Vigor entrou na Basílica de São Pedro pela porta da sacristia, flanqueada por dois soldados da Guarda Suíça. Ele mostrara sua identificação três vezes para obter acesso. Mas pelo menos a notícia estava filtrando-se lentamente através dos exames e controles minuciosos. Talvez ele não fora convincente o bastante quando telefonou vinte minutos atrás, dizendo de forma vaga que não sabia ao certo quando a Corte do Dragão atacaria o túmulo.
Mas agora as coisas estavam seguindo na direção certa.
Vigor passou pelo monumento a Pio VII e entrou na nave quase no meio da igreja. A basílica tinha a forma de uma cruz gigantesca, abrangendo 25.000m2, tão grande que dois times de futebol poderiam disputar uma partida só nos limites da nave.
E agora ela estava cheia. Cada banco estava lotado, da nave até o transepto. O espaço brilhava intensamente com milhares de velas e a iluminação de oitocentos lustres. O Coro Pontifício já cantava pelo meio o Exaudi Deus, adequado para um memorial, mas amplificado e ecoando tão alto quanto qualquer concerto de rock.
Vigor apressou-se, mas forçou-se a não correr. O pânico seria letal. Havia apenas um número limitado de saídas. Ele fez um aceno para que os dois soldados da Guarda Suíça esquadrinhassem o espaço à direita e à esquerda e alertassem seus companheiros de armas. Vigor tinha primeiro de tirar o papa dali e alertar a comitiva clerical que presidia a cerimônia para que lentamente evacuasse os paroquianos.
Ao entrar na nave, ele teve uma visão nítida do altar papal.
No outro lado do altar, o cardeal Spera estava sentado com o papa. Os dois haviam tomado assento sob o baldaquim de bronze de Bernini, um dossel de bronze dourado que cobria o altar central. Ele tinha trinta metros de altura e era sustentado por quatro maciças colunas em espiral, decoradas com ramos de oliveira e de loureiro de ouro dourado. O dossel era encimado por uma esfera de ouro arrematada por uma cruz.
Vigor avançava sorrateiramente. Ele não dispunha de tempo para vestir roupas apropriadas e ainda por cima estava malvestido. Alguns paroquianos ricos olharam de relance para ele, franzindo o cenho, mas depois notaram seu colarinho romano. Todavia, seus olhares eram de desdém. Um pároco pobre, devem ter pensado, pasmado diante do espetáculo.
Chegando à frente, virou-se para a esquerda. Daria a volta atrás do altar, onde poderia falar com o cardeal Spera em particular.
Quando passava pela estátua de São Longino, uma mão estendeu-se de um nicho encoberto pelas sombras. Ele voltou os olhos quando agarraram seu cotovelo. Tratava-se de um homem magricela da idade dele, de cabelos grisalhos, alguém que ele conhecia e respeitava, o Preffetto Alberto, o prefeito-chefe dos Arquivos.
— Vigor? — disse o prefeito. — Eu soube...
Um refrão especialmente alto do coro fez suas palavras desvanecer-se.
Vigor inclinou-se um pouco, entrando no nicho que abrigava a entrada. Ela conduzia às Grutas Sagradas.
— Sinto muito, Alberto. O quê...?
O aperto aumentou. Um pistola com silenciador foi pressionada com força contra as costelas dele.
— Nem mais uma palavra, Vigor — advertiu Alberto.
Escondido na cripta, Gray deitou-se de bruços, fora da vista da abertura. Sua pistola estava ao lado do laptop aberto, cuja tela ele havia escurecido e irradiava luz ultravioleta. Duas imagens dividiam a tela — uma proveniente da câmera voltada para o túmulo de São Pedro e a outra proveniente da câmera voltada para a necrópole principal.
A equipe de assalto dividiu-se em dois grupos. Enquanto um se pôs a patrulhar a necrópole na escuridão, o outro havia começado a usar as lanternas para apressar seu trabalho junto ao túmulo. Eles trabalhavam com rapidez e eficiência, cada homem sabendo o que fazer. Já haviam aberto o portão que bloqueava o acesso ao túmulo de São Pedro. Dois homens flanqueavam a famosa cripta, apoiados num dos joelhos. Eles estavam fixando duas grandes placas em cada lado.
O terceiro homem era imediatamente reconhecível pelo tamanho.
Raoul.
Ele carregava uma maleta de aço. Abriu-a e removeu um cilindro de plástico transparente, cheio de um pó cinzento familiar. O amálgama. Eles deviam ter reduzido o osso a pó. Raoul introduziu o cilindro pela abertura na parte inferior do túmulo de São Pedro.
Fazendo a ligação da bateria...
Com tudo no lugar, Gray não podia esperar mais. O dispositivo estava montado. Era a única oportunidade de eles surpreenderem a Corte do Dragão, talvez de expulsá-los dali, deixando seu equipamento para trás.
— Prontos para entrar em blecaute — sussurrou Gray. Sua mão moveu-se para o transmissor que controlava as bombas sônicas e luminosas. — Ponham fora de combate tantos quantos vocês puderem enquanto eles estiverem atordoados, mas não se arrisquem desnecessariamente. Continuem em movimento e permaneçam fora de vista.
Ele recebeu respostas afirmativas. Monk estava escondido perto da porta. Kat e Rachel haviam encontrado outra cripta, onde se esconderam. A equipe de assalto ainda não percebera a presença deles.
Gray observou os três homens saírem da área do túmulo, estendendo fios que conduziam ao dispositivo. Raoul fechou o portão, protegendo-se de qualquer perigo. No alto da plataforma de metal, ele pressionou uma das mãos contra o ouvido, claramente autorizando os homens a continuar.
— Vamos contar até cinco para o blecaute — sussurrou Gray. — Tampões de ouvido no lugar, óculos de proteção bem ajustados. Lá vamos nós.
Ele contou mentalmente. Cinco, quatro, três... Cego, pousou uma das mãos na pistola e a outra no laptop. Dois, um, zero.
Ele apertou o botão do laptop.
Embora ensurdecido pelos tampões de ouvido, ele pôde sentir o ruído surdo e profundo das bombas sônicas por trás do esterno. Contou até três para a luz intensa e ofuscante das granadas luminosas expirar. Tirou os óculos de proteção e em seguida os tampões de ouvido. Tiros ecoaram pela necrópole. Gray rolou para a entrada da cripta.
Bem em frente, a plataforma de metal estava vazia.
Ninguém à vista.
Raoul e seus dois asseclas haviam ido embora.
Para onde?
O som do tiroteio intensificou-se. Um combate armado estava sendo travado na necrópole escura. Gray lembrou-se de que Raoul havia recebido algum comunicado pouco antes de ele ativar as bombas sônicas e luminosas. Teria sido um aviso? De quem?
Gray esquadrinhou a área próxima. O mundo voltara a exibir nuanças de verde. Ele subiu os degraus da plataforma. Tinha de correr o risco de pegar o dispositivo e o amálgama.
Ao chegar ao topo, permaneceu abaixado, avançando devagar na ponta dos pés, apoiando-se com uma das mãos na plataforma, a pistola oscilando de um lado para outro a fim de cobrir todas as direções.
A luz de repente irradiou-se pela janela em frente, revelando Raoul de pé no outro lado, a alguns passos do túmulo. Após o ataque, o homem devia ter escapado pelo portão. Ele olhou Gray nos olhos e ergueu os braços. Em suas mãos estava o dispositivo de controle para acionar o amálgama.
Tarde demais.
Inutilmente, Gray apontou a arma e atirou.
Mas o vidro à prova de balas repeliu o projétil.
Raoul sorriu e girou a chave do dispositivo de controle.
O primeiro tremor atirou Vigor no ar. Ou talvez fosse o chão que tivesse desabado sob seus pés. De qualquer modo, ele foi lançado no ar.
Gritos ergueram-se por toda a basílica.
Enquanto caía, ele aproveitou a oportunidade para dar uma cotovelada bem no nariz do traidor Alberto, que cambaleara para trás. Em seguida, ele girou e desferiu um sólido golpe no pomo-de-adão de Alberto.
O homem caiu pesadamente, e a pistola desprendeu-se de seus dedos. Vigor pegou-a exatamente quando o próximo tremor se seguiu ao primeiro, fazendo-o cair de joelhos. Àquela altura, gritos estridentes irrompiam de toda a parte. Mas, por baixo de tudo aquilo, um som profundo e oco vibrou, como se um sino tão grande quanto a basílica tivesse sido tocado e todos eles estivessem aprisionados dentro dele.
Vigor lembrou-se da descrição feita pela testemunha que sobrevivera ao massacre em Colônia. Uma pressão como se as paredes se comprimissem dentro de si mesmas. Era o que estava acontecendo ali. Todos os barulhos — gritos, súplicas, orações — eram perfeitamente discerníveis, mas abafados não obstante.
Enquanto ele se erguia, o chão continuou a tremer. A superfície de mármore polido dava a impressão de ondular, parecendo aquosa. Vigor enfiou a pistola sob o seu cinto.
Ele virou-se para ir em auxílio do papa e do cardeal Spera.
À medida que avançava, sentiu antes de ver. Um súbito aumento de pressão, ensurdecedor, esmagador. Em seguida, abrandou. Da base das quatro colunas de bronze do baldaquim de Bernini, cascatas faiscantes de energia elétrica subiram em espiral, crepitando, produzindo estalidos sucessivos.
Elas precipitaram pelas colunas acima e pelo teto do dossel e encontraram-se na esfera de ouro. Ouviu-se o ruído de um trovão. O chão tornou a tremer provocando fissuras no piso de mármore. Da esfera do dossel, um relâmpago de brilho intenso irrompeu em ziguezague. Ele explodiu para cima, atingindo o lado inferior da cúpula de Michelangelo e dançando através dela. O chão tornou a tremer, com mais violência.
Rachaduras espalharam-se pela cúpula e placas de gesso despencaram em grande quantidade.
Tudo estava vindo abaixo.
Monk levantou-se rapidamente do chão. O sangue escorreu para dentro de um olho. Ele havia caído com o rosto de encontro à quina de uma cripta, quebrando os óculos de proteção, que penetraram cortando um supercílio.
Cego no momento, ele agachou-se e sacou a arma. A mira noturna de sua espingarda de combate o ajudaria a enxergar.
Enquanto ele esquadrinhava, o chão continuava a vibrar sob as pontas de seus dedos. O tiroteio havia cessado por completo após o primeiro tremor.
Monk estendeu a mão para a frente, vasculhando o chão perto da cripta. Sua espingarda não poderia ter ido parar longe.
Ele sentiu algo duro em contato com seus dedos.
Graças a Deus.
Estendeu a mão para a frente e percebeu seu erro. Não era a extremidade de sua arma, e sim a biqueira de uma bota.
Atrás de si, ele sentiu o cano quente de um rifle pressionar a base de seu crânio.
Merda.
Gray ouviu o ruído do disparo de um rifle através da necrópole. Era o primeiro tiro desde que os tremores haviam começado. Ele fora lançado da plataforma de metal e caíra perto do mausoléu onde escondera seu laptop. Ele havia se enroscado como uma bola, levando um golpe no ombro, mantendo os óculos de proteção e a pistola no lugar. Mas perdera o rádio.
Estilhaços de vidro espalhavam-se pela rua de pedra, arrancados da janela da plataforma pelo primeiro tremor violento.
Ele esquadrinhou o espaço ao redor. Acima dos poucos degraus da plataforma de metal, o fluxo de luz ainda se irradiava da área do túmulo. Ele tinha de saber o que estava acontecendo ali dentro. Mas não podia assaltar o portão sozinho. Pelo menos, não sem conhecer a configuração do terreno.
Assegurando-se de que ninguém o observava, ele tornou a entrar no mausoléu. As câmeras que havia instalado ainda deviam estar transmitindo.
Deitado de bruços, um braço protegendo a entrada com a pistola, ele ocupou-se com o laptop. A imagem da tela dividida resplandeceu. A câmera voltada para a necrópole principal nada revelava a não ser escuridão. Não se ouviram outros tiros. A necrópole voltara a ficar em profundo silêncio.
O que acontecera aos outros?
Sem respostas, ele se concentrou no lado oposto da tela. Nada parecia ter mudado. Gray avistou dois homens com rifles apontados para o portão, guardas de Raoul. Mas nem sinal do homenzarrão. O túmulo parecia inalterado. Mas a imagem, a imagem inteira na tela, pulsou ligeiramente, em sintonia com a vibração no piso de pedra. Era como se as câmeras estivessem captando alguma emanação produzida pelo dispositivo que explodira, um campo de energia irradiando-se.
Mas onde estava Raoul?
Gray estendeu a mão e retrocedeu o gravador digital por um minuto, parando no ponto em que Raoul ficou de pé perto do túmulo e girou a chave de controle de seu dispositivo.
Na tela, Raoul virou-se para ver o resultado. Luzes verdes cintilavam nas duas placas fixadas em cada lado do túmulo. O movimento atraiu sua atenção. Gray usou uma chave articulada para dar um zoom na pequena abertura do túmulo. O cilindro de amálgama em pó vibrou e em seguida ergueu-se do chão.
Levitando.
Gray começou a entender. Ele lembrou-se da descrição de Kat de como os pós no estado m demonstravam uma capacidade de levitar num forte campo magnético, agindo como supercondutores. Lembrou-se da descoberta por Monk de uma cruz magnetizada em Colônia. As placas com as luzes verdes deviam ser eletroímãs. O dispositivo da Corte aparentemente nada mais fazia do que criar um forte campo eletromagnético ao redor do amálgama, ativando o supercondutor no estado m.
Ele agora entendia a energia que pulsava para fora.
Ele sabia o que havia matado os paroquianos.
Oh! Deus...
Subitamente a imagem sacolejou com o primeiro tremor e parou por completo por um segundo, depois voltou ao normal, a perspectiva ligeiramente oblíqua agora que a câmera se deslocara. Na tela, Raoul afastava-se do túmulo de costas.
Gray não entendeu por quê. Parecia que nada estava acontecendo.
Ele então a avistou, meio oculta no clarão das lanternas. Na base do túmulo, uma parte do piso de pedra inclinou-se lentamente para baixo, formando uma rampa estreita que conduzia para baixo do túmulo. De baixo, uma luz de cobalto tremulava. Raoul ficou na frente da câmera, bloqueando a vista, e desceu a rampa, deixando apenas os dois guardas.
Foi ali que ele desapareceu.
Gray fez o vídeo avançar rapidamente de volta ao presente. Ele agora observava alguns fortes lampejos vindos de baixo, explosões ofuscantes de luz branca. Flashes de câmeras. Raoul estava gravando o que quer que encontrara lá embaixo.
Alguns segundos mais tarde, Raoul subiu a rampa.
O sacana exibia uma careta de satisfação.
Ele vencera.
Deitada de bruços no teto do mausoléu, Kat conseguira disparar um tiro, abatendo o pistoleiro que segurava um rifle apontado para a cabeça de Monk. Mas outro tremor a fez perder o tiro seguinte. O adversário restante não hesitou. Pela direção em que o corpo de seu companheiro caíra, ele deve ter adivinhado onde ela se escondia.
Ele abaixou-se, golpeou Monk com o punho de metal de uma faca de caça e em seguida puxou-o para cima, usando-o como escudo. Ele pressionou a lâmina contra o pescoço de Monk.
— Vamos, saia! — gritou o homem num inglês com forte sotaque, que parecia germânico. — Ou eu vou arrancar a cabeça deste cara.
Kat fechou os olhos. Era Cabul de novo por toda a parte. Ela e o capitão Marshall haviam entrado para salvar dois soldados capturados, colegas de equipe. Haviam ameaçado decapitá-los. Mas eles não tiveram escolha. Embora a probabilidade estivesse contra eles na proporção de três para um, eles fizeram um assalto, entrando em silêncio, com facas e baionetas. Mas ela não percebera um guarda, escondido num nicho. O estampido de um rifle, e Marshall tombou. Ela despachara o último guarda arremessando um punhal, mas era tarde demais para o capitão. Ela segurou seu corpo enquanto ele expirava, açoitado pela dor, os olhos fixos nela, suplicando, sabendo, não acreditando... e então o nada. Os olhos ficaram vítreos. Um homem cheio de vida, um homem terno, que se fora como fumaça.
— Saia agora! — gritou o homem através da necrópole.
— Kat? — Rachel subvocalizou para ela, tocando em seu cotovelo. A tenente dos Carabinieri estava deitada de bruços ao lado dela no teto.
— Fique escondida — disse Kat. — Tente chegar a uma das cordas que conduzem para fora daqui.
Aquele fora o plano original deles, pular de um teto para outro, chegar a uma das cordas usadas no assalto, que ainda pendiam do nível acima, dar o alarme e reunir reforços. Esse plano não podia fracassar.
Rachel também sabia disso.
Kat tinha sua própria tarefa. Ela rolou do teto do mausoléu e caiu agilmente em pé. Deslizou por duas fileiras, para ocultar sua posição anterior, deixando algum espaço para Rachel escapar, então andou até ficar exposta, a dez metros do homem que segurava Monk. Ergueu as mãos e jogou a pistola para o lado. Enlaçou os dedos e os pôs no alto da cabeça.
— Eu me rendo — disse ela friamente.
Atordoado e cego, Monk debateu-se, mas o homem que o segurava era treinado o bastante para mantê-lo subjugado, de joelhos, a ponta da faca e espetando o pescoço dele. Kat estudou os olhos de Monk enquanto avançava.
Três passos.
O combatente relaxou. Kat notou que a ponta de sua faca se deslocara.
Muito bom.
Ela mergulhou para a frente, puxando o punhal da bainha em seu pulso e usando seu próprio impulso para arremessar a lâmina. Esta voou e atingiu o olho do homem, que caiu para trás, levando Monk consigo.
Kat girou, puxando uma lâmina de sua bota. Ela arremessou-a na direção em que Monk havia indicado, acertando o que não passava da oscilação de uma sombra. Um terceiro combatente. Seguiu-se um grito breve. Um homem caiu das sombras, o pescoço trespassado pela lâmina.
Monk lutou para ficar em pé, os dedos escarafunchando e encontrando a faca do outro. Mas ele havia perdido os óculos de proteção, e Kat não tinha um par de reserva. Ela teria de guiá-lo.
Ela ajudou-o a levantar-se e pôs a mão dele em seu ombro.
— Fique comigo — sussurrou ela.
Ela virou-se quando uma lanterna brilhou à sua frente. Amplificado pelo dispositivo de visão noturna, o brilho súbito queimou na parte posterior de sua cabeça, ofuscante, doloroso.
Um quarto combatente.
Alguém que ela não notara.
Outra vez.
Gray havia percebido o jorro de luz no fundo da necrópole na tela de seu computador. Não podia ser coisa boa. E revelou-se que não era. Num lado da imagem na tela dividida, ele viu Raoul pressionar o rádio contra o ouvido, seu sorriso alargando-se. No outro lado, ele viu Kat e Monk marchando sob a mira de armas, os braços atados atrás das costas com fios de plástico amarelos.
Eles foram empurrados degraus acima até o alto da plataforma.
Raoul permaneceu junto ao túmulo. O chão continuava a tremer. Um de seus guarda-costas estava de pé ao seu lado; o outro havia descido a rampa.
Raoul ergueu a voz.
— Comandante Pierce! Tenente Verona! Mostrem-se agora ou estes dois morrerão!
Gray continuou onde estava. Ele não tinha força para dominar a situação. O resgate era impossível. E, se cedesse às exigências, ele estaria simplesmente entregando a própria vida. Raoul os mataria todos. Ele fechou os olhos, sabendo que estava condenando seus colegas de equipe.
Uma nova voz o fez abrir os olhos.
— Estou indo! — Rachel apareceu na segunda câmera, com as mãos para cima.
Gray observou Kat sacudir a cabeça. Ela também reconheceu a tolice do ato da tenente.
Dois homens armados pegaram Rachel e levaram-na para junto dos outros.
Raoul avançou, apontou uma pistola enorme para o ombro de Rachel e berrou ao ouvido dela:
— Esta é uma horse pistol, comandante Pierce! Calibre 56! Ela vai arrancar o braço dela! Mostre-se ou eu começarei a remover membros! Vou contar até cinco!
Gray viu o brilho de terror nos olhos de Rachel.
Será que ele poderia ver seus amigos serem brutalmente despedaçados? E, se o fizesse, o que ganharia? Enquanto ele se escondesse, Raoul e seus homens com certeza removeriam ou destruiriam qualquer pista que tivesse sido ocultada ali. As mortes dos outros teriam sido em vão.
— Cinco...
Ele olhou fixamente para o laptop, para Rachel...
Não havia escolha.
Reprimindo um gemido, ele sacudiu sua mochila e pegou um objeto que estava num bolso interno, escamoteando-o.
— Quatro...
Gray escureceu o laptop e fechou-o. Se não sobrevivesse, teria de confiar em que o computador serviria de testemunha dos eventos ali embaixo.
— Três...
Gray rastejou para fora do mausoléu, mas permaneceu escondido.
Deu a volta para ocultar sua posição.
— Dois...
Ele esgueirou-se para a rua principal.
— Um...
Ele enlaçou as mãos no alto da cabeça e ficou à vista.
— Estou aqui. Não atire!
Rachel observou Gray marchar até eles sob a mira de armas.
Pelo semblante duro de Gray, ela reconheceu seu erro. Ela supusera que sua rendição daria a ele tempo para agir, para fazer alguma coisa a fim de salvá-los, ou pelo menos a si mesmo. Ela não queria ser a única a ser deixada em paz na necrópole, a não interferir e ver os outros serem mortos.
E, embora Kat tivesse se entregado por causa de Monk, a mulher havia concebido um plano de resgate mal alinhavado, conquanto pudesse ter dado certo. Rachel, por outro lado, agira apenas com base na fé, depositando toda a sua confiança em Gray.
O líder da Corte do Dragão empurrou-a para o lado, indo ao encontro de Gray enquanto ele subia para a plataforma. Raoul ergueu a enorme pistola e apontou-a para o peito do comandante.
— Você tem me causado muitos problemas. — Ele ergueu a arma.
— E nenhuma quantidade de colete de proteção líquido vai deter esta bala.
Gray o ignorou.
Seus olhos pousaram em Monk, em Kat... e depois em Rachel.
Ele afastou os dedos acima da cabeça, revelando um ovo preto fosco, e disse uma palavra:
— Blecaute.
Gray contava com toda a atenção de Raoul e seus homens quando a granada luminosa explodiu acima de sua cabeça. Com os olhos fortemente contraídos, o clarão ofuscante ainda queimava através de suas pálpebras, uma explosão rubra.
Cego, ele abaixou-se e rolou para o lado.
Ele ouviu a detonação atordoante da pistola de Raoul.
Gray estendeu a mão para a sua bota e puxou sua Glock calibre 40.
Quando a luz ofuscante passou, ele abriu os olhos.
Um dos homens de Raoul jazia ao pé dos degraus com um buraco do tamanho de um punho no peito, causado pela bala destinada a Gray.
Raoul deu um rugido e mergulhou da plataforma, girando no ar, atirando às cegas contra a plataforma.
— Abaixem-se! — gritou Gray.
Balas de grosso calibre abriram buracos no aço.
Os outros ajoelharam-se. As mãos de Monk e de Kat ainda estavam atadas às costas.
Gray rolou e atingiu no tornozelo um pistoleiro atordoado, derrubando-o da plataforma. Abateu outro ao pé dos degraus.
Procurou Raoul. Para um homenzarrão, ele movia-se rápido. Raoul caíra fora de vista, mas ainda disparava contra eles de baixo, abrindo buracos no assoalho reticulado da plataforma.
Eles eram um alvo fácil.
Gray não tinha como calcular por quanto tempo os efeitos da granada luminosa durariam. Eles tinham de mexer-se.
— Voltem! — murmurou ele para os outros. — Pelo portão!
Gray disparou uma rajada de balas, cobrindo a retirada deles, e então seguiu atrás.
Raoul havia parado de atirar no momento, a fim de recarregar. Mas sem dúvida ele viria novamente no encalço deles com fúria mortal.
Ouviram-se gritos vindos mais do interior da necrópole. Outros pistoleiros. Vinham correndo em auxílio de seus camaradas em perigo.
E agora? Ele só tinha um pente de munição.
Um grito ergueu-se atrás dele.
Gray olhou para trás e viu Rachel cambalear para trás. Ela devia ter ficado meio atordoada pela bomba luminosa. Na escuridão, não viu a rampa em frente ao túmulo, deu alguns passos atrás, em direção a ela, e segurou no cotovelo de Kat, tentando deter sua queda.
Mas Kat também fora pega desprevenida.
Ambas tropeçaram na rampa e rolaram para baixo.
Os olhos de Monk encontraram os de Gray.
— Merda.
— Para baixo — disse Gray. Era o único abrigo. E, além disso, eles tinham de proteger qualquer pista que estivesse lá embaixo.
Monk foi na frente, tropeçando com os braços atados às costas.
Gray seguiu-o quando uma nova descarga começou. Pedaços de rocha eram arrancados da superfície do túmulo. Raoul havia recarregado. Ele tencionava mantê-los a distância.
Girando ao redor, os olhos de Gray pousaram na luz verde que se irradiava de uma das placas fixadas ao túmulo. Ainda ativada. Ele pensou rapidamente e tomou uma decisão. Apontou a pistola e disparou.
A bala partiu o emaranhado de fios que iam até a placa. A luz verde extinguiu-se.
Gray desceu correndo a rampa de pedra, notando a imediata cessação do tremor no chão. Ambos os ouvidos estalaram com um súbito alívio da pressão. O dispositivo havia entrado em curto-circuito.
Imediatamente um rangido alto soou sob os pés dele.
Gray mergulhou para a frente e caiu numa pequena caverna na base da rampa, uma cavidade natural, de origem vulcânica, comum nas colinas de Roma.
Atrás dele, a rampa moveu-se para cima, fechando-se.
Gray ficou em pé, mantendo a arma apontada. Como ele havia esperado, a ativação do dispositivo havia aberto o túmulo, e de igual modo sua desativação estava fechando-o. Do lado de fora, o fogo cerrado de Raoul continuava, despedaçando a rocha.
Tarde demais, pensou Gray com satisfação.
Com um último rangido de pedra sobre pedra, a rampa lacrou-se acima deles.
A escuridão instalou-se na caverna - mas não era total.
Gray virou-se.
Os outros haviam-se reunido em torno de uma laje de rocha negra metálica que estava no chão. Ela era iluminada por uma minúscula pira de chama azul em sua superfície, subindo como uma pequena coluna de fogo elétrico.
Gray aproximou-se. Mal havia espaço para que os quatro a circundassem.
— Hematita — disse Kat, identificando a rocha devido aos seus conhecimentos de geologia. Ela olhou da rampa lacrada para a laje. — Um óxido de ferro.
Ela abaixou-se e examinou as linhas prateadas gravadas em sua superfície, rios minúsculos contra um fundo negro, iluminados pelas chamas azuis.
Enquanto Gray observava, o fogo expirou lentamente, reduzindo-se a uma chama bruxuleante até extinguir-se.
Monk chamou a atenção deles para uma coisa mais imediata. Outro objeto brilhante.
— Venham aqui — disse ele.
Gray juntou-se a ele. Num canto da caverna escura estava um cilindro prateado familiar, com a forma de um haltere. Uma granada incendiária. Um timer fazia a contagem regressiva no escuro.
04:28.
04:27.
Gray lembrou-se de que um dos guarda-costas de Raoul havia entrado ali depois de o líder deles ter acabado de tirar fotografias. Ele havia plantado a bomba.
— Parece que eles pretendiam destruir esta pista — disse Monk. Ele abaixou-se, apoiando-se num dos joelhos, e examinou o dispositivo. — Puta merda, esta coisa é uma armadilha explosiva.
Gray olhou para a rampa lacrada. Talvez o fogo cerrado de Raoul um momento atrás não houvesse tido a intenção de fazê-los recuar, e sim de encurralá-los.
Ele voltou a olhar para a bomba.
Com a estrela flamejante na laje de hematita extinta, a única luz na caverna vinha do mostrador de cristal líquido do timer da granada incendiária.
04:04.
04:03.
04:02.
Vigor sentira o súbito alívio. O fluxo de fogo elétrico que estava despedaçando o gesso da cúpula dispersou-se em segundos. Sua energia dissipou-se como aranhas cerúleas fantasmagóricas.
Todavia, o caos reinava dentro da basílica. Poucos notaram o fim dos fogos de artifício. Metade dos paroquianos havia conseguido fugir para um local seguro, mas a aglomeração nas entradas havia retardado a evacuação de mais pessoas. A Guarda Suíça e a Polícia do Vaticano estavam fazendo o melhor possível para ajudar.
Algumas pessoas estavam escondidas embaixo dos bancos. Dezenas de outros paroquianos haviam sido atingidos pelo gesso que caía e estavam sentados com dedos ensangüentados pressionados contra ferimentos no couro cabeludo. Eles recebiam ajuda e consolo de um punhado de indivíduos corajosos, verdadeiros cristãos.
A Guarda Suíça tinha vindo resgatar o papa. Mas ele recusara-se a abandonar a igreja, agindo como o capitão daquele navio que ia a pique. O cardeal Spera permaneceu ao lado dele. Eles haviam-se retirado de sob o baldaquim flamejante e se abrigado na Capela Clementina, ao lado.
Vigor foi juntar-se a eles. Ele virou-se e correu os olhos pela basílica. O caos estava diminuindo lentamente. A ordem estava sendo restaurada. Vigor olhou para a cúpula atacada. Ela havia resistido — quer pela misericórdia de Deus, quer pelo gênio de Michelangelo como arquiteto.
Quando Vigor se aproximou, o cardeal Spera rompeu as fileiras da Guarda Suíça.
— Acabou?
— Eu... eu não sei — disse Vigor com sinceridade. Ele tinha uma preocupação maior.
Os ossos haviam sido ativados. Isso era óbvio.
Mas o que aquilo significava para Rachel e os outros?
Ouviu-se uma nova voz, emitida com um comando familiar. Vigor virou-se e deparou com um homem de ombros largos e cabelos grisalhos que vinha em sua direção, usando um uniforme preto e com o quepe embaixo do braço. O general Joseph Rende, amigo da família e chefe da Delegacia Parioli. Vigor agora entendia por que a ordem estava sendo restaurada. Os Carabinieri haviam reagido com toda a energia.
— O que Sua Santidade ainda está fazendo aqui? — perguntou Rende a Vigor, fazendo um reverente aceno de cabeça para o papa, que permanecia oculto no meio de um grupo de cardeais de batina preta.
Vigor não tinha tempo para explicar. Ele segurou no cotovelo do general.
— Nós temos de chegar lá embaixo. Aos Scavi.
Rende franziu o cenho.
— Eu acabei de receber uma notícia da delegacia... de Rachel... alguma coisa a respeito de um roubo lá embaixo. Então tudo isto aconteceu.
Vigor sacudiu a cabeça. Ele queria dar vazão a seu pânico gritando, mas falou com firmeza e calma.
— Reúna o máximo de homens possível. Nós temos de ir lá embaixo. Agora!
Em consideração a ele, o general agiu imediatamente, gritando ordens claras. Homens de uniforme preto rapidamente acorreram, portando armas de assalto.
— Por aqui! — disse Vigor, encaminhando-se para a porta da sacristia. A entrada dos Scavi não era longe, logo ali atrás. No entanto, Vigor não conseguia mover-se com bastante rapidez.
Rachel...
Gray ajoelhou-se com Monk. Ele havia libertado os pulsos de ambos os seus colegas de equipe com uma faca escondida no corpo de Kat. Monk havia tomado emprestado o dispositivo de visão noturna de Gray para ajudá-lo no exame da bomba.
— Você tem certeza de que não pode desativá-la? — perguntou Gray.
— Se eu dispusesse de mais tempo... de melhores instrumentos... de uma luz mais adequada... — Monk olhou para ele e sacudiu a cabeça.
Gray observou a contagem regressiva do timer na escuridão.
02:22.
02:21.
Gray ficou em pé e dirigiu-se a Kat e Rachel no outro lado. Kat estivera examinando o mecanismo da rampa com os olhos de engenheira. Ela notou a aproximação de Gray sem virar-se.
— O mecanismo é uma placa de pressão rudimentar — disse ela. — Uma espécie de interruptor de segurança. É preciso peso para manter a rampa fechada. Mas, se o peso é removido, a rampa se abre por meio de engrenagens e da ação da gravidade. Mas não faz sentido.
— O que você quer dizer?
— Tanto quanto posso afirmar, a placa ativadora fica sob o túmulo acima das nossas cabeças.
— O túmulo de São Pedro?
Kat fez que sim com a cabeça e levou Gray para o lado.
— Foi aqui que eles puxaram o pino estabilizador depois de baixarem a placa com o túmulo. Uma vez travada, a única maneira de abrir esta rampa é movendo o túmulo de São Pedro da placa. Mas isso não aconteceu quando a Corte do Dragão ativou seu dispositivo.
— Talvez tenha acontecido... — Gray pensou no cilindro contendo o amálgama supercondutor, em como ele havia levitado. — Kat, você se lembra da sua descrição do teste feito no Arizona — o teste com esses pós nos estado m? De que esses supercondutores, quando carregados, pesavam menos de zero?
Ela assentiu.
— Porque o pó na verdade estava fazendo levitar o recipiente que o continha.
— Eu acho que foi o que aconteceu aqui. Eu vi o cilindro com o amálgama levitar quando o dispositivo foi acionado. Era como se o campo ao redor do amálgama também afetasse o túmulo, como o recipiente da experiência. Embora de fato não estivesse erguendo a estrutura maciça, ele
simplesmente fez a estrutura de pedra pesar menos.
Os olhos de Kat arregalaram-se.
— Ativando a placa de pressão!
— Exatamente. Será que isso oferece alguma pista de como reabrir a rampa?
Kat olhou fixamente para o mecanismo por um instante e sacudiu a cabeça lentamente.
— Receio que não. A menos que possamos mover o túmulo.
Gray olhou de relance para o timer.
01:44.
Vigor desceu correndo a escada em espiral que conduzia aos Scavi. Ele não viu nenhum indício de invasão. A porta estreita surgiu à frente.
— Espere! — disse o general Rende atrás dele. — Deixe um dos meus soldados entrar primeiro. Se houver inimigos...
Vigor ignorou-o e precipitou-se para a porta. Ele chocou-se contra o ferrolho. Destrancado. Graças a Deus. Ele não possuía uma chave sobressalente.
Seu peso golpeou a porta. Mas ela resistiu.
O impacto lançou-o para trás, o ombro contundido.
Movendo o ferrolho com sacudidelas bruscas, ele tornou a empurrar.
A porta recusava-se a mover-se, como se estivesse bloqueada ou aparafusada do outro lado.
Vigor virou-se e encarou o general Rende.
— Alguma coisa está errada.
Rachel olhou fixamente, sem piscar, quando o timer marcou menos de um minuto.
— Deve existir outra saída — murmurou ela.
Gray sacudiu a cabeça contra aquela ilusão.
No entanto, Rachel recusou-se a desistir. Ela podia não conhecer engenharia e tampouco a arte de desativar uma bomba. Mas conhecia a história de Roma.
— Nenhum osso — afirmou ela.
Gray olhou para ela como se ela houvesse cometido um erro ao passar a marcha.
— Kat — disse ela —, você mencionou que alguém teve de puxar o pino estabilizador quando o mecanismo foi ajustado pela primeira vez, fechando a rampa. Certo?
Kat acenou afirmativamente com a cabeça.
Rachel olhou para os outros.
— Então ele teria ficado preso aqui embaixo. Onde estão os ossos?
Os olhos de Kat arregalaram-se.
Gray fechou um punho.
— Outra saída.
— Eu acho que acabei de dizer isso.
Rachel puxou uma carteia de fósforos de um de seus bolsos e acendeu um palito.
— Tudo o que nós temos de fazer é achar uma abertura. Algum túnel secreto.
Monk juntou-se a eles.
— Passe os fósforos para os outros.
Em segundos, cada um deles segurava uma chama bruxuleante. Eles procuraram algum sinal de uma brisa refrescante, um sinal revelador de uma saída oculta.
Rachel falou por nervosismo.
— A Colina do Vaticano recebeu esse nome por causa dos adivinhos que costumavam reunir-se aqui. Vates é o termo em latim para “aquele que vê o futuro”. Como muitos oráculos da época, eles se escondiam em cavernas como esta e anunciavam profecias.
Ela observava a chama em sua mão enquanto esquadrinhava a parede.
Nenhuma oscilação.
Rachel tentou não olhar para o timer, mas não conseguiu.
00:22.
— Talvez esteja lacrada com muita firmeza — murmurou Monk.
Rachel acendeu outro fósforo.
— É claro — continuou ela nervosamente — que a maioria dos oráculos eram charlatães. Como nas sessões espíritas da virada do século, o adivinho em geral tinha um cúmplice escondido num nicho ou túnel secreto.
— Ou embaixo da mesa — disse Gray. Ele havia se agachado junto à laje de hematita. Segurou seu fósforo bem próximo do chão e a chama bruxuleou, lançando sombras nas paredes.
— Rápido.
Não era necessário incitá-los.
00:15.
Aquele incentivo bastava.
Monk e Gray seguraram na borda da laje, com os joelhos flexionados, e suspenderam-na, as pernas retesando-se.
Kat abaixara-se, apoiando-se nas mãos, e estendera um fósforo.
— Existe um túnel estreito — disse ela com alívio.
— Entrem — ordenou Gray.
Kat acenou para que Rachel entrasse.
Rachel esgueirou-se em pé pelo buraco, descobriu um poço de pedra e entrou na abertura estreita. Não foi necessário o menor esforço, por causa do declive acentuado. Ela escorregou com o traseiro. Kat desceu em seguida, depois Monk.
Rachel esticou o pescoço, contando mentalmente. Restavam quatro segundos.
Monk escorou a laje com as costas. Gray mergulhou de cabeça por entre as pernas firmes do homem.
— Agora, Monk!
— Não precisa me dizer duas vezes.
Abaixando-se, Monk deixou o peso da laje empurrá-lo para dentro do túnel.
— Abaixe-se! Abaixe-se! — exortou Gray. — Abaixe-se o mais...
A explosão impediu-o de continuar.
Rachel, ainda meio virada, viu um jato de chamas laranja lamber em torno da borda da laje, procurando-os.
Monk praguejou.
Rachel ignorou a cautela e escorregou pelo poço, que se tornou cada vez mais íngreme. Ela logo estava deslizando com o traseiro por um túnel escuro, descontrolada.
A distância, ouviu-se um novo barulho.
O ronco de água em movimento.
Oh! não...
Quinze minutos depois, Gray ajudou Rachel a sair do rio Tibre. Eles tremiam na margem, batendo os dentes. Ele abraçou-a apertado e esfregou os ombros e as costas dela, aquecendo-a o melhor que podia.
— Eu... eu estou bem — disse ela, porém não se afastou, até se inclinou um pouco mais para ele.
Monk e Kat saíram com dificuldade do rio, encharcados e cheios de lama.
— É melhor nós nos movimentarmos — disse ela. — Isso ajudará a compensar a hipotermia até que possamos vestir roupas secas.
Gray pôs-se a caminho, subindo o barranco. Onde estavam? O canal de escoamento havia desembocado num riacho subterrâneo. Cegos, eles não tiveram outra opção a não ser segurar com força no cinto um do outro e seguir o fluxo do canal, esperando que ele os conduzisse em segurança a algum lugar.
Ele percebeu algumas obras de cantaria à medida que prosseguiam, o braço estendido para evitar obstáculos. Possivelmente uma antiga tubulação de esgoto ou um canal de drenagem, que desaguara num labirinto de canais. Eles continuaram a seguir o fluxo descendente até chegarem, afinal,
a um tanque resplandecente, sem dúvida iluminado pela luz refletida de além do túnel subterrâneo. Gray examinou o tanque e descobriu uma curta passagem de pedra que desaguava no rio Tibre.
Os outros seguiram-no, e logo todos eles estavam de novo sob as estrelas, com a lua cheia refletindo sua luz no rio. Eles haviam conseguido.
Monk espremeu a água das mangas de sua camisa, virando-se para olhar para o canal.
— Se eles tinham uma maldita porta traseira, por que toda esta história com os ossos dos Reis Magos?
Gray se fizera a mesma pergunta e tinha uma resposta.
— Ninguém poderia encontrar aquela porta traseira por acaso. Eu duvido se seria capaz de encontrar o caminho de volta através daquele labirinto. Esses alquimistas antigos esconderam a pista seguinte de tal maneira que aquele que a procurasse não só tivesse de solucionar o enigma, mas também precisasse ter um conhecimento básico do amálgama e de suas propriedades.
— Foi um teste — disse Rachel, tremendo à brisa ligeira. Ela também havia pensado naquela questão. — Uma prova de transição antes que se pudesse prosseguir.
— Eu teria preferido um teste de múltipla escolha — disse Monk acidamente.
Gray sacudiu a cabeça e subiu o barranco. Ele manteve o braço ao redor de Rachel, ajudando-a. Os tremores contínuos dela lentamente se reduziram a estremecimentos ocasionais.
Eles chegaram ao alto e encontraram-se à beira de uma rua. Havia um parque adiante. E mais longe, no alto da colina, a Basílica de São Pedro brilhava dourada contra o céu noturno. Lá em cima, sirenes soaram e luzes de emergência tremeluziam em nuanças de vermelho e azul.
— Vamos descobrir o que aconteceu — disse Gray.
— E descobrir um banho quente — resmungou Monk.
Gray não disse nada.
Uma hora mais tarde, Rachel estava sentada envolta num cobertor quente e seco. Ela ainda usava as roupas molhadas, mas pelo menos a caminhada até ali e as discussões acaloradas com uma série de guardas teimosos haviam-na aquecido consideravelmente.
Todos eles estavam abrigados no gabinete da Secretaria de Estado da Santa Sé. A sala era decorada com afrescos e mobiliada com cadeiras de pelúcia e dois longos divas de frente um para o outro. Na sala estavam sentados o cardeal Spera, o general Rende e um tio aliviadíssimo.
O tio Vigor sentava-se ao lado de Rachel, a mão dela pousada na dele. Ele não largara a sobrinha desde que eles transpuseram o cordão de isolamento e obtiveram acesso àquele santuário.
Eles haviam repetido o relato preliminar dos acontecimentos.
— E a Corte do Dragão desapareceu? — perguntou Gray.
— Até mesmo os corpos — disse Vigor. — Nós levamos dez minutos para transpor a porta de baixo. Tudo o que encontramos foram algumas armas abandonadas. Eles devem ter saído por onde entraram... pelo teto.
Gray concordou.
— Pelo menos os ossos de São Pedro estão seguros — disse o cardeal Spera. — Os danos à basílica e à necrópole podem ser reparados. Se nós tivéssemos perdido as relíquias... — Ele sacudiu a cabeça. — Nós temos uma grande dívida para com vocês.
— E ninguém que assistia ao serviço memorial morreu — disse Rachel com igual alívio.
O general Rende segurava uma pasta.
— Cortes e contusões, lesões, alguns ossos quebrados. A multidão em polvorosa causou mais dano do que a série de tremores.
O cardeal Spera girava distraidamente os dois anéis de ouro de seu posto, um em cada mão, movendo-se para a frente e para trás, num gesto nervoso.
— E a caverna embaixo do túmulo? O que vocês encontraram?
Rachel franziu o cenho.
— Havia...
— Estava muito escuro para ver com clareza — disse Gray, interrompendo-a. Ele olhou-a nos olhos, apologético mas firme. — Havia uma grande laje com alguma escrita nela, mas eu suspeito que a explosão da bomba tenha destruído a superfície dela. Nós jamais poderemos saber o que havia lá embaixo.
Rachel entendeu a relutância dele em falar com franqueza. O prefeito-chefe dos Arquivos havia desaparecido durante a confusão, escapado junto com a Corte do Dragão. Se o Preffetto Alberto trabalhava com a Corte, quem mais poderia fazer parte da conspiração? O cardeal Spera já havia prometido investigar os aposentos de Alberto e seus documentos particulares. Talvez isso levasse a algum lugar.
Enquanto isso, discrição era importante.
Gray pigarreou.
— Se este interrogatório sobre a missão terminou, eu apreciaria a hospitalidade do Vaticano em nos oferecer uma suíte.
— Certamente — o cardeal Spera levantou-se. — Eu pedirei a alguém que os acompanhe até lá.
— Eu também gostaria de dar mais uma olhada nos Scavi. Ver se deixamos escapar alguma coisa.
O general Rende acenou afirmativamente com a cabeça.
— Eu posso enviá-lo com um dos meus soldados.
Gray virou-se para Monk e Kat.
— Eu os encontrarei nos nossos aposentos.
Seus olhos moveram-se rapidamente, abrangendo Rachel e Vigor.
Rachel concordou com um aceno de cabeça, entendendo a ordem silenciosa.
Não falem com ninguém.
Eles conversariam mais tarde em particular.
Gray dirigiu-se para fora com o general Rende.
Rachel observou-o sair, lembrando-se daqueles braços em torno dela. Ela apertou o cobertor em torno dos ombros. Não era a mesma coisa.
Gray esquadrinhou o mausoléu onde havia escondido seu equipamento. Ele encontrou sua mochila onde a deixara, intacta.
Ao lado dele, um jovem carabiniere estava de pé com a mesma rigidez de seu uniforme engomado. As listras vermelhas que desciam de cada lado de seu uniforme eram tão retas quanto fios de prumo, a faixa branca formando um ângulo de 90° perfeito de um lado ao outro de seu peito. O emblema de prata no seu quepe parecia exageradamente polido.
Ele olhou para a mochila como se Gray tivesse acabado de furtá-la.
Gray não se deu o trabalho de explicar. Ele tinha coisas demais na cabeça. Embora sua mochila ainda estivesse ali, seu laptop desaparecera. Alguém o levara. Apenas uma pessoa furtaria o computador e deixaria a mochila para trás.
Seichan.
Irritado, Gray marchou para fora da necrópole. Enquanto era escoltado, mal notou os pátios, as escadas e os corredores. Sua mente trabalhava febrilmente. Depois de cinco minutos andando e subindo, ele entrou na suíte da equipe, deixando a escolta do lado de fora.
A sala principal era opulenta, com ouro em folha, móveis ornamentados e magníficas tapeçarias. Um imponente lustre de cristal ocupava inteiramente um céu abobadado pintado com nuvens e querubins.
Velas tremeluziam em candelabros de parede e de mesa.
Kat estava sentada numa das cadeiras. Vigor noutra. Eles estavam conversando quando ele entrou. Usavam grossos roupões brancos, como se aquela fosse uma suíte do Ritz.
— O Monk está no banho — disse Kat, acenando com a cabeça para um lado.
— E a Rachel também — acrescentou Vigor, apontando um braço para o outro lado. Todos os quartos deles partilhavam aquela sala de estar.
Kat notou a mochila dele.
— Você encontrou parte do seu equipamento.
— Mas não o laptop. Eu acho que Seichan o pegou.
Kat ergueu uma sobrancelha.
Gray sentia-se sujo demais para sentar-se em qualquer das cadeiras, por isso andava de um lado para outro da sala.
— Vigor, você pode nos tirar daqui de manhã sem sermos vistos?
— Eu... acho que sim. Se for necessário. Mas por quê?
— Eu quero que nós sumamos do mapa o mais rápido possível de novo. Quanto menos pessoas souberem do nosso paradeiro, melhor.
Monk entrou na sala.
— Nós vamos a algum lugar? — Ele escarafunchava o ouvido com um dedo. Um band-aid tampava o corte acima de seu olho. Ele também usava um roupão branco, que deixara aberto. Pelo menos havia uma toalha ao redor de sua cintura.
Antes que Gray pudesse responder, a porta se abriu no lado oposto. Rachel entrou descalça e envolta num roupão, com a faixa amarrada de tal maneira que o caimento dele era perfeito. Mas, quando ela se aproximou do grupo, o roupão ainda exibia a panturrilha e grande parte da coxa. Ela acabara de lavar os cabelos, e eles ainda estavam molhados e desgrenhados.
Ela ajeitou-os com os dedos, mas Gray gostava mais deles selvagens.
— Comandante? — perguntou Monk, caindo pesadamente numa cadeira. Ele levantou as pernas, ajustando sua toalha de maneira adequada.
Gray engoliu em seco. O que eu estava dizendo?
— Aonde nós vamos? — Kat o fez lembrar-se.
— Encontrar a próxima pista nesta jornada — disse Gray, pigarreando, endurecendo a voz. — Depois do que nós vimos esta noite, nós vamos querer que a Corte do Dragão obtenha seja qual for o conhecimento que se encontra no fim desta caça ao tesouro?
Ninguém disse nada.
Monk tocou no curativo.
— Que diabo aconteceu esta noite?
— Talvez eu tenha uma idéia. — As palavras de Gray atraíram toda a atenção deles. — Algum de vocês está familiarizado com os campos de Meissner?
Kat ergueu um pouco uma das mãos.
— Eu ouvi esse termo usado em referência aos supercondutores.
Gray confirmou com um aceno de cabeça.
— Quando um supercondutor carregado é exposto a um forte campo eletromagnético, desenvolve-se um campo de Meissner. A força desse campo é proporcional à intensidade do campo magnético e à quantidade de força no supercondutor. É o campo de Meissner que permite que os supercondutores levitem num campo magnético. Mas outros efeitos, mais estranhos, foram vistos durante a manipulação de supercondutores, postulando outros efeitos dos campos de Meissner. Explosões de energia inexplicáveis, anti-gravidade real, até mesmo distorções no espaço.
— Foi isso que aconteceu na basílica? — perguntou Vigor.
— A ativação do amálgama, tanto aqui quanto em Colônia, foi efetuada apenas com um par de grandes placas eletromagnéticas.
— Grandes ímãs? — perguntou Monk.
— Ajustados num registro de energia específico para liberar o poder latente no supercondutor no estado m.
Kat mexeu-se.
— E a energia liberada — esse campo de Meissner — fez o túmulo levitar... ou pelo menos o fez pesar menos. Mas, e a tempestade elétrica no interior da basílica?
— Eu posso apenas supor. O dossel de bronze e ouro sobre o altar papal fica bem acima do túmulo de São Pedro. Eu acho que as colunas de metal do dossel agiram como hastes gigantes de pára-raios. Elas absorveram parte da energia gerada abaixo e fizeram-na explodir para cima.
— Mas por que esses antigos alquimistas haveriam de querer danificar a basílica? — perguntou Rachel.
— Eles não queriam danificá-la — respondeu Vigor. — Eles não fizeram isso. Lembre-se, nós estimamos que estas pistas foram deixadas em algum ponto do século XIII.
Gray acenou afirmativamente com a cabeça.
Vigor fez uma pausa e em seguida cofiou a barba.
— Na verdade, teria sido fácil construir a câmara secreta durante o mesmo período. Na maior parte das vezes, o Vaticano estava vazio. Ele só se tornou a sede do poder pontifício em 1377, quando os papas regressaram do exílio de um século na França. Antes disso, o Palácio Laterano, em Roma, fora a sede pontifícia. Portanto, o Vaticano não teve importância e passou despercebido durante o século XIII.
Vigor virou-se para Rachel.
— Por isso a tempestade elétrica não poderia ser culpa dos alquimistas. O baldaquim de Bernini só foi instalado no século XVII, séculos depois de as pistas terem sido postas aqui. A tempestade tinha de ser um acidente infeliz.
— Ao contrário do que aconteceu em Colônia — contrapôs Gray. — A Corte do Dragão contaminou aquelas hóstias de propósito com ouro no estado m. Eu acho que eles usaram os paroquianos como cobaias em alguma experiência desprezível. O primeiro teste de campo. A fim de avaliarem a força do amálgama, de validarem suas teorias. O ouro no estado m ingerido agiu como o dossel de bronze aqui. Ele absorveu a energia do campo de Meissner, eletrocutando os paroquianos de dentro para fora.
— Todas aquelas mortes — disse Rachel.
— Nada mais que uma experiência.
— Nós temos de detê-los — afirmou Vigor com a voz frágil.
Gray assentiu.
— Mas primeiro nós temos de descobrir aonde ir primeiro. Eu memorizei o desenho. Eu posso esboçá-lo.
Rachel olhou para ele e em seguida para o tio.
— O que foi? — perguntou Gray.
Vigor mudou de posição e puxou para fora um pedaço de papel dobrado. Ele inclinou-se para a frente e alisou-o em cima da mesa. Tratava-se de um mapa da Europa.
Gray franziu o cenho.
— Eu reconheci as linhas traçadas na pedra — disse Rachel. — O minúsculo delta do rio revelou o segredo, sobretudo se você vive ao longo do Mediterrâneo. Vejam.
Rachel inclinou-se para a frente e formou um retângulo com os dedos, como se estivesse avaliando uma fotografia, e o colocou sobre a extremidade leste do mapa.
Gray olhou para baixo, a exemplo dos outros. A seção da costa abrangida pelo retângulo era um equivalente grosseiro das linhas gravadas na laje de hematita.
— É um mapa — disse ele.
— E a estrela cintilante... — Os olhos de Rachel encontraram os seus.
— Deve ter havido um minúsculo depósito de ouro no estado m incrustado na laje. Ele absorveu a energia do campo de Meissner e entrou em ignição.
— Marcando um lugar no mapa — Rachel pôs um dedo no papel.
Gray inclinou-se um pouco mais. Na ponta de seu dedo estava uma cidade, na desembocadura do Nilo, onde ele desaguava no Mediterrâneo.
— Alexandria — leu Gray. — No Egito.
Ele ergueu os olhos, o rosto a alguns centímetros do de Rachel. Os olhos deles entrelaçaram-se quando ele a olhou. Ambos congelaram por um instante. Os lábios dela abriram-se ligeiramente, como se ela fosse dizer alguma coisa mas tivesse esquecido as palavras.
— A cidade egípcia era um importante bastião do estudo gnóstico — disse Vigor, quebrando o encantamento. Outrora a sede da famosa Biblioteca de Alexandria, um vasto depósito do conhecimento antigo. Fundada pelo próprio Alexandre, o Grande.
Gray empertigou-se.
— Alexandre. Você mencionou que ele foi uma das figuras históricas que sabiam a respeito do pó branco de ouro.
Vigor confirmou com um aceno de cabeça, os olhos brilhantes.
— Outro mago — disse Gray. — Ele poderia ser o quarto Rei Mago que devemos procurar?
— Não posso dizer com certeza — respondeu Vigor.
— Eu posso — respondeu Rachel, a voz segura. — O verso no enigma... ele refere-se especificamente a um rei perdido.
Gray lembrou-se do enigma do peixe. Onde ele se asfixia, ele flutua na escuridão e fita o rei perdido.
— E se ele não fosse apenas alegórico? — insistiu Rachel. — E se ele fosse literal?
Gray não entendeu, mas os olhos de Vigor arregalaram-se.
— É claro! — exclamou ele. — Eu devia ter pensado nisso.
— Em quê? — perguntou Monk.
Rachel explicou:
— Alexandre, o Grande, morreu muito jovem, aos 33 anos. Seu funeral foi bem documentado no registro histórico. Seu corpo ficou exposto em câmara ardente em Alexandria. — Ela bateu de leve no mapa. — Só que... só que...
Vigor concluiu por ela, excitadíssimo.
— Seu túmulo desapareceu.
Gray olhou fixamente para o mapa.
— Transformando-o no rei perdido — murmurou ele. Seu olhar percorreu a sala. — Então nós sabemos aonde ir em seguida.
A imagem no laptop brilhou mais uma vez, sem o som, apenas com o vídeo. Da aparição da Corte do Dragão até a fuga da equipe da Sigma. Continuava a não haver respostas. O que quer que estivesse sob o túmulo de São Pedro permanecia um mistério.
Desapontado, ele fechou o laptop e afastou-se de sua escrivaninha.
O comandante Pierce não fora inteiramente honesto ao fazer o relatório. Fora fácil perceber sua mentira. O comandante descobrira alguma coisa no túmulo.
Mas o que ele descobrira? O que — e até que ponto — ele sabia?
O cardeal Spera recostou-se, girando o anel de ouro no dedo.
Estava na hora de pôr um fim a tudo aquilo.
Eles estariam no Egito em duas horas.
