava nas balanças, mas os aparelhos diziam aos técnicos que ali não havia nada.
- Isso é impossível - disse Monk. - Nós temos aqui o melhor equipamento do mundo.
- Mas mesmo assim ele não pôde detectá-lo.
- A substância na forma de pó deve ser totalmente inerte - disse Grayson.
Painter acenou afirmativamente com a cabeça.
- Por isso os rapazes do nosso laboratório continuaram a testá-la. Eles a aqueceram até o ponto de fusão, 1.160 graus. Ela fundiu-se e formou um líquido cristalino que, quando a temperatura baixava, endurecia, formando um vidro âmbar transparente. Quando o vidro era triturado num almofariz, ele tornava a formar o pó branco. Mas em cada estágio ele permanecia inerte, incapaz de ser detectado pelo equipamento moderno.
- O que pode fazer isso? - perguntou Kat.
- Algo que todos nós conhecemos, mas num estado que só foi descoberto nas últimas décadas. - Painter passou para a foto seguinte. Ela mostrava um eletrodo de carbono numa câmara de gás inerte. - Um dos técnicos trabalhou na Universidade de Cornell, onde esse teste foi desenvolvido. Eles realizaram uma vaporização fracional do pó combinada com espectroscopia de emissão. Usando uma técnica de eletrogalvanização, eles foram capazes de fazer com que o pó fosse recozido de volta ao seu estado mais comum.
Ele exibiu a última foto. Era um close-up do eletrodo preto, só que ele não era mais preto.
- Eles foram capazes de fazer com que a substância convertida aderisse ao eletrodo de carbono.
O eletrodo preto, agora galvanizado, reluziu sob a luminária, esplêndido e inconfundível.
Grayson inclinou-se para a frente na cadeira.
- Ouro.



18:24h
Roma, Itália

A sirene do carro uivou nos ouvidos de Rachel. Ela estava sentada no banco do carona da patrulha dos Carabinieri, contundida, dolorida, a cabeça latejando. Porém, tudo o que conseguia sentir era uma certeza gélida de que o tio Vigor estava morto. O medo ameaçava estrangulá-la, encurtando sua respiração e estreitando sua visão.
Ela meio que ouvia o patrulheiro falando em seu rádio. O veículo dele tinha sido o primeiro na cena de sua emboscada nas ruas. Ela recusara os cuidados médicos e usara sua autoridade como tenente para ordenar ao homem que a levasse ao Vaticano.
O carro chegou à ponte sobre o rio Tibre. Rachel continuava a olhar fixamente em direção ao seu destino. No outro lado do canal, a cúpula brilhante da Basílica de São Pedro apareceu, erguendo-se acima de tudo mais. O sol poente irradiava-se nela em tons de prata e ouro. Porém, o que ela viu erguendo-se atrás da basílica a fez erguer-se do assento. Suas mãos cravaram-se na beira do painel de instrumentos.
Uma coluna fuliginosa de fumaça negra subia em espiral no céu cor de anil.
- Tio Vigor...
Rachel ouviu o som de outras sirenes ecoando rio acima. Carros de bombeiros e outros veículos de emergência.
Ela agarrou o braço do patrulheiro. Teve vontade de empurrar o homem para o lado e dirigir ela mesma. Mas ainda estava abalada.
- Você pode ir mais rápido?
O carabiniere Norre fez que sim com a cabeça. Ele era jovem, novato na força. Usava o uniforme preto com a listra vermelha nas pernas e uma faixa prateada no peito. Ele deu uma guinada no volante e subiu numa calçada para transpor um nó no trânsito. Quanto mais eles se aproximavam do Vaticano, pior se tornava o congestionamento. O afluxo de veículos de emergência havia emaranhado todo o tráfego na área.
- Siga para a Porta de Sant'Ana - ordenou ela.
Ele deu uma guinada no volante e conseguiu cortar caminho por uma ruela para saírem a três quadras da Porta de Sant'Ana. Bem à frente, a origem do incêndio tornou-se clara. Além dos muros do Vaticano, a Torre dos Ventos era o segundo ponto mais alto da Cidade do Vaticano. Seus andares superiores ardiam em chamas, transformando-se numa tocha de pedras.
Oh! não...
A torre abrigava uma parte dos Arquivos do Vaticano. Ela sabia que seu tio estivera pesquisando nas bibliotecas da Santa Sé. Após o ataque de que ela fora vítima, o incêndio não podia ser um mero acidente.
O carro de repente deu uma freada brusca, projetando Rachel para a frente, presa ao seu assento. Os olhos dela desviaram-se da torre em chamas.
Todo o tráfego a partir dali estava bloqueado.
Rachel não podia esperar mais. Ela puxou a maçaneta da porta e começou a sair.
Dedos apertaram seu ombro, retendo-a.
- Tenente Verona - disse o carabiniere Norre. - Aqui. A senhora pode precisar disto.
Rachel olhou para baixo, para a pistola preta, uma Beretta 92, a arma de serviço do homem. Ela a pegou, agradecendo com um aceno de cabeça.
- Alerte a delegacia. Informe ao general Rende, da Tutela Patrimonio Culturale, que voltei para o Vaticano. Ele pode entrar em contato comigo através do Escritório da Secretaria.
Ele inclinou a cabeça num sinal afirmativo.
- Tome cuidado, tenente.
Com sirenes uivando de todas as direções, Rachel seguiu a pé. Ela meteu a pistola no cós de seu cinto e puxou a blusa para fora, de modo que ela se estendesse, ocultando a Beretta. Sem uniforme, não seria bom ser vista correndo em direção a uma situação de emergência com uma arma exposta.
Multidões abarrotavam as calçadas. Rachel ziguezagueou entre os carros parados nas ruas e até deslizou pelo capo de um deles para seguir em frente. Ela avistou adiante um carro de bombeiros municipal entrando devagar pela Porta de Sant'Ana. Era uma situação difícil. Um contingente de soldados da Guarda Suíça formava uma barricada de cada lado, em alerta máximo. Nada de alabardas cerimoniais. Cada homem tinha na mão um rifle de assalto.
Rachel avançou em direção à fileira de guardas.
- Tenente Verona do Corpo de Carabinieri! - gritou ela, com os braços para o alto, o documento de identificação na mão. - Eu preciso falar com o cardeal Spera!
As expressões continuaram duras, inflexíveis. Era óbvio que eles haviam recebido ordens para bloquear todos os acessos à Santa Sé, fechando-a para todos, exceto para o pessoal de emergência. Uma tenente dos Carabinieri não tinha autoridade sobre os soldados da Guarda Suíça.
Porém, de trás da linha, um único guarda avançou, em trajes azul-escuros. Rachel o reconheceu como o mesmo guarda com quem havia falado mais cedo. Ele abriu caminho através da linha e encontrou-se com ela.
- Tenente Verona - disse ele. - Recebi ordens para escoltá-la até lá dentro. Venha comigo.
Ele girou num calcanhar e seguiu na frente.
Ela apressou-se para manter o passo enquanto eles passavam pela porta.
- Meu tio... o monsenhor Verona...
- Não sei de nada a não ser que devo escoltá-la até o heliporto. - Ele a levou até um carrinho elétrico usado pelos jardineiros e estacionado logo depois da porta. - Ordens do cardeal Spera.
Rachel entrou no veículo. O carro de bombeiros que atravancava a passagem seguia adiante deles e entrou no amplo pátio em frente aos Museus do Vaticano. Juntou-se aos outros veículos de emergência, incluindo dois veículos militares; equipados com submetralhadoras.
Com a pista agora livre, o guarda virou o carrinho à direita, contornando o engarrafamento do tráfego de emergência em frente aos museus. Acima, a torre continuava a arder. De algum lugar no outro lado, um jato d'água explodiu para cima, tentando atingir os andares de cima. Chamas projetavam-se das janelas dos três últimos andares. Nuvens de fumaça negra subiam em rolos e revolviam-se no ar. A torre era altamente inflamável, alimentada por massas de livros e pergaminhos.
Era um desastre de grandes proporções. O que o fogo não havia destruído, água e fumaça arruinariam. Séculos de arquivos, que mapeavam a história do Ocidente, perdidos.
Todavia, todos os temores de Rachel tinham uma única preocupação.
O tio Vigor.
O carro passou sibilando pela oficina da cidade e continuou rumo a uma rua pavimentada. Ela era paralela à Muralha Leonina, a paliçada de pedras e argamassa que circundava a Cidade do Vaticano. Eles deram a volta ao complexo de museus e chegaram aos vastos jardins que cobriam a parte de trás da cidade-estado. Chafarizes dançavam a distância. O mundo estava pintado em tons de verde. Parecia bucólico demais para a paisagem infernal, atrás deles, de fumaça, fogo e uivos de sirenes.
Eles prosseguiram em silêncio para a parte mais afastada do terreno.
O destino deles surgiu adiante. Oculto num recinto murado estava o heliporto do Vaticano. Construído no lugar de antigas quadras de tênis, não passava de um vasto campo de concreto e alguns anexos.
Na pista alcatroada, um único helicóptero repousava em seus patins, isolado do tumulto. Suas hélices começaram a girar lentamente, adquirindo velocidade. O motor gemeu. Rachel conhecia a sólida aeronave branca. Era o helicóptero particular do papa, apelidado de "Holycopter".1
Ela também reconheceu a batina preta e a faixa vermelha do cardeal Spera. Ele estava de pé junto à porta aberta do compartimento de passageiros, ligeiramente curvado para esquivar-se às hélices que giravam. Uma de suas mãos segurava o solidéu escarlate no lugar.
Ele virou-se, atraído pelo movimento do carrinho, e ergueu um braço em saudação. O carrinho freou a curta distância. Rachel mal esperou que ele parasse e pulou para fora. Correu em direção ao cardeal.
Se alguém conhecia o destino de seu tio, era o cardeal.
Ou alguma outra pessoa...
Uma pessoa desceu da parte de trás do helicóptero e correu em sua direção. Ela também correu ao encontro dela e deu-lhe um abraço apertado sob as hélices turbilhonantes do helicóptero.
- Tio Vigor...
Lágrimas escorreram pelo rosto dela, quentes, derretendo o gelo em volta de seu coração.
Ele afastou-a.
- Você está atrasada, criança.
- Eu fui atacada - ela respondeu.
- Foi o que eu soube. O general Rende me informou sobre esse ataque.
Rachel olhou para trás, para a torre em chamas. Ela sentiu o cheiro de fumaça nos cabelos dele. As sobrancelhas dele estavam chamuscadas.
- Parece que eu não fui a única a sofrer um ataque. Graças a Deus o senhor está bem.
O rosto de seu tio ficou sombrio, sua voz apertou-se.
- Infelizmente, nem tudo foi tão abençoado.
Ela o olhou nos olhos.
- Jacob morreu na explosão. Seu corpo protegeu o meu, me salvou.
Ela sentiu a angústia em suas palavras, mesmo acima do rugido do helicóptero.
- Venha, temos de partir.
Ele a conduziu ao helicóptero.
O cardeal Spera acenou com a cabeça para o tio dela.
- Eles têm de ser detidos - disse ele de maneira enigmática.
Rachel seguiu seu tio para o interior do helicóptero. Eles apertaram os cintos enquanto a porta era fechada. O material isolante espesso amortecia uma boa parte do barulho do motor do helicóptero, mas Rachel ouviu sua rotação aumentar. Ele imediatamente ergueu-se de seus patins e subiu com suavidade no ar.
O tio Vigor acomodou-se de encontro ao encosto de seu assento, a cabeça curvada, os olhos fechados. Seus lábios tremiam, pronunciando uma prece silenciosa. Por Jacob... talvez por eles mesmos.
Rachel esperou até ele abrir os olhos. Àquela altura, eles estavam afastando-se do Vaticano e sobrevoando o Tibre.
- Os atacantes - Rachel começou - ...eles estavam dirigindo veículos com placas do Vaticano.
Seu tio acenou afirmativamente com a cabeça, sem demonstrar surpresa.
- Parece que o Vaticano não só tem espiões no exterior, mas também que é espionado em seu próprio seio.
- Quem...?
Com um grunhido, o tio Vigor a interrompeu. Ele empertigou-se, en-fiou a mão no paletó, retirou um pedaço de papel dobrado e passou-o para ela.
- O sobrevivente do massacre de Colônia fez esta descrição para um desenhista. Ele viu isto bordado no peito de um dos atacantes.
Rachel desdobrou o pedaço de papel. Nele estava desenhada com detalhes surpreendentes a figura enrascada de um dragão vermelho, asas resplandecentes, cauda torcida e sinuosa, enrolada em torno do próprio pescoço.
Ela baixou o desenho e olhou para o tio.
- Um símbolo antigo - ele disse. - Ele remonta ao século XIV.
- Símbolo de quê?
- Da Corte do Dragão.
Rachel balançou a cabeça, não reconhecendo o nome.
- Trata-se de um culto alquímico medieval criado por um cisma na Igreja primitiva, o mesmo cisma que viu a ascensão de papas e antipapas.
Rachel estava familiarizada com o reinado de antipapas do Vaticano, homens que se sentavam como chefes da Igreja Católica, mas cuja eleição era mais tarde declarada não-canônica. Eles ascendiam ao trono pontifício por vários motivos, e o mais comum era a usurpação e o exílio do papa legitimamente eleito, em geral por uma facção militante apoiada por um rei ou imperador. Do século III ao século XV, quarenta antipapas haviam sido elevados ao trono pontifício. A era mais tumultuosa, contudo, foi durante o século XIV, quando o papado legítimo foi expulso de Roma para a França. Por setenta anos, os papas reinaram no exílio, enquanto Roma era governada por uma série de antipapas corruptos.
- O que esse culto antigo tem a ver com a situação agora? - perguntou ela.
- A Corte do Dragão ainda está ativa hoje. Sua soberania é até reconhecida pela União Européia, análoga à dos Cavaleiros de Malta, que possuem o status de observadores nas Nações Unidas. A sombria Corte do Dragão esteve ligada ao Conselho Europeu dos Príncipes, aos Cavaleiros Templários e aos Rosa-Cruzes. A Corte do Dragão também admite abertamente que possui membros dentro da Igreja Católica. Até mesmo aqui no Vaticano.
- Aqui?
Rachel não conseguiu disfarçar o choque em sua voz. Ela e seu tio tinham sido visados. Por alguém de dentro do Vaticano.
- Poucos anos atrás, quase houve um escândalo - o tio Vigor continu-ou. - Um ex-jesuíta, o padre Malachi Martin, escreveu sobre uma "igreja secreta" dentro da Igreja. Ele era um erudito que falava 17 línguas, autor de muitos textos eruditos e um colaborador próximo do papa João XXIII. Ele trabalhou vinte anos aqui no Vaticano. Seu último livro, escrito pouco antes de ele morrer, discorria sobre um culto alquímico no seio do próprio Vaticano que executava rituais secretos.
Rachel sentiu um embrulho no estômago que não tinha relação alguma com a inclinação lateral do helicóptero ao descrever uma curva na direção do aeroporto internacional em Fiumicino, nas proximidades.
- Uma igreja secreta no interior da Igreja. É isto que talvez esteja envolvido no massacre de Colônia? Por quê? Qual é o objetivo deles?
- Para roubarem os ossos dos Reis Magos? Não tenho nenhuma pista.
Rachel deixou essa revelação filtrar-se através de sua mente. Para pegar um criminoso era preciso primeiro conhecê-lo. A determinação do motivo muitas vezes revelava-se mais informativa do que provas materiais.
- O que mais você sabe sobre a Corte? - perguntou ela.
- Apesar de sua longa história, não muito. No século VIII, o imperador Carlos Magno conquistou a Europa antiga em nome da Santa Igreja, esmagando religiões pagãs de culto à natureza e substituindo suas crenças pelo catolicismo.
Rachel acenou com a cabeça, pois conhecia bem os métodos brutais de Carlos Magno.
- Mas as coisas tomaram um novo rumo - prosseguiu o tio Vigor. - O que antes estava fora de moda voltou a entrar na moda. No século XII, começou a ocorrer um ressurgimento da crença gnóstica ou mística, adotada em segredo pelos mesmos imperadores que um dia a haviam esmagado. Aos poucos foi-se formando um cisma, à medida que a Igreja se movia em direção ao catolicismo que conhecemos hoje, enquanto os imperadores prosseguiam com suas práticas gnósticas. O cisma chegou ao auge no fim do século XIV. O papado exilado na França acabara de regressar. Para promover a paz, o sacro imperador romano Sigismundo de Luxemburgo deu apoio político ao Vaticano, até mesmo aparentemente abolindo as práticas gnósticas entre as classes inferiores.
- Apenas entre as classes inferiores?
- A aristocracia foi poupada. Embora o imperador tivesse esmagado as crenças místicas entre os plebeus, ele criou uma sociedade secreta entre as famílias reais da Europa, uma sociedade dedicada a atividades alquímicas e místicas. A Ordinis Draconis. A Corte Imperial Real do Dragão. Ela continua até hoje. Mas existem muitas seitas em diferentes países; algumas são inofensivas, meramente cerimoniais ou fraternas, mas surgiram outras chefiadas por líderes virulentos. Eu aposto que, se a Corte do Dragão está envolvida, é uma dessas subseitas fanáticas.
Rachel passou instintivamente para o modo interrogativo. Conheça seu inimigo.
- E qual é o objetivo dessas seitas mais malignas?
- Como um culto da aristocracia, esses líderes extremistas acreditam que eles e seus membros são os governantes legítimos e eleitos da humani-dade. Que nasceram para governar pela pureza do seu sangue.
- A síndrome da raça superior de Hitler.
Um aceno afirmativo de cabeça.
- Mas eles buscam mais. Não apenas a realeza. Eles buscam todas as formas de conhecimento antigo para promover sua causa de domínio e apocalipse.
- Para irem até onde o próprio Hitler teve medo de ir - murmurou Rachel.
- Na maioria das vezes, eles mantêm um ar austero de superioridade enquanto manipulam a política por trás de uma cortina de segredo e ritual, trabalhando com grupos de elite como a Caveira e Ossos2 nos Estados Unidos e o conselho consultivo Bilderburg 3 na Europa. Mas agora alguém está revelando a verdadeira intenção deles, de uma forma descarada, sangrenta.
- O que isso significa?
O tio Vigor sacudiu a cabeça.
- Receio que essa seita tenha descoberto algo de suma importância, algo que a tira da clandestinidade para a notoriedade.
- E as mortes?
- Uma advertência à Igreja. Como os ataques a nós mesmos. As tentativas simultâneas de assassinato hoje não poderiam ser coincidência. Devem ter sido ordenadas pela Corte do Dragão para nos retardar, para nos assustar. Não poderiam ser coincidência. Essa Corte específica está tentando nos intimidar, rosnando para que a Igreja recue, fazendo-a mudar a pele que vem usando há séculos.
- Mas com que objetivo?
O tio Vigor recostou-se com um suspiro.
- Alcançar a meta de todos os loucos.
Rachel continuou a encará-lo.
Ele respondeu com uma única palavra.
- Armagedom.



16:04h
Hora padrão do leste
Vôo sobre o Atlântico

Gray agitou seu copo, fazendo o gelo tinir.
De sua poltrona, Kat Bryant correu os olhos pela cabine luxuosa do jato particular. Nada disse, mas sua testa vincada dizia tudo. Estivera se concentrando no dossiê da missão - pela segunda vez. Gray já o tinha lido de cabo a rabo. Ele não via nenhuma necessidade de examiná-lo de novo. Em vez disso, estivera observando a superfície azul-acinzentada do oceano Atlântico, tentando imaginar por que fora designado líder da missão. A 13.500 metros de altitude, ainda não encontrara resposta.
Girando sua poltrona, ele se levantou e foi até o bar de mogno antigo na parte de trás da cabine. Tornou a balançar a cabeça diante da opulência ali: cristal Waterford, nogueira sem nós, assentos de couro. Parecia um pub inglês exclusivo.
Mas pelo menos ele conhecia o barman.
- Outra Coca? - perguntou Monk.
Gray colocou o copo sobre o bar.
- Acho que atingi meu limite.
- Bundão - murmurou seu amigo.
Gray voltou-se e contemplou a cabine. Seu pai uma vez lhe dissera que representar o papel era meio caminho andado para se transformar no papel. É claro que ele estava se referindo às tarefas de Gray como trabalhador braçal numa plataforma de perfuração de uma jazida de petróleo, supervisionadas pelo pai engenheiro. Ele tinha apenas 16 anos e passava o verão ao sol quente do Leste do Texas. Encarava um trabalho brutal, enquanto outros colegas seus do ginásio veraneavam nas praias de South Padre Island. O conselho de seu pai ainda soava em sua cabeça. Para ser um homem, você primeiro tem de agir como um homem.
Talvez se pudesse dizer o mesmo a respeito de ser um líder.
- Okay, chega de folhear os livros - disse ele, atraindo o olhar de Kat. Ele olhou de relance para Monk. - E eu acho que você já explorou a profundidade desse armário de bebidas voador por tempo suficiente.
Monk deu de ombros e foi para a área principal da cabine.
- Temos menos de quatro horas de vôo à nossa frente - disse Gray. Com o jato deles, um Citation X fabricado sob encomenda, viajando um pouco abaixo da velocidade do som, eles aterrissariam às duas da manhã, hora da Alemanha, no meio da noite. - Sugiro que todos nós tentemos dormir um pouco. Começaremos a todo o vapor assim que chegarmos lá.
Monk bocejou.
- Você não terá de me dizer duas vezes, comandante.
- Mas primeiro vamos trocar umas idéias. Jogaram uma grande responsabilidade nas nossas costas.
Gray apontou para as poltronas. Monk desabou numa delas. Gray juntou-se a eles, ficando de frente para Kat no outro lado de uma mesa.
Enquanto Gray conhecia Monk desde que ingressara na Sigma, a capitã Kathryn Bryant continuava sendo uma relativa desconhecida. Ela estava tão mergulhada nos estudos que poucos na Sigma a conheciam bem. Era geralmente definida por sua reputação desde que fora recrutada. Um agente a descrevera como um computador ambulante. Mas sua reputação também era manchada por seu papel anterior como agente do serviço de inteligência. Supervisionando o trabalho sujo, era o boato que corria. Mas ninguém tinha certeza. Seu passado estava além da classificação até mesmo de seus colegas na Sigma. Esse segredo apenas a isolava ainda mais de homens e mulheres que haviam subido por seus próprios méritos em unidades, equipes e pelotões.
Gray tinha seus próprios problemas com o passado dela. Ele tinha motivos pessoais para não gostar dos que trabalhavam na área de inteligência. Eles operavam a distância, longe do campo de batalha, mais longe até do que pilotos de bombardeiros, mas de uma maneira mais mortífera. Gray trazia as mãos manchadas de sangue por causa de informações secretas insuficientes. Sangue inocente. Ele não conseguia livrar-se de certo grau de suspeita.
Ele encarou Kat. Os olhos verdes dela eram duros. Todo o corpo dela parecia engomado. Ele repeliu o passado dela. Ela agora era sua colega de equipe.
Ele respirou fundo. Era o chefe dela.
Interprete o papel...
Ele pigarreou. Hora de ir ao que interessava. Ergueu um dedo.
- Okay, em primeiro lugar, o que sabemos?
Monk respondeu, o rosto seriíssimo.
- Não muito.
Kat manteve uma expressão fixa.
- Sabemos que os criminosos estão de algum modo envolvidos com a seita conhecida como a Corte Real do Dragão.
- Isso é quase o mesmo que dizer que eles estão envolvidos com Hare Krishnas - contrapôs Monk. - O grupo é tão obscuro e imprestável quanto o capim-das-hortas. Nós não temos uma pista de quem está verdadeiramente por trás de tudo isto.
Gray fez um aceno de cabeça. Eles haviam recebido essa informação por fax enquanto estavam a caminho. Porém, ainda mais perturbador era o fato de terem recebido a notícia de um ataque a seus homólogos no Vaticano. Tinha de ser obra da Corte do Dragão de novo. Mas por quê? Para que espécie de zona de guerra clandestina eles estavam voando? Ele precisava de respostas.
- Então analisemos a situação - disse ele, dando-se conta de que estava se parecendo com o diretor Crowe. Os outros dois olharam esperançosos para ele. Gray pigarreou. - Voltemos ao essencial. Meios, motivos e oportunidade.
- Eles tiveram muita oportunidade - disse Monk. - Atacando depois da meia-noite. Quando a maioria da ruas estava vazia. Mas por que não esperaram até que a catedral também estivesse vazia?
- Para mandar um recado - respondeu Kat. - Um golpe contra a Igreja Católica.
- Não podemos fazer essa suposição - disse Monk. - Examine a questão de uma forma mais ampla. Talvez tudo tenha sido escamoteação. Com o objetivo de confundir. De cometer um crime tão sangrento que toda a atenção seria desviada do roubo quase insignificante de alguns ossos poeirentos.
Kat não parecia convencida, mas ela era difícil de decifrar, misteriosa. Como fora treinada.
Gray resolveu a questão.
- De qualquer modo, por ora, explorar a oportunidade não oferece uma idéia de quem cometeu o massacre. Passemos para o motivo.
- Por que roubar ossos? - disse Monk com um meneio de cabeça e voltou a sentar-se. - Pode ser que eles queiram exigir resgate à Igreja Católica para tê-los de volta.
Kat balançou a cabeça em negativa.
- Se quisessem apenas dinheiro, eles teriam roubado o relicário de ouro. Portanto, deve haver alguma outra coisa relacionada com os ossos. Alguma coisa da qual não temos nenhuma pista. Por isso talvez seja melhor deixarmos esse assunto para os nossos contatos no Vaticano.
Gray franziu o cenho. Ele ainda se sentia desconfortável trabalhando em parceria com uma organização como o Vaticano, uma instituição baseada em segredos e dogmas religiosos. Ele fora criado como católico romano e, conquanto ainda sentisse fortes arroubos de fé, também havia estudado outras religiões e filosofias: budismo, taoísmo, judaísmo. Aprendera muito, mas nunca pôde responder a uma pergunta com base em seus estudos: O que estava buscando?
Gray sacudiu negativamente a cabeça.
- Por ora, vamos marcar a motivação desse crime com outro grande ponto de interrogação. Vamos nos ocupar disso mais a fundo quando nos encontrarmos com os outros. Isso deixa apenas os meios para discutirmos.
- O que nos faz voltar à discussão dos aspectos financeiros - disse Monk. - Essa operação foi bem planejada e rapidamente executada. Somente pelo emprego do potencial humano, foi uma operação cara. O dinheiro apoiou esse roubo.
- O dinheiro e um nível de tecnologia que nós não entendemos - disse Kat.
Monk acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mas o que é que vocês acham daquele ouro misterioso nas hóstias?
- Ouro monoatômico - murmurou Kat, com vincos formando-se em torno dos lábios.
Gray imaginou o eletrodo folheado a ouro. No dossiê que eles haviam recebido havia uma profusão de dados sobre aquele ouro estranho, colhidos de laboratórios em todo o mundo: British Aerospace, Argonne National Laboratories, Laboratórios da Boeing em Seattle, Instituto Niels Bohr em Copenhague.
O pó não era ouro em pó comum, a forma em flocos do ouro metálico. Era um estado elementar do ouro inteiramente novo, classificado como estado m. Em vez de sua matriz metálica usual, o pó branco era ouro decomposto em átomos isolados. Monoatômico, ou estado m. Até recentemente, os cientistas não sabiam que o ouro podia transmudar, tanto por meios naturais quanto artificiais, na forma de um pó branco inerte.
Mas o que aquilo tudo significava?
- Okay - disse Gray -, todos nós já lemos os arquivos. Vamos debater esse tópico. Vejamos se ele leva a algum lugar.
Monk disse em voz alta:
- Em primeiro lugar, não é apenas o ouro que faz isso. Não devíamos nos esquecer disto. Parece que qualquer um dos metais do grupo de transição da tabela periódica - platina, ródio, irídio e outros - também pode dissolver-se num pó.
- Dissolver-se não - disse Kat. - Ela deu uma olhada no dossiê com seus artigos fotocopiados de Platinum Metals Review, de Scientific American e até mesmo de Jane's Defense Weekly, o boletim do Ministério da Defesa do Reino Unido. Parecia que estava ansiosa para abrir a pasta.
- O termo é desagregar-se - continuou ela. - Esses metais no estado m decompõem-se tanto em átomos isolados quanto em microagregados. Do ponto de vista da física, esse estado surge quando elétrons do inverso do tempo e elétrons adiante do tempo se fundem em torno do núcleo do átomo, fazendo com que cada átomo perca sua reatividade química para o seu vizinho.
- Você quer dizer que eles param de se agarrar uns aos outros.
Os olhos de Monk dançaram um pouco com deleite.
- Sim, se usarmos uma linguagem grosseira - disse Kat com um suspiro. - Essa falta de reatividade química é que faz o metal perder seu aspecto metálico e desagregar-se num pó. Um pó que não é detectado pelo equipamento de laboratório comum.
- Ah... - murmurou Monk.
Gray franziu o cenho para Monk. Ele deu de ombros. Gray sabia que seu amigo estava se fazendo de tolo.
- Eu acho - prosseguiu Kat, sem notar a reprimenda - que os criminosos sabiam dessa falta de reatividade química e acreditavam que ouro em pó jamais seria descoberto. Foi o segundo erro deles.
- O segundo? - perguntou Monk.
- Eles deixaram uma testemunha viva. O rapaz. Jason Pendleton. - Kat abriu sua pasta com o dossiê. Parecia que ela não conseguia resistir à tentação afinal de contas. - Voltemos à questão do ouro. O que me dizem deste artigo sobre supercondutividade?
Gray fez um aceno de cabeça afirmativo. Ele tinha de dar crédito a Kat. Ela havia concentrado a atenção no aspecto mais intrigante dos metais no estado m. Até mesmo Monk sentava-se mais empertigado agora.
Kat continuou:
- Embora o pó pareça inerte ao equipamento de análise, o estado atômico está longe do estado de baixa energia. Era como se cada átomo tirasse toda a energia que usava para reagir com o seu vizinho e se voltasse para dentro de si mesmo. A energia deformava o núcleo do átomo, fazendo-o assumir uma forma alongada, conhecida como... - Ela esquadrinhou o artigo com as pontas dos dedos. Gray notou que ele fora marcado com um marca-texto amarelo.
- Como estado assimétrico de alta rotação - disse ela. - Os físicos sabem que esses átomos de alta rotação podem transferir energia de um átomo para o próximo sem perda líquida de energia.
- Supercondutividade - disse Monk sem dissimulação.
- A energia transferida para um supercondutor continuava a fluir através do material sem perda de força. Um supercondutor perfeito permitiria que essa energia fluísse indefinidamente, até o fim dos tempos.
O silêncio abateu-se sobre eles enquanto todos avaliavam os muitos quebra-cabeças àquela altura.
Monk finalmente reclinou-se.
- Ótimo. Nós reduzimos o mistério ao nível do núcleo atômico. Voltemos à vaca-fria. O que é que isto tem a ver com os assassinatos na catedral? Por que envenenar as hóstias com esse ouro em pó misterioso? Como o pó matou?
Todas essas perguntas eram procedentes. Kat fechou seu dossiê, reconhecendo que nenhuma resposta seria encontrada ali.
Gray estava começando a entender por que o diretor lhe dera aqueles dois parceiros. Ia além da experiência deles como uma especialista em inteligência e um perito em medicina legal. Kat tinha uma capacidade extraordinária de se concentrar em minúcias, de perceber detalhes que outros talvez não percebessem. Mas Monk, não menos sagaz, era mais capaz de ter uma visão mais abrangente dos fatos, reconhecendo tendências de modo mais amplo.
Mas onde é que aquilo o deixava?
- Parece que ainda temos muito que investigar - ele concluiu pouco convincente.
Monk ergueu uma sobrancelha.
- Como eu disse no começo, nós não temos muitas informações para seguirmos em frente.
- Essa é a razão por que fomos convocados. Para solucionar o impossível. - Gray deu uma olhada no relógio, reprimindo um bocejo. - E, para fazermos isso, nós deveríamos aproveitar o tempo ocioso para relaxar o máximo possível até aterrissarmos na Alemanha.
Os outros dois concordaram com um aceno de cabeça. Gray levantou-se e dirigiu-se a uma poltrona a pouca distância. Monk pegou travesseiros e mantas. Kat fechou os anteparos nas janelas, obscurecendo parcialmente a cabine. Gray os observou.
Sua equipe. Sua responsabilidade.
Para ser um homem, você primeiro tem de agir como um homem.
Gray recebeu seu travesseiro e sentou-se. Ele não reclinou a poltrona. Apesar da exaustão, não esperava dormir muito. Monk apagou as luzes acima. A cabine mergulhou na escuridão.
- Boa-noite, comandante - disse Kat do outro lado da cabine.
Enquanto os outros se acomodavam, Gray sentou-se na escuridão, perguntando-se como havia chegado até ali. O tempo se alongava. Os motores roncavam. No entanto, qualquer indício de sono lhe escapava.
Na privacidade do momento, ele enfiou a mão no bolso de seu jeans. Tirou um rosário, segurando o crucifixo na extremidade, com força suficiente para machucar a palma da mão. Fora um presente de formatura do avô, que morreu apenas dois meses mais tarde. Gray estava num campo de instrução e não pôde comparecer ao funeral. Ele recostou-se. Depois das instruções de hoje, telefonara para a família, mentindo sobre uma viagem de negócios de última hora para justificar sua ausência.
Fugindo de novo...
Seus dedos percorreram as duras contas do rosário.
Mas ele não rezou.



22:24h
Lausanne, Suíça

O château Sauvage debruçava-se no desfiladeiro dos Alpes da Savóia como um gigante de pedra. As ameias tinham três metros de espessura. A única torre quadrangular encimava seus muros. O único acesso aos portões era através de uma ponte de pedra sobre o desfiladeiro. Embora não fosse o maior castelo do cantão suíço, era certamente um dos mais antigos, construído no século XII. Suas origens eram ainda mais antigas. As ameias haviam sido construídas sobre as ruínas de uma castra romana, uma antiga fortificação militar do século I.
Também era um dos castelos privados mais antigos, pertencendo à família Sauvage desde o século XV, quando o exército bernês arrebatou o controle de Lausanne dos decadentes bispos durante a Reforma. Seus parapeitos tinham vista para o lago de Genebra lá embaixo e para a bela cidade de Lausanne, localizada no topo e nas encostas de uma colina, outrora uma aldeia de pescadores, hoje uma cidade cosmopolita com parques à beira do lago, museus, resorts, clubes e cafés.
O atual proprietário do castelo, o barão Raoul de Sauvage, ignorou a visão das luzes artificiais da cidade escura e desceu a escada que conduzia à parte inferior do castelo. Ele fora convocado. Atrás dele, um imenso cão felpudo, pesando maciços setenta quilos, seguia seus passos. A espessa pelagem preta e marrom do Bernese mountain dog4 varria os antigos degraus de pedra.
Raoul também tinha um canil de cães de combate, maciços brutamontes de cem quilos oriundos da Grande Canária, de pêlo curto, pescoço grosso, torturados até o limite da selvageria. Ele criava campeões para o esporte sangrento.
Mas naquele momento Raoul tinha assuntos ainda mais sangrentos para resolver.
Ele passou pelo patamar do castelo onde ficavam as cavernas de pedra que antes serviam de masmorras. As celas agora abrigavam sua extensa coleção de vinhos, uma adega perfeita, mas uma seção relembrava os velhos tempos. Quatro celas de pedra haviam sido modernizadas com portas de aço inoxidável, fechaduras eletrônicas e circuito interno de TV. Próximo às celas, uma grande sala ainda abrigava antigos instrumentos de tortura... e alguns modernos. Sua família havia ajudado vários líderes nazistas a fugir da Áustria após a Segunda Guerra Mundial, famílias com vínculos com os Habsburgos. Eles tinham ficado escondidos ali embaixo. Como pagamento, o avô de Raoul havia recebido sua parte, seu "tributo", como ele a chamava, que ajudara a manter o castelo nas mãos da família.
Mas agora, aos 33 anos, Raoul superaria o avô. Filho bastardo de seu pai, ele recebera o direito à herança e à linhagem aos 16 anos, quando da morte do pai. Era o único descendente vivo do sexo masculino. E, no seio da família Sauvage, os laços genéticos tinham precedência sobre os do casamento. Até mesmo seu nascimento fora arranjado.
Outro dos tributos de seu avô.
O barão de Sauvage desceu ainda mais pelo lado da montanha, passando curvado sob o teto, seguido por seu cão. Uma fileira de lâmpadas elétricas desprotegidas iluminava seu caminho.
Os degraus de pedra transformaram-se em rocha natural talhada. Legionários romanos haviam trilhado aquele mesmo caminho em tempos antigos, com freqüência conduzindo um touro ou bode sacrificial à caverna situada embaixo. A câmara havia sido convertida num mithraeum pelos romanos, um templo do deus Mitra, um deus-sol importado da Pérsia e levado muito a sério pelos soldados do império. O mitraísmo era anterior ao cristianismo, e no entanto possuía estranhas semelhanças. O aniversário de Mitra era comemorado no dia 25 de dezembro. O culto do deus envolvia o batismo e o consumo de uma refeição sagrada que consistia em pão e vinho. Mitra também teve 12 discípulos, considerava o domingo sagrado e descreveu um céu e um inferno. Ao morrer também foi enterrado num sepulcro e renasceu três dias depois.
Com base nisso, alguns eruditos afirmavam que o cristianismo havia incorporado a mitologia mitraica em seu próprio ritual. Não era diferente daquele castelo, o novo erguendo-se sobre o velho, o forte sobrepujando o fraco. Raoul não via aí nada de errado, até respeitava isso.
Era a ordem natural.
Ele desceu os últimos degraus e entrou na ampla gruta subterrânea. O teto da caverna era um domo de pedra natural, grosseiramente esculpido com estrelas e um sol estilizado. Um antigo altar mitraico, onde touros jovens haviam sido sacrificados, erguia-se no outro lado. Além dele, fluía uma nascente fria e profunda, um riacho. Raoul imaginava que os corpos sacrificados haviam sido jogados ali para serem levados embora. Ele também se desfizera de alguns dos seus daquela forma... aqueles que não haviam servido de alimento para seus cães.
À entrada, Raoul tirou seu casaco de couro. Por baixo, usava uma camisa velha de tecido grosseiro bordada com o dragão enrascado, o símbolo da Ordinis Draconis, seu direito de primogenitura que remontava a gerações.
- Pare, Drakko - ordenou ao cão.
O animal sentou-se. Ele sabia que era melhor não desobedecer.
Como o dono do cão...
Raoul cumprimentou o ocupante da caverna com uma meia-mesura e seguiu em frente.
O Soberano Grande Imperador da Corte aguardava-o diante do altar, usando os trajes de couro preto de um motociclista. Embora fosse vinte anos mais velho do que Raoul, o homem era tão alto e tinha os ombros tão largos quanto ele. Não demonstrava sinais de envelhecimento e seus músculos continuavam fortes e firmes. Usava um capacete com a viseira baixada.
O líder havia entrado na Gruta pela porta secreta nos fundos... acompanhado de uma estranha.
Era proibido a qualquer pessoa que não fizesse parte da Corte ver o rosto do Imperador. Os olhos da estranha tinham sido vendados como uma precaução extra.
Raoul também notou os cinco guarda-costas nos fundos da caverna, todos portando armas automáticas, a guarda de elite do Imperador.
Ele avançou a passos largos, o braço direito cruzado no peito, e ajoelhou-se diante do Imperador. Raoul era chefe da abominável adepti exempti da Corte, a ordem militar, uma honra que remontava a Vlad, o Empalador, um antigo ancestral da família Sauvage. Mas todos curvavam-se ao Imperador. Um cargo que o próprio Raoul esperava um dia assumir.
- Levante-se - ordenou o homem.
Raoul ergueu-se.
- Os americanos já estão a caminho - disse o Imperador. Sua voz, apesar de abafada pelo capacete, estava cheia de autoridade. - Os seus homens estão prontos?
- Sim, senhor. Escolhi a dedo 12 homens. Estamos apenas aguardando suas ordens.
- Muito bem. Nossos aliados nos cederam alguém para ajudar nesta operação. Alguém que conhece esses agentes americanos.
Raoul fez uma careta. Ele não precisava de ajuda.
- Isto é um problema para você?
- Não, senhor.
- Um avião está à sua espera e de seus homens no aeroporto de Yverdon. O fracasso não será tolerado uma segunda vez.
Raoul encolheu-se de medo no íntimo. Ele chefiara a missão para roubar os ossos em Colônia, mas não conseguira expurgar o santuário. Restara um sobrevivente. Um que apontara na direção deles. Raoul caíra em desgraça.
- Eu não vou fracassar - assegurou ele a seu líder.
O Imperador encarou-o, lançando-lhe um olhar amedrontador através da viseira baixada.
- Você conhece o seu dever.
Um último aceno de cabeça.
O Imperador avançou pomposamente, passando por Raoul, acompanhado por seus guarda-costas. Ele seguiu para o castelo, assumindo o controle ali até que a última partida do jogo tivesse acabado. Mas primeiro Raoul tinha de terminar de arrumar a bagunça que deixara para trás.
Isso significava outra viagem à Alemanha.
Ele esperou o Imperador sair. Drakko seguiu trotando atrás dos homens, como se farejasse o verdadeiro poder ali. Também, pudera, o líder tinha visitado o castelo com freqüência nos últimos dez anos, quando as chaves da danação e da salvação caíram do céu.
Tudo devido a uma descoberta fortuita no Museu do Cairo.
Eles agora estavam tão perto.
Depois que seu líder saiu, Raoul finalmente encarou a estranha. Achou deficiente o que viu, e sua carranca demonstrava isso. Mas pelo menos a roupa da estranha, toda preta, combinava com ela.
E também o pequeno adorno de prata.
Do pingente da mulher, um dragão de prata oscilava.


DIA DOIS




CAPÍTULO 5

Frenéticos



25 de julho, 02:14h
Colônia, Alemanha

Para Gray, as igrejas à noite sempre tinham algo de assustador. Mas nenhuma mais do que aquela. Com os assassinatos recentes, a construção gótica exsudava um terror palpável.
Enquanto sua equipe atravessava a praça, ele observou atentamente a Catedral de Colônia, ou Kölner Dom, como era chamada pelos alemães. Ela estava iluminada por refletores externos que a envolviam em prata e sombra. A maior parte da fachada oeste eram apenas duas torres maciças. As flechas gêmeas erguiam-se muito próximas, projetando-se de cada lado da porta principal, separadas apenas por alguns metros na maior parte de sua extensão, até se afilarem em pontas com cruzes minúsculas na extremidade. Cada fileira das estruturas de 150 metros havia sido decorada com relevos intrincados. Janelas em arco subiam pelas torres, todas apontando para o céu noturno e para a lua bem no alto.
- Parece que deixaram as luzes acesas para nós - disse Monk, embasbacando-se diante da catedral iluminada e pendurando a mochila mais alto no ombro.
Todos usavam trajes civis escuros, a fim de não chamarem atenção. Porém, por baixo, cada um deles usava um colete de proteção líquido aderente ao corpo. Suas mochilas pretas Arcteryx estavam repletas de instrumentos do ofício, incluindo armas fornecidas por um contato da CIA que os encontrara no aeroporto: pistolas compactas Glock M-27, com câmaras para projéteis ocos calibre 40 e equipadas com miras noturnas de trítio.
Monk também tinha uma espingarda de combate, presa com uma correia à coxa esquerda e oculta por uma jaqueta comprida. A arma, fabricada especialmente para aquele tipo de serviço tinha o cano curto e era compacta como o próprio Monk, com um sistema de mira ghost ring 1 para precisão semelhante à de um rifle sob pouca luz. Kat recorrera a uma tecnologia menos avançada. Ela conseguira esconder oito punhais no corpo. Uma lâmina estava sempre ao alcance da mão, independentemente da posição dela.
Gray consultou seu relógio Breitling de mergulho. Os mostradores indicavam duas e quinze da manhã. Eles haviam viajado mais rápido do que o esperado.
Atravessaram a praça. Gray esquadrinhou as esquinas escuras à procura de algo suspeito. Tudo parecia tranqüilo. Àquela hora, num dia útil, o lugar estava quase deserto. Apenas alguns vagabundos. E a maioria deles trocava o passo - os bares já tinham fechado. Mas havia sinais de multidões que haviam estado ali mais cedo. Pilhas de flores de pessoas enlutadas espalhavam-se pelos cantos da praça, junto com garrafas de cerveja que palermas haviam jogado fora. Montículos de velas de cera derretidas marcavam os santuários em memória dos mortos, alguns com fotos de parentes falecidos. Algumas velas ainda queimavam, minúsculas chamas tremeluzentes na noite, solitárias e abandonadas.
Numa igreja próxima, fazia-se uma vigília inteiramente à luz de velas, um serviço celebrado a noite toda em memória dos mortos, com uma mensagem do papa transmitida ao vivo. Ela fora organizada a fim de esvaziar a praça naquela noite.
Todavia, Gray observou que seus colegas de equipe observavam os arredores com cautela. Eles não queriam correr riscos.
Um furgão estava estacionado em frente à catedral, com o logotipo da Polizei municipal na lateral. Ele servira de principal base de operações para as equipes de legistas. Ao aterrissar, Gray fora informado pelo superintendente de operações da missão, Logan Gregory, vice-diretor da Sigma, que as equipes de investigadores locais haviam ido embora por volta da meia-noite e retornariam de manhã. Às seis. Até lá, a igreja era só deles.
Bem, não inteiramente deles.
Uma das portas laterais da catedral abriu-se enquanto eles se aproximavam. Uma figura alta e magra delineou-se contra a luz no interior. Um braço ergueu-se.
- Monsenhor Verona - disse Kat num sussurro, confirmando a identidade.
O sacerdote foi até o cordão de isolamento da polícia que fora colocado em volta da catedral. Ele falou com um dos dois guardas de serviço, ali postados para manterem os curiosos afastados da cena do crime, e em seguida acenou para que o trio transpusesse a barreira.
Eles o seguiram até a porta aberta.
- Capitã Bryant - disse o monsenhor, com um sorriso caloroso. - Apesar das circunstâncias trágicas, é maravilhoso rever você.
- Obrigada, professor - disse Kat, retribuindo com um sorriso largo e carinhoso. Suas feições abrandaram-se com amizade sincera.
- Por favor, me chame de Vigor.
Eles entraram no vestíbulo da frente da catedral. O monsenhor puxou a porta e trancou-a. Ele examinou minuciosamente os dois companheiros de Kat.
Gray sentiu o peso de seu exame. O homem tinha quase a sua altura, porém era mais rijo. Seus cabelos grisalhos haviam sido penteados para trás, encaracolando-se em ondas. Ele usava um cavanhaque bem aparado e seus trajes eram informais: jeans azul-escuro e suéter preto com gola em V, revelando o colarinho romano de seu cargo.
Mas foi a fixidez de seu olhar que mais impressionou Gray. Apesar de seu jeito acolhedor, havia um quê de frieza no homem. Até Monk aprumou os ombros sob o escrutínio do padre.
- Entrem - disse Vigor. - Devemos começar o mais rápido possível.
O monsenhor foi até as portas fechadas da nave, abriu-as e acenou para que o grupo entrasse.
Quando Gray penetrou no coração da igreja, duas coisas imediatamente o impressionaram. Primeiro o cheiro. Embora o ar ainda recendesse a incenso, também tinha um mau cheiro quase imperceptível de algo queimado.
No entanto, não foi apenas isso que chamou a atenção dele. Uma mulher ergueu-se de um banco para cumprimentá-los. Ela se parecia com Audrey Hepburn quando jovem: pele alva, cabelos curtos e negros partidos ao meio e presos atrás das orelhas, olhos cor de caramelo. Ela não sorriu. Seu olhar percorreu os recém-chegados, detendo-se por um tempo mais longo em Gray.
Ele reconheceu a semelhança familiar entre ela e o monsenhor, mais pela intensidade de seu escrutínio do que pelas características físicas.
- Minha sobrinha - apresentou Vigor. - Tenente Rachel Verona.
As apresentações logo chegaram ao fim. E, conquanto não houvesse nenhuma animosidade visível, os dois campos ainda permaneciam separados. Rachel mantinha uma distância cautelosa, como que pronta a sacar a arma se necessário. Gray notara uma pistola no coldre sob o colete aberto. Uma Beretta 9mm.
- Devemos começar - disse Vigor. - O Vaticano conseguiu nos assegurar certa privacidade, exigindo tempo para santificar e abençoar a nave após a remoção do último corpo.
O monsenhor conduziu-os pelo corredor central.
Gray observou que algumas seções dos bancos haviam sido demarcadas com fita-crepe. Cartões marcando os lugares haviam sido afixados em cada uma delas com os nomes dos mortos. Ele contornou as demarcações a giz no chão. O sangue havia sido removido, mas a mancha havia penetrado na argamassa do piso de pedra. Marcadores de plástico amarelo determinavam as posições das cápsulas deflagradas, há muito enviadas para os peritos legistas.
Ele correu os olhos pela nave, imaginando como deveria ter sido seu aspecto para os que haviam entrado ali primeiro. Corpos estatelados em toda a parte; o cheiro de sangue queimado, mais penetrante. Ele quase podia sentir um eco da dor, que penetrara na pedra tanto quanto o mau cheiro. Sentiu a pele arrepiar-se. Ainda era católico romano o suficiente para achar que um assassinato como aquele ia além da violência pura e simples. Era uma afronta a Deus. Satânico.
Será que isso fora parte da motivação?
Transformar uma festa religiosa numa Missa Negra.
O monsenhor falou, atraindo de novo sua atenção.
- Foi ali que o rapaz foi encontrado escondido.
Ele apontou para um confessionário encostado na parede norte, a meio caminho da longa nave.
Jason Pendleton. O único sobrevivente.
Gray sentiu certa satisfação sinistra de que nem todos houvessem morrido naquela noite sangrenta. O agressores haviam cometido um erro. Eram falíveis. Humanos. Ele se concentrou nesse pensamento. Embora o ato fosse demoníaco, a mão que o cometera era humana como qualquer outra. Não que não houvesse demônios em forma humana.
Mas os humanos podiam ser pegos e punidos.
Eles chegaram ao santuário elevado, com o altar de lajes de mármore e a cathedra de encosto alto, a cadeira do bispo. Vigor e sua sobrinha fizeram o sinal-da-cruz. Vigor dobrou rapidamente um joelho e em seguida er-gueu-se. Ele os conduziu através de um portão na grade do coro. Além da grade, o altar também estava marcado com giz, o mármore travertino cheio de manchas. Fitas de isolamento da polícia demarcavam uma seção à direita.
No chão, no qual fizera rachar uma laje de pedra, um sarcófago dourado estava caído de lado. Sua tampa encontrava-se dois degraus abaixo. Gray tirou a mochila do ombro e abaixou-se, apoiando-se num joelho.
Completo, o relicário dourado tinha a forma de uma igreja em miniatura, esculpida com janelas em arco e cenas gravadas a ouro, rubis e esmeraldas, descrevendo a vida de Cristo, desde a adoração pelos Reis Magos até o flagelo e a crucificação.
Gray calçou um par de luvas de borracha.
- Era neste relicário que estavam os ossos?
Vigor fez que sim com a cabeça.
- Desde o século XIII.
Kat juntou-se a Gray.
- Estou vendo que já espalharam pó no relicário à procura de impressões digitais - disse ela, apontando para o pó branco fino aderido a rachaduras nos relevos.
- Não foram encontradas impressões digitais - disse Rachel.
Monk correu os olhos pela catedral.
- Não levaram mais nada?
- Foi feito um inventário completo - prosseguiu Rachel. - Nós já tivemos oportunidade de interrogar todo o pessoal, incluindo os padres.
- Talvez eu queira falar com eles - murmurou Gray, ainda examinando a caixa.
- Os aposentos deles ficam no outro lado do átrio dos claustros - respondeu Rachel, a voz endurecendo. - Ninguém ouviu ou viu nada. Mas, se você quiser perder o seu tempo, esteja à vontade.
Gray olhou-a de relance.
- Eu apenas disse que talvez queira falar com eles.
Ela o fitou nos olhos sem hesitar.
- E eu tinha a impressão de que esta investigação era um esforço conjunto. Se checarmos de novo o trabalho uns dos outros a cada passo, não chegaremos a lugar nenhum.
Gray respirou fundo para controlar-se. Mal começara a investigação e já tropeçara no problema de jurisdição. Ele deveria ter interpretado a precaução anterior dela e tido um pouco mais de tato.
Vigor pousou uma das mãos no ombro da sobrinha.
- Eu lhe asseguro que o interrogatório foi minucioso. Entre meus colegas, cuja prudência da língua com freqüência supera o bom senso, duvido que o senhor consiga mais detalhes, sobretudo quando se é entrevistado por alguém que não pertença ao clero.
Monk disse em voz alta:
- Muito bem. Mas podemos voltar à minha pergunta? - Todos os olhares voltaram-se para ele, que exibia um sorriso torto. - Eu acho que perguntei se não haviam levado mais nada.
Gray sentiu a atenção desviar-se dele. Como de costume, Monk atraíra de novo a atenção para si. Um diplomata usando colete de proteção líquido.
Rachel fitou Monk com seu olhar inflexível.
- Eu disse que nada foi...
- Sim, obrigado, tenente. Mas eu queria saber se outras relíquias são conservadas aqui na catedral. Relíquias que os ladrões não levaram.
Rachel franziu o cenho, confusa.
- Eu imaginei - explicou Monk - que aquilo que os ladrões não levaram pudesse ser tão informativo quanto o que eles levaram.
Ele deu de ombros.
O rosto da mulher relaxou um pouco, refletindo sobre aquele ponto de vista. A raiva passou.
Gray, no íntimo, balançou a cabeça. Como é que Monk fazia aquilo?
O monsenhor respondeu a Monk.
- Há uma câmara do tesouro fora da nave. Ela contém os relicários da igreja românica original que um dia existiu aqui: o báculo e os grilhões de São Pedro, junto com alguns fragmentos da cruz de Cristo. E também um báculo gótico de bispo, do século XIV, e uma espada de eleitor, ornada de jóias, do século XV.
- E nada foi roubado da câmara do tesouro.
- Tudo foi inventariado - respondeu Rachel. Seus olhos continuavam estreitados em concentração. - Nada mais foi roubado.
Kat agachou-se com Gray, mas seus olhos ainda estavam fixos nas pessoas ainda em pé.
- Quer dizer então que apenas os ossos foram roubados. Por quê?
Gray voltou sua atenção para o sarcófago aberto. Ele tirou uma lanterna da mochila, deixada ao alcance da mão, e examinou o interior dele. Não era forrado. Apenas superfícies planas de ouro. Ele notou um pouco de pó branco espalhado no fundo do relicário. Mais pó não detectado? Cinzas de ossos?
Só havia uma maneira de descobrir isso.
Ele virou-se para a mochila e tirou um kit de coleta. Usou um pequeno aspirador à pilha para aspirar um pouco do pó num tubo de ensaio esterilizado.
- O que você está fazendo? - perguntou Rachel.
- Se isto for pó de ossos, poderá responder a algumas perguntas.
- De que tipo?
Ele reclinou-se e examinou o tubo de ensaio. Havia pouco mais do que alguns gramas de pó cinzento.
- Poderíamos testar o pó para determinar sua idade. Descobrir se os ossos roubados eram de alguém que viveu na época de Cristo. Ou não. Talvez o objetivo do crime fosse recuperar os ossos da família de alguém da Corte do Dragão. Algum lorde ou príncipe antigo.
Gray lacrou o tubo de ensaio e guardou a amostra.
- Eu também gostaria de obter amostras de cacos de vidro do receptáculo de segurança. Elas talvez nos forneçam algumas respostas sobre como o dispositivo estilhaçou o vidro à prova de balas. Nossos laboratórios podem examinar a microestrutura cristalina em busca de padrões de fraturas.
- Vou cuidar disso - afirmou Monk, tirando a mochila do ombro.
- E a obra de cantaria? - perguntou Rachel. - Ou outros materiais no interior da catedral?
- O que você quer dizer? - perguntou Gray.
- O que quer que tenha desencadeado as mortes entre os paroquianos talvez tenha afetado pedra, mármore, madeira, plástico. Alguma coisa que não pudesse ser vista a olho nu.
Ele não havia pensado nisso. Mas deveria. Monk olhou-o nos olhos e arqueou as sobrancelhas. A tenente dos Carabinieri estava se revelando mais do que um rostinho e um corpinho bonitos.
Gray voltou-se para Kat, a fim de organizar uma metodologia de coleta. Mas ela parecia absorta. Do canto do olho, ele notara o interesse dela no relicário, quase enfiando a cabeça nele para investigar. Ela agora estava agachada no piso de mármore, curvada sobre algo em que estava trabalhando.
- Kat...?
Ela segurava uma minúscula escova de pêlo de marta.
- Um momento.
Na outra mão, segurava uma pequena pistola-isqueiro de butano. Ela puxou o gatilho e uma minúscula chama azul assobiou da extremidade. Aplicou a chama a um montículo do pó que removera do relicário com a escova.
Após alguns segundos, o pó cinzento fundiu-se, borbulhando e espumando até transformar-se num líquido âmbar translúcido. Ele escoou sobre o mármore frio e solidificou-se em vidro. O brilho contra o mármore branco era inconfundível.
- Ouro - disse Monk.
Todos os olhares tinham sido atraídos pela experiência.
Kat reclinou-se, apagando a chama.
- O pó residual no relicário... é o mesmo das hóstias contaminadas. Ouro monoatômico ou no estado m.
Gray lembrou-se da descrição dos testes laboratoriais pelo diretor Crowe, de como o pó poderia ser fundido até transformar-se em vidro escoriáceo. Um vidro feito de ouro maciço.
- Isso é ouro? - perguntou Rachel. - O metal precioso?
A Sigma havia fornecido ao Vaticano informações superficiais sobre as hóstias contaminadas, de modo que suas padarias e estoques pudessem ser examinados a fim de se identificarem novas adulterações. Seus dois espiões também haviam sido informados, mas era óbvio que tinham suas dúvidas.
- Você tem certeza? - perguntou Rachel.
Kat já estava ocupada com a comprovação do que acabara de afirmar. Tinha um conta-gotas na mão e pingou seu conteúdo sobre o vidro. Gray sabia o que havia no conta-gotas. Todos eles tinham recebido a substância dos laboratórios da Sigma para aquele objetivo. Um composto de cianeto. Fazia anos que os mineiros vinham usando um processo chamado recuperação do cianeto na extração de metais por lixiviação para dissolver o ouro de velhos resíduos.
Onde a gota batia, o vidro era corroído como se tivesse sido queimado por ácido. Porém, em vez de deixar o vidro fosco, o cianeto abria uma trilha de ouro puro, um veio do metal no vidro. Não restava dúvida.
O monsenhor Verona olhava fixamente, sem piscar, uma das mãos apalpando o colarinho clerical. Ele murmurou:
- E as ruas da Nova Jerusalém são de ouro puro, como vidro transparente.
Gray olhou zombeteiramente para o padre.
Vigor sacudiu a cabeça.
- Do Apocalipse... desculpem-me.
Mas Gray viu o modo como o homem se retraiu, quase recusando-se a ver, perdido em pensamentos mais profundos. Será que ele sabia mais? Gray sentiu que o padre não apenas estava ocultando alguma informação, como também necessitava de tempo para refletir sobre alguma coisa.
Kat interrompeu. Ela estivera debruçada sobre a amostra com uma lente de aumento e uma lâmpada ultravioleta.
- Eu acho que pode haver mais do que ouro aqui. Estou reconhecendo minúsculas poças prateadas no ouro.
Gray aproximou-se. Kat deixou-o examinar através da lente, protegendo o vidro com a mão, a fim de que o brilho azul da luz ultravioleta iluminasse melhor a amostra. Os veios de ouro metálico de fato pareciam conter impurezas prateadas.
- Talvez seja platina - disse Kat. - Lembre-se de que o estado monoatômico não ocorre somente no ouro, mas em qualquer metal do grupo de transição da tabela periódica. Inclusive a platina.
Gray assentiu.
- O pó talvez não seja ouro puro, mas uma mistura de vários elementos da série da platina. Um amálgama de vários metais no estado m.
Rachel continuava a olhar fixamente para o vidro corroído.
- O pó não poderia simplesmente provir do desgaste do velho sarcófago? O ouro se esboroando pela idade ou algo assim?
Gray sacudiu negativamente a cabeça.
- O processo de transformação do ouro metálico em seu estado m é complicado. A idade apenas não faria isso.
- Mas a tenente pode ter percebido alguma coisa - disse Kat. - Talvez o dispositivo tenha afetado o ouro do relicário e feito com que parte dele transmudasse. Nós ainda não temos idéia de por meio de qual mecanismo o dispositivo...
- Eu acho que tenho uma pista - disse Monk, interrompendo-a.
Ele estava de pé junto ao estojo de segurança estilhaçado, onde estivera coletando cacos de vidro. Caminhou até uma pesada cruz de ferro apoiada sobre um suporte perto do estojo.
- Parece que um dos nossos peritos legistas não viu uma cápsula - afirmou.
Ele estendeu a mão e tirou uma cápsula de sob os pés da figura do Cristo crucificado. Recuou um passo, segurando a cápsula voltada para a cruz, e soltou-a. Ela deu um pequeno vôo e, com um zunido, grudou-se de novo à cruz.
- Ela está magnetizada - disse Monk.
Ouviu-se outro zunido. Mais alto. Mais agudo. A cruz deu meia-volta em seu suporte.
Por uma fração de segundo, Gray não compreendeu o que havia acontecido.
Monk mergulhou em direção ao altar.
- Abaixem-se! - gritou.
Outros tiros ecoaram.
Gray sentiu um golpe no ombro, fazendo-o perder o equilíbrio, mas seu colete de proteção líquido o salvou de um ferimento de verdade. Rachel segurou no braço dele e puxou-o para uma fileira de bancos. Balas mastigavam a madeira, produziam faíscas no mármore e na pedra.
Kat abaixou-se rapidamente com o monsenhor, protegendo-o com o corpo. Ela levou um tiro de raspão na coxa e quase desmaiou, mas eles caíram atrás do altar com Monk.
Gray tivera apenas um rápido vislumbre de seus agressores.
Homens usando mantos com capuzes.
Um estalo agudo soou. Gray olhou para cima e viu um objeto negro do tamanho de um punho descrever um arco através da largura da catedral.
- Granada! - gritou.
Ele apanhou a mochila e empurrou Rachel para baixo do banco. Eles moveram-se rapidamente, abaixados, e correram em direção à parede sul.



03:20h

Monk mal teve tempo de reagir quando Gray gritou. Ele pegou Kat e o monsenhor e comprimiu-se contra eles atrás do altar de pedra.
A granada atingiu o outro lado e explodiu com o som da explosão de um morteiro. Uma cascata de fragmentos de mármore projetou-se para cima e para fora, atingindo os bancos de madeira. Rolos de fumaça subiram num turbilhão.
Meio ensurdecido pela explosão, Monk simplesmente ajudou Kat e Vigor a se levantarem.
- Sigam-me!
Era morte certa ficarem ali expostos. Se uma granada fosse lançada atrás do altar, todos virariam hambúrguer. Eles precisavam de uma posição mais defensível.
Monk precipitou-se para a parede norte. Atrás dele, o tiroteio continu-ava violento. Gray avançava rápido para a parede oposta. Assim estava ótimo. Uma vez em posição, eles poderiam iniciar um fogo cruzado através do centro da igreja.
Tendo saído de trás do altar, Monk correu pelo santuário. Seu objetivo era alcançar o abrigo mais próximo, depois de ter avistado uma porta larga de madeira. Os pistoleiros por fim notaram a fuga deles. Tiros atingiram o piso de mármore, ricochetearam numa coluna e despedaçaram alguns bancos. Os disparos vinham de todas as direções agora. Mais agressores haviam-se posicionado no fundo da igreja, entrando por outras portas, impedindo a fuga, cercando-os.
Eles precisavam de abrigo.
Monk puxou sua própria arma das tiras que a prendiam. A espingarda de combate de cano curto. Sem se deter, ergueu o cano até a dobra do cotovelo esquerdo e puxou o gatilho. Junto com a explosão, ouviu um grunhido agudo vindo de vários bancos de distância. Precisão não era necessariamente a qualidade de uma espingarda.
Empurrando o cano para a frente, ele mirou de maneira descuidada a maçaneta da porta. Era esperar demais que ela fosse uma saída para o lado de fora, mas pelo menos os faria sair da nave central. A alguns passos de distância, ele puxou o gatilho enquanto ouvia um protesto tímido do monsenhor Verona.
Mas não havia tempo para contestação.
A explosão abriu um buraco do tamanho de um punho na porta, levando consigo a maçaneta e a fechadura. Ainda correndo, Monk golpeou a porta, que se abriu com um estrondo sob o impacto de seu ombro. Ele caiu lá dentro, seguido por Kat e pelo monsenhor. Kat virou-se, mancando, e fechou a porta com um empurrão.
- Não! - exclamou o padre.
Monk agora entendia o motivo do protesto dele.
A sala abobadada era do tamanho de uma garagem para um só carro. Ele olhou para as vitrines de vidro com batinas e insígnias antigas, fragmentos de esculturas. Ouro reluzia de algumas das vitrines.
Era a câmara do tesouro da catedral.
Não havia saída.
Encurralados.
Kat tomou posição, a Glock na mão, e olhou pelo buraco causado pela explosão.
- Eles estão vindo.



03:22h

Rachel alcançou o fim do banco, sem fôlego, o coração retumbando nos ouvidos. Tiros continuavam a ser disparados contra a posição deles, vindos de todos os lados, arrancando grossos pedaços de madeira dos bancos que os flanqueavam.
A explosão da granada ainda ecoava na cabeça dela, mas sua audição estava voltando. Decerto os padres e os funcionários na reitoria tinham ouvido a explosão e chamado a polícia.
O tiroteio abrandou momentaneamente, enquanto os agressores de batina se reposicionavam, bloqueando o corredor central.
- Dirija-se para aquela parede - exortou Gray. - Atrás das colunas. Vou lhe dar cobertura.
Rachel avistou a série de pilonos que sustentavam o teto abobadado. Que oferecia melhor abrigo do que ficar imprensado entre uma fileira de assentos. Ela olhou para o americano.
- Ao meu sinal - disse ele, agachando-se.
Seus olhares encontraram-se. Ela viu um vestígio de medo saudável, mas também uma concentração determinada. Ele fez um aceno de cabeça para ela, mudou de posição, preparou-se e então gritou:
- Corra!
Rachel levantou-se depressa no fim do banco enquanto tiros explodiam atrás dela, mais altos do que os de seus agressores. As armas do comandante não tinham silenciadores.
Ela alcançou o piso de mármore e rolou para trás do trio de colunas. Ficou de pé imediatamente, atrás da coluna gigantesca. Espiando com cuidado do canto da curva, ela viu o comandante Pierce correndo de costas em sua direção, descarregando ambas as pistolas.
Um homem de batina no outro lado do mesmo banco caiu para trás, atingido pelos impactos. Outro no corredor central gritou e agarrou o pescoço enquanto um jorro vermelho dele saía, descrevendo um arco. Os outros haviam escapado do ataque do americano. No outro lado da igreja, Rachel divisou cinco ou seis homens convergindo para a porta da Câmara do Tesouro da catedral, atirando quase sem cessar.
Quando o comandante Pierce alcançou ofegante a posição dela, Rachel virou-se a fim de verificar o outro lado da coluna, esquadrinhando a parede. Até então ninguém ainda havia cercado aquele caminho. Porém, ela pressupôs que eles logo o fariam.
- E agora? - perguntou ela, tirando a pistola de um coldre no ombro, a Beretta que o motorista dos Carabinieri lhe dera em Roma.
- Esta fileira de colunas é paralela à parede. Nós vamos ficar juntos para nos proteger. Atire contra qualquer coisa que se mexer.
- E a nossa meta?
- Dar o fora desta arapuca mortal.
Rachel franziu o cenho. E os outros?
O americano deve ter notado a preocupação dela.
- Nós vamos nos mandar para a rua, atraindo para fora o maior número possível destes filhos-da-puta.
Ela assentiu com a cabeça. Eles iam servir de chamariz.
- Vamos.
As colunas ao longo da parede sul ficavam separadas apenas dois metros uma das outras. Eles avançaram rapidamente, permanecendo abaixados, usando as filas de bancos próximas à nave como proteção extra. O comandante Pierce atirava alto, enquanto Rachel desencorajava qualquer agressor de entrar no corredor entre a parede e as colunas, alvejando qualquer sombra que se mexesse.
A manobra deu certo. Mais tiros foram disparados na direção deles. Mas a manobra também os retardou, expondo-os ao risco de um segundo ataque de granada. Eles haviam percorrido apenas metade da nave, e tornou-se impossível pular de uma coluna para outra.
O americano recebeu um golpe nas costas que o fez estatelar-se no chão. Rachel sobressaltou-se. Mas ajudou-o a levantar-se.
Ela desceu o corredor encostada à parede, apontando a arma para a frente e para trás. Com a concentração fixa no lado de fora, ela cometeu o mesmo erro que os agressores haviam cometido na noite anterior.
A porta do confessionário abriu-se atrás dela. Antes que ela pudesse mover-se, um braço estendeu-se bruscamente e deu-lhe uma gravata. Sua arma foi arrancada de seus dedos. O aço frio do cano de uma arma pressionou seu pescoço.
- Não se mexa! - ordenou uma voz grave enquanto o comandante dava a volta. O braço do agressor parecia o tronco de uma árvore, süfocando-a. Ele era alto, um gigante, e praticamente ergueu-a do chão. - Baixe as armas.
O tiroteio cessou. Agora estava claro por que uma segunda granada não fora lançada contra eles. Enquanto os dois pensavam que estavam escapando, os pistoleiros simplesmente estavam impelindo-os para aquela armadilha.
- Eu faria o que ele disse - afirmou uma nova voz, sedosa, vinda da cabine penitencial próxima ao confessionário. A porta abriu-se e uma segunda figura saiu, trajando roupas de couro preto.
Não se tratava de um monge, mas de uma mulher. Esguia, eurasiana.
Ela ergueu a pistola, uma Sig Sauer preta e apontou-a para o rosto de Gray.
- Déjà vu, comandante Pierce?


03:26h

A porta era um problema. Com a fechadura destruída pela explosão, cada disparo ameaçava abri-la. E eles não ousavam mantê-la fechada com os ombros. A maioria dos tiros era detida pelas tábuas, mas alguns ainda encontravam pontos fracos e atravessavam a madeira, transformando a porta num queijo suíço.
Monk mantinha uma bota contra o marco da porta, escorando-a com o calcanhar, porém com o corpo afastado para o lado. Balas golpeavam a porta, os impactos faziam sua perna chocalhar até a altura do joelho.
- Rápido, para trás - exortou ele.
Ele apontou a espingarda para fora do buraco na porta e abriu fogo às cegas. A cápsula enfumaçada foi expelida da câmara da arma, atingiu uma das longas vitrines com tesouros e ricocheteou. Além da porta, os disparos da espingarda mantinham os agressores cautelosos, atirando de longe. Parecia que os atacantes sabiam que sua presa estava encurralada.
Portanto, o que estavam esperando?
Monk supôs que uma granada seria lançada contra a porta a qualquer momento. Ele rezou para que o isolamento da parede de pedra o mantivesse vivo. Mas, e daí? Com a porta mandada pelos ares, eles não tinham a menor chance ali dentro.
E o resgate era improvável. Monk ouvira a trepidação da arma de Gray ecoar pela igreja. Parecia que ele estava recuando em direção à porta principal. Monk sabia que o comandante estava ajudando a desviar os tiros do lugar onde eles estavam. Era a única razão de ainda estarem vivos.
Mas agora a arma de Gray silenciara.
Eles estavam entregues à própria sorte.
Uma nova descarga atingiu a porta, sacudindo o marco, fazendo vibrar a perna que ele usava para escorá-la. Sua coxa queimava devido ao esforço e começara a tremer.
- Pessoal, é agora ou nunca!
O ruído de chaves atraiu seus olhos. O monsenhor Verona estivera lutando com um chaveiro que lhe fora entregue pelo zelador da catedral. Ele esforçou-se para abrir a terceira vitrine à prova de balas. Afinal, com um grito de alívio, encontrou a chave certa, e a parte da frente da vitrine abriu-se como um portão.
Kat estendeu a mão por sobre o ombro dele e pegou uma longa espada da vitrine. Uma arma decorativa do século XV com o punho de ouro e jóias. Mas a lâmina, com cerca de um metro de comprimento, era de aço polido. Ela tirou-a da vitrine e arrastou-a pela câmara. Mantendo-se fora da linha direta de fogo, cravou a espada entre a porta e o marco, pressionando e escorando a porta.
Monk afastou a perna, esfregando o joelho dolorido.
- Já não era sem tempo.
Ele tornou a enfiar a espingarda no buraco da porta e abriu fogo - mais por irritação do que com a esperança de acertar alguém.
Com a dispersão do tiro fazendo os agressores recuar, Monk arriscou uma olhadela para fora. Um dos agressores estava estatelado de costas, a cabeça semidestruída, o sangue empoçado. Um de seus tiros às cegas atingira um alvo.
Mas agora os agressores tinham parado de atirar a esmo.
Um abacaxi preto e liso quicou no banco, indo direto para a porta de-les. Monk retesou-se com rapidez contra a pedra.
- Fogo na toca!



03:28h

A explosão na igreja atraiu todos os olhares, exceto o de Gray. Ele não podia fazer nada pelos outros.
Um sorriso sinistro vincou o rosto do homenzarrão.
- Parece que os seus amigos...
Rachel mexeu-se. Com a distração momentânea, seu captor deve ter afrouxado a gravata, talvez subestimando a mulher magra. Rachel libertou a cabeça e inclinou-a rapidamente para trás, golpeando o maxilar inferior do homem com força suficiente para ouvir os dentes dele trincarem uns contra os outros.
Movendo-se a uma velocidade surpreendente, ela atingiu com a parte posterior da mão o braço que a cingia e abaixou-se ao mesmo tempo. Desferiu com o cotovelo um forte golpe no diafragma do agressor, em seguida girou e deu um soco na entreperna do homem.
Gray moveu sua pistola em direção à Dama do Dragão. Mas a mulher foi mais rápida, recuando e colocando a arma entre os olhos dele, a poucos centímetros de distância.
Ao lado, o homenzarrão dobrou-se na cintura e caiu apoiado num joelho. Rachel chutou a arma dele para o lado.
- Corra! - disse Gray para ela, com os olhos fixos na Dama do Dragão.
A agente da Guilda fitou-o nos olhos e então fez uma coisa estranhís-sima. Ela fez um rápido movimento com a boca de sua arma na direção da saída e acenou com a cabeça.
Ela estava deixando-o ir.
Ele recuou. Ela não atirou, mas o manteve sob a mira da arma, pronta para o caso de ele tentar fazer um movimento contra ela.
Em vez de refletir sobre o impossível, Gray girou e disparou contra os monges mais próximos, abatendo os dois que estavam mais perto dele. Eles tinham sido distraídos pela explosão da granada e deixado de perceber a rapidíssima mudança de poder ali.
Gray segurou Rachel pelo braço e puxou-a em direção à saída.
Um disparo de pistola soou bem atrás dele. Ele foi atingido no braço e sentiu uma ligeira tontura, perdendo o equilíbrio. A pistola da Dama do Dragão fumegava. Ela atirou contra Gray enquanto ajudava o homenzarrão a levantar-se. O sangue escorria pelo rosto dela. Um ferimento infligido a si mesma, para encobrir seu subterfúgio. Ela errara o alvo de propósito.
Rachel ajudou-o a equilibrar-se e escondeu-se depressa atrás da última coluna. A porta do vestíbulo externo ficava bem em frente. O caminho estava livre.
Gray arriscou uma olhadela para o tiroteio no fundo da catedral. Uma nuvem de fumaça saía da porta destruída pela explosão. O punhado de pistoleiros disparava sem cessar através da abertura, assegurando-se de que ninguém escapasse daquela vez. Então um dos homens lançou uma segunda granada - precisamente através da porta destruída pela explosão.
Os outros pistoleiros abaixaram-se depressa quando ela explodiu.
Fumaça e detritos foram lançados para fora.
Gray virou-se. Rachel também testemunhara o ataque. Lágrimas afloraram aos seus olhos. Ele sentiu-a tombar de encontro a ele, as pernas enfraquecendo. Algo no seu íntimo doeu com o pesar dela. Ele perdera colegas de equipe no passado. Fora treinado para prantear depois.
Mas ela perdera um membro da família.
- Continue andando - disse ele rispidamente. Era tudo o que podia fazer. Tinha de pô-la em segurança.
Ela olhou para ele e pareceu cobrar força de sua expressão dura. Era o que ela precisava. Não compaixão. Força. Ele já vira aquilo antes em campo, homens debaixo de fogo. Ela empertigou-se.
Ele apertou o braço dela.
Ela assentiu com a cabeça. Pronta.
Eles correram juntos e saíram impetuosamente pelas portas externas.
Dois assassinos montavam guarda no vestíbulo, postados sobre os cadáveres de dois homens com uniformes da polícia alemã. Os guardas que estavam junto ao cordão de isolamento. Os dois monges não foram pegos de surpresa. Um deles abriu fogo imediatamente, fazendo Rachel e Gray recuarem para o lado. Eles não se dirigiriam para as portas externas, mas havia outra porta bem à esquerda.
Sem opção, eles fugiram através dela. O segundo homem ergueu a ar-ma. Uma muralha de fogo cascateou na direção deles. Ele tinha um maldito lançachamas. Gray bateu a porta com força, mas as chamas lamberam por baixo do batente. Ela não tinha tranca.
Ele deu uma olhadela para trás.
Degraus subiam numa espiral.
- A escadaria da torre - disse Rachel.
Tiros atingiram a porta.
- Vamos, suba - disse ele.
Ele empurrou Rachel à sua frente, e eles fugiram escada acima, dando voltas e mais voltas. Atrás e embaixo, a porta abriu-se com um estrondo. Ele ouviu uma voz familiar, gritando em alemão:
- Peguem esses filhos-da-puta! Queimem eles vivos!
Era o homenzarrão, o líder dos monges.
Passos golpearam os degraus de pedra.
A escadaria em espiral impedia que um grupo tivesse uma visão nítida do outro, mas mesmo assim seus perseguidores estavam em vantagem. Enquanto Gray e Rachel corriam, um chafariz de chamas os perseguia, crepitando atrás deles, avançando rapidamente nas voltas da escadaria da torre.
Eles corriam em círculo. Os degraus iam-se estreitando à medida que galgavam a abertura cada vez mais contraída da torre que se projetava em ponta. Vitrais altos pontilhavam o caminho, mas eram estreitos demais para que se pudesse passar através deles, pouco mais do que ranhuras numa flecha.
Por fim os degraus atingiram o campanário da torre. Um sino maciço, que oscilava livremente, pendia sobre o poço da torre, o qual era protegido por grades de aço. Um deck rodeava o sino.
Pelo menos ali as janelas eram largas o bastante para se passar através delas e não possuíam vidros para abafar os potentes repiques do sino - mas estavam lacradas por barras de ferro.
- Um terraço de observação aberto ao público - disse Rachel. Ela mantinha uma arma, que Gray lhe emprestara, apontada para a abertura da escadaria.
Gray correu ao redor. Não havia outra saída. A vista da cidade abria-se em torno dele: o rio Reno cintilava, ligado de uma margem à outra pela ponte Hohenzollern com seus arcos; o Ludwig Museum estava intensamente iluminado, bem como as lonas azuis do Musical Dome de Colônia. Mas não havia saída para as ruas lá embaixo.
Ele ouviu sirenes da polícia a distância, um uivo desesperado e assustadoramente estranho.
Gray ergueu os olhos, calculando.
Rachel deu um grito. Gray virou-se quando um jato de chamas foi expelido do poço da escada. Ela recuou, juntando-se a ele.
O tempo deles esgotara-se.



03:34h

Embaixo, na catedral, Yaeger Grell entrou na câmara destruída pela explosão, a arma na mão. Ele havia esperado até que a fumaça da segunda granada tivesse se dissipado. Seus dois parceiros tinham ido juntar-se aos outros na montagem das bombas incendiárias derradeiras próximo à entrada da igreja.
Ele se juntaria a eles - mas primeiro queria ver o estrago causado naqueles que haviam matado Renard, seu irmão de armas. Ele entrou, preparando-se para o mau cheiro de carne ensangüentada e vísceras expostas, dilaceradas.
Os restos da porta tornavam cada passo traiçoeiro. Ele se orientava com a arma. Quando deu o segundo passo, alguma coisa atingiu seu braço. Ele recuou, aturdido, sem compreender. Olhou para baixo, para o coto de seu punho amputado, enquanto o sangue esguichava. Não sentia dor.
Ergueu os olhos para cima a tempo de ver uma espada - uma espada! - vibrando no ar. Ela alcançou seu pescoço antes de a surpresa desvanecer-se de seu rosto. Ele nada sentiu quando seu corpo foi arremessado para a frente, a cabeça inacreditavelmente jogada para trás.
Em seguida ele foi caindo, caindo, caindo... enquanto o mundo enegrecia.



03:35h

Kat recuou e baixou a espada cravejada de jóias. Ela curvou-se, segurou um braço e arrastou o corpo, deixando-o fora da visão direta da entrada. Sua cabeça ainda zumbia por causa da explosão da granada.
Ela sussurrou para Monk - ou pelo menos esperava ter sussurrado. Ela não conseguia sequer ouvir as próprias palavras.
- Ajude o monsenhor.
Monk olhou do corpo decapitado para a espada ensangüentada na mão dela, os olhos dele arregalados de espanto, mas também com um respeito relutante. Ele se dirigiu a uma das vitrines com tesouros e tirou o monsenhor de dentro dela. Todos três haviam-se escondido dentro de uma vitrine à prova de balas após a explosão da primeira granada, sabendo que uma segunda granada viria.
E tinha vindo.
Mas as vitrines de segurança haviam cumprido seu objetivo, protegendo o tesouro mais valioso de todos: suas vidas. Os estilhaços da granada haviam atravessado por completo a sala, porém, abrigados atrás do vidro à prova de balas, eles haviam sobrevivido.
A idéia fora dela.
Em seguida, com a concussão ainda ecoando na cabeça, Kat saíra de sua vitrine e encontrara a espada cravejada de jóias no chão. Esta revelou-se uma arma mais discreta do que sua pistola. Ela não queria que uma explosão alertasse os outros pistoleiros.
No entanto, sua mão tremia. Seu corpo lembrava-se da última luta de punhais que ela tivera em... e a conseqüência dela. Ela apertou com mais força o punho da espada, extraindo força do aço duro.
Atrás dela, o monsenhor Verona cambaleava. Ele deu uma olhadela em seus membros, como que surpreso de ainda encontrá-los presos ao corpo.
Kat voltou para a porta. A não ser pelo companheiro morto, nenhum dos outros pistoleiros parecia estar prestando atenção. Eles estavam aglomerados à entrada.
- Temos de dar o fora.
Kat gesticulou para que saíssem. Grudando-se à parede, ela os conduziu para longe das saídas da frente, para longe dos guardas. Ela alcançou o canto onde a nave se cruzava com o transepto. Acenou-lhes do canto da interseção.
Assim que ficou fora da visão direta dos pistoleiros, o monsenhor apontou para a extensão do transepto.
- Por ali - sussurrou ele.
Havia outro conjunto de portas lá atrás. Outra saída. Sem guardas.
Com a espada do século XV presa ao punho, Kat os fez avançar depressa.
Eles haviam sobrevivido.
Mas, e os outros?


03:38h

Rachel disparou sua arma em direção à abertura da escadaria em espiral, contando as balas no segundo pente. Nove projéteis. Eles tinham mais munição, mas não tempo para carregar outro pente. O comandante Pierce estava ocupado demais.
Sem outro recurso, ela atirava às cegas, esporadicamente, mantendo os agressores acuados. Descargas de chamas continuavam a importuná-la, lambendo tudo à frente como a língua de um dragão.
O beco sem saída não poderia durar por muito mais tempo.
- Gray - gritou ela, deixando de lado as formalidades da hierarquia.
- Só um instante - respondeu ele do outro lado do sino.
Quando as chamas recuaram no poço da escada, Rachel mirou e puxou o gatilho. Tinha de mantê-los a distância. A bala acertou a parede de pedra e ricocheteou na escada.
Em seguida, a corrediça de sua pistola abriu-se.
Sem balas.
Ela recuou e contornou o sino até o outro lado.
Gray abrira a mochila e prendera uma corda em volta de uma das barras da janela. A outra extremidade estava enrolada na sua cintura e a parte solta, num de seus braços. Ele usara um macaco de mão de um kit de ferramentas para afastar duas barras da janela o suficiente para passar através delas.
- Segure a parte solta - disse ele.
Ela pegou a corda de náilon, com cerca de cinco metros de compri-mento. Atrás dela um novo jorro de chamas projetou-se do poço da escada. Os outros estavam testando de novo, avançando.
Gray pegou a mochila e espremeu-se por entre as barras. Uma vez do lado de fora, no parapeito de pedra, ele pendurou a mochila nas costas e voltou-se para ela.
- A corda.
Ela passou-a para ele.
- Tenha cuidado.
- Um pouco tarde para isso.
Ele olhou para baixo por entre os pés. Um decisão nem um pouco sensata, pensou Rachel. A descida de cem metros enfraqueceria os joelhos de qualquer um... e pernas fortes eram a coisa mais importante agora.
Gray avançou pelo parapeito da flecha sul da catedral.
A quatro metros de distância, a uma altura fatal, erguia-se a torre norte, gêmea daquela. Por não ser franqueada ao público, não havia barras na janela do outro lado. Mas também não havia esperança de pular de uma janela para outra, não de uma posição fixa. Em vez disso, Gray planejava mergulhar imediatamente e agarrar-se a qualquer suporte ao qual fosse possível prender-se na fachada decorada da torre oposta.
O risco era grande, mas eles não tinham outro recurso.
Eles tinham de abandonar o barco.
Gray dobrou os joelhos. Rachel reteve a respiração, uma das mãos segurando com força a concavidade do pescoço.
Sem um segundo de hesitação, ele simplesmente inclinou-se para fora e pulou, arqueando o corpo, arremessando o rolo de corda solta. Ele voou através do espaço entre as torres e chocou-se com a estrutura pouco abaixo do parapeito da janela. Fez um esforço com ambos os braços e tentou agarrar o parapeito, conseguindo-o por milagre. Mas o impacto o fez voltar. Seus braços não puderam retê-lo. Ele começou a cair.
- Seu pé esquerdo! - ela gritou para ele.
Ele a ouviu. Seu pé esquerdo moveu-se freneticamente contra a superfície de pedra e encontrou a gárgula com cara de demônio na fileira inferior. Ele fincou o pé na cabeça dela.
Com o fim do mergulho, ele conseguiu segurar-se no parapeito acima e encontrou apoio precário para a perna direita, grudando-se como uma mosca a uma parede. Respirou fundo, recuperando o equilíbrio, então subiu e entrou pela janela.
Rachel arriscou uma olhadela para trás, abaixando-se para perscrutar por baixo do sino. As chamas haviam cessado. Ela sabia que os outros entendiam o significado de seu súbito cessar-fogo.
Ela não podia mais esperar. Passou rapidamente pelas barras. O para-peito estava escorregadio por causa das fezes de pombos, os ventos eram traiçoeiros e sopravam em fortes rajadas.
No outro lado do espaço vazio, Gray havia amarrado sua extremidade da corda, formando uma ponte.
- Rápido! Eu seguro você.
Ela fitou os olhos dele no outro lado do espaço vazio e encontrou uma firme convicção.
- Eu seguro você - repetiu ele.
Engolindo em seco, ela estendeu o braço. Não olhe para baixo, pensou, e segurou a corda. De mão em mão. Era tudo o que precisava fazer.
Ela inclinou-se para fora, ambos os punhos presos tensamente à corda, os pés ainda no parapeito. Ela ouviu o sino soar atrás dela. Atônita, olhou de relance por cima de um ombro e viu um cilindro prateado em forma de haltere quicar no deck de pedra.
Ela não sabia o que era - mas com certeza não era coisa boa.
Sem precisar de nenhum outro encorajamento, Rachel pendurou-se na corda e rapidamente moveu-se pela ponte, de mão em mão, as pernas agitando-se.
Gray segurou-a pela cintura.
- Bomba - disse ela arfante, jogando a cabeça para trás a fim de indicar a outra torre.
- O quê...?
A explosão interrompeu quaisquer outras palavras. Atingida por trás, Rachel foi impelida através do batente e de encontro ao peito de Gray. Ambos caíram emaranhados no chão da torre do sino. Uma muralha de chamas azuis rolou sobre eles pela janela, quente como uma fornalha.
Gray abraçou-a com força, protegendo-a com o próprio corpo.
Mas as chamas foram rapidamente dissipadas pelas rajadas de vento.
Gray rolou para o lado enquanto Rachel se erguia apoiada nos cotove-los. Ela olhou para trás, em direção à torre sul. A flecha ardia em chamas, que se projetavam e agitavam das quatro janelas. O sino soou em meio ao grande incêndio.
Gray juntou-se a ela. Ele puxou a corda. O nó na outra extremidade havia queimado por completo, rompendo a ponte. No outro lado do espaço vazio, as barras da janela irradiavam um vermelho ígneo.
- Dispositivo incendiário - disse ele.
As chamas ondularam nos fortes ventos, como velas na noite. Uma última homenagem aos que haviam sido mortos, tanto na noite anterior quanto naquela noite. Rachel imaginou o sorriso jovial do tio. Morto. Ela sentiu um grande pesar... junto com algo mais quente e mais agudo. Ela cambaleou para trás, mas Gray segurou-a.
Sirenes da polícia uivavam pela cidade, ecoando até eles.
- Temos de ir - disse ele.
Ela fez que sim com a cabeça.
- Eles vão pensar que estamos mortos. Vamos deixar as coisas como estão.
Ela deixou-se conduzir ao poço da escada. Eles desceram às pressas, dando voltas e mais voltas. O uivo das sirenes era cada vez mais alto - porém, mais perto, um motor tossiu de volta à vida, a rotação soando guturalmente, seguido por outro.
Gray deu uma olhada pela janela.
- Eles estão fugindo.
Rachel olhou para fora. Três andares abaixo, dois furgões pretos afastaram-se, saindo em disparada pela praça de pedestres.
- Vamos - disse Gray. - Eu tenho um mau pressentimento em relação a isto.
Ele desceu às pressas, pulando degraus. Rachel precipitou-se atrás dele, confiando no instinto daquele homem.
Eles chegaram ao vestíbulo num piscar de olhos. Uma das portas da nave tinha ficado entreaberta. Rachel deu uma espiada dentro da igreja - em direção ao lugar onde seu tio fora morto. Mas alguma coisa atraiu seu olhar, mais perto, no chão, disposta no corredor central.
Halteres prateados.
Uma dúzia ou mais. Ligados por fios vermelhos.
- Corra! - gritou ela, girando nos calcanhares.
Eles chegaram juntos às portas principais e correram para a praça.
Sem dizer uma palavra, fugiram em direção ao único abrigo. O furgão da polícia alemã estacionado na praça. Ocultaram-se atrás dele no momento exato em que os dispositivos explodiram.
Parecia que eram fogos de artifício, um atrás do outro.
Seguiu-se um estilhaçar de vidro, alto o bastante para ser ouvido acima das explosões que pipocavam. Rachel olhou para o alto. O imenso vitral bávaro acima da porta principal, datando da Idade Média, explodiu numa cascata brilhante de fogo e vidro adornado com jóias.
Ela comprimiu-se rijamente contra o caminhão enquanto uma profusão de vidro caía na praça ao redor deles numa chuva letal.
Alguma coisa atingiu o outro lado do caminhão com um grande estrondo. Rachel curvou-se e olhou para além dos pneus. No outro lado, uma das portas de madeira maciça da catedral estava caída na rua, em chamas.
Em seguida, um novo ruído se impôs. Vozes surpresas. Abafadas. Vindas do interior do caminhão. Rachel olhou de relance para Gray. Ele de repente tinha uma faca na mão, que surgira como se num passe de mágica.
Eles deram a volta pela traseira do furgão.
Antes que pudessem tocar a maçaneta, a porta abriu-se.
Rachel olhou incrédula quando o membro atarracado da equipe de Gray saiu aos tropeços, seguido por sua colega, que segurava uma longa espada numa das mãos. E, finalmente, por uma figura familiar, querida.
- Tio Vigor! - Rachel estreitou-o num forte abraço.
Ele retribuiu.
- Por que será - perguntou ele - que todo o mundo parece determinado a me mandar pelos ares?



