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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MARTELO DO ÉDEN / Ken Follett
O MARTELO DO ÉDEN / Ken Follett

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MARTELO DO ÉDEN

 

Uma secreta comunidade hippie, num longínquo vale na Califórnia, tem sua existência ameaçada quando o Estado decide construir uma usina elétrica em seu território.

 Priest, o carismático líder da comunidade, decide proteger seu reduto a qualquer preço e considera que a ameaça de um terremoto seria uma forma eficaz de chantagear o Governo e persuadi-lo a abandonar o projeto.

 Quando o polêmico radialista John Truth leva ao ar a ameaça de provocar um terremoto feita por prováveis terroristas, poucas pessoas o levam a sério. Judy Maddox, uma jovem agente do FBI, extremamente competente, recebe a missão de rastrear o sinistro grupo.

 O chefe de Judy, que não gosta dela, acha que lhe deu uma tarefa inútil e insignificante, que resultará apenas em perda de tempo. As pesquisas da investigadora, no entanto, a conduzem ao sismólogo Michael Quercus, que lhe dá a chocante notícia de que é perfeitamente possível, mesmo para um leigo, provocar um terremoto. E no momento em que um tremor num longínquo deserto da Califórnia exibe provas de ter sido provocado pela mão do homem, Judy certifica-se de que a terrível ameaça é verdadeira.

 Subitamente responsável por uma investigação de vida ou morte, Judy precisa identificar, com precisão, o próximo alvo dos terroristas, e para isso conta com a ajuda do atraente Michael. O irresistível envolvimento romântico dos dois se desenrola à medida que tenta impedir o desastre iminente.

 

 Quando ele deita para dormir, esta paisagem está sempre na sua mente: Uma floresta de pinheiros cobre as montanhas, densa como o pêlo do dorso de um urso. O céu é tão azul, o ar da montanha tão claro que dói a vista olhar para cima.

 A quilômetros da estrada há um vale secreto cujas margens são íngremes e em cuja calha corre um rio. Ali, escondida dos olhos de estranhos, uma encosta voltada para o sul foi limpa e nela crescem, em fileiras meticulosamente alinhadas, as videiras.

 Quando se lembra de como aquilo é bonito, sente que o coração quer se partir.

 Homens, mulheres e crianças deslocam-se vagarosamente por entre as videiras, cuidando das plantas. São seus amigos, suas amantes, sua família. Uma das mulheres ri. É uma mulher grande com cabelos escuros e longos, e ele sente uma afeição especial por ela. A mulher joga a cabeça para trás e abre bem a boca, e a sua voz clara flutua pelo vale como o canto de um pássaro.

 Alguns dos homens anunciam, enquanto trabalham uma boa safra. Aos pés deles, resistem, ainda visíveis e imensos, alguns tocos de árvores, para lembrar a eles o trabalho angustiante que tiveram para limpar aquele terreno vinte e cinco anos atrás. O solo é pedregoso mas é bom, porque as pedras retêm o calor do sol e aquecem as raízes das videiras, protegendo-as do congelamento mortal.

 Além dos vinhedos há um grupo de edificações de madeira, simples, mas bem construídas e à prova d'água. Uma coluna de fumaça sobe da cozinha, isolada em uma cabana.

 Em uma clareira, uma mulher ensina um menino a fazer barris.

 Aquele é um lugar sagrado.

 Protegido pelo segredo e pelas orações, ele permaneceu puro, seu povo livre enquanto o mundo além do vale degenerou-se, vítima da corrupção e hipocrisia, ganância e imoralidade. Mas agora a visão muda.

 Aconteceu algo ao veloz curso de água que ziguezagueava pelo vale. Seu ruído foi silenciado, sua pressa repentinamente detida. Em vez de uma corrente de águas claras, o que há é uma extensão de água escura, silenciosa e parada, cujas margens parecem estáticas, mas que, se ele olhar com atenção por uns instantes, verá que a água represada aumenta.

 Logo é forçado a retrair para cima de uma colina.

 Ele não consegue entender por que os outros não notam aquela maré ascendente. Quando a água negra atinge a primeira fila de videiras, eles continuam trabalhando com os pés mergulhados na água. As casas são cercadas e depois inundadas. O fogo da cozinha é apagado e barris vazios flutuam no lago cada vez maior. Por que não fogem? Ele pergunta a si próprio, e o pânico que sente sobe à sua garganta e ameaça impedi-lo de respirar.

 O céu escurece, coberto de nuvens cor de ferro, e o vento frio fustiga as roupas das pessoas, mas elas continuam a se deslocar ao longo das videiras, abaixando-se e levantando-se, sorrindo umas para outras e falando com vozes discretas, normais. Ele é o único que pode ver o perigo, e percebe que deve pegar uma, duas ou mesmo três das crianças e salvá-las, não deixar que se afoguem. Tenta correr na direção da filha, mas descobre que tem os pés presos na lama e não pode se mover; seu coração se enche de pavor.

 Nos vinhedos a água sobe à altura dos joelhos dos trabalhadores,depois chega às suas cinturas e vai até os pescoços. Ele tenta gritar para as pessoas a quem ama, dizer que elas têm que fazer qualquer coisa agora, rapidamente, nos próximos segundos, ou morreram, mas embora abra a boca e se esforce, não consegue produzir um único som. O terror o domina.

 A água atinge sua boca e começa a afogá-lo. É quando acorda.

 Um homem chamado Priest puxou o chapéu de caubói para a frente e contemplou o deserto do sul do Texas, plano e poeirento.

 As touceiras do espinhento algarobo e de artemísia espalhavam-se em todas as direções até onde sua vista alcançava. Na frente dele, uma trilha cheia de sulcos, com uns três metros de largura, fora aberta através da vegetação. Trilhas como aquela eram chamadas de senderos pelos tratoristas hispânicos que as cortavam em linhas brutalmente retas. De um lado, em intervalos precisos de cinqüenta metros, bandeirolas de plástico cor-de-rosa se agitavam, presas em pedaços de arame, marcando o caminho. Um caminhão deslocava-se lentamente ao longo do sendero.

 Priest tinha que roubar o caminhão.

 Ele roubara seu primeiro veículo aos onze anos de idade, um Lincoln Continental branco novo em folha, estacionado com as chaves na ignição, em frente ao Cinema Roxy, na parte sul da Broadway, em Los Angeles.

 Priest, que naquele tempo era chamado de Ricky, mal podia enxergar por cima do volante. Sentia tanto medo que quase se urinara, mas conseguira andar dez quarteirões e entregara, orgulhosamente, as chaves a Jimmy "Cara de Porco" Riley, que lhe deu cinco pratas e depois levou a namorada para dar uma volta e espatifou o carro na rodovia da Costa do Pacífico. Fora assim que Ricky tornara-se membro da gangue Cara de Porco.

 Mas aquele caminhão não era um veículo comum. Enquanto Priest observava, a poderosa maquinaria localizada atrás da cabina do motorista abaixou lentamente uma placa de aço maciço, com um pouco menos de dois metros quadrados, até o chão. Houve uma pausa, um ruído surdo e prolongado. Uma nuvem de poeira levantou-se em torno do caminhão quando a placa começou a bater ritmadamente na terra. O chão tremeu sob seus pés.

 Aquilo era um vibrador sísmico, uma máquina para enviar ondas de choque através da crosta terrestre. Priest nunca tivera muito estudo; exceto no tocante ao furto de carros, mas era a pessoa mais esperta que ele próprio conhecera e compreendeu como o vibrador funcionava. Era similar ao radar e ao sonar. As ondas de choque refletiam-se na composição do solo — rocha ou líquido — e voltavam para a superfície, onde eram captadas por aparelhos de escuta chamados geofones.

 Priest trabalhava na equipe de geofones. Tinham plantado mais de mil deles em intervalos medidos com precisão em uma grade com uma milha — mil e seiscentos metros — de lado. Cada vez que o vibrador sacudia o solo, os reflexos eram captados pelos geofones e gravados por um supervisor que trabalhava em um trailer conhecido como casa do cachorro. Todos esses dados mais tarde iriam alimentar um supercomputador em Houston, que produziria um mapa tridimensional do que se encontrava sob a superfície da terra. O mapa seria vendido a uma companhia de petróleo.

 O tom das vibrações tornou-se mais agudo, produzindo um barulho que lembrava os poderosos motores de um transatlântico ganhando velocidade. Depois o barulho cessou abruptamente. Priest correu ao longo do sendero até o caminhão, sentindo os olhos arderem por causa da nuvem de poeira.

 Abriu a porta e subiu com dificuldade na cabina. Um homem corpulento e de cabelos negros, com cerca de trinta anos, estava à direção.

 — Ei, Mario — disse Priest, sentando-se do lado do motorista.

 — Ei, Ricky.

 Richard Granger era o nome na carteira de motorista de Priest (categoria B). A carteira era forjada, mas o nome, real.

 Ele carregava um pacote de cigarros Marlboro, a marca que Mario fumava. Jogou o pacote em cima do painel.

 — Aqui, trouxe uma coisa pra você.

 — Ei, cara, você não precisa me comprar cigarros.

 — Estou sempre filando seus cigarros — ele pegou o maço aberto em cima do painel, sacudiu até aparecer um cigarro, que pôs na boca.

 Mario sorriu.

 — Por que você não compra os seus cigarros?

 — De jeito nenhum, cara. Não posso fumar.

 — Você é maluco, cara — Mario deu uma risada.

 Priest acendeu o cigarro. Sempre teve facilidade em relacionar-se com as pessoas, fazer com que gostassem dele. Nas ruas onde crescera, os outros batiam em você se não gostassem da sua cara, e ele fora um garoto miúdo. Por isso desenvolvera a capacidade intuitivamente o que as pessoas queriam dele — deferência, afeição, humor, o que fosse — e o hábito de proporcionar-lhes rapidamente essas coisas. No campo petrolífero, o que unia os homens era o humor: geralmente zombeteiro, às vezes inteligente e quase sempre obsceno.

 Embora estivesse ali apenas há duas semanas, Priest ganhara a confiança dos colegas. Mas ainda não tinha imaginado um modo de roubar o vibrador sísmico. E tinha de fazê-lo nas próximas horas, pois no dia seguinte o caminhão deveria ser levado para um novo local, a mil e duzentos quilômetros de distância, perto de Clovis no estado de Novo México.

 Seu vago plano era pegar uma carona com Mario. A viagem levaria dois ou três dias — o caminhão, que pesava dezoito toneladas, desenvolvia na estrada sessenta e cinco quilômetros por hora. Em algum ponto daria um jeito para Mario tomar um porre ou qualquer coisa e aí sumiria com o caminhão. Tinha esperanças de que um plano melhor lhe ocorresse, mas até agora faltara inspiração.

 — Meu carro anda morrendo — disse. — Quer me dar uma carona até San Antonio amanhã?

 Mario ficou surpreso.

 — Você não vai até Clovis, vai?

 — Nada disso — ele gesticulou na direção da paisagem árida do deserto.

 — Olha só isso aí — disse. — O Texas é tão bonito, não quero ir embora nunca.

 Mario deu de ombros. Não havia nada de estranho em um trabalhador temporário, naquela linha de trabalho, sentir-se irrequieto.

 — Claro, eu dou a carona — era contra as regras da companhia levar passageiros, mas os motoristas faziam isso o tempo todo.

— Encontra comigo no vazadouro.

 Priest fez que sim. O vazadouro de lixo era um buraco desolado, cheio de picapes enferrujadas, aparelhos de televisão esmagados e colchões infestados de bichos, nas cercanias de Liberty, a cidadezinha mais próxima. Ninguém estaria lá para ver Mario pegá-lo a menos que houvesse por lá uma dupla de garotos matando cobras com uma espingarda calibre

 — A que horas?

 — Digamos que às seis.

 — Eu levo café.

 Priest precisava daquele caminhão. Sentia que sua vida dependia dele.

 As palmas de suas mãos coçavam de vontade de pegar Mario naquele instante mesmo, jogá-lo para fora da cabina e dar o fora. Mas não adiantava. Para começar, Mario era quase vinte anos mais moço que Priest e podia não se deixar jogar para fora da cabina com facilidade. Outra coisa é que o roubo só podia ser descoberto após alguns dias. Priest precisava dirigir o caminhão até a Califórnia e escondê-lo antes que a polícia de todo o país fosse alertada para descobrir o paradeiro de um vibrador sísmico roubado.

 Ouviu-se um bipe no rádio, isto indicava que o supervisor na casinha de cachorro checara os dados da última vibração e não encontrara problemas. Mario levantou a placa, engrenou o caminhão e adiantou-se cinqüenta metros, parando exatamente do lado da bandeirola cor-de-rosa seguinte. Em seguida abaixou a placa de novo e enviou um sinal de pronto. Priest a tudo observou cuidadosamente, como fizera diversas vezes antes, assegurando-se de que decorava a ordem em que Mario movimentava as alavancas e acionava os interruptores. Se esquecesse alguma coisa mais tarde, não haveria ninguém a quem pudesse perguntar.

 Esperaram pelo sinal de rádio vindo da casa de cachorro e que daria início à próxima vibração. Podia ser feito pelo motorista no caminhão, mas geralmente os supervisores preferiam reter o comando e dar início ao processo pelo controle remoto. Priest terminou o cigarro e jogou a ponta pela janela.

 Mario indicou o carro de Priest, estacionado uns seiscentos metros adiante na estrada de asfalto de duas pistas.

 — Aquela é a sua mulher?

 Priest deu uma olhada. Star saltara do Honda Civic azul claro imundo e estava encostada no capô, abanando o rosto com o chapéu de palha.

 — É, é ela sim — respondeu.

 — Deixa eu lhe mostrar uma foto — Mario pegou no bolso da calça-jeans uma carteira velha de onde tirou uma foto que passou para Priest. – Esta é Isabella — disse, orgulhosamente.

 Priest viu uma bonita garota mexicana com seus vinte e poucos anos, com um vestido amarelo e um arco também amarelo no cabelo. Segurava um bebê apoiado no quadril e tinha um menino de cabelo bem escuro de pé, timidamente a seu lado.

 — Seus filhos?

 Ele fez que sim.

 — Ross e Betty.

 Priest resistiu à tentação de sorrir ao ouvir os nomes ingleses.

 — Bonitas crianças.

 Ele pensou nos próprios filhos e quase falou com Mario a respeito deles, mas deteve-se a tempo.

 — Onde moram?

 — El Paso.

 O germe de uma idéia pipocou na cabeça dele.

 — Você os vê com freqüência?

 Mario sacudiu a cabeça.

 — Eu só faço trabalhar, cara. Economizando dinheiro para comprar uma casa para eles. Uma casa boa, com uma cozinha grande e uma piscina no quintal. Eles merecem.

 A idéia desabrochou. Priest conteve a excitação e manteve o tom de voz casual, prosseguindo com o papo furado.

 — É, uma bela casa para uma bela família. Certo?

 — É o que penso.

 O rádio emitiu um outro bipe e o caminhão começou a sacudir. O barulho era como o de um trovão, só que mais regular. Começou num tom grave de baixo profundo e foi lentamente subindo. Exatamente depois de catorze segundos, parou.

 No silêncio que se seguiu, Priest estalou os dedos. — Ei, tenho uma idéia... não, acho que não.

 — O que?

 — Não sei se ia funcionar.

 — O quê, homem, o quê?

 — Eu só pensei que, você sabe, sua mulher sendo tão bonita e seus filhos também, está errado você não ver sua família com mais freqüência.

 — É esta a sua idéia?

 — Não, minha idéia é que eu podia dirigir o caminhão até o Novo México enquanto você vai visitá-los, mais nada — era importante não parecer muito entusiasmado, disse Priest a si Próprio. — Mas acho que não ia dar certo — acrescentou, num tom de voz que traduzia indiferença.

 — Não, cara, não é mesmo possível.

 — Provavelmente não. Vejamos, se sairmos amanhã cedo e dirigirmos até San Antonio juntos, eu podia deixar você lá no aeroporto e você chegaria em El Paso ao meio-dia. Brincava com as crianças, almoçava com sua mulher, passava a noite, tomava um avião no de Lubbock a Clovis?

 — Uns cento e quarenta, talvez, cento e sessenta quilômetros.

 — Poderíamos estar em Clovis na mesma noite, ou na manhã seguinte, no mais tardar, e ninguém saberá que você não dirigiu todo o trajeto.

 — Mas você quer ir para San Antonio.

 Droga. Priest não pensara nos detalhes; ia inventando à medida que falava.

 Ei, nunca estive em Lubbock — disse, alegremente. — É onde nasceu Buddy Holly.

 — Quem diabos é Buddy Holly? Priest cantou:

 — "I love you, Peggy Sue." Buddy Holly morreu antes de você nascer, Mario. Eu gostava mais dele do que do Elvis. E não me pergunte quem foi Elvis.

 — Você dirigiria toda essa distância só por minha causa?

 Priest perguntou-se, ansioso, se Mario estaria desconfiado ou apenas grato.

 — Claro que sim — respondeu. — Desde que você me deixe fumar os seus Marlboros.

 Mario sacudiu a cabeça, assombrado.

 — Você é um sujeito e tanto, Ricky. Mas eu não sei.

 Não estava desconfiado, então, só apreensivo. E provavelmente não podia ser forçado a tomar uma decisão. Priest mascarou sua frustração com um show de indiferença.

 — Bem, pense nisso — disse.

 — Se alguma coisa sair errado, não quero perder meu emprego.

 — Você está certo — Priest lutou para conter a impaciência. — Eu lhe digo, a gente conversa mais tarde. Vai ao bar de noite?

 — Claro.

 — Por que não me dá a resposta lá?

 — OK, estamos combinados.

 O rádio transmitiu o bipe que sinalizava tudo bem e Mario acionou a alavanca que levantava a placa do chão.

 — Preciso voltar para a equipe dos geofones — disse Priest. – Temos que enrolar alguns quilômetros de cabos antes da noite cair.

 Ele devolveu a foto da família de Mario e abriu a porta. — Vou lhe dizer uma coisa, cara, se eu tivesse uma garota tão bonita assim, nem saía de casa.

 Priest sorriu, pulou para o chão e bateu a porta.

 O caminhão deslocou-se na direção da bandeirola seguinte enquanto Priest se afastava, as botas de caubói chutando a poeira.

 Enquanto percorria o sendero que ia dar onde o carro estava estacionado, viu que Star começava a andar de um lado para o outro, impaciente e ansiosa.

 Star tinha sido famosa, mesmo que por um breve período. No auge da era hippie morava em Haight-Ashbury, um bairro de San Francisco. Priest não a conhecia nesse tempo — ele gastara o final dos anos 60 ganhando o seu primeiro milhão de dólares — mas tinha tomado conhecimento das histórias dela. Fora uma mulher linda, alta e de cabelos escuros, com um perfil generoso que lembrava uma ampulheta. Tinha gravado um disco recitando poesia com um fundo de música psicodélica executada pela banda Raining Fresh Daisies. O disco fizera certo sucesso, e Star fora uma celebridade por uns dias.

 Mas o que a transformara numa lenda fora sua insaciável promiscuidade sexual. Fazia sexo com quem cismasse: ansiosos garotos de doze anos e espantados homens de sessenta, rapazes que pensavam ser gays e garotas que não sabiam que eram lésbicas, amigos que conhecia havia anos e estranhos que apanhava nas ruas.

 Isso fora muito tempo atrás. Agora ela estava a poucas semanas de completar o qüinquagésimo aniversário e havia faixas grisalhas no seu cabelo. A silhueta ainda era generosa, embora não mais lembrasse uma ampulheta: pesava oitenta quilos. Mas ainda exercia um extraordinário magnetismo sexual. Quando entrava num bar todos os homens olhavam para ela.

 Mesmo agora, inquieta e encalorada, havia um quê de sexual no jeito como andava e se virava ao lado do carro velho e barato, um convite evidente no movimento de suas carnes sob o algodão fino do vestido, e Priest sentiu o impulso de agarrá-la ali mesmo.

 — O que aconteceu? — perguntou ela assim que achou que ele podia ouvi-la.

 Priest sempre era otimista.

 — Tudo bem — disse ele.

 — O que parece ruim — disse ela, ceticamente. Sabia que não devia acreditar em tudo o que ouvia.

 Ele lhe contou a proposta que fizera a Mario.

 — O bom da história é que o Mario é que levará a culpa acrescentou.

 — Como assim?

 — Pense no seguinte. Ele chega a Lubbock, me procura, não estou lá, tampouco o caminhão. Ele imagina que foi tapeado. O que faz? Seque para Clovis e diz à companhia que perdeu o caminhão? Acho que não. Na melhor das hipóteses, será despedido. Na pior, poderá ser acusado de ter roubado o caminhão e ser jogado na cadeia, aposto como ele nem irá a Clovis. Voltará para o avião, seguirá para El Paso, coloca mulher e filhos no carro e desaparece. Aí a polícia vai ter certeza de que ele roubou o caminhão. E Ricky Granger não será sequer um suspeito.

 Ela franziu a testa.

 — É um grande plano, mas ele morderá a isca?

 — Acho que sim.

 Star ficou mais ansiosa e bateu no teto sujo do carro com a palma da mão.

 — Merda, temos que pegar aquele maldito caminhão!

 Ele estava tão preocupado quanto ela, mas disfarçou com um ar confiante.

 — Vamos pegar — disse ele. — Se não for de um jeito, será de outro.

 Ela pôs o chapéu de palha na cabeça, recostou-se no carro e fechou os olhos.

 — Quisera eu ter certeza.

 Priest fez um carinho no rosto dela.

 — Precisa de uma carona, senhora?

 — Sim, por favor. Leve-me para o meu quarto de hotel com ar-condicionado.

 — Haverá um preço a pagar.

 Ela abriu os olhos com fingida inocência.

 — Terei que fazer alguma coisa indecente, senhor?

 Ele deslizou a mão por entre os seios de Star.

 — Terá, sim.

 — Oh, mas que droga — disse ela, levantando a saia até a cintura.

 Estava sem calcinhas.

 Priest sorriu e desabotoou sua Levis.

 — O que é que o Mario vai pensar se nos vir?

 — Sentirá ciúmes — disse Priest, ao mesmo tempo em que a penetrava.

 Eram quase da mesma altura e se ajustavam com a facilidade da longa prática.

 Star beijou-lhe a boca.

 Poucos momentos depois ele ouviu um veículo se aproximando pela estrada. Os dois olharam sem interromper o que estavam fazendo. Era uma picape com três trabalhadores no banco da frente. Os homens puderam ver o que estava acontecendo e eles gritaram e fizeram algazarra pelas janelas abertas quando passaram.

 Star acenou para eles, gritando:

 — Ei, caras!

 Priest riu tanto que gozou.

 

 A crise tinha entrado na fase final e decisiva exatamente três semanas antes.

 Eles estavam sentados na mesa comprida na cabana onde funcionava a cozinha, comendo a refeição do meio-dia, um apimentado ensopado de lentilhas e legumes com pão recém-saído do forno, quando Paul Beale entrou com um envelope na mão.

 Paul engarrafava o vinho que a comunidade de Priest produzia — mas ia além disso. Era o vínculo deles com o exterior, que os capacitava a negociar com o mundo mas mantendo-o à distância. Um homem calvo e barbado, de jaqueta de couro, amigo de Priest desde que os dois eram arruaceiros de catorze anos, rolando embriagados pelas ruas miseráveis de L.A., no início dos anos 60.

 Priest adivinhou que Paul recebera a carta naquela manhã e tinha imediatamente entrado no carro e vindo de Napa. Adivinhou também o que havia na carta, mas esperou que Paul explicasse.

 — É do Bureau de Administração de Terras — disse Paul. Endereçada a Stella Higgins.

 Ele a entregou a Star, sentada em uma das extremidades da mesa, em frente a Priest. Stella Higgins era seu nome verdadeiro, o nome que usara ao arrendar aquela extensão de terra ao Departamento do Interior, no outono de 1969.

 Ao redor da mesa todos ficaram em silêncio. Até mesmo as crianças calaram a boca, sentindo a atmosfera de medo e alarme.

 Star rasgou o envelope e tirou uma folha. Leu o texto com uma única olhada.

 — Sete de junho — disse.

 Priest disse:

 — Sete semanas e dois dias a partir de hoje — este tipo de cálculo era feito automaticamente por ele.

 Diversas pessoas gemeram, em desespero. Uma mulher chamada Song começou a chorar silenciosamente. Um dos filhos de Priest, um menino de dez anos chamado Ringo, perguntou:

 — Por quê, Star, por quê?

 Priest percebeu que era alvo do olhar de Melanie, a mais recente integrante da comunidade. Era alta e magra, com vinte e oito anos de idade e dona de uma aparência admirável: pele muito clara, cabelos compridos cor de páprica, e corpo de modelo. Dusty, o filho de cinco anos de idade, estava sentado ao seu lado.

 — O quê? — perguntou Melanie, chocada. — O que é isso?

 Todo mundo sabia que aquilo aconteceria, mas era deprimente demais falar a respeito e não tinham contado a Melanie. Priest explicou:

 — Temos que abandonar o vale. Sinto muito, Melanie.

 Star leu a carta.

 — A acima referida extensão de terra tornar-se-á perigosa para habitação humana após o dia 7 de junho, e, assim sendo, o seu período de arrendamento terminará naquela data, de acordo com a cláusula nove, parte B, parágrafo dois, do seu contrato.

 Melanie levantou-se. Sua pele alva ficou vermelha e o rosto bonito retorceu-se num súbito acesso de ódio.

 — Não! — gritou ela. — Não! Não podem fazer isso comigo , acabei de encontrar vocês! Não acredito, é mentira — ela voltou sua fúria contra Paul. — Mentiroso! — gritou. — Seu filho da puta mentiroso!

 O filho dela começou a chorar.

 — Ei, pára com isso! — exclamou Paul, indignado. — Sou apenas a droga do carteiro!

 Todo mundo começou a gritar ao mesmo tempo.

 Priest colocou-se ao lado de Melanie com duas passadas. Passou o braço em torno dela e falou baixinho no seu ouvido. — Você está assustando o Dusty — disse. — Sente-se, agora. Você tem direito de estar furiosa, nós todos estamos loucos de raiva.

 — Diga-me que não é verdade — disse ela.

 Priest empurrou-a delicadamente de volta para a cadeira.

 — É verdade, Melanie. É verdade.

 Quando todos se aquietaram, Priest disse:

 — Vamos embora, todo mundo, vamos lavar os pratos e voltar para o trabalho.

 — Por quê? — quis saber Dale. Ele era o vinhateiro. Não um dos fundadores, tinha chegado aos anos 80, desiludido com o mundo comercial.

 Depois de Priest e Star, era a pessoa mais importante do grupo. – Não estaremos aqui para a vindima — prosseguiu. — Temos que ir embora em cinco semanas. Por que trabalhar?

 Priest imobilizou-o com o olhar, a mirada hipnótica que só não intimidava as pessoas dotadas de mais força de vontade. Deixou que a sala ficasse em silêncio, para que todos pudessem ouvir. E por fim disse:

 — Porque milagres acontecem.

 

 Uma postura local proibia a venda de bebidas alcoólicas na cidadezinha de Shiloh, no Texas, mas logo do outro lado do limite urbano havia um bar chamado Doodlebug, com chope barato, uma banda country-faroeste e garçonetes vestindo calças blue jeans apertadas e botas de caubói.

 Priest foi sozinho. Não queria que Star mostrasse o rosto, correndo o risco de que se lembrassem dela mais tarde. Gostaria que ela não tivesse vindo para o Texas. Mas precisava de alguém que o ajudasse a levar o vibrador sísmico de volta. Iam dirigir dia e noite, alternando-se ao volante, usando drogas para permanecerem acordados. Queriam chegar antes de que dessem por falta da máquina.

 Lamentava a indiscrição daquela tarde. Mario vira Star a uns quatrocentos metros de distância e os três trabalhadores na picape a tinham apenas vislumbrado ao passarem, mas sua aparência era marcante e provavelmente seriam capazes de descrevê-la aproximadamente: uma mulher branca, alta, corpulenta, de cabelos escuros compridos...

 Priest mudara de aparência antes de chegar em Liberty. Deixara crescer o bigode e uma barba cerrada e prendera o cabelo comprido numa trança apertada que mantinha enfiada dentro do chapéu.

 No entanto, se tudo corresse de acordo com o seu plano, ninguém pediria descrições dele ou de Star.

 Quando chegou no Doodlebug, Mario já estava lá, sentado a uma mesa com cinco ou seis sujeitos da equipe de geofones e o chefe do grupo, Lenny Petersen, que controlava toda a equipe de exploração sísmica.

 Para não parecer demasiado ansioso, Priest pediu uma Lone Star de gargalo comprido e ficou no bar por algum tempo, tomando a cerveja direto na garrafa e conversando com a garçonete antes de se integrar à mesa de Mario.

 Lenny era um sujeito careca, de nariz vermelho. Tinha sido ele quem dera o emprego a Priest, duas semanas antes. Priest passara uma noite no bar, bebendo moderadamente, sendo amável com a equipe, aprendendo uma ou outra palavra do jargão da exploração sísmica e rindo alto das piadas de Lenny. Na manhã seguinte o encontrara no campo petrolífero e pedira um emprego.

 — Vou aceitar você a título de experiência — dissera Lenny.

 Era tudo de que Priest precisava.

 Ele era trabalhador, aprendia depressa e era uma pessoa fácil de lidar; em poucos dias foi aceito como membro regular da equipe.

 Ao sentar-se, Lenny dirigiu-se a ele com seu sotaque arrastado do Texas:

 — Então, Ricky, você não vai conosco a Clovis.

 — É isso aí — confirmou Priest. — Gosto demais do tempo aqui para sair.

 — Bem, eu só gostaria de dizer, com toda a sinceridade, que foi um verdadeiro privilégio e um prazer conhecer você, mesmo que por um período de tempo tão curto.

 Os outros riram. Lenny fizera a piada usando um lugar-comum. Todos olharam para Priest aguardando sua réplica. Priest fez uma cara solene e disse:

 — Lenny, você é tão bom pra mim que eu vou lhe perguntar mais uma vez. Quer se casar comigo?

 Todos deram risada. Mario deu um tapa nas costas de Priest.

 Lenny pareceu ficar perturbado e disse:

 — Você sabe que não posso me casar com você, Ricky. E eu já lhe disse qual o motivo — ele fez uma pausa para aumentar o efeito dramático e todos se inclinaram um pouco para a frente a fim de não deixarem de escutar o desfecho. — Sou lésbica.

 Desta vez eles chegaram a urrar de tanto rir. Priest deu um sorriso melancólico, reconhecendo a derrota, e pediu um jarro de chope para a mesa.

 A conversa passou para o beisebol. A maioria ali torcia pelos Astros de Houston, mas Lenny era de Arlington e preferia os Rangers do Texas.

 Priest não tinha interesse por esportes, de modo que aguardou impacientemente, intervindo de vez em quando com um a tempo, tinham sido bem pagos e era uma noite de sexta-feira. Priest bebericou lentamente sua cerveja. Nunca bebia muito; detestava perder o controle. Observou Mario bebendo. Quando Tammy, a garçonete deles, trouxe outro jarro, Mario contemplou, com um olhar de desejo, os seios dela, sob a camisa xadrez.

 Continue desejando, Mario — você poderia estar na cama com sua mulher amanhã.

 Depois de uma hora, Mario foi ao banheiro.

 Priest seguiu-o. Ao inferno com esta espera, está na hora de decidir. Colocou-se ao lado de Mario e disse:

 — Acho que a Tammy está usando roupa de baixo preta.

 — Como é que você sabe?

 — Dei uma espiada quando ela se abaixou. Adoro ver um sutiã rendado.

 Mario suspirou. Priest continuou.

 — Você gosta de mulher com roupa de baixo preta?

 — Vermelha — disse Mario, decidido.

 — É, vermelho é bonito também. Dizem que é um sinal de que a mulher realmente está a fim de você, quando veste roupa de baixo vermelha.

 — É mesmo? — o hálito de cerveja de Mario veio um pouco mais depressa.

 — E, ouvi isso não sei onde. — Priest abotoou-se. — Escute, tenho que ir. Minha mulher está me esperando no motel.

 Mario fez uma careta e enxugou o suor da testa.

 — Vi você e ela hoje de tarde, cara.

 Priest sacudiu a cabeça fingindo arrependimento.

 — É minha fraqueza. Eu simplesmente não sei dizer não para uma cara bonita.

 — Vocês estavam transando, não estavam, na maldita estrada?

 — É... Bem, quando você não vê uma mulher há algum tempo, ela fica meio frenética querendo, entende o que quero dizer? Vamos, Mario, vê se entende onde estou querendo chegar!

 — Sim, eu sei. Olha, a respeito de amanhã...

 Priest prendeu a respiração.

 — Bem, se você ainda está querendo fazer o que disse... Sim! Sim!

 — Vamos em frente, certo?

 Priest resistiu à tentação de abraçar o outro. Mario perguntou ansiosamente.

 — Você ainda está disposto, não está?

 — Claro que sim — Priest passou o braço pelos ombros de Mario quando os dois saíram do banheiro. — Ei, para que servem os amigos, entende o que quero dizer?

 — Obrigado, cara — havia lágrimas nos olhos de Mario. Você é um sujeito e tanto, Ricky.

 

 Lavaram as tigelas de cerâmica e as colheres de pau em uma grande banheira de água morna e secaram em uma toalha feita de uma velha camisa de trabalho. Melanie disse a Priest:

 — Bem, começaremos de novo em algum outro lugar! Arranjamos um pedaço de terra, construímos cabanas de madeiras, plantamos videiras, fazemos vinho. Por que não? É o que você fez todos estes anos.

 — É — disse Priest. Pôs sua tigela numa prateleira e jogou a colher numa caixa. Por um momento era novamente jovem, forte como um pônei e dono de uma energia ilimitada, certo de que seria capaz de resolver qualquer problema que a vida lhe oferecesse. Lembrou do corpo jovem de Star, suando quando cavava o solo; da maconha deles, plantada em uma clareira no meio do mato e a doçura embriagadora das uvas quando esmagadas.

 Depois voltou ao presente e sentou-se à mesa.

 — Todos estes anos — ele repetiu — nós alugamos esta terra do governo por quase nada, e depois eles se esqueceram de nós.

 Star interveio:

 — Nunca um aumento do aluguel, em vinte e nove anos.

 Priest continuou:

 — Limpamos a floresta graças ao trabalho de trinta ou quarenta jovens que queriam trabalhar em liberdade, doze a catorze horas por dia, por um ideal.

 Paul Beale fez uma careta.

 — Minhas costas ainda doem quando penso nisso.

 — Conseguimos nossas parreiras de graça, dadas por um bondoso vinicultor do vale do Napa que queria encorajar gente jovem a fazer algo construtivo em vez de ficar sentada tomando drogas o dia inteiro.

 — O velho Raymond Dellavalle — disse Paul. — Já morreu, que Deus o tenha.

 — E o mais importante foi que nós nos determinamos e fomos capazes de viver na linha da pobreza, meio famintos, dormindo no chão, buracos nas solas dos sapatos, por cinco longos anos até colhermos nossa primeira safra vendável.

 Star pegou um bebê que engatinhava pelo chão, limpou o nariz dele e disse:

 — E nós não tínhamos filhos com que nos preocupar.

 — Exatamente — concordou Priest. — Se pudéssemos reproduzir todas aquelas condições, poderíamos começar tudo de novo.

 Melanie não ficou satisfeita.

 — Tem que haver um jeito!

 — Bem, há um outro jeito — disse Priest. — Paul sabe como é. Paul balançou a cabeça afirmativamente.

 — Você pode organizar uma corporação, pedir um empréstimo de um quarto de milhão de dólares a um banco, contratar a mão-de-obra e tornar-se como qualquer outro capitalista ganancioso cuidando das margens de lucro.

 — E isso — arrematou Priest — seria o mesmo que desistir.

 

 Ainda estava escuro quando Priest e Star se levantaram na manhã de sábado em Liberty. Priest tomou café na lanchonete do lado do motel.

 Quando ele voltou, Star estudava um mapa rodoviário à luz do abajur.

 — Você deverá deixar Mario no Aeroporto Internacional de San Antonio por volta das nove e meia, dez horas da manhã de hoje — disse ela. — Depois vai querer deixar a cidade pela Interestadual 10.

 Priest não olhou para o mapa. Mapas o confundiam. Podia seguir as placas indicando a 1-10.

 — Onde nos encontraremos?

 Star calculou.

 — Eu deverei estar mais ou menos uma hora na sua frente — ela pôs o dedo num ponto do mapa. — Há um lugar chamado Leon Springs, a cerca de vinte e quatro quilômetros do aeroporto. Estacionarei lá onde você com certeza verá o carro.

 — Parece bom.

 Estavam tensos e excitados. Roubar o caminhão do Mario era apenas o primeiro passo do plano, mas era crucial; tudo o mais dependia disso.

 Star estava preocupada com coisas práticas.

 — O que vamos fazer com o Honda?

 Priest comprara o carro três semanas atrás por mil dólares em dinheiro.

 — Vai ser difícil vender. Se passarmos por uma revenda de carros usados, podemos conseguir uns quinhentos dólares por ele. Caso contrário, achamos uma região arborizada perto da estrada e o largamos lá.

 — Podemos ficar sem o dinheiro?

 — Dinheiro faz você pobre — Priest citou um dos Cinco Paradoxos de Baghram, o guru cujos ensinamentos eles seguiam. Priest sabia quanto dinheiro tinham até o último centavo, mas conservava todos os demais na ignorância. A maioria dos membros da comunidade nem sequer sabia da existência de uma conta bancária. E ninguém no mundo tinha conhecimento da verba de emergência de Priest, dez mil dólares em notas de vinte, presos com fita adesiva no interior de uma velha guitarra acústica pendurada em um prego na parede da sua cabana.

 Star deu de ombros.

 — Não me preocupei com dinheiro nos últimos vinte e cinco anos, de modo que acho que não vou começar agora. — ela tirou os óculos de leitura.

 Priest sorriu para ela.

 — Você fica bonitinha de óculos.

 Star lhe dirigiu um olhar enviesado e fez uma pergunta surpreendente:

 — Está ansioso para ver Melanie?

 Priest e Melanie eram amantes. Ele segurou a mão de Star.

 — Claro.

 — Gosto de ver você com ela. Ela o faz feliz.

 Uma lembrança súbita de Melanie passou como um relâmpago pela memória de Priest. Ela estava deitada de bruços, atravessada na cama dele, dormindo, com o sol da manhã entrando, oblíquo, na cabana. Ele estava sentado tomando café, observando-a, deleitando-se com a textura da sua pele branca, a curva perfeita do seu traseiro, o modo como o cabelo vermelho comprido se espalhava numa trama confusa. Em mais um momento sentiria o cheiro do café, rolaria o corpo e abriria os olhos, e aí ele voltaria para a cama e faria amor com ela. Mas por ora, ele se comprazia com a antecipação, planejando como a tocaria e a excitaria, saboreando o momento delicioso como um copo de bom vinho.

 A visão desvaneceu-se, e ele viu o rosto de Star com quarenta e nove anos de idade no quarto barato de um motel do Texas.

 — Você não está chateada por causa da Melanie, está?

 — O casamento é a maior das infidelidades — disse ela, citando outro dos Paradoxos.

 Ele assentiu. Nunca tinham pedido um ao outro para serem fiéis. No princípio fora Star quem desprezara a idéia de se comprometer com um único amante. Aí, depois que fez trinta anos e começou a se acalmar, Priest testara a sua permissividade desfilando com outras mulheres em sua frente. Mas nos últimos anos, embora ainda acreditassem no amor livre, nenhum dos dois realmente havia tirado partido disso.

 Assim, Melanie viera como uma espécie de choque para Star. Mas tudo bem. De qualquer maneira a relação deles estava sedimentada. Priest não gostava que ninguém achasse que podia prever o que ele ia fazer. Amava Star, mas a mal disfarçada ansiedade nos olhos dela lhe dava uma agradável sensação de controle.

 Ela brincou com a xícara de plástico.

 — Eu só queria saber como Flower se sente a respeito disso tudo. — Flower era a filha deles, que, com treze anos de idade, era a criança mais velha da comunidade.

 — Ela não foi criada em uma família nuclear — disse ele. — Nós não fizemos dela uma escrava das convenções burguesas. Esta é a vantagem de uma comunidade.

 — Pode ser — concordou Star, mas não o bastante. — Eu só não quero que ela perca você, mais nada.

 Ele acariciou a mão dela.

 — Isto não acontecerá.

 Star apertou os dedos dele.

 — Obrigada.

 — Temos que ir — disse ele, levantando-se.

 Seus poucos pertences tinham sido acondicionados em três sacolas plásticas de compras. Priest pegou-as e jogou dentro do Honda. Star foi atrás.  Tinham pago a conta na noite anterior. O escritório agora estava fechado e ninguém viu quando Star sentou-se ao volante e eles desapareceram na primeira luz da manhã.

 Shiloh era uma cidadezinha de duas ruas, com um único sinal onde elas cruzavam. Não havia muitos veículos circulando àquela hora em uma manhã de sábado. Star avançou o sinal e saiu da cidade. Chegaram no vazadouro poucos minutos antes das seis horas.

 Não havia placa do lado da estrada, nem cerca ou portão, só uma trilha onde a vegetação fora esmagada pelos pneus das picapes. Star seguiu a trilha até uma ligeira elevação. O vazadouro ficava numa reentrância, escondido da estrada. Ela parou ao lado de uma pilha de lixo que ardia sem chama. Nem sinal de Mario ou do vibrador sísmico. Priest podia ver que Star ainda estava perturbada. Tinha que acalmá-la, pensou, preocupado. Ela não podia se dar ao luxo de ter a atenção desviada, logo hoje. Se alguma coisa desse errado, ela teria que estar alerta, concentrada.

 — Flower não vai me perder — disse ele.

 — Que bom — replicou ela, cautelosa.

 — Vamos ficar juntos, nós três. Sabe por quê?

 — Você me diz.

 — Porque nós nos amamos.

 Ele viu o alívio drenar a tensão do rosto de Star. Ela lutou para não chorar.

 — Muito obrigada — agradeceu.

 Ele sentiu-se seguro outra vez. Dera o que ela precisava. Star estaria bem agora.

 Ele a beijou.

 — Mario chegará a qualquer instante. Você vai seguindo, agora. Ganhe alguns quilômetros de vantagem.

 — Não quer que eu espere até que ele chegue?

 — Ele não deve ver você de perto. Não se pode adivinhar o futuro e não quero que ele seja capaz de identificar você.

 — Está bem.

 Priest saltou do carro.

 — Ei — exclamou Star —, não se esqueça do café do Mario — ela lhe passou o saco de papel.

 — Obrigado — ele pegou o saco e bateu a porta do carro. Ela fez um giro amplo e afastou-se depressa, levantando uma nuvem de poeira do deserto do Texas.

 Priest olhou em torno. Era espantoso que uma cidadezinha tão pequena pudesse produzir tamanha quantidade de lixo. Viu bicicletas retorcidas e carrinhos de bebê com aparência de novos, sofás todos manchados e geladeiras antiquadas, além de, pelo menos, dez carrinhos de supermercado. O lugar estava cheio de embalagens de papelão para sistemas de som, pedaços de poliestireno que pareciam esculturas abstratas, sacolas de papel e de plástico, restos de papel-alumínio e uma quantidade imensa de frascos plásticos que originalmente continham substâncias que Priest jamais usara: hidratante, condicionador de cabelos, amaciante de roupas, tinta para fax. Viu um castelo de fadas cor-de-rosa feito de plástico, presumivelmente o brinquedo de alguma criança, e maravilhou-se com o desperdício extravagante de uma construção tão elaborada.

 Não tinham muito lixo em Silver River Valley. Não usavam carrinhos de bebês ou geladeiras e raramente compravam alguma coisa que viesse dentro de uma embalagem. As crianças usavam a imaginação para construírem um castelo de fadas a partir de uma árvore, um barril ou uma viga.

 Um enevoado sol vermelho apareceu por cima da elevação, lançando a sombra comprida de Priest no estrado enferrujado de uma cama. Aquilo fez com que se lembrasse do nascer do sol sobre os picos brancos da Sierra Nevada e ele sentiu um aperto no coração.

 Alguma coisa brilhou de repente aos seus pés. Era um objeto de metal reluzente, meio enterrado. Sem ter o que fazer, escavou a terra seca com a ponta da bota, depois inclinou-se e pegou o objeto. Era uma chave inglesa pesada, que parecia nova. Mario podia achar que fosse útil, pensou Priest: era mais ou menos do tamanho adequado para a maquinaria de grande escala do vibrador sísmico. Mas é claro que o caminhão devia ter um conjunto completo de ferramentas adequadas a cada porca ou arruela usada na sua fabricação. Mario não precisaria de uma ferramenta achada no lixo.

 Priest largou a chave.

 Nesta hora ele ouviu o motor de um veículo, mas não lhe pareceu que fosse um caminhão grande. Levantou a cabeça. Um momento depois, uma picape bege ultrapassou a crista da elevação e veio se sacudindo pela trilha irregular. Era uma Dodge Ram com o pára-brisa rachado: o carro de Mario. Priest sentiu uma pontada de apreensão.

 O que significava aquilo? Mario deveria aparecer ali dirigindo o caminhão com o vibrador sísmico. O carro dele seria levado para o norte por um dos seus companheiros de trabalho, a menos que ele tivesse decidido vendê-lo ali mesmo e comprar outro em Clovis.

 — Merda — exclamou Priest. — Merda.

 Conteve os sentimentos de raiva e frustração quando Mario parou e saltou da picape.

 — Trouxe o seu café — disse, passando o saco de papel para as mãos de Mario. — O que é que há?

 Mario não abriu o saco. Sacudiu a cabeça tristemente.

 — Não posso fazer, cara.

 Merda.

 Mario continuou.

 — Sinceramente fiquei agradecido com a sua oferta, mas tenho que dizer que não.

 O que diabo está havendo? Priest cerrou os dentes e fez com que a voz soasse casual.

 — O que foi que aconteceu para fazer você mudar de idéia, companheiro?

 — Depois que você saiu do bar ontem à noite, Lenny fez um discurso que não acabava nunca sobre quanto o caminhão custava e como eu não tenho que dar carona, nem pegar ninguém pedindo carona na estrada, e como ele confia em mim, essas coisas todas.

 Posso imaginar Lenny num porre federal, todo meloso, deve ter levado você às lágrimas, seu filho da puta burrão.

 — Você sabe como é, Ricky. Este emprego é legal — trabalho duro e o horário é puxado, mas o pagamento é muito bom.

 — Ei, não tem problema — disse Priest, forçando um tom despreocupado.

 — Desde que você ainda possa me levar a San Antonio. Pensarei em alguma coisa daqui até lá.

 Mario sacudiu a cabeça.

 — É melhor não levar, não depois do que o Lenny falou. Não vou levar ninguém a parte alguma naquele caminhão. É por isso que vim no meu carro, para poder lhe dar uma carona de volta à cidade.

 E o que é que vou fazer agora, pelo amor de Deus?

 — E então, o que é que você diz, vai querer ir?

 E depois, o quê?

 Priest tinha construído um castelo nas nuvens, que agora via agonizar e dissipar-se à brisa leve da consciência culpada de Mario. Passara duas semanas naquele deserto quente e poeirento, trabalhando num serviço burro e inútil, além de ter desperdiçado centenas de dólares em passagens aéreas, contas de motel e uma comida nojenta. Não dispunha de tempo para fazer tudo isso de novo.

 O prazo fatal se esgotava em duas semanas e um dia. Mario fechou a cara.

 — Como é, homem, vamos.

 

 — Eu não vou desistir deste lugar — Star dissera a Priest no dia em que a carta chegara. Estava sentada do lado dele em cima do tapete de agulhas de pinheiro que forrava o solo na orla do parreiral, durante o período do descanso do meio da tarde, tomando água fresca e comendo passas de uvas do ano anterior. — Isto aqui não é só uma fazenda destinada à produção de vinho, não é só mais um vale e também não é só uma comunidade. Isto aqui é toda a minha vida. Viemos para cá, há tanto tempo, porque acreditávamos que nossos pais tinham criado uma sociedade distorcida e corrupta e envenenada. E tínhamos razão, pelo amor de Deus!

 O rosto dela ficou congestionado quando deixou transparecer toda a sua paixão, e Priest pensou como Star era bonita, ainda.

 — Olha só o que aconteceu ao mundo lá fora — prosseguiu ela, erguendo a voz. — Violência e feiúra e poluição, presidentes que mentem e violam a lei, violentos distúrbios da ordem, crime e pobreza. Enquanto isso, vivíamos aqui em paz e harmonia, ano após ano, sem dinheiro, sem ciúmes sexuais, sem regras conformistas. Dizíamos que tudo de que precisávamos era amor, e nos chamavam de ingênuos, mas estávamos certos e eles errados. Nós sabemos que descobrimos o modo de viver — nós provamos isso.

 A voz dela tornara-se muito precisa, traindo suas origens. O pai de Star descendia de família rica mas passara a vida como médico em uma favela. Star herdara seu idealismo.

 — Farei qualquer coisa para salvar nossa casa e nosso meio de vida — continuou ela. — Morrerei por isso, se nossos filhos puderem continuar a morar aqui — em seguida a voz prosseguiu mais contida, mas as palavras foram claras e ela falou com determinação, sem remorsos. – Chegarei inclusive a matar disse. — Você está entendendo, Priest? Farei qualquer coisa.

 

 — Você está me ouvindo? — indagou Mario. — Quer uma carona até a cidade ou não?

 — Claro — respondeu Priest. Claro, seu covarde filho da mãe, seu vira-lata poltrão, seu maldito refugo da terra, eu quero uma carona.

 Mario virou-se.

 Os olhos de Priest deram com a chave que ele deixara cair no chão poucos minutos antes. Um novo plano desenrolou-se, completamente formado, na sua cabeça. Quando Mario deu três passos na direção da sua picape, Priest abaixou-se e pegou a ferramenta. Tinha cerca de quarenta e cinco centímetros de comprimento e pesava pouco mais de dois quilos. A maior parte do peso ficava do lado das garras ajustáveis para porcas hexagonais. Era feita de aço.

 Ele deu uma olhada além do ponto onde se encontrava Mario, ao longo da trilha que dava na estrada. Ninguém à vista. Sem testemunhas. Priest deu um passo a frente justo quando Mario abaixou-se para abrir a porta da picape. Teve uma visão súbita e desconcertante: a foto de uma linda mulher mexicana trajando um vestido amarelo, com uma criança nos braços e outra ao lado, e por uma fração de segundo sua decisão perdeu a força, ao pensar no sofrimento terrível que ia causar às suas vidas.

 Mas logo em seguida teve uma visão pior: uma massa de água escura subindo lentamente até submergir um parreiral e afogar os homens, mulheres e crianças que ali trabalhavam. Correu para Mario, erguendo a chave de aço bem acima da sua cabeça.

 Mario estava abrindo a porta do carro. Deve ter visto alguma coisa com o canto do olho, pois quando Priest estava quase em cima dele subitamente deixou escapar um urro de medo e abriu totalmente a porta, usando-a como escudo.

 Priest esbarrou na porta, que voou de encontro a Mario. Era uma porta larga e pesada, e bateu nele de lado. Ambos os homens tropeçaram. Mario perdeu o equilíbrio e caiu de joelhos, de cara para a picape. Seu boné dos Astros de Houston caiu no chão. Priest caiu sentado no chão pedregoso tão pesadamente que largou a chave. Ela bateu em um frasco plástico de meio galão de Coca-Cola e voou para longe.

 — Seu maluco — exclamou Mario, ofegante. Ele apoiou-se num joelho e procurou um ponto de apoio para poder levantar o corpo pesado. Sua mão esquerda agarrou a moldura da porta. Enquanto arquejava, Priest – ainda sentado — encolheu a perna e chutou a porta com toda a força que tinha, batendo com o calcanhar. A porta bateu nos dedos de Mario e abriu de novo. Mario gritou de dor e ajoelhou outra vez, batendo contra o lado da picape.

 Priest pôs-se de pé num pulo.

 A chave cintilava, prateada, ao sol da manhã. Ele pegou-a e olhou para Mario. Então seu coração encheu-se de ódio contra o homem que estragara seu plano tão cuidadosamente formulado, pondo com isso seu modo de vida em perigo. Aproximou-se de Mario e levantou a chave.

 Mario meio que se virou na direção dele. A expressão de seu rosto jovem mostrava um espanto infinito, como se ele não tivesse qualquer entendimento do que estava acontecendo. Abriu a boca e, quando Priest baixou a chave imensa, disse, numa voz indagadora:

 — Ricky...?

 A extremidade pesada da chave fez um nauseante barulho surdo quando atingiu a cabeça de Mario. O cabelo dele era grosso e brilhoso, mas não fez diferença. O couro cabeludo abriu-se, o crânio rachou e a chave mergulhou no cérebro macio que ficava por baixo.

 Mas ele não morreu.

 Priest começou a sentir medo.

 Os olhos de Mario permaneceram abertos e focalizaram Priest. A expressão aturdida de quem fora traído quase não se alterou. Parecia tentar terminar o que começara a dizer. Ergueu uma das mãos, como se quisesse chamar a atenção de alguém.

 Priest deu um passo para trás, assustado. Mario disse:

 — Cara...

 Priest viu-se possuído pelo pânico e ergueu a chave de novo.

 — Morre, seu filho da puta! — gritou, e golpeou Mario de novo.

 Desta vez a chave mergulhou ainda mais fundo. Retirá-la foi como puxar uma coisa que tivesse mergulhado na lama. Priest sentiu ânsias de vômito quando viu a boca ajustável coberta por uma matéria viva cinzenta. Seu estômago deu uma volta e ele engoliu e Mario caiu lentamente de costas e ficou arriado contra o pneu de trás, imóvel. Seus braços ficaram moles e o queixo caiu, mas ele continuou vivo. Os olhos fixaram-se nos de Priest. O sangue jorrava da boca, corria pelo rosto e caía no colarinho aberto da camisa xadrez. Seu fixo aterrorizou Priest.

 — Morra — suplicou ele — pelo amor de Deus, Mario, por favor, morra!

 Nada aconteceu.

 Priest recuou. Os olhos de Mario pareciam suplicar que ele terminasse o serviço, mas ele não podia golpeá-lo de novo. Não tinha uma explicação lógica para aquilo: simplesmente não podia levantar a chave.

 Aí então Mario moveu-se. Sua boca abriu-se, o corpo ficou rígido e da garganta explodiu um estrangulado grito de agonia. Aquilo foi demais para Priest. Ele, também, gritou; depois correu para Mario e bateu nele repetidas vezes, no mesmo lugar, praticamente sem vê-lo através da névoa de pavor que obscureceu sua visão.

 Priest parou com a gritaria, e o ataque de ódio passou.

 Ele retrocedeu, largando a chave no chão.

 O corpo de Mario caiu lentamente de lado até que a coisa que tinha sido sua cabeça bateu no chão. A massa cinzenta e mole infiltrou-se no solo seco.

 Priest caiu de joelhos e fechou os olhos.

 — Deus Todo-Poderoso, me perdoa — implorou. Ajoelhou-se ali mesmo, tremendo. Tinha medo de, se abrisse os olhos, ver a alma de Mario se elevando aos céus.

 Para serenar, recitou seu mantra:

 — Ley, tor, pur-doy-kor...

 Não tinha significado: era por isso que se concentrando com toda a força produzia um efeito calmante. Tinha o ritmo de um versinho infantil que ele nunca esquecera: Um, dois, feijão com arroz, Três, quatro, pé de pato, Cinco, seis, galinha pedrês, Sete oito, chá com biscoito.

 Quando estava entoando o mantra sozinho, freqüentemente passava para a quadrinha infantil. Funcionava igual.

 Enquanto as sílabas tão familiares o acalmavam, ele ia pensando no trajeto do ar no seu corpo, como entrava pelas narinas, seguia através das passagens nasais até a parte de trás da boca, prosseguia pela garganta, descia para o peito e, finalmente, penetrava nos mais remotos alvéolos dos pulmões e logo em seguida refazia toda a jornada no sentido contrário: pulmões, garganta, boca, nariz e narinas. Quando se concentrava totalmente na jornada da sua respiração, nada mais conseguia entrar na sua cabeça — nenhuma visão, pesadelo ou lembrança. Poucos minutos depois ele se levantou, o coração frio, o rosto exibindo uma expressão determinada. Livrara-se de todas as emoções: não sentia remorso ou piedade. O assassinato pertencia ao passado, e Mario era apenas um lixo de que tinha de se livrar.

 Pegou o chapéu de caubói, espanou a poeira e colocou na cabeça.

 Achou o estojo de ferramentas da picape debaixo do banco do motorista.

 Pegou a chave de parafusos e usou-a para tirar as placas, da frente e de trás. Depois andou um pouco e enterrou-as numa pilha de lixo que queimava sem chamas, alguns metros adiante. Inclinou-se sobre o corpo.

 Com a mão direita, agarrou o cinto da calça-jeans de Mario. Com a esquerda, segurou o que pôde da camisa xadrez. Levantou o corpo do chão, gemendo quando as costas arcaram com o esforço. Mario era pesado. A porta da picape continuava aberta. Priest balançou o corpo de Mario para trás e para a frente algumas vezes, pegando o ritmo e, com um esforço maior, atirou o corpo dentro da cabina. Ele caiu em cima do banco, com os saltos das botas saindo pela porta aberta e a cabeça pendurada no lugar dos pés, do lado do carona. Ela gotejava sangue.

 Priest atirou a chave na direção do corpo.

 Agora queria tirar gasolina do tanque. E para isto precisava de um tubo flexível comprido.

 Abriu o capô, localizou o líquido de limpeza do pára-brisa e arrancou o tubo de plástico que levava o líquido do reservatório para os esguichadores. Pegou o frasco de meio galão de Coca-Cola que tinha notado antes, deu a volta até o lado da picape e desatarraxou a tampa do tanque de gasolina. Enfiou o tubo de plástico no tanque, sugou até sentir o gosto da gasolina e aí tirou a ponta que estava na boca e colocou na garrafa de Coca-Cola. Lentamente, ela foi se enchendo.

 A gasolina continuou a derramar no chão enquanto ele esvaziava a garrafa em cima do cadáver de Mario.

 Ouviu o barulho de um carro.

 Priest olhou para o corpo do morto encharcado de gasolina. Se aparecesse alguém naquela hora, não havia nada que pudesse dizer ou fazer para esconder sua culpa.

 A calma que sustentara escrupulosamente até agora o abandonou.

 Começou a tremer, a garrafa de plástico escorregou de seus dedos e ele se agachou no chão como uma criança assustada. Tremendo, fixou os olhos na trilha que levava à estrada. Será que algum sujeito madrugador tinha vindo se livrar de uma lava-louça obsoleta, ou da casa plástica abandonada pelos filhos, crescidos demais para brincar com ela? Ou, quem sabe, livrar-se dos ternos fora de moda de um avô morto? O barulho do motor ficou mais forte quando o carro se aproximou, e Priest fechou os olhos.

 — Ley, tor, pur-doy-kor...

 O barulho começou a desaparecer. O veículo tinha passado pela entrada do vazadouro de lixo e seguido em frente. Não passava de trânsito comum.

 Sentiu que fizera papel de idiota. Levantou-se, recuperando o controle. — Ley, tor, pur-doy-kor...

 Mas o susto fez com que ele se apressasse.

 Encheu de novo a garrafa de Coca-Cola e rapidamente embebeu o banco de plástico e todo o interior da cabina com gasolina, reservando um tanto para fazer uma trilha pelo chão até a parte de trás e para jogar o resto na lateral, perto do tanque. Jogou a garrafa vazia dentro da cabina e recuou.

 Nesta hora notou o boné dos Astros de Hoüston no chão, pegou e o jogou também no interior da cabina, em cima do corpo. Em seguida pegou uma carteirinha de fósforos no bolso da calça, acendeu um e com ele todos os outros; depois jogou a carteirinha em chamas para trás.

 Houve um som sibilante acompanhando uma explosão de labaredas e seguido imediatamente por uma nuvem de fumaça negra. Em questão de um segundo, o interior da cabina transformou-se em uma fornalha. Um momento depois as labaredas serpentearam pelo chão até o tanque de gasolina.

 Houve outro estouro quando o tanque explodiu, balançando a picape. Os pneus de trás pegaram fogo e as chamas logo lamberam o chassi.

 Um cheiro enjoativo encheu o ar, quase como de carne sendo assada.

 Priest engoliu em seco e recuou mais.

 Após uns poucos segundos, o fogo tornou-se menos intenso. Os pneus, o banco e o corpo de Mario continuaram a queimar lentamente.

 Priest esperou uns minutos, observando as chamas, e depois aventurou-se a se aproximar, tentando não respirar fundo para não sentir o fedor. Deu uma olhada no interior da cabina. O corpo e o banco tinham se soldado em uma funesta massa negra de cinzas e plástico derretido. Quando esfriasse, o veículo seria apenas mais uma coisa que as crianças tinham incendiado no vazadouro de lixo.

 Ele sabia que não conseguira se livrar de todos os indícios de Mario.

 Uma olhada casual nada revelaria, mas os policiais examinariam a picape, provavelmente encontrariam a fivela do cinto, os trabalhos dentários e até mesmo os ossos calcinados. Um dia, Priest sabia muito bem, Mario poderia voltar para assombrá-lo. Mas ele fizera tudo o que podia para esconder as provas do seu crime.

 Agora tinha que roubar o caminhão de Mario.

 Deu as costas para o corpo ainda queimando e começou a andar.

 

 Na comunidade havia um grupo mais influente chamado de Os Comedores de Arroz. Eram sete, atualmente, os remanescentes dos que tinham sobrevivido ao inverno terrível de 1972-73, quando foram isolados por uma violenta nevasca e ficaram três semanas direto sem comer outra coisa que não arroz integral cozido em neve derretida. No dia em que a carta chegou, Os Comedores de Arroz ficaram acordados até tarde da noite, sentados na cozinha, bebendo vinho e fumando maconha.

 Song, que em 1972 era uma garota de quinze anos de idade fugida de casa, tocava guitarra acústica, tirando uns acordes de blues. Alguns membros do grupo faziam guitarras no inverno. Guardavam as de que gostavam mais, e Paul Beale levava o resto para uma loja em San Francisco, onde eram vendidas por bons preços. Star cantava com a voz rouca de contralto, inventando as palavras:

 — Não vou tomar aquele trem que não presta... — Star tinha a voz mais sensual do mundo, sempre teve.

 Melanie estava sentada com eles, embora não fosse uma Comedora de Arroz, porque Priest não se dava ao trabalho de expulsá-la e os outros não tinham coragem de desafiar as decisões dele. Ela chorava em silêncio, as lágrimas densas escorrendo pelo rosto. Repetia o tempo todo:

 — Acabei de encontrar vocês.

 — Nós não desistimos — respondeu Priest. — Tem que haver um meio de fazer o governador da Califórnia mudar sua maldita decisão.

 Oaktree, o carpinteiro, um negro musculoso da mesma idade que Priest, disse, pensativo:

 — Sabem, não é muito difícil fabricar uma bomba nuclear — ele estivera nos Fuzileiros, mas desertara depois de matar um oficial durante um exercício de treinamento, e vivia ali desde então. — Eu podia fazer uma, um dia, se tivesse um pouco de plutônio, explodir e mandar Sacramento para o inferno.

 — Não! — exclamou Aneth. Ela estava dando de mamar a uma criança. O menino tinha três anos de idade, e Priest achava que estava na hora de desmamar, mas Aneth era de opinião que ele devia poder mamar enquanto quisesse. — Não se pode salvar o mundo com bombas.

 Star parou de cantar.

 — Não estamos tentando salvar o mundo. Desisti disso em 1969, depois que a imprensa do mundo todo transformou o movimento hippie em uma piada. Tudo o que quero agora é salvar isto. O que nós temos aqui, a nossa vida, para que nossos filhos possam crescer com paz e amor.

 Priest, que já considerara e rejeitara a idéia de fazer uma bomba nuclear, disse:

 — Arranjar o plutônio é a parte mais difícil.

 Aneth afastou o filho do seio e deu uma palmada nas suas costas.

 — Esqueça isso! — disse. — Não quero ter nada a ver com esse troço. É mortal!

 Star começou a cantar de novo.

 — Trem, trem, trem que não presta...

 Oaktree persistiu.

 — Eu podia arranjar um emprego em uma usina nuclear e descobrir uma maneira de furar o sistema de segurança.

 — Eles iam pedir o seu currículo — contrapôs Priest. — E o que você ia dizer que fez nos últimos vinte e cinco anos? Pesquisa nuclear em Berkeley?

 — Diria que vivi com um bando de pirados que agora precisam explodir Sacramento, de modo que tive que tentar conseguir com eles um pouco de radioatividade, cara.

 Os outros riram. Oaktree recostou-se na cadeira e começou a harmonizar com Star:

 — Não, não, não vou pegar esse trem que não presta...

 Priest fez cara feia para a atmosfera pouco séria. Não podia sorrir.

 Seu coração estava cheio de ódio. Mas sabia que idéias inspiradas às vezes nascem de conversas descontraídas, de modo que deixou correr.

 Aneth beijou a cabeça do filho e disse:

 — Podíamos seqüestrar alguém.

 Priest retrucou:

 — Quem? O governador provavelmente tem seis guarda-costas.

 — Que tal o braço direito dele, o tal de Albert Honeymoon? Houve um murmúrio de aprovação; todos odiavam Honeymoon. — Ou o presidente da Coastal Electric?

 Priest fez que sim. Aquilo podia funcionar.

 Ele conhecia esse tipo de coisa. Já fazia muito tempo desde quando vivera na rua, mas se lembrava das regras de uma briga de gangues: planejar cuidadosamente, ficar frio, atacar o alvo de tal forma que ele nem consiga pensar, agir depressa e dar o fora mais depressa ainda. Mas algo o aborrecia.

 — É... discreto demais — comentou. — Digamos que algum figurão do governo seja seqüestrado. E daí? Se você vai assustar as pessoas não pode agir cautelosamente, tem que assustar pra valer.

 Ele se conteve, não querendo falar mais. Quando você tem um cara de joelhos, chorando e se urinando e suplicando, implorando que você não o machuque mais, é quando você diz o que quer; e ele então ficará tão agradecido que chegará a amá-lo por dizer-lhe o que terá de fazer para que a dor pare. Mas esse era o tipo de fala errada para alguém como Aneth.

 Neste ponto, Melanie falou de novo.

 Ela estava sentada no chão com as costas de encontro à cadeira de Priest. Aneth ofereceu-lhe o enorme cigarro de maconha que passava de mão em mão. Melanie enxugou as lágrimas, puxou uma tragada funda e passou para Priest. Em seguida soprou uma nuvem de fumaça e disse:

 — Sabem de uma coisa, há uns dez ou quinze lugares na Califórnia onde as falhas na crosta terrestre se encontram sob uma pressão tão incrível, que seria preciso apenas um empurrãozinho, ou algo assim, para fazer com que as placas tectônicas deslizassem, uma pedrinha, mas o gigante é tão grande que a sua queda sacode a terra.

 Oaktree parou de cantar tempo bastante para dizer:

 — Melanie, meu bem, que porra é essa que você está falando?

 — Estou falando sobre um terremoto — respondeu ela.

 Oaktree riu.

 — Pega, pega aquele trem que não presta...

 Priest não riu. Alguma coisa lhe disse que aquilo era importante. Ele falou com serena intensidade.

 — O que é que você está dizendo, Melanie?

 — Esqueça essa coisa de seqüestros e bombas nucleares disse ela. – Por que não ameaçamos o governador com um terremoto?

 — Ninguém pode causar um terremoto — disse Priest. Seria preciso uma enorme quantidade de energia para fazer a crosta da terra se mexer.

 — É aí que você se engana. Pode precisar apenas de uma quantidade pequena de energia, desde que a força seja aplicada no lugar certo.

 — Como é que você sabe tudo isso? — indagou Oaktree.

 — Estudei. Tenho mestrado em sismologia. Eu deveria estar ensinando em uma universidade, a esta altura. Mas me casei com o professor, e isto foi o fim da minha carreira. Fui rejeitada para um doutorado.

 Seu tom foi amargo. Priest conversara com ela a este respeito, e sabia que Melanie carregava um profundo ressentimento. O marido integrava o comitê universitário que a rejeitara para o doutorado. Fora obrigado a se retirar da reunião quando o caso dela foi discutido, o que pareceu natural a Priest, mas Melanie achava que o marido de alguma forma devia ter feito algo para garantir seu sucesso. O palpite de Priest é que ela não era bastante boa para cursar o doutorado mas ela preferia acreditar em qualquer coisa menos nisso. Assim, ele lhe disse que os homens do comitê ficaram tão aterrorizados com a combinação de beleza e cérebro que ela representava que conspiraram para rejeitá-la. Melanie amou-o por permitir que acreditasse nisso.

 Ela prosseguiu:

 — Meu marido — em breve meu ex-marido — formulou uma teoria de terremotos chamada de teoria da tensão do desencadeamento. Em certos pontos ao longo das falhas geológicas, a pressão de cisalhamento vai aumentando com o passar do tempo até atingir um nível muito alto. Aí então bastará uma vibração relativamente fraca na crosta terrestre para desalojar as placas, liberar toda a energia acumulada e causar um terremoto.

 Priest ficou cativado. Olhou para Star. Ela balançou a cabeça, muito séria. Star acreditava no heterodoxo. Era um artigo de fé para ela que a teoria bizarra acabasse sendo a verdade, que o modo não convencional de vida fosse o mais feliz, e que o plano mais louco tivesse êxito onde as propostas sensatas tivessem falhado.

 Priest estudou a fisionomia de Melanie. Parecia um ser de outro mundo. Sua pele clara, os olhos verdes espantosos e o cabelo vermelho faziam com que parecesse uma linda alienígena. As primeiras palavras que ele lhe dissera tinham sido:

 — Você é de Marte?

 Será que ela sabia do que falava? Estava chapada de maconha, mas às vezes as pessoas têm suas idéias mais criativas nessas horas. Ele perguntou:

 — Se é assim tão fácil, como é que ainda não o fizeram?

 — Eu não disse que seria fácil. Você tem que ser um sismólogo para saber exatamente onde a falha está sob pressão crítica.

 O cérebro de Priest disparou. Quando se está verdadeiramente encrencado, a saída às vezes é fazer alguma coisa tão estranha, tão totalmente inesperada, que seu inimigo fique paralisado pela surpresa. Ele disse para Melanie:

 — Como se causaria essa vibração na crosta terrestre? — Esta seria a parte difícil.

 Pegar, pegar, pegar...

 Vou pegar aquele trem que não presta...

 

 Ao caminhar de volta para a cidadezinha de Shiloh, Priest viu- se pensando obsessivamente sobre o crime: o modo como a chave mergulhara nos miolos macios de Mario, a expressão no seu rosto, o sangue pingando no chão do carro.

 Aquilo não era bom. Ele tinha que permanecer calmo e alerta. Ainda não tinha o vibrador sísmico que ia salvar a comunidade. Matar Mario fora a parte fácil, disse a si mesmo. Agora tinha que iludir Lenny. Mas como?

 Foi jogado de volta ao presente imediato pelo barulho de um carro. Vinha de trás dele, na direção da cidade. Naquela região ninguém andava. A maior parte das pessoas presumiria que o carro dele tivesse enguiçado. Alguns iam parar e oferecer carona. Priest tentou imaginar uma razão pela qual estaria indo para a cidade a pé às seis e meia da manhã de um sábado. Nada lhe ocorreu. Tentou invocar o deus que lhe inspirara a idéia, de matar Mario, mas os deuses estavam mudos.

 Não havia nenhum lugar de onde pudesse estar voltando em um raio de oitenta quilômetros — exceto do único sobre o qual não podia falar: o vazadouro de lixo onde as cinzas de Mario jaziam no banco da picape incendiada.

 O carro reduziu a marcha ao aproximar-se.

 Priest resistiu à tentação de puxar o chapéu para cima dos olhos.

 O que eu estava fazendo?

 — Fui dar uma volta no deserto para observar a natureza. É, artemísia e cobras.

 — Meu carro enguiçou. Onde? Não vi.

 — Fui urinar. Tão longe?

 Embora o ar da manhã estivesse frio, ele começou a suar. O carro passou por ele lentamente. Era um Dodge Neon, modelo recente, verde-metálico e com placa do Texas. Havia só uma pessoa dentro dele, um homem. Podia vê-lo examinando-o pelo espelho. Examinando-o. Podia ser um policial de folga...

 O pânico o dominou e ele teve que lutar contra o impulso de virar-se e correr.

 O carro parou e deu marcha à ré. O motorista abaixou o vidro da direita. Era um jovem de origem asiática, de terno.

 — Ei, companheiro, quer uma carona?

 O que é que eu vou dizer? Não, obrigado, eu adoro andar a pé.

 — Estou um pouco sujo de areia — disse Priest, olhando para a calça jeans. Caí sentado tentando matar um homem.

 — Quem não está, nesta região?

 Priest entrou no carro. Suas mãos tremiam. Colocou o cinto de segurança, só para fazer alguma coisa que pudesse disfarçar sua ansiedade.

 Quando o carro arrancou, o motorista perguntou:

 — O que diabos está fazendo aqui?

 Acabei de matar meu amigo Mario com uma chave inglesa. No último segundo, Priest pensou numa história.

 — Briguei com minha mulher — disse. — Parei o carro, saltei e fui andando. Não esperava que ela fosse embora.

 Ele agradeceu sabe-se lá a que deuses que o tinham ajudado.

 — Seria uma mulher morena e bonita em um Honda azul que passou por mim uns vinte ou trinta quilômetros atrás?

 Jesus Cristo, quem é você, com essa memória prodigiosa?

 O cara sorriu e disse: — Quando se está atravessando o deserto, todo carro é interessante.

 — Não, aquela não era ela — retrucou Priest. — Minha mulher está dirigindo minha maldita picape.

 — Não vi nenhuma picape.

 — Ótimo. Talvez ela não tenha ido muito longe.

 — Provavelmente estacionou na entrada de alguma fazenda debulhando-se em lágrimas, querendo você de volta.

 Priest sorriu aliviado. O cara tinha engolido sua história.

 O carro atingiu as cercanias da cidade.

 — E você? — perguntou Priest. — Por que está acordado tão cedo numa manhã de sábado?

 — Eu não briguei com a minha mulher, estou indo para junto dela, em casa. Moro em Laredo. Viajo vendendo novidades de cerâmica – pratos decorativos, estatuetas, plaquinhas dizendo "Quarto do Bebê", uns troços muito atraentes.

 — É mesmo? Que maneira de desperdiçar a vida.

 — Vendemos principalmente em drugstores.

 — A de Shiloh ainda não abriu.

 — Não estou trabalhando hoje. Mas posso parar para tomar café. Alguma recomendação?

 Priest preferia que o vendedor atravessasse a cidade calado, para que não tivesse oportunidade de falar sobre o cara barbado que pegara perto do vazadouro do lixo. Mas com toda a certeza ele ia ver o Lazy Susan's ao passar, de modo que não adiantava mentir.

 — Tem um restaurante pequeno.

 — Que tal a comida?

 — A canjica é boa. É logo depois do sinal. Você pode me deixar lá.

 Um minuto depois o carro parava numa vaga em 45 graus na frente do Susan's. Priest agradeceu ao vendedor de novidades e saltou.

 — Bom apetite — disse, e afastou-se. E não vai puxar papo com nenhum habitante local, pelo amor de Deus.

 A um quarteirão do restaurante ficava a filial de Ritkin Seismex, a pequena firma de exploração sismológica para quem vinha trabalhando. O escritório era em um trailer grande, estacionado em um terreno vazio. O vibrador sísmico de Mario estava estacionado ao longo do Pontiac Grand Am vermelho-cereja de Lenny.

 Priest parou e examinou o caminhão por um momento. Tinha dez rodas, com enormes pneus para uso fora de estrada que lembravam a carapaça de um dinossauro. Por baixo da camada de poeira do Texas, era pintado de azul-claro. Teve ímpetos de pular na cabina no caminhão, o motor possante e a placa maciça de aço, o tanque e mangueiras e válvulas e manômetros. Eu poderia ligar esse motor num minuto, sem precisar das chaves. Mas se o roubasse agora, cada patrulheiro rodoviário do Texas estaria à sua procura em poucos minutos. Tinha de ser paciente. Vou fazer a terra tremer e ninguém vai me impedir.

 Entrou no trailer.

 O escritório estava movimentado. Havia dois supervisores da equipe de geofones diante de um computador, enquanto um mapa da área ia saindo lentamente da impressora.

 Hoje recolheriam o equipamento instalado no campo e começariam a fazer a transferência para Clovis. Um outro supervisor falava em espanhol ao telefone, enquanto a secretária de Lenny, Diana, checava uma lista. Lenny transpôs uma porta aberta que dava numa repartição menor, onde ele tomava café com um telefone no ouvido. Tinha os olhos vermelhos e o rosto congestionado, sinais da bebida da noite anterior. Reconheceu a presença de Priest com um sinal de cabeça Priest parou junto à porta, esperando que Lenny terminasse. Tinha o coração na boca. Sabia, grosso modo, o que dizer. Mas Lenny engoliria a isca? Tudo dependia disso.

 Após um minuto, Lenny desligou e disse:

 — Ei, Ricky, viu Mario hoje? — o tom de voz era aborrecido. – Ele devia ter saído daqui meia hora atrás.

