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Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MARIDO / Dean Koontz
O MARIDO / Dean Koontz

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblio VT

 

 

 

 

A gente começa a morrer do momento em que nasce. A maioria das pessoas vivem negando o paciente cortejo da morte, até que, quando já é tarde em a vida e estão sumidas na decadência ou a enfermidade, tomam consciência de que a têm sentada a sua cabeceira. Em seu momento, Mitchell Rafferty chegaria a ser capaz de recordar o minuto em que começou a reconhecer que sua morte era inevitável. Foi na terça-feira 14 de maio a as onze e quarenta e três da manhã, quando faltavam três semanas para seu vigésimo oitavo aniversário. Até então, estranha vez tinha pensado em que tinha que morrer. Como era um otimista nato, ao que adorava a beleza da natureza e lhe divertia a humanidade, não tinha motivo algum para perguntar-se quando e como ficaria demonstrada sua condição de mortal. Ao chegar a chamada, estava de joelhos. Ainda ficavam por plantar três bandejas de alegrias vermelhas e moradas. As flores não tinham fragrância, mas o aroma fértil da terra lhe agradava. A seus clientes, em particular aos donos daquela casa, gostavam das cores saturadas e vivos, preferiam o vermelho, o arroxeado, o amarelo forte, o rosa intenso. Não aceitavam flores de tons bolo, nem brancas. Mitch os entendia. Depois de criar-se na pobreza, tinham forjado um negócio possante à força de trabalhar duro e de arriscá-lo seu. Para eles, a vida era intensa, e as cores saturadas refletiam a verdade da veemência da natureza. Nessa manhã, ao parecer ordinária, mas, de fato, importante, o sol californiano era como uma bola bojuda. O céu tinha uma textura oleosa.

 

 

 

 

 

 

Embora o dia era agradavelmente quente, mais que sufocante, provocava uma sudoración pegajosa no Ignatius Barnes. Sua frente brilhava. O queixo lhe jorrava. Trabalhando sobre o mesmo canteiro, a três metros do Mitch, Iggy estava vermelho como um caranguejo. De maio a junho, sua pele não respondia ao sol com melanina, a não ser com um rubor ígneo. Durante uma sexta parte do ano, antes de que, por fim, bronzeasse-se, parecia perpetuamente morto de calor. Iggy não compreendia a simetria e a harmonia no desenho paisagístico, e não se podia confiar em que podasse as rosas como é devido. Entretanto, por mais que não resultasse estimulante no terreno intelectual, trabalhava duro e era um bom companheiro. -Ouviu o que ocorreu ao Ralph Ghandi? -perguntou Iggy. -Quem é Ralph Ghandi? -O irmão do Mickey. -Mickey Ghandi? Tampouco o conheço ele. -Claro que o conhece -disse Iggy-. Mickey, que às vezes anda pelo Rolling Thunder. O Rolling Thunder era um bar de surferos. -Faz anos que não vou por ali. -Anos? Fala-me a sério? -Muito a sério. -Acreditava que ainda foi de quando em quando. -Já vejo que me sentem falta de, né? -Acredito que te equivoca, ninguém lhe pôs seu nome a nenhum dos assentos da barra. O que aconteceu? Encontrou um lugar melhor que o Rolling Thunder? -Lembra-te de minhas bodas, faz três anos? -Claro. Os tacos de pescado eram muito bons, mas a banda de música dava pena. -Não dava pena. -Vamos, por favor, se tocavam panderetas. -É que estávamos curtos de pressuposto. Ao menos, não levavam acordeão. -Porque não tinham a suficiente habilidade para tocar o acordeão. Era muito para eles. Mitch cavou um fossa na terra solta. -Tampouco é que tocassem campainhas. Enxugando-a frente com o antebraço, Iggy se queixou. -Devo ter gens esquimós. Assim que a temperatura sobe de dez graus ponho-se a suar. -Já não vou de bares como antes. Estou casado. -Sim, mas não pode estar casado e ir ao Rolling Thunder? -Prefiro minha casa a qualquer outro lugar. -Caramba, chefe, isso é triste. -Não é triste. É o melhor. -Por muito que encerre a um leão no zoológico durante anos, nunca esquecerá como era a liberdade. Plantando alegrias moradas, Mitch refletiu um momento. -E como sabe? O perguntou a um leão? -Não preciso fazê-lo. Eu sou um leão. -É um surfero perdido, não uma fera. -E me orgulho disso. Me alegro de que tenha encontrado ao Holly. É uma grande mulher. Mas eu tenho minha liberdade. -Melhor para ti, Iggy. E o que faz com ela? -Com quem? -Com sua liberdade O que faz com sua liberdade? -O que me dá a vontade. -Por exemplo, o que? -Algo. Por exemplo, se quiser pizza com chouriço para o jantar, não tenho que lhe perguntar a nenhuma mulher se isso for o que ela quer. -Impressionante. -Se quero ir beber umas cervejas ao Rolling Thunders, ninguém me arreganha. -Isso sim que é incrível. -Se quiser, posso beber cerveja até ficar inconsciente cada noite, sem que ninguém me chame para perguntar quando volta a casa. Mitch ficou a assobiar Nasci livre. -Se alguma garota me aproxima -disse Iggy-, sou livre de me pôr em ação. -Assim que essas garotas sexis lhe aproximam continuamente? -Hoje em dia as mulheres são ousadas, chefe. Quando vêem algo que lhes agrada, vão e tomam. -Iggy, a última vez que lhe encamaste com uma foi quando John Kerry ainda acreditava que seria presidente. -Isso não aconteceu faz tanto. -E o que foi o que ocorreu ao Ralph? -Que Ralph? -O irmão do Mickey Ghandi. -Ah, sim. Uma iguana lhe arrancou o nariz de uma dentada. -Que feio assunto. -Havia ondas de três metros de alto, assim Ralph e alguns outros foram à Cunha a fazer surfe noturno. A Cunha era um famoso lugar idôneo para surfear situado no extremo da península Balboa, na praia do Newport. -Levaram geladeiras cheias de sanduíches e de cerveja -disse Iggy-, e a gente levou ao Ming. -Ming? -A iguana. -Assim era um mascote? -Ming sempre tinha sido dócil, inclusive doce, até então. -Eu pensava que as iguanas tinham mau caráter. -Não, são afetuosas. O que ocorreu é que um idiota, que nem sequer era surfero, a não ser um desses aspirantes a surferos que sempre andam detrás dos autênticos, deu ao Ming um quarto de dose de metaanfetamina em uma parte de salami. -Répteis e anfetas -disse Mitch- é uma má mescla. -Coloque Ming se converteu em um animal completamente diferente do Ming limpo e sóbrio -confirmou Iggy. Mitch deixou a pá e ficou em cuclillas sobre os talões. -De modo que agora Ralph Ghandi não tem nariz? -Ming, em realidade, não lhe comeu o nariz. Só a arrancou e depois a cuspiu. -Talvez não goste da comida a Índia. -Tinham uma geladeira grande cheia de água geada e de cerveja. Colocaram o nariz ali e foram ao hospital a toda pressa. -Também levaram ao Ralph? -Claro que o levaram. Era seu nariz. -Bom, pôde ter querido ficar -disse Mitch-. Estamos falando de um fanático do surfe. -Dizem que, quando a tiraram da água geada, o nariz estava como azul, mas um cirurgião plástico a costurou, e agora já não está azul. -O que ocorreu ao Ming? -Aterrissou depois de passar um dia inteiro voando, colocada. tornou a ser como antes. -Isso está bem. Dar com uma clínica que se ocupe de reabilitar iguanas deve ser difícil. Mitch ficou de pé, recolheu três dúzias de vasos de barro de plástico vazias e as levou a sua caminhonete, um veículo com um compartimento amplo. A caminhonete estava estacionada frente ao meio-fio, à sombra dos louros de Índias. Embora o bairro tinha sido construído fazia só cinco anos, a grande árvore já tinha conseguido levantar a calçada. Com o tempo, suas persistentes raízes bloqueariam os deságües dos jardins e invadiriam as bocas-de-lobo, provavelmente todo o sistema de saneamento de ao redor. A decisão do construtor de economizar-se cem dólares por não instalar uma barreira de contenção contra raízes produziria dezenas de milhares de dólares de benefícios para encanadores, paisagistas e pedreiros, que logo se veriam chamados a fazer tarefas de reparação e manutenção. Quando Mitch plantava um louro de Índias, sempre punha uma barreira contra raízes. Não precisava garantir-se trabalhos para o futuro. O crescimento da verde natureza bastava para mantê-lo atarefado. A rua estava silenciosa; não havia tráfico. Nem o mais pequeno hálito de brisa agitava as árvores. A certa distância, no extremo mais longínquo da rua, um homem e um cão pareciam aproximar-se para eles. O animal, um lavrador, dedicava-lhe menos tempo a caminhar que a farejar as mensagens deixadas aqui e lá por seus congêneres. O silêncio se fez tão fundo que ao Mitch quase pareceu que podia ouvir o ofego do longínquo cão. Todo lhe figurava dourado, o sol e o cão, o ar e a promessa do dia, as belas casas e seus amplos jardins. Mitch Rafferty não podia permitir comprar uma casa nesta vizinhança, mas lhe bastava podendo trabalhar ali. Além disso, que a um goste das obras de arte não significa que queira viver em um museu. Notou que no ponto onde se uniam a rua e o jardim havia uma boca de rega avariada. Agarrou suas ferramentas da caminhonete e se inclinou sobre a erva, abandonando as flores no momento. de repente soou seu telefone móvel. O tirou do cinturão e o abriu. Na tela se via a hora, as onze e quarenta e três, mas não o número de quem chamava, que ao parecer usava a opção "identidade oculta" . De todas maneiras, atendeu a chamada. -Big Green -disse. Era o nome que lhe tinha dado fazia nove anos a sua pequena empresa de dois únicos empregados, embora já não recordava por que. -Mitch, amo-te -disse Holly. -Olá, carinho. -Ocorra o que ocorra, amo-te. Gritou de dor. Um longínquo estrépito e um golpe sugeriram que onde se achasse havia luta. Alarmado, Mitch ficou de pé. -Holly? Um homem disse algo, um homem que agora tinha o telefone. Mitch não ouviu as palavras, pois só emprestava atenção ao ruído de fundo. Holly chiou. Nunca a tinha ouvido emitir um som como esse, tão cheio de medo. -Filho de puta -disse, antes de que um forte estalo, que soou como uma bofetada, fizesse-a calar. O desconhecido do telefone voltou a falar. -Ouve-me, Rafferty? -Holly? Onde está Holly? Agora, o tipo não lhe falava com telefone. -Não seja estúpida. Fica no chão. Ouviu falar com outro homem, ao fundo, embora não entendeu o que dizia. Ao que tinha o telefone sim lhe escutava claramente. -Se se levantar, lhe dê um murro Quer perder uns dentes, carinho? Ela estava com dois homens. Um deles a tinha golpeado. Golpeado! A mente do Mitch não conseguia fazer-se carrego da situação. de repente, a realidade parecia tão inasible como o argumento de um pesadelo. Uma iguana enlouquecida pela metaanfetamina era mais real que o que escutava. Perto da casa, Iggy plantava alegrias. Suarento, avermelhado pelo sol, tão sólido como de costume. -Assim está melhor, carinho. Boa garota. Mitch não podia respirar. Um grande peso lhe oprimia os pulmões. Tratou de falar, mas não lhe saía a voz, nem sabia o que dizer. Ali, à clara luz do sol, sentia-se encerrado, sepultado em vida. -Temos a sua esposa -disse o tipo do telefone. Mitch perguntou, quase como um autômato: -por que? -Você o que crie, imbecil? Mitch não acreditava nada. Não queria saber nada. Não queria raciocinar para chegar a uma resposta, porque toda resposta possível seria um passo mais para o horror. -Estou plantando flores. -O que te passa, Rafferty? -Isso é o que faço. Planto flores. Reparo aspersores. -Está drogado ou o que? -Só sou um jardineiro. -Temos a sua mulher. nos dê dois milhões em efetivo e lhe devolvemos isso. Mitch sabia que não se tratava de uma brincadeira. Se o fora, Holly teria que ser parte dela, mas seu senso de humor não era cruel, nunca se emprestaria a um jogo assim. -Cometem um engano. -Ouviu o que te disse? Dois milhões. -Tio, você não me ouviu . Sou um jardineiro. -Sabemos. -Tenho uns onze mil dólares no banco. -Sabemos. Mitch, paralisado pelo medo e a confusão, nem sequer era capaz de sentir ira. sentiu-se obrigado a esclarecer ainda mais as coisas, possivelmente mais para si que para seu interlocutor. -A minha é uma empresa pequena, de duas pessoas. -Tem até a meia-noite da quarta-feira. Sessenta horas. Poremo-nos em contato contigo para te dar os detalhes. Mitch suava. -Isto é uma loucura. De onde tiraria eu dois milhões? -Encontrará a maneira. A voz do desconhecido era dura, implacável. Em um filme, a morte falaria assim. -Não é possível -disse Mitch. -Quer ouvi-la gritar outra vez? -Não. Não o faça. -A amas? -Sim. -A amas de verdade? -Ela o é tudo para mim. Era incrível suar daquela maneira quando sentia tão frio. -Se o for tudo para ti -disse o desconhecido-, encontrará a maneira de conseguir o dinheiro. -É que não há nenhuma maneira. -Se for à polícia, cortaremo-lhe os dedos um a um e iremos cauterizando as feridas. Depois lhe arrancaremos a língua. E os olhos. Finalmente, abandonaremo-la para que se mora tão depressa ou tão devagar como o destino queira. O tom do desconhecido não era de advertência, mas sim de convicção fanática, como se em lugar de lhe ameaçá-lo estivesse explicando os detalhes de uma proposta de negócio. Mitchell Rafferty não tinha experiência alguma no trato com homens desse tipo. O mesmo poderia ter estado falando com um visitante do extremo mais longínquo da galáxia. Não podia falar, porque de repente lhe pareceu que, sem querer o, facilmente podia dizer algo indevido, precipitando a morte do Holly em lugar de ajudá-la. -Só para que saiba -disse o seqüestrador- que falamos a sério. Depois de um silêncio, Mitch perguntou. -O que? -Vê o tipo que há ao outro lado da rua? Mitch se voltou e viu um único pedestre, o homem que passeava ao cão calmoso. No tempo transcorrido desde que lhe tinha cuidadoso a primeira vez tinham avançado meia maçã. O dia ensolarado tinha um brilho de porcelana. O disparo de um fuzil quebrou o silêncio, e o que passeava ao cão caiu, com um tiro na cabeça. -na quarta-feira a meia-noite -disse o homem do telefone-. Falamos muito a sério.

 

O cão se deteve como se o tivessem ordenado. ficou com uma pata dianteira levantada, o rabo estendido, mas imóvel, o focinho elevado, em busca de um rastro. O certo era que o vira-lata dourado não tinha detectado à pessoa que tinha disparado. ficou paralisado, surpreso pelo desabamento de seu amo, imobilizado pela confusão. Ao outro lado da rua, frente ao cão, Mitch também estava paralisado. O seqüestrador cortou a comunicação, mas Mitch ainda tinha o telefone móvel apertado contra o ouvido. Um sentimento irracional lhe dizia que enquanto a rua continuasse em silêncio, enquanto nem ele nem o cão se movessem, a violência poderia desvanecer-se, o tempo rebobinado, a bala devolvida ao canhão da arma. A razão se sobrepôs ao pensamento mágico. Cruzou a rua, vacilando primeiro, correndo depois. Se o cansado ainda vivia, talvez se pudesse fazer algo por ele. Quando Mitch se aproximou, o cão lhe dedicou um único meneio de rabo. Uma olhada à vítima dissipou toda esperança de que os primeiros auxílios pudessem mantê-lo com vida até que chegassem os paramédicos. Faltava-lhe uma parte considerável do crânio. Como Mitch nunca se tropeçou com a violência real, a não ser só com a variedade editada-analizada-excusada-neutralizada que se vê nas notícias da televisão e com a violência de ficção dos filmes, sentiu-se impotente ante semelhante horror. Mais que comoção, o que o invadiu foi uma repentina consciência de dimensões que até então não tinha experiente. Nesse momento era como um rato que vivesse em um labirinto selado e que, ao elevar pela primeira vez a vista dos familiares corredores, descobrisse um mundo novo ao outro lado do vidro, com formas, figuras e movimentos misteriosos. Jogado na calçada junto a seu amo, o lavrador de cor canela tremia e choramingava. Mitch notou que não só o cão o acompanhava. sentia-se observado, e algo mais que isso. Estudado. Acossado. Açoitado. Seu coração era como uma manada em plena correria, um trovejar de pezuñas sobre a pedra. Olhou a seu redor, mas não viu nenhum atirador. O fuzil podia ter sido disparado desde qualquer casa, qualquer terraço ou janela, ou desde qualquer carro estacionado. Em todo caso, a presença que notava não era a de quem tinha disparado. Não se sentia observado a distância, a não ser de um lugar de vigilância íntimo. Como se alguém estivesse parado junto a ele. Logo que tinha passado meio minuto desde que mataram ao homem que passeava ao cão. A detonação do fuzil não tinha feito que ninguém saísse das formosas casas. Em uma vizinhança semelhante, rico e tranqüilo, onde nunca passava nada, o disparo de uma arma podia confundir-se com o som de uma porta que se golpeia, e é esquecido enquanto ainda ressona. Ao outro lado da rua, na casa do cliente, Iggy Barnes, que estava ajoelhado, pôs-se de pé. Não parecia alarmado, a não ser só desconcertado, como se também ele tivesse ouvido uma porta e não entendesse o que significavam o homem cansado e o cão aflito. A meia-noite da quarta-feira. Sessenta horas. Sessenta horas. O tempo se incendiava, os minutos ardiam, consumiam-se a toda pressa. Mitch não podia permitir o luxo de ver-se enredado em uma investigação policial que fizesse que as horas se voltassem cinza. Na calçada, uma coluna de formigas trocou o rumo, dirigindo-se ao banquete que oferecia a cratera aberta no crânio do cansado. O céu estava quase totalmente espaçoso, mas uma nuvem extraviada cruzou frente ao sol. O dia empalideceu. As sombras se desvaneceram. Gelado, Mitch lhe voltou as costas ao cadáver, desceu do meio-fio e se deteve. Não era possível que fizessem como que não tinha passado nada, que Iggy e ele simplesmente carregassem na caminhonete as alegrias que ficavam sem plantar e partissem. Talvez alguém passasse e visse o morto antes de que o fizessem. Sua indiferença para a vítima e sua fuga os fariam parecer culpados para o transeunte mais distraído, e, certamente, para a polícia. Mitch ainda tinha na mão seu telefone móvel, fechado. Olhou-o com apreensão. "Se for à polícia, cortaremo-lhe os dedos um a um...". Os seqüestradores suporiam que chamaria as autoridades, ou que aguardaria a que alguém avisasse. Mas o que estava proibido era que fizesse menção alguma do Holly, e do seqüestro, e do fato de que quem passeava ao cão tinha sido assassinado a modo de exemplo para advertir ao Mitch. De fato, podia ser que seus desconhecidos adversários o tivessem colocado nessa situação com o verdadeiro propósito de pôr a prova sua capacidade de manter fechada a boca em momentos em que sua estado de comoção era tal que bem podia perder o domínio de si mesmo. Abriu o telefone. A tela se iluminou com a imagem de peixes de cores nadando em uma água escura. Depois de pulsar o nove e o um, Mitch titubeou, mas finalmente marcou o dígito que faltava, outro um. Enquanto isso, deixando cair sua pá, Iggy se moveu para a rua. Quando, ao segundo timbrazo, o empregado da delegacia de polícia respondeu à chamada, Mitch caiu na conta de que, do momento em que visse a cabeça destroçada do cadáver, sua respiração se tornou desesperada, irregular, agitada. Durante um momento, não lhe saíram as palavras. Instantes depois brotaram, em forma de uma voz áspera que logo que reconheceu como dela. -Dispararam a um homem. Estou morto. Digo, está morto. Dispararam-lhe e está morto.

 

A polícia tinha fechado ambos os extremos da rua. Carros patrulha, caminhonetes da unidade de polícia científica e uma ambulância forense estavam estacionados ao longo da rua, com o descuido próprio daqueles a quem não lhes aplica as normas de estacionamento. Sob o olhar fixo do sol, os pára-brisa reluziam e os adornos das carrocerias cintilavam. Não havia já nuvem alguma que velasse ao astro rei, e a luz era implacável. Os policiais levavam óculos de sol. Olhavam ao Mitchell Rafferty desde detrás de seus cristais escuros com um ar misterioso, que tanto podia implicar suspicacia como indiferença. Frente à casa de seu cliente, Mitchell estava sentado na grama, com as costas contra o tronco de uma palmeira datilera. de vez em quando ouvia ratos que se deslizavam entre as enormes folhas da árvore. Gostavam de aninhar no alto dessas palmeiras, na parte baixa da taça. As sombras alargadas, espetaculares, das palmeiras não o ajudavam a passar desapercebido. Mas bem se sentia como em um cenário. Tinham-no interrogado duas vezes nas últimas duas horas. Dois detetives de patrício o tinham entrevistado a primeira vez, só um a segunda. Parecia-lhe que se desenvolvido bem. Mas ainda não lhe haviam dito que podia partir. até agora, ao Iggy só o tinham interrogado uma vez. Ele não tinha uma esposa em perigo, nem nada que ocultar. Além disso, Iggy tinha menos talento para o engano que a maior parte dos meninos de seis anos, o qual, sem dúvida, teria sido evidente em seguida para aqueles peritos interrogadores. Talvez o fato de que os policiais se interessassem mais pelo Mitch fora um mau sinal. Ou possivelmente não significasse nada. Iggy tinha retornado ao canteiro fazia mais de uma hora, e seguia ao seu. Já quase tinha terminado de plantar as flores. Mitch tivesse preferido lhe imitar, manter-se atarefado, plantando. A inatividade lhe produzia uma aguda consciência do passado do tempo. Já tinham acontecido dois de suas sessenta horas. Os detetives sugeriram com firmeza que Iggy e Mitch deviam permanecer separados, pois, se falavam entre si do crime, por mais que o fizessem com toda inocência, podiam influir o um ao outro, levando-os a confusão em relação ao que tinham visto, o que talvez fizesse que se perdesse algum detalhe importante de seus respectivos testemunhos. Possivelmente fosse certo, ou talvez se tratasse de uma estratégia. O motivo para mantê-los separados podia ser mais sinistro. Talvez desejavam isolar ao Mitch para assegurar-se de que não se sentisse tranqüilo. Nenhum dos policiais que lhe fizeram perguntas levava nesse momento óculos de sol, mas ao Mitch tinha resultado impossível ler nada em seus olhos. Sentado sob a palmeira, fez três chamadas telefônicas, a primeira ao número de sua casa. Respondeu-lhe uma secretária eletrônica. Depois do assobio habitual, falou. -Holly, está aí? Os seqüestradores não se arriscariam a tê-la em seu próprio lar. Mesmo assim, Mitch insistiu. -Se estiver, ponha ao aparelho, por favor. negava-se a si mesmo o que ocorria, porque era uma situação que não tinha sentido. Os seqüestradores não acostumam a escolher às esposas de homens que têm que preocupar-se com o preço dos mantimentos e da gasolina. "-Tio, não me escutou. Sou um jardineiro. "-Sabemos. "-Tenho uns onze mil dólares no banco. "-Sabemos". Deviam estar loucos. Deliravam. Seu plano estava apoiado em alguma demencial fantasia, impossível de entender para uma pessoa racional. Ou tinham um plano que ainda não lhe tinham revelado. Talvez quisessem que assaltasse um banco para eles. Recordou uma notícia divulgada um par de anos antes, sobre um homem inocente que, com um colar de explosivos ao pescoço, assaltou um banco. Quem lhe tinha posto o colar procuravam empregá-lo como a um robô controlado a distância. Quando a polícia abandonou ao pobre desgraçado, detonaram a bomba a distância, arrebentando-o, decapitando-o, para que não pudesse delatá-los nem atestar contra eles. Mas havia um problema. Nenhum banco tem dois milhões em efetivo à mão, nas caixas normais ou nas caixas; provavelmente, nem sequer na câmara couraçada. Depois de não receber resposta no telefone de sua casa, provou com o móvel do Holly, igualmente sem resultado. Também telefonou à agência imobiliária em que trabalhava como secretária, enquanto estudava para obter uma licença de agente de bens raízes. Nancy Farasand, outra secretária, ficou ao telefone. -Chamou para dizer que estava doente e não podia vir, Mitch. Não sabia? -Quando me parti esta manhã não se sentia de tudo bem -mentiu-, mas supus que lhe passaria. -Não lhe passou. Disse que era um resfriado estival. Parecia muito molesta pelo contratempo. -Telefonarei a casa, então. Tinha falado com o Nancy fazia já mais de noventa minutos, entre suas duas conversações com os detetives. O mole de alguns relógios se vai afrouxando com o correr do tempo; mas Mitch se esticava cada vez mais com o passo dos minutos. Sentia como se algo estivesse a ponto de saltar no interior de sua cabeça. Um enorme besouro lhe aproximava de vez em quando, revoando, rondando, atraído possivelmente pela intensa cor amarela de sua camiseta. Ao outro lado da rua, perto da esquina, duas mulheres e um homem tinham saído ao jardim dianteiro de uma casa e olhavam à polícia. Eram vizinhos, reunidos para ver o espetáculo. Permaneciam ali desde que as sereias chamaram sua atenção. Um deles entrou em uma casa e ao cabo de um momento retornou com uma bandeja com copos cheios de um líquido que parecia chá gelado. Antes, a polícia tinha interrogado a esse trio. Só o fizeram uma vez. Agora, os três sorviam seu chá e conversavam, como se não lhes preocupasse especialmente que um franco-atirador tivesse abatido a alguém que caminhava por seu bairro. Pareciam desfrutar de do fato novidadeiro, como se se tratasse de uma bem-vinda interrupção de sua rotina habitual, mesmo que o preço desta tivesse sido uma vida. Ao Mitch parecia que os vizinhos o olhavam mais a ele que a nenhum policial ou técnico forense. perguntou-se se os detetives lhes teriam perguntado sobre ele e, de ser assim, o que quereriam saber. Nenhum dos três usava os serviços do Big Green. Entretanto, sem dúvida lhe conheceriam de vista, pois ele se ocupava de quatro dos imóveis dessa rua. Aqueles bebedores de chá lhe caíam mau. Não os conhecia nem sabia como se chamavam, mas os contemplava com uma aversão que chegava quase ao rancor. Não lhe desagradavam pela perversa maneira em que pareciam divertir-se, nem pelo que pudessem haver dito dele à polícia. Os três lhe desagradavam, e inclusive poderia ter chegado a detestá-los, porque suas vidas ainda estavam em ordem, porque não viviam sob a ameaça de que alguém que amavam fora a ser vítima de violências indescritíveis de um momento a outro. Embora sua animosidade era irracional, servia-lhe de algo, aliviava-lhe. Distraía-o de seu temor pelo destino do Holly. Também o mantinha cordato seu contínuo, obsessivo análise das ações dos detetives. Se se atrevesse a entregar de tudo à preocupação por sua esposa, perderia a razão. Não se tratava de um exagero. surpreendeu-se pelo frágil que se sentia, mais vulnerável que nunca em sua vida. Cada vez que o rosto dela aparecia em sua mente, via-se obrigado a apartá-lo, porque lhe ardiam os olhos e lhe nublava a vista. Seu coração adotou um ritmo forte que não pressagiava nada bom. Uma reação emotiva tão desproporcionada, exagerada inclusive para quem viu como pegavam um tiro a um homem, tivesse sido motivo de explicações em caso de ser detectada pelos policiais. Não se atrevia a revelar a verdade e não confiava em poder inventar uma história que convencesse aos detetives. Um dos agentes de homicídios, Mortonson, levava sapatos caros, calças negras e uma camisa azul claro. Era alto, forte e muito sério. O outro, o tenente Taggart, levava sapatos esportivos brancos, calças ligeiras e uma camisa hawaiana de cores vermelha e castanha. Tinha um aspecto menos intimidatorio que Mortonson, e seu estilo era menos formal. Taggart inspirava ao Mitch muito mais receio e preocupação que o imponente Mortonson. O cabelo bem recortado do tenente, seu barbeado perfeito, sua dentadura impecável, suas imaculadas sapatilhas, sugeriam que nele tudo estava estudado, que adotava um traje informal e uma atitude relaxada para contribuir a que os suspeitos que tivessem a desgraça de cair sob seu escrutínio se confiassem. Primeiro, os dois entrevistaram ao Mitch juntos. Depois, Taggart retornou sozinho, supostamente para que Mitch "afinasse" alguma resposta que tinha dado antes. De feito, o tenente repetiu cada uma das perguntas que ele e Mortonson lhe fizessem antes, talvez esperando que em suas respostas aparecessem contradições com o que dissesse a primeira vez. Na aparência, Mitch só era uma testemunha. Entretanto, para um policial, quando não se identificou ao assassino, cada testemunha também é um suspeito. Não tinha motivo para matar a um desconhecido que passeava seu cão. Se, de todos os modos, estavam o suficientemente loucos para acreditar que era assim, teriam que pensar que Iggy era seu cúmplice. E estava claro que Iggy não lhes interessava. O mais provável era que, embora sabiam que não tinha tido nada que ver com o disparo, seu instinto lhes estivesse dizendo que lhes ocultava algo. E ali retornava Taggart, com seu reluzente traje. Quando o tenente lhe aproximou, Mitch ficou de pé, receoso e doente de preocupação, mas procurando parecer só fatigado e impaciente.

 

O detetive Taggart luzia um bronzeado peixeiro que fazia jogo com sua camisa hawaiana. Em contraste com seu rosto bronzeado, seus dentes apareciam tão brancos como uma paisagem ártica. -Lamento seguir incomodando-o, senhor Rafferty. Mas tenho que lhe fazer um par de perguntas antes de lhe permitir partir. Mitch poderia lhe haver respondido com um encolhimento de ombros ou uma inclinação de cabeça. Mas pensou que seu silêncio possivelmente parecesse estranho, que um homem sem nada que ocultar se mostraria comunicativo. Depois de uma desgraçada pausa, o suficientemente prolongada para sugerir que estava calculando algo, falou. -Não me queixo, tenente. O morto bem poderia ter sido eu. Tenho sorte de estar com vida. O detetive pugnou por manter uma atitude despreocupada, mas seus olhos pareciam os de um ave de presa, agudos como os de um falcão, inquisitivos como os de uma águia. -por que diz isso? -Bom, se foi um tiro feito ao azar... -Não sabemos se foi -disse Taggart-. De fato, a evidência sugere que se tratou de algo fríamente calculado. Um só tiro, perfeitamente certeiro. -Um louco com uma arma não pode ser um atirador perito? -claro que sim. Mas, pelo general, os loucos querem matar a maior quantidade de gente que lhes seja possível. Um psicopata com um fuzil lhe teria disparado a você também. Este sabia exatamente a quem disparar. Irracionalmente, Mitch se sentia um pouco responsável por essa morte. O assassinato tinha sido cometido para assegurar-se de que tomasse a sério ao seqüestrador e não procurasse ajuda da polícia. Talvez o detetive tinha detectado algum rastro dessa sensação de culpa, absurda mas persistente. Olhando para o cadáver que estava ao outro lado da rua, em torno do qual uma equipe forense seguia trabalhando, Mitch se interessou pelo morto. -Quem era a vítima? -Ainda não sabemos. Não levava identificação. Nem carteira. Não lhe parece estranho? -Não faz falta carteira para sair a passear ao cão. -É um hábito que tem a gente -disse Taggart-. Inclusive quando sai a lavar o carro frente a sua própria casa, todo mundo leva carteira. -Como o identificarão? -Não há licencia no colar do cão. Mas esse lavrador dourado é quase de exposição, assim possivelmente tenha um microchip implantado. Assim que nos tragam um exploratório o averiguaremos. O lavrador cor canela, que tinha sido levado a um lado da rua e maço a uma rolha, repousava à sombra, onde, com ar digno, recebia a atenção de uma contínua procissão de admiradores. Taggart sorriu. -Os canela são os melhores. De menino tive um. Adorava a esse cão. Voltou a centrar sua atenção no Mitch. Seguia sonriendo, mas de outra maneira. -A respeito dessas perguntas... Esteve você nas forças armadas, senhor Rafferty? -Forças armadas? Não. De jovem cortava a grama por conta de outra empresa, fiz um curso de jardinagem e, ao ano de terminar a escola secundária, pus em parte meu próprio negócio. -Acreditei que talvez fosse você um ex-militar, pela forma em que reagiu ante o disparo. Não o assustou. -OH, sim que me assustou. O olhar direto do Taggart era deliberadamente intimidatoria. Mitch tinha agora a sensação de que seus próprios olhos eram lentes transparentes através das quais seus pensamentos se voltavam visíveis, como os micróbios sob o microscópio. Sentia desejos de evitar o olhar do detetive, mas não se atrevia a fazê-lo. -você ouça o disparo de um fuzil -disse Taggart-, vê que um homem resulta ferido, e assim e todo se apressa a cruzar a rua, ficando na linha de fogo. -Não sabia que estava morto. Pensei que talvez podia fazer algo por ele. -Isso é admirável. A maior parte da gente tentaria ficar a coberto. -Já, mas não sou um herói. O que ocorreu foi, simplesmente, que meu instinto pôde mais que meu sentido comum. -Talvez um herói seja isso. Alguém que faz o correto de forma instintiva. Mitch se atreveu ao fim a deixar de olhar aos olhos do Taggart, esperando que, neste contexto, sua evasão fosse interpretada como humildade. -Fui estúpido, tenente, não valoroso. Não me parei a pensar que podia correr perigo. -Então, acreditou você que possivelmente lhe tivessem disparado por acidente? -Não. Talvez. Não sei. Não pensei nada. Não pensei, só reagi. -E realmente não sentiu que estivesse em perigo? -Não. -Nem sequer quando viu a ferida na cabeça do morto? -Talvez um pouco. O que mais senti, de todas formas, foi repulsão. As perguntas se aconteciam com muita rapidez. Mitch sentiu que perdia o equilíbrio. Talvez revelasse involuntariamente que sabia por que tinham matado ao que passeava ao cão. O besouro retornou com o inconfundível zumbido de suas asas. Não lhe interessou Taggart, mas sim revoou em torno do rosto do Mitch, como se fosse um agente de polícia e o jardineiro seu suspeito número um. -Viu que estava ferido na cabeça, mas, assim e tudo, não procurou ficar a coberto. -Assim é. -E por que? -Suponho que terei pensado que se ninguém me tinha disparado ainda, já não o fariam. -De modo que não se sentia em perigo. -Não. Abrindo seu pequeno caderno de notas de lombo anelídeo, Taggart seguiu interrogando. -Disse-lhe ao operador do 911 que você estava morto. Surpreso, Mitch voltou a olhar ao detetive aos olhos. -Que eu mesmo estava morto? Taggart leu do anotador: "Dispararam a um homem. Estou morto. Digo, está morto. Dispararam-lhe e está morto". -Isso pinjente? -Ouvi a gravação. Você estava sem fôlego. Parecia completamente aterrorizado. Mitch tinha esquecido que as chamadas o 911 ficam gravadas. -Suponho que em realidade terei tido mais medo do que lembrança. -É evidente que sim se deu você conta de que corria perigo, mas mesmo assim, não ficou a coberto. Tanto se Taggart podia ler algo dos pensamentos do Mitch como se não, as páginas de sua própria mente se mantinham fechadas. Seus olhos eram de um azul quente, mas enigmático. -"Estou morto" -voltou a ler o detetive. -Uma confusão. Na agitação, seria coisa do pânico. Taggart voltou a olhar ao cão, e sorriu de novo. Com voz mais amável que a que vinha usando até o momento disse: -Deveria lhe haver perguntado alguma outra coisa? Há algo mais que queira dizer? Mitch ouviu o grito de dor do Holly retumbando em sua cabeça. Os seqüestradores sempre ameaçam matando a suas vítimas se se for à polícia. Para ganhar, não terá que jogar segundo as regras que eles põem. A polícia ficaria em contato com o Escritório Federal de Investigação. O FBI tinha uma ampla experiência em casos de seqüestro. Como Mitch não tinha possibilidade alguma de reunir dois milhões, ao princípio a polícia duvidaria de sua história. Mas se convenceriam quando o seqüestrador voltasse a telefonar. E se não havia uma segunda chamada? E se o seqüestrador, sabendo que Mitch tinha ido à polícia, levava a cabo sua ameaça, mutilava ao Holly, matava-a e não voltava a telefonar alguma vez? Então, talvez pensassem que Mitch tinha inventado o do seqüestro para ocultar o fato de que Holly já estava morta, que ele mesmo a tinha matado. O marido sempre é o suspeito número um. Se a perdia, já nada importaria. Nunca mais. Não havia poder capaz de sanar a ferida que isso abriria em sua vida. Mas que suspeitassem que ele a tinha feito mal, seria como acrescentar metralha à ferida, sempre ardendo, eternamente lacerante. Depois de fechar seu caderno e meter-lhe no bolso traseiro, Taggart voltou a perguntar. -Alguma coisa que acrescentar, senhor Rafferty? Em algum momento do interrogatório, o besouro se partiu. Mitch se deu conta agora de que o zumbido tinha cessado. Se mantinha o do seqüestro do Holly em segredo, estaria sozinho frente a seus raptores. Só não tinha forças nem recursos, não servia para nada. criou-se com três irmãs e um irmão, todos nascidos em um período de sete anos. Tinham sido confidentes, conselheiros, companheiros e defensores os uns dos outros. Estava acostumado a compartilhar problemas e soluções. Ao ano de terminar o ensino médio se partiu da casa de seus pais, a um apartamento compartilhado. Depois, foi se viver sozinho, o que fez que sentisse-se isolado. Trabalhava sessenta horas por semana, ou mais, simplesmente para não estar sozinho em seu apartamento. Só quando Holly irrompeu em sua vida se voltou a sentir completo, pleno, conectado ao mundo. "Eu" era uma palavra fria; "nós" tinha um som mais quente. "Nosso" é mais doce ao ouvido que "meu". Os olhos do tenente Taggart pareciam menos severos que antes. -Bom... -disse Mitch. O detetive se lambeu os lábios. O ar estava quente e pouco úmido. Mitch também sentia os lábios secos. Mesmo assim, o rápido passo da língua rosada do Taggart por seus lábios teve um pouco de gesto de réptil, que sugeria que saboreava mentalmente sua próxima presa. Só a paranóia justificava a retorcida idéia de que um detetive de homicídios pudesse estar aliado com os seqüestradores do Holly. De fato, aquele encontro a sós entre testemunha e investigador podia ser o exame final para ver se Mitch estava disposto a seguir as instruções do delinqüente. Tudo os sinais de alarme do medo, racional e irracional, ativaram-se em sua mente. Tal sucessão de desenfreados temores e escuras suspeitas não o ayudabana pensar com claridade. Estava quase convencido de que se dizia a verdade ao Taggart o detetive, com uma careta, responderia: "Agora a teremos que matar, senhor Rafferty. Já não podemos confiar em você. Mas lhe permitiremos decidir o que lhe cortamos primeiro, se os dedos ou as orelhas". Ao igual a antes, quando se aproximou do morto, Mitch se sentia observado, não só pelo Taggart e por quão vizinhos bebiam chá, mas sim por alguma presença invisível. Vigiado, analisado. -Não, tenente -disse-. Não há nada mais. O policial tirou uns óculos de sol do bolso de sua camisa e as pôs. Mitch quase não se reconheceu ao ver refletido seu rosto nas lentes de espelho do outro. A curva, ao distorcê-lo, o fazia parecer velho. -Dava-lhe meu cartão -recordou-lhe Taggart. -Sim, senhor, tenho-a. -me chame se recordar algo que lhe pareça importante. O brilho frio e impessoal dos óculos de sol era como o olhar de um inseto, sem emoções, penetrante, voraz. -Parece você nervoso, senhor Rafferty -disse Taggart. Elevando as mãos para mostrar como tremiam, Mitch se explicou. -Nervoso não, tenente. Conmocionado, por assim dizê-lo. Muito sacudido. Taggart voltou a molhá-los lábios. -Nunca tinha visto assassinar a um homem -acrescentou Mitch. -Um nunca se acostuma -disse o detetive. -Imagino que não.

-É pior quando se trata de uma mulher. Mitch não soube como interpretar essa asseveração. Podia ser a simples realidade da experiência de um detetive de homicídios, ou uma ameaça. -Uma mulher ou um menino -disse Taggart. -Não me agradaria fazer seu trabalho. -Não. Não lhe agradaria. -O detetive se deu a volta-. Vemo-nos, senhor Rafferty. -Vemo-nos? Olhando por cima do ombro, Taggart acrescentou: -Você e eu seremos testemunhas em um tribunal algum dia. -Parece um caso difícil de resolver. -"Ouço como o sangue clama do chão", senhor Rafferty -disse o detetive, ao parecer citando alguma frase célebre-. "Ouço como o sangue clama do chão". Mitch o viu afastar-se. Logo olhou a erva que havia a seus pés. O avanço do sol tinha feito que as sombras das palmeiras ficassem detrás dele. Estava ao sol, mas este não o esquentava.

 

O relógio do salpicadero era digital, como também o era o de bracelete que levava Mitch. Mas mesmo assim, ouvia o tic tac do tempo, correndo tão veloz como os golpecillos de uma roda da fortuna que se choca contra os cartões numerados ao girar. Queria ir a toda pressa a sua casa da cena do crime. A lógica indicava que Holly deveu ser raptada ali. Não a tivessem capturado caminho do trabalho, em plena via pública. Possivelmente se tivessem deixado involuntariamente alguma pista, algo que permitisse averiguar suas identidades. Inclusive, mais provavelmente, possivelmente tivessem deixado um mensagem para ele, com novas instruções. Como de costume, Mitch tinha começado a jornada recolhendo ao Iggy em seu apartamento da Santa Ana. Agora devia levar o de volta. Dirigindo-se ao norte, das legendárias e ricas vizinhanças costeiras do condado do Orange, onde trabalhavam, para seus bairros, mais humildes, Mitch passou da lotada auto-estrada às ruas da cidade, para ir mais rápido, mas também nestas havia muito tráfico. Iggy queria falar do assassinato e da polícia, pelo que acabavam de presenciar. Mitch estava obrigado a mostrar-se tão ingenuamente excitado como Iggy pelo novidadeiro e tremendo da experiência, quando em realidade sua mente seguia ocupada com pensamentos sobre o Holly e a preocupação pelo que podia ocorrer a seguir. Por fortuna, a conversação do Iggy, como de costume, logo trocou de rumo e começou a enredar-se, a dar voltas como um novelo com o que joga um gatinho. Aparentar que seguia esse discurso incoerente supunha ao Mitch menos esforço que concentrar-se, sem adornos, no tema do homem assassinado enquanto passeava com seu cão. -Minha primo Louis tinha um amigo chamado Booger -disse Iggy -. Ocorreu-lhe o mesmo, dispararam-lhe enquanto passeava ao cão, só que não com um fuzil, e tampouco levava um cão. -Booger?1 -perguntou Mitch. -Booker -corrigiu Iggy-. B-ou-ou-k-e-r. Tinha um gato chamado Bola de Cabelo. Dispararam-lhe quando passeava a Bola de Cabelo. -A gente passeia a seus gatos? -Não. Em realidade Bola de Cabelo ia muito cômodo em sua jaula de viagem; Booker o levava a veterinário. Mitch olhava uma e outra vez os espelhos retrovisores, incluídos os laterais. Um Cadillac utilitário negro tinha deixado a auto-estrada a sua retaguarda. Cale a rua, seguia atrás de sua esteira. -De modo que Booker não estava passeando ao gato -disse Mitch. -Passeava com o gato, e um guri de doze anos, um menino atrasado e mucoso, disparou ao Booker com uma pistola das que lançam balas de pintura. -Assim não o matou. -Não o matou, não, e era um gato, não um cão, mas Booker ficou totalmente azul. -Azul? -Cabelo azul, cara azul. Totalmente melado de azul. O Cadillac se mantinha persistentemente a dois ou três veículos de distância deles. Talvez o condutor tivesse a esperança de que Mitch não o notasse. -E depois de que Booker ficasse azul, o que ocorreu com o guri? -perguntou Mitch. -Booker estava tentado de lhe arrancar a mão, mas o pequeno atrasado lhe disparou na entrepierna e fugiu. Né, Mitch, sabia que na Pensilvania há um povo que se chama Blue Balls?2 -Não sabia. -Está na zona amish. Perto há outro povo que se chama Intercourse.3 -Vá, vá. -Talvez, ao fim e ao cabo esses amish não sejam tão quadriculados e estritos como dizem. Mitch acelerou para passar um cruzamento antes de que o semáforo ficasse vermelho. detrás dele, o utilitário negro trocou de sulco, aumentou a velocidade e passou com o semáforo em amarelo. -Alguma vez comeu bolo de melaço dos amish? -perguntou Iggy. -Não. Nunca. -É o mais doce que provei, mais enjoativo que seis filmes do Gidget. Como comer puro açúcar. Um bolo traiçoeiro, amigo. O Cadillac retornou ao sulco do Mitch. Uma vez mais, três veículos os separavam. -Earl Potter -dizia Iggy- perdeu uma perna por comer bolo de melaço. -Earl Potter? -O pai do Jim Potter. Era diabético, mas não sabia, e se tragava algo assim como quilogramas de doces cada dia. Alguma vez comeu o bolo que fazem os quaisquer? -O que aconteceu a perna do Earl? -perguntou Mitch. -Não o vais acreditar, irmão. Um dia, dormiu o pé e não podia caminhar bem. Resultou que quase não tinha circulação nele, por uma diabetes grave. Amputaram-lhe a perna esquerda por cima do joelho. -Enquanto comia bolo de melaço. -Não. deu-se conta de que tinha que renunciar aos doces. -Bem feito. -De modo que, o dia antes de que o operassem, comeu-se uma última sobremesa. Escolheu um bolo de melaço com toda a nata montada que é capaz de produzir uma vaca. Viu esse filme amish tão enrolada, a do Harrison Ford e a garota das tetorras estupendas? Assim, conversando de Bola de Cabelo, Blue Balls, Intercourse, bolo de melaço e Harrison Ford, chegaram ao edifício de apartamentos onde vivia Iggy. Mitch se deteve junto à calçada e o utilitário negro passou de comprimento sem diminuir a marcha. Seus guichês eram de cristal escurecido, de modo que não pôde ver ao condutor nem a nenhum passageiro. Quando abriu a portinhola para descer da caminhonete, Iggy se interessou por seu ânimo. -Está bem, chefe? -Estou bem. -Te vê mau, como fundo. -Vi como matavam a um tio de um disparo -recordou-lhe Mitch. -Sim. Não foi impressionante? Já imagino quem vai ser o rei do Rolling Thunder esta noite. Talvez deveria te dar uma volta. -Não me reserve mesa, não irei. O Cadillac utilitário se foi perdendo para o oeste. A luz da tarde envolvia ao veículo suspeito em um fulgor deslumbrante. Cintilou e pareceu desaparecer entre as fauces do sol. Iggy saiu da caminhonete e olhou ao Mitch adotando uma expressão de tristeza. -Está encadeado ao amor -disse. -Sou livre como o vento. -Vamos, já sabe que não o é. -vá embebedar te, anda. -Pois sim, tinha intenção de agarrar um leve porre -assegurou-lhe Iggy-. O doutor Iggy recomenda ao menos seis latas de cerveja. lhe diga à senhora Mitch que acredito que é uma "super-garota". Iggy fechou a portinhola de repente e se afastou, fornido e leal, doce e ignorante. Com mãos que, de repente, tremiam sobre o volante, Mitch voltou com sua caminhonete à rua. Quando se dirigia para o norte, havia-se sentido impaciente por livrar-se do Iggy e chegar a casa. Agora, o estômago lhe deu um tombo ao ver-se sozinho e pensar no que podia achar ali. O que mais temia era encontrar sangue.

 

Mitch conduzia com as janelas abertas. Precisava escutar os sons da rua, notar indícios de vida. O Cadillac não reapareceu. Nenhum outro veículo tomou seu lugar. Era evidente que tinha sido presa de sua imaginação. A sensação de que o vigiavam passou. de quando em quando, seus olhos se dirigiam ao espelho retrovisor, mas já sem o temor de ver algo suspeito. sentia-se sozinho e, algo pior, isolado. Quase desejava que o utilitário reaparecesse. Sua casa estava em um dos bairros mais velhos do Orange, que a sua vez era uma das cidades mais antigas do condado. Circular por suas ruas era como viajar no tempo e encontrar-se em 1945. Só faltavam os carros e os caminhões de época. O bungaló, de tablones de cor amarela clara, com vivos tons brancos, e teto de cedro, elevava-se depois de uma cerca de madeira por onde subiam roseiras. Havia algumas casa maiores e bonitas na maçã, mas nenhuma tinha um jardim tão formoso. Estacionou junto ao caminho de entrada que flanqueava a casa, sob um imenso e velho falso pimentero. apeou-se e se enfrentou à quietude da tarde. Calçadas e jardins estavam desertos. Naquele bairro, a maioria das famílias tinha dobro ingresso; todos estavam em seus trabalhos. Às três da tarde, nenhum dos meninos, acostumados a mover-se sem seus pais, tinha retornado ainda da escola. Não se viam criadas, nem limpiaventanas, nem jardineiros de alguma empresa trabalhando em excesso-se com seus aspiradoras de folhas. Estes proprietários varriam seus próprios tapetes e cortavam sua própria grama. O falso pimentero decompunha a luz do sol entre seus ramos, que caíam em quebradas, tachonando o estou acostumado a sombreado com recortes de luz de formas elípticas. Mitch abriu um postigo lateral da cerca. Cruzou a grama até chegar aos degraus de entrada. O alpendre era profundo e fresco. Havia cadeiras brancas de vime com almofadas verdes junto a mesitas, também de vime, com superfície de vidro. Os domingos pela tarde, Holly e ele estavam acostumados a sentar-se ali a conversar e ler o periódico, enquanto olhavam como os colibris revoavam entre as flores de a bignonia que subia pelos postes do alpendre. Às vezes, desdobravam uma mesa de jogo entre as cadeiras de vime. Ela sempre o esmagava jogando o Scrabble. Ele dominava nos jogos de perguntas e respostas. Não gastavam muito em diversões. Nada de férias de esqui, nem de fins de semana na Baixa Califórnia. Estranha vez foram ver um filme. Estar juntos no alpendre dianteiro lhes dava tanto prazer como estar juntos em Paris. Estavam economizando para coisas importantes. Para lhe permitir a ela que se arriscasse a trocar de carreira, e passasse de secretária a agente imobiliária. Para que ele pudesse pagar um pouco de publicidade, comprar outra caminhonete, expandir sua empresa. Também para os meninos. foram ter meninos. Dois ou três. Alguns dias festivos, quando ficavam mais sentimentais, até quatro filhos não pareciam muitos. Não queriam o mundo inteiro para eles sozinhos, nem tampouco aspiravam a trocá-lo. Só desejavam ter um pequeno rincão dele, e a oportunidade de enchê-lo com uma família e muitas risadas. Observou a porta de entrada. Estava sem chave. Empurrou-a para dentro e titubeou na soleira. Olhou para a rua, quase esperando ver o utilitário negro. Não estava ali. Uma vez dentro, deteve-se um momento para que seus olhos se adaptassem à penumbra. A sala de estar só estava iluminada pela luz que se filtrava pelas árvores e entrava pelas janelas. Tudo parecia em ordem. Não se viam sinais de luta. Mitch fechou a porta detrás de si. Durante um momento, precisou apoiar-se nela. Se Holly tivesse estado em casa, escutaria música. Gostava das grandes bandas de outro tempo. Miller, Goodman, Ellington, Shaw. Dizia que a música da década dos quarenta era a adequada para a casa. Também sentava bem a ela. Era clássica. Um arco conectava a sala de estar com o pequeno comilão. Neste segundo espaço tampouco havia nada desconjurado. Viu uma grande traça morta sobre a mesa. Era cinza, com bolinhas negras em suas asas bicudas. A traça deveu entrar a noite anterior. Tinham passado algum tempo no alpendre, com a porta aberta. Talvez estivesse viva, dormindo. Se a punha no oco de suas mãos e a lançava, possivelmente voasse até um rincão do teto do alpendre, onde aguardaria a que saísse a lua. Vacilou. Era relutante a tocar aquela criatura que talvez não voltaria a voar. Ao tocá-la, possivelmente se desfizera em uma espécie de pó sujo, como ocorre às vezes. Mitch não tocou a mariposa noturna. Preferia acreditar que seguia viva. A porta que separava o comilão da cozinha estava entreabrida. Havia uma luz acesa ao outro lado. percebia-se no ar um aroma de torradas queimadas. fez-se mais intenso quando abriu a porta e entrou na cozinha. Ali sim encontrou sinais de luta. Uma das cadeiras estava derrubada. Havia partes de pratos quebrados pulverizados pelo chão. Da torradeira emergiam duas fatias de pão enegrecido. Alguém a tinha desligado. A manteiga tinha ficado na encimera, derretendo-se à medida que o dia se voltava mais quente. Os intrusos deviam ter entrado pela parte dianteira da casa, surpreendendo-a enquanto fazia as torradas. Os móveis de cozinha estavam pintados de um branco acetinado. Manchas de sangue salpicavam uma porta e o frontal de duas gavetas. Durante um momento, Mitch fechou os olhos. Em sua mente, viu como a traça batia as asas e se elevava voando da mesa. Algo bateu as asas também em seu peito, e quis acreditar que se tratava de um fôlego de esperança. Sobre a geladeira branca, o sangrento rastro de uma mão de mulher indicava que tinha ocorrido algo mau, com tanta força como poderia havê-lo feito um grito. Outra rastro completo de uma mão, e uma mais, parcial e imprecisa, obscureciam os dois armaritos mais altos. O sangue manchava os ladrilhos do chão. Parecia muito sangue. Parecia um oceano de sangue. A cena aterrorizou tanto ao Mitch que quis voltar a fechar os olhos. Mas lhe ocorreu a louca idéia de que se fechava os olhos duas vezes ante esta sombria realidade ficaria cego para sempre. O telefone soou.

 

Não teve que pisar em sangue para chegar ao telefone. Levantou o auricular ao terceiro timbrazo e ouviu sua própria voz, aterrada. -Sim? -Sou eu, amor. Estão-nos ouvindo. -Holly. O que lhe fizeram? -Estou bem -disse. Soava forte, mas assim que. -Estou na cozinha. -Sei. -O sangue... -Já sei. Não pense nisso agora. Mitch, dizem que temos um minuto para falar, só um minuto. O entendeu o que lhe queria dizer "um minuto e talvez nunca mais". As pernas não o sustentavam. Tomou uma das cadeiras da mesa da cozinha e, deixando cair nela, logo que pôde balbuciar. -Sinto-o tanto. -Não é sua culpa. Não te atormente. -Quais são estes endoidecidos, são desequilibrados, ou o que? -São cruéis, monstruosos, mas não estão loucos. Parecem profissionais. Não sei. Mas quero que me faça uma promessa. -Estou a ponto de morrer de preocupação. -Escuta, carinho. Quero sua promessa. Se algo me ocorresse... -Não te vai ocorrer nada. -Se algo me ocorresse -insistiu ela-, me prometa que seguirá adiante. -Não quero nem pensar nisso. -Segue adiante, maldita seja. Segue seu caminho e leva uma boa vida. -Minha vida é você. -Segue adiante, cortacéspedes, ou me vou zangar de verdade. -Farei o que me digam. Recuperarei-te. -Se não seguir adiante, meu fantasma não deixará de te acossar, Rafferty. Será como o filme Poltergeist elevada ao cubo. -Deus, amo-te -disse ele. -Sei. E eu amo a ti. Queria te abraçar. -Amo-te tanto. Ela não respondeu. -Holly? O silêncio o galvanizou, fazendo que se levantasse de sua cadeira. -Holly? Ouve-me? -Ouço-te, cortacéspedes -disse o seqüestrador com o que tinha falado antes. -Filho de puta. -Entendo sua ira... -É um lixo. -Já, e não tenho muita paciência com ela. -Se lhe fizer mal... -Já lhe fiz mal. E se não fazer o que te digo, despiezaré a esta cadela como a uma cabeça de gado. Um agudo sentimento de indefensión fez que Mitch passasse da ira à humildade. -Por favor. Não volte a lhe fazer danifico. Não o faça. -Tranqüilo, Rafferty. Só fica tranqüilo enquanto te explico umas poucas coisas. -Muito bem. De acordo. Necessito que me expliquem as coisas. Estou perdido neste assunto. As pernas lhe voltavam a fraquejar. Em lugar de voltar a sentar-se na cadeira, retirou um prato quebrado com o pé e se ajoelhou no chão. Por algum motivo se sentia mais cômodo de joelhos que na cadeira. -Quanto ao sangue -disse o seqüestrador-, derrubei-a de um bofetão quando quis resistir, mas não lhe fiz nenhum corte. -Tudo esse sangue... -Isso é o que te estou dizendo. Pusemo-lhe um torniquete no braço até que uma veia se inchou, cravamo-lhe uma seringa e tiramos quatro tubos de sangue, como fazem os médicos quando precisam fazer uma análise. Mitch apoiou a frente na porta do forno. Fechou os olhos e procurou concentrar-se. -Melamo-lhe as mãos de sangue e fizemos que deixasse esses rastros. Salpicamos um pouco nas encimeras, nos armários. Orvalhamo-la pelo chão. É uma cenografia, Raffery. Para que pareça que a assassinaram ali. Mitch era a tartaruga, que agora arrancava da linha de saída, enquanto que o do telefone era a lebre, já a metade de caminho da larga carreira. Mitch não podia dar-se pressa, não sabia o que fazer, ignorava a que se enfrentava. -Cenografia? por que? -Se ficar nervoso e vai à polícia, nunca se tragarão o conto do seqüestro. Verão essa cozinha e acreditarão que a matou. -Não lhes contei nada. -Já sei. -Com o que lhe fizeram ao que passeava o cão, dava-me conta de que não têm nada que perder. Soube que não podia me colocar com vós. -Só se tratou de uma pequena garantia adicional -disse o seqüestrador-. Agrada-nos estar seguros. Falta uma faca dos que tem à vista em sua cozinha. Mitch nem se incomodou em verificar a asseveração. -Envolvemo-lo em uma de suas camisetas e em teu jeans. Tudo ficou manchado com o sangue do Holly. Estava claro que eram profissionais, tal como ela disse. -Esse pacote está escondido em sua casa -continuou o seqüestrador-. Não te será fácil encontrá-lo. Aos cães da polícia, sim. -Já vejo do que vai isto. -Assim o supus. Não é estúpido. Por isso tomamos tantas precauções. -E agora o que? me explique tudo isto de maneira que o entenda. -Ainda não. Neste momento, a emoção te domina, Mitch. Isso não é bom. Se a gente não controlar suas emoções, é possível que cometa um engano. -Estou lúcido -assegurou-lhe Mitch, embora o coração lhe seguia dando saltos e a corrente de seu próprio sangue lhe retumbava nos ouvidos. -Não pode cometer enganos, Mitch. Nem sequer um sozinho. De modo que quero que te tranqüilize, como te disse. Quando estiver com a cabeça serena, discutiremos esta situação. Telefonarei às seis. Sempre de joelhos, Mitch abriu os olhos e olhou seu relógio. -Faltam mais de duas horas e meia. -Ainda leva sua roupa de trabalho. Está sujo. Date uma boa ducha quente. Sentirá-se melhor. -Está-me tirando o sarro. -Em qualquer caso, deve ter um aspecto mais apresentável. Dúchate, te troque e depois deixa a casa. Vá a outro lugar, que seja. Só te assegure de que seu móvel tenha a bateria bem carregada. -Preferiria aguardar aqui. -Isso não seria bom, Mitch. Olhe onde olhe, a casa está cheia de lembranças do Holly. Lhe porão os nervos de ponta. Necessito que não te domine a emoção. -Sim. Muito bem. -Uma coisa mais. Quero que ouça isto... Mitch supôs que fariam gritar ao Holly de dor outra vez, para deixar claro quão incapaz era ele de protegê-la. -Não o faça. Mas em lugar de ouvir o Holly, escutou duas vozes gravadas, claras, sobre um leve vaio de fundo. A primeira voz era a sua: "-Nunca tinha visto assassinar a um homem. "-Um nunca se acostuma. "-Imagino que não. "-É pior quando se trata de uma mulher... Uma mulher ou um menino". A segunda voz era a do detetive Taggart. O seqüestrador falou.

-Se lhe tivesse contado algo, Mitch, Holly já estaria morta. No escuro vidro defumado da porta do forno, viu o reflexo de um rosto que parecia olhá-lo de uma janela do inferno. -Taggart é dos seus. -Talvez sim, talvez não. Deveria dar por sentado que todos são dos nossos. Será mais seguro para ti e muito mais seguro para o Holly. Todos são dos nossos. Tinham construído uma caixa forte em torno dele. Agora jogavam o fechamento. -Mitch, não quero que nos despeçamos falando de um tema tão escuro. Vou te tranqüilizar com respeito a uma coisa. Quero que saiba que não a tocaremos. -Já a golpeou. -E o voltarei a fazer se não fazer o que te diga. Mas não a tocaremos de outra maneira. Não somos violadores, Mitch. -E por que teria que te acreditar? -É evidente que te estou controlando, Mitch. Faço contigo o que quero. E claro que há muitas coisas que não te direi... -São assassinos mas não violadores? -O importante é que tudo o que te disse resultou certo. Repassa nossa relação, e verá que fui veraz e mantive minha palavra. Mitch queria matá-lo. Nunca antes havia sentido a necessidade de exercer violência a sério contra outro ser humano, mas agora desejava, precisava destruir a esse homem. Agarrava o telefone com tal ferocidade que lhe doía a mão. Não conseguia afrouxar a pressão. -Tenho muita experiência trabalhando com substitutos, Mitch. É um instrumento para mim, uma valiosa ferramenta, uma máquina sensível. -Máquina? -Segue meu raciocínio, vale? Não tem sentido maltratar uma máquina valiosa e sensível. Não me compraria um Ferrari para depois não lhe trocar o azeite nem lubrificá-lo. -Ao menos sou um Ferrari. -Enquanto eu seja quem te dirija, Mitch, nunca te pressionarei para que faça algo que exceda sua capacidade. Esperaria um alto rendimento de um Ferrari, mas não pretenderia empregá-lo para atravessar um muro de tijolo. -Pois me sinto como se já tivesse atravessado um muro de tijolo. -É mais duro do que crie. Mas para obter que te desembrulhe da melhor maneira possível, quero que saiba que trataremos ao Holly com respeito. Se fizer tudo o que queremos, retornará a ti viva... E intacta. Holly não era débil. Não seria fácil quebrantá-la mentalmente com o mau trato físico. Mas a violação não só afeta ao corpo. A violação também quebra a mente, o coração, o espírito. Talvez o captor tivesse tirado o tema com a sincera intenção de aplacar alguns dos temores do Mitch. Mas esse filho de puta o tinha feito, além disso, a modo de advertência. -Não me parece que tenha respondido minha pergunta -disse Mitch-. por que teria que te acreditar? -Porque deve fazê-lo. Era uma verdade indiscutível. Insistiu. -Deve me acreditar Mitch. Desde não ser assim, pode dá-la por morta desde este preciso instante. O seqüestrador cortou. Durante um momento, uma entristecedora sensação de impotência manteve ao Mitch de joelhos. Ao fim, uma gravação, a voz de uma mulher com o tom condescendente de uma professora que não termina de estar cômoda com os meninos, pediu-lhe que pendurasse o telefone. Em vez de fazê-lo, deixou o auricular no chão. De ali, um assobio contínuo o urgiu a que obedecesse a sugestão da operadora. Sempre de joelhos, voltou a apoiar a cabeça contra a porta do forno e fechou os olhos. Sua mente era um caos. Imagens do Holly, redemoinhos de lembranças fragmentárias que davam voltas, impressione angustiosas o atormentavam. Algumas lembranças eram bons, doces, mas o torturavam igualmente porque sabia que talvez fossem o único que ficaria dela. Medo e ira. Arrependimento e pesar. Não sabia o que era a perda de um ser querido. Sua vida não o tinha preparado para isso. Pugnou por acalmar-se, porque pressentia que havia algo que podia fazer pelo Holly, ali mesmo e nesse momento, se conseguia sossegar seu medo e pensar. Não tinha que esperar as ordens dos seqüestradores. Podia fazer algo importante por ela já mesmo. Podia atuar para ajudá-la. Podia fazer algo pelo Holly. Os joelhos, muito tempo apoiadas nos ladrilhos de cerâmica, começaram a lhe doer. O desconforto física limpou sua mente pouco a pouco. Os pensamentos já não lhe atravessavam o crânio como lascas, mas sim se depositavam na cabeça como as folhas que caem em um aprazível rio. Podia fazer algo valioso pelo Holly, e aquilo que podia fazer estava justo por debaixo da superfície, flutuando, quase ao alcance de sua capacidade de percepção, de suas perguntas. O duro estou acostumado a era implacável, e começou a lhe parecer que estava ajoelhado em um leito de vidros quebrados. Podia fazer algo pelo Holly. A resposta lhe escapava. Algo. Doíam-lhe os joelhos. Tratou de ignorar a dor, mas ao fim teve que incorporar-se. A iminente revelação retrocedeu. Pendurou o auricular do telefone. Teria que esperar a próxima chamada. Nunca se havia sentido tão inútil.