04:45h

Uma hora mais tarde, Gray andava de um lado para outro no quarto do hotel, ainda agitado, os nervos à flor da pele. Eles haviam se hospedado ali usando documentos falsos, depois de terem decidido que era melhor sair das ruas o mais rápido possível. O Hotel Cristall, na Ursulaplatz, ficava a menos de oitocentos metros da catedral, um pequeno estabelecimento com uma decoração peculiarmente escandinava de cores primárias.
Eles tinham saído de circulação para reagrupar-se, estabelecer um plano de ação.
Mas primeiro precisavam de mais informações do serviço de inteligência.
Ouviu-se o ruído de chave na fechadura da porta. Gray pousou a mão em sua pistola. Ele não ia arriscar-se. Mas era apenas o monsenhor Verona regressando de uma expedição de reconhecimento.
Vigor entrou no quarto. Sua expressão tornara-se muito sombria.
- O que houve?
- O rapaz está morto - disse o monsenhor.
Os outros se aproximaram.
Vigor explicou:
- Jason Pendleton. O rapaz que sobreviveu ao massacre. A BBC acabou de dar a notícia. Ele foi morto na enfermaria do hospital. Ainda não se sabe a causa da morte, mas suspeita-se muito de jogo sujo. Coincidindo especialmente com o ataque por bombas incendiárias na catedral.
Rachel sacudiu a cabeça tristemente.
Mais cedo, Gray sentira alívio ao encontrar todos vivos, apenas contundidos e abalados. Ele não pensara no sobrevivente do primeiro massacre. Mas isso fazia certo sentido, um sentido horrível. O ataque à catedral fora obviamente uma operação para encobrimento de faltas, para apagar qualquer pista residual. E, é claro, isso incluía silenciar a única testemunha.
- O senhor ficou sabendo de mais alguma coisa? - perguntou Gray.
Ele havia enviado o monsenhor ao saguão, depois de eles terem-se registrado no hotel, a fim de investigar a situação na catedral. O monsenhor era mais adequado. Ele falava alemão fluentemente, e seu colarinho clerical o colocaria acima de qualquer suspeita.
Mesmo àquela hora, Klaxons e sirenes uivavam pela cidade. Da janela, eles avistavam a Colina da Catedral. Um pequeno grupo de carros de bombeiros e de outros veículos de emergência reunira-se ali, refletindo seus azuis e vermelhos. A fumaça toldava o céu noturno. As ruas estavam repletas de espectadores e novos furgões.
- Não fiquei sabendo de mais nada além do que já sabemos - disse Vigor. - O fogo ainda está assolando o interior da igreja. Ele não se espalhou. Eu vi uma entrevista com um dos padres da reitoria. Ninguém foi ferido. Mas eles estão preocupados com o meu paradeiro e o de minha sobrinha.
- Ótimo - disse Gray, atraindo o olhar de Rachel. - Como eu disse antes, por ora eles acham que nós fomos eliminados. Devemos manter esse estratagema enquanto pudermos. Enquanto eles não souberem que nós estamos vivos, será menos provável que fiquem em estado de alerta.
- E menos provável que abram fogo contra nós. - disse Monk. - Eu particularmente gosto dessa parte.
Kat estava trabalhando num laptop conectado a uma câmera digital.
- Eu estou fazendo o upload das fotos agora - afirmou ela.
Gray levantou-se e foi até a escrivaninha. Monk e os outros haviam procurado não só um esconderijo no furgão após a fuga, mas também uma posição vantajosa para tirarem algumas fotografias dos agressores. Gray ficou impressionado com a engenhosidade deles.
Imagens em thumbnail 2 em preto e branco encheram a tela.
- Olhem aí - disse Rachel, apontando para um homem. - Esse é o cara que me agarrou.
- O líder do grupo - disse Gray.
Kat clicou duas vezes na imagem e a tela exibiu uma foto de corpo in-teiro. Ele foi congelado no meio de um passo largo quando saía da catedral. Tinha cabelos escuros, longos, quase até os ombros. Nenhum pêlo no rosto. Feições aquilinas. Duras e inexpressivas. Mesmo na foto, ele emanava um ar de superioridade.
- Olhem para esse sacana presunçoso - disse Monk. - Parece até que tem o rei na barriga.
- Alguém o reconhece? - perguntou Gray.
Todos balançaram a cabeça em negativa.
- Eu posso acionar o link para o software de reconhecimento facial da Sigma - disse Kat.
- Ainda não - disse Gray. Ele respondeu ao cenho franzido dela. - Nós precisamos continuar sem manter contato.
Ele correu os olhos pelo quarto. Embora normalmente preferisse operar sozinho, sem o Grande Irmão olhando por cima de seu ombro, ele já não poderia continuar bancando o lobo solitário. Agora tinha uma equipe, uma responsabilidade que ia além de sua própria pele. Seus olhos encontraram Vigor e Rachel. E já não era apenas uma responsabilidade para com sua própria equipe. Todos olhavam para ele, que de repente se sentiu esmagado. Ele só queria bater o ponto na Sigma, consultar o diretor Crowe, livrar-se de sua responsabilidade.
Mas ele não podia... pelo menos, ainda não.
Gray recolheu seus pensamentos e sua decisão e pigarreou.
- Alguém sabia que estávamos sozinhos na catedral. Ou eles já estavam espionando a igreja ou receberam informações secretas com antecedência.
- Um vazamento - disse Vigor, esfregando a barba abaixo do lábio inferior.
- É possível. Mas eu não posso dizer com certeza a origem dele - Gray olhou de relance para Vigor. - Se do nosso lado ou se do lado de vocês.
Vigor suspirou e inclinou a cabeça.
- Receio que a culpa seja nossa. A Corte do Dragão sempre afirmou ter membros dentro do Vaticano. E, com a emboscada aqui ocorrendo logo atrás dos ataques contra mim e Rachel, não posso deixar de pensar que o problema pode estar na própria Santa Sé.
- Não necessariamente - retrucou Gray. - Ele voltou-se para o laptop e apontou para outra foto em thumbnail. - Amplie essa foto.
Kat clicou duas vezes. A imagem de uma mulher esguia entrando na parte traseira de um dos dois furgões aumentou na tela do monitor. Via-se apenas a silhueta de seu rosto.
Gray olhou para os outros.
- Alguém a conhece?
Mais acenos de cabeça negativos.
Monk inclinou-se mais para perto.
- Mas eu bem que gostaria de conhecê-la.
- Essa é a mulher que me atacou no Forte Detrick.
Monk recuou, repentinamente achando a mulher menos atraente.
- A agente da Guilda?
As expressões de Vigor e Rachel eram confusas. Gray não tinha tempo de explicar toda a história da Guilda, mas lhes disse em linhas gerais o que era a organização: sua estrutura de células terroristas, seus vínculos com a máfia russa e seu interesse em novas tecnologias.
Quando ele terminou, Kat perguntou:
- Quer dizer então que você pensa que o problema pode estar no nosso lado?
- Depois do que aconteceu no Forte Detrick...? - Gray franziu o cenho. - Quem pode dizer onde está o vazamento de informações da segurança? Mas como a Guilda está aqui, operando ao lado da Corte do Dragão, eu não posso deixar de pensar que eles foram atraídos por causa do nosso envolvimento. Mas eu acho que eles estão tão atrasados para o jogo quanto nós.
- Por que você está dizendo isso? - perguntou Rachel.
Gray apontou para a tela.
- A Dama do Dragão me deixou escapar.
Seguiu-se um silêncio atordoante.
- Você tem certeza? - perguntou Monk.
- Absoluta.
Gray esfregou o braço contundido na parte que ela atingira enquanto ele fugia.
- Por que ela faria isso? - perguntou Rachel.
- Porque ela está jogando contra a Corte do Dragão. Como eu disse, eu acho que o único motivo por que a Guilda foi convidada a participar desta aventura é o envolvimento da Sigma. A Corte queria a ajuda da Guilda para nos capturar ou eliminar.
Kat acenou com a cabeça.
- E, se nós estivéssemos mortos, a Guilda não seria mais necessária. A parceria terminaria, e a Guilda jamais descobriria o que a Corte do Dragão sabe.
- Mas agora a Corte pensa que fomos mortos - disse Rachel.
- Exatamente. E esse é outro motivo para mantermos este estratagema enquanto pudermos. Se estivermos mortos, a Corte romperá seus laços com a Guilda.
- Um adversário a menos - disse Monk.
Gray acenou afirmativamente com a cabeça.
- O que faremos em seguida? - perguntou Kat.
Isso era um mistério. Eles não tinham pistas... exceto uma. Gray olhou para sua mochila.
- O pó que coletamos do relicário. Ele deve conter a chave de tudo isto. Mas eu não sei em que fechadura ela se encaixa. E se nós não podemos enviá-lo à Sigma para ser testado...
Vigor falou em voz alta:
- Eu acho que o senhor tem razão. A resposta está no pó. Mas uma pergunta melhor do que "O que é...".
O monsenhor de repente parou, os olhos estreitados. Ele pôs uma das mãos na testa.
- O que é... - sussurrou ele.
- Tio? - perguntou Rachel preocupada.
- Alguma coisa... está bem aqui, em alguma parte do meu cérebro.
Gray lembrou-se de uma expressão de intensa concentração interior quando o monsenhor citou um versículo do Apocalipse.
O padre fechou um dos punhos.
- Eu não consigo juntar as peças. É como tentar pegar uma bolha de sabão na palma da mão. - Ele sacudiu a cabeça. - Talvez eu esteja cansado demais.
Gray sentiu que o homem estava sendo sincero... a maior parte do tempo. Mas ele estava ocultando alguma coisa, alguma coisa desencadeada pelas palavras o que é. Por um breve instante, Gray viu o medo transparecer por trás da confusão.
- Então, qual é a melhor pergunta? - indagou Monk, voltando ao raciocínio original. - O senhor começou a dizer alguma coisa a respeito de uma pergunta melhor do que a pergunta sobre o que o pó poderia ser.
Vigor sacudiu a cabeça, voltando a se concentrar.
- Certo. Talvez devêssemos perguntar como o pó foi parar ali. De tempos em tempos, os ossos são cuidadosamente tirados do relicário e o sarcófago é limpo. Tenho certeza de que espanam o interior e passam um pano nele.
Kat sentou-se mais empertigada.
- Antes do ataque, nós nos perguntávamos se o dispositivo de alguma forma alterou o ouro do sarcófago, se transmudou o revestimento no pó branco.
- Foi assim que ele foi parar lá? - perguntou Rachel.
- Poderia ser - disse Monk. - Lembre-se da cruz magnetizada na igreja. Algo estranho aconteceu ali dentro e afetou metais. Portanto, por que não o ouro também?
Gray gostaria de ter tido mais tempo para coletar amostras, a fim de realizar mais testes. Mas com a catedral sendo atacada por bombas incendiárias...
- Não - disse Kat, suspirando exasperada. - Lembre-se. O pó não era só ouro. Nós também descobrimos outros elementos. Talvez platina ou alguma outra coisa naquele grupo de metais de transição que também pode se desagregar numa forma de pó no estado m.
Gray concordou lentamente com um aceno de cabeça, lembrando-se das inclusões prateadas no ouro derretido.
- Eu não acho que o ouro veio do sarcófago - disse Kat.
Monk franziu o cenho.
- Mas se ele não veio do ouro do estojo e se o estojo é esvaziado e limpo de tempos em tempos... então, de onde mais ele poderia ter vindo?
Os olhos de Gray arregalaram-se com a compreensão. Ele entendeu a consternação de Kat.
- Ele veio dos ossos.
- Não existe outra explicação - concordou Kat.
Monk torceu o nariz, sacudindo a cabeça.
- Isso é fácil de dizer. Nós não temos nenhum osso para testarmos a sua hipótese. Eles têm todos os ossos.
Rachel e Vigor trocaram um olhar repentino.
- O que foi? - perguntou Gray.
Rachel olhou-o nos olhos. Ele interpretou a excitação na expressão dela.
- Eles não têm todos os ossos.
A testa de Gray encheu-se de sulcos.
- Onde...?
- Em Milão - respondeu Vigor.

























CAPÍTULO 6

O incrédulo Tomé



25 de julho, 10:14h
Lago de Como, Itália

Gray e os outros desceram do Mercedes sedan E55 alugado e seguiram para a praça de pedestres da cidade de Como, à beira do lago. Pessoas que faziam seu passeio matinal ou que olhavam vitrines espalhavam-se pela praça de pedras redondas que dava num passeio público que margeava as tranqüilas águas azuis.
Kat bocejou e espreguiçou-se, uma gata despertando lentamente. Ela consultou o relógio.
- Três países em quatro horas.
Eles haviam viajado a noite inteira. Cruzaram a Alemanha até a Suíça, de onde seguiram pelos Alpes até a Itália. Haviam viajado de carro, em vez de trem ou avião, para manterem o anonimato, cruzando as fronteiras com documentos falsos. Não queriam alertar ninguém de que haviam sobrevivido ao ataque em Colônia.
Gray tencionava entrar em contato com o comando da Sigma após eles terem pego os ossos na basílica em Milão e chegado ao Vaticano. Uma vez escondidos em Roma, eles se reagrupariam e elaborariam novas estratégias com seus respectivos superiores. Apesar do risco de vazamento, Gray precisava fornecer a Washington um relato dos acontecimentos em Colônia, a fim de reavaliar os parâmetros da missão.
Enquanto isso, o plano era fazer um rodízio de motoristas durante a viagem de Colônia a Milão, a fim de que cada um pudesse dormir um pouco. As coisas não haviam dado certo daquele jeito.
Saindo do carro, Monk deteve-se no canto da praça e curvou-se, as mãos apoiadas nos joelhos, o rosto ligeiramente esverdeado.
- É assim que ela dirige - disse Vigor, dando um tapinha nas costas de Monk. - Ela corre muito.
- Eu já estive em aviões de combate, fazendo piruetas terríveis - grunhiu ele. - Mas isto... isto foi pior.
Rachel saiu do assento do motorista e fechou a porta do carro alugado. Ela havia dirigido durante todo o percurso a uma velocidade vertiginosa, voando pelas auto-estradas alemãs e fazendo as curvas fechadas das estradas alpinas a velocidades que desafiavam as leis da física.
Ela empurrou os óculos de lentes azuis para o alto da cabeça.
- Você precisa apenas de um café-da-manhã - afirmou ela a Monk. - Eu conheço um excelente bistrô na Piazza Cavour.
Apesar de algumas reservas, Gray concordara em parar para comerem alguma coisa. Eles precisavam de combustível, e o lugar era remoto. E, com o ataque tendo ocorrido apenas seis horas atrás, a confusão ainda reinava em Colônia. Quando fosse divulgado que os corpos deles não estavam entre os mortos na catedral, eles estariam em Roma. Em mais algumas horas, a necessidade de manter o estratagema de suas mortes estaria terminado.
Nesse meio-tempo, todos estavam fartos da estrada e famintos.
Rachel cruzou a praça em direção às margens do lago. Gray seguiu-a com os olhos. Apesar de ter dirigido a noite inteira, ela movia-se sem nenhum sinal de fadiga. Ela parecia antes animada pela corrida através dos Alpes, como se fosse a sua forma de ioga. A expressão apavorada em seus olhos resultante da noite de terror havia-se desvanecido a cada quilômetro que passava.
Ele notou que estava aliviado pela rápida capacidade de recuperação dela, mas também um pouco desapontado. Lembrou-se da mão dela apertando a sua enquanto corriam. Da preocupação nos olhos dela quando ela se escarranchou no parapeito da torre da catedral. Do modo como os olhos dela o fixaram naquele momento, confiando nele, necessitando dele.
Aquela mulher desaparecera.
Adiante, a vista se abriu, atraindo seu olhar. O lago era uma jóia azul encastoada nos picos verdes acidentados dos Alpes inferiores. Os cumes de algumas das montanhas ainda estavam cobertos de neve, que se refletia nas águas plácidas.
- Lago di Como - disse Vigor, andando a passos largos ao lado de Gray. - Virgílio uma vez o descreveu como o maior lago do mundo.
Eles chegaram a um passeio público ajardinado. O caminho era guarnecido por grandes quantidades de camélias, azaléias, rododendros e magnólias. A aléia, revestida de pedras redondas, continuava ao longo da margem do lago, ladeada por castanheiras, ciprestes italianos e loureiros de casca branca. Nas águas, minúsculos veleiros deslizavam à brisa suave da manhã. Nas colinas verdejantes, aglomerados de casas equilibravam-se precariamente no alto dos penhascos, que adquiriam gradativamente matizes de creme, ouro e terracota.
Gray observou que a beleza e o ar fresco pareciam estar revigorando Monk, ou pelo menos o terreno firme. Os olhos de Kat também contemplavam a paisagem.
- Ristorante Imbarcadero - disse Rachel, apontando para o outro lado da praça.
- Um restaurante drive-through teria sido ótimo - disse Gray, consultando o relógio.
- Talvez para você - disse Monk duramente.
Vigor caminhava ao lado dele.
- Viajamos a uma boa velocidade. Levaremos mais uma hora para chegarmos a Milão.
- Mas os ossos...
Vigor o fez calar-se franzindo o cenho.
- Comandante, o Vaticano está muito ciente do risco a que estão expostas as relíquias na Basílica de Santo Eustórgio. Eu já havia recebido ordens para parar em Milão a fim de recolhê-los na volta a Roma. Enquanto isto, o Vaticano guardou os ossos no cofre da basílica, a igreja foi trancada e a polícia da cidade, alertada.
- Isso não vai deter necessariamente a Corte do Dragão - disse Gray, lembrando-se da devastação em Colônia.
- Duvido que eles ataquem em plena luz do dia. O grupo se esconde nas sombras e na escuridão. E nós estaremos em Milão antes do meio-dia.
Kat acrescentou:
- Não vai nos atrasar muito pedirmos nossos pratos para viagem e voltarmos à estrada.
Embora nem um pouco satisfeito, Gray cedeu. O grupo precisava reabastecer-se tanto quanto seu automóvel.
Chegando ao restaurante, Rachel abriu um portão para um terraço enfeitado com buganvílias e com vista para o lago.
- O Imbarcadero serve os melhores pratos da culinária local. Vocês deveriam experimentar o risotto con pesce persico.
- Perca dourada com risoto - traduziu Vigor. - É uma delícia aqui. Os filés são passados em farinha de trigo e salvia, fritos superficialmente e servidos crocantes numa generosa porção de risoto, com molho de manteiga.
Rachel conduziu-os a uma mesa.
Um pouco abrandado, Gray permitiu-se apreciar o entusiasmo de Ra-chel. Ela falou rapidamente em italiano com um homem mais velho de avental que saíra para cumprimentá-los. Ela deu um sorriso suave e disse algo trivial. Depois eles se abraçaram.
Rachel voltou e acenou para que eles se sentassem.
- Se vocês quiserem alguma coisa mais leve, experimentem as flores de abobrinha recheadas com pão e verdura. Mas não deixem de comer uma pequena porção de agnolotti.
Vigor aprovou com a cabeça.
- Ravioli com berinjela e mussarela de búfala.
Ele beijou as pontas dos dedos em aprovação.
- Portanto, eu suponho que vocês comeram aqui algumas vezes - disse Monk, caindo pesadamente numa cadeira. Ele olhou para Gray.
O anonimato já era.
Vigor deu um tapinha no ombro de Monk.
- Os proprietários são amigos da nossa família há três gerações. Podem ficar tranqüilos, eles sabem ser discretos.
Ele acenou para um garçom gorducho.
- Ciao, Mario! Bianco Secco di Montecchia, per favore!
- É pra já, padre! Eu também tenho um excelente Chiaretto de Bellagio. Chegou de barca ontem à noite.
- Perfetto! Então nos traga uma garrafa de cada um enquanto esperamos!
- Antepastos?
- É claro, Mario. Nós não somos bárbaros.
O pedido deles foi feito com muita fanfarronada e risadas: salada de salmão com vinagre de maçã, sopa de cevada, vitela à milanesa, tagliatelle com coregono-branco e alguma coisa chamada pappardelle.3
Mario trouxe uma bandeja do tamanho da mesa, repleta de azeitonas e uma variedade de antepastos... junto com duas garrafas de vinho, uma de vinho tinto e a outra de vinho branco.
- Buon appetito! - disse ele em voz alta.
Parecia que os italianos transformavam cada refeição numa festa - até mesmo pedidos de pratos para viagem. O vinho jorrou. Copos ergueram-se. Pedaços de salame e queijo foram passados ao redor.
- Salute, Mario! - saudou Rachel quando eles terminaram de comer os antepastos.
Monk reclinou-se, tentando reprimir um arroto, mas não conseguiu.
- Só isso já fez o tanque transbordar.
Kat também havia comido muito, mas agora examinava o menu de sobremesas com a mesma intensidade com que lera o dossiê da missão.
- Signorina? - perguntou Mario, notando o interesse dela.
Ela apontou para o menu.
- Macedonia con panna.
Monk soltou um gemido.
- É apenas salada de frutas com creme. - Ela olhou de relance para os outros, os olhos arregalados. - É leve.
Gray reclinou-se. Ele não conteve a fanfarronada. Sentia que todos precisavam daquele descanso momentâneo. Quando estivessem a caminho, o dia seria uma incógnita. Eles chegariam a Milão, pegariam os ossos e em seguida tomariam um dos trens de alta velocidade que saíam de hora em hora para Roma, aonde chegariam antes do anoitecer.
Ele também havia aproveitado o tempo para estudar Vigor Verona. Apesar do ambiente festivo, o monsenhor parecia perdido de novo em pensamentos. Gray podia ver as engrenagens agitarem-se na cabeça do homem.
Vigor de repente concentrou-se nele e o encarou, afastando-se da mesa.
- Comandante Pierce, enquanto esperamos a comida, eu gostaria de conversar com o senhor em particular. Talvez pudéssemos esticar as pernas no passeio público.
Gray pousou seu copo sobre a mesa e levantou-se. Os outros lançaram-lhes um olhar de curiosidade, mas Gray acenou com a cabeça para que permanecessem ali.
Vigor atravessou o terraço e seguiu até o passeio público principal, à margem do lago.
- Tem uma coisa que eu gostaria de discutir com o senhor e talvez obter sua opinião.
- Pois não.
Eles desceram um quarteirão, e Vigor dirigiu-se a um parapeito de pedra que terminava num cais vazio. Ali tinham privacidade.
Vigor contemplou o lago, batendo com o punho no parapeito.
- Eu compreendo que o papel do Vaticano nesta história esteja centrado no roubo das relíquias. E, assim que regressarmos a Roma, suspeito que o senhor planeje romper nossos laços e perseguir a Corte do Dragão por conta própria.
Gray pensou em hesitar, mas o homem merecia uma resposta sincera. Ele não poderia correr o risco de expor ainda mais ao perigo aquele homem e sua sobrinha.
- Eu acho que é melhor - disse. - E tenho certeza de que tanto os meus superiores quanto os seus vão concordar.
- Mas eu não.
Havia um quê de veemência nas palavras dele.
Gray franziu o cenho.
- Se a sua suposição de que os ossos são a origem do estranho amálgama em pó estiver correta, então creio que os nossos papéis neste caso estão mais profundamente entrelaçados do que qualquer organização poderia suspeitar.
- Não vejo como.
Vigor tornou a olhá-lo com aquela intensidade concentrada que parecia ser uma característica da família Verona.
- Então me deixe convencer o senhor. Em primeiro lugar, nós sabemos que a Corte do Dragão é uma sociedade aristocrática envolvida na busca de conhecimento secreto ou perdido. Eles se concentraram em antigos textos gnósticos e em outros arcanos.
- Pura mistificação.
Vigor virou-se para ele, erguendo a cabeça.
- Comandante Pierce, eu creio que o senhor estudou outras religiões e filosofias. Do taoísmo a alguns dos cultos hindus.
Gray enrubesceu. Era fácil esquecer que o monsenhor era um experiente agente de campo do serviço de inteligência do Vaticano. Sem dúvida, haviam reunido um dossiê sobre ele.
- A busca da verdade espiritual jamais está errada - prosseguiu o monsenhor. - Não importa o caminho. Na realidade, a definição de gnose é "buscar a verdade, encontrar Deus". Eu nem sequer posso censurar a Corte do Dragão por essa busca. O gnosticismo tem sido parte da Igreja Católica desde o começo. É até anterior a ela.
- Muito bem - disse Gray, sem conseguir esconder certa irritação na voz. - O que é que isso tem a ver com o massacre em Colônia?
O monsenhor suspirou.
- De alguma forma, o ataque de hoje poderia remontar a um conflito entre dois apóstolos. Tomé e João.
Gray sacudiu a cabeça.
- Sobre o quê o senhor está falando?
- No início, o cristianismo era uma religião ilegal. Uma fé presunçosa como nenhuma outra em sua época. Ao contrário de outras religiões, que coletavam tributos como parte necessária de sua fé, a jovem família cristã contribuía voluntariamente com dinheiro. Os fundos destinavam-se a alimentar e dar abrigo a órfãos, comprar alimentos e remédios para os enfermos, pagar caixões para os pobres. Esse apoio aos oprimidos atraía grande número de pessoas, apesar dos riscos de se pertencer a uma religião ilegal.
- Sim, eu sei. Boas obras cristãs e tudo mais. No entanto, o que...?
O monsenhor Verona ergueu a mão, interrompendo Gray.
- Se o senhor permitir que eu continue, talvez aprenda algo.
Gray empertigou-se, mas continuou em silêncio. Além de ser um espião do Vaticano, Vigor também era professor universitário. Era óbvio que ele não gostava que suas preleções fossem interrompidas.
- Nos primórdios da Igreja, o segredo era de suma importância, exigindo reuniões clandestinas em cavernas e criptas. Isso fez com que diferentes grupos fossem separados uns dos outros. Primeiro pela distância, com as principais seitas em Alexandria, Antioquia, Cartago e Roma. Depois, com esse isolamento, as práticas de cada grupo começaram a divergir, junto com diferentes filosofias. Evangelhos surgiam de repente em toda a parte. Na Bíblia foram reunidos os de Mateus, Marcos, Lucas e João. Mas também havia outros. O Evangelho Secreto de Tiago, o de Maria Madalena, o de Filipe. O Evangelho da Verdade. O Apocalipse de Pedro. E muitos outros. Diferentes seitas começaram a desenvolver-se em torno de todos esses evangelhos. A jovem Igreja começou a fragmentar-se.
Gray assentiu com a cabeça. Ele freqüentara o ginásio jesuíta onde sua mãe lecionara e conhecia parte daquela história.
- Mas no século II - prosseguiu Vigor - o bispo de Lyon, Santo Irineu, escreveu cinco volumes sob o título Adversus Haereses. Contra as Heresias. O título completo da obra era Refutação e Desmascaramento do Falsamente Chamado Conhecimento. Foi o momento em que todas as crenças gnósticas primitivas foram peneiradas da religião cristã, criando o cânone do Evangelho em quatro partes, limitando os Evangelhos a Mateus, Marcos, Lucas e João. Todos os outros foram considerados heréticos. Parafraseando Irineu, assim como há quatro regiões no universo, e quatro ventos principais, a Igreja precisava apenas de quatro pilares.
- Mas por que escolheram esses quatro evangelhos entre todos os demais?
- Por quê, na verdade? É aí que reside a minha preocupação.
Gray percebeu que estava prestando mais atenção. Apesar da irritação por estar recebendo uma preleção, ele estava curioso em saber aonde aquilo o estava conduzindo.
Vigor fixou o olhar no outro lado do lago.
- Três dos Evangelhos - Mateus, Marcos e Lucas - contam a mesma história.
Mas o Evangelho de João relata uma história muito diferente, até mesmo os eventos na vida de Cristo não correspondem à cronologia nos outros. Mas houve uma razão mais fundamental para a sua inclusão na Bíblia padrão.
- Qual?
- Seu colega, o apóstolo Tomé.
- O apóstolo incrédulo?
Gray conhecia bem a história do único apóstolo que se recusou a acreditar que Cristo ressuscitara enquanto não pôde ver com seus próprios olhos.
Vigor fez um aceno afirmativo de cabeça.
- Mas o senhor sabia que apenas o Evangelho de João conta a história de Tomé? Apenas João descreve Tomé como um discípulo estúpido e sem fé. Os outros Evangelhos o reverenciam. O senhor sabe por que João faz esse relato depreciativo?
Gray negou com a cabeça. Em todos aqueles anos como católico romano, ele nunca havia notado esse desequilíbrio de pontos de vista.
- João procurou desacreditar Tomé, ou, mais especificamente, os seguidores de Tomé, que eram numerosos naquela época. Mesmo hoje em dia pode-se encontrar uma grande quantidade de cristãos seguidores de Tomé na Índia. Mas na Igreja primitiva houve um cisma fundamental entre os evangelhos de Tomé e João. Eles eram tão diferentes que apenas um evangelho poderia sobreviver.
- O que o senhor quer dizer? Em que medida eles poderiam ser diferentes?
- Isso remonta aos primórdios da Bíblia, ao Gênesis, ao primeiro versículo: "Haja luz". Tanto João quanto Tomé identificavam Jesus com essa luz primordial, a luz da criação. Mas, a partir daí, as interpretações deles divergem amplamente. De acordo com Tomé, a luz não só deu origem ao universo, mas ainda existe dentro de todas as coisas, especialmente dentro do homem, que foi feito à imagem e semelhança de Deus. A luz está oculta dentro de cada pessoa, esperando apenas ser descoberta.
- E João?
- Bem, João teve uma concepção totalmente diferente dessas questões. Como Tomé, ele acreditava que Cristo corporificava a luz primordial, mas João declarou que apenas Cristo possuía essa luz. O resto do mundo permanecia para sempre em trevas, inclusive o homem. E o caminho de volta a essa luz, de volta à salvação e a Deus, só poderia ser encontrado mediante a adoração do Cristo divino.
- Um ponto de vista muito mais estreito.
- E mais pragmático para a jovem Igreja. João oferecia um método mais ortodoxo para a salvação, para se chegar à luz. Apenas por meio da adoração de Cristo. Essa simplicidade e franqueza agradou aos líderes da Igreja durante aquele período caótico. Tomé, ao contrário, afirmava que todos tinham uma capacidade inata de encontrar Deus ao procurarem dentro de si mesmos, sem necessidade de culto.
- E isso tinha de ser esmagado.
A resposta foi um dar de ombros.
- Mas qual deles está certo?
Vigor deu um largo sorriso.
- Quem é que sabe? Eu não tenho todas as respostas. Como disse Jesus, "Procura e acharás".
Gray franziu o cenho. Aquela linha lhe parecia bastante gnóstica. Ele olhou para o lago, observando os veleiros serem impelidos pelo vento. A luz refletia-se intensamente nas águas. Procura e acharás. Será que era aquele o caminho que ele trilhara sozinho ao estudar tantas filosofias? Se era, ele não havia encontrado respostas satisfatórias.
E por falar em respostas insatisfatórias...
Gray virou-se para Vigor, dando-se conta de como eles haviam-se desviado do assunto.
- O que tudo isto tem a ver com o massacre em Colônia?
- Deixe-me explicar-lhe. - Ele ergueu um dedo. - Primeiro, eu acho que esse ataque remonta ao conflito antiqüíssimo entre a fé ortodoxa de João e a antiga tradição gnóstica de Tomé.
- Com a Igreja Católica de um lado e a Corte do Dragão do outro?
- Não, é exatamente este o ponto. Eu pensei nisto a noite inteira. Embora a Corte do Dragão busque o conhecimento através dos mistérios gnósticos, ela não busca necessariamente Deus, apenas poder. Eles querem uma nova ordem mundial, um retorno ao feudalismo, com eles mesmos no governo, seguros de que são geneticamente superiores para liderar a humanidade. Por isso eu não acho que a Corte do Dragão representa o lado gnóstico deste conflito antigo. Eu acho que eles o pervertem, que são carniceiros com fome de poder. Mas eles indiscutivelmente têm raízes que remontam a essa tradição.
Gray cedeu a contragosto, mas estava longe de mudar de opinião.
Vigor deve ter percebido isso. Ele ergueu o segundo dedo.
- Ponto número dois. No Evangelho de Tomé, uma história conta que um dia Jesus chamou Tomé a um canto e lhe disse três coisas em segredo. Quando os outros apóstolos lhe perguntaram o que lhe fora dito, ele respondeu: "Se eu vos contar uma das coisas que seja, vós pegareis pedras e atirá-las-eis contra mim; e um fogo sairá das pedras e vos consumirá."
Vigor olhou fixamente para Gray, como se estivesse submetendo-o a um teste.
Gray refletiu a respeito.
- Um fogo que sai de pedras e queima. Como o que aconteceu com os paroquianos na igreja.
Ele confirmou com a cabeça.
- Tenho pensado nessa citação desde que soube dos assassinatos.
- Essa relação é muito deficiente - disse Gray, sem se convencer.
- Talvez fosse, se eu não tivesse um terceiro comentário histórico a fazer.
Vigor ergueu o terceiro dedo.
Gray sentiu-se como um boi a caminho do matadouro.
- De acordo com os textos históricos - explicou Vigor -, Tomé foi evangelizar no Oriente, indo até a Índia. Ele batizou milhares de pessoas, construiu igrejas, difundiu a fé e acabou morrendo lá. Mas naquela região ele era mais famoso por um ato, um ato de batismo.
Gray esperou.
Vigor concluiu com grande ênfase.
- Tomé batizou os Três Reis Magos.
Os olhos de Gray arregalaram-se. Sua mente turbilhonou com os encadeamentos daquela história: São Tomé e sua tradição gnóstica, segredos sussurrados por Cristo, fogo mortal lançado de pedras, e tudo isso relacionado com os Reis Magos de novo. Será que a relação ia além? Ele lembrou-se das fotografias dos mortos na Alemanha. Os corpos destruídos. E o laudo dos legistas a respeito da liquefação das camadas externas dos cérebros das vítimas. Ele também se lembrou do cheiro de carne queimada na catedral.
De algum modo os ossos estavam ligados àquelas mortes.
Mas de que modo?
Se havia uma trilha histórica que levava a pistas, segui-la estava além do alcance de sua experiência e de seus conhecimentos. Ele reconheceu isso e encarou o monsenhor.
Vigor falou, confiante em sua argumentação.
- Como eu disse no início, eu acho que há mais coisas envolvidas nas mortes na catedral além de tecnologia. Eu acho que o que quer que tenha acontecido está intimamente entrelaçado com a Igreja Católica, sua história primitiva, e talvez até com algo anterior à sua fundação. E eu tenho certeza de que posso ser um trunfo permanente para esta investigação.
Gray baixou a cabeça pensativo, e lentamente foi persuadido.
- Mas não a minha sobrinha - concluiu Vigor, revelando por fim por que chamara Gray para uma conversa particular. Ele estendeu a mão. - Assim que regressarmos a Roma, vou mandá-la de volta para os Carabinieri. Não vou expô-la ao perigo de novo.
Gray estendeu a mão e apertou a do monsenhor.
Finalmente alguma coisa com a qual ambos podiam concordar.



10:45h

Rachel ouviu um passo atrás de si e esperou que fosse Mario voltando com o pedido deles. Olhou para cima e quase caiu da cadeira quando seu olhar se fixou na mulher idosa de pé ali, apoiada numa bengala, trajando calça azul-marinho e uma túnica estampada com narcisos. Os cabelos brancos dela eram cacheados e seus olhos brilhavam de divertimento.
Mario postou-se atrás da visitante, um sorriso largo no rosto.
- Que surpresa, hein?
Rachel levantou-se enquanto os dois parceiros de Gray observavam.
- Nonna? O que você está fazendo aqui?
A avó de Rachel deu-lhe um tapinha numa bochecha, falando em italiano.
- A sua mãe louca! - Ela agitou os dedos no ar. - Ela vai visitar você em Roma e me deixa sozinha com aquele Signor Barbari para cuidar de mim. Como se eu precisasse de cuidado. Além do mais, ele sempre cheira a queijo.
- Nonna...
Um aceno de mão a fez calar-se.
- Por isso eu venho para a nossa villa. De trem. Então Mario me telefona para me informar que você e Viggie estão aqui. Eu digo a ele que é para não lhe contar.
- É uma boa surpresa, não é? - repetiu Mario, inchado de orgulho. Ele devia ter mordido a língua o tempo todo para não dizer nada.
- Onde estão seus amigos? - perguntou sua nonna.
Rachel apresentou-a a eles.
- Esta é a minha avó.
Ela apertou a mão de cada um deles e passou a falar em inglês.
- Me chamem de Camilla. Ela olhou Monk de alto a baixo. - Por que você raspou a cabeça? Uma pena. Mas você tem belos olhos. Você é italiano?
- Não, grego.
Ela fez um aceno solene de cabeça.
- Não é tão mau assim.
Ela virou-se para Kat.
- O Signor Monk é seu namorado?
Kat franziu a testa em surpresa.
- Não - disse ela um pouco ácida demais. - É claro que não.
- Ei - interpôs Monk.
- Vocês formam um casal simpático - declarou Nonna Camilla, como se isso fosse a coisa mais óbvia. Em seguida, virou-se para Mario. - Um copo daquele maravilhoso Chiaretto, per favore, Mario.
Ele saiu rapidamente, ainda exultante.
Rachel acomodou-se na cadeira e avistou Gray e seu tio retornando do encontro particular. Quando eles avançaram em sua direção, ela notou que Gray não a olhou nos olhos. Ela sabia por que seu tio havia se afastado com o comandante Pierce. E, pelo jeito esquivo do homem, ela podia imaginar o resultado.
Ela de repente perdeu o interesse pelo seu vinho.
O tio Vigor notou a outra convidada à mesa deles. O choque dissipou sua expressão sombria.
A surpresa foi explicada outra vez, junto com novas apresentações.
Quando Gray Pierce foi apresentado, a avó de Rachel olhou de esguelha para ela, uma sobrancelha erguida, antes de fixar o olhar no americano. Era evidente que gostou do que viu: queixo escuro com a barba por fazer, olhos de um azul tempestuoso, cabelos pretos lisos. Rachel sabia que sua avó tinha uma forte veia casamenteira, um traço genético em todas as matronas italianas.
A avó de Rachel inclinou-se para ela.
- Vejo bebês belíssimos - sussurrou ela, os olhos ainda pousados em Gray. - Bellissimi bambini.
- Nonna - advertiu ela.
A avó dela deu de ombros e ergueu a voz.
- Signor Pierce, o senhor é italiano?
- Não, não sou.
- O senhor gostaria de ser? Minha neta...
Rachel interrompeu-a.
- Nonna, nós não temos muito tempo. - Ela fez menção de consultar o relógio. - Nós temos um compromisso em Milão.
A avó iluminou-se.
- Trabalho de carabinieri. Investigando obras de arte roubadas? - Ela olhou para o tio Vigor. - Alguma coisa levada de uma igreja?
- É mais ou menos isso, Nonna. Mas nós não podemos falar sobre uma investigação em andamento.
A avó de Rachel fez o sinal-da-cruz.
- Uma coisa horrível... roubar de uma igreja. Eu li a respeito dos assassinatos lá na Alemanha. Terríveis, simplesmente terríveis.
Ela correu os olhos ao redor da mesa, abrangendo os estrangeiros. Seus olhos estreitaram-se um pouco mais, pousando em Rachel.
Rachel notou a perspicaz compreensão no olhar da avó. Apesar da aparência superficial, nada escapava à sua nonna. O roubo dos ossos dos Reis Magos estava em todos os jornais. E eles estavam viajando com um grupo de americanos, quase na fronteira da Suíça, voltando para a Itália. Será que sua nonna adivinhara o verdadeiro objetivo deles?
- Terríveis - repetiu a avó de Rachel.
Um garçom chegou com duas pesadas sacolas de comida. Um pão se projetava de cada uma delas como um par de mastros em forma de baguete. Monk ergueu-se para receber a carga com um sorriso largo.
O tio Vigor falou, inclinando-se para a frente a fim de beijá-la em ambas as faces.
- Mamãe, nós a visitaremos em casa, em Gandolfo, daqui a alguns dias. Assim que esta história terminar.
Quando Gray passou por ela, Nonna Camilla pegou a mão dele e puxou-o para perto de si.
- Tome conta da minha neta.
Gray olhou para Rachel.
- Vou tomar, mas ela cuida muito bem de si mesma.
Rachel sentiu uma súbita onda de calor quando os olhos dele encontraram os seus. Sentindo-se ridícula, ela desviou o olhar. Ela não era uma colegial. Longe disso.
A avó dela deu uma beijoca no rosto de Gray.
- Nós, as Veronas, sempre cuidamos de nós mesmas. Lembre-se disto.
Gray sorriu.
- Eu me lembrarei.
Ela deu-lhe um tapinha nas costas quando ele se afastou.
- Ragazzo buono.
Quando os outros se encaminharam para fora, a avó de Rachel acenou para que ela ficasse. Ela então estendeu a mão, virou a aba do colete aberto da neta e expôs o coldre vazio.
- Você perdeu alguma coisa, não é mesmo?
Rachel esquecera-se de que ainda estava usando o coldre vazio preso ao ombro. Ela esquecera a Beretta emprestada na catedral. Mas sua nonna percebera.
- Uma mulher jamais deveria sair nua de casa. - Camilla estendeu o braço para baixo e pegou sua bolsa. Abriu-a e puxou o cabo preto fosco de sua estimada Luger nazista P-08. - Leve a minha.
- Nonna! Você não deveria andar com isso por aí.
A avó de Rachel descartou a preocupação dela com um aceno.
- Os trens não são muito seguros para uma mulher sozinha. Há muitos ciganos. Mas eu acho que você talvez precise disto mais do que eu.
O olhar da avó pousou intensamente em Rachel, deixando claro que ela entendia o perigo da missão dela.
Rachel estendeu o braço e fechou a bolsa da avó com um estalido.
- Não, obrigada, Nonna. Mas eu estarei bem sem ela.
A avó deu de ombros.
- Uma coisa terrível lá na Alemanha - disse ela, girando os olhos de forma significativa. - É melhor tomar cuidado.
- Eu tomarei, Nonna.
Rachel começou a afastar-se, mas Camilla segurou-lhe o pulso.
- Ele gosta de você - disse a avó. - O Signor Pierce.
- Nonna.
- Vocês fariam bellissimi bambini.
Rachel suspirou. Mesmo com a ameaça de perigo, sua avó sabia como manter o foco. Bebês. Os verdadeiros tesouros das nonni em toda a parte.
Ela foi salva pela chegada de Mario com a conta. Afastou-se para o lado e pagou em dinheiro, deixando o suficiente para cobrir as despesas do almoço de sua nonna. Em seguida, reuniu suas coisas, beijou a avó e saiu para a praça, a fim de juntar-se aos outros.
Mas ela trazia consigo a fibra da avó. As Veronas decerto sabiam cuidar de si mesmas. Ela encontrou o tio e os outros junto do carro e olhou fixamente para Gray com seu olhar mais venenoso.
- Se você está pensando que vai me deixar de fora desta investigação, pode ir andando até Roma.
Com as chaves na mão, ela contornou o Mercedes, satisfeita com a expressão de surpresa no rosto do homem quando ele olhou para o tio Vigor.
Ela havia sido alvo de uma emboscada, de tiros e de bombas incendiárias. E não estava disposta a ser posta para escanteio.
Rachel abriu sua porta, mas deixou as outras trancadas.
- E isso também vale para você, tio Vigor.
- Rachel... - ele tentou argumentar.
Ela escorregou para o assento do motorista, bateu a porta e ligou a ignição.
- Rachel!
Seu tio bateu à janela.
Ela engatou a marcha.
- Va bene! - gritou-lhe o tio acima do possantíssimo motor, concordando. - Nós vamos ficar juntos.
- Prometa - gritou ela em resposta, mantendo a palma da mão na maçaneta da alavanca de marcha.
- Dio mio... - Ele ergueu os olhos para o céu. - E você se pergunta por que eu me tornei padre...
Ela acelerou o carro.
O tio Vigor apoiou uma palma na janela.
- Eu me submeto. Eu juro. Eu jamais deveria ter tentado ir contra uma Verona.
Rachel virou-se e deteve os olhos em Gray. Ele permanecera calado, o rosto duro. Parecia disposto a fazer uma ligação clandestina num carro e se mandar sozinho. Será que ela havia exagerado? Porém, ela sentia que precisava opor uma forte resistência agora.
Lentamente, os olhos azuis de Gray deslocaram-se com uma frieza glacial para o tio dela e em seguida de volta para Rachel. Quando um encarou o outro, naquele momento, ela sentiu quão profundamente queria continuar, até a medula óssea. Talvez ele entendesse. Gray assentiu muito devagar com a cabeça, um movimento quase imperceptível.
A concessão era suficiente.
Ela destrancou as portas e os outros entraram.
Monk foi o último.
- Seria ótimo fazer uma caminhada.



11:05h

Do banco traseiro, Gray observava Rachel.
Ela havia posto os óculos de lentes azuis, o que tornava sua expressão quase indecifrável. Contudo, ela apertava os lábios com força. Os músculos de seu longo pescoço permaneciam tensos como cordas de arco enquanto ela olhava ao redor, atenta ao tráfego. Apesar de eles terem abrandado, ela ainda estava zangada.
Como Rachel soubera o que fora decidido entre seu tio e ele? A capa-cidade intuitiva dela era impressionante, junto com sua maneira pragmática de encarar o conflito. Mas ele também se lembrou da vulnerabilidade dela na torre, os olhos dela encontrando os seus do outro lado do espaço entre as duas flechas. No entanto, mesmo então, em meio às balas e às chamas, ela não entregou os pontos.
Por um instante, ele teve um vislumbre de Rachel no espelho retrovisor, os olhos dela protegidos pelos óculos. Todavia, ele sabia que ela o estava estudando. Cônscio demais do escrutínio, desviou o olhar.
Ele deu um soco no joelho devido à sua reação.
Gray jamais conhecera uma mulher que o deixasse tão confuso. Ele tivera namoradas antes, mas nada que durasse mais de seis meses, e mesmo esse relacionamento fora no ginásio. Ele fora impetuoso demais na juventude, depois dedicado demais à sua carreira nas Forças Armadas, primeiro no Exército, em seguida nos Rangers. Jamais chamava um lugar de lar por mais de seis meses, por isso seus romances quase nunca passavam de uma licença de fim de semana. Porém, em todos os seus namoricos, ele jamais conhecera uma mulher que fosse tão frustrante quanto era intrigante: uma mulher que risse com facilidade durante um almoço, mas que pudesse tornar-se tão dura como um brilhante.
Ele recostou-se à medida que o campo passava como um relâmpago. Eles haviam deixado para trás a região dos lagos do Norte da Itália e desciam os contrafortes dos Alpes. Era uma viagem curta: Milão ficava a apenas 45 minutos de carro.
Gray conhecia-se o bastante para entender parte de sua atração por Rachel. Ele nunca foi fascinado pelo comum, pelo mundano, pelo indeciso. Mas também não gostava de extremos: o arrogante, o estridente, o discordante. Ele preferia a harmonia, uma fusão de extremos em que o equilíbrio era alcançado, mas a singularidade não era perdida.
Basicamente, a concepção taoísta do cosmos do yin e yang.
Até mesmo sua carreira refletia isso: o cientista e o soldado. Seu campo de disciplinas procurava incorporar a biologia e a física. Uma vez ele descrevera essa escolha a Painter Crowe: "Toda a química, a biologia e a matemática se reduzem ao positivo e ao negativo, ao zero e ao um, à luz e às trevas."
Ele percebeu sua atenção voltar a se concentrar em Rachel. Ali estava essa mesma filosofia em forma de carne.
Ele observou Rachel erguer uma das mãos e massagear a dobra do pescoço. Os lábios dela estavam ligeiramente entreabertos quando ela encontrou o atraente ponto e o esfregou. Ele se perguntou que gosto teriam aqueles lábios.
Antes que ele deixasse seu pensamento vaguear ainda mais, ela deu uma guinada brusca no Mercedes numa curva fechada, jogando Gray contra a porta. Ela baixou a mão, reduziu a marcha, pisou fundo no acelerador e fez a curva ainda mais rápido.
Gray segurou-se. Monk gemeu.
Rachel exibiu apenas o vislumbre de um sorriso.
Quem não ficaria fascinado por aquela mulher?



06:07h
Washington, D.C.

Oito horas e nenhuma notícia.
Painter andava de um lado para outro em seu escritório. Ele estava ali desde as dez horas da noite anterior - assim que recebeu a notícia da explosão na Catedral de Colônia. Desde então, as informações vinham filtrando-se devagar.
Devagar demais.
A origem da incineração: bombas cheias de pólvora negra, fósforo branco e óleo incendiário LA-60. Havia levado três horas para que o fogo fosse contido o suficiente para tentarem entrar. Mas o interior era uma carcaça fumacenta e tóxica, queimada totalmente das paredes aos assoalhos de pedra. Foram descobertos restos de esqueletos carbonizados.
Seriam de sua equipe?
Passaram-se mais duas horas até chegar a informação de que os restos escoriáceos de armas haviam sido encontrados com dois corpos. Rifles de assalto não identificados. Nenhuma dessas armas havia sido fornecida à sua equipe. Então, pelo menos alguns dos corpos eram de agressores desconhecidos.
Mas, e os outros?
O reconhecimento pelo radar da NRO revelara-se inútil. Àquela hora não havia olhos no céu fazendo um levantamento da área. No solo, escritórios comerciais e repartições públicas municipais nas vizinhanças ainda estavam sendo investigados. Eram poucas as testemunhas oculares. Um sem-teto que dormia perto da Colina da Catedral disse ter visto algumas pessoas fugindo da catedral em chamas. Mas o nível de álcool em sua corrente sangüínea era de mais de 150mg/dl. Bêbado feito uma porca.
Tudo mais era silêncio. O esconderijo em Colônia não fora estourado. E até então nenhuma notícia do campo.
Nada.
Painter não podia deixar de temer o pior.
Uma batida à porta entreaberta interrompeu-o.
Ele virou-se e acenou para que Logan Gregory entrasse. O vice-diretor tinha pilhas de papel embaixo do braço e profundas olheiras. Logan recusara-se a ir para casa, ficando ao lado dele a noite inteira.
Painter olhou para ele na expectativa de uma boa notícia.
Logan sacudiu a cabeça.
- Ainda não se descobriu nenhum de seus codinomes.
Eles vinham checando aeroportos, estações de trem e linhas de ônibus de hora em hora.
- Travessias de fronteiras?
- Nada. Mas a União Européia é como um coador aberto. Eles poderiam ter deixado a Alemanha por qualquer um de vários caminhos.
- E o Vaticano ainda não soube de nada?
Ele tornou a sacudir a cabeça.
- Eu falei com o cardeal Spera há dez minutos.
O computador de Painter emitiu um som agudo. Ele contornou a mesa, apertou a tecla para iniciar a videoconferência e voltou-se para a tela de plasma pendurada na parede esquerda. Surgiu uma imagem pixelada de seu chefe, o diretor da DARPA.
O dr. Sean McKnight estava em seu escritório em Arlington. Ele havia tirado o costumeiro paletó e dobrado as mangas da camisa. Não usava gravata. Passou uma das mãos pelos cabelos ruivos meio grisalhos, um gesto familiar de cansaço.
- Eu recebi a sua solicitação - começou o chefe.
Painter empertigou-se de onde estivera apoiado em sua mesa. Logan havia se afastado para a porta, ficando fora do alcance da câmera. Fez menção de sair, para que Painter tivesse privacidade, mas este acenou para que ele ficasse. A solicitação dele não era uma questão de segurança.
Sean sacudiu a cabeça.
- Eu não posso concedê-la.
Painter franziu o cenho. Ele havia solicitado um passaporte de emergência para ir ao local. Para estar presente na Alemanha durante a investigação. Poderia haver pistas que outros não haviam percebido. Seus dedos fecharam-se num punho em frustração.
- Logan pode supervisionar as coisas aqui - argumentou Painter. - Eu posso ficar em comunicação constante com o comando.
O ar de Sean endureceu-se.
- Painter, você é o comando agora.
- Mas...
- Você não é mais um agente de campo.
O pesar deve ter sido evidente em sua expressão.
Sean suspirou.
- Você sabe quantas vezes eu fiquei sentado no meu escritório à espera de notícias suas? E a sua última operação em Omã? Eu pensei que você estivesse morto.
Painter baixou o olhar para sua mesa. Elásticos e papéis estavam empilhados em toda a parte. Eles não ofereciam nenhum alívio. Ele jamais suspeitara como esse trabalho fora angustiante para seu chefe. Painter sacudiu a cabeça.
- Só existe uma forma de lidar com problemas como este - disse o chefe. - E, acredite-me, eles acontecerão com regularidade.
Painter olhou para a tela. Uma dor havia se instalado no seu esterno, latejante e quente.
- Você tem de confiar nos seus agentes. Você os coloca em campo, mas, assim que eles entram em ação, você tem que ter confiança. Você escolheu com cuidado o líder da equipe para esta operação e o pessoal de apoio dele. Você acha que eles são capazes de lidar com uma situação hostil?
Painter pensou em Grayson Pierce, Monk Kokkalis e Kat Bryant. Eles eram alguns dos melhores e dos mais brilhantes na força. Se alguém podia sobreviver...
Painter lentamente fez um aceno de cabeça positivo. Ele confiava neles.
- Então deixe-os jogar o jogo deles. Como eu fiz com você. Um cavalo corre melhor apenas com um levíssimo toque das rédeas. - Sean inclinou-se para a frente. - Tudo o que você pode fazer agora é esperar que eles entrem em contato. Essa é a sua responsabilidade para com eles. Estar pronto para responder. E não se mandar para a Alemanha.
- Eu compreendo - disse ele, mas isso não ofereceu muito alívio. A dor continuava dentro de seu peito.
- Você recebeu o pacote que eu lhe enviei na semana passada?
Painter olhou para cima com um meio-sorriso desenhando-se no rosto. Ele havia recebido de seu diretor um pacote com medicamentos. Um caixote com pastilhas antiácidas Turns. Ele havia pensado que o presente fosse uma gozação, mas agora não tinha tanta certeza.
Sean reclinou-se em sua poltrona.
- Esse é todo o alívio que você terá neste negócio.
Painter reconheceu a verdade nas palavras de seu mentor. Ali estava o verdadeiro ônus da liderança.
- Era mais fácil no campo - ele finalmente murmurou.
- Nem sempre - lembrou-o Sean. - Nem sempre, sem sombra de dúvida.



12:10h
Milão, Itália

- Trancada a sete chaves - afirmou Monk. - Como o monsenhor disse.
Gray não pôde argumentar. Tudo parecia em ordem. Ele estava ansioso para entrar, pegar os ossos e sair dali.
Eles estavam numa calçada sombreada que limitava com a fachada da Basílica de Santo Eustórgio, perto de uma das portas laterais. A frente era de despretensiosos tijolos vermelhos decorados; atrás dela erguia-se a torre do relógio, a única, encimada por uma cruz. A pracinha batida pelo sol estava vazia àquela hora.
Poucos minutos antes, passara um carro de patrulha municipal, o qual dera uma volta em torno da praça, indo devagar, vigiando. Tudo parecia calmo.
Seguindo a recomendação de Kat, eles haviam esquadrinhado toda a periferia da igreja de uma distância cautelosa. Gray também usara um conjunto de lentes telescópicas para perscrutar discretamente através de várias janelas. As cinco capelas laterais e a nave central pareciam desertas.
A luz do sol refletia-se da calçada. O dia esquentara.
Mas Gray ainda sentia frio, sentia-se inseguro.
Ele seria menos cauteloso se estivesse sozinho?
- Vamos cuidar disto - disse ele.
Vigor encaminhou-se para a porta lateral e estendeu a mão para a grande aldrava de ferro, um aro com uma cruz simples.
Gray deteve a mão dele.
- Não. Nós chegamos sem estardalhaço. Vamos continuar assim. - Ele virou-se para Kat e apontou para a fechadura. - Você consegue abri-la?
Kat abaixou-se, apoiando-se num joelho. Monk e Gray protegeram o trabalho dela com seus corpos. Enquanto Kat examinava a fechadura, seus dedos tiravam da mochila um kit para arrombamento. Com a habilidade meticulosa de um cirurgião, ela começou a trabalhar.
- Comandante - disse Vigor -, violar uma igreja...
- Se o senhor já foi convidado a entrar pelo Vaticano, não é nenhuma violação.
O estalido de um trinco encerrou a questão. A porta abriu alguns centímetros.
Kat ficou em pé e pendurou a mochila no ombro.
Gray acenou para que os outros se afastassem.
- Monk e eu vamos entrar sozinhos. Explorem o terreno. - Ele estendeu a mão para o colarinho e pôs um fone de ouvido no lugar. - Vamos manter o rádio ligado enquanto nos arriscamos. Kat, fique aqui com Rachel e Vigor.
Ele prendeu à garganta um microfone para subvocalização.
Vigor avançou.
- Como eu disse antes, é mais provável que padres falem com alguém usando um colarinho clerical. Eu vou com vocês.
Gray hesitou - mas o monsenhor tinha razão.
- Fiquem atrás de nós o tempo todo.
Kat não protestou por ter sido deixada esperando à porta, mas os olhos de Rachel faiscaram.
- Nós precisamos de alguém para cobrir a nossa retaguarda se a situação se complicar - explicou ele, falando diretamente com Rachel.
Ela contraiu os lábios, mas concordou com um aceno de cabeça.
Satisfeito, ele virou-se e abriu a porta o suficiente para esgueirar-se por ela. O saguão escuro estava tranqüilo. As portas da nave estavam fechadas. Ele não viu nada de errado. A calma do santuário era pesada, como se estivessem embaixo d'água.
Monk fechou a porta externa e sacudiu sua longa jaqueta para o lado a fim de pousar a mão na espingarda. Vigor acatou as instruções dele e o seguiu de perto.
Gray encaminhou-se à porta central da nave interna. Abriu-a com a palma da mão enquanto segurava a Glock na outra.
A nave era mais luminosa do que o saguão, repleta de luz natural que penetrava através das janelas da basílica. O piso de mármore polido refletia a luminosidade, parecendo quase molhado. A basílica era muito menor do que a Catedral de Colônia. Em vez de ter a forma de cruz, era apenas um único salão comprido, uma nave reta que terminava no altar.
Gray ficou imóvel e espreitou à procura de movimento. Apesar da luz abundante, havia muitos lugares onde as pessoas poderiam esconder-se. Uma fileira de colunas sustentava o teto abobadado. Cinco capelinhas projetavam-se da parede direita, abrigando os túmulos de mártires e santos.
Nada se moveu. O único barulho era o distante ruído do trânsito, que soava como se viesse de outro mundo.
Gray entrou e avançou para o centro da nave, a pistola em punho.
Monk avançou a passos largos e tomou posição para manter toda a nave sob a mira de sua arma. Eles atravessaram o saguão em silêncio. Não havia nenhum sinal do pessoal da igreja.
- Talvez eles tenham saído mais tarde para almoçar - subvocalizou Monk em seu rádio.
- Kat, você está me ouvindo? - perguntou Gray.
- Com toda a clareza, comandante.
Eles chegaram ao fim da nave.
Vigor apontou para a direita, para a capela mais próxima do altar.
Comprimido no canto da capela, um sarcófago imenso jazia meio em sombra. Como o relicário de Colônia, o Santuário dos Reis Magos ali tinha a forma de igreja, porém, em vez de ouro e jóias, o sarcófago fora esculpido num único bloco de mármore de Proconnesio.
Gray caminhou na direção dele.
O relicário tinha 3,6 metros de altura, da base até a tampa oblíqua, 2,10 metros de largura e 3,6 metros de comprimento. O único acesso ao interior era através de uma pequena janela gradeada na parte inferior da face frontal.
- Finestra confessionis - sussurrou Vigor, apontando para a janela. - Assim uma pessoa pode observar as relíquias estando ajoelhada.
Gray aproximou-se. Monk montou guarda. Ele ainda não gostava daquela situação. Abaixou-se e olhou através da janelinha. Por trás do vidro, abria-se uma pequena câmara revestida de seda.
Os ossos tinham sido removidos, exatamente como o monsenhor havia descrito. O Vaticano não estava correndo riscos. E ele tampouco correria.
- A reitoria fica em frente ao lado esquerdo da igreja - disse Vigor, um pouco alto demais. - É lá que estão os escritórios e os apartamentos. O acesso é pela sacristia. - Ele apontou para o outro lado da igreja.
Como se respondendo ao seu sinal, uma porta abriu-se no outro lado da nave. Gray abaixou-se, apoiando-se num joelho. Monk puxou o monsenhor para trás de uma coluna, erguendo a espingarda.
Uma única figura saiu, para alívio dos intrusos.
Era um rapaz de roupas pretas com um colarinho clerical.
Um padre.
Ele estava sozinho. Cruzou a nave e começou a acender uma série de velas no outro lado do altar.
Gray esperou até que o homem estivesse a apenas dois metros de dis-tância. Todavia, não apareceu mais ninguém. Ele levantou-se devagar e surgiu diante dele.
O padre congelou quando avistou Gray, o braço semi-erguido para acender outra vela. Ele assumiu uma expressão de choque quando viu a pistola na mão de Gray.
- Chi sei?
Todavia, Gray hesitou.
Vigor saiu do esconderijo.
- Padre...
O padre deu um pulo, e seus olhos voltaram-se para o monsenhor. Ele imediatamente notou o colarinho igual ao seu; a confusão suplantou o medo.
- Eu sou o monsenhor Verona - apresentou-se Vigor, avançando. - Não tenha medo.
- Monsenhor Verona?
A preocupação marcou profundamente as feições do homem. Ele recuou.
- O que há de errado? - perguntou Gray em italiano.
O padre sacudiu a cabeça.
- O senhor não pode ser o monsenhor Verona.
Vigor deu um passo à frente e mostrou-lhe sua carteira de identidade do Vaticano.
O homem olhou para ela e depois para Vigor.
- Mas um... um homem veio aqui hoje de manhã, pouco depois do a-manhecer. Um homem alto. Altíssimo. Identificou-se como monsenhor Verona e apresentou documentos com selos característicos do Vaticano. Veio buscar os ossos.
Gray trocou um olhar com o monsenhor. Já lhes tinham passado a perna. Em vez de usar a força bruta, a Corte do Dragão tinha entrado mais de mansinho dessa vez, com mais astúcia. Por necessidade. Por causa da segurança reforçada. Como se supunha que o verdadeiro monsenhor Verona estivesse morto, a Corte havia assumido o papel dele. Como tudo mais, eles deviam saber a usado a inteligência para fazer os últimos ossos passarem despercebidos pela segurança intensificada ali.
Gray balançou a cabeça. Eles continuavam um passo atrás.
- Maldição! - exclamou Monk.
O padre franziu o cenho para ele. Sem dúvida, ele entendia inglês o suficiente para encontrar afronta na linguagem do homem numa casa de Deus.
- Scusi - respondeu Monk.
Gray compreendeu a frustração de Monk, em dobro como líder da missão. Ele reprimiu sua própria imprecação. Eles tinham-se movido devagar demais, jogado com cautela demais.
Seu rádio zumbiu.
Era Kat. Ela devia ter ouvido por acaso boa parte da conversação.
- Tudo tranqüilo, comandante?
- Tranqüilo... e tarde demais - respondeu ele mal-humorado.
Kat e Rachel juntaram-se a eles. Vigor apresentou os outros.
- Quer dizer então que os ossos se foram - disse Rachel.
O padre fez um aceno de cabeça afirmativo.
- Monsenhor Verona, se o senhor quiser ver a papelada, ela está num cofre na sacristia. Talvez isso possa ajudar.
- Nós poderíamos checá-la em busca de impressões digitais - disse Rachel cansadamente, a exaustão afinal afetando-a. - Talvez eles tenham sido descuidados. Não esperavam que estivéssemos no encalço deles. Isso poderia instigar quem quer que nos tenha traído no Vaticano. Poderia ser nosso único novo indício.
Gray concordou com um aceno de cabeça.
- Guarde-a. Vejamos o que podemos encontrar aqui.
Rachel e o monsenhor Verona foram para o outro lado da nave.
Gray virou-se e dirigiu-se a passos largos para o sarcófago.
- Alguma idéia? - perguntou Monk.
- Nós ainda temos o pó cinzento que coletamos do relicário de ouro - disse ele. - Nós vamos nos reagrupar no Vaticano, alertar a todos do que aconteceu e testar o pó de maneira mais minuciosa.
Quando a porta da sacristia se fechou, Gray ajoelhou-se outra vez junto à janelinha, perguntando-se se rezar ajudaria.
- Nós deveríamos aspirar o interior - disse ele, lutando para manter-se objetivo. - Ver se conseguimos confirmar a presença do amálgama em pó aqui também.
Ele inclinou-se mais para perto, aprumou-se, sem saber o que procurava. Mas encontrou-o de qualquer modo. Uma marca no teto revestido de seda da câmara do relicário. Um selo vermelho pressionado contra a seda branca. Um minúsculo dragão enrascado. A tinta parecia fresca... fresca demais.
Mas não era tinta...
Era sangue.
Uma advertência deixada pela Dama do Dragão.
Gray empertigou-se, subitamente sabendo a verdade.














CAPÍTULO 7

Levando os ossos



25 de julho, 12:38h
Milão, Itália

Já no interior da sacristia, o padre fechou a porta de acesso a ela. Era a câmara onde os clérigos e os coroinhas se paramentavam antes da missa.
Rachel ouviu a fechadura dar um estalido atrás dela.
Ela deu meia-volta e deparou com uma pistola apontada para seu peito. Empunhada pelo padre. Os olhos dele tinham ficado tão frios e duros quanto mármore polido.
- Não se mexam - disse ele com firmeza.
Rachel recuou. Vigor levantou as mãos devagar.
Em cada lado havia armários onde estavam pendurados os trajes e os paramentos usados diariamente pelos padres na celebração da missa. Numa mesa via-se uma fileira de cálices de prata, dispostos ao acaso para o mesmo fim. Um grande crucifixo de prata dourada, preso a uma vara de ferro batido e usado à frente das procissões, estava encostado a um canto.
A porta no outro lado da sacristia abriu-se.
Um homem enorme e familiar entrou, ocupando toda a entrada. Era o homem que a havia atacado em Colônia. Ele trazia uma faca comprida numa das mãos, a lâmina molhada e ensangüentada. Entrou na câmara e usou uma estola abençoada pendurada num armário para limpá-la.
Rachel sentiu Vigor estremecer junto dela.
O sangue. Os padres ausentes. Oh! meu Deus...
O homenzarrão já não usava os trajes de monge, e sim roupas informais, calça de brim cinza-escura, camiseta preta e paletó escuro. Embaixo do paletó, ele carregava uma pistola num coldre preso ao ombro e trazia um fone para comunicação por rádio sobre um ouvido, o microfone preso à garganta.
- Quer dizer então que vocês dois sobreviveram ao ataque em Colônia - disse ele, os olhos percorrendo o corpo de Rachel de alto a baixo, como se avaliando uma novilha premiada numa feira de pecuária. - Que coisa mais auspiciosa. Agora nós podemos nos conhecer melhor.
Ele virou o microfone para cima e disse:
- Limpem a igreja.
Atrás dela, Rachel ouviu as portas se abrirem na nave. Gray e os outros seriam pegos desprevenidos. Ela esperou por uma descarga de armas de fogo ou pela explosão de uma granada. Mas tudo o que ouviu foi o ruído de botas no mármore. A igreja permanecia em silêncio.
O captor deles devia ter percebido a mesma coisa.
- Relate - ordenou ele pelo microfone.
Rachel não ouviu a resposta, mas, pelo obscurecimento do rosto dele, soube que a notícia não era boa.
Ele avançou, passando entre Vigor e Rachel.
- Vigie-os - rosnou ele para o falso padre. Um segundo pistoleiro havia se posicionado na saída de trás da sacristia.
O captor deles abriu a porta de acesso à nave. Uma figura armada aproximou-se dele a passos largos, acompanhada pela mulher eurasiana, que segurava a pistola Sig Sauer ao lado do corpo.
- Não tem ninguém aqui - informou o homem.
Rachel avistou outros pistoleiros esquadrinhando a nave principal e as capelas laterais.
- Todas as saídas foram vigiadas.
- Sim, senhor.
- O tempo todo.
- Sim, senhor.
Os olhos do gigante pousaram na asiática.
Ela deu de ombros.
- Eles devem ter encontrado uma janela aberta.
Com um resmungo, ele esquadrinhou a basílica pela última vez e em seguida virou-se com um movimento majestoso do paletó.
- Continuem procurando. Enviem três homens para investigar o lado de fora. Eles não podem ter ido longe.
Quando o gigante virou-se, Rachel entrou em ação.
Estendendo o braço atrás de si, ela agarrou a vara cerimonial com o crucifixo de prata e bateu com a sua base quadrangular bem no plexo solar do homem. Ele deu um grunhido e recuou de encontro ao padre. Ela tornou a empurrar a vara, passando-a sob o cotovelo, e bateu a extremidade da cruz contra o rosto do pistoleiro atrás dela.
A pistola dele disparou, mas o tiro saiu a esmo, enquanto ele recuava porta afora.
Rachel seguiu-o, saindo pela porta de trás num estreito corredor, o tio bem atrás dela. Ela bateu a porta e a escorou com a vara de ferro, calcando-a com força contra a outra parede do corredor.
Ao lado dela, o tio Vigor esmagou com o calcanhar a mão do pistoleiro caído. Ossos estalaram. Em seguida, ele chutou o rosto do homem. A cabeça dele quicou contra o piso de pedra com um ruído surdo, e em seguida ele perdeu os sentidos.
Rachel agachou-se e pegou a pistola dele.
Agachada, ela esquadrinhou ambos os caminhos do corredor sem janelas. Não havia mais nenhum homem por perto. As forças extras deviam ter sido mobilizadas para emboscar Gray e sua equipe. Um forte golpe fez a porta chocalhar no marco. O Touro estava tentando transpô-la.
Ela jogou-se no chão e esquadrinhou por baixo do batente. Observou o jogo de luz e sombra, apontou em direção à escuridão e disparou.
A bala produziu faíscas no piso de mármore, mas ela ouviu um satisfatório berro de surpresa. Um pé um pouco chamuscado retardaria o Touro.
Ela ergueu-se. O tio Vigor havia dado alguns passos pelo corredor.
- Estou ouvindo alguém gemer - sussurrou ele. - Ali atrás.
- Nós não temos tempo.
Ignorando-a, o tio Vigor continuou a descer o corredor, seguido por Rachel. Sem um sistema de coordenadas, um caminho não era pior do que o outro. Eles chegaram a uma porta arrombada. Rachel ouviu um gemido vindo do interior.
Ela empurrou a porta com o ombro e entrou, a arma em punho.
A sala fora outrora um pequeno refeitório. Mas agora era um abate-douro. Um padre jazia de bruços no chão, numa poça de sangue, a parte posterior de sua cabeça uma massa de cérebro, ossos e cabelos. Outra figura de batina preta jazia estatelada numa das mesas, com os braços e as pernas abertos, amarrada às pernas do banco. Um padre mais velho. Sua batina tinha sido baixada até a cintura. Seu peito era uma poça de sangue. Suas orelhas tinham sido decepadas. Sentia-se também o cheiro de carne queimada.
Torturados.
Até a morte.
Ouviu-se um lamento soluçante à esquerda. No chão, mãos e pés atados, amordaçado, estava um rapaz de cuecas samba-canção. Ele tinha um olho roxo e o sangue escorria de ambas as narinas. Pelo seu corpo seminu, era óbvio de onde viera a batina do falso padre.
Vigor contornou a mesa. Quando o avistou, o rapaz se debateu, seus olhos ficaram selvagens e ele espumou através da mordaça.
Rachel se deteve.
- Está tudo bem - acalmou-o Vigor.
Os olhos do rapaz fixaram-se no colarinho de Vigor. Ele parou de se debater, mas ainda soluçava muito. Vigor estendeu a mão para soltar a mordaça. O rapaz sacudiu-se e a expeliu. Lágrimas escorreram-lhe pelas faces.
- Molti... grazie - disse ele, a voz fraca devido ao choque.
Vigor cortou os cordões de plástico com uma faca.
Enquanto ele trabalhava, Rachel trancou a porta do refeitório e ainda colocou uma cadeira sob a maçaneta. Não havia janelas, apenas uma porta que conduzia à reitoria. Ela manteve a arma apontada naquela direção e foi até um telefone na parede. Sem sinal de discagem. Haviam cortado os fios dos telefones.
Ela pegou o telefone celular de Gray e discou 112, o número de emergência em toda a União Européia. Assim que atenderam, identificou-se como tenente dos Carabinieri, mas não informou seu nome, e solicitou a ação imediata de médicos, policiais e militares.
Tendo dado o alarme, ela guardou o telefone.
Derrotada, era tudo o que ela podia fazer.
Por si mesma... e pelos outros.



12:45h

O som de passos aproximou-se do esconderijo de Gray. Ele permaneceu em silêncio absoluto, sem respirar. Os passos pararam ali perto. Ele esforçou-se para ouvir.
Um homem falou. Uma voz familiar, zangada. Era o líder dos monges.
- As autoridades de Milão foram alertadas.
Não houve resposta, mas Gray tinha certeza de que dois homens haviam se aproximado.
- Seichan? - perguntou o homem. - Você me ouviu?
Uma voz entediada respondeu. Também era reconhecível. A Dama do Dragão. Mas agora tinha um nome. Seichan.
- Eles devem ter saído por uma janela, Raoul - disse ela, retribuindo o favor e chamando o líder pelo nome. - A Sigma é escorregadia. Eu o adverti tanto. Nós conseguimos os ossos restantes. Deveríamos ir antes de a Sigma voltar com reforços. A polícia já pode estar a caminho.
- Mas aquela piranha...
- Você pode fazer um acerto de contas com ela mais tarde.
O som dos passos afastou-se. Parecia que o mais pesado dos dois estava mancando. Todavia, as palavras da Dama do Dragão permaneceram com Gray.
Você pode fazer um acerto de contas com ela mais tarde.
Será que isso significava que Rachel havia escapado?
Gray ficou surpreso com a intensidade de seu alívio.
Uma porta bateu no outro lado da igreja. Quando o eco do som se desvaneceu, Gray apurou os ouvidos. Ele não ouviu mais passos, nenhum som de botas, nenhuma voz.
Por precaução, esperou mais um minuto.
Com a igreja em silêncio, cutucou Monk, que se encolhera junto dele. Kat estava comprimida no outro lado de Monk. Eles rolaram com um ruí-do repugnante de ossos dessecados esmigalhando-se, estenderam a mão para cima e juntos moveram a tampa de pedra do sepulcro.
A luz derramou-se dentro do túmulo, seu bunker improvisado.
Depois de ver a advertência feita com sangue pela Dama do Dragão, Gray soube que tinham caído numa armadilha. Todas as saídas estariam vi-giadas. E, como Rachel e seu tio haviam desaparecido na sacristia, ele nada podia fazer para ajudar.
Por isso Gray havia conduzido os outros para a capela próxima, onde um enorme sepulcro de mármore estava apoiado sobre colunas góticas espiraladas. Eles haviam afastado a tampa o suficiente para entrarem, em seguida puxaram-na de volta acima deles no momento exato em que portas se abriram com um estrondo por toda a igreja.
Com a busca encerrada, Monk saiu, a espingarda na mão, e sacudiu o corpo com um resmungo de nojo. O pó de ossos voou de suas roupas.
- Não vamos fazer isso de novo.
Gray mantinha a pistola empunhada.
Ele viu um objeto no piso de mármore, a alguns passos de distância de onde eles tinham estado escondidos. Uma moeda de cobre. Fácil de perder. Ele apanhou-a. Era um fen chinês, ou penny.
- O que é isso? - perguntou Monk.
Ele fechou os dedos sobre a moeda e levantou-se, guardando-a no bolso.
- Nada. Vamos.
Ele cruzou a nave em direção à sacristia, mas voltou os olhos para a cripta. Seichan sabia.



12:48h

Rachel montou guarda enquanto Vigor ajudava o padre a levantar-se.
- Eles... eles mataram todos - disse o rapaz. Ele precisava apoiar-se no braço de Vigor para manter-se de pé. Seus olhos evitaram a figura ensangüentada sobre a mesa. Ele cobriu o rosto com uma das mãos e gemeu.
- Padre Belcarro...
- O que aconteceu? - perguntou Vigor.
- Eles chegaram há uma hora. Eles tinham selos e documentos pontifícios, identificação. Mas o padre Belcarro havia recebido uma foto por fax. - Os olhos do padre arregalaram-se. - Do senhor. Enviada pelo Vaticano. O padre Belcarro soube imediatamente da mentira. Mas àquela altura os monstros já estavam aqui. Os fios dos telefones foram cortados. Nós fomos trancados aqui dentro, isolados. Eles queriam a combinação do cofre do padre Belcarro.
O rapaz desviou-se da forma ensangüentada, sentindo-se culpado.
- Eles o torturaram. Ele não falou. Mas então eles fizeram coisas piores... muito piores. E me obrigaram a assistir.
O jovem padre segurou no cotovelo do tio dela.
- Eu não pude deixar aquilo continuar. Eu... eu disse a eles.
- E eles tiraram os ossos do cofre?
O padre fez um aceno de cabeça afirmativo.
- Então tudo está perdido - disse Vigor.
- No entanto, eles queriam ter certeza - prosseguiu o padre, aparentemente surdo, balbuciante. Ele olhou de relance para a figura torturada, sabendo que aquele também teria sido seu destino. - Então vocês chegaram. Eles me despiram e me amordaçaram.
Rachel pensou no falso padre que usara a batina do rapaz. O subterfúgio deve ter sido planejado para atrair Rachel e Kat da rua para dentro da igreja.
O padre aproximou-se aos tropeços do corpo do padre Belcarro. Ele suspendeu a batina do homem mais velho, cobrindo o rosto mutilado como se escondesse sua própria vergonha. Em seguida o padre enfiou uma das mãos num bolso da batina ensangüentada e tirou um maço de cigarros. Parecia que o idoso padre não havia largado todos os seus vícios... e tampouco o jovem padre.
Com os dedos tremendo, o rapaz destacou a parte de cima e despejou o conteúdo. Seis cigarros - e um toco de giz quebrado. O rapaz deixou cair os cigarros e estendeu o pedacinho ocre.
Vigor pegou-o.
Não era giz, mas osso.
- O padre Belcarro receava enviar todas as relíquias sagradas - explicou o jovem padre. - Por precaução, caso alguma coisa acontecesse. Por isso ele reservou um pouco. Para a igreja.
Rachel se perguntou até que ponto esse subterfúgio era motivado por um desejo desinteressado de preservar as relíquias e até que ponto se devia ao orgulho e à lembrança da última vez que os ossos foram roubados de Milão. Removidos à força para Colônia. Grande parte da fama da basílica concentrava-se naqueles poucos ossos. Mas, de qualquer modo, o padre Belcarro morrera como um mártir. Torturado enquanto escondia as relíquias sagradas no próprio corpo.
O som alto de uma detonação os fez sobressaltar-se.
O padre caiu no chão.
Mas Rachel reconheceu o calibre da arma.
- A espingarda de Monk... - disse, os olhos arregalando-se de esperança.



14:04h

Gray enfiou o braço pelo buraco fumegante na porta da sacristia.
Monk pendurou a espingarda no ombro.
- Eu vou ficar devendo à Igreja Católica um mês de salário para os consertos de carpintaria.
Gray removeu a vara de ferro que bloqueava o caminho e abriu a porta. Após a detonação da espingarda, não havia mais necessidade de subterfúgio.
- Rachel! Vigor! - gritou ao entrar na sala da reitoria.
Além da sala ouviu-se o som de passos arrastados. Uma porta abriu-se. Rachel saiu com a pistola na mão.
- Por aqui! - instou ela.
O tio Vigor conduzia um rapaz seminu para o corredor. O rapaz tinha uma aparência pálida e aterrorizada, mas parecia recobrar as forças na presença deles.
Ou talvez do som das sirenes cada vez mais próximas.
- Padre Justin Mennelli - disse Vigor, apresentando-o.
Eles trocaram algumas idéias rapidamente.
- Então nós temos um dos ossos - disse Gray surpreso.
- Eu sugiro que levemos a relíquia de volta para Roma o mais rápido possível - disse Vigor. - Eles não sabem que nós a temos, e eu quero estar atrás das Muralhas Leoninas do Vaticano antes deles.
Rachel concordou com um aceno de cabeça.
- O padre Mennelli informará às autoridades o que aconteceu aqui. Ele omitirá os detalhes da nossa presença... e, é claro, da relíquia que nós temos.
- Daqui a dez minutos parte um trem ETR para Roma. - Vigor consultou o relógio. - Podemos estar lá por volta das seis horas.
Gray fez um aceno de cabeça afirmativo. Quanto mais eles operassem clandestinamente, melhor.
- Vamos.
Eles encaminharam-se para a saída. O padre Mennelli conduziu-os a uma saída lateral perto de onde eles haviam estacionado o carro. Rachel sentou-se ao volante como de costume. Saíram a toda a velocidade enquanto as sirenes convergiam.
Quando se acomodou, Gray tocou com os dedos a moeda chinesa em seu bolso. Ele tinha a sensação de que deixara escapar alguma coisa.
Alguma coisa importante.
Mas o quê?



15:39h

Uma hora depois, Rachel foi do banheiro para o compartimento de primeira classe no trem ETR 500. Kat acompanhava-a. Decidiu-se que ninguém deixaria o grupo sozinho. Rachel lavara o rosto, penteara os cabelos e escovara os dentes enquanto Kat aguardava do lado de fora.
Depois dos horrores em Milão, ela necessitara de um momento só para si no cubículo. Durante um minuto, simplesmente encarara sua imagem no espelho, oscilando entre a fúria e a necessidade de chorar. Nem uma nem outra venceu, por isso ela lavara o rosto.
Era tudo que podia fazer.
Mas isso a fez sentir-se melhor, uma absolvição particular.
Enquanto descia o corredor, ela mal sentia o tremor dos trilhos sob seus calcanhares. O Elettro Treno Rapido era o mais novo e mais rápido trem da Itália, ligando a uma velocidade extrema de 300km/h um corredor que se estendia de Milão a Nápoles.
- Então, o que você tem para me contar sobre o seu comandante? - perguntou Rachel a Kat, tirando proveito do tempo a sós com a mulher. Além disso, fazia bem falar de um assunto sem relação com homicídios e ossos.
- O que você quer dizer? - Kat nem sequer parou para pensar sobre o assunto.
- Ele está envolvido com alguém nos Estados Unidos? Com uma namorada talvez?
A essa pergunta ela olhou de relance para Rachel.
- Eu não vejo como a vida pessoal dele...
- E quanto a você e Monk? - perguntou Rachel, interrompendo-a, percebendo a forma como a sua pergunta inicial soava. - Com todas as suas profissões, vocês têm tempo para a vida pessoal? E os riscos?
Rachel estava curiosa de saber como aquelas pessoas equilibravam suas vidas comuns com intriga e espionagem. Para ela fora muito difícil encontrar um homem que pudesse lidar com o seu cargo de tenente de Corpo de Carabinieri.
Kat suspirou.
- É melhor não se envolver demais - disse ela. Seus dedos tinham se movido para uma minúscula rã esmaltada presa com alfinete à sua lapela. A voz dela ficou mais firme, mas soava mais como defesa do que como convicção. - Você faz amizades sempre que possível, mas não deveria deixar ir além disso. Assim é mais fácil.
Mais fácil para quem? Perguntou-se Rachel.
Ela mudou de assunto quando chegaram a seus compartimentos. A equipe havia reservado duas cabines. Uma era um compartimento para dormir, de modo que eles pudessem tirar breves cochilos em turnos. Mas ninguém estava dormindo ainda. Todos haviam se reunido na outra cabine e sentado em cada lado de uma mesa. As persianas tinham sido baixadas nas janelas.
Rachel esgueirou-se para junto do tio, Kat para junto de seus colegas de equipe.
Gray havia desembalado um equipamento de análise compacto de sua mochila e o conectado a um laptop. Outros instrumentos estavam cuidadosamente alinhados à sua frente. No centro da mesa, numa bandeja de amostra de aço inoxidável, estava a relíquia de um dos Reis Magos.
- Foi um golpe de sorte que este pedaço de osso da espessura de um dedo tenha escapado à ação deles - disse Monk.
- A sorte não teve nada a ver com isso - indignou-se Rachel. - Isso custou a vida de homens bons. Se nós não tivéssemos chegado na hora em que chegamos, suspeito que teríamos perdido este fragmento de osso também.
- Sorte ou não - resmungou Gray -, nós temos o fragmento de osso. Vejamos se ele pode solucionar alguns mistérios para nós.
Ele pôs um par de óculos equipado com uma lente de aumento de joalheiro e calçou um par de luvas de borracha. Com uma minúscula furadeira, tirou uma lasca fina do centro do osso, em seguida usou um gral e um pilão para triturar a amostra até virar pó.
Rachel observava seu trabalho meticuloso. Ele era o cientista no sol-dado. Ela estudou os movimentos dos dedos dele, eficientes, sem desperdiçar nenhum esforço. Os olhos dele estavam completamente concentrados na tarefa de que se ocupava. Duas linhas perfeitamente paralelas sulcavam sua testa, sem relaxar. Ele respirava pelo nariz.
Ela jamais havia imaginado esse lado dele, do homem que saltava entre torres em chamas. Rachel teve um súbito impulso de erguer o queixo dele, de fazê-lo olhar para ela com a mesma intensidade e concentração. Como seria? Ela imaginou a profundidade de seus olhos azul-acinzentados. Lembrou-se de seu toque, a mão dele na sua, força e ternura, de certa forma simultâneas.
O calor aumentou dentro dela. Ela sentiu as faces corarem e teve de desviar o olhar.
Kat olhava fixamente para ela, inexpressiva, mas ainda, de certo modo, fazendo-a sentir-se culpada, as palavras dela muito recentes. É melhor não se envolver demais. Assim é mais fácil.
Talvez a mulher tivesse razão...
- Com este espectrômetro de massa - murmurou Gray afinal, atraindo de novo a atenção dela - nós podemos determinar se há algum dos metais no estado m nos ossos. Uma tentativa de considerar, ou não, a possibilidade de os ossos dos Reis Magos serem a fonte do pó encontrado no relicário de ouro.
Ele misturou o pó com água destilada, em seguida aspirou o líquido sedimentado com uma pepita e transferiu-o para um tubo de ensaio. Introduziu o tubo com a amostra no espectrômetro compacto. Preparou um segundo tubo de ensaio com água destilada e ergueu-o.
- Isto é um padrão de aferição - explicou ele, colocando o tubo noutro orifício. Ele pressionou um botão verde e virou a tela do laptop para o grupo, a fim de que todos pudessem ver. Na tela apareceu um gráfico com uma linha horizontal de um lado ao outro. Algumas farpas minúsculas tremulavam na linha reta. - Isto é água. As pontas intermitentes são alguns traços de impurezas. Mesmo a água destilada não é 100% pura.
Em seguida, moveu um ponteiro de modo que apontasse para o orifício com a amostra sedimentada. Ele apertou o botão verde.
- Esta é a análise do osso pulverizado.
O gráfico na tela apagou-se e reavivou com os novos dados.
Parecia idêntico ao outro.
- Ele não mudou - disse Rachel.
Com o cenho franzido, Gray repetiu o teste, tirando o tubo do espectrômetro e agitando-o. O resultado foi o mesmo a cada vez. Uma linha horizontal.
- O resultado ainda está indicando água destilada - disse Kat.
- Não deveria - disse Monk. - Mesmo que os velhos magos tivessem osteoporose, o cálcio no osso deveria estar varando o teto. Sem mencionar o carbono e um punhado de outros elementos.
Gray acenou com a cabeça, concordando.
- Kat, você tem um pouco daquela solução de cianeto?
Ela virou-se para sua mochila, enfiou a mão nela e tirou um frasco pequenino.
Gray embebeu um cotonete na solução, depois prendeu o osso entre seus dedos enluvados. Ele esfregou o cotonete ensopado no osso, pressionando com firmeza, esfregando como se estivesse polindo prata.
Mas não era prata.
Onde ele esfregou, o osso amarelo-amarronzado transformou-se em ouro puro.
Gray olhou para o grupo.
- Isto não é osso.
Rachel não conseguiu evitar o espanto e o choque em sua voz.
- É ouro maciço.