 — É, eu o vi — disse Priest. — Detesto lhe dar más notícias de manhã tão cedo, mas ele o deixou na mão.

 — De que você está falando?

 Priest contou a história que lhe viera à cabeça, numa inspiração súbita, pouco antes de pegar a chave inglesa e atacar Mario. – Ele estava sentindo tanta falta da mulher e dos filhos que pegou sua velha picape e se mandou.

 — Que merda, só faltava essa. Como foi que você soube?

 — Ele passou por mim na rua, hoje cedo, indo para El Paso.

 — Por que diabos não telefonou para mim?

 — Muito envergonhado por ter deixado você na mão.

 — Bem, só espero que ele continue em frente sempre, atravesse a fronteira e não pare enquanto o carro não cair no mar.

 Lenny esfregou os olhos com os nós dos dedos.

 Priest começou a improvisar.

 — Puxa, Lenny, o cara tem família jovem, não seja muito duro com ele.

 — Duro? Está falando sério? Ele já era.

 — Ele precisa realmente deste emprego.

 — E eu preciso de alguém para dirigir o seu caminhão daqui até o Novo México.

 — Ele está economizando para comprar uma casa com piscina.

 Lenny tornou-se sarcástico.

 — Deixa disso, Ricky, está me fazendo chorar.

 — Então vê se gosta desta — Priest engoliu em seco e tentou parecer casual. — Eu levo o maldito caminhão para Clovis se você prometer conservar o emprego de Mario.

 Lenny olhou fixamente para Priest sem dizer nada.

 — Mario não é um mau sujeito, você sabe disso — continuou Priest. Não atropele as palavras, você está parecendo nervoso, tente parecer relaxado!

 — Você tem carteira de motorista comercial, categoria B?

 — Desde os meus vinte e um anos — Priest pegou a carteira de dinheiro, tirou a licença de motorista e jogou em cima da escrivaninha. Era falsa.

 Star também tinha uma daquelas. Também falsa. Paul Beale sabia onde conseguir essas coisas.

 Lenny examinou-a, ergueu os olhos e perguntou, desconfiado:

 — Mas afinal, você está a fim de quê? Pensei que não queria ir ao Novo México.

 Não me enche o saco, Lenny, diga-me logo sim ou não!

 — De repente quinhentas pratas extras não me fariam mal.

 — Não sei...

 Seu filho da mãe, matei um homem por causa disso, vamos lá!

 — Você iria por duzentos?

 Sim! Muito obrigado! Muito obrigado! Ele fingiu hesitar. — Duzentos é pouco para três dias de trabalho.

 — São dois dias, talvez dois e meio.

 Duzentos e cinqüenta. Qualquer coisa! Basta me dar as chaves!

 — Escuta, eu vou levar o caminhão de qualquer maneira, seja o que for que você me pague, porque Mario é um garoto legal e eu quero ajudá-lo.

 Assim, quero que você me pague o que sinceramente achar que o trabalho vale.

 — Está certo seu filho da mãe espertalhão, trezentos.

 — Você tem um motorista. E eu tenho um vibrador sísmico.

 Lenny disse:

 — Ei, obrigado por me ajudar. Fico muito agradecido a você.

 Priest tentou conter um sorriso radiante.

 — Certo.

 Lenny abriu uma gaveta, pegou uma folha de papel e jogou-a em cima da mesa.

 — Preencha esta folha para o seguro.

 Priest gelou.

 Não sabia ler nem escrever.

 Olhou apavorado para a folha de papel.

 Lenny disse, impaciente:

 — Vamos, peque isso aí, pelo amor de Deus, não é uma cascavel.

 — Não consigo entender nada, esses rabiscos e linhas no papel pulam e dançam, e não sou capaz de fazer com que fiquem quietos!

 Lenny olhou para a parede e dirigiu-se a uma platéia invisível:

 — Um minuto atrás eu seria capaz de jurar que o homem estava acordado!

 Ley tor, pur-doy-kor...

 Priest esticou a mão devagar e pegou a folha de papel. Lenny perguntou:

 — Por que foi tão difícil fazer isso?

 — Bem, é que eu estava pensando no Mario — respondeu Priest. — Você acha que ele está legal?

 — Esqueça ele. Preencha esse papel e se mande. Quero ver aquele caminhão em Clovis.

 — Tudo bem — Priest se levantou. — Vou preencher lá fora.

 — Isso mesmo, assim posso atacar meus outros cinqüenta e sete problemas.

 Priest saiu da sala de Lenny e entrou no escritório principal. Você já viveu esta cena cem vezes, calma, você sabe lidar com isso.

 Parou diante da porta de Lenny. Ninguém tinha prestado atenção nele; todos estavam ocupados. Deu uma olhada no formulário. As letras grandes tinham que se destacar como arvores num capinzal. Se estavam crescendo para baixo é que o papel estava ao contrário.

 Ele estava mesmo com o papel de cabeça para baixo. Consertou-o.

 Às vezes há um X bem grande, em negrito ou escrito a lápis ou tinta vermelha, para lhe mostrar onde assinar; mas este formulário não tinha uma marca para tornar as coisas mais fáceis. Priest sabia escrever o nome, mais ou menos. Era demorado e ele sabia.

 No entanto, não conseguia escrever mais nada.

 Quando garoto, era tão esperto que não precisava ler ou escrever.

 Podia fazer contas de cabeça mais depressa do que qualquer um, muito embora não conseguisse ler os números no papel. Sua memória era infalível. Sempre conseguia com que as pessoas fizesse o que desejava sem ter que escrever nada. Na escola encontrava maneiras de não ter que ler em voz alta. Quando o dever era para escrever qualquer coisa, arranjava para um colega fazer por ele, mas se isto falhasse, tinha mil desculpas, e os professores acabavam por dar de ombros e dizer que, se uma criança não quisesse realmente trabalhar, não podiam forçar.

Ganhou a reputação de preguiçoso e quando via uma crise se aproximando, faltava à aula.

 Tempos depois, conseguiu dirigir um próspero negócio de atacado de bebidas. Nunca escreveu uma carta. Fazia tudo pelo telefone e em pessoa.

 Guardou de cabeça dezenas de números de telefone até que pôde pagar uma secretária para fazer as ligações para ele. Sabia exatamente quanto dinheiro havia na gaveta e quanto havia no banco. Se um vendedor lhe apresentava uma ordem de compra, ele dizia: "Vou lhe dizer o que preciso e você preenche para mim." Contratou um contador e um advogado para lidar com o governo. Tinha ganho um milhão de dólares aos vinte e um anos de idade. Mas já perdera tudo quando conheceu Star e passou a integrar a comunidade — não porque fosse analfabeto, mas por ter fraudado seus clientes, deixado de pagar impostos e apanhado dinheiro emprestado com a Máfia.

 Conseguir que um formulário de seguro fosse preenchido tinha que ser fácil Sentou-se em frente à mesa da secretária de Lenny e sorriu para Diana.

 — Está com um certo ar de cansada, querida — disse.

 Ela suspirou. Era uma loura gorducha de trinta e tantos anos, casada com um sujeito que trabalhava como mão-de-obra não qualificada e que tinha três filhos adolescentes.

 Reagia prontamente às gracinhas dos homens que vinham ao trailer, mas Priest sabia que era sensível a um charme polido.

 — Ricky, tenho tanto o que fazer hoje de manhã que gostaria de ter dois cérebros.

 Ele fez uma cara de quem ficara profundamente desapontado.

 — Má notícia: eu ia lhe pedir para me ajudar com uma coisa.

 Ela hesitou e depois sorriu, melancólica.

 — O que é?

 — Minha letra é tão horrorosa que eu queria que você preenchesse isto aqui pra mim. Mas odeio atrapalhar vendo que você está tão ocupada.

 — Bem, faço um negócio com você — ela apontou para uma pilha de caixas de papelão cuidadosamente etiquetadas, encostadas na parede.

 — Ajudo você com o formulário se você puser todos aqueles arquivos no Chevy Astro Van verde que está lá fora.

 — Negócio fechado — disse Priest, agradecido. Entregou a folha de papel a ela.

 Ela examinou o formulário.

 — Você vai dirigir o vibrador sísmico?

 — Vou. Mario ficou com tanta saudade de casa que foi para El Paso.

 Ela fechou a cara. — Ele não é disso.

 — Claro que não é. Espero que esteja bem.

 Ela deu de ombros e pegou a caneta.

 — Agora, a primeira coisa de que precisamos é o seu nome completo, data e lugar de nascimento.

 Priest deu a informação e ela preencheu os espaços em branco. Fácil.

 Por que entrara em pânico? Só porque aquilo tinha sido inesperado. Lenny o surpreendera com o formulário do seguro, e ele cedera ao medo. Estava acostumado a ocultar sua incapacidade. Chegava inclusive a freqüentar bibliotecas. Foi como descobriu os vibradores sísmicos. Fora à biblioteca central na rua I, no centro de Sacramento — um lugar grande e movimentado onde seu rosto provavelmente não seria lembrado. Na mesa de recepção soubera que os livros de ciência ficavam no segundo andar. Lá, sentira uma pontada de ansiedade ao ver as estantes compridas e a fila de gente que consultava os computadores. Depois atraíra a atenção de uma mulher de aspecto amistoso e que teria mais ou menos a sua idade.

 — Estou procurando informações sobre exploração sísmica — dissera, com um sorriso caloroso. — Será que você pode me ajudar?

 Ela o levou à prateleira certa, pegou um livro e, com um pouco de encorajamento, encontrou o capítulo que interessava.

 — Estou interessado em saber como as ondas de choque são provocadas — explicara. — Gostaria de saber se este livro tem esse tipo de informação.

 Ela folheou o livro com ele.

 — Parece haver três modos — disse. — Uma explosão subterrânea, o baque de um peso e um vibrador sísmico.

 — Vibrador sísmico? — exclamara ele, com os olhos brilhantes. — O que é isso?

 Ela apontara para uma fotografia. Priest ficou fascinado. A bibliotecária dissera:

 — Parece bastante com um caminhão. Para Priest pareceu um milagre.

 — Posso xerocar umas páginas?

 — Claro.

 Sempre há um jeito de fazer com que outra pessoa escreva e leia para você, se você for esperto.

 Diana terminou de preencher o formulário, fez um X bem grande perto de uma linha pontilhada e disse:

 — Você assina aqui.

 Ele pegou a caneta e escreveu o nome, com muita dificuldade. O "R" de Richard era como uma corista de seios grandes levantando uma perna. O G de "Granger" era uma espécie de foice com a lâmina redonda e bem grande e cabo pequeno. Depois do "RG" limitou-se a fazer uma linha sinuosa, como uma cobrinha. Não era bonito, mas todo mundo aceitava. Muita gente assina fazendo uns garranchos, ele sabia disso: as assinaturas não tinham que ser escritas claramente, graças a Deus. Era por isto que sua licença de motorista falsificada tivera que ser no seu nome verdadeiro — era o único que ele sabia escrever. Levantou os olhos. Diana o observava com um olhar curioso, estranhando como escrevia devagar. Quando a surpreendeu, ela ficou ruborizada e desviou o rosto.

 Devolveu o formulário, agradecendo:

 — Muito obrigado pela sua ajuda, Diana. Fico muito agradecido a você.

 — Não foi nada. Vou buscar as chaves do caminhão assim que Lenny sair do telefone — as chaves eram guardadas no escritório do chefe.

 Priest lembrou do que prometera. Pegou um dos arquivos, e levou para fora. A van verde estava estacionada no pátio com a porta de trás aberta. Deixou a caixa e voltou para pegar outra. A cada vez que voltava, espiava a mesa. O formulário continuava lá e não havia chaves visíveis. Depois de ter carregado todas as caixas, sentou-se em frente a ela de novo. Estava ao telefone, falando com alguém sobre reservas em um hotel de Clovis. Priest cerrou os dentes. Estava quase lá, tinha praticamente as chaves do caminhão e era obrigado a ficar ouvindo aquela besteirada sobre quartos de hotel! Obrigou-se a ficar sentado, quieto.

 Finalmente ela desligou.

 — Vou pedir as chaves a Lenny — disse, levando o formulário para a sala interna.

 Chew, um sujeito gordo que dirigia buldôzer, entrou. O trailer sacudiu com o impacto de suas botas de trabalho no piso.

 — Ei, Ricky — disse -, não sabia que você era casado — ele. deu uma risada. Os outros homens presentes no escritório olharam, interessados.

 Merda, que negócio é esse? Priest disse:

 — Onde foi que você ouviu essa história?

 — Vi você saltando de um carro em frente a Susan, há algum tempo.

 Depois tomei o café da manhã com o vendedor que lhe deu uma carona.

 Droga, o que foi que ele lhe disse?

 Diana saiu do escritório de Lenny com um molho de chaves. Priest teve ímpetos de arrancá-lo da mão dela, mas fingiu estar mais interessado em conversar com Chew.

 Chew continuou.

 — Sabe, a omelete rancheiro de Susan é realmente uma coisa. – ele ergueu uma das pernas e soltou um peido. Quando olhou para cima viu a secretária parada no portal, escutando. — Desculpe, Diana. Bem, seja como for, o tal rapaz me contou como pegou você perto do vazadouro de lixo.

— Porra!

 — Você estava andando no deserto sozinho às seis e meia da manhã por conta de ter brigado com sua mulher. Você parou o carro, largou a mulher lá e foi embora — ele abriu um sorriso largo e os outros riram.

 Priest levantou-se. Não queria que lembrassem de que ele estava perto do vazadouro no dia do desaparecimento de Mario. Precisava acabar com aquela conversa. Fez uma cara de magoado.

 — Olha, Chew, vou lhe dizer uma coisa. Se algum dia eu vier a saber de alguma coisa da sua vida particular, especialmente se for vergonhosa, prometo que não vou contar aos berros para todo o pessoal que estiver no escritório ouvir. Agora me diz, o que é que você acha disso?

 Chew retrucou:

 — Não precisa ser tão sensível.

 Os outros homens pareceram ficar encabulados. Ninguém mais quis falar sobre aquilo.

 Houve um silêncio contrafeito. Priest não quis deixar um clima ruim, e por isso falou:

 — Diabos, Chew, sem ressentimentos.

 Chew deu de ombros.

 — Não tive intenção de ofender, Ricky.

 A tensão cedeu.

 Diana deu a Priest as chaves do vibrador sísmico.

 Ele fechou a mão em torno do molho de chaves.

 — Muito obrigado — agradeceu, tentando não demonstrar o entusiasmo que sentia. Mal podia esperar para sair dali e sentar-se atrás do volante. — Até breve, pessoal. Vejo vocês no Novo México.

 — Vê se dirige com segurança, está ouvindo? — disse Diana, quando ele chegou na porta.

 — Deixe comigo — respondeu Priest. — Pode ter certeza de que vou ter muito cuidado.

 Ele pisou do lado de fora. O sol estava alto e o dia ficava mais quente. Ele resistiu à tentação de fazer uma dança da vitória em torno do caminhão. Subiu para a cabina e ligou o motor. Verificou os mostradores. Mario devia ter enchido o tanque na véspera. O caminhão estava pronto para enfrentar a estrada. Não pôde deixar de sorrir quando saiu do pátio.

 Deixou a cidade e foi para o norte, seguindo a rota que Star fizera no Honda.

 Ao se aproximar da saída para o vazadouro, começou a sentir-se estranho. Imaginou Mario ao lado da estrada, com os miolos cinzentos aparecendo no buraco da cabeça. Era uma superstição idiota, pensou, mas não conseguia se livrar dela. O estômago começou a dar voltas. Por um momento sentiu-se fraco, fraco demais para dirigir. Logo em seguida recuperou o autocontrole.

 Mario não era o primeiro homem que tinha matado. Jack Kassner era policial e roubara a mãe de Priest.

 A mãe de Priest era prostituta. Tinha apenas treze anos de idade ao tornar-se mãe dele. Quando Ricky completou quinze anos ela trabalhava com três outras mulheres sediada em um apartamento em cima de uma livraria pornô na zona onde morava a escória, Kassner aparecia uma vez por mês para recolher o dinheiro. Geralmente nesse dia ganhava um boquete. Um dia ele viu a mãe de Priest pegar o dinheiro em uma caixa no quarto dos fundos. Na noite em que o pessoal da Costumes estourou o apartamento, Kassner roubou mil e quinhentos dólares, que era um bocado de dinheiro na década de 1960. A mãe de Priest não se importava de passar uns dias na cadeia, mas ficou desolada por perder todo o dinheiro que economizara. Kassner dizia às mulheres que, se elas se queixassem, ele as acusaria de tráfico de drogas e iriam todas passar uns anos na cadeia.

 Kassner achava que três garotas de bar e um garoto não representavam perigo para ele. Mas na noite seguinte, quando estava no toalete do bar Blue Light urinando algumas cervejas que tomara, o pequenino Ricky Granger enfiou-lhe uma faca de quinze centímetros afiada como uma navalha. Depois de cortar, com facilidade, o paletó de mohair preto e a camisa de náilon branca, a lâmina penetrou no rim. A dor que Kassner sentiu foi tamanha que ele nem chegou a sacar a arma. Ricky esfaqueou-o mais algumas vezes, rapidamente, enquanto o detetive jazia no piso de concreto molhado do toalete, vomitando sangue. Depois lavou a lâmina na torneira e foi embora.

 Ao relembrar este episódio, Priest maravilhava-se com a calma segurança que tivera, aos quinze anos. Foi necessário apenas quinze ou vinte segundos, mas durante este tempo qualquer um podia ter entrado.

 Ele, no entanto, não sentira medo, vergonha ou culpa Só que depois passou a ter medo do escuro.

 Naquele tempo ele não ficava muito no escuro. As luzes geralmente ficavam acesas a noite inteira no apartamento de sua mãe. Mas às vezes ele acordava um pouco antes do raiar do dia em uma noite de pouco movimento, como as de segunda-feira, e via que todo mundo estava dormindo e as luzes apagadas; aí se via possuído por um terror cego e irracional e ficava andando às tontas pelo quarto, esbarrando em criaturas peludas e tocando em estranhas superfícies frias e úmidas, até encontrar o interruptor e se sentar na beira da cama, arquejante e suando, para se recuperar lentamente ao ver que a superfície fria e úmida era o espelho, e a criatura peluda, sua jaqueta forrada de lã de carneiro.

 Sentiu medo do escuro até encontrar Star.

 Lembrou de uma canção que fizera muito sucesso no ano em que a conhecera e começou a cantar:

 — Fumaça na água...

 — a banda era a Deep Purple e todo mundo tocou esse disco naquele verão. Era uma boa canção apocalíptica para cantar ao volante de um vibrador sísmico.

 — Fumaça na água Incêndio no céu

 Passou pela entrada do vazadouro e seguiu em frente, rumo ao norte.

 

 — Vai ser hoje à noite — dissera Priest. — Vamos dizer ao governador que haverá um terremoto daqui a quatro semanas.

 Star ficou em dúvida.

 — Não temos nem certeza se isto é possível. Talvez devêssemos fazer as outras coisas primeiro e, quando estivesse tudo em ordem, expedir o ultimato.

 — De jeito nenhum! — retrucou Priest. A sugestão o enfureceu. Sabia que o grupo tinha de ser liderado. Todos ali precisavam se comprometer.

 Tinham que optar por uma situação perigosa, assumir um risco e sentir que não havia como voltar atrás.

 De outro modo, amanhã pensariam numa porção de razões para se assustarem e baterem em retirada.

 Agora os ânimos de todos estavam exaltados. A carta chegara hoje, e os deixara furiosos e desesperados. Star ficara intensamente determinada; Melanie, uma fúria; Oaktree, pronto para declarar guerra; Paul Beale começara a reverter a seu tipo de malandro de rua. Song mal falara, mas ela era a criança desamparada do grupo e seguiria o que os outros fizessem. Só Aneth se opusera, mas uma oposição seria fraca porque ela era uma pessoa fraca. Seria rápida para colocar objeções, mas recuaria mais depressa ainda.

 Quanto ao próprio Priest, sabia com fria certeza que se aquele lugar cessasse de existir sua vida estaria acabada.

 Foi Aneth quem falou:

 — Mas um terremoto pode matar gente.

 — Vou lhe dizer como imagino que isso terá êxito — respondeu Priest. — Acho que teremos que causar um tremor pequeno e inofensivo, em algum ponto do deserto, só para provar que somos capazes. Aí, quando ameaçarmos um segundo, o governador negociará.

 Aneth desviou a atenção para o filho. Oaktree disse:

 — Estou com o Priest. Hoje à noite. Star cedeu.

 — Como deveremos fazer a ameaça?

 — Um telefonema anônimo ou uma carta, eu acho — respondeu Priest. — Mas tem que ser impossível rastrear.

 — Podemos colocar em um BBS, como são conhecidos na Internet os chamados quadros de avisos. Se usarmos meu laptop e o telefone celular, ninguém poderá rastrear.

 Priest nunca vira um computador até a chegada de Melanie. Lançou um olhar indagador para Paul Beale, que sabia tudo sobre essas coisas. Paul balançou a cabeça e disse:

 — Boa idéia.

 — Está certo — disse Priest. — Peque seus troços. Melanie saiu.

 — Como assinaremos a mensagem? — quis saber Star. Precisamos de um nome.

 Song disse:

 — Algo que simbolize um grupo amante de paz que foi forçado a tomar medidas extremas.

 — Eu sei — disse Priest. — Nós nos chamaremos de o Martelo do Éden.

 Isso se passou pouco antes da meia-noite do dia primeiro de maio.

 

Priest ficou tenso quando chegou nas cercanias de San Antonio. No plano original, Mario teria dirigido o caminhão até o aeroporto. Mas agora Priest estava sozinho ao entrar no emaranhado de rodovias que envolvem a cidade, e começou a suar.

 Não havia jeito dele conseguir ler um mapa.

 Quando tinha que dirigir em uma estrada desconhecida, sempre levava Star junto para atuar como navegadora. Ela e os outros Comedores de Arroz sabiam que ele não era capaz de ler. A última vez que dirigira sozinho em estradas desconhecidas tinha sido no final do outono de 1972, quando fugira de Los Angeles e terminara, acidentalmente, na comunidade de Silver River Valley. Naquela ocasião, não se preocupara com seu destino.

 Na verdade, ficaria contente se viesse a morrer. Mas agora queria viver.

 Até mesmo as placas na estrada eram difíceis para ele. Se parasse e se concentrasse por um instante, poderia distinguir "Leste" de "Oeste" ou "Norte" de "Sul". A despeito de sua notável capacidade para fazer contas de cabeça, não podia ler números sem olhar fixamente e pensar bastante tempo. Com algum esforço, era capaz de reconhecer os sinais indicando a Rota 10: um pauzinho com uma bola. Mas havia uma porção de outras coisas nas placas que nada significavam para ele e confundiam o quadro.

 Tentou manter-se calmo. Mas era difícil. Gostava de manter o controle sobre o que fazia e sentia-se louco de ódio com a sensação de desamparo e o atordoamento que o dominavam quando se perdia. Sabia, orientado pelo sol, onde ficava o norte. Quando achava que alguma coisa estava saindo errada, parava no primeiro posto de gasolina ou centro comercial e pedia instruções. Detestava fazer isso, porque as pessoas reparavam no vibrador sísmico — era um caminhão enorme, e a maquinaria montada em cima dele era meio intrigante. Além do mais, havia o perigo de ser reconhecido. Mas tinha de arriscar.

 E as instruções nem sempre eram úteis. Os frentistas dos postos de gasolina diziam coisas do tipo: "Fácil, basta seguir a estrada para Corpus Christi até ver uma placa indicando a Base Aérea de Brooks."

 Priest obrigou-se a conservar a calma, a continuar fazendo perguntas e a ocultar sua frustração e ansiedade. Desempenhou o papel de um motorista de caminhão amável mas burro, o tipo da pessoa que seria esquecida no dia seguinte. E acabou chegando a San Antonio pela estrada certa, enviando preces de agradecimentos aos deuses que o poderiam estar escutando.

 Poucos minutos mais tarde, passando por uma cidadezinha, sentiu-se aliviado ao ver o Honda azul estacionado junto a um McDonald.

 Ele abraçou Star agradecido.

 — O que foi que aconteceu, droga? — perguntou ela, preocupada. – Achei que você chegaria duas horas atrás.

 Ele decidiu não contar que matara Mario.

 — Eu me perdi em San Antonio — disse.

 — Tive medo disso. Na vinda para cá vi como é complicado o sistema rodoviário.

 — Acho que não é nem a metade da complicação do de San Francisco, mas eu conheço San Francisco.

 — Bem, agora está aqui. Vamos pedir um café e acalmar você.

 Priest comeu um hambúrguer de carne vegetal e ganhou um palhacinho de plástico que guardou cuidadosamente, no bolso, para Smiler, o filho de seis anos.

 Quando voltaram para a estrada, Star assumiu o volante do caminhão. O plano era ir direto até a Califórnia. Levaria pelo menos duas noites e dois dias, talvez mais. Um dormia enquanto o outro dirigia. Tinham trazido anfetaminas para combater o sono.

 Deixaram o Honda no estacionamento do McDonald's. Quando se afastaram, Star entregou a Priest um saco de papel, dizendo:

 — Trouxe um presente para você.

 Dentro havia uma tesoura e um barbeador a pilha.

 — Agora pode tirar essa maldita barba — disse ela.

 Ele sorriu. Virou o espelho retrovisor para poder se ver e começou a cortar. Os grossos pêlos da barba cresciam depressa, e a barba cerrada e o bigode tinham feito com que ficasse com a cara redonda. Agora o seu verdadeiro rosto foi gradualmente reaparecendo. Com a tesoura ele baixou bem a barba e depois usou o barbeador para completar o serviço. Por fim tirou o chapéu de caubói e soltou o cabelo, desfazendo a trança. Jogou o chapéu pela janela e examinou sua imagem. O cabelo, penteado para trás, caía em ondas em torno de um rosto magro e anguloso com a testa alta. O nariz lembrava uma lâmina, as faces eram cavadas, mas tinha uma boca sensual — muitas mulheres lhe tinham dito isso.

 No entanto, era sobre seus olhos que costumavam falar. Eram castanhos, bem escuros, quase pretos, e as pessoas diziam que tinham tal força que podiam hipnotizar. Priest sabia que não eram os olhos em si, mas a intensidade do olhar que podia cativar uma mulher: dava a sensação de que se concentrava exclusivamente nela. Podia fazer isso com homens também. Praticou o olhar ali mesmo, no espelho do caminhão.

 — Demônio bonito — disse Star, rindo dele, mas de um jeito afetuoso.

 — E esperto também — acrescentou Priest.

 — Acho que você é, sim. Conseguiu pegar o caminhão afinal.

 Priest balançou a cabeça.

 — E você ainda não viu nada.

 

 Na manhã de segunda-feira bem cedo, a agente do FBI Judy Maddox esperava sentada na sala de um tribunal situado no décimo quinto andar do Federal Building, número 450 da avenida Golden Gate, em San Francisco.

 O acabamento da sala era em madeira clara. O acabamento dos tribunais novos sempre é em madeira clara. Geralmente não têm janelas, de modo que os arquitetos tentam fazê-los mais alegres usando cores claras. Era a teoria dela. Judy passava um bocado de tempo esperando em salas de tribunal. Como, alias, a maior parte do pessoal que trabalha em órgãos com atribuições policiais.

 Estava preocupada. Nestas ocasiões costumava ficar preocupada. Meses de trabalho, às vezes anos, eram gastos na preparação de um processo, mas não havia como dizer o que aconteceria uma vez que o processo chegasse ao tribunal. A defesa podia estar inspirada ou ser incompetente, o juiz ser um sábio de olhar penetrante ou um velho tolo esclerosado e o júri podia ser um grupo de cidadãos inteligentes e responsáveis ou um bando de marginais que deviam estar, eles próprios, atrás das grades.

 Quatro homens seriam julgados hoje: John Parton, Ernest "Taxman" Dias, Foong Lee e Foong Ho. Os irmãos Foong eram os bandidões, os outros dois seus executivos. Em colaboração com uma trinca de Hong Kong, tinham montado um esquema para lavagem do dinheiro oriundo da rede de tráfico de drogas do norte da Califórnia. Judy precisara de um ano para descobrir como operavam e um outro ano para provar o que descobrira.

 Ela desfrutava de uma grande vantagem quando investigava bandidos asiáticos: suas feições orientais. O pai de Judy era irlandês típico, de olhos verdes, mas ela saíra mais parecida com a finada mãe, vietnamita.

 Judy era esguia e de cabelos escuros, com os olhos oblíquos. Os gângsteres chineses de meia-idade que investigara nunca suspeitaram que aquela bonita garota meio asiática era uma excepcional agente do FBI.

 Judy trabalhava com um assistente de promotor federal que conhecia muitíssimo. O nome dele era Don Riley e até um ano atrás moravam juntos.

 Don tinha a sua idade, trinta e seis anos, e era experiente, enérgico e dono de uma inteligência rápida como um azougue.

 Ela pensara que tinham um caso à prova de furos. Mas os acusados tinham contratado a melhor firma de criminalistas da cidade e sua defesa foi inteligente e vigorosa. Seus advogados minaram a credibilidade das testemunhas que haviam sido, inevitavelmente, arrebanhadas no meio de criminosos semelhantes aos integrantes da quadrilha a ser julgada. Além do mais, tinham explorado a massa de provas documentais coletada por Judy e usado isso para confundir e perturbar o júri.

 Agora nem Judy nem Don eram capazes de adivinhar qual seria o resultado. Judy tinha uma razão especial para se preocupar com aquele caso. Seu chefe imediato, o supervisor do grupo encarregado de investigar as atividades do Crime Organizado Asiático, estava prestes a se aposentar e ela se candidatara ao lugar dele. O chefe geral do escritório de San Francisco, o agente especial encarregado ou AEE, apoiaria sua pretensão, ela sabia, mas Judy tinha um rival: Marvin Hayes, outro destacado agente na mesma faixa etária. Marvin também tinha um apoio poderoso: seu melhor amigo, assistente do encarregado, era o responsável por todos os grupos que trabalhavam investigando o crime organizado e os crimes de colarinho branco.

 As promoções eram decididas por uma junta de carreira, mas as opiniões dos agentes especiais encarregados e de seus assistentes tinham muito peso. Neste exato momento a competição entre Judy e Marvin Hayes era acirrada.

 Queria aquela promoção. Queria subir muito e depressa no FBI. Era uma boa agente, seria uma supervisora destacada e em breve seria a melhor AEE que o bureau já tivera.

 Sentia orgulho do FBI, mas sabia que podia ser melhor, com a introdução mais acelerada de novas técnicas como tabelas e gráficos para análise de dados pessoais característicos por meio do uso de sistemas de gerenciamento simplificados e — acima de tudo — livrando-se de agentes como Marvin Hayes.

 Hayes era o típico policial da velha guarda: preguiçoso, brutal e inescrupuloso. Não tinha prendido tantos bandidos quanto Judy, mas fizera prisões mais notórias. Era ótimo em insinuar-se até conseguir ser nomeado para uma investigação glamourosa e rápido para distanciar-se de um caso destinado a encalhar.

 O encarregado dera a entender a Judy que ela ficaria com o posto, e não Marvin, se ganhasse o caso hoje.

 No tribunal, ao lado de Judy, estava quase toda a equipe do caso Foong: seu supervisor, os outros agentes que trabalharam com ela, um intérprete, a secretária do grupo e dois detetives do Departamento de Polícia da cidade de San Francisco. Para sua surpresa, nem o encarregado nem seu assistente tinham aparecido. Aquele era um caso de grande destaque e o resultado era importante para ambos. Judy sentiu uma pontada de apreensão e perguntou-se se não estaria acontecendo alguma coisa no escritório que não soubesse. Decidiu dar uma saída e telefonar. Mas antes que chegasse na porta, o oficial de justiça do tribunal entrou e anunciou que o júri ia retornar. Sentou de novo.

 Um momento depois Don reapareceu, cheirando a cigarro: tinha voltado a fumar depois da separação. Fez um carinho encorajador no ombro dela, que respondeu com um sorriso. Ele estava bonito, com o cabelo curto muito bem cortado, terno azul-marinho, a camisa branca e a gravata vinho.

 Mas não houve química, nem troca de energia, nem nada. Judy não sentia mais vontade de despentear o cabelo dele, desfazer o laço da sua gravata ou enfiar a mão por baixo da camisa branca.

 Os advogados de defesa regressaram primeiro, depois os de acusação, em seguida o júri e finalmente o juiz surgiu pela porta da sua sala privativa e sentou-se. Judy cruzou os dedos por baixo da mesa. O oficial de justiça levantou-se.

 — Senhores membros do júri, chegaram a um veredicto?

 Um silêncio absoluto abateu-se sobre a sala. Judy percebeu que estava batendo com o pé no chão. Parou.

 O primeiro jurado, um comerciante chinês, levantou-se. Judy passara muitas horas especulando se ele ia ficar com pena dos acusados pelo fato de dois deles serem chineses, ou se os odiaria por terem desonrado a raça. Com voz serena, ele respondeu:

 — Chegamos.

 — E qual foi esse veredicto: culpados ou inocentes?

 — Culpados, segundo a acusação.

 Houve um segundo de silêncio até que a notícia fosse assimilada. Às suas costas, Judy ouviu um grunhido partindo do reservado que se destinava aos réus. Resistiu ao impulso de dar um pulo de alegria e olhou para Don, que lhe dirigiu um sorriso largo. Os caríssimos advogados de defesa ajeitaram seus papéis, evitando olhar nos olhos um do outro. Dois repórteres levantaram-se e saíram apressadamente, dirigindo-se para os telefones.

 O juiz, um homem magro, com ar de desiludido, agradeceu ao júri, suspendeu o julgamento e determinou nova sessão em uma semana, quando decretaria a sentença.

 Consegui, pensou Judy, ganhei o caso. Pus os bandidos na cadeia e minha promoção está no papo.

 Agente Especial de Supervisão Judy Maddox, com apenas trinta e seis anos, uma estrela em ascensão.

 — Todos de pé — disse o oficial de justiça. O juiz saiu.

 Don abraçou-a.

 — Você fez um grande trabalho — ela lhe disse. — Obrigada.

 — Você me deu um grande caso — retrucou ele.

 Ela pôde ver que ele queria beijá-la, e por isso recuou um passo.

 — Bem, nós dois nos saímos bem.

 Judy voltou-se para seus colegas e saiu apertando mãos, dando abraços e agradecendo a todos pelo trabalho realizado. Em seguida os advogados de defesa se aproximaram. O mais velho era David Fielding, sócio da Brooks Fielding. Era um homem com aparência distinta e cerca de sessenta anos de idade.

 — Parabéns, Srta. Maddox, pela vitória merecida — disse ele.

 — Muito obrigada — agradeceu ela. — Foi mais difícil do que eu pensava. Achava que o caso era uma questão liquidada até que o senhor começou a defesa.

 Ele agradeceu o cumprimento com um discreto gesto da cabeça bem penteada.

 — Sua preparação foi irrepreensível. É advogada?

 — Estudei na Faculdade de Direito de Stanford.

 — Bem que achei que devia ser bacharel em direito. Bem, se algum dia se cansar do FBI, venha me ver, por favor. Trabalhando em minha firma poderá ganhar três vezes o seu salário atual em menos de um ano.

 Ela se sentiu lisonjeada, mas ao mesmo tempo também sentiu-se tratada com condescendência, de modo que sua resposta foi cortante.

 — É uma bela oferta, mas quero pôr os bandidos na cadeia, não mantê-los fora dela.

 — Admiro seu idealismo — disse ele, suavemente, e virou-se para falar com Don.

 Judy percebeu que fora dura demais. Era um defeito seu, sabia disso.

 Mas que diabos, não queria um emprego em Brooks Fielding.

 Pegou sua pasta. Estava ansiosa por celebrar sua vitória com o AEE. A filial do FBI em San Francisco era no mesmo edifício do tribunal, dois andares abaixo. Quando se virou para ir embora, Don pegou-a pelo braço.

 — Janta comigo? — perguntou. — Temos que comemorar.

 Ela não tinha compromisso.

 — Claro.

 — Faço as reservas e depois telefono para você.

 Depois que saiu, lembrou-se da sensação que ele lhe passara, a de que queria beijá-la e arrependeu-se por não ter inventado uma desculpa.

 Quando entrou no saguão do escritório do FBI, perguntou-se de novo por que o encarregado e seu assistente não teriam ido à corte para assistir ao veredicto. Não havia sinal de atividades anormais. Os corredores acarpetados estavam em silêncio. O robô carteiro, um carrinho motorizado, zumbia, parando de porta em porta na rota predeterminada.

 Para uma agência dedicada a fazer cumprir a lei, tinham instalações finamente decoradas. A diferença entre o FBI e uma delegacia de polícia comum era a mesma que há entre a sede de uma firma gigantesca e o galpão da fábrica.

 Dirigiu-se para a sala do encarregado.

 Milty Lestrange sempre tivera uma certa queda por ela. Desde o princípio ele apoiara a existência de mulheres agentes, que agora, por sinal, somavam dez por cento do total de agentes. Alguns encarregados berravam as ordens como generais do Exército. Milty era sempre calmo e atencioso.

 Assim que entrou na ante-sala do escritório dele, viu que havia algo errado. Sua secretária, evidentemente, estivera chorando. Judy perguntou:

 — Linda, você está bem?

 A secretária, uma mulher de meia-idade que em geral era friamente eficiente, irrompeu em lágrimas. Judy adiantou-se para consolá-la, mas ela acenou para que se afastasse e apontou para a porta da sala do chefe.

 Judy entrou.

 Era uma sala grande, decorada com uma verba generosa, mobiliada com uma escrivaninha grande e uma bela mesa de reuniões. Sentado à mesa de Lestrange, sem paletó e com o laço da gravata afrouxado, estava Brian Kincaid, um dos assistentes do encarregado, um homem grande e corpulento com uma farta cabeleira branca. Ele levantou os olhos e disse:

 — Entre, Judy.

 — O que é que está acontecendo? Onde está Milt?

 — Tenho más notícias — disse ele, embora seu ar não fosse muito triste.

 — Milt está no hospital. Diagnosticaram câncer no pâncreas.

 — Oh, meu Deus. — Judy sentou-se.

 Lestrange fora ao hospital na véspera — para um check-up de rotina, ele dissera. Mas já devia estar sabendo que havia algo de errado. Kincaid prosseguiu:

 — Ele vai ser operado, algo como um desvio intestinal, e, na melhor das hipóteses, não voltará tão cedo ao trabalho.

 — Pobre Milt! — Judy estava chocada. Ele dava a impressão de estar no apogeu: em forma física, vigoroso e um bom chefe. Agora recebia o diagnóstico de uma enfermidade fatal. Gostaria de fazer algo para reconfortá-lo, mas sentia-se impotente.

 — Jessica deve estar lá — disse ela.

 Jessica era a segunda mulher de Milt.

 — Sim, e o irmão dele está vindo de Los Angeles ainda hoje. Aqui no escritório...

 — E a primeira mulher dele?

 Kincaid pareceu ficar irritado.

 — Não sei dela. Falei com Jessica.

 — Alguém devia contar a ela. Vou ver se consigo seu telefone. — Seja o que for — Kincaid estava impaciente para se livrar do assunto pessoal e voltar a falar sobre o trabalho.

 — Aqui no escritório haverá, inevitavelmente, algumas mudanças.

 Passarei a ser o encarregado, na ausência de Milt.

 O coração de Judy ficou apertado.

 — Parabéns — disse, procurando manter um tom neutro.

 — Estou transferindo você para a carteira do Terrorismo Doméstico.

 A princípio Judy ficou intrigada.

 — Para quê?

 — Acho que você vai se dar bem lá — ele pegou o telefone e falou com Linda. — Peça a Matt Peters para vir me ver imediatamente. — Peters era o supervisor do grupo de Terrorismo Doméstico.

 — Mas acabo de ganhar o meu caso — exclamou Judy, indignada. — Pus os irmãos Foong na cadeia hoje!

 — Bom trabalho. Mas não altera minha decisão.

 — Espere um pouco. Você sabe que me candidatei à função de supervisor no grupo do Crime Organizado Asiático. Se eu for transferida daqui agora vai parecer que tive um problema qualquer.

 — Acho que você precisa ampliar sua experiência.

 — E eu acho que você quer que Marvin ocupe a função lá.

 — Tem razão. Acredito que Marvin seja a melhor pessoa para aquele trabalho.

 Com um movimento brusco involuntário, Judy pensou, furiosa. O cara substitui o chefe e a primeira coisa que faz é promover o amiguinho.

 — Você não pode fazer uma coisa dessas — disse ela. — Nós aqui seguimos as regras da lei de Oportunidades de Emprego Iguais.

 — Vá em frente, apresente uma queixa. — disse Kincaid. — Marvin é mais qualificado que você.

 — Prendi um monte de bandidos a mais que ele.

 Kincaid deu-lhe um sorriso complacente e jogou seu trunfo:

 — Mas ele passou dois anos no quartel-general em Washington.

 Ele tinha razão, pensou Judy, desesperada. Ela nunca havia trabalhado no quartel-general do FBI. E embora não fosse um detalhe impeditivo, acreditava-se que a experiência no quartel-general fosse essencial à função de supervisor. Assim, não havia como apresentar queixa. Todo mundo sabia que ela era melhor agente, mas no papel Marvin parecia melhor. Judy lutou para conter as lágrimas. Trabalhara desesperadamente durante dois anos e conseguira uma vitória importante contra o crime organizado e agora estava sendo fraudada na recompensa que lhe era devida.

 Matt Peters entrou. Era um sujeito corpulento de mais ou menos cinqüenta e cinco anos, careca, usando camisa de manga curta e gravata.

 Como Marvin Hayes, era íntimo de Kincaid. Judy começou a se sentir cercada.

 — Congratulações por ter ganho o seu caso — disse Peters a ela. – Será um prazer tê-la no meu grupo.

 — Muito obrigada — Judy não pôde imaginar outra coisa para dizer.

 Peters tinha uma pasta debaixo do braço.

 — O governador recebeu uma ameaça terrorista de um grupo que se autodenomina O Martelo do Éden.

 Judy abriu a pasta, mas mal conseguiu discernir as palavras. Tremia de raiva e sentia-se dominada por uma esmagadora sensação de insignificância. Para disfarçar suas emoções, tentou falar sobre o caso.

 — O que estão exigindo?

 — Que seja suspensa a construção de novas usinas elétricas na Califórnia.

 — Usinas nucleares?

 — Qualquer tipo. Dão o prazo de quatro semanas para terem a sua exigência atendida. Dizem que são o braço radical da Campanha Califórnia Verde.

 Judy tentou concentrar-se. Califórnia Verde era um grupo de pressão ambiental legítimo baseado em San Francisco. Difícil acreditar que fossem fazer algo assim. Mas todas as organizações do gênero são capazes de atrair gente maluca.

 — E qual é a ameaça?

 — Um terremoto.

 Ela levantou os olhos.

 — Você está brincando comigo.

 Matt sacudiu a cabeça calva.

 Por estar furiosa e perturbada, ela não se deu ao trabalho de amenizar suas palavras.

 — Isto é burrice — disse, sem rodeios. — Ninguém pode causar um terremoto. Seria a mesma coisa que nos ameaçar com um metro de neve.

 Ele deu de ombros.

 — Verifique você mesma.

 Judy sabia que os políticos importantes recebiam ameaças todos os dias. Mensagens de malucos não eram investigadas pelo FBI, a menos que houvesse nelas algo de especial.

 — Como esta ameaça foi enviada?

 — Apareceu num BBS no dia primeiro de maio. Está tudo aí na pasta.

 Ela o encarou diretamente nos olhos. Não estava disposta a engolir papo furado.

 — Há qualquer coisa que você não está me contando. Esta ameaça não tem a menor credibilidade — ela consultou o relógio. — Hoje é dia vinte e cinco. Ignoramos a mensagem por três semanas e meia. Agora, subitamente, com quatro dias para o prazo fatal, por que nos preocupamos?

 — John Truth viu o BBS — surfando na Rede, eu acho. Talvez estivesse desesperado por um assunto quente. De qualquer forma, falou sobre a ameaça no seu programa da noite de sexta-feira e recebeu muitos telefonemas.

 — Entendi — John Truth era um entrevistador de rádio muito discutido.

 Seu programa era irradiado a partir de San Francisco, mas redistribuído por uma porção de outras estações na Califórnia. Judy ficou ainda mais furiosa.

 — John Truth pressionou o governador para fazer alguma coisa a respeito da mensagem.

 — O governador respondeu chamando o FBI para investigar. Assim, temos que cumprir toda a sistemática de uma investigação na qual ninguém realmente acredita. — É por aí.

 Judy respirou fundo e dirigiu-se a Kincaid e não a Peters, porque sabia que aquilo era obra dele.

 — Esta agência vem tentando pegar os irmãos Foong há vinte anos. Hoje eu os pus na cadeia — ela levantou a voz. — E agora vocês me dão um caso de mentira como este aqui?

 Kincaid pareceu secretamente satisfeito consigo mesmo.

 — Se quer permanecer no Bureau, tem que aprender a aceitar o ônus junto com o bônus.

 — Já aprendi isso, Brian!

 — Não me diga.

 — Aprendi — repetiu ela, falando mais baixo — há dez anos, quando era nova e inexperiente e meu supervisor não sabia exatamente o quanto podia confiar em mim. Recebi, então, missões como esta, e as realizei de bom grado e conscienciosamente, provando que merecia muito bem ser encarregada de trabalhos de verdade!

 — Dez anos não são nada — disse Kincaid. — Trabalho aqui há vinte e cinco.

 Ela tentou ponderar.

 — Olha, você acabou de ser designado para responder por este escritório. Seu primeiro ato é dar a um de seus melhores agentes uma missão que deveria atribuir a um recruta. Todo mundo vai saber o que fez. As pessoas pensarão que por trás disso houve um certo ressentimento.

 — Você está certa. Acabo de assumir esta chefia. E você já está me dizendo como agir. Volte para o trabalho, Maddox.

 Ela o encarou com um olhar fixo. Não era possível que ele fosse simplesmente dispensá-la. Ele acrescentou:

 — A reunião está encerrada.

 Judy não podia agüentar aquilo. Tinha que extravasar sua raiva.

 — Não é só a reunião que está encerrada — disse ela. Levantou-se. — Vá se foder, Kincaid.

 Uma expressão de assombro surgiu no rosto dele. Judy finalizou:

 — Eu me demito.

 E saiu pisando firme.

 

 — Você disse mesmo isso? — quis saber o pai dela.

 — Disse. Sabia que você ia desaprovar.

 — Tinha toda a razão.

 Estavam sentados na cozinha, bebendo chá verde. O pai de Judy era detetive da polícia de San Francisco e fazia muitos trabalhos na qualidade de agente secreto. Era um homem de constituição vigorosa, em boa forma física para a idade, olhos verdes e o cabelo grisalho preso atrás num rabo-de-cavalo. Estava prestes a se aposentar, mas tinha medo da aposentadoria. A vida de policial era tudo para ele. Pelo seu gosto, continuaria a exercer a profissão até completar os setenta anos.

 Ficou horrorizado ao saber que a filha demitira-se voluntariamente. Os pais de Judy tinham se conhecido em Saigon. Ele esteve lá no tempo em que os militares americanos ainda eram chamados de "assessores". A mãe vinha de uma família vietnamita de classe média. O avô de Judy trabalhara como contador no Ministério das Finanças de lá. O pai de Judy trouxera sua noiva para casa, e Judy nasceu em San Francisco. Quando pequenina chamava os pais de Bo e Me, o equivalente vietnamita a papai e mamãe. Os policiais se basearam nisso para chamar o pai dela de Bo Maddox. Judy o adorava. Quando tinha treze anos, sua mãe morrera num acidente de carro. Desde então ficara muito ligada a Bo. Depois de romper com Don Riley um ano atrás, mudara-se para a casa do pai e desde então não tivera razão para sair de lá. Ela suspirou.

 — Não é sempre que perco a calma, você tem que admitir. — disse. – Só quando é realmente importante. — Mas agora que eu disse a Kincaid que vou embora, acho que vou mesmo.

 — Agora que você o xingou desse jeito, acho que se verá obrigada a sair.

 Judy levantou-se e serviu mais chá para ambos. Ainda fervia de raiva por dentro.

 — Ele é um idiota rematado.

 — Deve ser mesmo, porque acaba de perder uma boa agente — Bo tomou um gole do chá. — Mas você ainda é pior do que ele — acaba de perder um grande emprego.

 — Ofereceram-me um melhor hoje.

 — Onde?

 — Brooks Fielding, a firma de advocacia. Posso vir a ganhar três vezes o meu salário do FBI.

 — Salvando mafiosos da cadeia! — exclamou Bo, indignado.

 — Todo mundo tem direito a uma boa defesa.

 — Por que não se casa com Don Riley e tem filhos? Com netos eu teria o que fazer na aposentadoria.

 Judy estremeceu. Não contara a Bo a história verdadeira do seu rompimento com Don. A verdade pura e simples era que ele teve um caso. Sentindo-se culpado, confessara. Foi apenas uma breve escapada com uma colega, e Judy tentou perdoá-lo, mas seus sentimentos por ele nunca mais foram os mesmos. Nunca mais sentiu vontade intensa de fazer amor com ele. Tampouco se sentira atraída por outra pessoa. Era como se tivessem acionado um interruptor qualquer dentro dela, desligando seu impulso sexual.

 Bo não sabia nada disso. Via Don Riley como o marido perfeito: bonito, inteligente, bem-sucedido e trabalhando para fazer com que a lei fosse cumprida.

 Judy disse:

 — Don me convidou para um jantar comemorativo, mas creio que vou cancelar.

 — Acho que eu devia saber que não tenho nada que lhe dizer com quem se casar — admitiu ele, com um sorriso melancólico. Levantou-se. — É melhor eu ir andando. Temos uma batida hoje de noite.

 Ela não gostava quando o pai trabalhava de noite.

 — Você já comeu? — perguntou, ansiosa. — Quer que eu faça uns ovos mexidos?

 — Não, obrigado, querida. Como um sanduíche mais tarde — ele vestiu uma jaqueta de couro e beijou-a no rosto. — Amo você.

 — Até logo.

 Quando a porta bateu, o telefone tocou. Era Don.

 — Reservei uma mesa no Masa's.

 Judy suspirou. Era um restaurante finíssimo.

 — Don, detesto deixá-lo, mas prefiro não ir.

 — Sério? Praticamente tive que oferecer minha irmã ao maître para conseguir uma mesa assim tão em cima da hora.

 — Não estou com disposição para celebrar. Aconteceu um problema no trabalho hoje.

 Ela contou a história do câncer de Lestrange e Kincaid lhe ter dado uma missão imbecil.

 — E por isso estou deixando o Bureau.

 Don ficou chocado.

 — Não acredito! Você ama o FBI.

 — Amava.

 — Que coisa mais terrível!

 — Não é tão terrível assim. Já está na hora de eu fazer algum dinheiro, afinal. Fui excelente aluna na faculdade de Direito, você sabe disso. Tive melhores notas do que muita gente que está ganhando fortunas atualmente.

 — Claro, ajudam um assassino a não ir para a cadeia, escrevem um livro a respeito, ganham um milhão de dólares... É o que você quer? Estou falando mesmo com Judy Maddox? Alô?

 — Não sei, Don, mas com tanta coisa na minha cabeça não me sinto em condições de espírito apropriadas para jantar fora. Seguiu-se uma pausa.

 Judy sabia que Don estava se resignando ao inevitável. Depois de um momento, ele disse:

 — Está bem, mas você vai ter que compensar um outro dia. Amanhã?

 Judy não teve energia para continuar negando.

 — Claro — concordou.

 — Obrigado. Ela desligou.

 Ligou a televisão e deu uma olhada na geladeira, pensando no jantar.

 Mas não estava com fome. Abriu uma lata de cerveja. Assistiu televisão por três ou quatro minutos, quando se deu conta de que o programa era em espanhol. Decidiu que não queria a cerveja. Desligou a televisão e derramou a cerveja na pia.

 Pensou em ir ao Everton's, o bar favorito dos agentes do FBI. Gostava de lá, para passar tempo, bebendo cerveja, comendo hambúrgueres e trocando histórias. Mas não tinha certeza se seria bem-vinda agora, especialmente se Kincaid estivesse lá. Já começava a se sentir excluída.

 Decidiu fazer seu currículo. Iria para o escritório sentar-se ao computador. Melhor fazer qualquer coisa do que ficar trancada em casa com claustrofobia.

 Pegou a arma mas hesitou. Os agentes do FBI eram considerados de serviço vinte e quatro horas por dia e eram obrigados a andar sempre armados, exceto no tribunal, dentro de uma cadeia ou no escritório do Bureau. Mas se eu não for mais uma agente, não tenho que andar armada.

 Em seguida ela mudou de idéia. Droga, se eu vir um roubo em andamento e tiver que passar direto por ter deixado a arma em casa, vou me sentir uma perfeita idiota.

 Era uma arma de distribuição padronizada no FBI, uma pistola SIG-Sauer P228 com capacidade para pentes de 13 cartuchos, mas Judy sempre colocava o primeiro na câmara, removia o pente e adicionava um extra, fazendo um total de catorze. Tinha também uma espingarda Remington modelo 870 com uma câmara capacitada para cinco cartuchos.

 Como todos os agentes, fazia exercício de tiro uma vez por mês, geralmente no estande do xerife em Santa Rita. Sua pontaria era testada quatro vezes por ano. Era hábil e nunca tivera qualquer problema: tinha um olhar apurado, a mão firme e reflexos rápidos. Como a maioria dos agentes, jamais disparara suas armas senão nos treinamentos.

 Os agentes do FBI eram investigadores. Todos tinham um alto nível de educação formal e eram bem pagos. Não se vestiam para combate. Era perfeitamente normal fazer uma carreira de vinte e cinco anos no Bureau e jamais se envolver em um tiroteio ou mesmo uma briga comum. Mas tinham que estar preparados.

 Judy pôs a arma em uma bolsa a tiracolo. Vestia um ao dai, uma roupa vietnamita tradicional que lembrava uma blusa comprida, com gola alta e aberturas laterais, sempre usada por cima de calças baggy. Era seu traje favorito por ser muito confortável, mas Judy também sabia que ficava bem com ele: o tecido branco destacava o cabelo preto que descia até os ombros e a pele cor de mel. Como o ao dai era justo, favorecia seu tipo pequeno. Normalmente não vestiria aquilo para ir trabalhar, mas já era tarde da noite e, de qualquer modo, tinha pedido demissão.

 Seu Chevrolet Monte Carlo estava estacionado junto ao meio-fio. Era um carro do FBI e não lamentaria perdê-lo. Quando fosse advogada de defesa poderia comprar algo mais excitante — um pequeno carro esporte europeu, talvez, um Porsche ou um MG.

 A casa do seu pai ficava no bairro de Richmond. Não era muito elegante mas um policial honesto jamais enriquece. Judy foi para o centro da cidade pela via direta Geary. A hora do movimento maior já passara, de modo que chegou ao Federal Building em questão de minutos. Estacionou na garagem do subsolo e pegou o elevador para o décimo segundo andar. Agora que ia sair do Bureau, o escritório assumiu um ar de familiaridade tão acolhedora que a fez sentir-se nostálgica. O carpete cinza, as portas cuidadosamente numeradas, os armários, arquivos e os computadores, tudo aquilo era uma expressão de uma organização poderosa e bem dotada de recursos, confiante e dedicada. Havia umas poucas pessoas fazendo serão. Ela entrou na sala do grupo do Crime Organizado Asiático. Estava vazia. Acendeu as luzes, sentou-se à sua mesa e inicializou o computador. Quando pensou no que iria incluir no currículo, deu um branco na sua cabeça.

 Não havia muito o que dizer a respeito de sua vida antes do FBI: só a faculdade de Direito e dois anos tediosos no departamento jurídico de uma companhia de seguros, a Mutual American Insurance. Precisava redigir uma narrativa clara dos dez anos passado invés de uma narrativa ordenada, sua memória produziu uma série desconexa de flashbacks: o estuprador serial que lhe agradecera do banco dos réus por tê-lo posto na cadeia, onde não poderia mais fazer mal a ninguém; uma firma chamada Investimentos Bíblia Sagrada que roubara as economias de dezenas de viúvas idosas; a vez em que se vira sozinha num quarto com um homem armado que seqüestrara duas crianças e o persuadira a entregar a arma...

 Não podia dar conhecimento desses episódios a uma firma de advogados. Lá o que queriam era Perry Mason, não Wyatt Earp. Decidiu redigir primeiro sua carta formal de demissão. Escreveu a data e depois: "Ao Agente Especial Encarregado em exercício." Prosseguiu: "Caro Brian: este documento confirma meu pedido de demissão."

 Sentia-se magoada.

 Dera dez anos da sua vida ao FBI. Outras mulheres tinham se casado e tido filhos, ou começado o próprio negócio, ou escrito um romance, ou velejado em torno do mundo. Ela não — dedicara-se inteiramente à tarefa de se transformar numa agente do primeiro time. E agora estava jogando tudo fora. O pensamento trouxe-lhe lágrimas aos olhos. Que tipo de idiota sou eu, sentada sozinha no meu escritório, chorando diante do maldito computador?

 Foi quando Simon Sparrow entrou.

 Era um homem muito musculoso. Com o cabelo curto bem cortado e bigode. Um ou dois anos mais velho que Judy. Como ela, estava vestido informalmente, de calça de brim bege e camisa esporte de manga curta.

 Simon tinha doutorado em lingüística e trabalhara cinco anos na Unidade de Ciência Comportamental na Academia do FBI em Quantico, Virgínia. Sua especialidade era análise de ameaças.

 Ele gostava de Judy e ela dele. Com os homens da agência ele falava assuntos de homem, futebol, armas e carros, mas quando estava com Judy notava e comentava a roupa ou as jóias dela como se fosse uma amiga.

 Simon tinha uma pasta nas mãos.

 — Sua ameaça de terremoto é fascinante — disse, com os olhos brilhando de entusiasmo.

 Judy assoou o nariz. Simon certamente percebera que ela estava chorando mas, diplomaticamente, fingiu não ter visto. Simon continuou:

 — Eu ia deixar isto em cima da sua mesa, mas fico feliz por tê-la encontrado.

 Obviamente trabalhara até tarde para ultimar seu relatório, e Judy não queria desapontá-lo contando que estava se demitindo.

 — Sente-se — convidou, controlando-se.

 — Parabéns por ter ganho seu caso hoje!

 — Obrigada.

 — Você devia estar feliz.

 — Devia. Mas tive uma briga com Brian Kincaid logo depois.

 — Oh, ele — Simon fez um gesto como se afastasse o chefe com o dorso da mão. — Se você pedir desculpas direitinho, ele terá que perdoá-la. Não pode se dar ao luxo de perdê-la. Você é boa demais.

 A reação dele foi inesperada. Simon normalmente era muito mais compreensivo. Era quase como se já tivesse sabido o que houvera. Mas se sabia da briga, sabia também que ela se demitira. Por que lhe trouxera então o relatório?

 Intrigada, Judy pediu:

 — Fale-me sobre sua análise da ameaça.

 — Ela me deixou sem saber o que pensar por algum tempo — Simon lhe entregou uma folha com a mensagem impressa, tal como aparecera originalmente na Internet. — O pessoal de Quântico também ficou intrigado — acrescentou.

 Judy sabia que Simon teria consultado automaticamente o pessoal da Academia. Ela vira a mensagem antes: estava na pasta que Matt Peters lhe dera. Estudou-a de novo.

 

 PRIMEIRO DE MAIO

 AO GOVERNADOR DO ESTADO

 

 Oi!

 Você diz que se importa com a poluição e o meio ambiente, mas não nunca faz nada a respeito; assim, nós vamos obrigar você.

 A sociedade de consumo está envenenando o planeta porque vocês são gananciosos demais, e têm que parar com isso já!

 Nós somos o Martelo do Éden, o braço radical da Campanha Califórnia Verde.

 Estamos dizendo a você para anunciar uma paralisação imediata da construção de usinas elétricas. Nada de usinas novas. Ponto final.

 Senão! Senão o que, você vai dizer?

 Senão nós causaremos um terremoto. Exatamente daqui a quatro semanas Estejam avisados! Nós realmente estamos falando a sério!

 

— O Martelo do Éden

 Aquilo não lhe dizia muita coisa, mas Judy tinha certeza de que Simon estudaria cada palavra e cada vírgula até encontrar o verdadeiro significado.

 — O que é que você acha disso? — perguntou ele.

 Ela pensou por um minuto.

 — Vejo um estudante nada atraente, jovem, com o cabelo sujo e oleoso, usando uma camiseta surrada do Guns n' Roses, sentado diante do computador, criando uma fantasia na qual o mundo irá obedecer a ele, ao invés de ignorá-lo do jeito como sempre ignorou.

 — Bem, seria praticamente impossível errar mais — disse Simon, com um sorriso. — Trata-se de um homem sem instrução nos seus quarenta e tantos anos.

 Judy sacudiu a cabeça, assombrada. Sempre se espantava com o modo pelo qual Simon extraía conclusões de indícios que ela nem sequer conseguia enxergar.

 — Como é que você sabe?

 — O vocabulário e a estrutura da frase. Olha só a saudação. Gente com dinheiro não começa uma carta com "Oi", o normal seria "Prezado Senhor".

 E uma pessoa com terceiro grau não costuma usar duas negativas juntas como "não nunca faz nada".

 Judy balançou a cabeça, concordando.

 — Então você está procurando um Zé Operário, com quarenta e cinco anos de idade. O que me parece bastante direto. O que foi que o intrigou?

 — As indicações contraditórias. Outros elementos na mensagem sugerem uma mulher jovem de classe média. A ortografia é perfeita. Há um ponto e vírgula na primeira oração, o que indica algum estudo. E o número de pontos de exclamação sugere uma mulher. Desculpe, Judy, mas é a verdade.

 — Como você sabe que ela é jovem?

 — As pessoas mais velhas normalmente usam letras maiúsculas apenas nas iniciais de expressões como "Governador do Estado", em vez de escreverem tudo em maiúsculas, como foi feito. E também o uso do computador e da Internet sugere alguém ao mesmo tempo jovem e com algum estudo.

 Ela examinou Simon. Estaria ele deliberadamente despertando-lhe o interesse para que ela não se demitisse? Se fosse, não ia adiantar. Uma vez que tomava uma decisão, detestava mudar de idéia. Mas estava fascinada pelo mistério que Simon mostrara.

 — Você está prestes a me dizer que a mensagem foi escrita por alguém com personalidade múltipla?

 — De jeito nenhum. Mais simples que isso. Foi escrito por duas pessoas: o homem ditando, a mulher escrevendo.

 — Esperto! — Judy começava a ver o quadro dos dois indivíduos por trás daquela ameaça. Como perdigueiro que fareja a presa, ela sentiu-se tensa, alerta, a antecipação da caçada correndo pelas veias. Posso sentir o cheiro dessas duas pessoas, quero saber onde se encontram, tenho certeza de que sou capaz de encontrá-las. Mas eu pedi demissão.

 — Pergunto-me por que ele dita — prosseguiu Simon. — Seria a idéia normal se fosse um executivo acostumado a ter secretária, mas esse cara é um sujeito comum.

 Simon falou superficialmente, como se aquilo não passasse de uma especulação sem fundamento, mas Judy sabia que suas intuições sempre eram inspiradas.

 — Alguma teoria?

 — Será que ele é analfabeto?

 — Pode ser simplesmente preguiçoso.

 — Verdade — Simon deu de ombros. — Só,tenho um palpite.

 — Está certo — disse Judy. — Você tem uma garota com faculdade que, de alguma forma, está nas garras de um cara das ruas. Chapeuzinho Vermelho e o Lobo Mau. Ela provavelmente corre perigo, mas alguém mais corre? A ameaça de um terremoto simplesmente não parece real.

 Simon sacudiu a cabeça.

 — Acho que temos que levá-la a sério.

 Judy não pôde conter a curiosidade.

 — Por quê?

 — Como você sabe, analisamos as ameaças de acordo com sua motivação, intenção e seleção do alvo.

 Judy balançou a cabeça. Aquilo era o bê-a-bá do estudo das ameaças.

 — A motivação ou é emocional ou de ordem prática. Em outras palavras, quem ameaça está fazendo aquilo para se sentir bem, ou porque quer alguma coisa?

 Judy achou que neste caso a resposta era bastante óbvia.

 — Tendo em vista a ameaça essas pessoas têm um objetivo específico.

 Querem que o estado pare de construir usinas hidrelétricas.

 — Exato. E isto significa que não querem machucar ninguém. Esperam atingir seu objetivo apenas fazendo uma ameaça.

 — Enquanto tipos mais emocionais iriam preferir matar gente.

 — Exatamente. A seguir, temos a intenção, que pode ser política, criminosa ou própria de quem é mentalmente perturbado.

 — Política, neste caso, pelo menos superficialmente.

 — Certo. Idéias políticas podem ser pretexto para um ato que seja basicamente insano, mas não tenho esta sensação aqui, você tem?

 Judy viu onde ele queria chegar.

 — Você está tentando me dizer que essas pessoas são racionais. Mas é insano ameaçar com um terremoto.

 — Voltarei a isso depois, OK? Finalmente, a seleção do alvo é específica ou aleatória. Tentar matar o presidente é específico; sair disparando uma metralhadora na Disneylândia é aleatório. Levando a sério a ameaça só para poder argumentar, é óbvio que um terremoto mataria uma porção de pessoas indiscriminadamente, donde se conclui que é aleatória.

 Judy inclinou-se para a frente.

 — Muito bem, você tem intenção prática, motivação política e alvo indeterminado. O que isto significa para você?

 — Os manuais dizem que essas pessoas ou estão barganhando ou buscam publicidade. Eu digo que estão barganhando. Se quisessem publicidade não teriam optado por colocar a ameaça em um obscuro BBS na Internet, teriam ido para a televisão ou os jornais. Mas não foram. De modo que eu penso que simplesmente queriam se comunicar com o governador.

 — São ingênuos se pensam que o governador lê as mensagens que lhe são destinadas.

 — Concordo. Essas pessoas exibem uma estranha combinação de sofisticação e ignorância.

 — Mas estão agindo a sério.

 — Sim, e tenho outro motivo para pensar deste modo. A exigência — cessar a construção de novas usinas de eletricidade — não é o tipo de coisa que se escolheria normalmente como pretexto. É muito terra-a-terra. Se fosse apenas um pretexto, iriam preferir algo mais chamativo, como, por exemplo, banir os aparelhos de ar-condicionado de Beverly Hills.

 — Que diabo de gente é essa então?

 — Não sabemos. O terrorista típico exibe um padrão ascendente. Começa com telefonemas ameaçadores e cartas anônimas; depois escreve para os jornais e as estações de televisão; em seguida começa a rodear os prédios do governo. Na hora em que aparece para uma visita turística na Casa Branca, carregando uma pistola barata numa sacola de compras, já temos grande parte do seu trabalho nos computadores do FBI. Mas não é este o caso aqui. Mandei cotejar as características lingüísticas com os registros que temos em Quântico, mas não apareceu nada. Essas pessoas são novas.

 — Então não sabemos nada a respeito delas?

 — Sabemos bastante. Moram na Califórnia, é claro.

 — A mensagem é endereçada "Ao governador do estado". Se fossem de fora, colocariam: "Ao governador da Califórnia".

 — O que mais?

 — São americanos, e não há indicação de qualquer grupo étnico em particular; a linguagem não demonstra nada caracteristicamente negro, asiático ou hispânico.

 — Você deixou uma coisa de fora.

 — O quê?

 — São malucos.

 Ele sacudiu a cabeça.

 — Ora, Simon, deixa disso! Eles pensam que são capazes de causar um terremoto. Têm que ser malucos!

 Ele disse teimosamente:

 — Não sei nada de sismologia, mas conheço psicologia e não me sinto confortável com a teoria de que essas pessoas estejam fora do seu juízo. São mentalmente sãs, falam sério e estão perfeitamente orientadas no sentido do que desejam. O que significa que são perigosas.

 — Não concordo.

 Ele se levantou.

 — Eu me rendo. Topa uma cerveja?

 — Hoje, não, Simon, mas obrigada. E obrigada também pelo relatório. Você é ótimo.

 — Sem dúvida. Então, até logo.

 Judy pôs os pés em cima da mesa e examinou os sapatos. Tinha certeza agora de que Simon estivera tentando persuadi-la a não se demitir.

 Kincaid podia pensar que aquele caso não passava de uma fantasia, mas a mensagem de Simon era de que o Martelo do Éden podia representar uma ameaça genuína, partindo de um grupo que realmente precisava ser encontrado e posto fora de ação.

 E neste caso sua carreira no FBI não estava obrigatoriamente encerrada. Podia transformar em uma vitória um caso que lhe fora dado como um insulto propositado. O que a tornaria uma agente magnífica ao mesmo tempo que faria com que Kincaid parecesse um imbecil. A perspectiva era tentadora.

 Abaixou os pés e deu uma olhada no monitor. Por não ter tocado nas teclas por algum tempo, o protetor de tela fora inicializado. Era uma foto de Judy aos sete anos, com as falhas características nos dentes e um arco plástico prendendo o cabelo. Estava sentada no joelho do pai, que ainda era patrulheiro, com o uniforme da polícia de San Francisco. Ela havia tirado o boné dele e tentava colocá-lo na própria cabeça. A foto fora tirada pela sua mãe.

 Imaginou-se trabalhando para Brooks Fielding, dirigindo um Porsche e indo ao tribunal a fim de defender gente como os irmãos Foong.

 Tocou na barra espacejadora e o protetor de tela desapareceu, permitindo que lesse as palavras que escrevera: "Caro Brian: este documento confirma meu pedido de demissão." Suas mãos pairaram sobre o teclado. Após uma longa pausa, ela disse em voz alta:

 — Droga, com os diabos.

 Em seguida apagou a frase e escreveu: "Gostaria de pedir desculpas pela minha rudeza..."

 

O sol da manhã de terça-feira se levantava sobre a rodovia interestadual I-80. O Plymouth OCuda 1971 de Priest rumava para San Francisco com o motor roncando tanto que fazia os oitenta quilômetros por hora parecerem cento e cinqüenta.

 Ele comprara aquele carro no tempo em que se encontrava no auge da carreira comercial. Depois, com o negócio do atacado de bebidas na crise final e o Imposto de Renda prestes a prendê-lo, fugiu levando apenas a roupa do corpo — um terno azul-marinho de lapelas largas e calças de boca larga — e o carro. Ainda tinha ambos.

 Durante a era hippie, o único carro maneiro era o Fusca. Dirigindo o OCuda amarelo radiante, Priest parecia um cafetão, Star lhe dizia sempre. Por isso, tinham feito no carro uma pintura psicodélica: planetas no teto, flores na tampa da mala e uma deusa indiana com oito braços que se estendiam sobre os pára-lamas, tudo em púrpura, rosa e turquesa. Em vinte e cinco anos as cores tinham desbotado e se transformado em diferentes tonalidades de marrom, mas ainda era possível distinguir o desenho se examinado de perto. E agora o carro passara a ser de colecionador.

 Ele tinha iniciado a viagem às três da madrugada e Melanie dormira o tempo todo. Estava deitada com a cabeça no seu colo, as pernas fabulosamente compridas dobradas em cima do surrado estofamento preto.

 Enquanto dirigia, ia brincando com o cabelo dela. Melanie tinha os cabelos no estilo dos anos sessenta, fio longo e reto repartido no meio, embora tivesse nascido mais ou menos na época em que os Beatles se separaram.

 O garoto também dormia, esticado no banco de trás, boca aberta. O pastor alemão de Priest, Spirit, ia ao seu lado, quieto. Mas toda vez que Priest olhava para trás, abria um olho.

 Priest sentia-se ansioso. Disse a si mesmo que devia sentir-se bem. Era como nos velhos tempos. Na juventude sempre tinha algo em andamento, algum golpe, projeto, um plano qualquer para fazer ou roubar dinheiro, dar uma festa ou iniciar um tumulto. Depois descobrira a paz. Mas às vezes achava que a vida tinha se tornado demasiadamente pacífica. O roubo do vibrador sísmico o fizera rever sua antiga personalidade.

 Sentia-se mais vivo agora, com uma garota bonita ao lado e uma batalha de inteligências adiante. Assim mesmo estava preocupado. Mergulhara naquilo até o pescoço. Gabara-se de que podia dobrar o governador da Califórnia e prometera um terremoto. Se falhasse, estaria terminado.

 Perderia tudo o que lhe era caro e, se fosse apanhado, ficaria preso até a velhice. Mas ele era extraordinário. Sempre soubera não ser igual aos outros homens. Regras não se aplicavam a ele. Fazia coisas em que mais ninguém pensava. E já estava a meio caminho do seu objetivo. Roubara um vibrador sísmico. Matara um homem por causa disso, mas se safara. Não houve repercussões, exceto os pesadelos ocasionais em que Mario saía da picape em chamas com as roupas incandescentes e sangue pingando da cabeça esmagada para ir atrás de Priest, cambaleando.

 O caminhão estava escondido em um vale isolado nos contrafortes da Serra Nevada. Hoje, Priest ia descobrir onde exatamente colocá-lo para provocar um terremoto. E era o marido de Melanie quem forneceria essa informação. Segundo Melanie, Michael Quercus sabia mais do que qualquer outra pessoa no mundo sobre a falha de Santo André.

 Os dados que acumulara estavam armazenados no computador dele. E Priest queria roubar o disquete com a cópia de segurança desses dados. De quebra, tinha que se assegurar de que Michael jamais viesse a saber o que acontecera.

 Para tanto, precisava de Melanie. E era por isso que se preocupava. Priest a conhecia havia apenas umas poucas semanas. Neste curto período tornara-se a pessoa dominante na vida dela, sabia disso; mas nunca a submetera a um teste como este agora. E ela fora casada com Michael durante seis anos. Podia de repente arrepender-se de ter deixado o marido; podia descobrir o quanto sentia falta da máquina de lavar louça ; e do aparelho de televisão; podia perceber todo o perigo e a ilegalidade do que ela e Priest estavam fazendo; não havia como prever o que podia acontecer a uma pessoa tão amarga, confusa e perturbada quanto Melanie.

 No banco de trás, seu filho, de cinco anos de idade, acordou. Spirit, o cachorro, moveu-se primeiro e Priest ouviu o barulho das suas garras arranhando o plástico do banco. Em seguida, o bocejo da criança.

 Dustin, conhecido como Dusty, era um garoto azarado. Sofria de alergias múltiplas. Priest ainda não vira um dos seus ataques, mas Melanie os descrevera: o menino fungava incontrolavelmente, os olhos inchavam e as erupções na pele provocavam fortes coceiras. Ela carregava remédios fortes para conter a alergia mas disse que mitigavam os sintomas apenas parcialmente. Dusty começou a ficar inquieto.

 — Mamãe, tou com sede — disse ele.

 Melanie acordou. Endireitou-se no banco, espreguiçando-se e Priest deu uma espiada de relance no contorno dos seus seios sob a camiseta apertada. Ela virou-se e disse:

 — Beba um pouco d'água, Dusty, você tem uma garrafa.

 — Não quero água — choramingou ele. — Quero suco de laranja.

 — Não temos nenhuma droga de suco — retrucou ela, ríspida. Dusty começou a chorar.

 Melanie era uma mãe nervosa, com medo de agir erroneamente. Era obsessiva com a saúde do filho, e por isto super protetora, mas, ao mesmo tempo, a tensão fazia com que fosse mal-humorada com ele. Certa de que o marido um dia tentaria tirar o menino de sua guarda, tinha pavor de fazer qualquer coisa que possibilitasse que ele dissesse que não era boa mãe.

 Priest assumiu o controle.

 — Ei, espera aí, que negócio é esse que apareceu atrás de nós? – do jeito que falou parecia que ele estava realmente assustado.

 Melanie deu uma espiada.

 — É só um caminhão.

 — Isso é o que você pensa. Está disfarçado de caminhão, mas na verdade é uma espaçonave de combate de Centauro com torpedos impulsionados a fótons. Dusty, preciso que você bata três vezes no vidro de trás para levantar nosso escudo magnético invisível. — Agora, se virmos uma luz laranja piscando num dos pára-lamas é sinal de que ele disparou um torpedo. É melhor você tomar conta disso, Dusty.

 O caminhão aproximava-se depressa, e um minuto mais tarde a lanterna sinalizadora da esquerda piscou e ele começou a ultrapassagem. — Está disparando, está disparando! — gritou Dusty.

 — Tudo bem, tentarei segurar o escudo magnético enquanto você atira nele também! Aquela garrafa d'água na verdade é uma pistola a laser!

 Dusty apontou a garrafa para o caminhão e fez barulhos de tiros eletrônicos. Spirit entrou na brincadeira, latindo furiosamente para o caminhão quando passou.

 Melanie começou a rir.

 Quando o caminhão tomou a pista da direita à frente deles, Priest disse:

 — Puxa, conseguimos! Tivemos sorte de sair desta inteiros. Acho que por ora eles desistiram.

 — Tem mais espaçonaves de Centauro?

 — Você e Spirit tomam conta da retaguarda e me dizem o que virem, OK?

 — OK.

 Melanie sorriu e disse baixinho:

 — Obrigada. Você é muito bom com ele.