 

Embora ainda faltavam horas para a noite, sua lenta aproximação impulsionava todas as sombras para o este, as afastando do sol que se dirigia ao oeste. As sombras das palmeiras se estendiam, ofegantes, cruzando o amplo terreno. Para o Mitch, de pé no alpendre traseiro, este lugar, que antes fora uma ilha de paz, agora parecia tão cheio de tensão como a rede de cabos que sustenta um ponte alcance. No extremo do jardim, detrás de uma cerca de tablones, havia um beco. Mais à frente se viam outros jardins, outras casas. Possivelmente um sentinela apostado em uma dessas janelas o observasse agora com prismáticos de grande alcance. Por telefone, havia- dito ao Holly que se encontrava na cozinha, e lhe tinha respondido "já sei". A única explicação de que ela pudesse sabê-lo era que seus captores também sabiam. Ao fim e ao cabo, pensou, o Cadillac utilitário resultou ser inofensivo. Quão único o tinha convertido em uma ameaça era sua imaginação. Nenhum outro veículo tinha-o seguido. Não era assim como o controlavam. Tinham suposto que retornaria a sua casa, de modo que, em lugar de segui-lo, vigiavam-na. Estavam-no observando nesse mesmo instante. Alguma das moradias do extremo mais afastado do beco podia oferecer um bom ponto de observação, mas só se quem vigiava tinha dispositivos ópticos de alta tecnologia que lhe permitissem ver dentro da casa do Mitch desde essa distância. Preferiu centrar suas suspeitas na garagem independente que havia ao fundo de sua propriedade. podia-se acessar a ele pelo beco e também da rua de em frente, se um se aproximava pelo caminho de entrada à casa. A garagem, onde estacionavam a caminhonete do Mitch e o Funda do Holly, tinha janelas na planta baixa e no mezanino que empregavam como armazém. Algumas se viam agora escuras, outras, douradas pelo reflexo do sol. Em nenhuma se avistava um rosto fantasmal ou um movimento delator. Se alguém vigiava da garagem, não se descuidaria. Só se faria visível se o desejava, com o fim de intimidar. O sol arrancava cores luminosas, como os dos faz radiantes que forma ao passar por um vitral colorido, das rosas, os ranúnculos, as campainhas de coral. A faca de açougueiro, envolto em roupa ensangüentada, possivelmente tinha sido enterrado em um canteiro. Se o encontrava, recuperava-o e limpava o sangue da cozinha, recuperaria parte do controle da situação. Poderia confrontar com maiores possibilidades os desafios que lhe apresentassem nas horas vindouras, quaisquer que fossem. Entretanto, se o vigiavam, seus seqüestradores não ficariam de braços cruzados. Tinham fingido o assassinato de sua mulher para o ter pilhado em uma armadilha, e não deixariam que escapasse dela. Para castigá-lo, fariam- mal ao Holly. O homem do telefone tinha prometido que não a "tocariam", com o que queria dizer "violariam". Mas não tinha inconveniente algum em golpeá-la. Era de supor que voltaria a fazê-lo. Daria-lhe murros. Torturaria-a. Não tinha prometido nada a esse respeito. Para preparar o cenário do assassinato simulado, tinham-lhe extraído sangue com uma seringa de injeção. Mas tampouco tinham jurado que jamais foram ferir a com uma faca. Para lhe fazer compreender quão indefeso estava em realidade, talvez a ferissem, mutilassem-na. Qualquer laceração que ela sofresse cercearia os tendões mesmos de sua vontade de resistência. Não ousariam matá-la. Para seguir controlando ao Mitch, deviam lhe permitir falar com ela cada certo tempo. Mas podiam lhe produzir cortes, desfigurá-la, lhe ordenando logo que descrevesse a ele suas mutilações por telefone. Ao Mitch o surpreendeu sua capacidade de antecipar tão odiosas possibilidades. Até fazia umas poucas horas, não tinha tido nenhum contato com o mal em estado puro. Vivido-o de sua imaginação a este respeito sugeria que, a nível subconsciente, ou a um nível ainda mais fundo que aquele, sempre tinha sabido que o mal verdadeiro andava pelo mundo, manifestando-se mediante abominações que nenhuma análise psicológica ou sociológica poderia explicar. O seqüestro do Holly fez que essa consciência deliberadamente reprimida saísse dos rincões onde se ocultava, fazendo-se visível. A sombra das palmeiras, estendendo-se para a cerca do pátio traseiro, parecia esticar-se, chegando ao ponto de quase romper-se, e as flores que o sol iluminava pareciam frágeis como o vidro. E a tensão da cena seguia crescendo. Nem as sombras alargadas nem as flores se quebrariam. Fora o que fosse o que se esticava até o ponto de ruptura, não se encontrava no exterior, mas sim estava no interior do Mitch. E embora a ansiedade lhe revolvia o estômago e o fazia apertar os dentes, sentia que, quando essa mudança, essa ruptura chegasse, não seria algo mau. Da garagem, as janelas obscurecidas, e também as que refletiam o sol, burlavam-se dele. O mobiliário do alpendre e o do jardim, dispostos com a ideia de desfrutar de preguiçosas tardes estivais, também se burlavam dele. O viçoso e bem mantido jardim, onde tantas horas tinha passado, burlava-se dele. Agora, toda a beleza nascida de seu trabalho lhe parecia superficial, e essa superficialidade se convertia em fealdade. Retornou à casa e fechou a porta traseira. Não se incomodou em jogar a chave. Quão pior podia ter invadido seu lar já o tinha feito e já se partiu. Fossem quais fossem as atrocidades que viessem a seguir, não seriam mais que ninharias, comparadas com esse primeiro horror. Cruzando a cozinha, entrou em pequeno vestíbulo ao que davam duas habitações. A primeira delas continha um sofá, duas cadeiras e um televisor de tela grande. Ultimamente, era estranho que vissem algum programa. Os reality shows dominavam a programação, junto com os dramas de assunto jurídico ou policial, mas todo isso aborrecia-o, pois não se parecia nada à realidade tal como a conhecia. Mais agora, que sabia ainda melhor como eram as coisas. Ao final do vestíbulo se encontrava o dormitório principal. Tirou roupa interior e meias três-quartos limpos da gaveta de uma cômoda. Porque agora, por impossível e até desatinado que parecesse empreender qualquer tarefa cotidiana em semelhantes circunstâncias, não podia fazer mais que aquilo que lhe tinham ordenado. O dia tinha sido quente, mas era possível que durante a noite, em meados de maio, refrescasse. Agarrou do armário umas calças limpas e uma camisa de flanela que penduravam dos cabides. Pô-los sobre a cama. encontrou-se olhando fixamente o pequeno penteadeira do Holly, onde ela se sentava cada dia, no tamborete acolchoado, para escovar o cabelo, aplicar-se maquiagem, ficar lápis de lábios. Tinha agarrado seu espelho de mão sem dar-se conta do que fazia. Olhou-o, como se esperasse que algum milagre lhe permitisse ver o futuro, mostrasse-lhe nele o formoso rosto sorridente do Holly. A visão de seu próprio semblante lhe resultava insuportável. barbeou-se, tomou banho e vestiu, e se dispôs a encarar a dura prova que lhe aguardava. Não tinha nem idéia do que esperavam dele, de como pretendiam que reunisse dois milhões de dólares para pagar o resgate de sua esposa, mas nem tentou imaginar os possíveis cenários. Em momentos nos que alguém está de pé, no alto de uma cornija, é melhor não passar muito tempo estudando a profundidade do abismo. Quando, sentado sobre o bordo da cama, terminava de atá-los cordões dos sapatos, soou o timbre da porta de entrada. O seqüestrador havia dito que telefonaria às seis, não que iria de visita. Além disso, o relógio da mesa marcava as quatro e quinze. Não responder ao timbre era uma possibilidade que tinha que descartar. Devia mostrar-se bem disposto, fora qual fosse o método que os captores do Holly escolhessem para contatar com ele. Embora a visita não tivesse nada que ver com o seqüestro, Mitch estava obrigado a atendê-la para manter um ar de normalidade em sua vida, para não levantar suspeitas. Sua caminhonete estava no caminho de entrada, o que demonstrava que se encontrava em casa. Se se tratava de um vizinho, ao ver que não respondia ao timbre, talvez desse a volta à casa para golpear a porta da cozinha. Os seis painéis da cristaleira dessa porta lhe permitiriam ver com claridade o chão da cozinha, onde havia partes de pratos pulverizados e sangrentos rastros de mãos nos armários e a geladeira. Deveu ter jogado as cortinas. Deixou o dormitório, saiu ao vestíbulo e cruzou a sala de estar antes de que o visitante tivesse tempo de voltar a tocar a campainha. A porta dianteira não era acristalada. Abriu-a, e se encontrou ao detetive Taggart no alpendre.

 

O olhar de mantis religiosa dos óculos de espelho atravessou ao Mitch, lhe paralisando a voz a meio caminho da garganta. -eu adoro estes bairros velhos -disse Taggart, estudando o alpendre dianteiro-. Assim era Califórnia do Sul nos bons tempos, antes de que destruíssem todos as laranjeiras para construir um gigantesco baldio de casas de estuque. Mitch conseguiu emitir uma voz que soava quase como a sua, embora mais débil. -Vive você por aqui, tenente? -Não. Vivo em um dos baldios. Resulta-me mais prático. Mas, casualmente, andava por seu bairro. Taggart não era homem que andasse casualmente por nenhum lado. Inclusive se caminhasse dormido, faria-o com um propósito, um plano, um objetivo. -Surgiu algo, senhor Rafferty. E já que andava por aqui, pareceu-me que acontecer lhe visitar era mais fácil que telefonar Tem uns minutos para me atender? Se Taggart não era um dos seqüestradores, se sua conversação com o Mitch tinha sido gravada sem que soubesse, lhe permitir cruzar a soleira seria uma temeridade. Nessa casa pequena, a sala de estar, a imagem mesma da tranqüilidade, e a cozinha, melada de evidências acusadoras, estavam a só uns passados uma da outra. -Claro -disse Mitch-. Mas minha esposa voltou para casa com enxaqueca. Está deitada. Se o detetive era um deles, se sabia que Holly estava cativa em algum outro lado, não delatou tal conhecimento com nenhuma mudança de expressão. -Que tal se nos sentamos no alpendre? -disse Mitch. -Parece-me muito bem. Mitch fechou a porta detrás de si e se sentaram nas cadeiras brancas de vime. Taggart levava um sobre branco de trinta por quarenta centímetros. Deixou-o em seu regaço, sem abri-lo. -Quando era menino, o alpendre de minha casa era como este -disse-. Estávamos acostumados a nos sentar aí a ver acontecer os carros, a olhar o trânsito de veículos, nada mais. tirou-se os óculos de sol e as meteu no bolso da camisa. Seu olhar era penetrante como uma furadeira elétrica. -A senhora Rafferty usa ergotamina? -Se usar o que? -Ergotamina. Para as enxaquecas. Mitch não tinha nem idéia de se a ergotamina era um verdadeiro medicamento ou uma palavra que o detetive acabava de inventar-se. -Não. arruma-se com aspirinas. -Com que freqüência lhe ocorre? -Duas ou três vezes ao ano -mentiu Mitch. Holly nunca tinha tido uma enxaqueca. Era estranho que sofresse nenhum tipo de dor de cabeça. Uma traça cinza e negra estava estalagem sobre o poste do alpendre que se elevava à direita dos degraus de entrada. Dormia à sombra, à espera de que o sol ficasse para pôr-se a voar. -Eu padeço enxaquecas oculares -explicou Taggart-. São completamente visuais. Vejo uma luz deslumbrante e me produz um ponto cego temporal durante uns vinte minutos, mas sem dor. -Se a gente tiver que sofrer enxaqueca, essa parece a melhor. -Os médicos não lhe receitariam ergotamina, a não ser que tivesse uma enxaqueca ao mês. -Só são duas vezes ao ano. Ou três -disse Mitch. Desejou ter recorrido a outra mentira. Que Taggart tivesse experiência pessoal com as enxaquecas era mau assunto. Essa conversa intrascendente o punha tenso. Parecia-lhe que sua própria voz soava receosa, forçada. Era indubitável que Taggart se teria acostumado desde fazia muito a que a gente se mostrasse tensa e receosa com ele. Inclusive as pessoas inocentes, e até sua própria mãe. Salários do ofício. Mitch tinha evitado o olhar fixo do detetive. Com um esforço, voltou a olhá-lo aos olhos. -Finalmente encontramos um DIVA no cão -disse Taggart. -Um quê? -Um Dispositivo de Identificação Veterinário Americano. A identificação com microchip da que lhe falei. -Ah, claro. antes de que Mitch se desse conta de que sua sensação de culpabilidade voltava a delatá-lo, seu olhar se desviou do Taggart para seguir a um carro que passava por a rua. -Inserem-no no músculo que está no lombo do cão -explicou Taggart-. É diminuto. O animal nem o sente. Passamo-lhe um exploratório ao animal e assim obtivemos seu número de DIVA. É de uma casa se localizada a uma maçã ao este e dois ao norte do lugar do assassinato. O nome do proprietário é Okadan. -Bobby Okadan? Eu cuido seu jardim. -Sim, sei. -O tipo ao que mataram... Não era o senhor Okadan. -Não. -Quem era? Um familiar, um amigo? Taggart evitou a pergunta. -Surpreende-me que não tenha reconhecido você ao cão. -As cor canela são todos iguais. -Em realidade, não. Cada um é um indivíduo. -Mishiki -recordou Mitch. -Assim se chama o cão -confirmou Taggart. -Ocupamo-nos desse jardim as terças-feiras, e o dono sempre procura que Mishiki fique dentro enquanto estamos aí, para que não nos incomode. Habitualmente, o vejo através da porta do pátio. -É evidente que Mishiki foi roubado do pátio traseiro dos Okadan esta manhã, possivelmente em torno das onze e meia. A cadeia e o colar que levava não pertencem aos Okadan. -Quer dizer que o cão foi roubado pelo tipo ao que mataram? -Assim parece. Esta revelação solucionou o problema que Mitch tinha para olhar aos olhos ao Taggart. Agora, era-lhe impossível apartar o olhar do rosto do detetive. Taggart não estava ali só para compartilhar uma desconcertante novidade do caso. Ao parecer, o descobrimento tinha suscitado na mente do policial uma pergunta a respeito de algo que Mitch havia dito, ou deixado de dizer, antes. Do interior da casa se ouviu, amortecido, o timbre do telefone. supunha-se que os seqüestradores não chamariam antes das seis. Mas se chamavam antes e não o encontravam, talvez se zangassem. Quando Mitch começou a incorporar-se, Taggart lhe deteve. -Preferiria que não respondesse. Provavelmente seja o senhor Barnes. -Iggy? -Ele e eu falamos faz meia hora. Pedi-lhe que não telefonasse aqui antes de que eu pudesse falar com você. É provável que, desde esse momento, tenha estado lutando com sua consciência, e que, ao fim, ela tenha vencido. Ou perdido, segundo como se olho. Mitch ficou em seu sítio, desconcertado. -Do que se trata, o que acontece? Taggart ignorou a pergunta e seguiu com seu tema. -Com que freqüência você crie que se roubam cães, senhor Rafferty? -Nunca pensei nem sequer que os roubassem. -Pois ocorre. Não com tanta freqüência como os roubos de carros, claro. -Seu sorriso não era contagioso, a não ser inquietante-. Não se pode desmantelar um cão e vender as partes, como se faz com um Porsche. Mas mesmo assim, cada certo tempo se levam algum. -Se você o disser. -Os cães de pura raça podem valer milhares de dólares. Mas quem os rouba não sempre o fazem para vendê-los. Às vezes só querem conseguir um bom cão sem pagar por ele. Embora Taggart fez uma pausa, Mitch não disse nada. Queria acelerar a conversação. Estava ansioso por saber a que conduzia. Toda esta conversa sobre cães ocultava uma armadilha, ou ao menos uma surpresa. -Algumas raças são mais cobiçadas que outras, porque se sabe que são amistosas e dóceis e que é pouco provável que vão resistir ao ladrão. Os lavradores canela são uma das raças caninas mais sociáveis e menos agressivas. O detetive agachou a cabeça, baixou os olhos e ficou em silencio durante um momento, como se pensasse o que diria a seguir. Mitch não acreditava que Taggart precisasse repensar. Os pensamentos do detetive tinham uma ordem tão precisa como o dos objetos do roupeiro de um obsessivo-compulsivo. -Pelo general, levam-se os cães de carros estacionados -continuou Taggart-. A gente deixa ao animal sozinho, com as portas sem jogar o seguro. Quando retornam, Fido já não está. Alguém já lhe trocou o nome, e agora é Duque. Ao dar-se conta de que agarrava os braços do assento de vime como se fossem os da cadeira elétrica e estivesse esperando a que o verdugo acionasse o interruptor, Mitch fez um esforço por parecer depravado. -Ou se não -prosseguiu o policial-, o dono ata seu cão a um parquímetro antes de entrar em uma loja. O ladrão desfaz o nó e parte com seu novo melhor amigo. Outra pausa. Mitch a suportou como pôde. Sempre com a cabeça encurvada, o tenente Taggart continuou. -É estranho, senhor Rafferty, que se roube um cão do jardim de seu amo em uma ensolarada manhã da primavera. E todo o estranho, todo o incomum, excita minha curiosidade. Confesso que, quando as coisas são seriamente anormais, ponho-me nervoso. Mitch se levou uma mão à nuca e a esfregou, porque lhe pareceu que isso era algo que um homem depravado, um homem tranqüilo e despreocupado, poderia fazer. -É estranho que um ladrão entre a um bairro como esse a pé e parta andando com um mascote roubado. É estranho que não leve identificação. E mais que estranho diria que é insólito que o matem de um tiro três ruas mais à frente. E o que é surpreendente, senhor Rafferty, é que você, a testemunha principal, conhecesse-o. -Mas não o conhecia. -Em uma época -insistiu Taggart- conheceu-o você muito bem.

 

Teto branco, vigas brancas, chão branco, cadeiras de vime brancas, harmonia rota pela traça cinza e negra. Tudo o que havia no alpendre era familiar, aberto, arejado; mas agora, ao Mitch parecia escuro, desconhecido. Sempre com o olhar baixo, Taggart voltou a falar: -Em algum momento, um de quão sabujos foram à cena viu a vítima de perto e o reconheceu. -Sabujos? -Um dos agentes uniformizados. Disse que faz uns dois anos tinha detido a esse tio por posse de drogas, depois de detê-lo por uma infração de tráfico. Nunca esteve preso, mas seus rastros digitais se encontravam em nossos ordenadores, na base de dados, de modo que identificá-lo foi fácil. O senhor Barnes diz que você e ele foram à escola secundária com a vítima. Mitch desejou que o policial o olhasse aos olhos. Com o intuitivo e perceptivo que era, Taggart saberia reconhecer que sua surpresa era genuína, se a via. -chamava-se Jason Osteen. -Não só fui ao colégio com ele -disse Mitch-. Jason e eu compartilhamos um apartamento durante um ano. Taggart restabeleceu ao fim o contato visual. -Sei. -Iggy o haverá dito. -Sim. Ansioso por mostrar-se comunicativo, Mitch seguiu explicando-se. -Quando terminei a secundária, vivi com meus pais durante um ano, enquanto fazia um curso de... -Jardinagem. -Assim é. Logo, consegui emprego em uma empresa de paisagismo e me mudei. Queria um apartamento próprio. Não podia me permitir pagar um para mim sozinho, de modo que Jason e eu compartilhamos um durante um ano, pagando-o pela metade. O detetive voltou a agachar a cabeça e a ficar em uma atitude comtemplativa. diria-se que sua estratégia era forçar ao Mitch a olhá-lo aos olhos quando isso punha-o incômodo, e evitar o contato visual quando Mitch o queria. -O morto da calçada não era Jason -disse Mitch. Taggart abriu o sobre branco que tinha no regaço. -além da identificação que fez o agente e dos rastros digitais, tenho uma identificação positiva que fez o senhor Barnes apoiando-se nisto. Tirou do sobre uma foto em cor de vinte por vinte e cinco centímetros e a deu ao Mitch. Um fotógrafo da polícia tinha movido o cadáver para obter a melhor imagem possível do rosto. A cara estava volta para a esquerda apenas o suficiente para ocultar o pior da ferida. As facções tinham ficado sutilmente deformadas pela entrada por uma têmpora, o trânsito e a saída por detrás da outra têmpora do disparo de alta velocidade. O olho esquerdo estava fechado, o direito, completamente aberto, no que parecia um surpreendida olhar de ciclope. -Poderia ser Jason -disse Mitch. -É-o. -Quando me aproximei dele, só vi um lado de seu rosto. O perfil direito, o pior, onde está o orifício de saída. -E, provavelmente, não o olhou muito de perto. -Não. Não o fiz. Uma vez que me dava conta de que tinha que estar morto, não quis olhar muito de perto. -E tinha sangue na cara -disse Taggart-. A limpamos antes de tomar a foto. -Sangue e miolos. Por isso não quis olhar de perto. Mitch não podia separar os olhos da foto. Sentia que era profética. Um dia haveria uma foto assim de sua cara. A mostrariam a seus pais: "É este seu filho, senhor e senhora Rafferty?". -É Jason. Faz oito anos, possivelmente nove, que não o vejo. -Viveu com ele aos dezoito anos, não é assim? -Dezoito, dezenove. Só durante um ano. -Faz uns dez anos. -Não chegam a dez. Jason sempre tinha exibido uma atitude relaxada, tão tranqüilo que parecia que se encerou o cérebro como uma tabela de surfe, mas ao mesmo tempo parecia conhecer os segredos do universo. Outros surferos o chamavam Breezer e o admiravam, invejavam-no, inclusive. Nada surpreendia nem desconcertava ao Jason. Agora sim parecia surpreso. Um olho muito aberto, a boca também. diria-se que estava conmocionado. -Foram juntos ao colégio, viveram juntos. por que não se mantiveram em contato? Enquanto Mitch olhava a foto, fascinado, Taggart não tinha deixado de observá-lo atentamente. O olhar do agente tinha a penetrante acuidade de uma adaga. -Tínhamos... distintos modos de ver as coisas -explicou Mitch. -Não estavam casados. Só compartilhavam a moradia. Não era necessário que aspirassem às mesmas coisas. -Queríamos algumas das mesmas coisas, mas diferíamos quanto ao modo das obter. -Jason queria conseguir as coisas da maneira mais rápida e fácil -supôs Taggart. -Parecia-me que ia direito a meter-se em grandes problemas e eu não queria ser parte disso. -Você faz as coisas como se deve, não se desvia do bom caminho... -Não sou melhor que ninguém, sim pior que alguns, mas não roubo. -Ainda não sabemos muito dele, mas nos consta que tinha alugado uma casa no Huntington Harbor, por sete mil ao mês. - Ao mês? -Linda casa, sobre o mar. E pelo que sabemos, parece que não tinha trabalho. -Jason acreditava que trabalhar era só para os de terra adentro, engordurado-los. -Mitch viu que devia explicar-se-. Assim chamam os surferos a quem não vive para as ondas. -E você viveu para as ondas em algum momento, Mitch? -Para o final de secundária, e durante um tempo depois de terminá-la. Mas não me acabava de convencer. -O que lhe faltava? -A satisfação de trabalhar. Estabilidade. Família. -Agora tem todo isso. Sua vida é perfeita, não? -É boa. Muito boa. Tão boa, que às vezes me põe nervoso. -Mas não é perfeita? O que lhe falta agora, Mitch? Mitch não sabia. Pensava nisso de vez em quando, mas sem encontrar resposta. -Nada. Queríamos ter filhos. Talvez só isso. -Tenho duas filhas -explicou o detetive-. Uma de nove anos e outra de doze. Os filhos lhe trocam a vida. -eu adorarei comprová-lo. Mitch se deu conta de que não mantinha o guarda tão alta como antes. recordou-se que não estava em condições de enfrentar-se a um tio tão agudo como Taggart. -Deixando a um lado o cargo por posse de drogas -disse Taggart-, Jason se manteve limpo todos estes anos. -Sempre foi afortunado. Taggart assinalou a foto. -Não sempre. Mitch não queria voltar a olhar. Devolveu-lhe a foto ao detetive. -Tremem-lhe as mãos -disse Taggart. -Certamente. Jason foi meu amigo. Divertimo-nos juntos. Todo isso me volta para a mente agora. -De modo que você não o viu nem falou com ele em dez anos. -Quase dez. Colocando a foto dentro do sobre, Taggart voltou para a carga: -Mas agora sim o reconheceu. -Sem sangue, e vendo melhor sua cara. -Quando o viu passeando ao cão, antes de que o matassem, não pensou você que lhe resultava conhecido? -Estava ao outro lado da rua, longe. Apenas o vi, e o disparo se produziu em seguida. -E você estava distraído, falando por telefone. O senhor Barnes disse que você estava ao telefone quando se ouviu o tiro. -Assim é. Não estava emprestando atenção ao tipo do cão. Só o vi. -O senhor Barnes me parece incapaz de incorrer em dobras. Qualquer diria que se mentisse lhe acenderia uma luz no nariz. Mitch não soube se devia inferir que ele mesmo, em contraste com o Iggy, era enigmático e pouco confiável. Sorriu. -Iggy é um bom homem. Olhando o sobre, cuja lapela fechou, Taggart soltou a pergunta esperada. -Com quem falava você por telefone? -Com o Holly. Minha esposa. -Tinha-o chamado para lhe dizer que tinha enxaqueca? -Sim. Para me dizer que retornaria cedo a casa porque tinha uma enxaqueca. Taggart jogou um olhar à casa que se elevava a suas costas. -Espero que se sinta melhor. -Às vezes lhe dura todo o dia. -De modo que o tipo ao que dispararam resultou ser seu antigo companheiro de apartamento. dá-se conta de por que me parece insólito? -É-o -assentiu Mitch-. Dá-me um pouco de medo pensá-lo. -Fazia nove anos que não se viam. Não tinham falado por telefone nem nada. -Ele tinha amigos novos, um grupo diferente. Não me caía bem nenhum deles e não me voltei isso a cruzar nos sítios que estávamos acostumados a freqüentar. -Às vezes, as coincidências só são coincidências. -Taggart se incorporou e se dirigiu aos degraus do alpendre. Aliviado, secando-as Palmas das mãos nas calças, Mitch também se levantou da cadeira. Taggart se deteve junto aos degraus e agachou a cabeça. -Ainda não registramos a fundo a casa do Jason. Acabamos de começar, mas já encontramos a primeira coisa estranha. O sol se ocultava e a decadente luz da tarde entrou por uma brecha entre os ramos do pimentero. Um resplendor alaranjado deu na cara ao Mitch, lhe fazendo entreabrir os olhos. Fora da repentina luz, entre as sombras, Taggart seguia explicando-se. -Na cozinha, tinha uma gaveta cheia de objetos diversos, onde guardava o dinheiro solto, recibos, canetas, chaves... Só encontramos um cartão de visita na gaveta. A sua. -A minha? -"Big Green -citou Taggart-. Desenho, instalação e manutenção de jardins. Mitchell Rafferty". Isto era o que tinha levado a detetive a visitá-lo. Tinha acudido ao Iggy, e este, que não era capaz de cometer malícia alguma nem de ocultar nada, tinha-lhe confirmado que, certamente, existia uma conexão entre o Mitch e Jason. -Você lhe deu o cartão? -perguntou Taggart. -Por quanto posso recordar, não. De que cor era o papel do cartão? -Branco. -Só usei o branco durante os últimos quatro anos. Antes utilizava papel verde claro. -E faz uns nove anos que não o via. -Algo assim como nove anos. -Assim, embora você perdeu o rastro ao Jason, ele não perdeu o seu. Tem idéia de por que? -Não. Nenhuma. Depois de um silêncio, Taggart ditou sentença. -Tem você um problema. -Tenente, pode ter obtido meu cartão de mil maneiras. Que a tivesse não significa que me estivesse seguindo o rastro. Sem elevar os olhos, o detetive assinalou o corrimão do alpendre: -Refiro a isto. Sobre o parapeito branco, um par de insetos alados se retorciam, como se jogassem. -Térmites -disse Taggart. -Podem ser formigas voadoras. -Não é esta a época do ano em que as térmites se reproduzem? Deveria fazer revisar o lugar. Uma casa pode ter bom aspecto e parecer sólida e segura, em o momento mesmo em que a estão cavando e escavando sob seus pés. Por fim, o detetive elevou a vista e olhou ao Mitch aos olhos. -São formigas voadoras -disse então Mitch. -Quer me dizer alguma outra coisa, Mitch? -Não me ocorre nada. -Tome um momento. Pense. Certifique-se. Se Taggart tivesse estado aliado com os seqüestradores, conduziria-se de outra maneira. Não seria tão persistente nem consciencioso. teria se notado que para ele isto era um jogo, uma farsa. "Se lhe tivesse contado algo, Mitch, Holly já estaria morta". Sua anterior conversação possivelmente tivesse sido gravada a distância. Hoje em dia, os microfones direcionais de alta tecnologia, conhecidos como microfones escopeta, podiam captar claramente vozes e sons a dezenas de metros de distância. Tinha-o visto em um filme. Pouco do que via nos filmes estava apoiado em feitos reais, mas lhe parecia que os microfones escopeta sim existiam. Taggart podia ter sido tão ignorante de que o gravavam como o mesmo Mitch. É obvio, o que se feito uma vez, podia fazer-se dois. Uma caminhonete que nunca tinha visto estava estacionada frente à calçada, ao outro lado da rua. Talvez houvesse um vigilante apostado em seu interior. Taggart estudou a rua; era evidente que procurava o objeto do interesse do Mitch. As casas também eram suspeitas. Mitch não conhecia todos os vizinhos. Uma delas estava vazia e em venda. -Não sou seu inimigo, Mitch. -Nunca acreditei que o fora -mentiu. -Todos acreditam que o sou. -Eu gosto de pensar que não tenho inimigos. -Todos têm inimigos. Até os Santos. -por que tinha que ter inimigos um santo? -Os réprobos odeiam aos bons só porque são bons. -A palavra "réprobo" soa tão... -Antiquada -sugeriu Taggart. -Suponho que, no trabalho de você, tudo parece branco ou negro. -Por debaixo de todos os matizes do cinza, tudo é branco e negro, Mitch. -Não me educaram para pensar dessa maneira. -Entendo-lhe. Por mais que a vejo demonstrada diariamente, custa-me acreditar essa verdade. Matizes do cinza, menos contraste, menos certezas... Isso é muito mais cômodo. Taggart extraiu os óculos de sol do bolso da camisa e as pôs. Tirou um cartão de visita do mesmo bolso. -Já me deu um cartão -disse Mitch-. Tenho-a na carteira. -Nessa só figura o número de telefone do departamento de homicídios. Escrevi o de meu móvel no dorso desta. É estranho que o dê, não cria. Pode-me chamar o dia que queira, a qualquer hora.

Mitch tomou o cartão. -Disse-lhe tudo o que sei, tenente. Que Jason tenha aparecido neste assunto me confunde por completo. Taggart o olhou desde detrás dos impenetráveis espelhos de seus óculos. Mitch leu o número do móvel e logo se meteu o cartão no bolso da camisa. Uma vez mais, o detetive fez uma espécie de entrevista. -"A memória é uma rede. Alguém a encontra cheia de peixes quando a saca do rio, mas toneladas de água passaram por ela de comprimento". Taggart baixou os degraus do alpendre. dirigiu-se à rua pelo caminho de entrada. Mitch sabia que tudo o que havia dito ao Taggart tinha ficado na rede do detetive, cada palavra e cada entonação, cada ênfase e cada hesitação, cada expressão facial e cada matiz de sua linguagem corporal, quer dizer, não só o que as palavras diziam, mas também também o que sugeriam. Naquele montão de peixes, que o policial leria com a acuidade de uma verdadeira adivinha ao escrutinar as folhas de chá, encontraria um presságio ou um indício que o faria retornar com mais advertências e novas perguntas. Taggart cruzou a porta principal e a fechou detrás de si. O sol deixou de ver-se pela brecha aberta entre os ramos do falso pimentero, e Mitch ficou à sombra. Mas não sentiu mais frio, porque, de todos os modos, o sol não o tinha esquentado.

 

Na habitação do televisor, este parecia um grande olho cego. Embora Mitch tivesse empregado o mando a distancia para encher a tela de brilhantes visões idiotas, esse olho não tivesse podido vê-lo; assim e tudo, sentia-se observado por uma presença que o contemplava com fria diversão. A secretária eletrônica estava sobre um escritório, em um rincão da estadia. Só havia uma mensagem, do Iggy: -"Perdão, irmão, devi te haver telefonado assim que partiu. Mas esse Taggart é como uma dessas ondas gigantes que ocupam todo o horizonte. Assustam-lhe tanto que lhe fazem cair da tabela de surfe e desejar que te tivesse ficado na praia às ver romper de ali". Mitch se sentou frente ao escritório e abriu a gaveta onde Holly guardava o talão de cheques e os documentos bancários. Em sua conversação com o seqüestrador, tinha dado uma estimativa excessiva de seu balanço de conta corrente, que era de 10.346,54 dólares. O resumo mensal mais recente mostrava uma conta de economias adicional, com 27.311,40 dólares. Tinham contas pendentes. Estavam em outra gaveta desse mesmo escritório. Não as olhou. Só contava os ativos. O pagamento hipotecário mensal se descontava de forma automática de sua conta corrente. O resumo indicava que ainda ficavam 286.770 dólares por pagar. Recentemente, Holly tinha calculado que a casa valia 425.000. Era uma soma incrível para um pequeno bungaló em um bairro velho, mas era certa, ajustada ao preço de mercado. Embora antigo, o bairro era atrativo, e a maior parte do valor correspondia ao amplo terreno. Somado ao efetivo disponível com que contavam, o preço que podia obter pela casa chegava a um total de 175.000 dólares. Isto distava muito de dois milhões, e o seqüestrador não lhe tinha dado a impressão de ter a intenção de querer negociar absolutamente. De todas formas, o valor da casa não podia converter-se em dinheiro em efetivo a não ser que assinassem um novo empréstimo ou a vendessem. E em ambos os casos, como a propriedade da casa era compartilhada, teria necessitado a assinatura do Holly. Não teriam a casa se Holly não a tivesse herdado de sua avó, Dorothy, que a tinha criado. À morte desta, a hipoteca era mais baixa, mas tinham tido que negociar um novo empréstimo para pagar os impostos sobre a herança e salvar a propriedade. De modo que a soma disponível para o pagamento do resgate era de aproximadamente 37.000 dólares. até agora, Mitch não se considerou um fracassado. A imagem que tinha de si mesmo era a de um jovem que estava construindo sua vida de forma responsável. Tinha vinte e sete anos. Ninguém é um fracassado a essa idade. Mas havia um fato indiscutível. Embora Holly era o centro de sua vida, e tinha um valor incalculável, no momento de ver-se forçado a lhe pôr aprecio, só podia pagar por ela 37.000 dólares. Afligiu-o uma amargura que só pôde dirigir contra si mesmo. Isso não servia de nada. A amargura podia voltar-se autocompasión, e se se entregava a esse sentimento converteria-se de verdade em um fracassado. E Holly morreria. Embora a casa não estivesse hipotecada, embora tivessem meio milhão em efetivo e fossem incrivelmente triunfadores para tratar-se de pessoas de sua idade, não teria recursos suficientes para resgatá-la. Essa verdade o fez compreender que não seria o dinheiro o que salvasse ao Holly. Ele seria quem a salvaria, se é que podia ser salva. Seria graças a sua perseverança, sua inteligência, sua coragem, seu amor. Quando voltou a deixar o saldo bancário na gaveta, viu um sobre que tinha seu nome escrito com a letra do Holly. Continha um cartão de felicitação para seu aniversário, que ela tinha comprado semanas antes dessa data. Na parte dianteira do cartão se via a foto de um ancião cheio de rugas e verrugas. A lenda dizia: "Quando for velho, ainda te necessitarei, querido". Mitch abriu o cartão e leu: "Para então, só poderei desfrutar da jardinagem, e será um excelente abono". Riu. Podia imaginar ao Holly rendo na loja quando abriu o cartão e leu esse arremate. de repente, sua risada se transformou em outra coisa. Durante essas últimas, terríveis, cinco horas, tinha estado ao bordo das lágrimas mais de uma vez, mas as havia contido. O cartão lhe fez desmoronar-se. Sob o texto impresso, ela tinha escrito: "feliz aniversário! Ama-te, Holly". Sua letra era graciosa, feminina e cuidada. Imaginou empunhando a caneta. Suas mãos eram delicadas, mas tinham uma força surpreendente. Conseguiu recuperar a compostura recordando a força dessas belas mãos. Foi à cozinha e encontrou as chaves do carro do Holly penduradas do tabuleiro que havia junto à porta traseira. O veículo era um Funda, um modelo de fazia quatro anos. Depois de agarrar seu telefone móvel que estava recarregando junto ao forno, saiu e colocou sua caminhonete na garagem, ao fundo do jardim. O Funda branco estava ali, reluzente, pois Holly o tinha lavado no domingo pela tarde. Estacionou junto a ele. Saiu da caminhonete, fechou a porta do lado do condutor e se parou entre os dois veículos, varrendo o lugar com o olhar. Se alguém tivesse estado ali momentos antes, teria ouvido e visto como se aproximava a caminhonete, o que lhe tivesse dado uma ampla margem de tempo para escapar. A garagem tinha um vago aroma de azeite de motor e graxa, e um forte aroma que se desprendia da grama talhada que continham os sacos de arpillera empilhados em a caminhonete. ficou olhando o teto baixo, que também era o chão do mezanino que ocupava dois terços da superfície da garagem. As janelas desse habitáculo davam à casa e eram um lugar para observá-la. Alguém soube quando chegava Mitch à casa, inclusive quando entrou na cozinha. O telefone tinha divulgado, e quem chamava era Holly. A chamada se produziu momentos depois de que ele encontrasse os pratos quebrados e o sangue. Embora na garagem houvesse um observador, que talvez ainda estivesse ali, Holly não se encontraria com ele. Possivelmente soubesse onde a tinham, possivelmente não. Mas, embora esse observador, cuja existência até agora era hipotética, soubesse onde encontrar ao Holly, seria uma temeridade que Mitch o buscasse. Estava claro que esta gente estava habituada a empregar a violência e também que era desumana. Um simples jardineiro não estava em condições de enfrentar-se com nenhum deles. Um tablón rangeu sobre sua cabeça. Em uma construção velha como essa, o rangido podia não ser mais que um ruído de acomodação normal da estrutura, juntas velhas que pagam seu tributo à força de gravidade. Mitch se aproximou da porta do lado do condutor do Funda e a abriu. Titubeou antes de sentar-se ao volante, deixando a porta aberta. Para distrair-se, acendeu o motor. A porta da garagem estava aberta, de modo que não havia perigo de que se intoxicasse com monóxido de carbono. Saiu do carro, fechando a porta de repente. Se houvesse alguém escutando, daria por sentado que a tinha fechado de dentro. Talvez quem escutava se sentiria intrigado ao notar que não tirava o carro da garagem imediatamente. Uma das coisas que talvez supusera era que estava fazendo uma chamada Telefónica. Contra um dos muros havia um tabuleiro com várias das ferramentas de jardinagem que empregava para trabalhar em sua própria casa. As tesouras e podaderas pareciam muito pomposas, incômodas de dirigir. Selecionou em seguida uma pá, feita de uma única peça de aço saído de máquina. A manga estava recubierto de borracha. A pá era larga e levemente côncava, não tão afiada como a folha de uma faca, mas sim bastante apta para cortar. Depois de pensar-lhe durante um momento, chegou à conclusão de que, embora era capaz de assaltar a um homem, era melhor escolher uma arma que não matasse facilmente. Na parede oposta a aquela onde estavam as ferramentas de jardinagem, havia outros tabuleiros com mais instrumentos desse tipo. Escolheu um que era uma espécie de chave inglesa.

 

Mitch era consciente de que certa loucura, nascida do desespero, apropriou-se dele. Já não podia suportar a inatividade. Aferrando a chave com a mão direita, dirigiu-se ao fundo da garagem, onde, no rincão norte, uma levantada escada aberta levava diretamente ao mezanino. Se seguia reagindo como até esse momento, quer dizer, esperando docilmente a chamada das seis, em vez de atuar, comportaria-se como o autômato em que os seqüestradores queriam convertê-lo. Mas às vezes até os Ferrari terminam transformados em sucata. por que Jason Osteen tinha roubado o cão e por que tinha sido assassinado de um disparo a modo de advertência, eram mistérios para os que Mitch não tinha solução. Entretanto, a intuição lhe dizia que os seqüestradores sabiam que Jason podia ser relacionado com ele e que esse vínculo despertaria as suspeitas da polícia. Urdiam uma trama de evidências circunstanciais que, se chegavam a matar ao Holly, serviria para que Mitch fosse levado a julgamento por seu assassinato, de modo que qualquer tribunal o condenaria a morte. Possivelmente estivessem fazendo-o só para que o fora impossível ir às autoridades em busca de ajuda. Assim isolado, seria mais fácil controlá-lo. Ou possivelmente, uma vez que se fizessem com os dois milhões de dólares mediante o plano, fora qual fosse, que eles lhe apresentassem, não tinham intenção de liberar a sua esposa em troca do resgate. Se podiam utilizá-lo para assaltar por pessoa interposta um banco ou alguma outra instituição, se matavam ao Holly uma vez que tinham o dinheiro e se eram o suficientemente inteligentes como para não deixar indícios que conduzissem para eles, Mitch e talvez algum outro cabrito expiatório do qual ele ainda não sabia nada podiam ficar como os responsáveis por todos esses delitos. Sozinho, ferido pela morte de sua esposa, desprezado, encarcerado, nunca saberia quem tinham sido seus inimigos. perguntaria-se toda a vida por que o haviam escolhido a ele e não a qualquer outro jardineiro, mecânico, ou pedreiro. Embora o desespero que lhe fez subir as escadas o tinha despojado de todo temor, de toda inibição, não lhe tinha roubado a razão. Não subiu depressa, a não ser que o fez com cuidado, sujeitando a barra de ferro pelo extremo, com o lado grosso da chave elevado a modo de porrete. Os degraus de madeira rangiam, talvez até chiavam sob seus passos, mas o ronco do motor do Funda, retumbando entre os muros, mascarava os sons de sua ascensão. O mezanino tinha paredes por três lados e estava aberto por um. Do alto das escadas, um corrimão se estendia para a esquerda, ocupando tudo o largo da garagem. Nos três muros do mezanino havia janelas que permitiam a entrada da luz da tarde. Por detrás do corrimão, e elevando-se por cima dela, havia pilhas de caixas de cartão e outros elementos armazenados que não cabiam no bungaló. Os trastes estavam dispostos em fileiras, de perto de um metro de alto em alguns lugares e até de dois em outros. Os corredores que as separavam estavam às escuras, e não havia maneira de ver o que havia ao outro lado dos ângulos que formavam em seus extremos mais apartados. Uma vez no alto das escadas, Mitch se encontrou frente ao primeiro corredor. Um par de janelas da parede norte deixavam entrar luz suficiente como para que tivesse a certeza de que não havia ninguém escondido em algum rincão entre as caixas. O segundo corredor resultou estar mais escuro que o primeiro, embora o corredor que o cortava pelo extremo mais afastado estava iluminado pelas janelas, ocultas a sua vista, que davam ao oeste, para a casa. A luz tivesse recortado a silhueta de qualquer que se encontrasse apostado ali. Como as caixas não eram todas do mesmo tamanho e não sempre estavam empilhadas de forma regular, e como, além disso, entre as fileiras havia algum que outro espaço livre, em cada corredor ficavam ocos o suficientemente grandes como para que um homem se ocultasse. Mitch tinha subido as escadas sem fazer ruído. Era de supor que o motor do Funda não tinha estado aceso ainda o suficiente tempo para despertar suspeitas. De modo que, se havia um sentinela apostado no mezanino, estaria alerta, escutando, mas ainda não acreditaria necessário esconder-se imediatamente. O terceiro corredor era o mais iluminado, pois uma janela se abria precisamente onde terminava. Revisou o quarto corredor e depois o quinto e último, que corria ao longo da parede sul, e se achava iluminado por duas janelas poeirentas. Não encontrou a ninguém. O corredor transversal que ia paralelo à parede oeste, e no que finalizavam todos os corredores que foram deste ao oeste, era a única parte do mezanino que ficava por examinar. Cada uma das fileiras de caixas ocultava uma parte desse espaço. Elevando ainda mais a barra de ferro, dirigiu-se à parte dianteira do mezanino pelo corredor se localizado mais ao sul. encontrou-se com que todo o percurso disso último corredor estava tão vazio como as zonas que tinha revisado do outro extremo da habitação. Entretanto, no chão, contra o extremo de uma fileira de caixas, havia alguns objetos que não tinham por que estar ali. mais da metade das coisas do mezanino tinha pertencido ao Dorothy, a avó do Holly. Colecionava adornos e outros artigos de decoração para cada um de os principais dias festivos do ano. Em Natal tirava de suas embalagens cinqüenta ou sessenta bonecos de neve de várias classes e tamanhos, feitos de cerâmica. Tinha mais de cem Santa Claus desse tipo. E também renas de porcelana, árvores de Natal, grinaldas, sinos e trenós de louça, grupos de meninos cantando canções de natal e casas em miniatura de cerâmica que podiam colocar-se para formar uma aldeia. No bungaló não cabia nenhuma daquelas coleções completas do Dorothy para uma ou outra festividade. Em cada ocasião, colocava tudo o que cabia na casa e logo o voltava a guardar. Holly não tinha querido vender nenhuma peça. Continuava com a tradição. Algum dia, dizia, teriam uma casa maior, e todas as coleções poderiam admirar-se. Dormindo em centenas de caixas de cartão havia amantes para o Dia de São Valentín, coelhos, cordeiros e imagens religiosas para Páscoa, patriotas para o 4 de Julho, fantasmas e gatos negros para a Noite de Bruxas, peregrinos para o Dia de Ação de Obrigado e, é obvio, legiões de figuras natalinas. Os objetos que encontrou sobre o chão do último dos corredores não eram de cerâmica, ornamentais nem festivos. tratava-se de aparelhos eletrônicos, incluídos um receptor de rádio e uma grabadora. Havia três que não soube identificar. Estavam conectados a um tabuleiro de tomadas múltiplos que, a sua vez, ia à tomada elétrica da parede. As luzes indicadoras revelavam que a equipe estava em funcionamento. Tinham estado vigiando a casa. Era provável que habitações e telefones tivessem microfones ocultos. Crédulo em seu sigilo e no fato de que não tinha visto ninguém no mezanino, Mitch deu por sentado, ao ver a equipe, que este não estava sendo dirigido por nenhuma pessoa nesse momento, mas sim devia estar funcionando em modo automático. Talvez podiam, inclusive, dirigi-lo a distância. No momento mesmo em que pensava isto, o painel de luzes indicadoras trocou de cor. Embora não entendia nada de tais aparelhos, teve a certeza de que acabavam de ativá-lo. Ouviu um vaio que não era o do motor do Funda e, em seguida, a voz do detetive Taggart: "eu adoro estas vizinhanças velhas. Assim era Califórnia do Sul nos bons tempos...". Não só havia microfones nas habitações da casa, mas também também no alpendre dianteiro. deu-se conta de que lhe tinham ganho pela mão só um instante antes de sentir o canhão de uma pistola contra a nuca.

 

Embora deu um coice, Mitch não tentou voltar-se para o pistoleiro nem mover a chave inglesa. Não poderia fazê-lo a suficiente velocidade. Durante as últimas cinco horas, tinha tomado aguda consciência de suas limitações, o qual podia dizer-se que era um lucro, dado que se criou acreditando que não as tinha. Talvez fosse o arquiteto de sua própria vida, mas já não podia acreditar que fora o amo de seu destino. "... antes de que destruíssem tudas as laranjeiras para construir um baldio de casas de estuque". detrás dele, o homem falou. -Solta a barra. Não te incline para deixá-la no chão. Deixa-a cair. A voz não era a do homem do telefone. Este parecia mais jovem, e não tão frio, mas tinha uma forma de falar perturbadoramente inexpressiva, que cortava cada palavra, dando a todas o mesmo peso, idêntico tom. Mitch deixou cair o porrete. "... mais conveniente. Mas casualmente andava por seu bairro". Usando, ao parecer, um controle remoto, o homem apagou a grabadora. -vê-se -disse ao Mitch- que quer que a cortem em pedaços e a deixem morrer, como ele te prometeu. -Não. -Talvez nos equivocamos ao te escolher. Possivelmente te agradaria te desfazer dela. -Não diga isso. O homem pronunciava cada palavra em um mesmo tom, profissional, carente de emoção. -Um seguro de vida elevado. Outra mulher. Poderia ter seus motivos. -Não há nada disso. -Talvez trabalharia melhor para nós se, a modo de pagamento, prometêssemo-lhe matá-la. -Não. A amo. De verdade. -Se tenta fazer outra graça destas, dá-a por morta. -Entendo. -Retornemos por onde veio. Mitch se voltou e o outro também o fez, mantendo-se detrás dele. Ao começar a retroceder sobre seus passos com o passar do último corredor, passando a primeira das janelas que olhavam ao sul, Mitch ouviu o som que produziu a chave ao roçar os tablones quando o pistoleiro a recolhia do chão. Podia haver-se voltado para lhe dar uma patada, com a esperança de surpreender ao homem quando este se estivesse incorporando. Mas temeu que o outro esperasse a manobra. até agora, tinha suposto que aqueles tipos sem nome eram delinqüentes profissionais. Era provável que fossem, mas também algo mais. Não sabia que exatamente, mas sim que se tratava de um pouco ainda pior. Criminais, seqüestradores, assassinos. Não podia imaginar o que podia ser pior que o que já sabia deles. Seguindo-o pelo corredor, o pistoleiro voltou a falar. -Sobe à Funda. Vê dar um passeio. -De acordo. -Espera a chamada às seis. -Conforme. Farei-o. Quando se aproximavam do final do corredor, ao fundo do mezanino, e deviam dobrar à esquerda e cruzar todo o largo da garagem para a escada, que baixava do ângulo nordeste, um pouco parecido à sorte interveio em forma de tropeção com uma corda. No momento em que ocorreu, Mitch não percebeu a causa, só o efeito. Uma torre de caixas de cartão se derrubou. Algumas caíram no corredor e uma ou dois, sobre o pistoleiro. As etiquetas escritas nas caixas diziam que continham cerâmicas do Halloween. Em realidade, tinham mais pacotes com borbulhas plásticas e Pelotas de papel que objetos de cerâmica, e não eram pesadas, mas a avalanche quase derrubou ao homem e o fez cambalear-se. Mitch esquivou uma caixa e elevou um braço para desviar outra. A primeira fila, ao cair, fez que outra se desequilibrasse. O jardineiro esteve a ponto de lhe tender a mão ao outro para ajudá-lo a recuperar o equilíbrio. Mas se deu conta de que seu oferecimento de ajuda podia ser interpretado como um ataque. Para evitar mal-entendidos, e também que lhe pegassem um tiro, tornou-se a um lado. A madeira velha e ressecada do corrimão do fundo do mezanino podia suportar sem problemas a qualquer que se reclinasse sem fazer força, mas resultou ser muito débil para resistir o impacto súbito do pistoleiro, que chocou contra ela ao trastabillarse. Os balaústres rangeram, os pregos chiaram ao soltar-se, e dois partes do corrimão se separaram pela junta. O pistoleiro amaldiçoou ante o dilúvio de caixas e gritou, alarmado, quando o corrimão cedeu sob seu peso. Caiu ao chão da garagem. A altura, uns dois metros e médio, não era muita, mas assim e tudo aterrissou com um ruído estrepitoso, e entre o estrondo da madeira rota, a pistola se disparou.

 

Do momento em que a primeira caixa se derrubou até que se produziu o ponto final do disparo, só transcorreram uns poucos segundos. Mitch ficou imóvel, atônito e incrédulo, durante mais tempo de que demorou o episódio em desenvolver-se. O silêncio o tirou de repente de sua paralisia. Surpreendentemente, não havia nenhum ruído abaixo. apressou-se a baixar as escadas, e, sob seus pés, os tablones trovejaram com força, como se descarregassem de repente as tormentas que antigamente açoitassem as árvores de onde tinham sido cortados. Quando, uma vez abaixo, Mitch cruzou a garagem por diante da caminhonete e do Funda, que seguia em marcha, a euforia e o desespero pugnavam por dominá-lo. Não sabia o que encontraria, e, portanto, não sabia o que sentir. O pistoleiro jazia bocabajo, com a cabeça e os ombros sob um carrinho de mão investido. Devia haver-se estrelado contra o bordo, fazendo que se derrubasse sobre ele. Uma queda desde dois metros e meio de altura não tinha por que havê-lo deixado sumido em tão profunda imobilidade. Respirando agitadamente, mas não devido ao esforço físico, a não ser à ansiedade, Mitch volteou o carrinho de mão e a fez a um lado. A cada respiração, cheirava o aroma do azeite de motor e o da grama talhada, e, ao agachar-se junto ao pistoleiro, detectou também o agudo aroma da pólvora e a adocicada fragrância do sangue. Deu a volta ao corpo e viu seu rosto com claridade pela primeira vez. O desconhecido tinha veintitantos anos, mas sua suave cútis era o de um moço preadolescente; os olhos eram verdes, com largas pestanas. Não parecia um homem capaz de falar em tom inexpressivo sobre sua intenção de mutilar e assassinar a mulheres. Ao aterrissar, tinha dado com a garganta no bordo de metal do carrinho de mão. Ao parecer, o impacto lhe tinha esmagado a laringe e fundo a traquéia. O antebraço direito estava quebrado, e a mão direita, ao ficar apanhada debaixo dele, tinha disparado a pistola em um movimento reflito. O índice seguia curvado sobre o gatilho. A bala entrou justo por debaixo do esterno, para cima e à esquerda. A escassa hemorragia sugeria que tinha alcançado o coração, e que a morte foi imediata. Se o disparo não o tivesse matado imediatamente, a lesão da garganta o teria feito em pouco tempo. Era muita sorte para tratar-se só de sorte e nada mais. Fora o que fosse, sorte ou algo melhor, sorte ou algo pior, ao princípio Mitch não soube se isto o ajudava ou jogava em seu contrário. Tinha um inimigo menos. Um incerto regozijo, adubado com a emoção da vingança, palpitou nele, e possivelmente lhe tivesse arrancado uma risada torcida e desinteressada, de não ter sido porque se deu conta em seguida de que esta morte complicava sua situação. Quando esse indivíduo não se apresentasse a seus cúmplices, chamariam-no. Quando não respondesse ao telefone, talvez fossem buscá-lo. Se o encontravam morto, dariam por sentado que Mitch o tinha matado, e, em pouco tempo, arrancariam- os dedos ao Holly um a um, cauterizando cada coto a fogo vivo e sem anestesia. Mitch foi ao carro a toda pressa e apagou o motor. Empregou o controle remoto para fechar o portão da garagem. Quando reinou a escuridão, acendeu as luzes. Possivelmente ninguém tivesse ouvido esse único disparo. E embora alguém tivesse escutado o som, tinha a certeza de que ninguém o teria reconhecido como tal. A essa hora, os vizinhos não teriam retornado do trabalho. Talvez alguns guris já houvessem tornado do colégio, mas estariam escutando CD ou imersos no mundo de seus consola, e perceberiam o disparo amortecido como outra rajada de percussão musical ou como um efeito do videojuego. Mitch voltou junto ao corpo e ficou olhando-o. Durante um momento, não pôde mover-se. Sabia o que devia fazer, mas não podia atuar. Tinha vivido durante quase vinte e oito anos sem presenciar uma só morte. Agora, tinha visto dois homens mortos de um disparo o mesmo dia. Assaltaram-no pensamentos sobre sua própria morte e, embora tratou de reprimi-los, de enjaulá-los, não o obteve. O sussurro de seus ouvidos era só o da corrente de seu sangue, impulsionado pelos remos de seu coração, que remava, mas sua imaginação o atribuiu às escuras asas que batiam na periferia de seu campo visual. Embora não se atrevia a registrar o corpo, a necessidade fez que se ajoelhasse junto a ele. Retirou a pistola de uma mão tão morna que fazia pensar que a suposta morte não era mais que uma farsa. Pô-la no carrinho de mão. Se a perna da calça direita das calças do homem não tivesse ficado levantada pela queda, Mitch não teria visto a segunda arma. O pistoleiro levava um revólver de canhão recortado em uma capa tobillera. Depois de pôr o revólver junto à pistola, Mitch se ocupou da capa. Abriu os fechamentos e pôs a pistolera junto às armas. Pinçou nos bolsos da jaqueta esportiva do morto e deu a volta aos das calças. Descobriu um jogo de chaves. Uma era de carro e as outras três, que estudou antes das deixar de novo no bolso de onde as tinha tirado, não pareciam ter nada de especial. Depois de vacilar durante um momento, voltou-as a agarrar e as pôs no carrinho de mão. Não encontrou nenhuma outra coisa de interesse, fora de uma carteira e um telefone móvel. A primeira devia conter alguma identificação, o segundo possivelmente estivesse programado para chamar com número abreviado, entre outros, a cada um dos cupinchas do morto. Mitch não se atreveu a responder se o telefone chegava a soar. Embora falasse com monossílabos lhe seria impossível fazer-se passar pelo morto. Apagou o telefone. Suspeitariam quando lhes respondesse uma mensagem de voz, mas não atuariam com precipitação por uma mera suspeita. Contendo sua curiosidade, Mitch deixou a carteira e o telefone no carrinho de mão. Tinha coisas mais urgentes que fazer.

 

O angustiado jardineiro tirou uma lona da caminhonete. Empregava-a para envolver podaduras de roseira. Os espinhos não podiam penetrá-la com tanta facilidade como a arpillera. Mitch não podia deixar o corpo ali, pois algum dos outros seqüestradores acudiria cedo ou tarde em busca do morto. A idéia de conduzir seu carro com um cadáver no porta-malas lhe encolhia o estômago. Teria que comprar uns antiácidos. O uso tinha abrandado a lona plástica, que estava tão rachada como o verniz de um vaso antigo. Embora não era impermeável, seguia sendo relativamente resistente à água. Como o coração do pistoleiro se deteve imediatamente, tinha saído pouco sangue da ferida. Ao Mitch não preocupou, pois, que pudessem ficar manchas comprometedoras. Não sabia quanto tempo deveria conservar o corpo no porta-malas. Umas poucas horas, um dia, dois? cedo ou tarde, outros fluídos, além do sangue, começariam a jorrar dele. Desdobrou a lona no chão e fez rodar o cadáver para que ficasse sobre ela. Uma sensação de náusea, produzida pela maneira em que os braços do morto agitaram-se e pelo movimento deslocado de sua cabeça, alagou-o. Pensando no perigo que corria Holly, que exigia que não lhe fizesse ascos nem sequer às tarefas mais repulsivas, fechou os olhos e tomou ar várias vezes, lenta e profundamente. tragou-se suas náuseas. O movimento pendular da cabeça sugeria que o pistoleiro tinha o pescoço quebrado. De ser assim, tinha morrido por partida triplo, pelo pescoço quebrado, pela traquéia esmagada e pela bala que lhe rasgou o coração. Não podia tratar-se de simples sorte. As múltiplos causa de sua morte não podiam ser um mero golpe de boa fortuna. Supor que assim era lhe parecia incoerente. Extraordinário, sim. Um incidente extraordinário. E estranho. Mas não um golpe afortunado. Além disso, ainda não podia afirmar que o acidente jogasse a seu favor. Bem podia ser, pelo contrário, sua perdição. Depois de fazer rodar o corpo sobre a lona, não perdeu tempo em passar uma soga pelas casas para fechar e rodear o pacote. A preocupação era como o tic tac de um cronômetro, como um relógio de areia que se vazia, e temia ser interrompido de algum modo antes de ter completado a sinistra limpeza. Arrastou o corpo envolto na lona até a parte traseira do Funda. Quando abriu o porta-malas do carro, o absurdo pensamento de que encontraria nele a outro homem morto ocupando esse espaço fez que tivesse um estremecimento de apreensão. Mas o porta-malas estava vazio. Sua imaginação jamais tinha sido um pântano febril e, até esse momento, nunca foi morbosa. perguntou-se se isso de supor que haveria um segundo cadáver, mais que um golpe de fantasia, não seria o pressentimento de que haveria outros mortos em um futuro imediato. Carregar o corpo no porta-malas resultou uma tarefa árdua. O pistoleiro pesava menos que Mitch, mas, ao fim e ao cabo, tratava-se de um peso morto. Se Mitch não tivesse sido forte, e se seu trabalho não o tivesse mantido em boas condições físicas, talvez não teria podido com o cadáver. Para quando ao fim fechou o porta-malas e lhe jogou a chave, jorrava de suor. Uma cuidadosa inspeção lhe fez ter a certeza de que não havia sangre no carrinho de mão. Tampouco no chão. Recolheu os balaústres quebrados e a parte de corrimão cansado e, depois de tirá-los da garagem, escondeu-os entre o que ficava do montão de lenha que empregassem para a chaminé da sala de estar durante o passado inverno. Voltou a entrar e, subindo pelas escadas até o mezanino, retornou ao fatal lugar do corredor sul. Não demorou para descobrir a causa do acidente. Muitas das caixas empilhadas estavam seladas com papel celofane, mas outras foram fechadas com corda. A manga da chave inglesa ainda estava apanhado em um nó. O pistoleiro devia levar a ferramenta pendurando a um flanco, ligeiramente separada de seu corpo, e lhe teria enganchado em um nó da corda. havia-se jogado em cima a Noite de Bruxas inteira. Mitch voltou a colocar quase todas as caixas quedas do mesmo modo em que estavam. Criou uma nova fileira de pilhas baixas frente à brecha do parapeito, para ocultar o dano que tinha sofrido. Se os cupinchas do pistoleiro vinham a buscá-lo, os balaústres estilhaçados e a seção de corrimão mutilado lhes sugeririam que se produziu uma luta. A ruptura do corrimão seria visível do ângulo sudeste da planta baixa. Entretanto, as escadas estavam no ângulo nordeste, e os amigos do pistoleiro possivelmente nunca se situassem de forma tal que pudessem ver as imperfeições. Embora ao Mitch teria agradado descarregar parte de sua ira destroçando a equipe de espionagem eletrônica que estava disposto com o passar do corredor da parede oeste, não o tocou. Quando recolheu a chave inglesa lhe pareceu mais pesada do que recordava. No silêncio, na quietude, percebia algo enganoso. sentia-se observado. sentia-se confundido. Perto dele, as aranhas, escondidas em seus tecidos, deviam estar sonhando com suculentas presas, apetitosos bocados que se retorciam apanhados nos pegajosos fios. Uma ou duas grandes moscas da primavera certamente se estivessem aproximando, zumbindo, a essas sedosas armadilhas. As aranhas têm paciência. Algo espreitava, algo mais que as moscas, algo pior que as aranhas. Mitch se voltou, mas, ao parecer, estava sozinho. Uma verdade importante lhe escapava, não entre as sombras, nem detrás das coleções embaladas, a não ser ante seus próprios olhos. Via mas estava cego. Ouvia, mas estava surdo. Esta extraordinária sensação se foi fazendo mais intensa, cresceu até fazer-se intolerável, até adquirir uma dimensão física que lhe esmagava os pulmões. Depois, cedeu com rapidez, desapareceu sem mais. levou-se a chave à planta baixa e a pendurou em seu correspondente tabuleiro de ferramentas. Agarrou do carrinho de mão o telefone, a carteira, a chave, as duas armas e a capa tobillera. Deixou-o tudo no assento do acompanhante do Funda. Tirou o carro da garagem e o estacionou junto à casa, em que entrou depressa para procurar uma jaqueta. Vestia uma camisa de flanela e, embora a noite que o esperava não seria o suficientemente fresca para ficar tal objeto, precisava levar uma. Quando saiu da casa, esperava encontrar-se ao Taggart aguardando-o junto à Funda. O detetive não apareceu. Já no carro, pôs a ligeira jaqueta esportiva no assento do acompanhante, ocultando as coisas que lhe tinha tirado ao morto. O relógio do salpicadero coincidia com o que ele levava na boneca: as 17.11. Saiu à rua e dobrou à direita, com um homem morto por partida triplo no porta-malas e pensamentos ainda mais terríveis dando voltas por sua cabeça.