A bordo do jato particular, Gray examinou o conteúdo de sua mochila. O diretor Crowe havia conseguido provê-los com novos suprimentos e armas. Até mesmo laptops. O diretor também havia tomado a providência de transferir o avião Citation X fretado da Alemanha para o Aeroporto Internacional Leonardo da Vinci, em Roma.
Gray consultou o relógio. Fazia meia hora que eles haviam decolado.
As duas horas restantes até a aterrissagem em Alexandria eram todo o tempo de que o grupo dispunha para elaborar estratégias. As poucas horas livres em Roma tinham pelo menos ajudado a revigorar o grupo. Eles haviam saído antes do amanhecer, esgueirando-se para fora da Cidade do Vaticano sem alertar ninguém de sua partida.
O diretor Crowe preparara um disfarce extra do seu lado, estabelecendo um plano de vôo simulado para Marrocos. Ele então usara seus contatos no Escritório Nacional de Reconhecimento para mudar os sinais de chamada deles em pleno vôo quando eles rumassem para o Egito. Foi o
melhor que puderam fazer para encobrir as pistas deles.
Agora só restava um detalhe para resolver.
Por onde começar a busca deles em Alexandria?
Para responder a essa pergunta, a cabine de passageiros da aeronave havia sido transformada numa comissão de peritos em pesquisas. Kat, Rachel e Vigor debruçavam-se sobre computadores. Monk estava na cabine do piloto, coordenando o transporte e a logística no solo. Ele já havia desmontado e inspecionado sua nova espingarda de combate, a qual mantinha consigo. Conforme dissera:
— Eu me sinto nu sem ela. E, creiam-me, vocês não iam querer isso.
Nesse ínterim, Gray tinha sua própria investigação com que se ocupar. Embora ela não estivesse diretamente relacionada com o problema imediato, ele queria pesquisar mais o mistério daqueles supercondutores no estado m.
Mas primeiro...
Ele levantou-se e foi até o trio de pesquisadores.
— Algum progresso? — perguntou ele.
Kat respondeu:
— Nós dividimos nossas tarefas. Estamos esquadrinhando todas as referências e documentos desde antes do nascimento de Alexandre até a sua morte e o desaparecimento subseqüente do seu túmulo.
Vigor esfregou os olhos. De todos, ele era quem menos havia dormido. Uma soneca de apenas uma hora. O monsenhor tomara a si a tarefa de fazer mais pesquisas em meio à grande quantidade de documentos dos Arquivos do Vaticano. Ele tinha certeza de que o prefeito-chefe das bibliotecas, o traidor Dr. Alberto Menardi, era o mentor que solucionava os enigmas para a Corte do Dragão. Vigor havia esperado seguir as pegadas do prefeito, a fim de obter algum vislumbre extra. Mas descobrira pouca coisa.
Kat prosseguiu:
— Alexandre ainda está cercado de mistério. Até mesmo seu parentesco. Sua mãe chamava-se Olímpia. Seu pai era o rei Filipe II da Macedônia. Mas há certa discordância aqui. Alexandre acabou acreditando que seu pai era um deus chamado Zeus-Amon e que ele próprio era um semideus.
— Não exatamente humilde — disse Gray.
— Ele era um homem de muitas contradições — disse Vigor. — Propenso a acessos de fúria causados pela embriaguez, mas ponderado em suas estratégias. Ardente em suas amizades, mas homicida quando contrariado. Ele flertava com a homossexualidade, mas se casou com uma dançarina persa e com a filha de um rei persa, neste último caso, numa tentativa de unir a Pérsia à Grécia. Mas voltemos ao seu parentesco. Era notório que seu pai e sua mãe odiavam um ao outro. Alguns historiadores acreditam que Olímpia possa ter estado envolvida no assassinato do rei Filipe. Interessante é que outro escritor, Pseudo-Calístenes, afirmou que Alexandre não era filho de Filipe, e sim de um feiticeiro egípcio da corte, chamado Nectanebo.
— Um feiticeiro... como os magos? — Gray entendeu a inferência.
— Quem quer que na verdade tenham sido seus pais — prosseguiu Kat —, ele nasceu em 20 de julho de 356 a.C.
Vigor deu de ombros.
— Mas mesmo isso talvez não seja verdade. Nessa mesma data, o Templo de Ártemis em Éfeso queimou por completo. Uma das Sete Maravilhas do mundo antigo. O historiador Plutarco escreveu que a própria Ártemis estava ―ocupada demais, cuidando do nascimento de Alexandre, para enviar ajuda ao seu templo ameaçado‖. Alguns estudiosos acreditam que a escolha da data pode ser propaganda, que a verdadeira data do nascimento de Alexandre foi mudada para coincidir com esse evento portentoso, retratando o rei como uma fênix renascendo das cinzas.
— E foi mesmo um renascimento — disse Kat. — Alexandre viveu apenas 33 anos, mas conquistou a maior parte do mundo conhecido durante sua curta vida. Ele derrotou o rei Dario da Pérsia, depois seguiu para o Egito, onde fundou Alexandria, e depois para a Babilônia.
Vigor encerrou:
— Por fim, ele se moveu para o leste, até a índia, a fim de conquistar a região do Punjab. A mesma região onde São Tome acabaria por batizar os Três Reis Magos.
— Unindo o Egito e a Índia — observou Gray.
— Ligando uma linha de conhecimento antigo — disse Rachel, afastando-se um pouco de seu laptop. Ela não ergueu os olhos, ainda concentrados em sua pesquisa, mas se livrou de uma cãibra nas costas.
Gray gostava da maneira como ela se espreguiçava, lentamente, sem pressa.
Talvez ela tenha percebido seu exame. Sem virar a cabeça, apenas os olhos dela moveram-se rapidamente na direção dele. Ela gaguejou por um momento, desviando o olhar.
— Ele... Alexandre até procurou os eruditos indianos, passando um tempo significativo em discussões filosóficas. Ele se interessava muito por novas ciências e foi discípulo de Aristóteles.
— Mas sua vida chegou abruptamente ao fim — continuou Kat, atraindo de novo a atenção de Gray. — Ele morreu em 323 a.C, em Babilônia, sob circunstâncias misteriosas. Alguns dizem que ele morreu de causas naturais, mas outros acreditam que foi envenenado ou contraiu uma praga.
— Também se diz — acrescentou Vigor — que, no seu leito de morte, no palácio real de Babilônia, ele olhou para fora, para os famosos Jardins Suspensos da cidade, uma torre de terraços esculpidos, jardins suspensos e cascatas. Outra das Sete Maravilhas do mundo antigo.
— Quer dizer então que a vida dele começou com a destruição de uma e terminou com a destruição de outra.
— Isso talvez seja apenas alegórico — admitiu Vigor. Ele cofiou a barba embaixo do queixo. — Mas a história de Alexandre parece estar estranhamente ligada às Sete Maravilhas. Até a primeira compilação das Sete Maravilhas foi feita por um bibliotecário alexandrino chamado Calímaco de Cirene no século III a.C. A imensa estátua de bronze em Rodes, outra das Maravilhas, o Colosso de trinta metros de altura que abarcava com as pernas abertas o porto da ilha e segurava uma tocha acesa, como a Estátua da Liberdade de vocês, teve como modelo Alexandre, o Grande. Em seguida vem a Estátua de Zeus em Olímpia, uma figura carrancuda de ouro e mármore com 12 metros de altura. De acordo com a afirmação do próprio Alexandre, possivelmente seu verdadeiro pai. E não pode restar dúvida de que Alexandre visitou as Pirâmides de Gizé. Ele passou uma década inteira no Egito. Portanto, as impressões digitais de Alexandre parecem estar em todas essas obras-primas do mundo antigo.
— Isso pode ter alguma importância? — indagou Gray.
Vigor deu de ombros.
— Eu não posso dizer. Mas a própria Alexandria abrigou um dia outra das Sete Maravilhas, a última a ser construída, embora não mais exista.
O Farol de Alexandria, na ilha de Faros. Ele erguia-se numa península que se estendia pelo porto de Alexandria adentro, dividindo a baía em duas partes. Era uma torre com três patamares de blocos de calcário, unidos por chumbo derretido. Com cerca de 120 metros de altura, era mais alta do que a Estátua da Liberdade. No alto do farol, uma chama ardia num braseiro, amplificada por um espelho de ouro. Sua luz orientava os pilotos de navios a uma distância de até cinqüenta quilômetros. Ainda hoje, o próprio nome farol remonta a essa Maravilha. Em francês, phare. Em espanhol e italiano, faro.
— E de que forma isto se relaciona com a nossa busca do túmulo de Alexandre? — perguntou Gray.
— Nós fomos direcionados para Alexandria — disse Vigor — à procura de pistas deixadas por uma antiga sociedade de magos. Eu não posso deixar de pensar que o farol, esse extraordinário símbolo de uma luz que guia, seja importante para o nosso grupo. Também existe uma lenda em torno do Farol de Faros: de que a luz dourada era tão potente que podia queimar navios a distância. Talvez isso aluda a alguma fonte desconhecida de poder.
Vigor afinal suspirou e sacudiu a cabeça.
— Mas eu não sei como tudo isto se encadeia.
Gray apreciava a inteligência do monsenhor, mas precisava de informações mais concretas, alguma coisa para procurar assim que eles chegassem a Alexandria.
— Vamos então direto ao cerne do mistério. Alexandre morreu em Babilônia. O que aconteceu depois disso?
Kat disse em voz alta, inclinada sobre o seu laptop, correndo um dedo por uma lista que havia compilado:
— Existem muitas referências históricas ao traslado de seu corpo de Babilônia a Alexandria. Uma vez sepultado em Alexandria, tornou-se um santuário para dignitários visitantes, entre eles Júlio César e o imperador Calígula.
— Durante esse período — acrescentou Vigor —, a cidade foi governada por um dos ex-generais de Alexandre, Ptolomeu, e seus descendentes. Eles fundariam a Biblioteca de Alexandria, transformando a cidade
num importante local de estudos intelectuais e filosóficos, atraindo eruditos de todo o mundo conhecido.
— E o que aconteceu com o túmulo?
— Isso é que é intrigante — disse Kat. — O túmulo era supostamente um sarcófago de ouro maciço. Mas noutras referências, incluindo o principal historiador da época, Estrabão, o túmulo é descrito como sendo feito de vidro.
— Talvez vidro de ouro — disse Gray —, um dos estados do pó no estado m.
Kat acenou positivamente com a cabeça.
— No início do século III d.C., Sétimo Severo fechou o túmulo à visitação, preocupado com a segurança dele. Também é interessante observar que ele colocou muitos livros secretos na câmara mortuária. Eis uma citação. — Ela inclinou-se para o laptop. — “Portanto, ninguém podia ler os livros nem ver o corpo” — Ela afastou-se e olhou de relance para Gray.
— Isso claramente prova que alguma coisa de grande importância estava escondida nesse túmulo. Algum repositório de arcanos secretos que Sétimo receava que fosse perdido ou roubado.
Vigor explicou.
— Ocorreram muitos ataques a Alexandria do século I ao século III. Eles se tornaram cada vez piores. O próprio Júlio César queimou uma grande parte da Biblioteca de Alexandria para precaver-se de um ataque no porto. Esses ataques continuaram, culminando na destruição e dissolução da biblioteca no século VII. Eu posso entender por que Sétimo quis proteger uma parte da biblioteca, ocultando-a. Ele deve ter escondido os pergaminhos mais importantes ali.
— E não eram apenas agressores militares que ameaçavam a cidade — acrescentou Kat. — Uma série de pragas atingiu a cidade. Terremotos freqüentes danificaram partes significativas de Alexandria. Uma parte inteira da cidade caiu na baía no século IV, destruindo o Bairro Real Ptolomaico, inclusive o palácio de Cleópatra, e grande parte do Cemitério Real. Em 1996, um explorador francês, Franck Goddio, descobriu seções inteiras dessa cidade perdida no Porto Oriental de Alexandria. Outro arqueólogo, Honor Frost, acredita que talvez tenha sido esse o destino do túmulo de Alexandre, submerso numa sepultura aquática.
— Eu não estou convencido disso — disse Vigor. — Existem muitos boatos sobre a localização desse túmulo, mas a maioria dos documentos históricos situa o túmulo no centro da cidade, longe da orla marítima.
— Até, como eu disse, Sétimo Severo fechá-lo — argumentou Kat.
— Talvez ele o tenha transferido.
Vigor franziu o cenho.
— De qualquer modo, através dos séculos subseqüentes, caçadores de tesouros e arqueólogos esquadrinharam Alexandria e seus arredores. Mesmo hoje em dia, existe um fervor, parecido com a corrida do ouro, de encontrar esse túmulo perdido. Alguns anos atrás, uma equipe de geofísicos alemães usou um radar penetrante no solo para mostrar que o subsolo em toda Alexandria está repleto de anormalidades e cavidades. Existem muitos lugares onde ocultar um túmulo.Nós levaríamos décadas para explorar todos eles.
— Nós não dispomos de décadas — disse Gray. — Eu nem sequer
sei se nós dispomos de 24 horas.
Frustrado, ele andou de um lado para outro da estreita cabine de passageiros.Ele sabia que a Corte do Dragão dispunha das mesmas informações secretas que eles. Eles não levariam muito tempo para se darem conta de que a laje de hematita sob o túmulo de São Pedro era um mapa no qual estava assinalada Alexandria.
Ele virou-se para o trio.
— Então, onde procuramos primeiro?
— Talvez eu tenha um palpite — disse Rachel, falando pela primeira vez depois de algum tempo. Ela estivera digitando furiosamente em seu teclado e olhando periodicamente para a tela com os olhos apertados. — Ou dois.
Todas as atenções voltaram-se para ela.
— Existe uma referência que remonta ao século IX, testemunho do imperador de Constantinopla, de que algum — eu agora estou citando — “tesouro fabuloso” estava oculto dentro ou embaixo do Farol de Faros. De fato, o califa que governava Alexandria naquela época demoliu metade do farol à procura dele.
Gray percebeu que Vigor se mexeu ao ouvir as palavras dela. Ele se lembrou do interesse do monsenhor pelo farol. Rachel devia ter sido influenciada pelo tio e procurado pistas.
— Outros periodicamente continuaram a empreender a busca, mas o farol tinha uma importância estratégica para o porto.
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo, os olhos brilhando de excitação.
— Que melhor lugar para esconder alguma coisa que você não quer que seja descoberta do que sob uma construção importante demais para se pôr abaixo?
— Então tudo chegou ao fim no dia 8 de agosto de 1303, quando um terremoto fortíssimo sacudiu o Mediterrâneo oriental. O farol foi destruído, caindo no mesmo porto onde as ruínas ptolomaicas haviam desabado.
— O que foi feito do sítio original? — perguntou Gray.
— Ele variou com o passar dos séculos. Mas, no século XV, um sultão mameluco construiu na península um forte que está de pé até hoje: o Forte de Qait Bey. Parte de sua construção inclui os blocos de calcário originais que formavam o farol.
— E, se o tesouro jamais foi encontrado — prosseguiu Vigor —, ele ainda deve estar lá... embaixo do forte.
— Se é que ele algum dia existiu — advertiu Gray.
— Esse é o lugar onde deveríamos começar a procurar — disse Vigor.
— E o que nós fazemos? Batemos à porta e perguntamos a eles se permitem que façamos escavações sob o forte?
Kat propôs uma solução mais prática.
— Nós entramos em contato com o Escritório Nacional de Reconhecimento.Eles têm acesso a satélites com a capacidade de radares penetrantes no solo. Podemos pedir-lhes que façam uma varredura do local. Podemos procurar quaisquer anormalidades ou cavidades, como os geofísicos alemães fizeram na cidade. Isso poderia ajudar a localizar o sítio onde devemos iniciar nossa busca.
Gray concordou com um aceno de cabeça. Não era má idéia. Mas levaria tempo. Ele já havia checado. Só dali a oito horas ocorreria a próxima varredura de um satélite de reconhecimento.
Rachel sugeriu uma alternativa.
— Vocês se lembram da porta de trás na caverna sob o túmulo de São Pedro? Talvez nós não tenhamos de entrar pela porta da frente do Forte de Qait Bey. Talvez haja uma entrada nos fundos. Uma entrada subaquática como em Roma.
Gray gostou da idéia dela.
Rachel pareceu cobrar força da aprovação no rosto dele.
— Existem grupos de turistas que mergulham nos sítios próximos de Qait Bey e das ruínas ptolomaicas. Nós poderíamos facilmente nos misturar a eles e investigar a orla do porto.
— Isso talvez não leve a nada — disse Kat —, mas nos permitiria fazer alguma coisa até que um satélite com radar penetrante no solo pudesse fazer uma varredura por lá.
Gray fez lentamente um aceno de cabeça positivo. Era um começo.
Monk entrou na cabine de passageiros vindo da do piloto.
— Eu já reservei um furgão e hotel sob os nossos codinomes, e as formalidades na alfândega vão ser facilitadas por meio de certa cooperação com Washington. Eu acho que isso resolve tudo.
— Não — Gray voltou-se para ele. — Nós também vamos precisar de um barco. De preferência, de algo rápido.
Os olhos de Monk arregalaram-se.
— Tudo bem — disse ele com a voz arrastada. Seu olhar pousou em Rachel. — Mas ela não vai pilotar, não é?
O calor não favoreceu o humor de Raoul. A manhã ainda ia pelo meio, e a temperatura já fustigava. A luz do sol abrasava a praça revestida de pedras lá fora e brilhava intensamente. Seu corpo nu estava banhado de suor quando ele se postou junto às portas que davam para a sacada de seu quarto. As portas estavam abertas mas nenhuma aragem soprava.
Ele odiava Roma.
Ele desprezava as hordas de turistas pasmados, os habitantes da cidade em seus trajes negros fumando continuamente, a tagarelice constante, os gritos, os carros buzinando. O ar recendia a gasolina.
Até mesmo os cabelos da prostituta que ele pegara em Travastere cheiravam a cigarros e suor. A mulher tinha o mau cheiro de Roma. Ele esfregou os nós esfolados dos dedos. Pelo menos o sexo tinha sido satisfatório. Ninguém ouvira os gritos dela através da mordaça em forma de bola. Ele se deleitou com o modo como ela se contorceu sob a sua faca quando roçou a ponta dela em torno dos amplos mamilos marrons e a moveu em ziguezague pelo peito dela abaixo. Mas sentira mais prazer ao esmurrar o rosto dela, carne contra carne, quando investiu sexualmente contra ela.
Sobre o corpo dela, ele superou sua frustração com Roma, com os filhos-da-puta dos americanos, que quase o tinham cegado, arruinando sua oportunidade de matá-los lentamente. E agora ele ficara sabendo que, de algum modo, eles haviam escapado a outro tipo de morte.
Ele afastou-se da janela. O corpo da prostituta já estava embrulhado nos lençóis. Seus homens se livrariam do cadáver. Isso nada significava para ele.
Na mesa-de-cabeceira, o telefone tocou. Ele estava à espera daquele telefonema. Foi o que de fato azedou seu humor.
Ele foi até a mesa-de-cabeceira e pegou o telefone celular.
— Raoul — disse ele.
— Eu recebi o relatório da missão da noite passada. — Conforme esperado, era o Imperador de sua Ordem. A voz dele estava cheia de fúria.
— Senhor...
O homem o interrompeu.
— Eu não vou aceitar nenhuma desculpa. Fracasso é uma coisa, mas insubordinação não será tolerada.
Raoul franziu o cenho ao ouvir a última frase.
— Eu nunca desobedeceria.
— Então o que foi feito da mulher, Rachel Verona?
— Senhor?
Ele imaginou a piranha de cabelos pretos. Ele se lembrou do cheiro de sua nuca quando a agarrou e ameaçou com uma faca. Ele havia sentido os batimentos cardíacos na garganta dela quando a abraçou e ergueu.
— Você foi instruído a capturá-la... não a matá-la. Os outros deveriam ser eliminados. Eram essas as suas ordens.
— Sim, senhor. Entendido. Mas já por três vezes eu fui impedido de usar toda a força bruta contra a equipe americana por causa dessa cautela. Eles ainda estão na jogada simplesmente por causa dessa restrição. — Ele não planejara justificar seus fracassos, mas ali estava uma justificativa de mão beijada para ele. — Eu preciso de mais esclarecimentos. O que é mais importante: a missão ou a mulher?
Fez-se um longo silêncio. Raoul sorriu. Ele cutucou o corpo sem vida na cama com a ponta do dedo.
— Você tocou num ponto importante. — O tom de fúria havia desaparecido da voz do outro. — A mulher é importante, mas a missão não pode ser colocada em risco. A riqueza e o poder no fim desta trilha têm de ser nossos.
E Raoul sabia por quê. Isso fora incutido nele desde a infância. O fim último da seita deles. Instaurar uma Nova Ordem Mundial, liderada pela Corte deles, descendentes de reis e imperadores, geneticamente puros e superiores. Era o direito hereditário deles. Por gerações, remontando a séculos, a Corte havia buscado o tesouro e o conhecimento arcano dessa sociedade de magos perdida. Quem quer que os possuísse, teria as “chaves do mundo”, ou pelo menos era o que constava num texto antigo na biblioteca da Corte.
E agora eles estavam tão perto.
Raoul falou:
— Então eu tenho permissão para prosseguir sem me preocupar com a segurança da mulher?
Ouviu-se um suspiro. Raoul se perguntou se o Imperador ao menos se dera conta dele.
— Haverá desapontamento com o desaparecimento dela — respondeu ele. — Mas a missão não pode fracassar. Não depois de tanto tempo. Portanto, para esclarecer, a oposição deve ser destruída a todo o custo. Está bastante claro?
— Sim, senhor.
— Ótimo. Mas eu também pediria que, caso surja uma oportunidade de capturar a mulher, tanto melhor. Todavia, não corra riscos desnecessários.
Raoul fechou um dos punhos. Ele tinha uma pergunta que o estava incomodando. Jamais a fizera antes. Aprendera que era melhor manter só para si essa curiosidade, obedecer sem perguntas. No entanto, fazia-a agora.
— Por que ela é tão importante?
— O sangue do Dragão corre com toda a força nas veias dela. Isso remonta às nossas raízes nos Habsburgos austríacos. Na verdade, ela fora escolhida para você, Raoul. Para ser a sua companheira. A Corte vê um grande valor em reforçar nossas linhagens por meio de um laço de sangue como esse.
Raoul empertigou-se ainda mais. Até então ele fora proibido de ter filhos. As poucas mulheres que receberam sua semente foram obrigadas a abortar ou foram mortas. Era proibido macular a linhagem real deles produzindo crianças impuras.
— Eu espero que esta informação o estimule a procurar uma oportunidade de protegê-la. Mas, como eu afirmei, até mesmo o sangue dela é descartável se a missão for ameaçada. Você entendeu?
— Sim, senhor.
Raoul ficou sem fôlego. Ele tornou a imaginar a mulher presa em seus braços, mantida sob a ponta de uma faca. O cheiro do medo dela. Ela daria uma boa baronesa... se não isso, pelo menos uma excelente égua reprodutora. A Corte do Dragão mantinha algumas dessas mulheres escondidas por toda a Europa, encarceradas, mantidas vivas apenas para produzir filhos.
Raoul teve uma ereção ao pensar numa oportunidade como aquela.
— Tudo já foi preparado em Alexandria — encerrou o Imperador. — O jogo final se aproxima. Consiga o que precisamos. Elimine todos os que se interpuserem no seu caminho.
Raoul concordou lentamente com um aceno de cabeça, embora o Imperador não pudesse vê-lo.
Ele imaginou a piranha de cabelos pretos... e o que faria com ela.
Rachel postou-se atrás do volante da lancha de corrida, apoiando-se com um joelho no assento de encosto curvo móvel. Depois que passou pela bóia de balizamento No Wake, ela moveu rapidamente o acelerador manual e disparou através da baía. A lancha deslizava na superfície plana da água, dando solavancos sobre a esteira ocasional de outro barco.
O vento agitava seus cabelos. Os borrifos da água do mar refrescavam seu rosto. A luz do sol refletia-se intensamente nas águas azul-safira do Mediterrâneo. Todos os seus sentidos vibravam e latejavam. Isso ajudou a despertá-la após a viagem de avião e as horas passadas em frente ao computador. Fazia quarenta minutos que eles haviam aterrissado. Haviam passado rapidamente pela alfândega, os procedimentos facilitados pelos telefonemas de Monk, e encontrado a lancha e o equipamento já à espera deles no píer do Porto Oriental.
Rachel olhou de relance para trás.
A cidade de Alexandria erguia-se do arco da baía azul, um extenso e moderno aglomerado urbano de edifícios de apartamentos, hotéis e imóveis de uso compartilhado. Palmeiras espalhavam-se pela mediana ajardinada que separava a cidade da água. Havia poucos indícios do passado antigo da cidade. Até mesmo a famosa Biblioteca de Alexandria, perdida séculos atrás, havia sido reconstruída como um imponente complexo de vidro, aço e concreto, decorado com espelhos d'água e servido por uma estação de bondes.
Mas agora, na água, um pouco do passado tornava a ganhar vida. Velhos barcos de pesca de madeira juncavam a baía, pintados em tons vibrantes de pedras preciosas: vermelho-rubi, azul-safira, verde-esmeralda. Algumas velas quadrangulares estavam enfunadas, a direção dos esquifes controlada por dois remos, um antigo projeto egípcio.
E à frente erguia-se uma cidadela medieval, o Forte de Qait Bey. Ele encimava uma península que dividia a baía em duas partes. Um molhe de pedras ligava a fortaleza à terra firme. Ao longo de sua extensão, pescadores com longas varas de pescar relaxavam e gritavam entre si, como seus antepassados provavelmente haviam feito por séculos a fio no passado.
Rachel estudou o Forte de Qait Bey. Construído apenas com calcário branco e mármore, ele brilhava intensamente contra as águas de um azul profundo da baía. A cidadela principal fora construída sobre um alicerce de pedra que se erguia a uma altura de seis metros. Ali, muros altos, encimados por parapeitos arqueados, eram protegidos por quatro torres e circundavam uma torre de menagem central mais alta. Um mastro de bandeira projetava-se do castelo no interior, fazendo tremular as cores egípcias, listras vermelhas, brancas e pretas, junto com a águia dourada de Saladino.
Apertando os olhos, Rachel imaginou o que outrora se erguia sobre seus alicerces: o Farol de Faros, com 120 metros de altura, construído em camadas como um bolo de casamento, decorado com uma estátua gigante de Posêidon e tendo no alto um imenso braseiro que cuspia fogo e fumaça.
Nada restava dessa Maravilha do mundo antigo, exceto talvez alguns blocos de calcário, usados na construção da cidadela. Arqueólogos franceses também haviam descoberto no Porto Oriental um monte de blocos de pedra, junto com um fragmento de seis metros de uma estátua, que se supunha ser a escultura de Posêidon. Era tudo o que restava da Maravilha desde que um terremoto devastou a região.
Ou será que não? Poderia haver outro tesouro, ainda mais antigo, oculto sob seus alicerces?
O túmulo perdido de Alexandre, o Grande.
Era para isso que eles tinham vindo, para descobri-lo.
Atrás dela, os outros estavam reunidos em torno de uma pilha de equipamento de mergulho, checando tanques, reguladores e cintos de chumbo.
— Nós realmente precisamos de todo este equipamento? — perguntou Gray, pegando uma máscara completa. — Roupas secas grossas e todo este equipamento especial para a cabeça?
— Você vai precisar de tudo isto — disse Vigor. O tio de Rachel era um mergulhador experiente. Era impossível não ser, quando se era um arqueólogo no Mediterrâneo. Muitas das descobertas mais interessantes da região tinham sido feitas embaixo d'água, inclusive ali em Alexandria, onde o palácio perdido de Cleópatra fora recentemente descoberto, imerso sob as ondas daquela mesma baía.
Mas havia um motivo para que aqueles tesouros subaquáticos tivessem permanecido ocultos por tanto tempo.
O tio de Rachel explicou.
— A poluição aqui no Porto Oriental, associada aos despejos sanitários, tornou estas águas perigosas de explorar sem proteção adequada. O conselho de turismo egípcio já cogitou abrir um parque arqueológico marinho aqui, servido por barcos com o fundo de vidro. Alguns operadores de turismo inescrupulosos já oferecem excursões para mergulho. Mas a exposição a toxinas de metais pesados e o risco de tifo são reais para os que entram na água.
— Excelente — disse Monk, que já parecia um pouco mareado. Ele agarrou a amurada de estibordo, os dentes cerrados, e manteve a cabeça um pouco inclinada, como um cachorro que pendura a cabeça fora da janela. — Se eu não me afogar, eu vou acabar contraindo alguma doença que dissolve a carne. Vocês sabem, existe um motivo por que eu ingressei nas Forças Armadas Especiais em vez de na Marinha ou na Aeronáutica. Terra firme.
— Você poderia ficar na lancha — disse Kat.
Monk franziu o cenho para ela.
Se pretendiam achar algum túnel subaquático que conduzisse a uma câmara do tesouro secreta embaixo do forte, eles precisariam de todo o mundo. Todos eram mergulhadores profissionais. Eles iam procurar em turnos, com uma pessoa se revezando a fim de descansar e tomar conta da lancha e do equipamento.
Monk insistira no primeiro turno.
Rachel acelerou a lancha ao longo da extremidade leste da península. Adiante, a cidadela de Qait Bey foi aumentando de tamanho, enchendo o horizonte. Ela não parecera tão grande do píer. Seria uma tarefa assustadora explorar as profundezas ao redor do forte.
Uma preocupação começou a importuná-la. Fora idéia sua tentar essa busca. E se ela estivesse errada? Talvez ela houvesse perdido uma pista que apontava para algum outro lugar.
Ela reduziu a velocidade da lancha, a adrenalina aumentando.
Eles haviam dividido a região em quadrantes para uma exploração sistemática da baía nas proximidades do forte. Ela reduziu ainda mais a velocidade, aproximando-se do primeiro local de mergulho.
Gray aproximou-se dela e pousou uma das mãos no encosto do assento. As pontas de seus dedos roçaram o ombro dela.
— Este é o quadrante A.
Ela fez que sim com a cabeça.
— Eu vou baixar âncora aqui e hastear a bandeira laranja para advertir que há mergulhadores na água.
— Você está bem? — perguntou ele, inclinando-se.
— Eu simplesmente espero que esta não seja uma busca inútil.
Ele sorriu, a determinação transformando-se em tranquilização.
— Você nos proporcionou um começo. Foi mais do que o que nós alcançamos debatendo a questão. E eu prefiro empreender uma busca inútil a não fazer nada.
Sem perceber, ela moveu o ombro, fazendo-o pressionar a mão dele.
Ele não a afastou.
— É um bom plano — disse ele, a voz mais branda.
À falta de palavras, ela fez um sinal de cabeça afirmativo e desviou o olhar dos fascinantes olhos dele. Desligou o motor e soltou a âncora, sentindo o tremor sob o seu assento quando o cabo baixou.
Gray virou-se para os outros.
— Vamos vestir os trajes de mergulho. Nós vamos mergulhar aqui, checar nossos rádios marítimos e em seguida iniciar a busca.
Rachel notou que ele mantinha a mão no ombro dela.
Ela se sentia bem ali.
10:14h
Gray caiu para trás dentro do mar.
A água o cobriu. Nenhum centímetro sequer de pele estava exposto à poluição e aos despejos sanitários potenciais. As costuras do traje completo eram duplas com um revestimento duplo de fita impermeável. As saias de vedação do pescoço e dos punhos eram de látex super-resistente. Até mesmo sua máscara AGA cobria o rosto por completo, lacrando o capuz Viking sobre a cabeça. O regulador estava embutido no visor da máscara, deixando sua boca livre.
Gray achou que a amplitude da visão periférica através da máscara compensava o tempo extra gasto para vestir o traje de mergulho, sobretudo porque a visibilidade no porto era fraca. Lodo e sedimentos toldavam a visão numa distância de três a cinco metros.
Não era assim tão mau. Poderia ser pior.
Seu colete compensador o fez flutuar de volta à superfície, cheio de ar, contrabalançando o cinto de chumbo. Ele observou Rachel e Vigor caírem no mar no outro lado da lancha. Kat já estava na água ao seu lado.
Ele testou o rádio, um Buddy Phone, transmitindo em ondas ultra-sônicas numa única faixa de onda mais alta.
— Todos estão me ouvindo? — perguntou ele. — Isto é um teste.
Ele recebeu respostas afirmativas de todos, até mesmo de Monk, que estava começando o primeiro turno de guarda na lancha. Monk também tinha um sistema de vídeo Aqua-Vu marinho de raios infravermelhos para monitorar o grupo embaixo d'água.
— Nós vamos descer até o fundo e nos mover em direção à praia numa grande extensão. Cada um sabe a sua posição.
As respostas foram afirmativas.
— Então vamos descer — disse ele.
Ele soltou o ar de seu colete compensador e desceu na água, arrastado pelo cinto de chumbo. Aquele era o momento em que muitos mergulhadores novatos sentiam uma claustrofobia de causar pânico. Gray nunca sentira isso. Antes, sentia o oposto, uma liberdade total. Ele estava sem peso, voando, capaz de todo o tipo de acrobacias aéreas.
Ele avistou Rachel mergulhando no lado oposto da lancha. Era fácil vê-la por causa da larga listra vermelha de um lado ao outro do peito de seu traje preto. Cada um deles tinha uma cor diferente para facilitar a identificação.
A sua era o azul, a de Kat o rosa, a de Vigor o verde. Monk também já vestira seu traje, pronto para seu turno. A listra dele era amarela, algo apropriado, em virtude de sua atitude em relação ao mergulho.
Gray observou Rachel. Como ele, ela parecia apreciar a liberdade sob as ondas. Ela girou e voou, descendo em espiral e agitando ao mínimo as nadadeiras. Ele parou um momento para apreciar as curvas dela e em seguida concentrou-se em sua própria descida.
O fundo arenoso foi tomando forma, abarrotado de detritos.
Gray ajustou seu colete compensador para mantê-lo flutuando pouco acima do leito do mar. Olhou à direita e à esquerda. Os outros haviam assumido posturas semelhantes.
— Todos podem ver uns aos outros? — perguntou ele.
Eles acenaram com a cabeça e responderam que sim.
— Monk, como a câmera de vídeo subaquática está funcionando?
— Vocês estão se parecendo com um bando de fantasmas. A visibilidade está uma merda. Eu os perderei de vista assim que vocês se afastarem.
— Mantenha-se em contato pelo rádio. Caso haja algum problema, dê o alarme e venha correndo ao nosso encontro.
Gray estava bastante confiante em que eles haviam passado a perna na Corte do Dragão, mas não queria correr riscos com Raoul. Ele não sabia até que ponto eles haviam obtido uma posição vantajosa. Mas havia muitos outros barcos ao redor. Era dia claro.
No entanto, eles tinham de agir rápido.
Gray apontou com um braço.
— Okay, nós vamos para a praia. Não fiquem mais de cinco metros distantes uns dos outros e mantenham contato visual o tempo todo.
Os quatro poderiam varrer uma área de cerca de 25 metros até a praia.
Uma vez lá, se nada fosse detectado, eles desceriam mais 25 metros pela orla e nadariam de volta até a lancha. Para a frente e para trás, quadrante após quadrante, eles vasculhariam toda a orla ao redor do forte.
Gray pôs-se em movimento. Ele tinha uma faca de mergulho presa a uma bainha na parte posterior do pulso e uma lanterna no outro. Com o sol bem acima e a água com apenas 12 metros de profundidade, não havia necessidade de iluminação extra, mas esta seria útil para explorar recessos e fendas. Ele não tinha dúvida de que a passagem que eles procuravam não era óbvia, senão já teria sido descoberta.
Era outro enigma para solucionar.
À medida que nadava, ele refletiu sobre o que eles não haviam percebido. O mapa desenhado na pedra devia ter algo mais além de uma pista que meramente apontava para Alexandria. Nele também devia haver alguma pista embutida sobre a localização ali. Será que eles haviam deixado escapar alguma coisa? Será que Raoul havia roubado uma pista da caverna embaixo do túmulo de São Pedro? Será que a Corte do Dragão já tinha a resposta?
Inconscientemente, ele começara a nadar mais rápido, perdendo Kat de vista à sua direita. Ele era o último da fila naquele lado. Reduziu o ritmo e ela reapareceu. Satisfeito, moveu-se para a frente. Uma forma apareceu adiante, projetando-se do fundo arenoso. Uma rocha? A crista de um recife?
Ele avançou.
Ela surgiu do meio da escuridão lodosa.
Que diabo...?
O rosto de pedra o encarava, humano, gasto pelo mar e pelo tempo, mas seus traços eram surpreendentemente claros, a expressão estóica. Seu dorso encimava a forma agachada de um leão.
Kat notou sua atenção e chegou um pouco mais perto.
— Uma esfinge?
— Tem outra aqui — anunciou Vigor. — Com o lado quebrado. Os mergulhadores têm relatado dezenas delas espalhadas no leito do mar à sombra do forte. Parte da decoração do farol original.
Apesar da urgência, Gray olhou fixamente para a estátua, pasmado. Estudou o rosto, esculpido por mãos humanas dois mil anos atrás. Estendeu um braço e tocou-o, sentindo a imensa amplitude de tempo entre ele e o escultor.
Vigor falou, a voz vindo do nada.
— É apropriado que esses mestres em enigmas guardassem este mistério.
Gray retirou a mão.
— O que você quer dizer?
Vigor riu à socapa.
— Você não conhece a história da Esfinge? O monstro aterrorizava o povo de Tebas, devorando as pessoas que não conseguiam solucionar seu enigma: “O que é que tem uma voz e quatro pés, dois pés e três pés”?
— E qual é a resposta? — perguntou Gray.
— O homem — disse Kat ao lado dele. — Nós engatinhamos quando bebês, depois andamos eretos sobre dois pés quando adultos e nos apoiamos numa bengala na velhice.
Vigor continuou.
— Édipo solucionou o enigma, e a Esfinge atirou-se de um penhasco e morreu.
— Caindo de uma grande altura — disse Gray. — Como estas esfinges.
Ele afastou-se da estátua de pedra e nadou para a frente. Eles tinham seu próprio enigma para resolver. Depois de mais dez minutos de busca silenciosa, eles chegaram à orla rochosa. Gray deparara com um monte de blocos imensos, mas sem passagem, sem abertura, sem pistas.
— Vamos voltar — disse ele.
Eles moveram-se pela costa abaixo e recomeçaram a busca, afastando-se a nado da orla em direção à lancha.
— Está tudo tranqüilo aí em cima, Monk? — perguntou Gray.
— Estou pegando um bronzeado maneiro.
— Não deixe de usar um protetor solar fator 30. Nós vamos ficar mais um pouco aqui embaixo.
— Sim, sim, capitão.
Gray prosseguiu por mais quarenta minutos, vasculhando da orla até a lancha e vice-versa. Ele passou pelo casco enferrujado de um navio naufragado, por mais fragmentos de blocos de pedra, por uma coluna quebrada e até pelo fragmento de um obelisco com inscrições. Peixes multicores passavam dançando.
Ele checou seu manômetro de ar. Ele estava respirando com cautela.
Ainda restava meio tanque.
— Como estão os tanques de ar de vocês?
Após feitas as comparações, decidiu-se voltar à superfície em vinte minutos. Eles fariam uma pausa de meia hora e depois voltariam para a água.
Enquanto nadava, Gray retomou sua reflexão original. Ele continuava
com a impressão de que eles não haviam percebido algo importante. E se a Corte do Dragão tivesse tirado algum objeto da caverna, uma segunda pista? Ele agitou os pés com mais força. Ele tinha de livrar-se daquele medo. Tinha de prosseguir como se tivesse as mesmas informações secretas da Corte, oportunidades iguais.
O silêncio do fundo do mar exercia pressão sobre ele.
— Isto simplesmente não parece sensato — murmurou ele.
O rádio transmitiu sua voz.
— Você achou alguma coisa? — perguntou Kat. Sua forma indistinta aproximou-se flutuando.
— Não. É exatamente este o problema. Quanto mais tempo eu fico aqui embaixo, mais eu me convenço de que estamos fazendo a coisa errada.
— Sinto muito — disse Rachel, a voz vindo do nada, soando impotente. — Eu provavelmente pus muita ênfase...
— Não. — Gray lembrou-se da preocupação dela no convés. Ele recriminou-se por retomar o assunto. — Rachel, eu acho que você assinalou o lugar correto para fazermos a busca. O problema é o meu plano. Toda esta busca quadrante por quadrante simplesmente não parece sensata.
— O que você quer dizer, comandante? — perguntou Kat. — Pode levar algum tempo, mas vamos explorar toda a área.
Esse era o problema. Kat explicou-o a ele. Ele não era uma pessoa a favor de metodologia sistemática, persistente. Embora aquela fosse a melhor forma de solucionar alguns problemas, aquele mistério não era um deles.
— Nós perdemos uma pista — disse ele. — Eu sei disto. Nós reconhecemos o mapa no túmulo, percebemos que ele apontava para o túmulo de Alexandre e então voamos para cá. Nós pesquisamos registros, livros e arquivos, tentando solucionar um enigma que tem desconcertado os historiadores por mais de um milênio. Quem somos nós para solucioná-lo em um dia?
— Então, o que você quer que nós façamos? — perguntou Kat.
Gray decidiu-se por uma parada.
— Nós vamos voltar à estaca zero. Nós baseamos nossa busca em registros históricos disponíveis para qualquer um. A única vantagem que temos sobre todos os caçadores de tesouros dos séculos anteriores é o que foi descoberto embaixo do túmulo de São Pedro. Nós perdemos uma pista lá embaixo.
Ou ela foi roubada, pensou Gray. Mas ele não expressou essa preocupação em voz alta.
— Talvez nós não tenhamos perdido uma pista no túmulo — disse Vigor. — Talvez não tenhamos procurado bem a fundo. Lembrem-se das catacumbas. Os enigmas tinham múltiplas camadas, vários níveis de profundidade. Poderia haver outra camada neste enigma?
O silêncio foi a resposta à pergunta dele... até que uma voz inesperada solucionou tudo.
— Aquela maldita estrela incandescente — praguejou Monk. — Ela não estava simplesmente apontando para a cidade de Alexandria... ela estava apontando para a laje de pedra.
Gray sentiu a verdade soar nas palavras de Monk. Eles haviam ficado tão concentrados no mapa inscrito na laje, na estrela incandescente, na implicação de tudo aquilo, que haviam ignorado o meio incomum usado pelo artista.
— Hematita — disse Kat.
— O que você sabe sobre ela? — perguntou Gray, confiando nos conhecimentos de geologia dela.
— É um oxido de ferro. Grandes depósitos foram encontrados por toda a Europa. A maior parte é constituída de ferro, mas às vezes contém uma quantidade razoável de irídio e titânio.
— Irídio? — disse Rachel. — Não é um dos elementos no amálgama?
Nos ossos dos Reis Magos?
— Sim — disse Kat, a voz subitamente soando tensa pelo rádio. — Mas eu não acho que essa parte seja importante.
— O quê? — perguntou Gray.
— Sinto muito, comandante. Eu deveria ter pensado nisto. O ferro na hematita muitas vezes é fracamente magnético, não tão forte quanto na magnetita, mas ela às vezes é usada como pedra-ímã.
Gray percebeu a correlação. O magnetismo também havia aberto o primeiro túmulo.
— Quer dizer então que a estrela não estava simplesmente apontando para Alexandria, ela também estava apontando para uma pedra magnetizada, para algo que devemos achar.
— E o que os antigos faziam com as pedras-ímãs? — perguntou Vigor, a excitação aumentando em sua voz.
Gray sabia a resposta.
Eles faziam bússolas! — Ele encheu seu colete compensador de ar e subiu à superfície. — Todos para o convés!
Numa questão de minutos, eles estavam tirando tanques, coletes compensadores e cintos de chumbo. Rachel acomodou-se no assento do piloto, contente por sentar-se, e apertou o botão para erguer a âncora, que se moveu ruidosamente para cima.
— Vá devagar — disse Gray, que se posicionara junto ao ombro dela.
— Eu vou dar uma ajuda — disse Monk.
— Eu vou observar a bússola — continuou Gray. — Mantenham-nos num movimento bem lento ao redor do forte. Qualquer movimento brusco na agulha da bússola, e nós baixamos âncora e procuramos lá embaixo.
Rachel assentiu. Ela rezou para que, qualquer que fosse a pedra magnetizada que estivesse lá no fundo, ela fosse forte o bastante para que a bússola da lancha a detectasse.
Com a âncora recolhida, ela reduziu a pressão sobre o acelerador manual à mera oscilação do propulsor. Mal se podia detectar o movimento para a frente.
— Perfeito — sussurrou Gray.
Eles deslizavam para a frente. O sol erguia-se lentamente no céu. Eles puxaram o toldo da lancha para proteger o grupo à medida que o calor do dia aumentava. Monk estava deitado estatelado no banco de bombordo, roncando ligeiramente. Ninguém falava. A preocupação de Rachel aumentava a cada volta lenta do propulsor da lancha.
— E se a pedra não estiver aqui? — ela sussurrou para Gray, que não despregava os olhos da bússola. — E se ela estiver dentro do forte?
— Então é lá que vamos procurar em seguida — disse Gray, olhando com os olhos semicerrados em direção à cidadela de pedra. — Mas eu acho que você está certa a respeito de uma entrada secreta. A laje de hematita na caverna estava sobre um túnel secreto que conduzia a um rio canalizado. Água. Talvez essa seja outra camada do enigma.
Kat os ouvia, um livro aberto no colo.
— Ou nós estamos exagerando a nossa interpretação — disse ela. — Tentando forçar o que nós queremos que se encaixe no enigma.
Na proa, Vigor massageava um músculo da panturrilha dolorido por
causa da natação.
— Eu acho que a questão última de onde a pedra possa estar — na terra ou na água — depende de quando os alquimistas ocultaram a pista. Nós estimamos que as pistas foram ocultadas em algum momento por volta do século XIII, talvez um pouco antes ou um pouco depois, mas aquele era o período crítico do conflito entre o gnosticismo e a ortodoxia. Portanto, os alquimistas ocultaram a pista seguinte antes ou depois de o Farol de Faros desabar em 1303?
Ninguém tinha uma resposta.
Porém, alguns minutos mais tarde, a agulha da bússola moveu-se tenuamente.
— Pare! — sussurrou Gray.
A agulha parou de novo. Kat e Vigor olharam para eles.
Gray pôs uma das mãos no ombro de Rachel.
— Volte.
Ela pôs o acelerador manual em ponto morto. O impulso para a frente cessou. Ela deixou as ondas impulsioná-los para trás.
A agulha tornou a oscilar, dando um quarto de volta.
— Baixe âncora — ordenou Gray.
Ela soltou a âncora, mal respirando.
— Tem alguma coisa aí embaixo — disse ele.
Todos começaram a mexer-se imediatamente, pegando novos tanques.
Monk acordou sobressaltado e sentou-se.
— O que foi? — perguntou ele com os olhos ofuscados.
— Parece que você vai ficar de guarda outra vez — disse Gray. — A não ser que você queira dar um mergulho.
A resposta dele foi um olhar zangado.
Com a lancha protegida e a bandeira laranja erguida, os mesmos quatro mergulhadores caíram de novo na água.
Rachel removeu o ar de seu colete compensador e afundou sob as ondas.
A voz de Gray chegou-lhe através do rádio.
— Verifiquem suas bússolas de pulso. Concentrem a atenção na anormalidade.
Rachel observou atentamente sua bússola enquanto descia. As águas ali eram bastante rasas. Menos de dez metros. Ela atingiu o fundo arenoso rapidamente. Os outros desceram em torno dela, adejando como pássaros.
— Não há nada aqui — disse Kat.
O leito do mar era uma extensão plana de areia.
Rachel olhou fixamente para sua bússola. Ela avançou cerca de dois metros, depois recuou.
— A anormalidade está bem aqui.
Gray desceu até o fundo e roçou o pulso sobre o leito do mar.
— Ela tem razão.
Ele estendeu a mão para o outro pulso e tirou a faca da bainha. Com a lâmina na mão, começou a golpear a areia macia. Cada vez a lâmina afundou até o cabo. O lodo foi revolvido, ofuscando a visão.
No sétimo golpe, a faca claramente rangeu, penetrando apenas alguns centímetros.
— Acertei alguma coisa — disse Gray.
Ele embainhou a faca e começou a cavar na areia. A visão ficou rapidamente turva, e Rachel o perdeu de vista.
Então ela o ouviu ofegar.
Rachel aproximou-se. Gray moveu-se para trás. A areia revolvida dispersou-se e assentou.
Da areia projetava-se o busto escuro de um homem.
— Eu acho que é magnetita — disse Kat, examinando a pedra da escultura. Ela passou sua bússola de pulso sobre o busto. A agulha girou. — É uma pedra-ímã.
Rachel chegou mais perto e olhou fixamente para o rosto. Não havia como enganar-se sobre as feições. Ela havia visto a mesma fisionomia algumas vezes naquele dia.
Gray também reconheceu o rosto.
— É outra esfinge.
Gray passou dez minutos limpando os ombros e o dorso da esfinge, chegando à forma de leão abaixo. Não havia dúvida de que era uma das esfinges, como as outras espalhadas no leito do mar.
— Esconderam-na entre as outras — disse Vigor. — Eu creio que isso responde à pergunta sobre quando os alquimistas esconderam o seu tesouro aqui.
— Depois do desabamento do farol — disse Gray.
— Exatamente.
Eles flutuaram em torno da esfinge magnética, esperando que o lodo e a areia revolvidos assentassem.
Vigor prosseguiu:
— Essa antiga sociedade de magos deve ter sabido a localização do túmulo de Alexandre depois que Sétimo Severo o escondeu no século III.
Eles o deixaram intacto, permitindo que ele protegesse os pergaminhos mais valiosos da biblioteca perdida. Então, talvez o terremoto de 1303 não só tenha posto abaixo o farol, mas também tenha exposto o túmulo. Eles aproveitaram a oportunidade para esconder mais coisas dentro dele, usando o período caótico após o terremoto para ocultar sua próxima pista, enterrá-la e deixar que os séculos se encarregassem de encobri-la de novo.
— E, se você estiver certo — disse Gray —, isso assinala a data em que essas pistas foram ocultadas. Lembrem-se, nós já estimamos que as pistas foram deixadas em torno do século XIII. Nós estávamos errados por apenas alguns anos. Foi em 1303. Na primeira década do século XIV.
— Humm... — Vigor chegou mais perto da estátua.
— O que foi?
— Isso me faz pensar cá com os meus botões. Nessa mesma década, o verdadeiro papado foi expulso de Roma e exilou-se na França. Os anti-papas governaram Roma no século seguinte.
— E daí?
— De modo análogo, os ossos dos Reis Magos foram levados da Itália para a Alemanha em 1162, outra época em que o verdadeiro papa foi expulso de Roma e um antipapa sentou-se no trono pontifício.
Gray acompanhou essa linha de raciocínio.
— Portanto, esses alquimistas ocultavam suas coisas sempre que o papado estava ameaçado.
— É o que parece. Isso indicaria que essa sociedade de magos tinha vínculos com o papado. Talvez os alquimistas de fato tenham se juntado aos cristãos gnósticos daqueles tempos turbulentos, cristãos abertos à busca de conhecimento arcano, os cristãos de Tomé.
— E essa sociedade secreta fundiu-se com a Igreja oficial?
Vigor fez um aceno de cabeça positivo na água turva.
— Quando a Igreja como um todo ficava ameaçada, o mesmo acontecia com a igreja secreta. Por isso eles procuraram salvaguardas. Primeiro transferindo os ossos para a segurança na Alemanha no século XII. Depois, durante os difíceis anos do exílio, eles esconderam o verdadeiro cerne do seu conhecimento.
— Mesmo que isso seja verdade, como é que nos ajuda a encontrar o túmulo de Alexandre? — indagou Kat.
— Assim como as pistas que levavam ao túmulo de São Pedro estavam enterradas nas lendas do catolicismo, as pistas aqui poderiam estar ligadas às mitologias de Alexandre. — Vigor correu um dedo enluvado pela face da estátua. — Por que outro motivo haveriam de marcar a entrada
com uma esfinge?
— Os mestres em enigmas dos gregos — murmurou Gray.
— E os monstros matavam imediatamente aqueles que não lhes davam a resposta correta — lembrou-os Vigor. — Talvez a escolha deste símbolo seja uma advertência.
Gray examinou a esfinge, sua expressão enigmática, quando a areia baixou.
— Então é melhor nós solucionarmos este enigma.
O jato particular Gulfstream IV recebeu autorização da torre para aterrissar. Seichan ouvia o tagarelar da tripulação na cabine do piloto através da porta aberta. Ela estava sentada na poltrona mais próxima da porta. A luz do sol resplandecia através da janela à sua direita.
Uma forma imensa aproximou-se à sua esquerda.
Raoul.
Ela continuou a olhar através da janela quando uma asa do jato se inclinou sobre o azul-violeta do Mediterrâneo e alinhou para aproximar-se da pista de aterrissagem.
— Qual é a notícia do seu contato no solo? — perguntou Raoul, mastigando cada palavra.
Ele devia ter notado que ela estava usando o telefone do jato. Ela tocava com os dedos o amuleto com o dragão em seu cordão.
— Os outros ainda estão na água. Se você tiver sorte, eles talvez solucionem esse mistério para você.
— Nós não precisaremos deles para isso.
Raoul afastou-se, indo juntar-se aos seus homens, uma equipe de 16 membros, incluindo o adepto mentor da Corte.
Seichan já havia conhecido o conceituado bibliófilo do Vaticano, o dr. Alberto Menardi, um homem magricela de cabelos grisalhos com uma pele bexiguenta, lábios grossos, olhos estreitos. Ele estava sentado na parte traseira da aeronave, cuidando do nariz fraturado. Ela possuía um dossiê completo sobre ele. Seus vínculos com uma certa organização criminosa siciliana eram profundos. Parecia que nem mesmo o Vaticano poderia impedir que essas ervas daninhas criassem raízes em seu solo. Por outro lado, ela não podia desprezar a inteligência aguçadíssima do homem. Ele tinha um QI três pontos acima do de Einstein.
Fora o dr. Alberto Menardi quem, 15 anos antes, discernira da biblioteca de textos gnósticos da Corte do Dragão a capacidade de o eletromagnetismo liberar a energia dos metais supercondutores. Ele supervisionara o projeto de pesquisa em Lausanne, na Suíça, e testara os efeitos em animais, vegetais e minerais. E quem daria pela falta do ocasional mochileiro suíço
solitário? Estas últimas experiências embrulhariam o estômago até mesmo dos piores cientistas nazistas.
O homem também tinha um perturbador fetiche por garotinhas.
Mas não para sexo.
Por esporte.
Ela vira algumas das fotos e gostaria de não tê-las visto. Se já não tivesse sido instruída pela Guilda para eliminar o homem, ela o faria por sua própria conta.
O avião iniciou a descida para aterrissar.
Em algum lugar lá embaixo, a equipe da Sigma trabalhava.
Eles não eram nenhuma ameaça.
Seria tão fácil quanto atirar contra peixes num barril.
— Lembrem-se daquele maldito peixe — disse Monk pelo rádio da lancha.
Três metros e meio abaixo, Gray olhou para o alto, franzindo o cenho para a quilha balouçante acima. Eles haviam passado os cinco últimos minutos excluindo várias opções. Talvez a esfinge estivesse em cima de um túnel. Mas como eles moveriam uma tonelada de pedra? Eles cogitaram o uso do amálgama, como no túmulo de São Pedro, para fazê-la levitar. Gray tinha um tubo de ensaio com o pó resultante de sua pesquisa dos ossos trazidos de Milão. Porém, para ativá-lo, seria necessário usar algum tipo de eletricidade... o que não era nem um pouco sensato na água.
— De que peixe você está falando, Monk? — indagou Gray. Ele vira ali embaixo peixes suficientes para evitar frutos do mar.
— Do peixe do primeiro enigma — respondeu Monk. — Vocês sabem. O peixe pintado nas catacumbas.
— E o que é que tem isso?
— Eu estou vendo vocês e a estátua pela câmera Aqua-Vu. A esfinge está voltada na direção daquele forte imenso.
Gray olhou fixamente para a estátua. Dali, onde a visibilidade não ia além de cinco metros, era difícil obter um quadro mais amplo. Monk tinha a melhor perspectiva. E um quadro mais amplo era sua especialidade, ver a floresta através das árvores.