17:12h

Gray passou a metade da viagem de trem refutando a afirmação de Rachel. Havia mais do que apenas ouro naqueles ossos. Também não se tratava de ouro metálico pesado, mas daquele estranho vidro de ouro outra vez. Ele tentou obter de maneira invertida a composição exata.
Enquanto trabalhava, também lutou com outro problema. Milão. Ele refletiu repetidamente sobre os acontecimentos na basílica. Havia conduzido sua equipe para uma armadilha. Ele poderia relevar a emboscada da noite anterior na Alemanha. Eles haviam sido apanhados de surpresa. Ninguém poderia ter previsto aquele ataque selvagem na Catedral de Colônia.
Mas o fato de terem se livrado por um triz em Milão não podia ser descartado tão facilmente. Eles haviam entrado preparados na basílica - porém, quase perderam tudo, inclusive as próprias vidas.
Portanto, onde estava o erro?
Gray sabia a resposta. Ele havia cometido um erro grave. Jamais deveria ter parado no lago Como. Não deveria ter dado ouvidos às palavras de cautela de Kat e perdido tanto tempo examinando a basílica, expondo a si mesmos, dando à Corte tempo para descobri-los e preparar uma armadilha.
A culpa não era de Kat. A cautela era parte essencial do serviço de inteligência. Mas o trabalho de campo também exigia rapidez e certa ação, e não hesitação.
Especialmente do líder.
Até então, Gray havia seguido o regulamento, permanecendo cauteloso demais, sendo o líder que se esperava dele. Mas talvez fosse esse o erro. Hesitação e previsão não eram traços da família Pierce. Nem no pai, nem no filho. Mas onde estava a linha entre cautela e imprudência? Será que ele poderia alcançar esse equilíbrio?
O êxito da missão - e talvez suas vidas - dependia disso.
Terminada a análise, Gray recostou-se. Seu polegar estava cheio de bolhas e a cabine recendia a álcool metílico.
- Não é ouro puro - concluiu ele.
Os outros olharam para ele. Dois trabalhavam, dois cochilavam.
- O osso falso é uma mistura de elementos do grupo da platina - explicou ele. - Quem quer que tenha produzido isto, misturou um amálgama pulverulento de vários metais do grupo de transição e o fundiu em vidro. Quando ele esfriou, moldou o vidro e tornou as superfícies ásperas até assumirem um aspecto branco como giz, fazendo-o parecer osso.
Gray começou a guardar seus instrumentos.
- É composto predominantemente de ouro, mas também há um grande percentual de platina e quantidades menores de irídio e ródio, até mesmo de ósmio e paládio.
- Uma miscelânea uniforme - disse Monk com um bocejo.
- Mas uma miscelânea cuja receita exata pode ficar desconhecida para sempre - disse Gray, franzindo o cenho diante do maltratado fragmento de osso. Ele havia preservado três quartos do fragmento intactos e submetido o quarto restante à bateria de testes. - Com a obstinada falta de reatividade do pó no estado m, não creio que algum equipamento de análise possa nos informar a proporção exata dos metais. Até a testagem altera a proporção na amostra.
- Como o Princípio da Incerteza de Heisenberg - disse Kat, os pés apoiados no banco oposto, o laptop no colo. Ela o explorava enquanto falava. - Até mesmo o ato de olhar muda a realidade do que está sendo observado.
- Portanto, se ele não pode ser completamente analisado...
As palavras de Monk foram interrompidas por outro bocejo que escancarou sua boca.
Gray deu um tapinha no ombro de Monk.
- Nós estaremos em Roma daqui a uma hora. Por que você não tira uma soneca no compartimento ao lado?
- Eu estou ótimo - disse ele, reprimindo outro bocejo.
- É uma ordem.
Monk levantou-se e deu uma longa espreguiçada.
- Bem, se é uma ordem...
Ele esfregou os olhos e dirigiu-se à porta.
Mas parou no vão dela.
- Sabem de uma coisa? - disse ele com os olhos turvos. - Talvez eles tenham entendido tudo errado. Talvez a história tenha interpretado erroneamente as palavras os ossos dos Reis Magos. Em vez de elas se referirem aos esqueletos desses caras, talvez signifiquem que os ossos foram feitos pelos Reis Magos. Como se pertencessem a eles. Os ossos dos Reis Magos.
Todos olharam fixamente para ele.
Sob o escrutínio combinado, ele deu de ombros e quase caiu porta afora.
- Diacho, o que é que eu sei? Eu mal consigo pensar direito.
A porta fechou-se.
- O colega de vocês talvez não esteja tão equivocado - disse Vigor quando o silêncio se instalou na cabine.
Rachel agitou-se. Gray olhou para cima. Até a recente especulação, Rachel permanecera encostada no tio e cochilara por um breve período. Gray a observara respirar pelo canto do olho. Enquanto dormitava, todas as asperezas suavizavam-se na mulher. Ela parecia muito mais jovem.
Ela esticou um braço no ar.
- O que você quer dizer?
Vigor trabalhava no laptop de Monk. Como Kat, ele estava conectado à linha DSL4 embutida nas cabines da primeira classe do novo trem. Eles estavam tentando obter mais informações. Kat concentrava-se na ciência por trás do ouro branco, ao passo que Vigor procurava mais informações históricas vinculando os Reis Magos àquele amálgama.
Os olhos do monsenhor continuavam fixos na tela.
- Alguém forjou aqueles ossos falsos. Alguém com uma habilidade dificilmente reprodutível hoje em dia. Mas quem os forjou? E por que os esconderam no coração de uma catedral católica?
- Poderia ser alguém ligado à Corte do Dragão? - perguntou Rachel. - o grupo deles remonta à Idade Média.
- Ou alguém dentro da própria Igreja? - indagou Kat.
- Não - disse Vigor com firmeza. - Eu acho que existe um terceiro grupo envolvido neste caso. Uma irmandade que existiu antes de ambos os grupos.
- Como o senhor pode ter certeza? - perguntou Gray.
- Em 1982, algumas das roupas com as quais os Reis Magos foram sepultados foram testadas. Elas datavam do século II, muito antes de a Corte do Dragão ser fundada. Antes mesmo de a rainha Helena, mãe de Constantino, descobrir os ossos em algum lugar no Oriente.
- E ninguém testou os ossos?
Vigor olhou para Gray.
- A Igreja proibiu isso.
- Por quê?
- É necessário uma dispensação pontifícia especial para permitir o teste de ossos, especialmente de relíquias. E as relíquias dos Reis Magos exigiriam uma dispensação extraordinária.
Rachel explicou:
- A Igreja não quer que seus tesouros mais preciosos sejam considerados uma fraude.
Vigor franziu o cenho para Rachel.
- A Igreja dá muito valor à fé. O mundo sem dúvida poderia fazer mais uso dela.
Ela deu de ombros, fechou os olhos e voltou a reclinar-se.
- Então, se não foi nem a Igreja, nem a Corte, quem forjou os ossos? - perguntou Gray.
- Eu acho que o seu amigo Monk estava certo. Eu acho que uma fraternidade de magos os fabricou. Um grupo que pode pré-datar o cristianismo, talvez remontando aos tempos egípcios.
- Aos egípcios?
Vigor clicou o mouse de seu laptop, abrindo um arquivo.
- Ouçam isto. Em 1450 a.C, o faraó Tutmés III reuniu seus melhores artífices num grupo de 39 membros chamado a Grande Irmandade Branca - cujo nome derivava de seu estudo de um misterioso pó branco. De acordo com a descrição, o pó foi produzido a partir de ouro, porém recebeu a forma de bolos piramidais, chamados "pães brancos". Os bolos são representados no templo de Karnak como minúsculas pirâmides, às vezes difundindo raios de luz.
- O que faziam com eles? - indagou Gray.
- Eles eram preparados apenas para os faraós. Para serem consumidos. Supostamente para aumentar a capacidade de percepção deles.
Kat sentou-se mais ereta, tirando os pés do banco oposto.
Gray virou-se para ela.
- O que foi?
- Eu estive lendo algumas das propriedades dos metais no estado de alta rotação. Especificamente, do ouro e da platina. A exposição por meio da ingestão pode estimular sistemas endócrinos, criando a sensação de expansão da consciência. Você se lembra dos artigos sobre os supercondutores?
Gray fez que sim com a cabeça. Os átomos de alta rotação agiam como supercondutores perfeitos.
- O Laboratório de Pesquisas Navais dos Estados Unidos confirmou que a comunicação entre as células do cérebro não pode ser explicada pela pura transmissão química através das sinapses. As células do cérebro se comunicam muito rápido. Eles chegaram à conclusão de que alguma forma de supercondutividade está envolvida, mas o mecanismo ainda está sendo pesquisado.
Gray franziu o cenho. É claro que ele havia estudado a supercondutividade no seu programa de doutoramento. Físicos destacados acreditavam que esse campo levaria aos próximos avanços importantes nas tecnologias globais, com aplicações gerais. Além disso, devido à sua dupla graduação em biologia, ele estava bastante familiarizado com as teorias atuais sobre o pensamento, a memória e o cérebro orgânico. Mas o que isso tinha a ver com ouro branco?
Kat inclinou-se para o seu laptop e abriu outro artigo.
- Aqui. Eu fiz uma busca dos metais do grupo da platina e seus usos. E eu encontrei um artigo sobre os cérebros de vitelas e porcos. Uma análise de metais nos cérebros de mamíferos mostra que 4% a 5% do peso seco é composto ródio e irídio. - Ela acenou com a cabeça para a amostra na mesa de Gray. - Ródio e irídio em seu estado monoatômico.
- E você pensa que esses elementos no estado m poderiam ser a fonte da supercondutividade do cérebro? Sua via de comunicação? Que o consumo desses pós pelos faraós a excitava?
Kat deu de ombros.
- É difícil dizer. O estudo da supercondutividade ainda está no começo.
- No entanto, os egípcios sabiam a seu respeito - escarneceu Gray.
- Não - opôs-se Vigor. - Mas talvez eles tenham aprendido alguma forma de explorá-la por tentativa e erro ou por acaso. Seja como for que isso tenha acontecido, esse interesse e essa experimentação com esses pós brancos de ouro aparecem ao longo da história, passados de uma civilização para a seguinte, ficando cada vez mais fortes.
- Até que ponto à frente o senhor pode pesquisar isso?
- Exatamente até aí - respondeu Vigor, apontando para o fragmento de osso na mesa de Gray.
Isso despertou o interesse dele.
- É mesmo?
- Vigor fez um aceno de cabeça positivo, disposto a encarar o desafio.
- Como eu disse, tudo começou no Egito. Esse pó branco recebeu muitos nomes. O "pão branco" que eu mencionei, mas também "alimento branco" e "mfkzt". Mas seu nome mais antigo encontra-se no Livro dos Mortos egípcio. A substância é mencionada centenas de vezes junto com suas assombrosas propriedades. Ela é simplesmente chamada "o que é".
Gray lembrou-se do monsenhor tropeçando naquelas mesmas palavras antes, quando eles transformaram o pó em vidro pela primeira vez.
- Mas, em hebraico - prosseguiu Vigor -, "o que é" é traduzido por Ma Na.
- Maná - disse Kat.
Vigor fez que sim com a cabeça.
- O Pão Sagrado dos israelitas. De acordo com o Antigo Testamento, ele caiu do céu para alimentar os refugiados famintos que fugiam do Egito, liderados por Moisés. - O monsenhor deixou aquilo penetrar no espírito deles e remexeu nos arquivos que reunira. - Durante o tempo que permaneceu no Egito, Moisés mostrou tanta sabedoria e habilidade que foi considerado um sucessor em potencial do trono egípcio. Tamanha consideração lhe dava direito de participar no nível mais profundo do misticismo egípcio.
- O senhor está dizendo que Moisés roubou o segredo de fabricação desse pó? Do pão branco egípcio?
- Na Bíblia, ele recebeu vários nomes. Maná. Pão Sagrado. Pão da Proposição. Pão da Presença. Ele era tão precioso que foi armazenado na Arca da Aliança, junto com as tábuas dos Dez Mandamentos. Tudo guardado numa caixa de ouro.
Gray não deixou de perceber a sobrancelha do monsenhor erguer-se sugestivamente, enfatizando a analogia com o fato de os ossos dos Reis Magos serem preservados num relicário de ouro.
- Parece uma interpretação forçada - murmurou Gray. - O nome "maná" poderia ser apenas coincidência.
- Quando foi a última vez que o senhor leu a Bíblia?
Gray não se deu o trabalho de responder.
- Muitas coisas têm deixado perplexos historiadores e teólogos no que concerne a esse misterioso maná. A Bíblia descreve que Moisés incendiou o bezerro de ouro. Mas, em vez de transformar-se em escória derretida, o ouro queimou até virar um pó... com o qual Moisés, então, alimentou os israelitas.
Gray franziu o cenho. Como o pão branco do faraó.
- Além disso, a quem Moisés pede para fazer esse Pão Sagrado, esse maná caído do céu? Na Bíblia, ele não pede a um padeiro para prepará-lo, e sim a Bezalel.
Gray ficou à espera de uma explicação. Ele não estava a par desses nomes bíblicos.
- Bezalel era o ourives dos israelitas. Era a mesma pessoa que construiu a Arca da Aliança. Por que pedir a um ourives para fazer pão a menos que se tratasse de outra coisa?
Gray franziu o cenho. Isso poderia ser verdade?
- Textos extraídos da cabala judaica também fazem referência direta a um pó branco de ouro, declarando-o mágico, porém uma magia que poderia ser usada para o bem ou para o mal.
- Mas o que foi feito desse conhecimento? - perguntou Gray.
- De acordo com a maioria das fontes judaicas, ele se perdeu quando o Templo de Salomão foi destruído por Nabucodonosor no século VI a.C.
- E onde ele foi parar depois disso?
- Para encontrarmos alusões a ele, damos um salto de dois séculos para a frente, para outra personagem histórica famosa, que também passou grande parte de sua vida na Babilônia, estudando com cientistas e místicos. - Vigor fez uma pausa para dar ênfase. - Alexandre, o Grande.
Gray sentou-se mais ereto.
- O rei macedônio?
- Alexandre conquistou o Egito em 332 a.C, junto com uma vasta parte do mundo. O homem sempre se interessou pelo conhecimento esotérico. Por meio de suas conquistas, ele enviou a Aristóteles presentes científicos do mundo inteiro. Ele também colecionou uma série de pergaminhos heliopolitanos relacionados com o conhecimento secreto e a magia do antigo Egito. Seu sucessor, Ptolomeu I, reuniu-os na Biblioteca de Alexandria após a morte dele. Mas um texto alexandrino relata uma história sobre um objeto chamado Pedra do Paraíso. Dizia-se que essa pedra possuía propriedades místicas. Quando sólida, ela podia ultrapassar seu próprio peso em ouro; todavia, quando triturada num pó, ela pesava menos do que uma pluma e podia flutuar.
- Levitação - disse Kat, interrompendo.
Gray virou-se para ela.
- Existe farta documentação dessa propriedade de material supercondutor. Os supercondutores flutuam em fortes campos magnéticos. Até mesmo esses pós no estado m demonstram levitação supercondutora. Em 1984, testes laboratoriais no Arizona e no Texas mostraram que o resfriamento rápido de pós monoatômicos podia aumentar em quatro vezes seu peso testado. Contudo, se eles fossem aquecidos de novo, o peso se reduzia a menos de zero.
- O que você quer dizer? Menos de zero?
- O recipiente pesava mais sem a substância nele, como se estivesse levitando.
- A Pedra do Paraíso redescoberta - declarou Vigor.
Gray começou a perceber a verdade. Um conhecimento secreto passado adiante através de gerações.
- Aonde a trilha desse pó leva em seguida?
- Ao tempo de Cristo - respondeu Vigor. - No Novo Testamento, continua a haver alusões a um ouro misterioso. No capítulo dois do Livro do Apocalipse, lê-se: "Ao vencedor darei do maná escondido, e lhe darei também uma pedrinha branca". Além disso, o Livro do Apocalipse descreve as casas da Nova Jerusalém como sendo construídas de "ouro puro, semelhante a um vidro límpido".
Gray lembrou-se de Vigor ter murmurado aquele versículo quando a poça de vidro derretido endureceu no piso da Catedral de Colônia.
- Digam-me - continuou Vigor -, quando é que o ouro se parece com vidro? Isso não faz o menor sentido, a não ser que consideremos a possibilidade do ouro no estado m... esse "mais puro de todos os ouros" descrito na Bíblia.
Vigor apontou para a mesa.
- O que nos traz de volta aos Reis Magos bíblicos. A um conto da Pérsia relatado por Marco Polo. Ele conta a história dos Reis Magos recebendo um presente do menino Jesus, e isso provavelmente é alegórico, mas eu penso que é importante. Cristo deu aos Reis Magos uma pedra branca opaca, uma Pedra Sagrada. A história diz que ela representava um apelo aos Reis Magos para que permanecessem firmes em sua fé. Durante a viagem de volta para casa, a pedra começou a emitir um fogo que não podia ser extinto, uma chama eterna, que com freqüência simboliza sabedoria superior.
Vigor deve ter notado a confusão de Gray, mas prosseguiu:
- Na Mesopotâmia, onde essa história se originou, a expressão "pedra de fogo alto" é chamada shemanna. Ou abreviada apenas para "pedra de fogo"... manna.
Vigor recostou-se e cruzou os braços.
Gray lentamente aquiesceu com a cabeça.
- Então nós fechamos o círculo. De volta ao maná e aos Reis Magos bíblicos.
- De volta à era em que os ossos foram produzidos - disse Vigor com um aceno de cabeça na direção da mesa.
- E a história pára aí? - indagou Gray.
Vigor sacudiu a cabeça.
- Eu preciso pesquisar mais, mas acho que ela continua além desse ponto. Eu acho que o que acabei de descrever não são redescobertas isoladas desse pó, e sim uma cadeia ininterrupta de pesquisas conduzidas por uma sociedade alquímica secreta que vem purificando esse processo através dos séculos. Para mim, só agora a corrente dominante da comunidade científica está começando a redescobri-lo.
Grav virou-se para Kat, o dispositivo de busca deles.
- O monsenhor tem razão. Estão sendo feitas descobertas incríveis sobre esses supercondutores no estado m. Da levitação à possibilidade de deslocamento transdimensional. Mas aplicações mais práticas estão sendo exploradas no momento. A cisplatina e a platina-carbono já estão sendo usadas no tratamento do câncer do testículo e do ovário. Eu espero que Monk, com sua formação em medicina legal, possa entrar mais em detalhes. Porém, nos últimos anos foram feitas descobertas ainda mais intrigantes.
Gray fez um sinal para que ela continuasse.
- A Bristol-Meyers Squibb relatou êxito com o rutênio monoatômico para corrigir células cancerosas. O mesmo com a platina e o irídio, de acordo com a Platinum Metals Review. Na verdade, esses átomos fazem o filamento de DNA corrigir-se a si mesmo, reconstruindo-se sem medicamentos ou radiação. Mostrou-se que o irídio estimula a glândula pineal e parece livrar-se do "refugo do DNA", levando à possibilidade de aumento da longevidade e reabrindo as vias de envelhecimento no cérebro.
Kat inclinou-se para a frente.
- Uma notícia de agosto de 2004. A Universidade de Purdue relata êxito no uso do ródio para destruir vírus com luz proveniente do interior de um corpo. Até mesmo o vírus do Nilo ocidental.
- Luz? - perguntou Vigor, seus olhos estreitando-se.
Gray olhou para ele, notando o interesse intensificado do monsenhor.
Kat assentiu.
- Existe uma porção de artigos sobre esses átomos no estado m e a luz. Da transformação do DNA em filamentos supercondutores... à comunicação por ondas luminosas entre as células... à pesquisa com energias zero de campo.
Rachel finalmente falou. Seus olhos ainda estavam fechados, mas ela estivera escutando o tempo todo, escutando às escondidas.
- Isso faz a gente ter curiosidade de saber.
- O quê? - Gray virou-se para ela.
Ela abriu os olhos lentamente. Eles estavam brilhantes e alerta.
- Vocês, cientistas, estão aqui falando sobre expansão da consciência, levitação, transmutação, curas milagrosas, antienvelhecimento. Parece uma lista de milagres dos tempos bíblicos. Isso me faz perguntar a mim mesma por que tantos milagres aconteciam naquela época, mas não hoje em dia. Nos séculos passados, éramos afortunados por vermos uma imagem de Virgem Maria numa tortilha. Todavia, agora a ciência está redescobrindo esses milagres mais importantes. E grande parte disso remonta a um pó branco, a uma substância que se conhecia melhor naquela época do que hoje. Esse conhecimento secreto poderia ter sido a origem da proliferação de milagres nos tempos bíblicos?
Gray refletiu sobre isso, olhando-a nos olhos.
- E se esses antigos magos sabiam mais do que sabemos agora - extrapolou ela -, o que essa fraternidade perdida de sábios fez com esse conhecimento, a que grau eles o refinaram?
Rachel prosseguiu com o raciocínio.
- Talvez seja isso o que a Corte do Dragão procura! Talvez eles tenham encontrado alguma pista, alguma coisa ligada aos ossos que poderia levá-los ao que quer que esse produto final purificado possa ser. Algum platô final alcançado pelos magos.
- E, ao longo do caminho, a Corte aprendeu aquele truque assassino usado em Colônia, uma forma de usar o pó para matar - disse Gray.
Ele lembrou-se das palavras do monsenhor sobre a cabala judaica, de que o pó poderia ser usado para o bem ou para o mal.
O rosto de Rachel tornou-se sóbrio.
- Se eles alcançassem ainda mais poder, obtendo acesso ao santuário desses sábios antigos, eles poderiam mudar o mundo, refazê-lo à sua própria imagem doentia.
Gray olhou fixamente para os outros. Kat exibia uma expressão cautelosa. Vigor parecia perdido em seus próprios pensamentos, mas notou o súbito silêncio.
Os olhos dele concentram-se de novo neles.
Gray encarou-o.
- O que o senhor acha?
- Eu acho que nós temos que detê-los. Mas, para fazermos isso, nós teremos que procurar pistas desses antigos alquimistas. Isso significa seguir as pegadas da Corte do Dragão.
Gray sacudiu a cabeça. Ele se lembrou de sua preocupação de que estivessem agindo de maneira cautelosa demais, tímida demais.
- Pra mim chega de perseguir esses sacanas. Nós precisamos deixá-los para trás. Deixá-los comer nossa poeira para variar.
- Mas por onde começamos? - perguntou Rachel.
Antes que alguém pudesse responder, ouviu-se um aviso programado pelo sistema de intercomunicação do trem.
- Roma... Stazione termini... quindici minuti!
Gray consultou o relógio. Quinze minutos.
Os olhos de Rachel estavam fixos nele.
- Benvenuto a Roma - disse ela quando ele olhou para cima. - Lasci i giochi cominciare!
Gray traduziu, o vislumbre de um sorriso esboçando-se em seu rosto. Era como se ela tivesse lido sua mente. Bem-vindo a Roma... Que comecem os jogos!



18:05h

Seichan pôs um par de óculos de sol Versace pretos e prateados.
Uma vez em Roma...
Ela desceu do ônibus expresso na Piazza Pia. Usava um vaporoso vestido branco de verão e nada mais, exceto um par de botas Harley-Davidson com salto agulha e fivelas prateadas, combinando com o colar.
O ônibus partiu. Atrás dela, carros obstruíam a rua, uma linha de trânsito com sons de buzina e de motores poluentes que avançava pela Via della Conciliazone. O calor e o forte cheiro de gasolina atingiram-na ao mesmo tempo. Ela virou-se para o oeste. No fim da rua, erguia-se a Basílica de São Pedro, cuja silhueta se desenhava contra o sol poente. A cúpula brilhava como ouro, uma obra-prima da arquitetura concebida por Michelangelo.
Sem impressionar-se, Seichan deu as costas à Cidade do Vaticano.
Não era sua meta.
Um pouco adiante ela se deteve numa construção que rivalizava com a magnífica Basílica de São Pedro. O imponente edifício em forma de tambor enchia a linha do horizonte, uma fortaleza que se debruçava sobre o rio Tibre. O Castelo de Santo Ângelo. Em seu teto, uma imensa estátua de bronze do Arcanjo Miguel segurava uma espada desembainhada voltada para cima. A escultura brilhava ao sol. A estrutura de pedra embaixo estava enegrecida pela fuligem, que deixara uma torrente de manchas, como um fluxo de lágrimas negras.
Muito adequado, pensou Seichan.
O edifício fora construído no século II como mausoléu do imperador Adriano, mas pouco depois o papado se apropriara dele. Todavia, o castelo desenvolvera uma história ilustre e ignóbil. Sob domínio do Vaticano, servira de fortaleza, prisão, biblioteca e até de bordel. Também fora um ponto de encontro secreto de alguns dos papas mais notórios, que mantinham concubinas e amantes dentro de seus muros, com freqüência aprisionadas ali.
Seichan achou divertido ter seu próprio encontro ali. Ela atravessou os jardins até a entrada e passou pelas muralhas de seis metros de espessura para entrar no andar térreo. Lá dentro estava escuro e frio. Àquela hora avançada do dia, os turistas começavam a escassear. Ela dirigiu-se para cima, subindo os largos degraus curvos românicos.
Saindo-se da escadaria principal, o castelo espalhava-se num labirinto de quartos e salões. Muitos visitantes se perdiam.
Mas Seichan só estava indo até o nível intermediário, a um restaurante num terraço com vista para o Tibre. Ela devia encontrar seu contato ali. Após o ataque com bombas incendiárias, considerou-se muito arriscado que eles se encontrassem no próprio Vaticano. Por isso o contato dela viria pelo Passetto del Borgo, uma passagem coberta no alto de um antigo aqueduto que ligava o Palácio Apostólico àquele castelo-fortaleza. A passagem secreta fora construída originalmente no século XIII como uma rota de fuga de emergência para o papa, porém, com o passar dos séculos, foi usada com mais freqüência para encontros amorosos.
Embora hoje nada houvesse de romântico naquele encontro.
Seichan seguiu as placas até o café no terraço e consultou o relógio. Estava dez minutos adiantada. Não fazia mal. Ela precisava dar um telefonema.
Ela pegou o telefone celular, pressionou o dispositivo embaralhador 5 e digitou o código de discagem rápida. Um número particular, que não figurava na lista. Ela apoiou-se num quadril, levou o fone ao ouvido e esperou a chamada internacional completar-se.
A linha zumbiu, estalou, e uma voz firme e direta respondeu.
- Comando da Sigma, boa-tarde.























CAPÍTULO 8

Criptografia



25 de julho, 18:23h
Roma, Itália

- Eu preciso de papel e caneta - disse Gray com o telefone por satélite na mão.
O grupo esperava numa trattoria com mesas na calçada no outro lado da estação ferroviária central de Roma. Assim que chegaram, Rachel pediu que dois veículos dos Carabinieri apanhassem a equipe e a escoltasse até a Cidade do Vaticano. Enquanto esperavam, Gray decidiu que era hora de romper o silêncio com o comando central. A ligação fora transferida imediatamente para o diretor Crowe.
Após um breve relato dos eventos em Colônia e Milão, o diretor tinha sua própria notícia surpreendente.
- Por que ela haveria de telefonar para o senhor? - perguntou Gray ao diretor enquanto Monk procurava um bloco de anotações e uma caneta em sua mochila.
Painter respondeu:
- Seichan está colocando nossos dois grupos um contra o outro para favorecer o seu próprio objetivo. Ela nem sequer está tentando esconder isso. As informações secretas que ela nos passou foram roubadas do agente de campo da Corte do Dragão, um homem chamado Raoul.
Gray franziu o cenho, lembrando-se da obra do homem em Milão.
- Eu não acho que ela seja capaz de decifrar as informações secretas sem ajuda - prosseguiu Painter. - Por isso ela as passou para nós - para as decifrarmos para ela e para mantermos vocês no encalço da Corte. Ela não é tola. Sua capacidade de manipulação deve ser magistral para ter sido escolhida pela Guilda para supervisionar esta operação... pelo menos, vocês dois têm um passado. Apesar da ajuda dela em Colônia e Milão, não confie nela. Ela pode acabar virando-se contra você e tentar empatar o jogo.
Gray sentiu o peso da moeda de metal em seu bolso. Ele não precisava da advertência. A mulher era gelo e aço.
- Okay - disse Gray já com caneta e papel na mão, prendendo o fone com o ombro. - Estou pronto.
À medida que Painter lhe passava a mensagem, Gray tomava nota dela.
- E ela é dividida em estrofes, como um poema? - perguntou ele.
- Exatamente.
O diretor continuou recitando enquanto Gray anotava apressadamente cada verso.
Quando terminou, Painter disse:
- Eu tenho decifradores de códigos trabalhando nela aqui e na Agência de Segurança Nacional.
Gray franziu o cenho ao olhar para o bloco de anotações.
- Eu vou ver o que posso deduzir dela. Se usarmos alguns dos recursos do Vaticano, talvez possamos avançar um pouco aqui.
- Enquanto isso, mantenha-se alerta - advertiu Painter. - Essa Seichan talvez seja mais perigosa do que a Corte inteira.
Gray não questionou essa última afirmação. Com algumas explicações finais, ele desligou e guardou o telefone. Os outros olhavam em expectativa.
- O que significa tudo isso? - perguntou Monk.
- A Dama do Dragão telefonou para a Sigma. Ela passou um enigma para nós solucionarmos. Parece que ela não faz a menor idéia do que a Corte vai fazer em seguida, e, enquanto eles se preparam, ela quer que nós continuemos no encalço deles. Portanto, ela informou à Sigma uma passagem arcaica, uma coisa descoberta há dois meses no Egito pela Corte do Dragão. Seja qual for o seu conteúdo, ela disse que isso deu início à operação em curso.
Vigor levantou-se de uma das mesas ao ar livre da trattoria. Com uma minúscula xícara de café expresso equilibrada numa das mãos, ele inclinou-se para ler o trecho junto com os outros.

Quando a lua cheia se acasala com o sol,
Nasce o primogênito.
O que é?
Onde ele se asfixia,
Ele flutua na escuridão e fita o rei perdido.
O que é?
O Gêmeo espera por água,
Mas será queimado osso após osso no altar.
O que é?

- Oh, como isto ajuda - resmungou Monk.
Kat sacudiu a cabeça.
- O que é que isto tem a ver com a Corte do Dragão, metais de alta rotação e alguma sociedade de alquimistas perdida?
Rachel correu os olhos pela rua.
- Os eruditos no Vaticano talvez possam ajudar. O cardeal Spera prometeu nos dar todo o seu apoio.
Gray notou que Vigor olhara apenas uma vez para a folha de papel e então se afastara, bebericando seu café.
Gray estava farto dos silêncios do homem. Ele se cansara do respeito polido pelos limites um do outro. Se Vigor queria ficar naquela equipe, estava mais do que na hora de agir com um de seus membros.
- O senhor sabe alguma coisa - acusou Gray.
Os outros viraram-se para eles.
- O senhor também deveria saber - respondeu Vigor.
- O que o senhor quer dizer?
- Eu já descrevi isto no trem - Vigor virou-se e bateu de leve com um dedo no bloco. - A cadência deste trecho deveria ser familiar. Eu descrevi um livro com um padrão de texto semelhante. A repetição da frase "o que é".
Kat foi a primeira a lembrar-se.
- Do Livro dos Mortos egípcio.
- O Papiro de Ani, para ser exato - prosseguiu Vigor. - Ele está dividido em versos de descrição críptica seguidos por um verso repetido incessantemente: "o que é".
- Ou, em hebraico, manna - disse Gray, lembrando-se.
Monk passou uma das mãos pelos fios de cabelo curtos que se espetavam de sua cabeça raspada.
- Mas, se o trecho é de um livro egípcio conhecido, por que ele haveria de causar um rebuliço na Corte agora?
- Os trechos não são do Livro dos Mortos - respondeu Vigor. - Eu estou bastante familiarizado com o Papiro de Ani para saber que esses trechos não se encontram entre os outros.
- Então qual é a origem deles? - perguntou Rachel.
Vigor virou-se para Gray.
- O senhor disse que a Corte do Dragão descobriu isto no Egito... há apenas alguns meses.
- Exatamente.
Vigor dirigiu-se a Rachel.
- Tenho certeza de que, como membro da Tutela Patrimonio Culturale dos Carabinieri, você foi informada do recente caos no Museu Egípcio no Cairo. O museu enviou um alerta pela Interpol.
Rachel acenou afirmativamente com a cabeça e explicou aos outros.
- O Conselho Supremo de Antigüidades do Egito começou em 2004 um trabalhoso processo de esvaziamento do porão do Museu Egípcio, antes da reforma. Mas, quando abriram o porão, eles descobriram mais de cem mil artefatos da época dos faraós e outros artefatos no seu labirinto de corredores, um depósito de lixo arqueológico quase esquecido.
- Eles calculam que levarão cinco anos para catalogar tudo - disse Vigor. - Mas, como professor de arqueologia, eu soube de uma coisa excelente a respeito das descobertas. Havia uma sala inteira de pergaminhos esboroantes que os estudiosos suspeitam que possam ter vindo da Biblioteca de Alexandria perdida, um importante bastião de estudos gnósticos.
Gray lembrou-se da discussão de Vigor sobre o gnosticismo e a busca de conhecimento secreto.
- Uma descoberta dessas com certeza atrairia a Corte do Dragão.
- Como a luz atrai as mariposas - disse Rachel.
Vigor continuou:
- Uma das peças catalogadas veio de uma coleção de Abd el-Latif, um conceituado médico e explorador egípcio do século XV que viveu no Cairo. Em sua coleção, preservada num cofre de bronze, estava uma cópia ilustrada do século XIV do Livro dos Mortos egípcio, uma reprodução na íntegra do Papiro de Ani. - Vigor olhou intensamente para Gray. - Ela foi roubada há quatro meses.
Gray sentiu seu pulso acelerar-se.
- Pela Corte do Dragão.
- Ou por alguém a serviço deles. Eles se intrometem em tudo em toda a parte.
- Mas se o livro é apenas uma contrafação do original - disse Monk -, qual é a importância?
- O Papiro de Ani tem centenas de estrofes. Eu aposto que alguém forjou essa cópia e ocultou essas estrofes específicas - Vigor bateu de leve no bloco de Gray - entre as mais antigas.
- Nossos alquimistas perdidos - disse Kat.
- Escondendo agulhas num palheiro - afirmou Monk.
Gray fez que sim com a cabeça.
- Até que algum erudito da Corte do Dragão foi esperto o bastante para reconhecê-las, decifrar as pistas e guiar-se por elas. Mas onde é que isso nos deixa?
Vigor virou-se para a rua.
- O senhor mencionou no trem o desejo de alcançar e ultrapassar a Corte do Dragão. Esta é a nossa chance.
- Como assim?
- Nós vamos decifrar o enigma.
- Mas isso poderia levar dias.
Vigor deu uma olhadela por cima dos ombros dele.
- Não se eu já o tiver decifrado.
Ele pegou o bloco de papel e virou para uma nova página em branco.
- Deixem-me mostrar a vocês.
Ele então fez uma coisa estranhíssima. Molhou a ponta do dedo no café e umedeceu o fundo de sua xicrinha. Pressionou a xicrinha no papel, deixando um círculo de café perfeito na página em branco. Repetiu o gesto, aplicando um segundo círculo sobre o papel, círculo esse que se sobrepunha ao primeiro, produzindo mais ou menos a forma de um homem de neve.








- A lua cheia acasalando-se com o sol.
- O que isto prova? - indagou Gray.
- Vesica Pisces - disse Rachel, a compreensão tornando-se clara em seu rosto.
Vigor deu um largo sorriso para ela.
- Eu alguma vez lhes disse como tenho orgulho da minha sobrinha?



19:02h

Rachel não queria abrir mão de sua escolta dos Carabinieri, porém entendeu a excitação do tio Vigor. Ele insistira em que eles tomassem um transporte alternativo para investigar o novo indício.
Por isso ela telefonara para a delegacia e cancelara a solicitação dos carros de patrulha. Ela deixara uma mensagem em código para o general Rende de que todos eles tinham de cuidar de uma pequena missão. A mensagem fora uma sugestão de Gray. Ele achou melhor não divulgarem o destino deles. Não até que pudessem investigar mais.
Quanto menos pessoas soubessem da descoberta deles, melhor.
Por isso eles procuraram o transporte alternativo.
Rachel seguiu as costas largas de Gray até a traseira do ônibus público. Kat e Monk ocuparam uma fileira de poltronas vagas. O ar-condicionado tilintava, e o motor fazia as placas do assoalho chocalhar enquanto o ônibus se afastava do meio-fio e abria caminho no trânsito.
Rachel ocupou um assento com Gray. A fileira de poltronas deles ficava de frente para Monk, Kat e o tio Vigor. Kat parecia especialmente carrancuda. Ela argumentara a favor de prosseguirem para o Vaticano e assegurarem uma escolta primeiro, mas Gray rejeitara sua argumentação. Ela parecia abalada por aquela decisão.
Rachel olhou para Gray ao lado dela. Alguma nova resolução parecia ter se solidificado nele. Isso a fez lembrar-se da atitude dele no alto da flecha em chamas em Colônia, uma conduta segura. Os olhos dele brilhavam com uma determinação que havia desaparecido após o primeiro ataque. Ela estava de volta agora... e a assustava um pouco, fazia seu coração bater mais rápido.
O ônibus avançava ruidosamente no trânsito.
- Okay - disse Gray -, eu confiei na sua palavra de que esta excursão secundária era necessária. Agora, que tal uma explicação pormenorizada?
O tio Vigor ergueu uma das mãos, concordando.
- Se eu tivesse entrado em detalhes, nós teríamos perdido nosso ônibus.
Ele tornou a abrir o bloco.
- Esta forma de círculos sobrepostos pode ser vista em toda a cristandade. Em igrejas, catedrais e basílicas ao redor do mundo. Desta única forma, toda a geometria flui. Por exemplo. - Ele pôs a figura na posição horizontal e cobriu a parte inferior com o canto de sua palma. Em seguida, apontou para a interseção dos dois círculos. - Aqui vocês podem ver a forma geométrica da ogiva. Quase todas as janelas e arcadas góticas a exibem.




Ele dera a mesma preleção a Rachel na infância. Não era possível ter parentesco com um arqueólogo do Vaticano sem conhecer a importância daqueles dois círculos sobrepostos.
- Para mim ela ainda se parece com dois sonhos esmagados juntos - disse Monk.
Vigor tornou a endireitar a figura.
- Ou com uma lua cheia acasalando-se com o sol - disse ele, trazendo à baila a estrofe do texto críptico. - Quanto mais eu penso nesses versos, mais camadas me vêm à mente, como se eu estivesse descascando uma cebola.
- O que o senhor quer dizer? - indagou Gray.
- Eles esconderam esta pista dentro do Livro dos Mortos egípcio, o primeiro livro a fazer referência ao maná. Textos egípcios posteriores começam a se referir a ele como "pão branco" e coisas desse tipo. É como se, para encontrar o que quer que os alquimistas tenham ocultado, você tivesse de começar do começo. Todavia, a resposta a esta primeira pista também remonta à primeira era do cristianismo. Múltiplos começos. Até a resposta em si implica multiplicações. O um tornando-se muitos.
Rachel entendeu o que seu tio queria dizer.
- A multiplicação dos peixes.
Vigor fez um aceno de cabeça positivo.
- Alguém vai explicar isso a nós, aprendizes? - perguntou Monk.
- Esta combinação de círculos é chamada Vesica Pisces, ou Bexiga dos Peixes.
Vigor inclinou-se e cobriu a interseção para revelar a forma semelhante a um peixe situada entre os dois círculos.






Gray examinou mais de perto.
- É o símbolo do peixe que representa o cristianismo.
- É o primeiro símbolo - disse Vigor. - "Quando a lua cheia se acasala com o sol, ele nasce." - O tio de Rachel bateu de leve no peixe. - Alguns estudiosos acreditam que o símbolo do peixe foi usado porque o termo grego para peixe, ICHTHYS, era um acrônimo para Iesous Christos Theou Yios Soter, ou Jesus Cristo, Filho de Deus, o Salvador. Mas a verdade está aqui, entre estes círculos, entrelaçada na geometria sagrada. Estes círculos entrelaçados são encontrados com freqüência em pinturas antigas com o Cristo menino situado no centro da junção. Se a forma é virada de lado, o peixe se transforma numa representação dos órgãos genitais femininos e do útero de uma mulher, onde o menino Jesus está pintado.






- É por esse motivo que o peixe representa a fertilidade. Por ser fértil e multiplicar-se. - Vigor olhou para o grupo. - Como eu disse, existem camadas sobre camadas de significados aqui.
Gray recostou-se.
- Mas como é que isto nos conduz a algum lugar?
Rachel também estava curiosa.
- Há símbolos de peixe em toda Roma.
Vigor acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mas o segundo verso diz: "Nasce o primogênito". Ele está simplesmente nos guiando para a representação mais antiga do símbolo do peixe, que se encontra na Cripta de Lucina, nas Catacumbas de São Calisto.
- É para lá que estamos indo? - perguntou Monk.
Vigor fez que sim com a cabeça.
Rachel notou que Gray não estava satisfeito.
- E se o senhor estiver errado? - perguntou ele.
- Não estou. As outras estrofes do texto também fazem alusão a ela... desde que você solucione o enigma da Vesica Pisces. Dê uma olhada no próximo verso: "Onde ele se asfixia, ele flutua na escuridão". Um peixe não pode asfixiar-se, não na água, mas pode asfixiar-se na terra. E a menção de sombras. Tudo isto aponta para uma cripta.
- Mas existem muitas criptas e catacumbas em toda Roma.
- Mas não muitas com dois peixes, gêmeos um do outro - disse Vigor.
Os olhos de Gray brilharam de compreensão.
- Outra pista, da última estrofe: "O Gêmeo espera por água".
Vigor concordou com um aceno de cabeça.
- Todas as três estrofes apontam para um lugar: as Catacumbas de São Calisto.
Monk instalou-se de novo em sua poltrona.
- Pelo menos não é uma igreja desta vez. Eu estou cansado de tomar bala.



19:32h

Vigor sentiu que eles estavam na pista certa.
Finalmente.
Ele guiou os outros através da Porta de São Sebastião, um dos portões mais admiráveis das muralhas da cidade. Ele também servia de entrada para as ravinas que circundavam a Via Apia, uma parte preservada da famosa estrada romana antiga. Logo após os portões, contudo, havia uma série de oficinas mecânicas em ruínas.
Vigor tirou do pensamento a feiúra daqueles depósitos de ferro-velho, voltando a atenção para a frente. Numa bifurcação da estrada erguia-se uma igrejinha.
- A Capela de Domine Quo Vadis - disse ele.
A única pessoa que de fato o ouvia era Kat Bryant. Ela caminhava a passos largos ao lado dele. Kat e Gray pareciam ter-se desavindo. Os outros seguiam atrás. Era bom ter aquele momento com Kat. Já fazia três anos que eles tinham trabalhado juntos, reunindo provas contra um criminoso de guerra nazista que vivia na zona rural do estado de Nova York. O alvo da investigação vinha negociando com objetos de arte roubados em Bruxelas. Foi uma investigação longa e complicada, que exigiu subterfúgios de ambos. Vigor ficara impressionadíssimo com a capacidade da moça de assumir qualquer papel com a mesma facilidade com que trocava de sapatos.
Ele também sabia da dor pela qual ela passara recentemente. Embora ela fosse uma boa atriz, dissimulando bem seus sentimentos, Vigor passara bastante tempo servindo a seu rebanho como padre, confessor e conselheiro para reconhecer alguém que ainda sofria. Kat perdera uma pessoa muito querida e ainda não se recuperara.
Ele apontou para a igreja de pedra, sabendo que havia uma mensagem para Kat dentro daquelas paredes.
- Esta capela foi construída no lugar onde São Pedro, fugindo à perseguição de Nero, teve uma visão de Jesus. Cristo seguia para Roma, enquanto Pedro fugia. Ele fez a famosa pergunta: Domine, quo vadis? "Senhor, aonde vais?" Cristo respondeu que estava indo para Roma para ser crucificado de novo. Pedro então voltou para encarar sua própria execução.
- Histórias inverídicas - disse Kat sem malícia. - Ele deveria ter fugido.
- Sempre pragmática, Kat. Mas você, entre todas as pessoas, deveria saber que às vezes a própria vida é menos importante do que a causa. Todos nós temos uma doença terminal. Nós não podemos escapar da morte. Mas, assim como as boas obras na nossa vida celebram o nosso tempo aqui, a nossa morte também pode fazê-lo. Oferecer a própria vida em sacrifício deveria ser honrado e lembrado.
Kat olhou para ele. Ela era perspicaz o suficiente para entender o rumo da conversa.
- O sacrifício é a última doação que nós, mortais, podemos fazer na vida. Nós não deveríamos desperdiçar uma doação tão generosa com consternação, mas com apreço respeitoso, até mesmo com alegria por uma vida vivida plenamente até o fim.
Kat respirou profundamente. Eles cruzaram a rua diante da capelinha. Os olhos dela a examinaram, embora Vigor suspeitasse que ela olhasse atenta para dentro.
- Pode haver lições até mesmo nas histórias inverídicas - encerrou Vigor, e guiou o grupo para a esquerda na bifurcação.
Ali a estrada transformava-se em pedras vulcânicas arredondadas. Embora as pedras não fossem as mesmas da estrada romana que outrora conduzia desde os portões da cidade até a Grécia, tratava-se de uma aproximação romântica. O caminho foi-se expandindo devagar ao redor deles. A relva das encostas abria-se em pastagens, salpicadas de ovelhas ocasionais e abrigadas da luz por pinheiros-mansos.
Àquela hora, com a maioria das atrações turísticas fechada e o sol quase se pondo, a Via Ápia era só deles. Uma pessoa que fazia uma caminhada ou um ciclista ocasional faziam um aceno de cabeça para ele, notando seu colarinho. "Padre", murmuravam, e seguiam em frente, olhando de relance para trás, para o grupo de mochileiros cansados da estrada que ele guiava.
Vigor também notou algumas mulheres usando poucas roupas perambulando por alguns pontos à beira da estrada, junto com algumas figuras de aparência mais decente. Após o anoitecer, a Via Apia tornava-se um abrigo para prostitutas e gente da mesma espécie, e com freqüência se mostrava perigosa para o turista comum. Ladrões e assaltantes ainda rondavam a antiga estrada, como faziam na Via Apia original.
- Já estamos quase chegando - prometeu Vigor.
Ele seguiu através de uma área de vinhedos, videiras verdes presas a madeira e arame, que atravessavam as colinas de declive suave. Adiante surgiu a entrada do pátio do destino deles: as Catacumbas de São Calisto.
- Comandante - perguntou Kat, ficando para trás -, nós não deveríamos pelo menos fazer uma exploração da área primeiro?
- Apenas mantenha os olhos abertos - respondeu ele. - Nada de mais atrasos.
Vigor notou a firmeza na voz do homem. O comandante ouvia, mas parecia pouco disposto a ceder. Vigor não sabia se aquilo era bom ou ruim.
Gray acenou para que eles seguissem em frente.
O cemitério subterrâneo havia fechado às cinco da tarde, mas Vigor havia telefonado para o zelador e providenciado aquela "excursão" especial. Um senhor baixo, de cabeleira branquíssima e macacão cinza, saiu de um vão de porta coberto. Mancou na direção deles usando um cajado de pastor como bengala. Vigor o conhecia bem. A família dele trabalhara como pastores da campagna ao redor por gerações. Um cachimbo estava firmemente preso entre seus dentes.
- Monsenhor Verona - disse ele. - Come va?
- Bene, grazie. E lei, Giuseppe?
- Muito bem, padre. Grazie - Ele acenou na direção da pequena cabana que lhe servia de residência enquanto vigiava as catacumbas. - Eu tenho uma garrafa de grapa. Eu sei como o senhor gosta de um pouco das uvas destas colinas.
- Noutra ocasião, Giuseppe. Está cada vez mais tarde e nós temos de cuidar do nosso assunto com muita urgência. Sinto muito.
O homem olhou para os outros como se eles fossem culpados da pressa, depois seus olhos pousaram em Rachel.
- Não pode ser! Piccola Rachel... mas ela não é mais tão pequena.
Rachel sorriu, evidentemente encantada por ter sido lembrada. Ela não havia estado ali com Vigor desde os 9 anos de idade. Rachel rapidamente abraçou-o, beijando-lhe no rosto.
- Ciao, Giuseppe.
- Nós devemos erguer uma taça à piccola Rachel, não é?
- Talvez quando terminarmos nosso trabalho lá embaixo - insistiu Vigor, sabendo que o homem, solitário em sua cabana, só queria um pouco de companhia.
- Si... bene... - Ele apontou o cajado para a porta. - Está aberta. Eu vou fechá-la depois que vocês entrarem. Batam quando subirem, e eu ouvirei.
Vigor os conduziu à entrada das catacumbas. Ele puxou a porta, a-brindo-a. Acenou para os outros do limiar, observando que Giuseppe deixara as lâmpadas da gambiarra acesas. A escada descia adiante deles.
Quando Monk entrou com Rachel, ele voltou o olhar para o zelador.
- Você deveria apresentar esse cara à sua avó. Aposto que eles se dariam bem.
Rachel sorriu e entrou atrás do homem atarracado.
Vigor fechou a porta atrás de si e tomou a dianteira de novo, descendo a escada.
- Esta catacumba é uma das mais antigas de Roma. Em tempos passados, foi um cemitério cristão privado, mas expandiu-se quando alguns papas optaram por serem enterrados neste lugar. Ela agora abrange noventa acres e possui quatro níveis de profundidade.
Atrás de si, Vigor ouviu a porta ser trancada com um estalido. O ar tornava-se mais úmido à medida que eles desciam, penetrante devido ao cheiro de barro e de água da chuva que se infiltrara. No fim da escada, eles chegaram a um vestíbulo com loculi abertos nas paredes, nichos horizontais para o sepultamento de corpos. Grafitos cobriam as paredes, mas não eram obra de vândalos modernos. Algumas das inscrições datavam do século XV: orações, lamentos, testemunhos.
- Até onde temos de penetrar? - perguntou Gray, caminhando ao lado de Vigor. Mal havia espaço para duas pessoas andarem lado a lado à medida que o caminho se estreitava a partir dali. O comandante olhou para os tetos baixos.
Ali dentro, mesmo aqueles que não sofriam de claustrofobia achavam enervantes aquelas necrópoles subterrâneas caindo aos pedaços. Em particular agora. Desertas e vazias.
- A Cripta de Lucina fica bem mais lá embaixo. Ela está localizada na área mais antiga da catacumba.
Galerias ramificavam-se a partir dali, mas Vigor conhecia o caminho e virou à direita.
- Permaneçam próximos - advertiu ele. - É fácil perder-se aqui.
O caminho estreitou-se ainda mais.
Gray virou-se.
- Monk, fique de olho na nossa retaguarda. Dez passos. Permaneça à vista.
- Eu vou-lhes dar cobertura - disse Monk, libertando sua espingarda.
À frente, abria-se uma câmara. Suas paredes estavam repletas de loculi e elaboradas arcsololia, túmulos em arco.
- A Cripta Papal - anunciou Vigor. - Dezesseis papas foram sepultados aqui, de Eutiquiano a Zefirino.
- De E a Z - murmurou Gray.
- Os corpos foram removidos - disse Vigor, penetrando cada vez mais fundo, passando pela Cripta de Santa Cecília. - A partir de cerca do século V, os arredores de Roma foram saqueados por uma série de forças. Godos, vândalos, lombardos. Muitas das personagens mais importantes sepultadas aqui foram transferidas para igrejas e capelas no interior da cidade. Na verdade, as catacumbas foram tão esvaziadas e abandonadas que por volta do século XII estavam completamente esquecidas, e só no século XVI é que foram redescobertas.
Gray tossiu.
- Parece que a linha do tempo continua cruzando a si mesma.
Vigor olhou para trás.
- Século XII - explicou Gray. - Também foi quando os ossos dos Reis Magos foram levados da Itália para a Alemanha. Também foi, conforme o senhor mencionou, quando houve um ressurgimento da crença gnóstica, criando um cisma entre imperadores e o papado.
Vigor acenou lentamente com a cabeça, refletindo sobre aquele ponto de vista.
- Foi uma época muito tumultuada, com o papado saindo de Roma no fim do século XIII. Os alquimistas podem ter procurado proteger o que haviam aprendido, impelidos a um ocultamento mais profundo à medida que deixavam para trás pistas no caso da sua extinção, migalhas de pão para outros crentes gnósticos seguirem.
- Como essa seita da Corte do Dragão.
- Eu não acho que eles imaginaram que um grupo tão perverso fosse esclarecido o bastante para buscar verdades mais elevadas. Um erro de cálculo lamentável. De qualquer modo, eu acho que o senhor tem razão. O senhor pode ter identificado a data em que essas pistas foram deixadas. Eu diria que em algum ponto do século XIII, no auge do conflito. Naquela época, poucos sabiam a respeito das catacumbas. Que melhor lugar para ocultar as pistas de uma sociedade secreta?
Refletindo sobre isso, Vigor os conduziu através de uma série sucessiva de galerias, criptas e cubicula.
- Não é longe. Pouco depois das Capelas Sacramentais.
Ele indicou com o braço uma galeria de seis câmaras. Afrescos escamados e desbotados exibiam intrincadas cenas bíblicas intercaladas com representações do batismo e da celebração das refeições eucarísticas. Eram tesouros da arte cristã primitiva.
Depois de avançarem por mais algumas galerias, a meta deles surgiu adiante. Uma cripta modesta. O teto estava pintado com um típico motivo cristão primitivo: o Bom Pastor, Cristo carregando um cordeiro nos ombros.
Deixando o teto de lado, Vigor apontou para duas paredes próximas.
- Eis o que viemos descobrir.



20:10h

Gray aproximou-se da parede mais próxima. Um afresco com um peixe fora pintado contra um fundo verde. Acima dele, via-se um cesto de pães que quase dava a impressão de estar sendo carregado nas costas do peixe. Ele dirigiu-se à segunda parede. Aquele afresco parecia uma imagem especular do primeiro, com a diferença de que no cesto também havia uma garrafa de vinho.
- Tudo isto simboliza a refeição eucarística - disse Vigor. - Peixe, pão e vinho. Também representa o milagre dos peixes, quando Cristo multiplicou um único cesto de peixes e pães para alimentar a multidão de seguidores que tinha ido ouvir o seu sermão.
- De novo o simbolismo da multiplicação - disse Kat. - Como a geometria da Vesica Pisces.
- Mas aonde nós vamos a partir daqui? - perguntou Monk. Ele estava de pé com a espingarda no ombro, olhando para o interior da cripta.
- Siga o enigma - respondeu Gray. - A segunda estrofe diz: "Onde ele se afoga, ele flutua na escuridão e fita o rei perdido". Nós encontramos o lugar onde ele flutua na escuridão, portanto vamos seguir para onde ele fita.
Ele apontou na direção em que o primeiro peixe estava voltado.
Ela conduzia ainda mais para dentro das galerias.
Gray caminhou a passos largos naquela direção, esquadrinhando o espaço a seu redor. Não demorou muito para que encontrasse uma representação clara dos reis. Ele parou diante de um afresco que ilustrava a adoração dos Reis Magos. Estava desbotado, mas os detalhes eram bastante claros. A Virgem Maria sentava-se num trono com o Cristo menino no colo. Curvadas diante dela estavam três figuras de túnica, oferecendo presentes.
- Os Três Reis - disse Kat. - Os Reis Magos novamente.
- Nós continuamos correndo atrás desses caras - respondeu Monk alguns passos abaixo, na passagem.
Rachel franziu o cenho diante da parede.
- Mas o que isto significa? Por que nos conduziu até aqui? O que a Corte do Dragão aprendeu?
Gray deixou todos os acontecimentos do dia anterior passarem aos poucos pela sua cabeça. Ele não lutou em busca de ordem, simplesmente deixou sua mente vagar. Associações se formaram, dissolveram-se, reconfiguraram-se. Lentamente ele começou a entender.
- A verdadeira pergunta é por que esses antigos alquimistas nos conduziram até aqui? - disse Gray. - A esta representação específica dos Reis Magos. Como Monk mencionou, em cada esquina da Itália a gente dá de cara com esses reis. Portanto, por que este afresco em particular?
Ninguém sabia a resposta.
Rachel propôs um possível caminho a seguir.
- A Corte do Dragão foi atrás dos ossos dos Reis Magos. Talvez nós precisemos olhar para este caso desta perspectiva.
Gray assentiu com a cabeça. Ele deveria ter pensado nisso. Eles não precisavam reinventar a roda. A Corte do Dragão já havia solucionado o enigma. Tudo o que eles tinham a fazer era seguir as pistas. Ele refletiu sobre isso e encontrou uma possível resposta.
- Talvez o peixe esteja olhando na direção desses reis específicos porque eles estão enterrados. Num cemitério. Embaixo da terra, onde um peixe poderia asfixiar-se. A resposta à pista não são os Reis Magos vivos, e sim os Reis Magos mortos e enterrados, numa cripta outrora repleta de ossos.
Vigor emitiu um leve som de surpresa.
- Quer dizer então que a Corte do Dragão estava atrás dos ossos - disse Rachel.
- Eu acho que a Corte do Dragão já sabia que os ossos não eram ossos - disse Gray. - Fazia séculos que eles vinham farejando essa pista. Eles deviam saber. Vejam o que aconteceu na catedral. Eles usaram o pó de ouro branco de alguma forma para matar. Eles estavam muito bem-informados.
- E eles querem mais poder - disse Rachel. - A solução final dos Reis Magos.
Os olhos de Vigor estreitaram-se em concentração.
- E se o senhor estiver certo, comandante, a respeito do significado dos ossos dos Reis Magos sendo levados da Itália para a Alemanha, talvez a transferência não tenha sido saque, conforme a história atesta, talvez tenha sido planejada. Para salvaguardar o amálgama.
Gray fez um aceno de cabeça afirmativo.
- E a Corte do Dragão deixou-os ficar em Colônia... em segurança, à vista de todos. Sabendo que eles eram importantes, mas sem saber o que fazer com eles.
- Até agora - disse Monk, a alguns passos de distância.
- Mas, afinal - prosseguiu Gray -, para o que todas estas pistas apontam? No momento, apenas para relíquias numa igreja. Elas não nos dizem o que fazer com elas, para que são usadas.
- Estamos esquecendo uma coisa - disse Kat. Ela permanecera calada o tempo todo, concentrada no afresco. - A estrofe da passagem diz que o peixe "fita o rei perdido". Não "reis", no plural. Há três reis aqui. Eu acho que nós não estamos percebendo outra camada de significado ou simbolismo. - Ela virou-se para os outros. - A que "rei perdido" a pista está aludindo?
Gray esforçou-se para obter uma resposta. Havia enigmas atrás de enigmas.
Vigor havia segurado o queixo com a mão, concentrando-se.
- Tem um afresco numa catacumba próxima. A Catacumba de Domitila. No afresco estão pintados não três, mas quatro Reis Magos. Como a Bíblia jamais foi específica acerca do número de Reis Magos, artistas cristãos primitivos variavam o número. O rei perdido poderia significar outro Rei Mago, o que está faltando aqui.
- Um quarto Rei Mago? - perguntou Gray.
- Uma figura representativa do conhecimento perdido dos alquimistas. - Vigor acenou afirmativamente com a cabeça, erguendo-a em seguida. - A mensagem da segunda estrofe dá a entender que os ossos dos Reis Magos podem ser usados para se encontrar esse quarto Rei Mago. Seja lá quem for.
Rachel sacudiu a cabeça, chamando a atenção de Gray e Vigor.
- Não se esqueçam de que essa pista está enterrada numa cripta. Eu aposto que não é o quarto Rei Mago que devemos achar, mas seu túmulo. Um conjunto de ossos usado para achar outro. Possivelmente outro depósito de amálgama.
- Ou algo ainda mais importante. Isso com certeza entusiasmaria a Corte do Dragão.
- Mas como os ossos dos Reis Magos podem ajudar a encontrar esse túmulo? - perguntou Monk.
Gray voltou para a Cripta de Lucina.
- A resposta tem que estar na terceira estrofe.



14:22h
Washington, D.C.

Painter Crowe acordou com uma batida à porta. Ele havia adormecido em sua poltrona, inclinado para trás. Maldita ergonomia...
Ele pigarreou, removendo o sono da garganta.
- Entre.
Logan Gregory entrou. Seus cabelos estavam molhados e ele usava uma camisa e um paletó limpos. Parecia que tinha acabado de chegar ao trabalho, e não que estava ali 24 horas por dia, sete dias por semana.
Logan deve ter notado a atenção dele e passou uma das mãos pela camisa engomada.
- Eu fui correr um pouco no ginásio. Mantenho outra muda de roupa no meu armário.
Pasmado, Painter não respondeu. Juventude. Ele não achava que fosse capaz de sair da cadeira, quanto mais correr alguns quilômetros. Mas, por outro lado, Logan era apenas cinco anos mais jovem do que ele. Painter sabia que, mais do que a idade, era o estresse que o prostrava.
- Senhor - continuou Logan -, eu recebi notícias do general Rende, nossa ligação com o Corpo de Carabinieri em Roma. O comandante Pierce e os outros entraram em ação de novo.
Painter inclinou-se para a frente.
- Outro ataque? Eles deveriam estar no Vaticano agora.
- Não, senhor. Depois do telefonema, eles dispensaram a escolta dos Carabinieri e foram embora por sua própria conta. O general Rende queria saber o que foi retransmitido a eles. Sua agente de campo, a tenente Rachel Verona, informou-o de que o senhor havia passado algumas informações secretas. O general Rende não gostou de não ter sido informado.
- E o que você disse a ele?
Logan ergueu ambas as sobrancelhas.
- Nada, senhor. Essa é a política oficial da Sigma, não é? Nós não sabemos de nada.
Painter sorriu. Às vezes era assim.
- E quanto ao comandante Pierce, senhor? O que o senhor pretende fazer em seguida? Deveríamos fazer um alerta?
Painter lembrou-se da admoestação de Sean Mcknight mais cedo. Confie nos seus agentes.
- Nós vamos aguardar o próximo telefonema dele. Não existem indícios de jogo sujo. Vamos dar-lhe espaço para jogar o seu próprio jogo.
Logan não pareceu satisfeito com essa resposta.
- O que o senhor quer que eu faça então?
- Eu sugiro, Logan, que você descanse um pouco. Eu imagino que, quando o comandante Pierce entrar em ação, nós vamos dormir muito pouco por aqui.
- Sim, senhor - disse Logan, dirigindo-se para a porta.
Painter recostou-se em sua poltrona e cobriu os olhos com o braço. Droga, mas aquela poltrona era confortável. Ele deixou-se levar, porém alguma coisa o perturbava, impedindo-o de dormir. Alguma coisa o aborrecia. Alguma coisa que Gray dissera. A respeito de não confiar na Sigma. Um vazamento.
Podia ser?
Só havia uma pessoa além dele, até então, que conhecia todas as in-formações secretas sobre aquela operação. Nem mesmo Sean McKnight estava a par de tudo. Ele lentamente inclinou-se para a frente, os olhos abertos.
Não podia ser.



20:22h
Roma, Itália

De volta à Cripta de Lucina, Gray postou-se junto ao segundo afresco com o peixe. Eles precisavam solucionar aquele terceiro enigma.
Monk fez uma boa pergunta:
- Por que diabos a Corte do Dragão simplesmente não mandou estas catacumbas pelos ares com suas bombas incendiárias? Por que deixá-las para que outros as encontrassem?
Rachel estava ao lado dele.
- Com a cópia falsificada do Livro dos Mortos ainda em poder da Corte, o que eles teriam que temer? Se Seichan não tivesse roubado o mapa do enigma, ninguém teria como procurar aqui.
Kat acrescentou:
- Talvez a Corte não estivesse tão segura da sua interpretação. Talvez eles quisessem que essa história registrada em pedra fosse mantida intacta até eles terem certeza de que tinham a tradução correta.
Gray levou isso em consideração, sentindo uma maior pressão do tempo. Ele voltou-se para o afresco.
- Então vamos ver o que eles encontraram. Na terceira estrofe, o peixe espera por água. Como o primeiro peixe, eu acho que devíamos seguir na direção em que ele está olhando.
Ele fez um gesto indicando uma galeria diferente, que se ramificava a partir da cripta. O segundo peixe apontava naquela direção.
Mas Vigor continuou seu exame dos dois peixes, olhando para um e depois para o outro, imagens especulares.
- Gêmeos - murmurou.
- O que foi?
Vigor fez um aceno de mão entre os dois peixes.
- Quem quer que tenha concebido este jogo de enigmas adorava encobri-lo com camadas de simbolismo. Escolhendo estes dois peixes. De aparência quase idêntica. A referência a um segundo peixe como "gêmeo" não pode ser insignificante.
- Eu não vejo a relação - disse Gray.
- O senhor simplesmente não sabe grego, comandante.
Gray franziu o cenho.
De forma bastante surpreendente, Monk concordou, provando que sua herança grega ia além de uma queda por ouzo e por dançar mal.
- "Gêmeo" é traduzido por didymus.
- Muito bem - disse Vigor. - E, em hebraico, "gêmeo" é traduzido por Tomé. Como em Tomé Dídimo. Um dos 12 apóstolos.
Gray lembrou-se da discussão com o monsenhor no lago de Como.
- Tomé era o apóstolo em conflito com João.
- E o que batizou os Reis Magos - Vigor os fez lembrar-se. - Tomé representava a crença gnóstica. Eu acho que o uso da palavra gêmeo neste caso é um tributo ao Evangelho de Tomé. Ao reconhecerem Tomé, eu me pergunto se esses alquimistas não poderiam ter sido cristãos seguidores de Tomé... devotos obedientes a Roma, mas aue ainda continuavam com suas práticas gnósticas em segredo. Sempre houve boatos dessa igreja dentro da Igreja. Uma Igreja de Tomé oculta dentro e junto da Igreja canônica. Esta pode ser a prova.
Gray ouviu a crescente excitação na voz do outro.
- Talvez essa sociedade de alquimistas, cujas origens remontam a Moisés e ao Egito, tenha se fundido com a Igreja Católica. Continuou a avançar na história usando a cruz e dobrando um joelho perante a Igreja, encontrando consenso entre aqueles que consideravam sagrado o Evangelho de Tomé secreto.
- Escondidos à vista de todos - disse Monk.
Vigor fez um sinal de cabeça afirmativo.
Gray acompanhou essa linha de raciocínio. Talvez valesse a pena segui-la, mas, por ora, eles tinham outro enigma por solucionar. Ele apontou para a galeria um pouco mais abaixo.
- Quem quer que tenha deixado estas pistas, também nos deixou um terceiro desafio.
O Gêmeo espera por água...
Gray seguiu até a nova galeria. Ele procurava algum afresco com representação de água. Passou por várias cenas bíblicas, mas nenhuma representando água. Havia uma pintura de uma família reunida em torno de uma mesa, mas parecia que vinho estava sendo servido. Depois havia um afresco com quatro homens erguendo os braços para o céu. Nenhum deles segurava um frasco com água.
Vigor chamou-o e ele virou-se.
Os outros estavam reunidos próximo a um nicho. Ele juntou-se a eles. Já havia examinado aquele afresco, que exibia um homem de túnica batendo numa pedra com um bastão. Nem uma gota d'água sequer.
- Esta é uma ilustração de Moisés no deserto - disse Vigor.
Gray ficou à espera de detalhes.
- De acordo com a Bíblia, ele bateu numa pedra no deserto e uma fonte de água fresca jorrou para saciar a sede dos israelitas em fuga.
- Como o nosso velho peixe lá atrás - disse Monk.
- Este deve ser o afresco indicado pela estrofe - disse Vigor. - Lembrem-se, Moisés sabia a respeito do maná e desses milagrosos pós brancos. Seria adequado reconhecê-lo.
- Então que pista esta pintura caindo aos pedaços contém? - perguntou Gray.
- "O Gêmeo espera por água, mas será queimado osso após osso sobre o altar" - citou Vigor. - "Queimado osso após osso." - Pensem em ordem inversa. Como Rachel recomendou antes. O que a Corte do Dragão fez em Colônia? Os paroquianos foram queimados de algum modo, uma tempestade elétrica maciça no cérebro. E ela envolvia ouro branco. E talvez o amálgama nos ossos dos Reis Magos.
- É essa a mensagem? - perguntou Rachel, parecendo pouco à vontade. - Matar? Amaldiçoar um altar, como em Colônia, com sangue e assassinato?
- Não - respondeu Gray. - A Corte do Dragão pôs fogo aos ossos e, ao que parece, não aprendeu nada, pois eles continuaram na mesma trilha depois. Talvez Colônia tenha sido apenas um teste ou um ensaio. Talvez a Corte do Dragão não tivesse certeza da sua interpretação do enigma, como o seu tio afirmou. De qualquer modo, é óbvio que eles estavam cientes de alguns dos poderes do pó branco. Com o dispositivo deles, eles provaram que podem ativar e manipular de forma imperfeita a energia nesses supercondutores de alta rotação. Eles o usaram para matar. Mas eu não acho que era isso que os alquimistas originalmente tencionavam.
Rachel ainda parecia inquieta.
- A verdadeira resposta está aqui - concluiu Gray. - Se a Corte do Dragão a encontrou, nós também podemos encontrá-la.
- Mas eles tiveram meses depois de roubarem o texto no Cairo - disse Monk. - E eles conhecem este assunto muito mais do que nós.
Todos concordaram com um sensato aceno de cabeça. Tendo dormido pouquíssimo, todos estavam com a adrenalina em estado crítico. Os enigmas estavam esgotando a pouca reserva mental de que ainda dispunham, deixando pairar sobre eles uma nuvem de derrota.
Recusando-se a fraquejar, Gray fechou os olhos, concentrando-se. Ele refletiu sobre tudo o que aprendera. O amálgama era composto de muitos metais diferentes do grupo da platina e sua fórmula exata era impossível de determinar, mesmo com os testes de laboratório atuais. O amálgama foi então moldado em ossos e guardados numa catedral.
Por quê? Será que os alquimistas pertenciam mesmo a uma igreja dentro da Igreja? Foi assim que eles conseguiram esconder os ossos naqueles tempos tumultuados, uma era de antípodas e discórdia?
Fosse qual fosse a história, Gray tinha certeza de que o dispositivo da Corte do Dragão de algum modo estava relacionado com o amálgama no estado m. Talvez a contaminação das hóstias fosse apenas uma forma de testar a amplitude e o alcance daquele poder. Mas qual era o principal uso disso? Um instrumento, uma arma?
Gray ruminou o código indecifrável de substâncias químicas, um código oculto por séculos, deixado para trás como uma série de pistas para uma possível fonte de poder antigo.
Um código indecifrável...
Quando estava prestes a desistir, ele obteve a resposta, súbita e aguda, uma dor atrás dos olhos.
Não um código.
- É uma chave - disse ele em voz alta, sabendo que era verdade. Ele encarou os outros. - O amálgama é uma chave química indecifrável, impossível de duplicar. Na sua composição química única deve estar a capacidade de descobrir a localização do túmulo do quarto Rei Mago.
Vigor começou a falar, mas Gray o deteve com a mão.
- A Corte do Dragão sabe como ativar esse poder, como girar essa chave. Mas onde está a fechadura? Não em Colônia. A Corte do Dragão fracassou lá. Mas eles devem ter um excelente segundo palpite. A resposta está aqui. Neste afresco.
Ele correu os olhos pelo grupo.
- Nós temos de solucionar isto - disse ele, virando-se e apontando para o afresco. - Moisés está golpeando uma rocha. Os altares em geral são feitos de pedra. Isso tem algum significado? Será que devemos ir ao deserto do Sinai e procurar a rocha de Moisés?
- Não - disse Vigor, saindo do nevoeiro da derrota. Ele estendeu a mão e tocou a rocha pintada. - Lembrem-se das camadas de simbolismo no enigma. Esta não é a rocha de Moisés. Pelo menos, não só dele. Na verdade, o afresco é intitulado "Moisés-Pedro Ferindo a Rocha".
Gray franziu o cenho.
- Por que dois nomes? Moisés e Pedro?
- Por todas as catacumbas, a imagem de São Pedro era com freqüência sobreposta aos atos de Moisés. Era uma forma de glorificar o apóstolo.
Rachel olhou mais de perto para o rosto pintado.
- E se esta for a rocha de São Pedro...?
- "Rocha" em grego é petros - disse Vigor. - Foi por isso que o apóstolo Simão Barjona adotou o nome Pedro, posteriormente São Pedro. A origem está nas palavras de Cristo: "Tu és Pedro, e sobre esta pedra edificarei minha Igreja".
Gray tentou juntar tudo aquilo.
- O senhor está insinuando que o altar mencionado neste enigma é o altar no interior da Basílica de São Pedro?
Rachel voltou-se subitamente.
- Não. Nós temos o simbolismo às avessas. Na estrofe, é usada a palavra altar, mas a pintura a substitui pela palavra rocha. Não é um altar o que estamos procurando, e sim uma rocha.
- Excelente - disse Monk. - Isso de fato reduz os nossos parâmetros de investigação.
- Reduz, sim - disse Rachel. - Meu tio citou a passagem bíblica mais importante que associa Pedro a uma pedra. Pedro seria a pedra sobre a qual a Igreja seria edificada. Lembrem-se de onde estamos agora. Numa cripta. - Ela bateu de leve na pedra do afresco. - Uma pedra nas entranhas da terra.
Rachel encarou-os todos, os olhos tão excitados que quase brilhavam na escuridão.
- Sobre que sítio foi construída a Basílica de São Pedro? Que pedra está enterrada sob os alicerces da igreja?
Gray respondeu, os olhos arregalando-se.
- O túmulo de São Pedro.
- A Pedra da Igreja - repetiu Vigor.
Gray percebeu a verdade. Os ossos eram a chave; o túmulo, a fechadura.
Rachel acenou afirmativamente com a cabeça.
- É para lá que a Corte do Dragão irá em seguida. Nós temos de entrar em contato com o cardeal Spera imediatamente.
- Ah! não... - retesou-se Vigor.
- Qual é o problema? - perguntou Gray.
- Hoje à noite... ao anoitecer... - Vigor consultou o relógio, o rosto cinzento. Ele virou-se e dirigiu-se para fora. - Nós temos que nos apressar.
Gray e os outros seguiram-no.
- O que aconteceu?
- Um serviço em memória das vítimas da tragédia em Colônia. A missa está marcada para o pôr-do-sol. Milhares de pessoas estarão presentes, inclusive o papa.
Gray subitamente se deu conta do que Vigor temia. Ele imaginou o massacre na Catedral de Colônia. Todos os olhos estariam desviados dos Scavi, a necrópole embaixo da Basílica de São Pedro, onde o túmulo do apóstolo fora escavado.
A Pedra da Igreja.
Se a Corte do Dragão pusesse fogo aos ossos dos Reis Magos lá embaixo...
Ele imaginou a multidão comprimida dentro da igreja e aglomerada do lado de fora, na praça.
Oh! Deus.


















CAPÍTULO 9

Os Scavi



25 de julho, 20:55h
Roma, Itália

O dia de verão era longo.
A noite começava a cair sobre a Via Appia quando Gray saiu das cata-cumbas. Ele protegeu os olhos com uma das mãos. Os raios oblíquos do sol poente o ofuscavam por ter passado tanto tempo na escuridão.
O zelador, Giuseppe, manteve a porta aberta para o grupo sair, em seguida fechou-a atrás de si, trancando-a.
- Está tudo bem, monsenhor?
O velho deve ter notado a tensão neles quando saíram porta afora.
Vigor acenou afirmativamente com a cabeça.
- Eu só preciso dar um telefonema.
Gray passou para Vigor seu telefone por satélite. Era preciso alertar o Vaticano e dar o alarme. Gray sabia que o monsenhor era a melhor pessoa para ter acesso a alguém com autoridade lá.
A um passo de distância, Rachel já estava com seu telefone celular na mão e ligava para sua delegacia.
O ruído surdo de uma bala os deteve. Ela acertou o calçamento de sílex do pátio, faiscando intensamente na escuridão que descia aos poucos.
Gray reagiu de imediato, não inteiramente surpreso.
- Vamos! - gritou ele, apontando para a cabana do zelador, a qual flanqueava um lado do pátio. Giuseppe deixara a porta de sua casa aberta.
Eles correram em direção ao abrigo. Gray e Rachel ajudaram o velho zelador, cada um apoiando-o de um lado.
Antes que eles pudessem alcançar a cabana, a porta explodiu com um jorro de chamas, arremessando-os para trás. Gray caiu amontoado com Giuseppe e Rachel. A porta coberta, arrancada das dobradiças pela explosão, deslizou pelas pedras do pavimento. Vidros estilhaçaram-se no pátio.
Gray dobrou um joelho, protegendo Rachel e o zelador. Kat protegeu Vigor da mesma forma. Gray havia sacado a pistola e a apontava, mas não havia alvo. Nenhuma figura de manto se aproximou correndo.
A paisagem ao redor, de vinhedos e pinheiros-mansos, estava impregnada de sombras e escuridão. O silêncio era absoluto.
- Monk - disse Gray.
Seu parceiro já sacara a espingarda de combate e perscrutava através do dispositivo de visão noturna fixado no cano da arma.
- Eu não estou vendo nada - disse Monk.
Um telefone tocou. Todos os olhares deslocaram-se para Vigor. Ele estava agachado com o telefone de Gray, que voltou a tocar em suas mãos.
Gray fez um sinal para ele, a fim de que atendesse.
Vigor obedeceu, levando o aparelho ao ouvido.
- Pronto - disse ele, ouvindo por um momento; em seguida, abaixou-se e passou o telefone para Gray. - É para o senhor.
Gray sabia que eles haviam sido encurralados de propósito. Não foram disparados outros tiros contra eles. Por quê? Ele pegou o aparelho.
Antes que pudesse falar, uma voz o cumprimentou.
- Alô, comandante Pierce.
- Seichan.
- Estou vendo que o comando da Sigma lhe transmitiu a minha mensagem.
De algum modo, Seichan descobrira os rastros deles, seguira-os e preparara a emboscada. E ele sabia o motivo.
- O enigma...
- Pela maneira frenética com que você e os seus amigos saíram da catacumba, só posso supor que você tenha solucionado o mistério.
Gray permaneceu em silêncio.
- Raoul também não quis partilhar seu conhecimento - disse Seichan calmamente.
- Parece que a Corte do Dragão quer manter a Guilda de fora, apenas jogando defensivamente. Isso não basta. Portanto, se você for bonzinho e partilhar o que aprendeu, eu deixarei todos vocês vivos.
Gray cobriu o fone.
- Monk?
- Nada ainda, comandante - sussurrou ele.
Seichan posicionara-se a grande distância, de onde tinha uma visão nítida do pátio. Os vinhedos, as árvores e as encostas sombreadas escondi-am-na bem. Ela devia ter-se esgueirado até ali enquanto eles estavam nas catacumbas e preparado a cabana com uma carga explosiva, obrigando-os a ficar expostos.
Eles estavam à mercê dela.
- Pela sua urgência - disse Seichan -, o tempo deve ser um fator importante. E eu posso esperar a noite inteira, alvejando um de cada vez até você falar. - Para enfatizar isso, uma bala rachou uma pedra próxima aos pés dele, ferindo-o com os estilhaços. - Portanto, seja um bom menino.
Monk sussurrou ao seu lado.
- Ela deve estar usando um dispositivo de supressão de descarga no rifle. Eu nem ao menos avistei uma luz bruxuleante lá fora.
Encurralado, não lhe restava alternativa senão negociar.
- O que você quer saber? - perguntou ele, procurando ganhar tempo.
- A Corte do Dragão está se dirigindo a um alvo hoje à noite. E eu creio que você descobriu onde é. Diga-me e todos poderão ir embora.
- Como eu posso saber que você vai manter sua palavra?
- Oh, você não tem como saber. Você também não tem muita escolha. Eu pensei que isso fosse óbvio, Gray. Posso chamá-lo de Gray? - prosseguiu ela, sem rodeios. - Enquanto eu achar vocês úteis, eu os manterei por perto, mas é claro que eu não preciso de todos vocês por perto. Eu farei seus companheiros servirem de exemplo se for preciso.
Gray não tinha escolha.
- Está bem. Sim, nós solucionamos o maldito enigma.
- Onde a Corte do Dragão vai atacar?
- Numa igreja - blefou ele. -- Perto do Coliseu tem...
Um assobio passou em alta velocidade próximo à sua orelha esquerda ao mesmo tempo em que o zelador emitia um grito de espanto. Gray virou-se e viu o velho segurando o ombro. O sangue esvaía-se por entre seus dedos quando ele caiu sentado nas pedras. Rachel foi imediatamente em seu socorro.
- Monk, ajude-os - disse Gray, praguejando em silêncio.
Seu colega de equipe tinha um estojo de primeiros socorros e o conhecimento necessário. No entanto, Monk hesitou, a espingarda já pronta, relutante em desistir de sua busca.
Gray acenou para ele de uma forma mais enérgica. Seichan não come-teria o erro de expor-se. Monk baixou a arma e foi ajudar o zelador.
- Você vai receber um passe livre - disse Seichan em seu ouvido. - Outra mentira vai lhe custar mais do que um pouco de sangue.
Os dedos de Gray apertaram com força o telefone.
- Eu disponho das minhas próprias informações secretas - continuou a mulher. - Portanto, eu saberei se a sua resposta faz sentido ou não.
Gray procurou alguma forma de despistá-la, mas os gemidos do zela-dor tornavam difícil concentrar-se numa estratégia. E ele não tinha tempo... nem escolha. Tinha de dizer a verdade a ela. Ela o havia mantido no jogo até então, e agora ele tinha de retribuir o favor. Quer ele gostasse, quer não, ele e a Guilda estavam no mesmo barco. Isso teria de ser resolvido noutra ocasião. E, para que isso acontecesse, eles tinham de viver.
- Se a sua agenda estiver certa - disse Gray -, a Corte do Dragão vai atacar o Vaticano hoje à noite.
- Onde?
- Embaixo da basílica. No túmulo de São Pedro. - Gray forneceu-lhe um resumo da solução do enigma como prova da verdade.
- Excelente trabalho - disse ela. - Eu sabia que havia um motivo para mantê-los por perto. Agora eu gostaria que todos vocês tivessem a bondade de se livrarem dos seus telefones celulares. Joguem-nos na cabana em chamas. E nada de gracinhas, comandante Gray. Não pense que eu não sei exatamente quantos telefones celulares você e sua equipe têm.
Gray obedeceu. Kat recolheu todos os telefones celulares e em seguida exibiu cada um deles, à medida que os jogava pela porta no incêndio que aumentava.
Exceto o telefone encostado no ouvido de Gray.
- Arrivederci por enquanto, comandante Gray.
O telefone subitamente explodiu junto ao ouvido dele, arrancado violentamente de seus dedos, alvejado por um tiro disparado de longe. Seu ouvido zuniu. O sangue escorreu pelo seu pescoço.
Gray ficou tenso, à espera de outro tiro de despedida. Em vez disso, ouviu um motor ser ligado com um ronco gutural, que em seguida se reduziu a um barulho surdo e contínuo. Uma motocicleta. Ela se afastou, permanecendo abaixo da linha das colinas. A Dama do Dragão estava indo embora com a informação de que necessitava.
Gray virou-se.
Monk havia enfaixado o ombro do zelador.
- Só um ferimento de raspão. Por sorte.
Mas Gray sabia que a sorte não tinha nada a ver com aquilo. A mulher poderia ter metido uma bala no meio dos olhos de qualquer um deles.
- Como está o seu ouvido? - perguntou Monk.
Irritado, Gray sacudiu a cabeça.
Monk aproximou-se mesmo assim. Estendeu a mão, sem ser particularmente delicado, e examinou o ferimento na orelha dele.
- Apenas um rasgão na pele. Fique quieto.
Ele esfregou de leve a ferida, a fim de limpá-la, e em seguida borrifou nela um spray contido num pequeno frasco.
Ardeu pra caralho.
- Atadura líquida - explicou Monk. - Ela seca em segundos. Seca ainda mais rápido se eu a soprar. Mas eu não quero que você fique excitado demais.
Atrás deles, Rachel e Vigor ajudaram o zelador a levantar-se. Kat recuperou o cajado do velho. Os olhos dele continuavam fixos em sua cabana. As chamas agora lambiam através das janelas estilhaçadas.
Vigor pôs uma das mãos no ombro do homem.
- Mi dispiace... - desculpou-se ele.
O homem deu de ombros, a voz surpreendentemente firme.
- Eu ainda tenho as minhas ovelhas. Casas podem ser reconstruídas.
- Nós precisamos encontrar um telefone - disse Rachel suavemente a Gray. - O general Rende e o Vaticano têm de ser alertados.
Gray sabia que cortar as linhas de comunicação deles havia sido apenas uma tática para retardá-los, para dar à Corte do Dragão, e portanto à Guilda, um pouco mais de tempo. Ele olhou de relance para o céu ocidental.
O sol já havia se posto. Apenas um brilho rubro assinalava sua passagem.
Com certeza, a Corte do Dragão já estava a caminho.
Gray falou com o zelador.
- Giuseppe, você tem um automóvel?
O velho acenou lenta e afirmativamente com a cabeça.
- Ali atrás.
Ele seguiu na frente. Atrás da cabana em chamas, e separada dela, havia uma garagem sem porta, coberta de telhas de ardósia, mais um barracão.
Através da abertura, uma forma enchia o espaço, coberta por uma lona.
Giuseppe agitou o cajado.
- As chaves estão dentro do carro. Eu abasteci o tanque na semana passada.
Monk e Kat foram na frente a fim de remover a coberta do carro. Eles puxaram juntos a lona para o lado, revelando um Maserati Sebring 66 clássico, preto como obsidiana. Ele fez Gray lembrar-se dos primeiros fastbacks 6 do Ford Mustang. Capo longo, robusto, pneus de tala larga, criado para correr.
Vigor olhou de relance para Giuseppe.
Ele deu de ombros.
- O carro da minha tia... com pouquíssimo uso.
Rachel caminhou na direção dele deslumbrada.
Eles embarcaram rapidamente. Giuseppe concordou em esperar o corpo de bombeiros, continuando com seu cargo de zelador das catacumbas.
Rachel sentou-se ao volante. Ela conhecia melhor as ruas de Roma. Mas nem todos ficaram contentes com a escolha da motorista.
- Monk - disse Rachel enquanto girava a chave na ignição e o motor rugia.
- O quê?
- Talvez seja melhor você fechar os olhos.




21:22h

Após uma curta parada próximo a uma série de telefones públicos, Rachel afastou-se do meio-fio. Ela entrou no trânsito a grande velocidade, recebendo uma buzinada de um motorista zangado. Qual era o problema dele? Entre o carro dela e o Fiat na sua traseira, havia um palmo de distância. Espaço de sobra...
Os faróis do Maserati furavam a escuridão à frente. A noite se fechara. Uma linha de luzes de freio serpenteava em direção ao centro da cidade. Ela corria ao redor e entre os outros carros, meros obstáculos, e às vezes invadia a pista de contramão. Era uma pena perder os trechos vazios no outro lado.
Um gemido ecoou do banco traseiro.
Ela pisou mais fundo no acelerador.
Ninguém emitiu uma queixa de verdade.
Quando eles pararam para telefonar, Rachel tentou contatar o general Rende, enquanto seu tio telefonava para o cardeal Spera. Nenhum dos dois teve êxito. Ambos os homens estavam no serviço em memória das vítimas da tragédia, que já estava sendo celebrado. O general Rende supervisionava pessoalmente a força dos Carabinieri que montava guarda na Praça de São Pedro e o cardeal Spera participava da missa. Foram deixadas mensagens e o alarme fora dado. Mas teria sido a tempo?
Todos estavam na missa, a apenas alguns passos de onde a Corte do Dragão atacaria. As multidões dariam um disfarce perfeito.
- Ainda falta muito para chegarmos? - perguntou Gray do banco do carona.
Ele estava com a mochila aberta no colo e trabalhava rapidamente. Muito concentrada nas ruas por onde dirigia, ela não tinha tempo de ver o que ele estava fazendo.
Rachel passou a toda a velocidade pelo Mercado de Trajano, o equivalente a um shopping center na Roma antiga. O edifício semicircular caindo aos pedaços ficava na Colina do Quirinal e era um bom ponto de referência.
- Pouco mais de três quilômetros - respondeu ela.
- Com as multidões presentes ao serviço, jamais chegaremos às entradas da frente - advertiu Vigor do banco traseiro, inclinando-se para a frente. - Nós deveríamos tentar a entrada da estrada de ferro no Vaticano. Siga para a Via Aurelia, ao longo da muralha sul. Nós podemos cruzar o terreno por trás da basílica. Pegue a entrada dos fundos.
Rachel concordou com um aceno de cabeça. O tráfego já congestionava à medida que o fluxo de veículos se afunilava em direção à ponte sobre o rio Tibre.
- Conte-me sobre as escavações sob a basílica - disse Gray. - Existem outras entradas?
- Não - respondeu Vigor. - A região dos Scavi é independente. Apenas sob a Basílica de São Pedro situam-se as Grutas Sagradas, cujo acesso se dá pela basílica. Muitas das criptas e dos túmulos dos papas mais famosos estão ali. Mas, em 1939, operários sampietrini que cavavam um túmulo para o papa Pio XI descobriram outra camada sob as Grutas, uma necrópole imensa com mausoléus antigos que remontavam ao século I. Ela foi denominada simplesmente Scavi, ou Escavações.
- Qual é a extensão da área? Qual é a configuração do terreno?
- O senhor alguma vez já esteve na cidade subterrânea em Seattle? - perguntou Vigor.
Gray olhou por cima do ombro para o monsenhor.
- Uma ocasião eu participei de uma conferência lá - explicou Vigor. - Embaixo da moderna Seattle está o seu passado, uma cidade-fantasma do Oeste Selvagem, onde se podem ver lojas intactas, postes de iluminação pública, passeios de madeira. A necrópole é como essa cidade, um antigo cemitério romano enterrado sob as Grutas. Escavada por arqueólogos, é um labirinto de túmulos, santuários e ruas de pedra.
Rachel afinal chegou à ponte e abriu caminho à força para o outro lado do rio Tibre. Uma vez do outro lado, ela saiu do fluxo principal de tráfego, fez o contorno e afastou-se da Praça de São Pedro, seguindo para o sul.
Depois de algumas curvas serpenteantes, ela se viu dirigindo ao lado das Muralhas Leoninas do Vaticano. Era escuro ali, com poucos postes de luz.
- É um pouco mais à frente - disse Vigor, apontando um braço.
A estrada de ferro alcançava a rua através de uma ponte de pedra. Era ali que a linha férrea do Vaticano saía da Santa Sé e se juntava ao sistema ferroviário de Roma. Há anos os papas viajavam de trem, partindo da estação do próprio Vaticano, no interior das muralhas do Estado Pontifício.
- Pegue aquela curva antes da ponte - disse Vigor.
Ela quase não a viu na escuridão. Rachel deu uma guinada no volante, saiu derrapando da avenida principal e entrou numa rua secundária coberta com cascalho que subia num aclive cada vez mais íngreme. Os pneus deixavam uma trilha de cascalho à medida que ela abria caminho à força até o alto. A estrada terminava na linha férrea.
- Por ali! - Vigor apontou para a esquerda.
Não havia nenhuma rua, apenas um gramado estreito, ervas daninhas e pedras grossas paralelas aos trilhos da ferrovia. Rachel deu uma guinada no volante, saiu aos solavancos da rua secundária e seguiu ao lado dos trilhos.
Ela mudou de marcha e continuou aos solavancos em direção à abertura em arco na Muralha Leonina. Os faróis eram sacudidos para cima e para baixo. Chegando à muralha, ela arremessou o Maserati pela abertura, cruzando o espaço entre a muralha e os trilhos.
Adiante, os faróis projetaram-se na lateral de um furgão azul-escuro que bloqueava o caminho. Dois soldados da Guarda Suíça, de uniforme azul-escuro, flanqueavam o furgão. Seus rifles apontavam para o invasor.
Rachel freou, o braço já fora da janela, agitando sua identificação dos Carabinieri, e gritou:
- Tenente Rachel Verona! Com o monsenhor Verona! Trata-se de uma emergência!
Os guardas acenaram para que eles avançassem, mas um deles manteve o rifle no ombro, apontado para o rosto de Rachel.
Seu tio rapidamente mostrou seus próprios documentos do Vaticano.
- Nós temos de falar com o cardeal Spera.
A luz de um holofote varreu o carro, passando pelos outros ocupantes. Por sorte, todas as armas deles estavam fora da visão direta. Não era hora para perguntas.
- Eu me responsabilizo por eles - disse Vigor asperamente. - Como o cardeal Spera também se responsabilizará.
O furgão saiu do caminho, desimpedindo o acesso ao território do Vaticano.
Vigor ainda pôs a cabeça fora da janela.
- Vocês receberam a notícia de um possível ataque?
Os olhos do guarda arregalaram-se. Ele sacudiu a cabeça.
- Não, monsenhor.
Rachel olhou para Gray. Oh! não... Como eles haviam receado, com toda a confusão em torno do serviço memorial, as notícias estavam chegando muito devagar às cadeias de comando. A Igreja não era conhecida por sua pronta reação... a mudança ou emergência.
- Não deixe mais ninguém entrar por aqui - ordenou Vigor. - Tranque esta entrada.
O guarda reagiu ao comando na voz do monsenhor e acenou afirmativamente com a cabeça.
Vigor voltou a acomodar-se no carro e apontou.
- Pegue a primeira rua depois da estação.
Não era necessário dizer a Rachel que se apressasse. Ela varou o pequeno estacionamento em frente à graciosa estação de dois pavimentos e entrou na primeira rua à direita. Passou em frente ao Studio del Mosaico, o único estabelecimento industrial do Vaticano, depois cortou por entre o Palácio do Tribunal e o Palazzo San Carlo. Ali os edifícios iam ficando mais densos à medida que a cúpula da Basílica de São Pedro avultava diante deles.
- Estacione perto da Casa Santa Marta - ordenou seu tio.
Rachel encostou o carro no meio-fio. A Sacristia de São Pedro erguia-se à sua esquerda, ligada à gigantesca basílica. A casa pontifícia ficava à sua direita. Uma passagem coberta ligava a sacristia à casa. Rachel desligou o motor. Eles teriam de continuar a pé a partir dali.
O destino deles --a entrada dos Scavi - ficava do outro lado da sacristia.
Quando desceram do carro, um canto abafado chegou até eles. O Co-ro Pontifício cantando a "Ave-Maria". A missa já estava sendo celebrada.
- Sigam-me - disse o tio Vigor.
Ele seguiu na frente através da passagem em arco até o pátio aberto no outro lado. O terreno estava estranhamente deserto. Toda a atenção e foco do Vaticano havia-se voltado para dentro do próprio Vaticano, para a basílica, para o papa. Rachel já testemunhara aquilo antes. Serviços importantes, como aquele memorial especial, podiam esvaziar toda a cidade-estado, deixando poucas pessoas perambulando de um lado para outro.
No outro lado da sacristia, um som baixo juntou-se ao canto do coro. Vinha de um pouco mais à frente, através do Arco dos Sinos, que conduzia à Praça de São Pedro. Era o murmúrio de milhares de vozes, erguendo-se da multidão reunida na praça. Através do estreito portão do arco, Rachel teve um vislumbre de velas brilhando em meio à aglomeração escura.
- Por aqui - disse Vigor, pegando um grande molho de chaves. Ele os conduziu a uma porta discreta na extremidade do minúsculo pátio. Aço maciço. -- Este caminho leva até os Scavi.
- Nenhum guarda - observou Gray.
A única segurança eram dois soldados da Guarda Suíça postados junto ao Arco dos Sinos. Estavam armados com rifles enquanto observavam a multidão. Nem sequer olharam para trás, para os recém-chegados.
- Pelo menos ela está trancada - disse Vigor. - Talvez nós os tenhamos enganado afinal.
- Não podemos contar com isso - advertiu Gray. - Nós sabemos que eles têm contatos dentro do Vaticano. Talvez tenham chaves.
- Apenas algumas pessoas têm estas chaves. Como diretor do Instituto Pontifício de Arqueologia, eu tenho um molho. - Ele virou-se para Rachel e estendeu duas outras chaves. - Estas abrem a porta de baixo... e o túmulo de São Pedro.
Rachel recusou-se a pegá-las.
- O quê...?
- Você conhece a configuração do terreno dos Scavi melhor do que ninguém. Eu preciso encontrar o cardeal Spera. O papa tem que ser posto em segurança e a basílica tem que ser esvaziada sem que haja pânico. - Ele tocou seu colarinho clerical. - Nenhuma outra pessoa consegue chegar lá rápido o bastante.
Rachel concordou e pegou as chaves. Era necessário alguém da importância de seu tio para rapidamente obter uma audiência com o cardeal, sobretudo durante uma missa tão importante. Provavelmente, era por isso que o alarme ainda não fora dado. Barreiras e mais barreiras de procedimentos. Até mesmo o general Rende não tinha jurisdição em solo vaticano.
Vigor fitou Gray intensamente antes de afastar-se. Rachel interpretou o olhar do tio. Cuide da minha sobrinha.
Rachel fechou os dedos em torno das chaves. Pelo menos, seu tio não estava tentando mandá-la embora. Ele reconheceu o perigo. Milhares de vidas estavam em jogo.
Seu tio virou-se e dirigiu-se à porta principal da sacristia. Era o caminho mais rápido para se chegar ao coração da basílica.
Gray virou-se para o grupo e mandou todos ajustarem seus rádios, assegurou um extra para Rachel, prendeu ele mesmo o microfone à garganta dela e mostrou-lhe como se podia ouvir um mero sussurro. Subvocalização foi a palavra que ele usou. Era extraordinário, tão silencioso e, no entanto, perfeitamente compreensível.
Ela praticou quando Monk abriu a porta com um ruído. O caminho até o porão estava escuro.
- Tem um interruptor lá dentro - sussurrou ela, surpresa com a altura do audível fonocaptor no microfone.
- Nós vamos no escuro - disse Gray.
Monk e Kat assentiram com a cabeça. Eles protegeram os olhos com óculos especiais. Gray estendeu um par para Rachel. Visão noturna. Ela estava bastante familiarizada com eles devido ao treinamento militar. Ela os pôs, e o mundo resplandeceu em matizes de verde e prata.
Gray foi na frente; ela seguiu-o com Kat. Monk fechou a porta silenciosamente atrás de si. O caminho ficou escuro, mesmo com os dispositivos de visão noturna. A visão noturna requeria um pouco de luz. Gray acendeu uma lanterna portátil, que brilhou intensamente na escuridão, e a prendeu abaixo de sua pistola.
Rachel ergueu seus óculos. O caminho adiante tornou-se de novo escuro como breu. A lanterna de Gray devia estar emitindo luz ultravioleta, visível apenas através dos dispositivos de visão noturna.
Ela tornou a pôr os óculos.
A luz sobrenatural iluminou uma ante-sala naquele nível. Algumas ex-posições e maquetes espalhavam-se pelo espaço. Uma era uma maquete da primeira igreja de Constantino, construída naquele local em 324 a.C A outra era uma maquete de uma edícula, um santuário para sepultamentos com a forma de um pequenino templo de dois andares. Foi aquele templo que assinalou o túmulo de São Pedro. De acordo com os historiadores, Constantino havia construído um cubo de mármore e pórfiro, uma pedra rara importada do Egito. Ele encerrou no túmulo o santuário em forma de edícula e construiu sua igreja original em torno dele.
Pouco depois do início da escavação da necrópole, o cubo original de Constantino foi redescoberto e posicionado diretamente sob o principal altar papal da Basílica de São Pedro. Restou uma parede do templo original, rabiscada com grafitos cristãos, incluindo as letras gregas que formavam as palavras Petros eni, ou "Pedro está aqui dentro".
E, de fato, numa cavidade naquela parede grafitada, foram encontrados ossos e vestimentas que condiziam com um homem da estatura e da idade de São Pedro. Agora eles estavam lacrados em caixas de plástico à prova de balas, feitas, por mais estranho que pareça, pelo Departamento de Defesa dos Estados Unidos e guardadas de novo em segurança na cavidade na parede.
Aquela era a meta deles.
- Por aqui - sussurrou Rachel, apontando para uma escada íngreme em espiral que conduzia à parte de baixo.
Gray tomou a dianteira.
Dando voltas e mais voltas, eles passaram pelo porão e desceram ainda mais.
Um calafrio penetrou através das roupas de Rachel, e ela sentiu-se quase nua. Os óculos de proteção estreitavam sua visão, causando uma sensação de claustrofobia.
No fim da escada, uma pequena porta bloqueava o caminho. Rachel espremeu-se junto a Gray, os corpos se tocando, e percebeu seu odor almiscarado antes de pegar a chave e destrancar a porta.
Ele segurou a mão dela, a fim de evitar que ela abrisse a porta, e com suavidade, porém com firmeza, empurrou-a para trás de si. Ele então puxou a porta, abrindo-a apenas alguns centímetros, e olhou pela fresta. Rachel e os outros aguardavam.
- Tudo bem - disse ele. - Lá dentro está escuro como um túmulo.
- Muito divertido - resmungou Monk.
Gray abriu a porta.
Rachel preparou-se para uma explosão, um tiroteio ou algum tipo de ataque, mas encontrou apenas silêncio.
Quando todos entraram, Gray virou-se para o grupo.
- Eu acho que o monsenhor estava certo. Pela primeira vez, nós levamos vantagem sobre a Corte do Dragão. Já era hora de prepararmos uma emboscada.
- Qual é o plano? - perguntou Monk.
- Nada de riscos. Nós preparamos a armadilha e caímos fora daqui - Gray apontou para a porta. - Monk, fique de guarda junto à porta. É a única entrada ou saída. Proteja a nossa saída e a nossa retaguarda.
- Isso não é problema.
Gray passou para Kat algo parecido com duas pequenas embalagens de ovos.
- Granadas sônicas e bombas luminosas. Espero que eles cheguem no escuro como nós, com as orelhas em pé. Vejamos se conseguimos cegá-los e ensurdecê-los. Distribua estas bombas enquanto vamos até o túmulo. Cobertura total.
Kat fez um aceno de cabeça positivo.
Ele virou-se em seguida para Rachel.
- Me mostre o túmulo de São Pedro.
Ela entrou na necrópole escura, caminhando ao longo de uma antiga rua romana. Criptas e mausoléus de famílias, cada um com seis metros quadrados, ladeavam o caminho. As paredes eram revestidas de tijolos ultrafinos, um material de construção comum no século I. Afrescos e mosaicos decoravam muitos dos túmulos, mas esses detalhes eram obscuros sob a visão noturna. Restavam algumas estátuas, que pareciam mover-se na iluminação lúgubre. Os mortos voltando à vida.
Rachel mapeou o caminho até o centro da necróple. Uma passagem de metal conduzia a uma plataforma e a uma janela retangular. Ela apontou através dela.
- O túmulo de São Pedro.