 

A duas maçãs da casa, Mitch estacionou frente ao meio-fio. Deixou o motor em marcha e manteve os guichês fechadas e as portas com o seguro jogado. Não recordava ter assegurado nunca as portas estando ele dentro do automóvel. Jogou um olhar ao espelho retrovisor, com a repentina certeza de que a fechadura do porta-malas tinha ficado médio aberta e que a tampa se levantou, oferecendo o espetáculo de um cadáver amortalhado. O porta-malas seguia fechado. Na carteira do morto havia cartões de crédito e uma carteira de motorista de Califórnia em nome do John Knox. Na foto do carnê, o jovem delinqüente sorria de forma tão deslumbrante e forçadamente sedutora que parecia um ídolo de alguma banda de rock para adolescentes. Knox levava quinhentos e oitenta e cinco dólares, quinhentos deles em bilhetes de cem. Mitch contou o dinheiro sem tirar o da carteira. Não havia nada que revelasse nem um só dado sobre a profissão, os interesses pessoais nem os conhecidos do morto. Nem cartão de visita, nem cartão de biblioteca, nem cartão de seguro médico. Tampouco fotos de seres queridos. Não havia, enfim, nota avisas, nem cartão de segurança social, nem recibos. Segundo a carteira de motorista, Knox vivia em Lacuna Beach. Talvez se pudesse inteirar de algo útil registrando sua casa. Mitch necessitava tempo para avaliar os riscos de ir à casa do Knox. Além disso, tinha que fazer outra visita antes da chamada que fariam às seis. Pôs a carteira, o telefone móvel do morto e o jogo de chaves no porta-luvas e colocou o revólver e a capa tobillera sob o assento do condutor. A pistola ficou no assento do acompanhante, sob sua jaqueta esportiva. Ziguezagueando por ruas residenciais de pouco tráfico, ignorando os limites de velocidade e inclusive um par de sinais de stop, Mitch chegou a casa de seus pais, no leste do Orange, às 17.35. Estacionou no caminho de entrada e fechou bem as portas do carro. A formosa casa se elevava sobre um segundo nível de colinas, e outras colinas se elevavam por detrás delas. Não havia veículos suspeitos na rua de dobro direção, que descia em pendente para terrenos mais planos. Uma lânguida brisa começou a soprar do este. Com mil línguas de um verde prateado, os altos eucaliptos se sussurravam coisas uns aos outros. Olhou para a única janela do quarto de estudo. Aos oito anos, tinha passado ali vinte dias seguidos. Um portinha interior mantinha fechada essa janela. A privação sensorial ajuda a desenvolver o pensamento, desembaraça a mente. Essa é a teoria que explica a existência da quarta de aprendizagem, escuro, silencioso, vazio. Daniel, o pai do Mitch, respondeu ao timbre. Aos sessenta e um anos, seguia sendo um homem de impressionante atitude. Ainda conservava todo seu cabelo, embora deixava-o completamente branco. Talvez porque suas facções eram tão agradavelmente pronunciadas -teriam sido perfeitas se tivesse querido ser ator teatral-, seus dentes pareciam muito pequenos. Nenhum era postiço. Era um fanático da higiene dental. Branqueados com laser, deslumbravam, mas pareciam diminutos, como grãos de milho em uma espiga de milho. Piscando com uma surpresa muito teatral, saudou seu filho. -Mitch, Katherine não me contou que tinha telefonado. Ignorava que vinha. Katherine era a mãe do Mitch. -Não o fiz -admitiu Mitch-. Imaginei que não haveria problema em que passasse um momento por aqui, sem avisar. -O normal é que estivesse ocupado com uma ou outra condenada obrigação e não te teria podido atender. Mas esta noite estou livre. -Que bem. -Embora sim tinha intenção de lhe dedicar umas horas à leitura. -Não posso ficar muito tempo -tranqüilizou-o Mitch. Os cinco filhos do Daniel e Katherine Rafferty, que já eram todos adultos, entendiam que, para respeitar a intimidade de seus pais, deviam anunciar suas visitas e evitar as aparições imprevistas. -Entra, pois -disse seu pai, apartando da soleira. No vestíbulo, de chão de mármore branco, o jovem viu infinitos Mitches a direita e esquerda, reflexos que se repetiam em dois grandes espelhos enfrentados, ambos com marco de aço inoxidável. -Está Kathy? -É a noite das garotas -respondeu seu pai-. Ela, Donna Watson e essa tal Robinson foram se ver um filme ou a fazer não sei o que. -Me teria gostado de vê-la. -Chegarão tarde -disse o pai ao tempo que fechava a porta-. Sempre chegam tarde. passam-se toda a velada conversando e, quando estacionam na entrada, seguem conversando um momento. Conhece essa mulher, a que se chama Robinson? -Não. É a primeira vez que ouço falar dela. -É irritante -asseverou seu pai-. Não entendo como Katherine desfruta com sua companhia. É matemática. -Não sabia que as mulheres que se dedicam às matemática irritassem. -Esta o faz. Os pais do Mitch eram catedráticos de psicologia da conduta na UCI. Seu círculo social provinha sobre tudo do que os acadêmicos começaram a chamar recentemente "Humanidades", em boa parte para evitar o término "Ciências não experimentais", que usavam alguns. Em um grupo assim, uma perita em matemática podia ser tão irritante como uma pedra no sapato. -Acabo de me preparar um uísque com soda -disse seu pai-. Quer algo? -Não, obrigado, senhor. -Acaba-me de dizer "senhor"? -Sinto muito, Daniel. -Não se deve empregar este tratamento... -Em uma mera relação biológica -completou Mitch. Quando os Rafferty faziam treze anos, lhes explicava que deviam deixar de chamar mamãe e papai a seus pais. Tinham que dirigir-se a eles por seus nomes de pilha. Katherine, a mãe do Mitch, preferia que a chamassem Kathy, mas seu pai não tolerava que dissessem Danny em vez do Daniel. Em sua juventude, o doutor Daniel Rafferty tinha desenvolvido teorias muito precisas em relação à forma correta de educar aos filhos. Kathy não tinha opiniões muito firmes sobre o tema, mas as teorias pouco convencionais do Daniel a intrigavam, e sentia curiosidade por ver se dariam bons resultados. Mitch e Daniel ficaram parados no vestíbulo durante um momento. Daniel parecia não saber como continuar, mas ao fim arrancou. -Passa e olhe o que me acabo de comprar. Atravessaram uma grande sala de estar mobiliada com mesas de aço inoxidável e vidro, sofás de couro cinza e cadeiras negras. Nos quadros que penduravam das paredes preponderava o branco e negro. Alguns tinham uma única linha ou dominava uma cor, um retângulo azul aqui, um quadrado azul esverdeado para cá, dois triângulos amarelos lá. Os sapatos do Daniel Rafferty arrancavam duros sons ao chão de mogno do Brasil. Mitch o seguia, silencioso como um fantasma. Uma vez no estudo, assinalando um objeto que havia sobre o escritório, Daniel fez uma de suas típicas afirmações. -Este é a parte de mierda mais bonito de minha coleção.

 

A decoração do estudo fazia jogo com a da sala de estar. Havia prateleiras iluminadas onde se via uma coleção de esferas de pedra polida. Única peça sobre o escritório, encaixada em uma base ornamental de bronze, a esfera recém adquirida tinha um diâmetro superior ao de uma bola de beisebol. Nervuras escarlates salpicadas de amarelo se formavam redemoinhos sobre um fundo de intensa cor marrom, com algum matiz acobreado. Quem não soubesse do que se tratava teria suposto que era uma parte de granito exótico, lixado e gentil para realçar sua beleza. Em realidade era esterco de dinossauro fossilizado. -A análise dos minerais confirma que provém de um carnívoro -disse o pai do Mitch. -Tiranosaurio ? -O tamanho de todo o depósito de sedimentos sugere algo mais pequeno que um Tiranosaurio Rex. - Gorgosaurio ? -Se tivesse sido achado no Canadá e datado no Cretácico Superior, trataria-se, possivelmente, de um gorgosaurio. Mas a jazida foi encontrado em Avermelhado. -Jurássico Superior? -perguntou Mitch. -Sim. De modo que é provável que se trate de esterco de ceratosaurio. Enquanto seu pai agarrava o copo de uísque com soda do escritório, Mitch foi para as prateleiras. -Telefonei ao Connie faz umas quantas noites. Connie, de trinta e um anos, era a maior de suas irmãs. Vivia em Chicago. -Segue perdendo o tempo como cravo nessa padaria? -Sim, mas agora é a proprietária do negócio. -Diz-o a sério? Claro. É típico dela. Se colocar um pé em um poço de breu, em lugar de tirá-lo, agitará os braços até afundar-se inteira. -Diz que vai bem. -Sempre dirá isso, ocorra o que ocorra. Connie fazia um master em ciências políticas antes de dar um salto mortal e mergulhar-se no oceano dos negócios. A alguns, esta transformação os tinha deixado boquiabertos, mas Mitch a compreendia. A coleção de polidas bolas de esterco de dinossauro tinha crescido da última vez que a visse. -Quantas tem agora, Daniel? -Setenta e três. Ando detrás de quatro exemplares excepcionais. Algumas daquelas esferas fossilizadas tinham apenas cinco centímetros de diâmetro. As maiores eram do tamanho de bolas de bilhar. Seus tons tendiam a ser marrons, vermelhos e acobreados por razões óbvias; entretanto, as luzes que as realçavam faziam surgir de" elas muitas outras cores, entre eles o azul. A maioria estava salpicada; eram poucas as que tinham verdadeiras nervuras. -Falei com o Megan essa mesma noite -disse Mitch. Megan, de vinte e nove anos, era a que tinha o coeficiente intelectual mais alto em uma família de altas capacidades intelectuais. Cada um dos pequenos Rafferty tinha passado três provas de nível de inteligência, ao cumprir o nono, décimo terceiro e décimo sétimo aniversário. Depois de seu primeiro ano de estudos, Megan tinha abandonado a universidade. Vivia em Atlanta, onde regentaba um próspero negócio de banho e barbearia de cães, que funcionava tanto na loja como a domicílio. -Chamou por Páscoa, e nos perguntou quantos ovos tínhamos pintado -disse o pai do Mitch-. Suponho que acreditou que dizia algo gracioso. Katherine e eu nos sentimos aliviados de que sua chamada não fora para anunciar que estava grávida. Megan se tinha casado com o Carmine Maffuci, um pedreiro com as mãos do tamanho descomunal. Daniel e Katherine pensavam que tinha eleito um marido que estava por debaixo dela no intelectual. Tinham a esperança de que não demorasse para dar-se conta de seu engano e se divorciasse... Se é que antes não chegavam os meninos, que complicariam a situação. Ao Mitch, Carmine lhe caía bem. O tipo tinha uma personalidade doce, uma risada contagiosa e uma tatuagem do Tweety o Canário no bíceps direito. -Este parece pórfido -comentou, assinalando uma amostra de esterco que tinha um fundo de um arroxeado avermelhado salpicado de algo que parecia feldespato. Também tinha falado fazia pouco com sua irmã menor, Porta, mas não o disse, porque não queria desencadear uma azeda discussão. -Anson nos convidou para jantar faz duas noites -disse Daniel enquanto se tornava mais uísque com soda no móvel bar. Anson, o único irmão varão do Mitch, e, com seus trinta e três anos, o major dos cinco, era o que mais via o Daniel e Kathy. Para ser justos com o Mitch e suas irmãs, deve dizer-se que Anson sempre tinha sido o favorito de seus pais e, como tal, nunca se havia sentido rechaçado. É mais fácil ser um filho fiel quando seus pais não ficam a analisar suas afeições em busca de indícios de inadaptación psicológica e quando seus convites não são recebidas com penetrantes olhares de suspeita ou impaciência. Para ser justos também com o Anson, o certo era que se ganhou seu posto de filho preferido cumprindo com as expectativas de seus pais. Tinha demonstrado, coisa que nenhum dos outros fez, que as teorias de seu pai sobre a educação dos filhos podiam dar fruto. Primeiro da classe na escola secundária, estrela da equipe de futebol americano, rechaçou, entretanto, as becas para esportistas. Sim aceitou, em troca, aquelas que lhe ofereciam só por suas altas capacidades intelectuais. O mundo acadêmico era um galinheiro, e Anson, uma raposa. Não só assimilava conhecimentos, mas também os devorava com o apetite de um carnívoro insaciável. ganhou sua licenciatura em dois anos, o master em um, e se doutorou aos vinte e três. Os irmãos do Anson não o invejavam, nem tampouco estavam distanciados dele em modo algum. Ao contrário, se Mitch e suas irmãs tivessem celebrado uma eleição secreta para ver quem era seu familiar favorito, os quatro teriam votado pelo major. Seu bom coração e simpatia natural tinham permitido ao Anson agradar a seus pais sem necessidade de assemelhar-se a eles. Este era um lucro tão impressionante como se uns cientistas do século XIX, que só contassem com a energia do vapor e as primitivas pilhas voltaicas, fizessem chegar astronautas à lua. -Anson acaba de assinar um importante contrato de consultoria com a China -informou Daniel. Os sedimentos de brontosaurio, diplodocus, braquisaurio, iguanodon, moscops, estegosaurio, triceratops e outros monstros extintos estavam identificadas com rótulos gravados nos pés de bronze nos que se sustentavam as esferas. -Trabalhará com o ministro do Comércio -disse Daniel. Mitch não sabia se o esterco petrificado podia ser analisado com a suficiente precisão para atribui-lo a espécies ou determinados gêneros de dinossauros. Talvez seu pai tivesse chegado a essas identificações aplicando teorias apoiadas em pouca ou nenhuma ciência experimental. Daniel defendia certas respostas absolutas inclusive em áreas da especulação intelectual nas que não se podia pretender que existissem certezas. -E, além disso, colaborará de forma direta com o ministro da Educação -acrescentou o orgulhoso pai. Fazia tempo que recorria ao êxito do Anson para açular ao Mitch, com a intenção de que se decidisse a seguir uma carreira mais ambiciosa que aquela em que embarcou-se. Mas os puyazos nunca atravessavam a couraça de sua psique. Admirava ao Anson, mas não o invejava. Enquanto Daniel o aguilhoava com outro dos lucros do Anson, Mitch olhou seu relógio de pulso, convencido de que logo teria que partir para atender a chamada do seqüestrador. Mas só eram as 17.42. Sentia como se já levasse na casa ao menos vinte minutos, mas o certo era que só tinham acontecido sete. -Tem algum compromisso? -perguntou Daniel. Mitch detectou uma nota esperançada na voz de seu pai, mas isso não lhe produziu ressentimento. Fazia tempo que se deu conta de que uma emoção tão amarga e poderosa como o ressentimento não era apropriada para essa relação. Daniel, autor de treze sisudos livros, acreditava ser um gigante da psicologia, um homem cujos férreos princípios e convicções de aço o convertiam em uma rocha no rio da intelectualidade americana contemporânea, uma espécie de ilha em torno da qual as mentes de menos entidade fluíam até perder-se na escuridão ou em um nada. Mas Mitch sabia que seu velho não era nenhuma rocha. Daniel era, se acaso, uma fugaz sombra nesse rio. Flutuava pela superfície sem agitar nem aplacar a corrente. Se Mitch tivesse albergado algum ressentimento contra um homem tão vão, teria estado mais louco que o capitão Ahab, com sua perpétua perseguição da baleia branca. Durante toda sua infância, Anson tinha aconselhado ao Mitch e a suas irmãs que não se encolerizassem, que fossem pacientes, lhes ensinando a utilidade do humor como defesa contra a desumanidade inconsciente de seu pai. E, agora, Daniel não inspirava ao Mitch mais que indiferença e alguma impaciência. O dia em que Mitch deixou o lar familiar para compartilhar um apartamento com o Jason Osteen, Anson lhe disse que, ao renunciar à ira, em algum momento chegaria a compadecer a seu velho. Não o tinha acreditado e, até agora, não tinha chegado mais que a lhe conceder um desinteressado perdão. -Sim -disse-. Tenho um compromisso. Devo partir. Contemplando a seu filho com o intenso interesse que, vinte anos atrás, o teria intimidado, Daniel lhe lançou uma pergunta direta. -A que veio? Fossem quais fossem os planos dos seqüestradores do Holly para o Mitch, era de supor que suas possibilidades de sobreviver não eram muitas. Lhe tinha ocorrido que esta possivelmente fosse a última vez que visse seus pais. Por isso tinha ido. -Devi ver a Kathy. Talvez retorne amanhã -disse, incapaz de revelar o terrível embrulho em que se encontrava metido. -A vê-la para que? Um menino pode amar a uma mãe que não tem capacidade para lhe devolver seu amor, mas, com o tempo, dará-se conta de que não está semeando seu afeto em terreno fértil, a não ser em pura rocha, onde nada pode crescer. Então, é possível que esse menino leve uma vida marcada por uma ira inflamada ou pela autocompasión. Se a mãe não for um monstro, mas sim, simplesmente, é incapaz de relacionar-se emocionalmente e está absorta em si mesmo, e se no lar não é uma maltratadora, a não ser uma observadora passiva, seu filho tem uma terceira opção. Pode escolher lhe ter lástima, embora não a perdoe, e compadecê-la ao reconhecer que a atrofia de seu desenvolvimento emocional lhe nega a possibilidade de desfrutar plenamente da vida. Apesar de todos seus lucros acadêmicos, Kathy não tinha nem idéia das necessidades dos meninos, nem dos laços que cria a maternidade. No que faz às relações humanas, acreditava no princípio de causa e efeito e na necessidade de recompensar as condutas que o merecem; mas só compreendia as recompensas materiais. Acreditava na capacidade de melhora do gênero humano. Pensava que os meninos têm que ser educados seguindo um sistema do que um não se deve desviar, um método que assegure que se civilizem. Essa não era, entretanto, sua especialidade no campo da psicologia. portanto, possivelmente nunca tivesse sido mãe de não ter conhecido a um homem possuidor de firmes teorias sobre o desenvolvimento infantil, e de um sistema para as aplicar. Como, de não ter sido por sua mãe, Mitch não teria existido, e como sabia que em sua insensibilidade não havia malícia, lhe inspirava uma ternura que não era amor, nem sequer afeiçoado, mas sim mas bem um triste reconhecimento de sua incapacidade congênita para sentir. Esta ternura quase tinha maturado até converter-se em piedade, algo que não concedia a seu pai. -Não é nada importante -disse Mitch-. Pode esperar. -Posso lhe dar uma mensagem -replicou Daniel, seguindo ao Mitch à sala de estar. -Não há mensagem. Só andava por aqui e quis saudá-la. Como era a primeira vez que rompia as normas e se apresentava ali sem avisar, Daniel não se convenceu. -Passa-te algo. Mitch pensou: "Possivelmente uma semana de privação sensorial na quarta de aprendizagem me ajude a descobrir do que se trata". Mas se limitou a sorrir e dar uma resposta convencional. -Estou bem. Tudo está bem. Embora não era muito destro no referente ao coração humano, Daniel possuía o nariz de um sabujo para as ameaças de tipo financeiro. -Se se tratar de problemas de dinheiro, já sabe qual é nossa postura a respeito. -Não vim a lhes pedir um empréstimo -tranqüilizou-o Mitch. -Em toda espécie animal, a obrigação fundamental dos progenitores é ensinar a ser auto-suficientes a suas crias. A presa deve aprender a evadir-se, o depredador a caçar. Enquanto abria a porta, Mitch se despediu com certa amargura: -Sou um depredador auto-suficiente, Daniel. -Bem. Me alegro de ouvi-lo. Dedicou ao Mitch um feroz sorriso. Seus dentes, de uma brancura extraordinária, pareciam haver-se afiado da última vez que os ensinasse. Nessas circunstâncias, o jovem não pôde forçar um sorriso, nem sequer para desviar as suspeitas de seu pai. -O parasitismo-disse Daniel- não é natural no Homo sapiens nem em nenhuma espécie de mamífero. Essa era uma frase que Beaver Cleaver, o menino protagonista da série televisiva sobre uma família de classe média, jamais tivesse ouvido de seu pai. Mitch saiu da casa. -lhe diga a Kathy que lhe mando saudações. -Chegará tarde. Sempre demoram quando essa tal Robinson vai com elas. -Matemáticos -disse Mitch com desdém. -Especialmente esta. Mitch fechou a porta. Depois de afastar-se vários passos da casa se deteve, voltou-se, e estudou o lugar, possivelmente por última vez. Não só tinha vivido ali, mas também cursou seus estudos na casa desde o primeiro até o décimo segundo grau. Tinha passado mais horas de sua vida dentro dessa casa que fora dela. Como de costume, seu olhar se posou na janela do segundo piso, enclausurada do interior. A quarta de aprendizagem. Agora que já não havia meninos na casa, para que usavam esse aposento do piso superior? Como o caminho de entrada se afastava da casa descrevendo uma curva, em lugar de seguir até a rua em linha reta, quando Mich desviou o olhar desse quarto não se achava frente à porta, mas sim de cara a uma das cristaleiras que esta tinha a um e outro flanco. Através dessas janelas, viu seu pai. Daniel estava de pé frente a um dos grandes espelhos emoldurados em aço inoxidável do vestíbulo. alisou-se seu branco cabelo com uma mão. enxugou-se as comissuras da boca. Embora se sentia como um olheiro, Mitch não podia deixar de observá-lo. De menino, acreditava que seus pais ocultavam secretos e que ele seria livre se os descobria. Mas nunca soube nada, porque Daniel e Kathy eram um casal reservado, discretos ao máximo. Agora, no vestíbulo, Daniel se beliscou a bochecha esquerda, logo a direita, com os dedos polegares e índice, para lhes dar um pouco de cor. Mitch suspeitava que, agora que a ameaça de uma facada se dissipou, a lembrança de sua visita já quase se desvanecia da mente de seu pai. No vestíbulo, Daniel ficou de perfil frente ao espelho, como se se orgulhasse do largo de seu peito, do esbelto de sua cintura. Resultava-lhe fácil imaginar que seu pai, de pé entre os espelhos enfrentados, não se multiplicava em infinitos reflexos, como ele, mas sim sua figura possuía tão pouca substância que, para qualquer olho que não fosse o seu, resultaria tão transparente como a de um fantasma.

 

Às 17.50, só quinze minutos depois de ter chegado a casa do Daniel e Kathy, Mitch partiu. Deu a volta à esquina e percorreu depressa uma maçã e meia. Ficavam, talvez, duas horas de luz. Lhe teria sido fácil detectar a um possível perseguidor. Deteve o Funda no estacionamento vazio de uma igreja. Uma séria fachada de tijolo, com múltiplos olhos de cristal multicolorido, sombrios ao não haver nesse momento luz que os iluminasse do interior, elevava-se até formar um campanário que perfurava o céu e arrojava uma dura sombra sobre o asfalto. O temor de seu pai não tinha fundamento. Mitch não tinha tido intenção de lhe pedir dinheiro. A seus pais tinha ido bem no financista. Sem dúvida, podiam ter contribuído com cem mil dólares à causa sem que isso os afetasse o mais mínimo. Mas embora lhe dessem o dobro dessa soma, dado o magro de seus próprios recursos, trataria-se de pouco mais de 10 por cento do resgate. Além disso, não o teria pedido jamais, pois sabia que não o tivessem dado, com a desculpa de que isso não era coerente com suas teorias sobre a educação dos filhos. Por outra parte, tinha começado a suspeitar que os seqüestradores procuravam algo mais que dinheiro. Não tinha nem idéia do que queriam, além de metálico, mas raptar à esposa de um jardineiro que tinha um ingresso de cinco cifras não tinha sentido, a não ser que quisessem algo que só ele lhes podia dar. Quase tinha tido a certeza de que o que queriam era cometer um importante roubo por pessoa interposta, empregando-o como se fosse um robô com controle remoto. Não podia descartar essa possibilidade, mas já não o convencia. Tirou o revólver de canhão recortado e a capa tobillera de debaixo o assento do condutor. Examinou a arma com cautela. Por isso podia ver, não tinha seguro. Tudo o que sabia a respeito de armas era o que tinha aprendido de livros e filmes. Apesar do que dizia Daniel sobre a necessidade de educar aos filhos para que fossem auto-suficientes, não tinha preparado ao Mitch para enfrentar-se a tipos como John Knox. "A presa deve aprender a evadir-se, o depredador a caçar". Seus pais o tinham criado para que fosse presa. Mas agora que Holly estava em mãos de assassinos, evadirlhe era impossível. Preferia morrer antes que ocultar-se e deixá-la a mercê deles. O fechamento de velcro da capa lhe permitiu ater-lhe por cima do tornozelo, a uma altura suficiente para evitar que se visse se lhe arregaçavam as calças ao sentar-se. Não lhe agradavam os jeans estreitos, e os que levava ocultavam a compacta arma. ficou a jaqueta esportiva. antes de descer do carro, meteria-se a pistola no cinto, na zona lombar, onde o objeto a ocultaria. Examinou de novo a arma. Uma vez mais, não pôde encontrar seguro algum. Depois de alguns esforços, conseguiu tirar o carregador. Continha oito balas. Ao olhar com atenção viu um nono projétil, que reluzia na antecâmara. Depois de reinserir o carregador e assegurar-se de que entrava corretamente em seu lugar, pôs a pistola no assento do acompanhante. Seu telefone móvel soou. O relógio do carro marcava as 17.59. Era o seqüestrador. -Desfrutou de sua visita a papai e mami? Não o tinham seguido a casa de seus pais, nem quando partiu dali, mas mesmo assim sabiam onde tinha estado. Respondeu imediatamente. -Não os pinjente nada. -O que procurava ali, o lanche? -Se crie que poderia obter o dinheiro deles, equivoca-te. Não são tão ricos. -Já sabemos, Mitch, já sabemos. -me deixe falar com o Holly. -Esta vez, não. -me deixe falar com minha mulher -insistiu. -Tranqüilo. Ela está bem. Deixarei-te falar na próxima chamada. Essa é a igreja a que foi com seus pais? O seu era o único carro que havia no estacionamento, e nesse momento não passava nenhum outro por ali. Do outro lado da igreja, os únicos veículos que viam-se eram os que circulavam pela rodovia, mas não havia nenhum na rua. -É a igreja a que foi? -voltou a perguntar o seqüestrador. -Não. Embora estava no interior do carro, com as portas fechadas, sentia-se tão exposto como um camundongo em campo aberto que de repente ouça por cima dele a vibração das asas de um falcão. -Foi coroinha, Mitch? -Não. -Pode ser isso verdade? -Parece que sabe tudo sobre mim. portanto, sabe que é verdade. -Mitch, parece-te muito a uma coroinha, para não havê-lo sido nunca. Caso que era uma observação intrascendente, ao princípio Mitch não respondeu. Mas como o seqüestrador se manteve em silêncio, por fim falou. -Não sei o que quer dizer com isso. -Bom, sem dúvida não quero dizer que seja piedoso. Tampouco que sempre diga a verdade. Demonstrou ser um ardiloso mentiroso com o detetive Taggart. Nas duas conversações anteriores, o homem do telefone se mostrou profissional, até resultar arrepiante. Estes mesquinhos sarcasmos não pareciam coincidir com seu anterior comportamento. Entretanto, definiu-se como "um manipulador". Havia dito com franqueza que Mitch era para ele um instrumento apto para ser dirigido. Suas brincadeiras deviam ter um sentido, embora Mitch não tinha idéia de qual podia ser. O seqüestrador queria meter-se em seus pensamentos e alterá-lo com um sutil propósito, para obter algum resultado em particular. -Mitch, digo-lhe isso sem ânimo de ofender, porque, em realidade, é uma bonita qualidade; mas é ingênuo como uma coroinha. -Se você o disser. -Pois sim. Eu o digo. Podia tratar-se de um intento de fazer que se encolerizasse, dado que a ira inibe a claridade de pensamento, ou talvez sua intenção fosse fazê-lo duvidar de seu própria capacidade, para mantê-lo assustado e obediente. Já se tinha reconhecido a si mesmo sua absoluta indefensión neste assunto. A humilhação já não podia ser maior. -Tem os olhos bem abertos, Mitch, mas não vê. Esta afirmação o preocupou mais que nenhuma outra coisa que houvesse dito o seqüestrador. Fazia menos de uma hora, no mezanino de sua garagem, esse mesmo pensamento, expresso em parecidas palavras, tinha-o tido ele. Depois de colocar ao John Knox no porta-malas, tinha retornado ao mezanino para averiguar como tinha ocorrido o acidente. Ver a manga da chave inglesa enganchado no nó da corda havia resolvido o mistério. Mas até então se havia sentido enganado, observado, burlado. Tinha-o afligido a sensação instintiva de que nesse mezanino ficava uma verdade maior por descobrir, que estava oculta embora a tinha frente a seus próprios olhos. A idéia de que, embora via, era cego, embora ouvia, era surdo, sacudiu-o então e lhe perturbava agora. O tipo do telefone, zombador, tinha pinçado na ferida. "Tem os olhos bem abertos, Mitch, mas não vê". "Sobrenatural" não parecia um qualificativo excessivo para definir o que ocorria. Sentia que os seqüestradores não só o podiam ver e ouvir em todas partes, em tudo momento, mas sim até podiam ler seus pensamentos. Agarrou a pistola do assento do acompanhante. Não havia uma ameaça iminente, mas se sentia mais protegido com a arma na mão. -Segue aí, Mitch? -Escuto-te. -Voltarei-te a chamar as 19.30. -Mais demora? por que? -A impaciência o consumia, e não conseguia contê-la, embora era consciente do perigo que representava deixar-se dominar por um estado de incontrolada temeridade. -É fácil de entender, Mitch. Estava por te dizer o que deve fazer agora quando me interrompeu. -Então, maldita seja, diga-me isso   -Un buen monaguillo conoce el ritual, las letanías. Un buen monaguillo responde, pero no interrumpe. Si vuelves a interrumpirme, te haré esperar hasta las 20.30. -Uma boa coroinha conhece o ritual, as letanías. Uma boa coroinha responde, mas não interrompe. Se voltar a me interromper, farei-te esperar até as 20.30. Mitch refreou sua impaciência. Respirou fundo, exalou com lentidão e se adveio aos desejos do malfeitor. -Entendo. -Bem. Então, quando pendurarmos, vá ao Newport Beach, a casa de seu irmão. -A casa do Anson? -perguntou, surpreso. -Espera a chamada das 19.30, com ele. -por que comprometer a meu irmão nisto? -Não pode fazer sua tarefa sozinho -disse o seqüestrador. -Mas o que é o que devo fazer? Não me disse isso. -Diremo-lhe isso. Logo. -Se fizerem falta dois homens, não é necessário que o outro ele seja. Não quero colocar ao Anson nisto. -Pensa-o, Mitch. Quem melhor que seu irmão? Quer-te, verdade? Não quererá que cortem a sua mulher em partes, como a um porco no matadouro. Durante sua difícil infância, Anson tinha sido a sólida e segura âncora que mantinha ao Mitch amarrado a um ponto fixo. Quem sempre içava as velas da esperança quando parecia que não havia vento para fazê-lo, era Anson. Devia a seu irmão a paz espiritual e a felicidade que tinha terminado por encontrar quando se livrou de seus pais, e a ligeireza de espírito que lhe havia feito possível ganhar ao Holly como esposa. -Têm-me apanhado -disse Mitch-. Se o que quiserem que faça, seja o que for, sai mau, parecerá que fui eu quem matei a minha esposa. -A armadilha está mais fechada do que crie, Mitch. Possivelmente se perguntassem o que ocorria com o John Knox, mas não sabiam que estava morto e metido no porta-malas do Funda. E um conspirador morto serviria para demonstrar que a história que Mitch podia contar às autoridades era certa. Ou não? Não tinha avaliado todas as maneiras em que a polícia podia interpretar a morte do Knox. Talvez a maior parte delas fossem mais comprometedoras que o contrário. -Ao que vou -disse Mitch- é que farão isso mesmo ao Anson. Meterão-o em uma jaula de provas circunstanciais para ter a segurança de que coopere. Essa é a forma em que trabalham. -Nada disso importará se ambos fazem o que queremos e devolvo a sua mulher. -Mas seria injusto para ele -protestou Mitch, e se deu conta que, de fato, soava tão ingênuo e crédulo como uma coroinha. O seqüestrador riu. -E te parece, que, em troca, estamos sendo justos contigo? Disso se trata? A mão com que aferrava a pistola lhe tinha ficado fria e úmida. -Preferiria que deixássemos em paz a seu irmão e que puséssemos ao Iggy Barnes como colaborador? -Fui-dijo Mitch, sentindo-se instantaneamente envergonhado por quão rápido estava disposto a sacrificar a um amigo inocente para salvar a um ser querido. -E isso seria justo para o senhor Barnes? O pai do Mitch acreditava que a vergonha não cumpria uma função social, que revelava uma mentalidade supersticiosa, e que uma pessoa que leva uma vida racional deve livrar-se dela. Também acreditava que a facilidade para envergonhar-se pode desaparecer mediante a educação. No caso do Mitch, seu pai tinha fracassado estrepitosamente, ao menos nesse aspecto. Embora a única testemunha de sua disposição a sacrificar a um amigo para salvar a seu irmão era o valentão que estava ao telefone, Mitch sentiu que a vergonha lhe acendia o rosto. -O senhor Barnes -disse o seqüestrador- não brilha por sua inteligência. Embora só fora por isso, seu amigo não seria um substituto aceitável para seu irmão. Agora, vá a casa do Anson e espera minha chamada. Resignado a seguir as instruções, mas doente de desespero ante a idéia de pôr a seu irmão em perigo, Mitch logo que podia falar. -O que lhe digo? -Nada absolutamente. Estou-te ordenando que não lhe diga nada. O manipulador perito sou eu, não você. Quando chamar, farei-lhe ouvir como grita Holly e lhe explicarei de o que se trata. -o de fazê-la gritar não é necessário. Prometeu não lhe fazer danifico -replicou, alarmado. -Prometi não violá-la, Mitch. Nada do que diga a seu irmão será tão convincente como seu grito. Sei melhor que você como se faz isto. Sua pressão fria, suarenta, sobre a pistola começava a ser um problema. Dava-lhe medo. Quando sua mão ficou a tremer, voltou a deixar a arma no assento do acompanhante. -E se Anson não está em sua casa? -Está-o. te mova, Mitch. É a hora ponta. Não quererá chegar tarde ao Newport Beach. O seqüestrador cortou a comunicação. Quando Mitch pulsou a tecla de fim de chamada de seu telefone, sentiu como se essa ação fora uma sinistra premonição. Fechou os olhos durante um momento, tratando de serenar seus destroçados nervos; mas os abriu em seguida, porque os ter fechados o fazia sentir-se vulnerável. Quando acendeu o motor, um bando de corvos elevou o vôo do asfalto. Foram da sombra do campanário ao campanário mesmo.

 

Newport Beach, famosa por seu porto cheio do Yates e suas maravilhosas lojas de luxo, não era residência só de gente fabulosamente enriquecida. Anson vivia em o distrito de Coroa do Mar, na parte dianteira de um chalé encostado compartilhado. chegava-se à casa, sombreada por uma imensa magnólia, por um velho atalho de paralelepípedos. Sua arquitetura era do estilo da de Nova a Inglaterra, mas recreada por um romântico perdido. Não impressionava, mas tinha encanto. As campainhas da porta tocaram uns poucos compases do Hino da alegria do Beethoven. Anson abriu antes de que Mitch pulsasse o timbre pela segunda vez. Embora estava em tão bom estado físico como um atleta, Anson não pertencia ao mesmo tipo fisiológico que Mitch. Seu largo peito e seu grosso pescoço lhe davam o aspecto de um urso. Que tivesse sido um brilhante jogador de linha na equipe de futebol americano da escola secundária testemunhava que era ágil e ligeiro. Seu rosto agradável, largo, aberto, sempre parecia estar procurando um motivo para sorrir. Fez-o, como o fazia em toda ocasião, ao ver o Mitch. -Fratello mijou! -exclamou Anson, abraçando a seu irmão e fazendo-o entrar-. Treino! Treino! A casa cheirava a alho, cebolas e beicon. -Comida italiana? -perguntou Mitch. -Bravissimo, fratello piccolo! Faz uma brilhante dedução a partir de um mero aroma e meu italiano assassinado. me deixe que pendure sua jaqueta. Mitch não tinha querido deixar a pistola no carro. Tinha a arma metida na calça, na parte traseira da cintura. -Não -disse-. Estou bem. Prefiro tê-la posta. -Vêem a cozinha. Estava apavorado ante a possibilidade de jantar sozinho. -É imune ao terror -disse Mitch. -Não existem anticorpos para o terror, hermanito. A decoração da casa era elegante, muito masculina, com profusão de motivos náuticos. Havia quadros de gloriosos veleiros agitados por tormentas e de outros que navegavam baixo céus radiantes. Desde menino, Anson tinha acreditado que a liberdade perfeita jamais podia encontrar-se em terra, a não ser só no mar. Tinha sido um fanático seguidor das histórias de piratas, batalhas navais e aventuras em alta mar. Tinha-lhe lido muitas delas em voz alta ao Mitch, que escutava-o arroubado durante horas. Daniel e Kathy se enjoavam até em um bote que remasse por um lago. Sua aversão pela navegação foi, em realidade, o primeiro que inspirou o interesse do Anson pela náutica. Na acolhedora e fragrante cozinha assinalou uma panela que fumegava sobre o fogão. -Zuppa massaia. -Que classe de sopa é a massaia? -A clássica sopa de dona-de-casa. Como não tenho esposa, devo ativar meu lado feminino quando quero prepará-la. Às vezes, ao Mitch custava acreditar que um casal tão plaina e cinza como a que formavam seus pais tivesse podido engendrar um filho tão faiscante como Anson. O relógio da cozinha marcava as 19.24. Um engarrafamento produzido por um acidente o tinha demorado mais da conta. Sobre a mesa havia uma garrafa de chianti e uma taça médio enche. Anson abriu um armário e agarrou outra taça de uma prateleira. Mitch esteve a ponto de rechaçar o vinho. Mas uma taça não lhe embotaria o julgamento e possivelmente lhe aplacasse algo os nervos. Enquanto Anson servia o chianti, brincou fazendo uma aceitável imitação da voz de seu pai. -Sim, agrada-me verte, Mitch, embora não vi seu nome na agenda de visitas da origem e tinha a intenção de passar a velada atormentando a uns coelhinhos de Índias em um labirinto eletrificado. -Venho de lhe ver -respondeu Mitch. -Isso explica seu estado de ânimo abatido e seu rosto cinzento. -Anson elevou a taça em um brinde-. A dolce veta. -Por seu novo contrato com a China -disse Mitch. -Assim que me voltou a usar de aguilhão? -Como de costume. Mas por muito que crave, já não consegue penetrar em minha pele. Em todo caso, parece uma grande oportunidade. El trabajo de consultoría de Anson era tan complejo que Mitch nunca había llegado a entenderlo. Se había doctorado en lingüística, la ciencia del lenguaje, pero El trabajo de consultoría de Anson era tan complejo que Mitch nunca había llegado a entenderlo. Se había doctorado en lingüística, la ciencia del lenguaje, pero também tinha aprofundado no estudo das linguagens de programação e da teoria da digitalización, isso fora o que fosse. -Cada vez que me parto de sua casa -disse Mitch- sinto a necessidade de cavar, arar a terra, trabalhar com minhas mãos, o que seja. -Fazem-lhe sentir desejos de fugir para algo real. -Exato. Hum, é um bom vinho. -depois da sopa, há lombo dava maiale com castagne. -Não posso digerir o que não posso pronunciar. -Lombo de porco assado com castanhas -esclareceu Anson. -Sonha bem, mas não quero jantar. -Há muito. É uma receita para seis. Não sei como reduzi-la, de modo que sempre faço seis rações. Mitch jogou uma olhada às janelas. Bem. As persianas estavam baixadas. Da encimera onde estava o telefone da cozinha, tomou uma caneta e uma caderneta. -navegaste ultimamente? Anson sonhava tendo um iate algum dia. Teria que ser o suficientemente grande como para que não desse claustrofobia durante uma larga travessia costeira ou, possivelmente, uma viagem ao Hawai, mas também o bastante pequeno para dirigi-lo com um só acompanhante e um par de motores. Com o de "acompanhante" não só se referia ao companheiro de navegação, mas também também à companheira de cama. Apesar de seu aspecto ursino e de um senso de humor que estava acostumado a ser ácido, Anson não só era romântico no referente ao mar, mas também também ao sexo oposto. A atração que as mulheres sentiam por ele não era meramente magnética. Atraía-as como a gravidade da lua rege as marés. Mas não era nenhum donjuán. Rechaçava a maior parte de suas perseguidoras com grande encanto. E quando esperava que alguma delas fosse a mulher de seus sonhos, sempre terminava com o coração quebrado, embora ele nunca o houvesse dito em términos tão melodramáticos. Não podia dizer-se não que o pequeno navio que nesse momento tinha amarrado a uma bóia do embarcadero, um American Sail de seis metros de comprimento do navio, fosse um iate. Mas, dada sua sorte no amor, possivelmente tivesse o veleiro de seus sonhos muito antes de encontrar a alguém com quem navegar nele. Respondeu à pergunta do Mitch. -Não tive tempo mais que para flutuar pelo porto como um pato, percorrendo os canais. Sentado à mesa da cozinha, Mitch escrevia algo, em letras de molde, na caderneta. -Deveria me buscar um passatempo. Você tem a navegação, o velho seu mierda de dinossauro. Arrancou a primeira folha e a pôs sobre a mesa, de modo em que Anson, que ainda estava de pé, pudesse lê-la: É PROVÁVEL QUE HAJA MICROFONES OCULTOS EM SUA CASA. A expressão atônita de seu irmão tinha um ar maravilhado que ao Mitch recordou a expressão que adotava quando lhe lia em voz alta as histórias de piratas e os relatos de heróicas batalhas navais que tanto o emocionavam em sua infância. Sua reação inicial fazia supor que sentia que tinha começado uma estranha aventura, cujos perigos implícitos não percebia. Para cobrir o silêncio sobressaltado do Anson, Mitch seguiu falando. -acaba-se de comprar um novo exemplar. Diz que é esterco de ceratosaurio. De Avermelhado, do Jurássico Superior. Alcançou-lhe outra folha onde tinha escrito: SÃO SÉRIOS. VI-OS MATAR UM HOMEM. Enquanto Anson lia, Mitch tirou seu telefone móvel de um bolso interno da jaqueta e o pôs sobre a mesa. -Dada a história de nossa família, que herdemos uma coleção de boñigas polidas parece muito apropriado. Quando Anson tomou uma cadeira e se sentou frente à mesa, a preocupação tinha nublado seu juvenil ar espectador. Seguiu fingindo que conversavam normalmente. -Quantos tem agora? -Disse-me isso, embora já não me lembro. Mas, enfim, poderia dizer-se que seu estudo já é um esgoto. -Algumas dessas esferas são bonitas. -Muito bonitas -assentiu Mitch enquanto escrevia: CHAMARÃO As 19.30. Perplexo, Anson formou com a boca, sem as dizer em voz alta, as palavras: "Quais? O que?". Mitch meneou a cabeça. Assinalou o relógio de parede: as 19.27. Mantiveram uma conversação confusa e corriqueira até que o telefone soou pontualmente ao dar a hora convinda. O timbrazo não proveio do móvel do Mitch, a não ser do telefone da cozinha. Anson o olhou em busca de orientação. Caso que a chamada poderia ser para seu irmão e que simplesmente tinha coincidido com a hora prevista da outra, que chegaria pelo móvel, Mitch lhe fez gestos de que agarrasse o telefone. Anson desprendeu ao terceiro timbrazo e seu rosto se iluminou quando ouviu a voz de quem chamava. -Holly! Mitch fechou os olhos, agachou a cabeça e se cobriu o rosto com as mãos. Soube em que momento gritava Holly pela reação de seu irmão.

 

Mitch esperava que Anson lhe acontecesse o telefone, mas o seqüestrador só falou com ele e o fez durante mais de três minutos. Do que tratou a primeira parte da conversação era óbvio e podia deduzir-se pelo que dizia seu irmão. Os últimos dois minutos não foram fáceis de seguir, em parte porque as respostas do Anson se foram fazendo mais breves e seu tom mais sombrio. Quando Anson pendurou, Mitch disse. -O que querem que façamos? Em vez de responder, Anson foi à mesa, tomou a garrafa de chianti e encheu sua taça até o bordo. Mitch se surpreendeu ao ver que sua própria taça estava vazia. Só recordava ter tomado um ou dois sorvos. Não quis que Anson lhe servisse. Mas o irmão maior lhe encheu a taça apesar de seus protestos. -Se seu coração partir ao mesmo ritmo que o meu, queimará dez taças disto no mesmo momento em que as trague. As mãos do Mitch tremiam, embora não por efeito do chianti; de fato, o vinho talvez as aquietasse um pouco. -Bom, Mickey -disse Anson, suspirando. Mickey era o apodo afetuoso com que Anson tinha chamado a seu irmão menor durante um período especialmente difícil da infância de ambos. Quando Mitch elevou a vista de suas estremecidas mãos, Anson voltou a falar. -Não lhe ocorrerá nada. Prometo-lhe isso, Mickey. Juro-te que ao Holly não acontecerá nada. Nada. Durante os anos decisivos da formação do Mitch, seu irmão tinha sido o piloto de confiança, que sempre o ajudava a sortear a tormenta, o seguro defensor do flanco do esquadro, a âncora que fixava a nave e evitava os naufrágios. Mas agora, enquanto prometia uma viagem segura, parecia estar oferecendo mais do que podia dar. Não cabia dúvida de que quem controlava esta singladura eram os seqüestradores do Holly. -O que querem que façamos? -voltou a perguntar-. Ao menos é algo possível ou é tão demencial como me pareceu quando lhe ouvi pedir dois milhões por primeira vez? Anson se sentou. Inclinado para diante, com os ombros encurvados e os grossos braços apoiados sobre a mesa, a taça de vinho quase oculta por suas grandes mãos, era uma presença imponente. Seguia parecendo um urso, mas já não dava vontade de abraçá-lo. As mulheres a quem atraía como a lua rege as marés passavam tão longe de sua órbita como os era possível quando o viam desse humor. A forma em que Anson apertava as mandíbulas, o palpitar de suas fossas nasais, a cor de seus olhos, que trocaram de um suave verde a um duro esmeralda, deram ânimos ao Mitch. Conhecia essa atitude, essa mudança de aparência. Assim era Anson quando se dispunha a enfrentar-se à injustiça, a que sempre opunha uma resistência teimosa e eficaz. Embora Mitch estava aliviado por contar com a ajuda de seu irmão, também se sentia culpado. -Sinto muito, Anson. Nunca imaginei que colocariam a ti também. Pilharam-me por surpresa. Lamento-o. -Não tem por que te desculpar. Absolutamente. Para nada. Em, absoluto. -Possivelmente se tivesse atuado de outra maneira... -Se tivesse atuado de outra maneira, possivelmente Holly já estaria morta. Assim que o que tem feito até agora é o correto. Mitch assentiu. Precisava acreditar o que lhe dizia seu irmão. Mesmo assim, sentia-se inútil. -O que querem que façamos? -voltou a perguntar. -Antes que nada, Mitch, quero que me conte tudo o que ocorreu. O que o filho de puta do telefone me contou não é nenhuma fração disso. Preciso ouvi-lo tudo, desde que começou até que soou meu telefone. Mitch passeou o olhar pela habitação, perguntando-se onde podia haver oculto um dispositivo de escuta. -Talvez nos estejam ouvindo, talvez não -disse Anson-. Não importa, Mickey. Já sabem tudo o que me vais dizer, porque foram eles os que lhe fizeram isso. Mitch assentiu. Reuniu forças com um pouco de chianti. Logo, contou ao Mitch sua infernal jornada. Se por acaso o estavam escutando, só deixou fora do relato o ocorrido com o John Knox no mezanino da garagem. Anson o ouviu com atenção e só lhe interrompeu umas poucas vezes para fazer alguma pergunta. Quando Mitch finalizou, seu irmão ficou com os olhos fechados, ruminando o que acabava de escutar. Entre os irmãos Rafferty, Megan era quem tinha o coeficiente de inteligência mais alto, mas Anson sempre ficava segundo, muito perto dela. A situação do Holly era tão apurada nesse momento como fazia meia hora, mas ao Mitch consolava o fato de que seu irmão tivesse entrado em campo de batalha. Ele mesmo se aproximou muito aos resultados do Anson nas provas. Experimentava uma pequena alegria, não porque uma inteligência superior se estivesse aplicando ao problema, mas sim porque já não estava sozinho. Só nunca tinha servido para nada. -Fique aí, Mickey. Em seguida retorno -disse Anson levantando do assento, e deixou a cozinha. Mitch ficou olhando o telefone. perguntou-se se saberia reconhecer um dispositivo de escuta, um microfone ou um pouco parecido, se desarmava o aparelho. Jogou um olhar ao relógio e viu que eram as 19.48. Tinham-lhe dado sessenta horas para reunir o dinheiro; e já só ficavam cinqüenta e dois. Não parecia possível cumprir o prazo. Os sucessos que o tinham levado ali o tinham feito sentir-se espremido, esmagado. Sentia como se já tivessem acontecido as sessenta horas e muitas mais. Como o bebido até esse momento não lhe tinha produzido efeito algum, terminou-se o vinho que ficava na taça. Anson retornou, vestindo uma jaqueta esportiva. -Temos que ir a alguns lugares. Contarei-lhe isso tudo no carro. Preferiria que conduzisse você. -me dê um segundo para terminar o vinho -disse Mitch, embora seu copo estava vazio. Escreveu uma mensagem mais na caderneta: SEMPRE SABEM ONDE ESTÁ MEU CARRO. Embora ninguém o seguiu até a casa de seus pais, os seqüestradores souberam que tinha estado ali. E mais tarde, quando se deteve no estacionamento da igreja para aguardar a chamada das 18.00, também sabiam com exatidão onde se encontrava. "É a igreja a que foi com seus pais?". Se tinham posto dispositivos de rastreamento em sua caminhonete e no Funda, podiam segui-lo a distância, sem que os visse, controlando seu paradeiro de forma eletrônica, em monitores. Embora Mitch desconhecia os detalhes práticos do funcionamento dessa tecnologia, sim entendia que o fato de que a empregassem significava que os captores do Holly eram inclusive mais sofisticados do que tinha suposto inicialmente. A magnitude de seus recursos, quer dizer, de seus conhecimentos e sua experiência criminal, deixava cada vez mais claro que seria difícil que qualquer tipo de resistência tivesse êxito. O lado positivo do assunto era que o profissionalismo dos seqüestradores fazia supor que algo que mandassem fazer ao Mitch e Anson estaria bem pensada e teria probabilidades de êxito, já se tratasse de um roubo ou de algum outro delito. Se a sorte os acompanhava, poderiam reunir o dinheiro da recompensa. Em resposta à advertência da última nota, Anson apagou o fogão que esquentava a panela de sopa e agarrou as chaves de seu utilitário. -Vamos em meu carro. Conduz você. Mitch apanhou as chaves que lhe arrojou seu irmão e, recolhendo depressa as notas que tinha escrito, atirou-as ao lixo. Ele e seu irmão saíram pela porta da cozinha. Anson não apagou as luzes nem jogou a chave, talvez reconhecendo que, metido em semelhante tempestade, não podia evitar que entrassem aqueles a quem tivesse querido manter fora. Um pátio com muros de tijolo, adornado com samambaias e nandinas anãs, separava as duas metades do edifício onde vivia Anson. A metade posterior, mais pequena, achava-se sobre duas garagens. A garagem do Anson, com capacidade para dois veículos, continha seu Expedition e um Buick Super Woody Wagon de 1947, que ele mesmo tinha restaurado. Mitch se sentou ao volante do utilitário. -E se também seus carros têm dispositivos de rastreamento? Fechando a porta do lado do acompanhante, Anson respondeu. -Não importa. Farei exatamente o que querem. Se podem nos rastrear, sentirão-se mais tranqüilos. Mitch pôs em marcha o veículo, deu marcha atrás e saiu ao atalho. -O que querem, o que temos o que fazer? diga-me isso   -Querem que transfiramos dois milhões de dólares a uma conta nas ilhas Jacaré. -Querem que transfiramos dois milhões de dólares a uma conta nas ilhas Jacaré. -Sim, bom, suponho que isso é melhor que ter que dar-lhe em moedas de um centavo, duzentos milhões de condenados centavos, mas a quem temos que lhe tirar esse dinheiro? A luz violenta de um vermelho ocaso alagou o caminho. -Não temos que lhe roubar a ninguém, Mitch. É meu dinheiro. Querem meu dinheiro, e, se for para isto, que fiquem.

 

O céu luminoso voltava radiante o atalho, e um resplendor de forja alagou o carro. Iluminado pelo reflexo ígneo do sol poente, o rosto do Anson tinha um aspecto feroz. Um brilho suavizava seu olhar fixo, mas seu suave tom voz revelava a verdadeira emoção que sentia. -Tudo o que tenho é teu, Mickey. Como se, depois de cruzar uma ocupada rua urbana, houvesse tornado o olhar e visto um maravilhoso bosque onde até fazia um momento se elevava uma metrópoles, Mitch permaneceu uns instantes em um atônito silêncio. Logo pôde falar com fim. -Você tem dois milhões de dólares? De onde tirou dois milhões de dólares? -Sou bom em meu campo profissional e trabalho muito. -Estou seguro de que é bom no teu, é bom em tudo o que faz, mas não vive como um homem rico. -Não quero fazê-lo. A exibição de luxos, o status e todo isso não me interessam. -Sei que alguma gente que tem dinheiro mantém um tom discreto, mas... -Interessam-me as idéias -disse Anson- e também alcançar algum dia a verdadeira liberdade, mas não que minha foto saia nas páginas de ecos e fofocas sociais. Mitch se sentia perdido no bosque desta nova realidade. -Quer dizer que seriamente tem dois milhões no banco? -Terei que liquidar investimentos. pode-se fazer por telefone, por ordenador, uma vez que abram os mercados, amanhã. Levará-me, como muito, três horas. As médio mortas sementes da esperança do Mitch reviveram com a rega que lhes proporcionou esta assombrosa, esta incrível novidade. -Quanto... quanto tem? Digo, em total... -Isto se levará quase toda minha liquidez -disse Anson-, mas ainda serei proprietário de minha parte do encostado. -Deixará-te sem nada. Não posso permiti-lo. -Se ganhei uma vez, posso voltar a ganhá-lo. -Isso não pode sabê-lo. -O que eu faça com meu dinheiro é meu assunto, Mickey. E o que quero fazer é usá-lo para que Holly retorne sã e salva. Entre faz de luz carmesim, em meio das suaves sombras do ocaso que se foram endurecendo com a chegada da noite, um gato avançou pelo caminho. Tinha um cor estranha, como alaranjado. Mitch, vapuleado por correntes de emoções contraditórias, não confiava em que lhe saísse a voz, de modo que ficou olhando ao gato enquanto respirava fundo. Foi Anson quem falou. -Como não estou casado nem tenho filhos, esse lixo lhes usa ao Holly e a ti para me chantagear a mim. A revelação da riqueza do Anson surpreendeu tanto ao Mitch que não entendeu em seguida o óbvio motivo do seqüestro, inexplicável até então. -Se tivesse havido alguém mais próximo a mim -continuou Anson-, se eu tivesse sido vulnerável nesse aspecto, teriam se levado a minha esposa ou a meu filho, e ao Holly não lhe teria ocorrido nada. O gato alaranjado foi diminuindo gradualmente o passo até ficar imóvel frente ao Expedition; logo elevou a vista para o Mitch. Naquela paisagem de luz ardente, só os olhos do gato tinham brilho próprio. Eram de uma cor verde radiativa. -Poderiam ter raptado a uma de nossas irmãs, verdade? Ao Megan, Connie, ou Porta. Tivesse sido o mesmo. -Vive como uma pessoa de classe média -comentou Mitch-, como souberam que tinha milhões? -Por algum que trabalha em um banco, ou algum corredor de bolsa, qualquer tipo corrupto infiltrado onde não deveria haver gente assim. -Tem idéia de quem pode ser? -Não tive tempo de pensar nisso, Mickey. pergunte-me isso amanhã. Rompendo a quietude, o gato passou com sigilo frente ao utilitário e se perdeu de vista. Nesse instante, um ave pôs-se a voar, batendo suas asas contra o guichê do condutor durante um instante. Era uma pomba ou uma tórtola que, depois de entreter-se com umas migalhas de pão, voava para o refúgio de algum emparrado. Mitch se sobressaltou pelo som do pássaro e experimentou a onírica sensação de que o gato, ao desaparecer, transformou-se no ave. Voltando-se para seu irmão, o menor se explicou. -Eu não podia ir à polícia. Mas agora tudo troca. Você pode fazê-lo. Anson meneou a cabeça. -Mataram a um tipo frente a ti para que entendesse como são as coisas. -Sim. -E você o entendeu. -Sim. -Bom, eu também. Se não obterem o que querem, matarão a sua mulher sem compaixão e nos jogarão o fardo dois. Primeiro, que devolvam ao Holly, depois, iremos à polícia. -Dois milhões de dólares. -Não é mais que dinheiro. Mitch recordou o que seu irmão havia dito a respeito de sua falta de interesse por figurar nas páginas de sociedade da imprensa, de estar mais interessado nas idéias e em "obter algum dia a verdadeira liberdade". Agora, repetiu essas seis palavras e acrescentou: -Sei o que significa isso. O iate. A vida no mar. -Não tem importância, Mickey. -Claro que a tem. Com tudo esse dinheiro, está perto de conseguir seu navio e sua vida sem ataduras. Sei que é um homem planejador. Sempre foi. Quando tinha previsto te retirar, trocar de vida? -Que mais dá, em qualquer caso é um sonho infantil, Mickey. Contos de piratas, batalhas navais, liberdade, Yates, tudo é igualmente ilusório. -Quando? -insistiu Mitch. -dentro de dois anos. Quando cumprisse os trinta e cinco. E talvez consiga a liberdade antes do que acredito. Minha empresa cresce depressa. -O contrato com a China. -O contrato com a China e também outros. Sou bom em meu trabalho. -Nem me passa pela cabeça rechaçar sua oferta -disse Mitch-. Daria a vida pelo Holly, de modo que estou mais que disposto a deixar que vá à quebra por ela. Mas não permitirei que menospreze seu sacrifício. É um esforço imenso, na verdade incrível. Anson tendeu o braço e o passou ao Mitch pelo pescoço. Abraçando-o estreitamente, apoiou sua frente contra a do jovem, de modo que não se olhavam um ao outro, a não ser ambos à alavanca de mudanças que ficava entre eles. -Contarei-te uma coisa, irmão. -me diga. -Normalmente, nunca falo disto. Assim não vás consumir te com nenhum sentimento de culpa, como acostuma... Deve saber que não é o único que necessita ajuda. -A que te refere? -Como te crie que comprou Connie sua padaria? -Você? -Fiz-lhe um empréstimo especial, de forma que pudesse converter parte dele em um donativo anual livre de impostos. Não quero que me devolva isso. É divertido fazê-lo. E a barbearia canina do Megan também é divertida. -E o restaurante que vão abrir Frank e Porta, suponho -arrebitou Mitch. -Isso também. Seguiam sentados, cabeça contra cabeça. -Como souberam que tem tanto dinheiro? -Não souberam. Dava-me conta de que tinham necessidades. tentei saber também o que necessita você, mas sempre me pareceu... Condenadamente auto-suficiente. -Isto é muito distinto a um empréstimo para comprar uma padaria ou abrir um pequeno restaurante. -Não me diga, Sherlock. Mitch soltou uma risada tremente. -Quando crescíamos no labirinto para ratos do Daniel, o único com o que podíamos contar era conosco mesmos. Era o que de verdade importava. Segue sendo assim, fratello piccolo. E sempre o será. -Nunca esquecerei isto -disse Mitch. -Claro que não. Está em dívida para sempre. Esta vez, a risada do Mitch não foi tão tremente. -Tem um jardineiro grátis de por vida. -Né, irmão. -O que? -Está a ponto de que te caia a baba sobre a alavanca de mudanças? -Não -prometeu Mitch. -Melhor. Eu gosto que meu carro esteja limpo. Preparado para conduzir? -Sim. -Seguro? -Sim. -Vamos, pois.

 

Já só uma diminuta ferida do dia que se ia sangrava no longínquo horizonte. Fora disso, o céu estava escuro, e o mar também. A lua ainda não se havia elevado para chapear as praias desertas. Anson disse que precisava pensar. Pensava bem e com claridade em um carro em movimento, pois era o mais parecido a ir navegando em um veleiro. Sugeriu ao Mitch que se dirigisse ao sul. A essa hora, o tráfico da auto-estrada da costa do Pacífico era escasso e Mitch se manteve no sulco direito, sem apressar-se. -Chamarão casa amanhã a meio-dia -disse Anson- para ver quanto avancei com os trâmites financeiros. -Eu não gosto disto da transferência eletrônica às ilhas Jacaré. -Tampouco a mim. Terão o dinheiro e também ao Holly. -Seria melhor fazê-lo em pessoa -disse Mitch-. Que nos tragam para o Holly, nós trazemos um par de malas cheias de dinheiro. -Isso também é inseguro. Podem tomar o dinheiro e nos matar a todos. -Não, se pusermos como condição que nos permitam ir armados. Anson duvidou. -Crie que isso os intimidaria? Seriamente vão acreditar que sabemos dirigir as armas? -O mais provável é que não. Assim levemos armas que não requeiram saber disparar bem. Escopetas, por exemplo. -E de onde tiramos as escopetas? -perguntou Anson. -Compramo-las em uma armería, no Wal-Mart, onde seja. -Vendem-lhe isso imediatamente? Não há um período de espera? -Não acredito. Só para as armas sofisticadas. -Teremos que praticar com elas. -Não muito. Só o suficiente para nos sentir mais ou menos seguros. -Possivelmente possamos procurar um lugar pela auto-estrada Ortega. Uma vez que tenhamos as armas, digo. Aí ainda há uma parte de deserto que não encheram que casas. Poderíamos encontrar um lugar desabitado e disparar uns tiros, para praticar. Mitch conduziu um momento sem falar, Anson o acompanhava no silêncio. Ao este, viam-se as colinas tachonadas de luzes de casas de luxo, ao oeste, só mar negro e céu negro. Já não se distinguia a linha do horizonte que separava a um de outro, e o mar e o céu se fundiam em um grande vazio profundamente escuro. -Não me parece muito realista. o das escopetas, digo. -Parece de filme, sim -concedeu Anson. -Eu sou jardineiro, e você, perito em lingüística. -Em qualquer caso -disse Anson-, não acredito que os seqüestradores vão permitir nos pôr condições. que tem o poder faz as regras. Seguiram em direção ao sul. A lhe ziguezagueiem auto-estrada subiu um trecho antes de descender ao centro de Lacuna Beach. Era meados de março e a temporada turística tinha começado. A gente passeava pelas calçadas, indo jantar, ou retornando, olhando as cristaleiras das lojas e galerias comerciais, já fechadas. Quando seu irmão sugeriu que se detiveram comer algo, Mitch lhe disse que não tinha fome. -Deve comer -insistiu Anson. -Do que vamos falar enquanto jantamos? De esportes? Não é prudente que ninguém nos ouça conversando sobre isto. -Comeremos no carro. Mitch estacionou frente a um restaurante chinês. Na cristaleira, um dragão pintado agitava sua juba de escamas. Enquanto Anson aguardava no automóvel, Mitch entrou. A moça do mostrador de comidas para levar lhe disse que seu encargo estaria preparado em dez minutos. Animada-a conversação dos que comiam lhe pôs os nervos de ponta. Sua despreocupada risada lhe produzia um vago ressentimento. Os aromas das diversas comidas com muitos condimentos lhe abriram o apetite. Mas o fragrante ar não demorou para voltar lhe lhe oprimam, carregado; a boca se o ressecou e lhe azedou. Holly seguia em mãos dos assassinos. Tinham-na golpeado. Tinham-na feito gritar, para que o ouvisse ele e para que o ouvisse Anson. Pedir comida a China para levar, jantar, ocupar-se de qualquer tarefa da vida cotidiana, o fazia sentir-se traidor para o Holly, era como se lhe tirasse importância a tão se desesperada situação. Se tinha ouvido as ameaças que lançaram ao Mitch por telefone, que lhe amputariam os dedos, que lhe cortariam a língua, seu medo devia ser insuportável, desolador. Quando imaginou esse medo incessante e pensou nela atada na escuridão, a docilidade surta de seu indefensión começou por fim a ser substituída pela ira, por a raiva. Tinha o rosto aceso, ardiam-lhe os olhos, a fúria inchava sua garganta até lhe impedir de tragar. Sentiu uma inveja irracional pelos felizes comensais, tão intensa que o fez desejar derrubar os de suas cadeiras, lhes romper a cara. A ordenada decoração o ofendia. Sua vida se sumiu no caos e ardia em desejos de descarregar sua frustração em um arranque de violência. Algum rescaldo secreto e selvagem de sua natureza, que levava muito tempo lhe queimando, acendeu-se em uma deflagração total, enchendo o de desejo de desprender os multicoloridos farolillos, rasgar os biombos de papel de arroz, arrancar dos muros as letras chinesas envernizadas de vermelho e as arrojar, as fazendo girar como as estrelas arrojadizas que se usam nas artes marciais, para que cortassem, ferissem e destroçassem tudo o que se cruzasse em seus caminhos. Sentia umas irresistíveis ganha de romper mesas, cadeiras e janelas. A moça do mostrador que lhe apresentou as duas bolsas brancas que continham seu pedido intuiu a tormenta que bulia em seu interior. Abriu muito os olhos e se pôs em guarda. Fazia só uma semana, em uma pizzería, um cliente desequilibrado tinha disparado a discrição, matando à caixa e a dois garçons antes de que outro cliente, um policial fora de serviço, abatesse-o de dois tiros. Era provável que a moça estivesse revivendo em sua mente as reportagens da televisão sobre essa massacre. Ao notar que a moça se assustava, Mitch reagiu, e baixou um degrau, da fúria ao aborrecimento e, depois, a uma passiva desesperança, que fez que se aliviasse sua tensão arterial e se sossegasse o constante trovejar de seu coração. Saiu do restaurante à morna noite primaveril e viu que, no Expedition, seu irmão falava pelo móvel. Quando Mitch subiu e se sentou no assento do condutor, Anson terminou a chamada. Mitch se interessou por esse bate-papo. -Eram eles? -Não. É um tipo com quem acredito que deveríamos falar. -Que tipo? -perguntou Mitch, lhe dando a bolsa maior a seu irmão. -Estamos em águas profundas e rodeadas de tubarões. Não temos maneira de nos enfrentar a eles. Necessitamos que nos aconselhe alguém que saiba como evitar que nos comam como a indefesos pececillos. Embora antes lhe tinha dado a seu irmão a opção de ir às autoridades, agora Mitch se alarmou. -Matarão-a se o contamos a alguém. -Disseram que nada de policiais. Não iremos à polícia. -Assim e tudo, põe-me nervoso. -Mickey, compreendo muito bem os riscos. Isto é como se nos víssemos obrigados a tocar um violino cujas cordas estivessem conectadas a uma bomba. Estamos jodidos de todas maneiras, mas ao menos tratemos de lhe tirar música. Cansado de sentir-se impotente, convencido de que se obedecia docilmente aos seqüestradores eles o pagariam com desprezo e crueldade, Mitch aceitou. -Muito bem. Mas o que ocorre se nos estão ouvindo neste preciso momento? -Não nos estão ouvindo. Para pôr microfones em um carro e ouvir em tempo real, não teriam acaso que pôr mais de um dispositivo? Não teriam que acompanhá-lo de um transmissor e uma fonte de alimentação? -Teriam que fazer isso? Como quer que saiba? -Eu acredito que sim. Seria muito equipe, muito volumoso, muito complicado para escondê-lo com facilidade ou instalá-lo depressa. Usando com destreza os palitos chineses, Anson comeu carne uso Szechuan de uma caixa e arroz com cogumelos de outra. -E se usarem microfones direcionais? -Vi os mesmos filmes que você -disse Anson-. Os micros direcionais funcionam melhor quando não há vento. Olhe as árvores. Há muita brisa esta noite. Mitch comeu moo goo gai pão com um garfo de plástico. Detestava o fato de que a comida fosse deliciosa, como se tragar um alimento insípido tivesse demonstrado maior fidelidade para o Holly. -Além disso -disse Anson-, os microfones direcionais não funcionam entre dois veículos em movimento. -Então, não falemos até que não estejamos em movimento. -Mickey, a linha que separa as precauções sensatas e a paranóia é muito magra. -Faz horas que cruzei essa linha e te asseguro que já não posso retornar.