— As catacumbas... — murmurou Gray, entendendo a intenção de Monk.
Poderia ser assim tão fácil?
— Vocês se lembram — prosseguiu Monk — de que tivemos de seguir na direção para a qual o peixe estava voltado a fim de encontrarmos a pista seguinte? Talvez a esfinge esteja voltada para a direção da abertura do túnel.
— Talvez Monk esteja certo — disse Vigor. — Estas pistas foram deixadas no início do século XIV. Nós deveríamos considerar o problema da perspectiva do nível de tecnologia daquela época. Não existia equipamento de mergulho na ocasião, mas havia bússolas. Talvez a esfinge nada
mais seja que um ponto de referência magnético. Use a sua bússola para descobrir isso. Nade em direção à praia, a fim de verificar em que direção ela está voltada, e depois continue a pé.
— Só existe uma maneira de descobrir — disse Gray. — Monk, mantenha a lancha ancorada aqui até que tenhamos certeza. Nós vamos nadar até a praia.
Gray afastou-se da estátua e esperou até que estivesse longe o bastante para obter uma boa determinação da posição pela bússola sem a interferência magnética da pedra-ímã.
— Okay, vamos ver aonde isto conduz.
Ele pôs-se em movimento, seguido pelos outros, ficando todos juntos.
A praia não era longe. A península elevava-se em forma de escarpa. O fundo arenoso terminava abruptamente num labirinto de blocos de pedra desmoronados esculpidos pelo homem.
— Isto deve ter sido outrora uma parte do Farol de Faros — disse Vigor.
Cracas e anêmonas haviam dominado a área, transformando-a em seu próprio recife. Caranguejos escarafunchavam o leito do mar e peixinhos passavam nadando em disparada.
— Nós deveríamos nos espalhar — disse Kat. — Esquadrinhar a área.
— Não — Gray intuitivamente entendeu o que tinha de ser feito. — Parece que a esfinge magnética está oculta entre as outras esfinges.
Ele afastou-se do fundo, movendo-se acima do recife, mantendo um braço fixo à sua frente, observando a bússola de pulso.
Não demorou muito.
Quando ele passou por cima de um bloco, a agulha da bússola moveu-se com violência e girou. Ele estava a apenas quatro metros da superfície. A frente do bloco tinha cerca de 0,4 m2.
— Aqui — disse.
Os outros juntaram-se a ele.
Kat pegou uma faca e raspou o acúmulo de vida marinha.
— Hematita de novo. Com um magnetismo mais fraco. Você jamais perceberia isso a menos que estivesse procurando.
— Monk — disse Gray.
— Sim, chefe.
— Traga a lancha para cá e baixe âncora.
— Estou a caminho.
Gray examinou as extremidades do bloco. Ele estava cimentado aos outros contíguos — acima, abaixo e dos lados — por corais, areia e densos acúmulos de mexilhões de conchas ásperas.
— Cada um pegue um lado e limpe as extremidades — ordenou ele.
Ele imaginou a laje de hematita sob o túmulo de São Pedro. Ela encobria um túnel secreto. Ele não tinha dúvida de que eles estavam na pista certa.
Pela primeira vez.
Em poucos minutos o bloco estava limpo.
A vibração de um propulsor ecoou pesadamente através da água.
Monk aproximou-se lentamente da orla.
— Eu estou vendo vocês, pessoal — disse ele. — Um bando de rãs listradas sentadas numa rocha.
— Baixe a âncora - disse Gray. — Devagar.
— Lá vai.
Quando a garra de aço maciço baixou da quilha, Gray nadou até ela e ajudou a guiá-la até o bloco de hematita. Ele comprimiu uma das unhas da âncora numa brecha entre o bloco e o outro adjacente a ele.
— Puxe-a para cima — ordenou Gray.
Monk recolheu o cabo da âncora, o qual foi ficando cada vez mais teso.
— Afastem-se todos — advertiu Gray.
O bloco oscilou, fazendo a areia desprender-se dele num turbilhão.
Em seguida o fragmento de pedra soltou-se. Ele tinha apenas cerca de trinta centímetros de espessura e rolou pela face do penhasco, quicando com ruídos abafados, e depois caiu pesadamente no fundo arenoso.
Gray esperou o lodo dissipar-se. Seixos continuavam a cair em grande quantidade da parede de rocha. Ele avançou. Na lacuna deixada pela pedra removida, surgiu um espaço escuro.
Gray acendeu a lanterna em seu pulso e dirigiu o feixe de luz para a abertura. A luz iluminou um túnel reto, que se curvava ligeiramente para cima. Era uma passagem apertada, sem espaço para tanques de ar.
Aonde será que o túnel conduzia?
Só havia uma forma de descobrir.
Gray estendeu a mão para as fivelas que prendiam seu tanque de oxigênio e soltou-as movimentando os ombros.
— O que você está fazendo? — perguntou Rachel.
— Alguém tem de dar uma olhada.
— Nós poderíamos despir a câmera Aqua-Vu da lancha — disse Kat — e usar uma vara de pescar ou um remo para empurrá-la para dentro.
O plano não era ruim, mas levaria tempo.
Tempo de que eles não dispunham.
Gray pôs seu tanque numa prateleira de rocha.
— Logo estarei de volta.
Ele inspirou profundamente, desconectou o regulador de sua máscara e então se virou para encarar o túnel.
O espaço seria suficiente.
Ele se lembrou do enigma da Esfinge, de como ele descrevia o primeiro estágio de um homem: andar de gatinhas. Era uma maneira apropriada de entrar.
Gray introduziu a cabeça, os braços estendidos para a frente, a lanterna mostrando o caminho. Ele avançou e deslizou para dentro do túnel apertado.
Quando o túnel o tragou, ele se lembrou da advertência anterior de Vigor acerca do enigma da Esfinge.
Dê a resposta errada... e você está morto.
Quando as nadadeiras de Gray desapareceram no túnel, Rachel prendeu a respiração.
Era uma temeridade. E se ele ficasse preso? E se uma parte do túnel desabasse? Uma das formas mais perigosas de mergulho era o mergulho em cavernas. Apenas as pessoas com desejo de morte gostavam daquele esporte.
E elas tinham tanques de ar.
Ela agarrou a borda da face da rocha com os dedos enluvados. O tio Vigor veio para o lado dela e pousou a mão sobre a dela, instando por confiança.
Kat agachou-se junto à abertura. A lanterna dela varava o túnel escuro.
— Eu não o estou vendo.
Rachel segurou na pedra com mais força.
Vigor percebeu o sobressalto dela.
— Ele sabe o que está fazendo. Ele conhece seus limites.
Conhece mesmo?
Rachel havia reconhecido o lado impetuoso dele nas últimas horas, e isso a impressionava e assustava. Ela já passara tempo suficiente com ele.
Gray não pensava como as demais pessoas. Ele operava nos limites do senso comum, confiando em seu pensamento e reflexos rápidos para tirá-lo de enrascadas. Mas a mente mais sagaz e os reflexos mais rápidos não ajudariam nenhuma pessoa se uma parede de pedra desabasse em sua cabeça.
Palavras entrecortadas chegaram até ela.
— ...podem... livre... okay...
Era Gray.
— Comandante — disse Kat em voz alta —, suas palavras estão fragmentadas.
— Droga...
Kat olhou de relance para eles. O cenho franzido era claro através da máscara.
— Está melhor? — perguntou Gray, a recepção mais firme.
— Sim, comandante.
— Eu estava fora d'água. Tive de enfiar a cabeça na água outra vez.
— A voz dele soava excitada. — O túnel é curto — disse ele. — Uma passagem reta curvada para cima. Se inspirarem fundo e agitarem um pouco as nadadeiras, vocês vão sair bem aqui.
— O que você encontrou? — perguntou o tio Vigor.
— Alguns túneis de pedra. Eles parecem bastante sólidos. Eu vou avançar e explorá-los.
— Eu vou com você — falou Rachel inadvertidamente, lutando com as fivelas de seu colete compensador.
— Primeiro me deixe verificar se é seguro.
Rachel livrou-se do tanque de ar e do colete e os prendeu numa fenda.
Gray não era o único corajoso.
— Eu estou indo.
— Eu também — disse o tio dela.
Rachel inspirou e desprendeu a traquéia da máscara. Livre, ela nadou até a abertura do túnel e mergulhou através dele. Estava escuro como breu.
Na pressa, ela se esquecera de ligar a lanterna. Porém, quando agitou as pernas e avançou um pouco mais, uma ondulação de luz surgiu apenas três metros à frente.
Sua capacidade de flutuar ajudava a impulsioná-la. A luz aumentou. O túnel alargou-se em ambos os lados.
Poucos instantes depois, ela surgiu subitamente num pequeno tanque.
Gray franziu o cenho ao vê-la. Ele estava de pé na borda de pedra do tanque circular. Uma câmara em forma de tambor abriu-se ao redor dela. Uma caverna artificial. O teto era sustentado por anéis que iam se estreitando, o que dava a impressão de se estar numa minúscula pirâmide em
degraus.
Ele estendeu-lhe um braço, e ela não o recusou, olhando embasbacada para a câmara. Ele ajudou-a a sair.
— Você não deveria ter vindo — disse ele.
— E você também não — contrapôs ela, mas seus olhos ainda estavam fixos nos blocos de pedra em torno dela. — Além disso, se este lugar resistiu a um terremoto que pôs abaixo o Farol de Faros, eu acho que ele pode agüentar minhas pegadas.
Pelo menos, era o que ela esperava.
Um momento depois, Vigor apareceu, espadanando no tanque.
Gray deu um suspiro. Ele deveria ter tido bom senso suficiente para não tentar manter aqueles dois a distância.
Rachel tirou a máscara e puxou o capuz para trás. Ela sacudiu os cabelos, soltando-os, e em seguida curvou-se para ajudar o monsenhor a sair da água.
Gray manteve a máscara no lugar e enfiou a cabeça na água. O rádio funcionava melhor em contato com a água.
— Kat, continue a postos junto à saída do túnel. Assim que estivermos fora d'água, perderemos contato bem rápido. Monk, se houver algum problema, informe-o à Kat, de modo que ela possa vir nos buscar.
Ambos responderam afirmativamente. Kat parecia irritada.
Monk estava contente de permanecer onde estava.
— Vão em frente. Eu estou de saco cheio de me arrastar em túmulos.
Gray ergueu-se e afinal tirou a máscara. O ar tinha um odor surpreendentemente fresco, se não um odor um pouco penetrante de algas e sal.
Devia haver algumas fendas na superfície.
— Um túmulo — disse Vigor, livre da máscara. Ele olhou para o teto de pedra. — Um estilo de túmulo etrusco.
Dois túneis conduziam para fora dali, dispostos um ao lado do outro. Gray estava ansioso para explorá-los. Um era mais alto do que o outro, porém mais estreito, com uma largura que mal dava para um homem passar. O outro era baixo, exigindo que se curvasse um pouco, mas era mais largo.
Vigor tocou os blocos que formavam uma parede.
— Calcário. Cortado e encaixado firmemente, mas parece que... os blocos estão cimentados com chumbo. — Ele virou-se para Gray. — De acordo com o registro histórico, este padrão é o mesmo do Farol de Faros.
Rachel olhou ao redor.
— Isto pode ser parte do farol original, talvez os alicerces de um pavimento ou um porão.
Vigor encaminhou-se para o túnel mais próximo, o mais curto dos dois.
— Vamos ver aonde isto leva.
Gray impediu-o com um braço.
— Primeiro eu.
O monsenhor fez um aceno de cabeça, um pouco apologético.
— É claro.
Gray abaixou-se e apontou a lanterna.
— Economizem as pilhas de suas lanternas por enquanto — instruiu ele. — Nós não sabemos quanto tempo vamos ficar aqui embaixo.
Ele deu um passo à frente e curvou-se sob o teto baixo. Sentiu uma pontada nas costas, devido à contusão causada por uma das balas que o haviam atingido em Milão, o que o fez sentir-se como um velho.
Ele congelou.
Merda.
Vigor chocou-se com ele por trás.
— Afastem-se, afastem-se, afastem-se... — exortou ele.
— O que foi? — Vigor perguntou mas obedeceu.
Gray recuou para a câmara do poço.
Rachel lançou-lhe um olhar estranho.
— O que há de errado?
— Vocês já ouviram a história do homem que teve de escolher entre duas portas, atrás de uma das quais se escondia um tigre e da outra uma mulher?
Rachel e Vigor acenaram positivamente com a cabeça.
— Talvez eu esteja errado, mas eu acho que estamos diante de um dilema semelhante: duas portas. — Gray apontou para cada um dos túneis escuros. — Vocês se lembram do enigma da Esfinge, assinalando as fases da vida do homem: de gatinhas, ereto e curvado? Foi necessário engatinharmos para entrarmos aqui.
Gray lembrou-se de ter pensado naquilo quando entrou no túnel.
— Agora dois caminhos conduzem para a frente — continuou ele. — Um no qual se pode andar ereto e outro em que é necessário curvar-se.
Como eu disse, talvez eu esteja errado, mas eu prefiro que sigamos por aquele outro túnel primeiro. O túnel no qual se pode andar ereto, como no segundo estágio da vida do homem.
Vigor olhou para o túnel no qual eles quase haviam entrado. Como arqueólogo, ele deveria saber tudo sobre túmulos com armadilhas. Ele assentiu com um aceno de cabeça.
— Não temos nenhum motivo para nos apressarmos.
— Nenhum motivo em absoluto — disse Gray, contornando o poço até o outro túnel.
Ele ligou a lanterna e seguiu na frente. Só depois de cerca de dez passos é que voltou a respirar.
O ar tornou-se um pouco bolorento. O túnel devia estar conduzindo às profundezas da península. Gray quase podia sentir o peso do forte acima dele.
Na passagem havia uma série de saliências pronunciadas, mas então a luz da lanterna revelou o fim do túnel. Um espaço mais amplo abria-se adiante. O brilho da lanterna refletiu-se em alguma coisa além.
Gray prosseguiu mais devagar.
Os outros comprimiam-se atrás dele.
— O que você está vendo? — perguntou Rachel no fim da fila.
— Espantoso...
No monitor da câmera Aqua-Vu, Monk observou Kat esperando junto à entrada do túnel. Ela sentou-se perfeitamente imóvel, flutuando com mínimo esforço, uma forma de economia de energia. Enquanto vigiava, movia-se de maneira sutilíssima, como se estivesse praticando tai chi chuan embaixo d'água. Ela alongou uma perna, girando uma coxa, acentuando a longa curva de seu corpo.
Ele correu um dedo pela tela do monitor.
Um S perfeito.
Perfeito.
Ele sacudiu a cabeça e desviou o olhar. Quem ele estava enganando?
Monk esquadrinhou a extensão plana de águas azuis. Ele usava óculos escuros polarizados, mas agora o brilho constante do sol a pino fazia seus olhos doer.
E o calor...
Mesmo à sombra, devia estar fazendo mais de 38°C. Seu traje seco o esfolava. Ele abrira o zíper, baixara a parte de cima de seu traje e estava de pé com o peito nu. Mas todo o suor parecia ter-se acumulado na sua entreperna.
E agora ele tinha de urinar.
Seria melhor que ele não tivesse tomado as latas de Coca-Cola diet.
Um movimento atraiu seus olhos. Vindo do outro lado da península. Um barco azul-escuro grande e elegante, com uns dez metros de comprimento. Ele prestou atenção às linhas. Não se tratava de um barco comum, e sim de um aerobarco. Corria acima da água, ligeiramente erguido em seus flutuadores que varavam a superfície. Voava desimpedido sobre as ondas suaves, deslizando como um trenó sobre o gelo.
Merda, ele era velocíssimo.
Monk acompanhou a curva que ele fez em torno da península, a 250 metros de distância. Rumava para o Porto Oriental. Era pequeno demais para o transporte de passageiros. Talvez o iate de algum árabe rico. Ele pegou um par de binóculos e procurou o barco, levando um tempo a mais para localizá-lo com precisão.
Na proa, avistou duas garotas de biquíni. Nada de recato resguardado por burkas ali. Monk já havia observado cuidadosamente alguns dos outros barcos próximos ao porto, gravando a posição deles em seu tabuleiro de xadrez mental. Num pequeno iate, uma festa estava no auge, o champanhe jorrava.
Noutra embarcação, semelhante a uma casa flutuante, um casal maduro, nu em pêlo, passava o tempo ociosamente. Parecia que Alexandria era a Fort Lauderdale do Egito.
— Monk — Kat chamou pelo rádio.
Ele usava um fone de ouvido conectado ao transceptor subaquático.
— O que é, Kat?
— Eu estou captando um sinal de estática pulsante pelo rádio. É você?
Ele baixou os binóculos.
— Não, não sou eu. Eu vou verificar o transceptor. Talvez você esteja captando o detector de peixes de alguém.
— Entendido.
Monk correu os olhos ao redor. A velocidade do aerobarco reduzira-se e ele baixara na água, sendo impelido para o outro lado do porto.
Ótimo.
Monk memorizou sua posição entre os outros barcos, mais uma peça no tabuleiro de xadrez. Ele voltou a atenção para o transceptor do Buddy Phone. Girou o controle de amplitude, ouviu um gemido de realimentação e depois reajustou o canal.
— Como está agora? — perguntou ele.
— Melhor. Já passou — respondeu Kat.
Monk sacudiu a cabeça. Merda de equipamento alugado.
— Deixe-me ver se ele dá retorno — disse ele.
— Está bom assim. Obrigada.
Monk olhou o corpo dela na tela da câmera e suspirou. De que adiantava? Ele pegou os binóculos. Onde estavam aquelas duas garotas de biquíni?
Rachel entrou por último na câmara. Os dois homens foram cada um para um lado diante dela. Apesar da advertência de Gray para que eles economizassem as pilhas, o tio Vigor havia ligado a lanterna.
Os feixes de luz iluminaram outra sala em forma de tambor, com o teto abobadado. O gesso do teto havia sido pintado de preto. Estrelas prateadas brilhavam intensamente contra o fundo escuro. Mas as estrelas não haviam sido pintadas no teto, eram incrustações metálicas.
O teto refletia-se num tanque de água parada que cobria todo o piso e cuja profundidade parecia chegar à altura dos joelhos. O efeito da imagem refletida na água criava a ilusão de uma perfeita esfera de estrelas, acima e abaixo.
Porém, aquela ainda não era a visão mais espantosa.
No meio da câmara, erguendo-se do tanque d'água, havia uma enorme pirâmide de vidro, da altura de um homem. Ela parecia flutuar no centro da esfera ilusória.
A pirâmide de vidro cintilava com uma tonalidade dourada familiar.
— Será que...? — murmurou o tio Vigor.
— Vidro de ouro — disse Gray. — Um supercondutor gigante.
Eles espalharam-se ao longo da estreita borda de pedra que circundava o tanque. Havia quatro vasos de cobre na água, um em cada canto do tanque.
O tio de Rachel inspecionou um deles e continuou. Lâmpadas antigas, supôs Rachel. Mas eles haviam trazido sua própria iluminação.
Ela estudou a estrutura no meio do tanque. A pirâmide tinha a base quadrangular e quatro lados, como as pirâmides de Gizé.
— Tem alguma coisa dentro dela — disse Rachel.
Os reflexos das faces de vidro da pirâmide tornavam difícil discernir os detalhes no interior dela. Rachel pulou na água, que chegava um pouco acima dos joelhos.
— Cuidado — disse Gray.
— Até parece que você seguiria esse conselho — respondeu ela, avançando em direção à pirâmide.
Pancadas na água atrás dela anunciaram que os outros a haviam seguido. Eles cruzaram o tanque até a estrutura de vidro. Seu tio e Gray reposicionaram suas lanternas para penetrar na pirâmide.
Surgiram duas formas.
Uma estava bem no centro da pirâmide. Era uma escultura de bronze
de um dedo gigante, erguido e apontando para cima. Tão grande que ela duvidou que pudesse cingi-la com os braços. O trabalho dos detalhes era magistral, da unha aparada às rugas nos nós.
Porém, foi a forma embaixo do dedo erguido que mais lhe chamou a atenção. Uma figura, de coroa e máscara de ouro, usando uma túnica branca de linhas ondulantes, jazia sobre um altar de pedra. Os braços estavam estendidos de cada lado, semelhantes aos de Cristo. Mas o rosto de ouro era nitidamente grego.
Rachel virou-se para o tio.
— Alexandre, o Grande.
Vigor andou lentamente ao redor, obtendo uma visão de todos os ângulos. Os olhos dele brilharam de lágrimas.
— O túmulo dele... o registro histórico mencionou que sua sepultura era de vidro.
Ele estendeu o braço para tocar uma das mãos estendidas, enterradas apenas alguns centímetros no vidro, em seguida pensou melhor e baixou o braço.
— E o dedo de bronze? — perguntou Gray.
O tio Vigor voltou para onde eles estavam.
— Eu... eu acho que é do Colosso de Rodes, a estátua gigante que se erguia de pernas abertas no porto da ilha. Ela representava o deus Hélio, mas seu modelo foi Alexandre, o Grande. Não se acreditava que ainda existisse alguma parte da estátua.
— Agora este último remanescente tornou-se a lápide de Alexandre
— disse Rachel.
— Eu acho que tudo isto é um legado de Alexandre — disse seu tio.
— E da ciência e do conhecimento que ele ajudou a fomentar. Foi na Biblioteca de Alexandria que Euclides descobriu as regras da geometria. Tudo aqui ao redor são triângulos, pirâmides, círculos.
Em seguida, o tio Vigor apontou para cima e para baixo.
— A esfera refletida dividida pela água remonta a Eratóstenes, que, em Alexandria, calculou o diâmetro da Terra. Até mesmo a água aqui... ela deve escoar através de pequenos canais a fim de manter o tanque cheio.
Foi na Biblioteca de Alexandria que Arquimedes projetou a primeira bomba-d'água em forma de parafuso, ainda hoje em uso.
O tio de Rachel sacudiu a cabeça diante daquela maravilha.
— Tudo isto é um monumento a Alexandre e à Biblioteca de Alexandria perdida.
Isso fez Rachel lembrar-se de algo.
— Não deveria haver livros aqui? Sétimo Severo não escondeu os pergaminhos mais importantes da biblioteca aqui?
Vigor procurou ao redor.
— Eles devem ter sido removidos depois do terremoto, quando as pistas foram ocultadas aqui. O conhecimento deve ter sido tirado e enviado para seja qual for a câmara mortuária oculta que procuramos. Nós devemos estar perto.
Rachel percebeu o tremor na voz do tio. O que mais eles poderiam descobrir?
— Mas, antes de prosseguirmos — disse Gray —, nós temos de solucionar este enigma.
— Não — disse o tio Vigor. — O enigma nem sequer foi exposto ainda. Lembrem-se do que aconteceu no túmulo de São Pedro. Nós temos de passar por algum teste, provar nosso conhecimento, como a Corte do Dragão fez com a sua compreensão do magnetismo. Só depois disso é que o segredo foi revelado.
— Então, o que devemos fazer? — perguntou Gray.
O tio Vigor recuou, os olhos fixos na pirâmide.
— Nós temos de ativar esta pirâmide.
— E como é que nós vamos fazer isso? — indagou Gray.
Vigor virou-se para ele.
— Eu preciso de um pouco de refrigerante.
Gray esperou Kat trazer as últimas latas de Coca-Cola. Eles precisavam de mais 12 latas.
— Tem alguma importância se é Coca-Cola diet ou comum? — perguntou Gray.
— Não — respondeu Vigor. — Eu só preciso de alguma coisa ácida.
Até mesmo suco de frutas ou vinagre serviriam.
Gray olhou de relance para Rachel. Ela simplesmente sacudiu a cabeça e deu de ombros.
— Você se incomodaria de nos explicar agora? — perguntou ele.
— Lembrem-se de como o magnetismo abriu o primeiro túmulo — disse Vigor. — Nós sabemos que todos os povos antigos conheciam bem o magnetismo. As pedras-ímãs eram amplamente distribuídas e usadas. As bússolas chinesas datam de 200 a.C. Para prosseguirmos, nós temos de provar a nossa compreensão do magnetismo. Foi ele que nos trouxe aqui.
Um marcador magnético deixado embaixo d'água.
Gray concordou com um aceno de cabeça.
— Por isso outro prodígio da ciência tem de ser demonstrado aqui.
Vigor foi interrompido pela chegada de Kat. Ela surgiu no poço de entrada, trazendo suspensas mais duas embalagens de seis latas, num total de quatro.
— Nós vamos precisar da ajuda de Kat por alguns minutos — disse Vigor. — São necessárias quatro pessoas.
— Como estão as coisas no convés? — Gray perguntou a Kat.
Ela deu de ombros.
— Tranqüilas. Monk deu um jeito num defeito no rádio.
— Informe a ele que nós estaremos fora do ar por alguns minutos - disse Gray, apreensivo, mas eles precisavam do que quer que estivesse oculto ali.
Kat imergiu, transmitindo a mensagem. Em seguida, saiu do poço, e todos eles voltaram para o túmulo de Alexandre.
Vigor acenou para que eles se dispersassem e apontou para um vaso de cobre na extremidade do tanque. Havia quatro deles.
— Cada um de vocês pegue uma embalagem de seis latas de refrigerante e se posicione perto de um vaso.
Eles espalharam-se.
— Você poderia nos dizer o que estamos fazendo? — perguntou Gray quando chegou ao seu vaso de cobre.
Vigor fez que sim com a cabeça.
— Demonstrando outro prodígio da ciência. O que nós temos de mostrar aqui é o conhecimento de uma força que até os gregos conheciam e à qual chamavam electrikus, nome da carga estática de um tecido esfregado no âmbar. Eles a testemunharam na forma de raios e, ao longo dos mastros de seus veleiros, como fogo-de-santelmo.
— Eletricidade — disse Gray.
Vigor confirmou com um aceno de cabeça.
— Em 1938, um arqueólogo alemão chamado Wilhelm Koenig descobriu vários vasos de argila curiosos no Museu Nacional do Iraque. Eles tinham apenas 15 centímetros de altura e acreditava-se que fossem procedentes da Pérsia, terra natal dos nossos Reis Magos bíblicos. O que havia de estranho nos vasos era o fato de estarem tampados com asfalto, e do alto projetava-se um cilindro de cobre com uma haste de ferro no interior.
A conformação era familiar para qualquer pessoa com conhecimento das ciências voltaicas.
Gray franziu o cenho.
— E para as pessoas não-familiarizadas?
— Os vasos... eles eram a conformação exata de células de baterias e receberam o nome de “Baterias de Bagdá”.
Gray sacudiu a cabeça.
— Baterias antigas?
— Em 1957, tanto a General Electric quanto a revista Science Digest fizeram réplicas desses vasos. Injetaram vinagre neles, e eles produziram volts de eletricidade significativos.
Gray olhou para o vaso a seus pés, lembrando-se da solicitação de refrigerante, outra solução ácida, pelo monsenhor. Ele notou a haste de ferro sobressaindo do alto do sólido vaso de cobre.
— Você está dizendo que estes vasos são baterias? Duracell Copper- tops antigas?
Ele olhou para o tanque. Se o monsenhor estivesse certo, Gray agora entendia por que os jarros estavam no tanque de água do mar. Fosse qual fosse o choque gerado pelas baterias, ele fluiria através da água até a pirâmide.
— Por que nós simplesmente não ativamos a pirâmide usando uma bateria? — perguntou Kat. — Por que não trazemos uma bateria naval da lancha?
Vigor sacudiu a cabeça.
— Eu acho que a ativação está vinculada à quantidade de corrente e à posição das baterias. Quando se trata da magnitude de força nestes super-condutores — especialmente num deste tamanho —, eu creio que nós deveríamos nos ater ao projeto original.
Gray concordou. Ele se lembrou do tremor e da destruição no interior da basílica. Aquilo acontecera com apenas um cilindro de pó no estado m. Ele olhou para a pirâmide gigante e entendeu que seria melhor eles prestarem atenção à recomendação do monsenhor.
— Então, o que devemos fazer? — perguntou Gray.
Vigor abriu uma de suas latas de refrigerante.
— Pelos meus cálculos, nós enchemos completamente as baterias vazias. — Ele correu os olhos pelo grupo. — Ah, e eu sugiro que fiquemos bem afastados.
Monk estava sentado atrás do volante da lancha, batendo uma lata de refrigerante vazia na amurada de estibordo. Ele estava cansado de toda aquela espera. Talvez o mergulho com equipamento de respiração subaquática não fosse assim tão mau. A água parecia convidativa à medida que o calor do dia aumentava.
O ronco alto de um motor o fez correr os olhos pelo porto.
O aerobarco, que dera a impressão de ter baixado âncora, estava em movimento outra vez. Ele ouviu a velocidade do motor aumentar. Parecia haver um pouco de agitação no convés.
Ele pegou os binóculos. Era melhor prevenir do que remediar.
Enquanto erguia os binóculos, deu uma olhadela no monitor da câmera Aqua-Vu. O túnel continuava desprotegido.
Por que Kat estava demorando tanto?
Gray despejou o conteúdo da terceira lata no núcleo cilíndrico de seu vaso. Pouco depois a Coca-Cola estava borbulhando e escorrendo pelo lado de cobre da bateria. Cheia.
Ele ficou em pé e tomou o último gole de sua lata de refrigerante.
Ugh... diet...
Os outros terminaram mais ou menos ao mesmo tempo, levantando-se e recuando.
Um pouco de gás saiu espumando da parte de cima de todos os cilindros. Nada mais aconteceu. Talvez eles tivessem cometido um erro, ou o uso do refrigerante não desse certo — ou, até mais provável, a idéia do monsenhor não passasse de um disparate.
Então uma centelha dançou da ponta da haste de ferro do vaso de Gray e desceu cascateando pela superfície de cobre para crepitar na água do mar.
Fracos fogos de artifício semelhantes chuviscaram das demais baterias.
— Talvez leve alguns minutos para as baterias formarem e descarregarem uma voltagem adequada — disse Vigor, cuja voz perdera o tom confiante.
Gray franziu o cenho.
— Eu não acho que isto vai...
De todas as baterias, ao mesmo tempo, arcos de eletricidade brilhantes crepitaram através da água, produzindo chamas no fundo do tanque, e atingiram os quatro lados da pirâmide.
— Encostem-se na parede! — gritou Gray.
Sua advertência era desnecessária. Uma explosão de força projetou-se com violência da pirâmide, arremessando-o contra a parede. A pressão fazia Gray sentir-se como se estivesse deitado de costas, a câmara em forma de tambor girando em torno dele, a pirâmide acima, uma volta de cabeça para baixo num brinquedo de um parque de diversões.
No entanto, Gray sabia o que o retinha.
Um campo de Meissner, uma força que podia fazer túmulos levitar.
Então começaram os verdadeiros fogos de artifício.
De todas as faces da pirâmide, explosões crepitantes de raios abalaram o teto, dando a impressão de atingir as estrelas de prata neles incrustadas. Solavancos também agitaram o tanque, como que tentando atacar as estrelas refletidas na água.
Gray sentiu a imagem queimando em sua retina, mas recusou-se a fechar os olhos. Valia a pena correr o risco de ficar cego. Onde os raios atingiam a água, chamas eram expelidas e dançavam na superfície do tanque.
Fogo oriundo da água!
Ele sabia o que estava testemunhando.
A eletrólise da água em gás hidrogênio e oxigênio. O gás liberado entrava em seguida em combustão, começando a arder devido ao jogo de energias ali.
Encurralado pela força, Gray observava o fogo acima e abaixo. Ele mal conseguia compreender o poder que estava sendo desencadeado ali.
Ele havia lido estudos teóricos sobre como um supercondutor poderia armazenar energia, até mesmo luz, dentro de sua matriz por um intervalo de tempo infinito. E, num supercondutor perfeito, até a quantidade de energia ou de luz poderia ser infinita.
Era isso que ele estava testemunhando?
Antes que pudesse entender inteiramente aquilo, as energias de repente extinguiram-se, uma tempestade de raios numa garrafa, brilhante mas breve.
O mundo voltou a ficar a prumo quando o campo de Meissner expirou e seu corpo foi liberado. Gray deu um passo cambaleante para a frente e recobrou o equilíbrio antes de cair no tanque. As chamas dissiparam-se aos poucos na água. Qualquer que fosse a energia aprisionada na pirâmide, ela havia sido consumida.
Ninguém falou.
Reuniram-se em silêncio, precisando da companhia uns dos outros, do contato físico uns dos outros.
Vigor foi o primeiro a fazer um movimento coerente, apontando para o teto.
— Vejam.
Gray esticou o pescoço. A tinta preta e as estrelas persistiam, mas agora letras estranhas brilhavam numa escrita flamejante de um lado ao outro da abóbada do teto.
— É a pista — disse Rachel.
Enquanto eles olhavam, as letras esmaeceram-se rapidamente. Como a pira que ardia na superfície da laje de hematita no túmulo de São Pedro, a revelação durou pouquíssimo tempo.
Gray apressou-se em libertar sua câmera subaquática. Eles precisavam filmar aquilo.
Vigor o reteve.
— Eu sei o que significa. É grego.
— Você pode traduzir?
O monsenhor fez um sinal de cabeça afirmativo.
— Não é difícil. É uma frase atribuída a Platão, descrevendo como as estrelas nos afetam e são na verdade um reflexo nosso. Ela tornou-se a base da astrologia e a pedra angular da crença gnóstica.
— Qual é a frase? — perguntou Gray.
— “Tudo o que está acima é como o que está abaixo”.
Gray olhou fixamente para o teto estrelado e para o reflexo na água. Acima e abaixo. Ali estava o mesmo sentimento expresso em termos visuais.
— Mas o que isso quer dizer?
Rachel havia se afastado do grupo. Ela deu uma volta lentamente pela sala e gritou do outro lado da pirâmide:
— Venham cá!
Gray ouviu um baque na água.
Eles correram para onde ela estava. Rachel avançava em direção à pirâmide.
— Cuidado — advertiu Gray.
— Olhem — disse ela, apontando.
Gray contornou a quina da pirâmide e viu o que a tinha excitado. Uma minúscula parte da pirâmide, de 15cm2, tinha desaparecido no meio de uma de suas faces, se dissolvido, se consumido durante a tempestade de fogo. Dentro do buraco, uma das mãos estendidas de Alexandre, o Grande, estava fechada.
Rachel estendeu a mão para ela, mas Gray afastou-a.
— Me deixe fazer isso — disse ele.
Ele estendeu a mão e tocou a de Alexandre, contente por ainda estar usando suas luvas de mergulho. A carne quebradiça parecia pedra. Entre os dedos fechados, um pouco de ouro cintilava.
Com os dentes cerrados, Gray quebrou um dos dedos, percebendo um grito sufocado de Vigor.
Não foi possível evitar aquilo.
Do punho, Gray removeu uma chave de ouro de 7,5 centímetros de comprimento, com dentes grossos, uma das extremidades com a forma de cruz. Ela era surpreendentemente pesada.
— Uma chave — disse Kat.
— Mas de que fechadura? — perguntou Vigor.
Gray afastou-se.
— De onde quer que tenhamos de ir em seguida.
Seus olhos ergueram-se para o teto, para onde as letras haviam-se desvanecido.
— Tudo o que está acima é como o que está abaixo — repetiu Vigor, observando a direção do olhar dele.
— Mas qual é o significado? — murmurou Gray. Ele guardou a chave no bolso da coxa. — Aonde ela nos diz para irmos?
Rachel dera um passo atrás. Ela lentamente deu uma volta completa na sala, examinando-a com atenção, e parou, o olhar fixo em Gray. Os olhos dela brilhavam intensamente. Ele agora conhecia aquele olhar.
— Eu sei por onde devemos começar.
No compartimento elevado do piloto do aerobarco, Raoul vestiu seu traje úmido. O barco pertencia à Guilda. A Corte do Dragão pagara uma pequena fortuna pelo aluguel dele, mas hoje não poderia haver erros.
— Faça-nos chegar o mais perto possível, numa curva extensa, sem levantarmos suspeita — ordenou ele ao capitão, um negro africano com minúsculas cicatrizes nas faces.
Duas jovens, uma negra e a outra branca, flanqueavam o homem. Elas usavam biquíni, seu equivalente de um equipamento de camuflagem, mas seus olhos brilhavam com a promessa de força letal.
O capitão ignorou Raoul, mas deu uma guinada no volante e a embarcação descreveu um ângulo para o lado.
Raoul afastou-se do capitão e suas mulheres, dirigindo-se à escada de acesso ao convés inferior.
Ele detestava estar a bordo de uma embarcação que não estivesse sob sua autoridade direta. Desceu a escada e foi juntar-se à equipe de 12 homens que mergulhariam. Os outros três homens operariam as armas de fogo engenhosamente montadas na proa e em ambos os lados da popa. O último membro de sua equipe, o dr. Alberto Menardi, estava abrigado numa das cabines, preparando-se para deslindar os enigmas.
E havia um acréscimo indesejável à equipe.
A mulher.
Seichan estava em pé com o traje úmido parcialmente aberto até o umbigo. Seus seios mal estavam ocultos por trás do neoprene. Ela estava junto aos seus tanques e ao seu trenó Aquanaut. Os pequenos trenós aquáticos para uma única pessoa eram impulsionados por jatos de propulsão duplos e faziam um mergulhador deslizar pela água a velocidades vertiginosas.
A eurasiana olhou de relance para ele. Raoul achava repulsiva a herança mista dela, mas ela dava para o gasto. Os olhos dele percorreram a cintura e o peito nus da mulher. Dois minutos a sós com ela, e ele removeria do rosto dela aquele constante e afetado sorriso de desdém.
Mas, por ora, a piranha tinha de ser tolerada.
Aquele era o território da Guilda.
Seichan insistira em acompanhar a equipe de assalto.
— Só para observar e dar conselhos — dissera ela ronronando. — Mais nada.
No entanto, ele avistou a arma de pesca subaquática entre a pilha do equipamento de mergulho dela.
— Nós vamos evacuar em três minutos — disse Raoul.
Eles desceriam ao mar quando o aerobarco reduzisse a velocidade para contornar a península, apenas turistas dando uma olhada mais de perto no antigo forte. A partir dali, seguiriam a nado para suas posições. O aero-barco ficaria à espera, pronto para intervir com suas armas, se necessário.
Seichan puxou com força o zíper de seu traje de mergulho.
— Eu mandei o operador de rádio interferir intermitentemente nas comunicações deles. Portanto, quando os rádios deles saírem por completo do ar, eles sentirão menos suspeita.
Raoul concordou com um aceno de cabeça. Ela prestava para alguma coisa. Ele lhe concederia aquela deferência.
Checando o relógio pela última vez, ele ergueu um braço e fez um gesto circular com um dedo.
— Fiquem a postos — disse ele.
De volta ao túnel de acesso ao túmulo de Alexandre, Rachel ajoelhou-se no piso de pedra. Ela trabalhava no seu projeto, preparando-se para provar seu ponto de vista.
Gray disse a Kat:
— É melhor você voltar para a água. Cheque a situação com Monk.
Isto demorou mais do que os poucos minutos que havíamos dito a ele. Ele deve estar ficando impaciente.
Kat acenou positivamente com a cabeça, mas seus olhos percorreram a sala e pousaram na pirâmide-túmulo. Relutante, ela virou-se e dirigiu-se ao túnel que dava para o poço de entrada.
Vigor terminou sua própria inspeção da câmara do túmulo. Seu rosto ainda estava excitado de assombro.
— Eu não acho que ela vai inflamar-se daquele jeito de novo.
Ao lado de Rachel, Gray acenou a cabeça em concordância.
— A pirâmide de ouro deve ter agido como um capacitor. Ela armazenou sua energia, perfeitamente preservada dentro de sua matriz super-condutora... até a carga ser liberada pelo choque, criando uma reação em cascata que esvaziou a pirâmide.
— Isso quer dizer — disse Vigor — que, mesmo que a Corte do Dragão descubra esta câmara, eles nunca serão capazes de descobrir o enigma.
— Nem de obter a chave de ouro — disse Gray, batendo de leve no bolso da coxa. — Finalmente, nós estamos um passo à frente deles.
Rachel sentiu o alívio e a satisfação na voz dele.
- Mas primeiro nós temos de solucionar este enigma — ela lembrou-o. — Eu tenho uma vaga idéia de onde devemos começar, mas nenhuma resposta ainda.
Gray aproximou-se dela.
— Em que você está trabalhando?
Ela havia aberto um mapa do Mediterrâneo nas pedras, o mesmo mapa que usara para demonstrar que a inscrição na laje de hematita representava a costa do Mediterrâneo oriental. Com uma caneta hidrográfica preta, ela marcara cuidadosamente pontos no mapa e atribuíra um nome a cada um deles.
Reclinando-se, ela moveu um braço na direção da câmara do túmulo.
— A frase — “Tudo o que está acima é como o que está abaixo” — destinava-se originalmente a introduzir a posição das estrelas nas nossas vidas.
— Astrologia — disse Gray.
— Não exatamente — argumentou Vigor. — As estrelas de fato governavam as civilizações antigas. As constelações eram os cronômetros das estações, os marcos para viagens, a morada dos deuses. As civilizações reverenciavam-nas construindo seus monumentos como um reflexo da noite estrelada. Uma nova teoria sobre as três pirâmides de Gizé é a de que elas foram alinhadas daquela forma para corresponder às três estrelas do cinturão de Órion. Até em tempos mais recentes, cada catedral ou basílica católica é construída ao longo de um eixo leste-oeste, a fim de assinalar o nascer e o pôr-do-sol. Nós ainda respeitamos essa tradição.
— Então nós devemos procurar padrões — disse Gray. — Posições significativas de algo no céu ou na Terra.
— E o túmulo está nos dizendo a que devemos prestar atenção — disse Rachel.
— Então eu devo estar surdo — disse Gray.
O tio de Rachel também havia imaginado isso àquela altura.
— O dedo de bronze do Colosso — disse ele, olhando para o túmulo.
— A pirâmide gigante, talvez representando a maior pirâmide de Gizé. Os restos do Farol de Faros acima de nós. Até mesmo o túmulo em forma de tambor poderia aludir ao Mausoléu de Halicarnasso.
— Me desculpe — disse Gray franzindo o cenho. — Mausoléu de quê?
— Era uma das Sete Maravilhas — disse Rachel. — Lembre-se de como Alexandre estava estreitamente vinculado a todas elas.
— Certo — disse Gray. — Alguma coisa a respeito de seu nascimento coincidir com uma delas e sua morte com outra.
— O Templo de Artemis — disse Vigor com um aceno de cabeça. — E os Jardins Suspensos de Babilônia. Todos estavam relacionados com Alexandre... até aqui.
Rachel apontou para o mapa no qual estava trabalhando.
— Eu marquei todos os lugares onde elas se situavam. Elas estavam espalhadas através do Mediterrâneo oriental e estão localizadas na mesma região mapeada na laje de hematita.
Gray estudou o mapa.
— Você está dizendo que nós temos de procurar um padrão entre todas as sete?
— “Tudo o que está acima é como o que está abaixo” — citou Vigor.
— Mas por onde começamos? — perguntou Gray.
— O tempo — disse Rachel. — Ou, antes, a progressão do tempo, conforme o enigma da Esfinge a ele alude. O movimento do nascimento à morte.
Os olhos de Gray estreitaram-se e em seguida arregalaram-se de compreensão.
— A ordem cronológica. Quando as Maravilhas foram construídas.
Rachel confirmou com um aceno de cabeça, dizendo:
— Mas eu não sei a ordem.
— Eu sei — disse Vigor. — Que arqueólogo da região não saberia?
Ele ajoelhou-se e pegou a caneta hidrográfica.
— Eu acho que Rachel tem razão. A primeira pista que deu início a tudo isto foi oculta num livro no Cairo, perto de Gizé. As pirâmides também são as mais antigas das Sete Maravilhas. — Ele pôs a ponta da caneta sobre Gizé. — Eu acho interessante que este túmulo se situe embaixo do Farol de Faros.
— Por quê? — perguntou Gray.
— Porque o farol foi a última das Maravilhas a ser construída. Da primeira à última. Isto também pode indicar que, aonde quer que vamos em seguida, talvez seja o fim da linha. O ponto final.
O tio Vigor inclinou-se e cuidadosamente traçou linhas que ligavam as Sete Maravilhas pela ordem de construção.
— De Gizé a Babilônia, em seguida até Olímpia, onde a estátua de Zeus se erguia.
— O suposto pai verdadeiro de Alexandre — lembrou Rachel.
— Daí vamos até o Templo de Artemis em Éfeso, depois até Halicarnasso, em seguida até a ilha de Rodes... até finalmente alcançarmos nosso próprio ponto no mapa. Alexandria e seu famoso farol.
O tio de Rachel reclinou-se.
— Alguém ainda está se perguntando se nós não estamos na pista certa?
Rachel e Gray olharam para o resultado do trabalho dele.
— Deus do céu... — exclamou Gray.
— As linhas formam uma ampulheta perfeita — disse Rachel.
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo.
— O símbolo da própria passagem do tempo. Formado por dois triângulos. Lembrem-se de que o símbolo egípcio do pó branco que os faraós consumiam era um triângulo. Na verdade, os triângulos também simbolizavam a pedra benben dos egípcios, um símbolo do conhecimento sagrado.
— O que é uma pedra benben?— perguntou Gray.
Rachel respondeu:
— Eram os remates colocados na ponta dos obeliscos e das pirâmides egípcios.
— Mas eles quase sempre são representados por triângulos na arte — acrescentou o tio dela. — Na verdade, você pode ver um no verso das suas cédulas de dólar. A moeda americana exibe uma pirâmide com um triângulo suspenso sobre ela.
— O triângulo com um olho no seu interior — disse Gray.
— Um olho que tudo vê — corrigiu Vigor. — Um símbolo daquele conhecimento sagrado sobre o qual eu estava falando. Isso nos faz perguntar a nós mesmos se essa sociedade de magos antigos não exerceu alguma influência sobre as primeiras fraternidades de seus antepassados. — A última frase foi dita com um sorriso. — Mas, sem dúvida, quanto aos egípcios, parece existir um tema subjacente de triângulos, conhecimento sagrado, tudo vinculado ao misterioso pó branco. Até mesmo o nome benben faz essa associação.
— O que você quer dizer? — disse Rachel, intrigada.
— Os egípcios atribuíam significado à grafia de suas palavras. Por exemplo, a-i-s, em egípcio antigo, é traduzido por “cérebro”, mas, se a grafia for invertida para s-i-a, essa palavra significa “consciência”. Eles usavam a própria grafia das palavras para associar os dois: a consciência ao cérebro.
Voltemos agora a benben. A letras b-e-n são traduzidas por “pedra sagrada”, como eu mencionei, mas vocês sabem o que obtêm se a escreverem ao contrário?
Rachel e Gray deram de ombros ao mesmo tempo.
— N-e-b é traduzido por “ouro”.
Gray ficou estupefato.
— Quer dizer então que o ouro está relacionado com a pedra sagrada e o conhecimento sagrado.
Vigor concordou com um aceno de cabeça.
— Foi no Egito que tudo isto começou.
— Mas onde é que termina? — perguntou Rachel, olhando para o seu mapa. — Qual é o significado da ampulheta? De que forma ela aponta para o próximo local?
Todos eles olharam para o túmulo piramidal.
Vigor sacudiu a cabeça.
Gray ajoelhou-se.
— É a minha vez de examinar o mapa.
— Você tem uma idéia?
— Você não precisa parecer tão chocado.
Gray começou a trabalhar, usando as costas de sua faca como uma espécie de régua. Ele tinha de pôr aquilo em ordem. Com a caneta hidrográfica na mão, falou enquanto trabalhava, sem erguer os olhos.
— Esse dedo enorme de bronze — disse ele. — Vocês vêem como ele está bem no centro da sala, posicionado sob a cúpula?
Os outros olharam para o túmulo. A água havia readquirido o mesmo reflexo sem movimento. A paisagem estrelada no teto abobadado estava perfeitamente refletida na água outra vez, criando a ilusão de uma esfera estrelada.
— O dedo está posicionado como o pólo norte-sul daquela miragem esférica. O eixo em torno do qual o mundo gira. E agora olhem para o mapa. Que ponto assinala o centro da ampulheta?
Rachel inclinou-se mais para perto e leu o nome ali.
— A ilha de Rodes — disse ela. — De onde o dedo veio.
Gray sorriu por causa da admiração na voz dela. Foi pela revelação ou pelo fato de ele ter descoberto isso?
— Eu acho que nós devemos encontrar o eixo através da ampulheta — disse ele, pegando a caneta hidrográfica e traçando uma linha que dividia a ampulheta ao meio verticalmente. — E aquele dedo de bronze aponta para o pólo norte — prosseguiu ele, usando a lâmina de sua faca como um
guia, e estendeu a linha para o norte.
A caneta parou numa cidade conhecida e importante.
— Roma — Rachel leu no mapa.
Gray recostou-se.
— O fato de toda esta geometria apontar exatamente para Roma deve ser significativo. Deve ser para onde temos de ir em seguida. Mas aonde em Roma? Novamente ao Vaticano?
Ele olhou para os outros.
A testa de Rachel havia se enrugado.
Vigor ajoelhou-se lentamente.
— Eu acho, comandante, que você está certo e errado. Posso examinar a sua faca?
Gray passou-a para ele, contente em deixar o monsenhor usurpar sua posição.
Ele moveu a lâmina da faca sobre o mapa.
— Humm... dois triângulos — disse ele, batendo de leve na forma da ampulheta.
— O que isso significa?
Vigor sacudiu a cabeça, os olhos concentrados.
— Você tinha razão ao dizer que esta linha chega até Roma. Mas não é para onde devemos ir.
— Como é que você sabe?
— Lembre-se das múltiplas camadas de enigmas neste caso. Nós temos de olhar mais a fundo.
— Para onde?
Vigor correu o dedo pela lâmina, estendendo a linha além de Roma.
— Roma foi apenas a primeira parada.
Ele continuou a traçar a linha imaginária mais para o norte, até a França, parando num ponto um pouco ao norte de Marselha.
Vigor fez um aceno de cabeça e sorriu.
— Muito inteligente.
— O quê?
Vigor tornou a passar a faca e bateu de leve no ponto.
— Avignon.
Rachel emitiu um grito sufocado.
Gray não entendeu a importância daquilo. Sua expressão confusa deixava isso claro.
Rachel virou-se para ele.
— Avignon é o lugar na França no qual o papado se exilou no início do século XIV, tornando-se a sede do poder pontifício por quase um século.
— A segunda sede do poder pontifício — enfatizou Vigor. — Primeiro Roma, depois a França. Dois triângulos, dois símbolos de poder e conhecimento.
— Mas como é que podemos ter certeza? — perguntou Gray. — Talvez nós estejamos exagerando na interpretação.
Vigor afastou a preocupação dele.
— Lembre-se, nós já tínhamos determinado a data em que julgamos que as pistas foram deixadas, quando o papado deixou Roma. A primeira década do século XIV.
Gray fez um aceno de cabeça, porém não estava totalmente convencido.
— E esses alquimistas astuciosos nos deixaram outra camada do enigma para ajudar a determinar firmemente este local. — Vigor apontou para a forma no mapa. — Quando você acha que a ampulheta foi inventada?
Gray sacudiu a cabeça.
— Eu supunha que ela tivesse sido inventada pelo menos há alguns milhares de anos... talvez mais.
— Por estranho que pareça, a invenção da ampulheta ocorreu na época dos primeiros relógios mecânicos. Há apenas 700 anos.
Gray fez o cálculo mentalmente.
— Isso a situaria no início do século XIV.
— Marcando o tempo, como todas as ampulhetas devem fazer, de volta à criação do papado francês.
Gray sentiu um tremor percorrer seu corpo. Agora ele sabia aonde eles tinham de ir em seguida com a chave de ouro. A Avignon, ao Vaticano francês.
— Vamos sair daqui — disse Gray, conduzindo-os rapidamente pelo túnel até o poço de entrada.
— E o túmulo? — indagou Vigor.
— O anúncio da descoberta terá de esperar por outra ocasião. Se a Corte do Dragão chegar fazendo alarde, eles descobrirão que estão atrasados demais.
Gray entrou correndo na câmara do outro lado. Ajoelhou-se, ajustou a máscara no rosto e enfiou a cabeça na água, preparando-se para informar os outros da boa notícia.
Assim que sua cabeça atingiu a água, seu rádio zumbiu, irritante e alto.
— Kat... Monk... vocês estão me ouvindo?
Não houve resposta. Gray lembrou-se de Kat ter mencionado algum defeito nos Buddy Phones. Ele ouviu por um momento mais longo. Seu coração bateu mais forte no peito.
Droga.
Ele tirou a cabeça da água.
Aquele ruído branco não era estática. Eles estavam sendo bloqueados.
— O que foi? — perguntou Rachel.
— A Corte do Dragão. Eles já estão aqui. ceara
Kat emergira subitamente nas ondas suaves.
Fazia dez minutos que o rádio dela emudecera. Ela viera checar com Monk e o encontrara com os binóculos fixos no rosto.
— O rádio... — começou ela.
— Alguma coisa deu errado — disse ele, interrompendo-a. — Chame os outros.
Ela reagiu na mesma hora, saltando no mar, agitando as pernas com força. O peso a impulsionou num mergulho vertical. Ela removeu com urgência o ar de seu colete compensador e afundou imediatamente.
Mergulhando em direção ao túnel, estendeu a outra mão para soltar as presilhas que seguravam seu colete e seu tanque de ar. O movimento à entrada reteve seus dedos.
A forma nítida de um mergulhador projetou-se do túnel. A listra azul no traje preto identificou o nadador como o comandante Pierce. Um gemido contínuo enchia seus ouvidos, impedindo-a de comunicar a urgência.
Mas ela logo constatou que não era necessário.
Duas outras formas saíram do túnel atrás do comandante.
Vigor e Rachel.
Kat girou, ficando em posição vertical. Desligando seu Buddy Phone para pôr fim ao gemido, ela nadou em direção a Gray. Ele devia ter-se dado conta de que o ruído no rádio significava encrenca. Ele simplesmente lançou um olhar intenso para ela através de sua máscara e apontou um braço para cima interrogativamente.
Estava tudo em ordem lá em cima?
Ela lhe deu um sinal positivo. Não havia nenhum inimigo lá em cima. Pelo menos, ainda não.
Gray não se deu o trabalho de proteger os tanques abandonados. Ele acenou para que os outros subissem. Eles afastaram-se das rochas e seguiram para a quilha da lancha.
Ao lado, Kat notou que a âncora estava sendo levantada.
Monk estava se preparando para uma partida imediata.
Kat encheu o colete compensador e nadou para cima, lutando contra a resistência de seu tanque de ar e de seu cinto de chumbo. Acima, os outros já estavam chegando à superfície.
Um gemido novo e forte encheu os ouvidos dela.
Dessa vez não era o rádio.
Ela esquadrinhou as águas à procura da fonte, mas a visibilidade na enseada poluída era baixa. Alguma coisa aproximava-se... aproximava-se rapidamente.
Como oficial do serviço de inteligência da Marinha, ela havia passado muito tempo a bordo de todos os tipos de embarcações, inclusive submarinos. Ela reconheceu o zumbido contínuo.
Um torpedo.
Aprisionados na lancha.
Ela moveu-se violentamente para cima, porém sabia que jamais os alcançaria a tempo.
Monk engrenou o motor da lancha enquanto vigiava o aerobarco através dos binóculos. Ele acabara de desaparecer atrás da extremidade da península. Mas ele o observara reduzir a velocidade de maneira suspeita alguns segundos atrás, a uns duzentos metros de distância. Não havia mais nenhuma atividade reveladora no convés da popa, mas ele notara uma seqüência ondulante de bolhas na esteira da embarcação enquanto ela se afastava deslizando lentamente.
Em seguida ele ouvira o gemido através do rádio.
Kat apareceu alguns segundos depois.
Eles tinham de sair dali. Alguma coisa nas suas entranhas lhe dizia isso.
— Monk! — gritou uma voz. Era Gray, vindo à tona a bombordo.
— Graças a Deus.
Ele começou a baixar os binóculos quando avistou um objeto veloz como um raio avançando através da água. Uma barbatana abria caminho através das ondas. Uma barbatana de metal.