21:40h

Gray apontou sua pistola e iluminou o túmulo com sua lanterna de luz ultravioleta.
Três metros além da janela, uma parede de tijolos erguia-se ao lado de um cubo de mármore maciço. Havia uma abertura perto da base da parede. Abaixando-se, ele focalizou a luz da lanterna. Dentro da abertura, pôde ver uma caixa transparente com um montículo de material parecido com argila.
Ossos.
De São Pedro.
Gray sentiu os pêlos dos braços arrepiarem-se um pouco, um tremor de espanto e medo. Ele se sentia como um arqueólogo, sondando uma caverna escura, em algum continente perdido, e não a alguns pavimentos abaixo do coração da Igreja Católica Romana. Por outro lado, talvez ali fosse o verdadeiro coração dela.
- Comandante? - perguntou Kat. Ela juntou-se a eles de novo, depois de ter ficado um pouco para trás para plantar as bombas.
Gray empertigou-se.
- Podemos chegar mais perto? - ele indagou a Rachel.
Ela pegou a segunda chave que seu tio lhe dera e destrancou um portão que levava ao santuário.
- Nós temos de ser rápidos - disse Gray, sentindo que o tempo estava se esgotando.
Por outro lado, talvez não. Talvez a Corte do Dragão só atacasse depois da meia-noite, como em Colônia. Mas ele não queria correr riscos.
Ele tirou da mochila o equipamento que estivera calibrando a caminho. Perscrutou o espaço e encontrou um ponto imperceptível. Fixou a minúscula câmera de vídeo numa fenda de um mausoléu próximo e posicionou-a em direção ao túmulo de São Pedro. Pegou uma segunda câmera e virou-a na direção oposta, certificando-se de que estava voltada para fora da janela, a fim de registrar a aproximação.
- O que você está fazendo? - perguntou Rachel.
Ao terminar de instalar as cameras, Gray acenou para que eles se afastassem.
- Eu não quero ativar a armadilha cedo demais. Eu quero que eles se sintam à vontade aqui, que montem o seu dispositivo. Então nós atacaremos. Eu não quero que eles tenham espaço para detonar os ossos dos Reis Magos ou o dispositivo deles.
Assim que eles saíram, Rachel tornou a trancar o portão.
- Monk - disse Gray pelo rádio -, como estão as coisas por aí?
- Tudo tranqüilo.
- Ótimo.
Gray dirigiu-se a um mausoléu próximo, caindo aos pedaços, um mausoléu aberto na frente. Já fazia muito tempo que os ossos haviam sido removidos. Ele tirou o laptop da mochila e escondeu-o dentro do mausoléu, conectando um transmissor intensificador portátil à entrada USB7 dele. Uma luz verde acendeu-se, indicando que a conexão fora bem-sucedida. Ele moveu de leve uma chave, e o aparelho escureceu. Nenhuma luz brilhava no computador ou no transmissor. Ótimo.
Gray empertigou-se e explicou enquanto eles se dirigiam à saída.
- As câmeras de vídeo não são bastante potentes para transmitir muito longe. O laptop vai captar o sinal e intensificá-lo. O alcance dele será suficiente para chegar à superfície. Nós vamos monitorá-lo noutro laptop. Uma vez que a Corte esteja aqui embaixo, encurralada, nós os atordoamos com as bombas sônicas e luminosas, depois corremos para baixo com uma guarnição inteira de soldados da Guarda Suíça.
Kat acenou positivamente com a cabeça e olhou para ele.
- Se nós tivéssemos sido cautelosos demais nas catacumbas, demorado demais, não teríamos tido esta oportunidade.
Gray fez que sim com a cabeça.
Finalmente a sorte estava do lado deles. Um pouco de ousadia tinha...
As explosões interromperam seu pensamento. Não eram altas, antes mais abafadas, soando como bombas de profundidade explodindo embaixo d'água. Ecoaram por toda a necrópole, acompanhadas por um ruído mais alto de pedra espatifando-se.
Gray agachou-se enquanto pequenos buracos vazavam o teto acima. Pedra e terra explodiram para baixo, chocando-se contra os mausoléus e as criptas abaixo. Antes mesmo que os detritos tivessem assentado, cordas serpentearam através das aberturas fumegantes, seguidas de um homem atrás do outro.
Uma equipe de assalto completa.
Eles entraram na necrópole e desapareceram.
Gray imediatamente reconheceu o que estava acontecendo. A Corte do Dragão estava entrando pelo piso acima, pelas Grutas Sagradas. O acesso àquele nível era pelo interior da basílica. A Corte do Dragão devia ter vindo para o serviço memorial - depois, por intermédio de seu contato ali, os homens esgueiraram-se até as criptas dos papas nas Grutas Sagradas. O equipamento deles provavelmente fora levado clandestinamente para lá no período de alguns dias e ocultado entre os túmulos sombrios das Grutas. Então, aproveitando o serviço memorial como camuflagem, eles recuperaram seus instrumentos, abriram buracos com bombas especialmente preparadas e com toda a calma abriram caminho até ali.
A equipe de assalto escaparia da mesma forma, desaparecendo de novo em meio aos milhares de pessoas ali reunidas.
Isso não devia acontecer.
- Kat - sussurrou Gray -, leve Rachel até o Monk. Não se envolva em combate. Volte lá para cima e encontre a Guarda Suíça.
Kat segurou no cotovelo de Rachel.
- E você? - perguntou ela.
Ele já estava em movimento, voltando para o túmulo de São Pedro.
- Eu vou ficar aqui e monitorar com o laptop. Retardá-los se necessário. Depois vou sinalizar para vocês pelo rádio assim que eu iniciar a emboscada.
Talvez nem tudo estivesse perdido ainda.
Monk comunicou-se pelo rádio. Mesmo subvocalizando, suas palavras eram tênues.
- Nada se pode fazer aqui. Eles abriram um buraco com explosivos bem acima da saída. Quase racharam meu crânio com um fragmento de pedra. Os sacanas estão fechando a maldita porta com rebites.
Gray ouviu os estampidos de uma pistola de ar comprimido, semelhantes ao matraquear de uma metralhadora, ecoando na parte de trás da necrópole.
- Não tem ninguém entrando ou saindo por aqui - Monk encerrou.
- Kat?
- Na escuta, comandante.
- Abaixem-se todos - ordenou ele. - Esperem o meu sinal.
Gray agachou-se e correu pela rua do cemitério abaixo.
Eles estavam entregues à própria sorte.



21:44h

Vigor entrou na Basílica de São Pedro pela porta da sacristia, flanqueada por dois soldados da Guarda Suíça. Ele mostrara sua identificação três vezes para obter acesso. Mas pelo menos a notícia estava filtrando-se lenta-mente através dos exames e controles minuciosos. Talvez ele não fora convincente o bastante quando telefonou vinte minutos atrás, dizendo de forma vaga que não sabia ao certo quando a Corte do Dragão atacaria o túmulo.
Mas agora as coisas estavam seguindo na direção certa.
Vigor passou pelo monumento a Pio VII e entrou na nave quase no meio da igreja. A basílica tinha a forma de uma cruz gigantesca, abrangendo 25.000m2, tão grande que dois times de futebol poderiam disputar uma partida só nos limites da nave.
E agora ela estava cheia. Cada banco estava lotado, da nave até o transepto. O espaço brilhava intensamente com milhares de velas e a iluminação de oitocentos lustres. O Coro Pontifício já cantava pelo meio o Exaudi Deus, adequado para um memorial, mas amplificado e ecoando tão alto quanto qualquer concerto de rock.
Vigor apressou-se, mas forçou-se a não correr. O pânico seria letal. Havia apenas um número limitado de saídas. Ele fez um aceno para que os dois soldados da Guarda Suíça esquadrinhassem o espaço à direita e à esquerda e alertassem seus companheiros de armas. Vigor tinha primeiro de tirar o papa dali e alertar a comitiva clerical que presidia a cerimônia para que lentamente evacuasse os paroquianos.
Ao entrar na nave, ele teve uma visão nítida do altar papal.
No outro lado do altar, o cardeal Spera estava sentado com o papa. Os dois haviam tomado assento sob o baldaquim de bronze de Bernini, um dossel de bronze dourado que cobria o altar central. Ele tinha trinta metros de altura e era sustentado por quatro maciças colunas em espiral, decoradas com ramos de oliveira e de loureiro de ouro dourado. O dossel era encimado por uma esfera de ouro arrematada por uma cruz.
Vigor avançava sorrateiramente. Ele não dispunha de tempo para vestir roupas apropriadas e ainda por cima estava malvestido. Alguns paroquianos ricos olharam de relance para ele, franzindo o cenho, mas depois notaram seu colarinho romano. Todavia, seus olhares eram de desdém. Um pároco pobre, devem ter pensado, pasmado diante do espetáculo.
Chegando à frente, virou-se para a esquerda. Daria a volta atrás do altar, onde poderia falar com o cardeal Spera em particular.
Quando passava pela estátua de São Longino, uma mão estendeu-se de um nicho encoberto pelas sombras. Ele voltou os olhos quando agarraram seu cotovelo. Tratava-se de um homem magricela da idade dele, de cabelos grisalhos, alguém que ele conhecia e respeitava, o Preffetto Alberto, o prefeito-chefe dos Arquivos.
- Vigor? - disse o prefeito. - Eu soube...
Um refrão especialmente alto do coro fez suas palavras desvanecer-se.
Vigor inclinou-se um pouco, entrando no nicho que abrigava a entrada. Ela conduzia às Grutas Sagradas.
- Sinto muito, Alberto. O quê...?
O aperto aumentou. Um pistola com silenciador foi pressionada com força contra as costelas dele.
- Nem mais uma palavra, Vigor - advertiu Alberto.



21:52h

Escondido na cripta, Gray deitou-se de bruços, fora da vista da abertura. Sua pistola estava ao lado do laptop aberto, cuja tela ele havia escurecido e irradiava luz ultravioleta. Duas imagens dividiam a tela - uma proveniente da câmera voltada para o túmulo de São Pedro e a outra proveniente da câmera voltada para a necrópole principal.
A equipe de assalto dividiu-se em dois grupos. Enquanto um se pôs a patrulhar a necrópole na escuridão, o outro havia começado a usar as lanternas para apressar seu trabalho junto ao túmulo. Eles trabalhavam com rapidez e eficiência, cada homem sabendo o que fazer. Já haviam aberto o portão que bloqueava o acesso ao túmulo de São Pedro. Dois homens flanqueavam a famosa cripta, apoiados num dos joelhos. Eles estavam fixando duas grandes placas em cada lado.
O terceiro homem era imediatamente reconhecível pelo tamanho.
Raoul.
Ele carregava uma maleta de aço. Abriu-a e removeu um cilindro de plástico transparente, cheio de um pó cinzento familiar. O amálgama. Eles deviam ter reduzido o osso a pó. Raoul introduziu o cilindro pela abertura na parte inferior do túmulo de São Pedro.
Fazendo a ligação da bateria...
Com tudo no lugar, Gray não podia esperar mais. O dispositivo estava montado. Era a única oportunidade de eles surpreenderem a Corte do Dragão, talvez de expulsá-los dali, deixando seu equipamento para trás.
- Prontos para entrar em blecaute - sussurrou Gray. Sua mão moveu-se para o transmissor que controlava as bombas sônicas e luminosas. - Ponham fora de combate tantos quantos vocês puderem enquanto eles estiverem atordoados, mas não se arrisquem desnecessariamente. Continuem em movimento e permaneçam fora de vista.
Ele recebeu respostas afirmativas. Monk estava escondido perto da porta.
Kat e Rachel haviam encontrado outra cripta, onde se esconderam. A equipe de assalto ainda não percebera a presença deles.
Gray observou os três homens saírem da área do túmulo, estendendo fios que conduziam ao dispositivo. Raoul fechou o portão, protegendo-se de qualquer perigo. No alto da plataforma de metal, ele pressionou uma das mãos contra o ouvido, claramente autorizando os homens a continuar.
- Vamos contar até cinco para o blecaute - sussurrou Gray. - Tampões de ouvido no lugar, óculos de proteção bem ajustados. Lá vamos nós.
Ele contou mentalmente. Cinco, quatro, três... Cego, pousou uma das mãos na pistola e a outra no laptop. Dois, um, zero.
Ele apertou o botão do laptop.
Embora ensurdecido pelos tampões de ouvido, ele pôde sentir o ruído surdo e profundo das bombas sônicas por trás do esterno. Contou até três para a luz intensa e ofuscante das granadas luminosas expirar. Tirou os óculos de proteção e em seguida os tampões de ouvido. Tiros ecoaram pela necrópole. Gray rolou para a entrada da cripta.
Bem em frente, a plataforma de metal estava vazia.
Ninguém à vista.
Raoul e seus dois asseclas haviam ido embora.
Para onde?
O som do tiroteio intensificou-se. Um combate armado estava sendo travado na necrópole escura. Gray lembrou-se de que Raoul havia recebido algum comunicado pouco antes de ele ativar as bombas sônicas e luminosas. Teria sido um aviso? De quem?
Gray esquadrinhou a área próxima. O mundo voltara a exibir nuanças de verde. Ele subiu os degraus da plataforma. Tinha de correr o risco de pegar o dispositivo e o amálgama.
Ao chegar ao topo, permaneceu abaixado, avançando devagar na ponta dos pés, apoiando-se com uma das mãos na plataforma, a pistola oscilando de um lado para outro a fim de cobrir todas as direções.
A luz de repente irradiou-se pela janela em frente, revelando Raoul de pé no outro lado, a alguns passos do túmulo. Após o ataque, o homem devia ter escapado pelo portão. Ele olhou Gray nos olhos e ergueu os braços. Em suas mãos estava o dispositivo de controle para acionar o amálgama.
Tarde demais.
Inutilmente, Gray apontou a arma e atirou.
Mas o vidro à prova de balas repeliu o projétil.
Raoul sorriu e girou a chave do dispositivo de controle.





CAPÍTULO 10

Invasores de túmulos



25 de julho, 21:54h
Cidade do Vaticano

O primeiro tremor atirou Vigor no ar. Ou talvez fosse o chão que tivesse desabado sob seus pés. De qualquer modo, ele foi lançado no ar.
Gritos ergueram-se por toda a basílica.
Enquanto caía, ele aproveitou a oportunidade para dar uma cotovelada bem no nariz do traidor Alberto, que cambaleara para trás. Em seguida, ele girou e desferiu um sólido golpe no pomo-de-adão de Alberto.
O homem caiu pesadamente, e a pistola desprendeu-se de seus dedos. Vigor pegou-a exatamente quando o próximo tremor se seguiu ao primeiro, fazendo-o cair de joelhos. Àquela altura, gritos estridentes irrompiam de toda a parte. Mas, por baixo de tudo aquilo, um som profundo e oco vibrou, como se um sino tão grande quanto a basílica tivesse sido tocado e todos eles estivessem aprisionados dentro dele.
Vigor lembrou-se da descrição feita pela testemunha que sobrevivera ao massacre em Colônia. Uma pressão como se as paredes se comprimissem dentro de si mesmas. Era o que estava acontecendo ali. Todos os barulhos - gritos, súplicas, orações - eram perfeitamente discerníveis, mas abafados não obstante.
Enquanto ele se erguia, o chão continuou a tremer. A superfície de mármore polido dava a impressão de ondular, parecendo aquosa. Vigor enfiou a pistola sob o seu cinto.
Ele virou-se para ir em auxílio do papa e do cardeal Spera.
À medida que avançava, sentiu antes de ver. Um súbito aumento de pressão, ensurdecedor, esmagador. Em seguida, abrandou. Da base das quatro colunas de bronze do baldaquim de Bernini, cascatas faiscantes de energia elétrica subiram em espiral, crepitando, produzindo estalidos sucessivos.
Elas precipitaram pelas colunas acima e pelo teto do dossel e encontraram-se na esfera de ouro. Ouviu-se o ruído de um trovão. O chão tornou a tremer provocando fissuras no piso de mármore. Da esfera do dossel, um relâmpago de brilho intenso irrompeu em ziguezague. Ele explodiu para cima, atingindo o lado inferior da cúpula de Michelangelo e dançando através dela. O chão tornou a tremer, com mais violência.
Rachaduras espalharam-se pela cúpula e placas de gesso despencaram em grande quantidade.
Tudo estava vindo abaixo.



21:57h

Monk levantou-se rapidamente do chão. O sangue escorreu para dentro de um olho. Ele havia caído com o rosto de encontro à quina de uma cripta, quebrando os óculos de proteção, que penetraram cortando um supercílio.
Cego no momento, ele agachou-se e sacou a arma. A mira noturna de sua espingarda de combate o ajudaria a enxergar.
Enquanto ele esquadrinhava, o chão continuava a vibrar sob as pontas de seus dedos. O tiroteio havia cessado por completo após o primeiro tremor.
Monk estendeu a mão para a frente, vasculhando o chão perto da cripta.
Sua espingarda não poderia ter ido parar longe.
Ele sentiu algo duro em contato com seus dedos.
Graças a Deus.
Estendeu a mão para a frente e percebeu seu erro. Não era a extremidade de sua arma, e sim a biqueira de uma bota.
Atrás de si, ele sentiu o cano quente de um rifle pressionar a base de seu crânio.
Merda.



21:58h

Gray ouviu o ruído do disparo de um rifle através da necrópole. Era o primeiro tiro desde que os tremores haviam começado. Ele fora lançado da plataforma de metal e caíra perto do mausoléu onde escondera seu laptop. Ele havia se enroscado como uma bola, levando um golpe no ombro, mantendo os óculos de proteção e a pistola no lugar. Mas perdera o rádio.
Estilhaços de vidro espalhavam-se pela rua de pedra, arrancados da janela da plataforma pelo primeiro tremor violento.
Ele esquadrinhou o espaço ao redor. Acima dos poucos degraus da plataforma de metal, o fluxo de luz ainda se irradiava da área do túmulo. Ele tinha de saber o que estava acontecendo ali dentro. Mas não podia assaltar o portão sozinho. Pelo menos, não sem conhecer a configuração do terreno.
Assegurando-se de que ninguém o observava, ele tornou a entrar no mausoléu. As câmeras que havia instalado ainda deviam estar transmitindo.
Deitado de bruços, um braço protegendo a entrada com a pistola, ele ocupou-se com o laptop. A imagem da tela dividida resplandeceu. A câmera voltada para a necrópole principal nada revelava a não ser escuridão. Não se ouviram outros tiros. A necrópole voltara a ficar em profundo silêncio.
O que acontecera aos outros?
Sem respostas, ele se concentrou no lado oposto da tela. Nada parecia ter mudado. Gray avistou dois homens com rifles apontados para o portão, guardas de Raoul. Mas nem sinal do homenzarrão. O túmulo parecia inalterado. Mas a imagem, a imagem inteira na tela, pulsou ligeiramente, em sintonia com a vibração no piso de pedra. Era como se as câmeras estivessem captando alguma emanação produzida pelo dispositivo que explodira, um campo de energia irradiando-se.
Mas onde estava Raoul?
Gray estendeu a mão e retrocedeu o gravador digital por um minuto, parando no ponto em que Raoul ficou de pé perto do túmulo e girou a chave de controle de seu dispositivo.
Na tela, Raoul virou-se para ver o resultado. Luzes verdes cintilavam nas duas placas fixadas em cada lado do túmulo. O movimento atraiu sua atenção. Gray usou uma chave articulada para dar um zoom na pequena abertura do túmulo. O cilindro de amálgama em pó vibrou e em seguida ergueu-se do chão.
Levitando.
Gray começou a entender. Ele lembrou-se da descrição de Kat de como os pós no estado m demonstravam uma capacidade de levitar num forte campo magnético, agindo como supercondutores. Lembrou-se da descoberta por Monk de uma cruz magnetizada em Colônia. As placas com as luzes verdes deviam ser eletroímãs. O dispositivo da Corte aparentemente nada mais fazia do que criar um forte campo eletromagnético ao redor do amálgama, ativando o supercondutor no estado m.
Ele agora entendia a energia que pulsava para fora.
Ele sabia o que havia matado os paroquianos.
Oh! Deus...
Subitamente a imagem sacolejou com o primeiro tremor e parou por completo por um segundo, depois voltou ao normal, a perspectiva ligeiramente oblíqua agora que a câmera se deslocara. Na tela, Raoul afastava-se do túmulo de costas.
Gray não entendeu por quê. Parecia que nada estava acontecendo.
Ele então a avistou, meio oculta no clarão das lanternas. Na base do túmulo, uma parte do piso de pedra inclinou-se lentamente para baixo, formando uma rampa estreita que conduzia para baixo do túmulo. De baixo, uma luz de cobalto tremulava. Raoul ficou na frente da câmera, bloqueando a vista, e desceu a rampa, deixando apenas os dois guardas.
Foi ali que ele desapareceu.
Gray fez o vídeo avançar rapidamente de volta ao presente. Ele agora observava alguns fortes lampejos vindos de baixo, explosões ofuscantes de luz branca. Flashes de câmeras. Raoul estava gravando o que quer que encontrara lá embaixo.
Alguns segundos mais tarde, Raoul subiu a rampa.
O sacana exibia uma careta de satisfação.
Ele vencera.



21:59h

Deitada de bruços no teto do mausoléu, Kat conseguira disparar um tiro, abatendo o pistoleiro que segurava um rifle apontado para a cabeça de Monk. Mas outro tremor a fez perder o tiro seguinte. O adversário restante não hesitou. Pela direção em que o corpo de seu companheiro caíra, ele deve ter adivinhado onde ela se escondia.
Ele abaixou-se, golpeou Monk com o punho de metal de uma faca de caça e em seguida puxou-o para cima, usando-o como escudo. Ele pressionou a lâmina contra o pescoço de Monk.
- Vamos, saia! - gritou o homem num inglês com forte sotaque, que parecia germânico. - Ou eu vou arrancar a cabeça deste cara.
Kat fechou os olhos. Era Cabul de novo por toda a parte. Ela e o capitão Marshall haviam entrado para salvar dois soldados capturados, colegas de equipe. Haviam ameaçado decapitá-los. Mas eles não tiveram escolha. Embora a probabilidade estivesse contra eles na proporção de três para um, eles fizeram um assalto, entrando em silêncio, com facas e baionetas. Mas ela não percebera um guarda, escondido num nicho. O estampido de um rifle, e Marshall tombou. Ela despachara o último guarda arremessando um punhal, mas era tarde demais para o capitão. Ela segurou seu corpo enquanto ele expirava, açoitado pela dor, os olhos fixos nela, suplicando, sabendo, não acreditando... e então o nada. Os olhos ficaram vítreos. Um homem cheio de vida, um homem terno, que se fora como fumaça.
- Saia agora! - gritou o homem através da necrópole.
- Kat? - Rachel subvocalizou para ela, tocando em seu cotovelo. A tenente dos Carabinieri estava deitada de bruços ao lado dela no teto.
- Fique escondida - disse Kat. - Tente chegar a uma das cordas que conduzem para fora daqui.
Aquele fora o plano original deles, pular de um teto para outro, chegar a uma das cordas usadas no assalto, que ainda pendiam do nível acima, dar o alarme e reunir reforços. Esse plano não podia fracassar.
Rachel também sabia disso.
Kat tinha sua própria tarefa. Ela rolou do teto do mausoléu e caiu agilmente em pé. Deslizou por duas fileiras, para ocultar sua posição anterior, deixando algum espaço para Rachel escapar, então andou até ficar exposta, a dez metros do homem que segurava Monk. Ergueu as mãos e jogou a pistola para o lado. Enlaçou os dedos e os pôs no alto da cabeça.
- Eu me rendo - disse ela friamente.
Atordoado e cego, Monk debateu-se, mas o homem que o segurava era treinado o bastante para mantê-lo subjugado, de joelhos, a ponta da faca e espetando o pescoço dele. Kat estudou os olhos de Monk enquanto avançava.
Três passos.
O combatente relaxou. Kat notou que a ponta de sua faca se deslocara.
Muito bom.
Ela mergulhou para a frente, puxando o punhal da bainha em seu pulso e usando seu próprio impulso para arremessar a lâmina. Esta voou e atingiu o olho do homem, que caiu para trás, levando Monk consigo.
Kat girou, puxando uma lâmina de sua bota. Ela arremessou-a na direção em que Monk havia indicado, acertando o que não passava da oscilação de uma sombra. Um terceiro combatente. Seguiu-se um grito breve. Um homem caiu das sombras, o pescoço trespassado pela lâmina.
Monk lutou para ficar em pé, os dedos escarafunchando e encontrando a faca do outro. Mas ele havia perdido os óculos de proteção, e Kat não tinha um par de reserva. Ela teria de guiá-lo.
Ela ajudou-o a levantar-se e pôs a mão dele em seu ombro.
- Fique comigo - sussurrou ela.
Ela virou-se quando uma lanterna brilhou à sua frente. Amplificado pelo dispositivo de visão noturna, o brilho súbito queimou na parte posterior de sua cabeça, ofuscante, doloroso.
Um quarto combatente.
Alguém que ela não notara.
Outra vez.



22:02h

Gray havia percebido o jorro de luz no fundo da necrópole na tela de seu computador. Não podia ser coisa boa. E revelou-se que não era. Num lado da imagem na tela dividida, ele viu Raoul pressionar o rádio contra o ouvido, seu sorriso alargando-se. No outro lado, ele viu Kat e Monk marchando sob a mira de armas, os braços atados atrás das costas com fios de plástico amarelos.
Eles foram empurrados degraus acima até o alto da plataforma.
Raoul permaneceu junto ao túmulo. O chão continuava a tremer. Um de seus guarda-costas estava de pé ao seu lado; o outro havia descido a rampa.
Raoul ergueu a voz.
- Comandante Pierce! Tenente Verona! Mostrem-se agora ou estes dois morrerão!
Gray continuou onde estava. Ele não tinha força para dominar a situação. O resgate era impossível. E, se cedesse às exigências, ele estaria simplesmente entregando a própria vida. Raoul os mataria todos. Ele fechou os olhos, sabendo que estava condenando seus colegas de equipe.
Uma nova voz o fez abrir os olhos.
- Estou indo! - Rachel apareceu na segunda câmera, com as mãos para cima.
Gray observou Kat sacudir a cabeça. Ela também reconheceu a tolice do ato da tenente.
Dois homens armados pegaram Rachel e levaram-na para junto dos outros.
Raoul avançou, apontou uma pistola enorme para o ombro de Rachel e berrou ao ouvido dela:
- Esta é uma horse pistol, 8 comandante Pierce! Calibre 56! Ela vai arrancar o braço dela! Mostre-se ou eu começarei a remover membros! Vou contar até cinco!
Gray viu o brilho de terror nos olhos de Rachel.
Será que ele poderia ver seus amigos serem brutalmente despedaçados? E, se o fizesse, o que ganharia? Enquanto ele se escondesse, Raoul e seus homens com certeza removeriam ou destruiriam qualquer pista que tivesse sido ocultada ali. As mortes dos outros teriam sido em vão.
- Cinco...
Ele olhou fixamente para o laptop, para Rachel...
Não havia escolha.
Reprimindo um gemido, ele sacudiu sua mochila e pegou um objeto que estava num bolso interno, escamoteando-o.
- Quatro...
Gray escureceu o laptop e fechou-o. Se não sobrevivesse, teria de confiar em que o computador serviria de testemunha dos eventos ali embaixo.
- Três...
Gray rastejou para fora do mausoléu, mas permaneceu escondido. Deu a volta para ocultar sua posição.
- Dois...
Ele esgueirou-se para a rua principal.
- Um...
Ele enlaçou as mãos no alto da cabeça e ficou à vista.
- Estou aqui. Não atire!



22:04h

Rachel observou Gray marchar até eles sob a mira de armas.
Pelo semblante duro de Gray, ela reconheceu seu erro. Ela supusera que sua rendição daria a ele tempo para agir, para fazer alguma coisa a fim de salvá-los, ou pelo menos a si mesmo. Ela não queria ser a única a ser deixada em paz na necrópole, a não interferir e ver os outros serem mortos.
E, embora Kat tivesse se entregado por causa de Monk, a mulher havia concebido um plano de resgate mal alinhavado, conquanto pudesse ter dado certo. Rachel, por outro lado, agira apenas com base na fé, depositando toda a sua confiança em Gray.
O líder da Corte do Dragão empurrou-a para o lado, indo ao encontro de Gray enquanto ele subia para a plataforma. Raoul ergueu a enorme pistola e apontou-a para o peito do comandante.
- Você tem me causado muitos problemas. - Ele ergueu a arma. - E nenhuma quantidade de colete de proteção líquido vai deter esta bala.
Gray o ignorou.
Seus olhos pousaram em Monk, em Kat... e depois em Rachel.
Ele afastou os dedos acima da cabeça, revelando um ovo preto fosco, e disse uma palavra:
- Blecaute.



22:05h

Gray contava com toda a atenção de Raoul e seus homens quando a granada luminosa explodiu acima de sua cabeça. Com os olhos fortemente contraídos, o clarão ofuscante ainda queimava através de suas pálpebras, uma explosão rubra.
Cego, ele abaixou-se e rolou para o lado.
Ele ouviu a detonação atordoante da pistola de Raoul.
Gray estendeu a mão para a sua bota e puxou sua Glock calibre 40.
Quando a luz ofuscante passou, ele abriu os olhos.
Um dos homens de Raoul jazia ao pé dos degraus com um buraco do tamanho de um punho no peito, causado pela bala destinada a Gray.
Raoul deu um rugido e mergulhou da plataforma, girando no ar, atirando às cegas contra a plataforma.
- Abaixem-se! - gritou Gray.
Balas de grosso calibre abriram buracos no aço.
Os outros ajoelharam-se. As mãos de Monk e de Kat ainda estavam atadas às costas.
Gray rolou e atingiu no tornozelo um pistoleiro atordoado, derrubando-o da plataforma. Abateu outro ao pé dos degraus.
Procurou Raoul. Para um homenzarrão, ele movia-se rápido. Raoul caíra fora de vista, mas ainda disparava contra eles de baixo, abrindo buracos no assoalho reticulado da plataforma.
Eles eram um alvo fácil.
Gray não tinha como calcular por quanto tempo os efeitos da granada luminosa durariam. Eles tinham de mexer-se.
- Voltem! - murmurou ele para os outros. - Pelo portão!
Gray disparou uma rajada de balas, cobrindo a retirada deles, e então seguiu atrás.
Raoul havia parado de atirar no momento, a fim de recarregar. Mas sem dúvida ele viria novamente no encalço deles com fúria mortal.
Ouviram-se gritos vindos mais do interior da necrópole. Outros pistoleiros. Vinham correndo em auxílio de seus camaradas em perigo.
E agora? Ele só tinha um pente de munição.
Um grito ergueu-se atrás dele.
Gray olhou para trás e viu Rachel cambalear para trás. Ela devia ter ficado meio atordoada pela bomba luminosa. Na escuridão, não viu a rampa em frente ao túmulo, deu alguns passos atrás, em direção a ela, e segurou no cotovelo de Kat, tentando deter sua queda.
Mas Kat também fora pega desprevenida.
Ambas tropeçaram na rampa e rolaram para baixo.
Os olhos de Monk encontraram os de Gray.
- Merda.
- Para baixo - disse Gray. Era o único abrigo. E, além disso, eles tinham de proteger qualquer pista que estivesse lá embaixo.
Monk foi na frente, tropeçando com os braços atados às costas.
Gray seguiu-o quando uma nova descarga começou. Pedaços de rocha eram arrancados da superfície do túmulo. Raoul havia recarregado. Ele tencionava mantê-los a distância.
Girando ao redor, os olhos de Gray pousaram na luz verde que se irradiava de uma das placas fixadas ao túmulo. Ainda ativada. Ele pensou rapidamente e tomou uma decisão. Apontou a pistola e disparou.
A bala partiu o emaranhado de fios que iam até a placa. A luz verde extinguiu-se.
Gray desceu correndo a rampa de pedra, notando a imediata cessação do tremor no chão. Ambos os ouvidos estalaram com um súbito alívio da pressão. O dispositivo havia entrado em curto-circuito.
Imediatamente um rangido alto soou sob os pés dele.
Gray mergulhou para a frente e caiu numa pequena caverna na base da rampa, uma cavidade natural, de origem vulcânica, comum nas colinas de Roma.
Atrás dele, a rampa moveu-se para cima, fechando-se.
Gray ficou em pé, mantendo a arma apontada. Como ele havia esperado, a ativação do dispositivo havia aberto o túmulo, e de igual modo sua desativação estava fechando-o. Do lado de fora, o fogo cerrado de Raoul continuava, despedaçando a rocha.
Tarde demais, pensou Gray com satisfação.
Com um último rangido de pedra sobre pedra, a rampa lacrou-se acima deles.
A escuridão instalou-se na caverna - mas não era total.
Gray virou-se.
Os outros haviam-se reunido em torno de uma laje de rocha negra metálica que estava no chão. Ela era iluminada por uma minúscula pira de chama azul em sua superfície, subindo como uma pequena coluna de fogo elétrico.
Gray aproximou-se. Mal havia espaço para que os quatro a circundassem.
- Hematita - disse Kat, identificando a rocha devido aos seus conhecimentos de geologia. Ela olhou da rampa lacrada para a laje. - Um óxido de ferro.
Ela abaixou-se e examinou as linhas prateadas gravadas em sua superfície, rios minúsculos contra um fundo negro, iluminados pelas chamas azuis.









Enquanto Gray observava, o fogo expirou lentamente, reduzindo-se a uma chama bruxuleante até extinguir-se.
Monk chamou a atenção deles para uma coisa mais imediata. Outro objeto brilhante.
- Venham aqui - disse ele.
Gray juntou-se a ele. Num canto da caverna escura estava um cilindro prateado familiar, com a forma de um haltere. Uma granada incendiaria. Um timer fazia a contagem regressiva no escuro.
04:28.
04:27.
Gray lembrou-se de que um dos guarda-costas de Raoul havia entrado ali depois de o líder deles ter acabado de tirar fotografias. Ele havia plantado a bomba.
- Parece que eles pretendiam destruir esta pista - disse Monk. Ele abaixou-se, apoiando-se num dos joelhos, e examinou o dispositivo. - Puta merda, esta coisa é uma armadilha explosiva.
Gray olhou para a rampa lacrada. Talvez o fogo cerrado de Raoul um momento atrás não houvesse tido a intenção de fazê-los recuar, e sim de encurralá-los.
Ele voltou a olhar para a bomba.
Com a estrela flamejante na laje de hematita extinta, a única luz na caverna vinha do mostrador de cristal líquido do timer da granada incendiaria.
04:04.
04:03.
04:02.



22:06h

Vigor sentira o súbito alívio. O fluxo de fogo elétrico que estava despedaçando o gesso da cúpula dispersou-se em segundos. Sua energia dissipou-se como aranhas cerúleas fantasmagóricas.
Todavia, o caos reinava dentro da basílica. Poucos notaram o fim dos fogos de artifício. Metade dos paroquianos havia conseguido fugir para um local seguro, mas a aglomeração nas entradas havia retardado a evacuação de mais pessoas. A Guarda Suíça e a Polícia do Vaticano estavam fazendo o melhor possível para ajudar.
Algumas pessoas estavam escondidas embaixo dos bancos. Dezenas de outros paroquianos haviam sido atingidos pelo gesso que caía e estavam sentados com dedos ensangüentados pressionados contra ferimentos no couro cabeludo. Eles recebiam ajuda e consolo de um punhado de indivíduos corajosos, verdadeiros cristãos.
A Guarda Suíça tinha vindo resgatar o papa. Mas ele recusara-se a abandonar a igreja, agindo como o capitão daquele navio que ia a pique. O cardeal Spera permaneceu ao lado dele. Eles haviam-se retirado de sob o baldaquim flamejante e se abrigado na Capela Clementina, ao lado.
Vigor foi juntar-se a eles. Ele virou-se e correu os olhos pela basílica. O caos estava diminuindo lentamente. A ordem estava sendo restaurada. Vigor olhou para a cúpula atacada. Ela havia resistido - quer pela misericórdia de Deus, quer pelo gênio de Michelangelo como arquiteto.
Quando Vigor se aproximou, o cardeal Spera rompeu as fileiras da Guarda Suíça.
- Acabou?
- Eu... eu não sei - disse Vigor com sinceridade. Ele tinha uma preocupação maior.
Os ossos haviam sido ativados. Isso era óbvio.
Mas o que aquilo significava para Rachel e os outros?
Ouviu-se uma nova voz, emitida com um comando familiar. Vigor virou-se e deparou com um homem de ombros largos e cabelos grisalhos que vinha em sua direção, usando um uniforme preto e com o quepe embaixo do braço. O general Joseph Rende, amigo da família e chefe da Delegacia Parioli. Vigor agora entendia por que a ordem estava sendo restaurada. Os Carabinieri haviam reagido com toda a energia.
- O que Sua Santidade ainda está fazendo aqui? - perguntou Rende a Vigor, fazendo um reverente aceno de cabeça para o papa, que permanecia oculto no meio de um grupo de cardeais de batina preta.
Vigor não tinha tempo para explicar. Ele segurou no cotovelo do general.
- Nós temos de chegar lá embaixo. Aos Scavi.
Rende franziu o cenho.
- Eu acabei de receber uma notícia da delegacia... de Rachel... alguma coisa a respeito de um roubo lá embaixo. Então tudo isto aconteceu.
Vigor sacudiu a cabeça. Ele queria dar vazão a seu pânico gritando, mas falou com firmeza e calma.
- Reúna o máximo de homens possível. Nós temos de ir lá embaixo. Agora!
Em consideração a ele, o general agiu imediatamente, gritando ordens claras. Homens de uniforme preto rapidamente acorreram, portando armas de assalto.
- Por aqui! - disse Vigor, encaminhando-se para a porta da sacristia. A entrada dos Scavi não era longe, logo ali atrás. No entanto, Vigor não conseguia mover-se com bastante rapidez.
Rachel...



22:07h

Gray ajoelhou-se com Monk. Ele havia libertado os pulsos de ambos os seus colegas de equipe com uma faca escondida no corpo de Kat. Monk havia tomado emprestado o dispositivo de visão noturna de Gray para ajudá-lo no exame da bomba.
- Você tem certeza de que não pode desativá-la? - perguntou Gray.
- Se eu dispusesse de mais tempo... de melhores instrumentos... de uma luz mais adequada... - Monk olhou para ele e sacudiu a cabeça.
Gray observou a contagem regressiva do timer na escuridão.
02:22.
02:21.
Gray ficou em pé e dirigiu-se a Kat e Rachel no outro lado. Kat estivera examinando o mecanismo da rampa com os olhos de engenheira. Ela notou a aproximação de Gray sem virar-se.
- O mecanismo é uma placa de pressão rudimentar - disse ela. - Uma espécie de interruptor de segurança. É preciso peso para manter a rampa fechada. Mas, se o peso é removido, a rampa se abre por meio de engrenagens e da ação da gravidade. Mas não faz sentido.
- O que você quer dizer?
- Tanto quanto posso afirmar, a placa ativadora fica sob o túmulo acima das nossas cabeças.
- O túmulo de São Pedro?
Kat fez que sim com a cabeça e levou Gray para o lado.
- Foi aqui que eles puxaram o pino estabilizador depois de baixarem a placa com o túmulo. Uma vez travada, a única maneira de abrir esta rampa é movendo o túmulo de São Pedro da placa. Mas isso não aconteceu quando a Corte do Dragão ativou seu dispositivo.
- Talvez tenha acontecido... - Gray pensou no cilindro contendo o amálgama supercondutor, em como ele havia levitado. - Kat, você se lembra da sua descrição do teste feito no Arizona - o teste com esses pós nos estado m? De que esses supercondutores, quando carregados, pesavam menos de zero?
Ela assentiu.
- Porque o pó na verdade estava fazendo levitar o recipiente que o continha.
- Eu acho que foi o que aconteceu aqui. Eu vi o cilindro com o amálgama levitar quando o dispositivo foi acionado. Era como se o campo ao redor do amálgama também afetasse o túmulo, como o recipiente da experiência. Embora de fato não estivesse erguendo a estrutura maciça, ele simplesmente fez a estrutura de pedra pesar menos.
Os olhos de Kat arregalaram-se.
- Ativando a placa de pressão!
- Exatamente. Será que isso oferece alguma pista de como reabrir a rampa?
Kat olhou fixamente para o mecanismo por um instante e sacudiu a cabeça lentamente.
- Receio que não. A menos que possamos mover o túmulo.
Gray olhou de relance para o timer.
01:44.



22:08h

Vigor desceu correndo a escada em espiral que conduzia aos Scavi. Ele não viu nenhum indício de invasão. A porta estreita surgiu à frente.
- Espere! - disse o general Rende atrás dele. - Deixe um dos meus soldados entrar primeiro. Se houver inimigos...
Vigor ignorou-o e precipitou-se para a porta. Ele chocou-se contra o ferrolho. Destrancado. Graças a Deus. Ele não possuía uma chave sobressalente.
Seu peso golpeou a porta. Mas ela resistiu.
O impacto lançou-o para trás, o ombro contundido.
Movendo o ferrolho com sacudidelas bruscas, ele tornou a empurrar.
A porta recusava-se a mover-se, como se estivesse bloqueada ou aparafusada do outro lado.
Vigor virou-se e encarou o general Rende.
- Alguma coisa está errada.



22:08h

Rachel olhou fixamente, sem piscar, quando o timer marcou menos de um minuto.
- Deve existir outra saída - murmurou ela.
Gray sacudiu a cabeça contra aquela ilusão.
No entanto, Rachel recusou-se a desistir. Ela podia não conhecer engenharia e tampouco a arte de desativar uma bomba. Mas conhecia a história de Roma.
- Nenhum osso - afirmou ela.
Gray olhou para ela como se ela houvesse cometido um erro ao passar a marcha.
- Kat - disse ela -, você mencionou que alguém teve de puxar o pino estabilizador quando o mecanismo foi ajustado pela primeira vez, fechando a rampa. Certo?
Kat acenou afirmativamente com a cabeça.
Rachel olhou para os outros.
- Então ele teria ficado preso aqui embaixo. Onde estão os ossos?
Os olhos de Kat arregalaram-se.
Gray fechou um punho.
- Outra saída.
- Eu acho que acabei de dizer isso.
Rachel puxou uma carteia de fósforos de um de seus bolsos e acendeu um palito.
- Tudo o que nós temos de fazer é achar uma abertura. Algum túnel secreto.
Monk juntou-se a eles.
- Passe os fósforos para os outros.
Em segundos, cada um deles segurava uma chama bruxuleante. Eles procuraram algum sinal de uma brisa refrescante, um sinal revelador de uma saída oculta.
Rachel falou por nervosismo.
- A Colina do Vaticano recebeu esse nome por causa dos adivinhos que costumavam reunir-se aqui. Vates é o termo em latim para "aquele que vê o futuro". Como muitos oráculos da época, eles se escondiam em cavernas como esta e anunciavam profecias.
Ela observava a chama em sua mão enquanto esquadrinhava a parede.
Nenhuma oscilação.
Rachel tentou não olhar para o timer, mas não conseguiu.
00:22.
- Talvez esteja lacrada com muita firmeza - murmurou Monk.
Rachel acendeu outro fósforo.
- É claro - continuou ela nervosamente - que a maioria dos oráculos eram charlatães. Como nas sessões espíritas da virada do século, o adivinho em geral tinha um cúmplice escondido num nicho ou túnel secreto.
- Ou embaixo da mesa - disse Gray. Ele havia se agachado junto à laje de hematita. Segurou seu fósforo bem próximo do chão e a chama bruxuleou, lançando sombras nas paredes.
- Rápido.
Não era necessário incitá-los.
00:15.
Aquele incentivo bastava.
Monk e Gray seguraram na borda da laje, com os joelhos flexionados, e suspenderam-na, as pernas retesando-se.
Kat abaixara-se, apoiando-se nas mãos, e estendera um fósforo.
- Existe um túnel estreito - disse ela com alívio.
- Entrem - ordenou Gray.
Kat acenou para que Rachel entrasse.
Rachel esgueirou-se em pé pelo buraco, descobriu um poço de pedra e entrou na abertura estreita. Não foi necessário o menor esforço, por causa do declive acentuado. Ela escorregou com o traseiro. Kat desceu em seguida, depois Monk.
Rachel esticou o pescoço, contando mentalmente. Restavam quatro segundos.
Monk escorou a laje com as costas. Gray mergulhou de cabeça por entre as pernas firmes do homem.
- Agora, Monk!
- Não precisa me dizer duas vezes.
Abaixando-se, Monk deixou o peso da laje empurrá-lo para dentro do túnel.
- Abaixe-se! Abaixe-se! - exortou Gray. - Abaixe-se o mais...
A explosão impediu-o de continuar.
Rachel, ainda meio virada, viu um jato de chamas laranja lamber em torno da borda da laje, procurando-os.
Monk praguejou.
Rachel ignorou a cautela e escorregou pelo poço, que se tornou cada vez mais íngreme. Ela logo estava deslizando com o traseiro por um túnel escuro, descontrolada.
A distância, ouviu-se um novo barulho.
O ronco de água em movimento.
Oh! não...



22:25h

Quinze minutos depois, Gray ajudou Rachel a sair do rio Tibre. Eles tremiam na margem, batendo os dentes. Ele abraçou-a apertado e esfregou os ombros e as costas dela, aquecendo-a o melhor que podia.
- Eu... eu estou bem - disse ela, porém não se afastou, até se inclinou um pouco mais para ele.
Monk e Kat saíram com dificuldade do rio, encharcados e cheios de lama.
- É melhor nós nos movimentarmos - disse ela. - Isso ajudará a compensar a hipotermia até que possamos vestir roupas secas.
Gray pôs-se a caminho, subindo o barranco. Onde estavam? O canal de escoamento havia desembocado num riacho subterrâneo. Cegos, eles não tiveram outra opção a não ser segurar com força no cinto um do outro e seguir o fluxo do canal, esperando que ele os conduzisse em segurança a algum lugar.
Ele percebeu algumas obras de cantaria à medida que prosseguiam, o braço estendido para evitar obstáculos. Possivelmente uma antiga tubulação de esgoto ou um canal de drenagem, que desaguara num labirinto de canais. Eles continuaram a seguir o fluxo descendente até chegarem, afinal, a um tanque resplandecente, sem dúvida iluminado pela luz refletida de além do túnel subterrâneo. Gray examinou o tanque e descobriu uma curta passagem de pedra que desaguava no rio Tibre.
Os outros seguiram-no, e logo todos eles estavam de novo sob as estrelas, com a lua cheia refletindo sua luz no rio. Eles haviam conseguido.
Monk espremeu a água das mangas de sua camisa, virando-se para olhar para o canal.
- Se eles tinham uma maldita porta traseira, por que toda esta história com os ossos dos Reis Magos?
Gray se fizera a mesma pergunta e tinha uma resposta.
- Ninguém poderia encontrar aquela porta traseira por acaso. Eu duvido se seria capaz de encontrar o caminho de volta através daquele labirinto. Esses alquimistas antigos esconderam a pista seguinte de tal maneira que aquele que a procurasse não só tivesse de solucionar o enigma, mas também precisasse ter um conhecimento básico do amálgama e de suas propriedades.
- Foi um teste - disse Rachel, tremendo à brisa ligeira. Ela também havia pensado naquela questão. - Uma prova de transição antes que se pudesse prosseguir.
- Eu teria preferido um teste de múltipla escolha - disse Monk acidamente.
Gray sacudiu a cabeça e subiu o barranco. Ele manteve o braço ao redor de Rachel, ajudando-a. Os tremores contínuos dela lentamente se reduziram a estremecimentos ocasionais.
Eles chegaram ao alto e encontraram-se à beira de uma rua. Havia um parque adiante. E mais longe, no alto da colina, a Basílica de São Pedro brilhava dourada contra o céu noturno. Lá em cima, sirenes soaram e luzes de emergência tremeluziam em nuanças de vermelho e azul.
- Vamos descobrir o que aconteceu - disse Gray.
- E descobrir um banho quente - resmungou Monk.
Gray não disse nada.



23:38h

Uma hora mais tarde, Rachel estava sentada envolta num cobertor quente e seco. Ela ainda usava as roupas molhadas, mas pelo menos a caminhada até ali e as discussões acaloradas com uma série de guardas teimosos haviam-na aquecido consideravelmente.
Todos eles estavam abrigados no gabinete da Secretaria de Estado da Santa Sé. A sala era decorada com afrescos e mobiliada com cadeiras de pelúcia e dois longos divas de frente um para o outro. Na sala estavam sentados o cardeal Spera, o general Rende e um tio aliviadíssimo.
O tio Vigor sentava-se ao lado de Rachel, a mão dela pousada na dele. Ele não largara a sobrinha desde que eles transpuseram o cordão de isolamento e obtiveram acesso àquele santuário.
Eles haviam repetido o relato preliminar dos acontecimentos.
- E a Corte do Dragão desapareceu? - perguntou Gray.
- Até mesmo os corpos - disse Vigor. - Nós levamos dez minutos para transpor a porta de baixo. Tudo o que encontramos foram algumas armas abandonadas. Eles devem ter saído por onde entraram... pelo teto.
Gray concordou.
- Pelo menos os ossos de São Pedro estão seguros - disse o cardeal Spera. - Os danos à basílica e à necrópole podem ser reparados. Se nós tivéssemos perdido as relíquias... - Ele sacudiu a cabeça. - Nós temos uma grande dívida para com vocês.
- E ninguém que assistia ao serviço memorial morreu - disse Rachel com igual alívio.
O general Rende segurava uma pasta.
- Cortes e contusões, lesões, alguns ossos quebrados. A multidão em polvorosa causou mais dano do que a série de tremores.
O cardeal Spera girava distraidamente os dois anéis de ouro de seu posto, um em cada mão, movendo-se para a frente e para trás, num gesto nervoso.
- E a caverna embaixo do túmulo? O que vocês encontraram?
Rachel franziu o cenho.
- Havia...
- Estava muito escuro para ver com clareza - disse Gray, interrompendo-a. Ele olhou-a nos olhos, apologético mas firme. - Havia uma grande laje com alguma escrita nela, mas eu suspeito que a explosão da bomba tenha destruído a superfície dela. Nós jamais poderemos saber o que havia lá embaixo.
Rachel entendeu a relutância dele em falar com franqueza. O prefeito-chefe dos Arquivos havia desaparecido durante a confusão, escapado junto com a Corte do Dragão. Se o Preffetto Alberto trabalhava com a Corte, quem mais poderia fazer parte da conspiração? O cardeal Spera já havia prometido investigar os aposentos de Alberto e seus documentos particulares. Talvez isso levasse a algum lugar.
Enquanto isso, discrição era importante.
Gray pigarreou.
- Se este interrogatório sobre a missão terminou, eu apreciaria a hospitalidade do Vaticano em nos oferecer uma suíte.
- Certamente - o cardeal Spera levantou-se. - Eu pedirei a alguém que os acompanhe até lá.
- Eu também gostaria de dar mais uma olhada nos Scavi. Ver se deixamos escapar alguma coisa.
O general Rende acenou afirmativamente com a cabeça.
- Eu posso enviá-lo com um dos meus soldados.
Gray virou-se para Monk e Kat.
- Eu os encontrarei nos nossos aposentos.
Seus olhos moveram-se rapidamente, abrangendo Rachel e Vigor.
Rachel concordou com um aceno de cabeça, entendendo a ordem silenciosa.
Não falem com ninguém.
Eles conversariam mais tarde em particular.
Gray dirigiu-se para fora com o general Rende.
Rachel observou-o sair, lembrando-se daqueles braços em torno dela. Ela apertou o cobertor em torno dos ombros. Não era a mesma coisa.



23:43h

Gray esquadrinhou o mausoléu onde havia escondido seu equipamento. Ele encontrou sua mochila onde a deixara, intacta.
Ao lado dele, um jovem carabiniere estava de pé com a mesma rigidez de seu uniforme engomado. As listras vermelhas que desciam de cada lado de seu uniforme eram tão retas quanto fios de prumo, a faixa branca formando um ângulo de 90° perfeito de um lado ao outro de seu peito. O emblema de prata no seu quepe parecia exageradamente polido.
Ele olhou para a mochila como se Gray tivesse acabado de furtá-la.
Gray não se deu o trabalho de explicar. Ele tinha coisas demais na cabeça. Embora sua mochila ainda estivesse ali, seu laptop desaparecera. Alguém o levara. Apenas uma pessoa furtaria o computador e deixaria a mochila para trás.
Seichan.
Irritado, Gray marchou para fora da necrópole. Enquanto era escoltado, mal notou os pátios, as escadas e os corredores. Sua mente trabalhava febrilmente. Depois de cinco minutos andando e subindo, ele entrou na suíte da equipe, deixando a escolta do lado de fora.
A sala principal era opulenta, com ouro em folha, móveis ornamentados e magníficas tapeçarias. Um imponente lustre de cristal ocupava inteiramente um céu abobadado pintado com nuvens e querubins.
Velas tremeluziam em candelabros de parede e de mesa.
Kat estava sentada numa das cadeiras. Vigor noutra. Eles estavam conversando quando ele entrou. Usavam grossos roupões brancos, como se aquela fosse uma suíte do Ritz.
- O Monk está no banho - disse Kat, acenando com a cabeça para um lado.
- E a Rachel também - acrescentou Vigor, apontando um braço para o outro lado. Todos os quartos deles partilhavam aquela sala de estar.
Kat notou a mochila dele.
- Você encontrou parte do seu equipamento.
- Mas não o laptop. Eu acho que Seichan o pegou.
Kat ergueu uma sobrancelha.
Gray sentia-se sujo demais para sentar-se em qualquer das cadeiras, por isso andava de um lado para outro da sala.
- Vigor, você pode nos tirar daqui de manhã sem sermos vistos?
- Eu... acho que sim. Se for necessário. Mas por quê?
- Eu quero que nós sumamos do mapa o mais rápido possível de novo. Quanto menos pessoas souberem do nosso paradeiro, melhor.
Monk entrou na sala.
- Nós vamos a algum lugar? - Ele escarafunchava o ouvido com um dedo. Um band-aid tampava o corte acima de seu olho. Ele também usava um roupão branco, que deixara aberto. Pelo menos havia uma toalha ao redor de sua cintura.
Antes que Gray pudesse responder, a porta se abriu no lado oposto. Rachel entrou descalça e envolta num roupão, com a faixa amarrada de tal maneira que o caimento dele era perfeito. Mas, quando ela se aproximou do grupo, o roupão ainda exibia a panturrilha e grande parte da coxa. Ela acabara de lavar os cabelos, e eles ainda estavam molhados e desgrenhados. Ela ajeitou-os com os dedos, mas Gray gostava mais deles selvagens.
- Comandante? - perguntou Monk, caindo pesadamente numa cadeira. Ele levantou as pernas, ajustando sua toalha de maneira adequada.
Gray engoliu em seco. O que eu estava dizendo?
- Aonde nós vamos? - Kat o fez lembrar-se.
- Encontrar a próxima pista nesta jornada - disse Gray, pigarreando, endurecendo a voz. - Depois do que nós vimos esta noite, nós vamos querer que a Corte do Dragão obtenha seja qual for o conhecimento que se encontra no fim desta caça ao tesouro?
Ninguém disse nada.
Monk tocou no curativo.
- Que diabo aconteceu esta noite?
- Talvez eu tenha uma idéia. - As palavras de Gray atraíram toda a atenção deles. - Algum de vocês está familiarizado com os campos de Meissner?
Kat ergueu um pouco uma das mãos.
- Eu ouvi esse termo usado em referência aos supercondutores.
Gray confirmou com um aceno de cabeça.
- Quando um supercondutor carregado é exposto a um forte campo eletromagnético, desenvolve-se um campo de Meissner. A força desse campo é proporcional à intensidade do campo magnético e à quantidade de força no supercondutor. É o campo de Meissner que permite que os supercondutores levitem num campo magnético. Mas outros efeitos, mais estranhos, foram vistos durante a manipulação de supercondutores, postulando outros efeitos dos campos de Meissner. Explosões de energia inexplicáveis, anti-gravidade real, até mesmo distorções no espaço.
- Foi isso que aconteceu na basílica? - perguntou Vigor.
- A ativação do amálgama, tanto aqui quanto em Colônia, foi efetuada apenas com um par de grandes placas eletromagnéticas.
- Grandes ímãs? - perguntou Monk.
- Ajustados num registro de energia específico para liberar o poder latente no supercondutor no estado m.
Kat mexeu-se.
- E a energia liberada - esse campo de Meissner - fez o túmulo levitar... ou pelo menos o fez pesar menos. Mas, e a tempestade elétrica no interior da basílica?
- Eu posso apenas supor. O dossel de bronze e ouro sobre o altar papal fica bem acima do túmulo de São Pedro. Eu acho que as colunas de metal do dossel agiram como hastes gigantes de pára-raios. Elas absorveram parte da energia gerada abaixo e fizeram-na explodir para cima.
- Mas por que esses antigos alquimistas haveriam de querer danificar a basílica? - perguntou Rachel.
- Eles não queriam danificá-la - respondeu Vigor. - Eles não fizeram isso. Lembre-se, nós estimamos que estas pistas foram deixadas em algum ponto do século XIII.
Gray acenou afirmativamente com a cabeça.
Vigor fez uma pausa e em seguida cofiou a barba.
- Na verdade, teria sido fácil construir a câmara secreta durante o mesmo período. Na maior parte das vezes, o Vaticano estava vazio. Ele só se tornou a sede do poder pontifício em 1377, quando os papas regressaram do exílio de um século na França. Antes disso, o Palácio Laterano, em Roma, fora a sede pontifícia. Portanto, o Vaticano não teve importância e passou despercebido durante o século XIII.
Vigor virou-se para Rachel.
- Por isso a tempestade elétrica não poderia ser culpa dos alquimistas. O baldaquim de Bernini só foi instalado no século XVII, séculos depois de as pistas terem sido postas aqui. A tempestade tinha de ser um acidente infeliz.
- Ao contrário do que aconteceu em Colônia - contrapôs Gray. - A Corte do Dragão contaminou aquelas hóstias de propósito com ouro no estado m. Eu acho que eles usaram os paroquianos como cobaias em alguma experiência desprezível. O primeiro teste de campo. A fim de avaliarem a força do amálgama, de validarem suas teorias. O ouro no estado m ingerido agiu como o dossel de bronze aqui. Ele absorveu a energia do campo de Meissner, eletrocutando os paroquianos de dentro para fora.
- Todas aquelas mortes - disse Rachel.
- Nada mais que uma experiência.
- Nós temos de detê-los - afirmou Vigor com a voz frágil.
Gray assentiu.
- Mas primeiro nós temos de descobrir aonde ir primeiro. Eu memorizei o desenho. Eu posso esboçá-lo.
Rachel olhou para ele e em seguida para o tio.
- O que foi? - perguntou Gray.
Vigor mudou de posição e puxou para fora um pedaço de papel dobrado. Ele inclinou-se para a frente e alisou-o em cima da mesa. Tratava-se de um mapa da Europa.
Gray franziu o cenho.
- Eu reconheci as linhas traçadas na pedra - disse Rachel. - O minúsculo delta do rio revelou o segredo, sobretudo se você vive ao longo do Mediterrâneo. Vejam.
Rachel inclinou-se para a frente e formou um retângulo com os dedos, como se estivesse avaliando uma fotografia, e o colocou sobre a extremidade leste do mapa.

Gray olhou para baixo, a exemplo dos outros. A seção da costa abrangida pelo retângulo era um equivalente grosseiro das linhas gravadas na laje de hematita.
- É um mapa - disse ele.
- E a estrela cintilante... - Os olhos de Rachel encontraram os seus.
- Deve ter havido um minúsculo depósito de ouro no estado m incrustado na laje. Ele absorveu a energia do campo de Meissner e entrou em ignição.
- Marcando um lugar no mapa - Rachel pôs um dedo no papel.
Gray inclinou-se um pouco mais. Na ponta de seu dedo estava uma cidade, na desembocadura do Nilo, onde ele desaguava no Mediterrâneo.
- Alexandria - leu Gray. - No Egito.
Ele ergueu os olhos, o rosto a alguns centímetros do de Rachel. Os olhos deles entrelaçaram-se quando ele a olhou. Ambos congelaram por um instante. Os lábios dela abriram-se ligeiramente, como se ela fosse dizer alguma coisa mas tivesse esquecido as palavras.
- A cidade egípcia era um importante bastião do estudo gnóstico - disse Vigor, quebrando o encantamento. Outrora a sede da famosa Biblioteca de Alexandria, um vasto depósito do conhecimento antigo. Fundada pelo próprio Alexandre, o Grande.
Gray empertigou-se.
- Alexandre. Você mencionou que ele foi uma das figuras históricas que sabiam a respeito do pó branco de ouro.
Vigor confirmou com um aceno de cabeça, os olhos brilhantes.
- Outro mago - disse Gray. - Ele poderia ser o quarto Rei Mago que devemos procurar?
- Não posso dizer com certeza - respondeu Vigor.
- Eu posso - respondeu Rachel, a voz segura. - O verso no enigma... ele refere-se especificamente a um rei perdido.
Gray lembrou-se do enigma do peixe. Onde ele se asfixia, ele flutua na escuridão e fita o rei perdido.
- E se ele não fosse apenas alegórico? - insistiu Rachel. - E se ele fosse literal?
Gray não entendeu, mas os olhos de Vigor arregalaram-se.
- É claro! - exclamou ele. - Eu devia ter pensado nisso.
- Em quê? - perguntou Monk.
Rachel explicou:
- Alexandre, o Grande, morreu muito jovem, aos 33 anos. Seu funeral foi bem documentado no registro histórico. Seu corpo ficou exposto em câmara ardente em Alexandria. - Ela bateu de leve no mapa. - Só que... só que...
Vigor concluiu por ela, excitadíssimo.
- Seu túmulo desapareceu.
Gray olhou fixamente para o mapa.
- Transformando-o no rei perdido - murmurou ele. Seu olhar percorreu a sala. - Então nós sabemos aonde ir em seguida.


23:56h

A imagem no laptop brilhou mais uma vez, sem o som, apenas com o vídeo. Da aparição da Corte do Dragão até a fuga da equipe da Sigma. Continuava a não haver respostas. O que quer que estivesse sob o túmulo de São Pedro permanecia um mistério.
Desapontado, ele fechou o laptop e afastou-se de sua escrivaninha.
O comandante Pierce não fora inteiramente honesto ao fazer o relatório. Fora fácil perceber sua mentira. O comandante descobrira alguma coisa no túmulo.
Mas o que ele descobrira? O que - e até que ponto - ele sabia?
O cardeal Spera recostou-se, girando o anel de ouro no dedo.
Estava na hora de pôr um fim a tudo aquilo.










DIA TRÊS




CAPÍTULO 11

Alexandria



26 de julho, 07:05h
Sobrevoando o mediterrâneo

Eles estariam no Egito em duas horas.
A bordo do jato particular, Gray examinou o conteúdo de sua mochila. O diretor Crowe havia conseguido provê-los com novos suprimentos e armas. Até mesmo laptops. O diretor também havia tomado a providência de transferir o avião Citation X fretado da Alemanha para o Aeroporto Internacional Leonardo da Vinci, em Roma.
Gray consultou o relógio. Fazia meia hora que eles haviam decolado. As duas horas restantes até a aterrissagem em Alexandria eram todo o tempo de que o grupo dispunha para elaborar estratégias. As poucas horas livres em Roma tinham pelo menos ajudado a revigorar o grupo. Eles haviam saído antes do amanhecer, esgueirando-se para fora da Cidade do Vaticano sem alertar ninguém de sua partida.
O diretor Crowe preparara um disfarce extra do seu lado, estabelecendo um plano de vôo simulado para Marrocos. Ele então usara seus contatos no Escritório Nacional de Reconhecimento para mudar os sinais de chamada deles em pleno vôo quando eles rumassem para o Egito. Foi o melhor que puderam fazer para encobrir as pistas deles.
Agora só restava um detalhe para resolver.
Por onde começar a busca deles em Alexandria?
Para responder a essa pergunta, a cabine de passageiros da aeronave havia sido transformada numa comissão de peritos em pesquisas. Kat, Rachel e Vigor debruçavam-se sobre computadores. Monk estava na cabine do piloto, coordenando o transporte e a logística no solo. Ele já havia desmontado e inspecionado sua nova espingarda de combate, a qual mantinha consigo. Conforme dissera:
- Eu me sinto nu sem ela. E, creiam-me, vocês não iam querer isso.
Nesse ínterim, Gray tinha sua própria investigação com que se ocupar. Embora ela não estivesse diretamente relacionada com o problema imediato, ele queria pesquisar mais o mistério daqueles supercondutores no estado m.
Mas primeiro...
Ele levantou-se e foi até o trio de pesquisadores.
- Algum progresso? - perguntou ele.
Kat respondeu:
- Nós dividimos nossas tarefas. Estamos esquadrinhando todas as referências e documentos desde antes do nascimento de Alexandre até a sua morte e o desaparecimento subseqüente do seu túmulo.
Vigor esfregou os olhos. De todos, ele era quem menos havia dormido. Uma soneca de apenas uma hora. O monsenhor tomara a si a tarefa de fazer mais pesquisas em meio à grande quantidade de documentos dos Arquivos do Vaticano. Ele tinha certeza de que o prefeito-chefe das bibliotecas, o traidor Dr. Alberto Menardi, era o mentor que solucionava os enigmas para a Corte do Dragão. Vigor havia esperado seguir as pegadas do prefeito, a fim de obter algum vislumbre extra. Mas descobrira pouca coisa.
Kat prosseguiu:
- Alexandre ainda está cercado de mistério. Até mesmo seu parentesco. Sua mãe chamava-se Olímpia. Seu pai era o rei Filipe II da Macedônia. Mas há certa discordância aqui. Alexandre acabou acreditando que seu pai era um deus chamado Zeus-Amon e que ele próprio era um semideus.
- Não exatamente humilde - disse Gray.
- Ele era um homem de muitas contradições - disse Vigor. - Propenso a acessos de fúria causados pela embriaguez, mas ponderado em suas estratégias. Ardente em suas amizades, mas homicida quando contrariado. Ele flertava com a homossexualidade, mas se casou com uma dançarina persa e com a filha de um rei persa, neste último caso, numa tentativa de unir a Pérsia à Grécia. Mas voltemos ao seu parentesco. Era notório que seu pai e sua mãe odiavam um ao outro. Alguns historiadores acreditam que Olímpia possa ter estado envolvida no assassinato do rei Filipe. Interessante é que outro escritor, Pseudo-Calístenes, afirmou que Alexandre não era filho de Filipe, e sim de um feiticeiro egípcio da corte, chamado Nectanebo.
- Um feiticeiro... como os magos? - Gray entendeu a inferência.
- Quem quer que na verdade tenham sido seus pais - prosseguiu Kat -, ele nasceu em 20 de julho de 356 a.C.
Vigor deu de ombros.
- Mas mesmo isso talvez não seja verdade. Nessa mesma data, o Templo de Ártemis em Éfeso queimou por completo. Uma das Sete Maravilhas do mundo antigo. O historiador Plutarco escreveu que a própria Ártemis estava "ocupada demais, cuidando do nascimento de Alexandre, para enviar ajuda ao seu templo ameaçado". Alguns estudiosos acreditam que a escolha da data pode ser propaganda, que a verdadeira data do nascimento de Alexandre foi mudada para coincidir com esse evento portentoso, retratando o rei como uma fênix renascendo das cinzas.
- E foi mesmo um renascimento - disse Kat. - Alexandre viveu apenas 33 anos, mas conquistou a maior parte do mundo conhecido durante sua curta vida. Ele derrotou o rei Dario da Pérsia, depois seguiu para o Egito, onde fundou Alexandria, e depois para a Babilônia.
Vigor encerrou:
- Por fim, ele se moveu para o leste, até a índia, a fim de conquistar a região do Punjab. A mesma região onde São Tome acabaria por batizar os Três Reis Magos.
- Unindo o Egito e a Índia - observou Gray.
- Ligando uma linha de conhecimento antigo - disse Rachel, afastando-se um pouco de seu laptop. Ela não ergueu os olhos, ainda concentrados em sua pesquisa, mas se livrou de uma cãibra nas costas.
Gray gostava da maneira como ela se espreguiçava, lentamente, sem pressa.
Talvez ela tenha percebido seu exame. Sem virar a cabeça, apenas os olhos dela moveram-se rapidamente na direção dele. Ela gaguejou por um momento, desviando o olhar.
- Ele... Alexandre até procurou os eruditos indianos, passando um tempo significativo em discussões filosóficas. Ele se interessava muito por novas ciências e foi discípulo de Aristóteles.
- Mas sua vida chegou abruptamente ao fim - continuou Kat, atraindo de novo a atenção de Gray. - Ele morreu em 323 a.C, em Babilônia, sob circunstâncias misteriosas. Alguns dizem que ele morreu de causas naturais, mas outros acreditam que foi envenenado ou contraiu uma praga.
- Também se diz - acrescentou Vigor - que, no seu leito de morte, no palácio real de Babilônia, ele olhou para fora, para os famosos Jardins Suspensos da cidade, uma torre de terraços esculpidos, jardins suspensos e cascatas. Outra das Sete Maravilhas do mundo antigo.
- Quer dizer então que a vida dele começou com a destruição de uma e terminou com a destruição de outra.
- Isso talvez seja apenas alegórico - admitiu Vigor. Ele cofiou a barba embaixo do queixo. - Mas a história de Alexandre parece estar estranhamente ligada às Sete Maravilhas. Até a primeira compilação das Sete Maravilhas foi feita por um bibliotecário alexandrino chamado Calímaco de Cirene no século III a.C. A imensa estátua de bronze em Rodes, outra das Maravilhas, o Colosso de trinta metros de altura que abarcava com as pernas abertas o porto da ilha e segurava uma tocha acesa, como a Estátua da Liberdade de vocês, teve como modelo Alexandre, o Grande. Em seguida vem a Estátua de Zeus em Olímpia, uma figura carrancuda de ouro e mármore com 12 metros de altura. De acordo com a afirmação do próprio Alexandre, possivelmente seu verdadeiro pai. E não pode restar dúvida de que Alexandre visitou as Pirâmides de Gizé. Ele passou uma década inteira no Egito. Portanto, as impressões digitais de Alexandre parecem estar em todas essas obras-primas do mundo antigo.
- Isso pode ter alguma importância? - indagou Gray.
Vigor deu de ombros.
- Eu não posso dizer. Mas a própria Alexandria abrigou um dia outra das Sete Maravilhas, a última a ser construída, embora não mais exista. O Farol de Alexandria, na ilha de Faros. Ele erguia-se numa península que se estendia pelo porto de Alexandria adentro, dividindo a baía em duas partes. Era uma torre com três patamares de blocos de calcário, unidos por chumbo derretido. Com cerca de 120 metros de altura, era mais alta do que a Estátua da Liberdade. No alto do farol, uma chama ardia num braseiro, amplificada por um espelho de ouro. Sua luz orientava os pilotos de navios a uma distância de até cinqüenta quilômetros. Ainda hoje, o próprio nome farol remonta a essa Maravilha. Em francês, phare. Em espanhol e italiano, faro.
- E de que forma isto se relaciona com a nossa busca do túmulo de Alexandre? - perguntou Gray.
- Nós fomos direcionados para Alexandria - disse Vigor - à procura de pistas deixadas por uma antiga sociedade de magos. Eu não posso deixar de pensar que o farol, esse extraordinário símbolo de uma luz que guia, seja importante para o nosso grupo. Também existe uma lenda em torno do Farol de Faros: de que a luz dourada era tão potente que podia queimar navios a distância. Talvez isso aluda a alguma fonte desconhecida de poder.
Vigor afinal suspirou e sacudiu a cabeça.
- Mas eu não sei como tudo isto se encadeia.
Gray apreciava a inteligência do monsenhor, mas precisava de informações mais concretas, alguma coisa para procurar assim que eles chegassem a Alexandria.
- Vamos então direto ao cerne do mistério. Alexandre morreu em Babilônia. O que aconteceu depois disso?
Kat disse em voz alta, inclinada sobre o seu laptop, correndo um dedo por uma lista que havia compilado:
- Existem muitas referências históricas ao traslado de seu corpo de Babilônia a Alexandria. Uma vez sepultado em Alexandria, tornou-se um santuário para dignitários visitantes, entre eles Júlio César e o imperador Caligula.
- Durante esse período - acrescentou Vigor -, a cidade foi governada por um dos ex-generais de Alexandre, Ptolomeu, e seus descendentes. Eles fundariam a Biblioteca de Alexandria, transformando a cidade num importante local de estudos intelectuais e filosóficos, atraindo eruditos de todo o mundo conhecido.
- E o que aconteceu com o túmulo?
- Isso é que é intrigante - disse Kat. - O túmulo era supostamente um sarcófago de ouro maciço. Mas noutras referências, incluindo o principal historiador da época, Estrabão, o túmulo é descrito como sendo feito de vidro.
- Talvez vidro de ouro - disse Gray -, um dos estados do pó no estado m.
Kat acenou positivamente com a cabeça.
- No início do século III d.C, Sétimo Severo fechou o túmulo à visitação, preocupado com a segurança dele. Também é interessante observar que ele colocou muitos livros secretos na câmara mortuária. Eis uma citação. - Ela inclinou-se para o laptop. - "Portanto, ninguém podia ler os livros nem ver o corpo." - Ela afastou-se e olhou de relance para Gray. - Isso claramente prova que alguma coisa de grande importância estava escondida nesse túmulo. Algum repositório de arcanos secretos que Sétimo receava que fosse perdido ou roubado.
Vigor explicou.
- Ocorreram muitos ataques a Alexandria do século I ao século III. Eles se tornaram cada vez piores. O próprio Júlio César queimou uma grande parte da Biblioteca de Alexandria para precaver-se de um ataque no porto. Esses ataques continuaram, culminando na destruição e dissolução da biblioteca no século VII. Eu posso entender por que Sétimo quis proteger uma parte da biblioteca, ocultando-a. Ele deve ter escondido os pergaminhos mais importantes ali.
- E não eram apenas agressores militares que ameaçavam a cidade - acrescentou Kat. - Uma série de pragas atingiu a cidade. Terremotos freqüentes danificaram partes significativas de Alexandria. Uma parte inteira da cidade caiu na baía no século IV, destruindo o Bairro Real Ptolomaico, inclusive o palácio de Cleópatra, e grande parte do Cemitério Real. Em 1996, um explorador francês, Franck Goddio, descobriu seções inteiras dessa cidade perdida no Porto Oriental de Alexandria. Outro arqueólogo, Honor Frost, acredita que talvez tenha sido esse o destino do túmulo de Alexandre, submerso numa sepultura aquática.
- Eu não estou convencido disso - disse Vigor. - Existem muitos boatos sobre a localização desse túmulo, mas a maioria dos documentos históricos situa o túmulo no centro da cidade, longe da orla marítima.
- Até, como eu disse, Sétimo Severo fechá-lo - argumentou Kat. - Talvez ele o tenha transferido.
Vigor franziu o cenho.
- De qualquer modo, através dos séculos subseqüentes, caçadores de tesouros e arqueólogos esquadrinharam Alexandria e seus arredores. Mesmo hoje em dia, existe um fervor, parecido com a corrida do ouro, de encontrar esse túmulo perdido. Alguns anos atrás, uma equipe de geofísicos alemães usou um radar penetrante no solo para mostrar que o subsolo em toda Alexandria está repleto de anormalidades e cavidades. Existem muitos lugares onde ocultar um túmulo.Nós levaríamos décadas para explorar todos eles.
- Nós não dispomos de décadas - disse Gray. - Eu nem sequer sei se nós dispomos de 24 horas.
Frustrado, ele andou de um lado para outro da estreita cabine de passageiros.Ele sabia que a Corte do Dragão dispunha das mesmas informações secretas que eles. Eles não levariam muito tempo para se darem conta de que a laje de hematita sob o túmulo de São Pedro era um mapa no qual estava assinalada Alexandria.
Ele virou-se para o trio.
- Então, onde procuramos primeiro?
- Talvez eu tenha um palpite - disse Rachel, falando pela primeira vez depois de algum tempo. Ela estivera digitando furiosamente em seu teclado e olhando periodicamente para a tela com os olhos apertados. - Ou dois.
Todas as atenções voltaram-se para ela.
- Existe uma referência que remonta ao século IX, testemunho do imperador de Constantinopla, de que algum - eu agora estou citando - "tesouro fabuloso" estava oculto dentro ou embaixo do Farol de Faros. De fato, o califa que governava Alexandria naquela época demoliu metade do farol à procura dele.
Gray percebeu que Vigor se mexeu ao ouvir as palavras dela. Ele se lembrou do interesse do monsenhor pelo farol. Rachel devia ter sido influenciada pelo tio e procurado pistas.
- Outros periodicamente continuaram a empreender a busca, mas o farol tinha uma importância estratégica para o porto.
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo, os olhos brilhando de excitação.
- Que melhor lugar para esconder alguma coisa que você não quer que seja descoberta do que sob uma construção importante demais para se pôr abaixo?
- Então tudo chegou ao fim no dia 8 de agosto de 1303, quando um terremoto fortíssimo sacudiu o Mediterrâneo oriental. O farol foi destruído, caindo no mesmo porto onde as ruínas ptolomaicas haviam desabado.
- O que foi feito do sítio original? - perguntou Gray.
- Ele variou com o passar dos séculos. Mas, no século XV, um sultão mameluco construiu na península um forte que está de pé até hoje: o Forte de Qait Bey. Parte de sua construção inclui os blocos de calcário originais que formavam o farol.
- E, se o tesouro jamais foi encontrado - prosseguiu Vigor -, ele ainda deve estar lá... embaixo do forte.
- Se é que ele algum dia existiu - advertiu Gray.
- Esse é o lugar onde deveríamos começar a procurar - disse Vigor.
- E o que nós fazemos? Batemos à porta e perguntamos a eles se permitem que façamos escavações sob o forte?
Kat propôs uma solução mais prática.
- Nós entramos em contato com o Escritório Nacional de Reconhecimento.Eles têm acesso a satélites com a capacidade de radares penetrantes no solo. Podemos pedir-lhes que façam uma varredura do local. Podemos procurar quaisquer anormalidades ou cavidades, como os geofísicos alemães fizeram na cidade. Isso poderia ajudar a localizar o sítio onde devemos iniciar nossa busca.
Gray concordou com um aceno de cabeça. Não era má idéia. Mas levaria tempo. Ele já havia checado. Só dali a oito horas ocorreria a próxima varredura de um satélite de reconhecimento.
Rachel sugeriu uma alternativa.
- Vocês se lembram da porta de trás na caverna sob o túmulo de São Pedro? Talvez nós não tenhamos de entrar pela porta da frente do Forte de Qait Bey. Talvez haja uma entrada nos fundos. Uma entrada subaquática como em Roma.
Gray gostou da idéia dela.
Rachel pareceu cobrar força da aprovação no rosto dele.
- Existem grupos de turistas que mergulham nos sítios próximos de Qait Bey e das ruínas ptolomaicas. Nós poderíamos facilmente nos misturar a eles e investigar a orla do porto.
- Isso talvez não leve a nada - disse Kat -, mas nos permitiria fazer alguma coisa até que um satélite com radar penetrante no solo pudesse fazer uma varredura por lá.
Gray fez lentamente um aceno de cabeça positivo. Era um começo.
Monk entrou na cabine de passageiros vindo da do piloto.
- Eu já reservei um furgão e hotel sob os nossos codinomes, e as formalidades na alfândega vão ser facilitadas por meio de certa cooperação com Washington. Eu acho que isso resolve tudo.
- Não - Gray voltou-se para ele. - Nós também vamos precisar de um barco. De preferência, de algo rápido.
Os olhos de Monk arregalaram-se.
- Tudo bem - disse ele com a voz arrastada. Seu olhar pousou em Rachel. - Mas ela não vai pilotar, não é?



08:55h
Roma, Itália

O calor não favoreceu o humor de Raoul. A manhã ainda ia pelo meio, e a temperatura já fustigava. A luz do sol abrasava a praça revestida de pedras lá fora e brilhava intensamente. Seu corpo nu estava banhado de suor quando ele se postou junto às portas que davam para a sacada de seu quarto. As portas estavam abertas mas nenhuma aragem soprava.
Ele odiava Roma.
Ele desprezava as hordas de turistas pasmados, os habitantes da cidade em seus trajes negros fumando continuamente, a tagarelice constante, os gritos, os carros buzinando. O ar recendia a gasolina.
Até mesmo os cabelos da prostituta que ele pegara em Travastere cheiravam a cigarros e suor. A mulher tinha o mau cheiro de Roma. Ele esfregou os nós esfolados dos dedos. Pelo menos o sexo tinha sido satisfatório. Ninguém ouvira os gritos dela através da mordaça em forma de bola. Ele se deleitou com o modo como ela se contorceu sob a sua faca quando roçou a ponta dela em torno dos amplos mamilos marrons e a moveu em ziguezague pelo peito dela abaixo. Mas sentira mais prazer ao esmurrar o rosto dela, carne contra carne, quando investiu sexualmente contra ela.
Sobre o corpo dela, ele superou sua frustração com Roma, com os filhos-da-puta dos americanos, que quase o tinham cegado, arruinando sua oportunidade de matá-los lentamente. E agora ele ficara sabendo que, de algum modo, eles haviam escapado a outro tipo de morte.
Ele afastou-se da janela. O corpo da prostituta já estava embrulhado nos lençóis. Seus homens se livrariam do cadáver. Isso nada significava para ele.
Na mesa-de-cabeceira, o telefone tocou. Ele estava à espera daquele telefonema. Foi o que de fato azedou seu humor.
Ele foi até a mesa-de-cabeceira e pegou o telefone celular.
- Raoul - disse ele.
- Eu recebi o relatório da missão da noite passada. - Conforme esperado, era o Imperador de sua Ordem. A voz dele estava cheia de fúria.
- Senhor...
O homem o interrompeu.
- Eu não vou aceitar nenhuma desculpa. Fracasso é uma coisa, mas insubordinação não será tolerada.
Raoul franziu o cenho ao ouvir a última frase.
- Eu nunca desobedeceria.
- Então o que foi feito da mulher, Rachel Verona?
- Senhor?
Ele imaginou a piranha de cabelos pretos. Ele se lembrou do cheiro de sua nuca quando a agarrou e ameaçou com uma faca. Ele havia sentido os batimentos cardíacos na garganta dela quando a abraçou e ergueu.
- Você foi instruído a capturá-la... não a matá-la. Os outros deveriam ser eliminados. Eram essas as suas ordens.
- Sim, senhor. Entendido. Mas já por três vezes eu fui impedido de usar toda a força bruta contra a equipe americana por causa dessa cautela. Eles ainda estão na jogada simplesmente por causa dessa restrição. - Ele não planejara justificar seus fracassos, mas ali estava uma justificativa de mão beijada para ele. - Eu preciso de mais esclarecimentos. O que é mais importante: a missão ou a mulher?
Fez-se um longo silêncio. Raoul sorriu. Ele cutucou o corpo sem vida na cama com a ponta do dedo.
- Você tocou num ponto importante. - O tom de fúria havia desaparecido da voz do outro. - A mulher é importante, mas a missão não pode ser colocada em risco. A riqueza e o poder no fim desta trilha têm de ser nossos.
E Raoul sabia por quê. Isso fora incutido nele desde a infância. O fim último da seita deles. Instaurar uma Nova Ordem Mundial, liderada pela Corte deles, descendentes de reis e imperadores, geneticamente puros e superiores. Era o direito hereditário deles. Por gerações, remontando a séculos, a Corte havia buscado o tesouro e o conhecimento arcano dessa sociedade de magos perdida. Quem quer que os possuísse, teria as "chaves do mundo", ou pelo menos era o que constava num texto antigo na biblioteca da Corte.
E agora eles estavam tão perto.
Raoul falou:
- Então eu tenho permissão para prosseguir sem me preocupar com a segurança da mulher?
Ouviu-se um suspiro. Raoul se perguntou se o Imperador ao menos se dera conta dele.
- Haverá desapontamento com o desaparecimento dela - respondeu ele. - Mas a missão não pode fracassar. Não depois de tanto tempo. Portanto, para esclarecer, a oposição deve ser destruída a todo o custo. Está bastante claro?
- Sim, senhor.
- Ótimo. Mas eu também pediria que, caso surja uma oportunidade de capturar a mulher, tanto melhor. Todavia, não corra riscos desnecessários.
Raoul fechou um dos punhos. Ele tinha uma pergunta que o estava incomodando. Jamais a fizera antes. Aprendera que era melhor manter só para si essa curiosidade, obedecer sem perguntas. No entanto, fazia-a agora.
- Por que ela é tão importante?
- O sangue do Dragão corre com toda a força nas veias dela. Isso remonta às nossas raízes nos Habsburgos austríacos. Na verdade, ela fora escolhida para você, Raoul. Para ser a sua companheira. A Corte vê um grande valor em reforçar nossas linhagens por meio de um laço de sangue como esse.
Raoul empertigou-se ainda mais. Até então ele fora proibido de ter filhos. As poucas mulheres que receberam sua semente foram obrigadas a abortar ou foram mortas. Era proibido macular a linhagem real deles produzindo crianças impuras.
- Eu espero que esta informação o estimule a procurar uma oportunidade de protegê-la. Mas, como eu afirmei, até mesmo o sangue dela é descartável se a missão for ameaçada. Você entendeu?
- Sim, senhor.
Raoul ficou sem fôlego. Ele tornou a imaginar a mulher presa em seus braços, mantida sob a ponta de uma faca. O cheiro do medo dela. Ela daria uma boa baronesa... se não isso, pelo menos uma excelente égua reprodutora. A Corte do Dragão mantinha algumas dessas mulheres escondidas por toda a Europa, encarceradas, mantidas vivas apenas para produzir filhos.
Raoul teve uma ereção ao pensar numa oportunidade como aquela.
- Tudo já foi preparado em Alexandria - encerrou o Imperador. - O jogo final se aproxima. Consiga o que precisamos. Elimine todos os que se interpuserem no seu caminho.
Raoul concordou lentamente com um aceno de cabeça, embora o Imperador não pudesse vê-lo.
Ele imaginou a piranha de cabelos pretos... e o que faria com ela.