—  Sou bom com todo mundo: homens, mulheres, crianças e animais de estimação. Tenho carisma. Não nasci com ele aprendi. É só uma maneira de conseguir que as outras pessoas façam o que você quiser. Qualquer coisa. Desde convencer uma mulher fiel a cometer adultério até fazer com que uma criança chata pare de choramingar. Tudo que você precisa é charme.

 — Me avisa quando estiver na hora de sair da estrada. — disse Priest.

 — Basta seguir as placas que indicam Berkeley. Ela não sabia que ele era incapaz de ler.

 — Provavelmente há mais do que uma placa. Só quero que diga onde é que eu viro.

 Poucos minutos mais tarde eles deixaram a rodovia principal e entraram na arborizada cidade universitária. Priest pôde sentir que a tensão de Melanie aumentou. Ele sabia que toda a raiva dela contra a sociedade e o seu desapontamento com a vida de alguma maneira se concentravam no homem a quem deixara seis meses atrás. Ela orientou Priest,pelas interseções até a avenida Euclid, uma via de casas modestas e edifícios de apartamentos provavelmente alugados por estudantes e professores mais jovens.

 — Ainda acho que eu deveria entrar sozinha — disse ela.

 Estava fora de questão. Melanie não era estável o bastante. Priest não podia confiar nela quando estava ao seu lado, de modo que não havia como confiar nela sozinha.

 — Não — disse ele.

 — Talvez eu...

 Ele permitiu que Melanie visse um lampejo de raiva.

 — Não!

 — Tudo bem, tudo bem — disse ela, apressadamente. Mordeu o lábio.

 Dusty ficou entusiasmado.

 — Ei, é aqui que o papai mora!

 — Isso mesmo, querido — concordou Melanie. Ela indicou um edifício de apartamentos de poucos andares e Priest estacionou na frente.

 Melanie virou-se para Dusty mas Priest antecedeu-se.

 — Ele fica no carro.

 — Não tenho certeza se é seguro.

 — Ele tem o cão.

 — Mas pode ficar com medo.

 Priest virou-se para falar com o menino.

 — Ei, tenente, preciso que você e o cabo Spirit fiquem de guarda tomando conta da nossa espaçonave enquanto o imediato Mamãe e eu entramos no espaço porto.

 — Eu vou falar com o papai?

 — Claro. Mas eu gostaria de ter uns momentos com ele primeiro. Acha que pode dar conta do serviço de guarda?

 — Deixa comigo!

 — Na marinha espacial, você tem que dizer "Sim senhor!", e não "Deixa comigo".

 — Sim senhor!

 — Muito bem. Assuma o comando — Priest saltou do carro. Melanie também saltou, mas parecia preocupada.

 — Pelo amor de Deus, não deixe Michael saber que deixamos o filho dele no carro — disse.

—  Você pode estar com medo de ofender Michael, baby, mas eu não ligo a mínima.

 Melanie pegou a bolsa no banco e passou a alça pelo ombro.

 Dirigiram-se para a porta do prédio. Melanie apertou a campainha do interfone e a manteve comprimida.

 Seu marido era um cara de vida noturna, ela dissera a Priest. Gostava de trabalhar à noite e dormir até tarde. Por isso tinham decidido chegar antes das sete horas da manhã. Priest esperava que Michael estivesse com tanto sono que não imaginaria que a visita pudesse ter um propósito oculto. Se ficasse desconfiado, roubar o disquete talvez fosse impossível.

 Melanie disse também que ele era um workaholic, relembrou Priest enquanto esperava que Michael atendesse. Passava os dias rodando de carro pela Califórnia, checando os instrumentos que mediam movimentos geológicos na falha de Santo André ou qualquer outra, e as noites alimentando o computador com os dados colhidos.

 Mas o que acabara fazendo com que o deixasse foi um incidente com Dusty. Ela e a criança eram vegetarianos havia dois anos e comiam apenas comida orgânica e produtos de lojas de alimentos naturais. Melanie acreditava que a dieta rigorosa reduzira os ataques de alergia do filho, embora Michael fosse cético. Então, um dia, Melanie descobriu que Michael dera um hambúrguer para o menino. Para ela, foi o mesmo que envenená-lo. Ainda tremia de raiva quando contava a história. Saíra de casa no mesmo dia, levando Dusty.

 Priest achava que ela podia estar certa a respeito dos ataques de alergia. A comunidade era vegetariana desde o início dos anos 70, quando ser vegetariano era uma excentricidade. Na época, Priest duvidara do valor da dieta mas fora favorável a uma disciplina que os separasse do resto do mundo. As uvas plantadas por eles eram cultivadas sem a ajuda de produtos químicos simplesmente porque não havia dinheiro para comprá-los, e, assim, tinham transformado em virtude uma necessidade e chamaram o vinho que produziam de orgânico, o que acabou tornando-se uma forte motivação das vendas. Mas ele não pôde deixar de notar que após um quarto de século daquela vida, os integrantes da comunidade formavam um grupo dono de uma notável saúde. Era raro que tivessem uma emergência médica que eles próprios não pudessem resolver: Priest duvidava que isto acontecesse em média mais que uma vez por ano. Assim, agora estava convencido. Mas, ao contrário de Melanie, não era obsessivo com essa coisa de dieta. Ainda gostava de peixe e, de vez em quando, embora sem querer, comia carne numa sopa ou num sanduíche e não ligava. Mas se Melanie descobrisse que sua omelete de cogumelos tinha sido preparada com gordura de bacon, vomitava tudo.

 Ouviram uma voz irritada no interfone.

 — Quem é?

 — Melanie.

 Após um zumbido, a porta do edifício abriu-se. Priest seguiu Melanie escada acima. Michael Quercus estava de pé, parado no portal de um apartamento no segundo andar.

 Priest espantou-se com a aparência dele. Havia esperado um tipo professoral, provavelmente careca, vestindo roupa marrom. Quercus tinha uns trinta e cinco anos. Alto e atlético, tinha os cabelos curtos e ondulados e a sombra de uma barba cerrada no rosto. Estava com uma toalha amarrada na cintura, de modo que Priest pôde ver que tinha ombros largos e musculosos e uma barriga chata. Devem ter formado um casal bonito.

 Quando Melanie atingiu o topo da escada, Michael disse:

 — Estava muito preocupado, onde diabos você tem andado?

 Melanie perguntou:

 — Você não pode vestir qualquer coisa?

 — Você não disse que tinha companhia — respondeu ele, friamente.

 Permaneceu no portal.

— Vai responder à minha pergunta?

 Priest viu que ele mal conseguia conter a raiva acumulada.

 — Estou aqui para explicar — disse Melanie.

 Ela estava gostando da fúria de Michael. Que casamento esculhambado.

 — Este é meu amigo Priest. Podemos entrar?

 Michael olhou para ela furioso.

 — É melhor que seja uma explicação muito boa, Melanie — ele virou de costas e entrou.

 Melanie e Priest o seguiram no pequeno hall de entrada. Ele abriu a porta do banheiro, pegou um robe de algodão azul-marinho de um cabide e vestiu-o, sem pressa. Depois livrou-se da toalha e amarrou o cinto. Por fim, conduziu-os até a sala. Ali era, evidentemente, o escritório. Além do sofá e do aparelho de televisão, havia um monitor e um teclado em cima da mesa e uma fileira de aparelhos eletrônicos com luzes que piscavam em uma prateleira larga. Em algum lugar naquelas caixas cinza-claro tão comuns estava armazenada a informação de que Priest precisava. Sentiu-se atormentado por ter o que tanto desejava absolutamente fora do seu alcance. Não havia como consegui-lo sem ajuda. Tinha que depender de Melanie.

 Uma parede era inteiramente tomada por um imenso mapa.

 — Que diabo é aquilo lá? — perguntou Priest.

 Michael limitou-se a dar-lhe um olhar tipo "quem você pensa que é, porra" e nada disse, mas Melanie respondeu:

 — É a falha de Santo André — ela apontou. — Começa no farol de Ponta Arena a cento e sessenta quilômetros ao norte daqui no condado de Mendocino, vai toda vida para o sul e o leste, passa por Los Angeles e seque até San Bernardino. Uma falha na crosta terrestre com mais de mil e cem quilômetros de comprimento.

 Melanie explicara o trabalho de Michael a Priest. Sua especialidade era calcular a pressão em diferentes lugares ao longo de falhas sísmicas. Tratava-se de medir com precisão os pequenos movimentos na crosta terrestre, assim como estimar a energia acumulada com base no lapso de tempo decorrido desde o último terremoto. Com esse trabalho, ele conquistara vários prêmios acadêmicos, mas um ano atrás deixara a universidade para trabalhar por conta própria, oferecendo consultoria sobre riscos de terremotos a firmas de construção e companhias de seguros.

 Melanie era especializada em computação e o ajudara muito. Fora ela quem programara a máquina para fazer uma cópia de segurança entre as quatro e as seis horas da manhã, quando ele dormia. Tudo no seu computador, ela explicara a Priest, era copiado em um disquete ótico.

 Quando ele ligava o monitor de manhã, retirava o disquete e colocava em uma caixa à prova de fogo. Desse modo, se a máquina quebrasse ou a casa pegasse fogo, os preciosos dados não se perderiam.

 Para Priest era fantástico que as informações sobre a falha de Santo André pudessem caber em um simples disquete, mas os livros também eram um mistério para ele.

 Tinha simplesmente que aceitar o que lhe era dito. O importante era que Melanie, de posse do disquete de Michael, fosse capaz de orientá-lo sobre onde colocar o vibrador sísmico.

 Tinham agora que dar um jeito para afastar Michael dali, tempo suficiente para que ela pegasse o disquete.

 — Me diz uma coisa, Michael. Esses troços todos — exclamou Priest, indicando com um gesto o mapa e os computadores e depois fixando nele o Olhar — como é que fazem você se sentir?

 As pessoas costumavam ficar nervosas quando Priest lhes dirigia o Olhar e fazia uma pergunta pessoal. Às vezes davam uma resposta reveladora por ficarem tão desconcertadas. Mas Michael pareceu imune.

 Limitou-se a fitar Priest com um olhar inexpressivo e disse:

 — Não sinto nada, eu uso — e depois, virando-se para Melanie, perguntou: — E agora, vai me contar por que desapareceu?

 Filho da puta arrogante.

 — Muito simples — disse ela. — Um amigo ofereceu a mim e a Dusty sua cabana nas montanhas. — Priest recomendara para que não dissesse que montanhas eram. — Foi um cancelamento de última hora de uma locação — seu tom de voz indicava que ela não via por que tinha de explicar uma coisa tão simples. — Como não podemos nos dar ao luxo de tirar férias, aproveitei a chance.

 Foi quando Priest a encontrara. Ela e Dusty foram andar na floresta e ficaram completamente perdidos. Melanie era uma garota da cidade e não sabia se orientar pelo sol. Priest naquele dia fora pescar salmão sozinho. Era uma tarde perfeita de primavera, ensolarada e com a temperatura amena. Ele estava sentado na margem do regato, fumando um baseado, quando ouviu o choro de uma criança.

 Sabia que não era uma das crianças da comunidade, cujas vozes teria reconhecido. Seguindo o som, encontrou Dusty e Melanie. Ela estava à beira das lágrimas e quando viu Priest exclamou:

 — Graças a Deus, pensei que fôssemos morrer aqui!

 Ele a examinou por um longo momento. Ela era um tanto estranha, com o cabelo ruivo comprido e olhos verdes, mas um bocado apetitosa, de frente-única e calça-jeans transformada em bermudas. Era meio mágico esbarrar numa donzela em apuros.

 Foi quando lhe perguntara se era de Marte.

 — Não. De Oakland.

 Priest sabia onde ficavam as cabanas para férias. Pegou o caniço e conduziu-a pela floresta, seguindo as trilhas e elevações que lhe eram tão familiares. Foi uma longa caminhada e durante todo o percurso em que foi conversando, fazendo perguntas a respeito dela.

 Era uma mulher metida num tremendo problema. Deixara o marido e passara a viver com um cara que tocava baixo em uma banda de rock, mas o sujeito a pusera para fora após algumas semanas. Não tinha a quem recorrer: o pai era falecido e a mãe morava em NY com um sujeito que tentara se meter na sua cama na única noite em que dormira no apartamento deles. Tinha exaurido a hospitalidade dos amigos e pedira emprestado todo o dinheiro que eles tinham capacidade de emprestar. Sua carreira era um fracasso total, e ela trabalhava em um supermercado, recompletando as prateleiras, deixando Dusty com uma vizinha o dia inteiro. Morava num lugar tão sujo que o menino vivia constantemente sofrendo ataques de alergia. Precisava se mudar para onde houvesse ar puro, mas não conseguia encontrar um emprego fora da cidade.

 Estava num beco sem saída e desesperada. Tentava calcular a exata overdose de pílulas para dormir que a matasse e à criança, quando uma amiga lhe oferecera aqueles dias de férias. Priest gostava de pessoas em dificuldades. Sabia como se relacionar com elas. Tudo o que tinha de fazer era oferecer-lhes aquilo de que precisavam, e elas se tornavam suas escravas. Não se sentia à vontade com tipos confiantes e auto-suficientes — eram difíceis de controlar.

 Quando chegaram à cabana, já era hora de cear. Melanie preparou massa e salada e pôs Dusty na cama. Quando a criança dormiu, Priest seduziu-a em cima do tapete.

 Ela estava frenética de desejo. Toda a sua carga emocional reprimida foi liberada pelo sexo, e ela fez amor com ele como se fosse sua última oportunidade, arranhando suas costas e mordendo seus ombros, além de puxá-lo fundo para dentro de si, como se quisesse engoli-lo. Foi o encontro mais excitante que Priest era capaz de lembrar.

 O arrogante marido de Melanie estava reclamando.

 — Isso foi há cinco semanas. Você não pode simplesmente pegar meu filho e desaparecer sem sequer um telefonema! — Você podia ter me telefonado.

 — Eu não sabia onde você estava!

 — Tenho um celular.

 — Tentei. Mas não tive resposta.

 — O serviço foi cortado porque você não pagou a conta. Você ficou de pagar, foi o que combinamos.

 — Eu só me atrasei dois dias, mais nada! O telefone deve estar funcionando de novo.

 — Bem, você telefonou quando estava fora do ar, acho eu.

 Aquela briga de família não estava aproximando Priest do tal disquete, pensou ele, irritado. Michael tem que sair desta sala, de algum modo, de qualquer modo. Interrompeu para sugerir:

 — Por que não vamos todos tomar um café? — queria que Michael fosse para a cozinha fazer o café.

 Michael sacudiu o polegar por cima do ombro. — Sirva-se — disse, bruscamente.

— Droga. — Michael voltou-se de novo para Melanie.

 — Não interessa o motivo pelo qual não consegui falar com você. Não pude. É por este motivo que você tem que ligar para mim antes de levar Dusty para outro lugar de férias.

 Melanie disse:

 — Escuta, Michael, tem uma coisa que eu ainda não lhe contei.

 Michael pareceu ficar ainda mais exasperado, depois suspirou e disse:

 — Sentem-se, por que não se sentam?

 Melanie afundou num canto do sofá, sentada em cima das pernas dobradas de um jeito que fez com que Priest pensasse que aquele era o seu lugar habitual. Priest acomodou-se no braço do sofá, não querendo sentar-se em nível mais baixo que Michael. Não sou capaz nem de imaginar em qual dessas máquinas está o tal disquete. vamos, Melanie, livre-se desse seu maldito marido!

 O tom de voz dele sugeriu que já passara diversas vezes antes por cenas como aquela com Melanie.

 — Está certo, pode falar — disse, cansado. — O que é desta vez?

 — Vou me mudar para as montanhas, permanentemente. Estou morando com Priest e uma porção de pessoas.

 — Onde?

 Foi Priest quem respondeu. Não queria que Michael soubesse onde viviam.

 — É em Del Norte — o que era o mesmo que dizer que ficava na região das sequóias, extremidade norte da Califórnia. Na verdade a comunidade vivia em Sierra, nos contrafortes de Sierra Nevada, perto da fronteira oriental do estado. Os dois condados ficavam muito longe de Berkeley.

 Michael sentiu-se ultrajado.

 — Você não pode levar Dusty para morar a centenas de quilômetros do pai dele!

 — Há um motivo — insistiu Melanie. — Nas últimas cinco semanas Dusty não teve um único ataque de alergia. Ele é saudável nas montanhas, Michael.

 Priest acrescentou:

 — Provavelmente é o ar puro e a água. Sem poluição.

 Michael mostrou-se cético.

 — É o deserto, e não as montanhas, que normalmente mostra-se benéfico para pessoas alérgicas.

 — Não me fale sobre normalmente! — explodiu Melanie. Não posso ir para o deserto — não tenho dinheiro. Este é o único lugar que posso pagar e onde Dusty pode ser saudável!

 — Priest está pagando o seu aluguel?

 Vá em frente, seu panaca, me insulte, fale sobre mim como se eu não estivesse aqui dentro, e eu simplesmente continuarei comendo sua mulher gostosa.

 Melanie disse:

 — É uma comunidade.

 — Pelo amor de Deus, Melanie, com que espécie de gente você foi se meter agora? Primeiro foi um guitarrista drogado...

 — Espera um minuto — Blade não era um guitarrista drogado. . .

 — agora uma comunidade hippie perdida!

 Melanie estava tão envolvida na discussão que esquecera o motivo pelo qual viera. O disquete, Melanie, o maldito disquete!

Priest interrompeu de novo.

 — Por que não pergunta a Dusty como se sente a respeito disto, Michael?

 — Vou perguntar.

 Melanie dirigiu a Priest um olhar de desespero. Ele a ignorou.

 — Dusty está logo aí fora, no meu carro.

 Michael ficou vermelho de ódio.

 — Você deixou meu filho aí fora dentro do carro?

 — Ele está bem, meu cachorro está com ele.

 Michael olhou furiosamente para Melanie.

 — O que diabo está errado em você? — gritou.

 Priest disse:

 — Por que você não sai e vai buscá-lo?

 — Não preciso da porra da sua permissão para pegar o meu filho. Dê-me as chaves do carro.

 — Não está trancado — retrucou Priest, em tom ameno.

 Michael saiu pisando forte.

 — Eu disse a você para não falar que o Dusty estava aí fora — lamuriou-se Melanie. — Por que fez isso?

 — Para tirar o sujeito desta maldita sala — respondeu Priest. — Agora pegue o disquete.

 — Mas você o enfureceu tanto!

 — Ele já estava irado! — Não adiantava, Priest concluiu logo. Ela podia estar amedrontada demais para fazer o que ele precisava.

 Levantou-se. Segurou-lhe as mãos, obrigou-a a aprumar-se e lhe deu o Olhar. — Você não tem que sentir medo dele. Está comigo.

 — Mas...

 — Diga.

 — Lat hoo, dat soo.

 — Continua.

 — Lat hoo, dat soo, lat hoo, dat soo — ela começou a se acalmar.

 — Agora peque o disquete.

 Ela fez que sim. Ainda dizendo o mantra baixinho, aproximou-se da fileira de máquinas na prateleira. Apertou um botão e um disquete de plástico chato e quadrado pulou para fora de uma fenda.

 Priest já notara que no mundo dos computadores os disquetes sempre eram quadrados.

 Ela abriu a bolsa e pegou outro disquete que parecia similar.

 — Merda! — exclamou.

 — O quê? — apressou-se a perguntar Priest. — O que está errado?

 — Ele mudou de marca!

 Priest olhou os dois disquetes. Pareciam iguais para ele. — Qual é a diferença?

 — Olha, o meu é um Sony, mas o de Michael é Philips.

— Ele vai notar?

 — Pode ser.

 — Droga — era vital que Michael não soubesse que seus dados haviam sido furtados.

 — Ele provavelmente começará a trabalhar assim que tivermos saído. Ejetará o disquete e o trocará com o que está na caixa à prova de fogo, e, se olhar para eles, verá que são diferentes.

 — E sem dúvida nenhuma irá relacionar o acontecido à nossa presença aqui — Priest sentiu uma onda de pânico. Tudo estava saindo errado.

 Melanie disse:

 — Eu podia comprar um Philips e voltar outro dia. Priest sacudiu a cabeça.

 — Não quero fazer isto de novo. Podemos falhar outra vez. E estamos ficando sem tempo. O prazo termina em três dias. Ele tem disquetes sobressalentes?

 — Deve ter. Às vezes o disquete apresenta defeito — ela olhou em torno. — Eu gostaria de saber onde estão. — Ela parou no meio da sala, desorientada.

 Priest teve ímpetos de dar um grito de frustração. Tinha receado algo assim. Melanie ficara totalmente descontrolada e eles não tinham muito mais que um minuto. Era preciso acalmá-la rapidamente.

 — Melanie — disse, esforçando-se para a voz sair grave e tranqüilizadora -, você tem dois disquetes na mão. Ponha ambos dentro da bolsa.

 Ela obedeceu automaticamente.

 — Agora feche a bolsa.

 Ela fechou.

 Priest ouviu a porta do prédio bater. Michael estava voltando. Priest sentiu a nuca ficar molhada de suor.

 — Pense — quando você morava aqui. Michael tinha um armário com material de escritório?

 — Tinha, sim. Bem, uma gaveta.

 — E então? Acorde, garota! Onde está?

 Ela apontou para um armário branco barato encostado na parede. Priest abriu a gaveta de cima. Viu um pacote de blocos amarelos tamanho ofício, uma caixa de esferográficas de plástico, umas duas resmas de papel branco, alguns envelopes — e uma caixa aberta de disquetes.

 Ele ouviu a voz do menino. Parecia vir do vestíbulo, na entrada do apartamento.

 Com os dedos trêmulos, ele tirou um disquete da caixa e passou para Melanie.

 — Este servirá?

 — Sim, é um Philips. Priest fechou a gaveta.

 Michael entrou com Dusty nos braços. Melanie ficou imóvel com o disquete na mão.

 Pelo amor de Deus, Melanie, faça alguma coisa!

 — E você sabe de uma coisa, papai? Eu não espirrei nem uma vez nas montanhas — dizia Dusty.

 A atenção de Michael estava concentrada em Dusty.

 — Que legal, não é mesmo?

 Melanie recuperou o controle. Quando Michael inclinou-se para sentar Dusty no sofá, ela enfiou o disquete virgem que tinha na mão dentro da mesma fenda de onde saíra o outro, o que tinha os dados. A máquina zumbiu suavemente e sugou o disquete, como uma cobra comendo um rato.

 — Você não espirrou? — perguntou Michael ao filho. Nem uma vez?

 — Isso mesmo.

 Melanie endireitou-se. Michael não vira o que ela fizera. Priest fechou os olhos. A sensação de alívio parecia esmagá-lo. Tinham conseguido. Pegaram os dados de Michael — e ele jamais saberia.

 Michael continuou:

 — E o cachorro, não fez você espirrar?

 — Não, Spirit é um cachorro limpo. Priest faz ele tomar banho no regato e depois ele sai e se sacode e é uma chuvarada! — Dusty riu com prazer quando rememorou a cena.

 — É mesmo? — disse o pai.

 — Eu falei, Michael — disse Melanie.

 A voz dela saiu meio trêmula, mas Michael não pareceu notar.

 — Está bem, está bem — disse ele, em tom conciliatório. — Se faz tanta diferença assim para a saúde de Dusty, temos que achar uma solução.

 Ela pareceu aliviada.

 — Obrigada.

 Priest permitiu-se a sugestão de um sorriso. Estava acabado. Seu plano avançara mais um passo crucial.

 Agora só tinham que torcer para o computador de Michael não travar. Se isto acontecesse e ele tentasse recuperar os dados armazenados no disquete, descobriria que estava em branco. Mas Melanie disse que era raro isto acontecer. Com toda a probabilidade não aconteceria logo hoje.

 E à noite o computador produziria uma nova cópia de segurança, enchendo o disquete em branco com os dados de Michael. No dia seguinte a esta hora seria impossível dizer que uma troca fora feita.

 Michael continuou:

 — Bem, pelo menos você veio aqui para dar a notícia pessoalmente. Muito obrigado.

 Priest sabia que Melanie preferia ter falado com o marido pelo telefone. Mas a mudança dela para a comunidade fora um pretexto perfeito para visitar Michael. Ele e Melanie nunca poderiam ter feito uma visita social ao marido dela sem despertar suspeitas. Mas neste caso não ocorreria a Michael desconfiar do motivo que os trouxera.

 Na verdade, Michael não era do tipo desconfiado, Priest tinha certeza. Era um cara inteligente mas ingênuo. Não tinha capacidade de enxergar sob a superfície e ver o que realmente se passava no coração de outro ser humano.

 Quanto a Priest, era extremamente bem dotado desta capacidade.

 Melanie estava falando:

 — Trarei Dusty para vê-lo com a freqüência que você quiser. Eu mesma virei dirigindo.

 Priest era capaz de ler o que se passava no coração dela. Estava sendo boazinha com o marido, agora que ele lhe dera o que queria — tinha a cabeça meio de lado e sorria um sorriso bonito para ele — mas não o amava, não o amava mais.

 Michael era diferente. Estava furioso por ela tê-lo deixado, sem dúvida. Mas ainda se importava com ela. Ainda não se livrara de Melanie, não totalmente. Uma parte dele ainda a queria de volta. Podia até ter pedido, mas era muito orgulhoso. Priest sentiu ciúmes. Odeio você, Michael.

 

 Judy acordou cedo na terça-feira, perguntando-se se ainda teria um emprego.

 Na véspera dissera que se demitia. Mas estava com raiva e frustrada. Hoje tinha certeza de que não queria deixar o FBI. A perspectiva de passar a vida defendendo criminosos, ao invés de prendendo, a deprimia.

 Teria mudado de idéia tarde demais? Na noite seu pedido de desculpas? Ou insistiria na sua demissão?

 Bo chegou às seis da manhã e Judy esquentou para ele um pouco de pho, a sopa de talharim fininho que os vietnamitas tomam no desjejum. Em seguida, vestiu sua roupa mais elegante, um conjunto Armani azul-marinho de saia curta. Num dia bom ele lhe dava um ar sofisticado, autoritário e sexy, tudo ao mesmo tempo. Se vou ser despedida, é bom que tenha a aparência de uma pessoa cuja falta vão sentir.

 Seu corpo doía de tensão ao dirigir o carro para o trabalho. Estacionou na garagem subterrânea do Federal Building e pegou o elevador para o andar do FBI. Foi diretamente para a sala do encarregado. Brian Kincaid estava atrás da mesa enorme, de camisa branca e suspensórios vermelhos. Levantou a cabeça para ver quem era.

 — Bom dia — disse, friamente.

 — Bom d. .. — com a boca seca, Judy engoliu e começou de novo. – Bom dia, Brian. Leu meu bilhete?

 — Li, sim.

 Obviamente ele não ia facilitar as coisas.

 Judy foi incapaz de imaginar algo diferente para dizer, e limitou-se, portanto, a ficar olhando para ele e a esperar.

 Ao cabo de algum tempo ele falou:

 — Seu pedido de desculpas foi aceito. Ela sentiu-se fraca de tão aliviada.

 — Muito obrigada.

 — Pode transferir suas coisas pessoais para a sala do Terrorismo Doméstico.

 — OK — havia destinos piores, refletiu ela. Havia diversas pessoas de quem gostava no grupo do Terrorismo Doméstico. Começou a relaxar.

 Kincaid acrescentou:

 — Comece a trabalhar no Martelo do Éden imediatamente. Precisamos dizer qualquer coisa ao governador.

 Judy ficou surpresa.

 — Você vai falar com o governador?

 — Com o secretário dele — Brian verificou uma anotação em cima da mesa. — Um certo Sr. Albert Honeymoon.

 — Já ouvi falar dele — Honeymoon era a mão direita do governador. O caso então assumira um perfil mais destacado, deduziu Judy.

 — Quero seu relatório amanhã de noite.

 O que praticamente não lhe assegurava tempo para fazer qualquer progresso, tendo em vista o pouco que tinha para começar. O dia seguinte era uma quarta-feira.

 — Mas o prazo termina na sexta.

 — O encontro com Honeymoon é na quinta-feira.

 — Vou lhe arranjar algo de concreto para dar a ele.

 — Você vai poder entregar pessoalmente. O Sr. Honeymoon insiste em falar com a pessoa que ele considera que esteja realmente na ponta da cadeia de comando. Temos que estar no gabinete do governador, em Sacramento, ao meio-dia em ponto.

 — Uau. OK.

 — Alguma pergunta?

 Ela sacudiu a cabeça.

 — Vou começar agora.

 Quando saiu, sentia-se feliz por não ter perdido o emprego mas apreensiva com a notícia de que teria que se reportar ao assistente do governador do estado. Não era provável que conseguisse pegar quem estava por trás daquela ameaça em apenas dois dias, de modo que parecia destinada a relatar o próprio fracasso.

 Esvaziou a gaveta na sala do Crime Organizado Asiático e carregou suas coisas até o Terrorismo Doméstico, no fim do corredor. O novo supervisor, Matt Peters, destinou-lhe uma mesa. Ela conhecia todos os agentes, que a cumprimentaram pelo sucesso no caso dos irmãos Foong, mesmo que em tom contido, já que todo mundo sabia da sua briga com Kincaid na véspera.

 Peters designou um jovem agente para trabalhar com ela no caso do Martelo do Éden. Era Raja Khan, um indiano com diploma de mestre em administração e que falava muito depressa. Tinha vinte e seis anos. Judy ficou satisfeita. Embora inexperiente, era inteligente e perspicaz. Ela o instruiu sobre o caso e mandou que verificasse a Campanha Califórnia Verde.

 — Seja bonzinho — aconselhou. — Diga que não acredita que estejam envolvidos, mas que precisa eliminar qualquer dúvida.

 — O que estou procurando?

 — Um casal: um homem, talvez trabalhador braçal, de cerca de quarenta e cinco anos, e que pode ser analfabeto, e uma mulher instruída, com cerca de trinta anos, que provavelmente é dominada por ele. Mas não creio que os encontre lá. Seria fácil demais.

 — A alternativa é.

 — A coisa mais útil que você pode fazer é conseguir os nomes das pessoas que trabalham na organização, pagas ou voluntárias, e cotejá-las com o nosso banco de dados para ver se alguma tem registro de atividade criminosa ou subversiva.

 — Deixe comigo — disse Raja. — O que é que você vai fazer?

 — Vou estudar terremotos.

 

 Judy estivera em um terremoto importante.

 O terremoto de Santa Rosa causou seis milhões de dólares de prejuízos — não muito, comparando-se com o valor que essas coisas costumam atingir — e fora sentido em uma área relativamente pequena de trinta e um mil quilômetros quadrados. A família Maddox nesse tempo morava em Marin, ao norte de San Francisco, e Judy estava no primeiro grau. Foi um tremor pequeno, sabia agora. Mas naquele tempo tinha seis anos de idade e lhe parecera o fim do mundo.

 Primeiro ouviu-se um barulho que lembrava um trem, mas muito de perto, e ela acordou depressa e olhou em torno do quarto de dormir, à luz clara da madrugada, procurando a origem do barulho, morta de medo.

 Em seguida, a casa começou a tremer. A luminária do teto, com franjas cor-de-rosa, balançava violentamente de um lado para o outro. Sobre a mesinha-de-cabeceira, Os melhores contos de fadas saltou no ar como um livro mágico e desceu aberto no "Pequeno polegar", a história que Bo lera para ela na noite anterior. Sua escova de cabelo e o estojo de pintura de brinquedo dançavam em cima do tampo de fórmica da cômoda. O cavalo de madeira balançou furiosamente, sem ter ninguém montado. Uma fileira de bonecas caiu da prateleira, como se quisessem mergulhar no tapete, e Judy achou que elas tinham ganho vida, como brinquedos de uma fábula. Até que por fim encontrou a voz e gritou: "PAPAI! ! !"

 Do quarto ao lado ouviu o pai praguejar e depois o barulho surdo dos pés dele batendo no chão. O barulho e os tremores pioraram, e Judy ouviu a mãe chorar. Bo tentou girar a maçaneta da porta do quarto da filha mas não conseguiu. A menina ouviu outro baque quando o pai meteu o ombro na porta, que não cedeu.

 A janela rompeu-se e os estilhaços de vidro caíram para o lado de dentro, acumulando-se na cadeira onde a roupa com que iria à escola na manhã seguinte estava cuidadosamente dobrada: saia cinza, blusa branca, suéter verde com decote em V, roupa íntima azul-marinho e meias brancas.

 O cavalo de madeira balançou tanto que caiu em cima da casa de bonecas, esmagando o telhado. Mas Judy sabia que o telhado da sua casa de verdade podia ser esmagado com a mesma facilidade. O retrato emoldurado de um menino mexicano de bochechas rosadas soltou-se do gancho na parede, saiu voando e a atingiu na cabeça. Ela gritou de dor.

 Foi nesta hora que a cômoda começou a andar. Era uma velha cômoda de pinho, com a frente côncava, que sua mãe comprara numa loja de móveis usados e pintara de branco. Tinha três gavetas e se apoiava nas pernas curtas que terminavam em patas como as de um leão. A princípio pareceu dançar no mesmo lugar, incansavelmente apoiada nos quatro pés. Depois deslizou de um lado para o outro, como uma pessoa hesitando, nervosa, em uma porta. Até que, por'fim, começou a dirigir-se para Judy.

 Ela gritou de novo.

 A porta do quarto sacudia enquanto Bo tentava quebrá-la. A cômoda foi avançando aos poucos na direção dela.

 Judy teve esperança de que o tapete detivesse seu avanço, mas a cômoda

simplesmente foi empurrando o tapete com as patas de leão. A cama sacudiu com tanta violência que Judy caiu.

 A poltrona já estava a poucos centímetros dela quando parou. A gaveta do meio abriu-se como se fosse uma boca aberta, pronta para engolir a menina.

 Judy gritou com toda a força.

 A porta estilhaçou-se e Bo entrou.

 Aí o terremoto cessou.

 

 Trinta anos mais tarde ainda era capaz de sentir o terror que a dominara enquanto o mundo desmoronava em torno dela. Passou a sentir medo de fechar a porta do quarto de dormir durante muitos anos depois daquilo e até hoje tinha medo de terremotos. Na Califórnia, sentir o solo se mover em um tremor de pequena intensidade era uma coisa muito comum, mas Judy nunca conseguira realmente se acostumar. E quando sentia a terra tremer, ou via pela televisão imagens de prédios desmoronados, o medo que corria pelas suas veias como uma droga não era o medo de ser esmagada ou de morrer num incêndio e sim o pavor cego de uma garotinha cujo mundo de repente começara a cair.

 Ainda estava muito tensa naquela noite, ao entrar no sofisticado ambiente do Masa's, usando um vestido justo de seda preta e o colar de pérolas que Don Riley lhe dera no Natal, quando moravam juntos.

 Don pediu um borgonha branco chamado Corton Charlemagne, mas bebeu a garrafa quase sozinho: Judy gostava do seu sabor estimulante, mas não se sentia tranqüila bebendo álcool quando levava uma pistola semi-automática carregada com munição de nove milímetros na bolsa de verniz preto.

 Ela contou a Don que Brian Kincaid aceitara seu pedido de desculpas e permitira que retirasse o pedido de demissão.

 — Ele não tinha outra saída — comentou Don. — Recusar seria o mesmo que despedir você. E não ficaria nada bem para ele perder uma das melhores agentes no primeiro dia em que substituiu o encarregado da agência de San Francisco.

 — Talvez você tenha razão — disse Judy, pensando, no entanto, que era fácil para Don ser sábio depois do caso passado.

 — Claro que estou com a razão.

 — Lembre-se de que Brian preparou-se tão bem para a aposentadoria que pode sair do Bureau confortavelmente a qualquer momento que queira.

 — É, mas ele tem o seu orgulho. Imagine só na hora de explicar ao quartel-general como conseguiu deixar você ir embora. "Ela disse: `Vá se foder, Kincaid"." Ao que Washington irá contrapor: "E daí, o que você é? Um padre? Nunca ouviu um agente dizer isso antes?" Nada disso. Kincaid faria papel de bobo se recusasse seu pedido de desculpas.

 — Acho que sim.

 — De qualquer forma, sinto-me verdadeiramente feliz por saber que em breve estaremos trabalhando juntos de novo — ele levantou o copo. – A muitos outros desempenhos brilhantes da excelente equipe formada pelo assistente de promotor federal Don Riley e p Maddox.

 Ela bateu o copo no dele e tomou um gole de vinho. Conversaram sobre o caso durante o jantar, rememorando os erros cometidos, as surpresas feitas à defesa, os momentos de tensão e triunfo. Na hora do café, Don perguntou:

 — Você sente falta de mim?

 Judy franziu a testa. Seria cruel dizer que não, e, de qualquer modo, não estaria falando a verdade. Mas não queria encorajá-lo falsamente.

 — Sinto falta de algumas coisas — respondeu. — Gosto quando você é engraçado e inteligente.

 Sentia falta também de ter um corpo quente ao seu lado durante a noite, mas não ia lhe dizer isto.

 — Sinto falta de falar sobre o meu trabalho — disse ele — e também de ouvir você falando sobre o seu.

 — Acho que agora eu converso com Bo.

 — Sinto falta dele também.

 — Ele gosta de você. Acha que é o marido ideal. ..

 — Eu sou, eu sou! ... para uma mulher que trabalha no FBI. Don deu de ombros. — Isso já me basta.

 Judy sorriu.

 — Talvez você e o Bo devessem se casar.

 — Ho, ho — ele pagou a conta. — Judy, tem uma coisa que eu quero lhe dizer.

 — Estou ouvindo.

 — Acho que estou pronto para ser pai. Por alguma razão aquilo a irritou.

 — O que acha que eu devo fazer, gritar oba e abrir as pernas?

 Ele se surpreendeu.

 — Quer dizer... bem, eu achava que você queria um compromisso sério.

 — Compromisso? Don, eu só queria que você não transasse com a sua secretária, e nem isso você conseguiu fazer!

 Ele pareceu mortificado.

 — OK, não se irrite. Eu só estava tentando lhe dizer que mudei.

 — E agora espera que eu volte correndo como se nada tivesse acontecido?

 — Acho que ainda não entendo você.

 — Provavelmente jamais entenderá. — o evidente sofrimento dele a abrandou. — Vamos, levarei você em casa — quando moravam juntos era sempre ela quem dirigia na volta para casa depois de jantarem fora. Deixaram o restaurante quietos, num silêncio contrafeito.

 No carro ele disse:

 — Achei que podíamos pelo menos conversar a esse respeito. — Don, o advogado, negociando.

 — Podemos conversar. Mas como posso lhe dizer que meu coração está frio?

 — O que aconteceu com Paula... foi o pior erro de toda a minha vida.

 Judy acreditou nele. Don não estava bêbado, apenas alto o suficiente para dizer o que sentia. Ela suspirou. Queria vê-lo feliz. Gostava dele, e detestava vê-lo sofrendo. Aquilo também , a magoava. Parte dela queria conseguir dar-lhe o que ele queria.

 — Tivemos alguns bons momentos juntos — disse Don, pegando na coxa dela por cima do vestido de seda.

 — Se me apalpar enquanto eu estiver dirigindo jogo você para fora do carro.

 Don sabia que ela era capaz de fazer aquilo.

 — Como queira — ele tirou a mão.

 Um momento depois, desejou não ter sido tão rude. Não era uma coisa ruim, ter a mão de um homem na sua coxa. Don — entusiasmado, mas pouco imaginativo — não era o melhor amante do mundo, mas era melhor do que nada, e nada era o que Judy tinha, desde que o deixara.

 Por que não tenho um homem? Não quero envelhecer sozinha. Haverá alguma coisa de errado em mim? Puxa vida, claro que não.

 Um minuto mais tarde ela encostou o carro diante do prédio dele.

 — Obrigada, Don — agradeceu. — Por uma grande atuação na promotoria e por um ótimo jantar.

 Ele inclinou-se para beijá-la. Judy ofereceu-lhe o rosto, mas Don beijou-a nos lábios. Para não fazer daquilo um cavalo de batalha, ela deixou. O beijo dele perdurou até que ela separou-se. Don disse:

 — Entre um pouco. Preparo um cappuccino para você.

 A expressão de desejo nos olhos dele quase fez com que ela cedesse. Que mal tinha? Podia muito bem pôr a arma no cofre dele, beber um conhaque duplo, que lhe aquecesse o coração e passar a noite nos braços de um homem decente que a adorava.

 — Não — disse, com firmeza. — Boa noite.

 Ele a encarou por um longo momento, todo o sofrimento que sentia expresso nos olhos. Ela sustentou o seu olhar, envergonhada e arrependida, mas resoluta.

 — Boa noite — disse Don por fim. Ele saltou e fechou a porta do carro.

 Judy afastou-se e quando olhou pelo retrovisor viu-o de pé na calçada, a mão meio erguida numa espécie de saudação. Avançou um sinal vermelho e virou na primeira esquina. E finalmente sentiu-se sozinha de novo.

 Quando chegou em casa, Bo ria, assistindo ao programa de Conan O'Brien.

 — Esse cara me faz sair do sério — disse.

 Assistiram ao monólogo até o intervalo comercial quando Bo desligou a televisão.

 — Resolvi um assassinato hoje — disse ele. — O que é que me diz disso?

 Judy sabia que ele tinha diversos casos de homicídio não resolvidos.

 — Qual?

 — O estupro seguido de assassinato no Telegraph Hill.

 — Quem foi?

 — Um sujeito que já estava na cadeia. Foi preso por perturbar meninas no parque. Tive um palpite e revistei o apartamento dele. Tinha um par de algemas como as da polícia, mas negou tudo e não pude pegá-lo. Hoje peguei o resultado do seu teste de DNA no laboratório. É o mesmo do sêmen encontrado no corpo da vítima. Contei-lhe isto e ele confessou. Bingo.

 — Parabéns! — ela o beijou no topo da cabeça.

 — E você?

 — Bem, ainda tenho um emprego, mas ainda resta ver se continuo tendo uma carreira.

 — Você tem uma carreira, deixa disso.

 — Não sei não. Se fui rebaixada depois de mandar os irmãos Foong para a cadeia, o que farão comigo se eu fracassar?

 — Você sofreu um revés. Algo apenas temporário. Vai se recuperar, eu garanto.

 Ela sorriu, lembrando do tempo em que achava que não havia nada que o pai não fosse capaz de fazer.

 — Bem, não progredi muito com o meu caso.

 — Ontem à noite você achava que não chegava a ter um caso de verdade.

 — Hoje já não estou tão segura. A análise lingüística mostrou que os envolvidos são pessoas perigosas, sejam quem forem.

 — Mas não podem causar um terremoto.

 — Não sei.

 Bo ergueu as sobrancelhas.

 — Acha possível?

 — Passei hoje praticamente o dia inteiro tentando descobrir. Falei com três especialistas e tive três respostas diferentes.

 — Cientistas são assim mesmo.

 — O que eu realmente queria era que me dissessem firmemente que não é possível. Mas um disse "improvável", outro disse que a possibilidade era "insignificante", e o terceiro disse que seria possível com um artefato nuclear.

 — Será que essa gente — como é mesmo que se chamam?

 — O Martelo do Éden.

 — Eles teriam uma bomba nuclear?

 — É possível. São inteligentes, determinados, sérios. Mas se tivessem, por que iriam falar de terremotos, em vez de nos ameaçar direto com a bomba?

 — Tem razão — concordou Bo, pensativo. — A ameaça seria igualmente aterrorizante e muito mais fácil de acreditar.

 — Mas quem pode dizer como a cabeça dessa gente funciona?

 — Qual é o seu próximo passo?

 — Tenho mais um cientista para ver, um sujeito chamado Michael Quercus. Os outros todos dizem que ele é um tipo meio arredio, mas é a maior autoridade em causas de terremotos.

 Ela já tentara falar com Quercus. No fim da tarde tocara a campainha do seu apartamento. Ele lhe dissera, pelo interfone, que marcasse uma entrevista.

 — Talvez você não tenha me ouvido — dissera ela. — Eu sou do FBI.

 — Isso significa que não tem de marcar entrevistas?

 Ela praguejara baixinho. Era uma agente da Lei, e não uma vendedora.

 — Geralmente significa — respondera. — A maioria das pessoas acha que nosso trabalho é importante demais para esperar.

 — Não, não acha não — ele replicara. — A maioria das pessoas tem medo de vocês, é por isto que deixam que entrem sem marcar hora. Telefone para mim. Meu nome está na lista de assinantes.

 — Estou aqui devido a uma questão de segurança pública, professor.

 Disseram-me que o senhor é um perito que pode dar informações cruciais que ajudarão no nosso trabalho de proteger as pessoas. Desculpe por não ter tido uma oportunidade de telefonar marcando hora, mas agora que estou aqui, ficaria realmente agradecida se o senhor me recebesse por alguns minutos.

 Não houve resposta e ela percebeu que ele desligara.

 Voltara para o escritório fervendo de raiva. Não marcava entrevistas: agentes do FBI raramente faziam isso. Preferia pegar as pessoas desprevenidas. Quase todo mundo que entrevistava tinha algo para esconder. Quanto menos tempo tinham para se preparar, maior era a

probabilidade de cometerem um erro revelador. Mas Quercus estava irritantemente certo: não tinha direito de se impor.

 Engolindo o orgulho, telefonara para ele e marcara uma entrevista para o dia seguinte.

 Decidiu não contar a Bo nada daquilo.

 — O que eu realmente preciso — disse — é de uma pessoa que me explique os aspectos científicos de tal modo que eu possa concluir se um terrorista pode ou não causar um terremoto.

 — E você precisa encontrar essas pessoas do tal Martelo do Éden e prendê-las por fazer ameaças. Algum progresso nesta parte?

 Ela sacudiu a cabeça.

 — Mandei Raja entrevistar todo mundo da Campanha Califórnia Verde. Ninguém corresponde ao perfil de quem procuro. Ninguém tem ficha na polícia ou registro de atividades subversivas; na verdade, não há nada de suspeito lá.

 Bo aquiesceu.

 — Sempre foi improvável que os criminosos tivessem dito a verdade sobre quem eram. Mas não fique desencorajada. Você só está no caso há um dia e meio.

 — É verdade, mas isso deixa apenas dois dias inteiros até o prazo fatal. E eu tenho que ir na quinta-feira a Sacramento a fim de fazer um relatório para o gabinete do governador.

 — É melhor começar cedo amanhã — ele se levantou do sofá.

 Pai e filha subiram a escada. Judy parou na porta do seu quarto.

 — Lembra daquele terremoto, quando eu tinha seis anos?

 Ele fez que sim.

 — Não foi muito forte, pelos padrões da Califórnia, mas você ficou louca de medo.

 Judy sorriu.

 — Pensei que fosse o fim do mundo.

 — O tremor deve ter afetado um pouco a casa, porque a porta do seu quarto empenou, e eu quase quebrei o ombro na tentativa de derrubá-la.

 — Pensei que tivesse sido você quem fez cessar o terremoto. Acreditei nisso por muitos anos.

 — Depois do terremoto você passou a ter pavor daquela cômoda de que sua mãe gostava tanto. Não queria que ela continuasse na nossa casa.

 — Pensei que ela quisesse me comer viva.

 — No final transformei-a em lenha — subitamente Bo pareceu triste. — Gostaria de poder viver aqueles anos de novo.

 Ela sabia que ele estava pensando em sua mãe.

 — É — disse.

 — Boa noite, filha

 — Noite, Bo.

 Enquanto dirigia ao longo da Bay Bridge na manhã da quarta-feira, rumando para Berkeley, Judy foi especulando sobre a aparência de Michael Quercus. Seu jeito irritadiço sugeria um professor mal-humorado, de ombros caídos e usando roupa barata, olhando para o mundo, irritado, através de óculos que insistiam em escorregar pelo nariz. Ou podia ser também um figurão acadêmico, metido num terno de listras, procurando seduzir as pessoas que podiam doar dinheiro para a universidade e contemplando com desdém quem não lhe fosse útil.

 Parou o carro à sombra de uma magnólia na avenida Euclid. Ao tocar a campainha teve a sensação horrível de que ele podia encontrar outra desculpa para mandá-la embora, mas quando disse o nome ouviu um zumbido e a porta se abriu. Subiu dois lances de escada e viu que a porta estava aberta. Foi entrando. O apartamento era pequeno e barato. A firma dele não podia estar dando muito dinheiro. Passou por um vestíbulo e viu-se na sala de estar que era ao mesmo tempo escritório.

 Ele estava sentado à mesa, de calça cáqui, botas de caminhar bege e uma camisa pólo azul-marinho. Michael Quercus não era nem um professor mal-humorado, tampouco um figurão acadêmico, ela viu imediatamente. Ele era um gato: alto, atlético, bonito, com o sujeitos que são tão grandes, bonitos e confiantes que pensam que podem fazer tudo quanto querem.

 Ele também ficou surpreso.

 — Você é a agente do FBI? — perguntou.

 Ela apertou-lhe a mão com firmeza.

 — Estava esperando alguma outra pessoa?

 Michael Quercus deu de ombros.

 — Você não se parece com Efrem Zimbalist.

 Zimbalist era o ator que fazia o papel do inspetor Lewis Erskine numa antiga série de televisão chamada O FBI. Judy respondeu, delicadamente:

 — Trabalho como agente do FBI há dez anos. Pode imaginar o número de pessoas que já fez essa piada?

 Para sua surpresa, ele abriu um largo sorriso.

 — Tudo bem, você me pegou.

 Melhor assim.

 Ela reparou numa foto em um porta-retrato em cima da escrivaninha dele. Era de uma bela ruiva com uma criança nos braços. Geralmente todo mundo gosta de falar sobre os filhos.

 — Quem é? — arriscou ela.

 — Ninguém importante. Quer ir direto ao ponto? Esqueça as amabilidades.

 Ela tomou ao pé da letra o que ele dissera e falou:

 — Quero saber se um grupo terrorista pode desencadear um terremoto.

 — Vocês souberam de alguma ameaça?

 Sou eu quem deve fazer as perguntas.

 — Você não soube? Foi comentada no rádio. Ouve o programa de John Truth?

 Ele sacudiu a cabeça, negativamente.

 — É sério?

 — É exatamente o que preciso estabelecer.

 — OK. Bem, a resposta curta é sim.

 Judy sentiu um arrepio de medo. Quercus parecia absolutamente seguro. Quanto a ela, tinha esperado uma resposta diametralmente oposta.

 — Como?

 — Peque uma bomba nuclear, coloque no fundo de uma mina bem funda e detone. Mas você provavelmente quer uma hipótese mais realista.

 — Sim. Faça de conta que você quisesse desencadear um terremoto.

 — Oh, eu seria capaz mesmo.

 Judy perguntou-se se ele não estaria se vangloriando.

 — OK — ele abaixou-se e pegou embaixo da escrivaninha um pedaço pequeno de madeira e um tijolo comum. Obviamente mantinha aquilo ali justamente com a finalidade de ilustrar aquela explicação. Pôs a madeira em cima da escrivaninha e o tijolo em cima da madeira. Depois levantou uma ponta da madeira lentamente até que o tijolo escorregou e caiu em cima do tampo da mesa.

 — O tijolo desliza quando a gravidade suplanta a fricção que o mantinha imóvel — disse ele. — Tudo bem até aqui?

 — Claro.

 — Uma falha como a de Santo André é um lugar onde duas lâminas adjacentes da crosta terrestre deslocam-se em direções diferentes. Imagine dois icebergs se esfregando um no outro. Eles não deslizam, pelo contrário, ficam presos. Depois, enquanto estiverem presos, a pressão no sentido de separá-los vai aumentando lenta mas constantemente, ao longo dos anos.

 — E como isso resulta em um terremoto?

 — Acontece algo que libera toda a energia acumulada — ele levantou de novo uma ponta da madeira. Desta vez parou pouco antes do tijolo começar a escorregar. — Diversas seções da falha de Santo André estão assim? — prontas para deslizar, a qualquer década — Agora bata com a régua bem na frente do tijolo.

 Ela bateu e o tijolo começou a deslizar.

 Quercus agarrou-o, impedindo que caísse. — Quando a madeira está inclinada, basta uma batidinha com uma régua de plástico para fazer o tijolo mover-se. E num ponto onde a falha de Santo André estiver sob maior pressão, um empurrãozinho talvez seja o quanto baste para soltar as placas. Aí elas deslizam e toda a energia acumulada sacode a terra.

 Quercus podia ser ríspido, mas uma vez que começava a falar sobre a sua especialidade, dava prazer ouvi-lo. Seu pensamento era claro e ele explicava com facilidade, sem o mais leve traço de arrogância. A despeito do quadro ameaçador que estava pintando, Judy tinha de confessar que era prazeroso conversar com ele, não apenas por ser um homem bonito.

 — É isso que acontece na maioria dos terremotos?

 — Acredito que sim, embora outros sismólogos possam discordar. Há vibrações naturais que se propagam pela crosta terrestre de vez em quando. A maioria dos terremotos provavelmente é causada pela vibração certa no lugar adequado no momento oportuno.

 Como é que vou explicar tudo isso ao Sr. Honeymoon? Ele vai querer respostas diretas, sim ou não.

 — Então, como isso ajuda os nossos terroristas?

 — Eles precisam de uma régua e saber onde bater com ela.

 — Qual é o equivalente da régua na vida real? Uma bomba nuclear?

 — Não precisa nada tão poderoso. Só teriam que enviar uma onda de choque através da crosta terrestre, mais nada. Se souberem exatamente onde a falha é vulnerável, podem causar o terremoto com uma carga de dinamite colocada com precisão.

 — E qualquer um pode conseguir uma carga de dinamite, se estiver realmente a fim.

 — A explosão teria que ser subterrânea. Acho que a perfuração necessária para colocar a dinamite lá embaixo seria o grande desafio para um grupo terrorista.

 Judy perguntou-se se o tal trabalhador braçal imaginado por Simon Sparrow não seria operador de um equipamento de perfuração. Esses operadores certamente precisariam de uma licença especial para trabalhar. Numa rápida verificação com o Departamento de Veículos a Motor poderia conseguir uma lista de todos os operadores registrados na Califórnia. Não podia haver muitos.

 Quercus continuou.

 — Eles obviamente precisariam de um perito em equipamento de perfuração e um pretexto qualquer para conseguir permissão. Não eram problemas intransponíveis.

 — É realmente tão simples assim? — quis saber Judy.

 — Olha, não estou lhe dizendo que funcionaria. Estou dizendo que seria possível. Ninguém jamais saberá ao certo antes de tentar. Posso lhe dar noções de como essas coisas acontecem, mas você teria que se arriscar com uma avaliação própria.

 Judy concordou, balançando a cabeça. Usara quase as mesmas palavras na noite anterior para dizer a Bo o que precisava. Quercus podia agir como um panaca de vez em quando mas como o próprio Bo diria, todo mundo precisa de um panaca vez por outra.

 — Quer dizer então que saber onde a carga deve ser colocada é tudo?

 — É.

 — Quem tem essa informação?

 — As universidades, o geólogo do estado... eu. Todos nós temos essa informação.

 — Alguém pode se apossar dela?

 — Não é segredo, embora seja preciso algum conhecimento científico para interpretar os dados.

 — Então, alguém no grupo terrorista teria que ser sismólogo.

 — Sim, podia ser estudante.

 Judy pensou na mulher de cerca de trinta anos, instruída, que digitara a mensagem, segundo a teoria de Simon. Podia ser universitária. Quantos estudantes de geologia existiriam ali na Califórnia? Quanto tempo levaria para encontrar e entrevistar cada um?

 Quercus continuou:

 — E ainda existe um outro fator: as marés da crosta terrestre. Os oceanos se movem sob a influência gravitacional da Lua e a crosta sólida da Terra é sujeita às mesmas forças. Duas vezes por dia abre-se uma janela sísmica, quando a linha da falha está submetida à pressão extra das marés; é quando é mais provável — ou mais fácil — a ocorrência de um terremoto.

 — É possível que alguém tenha obtido esses dados por seu intermédio?

 — Bem, meu negócio é vendê-los — ele deu um sorriso melancólico. — Mas, como pode ver, meu negócio não está me enriquecendo. Tenho um contrato, com uma grande companhia de seguros, e é isto que paga o aluguel, mas, lamentavelmente, é só. Minhas teorias sobre janelas sísmicas fazem de mim uma espécie de dissidente, algo que é odiado neste país. O tom de irônico desdém voltado para si mesmo foi surpreendente, e Judy começou a gostar ainda mais dele.

 — Alguém pode ter conseguido essa informação sem o seu conhecimento. Por acaso você foi roubado nos últimos tempos?

 — Nunca.

 — Seus dados podem ter sido copiados por um amigo ou parente?

 — Acho que não. Ninguém fica aqui nesta sala sem que eu esteja presente.

 Ela pegou a foto na escrivaninha.

 — Sua mulher, ou namorada?

 Ele pareceu ficar aborrecido e tirou a foto da mão dela.

 — Estou separado de minha mulher e não tenho namorada.

 — É mesmo? — Judy já tinha tudo o que precisava dele, e levantou-se. — Muito obrigada por ter me concedido tanto tempo, professor.

 — Por favor, chame-me de Michael. Gostei de falar com você.

 Ela ficou surpresa.

 Ele acrescentou:

 — Você compreende depressa. Fica mais divertido.

 — Bem... que bom.

 Ele a acompanhou até a porta do apartamento e apertou-lhe a mão. Tinha mãos grandes, mas foi surpreendentemente gentil.

 — Qualquer coisa mais que queira saber, terei muito prazer em ajudá-la.

 Ela arriscou uma piada.

 — Desde que eu marque hora antes, certo?

 Ele não sorriu.

 — Certo.

 Atravessando a baía na volta, Judy concluiu que o perigo agora estava claro. O grupo terrorista, em princípio, era capaz de causar um terremoto. Seria preciso dispor de dados exatos sobre pontos críticos na linha da falha e talvez sobre as janelas sísmicas, mas isso poderia ser obtido. Era preciso que no grupo 7 houvesse alguém capaz de interpretar os dados. E precisavam também de um modo pelo qual enviassem ondas de choque através da terra. Seria a tarefa mais difícil, talvez, mas nada que estivesse fora de questão.

 Judy tinha diante de si a desagradável tarefa de dizer ao assistente do governador que a coisa toda era horrivelmente possível.

 

Priest acordou ao raiar do dia na quinta-feira.

 Ele geralmente acordava cedo, o ano todo. Não precisava de muito sono, a menos que estivesse indo muito a festas, o que era raro hoje em dia.

 Mais um dia.

 Do gabinete do governador não vinha nada senão um silêncio irritante. Agiam como se não tivesse havido ameaça. Assim como o resto do mundo, de um modo geral. O Martelo do Éden raramente era mencionado nos noticiários que Priest ouvia no rádio do carro.

 Apenas John Truth os levara a sério, e ficava instigando o governador em seu programa diário. Até a véspera, tudo o que o governador dizia era que o FBI estava investigando. Mas no último programa, John Truth dissera que o governador prometera uma declaração para hoje. Priest ficou entusiasmado. Mas se na declaração ele não cedesse à exigência feita, Priest teria que causar um terremoto. E não sabia ao certo se conseguiria.

 Melanie era convincente quando falava sobre a falha e o que seria preciso para ela deslizar. Só que ninguém jamais tentara aquilo. Mesmo ela, admitia que não podia estar cem por cento certa de que fosse funcionar. E se falhasse? E se funcionasse e eles fossem apanhados? E se funcionasse e ele morresse no terremoto — quem iria cuidar dos integrantes da comunidade e das crianças?

 Ele rolou sobre o próprio corpo. A cabeça de Melanie repousava no travesseiro ao seu lado. Estudou o seu semblante em repouso. A pele era muito branca e os seios quase transparentes. Uma mecha do cabelo comprido, castanho intenso, caía sobre o rosto. Ele abaixou um pouco o lençol e contemplou-lhe os seios, pesados e suaves. Pensou em acordá-la. Introduziu a mão sob a coberta e a acariciou, alisando primeiro a barriga e depois o triângulo de pêlos avermelhados. Ela se remexeu, engoliu, virou-se e se afastou.

 Priest sentou direito. Encontrava-se na casa de um único cômodo que tinha sido seu lar nos últimos vinte e cinco anos. Assim como a cama, tinha um sofá velho na frente da lareira e uma mesa a um canto, com uma grossa vela amarela, num castiçal. Não havia luz elétrica. Nos primeiros dias da comunidade, a maioria das pessoas morava em cabanas como aquela, e as crianças dormiam todas juntas em um alojamento coletivo. Mas com o passar dos anos, alguns casais permanentes tinham se formado e construído cabanas maiores, com cômodos separados para os filhos. Priest e Star conservaram suas casas individuais, mas a tendência era contrária. O melhor seria não lutar contra o inevitável: Priest aprendera isso com Star. Havia agora seis casas de família assim como as quinze cabanas originais. E atualmente a comunidade era constituída por vinte e cinco adultos e dez crianças, mais Melanie e Dusty. Uma cabana estava vazia.

 Aquele ambiente lhe era tão familiar quanto a palma da sua mão, mas ultimamente os objetos tão bem conhecidos tinham adquirido uma nova aura. Durante anos seus olhos passaram por eles sem registrá-los: o retrato de Priest pintado por Star pelo seu trigésimo aniversário; o narguilé rebuscadamente decorado deixado por uma garota francesa chamada Marie-Louise; a nada sólida prateleira que Flower fizera na aula de trabalhos na madeira; o engradado de frutas em que guardava sua roupa.

 Agora que sabia que podia ter que ir embora, cada coisa despretensiosa daquelas parecia especial e maravilhosa, e Priest sentia um nó na garganta só de olhar. Seu quarto era como um álbum de fotografias em que cada foto desencadeava uma série de lembranças: o nascimento de Ringo; o dia em que Smiler quase se afogou no rio; quando fez amor com as gêmeas Jane e Eliza; o dia de outono, quente e seco, quando colheram a primeira vindima; o sabor da safra de 89. Quando olhava à volta e pensava nas pessoas que queriam lhe tirar aquilo tudo, sentia-se tomado por uma raiva tão forte que o queimava por dentro como ácido sulfúrico.

 Pegou uma toalha, calçou as sandálias e saiu, nu. Spirit, seu cachorro, saudou-o com uma fungadela silenciosa. Era uma manhã clara e fria, com fiapos de nuvens altas no céu azul. O sol ainda não aparecera sobre as montanhas e o vale estava na sombra. Não havia mais ninguém por

perto.

 Descendo a colina, ele atravessou a pequena vila, seguido pelo cachorro. Embora o espírito comunal ainda fosse forte, as pessoas tinham personalizado suas casas com toques individuais. Uma mulher plantara flores e pequenos arbustos em toda a volta da sua, como conseqüência, Priest a batizara de Garden. Dale e Poem, que eram um casal, tinham deixado os filhos pintarem as paredes externas, e o resultado foi uma mixórdia colorida. Um homem chamado Slow, que era retardado, tinha construído uma varanda torta, sobre a qual se via uma oscilante cadeira de balanço feita em casa.

 Priest sabia que aquele lugar podia não ser bonito aos olhos de outras pessoas. Os caminhos eram lamacentos, as construções, além de muito frágeis, eram localizadas inteiramente ao acaso. Não havia uma lógica no zoneamento — o dormitório das crianças ficava bem do lado do depósito de vinho, a carpintaria situava-se no meio das cabanas. As privadas eram transferidas todos os anos, mas de nada adiantava: onde quer que estivessem situadas, podia sentir-se seu cheiro num dia quente. Mesmo assim, tudo o que dizia respeito àquele lugar aquecia o coração de

Priest. E quando olhava mais para longe e via as florestas galgando as encostas íngremes das montanhas até os picos azulados da Sierra Nevada, tinha uma vista tão bonita que doía.

 Mas agora, sempre que olhava para aquilo, a idéia de que podia perder tudo o feria com a força de uma punhalada.

 Ao lado do rio, um caixote de madeira em cima de uma pedra grande e arredondada continha sabão, lâminas baratas e um espelho de mão. Ele ensaboou o rosto e se barbeou, mergulhou na corrente fria e tomou banho.

 Secou-se logo depois, esfregando-se bruscamente com a toalha de pano áspero.

 Não tinham água encanada ali. No inverno, quando era frio demais para tomar banho no rio, tinham um banho comunal à noite duas vezes por semana. Aqueciam, então, grandes barris de água na cozinha coletiva para se lavarem uns aos outros: era bastante sexy. Mas no verão só bebês tinham água morna.

 Subiu de volta a colina e vestiu rapidamente a calça-jeans azul e a camisa de trabalho que sempre usava. Dirigiu-se à cozinha e entrou. A porta não estava trancada: não havia portas com fechadura na comunidade. Arrumou a lenha no fogão, acendeu o fogo e pôs a água do café para esquentar em seguida saiu de novo e Gostava de perambular enquanto os outros estavam deitados. Sussurrava seus nomes ao passar por onde moravam: Moon. Chocolate. Giggle. Imaginava cada um deitado lá dentro, dormindo. Apple, uma garota gorda, deitada de costas com a boca aberta, roncando; Juice e Alaska, duas mulheres de meia-idade, entrelaçadas; as crianças no alojamento infantil — os seus filhos, Flower, Ringo e Smiler; Dusty, o filho de Melanie; os gêmeos, Bubble e Chip, todos de bochechas rosadas e cabelo despenteado... Minha gente.

 Que possam todos viver aqui para sempre.

 Passou pela oficina, onde guardavam enxadas, foices e tesouras de poda; o círculo de concreto onde, em outubro, esmagavam as uvas com os pés e o celeiro onde o vinho da safra do ano anterior ficava em imensos tonéis de madeira, decantando lentamente, àquela altura quase pronto para ser misturado e engarrafado. Parou do lado de fora do templo.

 Sentiu-se muito orgulhoso. Desde o princípio tinham falado em construir um templo. Por muitos anos parecera um sonho impossível. Havia sempre muitas outras coisas para fazer — preparar a terra e plantar as videiras, construir celeiros, tratar da horta, da loja comunitária e das lições das crianças. Cinco anos atrás, no entanto, a comunidade pareceu ter atingido um platô. Pela primeira vez, Priest não se preocupou em saber se teriam ou não o que comer no inverno seguinte. Não achou mais que uma safra ruim pudesse acabar com eles. Não havia nada por fazer na lista de tarefas urgentes que trazia na cabeça. Assim, anunciou que estava na hora de construir o templo.

 E ali estava.

 Significava muito para Priest. Demonstrava que a sua comunidade tinha amadurecido. Não viviam mais da mão para a boca. Podiam se alimentar e ter tempo e recursos sobrando para construir um lugar de culto. Deixaram de ser um bando de hippies que experimentava viver um sonho. O sonho funcionava; tinham provado isto. O templo era o símbolo do triunfo deles.

 Ele entrou. Era uma estrutura simples de madeira com uma clarabóia e sem mobília. Todo mundo se sentava, para orar, de pernas cruzadas, em círculo, no chão de tábuas. Servia também como escola e sala de reuniões. A única decoração era uma faixa que Star fizera. Priest não era capaz de ler, mas sabia o que estava escrito:

 Meditação é vida, tudo mais é distração

 Dinheiro empobrece

 Casamento é a maior das infidelidades

 Quando ninguém tem nada todos têm tudo

 Fazer o que se gosta é a única lei

 Eram os Cinco Paradoxos de Baghram. Priest dissera que os aprendera com um guru indiano de quem fora discípulo em Los Angeles, mas na verdade ele tinha inventado todos os cinco. Nada mau para um sujeito que não sabe ler.

 Parou no centro do salão por diversos minutos, olhos fechados, as mãos balançando soltas ao lado do corpo, concentrando sua energia. Não havia nada de insincero naquilo. Ele aprendera técnicas de meditação com Star, e a coisa realmente funcionava. Sentiu a mente clarear como vinho nos tonéis ao decantar as impurezas. Orou para que o coração do governador Mike Robson se abrandasse e ele anunciasse a suspensão da construção de novas usinas de eletricidade na Califórnia.

 Imaginou o governador, um homem bonito em seu terno escuro e camisa branca, sentado em uma cadeira de couro atrás de uma mesa imponente, e, em sua visão, o governador disse: "Decidi dar a essas pessoas o que elas querem — não apenas para evitar um terremoto, mas porque, seja como for, faz sentido."

 Após alguns minutos, a força espiritual de Priest estava renovada. Ele sentiu-se alerta, confiante e equilibrado.

 Quando saiu do templo, resolveu dar uma olhada nos parreirais. Originalmente não havia uvas. Quando Star chegou no vale não havia nada senão uma cabana de caça em ruínas. Por três anos a comunidade arrastou-se de crise em crise, cindida pelas brigas arrasada pelas borrascas, sustentada apenas por expedições à cidade para pedir esmolas.

 Foi preciso menos de um ano para Priest ser reconhecido como líder, no mesmo plano que Star. Primeiro ele organizou as viagens para esmolar de modo a obter o máximo de eficiência. Iam para uma cidade como Sacramento ou Stockton em uma manhã de sábado, quando as ruas estavam coalhadas de gente fazendo compras. Cada um era destinado a uma esquina diferente.

 Todos eram obrigados a ter uma história para contar: Aneth dizia que precisava completar o dinheiro da passagem de ônibus para a casa dos pais, em Nova York; Song tocava o violão e cantava "There but for Fortune"; Slow devia dizer que não comia havia três dias; Bones fazia com que as pessoas sorrissem diante de um cartaz que dizia: "Por que mentir? É para a cerveja."

 Mas mendigar foi apenas um expediente temporário. Sob a direção de Priest, os hippies cortaram uma série de terraços na encosta da montanha, desviaram um regato para irrigação e plantaram um parreiral. Agora o chardonnay deles era procurado pelos conhecedores.

 Priest seguiu ao longo das fileiras cuidadosamente cultivadas. Ervas e flores eram plantadas entre as videiras, em parte por serem úteis e bonitas, mas principalmente por atraírem joaninhas e vespas que destruíam pulgões e outros insetos nocivos.

 Não eram usados produtos químicos: eles confiavam nos métodos naturais. Cultivavam trevo também, pois fixava o nitrogênio do ar. E quando aravam o solo, agia como fertilizante natural.

 As videiras estavam brotando. Maio ia chegando ao fim, de modo que o perigo anual de que o frio matasse os novos brotos passara. Àquela altura do ciclo, a maior parte do trabalho consistia em amarrar os brotos às latadas a fim de orientar seu crescimento e prevenir os danos causados pelo vento.

 Priest aprendera o que sabia sobre vinho durante seus anos de atacadista de bebidas, e Star estudara o assunto nos livros, mas ambos não teriam conseguido êxito sem o velho Raymond Dellavalle, um amável produtor de vinho que os ajudara porque, pelo menos era este o palpite de Priest, gostaria de ter tido uma juventude mais audaciosa.

 O vinhedo de Priest salvara a comunidade, mas a comunidade salvara a vida de Priest. Ele chegara ali como fugitivo escapando da Máfia, da polícia de Los Angeles e do Imposto de Renda, todos juntos. Abusava da bebida e da cocaína, era um homem só, falido e com tendências suicidas.

 Fora de carro pela estrada de terra procurando a comunidade, seguindo algumas orientações de um sujeito que viajava pegando carona e chegara entre as árvores até encontrar um bando de hippies nus, sentados no chão, cantando.

 Ficara contemplando a cena por muito tempo, fascinado pelo mantra e pela sensação de calma profunda que se desprendia do grupo como a fumaça se levantada uma fogueira.

 Um ou dois sorriram para ele, mas continuaram o ritual. Priest acabara tirando a roupa, lentamente, como se estivesse em transe, jogando fora o terno escuro, a gravata rosa, os sapatos plataforma e a cueca tipo sunga vermelha e branca. Depois, nu, sentara-se com eles.

 Ali encontrara paz, uma nova religião, trabalho, amigos. Numa época em que estava pronto a se lançar com o Plymouth Cuda 440-6 amarelo de um despenhadeiro, a comunidade dera sentido à sua vida.

 Agora nunca mais haveria outro tipo de existência para ele. Aquele lugar era tudo o que tinha e Priest morreria para defendê-lo. E pode ser que eu tenha mesmo de morrer.

 Ouviria John Truth à noite. Se o governador fosse abrir a porta para negociações ou fizesse qualquer outra concessão, certamente que seria anunciado ao final do programa.

 Quando saiu na outra ponta do vinhedo, decidiu verificar o vibrador sísmico.

 Subiu a montanha. Não havia estrada, só uma trilha bem usada atravessando a floresta. Seria impossível que qualquer veículo fosse até a aldeia da comunidade. A uns seiscentos metros das casas, ele chegou numa clareira lamacenta. Estacionados sob as árvores estavam o seu velho OCuda, uma Kombi ainda mais velha, o Subaru laranja de Melanie e a picape da comunidade, um Ford Ranger verde-escuro. A partir dali uma trilha de terra, sinuosa, avançava pouco mais de três quilômetros através da floresta, subindo e descendo as elevações, desaparecendo dentro de um lamaçal aqui e passando por um regato ali até que por fim chegava à estrada do condado, com piso de asfalto e duas pistas. Dezesseis quilômetros era a distância a até a cidade mais próxima, Silver City.

 Uma vez por ano toda a comunidade passava um dia inteiro rolando barris de vinho morro acima e por entre as árvores até aquela clareira, onde seriam transportados no caminhão de Paul Beale para sua engarrafadora em Napa. Era um grande dia no calendário deles, que, com um banquete à noite e um feriado no dia seguinte, celebravam mais um ano bem-sucedido. A cerimônia se realizava oito meses depois da vindima, de modo que deveria acontecer em mais alguns dias. Este ano, Priest resolvera, dariam a festa no dia seguinte ao dia em que o governador suspendesse a sentença condenando o vale.

 Em troca do vinho, Paul Beale trazia gêneros alimentícios para a cozinha coletiva e mantinha a loja comunitária estocada: roupas, doces e balas, cigarros, papelaria, livros, absorventes, pasta de dentes, tudo de que qualquer pessoa precisasse. O sistema da contabilidade, e no fim de cada ano depositava o dinheiro que sobrava numa conta bancária de cuja existência só Star e Priest tinham conhecimento.

 Da clareira, Priest seguiu a trilha por mil e quinhentos metros, bordejando as poças de água da chuva e ultrapassando, com dificuldade, os troncos caídos, depois desviando-se para continuar por um caminho invisível por entre as árvores. Não havia marcas de pneus porque ele tinha cuidadosamente recolocado o tapete de agulhas de pinheiro que formavam o chão da floresta. Chegou a uma depressão e parou. Tudo o que podia ver era uma pilha de arbustos e galhos quebrados fazendo um monte de quase quatro metros de altura, arrumada de modo a lembrar uma fogueira tradicional. Agora só tinha que galgar a pilha e afastar um pouco os galhos para confirmar se o caminhão ainda se encontrava ali, sob a camuflagem.

 Não que achasse que viria alguém procurar o caminhão.

 O Ricky Granger, que fora contratado para trabalhar com geofones pela Ritkin Seismex em um campo petrolífero no sul do Texas, não tinha nenhuma ligação passível de ser rastreada com aquele remoto parreiral no condado de Sierra, estado da Califórnia. No entanto, de vez em quando acontecia de uma dupla de mochileiros se perder e vagar pela terra da comunidade — como acontecera com Melanie — e com certeza se qualquer pessoa visse um caminhão com um equipamento tão caro ali iria estranhar.

 Por este motivo, Priest e Os Comedores de Arroz se mataram de trabalhar durante duas horas para esconder o caminhão. Priest sentia-se absolutamente seguro de que não poderia ser visto nem de cima. Descobriu uma roda e chutou o pneu, exatamente como um cético comprador de carro usado. Tinha matado um homem por causa daquele veículo. Pensou por um instante na bonita mulher e nos filhos de Mario sem saber se já teriam se convencido de que ele nunca mais voltaria para casa. Em seguida tirou este pensamento da cabeça.

 Queria ter certeza de que o caminhão estaria pronto para sair no dia seguinte de manhã. Ficava nervoso só de olhar. Sentia ímpetos de sair imediatamente, hoje, agora, só para aliviar a tensão. Mas anunciara um prazo fatal e o tempo seria um fator importante. Aguardar era insuportável. Pensou em entrar e ligar o motor, só para se assegurar de que tudo estava certo; mas seria tolice. Aquilo era nervosismo burro.

 O caminhão estava legal. O melhor que fazia era afastar-se e só voltar no dia seguinte. Abriu outro pedaço da camuflagem e contemplou o prato de aço que martelava a terra. Se o esquema de Melanie funcionasse, a vibração desencadearia um terremoto. Havia uma espécie de justiça pura no plano. Usariam a energia armazenada pela terra para forçar o governador a cuidar do meio ambiente. A terra salvando a terra. Para Priest, tão justo, tão certo, que chegava a ser quase sagrado.

 Spirit deu um latido baixo, como se tivesse ouvido alguma coisa. Devia ser um coelho, mas Priest recolocou nervosamente os galhos e iniciou o caminho de volta. Seguiu o caminho por entre as árvores até a trilha e tomou a direção da aldeia. Parou no meio da trilha, espantadíssimo. Na ida passara por cima de um tronco caído. O mesmo tronco agora fora removido para o lado. Spirit não latira para nenhum coelho.

 Havia mais alguém por ali. Ele não ouvira nada, mas os sons eram rapidamente abafados pela vegetação densa. Quem era? Alguém o seguira? Será que o tinham visto examinando o vibrador sísmico?

 Quando tomou o caminho de casa, Spirit ficou agitado. Quando chegaram a um ponto de onde podiam ver o estacionamento, Priest soube por quê. No meio da clareira lamacenta, estacionado ao lado do seu `Cuda, havia um carro da polícia. O coração de Priest parou.