 

O moo goo gai pão deixou ao Mitch um desagradável gosto que tentou tirar-se, em vão, com um refresco, enquanto conduzia. dirigiu-se ao sul pela auto-estrada da costa. Construções e árvores ocultavam o mar quase todo o tempo, embora por momentos se podia espionar uma negrume abisal. Anson ia sorvendo chá com limão de um copo alto de papel. -chama-se Campbell. Pertenceu ao FBI. -É justamente a classe de pessoa a quem não podemos acudir -replicou Mitch, alterado. -Pinjente "pertenceu", Mickey. É um ex-agente do FBI. Resultou gravemente ferido de um balaço aos vinte e oito anos. Outros se tivessem dedicado a viver de sua pensão de invalidez, mas ele se construiu um pequeno império. -E se puseram um dispositivo de rastreamento no Expedition e se inteiram de que estamos de papo com um ex-agente do FBI? -Não têm forma de saber que o é. Se souberem algo dele, é que fizemos juntos um importante negócio faz poucos anos. Suporão que estamos reunindo o resgate. Os pneumáticos bramavam sobre o asfalto, mas ao Mitch parecia que a auto-estrada sobre a que foram não era mais consistente que o filme de água da superfície de um lago, sobre a que um mosquito podia passear despreocupadamente até que um peixe saísse a alimentar-se e o apanhasse. -Sei que terra necessitam as buganvillas, quanta luz solar requerem os gladíolos -disse-. E sei outras muitas coisas, mas tudo isto é como um mundo novo, outro universo para mim. -Também para mim, Mickey. Por isso necessitamos ajuda. Ninguém tem mais conhecimento do mundo real, nem domina tão bem a rua como Julian Campbell. Mitch começava a sentir que cada decisão que deviam tomar era como acionar o interruptor do detonador de uma bomba e que a eleição equivocada podia pulverizar a sua esposa. Se tudo seguia assim, acabaria preocupando-se tanto que ficaria paralisado. A inacción não salvaria ao Holly. A indecisão podia matá-la. -Muito bem -cedeu-. Onde vive esse Campbell? -Toma a interestadual. Vamos para o sul, a Rancho Santa Fé. Rancho Santa Fé, ao esteja-noreste de San Diego, era uma comunidade de hotéis de quatro estrelas, campos de golfe e imóveis para multimilionários. -lhe dê gás -acrescentou Anson- e estaremos aí em noventa minutos. Quando estavam juntos, sentiam-se cômodos permanecendo em silêncio, talvez porque ambos, de meninos, tinham passado muito tempo, por separado, e sozinhos, no quarto de aprendizagem. Essa habitação estava melhor isolada que um estudo de rádio. Não entrava nem um som do mundo exterior. Os silêncios do Mitch e de seu irmão durante a viagem eram diferentes. O do menor era um agitar-se em vão no vazio, como um astronauta que, sem poder falar, precipitasse-se em um abismo sem gravidade. o do Anson era o silêncio próprio de um pensamento febril, mas ordenado. Sua mente percorria cadeias de raciocínio dedutivo e indutivo a mais velocidade que qualquer ordenador, e sem o zumbido do motor elétrico. Levavam vinte minutos na interestadual quando Anson rompeu o silêncio. -Sente às vezes como se lhe tivessem tido de refém durante toda sua infância? -Se não fora por ti -respondeu Mitch-, odiaria-os. -Eu às vezes sim os ódio. Com intensidade, mas por pouco tempo. Fazê-lo comprido momento seria como desperdiçar sua vida odiando a Santa Claus porque não existe. -Lembra-te de quando me colheram com um exemplar da telaraña do Charlotte? -Tinha quase nove anos. Passou vinte dias na quarta de aprendizagem. Anson citou ao Daniel: -"A fantasia é a porta de entrada à superstição". -Animais que falam, um porco humilde, uma aranha inteligente. -"Uma influência corruptora" -seguiu Anson-. "O primeiro passo em uma vida de irracionalidade e crenças sem fundamento". Seu pai não via que houvesse mistério na natureza. Para ele, só era uma máquina ecológica. -Teria sido melhor que nos pegassem -afirmou Mitch. -muito melhor. Cardeais, ossos quebrados... Essas são as coisas que chamam a atenção do Serviço de Amparo à Infância. Da outra forma estávamos indefesos de tudo. Depois de outro silêncio, Mitch acrescentou: -Connie em Chicago, Megan em Atlanta, Porta em Birmingham. por que você e eu seguimos aqui? -Possivelmente nos agrada o clima. Ou talvez não acreditam que a distância cure. Possivelmente sentimos que ficam questões por resolver. A última explicação tinha sentido para o Mitch. Freqüentemente tinha pensado o que diria a seus pais se se apresentava a ocasião de questionar a disparidade entre suas intenções e seus métodos, ou a crueldade que implicava tratar de despojar a meninos de seu sentido do maravilhoso. Quando deixou a interestadual e conduziu terra adentro por estradas estatais, traças do deserto se formaram redemoinhos em torno do carro, brancas como flocos de neve à luz dos faróis. estrelavam-se contra o pára-brisa. Julian Campbell vivia detrás de uns muros, nos que se abria um imponente portão de ferro encaixado em um enorme marco de pedra calcária. As ombreiras tinham intrincadas talhas que simulavam frondosas trepadeiras que se elevavam até unir-se e formar uma grinalda gigantesca no dintel. -Este portão -disse Mitch- deve haver flanco tanto como minha casa. -O dobro -assegurou-lhe Anson.

 

À esquerda da entrada principal se via uma guarita incorporada ao muro de blocos de pedra. Sua porta se abriu quando o Expedition se deteve. Um jovem alto, embainhado em um traje negro, saiu e lhes aproximou. Seus olhos claros escrutinaram ao Mitch com a facilidade com que o faz o exploratório de uma caixa registradora com o código de barras de um produto. -boa noite, senhor. -Em seguida passou seu olhar do Mitch ao Anson-. É um gosto vê-lo, senhor Rafferty. Sem que Mitch ouvisse que produziram som algum, as duas folhas do ornado portão de ferro se abriram para dentro. viu-se um caminho de entrada de dois sentidos, empedrado com paralelepípedos de cuarcita e flanqueado por majestosas datileras. Cada um das árvores estava iluminada de abaixo, e seus ramos formavam um dossel sobre o meio-fio. Ao entrar no imóvel conduzindo o carro, sentiu como se tudo tivesse sido perdoado no mundo e o éden tivesse sido restaurado. O caminho de acesso ao imóvel percorria quatrocentos metros. Vastos prados e jardins, magicamente iluminados, perdiam-se no mistério da escuridão a um e outro lado. -Sete hectares ajardinados -comentou Anson. -Só para as manter, deve haver ao menos doze empregados. -Estou seguro de que os há. Com tetos de telha vermelhos, muros de pedra calcária, janelas radiantes de luz dourada, colunas, balaustradas e terraços, o arquiteto tinha conseguido criar tanta beleza como majestade. A casa, de estilo italiano, tão grande que deveria intimidar, parecia, em que pese a tudo, acolhedora. Em seu extremo, o caminho riscava um círculo em torno de um lago no que se refletia a casa. No centro tinha uma fonte de onde surgiam jorros que se entrecruzavam em um rocio de moedas de prata, que formava arcos cintilantes na noite. Mitch estacionou a sua beira. -Este tipo tem permissão para imprimir dinheiro? -dedica-se à indústria do entretenimento. Filmes, cassinos, o que te ocorra. Aquele esplendor afligia ao Mitch, mas também lhe dava esperanças de que Julian Campbell pudesse ajudá-los. Para construir semelhante fortuna detrás ter sido gravemente ferido e dado de baixa do FBI por incapacidade permanente, para ter recebido tão más cartas e, entretanto, ter ganho a partida, Campbell devia ser tão ardiloso como Anson tinha assegurado. Um homem de cabelo prateado e aspecto de mordomo os recebeu no átrio, disse que se chamava Winslow e os fez passar. Seguiram ao Winslow por um imenso saguão de mármore branco, cujo cubro artesonado tinha elementos decorativos dourados em forma de folhas. Depois de passar por uma sala de estar que media ao menos dezoito por vinte e quatro metros, chegaram ao fim a uma biblioteca onde preponderava, deslumbrante, a madeira de mogno. Respondendo a uma pergunta do Mitch, Winslow revelou que a coleção de livros constava de sessenta mil volúmenes. -O senhor Campbell estará com vocês em um momento -disse antes de partir. Na biblioteca, que tinha mais metros quadrados que o bungaló do Mitch, havia uma dúzia de lugares com sofás e poltronas para sentar-se a ler. sentaram-se em poltronas enfrentadas, separados por uma mesita auxiliar. Anson suspirou. -Fizemos o correto. -Se ele for ao menos a metade de impressionante que sua casa... -Julian é o melhor, Mitch. -Deve-te apreciar muito para te dar cita com tão pouca antecipação e depois das dez da noite. Anson sorriu com amargura. -O que diriam Daniel e Kathy se eu rechaçasse seu elogio com umas poucas palavras modestas ? -"A modéstia está vinculada à insegurança -citou Mitch-. A insegurança, ao acanhamento. Acanhamento é uma maneira de dizer temor. O temor é o que caracteriza aos mansos. E quem herda a terra não são os mansos, a não ser aqueles que confiam em si mesmos e se fazem valer". -Amo-te, hermanito. Assombra-me. -Estou seguro de que também você poderia citá-lo ao pé da letra. -Não refiro a isso. Foi criado na caixa Skinner, no labirinto para ratos, e entretanto possivelmente seja a pessoa mais modesta que conheço. -Tenho meus problemas -assegurou-lhe Mitch-. Muitos. -Vê? Quando te digo que é modesto, responde te criticando a ti mesmo. Mitch sorriu. -vê-se que não aprendi muito na quarta de aprendizagem. -Para mim, a quarta de aprendizagem não foi o pior -disse Anson-. O que nunca conseguirei arrancar de minha mente é o jogo da vergonha. A lembrança ruborizou o rosto do Mitch. -"A vergonha não cumpre uma função social. Revela uma mentalidade supersticiosa". -Quando foi a primeira vez que lhe fizeram praticar o jogo da vergonha, Mickey? -Acredito que tinha uns cinco anos. -Quantas vezes o jogou? -Diria que um total de meia dúzia. -Por quanto lembrança, me fizeram jogar isso onze vezes, a última aos treze anos. Mitch fez uma careta. -Homem, vá se o recordo. Deveu fazê-lo durante uma semana completa. -Viver nu as vinte e quatro horas, todos os dias, enquanto outros habitantes da casa andavam vestidos. Que te exigisse que respondesse frente a todos as perguntas mais embaraçosas, mais íntimas, a respeito de seus pensamentos, hábitos e desejos privados. Ser observado por outros dois integrantes da família, ao menos um deles, uma irmã, cada vez que foi ao lavabo. Que não te permitisse nem o mais mínimo momento de privacidade... Isso te curou da vergonha, Mickey? -Olhe meu rosto -disse Mitch. -poderia-se acender uma vela em seu rubor. -Anson riu brandamente, com uma risada cálida-. Não lhe vamos dar de presente nada para o dia do pai. -Nem sequer um frasco de água de colônia? -perguntou Mitch. Era uma brincadeira habitual que compartilhavam da infância. -Nem sequer uma bacinilla para que mije -disse Anson. -E se lhe a damos de presente mijada, mas não a bacinilla? -E com o que a envolveríamos? -Com amor -respondeu Mitch, e se sorriram o um ao outro. -Estou orgulhoso de ti, Mitch. Ganhou. Não te ocorreu o que a mim. -O que aconteceu a ti? -Quebrantaram-me, Mitch. Não tenho vergonha, nem sentido de culpa. -Anson tirou uma pistola do interior de sua jaqueta esportiva.

 

Mitch seguiu sonriendo, à espera do arremate, como se soubesse que a pistola resultaria ser, não uma arma, a não ser um acendedor ou um objeto de loja de artigos de brincadeira que disparava borbulhas. Se o mar salgado pudesse congelar-se sem perder sua cor, teria o matiz dos olhos do Anson. Eram tão claros como sempre, tão diretos como de costume, mas, além disso, estavam tintos de algo que Mitch nunca tinha visto, que não podia ou possivelmente não queria identificar. -Dois milhões. O certo é que -Anson falava quase com tristeza, sem mordacidade nem rancor- não pagaria dois milhões nem para te resgatar a ti, assim Holly estava morta do momento mesmo em que a levaram. O rosto do Mitch se endureceu como o mármore e sua garganta pareceu encher-se de pedras que lhe impediam de falar. -Às vezes, algumas pessoas para as que tenho feito trabalhos de consultoria se encontram frente a uma oportunidade que não supõe mais que migalhas para eles, mas são um festim para mim. Não é meu trabalho habitual, falo de coisas claramente delitivas. Mitch lutou angustiosamente para centrar a atenção no que seu irmão lhe dizia, pois sua cabeça estava aturdida pelo estrondo da queda das idéias de toda uma vida, que se derrubavam como um montão de madeiros roídos pelas térmites. -Os que seqüestraram ao Holly são a equipe que reuni para um desses trabalhos. Nele ganharam muito, mas se inteiraram de que minha parte tinha sido major do que os pinjente, e se voltaram ambiciosos. De modo que Holly tinha sido seqüestrada não só porque Anson tinha suficiente dinheiro para resgatá-la, mas também porque ou, melhor dizendo, acima de tudo porque Anson tinha extorquido a seus raptores. -Têm medo de ir diretamente a por mim. Sou muito valioso para algumas pessoas sérias, que matariam a qualquer que me liquidasse . Mitch supôs que não demoraria para conhecer uma dessas "pessoas sérias", mas fora qual fosse a ameaça que representassem, esta nunca seria igual à devastação que lhe produziu a inesperada traição. -Por telefone -revelou Anson- disseram que se não pagar o resgate pelo Holly a matarão e logo, um dia, pegarão-lhe um tiro na rua, como fizeram com o Jason Osteen. Pobres idiotas. Acreditam que me conhecem, mas não sabem como sou em realidade. Ninguém sabe. Mitch se estremeceu, pois sua paisagem mental se tornou invernal; seus pensamentos eram uma tormenta de neve, um furacão glacial e implacável. -Por certo, Jason era um deles. O doce, descerebrado, Breezer. Acreditava que seus cupinchas foram disparar lhe ao cão para te fazer entender como são as coisas. Ao lhe disparar a ele, deram um aviso mais claro e, de passagem, asseguraram-se de que houvesse mais para repartir entre quão sócios ficavam. É obvio, Anson tinha conhecido ao Jason durante tanto tempo como Mitch. Mas, evidentemente, Anson se tinha mantido em contato com o Jason muito depois de que Mitch lhe perdesse o rastro a seu ex-companheiro de apartamento. -Quer me dizer alguma coisa, Mitch? Outro homem, nessa posição, possivelmente teria solto mil perguntas iradas e outras tantas invectivas amargas. Mas Mitch ficou gelado. Acabava de experimentar uma grande comoção em seus âmbitos emocionais e intelectuais. Sua visão da vida, equatorial até esse momento, tornou-se ártica em um instante. A paisagem desta nova realidade lhe era desconhecido, e este homem que tanto se parecia com seu irmão não era o irmão que tinha conhecido, a não ser um estranho. Eram como estrangeiros o um para o outro, sem uma língua comum, solos em uma planície desolada. Anson pareceu tomar o silêncio do Mitch como um desafio, uma afronta, inclusive. Inclinando-se para diante em sua poltrona, escrutinava-o em busca de uma reação. Mas falou com a voz fraternal que sempre usasse, como se sua língua estivesse tão acostumada aos suaves tons do engano que não pudesse voltá-la mais áspera para a ocasião. -Para que não vás acreditar que significa menos para mim que Megan, Connie e Porta, devo te esclarecer algo. Não lhes dava dinheiro para que começassem suas empresas. Era mentira, irmão. Estava-te manipulando. Como estava claro que queria uma resposta, Mitch não a deu. Um homem que sofre de febre pode sentir calafrios, e, embora o olhar do Anson seguia sendo glacial, sua intensidade revelava a febril agitação de sua mente. -Dois milhões não me deixariam na ruína, irmão. A verdade é que... Tenho quase oito. Desde atrás do robusto encanto daquele homem aparecia outro ser e Mitch sentiu, sem entender de tudo do que se tratava, que, embora ele e seu irmão estavam sós na habitação, de fato, havia alguém mais com eles. -Comprei-me o iate em março -disse Anson-. Para setembro, estarei dirigindo meu serviço de consultoria desde mar, via satélite. Liberdade. Me ganhei, e ninguém me vai tirar nem duas centavos dela. A porta da biblioteca se fechou. Alguém tinha chegado... E queria privacidade para o que viria a seguir. Levantando-se de seu assento, com a pistola lista, Anson tratou uma vez mais de cravar ao Mitch para que reagisse. -Talvez te console o fato de que, agora, para o Holly não terminará toda na quarta-feira a meia-noite, a não ser antes. Apareceu um homem alto, com um porte e um aspecto felino que faziam imaginar que algum de seus ancestros se cruzou com uma pantera. Seus olhos, metálicos e cinzas, brilhavam de curiosidade, e elevava o nariz como se farejasse um rastro. Anson se dirigiu de novo ao Mitch. -Quando eu não responda à chamada que farão a casa a meio-dia e quando você não os atenda em seu móvel, darão-se conta de que não podem me pressionar. Matarão-a, atirarão-a por aí e fugirão. O homem cheio de confiança levava mocasines, calças de seda negra e uma camisa, também de seda, de um cinza como o de seus olhos. Um Rolex de ouro brilhava em sua boneca esquerda, e suas unhas, muito cuidadas, estavam tão polidas que brilhavam. -Não a torturarão -continuou Anson-. Isso era para te assustar. É provável que nem sequer se a follen antes de matá-la, embora, se eu fosse eles, faria-o. Dois homens fornidos ficaram a um e outro lado da poltrona do Mitch. Ambos levavam pistolas com silenciadores. Seus olhos eram como os que, pelo general, só se vêem do exterior de uma jaula. -Tem uma arma na cintura -disse-lhes Anson. Logo olhou ao Mitch-. Senti-a ao te abraçar, irmão. Mitch se perguntou, recapitulando, por que não lhe tinha mencionado a pistola a seu irmão quando foram no Expedition em marcha e era pouco provável que os ouvissem. Talvez nas mais fundas catacumbas de sua mente estivesse sepultada uma desconfiança para o Anson que não tinha sido capaz de reconhecer. Um dos pistoleiros tinha a cara desfigurada. O acne tinha picado seu rosto como os pulgones o fazem com uma folha. Disse ao Mitch que se levantasse, e este incorporou-se de sua poltrona. O outro pistoleiro lhe elevou a aba da jaqueta esportiva e lhe tirou a pistola. Quando lhe disseram que se sentasse, Mitch obedeceu. Falou-lhe por fim ao Anson. -Dá-me pena. -E era certo, embora era uma triste sensação de pena, que continha alguma compaixão mas nenhuma ternura, como se lhe tivessem tirado a misericórdia, substituindo-a por simples repulsão. Fora qual fosse a natureza dessa pena, Anson não a queria. Havia dito que se orgulhava do Mickey porque este não tinha sido moldado na forja de seus pais, enquanto que ele sentia que o tinham quebrantado. Eram mentiras, o azeite lubrificante que usava o manipulador. Quão único o orgulhava era sua própria astúcia, seu caráter implacável. Ante a declaração do Mitch, o desdém obscureceu os olhos do Anson, e esse desprezo evidente endureceu ainda mais a expressão brutal de seu semblante. Intuindo ao parecer que Anson estava o suficientemente ofendido para cometer uma imprudência, o homem vestido de seda elevou uma mão para lhe proibir que disparasse; o Rolex de ouro cintilou. -Aqui não. Depois de um hesitação, Anson colocou a pistola na capa que levava junto ao ombro, por debaixo da jaqueta esportiva. Sem que Mitch as buscasse, as oito palavras que o detetive Taggart lhe dissesse fazia oito horas foram a sua mente. Embora não sabia qual era sua fonte, nem terminava de entender o que as fazia tão apropriadas para esse momento, sentiu-se obrigado às dizer. -Ouço como o sangue clama do chão. Durante um instante, Anson e seus cúmplices ficaram tão imóveis como as figuras de um quadro. Um pesado silêncio caiu sobre a biblioteca, o ar ficou imóvel e a noite se escondeu frente às portas acristaladas. Anson abandonou a habitação. Os dois pistoleiros retrocederam uns passos, mantendo-se alerta, enquanto o homem vestido de seda se sentava sobre o braço da poltrona do que o irmão maior se acabava de levantar. -Mitch -disse-, foste toda uma decepção para seu irmão.

 

Julian Campbell irradiava um fulgor dourado que só podia ter obtido de uma câmara de raios uva própria, um físico esculpido que denotava que tinha ginásio privado e treinador pessoal e um rosto sem rugas que, para tratar-se de um homem de cinqüenta anos, fazia supor que tinha um cirurgião plástico a salário. Não se apreciava rastro visível da ferida que tinha terminado com sua carreira no FBI, nem nenhum indício de discapacidad. Era evidente que seu triunfo sobre ferida-las era tão grande como seu êxito econômico. -Mitch, sinto curiosidade. -A respeito do que? -Sou um homem prático -disse, sem lhe responder-. Em minha atividade, faço o que devo fazer e não tenho problemas para dormir. Mitch interpretou que estas palavras significavam que Campbell não permitia que a culpa o atormentasse. -Conheço muitos homens que fazem o que se deve fazer. Homens práticos. Ao cabo de treze horas e meia, os seqüestradores chamariam à casa do Anson. Se Mitch não estava ali para atendê-los, matariam ao Holly. -Mas esta é a primeira vez que vejo que um homem trai a seu irmão só para demonstrar que é o mais duro dos duros. -Faz-o por dinheiro -corrigiu-o Mitch. Campbell meneou a cabeça. -Não. Anson me poderia ter pedido que lhes desse uma lição a essas joaninhas. Não são tão duros como acreditam. Por debaixo daquele intenso momento, o mais escuro do sinistro dia, parecia haver algo ainda mais escuro. -Em doze horas, poderíamos ter feito que fossem eles quem devessem suplicasse que lhes permitamos pagar uma quantidade para devolver a sua esposa ilesa. Mitch aguardou. Nesse momento não podia fazer outra coisa que aguardar. -Estes tios têm mães. Queimamo-lhe a casa a uma mami, rompemo-lhe, talvez, a cara a outra, como para que necessite um ano de cirurgia reconstructiva, Y... Campbell falava com um tom frio e objetivo, mais adequado para a descrição de um negócio de bens raízes. -Um deles tem uma filha, de uma ex-mulher. Significa algo para ele. Detemos a menina quando está retornando da escola, despimo-la, prendemo-lhe fogo a sua roupa. Dizemos a seu papai que a próxima vez queimamos à pequena Suzie junto a seus objetos... Antes, em sua ingenuidade, Mitch tinha desejado que colocassem ao Iggy neste embrulho para salvar ao Anson. Agora se perguntava se teria estado disposto a permitir que outras pessoas inocentes fossem golpeadas, queimadas e maltratadas para salvar ao Holly. Talvez devesse sentir-se agradecido porque não o tivessem devotado. -Se lhes déssemos um susto a doze dos suas em outras tantas horas, essas joaninhas mandariam a sua esposa a casa com suas desculpas e um vale de compras no Nordstrom, para um guarda-roupa completo. Os dois pistoleiros não separavam os olhos do Mitch. -Mas Anson -continuou Campbell- quer deixar as coisas claras para que ninguém nunca o volte a subestimar. De forma indireta, essa mensagem também vai destinado a mim. E devo dizer que estou impressionado. Mitch não podia permitir que notassem a verdadeira intensidade de seu terror. Se o faziam, dariam por sentado que o medo extremo podia voltá-lo temerário, e o vigiariam com mais diligencia ainda. Devia mostrar-se assustado, claro, mas, mais que assustado, desesperado. Um homem nas garras do desespero, que abandonou toda esperança, não é um homem que tenha vontade de brigar. -Sinto curiosidade -repetiu Campbell, retornando ao fim aonde começasse-. Para que seu irmão fora capaz de te fazer isto, o que fez você a ele? -Amei-o -disse Mitch. Campbell contemplou ao Mitch do mesmo modo em que uma grou metida na água observa a um peixe que vê passar, e depois sorriu. -Sim, isso o explica. O que faria se um dia se encontra com que o sentimento é mútuo? -Sempre quis chegar longe e chegar depressa. -Os sentimentos são um lastro -disse Campbell. Mitch falou com uma voz que a desesperança esmagava. -OH, são uma cadeia e uma âncora. Da mesita onde um dos pistoleiros a tinha posto, Campbell recolheu a pistola que tirassem ao Mitch. -Alguma vez a disparou? Mitch esteve a ponto de dizer que não, mas se deu conta de que faltava uma bala no carregador, o disparo com que Knox se matou por acidente. -Uma. Disparei-a uma vez. Para ver o que se sente. Divertido, Campbell seguiu perguntando. -E te deu medo? -Bastante. -Seu irmão diz que não é homem de armas. -Conhece-me melhor que eu a ele. -E de onde a tirou? -Minha mulher pensava que terá que ter uma na casa. -Quanta razão tinha. -Nunca saiu da gaveta da mesinha -mentiu Mitch. Campbell se levantou. Estendendo o braço direito em toda sua longitude, apontou a pistola ao rosto do Mitch. -Em pé.

 

Olhando o olho cego da pistola, Mitch se levantou da poltrona. Os dois pistoleiros sem nome adotaram novas posições, como se tivessem intenção de abater ao Mitch com fogo cruzado. -te tire a jaqueta e punha sobre a mesa -ordenou Campbell. Mitch fez o que lhe dizia e, obedecendo uma nova ordem, esvaziou-se os bolsos das calças. Pôs seu chaveiro, sua carteira e um par do Kleenex pregados sobre a mesa. Teve lembranças da infância, quando lhe sumiam durante dias na escuridão e o silêncio. Em lugar de concentrar-se na simples lição que seu cativeiro supostamente devia lhe ensinar, tinha mantido conversações imaginárias com uma aranha chamada Charlotte, um porco chamado Wilbur, um rato chamada Templeton. Isso era o mais perto que tinha estado de ser um rebelde em toda sua vida. Duvidava que aqueles homens fossem disparar lhe enquanto estivessem na casa. O sangue, embora se limpa com facilidade até que deixa de distinguir-se a simples vista, deixa um rastro proteínica que produtos químicos e luzes especiais podem descobrir. Um dos pistoleiros tomou a jaqueta do Mitch e lhe registrou os bolsos. Só encontrou o telefone móvel. -Como passou de ser um herói do FBI a isto? -perguntou Mitch a seu forçoso anfitrião. O desconcerto do Campbell foi breve. -Esse é o conto que te largou Anson para que viesse? Julian Campbell, herói do FBI? Embora os pistoleiros pareciam tão graciosos como uns escaravelhos, o da pele sem rugas riu e o outro sorriu. -Provavelmente, tampouco tenha ganho seu dinheiro na indústria do ócio e o entretenimento. -Entretenimento? Poderia dizer-se que isso é verdade -disse Campbell- se sua definição de "entretenimento" é flexível. O pistoleiro marcado pelo acne tirou uma bolsa de lixo do bolso traseiro da calça. Sacudiu-a para desdobrá-la. Campbell prosseguiu. -Escuta, Mitch, se Anson te disse que estes dois cavalheiros são aspirantes ao sacerdócio, advirto-te que não é assim. Os escaravelhos voltaram a mostrar-se divertidos. O pistoleiro da bolsa a encheu com a jaqueta esportiva, o telefone móvel e outros artigos que lhe tinham tirado ao Mitch. antes de colocar a carteira, tirou o dinheiro que continha e o deu ao Campbell. Mitch permanecia de pé, aguardando. Agora, os três homens se mostravam mais relaxados que antes. Já o conheciam. Era o irmão do Anson, mas só tinham em comum os gens familiares. Era um fugitivo, não um caçador. Obedeceria. Sabiam que não podia apresentar uma resistência efetiva. Se replegaría em si mesmo. Em todo caso, suplicaria. Conheciam-no, sabiam a que classe de gente pertencia. Uma vez que o pistoleiro terminou de colocar suas coisas na bolsa de lixo, tirou umas algemas. antes de que dissessem ao Mitch que estendesse as mãos, ofereceu-as. o das algemas vacilou, Campbell se encolheu de ombros. O outro as fechou, com um estalo, sobre as bonecas do Mitch. -Parece muito cansado -disse Campbell. -Tanto, que sente saudades seguir em pé. -Às vezes é assim. Mitch nem se incomodou em pôr a prova as algemas. Ficavam apertadas e a cadeia que as unia era curta. Enquanto Campbell contava os quarenta e tantos dólares que tinham pego da carteira do Mitch, sua voz era quase tenra. -Possivelmente, até durma pelo caminho. -Onde vamos? -Conheci um tipo que dormiu uma noite, durante um passeio como o que está a ponto de dar. Quase me deu pena despertá-lo quando chegamos ao destino. -Você vem? -OH, faz anos que não o faço. Ficarei aqui, com meus livros. Não me necessita. Estará bem. Ao final, todos o estão. Mitch olhou as prateleiras cheias de livros. -Tem lido algum? -os de história. Fascina-me a história, a forma em que quase ninguém aprende dela. -Você sim aprendeu dela? -Eu sou história. Sou aquilo que ninguém quer aprender. As mãos do Campbell, mãos direitas como as de um mago, dobraram o dinheiro do Mitch para colocá-lo em sua própria carteira, com uma economia de movimentos que tinha algo de teatral. -Estes cavalheiros lhe levarão a pavilhão de carros. Não pela casa, mas sim pelos jardins. Mitch supôs que as donzelas e o mordomo, quer dizer, o pessoal de serviço, ignoravam a parte escura dos negócios do Campbell ou procuravam fingir que não existia. -Adeus, Mitch. Estará bem. Já falta pouco. Possivelmente até jogue uma cabezadita pelo caminho. Flanqueando ao Mitch, levando-o cada um de um braço, os pistoleiros o fizeram sair pelas portas acristaladas. o da cara desfigurada, a sua direita, o apertou o canhão da pistola contra o flanco, não com crueldade, a não ser a modo de aviso. Justo antes de cruzar a soleira, Mitch olhou para trás e viu o Campbell em pé frente a uma prateleira, percorrendo os livros com o olhar. Tinha a graça e o aprumo de um bailarino de balé em um momento de descanso. Parecia estar escolhendo um livro para levar-se a cama. Ou talvez não à cama. As aranhas não dormem; a história, tampouco. Os valentões conduziam ao Mitch com mão perita. Baixaram uns degraus que levavam do átrio ao parque. A lua flutuava, afogada, na piscina, pálida e ondulante como uma aparição. Depois de percorrer atalhos do jardim onde coaxavam sapos ocultos, rodearam uma ampla extensão de grama, cruzaram um soto de pitosporos chapeados cujos ramos, que pareciam de encaixe, cintilavam como peixes chapeados e chegaram a uma construção grande mas elegante, rodeada de uma colunata romanticamente iluminada. A vigilância dos pistoleiros não retrocedeu durante todo o percurso. Jasmim de que floresce de noite subia pelas colunas e festoneaba seus arremates. Mitch respirou lenta e profundamente. A doce fragrância era tão pesada que quase embriagava. Movendo-se com lentidão, um escaravelho de largas antenas cruzou o chão. Os pistoleiros fizeram desviar-se ao Mitch para que não pisasse no inseto. O pavilhão continha automóveis das décadas dos trinta e os quarenta, exquisitamente restaurados. Havia modelos do Buick, Lincoln, Packard, Cadillac, Pontiac, Ford, Chevrolet, Kaizer, Studebacker e até um Tucker Torpedo. mostravam-se como jóias, exibidos sob conjuntos de luzes direcionais minuciosamente enfocadas. Os veículos de uso cotidiano do imóvel não se guardavam ali. Era evidente que, se o tivessem levado a garagem principal, arriscariam-se a encontrar-se com alguém do pessoal de serviço. O pistoleiro de rosto picado tirou um chaveiro do bolso e abriu o porta-malas de um Chrysler Windsor azul, de meios da década de 1940. -te coloque. Não o matariam nesse lugar pelo mesmo motivo pelo que não o tinham feito na biblioteca. Além disso, não quereriam correr o risco de danificar o precioso carro. O porta-malas era mais espaçoso que os dos automóveis contemporâneos. Mitch se tornou de lado, em posição fetal. -Não pode abri-lo de dentro -disse o das cicatrizes-. Naqueles tempos não havia problemas com a segurança dos meninos. -Iremos por caminhos secundários -assegurou o outro-, onde não haverá ninguém que possa te ouvir. Assim não te servirá de nada te pôr a fazer ruído. o das cicatrizes interveio de novo. -Só serviria para nos fazer zangar. Então, quando chegássemos seríamos mais duros do necessário. -Não me agradaria que isso ocorresse. -Não. Não te agradaria. -Oxalá não tivéssemos que fazer isto -disse Mitch. -Bom -comentou o de pele suave-, é o que há. Iluminados a contraluz pelos focos, seus rostos se abatiam sobre o Mitch como duas luas em sombras, uma, com expressão de insípida indiferença, a outra, tensa e enche de crateras. Fecharam o porta-malas de repente e a escuridão se fez absoluta.

 

Holly jazia na escuridão, rezando por que Mitch seguisse com vida. Temia mais por ele que por ela. Seus captores levavam grandes óculos de esqui, a modo de máscaras, todo o tempo, e ela supunha que não se incomodariam em ocultar seus rostos se tivessem intenção de matá-la. Não é que as levassem para estar mais bonitos. A ninguém favorece esse traje. Se estivesse horrivelmente desfigurado, como o fantasma da ópera, possivelmente desejaria levar óculos de esqui. Mas supor que cada um desses quatro homens estava horrivelmente desfigurado desafiava à lógica. Claro que, embora não tivessem intenção de lhe fazer danifico, algo podia sair mal em seus planos. Em um momento crítico, possivelmente lhe pegassem um tiro por acidente. Ou os acontecimentos podiam fazer que as intenções dos seqüestradores trocassem. Holly, que sempre tinha sido otimista e que da infância acreditava que a vida tem sentido e que a sua não terminaria antes de que descobrisse sua finalidade, não refletia sobre o que poderia sair mau, mas sim se via si mesmo liberada, sã e salva. Acreditava que visualizar o futuro ajudava a conformá-lo. Não é que acreditasse que se pode chegar a ser uma atriz famosa com apenas imaginar que se recebe um prêmio de a Academia. O que conduz ao êxito não são os desejos, a não ser o trabalho duro. Seja como for, ela não queria ser uma atriz famosa. Teria que passar muito tempo com atores célebres, e a maior parte dos que estão de moda lhe caíam mau. Quando ficasse livre, comeria sorvete de mazapán e de chocolate até sentir-se envergonhada ou até vomitar. O vômito é uma afirmação de vida. Quando ficasse livre, celebraria-o indo a Bebê Style, essa loja do centro comercial, e comprando ali o grande urso de peluche que viu recentemente na cristaleira. Era fofo, branco e muito bonito. Na infância e a adolescência lhe agradavam os ursos de peluche. E agora necessitava um. Quando ficasse livre, faria- o amor ao Mitch. Quando terminasse com ele, acreditaria que o tinha atropelado um trem. Bom, essa não é uma imagem romântica particularmente acertada. Não é a classe de história que vende milhões de novelas do Nicholas Sparks. "Lhe fez o amor com cada fibra de seu ser, com o corpo e a alma, e quando, ao fim, sua paixão passou, ele ficou exausto, destroçado na habitação, como se se tivesse arrojado ao passo de uma locomotiva". Ver-se a si mesmo como novelista de êxito mundial tivesse sido desperdiçar esforços. Por fortuna, seu objetivo era ser agente imobiliária. Assim rezava para que seu formoso marido sobrevivesse a este transe de terror. Sim, era formoso no físico, mas o mais formoso que tinha era seu bondoso coração. Holly o amava pela bondade de seu coração, por sua doçura, mas lhe preocupava que alguns aspectos de sua doçura, como, por exemplo, sua tendência à resignação, terminassem por matá-lo. além de doçura, possuía uma força funda e calada, um caráter de aço, que se manifestava de forma sutil. Desde não ser assim, esses fenômenos de circo que são seus pais o teriam destruído. Sem isso, Holly não tivesse podido fazer que ele a perseguisse até o altar. De modo que rezava por que se mantivera forte, para que se mantivera vivo. Enquanto rezava, enquanto meditava sobre a aparência que teriam os seqüestradores, a gulodice e o vômito e os ursos de peluche grandes e amaciados, não deixava de trabalhar no prego do tablón do chão. Sempre foi hábil fazendo várias coisas de uma vez. A madeira do chão não está polida. Ao parecer, os tablones são o bastante grossos para ter requerido pregos mais compridos do normal. O prego que lhe interessa tem uma grande cabeça plaina. O tamanho da cabeça sugere que este prego pode ser o suficientemente largo para servir de punção. Em um apuro, um punção pode servir de arma. A cabeça plaina do prego não está unida à madeira. Sobressai-se algo assim como dois milímetros. Este espaço lhe dá a oportunidade de fazer alavanca, um ponto de apoio de onde mover o prego para um e outro lado. Embora o prego não está solto, a perseverança é uma de suas virtudes. Seguirá trabalhando sobre o prego e imaginará que se solta, para dar-se ânimos. Em algum momento, terminará por desprendê-lo do tablón. Lhe teria vindo bem usar unhas postiças. Não ficam mau e, quando fora agente imobiliário, sem dúvida teria que as usar. Umas boas unhas de material acrílico poderiam ser úteis agora, para o do punção. Por outro lado, possivelmente se partiriam com mais facilidade que suas verdadeiras unhas. Se assim fosse, suporiam uma terrível desvantagem. O ideal teria sido que, quando a seqüestraram, tivesse tido unhas artificiais na mão esquerda e naturais na direita. E os dois incisivos dianteiros de aço e separados por um pequeno espaço. Um grilhão colocado no tornozelo e uma parte de cadeia unem seu pé a uma argola embutida no piso. Isto lhe deixa ambas as mãos livres para trabalhar no prego, que ainda não deu sinais de afrouxar-se. Os seqüestradores tiveram algumas considerações com ela, para sua comodidade. Subministraram-lhe um colchão inflable para que se tombe, um pacote de seis garrafas de água envasilhada e uma bacinilla. Antes, tinham-lhe dado meia pizza de queijo e pimientos. Não é que fossem pessoas agradáveis. Não o são. Quando precisaram fazê-la gritar para que Mitch a ouvisse, golpearam-na. Quando precisaram fazê-la gritar para que Anson a ouvisse, atiraram-lhe do cabelo, de forma tão brusca e com tanta força que sentiu como se lhe fossem arrancar o couro cabeludo. Embora não se trata da classe de gente que alguém poderia encontrar-se na igreja, não são cruéis por pura diversão. São maus, mas têm um objetivo comercial, por chamá-lo de algum jeito, e nele se concentram. Um deles é muito mau e além disso está louco. Esse é o que lhe preocupa. Não compartilharam seus planos com ela, mas Holly se dá conta de que a têm cativa porque precisam usar ao Mitch para que manipule ao Anson. Não sabe por que nem como acreditam que Anson pode obter uma fortuna para pagar seu resgate em nome do Mitch, mas não a surpreende que quem está no centro do torvelinho ele seja. Faz tempo que sente que Anson não é só o que parece ser. Alguma que outra vez, surpreendeu-o lhe cravando o olhar com uma expressão que o bom irmão de um marido nunca deveria adotar. Quando se dá conta de que foi descoberto, a luxúria predadora de seus olhos e a expressão faminta de seu semblante se desvanecem, e são substituídas por seu habitual encanto. Ocorre de forma tão foto instantânea que é fácil acreditar que só ela imaginou esse brilho de interesse selvagem. Às vezes, quando ri, sua alegria lhe resulta artificial. Parece ser quão única assim o sente. Todos outros encontram que a risada do Anson é contagiosa. Nunca comentou a seu marido suas dúvidas respeito ao Anson. Quando conheceu o Mitch, ele só tinha a suas irmãs, dispersas por todos os pontos cardeais, a seu irmão e sua paixão por trabalhar a terra fértil e fazer crescer as novelo. A intenção do Holly sempre foi enriquecer a vida do Mitch, não lhe tirar nada. Poderia confiar sua vida às fortes mãos do Mitch e a seguir tornar-se a dormir profundamente. Em certo sentido, nisso consiste um matrimônio, um bom matrimônio, em uma total confiança do coração, da mente, da vida mesma. Mas como sua sorte também está em mãos do Anson, talvez não durma absolutamente, e, se o fizer, seguro que tem pesadelos. Remove, remove, remove o prego até que os dedos lhe fazem mal. Logo, usa outros dois dedos. À medida que transcorrem os minutos de silenciosa escuridão, tráfico de não pensar em como um dia que começou com tanta alegria pode ter desembocado em tão dramáticas circunstâncias. depois de que Mitch se fora a trabalhar e antes de que os mascarados irrompessem em sua cozinha, fez-se o test que tinha adquirido no dia anterior, mas que os nervos lhe tinham impedido de usar até essa manhã. Sua menstruação tem um atraso de nove dias e, segundo a prova de embaraço, vai ter um bebê. Ela e Mitch esperam esse momento há um ano. E chegou justo neste dia. Os seqüestradores não são conscientes de que têm duas vistas sua mercê. Mitch não é consciente de que não só sua esposa mas também também seu filho dependem de seu astúcia e sua coragem. Mas Holly sim sabe, e esse conhecimento é ao mesmo tempo um gozo e uma angústia. Imagina, quase vê, a uma criatura de três anos, às vezes é menina, às vezes varão, jogando em seu pátio traseiro, rendo. Visualiza-o com mais intensidade que nenhuma outra coisa que tenha visualizado nunca, com a esperança de que chegue a acontecer. diz-se a si mesmo que será forte, que não chorará. Não soluça nem interrompe o silêncio em modo algum, mas às vezes afloram as lágrimas. Para interromper seu quente fluxo, ocupa-se com mais agressividade do prego, do maldito, obcecado prego, na escuridão cegadora. Depois de um comprido período de silêncio, ouça um golpe surdo que tem também um matiz oco e metálico: c-chunk. Alerta, receosa, aguarda, mas o golpe não se repete. Tampouco o segue nenhum outro ruído. O som tem algo desesperantemente familiar. É um som dos que se ouvem diariamente. Mas seu instinto lhe diz que seu destino pende desse c-chunk. É um som que está registrado em sua memória, mas ao princípio não consegue conectá-lo com uma causa que o origine. Ao cabo de um momento, Holly começa a suspeitar que o som foi imaginário, não real. Para ser mais precisos, que soou dentro em sua cabeça, não fora dos muros deste recinto. É uma idéia curiosa, mas persistente. Então, de repente, reconhece a origem do som. É algo que escutou talvez centenas de vezes, e, embora para ela não tem conotações preocupantes, sente um calafrio. O c-chunk é o som que produz a tampa do porta-malas de um carro ao fechar-se. O golpe da tampa de um porta-malas ao fechar-se, em sua imaginação ou na realidade, não tem por que fazer que gélidos cristais de geada se formem no interior de seus ossos. sinta-se muito erguida, esquecendo o prego de momento. Durante um instante deixa de respirar, e, quando volta a fazê-lo, é levianamente e sem fazer ruído.

 

A finais da década dos quarenta, se a gente era proprietário de um carro como o Chrysler Windsor, queria que fizesse um grande ruído que demonstrasse que o motor era poderoso. Era como o palpitar do coração de um touro, um bufido baixo e feroz, e de uma vez como um pesado trovejar de pezuñas. A guerra tinha terminado, a gente era um supervivente, grandes extensões da Europa estavam em ruínas, mas a mãe pátria estava intacta e a gente queria sentir-se vivo. A gente não queria que o espaço onde se achava o motor estivesse tirado o som. A gente não queria tecnologia para o controle do ruído. A gente queria potência, peso bem repartido e velocidade. Chamar a atenção, gritar que vivia. O porta-malas do carro retumbava com os golpes e roncos do motor que o eixo de transmissão imprimia ao bastidor e a carroceria. O ronrono e o estalo continuado que se produziam ao andar subiam e desciam em relação direta com o ritmo ao que giravam as rodas. Mitch captou um leve aroma de gases de escapamento, talvez procedentes de uma filtração no silenciador. Mas não havia perigo de que o monóxido de carbono o sufocasse. E1 aroma de borracha da catapora sobre a que jazia e a acidez de seu próprio suor que lhe provocava o medo eram maiores. Embora estava tão escuro como a quarta de aprendizagem da casa de seus pais, este novo habitáculo móvel não tinha nenhum outro elemento de privação sensorial. Entretanto, uma das maiores lições de sua vida lhe estava sendo inculcada com cada milha percorrida. Seu pai está acostumado a dizer que não existe o Tao, que não há uma lei natural que tenhamos nascido para compreender. Segundo sua maneira materialista de ver as coisas, não deveríamos seguir nenhum código de conduta que vá além de nosso próprio interesse. Para cada um, o racional sempre é o interesse próprio, diz Daniel. portanto, qualquer ato que seja racional é legítimo, bom e admirável. Na filosofia do Daniel, o mal não existe. Roubar, violar, matar a inocentes... Esses e outros crímenes só são irracionais porque quem os comete põe em jogo sua liberdade. Daniel concede que o grau de irracionalidade depende das possibilidades que tenha o criminoso de escapar ao castigo. portanto, aqueles atos irracionais que tenham êxito e só lhe conduzam conseqüências positivas a quem os cometa podem ser legítimos e admiráveis, por mais que não sejam bons para a sociedade. Ladrões, violadores, assassinos e outros dessa índole podem curar-se com terapia e reabilitação, ou não. Em ambos os casos, diz Daniel, não é que sejam maus; são irracionalistas em processo de recuperação ou irrecuperáveis, só isso e nada mais. Mitch acreditou que esses ensinos não tinham penetrado nele, que o fogo da educação do Daniel Rafferty não o tinha queimado. Mas o fogo produz fumaça, e ele defumou-se junto à fogueira do fanatismo de seu pai durante tanto tempo, que algo lhe tinha aderido e permanecia nele. Podia ver, mas tinha estado cego. Podia ouvir, mas tinha estado surdo. Este dia, esta noite, Mitch tinha cuidadoso ao mal à cara. Era tão real como a pedra, como as novelo. Embora um homem irracional deve ser tratado com compaixão e terapia, a um homem mau não lhe deve oferecer nada mais e nada menos que resistência e uma resposta adequada, a fúria da justiça dos bons. Na biblioteca do Julian Campbell, quando o pistoleiro tirou as algemas, Mitch lhe tendeu em seguida as mãos. Não esperou a que o ordenassem. Se não tivesse parecido fundo, se não tivesse parecido manso e resignado a sua sorte, possivelmente lhe teriam algemado as mãos à costas. Alcançar o revólver que levava no tornozelo lhe teria resultado mais difícil; usá-lo com precisão, impossível. Campbell tinha famoso, inclusive, o cansaço do Mitch, com o que se referia ao cansaço de sua mente e de seu coração. Acreditavam saber que classe de homem era e possivelmente soubessem. Mas não sabiam em que classe de homem se podia converter quando a vida de sua mulher estava em jogo. Distraídos por sua falta de familiaridade com a pistola que lhe tinham tirado, não tinham imaginado que teria uma segunda arma. Os prejuízos não só deixam em desvantagem aos bons. Mitch se arregaçou a perna da calça dos jeans e tirou o revólver. Desabotoou a capa tobillera e a tirou. Antes tinha examinado a arma, procurando em vão um seguro. Nos filmes, só algumas pistolas tinham seguro, os revólveres, nunca. Se saía com vida os seguintes dois dias e recuperava viva ao Holly, nunca voltaria a permitir que, na hora de lutar pela sobrevivência de sua família, o pusessem em uma situação em que devesse confiar na versão da realidade que dá o cinema. Antes, ao observar o tambor da arma, tinha descoberto cinco cartuchos em cinco câmaras, enquanto que esperava seis. Teria que acertar dois disparos de cinco. Impactos diretos em órgãos vitais, não meras aproximações a estes. Talvez só um dos pistoleiros abrisse o porta-malas. O melhor seria que os dois estivessem ali, o que lhe daria a vantagem de surpreendê-los a ambos. Certamente os dois teriam suas armas desencapadas. Se só era um, Mitch devia ser o suficientemente preparado para apontar primeiro ao adversário armado. Era um homem pacífico, e seus violentos planos se viam perturbados por pensamentos que não ajudavam: "De adolescente, o pistoleiro do rosto desfigurado, picado pelo acne que lhe tinha deixado a cara como uma paisagem lunar, deveu sofrer muitas humilhações". Sentir compaixão por um demônio era, no melhor dos casos, uma espécie de masoquismo e, no pior, um impulso suicida. Durante um momento, balançado pelos sons da marcha, dos pneumáticos, da combustão interna, Mitch tratou de imaginar todas as maneiras em que se desenvolveria a cena uma vez que a tampa do porta-malas se abrisse. Depois, tratou de não imaginar. Segundo seu relógio luminoso, viajaram durante mais de meia hora até que, diminuindo a marcha, passaram do asfalto a um firme de terra. O cascalho repicou contra o bastidor e golpeou com força o fundo do porta-malas. Cheirou o pó e notou nos lábios seu sabor alcalino, mas o ar nunca se carregou tanto como para sufocá-lo. Depois de avançar durante doze minutos a velocidade prudente pelo caminho de terra, o carro se foi detendo lentamente. O motor seguiu em marcha durante o meio minuto mais, até que o condutor o apagou. Depois de quarenta e cinco minutos de zumbidos e tamborilares, o silêncio foi como uma repentina surdez. abriu-se uma porta, depois outra. Foram a por ele. De cara à parte traseira do carro, Mitch separou as pernas, plantando os pés nos rincões do porta-malas. Não podia sentar-se erguido enquanto a tampa estivesse fechada, mas aguardou com as costas parcialmente levantada, como se estivesse no ginásio, em metade de uma série de abdominais. As algemas o obrigavam a sujeitar o revólver com as duas mãos, o qual, de todos os modos, provavelmente fora o melhor. Não ouviu passos, a não ser só o galope de seu coração. Então, escutou o som da chave na fechadura do porta-malas. Em sua mente apareceu, fugaz e intermitente, uma imagem do momento em que Jason Osteen recebia um tiro na cabeça, como um filme que se repetia uma e outra vez: Jason derrubado pela bala, seu crânio que explorava, alcançado pela bala, seu crânio que explorava... Quando a tampa se levantou, Mitch se deu conta de que esse porta-malas não tinha luz incorporada, e começou a erguer-se, apontando para diante com o revólver. A lua, como uma jarra enche a transbordar, derramou seu leite, recortando a silhueta dos dois pistoleiros. Ele estava sentado na escuridão, eles, de pé à luz da lua. Acreditavam que era um homem manso, quebrantado e indefeso, e não o era. Não foi consciente de ter disparado o primeiro tiro, mas sentiu o forte retrocesso, viu a chama na boca do canhão e ouviu o estampido; depois, deu-se conta de que apertava o gatilho uma segunda vez. Dois disparos a quemarropa fizeram que uma das silhuetas se desabasse na noite banhada de lua. A segunda silhueta retrocedeu e Mitch se sentou completamente erguido, disparando um, dois, três tiros mais. O percussor estalou. Reinou um silêncio na escuridão chapeada pela lua e o percussor voltou a estalar, e recordou: "só cinco, só cinco!". Devia sair do porta-malas. Sem munições, era como um peixe indefeso em um barril. Sair. Sair do porta-malas.

 

Ao levantar-se com muita pressa, Mitch se deu um cabaçada contra a tampa e esteve a ponto de cair para trás, mas manteve o impulso para diante. Saiu do porta-malas como pôde. Seu pé esquerdo pisou em terreno firme, mas apoiou o direito sobre o homem que tinha recebido dois balaços. cambaleou-se, pisou no corpo, que se deslocou sob seu peso, e caiu. Rodou, afastando do corpo, para o limite do caminho. Deteve-o um arbusto de mezquite silvestre, que identificou por seu aroma oleoso. Tinha perdido o revólver. Não importava. Não ficavam munições. Em torno dele se estendia uma paisagem ressecada sob a luz de uma lua chapeada. Um estreito caminho de terra, matagais do deserto, terra erma, calhaus. O Chrysler Windsor, aerodinâmico, com numerosos acessórios cromados reluzentes de brilho lunar, parecia extrañamente futurista, como um navio feito para navegar entre as estrelas. Ao deter o motor, o condutor também tinha apagado os faróis. O pistoleiro a quem Mitch pisou duas vezes ao sair do porta-malas não tinha gritado. Tampouco se incorporou, nem tratou de deter o Mitch. Era provável que estivesse morto. Possivelmente o segundo homem também tivesse morrido. Ao sair do porta-malas, Mitch lhe tinha perdido o rastro. Se um dos últimos três tiros tinha dado no branco, o segundo tipo já devia estar convertido em banquete para os abutres, tendido no caminho de terra, atrás do carro. A areia do caminho era rica em sílice. O vidro se faz com sílice, os espelhos, com vidro. Na noite, o que mais refletia a luz era esse caminho de uma sozinha direção. Jogado de bruces e pego ao chão, Mitch podia ver, até uma considerável distancia, como essa pálida cinta se ia perdendo entre os retorcidos e arrepiados matagais na direção da que tinham vindo. Não havia um segundo corpo tendido ali. Se o tipo não tivesse resultado, pelo menos, ferido, sem dúvida teria carregado sobre o Mitch, disparando quando este saía do porta-malas do Chrysler. Ferido, podia haver-se miserável ou engatinhado até meter-se entre as matas, ou detrás de alguma pedra. Podia estar em qualquer lugar, olhando sua ferida, estudando suas possibilidades. O pistoleiro estaria receoso, mas não assustado. Vivia para confrontar situações como esta. Era um sociópata. Não se assustaria com facilidade. Definitivamente, sem indício de dúvida, Mitch lhe tinha medo ao homem que se ocultava na noite. Também lhe temia ao que estava tendido no caminho, atrás do Chrysler. Talvez estivesse morto, mas embora já fora comida para os corvos, Mitch lhe tinha medo. Não queria aproximar-se o   Tinha descoberto que era capaz de chegar à violência, ao menos em defesa própria, mas não estava preparado para a velocidade com a que se desenvolveram os Tinha que fazer o que não queria, porque, tanto se o filho de puta já era carniça como se só estava inconsciente, Mitch necessitava uma arma. E logo. Tinha descoberto que era capaz de chegar à violência, ao menos em defesa própria, mas não estava preparado para a velocidade com a que se desenvolveram os acontecimentos depois do primeiro tiro, para a rapidez com que devia tomar decisões, para a forma repentina em que podiam surgir novos desafios. Ao outro lado do caminho, vários manchones de vegetação espaçada e umas rochas erodidas se ofereciam como possíveis esconderijos. Se a leve brisa que soprava na costa tivesse chegado até onde estavam, o deserto se tragaria até seu último sopro. Qualquer movimento entre os matagais seria de seu inimigo, não obra da natureza. Por quanto podia ver na penumbra, tudo estava imóvel. Com aguda consciência de que seus próprios movimentos o convertiam em um branco, impedido pelas algemas, Mitch reptó de barriga para baixo até chegar ao homem tendido atrás do automóvel. A lua punha moedas nos olhos abertos do pistoleiro, que já não piscavam nem jamais piscariam. Junto ao corpo se via uma familiar silhueta de aço, que a luz brunia. Mitch a agarrou, agradecido, mas quando estava a ponto de retroceder, arrastando-se, deu-se conta de que o que tinha encontrado era seu imprestável revólver. Deu um coice ante o breve tinido que produziu a curta cadeia que unia suas algemas, apalpou o corpo e se encontrou com que apoiava os dedos em algo úmido. Enojado, enxugou-se a mão na roupa do morto. Quando quase estava convencido de que o tipo tinha saído do Chrysler desarmado, viu a culatra da pistola que aparecia por debaixo do cadáver. Atirou da arma até tirá-la. Soou um disparo. O morto se estremeceu ao receber o tiro destinado ao Mitch. jogou-se para o Chrysler e ouviu um segundo tiro, seguido do sussurro da morte ao passar junto a ele e do som da bala ao ricochetear no veículo. Também ouviu outro sussurro, mais próximo, embora pensar que dois tiros lhe tivessem acontecido perto, quando só tinha ouvido um disparo, podia ser coisa de sua imaginação; talvez, em realidade, não tinha ouvido nada mais depois do estalo do rebote. Com o carro entre o que disparava e ele, sentiu-se mais protegido, mas depois, quase em seguida, não se sentiu a salvo absolutamente. O pistoleiro podia dar a volta ao Chrysler por diante ou por detrás. Tinha a vantagem de escolher como aproximar-se e quando fazê-lo. Enquanto isso, Mitch se veria obrigado a manter-se alerta, vigiando ambos os extremos. Uma tarefa impossível. Possivelmente, o outro já estivesse em movimento. Mitch se incorporou e se afastou do carro. Correndo escondido, saiu do caminho cruzando a barreira natural de mezquite, que rangeu muito para seu gosto, embora ao mesmo tempo foi como se falasse, como se lhe advertisse de que se mantivesse em silêncio. O terreno baixava do caminho, o que era bom para ele. Se tivesse ascendido, ele teria ficado à vista, e suas largas costas tivesse sido um branco fácil para o pistoleiro uma vez que este desse a volta ao Chrysler. Tinha tido a sorte de dar com terra arenosa mas firme, não de pedras nem calhaus soltos, de modo que não fazia ruído ao correr. A lua lhe assinalava o caminho, e foi sorteando as matas de mezquite, mais que as atravessando, à carreira. deu-se conta de que manter o equilíbrio com as mãos algemadas-se o fazia difícil. Depois de percorrer nove metros chegou ao pé do pendente e girou à direita. Parecia-lhe, pela posição da lua, que se dirigia para o oeste. Um pouco parecido a um grilo cantava. Algo, mais estranho, estalava. Um conjunto de altas matas de cortadera lhe chamou a atenção. Reluziam, brancas, à luz da lua, e lhe recordaram as caudas e as crinas de orgulhosos cavalos. Das matas redondas saíam folhas de erva de um metro a um metro e meio de comprimento, curvadas, muito estreitas, bicudas e de borde afiados. Chegavam-lhe à cintura. Estas folhas, quando se secam, raspam, cravam como agulhas e inclusive cortam. Cada arbusto respeitava a integridade territorial de sua vizinha. Pôde passar entre elas. No coração da colônia se sentia oculto e a salvo, amparado pelas brancas panículas emplumadas, mais altas que ele. ficou de pé e, entre os penachos, espionou o trajeto que tinha seguido para chegar ali. A fantasmagórica luz não lhe fez descobrir a nenhum perseguidor. Mitch trocou de posição, empurrou com suavidade uma panícula, logo outra, observando o bordo do caminho no alto da ladeira. Não viu ninguém ali. Não tinha intenção de passar muito tempo escondido entre as cortaderas. Tinha fugido de sua vulnerável posição atrás do carro só para ganhar um par de minutos e poder pensar. Não lhe preocupava a possibilidade de que o pistoleiro que ficava partisse no Chrysler. Julian Campbell não era a classe de chefe ao que pudesse lhe informar de um fracasso com a certeza de que ao fazê-lo não perderia o trabalho ou a vida. Além disso, para o tipo que estava espreitando-o ali fora, isto era uma caçada e Mitch, a mais perigosa das presas. Ao caçador o impulsionavam a vingança, o orgulho e o gosto pela violência que, para começar, tinha-o levado a fazer o trabalho que fazia. Se Mitch tivesse sabido que podia ocultar-se até o amanhecer ou que podia fugir, não o teria feito. Não é que bulira de violentos desejos de enfrentar-se com este segundo assassino profissional, mas entendia muito bem as conseqüências que teria não fazê-lo. Se o pistoleiro que ficava vivia e ia apresentar seu relatório ao Campbell, Anson se inteiraria, mais cedo que tarde, de que seu fratello piccolo, seu irmão menor, estava vivo. Mitch perderia sua liberdade de movimentos e a vantagem da surpresa. O mais provável era que Campbell não esperasse um relatório de seus dois verdugos até a manhã seguinte. Talvez nem sequer ficaria para buscá-los até a tarde. De fato, possivelmente Campbell sentisse falta de seu Chrysler Windsor antes que a seus homens. Isso dependia de que tipo de máquina valorasse mais. Mitch precisava agarrar ao Anson por surpresa e devia estar em casa de seu irmão a meio-dia para atender a chamada dos seqüestradores. A cornija sobre a que fazia equilíbrios Holly era mais alta e estreita que nunca. Não podia esconder-se e seu inimigo não queria fazê-lo. Seria uma luta a morte entre depredador e presa, e cada um deles podia ser ambas as coisas.