— Maldição...
Baixando os binóculos, Monk empurrou o acelerador até o fim. A lancha deu um solavanco para a frente com um guincho do motor. Ele girou o volante para estibordo. Para longe de Gray.
— Todo o mundo para baixo! — gritou, puxando a máscara sobre o rosto. Ele não teve tempo de fechar o zíper de seu traje.
Com a lancha inclinando-se sob ele, Monk correu para a popa, subiu no banco traseiro e jogou-se na água.
O torpedo atingiu-a logo em seguida. A força da explosão projetou-o de pernas para o ar. Alguma coisa o golpeou no quadril, chacoalhando até os seus dentes. Ele atingiu a água, rolando pela superfície, perseguido por um rastro de chamas.
Antes que as chamas pudessem alcançá-lo, ele afundou no aconchego fresco do mar.
Rachel viera à tona no momento exato em que Monk gritou. Ela o viu correr para a popa da lancha. Reagindo ao pânico dele, ela tomou impulso para baixo e girou para mergulhar.
Então ocorreu a explosão.
O choque através da água feriu os ouvidos dela, mesmo através do grosso capuz de neoprene. Ela ficou sem ar. As saias que vedavam sua máscara romperam-se e a água do mar a invadiu.
Ela voltou à superfície, cega, os olhos doendo. Com a cabeça fora d'água, esvaziou a máscara, tossindo e engasgando. Detritos continuavam a cair em grande quantidade na água. Restos da lancha fumegavam e balançavam na superfície. Rios de gasolina em chamas deslizavam sobre as ondas.
Ela esquadrinhou as águas.
Ninguém.
Então, à sua esquerda, uma forma debatendo-se irrompeu da água. Era Monk, atordoado e engasgando.
Ela aproximou-se dele e segurou um de seus braços. A máscara dele tinha dado meia-volta na cabeça. Ela firmou-o enquanto ele se esforçava para vomitar.
— Maldição — disse ele ofegante, e puxou a máscara com força ao redor da cabeça.
Ouviu-se um novo ruído propagando-se pela água. Ambos viraram-se.
Rachel viu um grande aerobarco contornar o forte, inclinado para cima nos flutuadores. Ele deu a volta, vindo na direção deles.
— Para baixo! — exortou Monk.
Eles desapareceram juntos sob a água. A explosão havia revolvido a areia, reduzindo a visibilidade a poucos metros.
Rachel apontou na direção vaga da entrada do túnel, perdida na escuridão. Eles tinham de pegar os tanques abandonados, uma fonte de ar extremamente necessária.
Chegando à pilha de rochas, ela olhou ao redor à procura da entrada do túnel, à procura dos outros. Onde é que eles estavam?
Ela deslocou-se ao longo do monte de blocos de pedras. Monk acompanhou-a, mas lutava com seu traje de mergulho, que ele fechara apenas até a metade. A parte superior do traje agitava-se e enrolava-se.
Onde estavam os tanques? Será que ela se confundira?
Uma forma escura passou acima deles, bem distante da praia. O aero-barco. Pela reação de Monk, era a fonte dos problemas deles.
Uma pressão que ardia se formou nos pulmões de Rachel.
Uma luz brilhou na escuridão à frente. Ela moveu-se instintivamente em direção a ela, esperando encontrar seu tio ou Gray. Das trevas, surgiram de repente dois mergulhadores, equilibrados em trenós aquáticos motorizados. O lodo subia em espirais atrás deles.
Os mergulhadores deram a volta a fim de encurralá-los contra a praia.
Iluminadas pelas lanternas deles, pontas de flechas de aço cintilavam. Armas de pesca subaquática.
Para enfatizar a ameaça, ouviu-se um sibilo repentino. Um arpão de aço voou como um raio em direção a Monk, arremessando-o para o lado. O arpão atravessou a metade solta de seu traje de mergulho, rasgando-a.
Rachel ergueu as mãos, voltada para os mergulhadores.
Um deles apontou um polegar, ordenando-lhes que subissem à superfície.
Pegos.
Gray ajudou Vigor.
O monsenhor chocou-se contra ele quando a lancha explodiu. Um pedaço de fibra de vidro acertara o lado de sua cabeça, rasgando seu traje de neoprene. O sangue jorrava do corte. Gray não tinha como avaliar o ferimento, mas o homem mais velho estava atordoado.
Gray conseguira alcançar os tanques de ar e agora ajudava a prender um deles às costas do monsenhor. Vigor acenou para ele quando o ar fluiu.
Gray pegou um segundo tanque e rapidamente reconectou seu regulador.
Ele inspirou profundamente várias vezes.
Ele olhou para a abertura do túnel. Eles não encontrariam refúgio ali. A Corte do Dragão com certeza iria até lá. Gray não seria encurralado noutro túmulo.
Gray pegou seu tanque e apontou para longe.
Vigor concordou com um aceno de cabeça, mas seu rosto esquadrinhou as águas turvas.
Gray interpretou o medo dele.
Rachel.
Eles tinham de sobreviver para poder ajudar. Gray afastou-se, conduzindo Vigor. Eles encontrariam um nicho em meio ao monte de blocos de pedra e detritos para se esconderem. Antes, ele notara um esquife naufragado enferrujado a cerca de dez metros, emborcado e inclinado contra as rochas.
Ele guiou Vigor ao longo do recife. O barco naufragado apareceu. Ele acomodou o monsenhor à sombra do barco, fez um sinal para Vigor permanecer ali e em seguida pôs seu tanque às pressas, deixando os braços livres.
Gray apontou para fora e fez um movimento circular.
Eu vou procurar os outros.
Vigor concordou com um aceno de cabeça, tentando — era a impressão que se tinha — parecer esperançoso.
Gray voltou em direção ao túnel, mantendo-se próximo ao leito do mar. Se fosse possível, os outros se dirigiriam aos tanques de ar. Ele moveu-se furtivamente de sombra em sombra, mantendo-se junto aos blocos de pedra.
Quando se aproximava da entrada do túnel, um brilho aumentou de intensidade. Ele diminuiu o ritmo. Luzes individuais diferenciaram-se, projetando-se sobre as rochas e voltadas para fora.
Ele esgueirou-se para a escuridão por trás de um fragmento de rocha e espreitou.
Mergulhadores de traje preto aglomeravam-se em torno da abertura do túnel. Eles usavam minitanques, contendo ar suficiente para menos de vinte minutos, feitos para mergulhos curtos.
Gray observou um mergulhador penetrar na abertura e desaparecer.
Depois de alguns segundos, os outros devem ter recebido alguma confirmação. Mais cinco mergulhadores precipitaram-se um após o outro no túnel. Gray reconheceu a última forma elegante a desaparecer no poço do túmulo.
Seichan.
Gray afastou-se. Nenhum de seus colegas de equipe iria ali agora.
Quando ele saiu do esconderijo, uma forma assomou à sua frente, surgindo do nada. Grande. A ponta afiada de um arpão pressionou a carne de sua barriga.
Luzes brilharam em torno dele.
Por trás da máscara, Gray reconheceu as feições rudes de Raoul.
Rachel ajudou a libertar Monk. O arpão havia prendido uma aba de seu traje de mergulho no leito do mar. Ela puxou com força, soltando-o.
A dois metros de distância, os dois mergulhadores flutuavam em seus trenós aquáticos, como surfistas em pranchas quebradas. Um deles acenou para que eles subissem à superfície. Agora.
Rachel não necessitava da exortação.
Enquanto ela obedecia, uma sombra escura moveu-se rapidamente acima e atrás dos dois mergulhadores.
O quê...?
Dois clarões prateados bruxulearam.
Um mergulhador segurou a traquéia da máscara dele. Tarde demais.
Através da máscara do homem, Rachel viu sua respiração ofegante extinguir-se num jorro de água do mar. O outro teve menos sorte ainda: foi arrancado de seu trenó por uma faca alojada na garganta.
O sangue espalhou-se numa nuvem.
O agressor puxou a lâmina e a nuvem ficou mais espessa.
Rachel divisou a listra cor-de-rosa no traje negro do agressor.
Kat.
O primeiro mergulhador asfixiou-se e contorceu-se, afogando-se em sua máscara. Ele tentou escapar para a superfície, mas Kat estava lá, com facas em ambas as mãos, que o liquidaram com eficiência brutal.
Kat chutou o corpo dele, que, tornado mais pesado pelo tanque e pelo cinto de chumbo, foi arrastado para as profundezas.
Ao terminar, ela levou o trenó dele para Rachel e Monk, apontou para a superfície e em seguida para o trenó.
Para fugirem rapidamente.
Rachel não tinha a menor idéia de como operar o veículo, mas Monk sim. Ele subiu na meia-prancha, segurou nos controles parecidos com um guidom e acenou para Rachel montar em suas costas, indo na garupa.
Ela o fez, passando os braços em torno dos ombros dele. As luzes agora dançavam no canto de seus olhos.
Kat nadou até o outro trenó, tendo na mão uma arma de pesca subaquática.
Monk girou o acelerador manual, e o trenó os levou embora, para ci-
ma, para a segurança, para o ar fresco.
Eles irromperam das ondas como uma baleia saltando para fora d'água e depois chocaram-se súbita e impetuosamente contra a superfície.
Rachel estava abalada, mas continuou segurando firme. Monk saiu a toda a velocidade pelas águas tranqüilas, ziguezagueando por entre os detritos em chamas. Uma espessa camada de óleo cobria a água.
Rachel arriscou soltar uma das mãos para tirar a máscara, sorvendo o ar.
Ela também puxou a máscara de Monk para cima.
— Ai! — disse ele. — Cuidado com o nariz.
Eles passaram pelo casco emborcado da lancha deles — apenas para depararem com a longa forma do aerobarco esperando por eles à esquerda.
— Talvez eles não tenham nos visto — sussurrou Monk.
Armas de fogo matraquearam, cuspindo balas através da água, bem na direção deles.
— Agüente firme! — gritou Monk.
A ponta do arpão de Raoul fez Gray sair de seu esconderijo. Outro mergulhador ergueu um segundo arpão ao lado da garganta dele.
Quando Gray se moveu, uma faca empunhada por Raoul o golpeou.
Ele retraiu-se, mas a lâmina apenas cortou as alças de seu tanque de ar.
O pesado cilindro caiu em direção ao fundo. Raoul fez um aceno para que ele desconectasse o regulador. Será que queriam afogá-lo?
Raoul apontou para a entrada do túnel ali próximo.
Aparentemente, eles desejavam interrogá-lo primeiro.
Ele não tinha escolha.
Gray nadou para a entrada, flanqueado por guardas. Ele mergulhou através do túnel, tentando pensar em algum plano. Deslizou até o poço de entrada e encontrou a câmara cercada de outros homens usando trajes úmidos. Os minitanques deles eram pequenos o bastante para permitir que atravessassem o túnel. Alguns estavam tirando seus coletes e tanques de ar. Outros apontavam armas de pesca subaquática, alertados por Raoul.
Gray saiu do tanque e tirou a máscara. Cada movimento seu era acompanhado pela ponta de um arpão.
Ele notou Seichan encostada numa parede, parecendo estranhamente relaxada. Seu único reconhecimento foi o aceno de um dedo.
Olá.
No outro lado de Gray, uma forma emergiu no poço de entrada. Raoul. Num único movimento, o homenzarrão saiu do poço e ficou em pé, apoiado num só braço, numa demonstração atlética de força. Seu corpo deve ter passado com dificuldade pelo túnel. Ele havia abandonado seus minitanques lá fora.
Tirando a máscara e puxando o capuz para trás, ele caminhou a passos largos em direção a Gray.
Era a primeira vez que Gray olhava bem para o homem. Seus traços eram ásperos, o nariz longo e fino, aquilino. Seus cabelos pretos como carvão caíam até os ombros. Seus braços eram uma montanha de músculos, tão grossos quanto as coxas de Gray, claramente desenvolvidos à base de esteróides e de muito tempo passado numa academia de ginástica, não pelo trabalho de verdade
Escória européia, pensou Gray.
Raoul olhou-o de alto a baixo, tentando intimidá-lo.
Gray apenas ergueu uma sobrancelha zombeteiramente.
— O que foi?
— Você vai nos contar tudo o que sabe — disse Raoul, num inglês fluente, mas com um forte sotaque, desdenhoso e algo germânico.
— E se eu não contar?
Raoul acenou com um braço quando outra forma emergiu no poço de entrada. Gray imediatamente reconheceu Vigor. O monsenhor fora encontrado.
— Não existe muita coisa que um radar de varredura lateral não possa detectar — disse Raoul.
Vigor foi brutamente tirado do poço. O sangue do ferimento em seu couro cabeludo escorria por um lado de seu rosto. Ele foi empurrado em direção a eles, mas tropeçou de exaustão e caiu pesadamente de joelhos.
Gray curvou-se para ajudá-lo, mas a ponta de um arpão o fez recuar.
Outro mergulhador veio à tona no poço. Ele sem dúvida carregava algo pesado. Raoul dirigiu-se ao homem e aliviou-o de sua carga. Era outra daquelas bombas em forma de haltere. Uma granada incendiária.
Raoul pôs o dispositivo a tiracolo sobre um ombro e voltou para eles. Ergueu sua própria arma de pesca subaquática e apontou-a para a entre-perna de Vigor.
— Como o monsenhor de qualquer modo renunciou solenemente ao uso dessa parte de sua anatomia, vamos começar por ela. Qualquer passo em falso, e o monsenhor poderá entrar para o coro de castrati de sua igreja.
Gray empertigou-se.
— O que você quer saber?
— Tudo... mas primeiro nos mostre o que você achou.
Gray ergueu um braço na direção do túnel que levava ao túmulo de Alexandre, depois moveu-o para a direção do outro túnel, o mais curto dos dois, o que exigia que se abaixasse para atravessá-lo.
— É por ali — disse ele.
Os olhos de Vigor arregalaram-se.
Raoul deu um largo sorriso, ergueu sua arma de pesca subaquática e acenou para que um grupo de homens entrasse no túnel.
— Chequem isso.
Cinco deles correram para o túnel, deixando três homens com Raoul.
Encostada próximo à entrada do túnel, Seichan observou o grupo desaparecer e deu um passo para segui-lo.
— Você não — disse Raoul.
Seichan olhou por cima de um ombro.
— Você e seus homens querem sair deste porto?
O rosto de Raoul enrubesceu.
— O barco para a fuga é nosso — lembrou-lhe ela e mergulhou no túnel.
Raoul fechou um punho mas permaneceu calado.
Encrenca no paraíso...
Gray virou-se. O olhar de Vigor pousava fixamente nele. Gray fez um movimento com os olhos. Caia fora na primeira oportunidade.
Ele voltou a olhar para o túnel e rezou para estar certo acerca do enigma da Esfinge. A resposta errada significava a morte. E isso sem dúvida estava prestes a ser provado ali, de uma maneira ou de outra.
Restava apenas um mistério por responder.
Quem morreria?
Monk apostava corrida com as balas. Seu trenó aquático a jato deslizava pela água. Rachel segurava-se a ele por trás, quase sufocando-o.
O porto estava um caos. Outras embarcações fugiam do conflito, dispersando-se como um cardume de peixes. Monk atingiu a esteira de um barco à deriva e voou alto.
Os disparos atingiam as ondas abaixo.
— Segure firme! — gritou ele.
Ele inclinou o trenó para um dos lados assim que eles bateram na água. Eles afundaram. Ele corrigiu o curso e mergulhou mais fundo, indo a grande velocidade através da água a uma profundidade de um metro.
Pelo menos era o que ele esperava.
Monk havia estreitado os olhos. Sem a máscara, não conseguiria ver muita coisa de qualquer modo. Porém, antes de mergulhar, teve um vislumbre de um veleiro ancorado bem em frente.
Se pudesse passar por baixo dele... deixá-lo entre ele e o aerobarco...
Ele contou mentalmente, calculando, rezando.
O mundo momentaneamente ficou mais escuro através de suas pálpebras. Eles estavam embaixo da sombra do veleiro. Ele fez uma contagem extra até quatro e inclinou-se em direção à superfície.
Eles voltaram a irromper na luz do sol e no ar.
Esticando o pescoço, Monk olhou para trás. Eles haviam mais do que se livrado do veleiro.
— Fodam-se, está bem?!
O aerobarco teve de contornar o obstáculo, perdendo terreno.
— Monk! — Rachel gritou em seu ouvido.
Ele olhou para a frente e viu um paredão retangular de um barco diante dele, a casa flutuante do casal nu. Merda! Eles voavam bem na direção de bombordo. Não havia como recuar.
Monk forçou seu peso para a frente e embicou o nariz de seu trenó para baixo. Eles afundaram num mergulho abrupto... mas seria abrupto o suficiente para eles passarem por baixo da casa flutuante, como ele passara por baixo do veleiro?
A resposta era não.
O nariz do trenó chocou-se contra a quilha, fazendo o veículo virar em direção contrária. Monk segurou o guidom com força. O trenó deslizou contra o lado de madeira do barco enquanto cracas dilaceravam seu ombro. Ele acelerou rapidamente o veículo e afundou mais um pouco.
Afinal passou embaixo do barco e voltou a acelerar em águas claras.
Ele seguiu em frente a toda a velocidade, sabendo que tinha pouco tempo.
Rachel desaparecera, derrubada do trenó pela primeira colisão.
Gray reteve o fôlego.
Uma comoção imediatamente soou do fim do túnel baixo. O primeiro homem devia ter alcançado o fim da passagem. Ela devia ter sido curta.
— Eine Goldtür! — ele ouviu gritarem. Uma porta de ouro!
Raoul correu para a frente, arrastando Gray consigo. Vigor foi mantido encurralado à beira do poço por um mergulhador com uma arma de pesca subaquática.
O túnel, iluminado pelas lanternas dos exploradores, estendia-se por cerca de apenas trinta metros e era ligeiramente curvo. O fim não podia ser visto, mas os dois últimos homens da fila — e Seichan — estavam delineados contra o clarão, todos olhando fixamente para a frente.
Gray teve um medo súbito de que talvez eles estivessem errados acerca da chave de ouro que haviam encontrado. Talvez ela se destinasse a abrir aquela porta.
— Es wird entriegelt! — gritou alguém. — Está destrancada!
De onde estava, Gray ouviu o estalo quando a porta foi aberta.
Foi alto demais.
Seichan também devia ter percebido. Ela deu meia-volta e avançou aos trancos e barrancos em direção a eles. Mas era tarde demais.
De todas as paredes, estacas de aço pontiagudas projetaram-se de fendas e recessos encobertos pelas sombras. Elas saíram espetando através da passagem, trespassando carne e ossos, e incrustaram-se em orifícios perfurados no lado oposto. O emaranhado letal começou no fundo da caverna e avançou para fora em questão de dois segundos.
Luzes balouçavam-se. Homens gritavam, empalados, trespassados pelas estacas.
Seichan conseguiu chegar a dois passos da saída, mas o fim da armadilha a pegou. Uma única estaca pontiaguda projetou-se e trespassou seu ombro. Ela parou com um movimento brusco, as pernas fugindo de baixo dela.
Um grito de dor sufocado foi o único som que ela emitiu, pendurada e espetada na barra de aço.
Em choque, Raoul relaxou a pressão sobre Gray.
Tirando proveito da situação, Gray libertou-se com um safanão violento e correu em direção ao poço.
— Caia fora! — gritou para Vigor.
Antes que pudesse dar um segundo passo, algo atingiu com força a parte posterior de sua cabeça. Ele caiu apoiado num joelho. Foi golpeado de novo, no lado da cabeça, uma coronhada com a empunhadura de uma arma de pesca subaquática.
Ele havia subestimado a rapidez do gigante.
Um erro.
Raoul chutou o rosto de Gray e pressionou uma bota em seu pescoço, caindo sobre ele com todo o seu peso.
Sufocando, Gray observou Vigor ser tirado de volta do poço. O monsenhor fora pego pelo tornozelo e não conseguira escapar.
Raoul abaixou-se, olhando maldosamente para Gray.
— Um truquezinho odioso — disse ele.
— Eu não sabia...
A bota pressionou com mais força, esmagando suas palavras.
— Mas você me livrou de alguns problemas — continuou ele — tirando aquela piranha de ação. Mas agora nós temos um trabalhinho a executar... nós dois.
Rachel voltou com dificuldade à superfície, tornando a bater a cabeça contra o lado do barco. Ela sufocou com um bocado de água e avançou para o céu aberto. Tossiu e engasgou repetidas vezes, reflexivamente, incapaz de parar, os membros debatendo-se.
Um portão de repente baixou, e ela viu um homem de meia-idade ali de pé, completamente nu.
— Tudo bem, menina? — perguntou-lhe em português.
Ela sacudiu a cabeça, ainda tossindo.
Ele curvou-se e ofereceu-lhe um braço. Ela o pegou e foi puxada para cima, ficando em pé toda trêmula. Onde estava Monk?
Ela viu o aerobarco descrever uma curva, seguindo para águas mais profundas. O motivo logo se tornou evidente. Duas lanchas-cruzeiros da polícia egípcia partiram do píer distante, aumentando a rotação do motor, ganhando velocidade, reagindo afinal. O caos no porto devia tê-los retardado, mas antes tarde do que nunca.
Ela respirou de alívio.
Rachel virou-se e deparou com a esposa ou companheira do homem, também nua.
Exceto pela arma.
Monk flutuou em torno da popa da casa flutuante, à procura de Rachel. Mais longe, no porto, uma lancha-cruzeiro da polícia uivou através das águas. As luzes emitiam um vermelho e um branco raivosos. O aero-barco afastou-se, ganhando velocidade, erguendo-se em toda a extensão de seus flutuadores.
Fugindo.
A polícia não tinha como pegá-lo. O aerobarco partiu... para águas internacionais ou para algum outro ancoradouro clandestino.
Monk voltou toda a sua atenção para a busca de Rachel. Receava encontrá-la boiando com o rosto voltado para baixo, afogada nas águas poluídas. Deu a volta à popa, permanecendo próximo ao barco.
Ele percebeu movimento no convés de trás da casa flutuante.
Rachel... ela estava de costas para ele, mas parecia trêmula. O homem nu de meia-idade amparava-a com um braço.
Monk reduziu a velocidade.
— Rachel... tudo bem com vo...?
Ela olhou em pânico para trás. O homem ergueu o outro braço. Ele segurava um rifle automático de cano curto, apontado para o rosto de Monk.
— Oh... eu acho que não — murmurou Monk.
O pescoço de Gray estava quase quebrando.
Raoul ajoelhou-se em cima dele, um joelho bem no meio de suas costas, o outro na parte posterior de seu pescoço. Uma de suas mãos estava enrascada nos cabelos de Gray e puxava sua cabeça para trás. A outra mão do homem segurava a arma de pesca subaquática estendida na direção do olho esquerdo de Vigor.
O monsenhor estava de joelhos, flanqueado por dois mergulhadores com armas extras. Um terceiro observava, com um olhar carrancudo e uma faca equilibrada na mão. Todos os olhos estavam estreitados de puro ódio.
O truque de Gray havia matado cinco dos homens, companheiros de armas.
Gemidos ainda ecoavam do túnel ensangüentado, mas não haveria salvação para eles, apenas vingança.
Raoul inclinou-se mais para perto.
— Chega de brincadeiras. O que você aprendeu den...
Um golpe forte acompanhado de um zumbido interrompeu suas palavras.
A arma de pesca subaquática caiu da mão de Raoul, que deu um berro ensurdecedor ao soltar Gray.
Livre, Gray rolou pelo chão, agarrou a arma de pesca subaquática abandonada e acertou um dos homens que seguravam Vigor.
A haste trespassou o pescoço do mergulhador, jogando-o para trás.
O outro homem empertigou-se, apontando sua arma para Gray, mas, antes que pudesse disparar, um arpão cintilou no ar, vindo do poço, e atravessou a barriga do homem.
Sua arma disparou reflexivamente, mas o disparo saiu a esmo enquanto ele cambaleava para trás.
Vigor jogou apressadamente para Gray a única arma de pesca subaquática que não havia sido disparada e em seguida abaixou-se.
Gray agarrou-a e virou-se na direção de Raoul.
O gigante correu para o túnel próximo, o que conduzia ao túmulo de Alexandre. Raoul segurou com uma das mãos o outro pulso, a palma trespassada pela extensão de um arpão de aço.
O tiro de Kat fora preciso, desarmando e incapacitando o homem.
O último homem da Corte, aquele com o punhal, foi o primeiro a entrar no túnel, abrindo o caminho, seguido por Raoul.
Gray levantou-se, mirou nas costas de Raoul e disparou.
O arpão voou pelo túnel. Raoul não chegaria a tempo à primeira curva. A haste atingiu o homenzarrão nas costas e tiniu.
O arpão caiu estrondosa e inofensivamente no chão de pedra.
Gray praguejou contra a sorte. Ele atingira a granada incendiária que ainda estava pendurada no ombro de Raoul. Salvo pela sua própria maldita bomba.
O gigante desapareceu após a primeira curva da passagem.
— Nós temos de ir — disse Kat. — Eu matei os dois guardas lá fora, chegando de mansinho num de seus próprios trenós aquáticos e pegando-os de surpresa. Mas eu não sei quantos mais estão lá.
Gray olhou para o túnel, hesitante.
Vigor já estava na água.
— Rachel...?
— Eu a mandei embora com Monk noutro trenó. Eles devem estar na praia a esta altura.
Vigor abraçou Kat rapidamente, os olhos brilhantes de lágrimas de alívio. Ele puxou a máscara para baixo.
— Comandante?
Gray pensou em ir no encalço de Raoul, mas um cão acuado era o mais perigoso. Ele não sabia se Raoul tinha uma pistola envolta em material impermeável ou alguma outra arma escondida, mas o bastardo indiscutivelmente tinha uma bomba. Raoul poderia lançá-la ali para detonar logo e acabar com todos eles.
Ele afastou-se.
Eles tinham o que precisavam.
Uma de suas mãos bateu de leve no bolso da coxa e na chave de ouro escondida.
Estava na hora de cair fora.
Gray pôs sua máscara e juntou-se aos outros. No chão de pedra, o homem cuja garganta ele acertara já estava morto. O outro gemia, com a barriga inteiramente trespassada. O sangue empoçava-se sob ele. Atingido no rim. Ou talvez sua aorta tivesse sido seccionada. Ele estaria morto em minutos.
Gray não teve a menor piedade. Ele se lembrou das atrocidades em Colônia e Milão.
— Vamos dar o fora daqui.
Raoul puxou o arpão de sua mão. O aço esmagara o osso. Um ardor estendeu-se através do braço até o peito, exaurindo sua respiração num sibilo de ira. O sangue jorrou. Ele tirou a luva e pressionou o neoprene em torno da palma, estancando a ferida e exercendo pressão sobre ela.
Nenhum osso fraturado.
O dr. Alberto Menardi tinha conhecimentos médicos para tratar daquilo.
Raoul correu os olhos pela sala, iluminada pela sua lanterna no chão.
Que diabo de lugar era aquele?
A pirâmide de vidro, a água, a cúpula estrelada...
O último sobrevivente, Kurt, voltou pela passagem. Ele tinha ido verificar o poço de entrada.
— Eles foram embora — informou. — Bernard e Pelz estão mortos.
Raoul terminou seus primeiros socorros e pensou no próximo passo.
Eles teriam de evacuar rapidamente. Os americanos poderiam enviar a polícia egípcia diretamente para ali. O plano original fora atrair as autoridades locais para longe com o aerobarco, deixando Raoul e sua equipe para fazerem em segredo uma investigação minuciosa ali embaixo, e em seguida fugir na desajeitada e discreta casa flutuante.
Agora a situação havia mudado.
Praguejando, Raoul curvou-se sobre a sua mochila no chão. Ela continha uma câmera digital. Ele faria um registro visual, entregá-lo-ia a Alberto e encurralaria os americanos.
Ainda não tinha acabado.
Quando Raoul tirou a câmera da mochila, seu pé tropeçou na alça que prendia a granada incendiaria. Uma dobra do tecido impermeável caiu. Ele a ignorou até notar um ligeiro brilho vermelho na parede próxima.
Caralho...
Curvando-se apoiado num joelho, ele pegou a bomba e virou sua face digital para a frente.
00:33
Ele avistou a profunda marca no invólucro perto do timer. Onde o filho-da-puta do americano havia acertado com o arpão.
00:32.
O impacto devia ter provocado um curto-circuito em alguma coisa, ativado o timer.
Raoul digitou o código de desativação. Nada.
Ele ergueu-se, o movimento repentino fazendo sua mão doer.
— Fora daqui — ordenou a Kurt.
Os olhos do homem estavam fixos na bomba. Mas ele olhou para cima, fez um aceno de cabeça e correu para o túnel.
Raoul encontrou sua câmera digital, tirou várias fotos rápidas, guardou a câmera num bolso e então saiu apressadamente.
00:19.
Ele voltou para a sala de entrada. Kurt já se fora.
— Raoul! — uma voz o chamou.
Ele voltou-se, sobressaltado, mas era apenas Seichan. A piranha ainda estava presa na armadilha no outro túnel.
Raoul acenou para ela.
— Foi ótimo fazer negócios com você.
Ele baixou a máscara e mergulhou livremente no poço. Serpenteou pelo túnel e encontrou Kurt esperando além. O mergulhador examinava dois outros corpos, mais dois homens da equipe. Kurt sacudiu a cabeça.
Uma fúria selvagem cresceu dentro de Raoul.
Em seguida, uma reverberação surda e prolongada agitou a água, soando como um trem de carga que passava. O túnel atrás dele reluziu com um brilho laranja opaco. Ele olhou para trás enquanto o clarão diminuía rapidamente. Aos poucos o tremor passou.
Tudo se acabara.
Raoul fechou os olhos. Não tinha nada para mostrar. A Corte mandaria cortar seus colhões... e provavelmente mais. Ele cogitou em simplesmente nadar para longe, desaparecer. Tinha dinheiro depositado em três diferentes contas em bancos suíços.
Mas seria procurado.
O rádio de Raoul zuniu em seu ouvido.
— Foca Um, aqui é Rebocador Lento.
Ele abriu os olhos. Era o barco de resgate.
— Aqui é Foca Um — respondeu ele devagar.
— Temos dois outros passageiros a bordo.
Raoul franziu o cenho.
— Por favor, esclareça.
— Uma mulher que você conhece e um americano.
Raoul fechou o punho ferido. A água salgada queimava com uma agonia purificadora. O ardor disseminou-se pelo corpo dele.
Perfeito.
Gray andava de um lado para outro da suíte de hotel, a que Monk já havia reservado para o grupo. Eles estavam no último andar do Hotel Corniche, aonde haviam chegado fazia 25 minutos. As janelas da sacada davam para o perfil de vidro e aço da nova Biblioteca de Alexandria. O porto além brilhava como gelo azul-escuro. Barcos e iates pareciam incrustados no lugar. A calma rapidamente voltara ao porto.
Vigor assistira à emissora de TV noticiosa da cidade e ouvira quando um locutor egípcio informou sobre um confronto entre um grupo de traficantes de drogas. A polícia não conseguira prendê-los. A Corte escapara.
Gray também soube que o túmulo fora destruído. Ele e os outros haviam usado tanques de ar e dois dos trenós aquáticos abandonados para fugir para o outro lado do porto, onde esconderam o equipamento sob um píer. Porém, durante a travessia, Gray ouviu um som abafado através da água embaixo dele.
A granada incendiária.
Raoul devia tê-la explodido ao fugir.
Assim que saíram da enseada em seus trajes de banho, Gray, Kat e Vigor misturaram-se a uma multidão de pessoas que tomavam banho de sol e cruzaram um parque à beira-mar até o hotel. Gray havia esperado encontrar Monk e Rachel ali.
Mas continuava a não haver nenhum sinal dos dois.
Nenhum recado, nenhum telefonema.
— Onde eles poderiam estar? — perguntou Vigor.
Gray virou-se para Kat.
— E você os viu afastar-se num dos trenós aquáticos motorizados?
Ela acenou positivamente com a cabeça, o rosto tenso de culpa.
— Eu deveria ter-me certificado...
— E nós dois estaríamos mortos — disse Gray. — Você fez uma escolha.
Ele não podia culpá-la.
Gray esfregou os olhos.
— E Monk está com ela.
Isso lhe dava certo conforto.
— O que vamos fazer? — indagou Vigor.
Gray baixou os braços e olhou através da janela.
— Nós temos de admitir que eles foram capturados. Não podemos confiar em que a nossa segurança aqui dure muito mais tempo. Nós teremos de evacuar.
— Partir? — disse Vigor, levantando-se.
Gray sentiu todo o peso de sua responsabilidade. Ele encarou Vigor, recusando-se a desviar o olhar.
— Nós não temos escolha.
Rachel vestiu o roupão de tecido felpudo. Ela ajustou-o em torno do corpo nu enquanto olhava para a outra ocupante da cabine.
A mulher loura, alta e musculosa ignorou-a e dirigiu-se à porta da cabine.
— Já terminei aqui! — gritou em direção ao corredor.
A porta abriu-se e revelou uma segunda mulher, irmã gêmea da primeira, mas de cabelos castanho-avermelhados. Ela entrou e segurou a porta para Raoul. O homenzarrão passou curvado pela porta.
— Ela está limpa — informou a loura, tirando um par de luvas de borracha. Ela havia feito uma revista completa nos orifícios do corpo de Rachel. — Não tem nada escondido.
Certamente não mais, pensou Rachel com raiva. Ela virou ligeiramente de costas e deu um nó na faixa do roupão, um nó apertado, abaixo dos seios. Seus dedos tremiam. Ela apertou o nó com os dedos. Lágrimas ameaçavam brotar em seus olhos, mas ela resistiu, recusando-se a dar esse prazer a Raoul.
Rachel olhou através da minúscula vigia, tentando identificar algum ponto de referência, alguma coisa que assinalasse onde ela estava. Mas tudo o que viu foi um mar sem traços característicos.
Ela e Monk haviam sido transferidos da casa flutuante. A embarcação pesada saíra do porto, encontrara-se com uma lancha de corrida, e os dois foram amarrados, encapuzados e amordaçados por quatro homens pescoçudos. Eles foram empurrados para o barco menor, depois desapareceram rapidamente, quicando sobre as ondas. Parecia que haviam viajado meio dia, mas provavelmente a viagem havia durado pouco mais de uma hora.
Assim que o capuz foi tirado de seu rosto, Rachel descobriu que o sol mal havia se movido no céu.
Numa pequena enseada, oculta por uma grande quantidade de rochas, o aerobarco familiar esperava como um tubarão azul-escuro. Homens soltavam as amarras, preparando-se para zarpar. Ela avistara Raoul na popa, os braços cruzados no peito.
Levados à força a bordo, Rachel e Monk foram separados.
Raoul encarregara-se de Monk.
Rachel ainda não sabia o que acontecera a seu colega de equipe. Ela havia sido empurrada para uma cabine embaixo do convés principal, guardada pelas duas amazonas. Imediatamente o aerobarco afastara-se devagar da enseada e saíra a toda a velocidade, seguindo direto para o Mediterrâneo.
Isso acontecera mais de meia hora atrás.
Raoul avançou e segurou-a pelo braço. A outra mão dele estava enfaixada.
— Venha comigo.
A forte pressão de seus dedos chegava até o osso.
Ela foi conduzida para o corredor com lambris de madeira, iluminado por candelabros de parede. O corredor ia da popa à proa, ladeado por portas de cabines privadas. Havia apenas uma escada íngreme, mais parecida com uma escada de mão, para o convés principal.
Em vez de subir, Raoul a fez marchar em direção à proa.
Raoul bateu à porta da última cabine.
— Entri — disse uma voz abafada.
Raoul abriu a porta e puxou Rachel para dentro. A cabine era maior do que a cela em que ela fora aprisionada. Além de uma cama e uma cadeira, ela continha uma escrivaninha, uma mesa lateral e prateleiras de livros.
Em cada superfície plana estavam empilhados textos, revistas e até pergaminhos. Num canto da escrivaninha havia um laptop.
O ocupante da cabine empertigou-se e virou-se. Ele estivera inclinado sobre a escrivaninha, os óculos empoleirados na ponta do nariz.
— Rachel — disse o homem calorosamente, como se eles fossem amicíssimos.
Ela reconheceu o homem mais velho da época em que ela acompanhava o tio Vigor às Bibliotecas do Vaticano. Era o prefeito-chefe dos Arquivos, o dr. Alberto Menardi. O traidor era apenas alguns centímetros mais alto do que ela, mas tinha uma eterna postura encurvada, o que o fazia parecer mais baixo.
Ele bateu de leve numa folha de papel em sua escrivaninha.
— Pela recente escrita à mão — de uma mulher, se não me engano —, este mapa deve ter recebido acréscimos de sua própria mão.
Ele acenou para que ela se aproximasse.
Rachel não tinha escolha. Raoul empurrou-a para a frente.
Ela tropeçou numa pilha de livros e teve de segurar-se na borda da escrivaninha para não cair. Olhou para o mapa do Mediterrâneo. Nele estava desenhada a ampulheta e também estavam marcados os nomes das Sete Maravilhas.
O rosto dela continuou impassível.
Eles haviam encontrado o mapa dela, que ela havia lacrado num bolso de seu traje seco. Agora ela desejava que o tivesse queimado.
Alberto inclinou-se um pouco mais. Seu hálito recendia a azeitonas e vinho verde. Ele correu uma unha ao longo da linha do eixo que Gray havia traçado. Ela parou em Roma.
— Conte-me sobre isto.
— É aonde devemos ir em seguida — Rachel mentiu. Ela estava aliviada de que seu tio não tivesse traçado a linha no mapa à tinta. Ele simplesmente estendera a linha com o dedo e a lâmina reta da faca de Gray.
Alberto virou a cabeça.
— Ora, o que é isso? Eu gostaria de saber tudo a respeito do que se passou naquele túmulo. Nos mínimos detalhes. Raoul foi muito gentil em me fornecer fotos digitais, mas eu acho que um relato de primeira mão seria mais valioso.
Rachel permaneceu em silêncio.
Os dedos de Raoul apertaram o braço dela. Ela estremeceu.
Alberto acenou para que Raoul saísse.
— Não há necessidade disso.
A pressão relaxou, mas Raoul não soltou Rachel.
— Você tem o americano para isso, não tem? — perguntou Alberto.
— Talvez seja melhor você mostrar a ela. Nós todos poderíamos tomar um pouco de ar fresco, não é?
Raoul deu um largo sorriso.
Rachel sentiu um nó de terror apertar o seu coração.
Ela foi conduzida para fora da cabine e obrigada a subir os degraus.
Enquanto ela subia, Raoul deslizou uma das mãos pelo roupão dela, ao longo da coxa, os dedos massageando. Ela arrastou-se para cima.
A escada conduzia à popa aberta do aerobarco. A luz do sol irradiava-se do piso branco do convés. Três homens estavam recostados em bancos laterais, armados despreocupadamente com rifles de assalto.
Eles olharam para ela.
Ela apertou mais o roupão, sobressaltada, ainda sentindo os dedos de Raoul nela. O homenzarrão subiu, seguido por Alberto.
Ela contornou uma pequena parede que separava o poço da escada do convés, e ali encontrou Monk.
Ele estava deitado de bruços, apenas de cueca samba-canção, os pulsos atados atrás das costas e as pernas amarradas firmemente nos calcanhares. Parecia que dois dedos de sua mão esquerda haviam sido quebrados, curvados para trás em ângulos impossíveis. Sangue manchava o convés.
Ele abriu um olho inchado quando ela se aproximou.
Ele não tinha nenhum gracejo para ela.
Aquilo a assustou mais do que tudo.
Raoul e seus homens deviam ter descontado sua ira em Monk, o único alvo.
— Desamarrem os braços dele — ordenou Raoul. — Ponham-no de costas.
Os homens agiram rápido. Monk gemeu quando seus braços foram soltos. Ele foi virado de costas. Um dos guardas segurou um rifle próximo ao ouvido de Monk.
Raoul tirou um machado de incêndio de um suporte.
— O que você está fazendo? — Rachel correu e ficou entre o homenzarrão e Monk.
— Depende de você — respondeu Raoul, erguendo o machado até o ombro.
Um dos homens reagiu a algum sinal discreto. Os cotovelos de Rachel foram seguros e presos atrás das costas dela. Ela foi empurrada para trás.
Raoul apontou o machado, apoiado num só braço, para o terceiro homem.
— Sente-se no peito dele e segure seu braço esquerdo na altura do cotovelo. — Enquanto o homem obedecia, Raoul deu alguns passos à frente e olhou para Rachel. — Eu creio que o professor lhe fez uma pergunta.
Alberto avançou.
— E não omita nenhum detalhe.
Rachel estava horrorizada demais para responder.
— Ele tem cinco dedos deste lado — acrescentou Raoul. — Nós vamos começar pelos que estão quebrados. Eles não têm muita utilidade de qualquer modo.
Ele ergueu o machado.
— Não! — Rachel ficou com a voz embargada.
— Não... — disse-lhe Monk gemendo.
O guarda com o rifle chutou a cabeça dele.
— Eu vou lhes contar! — disse Rachel abruptamente.
Ela falou depressa, explicando tudo o que acontecera, da descoberta do corpo de Alexandre à ativação das baterias antigas. Ela não omitiu nada, exceto a verdade.
— Nós levamos algum tempo, mas solucionamos o enigma... o mapa... as Sete Maravilhas... tudo aponta para o começo. Um círculo completo. De volta a Roma.
Os olhos de Alberto brilharam com o relato, e ele fez algumas perguntas pertinentes, fazendo um aceno de cabeça de vez em quando.
— Sim, sim...
Rachel terminou.
— Isso é tudo o que eu sei.
Alberto virou-se para Raoul.
— Ela está mentindo.
— Foi o que eu pensei — disse Raoul, vibrando o machado para baixo.
Raoul apreciou o grito da mulher.
Ele puxou o olho do machado de onde ele penetrara no convés. Não acertara as pontas dos dedos do prisioneiro pela espessura de um fio de cabelo. Ergueu o machado até o ombro e virou-se para a mulher. O rosto dela havia adquirido uma viva palidez diáfana.
— Da próxima vez vai ser pra valer — advertiu ele.
O dr. Alberto deu um passo à frente.
— Este nosso amigo grandalhão aqui foi hábil o suficiente para tirar uma foto daquela pirâmide no centro. Ela exibe um buraco quadrado na superfície da pirâmide. Algo que você deixou de mencionar. E um pecado de omissão é quase uma mentira. Não é mesmo, Raoul?
Ele ergueu o machado.
— Vamos tentar de novo?
Alberto chegou mais perto de Rachel.
— Não há a menor necessidade de que o seu amigo sofra algum mal.
Eu sei que alguma coisa deve ter sido tirada do túmulo. Não faz sentido apontar às cegas para Roma sem uma pista extra. O que vocês tiraram da pirâmide?
Lágrimas rolavam pela face dela.
Raoul percebeu o tormento em cada linha do rosto dela. Ele teve uma ereção, lembrando-se de alguns instantes atrás. Através de um espelho unidirecional, ele espiara enquanto uma das rameiras do capitão enfiava os dedos em todas as partes íntimas da mulher. Ele mesmo queria fazer a revista no corpo da mulher, mas o capitão recusara. Seu barco, seu domínio.
Raoul não pressionara. O capitão ficou num péssimo estado de humor após ter sido informado do desaparecimento de Seichan, morta junto com tantos homens de Raoul.
Além disso, ele em breve faria sua própria inspeção das partes íntimas da mulher... porém, tencionava ser muito menos gentil.
— O que foi tirado? — insistiu Alberto.
Raoul alongou a postura, levantando o machado bem acima da cabeça.
Sua mão recém-suturada doía, mas ele ignorou a dor. Talvez ela não dissesse... talvez aquilo pudesse ser prolongado...
Mas a mulher cedeu.
— Uma chave... uma chave de ouro — disse ela chorando, e então caiu de joelhos no convés. — Gray... o comandante Pierce está com ela.
Por trás das lágrimas dela, Raoul percebeu um fio de esperança em sua voz.
Ele conhecia um meio de esmagar aquilo.
Baixou o machado num movimento vigoroso e firme, decepando a mão de Monk no pulso.
— Está na hora de partirmos — disse Gray.
Ele havia concedido a Vigor e Kat mais 45 minutos para telefonarem para todos os hospitais e centros médicos da cidade, até mesmo para darem telefonemas discretos para a polícia municipal. Talvez Rachel e Monk tivessem sido feridos e não pudessem entrar em contato com eles. Ou talvez estivessem tomando chá de cadeira na cela de uma prisão.
Gray levantou-se quando seu telefone por satélite tocou em sua mochila.
Todos os olhos viraram-se para ele.
— Graças a Deus — disse Vigor com um suspiro.
Apenas algumas pessoas tinham o número do telefone: o diretor Crowe e seus colegas de equipe.
Gray pegou o telefone, esticou a antena dele e aproximou-se da janela.
— Comandante Pierce — disse ele.
— Eu vou ser breve, para que não haja confusão.
Gray enrijeceu-se. Era Raoul. Aquilo só podia significar uma coisa...
— Nós temos a mulher e o seu colega de equipe. Você fará exatamente o que nós dissermos, ou nós despacharemos as cabeças deles para Washington e Roma... depois de acabarmos de brincar com os corpos deles, é claro.
— Como é que eu posso saber se eles ainda estão...?
Ouviu-se um arrastar de pés no outro lado. Uma nova voz ofegou. Ele sentiu as lágrimas por trás das palavras.
— Eles... Eu... eles deceparam a mão de Monk. Ele...
O telefone foi arrebatado das mãos dela.
Gray tentou não reagir. Agora não era o momento. No entanto, seus dedos apertaram com força o telefone. Seu coração subiu-lhe à garganta, contraindo suas palavras.
— O que você quer?
— A chave de ouro do túmulo — disse Raoul.
Então eles sabiam a respeito dela. Gray entendeu por que Rachel revelara o segredo. Como ela poderia não tê-lo revelado? Ela devia ter negociado a informação em troca da vida de Monk. Eles estavam seguros enquanto a Corte soubesse que a chave estava com Gray. Mas isso não queria dizer que mutilações piores não ocorreriam se ele não cooperasse. Ele se
lembrou do estado dos padres torturados em Milão.
— Você quer negociar — disse ele friamente.
— Às nove da noite sai um vôo da Egypt Air de Alexandria para Genebra, na Suíça. Você estará nesse vôo. Só você. Nós deixaremos documentos falsos e bilhetes aéreos num guarda-volumes automático, de modo que nenhum computador possa rastrear seu vôo. — Seguiram-se as instruções sobre o guarda-volumes automático. — Você não entrará em contato com os seus superiores... nem em Washington nem em Roma. Se você fizer isso, nós saberemos. Entendido?
— Sim — disse ele trincando os dentes. — Mas como eu posso saber que você vai cumprir a sua parte do acordo?
— Você não tem como saber. Mas, como um gesto de boa vontade, quando você aterrissar em Genebra, eu voltarei a entrar em contato com você. Se você seguir as nossas instruções direitinho, eu libertarei o seu colega. Ele será enviado a um hospital na Suíça. Nós lhe transmitiremos uma confirmação satisfatória disto. Mas a mulher ficará sob custódia até você nos entregar a chave.
Gray sabia que a oferta para libertar Monk era provavelmente sincera, mas não por uma questão de boa vontade. A vida de Monk era um avanço nas negociações, um trunfo para fazer com que Gray cooperasse. Ele tentou rejeitar as palavras anteriores de Rachel. Eles haviam decepado a mão de Monk.
Ele não tinha escolha.
— Eu estarei nesse vôo.
Raoul ainda não terminara.
— Os outros membros da equipe... a piranha e o monsenhor... estão livres para partir, desde que fiquem de bico calado e fora do caminho. Se eles pisarem na Itália ou na Suíça, o acordo está desfeito.
Gray franziu o cenho. Ele entendeu que deveria manter os outros fora da Suíça... mas por que também fora da Itália? Então ele se lembrou. Ele imaginou o mapa de Rachel. A linha que ele traçara, apontando para Roma.
Rachel revelara muito... mas não tudo.
Boa menina.
— De acordo — disse Gray, com a mente já girando em várias seqüências imaginárias.
— Qualquer sinal de subterfúgio, e você jamais verá a mulher ou o seu colega de equipe de novo... exceto partes do corpo enviadas diariamente.
A ligação terminou.
Gray baixou o telefone e virou-se para os outros. Ele repetiu a conversação na íntegra, de modo que entendessem.
— Eu estarei naquele vôo.
O sangue desaparecera do rosto de Vigor, seus piores temores haviam-se concretizado.
— Eles poderiam armar uma cilada para você a qualquer momento — disse Kat.
Ele concordou com um aceno de cabeça.
— Mas eu creio que, enquanto eu continuar me movendo em direção a eles, eles vão me deixar em paz. Eles não vão correr o risco de perder a chave numa tentativa fracassada.
— E quanto a nós? — perguntou Vigor.
— Eu preciso de vocês dois em Avignon, trabalhando no enigma ali.
— Eu... eu não posso — disse Vigor. — Rachel...
Ele afundou na cama.
Gray disse com a voz firme.
— Rachel nos deu uma escassa oportunidade em Avignon, certa margem de segurança. Paga com o sangue e o corpo de Monk. Eu não vou deixar que os esforços deles sejam desperdiçados.
Vigor olhou para ele.
— Você tem de confiar em mim. — A conduta de Gray endureceu. — Eu vou resgatar Rachel. Eu lhe dou a minha palavra.
Vigor o encarou, tentando decifrar alguma coisa nele. O que quer que tenha encontrado, parecia que lhe havia conferido certa determinação.
Gray esperava que fosse o suficiente.
— Como você...? — começou Kat.
Gray sacudiu a cabeça, afastando-se.
— Quanto menos nós soubermos dos movimentos uns dos outros a partir de agora, melhor.
Ele atravessou o quarto e pegou sua mochila.
— Eu entrarei em contato com vocês quando resgatar Rachel.
Ele dirigiu-se para fora.
Com uma esperança.
Seichan estava sentada no escuro, segurando um fragmento de uma faca.
A barra de aço pontiaguda que atravessara seu ombro ainda a mantinha presa à parede. A lança com 2,5 centímetros de espessura havia penetrado embaixo da clavícula e saído no alto do ombro, sem atingir vasos sangüíneos importantes nem a escápula. Mas ela continuava presa no lugar. O sangue filtrava-se continuamente dentro de seu traje úmido.
Cada movimento era uma agonia.
Mas ela estava viva.
O último dos homens de Raoul silenciara mais ou menos na hora em que a última lanterna expirou. A bomba incendiaria que Raoul havia ativado para destruir a câmara no outro lado mal atingira aquela sala. Não obstante, o calor quase a escaldara; mas agora ela ansiava por aquele calor de novo.
Uma sensação de frio instalara-se, mesmo através de seu traje de mergulho. A superfície das pedras extraía o calor de seu corpo. A perda de sangue não cessava.
Seichan recusava-se a entregar os pontos. Ela correu os dedos pela lâmina quebrada em sua mão. Estivera esburacando o bloco de pedra no local em que a extremidade pontiaguda do arpão penetrara. Se conseguisse arrancá-la, libertar a haste...
Fragmentos de rocha espalhavam-se pelo chão. Ali também estava o punho quebrado de seu punhal. Ele havia quebrado pouco depois de ela ter começado a raspar a rocha.
Tudo o que restara fora um fragmento da lâmina com 7,5 centímetros de comprimento. Seus dedos estavam ensangüentados por causa da lâmina e da rocha áspera. Era um esforço inútil.
Seu rosto estava banhado de suor frio.
Do lado mais afastado, surgiu um clarão. Ela pensou que fosse sua imaginação e virou a cabeça. O poço de entrada brilhava. A iluminação aumentou.
A água agitou-se. Alguém estava vindo.
Seichan segurou o fragmento da faca — receosa e esperançosa ao mesmo tempo.
Quem seria?
Uma forma escura veio à superfície. Um mergulhador. A lanterna cegou-a quando a figura saiu do poço.
Ela protegeu os olhos contra o brilho súbito e ofuscante.
O mergulhador baixou a lanterna.
Seichan reconheceu um rosto familiar quando ele puxou a máscara para trás e se aproximou. O comandante Gray Pierce.
Ele caminhou na direção dela e ergueu uma serra para metal.
— Vamos bater um papo.
O diretor Painter Crowe sabia que estava prestes a passar outra noite em claro. Ele ouvira as reportagens do Egito sobre um ataque no Porto Oriental de Alexandria. Será que a equipe de Gray estivera envolvida? Sem olhos no céu, eles não puderam investigar fazendo um rastreamento por satélite.
E ele ainda não recebera notícias do campo. As últimas haviam sido transmitidas 12 horas atrás.
Painter arrependeu-se de não ter relatado suas suspeitas a Gray Pierce. Porém, àquela altura, elas teriam sido apenas suspeitas. Painter precisara de tempo para refinar mais algumas informações secretas. E mesmo assim ele não tinha certeza. Se ele prosseguisse de uma forma mais audaciosa, o
conspirador saberia que havia sido descoberto. Isso exporia Gray e seus colegas de equipe a mais riscos.
Por isso Painter cuidou da sua parte sozinho.
Uma batida à porta de seu escritório desviou seus olhos da tela do computador.
Ele desligou o monitor do computador para ocultar seu trabalho e ativou o sistema eletrônico que abria a fechadura. Sua secretária já havia ido embora.
Logan Gregory entrou.
— O jato deles está se aproximando do destino.
— Ainda se dirigindo a Marselha? — perguntou Painter.
Logan confirmou com um aceno de cabeça.
— Deve aterrissar daqui a 18 minutos. Pouco depois da meia-noite, hora local.
— Por que a França? — Painter esfregou os olhos cansados. — E eles ainda estão mantendo um blecaute na comunicação?
— O piloto confirmou o destino deles, e nada mais. Usando de artimanhas, eu consegui obter uma lista de passageiros da alfândega francesa.
Há dois passageiros a bordo.
— Apenas dois?
Painter sentou-se mais empertigado, franzindo o cenho.
— Viajando com documentos diplomáticos. Anônimos. Eu posso tentar descobrir mais.
Painter tinha de trabalhar com cuidado a partir dali.
— Não — disse ele. — Isso poderia fazer soar algum tipo de alarme.
A equipe quer manter sua atividade oculta. Nós lhes daremos algum espaço. Por enquanto.
— Sim, senhor. Eu também recebi solicitações de Roma. O Vaticano e os Carabinieri não receberam notícia alguma e estão ficando preocupados.
Painter tinha de oferecer-lhes algo, ou as autoridades da União Européia poderiam reagir com rigor. Ele refletiu sobre as suas opções. Não levaria muito tempo para que as autoridades na Europa se certificassem do destino do jato. A explicação teria de ser satisfatória.
— Seja cooperativo — disse ele afinal. — Informe-os do vôo para Marselha e diga-lhes que lhes transmitiremos mais informações secretas assim que soubermos mais.
— Sim, senhor.
Painter olhou fixamente para a tela vazia de seu computador. Ele tinha um curto período oportuno para realizar seu objetivo.
— Assim que você entrar em contato com eles, vou precisar que me faça um favor. Na DARPA.
Logan franziu o cenho.
— Eu tenho algo que precisa ser entregue pessoalmente ao dr. Sean McKnight. — Painter entregou-lhe uma carta lacrada num envelope vermelho. — Mas ninguém deve saber que você está indo para lá.
Os olhos de Logan estreitaram-se de uma maneira esquisita, mas ele fez um aceno de cabeça afirmativo.
— Eu cuidarei disto.
Ele pegou o envelope, enfiou-o embaixo do braço e afastou-se.
Painter lhe disse:
— Discrição absoluta.
— O senhor pode confiar em mim — disse Logan com firmeza, e fechou a porta com um estalido da fechadura.
Painter voltou a ligar o computador. Ele exibia um mapa da bacia do Mediterrâneo com fileiras amarelas e azuis entrecruzando-se nele. Cursos de satélites.
Ele pôs seu ponteiro sobre uma delas. O mais novo satélite da NRO, apelidado de Hawkeye [Olho do Falcão]. Clicou duas vezes, e na tela apareceram detalhes da trajetória e parâmetros de busca.