 Tão cedo! Como podiam tê-lo seguido com tanta rapidez?

 Fixou a vista no carro-patrulha.

 Era um Ford Crown Victoria com uma faixa verde pintada na lateral, uma estrela prateada de seis pontas na porta, quatro antenas e um giroscópio no teto com luzes de três cores: azul, vermelha e laranja.

 Calma. Tudo passa.

 A polícia talvez não estivesse ali por causa do vibrador. Podia ter seguido a trilha por simples curiosidade: nunca acontecera antes, mas era possível. Havia montes de outras razões possíveis. Podia estar procurando um turista que se perdera. Um auxiliar do xerife podia estar procurando um lugar secreto para se encontrar com a mulher do vizinho.

 Podia ser que a polícia nem soubesse que havia uma comunidade ali. E talvez nem precisasse saber. Se se enfiasse de novo na floresta... Tarde demais. No mesmo instante em que a idéia entrou na sua cabeça, um policial saiu de trás de uma árvore.

 Spirit latiu furiosamente.

 — Quieto! — ordenou Priest, e o cachorro ficou em silêncio. O policial usava o uniforme cinza-esverdeado de ajudante de xerife, com uma estrela no bolso esquerdo da jaqueta, chapéu de caubói e uma arma no cinto.

 Ele viu Priest e acenou.

 Priest hesitou, mas acabou levantando a mão vagarosamente e acenando também. Depois, relutante, dirigiu-se para o carro. Priest odiava policiais. Em sua maioria eram truculentos, ladrões, e psicopatas. Usavam o uniforme e a posição para ocultar o fato de que eram criminosos piores que as pessoas a quem prendiam. Mas ele se obrigaria a ser polido, exatamente como se fosse um suburbano rico e idiota que imagina que a polícia existe para protegê-lo. Respirou com calma, relaxou os músculos do rosto, sorriu e disse:

 — Oi.

 O policial estava sozinho. Era jovem, devia ter, talvez, vinte e cinco ou trinta anos, cabelo castanho-claro-curto. O corpo dentro do uniforme já era volumoso; em mais dez anos teria uma barriga proeminente.

 — Há residências aqui perto? — perguntou o policial.

 Priest sentiu-se tentado a mentir, mas à última hora achou que era muito arriscado. O policial tinha que andar apenas uns quatrocentos metros na direção certa para dar com as casas, e ficaria desconfiado ao descobrir a mentira. Por isso Priest disse a verdade.

 — Você não está longe da Vinícola Silver River.

 — Nunca ouvi falar.

 Não por acaso. No catálogo telefônico, o endereço e o número eram os de Paul Beale, em Napa. Nenhum dos integrantes da comunidade era registrado para votar. Nenhum pagava imposto, porque ninguém tinha renda. Eles sempre tinham sido muito reservados. Muitos dos integrantes da comunidade, contudo, tinham uma razão para se esconder.

 Alguns tinham dívidas, outros eram procurados pela polícia. Oaktree era desertor, Song fugira de um tio que abusara dela sexualmente e o marido de Aneth a espancara, jurando que se ela o deixasse iria encontrá-la onde quer que estivesse escondida.

 A comunidade sempre fora também um asilo, e alguns dos seus integrantes mais recentes também eram fugitivos. A única maneira pela qual alguém podia saber da sua existência era por intermédio de pessoas como Paul Beale, que vivera ali por algum tempo e retornara para o mundo lá fora, mas todos tinham muito cuidado em não divulgar o segredo. Nunca a polícia fora ali.

 — Como é que eu nunca ouvi falar deste lugar? — exclamou o policial. — Trabalho aqui há dez anos.

 — É muito pequeno — sugeriu Priest.

 — Você é o proprietário?

 — Não, só um trabalhador.

 — O que é que vocês fazem aqui, fabricam vinho?

 Puxa vida, um gigante intelectual.

 — É, isso mais ou menos resume tudo — o policial não percebeu a ironia e Priest continuou: — O que o traz aqui de manhã tão cedo? Não temos um crime aqui desde que Charlie tomou um porre e votou no Jimmy Carter.

 Priest sorriu. Não havia Charlie algum: só estava tentando fazer o tipo de piada que um policial talvez gostasse. Mas aquele permaneceu sério.

 — Estou procurando os pais de uma menina que diz se chamar Flower.

 Um medo terrível apoderou-se de Priest e de repente ele sentiu-se tão frio quanto um túmulo.

 — Oh, meu Deus, o que foi que aconteceu?

 — Ela está presa.

 — Ela está bem?

 — Não sofreu qualquer ferimento ou contusão, se é isso que está querendo dizer.

 — Graças a Deus. Pensei que você fosse dizer que tinha se envolvido em algum acidente — o cérebro de Priest começou a se recuperar do choque. -Como é que ela pode estar na cadeia? Pensei que estivesse aqui, dormindo!

 — Obviamente não está. Qual é o seu relacionamento com ela?

 — Sou seu pai.

 — Então vai ter que me acompanhar até Silver City.

 — Silver City? Há quanto tempo ela está lá?

 — Foi só esta noite. Não queríamos detê-la por tanto tempo, mas a princípio ela se recusou a nos dizer qual era o seu endereço. Só cedeu há mais ou menos uma hora.

 O coração de Priest afligiu-se de pensar na sua garotinha presa, tentando guardar o segredo da comunidade. Seus olhos encheram-se de lágrimas. O policial prosseguiu:

 — Mesmo assim, isto aqui foi muito difícil de achar. No fim, o que resolveu foram as instruções dadas por um bando de caras esquisitos armados a uns oito quilômetros daqui.

 Priest balançou a cabeça.

 — Los Alamos.

 — Isso mesmo. Tinha lá um cartaz grande dizendo: "Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos." Panacas.

 — Conheço eles — disse Priest. Eram elementos de extrema direita que tinham se apossado de uma casa de fazenda grande e velha em uma área isolada e agora a guardavam com armas de grosso calibre e sonhavam com rechaçar uma invasão dos chineses. Lamentavelmente eram os vizinhos mais próximos da comunidade.

 — Por que Flower está presa? Fez alguma coisa de errado?

 — É a causa usual — respondeu o policial, sarcasticamente.

 — O que foi que ela fez?

 — Foi presa roubando uma loja.

 — Uma loja? — Por que uma criança com acesso a uma loja onde podia pegar o que quisesse ia querer fazer uma coisa dessas? — O que foi que ela roubou?

 — Uma fotografia grande e colorida de Leonardo DiCaprio.

 

 Priest teve vontade de dar um soco na cara do policial, mas isto não teria ajudado Flower, e assim, ao invés de bater, agradeceu ao sujeito por ter ido procurá-lo e prometeu que ele e a mãe de Flower iriam procurar o xerife dentro de uma hora, a fim de apanhar a filha. Satisfeito, o policial foi embora.

 Priest dirigiu-se para a cabana de Star, que funcionava também como clínica da comunidade. Star não tinha treinamento formal na área de saúde, mas aprendera muito com o pai médico e a mãe enfermeira. Já quando garota, acostumara-se com emergências médicas e chegara inclusive a ajudar na realização de partos. O quarto dela era cheio de caixas de ataduras, frascos de ungüentos, aspirinas, remédios para tosse e contraceptivos.

 Quando Priest acordou-a e lhe deu a má notícia, ela teve um ataque histérico. Star odiava a polícia quase tanto quanto ele. Nos anos 60 fora espancada por policiais em demonstrações, comprara droga de péssima qualidade nas mãos de agentes da Narcóticos disfarçados, e, certa ocasião, fora estuprada por detetives dentro de uma delegacia. Saltou da cama berrando e começou a agredi-lo. Priest segurou-lhe os pulsos e tentou acalmá-la.

 — Temos que sair agora e tirá-la de lá! — gritou Star.

 — Certo — concordou ele. — Mas se vista primeiro, está bem?

 Ela parou de lutar.

 — Está bem.

 Enquanto Star vestia a calça-jeans ele disse:

 — Você me contou que foi presa aos treze anos.

 — É, e um sargento velho e sujo com um cigarro pendurado no canto da boca pôs as mãos nos meus peitos e disse que eu ia ser uma mulher gostosa.

 — Não vai ajudar Flower se você entrar lá furiosa e for presa também — argumentou ele.

 Ela conseguiu se controlar.

 — Tem razão, Priest. Pelo bem dela, temos que cair nas boas graças daqueles filhos da puta — ela penteou o cabelo e olhou-se num espelhinho. — Tudo bem. Estou pronta para engolir minha cota de sapos.

 Priest sempre acreditara que era melhor vestir-se convencionalmente ao tratar com a polícia. Acordou Dale e pegou com ele o velho terno azul-marinho. Era propriedade coletiva agora, e Dale o usara recentemente para ir ao tribunal quando a mulher a quem deixara vinte anos antes finalmente decidira divorciar-se dele. Priest vestiu o terno por cima da camisa de trabalho e colocou a gravata rosa e verde, já com vinte e cinco anos de idade. Como os sapatos tinham acabado havia muito tempo, calçou de novo as sandálias e, junto com Star, foi pegar o `Cuda.

 Quando chegaram na estrada, Priest perguntou:

 — Como é que pode não termos percebido que ela não estava em casa ontem à noite?

 — Fui dizer boa-noite, mas Pearl me disse que ela tinha ido à privada.

 — Foi o que ela me disse também! Pearl deve ter sabido o que aconteceu e quis protegê-la.

 Pearl, filha de Dale e Poem, tinha doze anos de idade e era a melhor amiga de Flower.

 — Voltei mais tarde, mas todas as velas estavam apagadas e o alojamento estava às escuras. Não quis acordá-las. Jamais imaginei...

 — E por que deveria? A danada da menina passou todas as noites de sua vida no mesmo lugar — não havia razão para pensar que estivesse fora.

 Entraram em Silver City. O escritório do xerife ficava ao lado do tribunal e tinha o saguão melancolicamente decorado com recortes amarelados de crimes antigos. Havia uma mesa de recepção atrás de um guichê com um aparelho de intercomunicação, e uma cigarra. Um policial de camisa cáqui e gravata verde perguntou:

 — Em que posso ajudá-los?

 Foi Star quem falou:

 — Meu nome é Stella Higgins e você está com minha filha aqui.

 O policial fechou a cara para eles. Priest imaginou que os estivesse avaliando, querendo descobrir que tipo de pais eles eram. Logo pedia licença (Só um momento, por favor) e desaparecia. Priest falou com Star em um tom bem baixo.

 — Acho que deveríamos nos comportar como cidadãos responsáveis e obedientes à lei, alarmados porque a filha foi presa. Não temos nada senão um respeito profundo por quem trabalha para fazer com que a lei seja obedecida. Lamentamos muito por ter causado problema para gente que trabalha tanto.

 — Deixe comigo — disse Star, muito tensa.

 Uma porta abriu-se e o policial da recepção fez com que entrassem.

 — Sr. e Sra. Higgins — disse ele. Priest não o corrigiu. Sigam-me, por favor.

 Ele os levou até uma sala de reuniões acarpetada de cinza e com uma insípida mobília moderna, onde Flower esperava. Ela ia ser formidável e voluptuosa como a mãe, mas aos treze anos era uma garota alta, magra e desajeitada. Estava emburrada e chorosa ao mesmo tempo. Mas parecia sã e salva. Star abraçou-a em silêncio e depois Priest fez o mesmo.

 — Querida, você passou a noite na cadeia? — perguntou Star.

 Flower sacudiu a cabeça.

 — Numa casa.

 O policial explicou.

 — A lei da Califórnia é muito rígida. Menores de idade não podem ficar presos sob o mesmo teto que criminosos adultos. Por isso, temos na cidade algumas pessoas dispostas a dar abrigo a transgressores menores.

 Flower dormiu na casa da Srta. Waterlow, uma professora que, por acaso, é irmã do xerife. Priest dirigiu-se a Flower.

 — Foi tudo bem lá?

 A criança balançou a cabeça, indiferente.

 Ele começou a se sentir melhor. Diabos, podem acontecer coisas piores às crianças.

 O policial pediu que eles se sentassem:

 — Sentem-se, por favor, Sr. e Sra. Higgins. Sou o encarregado de vigiar os delinqüentes primários cujas penas foram suspensas e faz parte do meu trabalho cuidar dos transgressores juvenis.

 Eles se sentaram.

 — Flower é acusada de roubar um pôster no valor de $9,99 de uma loja de discos, a Silver Disc Music Store.

 Star virou-se para a filha.

 — Não consigo entender isso — falou. — Por que você iria roubar um pôster de um maldito artista de cinema?

 Flower de repente encontrou sua voz.

 — Foi porque eu quis, certo? Foi porque eu quis! — e desatou a chorar.

 Priest dirigiu-se ao policial.

 — Nós gostaríamos de levar nossa filha para casa o mais cedo possível. O que precisamos fazer?

 — Sr. Higgins, devo lembrar-lhe que a penalidade máxima para o que Flower fez seria a prisão até completar vinte e um anos.

 — Jesus Cristo! — exclamou Priest.

 — Eu, no entanto, não daria uma punição tão dura para uma primeira violação da lei. Digam-me uma coisa, Flower já esteve metida em encrenca antes?

 — Nunca.

 — Vocês estão surpresos com o que ela fez?

 — Estamos.

 — Nós estamos estupefatos — disse Star.

 O policial fez perguntas sobre a vida doméstica deles, tentando estabelecer se Flower era bem cuidada. Priest respondeu à maioria das perguntas, dando a impressão de que eram simples trabalhadores agrícolas. Nada falou sobre a vida em comunidade que levavam ou sobre suas crenças. O policial quis saber onde Flower estudava, e Priest explicou que havia uma escola na vinícola para os filhos dos trabalhadores.

 As respostas pareceram satisfazê-lo. Flower teve que assinar uma promessa de aparecer na corte em quatro semanas, às dez horas da manhã. O policial pediu para que um dos pais assinasse também, e Star fez o que ele pediu. Não tiveram que pagar fiança. Estavam fora em menos de uma hora.

 Uma vez na calçada, Priest dirigiu-se à filha:

 — Isto não faz de você uma má pessoa, Flower. Fez uma burrice, mas continuamos amando você tanto quanto sempre a amamos. Só quero que se lembre disso. E falaremos sobre o que aconteceu quando chegarmos em casa.

 Voltaram, então, para o vale. Durante algum tempo, Priest não conseguira pensar em outra coisa que não fosse a integridade física da filha, mas agora que a tinha de volta, começou a refletir sobre as implicações mais amplas de sua prisão. A comunidade jamais atraíra a atenção da polícia. Não havia furtos, porque eles não reconheciam a existência da propriedade privada. Às vezes havia brigas a socos, mas os próprios moradores resolviam estas situações. Ninguém morrera ali — nunca. Não tinham telefone para ligar para a polícia. Não desobedeciam à leis, exceto as referentes a drogas, e mesmo assim eram discretos quanto a isto. Mas agora o lugar fora colocado no mapa. E no pior momento possível para que isto acontecesse. Priest, contudo, não podia fazer nada a este respeito, exceto ser mais cauteloso.

 Resolveu não culpar Flower. Na idade dela era ladrão profissional, com uma folha corrida já com três anos. Se algum pai era capaz de entendê-la, era ele.

 Ligou o rádio do carro. A cada hora certa havia um boletim de notícias. A última foi sobre a ameaça do terremoto.

 — O governador Mike Robson encontra-se com agentes do FBI na manhã de hoje a fim de discutir sobre o grupo terrorista O Martelo do Éden, que ameaçou causar um terremoto disse o locutor. — Um porta-voz do Bureau falou que todas as ameaças são levadas a sério mas que não faria nenhum comentário antes da reunião. O governador faria seu pronunciamento depois de se reunir com o FBI, foi o palpite de Priest. Gostaria que a estação de rádio tivesse dado a hora da reunião.

 Metade da manhã tinha se passado quando chegaram em casa. O carro de Melanie desaparecera do círculo do estacionamento: ela levara Dusty para passar o fim de semana com o pai em San Francisco.

 Havia um ar contido por toda a parte. Um grupo arrancava ervas daninhas no parreiral, trabalhando sem os cantos e risos costumeiros. Do lado de fora da cabana da cozinha Holly, a mãe dos outros dois filhos de Priest — Ringo e Smiler fritava cebolas de cara fechada, enquanto Slow, sempre sensível ao ambiente que o cercava parecia assustado ao colher batatas na horta. Até mesmo Oaktree, o carpinteiro, parecia quieto, debruçado sobre a bancada, serrando uma tábua. Quando viram Priest e Star retornando com Flower, todos foram encerrando suas tarefas e se dirigindo para o templo. Quando havia uma crise sempre se reuniam para discutir. Se fosse uma questão menor, podia esperar até o fim do dia, mas aquilo era importante demais para ser adiado.

 No caminho para o templo, Priest e família foram interceptados por Dale e Poem, com a filha deles, Pearl.

 Dale, um homem baixo de cabelo curto e bem penteado era a pessoa mais convencional do grupo. Tinha uma importância enorme por ser perito na fabricação de vinho e controlar a mistura da safra de cada ano. Mas Dale às vezes tratava a comunidade como se fosse apenas uma aldeia como as outras. Dale e Poem tinham sido o primeiro casal a construir uma cabana para a família.

 Poem, com a pele escura e sotaque francês, era do gênero meio selvagem — Priest sabia, já que dormira com ela muitas vezes — mas com Dale tornara-se meio domesticada. Ela era uma das poucas pessoas que talvez pudesse se reajustar à vida normal se tivesse que sair dali. Priest achava que a maioria não conseguiria; muitos terminariam na cadeia, em asilos ou mortos.

 — Tem uma coisa pra vocês verem — disse Dale.

 Priest notou uma rápida troca de sinais entre as garotas. Flower dardejou um olhar acusador para Pearl, que fez cara de assustada e culpada.

 — O que será agora? — exclamou Star.

 Dale levou todos para a cabana vazia. Atualmente era usada como local de estudo pelas crianças mais velhas. Havia em seu interior uma mesa rústica, algumas cadeiras e um armário com livros e lápis. O teto tinha um alçapão que dava num espaço apertado sob o telhado. O alçapão estava aberto e havia uma escada colocada sob ele. Priest teve a horrível sensação de que sabia o que estava por vir.

 Dale acendeu uma vela e subiu a escada. Priest e Star o seguiram. No espaço entre o teto e o telhado ele viu o esconderijo secreto das meninas, iluminado pela vela trêmula: uma caixa cheia de jóias baratas, pinturas, roupas da moda e revistas de adolescentes.

 Priest murmurou:

 — Todas as coisas que ensinamos que considerassem sem valor.

 — Elas têm ido de carona para Silver City. Três vezes nas últimas quatro semanas. Levam estas roupas e trocam pelos jeans e camisas de trabalho quando chegam lá — disse Dale.

 Star quis saber:

 — O que elas fazem lá?

 — Andam pelas ruas, falam com os garotos e roubam as lojas.

 Priest enfiou a mão na caixa e puxou uma camiseta estreita, azul com uma faixa cor de laranja. Era feita de náilon, muito fininha e vagabunda. O tipo de roupa que ele desprezava: não dava calor nem proteção e nada fazia senão cobrir a beleza do corpo humano com uma camada de feiúra.

 Com a camiseta na mão, ele desceu pela escada. Star e Dale o seguiram. As duas garotas pareciam mortificadas.

 Priest disse:

 — Vamos para o templo discutir isto com o grupo.

 Quando lá chegaram, todos já tinham se reunido, inclusive as crianças. Sentados no chão, pernas cruzadas, esperavam. Priest sentou no meio, como sempre. Em teoria, as discussões eram democráticas, e a comunidade não tinha líderes, mas na prática ele e Star dominavam todas as reuniões. Priest conduzia o diálogo para o resultado que desejava, geralmente mais pelas perguntas que fazia do que por externar seu ponto de vista. Se gostava de uma idéia, encorajava a discussão dos seus benefícios; se queria esmagar uma proposta, perguntava como podiam ter certeza de que aquilo daria certo. E se na reunião todos estivessem contra ele, fingia ter se convencido e depois subvertia a decisão.

 — Quem quer começar? — perguntou Priest.

 Aneth apresentou-se. Era um tipo maternal, com uns quarenta e tantos anos e acreditava mais em compreender do que em condenar. Ela disse:

 — Talvez Flower e Pearl devessem começar contando para nós o motivo pelo qual queriam ir para Silver City.

 — Para conhecer gente — retrucou Flower, desafiadora. Aneth sorriu.

 — Você está querendo dizer, rapazes?

 Flower encolheu os ombros. Aneth prosseguiu:

 — Bem, acho que isso é compreensível... mas por que tiveram que roubar?

 — Para ficar bonitas.

 Star deu um suspiro exasperado.

 — O que há de errado com suas roupas comuns?

 — Mamãe, vê se fala a sério — disse Flower, sarcasticamente.

 Star adiantou-se um pouco e deu-lhe uma bofetada. Flower deu um grito sufocado. Apareceu uma marca vermelha no seu rosto.

 — Não se atreva a falar comigo desse jeito — disse Star. Você acaba de ser apanhada roubando e tive que tirá-la da cadeia, pois então não fale comigo como se eu é que fosse burra. Pearl começou a chorar. Priest suspirou. Devia ter previsto aquilo. Não havia nada de errado com as roupas da loja comunitária. Tinham jeans em três cores, azul, preto ou bege. Camisas de trabalho feitas de pano grosso; camisetas brancas, cinzentas, vermelhas e amarelas; sandálias e botas; suéteres pesados de lã para o inverno; capas impermeáveis para trabalhar na chuva. Mas as mesmas roupas eram usadas por todos e havia muitos anos. Claro que as crianças queriam algo diferente. Trinta e cinco anos antes Priest roubara uma jaqueta dos Beatles de uma butique chamada Rave na rua San Pedro.

 Poem dirigiu-se para a filha:

 — Pearl, chérie, você não gosta de suas roupas?

 Entre soluços, ela disse:

 — Nós queríamos ficar parecidas com Melanie.

 — Ah — fez Priest, e sacou tudo.

 Melanie ainda usava as roupas que trouxera: tops parcimoniosos que mostravam a barriga, minissaias e shorts bem curtos, sapatos nada convencionais e bonés bonitinhos. Parecia chique e sexy. Não era de espantar que as meninas a tivessem tomado por modelo.

 Dale disse:

 — Precisamos conversar sobre Melanie — ele parecia apreensivo. A maioria dos integrantes da comunidade receava dizer qualquer coisa que pudesse ser vista como uma crítica a Priest.

 Priest caiu na defensiva. Fora ele quem trouxera Melanie e era seu amante. E ela era crucial para o plano. Melanie era a única capaz de interpretar os dados constantes do disco de Michael, que agora fora copiado no seu laptop. Priest não podia deixar que se virassem contra ela.

 — Nunca fazemos as pessoas que se juntam a nós trocar de roupa — disse. — Elas usam primeiro suas coisas velhas, tem sido sempre esta a regra.

 Foi Alaska quem falou a seguir. Antiga professora, viera para a comunidade com sua amante, Juice, dez anos antes, depois de terem sido repudiadas na cidadezinha onde moravam por serem lésbicas.

 — Não são apenas as roupas — disse Alaska. — Ela não trabalha muito — Juice balançou a cabeça para manifestar sua concordância.

 Priest argumentou:

 — Eu a vi na cozinha, lavando pratos e assando biscoitos.

 Alaska parecia assustada, mas persistiu.

 — Algumas leves tarefas domésticas. Ela não trabalha no parreiral. Melanie é uma passageira, Priest.

 Star viu Priest começar a ser atacado e veio em seu auxilio.

 — Tivemos muita gente assim. Lembra como Holly era no princípio?

 Holly fora um pouco como Melanie, uma garota bonita, que primeiro se sentira atraída por Priest e depois pela comunidade.

 Holly sorriu, pesarosa.

 — Admito. Eu era preguiçosa. Mas acabei me sentindo mal por não colaborar. Ninguém me disse nada. Só percebi que seria mais feliz fazendo a minha parte.

 Foi a vez de Garden falar. Antiga viciada em drogas, tinha vinte e cinco anos mas aparentava quarenta.

 — Melanie é uma má influência. Conversa com as crianças sobre discos pop, programas de televisão e lixo dessa espécie.

 Priest disse:

 — Obviamente precisamos ter uma conversa com Melanie sobre isto quando ela voltar de San Francisco. Sei que vai ficar muito aborrecida quando tomar conhecimento do que Flower e Pearl fizeram.

 Dale não ficou satisfeito.

 — O que aborrece muitos de nós...

 Priest fechou a cara. Tudo indicava que o grupo andara conversando nas suas costas. Jesus, será que estou às voltas com uma rebelião? Deixou aparecer na sua voz o desprazer que sentia.

 — E então? O que aborrece muitos de vocês?

 Dale engoliu em seco.

 — O telefone celular dela e o computador.

 Não havia eletricidade no vale, portanto tinham poucos aparelhos elétricos, e o pessoal da comunidade tinha desenvolvido uma espécie de puritanismo sobre coisas como televisão e vídeo. Tinha-se de recorrer ao rádio do carro para ouvir as notícias. Todos haviam passado a olhar com desprezo qualquer coisa que fosse elétrica. O equipamento de Melanie, que ela recarregava em uma biblioteca pública de Silver City, atraíra alguns olhares de desaprovação. Diversas pessoas balançaram a cabeça, em sinal de concordância com a queixa de Dale.

 Havia uma razão especial para que Melanie retivesse seu celular e seu computador. Mas Priest não podia explicar isto a Dale. Ele não era um Comedor de Arroz. Embora fosse membro integral do grupo e estivesse ali havia anos, Priest não podia ter certeza de que concordaria com o plano do terremoto. Podia se apavorar.

 Priest viu que tinha que terminar com aquilo. Estava saindo do controle. Pessoas descontentes têm que ser enfrentadas uma por uma, não em uma discussão coletiva onde um reforçava a posição do outro. Mas antes que pudesse falar, Poem fez uma pergunta.

 — Priest, está acontecendo alguma coisa? Alguma coisa sobre a qual você não está nos falando? Realmente nunca entendi por que você e Star tiveram que se afastar durante duas semanas e meia.

 Song, em apoio a Priest, comentou:

 — Puxa, que pergunta desconfiada!

 O grupo estava se dividindo, Priest podia ver. Era a perspectiva iminente de ter que abandonar o vale. Não havia sinal do milagre que ele sugerira. Estavam vendo o mundo deles chegar ao fim.

 Star falou:

 — Pensei que tivesse dito a todo mundo. Eu tinha um tio que, ao morrer, deixou os negócios numa tremenda confusão, e eu era sua única parente, de modo que tive que ajudar os advogados a organizarem tudo.

 Chega. Priest sabia como abafar um protesto. Falou decididamente.

 — Sinto que estamos discutindo essas coisas em uma atmosfera ruim — disse. — Alguém concorda comigo?

 Todos concordavam, claro. A maioria balançou a cabeça, afirmativamente.

 — E o que fazemos então? — Priest olhou para o filho de dez anos, uma criança séria, de olhos escuros. — O que você me diz, Ringo?

 — Nós meditamos juntos — respondeu o menino. Era a resposta que qualquer um daria.

 Priest olhou em torno.

 — Alguém aprova a idéia de Ringo?

 Todos aprovaram.

 — Então vamos nos preparar.

 Cada um assumiu sua posição favorita. Alguns se deitaram de costas, outros se encolheram em posição fetal, um ou dois se deitaram como se estivessem dormindo. Priest e diversos outros se sentaram de pernas cruzadas, mãos soltas sobre os joelhos, olhos fechados, rostos voltados para o céu.

 — Relaxem o dedinho pequeno do pé esquerdo — disse Priest, falando baixo, com voz penetrante. — Depois o quarto dedo, depois o terceiro, depois o segundo, depois o dedão. Relaxem todo o pé... e o tornozelo...e depois a barriga da perna.

 À medida que ele seguia lentamente indicando todo o corpo, uma paz contemplativa desceu sobre a sala. O ritmo da respiração de todos diminuiu e tornou-se regular, os corpos ficaram cada vez mais quietos e os rostos gradualmente tomaram a tranqüilidade da meditação.

 Finalmente Priest disse uma sílaba lenta e grave:

 — Om.

 A uma voz, a congregação respondeu:

 — Ommm...

 Meu povo.

 Que eles possam viver aqui para sempre.

 

 A reunião no gabinete do governador estava marcada para o meio-dia. Sacramento, a capital do estado, ficava a cerca de duas horas de carro de San Francisco. Judy saiu de casa às nove e quarenta e cinco, prevenindo-se para enfrentar o tráfego pesado da saída da cidade. O assessor com quem ia se encontrar, Al Honeymoon, era uma figura bem conhecida na política da Califórnia. Oficialmente secretário do gabinete, na verdade era o encarregado das tarefas desagradáveis. Sempre que o governador Robson precisava passar uma nova rodovia por um lugar bonito, construir uma usina nuclear, despedir mil empregados do governo ou trair um amigo fiel, mandava Honeymoon fazer o trabalho sujo.

 Os dois homens eram amigos havia vinte anos. Quando se conheceram, Mike Robson ainda era apenas um deputado estadual e Honeymoon acabara de se formar em Direito. Honeymoon fora selecionado para esse papel de bandido por ser preto, e o governador, astutamente, calculou que justamente por isto a imprensa hesitaria em falar mal dele. Esse tempo de liberalismo já se passara havia muitos anos, mas Honeymoon amadurecera e transformara-se em um político de grande habilidade e inexcedível impiedade.

 Ninguém gostava dele, mas muita gente o temia.

 Em benefício do FBI, Judy queria causar boa impressão. Não era sempre que os políticos tinham interesse pessoal direto em um caso do FBI. Judy sabia que seu modo de cumprir aquela missão iria caracterizar para sempre a atitude de Honeymoon para com o Bureau em particular e os órgãos com atribuições policiais de um modo geral. A experiência pessoal sempre tem mais impacto que relatórios ou estatísticas.

 O FBI gostava de dar a impressão de ser todo-poderoso e infalível. Mas ela fizera tão pouco progresso naquele caso que ia ser meio difícil desempenhar esse papel, especialmente para um cara durão como Honeymoon. De qualquer modo, não era o estilo dela. Seu plano era simplesmente parecer eficiente e inspirar confiança.

 Tinha também uma outra razão para querer se sair bem. Precisava que a declaração do governador Robson abrisse a porta para um diálogo com o Martelo do Éden. Uma indicação, por menor que fosse, que o governador talvez negociasse podia persuadir os terroristas a esperar um pouco. E se a reação deles fosse uma tentativa de se comunicar, talvez dessem a Judy novos indícios da identidade do grupo. Por ora, era o único modo em que podia pensar para pegá-los. Todas as outras linhas de investigação tinham levado a becos sem saída. Achava que talvez fosse difícil convencer o governador a dar essa indicação. Ele não ia querer dar a impressão de que ouviria as exigências dos terroristas, com medo de encorajar outros grupos. Mas deveria haver um jeito de redigir o pronunciamento de modo que a mensagem fosse clara apenas para o pessoal do Martelo do Éden.

 Não vestira o costume Armani, de executiva poderosa. O instinto lhe disse que era mais provável que Honeymoon recebesse melhor uma pessoa vestida de trabalhadora comum, e por isso preferira um terninho cinza-escuro e prendera o cabelo num coque atrás da cabeça. Quanto à arma, ela a levava num coldre de cintura. Para o caso do conjunto ser demasiado severo, colocou brinquinhos de pérolas que chamavam a atenção para seu pescoço comprido. Nunca fizera mal parecer atraente.

 Gostaria de saber se Michael Quercus a achara atraente. Ele era um gato, pena ser tão irritante. Sua mãe o teria aprovado. Judy se lembrava dela dizendo: "Gosto de homens que sabem o que querem." Quercus vestia-se bem, num jeito discreto. Judy gostaria de saber como seria seu corpo por baixo das roupas. Talvez fosse coberto de pêlos negros, como um macaco: ela não gostava de homens peludos. Talvez fosse pálido e mole, mas não parecia: dava a impressão de estar em boa forma física. Ao dar-se conta de que estava fantasiando sobre Quercus nu, aborreceu-se consigo mesma. A última coisa de que preciso é um ídolo juvenil malcriado.

 Decidiu telefonar para saber como poderia estacionar. Discou o número do gabinete do governador no seu celular e falou com o secretário de Honeymoon.

 — Tenho um encontro ao meio-dia com o Sr. Honeymoon, e gostaria de saber se posso estacionar no prédio do Capitólio. Nunca estive em Sacramento.

 O secretário era um rapaz.

 — Não temos estacionamento para visitantes no prédio, mas há um estacionamento coberto no quarteirão seguinte.

 — Onde, exatamente?

 — Na entrada da rua onde fica o Capitólio, entre a K e a L. O Capitólio é entre a L e a M. Literalmente um minuto de distância. Mas seu encontro não é ao meio-dia, e sim às onze e meia.

 — O quê?

 — Seu encontro está marcado para as onze e meia.

 — Foi alterado?

 — Não, senhora, sempre foi às onze e meia.

 Judy ficou furiosa. Chegar tarde criaria má impressão antes mesmo de abrir a boca. Aquilo já estava saindo errado. Ela controlou a raiva.

 — Acho que alguém cometeu um engano — consultou o relógio, voando baixo podia chegar em noventa minutos. — Não tem problema, estou adiantada — mentiu. — Chegarei a tempo.

 — Ótimo.

 Ela pisou com força no acelerador e viu o velocímetro do Monte Carlo subir até cento e sessenta. Por sorte, a estrada estava vazia. A maior parte do tráfego pela manhã era no sentido contrário, indo para San Francisco.

 Fora Brian Kincaid quem lhe dissera a hora da entrevista, portanto ele também chegaria tarde. Estavam viajando separadamente porque ele tinha um segundo compromisso em Sacramento, no escritório local do FBI. Judy discou o número da agência de San Francisco e falou com a secretária do encarregado.

 — Linda, aqui é Judy. Dá para você ligar para o Brian e dizer que o assessor do governador nos espera às onze e meia e não ao meio-dia, por favor?

 — Acho que ele sabe disso — respondeu Linda.

 — Não, não sabe. Ele me disse doze horas. Vê se consegue ligar para ele e avisar, sim?

 — Pode deixar.

 — Obrigada — Judy desligou e concentrou-se na estrada. Poucos minutos depois ouviu a sirene da polícia. Olhou pelo espelho e viu a pintura bege familiar da patrulha Rodoviária da Califórnia.

 — Juro que não acredito! — exclamou ela.

 Desviou para o acostamento e pisou no freio com força. O carro da patrulha parou atrás. Ela abriu a porta. Uma voz amplificada disse:

 — FIQUE NO CARRO.

 Ela pegou o crachá do FBI segurou-o com o braço esticado para que o policial pudesse ver e saltou.

 — FIQUE NO CARRO!

 Ela percebeu um toque de medo na voz e viu que o patrulheiro estava sozinho. Suspirou. Não era difícil imaginar um recruta puxando a arma e atirando nela de puro nervosismo. Judy levantou mais o escudo do crachá para que ele pudesse ver.

 — FBI! — gritou.

 — Olha só, pelo amor de Deus! — VOLTE PARA O CARRO!

 Ela deu uma olhada no relógio. Dez e meia. Tão frustrada que chegava a tremer, sentou de novo no carro e deixou a porta aberta.

 Foi uma espera irritantemente longa. Finalmente o patrulheiro aproximou-se.

 — A razão pela qual a fiz parar foi que seu carro estava a cento e cinqüenta e nove quilômetros por hora...

 — Olha só para isto aqui — disse ela, levantando o escudo do FBI.

 — O que é?

 — Pelo amor de Deus, é um escudo do FBI! Sou uma agente em missão urgente e você acaba de me fazer perder tempo!

 — Bem, você com certeza não parece...

 Ela saltou do carro, assustando-o, e sacudiu o dedo debaixo do seu queixo.

 — Não me diga que não pareço com a porra de um agente. Se você não reconhece nem o escudo do FBI, como é que vai saber que cara tem um agente? — pôs as mãos nas cadeiras, puxando o paletó para trás a fim de que ele pudesse ver o coldre.

 — Posso ver sua licença, por favor?

 — Claro que não, droga! Estou saindo e vou para Sacramento a cento e cinqüenta e nove quilômetros por hora, está me entendendo? — ela entrou de novo no carro.

 — Você não pode fazer isso — disse ele.

 — Escreva para o seu deputado — retrucou ela, batendo com a porta e acelerando.

 Desviou para a pista da esquerda, acelerou até cento e sessenta e consultou o relógio. Tinha perdido cerca de cinco minutos. Ainda dava para chegar a tempo.

 Perdera a calma com o patrulheiro. Ele contaria a seu chefe, que se queixaria ao FBI. Judy receberia uma repreensão. Mas se tivesse sido polida com o cara, ainda estaria lá.

 — Merda — exclamou, sentida.

 Alcançou a saída para o centro da cidade de Sacramento às onze e vinte. Às onze e vinte e cinco estava entrando na garagem. Gastou uns dois minutos para achar uma vaga. Desceu correndo a escada e atravessou a rua.

 O Capitólio era um palácio de pedra branca que lembrava um bolo de noiva, em meio a um jardim imaculado delimitado por palmeiras gigantescas. Ela atravessou correndo um saguão de mármore até uma porta dupla com a palavra "GOVERNADOR" entalhada. Parou, respirou fundo para se acalmar e checou o relógio. Exatamente onze e trinta. Chegara a tempo. O FBI não ia parecer incompetente. Abriu a porta e entrou.

 Viu-se no interior de um imenso saguão onde a figura de maior destaque era um secretário sentado atrás de uma mesa enorme. De um lado havia uma fila de cadeiras onde, para sua surpresa, viu Brian Kincaid esperando, com ar tranqüilo e descansado, metido num terno cinza-grafite impecável. O cabelo branco penteado cuidadosamente, em nada lembrando uma pessoa que tivesse acabado de chegar correndo.

 Subitamente Judy tomou consciência de que estava suando.

 Quando Kincaid a encarou, ela viu um relâmpago de surpresa brilhar em seus olhos, mas foi rapidamente contido.

 Ela o cumprimentou:

 — Oi, Brian.

 — dia — ele desviou os olhos.

 Não quis agradecer o recado que ela dera dizendo que a reunião seria mais cedo.

 Ela perguntou:

 — A que horas você chegou?

 — Poucos minutos atrás.

 Isto significava que ele sabia a hora certa da reunião. Mas dissera que era meia hora mais tarde. Será que a tinha induzido deliberadamente ao erro? Parecia quase infantil.

 Antes que ela tivesse tido tempo de chegar a uma conclusão, um jovem negro apareceu por uma porta lateral e dirigiu-se a Brian:

 — Agente Kincaid? Ele se levantou.

 — Eu mesmo.

 — Você deve ser então a agente Maddox. O Sr. Honeymoon os verá agora.

 Kincaid e Judy seguiram-no ao longo do corredor. Enquanto andavam, ele disse, pouco antes de virarem à direita:

 — Nós chamamos isto aqui de Ferradura, porque os escritórios do governador são grupados em torno dos três lados de um retângulo.

 A meio caminho do segundo lado, eles passaram por outro saguão, ocupado por duas secretárias. Um rapaz segurando uma pasta esperava sentado em um sofá de couro. Judy achou que devia ser ali o gabinete pessoal do governador. A poucos passos de distância, foram introduzidos na sala de Honeymoon.

 Ele era um homem grande com o cabelo cortado bem curto já ficando branco. Tinha tirado o paletó do terno cinza e com isso podiam ser vistos os suspensórios pretos. Ele enrolara as mangas da camisa branca mas conservara impecável o laço da gravata de seda. Tirou os óculos de aro dourado de meia lente e levantou-se. Tinha um rosto de feições fortes com uma expressão permanente de vê-se-não-me-enche-o- saco. Podia passar por tenente de polícia, só que estava bem vestido demais. A despeito da aparência intimidadora, seus modos eram corteses. Apertou as mãos de Brian Kincaid e Judy Maddox e agradeceu:

 — Sou-lhes muito grato por terem vindo de San Francisco conversar conosco.

 — Tudo bem — disse Kincaid.

 Eles se sentaram. Sem preâmbulos, Honeymoon foi logo ao ponto:

 — Como avaliam a situação?

 — Bem, senhor, o seu pedido foi para ver o agente que estivesse na extremidade operacional do caso. Sendo assim, vou deixar que Judy faça o seu relato.

 Judy disse:

 — Receio ainda não termos pegado essa gente — e logo se xingou por ter começado o relatório com um pedido de desculpas embutido numa frase fraca. Seja positiva! — Estamos razoavelmente seguros de que estes terroristas não estão relacionados com a Campanha da Califórnia Verde — isso não passou de uma fraca tentativa para lariçar indícios falsos. Não sabemos quem são, mas posso lhe contar algumas coisas importantes que descobrimos a respeito deles.

 Honeymoon disse:

 — Prossiga, por favor.

 — Para começar, a análise lingüística da mensagem contendo a ameaça nos diz que estamos tratando não com um indivíduo solitário, e sim com um grupo.

 Kincaid interveio:

 — Bem, com duas pessoas, pelo menos.

 Judy lançou um olhar furioso para Kincaid, mas ele não a encarou.

 Honeymoon perguntou, irritado:

 — O que é afinal, dois ou um grupo?

 Judy sentiu que ficava ruborizada.

 — A mensagem foi redigida por um homem e digitada por uma mulher, de modo que temos no mínimo duas pessoas. Ainda não sabemos se há mais.

 — OK. Mas, por favor, seja precisa.

 Aquilo não estava indo bem.

 Judy prosseguiu.

 — Ponto dois: as pessoas a quem nos referimos não são loucas.

 Kincaid disse:

 — Bem, clinicamente não. Mas com toda a certeza não podem ser normais — ele riu como se tivesse dito alguma coisa inteligente.

 Judy amaldiçoou-o silenciosamente.

 — As pessoas que cometem crimes de violência podem ser divididas em duas espécies, as organizadas e as desorganizadas. O tipo desorganizado age segundo o impulso do momento, usa qualquer arma que esteja disponível e escolhe suas vítimas aleatoriamente. Estas são as pessoas verdadeiramente loucas.

 Honeymoon interessou-se.

 — E o outro tipo?

 — O tipo organizado é o que planeja seus crimes, carrega as armas que vai usar e ataca vítimas previamente selecionadas segundo um critério lógico qualquer.

 Kincaid interveio de novo:

 — São loucos de uma maneira diferente.

 Judy tentou ignorá-lo.

 — Essas pessoas podem ser doentes, mas não são loucas varridas. Podemos pensar nelas como seres racionais e tentar antecipar o que farão.

 — Está bem. E os integrantes do Martelo do Éden são pessoas organizadas?

 — A julgar pela mensagem contendo a ameaça, sim.

 — Você confia muito na análise lingüística — comentou Honeymoon ceticamente.

 — É uma ferramenta poderosa.

 — Não substitui um cuidadoso trabalho investigativo. Mas neste caso, é tudo o que temos — concluiu Kincaid.

 Era como se eles tivessem que confiar na análise lingüística porque Judy não fizera o trabalho que devia ter feito. Sentindo-se desesperada, ela insistiu:

 — Estamos tratando com gente séria — o que significa que, se não puderem provocar um terremoto, poderão tentar outra coisa qualquer.

 — Como por exemplo?

 — Um dos habituais atentados terroristas. Explodir uma bomba, fazer um refém, assassinar uma figura proeminente.

 — Presumindo que tenham capacidade para tal, é claro. Até o presente momento não temos nada indicando esta direção — comentou Kincaid.

 Judy respirou fundo. Era preciso dizer uma coisa que não podia evitar.

 — Não estou, contudo, preparada para desconsiderar a possibilidade de que eles realmente possam causar um terremoto.

 Honeymoon disse:

 — O quê?

 Kincaid soltou uma risada sarcástica. Judy insistiu:

 — Não é provável, mas é concebível. Foi o que me disse o principal perito no assunto do estado da Califórnia, o professor Quercus. Não estaria cumprindo com o meu dever se não lhe dissesse isso.

 Kincaid recostou-se na cadeira e cruzou as pernas.

 — Judy lhe deu as respostas que a gente encontra nos livros, Al — disse ele, com voz de "menina-não-entra". — Agora talvez eu deva lhe dizer qual é o quadro dentro de uma perspectiva de mais idade e experiência.

 Judy olhou para ele com raiva. vou à forra disto nem que seja a última coisa que possa fazer na minha vida, Kincaid. Você levou a tarde inteira querendo me derrubar. Mas e se houver mesmo um terremoto, seu panaca? O que vai dizer aos parentes dos mortos?

 — Por favor, prossiga — disse Honeymoon.

 — Essas pessoas não podem causar um terremoto e não dão a mínima para usinas de eletricidade. Meu instinto me diz que se trata de um garotão tentando impressionar a namorada. Apavorou o governador, fez o FBI correr de um lado para outro como barata tonta e o que armou é assunto toda noite do programa de rádio de John Truth. De repente ele passou a ser um figurão importante e ela ficou deslumbrada.

 Judy sentiu-se totalmente humilhada. Kincaid deixara que relatasse o que descobrira e depois escarnecera de tudo o que dissera. Obviamente que tinha planejado aquilo, e agora ela não tinha a menor dúvida de que deliberadamente a enganara quanto à hora do encontro, na esperança de que chegasse atrasada. A coisa toda não passara de uma manobra destinada a desacreditá-la e, ao mesmo tempo, fazer com que Kincaid se sentisse melhor. Judy sentiu-se revoltada.

 Honeymoon levantou-se bruscamente.

 — Vou aconselhar o governador a não reagir à ameaça disse. — E muito obrigado a ambos — acrescentou, em tom de quem não precisava mais deles.

 Judy não teve dúvida de que era tarde demais para lhe pedir que deixasse aberta a porta do diálogo com os terroristas. O momento passara. E, de qualquer maneira, qualquer sugestão que desse seria ridicularizada por Kincaid. Sentiu-se desesperada. E se a ameaça fosse genuína? E se eles pudessem realmente fazer o que ameaçaram?

 Kincaid disse:

 — Qualquer hora que precise de nós, é só dizer.

 A expressão de Honeymoon foi vagamente sarcástica. Seria difícil imaginar que precisasse de convite para usar os serviços do FBI. Mas, polidamente, estendeu a mão para se despedir.

 Um momento mais tarde, Judy e Kincaid estavam do lado de fora. Judy permaneceu em silêncio enquanto percorriam a Ferradura e atravessavam o saguão. Só aí Kincaid parou e disse:

 — Você se saiu muito bem, Judy. Não tem com que se preocupar.

 Ele não conseguiu esconder o sorriso ostensivamente atrevido.

 Judy estava determinada a não deixar que Kincaid percebesse o quanto estava irritada. Tinha vontade de berrar, mas forçou-se a dizer calmamente:

 — É, acho que cumprimos com a nossa obrigação.

 — Com certeza. Onde estacionou o carro?

 — Na garagem do outro lado da rua — ela indicou com o polegar.

 — Estou do lado oposto. Vejo você mais tarde.

 — Claro.

 Judy observou-o afastar-se e depois virou-se e seguiu na outra direção.

 Ao atravessar a rua viu uma loja de doces Sei. Entrou e comprou uns bombons.

 No caminho de volta para San Francisco, comeu a caixa inteira.

 

 Priest precisava de atividade física para não enlouquecer com a tensão. Depois da reunião no templo foi para o parreiral e começou a trabalhar, arrancando ervas daninhas. Fazia calor e em pouco tempo ele começou a suar e tirou a camisa.

 Star trabalhou ao seu lado. Após uma ou duas horas ela deu uma olhada no relógio.

 — Hora de fazer uma pausa — disse. — Vamos ouvir as notícias.

 Sentaram-se no carro de Priest, que ligou o rádio. O noticiário repetiu o que tinham ouvido antes. Priest rangeu os dentes de tanta frustração.

 — Que droga, o governo tem que dizer qualquer coisa logo!

 Star retrucou:

 — Não esperamos que eles cedam já, esperamos?

 — Não, mas eu esperava que houvesse uma mensagem qualquer, talvez um indício de uma concessão. Puxa vida, a idéia de suspender a construção de novas usinas elétricas não é exatamente uma excentricidade. Milhões de pessoas na Califórnia provavelmente concordariam. Star fez que sim.

 — Respirar em Los Angeles já é perigoso, pelo amor de Deus! Não posso acreditar que haja quem realmente queira viver desse jeito.

 — Mas não acontece nada.

 — Bem, sempre pensamos que precisaríamos dar uma demonstração para que nos ouvissem.

 — É mesmo — Priest hesitou e por fim desabafou: — Acho que estou com medo de que não funcione.

 — O vibrador sísmico?

 Ele hesitou de novo. Não teria sido assim tão franco com ninguém, exceto com Star, e mesmo com ela já estava quase arrependido por ter confessado sua dúvida. Mas já que começara, era melhor acabar.

 — Tudo — explicou. — Tenho medo de que não haja terremoto e aí estaremos perdidos.

 Ele viu que Star ficou um pouco chocada. Estava acostumada a vê-lo absolutamente confiante quanto a tudo o que fazia. Só que Priest nunca tinha feito uma coisa daquelas. Ao voltarem para o parreiral, ela disse:

 — Faça qualquer coisa com Flower hoje à noite.

 — Como assim?

 — Passe algum tempo com ela. Faça alguma coisa com ela. Você brinca com Dusty o tempo todo.

 Dusty tinha cinco anos. Era fácil distrair-se com ele.

 O menino era fascinado por tudo. Flower tinha treze, a idade em que tudo o que os adultos fazem parece burrice. Priest estava prestes a dizer isto, quando percebeu que havia outra razão para o que Star estava dizendo. Ela pensa que eu posso morrer amanhã. A idéia o atingiu com a força de um soco. Ele sabia que o plano do terremoto era perigoso, claro, mas tinha considerado principalmente o perigo que ele próprio corria e o risco de deixar a comunidade sem um líder. Não tinha imaginado Flower sozinha no mundo aos treze anos de idade.

 — O que farei com ela?

 — Ela quer aprender a tocar violão.

 Aquilo era novidade para Priest. Ele não era um grande violonista, mas sabia tocar canções folclóricas e blues simples, o bastante para iniciá-la, pelo menos.

 Deu de ombros.

 Voltaram ao trabalho, mas poucos minutos depois foram interrompidos quando Slow, com um sorriso que ia de orelha a orelha, gritou:

 — Ei, olha só quem está aí!

 Priest levantou os olhos. A pessoa pela qual esperava era Melanie. Ela fora a San Francisco entregar Dusty ao pai. Era a única pessoa capaz de dizer a Priest exatamente onde usar o vibrador sísmico e ele não se sentiria à vontade enquanto ela não estivesse de volta. Mas era cedo demais para esperá-la, e, de qualquer modo, Slow não se entusiasmaria tanto se fosse Melanie.

 Ele viu um homem descendo a colina, seguido por uma mulher carregando uma criança. Priest fechou a cara. Era comum que se passasse um ano sem que aparecesse um único visitante no vale. Naquela manhã tinha sido o policial; agora aquelas pessoas. Mas seriam estranhos? Ele estreitou os olhos. O modo de caminhar deslizante do homem era terrivelmente familiar. Quando os vultos chegaram mais perto, Priest disse:

 — Meu Deus, é mesmo o Bones?

 — É ele, sim! — exclamou Star, entusiasmada. — Nossa mãe! – e saiu correndo na direção dos recém-chegados.

 Spirit associou-se à sua excitação e saiu correndo com ela, latindo.

 Priest seguiu-os mais devagar.

 Bones, cujo verdadeiro nome era Bel Owens, fora um Comedor de Arroz. Mas gostava do modo como as coisas eram antes da chegada de Priest.

 Deliciava-se com a vida da mão para a boca dos primeiros tempos da comunidade. Sentia prazer com as crises constantes e gostava de ficar bêbado ou chapado — ou ambos — algumas horas depois de acordar. Tocava blues na gaita de boca com brilho extraordinário e foi o mendigo mais bem-sucedido que tiveram. Bones não se integrara a uma comunidade para encontrar trabalho, autodisciplina e um ato de devoção diário. Assim, após alguns anos, quando se tornou claro que o regime Priest-Star era permanente, Bones foi embora. E nunca mais aparecera. Agora, depois de mais de vinte anos, estava de volta. Star atirou-se a ele, abraçou-o com força e beijou-lhe os lábios. Aqueles dois tinham tido um caso muito sério. Todos os homens na comunidade dormiam com Star naquele tempo, mas ela sempre tivera um fraco por Bones. Priest sentiu uma pontada de ciúme quando viu Bones apertar o corpo de Star de encontro ao seu.

 Quando se soltaram, Priest pôde ver que Bones não estava bem. Sempre fora magro, mas agora dava a impressão de que estava morrendo de fome. Sempre deixara crescer o cabelo de qualquer maneira, assim como a barba, mas agora esta parecia mais emaranhada que nunca e o cabelo dava a impressão de estar caindo aos montes. A calça-jeans e a camiseta estavam sujos e uma das botas de caubói perdera o salto. Ele veio porque está com problema.

 Bones apresentou a mulher como Debbie: Era mais moça que ele, não tinha mais que vinte e cinco anos, bonita, com um jeito tenso, sofrido. A criança teria uns dezoito meses de idade. Tanto ela quanto o bebê eram quase tão magros e sujos quanto Bones. Estava na hora da refeição do meio-dia. Levaram Bones para a cozinha comunitária. O almoço era uma sopa de cevada em grão, temperada com as ervas cultivadas por Garden. Debbie comeu vorazmente e alimentou a criança, mas Bones só tomou umas colheradas e acendeu um cigarro.

 Falou-se muito sobre os velhos tempos. Bones disse:

 — Vou contar para vocês minha lembrança favorita. Uma tarde, bem ali naquela colina, Star me explicou o que era cunilíngua.

 Houve um frouxo de riso em torno da mesa. Tratava-se de uma risada ligeiramente embaraçada, mas Bones não percebeu e continuou.

 — Eu tinha vinte anos de idade e não sabia que as pessoas faziam aquilo. Fiquei chocado. Mas ela me fez experimentar. E o gosto! Que nojo!

 — Havia muita coisa que você não sabia — disse Star. Lembro de você dizendo que não conseguia entender por que às vezes sentia dor de cabeça pela manhã e eu tive que explicar que isso acontecia sempre que tomava um porre na noite anterior. Você não sabia o significado da palavra "ressaca".

 Ela mudara habilmente de assunto. Nos velhos tempos teria sido perfeitamente normal falar sobre cunilíngua à mesa da comida, mas as coisas tinham mudado desde que Bones se fora. Ninguém jamais fizera questão de que a linguagem fosse mais limpa, mas acontecera naturalmente à medida que as crianças começaram a ganhar mais entendimento.

 Bones estava nervoso, rindo muito, esforçando-se demais para ser amistoso, irrequieto, fumando um cigarro depois do outro. Ele quer alguma coisa. Mas vai me dizer o que é dentro de muito pouco tempo.

 Quando tiraram a mesa e lavaram as tigelas, Bones levou Priest para um canto e disse:

 — Tenho uma coisa que quero mostrar a você. Vamos. Priest deu de ombros e o acompanhou.

 Priest pegou um saquinho com maconha e um maço de papéis de cigarro. Os membros da comunidade geralmente não fumavam maconha durante o dia, porque reduzia o ritmo do trabalho no parreiral, mas hoje era um dia especial e Priest sentiu necessidade de acalmar os nervos. Enquanto subiam a colina e atravessavam as árvores, ele enrolou um baseado com a facilidade conferida pela longa prática.

 Bones lambeu os lábios.

 — Você não tem nada mais forte, tem?

 — O que é que você está usando atualmente, Bones?

 — Um pouquinho de açúcar mascavo aqui e ali, sabe como , é, para manter a cabeça limpa.

 Heroína. Então era isso. Bones virara um adicto, um viciado em heroína.

 — Não temos nenhuma heroína aqui — disse Priest. — Ninguém usa heroína. E eu vou me livrar de quem quer que use , mais depressa do que você consegue piscar um olho. Priest acendeu o baseado.

 Quando chegaram na clareira onde os carros estavam estacionados, Bonés disse:

 — Lá está.

 A princípio Priest não conseguiu perceber o que ele estava olhando. Tratava-se de um caminhão, mas de que tipo? Era pintado com um desenho alegre em vermelho e amarelo e do lado havia a figura de um monstro pondo fogo pela boca e um letreiro nas mesmas cores vulgares.

 Bones, que sabia que Priest não sabia ler, disse:

 — A Boca do Dragão. É um brinquedo de mafuá.

 Priest entendeu então. Muitos brinquedos pequenos de mafuá são montados em caminhões. O motor do caminhão serve para acionar o brinquedo. Este pode ser dobrado e transportado pelo próprio caminhão quando seque para o novo local.

 Priest passou o baseado para Bones e perguntou:

 — É seu?

 Bones puxou uma longa tragada, sustentou a fumaça no pulmão e soprou antes de responder.

 — Ganhei minha vida com isso aí durante dez anos. Mas precisa de manutenção, e não posso pagar. Por isso tenho que vender.

 Priest pôde ver o que estava por vir.

 Bones puxou outra tragada, mas desta vez não devolveu o baseado.

 — Provavelmente vale cinqüenta mil dólares, mas estou pedindo dez.

 Priest aquiesceu.

 — Parece uma pechincha... para alguém.

 — Talvez vocês possam comprar — disse Bones.

 — Que porra vou fazer com um brinquedo de mafuá, Bones?

 — E um bom investimento. Se você tiver um mau ano com o vinho, pode sair com ele e fazer algum dinheiro.

 Eles tinham maus anos, às vezes. Mas Paul Beale estava sempre disposto a lhes dar crédito. Ele acreditava nos ideais da comunidade, muito embora não tivesse sido capaz de viver de acordo com eles. E sabia que sempre haveria uma outra safra no ano seguinte. Priest sacudiu a cabeça.

 — De jeito nenhum. Mas eu lhe desejo sorte, velho camarada. Continue tentando que acabará encontrando um comprador. Bones devia ter imaginado que era uma tentativa com muito pouca chance de sucesso, mas mesmo assim pareceu entrar em pânico.

 — Ei, Priest, quer saber mesmo a verdade? Estou em péssima situação. Será que não dá para me emprestar mil pratas? Já serviria para ajeitar a vida.

 Serviria para você ficar chapadão, é isso que você quer dizer. Alguns dias depois estaria de volta ao mesmo ponto de antes.

 — Nós não temos dinheiro — disse Priest. — Não usamos dinheiro aqui, não se lembra?

 Bones fez uma cara de sabido.

 — Você tem que ter uma grana escondida, cara, deixa disso.

 E você acha que eu ia lhe contar que tenho?

 — Desculpe, meu chapa, não posso ajudar.

 Bones balançou a cabeça.

 — É uma situação difícil, cara, sério. Estou metido numa tremenda complicação.

 — E não vai se aproveitar quando eu estiver de costas para pedir a Star, porque vai ter a mesma resposta — disse Priest, endurecendo a voz.

 — Está me ouvindo?

 — Claro, claro — disse Bones, parecendo assustado. — Fica frio, Priest, fica frio, cara.

 — Estou frio.

 

 Priest se preocupou com Melanie toda a tarde. Ela podia ter mudado de idéia e decidido voltar para o marido ou simplesmente se apavorado e dado o fora no seu carro. Então, tudo estaria terminado. Não havia como ele ou qualquer outra pessoa interpretar os dados do disquete de Michael Quercus e decidir onde instalar o vibrador sísmico.

 Mas ela apareceu no fim da tarde, para seu grande alívio. Ele contou que Flower fora presa e advertiu-a que uma ou mais pessoas queriam pôr a culpa nela e em suas roupas bonitas.

 Melanie disse que ia pegar umas roupas de trabalho na loja comunitária.

 Após a ceia, Priest foi à cabana de Song e pegou o violão dela.

 — Está usando? — perguntou, polidamente.

 Jamais diria "Posso pegar seu violão emprestado?" porque em teoria toda a propriedade era comum a todos, de modo que o violão era tanto dele quanto dela, mesmo que tivesse sido fabricado pela própria Song. No entanto, na prática todos sempre pediam as coisas emprestadas.

 Sentou diante da sua cabana com Flower e afinou o violão. Spirit, o cachorro, prestou atenção, como se também ele fosse aprender a tocar.

 — A maioria das canções têm três acordes — começou Priest. — Se você souber três acordes será capaz de tocar nove em dez canções de todo o mundo. Mostrou o acorde em dó. Enquanto ela lutava para comprimir as cordas com as pontas macias dos dedos, ele estudou seu rosto à luz do final da tarde: a pele perfeita, o cabelo escuro, os olhos verdes como os de Star, a ruguinha na testa quando se concentrava.

 Tenho que permanecer vivo para cuidar de você. Pensou em si próprio com a idade dela, já um criminoso, experiente, treinado, acostumado com a violência, odiando a polícia e desprezando os cidadãos comuns, idiotas o bastante para se deixarem ser roubados. Aos treze anos eu já dera errado. Estava determinado a não permitir que acontecesse a mesma coisa com Flower. Ela fora criada em uma comunidade de paz e amor, sem ser tocada pelo mundo que corrompera o pequeno Ricky Granger e o transformara em bandido antes que lhe crescesse a barba. Você se dará bem, asseguro isso.

 Ela tocou o acorde e Priest percebeu que uma determinada canção ecoava em sua cabeça desde a chegada de Bones. Era uma canção folclórica dos anos 60 de que Star sempre gostara.

 Mostre-me a prisão Mostre-me a cadeia Mostre-me o prisioneiro Cuja vida estagnou.

 — Vou lhe ensinar uma canção que sua mãe costumava cantar quando você era bebê — disse ele. Pegou o violão das mãos dela. — Você se lembra disso? — E cantou:

 Vou lhe mostrar um rapaz Com tantas razões pelas quais.

 Na cabeça dele, Priest ouvia a voz inconfundível de Star, grave e sexy naquele tempo como agora.

 Lá, a não ser que a sorte ajude Vai você ou vou eu Você ou eu.

 Priest era mais ou menos da mesma idade de Bones, e Bones estava morrendo. Priest não tinha a menor dúvida. Em breve, a garota e a criança o abandonariam. Ele mataria o próprio corpo de fome para alimentar o vício. Poderia acabar com uma overdose ou se envenenar com drogas de má qualidade, ou então abusar do organismo até que ele cedesse e sobreviesse uma pneumonia. De um modo ou de outro, era um homem morto.

 Se eu perder este lugar, seguirei o mesmo caminho de Bones. Enquanto Flower lutava para tocar o acorde de lá menor, Priest brincou com a idéia de retornar à sociedade normal. Imaginou-se indo todo o dia para o trabalho, comprando meias e sapatos de liquidação, dono de um aparelho de televisão e de uma torradeira. O pensamento o deixou nauseado. Nunca vivera certinho. Fora criado num prostíbulo, educado nas ruas, tinha sido durante pouco tempo o proprietário de um negócio semi legítimo e, na maior parte da vida, agira como líder de uma comunidade hippie isolada do mundo.

 Ainda se lembrava bem do único emprego certinho que tivera. Aos dezoito anos fora trabalhar para os Jenkinsons, o casal que administrava a loja de bebidas na mesma rua, um pouco mais abaixo. Naquele tempo os considerava velhos, mas via agora que não teriam mais que cinqüenta anos. Sua intenção fora trabalhar o tempo suficiente para descobrir onde guardavam o dinheiro e depois roubá-lo. Mas aí aprendera algo a respeito de si mesmo.

 Descobriu que tinha um raro talento para aritmética. A cada manhã o Sr. Jenkinson punha dez dólares na máquina registradora para troco. À medida que os fregueses compravam suas bebidas, pagavam e tinham troco a receber, ou Priest os servia ele próprio ou ouvia um dos Jenkinsons cantar o total em voz alta: — Um dólar e vinte e nove, por favor, Sra. Roberts — ou: — Três dólares redondos, senhor.

 Os números pareciam se somar sozinhos dentro da sua cabeça. Durante o dia inteiro Priest sempre sabia exatamente quanto dinheiro havia para troco e no fim do dia podia dizer o total ao Sr. Jenkinson antes dele contar.

 De tanto ouvir o Sr. Jenkinson conversar com os vendedores que apareciam na loja, em pouco tempo ele sabia o preço de atacado e de varejo de cada item existente na loja. Daí em diante, o contador automático existente em seu cérebro calculava o lucro em cada transação e ele ficou assombrado com quanto dinheiro os Jenkinsons conseguiam fazer sem roubar ninguém.

 Arranjou para que a loja fosse roubada quatro vezes em um mês e depois fez uma oferta para comprá-la. Quando negaram, providenciou um quinto assalto e desta vez assegurou-se de que a Sra. Jenkinson levasse uma surra. Dessa vez, então, o Sr. Jenkinson aceitou sua oferta.

 Priest pagou o depósito com um empréstimo feito no agiota do bairro e as prestações com o dinheiro que ganhava com a loja. Embora fosse incapaz de ler ou escrever, sabia sempre com exatidão sua posição financeira. Ninguém conseguia fraudá-lo. Uma vez empregou uma senhora de meia-idade e aparência respeitável que roubava um dólar da máquina registradora a cada dia. No fim da semana deduziu cinco dólares do seu salário, deu-lhe uma surra e disse para que nunca mais aparecesse.

 Ao longo de um ano ele tinha quatro lojas; dois anos mais tarde tinha um atacado de bebidas; em três anos era milionário e no fim do quarto ano transformara-se num fugitivo.

 Às vezes perguntava-se o que podia ter acontecido se tivesse pago tudo ao agiota, fornecido números honestos ao seu contador para fazer a declaração de renda e aceito um acordo com a polícia de Los Angeles por conta das acusações de fraude. Talvez hoje tivesse uma firma tão grande quanto a Coca-Cola e estivesse morando em uma daquelas mansões em Beverly Hills, com um jardineiro, um rapaz encarregado da piscina e cinco carros na garagem.

 Mas ao tentar imaginar esse quadro, sabia que nunca poderia ter acontecido. Não seria ele. O cara que descia a escada da mansão metido num robe branco e que friamente mandava a criada preparar um copo de suco de laranja tinha o rosto de outra pessoa. Priest nunca poderia viver no mundo quadrado. Sempre tivera problemas com regulamentos; jamais pudera obedecer a regras impostas por outras pessoas. Era este o motivo pelo qual se encontrava ali. Aqui no vale eu faço as regras, eu mudo as regras, eu sou as regras.

 Flower disse-lhe que os dedos doíam.

 — Então está na hora de parar — disse Priest. — Se quiser, amanhã ensino outra canção. Se eu ainda estiver vivo.

 — Seus dedos também doem?

 — Não, mas é porque estou acostumado. Depois de praticar um pouco, crescem uns calos nas pontas dos dedos, assim como a pele do calcanhar fica mais grossa.

 — Noel Gallagher tem calos duros nas pontas dos dedos?

 — Se ele for um guitarrista pop...

 — Claro! Ele toca na banda Oasis!

 — Bem, então tem. Você acha que gostaria de ser música?

 — Não.

 — A resposta foi bastante decidida. Você tem alguma outra idéia?

 Ela pareceu culpada, como se soubesse que ele ia desaprovar, mas reuniu toda sua coragem e disse:

 — Quero ser escritora.

 Ele não sabia ao certo como se sentia. Seu pai jamais conseguirá ler o seu trabalho. Mas fingiu entusiasmo.

 — Legal! Que tipo de escritora?

 — Dessas que escrevem em revistas. Tipo Teen, talvez.

 — Por que?

 — Porque você conhece estrelas do cinema e televisão e as entrevista e escreve sobre moda e pintura.

 Priest cerrou os dentes e tentou não demonstrar o nojo que sentia.

 — Bem, de qualquer maneira gosto da idéia de que você possa vir a ser uma escritora. Se vier a escrever poesia e histórias, em vez de artigos para revistas, poderá continuar morando aqui.

 — É sim, talvez — concordou ela, incerta.

 Priest podia ver que ela não planejava passar ali o resto de sua vida. Mas era jovem demais para entender. Quando tivesse idade suficiente para decidir sozinha, teria um ponto de vista diferente. É o que espero.

 Star aproximou-se.

 — Hora da verdade — disse. Priest tirou a guitarra de Flower.

 — Vá se aprontar para dormir agora — disse.

 Ele e Star dirigiram-se para o círculo do estacionamento, deixando o violão na cabana de Song. Encontraram Melanie sentada no banco de trás do `Cuda, ouvindo rádio.

 Vestira uma camiseta amarela e uma calça de brim azul da loja comunitária. Ambas as peças eram grandes demais para ela, que enfiara a camiseta dentro da calça, e a apertara com um cinto, destacando a cintura muito fina. Continuava tão sexy quanto antes.

 John Truth tinha uma voz nasalada que podia tornar-se quase hipnótica. Sua especialidade era dizer em voz alta coisas em que seus ouvintes acreditavam do fundo do coração mas que tinham vergonha de admitir. Basicamente repetia bobagens padronizadas características de porcos fascistas: a AIDS era uma punição para o pecado, a inteligência era herdada racialmente, o que o mundo precisava era de mais disciplina, todos os políticos eram burros e corruptos e coisas do gênero. Priest imaginava que sua audiência compunha-se basicamente de homens brancos e gordos que aprendiam tudo o que sabiam nos bares.

 — Esse cara — disse Star- é tudo o que odeio neste país: preconceituoso, hipócrita, moralista e, na verdade, burro pra cacete.

 — É um fato — concordou Priest. — Vamos ouvir.

 Truth estava dizendo:

 — Vou ler uma vez mais a declaração feita pelo secretário do gabinete do governador, o Sr. Honeymoon.

 Os pêlos da nuca de Priest se eriçaram e Star disse:

 — Aquele filho da mãe! — Honeymoon era o homem por trás do esquema da inundação do vale e eles o odiavam.

 John Truth prosseguiu, falando lenta e ponderadamente, como se cada sílaba fosse significativa.

 — Prestem atenção. "O FBI investigou a ameaça que apareceu num BBS da Internet no dia primeiro de maio. A investigação determinou que não há substância na ameaça."

 O coração de Priest ficou pequenino. Era aquilo mesmo que esperava, mas ao mesmo tempo estava assombrado. Tinha esperado pelo menos o indício qualquer de uma concessão. Honeymoon, contudo, parecia ser completamente intratável. Truth continuou lendo.

 — "O governador Mike Robson, seguindo a recomendação do FBI, decidiu não tomar providências"; esta, meus amigos, foi a declaração em sua totalidade — Truth, é óbvio, achara que a declaração fora ultrajantemente curta. — Estão satisfeitos? O prazo fatal dos terroristas termina amanhã. Vocês se sentem tranqüilizados, caros ouvintes? Telefonem para John Truth agora a fim de dizerem ao mundo o que pensam.

 Priest disse:

 — Isto significa que vamos ter que agir.

 Melanie retrucou:

 — Bem, nunca esperei que o governador fosse ceder sem uma demonstração.

 — Eu também não, acho — ele franziu a testa. — A declaração mencionou o FBI duas vezes. A mim me parece que Mike Robson está se preparando para culpar os federais se as coisas saírem errado. O que me faz pensar se, no fundo do coração, ele não estará meio inseguro.

 — Assim, se lhe dermos uma prova de que realmente somos capazes de causar um terremoto...

 — Talvez ele pense uma segunda vez. Star pareceu deprimida.

 — Que merda! — exclamou. — Acho que eu tinha esperança de que não tivéssemos de fazer isso.

 Priest ficou alarmado. Não queria que Star sentisse medo naquela hora. Seu apoio era necessário para conduzir os outros Comedores de Arroz.

 — Podemos fazer isso sem machucar ninguém — disse. — Melanie escolheu a locação perfeita — ele virou-se para o banco de trás. — Conte para Star o que conversamos.

 Melanie inclinou-se para a frente e desdobrou um mapa para que Star e Priest pudessem vê-lo. Ela não sabia que Priest não era capaz de ler mapas.

 — Aqui está a falha do vale de Owens — disse, apontando uma linha vermelha. — Nele houve importantes terremotos em 1790 e 1812, de modo que outro está por acontecer.

 Star ficou curiosa.

 — Não vai me dizer que os terremotos acontecem segundo uma tabela previsível?

 — Não. Mas a história da falha mostra que se acumula pressão suficiente para um terremoto no decurso aproximado de um século. O que significa que podemos causar um agora se formos para o local correto.

 — E onde é? — indagou Star.

 Melanie indicou um ponto no mapa.

 — Mais ou menos aqui.

 — Você não pode ser exata?

 — Não enquanto eu não chegar lá. Os dados de Michael designam um ponto com aproximação de mil e quinhentos metros, mais ou menos. Quando eu olhar a paisagem, serei capaz de precisar o ponto.

 — Como?

 — Indícios de terremotos anteriores.

 — OK.

 — Agora, a melhor ocasião, segundo a janela sísmica de Michael, será entre uma e meia e duas e vinte.

 — Como você pode ter certeza de que ninguém se machucará?

 — Olha só o mapa. O vale de Owens é escassamente povoado, só umas poucas cidadezinhas ao longo de um leito seco. O ponto que escolhi fica a quilômetros de qualquer habitação.

 Priest acrescentou.

 — Podemos ter certeza de que o terremoto será de pequena intensidade. Os efeitos dificilmente serão sentidos na cidade mais próxima – Priest sabia que aquilo não era certo, da mesma forma que Melanie; mas ele lhe dirigiu um olhar penetrante, e ela, portanto, não o contestou.

 Star disse:

 — Se os efeitos mal serão sentidos, ninguém vai dar a mínima. Por que então nos darmos ao trabalho?

 Ela estava sendo do contra, mas era apenas um sinal de como estava tensa. Priest respondeu:

 — Dissemos que íamos causar um terremoto amanhã. Assim que tivermos conseguido, ligaremos para John Truth pelo telefone celular de Melanie e lhe diremos que cumprimos nossa promessa. Que momento glorioso será esse, que sensação!

 — Ele acreditará em nós?

 — Vai ter que acreditar — respondeu Melanie — quando consultar o sismógrafo.

 — Imagine como o governador Robson e sua gente irão se sentir – Priest podia distinguir a exultação na própria voz. Especialmente aquele panaca do Honeymoon. Vão dizer algo como: "Porra! Esses caras são mesmo capazes de causar terremotos, cara. Que é que nós vamos fazer?"

 — E depois? — quis saber Star.

 — Depois ameaçamos repetir a dose. Mas desta vez não daremos um mês. Daremos a eles uma semana.

 — Como faremos a ameaça? Da mesma maneira que antes?

 Foi Melanie quem respondeu.

 — Acho que não. Tenho certeza de que eles têm um jeito de monitorar a BBS e rastrear o telefonema. E se usarmos uma outra BBS, correremos o risco de ninguém tomar conhecimento da nossa mensagem. Lembrem-se de que se passaram três semanas até que John Truth veio a saber da primeira.

 — Quer dizer então que telefonamos e os ameaçamos com um segundo terremoto.

 Priest interveio.

 — Mas da próxima vez não será numa região remota, e sim num lugar onde possam ser causados danos reais — ele percebeu o olhar apreensivo de Star. — Não precisamos falar a sério — acrescentou. — Uma vez que tivermos mostrado nosso poder, apenas a ameaça terá de ser suficiente.

 Star exclamou:

 — Inshallah — ela aprendera a palavra com Poem, que era argelina. – Se Deus quiser.

 

 Estava escuro como breu quando saíram na manhã seguinte. O vibrador sísmico não fora visto à luz do dia em um raio de cento e cinqüenta quilômetros do vale, e Priest queria que continuasse assim. Planejava sair e voltar no escuro. A viagem de ida e volta somaria cerca de oitocentos quilômetros, onze horas dirigindo um caminhão com a velocidade máxima de setenta quilômetros por hora. Levariam o Cuda como reforço, Priest decidira. Oaktree iria com eles a fim de compartilhar a tarefa de dirigir.

 Priest usou a lanterna para iluminar o caminho por entre as árvores até o local onde o caminhão ficara escondido. Os quatro iam silenciosos, cheios de ansiedade.

 Levaram meia hora para remover os galhos que tinham empilhado em cima do veículo.

 Sentia-se tenso quando finalmente sentou-se atrás do volante, enfiou a chave na ignição e ligou o motor. Funcionou de primeira, com um ronco satisfatório, e ele exultou.

 As casas da comunidade ficavam a uns dois quilômetros, e ele tinha certeza de que ninguém ouviria o motor àquela distância. A floresta densa abafava o barulho. Mais tarde, é claro, todo mundo notaria que quatro membros da comunidade tinham desaparecido. Aneth fora instruída para explicar que eles tinham ido a um parreiral que Paul Beale queria que vissem em Napa, onde fora plantada uma nova videira híbrida. Não eram comuns as viagens para fora da comunidade; mas haveria poucas perguntas, porque ninguém gostava de desafiar Priest.

 Ele acendeu os faróis e Melanie instalou-se ao seu lado. Depois foi só engrenar a primeira, dirigir a pesada viatura por entre as árvores até a trilha de terra, subir a elevação e rumar para a estrada. Os pneus apropriados a qualquer terreno ultrapassaram com facilidade as depressões e as imensas poças d'água.

 Jesus, eu só queria saber se isso vai funcionar. Um terremoto? Deixa isso!

 Mas tem que funcionar.