 

Rodeado de nobres penachos bancos que faziam pensar em um círculo protetor de cavalheiros tocados com seus elmos, Mitch, entre as cortaderas, recordou o seco estampido dos dois disparos que tinham estado a ponto de alcançá-lo quando lhe tirava a arma ao pistoleiro morto. Se a arma de seu adversário tivesse estado equipada com silenciador, como na biblioteca, as detonações não teriam sido tão fortes. Possivelmente nem as houvesse ouvido. Nesse lugar desolado, ao pistoleiro não lhe tinha preocupado que ninguém pudesse ouvi-lo, mas tampouco teria tirado o silenciador a sua arma para ter a satisfação de ouvir uma detonação mais forte. Tinha que haver outra razão. O mais provável era que os silenciadores fossem ilegais. Faziam mais fácil ocultar o assassinato. Estavam desenhados para usar-se a curta distância, por exemplo, em uma mansão em que não se tivesse a certeza de que todo o pessoal está corrompido. A lógica levou ao Mitch à conclusão de que os silenciadores só são úteis em uma situação que requer discrição. Provavelmente reduziam a precisão do disparo. Se estiver detrás de seu prisioneiro em uma biblioteca ou se o forçar a ajoelhar-se ante ti em um solitário caminho do deserto, uma pistola com silenciador te pode vir bem. Mas a uma distância de cinco ou dez metros, possivelmente reduzira a precisão a tal ponto que teria mais possibilidades de lhe acertar a seu objetivo lhe arrojando a pistola que lhe disparando com ela. Uns calhaus se deslocaram e chocaram, fazendo um ruído similar ao dos jogo de dados em um cubilete. voltou-se na direção do som. Apartou com cautela as folhas de cortadera. A quinze metros dele, o pistoleiro se encurvava. Parecia um gnomo. Esperava as conseqüências do ruído que acabava de fazer. Embora estava imóvel, não se podia confundir ao homem com uma formação rochosa nem com a vegetação do deserto, porque se tinha posto em evidencia ao cruzar um comprido espaço ermo de terra alcalina. Essa parte de terreno parecia não já refletivo, a não ser luminoso. Se Mitch, em lugar de deter-se ali, tivesse seguido avançando para o oeste, teria se encontrado ao assassino em terreno aberto, chegando, talvez, a enfrentar-se a ele cara a cara como na cena do duelo de um filme de jeans. Avaliou a possibilidade de esperar, de deixar que seu perseguidor se aproximasse antes de lhe disparar. Então, o instinto lhe sugeriu que as matas de cortaderas e outros lugares como esse seriam precisamente os que mais atrairiam ao pistoleiro. Possivelmente suporia que Mitch se ocultaria; e as cortaderas despertariam suas suspeitas. Mitch vacilou, porque a vantagem ainda parecia estar de seu lado. Podia disparar de uma posição resguardada, enquanto que o gnomo estava em terreno espaçoso. Ainda não tinha disparado nem um só tiro de sua pistola, enquanto que seu adversário já tinha desperdiçado dois. Devia contar com um carregador adicional. Dado que a violência era o ofício do pistoleiro, era de supor que levaria um carregador adicional, dois talvez. aproximaria-se das matas de cortaderas com cautela. Não apresentaria um branco fácil. Quando Mitch disparasse e errasse devido à distância, o ângulo, a distorção produzida pela luz e a falta de experiência, o pistoleiro responderia a seu fogo. Com resolução. As cortaderas ofereciam cobertura visual, não amparo real. Não poderia sobreviver a um par de surriadas de oito ou dez disparos. Sempre escondida, a silhueta de gnomo deu dois passos prudentes para diante. Voltou a deter-se. Ao Mitch chegou uma inspiração, uma idéia audaz que, durante um momento, pensou descartar por imprudente, mas que logo adotou, considerando que era a que o oferecia mais possibilidades. Deixou que as espigas recuperassem sua posição natural. Se escabulló do arbusto pelo ponto mais afastado daquele pelo qual se aproximava o pistoleiro, com intenção de manter a maior distancia que o fora possível entre ambos. Entre o coro dos grilos e o sinistro canto de um ruidoso inseto desconhecido, Mitch se dirigiu a toda pressa para o este, pelo trajeto que já havia percorrido. Passou o ponto por onde tinha descendido do talud; essa ascensão desprotegida o deixaria muito exposto em caso de que não chegasse ao caminho antes de que o pistoleiro terminasse de rodear o arbusto de cortaderas. Depois de percorrer algo menos de vinte metros, chegou a uma depressão larga e pouco profunda na até então uniforme ladeira. Nesse terreno baixo cresciam os gorduchos, que transbordavam seus borde. Mitch necessitava suas mãos algemadas para subir, de modo que se meteu a pistola no cinto. Antes, a luz da lua lhe tinha mostrado o caminho, mas agora as sombras o voltavam escuro e enganoso. Sem esquecer que o silêncio era tão importante como a velocidade, subiu escorrendo-se entre os gorduchos. A seu passo surgiu um aroma almiscarado que podia ter tido uma origem vegetal, mas que lhe sugeriu mas bem que se estava metendo em algum tipo de hábitat animal. Os matagais lhe enganchavam, lhe cravavam, arranhavam-no. Pensou em serpentes, e depois se negou a fazê-lo. Quando chegou até acima sem que lhe disparassem, reptó pelo arremate da depressão até chegar à borda. arrasto-se até o centro do meio-fio antes de ficar de pé. Se procurava riscar um círculo que o deixasse detrás de onde acreditava que estaria o pistoleiro, podia encontrar-se com que, enquanto isso, este tivesse estado fazendo seus próprios cálculos e trocado de rumo na esperança de surpreender a sua presa antes de que ela o surpreendesse a ele. Nessa mútua espreita, ambos podiam perder tempo muito valioso errando pelo deserto, encontrando com freqüência o rastro do outro, até que um deles cometesse um engano. Se esse era o jogo, quem cometeria o engano fatal seria Mitch, pois era o que tinha menos experiência em tais lides. Pelo visto, até esse momento, sua esperança consistia em não cumprir com as expectativas de seu inimigo. Dado que Mitch o tinha surpreso com o revólver, o pistoleiro lhe atribuiria um instinto de conservação tão selvagem como o de qualquer animal encurralado. A fim de contas, resultava que não o paralisaram o medo, a autocompasión nem o ódio a si mesmo. Mas talvez o pistoleiro não esperasse que um animal encurralado, que tinha conseguido escapar, retornasse por própria vontade ao rincão mesmo de onde fugiu. O antigo Chrysler estava a uns vinte metros ao oeste. A tampa do porta-malas seguia médio levantada. Mitch se apressou a chegar ao carro e se deteve junto ao cadáver. O pistoleiro picado de acne jazia de barriga para cima, com os olhos cheios pela luz da estrelada maravilha do firmamento. Esses olhos eram estrelas em si mesmos, buracos negros que exerciam tal atração gravitacional que Mitch sentiu que o arrastariam à destruição se se os ficava olhando durante muito tempo. O fato era que não sentia culpa nem arrependimento algum. Apesar de seu pai, dava-se conta de que acreditava que o mundo tinha sentido e que existe uma lei natural. Mas nenhum Tao diz que matar em defesa própria está mau. Tampouco é que se tratasse de um acontecimento afortunado. Sentia que o tinham despojado de algo precioso. podia-se chamar inocência, mas essa era só uma parte pelo que lhe tinham tirado; junto à inocência, tinha perdido a capacidade para certo tipo de ternura, uma expectativa de gozo doce, iminente, inefável que, até então, sempre tinha albergado. Olhando para trás, Mitch estudou o terreno para ver se tinha deixado pisadas. À luz do sol, o compacto pó possivelmente o tivesse delatado; mas agora não se viam rastros. Sob o olhar hipnótico da lua, o deserto, como pintado com a paleta chapeada e negra dos sonhos, parecia dormir e sonhar. Cada sombra era dura como o ferro, cada objeto, insustancial como a fumaça. Quando olhou ao interior do porta-malas, onde a lua se negava a aparecer, a escuridão lhe fez pensar nas fauces abertas de alguma criatura desumana. Não podia ver o fundo do habitáculo, o que o fazia parecer um espaço mágico, capaz de albergar infinitas bagagens. Tirou a pistola do cinto. Elevou a tampa, meteu-se no porta-malas e a fechou pela metade sobre si. Depois de experimentar um momento, entendeu que o silenciador estava atarraxado ao canhão da pistola. Tirou-o e o deixou à parte. Mais cedo que tarde, quando não encontrasse ao Mitch escondo entre as cortaderas ou os gorduchos, ou em algum esconderijo natural esculpido pelos elementos em uma rocha, o pistoleiro retornaria a vigiar o Chrysler. Era provável que supusera que sua presa tinha retornado ao carro com a esperança de encontrar as chaves postas. Este assassino profissional seria incapaz de entender que um bom marido jamais daria as costas ao compromisso com sua esposa, a seu melhor esperança de amor em um mundo que tem tão pouco de este que oferecer. Se o pistoleiro estabelecia seu ponto de observação atrás do carro, teria que cruzar o caminho que a lua iluminava. Seria precavido e veloz, mas assim e tudo ficaria exposto. Também era possível que vigiasse a parte dianteira do veículo. Mas se o tempo passava e nada ocorria, era possível que se embarcasse em outra exploração geral do terreno e que, ao retornar, ficasse no ponto de olhe do Mitch. Só tinham acontecido sete ou oito minutos desde que os dois, ao abrir o porta-malas, recebessem uma saudação de disparos. O pistoleiro que sobreviveu seria paciente. Mas possivelmente, se sua vigilância e suas explorações não davam fruto, e por muito que temesse a seu chefe, consideraria a possibilidade de partir. Nesse momento, se não antes, iria à parte traseira do veículo para ocupar do cadáver. Quereria carregá-lo no porta-malas. Agora Mitch, médio sentado e médio recostado, envolto na escuridão, elevava sua cabeça apenas o suficiente para olhar sobre o bordo da abertura do porta-malas. Acabava de matar a um homem. Tinha intenção de matar a outro. A pistola resultava pesada em sua mão. Percorreu sua superfície com os dedos, em busca de algum seguro que se soltasse com um estalo, mas não o encontrou. Enquanto contemplava o solitário caminho que a lua iluminava, rodeado por todos lados pelo espectral deserto, deu-se conta de que o que tinha perdido, a inocência, e essa expectativa, fundamentalmente infantil, de um gozo iminente e inefável, ia sendo substituído pouco a pouco por outra coisa que não era má. O buraco que havia nele se ia enchendo, mas não sabia do que. Do porta-malas, sua visão do mundo era limitada, mas por essa fresta percebia muito mais dessa noite que o que tivesse podido ver antes. O prateado caminho se afastava, mas também se aproximava dele, lhe oferecendo dois horizontes distintos. Algumas formações pétreas continham grãos de mica que cintilavam à luz da lua, e, quando as rochas se recortavam contra o céu, parecia como se as estrelas tivessem sido polvilhadas sobre a terra. Procedente do norte, navegando para o sul, impulsionado por seu velamen de plumas, um grande mocho cornudo, tão pálido como imenso, cruzou o caminho, voando baixo antes de bater suas asas para subir no ar noturno; seguiu subindo até perder-se de vista. Mitch sentiu que o que parecia estar obtendo em troca do perdido, o que enchia o vazio de seu interior a tanta velocidade, era a capacidade de assombro, um sentido mais profundo do mistério das coisas. Então, separou-se do fio do precipício do assombro para retornar ao terror e a uma sombria determinação. O pistoleiro tinha retornado, com uma intenção que ele não previu.

 

O assassino voltou com tal sigilo que Mitch não foi consciente de sua presença até que não ouviu o estalo, seguido do mais leve dos chiados, que uma das portas do carro produziu ao abrir-se. O homem se aproximou pela parte dianteira do Chrysler. Arriscando-se a ficar exposto ante o breve resplendor das luzes interiores do carro, tinha entrado e fechado a porta com tanta suavidade como foi possível. Se se tinha posto ao volante, devia ter intenção de abandonar o lugar. Não. Não partiria com a tampa do porta-malas aberta. E sem dúvida não abandonaria o cadáver. Mitch aguardou em silêncio. O pistoleiro também se mantinha em silêncio. Pouco a pouco, o silêncio se converteu em uma espécie de pressão que Mitch podia sentir na pele, nos tímpanos, em seus olhos, que não piscavam, como se o carro descendesse a um abismo marinho e o peso do oceano não deixasse de aumentar, esmagando-o. O pistoleiro devia estar sentado na escuridão, escrutinando a noite, esperando para ver se o fugaz brilho tinha chamado a atenção, se tinha sido visto. Se sua volta não produzia resposta alguma, qual seria seu próximo passo? O deserto parecia conter a respiração. Em tais circunstâncias, o carro seria tão sensível a seus movimentos como um navio ligeiro na água. Se Mitch se movia, o assassino se daria conta de sua presença. Passou um minuto. Outro. O jovem se imaginou ao pistoleiro de rosto terso sentado no veículo, na penumbra. Tinha ao menos trinta anos, trinta e cinco, possivelmente, e entretanto seu rosto era tão notavelmente terso que fazia pensar que a vida nunca o havia meio doido e nunca o faria. Tratou de imaginar que fazia, o que planejava o homem da cara tersa. A mente que se ocultava detrás dessa máscara não era acessível para a imaginação do Mitch. Tivesse-lhe sido mais frutífero refletir a respeito das crenças de um lagarto do deserto respeito a Deus, a chuva ou o estramonio. Depois de uma larga imobilidade, o pistoleiro trocou de postura e seu movimento foi uma revelação. A inquietante intimidade do som indicava que o homem não estava ao volante do Chrysler. Estava no assento traseiro. Devia ter estado inclinando-se para diante, vigiando, do momento em que entrou em carro. Quando, por fim, apoiou-se no respaldo, o estofo emitiu o som que fazem o couro ou o vinil ao esticar-se, e os moles do assento se queixaram quedamente. O assento traseiro era ao mesmo tempo a parede posterior do porta-malas. Ele e Mitch estavam ao meio metro um do outro. Estavam quase tão perto como quando caminharam da biblioteca até o pavilhão dos carros antigos. Tendido no porta-malas, Mitch pensou nesse percorrido. O pistoleiro emitiu um som baixo, uma tosse ou um gemido, amortecido pelo material estofado que os separava. Embora possivelmente tinha resultado alcançado. Sua ferida talvez não era o suficientemente grave para persuadir o de partir, embora sim o bastante dolorosa como para lhe tirar as vontades de seguir explorando. Estava claro que se instalou no carro com a esperança de que sua presa, desesperada-se, retornasse a ele. imaginaria que Mitch se aproximaria com prudência, esquadrinhando concienzudamente o terreno vizinho, mas sem imaginar que a morte o aguardava entre as sombras do assento traseiro. Neste improvisado quarta de aprendizagem, Mitch pensou na caminhada da biblioteca ao pavilhão dos carros, na lua flutuando na piscina como um leito de nenúfares, o canhão da pistola apertado contra seu flanco, o canto dos sapos, os ramos como de encaixe dos pitosporos chapeados, outra vez o canhão da pistola lhe oprimindo as costelas... Esse carro de época certamente não tinha amparo antiincendios nem amortecedor de choques entre o porta-malas e a cabine. O respaldo do assento traseiro bem podia terminar em um painel de fibra do meio centímetro de espessura, ou talvez só fora de tecido. Certamente, conteria uns quinze centímetros de cheio. Uma bala encontraria alguma resistência. A barreira não era a prova de balas. Se um ficar um mero almofadão a modo de armadura, mal pode esperar sair ileso de uma surriada de dez disparos de alta velocidade. Nesse momento, Mitch estava médio reclinado, médio sentado, sobre seu flanco esquerdo, olhando a noite pela abertura entreabrida do porta-malas. Devia voltar-se para o lado direito se queria apoiar sua pistola no fundo do cubículo. Pesava setenta e cinco quilogramas. Não fazia falta estar diplomado em física para entender que o veículo responderia ao deslocamento de todo esse peso. Podia voltar-se depressa e abrir fogo, mas possivelmente só para descobrir que se equivocou com respeito à separação do porta-malas e a cabine. Se se tratava de um painel metálico, não só corria o risco de ser ferido pelo rebote de seus próprios disparos, mas também também de não lhe dar a seu objetivo. De ser assim, encontraria-se ferido e sem munições. E o pistoleiro saberia onde encontrá-lo. Uma gota de suor lhe deslizou pelo nariz e se deteve na comissura de seus lábios. A noite era temperada, não cálida. Uma urgente necessidade de atuar lhe esticava os nervos como a corda de um arco.

 

Enquanto Mitch se debatia na indecisão, recordou o grito do Holly, o seco som que se ouviu quando a esbofetearam. Um som real devolveu sua atenção à presente. Na cabine, seu inimigo lutava por conter um acesso de tosse. O som tinha sido amortecido tão eficazmente que era impossível que se ouviu fora do carro. Como a vez anterior, a tosse só durou poucos segundos. Talvez, a tosse do pistoleiro fosse produzida por uma ferida. Ou possivelmente fosse alérgico ao pólen do deserto. Quando o tipo voltasse a tossir, Mitch aproveitaria a ocasião para trocar de postura. Fora do porta-malas, o deserto parecia obscurecer-se, iluminar-se e voltar a obscurecer-se ritmicamente. Mas o certo era que sua acuidade visual aumentava momentaneamente com cada sístole e cada diástole de seu galopante coração. Mas a repentina ilusão de que nevava tinha base em um fato real. A luz da lua cristalizava as asas fosforescentes de umas traças que se formaram redemoinhos sobre o caminho, como os flocos de neve no inverno. As mãos algemadas do Mitch agarravam a pistola com tanta força que os nódulos lhe faziam mal. Seu índice direito se curvava sobre a defesa do gatilho, não sobre o gatilho mesmo, pois temia que uma contração nervosa o fizesse disparar antes do desejado. Tinha os dentes apertados. ouviu-se inalar, exalar. Abriu a boca para respirar sem ruído. Embora seu coração ia a toda marcha, o tempo deixou de ser um rio que flui para transformar-se em uma sigilosa corrente de lama. Durante as passadas horas, seu instinto lhe tinha sido útil ao Mitch. Mas também o pistoleiro podia contar com um sexto sentido e dar-se conta de que não estava sozinho. Uma espessa corrente de segundos encheu um minuto, depois outro e outro... Então, um terceiro ataque de tosse sufocada do pistoleiro deu ao Mitch ocasião de rodar, voltando-se de modo que ficou sobre seu flanco direito. Uma vez completada a manobra, permaneceu muito quieto, lhe dando as costas à tampa aberta do porta-malas. O silêncio do pistoleiro parecia indicar um elemento de renovada vigilância, de suspeita. Agora, o mundo penetrava nos cinco sentidos do Mitch através de a lente distorcidos da extrema ansiedade. Que ângulo de disparo? Como fazê-lo? Pensa. O homem do rosto terso não devia estar erguido no assento. teria se inclinado para diante para aproveitar ao máximo a escuridão do assento traseiro. Em outras circunstâncias, o assassino possivelmente teria preferido um rincão, o que contribuiria mais a sua invisibilidade. Mas como a elevada tampa do porta-malas impedia que o vissem com facilidade pela lua traseira, podia sentar-se a salvo em metade do assento para cobrir melhor ambas as portas. Mantendo tensa a cadeia das algemas, Mitch posou a pistola no chão sem fazer ruído. Temia golpeá-la contra algo durante a exploração que necessitava fazer. Mediu às cegas com ambas as mãos e deu com a parte traseira do porta-malas. As gemas de seus dedos sentiram que a superfície estava coberta de tecido, mas era firme. Possivelmente o Chrysler não tivesse sido restaurado com total fidelidade ao modelo original. Campbell podia ter decidido introduzir algumas melhora e, entre elas, materiais mais avançados para o porta-malas. Como um par de aranhas sincronizadas, suas mãos se deslizavam a esquerda e direita da superfície, procurando. Pressionou com suavidade e depois com um pouco mais de força. Sob a indagação de suas gemas, a superfície cedeu um pouco. Podia tratar-se de um tabuleiro de madeira aglomerada do meio centímetro de espessura e revestida de tecido. Não parecia metal. O painel agüentou a pressão de suas mãos em silêncio, mas, quando esta cedeu, recuperou sua forma com um sutil som indiretamente. Da cabine, chegou um chiado de protesto do estofo, apenas um leve som e nada mais. O mais provável era que o pistoleiro tivesse ajustado sua posição para estar mais cômodo... Ou possivelmente se tornou para escutar com mais atenção. Mitch mediu o chão, procurando a pistola e posou suas mãos sobre ela. Convexo de lado, os joelhos pregados, sem lugar para estender os braços, estava em má posição para disparar. Se tratava de mover-se para o lado aberto do porta-malas antes de disparar, revelaria sua presença. Só um ou duas segundos de advertência podiam ser suficientes para que esse pistoleiro perito rodasse do assento ao chão. Mitch repassou uma vez mais seu plano para confirmar que não tinha passado nada por alto. O menor engano de cálculo podia determinar sua morte. Elevou a pistola. Dispararia de esquerda a direita e depois de direita a esquerda em uma dobro surriada de cinco disparos cada uma. Quando apertou o gatilho, não ocorreu nada. Apenas um leve, embora nítido, estalo metálico. Seu coração golpeava e era golpeado, era martelo e bigorna, e deveu esforçar-se para ouvir por cima dos estrondosos batimentos do coração. Mas mesmo assim, estava bastante seguro de que o pistoleiro não se tornou a mover, que não tinha detectado o pequeno som que emitiu a pistola rebelde. Antes, tinha revisado a arma em busca de um seguro. Afrouxou a pressão de seu dedo sobre o gatilho, vacilou, voltou a apertar. De novo, só um estalo. antes de que o pânico o dominasse, o azar revoou junto a sua bochecha e lhe meteu na boca em forma de traça. Não era tão fria como lhe tinham parecido seus congêneres quando se formavam redemoinhos semelhando-se a flocos de neve. Em um ato reflito pigarreou e cuspiu o inseto para não engasgar-se. Seu dedo se crispou sobre o gatilho. O gatilho tinha uma resistência incorporada, que possivelmente fosse, a fim de contas, o seguro. Para abrir fogo, requeria-se de uma dobro pressão, e, como esta vez apertou com mais força que antes, a pistola se disparou. O retrocesso, exacerbado pela postura em que se encontrava, sacudiu-o. A detonação foi mais forte que o ruído que produziria a porta do inferno ao fechar-se de repente a suas costas. Uma chuva de resíduos, partes de tecido chamuscado e restos de madeira aglomerada lhe deu na cara, surpreendendo-o, mas entreabriu os olhos e continuou disparando, de esquerda a direita. O retrocesso elevava a pistola em um movimento desordenado, mas a controlou enquanto seguia disparando, agora de direita a esquerda, e embora acreditava que poderia contar os tiros enquanto os disparava, perdeu a conta depois dos dois primeiros e assim seguiu até que o carregador ficou vazio.

 

Se o pistoleiro não estava morto, a não ser só ferido, podia devolver os disparos através do respaldo. O porta-malas ainda era uma armadilha mortal em potência. Abandonando a inútil pistola, Mitch se apressou a sair ao caminho, golpeando um joelho contra o bordo do porta-malas e um cotovelo contra o pára-choque. Caiu sobre as mãos e os joelhos e se levantou. Correu agachado uns quinze metros antes de deter-se e olhar para trás. O pistoleiro não tinha saído do Chrysler. As quatro portas estavam fechadas. Mitch esperou. O suor lhe gotejava da ponta do nariz, do queixo. Já não estavam por ali as traças que pareciam flocos de neve, nem o grande mocho cornudo, nem o sinistro inseto desconhecido que emitia a estridente música. Sob a lua muda, no deserto petrificado, o Chrysler resultava anacrônico, como uma máquina do tempo surta no Mesozoico, aerodinâmica e reluzente a falta de cem milhões de anos para que fosse criada. Quando o ar, seco como o sal, começou a lhe chamuscar a garganta, deixou de respirar pela boca, e quando o suor lhe começou a secar no rosto, perguntou-se quanto deveria esperar para poder supor que o homem tinha morrido. Olhou seu relógio. Olhou a lua. Aguardou. Necessitava o carro. Tinha controlado o tempo que, ao chegar, durou o percurso pelo caminho de terra: doze minutos. Deveram avançar a uns quarenta quilômetros por hora nesse último lance de sua viagem. Isso significava que estava a uns dez quilômetros de uma estrada asfaltada. Inclusive se chegava a esse rastro de civilização, era possível que se encontrasse com que se achava um território solitário e sem muito tráfico. Além disso, no estado em que se encontrava, sujo, desarrumado e, sem dúvida, com aspecto de transtornado, ninguém o recolheria, a não ser, possivelmente, algum psicopata itinerante em busca de vítimas. Ao fim, aproximou-se do Chrysler. Rodeou o veículo, mantendo-se tão longe dele como o permitia o largo do caminho, atento à possibilidade de que um rosto terso e espectral espionasse desde o sombrio interior. Depois de chegar sem novidade até o porta-malas de que tinha escapado duas vezes, deteve-se escutar. Holly estava na pior situação possível, e se os seqüestradores tratavam de comunicar-se com o Mitch, não teriam sorte, pois seu móvel tinha ficado naquela bolsa branca de plástico, no imóvel do Campbell. A chamada de meio-dia a casa do Anson seria sua única possibilidade de restabelecer contato com eles antes de que decidissem cortar em trocitos a seu refém e passar a outra coisa. Sem duvidá-lo mais, foi à porta traseira do lado do condutor e a abriu. O homem do rosto terso tinha os olhos abertos. Estava tendido no assento, ensangüentado, mas ainda com vida. Apontava sua pistola à porta. O canhão parecia uma concha ocular vazia, e o pistoleiro adotou uma expressão triunfal ao dizer: -Morre. Tratou de apertar o gatilho, mas de repente a pistola se estremeceu em sua mão, que afrouxou a pressão. A arma foi dar ao chão do carro e a mão do pistoleiro caiu sobre seu próprio regaço. Agora que sua ameaça de uma só palavra tinha demonstrado ser uma predição de seu próprio destino, ficou assim, como se fizesse uma proposição obscena. Deixando a porta aberta, Mitch se foi ao bordo do caminho e ficou sentado em uma pedra até que teve a certeza de que, finalmente, não vomitaria.

 

Mitch, sentado na pedra, tinha muito no que pensar. Quando tudo isto terminasse, se é que terminava, possivelmente o melhor seria ir à polícia, lhes contar sua história de desesperada autodefesa, lhes levar os dois pistoleiros mortos no porta-malas do Chrysler. Julian Campbell negaria que fossem seus empregados, ou ao menos que lhes tinha ordenado matar ao Mitch. Era de supor que os homens desta classe cobravam em efetivo, sem deixar rastro de sua relação profissional; do ponto de vista do Campbell, quantos menos registros de sua atividade ficassem, melhor seria, e os pistoleiros não pareciam pertencer à classe de gente que se preocupa com o fato de que, quando se cobra em efetivo, não há deduções impositivas, por isso, chegado o momento, a segurança social poderia rechaçá-los. Existia a possibilidade de que as autoridades não estivessem ao tanto do lado escuro do império do Campbell. Talvez aparentasse ser, em todos os terrenos, um dos cidadãos mais destacados de Califórnia. Mitch, em troca, não era mais que um humilde jardineiro, que estava apanhado em falsas provas que o fariam parecer culpado do assassinato de sua esposa no caso de que não conseguisse pagar seu resgate. E em Coroa do Mar, na rua onde vivia Anson, estava sua Funda, cujo porta-malas continha o cadáver do John Knox. Embora acreditava no império da lei, Mitch não supunha nem por um minuto que as investigações forenses fossem tão meticulosas nem os técnicos tão infalíveis como os apresentava a televisão. Quantas mais evidencia que sugerissem sua culpabilidade encontrassem, embora fossem falsas, mais cresceriam suas suspeitas e mais fácil seria-lhes ignorar os detalhes que podiam absolvê-lo. Seja como for, o mais importante nesse momento era manter-se livre e em movimento até pagar o resgate do Holly. Sim, claro que a resgataria. Ou morreria em o intento. depois de conhecer o Holly e de apaixonar-se por ela quase em seguida, deu-se conta de que até então só vivia pela metade, de que tinha sido sepultado em vida durante a infância. Ela tinha aberto o ataúde emocional onde o deixassem seus pais, e ele tinha ressuscitado e maturado. Sua própria transformação o tinha assombrado. Quando se casaram sentiu que, pela primeira vez, estava plenamente vivo. Mas essa noite se deu conta de que, de todas formas, uma parte dele tinha permanecido dormida. Ao despertar, a claridade com que o via lhe produziu mais terror que euforia. encontrou-se com uma maldade tão absoluta que, até então, não tinha sabido que existia, um mal cuja existência mesma tinha sido educado para negar. Mas junto ao reconhecimento do mal, chegou uma consciência de novas dimensões em tudo o que percebia. Em cada objeto via uma maior beleza, estranhas promessas e mistério. Não sabia o que queria dizer exatamente isso. Só sabia que era assim, que seus olhos se aberto a uma realidade superior. detrás dos sucessivos mistérios deslumbrantes deste novo mundo que o rodeava, intuía uma verdade que, despojando-se de sucessivos véus, terminaria por revelar-se plenamente. Era curioso que nesse estado de iluminação a tarefa mais urgente que tivesse por diante fora mover um par de homens mortos. Esteve a ponto de tornar-se a rir, mas se conteve. Sentado no deserto, perto de meia-noite, com uns cadáveres como única companhia, rir à lua não parecia um bom primeiro passo para sair dali. De um ponto elevado do céu, para o este, um cometa se deslizou em direção ao oeste. Parecia um fechamento de cremalheira luminoso. Abriu o negro firmamento, deixando espionar uma cor branca por detrás de este. Mas a cremalheira se fechou com tanta pressa como se aberto, e o céu permaneceu vestido, enquanto que o meteoro se reduzia a um nada, a simples vapor. Considerando que a estrela fugaz era um sinal que lhe ordenava que se ocupasse da macabra tarefa que tinha pendente, Mitch se inclinou junto ao pistoleiro de a cara marcada e lhe registrou os bolsos. Não demorou para encontrar as duas coisas que queria, a chave das algemas e as do Chrysler Windsor. Uma vez que se tirou as algemas, jogou-as ao porta-malas aberto do carro. esfregou-se as doloridas bonecas. Arrastou o corpo do pistoleiro até o lateral sul do caminho, fez-o acontecer por cima dos matagais que o bordeaban e o deixou ali. Tirar o outro do assento traseiro requereu uma desagradável luta, mas ao cabo de escassos minutos os dois mortos estavam tendidos, um junto ao outro, de cara às estrelas. De retorno ao carro, Mitch encontrou uma lanterna no assento dianteiro. Supôs que haveria uma, pois deviam ter intenção de enterrá-lo por ali e necessitavam luz para fazê-lo. A débil luz do teto do carro não iluminava o assento traseiro com a claridade que Mitch necessitava. Examinou-o com a lanterna. Como o pistoleiro não tinha morrido imediatamente, teve tempo de sangrar, coisa que fez a consciência. Mitch contou oito buracos no respaldo dos balaços que, disparados do porta-malas, tinham-no atravessado. Era evidente que os outros dois tinham sido desviados ou completamente detidos pela estrutura do assento. Havia cinco buracos na parte traseira do assento dianteiro, mas só uma das balas o tinha atravessado. Uma marca na porta do porta-luvas indicava onde tinha terminado sua trajetória. Encontrou a bala no chão, frente ao assento do acompanhante. Atirou-a fora. Uma vez que saísse do caminho de terra ao asfalto, teria que obedecer o que assinalassem os pôsteres indicadores de velocidade máxima, por muita pressa que tivesse. Se uma patrulha de estrada o detinha e lhe jogava uma olhada ao sangue e ao assento traseiro prejudicado, Mitch provavelmente passasse um comprido tempo comendo a costa do estado de Califórnia. Os pistoleiros não tinham levado pá. Dada a profesionalidad de ambos, duvidava que tivessem deixado seu corpo apodrecendo-se em um lugar onde excursionistas ou aficionados a conduzir pelo deserto o pudessem descobrir. Certamente estavam familiarizados com a zona e conheciam um lugar que servia de tumba natural e que não podia ser descoberto com facilidade. Ao Mitch não atraía a idéia de procurar esse lugar de noite e à luz da lanterna. Tampouco a perspectiva de ver a coleção de ossos que possivelmente achasse ali. Retornou junto aos corpos e os aliviou de suas carteiras, para fazer mais difícil a identificação. lhe manipulá-los provocava menos repulsão que antes, e esta nova atitude o perturbou. Depois de arrastar os cadáveres, afastando-os mais do caminho, meteu-os em um fechado matagal de gayubas. uma espécie de sudários de folhas correosas impediriam que descobrissem-nos com facilidade. Embora o deserto parece hostil a qualquer forma de vida, várias espécies crescem nele e muitas delas são carroñeras. Em menos de uma hora, os primeiros acudiriam ao banquete por partida dobro que ocultavam as gayubas. Alguns eram escaravelhos, como o que os pistoleiros procuraram que não pisasse quando o levavam pela colunata do pavilhão dos carros. Pela manhã, o calor do deserto começaria a fazer seu trabalho, acelerando de forma significativa o processo de decomposição. Se alguma vez os encontravam, possivelmente nunca se soubesse dos quais se tratava. E não importaria, nem contaria para nada, qual tinha tido terríveis cicatrize de acne e qual um rosto terso. No pavilhão dos carros antigos, quando estavam a ponto de fechar a tampa do porta-malas sobre ele, havia dito: "Oxalá não tivéssemos que fazer isto". "Bom, é o que há", respondeu o de pele tersa. Outra estrela fugaz desviou sua atenção ao profundo e claro céu. Uma breve ferida de luz, e o firmamento ficou curado um instante depois. Voltou para carro e fechou a tampa do porta-malas. Vencer a dois assassinos peritos possivelmente deveria fazê-lo sentir-se potente, orgulhoso, feroz. Mas se sentia mais humilde que antes. Para não sofrer o fedor do sangue, baixou os guichês das quatro portas do Chrysler Windsor. O motor ficou em marcha imediatamente, entoando uma canção cheia de energia. Acendeu os faróis. Sentiu alívio ao ver que o indicador do depósito de gasolina assinalava que estava cheio em suas três quartas partes. Não queria deter-se em lugares públicos, nem sequer em um posto de gasolina de auto-serviço. Tinha conduzido o carro de volta e percurso seis quilômetros pelo caminho de terra quando, ao chegar ao alto de uma costa, encontrou-se com um espetáculo que o fez frear. Ao sul, em um baixo terreno baixo do terreno, havia um lago de mercúrio no que flutuavam anéis concêntricos de resplandecentes diamantes. moviam-se com lentidão seguindo a corrente de um sigiloso redemoinho, majestosos como a espiral de uma galáxia. Durante um momento, a cena lhe pareceu tão irreal que supôs que seria uma alucinação ou uma visão. Depois compreendeu que era uma plantação, talvez de cevada silvestre, com suas sedosas florescências em forma de penacho. A luz da lua dava tons argenta às espigas, arrancando faíscas das lustrosas novelo. Uma brisa apenas perceptível soprava ao redor com tal sutileza e a um ritmo tão regular, que parecia uma música especialmente composta para a dança da erva, como uma valsa. Havia um significado oculto em um pouco tão corriqueiro como a erva, mas o aroma do sangue o fez passar do místico ao mundano. Continuou até o fim do caminho de terra e dobrou à direita, pois recordava que, no caminho de ida, tinham girado à esquerda. As estradas asfaltadas estavam bem sinalizadas e não retornou ao imóvel do Campbell, que esperava não voltar a ver nunca, a não ser à auto-estrada interestadual. Passava já de meia-noite e o tráfico era escasso. dirigiu-se ao norte sem ultrapassar nunca a velocidade máxima em mais de oito quilômetros por hora, excesso que a lei estranha vez castigava. O Chrysler Windsor era uma formosa máquina. Não é freqüente que os mortos retornem a acossar aos vivos com tanta elegância.

 

Mitch chegou à cidade do Orange às 2.20 da madrugada e estacionou a uma maçã de distância de sua casa. Fechou os quatro guichês do Chrysler e lhe jogou a chave. Levava uma pistola no cinto, oculta pela aba da camisa. Era a do pistoleiro de rosto terso, que, quando disse "morre", não teve forças para apertar uma última vez o dedo sobre o gatilho. Continha oito balas. Mitch esperava não ter que usar nenhuma. Tinha estacionado sob um velho Jacaranda em plena floração, e quando, ao baixar, ficou sob uma das luzes que iluminavam a rua, viu que caminhava sobre uma tapete de pétalas malvas. Com cautela, aproximou-se de sua casa pelo beco que corria pela parte traseira. Um leve ruído o fez acender a lanterna. De entre dois cubos de lixo que alguém tinha deixado preparados para o recolhimento matutino apareceu um mapache adaptado a a vida urbana, cujo rosto pálido de rosado focinho palpitante o fazia parecer um grande rato. Mitch apagou a luz e seguiu para sua garagem. O postigo do extremo do jardim nunca estava fechado. Entrou por ali ao pátio traseiro. Na biblioteca do Campbell lhe tinham confiscado as chaves de sua casa, além de sua carteira e outros artigos pessoais. Guardava uma chave adicional em uma diminuta caixa forte das que se usam com esse propósito, que estava assegurada com um cadeado ao muro da garagem e oculta por uma fila de azaleas. Arriscando-se a acender a lanterna, mas velando-a com os dedos, Mitch separou as azaleas. Girou a rodinha para marcar os números da chave, abriu, tirou a chave da caixa forte e apagou a lanterna. Sem fazer ruído, entrou em garagem, cujas chaves eram quão mesmas as da casa. A lua se deslocou para o oeste e as árvores deixavam acontecer pouca luz pelas janelas. ficou na escuridão, escutando. Fora porque o silêncio o convenceu de que estava sozinho ou porque a escuridão lhe recordava muito ao porta-malas de onde tinha escapado duas vezes, acendeu as luzes da garagem. Sua caminhonete seguia onde a tinha deixado. O lugar do Funda estava vazio. Subiu as escadas até o mezanino. A pilha de caixas ainda dissimulava a ruptura do corrimão. Ao chegar à parte dianteira do mezanino, encontrou-se com que a grabadora e a equipe de vigilância eletrônica já não estavam ali. Um dos seqüestradores devia ter retornado para buscá-los. perguntou-se o que acreditariam que lhe tinha ocorrido ao John Knox. Preocupava-lhe a possibilidade de que o desaparecimento do Knox já tivesse tido conseqüências para o Holly. Quando um súbito tremor o estremeceu, forçou a sua mente a apartar-se dessa escura hipótese. Ele não era uma máquina e ela tampouco. Suas vidas tinham sentido. O destino as tinha unido com um propósito, e o cumpririam. Tinha que acreditar que era verdade. Se não o fazia, não ficava nada. Deixou a garagem às escuras e entrou na casa pela porta traseira, crédulo em que já ninguém vigiava o lugar. A encenação do assassinato na cozinha seguia como a tinha deixado. As salpicaduras de sangue já estavam secas. Os rastros de mãos nos armários, também. No tanque vizinho se tirou os sapatos e os estudou sob a luz fluorescente. surpreendeu-se ao ver que não havia sangre neles. Os meias três-quartos tampouco tinham manchas de sangue. De todos os modos, os tirou e os jogou na máquina de lavar roupa. Havia manchas pequenas na camisa e as calças. No bolso da camisa encontrou o cartão do detetive Taggart. Deixou-a à parte, colocou os objetos na máquina, jogou detergente e a pôs em marcha. De pé frente à pia, lavou-se mãos e antebraços com sabão e uma escova de cerdas brandas. Não tratava de eliminar provas, não pensava nisso. Talvez o que esperava que se fora pelo deságüe eram, mas bem, certas lembranças. tornou-se água na cara e o pescoço. Sua fadiga era profunda. Precisava descansar, mas não tinha tempo para o sonho. E embora tentasse dormir, sua mente estaria atormentada por temores conhecidos e também ignotos, que a fariam galopar em círculos, deixando-o acordado e exausto. Em sapatilhas e roupa interior, levando sempre a pistola, foi à cozinha. Agarrou da geladeira um bote de Rede Bull, uma bebida com alto conteúdo de cafeína, e o bebeu. Quando estava terminando a bebida viu a bolsa do Holly aberto sobre uma encimera. Já estava ali antes. Mas então ele não se deteve a olhar os artigos que estavam pulverizados pela encimera. Um pacote de celofane acolchoado. Uma pequena caixa, aberta por acima. Um folheto de instruções. Holly se tinha comprado um test de embaraço. Tinha-o aberto e, evidentemente, usado, em algum momento entre sua volta do trabalho e a irrupção dos seqüestradores. Às vezes, quando é menino e está na quarta de aprendizagem, e não falaste com ninguém em muito tempo, nem ouvido outra voz que a tua, em sussurros, e quando te nega a comida, embora nunca a água, até durante três dias, quando leva uma semana ou dois sem ver a luz mais que no breve intervalo em que lhe trocam as garrafas para urinar e a bacinilla para os excrementos por outras podas, chega um momento em que o silêncio e a escuridão já não parecem condições ambientais, a não ser objetos com entidade própria, coisas que compartilham o espaço contigo e, crescendo a cada hora, exigem mais e mais espaço, até que o silêncio e a escuridão oprimem-lhe por todos lados, esmagam-lhe de acima, colocam-lhe à força no espaço mínimo que seu corpo só pode ocupar se se reduz como um carro comprimido pela imprensa de um depósito de sucata. No meio do horror dessa claustrofobia extrema, talvez diga a ti mesmo que não pode suportá-lo nem um minuto mais, mas sim que pode, e o suporta, um minuto, outro, outro, uma hora, um dia, suporta-o sempre, e então a porta se abre e o cativeiro termina e chega a luz, ao fim sempre chega a luz. Holly não lhe havia dito que seu período se atrasou. Já tinham albergado falsas expectativas em duas ocasiões. Esta vez, quis certificar-se antes de lhe dizer nada. Antes, Mitch não acreditava no destino; agora sim. E, ao fim e ao cabo, se a gente acreditar no destino deve imaginar que é dourado, que reluz. Não esperará passivamente para ver quanto destino lhe servem, claro que não. Lubrificará tanto destino como posso em seu pão da vida e se comerá a fogaça inteira. Apalpando a pistola, apressou-se a ir ao dormitório. O interruptor que se encontrava junto à porta acendia um dos dois abajures que havia em caminhos mesinhas. Decidido, com um único objetivo, foi ao armário. A porta estava aberta. Suas roupas estavam em desordem. Dois pares de jeans se cansado de seus cabides e estavam sobre o chão do armário. Não recordava ter deixado o armário nessas condições, mas de todas maneiras recolheu umas calças do chão e os pôs. Ao grampear uma camisa de manga larga de algodão azul escuro, deu-lhe as costas ao armário e viu pela primeira vez os objetos pulverizados sobre a cama. Umas calças cor cáqui, uma camisa amarela, meias três-quartos esportivos brancos, umas cueca e uma camiseta brancos. A roupa era dela. Reconhecia-a. Estava manchada com bolinhas de sangue escuro. A essas alturas, já sabia que aspecto têm as provas fabricadas. Alguém queria lhe pendurar alguma nova atrocidade. Agarrou a pistola da prateleira do armário onde a deixasse enquanto se trocava. A porta que dava ao escuro quarto de banho estava aberta. Como se fosse a vara de um zahorí, a pistola o levou para essa escuridão. Ao cruzar a soleira, acionou o interruptor e, contendo a respiração, entrou em iluminado quarto de banho. Esperava encontrar alguma coisa macabra na ducha, um pouco cerceado no lavabo. Mas tudo parecia normal. No espelho, viu que seu rosto estava crispado de medo, fechado como um punho. Mas nunca tinha tido os olhos mais abertos, e já não era cego ante nada. Ao retornar ao dormitório, notou algo desconjurado na mesinha cujo abajur não estava aceso. Pulsou o interruptor. Na mesinha havia duas polidas esferas de esterco de dinossauro sobre suas pequenas bases de bronze. Embora eram opacas, fizeram-no pensar em bolas de cristal e em sinistras adivinhas de velhos filmes que predizem um horrível destino. -Anson -sussurrou Mitch, e, depois, uma palavra que não estava acostumado a empregar-. Deus. OH, Meu deus.

 

Os intensos ventos que vinham das montanhas do este estavam acostumados a levantar-se o amanhecer ou ao chegar o ocaso. Agora, muitas horas depois do crepúsculo e horas antes do alvorada, um forte vento da primavera soprou sobre as terras baixas, como se irrompesse por uma grande porta. Mitch foi pelo beco, onde assobiava o vento, até o Chrysler, com o ânimo vacilante de um homem que empreende a curta travessia que o levará de seu cela ao patíbulo. Não perdeu tempo em baixar os quatro guichês. Enquanto conduzia, abriu só a do lado do condutor. Um vento agressivo bufava sobre ele, desordenava-lhe o cabelo com seu fôlego quente e insistente. Desequilibrado-los não sabem controlar-se. Vêem conspirações que os rodeiam por toda parte e revelam sua loucura em explosões de ira irracional, com temores absurdos, incontroláveis. Os verdadeiros desequilibrados não sabem que estão loucos, de modo que não vêem a necessidade de dissimular. Mitch queria acreditar que seu irmão estava desequilibrado. Desde não ser assim, se Anson atuava a sangue frio, calculando, era um monstro. Se a gente tinha admirado e amado a um monstro, devia envergonhar-se da própria credulidade. E, o que era ainda pior, pudesse ser que sua disposição a ser enganado fosse o que lhe dava poder ao monstro. Compartilhava ao menos uma pequena parte da responsabilidade por seus crímenes. Anson não carecia de autocontrol. Nunca falava de conspirações. Não temia a nada. Na referente a dissimulações, tinha capacidade para desorientar, talento para disfarçar-se, gênio para o engano. Não estava louco. Nas ruas, as datileras se sacudiam na noite, como loucas frenéticas que agitassem suas cabeleiras. O terreno ascendia e as colinas baixas se convertiam em outras, mais altas. No vento voavam partes de papel, folhas, periódicos que pareciam cometas, uma grande bolsa de plástico transparente, ondulante como uma medusa. A casa de seus pais era a única da rua em cujas janelas se via luz. Talvez teria que ter sido discreto, mas estacionou no caminho de entrada. Fechou o guichê, deixou a pistola no carro e levou consigo a lanterna. O vento, repleto pelas vozes do caos, rico de aroma a eucalipto, fazia que as sombras das árvores açoitassem o atalho. Não tocou o timbre. Não tinha falsas esperanças, só uma horrível necessidade de saber. Tal e como tinha suposto que ocorreria, a porta não estava fechada com chave. Entrou em vestíbulo e fechou a porta detrás de si. A sua direita, a sua esquerda, um incontável número de imagens do Mitch se afastavam dele, internando-se em um mundo de espelhos. Todos tinham uma expressão aterrada, todos estavam perdidos. A casa não estava em silêncio, pois o vento tagarelava nas janelas e gemia no telhado, enquanto suas rajadas com aroma a eucalipto davam chicotadas nos muros. No estudo do Daniel, lascas dos despedaçadas prateleiras de vidro cintilavam no chão. As coloridas esferas polidas estavam pulverizadas por todas partes, como se um duende tivesse jogado bilhar com elas. Mitch registrou a planta baixa, habitação por habitação, acendendo as luzes quando estavam apagadas. O certo era que não esperava encontrar nada mais nessa planta da casa, e assim foi. disse-se que só estava sendo consciencioso. Mas sabia que o que fazia era adiar sua ascensão ao primeiro piso. Ao chegar ao pé da escada, elevou a vista, e se ouviu dizer "Daniel" e "Kathy" em tom fico. Enquanto subia, a larga exalação da natureza se tornou mais feroz. As janelas se sacudiam. As vigas rangiam. No vestíbulo do piso superior, um objeto negro jazia sobre a madeira polida. Tinha a forma de uma barbeador elétrica, embora era algo maior. Em um de seus extremos tinha duas reluzentes pontas de metal, separadas por uma brecha de uns dez centímetros. Titubeou antes de recolhê-lo. Tinha um interruptor a um lado. Quando o pulsou, um serrilhado arco branco de eletricidade crepitou entre as pontas, em realidade dois pólos. Era um Taser, uma arma de defesa. Era de supor que Daniel e Kathy não o tinham empregado para defender-se. Era mais provável que Anson o tivesse levado consigo, usando-o para atacá-los. Uma descarga do Taser pode paralisar a um homem durante minutos, deixando-o inerme, com os músculos sacudidos pelos espasmos que disparam os nervos, presa de um curto-circuito. Embora Mitch sabia onde devia ir, adiou o terrível momento e se dirigiu ao dormitório principal. As luzes estavam acesas, à exceção do abajur de uma das mesinhas, que tinha cansado ao chão na luta. Sua lâmpada estava rota. Os lençóis, em desordem. Os travesseiros tinham cansado ao chão. Os adormecidos teriam tido um despertar literalmente eletrizante. Daniel era dono de uma grande coleção de gravatas, e umas doze delas estavam pulverizadas pelo tapete. Eram brilhantes serpentes de seda. Jogando uma olhada pelas outras portas abertas, mas sem atrasar-se para inspecionar a fundo as habitações que havia detrás delas, Mitch se dirigiu, decidido, à habitação que estava ao final do mais curto dos dois corredores da planta alta. Ali havia uma porta igual a todas as demais, mas quando a abriu, encontrou-se frente a outra. Esta estava coberta por uma espessa tapeçaria acolchoada, forrado em tecido negro. Tremendo, titubeou. Não esperava ter que retornar jamais a esse lugar, ver-se obrigado a cruzar outra vez essa soleira. A porta interior só podia abrir-se do vestíbulo, não da habitação. Moveu o ferrolho. Os bem ajustados rebordos de borracha do marco e a porta se separaram com um som de sucção quando empurrou para dentro. No interior não havia abajur alguma, nem sequer uma no teto. Acendeu a lanterna. depois de que Daniel mesmo revestisse chão, muros e teto com sucessivas capas, de uma espessura total de quarenta centímetros, de diversos materiais isolantes, a habitação tinha ficado reduzida a um espaço sem janelas de algo mais de dois metros e meio de lado. O teto ficava a uma altura de menos de dois metros. O material negro que recubría todas as superfícies, de tecido denso e opaco, absorvia a luz da lanterna. Privação sensorial modificada. Diziam que não era um castigo, a não ser um instrumento de disciplina, um método para enfocar a mente para dentro, para ajudar a tirar o chapéu a gente mesmo. Uma técnica, não uma tortura. Havia muitos estudos publicados sobre as maravilhas dos distintos graus de privação sensorial. Daniel e Kathy estavam tendidos um junto ao outro. Ela em pijama; ele, em roupa interior. Suas mãos e seus tornozelos tinham sido amarrados com gravatas. Os nós estavam cruelmente rodeados e mordiam a carne. As ligaduras das bonecas e as dos tornozelos tinham sido atadas umas a outras com uma terceira gravata, bem tensa, para evitar os movimentos das vítimas. Não tinham sido amordaçados. Possivelmente Anson tinha querido manter uma conversação com eles. E a quarta de aprendizagem não permitia que se ouvissem os gritos. Embora Mitch apenas apareceu à porta, o agressivo silêncio atirou dele, como o fazem as areias movediças com tudo o que apanham, como o faz a gravidade com os objetos que caem. Sua respiração agitada e urgente se fazia surda, transformando-se em uma brisa lhe sussurrem. Já não podia ouvir o vendaval, mas estava seguro de que continuava soprando. Olhar a Kathy foi mais difícil que fazê-lo com o Daniel, embora não tanto como tivesse suposto. Se tivesse podido, haveria-se interposto entre eles e seu irmão. Mas agora que parecia... Feito estava. E seu coração se afundava, mais que deter-se, e sua mente caía no abatimento, mas não no desespero. O rosto do Daniel, com os olhos abertos, estava retorcido pelo terror, mas nele também se evidenciava o desconcerto. Em seu penúltimo momento devia haver-se perguntado como podia ser que isso ocorresse, como era possível que Anson, seu único êxito, terminasse por lhe dar morte. Os sistemas de educação são incontáveis, e ninguém morre por causa deles, e menos os homens e mulheres que se dedicam a conceber e refinar tais teorias. depois de ser eletrocutados, amarrados e, talvez, de manter uma conversação, Daniel e Kathy tinham sido apunhalados. Mitch não se deteve na observação de suas feridas. As armas eram umas tesouras de podar e uma pá de mão. Mitch reconheceu as duas. Procediam do tabuleiro de ferramentas de sua garagem.

 

Mitch fechou a porta da quarta de aprendizagem, encerrando os dois corpos, e se sentou a pensar no arremate das escadas. O medo, a comoção e uma Rede Bull não bastavam para limpar seus pensamentos como o tivessem feito quatro horas de sonho. Terríveis rajadas de vento arremeteram contra a casa, cujos muros se estremeceram, mas resistiram o embate. Mitch teria chorado se se tivesse atrevido a fazê-lo; mas não tivesse sabido por quem derramava suas lágrimas. Nunca tinha visto o Daniel nem a Kathy chorar. Acreditavam na razão aplicada e no "análise de mútua contenção", não nas emoções fáceis. Como podia um chorar por quem jamais tinha chorado por si mesmos nem por ninguém, por quem não fazia mais que falar e falar de suas desilusões, seus enganos, suas penas? Ninguém que conhecesse a verdade a respeito desta família poderia culpá-lo se chorava por si mesmo. Mas não chorava por ele mesmo desde que aos cinco anos se negou a lhes dar a satisfação de lhes ensinar suas lágrimas. Não choraria por seu irmão. Desinteressada-a piedade que sentisse pelo Anson se evaporou. Não tinha cozido até desaparecer ali, na quarta de aprendizagem, a não ser no porta-malas do velho Chrysler. Durante o trajeto que o levou de Rancho Santa Fé ao norte, com os quatro guichês abertos para ventilar o carro, deixou que o vento se levasse toda ilusão, todo autoengaño. De fato, o irmão a quem acreditava conhecer, que supunha que amava, nunca tinha existido. Mitch não tinha amado a uma pessoa real, a não ser ao disfarce de um psicopata, a um fantasma. Agora, Anson tinha aproveitado a ocasião para vingar-se do Daniel e Kathy, lhe jogando a culpa a seu irmão, que, conforme acreditava, nunca seria achado porque estava morto e enterrado. Se não se pagava o resgate pelo Holly, seus seqüestradores a matariam e possivelmente se desfariam de seu corpo no mar. Mitch seria considerado responsável por seu assassinato e, também, por algum desconhecido procedimento, do do Jason Osteen. Semelhante matança seria muito apropriada para alimentar os programas de televisão por cabo dedicados a glosar delitos espetaculares. A busca do terrível Mitch, embora em realidade estivesse morto e em uma tumba no deserto, seria seu principal historia durante semanas, se não meses. Com o tempo, possivelmente chegasse a ser uma lenda como D. B. Cooper, o seqüestrador de aviões que, décadas atrás, lançou-se em pára-quedas desde um deles, com uma fortuna em efetivo, para não ser visto nunca mais. Mitch pensou em retornar ao quarta de aprendizagem para levá-las tesouras de podar e a pá de mão. A idéia de arrancar as dos corpos lhe repugnava. Havia feito costure piores nas últimas horas. Mas não podia fazer isso. Além disso, dado que Anson era tão inteligente, era de supor que teria deixado aqui e lá outras evidências, além das ferramentas de jardinagem. Encontrar essas outras provas levaria tempo e Mitch não tinha tempo que perder. Seu relógio de pulso dizia que eram as três e seis da manhã. Em menos de nove horas, os seqüestradores telefonariam ao Anson com novas instruções. Ficavam quarenta e cinco horas para a meia-noite da quarta-feira. Estava disposto a conseguir que tudo acabasse muito antes desse momento. Novos feitos requeriam novas regras, e Mitch seria quem as fixasse. O vento, imitando o uivo dos lobos, convidou-o a sair de noite. Depois de apagar as luzes da planta alta, baixou à cozinha. No passado, Daniel sempre tinha guardado uma caixa de tabletes do Hershey na geladeira. Agradava-lhe o chocolate frio. A caixa aguardava na prateleira mais baixo. Só ficava um tablete. As guloseimas do Daniel sempre tinham estado proibidas para todos outros. Mitch se levou a caixa. Estava muito exausto e muito atendido pela ansiedade para sentir fome, mas tinha a esperança de que o açúcar combatesse o sonho. Apagou as luzes da planta baixa e saiu da casa pela porta dianteira. Vassouras feitas de folhas de palma quedas varriam a rua, e detrás delas vinha rodando um cubo de lixo que vomitava seus conteúdos. As alegrias se murcharam antes de fazer-se pedaços, os arbustos se sacudiam como se quisessem desraizarse a si mesmos; um toldo de janela arrancado, verde, mas que a luz fazia parecer negro, bateu as asas locamente, como se fosse a bandeira de alguma nação de demônios. Os eucaliptos emprestavam mil vozes siseantes ao vento, que parecia estar a ponto de derrubar a lua de um sopro e apagar as estrelas como se fossem velas. No Chrysler enfeitiçado, Mitch partiu em busca do Anson.

 

Holly segue trabalhando em excesso-se com o prego, embora não progride, porque se não o fizesse não teria nada que fazer, e, sem nada que fazer, enlouqueceria. Por alguma razão, recorda ao Glenn Close fazendo de louca em Atração fatal. Embora enlouquecesse, Holly não seria capaz de cozinhar o coelho mascote em uma panela, a não ser, claro, que sua família estivesse passando fome e não houvesse nada mais para comer, ou que o coelho estivesse poseído pelo demônio. Em um caso assim, não há regras que valham. de repente, o prego se move, e isso é emocionante. Está tão excitada que quase precisa fazer uso da bacinilla que lhe deixaram os seqüestradores. Sua emoção mingua quando no transcurso da seguinte meia hora só consegue tirar aproximadamente o meio centímetro do prego do tablón do chão. A partir desse momento, resiste e não cede nada mais. Assim e tudo, meio centímetro é mais que nada. O prego pode ter, quanto?, sete centímetros de comprimento? Em total, descontando os descansos que se tomou para comer umas partes da pizza que lhe deram e para que descansassem os dedos, deve lhe haver dedicado ao prego umas sete horas. Se consegue tirá-lo um ritmo um pouco mais rápido, de digamos, dois centímetros ao dia, possivelmente quando chegar a hora limite, na quarta-feira a meia-noite, só faltarão algo mais de dois centímetros. Sempre foi otimista. A gente diz que é brilhante, alegre, feliz, buliçosa; uma vez, irritado por sua forma persistentemente positiva de ver as coisas, um amargurado lhe perguntou se não seria uma filha natural do camundongo Mickey e a fada Campainha. Se tivesse sido vulgar, lhe teria respondido com a verdade: que seu pai morreu em um acidente de tráfico e sua mãe ao lhe dar a luz, e que foi criada por uma avó cheia de amor e alegria. Mas em troca, como era brilhante, disse-lhe: "Sim, mas como os quadris de Campainha são muito estreitas para permitir dar a luz, implantaram-me em o útero da pata Daisy". Nesse momento, encontra muito difícil manter alto o ânimo, o que é muito pouco próprio dela. Mas que a um o seqüestrem afeta ao otimismo e ao sentido do humor. Lhe romperam duas unhas e lhe doem as gemas dos dedos. Provavelmente, se não as tivesse envolto na aba de sua blusa, sangrariam. Na ordem geral dos acontecimentos, suas feridas são insignificantes. Em troca, se seus captores começassem a lhe cortar os dedos, como disseram ao Mitch que o fariam, sim que teria motivos de queixa. dá-se uma trégua em sua tarefa com o prego. Na escuridão, tende-se sobre o colchão inflable. Embora esteja exausta, não espera dormir. Em seguida se encontra sonhando que está em um lugar sem luz que não é este, não é o sítio onde a deixam prisioneira seus seqüestradores. No sonho, não está encadeada a uma argola embutida no chão. Caminha pela escuridão com um vulto em braços. Não está em uma habitação, a não ser em uma série de passadiços. Uma rede de túneis. Um labirinto. O vulto se faz mais pesado. Os braços lhe doem. Não sabe o que é o que leva, mas sim que ocorrerá algo terrível se o deixar. Um mortiço fulgor lhe chama a atenção. Chega a uma habitação iluminada por uma única vela. Mitch está ali. sente-se muito feliz ao vê-lo. Também estão seus próprios pais, a quem só conheceu por fotografias. A marmita que leva em braços é um bebê que dorme. É dele. Sonriendo, sua mãe avança para tomar ao bebê. Ao Holly doem os braços, mas se aferra ao precioso vulto. Mitch diz: "nos dê o bebê, carinho. Tem que ficar conosco. Você não deveria estar aqui". Seus pais estão mortos, Mitch também, e ela sabe que se lhes entregar ao bebê, este já não estará simplesmente dormido. nega-se a lhes dar a seu filho e, então, de algum jeito, vê que sua mãe já o tem em braços. Seu pai apaga a vela de um sopro. Holly acordada e ouça o uivo de uma besta que, embora não é mais que o vento, de todas maneiras é uma besta. Martillea as paredes e sacode as vigas até fazer que caia pó delas. Um suave resplendor, que não é o de uma vela a não ser o de uma lanterna pequena, logo que alivia a escuridão em que esteve encerrada. Descobre as gigantescas óculos de esqui, os lábios esquartejados e os olhos azuis de um de seus carcereiros, precisamente o que a preocupa, que está agachado frente a ela. -Traga-te um chocolate -diz. O tende. Tem dedos largos e brancos, unhas roídas. Ao Holly desagrada tocar algo que ele haja meio doido. Dissimulando seu desagrado, aceita a barra de chocolate. -Todos dormem. É meu turno de guarda -deposita frente a ela uma lata perlada de gotas gélidas-. Você gosta da Pepsi? -Sim. Obrigado. -Conhece Chamisal, em Novo o México? Tem uma voz suave e musical. Quase poderia parecer a voz de uma mulher, mas não de tudo. -Chamisal? -pergunta ela-. Não. Nunca estive ali. -Tive experiências nesse lugar -diz ele-. Minha vida trocou. O vento ruge e algo parece tremer no teto, e ela eleva a vista, com a esperança de ver algo que possa recordar quando chegar o momento de atestar, de emprestar declaração para acusar a aqueles tipos. Levaram-na ali com os olhos enfaixados. Ao chegar, subiram por uns estreitos degraus. Acredita que possivelmente se encontre em um desvão. A metade do abajur da lanterna está coberta com cinta adesiva. O teto segue invisível, em penumbra. A luz só chega a mais próxima das paredes feita de pranchas nuas. Todo o resto se perde nas sombras. São cuidadosos. -Conhece Rio Lucio, em Novo o México? -pergunta ele. -Não. Tampouco estive aí. -Em Rio Lucio há uma casita de estuque, grafite de azul com vivos toques amarelos. por que não te come seu chocolate? -Me estou guardando isso para depois. -Quem de nós sabe quanto tempo fica? -inquire ele com arrepiante suavidade-. Desfruta agora que pode. Eu gosto de verte comer. Com relutância, tira-lhe o pacote à barra de chocolate. -Uma mulher Santa chamada Ermina Lavato vive na casa de estuque azul e amarelo de Rio Lucio. Tem setenta e dois anos. Ele acredita que afirmações como essas são uma conversação. Suas pausas sugerem que lhe parece óbvio que Holly deveria ter algo que lhe responder. Depois de tragar um pouco de chocolate, ela fala. -Ermina está aparentada contigo? -Não. É de origem hispana. Faz umas fajitas de frango deliciosas, em uma cozinha que parece saída da década de 1920. -Não sei cozinhar muito bem -diz Holly, incongruente. Ele tem o olhar cravado em sua boca, e quando lhe dá uma dentada ao chocolate, tem a impressão de estar levando a cabo um ato obsceno. -Ermina é muito pobre. A casa é muito pequena, mas formosa. Cada habitação está grafite de uma cor distinta, todas em tons relaxantes. Lhe crava o olhar na boca e lhe devolve o escrutínio, na medida em que os óculos o permitem. Tem os dentes amarelos. Os incisivos som afiados, os caninos extrañamente bicudos. -Há quarenta e duas imagens da Virgem María nas paredes do dormitório. Parece ter os lábios perpetuamente ressecados. Às vezes, quando não fala, mordisca-se os farrapos de pele que lhe penduram deles. -Na sala de estar há trinta e nove imagens do Sagrado Coração do Jesus, rasgado por espinhos. As gretas de seus lábios reluzem como se estivessem a ponto de supurar. -Enterrei um tesouro no pátio traseiro da Ermina Lavato. -Como presente para ela? -pergunta Holly. -Não. Ela não aprovaria que enterrasse o que enterrei. Bebe seu Pepsi. Ela não quer beber de uma lata que ele haja meio doido. Mas de todos os modos faz um esforço, abre-a e bebe um sorvo. -Conhece Penasco, em Novo o México? -Não viajei muito por Novo o México. Ele cala durante um momento e o vento aúlla em meio de seu silêncio. Quando ela traga Pepsi, o tipo baixa o olhar a sua garganta. -Minha vida trocou no Penasco. -Acreditava que isso tinha ocorrido no Chamisal. -Minha vida trocou muitas vezes em Novo o México. É um lugar de mudanças e de grandes mistérios. Pensando em algum uso que lhe poderia dar à lata do Pepsi, para seus planos, Holly a deixa a um lado com a intenção de não ter terminado de beberia quando ele parta. Com sorte, a deixará. -Agradariam-lhe Chamisal, Penasco, Te rodar, todos esses lugares belos e misteriosos. Ela pensa o que dirá antes de falar. -Espero viver o suficiente para chegar a conhecê-los. Ele a olhe aos olhos. Seus olhos são do azul de um céu sombrio que anuncia uma tormenta iminente, até em ausência de nuvens. Agora fala com a jovem com uma voz ainda mais suave do habitual, não sussurrando, a não ser com fica ternura. -Posso te dizer algo em confiança? Se a touca, gritará até que os outros despertem. Interpretando que sua expressão revela assentimento, prossegue. -Fomos cinco, mas só ficamos três. Não é o que ela se esperava. Embora fazê-lo-a perturba, sustenta-lhe o olhar. -Para não ter que repartir entre cinco, a não ser entre quatro, matamos ao Jason. Em seu interior, ela se encolhe quando lhe revela o nome. Não quer saber nomes nem ver caras. -E agora desapareceu Johnny Knox -diz-. Johnny se estava ocupando da vigilância e se esfumou. Os três que ficamos nunca falamos da possibilidade de repartir o bota de cano longo em menos de quatro partes. Nenhum o expôs. "Mitch", pensa ela em seguida. Fora, o tom do vento troca. Já não tábua delgada, mas sim sopra emitindo um grande sussurro, como se falasse lhe dizendo ao Holly que o prudente é permanecer em silêncio. -Os outros dois saíram a fazer coisas fora -continua ele-. Por separado e a distintas horas. Qualquer deles pôde ter matado ao Johnny. Para recompensá-lo por estas revelações, ela come mais chocolate. -Possivelmente tenham decidido reparti-lo entre os dois. Ou talvez um deles queira ficar contudo -diz, olhando agora a boca da mulher. Para que não pareça que quer semear a discórdia, ela trata de acalmá-lo. -Não fariam isso. -São capazes. Conhece Vallecito, em Novo o México? -Não. -É austero -diz ele-. Muitos desses lugares são austeros, mas formosos. Minha vida trocou no Vallecito. -No que trocou? Não responde à pergunta. -Deveria ver As Armadilhas, em Novo o México, sob a neve. Um punhado de construções humildes, campos brancos, colinas baixas que o chaparral sombreia, um céu tão branco como os campos. -É todo um poeta -diz ela, e crie pela metade. -Não há cassinos em Las Vegas, Novo o México. Há vida e há mistério. Suas brancas mãos se unem, em um gesto que não é de contemplação, nem, por certo, de prece. É como se ambas tivessem consciências independentes e lhes agradasse a tocar-se uma à outra. -Em Rio Lucio, Eloisa Sandoval tem um santuário dedicado ao Santo Antonio em sua pequena cozinha de paredes de tijolo cru. Doze imagens de cerâmica dispostas em fileira, uma por cada um de seus filhos e netos. Acende velas cada noite, na hora das vésperas. Ela tem a esperança de que faça novas revelações sobre seus sócios, mas sabe que deve demonstrar um discreto interesse por tudo o que diz. -Ernesto Sandoval anda em um Chevy Empala do 64, com gigantescos elos de aço a modo de volante, um salpicadero pintado feito a medida e o teto estofado de veludo vermelho. Os largos dedos com gemas em forma de espátula se acariciam uns aos outros. acariciam-se e voltam a acariciar-se. -Ao Ernest interessam os Santos com os que sua piedosa esposa não está familiarizada. E conhece... lugares assombrosos. Ao Holly, o chocolate começou a lhe resultar enjoativo, a pegar-se o à garganta, mas lhe dá outra dentada. -Em Novo o México moram espíritos antigos. Estão ali desde antes de que existisse o gênero humano. É uma buscadora da verdade? Não lhe entende, mas é melhor fingir que sim, sem exageros. Se ela o respirar muito, ele não acreditará em sua sinceridade. -Acredito que não o sou especialmente. Às vezes, todos sentimos que... falta-nos algo. Mas isso ocorre a todos. Assim é a natureza humana. -Vejo uma buscadora em ti, Holly Rafferty. Uma diminuta semente de espírito lista para florescer. Seus olhos são claros como um arroio limpo, mas os sedimentos de seu fundo ocultam estranhas formas que ela não sabe identificar. -Temo-me que vê em mim mais do que há. Não estou acostumado a pensar em coisas profundas -diz, baixando o olhar, recatada. -O segredo é não pensar. Pensamos em palavras. E o que subjaze à realidade que vemos é uma verdade que as palavras não podem conter. O segredo é sentir. -Vê, para ti esse é um conceito simples, mas inclusive isso é muito profundo para mim -ri interiormente de si mesmo-. Minha maior aspiração é me dedicar a os bens raízes. -Subestima-te -assegura-lhe ele-. Em seu interior há possibilidades enormes. Suas grandes bonecas ossudas e suas largas mãos pálidas são totalmente imberbes, por natureza ou porque usa nata depilatória.