09:34h

Rachel postou-se atrás do volante da lancha de corrida, apoiando-se com um joelho no assento de encosto curvo móvel. Depois que passou pela bóia de balizamento No Wake, ela moveu rapidamente o acelerador manual e disparou através da baía. A lancha deslizava na superfície plana da água, dando solavancos sobre a esteira ocasional de outro barco.
O vento agitava seus cabelos. Os borrifos da água do mar refrescavam seu rosto. A luz do sol refletia-se intensamente nas águas azul-safira do Mediterrâneo. Todos os seus sentidos vibravam e latejavam.
Isso ajudou a despertá-la após a viagem de avião e as horas passadas em frente ao computador. Fazia quarenta minutos que eles haviam aterrissado. Haviam passado rapidamente pela alfândega, os procedimentos facilitados pelos telefonemas de Monk, e encontrado a lancha e o equipamento já à espera deles no píer do Porto Oriental.
Rachel olhou de relance para trás.
A cidade de Alexandria erguia-se do arco da baía azul, um extenso e moderno aglomerado urbano de edifícios de apartamentos, hotéis e imóveis de uso compartilhado. Palmeiras espalhavam-se pela mediana ajardinada que separava a cidade da água. Havia poucos indícios do passado antigo da cidade. Até mesmo a famosa Biblioteca de Alexandria, perdida séculos atrás, havia sido reconstruída como um imponente complexo de vidro, aço e concreto, decorado com espelhos d'água e servido por uma estação de bondes.
Mas agora, na água, um pouco do passado tornava a ganhar vida. Velhos barcos de pesca de madeira juncavam a baía, pintados em tons vibrantes de pedras preciosas: vermelho-rubi, azul-safira, verde-esmeralda. Algumas velas quadrangulares estavam enfunadas, a direção dos esquifes controlada por dois remos, um antigo projeto egípcio.
E à frente erguia-se uma cidadela medieval, o Forte de Qait Bey. Ele encimava uma península que dividia a baía em duas partes. Um molhe de pedras ligava a fortaleza à terra firme. Ao longo de sua extensão, pescadores com longas varas de pescar relaxavam e gritavam entre si, como seus antepassados provavelmente haviam feito por séculos a fio no passado.
Rachel estudou o Forte de Qait Bey. Construído apenas com calcário branco e mármore, ele brilhava intensamente contra as águas de um azul profundo da baía. A cidadela principal fora construída sobre um alicerce de pedra que se erguia a uma altura de seis metros. Ali, muros altos, encimados por parapeitos arqueados, eram protegidos por quatro torres e circundavam uma torre de menagem central mais alta. Um mastro de bandeira projetava-se do castelo no interior, fazendo tremular as cores egípcias, listras vermelhas, brancas e pretas, junto com a águia dourada de Saladino.
Apertando os olhos, Rachel imaginou o que outrora se erguia sobre seus alicerces: o Farol de Faros, com 120 metros de altura, construído em camadas como um bolo de casamento, decorado com uma estátua gigante de Posêidon e tendo no alto um imenso braseiro que cuspia fogo e fumaça.
Nada restava dessa Maravilha do mundo antigo, exceto talvez alguns blocos de calcário, usados na construção da cidadela. Arqueólogos franceses também haviam descoberto no Porto Oriental um monte de blocos de pedra, junto com um fragmento de seis metros de uma estátua, que se supunha ser a escultura de Posêidon. Era tudo o que restava da Maravilha desde que um terremoto devastou a região.
Ou será que não? Poderia haver outro tesouro, ainda mais antigo, oculto sob seus alicerces?
O túmulo perdido de Alexandre, o Grande.
Era para isso que eles tinham vindo, para descobri-lo.
Atrás dela, os outros estavam reunidos em torno de uma pilha de equipamento de mergulho, checando tanques, reguladores e cintos de chumbo.
- Nós realmente precisamos de todo este equipamento? - perguntou Gray, pegando uma máscara completa. - Roupas secas grossas e todo este equipamento especial para a cabeça?
- Você vai precisar de tudo isto - disse Vigor. O tio de Rachel era um mergulhador experiente. Era impossível não ser, quando se era um arqueólogo no Mediterrâneo. Muitas das descobertas mais interessantes da região tinham sido feitas embaixo d'água, inclusive ali em Alexandria, onde o palácio perdido de Cleópatra fora recentemente descoberto, imerso sob as ondas daquela mesma baía.
Mas havia um motivo para que aqueles tesouros subaquáticos tivessem permanecido ocultos por tanto tempo.
O tio de Rachel explicou.
- A poluição aqui no Porto Oriental, associada aos despejos sanitários, tornou estas águas perigosas de explorar sem proteção adequada. O conselho de turismo egípcio já cogitou abrir um parque arqueológico marinho aqui, servido por barcos com o fundo de vidro. Alguns operadores de turismo inescrupulosos já oferecem excursões para mergulho. Mas a exposição a toxinas de metais pesados e o risco de tifo são reais para os que entram na água.
- Excelente - disse Monk, que já parecia um pouco mareado. Ele agarrou a amurada de estibordo, os dentes cerrados, e manteve a cabeça um pouco inclinada, como um cachorro que pendura a cabeça fora da janela. - Se eu não me afogar, eu vou acabar contraindo alguma doença que dissolve a carne. Vocês sabem, existe um motivo por que eu ingressei nas Forças Armadas Especiais em vez de na Marinha ou na Aeronáutica. Terra firme.
- Você poderia ficar na lancha - disse Kat.
Monk franziu o cenho para ela.
Se pretendiam achar algum túnel subaquático que conduzisse a uma câmara do tesouro secreta embaixo do forte, eles precisariam de todo o mundo. Todos eram mergulhadores profissionais. Eles iam procurar em turnos, com uma pessoa se revezando a fim de descansar e tomar conta da lancha e do equipamento.
Monk insistira no primeiro turno.
Rachel acelerou a lancha ao longo da extremidade leste da península. Adiante, a cidadela de Qait Bey foi aumentando de tamanho, enchendo o horizonte. Ela não parecera tão grande do píer. Seria uma tarefa assustadora explorar as profundezas ao redor do forte.
Uma preocupação começou a importuná-la. Fora idéia sua tentar essa busca. E se ela estivesse errada? Talvez ela houvesse perdido uma pista que apontava para algum outro lugar.
Ela reduziu a velocidade da lancha, a adrenalina aumentando.
Eles haviam dividido a região em quadrantes para uma exploração sistemática da baía nas proximidades do forte. Ela reduziu ainda mais a velocidade, aproximando-se do primeiro local de mergulho.
Gray aproximou-se dela e pousou uma das mãos no encosto do assento. As pontas de seus dedos roçaram o ombro dela.
- Este é o quadrante A.
Ela fez que sim com a cabeça.
- Eu vou baixar âncora aqui e hastear a bandeira laranja para advertir que há mergulhadores na água.
- Você está bem? - perguntou ele, inclinando-se.
- Eu simplesmente espero que esta não seja uma busca inútil.
Ele sorriu, a determinação transformando-se em tranquilização.
- Você nos proporcionou um começo. Foi mais do que o que nós alcançamos debatendo a questão. E eu prefiro empreender uma busca inútil a não fazer nada.
Sem perceber, ela moveu o ombro, fazendo-o pressionar a mão dele. Ele não a afastou.
- É um bom plano - disse ele, a voz mais branda.
À falta de palavras, ela fez um sinal de cabeça afirmativo e desviou o olhar dos fascinantes olhos dele. Desligou o motor e soltou a âncora, sentindo o tremor sob o seu assento quando o cabo baixou.
Gray virou-se para os outros.
- Vamos vestir os trajes de mergulho. Nós vamos mergulhar aqui, checar nossos rádios marítimos e em seguida iniciar a busca.
Rachel notou que ele mantinha a mão no ombro dela.
Ela se sentia bem ali.



10:14h

Gray caiu para trás dentro do mar.
A água o cobriu. Nenhum centímetro sequer de pele estava exposto à poluição e aos despejos sanitários potenciais. As costuras do traje completo eram duplas com um revestimento duplo de fita impermeável. As saias de vedação do pescoço e dos punhos eram de látex super-resistente. Até mesmo sua máscara AGA cobria o rosto por completo, lacrando o capuz Viking sobre a cabeça. O regulador estava embutido no visor da máscara, deixando sua boca livre.
Gray achou que a amplitude da visão periférica através da máscara compensava o tempo extra gasto para vestir o traje de mergulho, sobretudo porque a visibilidade no porto era fraca. Lodo e sedimentos toldavam a visão numa distância de três a cinco metros.
Não era assim tão mau. Poderia ser pior.
Seu colete compensador o fez flutuar de volta à superfície, cheio de ar, contrabalançando o cinto de chumbo. Ele observou Rachel e Vigor caírem no mar no outro lado da lancha. Kat já estava na água ao seu lado.
Ele testou o rádio, um Buddy Phone,1 transmitindo em ondas ultra-sônicas numa única faixa de onda mais alta.
- Todos estão me ouvindo? - perguntou ele. - Isto é um teste.
Ele recebeu respostas afirmativas de todos, até mesmo de Monk, que estava começando o primeiro turno de guarda na lancha. Monk também tinha um sistema de vídeo Aqua-Vu marinho de raios infravermelhos para monitorar o grupo embaixo d'água.
- Nós vamos descer até o fundo e nos mover em direção à praia numa grande extensão. Cada um sabe a sua posição.
As respostas foram afirmativas.
- Então vamos descer - disse ele.
Ele soltou o ar de seu colete compensador e desceu na água, arrastado pelo cinto de chumbo. Aquele era o momento em que muitos mergulhadores novatos sentiam uma claustrofobia de causar pânico. Gray nunca sentira isso. Antes, sentia o oposto, uma liberdade total. Ele estava sem peso, voando, capaz de todo o tipo de acrobacias aéreas.
Ele avistou Rachel mergulhando no lado oposto da lancha. Era fácil vê-la por causa da larga listra vermelha de um lado ao outro do peito de seu traje preto. Cada um deles tinha uma cor diferente para facilitar a identificação.
A sua era o azul, a de Kat o rosa, a de Vigor o verde. Monk também já vestira seu traje, pronto para seu turno. A listra dele era amarela, algo apropriado, em virtude de sua atitude em relação ao mergulho.
Gray observou Rachel. Como ele, ela parecia apreciar a liberdade sob as ondas. Ela girou e voou, descendo em espiral e agitando ao mínimo as nadadeiras. Ele parou um momento para apreciar as curvas dela e em seguida concentrou-se em sua própria descida.
O fundo arenoso foi tomando forma, abarrotado de detritos.
Gray ajustou seu colete compensador para mantê-lo flutuando pouco acima do leito do mar. Olhou à direita e à esquerda. Os outros haviam assumido posturas semelhantes.
- Todos podem ver uns aos outros? - perguntou ele.
Eles acenaram com a cabeça e responderam que sim.
- Monk, como a câmera de vídeo subaquática está funcionando?
- Vocês estão se parecendo com um bando de fantasmas. A visibilidade está uma merda. Eu os perderei de vista assim que vocês se afastarem.
- Mantenha-se em contato pelo rádio. Caso haja algum problema, dê o alarme e venha correndo ao nosso encontro.
Gray estava bastante confiante em que eles haviam passado a perna na Corte do Dragão, mas não queria correr riscos com Raoul. Ele não sabia até que ponto eles haviam obtido uma posição vantajosa. Mas havia muitos outros barcos ao redor. Era dia claro.
No entanto, eles tinham de agir rápido.
Gray apontou com um braço.
- Okay, nós vamos para a praia. Não fiquem mais de cinco metros distantes uns dos outros e mantenham contato visual o tempo todo.
Os quatro poderiam varrer uma área de cerca de 25 metros até a praia. Uma vez lá, se nada fosse detectado, eles desceriam mais 25 metros pela orla e nadariam de volta até a lancha. Para a frente e para trás, quadrante após quadrante, eles vasculhariam toda a orla ao redor do forte.
Gray pôs-se em movimento. Ele tinha uma faca de mergulho presa a uma bainha na parte posterior do pulso e uma lanterna no outro. Com o sol bem acima e a água com apenas 12 metros de profundidade, não havia necessidade de iluminação extra, mas esta seria útil para explorar recessos e fendas. Ele não tinha dúvida de que a passagem que eles procuravam não era óbvia, senão já teria sido descoberta.
Era outro enigma para solucionar.
À medida que nadava, ele refletiu sobre o que eles não haviam percebido. O mapa desenhado na pedra devia ter algo mais além de uma pista que meramente apontava para Alexandria. Nele também devia haver alguma pista embutida sobre a localização ali. Será que eles haviam deixado escapar alguma coisa? Será que Raoul havia roubado uma pista da caverna embaixo do túmulo de São Pedro? Será que a Corte do Dragão já tinha a resposta?
Inconscientemente, ele começara a nadar mais rápido, perdendo Kat de vista à sua direita. Ele era o último da fila naquele lado. Reduziu o ritmo e ela reapareceu. Satisfeito, moveu-se para a frente. Uma forma apareceu adiante, projetando-se do fundo arenoso. Uma rocha? A crista de um recife?
Ele avançou.
Ela surgiu do meio da escuridão lodosa.
Que diabo...?
O rosto de pedra o encarava, humano, gasto pelo mar e pelo tempo, mas seus traços eram surpreendentemente claros, a expressão estóica. Seu dorso encimava a forma agachada de um leão.
Kat notou sua atenção e chegou um pouco mais perto.
- Uma esfinge?
- Tem outra aqui - anunciou Vigor. - Com o lado quebrado. Os mergulhadores têm relatado dezenas delas espalhadas no leito do mar à sombra do forte. Parte da decoração do farol original.
Apesar da urgência, Gray olhou fixamente para a estátua, pasmado. Estudou o rosto, esculpido por mãos humanas dois mil anos atrás. Estendeu um braço e tocou-o, sentindo a imensa amplitude de tempo entre ele e o escultor.
Vigor falou, a voz vindo do nada.
- É apropriado que esses mestres em enigmas guardassem este mistério.
Gray retirou a mão.
- O que você quer dizer?
Vigor riu à socapa.
- Você não conhece a história da Esfinge? O monstro aterrorizava o povo de Tebas, devorando as pessoas que não conseguiam solucionar seu enigma: "O que é que tem uma voz e quatro pés, dois pés e três pés?"
- E qual é a resposta? - perguntou Gray.
- O homem - disse Kat ao lado dele. - Nós engatinhamos quando bebês, depois andamos eretos sobre dois pés quando adultos e nos apoiamos numa bengala na velhice.
Vigor continuou.
- Édipo solucionou o enigma, e a Esfinge atirou-se de um penhasco e morreu.
- Caindo de uma grande altura - disse Gray. - Como estas esfinges.
Ele afastou-se da estátua de pedra e nadou para a frente. Eles tinham seu próprio enigma para resolver. Depois de mais dez minutos de busca silenciosa, eles chegaram à orla rochosa. Gray deparara com um monte de blocos imensos, mas sem passagem, sem abertura, sem pistas.
- Vamos voltar - disse ele.
Eles moveram-se pela costa abaixo e recomeçaram a busca, afastando-se a nado da orla em direção à lancha.
- Está tudo tranqüilo aí em cima, Monk? - perguntou Gray.
- Estou pegando um bronzeado maneiro.
- Não deixe de usar um protetor solar fator 30. Nós vamos ficar mais um pouco aqui embaixo.
- Sim, sim, capitão.
Gray prosseguiu por mais quarenta minutos, vasculhando da orla até a lancha e vice-versa. Ele passou pelo casco enferrujado de um navio naufragado, por mais fragmentos de blocos de pedra, por uma coluna quebrada e até pelo fragmento de um obelisco com inscrições. Peixes multicores passavam dançando.
Ele checou seu manômetro de ar. Ele estava respirando com cautela. Ainda restava meio tanque.
- Como estão os tanques de ar de vocês?
Após feitas as comparações, decidiu-se voltar à superfície em vinte minutos.
Eles fariam uma pausa de meia hora e depois voltariam para a água.
Enquanto nadava, Gray retomou sua reflexão original. Ele continuava com a impressão de que eles não haviam percebido algo importante. E se a Corte do Dragão tivesse tirado algum objeto da caverna, uma segunda pista? Ele agitou os pés com mais força. Ele tinha de livrar-se daquele medo. Tinha de prosseguir como se tivesse as mesmas informações secretas da Corte, oportunidades iguais.
O silêncio do fundo do mar exercia pressão sobre ele.
- Isto simplesmente não parece sensato - murmurou ele.
O rádio transmitiu sua voz.
- Você achou alguma coisa? - perguntou Kat. Sua forma indistinta aproximou-se flutuando.
- Não. É exatamente este o problema. Quanto mais tempo eu fico aqui embaixo, mais eu me convenço de que estamos fazendo a coisa errada.
- Sinto muito - disse Rachel, a voz vindo do nada, soando impotente. - Eu provavelmente pus muita ênfase...
- Não. - Gray lembrou-se da preocupação dela no convés. Ele recriminou-se por retomar o assunto. - Rachel, eu acho que você assinalou o lugar correto para fazermos a busca. O problema é o meu plano. Toda esta busca quadrante por quadrante simplesmente não parece sensata.
- O que você quer dizer, comandante? - perguntou Kat. - Pode levar algum tempo, mas vamos explorar toda a área.
Esse era o problema. Kat explicou-o a ele. Ele não era uma pessoa a favor de metodologia sistemática, persistente. Embora aquela fosse a melhor forma de solucionar alguns problemas, aquele mistério não era um deles.
- Nós perdemos uma pista - disse ele. - Eu sei disto. Nós reconhecemos o mapa no túmulo, percebemos que ele apontava para o túmulo de Alexandre e então voamos para cá. Nós pesquisamos registros, livros e arquivos, tentando solucionar um enigma que tem desconcertado os historiadores por mais de um milênio. Quem somos nós para solucioná-lo em um dia?
- Então, o que você quer que nós façamos? - perguntou Kat.
Gray decidiu-se por uma parada.
- Nós vamos voltar à estaca zero. Nós baseamos nossa busca em registros históricos disponíveis para qualquer um. A única vantagem que temos sobre todos os caçadores de tesouros dos séculos anteriores é o que foi descoberto embaixo do túmulo de São Pedro. Nós perdemos uma pista lá embaixo.
Ou ela foi roubada, pensou Gray. Mas ele não expressou essa preocupação em voz alta.
- Talvez nós não tenhamos perdido uma pista no túmulo - disse Vigor. - Talvez não tenhamos procurado bem a fundo. Lembrem-se das catacumbas. Os enigmas tinham múltiplas camadas, vários níveis de profundidade. Poderia haver outra camada neste enigma?
O silêncio foi a resposta à pergunta dele... até que uma voz inesperada solucionou tudo.
- Aquela maldita estrela incandescente - praguejou Monk. - Ela não estava simplesmente apontando para a cidade de Alexandria... ela estava apontando para a laje de pedra.
Gray sentiu a verdade soar nas palavras de Monk. Eles haviam ficado tão concentrados no mapa inscrito na laje, na estrela incandescente, na implicação de tudo aquilo, que haviam ignorado o meio incomum usado pelo artista.
- Hematita - disse Kat.
- O que você sabe sobre ela? - perguntou Gray, confiando nos conhecimentos de geologia dela.
- É um oxido de ferro. Grandes depósitos foram encontrados por toda a Europa. A maior parte é constituída de ferro, mas às vezes contém uma quantidade razoável de irídio e titânio.
- Irídio? - disse Rachel. - Não é um dos elementos no amálgama? Nos ossos dos Reis Magos?
- Sim - disse Kat, a voz subitamente soando tensa pelo rádio. - Mas eu não acho que essa parte seja importante.
- O quê? - perguntou Gray.
- Sinto muito, comandante. Eu deveria ter pensado nisto. O ferro na hematita muitas vezes é fracamente magnético, não tão forte quanto na magnetita, mas ela às vezes é usada como pedra-ímã.
Gray percebeu a correlação. O magnetismo também havia aberto o primeiro túmulo.
- Quer dizer então que a estrela não estava simplesmente apontando para Alexandria, ela também estava apontando para uma pedra magnetizada, para algo que devemos achar.
- E o que os antigos faziam com as pedras-ímãs? - perguntou Vigor, a excitação aumentando em sua voz.
Gray sabia a resposta.
Eles faziam bússolas! - Ele encheu seu colete compensador de ar e subiu à superfície. - Todos para o convés!


11:10h

Numa questão de minutos, eles estavam tirando tanques, coletes compensadores e cintos de chumbo. Rachel acomodou-se no assento do piloto, contente por sentar-se, e apertou o botão para erguer a âncora, que se moveu ruidosamente para cima.
- Vá devagar - disse Gray, que se posicionara junto ao ombro dela.
- Eu vou dar uma ajuda - disse Monk.
- Eu vou observar a bússola - continuou Gray. - Mantenham-nos num movimento bem lento ao redor do forte. Qualquer movimento brusco na agulha da bússola, e nós baixamos âncora e procuramos lá embaixo.
Rachel assentiu. Ela rezou para que, qualquer que fosse a pedra magnetizada que estivesse lá no fundo, ela fosse forte o bastante para que a bússola da lancha a detectasse.
Com a âncora recolhida, ela reduziu a pressão sobre o acelerador manual à mera oscilação do propulsor. Mal se podia detectar o movimento para a frente.
- Perfeito - sussurrou Gray.
Eles deslizavam para a frente. O sol erguia-se lentamente no céu. Eles puxaram o toldo da lancha para proteger o grupo à medida que o calor do dia aumentava. Monk estava deitado estatelado no banco de bombordo, roncando ligeiramente. Ninguém falava.
A preocupação de Rachel aumentava a cada volta lenta do propulsor da lancha.
- E se a pedra não estiver aqui? - ela sussurrou para Gray, que não despregava os olhos da bússola. - E se ela estiver dentro do forte?
- Então é lá que vamos procurar em seguida - disse Gray, olhando com os olhos semicerrados em direção à cidadela de pedra. - Mas eu acho que você está certa a respeito de uma entrada secreta. A laje de hematita na caverna estava sobre um túnel secreto que conduzia a um rio canalizado. Água. Talvez essa seja outra camada do enigma.
Kat os ouvia, um livro aberto no colo.
- Ou nós estamos exagerando a nossa interpretação - disse ela. - Tentando forçar o que nós queremos que se encaixe no enigma.
Na proa, Vigor massageava um músculo da panturrilha dolorido por causa da natação.
- Eu acho que a questão última de onde a pedra possa estar - na terra ou na água - depende de quando os alquimistas ocultaram a pista. Nós estimamos que as pistas foram ocultadas em algum momento por volta do século XIII, talvez um pouco antes ou um pouco depois, mas aquele era o período crítico do conflito entre o gnosticismo e a ortodoxia. Portanto, os alquimistas ocultaram a pista seguinte antes ou depois de o Farol de Faros desabar em 1303?
Ninguém tinha uma resposta.
Porém, alguns minutos mais tarde, a agulha da bússola moveu-se tenuamente.
- Pare! - sussurrou Gray.
A agulha parou de novo. Kat e Vigor olharam para eles.
Gray pôs uma das mãos no ombro de Rachel.
- Volte.
Ela pôs o acelerador manual em ponto morto. O impulso para a frente cessou. Ela deixou as ondas impulsioná-los para trás.
A agulha tornou a oscilar, dando um quarto de volta.
- Baixe âncora - ordenou Gray.
Ela soltou a âncora, mal respirando.
- Tem alguma coisa aí embaixo - disse ele.
Todos começaram a mexer-se imediatamente, pegando novos tanques.
Monk acordou sobressaltado e sentou-se.
- O que foi? - perguntou ele com os olhos ofuscados.
- Parece que você vai ficar de guarda outra vez - disse Gray. - A não ser que você queira dar um mergulho.
A resposta dele foi um olhar zangado.
Com a lancha protegida e a bandeira laranja erguida, os mesmos quatro mergulhadores caíram de novo na água.
Rachel removeu o ar de seu colete compensador e afundou sob as ondas.
A voz de Gray chegou-lhe através do rádio.
- Verifiquem suas bússolas de pulso. Concentrem a atenção na anormalidade.
Rachel observou atentamente sua bússola enquanto descia. As águas ali eram bastante rasas. Menos de dez metros. Ela atingiu o fundo arenoso rapidamente. Os outros desceram em torno dela, adejando como pássaros.
- Não há nada aqui - disse Kat.
O leito do mar era uma extensão plana de areia.
Rachel olhou fixamente para sua bússola. Ela avançou cerca de dois metros, depois recuou.
- A anormalidade está bem aqui.
Gray desceu até o fundo e roçou o pulso sobre o leito do mar.
- Ela tem razão.
Ele estendeu a mão para o outro pulso e tirou a faca da bainha. Com a lâmina na mão, começou a golpear a areia macia. Cada vez a lâmina afundou até o cabo. O lodo foi revolvido, ofuscando a visão.
No sétimo golpe, a faca claramente rangeu, penetrando apenas alguns centímetros.
- Acertei alguma coisa - disse Gray.
Ele embainhou a faca e começou a cavar na areia. A visão ficou rapidamente turva, e Rachel o perdeu de vista.
Então ela o ouviu ofegar.
Rachel aproximou-se. Gray moveu-se para trás. A areia revolvida dispersou-se e assentou.
Da areia projetava-se o busto escuro de um homem.
- Eu acho que é magnetita - disse Kat, examinando a pedra da escultura. Ela passou sua bússola de pulso sobre o busto. A agulha girou. - É uma pedra-ímã.
Rachel chegou mais perto e olhou fixamente para o rosto. Não havia como enganar-se sobre as feições. Ela havia visto a mesma fisionomia algumas vezes naquele dia.
Gray também reconheceu o rosto.
- É outra esfinge.



12:14h

Gray passou dez minutos limpando os ombros e o dorso da esfinge, chegando à forma de leão abaixo. Não havia dúvida de que era uma das esfinges, como as outras espalhadas no leito do mar.
- Esconderam-na entre as outras - disse Vigor. - Eu creio que isso responde à pergunta sobre quando os alquimistas esconderam o seu tesouro aqui.
- Depois do desabamento do farol - disse Gray.
- Exatamente.
Eles flutuaram em torno da esfinge magnética, esperando que o lodo e a areia revolvidos assentassem.
Vigor prosseguiu:
- Essa antiga sociedade de magos deve ter sabido a localização do túmulo de Alexandre depois que Sétimo Severo o escondeu no século III. Eles o deixaram intacto, permitindo que ele protegesse os pergaminhos mais valiosos da biblioteca perdida. Então, talvez o terremoto de 1303 não só tenha posto abaixo o farol, mas também tenha exposto o túmulo. Eles aproveitaram a oportunidade para esconder mais coisas dentro dele, usando o período caótico após o terremoto para ocultar sua próxima pista, enterrá-la e deixar que os séculos se encarregassem de encobri-la de novo.
- E, se você estiver certo - disse Gray -, isso assinala a data em que essas pistas foram ocultadas. Lembrem-se, nós já estimamos que as pistas foram deixadas em torno do século XIII. Nós estávamos errados por apenas alguns anos. Foi em 1303. Na primeira década do século XIV.
- Humm... - Vigor chegou mais perto da estátua.
- O que foi?
- Isso me faz pensar cá com os meus botões. Nessa mesma década, o verdadeiro papado foi expulso de Roma e exilou-se na França. Os antipapas governaram Roma no século seguinte.
- E daí?
- De modo análogo, os ossos dos Reis Magos foram levados da Itália para a Alemanha em 1162, outra época em que o verdadeiro papa foi expulso de Roma e um antipapa sentou-se no trono pontifício.
Gray acompanhou essa linha de raciocínio.
- Portanto, esses alquimistas ocultavam suas coisas sempre que o papado estava ameaçado.
- É o que parece. Isso indicaria que essa sociedade de magos tinha vínculos com o papado. Talvez os alquimistas de fato tenham se juntado aos cristãos gnósticos daqueles tempos turbulentos, cristãos abertos à busca de conhecimento arcano, os cristãos de Tomé.
- E essa sociedade secreta fundiu-se com a Igreja oficial?
Vigor fez um aceno de cabeça positivo na água turva.
- Quando a Igreja como um todo ficava ameaçada, o mesmo acontecia com a igreja secreta. Por isso eles procuraram salvaguardas. Primeiro transferindo os ossos para a segurança na Alemanha no século XII. Depois, durante os difíceis anos do exílio, eles esconderam o verdadeiro cerne do seu conhecimento.
- Mesmo que isso seja verdade, como é que nos ajuda a encontrar o túmulo de Alexandre? - indagou Kat.
- Assim como as pistas que levavam ao túmulo de São Pedro estavam enterradas nas lendas do catolicismo, as pistas aqui poderiam estar ligadas às mitologias de Alexandre. - Vigor correu um dedo enluvado pela face da estátua. - Por que outro motivo haveriam de marcar a entrada com uma esfinge?
- Os mestres em enigmas dos gregos - murmurou Gray.
- E os monstros matavam imediatamente aqueles que não lhes davam a resposta correta - lembrou-os Vigor. - Talvez a escolha deste símbolo seja uma advertência.
Gray examinou a esfinge, sua expressão enigmática, quando a areia baixou.
- Então é melhor nós solucionarmos este enigma.



12:32h
Descida para aterrissar em Alexandria

O jato particular Gulfstream IV recebeu autorização da torre para aterrissar. Seichan ouvia o tagarelar da tripulação na cabine do piloto através da porta aberta. Ela estava sentada na poltrona mais próxima da porta. A luz do sol resplandecia através da janela à sua direita.
Uma forma imensa aproximou-se à sua esquerda.
Raoul.
Ela continuou a olhar através da janela quando uma asa do jato se inclinou sobre o azul-violeta do Mediterrâneo e alinhou para aproximar-se da pista de aterrissagem.
- Qual é a notícia do seu contato no solo? - perguntou Raoul, mastigando cada palavra.
Ele devia ter notado que ela estava usando o telefone do jato. Ela tocava com os dedos o amuleto com o dragão em seu cordão.
- Os outros ainda estão na água. Se você tiver sorte, eles talvez solucionem esse mistério para você.
- Nós não precisaremos deles para isso.
Raoul afastou-se, indo juntar-se aos seus homens, uma equipe de 16 membros, incluindo o adepto mentor da Corte.
Seichan já havia conhecido o conceituado bibliófilo do Vaticano, o dr. Alberto Menardi, um homem magricela de cabelos grisalhos com uma pele bexiguenta, lábios grossos, olhos estreitos. Ele estava sentado na parte traseira da aeronave, cuidando do nariz fraturado. Ela possuía um dossiê completo sobre ele. Seus vínculos com uma certa organização criminosa siciliana eram profundos. Parecia que nem mesmo o Vaticano poderia impedir que essas ervas daninhas criassem raízes em seu solo. Por outro lado, ela não podia desprezar a inteligência aguçadíssima do homem. Ele tinha um QI três pontos acima do de Einstein.
Fora o dr. Alberto Menardi quem, 15 anos antes, discernira da biblioteca de textos gnósticos da Corte do Dragão a capacidade de o eletromagnetismo liberar a energia dos metais supercondutores. Ele supervisionara o projeto de pesquisa em Lausanne, na Suíça, e testara os efeitos em animais, vegetais e minerais. E quem daria pela falta do ocasional mochileiro suíço solitário? Estas últimas experiências embrulhariam o estômago até mesmo dos piores cientistas nazistas.
O homem também tinha um perturbador fetiche por garotinhas.
Mas não para sexo.
Por esporte.
Ela vira algumas das fotos e gostaria de não tê-las visto. Se já não tivesse sido instruída pela Guilda para eliminar o homem, ela o faria por sua própria conta.
O avião iniciou a descida para aterrissar.
Em algum lugar lá embaixo, a equipe da Sigma trabalhava.
Eles não eram nenhuma ameaça.
Seria tão fácil quanto atirar contra peixes num barril.

CAPÍTULO 12

O enigma da esfinge



26 de julho, 12:41h
Alexandria, Egito

- Lembrem-se daquele maldito peixe - disse Monk pelo rádio da lancha.
Três metros e meio abaixo, Gray olhou para o alto, franzindo o cenho para a quilha balouçante acima. Eles haviam passado os cinco últimos minutos excluindo várias opções. Talvez a esfinge estivesse em cima de um túnel. Mas como eles moveriam uma tonelada de pedra? Eles cogitaram o uso do amálgama, como no túmulo de São Pedro, para fazê-la levitar. Gray tinha um tubo de ensaio com o pó resultante de sua pesquisa dos ossos trazidos de Milão. Porém, para ativá-lo, seria necessário usar algum tipo de eletricidade... o que não era nem um pouco sensato na água.
- De que peixe você está falando, Monk? - indagou Gray. Ele vira ali embaixo peixes suficientes para evitar frutos do mar.
- Do peixe do primeiro enigma - respondeu Monk. - Vocês sabem. O peixe pintado nas catacumbas.
- E o que é que tem isso?
- Eu estou vendo vocês e a estátua pela câmera Aqua-Vu. A esfinge está voltada na direção daquele forte imenso.
Gray olhou fixamente para a estátua. Dali, onde a visibilidade não ia além de cinco metros, era difícil obter um quadro mais amplo. Monk tinha a melhor perspectiva. E um quadro mais amplo era sua especialidade, ver a floresta através das árvores.
- As catacumbas... - murmurou Gray, entendendo a intenção de Monk.
Poderia ser assim tão fácil?
- Vocês se lembram - prosseguiu Monk - de que tivemos de seguir na direção para a qual o peixe estava voltado a fim de encontrarmos a pista seguinte? Talvez a esfinge esteja voltada para a direção da abertura do túnel.
- Talvez Monk esteja certo - disse Vigor. - Estas pistas foram deixadas no início do século XIV. Nós deveríamos considerar o problema da perspectiva do nível de tecnologia daquela época. Não existia equipamento de mergulho na ocasião, mas havia bússolas. Talvez a esfinge nada mais seja que um ponto de referência magnético. Use a sua bússola para descobrir isso. Nade em direção à praia, a fim de verificar em que direção ela está voltada, e depois continue a pé.
- Só existe uma maneira de descobrir - disse Gray. - Monk, mantenha a lancha ancorada aqui até que tenhamos certeza. Nós vamos nadar até a praia.
Gray afastou-se da estátua e esperou até que estivesse longe o bastante para obter uma boa determinação da posição pela bússola sem a interferência magnética da pedra-ímã.
- Okay, vamos ver aonde isto conduz.
Ele pôs-se em movimento, seguido pelos outros, ficando todos juntos.
A praia não era longe. A península elevava-se em forma de escarpa. O fundo arenoso terminava abruptamente num labirinto de blocos de pedra desmoronados esculpidos pelo homem.
- Isto deve ter sido outrora uma parte do Farol de Faros - disse Vigor.
Cracas e anêmonas haviam dominado a área, transformando-a em seu próprio recife. Caranguejos escarafunchavam o leito do mar e peixinhos passavam nadando em disparada.
- Nós deveríamos nos espalhar - disse Kat. - Esquadrinhar a área.
- Não - Gray intuitivamente entendeu o que tinha de ser feito. - Parece que a esfinge magnética está oculta entre as outras esfinges.
Ele afastou-se do fundo, movendo-se acima do recife, mantendo um braço fixo à sua frente, observando a bússola de pulso.
Não demorou muito.
Quando ele passou por cima de um bloco, a agulha da bússola moveu-se com violência e girou. Ele estava a apenas quatro metros da superfície. A frente do bloco tinha cerca de 0,4 m2.
- Aqui - disse.
Os outros juntaram-se a ele.
Kat pegou uma faca e raspou o acúmulo de vida marinha.
- Hematita de novo. Com um magnetismo mais fraco. Você jamais perceberia isso a menos que estivesse procurando.
- Monk - disse Gray.
- Sim, chefe.
- Traga a lancha para cá e baixe âncora.
- Estou a caminho.
Gray examinou as extremidades do bloco. Ele estava cimentado aos outros contíguos - acima, abaixo e dos lados - por corais, areia e densos acúmulos de mexilhões de conchas ásperas.
- Cada um pegue um lado e limpe as extremidades - ordenou ele.
Ele imaginou a laje de hematita sob o túmulo de São Pedro. Ela encobria um túnel secreto. Ele não tinha dúvida de que eles estavam na pista certa.
Pela primeira vez.
Em poucos minutos o bloco estava limpo.
A vibração de um propulsor ecoou pesadamente através da água.
Monk aproximou-se lentamente da orla.
- Eu estou vendo vocês, pessoal - disse ele. - Um bando de rãs listradas sentadas numa rocha.
- Baixe a âncora - disse Gray. - Devagar.
- Lá vai.
Quando a garra de aço maciço baixou da quilha, Gray nadou até ela e ajudou a guiá-la até o bloco de hematita. Ele comprimiu uma das unhas da âncora numa brecha entre o bloco e o outro adjacente a ele.
- Puxe-a para cima - ordenou Gray.
Monk recolheu o cabo da âncora, o qual foi ficando cada vez mais teso.
- Afastem-se todos - advertiu Gray.
O bloco oscilou, fazendo a areia desprender-se dele num turbilhão. Em seguida o fragmento de pedra soltou-se. Ele tinha apenas cerca de trinta centímetros de espessura e rolou pela face do penhasco, quicando com ruídos abafados, e depois caiu pesadamente no fundo arenoso.
Gray esperou o lodo dissipar-se. Seixos continuavam a cair em grande quantidade da parede de rocha. Ele avançou. Na lacuna deixada pela pedra removida, surgiu um espaço escuro.
Gray acendeu a lanterna em seu pulso e dirigiu o feixe de luz para a abertura. A luz iluminou um túnel reto, que se curvava ligeiramente para cima. Era uma passagem apertada, sem espaço para tanques de ar.
Aonde será que o túnel conduzia?
Só havia uma forma de descobrir.
Gray estendeu a mão para as fivelas que prendiam seu tanque de oxigênio e soltou-as movimentando os ombros.
- O que você está fazendo? - perguntou Rachel.
- Alguém tem de dar uma olhada.
- Nós poderíamos despir a câmera Aqua-Vu da lancha - disse Kat - e usar uma vara de pescar ou um remo para empurrá-la para dentro.
O plano não era ruim, mas levaria tempo.
Tempo de que eles não dispunham.
Gray pôs seu tanque numa prateleira de rocha.
- Logo estarei de volta.
Ele inspirou profundamente, desconectou o regulador de sua máscara e então se virou para encarar o túnel.
O espaço seria suficiente.
Ele se lembrou do enigma da Esfinge, de como ele descrevia o primeiro estágio de um homem: andar de gatinhas. Era uma maneira apropriada de entrar.
Gray introduziu a cabeça, os braços estendidos para a frente, a lanterna mostrando o caminho. Ele avançou e deslizou para dentro do túnel apertado.
Quando o túnel o tragou, ele se lembrou da advertência anterior de Vigor acerca do enigma da Esfinge.
Dê a resposta errada... e você está morto.



13:01h

Quando as nadadeiras de Gray desapareceram no túnel, Rachel prendeu a respiração.
Era uma temeridade. E se ele ficasse preso? E se uma parte do túnel desabasse? Uma das formas mais perigosas de mergulho era o mergulho em cavernas. Apenas as pessoas com desejo de morte gostavam daquele esporte.
E elas tinham tanques de ar.
Ela agarrou a borda da face da rocha com os dedos enluvados. O tio Vigor veio para o lado dela e pousou a mão sobre a dela, instando por confiança.
Kat agachou-se junto à abertura. A lanterna dela varava o túnel escuro.
- Eu não o estou vendo.
Rachel segurou na pedra com mais força.
Vigor percebeu o sobressalto dela.
- Ele sabe o que está fazendo. Ele conhece seus limites.
Conhece mesmo?
Rachel havia reconhecido o lado impetuoso dele nas últimas horas, e isso a impressionava e assustava. Ela já passara tempo suficiente com ele. Gray não pensava como as demais pessoas. Ele operava nos limites do senso comum, confiando em seu pensamento e reflexos rápidos para tirá-lo de enrascadas. Mas a mente mais sagaz e os reflexos mais rápidos não ajudariam nenhuma pessoa se uma parede de pedra desabasse em sua cabeça.
Palavras entrecortadas chegaram até ela.
- ...podem... livre... okay...
Era Gray.
- Comandante - disse Kat em voz alta -, suas palavras estão fragmentadas.
- Droga...
Kat olhou de relance para eles. O cenho franzido era claro através da máscara.
- Está melhor? - perguntou Gray, a recepção mais firme.
- Sim, comandante.
- Eu estava fora d'água. Tive de enfiar a cabeça na água outra vez. - A voz dele soava excitada. - O túnel é curto - disse ele. - Uma passagem reta curvada para cima. Se inspirarem fundo e agitarem um pouco as nadadeiras, vocês vão sair bem aqui.
- O que você encontrou? - perguntou o tio Vigor.
- Alguns túneis de pedra. Eles parecem bastante sólidos. Eu vou avançar e explorá-los.
- Eu vou com você - falou Rachel inadvertidamente, lutando com as fivelas de seu colete compensador.
- Primeiro me deixe verificar se é seguro.
Rachel livrou-se do tanque de ar e do colete e os prendeu numa fenda. Gray não era o único corajoso.
- Eu estou indo.
- Eu também - disse o tio dela.
Rachel inspirou e desprendeu a traquéia da máscara. Livre, ela nadou até a abertura do túnel e mergulhou através dele. Estava escuro como breu. Na pressa, ela se esquecera de ligar a lanterna. Porém, quando agitou as pernas e avançou um pouco mais, uma ondulação de luz surgiu apenas três metros à frente.
Sua capacidade de flutuar ajudava a impulsioná-la. A luz aumentou. O túnel alargou-se em ambos os lados.
Poucos instantes depois, ela surgiu subitamente num pequeno tanque.
Gray franziu o cenho ao vê-la. Ele estava de pé na borda de pedra do tanque circular. Uma câmara em forma de tambor abriu-se ao redor dela. Uma caverna artificial. O teto era sustentado por anéis que iam se estreitando, o que dava a impressão de se estar numa minúscula pirâmide em degraus.
Ele estendeu-lhe um braço, e ela não o recusou, olhando embasbacada para a câmara. Ele ajudou-a a sair.
- Você não deveria ter vindo - disse ele.
- E você também não - contrapôs ela, mas seus olhos ainda estavam fixos nos blocos de pedra em torno dela. - Além disso, se este lugar resistiu a um terremoto que pôs abaixo o Farol de Faros, eu acho que ele pode agüentar minhas pegadas.
Pelo menos, era o que ela esperava.


13:04h

Um momento depois, Vigor apareceu, espadanando no tanque.
Gray deu um suspiro. Ele deveria ter tido bom senso suficiente para não tentar manter aqueles dois a distância.
Rachel tirou a máscara e puxou o capuz para trás. Ela sacudiu os cabelos, soltando-os, e em seguida curvou-se para ajudar o monsenhor a sair da água.
Gray manteve a máscara no lugar e enfiou a cabeça na água. O rádio funcionava melhor em contato com a água.
- Kat, continue a postos junto à saída do túnel. Assim que estivermos fora d'água, perderemos contato bem rápido. Monk, se houver algum problema, informe-o à Kat, de modo que ela possa vir nos buscar.
Ambos responderam afirmativamente. Kat parecia irritada.
Monk estava contente de permanecer onde estava.
- Vão em frente. Eu estou de saco cheio de me arrastar em túmulos.
Gray ergueu-se e afinal tirou a máscara. O ar tinha um odor surpreendentemente fresco, se não um odor um pouco penetrante de algas e sal. Devia haver algumas fendas na superfície.
- Um túmulo - disse Vigor, livre da máscara. Ele olhou para o teto de pedra. - Um estilo de túmulo etrusco.
Dois túneis conduziam para fora dali, dispostos um ao lado do outro. Gray estava ansioso para explorá-los. Um era mais alto do que o outro, porém mais estreito, com uma largura que mal dava para um homem passar. O outro era baixo, exigindo que se curvasse um pouco, mas era mais largo.
Vigor tocou os blocos que formavam uma parede.
- Calcário. Cortado e encaixado firmemente, mas parece que... os blocos estão cimentados com chumbo. - Ele virou-se para Gray. - De acordo com o registro histórico, este padrão é o mesmo do Farol de Faros.
Rachel olhou ao redor.
- Isto pode ser parte do farol original, talvez os alicerces de um pavimento ou um porão.
Vigor encaminhou-se para o túnel mais próximo, o mais curto dos dois.
- Vamos ver aonde isto leva.
Gray impediu-o com um braço.
- Primeiro eu.
O monsenhor fez um aceno de cabeça, um pouco apologético.
- É claro.
Gray abaixou-se e apontou a lanterna.
- Economizem as pilhas de suas lanternas por enquanto - instruiu ele. - Nós não sabemos quanto tempo vamos ficar aqui embaixo.
Ele deu um passo à frente e curvou-se sob o teto baixo. Sentiu uma pontada nas costas, devido à contusão causada por uma das balas que o haviam atingido em Milão, o que o fez sentir-se como um velho.
Ele congelou.
Merda.
Vigor chocou-se com ele por trás.
- Afastem-se, afastem-se, afastem-se... - exortou ele.
- O que foi? - Vigor perguntou mas obedeceu.
Gray recuou para a câmara do poço.
Rachel lançou-lhe um olhar estranho.
- O que há de errado?
- Vocês já ouviram a história do homem que teve de escolher entre duas portas, atrás de uma das quais se escondia um tigre e da outra uma mulher?
Rachel e Vigor acenaram positivamente com a cabeça.
- Talvez eu esteja errado, mas eu acho que estamos diante de um dilema semelhante: duas portas. - Gray apontou para cada um dos túneis escuros. - Vocês se lembram do enigma da Esfinge, assinalando as fases da vida do homem: de gatinhas, ereto e curvado? Foi necessário engatinharmos para entrarmos aqui.
Gray lembrou-se de ter pensado naquilo quando entrou no túnel.
- Agora dois caminhos conduzem para a frente - continuou ele. - Um no qual se pode andar ereto e outro em que é necessário curvar-se. Como eu disse, talvez eu esteja errado, mas eu prefiro que sigamos por aquele outro túnel primeiro. O túnel no qual se pode andar ereto, como no segundo estágio da vida do homem.
Vigor olhou para o túnel no qual eles quase haviam entrado. Como arqueólogo, ele deveria saber tudo sobre túmulos com armadilhas. Ele assentiu com um aceno de cabeça.
- Não temos nenhum motivo para nos apressarmos.
- Nenhum motivo em absoluto - disse Gray, contornando o poço até o outro túnel.
Ele ligou a lanterna e seguiu na frente. Só depois de cerca de dez passos é que voltou a respirar.
O ar tornou-se um pouco bolorento. O túnel devia estar conduzindo às profundezas da península. Gray quase podia sentir o peso do forte acima dele.
Na passagem havia uma série de saliências pronunciadas, mas então a luz da lanterna revelou o fim do túnel. Um espaço mais amplo abria-se adiante. O brilho da lanterna refletiu-se em alguma coisa além.
Gray prosseguiu mais devagar.
Os outros comprimiam-se atrás dele.
- O que você está vendo? - perguntou Rachel no fim da fila.
- Espantoso...



13:08h

No monitor da câmera Aqua-Vu, Monk observou Kat esperando junto à entrada do túnel. Ela sentou-se perfeitamente imóvel, flutuando com mínimo esforço, uma forma de economia de energia. Enquanto vigiava, movia-se de maneira sutilíssima, como se estivesse praticando tai chi chuan embaixo d'água. Ela alongou uma perna, girando uma coxa, acentuando a longa curva de seu corpo.
Ele correu um dedo pela tela do monitor.
Um S perfeito.
Perfeito.
Ele sacudiu a cabeça e desviou o olhar. Quem ele estava enganando?
Monk esquadrinhou a extensão plana de águas azuis. Ele usava óculos escuros polarizados, mas agora o brilho constante do sol a pino fazia seus olhos doer.
E o calor...
Mesmo à sombra, devia estar fazendo mais de 38°C. Seu traje seco o esfolava. Ele abrira o zíper, baixara a parte de cima de seu traje e estava de pé com o peito nu. Mas todo o suor parecia ter-se acumulado na sua entreperna.
E agora ele tinha de urinar.
Seria melhor que ele não tivesse tomado as latas de Coca-Cola diet.
Um movimento atraiu seus olhos. Vindo do outro lado da península. Um barco azul-escuro grande e elegante, com uns dez metros de comprimento. Ele prestou atenção às linhas. Não se tratava de um barco comum, e sim de um aerobarco. Corria acima da água, ligeiramente erguido em seus flutuadores que varavam a superfície. Voava desimpedido sobre as ondas suaves, deslizando como um trenó sobre o gelo.
Merda, ele era velocíssimo.
Monk acompanhou a curva que ele fez em torno da península, a 250 metros de distância. Rumava para o Porto Oriental. Era pequeno demais para o transporte de passageiros. Talvez o iate de algum árabe rico. Ele pegou um par de binóculos e procurou o barco, levando um tempo a mais para localizá-lo com precisão.
Na proa, avistou duas garotas de biquíni. Nada de recato resguardado por burkas ali. Monk já havia observado cuidadosamente alguns dos outros barcos próximos ao porto, gravando a posição deles em seu tabuleiro de xadrez mental. Num pequeno iate, uma festa estava no auge, o champanhe jorrava.
Noutra embarcação, semelhante a uma casa flutuante, um casal maduro, nu em pêlo, passava o tempo ociosamente. Parecia que Alexandria era a Fort Lauderdale do Egito.
- Monk - Kat chamou pelo rádio.
Ele usava um fone de ouvido conectado ao transceptor subaquático.
- O que é, Kat?
- Eu estou captando um sinal de estática pulsante pelo rádio. É você?
Ele baixou os binóculos.
- Não, não sou eu. Eu vou verificar o transceptor. Talvez você esteja captando o detector de peixes de alguém.
- Entendido.
Monk correu os olhos ao redor. A velocidade do aerobarco reduzira-se e ele baixara na água, sendo impelido para o outro lado do porto.
Ótimo.
Monk memorizou sua posição entre os outros barcos, mais uma peça no tabuleiro de xadrez. Ele voltou a atenção para o transceptor do Buddy Phone. Girou o controle de amplitude, ouviu um gemido de realimentação e depois reajustou o canal.
- Como está agora? - perguntou ele.
- Melhor. Já passou - respondeu Kat.
Monk sacudiu a cabeça. Merda de equipamento alugado.
- Deixe-me ver se ele dá retorno - disse ele.
- Está bom assim. Obrigada.
Monk olhou o corpo dela na tela da câmera e suspirou. De que adiantava? Ele pegou os binóculos. Onde estavam aquelas duas garotas de biquíni?


13:10h

Rachel entrou por último na câmara. Os dois homens foram cada um para um lado diante dela. Apesar da advertência de Gray para que eles economizassem as pilhas, o tio Vigor havia ligado a lanterna.
Os feixes de luz iluminaram outra sala em forma de tambor, com o teto abobadado. O gesso do teto havia sido pintado de preto. Estrelas prateadas brilhavam intensamente contra o fundo escuro. Mas as estrelas não haviam sido pintadas no teto, eram incrustações metálicas.
O teto refletia-se num tanque de água parada que cobria todo o piso e cuja profundidade parecia chegar à altura dos joelhos. O efeito da imagem refletida na água criava a ilusão de uma perfeita esfera de estrelas, acima e abaixo.
Porém, aquela ainda não era a visão mais espantosa.
No meio da câmara, erguendo-se do tanque d'água, havia uma enorme pirâmide de vidro, da altura de um homem. Ela parecia flutuar no centro da esfera ilusória.
A pirâmide de vidro cintilava com uma tonalidade dourada familiar.
- Será que...? - murmurou o tio Vigor.
- Vidro de ouro - disse Gray. - Um supercondutor gigante.
Eles espalharam-se ao longo da estreita borda de pedra que circundava o tanque. Havia quatro vasos de cobre na água, um em cada canto do tanque.
O tio de Rachel inspecionou um deles e continuou. Lâmpadas antigas, supôs Rachel. Mas eles haviam trazido sua própria iluminação.
Ela estudou a estrutura no meio do tanque. A pirâmide tinha a base quadrangular e quatro lados, como as pirâmides de Gizé.
- Tem alguma coisa dentro dela - disse Rachel.
Os reflexos das faces de vidro da pirâmide tornavam difícil discernir os detalhes no interior dela. Rachel pulou na água, que chegava um pouco acima dos joelhos.
- Cuidado - disse Gray.
- Até parece que você seguiria esse conselho - respondeu ela, avançando em direção à pirâmide.
Pancadas na água atrás dela anunciaram que os outros a haviam seguido. Eles cruzaram o tanque até a estrutura de vidro. Seu tio e Gray reposicionaram suas lanternas para penetrar na pirâmide.
Surgiram duas formas.
Uma estava bem no centro da pirâmide. Era uma escultura de bronze de um dedo gigante, erguido e apontando para cima. Tão grande que ela duvidou que pudesse cingi-la com os braços. O trabalho dos detalhes era magistral, da unha aparada às rugas nos nós.
Porém, foi a forma embaixo do dedo erguido que mais lhe chamou a atenção. Uma figura, de coroa e máscara de ouro, usando uma túnica branca de linhas ondulantes, jazia sobre um altar de pedra. Os braços estavam estendidos de cada lado, semelhantes aos de Cristo. Mas o rosto de ouro era nitidamente grego.
Rachel virou-se para o tio.
- Alexandre, o Grande.
Vigor andou lentamente ao redor, obtendo uma visão de todos os ângulos. Os olhos dele brilharam de lágrimas.
- O túmulo dele... o registro histórico mencionou que sua sepultura era de vidro.
Ele estendeu o braço para tocar uma das mãos estendidas, enterradas apenas alguns centímetros no vidro, em seguida pensou melhor e baixou o braço.
- E o dedo de bronze? - perguntou Gray.
O tio Vigor voltou para onde eles estavam.
- Eu... eu acho que é do Colosso de Rodes, a estátua gigante que se erguia de pernas abertas no porto da ilha. Ela representava o deus Hélio, mas seu modelo foi Alexandre, o Grande. Não se acreditava que ainda existisse alguma parte da estátua.
- Agora este último remanescente tornou-se a lápide de Alexandre - disse Rachel.
- Eu acho que tudo isto é um legado de Alexandre - disse seu tio. - E da ciência e do conhecimento que ele ajudou a fomentar. Foi na Biblioteca de Alexandria que Euclides descobriu as regras da geometria. Tudo aqui ao redor são triângulos, pirâmides, círculos.
Em seguida, o tio Vigor apontou para cima e para baixo.
- A esfera refletida dividida pela água remonta a Eratóstenes, que, em Alexandria, calculou o diâmetro da Terra. Até mesmo a água aqui... ela deve escoar através de pequenos canais a fim de manter o tanque cheio. Foi na Biblioteca de Alexandria que Arquimedes projetou a primeira bomba-d'água em forma de parafuso, ainda hoje em uso.
O tio de Rachel sacudiu a cabeça diante daquela maravilha.
- Tudo isto é um monumento a Alexandre e à Biblioteca de Alexandria perdida.
Isso fez Rachel lembrar-se de algo.
- Não deveria haver livros aqui? Sétimo Severo não escondeu os pergaminhos mais importantes da biblioteca aqui?
Vigor procurou ao redor.
- Eles devem ter sido removidos depois do terremoto, quando as pistas foram ocultadas aqui. O conhecimento deve ter sido tirado e enviado para seja qual for a câmara mortuária oculta que procuramos. Nós devemos estar perto.
Rachel percebeu o tremor na voz do tio. O que mais eles poderiam descobrir?
- Mas, antes de prosseguirmos - disse Gray -, nós temos de solucionar este enigma.
- Não - disse o tio Vigor. - O enigma nem sequer foi exposto ainda. Lembrem-se do que aconteceu no túmulo de São Pedro. Nós temos de passar por algum teste, provar nosso conhecimento, como a Corte do Dragão fez com a sua compreensão do magnetismo. Só depois disso é que o segredo foi revelado.
- Então, o que devemos fazer? - perguntou Gray.
O tio Vigor recuou, os olhos fixos na pirâmide.
- Nós temos de ativar esta pirâmide.
- E como é que nós vamos fazer isso? - indagou Gray.
Vigor virou-se para ele.
- Eu preciso de um pouco de refrigerante.



13:16h

Gray esperou Kat trazer as últimas latas de Coca-Cola. Eles precisavam de mais 12 latas.
- Tem alguma importância se é Coca-Cola diet ou comum? - perguntou Gray.
- Não - respondeu Vigor. - Eu só preciso de alguma coisa ácida. Até mesmo suco de frutas ou vinagre serviriam.
Gray olhou de relance para Rachel. Ela simplesmente sacudiu a cabeça e deu de ombros.
- Você se incomodaria de nos explicar agora? - perguntou ele.
- Lembrem-se de como o magnetismo abriu o primeiro túmulo - disse Vigor. - Nós sabemos que todos os povos antigos conheciam bem o magnetismo. As pedras-ímãs eram amplamente distribuídas e usadas. As bússolas chinesas datam de 200 a.C. Para prosseguirmos, nós temos de provar a nossa compreensão do magnetismo. Foi ele que nos trouxe aqui. Um marcador magnético deixado embaixo d'água.
Gray concordou com um aceno de cabeça.
- Por isso outro prodígio da ciência tem de ser demonstrado aqui.
Vigor foi interrompido pela chegada de Kat. Ela surgiu no poço de entrada, trazendo suspensas mais duas embalagens de seis latas, num total de quatro.
- Nós vamos precisar da ajuda de Kat por alguns minutos - disse Vigor. - São necessárias quatro pessoas.
- Como estão as coisas no convés? - Gray perguntou a Kat.
Ela deu de ombros.
- Tranqüilas. Monk deu um jeito num defeito no rádio.
- Informe a ele que nós estaremos fora do ar por alguns minutos - disse Gray, apreensivo, mas eles precisavam do que quer que estivesse oculto ali.
Kat imergiu, transmitindo a mensagem. Em seguida, saiu do poço, e todos eles voltaram para o túmulo de Alexandre.
Vigor acenou para que eles se dispersassem e apontou para um vaso de cobre na extremidade do tanque. Havia quatro deles.
- Cada um de vocês pegue uma embalagem de seis latas de refrigerante e se posicione perto de um vaso.
Eles espalharam-se.
- Você poderia nos dizer o que estamos fazendo? - perguntou Gray quando chegou ao seu vaso de cobre.
Vigor fez que sim com a cabeça.
- Demonstrando outro prodígio da ciência. O que nós temos de mostrar aqui é o conhecimento de uma força que até os gregos conheciam e à qual chamavam electrikus, nome da carga estática de um tecido esfregado no âmbar. Eles a testemunharam na forma de raios e, ao longo dos mastros de seus veleiros, como fogo-de-santelmo.
- Eletricidade - disse Gray.
Vigor confirmou com um aceno de cabeça.
- Em 1938, um arqueólogo alemão chamado Wilhelm Koenig descobriu vários vasos de argila curiosos no Museu Nacional do Iraque. Eles tinham apenas 15 centímetros de altura e acreditava-se que fossem procedentes da Pérsia, terra natal dos nossos Reis Magos bíblicos. O que havia de estranho nos vasos era o fato de estarem tampados com asfalto, e do alto projetava-se um cilindro de cobre com uma haste de ferro no interior. A conformação era familiar para qualquer pessoa com conhecimento das ciências voltaicas.
Gray franziu o cenho.
- E para as pessoas não-familiarizadas?
- Os vasos... eles eram a conformação exata de células de baterias e receberam o nome de "Baterias de Bagdá".
Gray sacudiu a cabeça.
- Baterias antigas?
- Em 1957, tanto a General Electric quanto a revista Science Digest fizeram réplicas desses vasos. Injetaram vinagre neles, e eles produziram volts de eletricidade significativos.
Gray olhou para o vaso a seus pés, lembrando-se da solicitação de refrigerante, outra solução ácida, pelo monsenhor. Ele notou a haste de ferro sobressaindo do alto do sólido vaso de cobre.
- Você está dizendo que estes vasos são baterias? Duracell Coppertops antigas?
Ele olhou para o tanque. Se o monsenhor estivesse certo, Gray agora entendia por que os jarros estavam no tanque de água do mar. Fosse qual fosse o choque gerado pelas baterias, ele fluiria através da água até a pirâmide.
- Por que nós simplesmente não ativamos a pirâmide usando uma bateria? - perguntou Kat. - Por que não trazemos uma bateria naval da lancha?
Vigor sacudiu a cabeça.
- Eu acho que a ativação está vinculada à quantidade de corrente e à posição das baterias. Quando se trata da magnitude de força nestes supercondutores - especialmente num deste tamanho -, eu creio que nós deveríamos nos ater ao projeto original.
Gray concordou. Ele se lembrou do tremor e da destruição no interior da basílica. Aquilo acontecera com apenas um cilindro de pó no estado m. Ele olhou para a pirâmide gigante e entendeu que seria melhor eles prestarem atenção à recomendação do monsenhor.
- Então, o que devemos fazer? - perguntou Gray.
Vigor abriu uma de suas latas de refrigerante.
- Pelos meus cálculos, nós enchemos completamente as baterias vazias. - Ele correu os olhos pelo grupo. - Ah, e eu sugiro que fiquemos bem afastados.



13:20h

Monk estava sentado atrás do volante da lancha, batendo uma lata de refrigerante vazia na amurada de estibordo. Ele estava cansado de toda aquela espera. Talvez o mergulho com equipamento de respiração subaquática não fosse assim tão mau. A água parecia convidativa à medida que o calor do dia aumentava.
O ronco alto de um motor o fez correr os olhos pelo porto.
O aerobarco, que dera a impressão de ter baixado âncora, estava em movimento outra vez. Ele ouviu a velocidade do motor aumentar. Parecia haver um pouco de agitação no convés.
Ele pegou os binóculos. Era melhor prevenir do que remediar.
Enquanto erguia os binóculos, deu uma olhadela no monitor da câmera Aqua-Vu. O túnel continuava desprotegido.
Por que Kat estava demorando tanto?


13:21h

Gray despejou o conteúdo da terceira lata no núcleo cilíndrico de seu vaso. Pouco depois a Coca-Cola estava borbulhando e escorrendo pelo lado de cobre da bateria. Cheia.
Ele ficou em pé e tomou o último gole de sua lata de refrigerante.
Ugh... diet...
Os outros terminaram mais ou menos ao mesmo tempo, levantando-se e recuando.
Um pouco de gás saiu espumando da parte de cima de todos os cilindros. Nada mais aconteceu. Talvez eles tivessem cometido um erro, ou o uso do refrigerante não desse certo - ou, até mais provável, a idéia do monsenhor não passasse de um disparate.
Então uma centelha dançou da ponta da haste de ferro do vaso de Gray e desceu cascateando pela superfície de cobre para crepitar na água do mar.
Fracos fogos de artifício semelhantes chuviscaram das demais baterias.
- Talvez leve alguns minutos para as baterias formarem e descarregarem uma voltagem adequada - disse Vigor, cuja voz perdera o tom confiante.
Gray franziu o cenho.
- Eu não acho que isto vai...
De todas as baterias, ao mesmo tempo, arcos de eletricidade brilhantes crepitaram através da água, produzindo chamas no fundo do tanque, e atingiram os quatro lados da pirâmide.
- Encostem-se na parede! - gritou Gray.
Sua advertência era desnecessária. Uma explosão de força projetou-se com violência da pirâmide, arremessando-o contra a parede. A pressão fazia Gray sentir-se como se estivesse deitado de costas, a câmara em forma de tambor girando em torno dele, a pirâmide acima, uma volta de cabeça para baixo num brinquedo de um parque de diversões.
No entanto, Gray sabia o que o retinha.
Um campo de Meissner, uma força que podia fazer túmulos levitar.
Então começaram os verdadeiros fogos de artifício.
De todas as faces da pirâmide, explosões crepitantes de raios abalaram o teto, dando a impressão de atingir as estrelas de prata neles incrustadas. Solavancos também agitaram o tanque, como que tentando atacar as estrelas refletidas na água.
Gray sentiu a imagem queimando em sua retina, mas recusou-se a fechar os olhos. Valia a pena correr o risco de ficar cego. Onde os raios atingiam a água, chamas eram expelidas e dançavam na superfície do tanque.
Fogo oriundo da água!
Ele sabia o que estava testemunhando.
A eletrólise da água em gás hidrogênio e oxigênio. O gás liberado entrava em seguida em combustão, começando a arder devido ao jogo de energias ali.
Encurralado pela força, Gray observava o fogo acima e abaixo. Ele mal conseguia compreender o poder que estava sendo desencadeado ali.
Ele havia lido estudos teóricos sobre como um supercondutor poderia armazenar energia, até mesmo luz, dentro de sua matriz por um intervalo de tempo infinito. E, num supercondutor perfeito, até a quantidade de energia ou de luz poderia ser infinita.
Era isso que ele estava testemunhando?
Antes que pudesse entender inteiramente aquilo, as energias de repente extinguiram-se, uma tempestade de raios numa garrafa, brilhante mas breve.
O mundo voltou a ficar a prumo quando o campo de Meissner expirou e seu corpo foi liberado. Gray deu um passo cambaleante para a frente e recobrou o equilíbrio antes de cair no tanque. As chamas dissiparam-se aos poucos na água. Qualquer que fosse a energia aprisionada na pirâmide, ela havia sido consumida.
Ninguém falou.
Reuniram-se em silêncio, precisando da companhia uns dos outros, do contato físico uns dos outros.
Vigor foi o primeiro a fazer um movimento coerente, apontando para o teto.
- Vejam.
Gray esticou o pescoço. A tinta preta e as estrelas persistiam, mas agora letras estranhas brilhavam numa escrita flamejante de um lado ao outro da abóbada do teto.


- É a pista - disse Rachel.
Enquanto eles olhavam, as letras esmaeceram-se rapidamente. Como a pira que ardia na superfície da laje de hematita no túmulo de São Pedro, a revelação durou pouquíssimo tempo.
Gray apressou-se em libertar sua câmera subaquática. Eles precisavam filmar aquilo.
Vigor o reteve.
- Eu sei o que significa. É grego.
- Você pode traduzir?
O monsenhor fez um sinal de cabeça afirmativo.
- Não é difícil. É uma frase atribuída a Platão, descrevendo como as estrelas nos afetam e são na verdade um reflexo nosso. Ela tornou-se a base da astrologia e a pedra angular da crença gnóstica.
- Qual é a frase? - perguntou Gray.
- "Tudo o que está acima é como o que está abaixo."
Gray olhou fixamente para o teto estrelado e para o reflexo na água. Acima e abaixo. Ali estava o mesmo sentimento expresso em termos visuais.
- Mas o que isso quer dizer?
Rachel havia se afastado do grupo. Ela deu uma volta lentamente pela sala e gritou do outro lado da pirâmide:
- Venham cá!
Gray ouviu um baque na água.
Eles correram para onde ela estava. Rachel avançava em direção à pirâmide.
- Cuidado - advertiu Gray.
- Olhem - disse ela, apontando.
Gray contornou a quina da pirâmide e viu o que a tinha excitado. Uma minúscula parte da pirâmide, de 15cm2, tinha desaparecido no meio de uma de suas faces, se dissolvido, se consumido durante a tempestade de fogo. Dentro do buraco, uma das mãos estendidas de Alexandre, o Grande, estava fechada.
Rachel estendeu a mão para ela, mas Gray afastou-a.
- Me deixe fazer isso - disse ele.
Ele estendeu a mão e tocou a de Alexandre, contente por ainda estar usando suas luvas de mergulho. A carne quebradiça parecia pedra. Entre os dedos fechados, um pouco de ouro cintilava.
Com os dentes cerrados, Gray quebrou um dos dedos, percebendo um grito sufocado de Vigor.
Não foi possível evitar aquilo.
Do punho, Gray removeu uma chave de ouro de 7,5 centímetros de comprimento, com dentes grossos, uma das extremidades com a forma de cruz. Ela era surpreendentemente pesada.
- Uma chave - disse Kat.
- Mas de que fechadura? - perguntou Vigor.
Gray afastou-se.
- De onde quer que tenhamos de ir em seguida.
Seus olhos ergueram-se para o teto, para onde as letras haviam-se desvanecido.
- Tudo o que está acima é como o que está abaixo - repetiu Vigor, observando a direção do olhar dele.
- Mas qual é o significado? - murmurou Gray. Ele guardou a chave no bolso da coxa. - Aonde ela nos diz para irmos?
Rachel dera um passo atrás. Ela lentamente deu uma volta completa na sala, examinando-a com atenção, e parou, o olhar fixo em Gray. Os olhos dela brilhavam intensamente. Ele agora conhecia aquele olhar.
- Eu sei por onde devemos começar.



13:24h

No compartimento elevado do piloto do aerobarco, Raoul vestiu seu traje úmido. O barco pertencia à Guilda. A Corte do Dragão pagara uma pequena fortuna pelo aluguel dele, mas hoje não poderia haver erros.
- Faça-nos chegar o mais perto possível, numa curva extensa, sem levantarmos suspeita - ordenou ele ao capitão, um negro africano com minúsculas cicatrizes nas faces.
Duas jovens, uma negra e a outra branca, flanqueavam o homem. Elas usavam biquíni, seu equivalente de um equipamento de camuflagem, mas seus olhos brilhavam com a promessa de força letal.
O capitão ignorou Raoul, mas deu uma guinada no volante e a embarcação descreveu um ângulo para o lado.
Raoul afastou-se do capitão e suas mulheres, dirigindo-se à escada de acesso ao convés inferior.
Ele detestava estar a bordo de uma embarcação que não estivesse sob sua autoridade direta. Desceu a escada e foi juntar-se à equipe de 12 homens que mergulhariam. Os outros três homens operariam as armas de fogo engenhosamente montadas na proa e em ambos os lados da popa. O último membro de sua equipe, o dr. Alberto Menardi, estava abrigado numa das cabines, preparando-se para deslindar os enigmas.
E havia um acréscimo indesejável à equipe.
A mulher.
Seichan estava em pé com o traje úmido parcialmente aberto até o umbigo. Seus seios mal estavam ocultos por trás do neoprene. Ela estava junto aos seus tanques e ao seu trenó Aquanaut. Os pequenos trenós aquáticos para uma única pessoa eram impulsionados por jatos de propulsão duplos e faziam um mergulhador deslizar pela água a velocidades vertiginosas.
A eurasiana olhou de relance para ele. Raoul achava repulsiva a herança mista dela, mas ela dava para o gasto. Os olhos dele percorreram a cintura e o peito nus da mulher. Dois minutos a sós com ela, e ele removeria do rosto dela aquele constante e afetado sorriso de desdém.
Mas, por ora, a piranha tinha de ser tolerada.
Aquele era o território da Guilda.
Seichan insistira em acompanhar a equipe de assalto.
- Só para observar e dar conselhos - dissera ela ronronando. - Mais nada.
No entanto, ele avistou a arma de pesca subaquática entre a pilha do equipamento de mergulho dela.
- Nós vamos evacuar em três minutos - disse Raoul.
Eles desceriam ao mar quando o aerobarco reduzisse a velocidade para contornar a península, apenas turistas dando uma olhada mais de perto no antigo forte. A partir dali, seguiriam a nado para suas posições. O aerobarco ficaria à espera, pronto para intervir com suas armas, se necessário.
Seichan puxou com força o zíper de seu traje de mergulho.
- Eu mandei o operador de rádio interferir intermitentemente nas comunicações deles. Portanto, quando os rádios deles saírem por completo do ar, eles sentirão menos suspeita.
Raoul concordou com um aceno de cabeça. Ela prestava para alguma coisa. Ele lhe concederia aquela deferência.
Checando o relógio pela última vez, ele ergueu um braço e fez um gesto circular com um dedo.
- Fiquem a postos - disse ele.



13:26h

De volta ao túnel de acesso ao túmulo de Alexandre, Rachel ajoelhou-se no piso de pedra. Ela trabalhava no seu projeto, preparando-se para provar seu ponto de vista.
Gray disse a Kat:
- É melhor você voltar para a água. Cheque a situação com Monk. Isto demorou mais do que os poucos minutos que havíamos dito a ele. Ele deve estar ficando impaciente.
Kat acenou positivamente com a cabeça, mas seus olhos percorreram a sala e pousaram na pirâmide-túmulo. Relutante, ela virou-se e dirigiu-se ao túnel que dava para o poço de entrada.
Vigor terminou sua própria inspeção da câmara do túmulo. Seu rosto ainda estava excitado de assombro.
- Eu não acho que ela vai inflamar-se daquele jeito de novo.
Ao lado de Rachel, Gray acenou a cabeça em concordância.
- A pirâmide de ouro deve ter agido como um capacitor. Ela armazenou sua energia, perfeitamente preservada dentro de sua matriz supercondutora... até a carga ser liberada pelo choque, criando uma reação em cascata que esvaziou a pirâmide.
- Isso quer dizer - disse Vigor - que, mesmo que a Corte do Dragão descubra esta câmara, eles nunca serão capazes de descobrir o enigma.
- Nem de obter a chave de ouro - disse Gray, batendo de leve no bolso da coxa. - Finalmente, nós estamos um passo à frente deles.
Rachel sentiu o alívio e a satisfação na voz dele.
--Mas primeiro nós temos de solucionar este enigma - ela lembrou-o. - Eu tenho uma vaga idéia de onde devemos começar, mas nenhuma resposta ainda.
Gray aproximou-se dela.
- Em que você está trabalhando?
Ela havia aberto um mapa do Mediterrâneo nas pedras, o mesmo mapa que usara para demonstrar que a inscrição na laje de hematita representava a costa do Mediterrâneo oriental. Com uma caneta hidrográfica preta, ela marcara cuidadosamente pontos no mapa e atribuíra um nome a cada um deles.
Reclinando-se, ela moveu um braço na direção da câmara do túmulo.
- A frase - "Tudo o que está acima é como o que está abaixo" - destinava-se originalmente a introduzir a posição das estrelas nas nossas vidas.
- Astrologia - disse Gray.
- Não exatamente - argumentou Vigor. - As estrelas de fato governavam as civilizações antigas. As constelações eram os cronômetros das estações, os marcos para viagens, a morada dos deuses. As civilizações reverenciavam-nas construindo seus monumentos como um reflexo da noite estrelada. Uma nova teoria sobre as três pirâmides de Gizé é a de que elas foram alinhadas daquela forma para corresponder às três estrelas do cinturão de Órion. Até em tempos mais recentes, cada catedral ou basílica católica é construída ao longo de um eixo leste-oeste, a fim de assinalar o nascer e o pôr-do-sol. Nós ainda respeitamos essa tradição.
- Então nós devemos procurar padrões - disse Gray. - Posições significativas de algo no céu ou na Terra.
- E o túmulo está nos dizendo a que devemos prestar atenção - disse Rachel.
- Então eu devo estar surdo - disse Gray.
O tio de Rachel também havia imaginado isso àquela altura.
- O dedo de bronze do Colosso - disse ele, olhando para o túmulo. - A pirâmide gigante, talvez representando a maior pirâmide de Gizé. Os restos do Farol de Faros acima de nós. Até mesmo o túmulo em forma de tambor poderia aludir ao Mausoléu de Halicarnasso.
- Me desculpe - disse Gray franzindo o cenho. - Mausoléu de quê?
- Era uma das Sete Maravilhas - disse Rachel. - Lembre-se de como Alexandre estava estreitamente vinculado a todas elas.
- Certo - disse Gray. - Alguma coisa a respeito de seu nascimento coincidir com uma delas e sua morte com outra.
- O Templo de Artemis - disse Vigor com um aceno de cabeça. - E os Jardins Suspensos de Babilônia. Todos estavam relacionados com Alexandre... até aqui.
Rachel apontou para o mapa no qual estava trabalhando.
- Eu marquei todos os lugares onde elas se situavam. Elas estavam espalhadas através do Mediterrâneo oriental e estão localizadas na mesma região mapeada na laje de hematita.
Gray estudou o mapa.
- Você está dizendo que nós temos de procurar um padrão entre todas as sete?
- "Tudo o que está acima é como o que está abaixo" - citou Vigor.
- Mas por onde começamos? - perguntou Gray.
- O tempo - disse Rachel. - Ou, antes, a progressão do tempo, conforme o enigma da Esfinge a ele alude. O movimento do nascimento à morte.















Os olhos de Gray estreitaram-se e em seguida arregalaram-se de compreensão.
- A ordem cronológica. Quando as Maravilhas foram construídas.
Rachel confirmou com um aceno de cabeça, dizendo:
- Mas eu não sei a ordem.
- Eu sei - disse Vigor. - Que arqueólogo da região não saberia?
Ele ajoelhou-se e pegou a caneta hidrográfica.
- Eu acho que Rachel tem razão. A primeira pista que deu início a tudo isto foi oculta num livro no Cairo, perto de Gizé. As pirâmides também são as mais antigas das Sete Maravilhas. - Ele pôs a ponta da caneta sobre Gizé. - Eu acho interessante que este túmulo se situe embaixo do Farol de Faros.
- Por quê? - perguntou Gray.
- Porque o farol foi a última das Maravilhas a ser construída. Da primeira à última. Isto também pode indicar que, aonde quer que vamos em seguida, talvez seja o fim da linha. O ponto final.
O tio Vigor inclinou-se e cuidadosamente traçou linhas que ligavam as Sete Maravilhas pela ordem de construção.
- De Gizé a Babilônia, em seguida até Olímpia, onde a estátua de Zeus se erguia.
- O suposto pai verdadeiro de Alexandre - lembrou Rachel.
- Daí vamos até o Templo de Artemis em Éfeso, depois até Halicarnasso, em seguida até a ilha de Rodes... até finalmente alcançarmos nosso próprio ponto no mapa. Alexandria e seu famoso farol.
O tio de Rachel reclinou-se.
- Alguém ainda está se perguntando se nós não estamos na pista certa?
Rachel e Gray olharam para o resultado do trabalho dele.
- Deus do céu... -- exclamou Gray.
- As linhas formam uma ampulheta perfeita - disse Rachel.
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo.















- O símbolo da própria passagem do tempo. Formado por dois triângulos. Lembrem-se de que o símbolo egípcio do pó branco que os faraós consumiam era um triângulo. Na verdade, os triângulos também simbolizavam a pedra benben dos egípcios, um símbolo do conhecimento sagrado.
- O que é uma pedra benben?- perguntou Gray.
Rachel respondeu:
- Eram os remates colocados na ponta dos obeliscos e das pirâmides egípcios.
- Mas eles quase sempre são representados por triângulos na arte - acrescentou o tio dela. - Na verdade, você pode ver um no verso das suas cédulas de dólar. A moeda americana exibe uma pirâmide com um triângulo suspenso sobre ela.
- O triângulo com um olho no seu interior - disse Gray.
- Um olho que tudo vê - corrigiu Vigor. - Um símbolo daquele conhecimento sagrado sobre o qual eu estava falando. Isso nos faz perguntar a nós mesmos se essa sociedade de magos antigos não exerceu alguma influência sobre as primeiras fraternidades de seus antepassados. - A última frase foi dita com um sorriso. - Mas, sem dúvida, quanto aos egípcios, parece existir um tema subjacente de triângulos, conhecimento sagrado, tudo vinculado ao misterioso pó branco. Até mesmo o nome benben faz essa associação.
- O que você quer dizer? - disse Rachel, intrigada.
- Os egípcios atribuíam significado à grafia de suas palavras. Por exemplo, a-i-s, em egípcio antigo, é traduzido por "cérebro", mas, se a grafia for invertida para s-i-a, essa palavra significa "consciência". Eles usavam a própria grafia das palavras para associar os dois: a consciência ao cérebro. Voltemos agora a benben. A letras b-e-n são traduzidas por "pedra sagrada", como eu mencionei, mas vocês sabem o que obtêm se a escreverem ao contrário?
Rachel e Gray deram de ombros ao mesmo tempo.
- N-e-b é traduzido por "ouro".
Gray ficou estupefato.
- Quer dizer então que o ouro está relacionado com a pedra sagrada e o conhecimento sagrado.
Vigor concordou com um aceno de cabeça.
- Foi no Egito que tudo isto começou.
- Mas onde é que termina? - perguntou Rachel, olhando para o seu mapa. - Qual é o significado da ampulheta? De que forma ela aponta para o próximo local?
Todos eles olharam para o túmulo piramidal.
Vigor sacudiu a cabeça.
Gray ajoelhou-se.
- É a minha vez de examinar o mapa.
- Você tem uma idéia?
- Você não precisa parecer tão chocado.



13:37h

Gray começou a trabalhar, usando as costas de sua faca como uma espécie de régua. Ele tinha de pôr aquilo em ordem. Com a caneta hidrográfica na mão, falou enquanto trabalhava, sem erguer os olhos.
- Esse dedo enorme de bronze - disse ele. - Vocês vêem como ele está bem no centro da sala, posicionado sob a cúpula?
Os outros olharam para o túmulo. A água havia readquirido o mesmo reflexo sem movimento. A paisagem estrelada no teto abobadado estava perfeitamente refletida na água outra vez, criando a ilusão de uma esfera estrelada.
- O dedo está posicionado como o pólo norte-sul daquela miragem esférica. O eixo em torno do qual o mundo gira. E agora olhem para o mapa. Que ponto assinala o centro da ampulheta?
Rachel inclinou-se mais para perto e leu o nome ali.
- A ilha de Rodes - disse ela. - De onde o dedo veio.
Gray sorriu por causa da admiração na voz dela. Foi pela revelação ou pelo fato de ele ter descoberto isso?
- Eu acho que nós devemos encontrar o eixo através da ampulheta - disse ele, pegando a caneta hidrográfica e traçando uma linha que dividia a ampulheta ao meio verticalmente. - E aquele dedo de bronze aponta para o pólo norte - prosseguiu ele, usando a lâmina de sua faca como um guia, e estendeu a linha para o norte.
A caneta parou numa cidade conhecida e importante.

- Roma - Rachel leu no mapa.
Gray recostou-se.
- O fato de toda esta geometria apontar exatamente para Roma deve ser significativo. Deve ser para onde temos de ir em seguida. Mas aonde em Roma? Novamente ao Vaticano?
Ele olhou para os outros.
A testa de Rachel havia se enrugado.
Vigor ajoelhou-se lentamente.
- Eu acho, comandante, que você está certo e errado. Posso examinar a sua faca?
Gray passou-a para ele, contente em deixar o monsenhor usurpar sua posição.
Ele moveu a lâmina da faca sobre o mapa.
- Humm... dois triângulos - disse ele, batendo de leve na forma da ampulheta.
- O que isso significa?
Vigor sacudiu a cabeça, os olhos concentrados.
- Você tinha razão ao dizer que esta linha chega até Roma. Mas não é para onde devemos ir.
- Como é que você sabe?
- Lembre-se das múltiplas camadas de enigmas neste caso. Nós temos de olhar mais a fundo.
- Para onde?
Vigor correu o dedo pela lâmina, estendendo a linha além de Roma.
- Roma foi apenas a primeira parada.
Ele continuou a traçar a linha imaginária mais para o norte, até a França, parando num ponto um pouco ao norte de Marselha.
Vigor fez um aceno de cabeça e sorriu.
- Muito inteligente.
- O quê?
Vigor tornou a passar a faca e bateu de leve no ponto.
- Avignon.
Rachel emitiu um grito sufocado.














Gray não entendeu a importância daquilo. Sua expressão confusa deixava isso claro.
Rachel virou-se para ele.
- Avignon é o lugar na França no qual o papado se exilou no início do século XIV, tornando-se a sede do poder pontifício por quase um século.
- A segunda sede do poder pontifício - enfatizou Vigor. - Primeiro Roma, depois a França. Dois triângulos, dois símbolos de poder e conhecimento.
- Mas como é que podemos ter certeza? - perguntou Gray. - Talvez nós estejamos exagerando na interpretação.
Vigor afastou a preocupação dele.
- Lembre-se, nós já tínhamos determinado a data em que julgamos que as pistas foram deixadas, quando o papado deixou Roma. A primeira década do século XIV.
Gray fez um aceno de cabeça, porém não estava totalmente convencido.
- E esses alquimistas astuciosos nos deixaram outra camada do enigma para ajudar a determinar firmemente este local. - Vigor apontou para a forma no mapa. - Quando você acha que a ampulheta foi inventada?
Gray sacudiu a cabeça.
- Eu supunha que ela tivesse sido inventada pelo menos há alguns milhares de anos... talvez mais.
- Por estranho que pareça, a invenção da ampulheta ocorreu na época dos primeiros relógios mecânicos. Há apenas 700 anos.
Gray fez o cálculo mentalmente.
- Isso a situaria no início do século XIV.
- Marcando o tempo, como todas as ampulhetas devem fazer, de volta à criação do papado francês.
Gray sentiu um tremor percorrer seu corpo. Agora ele sabia aonde eles tinham de ir em seguida com a chave de ouro. A Avignon, ao Vaticano francês.
- Vamos sair daqui - disse Gray, conduzindo-os rapidamente pelo túnel até o poço de entrada.
- E o túmulo? - indagou Vigor.
- O anúncio da descoberta terá de esperar por outra ocasião. Se a Corte do Dragão chegar fazendo alarde, eles descobrirão que estão atrasados demais.
Gray entrou correndo na câmara do outro lado. Ajoelhou-se, ajustou a máscara no rosto e enfiou a cabeça na água, preparando-se para informar os outros da boa notícia.
Assim que sua cabeça atingiu a água, seu rádio zumbiu, irritante e alto.
- Kat... Monk... vocês estão me ouvindo?
Não houve resposta. Gray lembrou-se de Kat ter mencionado algum defeito nos Buddy Phones. Ele ouviu por um momento mais longo. Seu coração bateu mais forte no peito.
Droga.
Ele tirou a cabeça da água.
Aquele ruído branco não era estática. Eles estavam sendo bloqueados.
- O que foi? - perguntou Rachel.
- A Corte do Dragão. Eles já estão aqui.
























CAPÍTULO 13

Sangue na água



26 de julho, 13:45h
Alexandria, Egito

Kat emergira subitamente nas ondas suaves.
Fazia dez minutos que o rádio dela emudecera. Ela viera checar com Monk e o encontrara com os binóculos fixos no rosto.
- O rádio... - começou ela.
- Alguma coisa deu errado - disse ele, interrompendo-a. - Chame os outros.
Ela reagiu na mesma hora, saltando no mar, agitando as pernas com força. O peso a impulsionou num mergulho vertical. Ela removeu com urgência o ar de seu colete compensador e afundou imediatamente.
Mergulhando em direção ao túnel, estendeu a outra mão para soltar as presilhas que seguravam seu colete e seu tanque de ar. O movimento à entrada reteve seus dedos.
A forma nítida de um mergulhador projetou-se do túnel. A listra azul no traje preto identificou o nadador como o comandante Pierce. Um gemido contínuo enchia seus ouvidos, impedindo-a de comunicar a urgência.
Mas ela logo constatou que não era necessário.
Duas outras formas saíram do túnel atrás do comandante.
Vigor e Rachel.
Kat girou, ficando em posição vertical. Desligando seu Buddy Phone para pôr fim ao gemido, ela nadou em direção a Gray. Ele devia ter-se dado conta de que o ruído no rádio significava encrenca. Ele simplesmente lançou um olhar intenso para ela através de sua máscara e apontou um braço para cima interrogativamente.
Estava tudo em ordem lá em cima?
Ela lhe deu um sinal positivo. Não havia nenhum inimigo lá em cima. Pelo menos, ainda não.
Gray não se deu o trabalho de proteger os tanques abandonados. Ele acenou para que os outros subissem. Eles afastaram-se das rochas e seguiram para a quilha da lancha.
Ao lado, Kat notou que a âncora estava sendo levantada.
Monk estava se preparando para uma partida imediata.
Kat encheu o colete compensador e nadou para cima, lutando contra a resistência de seu tanque de ar e de seu cinto de chumbo. Acima, os outros já estavam chegando à superfície.
Um gemido novo e forte encheu os ouvidos dela.
Dessa vez não era o rádio.
Ela esquadrinhou as águas à procura da fonte, mas a visibilidade na enseada poluída era baixa. Alguma coisa aproximava-se... aproximava-se rapidamente.
Como oficial do serviço de inteligência da Marinha, ela havia passado muito tempo a bordo de todos os tipos de embarcações, inclusive submarinos. Ela reconheceu o zumbido contínuo.
Um torpedo.
Aprisionados na lancha.
Ela moveu-se violentamente para cima, porém sabia que jamais os alcançaria a tempo.



13:46h

Monk engrenou o motor da lancha enquanto vigiava o aerobarco através dos binóculos. Ele acabara de desaparecer atrás da extremidade da península. Mas ele o observara reduzir a velocidade de maneira suspeita alguns segundos atrás, a uns duzentos metros de distância. Não havia mais nenhuma atividade reveladora no convés da popa, mas ele notara uma seqüência ondulante de bolhas na esteira da embarcação enquanto ela se afastava deslizando lentamente.
Em seguida ele ouvira o gemido através do rádio.
Kat apareceu alguns segundos depois.
Eles tinham de sair dali. Alguma coisa nas suas entranhas lhe dizia isso.
- Monk! - gritou uma voz. Era Gray, vindo à tona a bombordo.
- Graças a Deus.
Ele começou a baixar os binóculos quando avistou um objeto veloz como um raio avançando através da água. Uma barbatana abria caminho através das ondas. Uma barbatana de metal.
- Maldição...
Baixando os binóculos, Monk empurrou o acelerador até o fim. A lancha deu um solavanco para a frente com um guincho do motor. Ele girou o volante para estibordo. Para longe de Gray.
- Todo o mundo para baixo! - gritou, puxando a máscara sobre o rosto. Ele não teve tempo de fechar o zíper de seu traje.
Com a lancha inclinando-se sob ele, Monk correu para a popa, subiu no banco traseiro e jogou-se na água.
O torpedo atingiu-a logo em seguida. A força da explosão projetou-o de pernas para o ar. Alguma coisa o golpeou no quadril, chacoalhando até os seus dentes. Ele atingiu a água, rolando pela superfície, perseguido por um rastro de chamas.
Antes que as chamas pudessem alcançá-lo, ele afundou no aconchego fresco do mar.

Rachel viera à tona no momento exato em que Monk gritou. Ela o viu correr para a popa da lancha. Reagindo ao pânico dele, ela tomou impulso para baixo e girou para mergulhar.
Então ocorreu a explosão.
O choque através da água feriu os ouvidos dela, mesmo através do grosso capuz de neoprene. Ela ficou sem ar. As saias que vedavam sua máscara romperam-se e a água do mar a invadiu.
Ela voltou à superfície, cega, os olhos doendo.
Com a cabeça fora d'água, esvaziou a máscara, tossindo e engasgando.
Detritos continuavam a cair em grande quantidade na água. Restos da lancha fumegavam e balançavam na superfície. Rios de gasolina em chamas deslizavam sobre as ondas.
Ela esquadrinhou as águas.
Ninguém.
Então, à sua esquerda, uma forma debatendo-se irrompeu da água. Era Monk, atordoado e engasgando.
Ela aproximou-se dele e segurou um de seus braços. A máscara dele tinha dado meia-volta na cabeça. Ela firmou-o enquanto ele se esforçava para vomitar.
- Maldição - disse ele ofegante, e puxou a máscara com força ao redor da cabeça.
Ouviu-se um novo ruído propagando-se pela água. Ambos viraram-se.
Rachel viu um grande aerobarco contornar o forte, inclinado para cima nos flutuadores. Ele deu a volta, vindo na direção deles.
- Para baixo! - exortou Monk.
Eles desapareceram juntos sob a água. A explosão havia revolvido a areia, reduzindo a visibilidade a poucos metros.
Rachel apontou na direção vaga da entrada do túnel, perdida na escuridão. Eles tinham de pegar os tanques abandonados, uma fonte de ar extremamente necessária.
Chegando à pilha de rochas, ela olhou ao redor à procura da entrada do túnel, à procura dos outros. Onde é que eles estavam?
Ela deslocou-se ao longo do monte de blocos de pedras. Monk acompanhou-a, mas lutava com seu traje de mergulho, que ele fechara apenas até a metade. A parte superior do traje agitava-se e enrolava-se.
Onde estavam os tanques? Será que ela se confundira?
Uma forma escura passou acima deles, bem distante da praia. O aerobarco. Pela reação de Monk, era a fonte dos problemas deles.
Uma pressão que ardia se formou nos pulmões de Rachel.
Uma luz brilhou na escuridão à frente. Ela moveu-se instintivamente em direção a ela, esperando encontrar seu tio ou Gray. Das trevas, surgiram de repente dois mergulhadores, equilibrados em trenós aquáticos motorizados. O lodo subia em espirais atrás deles.
Os mergulhadores deram a volta a fim de encurralá-los contra a praia.
Iluminadas pelas lanternas deles, pontas de flechas de aço cintilavam. Armas de pesca subaquática.
Para enfatizar a ameaça, ouviu-se um sibilo repentino. Um arpão de aço voou como um raio em direção a Monk, arremessando-o para o lado. O arpão atravessou a metade solta de seu traje de mergulho, rasgando-a.
Rachel ergueu as mãos, voltada para os mergulhadores.
Um deles apontou um polegar, ordenando-lhes que subissem à superfície.
Pegos.


Gray ajudou Vigor.
O monsenhor chocou-se contra ele quando a lancha explodiu. Um pedaço de fibra de vidro acertara o lado de sua cabeça, rasgando seu traje de neoprene. O sangue jorrava do corte. Gray não tinha como avaliar o ferimento, mas o homem mais velho estava atordoado.
Gray conseguira alcançar os tanques de ar e agora ajudava a prender um deles às costas do monsenhor. Vigor acenou para ele quando o ar fluiu. Gray pegou um segundo tanque e rapidamente reconectou seu regulador.
Ele inspirou profundamente várias vezes.
Ele olhou para a abertura do túnel. Eles não encontrariam refúgio ali.
A Corte do Dragão com certeza iria até lá. Gray não seria encurralado noutro túmulo.
Gray pegou seu tanque e apontou para longe.
Vigor concordou com um aceno de cabeça, mas seu rosto esquadrinhou as águas turvas.
Gray interpretou o medo dele.
Rachel.
Eles tinham de sobreviver para poder ajudar. Gray afastou-se, conduzindo Vigor. Eles encontrariam um nicho em meio ao monte de blocos de pedra e detritos para se esconderem. Antes, ele notara um esquife naufragado enferrujado a cerca de dez metros, emborcado e inclinado contra as rochas.
Ele guiou Vigor ao longo do recife. O barco naufragado apareceu. Ele acomodou o monsenhor à sombra do barco, fez um sinal para Vigor permanecer ali e em seguida pôs seu tanque às pressas, deixando os braços livres.
Gray apontou para fora e fez um movimento circular.
Eu vou procurar os outros.
Vigor concordou com um aceno de cabeça, tentando - era a impressão que se tinha - parecer esperançoso.
Gray voltou em direção ao túnel, mantendo-se próximo ao leito do mar. Se fosse possível, os outros se dirigiriam aos tanques de ar. Ele moveu-se furtivamente de sombra em sombra, mantendo-se junto aos blocos de pedra.
Quando se aproximava da entrada do túnel, um brilho aumentou de intensidade. Ele diminuiu o ritmo. Luzes individuais diferenciaram-se, projetando-se sobre as rochas e voltadas para fora.
Ele esgueirou-se para a escuridão por trás de um fragmento de rocha e espreitou.
Mergulhadores de traje preto aglomeravam-se em torno da abertura do túnel. Eles usavam minitanques, contendo ar suficiente para menos de vinte minutos, feitos para mergulhos curtos.
Gray observou um mergulhador penetrar na abertura e desaparecer.
Depois de alguns segundos, os outros devem ter recebido alguma confirmação. Mais cinco mergulhadores precipitaram-se um após o outro no túnel. Gray reconheceu a última forma elegante a desaparecer no poço do túmulo.
Seichan.
Gray afastou-se. Nenhum de seus colegas de equipe iria ali agora.
Quando ele saiu do esconderijo, uma forma assomou à sua frente, surgindo do nada. Grande. A ponta afiada de um arpão pressionou a carne de sua barriga.
Luzes brilharam em torno dele.
Por trás da máscara, Gray reconheceu as feições rudes de Raoul.