 Ele pegou a estrada e seguiu na direção leste. Vinte minutos depois tinham saído do vale e chegado na Rota 89. Lá Priest virou para o sul. Verificou nos espelhos e viu que Star e Oaktree ainda estavam atrás, no `Cuda.

 Ao seu lado, Melanie mostrava-se muito calma. Sondando delicadamente, ele perguntou:

 — Dusty estava bem ontem à noite?

 — Ótimo, ele gosta de visitar o pai. Michael sempre conseguiu encontrar tempo para ele, nunca para mim.

 A amargura de Melanie era costumeira. O que surpreendeu Priest foi sua falta de medo. Ao contrário dele, não estava muito preocupada com o que aconteceria com o filho caso morresse hoje. Parecia completamente confiante de que nada sairia errado, que o terremoto não a atingiria.

 Seria por saber mais que Priest? Ou era o tipo de pessoa que simplesmente ignorava os fatos desagradáveis? Priest não sabia ao certo.

 De madrugada eles estavam contornando a extremidade norte do lago Tahoe. A água imóvel parecia um disco de aço polido caído entre as montanhas. O vibrador sísmico era um veículo que se destacava na estrada sinuosa que acompanhava a orla de pinheiros do lago, mas os turistas ainda dormiam e o caminhão foi visto apenas por uns poucos trabalhadores de olhos vermelhos de sono, a caminho de seus empregos nos hotéis e restaurantes.

 Quando o sol raiou eles se encontravam na rodovia federal US 395, do outro lado da fronteira, em Nevada, rodando rumo ao sul por uma planície desértica. Descansaram um pouco numa parada para caminhões, estacionando o vibrador sísmico em um ponto de onde não podia ser visto da estrada, e comeram um desjejum de omeletes gordurosas à moda do oeste e café aguado.

 Quando a estrada entrou de novo na Califórnia, subiu a cadeia de montanhas e por umas duas horas o cenário foi majestoso, com trechos íngremes cobertos de florestas, uma versão maior do vale onde moravam. A parada seguinte foi ao lado de um espelho d'água prateado que Melanie disse ser o lago Mono.

 Logo depois, eles se viram em uma estrada de pista dupla que seguia reta ao longo de um vale comprido e poeirento. O vale foi se alargando até que as montanhas do lado mais distante desapareceram em uma névoa azul no horizonte, depois estreitou-se de novo. O solo de ambos os lados da estrada era bege e pedregoso, com umas touceiras de capim baixo aqui e ali. Não havia rio, mas os trechos lisos do terreno onde o sal se depositara lembravam uma distante superfície de água.

 Melanie disse:

 — Isto aqui é o vale do rio Owens.

 A paisagem deu a Priest a sensação de que um desastre qualquer ocorrera naquela região.

 — O que foi que aconteceu aqui? — perguntou ele.

 — O rio secou porque a água foi desviada para Los Angeles há alguns anos.

 Passavam por uma cidadezinha sonolenta mais ou menos a cada quarenta quilômetros. Agora não havia como passar despercebido. Havia pouco tráfego, e o vibrador sísmico atraía olhares curiosos em cada sinal onde paravam. Muitos homens iam se lembrar dele.

 Sim, eu vi aquele caminhão, sim. Parecia desses que trabalham em asfaltamento ou algo assim. O que era, afinal?

 Melanie ligou o laptop, desdobrou o mapa e disse, em tom de devaneio:

 — Em algum ponto debaixo de nós, duas vastas placas da crosta terrestre estão presas uma na outra, lutando para se livrarem.

 A idéia gelou Priest. Mal podia acreditar que pretendia liberar toda aquela força destruidora. Eu devo estar maluco.

 — Um ponto qualquer nos próximos oito ou dezesseis quilômetros – disse ela.

 — Que horas são?

 — Uma e pouco.

 Tinham conseguido fazer no tempo exato. A janela sísmica se abriria em meia hora e estaria fechada cinqüenta minutos mais tarde.

 Melanie fez Priest pegar uma saída lateral que atravessava o vale. Não chegava a ser uma estrada, só uma trilha aberta no meio da vegetação e dos matacões de pedra. Embora o terreno parecesse quase nivelado, a estrada principal desapareceu de vista às costas deles, que agora viam

apenas a parte de cima dos caminhões altos que passavam.

 — Pare aqui — disse Melanie por fim.

 Priest parou o caminhão e os dois saltaram. O sol os castigou, brilhando em um céu impiedoso. O `Cuda parou logo atrás e Star e Oaktree saltaram, esticando os braços e pernas após a longa viagem.

 — Olha só aquilo ali — disse Melanie. — Está vendo a ravina seca?

 Priest viu onde um curso de água, muito tempo atrás, secara e escavara um canal no solo pedregoso. Mas para onde Melanie apontava, a ravina terminava de forma abrupta, como se tivesse sido represada.

 — Estranho — comentou ele.

 — Agora olhe só uns metros à direita.

 Priest seguiu o dedo dela. O canal escavado pela água começava de novo tão abruptamente quanto terminara e continuava na direção do meio do vale. Priest percebeu o que ela apontava.

 — Aquela é a linha da falha — disse ele. — A última vez em que houve um terremoto, todo um lado do vale deslocou-se lateralmente uns cinco metros e se acomodou de novo.

 — É isso aí — concordou Melanie.

 Oaktree perguntou:

 — E estamos prestes a fazer com que isso aconteça de novo, certo? — havia uma nota de assombro na voz dele.

 — Vamos tentar — disse Priest bruscamente. — E não temos muito tempo — ele se virou para Melanie. — O caminhão está no lugar certo?

 — Acho que sim — respondeu Melanie. — Poucos metros para um lado ou para o outro na superfície não deverão fazer muita diferença oito mil metros abaixo do nível do solo.

 — OK — ele hesitou. Quase sentia que devia fazer um discurso. Disse:

 — Bem, vou começar.

 Entrou na cabina do caminhão e ajeitou-se no banco do motorista. Ligou o motor que fazia o vibrador funcionar. Acionou a alavanca que abaixava a placa de aço até o solo. Colocou o vibrador para sacudir por trinta segundos na freqüência média. Olhava através da janela de trás e verificava os controles. Todas as leituras normais. Por fim, pegou o controle remoto que funcionava por ondas de rádio e saltou do caminhão.

 — Tudo pronto — disse.

 Os quatro entraram no `Cuda. Oaktree assumiu a direção.

 Voltaram até a estrada, cruzaram-na e se enfiaram no meio dos arbustos do lado mais distante. Subiram mais ou menos a metade da encosta e, por fim, Melanie disse:

 — Aqui está bom.

 Oaktree parou o carro.

 Priest esperava que não estivessem chamando a atenção de quem passasse na estrada. Se fossem vistos de lá, não havia nada que pudesse fazer.

 Mas as cores esmaecidas da pintura lateral do `Cuda se misturavam bem com a paisagem cor de terra. Oaktree estava nervoso.

 — Estamos bastante longe?

 — Acho que sim — respondeu Melanie friamente. Ela não estava nem um pouco amedrontada. Ao contrário, examinando-lhe o rosto, Priest reconheceu um indício de louca excitação em seus olhos. Uma coisa quase sexual. Estaria se vingando dos sismólogos que a tinham rejeitado, ou do marido que a desapontara ou do maldito mundo? Qualquer que fosse a explicação, estava se excitando enormemente com o que fazia.

 Saltaram e se detiveram, contemplando o vale. Podiam ver apenas a parte de cima do caminhão.

 Star dirigiu-se a Priest:

 — Foi um erro nós dois virmos. Se morrermos, Flower ficará sem ninguém.

 — Ela tem toda a comunidade — retrucou Priest. — Você e eu não somos os únicos adultos que ela ama e em quem confia. Não somos uma família nuclear, e aí está uma boa razão para não sermos.

 Melanie pareceu aborrecida.

 — Estamos a uns quinhentos metros da falha, presumindo que ela corra pela calha do vale — disse, num tom de voz que os advertia para porem um ponto final naquele papo furado. — Vamos sentir a terra se deslocar, mas não correremos perigo. As pessoas que se ferem em terremotos geralmente são as atingidas por partes de construções: tetos que caem, pontes que desmoronam, vidros que voam, coisas desse gênero. Estaremos seguros aqui.

 Star olhou para trás, por cima do ombro.

 — A montanha não vai cair em cima de nós?

 — Pode ser. Da mesma maneira que todos nós podemos morrer em um acidente no trajeto de volta para Silver River. Mas é tão improvável que não deveríamos perder tempo com isso.

 — E fácil para você dizer — o pai do seu filho está a quinhentos quilômetros de distância, em San Francisco.

 Priest disse:

 — Não me importo se morrer aqui. Não posso criar meus filhos nos subúrbios ricos deste país.

 Oaktree resmungou:

 — Isto tem que dar certo. Simplesmente tem que dar certo.

 — Pelo amor de Deus, Priest, não temos o dia inteiro. Aperte logo o maldito botão — ordenou Melanie.

 Priest olhou para os dois lados da estrada e esperou que um Jeep Grand Cherokee Limited verde-escuro passasse.

 — OK — disse, quando a estrada ficou vazia. — É isso aí.

 E apertou o botão do controle remoto.

 Ele ouviu o ronco do vibrador imediatamente, embora amortecido pela distância. Sentiu também a vibração nas solas dos pés, uma sensação muito tênue, mas definida, de que o chão tremia.

 — Oh, Deus! — exclamou Star.

 Uma nuvem de fumaça formou-se em torno do caminhão.

 Os quatro estavam tensos como cordas de um violão, na expectativa do primeiro sinal de que a terra se movimentava. Passaram-se alguns segundos.

 Os olhos de Priest vasculharam a paisagem, procurando sinais do tremor, embora achasse que o sentiria antes de vê-lo. Vamos, vamos!

 As turmas de exploração sísmica normalmente regulam o vibrador para uma "varredura" de sete segundos. Priest preferira que aquela durasse trinta segundos. Pareceu decorrer uma hora.

 Finalmente o ruído cessou.

 Melanie exclamou:

 — Que droga!

 O coração de Priest contraiu-se. Não havia terremoto.

 Falhara. Talvez fosse apenas uma idéia maluca de hippies, como fazer o Pentágono levitar.

 — Tente de novo — disse Melanie.

 Priest olhou para o controle remoto na sua mão. Por que não?

 Havia um caminhão de dezesseis rodas aproximando-se pela US 395, mas desta vez Priest não esperou. Se Melanie estivesse certa, o caminhão não seria afetado pelo tremor. Se Melanie estivesse enganada, todos eles morreriam.

 Apertou o botão.

 O roncar distante teve início, houve uma vibração perceptível no solo e uma nuvem de poeira escondeu o vibrador sísmico.

 Priest perguntou-se se a estrada não iria se abrir sob o caminhão de dezesseis rodas.

 Nada aconteceu.

 Os trinta segundos decorreram mais rapidamente desta vez. Priest ficou surpreso quando o barulho parou. É só isso?

 O desespero o dominou. Talvez a comunidade deles fosse um sonho que tivesse chegado ao fim. O que é que eu vou fazer? Onde vou morar? Como posso evitar ter um fim igual ao de Bones?

 Mas Melanie não estava pronta para desistir.

 — Vamos deslocar o caminhão um pouco e tentar de novo.

 — Mas você disse que a posição exata não importava. "Poucos metros para um lado ou para o outro na superfície não deverão fazer muita diferença a oito mil metros abaixo do nível do solo", foi o que você disse.

 — Então nos deslocaremos mais alguns poucos metros retrucou Melanie, furiosa. — O tempo está acabando, vamos!

 Priest não discutiu. Ela estava transformada. Normalmente era dominada por ele. Era uma mocinha em perigo, ele a salvara e ela tão agradecida por isso tinha de ser eternamente submissa à sua vontade. Mas agora era Melanie quem estava por cima, impaciente e dominadora. Priest podia tolerar isto desde que ela fosse capaz de fazer o que prometera. Depois a colocaria na linha de novo.

 Entraram no `Cuda e venceram rapidamente a distância que os separava do vibrador sísmico. Então, Priest e Melanie subiram na cabina e ela foi dando as instruções enquanto ele dirigia, com Oaktree e Star seguindo de carro. Não foram mais pela trilha, e sim cortando caminho direto através da vegetação. As enormes rodas do caminhão esmagavam os arbustos e rolavam com facilidade por cima das pedras, mas Priest temia que o `Cuda, que era um carro baixo, pudesse ficar danificado. Achou que Oaktree iria buzinar se tivesse algum problema.

 Melanie examinou a região em busca de algo que indicasse onde corria a linha da falha. Priest não viu mais leitos de cursos de água deslocados. Mas uns quinhentos metros depois, Melanie apontou para o que parecia uma mini-escarpa, com cerca de um metro e meio de altura.

 — Conseqüência da falha — disse ela. — Terá uns cem anos de idade.

 — Estou vendo — confirmou Priest.

 Havia uma parte côncava na base, lembrando uma tigela; e uma falha irregular na orla da tigela mostrava onde a terra se deslocara lateralmente, como se tivesse havido uma rachadura depois colada desajeitadamente.

 — Vamos tentar aqui — disse Melanie.

 Priest parou o caminhão e arriou o prato. Rapidamente ele verificou de novo os medidores e ajustou o vibrador. Desta vez programou uma varredura de sessenta segundos.

 Quando tudo estava pronto saltou do caminhão.

 Consultou o relógio, ansioso. Duas horas. Restavam apenas vinte minutos.

 Mais uma vez atravessaram com o `Cuda a US 395 e subiram a colina do outro lado. Os motoristas dos poucos veículos que passavam continuavam a ignorá-los. Mas Priest estava nervoso. Mais cedo ou mais tarde alguém perguntaria o que faziam ali. Não queria ter que se explicar a um policial curioso ou a algum vereador abelhudo. Tinha pronta uma história plausível, de uma pesquisa universitária sobre a geologia do leito seco do rio, mas não queria que ninguém se lembrasse do seu rosto.

 Todos saltaram do carro e dirigiram os olhares para o outro lado do vale, perto da escarpa que marcava a falha, onde tinha ficado o vibrador sísmico. Priest desejou de todo o coração que desta vez ele visse a terra se mover e se abrir. Vamos, Deus — me faça esse favor, está bem? Apertou o botão.

 O caminhão roncou, a terra tremeu ligeiramente e a poeira subiu. A vibração prosseguiu por todo um minuto, em vez de trinta segundos. Mas não houve terremoto. A diferença foi que esperaram mais tempo para se desapontarem. Quando o barulho cessou, Star disse:

 — Isso não vai dar certo, vai?

 Melanie dirigiu-lhe um olhar furioso e virou-se para Priest:

 — Você pode alterar a freqüência das vibrações?

 — Posso — respondeu ele. — Deixei ajustado um valor mediano, de modo que posso subir ou descer. Por quê?

 — Há uma teoria que diz que o tom em que é produzida a vibração pode ser um fator crucial. A terra ressoa constantemente com todos os tipos de vibrações. Por que então não há terremotos o tempo todo? Talvez porque a vibração tenha que ser no tom exato necessário para desalojar as placas da falha. Sabe como uma nota musical pode espatifar um cálice?

 — Nunca vi acontecer, exceto em um desenho animado, mas sei o que você quer dizer. A resposta é sim. Quando o vibrador é usado em explorações sísmicas, eles variam a freqüência da vibração numa varredura de sete segundos.

 — É mesmo? — Melanie ficou curiosa. — Por quê?

 — Não sei. Talvez porque melhore a leitura dos geofones. De qualquer forma, não me pareceu a coisa certa para nós, por isso não selecionei esse recurso, mas é possível.

 — Vamos tentar.

 — OK — mas precisamos nos apressar. Já são duas e cinco. Eles pularam no carro. Oaktree dirigiu depressa, derrapando na areia do deserto.

 Priest reconfigurou os comandos do vibrador para uma varredura de freqüência crescente num período de sessenta segundos. Quando voltaram correndo para o ponto de observação, consultou o relógio de novo.

 — Duas e quinze — disse. — É a nossa última chance.

 — Não se preocupe — disse Melanie. — Acabou o meu estoque de idéias.

 Se isto não funcionar, eu desisto.

 Oaktree parou o carro e eles saltaram de novo.

 A idéia de voltar até Silver River sem nada para comemorar deprimiu Priest tão profundamente que ele pensou que seria melhor bater com o caminhão na estrada e terminar com tudo. Talvez fosse esta a sua saída.

 Gostaria de saber se Star ia querer morrer com ele. Posso ver a cena: nós dois, uma overdose de analgésicos, uma garrafa de vinho para engolir as pílulas...

 — O que é que você está esperando? — perguntou Melanie. — São duas e vinte. Aperte o maldito botão!

 Priest apertou o botão.

 Como antes, o caminhão roncou, o chão tremeu e uma nuvem de poeira se levantou da terra ao redor da placa de aço do vibrador. Mas desta vez o ronco não permaneceu no mesmo tom moderado: começou em um tom muito grave e foi ascendendo gradualmente. Aí aconteceu.

 A terra debaixo dos pés de Priest pareceu ondular como um mar agitado. Depois ele sentiu como se alguém tivesse segurado suas pernas e o derrubado. Caiu de costas na horizontal, batendo com força no chão. Chegou a perder o fôlego.

 Star e Melanie gritaram ao mesmo tempo. Melanie deu um grito agudo e Star um urro de espanto e medo. Priest viu as duas caírem, Melanie junto dele e Star a uns passos de distância. Oaktree balançou, continuou de pé, mas acabou caindo.

 Priest permaneceu silenciosamente apavorado. Consegui, acabou, vou morrer. Houve um barulho como o de um trem expresso passando bem junto deles. Soltou-se uma nuvem de poeira do solo; pequenos seixos voaram pelo ar e os matacões de pedra rolaram em todos os sentidos.

 O solo continuou a se mover como se alguém tivesse segurado a ponta de um tapete e não parasse de sacudir. O efeito geral era uma sensação inacreditavelmente desorientadora, como se o mundo tivesse se tornado, de repente, um lugar completamente estranho. Apavorante. Eu não estou pronto para morrer.

 Priest conseguiu recuperar o fôlego e ajoelhar-se. Depois, quando conseguiu pôr a sola de um pé no chão, Melanie agarrou-o pelo braço e o puxou de novo para baixo.

 Ele gritou com ela:

 — Largue-me sua filha da puta burra! — mas nem ele pôde ouvir a própria voz.

 O solo subiu e o lançou colina abaixo, para longe do carro. Melanie caiu em cima dele. Priest achou que o carro podia virar por cima dos dois, e tentou rolar para fora da trilha dele. Não podia ver Star ou Oaktree. Um graveto passou voando e bateu no seu rosto arranhando-o. A poeira o cegou momentaneamente e ele perdeu todo o senso de direção. Encolheu-se, formando uma bola, cobrindo o rosto com os braços e esperou pela morte.

— Cristo, se vou morrer, queria morrer na companhia da Star.

 As sacudidelas pararam tão repentinamente quanto tinham começado. Não fazia idéia se haviam durado dez segundos ou dez minutos. Um momento depois o barulho cessou por completo. Priest esfregou os olhos e se levantou. Sua visão foi clareando lentamente. Viu Melanie a seus pés. Estendeu a mão e puxou-a.

 — Você está bem? — perguntou.

 — Acho que sim — replicou ela, trêmula.

 A poeira no ar foi diminuindo e ele viu Oaktree se levantando, meio sem firmeza. Onde estaria Star? Só então a viu a alguns metros de distância. Estava deitada de costas com os olhos fechados. O coração dele confrangeu-se. Morta não, por favor, Deus, morta não. Ajoelhou-se ao lado dela.

 — Star! — exclamou, nervoso. — Você está bem?

 Ela abriu os olhos.

 — Jesus — disse -, aquilo foi uma explosão!

 Priest sorriu, contendo as lágrimas de alívio. Ajudou-a a se levantar.

 — Estamos todos vivos — disse ele.

 A poeira estava assentando depressa. Do outro lado do vale, era possível ver o caminhão. De pé e aparentemente intocado. A poucos metros dele havia uma grande fenda no solo, que corria na direção norte-sul pelo meio do vale, estendendo-se tão longe quanto ele podia ver.

 — Bem, macacos me mordam — disse ele baixinho. — Olha só para aquilo.

 — Funcionou — respondeu Melanie.

 — Conseguimos — disse Oaktree. — Porra, nós causamos um filho da puta de um terremoto!

 Priest sorriu para todos eles.

 — É verdade! — confirmou.

 Ele beijou Star, e depois Melanie; em seguida Oaktree beijou ambas e por fim Star beijou Melanie.

 Todos riram. Então Priest começou a dançar. Foi uma espécie de dança índia , ali no meio do vale fraturado, as botas chutando a poeira recém-depositada. Star veio se juntar a ele, e depois Melanie e Oaktree e os quatro rodaram e rodaram em círculo, gritando e berrando e rindo

até que seus olhos se encheram de lágrimas.

 

 Judy Maddox voltava de carro para casa em uma sexta-feira no final da pior semana da sua carreira no FBI. Não podia imaginar o que fizera para merecer aquilo. Tudo bem, gritara com seu chefe, mas ele fora hostil com ela antes, de modo que tinha que haver outra razão. Fora a Sacramento na véspera com a intenção de fazer o Bureau parecer eficiente e competente, e acabara dando uma impressão de confusão e impotência. Sentia-se frustrada e deprimida.

 Nada de bom lhe acontecera desde o encontro com Al Honeymoon. Ligara para professores de sismologia e os entrevistara pelo telefone. Perguntava se o professor estava trabalhando em locações de pontos críticos nas linhas que demarcavam as falhas nas placas tectônicas. Em caso afirmativo, quem mais tinha acesso a esses dados? E alguma dessas pessoas teria por acaso conexões com grupos terroristas?

 Os cientistas não tinham ajudado muito. Os professores de hoje tinham sido estudantes nos anos 60 e 70, quando o FBI pagara a todos os canalhas existentes nos campi universitários para espionar os movimentos de protesto. Fora há muito tempo, mas eles não tinham esquecido. Para eles o Bureau era o inimigo. Judy compreendia como se sentiam, mas gostaria que não fossem nem passivos nem agressivos com agentes que trabalhavam em prol do interesse público.

 O prazo fatal do Martelo do Éden terminava hoje, e não tinha havido terremoto. Judy sentia-se profundamente aliviada, muito embora isto significasse que errara ao encarar seriamente a ameaça. Talvez tudo terminasse assim. Disse a si própria que teria um fim de semana repousante. O tempo estava maravilhoso, ensolarado e quente. Hoje à noite faria galinha frita para Bo e abriria uma garrafa de vinho. Amanhã tinha que ir ao supermercado, mas no domingo podia pegar o carro e subir a costa até a baía de Bodega e sentar na praia, lendo um livro como uma pessoa normal. Na segunda-feira provavelmente lhe dariam nova missão. Talvez pudesse começar tudo ; de novo. Pensou se valeria a pena telefonar para sua amiga Virgínia para ver se ela queria ir à praia.

 Ginny era sua amiga mais antiga. Também filha de policial e da mesma idade que Judy, era diretora de vendas de uma firma de segurança. Mas Judy sabia que não era companhia feminina que queria. Seria ótimo deitar na praia ao lado de alguém com as pernas cabeludas e voz grave. Fazia um ano que brigara com Don: era o período de tempo mais longo que ficava sem um amante desde a adolescência. Na faculdade fora um tanto desregrada, quase promíscua; quando trabalhara numa companhia de seguros, a Mutual American Insurance, tivera um caso com o chefe; depois vivera com Steve Dolen por sete anos e quase se casara com ele. Pensava com freqüência em Steve. Era atraente, inteligente e bom — bom demais, talvez, porque no fim começara a vê-lo como um fraco. Talvez quisesse o impossível. Talvez todos os homens educados e atenciosos fossem mesmo fracos, e todos os fortes, como Don Riley, terminassem transando com suas secretárias.

 O telefone do carro tocou. Não precisava levantar o aparelho. Após dois toques o sistema de viva-voz era acionado automaticamente.

 — Alô — disse ela. — Aqui é Judy Maddox.

 — E aqui é o seu pai.

 — Oi, Bo. Vai jantar em casa? Podíamos comer...

 Ele a interrompeu.

 — Liga o rádio do carro, depressa — disse. — Sintoniza no John Truth.

 Cristo, o que era agora? Judy acionou o botão do rádio. Entrou uma estação que tocava rock. Pressionou o botão onde estava pré-sintonizada a estação de San Francisco que transmitia John Truth Live. O sotaque nasalado dele encheu o carro.

 John Truth estava falando do modo dramático exagerado, que usava para sugerir que o que tinha a dizer era terrivelmente importante.

 — O Departamento de Sismologia do estado da Califórnia acaba de confirmar que houve um terremoto hoje — exatamente no dia em que o Martelo do Éden prometeu que faria a terra tremer. O terremoto teve lugar vinte minutos depois das duas horas da tarde em Owens Valley, exatamente como disse o Martelo do Éden no telefonema dado para este programa há poucos minutos.

 Meu Deus — eles fizeram o que prometeram.

 Judy sentiu-se eletrizada. Esqueceu sua frustração e a depressão desvaneceu- se. Sentia-se viva de novo.

 John Truth continuou falando:

 — Mas o mesmo sismólogo do estado negou que este ou qualquer outro terremoto possa ter sido causado por um grupo terrorista.

 Seria verdade? Judy tinha que saber. O que outros sismólogos pensariam? Tinha que dar uns telefonemas. Depois ouviu John Truth dizer:

 — Em mais um momento tocaremos uma gravação da mensagem deixada pelo Martelo do Éden.

 Uma fita com a voz deles!

 Com isto os terroristas talvez tivessem cometido um erro crucial. Podiam não saber, mas uma voz gravada em fita seria capaz de fornecer uma massa de informações quando analisada por Simon Sparrow.

 Truth prosseguiu.

 — Enquanto isso, o que é que você pensa? Acredita no sismólogo do governo? Ou acha que ele está fingindo não ter medo, como quem passa assobiando pela calçada do cemitério? Talvez você seja sismólogo e tenha uma opinião sobre as possibilidades técnicas do caso. Ou, quem sabe, não passa de um cidadão preocupado, que acha que as autoridades deveriam estar tão preocupadas quanto você. Telefone para John Truth Live agora neste número e diga ao mundo o que pensa. Entrou um comercial de uma casa de móveis e Judy reduziu o volume.

 — Ainda está aí, Bo?

 — Claro.

 — Eles conseguiram, não foi?

 — Com certeza parece que sim.

 Ela gostaria de saber se o pai estava sendo sinceramente desconfiado ou se só queria ser cauteloso.

 — O que diz o seu instinto?

 Ele deu outra resposta ambígua:

 — Que essas pessoas são muito perigosas.

 Judy tentou acalmar o coração em disparada e concentrar-se no que devia fazer em seguida.

 — Acho melhor ligar para Brian Kincaid...

 — O que é que você vai dizer a ele?

 — A notícia... Espere um minuto — Bo estava querendo demonstrar algo.

 — Você não acha que eu deva ligar para ele.

 — Acho que você só deve telefonar para o seu chefe quando puder lhe dizer algo que ele não possa escutar no rádio.

 — Você está certo — Judy se sentiu mais calma quando começou a avaliar as possibilidades. — Acho que vou voltar para o trabalho — ela fez uma curva para a direita.

 — OK. Estarei em casa dentro de mais ou menos uma hora. Telefone se quiser comer qualquer coisa.

 Ela sentiu uma onda de afeição por ele.

 — Obrigada, Bo. Você é um pai maravilhoso. Ele riu.

 — E você também é uma filha ótima. Até logo mais.

 — Até logo — ela pressionou o botão que encerrava a ligação e em seguida aumentou o volume do rádio.

 Ouviu uma voz baixa e sexy falando:

 — Aqui é o Martelo do Éden com uma mensagem para o governador Mike Robson.

 A imagem que lhe veio à cabeça foi de uma mulher madura, com seios grandes e sorriso largo, simpática mas nada convencional.

 Será o meu inimigo?

 O tom mudou e a mulher murmurou.

 — Que merda, eu não esperava ter que falar num gravador.

 Ela não é o cérebro organizacional por trás de tudo isso. É bruta demais. Está recebendo instruções de outra pessoa.

 A mulher retomou a voz formal e continuou:

 — Conforme prometemos, causamos um terremoto hoje, quatro semanas depois da nossa última mensagem. Aconteceu no Owens Valley pouco depois das duas horas, como podem verificar.

 Um distante barulho ao fundo fez com que hesitasse. O que fora aquilo? Simon descobrirá.

 Um segundo mais tarde ela prosseguia:

 — Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos. Agora que sabe que somos capazes de fazer o que dizemos, é melhor pensar de novo na nossa exigência. Anuncie a cessação da construção de novas usinas elétricas na Califórnia. Tem sete dias para se decidir.

 Sete dias! A última vez nos deram quatro semanas.

 — Após esse tempo causaremos outro terremoto. Só que o próximo não será em um lugar desabitado, no meio do nada. Se formos obrigados, causaremos prejuízos reais.

 Uma escalada cuidadosamente calculada da ameaça. Jesus, essas pessoas me amedrontam.

 — Não gostamos disso, mas é o único jeito. Por favor, faça o que pedimos, para que este pesadelo possa terminar.

 John Truth retomou o microfone.

 — O que acabaram de ouvir foi a voz do Martelo do Éden, o grupo que afirma ter desencadeado o terremoto que sacudiu o vale Owens hoje.

 Judy precisava daquela fita. Reduziu o volume de novo e discou o número da casa de Raja. Ele era solteiro. Podia desistir da noite de sexta-feira.

 Quando ele atendeu, ela disse:

 — Oi, aqui é a Judy.

 Ele respondeu imediatamente:

 — Não posso, tenho bilhetes para a ópera!

 Ela hesitou e decidiu aceitar a brincadeira.

 — Qual ópera?

 — Bem... O casamento de Macbeth.

 Judy conteve uma risada.

 — De Ludwig Sebastian Wagner?

 — Exato.

 — Não existe essa ópera, nem esse compositor. Você vai trabalhar hoje à noite.

 — Droga.

 — Por que não inventou um grupo de rock? Eu teria acreditado em você.

 — Eu sempre me esqueço da sua idade.

 Ela riu. Raja tinha vinte e seis anos, Judy trinta e seis.

 — Vou considerar isso como um cumprimento.

 — Qual é a missão? — ele não pareceu relutante.

 Judy voltou a falar sério.

 — OK, aqui vai. Houve um terremoto na região oriental do estado nesta tarde, e o Martelo do Éden afirma ser o autor do fenômeno.

 — Uau! Talvez esses caras existam, afinal! — ele parecia mais satisfeito do que assustado. Era jovem e inteligente, mas não pensou nas implicações.

 — John Truth acaba de reproduzir uma mensagem gravada pelos terroristas. Preciso que você vá à estação de rádio e consiga a fita.

 — Estou a caminho.

 — Certifique-se de que consegue a original, e não uma cópia. Se quiserem engrossar, diga que conseguimos um mandado judicial em menos de uma hora.

 — Ninguém engrossa comigo. Sou o Raja, lembra? Era verdade. Ele era um sedutor.

 — Depois leve a fita a Simon Sparrow e diga a ele que vou precisar de qualquer coisa pela manhã.

 — Deixa comigo.

 Ela desligou o telefone e aumentou o volume do programa de John Truth de novo. Ele estava dizendo:

—  ... um pequeno terremoto, aliás, entre grau cinco e seis de magnitude.

 Como diabos eles conseguiram fazer isso?

 — Nenhum ferido, nenhum dano a casas ou outras propriedades, mas um tremor que foi indubitavelmente sentido pelos residentes de Bishop, Bigpine, Independence e Lone Pine.

 Algumas dessas pessoas devem ter visto os terroristas nas últimas horas, ponderou Judy. Tinha que ir para lá e começar a interrogá-las o mais cedo possível.

 Onde exatamente fora o terremoto? Precisava falar com um perito. A escolha óbvia era o sismólogo do estado. Ele, no entanto, parecia ter a mente fechada. Já declarara de antemão a impossibilidade do terremoto ter sido causado pela mão do homem. Aquilo a irritava. Queria uma pessoa que estivesse disposta a raciocinar sobre todas as possibilidades. Pensou em Michael Quercus. Ele podia ser um pé no saco, mas não tinha medo de especular. Além do mais ficava logo ali, do outro lado da baía, em Berkeley, enquanto que o sismólogo do Estado tinha sede em Sacramento.

 Se aparecesse lá sem marcar a entrevista, se recusaria a atendê-la. Judy suspirou e discou o número dele.

 Por um momento não houve resposta, e ela pensou que ele tivesse saído. Atendeu após seis toques.

 — Quercus — disse, parecendo aborrecido com a interrupção.

 — Aqui é Judy Maddox, do FBI. Preciso falar com você. É urgente e eu gostaria de ir para a sua casa imediatamente.

 — Fora de questão. Estou com uma outra pessoa.

 Eu devia ter imaginado que seria difícil.

 — Quem sabe depois que o seu encontro terminar?

 — Não é um encontro, e só vai acabar no domingo.

 É, tudo bem. Ele estava com uma mulher, pensou Judy. Só que lhe dissera quando se conheceram que não andava vendo ninguém. Por uma razão qualquer ela se lembrava exatamente de suas palavras: "Estou separado de minha mulher e não tenho namorada." Talvez tivesse mentido. Ou podia ser uma pessoa nova mesmo que não parecesse, já que esperava que ela ficasse o fim de semana. Por outro lado, Michael era arrogante o suficiente para presumir que uma garota fosse para a cama com ele no primeiro encontro, da mesma forma que também era atraente o bastante para que muitas garotas provavelmente fossem mesmo. Não sei por que estou tão interessada em sua vida amorosa.

 — Você ouviu o rádio? — perguntou. — Houve um terremoto, e o grupo terrorista sobre o qual falamos afirma ter sido o causador.

 — É mesmo? — ele pareceu intrigado, a despeito de si próprio. – E estão falando a verdade?

 — É isso que preciso discutir com você.

 — Entendo.

 Vamos, seu filho da mãe teimoso — ceda, pelo menos uma vez na vida.

 — É realmente importante, professor.

 — Gostaria de ajudá-la... mas realmente não é possível esta noite... Não, espera. — A voz dele ficou abafada quando cobriu o bocal com a mão, mas assim mesmo Judy conseguiu distinguir as palavras. — Ei, quer conhecer uma agente do FBI de verdade? — não foi possível ouvir a resposta, mas após um momento ele lhe disse: — OK, minha visita gostaria de conhecer você. Venha.

 Ela não gostou da idéia de desfilar como uma espécie de mulher barbada do circo, mas àquela altura não ia dizer isso.

 — Obrigada, estarei aí em vinte minutos — concluiu, desligando o telefone.

 Enquanto percorria a ponte, ia refletindo que nem Raja nem Michael tinham parecido amedrontados. Raja ficara entusiasmado. Michael, intrigado. Ela, também, sentia-se revigorada com o súbito renascimento do seu caso; mas quando lembrou do terremoto de 1989 e das cenas mostradas pela televisão das equipes de salvamento trazendo os corpos das pessoas mortas no desmoronamento do elevado duplo da Nimitz Freeway, ali mesmo em Oakland, e considerou a possibilidade de um grupo terrorista ter como provocar aquilo, sentiu o coração frio e apertado.

 Para espairecer, tentou adivinhar como seria a namorada de Michael Quercus. Tinha visto o retrato da esposa dele, uma ruiva com corpo de supermodelo e olhar distante. Ele parece gostar do exótico. Mas tinham rompido, de modo que ela talvez não fosse o seu tipo de mulher. Judy podia vê-lo na companhia de uma professora, de óculos de aro fino, desses que estão na moda, cabelo curto bem cortado e sem pintura. Só que, por outro lado, esse tipo de mulher não atravessaria sequer a rua para conhecer uma agente do FBI. O mais provável era que ele tivesse pegado uma garota burrinha mas sexy, capaz de se impressionar facilmente. Judy visualizou uma garota de roupa justa, fumando e mascando goma ao mesmo tempo, dando uma olhada no apartamento dele e perguntando: Você leu mesmo todos esses livros?

 Não sei por que estou tão obcecada com a sua namorada quando tenho tantas outras coisas com que me preocupar.

 Parou o carro debaixo do mesmo pé de magnólia. Tocou a campainha do apartamento de Michael, que abriu o fecho elétrico da porta da rua e foi esperá-la na porta descalço, com uma aparência agradável típica de fim de semana: calça-jeans azul e camiseta branca. Uma garota podia se divertir um bocado se passasse um fim de semana transando com ele. Seguiu-o até o escritório que servia ao mesmo tempo de sala de estar.

 Ali, para seu espanto, viu um garotinho de seus cinco anos, a cara cheia de sardas e os cabelos louros, vestindo um pijama estampado de dinossauros. Bastou um momento para reconhecê-lo como sendo a criança cuja foto estava na escrivaninha. O filho de Michael. Era ele o seu convidado para o fim de semana. Sentiu vergonha por ter imaginado uma loura burra. Fui um pouco injusta com você, professor.

 Michael fez a apresentação:

 — Dusty, conheça a agente especial Judy Maddox.

 O menino apertou-lhe polidamente a mão e perguntou:

 — Você trabalha mesmo no FBI?

 — Sim, trabalho.

 — Uau!

 — Quer ver meu crachá? — ela pegou o escudo na bolsa a tiracolo e deu para ele. O menino o segurou reverentemente.

 Michael disse:

 — Dusty gosta de assistir Os Arquivos X. Judy sorriu.

 — Não trabalho no Departamento de Espaçonaves Alienígenas. Só faço é prender criminosos comuns aqui da Terra mesmo.

 — Posso ver sua arma?

 Judy hesitou. Sabia que meninos são fascinados por armas, mas não gostava de encorajar esse interesse. Olhou para Michael, que deu de ombros. Desabotoou o casaco e tirou a arma do coldre de ombro.

 Ao fazê-lo, surpreendeu Michael de olho nos seus seios, e sentiu um súbito frêmito sexual. Agora que ele não estava mal-humorado, era um homem atraente, com os pés descalços e a camiseta para fora da calça.

 Ela disse:

 — Armas são muito perigosas, Dusty, por isso eu vou ficar segurando, mas você pode olhar.

 A expressão de Dusty olhando para a pistola foi a mesma do pai quando ela abriu o casaco. O pensamento fez com que risse.

 Após um minuto Judy recolocou a pistola no coldre. Dusty disse, com caprichada polidez:

 — Nós íamos comer um pouco de Capn Crunch. Você gostaria de nos fazer companhia?

 Judy estava impaciente para interrogar Michael, mas sentiu que seria mais proveitoso se fosse paciente e aceitasse o jogo de Dusty.

 — É muita gentileza sua — disse. — Estou com fome e adoraria comer um pouco de Cap'n Crunch.

 — Vamos para a cozinha.

 Os três se sentaram à mesa forrada de plástico na pequena cozinha e comeram cereal e leite em alegres tigelas de cerâmica azul. Judy deu-se conta de que estava com fome; já era bem tarde.

 — Meu Deus — exclamou ela — eu tinha esquecido como Cap'n Crunch era bom!

 Michael riu. Judy ficou assombrada com a diferença que observou nele. Estava amável e relaxado. Parecia uma pessoa diferente do sujeito rancoroso que a obrigara a voltar para o escritório e marcar uma entrevista pelo telefone. Começava a gostar do professor Michael Quercus.

 Depois que comeram, Michael foi preparar Dusty para dormir. Dusty perguntou ao pai:

 — A agente Judy pode me contar uma história?

 Judy conteve a impaciência. Tenho sete dias. Posso esperar mais cinco minutos. Ela disse:

 — Acho que seu pai vai querer contar uma história para você, Dusty, porque ele não faz isso com a freqüência que gostaria.

 — Está tudo bem — disse Michael com um sorriso. — Eu escuto.

 Os três foram para o quarto de dormir.

 — Não sei muitas histórias, mas me lembro de uma que mamãe costumava me contar — disse Judy. — É a lenda do dragão bonzinho. Gostaria de ouvir?

 — Sim, por favor — pediu Dusty.

 — Também quero — ecoou Michael.

 — Era uma vez, muito, mas muito tempo atrás, um dragão bonzinho que vivia na China, de onde são todos os dragões. Um dia o dragão bonzinho saiu passeando sem rumo. Passeou tanto e foi tão longe que saiu da China e se perdeu numa terra selvagem.

 — Após muitos dias perdido, ele chegou em outro país, bem mais ao sul, e que era o lugar mais bonito que o dragão bonzinho já vira, com florestas, montanhas e vales férteis, e rios onde ele podia tomar banho e chapinhar na água. Havia bananeiras e amoreiras carregadas de frutos maduros. O tempo era sempre quente com uma brisa agradável.

 — Mas havia uma coisa errada. Era uma terra vazia. Ninguém vivia lá: nem gente nem dragões. Assim, embora o dragão bonzinho adorasse sua nova terra, sentiu-se tremendamente solitário.

 — No entanto, ele não sabia o caminho de volta para casa, de modo que vagava de um lado para outro, procurando alguém que lhe fizesse companhia. Finalmente, num dia de sorte, encontrou a única pessoa que vivia ali — uma princesa que também era fada. Era tão bonita que se apaixonou por ela imediatamente. A princesa também se sentia muito só e embora o dragão fosse feio, tinha um coração bondoso e ela o desposou.

 — O dragão bonzinho e a fada princesa se amaram muito e tiveram uma centena de filhos. Todos bravos e bondosos como o pai-dragão e lindos como a mãe-fada.

 — O dragão e a fada cuidaram dos filhos até que todos cresceram. Aí, de repente, desapareceram. Foram viver em amor e harmonia no mundo dos espíritos por toda a eternidade. E seus filhos tornaram-se o bravo, lindo e bondoso povo do Vietnã. A terra onde minha mãe nasceu. Dusty estava de olhos arregalados.

 — É verdade?

 Judy sorriu.

 — Eu não sei, talvez seja.

 — De qualquer maneira, é uma bela história — disse Michael. Ele deu um beijo de boa noite em Dusty.

 Quando Judy saiu do quarto, ouviu Dusty cochichar.

 — Ela é mesmo legal, não é?

 — É — respondeu Michael.

 De volta à sala, Michael agradeceu:

 — Obrigado. Você foi ótima com ele.

 — Não foi nada difícil. Ele é encantador. Michael fez que sim.

 — Saiu à mãe. Judy sorriu.

 Michael também sorriu e comentou:

 — Noto que você não questionou o que eu disse.

 — Não conheço sua esposa. No retrato ela é linda.

 — Ela é linda. E infiel.

 Foi uma confidência inesperada, vinda repentinamente de um homem que considerava tão orgulhoso. Deixou-a comovida. Mas não sabia o que responder.

 Ambos ficaram em silêncio por algum tempo e foi Michael quem falou primeiro:

 — Agora chega da família Quercus. Fale-me sobre o terremoto.

 Finalmente.

 — Aconteceu em Owens Valley esta tarde, vinte minutos depois das duas horas.

 — Vamos dar uma olhada no sismógrafo. — Michael sentou-se à escrivaninha e pôs-se a digitar as teclas do computador.

 Quando Judy deu por si, estava olhando para seus pés descalços. Alguns homens têm pés feios, mas os dele eram bem modelados e vigorosos, com as unhas bem feitas. A pele era branca e havia um pequeno tufo de pêlos escuros em cada dedão.

 Ele não percebeu o exame a que fora submetido.

 — Quando os seus terroristas fizeram aquela ameaça, quatro semanas atrás, especificaram a localização?

 — Não.

 — Na comunidade científica dizem que uma previsão de terremoto bem-sucedida tem que especificar data, localização e magnitude. O seu pessoal só deu a data. Não é muito convincente. Há um terremoto em alguma parte da Califórnia mais ou menos todos os dias. Talvez eles tenham se declarado responsáveis por um fenômeno acontecido naturalmente.

 — Pode me dizer exatamente onde o tremor de hoje teve lugar?

 — Posso. Calcula-se o epicentro por triangulação. Na verdade, o computador faz isso automaticamente. Só tenho que imprimir as coordenadas — após um instante a impressora começou a funcionar.

 — Há algum modo — perguntou Judy — de saber como o terremoto foi causado?

 — Você quer saber se posso dizer pelo gráfico se foi causado pela mão do homem? Sim, devo poder.

 — Como?

 Ele deu um clique no mouse e deu as costas à tela do monitor para encarar Judy.

 — Um terremoto normal é precedido por uma série de tremores menores que vão gradualmente ficando mais fortes. Por contraste, quando o terremoto é causado por uma explosão, não há esse crescimento gradual — o gráfico começa com um ponto alto que lembra uma agulha. Ele virou-se para o computador e Judy ficou pensando que devia ser um bom professor. Explicava as coisas com clareza. Mas devia ser impiedosamente intolerante com os erros dos seus alunos. Do tipo que dava provas de surpresa e se recusava a admitir a entrada na sala de aula de quem chegasse atrasado.

 — Estranho — disse ele.

 Judy olhou por cima do seu ombro para a tela.

 — O que é estranho?

 — O sismógrafo.

 — Não vejo um ponto alto destacado no gráfico.

 — Não. Não houve uma explosão.

 Judy não sabia se devia sentir-se aliviada ou desapontada.

 — Quer dizer então que o terremoto aconteceu naturalmente? Ele sacudiu a cabeça.

 — Não estou seguro. Há tremores prévios, sim. Mas nunca vi desse tipo.

 Judy sentiu-se frustrada. Ele tinha lhe prometido dizer se a afirmativa do Martelo do Éden era plausível ou não. Agora mostrava-se irritantemente incerto.

 — O que é que tem de peculiar nos tremores pequenos? — perguntou.

 — São regulares demais. Parecem artificiais.

 — Artificiais?

 Ele fez que sim.

 — Não sei o que foi que causou essas vibrações, mas elas não parecem naturais. Acredito que os seus terroristas fizeram alguma coisa. Só não sei o que foi.

 — Pode descobrir?

 — Espero que sim. Vou ligar para umas pessoas. Um monte de sismólogos já deve estar estudando estes mesmos dados que tenho aqui. Devemos conseguir chegar a uma conclusão sobre o que significam.

 Michael não parecia muito seguro, mas Judy concluiu que tinha que se contentar com isso por ora. Conseguira dele tudo o que pudera. O que precisava agora era ir até a cena do crime. Pegou a folha que saiu da impressora. Mostrava uma série de referências de mapas.

 — Obrigada por ter me recebido — disse ela. — Fico-lhe muito agradecida.

 — Foi um prazer — ele sorriu, um enorme sorriso luminoso a exibir duas fileiras de dentes muito brancos.

 — Tenha um bom fim de semana com o Dusty.

 — Obrigado.

 Ela entrou no carro e voltou para a cidade. Ia para o escritório verificar na Internet os horários dos vôos, ver se havia um que saísse para um lugar qualquer perto de Owens Valley, no dia seguinte de manhã. Precisava também verificar qual agência do FBI tinha jurisdição sobre Owens Valley e avisar o que estava fazendo. Por fim, ligaria para o xerife local e o poria do seu lado.

 Chegou no número 450 da Golden Gate Avenue, estacionou na garagem subterrânea e pegou o elevador. Ao passar pela sala de Brian Kincaid, ouviu vozes. Ele devia estar fazendo serão.

 Aquela era uma ocasião boa como qualquer outra para colocá-lo a par dos acontecimentos. Entrou na ante-sala e bateu na porta do escritório dele.

 — Pode entrar.

 Ela entrou e ficou desolada quando viu que Kincaid estava com Marvin Hayes. Ela e Marvin se detestavam intensamente. Ele estava sentado diante da mesa de Kincaid, usando um terno de verão bege, camisa branca de botão no colarinho e gravata preta e dourada. Era um homem bonito, com o curto cabelo escuro eriçado e bigode bem aparado. Era a imagem da competência, mas na verdade era tudo o que um agente da lei não devia ser: preguiçoso, brutal, relaxado e inescrupuloso. Quanto a ele, achava que Judy era excessivamente escrupulosa.

 Lamentavelmente, Brian Kincaid gostava dele e Brian agora era o chefe. Os dois homens pareceram assustados e cheios de culpa quando Judy entrou e ela percebeu que deviam estar falando a seu respeito. Para deixá-los mais contrafeitos, ela perguntou:

 — Estou interrompendo alguma coisa?

 — Estávamos falando sobre o terremoto — disse Brian. — Soube da notícia?

 — Claro. Estava trabalhando nisso. Acabei de entrevistar um sismólogo que diz que os pequenos tremores que anteciparam o terremoto não são parecidos com nada que ele tenha visto antes, e que está certo de que foram causados artificialmente. E me deu as coordenadas com a localização exata do tremor. Quero ir para Owens Valley amanhã de manhã procurar testemunhas.

 Os dois homens trocaram um olhar significativo. Brian disse:

 — Judy, ninguém pode causar um terremoto.

 — Não sabemos disso com certeza.

 Marvin disse:

 — Falei pessoalmente com dois sismólogos esta noite e ambos me disseram que era impossível.

 — Os cientistas discordam.

 Brian disse:

 — Nós achamos que esse grupo nunca chegou perto de Owens Valley. Souberam do terremoto e assumiram a autoria. Judy fechou a cara.

 — Esta missão é minha. Como é que pode o Brian estar telefonando para sismólogos?

 — Este caso está ganhando muita notoriedade — disse Brian.

 De repente Judy soube o que estava por vir, e seu coração impotente encheu-se de fúria.

 — Mesmo que não acreditemos que o Martelo do Éden seja capaz de fazer o que diz que faz, poderão conseguir muita publicidade. Não tenho certeza se você será capaz de lidar com esse tipo de coisa.

 Judy lutou para controlar a raiva.

 — Você não pode me tirar do caso sem um motivo.

 — Oh, mas eu tenho um motivo — ele pegou um fax que estava em cima da mesa. — Ontem você teve uma discussão com um patrulheiro rodoviário. Ele a fez parar por excesso de velocidade. De acordo com este fax, você não se mostrou cooperativa e teve comportamento agressivo, recusando-se a lhe mostrar sua licença de motorista.

 — Pelo amor de Deus, eu mostrei meu crachá do FBI!

 Brian ignorou o que ela disse. Judy percebeu que ele não estava realmente interessado nos detalhes. O incidente com o patrulheiro era apenas um pretexto.

 — Estou organizando uma esquadra especial para tratar do caso do Martelo do Éden.

 Ele engoliu em seco, nervoso, depois ergueu o queixo num gesto agressivo e completou:

 — Pedi a Marvin para assumir. Ele não vai precisar da sua ajuda. Você está fora do caso.

 

 Priest mal podia acreditar que conseguira.

 Eu causei um terremoto. De verdade. Eu.

 Enquanto dirigia o caminhão rumo ao norte pela US 395, de volta à casa, com Melanie ao seu lado e Star e Oaktree atrás no `Cuda, ele deixou a imaginação à solta. Visualizou uma repórter da televisão, cara muito branca, dando a notícia de que o Martelo do Éden fizera o prometido; distúrbios nas ruas quando as pessoas entrassem em pânico ante a ameaça de outro terremoto; e um agitado governador Robson, em frente ao prédio do Capitólio estadual, anunciando a paralisação da construção de novas usinas elétricas no estado.

 Mas isto talvez fosse demasiado otimista. A opinião pública podia ainda estar longe de um estado de pânico generalizado. O governador podia não ceder imediatamente. Mas pelo menos seria forçado a abrir negociações com Priest.

 O que a polícia faria? A opinião pública ia querer que pegasse os criminosos. O governador chamara o FBI. Mas eles não tinham idéia de quem seria o Martelo do Éden, tampouco indícios. Sua tarefa seria praticamente impossível.

 Uma coisa saíra errada hoje e Priest não podia deixar de se preocupar com isso. Quando Star ligara para John Truth não falara com ele em pessoa, deixando uma mensagem gravada na secretária eletrônica. Priest a teria interrompido, mas quando percebeu o que se passava era tarde demais. Uma voz desconhecida numa fita não devia ser muito útil para a polícia, era o que ele imaginava. Mesmo assim preferia que não houvessem deixado nem mesmo uma pista tênue como essa.

 O que Priest achava surpreendente era que o mundo continuava na mesma, como se nada tivesse acontecido. Automóveis e caminhões passavam de um lado para outro da rodovia, as pessoas estacionavam no Burger King, a Patrulha Rodoviária parou um rapaz que dirigia um Porsche vermelho, uma turma de operários cortava arbustos ao lado do acostamento. E todos deviam se encontrar em estado de choque.

 Ele começou a duvidar de que o terremoto tivesse acontecido. Será que imaginara tudo, como num sonho de drogado? Vira com os próprios olhos, a fenda aberta na terra em Owens Valley — e, no entanto, o terremoto parecia agora mais improvável e impossível do que quando era uma simples idéia. Na verdade, ansiava por uma confirmação pública; um noticiário de televisão, uma foto na capa de uma revista, pessoas comentando o acontecido num bar ou na fila da máquina registradora do supermercado.

 No fim da tarde, quando estavam no lado da fronteira que pertencia ao estado de Nevada, Priest parou em um posto de gasolina. O `Cuda parou atrás. Priest e Oaktree encheram os tanques, banhados pelos raios oblíquos do sol que se punha, enquanto Melanie e Star iam ao toalete.

 — Espero que estejamos no noticiário — disse Oaktree, nervoso.

 Ele estava pensando a mesma coisa que Priest.

 — Como poderemos não estar? — replicou Priest. — Nós causamos um terremoto!

 — As autoridades podem guardar segredo.

 Como muitos dos hippies da antiga, Oaktree acreditava que o governo controlava as notícias. Quanto a Priest, achava que isso devia ser mais difícil do que Oaktree imaginava e acreditava que a opinião pública exercia sua própria censura. As pessoas recusavam-se a comprar jornais ou assistir a programas de televisão que desafiassem seus preconceitos, e, assim, só tomavam conhecimento de idéias sem substância ou real valor.

 A idéia de Oaktree, contudo, também o preocupava. Não devia ser tão difícil encobrir a ocorrência de um pequeno terremoto em um local afastado.

 Ele entrou para pagar. O ar condicionado fez com que tremesse. O encarregado tinha um rádio tocando atrás do balcão. Ocorreu a Priest que podia escutar o noticiário. Perguntou as horas: cinco para as seis. Depois de pagar, Priest ficou enrolando, fingindo estudar uma pilha de

revistas enquanto ouvia Billy Jo Spears cantando "57 Chevrolet". Melanie e Star saíram do toalete juntas.

 Finalmente o noticiário começou.

 Querendo ter uma razão para se demorar mais, Priest escolheu lentamente umas barras de chocolate e levou-as ao balcão ao mesmo tempo em que ouvia o rádio.

 A primeira notícia foi o casamento de dois atores que faziam papéis de vizinhos em uma comédia da televisão. Quem se importava com aquilo? Priest ouviu impacientemente, batendo com o pé no chão. Depois veio um relatório da visita do presidente à Índia. Tomara que aprendesse um mantra. O encarregado somou os preços das coisas que Priest apanhara e ele pagou. Será que o terremoto vinha a seguir? Mas a terceira notícia foi a respeito de um tiroteio em uma escola de Chicago.

 Priest saiu andando lentamente na direção da porta, seguido por Melanie e Star. Outro cliente acabou de encher o tanque do seu Jeep Wrangler e entrou para pagar.

 Finalmente o locutor falou:

 — O grupo ambientalista de terroristas autodenominado O Martelo do Éden reivindicou a responsabilidade por um terremoto de pequena intensidade que teve lugar em Owens Valley, na região leste da Califórnia.

 Priest sussurrou:

 — Sim! — e deu um soco na palma da mão esquerda, num gesto de triunfo.

 — Nós não somos terroristas! — reclamou Star.

 O locutor prosseguiu:

 — O tremor ocorreu no dia em que o grupo ameaçara provocar um terremoto, mas o sismólogo do estado, Matthew Bird, negou que este ou qualquer outro abalo sísmico possa ser causado pelo homem.

 — Mentiroso! — reclamou Melanie, num fio de voz.

 — O Martelo do Éden reivindicou a autoria do terremoto num telefonema ao programa de entrevistas desta estação, John Truth Live.

 Justo quando Priest ia chegando na porta, ficou chocado ao ouvir a voz de Star. Parou, imóvel. Ela estava dizendo: "Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos. Agora que você sabe que somos capazes de fazer o que falamos, é melhor que pense de novo sobre a nossa exigência. Anuncie que não serão mais construídas usinas elétricas na Califórnia. Você tem sete dias para se decidir."

 Star explodiu:

 — Jesus Cristo — sou eu!

 — Cala a boca! — disse Priest. Ele olhou por cima do ombro. O homem do Jeep Wrangler falava enquanto o gerente da loja passava o cartão dele na máquina. Nenhum dos dois parecia ter notado o desabafo de Star.

 — O governador Mike Robson não respondeu a esta última ameaça. No mundo esportivo o dia de hoje... Eles saíram.

 Star disse:

 — Meu Deus! Eles irradiaram a minha voz! O que é que vou fazer?

 — Fique calma — disse Priest. Ele próprio não se sentia calmo, mas estava se segurando. Enquanto atravessavam o asfalto na direção dos veículos, disse, num tom de voz controlado e razoável:

 — Ninguém fora da nossa comunidade conhece a sua voz. Você não disse mais que umas poucas palavras para gente de fora em vinte e cinco anos. E as pessoas que podem se lembrar de você dos tempos de Haight-Ashbury não sabem onde está vivendo agora.

 — Acho que você está certo — disse Star, indecisa.

 — A única exceção de que sou capaz de me lembrar é Bones. Pode ser que ouça a fita e reconheça a sua voz.

 — Ele nunca nos trairia. Bones é um Comedor de Arroz.

 — Não sei não. Viciados em drogas são capazes de qualquer coisa.

 — E os outros — como Dale e Poem?

 — É, eles me preocupam — admitiu Priest. — Não havia rádios nas cabanas, mas havia um rádio na picape da comunidade, que Dale às vezes dirigia. — Se acontecer, teremos que abrir o jogo com eles. Ou recorrer à solução do Mario.

 Não, eu não seria capaz — não com Dale e Poem. Ou seria?

 Oaktree aguardava ao volante do `Cuda.

 — Vamos, caras, o que está segurando vocês?

 Star explicou brevemente o que tinham ouvido.

 — Por sorte, ninguém fora da comunidade conhece minha voz — oh, Cristo, acabo de me lembrar de uma coisa! — ela virou-se para Priest. — O policial encarregado dos menores no escritório do xerife.

 Priest praguejou. Claro. Star falara com ele ainda na véspera. O medo comprimiu seu coração. Se ele ouvisse o noticiário e lembrasse, o xerife e meia dúzia de auxiliares podiam estar na comunidade naquele exato momento, esperando que Star voltasse. Mas podia ser que ele não tivesse ouvido a notícia. Priest tinha de checar.

 — Vou telefonar para o gabinete do xerife — declarou.

 — Mas o que é que você vai dizer? — indagou Star.

 — Não sei. Eu penso em algo. Espera aqui.

 Ele entrou, arranjou troco com o sujeito da lojinha do posto e foi até o telefone público. Conseguiu o número do gabinete do xerife de Silver City com o serviço de informações estadual. O nome do policial encarregado dos menores de idade voltou à sua memória.

 — Preciso falar com o Sr. Wicks — disse.

 Uma voz amigável respondeu:

 — O Billy não está.

 — Mas eu o vi ontem.

 — Ele pegou um avião para Nassau na noite passada. A esta altura está deitado numa praia, bebendo uma cerveja e vendo os biquínis, felizardo. Volta em duas semanas. Alguém mais poderia ajudá-lo?

 Priest desligou. Jesus, que sorte. Ele saiu.

 — Deus está do nosso lado — disse para os outros.

 — O quê? — Star estava nervosa. — O que foi que aconteceu?

 — O cara saiu de férias ontem à noite. Vai passar duas semanas em Nassau. Não creio que estações do exterior retransmitam a voz de Star. Estamos salvos.

 Star arriou os ombros, aliviada.

 — Graças a Deus.

 Priest abriu a porta do caminhão.

 — Vamos pegar a estrada — disse.

 

 Era quase meia-noite quando Priest entrou com o vibrador sísmico na trilha sinuosa e irregular que atravessava a floresta até a comunidade. Recolocou o caminhão no mesmo esconderijo de antes. Embora estivesse escuro e todos se sentissem exaustos, assegurou-se de que cobriam cada centímetro quadrado do veículo com vegetação, de maneira que ele ficasse invisível de todos os ângulos e do ar. Depois os quatro entraram no `Cuda para o trecho final. De cerca de dois quilômetros.

 Priest ligou o rádio do carro para o boletim da meia-noite. Desta vez, o terremoto era o assunto principal.

 — Nosso programa John Truth Live de hoje desempenhou um papel importantíssimo no drama do Martelo do Eden, o grupo ambientalista de terroristas que se diz capaz de provocar terremotos — disse uma voz excitada. — Depois que um terremoto moderado sacudiu Owens Valley, na região leste da Califórnia, uma mulher alegando representar o grupo telefonou para John Truth e disse que eles, do Martelo do Éden, tinham causado o tremor.

 Neste ponto a estação reproduziu integralmente a mensagem de Star.

 — Droga — resmungou Star ao ouvir a própria voz.

 Priest não podia evitar a sensação de alarme. Embora tivesse certeza de que aquilo não iria ajudar à polícia, ainda assim odiava ver Star exposta daquela maneira. Parecia torná-la terrivelmente vulnerável e o deixava ansioso para destruir seus inimigos e colocá-la em segurança.

 Depois de tocar a fita, o locutor acrescentou:

 — O agente especial Raja Khan levou esta noite a fita que acabaram de ouvir a fim de ser analisada pelos peritos em psicolingüística do FBI.

 Isto atingiu Priest como um soco no estômago.

 — Que porra é essa de psicolingüística? — exclamou.

 Foi Melanie quem respondeu:

 — Não conheço a palavra, mas acho que eles estudam a linguagem que você usa e extraem conclusões sobre a sua psicologia.

 — Eu não sabia que eles eram tão espertos — disse Priest preocupado.

 Oaktree disse:

 — Fica frio, cara. Eles podem analisar a cabeça da Star tanto quanto quiserem, mas isso não vai revelar o endereço dela.

 — Acho que não vai.

 O locutor continuou falando:

 — Nenhum comentário ainda foi feito pelo governador Mike Robson, mas o chefe da agência do FBI em San Francisco prometeu uma entrevista coletiva para amanhã de manhã. Outras notícias...

 Priest desligou. Oaktree estacionou o `Cuda ao lado do caminhão de Bones. Bones o cobrira com um imenso encerado para esconder a pintura colorida. O que sugeria que ele planejava ficar algum tempo.

 Desceram a colina e atravessaram o parreiral até a aldeia. A cozinha e o galpão infantil estavam às escuras. A luz de uma vela tremeluzia por trás da janela de Apple — ela sofria de insônia e gostava de ler de madrugada — e suaves acordes de violão vinham da cabana de Song. As outras cabanas, no entanto, estavam escuras e silenciosas. Só Spirit, o cachorro de Priest, apareceu para cumprimentá-los, sacudindo alegremente a cauda ao luar. Despediram-se com murmúrios e se arrastaram até suas casas, cansados demais para celebrarem o triunfo.

 Era uma noite quente. Priest deitou-se nu, pensando. Nenhum comentário do governador, mas uma entrevista coletiva do FBI marcada para a manhã seguinte. Isso o intrigou.

 A esta altura do jogo, o governador devia estar em pânico, dizendo: "O FBI falhou, não podemos nos arriscar a ter outro terremoto, tenho de falar com essa gente."

 O fato de nada saber sobre o que o inimigo estava pensando deixava Priest inquieto.

 Ele sempre se arranjava na vida lendo os pensamentos das outras pessoas, adivinhando o que elas realmente desejavam.

 A partir do modo como olhavam, sorriam, cruzavam os braços ou coçavam a cabeça. Ele estava tentando manipular o governador Robson, mas era difícil, sem um contato visual. E o FBI estaria a fim de quê? E haveria mesmo alguma verdade naquele papo de análise psicolingüística? Tinha que descobrir mais coisas. Não podia ficar parado ali esperando que a oposição agisse.

 Pensou em telefonar para o gabinete do governador e tentar falar com ele. Conseguiria ser atendido pelo homem em pessoa? E se fosse, descobriria alguma coisa? Talvez valesse a pena tentar. Não gostava, contudo, da posição que teria de assumir. Seria um suplicante, implorando o privilégio de falar com o grande homem. E a estratégia era impor sua vontade ao governo e não suplicar um favor.

 Ocorreu-lhe, então, que ele poderia ir à entrevista coletiva. Seria perigoso; se fosse descoberto, tudo estaria perdido. Mas a idéia era atraente. Passar-se por repórter era o tipo de coisa que costumava fazer nos velhos tempos. Tinha se especializado em golpes ousados: roubar o Lincoln branco para dar ao Cara de Porco Riley; esfaquear o detetive Jack Kassner no toalete do bar Blue Light; oferecer-se para comprar dos Jenkinsons a loja de bebidas. Sempre conseguira se sair bem, com coisas assim.

 Talvez pudesse se passar por fotógrafo. Podia pedir emprestado a Paul Beale uma câmera especial. Melanie seria a repórter. Era bonita o bastante para fazer qualquer agente do FBI desviar a atenção do que devia.

 Que horas seria a entrevista coletiva?

 Priest rolou para fora da cama, calçou as sandálias e saiu. Ao luar, encontrou o caminho para a cabana de Melanie. Ela estava sentada na beira da cama, nua, escovando o longo cabelo vermelho. Quando ele entrou, levantou a cabeça e sorriu. A luz da vela delineava o seu corpo, lançando uma aura por trás dos ombros bonitos, os mamilos, os ossos dos quadris e o tufo de cabelo vermelho na confluência das suas coxas. Priest chegou a perder o fôlego.

 — Olá — disse ela.

 Ele precisou de um momento para se lembrar do motivo pelo qual fora ali.

 — Preciso usar o seu celular — disse.

 Ela fez um bico, amuada. Não era a reação que desejava de um homem que lhe aparecia nu.

 Ele lhe dirigiu seu sorriso de cara durão.

 — Mas pode ser que eu resolva atirar você no chão e estuprá-la, para depois usar o telefone.

 Ela sorriu.

 — Tudo bem, pode usar o telefone primeiro.

 Ele pegou o telefone, mas hesitou. Melanie fora agressivamente autoconfiante o dia inteiro e ele tivera que tolerar porque era ela a sismóloga; mas acabara. Não gostava de que lhe desse permissão para coisa alguma. Não era esse o relacionamento que deviam ter.

 Permaneceu deitado, segurando o telefone e guiou a cabeça de Melanie — para sua genitália. Ela hesitou, mas fez o que ele queria. Durante cerca de um minuto Priest deixou-se ficar imóvel, desfrutando a sensação. Só depois telefonou para informações.

 Melanie parou o que estava fazendo, mas ele segurou uma mecha do seu cabelo e manteve a cabeça dela no lugar. Melanie hesitou, como se pensando em protestar, mas prosseguiu.

 Assim é melhor.

 Priest conseguiu o número do FBI em San Francisco e discou. Uma voz de homem atendeu:

 — FBI.

 Priest teve uma inspiração, como sempre.

 — Aqui é da estação de rádio KCAR de Carson City, Dave Horlock falando — disse. — Queremos mandar um repórter para sua entrevista coletiva amanhã. Poderia me dar o endereço e a hora?

 — Saíram no comunicado — disse o homem.

 Filho da mãe preguiçoso.

 — Não estou no escritório — improvisou Priest. — E nosso repórter pode ter que sair de manhã cedo.

 — É ao meio-dia, aqui no Federal Building, número 450 da avenida Golden Gate.

 — Precisamos de um convite, ou o nosso homem pode simplesmente aparecer aí?

 — Não há convites. Tudo o que ele precisa é de uma identificação comum de imprensa.

 — Obrigado pela ajuda.

 — De que estação mesmo você disse que era?

 Priest desligou.

 Identificação. Como é que vou me sair dessa?

 Melanie parou de chupar e disse:

 — Espero que não rastreiem esta chamada.

 Priest espantou-se.

 — E por que iriam fazer isso?

 — Sei lá. Talvez o FBI rastreie rotineiramente todas as ligações que recebe.

 Ele franziu a testa.

 — E eles têm como fazer isso?

 — Por meio de computadores, com toda a certeza.

 — Bem, eu não fiquei na linha tempo bastante.

 — Priest, não estamos mais nos anos 60. Não precisa de tempo, o computador faz o serviço em nanossegundos. Eles só têm que consultar os registros que permitem depois cobrar as ligações efetuadas para saber quem é o dono do telefone que ligou para lá quando faltavam três minutos para uma da manhã.

 Priest nunca ouvira a palavra "nanossegundo" antes mas podia adivinhar o que significava. Ele ficou preocupado.

 — Que merda — disse.

 — Eles podem descobrir onde você está?

 — Só enquanto o telefone estiver ligado.

 Priest desligou rapidamente o celular.

 Começava a sentir-se nervoso. Fora surpreendido além da conta naquele dia: pela gravação da voz de Star, pelo conceito da análise psicolingüística e agora pela noção do computador rastreando ligações telefônicas. Haveria mais alguma coisa que ele deixara de antecipar? Sacudiu a cabeça. Estava pensando negativamente. Preocupação e cautela em excesso jamais conseguiram realizar alguma coisa. Imaginação e ousadia eram seus pontos fortes. Compareceria à entrevista coletiva amanhã, daria um jeito de entrar e tomaria conhecimento daquilo que o inimigo estava a fim de fazer.

 Melanie deitou-se de costas na cama, fechou os olhos e disse:

 — Foi um dia longo e cansativo.

 Priest admirou-lhe o corpo, fascinado. Adorava olhar seus seios. Gostava do modo como se moviam quando ela caminhava, com um balanço ritmado lateral. Gostava de vê-la tirando o suéter por cima da cabeça, quando eles, arrastados pelo tecido, ficavam protuberantes como armas apontadas. Gostava também de vê-la vestir o sutiã e ajustar os seios dentro das taças para sentir-se mais confortável. Agora, ali deitada de costas, eles estavam ligeiramente achatados, protuberantes do lado, os mamilos em repouso.

 Era preciso se livrar das preocupações, tirá-las da cabeça. A segunda melhor maneira para fazer isso era a meditação. A melhor estava na frente dele.

 Priest ajoelhou-se sobre ela. Quando beijou-lhe os seios, Melanie suspirou satisfeita mas não abriu os olhos.

 De repente ele viu um movimento com o canto do olho. Olhou para a porta e viu Star, vestindo um robe de seda púrpura. Priest sorriu. Sabia o que ela tinha em mente: Star já fizera aquele tipo de coisa antes. Ela ergueu as sobrancelhas numa expressão indagadora. Priest balançou afirmativamente a cabeça. Ela entrou e fechou a porta silenciosamente.

 Priest sugou o mamilo cor-de-rosa de Melanie, puxando para dentro da sua boca com os lábios, bem devagar. Depois, quando o deixou escorregar de volta, tocou nele provocantemente com a ponta da língua, e repetiu isso muitas vezes, num ritmo constante. Ela gemeu de prazer. Star abriu o robe, deixou que caísse no chão e ficou olhando, acariciando delicadamente os próprios seios. Seu corpo era muito diferente do de Melanie, a pele levemente bronzeada onde a de Melanie era branca, as cadeiras e os ombros mais largos, o cabelo escuro e grosso onde o de Melanie era vermelho, dourado e fino. Após alguns momentos ela se abaixou e beijou a orelha de Priest e passou a mão nas suas costas, ao longo da espinha e entre as pernas, acariciando e apertando.

 Ele começou a respirar mais depressa. Devagar, devagar. Saboreie o momento.

 Star ajoelhou-se ao lado da cama e começou a acariciar o seio de Melanie enquanto Priest o sugava.

 Melanie sentiu que havia algo diferente. Parou de gemer, depois abriu os olhos. Quando viu Star, deu um grito abafado. Star sorriu e continuou a acariciá-la.

 — Seu corpo é muito lindo — murmurou, a voz grave.

 Priest contemplou a cena, como que em transe, quando ela se inclinou e abocanhou o outro seio de Melanie.

 Melanie empurrou os dois e sentou-se direito.

 — Não! — exclamou.

 — Calma — disse Priest. — Está tudo bem. De verdade — ele passou a mão no seu cabelo.

 Star acariciou a parte interna da coxa de Melanie.

 — Você vai gostar — garantiu. — A mulher pode fazer algumas coisas muito melhor do que o homem. Você vai ver.

 — Não — repetiu Melanie fechando as pernas com força.

 Priest viu que aquilo não ia dar certo. Sentiu-se frustrado. Adorava ver Star sobre outra mulher, deixando-a louca de prazer. Mas Melanie estava apavorada demais.

 Star persistiu. Sua mão escorregou para cima da coxa de Melanie e as pontas dos seus dedos tocaram levemente o tufo de pêlos vermelhos.

 — Não! — exclamou Melanie de novo, afastando a mão de Star com um tapa.

 Foi um tapa dado com força e Star disse:

 — Ai! Por que fez isso comigo?

 Melanie empurrou-a para um lado e pulou da cama.

 — Porque você é gorda e velha e eu não quero fazer sexo com você!

 Star chegou a perder o fôlego com o choque e Priest encolheu-se.

 Melanie saiu correndo para a porta e abriu-a.

 — Por favor! — disse. — Deixem-me sozinha!

 Para surpresa de Priest, Star começou a chorar. Ele exclamou, indignado:

 — Melanie!

 Antes que Melanie pudesse responder, Star saiu.

 Melanie bateu a porta.

 Priest disse para ela:

 — Puxa, garota, essa foi cruel.

 Melanie abriu a porta de novo.

 — Você pode ir também, se é assim que se sente. Deixe- me em paz!

 Priest sentiu-se chocado. Em vinte e cinco anos ninguém nunca lhe dissera para deixar uma casa da comunidade. Agora estava sendo expulso por uma bela garota nua cheia de raiva ou excitação ou ambos. Para se sentir mais humilhado ainda, tinha uma ereção que mais parecia um mastro. Estarei perdendo o pulso?

 A idéia o deixou perturbado. Sempre conseguia que as pessoas fizessem o que desejava, especialmente ali na comunidade. Ficou tão espantado que quase obedeceu. Dirigiu-se para a porta sem falar nada. Aí então percebeu que não podia ceder. Talvez nunca mais recuperasse o domínio se a deixasse vencê-lo agora. E ele precisava ter Melanie sob seu controle.

 Ela era crucial para o plano. Não conseguiria desencadear outro terremoto sem a sua ajuda. Não podia permitir que ela afirmasse sua independência daquela forma. Melanie era demasiado importante.

 Fez meia-volta já na porta e encarou-a, nua, mãos nos quadris. O que ela queria? Estivera no controle o dia inteiro, em Owens Valley, por causa dos seus conhecimentos, e isso lhe dera a coragem para aquela exibição de mau humor. Mas no fundo ela não queria ser independente — não estaria ali se quisesse. Preferia que alguém com poder lhe dissesse o que devia fazer. Por isso se casara com o seu professor. Ao abandoná-lo, iniciara um relacionamento com outra figura representativa de autoridade, o líder de uma comunidade. Revoltara-se agora porque não queria compartilhar Priest com outra mulher. Provavelmente temera que Star o tomasse dela. Mas a última coisa que desejava era que Priest fosse embora.

 Ele fechou a porta. Atravessou o pequeno cômodo com três passadas e parou na frente dela. Melanie ainda tinha o rosto congestionado de raiva e respirava com dificuldade.

 — Deita — ordenou ele.

 Ela pareceu perturbada, mas deitou-se na cama.

 — Abre as pernas.

 Após um momento ela obedeceu.

 Priest deitou-se sobre Melanie. Quando penetrou-a, ela subitamente passou os braços em torno dele e segurou-o com força. Ele se moveu depressa para dentro dela, deliberadamente rude. Ela levantou as pernas e passou em torno da sua cintura. Priest sentiu que cravava os dentes no

seu ombro. A mordida doeu, mas ele gostou. Melanie abriu a boca, ofegante.

 — Porra! — disse, em tom baixo e com a voz gutural. — Priest, seu filho da puta, eu amo você.

 

 Quando Priest acordou, foi para a cabana de Star. Ela estava deitada de lado, olhos abertos e fixos na parede. Quando ele deitou na cama ao seu lado, ela começou a chorar. Ele beijou as lágrimas. Estava tendo uma ereção.

 — Fale comigo — murmurou.

 — Você sabia que foi Flower quem pôs Dusty para dormir?

 Ele não esperava por aquilo. Que importância tinha?

 — Eu não sabia.

 — Não gosto.

 — Por que não? — ele tentou não parecer irritado. — Ontem nós desencadeamos um terremoto e hoje você vem chorar por causa das crianças? É muito melhor do que roubar pôsteres de artistas de cinema em Silver City.

 — Mas você tem uma nova família — ela desabafou.

 — O que diabo você quer dizer com isso?

 — Você e Melanie e Flower e Dusty. Vocês são como uma família. E não há lugar nela para mim. Eu não me ajusto nela.

 — Nada disso — exclamou ele. — Você é a mãe da minha filha e é a mulher que eu amo. Como poderia não se ajustar?

 — Eu me senti tão humilhada ontem à noite.

 Ele acariciou seus seios através do tecido de algodão da camisola de dormir. Star cobriu a mão de Priest com a sua e pressionou a palma da mão dele com força de encontro ao seu corpo.