Ele digitou o nome Marselha e surgiram os intervalos de tempo. Cruzou os dados com os do mapa meteorológico da NOAA. Uma frente tempestuosa deslocava-se para o sul da França. Uma camada de nuvens pesadas bloquearia o rastreamento. O tempo de que ele dispunha era de fato curto.
Painter consultou o relógio, pegou o telefone e falou com a segurança.
— Eu quero que vocês me informem quando Logan Gregory sair do centro de comando.
— Sim, senhor.
Painter desligou o telefone. O tempo seria crucial. Ele esperou mais 15 minutos, observando a frente tempestuosa deixar seu rastro sobre a Europa Ocidental.
— Vamos — murmurou ele.
O telefone finalmente tocou. Painter confirmou que Logan partira, então se levantou e saiu de seu escritório. A sala de reconhecimento por satélite ficava no andar de baixo, perto do escritório de Logan. Painter correu para lá e encontrou um técnico solitário fazendo anotações numa caderneta, acomodado na bancada em forma de arco de monitores e computadores.
O homem ficou surpreso com a súbita aparição de seu chefe e ficou em pé de um salto.
— Diretor Crowe, senhor... como eu posso ajudá-lo?
— Eu preciso de uma conexão clandestina com o satélite H-E Four da NRO.
— O Hawkeye?
Painter acenou afirmativamente com a cabeça.
— Eu não tenho permissão...
Painter colocou uma longa seqüência alfanumérica diante dele. Era válida apenas pela próxima meia hora e fora obtida por Sean McKnight.
Os olhos do técnico arregalaram-se, e ele pôs-se a trabalhar.
— Não havia a menor necessidade de o senhor vir aqui embaixo. O dr. Gregory poderia ter transmitido os dados para o seu escritório.
— Logan saiu. — Painter pousou uma das mãos no ombro do técnico. — Eu também preciso que todo o registro desta interceptação seja apagado. Nenhuma gravação. Nenhuma palavra de que esta interceptação jamais tenha ocorrido. Mesmo aqui na Sigma.
— Sim, senhor.
O técnico apontou para uma tela.
— Ela vai surgir neste monitor. Eu vou precisar de coordenadas de GPS para poder me concentrar.
Painter forneceu-as a ele.
Após um longo minuto, o escuro aeroporto apareceu na tela.
Aeroporto de Marselha.
Painter regulou a alimentação para dar um zoom em determinado portão. A imagem tremulou e em seguida foi aumentando gradualmente. Surgiu um pequeno avião, um Citation X. Estava parado com a porta aberta próximo ao portão. Painter inclinou-se para a frente, obscurecendo a visão
do técnico.
Será que ele estava atrasado demais?
O movimento pixelou. Uma figura e depois outra tornaram-se visíveis.
Elas desceram a escada às pressas. Painter não precisou ampliar seus rostos.
O monsenhor Verona e Kat Bryant.
Painter esperou. Talvez a lista de passageiros fosse falsa. Talvez todos eles estivessem a bordo.
A tela estremeceu com uma onda de pixels maciços.
— Uma tempestade se aproxima — disse o técnico.
Painter manteve os olhos grudados na tela. Nenhum outro passageiro desembarcou do jato. Kat e o monsenhor desapareceram pelo portão. Com o cenho franzido de preocupação, ele fez um aceno para que a alimentação fosse interrompida. Agradeceu ao técnico e saiu.
Onde diabo estava Gray?
Gray viajava na primeira classe do jato da Egypt Air. Ele tinha de dar crédito à Corte do Dragão. Eles não haviam economizado nos gastos. Ele correu os olhos pela pequena cabine. Oito assentos. Seis passageiros. Um ou mais provavelmente eram espiões da Corte, de olho nele.
Não tinha importância. Ele estava cooperando integralmente... por enquanto.
Ele pegara seus bilhetes aéreos e sua documentação num guarda-volumes de um ônibus e seguira para o aeroporto. O vôo de quatro horas era interminável. Ele comeu a refeição digna de um gourmet, tomou duas
taças de vinho tinto, assistiu a um filme com Julia Roberts e até tirou uma soneca por 42 minutos.
Ele virou-se para a janela. A chave de ouro moveu-se contra o seu peito. Estava pendurada num cordão que ele trazia ao pescoço. O calor de seu corpo aquecera o metal, mas ele ainda pendia pesado e frio. A vida de duas pessoas fazia-o pesar ainda mais. Ele pensou em Monk, tranqüilo, perspicaz, generoso. E em Rachel, uma mistura de aço e seda, intrigante e complicada. Mas o último telefonema da mulher, tão cheio de dor e pânico, assustara-o. A dor que ele sentia ia até a medula, por saber que ela fora capturada sob sua guarda.
Gray olhou através da janela quando o jato fez uma manobra de aproximação abrupta, necessária para aterrissar na cidade encravada nos altíssimos Alpes.
As luzes de Genebra cintilavam. A luz da lua banhava de prata os picos e o lago.
O avião sobrevoou um trecho do rio Ródano que dividia a cidade. O trem de aterrissagem baixou com um gemido. Instantes depois eles estavam aterrissando no Aeroporto Internacional de Genebra.
A aeronave taxiou até o portão de desembarque, e Gray esperou que a cabine estivesse vazia antes de pegar sua única bolsa, cuidadosamente arrumada. Ele esperava ter tudo de que precisava. Pendurando a bolsa no ombro, dirigiu-se para fora.
Ao sair da cabine de primeira classe, ele a esquadrinhou à procura de quaisquer sinais de perigo.
E de outra pessoa. Sua companheira de viagem.
Ela havia viajado na classe econômica. Usava uma peruca loura, um sóbrio traje de passeio azul-marinho e óculos escuros pesados. Comportava-se de um jeito reprimido, o braço esquerdo numa tipóia, meio oculto sob a jaqueta. O disfarce não resistiria a uma inspeção atenta. Mas ninguém a esperava.
Seichan estava morta para o mundo.
Ela saiu na frente dele sem dirigir-lhe o olhar.
Gray seguiu atrás, separado dela por alguns passageiros. No terminal, ele entrou na fila para passar pela alfândega, exibiu seus documentos falsos, que foram carimbados, e saiu. Sua bagagem não fora checada.
Ele avançou a passos largos para a rua bem iluminada, ainda cheia de gente. Viajantes atrasados saíam correndo de carros e táxis. Ele não tinha idéia do que se esperava dele a partir dali. Tinha de esperar algum contato de Raoul. Aproximou-se da fila de táxis.
Seichan desaparecera, mas Gray sentia que ela estava por perto.
Ele precisara de um aliado. Isolado de Washington, de seus próprios colegas de equipe, ele fizera um pacto com o diabo. Ele a libertara com uma serra para metal após obter uma promessa dela. Eles trabalhariam juntos. Em troca da liberdade, ela ajudaria Gray a libertar Rachel. Depois disso, eles seguiriam caminhos diferentes. Todas as dívidas perdoadas, passadas e presentes.
Ela concordara.
Enquanto ele tratava e enfaixava o ferimento dela, ela olhara para ele de uma forma muito estranha, nua até a cintura, os seios à mostra, imperturbável. Observou-o atentamente, como se ele fosse uma curiosidade, um inseto estranho, profundamente concentrada. Pouco falou, exausta, talvez em ligeiro estado de choque. Mas recuperou-se suavemente, uma leoa despertando devagar, astúcia e diversão iluminando seus olhos.
Gray sabia que a cooperação dela era menos por obrigação do que por fúria contra Raoul. A cooperação satisfazia sua necessidade imediata.
Ela fora deixada para trás para morrer, para ter um fim lento e agonizante, e queria fazer Raoul pagar. Qualquer que fosse o acordo firmado entre a Corte e a Guilda, para ela estava tudo acabado. A vingança era tudo que restara.
Mas isso era tudo?
Gray lembrou-se dos olhos dela sobre ele e de sua enigmática curiosidade. Mas ele também se lembrou da advertência anterior de Painter sobre ela. Isso devia ter sido óbvio no rosto dele.
— Sim, eu vou trair você — disse Seichan com franqueza enquanto vestia a camisa. — Mas só depois que tudo isto tiver terminado. Você tentará o mesmo. Nós dois sabemos disto. Desconfiança mútua. Existe uma forma melhor de honestidade?
O telefone por satélite de Gray tocou afinal. Ele tirou-o da bolsa.
— Comandante Pierce — disse sobriamente.
— Bem-vindo à Suíça — disse Raoul. — Há passagens de trem esperando por você no terminal do centro da cidade, sob o seu nome falso, com destino a Lausanne. O trem parte daqui a 35 minutos. Você estará nele.
— E o meu colega de equipe? — perguntou Gray.
— Conforme combinado, ele está a caminho do hospital em Genebra.
Você receberá a confirmação quando embarcar no trem.
Gray encaminhou-se para os táxis.
— E a tenente Verona? — perguntou ele.
— Por enquanto, a mulher está sendo bem acomodada. Não perca o seu trem.
A ligação caiu.
Gray entrou num táxi. Ele não se preocupou em procurar Seichan, porque havia instalado um chip em seu telefone, conectado ao telefone celular dela. Ela havia ouvido a conversa. Ele confiava na habilidade dela de acompanhá-lo.
— Estação ferroviária central — disse ele ao motorista.
Com um breve aceno de cabeça, o motorista entrou no tráfego e seguiu para o centro de Genebra. Gray afundou em seu assento. Seichan tinha razão. Ao saber que ele fora convocado à Suíça, ela dissera-lhe onde suspeitava que Rachel estivesse sendo mantida. Em algum castelo nos Alpes da Savóia.
Após dez minutos, o táxi deslizava ao longo do lago. Na água, um chafariz gigante jorrava a mais de cem metros no ar. O famoso Jet d'Eau.
Iluminado por lâmpadas, era uma visão de conto de fadas. Alguma festa estava sendo realizada perto dos píeres.
Gray ouviu um eco de canto e risos.
Parecia que vinha de outro mundo.
Depois de mais alguns minutos, o táxi deixou-o em frente ao terminal de trens. Ele foi até o guichê de passagens, forneceu seu nome falso, mostrou seus documentos e recebeu passagens para a cidade de Lausanne, situada à margem do lago.
Ele dirigiu-se a passos largos para o seu portão, olhando desconfiado para qualquer pessoa nas proximidades. Não viu sinal de Seichan. Uma preocupação assaltou-o. E se ela simplesmente fosse embora? E se ela o traísse, mancomunada com Raoul? Gray afugentou tais preocupações. Ele havia feito uma escolha. Era um risco previsto.
Seu telefone voltou a tocar.
Ele o tirou da bolsa e ajustou a antena.
— Comandante Pierce — disse.
— Dois minutos para que você se satisfaça. — Raoul de novo. O estalido e o chiado de uma transferência soaram. A voz seguinte estava mais distante, com um pouco de eco, mas era familiar.
— Comandante?
— Sou eu, Monk. Onde você está?
Gray tinha certeza de que a conversa estava sendo ouvida por outras pessoas além de Seichan. Ele tinha de ser cauteloso.
— Eles me jogaram num hospital com este telefone celular. Me disseram para esperar seu telefonema. Eu estou na sala de emergência. Todos os médicos estão falando francês.
— Você está em Genebra — disse Gray. — Como você está?
Uma longa pausa.
— Eu sei a respeito da sua mão — disse Gray.
— Aqueles filhos-da-puta — disse Monk em tom de fúria. — Eles tinham um médico a bordo do barco. Me drogaram, me aplicaram injeções intravenosas e suturaram meu... meu coto. Os médicos aqui querem radiografias e coisas do gênero, mas parecem satisfeitos com o, digamos, trabalho do outro médico.
Gray compreendeu a tentativa de Monk de parecer frívolo. Mas a voz dele estava dura.
— E Rachel?
A dor intensificou as palavras dele.
— Eu não a vi desde que eles me drogaram. Eu não tenho idéia de onde ela está. Mas... mas, Gray...
— O quê?
— Você tem de livrá-la deles.
— Eu estou cuidando disso. Mas, e você? Você está seguro?
— Parece que sim — disse ele. — Me disseram que era para ficar de bico calado. E foi o que fiz, me fazendo passar por tolo. No entanto, os médicos chamaram a polícia. Já puseram guardas para fazerem a segurança.
— Por enquanto, faça o que eles mandarem — disse Gray. — Eu vou tirá-lo daí assim que puder.
— Gray — disse Monk, a voz tensa. Gray reconheceu o tom. Ele queria comunicar alguma coisa, mas também sabia que os outros estavam ouvindo. — Eles... eles me deixaram ir embora.
A ligação... novamente. Raoul voltou a ocupar a linha.
— Acabou o tempo. Como você pode ver, nós honramos nossa palavra. Se você quiser que a mulher seja libertada, você trará a chave.
— Entendido. E então?
— Um carro estará à sua espera na estação de Lausanne.
— Não — disse Gray. — Eu não ficarei sob a sua custódia enquanto não souber que Rachel está segura. Quando eu chegar a Lausanne, eu quero confirmação de que ela está viva. Então nós tomaremos as providências necessárias.
— Não force a sua mão — resmungou Raoul. - Eu detestaria ter de decepá-la como fiz com a do seu amigo. Nós continuaremos esta conversa quando você estiver aqui.
A ligação terminou.
Gray baixou o telefone. Então Raoul estava em Lausanne.
Ele esperou o trem. O último para Lausanne. Havia poucas pessoas na plataforma. Ele observou atentamente seus companheiros de viagem.
Nenhum sinal de Seichan. Será que havia espiões da Corte ali?
Por fim, o trem chegou, movendo-se com estardalhaço sobre os trilhos. Ele deslizou até parar, exalando ar com um gemido agudo. Gray entrou no vagão do meio, e então se moveu apressadamente entre os vagões em direção à traseira, esperando livrar-se de quaisquer pessoas que porventura o estivessem seguindo.
Seichan esperava-o no espaço entre os dois últimos vagões.
Ela só se dirigiu a ele para entregar-lhe um longo casaco de couro. Virou-se e saiu por uma saída de emergência que se abria para o lado oposto dos trilhos, longe da plataforma.
Ele seguiu, descendo do trem. Vestiu a jaqueta e puxou a gola para cima.
Seichan atravessou às pressas outros trilhos e subiu para uma plataforma ali perto. Eles saíram da estação, e Gray se viu no canto de um estacionamento.
Uma motocicleta BMW preta e amarela estava estacionada a um passo de distância.
— Monte — disse Seichan. — Você terá de pilotar. Meu ombro...
Ela abandonara a tipóia para pilotar a moto do escritório da locadora de veículos até ali, mas até Lausanne eram mais oitenta quilômetros.
Gray sentou-se na frente, levantando a parte de trás de sua jaqueta. A moto já estava aquecida.
Ela subiu atrás dele e passou o braço são em volta da cintura dele.
Gray acelerou o motor. Ele já havia memorizado as estradas dali até Lausanne. Saiu do estacionamento e disparou ao chegar à rua, seguindo em grande velocidade rumo à estrada que conduzia de Genebra às montanhas.
Os faróis furavam a escuridão à frente.
Ele seguia a luz, cada vez mais rápido, o vento agitando a aba de sua jaqueta. Seichan encostou-se mais nele, um braço cingindo-o, a mão sob a jaqueta dele. Os dedos seguravam o cinto dele.
Ele resistiu ao ímpeto de afastar o braço dela. Sensato ou não, associara-se a ela. Ele voava pela estrada estreita. Eles precisavam chegar a Lausanne meia hora antes do trem. Seria tempo suficiente?
À medida que Gray serpenteava nas montanhas que margeavam o lago, sua mente voltou à sua conversa com Monk. O que ele havia tentado contar-lhe? Eles me deixaram ir embora. Isso era bastante óbvio. Mas o que Monk havia insinuado?
Ele pensou em sua avaliação anterior, no Egito. Ele fora informado de que a Corte deixaria Monk partir. Eles o libertariam para assegurar e induzir a cooperação de Gray. E Raoul ainda tinha Rachel como moeda de troca.
Eles me deixaram ir embora.
Será que havia mais alguma coisa relacionada com a libertação dele? A Corte era cruel. Sabia-se que eles não abriam mão de bens potenciais. Eles haviam usado a tortura de Monk para induzir Rachel a falar. Será que eles desistiriam tão prontamente de um bem como aquele? Monk tinha razão. Não, a menos que a Corte tivesse um domínio ainda maior sobre Rachel.
Mas o quê?
Rachel estava sentada em sua cela, entorpecida e exausta.
Toda vez que abria os olhos, ela revivia o horror. Via o machado descendo. O corpo de Monk sacudindo-se. Sua mão decepada saltando pelo convés como um peixe que acabara de ser pego. O sangue esguichando.
Alberto gritara com Raoul por sua ação — não por causa de sua brutalidade, mas porque ele queria o homem ainda vivo. Raoul afastara a preocupação dele. Um torniquete fora aplicado. Alberto mandara os homens de Raoul levar Monk para a cozinha do barco.
Mais tarde, ela fora informada por uma das mulheres da Guilda de que ele ainda estava vivo. Duas horas depois, o aerobarco partira para uma ilha no Mediterrâneo, onde eles foram transferidos para um jatinho particular.
Rachel avistara Monk preso a uma maca, grogue, o punho decepado enfaixado até o cotovelo. Ela então foi trancada sozinha num compartimento na traseira do avião. Um compartimento sem janelas. No decorrer de cinco horas, eles fizeram dois pousos. Finalmente ela foi solta.
Monk se fora.
Raoul a havia vendado e amordaçado. Ela foi transferida do avião para um furgão. Mais meia hora de uma viagem cheia de voltas, e eles chegaram a seu destino. Ela ouviu as rodas quicando sobre pranchas de madeira. Uma ponte. O furgão parou.
Ao ser puxada para fora, ela ouviu uma cacofonia de rosnados e latidos, alta, zangada, forte. Algum tipo de canil.
Ela foi conduzida pelo cotovelo através de uma abertura e por uma escada abaixo. Uma porta fechou-se atrás dela, fazendo cessar os latidos. Ela sentiu o cheiro de pedra fria e umidade. Também sentira o aumento de pressão à medida que o furgão subia até ali.
Montanhas.
Por fim, ela foi empurrada para a frente e tropeçou numa soleira, caindo com força de quatro no chão.
Raoul segurou as nádegas dela com ambas as mãos e deu uma gargalhada.
— Já implorando por isso.
Rachel esquivou-se com um pulo e bateu o ombro contra algo sólido. Sua mordaça e capuz abafados foram tirados. Esfregando o ombro, ela olhou ao redor da pequena cela de pedra. De novo nenhuma janela. Sua noção de tempo estava começando a escapar-lhe. O único móvel na cela era uma cama de aço. Um colchonete estava enrolado num dos cantos, com um travesseiro em cima. Não havia roupa de cama.
A cela não tinha grades. Uma das paredes era uma placa de vidro inteiriça, exceto por uma porta vedada com borracha e por buracos de ventilação do tamanho de um punho. Mas mesmo os buracos tinham pequeninas tampas que podiam ser movidas sobre as aberturas, a fim de deixarem a cela à prova de som ou como uma forma de sufocar lentamente o prisioneiro.
Fazia mais de uma hora que ela fora deixada ali.
Não havia sequer guardas. No entanto, ela ouviu vozes no fim do corredor, provavelmente de homens montando guarda junto ao poço da escada.
Ouviu-se um rebuliço. Ela ergueu o rosto e ficou em pé. Ouviu a voz
áspera de Raoul, gritando ordens, e afastou-se da parede de vidro. Haviam-lhe devolvido suas roupas no barco, mas ela não possuía nenhuma arma.
Raoul apareceu, flanqueado por dois homens.
Ele não parecia feliz.
— Tirem-na daí — disse ele com veemência.
Abriram a porta com uma chave e ela foi arrastada para fora.
— Por aqui — disse Raoul, conduzindo-a pelo corredor.
Ela avistou outras celas, algumas lacradas como a dela, outras abertas e abarrotadas de garrafas de vinho.
Raoul a fez marchar até a escada que levava a um pátio escuro iluminado pela luz da lua. Muros de pedra erguiam-se em todos os lados. Uma passagem em arco, fechada por uma grade levadiça, conduzia a uma ponte estreita que se estendia sobre uma garganta.
Ela estava num castelo.
Jipes enfileirados estavam estacionados junto ao muro mais próximo da passagem.
Ao longo de uma parede próxima, estendia-se uma longa seqüência de vinte jaulas de tela de arame. Rosnados baixos erguiam-se daquele canto.
Sombras imensas se deslocavam, musculosas, fortes.
Raoul devia ter notado a atenção dela.
— Perro de Presa Canário — disse ele com uma nota de orgulho selvagem. — Cães de combate, uma linhagem ancestral do século XIX. A perfeição da raça. Competidores puros. São todos músculos, mandíbulas e dentes.
Rachel se perguntou se ele também estava descrevendo a si mesmo.
Raoul levou-a para longe do portão e em direção à torre central. Dois lances de escada conduziam a uma grossa porta de carvalho, intensamente iluminada por candelabros de parede, quase convidativa. Mas eles não foram por ali. Uma porta lateral levava a um piso embaixo da escada.
Usando um dispositivo touchpad, ele destrancou a porta mais baixa.
Quando a porta se abriu, Rachel sentiu o cheiro de anti-séptico e de alguma coisa mais escura, mais fétida. Ela foi obrigada a entrar numa sala quadrangular, intensamente iluminada por lâmpadas fluorescentes. As paredes eram de pedra; o piso, de linóleo. Apenas um guarda estava diante da única porta que conduzia para fora.
Raoul atravessou a sala e abriu-a.
Mais além, estendia-se um corredor longo e estéril, do qual se abria uma série de salas. Ela olhou de relance para algumas delas enquanto descia o corredor. Jaulas de aço inoxidável enchiam uma delas. Vários computadores ligados a fileiras de placas de metal ocupavam outra. Eletroímãs, ela supôs, usados para experiências com os compostos no estado m. Numa terceira câmara, havia uma única mesa de aço com a forma aproximada de um X. Tiras de couro indicavam que a mesa se destinava a prender um homem ou uma mulher com os braços e as pernas estendidos. Uma lâmpada cirúrgica pendia acima dela.
A visão a fez gelar até os ossos.
Mais seis salas estendiam-se além. Ela vira o suficiente e ficou contente em parar ao lado de uma porta na parede oposta.
Raoul bateu e entrou.
Rachel ficou surpresa pelo contraste. Era como entrar no gabinete da virada do século de um eminente erudito da Sociedade Real. A sala era toda de mogno e nogueira envernizados. No chão estendia-se um grosso tapete turco com desenhos carmesins e esmeralda.
Prateleiras de livros e vitrines revestiam todas as paredes, repletos de textos cuidadosamente dispostos. Por trás do vidro, ela notou exemplares da primeira edição dos Principia, de Sir Isaac Newton, e, ao lado deles, A Origem das Espécies, de Darwin. Também havia um manuscrito egípcio ilustrado aberto numa vitrine. Rachel se perguntou se era um dos que haviam sido roubados do Museu do Cairo, o texto falsificado com as estrofes cifradas que dera início a toda aquela aventura assassina.
Para onde quer que ela olhasse havia obras de arte. Estátuas etruscas e romanas decoravam as prateleiras, entre elas um cavalo persa sem cabeça, de sessenta centímetros de altura, uma obra-prima roubada no Irã havia uma década, supostamente representando o famoso cavalo Bucéfalo, de Alexandre, o Grande. Quadros estavam pendurados acima das vitrines. Ela sabia que um era um Rembrandt e outro, um Rafael.
Mas no centro da sala havia uma escrivaninha maciça esculpida em mogno. Ela ficava perto de uma lareira de pedra que ia do chão ao teto. Dela pequenas chamas bruxuleavam.
— Professor! — Raoul chamou, fechando a porta atrás deles.
Por uma porta traseira que levava a outros aposentos privados entrou o dr. Alberto Menardi. Ele trajava um paletó preto de smoking adornado de vermelho e tinha o desplante de ainda estar usando seu colarinho clerical acima de uma camisa preta.
Ele carregava um livro embaixo de um braço e sacudiu um dedo para Rachel.
— Você não foi totalmente honesta conosco.
Rachel sentiu o coração parar de bater, sua respiração tornou-se apertada.
Alberto virou-se para Raoul.
— E se você não tivesse me distraído com a necessidade de suturar o pulso daquele americano, eu teria descoberto isso antes. Vocês dois, venham cá.
Ele acenou para que eles se aproximassem da escrivaninha em desordem.
Rachel notou que seu mapa do Mediterrâneo estava estendido na superfície. Novas linhas haviam sido acrescentadas, círculos, meridianos, marcações de graus. Minúsculos números arcanos foram inscritos ao longo de uma extremidade do mapa. Uma bússola e uma régua T estavam ao lado dele, junto com um sextante. Era óbvio que Alberto estivera trabalhando naquele quebra-cabeça, ou por não confiar em Rachel, ou por achar que ela e seu tio eram obtusos demais.
O prefeito bateu de leve no mapa.
— Roma não é o próximo lugar.
Rachel esforçou-se para não vacilar.
Alberto prosseguiu:
— Todo o subtexto deste desenho geométrico significa movimento para a frente no tempo. Até mesmo esta ampulheta segmenta o tempo, movendo um grão de areia de cada vez para a frente, para o fim inevitável. Por este motivo, o símbolo da ampulheta sempre representou a morte, o fim dos tempos. O fato de uma ampulheta aparecer aqui só pode significar uma coisa.
Raoul franziu profundamente o cenho, indicando sua falta de compreensão.
Alberto deu um suspiro.
— Obviamente, ela significa o fim desta jornada. Eu tenho certeza de que, para onde quer que esta pista aponte, ela assinala a última parada.
Rachel sentiu Raoul agitar-se ao lado dela. Eles estavam próximos de sua meta final. Mas não tinham a chave de ouro, e, apesar de toda a sua inteligência, Alberto ainda não solucionara todo o enigma. Mas ele o solucionaria.
— Não pode ser Roma — disse Alberto. — Isso é mover-se para trás, e não para a frente. Existe outro mistério a ser solucionado aqui.
Rachel sacudiu a cabeça, aparentando desinteresse devido à exaustão.
— Isso foi tudo o que conseguimos calcular antes de sermos atacados.
— Ela fez um aceno ao redor da sala. — Nós não dispúnhamos dos recursos de vocês.
Alberto estudou-a enquanto ela falava. Ela encarou-o com firmeza.
— Eu... eu acredito em você — disse ele lentamente. — O monsenhor Vigor é muito inteligente, mas este enigma está mergulhado em mistério.
Rachel manteve a expressão apática, deixando transparecer certo medo, agindo como se estivesse intimidada. Alberto trabalhava sozinho. Ele sem dúvida havia se escondido ali a fim de solucionar os enigmas da Corte. Não confiava em mais ninguém, convencido de sua própria superioridade. Tampouco entendia o valor da perspectiva mais ampla, de uma diversificação de pontos de vista. Fora necessária toda a perícia da equipe para juntar as peças do enigma, não o trabalho de um único homem.
Mas o prefeito não era tolo.
— No entanto — disse ele —, nós deveríamos ter certeza. Você ocultou a descoberta da chave de ouro. Talvez você tenha ocultado mais alguma coisa.
O medo aumentou.
— Eu lhes contei tudo — ela jurou com simulada convicção. Será que acreditariam nela? Será que a torturariam?
Ela engoliu em seco, tentando ocultar o que sabia. Ela jamais falaria. Havia muita coisa em jogo. Ela vira o poder manifestar-se em Roma e Alexandria. A Corte do Dragão jamais deveria possuí-lo.
Até mesmo a vida de Monk estaria perdida a partir dali. Ambos eram soldados. No aerobarco, ela dera a informação sobre a chave de ouro não só para poupar Monk, mas também para envolver Gray, para dar-lhe oportunidade de fazer alguma coisa. Parecera um risco sensato. Como agora, a Corte ainda não obtivera uma peça essencial do quebra-cabeça. Rachel tinha de agarrar-se à descoberta de Avignon e do papado francês.
Ou tudo estaria perdido.
Alberto deu de ombros.
— Só existe uma forma de descobrirmos se você sabe mais. É hora de nós extrairmos toda a verdade de você. Leve-a para a sala ao lado. Nós temos de nos preparar.
A respiração de Rachel acelerou-se, mas parecia que ela não conseguia obter ar suficiente. Foi empurrada brutalmente porta afora por Raoul. Alberto seguiu-os, tirando o paletó, pronto para começar o trabalho.
Rachel voltou a imaginar a mão de Monk caindo com um baque no convés do barco. Tinha de preparar-se para algo pior. Eles não deviam saber. Nunca. Nenhum motivo seria bom o suficiente para que ela revelasse a verdade.
Quando entrou no corredor, ela viu que a sala no outro lado, aquela onde havia a estranha mesa em forma de X, estava iluminada com mais intensidade. Alguém havia acendido a lâmpada cirúrgica acima da mesa.
Raoul bloqueava parcialmente a visão. Ela avistou um frasco de solução intravenosa num suporte e uma bandeja com instrumentos cirúrgicos longos, pontiagudos, em forma de saca-rolhas e afiados. Uma figura estava presa por tiras à mesa.
Oh! Deus... Monk...?
— Nós podemos estender este interrogatório a noite inteira — afirmou Alberto, passando na frente a fim de entrar na sala primeiro. Ele atravessou a sala e calçou um par de luvas de látex esterilizadas.
Raoul afinal empurrou-a para dentro da suíte de horrores cirúrgicos.
Rachel por fim viu quem estava preso à mesa, os membros estirados e atados, o sangue já gotejando do nariz.
— Alguém veio bisbilhotar onde não deveria — disse Raoul com um sorriso ansioso.
O rosto do prisioneiro voltou-se para ela. Seus olhos encontraram-se com reconhecimento. E, naquele instante, toda a vontade dela se esvaiu.
Rachel avançou para a frente.
— Não!
Raoul segurou-a pelos cabelos e forçou-a a ficar de joelhos.
— Você vai assistir daqui.
Alberto pegou um bisturi prateado.
— Nós vamos começar pela orelha esquerda.
— Não! — gritou Rachel. — Eu vou lhes contar! Eu vou lhes contar tudo!
Alberto baixou a lâmina e virou-se para ela.
— Avignon — disse ela soluçando. — É Avignon.
Ela não sentiu a menor culpa por contar. Tinha de confiar em Gray a partir dali. Toda a esperança estava depositada nele. Rachel olhou fixamente nos olhos horrorizados do prisioneiro amarrado.
— Nonna... — gemeu Rachel.
Era a avó dela.
A cidade de Avignon resplandecia, gritava, cantava e dançava.
O Festival de Verão de Teatro anual ocorria todo mês de julho, a maior vitrine mundial da música, do teatro e da arte. Jovens abarrotavam a cidade, acampando em parques, lotando hotéis e abrigos para a juventude. Era uma festa com 24 horas de duração. Nem mesmo o céu ameaçador desencorajava as pessoas que tinham ido ao festival.
Vigor desviou-se de um casal em pleno sexo oral num banco afastado de um parque. Os cabelos compridos da mulher ocultavam a maior parte de seu esforço de dar prazer ao parceiro. Vigor passou apressado com Kat a seu lado. Eles haviam optado por cruzar o parque elevado para chegar à Place du Palais, ou Praça do Palácio. O castelo do papa erguia-se no alto do contraforte de uma rocha que se debruçava sobre o rio.
Quando eles passaram por um mirante, uma curva do rio apareceu abaixo. Nela se projetava a famosa ponte das rimas infantis francesas, Le Pont d'Avignon, ou Ponte de Saint-Bénezet. Construída em fins do século XII, era a única ponte que se estendia sobre o rio Ródano... embora, depois de tantos séculos, restassem apenas quatro de seus 22 arcos originais. Esse vão parcial estava intensamente iluminado. Participantes do festival dançavam em cima dele, dançarinos folclóricos tradicionais pelo que parecia. A música chegava até eles.
Em Avignon, o passado e o presente mesclavam-se como só o faziam em poucas outras cidades.
— Por onde começamos? — perguntou Kat.
Vigor passara o tempo de vôo pesquisando, tentando responder àquela pergunta. Ele falou enquanto eles se afastavam do rio em direção à cidade.
— Avignon é uma das cidades mais antigas da Europa. Suas origens remontam ao período neolítico. Ela foi povoada pelos celtas e depois pelos romanos. Mas hoje em dia a cidade é mais conhecida pela sua herança gótica, que floresceu durante o século do papado francês. Avignon se orgulha de um dos maiores conjuntos de arquitetura gótica em toda a Europa. Uma verdadeira cidade gótica.
— E qual seria a importância disso? — indagou Kat.
Vigor reconheceu a dureza na voz dela. Ela estava preocupada com os seus colegas, separada deles, enviada para ali. Ele sabia que ela sentia uma profunda responsabilidade pela captura da sobrinha dele e de Monk. Ela carregava aquela carga apesar de seu próprio comandante ter insistido em que ela fizera a coisa certa.
Vigor sentia um eco da preocupação dela. Ele arrastara Rachel para aquela aventura. Agora ela estava nas mãos da Corte do Dragão. Mas ele sabia que a culpa não lhes faria bem. Ele fora criado com fé que era a pedra angular de sua existência. Ele encontrou certo conforto em colocar sua fé na segurança de Rachel nas mãos de Deus — e de Gray.
Mas aquilo não significava que ele mesmo não pudesse ser pró-ativo. Deus ajuda a quem ajuda a si mesmo. Ele e Kat tinham seu próprio dever ali.
Vigor respondeu à pergunta dela.
— A palavra “gótico” origina-se da palavra grega “goetic”, que se traduz por “magia”. E essa arquitetura era considerada mágica. Ela não se parecia com nada visto na época: a nervura fina, os botaréus, as alturas impossíveis. Ela dava uma impressão de ausência de peso.
Quando Vigor enfatizou a última palavra, Kat entendeu.
— Levitação — disse.
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo.
— As catedrais e outros edifícios góticos eram quase exclusivamente construídos por um grupo de pedreiros que se autodenominavam Filhos de Salomão, uma mistura de templários e monges da Ordem Cisterciense. Eles retinham os mistérios matemáticos para construir essas estruturas, supostamente obtidos quando os templários, durante as cruzadas, descobriram o Templo de Salomão perdido. Os templários ficaram ricos... ou melhor, mais ricos, pois dizia-se que eles já haviam descoberto o imenso tesouro do rei Salomão, talvez até a Arca da Aliança, que, segundo se dizia, havia sido ocultada no Templo de Salomão.
— E, supostamente, era na Arca que Moisés guardava seus potes de maná — disse Kat —, sua receita dos metais no estado m.
— Eu não descarto essa possibilidade — disse Vigor. — Na Bíblia, existem muitas referências a estranhos poderes que emanavam da Arca. Até mesmo a palavra levitar é derivada dos zeladores da Arca, os sacerdotes levitas. E a Arca era bastante conhecida por ser letal, matando com descargas de luz. Um sujeito, um carroceiro chamado Oza, tentou estabilizar a Arca quando ela se inclinou ligeiramente. Ele tocou-a com a mão e foi fulminado. Isso assustou o pobre rei Davi o suficiente para que, a princípio, ele se recusasse a levar a Arca para a sua cidade. Mas os sacerdotes levitas mostraram-lhe como se aproximar dela de maneira segura. Com luvas, aventais, e tirando todos os objetos de metal.
— Para não levar um choque — disse Kat, cuja voz perdera um pouco de sua dureza, o mistério induzindo-a a falar.
— Talvez a Arca, com os pós no estado m armazenados dentro dela, agisse como um capacitor elétrico. O material supercondutor absorvia a energia do meio ambiente e a armazenava como a pirâmide de ouro a havia armazenado. Até que alguém fizesse mau uso dela.
— E fosse eletrocutado.
Vigor respondeu afirmativamente com um aceno de cabeça.
— Okay — disse Kat. — Digamos que os templários tenham redescoberto a Arca e possivelmente esses supercondutores no estado m. Mas podemos saber se eles entenderam seus segredos?
— Talvez eu tenha uma resposta. O comandante Gray originalmente me desafiou a encontrar referências históricas desses estranhos pós mono- atômicos.
— Do Egito aos Reis Magos bíblicos — disse Kat.
Vigor voltou a afirmar com um aceno de cabeça.
— Mas eu me perguntei se isso ia além. Se ia além da época de Cristo.
Restavam mais pistas a serem descobertas?
— E você as encontrou — disse Kat, interpretando a excitação dele.
— Esses pós no estado m tinham muitos nomes: pão branco, pó da projeção, Pedra do Paraíso, Pedra dos Reis Magos. Para minha surpresa, continuando a investigar desde os tempos bíblicos, descobri outra pedra misteriosa de história alquímica. A famosa pedra filosofal.
Kat franziu o cenho.
— A pedra que podia transformar chumbo em ouro?
— Esse é um equívoco comum. Um filósofo do século XVII, Irineu Filateles, um respeitadíssimo membro da Sociedade Real, fez o registro diretamente em seus tratados. Segundo ele, a pedra filosofal “nada mais era do que ouro digerido ao seu grau de pureza mais elevado... chamado de pedra em virtude de sua natureza fixa... ouro, mais puro do que o mais puro de todos... mas seu aspecto é o de um pó finíssimo”.
— O pó de ouro de novo — disse Kat surpresa.
— Pode haver uma referência mais clara? E não foi só Irineu; um químico francês do século XV, Nicolas Flamel, descreveu um processo alquímico semelhante com as palavras finais, que eu cito: “Ele resultou num fino pó de ouro, que é a pedra filosofal”.
Vigor fez uma pausa.
— Portanto, não resta dúvida de que alguns cientistas na época estavam fazendo experiências com uma estranha forma de ouro. Na verdade, todos os cientistas da Sociedade Real estavam fascinados por ele, entre eles Sir Isaac Newton. Muitos não sabem que Newton era um alquimista fervoroso e também colega de Irineu.
— Então, o que foi feito de todo o trabalho deles? — indagou Kat.
— Eu não sei. Muitos provavelmente chegaram a um beco sem saída. Mas outro colega de Newton, Robert Boyle, também pesquisou o ouro alquímico. Mas alguma coisa o perturbou, alguma coisa que ele descobriu. Ele interrompeu suas pesquisas e declarou que tais estudos eram perigosos. Tão perigosos, na verdade, que ele afirmou que o seu mau uso poderia “perturbar os assuntos da humanidade, virando o mundo de cabeça para baixo”. Isso nos faz perguntar o que o assustou. Será que ele tocara as raias
de algo que impeliu a nossa sociedade alquímica perdida a fechar-se em profundo segredo?
Kat sacudiu a cabeça.
— Mas o que é que a pedra filosofal tem a ver com a arquitetura gótica?
— Mais do que você poderia pensar. Um francês do início do século XX chamado Fulcanelli escreveu um best-seller intitulado Le Mystère des Cathédrales. Era um tratado que discorria minuciosamente sobre como as catedrais góticas da Europa foram codificadas com mensagens arcanas, apontando para um filão de conhecimento perdido, incluindo como preparar a pedra filosofal e outros segredos alquímicos.
— Um código em pedra?
— Não se surpreenda. Era o que a Igreja já estava fazendo. A maioria da população na época era analfabeta. As decorações das catedrais eram tanto instrutivas quanto informativas, relatos bíblicos em obra de cantaria. E lembre-se de quem eu disse que construiu esses maciços livros de história góticos.
— Os templários — disse Kat.
— Um grupo que sabidamente obtivera conhecimento secreto do Templo de Salomão. Talvez por isso, além de contarem histórias bíblicas, eles incorporaram algumas mensagens codificadas adicionais, destinadas a seus colegas alquimistas maçônicos.
A expressão de Kat era de dúvida.
— Temos apenas de olhar mais atentamente para alguma obra de arte gótica para erguermos uma sobrancelha ou ambas. A iconografia está cheia de símbolos do zodíaco, enigmas matemáticos, labirintos geométricos extraídos de textos alquímicos da época. Até mesmo o autor de O Corcunda de Notre Dame, Victor Hugo, passou um capítulo inteiro censurando as obras de arte de Notre Dame como contrárias à Igreja Católica. Descrevendo a arte gótica como “páginas sediciosas” em pedra.
Vigor apontou para a frente, através das árvores. O parque terminou quando eles se aproximaram da Praça do Palácio.
— E Fulcanelli e Hugo não eram os únicos que acreditavam que havia algo de herético envolvido nas obras de arte dos templários. Você sabe por que a sexta-feira 13 é considerada azarenta?
Kat olhou de relance para ele e sacudiu a cabeça.
— Treze de outubro de 1307. Uma sexta-feira. O rei da França, junto com o papa, declarou os templários hereges, condenando-os à morte e crucificando e queimando o líder deles. Acredita-se amplamente que o verdadeiro motivo por que os templários foram proscritos era destituí-los de poder e assumir o controle de sua riqueza, incluindo o conhecimento secreto que eles possuíam. O rei da França torturou milhares deles, mas o local onde eles escondiam suas riquezas jamais foi descoberto. No entanto, isso assinalou o fim deles.
— De fato, um dia de azar para eles.
— Na verdade, o fim de um século de azar. — Vigor saiu do parque na frente dela, e ambos seguiram pela rua arborizada que conduzia ao centro da cidade. — A cisão entre a Igreja e os templários começara cem anos antes, quando o papa Inocêncio III aniquilou brutalmente os cátaros, uma seita de cristãos gnósticos com vínculos com os templários. Foi realmente uma guerra de um século entre a ortodoxia e a crença gnóstica.
— E nós sabemos quem a venceu — disse Kat.
— Sabemos mesmo? Eu me pergunto se não foi tanto uma vitória quanto uma assimilação. Se você não pode vencê-los, junte-se a eles. Um artigo interessante, intitulado "Pergaminho Chinon", foi publicado em setembro de 2001. Esse pergaminho datava de um ano após aquela sexta-feira 13 sangrenta e foi assinado pelo papa Clemente V, absolvendo e exonerando os templários. Lamentavelmente, o rei Filipe da França ignorou-o e continuou a massacrá-los por todo o país. Mas por que essa mudança de atitude da Igreja? Por que o papa Clemente edificou seu palácio aqui em Avignon na tradição gótica, construído pelos mesmos pedreiros heréticos?
E por que Avignon se tornou de fato o centro gótico da Europa?
— Você está insinuando que a Igreja virou a casaca e aceitou os templários no seu redil?
— Lembre-se de que nós já havíamos chegado à conclusão de que alguns aspectos dos cristãos de Tomé, cristãos de tendências gnósticas, já estavam ocultos no seio da Igreja. Talvez eles tenham convencido o papa Clemente a intervir a fim de proteger os Cavaleiros da violência do rei Filipe.
— Com que objetivo?
— Ocultar alguma coisa de grande valor — para a Igreja, para o mundo. Durante o século do papado de Avignon, uma grande onda de construções ocorreu aqui, grande parte delas supervisionadas pelos Filhos de Salomão. Eles poderiam ter facilmente ocultado algo de tamanho considerável.
— Mas por onde devemos começar a procurar? — perguntou Kat.
— Pela obra encomendada por aquele papa obstinado, construída pelas mãos dos templários, uma das maiores obras-primas da arquitetura gótica.
Vigor acenou para a frente, para onde a rua desembocava numa grande praça, repleta de pessoas que assistiam ao festival. Luzes coloridas emolduravam uma área para dança, uma banda de rock tocava num palco improvisado, e jovens contorciam-se, riam e gritavam. Ao longo da beira da praça, haviam sido montadas mesas, repletas de mais participantes do festival. Um malabarista arremessava tochas flamejantes no céu noturno. Palmas o encorajavam. A cerveja jorrava, junto com xícaras de papel de café. A fumaça de cigarros erguia-se em nuvens, junto com ervas especiais enroladas à mão.
Porém, como pano de fundo daquela festa, erguia-se uma estrutura imensa, escura e indistinta, emoldurada por torres quadradas, tendo na frente maciços arcos de pedra e adornadas por duas flechas cônicas. Sua fachada de pedra fazia um sóbrio contraste com a diversão abaixo. A construção vergava com o peso da história... e de um segredo antigo.
O Palácio dos Papas.
— Em alguma parte no interior de sua estrutura, encontra-se uma página de pedra sediciosa — disse Vigor, chegando mais perto de Kat. — Eu tenho certeza disto. Nós temos de encontrá-la e decifrá-la.
— Mas por onde começamos a procurar?
Vigor sacudiu a cabeça.
— O que quer que tenha assustado Robert Boyle, qualquer que tenha sido o terrível segredo que finalmente forjou uma aliança entre os heréticos templários e a Igreja oficial, seja qual for o mistério que exigiu uma caça ao tesouro por todo o Mediterrâneo para ser solucionado... a resposta está oculta aí dentro.
Vigor sentiu um vento forte soprar do rio. Avignon recebeu esse nome por causa das brisas constantes vindas do rio, mas ele percebeu a verdadeira tempestade que se aproximava. Acima, as estrelas haviam desaparecido. Nuvens pesadas baixaram sobre a cidade.
De quanto tempo eles dispunham?
— Foi assim que nós calculamos que era Avignon — terminou Rachel. — O Vaticano francês. É a próxima e última parada.
Ela ainda estava ajoelhada no linóleo. Sua avó continuava presa à mesa. Rachel lhes contara tudo, sem ocultar nenhum detalhe. Ela respondera a cada uma das perguntas de Alberto. Não tentara mentir. Não poderia correr o risco de que o prefeito testasse a veracidade dela na carne de sua avó.
Monk e Rachel eram soldados. A nonna dela não.
Rachel não permitiria que a anciã sofresse mal algum. Agora cabia a Gray manter a chave de ouro longe da Corte. Ela havia transferido toda a esperança e confiança para ele. Ela não teve outra escolha.
Enquanto ela falava, Alberto fizera anotações e voltara ao seu escritório para pegar uma caneta, um bloco e o mapa dela. Ele fez um aceno de cabeça aprovador assim que ela terminou, obviamente convencido.
— É claro — disse ele. — Tão simples, tão elegante. Nós teríamos acabado por imaginar isto, mas agora eu posso envidar melhor meus esforços na solução do próximo enigma... em Avignon.
Alberto virou-se para Raoul.
Rachel enrijeceu-se. Ela lembrou-se do que acontecera da última vez. Muito embora ela lhes tivesse dito a verdade sobre a chave de ouro, Raoul decepara a mão de Monk.
— Onde estão o monsenhor Verona e a outra americana agora? — perguntou Alberto.
— Da última vez que eu soube, eles estavam indo para Marselha — respondeu Raoul. — No jato particular deles. Eu pensei que eles estivessem seguindo ordens. Permanecendo por perto, mas fora da Itália.
— Marselha fica a apenas vinte minutos de Avignon — disse Alberto, franzindo o cenho. — O monsenhor Verona já deve estar a caminho a fim de trabalhar no enigma. Descubra se o avião dele já aterrissou.
Raoul acenou com a cabeça e transmitiu a ordem a um de seus homens, que se precipitou pelo corredor.
Rachel pôs-se de pé lentamente.
— Minha avó... — disse ela. — Vocês podem deixá-la ir agora?
Alberto fez um aceno com a mão, como se houvesse se esquecido da anciã. Sem dúvida, ele tinha coisas mais importantes em mente.
Um dos homens avançou e soltou as tiras de couro que prendiam a avó dela. Com lágrimas escorrendo pelo rosto, Rachel ajudou sua nonna a sair da mesa.
Rachel proferiu em silêncio uma prece para Gray. Não só por si mesma e por Monk, mas agora também por sua avó.
Sua nonna ficou em pé vacilante e pôs uma das mãos sobre a mesa para apoiar-se. Ela estendeu a mão e secou as lágrimas de Rachel.
— Já acabou, criança... chega de choro. Não foi assim tão horrível.
Eu já passei por situações piores.
Rachel quase riu. Sua avó estava tentando consolá-la.
Acenando para que Rachel se afastasse, sua avó caminhou na direção do prefeito.
— Alberto, você deveria envergonhar-se... — ralhou ela, como se falasse com uma criança.
— Nonna... não... — Rachel advertiu-a, estendendo um braço.
— ...por não acreditar que minha neta fosse capaz de ocultar segredos de você. — Ela mancou até ele e deu-lhe um beijo na bochecha. — Eu lhe disse que Rachel era esperta demais até para você.
O braço de Rachel estendido congelou. O sangue gelou em suas veias.
— De vez em quando, você deve confiar numa senhora de idade, não é?
— Como sempre, você tem razão, Camilla.
Rachel não conseguia respirar.
Sua avó fez um gesto para que Raoul lhe desse o braço.
— E você, meu rapaz, talvez agora você veja por que vale a pena proteger um sangue do Dragão assim tão forte. — Ela ergueu a mão e bateu de leve na bochecha do bastardo. — Você e minha neta... vocês dois farão bellissimi bambini. Muitos bebês belíssimos.
Raoul virou-se e examinou Rachel com aqueles olhos frios, sem vida.
— Eu darei tudo de mim — afirmou ele.
Gray seguiu Seichan até o lado da montanha repleto de pinheiros. Eles haviam abandonado a motocicleta no fundo de uma garganta estreita, ocultando-a no meio de algumas roseiras alpinas em flor. Antes disso, haviam percorrido os últimos oitocentos metros no escuro, com o farol desligado. O cuidado extra os havia retardado, mas não havia como evitá-lo.
Seichan agora seguia na frente, sem lanternas, subindo uma ladeira de seixos soltos em direção a uma face de rocha escarpada. Gray tentava penetrar através do entrelaçamento de ramos de pinheiro. Ele já tivera um vislumbre do castelo quando eles saíram de Lausanne e começaram a subir as montanhas circundantes. O castelo assentava como uma pesada gárgula de granito, o rosto quadrado, os olhos brilhando à luz artificial. Então desapareceu quando eles passaram sob uma ponte que se estendia acima.
Gray caminhava ao lado de Seichan, que segurava um dispositivo GPS diante dela enquanto subia.
— Você tem certeza de que consegue encontrar essa entrada dos fundos?
— Eles me puseram um capuz quando eu estive aqui pela primeira vez. Mas eu tinha um rastreador GPS escondido — ela olhou de relance para Gray — numa parte íntima. Eu registrei a posição de chegada e a elevação. Isso deve nos levar até a entrada.
Eles continuaram rumo à elevada face do penhasco.
Gray observou atentamente Seichan. O que ele estava fazendo ao confiar nela? Na floresta escura, as preocupações aumentaram. E não só pela escolha de sua companheira de ação. Ele começou a duvidar de sua própria capacidade de discernimento. Aquela era a atitude de um líder de verdade? Ele estava colocando tudo em risco naquela tentativa de resgate. Qualquer estrategista teria considerado as possibilidades e ido direto para Avignon com a chave. Ele estava colocando toda a missão em risco.
E se a Corte do Dragão ganhasse...
Gray imaginou os mortos em Colônia, os padres torturados em Milão. Muito mais pessoas morreriam se ele fracassasse.
E para quê?
Pelo menos, ele sabia a resposta àquela pergunta.
Gray continuou a subir a encosta, perdido em seus próprios pensamentos.
Seichan checou sua unidade de GPS e em seguida moveu-se para a esquerda. Surgiu uma fenda no rochedo, meio oculta por uma laje de granito inclinada, coberta de musgo e de minúsculas flores brancas dos benjoeiros.
Ela curvou-se, seguiu na frente através de um túnel estreito e acendeu uma lanterna de bolso. Um pouco mais adiante, uma grade antiga bloqueava o caminho. Seichan rapidamente abriu a fechadura.
— Existem alarmes? — perguntou Gray.
Seichan deu de ombros e abriu o portão.
— Nós vamos descobrir.
Gray inspecionou as paredes quando eles entraram. Granito compacto. Sem fios elétricos.
Dez metros depois do portão, uma escada tosca conduzia para cima. Gray tomou a dianteira a partir dali. Ele consultou o relógio. O trem procedente de Genebra chegaria à estação de Lausanne dentro de poucos minutos. Sua ausência seria notada. O tempo estava se esgotando.
Ele começou a subir os degraus mais depressa, mas de olho em quaisquer dispositivos de vigilância ou de alarme. Subiu o equivalente a 15 andares, a tensão aumentando a cada passo.
Finalmente o túnel deu numa sala mais ampla, uma cavidade abobadada na rocha. Na parede dos fundos, uma fonte natural jorrava e escorria por uma abertura na rocha, fluindo em direção ao sopé da montanha. Mas em frente à fonte havia uma grande laje de pedra talhada. Um altar. No teto, estrelas pintadas. Era o templo romano que Seichan descrevera. Até ali, as informações secretas dela eram exatas.
Seichan entrou atrás dele na sala.
— A escada de acesso ao castelo fica no outro lado — disse ela, apontando um braço em direção a outro túnel que conduzia para fora.
Gray deu um passo em direção a ele quando a escuridão na boca do túnel oscilou. Uma forma imensa surgiu na luz escassa.
Raoul.
Com uma submetralhadora nas mãos.
Luz tremeluziu à sua esquerda. Dois outros pistoleiros saíram de trás da laje. Atrás de Gray, uma porta de aço fechou-se com um ruído no corredor mais baixo.
Mas o pior foi sentir o cano frio de uma arma na base de seu crânio.
— Ele está carregando a chave de ouro ao redor do pescoço — disse Seichan.
Raoul avançou a passos largos e parou diante de Gray.
— Você deveria ser mais cauteloso na escolha de suas companhias.
Antes que pudesse reagir, Gray levou um violento soco na barriga.
Ele expeliu o ar tossindo e caiu de joelhos.
Raoul estendeu a mão para o pescoço dele e agarrou o cordão. Arrancou a chave, arrebatando o pingente do pescoço de Gray com um movimento brusco, e ergueu-o contra a luz.
— Obrigado por nos entregar isto — disse Raoul. — E por se entregar. Nós temos algumas perguntas para você antes de partirmos para Avignon.
Gray encarou Raoul. Ele não pôde ocultar seu choque. A Corte sabia a respeito de Avignon. Como...?
Mas ele sabia.
— Rachel... — murmurou ele.
— Ah, não se preocupe. Ela está viva e bem. Pondo o assunto em dia com a família no momento.
Gray não entendeu.
— Não se esqueça do colega dele no hospital — disse Seichan. — Nós não queremos deixar nada inacabado.
Raoul fez um aceno de cabeça.
— Já estamos cuidando disso.
Incapaz de dormir, Monk assistia à televisão. Era em francês. Como não falava o idioma, ele na verdade não estava prestando atenção. Para ele, era estática. A morfina embotava a agudeza de sua mente.
Ele mantinha os olhos desviados de seu coto enfaixado.
A fúria impedia o efeito sedativo do analgésico. Fúria não pela sua mutilação, mas também por ser o bode expiatório naquela operação. Posto fora de combate. Usado como uma maldita moeda de troca. Os outros estavam em perigo, e ele estava trancado num quarto particular, protegido pela segurança do hospital.
Todavia, ele não podia negar uma dor abafada no seu âmago, uma dor que a morfina não podia aliviar. Ele não tinha o direito de sentir pena de si mesmo. Estava vivo. Era um soldado. Vira companheiros deixar o campo em condições muito piores do que a sua. Mas a dor persistia. Ele sentia-se violado, insultado, menos que um homem, certamente menos que um soldado.
A lógica não aquietaria seu coração.
A lengalenga continuava na televisão.
Uma agitação do lado de fora atraiu seu olhar. Discussão. Vozes alteadas. Ele ergueu-se no leito. O que estava acontecendo?
Então a porta se abriu.
Ele olhou em choque quando uma figura passou pelos seguranças.
Uma figura familiar.
Monk não conseguiu evitar o choque em sua voz.
— Cardeal Spera?
Rachel fora levada de volta à sua cela, mas não estava sozinha.
Um homem montava guarda no lado de fora do vidro à prova de balas.
Dentro, a avó dela afundou na cama de aço com um suspiro.
— Você talvez não entenda agora, mas vai entender.
Rachel sacudiu a cabeça. Ela estava de pé, encostada na parede oposta,
confusa, aturdida.
— Como... como você pôde?
A avó dela olhou-a com aqueles olhos penetrantes.
— Eu um dia fui como você. Eu tinha apenas 16 anos quando vim a este castelo pela primeira vez, vindo da Áustria, fugindo quando a guerra terminou.
Rachel lembrou-se das histórias de sua avó sobre a fuga da família para a Suíça e por fim para a Itália. Ela e o pai foram os únicos membros da família que sobreviveram.