 

Mitch, ameaçado pelos trasgos do vento, que apareciam à aberto guichê do lado do condutor, passou frente à casa do Anson em Coroa do Mar. O vento tinha feito cair grandes floresça de um branco cremoso da grande magnólia, as empilhando frente à porta de entrada. A tênue luz que permanecia acesa toda a noite as iluminava. Fora disso, a casa estava às escuras. Não acreditava que Anson se foi a casa para dormir alegremente nada mais matar a seus pais. Devia andar por aí, fazendo algo. O Funda do Mitch já não estava estacionado frente ao meio-fio onde o tinha deixado quando chegou ali a outra vez, seguindo as instruções dos seqüestradores. Estacionou na rua seguinte, terminou-se o tablete do Hershey, fechou o guichê e jogou a chave às portas do Chrysler Windsor. Por desgraça, chamava a atenção entre os veículos contemporâneos que o rodeavam. Sua antiquada majestade contrastava com os outros, que pareciam saídos de um videojuego. Mitch caminhou até o beco ao que dava a garagem do Anson. viam-se luzes acesas em todo o primeiro piso da parte traseira do encostado, localizada-se em cima das garagens para dois veículos. Possivelmente haja pessoas cujo trabalho as mantém ocupadas até passadas as três da madrugada. Ou talvez sofram de insônia. De pé no beco, Mitch separou as pernas, plantando-se para resistir o embate do vento. Estudou as janelas do primeiro piso, que tinham as corridas cortinas. Do ocorrido na biblioteca do Campbell, tinha entrado em uma nova dimensão da realidade. Agora via as coisas com mais claridade que desde sua perspectiva anterior. Se Anson tinha oito milhões de dólares e um iate que já tinha terminado de pagar, era provável que fosse dono das duas partes do endoideci encostado, não de uma, como dizia. Vivia na unidade dianteira e empregava a traseira como escritório em que aplicava a teoria lingüística ao desenho de programas de ordenador, ou o que em realidade fizesse para enriquecer-se. Quem trabalhava de noite detrás dessas janelas com cortinas fechadas não era um vizinho. O próprio Anson estava ali, curvado frente a um ordenador. Talvez estava planejando uma travessia que o levaria, com seu iate, a um refúgio situado além da autoridade de toda lei. Um postigo de serviço dava a um estreito atalho peatonal que corria junto à garagem. Mitch o seguiu até o átrio de tijolo que separava ambas as partes do edifício. As luzes desse pátio estavam apagadas. Viçosos canteiros rodeavam o átrio, no que havia nandinas e samambaias, entre os que destacavam as notas vermelhas que proporcionavam as flores de bromelias e anturios. As casas que havia atrás e diante, as altas cercas laterais e as moradias vizinhas que se amontoavam em seus estreitos terrenos bloqueavam o vento. Este, em uma versão mais suave, mas que ainda levantava repentinos redemoinhos, deslizava-se pelo pendente do teto e dançava com as novelo do pátio em lugar das açoitar. Mitch se deslizou sob os ramos abovedadas de um helécho arborescente da Tasmania, que se balançava e tremia. ficou ali, de cuclillas, escrutinando o pátio. Esse dossel de amplas folhagens, como de encaixe, subia e baixava, subia e baixava, mas sem chegar nunca a ocultar do todo o pátio. Se se mantinha alerta, não podia deixar de ver alguém que acontecesse a parte traseira à dianteira. Refugiado sob a taça do helécho arborescente, percebeu o rico aroma da terra negra, um fertilizante inorgânico, e o aroma vagamente almiscarado do musgo. Ao princípio, isto o confortou, pois lhe recordava a época em que a vida era mais simples, fazia dezesseis horas. Mas ao cabo de uns poucos minutos, a mescla de fragrâncias lhe trouxe para a mente o aroma do sangue. No endoideci se localizado por cima da garagem se apagaram as luzes. Uma porta se fechou de repente, ajudada, talvez, pela tormenta de vento. O coro de vozes do ar não cobriu do todo o retumbar de uns pesados passos que descendiam a toda pressa pelas escadas exteriores que levavam a átrio. Entre os ramos, Mitch viu uma silhueta ursina que cruzava o pátio de tijolos. Anson não se deu conta de que seu irmão estava detrás dele e ia aproximando, e lançou um grito afogado quando o Taser lhe paralisou o sistema nervoso. Anson se cambaleou para diante, procurando manter-se em pé, e Mitch se manteve perto dele. O Taser lhe deu outro recado de muitos volts. Anson beijou os tijolos. Rodou até ficar de barriga para cima. Seu fornido corpo se estremecia. Seus braços se agitavam em um movimento brando. A cabeça rodava de um lado a outro e emitia sons que sugeriam que possivelmente corresse perigo de tragá-la língua. Mitch não queria que Anson se tragasse a língua, mas tampouco estava disposto a fazer nada para impedi-lo.

 

Apocalípticas aves generadoras de vento batiam suas asas contra os muros, e a escuridão mesma parecia vibrar. As mãos imberbes, brancas como pombas, seguem a acariciando-se uma à outra entre o fulgor mortiço da lanterna com o abajur ao meio tampar. A suave voz lhe segue falando. -No Vale, em Novo o México, há um cemitério onde estranha vez cortam a grama. Algumas tumbas têm lápides, outras não. Holly se termina o chocolate. Sente desejos de vomitar. A boca lhe tem sabor de sangue. Usa Pepsi para enxaguar-lhe   -Me encantaron las que estaban pintadas de color pastel, de azul como un huevo de petirrojo, de verde pálido, del amarillo de los girasoles marchitos. -Umas poucas tumbas que não têm lápides estão rodeadas de pequenas paliçadas feitas de pranchas de velhas gavetas de fruta e hortaliças. Tudo isto leva a algum lado, mas os pensamentos do homem circulam por caminhos neuronales que só poderiam ser previstas por uma mente tão retorcida como a dela. -eu adorei as que estavam pintadas de cor bolo, de azul como um ovo de petirrojo, de verde pálido, do amarelo dos girassóis murchos. Apesar dos escuros enigmas que jazem por debaixo de sua suave cor, nesse momento, ao Holly repugnam menos os olhos do homem que suas mãos. -Sob a lua crescente, horas depois de que uma nova tumba fosse fechada, fomos com pás. Abrimos o ataúde de madeira de uma menina. -O amarelo dos girassóis murchos -repete Holly, procurando encher sua mente com essa cor como defesa contra a imagem de uma menina em um ataúde. -Tinha oito anos e a levou o câncer. Enterraram-na com uma medalha de são Cristóbal na mão esquerda e uma figura de porcelana de Cinzenta na direita, porque adorava esse conto. Os girassóis não bastam e, no olho de sua mente, Holly vê as manitas que se aferram ao santo protetor e à promessa que representa a menina pobre que chegou a princesa. -Estes objetos, por ter acontecido umas horas na tumba de uma inocente, adquiriram um grande poder. A morte os lavou e os espíritos os poliram. quanto mais o olhe aos olhos, menos familiares lhe parecem. -Tiramo-lhe a medalha e a estatueta e as substituímos por... outros artigos. Uma mão branca se desvanece no bolso da jaqueta negra do homem. Quando reaparece, sujeita uma medalha de são Cristóbal por sua cadeia de prata. -Aqui está. Toma-a. Não a repele que o objeto provenha de uma tumba, mas sim a ofende que tenha sido roubado da mão de uma menina morta. Aqui ocorre algo mais do que ele expressa com palavras. Há uma mensagem oculta que Holly não entende. Intui que rechaçar a medalha com qualquer argumento teria conseqüências terríveis. Tende a mão direita e ele deixa cair ali a medalha. A cadeia se o enrosca na mão formando caprichosos laços. -Conhece Espanhola, em Novo o México? Fecha a mão em torno da medalha e responde. -É outro dos lugares cujo encanto me perdi. -Minha vida trocou ali -revela ele, recolhendo a lanterna e ficando de pé. Deixa-a em uma escuridão negra como o peixe, com a meia lata do Pepsi, que tinha suposto que ele se levaria. Sua intenção é, ou foi, esmagar a lata e fazer uma alavanca em miniatura para trabalhar com ela no teimado prego. A medalha de são Cristóbal funcionará melhor. Fundida em bronze e recubierta de prata ou de níquel, é muito mais resistente que o brando alumínio do bote de refresco. A visita de seu carcereiro transformou a qualidade desse espaço sem luz. Antes, era uma escuridão solitária. Agora, Holly imagina que está habitada por ratos e baratas e por legiões de coisas horrendas que se arrastam.

 

Anson se derrubou pesadamente frente à porta traseira e o vento pareceu prorromper em vítores ao vê-lo cair. Como um peixe fora da água, estremecia-se em constantes espasmos. Agitava as mãos, golpeando-os nódulos nos tijolos. Olhava ao Mitch com a boca muito aberta, movendo-a como se tratasse de lhe falar. Talvez procurasse gritar de dor. Quão único surgia era um fino chiado, um mero fio de som, como se o esôfago lhe tivesse contraído até ter o diâmetro de um alfinete. Mitch empurrou a porta. Não estava fechada com chave. Abriu-a e entrou na cozinha. As luzes estavam apagadas. Não as acendeu. Não estava seguro de quanto tempo durariam os efeitos da descarga elétrica. Esperando que fosse, pelo menos, um minuto ou dois, pôs o Taser sobre uma encimera e retornou à porta aberta. Receoso, tomou ao Anson dos tornozelos. Seu irmão não estava em condições de tentar resistir, de lhe lançar patadas. Mitch o arrastou até o interior da casa e deu um coice quando a cabeça do Anson ricocheteou ao passar sobre a alta soleira. Fechou a porta e acendeu as luzes. As persianas estavam fechadas, como o tinham estado quando Anson e ele receberam a chamada dos seqüestradores. A panela de zuppa massaia seguia na cozinha, fria, mas ainda fragrante. Havia um tanque junto à cozinha. O foi ver, confirmando que era tal qual o recordava, pequeno e sem janelas. As quatro cadeiras dispostas em torno da mesa da cozinha eram de um elegante estilo retro, de aço inoxidável e vinil vermelho. Levou uma ao tanque. No chão, abraçando-se como se se estivesse congelando, embora o mais provável fora que o fizesse para tratar de controlar os agora menos espetaculares, mas ainda contínuos, espasmos musculares, Anson emitia os lastimeros sons próprios de um cão dolorido. Seu sofrimento podia ser real, mas também fingido. Mitch se manteve a uma distância prudente. Tomou o Taser, levou-se a mão à cintura e tirou a pistola que se colocou no cinto. -Anson, quero que rode até ficar de barriga para baixo. A cabeça de seu irmão se meneou de um lado a outro, possivelmente em forma involuntária, mais que negando. A idéia da vingança tinha sido, a seu modo, parecida com a euforia que produz às vezes ingerir açúcar. Em realidade, não tinha nada de doce. -me escute. Quero que ponha de bruces e te arraste como melhor possa até o tanque. Anson babava por uma comissura da boca. Seu queixo reluzia. -Estou-te dando a oportunidade de fazê-lo pelas boas. Anson parecia desorientado. Não dava a impressão de poder controlar seu próprio corpo com facilidade. Mitch se perguntou se suas duas descargas do Taser em rápida sucessão, a segunda, talvez, muito prolongada, podiam-lhe ter causado um dano permanente. Anson parecia algo mais que aturdido. A queda desse grande homem podia ter contido um elemento de grandeza, de tragédia, se se tivesse produzido de um lugar alto. Mas se tinha precipitado de um poço a uma sima mais funda, sem grandeza alguma. Mitch o acossou, repetindo uma e outra vez as mesmas ordens. -Maldita seja, Anson, se devo fazê-lo, darei-te outra descarga e te arrastarei pelas más. A porta traseira deu uns golpes, distraindo ao Mitch. Mas quem provava o fecho só era a forte emano do vento. Uma rajada mais forte que as anteriores tinha tido a ousadia de entrar até o interior do protegido pátio. Quando voltou a olhar ao Anson, viu uma evidente conscientiza nos olhos de seu irmão, uma expressão aguda e calculadora que se desvaneceu imediatamente, transformando-se uma vez mais em um olhar de desorientação. Anson pôs os olhos em branco. Mitch aguardou meio minuto. Logo, aproximou-se rapidamente a seu irmão. Anson se deu conta de que lhe aproximava e, acreditando que voltaria a lhe aplicar o Taser, sentou-se para bloqueá-lo e apoderar-se dele. Mas o que fez Mitch foi disparar um tiro, que falhou intencionadamente, embora não por muito. Ante a detonação da pistola, Anson, surpreso, tornou-se bruscamente para trás e Mitch lhe estrelou a pistola contra um lado da cabeça, com força suficiente como para que lhe doesse de verdade. O golpe também resultou ser o bastante forte para deixá-lo inconsciente. A idéia tinha sido ganhá-la cooperação do Anson, convencendo o de que o Mitch com quem tratava agora não era o mesmo de antes. Mas isto também funcionava.

 

"Não me pesa, é meu irmão", diz a canção. Mentira. Anson era irmão do Mitch, e lhe pesava. Arrastá-lo pelo gentil chão de madeira da cozinha até o tanque resultou ser mais difícil do que esperava. Içá-lo para que ficasse sentado na cadeira foi quase impossível, mas o obteve. O painel estofado do respaldo da cadeira estava colocado entre duas barras de aço verticais. Entre cada um dos lados do painel e aquelas ficava um espaço aberto. Colocou as mãos do Anson por essas brechas. Com as mesmas algemas que pusessem a ele fazia umas horas, aprisionou as bonecas do Anson por detrás da cadeira. Em uma gaveta de ferramentas encontrou três cabos alargadores. Um deles, grosso e de cor laranja, tinha uns doze metros de comprimento. Depois de fazê-lo passar entre as patas e as barras do respaldo da cadeira, Mitch o amarrou em torno da máquina de lavar roupa. O cabo, revestido de borracha, era muito menos flexível que uma soga e não se podiam rodear muito seus nós, de modo que Mitch os fez triplos. Embora Anson conseguisse incorporar-se pela metade, teria que levá-la cadeira consigo. Ancorado à máquina de lavar roupa, não tinha maneira de mover-se. O golpe da pistola lhe tinha aberto um corte na orelha. Sangrava, mas não muito. Seu pulso era lento, mas regular. Talvez não demorasse para recuperar a consciência. Deixando acesa a luz cenital, Mitch subiu ao dormitório principal. Ali, encontrou o que esperava, duas lamparinas para iluminação noturna, ambas apagadas, conectadas às tomadas da parede. De menino, Anson sempre dormia com uma tênue luz acesa. Tinha começado a usar lamparinas como essas em sua adolescência. Em todas as habitações da casa guardava, como prevenção ante um possível corte de energia, lanternas, cujas pilhas renovava quatro vezes ao ano. Mitch baixou e jogou uma olhada ao tanque. Anson seguia inconsciente em sua cadeira. O irmão menor registrou as gavetas da cozinha até dar com o lugar onde Anson guardava suas chaves. Tomou uma da casa. Também outras três, correspondentes a outros tantos carros, e entre eles, sua Funda, e abandonou a casa pela porta traseira. Duvidava que os vizinhos tivessem ouvido o disparo. E embora tivesse sido assim, o estrépito e os alaridos do vento que guerreava consigo mesmo teriam feito difícil que o reconhecessem como o que era. Assim e tudo, sentiu-se aliviado ao ver que não havia luz nas casas vizinhas. Subiu pelas escadas que levavam a seção do encostado se localizada por cima das garagens e estudou a porta. Estava fechada com chave. Tal como esperava, a chave da casa do Anson também abria esta. Dentro, encontrou o escritório do Anson, instalada no lugar previsto para sala de estar e comilão. Nas paredes, quadros com motivos náuticos, alguns dos mesmos artistas cujas obras se viam na outra seção do imóvel. Havia uma única cadeira giratória frente a quatro ordenadores. O tamanho de suas unidades de processamento, muito maior que o que se vê habitualmente em ordenadores caseiros, fazia supor que seu trabalho requeria de cálculos simultâneos a alta velocidade e de uma imensa capacidade de armazenamento de dados. Mitch não era nenhum gênio da informática. Não se fazia iluda com respeito a sua capacidade para iniciar estas máquinas, se é que "iniciar" era um término que seguisse em uso, e descobrir a natureza do trabalho que tinha enriquecido a seu irmão. Além disso, Anson devia ter barreiras e mais barreiras de contra-senhas e procedimentos de segurança para manter a raia aos piratas informáticos. Sempre lhe fascinaram elaborado-los códigos e simbolismos ocultos dos mapas que os piratas riscavam para indicar onde tinham sepultados seus tesouros nos contos que tanto lhe agradavam em sua infância. Mitch saiu, fechou com chave e baixou até a primeira garagem. Ali encontrou o Expedition que tinham usado para ir ao imóvel do Campbell em Rancho Santa Fé e o Buick Super Woody de 1947. Na outra garagem para dois carros havia uma praça vazia. junto a ele estava estacionado o Funda que Mitch deixasse na rua. Possivelmente Anson o tivesse deixado aí detrás conduzi-lo até o Orange para agarrar duas das ferramentas de jardinagem do Mitch, além de algumas de seus objetos, e logo seguir caminho até a casa de seus pais e assassiná-los. Depois, teria retornado a casa do Mitch para pôr ali as falsas provas. Mitch abriu o porta-malas. O corpo do John Knox seguia nele, envolto na alhada lona de plástico. O acidente no mezanino parecia ter ocorrido fazia muito tempo, em outra vida. Retornou ao primeira garagem, pôs em marcha o Expedition e o transladou à praça vazia da segunda garagem. Depois, levou sua Funda ao lugar que tinha ficado livre ao lado à caminhonete Buick. Fechou a grande porta levadiça da garagem. A contra gosto, brigou até tirar o recalcitrante cadáver do porta-malas do Funda. Quando ficou sobre o chão da garagem, fez-o rodar até que esteve fora de a lona. Ainda não tinha começado a apodrecer-se de verdade. Entretanto, o morto emitia um sinistro aroma agridoce do que Mitch ansiava afastar-se. O vento gemia nos altos ventanucos da garagem, como se gostasse do macabro e tivesse vindo de um lugar muito longínquo para ver como Mitch levava a cabo sua atroz tarefa. Pensou que isto de arrastar corpos daqui para lá devia ter algo de cômico, de farsa, em especial se se tinha em conta que Knox estava rígido pelo rigor mortis e que era endiabladamente difícil de dirigir. Mas nesse momento carecia por completo de senso de humor. Uma vez que carregou ao Knox na caminhonete Buick, cuja porta traseira fechou, pregou a lona e a meteu no porta-malas do Funda. Chegado o momento, deixaria-a em um contêiner de lixo ou no cubo de desperdícios de algum desconhecido. Não recordava ter estado tão exausto nunca; nem no físico, nem no mental, nem no emocional. Os olhos lhe ardiam, suas articulações pareciam a ponto de desfazer-se, e sentia que tinha os músculos recocidos, tão brandos para desprender-se de um momento a outro dos ossos. Possivelmente o que impedia que sua maquinaria se detivesse fossem o açúcar e a cafeína da barra de chocolate Hershey. Também o impulsionava o medo. Mas o que verdadeiramente mantinha suas engrenagens em movimento era a idéia de que Holly estava em mãos de uns monstros. "Até que a morte nos separe", era o compromisso que tinha adquirido ao formular seus votos matrimoniais. Mas Mitch não ficaria relevado deles se sua mulher morria. O compromisso perduraria. Passaria o que ficasse de vida em uma paciente espera. Foi pelo caminho peatonal até a rua, retornou ao Chrysler Windsor e o conduziu até a segunda garagem. Estacionou-o junto ao Expedition e fechou a porta levadiça. Consultou seu relógio de pulso e viu que eram as 4.09. Em hora e meia, talvez algo mais, ou algo menos, o furioso vento do este traria consigo o alvorada. Como a atmosfera estava saturada de pó, a primeira luz seria de uma cor rosa que não demoraria para esfumar-se pelo firmamento, adotando um matiz mais definido antes de perder-se no mar. Desde que conhecesse o Holly, saudava cada novo dia com grandes esperança. Esta seria um alvorada diferente. Retornou à casa e se encontrou com que Anson estava acordado. E zangado

 

Ao coagular-se, o sangue lhe tinha fechado o corte da orelha esquerda, e o calor de seu corpo ia secando rapidamente a que lhe tinha jorrado pela bochecha e o pescoço. Sua ursina atitude mostrava uns rasgos mais afiados, como se um contágio genético tivesse introduzido grandes quantidades de DNA de lobo em seu rosto. Anson, com as mandíbulas tão apertadas que lhe esticavam os músculos faciais, com uma raiva que transbordava como lava de seus olhos, permanecia em um furioso silêncio. Aqui, o som do vento não era muito forte. Um conduto de ventilação transmitia os suspiros e sussurros do exterior à secadora, fazendo parecer que um alma em pena enfeitiçava a máquina. Mitch falou. -Me vais ajudar a recuperar ao Holly com vida. Anson não assentiu nem negou, mas sim se limitou a fulminá-lo com o olhar. Paradoxalmente, Anson, pacote à cadeira, imobilizado, parecia maior que antes. As ataduras realçavam sua força física e dava a impressão de que, como um personagem mitológico, seria capaz de cortar suas amarras como se fossem débeis cordas quando alcançasse o cenit de sua raiva. Durante a ausência do Mitch, Anson tinha dedicado todas suas forças a tratar de soltar a cadeira da máquina de lavar roupa. As patas de aço da cadeira tinham raspado e tamborilado o piso de ladrilhos, lhe deixando cicatrizes que revelavam a intensidade de seu infrutífero esforço. Além disso, tinha deslocado a máquina de lavar roupa, que já não estava alinhada com o secador. -Disse que podia reunir o dinheiro por telefone, por ordenador -recordou-lhe Mitch-, em três horas, como muito. Anson cuspiu no chão, entre ambos. -Se tiver oito milhões, pode te permitir pagar dois pelo Holly. Uma vez que o faça, você e eu não nos voltaremos a ver. Poderá retornar ao esgoto que é essa vida que te construiu. Se Anson descobria que Mitch sabia que Daniel e Kathy estavam mortos na quarta de aprendizagem não haveria maneira de forçá-lo a cooperar. Acreditaria que Mitch já teria se desfeito das provas fabricadas, fazendo assim que os olhos da lei se dirigissem ao verdadeiro culpado. Enquanto acreditasse que Mitch ainda não sabia nada dos assassinatos, era possível que albergasse a esperança de que, em algum momento, a cooperação o levasse a cometer um engano que investisse suas respectivas posições. -Campbell não te deixou partir-disse Anson. -Não. -Então, como...? -Matei a esses dois. -Você? -Agora, terei que viver com isso. -Matou ao Vosky e a Acreditem? -Não sei quais eram seus nomes. -Os que te acabo de dizer. -É por sua culpa -disse Mitch. -Você matou ao Vosky e Acreditem? Não me termino isso de acreditar. -Então, será que Campbell me deixou ir. -Campbell nunca te tivesse deixado ir. -Crie o que queira. Franzindo o cenho, Anson o estudou com olhar azedo. -De onde tirou o Taser? -Do Vosky e Acreditem -mentiu Mitch. -Assim foi questão de tirar-lhe e nada mais? -Já lhe disse isso. O tirei tudo, inclusive a vida. Agora te darei umas horas para que pense. -Pode te levar o dinheiro. -O que deve pensar não é isso. -Lhe pode levar isso, mas baixo certas condições. -Você não põe as regras -disse-lhe Mitch. -Os dois milhões são meus. -Não. Agora são meus. Me ganhei. -te tranqüilize, de acordo? -Se você fosse eles, primeiro lhe a follarías. -Né, isso foi só algo que disse por dizer. -Se você fosse eles, primeiro lhe a follarías e depois a mataria. -Foi só por dizer algo. Em qualquer caso, eu não sou eles. -Não, não é eles. É quem os cruzou em nosso caminho. -Equivoca-te. As coisas ocorrem. Simplesmente ocorrem. -Se não fora por ti, não me estariam ocorrendo . -Se quer vê-lo assim, assim o verá. -No que deve pensar é em quem sou agora. -Quer que pense em quem é você? -terminou-se o de fratello piccolo. Entende? Né? -Mas ainda é meu irmão menor. -Se me considerar baixo esse aspecto, dirá ou fará alguma estupidez com a que me tivesse enganado antes. Mas não agora. -Se chegarmos a um acordo, não tentarei nada. -O trato já está fechado. -me dê alguma margem de ação. -Tanto como para que me mate? -Como vai funcionar nenhum acordo sem sequer um pouco de confiança? -te limite a ficar onde está e pensa em que fácil me resultaria te matar. Mitch apagou as luzes e cruzou a soleira. Do tanque sem iluminação nem janelas, Anson seguiu insistindo. -O que está fazendo? -Estou-te proporcionando o melhor dos ambientes de aprendizagem -disse Mitch, e fechou a porta. -Mickey! -chamou Anson. "Mickey". depois de todo o ocorrido lhe chamava "Mickey". -Mickey, não me faça isto. Mitch se lavou as mãos na pia da cozinha, usando muito sabão e água quente. Tratava de eliminar a lembrança tateante do corpo do John Knox, que sentia na pele. Tirou um pacote de fatias de queijo e um frasco de mostarda da geladeira. Encontrou uma fogaça de pão e se fez um sanduíche. -Ouço-te, Mickey -ouviu dizer ao Anson do tanque-. O que faz? Mitch pôs o sanduíche sobre um prato e lhe acrescentou embutidos. Logo tirou uma garrafa de cerveja da geladeira. -Do que serve isto, Mickey? Já chegamos a um acordo. Isto não serve para nada. Mitch encaixou uma cadeira de cozinha inclinada sob o pomo da porta do tanque, bloqueando-a. -O que é isso? -perguntou Anson-. O que ocorre? Mitch apagou as luzes da cozinha e foi ao dormitório de seu irmão. Depois de deixar a pistola e o Taser sobre a mesinha, sentou-se na cama, com as costas contra a cabeceira estofada. Não pregou o cobertor de seda acolchoada. Não se tirou os sapatos. Depois de comer o sanduíche e bebê-la cerveja, programou a radio-despertador para as oito e meia da manhã. Queria que Anson tivesse tempo para pensar, mas o principal motivo dessa pausa de quatro horas era que o esgotamento lhe embotava a mente. Precisava ter a cabeça limpa para confrontar o que viria. O vento que rugia no teto e golpeava as janelas com a voz selvagem de uma turfa enlouquecida parecia burlar-se dele, lhe prometer que todos seus planos terminariam no caos. O que soprava era o Santa Ana, o vento seco que despoja de toda umidade a vegetação dos canhões em torno dos quais se elevam tantas comunidades do sul de Califórnia, convertendo sua densa folhagem em pura isca. Se um pirómano jogava ali um trapo aceso ou alguém recorria a um acendedor ou usava fósforos, os telejornais falariam do gigantesco incêndio durante dias. As cortinas estavam corridas e, quando apagou o abajur, um manto de escuridão caiu sobre ele. Não usou nenhuma das lamparinas do Anson. O adorável rosto do Holly apareceu em sua mente e Mitch falou em voz alta. -Deus, por favor, me dê a força e a sabedoria que necessito para ajudá-la. Era a primeira vez em sua vida que lhe falava com Deus. Não lhe prometeu ser piedoso nem caridoso. Não lhe parecia que as coisas funcionassem assim. Não se podem fazer entendimentos com Deus. O dia mais importante de sua vida estava a ponto de amanhecer e não acreditava que pudesse dormir. Mas o fez.

 

O prego segue esperando. Holly está sentada na escuridão, escutando o vento, acariciando a medalha de são Cristóbal. Deixa a um lado a lata do Pepsi, sem beber a metade que ainda fica. Não quer voltar a usar a bacinilla, ao menos enquanto o filho de puta que esteja de guarda seja o das mãos imberbes. A idéia de que ele esvazie e limpe seu bacinilla lhe dá calafrios. O solo feito de lhe pedir que o faça criaria entre eles uma intimidade intolerável. Enquanto acaricia a medalha com a mão esquerda, leva-se a direita ao ventre. A cintura é estreita, o abdômen, plano. Em seu interior, o menino cresce em secreto, tão íntimo como um sonho. Dizem que se as mulheres grávidas ouvirem música clássica o bebê nascerá com um coeficiente de inteligência mais alto. Durante sua infância chorará menos e estará mais contente. Talvez seja verdade. A vida é complexa e misteriosa. Causa e efeito não sempre são evidentes. Os físicos quânticos asseguram que, às vezes, o efeito vem antes da causa. Ela viu um documentário a respeito no Discovery Channel. Não entendeu muito; e os cientistas que descreviam os diversos fenômenos admitiam que não podiam explicá-los, só observá-los. Move a mão riscando lentos círculos sobre seu ventre, pensando que bom, que doce seria que o bebê fizesse algum movimento que ela pudesse sentir. Claro que nesta etapa não é mais que um punhado de células, incapaz ainda de dizer "olá, mami" com uma patada. Entretanto, inclusive agora, todo seu potencial está aí, presente. Há uma diminuta pessoa na concha que é ela, como uma pérola que se fora formando pouco a pouco no interior de uma ostra. Tudo o que ela faça afetará ao pequeno inquilino. acabou-se o vinho com o jantar. Deve reduzir quanto possa o café. Fazer exercício, com perseverança e sensatez. Evitar que voltem a seqüestrá-la. Suas gemas apalpam às cegas a imagem de são Cristóbal, patrono dos meninos, o que a leva a pensar outra vez no prego. Talvez está sendo irracional e leva muito longe todo aquilo de que os bebês aprendem no ventre. Entretanto, parece-lhe que se, grávida como está, colocasse a algum o prego na carótida, ou no olho, para chegar ao cérebro, o incidente não deixaria de afetar ao bebê. Sempre segundo Discovery Channel, as emoções extremamente intensas fazem que o cérebro dê a ordem de liberar no sangue verdadeiros correntes de hormônios ou outros produtos químicos. Poderia dizer-se que o frenesi homicida é uma emoção forte. Se muita cafeína no sangue pode pôr em risco ao menino que está por nascer, torrentes de enzimas de mamãe assassina não devem ser recomendáveis. Claro que tem a intenção de usar o prego contra um tipo mau, mau de verdade. Mas o bebê não tem forma de saber que a vítima não era um bom tipo. Tampouco é que o bebê vá nascer com tendências homicidas por um único incidente violento de defesa própria. Mesmo assim, Holly pensa muito sobre o prego e sua utilidade. Talvez essa preocupação irracional seja um mero sintoma de preñez, como as náuseas matinais, que ainda não chegaram, ou como os desejos de sorvete de chocolate. A prudência também desempenha um papel em suas reflexões sobre o prego. Quando um deve lutar com pessoas como as que a seqüestraram, o melhor é não as atacar se não se tiver a certeza de que a manobra terá êxito. Se a gente tratar de lhe colocar a alguém um prego no olho e, em troca, o crava no nariz, verá-se enfrentado a um psicopata criminal com o nariz machucado e furioso. E isso não é bom. Segue acariciando a medalha de são Cristóbal, avaliando os prós e contra de lutar contra cruéis pistoleiros com um prego de sete centímetros, e nada mais, quando o representante do escritório de turismo de novo o México retorna. agacha-se frente a ela e deixa a lanterna no chão. -Você gosta do medalhão -diz. Parece lhe agradar que ela o passe entre os dedos como se fora um rosário ou um amuleto. O instinto lhe diz que siga a corrente a suas estranhas inclinações. -Produz-me uma sensação... interessante. -A menina do ataúde vestia um singelo vestido branco com puntillas trocas costuradas ao pescoço e os punhos. Parecia muito tranqüila. À força de mordiscar, arrancou-se todos os peles pendentes de seus lábios ressecados. Estão salpicados de vermelho e parecem irritados, inflamados. -Tinha gardênias no cabelo. Quando abrimos a tampa, o perfume concentrado das gardênias era intenso. Holly fecha os olhos para não olhar os dele. -Levamos o medalhão e a estatueta de Cinzenta a um lugar perto de Anjo Fire, em Novo o México, onde há um vórtice. É evidente que supõe que ela sabe o que quer dizer com isso de "vórtice". Sua suave voz se volta ainda mais suave, triste, quase. -Matei-os aos dois enquanto dormiam. Durante um momento, ela supõe que esta afirmação tem que ver com o vórtice do Angel Fire, Novo o México, e trata de lhe dar sentido à frase nesse contexto. Quando cai na conta da que se refere, abre os olhos. -Fingiam não ter nem idéia do que ocorreu com o John Knox, mas ao menos um deles devia sabê-lo. Provavelmente, ambos soubessem. Na habitação contigüa há dois homens mortos. Não ouviu disparos. Possivelmente os degolou. Pode imaginar-se suas pálidas mãos imberbes dirigindo uma navalha barbera com a graça de um prestidigitador quando faz rodar uma moeda entre seus nódulos. Holly já se acostumou ao grilhão que lhe captura o tornozelo, à cadeia que a ata a uma argola embutida no chão. de repente, volta a tomar aguda consciência de que não só está encarcerada em uma habitação sem janelas, mas também só pode deslocar-se por ela tanto como o permite a cadeia. -Eu tivesse sido o próximo e se teriam repartido o resgate entre os dois. Cinco pessoas planejaram seu seqüestro. Só fica uma. Se ele a touca, não haverá ninguém que responda a seus gritos. Estão juntos e a sós. -E agora o que ocorre? -pergunta ela, e em seguida se arrepende de havê-lo feito. -Falarei com seu marido a meio-dia, como ficamos. Para essa hora, Anson já teria conseguido o dinheiro. Desde aí em adiante, depende de ti. Ela fica ruminando essa resposta, mas é um limão seco do que não pode extrair suco algum. -A que te refere? Mas não responde, segue com suas estranhas lembranças. -Em agosto, como parte de uma celebração da igreja, uma pequena feira itinerante vai ao Penasco, em Novo o México. Ela tem a louca sensação de que se lhe arrancasse os óculos de esqui, descobriria que esse rosto não tem mais facções que os olhos azuis e a boca de dentes amarelos e lábios esquartejados, que não haveria sobrancelhas, nariz, nem orelhas, a não ser só uma pele tersa e uniforme, como de vinil branco. -Apenas uma noria e outras poucas coisas nas que subir, além de uns poucos jogos... E, o ano passado, uma adivinha. Suas mãos se elevam e se movem para riscar o contorno da roda da fortuna, mas não demoram para posar-se sobre suas coxas. -A adivinha se faz chamar Madame Tiresias, mas, é obvio, não é seu verdadeiro nome. Holly aperta o medalhão com tanta força que os nódulos lhe fazem mal e a efígie em relevo do santo lhe grava na palma da mão. -o do Madame Tiresias é puro engano, mas o curioso é que sim tem poderes, embora não é consciente disso. Faz uma pausa entre cada afirmação, como se o que acaba de dizer fosse tão profundo que quer que ela tenha tempo para absorvê-lo. -Não precisaria andar enganando às pessoas se soubesse quem é em realidade e, este ano, tenho intenção de fazer saber. Falar sem que lhe trema a voz não lhe resulta fácil, mas Holly se controla e lhe recorda a pergunta que não respondeu. -O que quer dizer com isso de que as coisas dependem de mim? Quando ele sorri, parte de sua boca desaparece depois da abertura horizontal dos grandes óculos que parecem uma máscara. Isso faz que seu sorriso resulte ardilosa, como se ninguém pudesse lhe ocultar nada. -Já sabe o que quero dizer -assegura-. Não é Madame Tiresias. Tem pleno conhecimento de ti mesma. Ela intui que se questionar esta afirmação porá a prova sua paciência e talvez faça que se zangue. Sua suave voz e suas maneiras amáveis são uma mera pele de cordeiro, e Holly não tem intenção de despertar ao lobo que se esconde debaixo dela. -Deste-me muito que pensar -diz ela. -Sei. viveste detrás de uma cortina e agora vê que além dela não só havia uma janela, mas também todo um mundo novo. Temerosa de que uma palavra equivocada possa quebrar o feitiço da fantasia em que o assassino se sumiu, Holly só assente. -Sim. Ele fica de pé. -Ficam umas horas para decidir. Necessita algo? "Uma escopeta", pensa, mas diz outra coisa. -Não. -Sei qual será sua decisão. Mas deve chegar a ela por sua conta. Esteve alguma vez na Guadalupita, em Novo o México? -Não. Seu sorriso desenha uma curva. -Irá e ficará atônita. vai com sua lanterna, deixando-a na escuridão. Pouco a pouco, Holly se dá conta de que o vento ainda sopra com força. Do momento em que lhe contou que tinha matado aos outros seqüestradores, o vendaval tinha desaparecido de sua consciência. Durante um momento, não ouviu mais que a voz do assassino. Sua voz sinuosa, insidiosa. O bebê, essa pequena formação de células, agora está submerso nas secreções químicas que o cérebro de sua mãe ordena que se liberem no sangue enquanto debate-se no dilema entre fugir ou lutar. Possivelmente isso não seja tão mau. Talvez, até seja bom. Possivelmente faça que o pequeno Rafferty, seja qual for seu sexo, seja mais duro. E este é um mundo que requer, cada vez mais, que os bons também sejam duros. Holly fica a trabalhar diligentemente no prego com a medalha de são Cristóbal.

 

A rádio programada despertou ao Mitch às 8.30. O vento que tinha atormentado seus sonhos seguia revolvendo o mundo real. sentou-se no bordo da cama durante um momento, bocejando e olhando o dorso e as Palmas das mãos. depois do que essas mãos tinham feito a noite anterior, não era possível que tivessem o mesmo aspecto que antes. Mas não pôde discernir mudança algum. Ao passar frente aos espelhos das portas do armário, viu que suas roupas não estavam mais enrugadas que de costume. Tinha despertado na mesma posição em que dormisse. Ao parecer, passou quatro horas sem trocar de postura. Registrou as gavetas do quarto de banho até dar com várias escovas de dentes, sem estrear e ainda em seus pacotes. Abriu um e o usou antes de barbear-se com o barbeador elétrico elétrico do Anson. Tomou a pistola e o Taser e baixou à cozinha. A cadeira ainda estava encaixada sob o pomo da porta do tanque. Quebrou três ovos, condimentou-os com tabasco, bateu-os e polvilhou com queijo ralado antes de fritos e comer-lhe com duas torradas com manteiga e um copo de suco de laranja. Por puro costume, começou a recolher os pratos que tinha usado para lavá-los, mas se deu conta de quão absurdo era fazer de convidado bem educado naquelas circunstâncias. Deixou os pratos sujos sobre a mesa. Quando abriu o tanque e acendeu as luzes, encontrou ao Anson pacote como antes e empapado em suor. Na habitação não fazia mais calor que de costume. -pensaste em quem sou agora? -perguntou Mitch. Anson já não parecia zangado. Estava reclinado na cadeira e agachava sua maciça cabeça. Não parecia mais pequeno no físico, mas sim em algum outro sentido. Quando viu que seu irmão não respondia, Mitch repetiu a pergunta. -pensaste em quem sou? Anson elevou a cabeça. Tinha os olhos injetados em sangue, os lábios pálidos. Pérolas de suor cintilavam entre sua barba incipiente. -Estou mau -queixou-se com uma voz que nunca tinha usado. Seu tom lastimero e um matiz especial de pessoa ofendida sugeriam que se considerava uma vítima. -Uma vez mais lhe pergunto isso: pensaste em quem sou? -É Mitch, mas não o Mitch que conheço. -É um bom começo. -Há uma parte de ti que... Não sei quem é agora. -Sou um marido. Cultivo. Preservo. -O que quer dizer com isso? -Não acredito que o possa entender. -Tenho que ir ao lavabo. Preciso urinar. -Faz-o, pois. -Estou a ponto de arrebentar. Tenho que mijar, de verdade. -Não me incomoda. -Quer dizer que o faça aqui? -É sujo, mas prático. -Não me faça isto, irmão. -Não me chame "irmão". -Segue sendo meu irmão. -No biológico. -Vamos, isto não está bem. -Não, não o está. As patas da cadeira tinham descascado ainda mais os ladrilhos. Duas estavam rotas. -Onde guardas o dinheiro em efetivo? -perguntou Mitch. -Eu não submeteria a estas indignidades. -Entregou-me para que me matassem. -Não te humilhei antes de fazê-lo. -Disse que, se de ti dependesse, violaria a minha mulher antes de matá-la. -Só pensa nisso? Já lhe expliquei isso. Tinha brigado tão ferozmente por soltar a cadeira da máquina de lavar roupa que o grosso cabo alaranjado tinha amolgado o metal de uma das arestas da máquina. -Onde guardas o dinheiro, Anson? -Na carteira tenho, não sei, umas poucas centenas. -Não sou estúpido. Não tire o sarro. A voz do Anson se quebrou. -Isto dói muitíssimo. -O que dói? -Meus braços. Sinto como se me incendiassem os ombros. me deixe trocar de posição. me ate as mãos por diante. Isto é uma tortura. Anson, a ponto de fazer panelas, parecia um garotinho grande. Um menino com o cérebro frio e calculador de um réptil. -Primeiro, falemos do dinheiro -disse Mitch. -Crie que há dinheiro em efetivo, muito dinheiro? Não é assim. -Se fizer uma transferência eletrônica, nunca voltarei a ver o Holly. -Possivelmente sim. Eles não quererão que vás chorar lhe à polícia. -Não correrão o risco de que ela os possa identificar ante um tribunal. -Campbell poderia persuadir os de que terminem com isto. -Golpeando a suas mães e violando a suas irmãs? -Quer que devolvam ao Holly ou não? -Matei a dois de seus homens. Crie que me ajudaria agora? -Talvez sim. Agora, faria-o por uma questão de respeito. -O respeito não seria mútuo. -Homem, terá que ser flexível com as pessoas. -Vou dizer a quão seqüestradores pagarei em dinheiro e em pessoa. -Isso é impossível. -Tem dinheiro em efetivo em algum lugar -insistiu Mitch. -O dinheiro produz interesses, dividendos. Não o escondo no colchão. -Você lia muitas histórias de piratas. -E o que? -Identificava-te com os piratas. Pareciam-lhe do mais enrolado. Com uma careta de dor, Anson insistiu em seus queixa. -Por favor, homem, deixe ir ao lavabo. De verdade que estou mau. -E agora é um verdadeiro pirata. Até tem seu próprio navio e vais dirigir seus negócios desde mar. Os piratas não guardam o dinheiro no banco. Enterram-no em distintos lugares para poder recuperá-lo com facilidade quando sua sorte troca. -Mitch, por favor, tio. Tenho espasmos na bexiga. -O dinheiro que faz com seu trabalho de consultoria sim vai ao banco. Mas o que provém de coisas que são, como disse?, "mais abertamente delitivas", como o trabalho, seja qual for, que fez para estes tipos quando os extorquiu, esse não vai ao banco. Não paga impostos por ele. Anson não disse nada. -Não vou levar te a seu escritório e ficar olhando enquanto usa seu ordenador para mover recursos e organizar uma transferência eletrônica. É mais forte que eu. Está desesperado. Não vou dar a oportunidade de que tome o controle. Fica na cadeira até que terminemos. -Sempre respondi a sua chamada quando necessitou. -Não sempre. -Refiro a quando fomos meninos. Quando fomos meninos, sempre respondi quando me necessitou. -De fato -confirmou Mitch-, os cinco irmãos nos ajudávamos uns aos outros. -Sim, assim é. Tem razão. Como devem fazer os irmãos. Poderíamos recuperar esse costume -disse Anson, com certo tom de recriminação. -Sim? E como o faríamos? -Não digo que vá ser fácil. Podemos começar por ser francos. Equivoquei-me, Mitch. O que te fiz foi horrível. É que estava tomando drogas, tio, e me confundiram as idéias. -Não estava tomando drogas. Não diga que foi por isso. Onde está o dinheiro? -Irmão, juro-lhe isso, o dinheiro sujo se branqueia. Também esse termina no banco. -Não te acredito. -Insiste quanto queira, mas isso não trocará a realidade. -por que não lhe pensa isso um pouco mais? -sugeriu Mitch. -Não há nada que pensar. As coisas são como são. Mitch apagou a luz. -Não! -disse Anson com voz chorosa. Cruzando a soleira e fechando a porta detrás de si, Mitch deixou a seu irmão na escuridão.

 

Mitch começou pelo desvão. acessava-se a ele por uma porta armadilha se localizada no teto do roupeiro do dormitório principal. Uma escada se desdobrava ao abri-la. Duas lâmpadas nuas que proporcionavam uma insuficiente iluminação ao amplo recinto revelaram as telarañas dos ângulos que formavam as vigas. De cada orifício de ventilação do telhado surgiam ansiosas respirações, vaias, ofegos famintos, como se o desvão fosse a jaula de um canário e o vento um gato voraz. O vento da Santa Ana é tão inquietante em si mesmo que até as aranhas pareciam agitadas. moviam-se sem cessar em seus tecidos. Não se via nada armazenado no desvão. Esteve a ponto de retirar-se, mas uma suspeita, uma intuição, reteve-o. O chão desse recinto vazio estava assoalhado com pranchas de madeira aglomerada. Não era lógico supor que Anson escondesse dinheiro em efetivo sob uma prancha de aglomerado fixada por dezesseis pregos. Ante uma emergência, não poderia recuperá-lo depressa. Mesmo assim, Mitch, agachando-se para esquivar as vigas baixas, caminhou de um extremo a outro, escutando o som oco de suas pegadas. apoderou-se dele uma estranha sensação de augúrio, uma intuição de que estava a ponto de fazer um descobrimento. Sua atenção se centrou em um prego. Os outros estavam bem cravados, até ficar ao nível do chão, mas este me sobressaía aproximadamente o meio centímetro. agachou-se para estudá-lo. Sua cabeça era larga e chata. A julgar por seu tamanho e pela grossura do lance que aparecia, devia ter ao menos sete centímetros de comprimento. Quando agarrou o prego entre polegar e índice e tratou de tirá-lo, encontrou-se com que estava firmemente colocado. Uma sensação extraordinária o embargou. Era parecida, embora não idêntica, ao que experimentou quando viu o campo de cevada silvestre transformado em um torvelinho pela brisa e prateado pela luz da lua. De repente, sentiu-se tão perto do Holly que olhou por cima do ombro, quase esperando vê-la ali. A sensação não se desvaneceu, mas sim cresceu, até converter-se em um calafrio que lhe mordia a nuca. Saiu do desvão e baixou à cozinha. Na gaveta onde encontrasse as chaves dos carros havia uma pequena coleção de ferramentas, das que se usam com mais freqüência. Escolheu um chave de fenda e um martelo de carpinteiro. Do tanque, Anson perguntou. -O que ocorre? Mitch não respondeu. De retorno no desvão, extraiu o prego com as orelhas do martelo. Empregando o chave de fenda a modo de cunha, deu-lhe uns golpes na manga com o martelo, até encaixá-lo debaixo da cabeça de outro prego. Assim, levantou o seguinte, até que também este apareceu meio centímetro. Terminou de tirá-lo com o martelo. As aranhas, inquietas, dedilhavam silenciosos arpejos em suas harpas de seda. O vento nunca calava. A cada prego que tirava, o calafrio que sentia na nuca se fazia mais intenso. Quando extraiu o último, apressou-se a elevar e apartar a prancha de madeira aglomerada. Debaixo, só se viam os fitas de seda onde tinha estado cravada. Entre um e outro só havia painéis quadrados de fibra de vidro, postos a modo de isolante. Tirou a fibra de vidro. Sob o isolante não havia uma caixa forte, nem maços de bilhetes envoltos em plástico. A sensação de augúrio passou e também sua intuição de que, de algum modo, estava perto do Holly. ficou sentado, presa do desalento. Que demônios lhe tinha ocorrido? Percorreu o desvão com o olhar. Não se sentia impulsionado a levantar mais pranchas de madeira aglomerada. Sua avaliação inicial tinha sido correta. Ante a possibilidade de que um incêndio o fizesse perder, ou por algum outro motivo, Anson não esconderia muito dinheiro em um lugar ao que não pudesse acessar a toda pressa. Mitch deixou às aranhas na escuridão, em companhia do infatigável vento. Depois de pregar a escada e fechar a porta armadilha do teto do roupeiro, continuou ali sua busca. Olhou detrás dos objetos pendurados de cabides, registrou as gavetas em busca de recursos dobre, apalpou cada prateleira e cada emoldura em busca de uma mola oculta que abrisse um painel. Na habitação, olhou detrás de cada quadro, com a esperança de que algum ocultasse uma caixa forte embutida na parede, embora duvidava de que Anson recorresse a algo tão óbvio. Até moveu a cama de matrimônio de seu lugar, mas não encontrou no tapete nenhum quadrado recortado que ocultasse uma cripta. Mitch registrou os dois quartos de banho, um armário embutido no saguão e dois dormitórios para hóspedes que nem sequer estavam mobiliados. Nada. Na planta baixa, começou pelo estudo, de paredes de mogno e cobertas de prateleiras cheias de livros. Aí, os possíveis esconderijos eram tantos, que só o tinha registrado pela metade quando, ao lhe jogar uma olhada a seu relógio, viu que eram as 11.33. Os seqüestradores chamariam em vinte e sete minutos. Na cozinha, agarrou a pistola e foi ao tanque. Ao abrir a porta, recebeu-o um forte fedor a urina. Acendeu a luz e se encontrou a um Anson sufriente. A maior parte da micção tinha sido absorvida por suas calças, suas meias três-quartos, seus sapatos, mas mesmo assim, ao pé da cadeira, havia um charquito amarelo sobre os ladrilhos. O mais parecido que têm os sociópatas às emoções humanas são o amor a si mesmos e a piedade por si mesmos, o único amor e a única piedade de que são capazes de sentir. Seu extremado amor por si mesmos vai além da egolatria. O amor psicótico a gente mesmo não inclui emoções tão dignas como o respeito pela gente mesmo, mas sim um orgulho avassalador. Anson seria incapaz de sentir vergonha, mas seu orgulho tinha cansado de um lugar alto a um pântano de autocompasión. O bronzeado não podia ocultar agora o tom cinzento de sua pele. Seu rosto aparecia esponjoso, doentio. Os olhos injetados em sangue eram um estancada pântano de sofrimento. -Olhe o que me fez -disse. -Você lhe fez isso. Se a autocompasión lhe deixava algum lugar para a ira, ocultava-o bem. -Isto é doentio, tio. -Do mais doentio -assentiu Mitch. -Está-te divertindo muito. -Não. Isto não tem nada de gracioso. -Ri-te por dentro. -Detesto o que ocorre. -Se o detestar, como é que não te envergonha? Mitch não disse nada. -Não vejo que te ruborize. Onde está meu irmão, que se ruboriza? -acaba-se o tempo, Anson. Estão a ponto de chamar. Quero o dinheiro. -E eu o que obtenho? Que saco disto? por que tenho que dar e dar? Estendendo seu braço, na mesma postura que adotasse Campbell quando o mirou, Mitch apontou a pistola ao rosto de seu irmão. -Se me der o dinheiro, deixo-te viver. -E que classe de vida seria a minha? -Pode-te ficar com tudo o que tem, menos os dois milhões. Pagamento o resgate e faço as coisas de modo que a polícia não se inteire nunca de que houve um seqüestro. Assim, nem sequer lhe interrogarão. Era indubitável que Anson pensava no Daniel e Kathy. -Pode seguir com o que fazia antes -mentiu Mitch-. Vive como melhor te pareça. Ao Anson teria sido fácil lhe agüentar o assassinato de seus pais ao Mitch se este tivesse estado morto e sepultado em uma tumba do deserto, onde nunca o encontrariam. Agora, não lhe resultaria tão singelo. -Dou-te o dinheiro -disse Anson- e você me solta. -Assim é. -Como? -perguntou com tom suspicaz. -antes de ir a fazer a troca, sacudo-te com o Taser e depois lhe Quito as algemas. Parto-me enquanto segue inconsciente. Anson ficou pensando. -Vamos, pirata. Entrega o tesouro. Se não o fizer antes de que soe o telefone, tudo terá terminado para ti. Anson o olhou aos olhos. Mitch lhe sustentou o olhar. -Farei-o. -É igual a mim -disse Anson. -Disso é do que queria que te desse conta. O olhar do Anson não vacilou. Seus olhos olhavam de frente. Eram diretos, inquisitivos. Estava amarrado a uma cadeira. Doíam-lhe os ombros, os braços. O canhão de uma pistola lhe apontava. Mas seus olhos estavam serenos, calculadores. Parecia como se um rato de cemitério, depois de perfurar uma série de túneis entre o montão de caveiras onde aninhava, tivesse ido aparecer nessa cabeça vivente, por cujos olhos espionava com ratonil astúcia. -Há uma caixa forte embutida no chão da cozinha -disse Anson.

 

O armário de cozinha se localizado à esquerda e debaixo da pia tinha duas prateleiras montadas sobre sulcos. Continham panelas e frigideiras. Mitch os esvaziou e os fez correr por seus sulcos até tirá-los. O chão do armário ficou à vista. A operação lhe levou perto de um minuto. Nas quatro esquinas do estou acostumado a havia algo que pareciam reforços de madeira. De fato, eram cavilhas que mantinham em seu lugar o painel, que não estava parecido. Tirou as cavilhas e elevou a coberta do chão. A prancha de cimento sobre a que se elevava a casa ficou ao descoberto. Havia uma caixa forte embutida em ela. A combinação que lhe deu Anson funcionou ao primeiro intento. Abriu a pesada porta. A caixa ignífuga media aproximadamente sessenta centímetros de comprimento por quarenta e cinco de largura e trinta de profundidade. Dentro, havia grossos maços de bilhetes de cem dólares, envoltos em bolsas de plástico para mantimentos, seladas com cinta adesiva transparente. Também havia um sobre de papel. Segundo Anson, continha títulos ao portador emitidos por um banco suíço. Eram quase tão fáceis de liquidar como os bilhetes de cem dólares, mas mais compactos e manejáveis quando terá que cruzar fronteiras. Mitch depositou o tesouro sobre a mesa da cozinha e verificou o conteúdo do sobre. Contou seis títulos em dólares americanos, de cem mil cada um, pagáveis ao portador, fora este ou não o mesmo que o comprador. Apenas um dia antes, não tivesse imaginado que alguma vez disporia de todo esse dinheiro. Duvidava de que voltasse a ver semelhante quantidade de efetivo em sua vida. Mas não sentiu o mais fugaz indício de assombro nem deleite ao ver tanta riqueza. Era o resgate do Holly e estava contente do ter. Esse dinheiro também era o motivo pelo que tinha sido seqüestrada e, por isso, ao Mitch produzia tal rechaço que lhe repugnava tocá-lo. O relógio da cozinha marcou as 11.54. Faltavam seis minutos para a chamada. Retornou ao tanque, que tinha deixado com a luz acesa e a porta aberta. Anson, tão ensimismado como cheio de si mesmo, seguia sentado em sua cadeira úmida, mas, ao mesmo tempo, estava em algum outro lugar. Não retornou à realidade até que Mitch lhe falou. -Seiscentos mil em títulos. Quanto em efetivo? -Todo o resto -disse Anson. -O que falta para completar os dois milhões? Então, há um milhão quatrocentos mil em efetivo? -Assim é. Não é o que te acabo de dizer? -O vou contar. -Faz-o. -Se não estar tudo, acabou-se o trato. Quando me partir, não te soltarei. Frustrado, Anson fez soar as algemas as golpeando contra a cadeira. -por que me faz isto? -Só te estou dizendo como estão as coisas. Se quiser que mantenha minha parte do trato, mantén a tua. vou contar o. Dando as costas à porta do tanque, Mitch se dirigiu à mesa da cozinha, e Anson confessou. -Há oitocentos mil em efetivo. -Não um milhão quatrocentos? -O total, entre efetivo e títulos, é de um milhão quatrocentos mil. Equivoquei-me. -Estraga. Equivocou-te. Necessito seiscentos mil mais. -É tudo o que há. Não tenho mais. -Também disse que não tinha isto. -Não sempre minto -replicou Anson. -Os piratas não enterram tudo o que têm em um só lugar. -Pode deixar essa mierda dos piratas? -por que? Faz-te voltar para a infância? O relógio marcava as 11.55. Mitch sentiu uma súbita inspiração. -Quer que pare com essa mierda dos piratas, porque se continúo, possivelmente pense em seu iate. Quanto tem ali? -Nada. No navio não há nada. Não tive tempo de instalar uma caixa forte. -Se matarem ao Holly, registrarei seus papéis -disse Mitch-. Inteirarei-me do nome do navio e de onde está amarrado. Irei ao embarcadero com uma tocha e uma furadeira elétrico. -Faz o que melhor te pareça. -Abrirei-o de proa a popa, e, quando encontrar o dinheiro e saiba que me mentiu, retornarei aqui e te fecharei a boca com cinta adesiva para que não volte a fazê-lo jamais. -Estou-te dizendo a verdade. -Deixarei-te encerrado na escuridão, sem água, nem comida. Deixarei-te aí para que morra de desidratação entre sua própria imundície. Eu estarei aqui mesmo, em sua cozinha, sentado a sua mesa, me comendo sua comida, enquanto ouço como morre na escuridão. Mitch não se acreditava capaz de matar a alguém de uma forma tão cruel, mas sua própria voz lhe soou dura, fria e convincente. Se perdia ao Holly, possivelmente fora capaz de algo. Tinha chegado a viver plenamente graças a ela. Sem ela, parte dele morreria e seria menos do que era agora. Anson parecia ter seguido essa mesma cadeia de raciocínio. -Está bem. De acordo. Quatrocentos mil. -O que? -No navio. Direi-te onde encontrá-los. -Ainda faltam duzentos mil. -Não há mais. Não em efetivo. Terei que vender algumas acione. Mitch se voltou a olhar o relógio da cozinha. As 11.56. -Faltam quatro minutos. Não há tempo para mentiras, Anson. -Acreditará-me esta vez? Embora só seja esta vez? Não há mais em efetivo. -Já tenho bastante conseguindo trocar as condições do intercâmbio -disse Mitch-. Nada de transferências eletrônicas. Agora, verei-me obrigado a regatear para que me façam uma oferta de duzentos mil. -Aceitarão-o -assegurou-lhe Anson-. Conheço estes porcos. Crie-te que rechaçariam um milhão oitocentos mil? Impossível. Nunca o fariam. -Será melhor que não te equivoque. -Ouça, agora estamos de acordo não? Verdade que estamos de acordo? Não me deixe às escuras. Mitch já lhe tinha dado as costas. Não apagou a luz nem fechou a porta do tanque. De pé frente à mesa, ficou olhando os títulos ao portador e o dinheiro em efetivo. Tomou a caneta e a caderneta e se dirigiu ao telefone. Não podia suportar olhar o telefone. Ultimamente, os telefones não haviam lhe trazido mais que más notícias. Fechou os olhos. Três anos atrás, Holly e ele se casaram. Não houve familiares presentes nas bodas. Dorothy, a avó que criasse ao Holly, tinha morrido de forma repentina cinco meses antes. Holly tinha uma tia e duas primos pelo lado paterno. Não os conhecia. Não lhe importava. Mitch não podia convidar a seu irmão nem a suas três irmãs sem incluir a seus pais no convite. Não queria que Daniel e Kathy estivessem ali. O que o impulsionava não era a amargura. Não é que os excluíra porque estivesse zangado com eles ou queria castigá-los. Daniel e Kathy eram uma enfermidade incurável, estrutural, para qualquer família. Se lhes permitia chegar às raízes, indubitavelmente deformariam a planta e murchariam seu fruto. Depois, contaria a sua família que ele e sua flamejante mulher se escaparam juntos. Mas a verdade era que tinham celebrado uma pequena cerimônia em sua casa, seguida de uma recepção para um reduzido grupo de amigos. Iggy tinha razão, o grupo musical dava pena. Muitas canções com pandereta. E um cantor que acreditava que seu melhor recurso eram os compridos sós em falsete. Quando todos partiram e a banda não foi mais que uma lembrança cômica, Holly e ele dançaram sozinhos, ao som da rádio, na pista de baile provisório que haviam instalado no pátio traseiro para o evento. À luz da lua, ela estava tão adorável que quase parecia de outro mundo. Inconscientemente a tinha estreitado com muita força, como se temesse que se desvanecesse como um fantasma, até que lhe disse: "Né, não sou inquebrável", e ele se relaxou e lhe apoiou a cabeça no ombro. Embora pelo general era torpe na hora de dançar, não tinha dado nem um passo equivocado, enquanto giravam no exuberante jardim, fruto de seu paciente trabalho. por cima deles brilhavam as estrelas que nunca lhe tinha devotado, pois não era homem de fazer declarações poéticas. Mas ela já era proprietária de as estrelas e, essa noite, também a lua e o céu lhe rendiam homenagem. O telefone soou.

 

Desprendeu ao segundo timbrazo. -Sou Mitch. -Olá, Mitch. Esperançado? A melosa voz não era a das chamadas anteriores e a mudança inquietou ao Mitch. -Sim. Estou esperançado -disse. -Bem. Nada se obtém sem esperança. A esperança foi o que me trouxe desde Anjo Fire a este lugar e é o que me levará de volta ali. Pensando-o bem, o que perturbava ao Mitch não era tanto a mudança de interlocutor como a natureza da voz. A suavidade com que falava o homem estava ao bordo do fantasmal. -Quero falar com o Holly. -Claro que quer. É a mulher do momento. E devo dizer que se desembrulha muito bem. Esta dama tem um espírito muito sólido. Mitch não soube o que pensar. O que o tipo acabava de dizer sobre o Holly era verdade, mas, vindo dele, soava estranho. A voz do Holly apareceu na linha. -Está bem, Mitch? -Estou bem. Estou-me voltando louco, mas estou bem. Amo-te. -Eu também estou bem. Não me machucaram a sério. -Sairemos desta -assegurou-lhe ele-. Não te vou falhar. -Nunca acreditei que falharia. Nunca. -Amo-te, Holly. -Ele quer te falar -disse ela, e lhe devolveu o telefone a seu raptor. A voz do Holly tinha divulgado forçada. Mitch lhe disse que a amava duas vezes, mas não lhe respondeu com uma declaração recíproca. Algo andava mau. A voz suave voltou a soar. -houve uma mudança de planos, Mitch, uma mudança importante. Em lugar de uma transferência eletrônica, queremos efetivo. Ao Mitch tinha preocupado a possibilidade de não poder convencer os de que o pagamento do resgate não se fizesse mediante uma transferência eletrônica. Esta novidade teria que havê-lo aliviado. Mas, em troca, perturbava-o. Era outro indício de que tinha ocorrido algo que alterava os planos dos seqüestradores. Uma nova voz no telefone, o tom receoso do Holly, e agora este repentino interesse pelo dinheiro em efetivo. -Segue aí, Mitch? -Sim. Ocorre que me complicaram um pouco as coisas. Deve saber que Anson... Enfim, não demonstrou tanta preocupação fraterna como eu tivesse suposto. O outro pareceu divertido. -Outros supuseram que sim o faria. Eu nunca estive tão seguro. Não há razão para esperar que um crocodilo derrame lágrimas sinceras. -Controlo a situação -assegurou-lhe Mitch. -Surpreendeu-te seu irmão? -Repetidas vezes. Olhe, agora mesmo só posso te garantir oitocentos mil em efetivo e seiscentos mil em bônus ao portador. antes de que Mitch pudesse mencionar os quatrocentos mil adicionais que, supostamente, estavam a bordo do navio do Anson, o seqüestrador falou. -É obvio que é uma decepção. Os seiscentos mil restantes tivessem comprado muito tempo de busca. Mitch não entendeu a última parte. -Tempo do que? -É um buscador, Mitch? -Buscador do que? -Se soubéssemos a resposta, não precisaríamos procurar. Um milhão quatrocentos mil está bem. Considerarei que é um desconto por pago em dinheiro. Surpreso pela facilidade com que o outro aceitava a oferta, Mitch perguntou. -Fala em nome de todos, também de seus sócios? -Sim. Se eu não falasse por eles, quem ia fazer o? -Então..., quais são os passos seguintes? -Vêem sozinho. -De acordo. -Desarmado. -De acordo. -Coloca o dinheiro e os títulos em uma bolsa de lixo, de plástico. Não a fechamentos de tudo. Sabe onde fica a casa Turnbridge? -Todos os habitantes do condado conhecem a casa Turnbridge. -Vê ali às 15.00. Não te faça o preparado e cria que pode ir mais cedo e me surpreender. O que obteria em troca disso seria uma esposa morta. -Estarei às 15.00. Nem um minuto antes. Como faço para entrar? -O portão parecerá fechado com cadeia, mas esta não terá cadeado. Uma vez que entre com seu veículo, deixa a cadeia como a encontrou. Em que carro irá? -Em minha Funda. -Detenha justo frente à casa. Verá um utilitário. Estaciona bem longe dele. Ponha o Funda com a parte traseira olhando para a casa e o porta-malas aberto. Quero me certificar de que não haja ninguém escondido aí. -Muito bem. -Assim que o faça, chamarei a seu móvel para te dizer o que deve fazer. -Espera. Meu móvel ficou sem bateria. -O certo era que estava em algum lugar de Rancho Santa Fé-. Posso usar o do Anson? -Qual é seu número? O telefone móvel estava sobre a mesa da cozinha, junto ao dinheiro e os bônus. Mitch o agarrou. -Não sei o número. Tenho que acendê-lo para ver. me dê um minuto. Enquanto Mitch esperava a que o logotipo da empresa Telefónica desaparecesse da tela, o homem da voz suave falou. -me diga uma coisa, Anson está vivo? Surpreso pela pergunta, Mitch respondeu. -Sim. -Essa simples resposta me diz muito -replicou o outro, divertido. -O que te diz? -Que te subestimou. -Sacas muitas conclusões de uma só palavra. Aponta o número do móvel. Uma vez que Mitch leu o número e o repetiu, seu interlocutor fez uma advertência. -Queremos que este seja uma troca fácil e singela, Mitch. Os melhores negócios são aqueles em que todos saem ganhando. Mitch pensou que era a primeira vez que o homem da voz suave falava em plural. -Às 15.00 -recordou-lhe o outro e cortou.