 — O grupo é a nossa família — disse Priest. — Sempre foi assim. Não sofremos com os problemas psicológicos das famílias de papai-mamãe-e-dois-filhos dos subúrbios confortáveis.

 Ele repetia os ensinamentos que recebera dela muitos anos atrás.

 — Nós somos uma grande família. Amamos todo o grupo e todo mundo cuida de todo mundo. Deste modo não temos que mentir uns aos outros, ou para nós mesmos, a respeito de sexo. Você poderá fazer sexo com Oaktree ou com Song e eu saberei que você continua ligando para mim e nossa filha.

 —  Mas Priest, ninguém jamais rejeitou você ou eu até hoje.

 Não havia regras a respeito de quem podia ter sexo com quem, mas é claro que ninguém era obrigado a fazer amor se não quisesse. No entanto, agora que pensava nisso, Priest não conseguiu se lembrar de uma única ocasião em que uma mulher o rejeitara. Evidentemente o mesmo valia para Star até Melanie.

 Um sentimento de pânico se apoderou dele. Sentira-se da mesma forma diversas vezes nas últimas semanas. Era o medo de que a comunidade estivesse ruindo, que estivesse perdendo o controle e que tudo o que amava se encontrasse em perigo. Algo como perder o equilíbrio, como se o chão começasse subitamente a se mover de forma imprevisível e a terra firme se deslocasse e não mais fosse confiável, exatamente como acontecera na véspera. Priest lutou para controlar sua ansiedade. Tinha que permanecer calmo.

 Deitou ao lado de Star e acariciou-lhe o cabelo.

 — Vai dar tudo certo — disse. — Deixamos o governador Robson apavorado ontem. Ele fará o que queremos, você vai ver.

 — Tem certeza?

 Ele tomou os seios de Star com ambas as mãos. Sentiu-se excitado.

 — Confia em mim — murmurou. Apertou-a com força de encontro ao seu corpo para que ela pudesse sentir sua ereção.

 — Faça amor comigo, Priest — disse ela.

 Ele lhe deu seu sorriso velhaco.

 — Como?

 Ela sorriu também, por entre as lágrimas.

 — De qualquer jeito que você quiser.

 

 Ela foi dormir depois. Deitado ao seu lado, Priest ficou pensando no problema da identificação como jornalista até que imaginou uma solução. Aí então levantou-se. Foi até a cabana onde dormiam as crianças e acordou Flower.

 — Quero que você vá comigo a San Francisco — disse. Vista-se.

 Fez torrada e suco de laranja na cozinha deserta. Enquanto ela comia, ele disse:

 — Lembra de uma conversa que tivemos sobre você ser escritora? E você me disse que gostaria de trabalhar para uma revista?

 — Sim, a revista Teen.

 — Certo.

 — Mas você quer que eu escreva poesia para que possa continuar morando aqui.

 — E ainda quero, mas hoje você vai descobrir como é ser repórter.

 Ela pareceu feliz. — Legal!

 — Vou levar você a uma entrevista coletiva do FBI.

 — FBI?

 — É o tipo de coisa que você teria de fazer se fosse repórter.

 Ela torceu o nariz. Tal como a mãe, não gostava de gente que trabalhasse em atividades policiais.

 — Nunca li nada sobre o FBI na Teen.

 — Bem, eu verifiquei e o Leonardo DiCaprio não vai dar entrevista coletiva hoje.

 Ela sorriu envergonhada.

 — Que pena.

 — Mas se você fizer o tipo de perguntas que uma repórter da Teen faria, não tem problema.

 Flower balançou a cabeça, afirmativamente.

 — Sobre o que é a entrevista coletiva?

 — Um grupo que afirma ter provocado um terremoto. Agora, não quero que você fale com ninguém a este respeito. Tem que ser segredo, OK?

 — Tudo bem.

 Ele contaria aos Comedores de Arroz quando voltasse, decidiu.

 — Pode falar com mamãe e Melanie sobre isso, e Oaktree e Song, Aneth e Paul Beale, mas ninguém mais. É realmente importante.

 — Deixa comigo.

 Ele sabia que estava se arriscando loucamente. Se as coisas saíssem erradas, podia perder tudo. Podia inclusive ser preso na frente da própria filha. Mas arriscar-se loucamente sempre fora seu estilo.

 Quando fizera a proposta de plantarem as parreiras, Star lembrara que só tinham um contrato de cessão da terra por um ano. Podiam se matar de trabalhar sem nunca verem o fruto do seu suor. Na opinião dela, deviam negociar uma extensão do prazo de cessão da terra para dez anos, antes de começarem a trabalhar. Parecia sensato, mas Priest viu que seria fatal. Se adiassem o começo, nunca conseguiriam fazer nada. Ele os persuadira a se arriscarem. No fim daquele ano o grupo tornou-se uma comunidade. E o governo renovara o contrato de Star naquele ano e todos os anos, até agora.

 Pensou em vestir o terno azul-escuro, mas era tão fora de moda que chamaria a atenção em San Francisco. Resolveu, então, ir com seu costumeiro jeans azul. Embora estivesse quente, vestiu uma camiseta e uma camisa xadrez de flanela com as fraldas compridas, que deixou para fora da calça. No galpão das ferramentas pegou uma faca pesada com uma lâmina de dez centímetros, e uma bainha de couro. Enfiou-a na cintura da calça, nas costas, escondida pela fralda da camisa.

 A adrenalina correu alta nas veias de Priest durante a viagem de quatro horas até San Francisco. Ele teve visões de pesadelo: os dois sendo presos, ele atirado numa cela, Flower sentada sozinha em uma sala do FBI, sendo interrogada a respeito dos pais. Mas foi agradável, o medo fez com que se sentisse meio alto, como se tivesse bebido.

 Chegaram à cidade por volta das onze horas da manhã. Deixaram o carro em um estacionamento na Golden Gate. Numa loja, Priest comprou um bloco de espiral e dois lápis para Flower. Depois levou-a a um café. Enquanto ela tomava um refrigerante, ele disse:

 — Já volto — e saiu.

 Caminhou na direção da Union Square, examinando os rostos dos passantes, procurando um homem que se parecesse com ele. As ruas estavam cheias de gente que tinha ido às compras, e ele tinha centenas de rostos para escolher um. Viu um homem com o rosto magro e cabelo escuro estudando o cardápio do lado de fora de um restaurante, e por um momento pensou ter achado sua vítima. Ligadíssimo, ficou observando por alguns segundos; mas aí o sujeito virou-se e ele viu que tinha o olho direito permanentemente fechado por um ferimento qualquer.

 Desapontado, Priest seguiu em frente. Havia muitos homens morenos na casa dos quarenta anos, mas quase todos tinham dez ou quinze quilos a mais que Priest. Viu outro candidato provável, mas o sujeito tinha uma máquina de retrato pendurada no pescoço. Turista não era uma boa: Priest precisava de alguém com credenciais locais. Este é um dos maiores centros de compras do mundo, e hoje é uma manhã de sábado; tem que haver um homem por aí parecido comigo.

 Verificou as horas: onze e meia. O tempo estava acabando. Finalmente, um golpe de sorte: um sujeito de rosto fino, com cerca de cinqüenta anos, usando óculos de armação grande, caminhando com passo vivo. Vestia uma calça azul-marinho, slacks e uma camisa pólo verde, mas carregava uma pasta de executivo bege já bem surrada, e parecia pobre: Priest imaginou que ia até o escritório botar o serviço em dia. Agora preciso da sua carteira. Priest seguiu-o, dobrando a esquina, cada vez mais excitado, esperando uma oportunidade. Estou faminto, desesperado, sou um maluco fugido do asilo, preciso de vinte pratas para uma dose, odeio todo mundo, quero cortar e matar, estou furioso, furioso, furioso...

 O homem passou pelo local onde o `Cuda ficara estacionado e entrou em uma rua de velhos prédios de escritórios. Por um momento não havia ninguém à vista. Priest sacou da faca, correu para cima dele e disse:

 — Ei!

 O homem parou no reflexo e virou-se.

 Priest agarrou o homem pela camisa, brandiu a faca na sua cara e gritou:

 — ME DÁ A PORRA DA CARTEIRA SE NÃO QUISER QUE EU TE CORTE A MERDA DA GARGANTA!

 O sujeito devia ter caído duro de medo, mas não. Jesus, é um cara durão. O rosto dele exprimia raiva, não medo. Concentrando-se nos seus olhos, Priest leu o pensamento É só um cara, e não tem um revólver.

 Priest hesitou, subitamente receoso. Que merda, não posso aceitar que isto dê errado. Houve um impasse por uma fração de segundo. Um homem vestido informalmente levando uma pasta para trabalhar em uma manhã de sábado... seria um detetive, um policial?

 Mas era tarde demais para mudar de idéia. Antes que o sujeito pudesse se mover, Priest passou velozmente a lâmina no seu rosto, traçando uma linha vermelha de sangue logo abaixo da lente direita dos óculos.

 A coragem do homem evaporou-se e qualquer idéia de resistir que ele pudesse ter tido abandonou-o. Seus olhos arregalaram-se de medo e o corpo dele pareceu prostrar-se, sem forças.

 — Tudo bem! Tudo bem! — ele gritou, com a voz aguda e trêmula.

 Não é polícia, afinal de contas. Priest gritou:

 — AGORA! AGORA! PASSA A CARTEIRA!

 — Está na pasta...

 Priest tirou a pasta da mão do homem. No último minuto decidiu levar os óculos do cara também. Arrancou-os do seu rosto, virou-se e saiu correndo.

 Na esquina olhou para trás. O sujeito estava vomitando na beirada da calçada.

 Priest virou à direita. Largou a faca em um depósito de lixo e prosseguiu, caminhando. Na outra esquina parou perto de um prédio em construção e abriu a pasta. Dentro havia uns papéis, um caderno e algumas canetas, um embrulho de papel que parecia conter um sanduíche e uma carteira de couro. Pegou a carteira e jogou a pasta por cima do tapume da obra.

 Voltou, então, para o café e sentou-se outra vez com Flower. Seu café ainda estava quente. Não perdi o jeito. Trinta anos depois que fiz isto pela última vez e ainda consigo apavorar um sujeito. É isso aí, Ricky.

 Ele abriu a carteira. Continha dinheiro, cartões de crédito, cartões de visita e um cartão de identidade com uma foto. Priest puxou um cartão de visita e entregou a Flower.

 — Meu cartão, minha senhora. Ela riu.

 — Você é Peter Shoebury, da Watkins, Colefax e Brown.

 — Sou advogado?

 — Acho que sim.

 Ele examinou a foto da identidade. Era três por quatro e tinha sido tirada numa dessas cabines automáticas. Achou que devia ter sido tirada havia uns dez anos. Não parecia exatamente com Priest, mas também não parecia com Peter Shoebury. Fotos costumam ser assim.

 Ainda assim, Priest podia melhorar a semelhança. Shoebury tinha o cabelo liso e escuro, mas cortado curto. Priest disse:

 — Posso usar seu elástico?

 — Claro — Flower tirou o elástico que prendia o cabelo e sacudiu a cabeça, para acertar os cachos ao redor do rosto.

 Priest fez o contrário, prendendo o cabelo num rabo-de-cavalo e amarrando com o elástico. Aí então pôs os óculos. Mostrou a foto a Flower.

 — O que é que você acha da minha identidade secreta? — ela deu uma olhada na parte de trás da identidade.

 — Com isto você tem acesso ao escritório do centro da cidade, mas não à filial de Oakland.

 — Acho que posso conviver com esta limitação.

 Ela riu.

 — Papai, onde foi que você conseguiu isto?

 Ele ergueu uma das sobrancelhas ao fitá-la e respondeu:

 — Pedi emprestado.

 — Você bateu a carteira de alguém?

 — Mais ou menos — Priest viu que ela achava esta possibilidade mais brincalhona que propriamente criminosa. Deixou que acreditasse no que quisesse. Deu uma olhada no relógio da parede. Eram onze e quarenta e cinco.

 — Está pronta?

 — Claro.

 Após uma curta caminhada, entraram no Federal Builbing, um monólito ameaçador de granito cinza ocupando todo um quarteirão. Passaram por um detector de metais no saguão, e Priest ficou satisfeito por ter sido previdente, ao se livrar da faca. Perguntou ao segurança em que andar ficava o FBI. Tomaram o elevador. Priest sentia-se como se estivesse cheio de cocaína. O perigo o tornava superalerta. Se este elevador quebrasse, eu seria capaz de movê-lo com a minha energia psíquica.

 Achava que era bom ser autoconfiante, até mesmo um pouco arrogante, já que representava o papel de um advogado.

 Levou Flower para o interior do escritório do FBI e seguiu uma placa que indicava a sala de reuniões, junto do saguão. No fundo da sala havia uma mesa com microfones. Perto da porta estavam quatro homens, todos altos e com ar de quem estava em plena forma física, usando ternos bem passados e gravatas sóbrias. Tinham que ser agentes.

 Se soubessem quem sou, atiravam em mim sem pensar. Fica frio, Priest — eles não lêem pensamentos, de modo que não podem saber nada a seu respeito.

 Priest tinha um metro e oitenta e três, mas todos eram mais altos. Ele sentiu imediatamente que o chefe era o homem mais velho de cabelo branco grosso e meticulosamente repartido e penteado. Conversava com outro de bigode preto. Dois homens mais jovens ouviam com expressões respeitosas.

 Uma mulher, jovem e carregando uma prancheta, aproximou-se de Priest.

 — Oi, posso ajudá-lo?

 — Bem, eu certamente esperaria que sim — respondeu Priest.

 Os agentes repararam quando falou. Priest percebeu suas reações quando olharam para ele. Ao verem o rabo-de-cavalo e a calça-jeans azul ficaram na defensiva; depois viram Flower e relaxaram de novo.

 Um dos mais jovens perguntou:

 — Está tudo bem aqui?

 Priest disse:

 — Meu nome é Peter Shoebury, sou advogado da firma Watkins, Colefax e Brown aqui na cidade. Minha filha Florence é editora do jornal da escola. Ela ouviu no rádio a notícia da entrevista coletiva e quis cobri-la para o seu jornal. Assim eu imaginei, puxa vida, é um evento aberto ao público, vamos lá. Espero que esteja bem com vocês.

 Todo mundo olhou para o sujeito de cabeça branca, confirmando a intuição de Priest de que ele era o chefe. Seguiu-se um momento horrível de hesitação.

 Olha, garoto, você não é advogado coisa nenhuma! Você é Ricky Granger, que vendia anfetaminas no atacado por intermédio de um monte de lojas de bebidas em Los Angeles lá pelos anos 60 — você está metido nessa merda de terremoto? Revistem-no, rapazes, e algemem a garotinha também. Vamos prendê-los, descobrir o que sabem.

 O homem de cabelo branco estendeu a mão e disse:

 — Eu sou o agente especial encarregado, Brian Kincaid, chefe do escritório do FBI em San Francisco.

 Priest apertou a mão dele.

 — Prazer em conhecê-lo, Brian.

 — Para que firma o senhor disse que trabalhava?

 — Watkins, Colefax e Brown.

 Kincaid franziu a testa.

 — Pensei que fossem corretores imobiliários, não advogados.

 Merda. Priest balançou a cabeça e esforçou-se para exibir um sorriso confiante.

 — É isso mesmo, e o meu trabalho é mantê-los longe de encrencas — Priest achou que tinha que usar um vocabulário bem profissional e rebuscou a memória atrás das palavras adequadas. — Sou assessor jurídico da firma, em tempo integral.

 — Poderia me mostrar uma identidade qualquer?

 — Oh, claro — ele abriu a carteira roubada e tirou o cartão com a foto de Peter Shoebury. Prendeu a respiração.

 Kincaid examinou a foto e checou a semelhança com Priest. Priest poderia garantir que concluiu algo como: É, pode ser ele, sim, eu acho.

 Devolveu a identidade. Priest respirou de novo.

 Kincaid virou-se para Flower:

 — Em que escola você estuda, Florence?

 O coração de Priest bateu mais depressa. Inventa qualquer coisa, garota.

 — Hmm... — Flower hesitou.

 Priest já ia responder pela filha quando ela disse:

 — Eisenhower Junior High.

 Priest sentiu uma ponta de orgulho. Ela herdara sua coragem. Só para o caso de Kincaid conhecer as escolas de San Francisco, ele acrescentou:

 — É em Oakland.

 Kincaid pareceu satisfeito.

 — Bem, teremos muito prazer em tê-la aqui conosco, Florence – disse ele.

 Conseguimos!

 — Muito obrigada, senhor — disse ela.

 — Se houver alguma pergunta que eu possa responder agora, antes que comece a entrevista coletiva...

 Priest tivera cuidado de não preparar Flower excessivamente. Na opinião dele, se ela parecesse tímida, ou gaguejasse na hora de fazer as perguntas, seria apenas natural, enquanto que se se mostrasse muito segura e parecesse bem treinada, podia despertar suspeitas. Mas naquele instante sentiu uma ponta de ansiedade por ela, e teve que conter o instinto paternal de se meter e dizer o que fazer. Mordeu o lábio.

 Ela abriu o bloco de notas.

 — O senhor é o encarregado desta investigação?

 Priest relaxou um pouco. Ela ia se sair bem.

 — Este é apenas um dos muitos inquéritos em que tenho de ficar de olho — respondeu Kincaid, apontando para o homem de bigode escuro. – O agente especial Marvin Hayes é o encarregado deste caso.

 Flower virou-se para Hayes.

 — Acho que a escola ia querer saber que tipo de homem o senhor é, Sr. Hayes.

 Ela é muito criança para flertar com homens adultos, pelo amor de Deus!

 Mas Hayes engoliu a isca. Pareceu ficar satisfeito e disse:

 — Claro, vá em frente.

 — O senhor é casado?

 — Sou. Tenho dois filhos, um menino mais ou menos da sua idade e uma garota um pouco mais moça.

 — Tem algum hobby?

 — Coleciono suvenires relativos ao boxe.

 — É um hobby pouco comum.

 — Acho que sim.

 Priest ficou ao mesmo tempo satisfeito e espantado com a naturalidade com que Flower vivia o papel. Ela é boa nisso. Puxa vida, espero não tê-la criado todos esses anos para escrever para uma revistinha barata.

 Ele estudou Hayes enquanto o agente respondia às perguntas inocentes de Flower. Aquele era seu oponente. Hayes estava vestido cuidadosamente, em estilo convencional. O terno marrom-claro, a camisa branca e a gravata de seda escura provavelmente tinham sido comprados na Brook Brothers. Usava sapatos sociais pretos, muito bem engraxados e com os cordões cuidadosamente atados e apertados. O cabelo e o bigode eram muito bem cortados.

 Priest, contudo, sentiu que a aparência ultraconservadora era falsa. A gravata era chamativa demais, ele usava um anel de rubi enorme no dedo mínimo da mão esquerda e o bigode representava um toque de vulgaridade. Priest achou também que o tipo aristocrata bem-nascido que Hayes estava tentando imitar não estaria tão embonecado em uma manhã de sábado, mesmo para uma entrevista coletiva.

 — Qual é o seu restaurante favorito? — perguntou Flower.

 — Muitos de nós vamos ao Everton's, que realmente é mais um pub que um restaurante.

 A sala onde seria a reunião estava se enchendo de homens e mulheres com blocos de notas e gravadores cassete, fotógrafos assoberbados com câmeras e flashes, repórteres de rádio com microfones grandes e duas equipes de televisão com câmeras manuais de vídeo. Ao entrarem, a moça da prancheta pedia para que assinassem um livro. Priest e Flower pareciam ter passado ao largo desta exigência. Ainda bem. Ele não seria capaz de escrever "Peter Shoebury" nem que fosse para salvar sua vida.

 Kincaid, o chefe, tocou no ombro de Hayes.

 — Precisamos nos preparar agora, Florence. Espero que fique para ouvir a minha declaração.

 — Ah, sim, muito obrigada.

 — O senhor foi realmente muito gentil, Sr. Hayes. Os professores de Florence ficarão sinceramente gratos.

 Os agentes se dirigiram para a mesa no outro lado. Meu Deus, nós os enganamos. Priest e Flower sentaram no fundo e aguardaram. A tensão de Priest diminuiu. Ele realmente conseguira o que queria. Eu sabia que ia conseguir.

 Ainda não colhera muita informação propriamente dita, mas isso viria com a declaração formal a ser feita para a imprensa. O que tinha conseguido mesmo fora sentir as pessoas com quem estava lidando. Sentiu-se tranqüilizado pelo que descobrira. Nem Kincaid nem Hayes lhe pareceram brilhantes. Deram-lhe a impressão de serem policiais comuns, do tipo que vai vivendo segundo uma mistura de rotina obstinada e uma corrupção ocasional. Pouco tinha a temer deles.

 Kincaid levantou-se e apresentou-se. Pareceu confiante, mas com um pouco de exagero, até meio agressivo. Talvez não estivesse exercendo a função de chefe há muito tempo. Começou:

 — Gostaria de começar deixando uma coisa bem clara. O FBI não acredita que o terremoto de ontem tenha sido causado pela ação de um grupo terrorista.

 As lâmpadas dos flashes pipocaram, as fitas começaram a rodar nos gravadores e os repórteres deram início às suas anotações. Priest tentou não deixar que a raiva que sentia transparecesse no seu rosto.

 Os filhos da mãe continuavam a se recusar a levá-lo a sério!

 — Esta também é a opinião do sismólogo do estado, que eu acredito esteja disponível para entrevistas na manhã de hoje, em Sacramento.

 O que tenho de fazer para convencer vocês? Ameacei provocar um terremoto, cumpri a promessa e ainda não acreditam em mim! Será que vou ter que matar gente para que me ouçam ?

 Kincaid continuou:

 — Mesmo assim, uma ameaça terrorista foi feita e o Bureau tenciona pegar as pessoas que formularam essa ameaça. Nossa investigação é chefiada pelo agente especial Marvin Hayes. É com você agora, Marvin.

 Hayes também se levantou. Estava mais nervoso do que Kincaid, Priest viu de imediato. Leu mecanicamente uma declaração preparada com antecedência.

 — Agentes do FBI interrogaram na manhã de hoje todos os cinco empregados pagos da Campanha Califórnia Verde nas respectivas casas. Estão colaborando conosco voluntariamente.

 Priest ficou satisfeito. Deixara uma trilha falsa e os federais a estavam seguindo.

 Hayes continuou:

 — Nossos agentes também visitaram a sede da campanha aqui em San Francisco e examinaram documentos e registros armazenados em seus computadores.

 Deviam estar vasculhando a lista de mala direta da organização em busca de uma pista, imaginou Priest.

 Ele ainda falou mais, mas foi repetitivo.

 Os jornalistas reunidos fizeram perguntas que acrescentaram detalhes e um colorido diferente, mas a história básica em nada mudou. A tensão de Priest foi crescendo novamente quando ele se viu ali preso numa cadeira, esperando impacientemente uma chance para ir embora sem chamar a atenção.

 Ficou satisfeito por ver que a investigação do FBI estivesse tão fora do rumo — sem que eles tivessem chegado ainda à segunda pista falsa que deixara — mas sentia-se furioso por terem se recusado a crer na sua ameaça.

 Finalmente Kincaid deu a sessão por encerrada e os jornalistas começaram a se levantar e reunir sua tralha.

 Priest e Flower dirigiram-se para a porta mas foram detidos pela jovem com a prancheta, que sorriu alegremente e disse:

 — Não creio que tenham assinado aqui, assinaram? — ela passou para Priest um livro e uma caneta. — Basta escreverem os seus nomes e a organização que representam.

 Priest ficou paralisado pelo medo. Não posso, não posso! Não entre em pânico. Relaxe. Ley, tor, pur-doy-cor...

 — Senhor? Dava para fazer o favor de assinar?

 — Claro — Priest pegou o livro e a caneta. E em seguida passou para Flower. — Acho que Florence devia assinar por nós — afinal, ela é que é a jornalista — disse ele, lembrando a Flower do seu nome falso.

 Ocorreu-lhe então que ela podia ter esquecido o nome da escola que supostamente freqüentava.

 Flower nem piscou. Escreveu no livro e o devolveu. Agora, pelo amor de Deus, podemos ir embora?

 — O senhor também, por favor — insistiu a mulher, dando o livro a Priest.

 Ele o pegou com relutância. E agora? Se rabiscasse um garrancho ela podia pedir para que escrevesse o nome com letra de imprensa: isto já lhe acontecera antes. Mas talvez pudesse se recusar e simplesmente dar o fora. Ela era simplesmente uma secretária. Enquanto hesitava, ouviu a voz de Kincaid.

 — Espero que tenha sido interessante para você, Florence.

 Kincaid é um agente — faz parte do seu trabalho ser desconfiado.

 — Sim, senhor, foi — respondeu Flower, polidamente.

 Priest começou a suar por baixo da camisa. Rabiscou um garrancho no lugar onde deveria escrever o nome. Em seguida fechou o livro antes de devolvê-lo à mulher. Kincaid falou com Flower:

 — Você vai se lembrar de me mandar um número do jornal da sua classe quando for impresso?

 — Sim, claro. Vamos, vamos!

 A mulher abriu o livro e disse:

 — Oh, o senhor me desculpe, mas se incomodaria de escrever seu nome aqui? Receio que sua assinatura não seja realmente clara.

 O que é que eu vou fazer?

 — Você vai precisar de um endereço — Kincaid disse a Flower, e pegou um cartão de visitas no bolso da lapela do paletó. — Aqui está.

 — Muito obrigada.

 Priest se lembrou de que Peter Shoebury também tinha cartões de visita. Aí está a resposta — graças a Deus! Abriu a carteira e deu um cartão à mulher. — Minha letra é horrorosa — desculpou-se — use isto aqui. Temos que nos apressar — ele apertou a mão de Kincaid. — O senhor foi maravilhoso. Pode deixar que não vou permitir que Florence se esqueça de lhe enviar o recorte com a notícia.

 Eles saíram da sala. Cruzaram o saguão e esperaram o elevador. Priest imaginou Kincaid vindo atrás dele, empunhando uma arma, dizendo: "Que tipo de advogado não é capaz de escrever o próprio nome, seu panaca?"

 Mas o elevador veio, eles desceram, saíram do prédio e logo respiravam o ar livre da rua.

 Flower disse:

 — Eu tenho o pai mais maluco deste mundo.

 Priest sorriu para ela.

 — É verdade.

 — Por que usamos nomes falsos?

 — Bem, nunca estou a fim de que esses porcos saibam meu nome verdadeiro — respondeu ele.

 Ela aceitaria isso, pensou Priest. Sabia como os pais se sentiam a respeito de policiais.

 Mas ela retrucou:

 — Assim mesmo, fiquei furiosa com você.

 Ele não entendeu.

 — Por quê?

 — Nunca vou perdoá-lo por ter me chamado de Florence — disse ela.

 Priest a encarou fixamente por um instante e os dois caíram na risada.

 — Vamos embora, garota — disse ele, amorosamente. — Vamos para casa.

 

 Judy sonhou que passeava na orla da praia com Michael Quercus, e que os pés descalços dele deixavam marcas nítidas e precisas na areia molhada.

 Na manhã de sábado ela ajudara em uma classe de alfabetização para menores transgressores. Eles a respeitavam porque carregava uma arma.

 Sentou-se no salão de uma igreja ao lado de um bandido de dezessete anos, ajudando-o a praticar a escrever a data, na esperança de que, de alguma maneira, aquilo tornasse menos provável que em mais dez anos tivesse que prendê-lo.

 De tarde, pegou o carro para ir fazer compras na Gala Foods perto da casa de Bo, no Geary Boulevard.

 A rotina dos sábados não conseguiu acalmá-la. Estava furiosa com Brian Kincaid por tê-la tirado do caso do Martelo do Éden, mas não havia nada que pudesse fazer a respeito, de modo que saiu pisando forte para cima e para baixo nos corredores da loja e tentou concentrar-se em coisas como Chewy Chips Ahoy, Rice-A-Roni e Zee Decor Collection", toalhas de papel para a cozinha com desenhos estampados em amarelo. Na gôndola dos matinais lembrou-se de Dusty, o filho de Michael, e comprou uma caixa do cereal Cap'n Crunch.

 Mas não conseguia parar de pensar no caso. Haverá alguém que saiba mesmo causar terremotos? Ou estou maluca? Quando voltou, Bo ajudou-a a descarregar as compras e perguntou como andava a investigação.

 — Eu soube que Marvin Hayes vasculhou a sede da Campanha da Califórnia Verde.

 — Não deve ter adiantado muito — disse ela. — Eles estão todos limpos. Raja entrevistou-os na terça-feira. Dois homens e três mulheres, todos acima dos cinqüenta anos. Sem prontuário criminal — nem mesmo uma multa por excesso de velocidade — e nenhuma associação com pessoas suspeitas. Se forem terroristas, eu sou o Kojak.

 — A televisão disse que Hayes está examinando os registros deles.

 — Certo. Há uma lista de todo mundo que escreveu para eles pedindo informações, inclusive a Jane Fonda. São dezoito mil nomes e endereços. A equipe de Marvin vai ter que passar cada nome no computador do FBI para ver quem vale a pena entrevistar. Pode levar um mês.

 A campainha da porta tocou. Judy foi atender e ficou surpresa ao ver Simon Sparrow. Surpresa mas satisfeita.

 — Ei, Simon, vai entrando!

 Ele estava usando bermuda preta de ciclista, camiseta e tênis Nike e óculos escuros desses inteiriços. Mas não tinha vindo de bicicleta: seu Honda del Sol verde-esmeralda podia ser visto estacionado diante do prédio, com a capota abaixada. Judy imaginou o que sua mãe teria achado de Simon. "Um bom rapaz", talvez dissesse. "Mas não muito másculo."

 Bo apertou a mão de Simon e, às escondidas, dirigiu à filha um olhar que perguntava Quem diabos é essa bicha? Judy chocou-o dizendo:

 — Simon é um dos mais importantes analistas de lingüística do FBI.

 Meio confuso, Bo disse:

 — Bem, Simon, é um prazer conhecê-lo, sem dúvida nenhuma.

 Simon mostrou uma fita cassete e um envelope de papel pardo.

 — Vim lhe trazer meu relatório sobre a fita do Martelo do Éden.

 — Estou fora do caso — disse Judy.

 — Eu sei, mas achei que você ainda estaria interessada. As vozes da fita não correspondem a nenhuma existente em nossos arquivos acústicos, infelizmente.

 — Nada de nomes então.

 — Não, mas um monte de coisas interessantes.

 O interesse de Judy foi despertado.

 — Você disse "vozes". Só ouvi uma.

 — Não, há duas — Simon olhou em torno e viu o radiogravador de Bo em cima da bancada da cozinha. Normalmente era usado para tocar The Greatest Hits of the Everly Brothers. Ele colocou a fita no aparelho.

 — Deixa eu explicar umas coisas ouvindo a fita.

 — Eu adoraria, mas é Marvin Hayes o encarregado do caso agora.

 — Eu gostaria de ter sua opinião de qualquer maneira. Judy sacudiu a cabeça obstinadamente.

 — Você devia falar primeiro com Marvin.

 — Sei o que você está dizendo. Mas o Marvin é um bosta. Sabe quanto tempo faz que ele não prende nenhum bandido?

 — Simon, se você está querendo fazer com que eu trabalhe no caso escondida de Kincaid, pode esquecer!

 — Basta me ouvir, está certo? Não pode fazer mal algum. Simon aumentou o volume e pôs a fita para rodar.

 Judy suspirou. Estava desesperadamente ansiosa para saber o que Simon descobrira a respeito do Martelo do Éden. Mas se Kincaid soubesse que ele falara com ela antes de procurar Marvin, ia dar uma confusão dos infernos.

 Ouviu-se uma voz de mulher:

 — Aqui é o Martelo do Éden, com uma mensagem para o governador Mike Robson.

 Simon parou a fita e olhou para Bo.

 — O que foi que você visualizou ao ouvir isto?

 Bo sorriu.

 — Uma mulher grande, com cerca de cinqüenta anos, com um sorriso largo. Meio sexy. Eu me lembro que achei que gostaria — ele deu uma olhada em Judy e concluiu — de conhecê-la.

 Simon concordou.

 — Seus instintos são confiáveis. Mesmo sem treinamento é possível dizer muita coisa a respeito de uma pessoa só por ouvi-la falar. Quase sempre sabe-se se a voz é de homem ou de mulher, claro. Mas é possível também dizer-se que idade tem e geralmente também o peso e a altura. Às vezes pode-se até adivinhar o estado de saúde.

 — Você tem razão — concordou Judy, intrigada, mesmo que contra a vontade. — Sempre que ouço uma voz no telefone imagino a pessoa que falou, até mesmo quando ouço uma gravação.

 — É porque o som da nossa voz é produzido pelo corpo. Altura, volume, ressonância, rouquidão, enfim, todas as características vocais têm uma causa física. Quem é alto tem um trato vocal mais comprido, velhos têm tecidos enrijecidos e cartilagens que rangem ou chiam, pessoas doentes têm gargantas inflamadas.

 — Isso faz sentido — disse Judy.

 — Só que na verdade eu jamais tinha pensado nessas coisas.

 — Meu computador pega os mesmos indícios que as pessoas, e é mais preciso — Simon pegou um relatório impresso no envelope que trouxera. — Esta mulher tem entre quarenta e sete e cinqüenta e dois anos. É alta, com cerca de um metro e oitenta, pouco mais, pouco menos. Está além do peso ideal, mas não é obesa; provavelmente é dessas pessoas que são avantajadas de natureza. Bebe e fuma, e mesmo assim é saudável.

 Judy sentia-se ansiosa mas excitada. Embora achasse que teria sido melhor se não tivesse deixado que Simon começasse, era fascinante aprender alguma coisa sobre a mulher misteriosa que havia por trás da voz do telefonema.

 Simon olhou para Bo.

 — E você tem razão quando fala no sorriso largo. Ela tem uma cavidade bucal grande e seu discurso não é labializado — ou seja, ela não contrai os lábios.

 — Gosto desta mulher — disse Bo. — O computador diz se ela é boa de cama?

 Simon sorriu.

 — A razão pela qual você pensa que ela é sexy é que sua voz tem qualquer coisa de murmurante. O que pode ser um sinal de excitação sexual. Mas quando é uma característica permanente, não indica obrigatoriamente uma qualidade da libido.

 — Acho que você está enganado replicou Bo. — Mulheres sexy têm vozes sexy.

 — Idem para quem fuma muito.

 — OK, você tem razão.

 Simon rebobinou a fita.

 — Agora prestem atenção ao sotaque dela. Judy protestou.

 — Simon, não creio que devamos...

 — Basta que ouçam. Por favor!

 — Tudo bem, tudo bem.

 Desta vez ele tocou as duas primeiras frases. "Aqui é o Martelo do Éden com uma mensagem para o governador Mike Robson. Que merda, eu não esperava ter que falar num gravador."

 Simon parou a fita.

 — O sotaque é do norte da Califórnia, claro. Mas vocês notaram mais alguma coisa?

 Bo disse:

 — Ela é classe média. Judy franziu a testa.

 — A mim pareceu classe média elevada.

 — Vocês dois têm razão — disse Simon. — O sotaque varia entre a primeira e a segunda oração.

 — E isto é raro? — quis saber Judy.

 — Não. Nosso sotaque sempre resulta, basicamente, da influência do grupo social em que crescemos, se bem que no decurso da vida o modifiquemos. Geralmente as pessoas tentam melhorar: a classe trabalhadora tenta parecer mais rica, e os novos-ricos tentam falar como se tivessem mais tradição. Ocasionalmente acontece o contrário: o político de uma família aristocrática pode querer fazer com que seu sotaque pareça mais comum, para que ele possa passar por um homem do povo, entendem o que estou dizendo?

 Judy sorriu.

 — Melhor do que seria desejável.

 — O sotaque aprendido é usado em situações formais disse Simon, enquanto rebobinava a fita. — Entra em ação quando o orador está composto, emocionalmente estável. Mas nós revertemos aos padrões de fala da nossa infância quando sob tensão. Tudo bem até agora?

 Foi Bo quem respondeu:

 — Claro.

 — Esta mulher fez uma redução no estilo da sua fala. Quis aparentar ser mais da classe trabalhadora do que na realidade é.

 Judy sentia-se fascinada.

 — Você acha que ela pode ser uma espécie de reedição da figura de Patty Hearst?

 — Nessa área, sim. Ela começa com uma sentença formal ensaiada, pronunciada com sua voz de pessoa comum. Agora, na fala do inglês dos Estados Unidos, quanto mais de classe alta você é, mais nitidamente pronuncia o "r". Com isto em mente, ouçam como ela diz a palavra "governador".

 Judy ia interrompê-lo, mas estava interessada demais. A mulher da fita disse: "Aqui é o Martelo do Éden com uma mensagem para o governador Mike Robson."

 — Perceberam como ela diz praticamente "governadô" Mike? Quase não se ouve o "r" final. Isto é a fala das ruas. Mas prestem atenção à sentença seguinte. O aviso da secretária eletrônica a surpreende e ela fala com o sotaque original. "Que merda, eu não esperava ter que falar num gravador" — Embora comece com um expletivo chulo, "merda", ela pronuncia a palavra "gravador" muito corretamente. Fosse mesmo de uma classe social baixa, omitiria o último "r" tanto da palavra "gravador" quanto das anteriores "ter" e "falar" O diplomado mediano do terceiro grau pronunciaria todos os "r", sem , dúvida, mas somente uma pessoa realmente oriunda de uma classe superior pronunciaria cuidadosamente todos os três "r".

 Bo espantou-se.

 — Quem poderia imaginar que seria possível você descobrir tanta coisa em duas frases?

 Simon sorriu, parecendo satisfeito.

 — Mas notaram algo no tocante ao vocabulário?

 Bo sacudiu a cabeça.

 — Nada que eu seja capaz de apontar precisamente.

 — O que é que a gente normalmente chama de "gravador"?

 Bo riu.

 — Bem, "gravador" é a palavra mais geral. Minicassete também é bastante comum. No Vietnã eu tive o que era chamado de gravador de fita — um Grundig, do tamanho de uma maleta pequena, com dois carretéis na parte de cima.

 Judy viu onde Simon queria chegar. O termo "gravador" naquele contexto era ultrapassado no tempo. Mesmo que ela tivesse dito "secretária eletrônica" não seria mais o caso. Quando se tratava de uma instituição do porte de um FBI, há muito tempo que o sistema denominado correio de voz registra as mensagens diretamente no disco rígido de um computador.

 — Ela está vivendo em um desvio do tempo — disse Judy. — O que me faz pensar de novo em Patty Hearst. O que lhe terá acontecido, afinal?

 Bo disse:

 — Passou uma temporada na cadeia, saiu, escreveu um livro e apareceu no Geraldo. Bem-vinda à América.

 Judy levantou-se.

 — Isso foi fascinante, Simon, mas não me sinto à vontade com o que estou fazendo. Acho que você devia se apresentar ao Marvin agora.

 — Só quero mostrar mais uma coisa — insistiu ele, comprimindo o botão que adiantava a fita rapidamente.

 — Sinceramente...

 — Ouça só isto aqui.

 A voz da mulher foi ouvida de novo: "Aconteceu no Owens Valley pouco depois das duas horas, conforme podem verificar." Seguiu-se um intervalo, com um barulho distante ao fundo que fez com que ela hesitasse.

 Simon comprimiu a pausa.

 — Aumentei esse barulhinho, na verdade um murmúrio. Aqui está, reconstruído.

 Ele soltou o botão da pausa. Judy ouviu uma voz de homem, distorcida pelo barulho de fundo mas clara o bastante para se entender o que dizia: "Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos." O barulho de fundo voltou ao normal, a voz da mulher repetiu esta mesma frase e prosseguiu: "Agora que sabe que somos capazes de fazer o que dizemos, é melhor pensar de novo na nossa exigência."

 Simon parou a fita.

 Judy disse:

 — Ela repetiu um discurso ensinado, esqueceu de algo e ele lembrou o que era.

 Bo disse:

 — Você não achou que a mensagem original da Internet havia sido ditada por um sujeito talvez analfabeto e digitada por uma mulher com instrução?

 — Achei — concordou Simon. — Mas esta é outra mulher — mais velha.

 — E assim — disse Bo, agora dirigindo-se à filha — agora você está começando a levantar os perfis de três indivíduos desconhecidos.

 — Não, não estou não — retrucou Judy. — Estou fora do caso. Deixa disso, Simon, você sabe que isto pode me trazer mais encrenca.

 — OK — ele tirou a fita do aparelho e se levantou. — De qualquer forma, eu já lhe disse tudo o que havia de importante. Fale comigo se tiver algum insight brilhante que eu possa passar para o Marvin Mogadon.

 Judy o acompanhou até a porta.

 — Levarei meu relatório agora mesmo

 — Marvin provavelmente ainda estará trabalhando — disse ele. – Depois vou dormir. Passei a noite toda em claro com isso. — ele entrou no seu carro esporte e saiu, com o motor roncando forte.

 Quando ela voltou, Bo estava fazendo chá verde, ar pensativo.

 — Então esse malandro de rua dispõe de um bando de damas classudas para escrever o que ele dita.

 Judy balançou a cabeça.

 — Acho que sei onde você está querendo chegar.

 — Pode ser um culto. Eu estava certa em pensar em Patty Hearst. – Ela estremeceu. O homem por trás daquilo tudo devia ser uma figura carismática com poder sobre as mulheres. Não tinha instrução, mas isto não era empecilho, pois tinha outras pessoas para executarem suas ordens. — Mas tem uma coisa que não bate. A exigência de que seja suspensa a construção de novas usinas de eletricidade — não é uma coisa irracional ou pelo menos esquisita, como seria de se esperar.

 — Concordo — disse Bo. — Não é nem de grande notoriedade. Acho que devem ter uma razão qualquer concreta e egoísta para querer essa paralisação.

 — Não sei, não — cismou Judy — mas talvez tenham interesse em alguma determinada usina.

 — Judy, essa foi brilhante! Tipo vai poluir o rio onde pescam salmão ou algo assim.

 — Seja como for, será um golpe duro para eles — Judy sentia-se enormemente estimulada. Tinha descoberto alguma coisa.

 — A suspensão das obras de todas as usinas então não passa de um disfarce. Eles têm medo de dizer o nome daquela em que estão realmente interessados com medo de nos darem uma pista para chegar até o local onde se escondem.

 — Mas quantas possibilidades pode haver? Usinas elétricas não são construídas todos os dias. E essas coisas são controversas. Qualquer proposta tem de ser relatada.

 — Vamos verificar.

 Os dois foram para a saleta da televisão. O laptop de Judy ficava em cima de uma mesinha. Ela às vezes redigia relatórios ali enquanto seu pai assistia ao futebol. A televisão não a distraía e ela gostava de ficar perto dele. Ligou o laptop e enquanto esperava que iniciasse, disse:

 — Se prepararmos uma lista dos locais onde estão sendo construídas usinas elétricas, o computador do FBI nos dirá se há algum culto nas proximidades.

 Ela acessou os arquivos do San Francisco Chronicle e procurou referências a usinas elétricas nos três últimos anos. A busca produziu um total de 117 artigos. Judy verificou as manchetes, ignorando matérias sobre Pittsburgh e Cuba.

 — OK, tem aqui um plano para a construção de uma usina nuclear no deserto de Mojave... — ela salvou a história. — Uma hidrelétrica no condado de Sierra... uma usina incendiada perto da fronteira do Oregon...

 Bo disse:

 — Sierra? Isso toca uma campainha. Tem a localização exata?

 Judy clicou em cima do artigo.

 — Sim... a proposta é represar o rio, Silver River.

 Ele franziu a testa.

 — Silver River Valley...

 Judy desviou o olhar da tela do laptop.

 — Espera aí... isso é familiar... Não tem um grupo de vigilantes baseado numa grande extensão de terra ali?

 — Isso mesmo! — exclamou Bo. — São chamados de Los Alamos. Dirigidos por um maníaco da velocidade chamado Poco Latella, original de Daly City. É por isso que os conheço.

 — Certo. Vivem armados até os dentes e se recusam a reconhecer o governo dos Estados Unidos... Cristo, chegaram inclusive a usar a frase na fita: "Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos."

 Bo, acho que os pegamos.

 — O que é que você vai fazer?

 O coração de Judy ficou pequeno quando ela se lembrou de que estava fora do caso.

 — Se Kincaid descobrir que andei trabalhando neste caso.

 — Los Alamos tem que ser investigado.

 — Vou telefonar para Simon — ela pegou o telefone e ligou para o escritório. O operador da mesa era um sujeito que ela conhecia.

 — Ei, Charlie, aqui é a Judy. Simon Sparrow está na casa?

 — Veio mas já saiu — respondeu Charlie. — Quer que eu tente o carro dele?

 — Por favor.

 Ela aguardou um pouco e logo voltou a ouvir a voz de Charlie.

 — Não responde. Tentei a casa dele também. Quer que eu deixe uma mensagem no seu pager?

 — Sim, por favor — Judy lembrou que ele havia dito que ia dormir. — Mas aposto como vai estar desligado também.

 — Deixo um recado para ele ligar para você.

 — Obrigada — ela desligou e virou-se para o pai. — Bo, acho que vou ter que falar com Kincaid. Pode ser que se eu lhe der uma pista quente, ele não fique furioso comigo.

 Bo limitou-se a encolher os ombros.

 — Você não tem escolha, tem?

 Judy não podia arriscar-se a permitir que morresse gente só porque tinha medo de confessar o que fizera.

 — Não, não tenho escolha — disse.

 Ela estava com uma calça-jeans preta e uma camiseta cor de morango. A camiseta era justa demais para ir ao escritório, mesmo em uma manhã de sábado. Subiu até o quarto e a trocou por uma pólo branca. Depois pegou seu Monte Carlo e foi para o centro da cidade.

 Marvin teria que organizar uma incursão a Los Alamos. Podia haver encrenca; os vigilantes eram malucos. A incursão precisava ter um efetivo razoavelmente grande e ser meticulosamente organizada. O FBI morria de medo de outro Waco. Todo o pessoal da agência seria convocado para fazer parte dela. A agência de Sacramento também seria envolvida. Provavelmente a ação seria desencadeada na madrugada do dia seguinte. Foi direto à sala de Kincaid. A secretária estava na ante-sala, trabalhando no computador, trajando uma roupa de sábado, calça-jeans branca e camisa vermelha. Ela pegou o telefone e disse:

 — Judy Maddox está aqui para ver o senhor — após um momento desligou e disse para Judy: — Pode entrar.

 Judy hesitou na porta da sala de Kincaid. Nas duas últimas vezes em que entrara naquele escritório, sofrera humilhação e desapontamento. Mas não era supersticiosa. Talvez desta vez ele se mostrasse magnânimo e compreensivo.

 Ainda a perturbava ver sua figura corpulenta na cadeira que era de Milton Lestrange, um homem esbelto e elegante no vestir. Deu-se conta neste instante de que ainda não visitara Milt no hospital. Tomou nota mentalmente para visitá-lo ainda naquela noite ou no dia seguinte.

 O cumprimento de Kincaid foi glacial.

 — O que posso fazer por você, Judy?

 — Estive hoje com Simon Sparrow — começou ela. — Ele me trouxe o relatório porque não sabia que eu estava fora do caso. Naturalmente que eu lhe disse para entregar a Marvin.

 — Naturalmente.

 — Mas ele me contou um pouco do que descobriu, o que me fez imaginar que o Martelo do Éden deve ser um culto que se sinta de algum modo ameaçado pelo projeto de construção de uma usina elétrica.

 Brian pareceu aborrecido.

 — Passarei isso para Marvin — disse, impaciente.

 Judy insistiu, inabalável.

 — Há diversos projetos de usinas na Califórnia; eu mesma verifiquei. E um deles é no vale do rio Silver, onde há um grupo de vigilantes de extrema direita chamado Los Alamos. Brian, eu acho que os Los Alamos devem ser o Martelo do Éden. Acho que devíamos fazer uma incursão lá.

 — É isso que você acha? Oh, que merda.

 — Há alguma falha na minha lógica? — perguntou ela, glacialmente.

 — Pode apostar como há — ele se levantou. — A falha é que você não tem nada a ver com este maldito caso.

 — Eu sei — contrapôs ela. — Mas pensei que. . .

 Ele a interrompeu, esticando o braço por cima da mesa grande e apontando um dedo acusador contra o seu rosto.

 — Você interceptou o relatório psicolingüístico e está tentando dar um jeito para voltar ao caso — e eu sei por quê! Você acha que é um caso que pode lhe trazer notoriedade e quer aparecer.

 — Para quem? — perguntou Judy, indignada.

 — A sede do FBI, a imprensa, o governador Robson.

 — Não quero nada!

 — Ouça bem o que vou falar. Você está fora deste caso. Está me entendendo? F-o-r-a, fora. Você não fala com seu amigo Simon a respeito do caso. Você não verifica planos de construção de usinas. E não propõe incursões contra sedes de grupos de vigilantes.

 — Jesus Cristo!

 — Eis o que você vai fazer: você vai para casa. E vai deixar este caso com Marvin e comigo.

 — Brian...

 — Adeus, Judy. Tenha um bom fim de semana.

 Ela o encarou fixamente. Kincaid estava vermelho e respirando com dificuldade. Sentiu-se furiosa mas impotente. Engoliu as respostas furiosas que lhe vieram à mente. Tinha sido forçada a desculpar-se por ter xingado Kincaid uma vez e não queria passar pela humilhação de novo. Mordeu os lábios. Após um longo momento, girou nos calcanhares e saiu da sala.

 

 Priest parou o velho Plymouth `Cuda no lado da estrada, ao raiar do dia. Pegou a mão de Melanie e levou-a por dentro da floresta. O ar da montanha era frio e eles tremiam em suas camisetas até que o esforço da caminhada aqueceu-lhes os corpos. Após alguns minutos deram em um penhasco de onde era possível ver o vale do rio em toda a sua extensão.

 — O vale do rio Silver — disse Priest. — É aqui que querem construir a tal represa para a usina hidrelétrica.

 Justo naquele ponto o vale se estreitava em uma garganta, de tal modo que o outro lado não ficava a mais de quinhentos metros. Ainda estava muito escuro para ver o rio, mas no silêncio da manhã dava para ouvir o rumorejar das águas lá embaixo. Quando o dia clareou mais um pouco, conseguiram distinguir as formas escuras dos guindastes e das gigantescas máquinas de terraplenagem, silenciosas e imóveis, como dinossauros adormecidos.

 Priest praticamente perdera a esperança de que o governador Robson fosse negociar. O terremoto em Owens Valley fora há dois dias e, até agora, nem uma só palavra. Não conseguia imaginar qual seria a estratégia do governador, mas com certeza não era de capitulação. Tinha que haver outro terremoto. Mas ele se inquietava. Melanie e Star podiam relutar, em especial porque o segundo tremor teria que causar mais danos que o primeiro. Tinha que revigorar a dedicação delas à causa, a começar com Melanie.

 — Será criado um lago com dezesseis quilômetros de comprimento, em toda a extensão do vale — disse ele. Pôde ver o rosto oval de Melanie, muito branco, ficar tenso de raiva. — A partir daqui, rio acima, tudo que você está vendo ficará sob a água.

 Depois da garganta, estendia-se o largo fundo do vale. Quando a paisagem ficou visível, puderam ver as casas dispersas aqui e ali, e alguns campos cuidadosamente cultivados, todos ligados por estradinhas de terra. Melanie disse:

 — Certamente que alguém tentou impedir a construção da represa, não?

 Priest aquiesceu.

 — Houve uma enorme batalha legal. Nós não tomamos parte. Não acreditamos em tribunais e advogados. E não queríamos repórteres e equipes de televisão espalhados por toda a parte como praga — um grande número de nós tem segredos para guardar. Este é o motivo pelo qual nem dizemos às pessoas que formamos uma comunidade. A maior parte de nossos vizinhos nem sabe que existimos, e outros pensam que o vinhedo é administrado de Napa e emprega trabalhadores temporários. Por isso não participamos do protesto. Mas alguns dos residentes mais ricos contrataram advogados e os grupos ambientalistas ficaram do lado dos moradores. Não adiantou.

 — Como é que pode?

 — O governador Robson apoiou o projeto da construção da represa e pôs esse tal de Honeymoon no caso — Priest odiava Honeymoon. Ele tinha mentido, enganado e manipulado a imprensa impiedosamente. — Honeymoon distorceu a coisa de tal modo que a imprensa fez o pessoal daqui parecer um bando de caras egoístas que queriam negar energia elétrica para todos os hospitais e escolas da Califórnia.

 — Como se tivessem culpa de que as pessoas em Los Angeles pusessem iluminação subaquática em suas piscinas e tivessem motores elétricos para fechar as cortinas da casa.

 — Certo. E assim, a Coastal Electric teve permissão para construir a represa.

 — E todas essas pessoas perderão suas casas.

 — Além de um centro hípico, um campo de vida selvagem, diversas cabanas de verão e um bando maluco de vigilantes armados conhecidoscomo Los Alamos. Todos recebem compensação financeira — exceto nós, porque não somos os proprietários de nossa terra, só a alugamos na base de contratos de um ano. Não receberemos nada — pelo melhor vinhedo entre Napa e Bordeaux.

 — É o único lugar onde me senti em paz.

 Priest murmurou qualquer coisa em sinal de compreensão. Era assim que queria que a conversa se desenrolasse.

 — Dusty sempre teve aquelas alergias?

 — Desde que nasceu. Na verdade, ele era alérgico a leite de vaca, mamadeira, até mesmo materno. Sobreviveu à base de leite de cabra. Foi quando me dei conta de que a raça humana deve estar fazendo algo de errado para que o mundo esteja tão poluído que o próprio leite do meu seio seja venenoso para meu filho.

 — Mas você o levou aos médicos.

 — Michael insistiu. Eu sabia que não ia adiantar nada. Receitaram remédios para suprimir seu sistema imunológico e impedir que reagisse aos elementos alergênicos. Que tipo de tratamento é esse? O que ele precisava era de água pura, ar limpo e um modo de vida saudável. Acho que procurei um lugar assim desde que ele nasceu.

 — Foi difícil para você.

 — Você não faz idéia de como foi difícil. Uma mulher sozinha com um filho doente não consegue permanecer em nenhum emprego, não consegue morar em um apartamento decente, não pode viver. Você acha que a América é um grande lugar, mas é tudo a mesma droga.

 — Você estava em mau estado quando a encontrei.

 — Estava prestes a me matar e a Dusty também — os olhos dela encheram-se de lágrimas.

 — Aí você encontrou este lugar.

 O rosto dela ficou vermelho de raiva. — Que agora querem tirar de mim!

 — O FBI diz que não fomos nós que causamos o terremoto e o governador nada disse.

 — Ao inferno com ele, teremos que repetir a dose! Só que desta vez de um jeito que não possam ignorar.

 Era o que ele queria ouvi-la dizer.

 — Seria preciso causar danos reais, derrubar algumas edificações. Pode ser que saia gente ferida.

 — Mas não temos escolha!

 — Podíamos deixar o vale, acabar com a comunidade, voltar ao antigo estilo de vida: empregos normais, dinheiro, ar poluído, cobiça, ciúme e ódio.

 Priest conseguiu assustá-la.

 — Não! — exclamou Melanie. — Não diga uma coisa dessas!

 — Acho que você está certa. Não podemos voltar agora.

 — Eu com certeza não posso.

 Ele varreu o vale com o olhar novamente.

 — Vamos nos assegurar de que o vale permaneça tal como Deus o fez.

 Ela fechou os olhos, aliviada, e disse: — Amém.

 Priest segurou-lhe a mão e conduziu-a de volta por entre as árvores até o carro.

 Seguindo ao longo da estreita estrada que acompanhava o vale, Priest perguntou:

 — Você vai pegar Dusty em San Francisco hoje?

 — É, vou, saio depois do almoço.

 Priest ouviu um estranho barulho sobrepondo-se ao ronco asmático do velho motor V8 do `Cuda. Deu uma olhada pela janela lateral e viu um helicóptero.

 — Merda! — exclamou, metendo o pé no freio. Melanie foi lançada para a frente.

 — O que é? — perguntou, assustada.

 Priest parou o carro e saltou. O helicóptero estava desaparecendo na direção norte.

 Melanie também saltou. — O que está havendo?

 — O que um helicóptero está fazendo aqui?

 — Oh, meu Deus — exclamou ela, a voz trêmula. — Acha que está nos procurando?

 O barulho desapareceu e depois voltou. O helicóptero reapareceu de repente sobre as árvores, voando baixo.

 — Acho que são os federais — disse Priest. — Droga! — Após a entrevista coletiva desenxabida da véspera ele achara que ia ficar em segurança por mais uns dias. Kincaid e Hayes pareciam longe de descobrir sua pista. Agora estavam ali, no vale.

 Melanie perguntou:

 — O que vamos fazer?

 — Manter a calma. Eles não vieram por nossa causa.

 — Como é que você sabe?

 — Tomei minhas providências. Ela começou a chorar.

 — Priest, por que fica falando comigo por enigmas?

 — Desculpe — ele se lembrou de que precisava dela para o que ainda tinha que fazer. Por isso tinha que explicar as coisas. Organizou seus pensamentos. — Eles não podem estar vindo atrás de nós porque não sabem de nossa existência. A comunidade não aparece em nenhum registro do governo — nossa terra é cedida para uma pessoa, a Star. Não aparecemos nos arquivos da polícia ou do FBI porque nunca despertamos a atenção deles. Nunca houve um artigo de jornal ou um programa de televisão nos focalizando. Não somos registrados no Imposto de Renda. Nosso vinhedo não aparece em nenhum mapa.

 — Então por que eles estão aqui?

 — Acho que vieram atrás dos Los Alamos. Aqueles malucos devem estar nos arquivos de todas as agências policiais dos Estados Unidos. Pelo amor de Deus, eles ficam junto do portão armados até os dentes com rifles de alto calibre só para que todo mundo saiba que lá moram uns bandidos perigosos e malucos.

 — Como você pode ter certeza de que o FBI está atrás deles?

 — Simples. Quando Star ligou para o programa do John Truth, fiz com que ela dissesse o slogan do pessoal de Los Alamos: "Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos." Ou seja, deixei uma pista falsa.

 — Estamos seguros, então?

 — Não. Depois que virem que Los Alamos está limpo, os federais podem querer dar uma olhada nas outras pessoas do vale. Vão enxergar o vinhedo do helicóptero e nos fazer uma visita. É melhor a gente ir para casa e avisar os outros.

 Priest pulou dentro do carro. Assim que Melanie sentou, ele meteu o pé no acelerador. Mas o carro tinha vinte e cinco anos e não fora projetado para correr em estradas sinuosas que cortavam montanhas. Priest amaldiçoou os carburadores entupidos e a suspensão cambaleante. Enquanto lutava para conservar a velocidade na estrada cheia de curvas, perguntava a si próprio quem no FBI poderia ter ordenado aquela incursão. Não esperara que Kincaid ou Hayes fossem ter a intuição de fazer aquilo. Tinha que haver mais alguém no caso. Gostaria de saber quem.

 Surgiu um carro preto por trás dele, andando depressa, faróis acesos embora o dia já estivesse claro. Estavam se aproximando de uma curva, mas o motorista buzinou e forçou passagem. Quando passou, Priest viu o motorista e seu companheiro, dois homens jovens e corpulentos, vestidos com roupa esporte mas bem barbeados e de cabelos curtos. Imediatamente depois apareceu um segundo carro, buzinando e piscando os faróis.

 — Que merda — exclamou Priest. Quando o FBI estava com pressa, era melhor sair do caminho. Ele freou e desviou, abrindo passagem. As rodas da esquerda do `Cuda subiram, com um solavanco, o terreno gramado ao lado da estrada. Um segundo automóvel passou chispando e logo veio um terceiro. Priest parou totalmente seu velho carro.

 Ele e Melanie deixaram-se ficar sentados observando a passagem de uma série de veículos. Assim como automóveis de passageiros, havia dois caminhões blindados e três minivans cheios de homens de expressão sinistra e algumas mulheres.

 — É uma blitz — lamentou-se Melanie.

 — Puta que pariu, não brinca! — disse Priest, a tensão tornando-o sarcástico.

 Ela pareceu não notar.

 Um carro saiu do comboio e parou logo atrás do `Cuda. Priest de repente sentiu medo. Olhou para o carro pelo retrovisor. Era um Buick Regal verde-garrafa. O motorista falava ao telefone. Havia outro homem no banco do carona. Priest não conseguiu distinguir seus rostos. Quisera, de todo coração, não ter ido à entrevista coletiva. Um dos caras do Buick podia ter estado lá. E nesse caso, com toda certeza ia querer saber o que um advogado de Oakland estava fazendo ali. Dificilmente poderia ser uma coincidência. Qualquer agente com metade de um cérebro poria imediatamente Priest no topo da lista dos suspeitos.

 O último integrante do comboio passou como um raio. No Buick, o motorista desligou o telefone. A qualquer segundo agora os dois agentes saltariam do carro. Priest debateu-se desesperadamente, procurando inventar uma história plausível. Fiquei tão interessado no caso, e me lembrei de uma reportagem na televisão sobre esse grupo de vigilantes e seu slogan, isso de não reconhecerem a autoridade do governo, a mesma coisa que a mulher disse na secretária eletrônica do programa do John Truth, que aí pensei em bancar o detetive, e verificar eu mesmo o que havia... Mas não iam acreditar. Por mais plausível que fosse sua história iam interrogá-lo de uma forma tão completa que não seria possível enganá-los.

 Os dois agentes saíram do carro. Priest os examinou cuidadosamente pelo espelho.

 Não reconheceu nem um nem outro.

 Relaxou um pouco. Havia uma camada de suor no seu rosto. Esfregou a testa com as costas da mão.

 Melanie disse:

 — Oh, Jesus, o que será que eles querem?

 — Fica fria — disse Priest. — Não dê a impressão de que está louca para se mandar. Vou fingir que estou superinteressado neles. A um ponto tal que fará com que queiram se livrar de nós o mais depressa que puderem. Psicologia reversa — ele saiu do carro.

 — Ei, vocês são da polícia? — disse, entusiasmado. — Tem alguma coisa importante acontecendo?

 O motorista, um homem magro com óculos de armação preta, disse:

 — Somos agentes federais. Senhor, verificamos sua placa e o seu carro está registrado como pertencente à Napa Bottling Company.

 Paul Beale fazia questão de manter o carro no seguro e totalmente regularizado.

 — É onde sou empregado.

 — Posso ver sua licença de motorista?

 — Oh, pois não — Priest pegou a licença no bolso de trás da calça. — Aquele helicóptero que eu vi era de vocês?

 — Sim, senhor, era — o agente examinou sua licença e devolveu. – E onde o senhor foi nesta manhã?

 — Trabalhamos num vinhedo mais acima, aqui mesmo no vale. Ei, espero que vocês tenham vindo atrás desses malditos vigilantes. Eles deixam todo mundo por aqui morrendo de medo. Eles...

 — Onde o senhor foi mesmo nesta manhã?

 — Fomos a uma festa em Silver City ontem à noite. Terminou meio tarde. Mas estou sóbrio, não se preocupem!

 — Tudo bem.

 — Escuta, eu escrevo umas coisinhas para o jornal local, não sei se conhecem, o Silver City Chronicle? Será que posso ter uma declaração qualquer de vocês a respeito desta blitz? Vai ser a maior notícia do condado em muitos anos! — quando as palavras saíram de sua boca ele se deu conta de que aquilo era muito arriscado para um homem que não sabia ler ou escrever. Bateu nos bolsos.

 — Puxa vida, não tenho nem um lápis.

 — Não podemos dizer nada — retrucou o agente. — O senhor terá que telefonar para a pessoa encarregada das ligações com a imprensa, no escritório do Bureau em Sacramento.

 Priest fingiu desapontamento.

 — Oh, sim, claro, claro. Eu entendo.

 — O senhor disse que estava indo para casa.

 — Sim. OK, acho que vamos andando, sim. Boa sorte com os vigilantes!

 — Muito obrigado.

 Os agentes retornaram para o Buick.

 Eles não tomaram nota do meu nome.

 Priest voltou para o seu carro. Pelo espelho, ficou observando os agentes. Nenhum dos dois pareceu estar anotando algo.

 — Jesus Cristo — murmurou, feliz. — Acreditaram na minha história.

 Ele saiu, seguido pelo Buick.

 Ao se aproximar da entrada para Los Alamos, poucos minutos depois, Priest abaixou o vidro da sua janela, para ver se ouvia tiros. Não ouviu nada. Parecia que o FBI tinha apanhado os caras dormindo. Depois de uma curva viu dois carros estacionados perto da entrada de Los Alamos. A porteira de cinco paus que bloqueava a trilha fora esmagada: dava para adivinhar que o FBI passara com os carros blindados por cima sem se deter. O portão normalmente era guardado — onde estaria o sentinela?

 Foi então que viu um homem de calça camuflada, cara no chão, mãos algemadas nas costas, guardado por quatro agentes. Os federais não queriam se arriscar. Os agentes dirigiram um olhar apreensivo para o `Cuda mas relaxaram quando viram o Buick verde que o seguia. Priest vinha dirigindo lentamente, como um passante curioso. Atrás dele, o Buick saiu da estrada e parou perto da porteira arrombada. Assim que se viu fora do alcance das vistas deles, Priest meteu o pé na tábua.

 

 Quando chegou na comunidade, foi direto à cabana de Star, para lhe falar sobre o FBI.

 Encontrou Star na cama com Bones.

 Tocou ligeiramente no ombro dela para acordá-la e disse:

 — Precisamos conversar. Espero lá fora.

 Ela fez que sim. Bones nem se mexeu.

 Priest saiu enquanto Star se vestia. Não tinha objeção a que ela renovasse seu relacionamento com Bones, claro. Ele próprio estava dormindo regularmente com Melanie e Star tinha o direito de se distrair com seu antigo amor. Sentia, ao mesmo tempo, um misto de curiosidade e apreensão. Na cama eles seriam apaixonados, famintos um pelo outro, ou relaxados e bem-humorados? Será que Star pensava em Priest enquanto fazia amor com Bones ou punha todos os outros amantes fora da sua mente e pensava apenas naquele com quem estava? Será que os compararia mentalmente e classificaria um como mais enérgico, mais terno ou mais competente? Tais perguntas não eram novas. Ele se lembrava de ter os mesmos pensamentos sempre que Star tinha um amante. O que acontecia agora era exatamente como nos primeiros tempos, só que estavam muito mais velhos.

 Priest sabia que sua comunidade não era como as outras. Paul Beale seguia o destino de outros grupos. No começo todos perseguiam ideais similares, mas depois tinham cedido. Geralmente ainda oravam juntos, seguindo um guru ou uma disciplina religiosa de alguma espécie, mas tinham revertido à propriedade privada e ao uso do dinheiro e não mais praticavam completa liberdade sexual. Eram fracos, no modo de ver de Priest. Não tinham tido a força de vontade para seguirem sempre seus ideais e fazê-los funcionar. Em momentos de maior imodéstia, dizia para si próprio que era uma questão de liderança.

 Star saiu envergando sua calça-jeans e um suéter azul bem folgado. Para alguém que acabara de se levantar, estava ótima. Foi o que Priest lhe disse.

 — Uma boa trepada faz maravilhas pela minha pele — disse ela.

 Havia qualquer coisa de diferente no seu tom de voz, o bastante para fazer com que Priest pensasse que Bones representava uma espécie de vingança por causa de Melanie. Será que ia ser uma espécie de fator desestabilizante? Ele já tinha coisas demais com que se preocupar. Por ora, tinha que deixar aquilo de lado. Enquanto caminhavam até a cabana da cozinha, lhe contou sobre a blitz do FBI contra Los Alamos.

 — Pode ser que decidam verificar as outras residências existentes no vale e, neste caso, nos encontrarão aqui. Não ficarão desconfiados desde que não saibam que somos uma comunidade. Só teremos que sustentar nossa fachada habitual. Somos trabalhadores itinerantes sem interesses de longo prazo no vale, e, exatamente por isto, não temos motivos para nos preocuparmos com a represa.

 Ela aquiesceu.

 — É melhor você lembrar a todos na hora do café da manhã. Os Comedores de Arroz saberão o que você realmente tem em mente. Os outros pensarão que é nossa política costumeira de não dizer nada que possa atrair atenção.

 — E as crianças?

 — Não vão interrogar as crianças. É o FBI, não a Gestapo.

 — Tudo bem.

 Eles entraram e começaram o café.

 Metade da manhã já se passara quando dois agentes desceram a colina tropeçando e com lama nos mocassins e carrapichos na bainha das calças. Priest os observou do celeiro. Se reconhecesse alguém dos que vira na véspera, seu plano era desaparecer na floresta, fugindo por entre as cabanas. Mas nunca vira aqueles. O mais jovem era alto e largo, com uma aparência nórdica, cabelo louro bem claro e pele muito branca. O mais velho era oriental, com os cabelos negros já escasseando na parte de cima da cabeça. Não eram os que o haviam interrogado de manhã e ele tinha certeza de que também não tinham estado na entrevista coletiva. A maioria dos adultos se encontrava no vinhedo, espargindo molho de pimenta para impedir que os cervos comessem os brotos. As crianças encontravam-se no templo, tendo uma aula de catecismo com Star, que lhes contava a história de Moisés sendo salvo dentro de uma cestinha. A despeito dos preparativos cuidadosos que fizera, Priest sentiu uma pontada de pânico quando os agentes se aproximaram. Havia vinte e cinco anos que o vale era um lugar secreto e sagrado. Até a última quinta-feira, quando um policial aparecera procurando os pais de Flower, nenhuma autoridade jamais pusera os pés ali; nenhum superintendente do condado, nenhum carteiro, nem sequer um coletor de lixo. E aqui estava o FBI. Se pudesse fazer com que caísse um raio na cabeça dos dois agentes, ele o teria feito sem pensar duas vezes.

 Respirou fundo e cruzou a encosta da elevação dirigindo-se ao vinhedo. Dale cumprimentou os dois agentes, conforme o combinado. Priest encheu um latão d'água com a solução de pimenta e começou a aspergir, movendo-se na direção de Dale para que pudesse ouvir a conversa. O oriental falou, num tom de voz amistoso.

 — Somos agentes do FBI, fazendo umas indagações de rotina na área. Meu nome é Bill Ho e este é John Aldritch. Aquilo era encorajador, Priest disse a si próprio. Parecia que eles não tinham interesse especial no vinhedo: estavam só dando uma espiada, na esperança de encontrar alguma pista. Uma sondagem. Mas esta avaliação não fez com que se sentisse menos tenso.

 Ho deu uma olhada com ar de apreciador.

 — Que lugar lindo — comentou, com um gesto que abrangia todo o vale.

 Dale fez que sim.

 — Somos muito ligados a ele.

 Vai com calma, Dale — nada de ironias. Isto aqui não é uma brincadeira.

 Aldritch, o agente mais moço, perguntou, impaciente:

 — É você o encarregado aqui? — ele tinha sotaque do sul.

 — Sou o capataz — respondeu Dale. — O que posso fazer por vocês?

 Foi Ho quem falou:

 — Vocês moram aqui?

 Priest fingiu continuar trabalhando, mas seu coração batia com mais força enquanto ele se esforçava para ouvir.

 — A maior parte da turma aqui é de trabalhadores temporários – disse Dale, seguindo o roteiro combinado com Priest. — A companhia proporciona acomodações porque este lugar é muito longe de tudo.

 — Lugar estranho para uma lavoura de frutas — comentou Aldritch.

 — Não é de frutas, isto aqui é uma vinícola. Gostaria de provar um copo da safra do ano passado? É realmente muito bom.

 — Não, obrigado. A menos que você tenha algum produto sem álcool.

 — Sinto muito. Só temos o artigo verdadeiro.

 — Quem é o dono?

 — A Napa Bottling Company. Aldritch tomou nota.

 Ho virou-se para o conjunto de edificações do outro lado do vinhedo.

 — Você se incomoda se eu der uma espiada?

 Dale deu de ombros.

 — Claro, vá em frente.

 Priest observou ansiosamente os dois agentes se afastarem. À primeira vista, era uma história plausível que aquelas pessoas fossem trabalhadores mal pagos vivendo em acomodações de má qualidade oferecidas por um patrão avarento. Mas havia indícios ali espalhados que podiam levar um agente esperto a fazer mais perguntas. O templo era o mais óbvio. Star dobrara a velha faixa com os Cinco Paradoxos de Baghram. Assim mesmo, alguém com uma mente curiosa podia querer saber por que a escola era uma edificação redonda sem janelas e sem mobília.

 Havia também canteiros de maconha na floresta próxima. Os agentes do FBI não estavam interessados em drogas em quantidade insignificante, mas cultivar droga era uma coisa que não se ajustava à ficção de uma população temporária. Quanto à loja comunitária, era idêntica a qualquer outra loja até você notar que não havia uma única etiqueta com preço em qualquer artigo ou mesmo uma caixa registradora. Havia talvez uma centena de outros modos que poderiam fazer a farsa desmoronar ante uma investigação mais meticulosa, mas Priest tinha esperança de que o interesse do FBI fosse nos vigilantes de Los Alamos e estivesse investigando os vizinhos apenas como uma questão de rotina. Teve de lutar contra a tentação de seguir os agentes. Estava desesperado para ver o que eles iam olhar e ouvir o que diriam um ao outro enquanto caminhavam em torno das cabanas.

 Mas obrigou-se a continuar aspergindo a solução de pimenta nas videiras, levantando os olhos a cada um ou dois minutos para ver onde estavam e o que faziam.

 Entraram na cozinha. Garden e Slow preparavam lasanha para a refeição do meio- dia. O que os agentes estariam dizendo a eles? Garden estaria tagarelando nervosamente e se traindo? Slow teria se esquecido de suas instruções e começado a balbuciar confusa e entusiasticamente sobre a meditação diária?

 Os agentes saíram da cozinha. Priest concentrou o olhar intensamente neles, tentando adivinhar-lhes os pensamentos, mas estavam longe demais para ler a expressão dos seus rostos e a linguagem corporal de ambos nada transmitia.

 Começaram a caminhar, dando uma espiada rápida, por entre as cabanas. Impossível para Priest adivinhar se o que viam faria com que suspeitassem que se encontravam em uma coisa que era algo além de uma vinicultura.

 Eles checaram a máquina que prensava as uvas, os galpões onde o vinho era posto para fermentar e os tonéis com a safra do ano anterior esperando ser engarrafada.

 Teriam observado que nada era movido a eletricidade? Abriram a porta do templo. Falariam com as crianças, contrariando a previsão de Priest? Será que Star perderia a calma e os chamaria de porcos fascistas? Priest conteve a respiração. Os agentes fecharam a porta sem entrar.

 Eles falaram com Oaktree, que cortava aduelas para os tonéis no pátio. Oaktree levantou a cabeça e falou laconicamente, sem parar de trabalhar. Talvez tivesse imaginado que levantaria suspeitas caso fosse amistoso.

 Encontraram Aneth pendurando fraldas na corda. Ela se recusava a usar fraldas descartáveis. Provavelmente estava explicando isso aos agentes, dizendo que não há no mundo árvores suficientes para que cada criança possa usar fraldas descartáveis.

 Desceram até o regato e estudaram as pedras no leito raso, parecendo pensar sobre a possibilidade de atravessar. A maconha era cultivada do outro lado. Mas os agentes aparentemente não tencionavam molhar os pés e voltaram.

 Por fim retornaram ao vinhedo. Priest tentou estudar suas feições sem encará-los. Estariam convencidos ou teriam visto algo que os deixara curiosos? O jeitão de Aldritch era hostil, enquanto que Ho parecia mais amigável, mas isto podia ser teatro.

 Aldritch dirigiu-se a Dale:

 — Algumas dessas cabanas são bem enfeitadas para uma acomodação temporária, não acha?

 Priest gelou. Era uma pergunta cética, dando a entender que Aldritch não acreditara na história. Priest começou a pensar se não haveria algum modo de matar os dois homens do FBI sem ser apanhado.

 — Bem — disse Dale — alguns de nós voltam a cada ano — ele estava improvisando; nada daquilo tinha sido previsto no roteiro de Priest. – E alguns moram aqui o ano inteiro — Dale não era um mentiroso experiente. Se aquilo continuasse por muito tempo, acabaria se traindo.

 Aldritch:

 — Quero uma lista de todos os que moram ou trabalham aqui. A cabeça de Priest pôs-se a funcionar a toda velocidade. Dale não podia usar os nomes que as pessoas tinham na comunidade, pois isso denunciaria a verdade — e, de qualquer maneira, os agentes insistiriam querendo os nomes verdadeiros. Só que alguns ali tinham ficha na polícia, inclusive o próprio Priest. Será que Dale pensaria rápido o bastante para ver que tinha que inventar nomes para todo mundo? Teria coragem para tanto?

 Ho acrescentou:

 — Precisamos também das idades e dos endereços permanentes — o tom de voz dele era de quem pedia desculpas.

 Merda! A coisa está ficando feia.

 — Vocês podem conseguir isso nos arquivos da firma.

 Não, eles não podem.

 — Sinto muito — disse Ho — mas precisamos disso agora. Dale pareceu ficar perplexo.

 — Puxa vida, acho que vocês vão ter que sair andando por aí e perguntando ao pessoal. Não posso saber o dia do aniversário de todos. Sou o capataz deles, não o avô.

 Priest se apavorou. Aquilo era perigoso. Não podia permitir que os agentes interrogassem todo mundo. Eles se denunciariam dezenas de vezes.

 Tomou uma decisão rápida e adiantou-se.