— Vocês estavam fugindo dos nazistas.
— Não, criança, nós éramos nazistas — corrigiu-a sua nonna.
Rachel fechou os olhos. Oh! meu Deus...
Sua avó prosseguiu:
— Papai era um líder do partido em Salzburgo, mas também tinha vínculos com a Corte Imperial do Dragão da Áustria. Era um homem muito poderoso. Foi por intermédio dessa fraternidade que nós fugimos clandestinamente através da Suíça, graças à generosidade do barão de Sauvage, avô de Raoul.
Rachel ouvia com crescente horror, embora tivesse vontade de tampar os ouvidos e recusar-se a ouvir.
— Mas essa passagem segura exigia um pagamento. E meu pai o concedeu. Minha virgindade... ao barão. Como você, eu resisti, incapaz de entender. Meu pai me reprimiu pela primeira vez, para o meu próprio bem. Mas não seria a última. Nós ficamos quatro meses escondidos aqui no castelo. O barão me levou muitas noites para a cama, até eu engravidar com o
seu filho bastardo.
Rachel começou a escorregar aos poucos pela parede, acomodando-se no frio piso de pedra.
— Mas, bastardo ou não, foi um bom cruzamento, misturando uma linhagem nobre austríaca dos Habsburgos com uma linhagem suíça bernesa. Eu vim a entender à medida que a criança crescia no meu ventre. Era o jeito da Corte, fortalecendo linhagens puras. Meu pai inculcou isso em mim. Eu acabei entendendo que tinha uma linhagem nobre que remontava a imperadores e reis.
Sentada no chão, Rachel tentou compreender a brutalidade cometida contra a mocinha que viria a ser sua avó. Será que sua avó havia corroborado aquela crueldade e abuso dissimulando-os num projeto visionário maior? Submetida a uma lavagem cerebral pelo pai naquela tenra idade.
Rachel tentou sentir compaixão pela anciã, mas não conseguiu.
— Meu pai me levou para a Itália, para Castel Gandolfo, onde se situa a residência de verão do papa. Foi lá que eu dei à luz sua mãe. Uma vergonha. Eu fui espancada por causa disso. Esperavam um menino.
Sua avó sacudiu a cabeça tristemente. Ela continuou, relatando outra história da família. Que se casara com outro membro da Corte do Dragão, um homem com ligações com a Igreja em Castel Gandolfo. Fora um casamento de conveniência e falácia. A família deles recebera a missão de introduzir seus filhos e netos na Igreja, como espiões involuntários, agentes secretos da Corte. Para guardar o segredo, a mãe de Rachel e o tio Vigor foram mantidos ignorantes de sua herança amaldiçoada.
— Mas você foi destinada a muito mais — disse a avó dela com intenso orgulho. — Você provou o seu sangue do Dragão. Você foi observada e escolhida para ser aliciada para a Corte. O seu sangue era precioso demais para ser desperdiçado. O Imperador a escolheu pessoalmente para cruzar nossa linhagem com a antiga linhagem Sauvage. Os seus filhos serão reis entre reis.
Os olhos de sua nonna brilharam maravilhados.
— Molti bellissimi bambini. Todos reis da Corte.
Naquele instante, Rachel nem sequer teve força para erguer a cabeça. Ela cobriu o rosto com as mãos. Cada momento de sua vida passou como um relâmpago por ela. O que era real? Quem era ela? Ela pensou no número de vezes em que tomara o partido da avó contra a mãe, até mesmo nos conselhos da avó sobre sua vida amorosa. Ela reverenciara a anciã e seguira o exemplo dela, respeitando seu jeito firme e pragmático. Mas aquela solidez provinha de obstinação ou de psicose? O que aquilo implicava para si mesma? Ela partilhava aquela linhagem... com a avó... meu Deus, com o bastardo do Raoul.
Quem era ela?
Outra preocupação veio à tona. O medo a impeliu a falar.
— E... e o tio Vigor... seu filho?
A avó dela deu um suspiro.
— Ele desempenhou seu papel na Igreja. O celibato encerrou a linhagem dele. Agora ele não é mais necessário. O legado da nossa família será transmitido gloriosamente no futuro por seu intermédio.
Rachel percebeu um vestígio de dor por trás daquelas últimas palavras e olhou para cima. Ela sabia que sua avó amava Vigor... na verdade, mais do que à mãe da própria Rachel. Ela se perguntou se a avó havia tido ressentimento daquela filha a que dera à luz, fruto do estupro. E será que aquele trauma fora transmitido à geração seguinte? Rachel e sua mãe sempre haviam tido um relacionamento tenso, uma dor não expressa que não podia ser nem superada nem compreendida.
E onde isso iria parar?
Um grito chamou a atenção dela para a porta. Homens aproximavam-se. Rachel ficou em pé, e sua avó também. Tão parecidas...
Um grupo de guardas passou marchando pelo corredor. Rachel olhou em desespero para o segundo homem da fila. Gray, as mãos atadas atrás das costas, passou caminhando penosamente. Ele olhou para dentro da cela. Ao vê-la, os olhos dele arregalaram-se de surpresa e ele tropeçou.
— Rachel...
Gray foi empurrado para a frente por Raoul, que olhou de soslaio para a cela e ergueu alguma coisa num cordão ao passar.
Uma chave de ouro.
O desespero tomou conta de Rachel.
Agora não havia nada entre a Corte e o tesouro em Avignon. Depois de séculos de manipulação e maquinação, a Corte do Dragão vencera.
Estava terminado.
Kat não gostava nem um pouco daquilo. Havia civis demais por perto. Ela subiu os degraus em direção à entrada principal do Palácio dos Papas. Um fluxo de pessoas entrava e saía pelo portão.
— É uma tradição encenar a peça dentro do palácio — disse Vigor. — No ano passado, encenaram A Vida e a Morte do Rei João, de Shakespeare. Este ano é uma montagem de Hamlet com quatro horas de duração. A peça e a festa duram até de manhã. A encenação é feita no Pátio de Honra. — Ele apontou para a frente.
Eles abriram caminho através de um grupo de turistas alemães que saía do palácio e cruzaram a entrada em arco. Vindas de mais adiante, vozes ecoavam na parede de pedra numa mistura de línguas.
— Será difícil fazer uma busca minuciosa com todas estas pessoas - disse Kat, franzindo o cenho.
Vigor concordou com um aceno de cabeça enquanto o ronco de um trovão ribombou no céu.
Risos e palmas ecoaram.
— A peça deve estar quase no fim — disse Vigor.
A longa passagem terminava num pátio ao ar livre. Estava escuro, a não ser pelo grande palco no outro lado, emoldurado por cortinas e decorado como a sala do trono de um grande castelo. O pano de fundo era na verdade a própria parede do pátio. Em cada lado erguiam-se torres de iluminação, cujos refletores despejavam luz sobre os atores, e altíssimos alto- falantes.
Uma multidão reunia-se abaixo do palco, em cadeiras ou espalhada sobre cobertores no piso de pedra. No palco, algumas figuras estavam de pé em meio a uma pilha de corpos. Um ator falou em francês, mas Kat era fluente no idioma.
— Estou morto, Horácio. Pobre rainha, adeus!
Kat reconheceu uma das últimas falas de Hamlet. A peça estava de fato quase no fim.
Vigor puxou-a para o lado.
— Este pátio separa duas alas diferentes do palácio: a nova e a velha. A parede dos fundos e a parede à esquerda fazem parte do Palais Vieux, o palácio velho. Onde nós estamos e à direita fica o Palais Neuf, a parte construída mais tarde.
Kat inclinou-se para mais perto de Vigor.
— Por onde começamos?
Vigor apontou para a parte mais antiga.
— Existe uma história misteriosa relacionada com o Palácio dos Papas. Muitos historiadores da época relatam que, na madrugada de 20 de setembro de 1348, uma grande coluna de fogo foi vista acima da parte antiga do palácio. Ela foi percebida pela cidade inteira. Muitos dos supersticiosos acreditaram que a chama anunciava a grande praga, a peste negra, que começou mais ou menos na mesma época. Mas, e se não fosse? E se fosse alguma manifestação do campo de Meissner, um fluxo de energia sendo liberado quando um segredo qualquer foi encerrado aqui? A aparição da chama deve assinalar a data exata em que o tesouro foi enterrado.
Kat fez um aceno de cabeça positivo. Era algo a investigar.
— Eu baixei da Internet um mapa detalhado — disse Vigor. — Tem uma entrada do palácio antigo perto da Porta de Nossa Senhora. Uma entrada raramente usada.
Vigor seguiu na frente, dobrando à esquerda. Uma arcada abriu-se. Eles entraram na passagem enquanto um grande relâmpago cindia o céu. Trovões retumbaram. O ator no palco parou no meio de um monólogo. Risos nervosos soaram através do público. A tempestade talvez encerrasse a peça cedo.
Vigor fez um sinal, indicando uma porta resistente do lado.
Kat abaixou-se e pôs-se a trabalhar com seus instrumentos para arrombar fechaduras, enquanto Vigor ocultava o trabalho dela com seu corpo. Ela não levou muito tempo para soltar o trinco. Kat abriu-o com um estalido.
Outro raio a fez olhar para o pátio. Trovões ribombaram e o céu se abriu. A chuva caiu pesadamente das nuvens baixas. Gritos e aplausos irromperam do público. Um êxodo em massa teve início.
Kat abriu a porta com o ombro, segurou-a para Vigor entrar e fechou-a atrás deles.
Ela fechou-se com um impacto e um forte estalido do trinco. Kat tornou a trancá-la.
— Nós temos de nos preocupar com a segurança? — perguntou ela.
— Lamentavelmente, não. Como você verá, na verdade não há nada para roubar. A maior preocupação é o vandalismo. Talvez haja um vigia noturno. Por isso deveríamos ter cautela.
Kat fez um aceno de cabeça e manteve a lanterna desligada. A luz que se filtrava através das altas janelas era suficiente para iluminar uma rampa que conduzia para cima, em direção ao próximo pavimento do castelo.
Vigor seguiu na frente.
— Os aposentos privados do papa ficam na Torre dos Anjos. Esses aposentos sempre foram a área mais protegida do palácio. Se alguma coisa foi oculta, nós provavelmente deveríamos procurar lá.
Kat pegou uma bússola e manteve-a fixa à sua frente. Um marcador magnético havia-os conduzido ao túmulo de Alexandre. Talvez fizesse o mesmo ali também.
Eles atravessaram várias salas e corredores. Seus passos ecoavam abafados pelos espaços abobadados. Kat agora entendia a falta de segurança de verdade. O lugar era um túmulo de pedra, despido de quase toda decoração ou mobília. Não havia nenhum vestígio da opulência que o palácio outrora devia ter ostentado. Ela tentou imaginar a abundância de veludo e pele, os magníficos tapetes, os lautos banquetes, o dourado e o prateado. Nada restava a não ser pedra e vigas de madeira.
— Depois que os papas partiram — sussurrou Vigor —, o lugar foi abandonado. Ele foi saqueado durante a Revolução Francesa, servindo por fim de guarnição e alojamento para as tropas de Napoleão. Uma grande parte do lugar foi caiada e destruída. Apenas em algumas áreas, como os aposentos do papa, ainda resta parte dos afrescos originais.
Enquanto andava, Kat também sentiu a estranha configuração do lugar: corredores que terminavam de maneira muito abrupta, cômodos que pareciam estranhamente pequenos, escadas que desciam a pavimentos sem portas. A espessura das paredes variava de algumas dezenas de centímetros a cerca de 5,5 metros. O palácio era uma verdadeira fortaleza, mas Kat podia sentir espaços, passagens, cômodos ocultos — características comuns entre os castelos medievais.
Isso foi confirmado quando eles entraram num cômodo que Vigor chamou de tesouraria. Ele apontou para quatro lugares.
— Eles enterravam o ouro sob o assoalho. Em salas subterrâneas. Sempre correram boatos de que outras dessas câmaras ainda estavam por descobrir.
Eles atravessaram outros cômodos: um grande quarto de vestir, uma ex-biblioteca, uma cozinha vazia cujas paredes quadradas se estreitavam numa chaminé octogonal sobre um fogão no centro.
Vigor afinal entrou na Torre dos Anjos.
A bússola de Kat não dera um mínimo puxão sequer, mas ela estava mais concentrada agora. A preocupação aumentou. E se eles não encontrassem a entrada? E se ela fracassasse de novo? A mão que segurava a bússola começou a tremer. Primeiro o fracasso dela com Monk e Rachel...
E agora aquele.
Ela segurou a bússola com mais força e controlou a mão para ela manter-se firme. Ela e Vigor solucionariam o enigma. Eles tinham de solucioná-lo. Ou todo o sacrifício dos outros seria em vão.
Determinada, subia de um pavimento dos aposentos do papa para o próximo. Como não havia sinal de nenhum vigilante, ela arriscou-se a acender uma pequena lanterna de bolso para ajudar a iluminar o espaço que eles esquadrinhavam.
— A sala de estar do papa — disse Vigor à entrada de um aposento.
Kat ziguezagueou por toda a extensão dela, observando atentamente a bússola. As paredes ali eram decoradas com um torvelinho de tinta que se escamava, e uma grande lareira de canto dominava o aposento. Trovões ecoaram através das grossas paredes.
Assim que terminou a varredura, ela sacudiu a cabeça.
Nada.
Eles seguiram em frente. Um dos aposentos mais espetaculares veio em seguida: a Sala do Veado. Seus afrescos descreviam elaboradas cenas de caça, de falcoaria, passando por ninhos de pássaros e cães brincando, até um viveiro de peixes retangular.
— Um piscarium — disse Vigor. — Peixes de novo.
Kat acenou afirmativamente com a cabeça, lembrando-se da importância dos peixes para a própria busca deles. Ela esquadrinhou aquele aposento com um padrão de inspeção até mais rigoroso. A bússola recusou-se a mexer-se. Sem pistas, ela acenou para Vigor continuar.
Eles subiram mais um andar.
— O quarto de dormir do papa — disse Vigor, com um tom de desapontamento na voz e agora também preocupado. — Este é o último aposento.
Kat entrou na câmara. Não havia mobília. As paredes eram pintadas de um azul brilhante.
— Lápis-lazúli — disse Vigor. — Apreciado pelo seu brilho.
A magnífica decoração descrevia uma floresta à noite, ornamentada com gaiolas de pássaros de todas as formas e tamanhos. Alguns esquilos amontoavam-se entre os ramos das árvores.
Kat esquadrinhou o aposento de um lado ao outro.
Nada ainda.
Ela baixou a bússola, virou-se e encontrou o mesmo entendimento nos olhos de Vigor. Eles haviam fracassado.
Gray foi empurrado para uma cela de pedra lacrada com vidro Lexan à prova de balas e com 2,5 centímetros de espessura. A porta fechou-se com um estrondo. Ele vira Rachel numa cela duas cavernas abaixo... junto com a avó.
Aquilo não fazia sentido.
Raoul resmungou com seus homens e afastou-se, a chave de ouro na mão.
Seichan estava de pé junto à porta, sorrindo para ele. Com as mãos ainda atadas atrás das costas com cordas de plástico, ele arremessou-se contra ela, chocando-se na parede de vidro.
— Sua cadela filha-da-puta!
Ela apenas sorriu, beijou as pontas dos dedos e pressionou-as contra o vidro.
— Tchauzinho, querido. Obrigada pela carona até aqui.
Gray afastou-se da porta, ficando de costas, praguejando baixinho, calculando. Raoul apreendera sua mochila e a entregara a um de seus sequazes. Ele havia sido revistado, suas armas haviam sido tiradas dos coldres no ombro e no calcanhar.
Ele escutou uma conversa próximo à cela de Rachel. Uma porta abriu-se.
Raoul gritou para um de seus guardas:
— Leve madame Camilla até um dos jipes. Mande todos os homens se aprontarem. Nós seguiremos para o aeroporto daqui a alguns minutos.
— Ciao, Rachel, mia bambina.
Nenhuma resposta à avó. O que estava acontecendo?
Passos afastaram-se.
Gray ainda sentia uma presença junto à outra porta.
Raoul voltou a falar.
—Se eu pelo menos tivesse mais tempo — sussurrou ele gelidamente.
— Mas ordens são ordens. Tudo isto vai chegar ao fim em Avignon. O Imperador voltará comigo para cá. Ele quer assistir quando eu a possuir pela primeira vez. Depois disso, seremos apenas nós dois... pelo resto da sua vida.
— Foda-se! — respondeu-lhe Rachel com veemência.
— Isso mesmo — Raoul deu uma gargalhada. — Eu vou ensinar você a gritar e a agradar adequadamente a seu superior. E, se você não se curvar a tudo o que eu exigir, você não será a primeira cadela que Alberto vai lobotomizar para a Corte. Eu não preciso da sua mente para comer você.
Ele afastou-se depois de ter dado uma última ordem a um guarda.
— Fique de olho aqui embaixo. Eu entrarei em contato pelo rádio quando estiver pronto para o americano. Nós vamos nos divertir um pouco aqui antes de partirmos.
Gray ouviu quando os passos de Raoul enfraqueceram.
Ele não esperou mais. Chutou a biqueira de sua bota com força contra a sólida parede de rocha. Uma lâmina de 7,5 centímetros de comprimento saltou do calcanhar. Ele agachou-se e cortou as cordas que prendiam seu pulso. Movia-se rápido. O tempo era tudo.
Ele enfiou a mão na frente da calça. Seichan havia introduzido uma latinha estreita próximo à fivela do cinto dele quando ele se atirou contra a parede de vidro. A mão esquerda dela havia passado através de um respiradouro, enquanto a outra mão distraía com seu fingido beijo de despedida.
Gray tirou a latinha de dentro da calça, foi até a porta e borrifou as dobradiças. Os parafusos de aço começaram a dissolver-se. Ele tinha de reconhecer o mérito da Guilda. Os brinquedos deles eram o máximo. Embora Gray não pudesse contatar seus superiores, nada havia impedido Seichan de obter equipamento dos superiores dela.
Gray esperou um minuto e então gritou para o guarda estacionado alguns passos corredor abaixo.
— Ei! Você aí! Tem alguma coisa errada aqui.
Passos aproximaram-se.
Gray afastou-se da porta.
O guarda avançou.
Gray apontou para o chiado acompanhado de fumaça que se erguia numa nuvem junto à porta.
— Que diabo! — gritou ele. — Vocês estão tentando me envenenar com gases, seus filhos-da-puta?
Com a testa enrugada, o guarda chegou mais perto da porta.
Excelente.
Gray deu um pulo para a frente, golpeou a porta, fazendo as dobradiças soltarem-se. A placa de vidro resistente acertou o guarda, que se chocou contra a parede oposta, batendo a cabeça com força. Enquanto caía, ele tentou sacar a pistola.
Gray empurrou a porta para o lado, contornou-a e girou o corpo. Ele cravou a lâmina do calcanhar de sua bota na garganta do homem e em seguida tirou-a, removendo a maior parte do pescoço do homem.
Ele curvou-se, tirou a pistola do coldre do guarda, pegou o molho de chaves dele e correu para a cela de Rachel.
Ela já estava em pé junto à porta.
— Gray...!
Ele abriu a fechadura.
— Nós não temos muito tempo.
Ele abriu a porta — e ela caiu em seus braços. Ela enlaçou-o com força, os lábios nas orelhas dele, a respiração em seu pescoço.
— Graças a Deus — sussurrou ela.
— Na verdade, graças a Seichan — disse ele.
Apesar da urgência de saírem dali, ele manteve o abraço por um tempo um pouco mais longo, sentindo que ela necessitava disso.
E ele talvez também precisasse.
Mas, finalmente, ambos se separaram. Gray apontou a pistola para o fim do corredor. Ele consultou o relógio. Dois minutos.
Seichan estava ao pé da escada que conduzia à torre principal. Ela sabia que a única saída era pela porta da frente. Portas de aço com cargas de explosivos lacravam a saída dos fundos embaixo do castelo.
No pátio intensamente iluminado, uma caravana de cinco SUVs estava sendo carregada. Homens gritavam ordens. Engradados eram empurrados na traseira dos jipes. Cães latiam nos canis.
Seichan observava tudo aquilo atentamente pelo canto dos olhos, acompanhando os movimentos de um homem em meio à aglomeração. Seria necessária uma ação violenta. Ela já havia confiscado um molho de chaves do último Mercedes SUV. Um cor de prata. Sua cor favorita.
Atrás dela, uma porta abriu-se. Raoul saiu junto com uma mulher idosa.
— Nós a deixaremos no aeroporto. Um avião a levará de volta a Roma.
— Minha neta...
— Nós cuidaremos dela. Eu prometo.
A última frase foi pronunciada com um sorriso gélido.
Raoul notou Seichan.
— Eu não creio que precisaremos mais dos serviços da Guilda.
Ela deu de ombros.
— Então eu vou sair com você e seguir meu caminho. — Ela fez um aceno de cabeça na direção do SUV prateado.
Raoul ajudou a anciã a descer os degraus e encaminhou-se para o veículo da frente, onde o dr. Alberto Menardi aguardava. Seichan continuou a observar seu alvo. Movimentos ao longo de um muro do pátio atraíram seu olhar.
Uma porta abriu-se. Ela avistou Gray. Ele tinha uma pistola. Ótimo.
No outro lado do pátio, Raoul levou um rádio à boca. Muito provavelmente, entrando em contato com as celas. Ela não podia esperar mais. O homem que estivera observando não estava tão próximo de Raoul quanto ela havia esperado — mas ele ainda era um bom alvo.
Ela fixou os olhos no soldado, que ainda carregava a mochila de Gray num ombro. Era sempre fácil contar com avareza entre os soldados de infantaria. O sujeito não deixava seu butim fora do alcance de sua visão. A mochila estava abarrotada de armas e de equipamento eletrônico caro.
Infelizmente para o soldado, o revestimento do fundo da mochila também tinha 250 gramas de C4 costuradas nele. Seichan apertou o transmissor em seu bolso, pulando sobre a balaustrada da escada da frente.
A explosão mandou pelos ares o centro da caravana.
Homens e partes de corpos voaram no céu escuro. Os tanques de gasolina entraram em combustão em dois dos carros. Uma bola de fogo rolou para cima. Detritos em chamas espalharam-se por todos os cantos do pátio.
Seichan moveu-se rapidamente. Acenando para Gray, ela apontou a pistola para o SUV prateado. O pára-brisa estava rachado, mas, em outros aspectos, ele estava intacto. Gray e a mulher saíram precipitadamente. Os três concentraram a atenção no veículo.
Dois soldados tentaram detê-los. Gray abateu um, Seichan o outro. Eles chegaram ao SUV.
A rotação de um motor atraiu seu olhar para o portão do castelo. O jipe da frente avançou aos solavancos. Raoul estava fugindo. Um fogo cerrado foi disparado na direção deles enquanto soldados embarcavam num segundo jipe, cujo motor já fora ligado. Raoul surgiu subitamente através do teto solar do jipe da frente, olhando para trás, na direção deles, e segurando uma possante horse pistol.
— Abaixem-se! — gritou Seichan, jogando-se no chão.
A arma soou como um canhão. Ela ouviu o pára-brisa vir abaixo e o vidro traseiro explodir. A grossa bala trespassou o veículo. A plena vista, ela rolou em direção à traseira do jipe, mantendo-o entre ela e Raoul.
O fogo cuspiu do outro lado. Gray, de bruços, numa posição melhor para disparar contra o inimigo, atirou contra Raoul quando o jipe da frente saiu cantando pneus rumo à saída. O segundo jipe seguiu atrás.
Raoul continuou a atirar, sem medo do fogo inimigo.
Uma bala atravessou com violência a grade da frente do SUV.
Merda.
O filho-da-puta estava-lhes tirando o jipe.
Um dos faróis dianteiros explodiu. De sua posição no chão, Seichan viu um fluxo de óleo escorrer do compartimento do motor e acumular-se nas pedras.
A corrediça da pistola de Gray abriu-se. A munição acabara.
Seichan arrastou-se para juntar-se a ele, mas era tarde demais.
Um jipe, e em seguida o outro, saíram em disparada pelo portão. A gargalhada de Raoul chegou até eles. A grade levadiça baixou atrás do último veículo, seus dentes penetrando com um estrondo nos entalhes na pedra, fechando-se com firmeza.
O ruído de algo rolando sobre rodízios ecoou nos ouvidos dela.
Ela agachou-se. Anteparos de aço desceram sobre todas as janelas e portas do castelo. Fortificação moderna. A Corte levava a sua segurança a sério. Eles estavam encurralados no pátio.
Um novo som seguiu-se.
O estalido de uma série de trincos pesados.
Seichan virou-se junto com Gray e Rachel. Ela agora entendia a prolongada gargalhada do filho-da-puta em fuga.
Os portões da fileira de vinte canis ergueram-se em rodízios motorizados.
Monstros de músculos, couro e dentes saíram dos canis, rosnando, espumando, enlouquecidos pelo estrondo e pelo sangue. Cada um dos cães de combate chegava à altura do peito de um homem e pesava quase cem quilos, o dobro do peso da maioria dos seres humanos.
E a campainha do jantar acabara de soar.
Kat recusou-se a admitir a derrota. Evitando entrar em desespero, ela percorreu a extensão do quarto de dormir azul no alto da Torre dos Anjos.
— Nós estamos encarando isto da maneira errada — disse ela.
Ao contrário dela, Vigor permanecia imóvel no centro do quarto. Seus olhos estavam em algum outro lugar, calculando. Ou seria preocupação com a sobrinha? Até que ponto ele estava concentrado naquela tarefa?
— O que você quer dizer? — sussurrou ele.
— Talvez não exista um marcador magnético. — Ela ergueu a bússola, atraindo o olhar dele, tentando envolvê-lo por completo.
— O quê, então?
— O que você acha de toda aquela conversa mais cedo? Da história gótica da cidade e deste lugar?
Vigor fez um aceno de cabeça afirmativo.
— Alguma coisa embutida na estrutura do edifício. Mas, sem um marcador magnético, como vamos achá-la? O palácio é imenso. E, levando em consideração o estado de abandono, a pista poderia ter sido destruída ou removida.
— Você não acredita nisso — disse Kat com mais firmeza. — Essa sociedade secreta de alquimistas teria encontrado uma forma de preservá-la.
— No entanto, como vamos encontrá-la? — indagou Vigor.
Um relâmpago crepitou do lado de fora da janela próxima, iluminando os jardins abaixo da torre e a parte da cidade que se estendia abaixo da colina. O rio escuro serpenteou abaixo. A chuva começou a cair mais forte. Outro relâmpago, em ziguezague, cintilou através das entranhas das nuvens negras.
Kat observou o mostrador e virou-se lentamente para Vigor, a convicção firmando-se com a súbita compreensão. Ela guardou a bússola no bolso, sabendo que ela não era mais necessária.
— O magnetismo abriu o túmulo de São Pedro — disse ela, voltando para junto dele. — E foi o magnetismo que nos conduziu ao túmulo de Alexandre. Mas, uma vez lá, foi a eletricidade que ativou a pirâmide. O mesmo poderia nos conduzir ao tesouro aqui. — Ela fez um aceno com uma das mãos para o ofuscante espetáculo da tempestade. Relâmpagos. O palácio foi construído no alto da maior colina, a Roche des Doms, a Rocha do Domo.
— Atraindo descargas de relâmpagos. Um jato de luz que ilumina a escuridão.
—Existe alguma descrição de relâmpagos que nós não percebemos?
— Eu não me lembro. — Vigor cofiou a barba. — Mas eu acho que você tocou num ponto importante. A luz é um símbolo do conhecimento. Iluminação. O principal objetivo da fé gnóstica era buscar a luz primordial mencionada no Gênesis, alcançar essa antiga fonte de conhecimento e poder que flui em toda a parte.
Vigor ticou na ponta dos dedos.
— Eletricidade, relâmpagos, luz, conhecimento, poder. Tudo isso está relacionado. E em algum lugar existe um símbolo disso, embutido no projeto do palácio.
Kat sacudiu a cabeça, sem saber o que fazer.
Vigor de repente enrijeceu-se.
— O que foi? — perguntou ela, aproximando-se.
Vigor rapidamente ajoelhou-se e desenhou no pó.
O túmulo de Alexandre ficava no Egito. Nós não podemos nos esquecer de que um enigma leva ao seguinte. O símbolo egípcio da luz é um círculo com um ponto no centro, representando o sol.
— Mas às vezes ele é achatado numa oval, formando um olho, que representa não só o sol e a luz, mas também o conhecimento. O olho ardente da compreensão. O olho que tudo vê da iconografia dos maçons e dos templários.
Kat olhou para os desenhos, franzindo o cenho. Ela não vira aqueles sinais.
— Okay, mas onde começamos a procurá-lo?
— Ele não será encontrado, e sim formado — disse Vigor, levantando-se. — Por que não pensei nisto antes? Uma característica da arquitetura gótica é o malicioso jogo de luz e sombra. Os arquitetos templários eram mestres nesta manipulação.
— Mas onde nós podemos...?
Vigor interrompeu-a, já saindo pela porta.
— Nós temos de voltar para o primeiro andar. Para o lugar onde nós já vimos o potencial de um olho chamejante dentro de um círculo de luz.
Kat seguiu Vigor. Ela não se lembrava de nenhuma representação como aquela. Eles desceram a escada às pressas e saíram da Torre dos Anjos. Vigor seguiu na frente, cruzando uma sala de banquetes, e foi parar num cômodo que eles já haviam explorado.
— A cozinha? — perguntou ela, surpresa.
Kat voltou a olhar fixamente para as paredes quadradas, para o forno central elevado e, acima, para a chaminé octogonal. Ela não entendeu e começou a dizer isso.
Vigor pôs uma das mãos em concha sobre a lanterna de bolso.
— Espere.
Um relâmpago de brilho intenso rebentou lá fora. Iluminação suficiente penetrou pela chaminé aberta e refletiu uma oval perfeita sobre o fogão. A luz prateada bruxuleou e em seguida escureceu.
— Tudo o que está acima é como o que está abaixo — disse Vigor com a voz abafada. — O efeito provavelmente é mais evidente quando o sol do meio-dia está bem acima ou em algum ângulo preciso.
Kat imaginou o fogão aceso, iluminado pelas chamas. Fogo dentro de um círculo de luz do sol.
— Mas como nós podemos ter certeza de que este é o lugar certo? — perguntou ela, dando a volta ao redor do forno.
Ele franziu o cenho.
— Eu não tenho certeza absoluta, mas o túmulo de Alexandre estava sob um farol encimado por uma chama abrasadora. E, se levarmos em consideração a utilidade de um farol e de uma cozinha, faz sentido enterrar alguma coisa embaixo de um lugar com uma função importante. Gerações sucessivas preservariam isso por sua utilidade.
Não convencida, Kat curvou-se e tirou uma faca da mochila para examinar o forno central. Ela cavou a rocha que revestia o fogão, expondo uma pedra de cor alaranjada na base.
— Não é nem hematita nem magnetita. — Se fosse uma das duas, ela ter-se-ia convencido. — É apenas bauxita, um minério de hidróxido de alumínio. Um bom condutor de calor. Faz sentido numa lareira. Nada incomum.
Ela olhou de relance para Vigor, que exibia um largo sorriso.
— O que foi?
— Eu acabei de passar por ela — disse Vigor, juntando-se a Kat. — Eu deveria ter pensado que outra pedra indicaria o caminho. Primeiro hematita, depois magnetita e agora bauxita.
Kat ergueu-se, confusa.
— A bauxita é extraída bem aqui nesta área. Na verdade, ela recebeu esse nome por causa dos Lordes de Baux, cujo castelo fica a apenas 15 quilômetros daqui, sobre uma colina de bauxita. Esta pedra aponta um dedo na direção deles.
— E daí?
— Os Lordes de Baux tinham um relacionamento problemático com os papas franceses, seus novos vizinhos. Mas eles eram mais conhecidos por uma estranha afirmação que faziam com muita veemência. Eles diziam ser descendentes de uma famosa figura bíblica.
— De quem? — perguntou Kat.
— De Baltazar, um dos Reis Magos.
Kat arregalou os olhos e voltou para perto do forno.
— Eles lacraram a abertura com pedras dos descendentes dos Reis Magos.
— Você ainda duvida de que tenhamos encontrado o lugar certo? — perguntou Vigor.
Kat sacudiu a cabeça.
— Mas como vamos abri-la? Eu não estou vendo nenhum buraco de fechadura.
— Você já nos disse. Eletricidade.
Como que para dar ênfase ao ponto de vista dele, um trovão retumbou através das grossas paredes.
Kat tirou a mochila dos ombros. Valia a pena fazer uma tentativa.
— Nós não temos nenhuma daquelas baterias antigas. — Ela tirou da mochila uma lanterna maior. — Mas eu tenho algumas Duracell Coppertops modernas. — Ela abriu a lanterna com um estalido e usou a ponta de uma faca para soltar os fios positivo e negativo. Com a força desligada, ela torceu-os juntos e em seguida ergueu sua obra.
— É melhor você se afastar — advertiu Kat.
Estendendo a mão, ela pôs os fios da lanterna em contato com a pedra de bauxita, um minério de baixa condutividade. Ela moveu rapidamente o interruptor da lanterna.
Um arco de eletricidade feriu a pedra, e o resultado foi um som grave, como se um grande tambor houvesse sido tocado.
Kat correu para trás quando o som enfraqueceu, indo encostar-se à parede ao lado de Vigor.
Ao longo das extremidades do forno de pedra, espalhou-se um brilho flamejante, traçando linhas em todo o fogão.
— Eu acho que eles cimentaram os blocos com vidro no estado m derretido — murmurou Kat.
— Como os antigos construtores egípcios usaram chumbo derretido para cimentar o Farol de Faros.
— E agora a eletricidade está liberando o poder armazenado no vidro.
Outros rendilhados de fogo dançaram na superfície do forno, contornando cada uma das pedras. A luz brilhou com mais intensidade, imprimindo um padrão em ziguezague na retina dela. O calor projetou-se na direção deles.
Kat protegeu os olhos, mas o efeito não durou muito tempo. Quando o brilho se extinguiu, os blocos de bauxita começaram a soltar-se, não mais cimentados, caindo num buraco oculto embaixo do forno.
Ela ouviu o ruído de pedra chocando-se com pedra. Um chacoalhar continuou quando os blocos caíram mais fundo. Incapaz de refrear sua curiosidade por mais tempo, ela avançou e acendeu a lanterna de bolso. As extremidades do forno agora demarcavam uma escada escura que conduzia para baixo.
Ela virou-se para Vigor e disse:
— Nós conseguimos.
— Que Deus nos ajude — respondeu ele.
A uns quatrocentos metros de distância do castelo, Raoul baixou o telefone celular e saiu de seu jipe. A fúria estreitava sua visão a minúsculos pontos. O sangue escorria de um ferimento no couro cabeludo. Aquela piranha asiática o traíra. Mas ele teria sua compensação. Seus cães fariam picadinho de todos eles.
E, se não...
Ele foi até o segundo jipe e apontou para dois homens.
— Você e você. Voltem ao castelo. A pé. Fiquem de guarda junto às grades levadiças. Abram fogo contra qualquer pessoa que se mexer. Ninguém vai sair vivo daquele pátio.
Os dois desceram do jipe e voltaram a passos rápidos para o castelo.
Raoul voltou para o veículo da frente.
Alberto estava à espera dele.
— O que o Imperador disse? — perguntou ele enquanto Raoul se acomodava no banco de passageiros da frente.
Raoul guardou o telefone celular. A traição da Guilda deixara o líder deles tão surpreso quanto Raoul. Mas Raoul havia omitido sua própria traição em Alexandria, abandonando a piranha para morrer e mentido a esse respeito. Ele deveria ter esperado alguma coisa. Deu um soco no joelho.
Quando ela lhe entregou o americano, ele baixou a guarda.
Estúpido.
Mas as coisas seriam consertadas.
Em Avignon.
Raoul respondeu a Alberto:
— O Imperador se juntará a nós na França, com mais forças. Nós vamos prosseguir conforme planejado.
— E os outros? — perguntou Alberto, voltando o olhar para o castelo.
— Eles não têm mais importância. Eles não podem fazer nada para nos deter.
Raoul acenou para que o motorista fosse em frente. O jipe seguiu para o aeroporto de Yverdon. Ele sacudiu a cabeça por causa das perdas.
Não por causa dos homens, mas por causa da piranha, Rachel Verona. Ele tinha planos tão sangrentos para ela...
Mas pelo menos ele lhe deixara um presentinho de despedida.
Rachel reuniu-se com Gray e Seichan nos degraus do castelo principal, as costas pressionadas contra os anteparos de metal que haviam baixado sobre as portas. Movendo-se furtivamente, eles haviam-se afastado da matilha para aquela relativa proteção.
Eles ainda tinham uma arma. Seis balas.
Gray tentara surrupiar outra arma em meio ao amontoado de cadáveres em chamas no pátio, mas tudo o que encontrou foram dois rifles danificados. Ele portava a arma de Seichan, que estava ocupada com uma unidade GPS, completamente concentrada, confiando em Gray para lhe dar cobertura.
O que ela estava fazendo?
Rachel estava a um passo de distância da mulher, mais perto de Gray. Uma de suas mãos segurava a aba da camisa dele. Ela não sabia quando a havia segurado, mas não a soltou. Era tudo o que a estava mantendo de pé.
Um dos cães passou em silêncio pelo pé da escada, arrastando um membro de um dos soldados mortos. Vinte daqueles monstros perambulavam pelo pátio, dilacerando corpos, rosnando e fungando uns para os outros. Algumas brigas tiveram início, selvagens, disputas rápidas como um relâmpago.
Não demoraria muito para que a atenção dos animais, com seus olhos pequenos e encovados, se voltasse para eles.
Qualquer ruído atraía as bestas. Os feridos que gemiam morriam primeiro.
Todos eles sabiam que, assim que o primeiro tiro fosse disparado, a matilha inteira cairia sobre eles.
Seis balas. Vinte cães.
Movimento no outro lado...
Através da fumaça oleosa, uma figura esguia levantou-se em meio aos detritos, trêmula, vacilante. Uma brisa dispersou a névoa, e Rachel reconheceu a forma, oscilando nas pernas finas.
— Nonna... — sussurrou ela.
O sangue empastara-se nos cabelos da anciã no lado esquerdo.
Rachel pensara que sua avó escapara com Raoul.
Será que a explosão a arremessara no chão?
Mas Rachel supôs outra coisa. Raoul devia tê-la tirado do caminho com uma coronhada de pistola, deixando-a para trás, bagagem inútil.
A anciã soltou um gemido e ergueu uma das mãos ao lado da cabeça.
— Papai — chamou ela debilmente com a voz cansada.
A explosão, a confusão, o castelo indistinto deviam ter perturbado a avó dela, fazendo-a voltar ao passado.
— Papai...
Uma dor que ia além do ferimento na cabeça gemeu na voz dela.
Mas Rachel não foi a única a ouvir a dor.
A alguns metros de distância, uma forma escura ergueu-se de trás de um pneu em chamas, saindo da fumaça, atraída pelo grito fraco.
Rachel soltou o cinto de Gray e desceu um degrau aos tropeços.
— Eu o estou vendo — disse Gray, detendo-a com uma das mãos.
Ele ergueu a arma, fez pontaria e puxou o gatilho. O estampido ecoou como uma explosão no pátio silencioso, mas o ganido do alvo foi mais alto quando o cão caiu pesadamente e rolou no chão. Ele começou a uivar e a rilhar os dentes na pata traseira ferida, atacando a dor. Outros cães caíram rapidamente sobre ele. Atraídos pelo sangue. Leões sobre uma gazela ferida.
A avó de Rachel, assustada pela fera, caíra sentada, a boca congelada num Oh de surpresa.
— Eu tenho de chegar até ela — sussurrou Rachel. Era uma reação instintiva. Apesar da traição, sua nonna ainda tinha um lugar em seu coração.
Ela não merecia morrer daquela forma.
— Eu irei com você — disse Gray.
— Ela já está morta — disse Seichan com um suspiro, baixando sua unidade GPS. Porém, ela os seguiu escada abaixo, grudando-se à única arma.
Num grupo compacto, eles percorreram o canto do pátio. Poças de óleo flamejante iluminavam o caminho.
Rachel quis correr, mas uma enorme fera malhada os olhava, debruçada sobre um corpo sem cabeça, com o pêlo todo eriçado, os dentes à mostra, guardando sua presa. Mas Rachel sabia que, se corresse, o brutamontes estaria sobre ela em segundos.
Gray apontava a pistola na direção do animal.
A avó dela fugiu dos três cães que disputavam seus irmãos feridos, rasgando e dilacerando uns aos outros a ponto de ser impossível dizer qual das feras Gray havia acertado. O movimento dela foi acompanhado por duas outras feras, que vinham em sua direção de lados opostos.
Eles estavam atrasados demais.
Mais dois tiros, e uma fera desabou, com a cara deslizando. A outra bala apenas acertou de raspão o segundo cão. O ferimento pareceu estimular sua sede de sangue. Ele avançou sobre a mulher caída.
Rachel correu para a frente.
Os tiros de Gray atraíram mais cães. Porém, como já estava envolvido, não havia escolha. Ele atirou enquanto corria, derrubando mais dois cães, o último deles a apenas um metro de distância.
Antes que Rachel pudesse alcançar a avó, o cão que avançara atacou. Ele agarrou o braço da avó dela, erguido para se defender. Trespassando com a mordida o osso fino e a carne murcha, puxou a anciã para o chão.
Ela não gritou.
O cão subiu rapidamente nela, avançando para a garganta.
Gray disparou perto do ouvido de Rachel, deixando-a meio surda. O impacto fez a fera cair para o lado, saindo do peito da anciã. O corpo do cão contorceu-se e sacudiu-se, um tiro certeiro na cabeça... e também o último.
A corrediça da pistola de Gray abriu-se.
Rachel ajoelhou-se, tocando a avó. O sangue jorrava do braço estraçalhado da anciã. Rachel embalou o corpo.
Gray agachou-se com ela. Seichan também agachou-se, diminuindo a silhueta deles.
Os cães lutavam ao redor deles, e eles não tinham balas.
A avó de Rachel olhou fixamente para ela e falou fracamente em italiano, os olhos embaciados.
— Mamãe... sinto muito... me abrace...
O estampido de um rifle, e sua avó contraiu-se em seus braços, atingida no peito. Rachel sentiu a bala sair, traçando uma linha de fogo sob seu próprio braço.
Ela olhou para cima.
A trinta metros de distância, dois pistoleiros estavam de pé além do portão levadiço de ferro.
Uma nova detonação afastou alguns dos cães.
Gray procurou usar a distração para recuar para o muro do castelo.
Rachel seguiu-o, sem largar a avó, arrastando-a.
— Deixe-a — exortou Gray.
Rachel ignorou-o, as lágrimas escorrendo, zangada. Outra detonação de um rifle, e uma bala produziu faíscas na pedra a poucos centímetros de distância. Seichan abaixou-se e ajudou a carregar a nonna. Trabalhando juntos, eles recuaram mais rápido.
Junto ao portão, dois cães atacaram as grades, rilhando os dentes para os pistoleiros, bloqueando o alvo deles. Mas isso não duraria muito tempo.
Chegando à proteção relativa do muro do castelo, Rachel desabou sobre o corpo da avó. Eles ainda estavam no raio de visão direta do portão... mas o pátio inteiro estava exposto. Um dos cães foi fulminado por um tiro, caindo longe da grade levadiça. Outra bala zuniu no anteparo de metal de uma janela acima.
Rachel, curvada sobre a avó, finalmente libertou a bolsa ainda pendurada no ombro dela, um acessório permanente à anciã. Rachel abriu o fecho, enfiou a mão e sentiu a coronha de aço frio.
Ela puxou a herança deixada pela avó.
A Luger P-08 nazista.
— Grazie, Nonna.
Rachel apontou em direção ao portão. Fixou sua posição e deixou a raiva fria firmar sua mão. Puxou o gatilho... acompanhou o coice e disparou de novo.
Ambos os homens caíram.
Seu foco ampliou-se — tarde demais para deter a fera que saltara do meio da fumaça, babando, rosnando, os dentes à mostra, avançando para a garganta dela.
Gray empurrou Rachel para o lado, derrubando-a. Encarou o monstro e ergueu o outro braço. Ele tinha na mão uma pequenina lata prateada.
— Cão malvado...
Ele borrifou bem de perto o nariz e os olhos da fera.
O peso do cão o atingiu, fazendo-o cair de costas.
A fera uivou — não por causa da sede de sangue, mas pela dor que queimava. Ela rolou de cima de Gray e contorceu-se no chão, esfregando a cara nas pedras arredondadas, escarvando os olhos com as patas.
Mas suas órbitas já estavam vazias, corroídas pelo ácido.
O animal rolou mais duas vezes, choramingando.
Gray sentiu uma pontada de mal-estar. Os cães haviam chegado àquele estado selvagem pela tortura. A culpa não era deles. Por outro lado, talvez qualquer tipo de morte fosse melhor do que estar sob o domínio de Raoul.
O cão por fim aquietou-se e desabou no pavimento.
Mas a agitação dele atraiu os olhares de uma dezena de outros cães.
Gray olhou para Rachel.
— Mais seis tiros — ela respondeu.
Ele sacudiu a latinha. Restava pouco ácido.
Os olhos de Seichan estavam voltados para o céu. Então Gray também o ouviu.
O barulho de um helicóptero.
Ele sobrevoou a cumeeira e os muros do castelo. Luzes brilharam para baixo. O movimento do rotor provocou um redemoinho.
Os cães dispersaram-se de medo.
Seichan falou acima do barulho.
— Nossa carona chegou!
Uma escada de corda de náilon caiu de uma porta aberta e atingiu as pedras a apenas alguns metros de distância.
Gray não se importava com quem era, desde que eles saíssem daquele pátio sangrento. Ele avançou correndo e acenou para que Rachel subisse a escada. Uma de suas mãos manteve firme a escada que tremulava, enquanto a outra pegou a Luger de Rachel.
— Suba! — ordenou ele, inclinando-se para ela. — Eu os manterei a distância.
Os dedos de Rachel tremiam quando ele libertou a arma dela. Seus olhos se encontraram. Ele reconheceu um poço de horror e dor que ia além do derramamento de sangue ali.
— Você vai ficar bem — disse ele, fazendo isso soar como uma promessa.
Uma promessa que ele tencionava cumprir.
Ela fez um aceno de cabeça, parecendo recobrar forças, e subiu a escada.
Em seguida foi a vez de Seichan, que subiu atrás dela como uma trapezista, mesmo com o ombro ferido.
Gray subiu por último. Ele não precisara usar a arma de novo. Prendeu a Luger à cinta e subiu a escada de corda de náilon. Poucos instantes depois, ele entrou na cabine do helicóptero.
Quando a porta se fechou com um estrondo atrás dele, Gray empertigou-se para agradecer à pessoa que lhe estendera o braço e o ajudara a entrar.
O homem exibia um sorriso largo e presunçoso.
— Oi, chefe.
— Monk!
Gray estreitou-o num forte abraço.
— Cuidado com o braço — disse seu parceiro.
Gray soltou-o. O braço esquerdo de Monk estava preso por tiras ao seu corpo, e uma proteção de couro cobria o coto enfaixado de seu pulso.
Ele parecia bastante bem, porém mais pálido e com profundas olheiras.
— Eu estou bem — disse Monk, acenando para que ele se sentasse e apertasse o cinto enquanto o helicóptero se afastava a grande velocidade.
— Apenas tentando me manter fora de ação.
— Como...?
— Nós localizamos e rastreamos o sinal GPS de emergência de vocês — explicou ele.
Gray puxou o cinto de segurança de sua poltrona sobre o ombro e encaixou a fivela no lugar com um estalido.
Ele olhou para o outro ocupante da cabine.
— Cardeal Spera? — disse Gray com a voz confusa.
Seichan sentou-se ao lado dele e respondeu:
— Quem você acha que me contratou?
Enquanto trovões retumbavam além do palácio, Kat esperava por Vigor. Fazia 15 minutos que o monsenhor descera a escada escura do fogão.
Para dar uma olhada, ele dissera.
Ela iluminou a escada.
Onde ele estava?
Ela pensou em ir atrás dele, mas a cautela a manteve no seu posto. Se ele estivesse em dificuldades, teria gritado. Ela se lembrou da rampa lacrando e encurralando-os embaixo do túmulo de São Pedro. E se isso acontecesse ali? Quem saberia onde procurá-los?
Ela se manteve no seu posto, mas abaixou-se, apoiando-se num joelho, e gritou, tentando, ao mesmo tempo, manter a voz branda.
— Vigor!
A resposta foi o som de passos apressados, vindo de baixo para cima. Um brilho espalhou-se e em seguida reduziu-se ao foco de uma lanterna. Vigor subiu até meia dúzia de degraus de distância e acenou para ela.
— Você tem de ver isto!
Kat respirou fundo.
— Nós deveríamos esperar Gray e os outros telefonarem.
Vigor subiu mais um degrau, franzindo o cenho.
— Eu estou tão preocupado quanto você, mas com certeza existem outros enigmas por solucionar aqui embaixo. Esse é o nosso objetivo ao sermos mandados como uma equipe de reconhecimento. É dessa forma que nós ajudamos os outros. A Corte do Dragão, Gray e os outros estão
todos na Suíça. Eles levarão horas para chegar aqui. Nós deveríamos aproveitar o tempo, e não desperdiçá-lo.
Kat refletiu sobre a argumentação dele e tornou a consultar o relógio. Ela também se lembrou da advertência de Gray acerca de serem cautelosos demais. E também estava terrivelmente curiosa.
Ela concordou com um aceno de cabeça.
— Mas de 15 em 15 minutos nós vamos vir aqui em cima, a fim de verificarmos se Gray fez contato.
— É claro.
Kat pendurou a mochila no ombro e acenou para que ele descesse. Ela deixou um de seus telefones celulares junto ao fogão, a fim de registrar qualquer chamada feita — e de deixar pelo menos uma pista para seguir se eles ficassem presos e encurralados lá embaixo.
Embora houvesse reconhecido que era cautelosa demais, ela não era imprudente.
Ela deixou aquilo para Gray.
Kat abaixou-se e foi atrás de Vigor. A escada conduzia direto para baixo por uma distância razoável, então girava em torno de si mesma e descia ainda mais fundo. Estranhamente, o ar tinha um odor seco em vez de úmido.
Os degraus terminavam num túnel curto.
Vigor apressou o passo.
Pelo eco surdo dos passos do monsenhor, Kat percebeu que uma caverna maior se situava além, o que se confirmou logo depois.
Ela pisou numa saliência de pedra de três metros. As duas lanternas deles projetavam amplos círculos de luz no espaço abobadado, que se estendia acima e abaixo. Antigamente, devia ter sido uma cavidade natural no granito, mas um grande empreendimento a havia transformado.
Ajoelhando-se, Kat correu os dedos pela obra de cantaria sob os seus pés, blocos brutos de mármore encaixados com precisão. Empertigando-se, ela projetou a lanterna para os lados e para baixo.
Artesãos e engenheiros hábeis haviam construído uma série de doze patamares de alvenaria, que desciam do lugar onde eles estavam e continuavam em direção ao piso distante. A forma do espaço era mais ou menos circular. Cada nível abaixo era menor do que o seguinte, como um vasto anfiteatro... ou uma pirâmide em degraus de cabeça para baixo.
Ela apontou a lanterna para o amplo espaço contido naquelas camadas.
Não era um espaço vazio.
Grossos arcos de granito, sustentados por colunas imensas, estendiam-se, num padrão de saca-rolha, dos alicerces dispostos em camadas. Kat reconheceu os arcos. Botaréus. Como os que sustentavam as catedrais góticas. Na verdade, todo o espaço interno dava aquela impressão sublime e leve de uma igreja.
— Isto só podia ter sido construído pelos templários — disse Vigor, movendo-se ao longo da camada. — Jamais se viu algo como isto. Uma sonata de geometria e engenharia. Um poema em pedra. Arquitetura gótica no máximo da perfeição.
— Uma catedral subterrânea — sussurrou Kat, assombrada, reverente.
Vigor acenou afirmativamente com a cabeça.
— Mas uma catedral construída para cultuar a história, a arte e o conhecimento - disse ele, movendo o braço ao redor.
Mas não era necessário.
A estrutura de pedra tinha apenas um propósito: sustentar um labirinto em espiral com armação de madeira. Prateleiras, salas, escadas. Vidro cintilava. Ouro reluzia. Aquilo tudo abrigava um depósito de livros, pergaminhos, textos, artefatos, estátuas e estranhas geringonças de estanho. Cada passo ao redor parecia descortinar novas perspectivas, como alguma vasta pintura de M. C. Escher, ângulos impossíveis, contradições dimensionais sustentadas por pedra e madeira.
— É uma biblioteca imensa — disse Kat.
— E museu e depósito e galeria — concluiu Vigor, indo às pressas para o lado.
Próximo à entrada do túnel havia uma mesa de pedra, parecida com um altar.
Um livro com encadernação de couro estava aberto sob vidro... vidro de ouro.
— Eu estava com receio de tocá-lo — disse Vigor —, mas é possível ver razoavelmente bem através dele.
Ele dirigiu o feixe de luz de sua lanterna para as páginas expostas.
Kat examinou o livro, abundantemente decorado com pinturas a óleo. Um manuscrito iluminado. Uma escrita minúscula enchia a página. Parecia ser uma lista.
— Eu acho que isto é o códice de toda a biblioteca — disse Vigor. — Um sistema de livro-razão e arquivo. Mas eu não tenho certeza.
As palmas das mãos do monsenhor flutuavam sobre o estojo de vidro, claramente com receio de tocá-lo. Eles tinham visto os efeitos daquele material supercondutor. Kat recuou. Ela notou que todo o complexo cintilava com vidro semelhante. Até mesmo as paredes dos patamares eram repletas de placas de vidro, incrustadas como janelas, encastoadas como jóias.
O que isso significava?
Vigor no entanto curvou-se sobre o livro.
— Aqui ele menciona em latim “a Pedra Sagrada de São Trófimo”.
Kat olhou para ele a fim de obter uma explicação.
— Ele foi o primeiro santo a trazer o cristianismo para esta região da França. Diz-se que ele recebeu uma visita de Cristo durante uma reunião secreta de cristãos primitivos numa necrópole. Cristo ajoelhou-se sobre um sarcófago e a marca por ele deixada permaneceu. A tampa do sarcófago tornou-se um tesouro, supostamente invocando o conhecimento de Cristo sobre aqueles que a contemplavam. — Vigor olhou fixamente para a catedral de história abobadada. — Pensava-se que estivesse perdida para sempre. Mas está aqui. Como muitas outras coisas.
Ele voltou a acenar para o livro.
— Textos completos de evangelhos proibidos, não apenas os fragmentos esfarrapados dos que foram encontrados perto do Mar Morto. Eu vi quatro evangelhos listados. Eu jamais ouvira falar de um deles antes: o Evangelho Marrom das Colinas Douradas. O que será que ele contém?
Mas o mais importante... — Vigor ergueu a lanterna. — De acordo com o códice, em alguma parte deste lugar está armazenado o Mandylion.
Kat franziu o cenho.
— O que é isso?
— O verdadeiro sudário de Cristo, um artefato que pré-data o controverso Sudário de Turim. Ele foi levado de Edessa para Constantinopla no século X, mas, durante os períodos de saques, desapareceu. Muitos suspeitavam que ele tinha ido parar na tesouraria dos templários. — Vigor fez um aceno de cabeça. — Em alguma parte deste lugar se encontra a prova. E talvez a verdadeira face de Cristo.
Kat sentiu o peso das eras... tudo suspenso em perfeita geometria.
— Uma página — murmurou Vigor.
Kat sabia que o monsenhor estava se referindo ao fato de que todas aquelas maravilhas estavam relacionadas numa única página do livro com encadernação de couro, o qual parecia ter cerca de mil páginas.
— O que mais poderia ser encontrado aqui? — perguntou Vigor com a voz abafada.
— Você explorou todo o caminho até o fundo? — indagou Kat.
— Ainda não. Eu voltei para buscar você.
Kat dirigiu-se à escada estreita que levava de uma camada à seguinte.
— Nós deveríamos pelo menos obter uma visão geral do espaço e então voltar para cima.
Vigor concordou, mas parecia relutante em sair de perto do livro.