 

No tanque, tudo era branco. Tudo, menos a cadeira vermelha, Anson, pacote a ela, e o charquito amarelo. Anson, fedido, inquieto, balançando-se na cadeira, estava resignado a cooperar. -Sim, um deles fala assim. chama-se Jimmy Null. É um profissional, mas não é o chefe. Se quem telefonou é ele, é que os outros estão mortos. -Como que mortos? -Algo saiu mau, tiveram um desacordo por algo e decidiu embolsar-se tudo o ganho. -Assim crie que agora só fica um deles? -Isso faz as coisas mais difíceis, não mais fáceis, para ti. -por que mais difíceis? -Dado que se tem desfeito dos outros, quererá fazer uma limpeza total. -Holly e eu. -Só quando tiver o dinheiro. -Inclusive em sua desdita, Anson as compôs para sorrir de maneira atroz-. Quer saber algo do dinheiro, irmão? Quer saber como ganho a vida? Que Anson se oferecesse a dar essa informação só podia significar que acreditava que lhe conhecê-la faria mal a seu irmão. Mitch se deu conta de que o cintilação de cruel regozijo nos olhos de seu irmão era um bom motivo para continuar na ignorância, mas a curiosidade pôde mais que sua cautela. antes de que nenhum dos dois pudesse falar, soou o telefone. Mitch retornou à cozinha. Durante um instante, pensou não atender a chamada, mas o fez. Podia tratar-se do Jimmy Null, que chamava para lhe dar novas instruções. -Olá? -Anson? -Não está. -Quem fala? Não era a voz do Jimmy Null. -Sou um amigo do Anson -disse Mitch. Agora que tinha atendido a chamada, o melhor que podia fazer era comportar-se como se ali tudo transcorresse com normalidade. -Quando retorna? -perguntou seu interlocutor. -Amanhã. -Provo a chamá-lo a seu móvel? A voz lhe soava conhecida o Mitch. Tomando o telefone móvel do Anson da encimera, Mitch disse: -Esqueceu levá-lo. -Pode lhe deixar uma mensagem? -Sim. me diga. -lhe diga que chamou Julian Campbell. O brilho dos olhos cinzas, o reluzente Rolex de ouro. -Algo mais? -perguntou Mitch. -Isso é tudo. Mas sim há algo que me preocupa, amigo do Anson. Mitch não disse nada. -Amigo do Anson, está aí? -Sim. -Espero que esteja cuidando bem meu Chrysler Windsor. Amo esse carro. Vemo-nos.

 

Mitch procurou até dar com a gaveta da cozinha em que Anson guardava duas caixas de bolsas de lixo. Escolheu uma das de menor tamanho, de cinqüenta litros de capacidade. Colocou os maços de bilhetes e o sobre de títulos ao portador na bolsa. Retorceu os borde, mas não a atou. A essa hora, e com o tráfico habitual, chegar desde Rancho Santa Fé a Coroa do Mar podia supor até duas horas. Embora Campbell tinha colaboradores em Coroa do Mar, não chegariam imediatamente. Quando Mitch retornou ao tanque, Anson se mostrou curioso. -Quem era? -Um vendedor de algo. Os olhos do Anson, verde mar, avermelhados, eram como oceanos turvados pelo sangue em um festim de tubarões. -Não parecia tratar-se de um assunto de vendas. -Foi contar como ganha a vida. Um malévolo regozijo voltou a aparecer nos olhos do Anson. Queria compartilhar seu triunfo, nem tanto por orgulho como porque sabia que esse conhecimento feriria o Mitch de algum jeito. -Imagine que lhe envia dados a um cliente por Internet, material aparentemente inocente, fotos, digamos ou uma história da Irlanda. -Aparentemente ? -Não se trata de dados codificados, que são ininteligíveis se não ter a chave que os decifra. Isto se vá às claras e não tem nada de particular. Mas quando processa-o com um programa especial, as fotos e o texto se combinam e voltam a conformar-se de uma maneira totalmente diferente, revelando a verdade oculta. -Que verdade? -Espera. Primeiro seu cliente descarrega o programa, mas nunca tem uma cópia em disco. Se a polícia registrar seu ordenador e tráfico de copiar ou analisar o programa, este se automóvel-destrói, de modo que é impossível reconstrui-lo. O mesmo ocorre com todos seus arquivos, seja em sua forma original ou convertidos. Mitch, que sempre tinha brigado por manter seu conhecimento da informática no mínimo aceitável para o mundo moderno, não estava muito seguro de entender que aplicação útil lhe podia dar a esse programa. Lhe ocorreu uma. -Assim, os terroristas poderiam comunicar-se por Internet e qualquer que interviesse suas comunicações só encontraria que estão compartilhando uma história de Irlanda. -Ou da França, ou do Tahití, ou um comprido análise dos filmes do John Wayne. Nada sinistro, nenhum código óbvio que desperte suspeitas. Mas os terroristas não são um mercado estável nem proveitoso. -Quem o é? -Há muitos. Mas do que te quero falar é do trabalho que fiz para o Julian Campbell. -O empresário do entretenimento -disse Mitch. -É verdade que é dono de cassinos em vários países. Entre outras coisas, usa-os para branquear dinheiro de outras atividades. Mitch acreditava que agora conhecia verdadeiro Anson, um homem muito diferente daquele com quem empreendeu a viagem a Rancho Santa Fé. Que já não ficavam ilusões a respeito. Que já não era cego por própria decisão. Mas nesse momento essencial, revelava-se uma arrepiante terceira versão de seu irmão, quase tão desconhecida para o Mitch como esse segundo Anson que apareceu pela primeira vez na biblioteca do Campbell. Seu rosto pareceu pertencer a um novo inquilino, que, depois de escapulir-se por entre as curvas de seu crânio, aparecesse às familiares janelas verdes as iluminando com uma luz sombria. Também trocou algo em seu corpo. Uma forma mais primitiva pareceu ocupar o assento onde até faz um minuto estava Anson; era a forma de um homem, mas um homem em quem o animal se vê com mais claridade. Esta percepção chegou ao Mitch antes de que seu irmão começasse a lhe revelar no que consistiam seus negócios com o Campbell. Não podia dizer-se a si mesmo que se tratava de um efeito psicológico, que o dito pelo Anson o tinha transformado a seus olhos, pois a mudança precedeu à revelação. -0,5 por cento dos homens são pedófilos -disse Anson-. Nos Estados Unidos, isso é um milhão e meio de pessoas. E há milhões mais no mundo. Naquela habitação de um branco brilhante, Mitch sentiu que estava na soleira da escuridão, que ante ele se abria um portão terrível e que não podia retroceder. -Os pedófilos são ávidos consumidores de pornografia infantil -continuou Anson-. Arriscam-no tudo por obtê-la, embora saibam que atrás da compra sempre pode haver uma operação encoberta da polícia, que os levaria a ruína. Se a obtiverem sob a forma de aborrecidos textos sobre a história do teatro britânico e a podem converter em excitantes fotos, vídeos, inclusive, se conseguem satisfazer sua ânsia sem correr perigo, seu apetite se volta insaciável. Mitch tinha deixado a pistola sobre a mesa da cozinha. Possivelmente suspeitava inconscientemente alguma atrocidade como essa e temia o que pudesse fazer com a arma. -Campbell tem duzentos mil clientes. daqui a dois anos espera que cheguem a um milhão, de todo o mundo, o que proporcionará ganhos de cinco mil e milhões de dólares. Mitch recordou os ovos mexidos e as torradas que se preparou na cozinha daquele ser e o estômago lhe contraiu ao pensar que tinha comido em pratos, com talheres, tocados por essas mãos. -O ganho nítido é de 60 por cento. Os atores porno adultos o fazem por diversão. Às estrelas infantis não lhes paga. Para que querem dinheiro a sua idade? Tenho uma pequena participação no negócio do Julian. Disse-te que tinha oito milhões, mas o certo é que são vinte e quatro. O tanque parecia intolerablemente cheio. Mitch sentiu que, além de seu irmão e ele, multidões invisíveis se amontoavam ali. -Irmão, só queria que soubesse quão sujo é o dinheiro que resgatará ao Holly. Durante toda sua vida, cada vez que a beije, que a toque, pensará no origem desse dinheiro imundo, muito imundo. Inerme, encadeado à cadeira, sentado em sua própria urina, empapado no suor de medo que a escuridão lhe tinha feito brotar, Anson elevou a cabeça e inchou o peito com ar desafiante. Seus olhos tinham um brilho triunfal, como se ter feito o que fez, como se facilitar a vil empresa do Campbell fosse pagamento suficiente, como se ter tido ocasião de saciar o apetite dos depravados a costa dos inocentes fora toda a recompensa que necessitava para sustentá-lo durante seu presente humilhação e na ruína pessoal que o esperava. Alguns diriam que se tratava de loucura, mas Mitch sabia qual era seu verdadeiro nome. -Parto-me -anunciou, pois nenhuma outra coisa que dissesse valeria de nada. -me sacuda com o Taser -ordenou Anson, para deixar claro que nada do que lhe fizesse Mitch podia feri-lo em forma perdurável. -Invoca o trato que fizemos? -disse Mitch-. A mierda com ele. Apagou as luzes e fechou a porta. Como há forças contra as que é prudente tomar precauções adicionais, mesmo que pareçam irracionais, voltou a encaixar uma cadeira sob o pomo para manter a porta fechada. Se tivesse tido tempo, talvez até a teria enclausurado cravando-a a seu marco. perguntou-se se alguma vez voltaria a sentir-se limpo. pôs-se a tremer. Estava a ponto de vomitar. Foi à pia e se tornou água fria na cara. O timbre da porta soou.

 

As campainhas tocaram uns poucos compases do Hino da alegria. Só tinham acontecido uns minutos desde que Julian Campbell cortasse a comunicação. Faria algo por proteger uns ganhos de cinco mil e milhões ao ano, mas não era possível que tivesse enviado a dois novos pistoleiros a casa do Anson com tanta rapidez. Mitch fechou o grifo da pia e, com o rosto empapado, tratou de pensar se havia algum motivo para arriscar-se a identificar ao visitante espiando por uma das janelas da sala de estar. Era hora de partir. Tomou a bolsa de lixo que continha o resgate e recolheu a pistola da mesa. dirigiu-se à porta traseira. O Taser. Tinha-o deixado em uma encimera, junto ao forno. Retornou para buscá-lo. O visitante desconhecido fez soar a campainha outra vez. -Quem é? -perguntou Anson do tanque. -O carteiro. Agora, te cale. Enquanto se dirigia outra vez à porta traseira, Mitch recordou o móvel de seu irmão. Estava na mesa, junto ao resgate e, embora tinha recolhido essa bolsa, esqueceu agarrar o telefone. A rápida sucessão da chamada do Julian Campbell, as horríveis revelações do Anson e o timbrazo o tinham sacudido, lhe fazendo perder o equilíbrio. Depois de recuperar o móvel, Mitch olhou em torno de si, estudando a cozinha. Por quanto podia ver, não se tinha esquecido nada mais. Apagou as luzes, saiu da casa e jogou a chave à porta. O infatigável vento jogava esconderijo entre as samambaias e o bambu. Correosas folhas de bananeira gastas pelo vento desde outras casas, ouros jardins, revoavam pelo pátio, arranhando os tijolos. Mitch foi ao primeira das duas garagens e entrou pela porta que dava ao pátio. Ali o aguardava sua Funda e, ali, na parte traseira do Buick Super Woody Wagon, John Knox se apodrecia. Tinha a vaga intenção de lhe agüentar a morte do Knox ao Anson, livrando-se ao mesmo tempo da armadilha acusatória que este lhe tendesse com os assassinatos de Daniel e Kathy. Mas o inesperado reaparecimento do Campbell lhe deixou a sensação de que caminhava sobre uma superfície de gelo muito magro. Seu plano passou de vago a inexistente. De todas maneiras, nada disso importava nesse momento. Uma vez que Holly estivesse a salvo, John Knox, os corpos da quarta de aprendizagem e Anson algemado à cadeira voltariam a importar, e muito, mas agora eram meros elementos acessórios do problema central. Faltavam mais de duas horas e meia para o momento em que devia trocar o dinheiro pelo Holly. Abriu o porta-malas do Funda e colocou a bolsa sob a roda de reposto. Encontrou um controle remoto para o portão da garagem no assento dianteiro do Woody. Colocou-o junto ao pára-brisa do Funda, para fechar o portão do beco. Pôs a pistola e o Taser no compartimento da porta do lado do condutor. Sentado ao volante, podia ver as armas de acima e, além disso, era mais fácil as agarrar daí que de debaixo do assento. Pulsou o controle remoto e viu subir o portão pelo espelho retrovisor. Saiu da garagem parte atrás e, olhando para a direita, viu que o beco estava espaçoso. Pisou no freio, surpreso, quando alguém golpeou o guichê do lado do condutor. Ao voltar bruscamente a cabeça para a esquerda, encontrou-se cara a cara com o detetive Taggart.

 

O cristal amorteceu sua saudação. -Olá, senhor Rafferty. Mitch ficou olhando durante muito tempo antes de baixar o guichê. Ao outro não lhe chamaria a atenção sua expressão de surpresa; sim seu medo, sua comoção. O morno vento agitava a jaqueta esportiva do Taggart. Fez ondear o pescoço de sua camisa hawaiana amarela e ocre quando aproximou o rosto ao guichê. -Pode me dedicar um momento? -Bom, tenho entrevista com o médico -respondeu Mitch. -Está bem, não o entreterei muito. vamos falar com garagem, resguardados do vento? O corpo do John Knox estava à vista na parte traseira do Buick. Possivelmente o detetive de homicídios tivesse um olfato particularmente sensível aos primeiros fedores da decomposição e isso o fizesse aproximar-se do velho veículo, ou possivelmente se aproximaria para admirar a beleza de este. -Falemos no carro -disse Mitch, fechando o guichê enquanto terminava de sair da garagem. Acionou o controle remoto do portão e, enquanto baixava, estacionou em bateria a um lado do meio-fio. Instalando-se no assento do acompanhante, Taggart falou. -chamou já a um exterminador para que se ocupe dessas térmites? -Ainda não. -Não o adie muito. -Não o farei. Mitch não separava a vista do beco. Estava decidido a olhar ao Taggart só de quando em quando, pois recordava o poder de penetração dos olhos do policial. -Se o que lhe preocupa são os pesticidas, hoje em dia existem outras soluções. -Sei. Podem as congelar nos muros. -Ainda melhor, há um produto, extrato de laranja altamente concentrado, que os arbusto por contato. É totalmente natural e, além disso, a casa fica impregnada de um aroma delicioso. -Laranjas. Terei que perguntar por isso. -Imagino que terá estado muito atarefado para pensar em térmites. Um inocente se perguntaria o que estava acontecendo e estaria impaciente por seguir com suas atividades do dia, de modo que Mitch se arriscou a perguntar. -O que o traz por aqui, tenente? -Devi ver a seu irmão, mas ninguém me abriu a porta. -Está fora até manhã. -Onde foi? -A Las Vegas. -Sabe a que hotel? -Não me disse isso. -Não ouviu o timbre? -perguntou Taggart. -Devo ter saído antes de que você chamasse. Tinha coisas que fazer na garagem. -Cuida-lhe a casa a seu irmão até que retorne? -Assim é. Do que tem que falar com ele? O detetive girou uma perna e se voltou de flanco em seu assento, ficando enfrentado ao Mitch, como se queria obrigá-lo a que o olhasse aos olhos. -Os números de telefone de seu irmão estavam na caderneta de direções do Jason Osteen. Contente de poder dizer algo que fora verdade, Mitch respondeu. -conheceram-se quando Jason e eu vivíamos juntos. -Você não se manteve em contato com o Jason, mas seu irmão sim? -Não sei. Possivelmente. levavam-se bem. Durante a noite e a manhã, todas as folhas soltas, os desperdícios e o pó que levantava o vento tinham pirado até o mar. Agora, o vento não arrastava nada que fora visível. Imensas massas de ar cristalino, invisíveis como a onda expansiva de uma explosão, arremetiam pelo beco, fazendo que o Funda balançasse-se. -Jason andava com uma moça chamada Leelee Morheim -disse o policial-. Conhece-a? -Não. -Leelee diz que Jason odiava a seu irmão. Diz que o tinha extorquido em algum negócio. -Que negócio? -Leelee não sabe. Mas há algo sobre o Jason que está muito claro, não fazia nenhum trabalho honesto. Esta afirmação obrigou ao Mitch a olhar ao detetive aos olhos, franzindo o cenho em um convincente gesto de desconcerto. -Está-me dizendo que Anson estava metido em algo ilegal? -Acredita que isso é possível? -Tem um doutorado em lingüística e é um gênio dos ordenadores. -Conheci um professor de física que assassinou a sua mulher e a um sacerdote que assassinou a um menino. À luz os últimos acontecimentos, Mitch já não acreditava que o detetive fora um dos seqüestradores. "Se lhe tivesse contado algo, Mitch, Holly já estaria morta". Também tinha deixado de lhe preocupar que os seqüestradores pudessem estar vigiando-o ou ouvindo suas conversações. Podia haver um rastreador oculto no Funda, mas tampouco isso o preocupava. Se Anson tinha razão, Jimmy Null, o da voz suave, que se preocupava porque Mitch se mantivera esperançado, tinha matado a seus sócios. Agora tudo devia de estar a cargo dele. Nestas últimas horas da operação, Null não se ocuparia do Mitch, mas sim dos preparativos para o intercâmbio. Isso não significava que Mitch pudesse pedir ajuda ao Taggart. Teria que explicar o do John Knox, que jazia no Woody Wagon como se este fosse um carro fúnebre, morto por partida triplo, com o pescoço quebrado, o esôfago esmagado e um disparo no coração. Não seria fácil convencer a nenhum detetive de homicídios de que Knox tinha perecido em uma queda acidental. o do Daniel e Kathy não seria mais fácil de explicar que o do Knox. Quando descobrissem ao Anson nesse miserável estado, no tanque, pareceria-lhes uma vítima, não um criminoso. Com seu talento para o engano, seria convincente em seu papel de inocente e confundiria às autoridades. Só faltavam duas horas e meia para a troca. Mitch não confiava em que a polícia, tão burocrática como todos os serviços do governo, pudesse confirmar nesse lapso tudo o que lhe contasse e fazer algo por ajudar ao Holly. Além disso, John Knox tinha morrido em uma jurisdição local, Daniel e Kathy em outra, Jason Osteen em uma terceira. Competia a três burocracias independentes. E como se tratava de um seqüestro, era de supor que também o FBI se ocuparia do assunto. O terror o invadiu ao pensar em que podia ver-se obrigado a ficar imóvel e inerme enquanto os minutos corriam e as autoridades, por bem-intencionadas que fossem, atrasavam-se, procurando elucidar a situação e tudo o que tinha levado a ela. -Como está a senhora Rafferty? -perguntou Taggart. Mitch sentiu como se o outro chegasse ao fundo de seu ser, como se o detetive já tivesse desatado muitos dos nós do caso e estivesse empregando essa mesma corda para lhe tender um laço. Ao ver a expressão sobressaltada do Mitch, Taggart acrescentou: -Lhe aconteceu a enxaqueca? -OH, sim. -Mitch quase não pôde ocultar o alívio que lhe produziu dar-se conta de que o interesse do Taggart pelo Holly se originava em sua suposta enxaqueca-. Sente-se melhor. -Mas não de tudo, verdade? Em realidade, a aspirina não é o tratamento ideal para a enxaqueca. Mitch intuiu que o outro lhe tendia uma armadilha, mas não soube de que classe, se era uma armadilha, um laço, ou uma fossa, e tampouco soube como evitá-la. -Bom, lhe sinta bem. -Mas já faz dois dias que não vai ao trabalho -disse Taggart. Era possível que Iggy Barnes lhe houvesse dito ao detetive onde trabalhava Holly. Ao Mitch não surpreendeu que soubesse, mas que isto viesse depois de tirar a colação o das enxaquecas o alarmou. -Nancy Farasand diz que é estranho que a senhora Rafferty se tome um dia por enfermidade. Nancy Farasand era outra das secretárias da agência imobiliária onde trabalhava Holly. Mitch tinha falado com ela na tarde anterior. -Conhece a senhora Farasand, Mitch? -Sim. -Deu-me a impressão de ser uma pessoa muito eficiente. Cai-lhe bem sua esposa, tem muito boa opinião dela. -Ao Holly também cai bem Nancy. -E a senhora Farasand diz que não é próprio de sua esposa não avisar que vai faltar ao trabalho. Mitch deveu ter chamado ao trabalho do Holly essa manhã para dizer que seguia doente. Tinha esquecido fazê-lo. Também tinha esquecido telefonar ao Iggy para cancelar as atividades do dia. Depois de vencer a dois assassinos profissionais, tinha falhado por não estar atento a uma ou duas obrigações corriqueiras. -Ontem -disse o detetive Taggart- você me disse que quando viu como disparavam ao Jason Osteen estava falando por telefone com sua esposa. No carro se sentia encerrado. Mitch queria abrir o guichê para que entrasse o ar. O tenente Taggart tinha quase a mesma talha que Mitch, mas agora parecia mais fornido que Anson. O jardineiro se sentiu esquecido. -Ainda sustenta, ou pensa que foi assim, Mitch, que estava falando por telefone com sua esposa? A verdade era que falava com o seqüestrador. O que em seu momento parecia uma mentira fácil e segura possivelmente se converteu em uma armadilha. Mas não via modo de abandonar essa falsidade sem ter uma melhor para substitui-la. -Sim. Falava com ela. -Disse você que ela telefonou para lhe dizer que partia cedo do trabalho porque tinha uma enxaqueca. -Assim é. -De modo que falava com quando dispararam ao Osteen. -Sim. -Isso foi às 11.43 da manhã. Você disse que essa era a hora. -Olhei meu relógio imediatamente depois do tiro. -Mas Nancy Farasand diz que a senhora Rafferty chamou para avisar que não iria ontem pela manhã, que nunca foi ao escritório. Mitch não respondeu. Sentia que o martelo estava a ponto de cair sobre ele. -E a senhora Farasand diz que você a telefonou entre as 12.15 e as 12.30 de ontem. O interior do Funda parecia mais reduzido que o do porta-malas do Chrysler Windsor. Taggart seguiu. -A essa hora, você ainda estava na cena do crime, aguardando a que eu lhe fizesse algumas pergunta adicionais. Seu assistente, o senhor Barnes, seguiu plantando flores. Recorda-o? Quando o detetive se deteve, Mitch pôde falar com fim. -Se lembrança o que? -Que estava na cena do crime -respondeu secamente Taggart. -Claro. É obvio. -A senhora Farasand diz que quando você a telefonou entre as 12.15 e as 12.30, pediu falar com sua esposa. -Ela é muito eficiente. -O que não posso entender -disse Taggart- é por que telefonou ao escritório de bens raízes e pediu falar com sua esposa quarenta e cinco minutos depois de que, segundo seu próprio testemunho, ela o tivesse chamado a você para lhe dizer que partia daí porque tinha uma terrível enxaqueca. Grandes, transparentes, turbulentas quebras de onda de vento alagavam o beco. Mitch baixou o olhar ao relógio do salpicadero, sentindo que o coração lhe dava um tombo. -Mitch? -Sim? -me olhe. Com relutância, olhou ao detetive aos olhos. Agora, esses olhos de falcão não perfuravam ao Mitch, não o brocavam como antes. Em troca, o que era ainda pior, mostravam compaixão, convidavam às confidências, inspiravam confiança. -Mitch... onde está sua esposa?

 

Mitch recordou o aspecto que tinha o beco durante na tarde anterior, quando o alagou a luz carmesim do ocaso e o gato alaranjado de olhos verde radiativo espreitava entre as sombras, e recordou também como o gato tinha parecido transformar-se em ave. Então se tinha permitido albergar esperanças. Sua esperança era Anson e sua esperança tinha resultado uma grande mentira. Agora, o céu, gentil pelo vento, via-se duro, de um azul glacial, como se fosse um teto de gelo que tomava sua cor do oceano. O gato alaranjado se foi, o ave também. Não se movia nenhum ser vivente. A intensa luz era como uma faca de açougueiro que descarnasse as sombras até as reduzir a ossos. -Onde está sua esposa? -voltou a perguntar Taggart. O dinheiro estava no porta-malas do carro. O lugar e a hora do intercâmbio já estavam fixados. O relógio corria, o momento se aproximava. Tinha chegado muito longe, suportado muito e agora estava muito perto. Tinha descoberto o Mal com m maiúscula, mas também tinha chegado a ver algo que antes não percebia no mundo, algo puro e verdadeiro. Via um misterioso sentido no que antes só lhe parecia uma máquina ecológica. Se as coisas ocorriam por um motivo, possivelmente houvesse uma razão que não podia passar por cima para seu encontro com o persistente detetive. "Na riqueza e na pobreza. Na enfermidade e na saúde. Amar, honrar, cuidar. Até que a morte nos separe". Seus votos. Tinha-os formulado. Ninguém mais se comprometeu assim com o Holly. Só ele. O era o marido. Ninguém estaria tão disposto a matar por ela, a morrer por ela. Cuidar é amar e também expressar esse amor. Cuidar é fazer tudo o que pode pelo bem-estar e a felicidade da pessoa que amas, apoiá-la, confortá-la. Protegê-la. Possivelmente o sentido de seu encontro com o Taggart fosse lhe advertir de que tinha chegado ao limite de sua capacidade para proteger ao Holly por sua conta, respirá-lo a que se desse conta de que solo já não podia ir mais longe. -Mitch, onde está sua esposa? -O que lhe pareço? -Em que sentido? -perguntou Taggart. -Em qualquer sentido. Que impressão lhe dou? -A gente parece pensar que você é um tipo reto. -Perguntei o que lhe pareço com você. -Não o tinha conhecido até agora. Mas me parece que, por dentro, é feito de moles de aço e relógios em marcha. -Não sempre fui assim. -Ninguém poderia sê-lo. Estalaria em uma semana. Também me parece que você trocou. -Só me conhece há um dia. -Trocou de ontem a hoje. -Não sou mau. Suponho que todos os maus dizem isso. -Não de forma tão direta. No céu, talvez o bastante alto para voar por cima do vento, e sem dúvida o suficiente como para não projetar sua sombra sobre o beco, um avião a reação que o sol banhava de prata se dirigia para o norte. Mitch ficou olhando como se fora algo estranho. Agora, o mundo parecia haver-se reduzido a esse carro, a esse momento de perigo. Mas o certo era que o mundo não se encolheu e as maneiras possíveis de ir de um lugar a outro qualquer eram quase infinitas. -antes de lhe dizer onde está Holly, quero que me prometa algo. -Só sou um policial. Não tenho autoridade para negociar reduções de condenações. -Assim acredita que lhe fiz mal. -Não. Só lhe estou falando com franqueza. -A questão é que não temos muito tempo. O que quero que me prometa é que, quando tiver ouvido a medula do assunto, atue depressa e não perca tempo pinçando nos detalhes. -Nos detalhes está a medula, Mitch. -Quando ouvir isto, saberá onde está a medula. Mas, com tão pouco tempo, não quero que a burocracia policial arruíne as coisas. -Sou um policial sozinho, não uma burocracia. Quão único posso lhe prometer é que farei tudo o que me seja possível. Mitch respirou fundo. -Holly foi seqüestrada. Querem um resgate. Taggart ficou olhando. -Perdi-me algo? Pedem-lhe um resgate a você? -Querem dois milhões de dólares ou a matarão. -Você é jardineiro. -me crie que sei. -De onde ia tirar dois milhões? -Disseram que encontraria o modo. Dispararam ao Jason Osteen para me demonstrar como atuavam. Acreditei que só era um tipo que passeava um cão, que tinham matado a um que passava casualmente por aí. Os olhos do detetive eram tão penetrantes que lê-los-se fazia impossível. Seu olhar diseccionaba. -Jason acreditou que lhe disparariam ao cão. Assim, assustaram-me para que os obedecesse e, ao mesmo tempo, reduziram a eventual partilha de cinco a quatro partes. -Continue -disse Taggart. -Quando cheguei a casa e me encontrei com a cenografia que montaram ali, quando tiveram a sua mercê, ordenaram-me que fosse pedir lhe o dinheiro a meu irmão. -Seriamente? Tanto dinheiro tem? -Anson fez não sei que operação criminal com o Jason Osteen, John Knox, Jimmy Null e outros dois cujos nomes nunca soube. -Que operação era essa? -Não sei. Não fui parte dela. Não sabia que Anson estivesse metido nessa mierda. E embora soubesse do que se tratava, seria um desses detalhes que você não precisa saber. -De acordo. -O essencial é que... Anson os extorquiu à hora da partilha e só se inteiraram de qual tinha sido o verdadeiro montante do obtido muito depois. -por que decidiram levar-se a sua esposa? por que não foram diretamente a por ele? -É intocável. É muito valioso para algumas pessoas muito importantes e muito duras. De modo que o atacaram através de seu irmão menor. Eu. Supuseram que não quereria ver como eu perdia a minha esposa. Mitch acreditava ter feito uma declaração neutra, mas Taggart notou algo mais. -Não lhe quis dar o dinheiro. -Pior ainda. Entregou a certa gente. -Certa gente? -Para que me matassem. -Seu irmão lhe fez isso? -Sim, meu irmão. -E por que não o mataram? Mitch seguiu olhando-o aos olhos. Agora, tudo tinha saído à luz e não podia pretender reservar-se muitos dados se queria que o outro colaborasse com ele. -Algumas costure lhes saíram mau. -Por Deus, Mitch, fale. -Então, retornei onde meu irmão. -Deve ter sido toda uma reunião. -Não brindamos com champanha, mas trocou de ideia respeito ao de me ajudar. -Deu-lhe o dinheiro? -Assim é. -Onde está seu irmão agora? -Vivo, mas pacote. A troca é às três e tenho motivos para acreditar que um dos seqüestradores assassinou aos outros. Jimmy Null. Ele sozinho é quem tem a Holly agora. -Quanto me está ocultando? -Quase tudo o que agora não importa -Mitch dizia a verdade. Através do pára-brisa, o detetive contemplava o beco. Tirou uma caixa cilíndrica de caramelos duros de um bolso da jaqueta. Levantou o extremo do cilindro e tirou um caramelo. Sustentou a doce pastilha entre os dentes enquanto fechava a caixa. Quando a devolveu ao bolso, sua língua sugou o caramelo de entre os lábios. Havia algo ritual na seqüência. -E bem? -perguntou Mitch-. Crie-me? -Tenho um detector de contos chineses maior que minha próstata -disse Taggart-. E não se ativou. Mitch não sabia se sentir-se aliviado ou não. Se ia resgatar ao Holly solo e ambos resultavam mortos, ao menos não teria que viver com a má consciência de que a tinha falhado. Mas se as autoridades lhe tiravam o assunto das mãos e Holly morria e ele ficava com vida, a responsabilidade seria uma carga intolerável. Não tinha mais remedeio que reconhecer que não havia possibilidade alguma de que ele o controlasse tudo, que era inevitável que o destino fosse seu sócio nisto. Devia fazer o que pressentisse que estava bem para o Holly, com a esperança de que o que sentia terminasse por ser o que realmente estava bem. -E agora o que? -perguntou. -Mitch, o seqüestro é um delito federal. Teremos que notificá-lo ao FBI. -Dão-me medo as complicações. -São bons. Ninguém tem mais experiência neste tipo de delitos. De todos os modos, como só ficam duas horas, não terão tempo de enviar uma equipe de especialistas. Provavelmente queiram que, ao princípio, nos nós encarreguemos. -E isso que tal é desde meu ponto de vista? -Somos bons. Nossa equipe SWAT é de primeira. Temos um perito negociador para situações com reféns. -É muita gente -lamentou Mitch. -Eu estarei ao mando. Parece-lhe que sou alguém que dispara por diversão? -Não. -Parece-lhe que sou um pesado com os detalhes? -Pesado como o chumbo. O detetive sorriu. -Muito bem. Recuperaremos a sua esposa. Alargou a mão e tirou a chave do carro. Mitch se sobressaltou. -por que fez isso? -Não quero que troque de idéia e, depois de tudo, dita ir sozinho. Não seria o melhor para ela, Mitch. -Já tomei a decisão. Necessito sua ajuda. Pode me confiar as chaves. -dentro de um momento. Só estou cuidando de você, de você e do Holly. Eu também tenho uma esposa a que amo, e duas filhas, já lhe falei delas, assim sei como está você agora mentalmente. Sei o que sente. Confie em mim. As chaves desapareceram em um bolso da jaqueta. O detetive tirou um telefone móvel de outro bolso. Enquanto acendia o telefone, Taggart mastigou o que ficava da pastilha de caramelo. Um aroma de guloseima adoçou o ar. Mitch observou à polícia, que pulsava a tecla de marcação abreviada. Uma parte dele sentiu que o contato desse dedo com esse botão não só tinha emitido uma chamada, a não ser selado o destino do Holly. Enquanto Taggart falava em jargão policial com quem o atendeu e lhe dava a direção do Anson, Mitch olhou para ver se via-se outro avião prateado pelo horizonte. O céu estava vazio. Taggart cortou a comunicação e se meteu o telefone no bolso. -Assim que seu irmão está aí, na casa? Mitch não podia seguir fingindo que Anson estava em Las Vegas. -Sim. -Onde? -No tanque. -vamos falar com ele. -por que? -Fez algum trabalho com o Jimmy Null, não? -Sim. -Então, conhece-o bem. Se queremos recuperar ao Holly das garras do Null de forma limpa e eficaz, segura e rápida, precisamos nos inteirar de tantos detalhes sobre ele como nos é possível. Quando Taggart abriu a porta do lado do acompanhante para sair, um vento transparente irrompeu no Funda. Não levava pó nem desperdícios, a não ser só a promessa do caos. Para bem ou para mau, a situação ia das mãos ao Mitch. Não acreditava que fora para bem. Taggart fechou a porta, mas Mitch ficou sentado ao volante durante um momento mais. Seus pensamentos giravam e se atropelavam; sua mente, e algo mais, não deixava de funcionar. Saiu ao açoite do vento.

 

Viu o céu limpo, a crua luz, o vento que cortava e, dos cabos de tendido elétrico, ouviu que saía um gemido como o de um animal agonizante. Mitch conduziu ao detetive até a entrada de serviço, de madeira grafite. Quando correu o ferrolho, o vento o arrebatou das mãos e o estrelou contra o muro da garagem. Era indubitável que Julian Campbell enviaria a seus homens, mas agora não eram uma ameaça, porque não chegariam antes que a polícia. E a polícia estaria ali em uns minutos. Quando avançava pelo estreito atalho peatonal de pavimentação, que os protegia do impacto do vento, Mitch se topou com uma coleção de escaravelhos mortos. Dois eram do tamanho de moedas de vinte e cinco centavos, um, do diâmetro de uma de dez. Tinham abdómenes amarelos e rígidas patas negras. Estavam de barriga para cima, em equilíbrio sobre seus élitros convexos, e um suave redemoinho de ar os fazia girar em lentos círculos. Anson, algemado a uma cadeira, sentado em sua própria urina, seria uma figura patética. Desempenharia o papel de vítima em forma convincente, com a habilidade e a astúcia de um psicopata. Mesmo que Taggart tinha dado a entender que o relato do Mitch lhe pareceu sincero, possivelmente se assombrasse ante a dureza com que este tratou ao Anson. O detetive, que não tinha tido nenhuma relação direta com o Anson e que só tinha ouvido uma versão condensada do ocorrido, podia pensar que o tratamento não só havia sido duro, mas também, o que era pior, cruel. Ao cruzar o pátio, onde o vento voltou a acossá-lo, Mitch notava a presença do detetive a suas costas. Embora estavam em terreno aberto, sentia-se sufocado, esmagado pela claustrofobia. Em sua mente, ouvia a voz do Anson: "Contou-me que matou a mamãe e papai. Apunhalou-os com instrumentos de jardinagem. Disse que retornaria e me mataria também". Quando chegaram à porta traseira, ao Mitch tremiam tanto as mãos que lhe custou colocar a chave na fechadura. "Matou ao Holly, detetive Taggart. Inventou o conto de que a tinham seqüestrado e veio a me pedir dinheiro, mas depois admitiu que a tinha matado". Taggart sabia que Jason Osteen não ganhava a vida com honestidade. Sabia, pelo Leelee Morheim, que Jason fazia um trabalho com o Anson e que tinha sido extorquido. Assim sabia que Anson delinqüia. Assim e tudo, quando Anson contasse uma história que contradissera a do Mitch, Taggart lhe emprestaria atenção. Sempre lhes contam distintas histórias aos policiais. E, sem dúvida, a maior parte das vezes, a verdade estava em algum lugar situado entre elas. Chegar à verdade tomará tempo, e o tempo é como um rato que rói os nervos do Mitch. O tempo é uma armadilha que se abre sob os pés do Holly, o tempo é um nó corrediço que lhe rodeia ao pescoço. A chave entrou na fechadura. O fecho se correu com um estalo. Da soleira, Mitch acendeu as luzes. Em seguida viu no chão um comprido rastro de sangue ao que antes não lhe tinha dado importância, mas que agora o preocupava. Quando golpeou ao Anson na cabeça, feriu-lhe na orelha. O rastro ficou quando o arrastava ao tanque. tratou-se de uma ferida menor. Mas as manchas do estou acostumado a faziam pensar em algo pior que um corte na orelha. Tais evidências enganosas expor dúvidas, aguçavam suspicacias. O tempo, porta armadilha, nó corrediço, rato que rói, soltou um mole que se esticava no interior do Mitch. Ao entrar na cozinha, desabotoou-se com dissimulação um botão da camisa, colocou a mão debaixo dela e tirou o Taser que tinha metido na cintura, contra o ventre. Tinha-o tirado do compartimento da porta enquanto se atrasava no Funda. -O tanque fica por aqui -disse Mitch, dando uns passos mais antes de voltar-se repentinamente, blandiendo o Taser. O detetive não o seguia tão de perto como Mitch supunha. Ia a dois prudentes passos de distância. Alguns Taser disparam cabos, que transmitem uma descarga lhe paralisem a meia distancia. Outros, requerem que o extremo ofensivo da arma entre em contato com o atacado, o que requer uma aproximação tão grande como o de um acuchillamiento. Este Taser pertencia à segunda classe, assim Mitch devia aproximar-se e fazê-lo depressa. Quando Mitch tendeu o braço direito, Taggart o bloqueou com o esquerdo. O impacto esteve a ponto de fazer que Mitch soltasse o Taser. Dando um passo atrás, o detetive colocou a mão direita sob sua jaqueta esportiva, procurando, sem dúvida, a arma que devia ter em uma capa pendurada do ombro esquerdo. Taggart recuou até ficar contra uma encimera. Mitch insinuou com a esquerda, golpeou com a direita. A mão do Taggart, empunhando a pistola emergiu da jaqueta. Mitch procurava pele nua, não queria arriscar-se a que o tecido isolasse parcialmente a descarga, assim que lhe deu ao detetive na garganta. Taggart pôs os olhos em branco e abriu a boca. Disparou um tiro antes de que lhe cedessem os joelhos e se desabasse. O disparo, que soou inusualmente forte, retumbou na habitação.

 

Mitch não estava ferido, mas recordou que John Knox se disparou a si mesmo ao cair do mezanino da garagem e se agachou junto ao detetive, preocupado. No chão, junto ao Taggart, estava sua pistola. Mitch a apartou, pondo-a fora de seu alcance. Taggart se estremecia como se sentisse um frio que lhe chegasse até o tutano. Suas mãos arranhavam os ladrilhos e borbulhas de saliva lhe buliam nos lábios. Uma cinta de fumaça tênue, magra e cheirosa se elevava da jaqueta esportiva do Taggart. A bala a tinha atravessado, abrindo um ardente buraco nela. Mitch lhe abriu a jaqueta, procurando uma ferida. Não havia nenhuma. O alívio que experimentou não o alegrou muito. Seguia sendo culpado de atacar a um agente de polícia. Era a primeira vez que o fazia machuco a um inocente. Descobriu que o remorso tem sabor; um amargor lhe subiu pela garganta. O detetive gesticulava o braço ao Mitch, mas não podia fechar a mão para capturá-lo. Procurou dizer algo, mas devia ter a garganta paralisada, os lábios intumescidos. Mitch não queria lhe dar uma segunda descarga com o Taser. Disse "sinto muito" e pôs mãos à obra. A chave do carro tinha desaparecido na jaqueta do Taggart. Mitch a encontrou no segundo bolso que registrou. Do tanque, Anson, depois de ficar pensando no disparo que tinha ouvido e chegar a uma conclusão sobre o que podia significar, ficou a gritar. Mitch ignorou-o. Tomando ao Taggart dos pés, Mitch o arrastou até o pátio de tijolo. Deixou a pistola do detetive na cozinha. Quando fechava a porta traseira, ouviu a campainha do timbre. A polícia estava ante a porta principal. Mitch, tomando um momento para jogar a chave à porta, demorando assim o momento em que encontrassem ao Anson e suas mentiras, disse ao Taggart: -A amo muito para confiar em ninguém mais em tudo isto. Lamento-o. Cruzou o pátio à carreira, frente à garagem. Passou pelo aberto postigo traseiro e se encontrou no beco que o vento varria. Quando vissem que ninguém ia à porta, os policiais se dirigiriam à lateral da casa, ao pátio, onde encontrariam ao Taggart sobre a pavimentação. Em segundos, estariam no beco. Ficando ao volante, arrojou o Taser ao assento do acompanhante. Chave, aceso, rugido do motor. No compartimento da porta estava a pistola de um dos assassinos a salário do Campbell. Ficavam sete cartuchos no carregador. Não tinha intenção de apontar aos policiais. Quão único podia fazer era fugir como alma que leva o diabo. Pôs rumo ao este, convencido de que um carro patrulha estava a ponto de cruzar-se na saída do beco, detendo-o. chama-se "pânico" ao medo que volta para as pessoas irracionais, sobre tudo quando o experimentam muitas pessoas ao mesmo tempo, um público ou uma turfa. O medo do Mitch sobrava para uma multidão, assim que o pânico se apoderou dele. Ao chegar ao extremo do beco, dobrou à direita e saiu à rua. Na seguinte intercessão girou à esquerda, retomando seu este rumo. Esta zona de Coroa do Mar, que, a sua vez, é parte do Newport Beach, chama-se O Village. É um quadriculado de ruas que podia fechar-se com apenas três pontos de controle. Devia ultrapassar esses possíveis lugares de detenção. E tinha que fazê-lo depressa. Na biblioteca do Joseph Campbell, no porta-malas do Chrysler e também a segunda vez que entrou nesse porta-malas, teve medo. Mas nunca foi tão intenso como o de agora. Então temia por ele mesmo, agora pelo Holly. O pior que lhe podia ocorrer era que a polícia o capturasse ou o matasse. Tinha avaliado todas as possibilidades antes de escolher a que lhe pareceu melhor. Embora agora não lhe importava o que lhe pudesse ocorrer no pessoal, sim era consciente de que, se lhe acontecia algo, Holly ficaria sozinha. Algumas das ruas do Village são estreitas. Mitch circulava por uma delas. Havia veículos estacionados a um e outro lado. À velocidade a que ia, corria o risco de lhe arrancar a porta a algum se alguém a abria de repente. Taggart podia descrever o Funda. Em minutos, o departamento correspondente lhes subministraria seus dados. Não podia permitir-se danificar o carro, pois isso o faria ainda mais reconhecível. Chegou ao semáforo da estrada da Costa Pacífica. Estava em vermelho. Um intenso tráfico se dirigia ao norte e ao sul por ambos os sulcos da estrada. Não podia passar em vermelho e entrar nessa corrente sem provocar uma cadeia de choques, em meio da qual ele mesmo ficaria apanhado. Jogou uma olhada pelo espelho retrovisor. Uma caminhonete de caixa fechada, ou possivelmente uma caminhonete modificada se aproximava. Ainda estava a uma rua dele. No teto viam-se luzes como as que levam os carros de polícia. Fileiras de velhas árvores se alinhavam a um e outro lado da rua. As sombras salpicadas e os raios de luz, formando véus sobre o veículo, faziam-no difícil de identificar. Pelos sulcos que se dirigiam ao norte, passou um carro da polícia. abria-se passo com as luzes acesas, embora sem fazer soar a sereia. por detrás do Funda, o veículo que o preocupava avançou uma meia maçã. Então, Mitch distinguiu a palavra AMBULÂNCIA estampada na franja superior do pára-brisa. Não tinham pressa. Deviam estar fora de serviço ou talvez levavam um morto. Respirou fundo. A ambulância freou detrás dele. Seu alívio foi breve, pois em seguida se perguntou se os paramédicos não teriam por costume escutar a freqüência policial em seus rádios. O semáforo ficou em verde. Cruzou os sulcos que se dirigiam ao sul e, dobrando à esquerda, tomou a estrada costeira com rumo norte. As gotas de suor se perseguiam umas a outras por sua nuca, deslizando-se sob o pescoço da camisa antes de escorregar pelas costas. Só tinha percorrida a distância de uma maçã pela estrada costeira quando uma sereia soou a suas costas. Esta vez, o que viu pelo espelho retrovisor foi um carro da polícia. Só os idiotas se fazem perseguir pela polícia. Esta tem recursos aéreos, além dos outros muitos de que dispõe em terra. Derrotado, Mitch aproximou o veículo à borda. Assim que deixou livre o sulco, o carro patrulha seguiu seu caminho a toda velocidade. Do borda, Mitch seguiu olhando até que o carro patrulha, depois de percorrer duas maçãs, abandonou a estrada. Dobrou à esquerda, internando-se no extremo norte do Village. Evidentemente, Taggart ainda não se recuperou o suficiente para lhes dar uma descrição do Funda. Mitch respirou muito fundo. Voltou-o a fazer. acariciou-se a nuca. secou-se as mãos nas calças. Tinha atacado a um oficial de polícia. Guiando o Funda entre o denso tráfico que se dirigia ao norte, perguntou-se se teria se tornado louco. sentia-se decidido, temerário possivelmente, mas não privado de raciocínio. Claro que, do interior de seu demencial borbulha, um lunático não reconhece a loucura.

 

Quando Holly consegue extrair o prego do tablón, faz-o dar voltas uma e outra vez entre seus dedos machucados, perguntando-se se será tão letal como imaginava quando ainda estava encravado na madeira. É reto, tem mais de sete, mas menos de dez centímetros de comprimento, é grosso e, sim, pode dizer-se que serve de punção. A ponta não é tão afiada, como, digamos, o cruel arremate de um estilete, mas mesmo assim é bastante afiada. Enquanto o vento entoa canções cheias de violência, ela se imagina as maneiras em que poderia empregar o punção contra o monstro. Sua imaginação resulta ser tão fértil que a perturba. Suas próprias idéias não demoram para horrorizá-la, de modo que troca de tema. Em lugar de imaginar como usar o punção, pensa onde poderia ocultá-lo. Seja qual for sua utilidade, o que a dará é a surpresa. Embora o punção provavelmente não se note se o mete no bolso dos jeans, preocupa-lhe não poder extrai-lo depressa se se produzir uma emergência. Quando levaram-na de sua casa a este lugar, ataram-lhe estreitamente as bonecas com um xale. Se ele voltar a fazê-lo quando a levar daqui, ela não poderá separar as mãos nem, portanto, colocar seus dedos com facilidade nesse bolso. O cinturão não oferece possibilidades, de modo que na escuridão, a provas, apalpa as sapatilhas. Não pode colocar o prego dentro de uma delas; como mínimo, produziria-lhe uma ampola no pé. Talvez possa ocultá-lo no exterior da sapatilha. Afrouxa a sapatilha esquerda, coloca com cuidado o prego entre a lingüeta e uma das lapelas e volta a rodear o cordão. Ao ficar de pé e caminhar em círculo em torno da argola a que está amarrada, não demora para descobrir que o rígido prego impede que o pé flexione ao pisar. Não pode evitar certo coxeio. Finalmente, eleva-se a camiseta e esconde o prego no prendedor. Não é tão exuberante como o das mulheres que se dedicam a lutar no barro, mas a natureza foi mais que generosa com ela. Para evitar que o prego lhe deslize entre as taças, faz passar a ponta pelo elástico, assegurando-a. Está armada. Uma vez completada a tarefa, seus preparativos lhe parecem patéticos. Inquieta, volta sua atenção à argola, perguntando-se se poderá liberar-se ou, ao menos, aumentar seu magro arsenal. Antes, tentando com as mãos, chegou à conclusão de que a argola está soldada a uma prancha de aço de um centímetro de espessura e vinte de lado. A prancha está sujeita ao chão por quatro parafusos que devem estar assegurados com porcas de abaixo. Não pode dizer com certeza que se trate de parafusos, pois algum material foi vertido no buraco que cada um ocupa. Ao solidificar-se, formou um atoleiro duro que cobre a ranhura da cabeça dos parafusos, se é que o são. Desalentada, tende-se no colchão inflable, com a cabeça na parte elevada para fazer de travesseiro. Antes dormiu a momentos. Seu esgotamento emocional se expressa em fatiga física, e sabe que poderia voltar a dormir. Mas não quer amodorrarse. Teme que, de fazê-lo, desperte quando já o tiver em cima. fica com os olhos abertos, embora esta escuridão é mais funda que a que há atrás de suas pálpebras, e escuta o vento, embora este não a consola. Ao cabo de um tempo, não sabe quanto, acordada. A escuridão ainda é absoluta, mas sabe que não está sozinha. Algum sutil aroma a alerta, ou talvez a percepção intuitiva de que alguém lhe aproxima. sinta-se dando um coice, o colchão de ar geme sob seu peso, a cadeia tilinta sobre a zona do chão que se estende entre a argola e o grilhão. -Sou eu -diz-lhe ele em tom tranqüilizador. Holly se esforça por penetrar a escuridão, porque lhe parece que o campo gravitacional da loucura do homem deveria condensar a negrume em torno dele, voltando-o mais escuro que a escuridão mesma; mas não vê nada. -Olhava-te dormida -diz-, mas depois de um momento me preocupou que a luz da lanterna te pudesse despertar. Descobrir sua posição pela voz não é tão fácil como Holly tinha suposto. -Que bom -diz ele- é estar contigo na escuridão. A sua direita. A um metro de distância. Pode estar de joelhos ou de pé. -Tem medo? -pergunta o louco. -Não -ela minta sem vacilar. -Decepcionaria-me que tivesse medo. Acredito que está subindo até a plenitude de seu espírito, e quem se eleva deve estar mais à frente do medo. Enquanto fala, parece haver-se movido até ficar detrás dela. A jovem volta a cabeça, escutando com atenção. -No Vale, em Novo o México, uma noite caiu uma nevada muito forte. Se não se equivocar, tem-no à direita, de pé. O vento mascarou os sons que produz ao mover-se. -No Vale, caíram quinze centímetros de neve em quatro horas. A luz que irradiava a neve voltava misterioso a paisagem... Os cabelos lhe arrepiam, a pele da nuca lhe estremece ao pensar na confiança com que ele se move nessa escuridão total. Nem sequer o fulgor de seus olhos o delata, como ocorreria se fosse um gato. -Misterioso, de uma maneira que não se vê em nenhum outro lugar do mundo. Parecem afundá-los planos e elevá-las colinas, como se não fossem mais que campos de bruma e muros de névoa, formas e dimensões ilusórias, reflexos de reflexos que a sua vez não são mais que o reflexo de um sonho. Agora, a suave voz soa frente a ela e Holly decide acreditar que ele não se moveu, que sempre esteve aí. Pensa que, ao haver despertado de repente, não pode confiar inicialmente em seus sentidos. Uma escuridão tão perfeita desagrade o som, desorienta. -No plano, era uma tormenta sem vento, mas nas altas cúpulas sopravam fortes rajadas, pois, quando a nevada amainava, via-se que quase todas as nuvens faziam-se farrapos e se dispersavam assim que se aproximavam daquelas. Entre as nuvens que ficavam, via-se um firmamento negro, festoneado de colares de estrelas. Ela sente o prego entre os peitos, temperado pelo calor de seu corpo, e tráfico de que isso a conforte. -Ao vidraceiro ficavam foguetes do último 4 de Julho, e a mulher que sonhava com cavalos mortos lhe ofereceu ajudá-lo a colocá-los e dispará-los. Suas histórias sempre levam a algum lado, e Holly aprendeu a temer seus finais. -Havia estrelas, rodas, vulcões, girândolas, crisântemos dobre e palmeiras douradas... Sua voz se feito mais suave e, agora, está mais perto. Talvez se incline sobre ela, possivelmente tenha o rosto a trinta centímetros do dele. -Estalos vermelhos, verdes, azuis como a safira e douradas iluminaram o céu negro, e também projetaram um reflexo colorido e difuso sobre os campos nevados, criando suaves bandas de cores sobre a neve. Enquanto a assassina fala na escuridão, Holly sente que está a ponto de beijá-la. Como reagirá quando ela, indevidamente, se à parte, enojada? -A nevada se terminava. Uns poucos flocos tardios, do tamanho de dólares de prata, descendiam descrevendo amplos círculos. As cores também se refletiam neles. Ela se inclina para trás e inclina a cabeça em temerosa antecipação do beijo. Então, pensa que talvez ele não queira beijá-la nos lábios a não ser na nuca. -Os flocos, cintilantes de fogo vermelho, azul e dourado, vão caindo lentamente, reluzindo, como se algo mágico ardesse no alto da noite, como se caíssem brasas brilhantes como jóias de um palácio glorioso que se incendeia ao outro lado do firmamento. detém-se. É evidente que espera uma resposta. Holly a dá. -Sonha tão magnífico, tão formoso. Tivesse-me gostado de estar ali. -me tivesse gostado que estivesse ali -assente ele. Dando-se conta de que possivelmente ele tome suas palavras como um convite, Holly se apressa a seguir falando. -Tem que haver algo mais. Que mais ocorreu no Vale essa noite? me conte mais. -A mulher que sonhava com cavalos mortos tinha uma amiga que dizia ser uma condessa de algum país da Europa oriental. Conheceu alguma vez a uma condessa? -Não. -A condessa tinha um problema de depressão. Combatia-o tomando êxtase. Tomou muito êxtase e entrou nesse campo nevado que os fogos de artifício transfiguravam. Sentiu mais felicidade que nunca em sua vida e se matou. Outra pausa que requer uma resposta, e Holly não se atreve a fazer mais que um direto comentário. -Que triste. -Já sabia que o entenderia. Triste, sim. Triste e estúpido. O Vale é uma porta que dá entrada a uma viagem de grandes mudanças. Essa noite, nesse momento em particular, a trascendencia se ofereceu a todos os pressente. Mas sempre estão os que não podem ver. -A condessa. -Sim, a condessa. Uma pressão invisível parecia condensar a escuridão, fazendo-a cada vez mais negra. Sente seu fôlego quente sobre a frente, os olhos. Não tem aroma. Em seguida desaparece. Talvez o que haja sentido não fora seu fôlego, a não ser uma corrente de ar. Quer acreditar que só foi uma corrente de ar e pensa em coisas podas, como seu marido, seu bebê, a luz do sol. -Crie nos sinais, Holly Rafferty? -diz ele, de repente. -Sim. -Presságios. Portentos. Augúrios. Mochos augure, forma nas nuvens, gatos negros, espelhos quebrados, luzes misteriosas no céu. Alguma vez viu um sinal, Holly Rafferty? -Acredito que não. -Crie que alguma vê o fará? Sabe o que quer ouvir e se apressa a dizê-lo. -Sim. Assim o espero. Pressente um fôlego morno sobre a bochecha esquerda, depois, nos lábios. Se não ser sua imaginação e se trata dele, e, em seu foro íntimo, sabe que é ele, nada o diferencia da escuridão, embora só uns centímetros os separam. A escuridão da habitação invoca escuridão em sua mente. Imagina fincado frente a ela, nu, com o pálido corpo coberto de símbolos ocultos pintados com o sangue dos que matou. Pugnando por evitar que o medo que a invade se ouça em sua voz, volta a falar, a ganhar tempo. -Você viu muitos sinais, verdade? O fôlego, o fôlego, o fôlego sobre seus lábios. Mas não chega o beijo e, em seguida, tampouco o fôlego, porque ele se retira. -Muitas. Tenho uma sensibilidade especial para as ver. -Por favor, me conte alguma. Ele cala. Seu silêncio é um peso afiado e sibilino, uma espada que pende sobre ela. Talvez começou a perguntar-se se a mulher não estará falando para evitar o beijo. De ser possível, ela deve evitar ofendê-lo. Sair desse lugar sem desenganar o da estranha, escura, fantasia romântica que parece possui-lo é tão importante como sair dali sem ser violada. O homem parece acreditar que, ao fim e ao cabo, ela decidirá que quer ir com ele a Guadalupita, Novo o México, e que ali "ficará atônita". Enquanto siga teimado nessa crença, que Holly procurou reforçar com tanta sutileza, tratando de não despertar suas suspeitas, possivelmente possa lhe tirar vantagem de algum jeito quando faça-se necessário, no momento em que a crise chegue ao ponto máximo. Quando seu silêncio começa a lhe parecer com o Holly amenazadoramente prolongado, a assassina fala ao fim. -Isto ocorreu quando, esse ano, o verão se convertia em outono. Todos diziam que as aves se partiram ao sul antes do acostumado e se avistavam lobos em lugares onde não os tinha havido durante uma década. Sentada na escuridão, muito erguida, Holly mantém os braços cruzados sobre o peito. Está em guarda. -O céu tinha um aspecto oco. Parecia que se podia quebrar se lhe atirava uma pedra. Alguma vez esteve no Eagle Nest, em Novo o México? -Não. -Saindo dali, eu conduzia para o sul, por um caminho asfaltado, de dois sulcos, pelo menos trinta quilômetros ao leste do Taos. Havia duas moças fazendo carona nesta estrada, direção norte. No teto, o vento encontra outro vazio e modula uma nova voz. Agora imita o arrepiante uivo dos coiotes quando saem de caçada. -Tinham idade para ir à universidade, mas não eram estudantes. notava-se que foram em busca de algo, que confiavam em suas boas botas de excursão, em seus mochilas e fortificações e em toda sua experiência. detém-se, para aumentar o interesse ou, talvez, saboreando a lembrança. -Vi o sinal e soube em seguida do que se tratava. Era um abutre, que, com as asas completamente estendidas, imóveis, planejava sobre suas cabeças. Sem esforçar-se, aproveitava as correntes de ar e ia exatamente à mesma velocidade a que avançavam as moças. Ela lamenta havê-lo animado a embarcar-se nesta história. Fecha os olhos para não ver as imagens temente que ele vá descrever. -A só dois metros por cima de suas cabeças e apenas um metro por detrás delas, o ave planejava, mas elas não o notavam. Elas nem o viam, mas eu sabia o que significava. Holly tem muito medo à escuridão que a rodeia para manter os olhos fechados. Abre-os, embora não vê nada. -Sabe o que significava essa ave, Holly Rafferty? -A morte -diz ela. -Sim, exato. Sim, está-te elevando até a plenitude de seu espírito. Vi o ave e me dava conta de que a morte se abatia sobre as moças, que já não ficava muito tempo neste mundo. -Y... ficava? -Esse ano, o inverno chegou logo. Houve muitas nevadas sucessivas e o frio era muito intenso. O degelo da primavera se estendeu até o verão e, quando a neve se fundiu, a final de junho, seus corpos apareceram, atirados em um campo perto de Arroio Fundo, ao outro lado do Wheeler Peak, que é o lugar onde as vi na estrada. Reconheci as fotos do periódico. Holly reza em silencio pelas famílias das moças desconhecidas. -Quem sabe o que lhes ocorreu -continua ele-. Estavam nuas, assim podemos imaginar em parte o que terão suportado; mas, embora nos possa parecer que se tratou de uma morte horrível, trágica também, pelo jovens que eram, sempre há possibilidade de iluminação, inclusive na pior das situações. Se vamos em busca de algo, aprendemos de tudo e crescemos. Talvez toda morte entranhe momentos de beleza iluminadora e a possibilidade de transcender. Acende a lanterna. Está sentado no chão, diretamente frente a ela e com as pernas cruzadas. Se a luz a tivesse surpreso quando começou essa conversação, possivelmente tivesse dado um coice. Agora não se surpreende com tanta facilidade e, além disso, a luz alivia-a tanto que seria pouco provável que se assustasse ao vê-la. Ele leva os grampos-máscara de esqui que só permitem ver seus lábios esfolados e seus olhos de cor azul berilo. Não está nu, nem pintado com o sangue de os que matou. -Chegou a hora de partir -diz ele-. Pagarão um milhão quatrocentos mil dólares por seu resgate. Quando tiver o dinheiro em meu poder, terá chegado o momento de tomar uma decisão. A cifra a deixa sobressaltada. Talvez se trate de uma mentira. Holly perdeu toda noção do tempo, mas mesmo assim fica confundida e assombrada pelas palavras dele. -Já é... a meia-noite da quarta-feira? Ele sorri sob sua máscara. -Faltam uns minutos para a uma da tarde da terça-feira -informa-. Seu persuasivo marido convenceu a seu irmão de que ponha o dinheiro antes do que houvesse parecido possível. Tudo isto se desenvolveu com tanta fluidez, que é óbvio que o que o impulsiona são as rodas do destino. fica de pé e lhe indica com um gesto que ela também o faça. Holly obedece. Como antes, ata-lhe as mãos à costas com um xale de seda azul. Voltando a ficar frente a ela, aparta-lhe o cabelo da frente com gesto tenro. Enquanto suas mãos, tão frite como pálidas, estão assim atarefadas, não deixa de olhá-la aos olhos com expressão de romântico desafio. Ela não lhas desviar o olhar. Só fecha os olhos quando ele os enfaixa com grosas gazes, umedecidas para que se adiram. Rodeia-as com outra parte de seda, ao que lhe dá três voltas antes de atá-lo pela parte posterior de sua cabeça. Suas mãos lhe roçam o tornozelo direito quando abre o grilhão, liberando a da cadeia e a argola. Enfoca a lanterna sobre a atadura, e ela logo que vê a luz através da gaze e a seda. Evidentemente satisfeito com sua obra, baixa a lanterna. -Quando chegarmos ao lugar em que se pagará o resgate -promete-, tirarei-te as ataduras. Só são para o trajeto. Como ele não é o que a golpeou e lhe atirou do cabelo para fazê-la gritar, ela é convincente quando diz. -Nunca foi cruel comigo. Ele a estuda em silêncio. Assim o supõe ela, pois se sente despida, despojada por seu olhar. Outra vez o vento, a escuridão, a odiosa incerteza que faz que o coração lhe dê saltos como um coelho que se estrela contra as paredes de arame de uma jaula. Holly sente que o fôlego de lhe roça apenas os lábios, e o suporta. Depois de respirar quatro vezes sobre ela, o tipo sussurra. -De noite, na Guadalupita, o céu é tão vasto que a lua parece haver-se encolhido, diminuído, e as estrelas que se vêem de horizonte a horizonte são mais que todas as mortes da história do mundo. Agora, devemos partir. Toma ao Holly do braço e ela não rechaça esse repulsivo contato, mas sim cruzamento a habitação com ele até que chegam a uma porta aberta. Outra vez os degraus, o que a leva a dia anterior. Ele a guia pacientemente em sua descida, mas como ela não pode agarrar-se aos passamanes, vai dando cada passo a provas. Do desvão ao primeiro piso, daí à planta baixa e logo à garagem, o louco vai guiando. -Agora, um patamar. Muito bem. Baixa a cabeça. Agora, à esquerda. Cuidado aqui. E agora, uma soleira. Na garagem, ouça-o abrir a porta de um veículo. -Esta é a caminhonete em que chegou aqui -diz, ajudando-a a entrar pela parte traseira, ao lugar destinado à carga. O estou acostumado a atapetado segue cheirando muito mau-. Te tombe de lado. Sai, fechando a porta detrás de si. O característico som metálico de uma chave na fechadura elimina toda idéia de que possa escapar em algum momento do trajeto. A porta do lado do condutor se abre e ele se sinta ao volante. -É uma caminhonete de dois assentos. Não há separação entre eles e a parte para a carga. Por isso me ouve com tanta claridade. Escuta-me bem? -Sim. Ele fecha a porta. -Posso me girar no assento e verte. Quando viemos, contigo foram dois homens, para assegurar-se de que te comportasse como é devido. Agora, estou sozinho. Assim... se em algum ponto do caminho devo me deter em um semáforo em vermelho e crie que se gritas alguém te ouvirá, deverei te tratar com mais dureza do que quisesse. -Não gritarei. -Bem. Mas de todas formas te explicarei algo. No assento do acompanhante, junto a mim, há uma pistola com silenciador. Se puser a gritar, agarrarei-a, me voltarei no assento e te matarei. Esteja viva ou morta, recolherei a recompensa. Faz-te cargo? -Sim. -Isso soou frio, não? -pergunta ele. -Entendo sua situação. -me diga a verdade. Soou frio. -Sim. -Pensa que poderia te haver amordaçado, mas não o fiz. Poderia te haver metido uma bola de borracha nessa bonita boca antes de te selar os lábios com cinta adesiva. Acaso não me tivesse sido fácil? -Sim. -E, então, por que não o fiz? -Porque sabe que pode confiar em mim. -Não é que saiba, é que espero poder confiar em ti. E não te amordacei, Holly, porque sou homem de esperança e vivo cada hora desta vida com esperança. Uma mordaça do tipo que acabo de descrever é eficaz, mas extremamente desagradável. Não quero que ocorra nada assim de desagradável entre nós se por acaso... Melhor dizendo, com a esperança de que vamos a Guadalupita. A mente dela tem mais facilidade para o engano do que tivesse acreditado possível faz só um dia. Com uma voz que não soa para nada sedutora, a não ser solene e respeitosa, recita-lhe os detalhes que demonstram que ele realmente a tem enfeitiçada. -Guadalupita, Te rodar, Rio Lucio, Penasco, onde sua vida trocou, e Chamisal, onde também trocou. Vallecito, As Armadilhas e Espanhola, onde sua vida voltará a trocar. Ele cala durante um momento. Depois fala. -Lamento o desconforto, Holly. Logo terminará e virá a trascendencia, se assim o quiser.