Rachel ajudou a libertar Monk. O arpão havia prendido uma aba de seu traje de mergulho no leito do mar. Ela puxou com força, soltando-o.
A dois metros de distância, os dois mergulhadores flutuavam em seus trenós aquáticos, como surfistas em pranchas quebradas. Um deles acenou para que eles subissem à superfície. Agora.
Rachel não necessitava da exortação.
Enquanto ela obedecia, uma sombra escura moveu-se rapidamente acima e atrás dos dois mergulhadores.
O quê...?
Dois clarões prateados bruxulearam.
Um mergulhador segurou a traquéia da máscara dele. Tarde demais. Através da máscara do homem, Rachel viu sua respiração ofegante extinguir-se num jorro de água do mar. O outro teve menos sorte ainda: foi arrancado de seu trenó por uma faca alojada na garganta.
O sangue espalhou-se numa nuvem.
O agressor puxou a lâmina e a nuvem ficou mais espessa.
Rachel divisou a listra cor-de-rosa no traje negro do agressor.
Kat.
O primeiro mergulhador asfixiou-se e contorceu-se, afogando-se em sua máscara. Ele tentou escapar para a superfície, mas Kat estava lá, com facas em ambas as mãos, que o liquidaram com eficiência brutal.
Kat chutou o corpo dele, que, tornado mais pesado pelo tanque e pelo cinto de chumbo, foi arrastado para as profundezas.
Ao terminar, ela levou o trenó dele para Rachel e Monk, apontou para a superfície e em seguida para o trenó.
Para fugirem rapidamente.
Rachel não tinha a menor idéia de como operar o veículo, mas Monk sim. Ele subiu na meia-prancha, segurou nos controles parecidos com um guidom e acenou para Rachel montar em suas costas, indo na garupa.
Ela o fez, passando os braços em torno dos ombros dele. As luzes agora dançavam no canto de seus olhos.
Kat nadou até o outro trenó, tendo na mão uma arma de pesca subaquática.
Monk girou o acelerador manual, e o trenó os levou embora, para cima, para a segurança, para o ar fresco.
Eles irromperam das ondas como uma baleia saltando para fora d'água e depois chocaram-se súbita e impetuosamente contra a superfície. Rachel estava abalada, mas continuou segurando firme. Monk saiu a toda a velocidade pelas águas tranqüilas, ziguezagueando por entre os detritos em chamas. Uma espessa camada de óleo cobria a água.
Rachel arriscou soltar uma das mãos para tirar a máscara, sorvendo o ar.
Ela também puxou a máscara de Monk para cima.
- Ai! - disse ele. - Cuidado com o nariz.
Eles passaram pelo casco emborcado da lancha deles - apenas para depararem com a longa forma do aerobarco esperando por eles à esquerda.
- Talvez eles não tenham nos visto - sussurrou Monk.
Armas de fogo matraquearam, cuspindo balas através da água, bem na direção deles.
- Agüente firme! - gritou Monk.


A ponta do arpão de Raoul fez Gray sair de seu esconderijo. Outro mergulhador ergueu um segundo arpão ao lado da garganta dele.
Quando Gray se moveu, uma faca empunhada por Raoul o golpeou.
Ele retraiu-se, mas a lâmina apenas cortou as alças de seu tanque de ar. O pesado cilindro caiu em direção ao fundo. Raoul fez um aceno para que ele desconectasse o regulador. Será que queriam afogá-lo?
Raoul apontou para a entrada do túnel ali próximo.
Aparentemente, eles desejavam interrogá-lo primeiro.
Ele não tinha escolha.
Gray nadou para a entrada, flanqueado por guardas. Ele mergulhou através do túnel, tentando pensar em algum plano. Deslizou até o poço de entrada e encontrou a câmara cercada de outros homens usando trajes úmidos. Os minitanques deles eram pequenos o bastante para permitir que atravessassem o túnel. Alguns estavam tirando seus coletes e tanques de ar. Outros apontavam armas de pesca subaquática, alertados por Raoul.
Gray saiu do tanque e tirou a máscara. Cada movimento seu era acompanhado pela ponta de um arpão.
Ele notou Seichan encostada numa parede, parecendo estranhamente relaxada. Seu único reconhecimento foi o aceno de um dedo.
Olá.
No outro lado de Gray, uma forma emergiu no poço de entrada. Raoul. Num único movimento, o homenzarrão saiu do poço e ficou em pé, apoiado num só braço, numa demonstração atlética de força. Seu corpo deve ter passado com dificuldade pelo túnel. Ele havia abandonado seus minitanques lá fora.
Tirando a máscara e puxando o capuz para trás, ele caminhou a passos largos em direção a Gray.
Era a primeira vez que Gray olhava bem para o homem. Seus traços eram ásperos, o nariz longo e fino, aquilino. Seus cabelos pretos como carvão caíam até os ombros. Seus braços eram uma montanha de músculos, tão grossos quanto as coxas de Gray, claramente desenvolvidos à base de esteróides e de muito tempo passado numa academia de ginástica, não pelo trabalho de verdade
Escória européia, pensou Gray.
Raoul olhou-o de alto a baixo, tentando intimidá-lo.
Gray apenas ergueu uma sobrancelha zombeteiramente.
- O que foi?
- Você vai nos contar tudo o que sabe - disse Raoul, num inglês fluente, mas com um forte sotaque, desdenhoso e algo germânico.
- E se eu não contar?
Raoul acenou com um braço quando outra forma emergiu no poço de entrada. Gray imediatamente reconheceu Vigor. O monsenhor fora encontrado.
- Não existe muita coisa que um radar de varredura lateral não possa detectar - disse Raoul.
Vigor foi brutamente tirado do poço. O sangue do ferimento em seu couro cabeludo escorria por um lado de seu rosto. Ele foi empurrado em direção a eles, mas tropeçou de exaustão e caiu pesadamente de joelhos.
Gray curvou-se para ajudá-lo, mas a ponta de um arpão o fez recuar.
Outro mergulhador veio à tona no poço. Ele sem dúvida carregava algo pesado. Raoul dirigiu-se ao homem e aliviou-o de sua carga. Era outra daquelas bombas em forma de haltere. Uma granada incendiaria.
Raoul pôs o dispositivo a tiracolo sobre um ombro e voltou para eles. Ergueu sua própria arma de pesca subaquática e apontou-a para a entreperna de Vigor.
- Como o monsenhor de qualquer modo renunciou solenemente ao uso dessa parte de sua anatomia, vamos começar por ela. Qualquer passo em falso, e o monsenhor poderá entrar para o coro de castrati de sua igreja.
Gray empertigou-se.
- O que você quer saber?
- Tudo... mas primeiro nos mostre o que você achou.
Gray ergueu um braço na direção do túnel que levava ao túmulo de Alexandre, depois moveu-o para a direção do outro túnel, o mais curto dos dois, o que exigia que se abaixasse para atravessá-lo.
- É por ali - disse ele.
Os olhos de Vigor arregalaram-se.
Raoul deu um largo sorriso, ergueu sua arma de pesca subaquática e acenou para que um grupo de homens entrasse no túnel.
- Chequem isso.
Cinco deles correram para o túnel, deixando três homens com Raoul.
Encostada próximo à entrada do túnel, Seichan observou o grupo desaparecer e deu um passo para segui-lo.
- Você não - disse Raoul.
Seichan olhou por cima de um ombro.
- Você e seus homens querem sair deste porto?
O rosto de Raoul enrubesceu.
- O barco para a fuga é nosso - lembrou-lhe ela e mergulhou no túnel.
Raoul fechou um punho mas permaneceu calado.
Encrenca no paraíso...
Gray virou-se. O olhar de Vigor pousava fixamente nele. Gray fez um movimento com os olhos. Caia fora na primeira oportunidade.
Ele voltou a olhar para o túnel e rezou para estar certo acerca do enigma da Esfinge. A resposta errada significava a morte. E isso sem dúvida estava prestes a ser provado ali, de uma maneira ou de outra.
Restava apenas um mistério por responder.
Quem morreria?


Monk apostava corrida com as balas. Seu trenó aquático a jato deslizava pela água. Rachel segurava-se a ele por trás, quase sufocando-o.
O porto estava um caos. Outras embarcações fugiam do conflito, dispersando-se como um cardume de peixes. Monk atingiu a esteira de um barco à deriva e voou alto.
Os disparos atingiam as ondas abaixo.
- Segure firme! - gritou ele.
Ele inclinou o trenó para um dos lados assim que eles bateram na água. Eles afundaram. Ele corrigiu o curso e mergulhou mais fundo, indo a grande velocidade através da água a uma profundidade de um metro.
Pelo menos era o que ele esperava.
Monk havia estreitado os olhos. Sem a máscara, não conseguiria ver muita coisa de qualquer modo. Porém, antes de mergulhar, teve um vislumbre de um veleiro ancorado bem em frente.
Se pudesse passar por baixo dele... deixá-lo entre ele e o aerobarco...
Ele contou mentalmente, calculando, rezando.
O mundo momentaneamente ficou mais escuro através de suas pálpebras. Eles estavam embaixo da sombra do veleiro. Ele fez uma contagem extra até quatro e inclinou-se em direção à superfície.
Eles voltaram a irromper na luz do sol e no ar.
Esticando o pescoço, Monk olhou para trás. Eles haviam mais do que se livrado do veleiro.
- Fodam-se, está bem?!
O aerobarco teve de contornar o obstáculo, perdendo terreno.
- Monk! - Rachel gritou em seu ouvido.
Ele olhou para a frente e viu um paredão retangular de um barco diante dele, a casa flutuante do casal nu. Merda! Eles voavam bem na direção de bombordo. Não havia como recuar.
Monk forçou seu peso para a frente e embicou o nariz de seu trenó para baixo. Eles afundaram num mergulho abrupto... mas seria abrupto o suficiente para eles passarem por baixo da casa flutuante, como ele passara por baixo do veleiro?
A resposta era não.
O nariz do trenó chocou-se contra a quilha, fazendo o veículo virar em direção contrária. Monk segurou o guidom com força. O trenó deslizou contra o lado de madeira do barco enquanto cracas dilaceravam seu ombro. Ele acelerou rapidamente o veículo e afundou mais um pouco.
Afinal passou embaixo do barco e voltou a acelerar em águas claras.
Ele seguiu em frente a toda a velocidade, sabendo que tinha pouco tempo.
Rachel desaparecera, derrubada do trenó pela primeira colisão.


Gray reteve o fôlego.
Uma comoção imediatamente soou do fim do túnel baixo. O primeiro homem devia ter alcançado o fim da passagem. Ela devia ter sido curta.
- Eme Goldtür! - ele ouviu gritarem. Uma porta de ouro!
Raoul correu para a frente, arrastando Gray consigo. Vigor foi mantido encurralado à beira do poço por um mergulhador com uma arma de pesca subaquática.
O túnel, iluminado pelas lanternas dos exploradores, estendia-se por cerca de apenas trinta metros e era ligeiramente curvo. O fim não podia ser visto, mas os dois últimos homens da fila - e Seichan - estavam delineados contra o clarão, todos olhando fixamente para a frente.
Gray teve um medo súbito de que talvez eles estivessem errados acerca da chave de ouro que haviam encontrado. Talvez ela se destinasse a abrir aquela porta.
- Es wird entriegelt! - gritou alguém. - Está destrancada!
De onde estava, Gray ouviu o estalo quando a porta foi aberta.
Foi alto demais.
Seichan também devia ter percebido. Ela deu meia-volta e avançou aos trancos e barrancos em direção a eles. Mas era tarde demais.
De todas as paredes, estacas de aço pontiagudas projetaram-se de fendas e recessos encobertos pelas sombras. Elas saíram espetando através da passagem, trespassando carne e ossos, e incrustaram-se em orifícios perfurados no lado oposto. O emaranhado letal começou no fundo da caverna e avançou para fora em questão de dois segundos.
Luzes balouçavam-se. Homens gritavam, empalados, trespassados pelas estacas.
Seichan conseguiu chegar a dois passos da saída, mas o fim da armadilha a pegou. Uma única estaca pontiaguda projetou-se e trespassou seu ombro. Ela parou com um movimento brusco, as pernas fugindo de baixo dela.
Um grito de dor sufocado foi o único som que ela emitiu, pendurada e espetada na barra de aço.
Em choque, Raoul relaxou a pressão sobre Gray.
Tirando proveito da situação, Gray libertou-se com um safanão violento e correu em direção ao poço.
- Caia fora! - gritou para Vigor.
Antes que pudesse dar um segundo passo, algo atingiu com força a parte posterior de sua cabeça. Ele caiu apoiado num joelho. Foi golpeado de novo, no lado da cabeça, uma coronhada com a empunhadura de uma arma de pesca subaquática.
Ele havia subestimado a rapidez do gigante.
Um erro.
Raoul chutou o rosto de Gray e pressionou uma bota em seu pescoço, caindo sobre ele com todo o seu peso.
Sufocando, Gray observou Vigor ser tirado de volta do poço. O monsenhor fora pego pelo tornozelo e não conseguira escapar.
Raoul abaixou-se, olhando maldosamente para Gray.
- Um truquezinho odioso - disse ele.
- Eu não sabia...
A bota pressionou com mais força, esmagando suas palavras.
- Mas você me livrou de alguns problemas - continuou ele - tirando aquela piranha de ação. Mas agora nós temos um trabalhinho a executar... nós dois.


Rachel voltou com dificuldade à superfície, tornando a bater a cabeça contra o lado do barco. Ela sufocou com um bocado de água e avançou para o céu aberto. Tossiu e engasgou repetidas vezes, reflexivamente, incapaz de parar, os membros debatendo-se.
Um portão de repente baixou, e ela viu um homem de meia-idade ali de pé, completamente nu.
- Tudo bem, menina? - perguntou-lhe em português.
Ela sacudiu a cabeça, ainda tossindo.
Ele curvou-se e ofereceu-lhe um braço. Ela o pegou e foi puxada para cima, ficando em pé toda trêmula. Onde estava Monk?
Ela viu o aerobarco descrever uma curva, seguindo para águas mais profundas. O motivo logo se tornou evidente. Duas lanchas-cruzeiros da polícia egípcia partiram do píer distante, aumentando a rotação do motor, ganhando velocidade, reagindo afinal. O caos no porto devia tê-los retardado, mas antes tarde do que nunca.
Ela respirou de alívio.
Rachel virou-se e deparou com a esposa ou companheira do homem, também nua.
Exceto pela arma.


Monk flutuou em torno da popa da casa flutuante, à procura de Rachel. Mais longe, no porto, uma lancha-cruzeiro da polícia uivou através das águas. As luzes emitiam um vermelho e um branco raivosos. O aerobarco afastou-se, ganhando velocidade, erguendo-se em toda a extensão de seus flutuadores.
Fugindo.
A polícia não tinha como pegá-lo. O aerobarco partiu... para águas internacionais ou para algum outro ancoradouro clandestino.
Monk voltou toda a sua atenção para a busca de Rachel. Receava encontrá-la boiando com o rosto voltado para baixo, afogada nas águas poluídas. Deu a volta à popa, permanecendo próximo ao barco.
Ele percebeu movimento no convés de trás da casa flutuante.
Rachel... ela estava de costas para ele, mas parecia trêmula. O homem nu de meia-idade amparava-a com um braço.
Monk reduziu a velocidade.
- Rachel... tudo bem com vo...?
Ela olhou em pânico para trás. O homem ergueu o outro braço. Ele segurava um rifle automático de cano curto, apontado para o rosto de Monk.
- Oh... eu acho que não - murmurou Monk.
O pescoço de Gray estava quase quebrando.
Raoul ajoelhou-se em cima dele, um joelho bem no meio de suas costas, o outro na parte posterior de seu pescoço. Uma de suas mãos estava enrascada nos cabelos de Gray e puxava sua cabeça para trás. A outra mão do homem segurava a arma de pesca subaquática estendida na direção do olho esquerdo de Vigor.
O monsenhor estava de joelhos, flanqueado por dois mergulhadores com armas extras. Um terceiro observava, com um olhar carrancudo e uma faca equilibrada na mão. Todos os olhos estavam estreitados de puro ódio. O truque de Gray havia matado cinco dos homens, companheiros de armas.
Gemidos ainda ecoavam do túnel ensangüentado, mas não haveria salvação para eles, apenas vingança.
Raoul inclinou-se mais para perto.
- Chega de brincadeiras. O que você aprendeu den...
Um golpe forte acompanhado de um zumbido interrompeu suas palavras.
A arma de pesca subaquática caiu da mão de Raoul, que deu um berro ensurdecedor ao soltar Gray.
Livre, Gray rolou pelo chão, agarrou a arma de pesca subaquática abandonada e acertou um dos homens que seguravam Vigor.
A haste trespassou o pescoço do mergulhador, jogando-o para trás.
O outro homem empertigou-se, apontando sua arma para Gray, mas, antes que pudesse disparar, um arpão cintilou no ar, vindo do poço, e atravessou a barriga do homem.
Sua arma disparou reflexivamente, mas o disparo saiu a esmo enquanto ele cambaleava para trás.
Vigor jogou apressadamente para Gray a única arma de pesca subaquática que não havia sido disparada e em seguida abaixou-se.
Gray agarrou-a e virou-se na direção de Raoul.
O gigante correu para o túnel próximo, o que conduzia ao túmulo de Alexandre. Raoul segurou com uma das mãos o outro pulso, a palma trespassada pela extensão de um arpão de aço.
O tiro de Kat fora preciso, desarmando e incapacitando o homem.
O último homem da Corte, aquele com o punhal, foi o primeiro a entrar no túnel, abrindo o caminho, seguido por Raoul.
Gray levantou-se, mirou nas costas de Raoul e disparou.
O arpão voou pelo túnel. Raoul não chegaria a tempo à primeira curva. A haste atingiu o homenzarrão nas costas e tiniu.
O arpão caiu estrondosa e inofensivamente no chão de pedra.
Gray praguejou contra a sorte. Ele atingira a granada incendiaria que ainda estava pendurada no ombro de Raoul. Salvo pela sua própria maldita bomba.
O gigante desapareceu após a primeira curva da passagem.
- Nós temos de ir - disse Kat. - Eu matei os dois guardas lá fora, chegando de mansinho num de seus próprios trenós aquáticos e pegando-os de surpresa. Mas eu não sei quantos mais estão lá.
Gray olhou para o túnel, hesitante.
Vigor já estava na água.
- Rachel...?
- Eu a mandei embora com Monk noutro trenó. Eles devem estar na praia a esta altura.
Vigor abraçou Kat rapidamente, os olhos brilhantes de lágrimas de alívio. Ele puxou a máscara para baixo.
- Comandante?
Gray pensou em ir no encalço de Raoul, mas um cão acuado era o mais perigoso. Ele não sabia se Raoul tinha uma pistola envolta em material impermeável ou alguma outra arma escondida, mas o bastardo indiscutivelmente tinha uma bomba. Raoul poderia lançá-la ali para detonar logo e acabar com todos eles.
Ele afastou-se.
Eles tinham o que precisavam.
Uma de suas mãos bateu de leve no bolso da coxa e na chave de ouro escondida.
Estava na hora de cair fora.
Gray pôs sua máscara e juntou-se aos outros. No chão de pedra, o homem cuja garganta ele acertara já estava morto. O outro gemia, com a barriga inteiramente trespassada. O sangue empoçava-se sob ele. Atingido no rim. Ou talvez sua aorta tivesse sido seccionada. Ele estaria morto em minutos.
Gray não teve a menor piedade. Ele se lembrou das atrocidades em Colônia e Milão.
- Vamos dar o fora daqui.


Raoul puxou o arpão de sua mão. O aço esmagara o osso. Um ardor estendeu-se através do braço até o peito, exaurindo sua respiração num sibilo de ira. O sangue jorrou. Ele tirou a luva e pressionou o neoprene em torno da palma, estancando a ferida e exercendo pressão sobre ela.
Nenhum osso fraturado.
O dr. Alberto Menardi tinha conhecimentos médicos para tratar daquilo.
Raoul correu os olhos pela sala, iluminada pela sua lanterna no chão. Que diabo de lugar era aquele?
A pirâmide de vidro, a água, a cúpula estrelada...
O último sobrevivente, Kurt, voltou pela passagem. Ele tinha ido verificar o poço de entrada.
- Eles foram embora - informou. - Bernard e Pelz estão mortos.
Raoul terminou seus primeiros socorros e pensou no próximo passo. Eles teriam de evacuar rapidamente. Os americanos poderiam enviar a polícia egípcia diretamente para ali. O plano original fora atrair as autoridades locais para longe com o aerobarco, deixando Raoul e sua equipe para fazerem em segredo uma investigação minuciosa ali embaixo, e em seguida fugir na desajeitada e discreta casa flutuante.
Agora a situação havia mudado.
Praguejando, Raoul curvou-se sobre a sua mochila no chão. Ela continha uma câmera digital. Ele faria um registro visual, entregá-lo-ia a Alberto e encurralaria os americanos.
Ainda não tinha acabado.
Quando Raoul tirou a câmera da mochila, seu pé tropeçou na alça que prendia a granada incendiaria. Uma dobra do tecido impermeável caiu. Ele a ignorou até notar um ligeiro brilho vermelho na parede próxima.
Caralho...
Curvando-se apoiado num joelho, ele pegou a bomba e virou sua face digital para a frente.
00:33
Ele avistou a profunda marca no invólucro perto do timer. Onde o filho-da-puta do americano havia acertado com o arpão.
00:32.
O impacto devia ter provocado um curto-circuito em alguma coisa, ativado o timer.
Raoul digitou o código de desativação. Nada.
Ele ergueu-se, o movimento repentino fazendo sua mão doer.
- Fora daqui - ordenou a Kurt.
Os olhos do homem estavam fixos na bomba. Mas ele olhou para cima, fez um aceno de cabeça e correu para o túnel.
Raoul encontrou sua câmera digital, tirou várias fotos rápidas, guardou a câmera num bolso e então saiu apressadamente.
00:19.
Ele voltou para a sala de entrada. Kurt já se fora.
- Raoul! - uma voz o chamou.
Ele voltou-se, sobressaltado, mas era apenas Seichan. A piranha ainda estava presa na armadilha no outro túnel.
Raoul acenou para ela.
- Foi ótimo fazer negócios com você.
Ele baixou a máscara e mergulhou livremente no poço. Serpenteou pelo túnel e encontrou Kurt esperando além. O mergulhador examinava dois outros corpos, mais dois homens da equipe. Kurt sacudiu a cabeça.
Uma fúria selvagem cresceu dentro de Raoul.
Em seguida, uma reverberação surda e prolongada agitou a água, soando como um trem de carga que passava. O túnel atrás dele reluziu com um brilho laranja opaco. Ele olhou para trás enquanto o clarão diminuía rapidamente. Aos poucos o tremor passou.
Tudo se acabara.
Raoul fechou os olhos. Não tinha nada para mostrar. A Corte mandaria cortar seus colhões... e provavelmente mais. Ele cogitou em simplesmente nadar para longe, desaparecer. Tinha dinheiro depositado em três diferentes contas em bancos suíços.
Mas seria procurado.
O rádio de Raoul zuniu em seu ouvido.
- Foca Um, aqui é Rebocador Lento.
Ele abriu os olhos. Era o barco de resgate.
- Aqui é Foca Um - respondeu ele devagar.
- Temos dois outros passageiros a bordo.
Raoul franziu o cenho.
- Por favor, esclareça.
- Uma mulher que você conhece e um americano.
Raoul fechou o punho ferido. A água salgada queimava com uma agonia purificadora. O ardor disseminou-se pelo corpo dele.
Perfeito.



15:22h

Gray andava de um lado para outro da suíte de hotel, a que Monk já havia reservado para o grupo. Eles estavam no último andar do Hotel Corniche, aonde haviam chegado fazia 25 minutos. As janelas da sacada davam para o perfil de vidro e aço da nova Biblioteca de Alexandria. O porto além brilhava como gelo azul-escuro. Barcos e iates pareciam incrustados no lugar. A calma rapidamente voltara ao porto.
Vigor assistira à emissora de TV noticiosa da cidade e ouvira quando um locutor egípcio informou sobre um confronto entre um grupo de traficantes de drogas. A polícia não conseguira prendê-los. A Corte escapara.
Gray também soube que o túmulo fora destruído. Ele e os outros haviam usado tanques de ar e dois dos trenós aquáticos abandonados para fugir para o outro lado do porto, onde esconderam o equipamento sob um píer. Porém, durante a travessia, Gray ouviu um som abafado através da água embaixo dele.
A granada incendiaria.
Raoul devia tê-la explodido ao fugir.
Assim que saíram da enseada em seus trajes de banho, Gray, Kat e Vigor misturaram-se a uma multidão de pessoas que tomavam banho de sol e cruzaram um parque à beira-mar até o hotel. Gray havia esperado encontrar Monk e Rachel ali.
Mas continuava a não haver nenhum sinal dos dois.
Nenhum recado, nenhum telefonema.
- Onde eles poderiam estar? - perguntou Vigor.
Gray virou-se para Kat.
- E você os viu afastar-se num dos trenós aquáticos motorizados?
Ela acenou positivamente com a cabeça, o rosto tenso de culpa.
- Eu deveria ter-me certificado...
- E nós dois estaríamos mortos - disse Gray. - Você fez uma escolha.
Ele não podia culpá-la.
Gray esfregou os olhos.
- E Monk está com ela.
Isso lhe dava certo conforto.
- O que vamos fazer? - indagou Vigor.
Gray baixou os braços e olhou através da janela.
- Nós temos de admitir que eles foram capturados. Não podemos confiar em que a nossa segurança aqui dure muito mais tempo. Nós teremos de evacuar.
- Partir? - disse Vigor, levantando-se.
Gray sentiu todo o peso de sua responsabilidade. Ele encarou Vigor, recusando-se a desviar o olhar.
- Nós não temos escolha.



16:05h

Rachel vestiu o roupão de tecido felpudo. Ela ajustou-o em torno do corpo nu enquanto olhava para a outra ocupante da cabine.
A mulher loura, alta e musculosa ignorou-a e dirigiu-se à porta da cabine.
- Já terminei aqui! - gritou em direção ao corredor.
A porta abriu-se e revelou uma segunda mulher, irmã gêmea da primeira, mas de cabelos castanho-avermelhados. Ela entrou e segurou a porta para Raoul. O homenzarrão passou curvado pela porta.
- Ela está limpa - informou a loura, tirando um par de luvas de borracha. Ela havia feito uma revista completa nos orifícios do corpo de Rachel. - Não tem nada escondido.
Certamente não mais, pensou Rachel com raiva. Ela virou ligeiramente de costas e deu um nó na faixa do roupão, um nó apertado, abaixo dos seios. Seus dedos tremiam. Ela apertou o nó com os dedos. Lágrimas ameaçavam brotar em seus olhos, mas ela resistiu, recusando-se a dar esse prazer a Raoul.
Rachel olhou através da minúscula vigia, tentando identificar algum ponto de referência, alguma coisa que assinalasse onde ela estava. Mas tudo o que viu foi um mar sem traços característicos.
Ela e Monk haviam sido transferidos da casa flutuante. A embarcação pesada saíra do porto, encontrara-se com uma lancha de corrida, e os dois foram amarrados, encapuzados e amordaçados por quatro homens pescoçudos. Eles foram empurrados para o barco menor, depois desapareceram rapidamente, quicando sobre as ondas. Parecia que haviam viajado meio dia, mas provavelmente a viagem havia durado pouco mais de uma hora. Assim que o capuz foi tirado de seu rosto, Rachel descobriu que o sol mal havia se movido no céu.
Numa pequena enseada, oculta por uma grande quantidade de rochas, o aerobarco familiar esperava como um tubarão azul-escuro. Homens soltavam as amarras, preparando-se para zarpar. Ela avistara Raoul na popa, os braços cruzados no peito.
Levados à força a bordo, Rachel e Monk foram separados.
Raoul encarregara-se de Monk.
Rachel ainda não sabia o que acontecera a seu colega de equipe. Ela havia sido empurrada para uma cabine embaixo do convés principal, guardada pelas duas amazonas. Imediatamente o aerobarco afastara-se devagar da enseada e saíra a toda a velocidade, seguindo direto para o Mediterrâneo.
Isso acontecera mais de meia hora atrás.
Raoul avançou e segurou-a pelo braço. A outra mão dele estava enfaixada.
- Venha comigo.
A forte pressão de seus dedos chegava até o osso.
Ela foi conduzida para o corredor com lambris de madeira, iluminado por candelabros de parede. O corredor ia da popa à proa, ladeado por portas de cabines privadas. Havia apenas uma escada íngreme, mais parecida com uma escada de mão, para o convés principal.
Em vez de subir, Raoul a fez marchar em direção à proa.
Raoul bateu à porta da última cabine.
- Entri - disse uma voz abafada.
Raoul abriu a porta e puxou Rachel para dentro. A cabine era maior do que a cela em que ela fora aprisionada. Além de uma cama e uma cadeira, ela continha uma escrivaninha, uma mesa lateral e prateleiras de livros. Em cada superfície plana estavam empilhados textos, revistas e até pergaminhos. Num canto da escrivaninha havia um laptop.
O ocupante da cabine empertigou-se e virou-se. Ele estivera inclinado sobre a escrivaninha, os óculos empoleirados na ponta do nariz.
- Rachel - disse o homem calorosamente, como se eles fossem amicíssimos.
Ela reconheceu o homem mais velho da época em que ela acompanhava o tio Vigor às Bibliotecas do Vaticano. Era o prefeito-chefe dos Arquivos, o dr. Alberto Menardi. O traidor era apenas alguns centímetros mais alto do que ela, mas tinha uma eterna postura encurvada, o que o fazia parecer mais baixo.
Ele bateu de leve numa folha de papel em sua escrivaninha.
- Pela recente escrita à mão - de uma mulher, se não me engano -, este mapa deve ter recebido acréscimos de sua própria mão.
Ele acenou para que ela se aproximasse.
Rachel não tinha escolha. Raoul empurrou-a para a frente.
Ela tropeçou numa pilha de livros e teve de segurar-se na borda da escrivaninha para não cair. Olhou para o mapa do Mediterrâneo. Nele estava desenhada a ampulheta e também estavam marcados os nomes das Sete Maravilhas.
O rosto dela continuou impassível.
Eles haviam encontrado o mapa dela, que ela havia lacrado num bolso de seu traje seco. Agora ela desejava que o tivesse queimado.
Alberto inclinou-se um pouco mais. Seu hálito recendia a azeitonas e vinho verde. Ele correu uma unha ao longo da linha do eixo que Gray havia traçado. Ela parou em Roma.
- Conte-me sobre isto.
- É aonde devemos ir em seguida - Rachel mentiu. Ela estava aliviada de que seu tio não tivesse traçado a linha no mapa à tinta. Ele simplesmente estendera a linha com o dedo e a lâmina reta da faca de Gray.
Alberto virou a cabeça.
- Ora, o que é isso? Eu gostaria de saber tudo a respeito do que se passou naquele túmulo. Nos mínimos detalhes. Raoul foi muito gentil em me fornecer fotos digitais, mas eu acho que um relato de primeira mão seria mais valioso.
Rachel permaneceu em silêncio.
Os dedos de Raoul apertaram o braço dela. Ela estremeceu.
Alberto acenou para que Raoul saísse.
- Não há necessidade disso.
A pressão relaxou, mas Raoul não soltou Rachel.
- Você tem o americano para isso, não tem? - perguntou Alberto. - Talvez seja melhor você mostrar a ela. Nós todos poderíamos tomar um pouco de ar fresco, não é?
Raoul deu um largo sorriso.
Rachel sentiu um nó de terror apertar o seu coração.
Ela foi conduzida para fora da cabine e obrigada a subir os degraus. Enquanto ela subia, Raoul deslizou uma das mãos pelo roupão dela, ao longo da coxa, os dedos massageando. Ela arrastou-se para cima.
A escada conduzia à popa aberta do aerobarco. A luz do sol irradiava-se do piso branco do convés. Três homens estavam recostados em bancos laterais, armados despreocupadamente com rifles de assalto.
Eles olharam para ela.
Ela apertou mais o roupão, sobressaltada, ainda sentindo os dedos de Raoul nela. O homenzarrão subiu, seguido por Alberto.
Ela contornou uma pequena parede que separava o poço da escada do convés, e ali encontrou Monk.
Ele estava deitado de bruços, apenas de cueca samba-canção, os pulsos atados atrás das costas e as pernas amarradas firmemente nos calcanhares. Parecia que dois dedos de sua mão esquerda haviam sido quebrados, curvados para trás em ângulos impossíveis. Sangue manchava o convés. Ele abriu um olho inchado quando ela se aproximou.
Ele não tinha nenhum gracejo para ela.
Aquilo a assustou mais do que tudo.
Raoul e seus homens deviam ter descontado sua ira em Monk, o único alvo.
- Desamarrem os braços dele - ordenou Raoul. - Ponham-no de costas.
Os homens agiram rápido. Monk gemeu quando seus braços foram soltos. Ele foi virado de costas. Um dos guardas segurou um rifle próximo ao ouvido de Monk.
Raoul tirou um machado de incêndio de um suporte.
- O que você está fazendo? - Rachel correu e ficou entre o homenzarrão e Monk.
- Depende de você - respondeu Raoul, erguendo o machado até o ombro.
Um dos homens reagiu a algum sinal discreto. Os cotovelos de Rachel foram seguros e presos atrás das costas dela. Ela foi empurrada para trás.
Raoul apontou o machado, apoiado num só braço, para o terceiro homem.
- Sente-se no peito dele e segure seu braço esquerdo na altura do cotovelo. - Enquanto o homem obedecia, Raoul deu alguns passos à frente e olhou para Rachel. - Eu creio que o professor lhe fez uma pergunta.
Alberto avançou.
- E não omita nenhum detalhe.
Rachel estava horrorizada demais para responder.
- Ele tem cinco dedos deste lado - acrescentou Raoul. - Nós vamos começar pelos que estão quebrados. Eles não têm muita utilidade de qualquer modo.
Ele ergueu o machado.
- Não! - Rachel ficou com a voz embargada.
- Não... - disse-lhe Monk gemendo.
O guarda com o rifle chutou a cabeça dele.
- Eu vou lhes contar! - disse Rachel abruptamente.
Ela falou depressa, explicando tudo o que acontecera, da descoberta do corpo de Alexandre à ativação das baterias antigas. Ela não omitiu nada, exceto a verdade.
- Nós levamos algum tempo, mas solucionamos o enigma... o mapa... as Sete Maravilhas... tudo aponta para o começo. Um círculo completo. De volta a Roma.
Os olhos de Alberto brilharam com o relato, e ele fez algumas perguntas pertinentes, fazendo um aceno de cabeça de vez em quando.
- Sim, sim...
Rachel terminou.
- Isso é tudo o que eu sei.
Alberto virou-se para Raoul.
- Ela está mentindo.
- Foi o que eu pensei - disse Raoul, vibrando o machado para baixo.



16:16h

Raoul apreciou o grito da mulher.
Ele puxou o olho do machado de onde ele penetrara no convés. Não acertara as pontas dos dedos do prisioneiro pela espessura de um fio de cabelo. Ergueu o machado até o ombro e virou-se para a mulher. O rosto dela havia adquirido uma viva palidez diáfana.
- Da próxima vez vai ser pra valer - advertiu ele.
O dr. Alberto deu um passo à frente.
- Este nosso amigo grandalhão aqui foi hábil o suficiente para tirar uma foto daquela pirâmide no centro. Ela exibe um buraco quadrado na superfície da pirâmide. Algo que você deixou de mencionar. E um pecado de omissão é quase uma mentira. Não é mesmo, Raoul?
Ele ergueu o machado.
- Vamos tentar de novo?
Alberto chegou mais perto de Rachel.
- Não há a menor necessidade de que o seu amigo sofra algum mal. Eu sei que alguma coisa deve ter sido tirada do túmulo. Não faz sentido apontar às cegas para Roma sem uma pista extra. O que vocês tiraram da pirâmide?
Lágrimas rolavam pela face dela.
Raoul percebeu o tormento em cada linha do rosto dela. Ele teve uma ereção, lembrando-se de alguns instantes atrás. Através de um espelho unidirecional, ele espiara enquanto uma das rameiras do capitão enfiava os dedos em todas as partes íntimas da mulher. Ele mesmo queria fazer a revista no corpo da mulher, mas o capitão recusara. Seu barco, seu domínio. Raoul não pressionara. O capitão ficou num péssimo estado de humor após ter sido informado do desaparecimento de Seichan, morta junto com tantos homens de Raoul.
Além disso, ele em breve faria sua própria inspeção das partes íntimas da mulher... porém, tencionava ser muito menos gentil.
- O que foi tirado? - insistiu Alberto.
Raoul alongou a postura, levantando o machado bem acima da cabeça. Sua mão recém-suturada doía, mas ele ignorou a dor. Talvez ela não dissesse... talvez aquilo pudesse ser prolongado...
Mas a mulher cedeu.
- Uma chave... uma chave de ouro - disse ela chorando, e então caiu de joelhos no convés. - Gray... o comandante Pierce está com ela.
Por trás das lágrimas dela, Raoul percebeu um fio de esperança em sua voz.
Ele conhecia um meio de esmagar aquilo.
Baixou o machado num movimento vigoroso e firme, decepando a mão de Monk no pulso.



16:34h

- Está na hora de partirmos - disse Gray.
Ele havia concedido a Vigor e Kat mais 45 minutos para telefonarem para todos os hospitais e centros médicos da cidade, até mesmo para darem telefonemas discretos para a polícia municipal. Talvez Rachel e Monk tivessem sido feridos e não pudessem entrar em contato com eles. Ou talvez estivessem tomando chá de cadeira na cela de uma prisão.
Gray levantou-se quando seu telefone por satélite tocou em sua mochila.
Todos os olhos viraram-se para ele.
- Graças a Deus - disse Vigor com um suspiro.
Apenas algumas pessoas tinham o número do telefone: o diretor Crowe e seus colegas de equipe.
Gray pegou o telefone, esticou a antena dele e aproximou-se da janela.
- Comandante Pierce - disse ele.
- Eu vou ser breve, para que não haja confusão.
Gray enrijeceu-se. Era Raoul. Aquilo só podia significar uma coisa...
- Nós temos a mulher e o seu colega de equipe. Você fará exatamente o que nós dissermos, ou nós despacharemos as cabeças deles para Washington e Roma... depois de acabarmos de brincar com os corpos deles, é claro.
- Como é que eu posso saber se eles ainda estão...?
Ouviu-se um arrastar de pés no outro lado. Uma nova voz ofegou. Ele sentiu as lágrimas por trás das palavras.
- Eles... Eu... eles deceparam a mão de Monk. Ele...
O telefone foi arrebatado das mãos dela.
Gray tentou não reagir. Agora não era o momento. No entanto, seus dedos apertaram com força o telefone. Seu coração subiu-lhe à garganta, contraindo suas palavras.
- O que você quer?
- A chave de ouro do túmulo - disse Raoul.
Então eles sabiam a respeito dela. Gray entendeu por que Rachel revelara o segredo. Como ela poderia não tê-lo revelado? Ela devia ter negociado a informação em troca da vida de Monk. Eles estavam seguros enquanto a Corte soubesse que a chave estava com Gray. Mas isso não queria dizer que mutilações piores não ocorreriam se ele não cooperasse. Ele se lembrou do estado dos padres torturados em Milão.
- Você quer negociar - disse ele friamente.
- Às nove da noite sai um vôo da Egypt Air de Alexandria para Genebra, na Suíça. Você estará nesse vôo. Só você. Nós deixaremos documentos falsos e bilhetes aéreos num guarda-volumes automático, de modo que nenhum computador possa rastrear seu vôo. - Seguiram-se as instruções sobre o guarda-volumes automático. - Você não entrará em contato com os seus superiores... nem em Washington nem em Roma. Se você fizer isso, nós saberemos. Entendido?
- Sim - disse ele trincando os dentes. - Mas como eu posso saber que você vai cumprir a sua parte do acordo?
- Você não tem como saber. Mas, como um gesto de boa vontade, quando você aterrissar em Genebra, eu voltarei a entrar em contato com você. Se você seguir as nossas instruções direitinho, eu libertarei o seu colega. Ele será enviado a um hospital na Suíça. Nós lhe transmitiremos uma confirmação satisfatória disto. Mas a mulher ficará sob custódia até você nos entregar a chave.
Gray sabia que a oferta para libertar Monk era provavelmente sincera, mas não por uma questão de boa vontade. A vida de Monk era um avanço nas negociações, um trunfo para fazer com que Gray cooperasse. Ele tentou rejeitar as palavras anteriores de Rachel. Eles haviam decepado a mão de Monk.
Ele não tinha escolha.
- Eu estarei nesse vôo.
Raoul ainda não terminara.
- Os outros membros da equipe... a piranha e o monsenhor... estão livres para partir, desde que fiquem de bico calado e fora do caminho. Se eles pisarem na Itália ou na Suíça, o acordo está desfeito.
Gray franziu o cenho. Ele entendeu que deveria manter os outros fora da Suíça... mas por que também fora da Itália? Então ele se lembrou. Ele imaginou o mapa de Rachel. A linha que ele traçara, apontando para Roma. Rachel revelara muito... mas não tudo.
Boa menina.
- De acordo - disse Gray, com a mente já girando em várias seqüências imaginárias.
- Qualquer sinal de subterfúgio, e você jamais verá a mulher ou o seu colega de equipe de novo... exceto partes do corpo enviadas diariamente.
A ligação terminou.
Gray baixou o telefone e virou-se para os outros. Ele repetiu a conversação na íntegra, de modo que entendessem.
- Eu estarei naquele vôo.
O sangue desaparecera do rosto de Vigor, seus piores temores haviam-se concretizado.
- Eles poderiam armar uma cilada para você a qualquer momento - disse Kat.
Ele concordou com um aceno de cabeça.
- Mas eu creio que, enquanto eu continuar me movendo em direção a eles, eles vão me deixar em paz. Eles não vão correr o risco de perder a chave numa tentativa fracassada.
- E quanto a nós? - perguntou Vigor.
- Eu preciso de vocês dois em Avignon, trabalhando no enigma ali.
- Eu... eu não posso - disse Vigor. - Rachel...
Ele afundou na cama.
Gray disse com a voz firme.
- Rachel nos deu uma escassa oportunidade em Avignon, certa margem de segurança. Paga com o sangue e o corpo de Monk. Eu não vou deixar que os esforços deles sejam desperdiçados.
Vigor olhou para ele.
- Você tem de confiar em mim. - A conduta de Gray endureceu. - Eu vou resgatar Rachel. Eu lhe dou a minha palavra.
Vigor o encarou, tentando decifrar alguma coisa nele. O que quer que tenha encontrado, parecia que lhe havia conferido certa determinação.
Gray esperava que fosse o suficiente.
- Como você...? - começou Kat.
Gray sacudiu a cabeça, afastando-se.
- Quanto menos nós soubermos dos movimentos uns dos outros a partir de agora, melhor.
Ele atravessou o quarto e pegou sua mochila.
- Eu entrarei em contato com vocês quando resgatar Rachel.
Ele dirigiu-se para fora.
Com uma esperança.



17:55h

Seichan estava sentada no escuro, segurando um fragmento de uma faca.
A barra de aço pontiaguda que atravessara seu ombro ainda a mantinha presa à parede. A lança com 2,5 centímetros de espessura havia penetrado embaixo da clavícula e saído no alto do ombro, sem atingir vasos sangüíneos importantes nem a escapula. Mas ela continuava presa no lugar. O sangue filtrava-se continuamente dentro de seu traje úmido.
Cada movimento era uma agonia.
Mas ela estava viva.
O último dos homens de Raoul silenciara mais ou menos na hora em que a última lanterna expirou. A bomba incendiaria que Raoul havia ativado para destruir a câmara no outro lado mal atingira aquela sala. Não obstante, o calor quase a escaldara; mas agora ela ansiava por aquele calor de novo.
Uma sensação de frio instalara-se, mesmo através de seu traje de mergulho. A superfície das pedras extraía o calor de seu corpo. A perda de sangue não cessava.
Seichan recusava-se a entregar os pontos. Ela correu os dedos pela lâmina quebrada em sua mão. Estivera esburacando o bloco de pedra no local em que a extremidade pontiaguda do arpão penetrara. Se conseguisse arrancá-la, libertar a haste...
Fragmentos de rocha espalhavam-se pelo chão. Ali também estava o punho quebrado de seu punhal. Ele havia quebrado pouco depois de ela ter começado a raspar a rocha.
Tudo o que restara fora um fragmento da lâmina com 7,5 centímetros de comprimento. Seus dedos estavam ensangüentados por causa da lâmina e da rocha áspera. Era um esforço inútil.
Seu rosto estava banhado de suor frio.
Do lado mais afastado, surgiu um clarão. Ela pensou que fosse sua imaginação e virou a cabeça. O poço de entrada brilhava. A iluminação aumentou.
A água agitou-se. Alguém estava vindo.
Seichan segurou o fragmento da faca - receosa e esperançosa ao mesmo tempo.
Quem seria?
Uma forma escura veio à superfície. Um mergulhador. A lanterna cegou-a quando a figura saiu do poço.
Ela protegeu os olhos contra o brilho súbito e ofuscante.
O mergulhador baixou a lanterna.
Seichan reconheceu um rosto familiar quando ele puxou a máscara para trás e se aproximou. O comandante Gray Pierce.
Ele caminhou na direção dela e ergueu uma serra para metal.
- Vamos bater um papo.

















DIA QUATRO




CAPÍTULO 14

Gótico



27 de julho, 18:02h
Washington, D.C.

O diretor Painter Crowe sabia que estava prestes a passar outra noite em claro. Ele ouvira as reportagens do Egito sobre um ataque no Porto Oriental de Alexandria. Será que a equipe de Gray estivera envolvida? Sem olhos no céu, eles não puderam investigar fazendo um rastreamento por satélite.
E ele ainda não recebera notícias do campo. As últimas mensagens haviam sido transmitidas 12 horas atrás.
Painter arrependeu-se de não ter relatado suas suspeitas a Gray Pierce. Porém, àquela altura, elas teriam sido apenas suspeitas. Painter precisara de tempo para refinar mais algumas informações secretas. E mesmo assim ele não tinha certeza. Se ele prosseguisse de uma forma mais audaciosa, o conspirador saberia que havia sido descoberto. Isso exporia Gray e seus colegas de equipe a mais riscos.
Por isso Painter cuidou da sua parte sozinho.
Uma batida à porta de seu escritório desviou seus olhos da tela do computador.
Ele desligou o monitor do computador para ocultar seu trabalho e ativou o sistema eletrônico que abria a fechadura. Sua secretária já havia ido embora.
Logan Gregory entrou.
- O jato deles está se aproximando do destino.
- Ainda se dirigindo a Marselha? - perguntou Painter.
Logan confirmou com um aceno de cabeça.
- Deve aterrissar daqui a 18 minutos. Pouco depois da meia-noite, hora local.
- Por que a França? - Painter esfregou os olhos cansados. - E eles ainda estão mantendo um blecaute na comunicação?
- O piloto confirmou o destino deles, e nada mais. Usando de artimanhas, eu consegui obter uma lista de passageiros da alfândega francesa. Há dois passageiros a bordo.
- Apenas dois?
Painter sentou-se mais empertigado, franzindo o cenho.
- Viajando com documentos diplomáticos. Anônimos. Eu posso tentar descobrir mais.
Painter tinha de trabalhar com cuidado a partir dali.
- Não - disse ele. - Isso poderia fazer soar algum tipo de alarme. A equipe quer manter sua atividade oculta. Nós lhes daremos algum espaço. Por enquanto.
- Sim, senhor. Eu também recebi solicitações de Roma. O Vaticano e os Carabinieri não receberam notícia alguma e estão ficando preocupados.
Painter tinha de oferecer-lhes algo, ou as autoridades da União Européia poderiam reagir com rigor. Ele refletiu sobre as suas opções. Não levaria muito tempo para que as autoridades na Europa se certificassem do destino do jato. A explicação teria de ser satisfatória.
- Seja cooperativo - disse ele afinal. - Informe-os do vôo para Marselha e diga-lhes que lhes transmitiremos mais informações secretas assim que soubermos mais.
- Sim, senhor.
Painter olhou fixamente para a tela vazia de seu computador. Ele tinha um curto período oportuno para realizar seu objetivo.
- Assim que você entrar em contato com eles, vou precisar que me faça um favor. Na DARPA.
Logan franziu o cenho.
- Eu tenho algo que precisa ser entregue pessoalmente ao dr. Sean McKnight. - Painter entregou-lhe uma carta lacrada num envelope vermelho. - Mas ninguém deve saber que você está indo para lá.
Os olhos de Logan estreitaram-se de uma maneira esquisita, mas ele fez um aceno de cabeça afirmativo.
- Eu cuidarei disto.
Ele pegou o envelope, enfiou-o embaixo do braço e afastou-se.
Painter lhe disse:
- Discrição absoluta.
- O senhor pode confiar em mim - disse Logan com firmeza, e fechou a porta com um estalido da fechadura.
Painter voltou a ligar o computador. Ele exibia um mapa da bacia do Mediterrâneo com fileiras amarelas e azuis entrecruzando-se nele. Cursos de satélites.
Ele pôs seu ponteiro sobre uma delas. O mais novo satélite da NRO, apelidado de Hawkeye [Olho do Falcão]. Clicou duas vezes, e na tela apareceram detalhes da trajetória e parâmetros de busca.
Ele digitou o nome Marselha e surgiram os intervalos de tempo. Cruzou os dados com os do mapa meteorológico da NOAA.1 Uma frente tempestuosa deslocava-se para o sul da França. Uma camada de nuvens pesadas bloquearia o rastreamento. O tempo de que ele dispunha era de fato curto.
Painter consultou o relógio, pegou o telefone e falou com a segurança.
- Eu quero que vocês me informem quando Logan Gregory sair do centro de comando.
- Sim, senhor.
Painter desligou o telefone. O tempo seria crucial. Ele esperou mais 15 minutos, observando a frente tempestuosa deixar seu rastro sobre a Europa Ocidental.
- Vamos - murmurou ele.
O telefone finalmente tocou. Painter confirmou que Logan partira, então se levantou e saiu de seu escritório. A sala de reconhecimento por satélite ficava no andar de baixo, perto do escritório de Logan. Painter correu para lá e encontrou um técnico solitário fazendo anotações numa caderneta, acomodado na bancada em forma de arco de monitores e computadores.
O homem ficou surpreso com a súbita aparição de seu chefe e ficou em pé de um salto.
- Diretor Crowe, senhor... como eu posso ajudá-lo?
- Eu preciso de uma conexão clandestina com o satélite H-E Four da NRO.
- O Hawkeye?
Painter acenou afirmativamente com a cabeça.
- Eu não tenho permissão...
Painter colocou uma longa seqüência alfanumérica diante dele. Era válida apenas pela próxima meia hora e fora obtida por Sean McKnight.
Os olhos do técnico arregalaram-se, e ele pôs-se a trabalhar.
- Não havia a menor necessidade de o senhor vir aqui embaixo. O dr. Gregory poderia ter transmitido os dados para o seu escritório.
- Logan saiu. - Painter pousou uma das mãos no ombro do técnico. - Eu também preciso que todo o registro desta interceptação seja apagado. Nenhuma gravação. Nenhuma palavra de que esta interceptação jamais tenha ocorrido. Mesmo aqui na Sigma.
- Sim, senhor.
O técnico apontou para uma tela.
- Ela vai surgir neste monitor. Eu vou precisar de coordenadas de GPS2 para poder me concentrar.
Painter forneceu-as a ele.
Após um longo minuto, o escuro aeroporto apareceu na tela.
Aeroporto de Marselha.
Painter regulou a alimentação para dar um zoom em determinado portão. A imagem tremulou e em seguida foi aumentando gradualmente. Surgiu um pequeno avião, um Citation X. Estava parado com a porta aberta próximo ao portão. Painter inclinou-se para a frente, obscurecendo a visão do técnico.
Será que ele estava atrasado demais?
O movimento pixelou. Uma figura e depois outra tornaram-se visíveis. Elas desceram a escada às pressas. Painter não precisou ampliar seus rostos.
O monsenhor Verona e Kat Bryant.
Painter esperou. Talvez a lista de passageiros fosse falsa. Talvez todos eles estivessem a bordo.
A tela estremeceu com uma onda de pixels maciços.
- Uma tempestade se aproxima - disse o técnico.
Painter manteve os olhos grudados na tela. Nenhum outro passageiro desembarcou do jato. Kat e o monsenhor desapareceram pelo portão. Com o cenho franzido de preocupação, ele fez um aceno para que a alimentação fosse interrompida. Agradeceu ao técnico e saiu.
Onde diabo estava Gray?


01:04h
Genebra, Suíça

Gray viajava na primeira classe do jato da Egypt Air. Ele tinha de dar crédito à Corte do Dragão. Eles não haviam economizado nos gastos. Ele correu os olhos pela pequena cabine. Oito assentos. Seis passageiros. Um ou mais provavelmente eram espiões da Corte, de olho nele.
Não tinha importância. Ele estava cooperando integralmente... por enquanto.
Ele pegara seus bilhetes aéreos e sua documentação num guarda-volumes de um ônibus e seguira para o aeroporto. O vôo de quatro horas era interminável. Ele comeu a refeição digna de um gourmet, tomou duas taças de vinho tinto, assistiu a um filme com Julia Roberts e até tirou uma soneca por 42 minutos.
Ele virou-se para a janela. A chave de ouro moveu-se contra o seu peito. Estava pendurada num cordão que ele trazia ao pescoço. O calor de seu corpo aquecera o metal, mas ele ainda pendia pesado e frio. A vida de duas pessoas fazia-o pesar ainda mais. Ele pensou em Monk, tranqüilo, perspicaz, generoso. E em Rachel, uma mistura de aço e seda, intrigante e complicada. Mas o último telefonema da mulher, tão cheio de dor e pânico, assustara-o. A dor que ele sentia ia até a medula, por saber que ela fora capturada sob sua guarda.
Gray olhou através da janela quando o jato fez uma manobra de aproximação abrupta, necessária para aterrissar na cidade encravada nos altíssimos Alpes.
As luzes de Genebra cintilavam. A luz da lua banhava de prata os picos e o lago.
O avião sobrevoou um trecho do rio Ródano que dividia a cidade. O trem de aterrissagem baixou com um gemido. Instantes depois eles estavam aterrissando no Aeroporto Internacional de Genebra.
A aeronave taxiou até o portão de desembarque, e Gray esperou que a cabine estivesse vazia antes de pegar sua única bolsa, cuidadosamente arrumada. Ele esperava ter tudo de que precisava. Pendurando a bolsa no ombro, dirigiu-se para fora.
Ao sair da cabine de primeira classe, ele a esquadrinhou à procura de quaisquer sinais de perigo.
E de outra pessoa. Sua companheira de viagem.
Ela havia viajado na classe econômica. Usava uma peruca loura, um sóbrio traje de passeio azul-marinho e óculos escuros pesados. Comportava-se de um jeito reprimido, o braço esquerdo numa tipóia, meio oculto sob a jaqueta. O disfarce não resistiria a uma inspeção atenta. Mas ninguém a esperava.
Seichan estava morta para o mundo.
Ela saiu na frente dele sem dirigir-lhe o olhar.
Gray seguiu atrás, separado dela por alguns passageiros. No terminal, ele entrou na fila para passar pela alfândega, exibiu seus documentos falsos, que foram carimbados, e saiu. Sua bagagem não fora checada.
Ele avançou a passos largos para a rua bem iluminada, ainda cheia de gente. Viajantes atrasados saíam correndo de carros e táxis. Ele não tinha idéia do que se esperava dele a partir dali. Tinha de esperar algum contato de Raoul. Aproximou-se da fila de táxis.
Seichan desaparecera, mas Gray sentia que ela estava por perto.
Ele precisara de um aliado. Isolado de Washington, de seus próprios colegas de equipe, ele fizera um pacto com o diabo. Ele a libertara com uma serra para metal após obter uma promessa dela. Eles trabalhariam juntos. Em troca da liberdade, ela ajudaria Gray a libertar Rachel. Depois disso, eles seguiriam caminhos diferentes. Todas as dívidas perdoadas, passadas e presentes.
Ela concordara.
Enquanto ele tratava e enfaixava o ferimento dela, ela olhara para ele de uma forma muito estranha, nua até a cintura, os seios à mostra, imperturbável. Observou-o atentamente, como se ele fosse uma curiosidade, um inseto estranho, profundamente concentrada. Pouco falou, exausta, talvez em ligeiro estado de choque. Mas recuperou-se suavemente, uma leoa despertando devagar, astúcia e diversão iluminando seus olhos.
Gray sabia que a cooperação dela era menos por obrigação do que por fúria contra Raoul. A cooperação satisfazia sua necessidade imediata. Ela fora deixada para trás para morrer, para ter um fim lento e agonizante, e queria fazer Raoul pagar. Qualquer que fosse o acordo firmado entre a Corte e a Guilda, para ela estava tudo acabado. A vingança era tudo que restara.
Mas isso era tudo?
Gray lembrou-se dos olhos dela sobre ele e de sua enigmática curiosidade. Mas ele também se lembrou da advertência anterior de Painter sobre ela. Isso devia ter sido óbvio no rosto dele.
- Sim, eu vou trair você - disse Seichan com franqueza enquanto vestia a camisa. - Mas só depois que tudo isto tiver terminado. Você tentará o mesmo. Nós dois sabemos disto. Desconfiança mútua. Existe uma forma melhor de honestidade?
O telefone por satélite de Gray tocou afinal. Ele tirou-o da bolsa.
- Comandante Pierce - disse sobriamente.
- Bem-vindo à Suíça - disse Raoul. - Há passagens de trem esperando por você no terminal do centro da cidade, sob o seu nome falso, com destino a Lausanne. O trem parte daqui a 35 minutos. Você estará nele.
- E o meu colega de equipe? - perguntou Gray.
- Conforme combinado, ele está a caminho do hospital em Genebra. Você receberá a confirmação quando embarcar no trem.
Gray encaminhou-se para os táxis.
- E a tenente Verona? - perguntou ele.
- Por enquanto, a mulher está sendo bem acomodada. Não perca o seu trem.
A ligação caiu.
Gray entrou num táxi. Ele não se preocupou em procurar Seichan, porque havia instalado um chip em seu telefone, conectado ao telefone celular dela. Ela havia ouvido a conversa. Ele confiava na habilidade dela de acompanhá-lo.
- Estação ferroviária central - disse ele ao motorista.
Com um breve aceno de cabeça, o motorista entrou no tráfego e seguiu para o centro de Genebra. Gray afundou em seu assento. Seichan tinha razão. Ao saber que ele fora convocado à Suíça, ela dissera-lhe onde suspeitava que Rachel estivesse sendo mantida. Em algum castelo nos Alpes da Savóia.
Após dez minutos, o táxi deslizava ao longo do lago. Na água, um chafariz gigante jorrava a mais de cem metros no ar. O famoso Jet d'Eau. Iluminado por lâmpadas, era uma visão de conto de fadas. Alguma festa estava sendo realizada perto dos píeres.
Gray ouviu um eco de canto e risos.
Parecia que vinha de outro mundo.
Depois de mais alguns minutos, o táxi deixou-o em frente ao terminal de trens. Ele foi até o guichê de passagens, forneceu seu nome falso, mostrou seus documentos e recebeu passagens para a cidade de Lausanne, situada à margem do lago.
Ele dirigiu-se a passos largos para o seu portão, olhando desconfiado para qualquer pessoa nas proximidades. Não viu sinal de Seichan. Uma preocupação assaltou-o. E se ela simplesmente fosse embora? E se ela o traísse, mancomunada com Raoul? Gray afugentou tais preocupações. Ele havia feito uma escolha. Era um risco previsto.
Seu telefone voltou a tocar.
Ele o tirou da bolsa e ajustou a antena.
- Comandante Pierce - disse.
- Dois minutos para que você se satisfaça. - Raoul de novo. O estalido e o chiado de uma transferência soaram. A voz seguinte estava mais distante, com um pouco de eco, mas era familiar.
- Comandante?
- Sou eu, Monk. Onde você está?
Gray tinha certeza de que a conversa estava sendo ouvida por outras pessoas além de Seichan. Ele tinha de ser cauteloso.
- Eles me jogaram num hospital com este telefone celular. Me disseram para esperar seu telefonema. Eu estou na sala de emergência. Todos os médicos estão falando francês.
- Você está em Genebra - disse Gray. - Como você está?
Uma longa pausa.
- Eu sei a respeito da sua mão - disse Gray.
- Aqueles filhos-da-puta - disse Monk em tom de fúria. - Eles tinham um médico a bordo do barco. Me drogaram, me aplicaram injeções intravenosas e suturaram meu... meu coto. Os médicos aqui querem radiografias e coisas do gênero, mas parecem satisfeitos com o, digamos, trabalho do outro médico.
Gray compreendeu a tentativa de Monk de parecer frívolo. Mas a voz dele estava dura.
- E Rachel?
A dor intensificou as palavras dele.
- Eu não a vi desde que eles me drogaram. Eu não tenho idéia de onde ela está. Mas... mas, Gray...
- O quê?
- Você tem de livrá-la deles.
- Eu estou cuidando disso. Mas, e você? Você está seguro?
- Parece que sim - disse ele. - Me disseram que era para ficar de bico calado. E foi o que fiz, me fazendo passar por tolo. No entanto, os médicos chamaram a polícia. Já puseram guardas para fazerem a segurança.
- Por enquanto, faça o que eles mandarem - disse Gray. - Eu vou tirá-lo daí assim que puder.
- Gray - disse Monk, a voz tensa. Gray reconheceu o tom. Ele queria comunicar alguma coisa, mas também sabia que os outros estavam ouvindo. - Eles... eles me deixaram ir embora.
A ligação... novamente. Raoul voltou a ocupar a linha.
- Acabou o tempo. Como você pode ver, nós honramos nossa palavra. Se você quiser que a mulher seja libertada, você trará a chave.
- Entendido. E então?
- Um carro estará à sua espera na estação de Lausanne.
- Não - disse Gray. - Eu não ficarei sob a sua custódia enquanto não souber que Rachel está segura. Quando eu chegar a Lausanne, eu quero confirmação de que ela está viva. Então nós tomaremos as providências necessárias.
- Não force a sua mão - resmungou Raoul. - Eu detestaria ter de decepá-la como fiz com a do seu amigo. Nós continuaremos esta conversa quando você estiver aqui.
A ligação terminou.
Gray baixou o telefone. Então Raoul estava em Lausanne.
Ele esperou o trem. O último para Lausanne. Havia poucas pessoas na plataforma. Ele observou atentamente seus companheiros de viagem. Nenhum sinal de Seichan. Será que havia espiões da Corte ali?
Por fim, o trem chegou, movendo-se com estardalhaço sobre os trilhos. Ele deslizou até parar, exalando ar com um gemido agudo. Gray entrou no vagão do meio, e então se moveu apressadamente entre os vagões em direção à traseira, esperando livrar-se de quaisquer pessoas que porventura o estivessem seguindo.
Seichan esperava-o no espaço entre os dois últimos vagões.
Ela só se dirigiu a ele para entregar-lhe um longo casaco de couro. Virou-se e saiu por uma saída de emergência que se abria para o lado oposto dos trilhos, longe da plataforma.
Ele seguiu, descendo do trem. Vestiu a jaqueta e puxou a gola para cima.
Seichan atravessou às pressas outros trilhos e subiu para uma plataforma ali perto. Eles saíram da estação, e Gray se viu no canto de um estacionamento.
Uma motocicleta BMW preta e amarela estava estacionada a um passo de distância.
- Monte - disse Seichan. - Você terá de pilotar. Meu ombro...
Ela abandonara a tipóia para pilotar a moto do escritório da locadora de veículos até ali, mas até Lausanne eram mais oitenta quilômetros.
Gray sentou-se na frente, levantando a parte de trás de sua jaqueta. A moto já estava aquecida.
Ela subiu atrás dele e passou o braço são em volta da cintura dele.
Gray acelerou o motor. Ele já havia memorizado as estradas dali até Lausanne. Saiu do estacionamento e disparou ao chegar à rua, seguindo em grande velocidade rumo à estrada que conduzia de Genebra às montanhas.
Os faróis furavam a escuridão à frente.
Ele seguia a luz, cada vez mais rápido, o vento agitando a aba de sua jaqueta. Seichan encostou-se mais nele, um braço cingindo-o, a mão sob a jaqueta dele. Os dedos seguravam o cinto dele.
Ele resistiu ao ímpeto de afastar o braço dela. Sensato ou não, associara-se a ela. Ele voava pela estrada estreita. Eles precisavam chegar a Lausanne meia hora antes do trem. Seria tempo suficiente?
À medida que Gray serpenteava nas montanhas que margeavam o lago, sua mente voltou à sua conversa com Monk. O que ele havia tentado contar-lhe? Eles me deixaram ir embora. Isso era bastante óbvio. Mas o que Monk havia insinuado?
Ele pensou em sua avaliação anterior, no Egito. Ele fora informado de que a Corte deixaria Monk partir. Eles o libertariam para assegurar e induzir a cooperação de Gray. E Raoul ainda tinha Rachel como moeda de troca.
Eles me deixaram ir embora.
Será que havia mais alguma coisa relacionada com a libertação dele? A Corte era cruel. Sabia-se que eles não abriam mão de bens potenciais. Eles haviam usado a tortura de Monk para induzir Rachel a falar. Será que eles desistiriam tão prontamente de um bem como aquele? Monk tinha razão. Não, a menos que a Corte tivesse um domínio ainda maior sobre Rachel.
Mas o quê?



02:02h
Lausanne, Suíça

Rachel estava sentada em sua cela, entorpecida e exausta.
Toda vez que abria os olhos, ela revivia o horror. Via o machado descendo. O corpo de Monk sacudindo-se. Sua mão decepada saltando pelo convés como um peixe que acabara de ser pego. O sangue esguichando.
Alberto gritara com Raoul por sua ação - não por causa de sua brutalidade, mas porque ele queria o homem ainda vivo. Raoul afastara a preocupação dele. Um torniquete fora aplicado. Alberto mandara os homens de Raoul levar Monk para a cozinha do barco.
Mais tarde, ela fora informada por uma das mulheres da Guilda de que ele ainda estava vivo. Duas horas depois, o aerobarco partira para uma ilha no Mediterrâneo, onde eles foram transferidos para um jatinho particular.
Rachel avistara Monk preso a uma maca, grogue, o punho decepado enfaixado até o cotovelo. Ela então foi trancada sozinha num compartimento na traseira do avião. Um compartimento sem janelas. No decorrer de cinco horas, eles fizeram dois pousos. Finalmente ela foi solta.
Monk se fora.
Raoul a havia vendado e amordaçado. Ela foi transferida do avião para um furgão. Mais meia hora de uma viagem cheia de voltas, e eles chegaram a seu destino. Ela ouviu as rodas quicando sobre pranchas de madeira. Uma ponte. O furgão parou.
Ao ser puxada para fora, ela ouviu uma cacofonia de rosnados e latidos, alta, zangada, forte. Algum tipo de canil.
Ela foi conduzida pelo cotovelo através de uma abertura e por uma escada abaixo. Uma porta fechou-se atrás dela, fazendo cessar os latidos. Ela sentiu o cheiro de pedra fria e umidade. Também sentira o aumento de pressão à medida que o furgão subia até ali.
Montanhas.
Por fim, ela foi empurrada para a frente e tropeçou numa soleira, caindo com força de quatro no chão.
Raoul segurou as nádegas dela com ambas as mãos e deu uma gargalhada.
- Já implorando por isso.
Rachel esquivou-se com um pulo e bateu o ombro contra algo sólido. Sua mordaça e capuz abafados foram tirados. Esfregando o ombro, ela olhou ao redor da pequena cela de pedra. De novo nenhuma janela. Sua noção de tempo estava começando a escapar-lhe. O único móvel na cela era uma cama de aço. Um colchonete estava enrolado num dos cantos, com um travesseiro em cima. Não havia roupa de cama.
A cela não tinha grades. Uma das paredes era uma placa de vidro inteiriça, exceto por uma porta vedada com borracha e por buracos de ventilação do tamanho de um punho. Mas mesmo os buracos tinham pequeninas tampas que podiam ser movidas sobre as aberturas, a fim de deixarem a cela à prova de som ou como uma forma de sufocar lentamente o prisioneiro.
Fazia mais de uma hora que ela fora deixada ali.
Não havia sequer guardas. No entanto, ela ouviu vozes no fim do corredor, provavelmente de homens montando guarda junto ao poço da escada.
Ouviu-se um rebuliço. Ela ergueu o rosto e ficou em pé. Ouviu a voz áspera de Raoul, gritando ordens, e afastou-se da parede de vidro. Haviam-lhe devolvido suas roupas no barco, mas ela não possuía nenhuma arma.
Raoul apareceu, flanqueado por dois homens.
Ele não parecia feliz.
- Tirem-na daí - disse ele com veemência.
Abriram a porta com uma chave e ela foi arrastada para fora.
- Por aqui - disse Raoul, conduzindo-a pelo corredor.
Ela avistou outras celas, algumas lacradas como a dela, outras abertas e abarrotadas de garrafas de vinho.
Raoul a fez marchar até a escada que levava a um pátio escuro iluminado pela luz da lua. Muros de pedra erguiam-se em todos os lados. Uma passagem em arco, fechada por uma grade levadiça, conduzia a uma ponte estreita que se estendia sobre uma garganta.
Ela estava num castelo.
Jipes enfileirados estavam estacionados junto ao muro mais próximo da passagem.
Ao longo de uma parede próxima, estendia-se uma longa seqüência de vinte jaulas de tela de arame. Rosnados baixos erguiam-se daquele canto. Sombras imensas se deslocavam, musculosas, fortes.
Raoul devia ter notado a atenção dela.
- Perro de Presa Canário - disse ele com uma nota de orgulho selvagem. - Cães de combate, uma linhagem ancestral do século XIX. A perfeição da raça. Competidores puros. São todos músculos, mandíbulas e dentes.
Rachel se perguntou se ele também estava descrevendo a si mesmo.
Raoul levou-a para longe do portão e em direção à torre central. Dois lances de escada conduziam a uma grossa porta de carvalho, intensamente iluminada por candelabros de parede, quase convidativa. Mas eles não foram por ali. Uma porta lateral levava a um piso embaixo da escada.
Usando um dispositivo touchpad, ele destrancou a porta mais baixa.
Quando a porta se abriu, Rachel sentiu o cheiro de anti-séptico e de alguma coisa mais escura, mais fétida. Ela foi obrigada a entrar numa sala quadrangular, intensamente iluminada por lâmpadas fluorescentes. As paredes eram de pedra; o piso, de linóleo. Apenas um guarda estava diante da única porta que conduzia para fora.
Raoul atravessou a sala e abriu-a.
Mais além, estendia-se um corredor longo e estéril, do qual se abria uma série de salas. Ela olhou de relance para algumas delas enquanto descia o corredor. Jaulas de aço inoxidável enchiam uma delas. Vários computadores ligados a fileiras de placas de metal ocupavam outra. Eletroímãs, ela supôs, usados para experiências com os compostos no estado m. Numa terceira câmara, havia uma única mesa de aço com a forma aproximada de um X. Tiras de couro indicavam que a mesa se destinava a prender um homem ou uma mulher com os braços e as pernas estendidos. Uma lâmpada cirúrgica pendia acima dela.
A visão a fez gelar até os ossos.
Mais seis salas estendiam-se além. Ela vira o suficiente e ficou contente em parar ao lado de uma porta na parede oposta.
Raoul bateu e entrou.
Rachel ficou surpresa pelo contraste. Era como entrar no gabinete da virada do século de um eminente erudito da Sociedade Real. A sala era toda de mogno e nogueira envernizados. No chão estendia-se um grosso tapete turco com desenhos carmesins e esmeralda.
Prateleiras de livros e vitrines revestiam todas as paredes, repletos de textos cuidadosamente dispostos. Por trás do vidro, ela notou exemplares da primeira edição dos Principia, de Sir Isaac Newton, e, ao lado deles, A Origem das Espécies, de Darwin. Também havia um manuscrito egípcio ilustrado aberto numa vitrine. Rachel se perguntou se era um dos que haviam sido roubados do Museu do Cairo, o texto falsificado com as estrofes cifradas que dera início a toda aquela aventura assassina.
Para onde quer que ela olhasse havia obras de arte. Estátuas etruscas e romanas decoravam as prateleiras, entre elas um cavalo persa sem cabeça, de sessenta centímetros de altura, uma obra-prima roubada no Irã havia uma década, supostamente representando o famoso cavalo Bucéfalo, de Alexandre, o Grande. Quadros estavam pendurados acima das vitrines. Ela sabia que um era um Rembrandt e outro, um Rafael.
Mas no centro da sala havia uma escrivaninha maciça esculpida em mogno. Ela ficava perto de uma lareira de pedra que ia do chão ao teto. Dela pequenas chamas bruxuleavam.
- Professor! - Raoul chamou, fechando a porta atrás deles.
Por uma porta traseira que levava a outros aposentos privados entrou o dr. Alberto Menardi. Ele trajava um paletó preto de smoking adornado de vermelho e tinha o desplante de ainda estar usando seu colarinho clerical acima de uma camisa preta.
Ele carregava um livro embaixo de um braço e sacudiu um dedo para Rachel.
- Você não foi totalmente honesta conosco.
Rachel sentiu o coração parar de bater, sua respiração tornou-se apertada.
Alberto virou-se para Raoul.
- E se você não tivesse me distraído com a necessidade de suturar o pulso daquele americano, eu teria descoberto isso antes. Vocês dois, venham cá.
Ele acenou para que eles se aproximassem da escrivaninha em desordem.
Rachel notou que seu mapa do Mediterrâneo estava estendido na superfície. Novas linhas haviam sido acrescentadas, círculos, meridianos, marcações de graus. Minúsculos números arcanos foram inscritos ao longo de uma extremidade do mapa. Uma bússola e uma régua T estavam ao lado dele, junto com um sextante. Era óbvio que Alberto estivera trabalhando naquele quebra-cabeça, ou por não confiar em Rachel, ou por achar que ela e seu tio eram obtusos demais.
O prefeito bateu de leve no mapa.
- Roma não é o próximo lugar.
Rachel esforçou-se para não vacilar.
Alberto prosseguiu:
- Todo o subtexto deste desenho geométrico significa movimento para a frente no tempo. Até mesmo esta ampulheta segmenta o tempo, movendo um grão de areia de cada vez para a frente, para o fim inevitável. Por este motivo, o símbolo da ampulheta sempre representou a morte, o fim dos tempos. O fato de uma ampulheta aparecer aqui só pode significar uma coisa.
Raoul franziu profundamente o cenho, indicando sua falta de compreensão.
Alberto deu um suspiro.
- Obviamente, ela significa o fim desta jornada. Eu tenho certeza de que, para onde quer que esta pista aponte, ela assinala a última parada.
Rachel sentiu Raoul agitar-se ao lado dela. Eles estavam próximos de sua meta final. Mas não tinham a chave de ouro, e, apesar de toda a sua inteligência, Alberto ainda não solucionara todo o enigma. Mas ele o solucionaria.
- Não pode ser Roma - disse Alberto. - Isso é mover-se para trás, e não para a frente. Existe outro mistério a ser solucionado aqui.
Rachel sacudiu a cabeça, aparentando desinteresse devido à exaustão.
- Isso foi tudo o que conseguimos calcular antes de sermos atacados. - Ela fez um aceno ao redor da sala. - Nós não dispúnhamos dos recursos de vocês.
Alberto estudou-a enquanto ela falava. Ela encarou-o com firmeza.
- Eu... eu acredito em você - disse ele lentamente. - O monsenhor Vigor é muito inteligente, mas este enigma está mergulhado em mistério.
Rachel manteve a expressão apática, deixando transparecer certo medo, agindo como se estivesse intimidada. Alberto trabalhava sozinho. Ele sem dúvida havia se escondido ali a fim de solucionar os enigmas da Corte. Não confiava em mais ninguém, convencido de sua própria superioridade. Tampouco entendia o valor da perspectiva mais ampla, de uma diversificação de pontos de vista. Fora necessária toda a perícia da equipe para juntar as peças do enigma, não o trabalho de um único homem.
Mas o prefeito não era tolo.
- No entanto - disse ele -, nós deveríamos ter certeza. Você ocultou a descoberta da chave de ouro. Talvez você tenha ocultado mais alguma coisa.
O medo aumentou.
- Eu lhes contei tudo - ela jurou com simulada convicção. Será que acreditariam nela? Será que a torturariam?
Ela engoliu em seco, tentando ocultar o que sabia. Ela jamais falaria. Havia muita coisa em jogo. Ela vira o poder manifestar-se em Roma e Alexandria. A Corte do Dragão jamais deveria possuí-lo.
Até mesmo a vida de Monk estaria perdida a partir dali. Ambos eram soldados. No aerobarco, ela dera a informação sobre a chave de ouro não só para poupar Monk, mas também para envolver Gray, para dar-lhe oportunidade de fazer alguma coisa. Parecera um risco sensato. Como agora, a Corte ainda não obtivera uma peça essencial do quebra-cabeça. Rachel tinha de agarrar-se à descoberta de Avignon e do papado francês.
Ou tudo estaria perdido.
Alberto deu de ombros.
- Só existe uma forma de descobrirmos se você sabe mais. É hora de nós extrairmos toda a verdade de você. Leve-a para a sala ao lado. Nós temos de nos preparar.
A respiração de Rachel acelerou-se, mas parecia que ela não conseguia obter ar suficiente. Foi empurrada brutalmente porta afora por Raoul. Alberto seguiu-os, tirando o paletó, pronto para começar o trabalho.
Rachel voltou a imaginar a mão de Monk caindo com um baque no convés do barco. Tinha de preparar-se para algo pior. Eles não deviam saber. Nunca. Nenhum motivo seria bom o suficiente para que ela revelasse a verdade.
Quando entrou no corredor, ela viu que a sala no outro lado, aquela onde havia a estranha mesa em forma de X, estava iluminada com mais intensidade. Alguém havia acendido a lâmpada cirúrgica acima da mesa.
Raoul bloqueava parcialmente a visão. Ela avistou um frasco de solução intravenosa num suporte e uma bandeja com instrumentos cirúrgicos longos, pontiagudos, em forma de saca-rolhas e afiados. Uma figura estava presa por tiras à mesa.
Oh! Deus... Monk...?
- Nós podemos estender este interrogatório a noite inteira - afirmou Alberto, passando na frente a fim de entrar na sala primeiro. Ele atravessou a sala e calçou um par de luvas de látex esterilizadas.
Raoul afinal empurrou-a para dentro da suíte de horrores cirúrgicos.
Rachel por fim viu quem estava preso à mesa, os membros estirados e atados, o sangue já gotejando do nariz.
- Alguém veio bisbilhotar onde não deveria - disse Raoul com um sorriso ansioso.
O rosto do prisioneiro voltou-se para ela. Seus olhos encontraram-se com reconhecimento. E, naquele instante, toda a vontade dela se esvaiu.
Rachel avançou para a frente.
- Não!
Raoul segurou-a pelos cabelos e forçou-a a ficar de joelhos.
- Você vai assistir daqui.
Alberto pegou um bisturi prateado.
- Nós vamos começar pela orelha esquerda.
- Não! - gritou Rachel. - Eu vou lhes contar! Eu vou lhes contar tudo!
Alberto baixou a lâmina e virou-se para ela.
- Avignon - disse ela soluçando. - É Avignon.
Ela não sentiu a menor culpa por contar. Tinha de confiar em Gray a partir dali. Toda a esperança estava depositada nele. Rachel olhou fixamente nos olhos horrorizados do prisioneiro amarrado.
- Nonna... - gemeu Rachel.
Era a avó dela.



02:22h
Avignon, França

A cidade de Avignon resplandecia, gritava, cantava e dançava.
O Festival de Verão de Teatro anual ocorria todo mês de julho, a maior vitrine mundial da música, do teatro e da arte. Jovens abarrotavam a cidade, acampando em parques, lotando hotéis e abrigos para a juventude. Era uma festa com 24 horas de duração. Nem mesmo o céu ameaçador desencorajava as pessoas que tinham ido ao festival.
Vigor desviou-se de um casal em pleno sexo oral num banco afastado de um parque. Os cabelos compridos da mulher ocultavam a maior parte de seu esforço de dar prazer ao parceiro. Vigor passou apressado com Kat a seu lado. Eles haviam optado por cruzar o parque elevado para chegar à Place du Palais, ou Praça do Palácio. O castelo do papa erguia-se no alto do contraforte de uma rocha que se debruçava sobre o rio.
Quando eles passaram por um mirante, uma curva do rio apareceu abaixo. Nela se projetava a famosa ponte das rimas infantis francesas, Le Pont d'Avignon, ou Ponte de Saint-Bénezet. Construída em fins do século XII, era a única ponte que se estendia sobre o rio Ródano... embora, depois de tantos séculos, restassem apenas quatro de seus 22 arcos originais. Esse vão parcial estava intensamente iluminado. Participantes do festival dançavam em cima dele, dançarinos folclóricos tradicionais pelo que parecia. A música chegava até eles.
Em Avignon, o passado e o presente mesclavam-se como só o faziam em poucas outras cidades.
- Por onde começamos? - perguntou Kat.
Vigor passara o tempo de vôo pesquisando, tentando responder àquela pergunta. Ele falou enquanto eles se afastavam do rio em direção à cidade.
- Avignon é uma das cidades mais antigas da Europa. Suas origens remontam ao período neolítico. Ela foi povoada pelos celtas e depois pelos romanos. Mas hoje em dia a cidade é mais conhecida pela sua herança gótica, que floresceu durante o século do papado francês. Avignon se orgulha de um dos maiores conjuntos de arquitetura gótica em toda a Europa. Uma verdadeira cidade gótica.
- E qual seria a importância disso? - indagou Kat.
Vigor reconheceu a dureza na voz dela. Ela estava preocupada com os seus colegas, separada deles, enviada para ali. Ele sabia que ela sentia uma profunda responsabilidade pela captura da sobrinha dele e de Monk. Ela carregava aquela carga apesar de seu próprio comandante ter insistido em que ela fizera a coisa certa.
Vigor sentia um eco da preocupação dela. Ele arrastara Rachel para aquela aventura. Agora ela estava nas mãos da Corte do Dragão. Mas ele sabia que a culpa não lhes faria bem. Ele fora criado com fé que era a pedra angular de sua existência. Ele encontrou certo conforto em colocar sua fé na segurança de Rachel nas mãos de Deus - e de Gray.
Mas aquilo não significava que ele mesmo não pudesse ser pró-ativo. Deus ajuda a quem ajuda a si mesmo. Ele e Kat tinham seu próprio dever ali.
Vigor respondeu à pergunta dela.
- A palavra "gótico" origina-se da palavra grega "goetic", que se traduz por "magia". E essa arquitetura era considerada mágica. Ela não se parecia com nada visto na época: a nervura fina, os botaréus, as alturas impossíveis. Ela dava uma impressão de ausência de peso.
Quando Vigor enfatizou a última palavra, Kat entendeu.
- Levitação - disse.
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo.
- As catedrais e outros edifícios góticos eram quase exclusivamente construídos por um grupo de pedreiros que se autodenominavam Filhos de Salomão, uma mistura de templários e monges da Ordem Cisterciense. Eles retinham os mistérios matemáticos para construir essas estruturas, supostamente obtidos quando os templários, durante as cruzadas, descobriram o Templo de Salomão perdido. Os templários ficaram ricos... ou melhor, mais ricos, pois dizia-se que eles já haviam descoberto o imenso tesouro do rei Salomão, talvez até a Arca da Aliança, que, segundo se dizia, havia sido ocultada no Templo de Salomão.
- E, supostamente, era na Arca que Moisés guardava seus potes de maná - disse Kat -, sua receita dos metais no estado m.
- Eu não descarto essa possibilidade - disse Vigor. - Na Bíblia, existem muitas referências a estranhos poderes que emanavam da Arca. Até mesmo a palavra levitar é derivada dos zeladores da Arca, os sacerdotes levitas. E a Arca era bastante conhecida por ser letal, matando com descargas de luz. Um sujeito, um carroceiro chamado Oza, tentou estabilizar a Arca quando ela se inclinou ligeiramente. Ele tocou-a com a mão e foi fulminado. Isso assustou o pobre rei Davi o suficiente para que, a princípio, ele se recusasse a levar a Arca para a sua cidade. Mas os sacerdotes levitas mostraram-lhe como se aproximar dela de maneira segura. Com luvas, aventais, e tirando todos os objetos de metal.
- Para não levar um choque - disse Kat, cuja voz perdera um pouco de sua dureza, o mistério induzindo-a a falar.
- Talvez a Arca, com os pós no estado m armazenados dentro dela, agisse como um capacitor elétrico. O material supercondutor absorvia a energia do meio ambiente e a armazenava como a pirâmide de ouro a havia armazenado. Até que alguém fizesse mau uso dela.
- E fosse eletrocutado.
Vigor respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça.
- Okay - disse Kat. - Digamos que os templários tenham redescoberto a Arca e possivelmente esses supercondutores no estado m. Mas podemos saber se eles entenderam seus segredos?
- Talvez eu tenha uma resposta. O comandante Gray originalmente me desafiou a encontrar referências históricas desses estranhos pós monoatômicos.
- Do Egito aos Reis Magos bíblicos - disse Kat.
Vigor voltou a afirmar com um aceno de cabeça.
- Mas eu me perguntei se isso ia além. Se ia além da época de Cristo. Restavam mais pistas a serem descobertas?
- E você as encontrou - disse Kat, interpretando a excitação dele.
- Esses pós no estado m tinham muitos nomes: pão branco, pó da projeção, Pedra do Paraíso, Pedra dos Reis Magos. Para minha surpresa, continuando a investigar desde os tempos bíblicos, descobri outra pedra misteriosa de história alquímica. A famosa pedra filosofal.
Kat franziu o cenho.
- A pedra que podia transformar chumbo em ouro?
- Esse é um equívoco comum. Um filósofo do século XVII, Irineu Filateles, um respeitadíssimo membro da Sociedade Real, fez o registro diretamente em seus tratados. Segundo ele, a pedra filosofal "nada mais era do que ouro digerido ao seu grau de pureza mais elevado... chamado de pedra em virtude de sua natureza fixa... ouro, mais puro do que o mais puro de todos... mas seu aspecto é o de um pó finíssimo".
- O pó de ouro de novo - disse Kat surpresa.
- Pode haver uma referência mais clara? E não foi só Irineu; um químico francês do século XV, Nicolas Flamel, descreveu um processo alquímico semelhante com as palavras finais, que eu cito: "Ele resultou num fino pó de ouro, que é a pedra filosofal".
Vigor fez uma pausa.
- Portanto, não resta dúvida de que alguns cientistas na época estavam fazendo experiências com uma estranha forma de ouro. Na verdade, todos os cientistas da Sociedade Real estavam fascinados por ele, entre eles Sir Isaac Newton. Muitos não sabem que Newton era um alquimista fervoroso e também colega de Irineu.
- Então, o que foi feito de todo o trabalho deles? - indagou Kat.
- Eu não sei. Muitos provavelmente chegaram a um beco sem saída. Mas outro colega de Newton, Robert Boyle, também pesquisou o ouro alquímico. Mas alguma coisa o perturbou, alguma coisa que ele descobriu. Ele interrompeu suas pesquisas e declarou que tais estudos eram perigosos. Tão perigosos, na verdade, que ele afirmou que o seu mau uso poderia "perturbar os assuntos da humanidade, virando o mundo de cabeça para baixo". Isso nos faz perguntar o que o assustou. Será que ele tocara as raias de algo que impeliu a nossa sociedade alquímica perdida a fechar-se em profundo segredo?
Kat sacudiu a cabeça.
- Mas o que é que a pedra filosofal tem a ver com a arquitetura gótica?
- Mais do que você poderia pensar. Um francês do início do século XX chamado Fulcanelli escreveu um best-seller intitulado Le Mystère des Cathédrales. Era um tratado que discorria minuciosamente sobre como as catedrais góticas da Europa foram codificadas com mensagens arcanas, apontando para um filão de conhecimento perdido, incluindo como preparar a pedra filosofal e outros segredos alquímicos.
- Um código em pedra?
- Não se surpreenda. Era o que a Igreja já estava fazendo. A maioria da população na época era analfabeta. As decorações das catedrais eram tanto instrutivas quanto informativas, relatos bíblicos em obra de cantaria. E lembre-se de quem eu disse que construiu esses maciços livros de história góticos.
- Os templários - disse Kat.
- Um grupo que sabidamente obtivera conhecimento secreto do Templo de Salomão. Talvez por isso, além de contarem histórias bíblicas, eles incorporaram algumas mensagens codificadas adicionais, destinadas a seus colegas alquimistas maçônicos.
A expressão de Kat era de dúvida.
- Temos apenas de olhar mais atentamente para alguma obra de arte gótica para erguermos uma sobrancelha ou ambas. A iconografia está cheia de símbolos do zodíaco, enigmas matemáticos, labirintos geométricos extraídos de textos alquímicos da época. Até mesmo o autor de O Corcunda de Notre Dame, Victor Hugo, passou um capítulo inteiro censurando as obras de arte de Notre Dame como contrárias à Igreja Católica. Descrevendo a arte gótica como "páginas sediciosas" em pedra.
Vigor apontou para a frente, através das árvores. O parque terminou quando eles se aproximaram da Praça do Palácio.
- E Fulcanelli e Hugo não eram os únicos que acreditavam que havia algo de herético envolvido nas obras de arte dos templários. Você sabe por que a sexta-feira 13 é considerada azarenta?
Kat olhou de relance para ele e sacudiu a cabeça.
- Treze de outubro de 1307. Uma sexta-feira. O rei da França, junto com o papa, declarou os templários hereges, condenando-os à morte e crucificando e queimando o líder deles. Acredita-se amplamente que o verdadeiro motivo por que os templários foram proscritos era destituí-los de poder e assumir o controle de sua riqueza, incluindo o conhecimento secreto que eles possuíam. O rei da França torturou milhares deles, mas o local onde eles escondiam suas riquezas jamais foi descoberto. No entanto, isso assinalou o fim deles.
- De fato, um dia de azar para eles.
- Na verdade, o fim de um século de azar. - Vigor saiu do parque na frente dela, e ambos seguiram pela rua arborizada que conduzia ao centro da cidade. - A cisão entre a Igreja e os templários começara cem anos antes, quando o papa Inocêncio III aniquilou brutalmente os cátaros, uma seita de cristãos gnósticos com vínculos com os templários. Foi realmente uma guerra de um século entre a ortodoxia e a crença gnóstica.
- E nós sabemos quem a venceu - disse Kat.
- Sabemos mesmo? Eu me pergunto se não foi tanto uma vitória quanto uma assimilação. Se você não pode vencê-los, junte-se a eles. Um artigo interessante, intitulado "Pergaminho Chinon", foi publicado em setembro de 2001. Esse pergaminho datava de um ano após aquela sexta-feira 13 sangrenta e foi assinado pelo papa Clemente V, absolvendo e exonerando os templários. Lamentavelmente, o rei Filipe da França ignorou-o e continuou a massacrá-los por todo o país. Mas por que essa mudança de atitude da Igreja? Por que o papa Clemente edificou seu palácio aqui em Avignon na tradição gótica, construído pelos mesmos pedreiros heréticos? E por que Avignon se tornou de fato o centro gótico da Europa?
- Você está insinuando que a Igreja virou a casaca e aceitou os templários no seu redil?
- Lembre-se de que nós já havíamos chegado à conclusão de que alguns aspectos dos cristãos de Tome, cristãos de tendências gnósticas, já estavam ocultos no seio da Igreja. Talvez eles tenham convencido o papa Clemente a intervir a fim de proteger os Cavaleiros da violência do rei Filipe.
- Com que objetivo?
- Ocultar alguma coisa de grande valor - para a Igreja, para o mundo. Durante o século do papado de Avignon, uma grande onda de construções ocorreu aqui, grande parte delas supervisionadas pelos Filhos de Salomão. Eles poderiam ter facilmente ocultado algo de tamanho considerável.
- Mas por onde devemos começar a procurar? - perguntou Kat.
- Pela obra encomendada por aquele papa obstinado, construída pelas mãos dos templários, uma das maiores obras-primas da arquitetura gótica.
Vigor acenou para a frente, para onde a rua desembocava numa grande praça, repleta de pessoas que assistiam ao festival. Luzes coloridas emolduravam uma área para dança, uma banda de rock tocava num palco improvisado, e jovens contorciam-se, riam e gritavam. Ao longo da beira da praça, haviam sido montadas mesas, repletas de mais participantes do festival. Um malabarista arremessava tochas flamejantes no céu noturno. Palmas o encorajavam. A cerveja jorrava, junto com xícaras de papel de café. A fumaça de cigarros erguia-se em nuvens, junto com ervas especiais enroladas à mão.
Porém, como pano de fundo daquela festa, erguia-se uma estrutura imensa, escura e indistinta, emoldurada por torres quadradas, tendo na frente maciços arcos de pedra e adornadas por duas flechas cônicas. Sua fachada de pedra fazia um sóbrio contraste com a diversão abaixo. A construção vergava com o peso da história... e de um segredo antigo.
O Palácio dos Papas.
- Em alguma parte no interior de sua estrutura, encontra-se uma página de pedra sediciosa - disse Vigor, chegando mais perto de Kat. - Eu tenho certeza disto. Nós temos de encontrá-la e decifrá-la.
- Mas por onde começamos a procurar?
Vigor sacudiu a cabeça.
- O que quer que tenha assustado Robert Boyle, qualquer que tenha sido o terrível segredo que finalmente forjou uma aliança entre os heréticos templários e a Igreja oficial, seja qual for o mistério que exigiu uma caça ao tesouro por todo o Mediterrâneo para ser solucionado... a resposta está oculta aí dentro.
Vigor sentiu um vento forte soprar do rio. Avignon recebeu esse nome por causa das brisas constantes vindas do rio, mas ele percebeu a verdadeira tempestade que se aproximava. Acima, as estrelas haviam desaparecido. Nuvens pesadas baixaram sobre a cidade.
De quanto tempo eles dispunham?