 — Sr. Arnold? — disse, inventando um nome para Dale no impulso do momento. — Talvez eu possa ajudar os cavalheiros — sem planejar, ele adotou a persona de um sujeito amigável, ansioso por ajudar, mas não muito inteligente. Ele dirigiu-se aos agentes. — Já venho aqui há alguns anos, acho que conheço todo mundo e sei a idade também.

 Dale pareceu aliviado de transferir a responsabilidade.

 — OK, vá em frente — disse.

 — Por que não vamos para a cozinha? — Priest perguntou aos agentes. — Já que não bebem vinho, aposto como gostariam de tomar um café.

 Ho sorriu e disse:

 — Seria realmente ótimo.

 Priest conduziu-os de novo por entre as filas de videiras e os levou para o interior da cozinha.

 — Temos que ver uns papéis — explicou ele para Garden e Slow. -Continuem preparando essa massa com um cheiro maravilhoso, mas façam de conta que não estamos aqui.

 Ho ofereceu a Priest seu bloco de anotações.

 — Por que você não escreve os nomes, idades e endereços aqui?

 Ele não pegou o bloco.

 — Puxa vida, minha caligrafia é a pior do mundo — disse, sem se dar por achado. — Agora, vocês se sentam e escrevem enquanto eu faço o café — ele pôs um bule no fogo e os agentes se sentaram a uma mesa de pinho comprida.

 — O capataz é Dale Arnold, tem quarenta e dois anos. Aqueles caras nunca conseguiriam verificar aquilo. Ninguém ali tinha o nome em catálogos de telefone ou qualquer tipo de registro.

 — Endereço permanente?

 — Ele mora aqui. Todo mundo mora.

 — Pensei que vocês fossem trabalhadores temporários.

 — O due é verdade. Mas a maioria vai embora quando chega novembro, a safra já foi colhida e as uvas esmagadas; só que não somos o tipo de gente que pode manter duas casas. Por que pagar aluguel quando você passa tanto tempo morando em outro lugar?

 — O endereço permanente para todos seria então...?

 — Silver City Valley Winery, Silver City, Califórnia. Mas todo mundo tem a correspondência enviada para a firma, em Napa, é mais seguro.

 Aldritch estava ficando irritado e ligeiramente confuso, como fora a intenção de Priest. Pessoas rabugentas não têm paciência com pequenas incoerências.

 Ele serviu o café enquanto ia inventando os nomes. Para se lembrar depois quem era quem, usou variações dos nomes que as pessoas tinham na comunidade: Dale Arnold, Peggy Star, Richard Priestley, Holly Goldman.

 Deixou de fora Melanie e Dusty, que estavam ausentes — Dusty na casa do pai e Melanie porque fora buscá-lo.

 Aldritch o interrompeu.

 — Na minha experiência, a maioria dos trabalhadores rurais temporários neste estado são mexicanos, ou pelo menos hispânicos.

 — É sim, só que aqui é o contrário — concordou Priest. — A firma tem algumas vinícolas, e eu acho que o chefe mantém todos os hispânicos juntos em separado, com capatazes que falam espanhol e põe os outros aqui na nossa equipe. Não é racismo, entende, é só uma coisa prática. Eles pareceram aceitar a explicação de Priest.

 Priest prosseguiu lentamente, prolongando a sessão o máximo possível. Ali na cozinha os agentes não podiam fazer mal. Se ficassem chateados e impacientes para ir embora, tanto melhor.

 Enquanto ele falava, Garden e Slow continuavam preparando a comida. Garden, silenciosa e inexpressiva, conseguia mexer as panelas com um jeito superior. Slow, nervoso, lançava a todo instante um olhar de pavor para os agentes, mas eles não pareciam ligar. Talvez estivessem acostumados a ver as outras pessoas com medo deles. Talvez gostassem disso.

 Priest levou quinze ou vinte minutos para dar os nomes e idades dos vinte e seis adultos da comunidade. Ho já ia fechando o bloco quando Priest disse:

 — Agora, as crianças. Deixa eu pensar um pouco. Puxa, criança cresce depressa, não é mesmo?

 Aldritch deu um grunhido de exasperação.

 — Acho que não precisamos saber os nomes das crianças — disse.

 — Tudo bem — disse Priest, sereno. — Mais café?

 — Não, obrigado — Aldritch olhou para Ho. — Acho que terminamos aqui.

 Ho disse:

 — Quer dizer então que esta terra é de propriedade da Napa Bottling Company?

 Priest viu uma oportunidade para reparar um erro cometido por Dale.

 — Não, não é bem assim — disse. — A companhia opera a vinícola, mas acredito que a terra seja de propriedade do governo.

 — Então o nome no arrendamento é o da Napa Bottling. Priest hesitou.

 Ho, o mais amigável, era quem fazia as perguntas realmente perigosas. Mas como responder? Mentir seria arriscado demais. Podiam verificar uma coisa dessas em segundos. Relutantemente, ele disse:

 — Acho que o nome da pessoa arrendatária é Stella Higgins – ele detestou ter que dar o verdadeiro nome de Star para o FBI. — Foi quem começou a plantação aqui, muitos anos atrás — ele esperava que aquilo não lhes servisse de nada. Não podia imaginar como aquela informação poderia ser útil.

 Ho escreveu o nome.

 — Acho que é só — disse. Priest escondeu seu alívio.

 — Bem, boa sorte para vocês com o resto da investigação — disse, ao conduzi- los para fora da cozinha.

 Conduziu-os por entre as parreiras. Eles pararam para agradecer a Dale a cooperação.

 — Afinal, vocês estão atrás de quem? — indagou Dale.

 — Um grupo terrorista que está tentando chantagear o governador do estado — respondeu Ho.

 — Bem, faço votos para que os peguem — disse Dale, com sinceridade.

 Não, você não faz.

 Finalmente os dois agentes atravessaram o campo e foram embora, tropeçando aqui e ali numa irregularidade do terreno e desaparecendo entre as árvores.

 — Bem, parece que tudo saiu muito bem — disse Dale para Priest, parecendo muito satisfeito consigo próprio.

 Jesus Cristo Todo-Poderoso, se ao menos você soubesse.

 

 Na tarde de domingo, Judy pegou Bo para ver o novo filme do Clint Eastwood no cinema Alexandria, numa esquina da Geary. Para sua surpresa, esqueceu-se de terremotos por duas horas e se distraiu. Depois foram comer um sanduíche em um dos botecos que Bo freqüentava e cujos clientes eram basicamente policiais. Em cima do bar havia uma televisão e na porta um cartaz dizendo: "Roubamos turistas." Bo terminou seu cheeseburger e tomou um gole de Guinness.

 — Clint Eastwood devia fazer um filme sobre a história da minha vida — disse.

 — Deixa disso, Bo. Todo detetive no mundo acha a mesma coisa.

 — Pode ser, mas eu inclusive sou parecido com ele.

 Judy deu uma risada. Bo tinha a cara redonda e o nariz pequeno.

 — Eu preferia que fosse o Mickey Rooney — disse.

 — Pois eu acho que devia ser possível a pessoa se divorciar dos filhos — retrucou Bo, dando risada.

 O noticiário apareceu na televisão. Quando Judy viu as cenas da blitz contra Los Alamos, sorriu, amargurada. Brian Kincaid tinha gritado com ela por interferir no caso — e depois adotara seu plano.

 Não houve, contudo, uma entrevista triunfal com Brian. O que apareceu na tela foi a imagem da porteira esmagada, uma placa que dizia: "Não reconhecemos a jurisdição do governo dos Estados Unidos" e uma equipe da SWAT, com coletes à prova de balas, retornando do local da operação.

 Bo comentou:

 — A mim me parece que não encontraram nada.

 Aquilo intrigou Judy.

 — Estou surpresa — disse ela. — Os caras de Los Alamos pareciam realmente ser os suspeitos mais quentes — ela estava desapontada. Pelo visto, sua intuição errara redondamente.

 O apresentador do noticiário dizia que não fora feita nenhuma prisão.

 — Eles não disseram sequer que foram colhidas provas — comentou Bo. -Gostaria de saber qual é a história verdadeira.

 — Se você já está acabando aqui, podemos ir saber — disse Judy.

 Saíram do bar e entraram no Monte Carlo de Judy. Ela pegou o telefone do carro e ligou para a casa de Simon Sparrow.

 — O que é que você sabe sobre a blitz? — perguntou.

 — Deu em nada.

 — Foi o que pensei.

 — Não há computadores na área, portanto fica difícil imaginar como poderiam ter enviado uma mensagem pela Internet. Ninguém lá passou do segundo grau, e duvido que pelo menos um deles soubesse soletrar a palavra sismólogo. Há quatro mulheres no grupo, mas nenhuma se ajusta aos nossos dois perfis femininos — elas têm quase vinte ou vinte e poucos anos. Além do mais, os vigilantes não têm queixas da represa. Estão felizes com a indenização recebida da Coastal Electric pela terra e se mostraram ansiosos para se mudarem. ! – Oh — para terminar, na sexta-feira, às duas e vinte da tarde, seis dos sete homens se encontravam em uma loja chamada Frank's Sporting Weapons em Silver City, comprando munição.

 Judy sacudiu a cabeça.

 — Bem, de quem foi essa idéia burra da blitz em Los Alamos, afinal?

 Fora dela, claro.

 Simon disse:

 — Na manhã de hoje, durante o briefing, Marvin afirmou que era sua.

 — Bem feito que tenha fracassado — Judy franziu a testa. Não entendo. Parecia uma pista tão boa.

 — Brian tem outro encontro com o Sr. Honeymoon em Sacramento, amanhã de tarde. Parece que ele vai de mãos abanando.

 — O Sr. Honeymoon não vai gostar nada.

 — Pelo que ouvi dizer ele não é o tipo do sujeito muito sensível e delicado.

 Judy sorriu, amargurada. Não gostava de Kincaid, mas não podia sentir prazer com o fracasso da incursão do FBI em Los Alamos. Significava que o Martelo do Éden ainda estava à solta, em algum lugar, planejando outro terremoto.

 — Obrigada, Simon. Vejo você amanhã.

 Assim que desligou, o telefone tocou. Era da mesa do FBI. — Um sujeito chamado professor Quercus deixou um recado que ele disse que era urgente. Tem uma notícia importante para você.

 Judy ficou sem saber se ligava para Marvin e passava o recado para ele. Mas a curiosidade para saber o que Michael tinha a dizer foi grande demais. Ligou para a casa dele.

 Quando Michael atendeu, ela pôde ouvir o fundo musical de um desenho animado na televisão. Dusty ainda devia estar lá.

 — Aqui é Judy Maddox — disse.

 — Oi, como vai?

 Judy levantou as sobrancelhas. Um fim de semana com o filho o adoçara.

 — Estou bem, mas fora do caso — disse ela.

 — Eu sei. Fiquei horas tentando falar com o sujeito que assumiu a investigação, um tipo com nome de cantor...

 — Marvin Hayes.

 — Isso! E agora, "Dancing in the Grapevine, com Marvin Hayes e os Haystacks".

 Judy riu.

 Michael prosseguiu.

 — Mas como ele não retorna meus chamados, estou encalhado com você.

 Bem, agora ele voltara ao normal. — OK, o que é que você tem?

 — Você pode vir até aqui? Eu realmente teria que lhe mostrar.

 Judy ficou satisfeita, até mesmo um pouco excitada com a perspectiva de vê-lo de novo.

 — Você ainda tem Cap'n Crunch?

 — Acho que sobrou um pouco.

 — OK, então estarei aí em quinze ou vinte minutos — ela desligou.

 — Tenho que ver o meu sismólogo — explicou a Bo. Quer que eu deixe você no ponto do ônibus?

 — Não posso andar de ônibus que nem o Jim Rockford. Sou um detetive de San Francisco!

 — E daí? Você é um ser humano.

 — É, mas os caras da rua não sabem disso.

 — Eles não sabem que você é humano?

 — Para eles, eu sou um semideus.

 Ele estava brincando, mas havia alguma verdade no que dissera, Judy reconhecia. O pai vinha botando vagabundo na cadeia daquela cidade havia quase trinta anos. Todo garoto com pedras de crack no bolso da jaqueta tinha medo de Bo Maddox.

 — Então quer ir a Berkeley comigo?

 — Claro, por que não? Estou curioso para conhecer o seu sismólogo bonitão.

 Ela fez um retorno e dirigiu-se para a ponte de Oakland, a Bay Bridge.

 — O que o faz pensar que ele é bonitão?

 Bo sorriu.

 — O modo pelo qual você fala com ele — respondeu, com um sorriso astucioso.

 — Você não devia usar psicologia de policial com a própria família.

 — Psicologia de policial, uma ova. Você é minha filha e sou capaz de ler seus pensamentos.

 — Bem, você está certo. Michael é um gato. Mas não gosto muito dele.

 — Não me diga! — retrucou Bo, cético.

 — É arrogante e difícil. Melhora quando o filho está por perto, o que o suaviza um pouco.

 — Casado?

 — Separado.

 — Separado é casado.

 Judy pôde sentir a perda de interesse de Bo em Michael.

 Era como uma queda de temperatura. Ela sorriu intimamente. O pai ainda estava ansioso por vê-la casada, mas tinha seus escrúpulos antiquados. Logo chegavam em Berkeley e entravam na rua de Michael, a Euclid. Havia um Subaru laranja parado debaixo da magnólia onde Judy estacionava sempre e ela teve que ir para outra vaga.

 Quando Michael abriu a porta do apartamento, achou que a fisionomia dele estava tensa.

 — Oi, Michael, este é meu pai, Bo Maddox.

 — Entrem — disse Michael, em tom abrupto.

 O estado de espírito dele parecia ter se alterado por completo no curto espaço de tempo que ela levara para chegar. Quando entraram na sala, Judy viu a razão.

 Dusty estava deitado no sofá, com uma aparência péssima. Tinha os olhos vermelhos e lacrimejantes, além de parecerem inchados. O nariz estava pingando e ele respirava ruidosamente. A televisão exibia um desenho animado, mas ele não prestava muita atenção.

 Judy ajoelhou-se do lado dele e passou a mão no seu cabelo.

 — Coitadinho do Dusty! O que houve?

 — Ataque de alergia — explicou Michael. — Você chamou o médico?

 — Não precisa. Já dei a ele o remédio que susta a reação.

 — Quanto tempo leva para agir?

 — Já está agindo. O pior já passou. Mas pode ser que ele fique assim alguns dias.

 — Eu gostaria de fazer alguma coisa por você, rapazinho. Judy disse a Dusty.

 Uma voz de mulher fez-se ouvir.

 — Eu tomo conta dele, muito obrigada.

 Judy endireitou-se e virou para trás. A mulher que acabara de entrar dava a impressão de que acabara de descer da passarela de algum grande costureiro. Tinha o rosto oval muito branco e um cabelo vermelho liso que passava dos ombros. Embora fosse alta e magra, o busto era generoso e os quadris cheios. As pernas longas estavam vestidas por uma calça-jeans bem justa de cor bege. Em cima, usava um top verde chique com decote em V.

 Até aquele instante Judy achara que estava bem vestida, com uma bermuda cáqui, mocassins claros que destacavam os belos tornozelos e uma camisa pólo branca que cintilava em contraste com sua pele morena escura. Sentia-se agora brega, de meia-idade e antiquada, comparando-se com aquela visão da moda chique das ruas. Sem dúvida que Michael notaria, por comparação, que ela, Judy, tinha bunda grande e seios pequenos.

 — Esta é Melanie, a mãe de Dusty — disse Michael. Melanie, esta é minha amiga Judy Maddox.

 Melanie balançou a cabeça. Então esta é a sua mulher.

 Michael não mencionara o fato dela ser do FBI. Será que queria que Melanie pensasse que Judy era sua namorada?

 Melanie não se deu ao trabalho de entabular conversa.

 — Eu já estava de saída — disse ela, carregando uma pequena mochila com um desenho do Pato Donald, obviamente do filho.

 Judy sentiu-se humilhada pela mulher de Michael, alta e chique. Ficou aborrecida consigo própria pela reação que teve. Por que eu deveria me incomodar?

 Melanie esquadrinhou a sala com o olhar e disse:

 — Michael, onde está o coelho?

 — Aqui — Michael pegou um boneco encardido que estava em cima da escrivaninha e deu para ela.

 Melanie olhou para a criança no sofá.

 — Isto nunca acontece nas montanhas — disse, com frieza. Michael pareceu angustiado.

 — O que é que eu vou fazer, deixar de vê-lo?

 — Teremos de nos encontrar em algum ponto fora da cidade.

 — Quero que ele fique comigo. Não será a mesma coisa se ele não dormir na minha companhia.

 — Se ele não dormir, não fica assim.

 — Eu sei, eu sei.

 Judy ficou com pena de Michael. Ele estava obviamente angustiado e sua mulher não podia ser mais fria.

 Melanie enfiou o coelho na mochila e passou o fecho.

 — Temos de ir.

 — Eu o carrego até o carro — Michael pegou o filho no sofá. — Vamos, tigre, vamos andando.

 Depois que saíram, Bo virou-se para Judy e comentou:

 — Puxa vida. Que família infeliz.

 Ela concordou. Mas agora gostava de Michael mais do que antes. Gostaria de abraçá-lo e dizer: Você está fazendo o melhor que pode, ninguém poderia fazer melhor.

 — Mas, na verdade, ele é o seu tipo — disse Bo.

 — Eu tenho um tipo?

 — Você gosta de um desafio.

 — Porque fui criada por você.

 — Eu? — ele fingiu que se sentia ultrajado. — Estraguei você por completo.

 Ela deu um beijinho no rosto do pai. — Também — disse.

 Quando Michael retornou, seu rosto estava tenso e preocupado. Não ofereceu uma bebida ou um café a Judy e Bo, e se esqueceu por completo do Cap'n Crunch. Sentou-se diante do computador.

 — Olha só isto aqui — disse, sem preâmbulos.

 Judy e Bo ficaram de pé atrás dele, olhando por cima do seu ombro. Apareceu um diagrama na tela.

 — Aqui está o registro feito pelo sismógrafo do tremor de Owens Valley, com as misteriosas vibrações preliminares que eu não conseguia entender, lembra?

 — Certamente — disse Judy.

 — Aqui está um tremor de terra típico, com mais ou menos a mesma magnitude. Só que ele tem vibrações preliminares normais. Vê a diferença?

 — Vejo — as normais eram desiguais e esporádicas, enquanto as de Owens Valley seguiam um padrão regular demais para ser natural.

 — Agora olha só isto aqui — ele fez aparecer na tela um terceiro diagrama que mostrava um conjunto de vibrações bem regulares, exatamente como as de Owens Valley.

 — O que causou estas vibrações? — indagou Judy.

 — Um vibrador sísmico! — exclamou Michael, triunfante.

 Bo perguntou:

 — O que diabo vem a ser isso?

 Judy quase disse: Eu não sei, mas acho que quero um. Conteve um

sorriso.

 Michael respondeu:

 — É uma máquina usada pela indústria do petróleo para explorar o subsolo. Basicamente, é um imenso martelete montado em cima de um caminhão. Envia vibrações através da crosta terrestre.

 — E essas vibrações causaram o terremoto?

 — Não creio que possa ser uma coincidência.

 Judy fez que sim, balançando a cabeça com ar solene.

 — É isso aí. Eles realmente são capazes de desencadear terremotos — ela sentiu um calafrio quando se deu conta do verdadeiro significado da notícia.

 Bo disse:

 — Jesus Cristo, espero que não se desloquem para San Francisco.

 — Ou Berkeley — disse Michael. — Sabem, embora eu tivesse dito que era possível, no fundo do coração não acreditava, até agora.

 Judy:

 — O tremor foi de intensidade bem pequena.

 Michael sacudiu a cabeça.

 — Não podemos nos tranqüilizar com base nisso. A intensidade do tremor de terra não guarda relação com a força da vibração que a desencadeia. Depende da pressão na falha. O vibrador sísmico pode desencadear qualquer coisa desde um tremor quase imperceptível até um outro Loma Prieta.

 Judy se lembrava do terremoto de Loma Prieta ocorrido em 1989 tão vivamente quanto se tivesse sido um pesadelo na noite anterior.

 — Que droga! — exclamou ela. — O que é que vamos fazer agora?

 Bo lembrou:

 — Você está fora do caso.

 Michael franziu a testa, intrigado.

 — Você já me disse isso — falou. — Mas não me contou o motivo.

 — Política interna — respondeu Judy. — Temos um chefe novo que não gosta de mim e designou uma pessoa a quem prefere para o meu lugar.

 — Eu não acredito! — exclamou Michael. — Um grupo terrorista causando terremotos e o FBI às voltas com uma briga de família sobre quem vai chefiar a expedição de caça!

 — O que é que eu posso lhe dizer? Os cientistas permitem que suas briguinhas pessoais atrapalhem a busca da verdade?

 Michael deu um dos seus sorrisos inesperados.

 — Pode apostar que sim. Mas escuta. Certamente que você pode passar esta informação para o tal de Marvin-Sei-Lá-O-Que?

 — Quando falei com meu chefe sobre Los Alamos, ele mandou que eu não interferisse de novo.

 — Inacreditável! — exclamou Michael, enfurecendo-se. Mas você não pode simplesmente ignorar o que eu lhe disse.

 — Não se preocupe. Não farei isso — retrucou Judy, laconicamente. — Vamos manter a calma e pensar por um instante. Qual é a primeira coisa que precisamos fazer com esta informação? Se pudermos descobrir de onde veio o vibrador sísmico, pode ser que tenhamos uma pista que nos leve ao Martelo do Éden.

 — Certo — disse Bo. — Ou eles compraram o tal vibrador, ou, o que é mais provável, roubaram.

 Judy perguntou a Michael:

 — Quantas dessas máquinas haverá no território dos Estados Unidos? Uma centena? Um milhar?

 — Qualquer coisa entre um e outro.

 — De qualquer forma, não serão muitas. Assim, os fabricantes provavelmente manterão o registro de cada venda. Eu poderia fazer um levantamento disso hoje à noite, conseguir que me façam uma lista. E se o caminhão foi roubado, a ocorrência poderá estar listada no centro de informações sobre o crime — o National Crime Information Center, NCIC, administrado pelo FBI em Washington, e que podia ser acessado por qualquer agência policial.

 — O NCIC só adianta se a informação foi armazenada lá. disse Bo. – Não temos uma placa de licença para procurar, e não se pode saber como um veículo desses seria classificado no computador. Eu poderia fazer com que o Departamento de Polícia de San Francisco enviasse um pedido de busca para os demais estados pelo computador do CLETS — CLETS eram as iniciais do sistema de telecomunicações que atendia às agências policiais do estado da Califórnia. — E podia também fazer com que os jornais imprimissem uma foto de um caminhão desses, para que a população procure.

 — Espera um minuto — disse Judy. — Se você fizer isso, Kincaid saberá que estou por trás.

 Michael rolou os olhos para cima numa expressão de desespero.

 — Não obrigatoriamente — ponderou Bo. — Não direi aos jornais que o assunto é ligado ao Martelo do Éden. Só direi que estamos procurando um vibrador sísmico que foi roubado. E o tipo do roubo pouco usual, eles vão gostar da história.

 — Ótimo — apoiou Judy. — E agora, Michael, pode me arranjar os três gráficos que nos mostrou?

 — Claro — ele acionou uma tecla e a impressora acordou. Judy pôs a mão no ombro dele. A pele era quente através do algodão da camisa.

 — Espero que Dusty esteja melhor — disse. Ele cobriu a mão dela com a sua.

 — Obrigado — o contato foi leve, a palma da mão estava seca. Ela sentiu um arrepio de prazer. Depois ele retirou a mão e disse:

 — Bem, talvez você devesse me dar o número do seu pager, para que eu possa entrar em contato com você um pouco mais depressa, se for necessário.

 Ela pegou um cartão de visitas. Pensou um momento e escreveu o número de casa antes de entregá-lo.

 Michael disse:

 — Depois que vocês dois derem todos os telefonemas que tiverem de dar... — ele hesitou. — Gostariam de se encontrar comigo para um drinque, ou talvez jantar? Eu realmente gostaria de saber o andamento da investigação.

 — Eu não — disse Bo. — Tenho uma partida de boliche.

 — Judy, e você?

 Será que ele está mesmo me convidando para sair?

 — Meu plano era visitar uma pessoa no hospital — respondeu ela.

 Ele ficou sem graça.

 Judy reconheceu que não haveria coisa no mundo que gostaria mais de fazer do que jantar com Michael Quercus.

 — Mas acho que não vou levar toda a noite — acrescentou ela.

 — OK, claro.

 

 Fazia apenas uma semana que o câncer de Milton Lestrange fora diagnosticado, mas ele já parecia mais magro e mais velho. Talvez fosse o efeito do cenário hospitalar: os instrumentos, o leito, os lençóis brancos. Ou podia ser o pijama azul-bebê que revelava um triângulo de pele muito branca logo abaixo do pescoço. Ele perdera todos os seus símbolos do poder: a escrivaninha enorme, a caneta-tinteiro Mont Blanc, a gravata listrada de seda.

 Judy ficou chocada ao vê-lo daquela maneira.

 — Puxa, Milt, você não está nenhuma maravilha — desabafou, num impulso.

 Ele sorriu.

 — Eu sabia que você não ia mentir para mim, Judy. Ela ficou envergonhada.

 — Desculpe, saiu sem querer.

 — Não precisa se desculpar. Na verdade não estou mesmo nada bem.

 — O que é que eles vão fazer?

 — Vão operar esta semana, não disseram o dia. Mas só para resolver a obstrução do intestino. As perspectivas não são boas.

 — Como assim?

 — Noventa por cento dos casos são fatais.

 Judy engoliu em seco. — Jesus, Milt.

 — Pode ser que eu tenha um ano.

 — Não sei o que dizer.

 Ele não se deteve no prognóstico sombrio.

 — Sandy, minha primeira esposa, veio me visitar ontem. Falou que você tinha ligado para ela.

 — É, liguei. Não tinha idéia se ela ia querer vê-lo, mas imaginei que no mínimo gostaria de saber que você se encontrava hospitalizado.

 Ele pegou a mão de Judy e apertou carinhosamente.

 — Não sei como você consegue ter tanto discernimento, sendo tão jovem.

 — Que bom que ela veio. Milt mudou de assunto.

 — Tire a minha cabeça dos meus problemas, fale-me sobre o escritório.

 — Você não deveria estar se preocupando.

 — Uma ova que vou me preocupar. O trabalho não aborrece nem um pouco quando a gente está morrendo. Só estou curioso.

 — Bem, ganhei meu processo. Os irmãos Foong provavelmente vão passar a maior parte da próxima década na cadeia.

 — Parabéns!

 — Mas Brian Kincaid recomendou o nome de Marvin Hayes para ser o novo supervisor.

 — Marvin! Não é possível! Brian sabia que você deveria ser nomeada.

 — Fale-me sobre isso.

 — Marvin é um cara durão, mas não é cuidadoso. Vai atropelando.

 — Eu não entendo — disse Judy. — Por que Brian o considera tanto? O que é que há com aqueles dois — são amantes ou algo semelhante?

 Milt riu.

 — Não, não são amantes. Mas uma vez, anos atrás, Marvin salvou a vida de Brian.

 — Fala sério?

 — Foi um tiroteio. Eu estava presente. Nós emboscamos um barco que descarregava heroína na praia de Sonoma, condado de Marin. Era bem cedinho, manhã de fevereiro, e o mar estava tão frio que chegava a doer. Não havia um píer, de modo que os caras descarregavam quilos da droga em um bote de borracha para transportar até a praia. Deixamos que eles acabassem o serviço e aí aparecemos. — Milt suspirou, e uma expressão sonhadora apareceu nos olhos azuis. Ocorreu a Judy que ele nunca mais veria outra emboscada.

 No momento seguinte ele continuou.

 — Brian cometeu um erro — deixou um dos bandidos se aproximar demais. Era um italiano pequenino, que o agarrou e encostou-lhe a pistola na cabeça. Nós todos estávamos apontando nossas armas, mas se atirássemos contra o italiano, ele provavelmente conseguiria disparar sua pistola antes de morrer, levando Brian consigo. Brian ficou realmente apavorado. Milt abaixou a voz. — Chegou inclusive a fazer xixi nas calças, nós vimos a mancha nas suas calças. Marvin, contudo, mostrou-se mais frio que o demônio. Começou a andar na direção de Brian e do italiano. — Atira em mim, cara — disse ele. — Não vai fazer a menor diferença. — Bem — continuou Milt após uma pequena pausa — nunca vi nada parecido com aquilo. O italiano caiu na esparrela. Girou o braço da arma para atirar em Marvin. Nessa fração de segundo, cinco dos nossos abateram o cara.

 Judy aquiesceu. Aquela era uma história típica, parecida com as que os agentes contavam no Everton, depois de umas cervejas. Mas não a desconsiderou como sendo uma bravata típica de homens. Não era freqüente o envolvimento dos agentes do FBI em tiroteios, de modo que nunca esqueciam a experiência. Podia imaginar Kincaid sentindo-se intensamente ligado a Marvin Hayes depois de uma coisa dessas.

 — Bem, está explicada a situação difícil que estou vivendo – disse ela. — Brian me deu uma missão pensando que era uma bobagem e depois, quando descobriu que era importante, tirou-a de mim e deu para Marvin.

 Milt suspirou.

 — Acho que eu poderia intervir. Tecnicamente ainda sou o encarregado. Mas Kincaid é um político experiente e sabe que jamais reassumirei a função. Ele lutaria comigo. E não sei se tenho energia para isso.

 Judy balançou a cabeça.

 — Nem eu ia querer. Posso cuidar disto.

 — Qual foi a missão que ele passou para o Marvin?

 — O Martelo do Éden, essa gente que provoca terremotos.

 — Que diz que provoca.

 — É isto que Marvin pensa. Mas ele está enganado. Milt franziu a testa.

 — Sério?

 — Totalmente.

 — O que é que você vai fazer?

 — Trabalhar no caso nas costas de Brian. Milt demonstrou ter se perturbado.

 — Isso é perigoso.

 — Tem razão — concordou ela. — Mas não é tão perigoso quanto um maldito terremoto.

 

 Michael apareceu com um terno de algodão azul-marinho e camisa branca comum, aberta no pescoço, sem gravata. Teria se vestido de qualquer maneira, sem pensar, ou sabia que aquela combinação o deixava extremamente apetitoso. Quanto a ela, pusera um vestido de seda branca

com bolinhas vermelhas. Era perfeito para uma noite de maio, e, sempre que o usava, atraía os olhares dos homens.

 Ele levou-a a um pequeno restaurante vegetariano no centro da cidade que servia pratos indianos. Como nunca tinha experimentado a comida indiana, deixou que Michael escolhesse. Colocou o telefone celular em cima da mesa.

 — Sei que é falta de educação, mas Bo prometeu me ligar se conseguisse alguma informação sobre vibradores sísmicos roubados — explicou.

 — Por mim, tudo bem — disse Michael. — Você entrou em contato com os fabricantes?

 — Entrei. Falei com um diretor de vendas em casa, assistindo ao beisebol. Prometeu uma lista de compradores para amanhã. Pedi para hoje à noite mas ele disse que era impossível — ela fechou a cara, aborrecida. Não nos resta muito tempo — cinco dias, agora. – Mesmo assim, me enviou uma foto via fax — ela pegou uma folha de papel dobrada na bolsa e mostrou a ele. Michael deu de ombros.

 — Não passa de um caminhão grande equipado com uma máquina.

 — Mas depois que Bo puser esta foto no computador da polícia, cada agente da lei no estado da Califórnia ficará atento para tentar ver um. E o mesmo ocorrerá com metade da população, se os jornais e a televisão a difundirem.

 A comida chegou. Mais temperada do que aquela com que estava acostumada, mas deliciosa. Judy comeu com gosto. Após alguns minutos surpreendeu Michael fitando-a com um leve sorriso nos lábios. Ela ergueu uma sobrancelha.

 — Falei alguma coisa engraçada?

 — Fico satisfeito porque você está gostando da comida. Ela sorriu.

 — É assim tão evidente?

 — É.

 — Tentarei ser mais refinada.

 — Não, por favor. É um prazer observá-la. Além do mais...

 — O quê?

 — Gosto da sua atitude direta. É uma das coisas que me atraem em você. Parece ter um enorme apetite pela vida. Você gosta de Dusty, dedica bastante tempo ao pai dele, sente orgulho do FBI e obviamente aprecia as boas roupas... gosta inclusive do Cap'n Crunch.

 Judy sentiu que corava, mas ficou satisfeita. Gostou do retrato que ele pintou. Perguntou-se qual seria a característica dele que mais a teria atraído. Concluiu que era a sua força. Ele podia ser irritantemente teimoso, mas numa crise seria como uma rocha. Naquela tarde, quando sua mulher fora tão cruel, a maioria dos homens teria partido para a agressão verbal, mas ele só se preocupara com a saúde do filho.

 Além do mais, o que realmente gostaria, era de meter a mão por dentro da cueca dele.

 Judith, comporte-se.

 Ela tomou um gole de vinho e mudou de assunto.

 — Estamos presumindo que o Martelo do Éden disponha de dados iguais aos seus sobre os pontos de pressão ao longo da falha de Santo André.

 — Devem ter, para escolher as locações onde o vibrador sísmico poderia detonar um terremoto.

 — Seria possível para você fazer o mesmo exercício? Estudar os dados e concluir sobre o melhor lugar?

 — Acho que sim. Provavelmente haveria um conjunto de cinco ou seis sítios possíveis — ele viu a direção que o pensamento dela estava seguindo. — Depois, suponho que o FBI poderia vigiar os sítios e ver se encontrava um vibrador sísmico.

 — Sim — se fosse eu a encarregada do caso.

 — Farei a lista de qualquer maneira. Talvez a mande por fax para o governador Robson.

 — Não deixe que muita gente veja. Pode gerar pânico.

 — Mas se minha previsão for confirmada, poderia dar uma grande ajuda para o meu negócio.

 — E ele está precisando de ajuda?

 — Claro. Tenho um contrato grande que paga exclusivamente o aluguel e a conta do celular da minha ex. Pedi dinheiro emprestado a meus pais para dar início à firma, e ainda não comecei a pagar. Minha esperança era conseguir outro cliente importante, a Mutual American Insurance.

 — Trabalhei lá, muito tempo atrás. Mas continue.

 — Pensei que o negócio estivesse no papo, mas eles estão retardando a assinatura do contrato. Acho que estão querendo mudar de idéia. Mas se eu predissesse um terremoto e minha predição se concretizasse, acho que assinariam. E resolveria o meu problema.

 — Mesmo assim, espero que você seja discreto. Se todo mundo tentar sair de San Francisco ao mesmo tempo, haverá um enorme distúrbio nas ruas.

 Ele deu um sorriso indiferente que foi odiosamente fascinante.

 — Fiz você ficar nervosa, não fiz?

 Judy encolheu os ombros.

 — Admito que sim. Minha posição no FBI é vulnerável. Se eu me envolver em qualquer coisa que provoque um ataque de histeria em massa, não creio que sobreviva.

 — É importante para você?

 — Sim e não. Mais cedo ou mais tarde planejo sair e ter filhos. Mas quero sair segundo o meu cronograma, e não segundo o dos outros.

 — Já pensou em alguém para ajudá-la com o plano de ter filhos?

 — Não — ela o encarou com um olhar absolutamente franco. — É difícil encontrar um homem bom.

 — Imagino que haja uma fila de espera.

 — Que belo elogio. Gostaria de saber se você entraria na fila. E se eu ia querer isso.

 Ele ofereceu mais vinho.

 — Não, obrigada. Eu gostaria de tomar um café. Ele acenou para um garçom.

 — Ser pai pode ser doloroso, mas ninguém se arrepende.

 — Fale-me sobre Dusty.

 Ele suspirou.

 — Não tenho cachorro nem gato, não tenho flores no apartamento, muito pouca poeira por causa dos meus computadores. Mas fomos até a livraria, e no caminho de volta para casa ele acariciou um gato. Uma hora mais tarde estava do jeito que , você viu.

 — Que pena. Pobre criança.

 — A mãe dele mudou-se recentemente para um lugar nas montanhas, perto da fronteira com o Oregon, e desde então Dusty passou bem — até hoje. Se ele não pode me visitar sem ter um ataque alérgico, não sei o que fazer. Não posso ir morar naquela porra; não há terremotos suficientes no Oregon.

 A aparência dele era tão perturbada que Judy adiantou-se e apertou-lhe a mão.

 — Você vai arranjar uma solução. É evidente que o ama, Michael.

 Ele sorriu.

 — É verdade. Amo mesmo.

 Beberam o café, ele pagou a conta. Depois levou-a até o carro. – A noite passou depressa demais — disse.

 Acho que esse cara gosta de mim.

 Ótimo. — Quer ir a um cineminha um dia desses?

 O velho jogo da sedução. Não muda nunca. — Até que é uma boa idéia.

 — Talvez uma noite desta semana?

 — Claro.

 — Eu ligo para você.

 — Fechado.

 — Posso me despedir com um beijo?

 — Pode — ela sorriu. — Por favor.

 Michael abaixou a cabeça. Foi um beijo suave, uma experiência de beijo. Os lábios dele deslocaram-se delicadamente contra os dela, mas Michael não abriu a boca.

 Ela retribuiu o beijo da mesma forma. Seus seios ficaram sensíveis. Sem pensar, apertou o corpo contra o dele. Ele a abraçou com mais força por um segundo e afastou-se.

 — Boa noite — disse, finalmente.

 Depois ficou olhando ela entrar e acenou quando acelerou e foi embora.

 Judy virou na esquina e parou num sinal vermelho. — Uau — murmurou.

 

 Na manhã de segunda-feira Judy recebeu ordens para integrar uma equipe que investigava um grupo de militantes muçulmanos na Universidade de Stanford. Sua primeira tarefa foi examinar os registros de licenças de armas, procurando nomes árabes para averiguar. Ela viu logo que ia ser difícil concentrar-se em um bando relativamente inofensivo de fanáticos religiosos quando sabia que o Martelo do Éden estava planejando o próximo terremoto.

 Michael telefonou às nove e cinco.

 — Como vai, agente Judy?

 O som da voz dele deixou-a feliz.

 — Estou legal, muito bem mesmo.

 — Gostei do nosso encontro.

 Ela lembrou do beijo e sorriu intimamente. Topo outro beijo daqueles a qualquer hora.

 — Eu também.

 — Você está livre amanhã?

 — Acho que sim — a resposta lhe pareceu demasiado fria. — Quer dizer, sim, a menos que aconteça alguma coisa com este caso.

 — Conhece o Morton's?

 — Claro.

 — A gente se encontra no bar às seis. Depois podemos ir ao cinema.

 — Estarei lá.

 Mas aquele foi o único momento alegre da sua manhã. Na hora do almoço, não conseguindo mais se conter, telefonou para Bo, mas ele ainda não conseguira nada. Ela ligou para os fabricantes de vibradores sísmicos que disseram já ter quase completado a lista, que ela receberia sem falta pelo fax no fim do expediente. Mais um maldito dia perdido! Agora só temos quatro dias para pegar aquela gente.

 Estava preocupada demais para comer. Foi até a sala de Simon Sparrow. Ele estava vestindo uma elegante camisa em estilo inglês, azul com listras cor-de-rosa. Simon ignorava o código oficioso de roupas a serem usadas pelos agentes do FBI, sem que nada lhe acontecesse, provavelmente por ser tão bom no que fazia.

 Ele estava falando ao telefone e observando a tela de um analisador de ondas sonoras ao mesmo tempo.

 — Pode parecer que vou lhe fazer uma pergunta estranha, Sra. Gorky, mas dá para me dizer o que a senhora vê da janela da frente da sua casa? — Enquanto ouvia a resposta, Simon analisava o espectro da voz da Sra. Gorky, comparando-a com um outro espectro impresso que ele colara do lado do monitor.

 Após alguns momentos, ele desenhou uma linha em torno de um nome constante de uma lista. — Muito obrigado pela sua cooperação, Sra. Gorky. Não preciso incomodá-la mais. Tenha um bom dia.

 Judy disse:

 — Pode parecer uma pergunta estranha, Sr. Sparrow, mas por que precisa saber o que a Sra. Gorky vê quando olha pela janela?

 — Não preciso — retrucou Simon. — É que essa pergunta geralmente resulta em uma resposta do tamanho adequado para analisar a voz. Quando a pessoa termina de falar, sei se é a mulher que estou procurando.

 — E quem é?

 — A mulher que ligou para o programa de John Truth, é claro — ele deu um tapa num arquivo de folhas soltas em cima da sua mesa. — O Bureau, a polícia e as estações de rádio que retransmitem o programa até aqui receberam um total de mil duzentos e vinte e nove telefonemas dizendo quem ele é.

 Judy pegou o arquivo e deu uma folheada. Será que a pista decisiva estaria ali dentro?

 Simon mandara sua secretária cotejar e organizar os telefonemas com informações. Na maioria dos casos havia um nome, endereço e número de telefone do denunciante e do suspeito. Em certos casos, havia uma citação de algo importante que o denunciante dissera:

 Sempre suspeitei que ela era associada à Máfia.

 Ela é subversiva. Não me surpreende que esteja envolvida em algo assim.

 Ela parece uma mãe comum, mas a sua voz — eu seria capaz de jurar pela Bíblia.

 Uma dica especialmente inútil não deu nome mas disse: Sei que já ouvi a voz dela no rádio ou algo assim. Era tão sexy que me lembrei. Mas foi muito tempo atrás. Talvez tenha sido num disco. Era mesmo uma voz sexy, lembrou Judy. Ela também notara isso. Com aquela voz poderia fazer uma fortuna em telemarketing, convencendo executivos a comprar espaços publicitários de que não precisavam.

 — Até agora — disse Simon — já eliminei uma centena. Acho que vou precisar de ajuda.

 Judy continuou folheando o arquivo.

 — Eu ajudaria se pudesse, mas já fui advertida para abandonar o caso.

 — Puxa vida, obrigado, isto certamente faz com que eu me sinta melhor.

 — Sabe como vão as coisas?

 — A equipe de Marvin está telefonando para todas as pessoas constantes da mala direta da Campanha da Califórnia Verde. Ele e Brian acabam de sair para Sacramento, mas não posso imaginar o que vão dizer ao famoso Sr. Honeymoon.

 — Todos nós sabemos que não são os malditos verdes.

 — Mas ele não tem outras idéias.

 Judy franziu a testa, olhos fixos numa folha do arquivo. Acabara de dar com outro informe que mencionava um disco. Como antes, não havia nome para a suspeita, mas o denunciante dissera:

 Ouvi aquela voz em um disco, tenho certeza absoluta. Há muito, muito

tempo, por volta dos anos 60.

 Judy perguntou a Simon.

 — Você notou que duas dicas mencionam um disco?

 — É mesmo? Deixei passar essa!

 — Acham que ouviram a voz dela em um disco antigo. Simon ficou animado na mesma hora.

 — Deve ser um disco falado — algo tipo histórias para dormir, ou Shakespeare, ou algo assim. A voz com que uma pessoa fala é muito diferente da voz com que canta.

 Raja Khan passou pela porta e atraiu o olhar de Judy.

 — Seu pai telefonou. Pensei que você estivesse almoçando. De repente, ela ficou ofegante, de tão ansiosa. Afastou-se de Simon sem uma palavra e correu de volta para sua mesa. Sem se sentar, pegou o telefone e discou o número de Bo.

 Ele atendeu prontamente.

 — Tenente Maddox falando.

 — O que é que você tem aí?

 — Um suspeito.

 — Jesus — isto é ótimo!

 — Ouça isto. Um vibrador sísmico foi dado como desaparecido duas semanas atrás em algum ponto entre Shiloh, Texas, e Clovis, Novo México. O motorista também desapareceu e seu carro foi encontrado incendiado no depósito de lixo local, contendo o que parecem ser suas cinzas.

 — Ele foi assassinado por causa do maldito caminhão? Essa gente não faz prisioneiros, faz?

 — O principal suspeito é um tal Richard Granger, quarenta e oito anos de idade. Chamavam-no de Ricky e pensavam que fosse hispânico, mas com um nome desses podia ser branco com a pele bronzeada. E — espera só — ele tem ficha policial!

 — Você é um gênio, Bo!

 — Deve estar chegando uma cópia aí no seu fax agora. Ele foi um bandido importante em L.A. no final dos anos 60, início dos 70. Prisões por assalto, roubo com arrombamento, roubo de automóveis. Interrogado a respeito de três homicídios e também tráfico de drogas. Mas desapareceu de cena em 1972. A polícia de Los Angeles achou que ele podia ter sido liquidado pela Máfia — o sujeito devia dinheiro aos caras — mas como nunca foi encontrado um corpo, não deram o caso por encerrado.

 — Já sei. Ricky fugiu da Máfia, arranjou uma religião e deu início a um culto.

 — Lamentavelmente, não sabemos onde.

 — Exceto que ele não está no vale do rio Silver.

 — A polícia de L.A. pode checar seu último endereço conhecido.

 Provavelmente será uma perda de tempo, mas assim mesmo vou pedir que chequem. Tem um cara na Homicídios lá que me deve um favor.

 — Temos uma foto desse Ricky?

 — Há uma no arquivo, mas é uma foto de um rapaz de dezenove anos de idade. Ele está com quase cinqüenta agora, e provavelmente sua aparência é completamente diferente. Por sorte, o xerife em Shiloh preparou um E-fit — E-fit era o programa de computador que substituíra o retrato falado feito pelo desenhista da polícia. — Ele prometeu me enviar por fax, mas ainda não chegou.

 — Retransmita para mim assim que receber, certo?

 — Claro.

 — O que é que você vai fazer?

 — Vou para Sacramento.

 

 Eram quatro e quinze quando Judy cruzou a porta que tinha a palavra GOVERNADOR entalhada. Encontrou a mesma secretária sentada atrás da mesa grande. Ela reconheceu Judy e fez ar de surpresa.

 — Você é do FBI, não é? A reunião com o Sr. Honeymoon começou dez minutos atrás.

 — Tudo bem — disse Judy. — Eu trouxe informações importantes que chegaram no último momento. Mas antes que eu entre, sabe se chegou um fax para mim nos últimos minutos?

 Tendo saído da sua sala antes que o retrato de Ricky Granger feito pelo E-fit chegasse, telefonara para o pai do carro e pedira para enviá-lo para o gabinete do governador.

 — Vou verificar — ela falou com alguém ao telefone. Sim, seu fax está aqui — um momento depois uma mocinha entrava por uma porta lateral com uma folha de papel.

 Judy examinou o rosto representado na folha do fax. Aquele era o homem que podia matar milhares de pessoas. Seu inimigo.

 O que ela viu foi um homem bonito que se dera ao trabalho de esconder o verdadeiro formato do rosto, como se talvez tivesse antecipado aquele momento. Tinha a cabeça coberta por um chapéu de caubói. O que sugeria que as testemunhas que tinham ajudado o xerife a criar aquele retrato feito pelo computador jamais tinham visto o suspeito sem chapéu. Conseqüentemente, não havia indicação de como era seu cabelo. Se fosse careca, grisalho ou cacheado ou se tivesse cabelo comprido, seu aspecto seria bem diferente. E a metade inferior do rosto também estava bem escondida pela barba cerrada. Ali debaixo o queixo podia ter qualquer formato. A esta altura, Judy achava que ele devia estar com o rosto escanhoado.

 O homem tinha olhos fundos que se fixavam hipnoticamente em quem visse o retrato. Mas para as pessoas comuns, todos os criminosos têm olhares hipnóticos.

 Fosse como fosse, a foto lhe dizia algumas coisas. Ricky Granger não usava óculos habitualmente, era evidente que não se tratava de um afro-americano ou oriental, e como sua barba era preta e densa, provavelmente tinha cabelo escuro. Graças à descrição anexada à foto, ela viu que se tratava de um homem com pouco mais de um metro e oitenta, magro e aparentemente em boa forma física, sem um sotaque destacado. Não era muito, mas era melhor do que nada. E nada era o que Brian e Marvin tinham.

 O assistente de Honeymoon apareceu e conduziu Judy pelo interior da Ferradura, onde o governador e sua equipe tinham os gabinetes. Judy mordeu o lábio. Estava prestes a violar a primeira regra da burocracia e fazer com que seu chefe passasse por idiota. Provavelmente seria o fim da sua carreira.

 Azar. Tudo o que queria agora era fazer com que Brian Kincaid encarasse seriamente o Martelo do Éden antes que aqueles malucos matassem gente. Desde que ele mudasse de atitude, podia despedi-la.

 Passaram pela entrada da suíte pessoal do governador e depois o assistente abriu a porta do gabinete de Honeymoon. Judy entrou. Por um momento ela se permitiu desfrutar o choque e espanto expressos nos rostos de Brian Kincaid e Marvin Hayes.

 Só depois olhou para Honeymoon.

 O secretário do gabinete do governador da Califórnia vestia uma camisa cinza-clara com uma discreta gravata preta-e-branca de bolinhas e suspensórios cinza-escuros com um desenho. Ele olhou para Judy com as sobrancelhas erguidas e disse:

 — Agente Maddox! O Sr. Kincaid acaba de me contar que a tirou do caso porque a senhorita é uma idiota.

 Judy ficou atônita. Imaginara que fosse controlar a cena. Afinal, fora ela quem os surpreendera irrompendo ali. Mas Honeymoon dera o troco com sobras. Não era homem para ser ultrapassado em seu próprio território. Ela se recuperou depressa. Tudo bem, Sr. Honeymoon, se quer jogar duro, vamos jogar duro.

 — Brian não está com nada — retrucou Judy.

 Kincaid fechou a cara, mas Honeymoon limitou-se a erguer ligeiramente as sobrancelhas.

 — Eu sou o melhor agente que ele tem, e acabo de provar isto.

 — É mesmo? — disse Honeymoon.

 — Enquanto Marvin ficou com esse bundão grudado na cadeira como um dois de paus, fingindo que não tinha com que se preocupar, eu resolvi o caso.

 Kincaid levantou-se, o rosto congestionado e exclamou, furioso:

 — Maddox, o que diabos você pensa que está fazendo aqui?

 Ela o ignorou.

 — Sei quem está enviando ameaças ao governador Robson — disse, dirigindo-se a Honeymoon. — Marvin e Brian não sabem. O senhor pode chegar sozinho a uma conclusão sobre quem é idiota aqui.

 O rosto de Hayes ficou vermelho escarlate.

 — De que diabos você está falando?

 Foi Honeymoon quem falou:

 — Vamos todos nos sentar. Agora que a Srta. Maddox nos interrompeu, não custa nada ouvir o que ela tem a dizer — ele fez um gesto para o seu assistente. — Feche a porta, John. Agente Maddox, eu a ouvi mesmo dizer que sabe quem está fazendo as ameaças?

 — Correto — ela pôs o fax em cima da mesa de Honeymoon. — Este é Richard Granger, um bandido de Los Angeles que, erroneamente, pensou-se que tinha sido liquidado pela Máfia em 1972.

 — E o que a faz pensar que ele é o culpado?

 — Veja só isto aqui — ela lhe passou outro papel. — Aqui está o sismograma de um terremoto normal. Repare nas vibrações que precedem o tremor. Há uma série muito irregular de diferentes magnitudes. São vibrações preliminares típicas.

 Ela lhe mostrou um segundo papel.

 — Este é o terremoto do Owens Valley. Nada de irregular aqui. Em vez de uma confusão de aparência natural, uma série sistemática de vibrações regulares.

 Hayes interrompeu.

 — Ninguém pode explicar essas vibrações.

 Judy virou-se para ele.

 — Você não, mas eu posso.

 Ela pôs outra folha de papel na mesa de Honeymoon. — Olhe só este sismograma.

 Honeymoon estudou o terceiro gráfico, comparando com o segundo.

 — Regular, exatamente como o do Owens Valley. O que provoca vibrações assim?

 — Uma máquina chamada vibrador sísmico.

 Hayes conteve uma risada, mas Honeymoon permaneceu absolutamente sério.

 — O que é isso?

 — Um destes — ela lhe passou a foto enviada por um dos fabricantes. — É usado em prospecção petrolífera.

 Honeymoon permaneceu cético.

 — Você está dizendo que foi um terremoto causado pelo homem?

 — Não estou teorizando. Estou lhe dando os fatos. Um vibrador sísmico foi usado naquele local imediatamente antes do terremoto. O senhor pode tirar as próprias conclusões quanto à causa e efeito.

 Ele lhe dirigiu um olhar duro e avaliador. Perguntava-se se Judy estaria blefando ou não. Ela sustentou seu olhar e finalmente ele disse:

 — OK. Como isto nos leva ao sujeito da barba?

 — Um vibrador sísmico foi roubado uma semana atrás em Shiloh, Texas.

 Ela ouviu Hayes exclamar:

 — Droga!

 Honeymoon disse:

 — E o sujeito da foto...

 — Richard Granger é o principal suspeito do roubo — e do assassinato do motorista do caminhão. Granger trabalhava para a equipe de prospecção de petróleo que estava usando o vibrador. O retrato E-fit é baseado nas recordações dos seus colegas de trabalho. Honeymoon balançou a cabeça.

 — É só?

 — E não é o bastante? — retrucou ela.

 Honeymoon não respondeu a ela e voltou-se para Kincaid.

 — O que é que você tem a dizer sobre tudo isto?

 — Não me parece que devamos aborrecê-lo com questões disciplinares internas — respondeu Kincaid, desorientado.

 — Oh, eu quero ser aborrecido — contrapôs Honeymoon. Havia um toque perigoso em sua voz e a temperatura na sala pareceu diminuir. — Veja o caso do meu ponto de vista. Você vem aqui e me diz que o terremoto definitivamente não foi uma coisa artificial — ele começou a falar mais alto. — Agora parece, a partir destes indícios, que é muito provável que tenha sido provocado. Assim, temos um grupo solto por aí que tem condições de causar um imenso desastre. — Judy sentiu que ganhara a guerra quando tornou-se claro que Honeymoon acreditara na sua história. Ele estava furioso com Kincaid. Levantou-se e apontou um dedo para ele. — Você me diz que não consegue achar os responsáveis pelas ameaças e aí aparece a agente Maddox com um nome, uma ficha policial e a porra de um retrato.

 — Acho que eu deveria dizer...

 — Pois eu acho que você andou me sacaneando, agente Kincaid – cortou Honeymoon, as feições escurecidas pela raiva. — E quando me sacaneiam eu fico meio irritado.

 Judy deixou-se ficar em silêncio, vendo Honeymoon destruir Kincaid. Se é assim que você fica quando está irritado, Al Honeymoon, eu detestaria vê-lo quando você estiver realmente furioso.

 Kincaid tentou de novo.

 — Desculpe-me...

 — Também odeio pessoas que se desculpam — interrompeu Honeymoon. – A intenção do pedido de desculpas é fazer com que o transgressor se sinta bem e possa fazer tudo de novo. Não se desculpe. Brian Kincaid tentou salvar os últimos resquícios da sua dignidade.

 — O que é que você quer que eu diga?

 — Que está renomeando a agente Maddox encarregada deste caso.

 Judy olhou para ele espantada. Aquilo era bem melhor do que o que esperara.

 Para Kincaid foi como se tivesse que ficar nu em plena Union Square. Ele engoliu em seco.

 Honeymoon insistiu.

 — Se você tiver algum problema para fazer isso, basta me dizer, que eu peço que o governador Robson ligue para o diretor do FBI em Washington. O governador poderia, então, explicar as razões pelas quais estamos fazendo este pedido.

 — Não será necessário — disse Kincaid.

 — Então nomeie a Maddox encarregada.

 — OK.

 — Não, nada de "OK". Quero que você diga isso para ela, aqui mesmo, neste instante.

 Brian recusou-se a olhar para Judy mas falou:

 — Agente Maddox, agora você está encarregada da investigação do Martelo do Éden.

 — Muito obrigada — agradeceu Judy. Salva!

 — Agora, sumam daqui — decretou Honeymoon. Todos se levantaram.

 Honeymoon chamou:

 — Maddox.

 Ela se virou da porta.

 — Telefone para mim uma vez por dia.

 Aquilo significava que ele continuaria a apoiá-la. Podia falar com Honeymoon quando precisasse. E Kincaid sabia disso.

 — Pode deixar — respondeu. Eles finalmente saíram.

 Pouco mais adiante, quando já iam deixar para trás a Ferradura, Judy dirigiu um sorriso doce a Kincaid e repetiu as palavras que ele lhe dissera na última vez em que tinham estado naquele mesmo prédio, quatro dias atrás:

 — Você se saiu muito bem, Brian. Não tem com que se preocupar.

 

 Dusty ficou doente toda a segunda-feira.

 Melanie pegou o carro e foi a Silver City comprar mais remédio. Deixou o garoto com Flower, que passava por uma súbita fase maternal. Voltou em pânico.

 Priest estava no depósito de vinho com Dale, que lhe pedira para provar a mistura da última safra. Ia ser uma safra nogada, de maturação lenta mas destinada a ter longa vida. Priest sugeriu que fosse usado um pouco mais do mosto mais leve oriundo das encostas mais baixas e sombrias do vale, a fim de tornar o vinho mais atraente logo; mas Dale resistiu.

 — Isto agora é um vinho de conhecedores — disse. — Não temos mais que ir atrás dos consumidores de supermercados. Nossos clientes gostam de manter o vinho alguns anos em suas adegas antes de bebê-lo.

 Priest sabia que aquele não era o verdadeiro motivo pelo qual Dale queria falar com ele, mas questionou assim mesmo.

 — Não faça pouco dos compradores de supermercados eles salvaram nossas vidas nos primeiros tempos.

 — Mas não podem salvar agora — retrucou Dale. — Priest, por que a gente está fazendo isto, porra? Temos que abandonar esta terra no domingo que vem.

 Priest conteve um suspiro de frustração. Pelo amor de Deus, me dá uma chance! Estou quase conseguindo — o governador não pode ignorar terremotos indefinidamente. Só preciso de um pouco mais de tempo. Por que você não pode ter fé?

 Ele sabia que não era possível vencer Dale com uma atitude mais agressiva, agrados ou mentiras. Só a lógica funcionava com Dale. Priest obrigou-se a falar com calma, a encarnação do raciocínio ponderado e dócil.

 — Pode ser que você esteja certo — disse, magnanimamente. Mas depois não resistiu à tentação de acrescentar uma ironia. — Os pessimistas com freqüência estão.

 — Como assim?

 — Tudo o que estou lhe dizendo é para esperar seis dias. Não vá agora. Dê tempo para que possa ocorrer um milagre. Talvez não aconteça. Mas talvez aconteça.

 — Não sei não.

 Neste instante Melanie apareceu, ofegante, com um jornal na mão.

 — Tenho que falar com você — exclamou.

 O coração de Priest quase parou. O que tinha acontecido? Tinha que ser algo sobre os terremotos — e Dale não tinha conhecimento do segredo. Priest dirigiu a ele um sorriso que queria dizer As mulheres não são impossíveis? E levou Melanie para fora do depósito.

 — Dale não sabe! — disse, assim que se afastaram o suficiente para não serem mais ouvidos. — O que diabo...

 — Olha só para isso! — disse ela, brandindo o jornal diante dos olhos de Priest.

 Ele ficou chocado ao ver a fotografia de um vibrador sísmico. Examinou rapidamente o pátio e as edificações mais próximas, mas não havia ninguém. Assim mesmo, não queria ter aquela conversa com Melanie ao ar livre.

 — Aqui não! — disse, furioso. — Ponha o maldito jornal debaixo do braço e vamos até a minha cabana.

 Ela se controlou.

 Os dois atravessaram o pequeno povoado até chegarem à cabana de Priest. Assim que entraram, ele tirou o jornal de Melanie e examinou a foto de novo. Não havia a menor dúvida. Ele não era capaz de ler a legenda ou a matéria que a acompanhava, claro, mas a foto era de um caminhão igualzinho ao que ele roubara.

 — Merda! — exclamou, jogando o jornal em cima da mesa.

 — Leia! — disse Melanie.

 — Está muito escuro aqui dentro — replicou ele. — Você me diz o que tem na notícia.

 — A polícia está procurando um vibrador sísmico que foi roubado.

 — Uma ova que está.

 — Não fala nada sobre terremotos — prosseguiu Melanie. — É só como uma história engraçada — quem ia querer roubar uma coisa dessas?

 — Não acredito — disse Priest. — Não pode ser coincidência. A história é sobre nós, mesmo que não falem da gente. Eles sabem como fizemos com que o terremoto acontecesse, mas ainda não contaram para a imprensa. Têm medo de criar uma situação de pânico.

 — Então por que liberaram esta foto?

 — Para dificultar as coisas para nós. Com esta foto publicada, fica impossível dirigir o caminhão na estrada. Cada patrulheiro rodoviário do estado da Califórnia está de olho — com a frustração, ele deu um soco na mesa.- Puta merda, não posso deixar que me detenham assim tão facilmente!

 — E se dirigirmos à noite?

 Ele tinha pensado nisso. Sacudiu a cabeça.

 — Ainda assim é arriscado demais. Há polícia na estrada à noite.

 — Tenho que ir ver como está Dusty — disse Melanie. Ela estava à beira das lágrimas. — Oh, Priest, ele está tão doente — não vamos ter que deixar o vale, vamos? Estou apavorada. Jamais encontrarei outro lugar onde possamos ser felizes, eu sei disso.

 Priest abraçou-a para lhe dar coragem.

 — Ainda não fui vencido, de jeito nenhum. O que mais diz o artigo?

 Ela pegou o jornal.

 — Houve uma demonstração diante do Federal Building em San Francisco — ela sorriu por entre as lágrimas. — Um grupo de pessoas que dizem que o Martelo do Éden está certo, que o FBI tinha que nos deixar em paz e que o governador Robson devia parar de construir hidrelétricas.

 Priest ficou satisfeito.

 — Bem, quem diria! Ainda há uns poucos californianos capazes de pensar direito. — Logo ele reassumiu o tom solene. — Mas isso não me ajuda a resolver o problema de sair com o caminhão sem ser preso pelo primeiro guarda.

 — Vou ver o Dusty — insistiu ela.

 Priest foi com ela. Na cabana da mãe, Dusty estava deitado na cama, olhos purgando, rosto vermelho, respirando com dificuldade. Sentada ao seu lado, Flower lia em voz alta um livro com o desenho de um pêssego gigante na capa. Priest fez um carinho no cabelo da filha. Ela levantou os olhos para ele e sorriu, sem interromper a leitura.

 Melanie pegou um copo d'água e deu um comprimido ao filho. Priest sentiu pena do menino, mas não pôde deixar de pensar que a doença dele era uma sorte para a comunidade.

 Melanie fora apanhada em uma armadilha. Acreditava que tinha que viver onde o ar fosse puro, mas não era capaz de conseguir um emprego fora da cidade. A comunidade era sua única resposta. Se tivesse que ir embora, podia ser que encontrasse outra comunidade que a aceitasse, mas também podia ser que não encontrasse. De qualquer forma, estava exausta e desencorajada demais para cair na estrada de novo.

 E havia mais do que isso, na opinião de Priest. Bem lá no fundo dela havia um ódio terrível. Ele não sabia qual era a fonte desse sentimento, mas era forte o bastante para fazê-la ansiar por sacudir a terra, incendiar cidades e fazer com que as pessoas fugissem correndo das próprias casas. A maior parte do tempo isso ficava escondido sob a fachada de uma mulher jovem, sexy, mas desorganizada. Às vezes, contudo, quando sua vontade enfraquecia e ela se sentia frustrada e impotente, o ódio aparecia.

 Priest deixou-a e foi para a cabana de Star, preocupado com o problema do caminhão. Podia ser que Star tivesse alguma idéia. Podia ser que houvesse um modo de disfarçar um vibrador sísmico de modo que ele parecesse um caminhão de Coca-Cola, um guindaste ou qualquer outra coisa.

 Quando entrou, Star estava pondo um band-aid no joelho de Ringo, algo que ela fazia cerca de uma vez por dia. Priest sorriu para o filho de dez anos e perguntou:

 — O que é que foi desta vez, caubói? — só então é que viu Bones.

 Ele estava deitado na cama totalmente vestido mas profundamente adormecido. Havia uma garrafa vazia de chardonnay, produzido ali no vale, em cima da mesa de madeira crua. Bones dormia de boca aberta e ressonava alto.

 Ringo começou a contar ao pai uma história comprida sobre tentar atravessar o regato se balançando numa árvore, mas Priest mal ouviu. Bones lhe dera uma inspiração repentina e sua mente trabalhava febrilmente.

 Depois que o curativo no joelho machucado de Ringo foi feito e o menino saiu correndo porta a fora, Priest contou a Star o problema do vibrador sísmico. E, em seguida, adiantou a solução.

 

 Priest, Star e Oaktree ajudaram Bones a retirar a enorme lona de cima do caminhão em que ele viera, o caminhão com um brinquedo de mafuá. Uma vez retirada a lona, o veículo apareceu em todas as suas cores gloriosas e de gosto vulgar: um dragão verde lançando pela boca uma labareda vermelha e amarela sobre três garotas que gritavam, sentadas num balanço giratório, e o letreiro brega, que, segundo Bones leu para Priest, dizia "A Boca do Dragão".

 Priest dirigiu-se a Oaktree:

 — Subimos um pouco a trilha com o caminhão do Bones, de modo que pare do lado do vibrador sísmico. Depois tiramos os painéis pintados e prendemos no nosso caminhão, cobrindo a maquinaria. Os policiais procuram um vibrador sísmico, não um brinquedo de mafuá.

 Oaktree, que trouxera sua caixa de ferramentas, examinou detidamente os painéis e disse, após um minuto:

 — Não tem problema. Posso fazer isso num dia, com uma ou duas pessoas me ajudando.

 — E pode pôr os painéis depois no mesmo lugar, para que o caminhão do Bones fique como antes?

 — Como novo — prometeu Oaktree.

 Priest olhou para Bones. O grande problema daquele plano era que Bones tinha presença obrigatória nele. Afinal de contas, era um Comedor de Arroz. Talvez não se pudesse garantir que fosse aparecer no próprio casamento, mas era capaz de guardar um segredo. Só que, como ele se tornara um drogado, nada era garantido. A heroína produz nas pessoas o mesmo efeito de uma lobotomia. O drogado é capaz de roubar a aliança da mãe.

 Mas Priest tinha que correr o risco. Estava desesperado. Prometera um terremoto dentro de quatro dias e tinha que cumprir a ameaça. Caso contrário, tudo estaria perdido.

 Bones concordou rapidamente com o plano. Priest meio que esperara que ele fosse exigir pagamento. No entanto, como estava morando de graça na comunidade havia quatro dias, era tarde demais para colocar o relacionamento com Priest em termos comerciais. Além do mais, um cara como ele, que fizera parte da comunidade, sabia que o maior pecado imaginável era avaliar as coisas em termos de dinheiro.

 Bones seria mais sutil. Dentro de um ou dois dias pediria dinheiro a Priest para comprar heroína. Priest, contudo, decidiu que seria melhor ver o que faria quando a hora chegasse.

 — Então vamos até lá — disse ele.

 Oaktree e Star subiram na cabina do caminhão de Bones. Melanie e Priest foram no `Cuda. O vibrador sísmico estava escondido a uns mil e quinhentos metros dali.

 Priest gostaria de saber o que mais o FBI descobrira. Para começar, tinham concluído que o terremoto fora causado por um vibrador sísmico. Teriam ido além disto?

 Ligou o rádio do carro, na esperança de ouvir um boletim de notícias. Pegou Connie Francis cantando "Breakin' in a Brand New Broken Heart", um sucesso antigo até mesmo pelos seus padrões.

 O `Cuda foi se sacudindo ao longo da trilha lamacenta que cortava a floresta, atrás do caminhão de Bones. Bones dirigia o enorme veículo com segurança, Priest observou, mesmo tendo acabado de acordar de um sono de bêbado. Houve um momento em que Priest teve quase certeza de que o caminhão com o brinquedo de mafuá ia atolar, mas não, atravessou o lameiro direto.

 O noticiário entrou no ar justo quando estavam se aproximando do esconderijo do vibrador. Priest aumentou o volume. Ficou pálido de susto com o que ouviu.

 — Os agentes federais que investigam o grupo terrorista Martelo do Éden distribuíram a imagem fotográfica do suspeito — disse o locutor. — Seu nome deve ser Richard ou Ricky Granger, quarenta e oito anos de idade, originário de Los Angeles.

 — Jesus Cristo! — exclamou Priest, metendo o pé no freio.

 — Granger também é procurado por um assassinato em Shiloh, Texas, nove dias atrás. — O quê? — ninguém sabia que ele matara Mario, nem mesmo Star.

 Os Comedores de Arroz estavam desesperados para causar um terremoto que poderia matar centenas de pessoas, mas ao mesmo tempo ficariam estarrecidos se soubessem que ele batera num homem até a morte com uma chave de roda. O ser humano é incoerente.

 — Isto não é verdade — disse Priest. — Não matei ninguém. Melanie olhava para ele fixamente.

 — É esse o seu nome verdadeiro? — perguntou ela. — Ricky Granger?

 Ele tinha esquecido que ela não sabia.

 — É — respondeu, fazendo um tremendo esforço para ver se lembrava de quem sabia seu nome verdadeiro. Não o usava havia vinte e cinco anos, exceto em Shiloh. De repente lembrou que tinha ido falar com o xerife de Silver City para tirar Flower da cadeia e seu coração parou por um momento; mas logo se lembrou de que o assistente do xerife pensara que ele tinha o mesmo nome de Star e o chamara de Sr. Higgins.

 Graças a Deus.

 — Como foi que arranjaram uma foto sua? — quis saber Melanie.

 — Não é foto. É uma semelhança fotográfica. Ou seja, deve ser um desses conjuntos que ajudam a fazer retratos falados.

 — Sei como é — disse ela. — Só que em vez de um desenhista, agora é feito por um programa de computador.

 — Há um programa de computador para tudo — resmungou Priest. Ainda bem que mudara de aparência antes de arranjar o emprego em Shiloh. Valera a pena gastar tanto tempo para deixar crescer a barba, o trabalho que era para prender o cabelo diariamente e o aborrecimento de ter que usar chapéu o tempo todo. Com sorte, a tal semelhança fotográfica nem remotamente lembraria a sua aparência atual. Mas precisava ter certeza.

 — Preciso ver uma televisão — disse.

 Ele saltou do carro. O caminhão de Bones tinha acabado de estacionar ao lado do vibrador sísmico e Oaktree e Star já se aproximavam. Em poucas palavras ele explicou a situação a eles.

 — Vocês começam aqui enquanto dou um pulo em Silver City — concluiu. — Vou levar Melanie — quero a opinião dela também.

 Voltou para o carro, saiu da floresta e seguiu para Silver City. Nas cercanias da cidadezinha havia uma loja de eletrodomésticos. Priest estacionou e saltou. Olhou em torno nervosamente. Ainda era claro. E se encontrasse alguém que tivesse visto seu rosto na televisão? Tudo dependia da tal imagem ser ou não parecida com ele. Tinha que saber. Precisava se arriscar. Aproximou-se da loja.

 Na vitrina podiam ser vistos diversos aparelhos de televisão mostrando a mesma coisa, um desses programas de jogos. O apresentador de cabelos prateados e com um terno azul-claro implicava, de brincadeira, com uma mulher de meia-idade que tinha os olhos exageradamente pintados.

 Priest olhou para os dois lados da calçada. Não havia ninguém à vista. Deu uma espiada no relógio: quase sete. O jornal da televisão estaria no ar em poucos segundos.

 O apresentador passou o braço pelos ombros da mulher e falou dirigindo-se à lente da câmera. Seguiu-se uma tomada da platéia aplaudindo com entusiasmo histérico. Em seguida apareceu o jornal. Havia dois âncoras, um homem e uma mulher. Eles falaram por alguns segundos.

 Logo em seguida todas as telas mostraram o retrato em preto e branco de um homem com uma barba espessa e a cabeça metida num chapéu de caubói.

 Priest firmou a vista.

 A imagem não parecia nem um pouco com ele.

 — O que é que você acha? — perguntou a Melanie.

 — Nem mesmo eu saberia que era você.

 O alívio que Priest sentiu foi como uma onda que o invadisse. Seu disfarce funcionara. A barba mudara o formato do seu rosto e o chapéu escondera sua característica mais marcante, o cabelo longo, grosso e ondulado. Nem mesmo ele teria reconhecido aquela imagem se não soubesse de quem supostamente se tratava.

 Priest acalmou-se.

 — Muito obrigado, deus dos hippies — disse.

 Todas as telas piscaram, e outro retrato apareceu. Priest ficou chocado de ver, reproduzido umas doze vezes, uma foto dele próprio ao dezenove anos, tirada na polícia. Era tão magro que seu rosto parecia uma caveira. Era magro atualmente, mas naquele tempo, se enchendo de droga, bebendo e jamais fazendo uma refeição como devia, era um esqueleto. Rosto chupado, expressão ressentida. O cabelo era comprido e fino e sem brilho, com um corte de estilo beatles que já naquele tempo devia estar fora de moda.

 — Você me reconheceria? — indagou Priest.

 — Pelo nariz, sim. Reconheceria.

 Ele olhou de novo. Melanie tinha razão: a foto mostrava seu nariz característico, W o e recurvo, parecendo uma cimitarra.

 Melanie acrescentou:

 — Mas não creio que alguma outra pessoa o reconhecesse, muito menos se for uma estranha.

 — Foi o que pensei.

 Ela passou o braço pela cintura de Priest e apertou, afetuosamente.

 — Você parecia um garoto muito mau quando era jovem.

 — Acho que eu era mesmo.

 — Onde foi que arranjaram aquela foto, afinal?

 — Estou supondo que foi do meu prontuário policial. Ela levantou os olhos para ele.

 — Eu não sabia que você tinha ficha na polícia. Por que o pegaram?

 — Quer uma lista?

 Ela pareceu chocada e desapontada. Não venha bancar a puritana para cima de mim, garota — lembre-se de quem foi que nos disse como causar um terremoto. — Abandonei a vida de crimes quando vim para o vale — disse ele. — Não fiz nada de errado nos vinte e cinco anos seguintes — até conhecer você.

 Ela franziu a testa. Priest percebeu que Melanie não se via como uma criminosa. Aos seus próprios olhos era uma cidadã normalmente respeitável que fora levada a cometer um ato de desespero. Ainda acreditava que era de uma raça diferente daquela a quem pertenciam as pessoas que roubavam e matavam.

 Resolva seu problema do jeito que bem entender, meu bem — só não pode desistir do plano.

 Os dois âncoras reapareceram e a cena mudou para um edifício alto. Uma linha de palavras apareceu na parte de baixo da tela. Priest não precisava saber o que estava escrito porque reconheceu o lugar. Era o Federal Building, onde o FBI tinha sua agência em San Francisco. Quando Priest viu uma demonstração sendo realizada diante do prédio, lembrou do que Melanie lera no jornal. A demonstração era favorável ao Martelo do Éden, ela dissera. Um grupo armado de cartazes e megafones discursava para umas pessoas que entravam no edifício.

 A câmera focalizou uma jovem com um toque asiático nas feições. Ela chamou a atenção de Priest porque era bonita à maneira exótica que o atraía fortemente. Era magra e vestia um elegante terninho escuro, e ele não pôde deixar de notar, exibia uma formidável expressão que dizia a todos vê-se-não-me-enche. A cotoveladas, ela abriu caminho por entre a multidão com calma insensibilidade.

 — Oh, meu Deus, é ela! — exclamou Melanie.

 Priest assustou-se.

 — Você conhece aquela mulher?

 — Eu a encontrei no domingo.

 — Onde?

 — No apartamento de Michael, quando fui pegar Dusty.

 — Quem é?

 — Michael me apresentou só como Judy Maddox, não disse nada a seu respeito.

 — O que é que ela está fazendo no Federal Building?

 — Diz aí na tela, "Agente Judy Maddox, do FBI, encarregada do caso Martelo do Éden" — ela é a detetive que está atrás de nós!

 Priest estava fascinado. Era ela o inimigo? Pois era uma mulher maravilhosa. Só de vê-la na tela da televisão dava vontade de acariciar-lhe a pele dourada com a ponta dos dedos.

 Eu deveria estar assustado, e não excitado. Ela é uma detetive e tanto. Chegou na história do vibrador sísmico, descobriu de onde ele vinha e conseguiu meu nome e retrato. É inteligente e trabalha depressa.

 — E você a conheceu na casa de Michael?

 — Conheci.

 Priest ficou assombrado. Ela estava perto demais — tinha inclusive conhecido Melanie! Sua intuição lhe disse que ele corria grande perigo vindo daquela agente. O fato de ter se sentido tão atraído por ela, após vê-la por tão pouco tempo na televisão, só servia para tornar as coisas ainda piores. Era como se ela tivesse um poder qualquer sobre ele.

 Melanie prosseguiu:

 — Michael não disse que ela trabalhava no FBI. Pensei que fosse uma namorada, e por isso mais ou menos dei um gelo nela. Estava com um cara mais velho que disse ser seu pai, embora não fosse oriental.

 — Namorada ou não, não gosto de vê-la se aproximando tanto de nós! — ele virou-se e caminhou lentamente de volta para o carro. Seu cérebro trabalhava a toda velocidade. De repente, não tinha nada de espantoso que a agente encarregada do caso procurasse um especialista importante. A agente Maddox falara com Michael pela mesma razão de Priest: — Michael era entendido em terremotos. Dava para adivinhar que Michael a ajudara a fazer a ligação com o vibrador sísmico. O que mais teria lhe dito?