Todavia, ele seguiu Kat enquanto ela dava voltas e mais voltas escada abaixo. Em determinado ponto, ela olhou para cima. O edifício inteiro pairava acima dela, suspenso tanto no tempo quanto no espaço.
Afinal eles chegaram à superfície da última camada. Um último lance de escada conduzia a um piso plano, confinado pela última camada. A biblioteca não se estendia até ali embaixo. Todo o tesouro estava acumulado acima, mantido suspenso por dois arcos imensos, apoiados na última camada.
Kat reconheceu a pedra desses arcos.
Nem granito nem mármore.
Magnetita outra vez.
Além disso, bem abaixo do cruzamento dos arcos, erguendo-se do centro do assoalho, estava uma coluna de magnetita que chegava até a cintura, como um dedo de pedra apontando para cima.
Kat desceu com mais cautela até o assoalho abaixo. Uma borda de granito natural circundava um espesso piso de vidro. Vidro de ouro. Ela não pisou nele. As paredes de alvenaria em torno dele também estavam incrustadas de placas de vidro de ouro espelhadas. Ela contou 12, o mesmo número de camadas.
Vigor juntou-se a ela.
A exemplo de Kat, ele observou todos aqueles detalhes, mas ambos concentraram a atenção nas linhas prateadas — provavelmente platina pura — gravadas no piso. A imagem de alguma forma era adequada como término daquela longa busca. Ela representava um labirinto em espiral que conduzia a uma roseta no centro. A grossa coluna de magnetita erguia-se no centro.
Kat estudou o espaço: o labirinto, os arcos de magnetita, o piso de vidro. Tudo a fez lembrar-se do túmulo de Alexandre, com sua pirâmide e tanque refletor.
— Parece outro enigma a ser solucionado. — Ela olhou fixamente para os tesouros suspensos acima de sua cabeça. — Mas, se já abrimos este antigo depósito dos magos, o que ainda resta para acharmos?
Vigor veio para perto dela.
— Não se esqueça da chave de ouro de Alexandre. Nós não precisamos dela para abrir nada aqui.
— Isso quer dizer...
— Que existe mais alguma coisa além desta biblioteca.
— Mas o quê?
— Eu não sei — respondeu Vigor. — Mas eu reconheço o padrão deste labirinto.
Kat virou-se para ele.
— É o Labirinto de Dédalo.
Gray esperou até que os outros estivessem a bordo do avião para interrogá-los. O helicóptero os havia transportado ao Aeroporto Internacional de Genebra, onde o cardeal Spera tinha um jato Gulfstream particular abastecido e com autorização para decolagem imediata em Avignon. Era
surpreendente o que um funcionário do alto escalão do Vaticano era capaz de conseguir.
E isso levou à primeira pergunta de Gray.
— O que o Vaticano está fazendo ao contratar uma agente secreta da Guilda? — perguntou ele.
Todos cinco haviam girado suas poltronas, a fim de ficarem de frente uns para os outros.
O cardeal Spera admitiu a pergunta com um aceno de cabeça.
— Não foi a Santa Sé em si que contratou Seichan. — Ele acenou para a mulher sentada ao lado dele. — Foi um grupo menor, agindo de forma independente. Nós soubemos do interesse e das atividades da Corte do Dragão. Nós já havíamos usado a Guilda para investigar o grupo perifericamente.
— Vocês contrataram mercenários? — acusou Gray.
— O que nós tentávamos proteger requeria meios extra-oficiais.
Combater fogo com fogo. A Guilda pode ter a reputação de ser cruel, mas eles também são eficientes, honram seus contratos e executam o trabalho custe o que custar.
— No entanto, eles não detiveram o massacre em Colônia.
— Foi um lapso meu, sinto muito. Nós não sabíamos da importância do roubo do texto do Cairo pela Corte do Dragão. Ou que eles agiriam tão rápido.
O cardeal suspirou e girou um de seus anéis de ouro, depois o outro, para a frente e para trás, um gesto nervoso.
— Tanto derramamento de sangue. Após os assassinatos, eu voltei a entrar em contato com a Guilda, a fim de infiltrar um agente entre eles. Era fácil fazer isso, uma vez que a Sigma havia entrado no jogo. A Guilda ofereceu seus serviços, Seichan já havia tido uma rixa com você, e a Corte mordeu a isca.
Seichan disse em voz alta:
— Minhas ordens eram descobrir o que a Corte sabia, até que ponto a operação deles havia progredido e frustrá-la sempre que julgasse conveniente.
— Como assistir enquanto eles torturavam padres — disse Rachel.
Seichan deu de ombros.
— Eu cheguei atrasada àquela festinha. E, uma vez em ação, não há como dissuadir Raoul.
Gray concordou com um aceno de cabeça. Ele ainda tinha a moeda que ela lhe deixara em Milão
— E na ocasião você também nos ajudou a escapar.
— Isso condizia com o meu objetivo. Ao ajudar vocês, eu estava cumprindo a minha missão de manter a Corte desafiada.
Gray observava atentamente Seichan enquanto ela falava. De que lado ela de fato estava tirando proveito? Com todas as suas traições, havia mais coisas que ela mantinha ocultas? A explicação dela parecia boa, mas todos os seus esforços poderiam ser apenas um estratagema para servir à Guilda.
O Vaticano foi ingênuo ao confiar neles... ou nela.
Porém, de qualquer modo, Gray tinha outra dívida para com Seichan.
Conforme planejado, ela havia providenciado para que Monk fosse tirado do hospital antes que os asseclas de Raoul atacassem. Gray supusera que ela usaria algum de seus agentes da Guilda, e não que chamaria Spera, seu empregador. Mas o cardeal fizera sua parte, dizendo que Monk era um embaixador do Vaticano e tirando-o de lá.
E agora eles estavam a caminho de Avignon.
Entretanto, uma coisa preocupava Gray.
— Seu grupo no Vaticano — disse ele, olhando para Spera. — Qual o interesse dele em tudo isto?
Spera entrelaçara as mãos sobre a mesa. Sem dúvida, ele estava relutante em falar mais, porém Rachel estendeu a mão para ele. Ela pegou as mãos dele, desentrelaçou-as e inclinou-se para a frente para examiná-las.
— O senhor tem dois anéis de ouro com o selo papal — disse ela.
O cardeal puxou as mãos, cobrindo uma delas com a outra.
— Um pelo meu posto como cardeal — explicou ele — e o outro pelo meu cargo como secretário de Estado. Anéis iguais. É tradicional.
— Mas eles não são iguais — disse ela. — Eu não havia notado até o senhor entrelaçar os dedos daquele jeito e os anéis em cada mão ficarem lado a lado. Eles não são o mesmo anel. Eles são imagens especulares um do outro. Cópias exatas refletidas.
Gray franziu o cenho.
— Eles são gêmeos — disse Rachel.
Gray pediu para ver os anéis. Rachel tinha razão. Imagens invertidas do selo papal.
— E Tomé significa “gêmeo” — disse Gray, encarando o cardeal. Ele se lembrou do comentário de Spera de que apenas um pequeno grupo dentro do Vaticano havia contratado a Guilda. Gray agora sabia qual grupo.
— Vocês fazem parte da Igreja de Tomé — disse ele. — É por isso que vocês estão tentando deter a Corte em segredo.
Spera olhou fixamente por um longo momento e então lentamente fez um aceno de cabeça positivo.
— Nosso grupo tem sido uma parte aceita, se não incentivada, da Igreja Apostólica. Apesar de crenças em contrário, a Igreja não está além da ciência ou da pesquisa. Universidades, hospitais e instalações de pesquisa católicos advogam o pensamento progressista, novos conceitos e idéias. É claro que certa parte é inflexível e reage devagar, mas também contém membros que contestam e mantêm a Igreja maleável. Esse é o papel que nós desempenhamos.
— E o que senhor nos diz do passado? — perguntou Gray. — Dessa antiga sociedade de alquimistas que estamos procurando? Das pistas que vimos seguindo?
O cardeal Spera sacudiu a cabeça.
— A Igreja de Tomé de hoje não é a mesma de antes. Essa igreja desapareceu durante o papado francês, junto com os templários. Mortandade, conflito e segredo separaram-na ainda mais, deixando apenas sombras e boatos. Nós desconhecemos o verdadeiro destino dessa igreja gnóstica e de sua linhagem antiga.
— Quer dizer então que vocês estão tão às cegas a respeito de tudo isto quanto nós — disse Monk.
— Receio que sim. Com a exceção de que nós sabíamos que a igreja antiga existiu. Não era um mito.
— E a Corte do Dragão também — disse Gray.
— Sim, mas nós procuramos preservar o mistério, confiando na sabedoria de nossos antepassados, acreditando que ele foi oculto por um motivo e que esse conhecimento se revelaria quando chegasse a hora. A
Corte do Dragão, por outro lado, tem procurado revelar seus segredos pelo derramamento de sangue, corrupção e tortura, buscando nada mais do que o poder para dominar e governar tudo. Nós vimos nos opondo a eles há gerações.
— E agora eles estão muito perto — disse Gray.
— E eles têm a chave de ouro — lembrou-lhes Rachel, sacudindo a cabeça.
Gray esfregou o rosto, exausto. E ele próprio a havia entregado. Ele precisara da chave para convencer Raoul da renovada lealdade de Seichan. Decerto fora uma coisa arriscada, mas todo o plano de resgate também o fora. Supunha-se que Raoul fosse capturado ou morto no castelo — mas o bastardo escapara.
Gray encarou Rachel. Sentindo-se culpado, ele queria dizer alguma coisa, explicar tudo, mas foi salvo quando o piloto anunciou pelo rádio:
— Por favor, apertem os cintos de segurança. Nós estamos nos aproximando de uma zona de turbulência à frente.
Raios faiscavam através das nuvens abaixo.
Nuvens de trovoada acumulavam-se bem mais acima, iluminadas momentaneamente pelos raios que crepitavam para em seguida desaparecerem na escuridão. Eles estavam voando rumo a uma tempestade de verdade.
Vigor caminhou ao longo da borda de pedra que circundava o piso de vidro — e o labirinto nele gravado. Ele o examinara por um minuto em silêncio, fascinado pelo mistério ali.
— Observe que não se trata de um labirinto de verdade — disse ele, afinal. — Não existem passagens sem saída. Trata-se apenas de um caminho longo, contínuo e sinuoso. Pode-se encontrar exatamente este mesmo labirinto feito com pedras azuis e brancas na Catedral de Chartres, nas imediações de Paris.
— Mas o que ele está fazendo aqui embaixo? — perguntou Kat. — E por que você o chamou de Labirinto de Dédalo?
— O labirinto de Chartres era conhecido por muitos nomes. Um deles era le Dedale, ou “O Dédalo”, assim chamado em homenagem ao arquiteto mitológico que construiu o labirinto para o rei Minos de Creta. O labirinto era o lar do Minotauro, uma fera parecida com um touro que o guerreiro Teseu acabou derrotando.
— Mas por que colocar um labirinto como esse no interior da Catedral de Chartres?
— Não foi só em Chartres. Durante o auge da construção de igrejas no século XIII, quando a construção gótica também estava no apogeu, diferentes labirintos foram colocados em muitas catedrais. Amiens, Rheims, Arras, Auxerre... todas tinham labirintos quando se entrava na nave. Porém, séculos mais tarde a Igreja destruiu-os todos, considerando-os artefatos pagãos, exceto o de Chartres.
— Por que poupar Chartres?
Vigor sacudiu a cabeça.
— Essa catedral sempre foi uma exceção à regra. Suas origens de fato são pagas, construída no alto da Grota dos Druidas, um famoso sítio pagão de peregrinação. E até hoje, ao contrário de qualquer outra catedral, nem um único rei, papa ou personagem famosa estão enterrados sob suas pedras.
— Mas isso não explica por que o labirinto foi repetido aqui embaixo — disse Kat.
— Eu posso imaginar algumas explicações. Primeiro, o labirinto de Chartres foi baseado num desenho de um texto de alquimia grego do século II. Um símbolo apropriado para os nossos alquimistas perdidos. Mas o labirinto de Chartres também representava a viagem deste mundo ao paraíso. Os devotos em Chartres andavam de quatro ao longo desse caminho tortuoso desde o exterior até a roseta no centro, que representava simbolicamente uma peregrinação daqui a Jerusalém, ou deste mundo para o outro. Daí os outros nomes do labirinto. Le Chemin de Jerusalem. “O Caminho de Jerusalém.” Ou Le Chemin du Paradis. “O Caminho do Paraíso.” Era uma viagem espiritual.
— Você acha que ele está indicando que nós mesmos devemos fazer essa viagem, seguir os alquimistas para solucionar seu último grande enigma?
— Exatamente.
— Mas como fazemos isso?
Vigor sacudiu a cabeça. Ele tinha uma idéia, mas precisava de mais tempo para refletir sobre ela. Kat pareceu reconhecer que ele não estava falando espontaneamente, mas respeitava-o muito e não insistiu.
Em vez disso, ela consultou o relógio.
— Nós deveríamos voltar para cima. Ver se Gray tentou fazer contato.
Vigor concordou. Ele olhou para trás mais uma vez e apontou a lanterna através do espaço. A luz se refletiu nas superfícies de vidro: no piso e nas placas incrustadas na parede. Ele apontou-a para cima. Mais reflexos cintilaram, ornamentos em forma de jóias numa árvore gigante do conhecimento.
Havia uma resposta ali.
Ele precisava encontrá-la antes que fosse tarde demais.
Por que eles não atendem?
Gray estava sentado com o telefone do jatinho junto ao ouvido. Ele estava tentando entrar em contato com Kat. Mas até então não tivera sorte. Talvez fosse a tempestade, interferindo no sinal. O avião chacoalhava e avançava através do crepitar de raios e dos sonoros estrondos de trovões.
Ele estava sentado próximo à traseira da cabine, a fim de ter privacidade. Os outros, presos a seus assentos com o cinto de segurança, ainda estavam em profunda discussão.
Apenas Rachel olhava para trás periodicamente, preocupada em ouvir notícias do tio. Mas talvez fosse mais do que isso. Desde o resgate deles em Lausanne, ela não ficara mais de um passo longe dele. Ela ainda se recusava a discorrer em detalhes sobre o que acontecera no castelo e exibia um ar atormentado. E, desde então, parecia que buscava alguma solidez nele. Não para grudar-se — ela não era desse tipo. Era mais uma simples tranquilização, para mantê-la com os pés no chão no momento. Palavras eram desnecessárias.
E, embora Monk também tivesse sofrido um grave trauma, Gray sabia que eles acabariam falando. Eles eram guerreiros, ótimos amigos. Eles iam digerir aquilo.
Mas Gray não tinha aquela paciência com Rachel. Uma parte dele queria uma solução e uma resposta imediatas para o que a perturbava. Qualquer tentativa de discutir o que havia acontecido em Lausanne havia até então sido recusada, de maneira gentil, mas firme. Todavia, ele percebia a dor nos olhos dela. E, por mais que seu coração doesse, tudo o que ele podia fazer era apoiá-la, esperar até que ela estivesse em condições de falar.
Ao seu ouvido, o toque incessante do telefone finalmente parou quando atenderam à ligação.
— Aqui é Bryant.
Graças a Deus. Gray sentou-se mais empertigado.
— Kat, é o Gray.
Os outros viraram-se na direção dele.
— Rachel e Monk estão conosco — disse ele. — Como estão as coisas aí?
A voz de Kat, em geral tão estóica, vibrou de alívio.
— Estamos bem. Nós encontramos a entrada secreta.
Ela fez um breve relato de tudo o que eles haviam descoberto. De vez em quando a transmissão falhava, devido à tempestade, e ele não conseguia ouvir uma palavra.
Gray percebeu o olhar fixo e intenso de Rachel e acenou-lhe com a cabeça. O tio dela estava bem.
Ela fechou os olhos em gratidão e voltou a afundar em seu assento.
Assim que Kat terminou, Gray fez um breve relato dos eventos em Lausanne.
— Salvo qualquer atraso causado pela tempestade, nós estaremos aterrissando no Aeroporto Caumont de Avignon daqui a uns trinta minutos. Mas nós não estamos muito na frente da Corte. Talvez meia hora, se estivermos com sorte.
Seichan lhes fornecera informações secretas sobre os meios de transporte da Corte. Raoul tinha dois aviões estacionados num pequeno aeroporto a meia hora de Lausanne. Calculando a velocidade dos aviões da Corte, Gray sabia que eles tinham uma pequena dianteira em relação à Corte. E ele pretendia mantê-la.
— Com todos os colegas de equipe seguros de novo — Gray disse a Kat —, eu vou quebrar o silêncio com o comando central, entrar em contato com o diretor Crowe. Vou pedir a ele que coordene o apoio no solo com as autoridades de Avignon. Vou telefonar de novo assim que nós aterrissarmos. Enquanto isso, fiquem atentos.
— Entendido, comandante. Estaremos à sua espera.
Gray desligou e discou o número de acesso ao comando da Sigma, que ecoou através de uma série de mesas telefônicas até a ligação se completar.
— Logan Gregory.
— Doutor Gregory, aqui é o comandante Pierce.
— Comandante... — A irritação se fez sentir na única palavra.
Gray interrompeu uma repreensão oficial pela falta de comunicação.
— Eu tenho de falar com Painter Crowe imediatamente.
— Sinto muito, mas não é possível, comandante. É quase meia-noite aqui. O diretor saiu do comando há mais ou menos cinco horas. Mas ninguém sabe aonde ele foi. — A irritação voltou a soar nas palavras dele, ainda mais intensa do que sua irritação com Gray.
Pelo menos Gray entendia a frustração do homem. O que o diretor estava fazendo ao sair da central de comando a uma hora daquelas?
— Talvez ele tenha ido à DARPA, colaborar com o dr. McKnight — prosseguiu Logan. — Mas eu ainda sou o líder de operações desta missão. Eu quero um relatório completo do paradeiro de vocês.
Gray de repente sentiu-se desconfortável falando. Aonde Painter Crowe havia ido? Ou será que ele havia mesmo saído? Um frio glacial o percorreu. Será que Gregory estava impedindo-o de entrar em contato com o diretor? Em alguma parte, ocorrera um vazamento na Sigma. Em quem ele poderia acreditar?
Ele avaliou a situação e fez a única coisa que podia fazer. Talvez ele estivesse sendo precipitado, mas tinha de seguir a sua intuição.
Pôs o fone no gancho, interrompendo a ligação.
Não poderia correr riscos.
Estava um passo à frente da Corte do Dragão e não ia entregar isso de bandeja.
A oitenta milhas aéreas de distância, Raoul ouviu o relato de seu contato no rádio do avião. Um sorriso largo foi-se formando aos poucos.
— E eles ainda estão no Palácio dos Papas?
— Sim, senhor — disse seu espião.
— E você sabe exatamente onde eles estão.
— Sim, senhor.
Raoul telefonara de seu castelo ao saber de Avignon. Ele havia organizado toda a operação no solo com algumas pessoas de talento de Marselha. Eles haviam sido enviados a Avignon para perseguir os dois agentes: o monsenhor e aquela piranha da Sigma que havia furado sua mão com um arpão. Eles haviam tido êxito.
Raoul consultou o relógio do avião. Eles aterrissariam dali a 44 minutos
— Nós podemos dar cabo deles a qualquer hora — disse o espião.
Raoul não via necessidade de retardar.
— Façam isso.
A vida de Kat foi salva por uma moeda de um centavo.
De pé ao lado do fogão, ela estivera usando a moeda para abrir o compartimento das pilhas de sua lanterna de bolso. Ela escorregou de seus dedos e caiu a seus pés, fazendo-a abaixar-se para pegá-la.
O estampido da pistola coincidiu com o estilhaçar de pedra na parede ao lado de sua cabeça.
Um atirador de tocaia.
Ainda abaixada, Kat jogou-se no chão, tirando sua Glock do coldre. Ela caiu de costas e atirou entre os joelhos na direção da entrada escura de onde tinham vindo os tiros.
Disparou quatro vezes, uma amplitude de fogo para cobrir todos os ângulos.
Ouviu um grunhido satisfatório e o barulho de uma arma contra a pedra. Alguma coisa pesada seguiu com um baque.
Rolando no chão, ela alcançou Vigor. O monsenhor estava agachado perto da entrada do túnel embaixo do fogão. Ela entregou-lhe a arma.
— Para baixo — ordenou ela. — Atire contra qualquer um que você avistar.
— E você?
— Não, não atire contra mim.
— Eu quero dizer: aonde você vai?
— Caçar.
Kat já havia desligado as lanternas deles. Ela pegou seus óculos com visão noturna e puxou-os sobre os olhos.
— Deve haver mais — disse ela, tirando do cinto uma longa lâmina de aço.
Com Vigor escondido no buraco, Kat foi até a porta e checou o corredor. O mundo era todo de tons de verde. Até o sangue. Era o único movimento no corredor, espalhando-se numa poça do corpo de bruços.
Ela andou de lado até o homem, que usava roupa de camuflagem.
Mercenário.
O tiro dela havia sido certeiro, trespassando a garganta do homem. Ela não se deu ao trabalho de verificar o pulso. Pegou a arma dele e a enfiou no próprio coldre dela.
Permanecendo abaixada, ela moveu-se do corredor para a cozinha, contornando a área desta. Se houvesse outros, eles estariam por perto. A malograda brincadeira com as armas de fogo devia tê-los obrigado a esconder-se. Tolice. Eles confiavam demais no poder das armas de fogo, contando com o atirador de tocaia para fazer o trabalho para eles.
Kat percorreu o circuito com eficiência, sem deparar com ninguém.
Muito bem.
Ela estendeu a mão para o bolso lateral de sua mochila e tirou o pesado pacote envolto em plástico. Quebrou o lacre com o polegar e baixou a mão até o quadril.
Dando a volta a um canto, ela entrou no único corredor que se afunilava em direção à cozinha. Ergueu-se e andou a passos largos com confiança, marchando para a frente.
Isca.
Ela equilibrava a lâmina na mão direita, enquanto a esquerda esvaziava o conteúdo do pacote no chão atrás dela.
Rolimãs emborrachados, revestidos com NPL Super Black.
Invisíveis à visão noturna.
Eles espalharam-se pelo chão atrás dela, quicando e rolando silenciosamente.
Ela dirigiu-se à cozinha, com as costas voltadas para a parte principal do palácio. Não ouviu a aproximação do segundo homem, mas ouviu o tropeção dele atrás de si.
Abaixando-se e girando, ela apoiou-se num joelho e arremessou o punhal com toda a força de seu ombro e toda a habilidade de seu pulso. Ele voou com precisão fatal, perfurando a boca do homem, que se abrira de surpresa quando seu calcanhar direito escorregou num dos rolimãs de
borracha. A arma dele disparou, o tiro saiu para cima, penetrando nos caibros de madeira.
Instantes depois, ele estava caído de costas, em convulsão, com a medula seccionada na base do crânio.
Kat aproximou-se dele, permanecendo abaixada, movendo-se com cuidado por entre os rolimãs.
Quando ela o alcançou, ele jazia imóvel. Ela puxou a faca, pegou a arma dele e recuou para a cozinha. Aguardou mais dois minutos por qualquer sinal de um terceiro ou quarto assassino.
O palácio permanecia em silêncio.
Trovões ribombaram com mais intensidade além das paredes. Uma série de ofuscantes lampejos de relâmpagos entrou pelas altas janelas. Toda a violência da tempestade caía com um estrondo na alta colina.
Segura de que eles finalmente estavam a sós, Kat informou a Vigor que o ataque cessara, e ele reapareceu.
— Fique aí — advertiu ela, caso estivesse errada.
Ela tornou a aproximar-se do primeiro corpo e o revistou. Como receava, encontrou um telefone celular.
Maldição.
Ela ficou sentada ali por um momento, com o telefone celular dele na mão. Se os assassinos haviam recebido ordem para matar, tinha certeza de que a posição deles no palácio já devia ter sido passada adiante.
Kat voltou para junto de Vigor e consultou o relógio.
— A Corte sabe que nós estamos aqui — disse Vigor, também avaliando a situação.
Kat não via motivo para admitir o óbvio e pegou seu próprio telefone celular. O comandante Pierce tinha de saber. Ela discou o número que ele deixara, mas não obteve sinal. Tentou mais próximo da janela, mas não teve sorte.
A tempestade havia interrompido a recepção.
Pelo menos no jato ainda no ar.
Ela guardou o telefone.
— Talvez assim que eles aterrissarem — disse Vigor, reconhecendo a tentativa malograda. — Mas, se a Corte do Dragão sabe que nós estamos aqui, nosso avanço simplesmente ficou mais reduzido.
— O que você sugere? — perguntou Kat.
— Vamos recuperá-lo.
— Como?
Vigor apontou para a escada escura.
— Nós ainda temos vinte minutos até Gray e os outros chegarem aqui. Vamos aproveitá-los. Nós solucionaremos o enigma lá embaixo, de modo que, quando eles chegarem, estejamos prontos para agir.
Kat acenou com a cabeça, concordando com a lógica. Além do mais, era a única forma de compensar o seu lapso. Ela nunca deveria ter permitido que os espiões chegassem tão perto.
— Vamos lá.
Gray saiu correndo com os outros pela pista alcatroada varrida pela tempestade. Fazia apenas cinco minutos que eles haviam aterrissado no Aeroporto Caumont de Avignon. Ele tinha de reconhecer o mérito do cardeal Spera... ou, pelo menos, sua influência no Vaticano. Os procedimentos na alfândega foram resolvidos no ar, e um sedan BMW aguardava para transportá-los até o Palácio dos Papas. O cardeal também havia saído e se dirigido ao terminal, a fim de entrar em contato com as autoridades da cidade. O Palácio dos Papas tinha de ser trancado.
Isto é, depois de eles terem chegado lá, é claro.
Gray corria com o seu telefone celular, tentando entrar em contato com Kat e Vigor.
Ninguém atendia.
Ele checou a intensidade do sinal. Fora do avião, a recepção estava uma barra mais forte. Então qual era o problema?
Ele deixou-o tocar repetidas vezes.
Finalmente, desistiu. A única resposta estava no palácio. Encharcados, todos eles embarcaram no sedã que os aguardava enquanto um espetáculo de brilho intenso rasgava o céu, iluminando Avignon, aninhada ao longo de um trecho prateado do Ródano. O Palácio dos Papas era visível, o ponto mais alto da cidade.
— Você teve sorte? — perguntou Monk, acenando com a cabeça na direção do telefone celular.
— Não.
— Talvez seja a tempestade — disse Seichan.
Mas ninguém estava convencido.
Gray tentara fazer com que Seichan ficasse para trás, no aeroporto. Ele só queria ao seu lado as pessoas em quem confiava inteiramente. Mas o cardeal Spera insistira em que ela fosse, crendo implicitamente em seu contrato com a Guilda. E Seichan lembrou Gray do próprio contrato firmado entre eles. Ela concordara em resgatar Monk e Rachel a fim de vingar-se de Raoul. E havia honrado a sua parte do acordo. Gray tinha de honrar a dele.
Rachel sentou-se ao volante.
Nem mesmo Monk objetou.
Mas seu parceiro mantinha a espingarda de combate no colo, apontada para Seichan. Ele também não queria correr riscos. A arma fora recuperada pelo cardeal Spera nos Scavi embaixo da Basílica de São Pedro. Monk parecia aliviado por tê-la de volta, mais do que sua própria mão.
Com todos sentados, Rachel manobrou o carro às pressas e afastou-se do aeroporto, seguindo para a cidade. Ela percorria as ruas estreitas a velocidades vertiginosas. Àquela hora da manhã, com uma forte tempestade soprando, havia pouco trânsito. Eles voaram por algumas ladeiras acima
que haviam-se transformado em rios e planaram ao dobrarem esquinas.
Alguns minutos mais tarde, Rachel chegou à praça diante do palácio. Ela bateu de raspão numa pilha de cadeiras. Serpentinas de luzes, agora escuras, ornamentavam a praça. Ela se parecia com uma festa abandonada, alagada e deserta.
Eles desceram do veículo.
Como estivera ali antes, Rachel seguiu na frente em direção à entrada principal. Ela os conduziu apressadamente através de uma passagem, a um pátio e em seguida a uma porta lateral, a porta que Kat mencionara.
Gray encontrou o trinco serrado e a fechadura arrombada.
Não se tratava do trabalho sutil de uma ex-oficial do serviço de inteligência.
Outra pessoa havia forçado a entrada.
Gray acenou para que todos se afastassem.
— Fiquem aqui. Eu vou checar isto.
— Não quero parecer insubordinado — disse Monk —, mas eu não vou ficar sozinho neste lance de novo. Isso não deu muito certo da última vez.
— Eu também vou — disse Rachel.
— E eu não creio que você possa controlar minhas idas e vindas — disse Seichan.
Gray não tinha tempo para discutir — sobretudo se ele não podia vencer.
Eles entraram no palácio. Gray havia memorizado a planta. Ele subiu na frente, uma série de degraus, com cautela mas rápido, a fim de fazer um reconhecimento. Após deparar com o primeiro corpo, ele reduziu o passo. Morto. Já esfriando.
Ele checou. Okay, aquilo era o trabalho de uma ex-oficial do serviço de inteligência. Ele seguiu em frente e quase caiu de cara no chão quando seu tornozelo escorregou num rolimã de borracha. Recobrou o equilíbrio apoiando uma das mãos na parede.
Sem dúvida, brinquedos de Kat.
Eles seguiram em frente, andando entre os rolimãs sem levantar os pés.
Outro corpo jazia próximo à entrada da cozinha. Eles tiveram de pisar na poça de sangue para entrar.
Vozes chegaram até eles. Ele reteve os outros no corredor e escutou às escondidas.
— Já estamos atrasados — disse uma voz.
— Sinto muito. Eu precisava ter certeza. Todos os cantos tiveram de ser checados.
Kat e Vigor. No meio de uma conversa. As vozes deles ecoavam de um buraco no centro da cozinha. Um clarão ficou mais brilhante, movendo-se rapidamente para cima e para baixo.
— Kat — gritou Gray, sem querer assustar sua colega de equipe. Ele vira o suficiente da habilidade dela espalhado naqueles corredores. — É o Gray.
A luz apagou-se.
Kat apareceu um instante depois, a arma em punho, apontada na direção dele.
— É seguro — disse Gray.
Kat saiu do buraco. Gray acenou para que os outros entrassem na cozinha.
Em seguida Vigor emergiu do buraco.
Rachel correu para ele, que abriu os braços, estreitando-a num forte abraço.
Kat falou primeiro e moveu a cabeça em direção ao corredor ensangüentado.
— A Corte do Dragão sabe a respeito deste lugar.
Gray concordou.
— O cardeal Spera está acordando as autoridades da cidade neste momento. Eles logo deverão estar aqui.
Vigor mantinha um braço em volta da sobrinha.
— Então nós talvez tenhamos tempo suficiente.
— Para quê? — perguntou Gray.
— Para descobrir o verdadeiro tesouro lá embaixo.
Kat confirmou com um aceno de cabeça.
— Nós solucionamos o enigma aqui.
— E qual é a resposta? — perguntou Gray.
Os olhos de Vigor brilharam.
— Luz.
Ele não podia mais esperar.
Do saguão do terminal do pequeno aeroporto, o cardeal Spera observara o grupo partir no BMW. Ele esperou cinco minutos, conforme o comandante pedira, para lhes dar tempo de chegar ao palácio. Levantou-se e dirigiu-se a um dos agentes de segurança armados, um rapaz louro de uniforme.
Falando em francês, mostrou sua identificação do Vaticano ao segurança e pediu para ser conduzido ao superior dele.
— Trata-se de um assunto da máxima urgência.
Os olhos do guarda arregalaram-se, reconhecendo quem estava diante dele.
— É claro, cardeal Spera. Imediatamente.
O rapaz conduziu-o para fora do saguão e por um portão de segurança acionado por cartão. No fim do corredor, ficava o escritório do chefe da segurança do aeroporto. O guarda bateu à porta e mandaram-no entrar rispidamente.
Ele empurrou a porta, mantendo-a aberta. Olhando para trás, para o cardeal, o guarda não viu a pistola com um silenciador erguida na direção da parte posterior de sua cabeça.
O cardeal Spera ergueu uma das mãos.
— Não...
O tiro soou como um tossido firme. A cabeça do guarda moveu-se bruscamente para a frente, seguida pelo seu corpo. O sangue esguichou no corredor.
Uma porta ao lado abriu-se.
Outro pistoleiro apareceu. Uma pistola foi empurrada no estômago do cardeal Spera, que foi obrigado a entrar no escritório. O corpo do guarda foi puxado para dentro atrás dele. Outro homem esfregou rapidamente uma toalha com o pé sobre o piso, removendo o sangue.
A porta fechou-se.
Outro corpo já decorava a sala, jazendo enrascado de lado.
O ex-chefe da segurança.
Atrás da escrivaninha dele, uma figura familiar levantou-se.
O cardeal Spera sacudiu a cabeça em descrença.
— O senhor é membro da Corte do Dragão.
— Na verdade, seu líder. — Uma pistola tornou-se visível. — Desobstruindo o caminho aqui para o resto dos meus homens que está para chegar.
A arma ergueu-se mais alto.
A boca da arma brilhou.
O cardeal Spera sentiu um impacto na testa — e mais nada.
Rachel estava de pé junto com os outros quatro em torno do piso de vidro gravado.
Kat ficara de guarda lá em cima, equipada com um rádio.
Eles haviam descido as plataformas até o nível do fundo quase em silêncio reverente. O tio de Rachel havia tecido comentários sobre o maciço museu abrigado no interior daquela catedral subterrânea, mas foram feitas poucas perguntas.
Na verdade, parecia uma igreja, provocando sussurros e espanto.
Enquanto eles desciam, Rachel ficou boquiaberta diante da miríade de maravilhas que deviam estar armazenadas ali. Ela passara toda a sua vida adulta protegendo e reunindo objetos de arte e antigüidades roubados. Ali estava uma coleção que excedia a de qualquer museu. Para catalogá-la, seriam necessárias décadas e uma universidade cheia de eruditos. A imensidão do tempo contido naquele espaço fazia sua vida parecer pequena e insignificante.
Até mesmo seu trauma recente, a revelação do passado sombrio de sua família, parecia trivial, uma mancha insignificante em comparação com a longa história que estava suspensa ali.
À medida que descia cada vez mais, sua carga tornava-se mais leve.
Seu aperto afrouxou-se em torno de seu coração. Certa sensação de ausência de peso a envolveu.
Gray abaixou-se, apoiando-se num joelho, a fim de olhar para o piso de vidro e para o labirinto desenhado a platina sobre ele.
— É o labirinto de Dédalo — disse Vigor, explicando brevemente sua história e vínculos com a Catedral de Chartres.
— Então o que nós devemos fazer aqui? — perguntou Gray.
Vigor caminhou ao redor do piso circular. Ele os havia aconselhado a permanecer na borda de granito que circundava o labirinto de vidro.
— Isto é claramente outro enigma — disse ele. — Além do labirinto, nós temos um arco duplo de pedra-ímã acima de nós. No centro, uma coluna da mesma pedra. E estas 12 placas de ouro no estado m. — Ele indicou as janelas de vidro incrustadas na parede ao redor deles, formada pela última camada.
— Elas estão dispostas ao longo da periferia como as marcas de um relógio — disse Vigor. — Outro relógio. Como a ampulheta que nos trouxe aqui.
— É o que parece — disse Gray. — Mas você mencionou luz.
Vigor fez um aceno de cabeça positivo.
— Tudo sempre girou em torno da luz. Uma busca da luz primordial da Bíblia, a luz que deu forma ao universo e a tudo o que nele há. É isso que nós temos de provar aqui. Como o magnetismo e a eletricidade antes, agora nós temos de demonstrar uma compreensão da luz... e não apenas de uma luz qualquer. Luz com poder. Ou, como Kat a descreveu, luz coerente.
Gray franziu o cenho, levantando-se.
— Você quer dizer um laser.
Vigor fez que sim com um aceno de cabeça e tirou um objeto do bolso. Rachel reconheceu-o como uma mira a laser de uma das armas da Sigma.
— Com o poder desses amálgamas supercondutores associado a pedras preciosas como os diamantes e os rubis, os antigos talvez tenham desenvolvido alguma forma grosseira de projetar a luz coerente, algum tipo de laser antigo. Eu creio que o conhecimento dessa habilidade é necessário para abrir o último nível.
— Como você pode ter certeza? — indagou Gray.
— Kat e eu medimos estas 12 placas de vidro espelhado. Elas estão posicionadas num ângulo muito sutil, para refletirem a luz e fazê-la saltar de uma para a outra num padrão fixo. Mas seria necessário uma luz poderosa para completar todo o circuito.
— Como um laser — disse Monk, olhando as placas com preocupação.
— Eu não acho que seria necessário uma grande quantidade de luz coerente — disse Vigor. — Como as fracas baterias de Bagdá usadas para ativar a pirâmide de ouro em Alexandria, apenas uma pequena força é necessária, alguma indicação de uma compreensão da coerência. Eu acho que a energia armazenada nas placas fará o resto.
— E talvez nem sequer seja energia — disse Gray. — Se você estiver certo ao afirmar que a luz é a base do mistério aqui, os supercondutores não só têm a capacidade de armazenar energia por um espaço de tempo infinito, mas também podem armazenar luz.
Os olhos de Vigor arregalaram-se.
— Quer dizer então que um pouco de luz coerente poderia liberar o resto?
— Possivelmente. Mas como é que nós iniciamos essa reação em cadeia? — perguntou Gray. — Apontando o laser para uma das placas de vidro?
Vigor deu alguns passos ao redor e acenou na direção da coluna de pedra-ímã, com cerca de sessenta centímetros de espessura, no centro do piso.
— Aquele pedestal ali tem a mesma altura das janelas em placas. Eu suspeito que, seja qual for o dispositivo que os antigos tenham usado, ele se destinava a ficar em cima dele enquanto apontava para uma janela específica. Nosso proverbial marcador das 12 horas.
— E qual delas é esse marcador? — perguntou Monk.
Vigor parou ao lado da janela no outro lado.
— O norte verdadeiro — disse ele. — Com todas estas pedras-ímãs ao redor, foi necessário um pouco de habilidade para calcularmos. Mas esta janela é o marcador. Eu acho que a gente põe o laser sobre o pedestal, aponta-o para esta placa e então se afasta.
— Parece bastante simples — disse Monk.
Gray começou a se encaminhar ao pedestal central quando seu rádio zumbiu. Ele pôs uma das mãos no ouvido, escutando. Todos olharam para ele.
— Kat, tome cuidado — disse Gray no rádio. — Aproxime-se com cautela. Informe-os de que você não é inimiga. Não diga nada sobre nós até ter certeza.
Ele encerrou a transmissão.
— Qual é o problema? — perguntou Monk.
— Kat avistou uma patrulha da polícia francesa. Eles entraram no palácio. Ela vai investigar. — Gray acenou para que o grupo fosse para a escada. — Isto terá de esperar até mais tarde. É melhor nós voltarmos para cima.
Eles saíram em fila da beira do poço de vidro. Rachel esperou pelo tio.
Ele olhou relutantemente para o piso de vidro.
— Talvez seja melhor — disse ela. — Talvez não devêssemos mexer com o que mal compreendemos. E se nós cometêssemos um erro? — Rachel acenou com a cabeça na direção da imponente biblioteca de conhecimento antigo que o lugar abrigava. — Se fôssemos ambiciosos demais, poderíamos perder tudo isto.
O tio dela concordou, passou um braço em torno dela enquanto eles subiam, mas seus olhos ainda se voltavam ocasionalmente para baixo.
Eles haviam subido quatro níveis quando uma voz de comando, vinda de cima, chegou-lhes através de um megafone.
— TOUT LE MONDE EN LE BAS LÀ! SORTEZ AVEC VOS MAINS SUR LA TÊTE!
Todo o mundo congelou.
Rachel traduziu.
— Eles estão nos mandando sair com as mãos na cabeça.
Uma nova voz, em inglês, berrou através do megafone. Era Kat.
— COMANDANTE! ELES APREENDERAM O MEU RÁDIO, MAS É A POLÍCIA FRANCESA. EU VERIFIQUEI A IDENTIFICAÇÃO DO CHEFE DELES.
— Deve ser a guarda enviada pelo cardeal Spera — disse Monk.
— Ou alguém telefonou informando um arrombamento, ao notar a luzes aqui dentro — acrescentou Rachel. — Ou a fechadura arrombada.
— SORTEZ TOUT DE SUITE! C'EST VOTRE DERNIER AVERTISSEMENT!
— Eles decerto não parecem felizes — disse Monk
— O que você espera com todos os cadáveres lá em cima? — disse Seichan.
— Okay — ordenou Gray. — Vamos subir. Nós temos de prepará-los para a chegada de Raoul e seus camaradas.
Todos eles subiram os níveis restantes. Gray mandou-os pôr as armas no coldre ou guardá-las. Não querendo assustar a polícia, eles obedeceram à ordem e foram para cima com as mãos na cabeça.
A cozinha, antes vazia, estava agora abarrotada de homens uniformizados. Rachel avistou Kat, encostada a uma parede, com as mãos na cabeça também. A polícia francesa não queria correr riscos. Armas foram erguidas.
Gray tentou explicar num francês afetado, mas eles foram separados e obrigados a encostar-se à parede. O chefe dirigiu a luz de sua lanterna para o corredor, o nariz enrugado de repugnância.
Uma agitação próxima ao corredor marcou a chegada de uma nova pessoa, de alguém com autoridade. Rachel observou um amigo de sua família entrar na cozinha, deslocado naquele lugar, mas bem-vindo. Será que o cardeal Spera o havia chamado?
O tio dela também se alegrou.
— General Rende! Graças a Deus!
Era o chefe de Rachel, o diretor de sua unidade dos Carabinieri. Ele estava com uma aparência admirável, mesmo sem uniforme.
O tio Vigor tentou avançar, mas foi obrigado a recuar.
— Você deve fazer os gendarmes ouvir. Antes que seja tarde demais.
O general Rende olhou para o tio dela com uma expressão incomum de desdém.
— Já é tarde demais.
De trás dele, surgiu Raoul.
Gray agitou-se quando seus pulsos foram seguros atrás das costas e atados com fitas de plástico. Os outros mercenários, disfarçados de policiais franceses, tomaram as armas dos demais e os amarraram. Até o filho-da-puta do Raoul usava uniforme de policial.
O gigante parou diante de Gray.
— Você é duro de matar pra caralho — disse Raoul. — Mas isso vai acabar. E não espere uma tentativa de resgate da parte do cardeal. Ele se encontrou com um velho amigo no aeroporto. — Ele fez um aceno de cabeça para o general Rende. — Parece que o nosso líder aqui decidiu que o pobre cardeal não era mais útil à Corte.
O coração de Gray apertou-se.
Raoul deu um largo sorriso, com uma expressão selvagem e sanguinária.
O general Rende aproximou-se deles, vestido à paisana, terno preto e gravata caros, sapatos italianos de verniz. Ele estivera discutindo com outro homem, que usava um colarinho clerical. Tinha de ser o prefeito, Alberto Menardi, o Rasputin residente da Corte. Ele trazia um livro embaixo de um braço e uma sacola na mão.
O general foi até Raoul.
— Chega.
— Sim, Imperador — disse Raoul, dando um passo atrás.
Rende apontou para o túnel.
— Nós não temos tempo para nos vangloriarmos. Levem-nos para baixo. Verifiquem o que eles descobriram e depois matem-nos. — Rende correu os olhos pela cozinha, os olhos azuis gélidos, os cabelos grisalhos alisados para trás. — Eu não tenho nenhuma pretensão de que vocês sobrevivam. A única chance de vocês é tornar suas mortes lentas ou rápidas.
Portanto, reconciliem-se da maneira que julgarem adequada.
Encostado à parede no outro lado, Vigor falou:
— Como é que você pôde?
Rende aproximou-se dele.
— Não receie, meu velho amigo, nós pouparemos a sua sobrinha — disse ele. — Isso eu lhe prometo. Vocês dois cumpriram o seu dever ao manterem a Corte em dia com tesouros arqueológicos e da história da arte.
Vocês serviram bem à Corte nestes muitos anos.
Quando Vigor se deu conta de como fora usado e manipulado, seu rosto ficou frio.
— Agora esse papel chega ao fim — disse Rende. — Mas a linhagem de sua sobrinha remonta a reis e produzirá reis no futuro.
— Me casando com esse canalha? — disse Rachel com veemência.
— O que importa não é o homem nem a mulher — respondeu Raoul.
— O que sempre importou é o sangue e o futuro. A pureza da nossa linhagem é um tesouro tanto quanto o que procuramos.
Gray fitou Rachel, atada ao lado do tio. O rosto dela empalideceu, mas seus olhos faiscaram de fúria. Sobretudo quando Raoul a segurou pelo cotovelo. Ela cuspiu-lhe no rosto.
Ele a esbofeteou na boca, fazendo a cabeça dela projetar-se para trás e o lábio dela rachar-se.
Gray avançou, mas um par de rifles o fez recuar.
Raoul inclinou-se para mais perto dela.
— Eu gosto de um pouco de fogo na minha cama. — Ele a puxou para a frente. — E desta vez eu não vou deixar você fora do alcance da minha visão.
— Peguem o que viemos buscar aqui — disse Rende, o rosto impassível diante da violência. — Depois nós começaremos a descarregar o máximo possível antes que a tempestade termine. Os caminhões chegarão daqui a 15 minutos.
Gray agora entendia o porquê dos uniformes. O disfarce dar-lhes-ia tempo para limpar uma boa parte do tesouro lá embaixo. Ele não deixou de notar o carrinho de mão cheio de granadas incendiárias prateadas que foi levado à cozinha quando eles foram manietados. Tudo o que a Corte não pudesse carregar seria destruído.
Alberto juntou-se a Raoul.
— Tragam os machados, as furadeiras elétricas e o ácido — disse Raoul, acenando para que seus homens fossem em frente.
Gray sabia que as ferramentas não se destinavam à construção pesada.
Elas eram ferramentas de um verdadeiro sádico.
Cutucado por armas de fogo e separado por soldados, o grupo foi conduzido de volta ao túnel. Uma vez lá embaixo, até os guardas, com seus sorrisos tolos e sua insensibilidade, ficaram em silêncio, os olhos arregalando-se.
Raoul olhou para a extensão de arcos góticos e para o tesouro.
— Nós vamos precisar de mais caminhões.
Alberto caminhava aturdido.
— Espantoso... simplesmente espantoso. E, de acordo com o Arcadium, isto é apenas o refugo deixado na soleira da porta de um tesouro maior.
Apesar do perigo, Vigor olhou chocado para o prefeito.
— Você tem o último testamento de Jacques de Molay?
Alberto apertou seu livro com mais força contra o peito.
— Um exemplar do século XVII. O último exemplar cuja existência era conhecida.
Gray olhou interrogativamente para Vigor.
— Jacques de Molay foi o último grão-mestre dos templários, torturado pela Inquisição por sua recusa em revelar onde estava o tesouro deles.
Ele foi queimado no tronco. Mas houve boatos de um texto dos templários, um último tratado escrito por de Molay antes de ser capturado.
— O Arcadium — disse Alberto. — Na posse da Corte do Dragão há séculos. Ele aludia a um tesouro. Um tesouro independente da grande quantidade de ouro e jóias dos templários. Um tesouro maior, que poria as próprias chaves do mundo na mão de seu descobridor.
— O segredo perdido dos magos — disse Vigor.
— Ele está aqui — disse Alberto, os olhos quase incandescentes.
Eles desceram as plataformas em direção ao piso de vidro.
Ao chegarem à última plataforma, os soldados espalharam-se pela sua superfície, posicionando-se ao longo da borda. Gray e os outros foram obrigados a ajoelhar-se. Alberto desceu sozinho ao piso de vidro e examinou o labirinto.
— O derradeiro enigma — murmurou ele.
Raoul estava de pé com Rachel próximo ao patamar da escada da última plataforma. Ele virou-se para olhar para o grupo ajoelhado.
— Eu acho que nós vamos começar pelas mulheres — disse ele. — Mas por qual delas?
Movendo-se para o lado, ele segurou os cabelos de Rachel, na altura da nuca, curvou-se e beijou-a com força na boca. Ela contorceu-se, engasgando, mas, com as mãos atadas, pouco podia fazer.
A ira estreitou a visão de Gray. Ele ajoelhou-se e bateu a biqueira de sua bota contra a pedra. Sentiu a lâmina oculta sair com um estalido do calcanhar, a mesma que ele usara para libertar-se na cela do castelo. Escondeu a faca atrás dos pulsos atados e, com um movimento mínimo, cortou as fitas com a lâmina afiada. Embora livre, manteve as mãos atrás das costas.
Raoul relaxou o abraço e recuou. Seu lábio inferior sangrava. Rachel o mordera, mas ele simplesmente sorriu e empurrou-a com força bem no meio do peito. Sem equilíbrio, ela caiu sentada com um impacto que a fez trincar os dentes.
— Fique aí — disse Raoul, a mão espalmada, como que dando ordens a um cão.
Um rifle encostado no crânio de Rachel consolidou a ordem.
Raoul voltou-se de novo para o grupo.
— Eu vou deixar para me divertir com ela mais tarde. Portanto, nós precisaremos de outra mulher para começar. — Ele foi na direção de Seichan, olhou fixamente para ela e em seguida sacudiu a cabeça. — Você provavelmente apreciaria isso demais.
Em seguida, ele voltou-se para Kat e acenou para que os guardas que a flanqueavam a arrastassem diante dos outros. Raoul abaixou-se e pegou o machado e uma furadeira elétrica. Ele olhou para ambas as ferramentas e então pôs o machado no chão.
— Eu já fiz isso.
Ele ergueu a furadeira e apertou o gatilho. O zumbido do motor ecoou pela câmara, ávido da promessa de dor.
— Vamos começar por um olho — disse Raoul.
Um dos guardas puxou a cabeça de Kat para trás. Ela tentou lutar, mas o outro deu um forte chute na barriga dela, deixando-a sem fôlego. Enquanto a seguravam, Gray viu a lágrima rolar do canto do olho de Kat. Não de pavor. De raiva.
Raoul baixou a furadeira em direção ao rosto dela.
— Não faça isso! — gritou Gray. — Não há necessidade disso. Eu lhes direi o que nós sabemos.
— Não — disse Kat, e foi esmurrada no rosto por um dos guardas.
Gray entendeu a advertência dela. Se a Corte do Dragão obtivesse o poder ali, as “chaves do mundo”, isso significaria o Armagedom. A própria vida deles, seu próprio sangue, não valia aquele preço.
— Eu vou lhes contar — repetiu Gray.
Raoul empertigou-se um pouco.
Gray esperava atraí-lo para mais perto.
Mas Raoul permaneceu onde estava.
— Parece que eu não me lembro de ter feito nenhuma pergunta ainda.
— Ele tornou a curvar-se. — Isto é apenas uma demonstração. Quando chegar a parte de perguntas e respostas desta conversa, nós ficaremos mais sérios.
A furadeira gemeu mais alto.
Gray não podia mais esperar. Ele não ficaria à toa sentado enquanto outro membro de sua equipe era mutilado por aquele louco. Era melhor morrer num tiroteio. Ele ficou de pé num salto e deu uma cotovelada na virilha do soldado que o estava guardando. Com a atenção do homem fixa
na tortura, Gray pegou o rifle dele, apontou-o para Raoul e puxou o gatilho.
Clique.
Nada aconteceu.
Rachel observou Gray ser jogado ao chão pela coronhada do rifle de um soldado atrás dele.
Raoul deu uma gargalhada e aumentou a rotação do motor da furadeira.
— Tirem as botas dele — ordenou Raoul, e aproximou-se de Gray enquanto ele era maltratado. — Você não acha que eu deixei de mandar
examinar as fitas do sistema de segurança após a sua fuga, acha? Quando eu não tive notícias dos dois homens que mandei de volta para assassiná-los no castelo, eu mandei outra equipe para investigar. Não havia nada além de cães no pátio. Eles descobriram como vocês escaparam e me transmitiram a informação pelo rádio.
Os cadarços de Gray foram cortados e as botas, puxadas com força.
— Portanto, eu deixei vocês terem a sua esperançazinha — disse Raoul. — É sempre melhor conhecer um segredo do inimigo. Isso mantém as surpresas a um mínimo. Eu imaginei que você acabaria procurando conseguir uma arma de fogo... mas eu supus que você tivesse um pouco mais de estômago. Que esperaria até as coisas ficarem realmente sangrentas. —
Raoul ergueu a furadeira e afastou-se. — Onde é que nós estávamos mesmo?
Rachel olhou fixamente quando as mãos de Gray foram atadas novamente. O rosto dele estava vazio e desesperançado. Isso a assustou mais do que a ameaça de tortura.
— Deixe os outros em paz — disse Gray, esforçando-se para ficar em pé. — Você está perdendo tempo. Nós sabemos como abrir o portão.
Machuque somente um de nós, e você não ficará sabendo de nada.
Raoul olhou para ele.
— Explique, e eu pensarei na sua oferta.
Gray sondou os outros, parecendo desamparado.
— É a luz — disse ele.
Kat soltou um gemido. Vigor baixou a cabeça.
— Ele tem razão — disse uma voz vinda do piso abaixo. Alberto subiu alguns degraus. — Os espelhos na parede são refletores e estão dispostos em ângulos.
— É necessário luz do laser — continuou Gray, revelando tudo, explicando o que Vigor havia relatado.
Alberto juntou-se a eles.
— Sim, sim... isso faz o mais absoluto sentido.
— Bem, veremos - disse Raoul. — Se ele estiver errado, nós começaremos a decepar membros.
Gray virou-se para Rachel e os outros.
— Eles acabariam descobrindo. Eles já têm a chave de ouro.
Raoul ordenou a seus homens:
— Levem os prisioneiros lá para baixo. Eu não quero correr riscos.
Ponham-nos encostados à parede mais baixa. O resto de vocês — ele olhou para o grupo de soldados que montava guarda em cima da plataforma — mantenha cada um deles o tempo todo sob a mira das armas. Atirem contra qualquer um que se mexer.
Rachel e os outros cinco foram levados para baixo e obrigados a separar-se, a espalhar-se ao longo da parede. Gray estava a apenas três passos dela. Ela ansiava por estender o braço para ele, por segurar sua mão, mas ele parecia perdido em sua própria dor.
E ela não ousava mexer-se.
Os soldados estavam deitados na plataforma acima, os rifles apontados para eles.
Gray murmurou, olhando fixamente para o piso de vidro. Suas palavras chegaram apenas aos ouvidos dela.
— O labirinto do Minotauro.
Ela franziu o cenho. Parado no lugar, ele olhou de relance para ela e em seguida outra vez para o piso. O que ele estava tentando indicar?
O labirinto do Minotauro.
Gray estava referindo-se a um dos nomes do labirinto. Labirinto de Dédalo. O labirinto mítico que era o lar do Minotauro, um monstro letal num labirinto letal.
Letal.
Rachel lembrou-se da armadilha no túmulo de Alexandre. Do túnel letal. A solução daqueles enigmas não requeria apenas tecnologia. Era preciso saber história e mitologia. Gray estava tentando adverti-la. Eles podiam ter solucionado o problema da tecnologia, mas não todo o enigma.
Ela agora entendia a esperança de Gray. Ele apenas contara a Raoul o suficiente para — era o que esperava — fazer com que o homem morresse.
Raoul pegou uma mira a laser e avançou para o pedestal no centro.
Depois, pareceu pensar melhor. Ele apontou a mira para Gray.
— Você — disse ele, claramente com suspeitas. — Leve isto até lá.
Gray foi obrigado a afastar-se da parede, a afastar-se do lado dela. Seus braços foram libertados, mas de modo algum ele estava livre. Cada passo seu era acompanhado por rifles.
Raoul empurrou o laser na mão de Gray.
— Instale-o. Como você descreveu.
Gray olhou para Rachel e então se dirigiu ao piso de vidro só de meias.
Ele não teve escolha.
Teve de entrar no labirinto do Minotauro.
O general Rende consultou o relógio. Trovões ribombaram além das paredes do palácio. O que ele havia procurado por tanto tempo estava prestes a realizar-se. Mesmo que eles não conseguissem abrir uma câmara secreta qualquer lá embaixo, ele dera uma olhadela. Só aquele depósito era um tesouro que excedia todos os demais.