02:48h
Lausanne, Suíça

- Foi assim que nós calculamos que era Avignon - terminou Rachel. - O Vaticano francês. É a próxima e última parada.
Ela ainda estava ajoelhada no linóleo. Sua avó continuava presa à mesa. Rachel lhes contara tudo, sem ocultar nenhum detalhe. Ela respondera a cada uma das perguntas de Alberto. Não tentara mentir. Não poderia correr o risco de que o prefeito testasse a veracidade dela na carne de sua avó.
Monk e Rachel eram soldados. A nonna dela não.
Rachel não permitiria que a anciã sofresse mal algum. Agora cabia a Gray manter a chave de ouro longe da Corte. Ela havia transferido toda a esperança e confiança para ele. Ela não teve outra escolha.
Enquanto ela falava, Alberto fizera anotações e voltara ao seu escritório para pegar uma caneta, um bloco e o mapa dela. Ele fez um aceno de cabeça aprovador assim que ela terminou, obviamente convencido.
- É claro - disse ele. - Tão simples, tão elegante. Nós teríamos acabado por imaginar isto, mas agora eu posso envidar melhor meus esforços na solução do próximo enigma... em Avignon.
Alberto virou-se para Raoul.
Rachel enrijeceu-se. Ela lembrou-se do que acontecera da última vez. Muito embora ela lhes tivesse dito a verdade sobre a chave de ouro, Raoul decepara a mão de Monk.
- Onde estão o monsenhor Verona e a outra americana agora? - perguntou Alberto.
- Da última vez que eu soube, eles estavam indo para Marselha - respondeu Raoul. - No jato particular deles. Eu pensei que eles estivessem seguindo ordens. Permanecendo por perto, mas fora da Itália.
- Marselha fica a apenas vinte minutos de Avignon - disse Alberto, franzindo o cenho. - O monsenhor Verona já deve estar a caminho a fim de trabalhar no enigma. Descubra se o avião dele já aterrissou.
Raoul acenou com a cabeça e transmitiu a ordem a um de seus homens, que se precipitou pelo corredor.
Rachel pôs-se de pé lentamente.
- Minha avó... - disse ela. - Vocês podem deixá-la ir agora?
Alberto fez um aceno com a mão, como se houvesse se esquecido da anciã. Sem dúvida, ele tinha coisas mais importantes em mente.
Um dos homens avançou e soltou as tiras de couro que prendiam a avó dela. Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Rachel ajudou sua nonna a sair da mesa.
Rachel proferiu em silêncio uma prece para Gray. Não só por si mesma e por Monk, mas agora também por sua avó.
Sua nonna ficou em pé vacilante e pôs uma das mãos sobre a mesa para apoiar-se. Ela estendeu a mão e secou as lágrimas de Rachel.
- Já acabou, criança... chega de choro. Não foi assim tão horrível. Eu já passei por situações piores.
Rachel quase riu. Sua avó estava tentando consolá-la.
Acenando para que Rachel se afastasse, sua avó caminhou na direção do prefeito.
- Alberto, você deveria envergonhar-se... - ralhou ela, como se falasse com uma criança.
- Nonna... não... - Rachel advertiu-a, estendendo um braço.
- ...por não acreditar que minha neta fosse capaz de ocultar segredos de você. - Ela mancou até ele e deu-lhe um beijo na bochecha. - Eu lhe disse que Rachel era esperta demais até para você.
O braço de Rachel estendido congelou. O sangue gelou em suas veias.
- De vez em quando, você deve confiar numa senhora de idade, não é?
- Como sempre, você tem razão, Camilla.
Rachel não conseguia respirar.
Sua avó fez um gesto para que Raoul lhe desse o braço.
- E você, meu rapaz, talvez agora você veja por que vale a pena proteger um sangue do Dragão assim tão forte. - Ela ergueu a mão e bateu de leve na bochecha do bastardo. - Você e minha neta... vocês dois farão bellissimi bambini. Muitos bebês belíssimos.
Raoul virou-se e examinou Rachel com aqueles olhos frios, sem vida.
- Eu darei tudo de mim - afirmou ele.
















CAPÍTULO 15

Perseguição



27 de julho, 03:00h
Lausanne, Suíça

Gray seguiu Seichan até o lado da montanha repleto de pinheiros. Eles haviam abandonado a motocicleta no fundo de uma garganta estreita, ocultando-a no meio de algumas roseiras alpinas em flor. Antes disso, haviam percorrido os últimos oitocentos metros no escuro, com o farol desligado. O cuidado extra os havia retardado, mas não havia como evitá-lo.
Seichan agora seguia na frente, sem lanternas, subindo uma ladeira de seixos soltos em direção a uma face de rocha escarpada. Gray tentava penetrar através do entrelaçamento de ramos de pinheiro. Ele já tivera um vislumbre do castelo quando eles saíram de Lausanne e começaram a subir as montanhas circundantes. O castelo assentava como uma pesada gárgula de granito, o rosto quadrado, os olhos brilhando à luz artificial. Então desapareceu quando eles passaram sob uma ponte que se estendia acima.
Gray caminhava ao lado de Seichan, que segurava um dispositivo GPS diante dela enquanto subia.
- Você tem certeza de que consegue encontrar essa entrada dos fundos?
- Eles me puseram um capuz quando eu estive aqui pela primeira vez. Mas eu tinha um rastreador GPS escondido - ela olhou de relance para Gray - numa parte íntima. Eu registrei a posição de chegada e a elevação. Isso deve nos levar até a entrada.
Eles continuaram rumo à elevada face do penhasco.
Gray observou atentamente Seichan. O que ele estava fazendo ao confiar nela? Na floresta escura, as preocupações aumentaram. E não só pela escolha de sua companheira de ação. Ele começou a duvidar de sua própria capacidade de discernimento. Aquela era a atitude de um líder de verdade? Ele estava colocando tudo em risco naquela tentativa de resgate. Qualquer estrategista teria considerado as possibilidades e ido direto para Avignon com a chave. Ele estava colocando toda a missão em risco.
E se a Corte do Dragão ganhasse...
Gray imaginou os mortos em Colônia, os padres torturados em Milão. Muito mais pessoas morreriam se ele fracassasse.
E para quê?
Pelo menos, ele sabia a resposta àquela pergunta.
Gray continuou a subir a encosta, perdido em seus próprios pensamentos.
Seichan checou sua unidade de GPS e em seguida moveu-se para a esquerda. Surgiu uma fenda no rochedo, meio oculta por uma laje de granito inclinada, coberta de musgo e de minúsculas flores brancas dos benjoeiros.
Ela curvou-se, seguiu na frente através de um túnel estreito e acendeu uma lanterna de bolso. Um pouco mais adiante, uma grade antiga bloqueava o caminho. Seichan rapidamente abriu a fechadura.
- Existem alarmes? - perguntou Gray.
Seichan deu de ombros e abriu o portão.
- Nós vamos descobrir.
Gray inspecionou as paredes quando eles entraram. Granito compacto. Sem fios elétricos.
Dez metros depois do portão, uma escada tosca conduzia para cima. Gray tomou a dianteira a partir dali. Ele consultou o relógio. O trem procedente de Genebra chegaria à estação de Lausanne dentro de poucos minutos. Sua ausência seria notada. O tempo estava se esgotando.
Ele começou a subir os degraus mais depressa, mas de olho em quaisquer dispositivos de vigilância ou de alarme. Subiu o equivalente a 15 andares, a tensão aumentando a cada passo.
Finalmente o túnel deu numa sala mais ampla, uma cavidade abobadada na rocha. Na parede dos fundos, uma fonte natural jorrava e escorria por uma abertura na rocha, fluindo em direção ao sopé da montanha. Mas em frente à fonte havia uma grande laje de pedra talhada. Um altar. No teto, estrelas pintadas. Era o templo romano que Seichan descrevera. Até ali, as informações secretas dela eram exatas.
Seichan entrou atrás dele na sala.
- A escada de acesso ao castelo fica no outro lado - disse ela, apontando um braço em direção a outro túnel que conduzia para fora.
Gray deu um passo em direção a ele quando a escuridão na boca do túnel oscilou. Uma forma imensa surgiu na luz escassa.
Raoul.
Com uma submetralhadora nas mãos.
Luz tremeluziu à sua esquerda. Dois outros pistoleiros saíram de trás da laje. Atrás de Gray, uma porta de aço fechou-se com um ruído no corredor mais baixo.
Mas o pior foi sentir o cano frio de uma arma na base de seu crânio.
- Ele está carregando a chave de ouro ao redor do pescoço - disse Seichan.
Raoul avançou a passos largos e parou diante de Gray.
- Você deveria ser mais cauteloso na escolha de suas companhias.
Antes que pudesse reagir, Gray levou um violento soco na barriga.
Ele expeliu o ar tossindo e caiu de joelhos.
Raoul estendeu a mão para o pescoço dele e agarrou o cordão. Arrancou a chave, arrebatando o pingente do pescoço de Gray com um movimento brusco, e ergueu-o contra a luz.
- Obrigado por nos entregar isto - disse Raoul. - E por se entregar. Nós temos algumas perguntas para você antes de partirmos para Avignon.
Gray encarou Raoul. Ele não pôde ocultar seu choque. A Corte sabia a respeito de Avignon. Como...?
Mas ele sabia.
- Rachel... - murmurou ele.
- Ah, não se preocupe. Ela está viva e bem. Pondo o assunto em dia com a família no momento.
Gray não entendeu.
- Não se esqueça do colega dele no hospital - disse Seichan. - Nós não queremos deixar nada inacabado.
Raoul fez um aceno de cabeça.
- Já estamos cuidando disso.



03:07h
Genebra, Suíça

Incapaz de dormir, Monk assistia à televisão. Era em francês. Como não falava o idioma, ele na verdade não estava prestando atenção. Para ele, era estática. A morfina embotava a agudeza de sua mente.
Ele mantinha os olhos desviados de seu coto enfaixado.
A fúria impedia o efeito sedativo do analgésico. Fúria não pela sua mutilação, mas também por ser o bode expiatório naquela operação. Posto fora de combate. Usado como uma maldita moeda de troca. Os outros estavam em perigo, e ele estava trancado num quarto particular, protegido pela segurança do hospital.
Todavia, ele não podia negar uma dor abafada no seu âmago, uma dor que a morfina não podia aliviar. Ele não tinha o direito de sentir pena de si mesmo. Estava vivo. Era um soldado. Vira companheiros deixar o campo em condições muito piores do que a sua. Mas a dor persistia. Ele sentia-se violado, insultado, menos que um homem, certamente menos que um soldado.
A lógica não aquietaria seu coração.
A lengalenga continuava na televisão.
Uma agitação do lado de fora atraiu seu olhar. Discussão. Vozes alteadas.
Ele ergueu-se no leito. O que estava acontecendo?
Então a porta se abriu.
Ele olhou em choque quando uma figura passou pelos seguranças.
Uma figura familiar.
Monk não conseguiu evitar o choque em sua voz.
- Cardeal Spera?



03:08h
Lausanne, Suíça

Rachel fora levada de volta à sua cela, mas não estava sozinha.
Um homem montava guarda no lado de fora do vidro à prova de balas.
Dentro, a avó dela afundou na cama de aço com um suspiro.
- Você talvez não entenda agora, mas vai entender.
Rachel sacudiu a cabeça. Ela estava de pé, encostada na parede oposta, confusa, aturdida.
- Como... como você pôde?
A avó dela olhou-a com aqueles olhos penetrantes.
- Eu um dia fui como você. Eu tinha apenas 16 anos quando vim a este castelo pela primeira vez, vindo da Áustria, fugindo quando a guerra terminou.
Rachel lembrou-se das histórias de sua avó sobre a fuga da família para a Suíça e por fim para a Itália. Ela e o pai foram os únicos membros da família que sobreviveram.
- Vocês estavam fugindo dos nazistas.
- Não, criança, nós éramos nazistas - corrigiu-a sua nonna.
Rachel fechou os olhos. Oh! meu Deus...
Sua avó prosseguiu:
- Papai era um líder do partido em Salzburgo, mas também tinha vínculos com a Corte Imperial do Dragão da Áustria. Era um homem muito poderoso. Foi por intermédio dessa fraternidade que nós fugimos clandestinamente através da Suíça, graças à generosidade do barão de Sauvage, avô de Raoul.
Rachel ouvia com crescente horror, embora tivesse vontade de tampar os ouvidos e recusar-se a ouvir.
- Mas essa passagem segura exigia um pagamento. E meu pai o concedeu. Minha virgindade... ao barão. Como você, eu resisti, incapaz de entender. Meu pai me reprimiu pela primeira vez, para o meu próprio bem. Mas não seria a última. Nós ficamos quatro meses escondidos aqui no castelo. O barão me levou muitas noites para a cama, até eu engravidar com o seu filho bastardo.
Rachel começou a escorregar aos poucos pela parede, acomodando-se no frio piso de pedra.
- Mas, bastardo ou não, foi um bom cruzamento, misturando uma linhagem nobre austríaca dos Habsburgos com uma linhagem suíça bernesa. Eu vim a entender à medida que a criança crescia no meu ventre. Era o jeito da Corte, fortalecendo linhagens puras. Meu pai inculcou isso em mim. Eu acabei entendendo que tinha uma linhagem nobre que remontava a imperadores e reis.
Sentada no chão, Rachel tentou compreender a brutalidade cometida contra a mocinha que viria a ser sua avó. Será que sua avó havia corroborado aquela crueldade e abuso dissimulando-os num projeto visionário maior? Submetida a uma lavagem cerebral pelo pai naquela tenra idade. Rachel tentou sentir compaixão pela anciã, mas não conseguiu.
- Meu pai me levou para a Itália, para Castel Gandolfo, onde se situa a residência de verão do papa. Foi lá que eu dei à luz sua mãe. Uma vergonha. Eu fui espancada por causa disso. Esperavam um menino.
Sua avó sacudiu a cabeça tristemente. Ela continuou, relatando outra história da família. Que se casara com outro membro da Corte do Dragão, um homem com ligações com a Igreja em Castel Gandolfo. Fora um casamento de conveniência e falácia. A família deles recebera a missão de introduzir seus filhos e netos na Igreja, como espiões involuntários, agentes secretos da Corte. Para guardar o segredo, a mãe de Rachel e o tio Vigor foram mantidos ignorantes de sua herança amaldiçoada.
- Mas você foi destinada a muito mais - disse a avó dela com intenso orgulho. - Você provou o seu sangue do Dragão. Você foi observada e escolhida para ser aliciada para a Corte. O seu sangue era precioso demais para ser desperdiçado. O Imperador a escolheu pessoalmente para cruzar nossa linhagem com a antiga linhagem Sauvage. Os seus filhos serão reis entre reis.
Os olhos de sua nonna brilharam maravilhados.
- Molti bellissimi bambini. Todos reis da Corte.
Naquele instante, Rachel nem sequer teve força para erguer a cabeça. Ela cobriu o rosto com as mãos. Cada momento de sua vida passou como um relâmpago por ela. O que era real? Quem era ela? Ela pensou no número de vezes em que tomara o partido da avó contra a mãe, até mesmo nos conselhos da avó sobre sua vida amorosa. Ela reverenciara a anciã e seguira o exemplo dela, respeitando seu jeito firme e pragmático. Mas aquela solidez provinha de obstinação ou de psicose? O que aquilo implicava para si mesma? Ela partilhava aquela linhagem... com a avó... meu Deus, com o bastardo do Raoul.
Quem era ela?
Outra preocupação veio à tona. O medo a impeliu a falar.
- E... e o tio Vigor... seu filho?
A avó dela deu um suspiro.
- Ele desempenhou seu papel na Igreja. O celibato encerrou a linhagem dele. Agora ele não é mais necessário. O legado da nossa família será transmitido gloriosamente no futuro por seu intermédio.
Rachel percebeu um vestígio de dor por trás daquelas últimas palavras e olhou para cima. Ela sabia que sua avó amava Vigor... na verdade, mais do que à mãe da própria Rachel. Ela se perguntou se a avó havia tido ressentimento daquela filha a que dera à luz, fruto do estupro. E será que aquele trauma fora transmitido à geração seguinte? Rachel e sua mãe sempre haviam tido um relacionamento tenso, uma dor não expressa que não podia ser nem superada nem compreendida.
E onde isso iria parar?
Um grito chamou a atenção dela para a porta. Homens aproximavam-se.
Rachel ficou em pé, e sua avó também. Tão parecidas...
Um grupo de guardas passou marchando pelo corredor. Rachel olhou em desespero para o segundo homem da fila. Gray, as mãos atadas atrás das costas, passou caminhando penosamente. Ele olhou para dentro da cela. Ao vê-la, os olhos dele arregalaram-se de surpresa e ele tropeçou.
- Rachel...
Gray foi empurrado para a frente por Raoul, que olhou de soslaio para a cela e ergueu alguma coisa num cordão ao passar.
Uma chave de ouro.
O desespero tomou conta de Rachel.
Agora não havia nada entre a Corte e o tesouro em Avignon. Depois de séculos de manipulação e maquinação, a Corte do Dragão vencera.
Estava terminado.



03:12h
Avignon, França

Kat não gostava nem um pouco daquilo. Havia civis demais por perto. Ela subiu os degraus em direção à entrada principal do Palácio dos Papas. Um fluxo de pessoas entrava e saía pelo portão.
- É uma tradição encenar a peça dentro do palácio - disse Vigor. - No ano passado, encenaram A Vida e a Morte do Rei João, de Shakespeare. Este ano é uma montagem de Hamlet com quatro horas de duração. A peça e a festa duram até de manhã. A encenação é feita no Pátio de Honra. - Ele apontou para a frente.
Eles abriram caminho através de um grupo de turistas alemães que saía do palácio e cruzaram a entrada em arco. Vindas de mais adiante, vozes ecoavam na parede de pedra numa mistura de línguas.
- Será difícil fazer uma busca minuciosa com todas estas pessoas - disse Kat, franzindo o cenho.
Vigor concordou com um aceno de cabeça enquanto o ronco de um trovão ribombou no céu.
Risos e palmas ecoaram.
- A peça deve estar quase no fim - disse Vigor.
A longa passagem terminava num pátio ao ar livre. Estava escuro, a não ser pelo grande palco no outro lado, emoldurado por cortinas e decorado como a sala do trono de um grande castelo. O pano de fundo era na verdade a própria parede do pátio. Em cada lado erguiam-se torres de iluminação, cujos refletores despejavam luz sobre os atores, e altíssimos alto-falantes.
Uma multidão reunia-se abaixo do palco, em cadeiras ou espalhada sobre cobertores no piso de pedra. No palco, algumas figuras estavam de pé em meio a uma pilha de corpos. Um ator falou em francês, mas Kat era fluente no idioma.
- Estou morto, Horácio. Pobre rainha, adeus!
Kat reconheceu uma das últimas falas de Hamlet. A peça estava de fato quase no fim.
Vigor puxou-a para o lado.
- Este pátio separa duas alas diferentes do palácio: a nova e a velha. A parede dos fundos e a parede à esquerda fazem parte do Palais Vieux, o palácio velho. Onde nós estamos e à direita fica o Palais Neuf, a parte construída mais tarde.
Kat inclinou-se para mais perto de Vigor.
- Por onde começamos?
Vigor apontou para a parte mais antiga.
- Existe uma história misteriosa relacionada com o Palácio dos Papas. Muitos historiadores da época relatam que, na madrugada de 20 de setembro de 1348, uma grande coluna de fogo foi vista acima da parte antiga do palácio. Ela foi percebida pela cidade inteira. Muitos dos supersticiosos acreditaram que a chama anunciava a grande praga, a peste negra, que começou mais ou menos na mesma época. Mas, e se não fosse? E se fosse alguma manifestação do campo de Meissner, um fluxo de energia sendo liberado quando um segredo qualquer foi encerrado aqui? A aparição da chama deve assinalar a data exata em que o tesouro foi enterrado.
Kat fez um aceno de cabeça positivo. Era algo a investigar.
- Eu baixei da Internet um mapa detalhado - disse Vigor. - Tem uma entrada do palácio antigo perto da Porta de Nossa Senhora. Uma entrada raramente usada.
Vigor seguiu na frente, dobrando à esquerda. Uma arcada abriu-se. Eles entraram na passagem enquanto um grande relâmpago cindia o céu. Trovões retumbaram. O ator no palco parou no meio de um monólogo. Risos nervosos soaram através do público. A tempestade talvez encerrasse a peça cedo.
Vigor fez um sinal, indicando uma porta resistente do lado.
Kat abaixou-se e pôs-se a trabalhar com seus instrumentos para arrombar fechaduras, enquanto Vigor ocultava o trabalho dela com seu corpo. Ela não levou muito tempo para soltar o trinco. Kat abriu-o com um estalido.
Outro raio a fez olhar para o pátio. Trovões ribombaram e o céu se abriu.
A chuva caiu pesadamente das nuvens baixas. Gritos e aplausos irromperam do público. Um êxodo em massa teve início.
Kat abriu a porta com o ombro, segurou-a para Vigor entrar e fechou-a atrás deles.
Ela fechou-se com um impacto e um forte estalido do trinco. Kat tornou a trancá-la.
- Nós temos de nos preocupar com a segurança? - perguntou ela.
- Lamentavelmente, não. Como você verá, na verdade não há nada para roubar. A maior preocupação é o vandalismo. Talvez haja um vigia noturno. Por isso deveríamos ter cautela.
Kat fez um aceno de cabeça e manteve a lanterna desligada. A luz que se filtrava através das altas janelas era suficiente para iluminar uma rampa que conduzia para cima, em direção ao próximo pavimento do castelo.
Vigor seguiu na frente.
- Os aposentos privados do papa ficam na Torre dos Anjos. Esses aposentos sempre foram a área mais protegida do palácio. Se alguma coisa foi oculta, nós provavelmente deveríamos procurar lá.
Kat pegou uma bússola e manteve-a fixa à sua frente. Um marcador magnético havia-os conduzido ao túmulo de Alexandre. Talvez fizesse o mesmo ali também.
Eles atravessaram várias salas e corredores. Seus passos ecoavam abafados pelos espaços abobadados. Kat agora entendia a falta de segurança de verdade. O lugar era um túmulo de pedra, despido de quase toda decoração ou mobília. Não havia nenhum vestígio da opulência que o palácio outrora devia ter ostentado. Ela tentou imaginar a abundância de veludo e pele, os magníficos tapetes, os lautos banquetes, o dourado e o prateado. Nada restava a não ser pedra e vigas de madeira.
- Depois que os papas partiram - sussurrou Vigor -, o lugar foi abandonado. Ele foi saqueado durante a Revolução Francesa, servindo por fim de guarnição e alojamento para as tropas de Napoleão. Uma grande parte do lugar foi caiada e destruída. Apenas em algumas áreas, como os aposentos do papa, ainda resta parte dos afrescos originais.
Enquanto andava, Kat também sentiu a estranha configuração do lugar: corredores que terminavam de maneira muito abrupta, cômodos que pareciam estranhamente pequenos, escadas que desciam a pavimentos sem portas. A espessura das paredes variava de algumas dezenas de centímetros a cerca de 5,5 metros. O palácio era uma verdadeira fortaleza, mas Kat podia sentir espaços, passagens, cômodos ocultos - características comuns entre os castelos medievais.
Isso foi confirmado quando eles entraram num cômodo que Vigor chamou de tesouraria. Ele apontou para quatro lugares.
- Eles enterravam o ouro sob o assoalho. Em salas subterrâneas. Sempre correram boatos de que outras dessas câmaras ainda estavam por descobrir.
Eles atravessaram outros cômodos: um grande quarto de vestir, uma ex-biblioteca, uma cozinha vazia cujas paredes quadradas se estreitavam numa chaminé octogonal sobre um fogão no centro.
Vigor afinal entrou na Torre dos Anjos.
A bússola de Kat não dera um mínimo puxão sequer, mas ela estava mais concentrada agora. A preocupação aumentou. E se eles não encontrassem a entrada? E se ela fracassasse de novo? A mão que segurava a bússola começou a tremer. Primeiro o fracasso dela com Monk e Rachel...
E agora aquele.
Ela segurou a bússola com mais força e controlou a mão para ela manter-se firme. Ela e Vigor solucionariam o enigma. Eles tinham de solucioná-lo. Ou todo o sacrifício dos outros seria em vão.
Determinada, subia de um pavimento dos aposentos do papa para o próximo. Como não havia sinal de nenhum vigilante, ela arriscou-se a acender uma pequena lanterna de bolso para ajudar a iluminar o espaço que eles esquadrinhavam.
- A sala de estar do papa - disse Vigor à entrada de um aposento.
Kat ziguezagueou por toda a extensão dela, observando atentamente a bússola. As paredes ali eram decoradas com um torvelinho de tinta que se escamava, e uma grande lareira de canto dominava o aposento. Trovões ecoaram através das grossas paredes.
Assim que terminou a varredura, ela sacudiu a cabeça.
Nada.
Eles seguiram em frente. Um dos aposentos mais espetaculares veio em seguida: a Sala do Veado. Seus afrescos descreviam elaboradas cenas de caça, de falcoaria, passando por ninhos de pássaros e cães brincando, até um viveiro de peixes retangular.
- Um piscarium - disse Vigor. - Peixes de novo.
Kat acenou afirmativamente com a cabeça, lembrando-se da importância dos peixes para a própria busca deles. Ela esquadrinhou aquele aposento com um padrão de inspeção até mais rigoroso. A bússola recusou-se a mexer-se. Sem pistas, ela acenou para Vigor continuar.
Eles subiram mais um andar.
- O quarto de dormir do papa - disse Vigor, com um tom de desapontamento na voz e agora também preocupado. - Este é o último aposento.
Kat entrou na câmara. Não havia mobília. As paredes eram pintadas de um azul brilhante.
- Lápis-lazúli - disse Vigor. - Apreciado pelo seu brilho.
A magnífica decoração descrevia uma floresta à noite, ornamentada com gaiolas de pássaros de todas as formas e tamanhos. Alguns esquilos amontoavam-se entre os ramos das árvores.
Kat esquadrinhou o aposento de um lado ao outro.
Nada ainda.
Ela baixou a bússola, virou-se e encontrou o mesmo entendimento nos olhos de Vigor. Eles haviam fracassado.



03:36h
Lausanne, Suíça

Gray foi empurrado para uma cela de pedra lacrada com vidro Lexan à prova de balas e com 2,5 centímetros de espessura. A porta fechou-se com um estrondo. Ele vira Rachel numa cela duas cavernas abaixo... junto com a avó.
Aquilo não fazia sentido.
Raoul resmungou com seus homens e afastou-se, a chave de ouro na mão.
Seichan estava de pé junto à porta, sorrindo para ele. Com as mãos ainda atadas atrás das costas com cordas de plástico, ele arremessou-se contra ela, chocando-se na parede de vidro.
- Sua cadela filha-da-puta!
Ela apenas sorriu, beijou as pontas dos dedos e pressionou-as contra o vidro.
- Tchauzinho, querido. Obrigada pela carona até aqui.
Gray afastou-se da porta, ficando de costas, praguejando baixinho, calculando. Raoul apreendera sua mochila e a entregara a um de seus sequazes. Ele havia sido revistado, suas armas haviam sido tiradas dos coldres no ombro e no calcanhar.
Ele escutou uma conversa próximo à cela de Rachel. Uma porta abriu-se.
Raoul gritou para um de seus guardas:
- Leve madame Camilla até um dos jipes. Mande todos os homens se aprontarem. Nós seguiremos para o aeroporto daqui a alguns minutos.
- Ciao, Rachel, mia bambina.
Nenhuma resposta à avó. O que estava acontecendo?
Passos afastaram-se.
Gray ainda sentia uma presença junto à outra porta.
Raoul voltou a falar.
- Se eu pelo menos tivesse mais tempo - sussurrou ele gelidamente. - Mas ordens são ordens. Tudo isto vai chegar ao fim em Avignon. O Imperador voltará comigo para cá. Ele quer assistir quando eu a possuir pela primeira vez. Depois disso, seremos apenas nós dois... pelo resto da sua vida.
- Foda-se! - respondeu-lhe Rachel com veemência.
- Isso mesmo - Raoul deu uma gargalhada. - Eu vou ensinar você a gritar e a agradar adequadamente a seu superior. E, se você não se curvar a tudo o que eu exigir, você não será a primeira cadela que Alberto vai lobotomizar para a Corte. Eu não preciso da sua mente para comer você.
Ele afastou-se depois de ter dado uma última ordem a um guarda.
- Fique de olho aqui embaixo. Eu entrarei em contato pelo rádio quando estiver pronto para o americano. Nós vamos nos divertir um pouco aqui antes de partirmos.
Gray ouviu quando os passos de Raoul enfraqueceram.
Ele não esperou mais. Chutou a biqueira de sua bota com força contra a sólida parede de rocha. Uma lâmina de 7,5 centímetros de comprimento saltou do calcanhar. Ele agachou-se e cortou as cordas que prendiam seu pulso. Movia-se rápido. O tempo era tudo.
Ele enfiou a mão na frente da calça. Seichan havia introduzido uma latinha estreita próximo à fivela do cinto dele quando ele se atirou contra a parede de vidro. A mão esquerda dela havia passado através de um respiradouro, enquanto a outra mão distraía com seu fingido beijo de despedida.
Gray tirou a latinha de dentro da calça, foi até a porta e borrifou as dobradiças. Os parafusos de aço começaram a dissolver-se. Ele tinha de reconhecer o mérito da Guilda. Os brinquedos deles eram o máximo. Embora Gray não pudesse contatar seus superiores, nada havia impedido Seichan de obter equipamento dos superiores dela.
Gray esperou um minuto e então gritou para o guarda estacionado alguns passos corredor abaixo.
- Ei! Você aí! Tem alguma coisa errada aqui.
Passos aproximaram-se.
Gray afastou-se da porta.
O guarda avançou.
Gray apontou para o chiado acompanhado de fumaça que se erguia numa nuvem junto à porta.
- Que diabo! - gritou ele. - Vocês estão tentando me envenenar com gases, seus filhos-da-puta?
Com a testa enrugada, o guarda chegou mais perto da porta.
Excelente.
Gray deu um pulo para a frente, golpeou a porta, fazendo as dobradiças soltarem-se. A placa de vidro resistente acertou o guarda, que se chocou contra a parede oposta, batendo a cabeça com força. Enquanto caía, ele tentou sacar a pistola.
Gray empurrou a porta para o lado, contornou-a e girou o corpo. Ele cravou a lâmina do calcanhar de sua bota na garganta do homem e em seguida tirou-a, removendo a maior parte do pescoço do homem.
Ele curvou-se, tirou a pistola do coldre do guarda, pegou o molho de chaves dele e correu para a cela de Rachel.
Ela já estava em pé junto à porta.
- Gray...!
Ele abriu a fechadura.
- Nós não temos muito tempo.
Ele abriu a porta - e ela caiu em seus braços. Ela enlaçou-o com força, os lábios nas orelhas dele, a respiração em seu pescoço.
- Graças a Deus - sussurrou ela.
- Na verdade, graças a Seichan - disse ele.
Apesar da urgência de saírem dali, ele manteve o abraço por um tempo um pouco mais longo, sentindo que ela necessitava disso.
E ele talvez também precisasse.
Mas, finalmente, ambos se separaram. Gray apontou a pistola para o fim do corredor. Ele consultou o relógio. Dois minutos.



03:42h

Seichan estava ao pé da escada que conduzia à torre principal. Ela sabia que a única saída era pela porta da frente. Portas de aço com cargas de explosivos lacravam a saída dos fundos embaixo do castelo.
No pátio intensamente iluminado, uma caravana de cinco SUVs 3 estava sendo carregada. Homens gritavam ordens. Engradados eram empurrados na traseira dos jipes. Cães latiam nos canis.
Seichan observava tudo aquilo atentamente pelo canto dos olhos, acompanhando os movimentos de um homem em meio à aglomeração. Seria necessária uma ação violenta. Ela já havia confiscado um molho de chaves do último Mercedes SUV. Um cor de prata. Sua cor favorita.
Atrás dela, uma porta abriu-se. Raoul saiu junto com uma mulher idosa.
- Nós a deixaremos no aeroporto. Um avião a levará de volta a Roma.
- Minha neta...
- Nós cuidaremos dela. Eu prometo.
A última frase foi pronunciada com um sorriso gélido.
Raoul notou Seichan.
- Eu não creio que precisaremos mais dos serviços da Guilda.
Ela deu de ombros.
- Então eu vou sair com você e seguir meu caminho. - Ela fez um aceno de cabeça na direção do SUV prateado.
Raoul ajudou a anciã a descer os degraus e encaminhou-se para o veículo da frente, onde o dr. Alberto Menardi aguardava. Seichan continuou a observar seu alvo. Movimentos ao longo de um muro do pátio atraíram seu olhar.
Uma porta abriu-se. Ela avistou Gray. Ele tinha uma pistola. Ótimo.
No outro lado do pátio, Raoul levou um rádio à boca. Muito provavelmente, entrando em contato com as celas. Ela não podia esperar mais. O homem que estivera observando não estava tão próximo de Raoul quanto ela havia esperado - mas ele ainda era um bom alvo.
Ela fixou os olhos no soldado, que ainda carregava a mochila de Gray num ombro. Era sempre fácil contar com avareza entre os soldados de infantaria. O sujeito não deixava seu butim fora do alcance de sua visão. A mochila estava abarrotada de armas e de equipamento eletrônico caro.
Infelizmente para o soldado, o revestimento do fundo da mochila também tinha 250 gramas de C4 costuradas nele. Seichan apertou o transmissor em seu bolso, pulando sobre a balaustrada da escada da frente.
A explosão mandou pelos ares o centro da caravana.
Homens e partes de corpos voaram no céu escuro. Os tanques de gasolina entraram em combustão em dois dos carros. Uma bola de fogo rolou para cima. Detritos em chamas espalharam-se por todos os cantos do pátio.
Seichan moveu-se rapidamente. Acenando para Gray, ela apontou a pistola para o SUV prateado. O pára-brisa estava rachado, mas, em outros aspectos, ele estava intacto. Gray e a mulher saíram precipitadamente. Os três concentraram a atenção no veículo.
Dois soldados tentaram detê-los. Gray abateu um, Seichan o outro. Eles chegaram ao SUV.
A rotação de um motor atraiu seu olhar para o portão do castelo. O jipe da frente avançou aos solavancos. Raoul estava fugindo. Um fogo cerrado foi disparado na direção deles enquanto soldados embarcavam num segundo jipe, cujo motor já fora ligado.
Raoul surgiu subitamente através do teto solar do jipe da frente, olhando para trás, na direção deles, e segurando uma possante horse pistol.
- Abaixem-se! - gritou Seichan, jogando-se no chão.
A arma soou como um canhão. Ela ouviu o pára-brisa vir abaixo e o vidro traseiro explodir. A grossa bala trespassou o veículo. A plena vista, ela rolou em direção à traseira do jipe, mantendo-o entre ela e Raoul.
O fogo cuspiu do outro lado. Gray, de bruços, numa posição melhor para disparar contra o inimigo, atirou contra Raoul quando o jipe da frente saiu cantando pneus rumo à saída. O segundo jipe seguiu atrás.
Raoul continuou a atirar, sem medo do fogo inimigo.
Uma bala atravessou com violência a grade da frente do SUV.
Merda.
O filho-da-puta estava-lhes tirando o jipe.
Um dos faróis dianteiros explodiu. De sua posição no chão, Seichan viu um fluxo de óleo escorrer do compartimento do motor e acumular-se nas pedras.
A corrediça da pistola de Gray abriu-se. A munição acabara.
Seichan arrastou-se para juntar-se a ele, mas era tarde demais.
Um jipe, e em seguida o outro, saíram em disparada pelo portão. A gargalhada de Raoul chegou até eles. A grade levadiça baixou atrás do último veículo, seus dentes penetrando com um estrondo nos entalhes na pedra, fechando-se com firmeza.
O ruído de algo rolando sobre rodízios ecoou nos ouvidos dela.
Ela agachou-se. Anteparos de aço desceram sobre todas as janelas e portas do castelo. Fortificação moderna. A Corte levava a sua segurança a sério. Eles estavam encurralados no pátio.
Um novo som seguiu-se.
O estalido de uma série de trincos pesados.
Seichan virou-se junto com Gray e Rachel. Ela agora entendia a prolongada gargalhada do filho-da-puta em fuga.
Os portões da fileira de vinte canis ergueram-se em rodízios motorizados.
Monstros de músculos, couro e dentes saíram dos canis, rosnando, espumando, enlouquecidos pelo estrondo e pelo sangue. Cada um dos cães de combate chegava à altura do peito de um homem e pesava quase cem quilos, o dobro do peso da maioria dos seres humanos.
E a campainha do jantar acabara de soar.



03:48h
Avignon, França

Kat recusou-se a admitir a derrota. Evitando entrar em desespero, ela percorreu a extensão do quarto de dormir azul no alto da Torre dos Anjos.
- Nós estamos encarando isto da maneira errada - disse ela.
Ao contrário dela, Vigor permanecia imóvel no centro do quarto. Seus olhos estavam em algum outro lugar, calculando. Ou seria preocupação com a sobrinha? Até que ponto ele estava concentrado naquela tarefa?
- O que você quer dizer? - sussurrou ele.
- Talvez não exista um marcador magnético. - Ela ergueu a bússola, atraindo o olhar dele, tentando envolvê-lo por completo.
- O quê, então?
- O que você acha de toda aquela conversa mais cedo? Da história gótica da cidade e deste lugar?
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo.
- Alguma coisa embutida na estrutura do edifício. Mas, sem um marcador magnético, como vamos achá-la? O palácio é imenso. E, levando em consideração o estado de abandono, a pista poderia ter sido destruída ou removida.
- Você não acredita nisso - disse Kat com mais firmeza. - Essa sociedade secreta de alquimistas teria encontrado uma forma de preservá-la.
- No entanto, como vamos encontrá-la? - indagou Vigor.
Um relâmpago crepitou do lado de fora da janela próxima, iluminando os jardins abaixo da torre e a parte da cidade que se estendia abaixo da colina. O rio escuro serpenteou abaixo. A chuva começou a cair mais forte. Outro relâmpago, em ziguezague, cintilou através das entranhas das nuvens negras.
Kat observou o mostrador e virou-se lentamente para Vigor, a convicção firmando-se com a súbita compreensão. Ela guardou a bússola no bolso, sabendo que ela não era mais necessária.
- O magnetismo abriu o túmulo de São Pedro - disse ela, voltando para junto dele. - E foi o magnetismo que nos conduziu ao túmulo de Alexandre. Mas, uma vez lá, foi a eletricidade que ativou a pirâmide. O mesmo poderia nos conduzir ao tesouro aqui. - Ela fez um aceno com uma das mãos para o ofuscante espetáculo da tempestade. Relâmpagos. O palácio foi construído no alto da maior colina, a Roche des Doms, a Rocha do Domo.
- Atraindo descargas de relâmpagos. Um jato de luz que ilumina a escuridão.
- Existe alguma descrição de relâmpagos que nós não percebemos?
- Eu não me lembro. - Vigor cofiou a barba. - Mas eu acho que você tocou num ponto importante. A luz é um símbolo do conhecimento. Iluminação. O principal objetivo da fé gnóstica era buscar a luz primordial mencionada no Gênesis, alcançar essa antiga fonte de conhecimento e poder que flui em toda a parte.
Vigor ticou na ponta dos dedos.
- Eletricidade, relâmpagos, luz, conhecimento, poder. Tudo isso está relacionado. E em algum lugar existe um símbolo disso, embutido no projeto do palácio.
Kat sacudiu a cabeça, sem saber o que fazer.
Vigor de repente enrijeceu-se.
- O que foi? - perguntou ela, aproximando-se.
Vigor rapidamente ajoelhou-se e desenhou no pó.
O túmulo de Alexandre ficava no Egito. Nós não podemos nos esquecer de que um enigma leva ao seguinte. O símbolo egípcio da luz é um círculo com um ponto no centro, representando o sol.




- Mas às vezes ele é achatado numa oval, formando um olho, que representa não só o sol e a luz, mas também o conhecimento. O olho ardente da compreensão. O olho que tudo vê da iconografia dos maçons e dos templários.






Kat olhou para os desenhos, franzindo o cenho. Ela não vira aqueles sinais.
- Okay, mas onde começamos a procurá-lo?
- Ele não será encontrado, e sim formado - disse Vigor, levantando-se. - Por que não pensei nisto antes? Uma característica da arquitetura gótica é o malicioso jogo de luz e sombra. Os arquitetos templários eram mestres nesta manipulação.
- Mas onde nós podemos...?
Vigor interrompeu-a, já saindo pela porta.
- Nós temos de voltar para o primeiro andar. Para o lugar onde nós já vimos o potencial de um olho chamejante dentro de um círculo de luz.
Kat seguiu Vigor. Ela não se lembrava de nenhuma representação como aquela. Eles desceram a escada às pressas e saíram da Torre dos Anjos. Vigor seguiu na frente, cruzando uma sala de banquetes, e foi parar num cômodo que eles já haviam explorado.
- A cozinha? - perguntou ela, surpresa.
Kat voltou a olhar fixamente para as paredes quadradas, para o forno central elevado e, acima, para a chaminé octogonal. Ela não entendeu e começou a dizer isso.
Vigor pôs uma das mãos em concha sobre a lanterna de bolso.
- Espere.
Um relâmpago de brilho intenso rebentou lá fora. Iluminação suficiente penetrou pela chaminé aberta e refletiu uma oval perfeita sobre o fogão. A luz prateada bruxuleou e em seguida escureceu.
- Tudo o que está acima é como o que está abaixo - disse Vigor com a voz abafada. - O efeito provavelmente é mais evidente quando o sol do meio-dia está bem acima ou em algum ângulo preciso.
Kat imaginou o fogão aceso, iluminado pelas chamas. Fogo dentro de um círculo de luz do sol.
- Mas como nós podemos ter certeza de que este é o lugar certo? - perguntou ela, dando a volta ao redor do forno.
Ele franziu o cenho.
- Eu não tenho certeza absoluta, mas o túmulo de Alexandre estava sob um farol encimado por uma chama abrasadora. E, se levarmos em consideração a utilidade de um farol e de uma cozinha, faz sentido enterrar alguma coisa embaixo de um lugar com uma função importante. Gerações sucessivas preservariam isso por sua utilidade.
Não convencida, Kat curvou-se e tirou uma faca da mochila para examinar o forno central. Ela cavou a rocha que revestia o fogão, expondo uma pedra de cor alaranjada na base.
- Não é nem hematita nem magnetita. - Se fosse uma das duas, ela ter-se-ia convencido. - É apenas bauxita, um minério de hidróxido de alumínio. Um bom condutor de calor. Faz sentido numa lareira. Nada incomum.
Ela olhou de relance para Vigor, que exibia um largo sorriso.
- O que foi?
- Eu acabei de passar por ela - disse Vigor, juntando-se a Kat. - Eu deveria ter pensado que outra pedra indicaria o caminho. Primeiro hematita, depois magnetita e agora bauxita.
Kat ergueu-se, confusa.
- A bauxita é extraída bem aqui nesta área. Na verdade, ela recebeu esse nome por causa dos Lordes de Baux, cujo castelo fica a apenas 15 quilômetros daqui, sobre uma colina de bauxita. Esta pedra aponta um dedo na direção deles.
- E daí?
- Os Lordes de Baux tinham um relacionamento problemático com os papas franceses, seus novos vizinhos. Mas eles eram mais conhecidos por uma estranha afirmação que faziam com muita veemência. Eles diziam ser descendentes de uma famosa figura bíblica.
- De quem? - perguntou Kat.
- De Baltazar, um dos Reis Magos.
Kat arregalou os olhos e voltou para perto do forno.
- Eles lacraram a abertura com pedras dos descendentes dos Reis Magos.
- Você ainda duvida de que tenhamos encontrado o lugar certo? - perguntou Vigor.
Kat sacudiu a cabeça.
- Mas como vamos abri-la? Eu não estou vendo nenhum buraco de fechadura.
- Você já nos disse. Eletricidade.
Como que para dar ênfase ao ponto de vista dele, um trovão retumbou através das grossas paredes.
Kat tirou a mochila dos ombros. Valia a pena fazer uma tentativa.
- Nós não temos nenhuma daquelas baterias antigas. - Ela tirou da mochila uma lanterna maior. - Mas eu tenho algumas Duracell Coppertops modernas. - Ela abriu a lanterna com um estalido e usou a ponta de uma faca para soltar os fios positivo e negativo. Com a força desligada, ela torceu-os juntos e em seguida ergueu sua obra.
- É melhor você se afastar - advertiu Kat.
Estendendo a mão, ela pôs os fios da lanterna em contato com a pedra de bauxita, um minério de baixa condutividade. Ela moveu rapidamente o interruptor da lanterna.
Um arco de eletricidade feriu a pedra, e o resultado foi um som grave, como se um grande tambor houvesse sido tocado.
Kat correu para trás quando o som enfraqueceu, indo encostar-se à parede ao lado de Vigor.
Ao longo das extremidades do forno de pedra, espalhou-se um brilho flamejante, traçando linhas em todo o fogão.
- Eu acho que eles cimentaram os blocos com vidro no estado m derretido - murmurou Kat.
- Como os antigos construtores egípcios usaram chumbo derretido para cimentar o Farol de Faros.
- E agora a eletricidade está liberando o poder armazenado no vidro.
Outros rendilhados de fogo dançaram na superfície do forno, contornando cada uma das pedras. A luz brilhou com mais intensidade, imprimindo um padrão em ziguezague na retina dela. O calor projetou-se na direção deles.
Kat protegeu os olhos, mas o efeito não durou muito tempo. Quando o brilho se extinguiu, os blocos de bauxita começaram a soltar-se, não mais cimentados, caindo num buraco oculto embaixo do forno.
Ela ouviu o ruído de pedra chocando-se com pedra. Um chacoalhar continuou quando os blocos caíram mais fundo. Incapaz de refrear sua curiosidade por mais tempo, ela avançou e acendeu a lanterna de bolso. As extremidades do forno agora demarcavam uma escada escura que conduzia para baixo.
Ela virou-se para Vigor e disse:
- Nós conseguimos.
- Que Deus nos ajude - respondeu ele.



03:52h
Lausanne, Suíça

A uns quatrocentos metros de distância do castelo, Raoul baixou o telefone celular e saiu de seu jipe. A fúria estreitava sua visão a minúsculos pontos. O sangue escorria de um ferimento no couro cabeludo. Aquela piranha asiática o traíra. Mas ele teria sua compensação. Seus cães fariam picadinho de todos eles.
E, se não...
Ele foi até o segundo jipe e apontou para dois homens.
- Você e você. Voltem ao castelo. A pé. Fiquem de guarda junto às grades levadiças. Abram fogo contra qualquer pessoa que se mexer. Ninguém vai sair vivo daquele pátio.
Os dois desceram do jipe e voltaram a passos rápidos para o castelo.
Raoul voltou para o veículo da frente.
Alberto estava à espera dele.
- O que o Imperador disse? - perguntou ele enquanto Raoul se acomodava no banco de passageiros da frente.
Raoul guardou o telefone celular. A traição da Guilda deixara o líder deles tão surpreso quanto Raoul. Mas Raoul havia omitido sua própria traição em Alexandria, abandonando a piranha para morrer e mentido a esse respeito. Ele deveria ter esperado alguma coisa. Deu um soco no joelho. Quando ela lhe entregou o americano, ele baixou a guarda.
Estúpido.
Mas as coisas seriam consertadas.
Em Avignon.
Raoul respondeu a Alberto:
- O Imperador se juntará a nós na França, com mais forças. Nós vamos prosseguir conforme planejado.
- E os outros? - perguntou Alberto, voltando o olhar para o castelo.
- Eles não têm mais importância. Eles não podem fazer nada para nos deter.
Raoul acenou para que o motorista fosse em frente. O jipe seguiu para o aeroporto de Yverdon. Ele sacudiu a cabeça por causa das perdas. Não por causa dos homens, mas por causa da piranha, Rachel Verona. Ele tinha planos tão sangrentos para ela...
Mas pelo menos ele lhe deixara um presentinho de despedida.



03:55h

Rachel reuniu-se com Gray e Seichan nos degraus do castelo principal, as costas pressionadas contra os anteparos de metal que haviam baixado sobre as portas. Movendo-se furtivamente, eles haviam-se afastado da matilha para aquela relativa proteção.
Eles ainda tinham uma arma. Seis balas.
Gray tentara surrupiar outra arma em meio ao amontoado de cadáveres em chamas no pátio, mas tudo o que encontrou foram dois rifles danificados. Ele portava a arma de Seichan, que estava ocupada com uma unidade GPS, completamente concentrada, confiando em Gray para lhe dar cobertura.
O que ela estava fazendo?
Rachel estava a um passo de distância da mulher, mais perto de Gray. Uma de suas mãos segurava a aba da camisa dele. Ela não sabia quando a havia segurado, mas não a soltou. Era tudo o que a estava mantendo de pé.
Um dos cães passou em silêncio pelo pé da escada, arrastando um membro de um dos soldados mortos. Vinte daqueles monstros perambulavam pelo pátio, dilacerando corpos, rosnando e fungando uns para os outros. Algumas brigas tiveram início, selvagens, disputas rápidas como um relâmpago.
Não demoraria muito para que a atenção dos animais, com seus olhos pequenos e encovados, se voltasse para eles.
Qualquer ruído atraía as bestas. Os feridos que gemiam morriam primeiro.
Todos eles sabiam que, assim que o primeiro tiro fosse disparado, a matilha inteira cairia sobre eles.
Seis balas. Vinte cães.
Movimento no outro lado...
Através da fumaça oleosa, uma figura esguia levantou-se em meio aos detritos, trêmula, vacilante. Uma brisa dispersou a névoa, e Rachel reconheceu a forma, oscilando nas pernas finas.
- Nonna... - sussurrou ela.
O sangue empastara-se nos cabelos da anciã no lado esquerdo.
Rachel pensara que sua avó escapara com Raoul.
Será que a explosão a arremessara no chão?
Mas Rachel supôs outra coisa. Raoul devia tê-la tirado do caminho com uma coronhada de pistola, deixando-a para trás, bagagem inútil.
A anciã soltou um gemido e ergueu uma das mãos ao lado da cabeça.
- Papai - chamou ela debilmente com a voz cansada.
A explosão, a confusão, o castelo indistinto deviam ter perturbado a avó dela, fazendo-a voltar ao passado.
- Papai...
Uma dor que ia além do ferimento na cabeça gemeu na voz dela.
Mas Rachel não foi a única a ouvir a dor.
A alguns metros de distância, uma forma escura ergueu-se de trás de um pneu em chamas, saindo da fumaça, atraída pelo grito fraco.
Rachel soltou o cinto de Gray e desceu um degrau aos tropeços.
- Eu o estou vendo - disse Gray, detendo-a com uma das mãos.
Ele ergueu a arma, fez pontaria e puxou o gatilho. O estampido ecoou como uma explosão no pátio silencioso, mas o ganido do alvo foi mais alto quando o cão caiu pesadamente e rolou no chão. Ele começou a uivar e a rilhar os dentes na pata traseira ferida, atacando a dor. Outros cães caíram rapidamente sobre ele. Atraídos pelo sangue. Leões sobre uma gazela ferida.
A avó de Rachel, assustada pela fera, caíra sentada, a boca congelada num Oh de surpresa.
- Eu tenho de chegar até ela - sussurrou Rachel. Era uma reação instintiva. Apesar da traição, sua nonna ainda tinha um lugar em seu coração. Ela não merecia morrer daquela forma.
- Eu irei com você - disse Gray.
- Ela já está morta - disse Seichan com um suspiro, baixando sua unidade GPS. Porém, ela os seguiu escada abaixo, grudando-se à única arma.
Num grupo compacto, eles percorreram o canto do pátio. Poças de óleo flamejante iluminavam o caminho.
Rachel quis correr, mas uma enorme fera malhada os olhava, debruçada sobre um corpo sem cabeça, com o pêlo todo eriçado, os dentes à mostra, guardando sua presa. Mas Rachel sabia que, se corresse, o brutamontes estaria sobre ela em segundos.
Gray apontava a pistola na direção do animal.
A avó dela fugiu dos três cães que disputavam seus irmãos feridos, rasgando e dilacerando uns aos outros a ponto de ser impossível dizer qual das feras Gray havia acertado. O movimento dela foi acompanhado por duas outras feras, que vinham em sua direção de lados opostos.
Eles estavam atrasados demais.
Mais dois tiros, e uma fera desabou, com a cara deslizando. A outra bala apenas acertou de raspão o segundo cão. O ferimento pareceu estimular sua sede de sangue. Ele avançou sobre a mulher caída.
Rachel correu para a frente.
Os tiros de Gray atraíram mais cães. Porém, como já estava envolvido, não havia escolha. Ele atirou enquanto corria, derrubando mais dois cães, o último deles a apenas um metro de distância.
Antes que Rachel pudesse alcançar a avó, o cão que avançara atacou. Ele agarrou o braço da avó dela, erguido para se defender. Trespassando com a mordida o osso fino e a carne murcha, puxou a anciã para o chão.
Ela não gritou.
O cão subiu rapidamente nela, avançando para a garganta.
Gray disparou perto do ouvido de Rachel, deixando-a meio surda. O impacto fez a fera cair para o lado, saindo do peito da anciã. O corpo do cão contorceu-se e sacudiu-se, um tiro certeiro na cabeça... e também o último.
A corrediça da pistola de Gray abriu-se.
Rachel ajoelhou-se, tocando a avó. O sangue jorrava do braço estraçalhado da anciã. Rachel embalou o corpo.
Gray agachou-se com ela. Seichan também agachou-se, diminuindo a silhueta deles.
Os cães lutavam ao redor deles, e eles não tinham balas.
A avó de Rachel olhou fixamente para ela e falou fracamente em italiano, os olhos embaciados.
- Mamãe... sinto muito... me abrace...
O estampido de um rifle, e sua avó contraiu-se em seus braços, atingida no peito. Rachel sentiu a bala sair, traçando uma linha de fogo sob seu próprio braço.
Ela olhou para cima.
A trinta metros de distância, dois pistoleiros estavam de pé além do portão levadiço de ferro.
Uma nova detonação afastou alguns dos cães.
Gray procurou usar a distração para recuar para o muro do castelo. Rachel seguiu-o, sem largar a avó, arrastando-a.
- Deixe-a - exortou Gray.
Rachel ignorou-o, as lágrimas escorrendo, zangada. Outra detonação de um rifle, e uma bala produziu faíscas na pedra a poucos centímetros de distância. Seichan abaixou-se e ajudou a carregar a nonna. Trabalhando juntos, eles recuaram mais rápido.
Junto ao portão, dois cães atacaram as grades, rilhando os dentes para os pistoleiros, bloqueando o alvo deles. Mas isso não duraria muito tempo.
Chegando à proteção relativa do muro do castelo, Rachel desabou sobre o corpo da avó. Eles ainda estavam no raio de visão direta do portão... mas o pátio inteiro estava exposto. Um dos cães foi fulminado por um tiro, caindo longe da grade levadiça. Outra bala zuniu no anteparo de metal de uma janela acima.
Rachel, curvada sobre a avó, finalmente libertou a bolsa ainda pendurada no ombro dela, um acessório permanente à anciã. Rachel abriu o fecho, enfiou a mão e sentiu a coronha de aço frio.
Ela puxou a herança deixada pela avó.
A Luger P-08 nazista.
- Grazie, Nonna.
Rachel apontou em direção ao portão. Fixou sua posição e deixou a raiva fria firmar sua mão. Puxou o gatilho... acompanhou o coice e disparou de novo.
Ambos os homens caíram.
Seu foco ampliou-se - tarde demais para deter a fera que saltara do meio da fumaça, babando, rosnando, os dentes à mostra, avançando para a garganta dela.



04:00h

Gray empurrou Rachel para o lado, derrubando-a. Encarou o monstro e ergueu o outro braço. Ele tinha na mão uma pequenina lata prateada.
- Cão malvado...
Ele borrifou bem de perto o nariz e os olhos da fera.
O peso do cão o atingiu, fazendo-o cair de costas.
A fera uivou - não por causa da sede de sangue, mas pela dor que queimava. Ela rolou de cima de Gray e contorceu-se no chão, esfregando a cara nas pedras arredondadas, escarvando os olhos com as patas.
Mas suas órbitas já estavam vazias, corroídas pelo ácido.
O animal rolou mais duas vezes, choramingando.
Gray sentiu uma pontada de mal-estar. Os cães haviam chegado àquele estado selvagem pela tortura. A culpa não era deles. Por outro lado, talvez qualquer tipo de morte fosse melhor do que estar sob o domínio de Raoul.
O cão por fim aquietou-se e desabou no pavimento.
Mas a agitação dele atraiu os olhares de uma dezena de outros cães.
Gray olhou para Rachel.
- Mais seis tiros - ela respondeu.
Ele sacudiu a latinha. Restava pouco ácido.
Os olhos de Seichan estavam voltados para o céu. Então Gray também o ouviu.
O barulho de um helicóptero.
Ele sobrevoou a cumeeira e os muros do castelo. Luzes brilharam para baixo. O movimento do rotor provocou um redemoinho.
Os cães dispersaram-se de medo.
Seichan falou acima do barulho.
- Nossa carona chegou!
Uma escada de corda de náilon caiu de uma porta aberta e atingiu as pedras a apenas alguns metros de distância.
Gray não se importava com quem era, desde que eles saíssem daquele pátio sangrento. Ele avançou correndo e acenou para que Rachel subisse a escada. Uma de suas mãos manteve firme a escada que tremulava, enquanto a outra pegou a Luger de Rachel.
- Suba! - ordenou ele, inclinando-se para ela. - Eu os manterei a distância.
Os dedos de Rachel tremiam quando ele libertou a arma dela. Seus olhos se encontraram. Ele reconheceu um poço de horror e dor que ia além do derramamento de sangue ali.
- Você vai ficar bem - disse ele, fazendo isso soar como uma promessa.
Uma promessa que ele tencionava cumprir.
Ela fez um aceno de cabeça, parecendo recobrar forças, e subiu a escada.
Em seguida foi a vez de Seichan, que subiu atrás dela como uma trapezista, mesmo com o ombro ferido.
Gray subiu por último. Ele não precisara usar a arma de novo. Prendeu a Luger à cinta e subiu a escada de corda de náilon. Poucos instantes depois, ele entrou na cabine do helicóptero.
Quando a porta se fechou com um estrondo atrás dele, Gray empertigou-se para agradecer à pessoa que lhe estendera o braço e o ajudara a entrar.
O homem exibia um sorriso largo e presunçoso.
- Oi, chefe.
- Monk!
Gray estreitou-o num forte abraço.
- Cuidado com o braço - disse seu parceiro.
Gray soltou-o. O braço esquerdo de Monk estava preso por tiras ao seu corpo, e uma proteção de couro cobria o coto enfaixado de seu pulso. Ele parecia bastante bem, porém mais pálido e com profundas olheiras.
- Eu estou bem - disse Monk, acenando para que ele se sentasse e apertasse o cinto enquanto o helicóptero se afastava a grande velocidade. - Apenas tentando me manter fora de ação.
- Como...?
- Nós localizamos e rastreamos o sinal GPS de emergência de vocês - explicou ele.
Gray puxou o cinto de segurança de sua poltrona sobre o ombro e encaixou a fivela no lugar com um estalido.
Ele olhou para o outro ocupante da cabine.
- Cardeal Spera? - disse Gray com a voz confusa.
Seichan sentou-se ao lado dele e respondeu:
- Quem você acha que me contratou?


CAPÍTULO 16

O labirinto de Dédalo



27 de julho, 04:38h
Avignon, França

Enquanto trovões retumbavam além do palácio, Kat esperava por Vigor.
Fazia 15 minutos que o monsenhor descera a escada escura do fogão.
Para dar uma olhada, ele dissera.
Ela iluminou a escada.
Onde ele estava?
Ela pensou em ir atrás dele, mas a cautela a manteve no seu posto. Se ele estivesse em dificuldades, teria gritado. Ela se lembrou da rampa lacrando e encurralando-os embaixo do túmulo de São Pedro. E se isso acontecesse ali? Quem saberia onde procurá-los?
Ela se manteve no seu posto, mas abaixou-se, apoiando-se num joelho, e gritou, tentando, ao mesmo tempo, manter a voz branda.
- Vigor!
A resposta foi o som de passos apressados, vindo de baixo para cima. Um brilho espalhou-se e em seguida reduziu-se ao foco de uma lanterna. Vigor subiu até meia dúzia de degraus de distância e acenou para ela.
- Você tem de ver isto!
Kat respirou fundo.
- Nós deveríamos esperar Gray e os outros telefonarem.
Vigor subiu mais um degrau, franzindo o cenho.
- Eu estou tão preocupado quanto você, mas com certeza existem outros enigmas por solucionar aqui embaixo. Esse é o nosso objetivo ao sermos mandados como uma equipe de reconhecimento. É dessa forma que nós ajudamos os outros. A Corte do Dragão, Gray e os outros estão todos na Suíça. Eles levarão horas para chegar aqui. Nós deveríamos aproveitar o tempo, e não desperdiçá-lo.
Kat refletiu sobre a argumentação dele e tornou a consultar o relógio. Ela também se lembrou da advertência de Gray acerca de serem cautelosos demais. E também estava terrivelmente curiosa.
Ela concordou com um aceno de cabeça.
- Mas de 15 em 15 minutos nós vamos vir aqui em cima, a fim de verificarmos se Gray fez contato.
- É claro.
Kat pendurou a mochila no ombro e acenou para que ele descesse. Ela deixou um de seus telefones celulares junto ao fogão, a fim de registrar qualquer chamada feita - e de deixar pelo menos uma pista para seguir se eles ficassem presos e encurralados lá embaixo.
Embora houvesse reconhecido que era cautelosa demais, ela não era imprudente.
Ela deixou aquilo para Gray.
Kat abaixou-se e foi atrás de Vigor. A escada conduzia direto para baixo por uma distância razoável, então girava em torno de si mesma e descia ainda mais fundo. Estranhamente, o ar tinha um odor seco em vez de úmido.
Os degraus terminavam num túnel curto.
Vigor apressou o passo.
Pelo eco surdo dos passos do monsenhor, Kat percebeu que uma caverna maior se situava além, o que se confirmou logo depois.
Ela pisou numa saliência de pedra de três metros. As duas lanternas deles projetavam amplos círculos de luz no espaço abobadado, que se estendia acima e abaixo. Antigamente, devia ter sido uma cavidade natural no granito, mas um grande empreendimento a havia transformado.
Ajoelhando-se, Kat correu os dedos pela obra de cantaria sob os seus pés, blocos brutos de mármore encaixados com precisão. Empertigando-se, ela projetou a lanterna para os lados e para baixo.
Artesãos e engenheiros hábeis haviam construído uma série de doze patamares de alvenaria, que desciam do lugar onde eles estavam e continuavam em direção ao piso distante. A forma do espaço era mais ou menos circular. Cada nível abaixo era menor do que o seguinte, como um vasto anfiteatro... ou uma pirâmide em degraus de cabeça para baixo.
Ela apontou a lanterna para o amplo espaço contido naquelas camadas.
Não era um espaço vazio.
Grossos arcos de granito, sustentados por colunas imensas, estendiam-se, num padrão de saca-rolha, dos alicerces dispostos em camadas. Kat reconheceu os arcos. Botaréus. Como os que sustentavam as catedrais góticas. Na verdade, todo o espaço interno dava aquela impressão sublime e leve de uma igreja.
- Isto só podia ter sido construído pelos templários - disse Vigor, movendo-se ao longo da camada. - Jamais se viu algo como isto. Uma sonata de geometria e engenharia. Um poema em pedra. Arquitetura gótica no máximo da perfeição.
- Uma catedral subterrânea - sussurrou Kat, assombrada, reverente.
Vigor acenou afirmativamente com a cabeça.
- Mas uma catedral construída para cultuar a história, a arte e o conhecimento - disse ele, movendo o braço ao redor.
Mas não era necessário.
A estrutura de pedra tinha apenas um propósito: sustentar um labirinto em espiral com armação de madeira. Prateleiras, salas, escadas. Vidro cintilava. Ouro reluzia. Aquilo tudo abrigava um depósito de livros, pergaminhos, textos, artefatos, estátuas e estranhas geringonças de estanho. Cada passo ao redor parecia descortinar novas perspectivas, como alguma vasta pintura de M. C. Escher, ângulos impossíveis, contradições dimensionais sustentadas por pedra e madeira.
- É uma biblioteca imensa - disse Kat.
- E museu e depósito e galeria - concluiu Vigor, indo às pressas para o lado.
Próximo à entrada do túnel havia uma mesa de pedra, parecida com um altar.
Um livro com encadernação de couro estava aberto sob vidro... vidro de ouro.
- Eu estava com receio de tocá-lo - disse Vigor -, mas é possível ver razoavelmente bem através dele.
Ele dirigiu o feixe de luz de sua lanterna para as páginas expostas.
Kat examinou o livro, abundantemente decorado com pinturas a óleo. Um manuscrito iluminado. Uma escrita minúscula enchia a página. Parecia ser uma lista.
- Eu acho que isto é o códice de toda a biblioteca - disse Vigor. - Um sistema de livro-razão e arquivo. Mas eu não tenho certeza.
As palmas das mãos do monsenhor flutuavam sobre o estojo de vidro, claramente com receio de tocá-lo. Eles tinham visto os efeitos daquele material supercondutor. Kat recuou. Ela notou que todo o complexo cintilava com vidro semelhante. Até mesmo as paredes dos patamares eram repletas de placas de vidro, incrustadas como janelas, encastoadas como jóias.
O que isso significava?
Vigor no entanto curvou-se sobre o livro.
- Aqui ele menciona em latim "a Pedra Sagrada de São Trófimo".
Kat olhou para ele a fim de obter uma explicação.
- Ele foi o primeiro santo a trazer o cristianismo para esta região da França. Diz-se que ele recebeu uma visita de Cristo durante uma reunião secreta de cristãos primitivos numa necrópole. Cristo ajoelhou-se sobre um sarcófago e a marca por ele deixada permaneceu. A tampa do sarcófago tornou-se um tesouro, supostamente invocando o conhecimento de Cristo sobre aqueles que a contemplavam. - Vigor olhou fixamente para a catedral de história abobadada. - Pensava-se que estivesse perdida para sempre. Mas está aqui. Como muitas outras coisas.
Ele voltou a acenar para o livro.
- Textos completos de evangelhos proibidos, não apenas os fragmentos esfarrapados dos que foram encontrados perto do Mar Morto. Eu vi quatro evangelhos listados. Eu jamais ouvira falar de um deles antes: o Evangelho Marrom das Colinas Douradas. O que será que ele contém? Mas o mais importante... - Vigor ergueu a lanterna. - De acordo com o códice, em alguma parte deste lugar está armazenado o Mandylion.
Kat franziu o cenho.
- O que é isso?
- O verdadeiro sudário de Cristo, um artefato que pré-data o controverso Sudário de Turim. Ele foi levado de Edessa para Constantinopla no século X, mas, durante os períodos de saques, desapareceu. Muitos suspeitavam que ele tinha ido parar na tesouraria dos templários. - Vigor fez um aceno de cabeça. - Em alguma parte deste lugar se encontra a prova. E talvez a verdadeira face de Cristo.
Kat sentiu o peso das eras... tudo suspenso em perfeita geometria.
- Uma página - murmurou Vigor.
Kat sabia que o monsenhor estava se referindo ao fato de que todas aquelas maravilhas estavam relacionadas numa única página do livro com encadernação de couro, o qual parecia ter cerca de mil páginas.
- O que mais poderia ser encontrado aqui? - perguntou Vigor com a voz abafada.
- Você explorou todo o caminho até o fundo? - indagou Kat.
- Ainda não. Eu voltei para buscar você.
Kat dirigiu-se à escada estreita que levava de uma camada à seguinte.
- Nós deveríamos pelo menos obter uma visão geral do espaço e então voltar para cima.
Vigor concordou, mas parecia relutante em sair de perto do livro.
Todavia, ele seguiu Kat enquanto ela dava voltas e mais voltas escada abaixo. Em determinado ponto, ela olhou para cima. O edifício inteiro pairava acima dela, suspenso tanto no tempo quanto no espaço.
Afinal eles chegaram à superfície da última camada. Um último lance de escada conduzia a um piso plano, confinado pela última camada. A biblioteca não se estendia até ali embaixo. Todo o tesouro estava acumulado acima, mantido suspenso por dois arcos imensos, apoiados na última camada.
Kat reconheceu a pedra desses arcos.
Nem granito nem mármore.
Magnetita outra vez.
Além disso, bem abaixo do cruzamento dos arcos, erguendo-se do centro do assoalho, estava uma coluna de magnetita que chegava até a cintura, como um dedo de pedra apontando para cima.
Kat desceu com mais cautela até o assoalho abaixo. Uma borda de granito natural circundava um espesso piso de vidro. Vidro de ouro. Ela não pisou nele. As paredes de alvenaria em torno dele também estavam incrustadas de placas de vidro de ouro espelhadas. Ela contou 12, o mesmo número de camadas.
Vigor juntou-se a ela.
A exemplo de Kat, ele observou todos aqueles detalhes, mas ambos concentraram a atenção nas linhas prateadas - provavelmente platina pura - gravadas no piso. A imagem de alguma forma era adequada como término daquela longa busca. Ela representava um labirinto em espiral que conduzia a uma roseta no centro. A grossa coluna de magnetita erguia-se no centro.











Kat estudou o espaço: o labirinto, os arcos de magnetita, o piso de vidro. Tudo a fez lembrar-se do túmulo de Alexandre, com sua pirâmide e tanque refletor.
- Parece outro enigma a ser solucionado. - Ela olhou fixamente para os tesouros suspensos acima de sua cabeça. - Mas, se já abrimos este antigo depósito dos magos, o que ainda resta para acharmos?
Vigor veio para perto dela.
- Não se esqueça da chave de ouro de Alexandre. Nós não precisamos dela para abrir nada aqui.
- Isso quer dizer...
- Que existe mais alguma coisa além desta biblioteca.
- Mas o quê?
- Eu não sei - respondeu Vigor. - Mas eu reconheço o padrão deste labirinto.
Kat virou-se para ele.
- É o Labirinto de Dédalo.




05:02h
Sobrevoando A França

Gray esperou até que os outros estivessem a bordo do avião para interrogá-los. O helicóptero os havia transportado ao Aeroporto Internacional de Genebra, onde o cardeal Spera tinha um jato Gulfstream particular abastecido e com autorização para decolagem imediata em Avignon. Era surpreendente o que um funcionário do alto escalão do Vaticano era capaz de conseguir.
E isso levou à primeira pergunta de Gray.
- O que o Vaticano está fazendo ao contratar uma agente secreta da Guilda? - perguntou ele.
Todos cinco haviam girado suas poltronas, a fim de ficarem de frente uns para os outros.
O cardeal Spera admitiu a pergunta com um aceno de cabeça.
- Não foi a Santa Sé em si que contratou Seichan. - Ele acenou para a mulher sentada ao lado dele. - Foi um grupo menor, agindo de forma independente. Nós soubemos do interesse e das atividades da Corte do Dragão. Nós já havíamos usado a Guilda para investigar o grupo perifericamente.
- Vocês contrataram mercenários? - acusou Gray.
- O que nós tentávamos proteger requeria meios extra-oficiais. Combater fogo com fogo. A Guilda pode ter a reputação de ser cruel, mas eles também são eficientes, honram seus contratos e executam o trabalho custe o que custar.
- No entanto, eles não detiveram o massacre em Colônia.
- Foi um lapso meu, sinto muito. Nós não sabíamos da importância do roubo do texto do Cairo pela Corte do Dragão. Ou que eles agiriam tão rápido.
O cardeal suspirou e girou um de seus anéis de ouro, depois o outro, para a frente e para trás, um gesto nervoso.
- Tanto derramamento de sangue. Após os assassinatos, eu voltei a entrar em contato com a Guilda, a fim de infiltrar um agente entre eles. Era fácil fazer isso, uma vez que a Sigma havia entrado no jogo. A Guilda ofereceu seus serviços, Seichan já havia tido uma rixa com você, e a Corte mordeu a isca.
Seichan disse em voz alta:
- Minhas ordens eram descobrir o que a Corte sabia, até que ponto a operação deles havia progredido e frustrá-la sempre que julgasse conveniente.
- Como assistir enquanto eles torturavam padres - disse Rachel.
Seichan deu de ombros.
- Eu cheguei atrasada àquela festinha. E, uma vez em ação, não há como dissuadir Raoul.
Gray concordou com um aceno de cabeça. Ele ainda tinha a moeda que ela lhe deixara em Milão
- E na ocasião você também nos ajudou a escapar.
- Isso condizia com o meu objetivo. Ao ajudar vocês, eu estava cumprindo a minha missão de manter a Corte desafiada.
Gray observava atentamente Seichan enquanto ela falava. De que lado ela de fato estava tirando proveito? Com todas as suas traições, havia mais coisas que ela mantinha ocultas? A explicação dela parecia boa, mas todos os seus esforços poderiam ser apenas um estratagema para servir à Guilda.
O Vaticano foi ingênuo ao confiar neles... ou nela.
Porém, de qualquer modo, Gray tinha outra dívida para com Seichan.
Conforme planejado, ela havia providenciado para que Monk fosse tirado do hospital antes que os asseclas de Raoul atacassem. Gray supusera que ela usaria algum de seus agentes da Guilda, e não que chamaria Spera, seu empregador. Mas o cardeal fizera sua parte, dizendo que Monk era um embaixador do Vaticano e tirando-o de lá.
E agora eles estavam a caminho de Avignon.
Entretanto, uma coisa preocupava Gray.
- Seu grupo no Vaticano - disse ele, olhando para Spera. - Qual o interesse dele em tudo isto?
Spera entrelaçara as mãos sobre a mesa. Sem dúvida, ele estava relutante em falar mais, porém Rachel estendeu a mão para ele. Ela pegou as mãos dele, desentrelaçou-as e inclinou-se para a frente para examiná-las.
- O senhor tem dois anéis de ouro com o selo papal - disse ela.
O cardeal puxou as mãos, cobrindo uma delas com a outra.
- Um pelo meu posto como cardeal - explicou ele - e o outro pelo meu cargo como secretário de Estado. Anéis iguais. É tradicional.
- Mas eles não são iguais - disse ela. - Eu não havia notado até o senhor entrelaçar os dedos daquele jeito e os anéis em cada mão ficarem lado a lado. Eles não são o mesmo anel. Eles são imagens especulares um do outro. Cópias exatas refletidas.
Gray franziu o cenho.
- Eles são gêmeos - disse Rachel.
Gray pediu para ver os anéis. Rachel tinha razão. Imagens invertidas do selo papal.
- E Tomé significa "gêmeo" - disse Gray, encarando o cardeal. Ele se lembrou do comentário de Spera de que apenas um pequeno grupo dentro do Vaticano havia contratado a Guilda. Gray agora sabia qual grupo.
- Vocês fazem parte da Igreja de Tomé - disse ele. - É por isso que vocês estão tentando deter a Corte em segredo.
Spera olhou fixamente por um longo momento e então lentamente fez um aceno de cabeça positivo.
- Nosso grupo tem sido uma parte aceita, se não incentivada, da Igreja Apostólica. Apesar de crenças em contrário, a Igreja não está além da ciência ou da pesquisa. Universidades, hospitais e instalações de pesquisa católicos advogam o pensamento progressista, novos conceitos e idéias. É claro que certa parte é inflexível e reage devagar, mas também contém membros que contestam e mantêm a Igreja maleável. Esse é o papel que nós desempenhamos.
- E o que senhor nos diz do passado? - perguntou Gray. - Dessa antiga sociedade de alquimistas que estamos procurando? Das pistas que vimos seguindo?
O cardeal Spera sacudiu a cabeça.
- A Igreja de Tomé de hoje não é a mesma de antes. Essa igreja desapareceu durante o papado francês, junto com os templários. Mortandade, conflito e segredo separaram-na ainda mais, deixando apenas sombras e boatos. Nós desconhecemos o verdadeiro destino dessa igreja gnóstica e de sua linhagem antiga.
- Quer dizer então que vocês estão tão às cegas a respeito de tudo isto quanto nós - disse Monk.
- Receio que sim. Com a exceção de que nós sabíamos que a igreja antiga existiu. Não era um mito.
- E a Corte do Dragão também - disse Gray.
- Sim, mas nós procuramos preservar o mistério, confiando na sabedoria de nossos antepassados, acreditando que ele foi oculto por um motivo e que esse conhecimento se revelaria quando chegasse a hora. A Corte do Dragão, por outro lado, tem procurado revelar seus segredos pelo derramamento de sangue, corrupção e tortura, buscando nada mais do que o poder para dominar e governar tudo. Nós vimos nos opondo a eles há gerações.
- E agora eles estão muito perto - disse Gray.
- E eles têm a chave de ouro - lembrou-lhes Rachel, sacudindo a cabeça.
Gray esfregou o rosto, exausto. E ele próprio a havia entregado. Ele precisara da chave para convencer Raoul da renovada lealdade de Seichan. Decerto fora uma coisa arriscada, mas todo o plano de resgate também o fora. Supunha-se que Raoul fosse capturado ou morto no castelo - mas o bastardo escapara.
Gray encarou Rachel. Sentindo-se culpado, ele queria dizer alguma coisa, explicar tudo, mas foi salvo quando o piloto anunciou pelo rádio:
- Por favor, apertem os cintos de segurança. Nós estamos nos aproximando de uma zona de turbulência à frente.
Raios faiscavam através das nuvens abaixo.
Nuvens de trovoada acumulavam-se bem mais acima, iluminadas momentaneamente pelos raios que crepitavam para em seguida desaparecerem na escuridão. Eles estavam voando rumo a uma tempestade de verdade.



05:12h
Avignon, França

Vigor caminhou ao longo da borda de pedra que circundava o piso de vidro - e o labirinto nele gravado. Ele o examinara por um minuto em silêncio, fascinado pelo mistério ali.
- Observe que não se trata de um labirinto de verdade - disse ele, afinal. - Não existem passagens sem saída. Trata-se apenas de um caminho longo, contínuo e sinuoso. Pode-se encontrar exatamente este mesmo labirinto feito com pedras azuis e brancas na Catedral de Chartres, nas imediações de Paris.
- Mas o que ele está fazendo aqui embaixo? - perguntou Kat. - E por que você o chamou de Labirinto de Dédalo?
- O labirinto de Chartres era conhecido por muitos nomes. Um deles era le Dedale, ou "O Dédalo", assim chamado em homenagem ao arquiteto mitológico que construiu o labirinto para o rei Minos de Creta. O labirinto era o lar do Minotauro, uma fera parecida com um touro que o guerreiro Teseu acabou derrotando.
- Mas por que colocar um labirinto como esse no interior da Catedral de Chartres?
- Não foi só em Chartres. Durante o auge da construção de igrejas no século XIII, quando a construção gótica também estava no apogeu, diferentes labirintos foram colocados em muitas catedrais. Amiens, Rheims, Arras, Auxerre... todas tinham labirintos quando se entrava na nave. Porém, séculos mais tarde a Igreja destruiu-os todos, considerando-os artefatos pagãos, exceto o de Chartres.
- Por que poupar Chartres?
Vigor sacudiu a cabeça.
- Essa catedral sempre foi uma exceção à regra. Suas origens de fato são pagas, construída no alto da Grota dos Druidas, um famoso sítio pagão de peregrinação. E até hoje, ao contrário de qualquer outra catedral, nem um único rei, papa ou personagem famosa estão enterrados sob suas pedras.
- Mas isso não explica por que o labirinto foi repetido aqui embaixo - disse Kat.
- Eu posso imaginar algumas explicações. Primeiro, o labirinto de Chartres foi baseado num desenho de um texto de alquimia grego do século II. Um símbolo apropriado para os nossos alquimistas perdidos. Mas o labirinto de Chartres também representava a viagem deste mundo ao paraíso. Os devotos em Chartres andavam de quatro ao longo desse caminho tortuoso desde o exterior até a roseta no centro, que representava simbolicamente uma peregrinação daqui a Jerusalém, ou deste mundo para o outro. Daí os outros nomes do labirinto. Le Chemin de Jerusalem. "O Caminho de Jerusalém." Ou Le Chemin du Paradis. "O Caminho do Paraíso." Era uma viagem espiritual.
- Você acha que ele está indicando que nós mesmos devemos fazer essa viagem, seguir os alquimistas para solucionar seu último grande enigma?
- Exatamente.
- Mas como fazemos isso?
Vigor sacudiu a cabeça. Ele tinha uma idéia, mas precisava de mais tempo para refletir sobre ela. Kat pareceu reconhecer que ele não estava falando espontaneamente, mas respeitava-o muito e não insistiu.
Em vez disso, ela consultou o relógio.
- Nós deveríamos voltar para cima. Ver se Gray tentou fazer contato.
Vigor concordou. Ele olhou para trás mais uma vez e apontou a lanterna através do espaço. A luz se refletiu nas superfícies de vidro: no piso e nas placas incrustadas na parede. Ele apontou-a para cima. Mais reflexos cintilaram, ornamentos em forma de jóias numa árvore gigante do conhecimento.
Havia uma resposta ali.
Ele precisava encontrá-la antes que fosse tarde demais.



05:28h
Sobrevoando A França

Por que eles não atendem?
Gray estava sentado com o telefone do jatinho junto ao ouvido. Ele estava tentando entrar em contato com Kat. Mas até então não tivera sorte. Talvez fosse a tempestade, interferindo no sinal. O avião chacoalhava e avançava através do crepitar de raios e dos sonoros estrondos de trovões.
Ele estava sentado próximo à traseira da cabine, a fim de ter privacidade. Os outros, presos a seus assentos com o cinto de segurança, ainda estavam em profunda discussão.
Apenas Rachel olhava para trás periodicamente, preocupada em ouvir notícias do tio. Mas talvez fosse mais do que isso. Desde o resgate deles em Lausanne, ela não ficara mais de um passo longe dele. Ela ainda se recusava a discorrer em detalhes sobre o que acontecera no castelo e exibia um ar atormentado. E, desde então, parecia que buscava alguma solidez nele. Não para grudar-se - ela não era desse tipo. Era mais uma simples tranquilização, para mantê-la com os pés no chão no momento. Palavras eram desnecessárias.
E, embora Monk também tivesse sofrido um grave trauma, Gray sabia que eles acabariam falando. Eles eram guerreiros, ótimos amigos. Eles iam digerir aquilo.
Mas Gray não tinha aquela paciência com Rachel. Uma parte dele queria uma solução e uma resposta imediatas para o que a perturbava. Qualquer tentativa de discutir o que havia acontecido em Lausanne havia até então sido recusada, de maneira gentil, mas firme. Todavia, ele percebia a dor nos olhos dela. E, por mais que seu coração doesse, tudo o que ele podia fazer era apoiá-la, esperar até que ela estivesse em condições de falar.
Ao seu ouvido, o toque incessante do telefone finalmente parou quando atenderam à ligação.
- Aqui é Bryant.
Graças a Deus. Gray sentou-se mais empertigado.
- Kat, é o Gray.
Os outros viraram-se na direção dele.
- Rachel e Monk estão conosco - disse ele. - Como estão as coisas aí?
A voz de Kat, em geral tão estóica, vibrou de alívio.
- Estamos bem. Nós encontramos a entrada secreta.
Ela fez um breve relato de tudo o que eles haviam descoberto. De vez em quando a transmissão falhava, devido à tempestade, e ele não conseguia ouvir uma palavra.
Gray percebeu o olhar fixo e intenso de Rachel e acenou-lhe com a cabeça. O tio dela estava bem.
Ela fechou os olhos em gratidão e voltou a afundar em seu assento.
Assim que Kat terminou, Gray fez um breve relato dos eventos em Lausanne.
- Salvo qualquer atraso causado pela tempestade, nós estaremos aterrissando no Aeroporto Caumont de Avignon daqui a uns trinta minutos. Mas nós não estamos muito na frente da Corte. Talvez meia hora, se estivermos com sorte.
Seichan lhes fornecera informações secretas sobre os meios de transporte da Corte. Raoul tinha dois aviões estacionados num pequeno aeroporto a meia hora de Lausanne. Calculando a velocidade dos aviões da Corte, Gray sabia que eles tinham uma pequena dianteira em relação à Corte. E ele pretendia mantê-la.
- Com todos os colegas de equipe seguros de novo - Gray disse a Kat -, eu vou quebrar o silêncio com o comando central, entrar em contato com o diretor Crowe. Vou pedir a ele que coordene o apoio no solo com as autoridades de Avignon. Vou telefonar de novo assim que nós aterrissarmos. Enquanto isso, fiquem atentos.
- Entendido, comandante. Estaremos à sua espera.
Gray desligou e discou o número de acesso ao comando da Sigma, que ecoou através de uma série de mesas telefônicas até a ligação se completar.
- Logan Gregory.
- Doutor Gregory, aqui é o comandante Pierce.
- Comandante... - A irritação se fez sentir na única palavra.
Gray interrompeu uma repreensão oficial pela falta de comunicação.
- Eu tenho de falar com Painter Crowe imediatamente.
- Sinto muito, mas não é possível, comandante. É quase meia-noite aqui. O diretor saiu do comando há mais ou menos cinco horas. Mas ninguém sabe aonde ele foi. - A irritação voltou a soar nas palavras dele, ainda mais intensa do que sua irritação com Gray.
Pelo menos Gray entendia a frustração do homem. O que o diretor estava fazendo ao sair da central de comando a uma hora daquelas?
- Talvez ele tenha ido à DARPA, colaborar com o dr. McKnight - prosseguiu Logan. - Mas eu ainda sou o líder de operações desta missão. Eu quero um relatório completo do paradeiro de vocês.
Gray de repente sentiu-se desconfortável falando. Aonde Painter Crowe havia ido? Ou será que ele havia mesmo saído? Um frio glacial o percorreu. Será que Gregory estava impedindo-o de entrar em contato com o diretor? Em alguma parte, ocorrera um vazamento na Sigma. Em quem ele poderia acreditar?
Ele avaliou a situação e fez a única coisa que podia fazer. Talvez ele estivesse sendo precipitado, mas tinha de seguir a sua intuição.
Pôs o fone no gancho, interrompendo a ligação.
Não poderia correr riscos.
Estava um passo à frente da Corte do Dragão e não ia entregar isso de bandeja.



05:35h

A oitenta milhas aéreas de distância, Raoul ouviu o relato de seu contato no rádio do avião. Um sorriso largo foi-se formando aos poucos.
- E eles ainda estão no Palácio dos Papas?
- Sim, senhor - disse seu espião.
- E você sabe exatamente onde eles estão.
- Sim, senhor.
Raoul telefonara de seu castelo ao saber de Avignon. Ele havia organizado toda a operação no solo com algumas pessoas de talento de Marselha. Eles haviam sido enviados a Avignon para perseguir os dois agentes: o monsenhor e aquela piranha da Sigma que havia furado sua mão com um arpão. Eles haviam tido êxito.
Raoul consultou o relógio do avião. Eles aterrissariam dali a 44 minutos.
- Nós podemos dar cabo deles a qualquer hora - disse o espião.
Raoul não via necessidade de retardar.
- Façam isso.



05:39h
Avignon, França

A vida de Kat foi salva por uma moeda de um centavo.
De pé ao lado do fogão, ela estivera usando a moeda para abrir o compartimento das pilhas de sua lanterna de bolso. Ela escorregou de seus dedos e caiu a seus pés, fazendo-a abaixar-se para pegá-la.
O estampido da pistola coincidiu com o estilhaçar de pedra na parede ao lado de sua cabeça.
Um atirador de tocaia.
Ainda abaixada, Kat jogou-se no chão, tirando sua Glock do coldre. Ela caiu de costas e atirou entre os joelhos na direção da entrada escura de onde tinham vindo os tiros.
Disparou quatro vezes, uma amplitude de fogo para cobrir todos os ângulos.
Ouviu um grunhido satisfatório e o barulho de uma arma contra a pedra. Alguma coisa pesada seguiu com um baque.
Rolando no chão, ela alcançou Vigor. O monsenhor estava agachado perto da entrada do túnel embaixo do fogão. Ela entregou-lhe a arma.
- Para baixo - ordenou ela. - Atire contra qualquer um que você avistar.
- E você?
- Não, não atire contra mim.
- Eu quero dizer: aonde você vai?
- Caçar.
Kat já havia desligado as lanternas deles. Ela pegou seus óculos com visão noturna e puxou-os sobre os olhos.
- Deve haver mais - disse ela, tirando do cinto uma longa lâmina de aço.
Com Vigor escondido no buraco, Kat foi até a porta e checou o corredor. O mundo era todo de tons de verde. Até o sangue. Era o único movimento no corredor, espalhando-se numa poça do corpo de bruços.
Ela andou de lado até o homem, que usava roupa de camuflagem.
Mercenário.
O tiro dela havia sido certeiro, trespassando a garganta do homem. Ela não se deu ao trabalho de verificar o pulso. Pegou a arma dele e a enfiou no próprio coldre dela.
Permanecendo abaixada, ela moveu-se do corredor para a cozinha, contornando a área desta. Se houvesse outros, eles estariam por perto. A malograda brincadeira com as armas de fogo devia tê-los obrigado a esconder-se. Tolice. Eles confiavam demais no poder das armas de fogo, contando com o atirador de tocaia para fazer o trabalho para eles.
Kat percorreu o circuito com eficiência, sem deparar com ninguém.
Muito bem.
Ela estendeu a mão para o bolso lateral de sua mochila e tirou o pesado pacote envolto em plástico. Quebrou o lacre com o polegar e baixou a mão até o quadril.
Dando a volta a um canto, ela entrou no único corredor que se afunilava em direção à cozinha. Ergueu-se e andou a passos largos com confiança, marchando para a frente.
Isca.
Ela equilibrava a lâmina na mão direita, enquanto a esquerda esvaziava o conteúdo do pacote no chão atrás dela.
Rolimãs emborrachados, revestidos com NPL Super Black.
Invisíveis à visão noturna.
Eles espalharam-se pelo chão atrás dela, quicando e rolando silenciosamente.
Ela dirigiu-se à cozinha, com as costas voltadas para a parte principal do palácio. Não ouviu a aproximação do segundo homem, mas ouviu o tropeção dele atrás de si.
Abaixando-se e girando, ela apoiou-se num joelho e arremessou o punhal com toda a força de seu ombro e toda a habilidade de seu pulso. Ele voou com precisão fatal, perfurando a boca do homem, que se abrira de surpresa quando seu calcanhar direito escorregou num dos rolimãs de borracha. A arma dele disparou, o tiro saiu para cima, penetrando nos caibros de madeira.
Instantes depois, ele estava caído de costas, em convulsão, com a medula seccionada na base do crânio.
Kat aproximou-se dele, permanecendo abaixada, movendo-se com cuidado por entre os rolimãs.
Quando ela o alcançou, ele jazia imóvel. Ela puxou a faca, pegou a arma dele e recuou para a cozinha. Aguardou mais dois minutos por qualquer sinal de um terceiro ou quarto assassino.
O palácio permanecia em silêncio.
Trovões ribombaram com mais intensidade além das paredes. Uma série de ofuscantes lampejos de relâmpagos entrou pelas altas janelas. Toda a violência da tempestade caía com um estrondo na alta colina.
Segura de que eles finalmente estavam a sós, Kat informou a Vigor que o ataque cessara, e ele reapareceu.
- Fique aí - advertiu ela, caso estivesse errada.
Ela tornou a aproximar-se do primeiro corpo e o revistou. Como receava, encontrou um telefone celular.
Maldição.
Ela ficou sentada ali por um momento, com o telefone celular dele na mão. Se os assassinos haviam recebido ordem para matar, tinha certeza de que a posição deles no palácio já devia ter sido passada adiante.
Kat voltou para junto de Vigor e consultou o relógio.
- A Corte sabe que nós estamos aqui - disse Vigor, também avaliando a situação.
Kat não via motivo para admitir o óbvio e pegou seu próprio telefone celular. O comandante Pierce tinha de saber. Ela discou o número que ele deixara, mas não obteve sinal. Tentou mais próximo da janela, mas não teve sorte.
A tempestade havia interrompido a recepção.
Pelo menos no jato ainda no ar.
Ela guardou o telefone.
- Talvez assim que eles aterrissarem - disse Vigor, reconhecendo a tentativa malograda. - Mas, se a Corte do Dragão sabe que nós estamos aqui, nosso avanço simplesmente ficou mais reduzido.
- O que você sugere? - perguntou Kat.
- Vamos recuperá-lo.
- Como?
Vigor apontou para a escada escura.
- Nós ainda temos vinte minutos até Gray e os outros chegarem aqui. Vamos aproveitá-los. Nós solucionaremos o enigma lá embaixo, de modo que, quando eles chegarem, estejamos prontos para agir.
Kat acenou com a cabeça, concordando com a lógica. Além do mais, era a única forma de compensar o seu lapso. Ela nunca deveria ter permitido que os espiões chegassem tão perto.
- Vamos lá.