 

A arquitetura da armería se inspirava nas dos lojas de comestíveis que se vêem em centenas de filmes do oeste. O teto a duas águas, os muros de tablones à vista, a galeria coberta que rodeava o edifício, os postes para atar cavalos, tudo dava a sensação de que em qualquer momento John Wayne, vestido como em Rio Bravo, sairia pela porta principal. Mitch não se sentia John Wayne, mas sim mas bem algum personagem secundário que resulta morto no segundo ato. Sentado no Funda, no estacionamento da armería, examinava a pistola que se trouxe de Rancho Santa Fé. Havia várias coisas gravadas no aço, se é que se tratava de aço. Algumas eram números e letras que nada significavam para ele. Outras, informação útil para um tipo que, como era seu caso, não sabe nada de armas. Perto do canhão, em letras itálicos, viam-se as palavras "Super Tuned". Sobre a culatra mesma figurava a palavra CHAMPION em letras de molde, aparentemente gravadas com laser, e justo debaixo, CAL. 45. Mitch preferia não entregar o resgate com apenas sete balas no carregador. Agora sabia que devia adquirir munição de calibre quarenta e cinco. Provavelmente, sete disparos fossem mais que suficientes. Estava claro que os tiroteios prolongados só ocorrem nos filmes. Na vida real, alguém disparava o primeiro tiro, outro respondia e, ao cabo de quatro balaços, um ou outro caía ferido ou morto. Comprar mais munição não servia para satisfazer uma necessidade genuína, a não ser só psicológica. Não lhe importava. Ter mais munição o faria sentir-se melhor preparado. Ao outro lado da culatra, encontrou a palavra SPRINGFIELD. Supôs que se trataria do fabricante. O mais provável era que a palavra CHAMPION se referisse ao modelo da arma. Tinha uma pistola Springfield Champion 45. Isso soava mais verossímil que uma pistola Champion Springfield 45. Não queria chamar a atenção quando entrasse na loja. Desejava parecer alguém que sabe do que está falando. Tirou o carregador e extraiu um projétil. Na vagem dizia 45 ACO, mas não soube o que significavam essas letras. Devolveu a bala ao carregador, que introduziu no bolso das calças texanas. Colocou a pistola sob o assento do condutor. Tomou a carteira do John Knox do porta-luvas. Usar o dinheiro do morto lhe dava certo reparo, mas não tinha outra opção. Tinham-lhe tirado sua própria carteira em a biblioteca do Julian Campbell. Agarrou os quinhentos e oitenta e cinco dólares e voltou a colocar a carteira no porta-luvas. Saiu ao vento, fechou com chave o carro e entrou na loja de armas. o de "loja" parecia inadequado para o tamanho do local. Tinha corredores e mais corredores de parafernália armamentística. Depois do comprido mostrador havia um homem fornido, de bigodes de morsa. Tinha presa uma placa que o identificava como ROLAND. -Uma Springfield Champion -disse Roland-. É uma versão em aço inoxidável da Colt Commander, verdade? Mitch não tinha nem idéia de se o era ou não, mas suspeitava que Roland sabia do que estava falando. -Assim é. -Vem com compartimento para carregador estriado, canhão comprido, boca eyectora rebaixada e reforçada, tudo de fábrica. -É toda uma arma -comentou Mitch, esperando que fosse a forma em que falavam os aficionados ao tema-. Quero três carregadores adicionais. Para atirar ao branco. Acrescentou as últimas quatro palavras porque lhe parecia que, pelo general, a gente não pede carregadores adicionais, a não ser que planeje assaltar um banco ou ficar a disparar ao azar de um campanário. Roland não parecia suspeitar nada. -Aplicou-lhe todas as modificações do pacote Super Tuned do Springfield? Recordando as palavras gravadas perto do canhão, Mitch tratou de sair do passo. -Sim. O pacote completo. -Acrescentou-lhe alguma outra modificação? -Não -respondeu Mitch ao azar. -Não trouxe a pistola? Preferiria vê-la antes de te recomendar um carregador. Mitch tinha suposto, incorretamente, que se entrava na loja com uma pistola tomariam por um ladrão, um assaltante ou algo pelo estilo. -isto traje -disse pondo o carregador sobre o mostrador. -A pistola seria melhor, mas algo faremos. Ao cabo de cinco minutos, Mitch tinha comprado três carregadores e uma caixa de cem projéteis 45 ACP. passou-se tudo o transação esperando a que soasse alguma alarme. Sentia que suspeitavam dele, que o observavam, que se davam conta do que ia fazer. Era evidente que seus nervos não estavam preparados para suportar a tensão que se requer quando a gente está fugindo da lei. Quando estava a ponto de sair da armería, olhou pela porta de cristal e viu que havia um carro patrulha no estacionamento, bloqueando a saída de seu carro. De pé ante a porta do condutor, um policial esquadrinhava o interior do Funda.

 

Ao olhar com mais atenção, Mitch viu que a insígnia da porta do carro patrulha não era o escudo de uma cidade, a não ser um nome, First Enforcement, e o logotipo de uma agência de segurança. O homem uniformizado que olhava o Funda devia ser um guarda privado, não um agente de polícia. Assim e tudo, só havia um motivo possível que explicasse seu interesse pelo Funda. A polícia devia ter emitido um aviso com a descrição do veículo. Estava claro que este tipo sim escutava a freqüência policial em seu rádio. O guarda deixou seu carro cruzado frente à Funda e se aproximou da armería. Parecia ter um objetivo. O mais provável era que, ao deter-se por alguma razão pessoal, topou-se por acaso com o Funda. Agora, dispunha-se a cobrir-se de glorifica com um arresto por conta própria. Um policial de verdade tivesse pedido reforços antes de entrar na armería. Mitch supôs que devia agradecer ao menos essa pequena vantagem. O estacionamento rodeava por dois lados o edifício, que não tinha construções contigüas. Havia duas portas de entrada e Mitch, retrocedendo e apartando-se de a que estava a ponto de cruzar, dirigiu-se à outra. Saiu por essa porta lateral e se apressou a dirigir-se à fachada frontal da loja. O guarda de segurança já tinha entrado. Mitch estava sozinho no vento, mas não por muito tempo. Correu até o Funda. O carro do First Enforcement lhe fechava o passo. Na parte traseira da praça de estacionamento se elevava uma barreira de segurança de tubo de aço, sobre um rebordo de cimento de quinze centímetros de altura e, daí, o terreno descendia à rua, dois metros mais abaixo, em uma levantada pendente. Não havia nada que fazer. Impossível sair. Teria que abandonar o Funda. Abriu a porta do lado do passageiro e recuperou a Springfield Champion 45 de debaixo do assento. Quando fechava a porta, viu que alguém saía da armería. Não era o guarda de segurança. Abriu o porta-malas e tirou a bolsa de lixo de plástico branco do compartimento da roda de reposto. Colocou a pistola e o adquirido na armería na bolsa, cuja boca assegurou retorcendo-a, fechou o porta-malas e se afastou. Depois de passar detrás de outros cinco veículos estacionados, meteu-se entre dois utilitários. Olhou seu interior, com a esperança de que algum dos condutores houvesse deixado as chaves postas, mas não teve sorte. Andando a bom passo, mas sem correr, cruzou o asfalto em diagonal, em direção ao lado do edifício por onde acabava de sair. Quando chegava à esquina sua visão periférica detectou um movimento na porta principal da armería. Ao olhar para ali pela galeria coberta, espionou ao guarda de segurança, que saía da loja. Não lhe pareceu que o homem o visse e, seguindo seu caminho, deu a volta à esquina e ficou oculto a sua vista. Por essa parte, o estacionamento terminava em um sob muro de blocos de cimento. Apoiou as mãos, saltou e o franqueou, indo dar ao estacionamento de um local de comidas rápidas. Procurava não correr como um fugitivo. Cruzou o estacionamento, passando frente a uma fileira de veículos que aguardavam para fazer pedidos de comida para levar. O ar cheirava aos gases dos escapamentos dos carros e a batatas fritas gordurentas. Deu a volta até chegar ao fundo do restaurante, onde havia outro muro baixo, que também saltou. encontrou-se em um pequeno centro comercial composto de seis ou oito lojas. Diminuiu o passo, olhando as cristaleiras enquanto passava frente a eles, como se fosse um tio qualquer que saiu a fazer umas compras com um milhão quatrocentos mil dólares disponíveis para gastar. Quando chegou ao extremo da rua, um carro patrulha passou pela avenida, com as luzes acesas. Cintilavam, alternando vermelho e azul, vermelho e azul, vermelho e azul. Ia em direção a armería. Em seguida apareceu outro, imediatamente atrás do anterior. Mitch dobrou à esquerda em uma ruela que cortava a avenida. Acelerou o passo outra vez. A zona comercial, que dava à avenida, só ocupava o largo de uma maçã. por detrás, estendia-se um bairro residencial. Na primeira maçã havia chalés encostados e blocos de apartamentos. Depois, viu casas unifamiliares, quase todas de dois novelo, à exceção de algum que outro bungaló. As ruas estavam mastreadas com velhos e altos podocarpos, que davam muita sombra. A maior parte dos jardins estavam verdes, com grama curta e arbustos bem mantidos. Mas, como em todo bairro, havia parcelas descuidadas, de proprietários ansiosos de exercer seu direito a ser maus vizinhos. Quando a polícia não o encontrasse na armería, ficariam a registrar as vizinhanças vizinhas. Em poucos minutos, poderiam ter meia dúzia ou mais de carros patrulha percorrendo a área. Tinha atacado a um oficial de polícia. Estavam acostumados a pôr a quem atuava como ele em cabeça de sua lista de prioridades. A maior parte dos veículos estacionados nessa rua residencial eram utilitários. Diminuiu o passo, espiando pelos guichês do lado do condutor, com a esperança de ver alguma chave. Quando olhou seu relógio, viu que eram as 13.14. A troca estava fixada para as 15.00 horas, e agora não tinha veículo.

 

A viagem durou uns quinze minutos e Holly, atada e com os olhos enfaixados, está muito atarefada fazendo planos para pensar em gritar. Esta vez, quando seu lunático chofer se detém, ouça-o estacionar a caminhonete e jogar o freio de mão. Nota que sai, deixando a porta aberta. Em Rio Lucio, em Novo o México, uma Santa mulher chamada Ermina Algo vive em uma casa de estuque azul e verde, ou possivelmente azul e amarelo. Tem setenta e dois anos. O assassino retorna à caminhonete, faz-a avançar uns seis metros, volta a sair. Na sala de estar da Ermina Algo há quarenta e duas ou trinta e nove imagens do Sagrado Coração do Jesus, rasgado pelos espinhos. Isso deu uma idéia ao Holly. Uma idéia ousada. E aterradora. Mas que lhe parece boa. Quando o assassino retorna ao veículo, Holly intui que este tem aberto um portão pelo que se dirigirão a algum lugar e que acaba de fechá-lo detrás deles. O assassino enterrou um "tesouro" no pátio traseiro da Ermina Algo, algo que a anciã não passaria. Holly se pergunta o que será o tesouro, embora espera não sabê-lo nunca. A caminhonete avança uns vinte metros por uma superfície sem pavimentar. Uns calhaus rangem sob as rodas. Voltam a deter-se e, esta vez, ele apaga o motor. -Chegamos. -Bem -diz ela, pois pretende comportar-se como se não fosse uma cativa assustada, a não ser uma mulher cujo espírito se vai elevando para a plenitude. O abre a porta traseira e a ajuda a descender. O morno vento cheira um pouco a fumaça de lenha. Possivelmente, para o este, haja um incêndio no campo. Sente o sol na cara pela primeira vez em mais de vinte e quatro horas. Faz-a sentir-se tão bem que está a ponto de chorar. Sujeitando-a do braço direito, escoltando a de maneira quase cortês, anda sobre terra nua, sobre yerbajos. Logo vem uma superfície dura com um vago aroma calcário. Quando se detêm, um estranho som surdo se repete três vezes: "zup, zup, zup". Acompanham-no ruídos de madeira que se estilhaça e metal que chia. -O que é isso? -pergunta. -Abri a porta a tiros -responde ele. Agora, ela sabe como sonha uma pistola com silenciador. "Zup, zup, zup". Três disparos. Faz-a cruzar a soleira desse lugar ao que entrou em tiros. -Falta pouco. O eco de suas pegadas dá ao Holly a sensação de um espaço cavernoso. -diria-se que isto é uma igreja. -Em certo modo, é-o -diz ele-. Estamos na catedral do esbanjamento. Ela percebe aroma de gesso e serrín. Ainda ouça o vento, mas as paredes parecem estar bem isoladas e as janelas devem ser duplos, pois sua infatigável voz sonha amortecida. Chegam a um espaço que sonha como se fosse mais pequeno e de teto mais baixo que os que o precederam. Depois de deter-se, a assassina fala. -Aguarda aqui. -Solta-lhe o braço. Ouça um som familiar que faz que o coração lhe dê um tombo. É o tinido de uma cadeia. Aqui, o aroma a serrín não é tão forte como nos outros espaços, mas quando recorda a ameaça de lhe cortar os dedos, pergunta-se se na habitação não haverá uma serra fixa montada em uma mesa. -Um milhão quatrocentos mil dólares -diz, calculadora-. Com isso se pode comprar muito tempo para dedicar à busca. -pode-se comprar muito de tudo -responde ele. Agarra-lhe de novo o braço e ela não retrocede. Em torno da boneca esquerda, enrola-lhe uma cadeia, que assegura de algum modo. -Quando um se vê obrigado a trabalhar constantemente -diz ela-, nunca fica tempo para procurar -e, embora saiba que o que há dito demonstra ignorância, espera que seja uma ignorância que ele passe. -O trabalho é um sapo que esmaga nossas vidas com seu peso -diz ele, e ela se dá conta de que o que disse lhe agradou. Desata o xale que lhe imobiliza as mãos e lhe dá as obrigado. Quando lhe tira a atadura, a jovem entorna os olhos e pisca, adaptando-se à luz. Descobre que está em uma casa em construção. Depois de entrar neste lugar, ele se tornou a pôr os óculos de esqui. Ao menos, finge que a permite escolher entre seu marido e ele, e que os deixará com vida. -Esta deve ser a cozinha -diz ele. O lugar é enorme para tratar-se de uma cozinha. Mede uns quinze metros por dez, e parece destinado a preparar grandes banquetes. O chão de pedra calcária está talher de pó. As paredes já estão revogadas, embora ainda não instalaram móveis nem equipamento. Ao pé de uma das paredes se sobressai um tubos de metal, talvez para gás, de uns cinco centímetros de diâmetro. O extremo de sua cadeia fica sujeito a ele. Está fechado, como o que lhe aprisiona as bonecas, com um cadeado. O arremate do tubos tem uma tampa de metal de quase oito centímetros de diâmetro, o que impede que a cadeia se solte. O comprido total da cadeia é de uns dois metros e médio. Holly pode sentar-se, levantar-se e até caminhar um pouco. -Onde estamos? -pergunta. -Na casa Turnbridge. -Claro. Mas por que viemos aqui? Tem algo que ver com ela? -estive aqui algumas vezes -diz ele-, embora sempre entro de uma maneira mais discreta, sem necessidade de lhe disparar à fechadura. Ele me faz vir. Ainda está aqui. -Quem? -Turnbridge. Não seguiu seu caminho. Seu espírito continua aqui, enroscado sobre si mesmo, como as dez mil cochinilhas da umidade mortas que há por toda a casa. -Estive pensando na Ermina, a de Rio Lucio -diz Holly. -Ermina Lavato. -Sim -responde ela, como se não tivesse esquecido o sobrenome-. Quase posso ver as habitações de sua casa, cada uma grafite de uma cor relaxante. Não sei por que, não posso deixar de pensar nela. Dos descomunais óculos, os olhos azuis a olham com febril intensidade. Fechando os olhos, de pé, com os braços pendurando, lassos, a um e outro flanco, alta o rosto para o teto e fala em um murmúrio. -Posso ver as paredes de seu dormitório, cobertas de imagens da Santa Virgem. -Quarenta e dois -diz ele. -E há velas, verdade? -adivinha ela. -Sim. Vela votivas. -É uma habitação formosa. Ela é feliz aí. -É muito pobre -diz ele-, mas é mais feliz que qualquer rico. -E essa pitoresca cozinha da década de 1920, e o aroma das fajitas de frango -respira fundo, como saboreando, e sussurra. O não diz nada. Abrindo os olhos, Holly segue. -Nunca estive ali, não a conheço. Mas por que não posso deixar de pensar nela e em sua casa? O louco segue em silêncio e ela começa a preocupar-se. Teme haver-se excedido em sua atuação, que algo tenha parecido fingido. Ao fim, ele responde. -Às vezes, pessoas que não se conhecem têm uma mútua comunicação. Como uma ressonância. Ela repete, pensativa. -Ressonância... -Em um sentido, vive longe dela, mas, em outro, possivelmente seja sua vizinha. Por quanto Holly pode interpretar de suas reações, parece que lhe suscitou mais interesse que suspicacia. Embora saiba que acreditar que pode interpretá-lo com facilidade poderia ser um engano fatal. -É estranho -diz ela. E não fala mais do assunto. Ele se umedece os esfolados lábios com a língua, os lambe e lambe. -Tenho que fazer alguns preparativos. Lamento o da cadeia. Não a necessitará muito tempo mais. Quando sai da cozinha, ela escuta suas pegadas, que se vão perdendo pelas vastas habitações vazias. Os calafrios a sacodem. Não pode controlá-los, e os elos da cadeia ressonam ao entrechocarse.

 

Sob a sombra estremecida dos podocarpos que o vento sacudia, Mitch espionava pelos guichês dos carros estacionados. Ao fim, ficou a provar as portas, para ver se havia alguma aberta. Quando estavam sem chave, abria-as e colocava meio corpo dentro. Se as chaves não estavam postas, olhava porta-luvas, assentos, salpicaderos. Tudo. Sua busca foi infrutífera, e uma e outra vez acabou por fechar a porta dos carros e seguir seu caminho. Sua ousadia, nascida do desespero, surpreendia-o. Mas dado que um carro policial podia dobrar uma esquina de um momento a outro, a cautela era mais perigosa que a audácia. Esperava que os habitantes desse bairro não fossem gente com um alto sentido da convivência comunitária e ativistas, que não lhes tivesse dado de exercer a vigilância vicinal. Se fossem, seu instrutor policial os teria lecionado para que estivessem atentos aos suspeitos, dos que ele era um exemplo perfeito, e a informar imediatamente de sua presença. Para tratar-se da aprazível Califórnia do Sul, do Newport Beach, com suas baixas taxas de delinqüência, a percentagem de pessoas que fechava com chave seu carro estacionado era deprimentemente alto. Que fossem tão paranóicos começou a impacientá-lo. Quando já tinha percorridas duas ruas, viu, por diante dele, um Lexus estacionado no atalho de entrada a uma casa. Tinha o motor em marcha e a porta do lado do condutor aberta. Não havia ninguém ao volante. A porta da garagem também estava aberta. aproximou-se do veículo com cautela e viu que tampouco havia ninguém na garagem. O condutor devia ter entrado à casa a procurar algo que se esqueceu. Em poucos minutos, informaria do roubo do Lexus, mas a polícia não ficaria para buscá-lo imediatamente. Haveria um protocolo regulamentar para informar do roubo de um carro; um protocolo era parte de um sistema, um sistema era coisa de burocratas e a razão de ser da burocracia é a demora. Talvez ficassem um par de horas antes de que a matrícula do carro estivesse em alguma lista de veículos procurados. Com duas horas lhe bastava. O carro estava frente à rua, de modo que se sentou ao volante, deixou a bolsa no assento do acompanhante, fechou a porta e em seguida empreendeu a marcha pelo atalho e dobrou à direita, afastando-se da avenida e da armería. Ao chegar à esquina, ignorou o sinal de stop e girou à direita uma vez mais. Tinha percorrido um terço de rua quando uma leve voz tremente falou desde o assento traseiro. -Como te chama, carinho? Havia um ancião acurrucado em um rincão. Levava óculos com cristais como culos de garrafa e aparelho de surdez. A cintura das calças lhe chegava até debaixo do peito. Parecia ter cem anos. O tempo tinha encolhido cada parte de seu corpo, embora não em forma proporcionada. -OH, é Debbie -disse o ancião-. Onde vamos, Debbie? O delito conduz a cometer mais delitos, e aqui estava o fruto do delito: a ruína assegurada. Agora, Mitch se tinha convertido em um seqüestrador. -vamos comprar bolos? -perguntou o ancião com uma nota de esperança em sua voz tremente. Possivelmente padecesse um princípio do Alzheimer. -Fui-dijo Mitch-, vamos comprar bolos. -E voltou a dobrar à direita na seguinte esquina. -Eu gosto dos bolos. -A todos gosta dos bolos -assentiu Mitch. Se o coração não lhe tivesse pulsado com tanta força para lhe fazer danifico, se a vida de sua esposa não dependesse de que ele se mantivesse em liberdade, se não esperasse topar-se com a polícia a cada passo, se não supusera que disparariam primeiro e discutiriam os pontos mais sutis de seus direitos civis depois, possivelmente a situação tivesse-lhe feito graça. Mas não era divertido. Era surrealista. -Não é Debbie -disse o ancião-. Eu sou Norman, mas você não é Debbie. -Tem razão. Não sou Debbie. -Quem é? -Só um tipo que cometeu um equívoco. Norman ficou pensando até que Mitch dobrou à direita pela terceira vez; então falou de novo. -Me vais fazer mal. Isso é o que fará. O medo da voz do velho dava pena. -Não, não. Ninguém vai fazer te danifico. -vais machucar me. É um mau homem. -Não, só cometi um engano. Levo-te de retorno a casa -assegurou-lhe Mitch. -Onde estamos? Isto não é minha casa. Não estamos perto de minha casa. A voz, apenas perceptível até esse momento, ganhou volume e estridência de repente. -É um filho de puta mau! -Não te excite. Por favor. -Ao Mitch, o ancião lhe deu lástima. sentia-se responsável por ele-. Já quase chegamos. Estará em casa em um minuto. -É um filho de puta mau! É um filho de puta mau! Ao chegar à quarta esquina, Mitch dobrou à direita, entrando na rua onde tinha roubado o carro. -É um filho de puta mau! Norman tinha encontrado um bramido juvenil nas secas profundidades de seu corpo estragado pelo tempo. -É um filho de puta mau! -Por favor, Norman. Vai dar um ataque ao coração. Tinha a esperança de estacionar o carro no caminho de entrada, deixando-o onde o tinha encontrado, sem que ninguém se inteirasse de que o tinha levado. Mas uma mulher tinha saído da casa e estava na calçada. Viu-o quando dava a volta à esquina. Parecia aterrorizada. Devia acreditar que Norman se pôs ao volante. -É um filho de puta mau, um filho de puta mau, mau! Mitch se deteve frente à mulher, pisou no freio, agarrou a bolsa de lixo e saiu, deixando a porta aberta. A mulher, de quarenta e tantos anos e um pouco gordinha, era atrativa. Levava um penteado ao estilo do Rod Stewart, cuidadosamente adornado com mechas loiras em algum salão de beleza. Vestia um traje elegante e levava saltos muito altos para ir comprar bolos. -É Debbie? -perguntou Mitch. Desconcertada, respondeu. -Se for Debbie? Possivelmente não existisse nenhuma Debbie. Norman seguia chiando no carro e Mitch se desculpou. -Sinto muito. Foi um engano. afastou-se andando, dirigindo-se à primeira das quatro esquinas onde tinha dobrado com o carro, e a ouviu dizer: -Avô? Está bem, avô? Quando chegou ao sinal de stop, voltou-se e viu a mulher aparecendo ao interior do automóvel, tranqüilizando ao ancião. Mitch deu a volta à esquina e se apressou a sair da linha de visão da mulher. Não corria, andava a bom passo. Ao cabo de uma rua, quando se dispunha a dobrar outra esquina, uma buzina bramou detrás dele. Ao volante do Lexus, a mulher o perseguia. Via-a através do pára-brisa; uma mão sobre o volante, a outra ocupada com um telefone móvel. Não estava chamando a sua irmã a Omaha. Não chamava para inteirar-se da hora. Chamava o 091.

 

De cara ao vento, que lhe oferecia resistência, Mitch apertou o passo. Uma rajada de ar fez sair um enxame de abelhas que aninhavam em um tronco, e escapou por milagre de suas picadas. Sem perder o de vista, decidida-a mulher do Lexus se mantinha a suficiente distancia para girar cento e oitenta graus e evitá-lo se ele, trocando de direção, punha-se a correr para ela. Empreendeu uma carreira e ela acelerou para manter-se à mesma distância. Era evidente que sua intenção era o ter localizado até que chegasse a polícia. Mitch admirou sua guelra, embora sentia desejos de lhe disparar aos pneumáticos. Os policiais não demorariam para chegar. Como tinham encontrado sua Funda, saberiam que estava nas imediações. Que alguém tivesse tentado roubar um Lexus a poucas ruas da armería os alertaria. A buzina bramou uma e outra vez, e seguiu bramando em forma implacável. Ela pretendia alertar aos vizinhos de que havia um delinqüente solto. A desesperada urgência dos buzinadas sugeria que quem andava solto pela rua era Osama bin Laden. Saindo da calçada, Mitch cruzou um terreno, abriu um postigo e se apressou a dirigir-se ao pátio traseiro, rogando por não encontrar-se com um pit bull. Sem dúvida, a maior parte dos cães dessa raça são tão inofensivos como monjas, mas, vendo como foram saindo as coisas, era de supor que se encontraria com um cão diabólico. O pátio traseiro era pequeno e estava rodeado de uma cerca de cedro de pontas aguçadas. Não viu postigo algum. Atando o extremo retorcido da bolsa ao cinturão, subiu a uma acácia e, aproveitando um de seus ramos, que cruzava sobre o cerca, deixou-se cair ao outro lado. Foi dar a um beco. A polícia esperaria que procurasse essas ruelas de serviço, de modo que não podia meter-se aí. Cruzou um terreno baldio, sombreado pelos indolentes ramos de pimenteros californianos que levavam muito tempo sem ser podados. agitavam-se em círculo, como as anáguas de umas dançarinas do século XVIII. Quando cruzava a seguinte rua por metade da maçã, um carro de polícia passou pela intercessão com este rumo e a toda velocidade. O chiado de seus freios disse-lhe que tinha sido detectado. Cruzou um pátio, sorteou uma cerca, cruzou um beco, passou por um postigo, atravessou outro pátio, cruzou outra rua. Agora ia a toda pressa e a bolsa de plástico golpeava-lhe a perna. Preocupava-lhe que pudesse abrir-se, derramando maços de bilhetes de cem dólares. O final da última linha de casas dava a uma garganta de uns sessenta metros de profundidade e noventa de largura. Subiu e sorteou uma grade de ferro forjado, e encontrou-se no alto de uma levantada costa de terra solta e erodida. A gravidade e a terra, que se deslizava sob seus pés, fizeram-no descender. Como um surfero que perseguisse a glória na crista traiçoeira de uma gigantesca onda monolítica, tratou de manter-se erguido, mas a terra arenosa não se emprestava a isso como o mar. Perdeu pé e se deslizou sentado os últimos dez metros, elevando uma esteira de pó branco, antes de que o detivera um inesperado muro de erva alta e moitas ainda mais altos. deteve-se sob um dossel de ramos. Do alto, via-se que o fundo da garganta estava cheio de folhagem, mas não que se tratava de árvores grandes. E agora, além dos arbustos e matas que esperava, encontrou-se em um frondoso bosque. Havia castanhos de Califórnia, engrinaldados de fragrantes floresça brancas. Bicudos palmitos cresciam com força junto a louros californianos e mirobálanos de negro fruto. Muitos das árvores eram nodosas, retorcidos e agrestes, exemplares pouco correntes, como se suas raízes absorvessem nutrientes mutantes do chão urbano, mas havia novelo do Japão e eucaliptos lhes neve da Tasmania que ele teria empregado de boa vontade para algum exigente trabalho de paisagismo. Uns poucos ratos se escabulleron a sua chegada e uma víbora se escorreu entre as sombras. Possivelmente fosse uma cascavel. Não estava seguro. Enquanto se mantivera ao amparo das árvores, ninguém poderia vê-lo do alto da garganta. Já não havia perigo de que o capturassem imediatamente. Os ramos de distintas árvores que se entrelaçavam eram tão numerosas que nem sequer o furioso vento permitia o passado do sol entre elas. A luz era verde e aquosa. As sombras tremiam e se balançavam como anêmonas marinhas. Um regato corria pelo ponto mais desço da garganta, o que não era surpreendente, pois a estação chuvosa tinha concluído recentemente. Era possível que aqui a capa freática estivesse tão perto da superfície que bastasse um pequeno poço artesiano para que fluíra todo o ano. desatou-se a bolsa do cinturão e a examinou. Tinha três quebrados e um rasgão de uns três centímetros, mas não parecia haver-se cansado nada. Mitch improvisou um nó na boca da bolsa e a sujeitou apertada contra o corpo, sob o braço esquerdo. Conforme recordava do que tinha visto do alto, a garganta se fazia mais estreita e subia marcadamente para o oeste. O gorgoteante arroio baixava devagar desde essa direção e, apertando o passo, seguiu seu curso. Uma te gotejem atapeta de folhas mortas amortecia seus passos. Um prazenteiro aroma a terra molhada, folhas úmidas e cogumelos lhe dava densidade ao ar. Embora Orange Canyon tem mais de três milhões de habitantes, o fundo daquela vaguada parecia tão remoto que poderia haver-se encontrado a quilômetros de toda civilização. Até que ouviu o helicóptero. Surpreendeu-o que tivessem saído a voar com tanto vento. A julgar pelo som, o helicóptero cruzou a garganta diretamente por cima do Mitch. dirigiu-se ao norte e voou em círculos sobre a vizinhança por onde Mitch tinha fugido. O ruído crescia, diminuía, voltava a crescer. Buscavam-no do ar, mas no lugar equivocado. Não sabiam que tinha baixado a vaguada. Seguiu movendo-se, mas se deteve e lançou uma sufocada exclamação de surpresa quando soou o telefone do Anson. O tirou do bolso, aliviado por não havê-lo perdido ou prejudicado. -Fala Mitch. Jimmy Null disse: -Está esperançado? -Sim. me deixe falar com o Holly. -Esta vez, não. Verá-a logo. Nosso encontro passa das três às dois. -Não pode fazer isso. -Acabo de fazê-lo. -Que horas são? -As 13.30 -disse Jimmy Null. -Não, não. Será-me impossível chegar às duas. -por que não? A casa do Anson está a poucos minutos da casa Turnbridge. -Não estou em casa do Anson. -Onde está, o que faz? -perguntou Null. Parado sobre as folhas molhadas, Mitch respondeu. -Dando voltas com o carro, fazendo tempo. -Isso é uma estupidez. Teria que haver ficado em casa do Anson, preparado para o encontro. -Digamos que às 14.30. Tenho o dinheiro aqui. Um milhão quatrocentos mil. Tenho-o comigo. -Te vou dizer algo. Mitch calou e quando viu que Null não falava lhe disse: -O que? me dizer o que? -É sobre o dinheiro. Te vou dizer algo sobre o dinheiro. -Muito bem. -Eu não vivo para o dinheiro. Tenho um pouco de dinheiro. Há coisas que para mim significam mais que o dinheiro. Algo andava mau. Mitch o tinha percebido a última vez que falou com o Holly, quando notou seu tom forçado, quando não lhe disse que o amava. -Olhe, cheguei muito longe, ambos chegamos muito longe, o correto é que terminemos. -Às dois -disse Null-. Esse é o novo horário. Se não estar onde deve às dois em ponto, tudo terminou. Não haverá uma segunda oportunidade. -De acordo. -Às dois. -De acordo. Jimmy Null cortou. Mitch correu.

 

Holly, encadeada ao encanamento de gás, sabe o que deve fazer, o que fará. portanto, só pode ocupar seu tempo pensando em todas as coisas que poderiam sair mau, ou maravilhando-se ante o que pode ver da mansão ao meio construir. Se tivesse vivido, Thomas Turnbridge teria tido uma cozinha fantástica. Uma vez rematadas as instalações, um chef de categoria, secundado por legiões de ajudantes, poderia ter cozinhado e servido um jantar para seiscentos comensais comodamente sentados. Turnbridge foi um milionário "ponto com". A companhia que fundou, e que o enriqueceu, não fabricava produto algum, mas estava à vanguarda das aplicações publicitárias de Internet. Quando a revista Forbes estimou que Turnbridge tinha bens por um valor nítido de três mil e milhões, este se tinha comprado várias casas em um escarpado, com uma espetacular vista ao Pacífico, em um cobiçado bairro. Adquiriu nove, todas contigüas, pagando o dobro de seu valor de mercado. Gastou mais de sessenta milhões de dólares nas casas, que fez demolir para construir um sozinho imóvel com um parque de algo mais de um hectare de superfície, uma parcela quase única em toda a costa do sul de Califórnia. Um importante estudo de projetos encarregou a uma equipe de trinta arquitetos o desenho de uma casa de três novelo, de vinte e cinco mil metros quadrados, sem contar as imensas garagens subterrâneas e a sala de máquinas. ia construir se no estilo das residências que Alberto Pintos desenha no Brasil. Elementos tais como uma cascata que unia interior e exterior, uma galeria de tiro subterrânea e uma pista interior de patinação sobre gelo requereram esforços heróicos de engenheiros especializados em estruturas, sistemas e movimentos de chão. Não tinha pressuposto. Turnbridge ia gastando conforme surgiam as necessidades. adquiriram-se suntuosos mármores e granitos em lotes de peças idênticas. A fachada da casa estaria revestida de pedra calcária francesa. fabricaram-se sessenta colunas de pedra de uma só peça, a um custo de sessenta mil dólares cada uma. Turnbridge estava tão apaixonadamente dedicado a sua empresa como à casa que construía. Acreditava que a sua chegaria a ser uma das dez corporações mais importantes do mundo. Seguiu-o acreditando mesmo que a rápida evolução de Internet evidenciou as falhas de seu modelo comercial. Do começo, vendeu ações só para financiar seu estilo de vida, não para consolidar os investimentos. Quando a cotação bursátil de sua empresa caiu, endividou-se para comprar suas próprias ações no mercado. O preço seguiu caindo, e ele seguiu comprando e endividando-se. Como o valor accionarial nunca se recuperou e a companhia se derrubou, Turnbridge ficou na ruína. A construção da casa se deteve. Thomas Turnbridge, a quem por então perseguiam credores, investidores e uma ex-mulher furiosa, dirigiu-se a sua inacabada casa e se sentou em uma cadeira dobradiça, no balcão do dormitório principal. Ali, ante o encantador panorama que abrangia 240 graus de oceano e as luzes da cidade, tomou uma overdose de barbitúricos acompanhada de uma garrafa geada de Dom Pérignon. As aves carroñeras o encontraram antes que seu ex algema. Embora a propriedade costeira, de enorme superfície, é muito apetecível, não se pôde vender à morte do Turnbridge. Está imersa em um matagal de pleitos. O valor de mercado do terreno ultrapassa agora os sessenta milhões de dólares que Turnbridge pagou quando estava sobrevalorada, o qual limita a quantidade de potenciais compradores. Para completar o projeto segundo os planos originais, quem a adquira deveria gastar uns cinqüenta milhões adicionais, assim teria que tratar-se de alguém a quem goste do estilo em que se estava fazendo a obra. Se demolisse o que já parece e voltasse a começar, deveria estar disposto a gastar cinco milhões além dos sessenta que destine ao terreno, pois, segundo a nova normativa, deverá fazer uma construção de aço e cimento capaz de suportar um terremoto de 8,2 graus de intensidade na escala do Richter. Holly, como aspirante a agente imobiliário, nem sonha com que lhe encarreguem vender a casa Turnbridge. conformaria-se administrando a venda de propriedades em bairros de classe média a pessoas que se sentem ditosas pelo mero feito de ter casa própria. De fato, se pudesse permutar seu modesto sonho imobiliário pela segurança de que ela e Mitch vão sobreviver à entrega do resgate, conformaria-se seguindo sendo secretária. É boa secretária e boa esposa. Fará quanto possa por ser também boa mãe, mas como, a vida, o amor, bastará-lhe para ser feliz. Mas não há maneira de fazer esse trato; seu destino está em suas próprias mãos, literal e figuradamente. Deverá atuar quando chegar o momento de fazê-lo. Tem um plano. Está disposta a confrontar o risco, a dor, o sangue. O demente retorna. pôs-se um jaquetão cinza e um par de luvas finas e flexíveis. Ela está sentada no chão, mas se fica de pé quando ele lhe aproxima. Rompendo as normas básicas de comportamento, aproxima-se tanto ao Holly como se estivesse a ponto de tomá-la entre seus braços para tirá-la a dançar. -Na casa do Duvijio e Eloisa Pacheco, em Rio Lucio, há duas cadeiras vermelhas de madeira na sala de estar. São cadeiras com respaldos de varinhas, rematados por uma peça esculpida. Coloca sua mão direita no ombro esquerdo do Holly, e ela se alegra de que esteja enluvada. -Sobre uma cadeira vermelha -continua ele-, há uma imagem de cerâmica troca do Santo Antonio. Na outra há um de um menino vestido para ir à igreja. -Quem é o menino? -A imagem representa ao filho do matrimônio, também chamado Antonio, que morreu aos seis anos, atropelado por um condutor bêbado. Isso foi faz cinqüenta anos, quando Duvijio e Eloisa tinham veintitantos. Ela, que ainda não é mãe, mas espera sê-lo, não consegue imaginar a dor de tal perda, seu repentino horror. -Um santuário -murmura a mulher. -Sim, um santuário de cadeiras vermelhas. Há cinqüenta anos ninguém se sinta nessas cadeiras. São para as duas imagens. -Os dois Antonios -corrige ela. Talvez ele não se dê conta de que é uma correção. -Imagine -diz ele- a dor e a esperança e o amor e o desespero que foram derrubados sobre essas imagens. Meio século de intensa concentração imbuiu esses objetos de um poder tremendo. Ela recorda à menina do vestido adornado nas pontas dos pés, sepultada com a medalha de são Cristóbal e a figurinha de Cinzenta. -Irei um dia a casa do Duvijio e Eloisa, quando eles não estejam, e me levarei a imagem do menino. Este homem é muitas coisas, entre elas, um cruel usurpador da fé, a esperança e os apreciadas lembranças de outros. -Não me interessa o outro Antonio, o santo, mas o menino é um totem com potencial mágico. Levarei a imagem a Espanhola... -Onde sua vida voltará a trocar. -Profundamente -diz ele-. E possivelmente não só a minha. Ela fecha os olhos e sussurra. -Cadeiras vermelhas. -Faz como se se estivesse representando a cena. Isto parece suficiente para mantê-lo a raia por agora, pois, ao cabo de um silêncio, dá-lhe notícias. -Mitch estará aqui em algo menos de vinte minutos. O coração lhe acelera para ouvi-lo, mas o medo se mescla com a esperança e não abre os olhos. -irei esperar sua chegada. Trará o dinheiro a esta habitação. Então, chegará o momento de decidir. -Em Espanhola, há uma mulher que tem dois cães brancos? -Isso é o que vê? -Cães que parecem fundir-se com a neve. -Não sei. Mas se os vê, estou seguro de que é porque ali estão. -Vejo-me rendo junto a ela, e aos cães, tão brancos... -Abre os olhos e o olhe à cara-. Será melhor que vás esperar o. -Vinte minutos -promete ele, e sai da cozinha. Holly fica muito imóvel durante um momento, assombrada de si mesmo. Cães brancos. De onde tirou isso? Cães brancos e uma mulher que ri. A credulidade dele quase a faz rir, mas o fato de que se colocou o suficiente em sua cabeça para saber que imaginária a afeta não tem nada de gracioso. Que seja capaz de navegar por esse mundo de demência não lhe parece de tudo admirável. Os calafrios a embargam e se sinta. Tem as mãos frite e um estremecimento percorre suas vísceras. Coloca a mão sob o pulôver, entre os peitos, e saca o prego do prendedor. É bicudo, mas quisesse que fosse mais. Não tem forma de afiá-lo. Com a cabeça do prego, raspa fatigosamente o reboco, até acumular um pequeno montão de gesso pulverizado. Chegou o momento. Quando Holly era pequena, houve um período em que lhe temia à hoste de monstros noturnos que engendrava seu viva imaginação. Viviam em seu armário, na janela, sob a cama. Sua avó, a boa Dorothy, ensinou-lhe um poema que, conforme lhe disse, repelia a qualquer monstro. Desintegrava aos do armário, pulverizava aos de debaixo de a cama, enviava aos das janelas de volta aos pântanos e covas onde habitavam. Anos depois, Holly se inteirou de que este poema, que a fez esquecer seu temor aos monstros, titula-se "A prece de um soldado". Escreveu-o um soldado britânico, em uma parte de papel que foi achado em uma trincheira em Tunísia, depois da batalha de £1 Agheila. Quedamente, mas em voz alta, recita-o:

 

Me acompanhe, Deus. A noite é fria. A noite é larga; minha pequena faísca de valor se apaga. A noite é escura. me acompanhe, Deus, e me dê forças.

 

Então titubeia, mas só um instante. Tinha chegado o momento.

 

Mitch, com os sapatos cheios de barro e folhas úmidas, a roupa enrugada e suja, uma bolsa branca de lixo sujeito entre seus braços e apertada contra o peito como se fosse um precioso bebê, balança a toda pressa pelo borda da estrada. O desespero lhe dá tanto brilho a seus olhos que, de ser de noite, possivelmente iluminassem seu caminho como faróis. Nenhum encarregado de fazer cumprir a lei que passasse de carro deixaria de lhe emprestar atenção. Tem aspecto de fugitivo, de louco, ou de ambas as coisas. A cinqüenta metros dele se eleva uma estação de serviço com um pequeno supermercado. Dúzias de coloridas bandeirolas, que anunciam uma liquidação de pneumáticos, ondeiam ao vento. pergunta-se se alguém o levaria a casa Turnbridge em troca de dez mil dólares em efetivo. Provavelmente, não. Com o aspecto que tem, a gente suporia que os vai assassinar pelo caminho. Um tio com pinta de vagabundo oferecendo dez mil dólares a quem o queira levar poria em alerta ao encarregado da estação de serviço. Possivelmente chamasse a a polícia. Entretanto, pagar para que o levassem parecia sua única opção, além de roubar um carro a ponta de pistola, coisa que não estava disposto a fazer. Podia ocorrer que o proprietário do carro cometesse a estupidez de tentar lhe tirar a arma e que se disparasse a si mesmo por acidente. Quando já chega à estação de serviço, vê que um Cadillac Escalade sai da estrada e se detém frente aos fornecedores mais próximos a ela. Sai uma loira alta, que, com a bolsa na mão, mete-se no supermercado. Deixa a porta do carro aberta. As duas fileiras de fornecedores são de auto-serviço. Não há empregados à vista. Outro cliente lhe está jogando combustível a sua Ford Explorer. Enquanto isso, lava-lhe os guichês com uma esponja. Mitch se aproxima do Escalade e olhe pela porta aberta. As chaves estão postas. Colocando meio corpo dentro, observa o assento traseiro. Não há nenhum avô, nenhum menino em seu assento de segurança, nenhum pit bull. sinta-se ao volante, fecha a porta, acende o motor e sai à estrada. Embora esteja quase seguro de que alguém sairá correndo atrás dele, agitando os braços e gritando, pelo espelho retrovisor não se vá a ninguém. A estrada está dividida por uma mediana de cimento. Mitch avalia a possibilidade de atravessá-la. O Escalade pode fazê-lo. Mas, dado o que é o destino, sabe que, se o fizer, um carro patrulha acontecerá por ali nesse preciso instante. Segue avançando para o norte a toda velocidade, até que, ao cabo de umas centenas de metros, chega a uma saída, onde gira para pôr rumo ao sul. Quando passa frente à estação de serviço, vê que ainda não apareceu nenhuma loira alta e furiosa. Vai depressa, mas respeitando o limite de velocidade. Pelo general, não é um desses condutores impaciente que amaldiçoam a seus congêneres lentos ou inexperientes. Mas durante esta viagem, deseja-lhes toda classe de pragas e desgraças horríveis. Às 13.56 está no bairro onde se acha a delirante obra inacabada do Turnbridge. Estaciona um momento frente ao meio-fio, em um lugar fora do alcance visual da mansão. Amaldiçoando a resistência dos botões, tira-se a camisa. O mais provável é que Jimmy Null a faça tirar para assegurar-se de que não oculta uma arma. Ordenou-lhe que fora desarmado. Quer que pareça que cumpre com essa demanda. Saca a caixa de balas de calibre 45 da bolsa de lixo e o carregador original da Springfield Champion do bolso das calças. Completa os sete projéteis que ficam no carregador original com outros três. A lembrança de algumas filmes lhe serve de algo. Desliza a plataforma e coloca um décimo primeiro projétil na antecâmara. As balas lhe escorregam dos dedos trementes e talheres de suor, assim só chega a introduzir dois das três que faltam no carregador. Continuando, guarda a caixa de munição e o carregador adicional debaixo do assento. Falta um minuto para as duas. Guarda os dois carregadores completos no bolso dos jeans e a pistola carregada na bolsa, com o dinheiro. Retorce a boca da bolsa, mas não a ata, e se dirige até a casa Turnbridge. Um comprido cerca de arame coberto de painéis de plástico verde separa a rua da propriedade. Quão vizinhos tiveram que suportar essa porcaria urbanística durante anos devem lamentar muito que Turnbridge se matou. De estar vivo, poderiam atormentá-lo com queixa vicinais e legiões de advogados. O portão está fechado com uma cadeia que dá uma volta aos barrotes. Tal como prometesse Jimmy Null, não tem cadeado. Mitch entra até a casa e estaciona com a parte traseira do utilitário olhando para a mesma. Baixa e abre as cinco portas, com a esperança de que o gesto demonstre seu desejo de cumprir no possível com os términos do acordo. Fecha o portão e volta a colocar a cadeia aberta. Com a bolsa na mão, caminha até um ponto entre o Escalade e a casa, detém-se e espera. O dia é temperado, não quente, mas o sol brilha com força. A luz e o vento açoitam seus olhos. O telefone móvel do Anson soa. -Fala Mitch. -São as 14.01. OH, agora são as 14.02. Chega tarde.

 

A casa inacabada parecia grande como um hotel. Jimmy Null podia estar observando ao Mitch desde qualquer das dúzias de janelas que havia ao redor. -Tinha que vir em sua Funda -disse. -rompeu-se. -De onde tirou o Escalade? -Roubei-o. -Sério? -Muito a sério. -Ponha paralelo à casa, assim poderei ver os assentos dianteiros e traseiros completos. Mitch fez o que o outro lhe dizia e, depois de voltar a estacionar o veículo, baixou, deixando as portas abertas. afastou-se do utilitário e esperou, com a bolsa em emanou-a e o telefone contra a orelha. perguntou-se se Null lhe pegaria um tiro desde seu esconderijo antes de aproximar-se de recolher o dinheiro. perguntou-se por que não teria que fazê-lo. -Preocupa-me que não tenha vindo em sua Funda. -Já te disse que se rompeu. -O que ocorreu? -Cravei um pneumático. Adiantou o intercâmbio uma hora, assim não tive tempo de trocá-lo. -Um carro roubado... A polícia te poderia ter seguido. -Ninguém me viu me levar isso   Mitch vio que la puerta había sido forzada a tiros. Entró. -Onde aprendeu a pôr em marcha um carro sem chave? -As chaves estavam postas. Null calou durante um momento. Logo falou. -Entra na casa pela porta principal. Não corte esta chamada. Mitch viu que a porta tinha sido forçada a tiros. Entrou. O vestíbulo era imenso. Embora ainda não estava terminado, até o Julian Campbell se teria impressionado. Depois de deixar que Mitch se reconcomiera durante um minuto, Jimmy Null disse: -Cruza pela colunata até a sala de estar que tem justo em frente. Mitch foi até a sala de estar, em cuja parede ocidental as portas acristaladas se estendiam do chão ao teto. Embora os cristais estavam poeirentos, o panorama que revelavam era tão maravilhoso que se entendia por que Turnbridge tinha querido morrer ali. -Muito bem. Aqui estou. -te volte para a esquerda e cruzamento a habitação -ordenou-lhe Null-. Um vão largo dá a um saguão. Não havia portas colocadas em nenhum vão. Estas teriam que ter quase três metros de altura. Quando Mitch chegou à segunda sala, cuja vista era tão espetacular como a da anterior, Null seguiu com suas instruções. -Vê outro vão largo frente a aquele onde está e uma única porta a sua esquerda? -Sim. -a da esquerda dá a um corredor. O corredor dá a outra série de habitações e desemboca na cozinha. Ela está na cozinha. Mas não lhe aproxime isso. Cruzando a sala, dirigindo-se à porta em questão, Mitch pergunta: -por que não? -Porque quem põe as regras sou eu. Está encadeada a um encanamento. Eu tenho a chave. Detenha na porta da cozinha. O corredor parece fazer-se mais comprido a cada passo que dá, mas sabe que esse efeito telescópico deve ser subjetivo. Está ansioso, louco por ver o Holly. Não olhe ao interior de nenhuma das habitações frente às que acontece. Null pode estar em alguma delas. Não lhe importa. Quando Mitch entra na cozinha a vê em seguida, e o coração lhe expande e a boca fica muito seca. Tudo o que passou, todos os dores que padeceu, cada coisa terrível que teve que fazer, ficam justificados nesse instante.

 

Como o demente tinha ido à cozinha e ficou junto a ela durante a última parte da conversação Telefónica, Holly lhe ouviu dar as instruções finais. Contém o fôlego, esperando ouvir os passos. Quando ouvir que Mitch se aproxima, mornas lágrimas vão a seus olhos, mas pestaneja e as contém. Então, Mitch entra na habitação. Diz seu nome com tanta ternura! Seu marido. Ela estava de pé, com os braços cruzados sobre os peitos, as mãos crispadas colocadas sob os sovacos. Agora, baixa os braços e os deixa pendurando, com as mãos fechadas. O demente, que tirou uma pistola de aspecto aterrador, concentra toda sua atenção no Mitch. -Abre os braços. Retos, como um ave. Mitch obedece. A bolsa branca de lixo lhe pendura da mão direita. Sua roupa está imunda. O vento tinha desordenado seu cabelo. Seu rosto perdeu toda cor. É formoso. -te aproxime, devagar -diz o assassino. Mitch avança até que, quando o separam do assassino uns cinco metros, este lhe ordena que se detenha. Mitch se detém. -Ponha a bolsa no chão. Mitch baixa a bolsa até a poeirenta pedra calcária. Ali fica, mas não se abre ao apoiá-la. O assassino aponta ao Mitch com a pistola. -Quero ver o dinheiro. te ajoelhe frente à bolsa. Ao Holly não agrada ver o Mitch de joelhos. Essa é a postura em que os executores fazem ficar a suas vítimas antes de lhes pegar o tiro de graça. Deve atuar, mas sente que ainda não chegou o momento justo. Se se apressar, seu plano pode falhar. O instinto lhe diz que aguarde, embora fazê-lo com o Mitch de joelhos lhe faz difícil. -me mostre o dinheiro -diz o assassino. Sustenta a pistola com as duas mãos, o dedo tenso sobre o gatilho. Mitch abre a boca da bolsa e saca um maço de bilhetes envoltos em plástico. Rasga um extremo do pacote e separa com o polegar a parte dos bilhetes que aparece, para que se vejam. -Os títulos ao portador? -pergunta o assassino. Mitch deixa cair o dinheiro ao interior da bolsa. O demente se tensa e estende seu braço armado quando Mitch volta a colocar a mão na bolsa. Nem sequer se relaxa ao vê-lo tirar um grande sobre e nada mais. Mitch tira do sobre meia dúzia de certificados de aspecto oficial. Estende um para que o assassino o veja. -Muito bem. Devolve-os ao sobre. Sempre de joelhos, Mitch obedece. -Mitch, se a sua mulher apresentasse uma oportunidade de realização pessoal com a que nunca tivesse sonhado, a ocasião de alcançar a iluminação, a trascendencia, você quereria, sem dúvida, que ela seguisse esse destino melhor. Sobressaltado ante este giro da situação, Mitch não sabe o que dizer, mas Holly sim. Tinha chegado o momento. -Chegou-me um sinal -diz a jovem-. Meu futuro está em Novo o México. Elevando as mãos, que até esse momento penduravam a um e outro lado, abre-as, deixando ver sangrentas feridas nas Palmas. Ao Mitch lhe escapa uma exclamação horrorizada. O assassino olhar de esguelha ao Holly, e fica atônito ante esses estigmas que sangram para ele. Embora não atravessam toda a mão, ferida-las produzidas pelo prego não são superficiais. Ela o cravou e depois pinçou nas feridas, com brutal decisão. O pior foi ter que tragar-se cada gemido de dor. Se o assassino a tivesse ouvido expressar sua dor, teria ido ver o que lhe ocorria. Ao princípio, ferida-las sangraram muito. Ela as encheu de gesso pulverizado para deter a hemorragia. antes de que o gesso cumprisse seu encargo, algo de sangue gotejou ao chão, mas a mulher a escondeu com uma veloz redistribuição do espesso pó. No momento em que Mitch entrou na habitação, Holly se tirou os plugues de gesso com as unhas, reabrindo as feridas. Agora, o assassino olhe fascinado como corre o sangue, enquanto Holly fala. -Em Espanhola, onde sua vida trocará, vive uma mulher chamada Rosa González. Tem dois cães brancos. Com a mão esquerda se baixa o pescoço do pulôver, descobrindo o nascimento de seus seios. O olhar do homem sobe dos peitos aos olhos. Ela se desliza a mão direita entre os peitos, e sua palma se fecha sobre o prego. Teme não poder sujeitá-lo entre seus dedos, escorregadios pelo sangue. E1 assassino olhe ao Mitch. Ela empunha o prego como melhor pode e, tirando-o, o coloca ao assassino na cara. Aponta-lhe ao olho, mas não lhe acerta. O prego lhe atravessa uma bochecha e a rasga. Dando alaridos e lengüetazos contra o prego, retrocede, cambaleando-se. Dispara sua pistola ao azar e as balas se estrelam contra as paredes. Ela vê que Mitch se incorpora e se move depressa. Também ele tem uma pistola na mão.

 

Mitch gritou. -Holly, te mova!-E à primeira sílaba de "Holly", ela já se separava do Jimmy Null tudo o que sua cadeia lhe permitia. A quemarropa, lhe apontando ao abdômen, lhe acertando ao peito, recuando pelo retrocesso, voltando a disparar, inclinando-se, disparando, disparando, parece-lhe que um par de tiros se desviam, mas vê que três ou quatro perfuram o jaquetão. Cada disparo é um trovão que retumba em toda a casa. Null perde o equilíbrio e retrocede, cambaleando-se. Sua pistola tem um dobro carregador. Parece ser completamente automática. As balas acribillan uma parede e parte do teto. Agora sujeita a arma com uma só mão, mas o retrocesso, ou o fato de que perdeu todas suas forças, ou algum motivo desconhecido, fazem que a solte. A pistola golpeia a parede antes de cair sobre o chão de pedra calcária. Impulsionado para trás pelo impacto das balas, balançando-se sobre seus talões, Null se cambaleia, cai de lado, roda até ficar de barriga para baixo. Quando os ecos dos disparos se desvanecem, Mitch ouça a respiração sibilante do Jimmy Null. Possivelmente seja esse o som que alguém produz quando tem uma ferida mortal no tórax. Ao Mitch não orgulha o que faz agora. Nem sequer lhe produz um prazer selvagem. De fato, está a ponto de não fazê-lo, mas sabe que esse "quase não lhe servirá de desculpa quando chegar o momento de prestar contas por suas ações. aproxima-se do homem que ofega e lhe pega dois tiros nas costas. Queria lhe disparar pela terceira vez, mas já gastou as onze balas da pistola. Holly, que se manteve acurrucada, em posição defensiva, durante o tiroteio, fica de pé para receber ao Mitch, que lhe aproxima. -Alguém mais? -pergunta ele. -Só ele, só ele. Suas emoções contidas estalam sobre seu marido, o estreita entre seus braços. Nunca antes o abraçou com tanta força, com tão doce ferocidade. -Suas mãos. -Estão bem. -Suas mãos -insiste ele. -Estão bem, está vivo, estão bem. Ele beija cada parte de seu rosto. Sua boca, seus olhos, sua frente, seus olhos outra vez, agora salgados pelas lágrimas, sua boca. O ar fede a pólvora, há um morto no chão, Holly sangra. Mitch sente que lhe afrouxam as pernas. Quer beijá-la ao ar livre, frente ao vento, ao sol. -Saiamos daqui -diz. -A cadeia. Um pequeno cadeado de aço inoxidável enlaça os elos que lhe rodeiam a boneca. -Ele tem a chave -diz ela. Olhando o corpo cansado, Mitch tira um carregador adicional de um bolso de suas calças. Expulsa o pente esgotado e o substitui pelo novo. Apertando o canhão contra a parte posterior da cabeça do seqüestrador, diz: -Se te mover, você vôo os miolos. -Mas, é obvio, não obtém resposta. Mesmo assim, mantém a pistola fortemente pressionada, enquanto, com sua mão livre, registra os bolsos do demente. Encontra a chave no segundo. Quando o cadeado cai com um tinido sobre o chão de pedra calcária, a cadeia se desprende das bonecas do Holly. -Suas mãos -disse ele-, suas formosas mãos. Vê-la sangrar o rasgava e pensou na cena montada em sua cozinha, os rastros de mãos ensangüentadas. Mas vê-la sangrar era pior, muito pior. -O que te ocorreu nas mãos? -Novo o México. Não é tão grave como parece. Explicarei-lhe isso. Vamos. Vamos daqui. Ele levantou do chão a bolsa do resgate. Ela se dirigiu a uma das portas, mas ele a guiou até a entrada do corredor, que era o único caminho que conhecia. Mitch lhe acontecia o braço direito sobre os ombros, Holly lhe enlaçava o esquerdo pelo talhe. Foram passando frente a habitações vazias, talvez encantadas, ou possivelmente não. O coração do Mitch não pulsava com mais serenidade nem lentidão que quando estava no meio do tiroteio. Possivelmente lhe seguisse pulsando assim o resto de sua vida. O corredor era comprido e, quando chegaram ao saguão, não puderam evitar ficar olhando a vasta e poeirenta perspectiva. Ao chegar à sala de estar, ouviram o rugido de um motor que ficava em marcha em algum lugar da casa. O estrépito retumbava nos corredores e as habitações e ricocheteava nos altos tetos. Era impossível determinar onde se originava. -Uma moto -disse ela. -Antibalas -disse ele-. Levava um colete antibalas sob o jaquetão. O impacto dos projéteis, em particular os dois que lhe acertaram nas costas, lhe sacudindo a coluna vertebral, devia ter deixado ao Jimmy Null inconsciente por um momento. Não tinha tido intenção de partir na caminhonete em que chegou. Tinha oculto uma motocicleta perto da cozinha ou no comilão. Estava preparado para fugir, se as coisas saíam mau, por qualquer asa, por qualquer porta da casa. Uma vez que estivesse fora, poderia escapar não só pelo portão do cerca instalado pelos construtores, que dava à rua, mas também lançando-se pela costa do escarpado ou por algum outro caminho. Quando o estrondo do motor aumentou, Mitch se deu conta de que o que Jimmy queria não era fugir. E que o que o fazia retornar não era o resgate. O que o impulsionava era o ocorrido entre ele e Holly, fora o que fosse, o de novo o México e Rosa González, o dos dois cães e os estigmas sangrantes. E também a humilhação do prego na cara. Pelo do prego, queria ao Holly mais que ao dinheiro. Queria matá-la. A lógica indicava que o tinham a suas costas e que sairia do saguão. Mitch se apressou a conduzir ao Holly pela enorme sala de estar, para o igualmente imenso vestíbulo de entrada e a porta principal. A lógica falhou. Foram por metade da sala de estar quando Jimmy Null surgiu de um nada, montado em uma Kawasaki que avançava com a velocidade de uma bala por a colunata que os separava do vestíbulo. Mitch apartou ao Holly enquanto Null, sorteando colunas, chegava ao vestíbulo. Deu uma ampla volta à entrada e, localizando-se-se na metade do vão que dava a a colunata, arremeteu contra eles, ganhando velocidade à medida que cruzava o vestíbulo. Null não tinha sua pistola. Lhe teriam acabado as balas. Ou, enlouquecido de raiva, tinha esquecido tomar sua arma. Pondo ao Holly detrás de si de um tranco, Mitch elevou a Champion com ambas as mãos, recordando que devia alinhar a olhe com o ponto branco do canhão, e abriu fogo quando Null se lançou sobre eles. Esta vez, apontou-lhe ao peito, com intenção de lhe acertar na cabeça. Quinze metros, cada vez mais perto, o trovão do motor retumbando nos muros. O primeiro disparo sai alto. "Baixa a arma!", disse-se Mitch. O segundo, "baixa a arma!", a dez metros e seguia aproximando-se deles. Terceiro disparo. "Baixa a arma!". O quarto apagou o cérebro do Jimmy Null em forma tão brusca que suas mãos saltaram do guidão. O morto se deteve, o motor não. A moto, encabritando-se sobre a roda traseira, com chiado de pneumáticos, seguiu avançando com um alarido, fumegando, até que caiu e continuou escorregando para eles. Passou sem tocá-los, golpeou um dos ventanales, fez-o migalhas, desapareceu. "Te assegure. O mal é tão difícil de eliminar como uma barata. te assegure, te assegure". Com a Champion sujeita com as duas mãos, lhe aproximou com cuidado, agora não havia pressa, riscou um círculo em torno dele. "Não pise nas salpicaduras do chão". Salpicaduras de um rosa cinzento, lascas de osso, mechas de cabelo. "Não pode estar vivo. Não dê nada por sentado". Mitch lhe tirou a máscara para lhe ver o rosto, mas já não era um rosto, e já tinham terminado. Tinham terminado.

 

O verão em que Anthony cumpre os três anos, celebram o trigésimo segundo aniversário do Mitch com uma festa no pátio traseiro. Agora, Big Green tem três caminhonetes e cinco empregados, além do Iggy Barnes. Todos vão com suas mulheres e filhos, menos Iggy, que leva a uma garota chamada Madelaine. Holly fez bons amigos, como sempre, na agência imobiliária, onde vai segunda em vendas no que vai de ano. Embora Dorothy só chegou doze meses depois que Anthony, não se mudaram a uma casa maior. Holly se criou aqui, esta casa é sua história. Além disso, juntos hão feito historia nela. Acrescentarão-lhe uma planta à casa antes de que nasça um terceiro filho. E haverá um terceiro. O mal cruzou esta soleira, mas sua lembrança não os fará partir. O amor é capaz de limpar as piores mancha. Além disso, ante o mal não cabe a retirada. Só a resistência. E o compromisso. Também vem Sandy Taggart, com sua mulher, Jennifer, e suas duas filhas. Traz o periódico do dia, pois não sabe se Mitch tiver visto a notícia, e não, não a tinha visto. Julian Campbell, a metade de caminho entre a condenação e a apelação, foi degolado no cárcere. suspeita-se que é um homicídio por encargo, mas o responsável ainda não foi identificado. Embora Anson não está na mesma prisão, em seu momento se inteirará do assassinato. Dará-lhe algo em que pensar enquanto seus advogados se trabalham em excesso por salvar o da injeção letal. Porta, a menor das irmãs do Mitch, vem de Birmingham, Alabama, com seu marido, o cozinheiro Frank, e os cinco filhos de ambos. Megan e Connie estão longe em mais de um sentido, mas Mitch e Porta estreitaram sua relação, e ele alberga a esperança de obter, com o tempo, aproximar-se de suas outras duas irmãs. Daniel e Kathy tiveram cinco filhos porque dizem que a continuação da espécie não deve deixar-se em mãos dos irracionalistas. Os materialistas devem procriar com tanto vigor como os crentes, se não quererem que o mundo se vá ao inferno da mão de Deus. Porta compensou os cinco de seus pais com cinco próprios, a quem criou à maneira tradicional, sem quarta de aprendizagem. Nesta tarde de aniversário, dão-se um banquete sentados às mesas do pátio e do jardim, e Anthony se sinta, orgulhoso, em sua cadeira especial. Mitch se a fez segundo o desenho que esboçou Holly, quem a pintou de uma alegre cor vermelha. -Esta cadeira -diz ao Anthony- fizemo-la em memória de um menino que teve seis anos durante cinqüenta anos, e que foi muito amado durante cinqüenta e seis anos. Se alguma vez crie que não é amado, sente-se nesta cadeira e saberá que é tão amado como esse outro Anthony, que foi amado como o que mais. Como tem três anos, Anthony responde: -Dá-me gelado? depois do jantar, instalam uma pista de baile improvisada no pátio. A banda não dá tanta lástima como a das bodas. Não têm panderetas nem acordeão. Quando, muito mais tarde, a banda parte e todos os convidados se foram, quando Anthony e Dorothy já dormem profundamente na dobro cadeira de balanço do alpendre, Mitch tira dançar ao Holly ao som da música da rádio. Agora têm toda a pista para eles. A estreita, mas não com muita força, porque não é inquebrável. Enquanto marido e mulher dançam, lhe acaricia o rosto, como se ainda não pudesse acreditar que ele a trouxe de retorno a casa. Ele beija a cicatriz da palma de uma mão, depois, a outra. Baixo esse imenso dossel de estrelas, à luz da lua, está tão bela que ao Mitch as palavras não bastam, como já lhe ocorreu muito freqüentemente. Embora a conhece tão bem como a si mesmo, encontra-a tão misteriosa como adorável. Em seus olhos há a Honduras eternas. Mas não é mais misteriosa que as estrelas, a lua e todas as coisas da terra.

 

 

                                                                  Dean R. Koontz

 

        

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