Eles fugiriam com o máximo que pudessem e destruiriam o resto.
Seu perito em demolições já estava inspecionando as bombas incendiárias.
Tudo o que restava era esperar os caminhões.
Ele havia providenciado uma caravana de três caminhões Peugeot para serviços pesados. Eles iriam em turnos até um imenso depósito na periferia da cidade, perto do rio, deixariam a carga, instalariam um contêiner vazio em cada veículo e voltariam.
De um lado para outro enquanto fosse possível.
O general franziu o cenho ao consultar o relógio. Eles estavam se atrasando. Ele recebera um telefonema do motorista do caminhão da frente cinco minutos atrás. As estradas estavam um caos, e, embora o dia já tivesse raiado, permanecia um interminável lusco-fusco sob as nuvens de trovoadas e a chuva torrencial.
Apesar do atraso, a tempestade servia para protegê-los, para encobrir as ações deles, para manter a um mínimo qualquer interesse pelo que se passava ali. Guardas afastados estavam prontos para eliminar qualquer pessoa que se tornasse curiosa demais. Os subornos já haviam sido pagos.
Eles deveriam dispor de metade do dia.
Veio pelo rádio uma chamada, à qual ele respondeu.
— O primeiro caminhão está subindo a colina agora — informou o motorista.
Trovões retumbaram a distância.
Agora era o começo.
Com a mira a laser na mão, Gray dirigiu-se à pequena coluna de magnetita. Acima, estendiam-se arcos duplos da mesma pedra. Mesmo sem tocar em nada, Gray sentia a força em estado latente.
— Vamos, rápido! — gritou Raoul da borda.
Gray caminhou até o pedestal, colocou a mira a laser em cima dele, ajustou-a e apontou-a na direção da janela correspondente às 12 horas. Ele fez uma pausa para respirar fundo. Tentara advertir Rachel para estar pronta para tudo. Uma vez que aquilo fosse ativado, todos eles estariam em perigo.
— Ligue o laser! — vociferou Raoul. — Ou nós começaremos a disparar contra rótulas.
Gray estendeu a mão para o interruptor e ligou-o.
Um fino feixe de luz vermelha projetou-se e atingiu a placa de vidro de ouro.
Gray lembrou-se das baterias no túmulo de Alexandre. Levou um instante para que a carga ou capacidade elétrica se formasse, e então os fogos de artifício começaram.
Ele não tinha intenção de ficar em pé ali quando isso acontecesse.
Virou-se e voltou rapidamente para a parede. Não correu, não fez nenhum movimento precipitado, ou teria sido alvejado nas costas. Ele retomou seu lugar junto à parede.
Raoul e Alberto estavam em pé na base da escada.
Todos os olhos estavam fixos no único fio de fogo vermelho que ligava a mira a laser ao espelho.
— Não está acontecendo nada — resmungou Raoul.
Vigor falou do outro lado:
— Talvez leve alguns segundos para que se forme energia suficiente para ativar o espelho.
Raoul ergueu uma pistola.
— Se ela não...
Ela se formou.
Uma profunda nota tonal soou e um novo raio de laser projetou-se da placa das 12 horas e acertou a das cinco horas. Ocorreu uma ofuscação por uma fração de segundo.
Ninguém falou.
Então outro feixe de fogo vermelho se projetou e acertou o marcador das dez horas. Ele refletiu-se imediatamente, saltando de um espelho para o outro.
Gray olhou fixamente para a difusão de luz diante dele, formando uma estrela flamejante, até a cintura. Ele e os outros estavam em pé entre pontos do dispositivo, sabendo que era melhor não se mexerem.
O simbolismo era óbvio.
A Estrela de Belém.
A luz que guiara os Reis Magos.
A nota profunda aumentou. O fogo da estrela ardeu com mais intensidade.
Gray virou a cabeça, apertando os olhos.
Então ele sentiu que algum limiar fora transposto. A pressão projetou-se súbita e impetuosamente para fora, empurrando-o contra a parede.
O campo de Meissner de novo.
A estrela pareceu curvar-se para cima, a partir do centro, como que empurrada do chão, e atingiu a cruz de arcos de magnetita acima.
Uma explosão de energia crepitou através dos arcos abobadados.
Gray sentiu um puxão nos botões de metal de sua camisa.
A carga magnética dos arcos havia aumentando dez vezes.
A energia da estrela foi repelida pelo novo campo e projetou-se para baixo, atingindo o piso de vidro com um som metálico alto, como a badalada de um sino gigante.
A coluna central voou para cima como que arremessada pela colisão. Ela atingiu o centro dos arcos cruzados — e ficou grudada ali, dois eletro-ímãs firmemente presos um ao outro.
À medida que o som enfraquecia, Gray sentiu um estalido nos ouvidos quando o campo se desfez. A estrela desvaneceu-se, embora um espectro de sua luz intensa ainda brilhasse através de sua visão. Ele fechou os olhos a esse brilho residual.
Acima, a pequena coluna ainda estava presa à interseção dos arcos, apontando agora para baixo. Gray acompanhou o dedo de pedra.
No meio do piso, onde a coluna se erguera antes, havia um círculo perfeito de ouro maciço. Um encaixe para a chave. No centro — o centro de tudo — estava uma fenda escura.
— O buraco da fechadura! — exclamou Alberto. Ele largou o livro, abriu a sacola e tirou a chave de ouro.
Do outro lado do piso, Vigor olhou com dureza para Gray. Naquele momento, Gray lhes entregara não apenas a chave de ouro, mas a chave do mundo.
Alberto devia ter suspeitado a mesma coisa. Excitado, ele pisou no assoalho de vidro.
Descargas elétricas arremessaram-se para cima, provenientes da superfície, trespassando o homem, erguendo-o e mantendo-o suspenso. Ele gritou e contorceu-se quando o fogo o lambeu. Sua pele enegreceu-se; seus cabelos e roupas incendiaram-se.
Raoul correu para a escada, horrorizado, caindo sentado.
Gray virou-se para Rachel.
— Prepare-se para correr.
Aquela poderia ser a única chance deles.
Mas pareceu que ela não o ouviu, petrificada como os outros.
O grito de Alberto finalmente cessou. Como que sabendo que sua presa estava morta, uma derradeira descarga de energia lançou o cadáver do homem na beira do poço de vidro.
Ninguém se moveu. O cheiro de carne queimada espalhou-se no ar.
Todos olhavam com espanto para o labirinto letal.
O Minotauro havia chegado.
O general Rende recuara para os degraus de acesso à cozinha. Ele fora chamado por um de seus soldados quando a estrela cintilante se iluminara lá embaixo. Ele queria ver o que estava acontecendo — mas de uma distância segura.
Então a luz expirou.
Decepcionado, ele se afastou quando um lamento torturado irrompeu.
Os pêlos de sua nuca arrepiaram-se.
Ele fugiu de volta para a cozinha. Um de seus homens, usando uniforme da polícia francesa, correu até ele.
— O primeiro caminhão está aqui! — disse ele apressadamente.
Rende viu-se livre da ansiedade momentânea.
Ele tinha um trabalho a fazer.
— Entre em contato pelo rádio com quem não estiver de guarda. Está na hora de esvaziarmos a câmara.
Rachel sabia que eles estavam encrencados.
Raoul levantou-se e dirigiu-se a Gray.
— Você sabia disto!
Gray deu um passo para o lado junto à parede.
— Como é que eu poderia saber que ele seria frito?
Raoul ergueu a pistola e fez pontaria.
— Está na hora de vocês aprenderem uma lição.
Mas a arma não estava apontada para Gray.
— Não! — gritou Rachel, aflita.
A pistola disparou. No outro lado do assoalho, o tio Vigor segurou a barriga com um gemido. Seus pés escorregaram de sob seu corpo, e ele afundou no chão.
Seichan moveu-se em direção a ele, deslizando agilmente como um gato negro, impedindo que os pés de Vigor tocassem o vidro.
Mas Raoul ainda não terminara com eles. Em seguida, apontou a pistola na direção de Kat. Ela estava a apenas três metros de distância. A arma apontava para a cabeça dela.
— Não! — disse Gray. — Eu não tinha idéia de que aquilo aconteceria! Mas agora eu sei qual foi o erro que Alberto cometeu!
Raoul voltou-se para ele, a ira em cada músculo. Porém, Rachel reconheceu que aquela fúria não era pela perda de Alberto, e sim porque a morte súbita e dramática o amedrontara. E ele não gostava de ser amedrontado.
— Qual? — resmungou Raoul.
Gray apontou para o labirinto.
— Você não pode simplesmente caminhar até o buraco da fechadura.
Você tem de seguir o caminho. — Ele acenou em direção ao labirinto em espiral.
Os olhos de Raoul estreitaram-se, a ira amainou. A compreensão atenuou o medo.
— Faz sentido — disse Raoul.
Ele foi até o cadáver, abaixou-se e quebrou os dedos contorcidos pelo fogo, ainda apertados em torno da chave. Pegou-a e removeu a carne esturricada de sua superfície.
Ele acenou para que um de seus homens que estavam acima descesse e apontou para o centro.
— Leve isto até lá — ordenou ele, e entregou-lhe a chave de ouro.
O jovem soldado recusou. Ele vira o que acontecera a Alberto.
Raoul apontou a pistola para a testa do rapaz.
— Ou morra aqui. A escolha é sua.
O rapaz estendeu a mão e pegou a chave.
— Vamos, ande - disse Raoul. — O nosso tempo aqui está contado.
Ele manteve a pistola apontada para as costas do rapaz.
O soldado foi até o ponto de entrada do labirinto. Inclinando-se para trás, ele pôs um pé no vidro e depois puxou-o. Nada aconteceu. Mais confiante, porém cauteloso, ele estendeu o pé de novo e colocou-o sobre a superfície.
Ainda nenhuma manifestação de eletricidade.
Cerrando os dentes, o soldado pisou em cheio no assoalho de vidro.
— Fique longe das marcas de platina — advertiu Gray.
O soldado fez um aceno de cabeça, olhando com gratidão na direção de Gray, e deu outro passo.
Sem qualquer sinal, um jato de luz vermelha projetou-se de duas janelas. A estrela tremeluziu, voltando à existência, e então expirou novamente.
O soldado congelou no lugar. Em seguida, suas pernas vergaram embaixo dele. Ele caiu para trás, fora do labirinto. Quando ele atingiu o chão, seu corpo partiu-se em metades, cortado na cintura pelo laser. Um emaranhado de intestinos saiu serpenteando da metade de cima.
Raoul recuou, os olhos flamejantes de ira, e ergueu a pistola outra vez.
— Mais alguma idéia brilhante?
Gray permaneceu imóvel.
— Eu... eu não sei.
— Talvez seja um coisa relacionada com o tempo — disse Monk do outro lado. — Talvez você tenha de se manter em movimento. Como no filme Velocidade Máxima.
Gray olhou de relance para o seu colega de equipe, e então de novo para trás, não convencido.
— Eu estou de saco cheio de perder meus próprios homens — disse Raoul, a fúria se formando. — E também de esperar enquanto você junta as peças deste quebra-cabeça. Por isso você simplesmente terá de me mostrar como se faz.
Ele acenou para que Gray avançasse.
Gray continuou no lugar, obviamente tentando encontrar alguma resposta.
— Eu sempre posso começar a atirar de novo contra os seus amigos. Eu sei que isso ajuda a aliviar o meu estresse — disse Raoul, apontando a arma novamente para Kat.
Gray afinal saiu do lugar, passando por cima do corpo de bruços.
— Não se esqueça da chave — disse Raoul.
Gray curvou-se para pegá-la.
Foi então que a idéia ocorreu a Rachel. É claro.
Gray empertigou-se e encaminhou-se para o ponto de entrada do labirinto. Ele começou a recuar, alinhando-se um pouco para correr, pronto para seguir o conselho de Monk.
— Não! — gritou Rachel. Ela odiava ajudar Raoul a alcançar seu objetivo. Estava preparada para morrer a fim de impedir que a Corte conseguisse o que estava oculto ali. Mas também não podia ver Gray morrer, cortado ao meio ou eletrocutado.
Ela lembrou-se do sussurro de Gray sobre o Minotauro. Ele recusava-se a entregar os pontos. Enquanto eles vivessem, havia esperança. Ela acreditava nele. E, ainda mais importante, confiava nele.
Gray virou-se para ela.
Nos olhos dele, ela viu brilhar a mesma confiança.
Nela.
A gravidade daquilo a silenciou.
— O que foi? — vociferou Raoul.
— Não é a velocidade — disse Rachel, sobressaltada. — O tempo é valorizado por esses alquimistas. Eles deixaram pistas, de uma ampulheta a este mostrador de relógio espelhado. Eles não usariam o tempo para matar.
— Então o quê? — perguntou Gray, os olhos ainda pesando sobre ela. Mas era um fardo que ela estava disposta a agüentar.
Rachel falou rapidamente.
— Os labirintos em todas as catedrais representavam viagens simbólicas. Deste mundo para o outro. Para a iluminação espiritual no centro. — Ela apontou para o cadáver, cortado ao meio na cintura, que correspondia à altura das janelas espelhadas. — Mas, para chegarem lá, os peregrinos
engatinhavam.
Gray concordou com um aceno.
— Abaixo do nível destas janelas.
No outro lado do piso, o tio dela gemeu, sentado no chão, o sangue escorrendo entre seus dedos. Seichan estava sentada ao lado dele. Rachel sabia que não era a dor que suscitara a reação de lamento. Ela viu isso nos olhos do tio. Ele também já havia solucionado aquele último enigma. Mas ficara em silêncio.
Ao falar, Rachel traíra o futuro, pondo o mundo em risco.
Os olhos dela encontraram os de Gray. Ela fizera sua escolha. Sem remorso.
Até mesmo Raoul acreditou nela.
Ele acenou para que Gray lhe passasse a chave.
— Eu mesmo a levarei até lá — mas você vai na frente.
Sem dúvida, Raoul não confiava inteiramente na idéia dela. Gray passou-lhe a chave.
— Na verdade — disse Raoul, apontando a arma para Rachel —, já que a idéia é sua, por que você também não vem junto? Para ajudar a manter o seu homem digno de confiança.
Rachel tropeçou para a frente. Suas mãos foram libertadas. Ela agachou-se com Gray. Ele fez um aceno de cabeça para ela, transmitindo uma mensagem silenciosa.
Nós ficaremos bem.
Rachel tinha poucos motivos para sentir-se confiante, mas acenou em resposta.
— Vamos andando — disse Raoul.
Gray seguiu na frente, engatinhando para o labirinto sem hesitar, plenamente confiante na avaliação de Rachel.
Raoul a reteve até que Gray estivesse a um corpo de distância.
O piso de vidro permaneceu parado.
— Okay, agora você — Raoul ordenou a ela.
Rachel começou a engatinhar, seguindo o caminho de Gray. Ela sentia uma vibração através das palmas de suas mãos. A superfície do vidro era quente. Enquanto se movia, ela ouvia um ruído distante, não mecânico ou elétrico, mais parecido com o murmúrio de uma vasta multidão ao longe. Talvez fosse o sangue afluindo aos seus ouvidos, bombeado pelo seu coração preocupado.
Raoul gritou atrás dela para seus homens:
— Atirem contra qualquer um dos outros, se eles se mexerem! O mesmo vale para estes dois aqui. Sob minhas ordens, executem-nos.
Portanto, se o labirinto não os matasse, Raoul o faria.
Rachel prosseguiu, com uma única esperança.
Gray.
Rende pousou uma das mãos no ombro do perito em demolições.
— As cargas estão preparadas?
— Todas as 16 — respondeu o homem. — Simplesmente aperte este botão três vezes. As granadas estão ligadas a um detonador programado para acioná-las em dez minutos.
Perfeito.
Ele virou-se para a fila de 16 homens. Outros carrinhos de mão estavam no corredor, esperando para serem carregados. Cinco carrinhos de mão maiores também estavam prontos. O primeiro caminhão havia encostado em marcha a ré ao portão principal, e o segundo estava a caminho.
Estava na hora de esvaziar a câmara.
— Ao trabalho, homens. Pagamento em dobro.
Os joelhos de Gray doíam.
Depois de dar a volta a três quartos do labirinto, aquilo se transformou numa tortura para suas rótulas. O vidro liso agora parecia concreto áspero. Mas ele não ousava parar. Não até ter chegado ao centro.
Enquanto dava suas voltas pelo circuito, ele cruzava com Rachel e Raoul ao longo dos caminhos próximos. Apenas um esbarrão no quadril seria suficiente para que Raoul caísse fora do caminho que seguia. Até mesmo Raoul suspeitava disso, apontando a arma para o rosto de Gray quando eles passavam um pelo outro.
Porém, a cautela era desnecessária. Gray sabia que, se cruzasse as linhas de platina gravadas no vidro mesmo com uma das mãos ou um dos quadris, ele seria morto tão depressa quanto Raoul. E, com a superfície do vidro ativada, também era provável que Rachel fosse eletrocutada.
Portanto, ele deixava Raoul passar sem ser molestado.
Quando seu caminho e o de Rachel se cruzavam, os olhos de um permaneciam fixos no outro. Nenhum dos dois falava. Um vínculo havia crescido entre eles, um vínculo construído com base no perigo e na confiança. O coração de Gray doía a cada movimento: queria abraçá-la, confortá-la. Mas era impossível parar.
Eles davam voltas e mais voltas.
Um zumbido cresceu dentro da cabeça dele, fazendo vibrar os ossos de seus braços e pernas. Ele também ouviu um tumulto acima. Na catedral. Soldados envolvidos em alguma atividade lá.
Ele ignorou tudo isso e continuou a engatinhar.
Após a última volta, um trecho reto conduzia à roseta no centro. Gray avançou rapidamente, contente por chegar afinal a uma base segura. Com os joelhos queimando, ele deu um mergulho no trecho final e estatelou-se de costas.
O zumbido transformou-se num murmúrio que mal se podia ouvir. Ele sentou-se, os cabelos vibrando com o ruído. Que diabo...?
Rachel apareceu e engatinhou na direção dele. Permanecendo abaixado, ele ajudou-a a entrar no centro. Ela atirou-se nos braços dele.
— Gray... o que nós estamos...?
Ele ajoelhou-se com ela e a fez calar-se.
Havia apenas uma esperança.
Uma pequena esperança.
Raoul apareceu e engatinhou até eles, exibindo um largo sorriso.
— A Corte do Dragão está em débito com ambos pelo seu generoso serviço. — Ele apontou a arma. — Agora levantem-se.
— O quê? — perguntou Gray.
— Vocês me ouviram. Levantem-se. Os dois.
Sem opção, Gray tentou libertar-se dos braços de Rachel, mas ela estava grudada a ele.
— Me deixe ir primeiro — murmurou ele.
— Juntos — respondeu ela.
Gray olhou-a nos olhos e viu a determinação dela.
— Confie em mim — disse ela.
Gray respirou fundo, e os dois levantaram-se. Gray esperava ser cortado ao meio, mas o piso permaneceu imóvel.
— Uma zona segura — disse Rachel. — No centro da estrela. Os lasers nunca cruzaram esta parte.
Gray manteve o braço ao redor de Rachel. Como se aquele sempre tivesse sido o seu lugar.
— Fiquem afastados ou vocês serão alvejados — advertiu Raoul. — Ele ficou em pé em seguida, livrou-se de uma cãibra e enfiou a mão num bolso. — Agora vejamos que prêmio vocês nos entregaram.
Raoul tirou a chave, abaixou-se e introduziu-a no buraco da fechadura.
— Um encaixe perfeito — murmurou ele.
Gray estreitou Rachel ainda mais em seus braços, receoso do que aconteceria em seguida, certo apenas de uma coisa.
No ouvido dela, ele sussurrou o segredo que vinha mantendo de todos desde Alexandria.
— A chave é falsa.
O general Rende descera para supervisionar o primeiro carregamento do tesouro. Eles não poderiam levar tudo, por isso alguém tinha de fazer uma triagem, escolher as mais preciosas peças de antigüidade, arte e textos antigos. Ele postou-se próximo da plataforma com um bloco na mão para fazer o inventário. Seus homens rastejavam ao longo da plataforma mais alta da maciça estrutura.
Então um ruído estranho vibrou através da caverna.
Não era um terremoto.
A impressão era de que alguma coisa houvesse feito todos os seus sentidos vibrar ao mesmo tempo. Ele perdeu ligeiramente o equilíbrio. Sua audição ribombou. Ele sentiu um calafrio repentino, como se a morte
houvesse passado por perto. Mas, pior do que tudo, sua visão tremeluziu. Era como se o mundo houvesse se transformado num tubo de imagem com defeito, interferindo na imagem na tela, brincando com a perspectiva.
Três dimensões dissolvidas em duas apenas.
Rende recuou para o poço da escada.
Algo estava acontecendo. Algo errado.
Ele o sentiu até os ossos.
E fugiu escada acima.
Rachel agarrou-se a Gray quando a vibração piorou. O piso embaixo deles pulsava com uma luz branca. A cada pulso, arcos de eletricidade precipitavam-se para fora ao longo das linhas de platina, crepitando e cintilando. Dentro de segundos, o labirinto inteiro brilhava com um fogo interno.
As palavras de Gray ecoaram em seus ouvidos. A chave é falsa.
E o labirinto reagiu.
Um ruído grave soou embaixo deles, ominoso, sinistro.
A pressão voltou a formar-se, fechando-se e comprimindo.
Um novo campo de Meissner desenvolveu-se, distorcendo estranhamente a percepção.
Acima, todo o complexo parecia vibrar, como o filamento bruxuleante de uma lâmpada incandescente.
A realidade deformou-se.
A um metro de distância, Raoul ergueu-se do local onde se agachara sobre a chave que introduzira na fechadura, sem saber o que estava acontecendo. Mas ele deve tê-la sentido também. Uma sensação esmagadora de transgressão que repugnava os sentidos.
Rachel agarrou-se a Gray, contente pelo apoio.
Raoul virou-se para eles e... sua pistola. Ele percebeu a verdade tarde demais.
— Lá no castelo. Você nos deu a porra da chave errada.
Gray encarou-o.
— E você perdeu.
Raoul apontou a arma.
Ao redor deles, a estrela flamejante voltou à vida, projetando-se de todas as janelas ao mesmo tempo. Raoul agachou-se, receoso de ser cortado ao meio.
Acima, o pedestal de pedra libertou-se de sua adesão magnética aos arcos de pedra-ímã e mergulhou no chão. Raoul olhou para cima tarde demais. A quina da pedra atingiu seu ombro e esmagou-o no chão.
Quando a coluna atingiu o chão, o vidro estilhaçou-se como gelo sob eles, espalhando-se em todas as direções. Um brilho ofuscante irrompeu das rachaduras.
Gray e Rachel permaneceram em pé.
— Abrace-me com força — sussurrou Gray.
Rachel também sentiu. Uma crescente vibração de força, sob eles, ao redor deles, através deles. Ela precisava estar mais perto. Ele reagiu, girando-a para ficar de frente para ele, os braços imprensando-a contra o seu peito, sem deixar espaço. Ela chegou-se mais para ele, sentindo o coração dele bater.
Alguma coisa estava precipitando-se de baixo.
Uma bolha de energia negra. Prestes a explodir.
Ela fechou os olhos quando o mundo explodiu em luz.
No chão, o ombro de Raoul queimava com incandescente agonia. Ossos esmagados rangiam em contato uns com os outros. Em pânico, ele lutou para escapar.
Então uma supernova explodiu embaixo e através dele, tão brilhante que penetrou até a parte posterior de seu crânio, espalhando-se pelo seu cérebro. Ele lutou contra a penetração dela, sabendo que ela o destruiria.
Ele sentiu-se violado, exposto, cada pensamento, ação, desejo revelados.
Não...
Ele não podia impedi-la. Era maior que ele, mais que ele, incontestável. Todo o seu ser foi arrastado ao longo de uma brilhante réstia de luz branca. Estirado a ponto de despedaçar-se, agoniado, mas sem deixar espaço para raiva, ódio a si mesmo, vergonha, aversão, medo ou recriminação.
Apenas para a pureza. Uma essência pura do ser. Aquele era quem ele poderia ser, quem ele nascera para ser.
Não...
Ele não queria ver aquilo. Mas não podia fugir. O tempo dilatava-se rumo ao infinito. Ele estava preso, ardendo numa luz purificadora, muito mais dolorosa do que qualquer inferno.
Ele encarou a si mesmo, sua vida, sua possibilidade, sua ruína, sua salvação...
Ele viu a verdade — e ela queimava.
Não mais...
Mas o pior ainda estava por vir.
Seichan apertou o velho de encontro ao seu peito. Ambos mantiveram a cabeça inclinada para evitar a ofuscante erupção de luz, mas Seichan teve vislumbres dela pelo canto dos olhos.
A estrela chamejante explodiu em direção ao céu numa fonte de luz, erguendo-se do centro do labirinto e rodopiando para cima, rumo à catedral escura. Outros espelhos de vidro, incrustados na vasta biblioteca, captaram o brilho da estrela e o refletiram cem vezes, alimentando o crescente turbilhão. Uma reação em cadeia difundiu-se por todo o complexo. Num piscar de olhos, a estrela bidimensional desdobrou-se numa gigantesca esfera tridimensional de luz do laser, girando dentro e em volta da catedral subterrânea.
A energia cintilava e crepitava para fora dela, varrendo as plataformas.
Gritos estridentes ecoavam.
Um soldado pulou da plataforma acima, tentando chegar ao chão abaixo. Porém, não havia santuário algum para ele. Descargas elétricas atingiram-no antes mesmo de ele tocar o chão, queimando-o até os ossos quando ele se chocou com o piso do labirinto.
Mas o mais perturbador de tudo é que alguma coisa acontecera à própria catedral abobadada. A visão pareceu achatar-se, perdendo toda a sensação de profundidade. E mesmo essa imagem tremeluziu, como se o que estava suspenso acima dela fosse apenas um reflexo na água, irreal, uma miragem.
Seichan fechou os olhos, com medo de olhar, completamente horrorizada.
Gray abraçava Rachel. O mundo era pura luz. Ele sentia o caos além, mas ali havia apenas os dois. O ruído voltou a zumbir em volta deles, vindo de dentro da luz, um limiar que ele não podia cruzar nem compreender.
Ele se lembrou das palavras de Vigor.
Luz primordial.
Rachel ergueu o rosto. Os olhos dela estavam tão brilhantes na luz refletida que ele quase podia ler os pensamentos dela. Parecia que ela também lia os seus.
Alguma coisa no caráter da luz, uma permanência que não podia ser negada, uma imutabilidade que tornava tudo pequeno.
Exceto uma coisa.
Gray curvou-se, os lábios roçando os dela, as respirações partilhadas.
Não era amor. Ainda não. Apenas uma promessa.
A luz brilhou ainda mais quando o beijo de Gray se intensificou e ele sentiu o gosto dela. O que antes zumbia agora cantava. Os olhos dele fecharam-se, mas ele ainda a via. Seu sorriso, o brilho de seus olhos, o ângulo de seu pescoço, a curva de seus seios. Ele sentiu aquela permanência de novo, aquela presença imutável.
Será que era a luz? Será que eram eles dois?
Apenas o tempo o diria.
O general Rende fugiu ao ouvir os primeiros gritos. Ele não precisava investigar mais. Enquanto subia com dificuldade o poço da escada em direção à cozinha, ele vira o brilhos de energias refletido de baixo para cima.
Ele não chegara tão longe na Corte por ser imprudente.
Isso ele deixava para substitutos como Raoul.
Flanqueado por dois soldados, retirou-se do palácio, seguindo para o pátio principal. Apoderar-se-ia do caminhão, voltaria ao depósito, reagruparia lá e conceberia um novo plano.
Ele tinha de estar de volta a Roma antes do meio-dia.
Ao sair pela porta, notou que a guarda externa, ainda usando uniformes da polícia, defendia o portão. Também notou que a chuva se reduzira a uma garoa.
Ótimo.
Isso apressaria sua retirada.
Perto do caminhão, o motorista e outros quatro guardas uniformizados perceberam sua aproximação e vieram ao seu encontro.
— Nós temos de partir imediatamente — ordenou Rende em italiano.
— De algum modo eu acho que isso não vai acontecer — disse o motorista em inglês, puxando o boné para trás.
Os quatro guardas uniformizados ergueram armas para o grupo dele.
O general Rende recuou.
Aqueles eram mesmo policiais franceses... exceto o motorista. Pelo sotaque, era obviamente americano.
Rende voltou os olhos para a entrada. Mais policiais franceses montavam guarda. Ele fora traído pelo seu próprio ardil.
— Se o senhor está procurando seus homens — disse o americano —, eles já estão presos na traseira do caminhão.
O general Rende olhou fixamente para o motorista. Cabelos pretos, olhos azuis. Ele não o reconheceu, mas ele conhecia a voz das conversas pelo telefone.
— Painter Crowe — disse ele.
Painter percebeu o brilho do cano de uma arma na janela do segundo andar do palácio. Um atirador solitário de tocaia. Alguém que eles não haviam notado.
— Afastem-se! — gritou ele para a patrulha à sua volta.
Balas ricochetearam no pavimento molhado, disparadas entre Painter e o general. Os policiais dispersaram-se para o lado.
Rende recuou, sacando sua pistola.
Ignorando os disparos da arma automática, Painter abaixou-se, apoiando-se num joelho, e ergueu duas armas, uma em cada mão. Mirando instintivamente, ele apontou uma pistola na direção da janela superior.
Pou, pou, pou...
O general jogou-se no chão.
Do segundo andar soou um grito. Um corpo caiu.
Mas Painter notou-o apenas pelo canto do olho. Toda a sua atenção estava concentrada no general Rende. Ajoelhados, ambos apontavam armas um para o outro, as armas quase se tocando.
— Afastem-se do caminhão! — disse Rende. — Todos vocês!
Painter encarou o homem, avaliando-o. Ele pôde ver a fúria crua nos olhos do outro, tudo desintegrava-se ao redor dele. Rende atiraria, mesmo que isso significasse perder a vida.
O homem não lhe oferecia escolha.
Painter largou a primeira pistola e em seguida baixou a segunda, afastando-a do rosto de Rende e apontando-a para o chão.
O general deu um largo sorriso de triunfo.
Painter puxou o gatilho. Um arco brilhante projetou-se da extremidade da segunda pistola. Os dardos do taser atingiram a poça d'água próximo ao joelho do general. O impacto da descarga elétrica fez Rende perder o equilíbrio e cair de costas, a arma voando.
Ele gritou.
— Dói, não dói? — disse Painter, agarrando sua pistola regular e apontando-a para o general.
Os policiais aglomeraram-se em torno do homem caído.
— O senhor está bem? — um dos patrulheiros perguntou a Painter.
— Ótimo. — Ele se levantou. — Mas, caramba... como eu sinto falta do trabalho de campo.
Lá embaixo na caverna, os fogos de artifício haviam durado pouco mais de um minuto.
Vigor estava deitado de costas, olhando fixamente para cima. Os gritos haviam cessado. Ele abrira os olhos, sentindo no nível primitivo de seu cérebro que tudo terminara. Ele vislumbrou a última volta da esfera de luz coerente e então observou-a desmoronar dentro de si mesma como um sol agonizante.
Acima estendia-se o espaço vazio.
A catedral inteira havia tremeluzido e se desvanecido junto com a estrela.
Seichan mexeu-se no lugar onde havia se abrigado ao lado dele. Ela também olhava fixamente para cima.
— Tudo já passou.
— Como se nunca houvesse estado lá — disse Vigor, fraco devido à perda de sangue.
Gray rompeu o abraço em Rachel, a acuidade de seus sentidos enfraquecendo com a luz. Mas ele ainda sentia o gosto dela em seus lábios. Isso bastava.
Por enquanto.
Um pouco do brilho permaneceu nos olhos dela quando ela perscrutou ao redor. Os outros estavam se mexendo de onde haviam se deitado no chão. Rachel avistou Vigor, que se esforçava para sentar-se.
— Oh! meu Deus... — disse ela.
Ela saiu dos braços de Gray para ir ver o tio. Monk ia na mesma direção, pronto para utilizar seus conhecimentos médicos.
Gray ficou de guarda, olhando para as alturas à sua volta.
Não se ouviu mais nenhum tiro. Os soldados haviam desaparecido... junto com a biblioteca. Era como se alguma coisa houvesse removido o centro, deixando apenas os círculos de plataformas ascendentes, semelhantes a um anfiteatro.
— Para onde tudo se fora?
Um gemido atraiu sua atenção para o piso.
Raoul estava caído ali perto, enroscado em torno do braço esmagado sob a coluna que caíra. Gray foi até ele e chutou sua pistola para longe. Ela deslizou pelo piso de vidro, agora um quebra-cabeça rachado e difuso.
Kat aproximou-se.
— Deixe-o por enquanto — disse Gray. — Ele não irá a lugar nenhum. É melhor nós recolhermos todas as armas que pudermos. É impossível dizer quantos mais podem estar lá em cima.
Ela concordou com um aceno de cabeça.
Raoul ficou de costas, excitado pela voz de Gray.
Gray esperava alguma maldição ou ameaça final, mas o rosto de Raoul estava contorcido de agonia. Lágrimas rolavam pelas suas faces. Mas Gray suspeitava que não era o braço esmagado que estava desencadeando aquela dor.
Alguma coisa mudara no rosto de Raoul. O eterno semblante duro e o brilho de desdém haviam desaparecido, dando lugar a algo mais brando, mais humano.
— Eu não pedi para ser perdoado — lamentou ele, angustiado.
Gray franziu o cenho ao ouvir essa declaração. Perdoado por quem? Ele se lembrou de sua própria exposição à luz um instante atrás. Luz primordial. Alguma coisa além da compreensão, além do começo da criação. Alguma coisa havia transformado Raoul.
Ele se lembrou da pesquisa naval feita com os supercondutores, de como o cérebro se comunicava por meio da supercondutividade e até conservava a memória daquela forma, armazenada como energia ou talvez como luz.
Gray olhou para o piso estilhaçado. Será que havia algo além da luz armazenado no vidro supercondutor? Ele se lembrou de sua própria sensação durante aquele momento. A sensação de algo maior.
No chão, Raoul cobriu o rosto com uma das mãos.
Será que alguma coisa havia renovado a alma do homem? Poderia haver esperança para ele?
Um movimento atraiu o olhar de Gray. Ele viu o perigo imediatamente.
Ele avançou a fim de detê-la.
Ignorando-o, Seichan ergueu a arma de Raoul e apontou-a para o homem preso ao chão.
Raoul virou-se e olhou para o cano. Sua expressão continuou angustiada, mas agora um lampejo de puro medo iluminou seus olhos. Gray reconheceu aquele brilho de terror negro no homem — não por causa da arma, nem por causa da dor da morte, mas pelo que estava além.
— Não! — gritou Gray.
Seichan puxou o gatilho. A cabeça de Raoul projetou-se para trás, de encontro ao vidro, com um estalo tão alto quanto o disparo da pistola.
Os outros congelaram de choque.
— Por quê? — perguntou Gray, aturdido, avançando.
Seichan esfregou o ombro ferido com a coronha da pistola.
— Desforra. Lembre-se de que nós tínhamos um acordo, Gray. — Ela acenou com a cabeça na direção do corpo de Raoul. — Além do mais, como o homem disse, ele não estava à procura de perdão.
Painter ouviu o eco do disparo através do palácio e acenou para que os patrulheiros franceses parassem. Alguém ainda estava lutando lá dentro.
Seria a sua equipe?
— Devagar — advertiu ele, acenando para que eles avançassem. — Fiquem de prontidão.
Ele continuou a penetrar no palácio. Viera à França por sua própria conta. Nem mesmo Sean McKnight sabia que ele assumira aquele encargo, mas as credenciais de Painter da Europol haviam-lhe assegurado o apoio de campo de que ele precisava em Marselha. Fora necessário empreender uma viagem transatlântica para seguir as pegadas do general Rende, primeiro até um depósito nas imediações de Avignon, depois até o Palácio dos Papas. Painter lembrou-se da advertência de seu mentor de que o lugar de um diretor era atrás de uma escrivaninha, não no campo.
Mas aquele era Sean.
Não Painter.
A Sigma era agora a sua organização, e ele tinha seu próprio jeito de resolver problemas. Ele pegou sua arma e seguiu na frente.
Quando Gray o informou pela primeira vez de um possível vazamento, Painter tomou uma decisão. Confiar em sua própria organização. Ele montara completamente a nova Sigma. Se houve um vazamento, tinha de ser um vazamento não-intencional.
Portanto, ele fizera a coisa lógica mais imediata: rastreara o fluxo de informações secretas.
Desde Gray... até a Sigma... até o contato da Sigma no Corpo de Carabinieri em Roma.
O general Rende havia ficado a par de cada detalhe da operação.
Fora necessário empreender algumas investigações cautelosas para seguir as pegadas do homem, que incluíam viagens suspeitas à Suíça. Painter acabara descobrindo um tênue vínculo com a Corte do Dragão. Um parente distante de Rende que fora preso dois anos antes por negociar com antigüidades roubadas, sobretudo em Omã. O ladrão fora posto em liberdade devido à pressão da Corte Imperial do Dragão.
Enquanto aprofundava as investigações, Painter não manteve Logan Gregory inteiramente informado, de modo que o homem pudesse continuar a desempenhar seu papel de contato da Sigma. Ele não queria assustar Rende, não até ter certeza.
Agora que suas suspeitas haviam-se confirmado, Painter tinha outra preocupação.
Será que ele estava atrasado demais?
Rachel e Monk firmaram a atadura temporária na barriga de seu tio, usando a camisa de Gray. O tio Vigor perdera bastante sangue, mas a bala o trespassara livremente. De acordo com Monk, nenhum órgão vital parecia ter sido atingido, mas ele precisava de cuidados médicos imediatos.
O tio Vigor deu um tapinha na mão dela assim que ela terminou, e em seguida Monk ajudou-o a levantar-se e parcialmente o carregou.
Rachel permanecia ao lado deles. Gray juntou-se a ela, cingindo-a pela cintura. Ela inclinou-se um pouco para ele, extraindo força.
— Vigor vai ficar bem — prometeu Gray. — Ele é duro na queda e chegou até aqui.
Ela sorriu para ele, mas estava cansada demais para expressar muita emoção no sorriso.
Antes mesmo de eles terem chegado à primeira plataforma, uma voz retumbante ecoou até eles, de novo através de um megafone.
— SORTEZ AVEC VOS MAINS SUR LA TÊTE!
A ordem ecoou a distância: Saiam com as mãos na cabeça.
— Déjà vu — suspirou Monk. — Perdoem o meu francês.
Rachel ergueu seu rifle.
Seguiu-se uma segunda ordem, em inglês.
— COMANDANTE PIERCE, QUAL É A SUA SITUAÇÃO?
Gray virou-se para os outros.
— Impossível — disse Kat.
— É o diretor Crowe — confirmou Gray, com um choque na voz.
— ESTÁ TUDO EM ORDEM AQUI EMBAIXO! NÓS ESTAMOS SUBINDO!
Gray então virou-se para Rachel, os olhos brilhantes.
— Acabou? — perguntou ela.
Como resposta, ele a puxou de encontro a si e beijou-a. Não houve nenhuma luz misteriosa dessa vez, apenas a força dos braços e a doçura dos lábios dele. Ela afundou-se nele.
Ali estava toda a magia de que ela precisava.
Gray subiu na frente.
Monk ajudou Vigor, carregando-o embaixo de seu braço são. Gray mantinha um braço ao redor de Rachel. Ela inclinou-se pesadamente de encontro a ele, mas ela era uma carga que ele estava feliz em suportar.
Embora aliviado, Gray os manteve armados dessa vez. Ele não ia cair noutra emboscada. Rifles e pistolas na mão, eles começaram a longa subida até a cozinha. Corpos, queimados ou eletrocutados, juncavam as plataformas.
— Por que nós fomos poupados? — perguntou Monk.
— Talvez aquele nível mais baixo tenha nos protegido — disse Kat.
Gray não argumentou com ela, mas suspeitava que fosse algo mais que isso. Ele se lembrou do brilho difuso da luz. Sentiu algo mais que fótons erráticos. Talvez não uma inteligência. Mas algo além da força pura.
— E o que aconteceu com a casa do tesouro? — perguntou Seichan, olhando fixamente para o espaço vazio. — Será que era tudo algum tipo de holograma?
— Não — Gray respondeu enquanto eles subiam. Ele tinha uma teoria. — Sob fortes condições, tubos de fluxo podem ser gerados dentro de um campo de Meissner, afetando não só a gravidade, como a levitação que nós já vimos, mas também distorcendo o espaço. Einstein mostrou que a gravidade na verdade curva o espaço. Os tubos de fluxo criam um vórtice
tal na gravidade que ela dobra o espaço, possivelmente até mesmo dobrando-o em si mesmo, permitindo o movimento através dele.
Gray percebeu os olhares de descrença e insistiu:
— Na NASA já estão sendo feitas pesquisas sobre isto.
— Fumaça e espelhos — resmungou Monk. — Para mim foi isso.
— Mas para onde foi tudo isso? — perguntou Seichan.
Vigor tossiu. Rachel avançou na direção dele. Ele a fez afastar-se com um aceno, estava apenas pigarreando.
— Foi para onde nós não podemos ir — disse ele com a voz rouca. — Nós fomos julgados e considerados deficientes.
Gray percebeu que Rachel ia começar a falar, mencionar a chave falsa.
Ele estreitou-a e acenou com a cabeça na direção do tio dela, instando com ela para que o deixasse falar. Talvez nem tudo estivesse relacionado com a chave falsa. Poderia Vigor estar certo? Será que eles haviam tocado em algo para o qual não estavam preparados?
O monsenhor continuou:
— Os antigos procuravam a fonte de luz primordial, a centelha de toda a existência. Talvez eles tenham encontrado uma porta de acesso a ela ou uma forma de ascender até ela. Afirmou-se que o pão branco dos faraós ajudava esses reis egípcios a despir a carne mortal e a ressuscitar como se fossem feitos de luz. Talvez os antigos alquimistas finalmente tenham conseguido isso, movendo-se deste mundo para o outro.
— Como viajar ao longo do labirinto — disse Kat.
— Exatamente. O labirinto pode ser um símbolo da ascensão deles.
Eles deixaram esta passagem aqui para outros seguirem, mas nós viemos...
— Cedo demais — disse Rachel subitamente, interrompendo-o.
— Ou tarde demais — acrescentou Gray. As palavras haviam acabado de brotar em sua cabeça, como o flash de uma câmera, deixando-o aturdido.
Rachel olhou de relance para ele e ergueu uma das mãos para esfregar a testa.
Ele viu uma confusão semelhante nos olhos dela, como se as palavras também lhe tivessem ocorrido espontaneamente. Ele olhou por cima da borda da plataforma lá embaixo para o piso de vidro estilhaçado e, em seguida, de novo para Rachel.
Talvez Raoul não tivesse sido o único afetado pela luz.
Será que um eco dessa luz ficara dentro deles? Uma compreensão, uma última mensagem?
— Tarde demais... ou cedo demais — prosseguiu Vigor, sacudindo a cabeça, chamando a atenção de Gray. — Para onde quer que os antigos tenham fugido com os seus tesouros — para o passado ou para o futuro — , eles nos deixaram apenas com o presente.
— Para criarmos o nosso próprio céu ou inferno — disse Monk.
Eles continuaram em silêncio, subindo as plataformas. Ao chegarem ao último nível, um grupo de policiais franceses os aguardava, junto com um rosto familiar.
— Comandante — disse Painter. — Que bom ver você!
Gray apertou a mão dele.
— O senhor não faz idéia.
— Vamos todos lá para cima.
Antes que eles pudessem mover-se, Vigor livrou-se do braço de Monk.
— Esperem — disse ele, tropeçando, uma das mãos apoiada na parede.
Gray e Rachel caminhavam atrás dele.
— Tio... — disse ela, preocupada.
A pouca distância havia uma mesa de pedra. Parecia que nem tudo havia desaparecido com a biblioteca. Um livro com encadernação de couro estava sobre a mesa. Todavia, seu estojo de vidro desaparecera.
— O livro-razão — disse Vigor, as lágrimas brotando. — Eles deixaram o livro-razão!
Ele tentou pegá-lo, mas Rachel acenou para que ele se afastasse e o recolheu. Fechou-o e colocou-o sob um braço.
— Por que deixaram isso para trás? — perguntou Monk, ajudando o monsenhor de novo.
Vigor respondeu:
— Para que saibamos o que nos espera. Para nos dar algo que buscar.
— Persuadindo-nos com promessas de recompensa — disse Monk.
— Excelente. Eles poderiam ter deixado uma arca de ouro... okay, ouro talvez não... eu estou farto de ouro. Diamantes, uma arca de diamantes seria legal.
Eles cambalearam em direção à escada.
Gray olhou para trás mais uma vez. Com o espaço vazio, ele notou a forma da caverna, em cujo ponto mais alto se equilibrava uma pirâmide em forma de cone. Ou a parte de cima de uma ampulheta, apontando para baixo, para o piso de vidro.
Mas onde estava a parte de baixo?
Quando olhou fixamente, ele de repente soube.
— Tudo o que está acima é como o que está abaixo — murmurou ele.
Vigor lançou um olhar intenso para ele. Gray viu a compreensão e o conhecimento nos olhos do velho. Ele também já havia imaginado isso.
A chave de ouro destinava-se a abrir uma passagem. Para a parte de baixo da ampulheta. Mas onde? Será que havia uma caverna bem abaixo daquela ali? Gray achava que não. Porém, em algum lugar, a catedral de conhecimento esperava. O que estivera suspenso ali era um mero reflexo de outro lugar.
Como Monk dissera, fumaça e espelhos.
Vigor encarou-o. Gray lembrou-se da missão do cardeal Spera: preservar o segredo dos Reis Magos, confiando em que o conhecimento se revelaria quando chegasse a hora.
Talvez fosse disso que se tratasse a jornada da vida.
A busca.
Procurar a verdade.
Gray pousou uma das mãos no ombro de Vigor.
— Vamos para casa.
Com Rachel sob o seu braço, Gray subiu a escada.
Da escuridão rumo à luz.
Gray pedalou pela Cedar Street abaixo, passando pela Biblioteca de Takoma Park. Fazia bem sentir o golpe do ar e a intensa luz do sol em seu rosto. Parecia que as últimas três semanas haviam sido passadas embaixo da terra, no comando da Sigma, numa reunião após a outra.
Ele acabara de sair da última entrevista sobre a missão com Painter Crowe. A reunião centrara-se em Seichan. A agente da Guilda desaparecera como um fantasma quando eles saíram do Palácio dos Papas, dobrando uma esquina escura e sumindo. Mas Gray encontrara uma lembrança dela em seu bolso.
O pingente com o dragão.
Outra vez.
E, embora o primeiro pingente deixado no Forte Detrick houvesse sido claramente uma ameaça, este último parecia diferente para Gray. Uma promessa. Até eles voltarem a se encontrar.
Kat e Monk também haviam participado da entrevista sobre a missão. Monk ficara sentado mexendo em sua nova e moderníssima prótese, não tão desconfortável com a nova mão quanto estava ansioso pela chegada da noite. Kat e Monk iam ter o seu primeiro encontro de verdade. Os dois haviam-se tornado íntimos após regressarem aos Estados Unidos. E, por estranho que pareça, Kat é que levara as coisas adiante e convidara Monk para jantar naquela noite.
Mais tarde, a sós, Monk puxara Gray para o lado, meio leviano.
— Tem de ser a mão mecânica. Ela vem com um modo de vibração de dois tempos. Que mulher não haveria de querer me namorar?
Apesar da frivolidade, Gray viu afeto e esperança autênticos nos olhos do amigo. E também um pouco de terror. Gray sabia que Monk ainda tinha certo trauma por causa de sua mutilação, certa insegurança.
Gray esperava que Monk lhe telefonasse no dia seguinte e lhe contasse como havia se saído.
Ele deslocou seu peso para um pedal, o joelho para fora, e dobrou suavemente a esquina da Sixth Street. A mãe dele o convidara para almoçar.
E, conquanto pudesse ter recusado, ele estivera adiando algo por muito tempo. Passou lentamente pelas fileiras de casas em estilo vitoriano e de chalés no estilo Queen Anne, na penumbra devido a um dossel de olmos e bordos.
Por fim, dobrou na Butternut Avenue, pulou o meio-fio e freou na entrada de automóvel do bangalô de seus pais em Craftsman. Tirou o capacete e carregou a bicicleta para a varanda.
Gritou através da porta de tela.
— Mamãe, estou em casa!
Encostou a bicicleta no balaústre e abriu a porta.
— Eu estou na cozinha! — disse a mãe dele.
Gray sentiu o cheiro de alguma coisa queimando. Um pouco de fumaça pairava em torno dos caibros do telhado.
— Está tudo bem? — perguntou ele, cruzando o curto corredor.
Sua mãe usava jeans, uma blusa xadrez e um avental apertado ao redor da cintura. Ela havia reduzido seu horário na universidade a meio expediente, duas vezes por semana, a fim de cuidar das coisas em casa.
A cozinha estava cheia de fumaça.
— Eu estava fazendo sanduíches de queijo grelhado — disse ela, agitando as mãos. — Eu recebi um telefonema do meu auxiliar de ensino e os deixei muito tempo na grelha.
Gray olhou para a pilha de sanduíches numa travessa. Cada um deles estava esturricado de um lado. Ele apalpou um deles. O queijo nem sequer derretera. Como é que sua mãe fazia aquilo? Como é que ela queimava os sanduíches e, no entanto, eles continuavam frios? Tinha de ser uma habilidade.
— Eles parecem ótimos — disse Gray.
— Chame o seu pai. — Ela sacudiu o pano de prato, tentando remover a fumaça. — Ele está lá nos fundos.
— Mais casas de pássaros?
A mãe dele virou os olhos.
Gray foi até a porta dos fundos, aberta, e inclinou-se para fora.
— Papai! O almoço está pronto.
— Já vou.
Gray voltou quando sua mãe colocava alguns pratos sobre a mesa.
— Você poderia servir um pouco de suco de laranja? — perguntou ela. — Eu preciso pegar um ventilador.
Gray foi até a geladeira, encontrou a caixa de Minute Maid e começou a encher os copos. Com a mãe ausente, ele deixou a caixa de lado e tirou um pequeno frasco de vidro do bolso traseiro.
Ele estava cheio até a metade com um pó branco-acinzentado. O resto do amálgama.
Com a ajuda de Monk, ele fizera algumas pesquisas sobre os pós no estado m, sobre como os compostos estimulavam sistemas endócrinos e pareciam ter um forte efeito melhorador no cérebro, aumentando a percepção, a acuidade... e a memória.
Gray despejou o conteúdo do frasco num dos copos de suco de laranja e usou uma colher de chá para mexê-lo.
Seu pai entrou pela porta dos fundos. Os cabelos estavam salpicados de pó de serra. Ele limpou as botas no tapete, fez um aceno de cabeça para Gray e jogou-se pesadamente numa cadeira.
— A sua mãe me disse que você vai voltar à Itália.
— Só por cinco dias — respondeu Gray, segurando os três copos entre as palmas das mãos e levando-os para a mesa. — Outra viagem de negócios.
— Claro... — Seu pai olhou para ele. — Então, quem é a garota?
Gray surpreendeu-se com a pergunta e despejou um pouco de suco de laranja. Ele nada dissera ao pai sobre Rachel. Não sabia o que dizer. Após o resgate, os dois haviam passado uma noite juntos em Avignon enquanto as coisas eram colocadas em ordem, enrascados em frente a uma pequena fogueira enquanto a tempestade se exauria. Eles não fizeram amor naquela noite, mas conversaram. Rachel explicara a história de sua família, de uma maneira vacilante, com algumas lágrimas. Ela ainda não podia mensurar seus sentimentos pela avó.
Finalmente, eles adormeceram nos braços um do outro.
De manhã, as circunstâncias e o dever separaram-nos.
Aonde aquilo levaria agora?
Ele estava voltando a Roma para descobrir.
Ele ainda telefonava diariamente, às vezes duas vezes por dia. Vigor estava se recuperando bem. Após o funeral do cardeal Spera, ele fora promovido ao cargo de prefeito dos Arquivos, para supervisionar o reparo dos danos causados pela Corte. Na semana anterior, Gray recebera uma nota de agradecimento de Vigor, mas também descobriu uma mensagem oculta no texto. Abaixo da assinatura do monsenhor, havia dois selos manchados com tinta, insígnias papais, imagens especulares um do outro, os símbolos gêmeos da Igreja de Tomé.
Parecia que a igreja secreta havia encontrado um novo membro para substituir o cardeal morto.
Ao saber disso, Gray remeteu a Vigor a chave de ouro de Alexandre, a verdadeira chave de ouro, que estava num cofre de segurança no Egito. Por cautela. Quem melhor do que ele para protegê-la? A chave falsa, usada para enganar Raoul, havia sido feita numa das muitas lojas em Alexandria conhecidas pela sua habilidade de falsificar antigüidades. Levara menos de uma hora, o trabalho fora executado enquanto Gray libertava Seichan do túmulo subaquático de Alexandre. Ele não ousara levar a verdadeira chave para a França, para a Corte do Dragão.
O depoimento e a confissão do general Rende enquanto estava em custódia provaram como isso teria sido perigoso. A litania de atrocidades e mortes estendia-se a décadas atrás. Com a confissão de Rende, sua seita da Corte do Dragão foi sendo erradicada aos poucos. Mas jamais se saberia se completamente.
Nesse ínterim, Rachel, que havia se tornado mais cara a Gray, continuava a pôr sua vida em ordem. Com a morte de Raoul, ela e sua família herdaram o Castelo Sauvage, uma herança sangrenta na verdade. Mas pelo menos a maldição morrera junto com a avó de Rachel. Nenhum outro membro da família Verona ficara sabendo do sombrio segredo da avó. Para acomodar ainda mais as coisas, já havia planos de vender o castelo. A renda reverteria em favor das famílias das pessoas mortas em Colônia e Milão.
Portanto, as pessoas lentamente se recuperavam e seguiam em frente.
Em direção à esperança.
E talvez mais...
O pai de Gray suspirou e inclinou a cadeira da cozinha para trás.
— Filho, você tem estado muito bem-humorado ultimamente. Desde que regressou daquela viagem de negócios no mês passado. Apenas uma mulher faz um homem brilhar desse jeito.
Gray pôs os copos de suco de laranja sobre a mesa.
— Eu posso estar perdendo a memória — continuou seu pai —, mas não a visão. Portanto, me conte a respeito dela.
Gray olhou fixamente para o pai. Ele ouviu o adendo não dito.
Enquanto eu ainda posso lembrar.
O jeito informal de seu pai ocultava um estado de espírito mais profundo. Não sofrimento ou perda. Ele estava se esforçando por obter algo agora. No presente. Algum vínculo com um filho que talvez houvesse perdido no passado.
Gray congelou junto à mesa. Ele sentiu um antigo arroubo de raiva, um ressentimento mais antigo. Ele não o negou, mas deixou o intenso calor fluir através dele.
O pai dele devia ter percebido alguma coisa, porque pousou a cadeira no chão e mudou de assunto.
— Então, onde estão esses sanduíches?
Palavras ecoaram na cabeça de Gray. Cedo demais... tarde demais. Uma última mensagem para vivermos no presente. Para aceitarmos o passado e não precipitarmos o futuro.
Seu pai estendeu a mão para o copo de suco de laranja misturado com o amálgama.
Gray impediu-o, tampando o copo com a mão e erguendo-o.
— Que tal uma cerveja? Eu acho que vi uma Bud na geladeira.
Seu pai concordou com um aceno de cabeça.
— É por isso que eu amo você, filho.
Gray foi até a pia, despejou o suco de laranja no ralo e observou-o escoar num redemoinho.
Cedo demais... tarde demais.
Era hora de ele viver no presente. Ele não sabia quanto tempo ainda tinha com o pai, mas aproveitaria o que pudesse aproveitar e faria o melhor possível.
Ele encaminhou-se à geladeira, pegou duas garrafas de cerveja, abriu as tampas ao voltar, puxou uma das cadeiras da cozinha, sentou-se e pôs uma garrafa em frente ao pai.
— O nome dela é Rachel.
James Rollins
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