06:02h

Gray saiu correndo com os outros pela pista alcatroada varrida pela tempestade. Fazia apenas cinco minutos que eles haviam aterrissado no Aeroporto Caumont de Avignon. Ele tinha de reconhecer o mérito do cardeal Spera... ou, pelo menos, sua influência no Vaticano. Os procedimentos na alfândega foram resolvidos no ar, e um sedan BMW aguardava para transportá-los até o Palácio dos Papas. O cardeal também havia saído e se dirigido ao terminal, a fim de entrar em contato com as autoridades da cidade. O Palácio dos Papas tinha de ser trancado.
Isto é, depois de eles terem chegado lá, é claro.
Gray corria com o seu telefone celular, tentando entrar em contato com Kat e Vigor.
Ninguém atendia.
Ele checou a intensidade do sinal. Fora do avião, a recepção estava uma barra mais forte. Então qual era o problema?
Ele deixou-o tocar repetidas vezes.
Finalmente, desistiu. A única resposta estava no palácio. Encharcados, todos eles embarcaram no seda que os aguardava enquanto um espetáculo de brilho intenso rasgava o céu, iluminando Avignon, aninhada ao longo de um trecho prateado do Ródano. O Palácio dos Papas era visível, o ponto mais alto da cidade.
- Você teve sorte? - perguntou Monk, acenando com a cabeça na direção do telefone celular.
- Não.
- Talvez seja a tempestade - disse Seichan.
Mas ninguém estava convencido.
Gray tentara fazer com que Seichan ficasse para trás, no aeroporto. Ele só queria ao seu lado as pessoas em quem confiava inteiramente. Mas o cardeal Spera insistira em que ela fosse, crendo implicitamente em seu contrato com a Guilda. E Seichan lembrou Gray do próprio contrato firmado entre eles. Ela concordara em resgatar Monk e Rachel a fim de vingar-se de Raoul. E havia honrado a sua parte do acordo. Gray tinha de honrar a dele.
Rachel sentou-se ao volante.
Nem mesmo Monk objetou.
Mas seu parceiro mantinha a espingarda de combate no colo, apontada para Seichan. Ele também não queria correr riscos. A arma fora recuperada pelo cardeal Spera nos Scavi embaixo da Basílica de São Pedro. Monk parecia aliviado por tê-la de volta, mais do que sua própria mão.
Com todos sentados, Rachel manobrou o carro às pressas e afastou-se do aeroporto, seguindo para a cidade. Ela percorria as ruas estreitas a velocidades vertiginosas. Àquela hora da manhã, com uma forte tempestade soprando, havia pouco trânsito. Eles voaram por algumas ladeiras acima que haviam-se transformado em rios e planaram ao dobrarem esquinas.
Alguns minutos mais tarde, Rachel chegou à praça diante do palácio. Ela bateu de raspão numa pilha de cadeiras. Serpentinas de luzes, agora escuras, ornamentavam a praça. Ela se parecia com uma festa abandonada, alagada e deserta.
Eles desceram do veículo.
Como estivera ali antes, Rachel seguiu na frente em direção à entrada principal. Ela os conduziu apressadamente através de uma passagem, a um pátio e em seguida a uma porta lateral, a porta que Kat mencionara.
Gray encontrou o trinco serrado e a fechadura arrombada.
Não se tratava do trabalho sutil de uma ex-oficial do serviço de inteligência.
Outra pessoa havia forçado a entrada.
Gray acenou para que todos se afastassem.
- Fiquem aqui. Eu vou checar isto.
- Não quero parecer insubordinado - disse Monk -, mas eu não vou ficar sozinho neste lance de novo. Isso não deu muito certo da última vez.
- Eu também vou - disse Rachel.
- E eu não creio que você possa controlar minhas idas e vindas - disse Seichan.
Gray não tinha tempo para discutir - sobretudo se ele não podia vencer.
Eles entraram no palácio. Gray havia memorizado a planta. Ele subiu na frente, uma série de degraus, com cautela mas rápido, a fim de fazer um reconhecimento. Após deparar com o primeiro corpo, ele reduziu o passo. Morto. Já esfriando.
Ele checou. Okay, aquilo era o trabalho de uma ex-oficial do serviço de inteligência. Ele seguiu em frente e quase caiu de cara no chão quando seu tornozelo escorregou num rolimã de borracha. Recobrou o equilíbrio apoiando uma das mãos na parede.
Sem dúvida, brinquedos de Kat.
Eles seguiram em frente, andando entre os rolimãs sem levantar os pés.
Outro corpo jazia próximo à entrada da cozinha. Eles tiveram de pisar na poça de sangue para entrar.
Vozes chegaram até eles. Ele reteve os outros no corredor e escutou às escondidas.
- Já estamos atrasados - disse uma voz.
- Sinto muito. Eu precisava ter certeza. Todos os cantos tiveram de ser checados.
Kat e Vigor. No meio de uma conversa. As vozes deles ecoavam de um buraco no centro da cozinha. Um clarão ficou mais brilhante, movendo-se rapidamente para cima e para baixo.
- Kat - gritou Gray, sem querer assustar sua colega de equipe. Ele vira o suficiente da habilidade dela espalhado naqueles corredores. - É o Gray.
A luz apagou-se.
Kat apareceu um instante depois, a arma em punho, apontada na direção dele.
- É seguro - disse Gray.
Kat saiu do buraco. Gray acenou para que os outros entrassem na cozinha.
Em seguida Vigor emergiu do buraco.
Rachel correu para ele, que abriu os braços, estreitando-a num forte abraço.
Kat falou primeiro e moveu a cabeça em direção ao corredor ensangüentado.
- A Corte do Dragão sabe a respeito deste lugar.
Gray concordou.
- O cardeal Spera está acordando as autoridades da cidade neste momento. Eles logo deverão estar aqui.
Vigor mantinha um braço em volta da sobrinha.
- Então nós talvez tenhamos tempo suficiente.
- Para quê? - perguntou Gray.
- Para descobrir o verdadeiro tesouro lá embaixo.
Kat confirmou com um aceno de cabeça.
- Nós solucionamos o enigma aqui.
- E qual é a resposta? - perguntou Gray.
Os olhos de Vigor brilharam.
- Luz.



06:14h

Ele não podia mais esperar.
Do saguão do terminal do pequeno aeroporto, o cardeal Spera observara o grupo partir no BMW. Ele esperou cinco minutos, conforme o comandante pedira, para lhes dar tempo de chegar ao palácio. Levantou-se e dirigiu-se a um dos agentes de segurança armados, um rapaz louro de uniforme.
Falando em francês, mostrou sua identificação do Vaticano ao segurança e pediu para ser conduzido ao superior dele.
- Trata-se de um assunto da máxima urgência.
Os olhos do guarda arregalaram-se, reconhecendo quem estava diante dele.
- É claro, cardeal Spera. Imediatamente.
O rapaz conduziu-o para fora do saguão e por um portão de segurança acionado por cartão. No fim do corredor, ficava o escritório do chefe da segurança do aeroporto. O guarda bateu à porta e mandaram-no entrar rispidamente.
Ele empurrou a porta, mantendo-a aberta. Olhando para trás, para o cardeal, o guarda não viu a pistola com um silenciador erguida na direção da parte posterior de sua cabeça.
O cardeal Spera ergueu uma das mãos.
- Não...
O tiro soou como um tossido firme. A cabeça do guarda moveu-se bruscamente para a frente, seguida pelo seu corpo. O sangue esguichou no corredor.
Uma porta ao lado abriu-se.
Outro pistoleiro apareceu. Uma pistola foi empurrada no estômago do cardeal Spera, que foi obrigado a entrar no escritório. O corpo do guarda foi puxado para dentro atrás dele. Outro homem esfregou rapidamente uma toalha com o pé sobre o piso, removendo o sangue.
A porta fechou-se.
Outro corpo já decorava a sala, jazendo enrascado de lado.
O ex-chefe da segurança.
Atrás da escrivaninha dele, uma figura familiar levantou-se.
O cardeal Spera sacudiu a cabeça em descrença.
- O senhor é membro da Corte do Dragão.
- Na verdade, seu líder. - Uma pistola tornou-se visível. - Desobstruindo o caminho aqui para o resto dos meus homens que está para chegar.
A arma ergueu-se mais alto.
A boca da arma brilhou.
O cardeal Spera sentiu um impacto na testa - e mais nada.



06:18h

Rachel estava de pé junto com os outros quatro em torno do piso de vidro gravado.
Kat ficara de guarda lá em cima, equipada com um rádio.
Eles haviam descido as plataformas até o nível do fundo quase em silêncio reverente. O tio de Rachel havia tecido comentários sobre o maciço museu abrigado no interior daquela catedral subterrânea, mas foram feitas poucas perguntas.
Na verdade, parecia uma igreja, provocando sussurros e espanto.
Enquanto eles desciam, Rachel ficou boquiaberta diante da miríade de maravilhas que deviam estar armazenadas ali. Ela passara toda a sua vida adulta protegendo e reunindo objetos de arte e antigüidades roubados. Ali estava uma coleção que excedia a de qualquer museu. Para catalogá-la, seriam necessárias décadas e uma universidade cheia de eruditos. A imensidão do tempo contido naquele espaço fazia sua vida parecer pequena e insignificante.
Até mesmo seu trauma recente, a revelação do passado sombrio de sua família, parecia trivial, uma mancha insignificante em comparação com a longa história que estava suspensa ali.
À medida que descia cada vez mais, sua carga tornava-se mais leve. Seu aperto afrouxou-se em torno de seu coração. Certa sensação de ausência de peso a envolveu.
Gray abaixou-se, apoiando-se num joelho, a fim de olhar para o piso de vidro e para o labirinto desenhado a platina sobre ele.
- É o labirinto de Dédalo - disse Vigor, explicando brevemente sua história e vínculos com a Catedral de Chartres.
- Então o que nós devemos fazer aqui? - perguntou Gray.
Vigor caminhou ao redor do piso circular. Ele os havia aconselhado a permanecer na borda de granito que circundava o labirinto de vidro.
- Isto é claramente outro enigma - disse ele. - Além do labirinto, nós temos um arco duplo de pedra-ímã acima de nós. No centro, uma coluna da mesma pedra. E estas 12 placas de ouro no estado m. - Ele indicou as janelas de vidro incrustadas na parede ao redor deles, formada pela última camada.
- Elas estão dispostas ao longo da periferia como as marcas de um relógio - disse Vigor. - Outro relógio. Como a ampulheta que nos trouxe aqui.





- É o que parece - disse Gray. - Mas você mencionou luz.
Vigor fez um aceno de cabeça positivo.
- Tudo sempre girou em torno da luz. Uma busca da luz primordial da Bíblia, a luz que deu forma ao universo e a tudo o que nele há. É isso que nós temos de provar aqui. Como o magnetismo e a eletricidade antes, agora nós temos de demonstrar uma compreensão da luz... e não apenas de uma luz qualquer. Luz com poder. Ou, como Kat a descreveu, luz coerente.
Gray franziu o cenho, levantando-se.
- Você quer dizer um laser.
Vigor fez que sim com um aceno de cabeça e tirou um objeto do bolso. Rachel reconheceu-o como uma mira a laser de uma das armas da Sigma.
- Com o poder desses amálgamas supercondutores associado a pedras preciosas como os diamantes e os rubis, os antigos talvez tenham desenvolvido alguma forma grosseira de projetar a luz coerente, algum tipo de laser antigo. Eu creio que o conhecimento dessa habilidade é necessário para abrir o último nível.
- Como você pode ter certeza? - indagou Gray.
- Kat e eu medimos estas 12 placas de vidro espelhado. Elas estão posicionadas num ângulo muito sutil, para refletirem a luz e fazê-la saltar de uma para a outra num padrão fixo. Mas seria necessário uma luz poderosa para completar todo o circuito.
- Como um laser - disse Monk, olhando as placas com preocupação.
- Eu não acho que seria necessário uma grande quantidade de luz coerente - disse Vigor. - Como as fracas baterias de Bagdá usadas para ativar a pirâmide de ouro em Alexandria, apenas uma pequena força é necessária, alguma indicação de uma compreensão da coerência. Eu acho que a energia armazenada nas placas fará o resto.
- E talvez nem sequer seja energia - disse Gray. - Se você estiver certo ao afirmar que a luz é a base do mistério aqui, os supercondutores não só têm a capacidade de armazenar energia por um espaço de tempo infinito, mas também podem armazenar luz.
Os olhos de Vigor arregalaram-se.
- Quer dizer então que um pouco de luz coerente poderia liberar o resto?
- Possivelmente. Mas como é que nós iniciamos essa reação em cadeia? - perguntou Gray. - Apontando o laser para uma das placas de vidro?
Vigor deu alguns passos ao redor e acenou na direção da coluna de pedra-ímã, com cerca de sessenta centímetros de espessura, no centro do piso.
- Aquele pedestal ali tem a mesma altura das janelas em placas. Eu suspeito que, seja qual for o dispositivo que os antigos tenham usado, ele se destinava a ficar em cima dele enquanto apontava para uma janela específica. Nosso proverbial marcador das 12 horas.
- E qual delas é esse marcador? - perguntou Monk.
Vigor parou ao lado da janela no outro lado.
- O norte verdadeiro - disse ele. - Com todas estas pedras-ímãs ao redor, foi necessário um pouco de habilidade para calcularmos. Mas esta janela é o marcador. Eu acho que a gente põe o laser sobre o pedestal, aponta-o para esta placa e então se afasta.
- Parece bastante simples - disse Monk.
Gray começou a se encaminhar ao pedestal central quando seu rádio zumbiu. Ele pôs uma das mãos no ouvido, escutando. Todos olharam para ele.
- Kat, tome cuidado - disse Gray no rádio. - Aproxime-se com cautela. Informe-os de que você não é inimiga. Não diga nada sobre nós até ter certeza.
Ele encerrou a transmissão.
- Qual é o problema? - perguntou Monk.
- Kat avistou uma patrulha da polícia francesa. Eles entraram no palácio. Ela vai investigar. - Gray acenou para que o grupo fosse para a escada. - Isto terá de esperar até mais tarde. É melhor nós voltarmos para cima.
Eles saíram em fila da beira do poço de vidro. Rachel esperou pelo tio. Ele olhou relutantemente para o piso de vidro.
- Talvez seja melhor - disse ela. - Talvez não devêssemos mexer com o que mal compreendemos. E se nós cometêssemos um erro? - Rachel acenou com a cabeça na direção da imponente biblioteca de conhecimento antigo que o lugar abrigava. - Se fôssemos ambiciosos demais, poderíamos perder tudo isto.
O tio dela concordou, passou um braço em torno dela enquanto eles subiam, mas seus olhos ainda se voltavam ocasionalmente para baixo.
Eles haviam subido quatro níveis quando uma voz de comando, vinda de cima, chegou-lhes através de um megafone.
- TOUT LE MONDE EN LE BAS LÀ! SORTEZ AVEC VOS MAINS SUR LA TÊTE!
Todo o mundo congelou.
Rachel traduziu.
- Eles estão nos mandando sair com as mãos na cabeça.
Uma nova voz, em inglês, berrou através do megafone. Era Kat.
- COMANDANTE! ELES APREENDERAM O MEU RÁDIO, MAS É A POLÍCIA FRANCESA. EU VERIFIQUEI A IDENTIFICAÇÃO DO CHEFE DELES.
- Deve ser a guarda enviada pelo cardeal Spera - disse Monk.
- Ou alguém telefonou informando um arrombamento, ao notar a luzes aqui dentro - acrescentou Rachel. - Ou a fechadura arrombada.
- SORTEZ TOUT DE SUITE! C'EST VOTRE DERNIER AVERTISSEMENT!
- Eles decerto não parecem felizes - disse Monk
- O que você espera com todos os cadáveres lá em cima? - disse Seichan.
- Okay - ordenou Gray. - Vamos subir. Nós temos de prepará-los para a chegada de Raoul e seus camaradas.
Todos eles subiram os níveis restantes. Gray mandou-os pôr as armas no coldre ou guardá-las. Não querendo assustar a polícia, eles obedeceram à ordem e foram para cima com as mãos na cabeça.
A cozinha, antes vazia, estava agora abarrotada de homens uniformizados. Rachel avistou Kat, encostada a uma parede, com as mãos na cabeça também. A polícia francesa não queria correr riscos. Armas foram erguidas.
Gray tentou explicar num francês afetado, mas eles foram separados e obrigados a encostar-se à parede. O chefe dirigiu a luz de sua lanterna para o corredor, o nariz enrugado de repugnância.
Uma agitação próxima ao corredor marcou a chegada de uma nova pessoa, de alguém com autoridade. Rachel observou um amigo de sua família entrar na cozinha, deslocado naquele lugar, mas bem-vindo. Será que o cardeal Spera o havia chamado?
O tio dela também se alegrou.
- General Rende! Graças a Deus!
Era o chefe de Rachel, o diretor de sua unidade dos Carabinieri. Ele estava com uma aparência admirável, mesmo sem uniforme.
O tio Vigor tentou avançar, mas foi obrigado a recuar.
- Você deve fazer os gendarmes ouvir. Antes que seja tarde demais.
O general Rende olhou para o tio dela com uma expressão incomum de desdém.
- Já é tarde demais.
De trás dele, surgiu Raoul.











CAPÍTULO 17

A chave de ouro



27 de julho, 07:00h
Avignon, França

Gray agitou-se quando seus pulsos foram seguros atrás das costas e atados com fitas de plástico. Os outros mercenários, disfarçados de policiais franceses, tomaram as armas dos demais e os amarraram. Até o filho-da-puta do Raoul usava uniforme de policial.
O gigante parou diante de Gray.
- Você é duro de matar pra caralho - disse Raoul. - Mas isso vai acabar. E não espere uma tentativa de resgate da parte do cardeal. Ele se encontrou com um velho amigo no aeroporto. - Ele fez um aceno de cabeça para o general Rende. - Parece que o nosso líder aqui decidiu que o pobre cardeal não era mais útil à Corte.
O coração de Gray apertou-se.
Raoul deu um largo sorriso, com uma expressão selvagem e sanguinária.
O general Rende aproximou-se deles, vestido à paisana, terno preto e gravata caros, sapatos italianos de verniz. Ele estivera discutindo com outro homem, que usava um colarinho clerical. Tinha de ser o prefeito, Alberto Menardi, o Rasputin residente da Corte. Ele trazia um livro embaixo de um braço e uma sacola na mão.
O general foi até Raoul.
- Chega.
- Sim, Imperador - disse Raoul, dando um passo atrás.
Rende apontou para o túnel.
- Nós não temos tempo para nos vangloriarmos. Levem-nos para baixo. Verifiquem o que eles descobriram e depois matem-nos. - Rende correu os olhos pela cozinha, os olhos azuis gélidos, os cabelos grisalhos alisados para trás. - Eu não tenho nenhuma pretensão de que vocês sobrevivam. A única chance de vocês é tornar suas mortes lentas ou rápidas. Portanto, reconciliem-se da maneira que julgarem adequada.
Encostado à parede no outro lado, Vigor falou:
- Como é que você pôde?
Rende aproximou-se dele.
- Não receie, meu velho amigo, nós pouparemos a sua sobrinha - disse ele. - Isso eu lhe prometo. Vocês dois cumpriram o seu dever ao manterem a Corte em dia com tesouros arqueológicos e da história da arte. Vocês serviram bem à Corte nestes muitos anos.
Quando Vigor se deu conta de como fora usado e manipulado, seu rosto ficou frio.
- Agora esse papel chega ao fim - disse Rende. - Mas a linhagem de sua sobrinha remonta a reis e produzirá reis no futuro.
- Me casando com esse canalha? - disse Rachel com veemência.
- O que importa não é o homem nem a mulher - respondeu Raoul. - O que sempre importou é o sangue e o futuro. A pureza da nossa linhagem é um tesouro tanto quanto o que procuramos.
Gray fitou Rachel, atada ao lado do tio. O rosto dela empalideceu, mas seus olhos faiscaram de fúria. Sobretudo quando Raoul a segurou pelo cotovelo. Ela cuspiu-lhe no rosto.
Ele a esbofeteou na boca, fazendo a cabeça dela projetar-se para trás e o lábio dela rachar-se.
Gray avançou, mas um par de rifles o fez recuar.
Raoul inclinou-se para mais perto dela.
- Eu gosto de um pouco de fogo na minha cama. - Ele a puxou para a frente. - E desta vez eu não vou deixar você fora do alcance da minha visão.
- Peguem o que viemos buscar aqui - disse Rende, o rosto impassível diante da violência. - Depois nós começaremos a descarregar o máximo possível antes que a tempestade termine. Os caminhões chegarão daqui a 15 minutos.
Gray agora entendia o porquê dos uniformes. O disfarce dar-lhes-ia tempo para limpar uma boa parte do tesouro lá embaixo. Ele não deixou de notar o carrinho de mão cheio de granadas incendiárias prateadas que foi levado à cozinha quando eles foram manietados. Tudo o que a Corte não pudesse carregar seria destruído.
Alberto juntou-se a Raoul.
- Tragam os machados, as furadeiras elétricas e o ácido - disse Raoul, acenando para que seus homens fossem em frente.
Gray sabia que as ferramentas não se destinavam à construção pesada.
Elas eram ferramentas de um verdadeiro sádico.
Cutucado por armas de fogo e separado por soldados, o grupo foi conduzido de volta ao túnel. Uma vez lá embaixo, até os guardas, com seus sorrisos tolos e sua insensibilidade, ficaram em silêncio, os olhos arregalando-se.
Raoul olhou para a extensão de arcos góticos e para o tesouro.
- Nós vamos precisar de mais caminhões.
Alberto caminhava aturdido.
- Espantoso... simplesmente espantoso. E, de acordo com o Arcadium, isto é apenas o refugo deixado na soleira da porta de um tesouro maior.
Apesar do perigo, Vigor olhou chocado para o prefeito.
- Você tem o último testamento de Jacques de Molay?
Alberto apertou seu livro com mais força contra o peito.
- Um exemplar do século XVII. O último exemplar cuja existência era conhecida.
Gray olhou interrogativamente para Vigor.
- Jacques de Molay foi o último grão-mestre dos templários, torturado pela Inquisição por sua recusa em revelar onde estava o tesouro deles. Ele foi queimado no tronco. Mas houve boatos de um texto dos templários, um último tratado escrito por de Molay antes de ser capturado.
- O Arcadium - disse Alberto. - Na posse da Corte do Dragão há séculos. Ele aludia a um tesouro. Um tesouro independente da grande quantidade de ouro e jóias dos templários. Um tesouro maior, que poria as próprias chaves do mundo na mão de seu descobridor.
- O segredo perdido dos magos - disse Vigor.
- Ele está aqui - disse Alberto, os olhos quase incandescentes.
Eles desceram as plataformas em direção ao piso de vidro.
Ao chegarem à última plataforma, os soldados espalharam-se pela sua superfície, posicionando-se ao longo da borda. Gray e os outros foram obrigados a ajoelhar-se. Alberto desceu sozinho ao piso de vidro e examinou o labirinto.
- O derradeiro enigma - murmurou ele.
Raoul estava de pé com Rachel próximo ao patamar da escada da última plataforma. Ele virou-se para olhar para o grupo ajoelhado.
- Eu acho que nós vamos começar pelas mulheres - disse ele. - Mas por qual delas?
Movendo-se para o lado, ele segurou os cabelos de Rachel, na altura da nuca, curvou-se e beijou-a com força na boca. Ela contorceu-se, engasgando, mas, com as mãos atadas, pouco podia fazer.
A ira estreitou a visão de Gray. Ele ajoelhou-se e bateu a biqueira de sua bota contra a pedra. Sentiu a lâmina oculta sair com um estalido do calcanhar, a mesma que ele usara para libertar-se na cela do castelo. Escondeu a faca atrás dos pulsos atados e, com um movimento mínimo, cortou as fitas com a lâmina afiada. Embora livre, manteve as mãos atrás das costas.
Raoul relaxou o abraço e recuou. Seu lábio inferior sangrava. Rachel o mordera, mas ele simplesmente sorriu e empurrou-a com força bem no meio do peito. Sem equilíbrio, ela caiu sentada com um impacto que a fez trincar os dentes.
- Fique aí - disse Raoul, a mão espalmada, como que dando ordens a um cão.
Um rifle encostado no crânio de Rachel consolidou a ordem.
Raoul voltou-se de novo para o grupo.
- Eu vou deixar para me divertir com ela mais tarde. Portanto, nós precisaremos de outra mulher para começar. - Ele foi na direção de Seichan, olhou fixamente para ela e em seguida sacudiu a cabeça. - Você provavelmente apreciaria isso demais.
Em seguida, ele voltou-se para Kat e acenou para que os guardas que a flanqueavam a arrastassem diante dos outros. Raoul abaixou-se e pegou o machado e uma furadeira elétrica. Ele olhou para ambas as ferramentas e então pôs o machado no chão.
- Eu já fiz isso.
Ele ergueu a furadeira e apertou o gatilho. O zumbido do motor ecoou pela câmara, ávido da promessa de dor.
- Vamos começar por um olho - disse Raoul.
Um dos guardas puxou a cabeça de Kat para trás. Ela tentou lutar, mas o outro deu um forte chute na barriga dela, deixando-a sem fôlego. Enquanto a seguravam, Gray viu a lágrima rolar do canto do olho de Kat. Não de pavor. De raiva.
Raoul baixou a furadeira em direção ao rosto dela.
- Não faça isso! - gritou Gray. - Não há necessidade disso. Eu lhes direi o que nós sabemos.
- Não - disse Kat, e foi esmurrada no rosto por um dos guardas.
Gray entendeu a advertência dela. Se a Corte do Dragão obtivesse o poder ali, as "chaves do mundo", isso significaria o Armagedom. A própria vida deles, seu próprio sangue, não valia aquele preço.
- Eu vou lhes contar - repetiu Gray.
Raoul empertigou-se um pouco.
Gray esperava atraí-lo para mais perto.
Mas Raoul permaneceu onde estava.
- Parece que eu não me lembro de ter feito nenhuma pergunta ainda. - Ele tornou a curvar-se. - Isto é apenas uma demonstração. Quando chegar a parte de perguntas e respostas desta conversa, nós ficaremos mais sérios.
A furadeira gemeu mais alto.
Gray não podia mais esperar. Ele não ficaria à toa sentado enquanto outro membro de sua equipe era mutilado por aquele louco. Era melhor morrer num tiroteio. Ele ficou de pé num salto e deu uma cotovelada na virilha do soldado que o estava guardando. Com a atenção do homem fixa na tortura, Gray pegou o rifle dele, apontou-o para Raoul e puxou o gatilho.
Clique.
Nada aconteceu.



07:22h

Rachel observou Gray ser jogado ao chão pela coronhada do rifle de um soldado atrás dele.
Raoul deu uma gargalhada e aumentou a rotação do motor da furadeira.
- Tirem as botas dele - ordenou Raoul, e aproximou-se de Gray enquanto ele era maltratado. - Você não acha que eu deixei de mandar examinar as fitas do sistema de segurança após a sua fuga, acha? Quando eu não tive notícias dos dois homens que mandei de volta para assassiná-los no castelo, eu mandei outra equipe para investigar. Não havia nada além de cães no pátio. Eles descobriram como vocês escaparam e me transmitiram a informação pelo rádio.
Os cadarços de Gray foram cortados e as botas, puxadas com força.
- Portanto, eu deixei vocês terem a sua esperançazinha - disse Raoul. - É sempre melhor conhecer um segredo do inimigo. Isso mantém as surpresas a um mínimo. Eu imaginei que você acabaria procurando conseguir uma arma de fogo... mas eu supus que você tivesse um pouco mais de estômago. Que esperaria até as coisas ficarem realmente sangrentas. - Raoul ergueu a furadeira e afastou-se. - Onde é que nós estávamos mesmo?
Rachel olhou fixamente quando as mãos de Gray foram atadas novamente. O rosto dele estava vazio e desesperançado. Isso a assustou mais do que a ameaça de tortura.
- Deixe os outros em paz - disse Gray, esforçando-se para ficar em pé. - Você está perdendo tempo. Nós sabemos como abrir o portão. Machuque somente um de nós, e você não ficará sabendo de nada.
Raoul olhou para ele.
- Explique, e eu pensarei na sua oferta.
Gray sondou os outros, parecendo desamparado.
- É a luz - disse ele.
Kat soltou um gemido. Vigor baixou a cabeça.
- Ele tem razão - disse uma voz vinda do piso abaixo. Alberto subiu alguns degraus. - Os espelhos na parede são refletores e estão dispostos em ângulos.
- É necessário luz do laser - continuou Gray, revelando tudo, explicando o que Vigor havia relatado.
Alberto juntou-se a eles.
- Sim, sim... isso faz o mais absoluto sentido.
- Bem, veremos - disse Raoul. - Se ele estiver errado, nós começaremos a decepar membros.
Gray virou-se para Rachel e os outros.
- Eles acabariam descobrindo. Eles já têm a chave de ouro.
Raoul ordenou a seus homens:
- Levem os prisioneiros lá para baixo. Eu não quero correr riscos. Ponham-nos encostados à parede mais baixa. O resto de vocês - ele olhou para o grupo de soldados que montava guarda em cima da plataforma - mantenha cada um deles o tempo todo sob a mira das armas. Atirem contra qualquer um que se mexer.
Rachel e os outros cinco foram levados para baixo e obrigados a separar-se, a espalhar-se ao longo da parede. Gray estava a apenas três passos dela. Ela ansiava por estender o braço para ele, por segurar sua mão, mas ele parecia perdido em sua própria dor.
E ela não ousava mexer-se.
Os soldados estavam deitados na plataforma acima, os rifles apontados para eles.
Gray murmurou, olhando fixamente para o piso de vidro. Suas palavras chegaram apenas aos ouvidos dela.
- O labirinto do Minotauro.
Ela franziu o cenho. Parado no lugar, ele olhou de relance para ela e em seguida outra vez para o piso. O que ele estava tentando indicar?
O labirinto do Minotauro.
Gray estava referindo-se a um dos nomes do labirinto. Labirinto de Dédalo. O labirinto mítico que era o lar do Minotauro, um monstro letal num labirinto letal.
Letal.
Rachel lembrou-se da armadilha no túmulo de Alexandre. Do túnel letal. A solução daqueles enigmas não requeria apenas tecnologia. Era preciso saber história e mitologia. Gray estava tentando adverti-la. Eles podiam ter solucionado o problema da tecnologia, mas não todo o enigma.
Ela agora entendia a esperança de Gray. Ele apenas contara a Raoul o suficiente para - era o que esperava - fazer com que o homem morresse.
Raoul pegou uma mira a laser e avançou para o pedestal no centro. Depois, pareceu pensar melhor. Ele apontou a mira para Gray.
- Você - disse ele, claramente com suspeitas. - Leve isto até lá.
Gray foi obrigado a afastar-se da parede, a afastar-se do lado dela. Seus braços foram libertados, mas de modo algum ele estava livre. Cada passo seu era acompanhado por rifles.
Raoul empurrou o laser na mão de Gray.
- Instale-o. Como você descreveu.
Gray olhou para Rachel e então se dirigiu ao piso de vidro só de meias.
Ele não teve escolha.
Teve de entrar no labirinto do Minotauro.



07:32h

O general Rende consultou o relógio. Trovões ribombaram além das paredes do palácio. O que ele havia procurado por tanto tempo estava prestes a realizar-se. Mesmo que eles não conseguissem abrir uma câmara secreta qualquer lá embaixo, ele dera uma olhadela. Só aquele depósito era um tesouro que excedia todos os demais.
Eles fugiriam com o máximo que pudessem e destruiriam o resto.
Seu perito em demolições já estava inspecionando as bombas incendiárias.
Tudo o que restava era esperar os caminhões.
Ele havia providenciado uma caravana de três caminhões Peugeot para serviços pesados. Eles iriam em turnos até um imenso depósito na periferia da cidade, perto do rio, deixariam a carga, instalariam um contêiner vazio em cada veículo e voltariam.
De um lado para outro enquanto fosse possível.
O general franziu o cenho ao consultar o relógio. Eles estavam se atrasando. Ele recebera um telefonema do motorista do caminhão da frente cinco minutos atrás. As estradas estavam um caos, e, embora o dia já tivesse raiado, permanecia um interminável lusco-fusco sob as nuvens de trovoadas e a chuva torrencial.
Apesar do atraso, a tempestade servia para protegê-los, para encobrir as ações deles, para manter a um mínimo qualquer interesse pelo que se passava ali. Guardas afastados estavam prontos para eliminar qualquer pessoa que se tornasse curiosa demais. Os subornos já haviam sido pagos.
Eles deveriam dispor de metade do dia.
Veio pelo rádio uma chamada, à qual ele respondeu.
- O primeiro caminhão está subindo a colina agora - informou o motorista.
Trovões retumbaram a distância.
Agora era o começo.



07:33h

Com a mira a laser na mão, Gray dirigiu-se à pequena coluna de magnetita. Acima, estendiam-se arcos duplos da mesma pedra. Mesmo sem tocar em nada, Gray sentia a força em estado latente.
- Vamos, rápido! - gritou Raoul da borda.
Gray caminhou até o pedestal, colocou a mira a laser em cima dele, ajustou-a e apontou-a na direção da janela correspondente às 12 horas. Ele fez uma pausa para respirar fundo. Tentara advertir Rachel para estar pronta para tudo. Uma vez que aquilo fosse ativado, todos eles estariam em perigo.
- Ligue o laserl - vociferou Raoul. - Ou nós começaremos a disparar contra rótulas.
Gray estendeu a mão para o interruptor e ligou-o.
Um fino feixe de luz vermelha projetou-se e atingiu a placa de vidro de ouro.
Gray lembrou-se das baterias no túmulo de Alexandre. Levou um instante para que a carga ou capacidade elétrica se formasse, e então os fogos de artifício começaram.
Ele não tinha intenção de ficar em pé ali quando isso acontecesse.
Virou-se e voltou rapidamente para a parede. Não correu, não fez nenhum movimento precipitado, ou teria sido alvejado nas costas. Ele retomou seu lugar junto à parede.
Raoul e Alberto estavam em pé na base da escada.
Todos os olhos estavam fixos no único fio de fogo vermelho que ligava a mira a laser ao espelho.
- Não está acontecendo nada - resmungou Raoul.
Vigor falou do outro lado:
- Talvez leve alguns segundos para que se forme energia suficiente para ativar o espelho.
Raoul ergueu uma pistola.
- Se ela não...
Ela se formou.
Uma profunda nota tonal soou e um novo raio de laser projetou-se da placa das 12 horas e acertou a das cinco horas. Ocorreu uma ofuscação por uma fração de segundo.
Ninguém falou.
Então outro feixe de fogo vermelho se projetou e acertou o marcador das dez horas. Ele refletiu-se imediatamente, saltando de um espelho para o outro.
Gray olhou fixamente para a difusão de luz diante dele, formando uma estrela flamejante, até a cintura. Ele e os outros estavam em pé entre pontos do dispositivo, sabendo que era melhor não se mexerem.
O simbolismo era óbvio.







A Estrela de Belém.
A luz que guiara os Reis Magos.
A nota profunda aumentou. O fogo da estrela ardeu com mais intensidade.
Gray virou a cabeça, apertando os olhos.
Então ele sentiu que algum limiar fora transposto. A pressão projetou-se súbita e impetuosamente para fora, empurrando-o contra a parede.
O campo de Meissner de novo.
A estrela pareceu curvar-se para cima, a partir do centro, como que empurrada do chão, e atingiu a cruz de arcos de magnetita acima.
Uma explosão de energia crepitou através dos arcos abobadados.
Gray sentiu um puxão nos botões de metal de sua camisa.
A carga magnética dos arcos havia aumentando dez vezes.
A energia da estrela foi repelida pelo novo campo e projetou-se para baixo, atingindo o piso de vidro com um som metálico alto, como a badalada de um sino gigante.
A coluna central voou para cima como que arremessada pela colisão. Ela atingiu o centro dos arcos cruzados - e ficou grudada ali, dois eletroímãs firmemente presos um ao outro.
À medida que o som enfraquecia, Gray sentiu um estalido nos ouvidos quando o campo se desfez. A estrela desvaneceu-se, embora um espectro de sua luz intensa ainda brilhasse através de sua visão. Ele fechou os olhos a esse brilho residual.
Acima, a pequena coluna ainda estava presa à interseção dos arcos, apontando agora para baixo. Gray acompanhou o dedo de pedra.
No meio do piso, onde a coluna se erguera antes, havia um círculo perfeito de ouro maciço. Um encaixe para a chave. No centro - o centro de tudo - estava uma fenda escura.
- O buraco da fechadura! - exclamou Alberto. Ele largou o livro, abriu a sacola e tirou a chave de ouro.
Do outro lado do piso, Vigor olhou com dureza para Gray. Naquele momento, Gray lhes entregara não apenas a chave de ouro, mas a chave do mundo.
Alberto devia ter suspeitado a mesma coisa. Excitado, ele pisou no assoalho de vidro.
Descargas elétricas arremessaram-se para cima, provenientes da superfície, trespassando o homem, erguendo-o e mantendo-o suspenso. Ele gritou e contorceu-se quando o fogo o lambeu. Sua pele enegreceu-se; seus cabelos e roupas incendiaram-se.
Raoul correu para a escada, horrorizado, caindo sentado.
Gray virou-se para Rachel.
- Prepare-se para correr.
Aquela poderia ser a única chance deles.
Mas pareceu que ela não o ouviu, petrificada como os outros.
O grito de Alberto finalmente cessou. Como que sabendo que sua presa estava morta, uma derradeira descarga de energia lançou o cadáver do homem na beira do poço de vidro.
Ninguém se moveu. O cheiro de carne queimada espalhou-se no ar.
Todos olhavam com espanto para o labirinto letal.
O Minotauro havia chegado.



07:35h

O general Rende recuara para os degraus de acesso à cozinha. Ele fora chamado por um de seus soldados quando a estrela cintilante se iluminara lá embaixo. Ele queria ver o que estava acontecendo - mas de uma distância segura.
Então a luz expirou.
Decepcionado, ele se afastou quando um lamento torturado irrompeu.
Os pêlos de sua nuca arrepiaram-se.
Ele fugiu de volta para a cozinha. Um de seus homens, usando uniforme da polícia francesa, correu até ele.
- O primeiro caminhão está aqui! - disse ele apressadamente.
Rende viu-se livre da ansiedade momentânea.
Ele tinha um trabalho a fazer.
- Entre em contato pelo rádio com quem não estiver de guarda. Está na hora de esvaziarmos a câmara.



07:36h

Rachel sabia que eles estavam encrencados.
Raoul levantou-se e dirigiu-se a Gray.
- Você sabia disto!
Gray deu um passo para o lado junto à parede.
- Como é que eu poderia saber que ele seria frito?
Raoul ergueu a pistola e fez pontaria.
- Está na hora de vocês aprenderem uma lição.
Mas a arma não estava apontada para Gray.
- Não! - gritou Rachel, aflita.
A pistola disparou. No outro lado do assoalho, o tio Vigor segurou a barriga com um gemido. Seus pés escorregaram de sob seu corpo, e ele afundou no chão.
Seichan moveu-se em direção a ele, deslizando agilmente como um gato negro, impedindo que os pés de Vigor tocassem o vidro.
Mas Raoul ainda não terminara com eles. Em seguida, apontou a pistola na direção de Kat. Ela estava a apenas três metros de distância. A arma apontava para a cabeça dela.
- Não! - disse Gray. - Eu não tinha idéia de que aquilo aconteceria! Mas agora eu sei qual foi o erro que Alberto cometeu!
Raoul voltou-se para ele, a ira em cada músculo. Porém, Rachel reconheceu que aquela fúria não era pela perda de Alberto, e sim porque a morte súbita e dramática o amedrontara. E ele não gostava de ser amedrontado.
- Qual? - resmungou Raoul.
Gray apontou para o labirinto.
- Você não pode simplesmente caminhar até o buraco da fechadura. Você tem de seguir o caminho. - Ele acenou em direção ao labirinto em espiral.
Os olhos de Raoul estreitaram-se, a ira amainou. A compreensão atenuou o medo.
- Faz sentido - disse Raoul.
Ele foi até o cadáver, abaixou-se e quebrou os dedos contorcidos pelo fogo, ainda apertados em torno da chave. Pegou-a e removeu a carne esturricada de sua superfície.
Ele acenou para que um de seus homens que estavam acima descesse e apontou para o centro.
- Leve isto até lá - ordenou ele, e entregou-lhe a chave de ouro.
O jovem soldado recusou. Ele vira o que acontecera a Alberto.
Raoul apontou a pistola para a testa do rapaz.
- Ou morra aqui. A escolha é sua.
O rapaz estendeu a mão e pegou a chave.
- Vamos, ande - disse Raoul. - O nosso tempo aqui está contado.
Ele manteve a pistola apontada para as costas do rapaz.
O soldado foi até o ponto de entrada do labirinto. Inclinando-se para trás, ele pôs um pé no vidro e depois puxou-o. Nada aconteceu. Mais confiante, porém cauteloso, ele estendeu o pé de novo e colocou-o sobre a superfície.
Ainda nenhuma manifestação de eletricidade.
Cerrando os dentes, o soldado pisou em cheio no assoalho de vidro.
- Fique longe das marcas de platina - advertiu Gray.
O soldado fez um aceno de cabeça, olhando com gratidão na direção de Gray, e deu outro passo.
Sem qualquer sinal, um jato de luz vermelha projetou-se de duas janelas. A estrela tremeluziu, voltando à existência, e então expirou novamente.
O soldado congelou no lugar. Em seguida, suas pernas vergaram embaixo dele. Ele caiu para trás, fora do labirinto. Quando ele atingiu o chão, seu corpo partiu-se em metades, cortado na cintura pelo laser. Um emaranhado de intestinos saiu serpenteando da metade de cima.
Raoul recuou, os olhos flamejantes de ira, e ergueu a pistola outra vez.
- Mais alguma idéia brilhante?
Gray permaneceu imóvel.
- Eu... eu não sei.
- Talvez seja um coisa relacionada com o tempo - disse Monk do outro lado. - Talvez você tenha de se manter em movimento. Como no filme Velocidade Máxima.
Gray olhou de relance para o seu colega de equipe, e então de novo para trás, não convencido.
- Eu estou de saco cheio de perder meus próprios homens - disse Raoul, a fúria se formando. - E também de esperar enquanto você junta as peças deste quebra-cabeça. Por isso você simplesmente terá de me mostrar como se faz.
Ele acenou para que Gray avançasse.
Gray continuou no lugar, obviamente tentando encontrar alguma resposta.
- Eu sempre posso começar a atirar de novo contra os seus amigos. Eu sei que isso ajuda a aliviar o meu estresse - disse Raoul, apontando a arma novamente para Kat.
Gray afinal saiu do lugar, passando por cima do corpo de bruços.
- Não se esqueça da chave - disse Raoul.
Gray curvou-se para pegá-la.
Foi então que a idéia ocorreu a Rachel. É claro.
Gray empertigou-se e encaminhou-se para o ponto de entrada do labirinto. Ele começou a recuar, alinhando-se um pouco para correr, pronto para seguir o conselho de Monk.
- Não! - gritou Rachel. Ela odiava ajudar Raoul a alcançar seu objetivo. Estava preparada para morrer a fim de impedir que a Corte conseguisse o que estava oculto ali. Mas também não podia ver Gray morrer, cortado ao meio ou eletrocutado.
Ela lembrou-se do sussurro de Gray sobre o Minotauro. Ele recusava-se a entregar os pontos. Enquanto eles vivessem, havia esperança. Ela acreditava nele. E, ainda mais importante, confiava nele.
Gray virou-se para ela.
Nos olhos dele, ela viu brilhar a mesma confiança.
Nela.
A gravidade daquilo a silenciou.
- O que foi? - vociferou Raoul.
- Não é a velocidade - disse Rachel, sobressaltada. - O tempo é valorizado por esses alquimistas. Eles deixaram pistas, de uma ampulheta a este mostrador de relógio espelhado. Eles não usariam o tempo para matar.
- Então o quê? - perguntou Gray, os olhos ainda pesando sobre ela. Mas era um fardo que ela estava disposta a agüentar.
Rachel falou rapidamente.
- Os labirintos em todas as catedrais representavam viagens simbólicas. Deste mundo para o outro. Para a iluminação espiritual no centro. - Ela apontou para o cadáver, cortado ao meio na cintura, que correspondia à altura das janelas espelhadas. - Mas, para chegarem lá, os peregrinos engatinhavam.
Gray concordou com um aceno.
- Abaixo do nível destas janelas.
No outro lado do piso, o tio dela gemeu, sentado no chão, o sangue escorrendo entre seus dedos. Seichan estava sentada ao lado dele. Rachel sabia que não era a dor que suscitara a reação de lamento. Ela viu isso nos olhos do tio. Ele também já havia solucionado aquele último enigma. Mas ficara em silêncio.
Ao falar, Rachel traíra o futuro, pondo o mundo em risco.
Os olhos dela encontraram os de Gray. Ela fizera sua escolha. Sem remorso.
Até mesmo Raoul acreditou nela.
Ele acenou para que Gray lhe passasse a chave.
- Eu mesmo a levarei até lá - mas você vai na frente.
Sem dúvida, Raoul não confiava inteiramente na idéia dela. Gray passou-lhe a chave.
- Na verdade - disse Raoul, apontando a arma para Rachel -, já que a idéia é sua, por que você também não vem junto? Para ajudar a manter o seu homem digno de confiança.
Rachel tropeçou para a frente. Suas mãos foram libertadas. Ela agachou-se com Gray. Ele fez um aceno de cabeça para ela, transmitindo uma mensagem silenciosa.
Nós ficaremos bem.
Rachel tinha poucos motivos para sentir-se confiante, mas acenou em resposta.
- Vamos andando - disse Raoul.
Gray seguiu na frente, engatinhando para o labirinto sem hesitar, plenamente confiante na avaliação de Rachel.
Raoul a reteve até que Gray estivesse a um corpo de distância.
O piso de vidro permaneceu parado.
- Okay, agora você - Raoul ordenou a ela.
Rachel começou a engatinhar, seguindo o caminho de Gray. Ela sentia uma vibração através das palmas de suas mãos. A superfície do vidro era quente. Enquanto se movia, ela ouvia um ruído distante, não mecânico ou elétrico, mais parecido com o murmúrio de uma vasta multidão ao longe. Talvez fosse o sangue afluindo aos seus ouvidos, bombeado pelo seu coração preocupado.
Raoul gritou atrás dela para seus homens:
- Atirem contra qualquer um dos outros, se eles se mexerem! O mesmo vale para estes dois aqui. Sob minhas ordens, executem-nos.
Portanto, se o labirinto não os matasse, Raoul o faria.
Rachel prosseguiu, com uma única esperança.
Gray.



07:49h

Rende pousou uma das mãos no ombro do perito em demolições.
- As cargas estão preparadas?
- Todas as 16 - respondeu o homem. - Simplesmente aperte este botão três vezes. As granadas estão ligadas a um detonador programado para acioná-las em dez minutos.
Perfeito.
Ele virou-se para a fila de 16 homens. Outros carrinhos de mão estavam no corredor, esperando para serem carregados. Cinco carrinhos de mão maiores também estavam prontos. O primeiro caminhão havia encostado em marcha a ré ao portão principal, e o segundo estava a caminho. Estava na hora de esvaziar a câmara.
- Ao trabalho, homens. Pagamento em dobro.



07:50h

Os joelhos de Gray doíam.
Depois de dar a volta a três quartos do labirinto, aquilo se transformou numa tortura para suas rótulas. O vidro liso agora parecia concreto áspero. Mas ele não ousava parar. Não até ter chegado ao centro.
Enquanto dava suas voltas pelo circuito, ele cruzava com Rachel e Raoul ao longo dos caminhos próximos. Apenas um esbarrão no quadril seria suficiente para que Raoul caísse fora do caminho que seguia. Até mesmo Raoul suspeitava disso, apontando a arma para o rosto de Gray quando eles passavam um pelo outro.
Porém, a cautela era desnecessária. Gray sabia que, se cruzasse as linhas de platina gravadas no vidro mesmo com uma das mãos ou um dos quadris, ele seria morto tão depressa quanto Raoul. E, com a superfície do vidro ativada, também era provável que Rachel fosse eletrocutada.
Portanto, ele deixava Raoul passar sem ser molestado.
Quando seu caminho e o de Rachel se cruzavam, os olhos de um permaneciam fixos no outro. Nenhum dos dois falava. Um vínculo havia crescido entre eles, um vínculo construído com base no perigo e na confiança. O coração de Gray doía a cada movimento: queria abraçá-la, confortá-la. Mas era impossível parar.
Eles davam voltas e mais voltas.
Um zumbido cresceu dentro da cabeça dele, fazendo vibrar os ossos de seus braços e pernas. Ele também ouviu um tumulto acima. Na catedral. Soldados envolvidos em alguma atividade lá.
Ele ignorou tudo isso e continuou a engatinhar.
Após a última volta, um trecho reto conduzia à roseta no centro. Gray avançou rapidamente, contente por chegar afinal a uma base segura. Com os joelhos queimando, ele deu um mergulho no trecho final e estatelou-se de costas.
O zumbido transformou-se num murmúrio que mal se podia ouvir. Ele sentou-se, os cabelos vibrando com o ruído. Que diabo...?
Rachel apareceu e engatinhou na direção dele. Permanecendo abaixado, ele ajudou-a a entrar no centro. Ela atirou-se nos braços dele.
- Gray... o que nós estamos...?
Ele ajoelhou-se com ela e a fez calar-se.
Havia apenas uma esperança.
Uma pequena esperança.
Raoul apareceu e engatinhou até eles, exibindo um largo sorriso.
- A Corte do Dragão está em débito com ambos pelo seu generoso serviço. - Ele apontou a arma. - Agora levantem-se.
- O quê? - perguntou Gray.
- Vocês me ouviram. Levantem-se. Os dois.
Sem opção, Gray tentou libertar-se dos braços de Rachel, mas ela estava grudada a ele.
- Me deixe ir primeiro - murmurou ele.
- Juntos - respondeu ela.
Gray olhou-a nos olhos e viu a determinação dela.
- Confie em mim - disse ela.
Gray respirou fundo, e os dois levantaram-se. Gray esperava ser cortado ao meio, mas o piso permaneceu imóvel.
- Uma zona segura - disse Rachel. - No centro da estrela. Os lasers nunca cruzaram esta parte.
Gray manteve o braço ao redor de Rachel. Como se aquele sempre tivesse sido o seu lugar.
- Fiquem afastados ou vocês serão alvejados - advertiu Raoul. - Ele ficou em pé em seguida, livrou-se de uma cãibra e enfiou a mão num bolso. - Agora vejamos que prêmio vocês nos entregaram.
Raoul tirou a chave, abaixou-se e introduziu-a no buraco da fechadura.
- Um encaixe perfeito - murmurou ele.
Gray estreitou Rachel ainda mais em seus braços, receoso do que aconteceria em seguida, certo apenas de uma coisa.
No ouvido dela, ele sussurrou o segredo que vinha mantendo de todos desde Alexandria.
- A chave é falsa.



07:54h

O general Rende descera para supervisionar o primeiro carregamento do tesouro. Eles não poderiam levar tudo, por isso alguém tinha de fazer uma triagem, escolher as mais preciosas peças de antigüidade, arte e textos antigos. Ele postou-se próximo da plataforma com um bloco na mão para fazer o inventário. Seus homens rastejavam ao longo da plataforma mais alta da maciça estrutura.
Então um ruído estranho vibrou através da caverna.
Não era um terremoto.
A impressão era de que alguma coisa houvesse feito todos os seus sentidos vibrar ao mesmo tempo. Ele perdeu ligeiramente o equilíbrio. Sua audição ribombou. Ele sentiu um calafrio repentino, como se a morte houvesse passado por perto. Mas, pior do que tudo, sua visão tremeluziu. Era como se o mundo houvesse se transformado num tubo de imagem com defeito, interferindo na imagem na tela, brincando com a perspectiva. Três dimensões dissolvidas em duas apenas.
Rende recuou para o poço da escada.
Algo estava acontecendo. Algo errado.
Ele o sentiu até os ossos.
E fugiu escada acima.



07:55h

Rachel agarrou-se a Gray quando a vibração piorou. O piso embaixo deles pulsava com uma luz branca. A cada pulso, arcos de eletricidade precipitavam-se para fora ao longo das linhas de platina, crepitando e cintilando. Dentro de segundos, o labirinto inteiro brilhava com um fogo interno.
As palavras de Gray ecoaram em seus ouvidos. A chave é falsa.
E o labirinto reagiu.
Um ruído grave soou embaixo deles, ominoso, sinistro.
A pressão voltou a formar-se, fechando-se e comprimindo.
Um novo campo de Meissner desenvolveu-se, distorcendo estranhamente a percepção.
Acima, todo o complexo parecia vibrar, como o filamento bruxuleante de uma lâmpada incandescente.
A realidade deformou-se.
A um metro de distância, Raoul ergueu-se do local onde se agachara sobre a chave que introduzira na fechadura, sem saber o que estava acontecendo. Mas ele deve tê-la sentido também. Uma sensação esmagadora de transgressão que repugnava os sentidos.
Rachel agarrou-se a Gray, contente pelo apoio.
Raoul virou-se para eles e... sua pistola. Ele percebeu a verdade tarde demais.
- Lá no castelo. Você nos deu a porra da chave errada.
Gray encarou-o.
- E você perdeu.
Raoul apontou a arma.
Ao redor deles, a estrela flamejante voltou à vida, projetando-se de todas as janelas ao mesmo tempo. Raoul agachou-se, receoso de ser cortado ao meio.
Acima, o pedestal de pedra libertou-se de sua adesão magnética aos arcos de pedra-ímã e mergulhou no chão. Raoul olhou para cima tarde demais. A quina da pedra atingiu seu ombro e esmagou-o no chão.
Quando a coluna atingiu o chão, o vidro estilhaçou-se como gelo sob eles, espalhando-se em todas as direções. Um brilho ofuscante irrompeu das rachaduras.
Gray e Rachel permaneceram em pé.
- Abrace-me com força - sussurrou Gray.
Rachel também sentiu. Uma crescente vibração de força, sob eles, ao redor deles, através deles. Ela precisava estar mais perto. Ele reagiu, girando-a para ficar de frente para ele, os braços imprensando-a contra o seu peito, sem deixar espaço. Ela chegou-se mais para ele, sentindo o coração dele bater.
Alguma coisa estava precipitando-se de baixo.
Uma bolha de energia negra. Prestes a explodir.
Ela fechou os olhos quando o mundo explodiu em luz.


No chão, o ombro de Raoul queimava com incandescente agonia. Ossos esmagados rangiam em contato uns com os outros. Em pânico, ele lutou para escapar.
Então uma supernova explodiu embaixo e através dele, tão brilhante que penetrou até a parte posterior de seu crânio, espalhando-se pelo seu cérebro. Ele lutou contra a penetração dela, sabendo que ela o destruiria.
Ele sentiu-se violado, exposto, cada pensamento, ação, desejo revelados.
Não...
Ele não podia impedi-la. Era maior que ele, mais que ele, incontestável. Todo o seu ser foi arrastado ao longo de uma brilhante réstia de luz branca. Estirado a ponto de despedaçar-se, agoniado, mas sem deixar espaço para raiva, ódio a si mesmo, vergonha, aversão, medo ou recriminação. Apenas para a pureza. Uma essência pura do ser. Aquele era quem ele poderia ser, quem ele nascera para ser.
Não...
Ele não queria ver aquilo. Mas não podia fugir. O tempo dilatava-se rumo ao infinito. Ele estava preso, ardendo numa luz purificadora, muito mais dolorosa do que qualquer inferno.
Ele encarou a si mesmo, sua vida, sua possibilidade, sua ruína, sua salvação...
Ele viu a verdade - e ela queimava.
Não mais...
Mas o pior ainda estava por vir.


Seichan apertou o velho de encontro ao seu peito. Ambos mantiveram a cabeça inclinada para evitar a ofuscante erupção de luz, mas Seichan teve vislumbres dela pelo canto dos olhos.
A estrela chamejante explodiu em direção ao céu numa fonte de luz, erguendo-se do centro do labirinto e rodopiando para cima, rumo à catedral escura. Outros espelhos de vidro, incrustados na vasta biblioteca, captaram o brilho da estrela e o refletiram cem vezes, alimentando o crescente turbilhão. Uma reação em cadeia difundiu-se por todo o complexo. Num piscar de olhos, a estrela bidimensional desdobrou-se numa gigantesca esfera tridimensional de luz do laser, girando dentro e em volta da catedral subterrânea.
A energia cintilava e crepitava para fora dela, varrendo as plataformas.
Gritos estridentes ecoavam.
Um soldado pulou da plataforma acima, tentando chegar ao chão abaixo. Porém, não havia santuário algum para ele. Descargas elétricas atingiram-no antes mesmo de ele tocar o chão, queimando-o até os ossos quando ele se chocou com o piso do labirinto.
Mas o mais perturbador de tudo é que alguma coisa acontecera à própria catedral abobadada. A visão pareceu achatar-se, perdendo toda a sensação de profundidade. E mesmo essa imagem tremeluziu, como se o que estava suspenso acima dela fosse apenas um reflexo na água, irreal, uma miragem.
Seichan fechou os olhos, com medo de olhar, completamente horrorizada.


Gray abraçava Rachel. O mundo era pura luz. Ele sentia o caos além, mas ali havia apenas os dois. O ruído voltou a zumbir em volta deles, vindo de dentro da luz, um limiar que ele não podia cruzar nem compreender.
Ele se lembrou das palavras de Vigor.
Luz primordial.
Rachel ergueu o rosto. Os olhos dela estavam tão brilhantes na luz refletida que ele quase podia ler os pensamentos dela. Parecia que ela também lia os seus.
Alguma coisa no caráter da luz, uma permanência que não podia ser negada, uma imutabilidade que tornava tudo pequeno.
Exceto uma coisa.
Gray curvou-se, os lábios roçando os dela, as respirações partilhadas.
Não era amor. Ainda não. Apenas uma promessa.
A luz brilhou ainda mais quando o beijo de Gray se intensificou e ele sentiu o gosto dela. O que antes zumbia agora cantava. Os olhos dele fecharam-se, mas ele ainda a via. Seu sorriso, o brilho de seus olhos, o ângulo de seu pescoço, a curva de seus seios. Ele sentiu aquela permanência de novo, aquela presença imutável.
Será que era a luz? Será que eram eles dois?
Apenas o tempo o diria.


O general Rende fugiu ao ouvir os primeiros gritos. Ele não precisava investigar mais. Enquanto subia com dificuldade o poço da escada em direção à cozinha, ele vira o brilhos de energias refletido de baixo para cima.
Ele não chegara tão longe na Corte por ser imprudente.
Isso ele deixava para substitutos como Raoul.
Flanqueado por dois soldados, retirou-se do palácio, seguindo para o pátio principal. Apoderar-se-ia do caminhão, voltaria ao depósito, reagruparia lá e conceberia um novo plano.
Ele tinha de estar de volta a Roma antes do meio-dia.
Ao sair pela porta, notou que a guarda externa, ainda usando uniformes da polícia, defendia o portão. Também notou que a chuva se reduzira a uma garoa.
Ótimo.
Isso apressaria sua retirada.
Perto do caminhão, o motorista e outros quatro guardas uniformizados perceberam sua aproximação e vieram ao seu encontro.
- Nós temos de partir imediatamente - ordenou Rende em italiano.
- De algum modo eu acho que isso não vai acontecer - disse o motorista em inglês, puxando o boné para trás.
Os quatro guardas uniformizados ergueram armas para o grupo dele.
O general Rende recuou.
Aqueles eram mesmo policiais franceses... exceto o motorista. Pelo sotaque, era obviamente americano.
Rende voltou os olhos para a entrada. Mais policiais franceses montavam guarda. Ele fora traído pelo seu próprio ardil.
- Se o senhor está procurando seus homens - disse o americano -, eles já estão presos na traseira do caminhão.
O general Rende olhou fixamente para o motorista. Cabelos pretos, olhos azuis. Ele não o reconheceu, mas ele conhecia a voz das conversas pelo telefone.
- Painter Crowe - disse ele.


Painter percebeu o brilho do cano de uma arma na janela do segundo andar do palácio. Um atirador solitário de tocaia. Alguém que eles não haviam notado.
- Afastem-se! - gritou ele para a patrulha à sua volta.
Balas ricochetearam no pavimento molhado, disparadas entre Painter e o general. Os policiais dispersaram-se para o lado.
Rende recuou, sacando sua pistola.
Ignorando os disparos da arma automática, Painter abaixou-se, apoiando-se num joelho, e ergueu duas armas, uma em cada mão. Mirando instintivamente, ele apontou uma pistola na direção da janela superior.
Pou, pou, pou...
O general jogou-se no chão.
Do segundo andar soou um grito. Um corpo caiu.
Mas Painter notou-o apenas pelo canto do olho. Toda a sua atenção estava concentrada no general Rende. Ajoelhados, ambos apontavam armas um para o outro, as armas quase se tocando.
- Afastem-se do caminhão! - disse Rende. - Todos vocês!
Painter encarou o homem, avaliando-o. Ele pôde ver a fúria crua nos olhos do outro, tudo desintegrava-se ao redor dele. Rende atiraria, mesmo que isso significasse perder a vida.
O homem não lhe oferecia escolha.
Painter largou a primeira pistola e em seguida baixou a segunda, afastando-a do rosto de Rende e apontando-a para o chão.
O general deu um largo sorriso de triunfo.
Painter puxou o gatilho. Um arco brilhante projetou-se da extremidade da segunda pistola. Os dardos do taser 4 atingiram a poça d'água próximo ao joelho do general. O impacto da descarga elétrica fez Rende perder o equilíbrio e cair de costas, a arma voando.
Ele gritou.
- Dói, não dói? - disse Painter, agarrando sua pistola regular e apontando-a para o general.
Os policiais aglomeraram-se em torno do homem caído.
- O senhor está bem? - um dos patrulheiros perguntou a Painter.
- Ótimo. - Ele se levantou. - Mas, caramba... como eu sinto falta do trabalho de campo.



07:57h

Lá embaixo na caverna, os fogos de artifício haviam durado pouco mais de um minuto.
Vigor estava deitado de costas, olhando fixamente para cima. Os gritos haviam cessado. Ele abrira os olhos, sentindo no nível primitivo de seu cérebro que tudo terminara. Ele vislumbrou a última volta da esfera de luz coerente e então observou-a desmoronar dentro de si mesma como um sol agonizante.
Acima estendia-se o espaço vazio.
A catedral inteira havia tremeluzido e se desvanecido junto com a estrela.
Seichan mexeu-se no lugar onde havia se abrigado ao lado dele. Ela também olhava fixamente para cima.
- Tudo já passou.
- Como se nunca houvesse estado lá - disse Vigor, fraco devido à perda de sangue.



07:58h

Gray rompeu o abraço em Rachel, a acuidade de seus sentidos enfraquecendo com a luz. Mas ele ainda sentia o gosto dela em seus lábios. Isso bastava.
Por enquanto.
Um pouco do brilho permaneceu nos olhos dela quando ela perscrutou ao redor. Os outros estavam se mexendo de onde haviam se deitado no chão. Rachel avistou Vigor, que se esforçava para sentar-se.
- Oh! meu Deus... - disse ela.
Ela saiu dos braços de Gray para ir ver o tio. Monk ia na mesma direção, pronto para utilizar seus conhecimentos médicos.
Gray ficou de guarda, olhando para as alturas à sua volta.
Não se ouviu mais nenhum tiro. Os soldados haviam desaparecido... junto com a biblioteca. Era como se alguma coisa houvesse removido o centro, deixando apenas os círculos de plataformas ascendentes, semelhantes a um anfiteatro.
- Para onde tudo se fora?
Um gemido atraiu sua atenção para o piso.
Raoul estava caído ali perto, enrascado em torno do braço esmagado sob a coluna que caíra. Gray foi até ele e chutou sua pistola para longe. Ela deslizou pelo piso de vidro, agora um quebra-cabeça rachado e difuso.
Kat aproximou-se.
- Deixe-o por enquanto - disse Gray. - Ele não irá a lugar nenhum. É melhor nós recolhermos todas as armas que pudermos. É impossível dizer quantos mais podem estar lá em cima.
Ela concordou com um aceno de cabeça.
Raoul ficou de costas, excitado pela voz de Gray.
Gray esperava alguma maldição ou ameaça final, mas o rosto de Raoul estava contorcido de agonia. Lágrimas rolavam pelas suas faces. Mas Gray suspeitava que não era o braço esmagado que estava desencadeando aquela dor.
Alguma coisa mudara no rosto de Raoul. O eterno semblante duro e o brilho de desdém haviam desaparecido, dando lugar a algo mais brando, mais humano.
- Eu não pedi para ser perdoado - lamentou ele, angustiado.
Gray franziu o cenho ao ouvir essa declaração. Perdoado por quem? Ele se lembrou de sua própria exposição à luz um instante atrás. Luz primordial. Alguma coisa além da compreensão, além do começo da criação. Alguma coisa havia transformado Raoul.
Ele se lembrou da pesquisa naval feita com os supercondutores, de como o cérebro se comunicava por meio da supercondutividade e até conservava a memória daquela forma, armazenada como energia ou talvez como luz.
Gray olhou para o piso estilhaçado. Será que havia algo além da luz armazenado no vidro supercondutor? Ele se lembrou de sua própria sensação durante aquele momento. A sensação de algo maior.
No chão, Raoul cobriu o rosto com uma das mãos.
Será que alguma coisa havia renovado a alma do homem? Poderia haver esperança para ele?
Um movimento atraiu o olhar de Gray. Ele viu o perigo imediatamente.
Ele avançou a fim de detê-la.
Ignorando-o, Seichan ergueu a arma de Raoul e apontou-a para o homem preso ao chão.
Raoul virou-se e olhou para o cano. Sua expressão continuou angustiada, mas agora um lampejo de puro medo iluminou seus olhos. Gray reconheceu aquele brilho de terror negro no homem - não por causa da arma, nem por causa da dor da morte, mas pelo que estava além.
- Não! - gritou Gray.
Seichan puxou o gatilho. A cabeça de Raoul projetou-se para trás, de encontro ao vidro, com um estalo tão alto quanto o disparo da pistola.
Os outros congelaram de choque.
- Por quê? - perguntou Gray, aturdido, avançando.
Seichan esfregou o ombro ferido com a coronha da pistola.
- Desforra. Lembre-se de que nós tínhamos um acordo, Gray. - Ela acenou com a cabeça na direção do corpo de Raoul. - Além do mais, como o homem disse, ele não estava à procura de perdão.



07:59h

Painter ouviu o eco do disparo através do palácio e acenou para que os patrulheiros franceses parassem. Alguém ainda estava lutando lá dentro.
Seria a sua equipe?
- Devagar - advertiu ele, acenando para que eles avançassem. - Fiquem de prontidão.
Ele continuou a penetrar no palácio. Viera à França por sua própria conta. Nem mesmo Sean McKnight sabia que ele assumira aquele encargo, mas as credenciais de Painter da Europol haviam-lhe assegurado o apoio de campo de que ele precisava em Marselha. Fora necessário empreender uma viagem transatlântica para seguir as pegadas do general Rende, primeiro até um depósito nas imediações de Avignon, depois até o Palácio dos Papas. Painter lembrou-se da advertência de seu mentor de que o lugar de um diretor era atrás de uma escrivaninha, não no campo.
Mas aquele era Sean.
Não Painter.
A Sigma era agora a sua organização, e ele tinha seu próprio jeito de resolver problemas. Ele pegou sua arma e seguiu na frente.
Quando Gray o informou pela primeira vez de um possível vazamento, Painter tomou uma decisão. Confiar em sua própria organização. Ele montara completamente a nova Sigma. Se houve um vazamento, tinha de ser um vazamento não-intencional.
Portanto, ele fizera a coisa lógica mais imediata: rastreara o fluxo de informações secretas.
Desde Gray... até a Sigma... até o contato da Sigma no Corpo de Carabinieri em Roma.
O general Rende havia ficado a par de cada detalhe da operação.
Fora necessário empreender algumas investigações cautelosas para seguir as pegadas do homem, que incluíam viagens suspeitas à Suíça. Painter acabara descobrindo um tênue vínculo com a Corte do Dragão. Um parente distante de Rende que fora preso dois anos antes por negociar com antigüidades roubadas, sobretudo em Omã. O ladrão fora posto em liberdade devido à pressão da Corte Imperial do Dragão.
Enquanto aprofundava as investigações, Painter não manteve Logan Gregory inteiramente informado, de modo que o homem pudesse continuar a desempenhar seu papel de contato da Sigma. Ele não queria assustar Rende, não até ter certeza.
Agora que suas suspeitas haviam-se confirmado, Painter tinha outra preocupação.
Será que ele estava atrasado demais?



08:00h

Rachel e Monk firmaram a atadura temporária na barriga de seu tio, usando a camisa de Gray. O tio Vigor perdera bastante sangue, mas a bala o trespassara livremente. De acordo com Monk, nenhum órgão vital parecia ter sido atingido, mas ele precisava de cuidados médicos imediatos.
O tio Vigor deu um tapinha na mão dela assim que ela terminou, e em seguida Monk ajudou-o a levantar-se e parcialmente o carregou.
Rachel permanecia ao lado deles. Gray juntou-se a ela, cingindo-a pela cintura. Ela inclinou-se um pouco para ele, extraindo força.
- Vigor vai ficar bem - prometeu Gray. - Ele é duro na queda e chegou até aqui.
Ela sorriu para ele, mas estava cansada demais para expressar muita emoção no sorriso.
Antes mesmo de eles terem chegado à primeira plataforma, uma voz retumbante ecoou até eles, de novo através de um megafone.
- SORTEZ AVEC VOS MAINS SUR LA TÊTE!
A ordem ecoou a distância: Saiam com as mãos na cabeça.
- Déjà vu - suspirou Monk. - Perdoem o meu francês.
Rachel ergueu seu rifle.
Seguiu-se uma segunda ordem, em inglês.
- COMANDANTE PIERCE, QUAL É A SUA SITUAÇÃO?
Gray virou-se para os outros.
- Impossível - disse Kat.
- É o diretor Crowe - confirmou Gray, com um choque na voz.
- ESTÁ TUDO EM ORDEM AQUI EMBAIXO! NÓS ESTAMOS SUBINDO!
Gray então virou-se para Rachel, os olhos brilhantes.
- Acabou? - perguntou ela.
Como resposta, ele a puxou de encontro a si e beijou-a. Não houve nenhuma luz misteriosa dessa vez, apenas a força dos braços e a doçura dos lábios dele. Ela afundou-se nele.
Ali estava toda a magia de que ela precisava.


08:02h

Gray subiu na frente.
Monk ajudou Vigor, carregando-o embaixo de seu braço são. Gray mantinha um braço ao redor de Rachel. Ela inclinou-se pesadamente de encontro a ele, mas ela era uma carga que ele estava feliz em suportar.
Embora aliviado, Gray os manteve armados dessa vez. Ele não ia cair noutra emboscada. Rifles e pistolas na mão, eles começaram a longa subida até a cozinha. Corpos, queimados ou eletrocutados, juncavam as plataformas.
- Por que nós fomos poupados? - perguntou Monk.
- Talvez aquele nível mais baixo tenha nos protegido - disse Kat.
Gray não argumentou com ela, mas suspeitava que fosse algo mais que isso. Ele se lembrou do brilho difuso da luz. Sentiu algo mais que fótons erráticos. Talvez não uma inteligência. Mas algo além da força pura.
- E o que aconteceu com a casa do tesouro? - perguntou Seichan, olhando fixamente para o espaço vazio. - Será que era tudo algum tipo de holograma?
- Não - Gray respondeu enquanto eles subiam. Ele tinha uma teoria. - Sob fortes condições, tubos de fluxo podem ser gerados dentro de um campo de Meissner, afetando não só a gravidade, como a levitação que nós já vimos, mas também distorcendo o espaço. Einstein mostrou que a gravidade na verdade curva o espaço. Os tubos de fluxo criam um vórtice tal na gravidade que ela dobra o espaço, possivelmente até mesmo dobrando-o em si mesmo, permitindo o movimento através dele.
Gray percebeu os olhares de descrença e insistiu:
- Na NASA já estão sendo feitas pesquisas sobre isto.
- Fumaça e espelhos - resmungou Monk. - Para mim foi isso.
- Mas para onde foi tudo isso? - perguntou Seichan.
Vigor tossiu. Rachel avançou na direção dele. Ele a fez afastar-se com um aceno, estava apenas pigarreando.
- Foi para onde nós não podemos ir - disse ele com a voz rouca. - Nós fomos julgados e considerados deficientes.
Gray percebeu que Rachel ia começar a falar, mencionar a chave falsa. Ele estreitou-a e acenou com a cabeça na direção do tio dela, instando com ela para que o deixasse falar. Talvez nem tudo estivesse relacionado com a chave falsa. Poderia Vigor estar certo? Será que eles haviam tocado em algo para o qual não estavam preparados?
O monsenhor continuou:
- Os antigos procuravam a fonte de luz primordial, a centelha de toda a existência. Talvez eles tenham encontrado uma porta de acesso a ela ou uma forma de ascender até ela. Afirmou-se que o pão branco dos faraós ajudava esses reis egípcios a despir a carne mortal e a ressuscitar como se fossem feitos de luz. Talvez os antigos alquimistas finalmente tenham conseguido isso, movendo-se deste mundo para o outro.
- Como viajar ao longo do labirinto - disse Kat.
- Exatamente. O labirinto pode ser um símbolo da ascensão deles. Eles deixaram esta passagem aqui para outros seguirem, mas nós viemos...
- Cedo demais - disse Rachel subitamente, interrompendo-o.
- Ou tarde demais - acrescentou Gray. As palavras haviam acabado de brotar em sua cabeça, como o flash de uma câmera, deixando-o aturdido.
Rachel olhou de relance para ele e ergueu uma das mãos para esfregar a testa.
Ele viu uma confusão semelhante nos olhos dela, como se as palavras também lhe tivessem ocorrido espontaneamente. Ele olhou por cima da borda da plataforma lá embaixo para o piso de vidro estilhaçado e, em seguida, de novo para Rachel.
Talvez Raoul não tivesse sido o único afetado pela luz.
Será que um eco dessa luz ficara dentro deles? Uma compreensão, uma última mensagem?
- Tarde demais... ou cedo demais - prosseguiu Vigor, sacudindo a cabeça, chamando a atenção de Gray. - Para onde quer que os antigos tenham fugido com os seus tesouros - para o passado ou para o futuro -, eles nos deixaram apenas com o presente.
- Para criarmos o nosso próprio céu ou inferno - disse Monk.
Eles continuaram em silêncio, subindo as plataformas. Ao chegarem ao último nível, um grupo de policiais franceses os aguardava, junto com um rosto familiar.
- Comandante - disse Painter. - Que bom ver você!
Gray apertou a mão dele.
- O senhor não faz idéia.
- Vamos todos lá para cima.
Antes que eles pudessem mover-se, Vigor livrou-se do braço de Monk.
- Esperem - disse ele, tropeçando, uma das mãos apoiada na parede.
Gray e Rachel caminhavam atrás dele.
- Tio... - disse ela, preocupada.
A pouca distância havia uma mesa de pedra. Parecia que nem tudo havia desaparecido com a biblioteca. Um livro com encadernação de couro estava sobre a mesa. Todavia, seu estojo de vidro desaparecera.
- O livro-razão - disse Vigor, as lágrimas brotando. - Eles deixaram o livro-razão!
Ele tentou pegá-lo, mas Rachel acenou para que ele se afastasse e o recolheu. Fechou-o e colocou-o sob um braço.
- Por que deixaram isso para trás? - perguntou Monk, ajudando o monsenhor de novo.
Vigor respondeu:
- Para que saibamos o que nos espera. Para nos dar algo que buscar.
- Persuadindo-nos com promessas de recompensa - disse Monk. - Excelente. Eles poderiam ter deixado uma arca de ouro... okay, ouro talvez não... eu estou farto de ouro. Diamantes, uma arca de diamantes seria legal.
Eles cambalearam em direção à escada.
Gray olhou para trás mais uma vez. Com o espaço vazio, ele notou a forma da caverna, em cujo ponto mais alto se equilibrava uma pirâmide em forma de cone. Ou a parte de cima de uma ampulheta, apontando para baixo, para o piso de vidro.
Mas onde estava a parte de baixo?
Quando olhou fixamente, ele de repente soube.
- Tudo o que está acima é como o que está abaixo - murmurou ele.
Vigor lançou um olhar intenso para ele. Gray viu a compreensão e o conhecimento nos olhos do velho. Ele também já havia imaginado isso.
A chave de ouro destinava-se a abrir uma passagem. Para a parte de baixo da ampulheta. Mas onde? Será que havia uma caverna bem abaixo daquela ali? Gray achava que não. Porém, em algum lugar, a catedral de conhecimento esperava. O que estivera suspenso ali era um mero reflexo de outro lugar.
Como Monk dissera, fumaça e espelhos.
Vigor encarou-o. Gray lembrou-se da missão do cardeal Spera: preservar o segredo dos Reis Magos, confiando em que o conhecimento se revelaria quando chegasse a hora.
Talvez fosse disso que se tratasse a jornada da vida.
A busca.
Procurar a verdade.
Gray pousou uma das mãos no ombro de Vigor.
- Vamos para casa.
Com Rachel sob o seu braço, Gray subiu a escada.
Da escuridão rumo à luz.




Epílogo



18 de agosto, 11:45h
Takoma Park, Maryland

Gray pedalou pela Cedar Street abaixo, passando pela Biblioteca de Takoma Park. Fazia bem sentir o golpe do ar e a intensa luz do sol em seu rosto. Parecia que as últimas três semanas haviam sido passadas embaixo da terra, no comando da Sigma, numa reunião após a outra.
Ele acabara de sair da última entrevista sobre a missão com Painter Crowe. A reunião centrara-se em Seichan. A agente da Guilda desaparecera como um fantasma quando eles saíram do Palácio dos Papas, dobrando uma esquina escura e sumindo. Mas Gray encontrara uma lembrança dela em seu bolso.
O pingente com o dragão.
Outra vez.
E, embora o primeiro pingente deixado no Forte Detrick houvesse sido claramente uma ameaça, este último parecia diferente para Gray. Uma promessa. Até eles voltarem a se encontrar.
Kat e Monk também haviam participado da entrevista sobre a missão. Monk ficara sentado mexendo em sua nova e moderníssima prótese, não tão desconfortável com a nova mão quanto estava ansioso pela chegada da noite. Kat e Monk iam ter o seu primeiro encontro de verdade. Os dois haviam-se tornado íntimos após regressarem aos Estados Unidos. E, por estranho que pareça, Kat é que levara as coisas adiante e convidara Monk para jantar naquela noite.
Mais tarde, a sós, Monk puxara Gray para o lado, meio leviano.
- Tem de ser a mão mecânica. Ela vem com um modo de vibração de dois tempos. Que mulher não haveria de querer me namorar?
Apesar da frivolidade, Gray viu afeto e esperança autênticos nos olhos do amigo. E também um pouco de terror. Gray sabia que Monk ainda tinha certo trauma por causa de sua mutilação, certa insegurança.
Gray esperava que Monk lhe telefonasse no dia seguinte e lhe contasse como havia se saído.
Ele deslocou seu peso para um pedal, o joelho para fora, e dobrou suavemente a esquina da Sixth Street. A mãe dele o convidara para almoçar.
E, conquanto pudesse ter recusado, ele estivera adiando algo por muito tempo. Passou lentamente pelas fileiras de casas em estilo vitoriano e de chalés no estilo Queen Anne, na penumbra devido a um dossel de olmos e bordos.
Por fim, dobrou na Butternut Avenue, pulou o meio-fio e freou na entrada de automóvel do bangalô de seus pais em Craftsman. Tirou o capacete e carregou a bicicleta para a varanda.
Gritou através da porta de tela.
- Mamãe, estou em casa!
Encostou a bicicleta no balaústre e abriu a porta.
- Eu estou na cozinha! - disse a mãe dele.
Gray sentiu o cheiro de alguma coisa queimando. Um pouco de fumaça pairava em torno dos caibros do telhado.
- Está tudo bem? - perguntou ele, cruzando o curto corredor.
Sua mãe usava jeans, uma blusa xadrez e um avental apertado ao redor da cintura. Ela havia reduzido seu horário na universidade a meio expediente, duas vezes por semana, a fim de cuidar das coisas em casa.
A cozinha estava cheia de fumaça.
- Eu estava fazendo sanduíches de queijo grelhado - disse ela, agitando as mãos. - Eu recebi um telefonema do meu auxiliar de ensino e os deixei muito tempo na grelha.
Gray olhou para a pilha de sanduíches numa travessa. Cada um deles estava esturricado de um lado. Ele apalpou um deles. O queijo nem sequer derretera. Como é que sua mãe fazia aquilo? Como é que ela queimava os sanduíches e, no entanto, eles continuavam frios? Tinha de ser uma habilidade.
- Eles parecem ótimos - disse Gray.
- Chame o seu pai. - Ela sacudiu o pano de prato, tentando remover a fumaça. - Ele está lá nos fundos.
- Mais casas de pássaros?
A mãe dele virou os olhos.
Gray foi até a porta dos fundos, aberta, e inclinou-se para fora.
- Papai! O almoço está pronto.
- Já vou.
Gray voltou quando sua mãe colocava alguns pratos sobre a mesa.
- Você poderia servir um pouco de suco de laranja? - perguntou ela. - Eu preciso pegar um ventilador.
Gray foi até a geladeira, encontrou a caixa de Minute Maid e começou a encher os copos. Com a mãe ausente, ele deixou a caixa de lado e tirou um pequeno frasco de vidro do bolso traseiro.
Ele estava cheio até a metade com um pó branco-acinzentado. O resto do amálgama.
Com a ajuda de Monk, ele fizera algumas pesquisas sobre os pós no estado m, sobre como os compostos estimulavam sistemas endócrinos e pareciam ter um forte efeito melhorador no cérebro, aumentando a percepção, a acuidade... e a memória.
Gray despejou o conteúdo do frasco num dos copos de suco de laranja e usou uma colher de chá para mexê-lo.
Seu pai entrou pela porta dos fundos. Os cabelos estavam salpicados de pó de serra. Ele limpou as botas no tapete, fez um aceno de cabeça para Gray e jogou-se pesadamente numa cadeira.
- A sua mãe me disse que você vai voltar à Itália.
- Só por cinco dias - respondeu Gray, segurando os três copos entre as palmas das mãos e levando-os para a mesa. - Outra viagem de negócios.
- Claro... - Seu pai olhou para ele. - Então, quem é a garota?
Gray surpreendeu-se com a pergunta e despejou um pouco de suco de laranja. Ele nada dissera ao pai sobre Rachel. Não sabia o que dizer. Após o resgate, os dois haviam passado uma noite juntos em Avignon enquanto as coisas eram colocadas em ordem, enrascados em frente a uma pequena fogueira enquanto a tempestade se exauria. Eles não fizeram amor naquela noite, mas conversaram. Rachel explicara a história de sua família, de uma maneira vacilante, com algumas lágrimas. Ela ainda não podia mensurar seus sentimentos pela avó.
Finalmente, eles adormeceram nos braços um do outro.
De manhã, as circunstâncias e o dever separaram-nos.
Aonde aquilo levaria agora?
Ele estava voltando a Roma para descobrir.
Ele ainda telefonava diariamente, às vezes duas vezes por dia. Vigor estava se recuperando bem. Após o funeral do cardeal Spera, ele fora promovido ao cargo de prefeito dos Arquivos, para supervisionar o reparo dos danos causados pela Corte. Na semana anterior, Gray recebera uma nota de agradecimento de Vigor, mas também descobriu uma mensagem oculta no texto. Abaixo da assinatura do monsenhor, havia dois selos manchados com tinta, insígnias papais, imagens especulares um do outro, os símbolos gêmeos da Igreja de Tomé.
Parecia que a igreja secreta havia encontrado um novo membro para substituir o cardeal morto.
Ao saber disso, Gray remeteu a Vigor a chave de ouro de Alexandre, a verdadeira chave de ouro, que estava num cofre de segurança no Egito. Por cautela. Quem melhor do que ele para protegê-la? A chave falsa, usada para enganar Raoul, havia sido feita numa das muitas lojas em Alexandria conhecidas pela sua habilidade de falsificar antigüidades. Levara menos de uma hora, o trabalho fora executado enquanto Gray libertava Seichan do túmulo subaquático de Alexandre. Ele não ousara levar a verdadeira chave para a França, para a Corte do Dragão.
O depoimento e a confissão do general Rende enquanto estava em custódia provaram como isso teria sido perigoso. A litania de atrocidades e mortes estendia-se a décadas atrás. Com a confissão de Rende, sua seita da Corte do Dragão foi sendo erradicada aos poucos. Mas jamais se saberia se completamente.
Nesse ínterim, Rachel, que havia-se tornado mais cara a Gray, continuava a pôr sua vida em ordem. Com a morte de Raoul, ela e sua família herdaram o Castelo Sauvage, uma herança sangrenta na verdade. Mas pelo menos a maldição morrera junto com a avó de Rachel. Nenhum outro membro da família Verona ficara sabendo do sombrio segredo da avó. Para acomodar ainda mais as coisas, já havia planos de vender o castelo. A renda reverteria em favor das famílias das pessoas mortas em Colônia e Milão.
Portanto, as pessoas lentamente se recuperavam e seguiam em frente.
Em direção à esperança.
E talvez mais...
O pai de Gray suspirou e inclinou a cadeira da cozinha para trás.
- Filho, você tem estado muito bem-humorado ultimamente. Desde que regressou daquela viagem de negócios no mês passado. Apenas uma mulher faz um homem brilhar desse jeito.
Gray pôs os copos de suco de laranja sobre a mesa.
- Eu posso estar perdendo a memória - continuou seu pai -, mas não a visão. Portanto, me conte a respeito dela.
Gray olhou fixamente para o pai. Ele ouviu o adendo não dito.
Enquanto eu ainda posso lembrar.
O jeito informal de seu pai ocultava um estado de espírito mais profundo. Não sofrimento ou perda. Ele estava se esforçando por obter algo agora. No presente. Algum vínculo com um filho que talvez houvesse perdido no passado.
Gray congelou junto à mesa. Ele sentiu um antigo arroubo de raiva, um ressentimento mais antigo. Ele não o negou, mas deixou o intenso calor fluir através dele.
O pai dele devia ter percebido alguma coisa, porque pousou a cadeira no chão e mudou de assunto.
- Então, onde estão esses sanduíches?
Palavras ecoaram na cabeça de Gray. Cedo demais... tarde demais. Uma última mensagem para vivermos no presente. Para aceitarmos o passado e não precipitarmos o futuro.
Seu pai estendeu a mão para o copo de suco de laranja misturado com o amálgama.
Gray impediu-o, tampando o copo com a mão e erguendo-o.
- Que tal uma cerveja? Eu acho que vi uma Bud na geladeira.
Seu pai concordou com um aceno de cabeça.
- É por isso que eu amo você, filho.
Gray foi até a pia, despejou o suco de laranja no ralo e observou-o escoar num redemoinho.
Cedo demais... tarde demais.
Era hora de ele viver no presente. Ele não sabia quanto tempo ainda tinha com o pai, mas aproveitaria o que pudesse aproveitar e faria o melhor possível.
Ele encaminhou-se à geladeira, pegou duas garrafas de cerveja, abriu as tampas ao voltar, puxou uma das cadeiras da cozinha, sentou-se e pôs uma garrafa em frente ao pai.
- O nome dela é Rachel.



Nota do autor 



Obrigado por me acompanharem nesta viagem mais recente. Como antes, quis reservar este último momento para separar fato de ficção. Também espero que isto instigue os leitores a investigar mais. Para facilitar isto, preparei uma relação de alguns livros que inspiraram esta história.
Comecemos pelo início, pelo Prólogo. As relíquias dos Reis Magos estão de fato armazenadas num sarcófago de ouro na Catedral de Colônia, e a caravana que transportou os ossos de Milão para Colônia foi mesmo atacada de tocaia no século XII.
Passando para o primeiro capítulo, Super Black é um composto verdadeiro, desenvolvido no National Physical Laboratory [Laboratório Nacional de Física] da Grã-Bretanha. A Bola Oito é uma estrutura real no Forte Detrick (desculpem-me por tê-lo posto abaixo), e o colete de proteção líquido é - apesar de bastante surpreendente - real, desenvolvido pelo Laboratório de Pesquisas do Exército dos Estados Unidos.
Não entrarei nesses detalhes específicos no resto do romance. Apenas quis usar os exemplos acima para demonstrar que aquilo que talvez pareça absurdo neste romance pode ter alguma base em fatos. Para aqueles interessados em detalhes mais específicos, por favor, consultem minha página na Internet (jamesrollins.com).
A Corte Imperial do Dragão é de fato uma organização européia cujas origens remontam à Idade Média. É uma sociedade cerimonial e benevolente de aristocratas com diferentes graus de influência. A subseita sanguinária descrita neste livro é fruto da minha própria imaginação e não visa a depreciar nenhum membro atual da Corte.
Quanto ao núcleo do romance, seriam necessários volumes para discorrer sobre a verdade por trás dos metais no estado m e sobre o longo rastro por eles deixados através da história. Por sorte, este livro já foi escrito, acompanhando de maneira bastante detalhada o caminho desde os egípcios até os tempos modernos, incluindo os estranhos efeitos dos campos de Meissner, a supercondutividade e o magnetismo. Encorajo qualquer pessoa mesmo com um ligeiro interesse neste assunto a ler Lost Secrets of the Sacred Ark [Os segredos perdidos da arca sagrada], de Sir Laurence Gardner. Essa obra foi a minha própria bíblia pessoal para este romance.
Por falar em bíblias, se vocês tiverem curiosidade de saber sobre o conflito na Igreja cristã primitiva entre os seguidores dos apóstolos João e Tomé, dois excelentes livros sobre este tema foram escritos por Elaine Pagels, vencedora do National Book Award: Beyond Belief: The Secret Gospel of Thomas [Além da fé: o evangelho secreto de Tomé] e The Gnostic Gospels [Os evangelhos gnósticos].
Para os leitores interessados em mais detalhes sobre os Reis Magos e sobre uma possível irmandade que ainda hoje existe, recomendo Magi: the Quest for a Secret Tradition [Reis Magos: a busca de uma tradição secreta], de Adrian Gilbert.
Também recomendo When in Rome, a Journal of Life in Vatican City [Quando em Roma, um diário da vida na cidade do Vaticano], de Robert J. Hutchinson, obra à qual muito devo. É uma excelente e interessante fonte de compreensão do Vaticano e sua história.
Por fim, espero que meu romance entretenha, mas também suscite algumas perguntas nos leitores. Assim, encerrarei esta discussão de fato e ficção endossando o primeiro adágio da tradição gnóstica: buscar a verdade... sempre e de todas as formas. Parece um desfecho adequado a este romance. Portanto, citando Mateus, 7:7:
"Procura, e acharás."

 

 

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