 Sentaram no carro, mas Priest não deu a partida no motor.

 — Isso é muito ruim para nós — disse ele. — Muito ruim.

 — O que é ruim? — retrucou Melanie defensivamente. — ; Não acho que tenha nada de mais o Michael trepar com uma agente do FBI. Pode ser que ela enfie a pistola no rabo dele. Não me importo.

 Não era próprio de Melanie falar tanto palavrão. Ela está realmente chocada.

 — O que é ruim é que Michael pode dar a ela a mesma informação que nos deu.

 Melanie franziu a testa.

 — Não entendi.

 — Pensa bem. O que é que deve estar na cabeça da agente Maddox? "Onde o Martelo do Éden atacará a seguir?" E Michael pode ajudá-la com isso.

 Pode consultar os dados que ele tem arquivados, do mesmo jeito que você fez e levantar os locais onde há mais probabilidade de ocorrer um terremoto. Em seguida o FBI pode colocar esses locais sob vigilância e aguardar o aparecimento do vibrador sísmico.

 — Não pensei nisso — Melanie olhou fixamente para Priest. — O filho da puta do meu marido e a galinha do FBI vão nos ferrar, é isto o que você está querendo me dizer?

 Priest deu uma olhada em Melanie. Parecia prestes a cortar a garganta dele.

 — Vê se se acalma, está bem?

 — Puta merda.

 — Espera um minuto — Priest teve uma idéia. Melanie era o elo. Talvez pudesse descobrir o que Michael dissera à linda agente do FBI. – Pode ser que haja como contornar isto. Diga-me uma coisa, como se sente acerca de Michael agora?

 — Não sinto nada. Acabou, e estou feliz. A única coisa que espero é que possamos tratar do nosso divórcio sem muita briga.

 Priest examinou-a. Não acreditava nela. O que Melanie sentia por Michael era raiva.

 — Temos que saber se o FBI estará vigiando as possíveis localizações de terremotos — e, caso positivo, quais. Acho que ele podia dizer isso para você.

 — E a troco de que ele ia fazer uma coisa dessas?

 — Acredito que ele ainda sinta tesão por você. Melanie arregalou os olhos para ele.

 — Priest, o que diabo é isso?

 Priest respirou fundo.

 — Michael lhe dirá qualquer coisa, se você dormir com ele.

 — Vá pra puta que o pariu, Priest. Não vou fazer isso!

 — Detesto ter que pedir-lhe isso — e era verdade. Ele não queria que ela dormisse com Michael. Acreditava que ninguém devesse fazer sexo senão quando desejasse. Aprendera com Star que a coisa mais nojenta do casamento era o direito que dava a uma pessoa de fazer sexo com a outra. Assim, aquele esquema era completamente contrário às suas crenças. Mas não tenho escolha.

 — Esquece — disse Melanie.

 — Tudo bem — concordou ele. — Desculpe ter pedido — ele deu a partida no motor do carro. — Só queria ser capaz de pensar em outra coisa.

 Eles seguiram em silêncio por alguns momentos, percorrendo o caminho por entre as montanhas.

 — Desculpe, Priest — disse ela ao cabo de algum tempo. Eu simplesmente não posso fazer isso.

 — Já falei para não se preocupar.

 Abandonaram a estrada e pegaram a longa trilha irregular que levava à comunidade. O caminhão com o brinquedo do mafuá não era mais visível da trilha; Priest adivinhou que Oaktree e Star o tinham escondido para a passagem da noite.

 Estacionou na clareira circular que ficava no fim da trilha. Enquanto atravessavam a floresta no caminho da comunidade, na penumbra do crepúsculo, ele segurou a mão de Melanie. Após um momento de hesitação ela chegou mais para perto de Priest e apertou carinhosamente a mão dele.

 O trabalho no vinhedo havia terminado. Por causa do tempo quente, a mesa grande fora arrastada de dentro da cozinha para o pátio. Algumas das crianças estavam distribuindo os pratos e os talheres. Slow fatiou um pão comprido feito na própria comunidade. Havia garrafas do vinho deles em cima da mesa e um cheiro estimulante se espalhava por todo o lugar.

 Priest e Melanie foram até a cabana dela verificar como ia Dusty. Viram imediatamente que estava melhor. O menino dormia pacificamente. A inchação cedera, o nariz parara de escorrer e ele respirava normalmente. Flower dormira na cadeira ao lado da cama, com o livro aberto no colo.

 Priest observou Melanie ajeitar as cobertas da criança adormecida e beijar-lhe a testa. Depois olhou para Priest e murmurou:

 — Este é o único lugar em que ele passa bem.

 — É o único lugar em que eu estive bem — disse Priest, falando baixo.

 — É o único lugar em que o mundo vai bem. É por isso que temos de salvá-lo.

 — Eu sei — murmurou ela. — Eu sei.

 

 A turma do Terrorismo Doméstico da agência de San Francisco do FBI trabalhava em uma sala estreita que dava para uma fachada lateral do Federal Building. Com suas mesas e divisórias, parecia igual a milhões de outros escritórios, a não ser pelo fato dos rapazes de camisas de mangas curtas e das moças trajando roupas elegantes, que trabalhavam lá, usarem armas nos coldres que tinham nos quadris ou debaixo dos braços.

 Às sete horas da manhã de terça-feira eles estavam de pé, sentados sobre os cantos das mesas, ou encostados na parede, uns bebendo café nos recipientes de plástico, outros segurando canetas e blocos, prontos para tomar notas. Todos, exceto o supervisor, tinham sido postos sob as ordens de Judy. Era intenso o murmúrio na sala.

 Judy sabia de que estavam falando. Ela se insurgira contra o encarregado em exercício — e ganhara. Não acontecia freqüentemente. Dentro de uma hora todo o andar estaria fervendo de boatos e fofocas. Judy não ficaria surpresa de vir a saber, quando o dia terminasse, que saíra ganhando porque estava tendo um caso com Al Honeymoon. O barulho cessou quando ela se levantou e disse:

 — Atenção, por favor.

 Avaliou o grupo por um instante e experimentou uma emoção já muito conhecida. Todos ali eram bem treinados fisicamente, bem vestidos, honestos e dinâmicos, os jovens mais dinâmicos do país. Sentia orgulho em trabalhar com eles. Começou a falar.

 — Vamos nos dividir em duas equipes. Peter, Jack, Sally e Lee irão verificar as dicas baseadas nas imagens que temos de Ricky Granger.

 Judy distribuiu uma folha de instruções que preparara durante a noite. Uma lista de perguntas permitiria que o agente fosse capaz de eliminar a maior parte das denúncias, deixando apenas as que mereciam a visita de um agente ou do guarda do bairro. Muitos dos homens identificados como "Ricky Granger" podiam ser desconsiderados à primeira vista: afro-americanos, homens com sotaque estrangeiro, na casa dos vinte anos ou de baixa estatura. Por outro lado, os agentes deveriam ser rápidos para visitar qualquer suspeito que se enquadrasse na descrição e tivesse estado fora de casa no período de duas semanas nas quais Granger trabalhara em Shiloh, no Texas.

 — Dave, Louise, Steve e Ashok formarão a outra equipe. Vão trabalhar com Simon Sparrow, verificando dicas baseadas na voz da mulher que telefonou para John Truth. A propósito, algumas das dicas em que Simon está trabalhando mencionam um disco pop. Pedimos a John Truth para tocar a gravação de novo no programa.

 Não fora ela quem fizera o pedido pessoalmente e sim o encarregado do relacionamento do FBI de San Francisco com a imprensa, que telefonara para a produção.

 — Assim — continuou Judy, distribuindo uma segunda folha de instruções — pode ser que recebamos ligações sobre isso. — Raja. O integrante mais jovem da turma do Terrorismo Doméstico exibiu seu sorriso meio torto.

 — Eu estava com medo de você ter me esquecido.

 — Só nos meus sonhos — disse ela, e todos riram. — Raja. Quero que você prepare um texto curto para enviar a todos os departamentos de polícia, em especial a Patrulha Rodoviária do estado da Califórnia, explicando como reconhecer um vibrador sísmico — ela levantou a mão. — E nada de piadas de vibrador, por favor — e todos riram de novo.

 — Agora, vou arranjar para nós um reforço de mão-de-obra e um pouco mais de espaço. Enquanto isso não acontece, sei que vocês se esforçarão ao máximo. Mais uma coisa.

 Ela fez uma pausa, escolhendo as palavras. Precisava impressioná-los com a importância do trabalho — mas achava que não devia ir dizendo sem mais rodeios que o Martelo do Éden era capaz de provocar terremotos.

 — Essas pessoas estão tentando chantagear o governador do estado. Afirmam que podem fazer com que aconteçam terremotos — ela deu de ombros. — Não estou dizendo que podem. Mas sei que não é impossível como parece, e não vou me arriscar de jeito nenhum garantindo que não podem. Seja como for, vocês precisam entender que esta é uma missão muitíssimo séria — ela fez uma última pausa antes de concluir. — E vamos ao trabalho.

 Todos foram se sentar.

 Judy saiu da sala e, caminhando bruscamente, dirigiu-se ao escritório do encarregado da agência San Francisco. O expediente começava oficialmente às oito e quinze, mas ela apostava como Brian Kincaid chegara mais cedo. Devia ter sabido que Judy convocara sua equipe para uma reunião às sete da manhã e ia querer saber o que estava acontecendo. Era exatamente o que ela ia lhe dizer.

 A secretária ainda não estava. Judy bateu na porta de dentro e entrou. Kincaid estava sentado na cadeira grande com o paletó vestido, dando a impressão de que não tinha nada a fazer. Em cima da escrivaninha só havia duas coisas: um bolinho de aveia com a marca de uma mordida e o saco de papel em que o bolinho fora trazido. Ele fumava um cigarro. Era proibido fumar nas repartições pertencentes ao FBI, mas Kincaid era o chefe, e não havia, portanto, ninguém que lhe dissesse para não fumar. Ele dirigiu um olhar hostil a Judy e disse:

 — Se eu lhe pedisse para me fazer uma xícara de café acho que você me chamaria de porco machista.

 Judy não ia fazer café para ele de jeito nenhum. Ele tomaria como sinal de que podia continuar atropelando à vontade. Mesmo assim, ela queria ser conciliadora.

 — Vou lhe conseguir um café — disse. Pegou o telefone dele e discou o número da secretária do grupo de Terrorismo Doméstico. — Rosa, você poderia dar um pulinho aqui na sala do encarregado e preparar um bule de café para o Sr. Kincaid?... Obrigada.

 Ele ainda parecia zangado. O gesto dela não contribuiu em nada para abrandá-lo. Provavelmente Kincaid achara que, ao conseguir o café sem fazê-lo com as próprias mãos, mostrara-se mais inteligente que ele. Ou seja, não posso vencer. Ela foi ao ponto.

 — Tenho mais de mil pistas para seguir com relação à voz da mulher na fita. Calculo que vamos receber ainda mais telefonemas sobre a foto de Ricky Granger. Não dá para avaliar tudo até sexta-feira com nove pessoas. Preciso de mais agentes.

 Ele deu uma risada.

 — Não vou designar vinte pessoas nessa missão sem sentido.

 Ela o ignorou.

 — Notifiquei o Centro de Informações e Operações Estratégicas — o CIOE era uma espécie de câmara de compensação de informações que funcionava em um escritório à prova de bombas na sede do FBI, o Hoover Building, em Washington, D.C. — Presumo que assim que as notícias chegarem ao quartel-general, eles vão mandar alguém para cá — nem que seja para ganhar o crédito pelo sucesso que possamos vir a ter.

 — Não falei para você notificar o CIOE.

 — Quero reunir a Força Tarefa Conjunta de Terrorismo para que possamos ter representantes aqui dos departamentos de polícia, Alfândega e do Serviço de Proteção Federal dos EUA, e toda essa gente vai precisar de um lugar para se sentar. E, a partir do pôr-do-sol da quinta-feira, planejo vigiar as localizações mais prováveis para o próximo terremoto.

 — Não vai haver coisa nenhuma!

 — Vou precisar de pessoal extra também para isso.

 — Pode esquecer.

 — Não há espaço grande o bastante aqui no edifício. Vamos ter que montar um centro de operações de emergência em alguma outra parte. Verifiquei as instalações do Presídio ontem à noite — o Presídio era uma base militar desativada próxima da i Golden Gate. O clube dos oficiais era habitável, mas um gambá se instalou lá por algum tempo e deixou como herança um fedor horrível. — Vou usar o salão de baile do clube dos oficiais.

 Kincaid levantou-se.

 — Você vai é para o inferno! — gritou.

 Judy suspirou. Não havia jeito de fazer o que era preciso sem transformar Brian Kincaid em um inimigo para o resto da vida.

 — Tenho que telefonar para o Sr. Honeymoon dentro de pouco tempo — disse ela. — Quer que eu diga que você está se recusando a me dar o efetivo de que preciso?

 Kincaid estava vermelho de ódio. Olhou para Judy como se quisesse puxar da arma e acabar com ela. Até que finalmente ele disse:

 — Sua carreira no FBI está encerrada, sabe disso?

 Provavelmente ele tinha razão, mas doía ouvi-lo dizer isso.

 — Eu nunca quis brigar com você, Brian — disse ela, tentando manter a voz baixa e razoável. — Mas você me sacaneou. Eu merecia ser promovida depois de ter conseguido a condenação dos irmãos Foong. Em vez disso, você promoveu o seu amiguinho e me deu uma missão sem a menor importância. Não devia ter feito isso. Não foi profissional.

 — Não me diga como...

 Ela o interrompeu.

 — Quando a missão sem importância passou a ser um grande caso, você a tirou de mim e acabou estragando tudo. Tudo de ruim que lhe aconteceu foi culpa inteiramente sua. Agora está ressentido. Bem, sei que seu orgulho foi ferido, assim como sei também que seus sentimentos foram magoados e só quero que entenda que estou me lixando para você.

 Ele a encarou espantado, com a boca semi-aberta.

 Judy dirigiu-se para a porta.

 — Vou falar com o Sr. Honeymoon às nove e meia — disse — Até lá gostaria de receber na minha equipe uma pessoa para ser a encarregada da chefia da logística e com autoridade para organizar o efetivo que preciso e estabelecer um posto de comando no clube dos oficiais. Caso contrário, direi a Honeymoon para telefonar para Washington. A bola está com você — ela saiu e bateu a porta.

 Judy sentia o entusiasmo que costuma vir depois de um gesto arrojado. Ia ter que lutar para dar cada passo, de modo que o melhor que tinha a fazer era lutar bem.

 Nunca mais poderia trabalhar com Kincaid de novo. O alto comando do Bureau ficaria sempre do lado do chefe numa situação como aquela. Judy podia considerar-se praticamente liquidada. Mas este caso era mais importante que sua carreira. Centenas de vidas estavam em jogo. Se pudesse impedir uma catástrofe e prender os terroristas, se demitiria orgulhosamente e mandaria todos para o inferno.

 A secretária do grupo de Terrorismo Doméstico estava na ante-sala de Kincaid, enchendo a máquina de café.

 — Obrigada, Rosa — agradeceu Judy, quando passou por ela. Quando voltou para o seu escritório, o telefone estava tocando. Atendeu: — Judy Maddox.

 — Aqui é John Truth.

 — Olá! — era estranho ouvir pelo telefone aquela voz, tão familiar no rádio.

 — Você começa a trabalhar cedo!

 — Estou em casa, mas meu produtor acaba de ligar para mim. Meu correio de voz na estação de rádio ficou entupido com telefonemas sobre a mulher do Martelo do Éden.

 Judy não devia falar com a mídia. Todos os contatos eram para ser feitos pela especialista do escritório, Madge Kelly, uma agente formada em jornalismo. Mas Truth não estava lhe pedindo uma declaração, fora ele quem telefonara para dar a informação. E Judy estava com muita pressa para dizer a Truth que ligasse para Madge.

 — Alguma coisa boa? — perguntou ela.

 — Pode apostar que sim. Tenho duas pessoas que se lembraram do nome do disco.

 — Não brinca! — Judy ficou entusiasmada.

 — Essa mulher lia poesia com música psicodélica ao fundo.

 — Não!

 — Sim! — Ele riu. — O disco era chamado Raining Fresh Daisies.

 Que parece ser também o nome da banda, ou "grupo", como costumavam chamar naquele tempo.

 Ele parecia ser uma pessoa delicada e afável, ao contrário da pessoa repugnante quando estava no ar. Talvez aquilo não passasse de encenação. Mas nunca se pode confiar em quem trabalha na mídia.

 — Nunca ouvi falar — disse Judy.

 — Nem eu. Antes do meu tempo, eu acho. E com certeza não temos esse disco na estação.

 — Será que algum dos seus informantes indicou um número de catálogo, ou pelo menos o nome constante da etiqueta?

 — Nada. Meu produtor telefonou para ambos, mas não tinham o disco, só se lembravam.

 — Droga. Acho que temos que telefonar para todas as companhias de discos. Só não sei se guardam registros tão antigos...

 — O disco pode ter sido produzido por uma etiqueta independente que não existe mais — a mim me parece uma coisa desse gênero. Quer saber o que eu faria?

 — Claro.

 — A Haight-Ashbury está cheia de discos de segunda mão e o pessoal que atende lá vive numa bolha onde o tempo não passa. Eu iria ver se não encontrava o tal disco lá.

 — Boa idéia — obrigada.

 — De nada. Agora, como vai indo a investigação?

 — Estamos fazendo algum progresso. Posso pedir à nossa assessora de imprensa que ligue para você mais tarde com os detalhes?

 — Oh, deixa disso! Acabei de prestar-lhe um favor, não foi?

 — Sem dúvida nenhuma e eu gostaria de poder dar-lhe uma entrevista, mas os agentes do FBI não são autorizados a falar diretamente com a mídia. Sinto muito, sinceramente.

 O tom de voz dele passou a ser agressivo.

 — É esse o agradecimento que você dá aos nossos ouvintes por telefonar dando informações?

 Uma idéia assustadora veio à cabeça de Judy.

 — Você está gravando esta conversa?

 — Você não se incomoda, pois não?

 Judy desligou. Merda. Caíra numa armadilha. Falar com a mídia sem autorização era o que o FBI chamava de "questão grave", significando que o agente podia ser despedido por isso. Se John Truth tocasse a fita daquela conversa no ar, Judy estaria encrencada. Podia dizer que tinha necessidade urgente da informação que Truth oferecia, e um chefe decente provavelmente se limitaria a repreendê-la, mas claro que Kincaid ia deitar e rolar se tivesse oportunidade.

 Com os diabos, Judy, você já está tão encrencada que isso não fará diferença.

 Raja Khan aproximou-se de sua mesa com uma folha de papel na mão.

 — Quer dar uma olhada antes que seja expedido? É o memorando para a polícia dizendo como reconhecer um vibrador sísmico.

 Tinha sido rápido.

 — Por que levou tanto tempo? — caçoou ela.

 — Tive que ver como se escrevia "sísmico".

 Ela sorriu e leu rapidamente o que ele escrevera. Estava ótimo.

 — Excelente. Pode despachar — ela devolveu o papel. Agora tenho outro trabalho para você. Estamos procurando um disco chamado Raining Fresh Daisies, dos anos 60.

 — Não brinca. Ela sorriu.

 — É, tem um toque meio hippie. A voz do disco é da mulher do Martelo do Éden, e minha esperança é de conseguirmos saber o nome dela. Se a etiqueta ainda existir, pode ser que consigamos inclusive o último endereço conhecido. Quero que você entre em contato com as grandes gravadoras e também com as lojas que vendem discos raros.

 

 Ele olhou o relógio.

 — Ainda não são nove horas, mas posso começar com a Costa Leste.

 — Vá em frente.

 Raja foi para sua mesa. Judy pegou o telefone e discou o número do quartel- general da polícia.

 — Tenente Maddox, por favor — um momento mais tarde ele atendeu. Ela disse: — Bo, sou eu.

 — Oi, Judy.

 — Concentre-se no final dos anos 60, quando você conhecia músicas hippies.

 — Eu teria que ir mais longe. Início dos anos 60, final dos 50, esta é a minha era.

 — Que pena. Acho que a mulher do Martelo do Éden gravou um disco com uma banda chamada Raining Fresh Daisies.

 — Meus grupos favoritos tinham nomes como Frankie Rock e os Rockabillies. Nunca me entusiasmei muito com bandas que tivessem flores nos nomes. Sinto muito, Judy. Nunca ouvi falar desse Raining Fresh Daisies.

 — Bem valeu a tentativa.

 — Escuta, gostei de você ter ligado. Estive pensando no seu cara, o tal de Ricky Granger — ele é o homem por trás da mulher, certo?

 — É o que pensamos.

 — Sabe de uma coisa? Ele é tão cuidadoso, gosta tanto de planejar, que deve estar morrendo de vontade de saber o que você está a fim de fazer.

 — Faz sentido.

 — Pois eu acho que o FBI provavelmente já falou com esse sujeito.

 — É mesmo? — se Bo estivesse certo, dava para ter mais esperanças. Há um tipo de criminoso que se insinua na investigação, aproximando-se da polícia como testemunha ou o vizinho simpático que oferece café e depois tenta fazer amizade com os policiais e bater papo com eles sobre o andamento do caso. — Mas Granger parece ser também ultra-cuidadoso.

 — Provavelmente está havendo uma guerra dentro dele , entre cautela e curiosidade. Mas olha só seu comportamento é atrevido como o diabo. Meu palpite é que a curiosidade sairá vencendo.

 Judy balançou a cabeça, convencida. Valia a pena ouvir os frutos da intuição de Bo: vinham de trinta anos de experiência na polícia.

 — Vou estudar cada entrevista deste caso.

 — Procure alguma coisa de diferente. Esse sujeito nunca faz a coisa normal. De repente vai se disfarçar de vidente, oferecendo-se para adivinhar onde irá acontecer o próximo terremoto, ou algo semelhante.

 Ele é imaginativo.

 — OK. Mais alguma coisa?

 — O que você quer comer hoje de noite?

 — Provavelmente não estarei em casa.

 — Não exagera.

 — Bo, tenho três dias para pegar essa gente. Se falhar, centenas de pessoas podem morrer! Não estou pensando em jantar.

 — Se você se estafar, vai perder a pista crucial. Tire folgas, almoce direito, durma quando precisar. — Como você sempre fez, não é? Ele riu. — Boa sorte.

 — Tchau — ela desligou franzindo a testa. Tinha que rever todas as entrevistas que a equipe de Marvin fizera com o pessoal da Campanha da Califórnia Verde, mais as anotações resultantes da blitz em Los Alamos e o que mais houvesse em arquivo. Tudo deveria estar armazenado na memória da rede de computadores do escritório.

 Ela digitou o código para chamar a tela do menu. Enquanto examinava o material, percebeu que era coisa demais para rever pessoalmente. Tinham sido entrevistados todos os moradores de Silver River Valley, mais de uma centena de pessoas. Quando conseguisse reforço de pessoal, designaria uma equipe pequena para fazer esse serviço. Anotou esta decisão.

 E o que mais? Tinha que providenciar vigilância nos locais onde era maior a probabilidade de terremoto. Michael dissera que podia fazer uma lista. Ficou contente por ter um motivo para telefonar para ele. Discou seu número.

 Michael pareceu satisfeito ao ouvir a voz de Judy.

 — Estou ansioso para chegar a hora do nosso encontro hoje à noite.

 Droga — esqueci por completo esse encontro.

 — Fui designada novamente para o caso do Martelo do Éden — disse ela.

 — Isso quer dizer que não vai poder sair de noite? — ele pareceu frustrado.

 Ela certamente não podia nem pensar em jantar e cinema. — Gostaria de ver você, mas não tenho muito tempo. Poderíamos nos encontrar para um drinque, talvez?

 — Claro.

 — Sinto muito, sinceramente, Michael, mas o caso está progredindo muito depressa. Telefonei para falar daquela lista que você prometeu, de locais prováveis para a ocorrência de terremotos. Conseguiu preparar?

 — Não. Você estava tão ansiosa, com medo da informação vazar, que me fez pensar que o simples exercício podia ser perigoso.

 — Agora eu preciso saber.

 — OK, vou examinar os dados.

 — Pode trazer a lista à noite?

 — Claro. No Morton's, às seis?

 — Vejo você lá.

 — Escuta...

 — Sim?

 — Estou realmente satisfeito por ver você no caso de novo. É uma pena que não possamos jantar juntos, mas me sinto mais seguro sabendo que é você quem está atrás dos bandidos. Palavra.

 — Obrigada — ela desligou, fazendo votos para que merecesse a confiança dele. Restavam três dias.

 No meio da tarde o centro de operações de emergência estava montado e funcionando.

 O clube dos oficiais lembrava uma vila espanhola. Por dentro, o que se via era uma sombria e melancólica imitação de um clube campestre, com lambris baratos, murais de má qualidade e luminárias horrendas. O cheiro do gambá não desaparecera. O vasto salão de baile tinha sido inteiramente transformado. O posto de comando propriamente dito ficava num canto; era uma mesa com lugares para os chefes dos principais órgãos envolvidos na administração da crise, incluindo-se aí a polícia de San Francisco, bombeiros e pessoal de saúde, a chefia do serviço de emergência do gabinete do prefeito e um representante do governador. Os peritos do quartel-general, que naquele instante estavam voando num jato do FBI de Washington para San Francisco, também se sentariam ali.

 Em torno do salão, tinham sido dispostos grupos de mesas para as diferentes equipes que trabalhariam no caso: informações e investigação, a parte principal do trabalho; negociação e armas especiais, as SWAT, que seriam chamadas caso fossem feitos reféns; um grupo de administração e apoio técnico que cresceria caso a crise se agravasse; uma assessoria legal para expedir rápidos mandados de busca ou de prisão, assim como autorizações judiciais para grampear telefones e, finalmente, uma equipe especializada em entrar em qualquer cena de crime imediatamente após o acontecimento, a fim de realizar a coleta de provas. Os laptops que podiam ser vistos em cima de cada mesa estavam conectados à rede local. O FBI usara durante muito tempo um sistema de controle de informações com base de papel que se chamava Rapid Start, mas agora desenvolvera uma versão computadorizada usando o programa Access, da Microsoft. O papel, contudo, não desaparecera. Quadros murais cobriam dois dos lados do salão, destinando-se a: indícios, acontecimentos, indivíduos, exigências e reféns. Os dados e indícios principais seriam escritos ali para que todos pudessem vê-los a um olhar.

 Naquele exato momento o quadro de indivíduos tinha um único nome — Richard Granger — e duas fotos. O de indícios tinha a foto de um vibrador sísmico.

 O salão era grande o bastante para umas duzentas pessoas, mas por ora não tinha mais que umas quarenta. A maioria se concentrava em torno da mesa do pessoal de investigação e informações, falando em telefones, digitando teclados e lendo arquivos nas telas dos monitores. Judy os dividira em equipes, cada uma com um líder que acompanhava o trabalho dos demais, de modo que pudesse saber o andamento da investigação falando com três pessoas.

 O ambiente era de urgência controlada. Todo mundo estava calmo, mas intensamente concentrado no trabalho. Ninguém parava para um café ou ficava batendo papo em torno da copiadora, tampouco saía para fumar um cigarrinho lá fora. Mais tarde, se a crise se agravasse, Judy sabia que a atmosfera iria mudar; todo mundo ia gritar ao telefone, o quociente de expletivos aumentaria em progressão geométrica, as rixas se repetiriam e seria sua responsabilidade manter a tampa do caldeirão fechada.

 Lembrando da dica de Bo, puxou uma cadeira ao lado de Carl Theobald, um agente jovem e brilhante, que vestia uma elegante camisa azul-marinho e liderava a equipe que revia os arquivos de Marvin Hayes.

 — Alguma coisa? — perguntou ela.

 Ele sacudiu a cabeça.

 — Não sabemos exatamente o que estamos procurando, mas, seja o que for, ainda não encontramos.

 Judy balançou a cabeça, em sinal de aprovação. Tinha dado uma tarefa vaga àquela equipe, mas não havia alternativa. Eles tinham que procurar alguma coisa fora do comum. Dependia praticamente da intuição de cada agente. Tem gente capaz de farejar fraude até num computador.

 — Temos certeza de que tudo está arquivado? — indagou ela.

 Carl deu de ombros.

 — Devia estar.

 — Veja se eles guardaram algum documento em papel.

 — Não deveriam...

 — Mas todo mundo faz.

 — OK.

 Rosa chamou-a para atender ao telefone no posto de comando. Era Michael. Ela sorria quando pegou o aparelho.

 — Oi.

 — Oi. Tenho um problema hoje à noite. Não posso me encontrar com você.

 Ela ficou chocada com o tom de voz — lacônico e inamistoso. Nos últimos dias ele tinha se mostrado cordial e afetuoso. Mas este era o Michael original, aquele que não abrira a porta para ela e a mandara marcar uma entrevista.

 — O que é? — perguntou Judy.

 — Surgiu uma coisa. Desculpe cancelar o encontro.

 — Michael, qual é o problema?

 — Estou meio apressado. Telefono depois.

 — OK — assentiu ela.

 Ele desligou.

 Judy recolocou o telefone no lugar, sentindo-se magoada. — E agora, que será que está acontecendo? — disse para si própria. Logo agora que eu começava a gostar do sujeito. O que há com ele? Por que não consegue ficar como estava na noite de domingo? Ou mesmo quando me telefonou hoje de manhã?

 Carl Theobald interrompeu seus pensamentos. Ele parecia perturbado.

 — Marvin Hayes está me dando problema — disse. — Eles têm uns registros em papel, mas quando eu disse que precisava vê-los, me mandou para o inferno.

 — Não se preocupe, Carl. Essas coisas são mandadas pelo céu para nos ensinar paciência e tolerância. É simples — vou capar esse cara.

 Os agentes que estavam por perto ouviram e caíram na risada.

 — É o que você quer dizer quando fala em paciência e tolerância? — perguntou Carl com um sorriso. — Preciso me lembrar disso no futuro.

 — Venha comigo, vou lhe mostrar.

 Eles saíram e entraram no carro dela. Em quinze minutos estavam chegando ao Federal Building na avenida Golden Gate. Enquanto subiam no elevador, Judy foi pensando em como deveria lidar com Marvin. Devia ser agressiva ou mostrar-se conciliatória? Uma atitude de cooperação só dá certo se o outro lado estiver disposto. Com Marvin ela provavelmente ultrapassara este ponto para sempre.

 Hesitou do lado de fora da porta da sala do esquadrão do Crime Organizado. OK, serei Xena, a princesa guerreira. Judy entrou, seguida por Carl.

 Marvin estava ao telefone, rindo, contando uma piada.

 — Aí o homem do bar disse para o cara, puxa vida, tem texugo aí na sala dos fundos que dá a melhor chupada...

 Judy abaixou-se sobre a mesa dele e perguntou, em voz alta:

 — Que babaquice é essa que você está querendo arrumar para cima do Carl?

 — Estão me interrompendo aqui, Joe — disse ele. — Daqui a pouco eu ligo — ele desligou. — O que posso fazer por você, Judy?

 Ela se abaixou mais, encarando-o frente a frente. — Pára de enrolar.

 — O que é que há com você? — indagou ele, com cara de ofendido. – Que negócio é esse de querer examinar meus registros como se eu tivesse cometido algum erro?

 Ele não tinha obrigatoriamente cometido um erro. Quando o criminoso se apresenta à equipe de investigadores sob o disfarce de circunstante ou testemunha, geralmente tenta se assegurar de que não vão desconfiar dele. Não é culpa dos investigadores, mas a coisa toda é destinada a fazer com que se sintam idiotas.

 — Acho que você pode ter falado com o criminoso — disse ela. – Onde estão os registros em papel?

 Ele alisou a gravata amarela.

 — Tudo o que temos são algumas anotações feitas na entrevista coletiva que não chegaram a ser digitadas.

 — Mostra.

 Ele apontou uma caixa em cima de uma mesa lateral, encostada na parede.

 — Sirva-se.

 Ela abriu o arquivo. Em cima estava o recibo do aluguel de um pequeno sistema de amplificação com microfones.

 — Você não vai encontrar porra nenhuma — disse Marvin.

 Marvin podia ter razão, mas ela precisava tentar e era burrice dele obstruir o seu trabalho. Um homem mais esperto diria; "Ei, se deixei passar alguma coisa, espero que você encontre." Todo mundo comete erros. Mas Marvin agora estava demasiadamente na defensiva para ser cortês ou elegante. Só queria provar que Judy estava errada.

 E seria embaraçoso se ela estivesse mesmo errada. Folheou rapidamente os papéis. Havia alguns faxes de jornais pedindo detalhes da entrevista coletiva, uma anotação sobre quantas cadeiras seriam necessárias e uma lista de presença, um formulário onde tinham pedido que os jornalistas que haviam comparecido escrevessem seus nomes e o das publicações ou emissoras que representavam. Judy correu os olhos pela lista.

 — Que diabo é isto aqui? — perguntou, de repente. Florence Shoebury, Eisenhower Junior High?

 — Ela queria cobrir a entrevista para o jornal da escola disse Marvin.

 — O que deveríamos ter feito, mandá-la à merda?

 — Você verificou a informação que ela deu?

 — Era uma criança! — Estava sozinha?

 — O pai estava com ela.

 Havia um cartão de visitas grampeado no formulário.

 — Peter Shoebury, de Watkins, Colefax e Brown. Você o investigou?

 Marvin hesitou por um longo momento, percebendo que cometera um erro.

 — Não — disse finalmente. — Brian decidiu deixar que os dois entrassem e depois não me preocupei mais.

 Judy entregou o formulário com o cartão a Carl. — Ligue para este sujeito imediatamente — disse.

 Carl sentou na mesa mais próxima e pegou o telefone. Marvin disse: — De qualquer maneira, o que lhe dá tanta certeza de que conversamos com o suspeito?

 — Sugestão do meu pai. — Na mesma hora em que as palavras saíram da sua boca, Judy percebeu que errara.

 Marvin sorriu, irônico.

 — Oh, quer dizer então que o seu papai acha que o criminoso falou comigo. É este o nível a que chegamos? Você está me investigando por causa de um palpite do seu papai?

 — Não enche, Marvin. Meu pai estava pondo bandido na cadeia enquanto você ainda fazia xixi na cama.

 — Onde você está querendo chegar com isto, afinal? Quer me pegar numa armadilha? Está procurando alguém que possa culpar para quando fracassar?

 — Grande idéia — disse ela. — Por que não pensei nisso antes?

 Carl desligou o telefone e disse:

 — Judy.

 — Hein?

 — Peter Shoebury nunca esteve neste prédio e não tem filha. Mas foi assaltado na manhã de sábado a duas quadras daqui e teve a carteira roubada. Continha seus cartões de visita.

 Houve um momento de silêncio, até que Marvin exclamou:

 — Puta que pariu.

 Judy ignorou a vergonha dele, entusiasmada demais com a notícia. Aquilo podia ser uma fonte totalmente nova de informações.

 — Acho que ele não devia lembrar a imagem que recebemos do Texas.

 — Nem um pouco — disse Marvin. — Nem barba, nem chapéu. Óculos grandes e o cabelo comprido preso num rabo-de-cavalo.

 — O que provavelmente é outro disfarce. E o que me diz do seu corpo, essas coisas?

 — Alto, magro.

 — Cabelo escuro, olhos escuros, cerca de cinqüenta anos?

 Judy quase sentiu pena de Marvin. — Era Ricky Granger, não era?

 Marvin olhou para o chão como se quisesse que ele se abrisse e o engolisse.

 — Acho que você tem razão.

 — Eu queria que você providenciasse um novo E-fit, por favor.

 Ele balançou a cabeça, ainda sem olhar para ela. — Claro.

 — Agora, o que me diz de Florence Shoebury?

 — Bem, ela meio que nos desarmou. Quer dizer, que terrorista é esse que vai a lugares perigosos com a própria filha?

 — Um que seja completamente impiedoso. Como era a aparência dela?

 — Uma menina branca, com uns doze, treze anos. Cabelo escuro, olhos escuros, constituição magra. Bonita.

 — Melhor fazer um E-fit dela também. Acha que é mesmo filha dele?

 — Oh, sim. Com certeza. Foi o que eles pareciam ser. Ela não mostrava sinais de estar sendo coagida — se é a isto que você se refere.

 — É, sim. OK, vou presumir, por ora, que sejam mesmo pai e filha – ela virou- se para Carl. — Vamos cair fora.

 Depois que saíram, Carl virou-se para ela no corredor e comentou:

 — Puxa vida, você realmente quase arranca as bolas do cara. Judy estava entusiasmada.

 — Mas agora temos um outro suspeito — a menina.

 — Exato. Só espero que você nunca me pegue cometendo um erro.

 Judy parou e olhou para ele.

 — Não foi o erro, Carl. Qualquer um pode errar. Mas ele estava disposto a obstruir a investigação para se defender. Foi aí que realmente errou. E é por isso que parece agora ser um tamanho panaca. Se você cometer um erro, admita.

 — Tudo bem — concordou Carl. — Mas acho que vou ficar com as pernas cruzadas também.

 

 Naquela noite mesmo, Judy recebeu mais tarde a primeira edição do San Francisco Chronicle com duas novidades: os retratos eletrônicos, ou seja, o E-fit de Florence Shoebury e o novo E-fit de Ricky Granger disfarçado de Peter Shoebury. Em princípio, ela se limitara a dar uma olhada rápida nas duas imagens antes de pedir a Madge Kelly que as distribuísse aos jornais e estações de televisão. Agora, estudando-as à luz do abajur que tinha sobre sua mesa, ficou chocada com a semelhança existente entre Granger e Florence. São pai e filha, tem de ser. O que acontecerá a ela se eu puser seu pai na cadeia? Bocejou e esfregou os olhos. O conselho do pai veio à sua lembrança. "Tire folgas, almoce direito, durma quando precisar." Era hora de ir para casa. O turno da noite já tinha chegado. Enquanto dirigia até sua casa, foi revendo o dia e o que conseguira realizar. Parada diante de um sinal, contemplando duas fileiras de postes de iluminação acesos que convergiam para o infinito ao longo do Geary Boulevard, deu-se conta de que Michael não lhe enviara o fax com a lista prometida dos locais onde seria mais provável a ocorrência de terremotos.

 Discou o número da casa dele no telefone do carro, mas não houve resposta. Sem saber por quê, aquilo a incomodou. Fez outra tentativa no próximo sinal luminoso e deu ocupado.

 Ligou então para a mesa do FBI e pediu que verificassem com a Pacific Bell se havia mesmo vozes na linha. A telefonista chamou de volta e disse que não. O telefone fora tirado do gancho.

 Então ele estava em casa, mas não atendia ao telefone.

 Ele lhe parecera estranho quando telefonara para cancelar o encontro. Michael era assim: podia ser encantador e bondoso e depois mudar abruptamente e tornar-se uma pessoa difícil e arrogante. Mas por que seu telefone estaria desligado?

 Judy sentiu-se inquieta.

 Checou o relógio do painel. Faltava pouco para as onze horas. Restavam dois dias. Não posso perder tempo.

 Virou o carro e tocou para Berkeley.

 Chegou na rua Euclid às onze e quinze. Havia luzes no apartamento de Michael. Do lado de fora, um velho Subaru cor de laranja. Já vira aquele carro antes mas não sabia de quem era. Estacionou atrás dele e tocou a campainha de Michael. Não houve resposta.

 Judy ficou perturbada. Michael dispunha de informações cruciais. Fizera-lhe naquele dia uma pergunta chave, e ele cancelara abruptamente o encontro em que lhe entregaria o que pedira e depois tornara-se incomunicável.

 Era para desconfiar.

 Perguntou-se o que deveria fazer. Talvez devesse pedir reforço policial e invadir o apartamento. Ele podia estar amarrado ou morto lá dentro.

 Voltou ao seu carro e pegou o rádio, mas hesitou. Quando um homem desliga o telefone às onze horas da noite pode significar uma porção de coisas. Ele podia querer dormir. Podia estar transando com alguém, embora parecesse demasiado interessado em Judy para galinhar — além de não ser do tipo que dormia com uma mulher diferente a cada noite, na opinião dela.

 Enquanto vacilava, uma mulher jovem segurando uma pasta aproximou-se do edifício. Pelo jeito, era uma professora assistente voltando para casa depois de um serão no laboratório. Parou diante da porta e remexeu na pasta procurando as chaves.

 Impulsivamente, Judy saltou do carro e atravessou rapidamente o gramado.

 — Boa noite — disse, mostrando seu crachá. — Agente especial Judy Maddox do FBI. Preciso de acesso a este prédio.

 — Alguma coisa de errado? — perguntou a mulher, ansiosa.

 — Espero que não. Se você for para o seu apartamento e trancar a porta, estará perfeitamente segura.

 As duas entraram juntas. A mulher ficou num apartamento térreo e Judy subiu a escada. Bateu com os nós dos dedos na porta de Michael. Não houve resposta.

 O que estaria acontecendo?

 Ele estava em casa. Devia ter ouvido o toque da campainha e a batida na porta. Sabia que nenhum visitante casual seria tão persistente àquela hora da noite. Alguma coisa estava errada, tinha certeza. Bateu de novo, três vezes, com força. Aí encostou uma orelha na porta e prestou atenção. Ouviu um grito. Com o grito ela se decidiu. Deu um passo para trás e chutou a porta com toda a força que pôde. Estava de mocassins, de modo que machucou a parte de dentro do pé direito, mas a madeira em torno da fechadura lascou. Ainda bem que a porta não era de aço. A fechadura parecia prestes a ceder. Ela correu, mas antes que pudesse bater com o ombro na porta, ela se abriu. Judy sacou a arma.

 — FBI! — gritou. — Largue a arma e levante as mãos! — houve outro grito. Pareceu um grito de mulher, ela percebeu num cantinho da sua mente, mas não teve tempo de pensar no que poderia significar. Entrou na pequena saleta. A porta do quarto de dormir de Michael estava aberta. Judy abaixou-se, apoiando o peso do corpo num joelho, estendeu os braços, fazendo pontaria. O que viu deixou-a atordoada. Michael estava na cama, nu, coberto de suor, deitado em cima de uma mulher magra de cabelo vermelho, ofegante. Era a mulher dele, percebeu Judy. Estavam fazendo amor. Ambos olharam para Judy apavorados e incrédulos. Michael então a reconheceu e disse:

 — Judy? Que diabos...?

 Ela fechou os olhos. Nunca se sentira tão idiota em toda a sua vida.

 — Oh, que merda — disse. — Desculpe. Oh, que merda.

 

 Quarta-feira cedo Priest parou ao lado do rio, contemplando o modo como o céu da manhã se refletia na superfície irregular do espelho d'água, maravilhado com a luminosidade do azul e do branco na luz da madrugada. Todos os outros dormiam. Spirit sentou- se ao seu lado, arfando silenciosamente, esperando que alguma coisa acontecesse. Era um momento tranqüilo, mas a alma de Priest não estava em paz.

 Faltavam apenas dois dias para se esgotar o prazo que dera, e o governador Robson ainda não se pronunciara.

 Era de enlouquecer. Ele não queria desencadear outro terremoto. Este teria que ser mais espetacular, destruir ruas e pontes, derrubar edifícios. Morreria gente.

 Priest não era como Melanie, que ansiava por vingar-se do mundo. Só queria ser deixado em paz. Estava disposto a fazer qualquer coisa para salvar a comunidade, mas sabia que seria mais inteligente se pudesse evitar mortes. Depois que isso acabasse, e o projeto para inundar o vale fosse cancelado, ele e sua comunidade queriam viver em paz. Era o aspecto mais importante. E as chances para permanecerem onde estavam agora seriam maiores se pudessem vencer sem matar cidadãos inocentes. O que fizeram até então podia ser esquecido logo. Sairia das páginas e ninguém ia querer saber o que acontecera com os malucos que disseram ser capazes de desencadear terremotos.

 Enquanto devaneava, Star apareceu. Despiu o robe púrpura e entrou na corrente de água fria para se lavar. Priest contemplou gulosamente o corpo voluptuoso, muito conhecido seu, mas ainda desejável. Não compartilhara sua cama com ninguém na noite anterior. Star continuava passando as noites com Bones e Melanie estava com o marido em Berkeley. E assim o sedutor, o garanhão, o grande espada dorme sozinho.

 Enquanto ela se enxugava, Priest disse:

 — Vamos arranjar um jornal. Quero saber se o governador disse alguma coisa ontem à noite.

 Eles se vestiram e foram, de carro, até um posto de gasolina. Priest encheu o tanque do `Cuda enquanto Star foi pegar o San Francisco Chronicle.

 Ela voltou branca.

 — Olha — disse, mostrando a primeira página.

 Havia uma foto de uma jovem que lhe pareceu familiar. Depois de um momento percebeu horrorizado que se tratava de Flower. Atônito, ele pegou o jornal.

 Ao lado de Flower, estava a foto dele próprio.

 Ambas eram imagens geradas por computador. A de Priest era baseada na sua aparência na entrevista coletiva do FBI, quando se disfarçara de Peter Shoebury, com o cabelo preso atrás e de óculos grandes. Não acreditava que alguém fosse reconhecê-lo com base naquela imagem. Flower não fora disfarçada. A imagem dela feita pelo computador era como um retrato mal desenhado — não era ela, mas parecia. Priest gelou. Não estava habituado a sentir medo. Era um sujeito atrevido que adorava arriscar-se. Mas aquilo não era com ele. Tinha posto a filha em perigo.

 Star exclamou, furiosa:

 — Por que diabos você teve que ir àquela entrevista coletiva?

 — Eu tinha que saber o que eles estavam pensando.

 — Foi uma burrice!

 — Eu sempre fui atrevido.

 — Eu sei — a voz de Star abrandou-se, e ela acariciou-lhe o rosto. — Se você fosse tímido não seria o homem que eu amo.

 Um mês antes não teria importância: ninguém fora da comunidade conhecia Flower, e ninguém lá dentro lia jornais.

 Mas ela fora secretamente a Silver City para conhecer rapazes; tinha roubado um pôster de uma loja; fora presa e passara uma noite sob custódia. As pessoas que a tinham conhecido se lembrariam dela? E, se lembrassem, reconheceriam a foto? O policial encarregado dos menores podia se lembrar dela, mas por sorte ainda estava de férias nas Bahamas, onde seria improvável que fosse ler o San Francisco Chronicle.

 E a mulher em cuja casa ela passara a noite? Uma professora, que também era irmã do xerife, Priest se lembrava. Conseguiu lembrar também o nome dela: Srta. Waterlow. Presumivelmente via centenas de garotas como Flower, mas podia se lembrar dos rostos delas. Por outro lado, talvez tivesse má memória. Talvez tivesse saído de férias também. Talvez não tivesse lido o Chronicle de hoje.

 E talvez Priest estivesse liquidado.

 Não havia nada que pudesse fazer. Se a professora visse o retrato e reconhecesse Flower, chamaria o FBI, centenas de agentes cairiam sobre a comunidade e tudo estaria acabado.

 Ele fixou os olhos no jornal enquanto Star lia o texto.

 — Se você não fosse a mãe dela, conseguiria reconhecê-la? Star sacudiu a cabeça.

 — Acho que não.

 — Eu também não. Mas queria ter certeza.

 — Eu não sabia que os federais eram assim tão espertos disse Star.

 — Alguns são, outros não. É essa garota asiática que me preocupa. Judy Maddox — Priest relembrou as imagens dela na televisão, abrindo caminho por entre uma multidão hostil com o ar determinado de um buldogue nas feições delicadas. Tenho um mau pressentimento em relação a ela – disse ele. Um péssimo pressentimento. Ela não pára de surgir com pistas — primeiro o vibrador sísmico, depois o meu retrato em Shiloh, agora Flower. Talvez seja esta a razão pela qual o governador não tenha dito nada. Ela fez com que ele tivesse esperanças de que seremos apanhados. Há alguma declaração do governador no jornal?

 — Não. De acordo com esta matéria, muita gente está dizendo que Robson devia ceder e negociar com o Martelo do Éden, mas ele se recusa a comentar.

 — Isso não adianta — comentou Priest. — Tenho que dar um jeito de falar com ele.

 

 Quando Judy acordou não conseguiu se lembrar por que motivo estaria se sentindo tão mal. Depois toda a horrível cena voltou-lhe à lembrança, numa onda de pavor.

 Na véspera ela ficara paralisada com o vexame. Tinha resmungado um pedido de desculpas para Michael e saído correndo do edifício, morrendo de vergonha. Mas na manhã do dia seguinte sua mortificação tinha sido substituída por um sentimento diferente. Agora sentia-se apenas triste. Chegara a pensar que Michael podia vir a tornar-se parte da sua vida. Estava ansiosa por vir a conhecê-lo, gostar mais dele, fazer amor com ele. Imaginara que ele se importava com ela. Mas o relacionamento se desmanchara de uma hora para outra.

 Sentou-se na cama e contemplou a coleção de bonecas d'água vietnamitas que herdara da mãe, arrumadas em uma prateleira fixada acima da cômoda. Nunca tinha visto um espetáculo daquelas bonecas — nunca fora ao Vietnã — mas sua mãe lhe contara que os operadores mergulhavam até a cintura numa espécie de tanque, por trás de um pano de fundo, e usavam a superfície da água como palco. Por centenas de anos aqueles brinquedos de madeira pintada tinham sido usados para contar histórias sábias e engraçadas. E sempre lembravam a Judy da tranqüilidade da mãe. O que diria ela agora? Judy podia ouvir sua voz, baixa e calma: "Um erro é um erro. Outro erro é normal. Apenas o mesmo erro duas vezes é que faz de você uma tola."

 A noite anterior tinha sido um erro. Michael tinha sido um erro. Precisava deixar aquilo para trás. Tinha dois dias para impedir um terremoto. Isto é que era realmente importante.

 No noticiário da televisão, as pessoas indagavam se o Martelo do Éden era realmente capaz de causar um terremoto. Quem acreditava nisso formara um grupo de pressão para instar o governador Robson a desistir. Mas, enquanto se vestia, a cabeça de Judy insistia em retornar a Michael. Quisera poder conversar com sua mãe a esse respeito. Ouviu Bo se espreguiçando, mas aquilo não era o tipo de coisa que se conta ao pai. Em vez de fazer o café da manhã, telefonou para a amiga Virgínia.

 — Estou precisando me abrir — disse ela.

 — Já tomou café?

 Encontraram-se num café perto do Presídio. Ginny era uma loura baixinha, engraçada e sincera. Sempre dizia a Judy exatamente o que pensava. Judy pediu dois croissants de chocolate para se sentir melhor e depois relatou o que acontecera na noite anterior. Quando chegou na parte em que irrompera no quarto de arma na mão e encontrara os dois transando, Ginny quase caiu no chão de tanto rir.

 — Desculpe — disse ela, engasgando-se com um pedaço de torrada.

 — Acho que é engraçado mesmo — disse Judy, sorrindo. Mas não foi o que eu achei ontem, posso lhe garantir.

 Ginny tossiu e engoliu.

 — Não quis ser má — disse, quando se recuperou. — Sei que não deve ter sido engraçado na hora. O que ele fez foi realmente vulgar e sórdido, sair com você e transar com a mulher.

 — Para mim, isto prova que ele não acabou com ela — disse Judy. – E que, portanto, não está preparado para um novo relacionamento.

 Ginny fez uma cara de quem duvidava.

 — Não assino embaixo.

 — Você acha que foi um adeus, tipo a última vez em homenagem aos velhos tempos?

 — Talvez mais simples. Sabe como é, os homens quase nunca dizem não a uma trepada que lhes é oferecida. Tudo indica que ele vem vivendo uma vida de monge desde que ela o largou. Seus hormônios provavelmente o estavam deixando enlouquecido. Você diria que ela é atraente?

 — Muito sexy.

 — Sendo assim, se ela aparecesse com um suéter apertado e começasse a se exibir, ele provavelmente não conseguiria se controlar e teria uma ereção. E uma vez que isso acontece, o cérebro do homem desliga e o piloto automático do seu pinto assume o controle.

 — Você acha mesmo?

 — Olha, não conheço o seu Michael, mas já conheci alguns homens, bons e ruins, e esta é a minha avaliação.

 — O que você faria?

 — Eu falaria com ele. Perguntava por que fez o que fez. Para ver o que ele diz. Assim eu veria se podia ou não acreditar nele. Se viesse com papo furado e mentiras, eu o esqueceria. Mas se me parecesse sincero, eu tentaria descobrir qual o sentido de todo o incidente.

 — Tenho que telefonar para ele de qualquer modo — disse Judy. – Ainda não me mandou a lista que pedi.

 — Pois telefone. Consiga a lista. Depois pergunte a ele o que pensa que está fazendo. Você está se sentindo envergonhada, mas ele tem também do que se desculpar.

 — Acho que você tem razão.

 Ainda não eram oito horas mas elas estavam com pressa para ir trabalhar. Judy pagou a conta e as duas saíram para os respectivos carros.

 — Caramba! — exclamou Judy. — Estou começando a me sentir melhor a respeito disso tudo. Muito obrigada.

 Ginny deu de ombros.

 — Para que servem as amigas? Depois me conta o que ele disse.

 Judy entrou no carro e discou o número de Michael. Teve medo dele estar dormindo e acabar falando com a mulher do lado, na cama. Sua voz, contudo, soou alerta, como se já estivesse acordado há algum tempo. — Desculpe pela porta — disse ela.

 — Por que você fez aquilo? — ele pareceu mais curioso do que zangado.

 — Eu não entendia por que você não abria a porta. Aí então ouvi um grito. Achei que você podia estar metido em alguma encrenca.

 — Por que você veio tão tarde?

 — Você não me mandou a lista dos locais de terremoto.

 — Ih, é mesmo! A lista está em cima da minha mesa. Eu me esqueci. Vou mandar agora por fax.

 — Obrigada — ela deu a ele o número do fax do novo centro de operações. — Michael, tem uma coisa que eu preciso perguntar a você — ela respirou fundo. Fazer aquela pergunta era mais difícil do que antecipara. Não era nenhuma donzela pudica, mas também não era tão despachada quanto Ginny. Engoliu em seco e disse:

 — Você me deu a impressão de que estava gostando de mim. Por que dormiu com sua mulher? — Pronto. Perguntara. No outro lado da linha houve um longo silêncio. Até que ele disse:

 — Esta não é uma boa hora.

 — OK — ela tentou ocultar seu desapontamento.

 — Vou mandar a lista imediatamente.

 — Obrigada.

 Ela desligou e deu a partida no motor. A idéia de Ginny não tinha sido tão boa, afinal. São necessárias duas pessoas para que haja uma conversa e Michael não estava disposto a falar.

 Quando chegou no clube dos oficiais, o fax de Michael estava esperando por ela. Mostrou-o a Carl Theobald.

 — Precisamos de equipes de vigilância em cada uma dessas locações para ver se descobrem o vibrador sísmico — disse Judy. — Eu estava esperando usar a polícia, mas não acho boa idéia. Eles podem falar. E se os habitantes locais descobrirem que pensamos que eles podem ser o alvo dos terroristas, entrarão em pânico. Assim, teremos que usar o pessoal do FBI.

 — OK — Carl franziu a testa, preocupado, analisando o papel que ela lhe entregara. — Olha, Judy, esses locais são muito grandes. Uma equipe não pode, na verdade, vigiar uma área de dois, dois e meio quilômetros quadrados. Não deveríamos usar equipes múltiplas? Ou o seu especialista não seria capaz de restringir um pouco os locais?

 — Vou pedir a ele — Judy pegou o telefone e ligou de novo para Michael. — Obrigada pelo fax — disse. E em seguida explicou o problema.

 — Terei que visitar pessoalmente os sítios — disse ele. Sinais de atividades sísmicas anteriores, como leitos de rios secos ou falhas nas rochas me dariam uma idéia mais precisa.

 — Você poderia fazer isso hoje? — perguntou ela prontamente. – Posso levar você em todas as locações num helicóptero do FBI.

 — Eu... claro, acho que sim — respondeu ele. — Quer dizer, claro que sim.

 — Você poderia estar salvando vidas.

 — Exatamente.

 — Você consegue achar o caminho até o clube dos oficiais do Presídio?

 — Com certeza.

 — Na hora em que você chegar, o helicóptero estará esperando.

 — OK.

 — Eu lhe agradeço muito, Michael.

 — Não seja por isso.

 Mas ainda quero saber por que você dormiu com sua mulher. Ela desligou.

 

 Foi um dia comprido. Judy, Michael e Carl Theobald percorreram uns mil e quinhentos quilômetros de helicóptero. Ao cair da noite tinham organizado um serviço de vigilância dia e noite nas cinco locações da lista de Michael.

 Retornaram ao Presídio. O helicóptero aterrissou no campo de paradas deserto. Toda a base era uma cidade fantasma, com os prédios da administração em ruínas e filas de casas vazias.

 Judy tinha que entrar no centro de operações de emergência para se apresentar a um figurão do quartel-general do FBI em Washington que chegara às nove horas da manhã com ar de encarregado. Mas primeiro acompanhou Michael até o carro dele, no estacionamento às escuras.

 — E se eles conseguirem não ser vistos pela vigilância?

 — Pensei que o seu pessoal fosse bom.

 — São os melhores. Mas e se eles conseguirem passar despercebidos? Há algum meio pelo qual eu possa ser notificada prontamente se houver um tremor de terra em qualquer lugar da Califórnia?

 — Claro. Posso colocar um sismógrafo on-line aqui no seu posto de comando. Só preciso de um computador e de uma linha telefônica da rede digital.

 — Não tem problema. Você faria isso amanhã?

 — Tudo bem. Assim você saberá imediatamente se eles começarem a usar o vibrador sísmico em algum lugar que não fizer parte da lista.

 — Isso é provável?

 — Não creio. Se o sismólogo deles for competente, escolherá os mesmos lugares que eu. E se for incompetente, provavelmente não será capaz de desencadear nenhum terremoto.

 — Ótimo — disse Judy. — Ótimo — ela se lembraria disso. Podia dizer ao mandachuva que viera de Washington que tinha a crise sob controle. Ela ergueu os olhos para o rosto de Michael e perguntou, inesperadamente:

 — Por que você dormiu com sua mulher? — Estive pensando nisso o dia todo.

 — Eu também.

 — Acho que lhe devo uma explicação.

 — Também acho.

 — Até outro dia, eu pensava que estava tudo acabado entre mim e Melanie. Mas aí, ontem de noite, ela me lembrou das coisas que tinham sido boas no nosso casamento. Foi bonita, engraçada, afetuosa e sexy. Mais importante, fez com que eu me esquecesse de todas as coisas que eram ruins.

 — Tais como?

 Ele suspirou.

 — Acho que Melanie tem atração por figuras autoritárias. Fui seu professor. Ela quer a segurança de que lhe digam o que fazer. Eu esperava uma parceira em igualdade de condições, alguém com quem eu pudesse compartilhar decisões e responsabilidades. Ela ficou indignada com isso.

 — Dá para entender.

 — E tem mais. Lá no fundo, ela sente ódio do mundo, de tudo. A maior parte do tempo oculta esta característica, mas quando se frustra pode ser violenta. Atirava coisas em mim, coisas pesadas, como, em certa ocasião, uma panela grande. Nunca chegou a me machucar, ela não é bastante forte, mas eu sentiria medo se houvesse uma arma em casa. A verdade é que é muito difícil conviver com um tal nível de hostilidade.

 — E ontem à noite...?

 — Esqueci tudo isso. Ela parecia querer tentar de novo e eu achei que devíamos, em benefício de Dusty. E também...

 Ela gostaria de ser capaz de ler a expressão do rosto dele, mas estava muito escuro.

 — O quê?

 — Quero lhe dizer a verdade, Judy, mesmo que você venha a se sentir ofendida. Assim, tenho que admitir que não foi tão racional e decente como estou falando. Parte do que aconteceu foi porque ela é uma bela mulher e eu quis transar com ela. Pronto. Agora falei.

 Ela sorriu, no escuro. Ginny tinha razão, afinal.

 — Eu sabia — disse. — Mas estou satisfeita porque você me contou. Boa noite — ela se afastou.

 — Boa noite — respondeu ele, perplexo.

 Um momento depois ele exclamou, às suas costas:

 — Você está zangada?

 — Não — respondeu Judy por cima do ombro. — Não estou mais.

 

 Priest esperava que Melanie voltasse lá pelo meio da tarde. Quando chegou a hora do jantar e ela ainda não tinha chegado, começou a se preocupar.

 Ao anoitecer, ele ficou desesperado. O que tinha acontecido com ela? Teria decidido voltar para o marido? Confessado tudo a ele? Estaria agora abrindo o jogo para a agente Judy Maddox na sala de interrogatórios do Federal Building, em San Francisco? Não conseguiu ficar sentado quieto na cozinha nem deitado na cama. Pegou um lampião e saiu andando pelo vinhedo, atravessou a floresta e foi esperar no estacionamento circular, atento ao ronco do motor do velho Subaru de Melanie — ou do motor do helicóptero do FBI que anunciaria o fim de tudo.

 Spirit foi o primeiro a ouvir. Levantou as orelhas, o corpo tenso e saiu correndo pela estrada lamacenta, latindo. Priest levantou-se, aguçando os ouvidos. Era o Subaru. Sentiu uma onda de alívio. Viu as luzes dos faróis se aproximando por entre as árvores. Sentiu um início de dor de cabeça. Há anos que não tinha dor de cabeça.

 Melanie estacionou de qualquer maneira, saltou e bateu a porta do carro.

 — Odeio você — disse ela a Priest. — Odeio você por me ter feito fazer aquilo.

 — Eu tinha razão? — perguntou ele. — Michael está preparando uma lista para o FBI?

 — Vá se foder!

 Priest deu-se conta de que tinha pisado na bola. Deveria ter se mostrado compreensivo e simpático. Por um momento permitira que a ansiedade toldasse seu raciocínio. Agora ia ter que perder tempo conversando com ela.

 — Eu lhe pedi para fazer aquilo porque a amo, não compreende?

 — Não, não compreendo. Não compreendo nada — ela cruzou os braços no peito e deu as costas para ele, fixando os olhos na escuridão da floresta. — Tudo o que sei é que me sinto como uma prostituta.

 Priest estava louco de vontade de saber o que ela descobrira, mas obrigou-se a se acalmar.

 — Onde você esteve? — perguntou.

 — Dirigindo por aí. Parei para tomar um drinque. — Ele ficou em silêncio por um minuto. E disse:

 — A prostituta transa por dinheiro — e depois gasta o dinheiro em roupas idiotas e drogas. Você fez o que fez para salvar seu filho. Sei que se sente mal, mas você não é uma pessoa má. Você é do bem. Você é boa.

 Finalmente ela se voltou para ele. Havia lágrimas em seus olhos.

 — Não foi só fazermos sexo — disse. — Foi pior que isso. Eu gostei. É por isto que me sinto tão envergonhada. Eu gozei. Gozei mesmo. Cheguei a gritar.

 Priest sentiu-se invadir por uma onda quente de ciúme e lutou para conter-se. Ainda faria Michael Quercus pagar por aquilo um dia. Mas agora não estava na hora de falar sobre isso. Precisava acalmar as coisas.

 — Tudo bem — murmurou. — Sinceramente, tudo bem. Eu compreendo. Coisas estranhas acontecem — ele a envolveu com os braços e a apertou carinhosamente.

 Aos poucos Melanie foi relaxando. Ele pôde sentir a tensão deixando seu corpo aos poucos.

 — Você não se incomoda? Não está com raiva? — perguntou ela.

 — Nem um pouco — mentiu ele, acariciando seus cabelos longos. Vamos, vamos!

 — Você tinha razão a respeito da lista — disse ela. Finalmente. — Aquela mulher do FBI tinha pedido a Michael para estudar a melhor localização para um terremoto, exatamente como você imaginou.

 — Claro que ela pediu. Eu sou inteligente pacas.

Melanie prosseguiu.

 — Ele estava sentado ao computador, terminando, quando cheguei lá.

 — E o que foi que aconteceu?

 — Preparei o jantar dele, essas coisas.

 Priest podia imaginar muito bem. Quando Melanie decidia ser sedutora, era irresistível. E era mais atraente que nunca quando queria alguma coisa. Provavelmente tomara um banho e vestira um robe, depois circulara pelo apartamento cheirando a sabonete de flores, servindo vinho ou fazendo café, deixando o robe abrir de vez em quando para mostrar a ele visões tentadoras das suas pernas longas e seios macios. Devia ter feito perguntas a Michael só para ouvir atentamente as respostas dele, sorrindo daquele jeito que dizia eu o quero tanto, você pode fazer de mim o que quiser.

 — Quando o telefone tocou eu disse a ele para não atender, depois tirei do gancho. Mas a maldita mulher foi lá de qualquer maneira, e quando Michael não abriu a porta, ela a botou abaixo.

 — Puxa vida, teve um choque e tanto — Priest avaliou que Melanie precisava desabafar, contar tudo o que acontecera, e por isso não a apressou.

 — Ela quase morreu de vergonha.

 — Ele lhe deu a lista?

 — Não naquela hora. Acho que ela ficou muito sem graça para pedir. Mas telefonou hoje de manhã e ele a enviou por fax.

 — E você pegou a lista?

 — Enquanto ele estava no banho imprimi outra cópia no computador.

—  E onde diabos ela está?

 Ela enfiou a mão no bolso de trás do jeans, puxou uma folha de papel dobrada em quatro e deu para Priest.

—  Graças a Deus.

 Priest a desdobrou e examinou-a sob a luz do lampião. As letras e os números impressos nada significavam para ele. Estes são os lugares que ele disse para ela vigiar?

 — Sim, eles vão vigiar cada uma destas locações, procurando um vibrador sísmico, exatamente como você predisse.

 Judy Maddox era inteligente. A vigilância do FBI dificultaria em muito a operação do vibrador sísmico, especialmente se tivesse que tentar diversos locais, como acontecera em Owens Valley. Mas ele era ainda mais inteligente do que Judy. Antecipara aquela jogada e ainda por cima imaginara um modo para contornar a dificuldade que ela representava.

 — Você compreende o modo como Michael escolheu estes sítios?

 — Claro. São os locais onde a tensão na falha é mais alta.

 — Quer dizer então que você pode fazer a mesma coisa que ele fez.

 — Já fiz. E escolhi os mesmos lugares que ele escolheu. Priest dobrou o papel e devolveu a ela.

 — Agora, preste bastante atenção. Isto é muito importante. Você pode examinar os dados de novo e escolher as cinco melhores locações depois destas?

 — Posso.

 — E nós poderíamos causar um terremoto numa delas?

 — Provavelmente. Pode não ser com a mesma certeza, mas as chances também são boas.

 — Então vai ser o que faremos. Amanhã damos uma olhada nos novos locais. Logo depois que eu falar com o Sr. Honeymoon.

 

 As cinco da manhã, o guarda da entrada de Los Alamos estava bocejando. Ficou alerta quando Melanie e Priest pararam no `Cuda. Priest saltou do carro.

 — Como vai, companheiro? — disse, ao passar pelo portão. O guarda levantou o rifle. Fechou a cara e disse:

 — Quem é você e o que deseja?

 Priest deu um soco na cara dele com toda a força, esmagando-lhe o nariz. O sangue jorrou. O guarda gritou, as mãos voando para o rosto.

 Priest disse:

 — Ai! — sentindo a mão doer. Fazia muito tempo que não socava ninguém. Seus instintos assumiram o controle. Chutou as pernas do guarda, dando-lhe uma rasteira, e ele caiu de costas, o rifle voando pelo ar. Depois chutou suas costelas três ou quatro vezes, depressa e com força, tentando quebrar-lhe os ossos. Em seguida o rosto e a cabeça. O homem encolheu-se e se enrolou como uma bola, soluçando de dor, impotente de medo.

 Priest parou, ofegante. Tudo voltou a ele numa corrente de excitação relembrada. Houve um tempo em que fazia aquele tipo de coisa todo dia. É muito fácil assustar as pessoas quando se sabe como. Ajoelhou-se e tirou a arma do cinto do homem. Era o que tinha vindo apanhar.

 Olhou para a arma enojado. Era uma reprodução de um revólver Remington 44 cano longo, fabricado originalmente no Velho Oeste. Uma arma burra, nada prática, do tipo que só colecionadores têm e guardam num mostruário forrado de feltro. Não servia para quem queria atirar. Ele a abriu e verificou que estava municiada. Era o que realmente interessava.

 Voltou para o carro e entrou. Melanie ficara ao volante. Estava pálida e com os olhos arregalados, ofegante, como se tivesse acabado de cheirar cocaína. Priest adivinhou que jamais teria assistido a uma cena realmente violenta.

 — Ele vai ficar bem? — perguntou, nervosa.

 Priest olhou para o guarda, que estava deitado no chão, as mãos no rosto, balançando-se lentamente.

 — Claro que vai — respondeu.

 — Puxa.

 — Vamos para Sacramento. Melanie arrancou.

 Depois de algum tempo ela disse:

 — Você acha mesmo que vai conseguir falar com esse tal de Honeymoon?

 — Ele vai ter que usar bom senso — disse Priest, parecendo mais confiante do que realmente se sentia. — Olhe só as alternativas de que dispõe. Número um, um terremoto que causará danos no valor de milhões de dólares. Número dois, uma proposta sensata para reduzir a poluição. Além do mais, se escolher a alternativa número um, terá que fazer a mesma escolha de novo dois dias mais tarde. Ele vai ter que escolher o caminho mais fácil.

 — Acho que sim — concordou Melanie.

 Chegaram em Sacramento poucos minutos antes das sete da manhã. A capital do estado estava quieta assim tão cedo. Poucos carros e caminhões se deslocavam, sem pressa, ao longo das largas avenidas vazias. Melanie estacionou perto do Capitólio, a sede do governo.

 Priest pôs um boné com viseira e prendeu nele o cabelo comprido. Depois colocou óculos escuros.

 — Espera por mim aqui — disse. — Pode ser que eu demore umas duas horas.

 Priest caminhou em torno do quarteirão do Capitólio. Esperava encontrar um estacionamento ao nível da rua, mas ficou desapontado. O terreno era todo ajardinado, com árvores magníficas. De cada lado do prédio, uma rampa proporcionava acesso a uma garagem subterrânea. As duas rampas eram controladas por guardas de segurança em cabines de sentinelas.

 Priest aproximou-se de uma das portas largas e imponentes. O prédio estava aberto e não havia verificação de segurança à entrada. Ele se viu num grande saguão com o piso de mosaico de cerâmica. Tirou os óculos de sol, que pareceriam estranhos ali dentro e seguiu por uma escada que dava no porão. Viu um café onde uns poucos madrugadores tomavam sua primeira carga de cafeína. Passou por eles procurando dar a impressão de que também trabalhava na casa e seguiu por um corredor que devia dar na garagem subterrânea. Quando se aproximou do fim do corredor, a porta se abriu e um homem gordo de blazer azul entrou. Atrás do homem, Priest viu carros. Bingo. Esgueirou-se para dentro da garagem e olhou em torno. Estava quase vazia. Havia poucos carros, um utilitário esportivo e uma viatura do xerife estacionados em vagas marcadas. Não viu ninguém. Escondeu-se atrás do utilitário esportivo. Era um Dodge Durango. Dali, espiando através das janelas, podia ver a entrada da garagem e a porta que dava acesso ao prédio. Outros carros estacionados de ambos os lados do Durango o protegeriam das vistas de quem chegasse. Preparou-se para esperar. Esta é a última chance deles. Haverá tempo para negociar e evitar uma catástrofe. Mas se isto não der certo... Bum!

 Al Honeymoon era um workaholic, um sujeito viciado em trabalho, imaginou Priest. Devia chegar cedo. Mas havia muita coisa que podia dar errado. Honeymoon podia estar passando o dia na residência do governador. Podia estar doente. Talvez estivesse em Washington; podia ser que tivesse ido fazer uma viagem à Europa. Sua mulher podia estar tendo um filho.

 Priest não achava que ele tivesse seguranças. Não fora eleito, era apenas um empregado do governo. Teria motorista? Priest não fazia idéia. Se tivesse, ia estragar tudo.

 Entrava um carro quase que de minuto em minuto. Priest estudava os motoristas do seu esconderijo. Não teve que esperar muito tempo. Às sete e meia entrou um vistoso Lincoln Continental azul-escuro. Atrás do volante vinha um homem, preto, de camisa branca e gravata. Honeymoon: Priest o reconheceu dos retratos publicados no jornal.

 O Lincoln parou numa vaga perto do Durango. Priest pôs os óculos escuros, atravessou a garagem rapidamente, abriu a porta e sentou no banco do carona antes que Honeymoon conseguisse se desvencilhar do cinto de segurança. Mostrou a arma.

 — Saia da garagem — ordenou. Honeymoon olhou espantado para ele. — Quem diabos é você?

 Seu filho da mãe arrogante de terno bacana, sou eu quem faço a porra das perguntas.

 Priest engatilhou o revólver.

 — Sou o maluco que vai meter uma bala nas suas tripas se você não fizer o que eu mandar. Agora toca em frente.

 — Vá à merda! — disse Honeymoon, irritado. — Vá à merda! — repetiu.

 — Sorria simpaticamente para o guarda e passe devagar avisou Priest quando ele saiu da garagem. — Se disser uma única palavra eu mato o guarda.

 Honeymoon não respondeu. Reduziu a marcha quando se aproximou da guarita. Por um momento, Priest pensou que fosse tentar alguma coisa. Só então viram o guarda. Era um negro de meia-idade, com o cabelo branco. Priest disse:

 — Se quer que seu irmão aí morra, é só fazer o que está pensando.

 Honeymoon praguejou baixinho e seguiu em frente.

 — Contorne o Capitólio para sair da cidade — disse Priest. Honeymoon deu a volta em torno do prédio do Capitólio e seguiu para oeste pela avenida larga que ia dar no rio Sacramento.

 — O que é que você quer? — perguntou. Não parecia com medo — simplesmente sem paciência.

 Priest gostaria de enfiar uma bala nele. Aquele era o panaca que possibilitara a construção da represa. Esforçara-se ao máximo para arruinar a vida de Priest. E não estava nem um pouco arrependido. Na verdade, não ligava a mínima. Uma bala na barriga dele não bastaria como punição. Controlando a raiva, Priest disse:

 — Quero salvar a vida de muitas pessoas.

 — Você é o sujeito do Martelo do Éden, certo?

 Priest não respondeu. Honeymoon o estava olhando fixamente. Priest adivinhou que procurava memorizar suas feições. Espertinho.

 — Olha pra porra da estrada!

 Honeymoon voltou a olhar em frente. Eles cruzaram a ponte. Priest disse:

 — Peque a I-80 na direção de San Francisco.

 — Onde estamos indo?

 — Você não vai a lugar algum. Honeymoon chegou na rodovia.

 — Vá a menos de oitenta na pista da direita. Por que diabos você não me dá o que estou pedindo? — a intenção de Priest era permanecer calmo, mas a calma arrogante de Honeymoon o enfureceu. — Está querendo a porra de um terremoto?

 Honeymoon fez uma cara inexpressiva.

 — O governador não pode ceder à chantagem, você devia saber disso.

 — Você pode contornar o problema — alegou Priest. Basta dizer que estavam planejando paralisar as obras de qualquer maneira.

 — Ninguém ia acreditar em nós. Seria o suicídio político do governador.

 — Uma ova que seria. Você podia enganar a opinião pública. Pra que servem vocês, marqueteiros políticos?

 — Sou o melhor que há, mas não posso fazer milagre. Isto é um caso de muita notoriedade. Você não devia ter metido o John Truth nessa história.

 — Ninguém queria nos ouvir — replicou Priest, furioso até que John Truth entrou no caso!

 — Bem, seja qual for a razão, isto agora tornou-se um confronto público, e o governador não pode ceder. Se ceder, o estado da Califórnia poderá ser chantageado por qualquer idiota com uma espingarda de caça na mão que cisme de defender alguma maldita causa. Mas você pode recuar.

 O filho da mãe está querendo me fazer mudar de idéia! Priest disse:

 — Pegue a primeira saída e volte para a cidade. Honeymoon deu a seta indicando que ia virar à direita e continuou falando:

 — Ninguém sabe quem são vocês e onde se pode encontrá-los. Se desistir agora poderá sair numa boa. Nenhum dano foi causado. Mas se causarem outro terremoto, terão todas as organizações policiais dos Estados Unidos atrás de vocês, e ninguém desistirá antes de encontrá-los. Não é possível ficar escondido eternamente.

 Priest se enfureceu.

 — Não me ameace! — gritou. — Sou eu que estou armado aqui neste carro, porra!

 — Não me esqueci disso. Só estou tentando tirar nós dois desta encrenca sem maiores problemas.

 De algum modo Honeymoon conseguira assumir o controle da conversa. Priest ficou revoltado de tanta frustração.

 — Você vai me ouvir — disse. — Há apenas uma saída para isto. Faça uma declaração hoje. Nada mais de construir usinas na Califórnia.

 — Não posso.

 — Encosta o carro.

 — Estamos numa auto-estrada.

 — Encosta a porra do carro! Honeymoon reduziu a marcha e parou no acostamento. A tentação de atirar era muito forte, mas Priest resistiu.

 — Salte do carro.

 Honeymoon pôs a alavanca de marcha na posição de estacionar e saltou. Priest escorregou para trás do volante.

 — Você tem até a meia-noite para agir com sensatez disse, e foi embora.

 Pelo retrovisor, viu Honeymoon tentar parar um carro que passava. O carro passou direto. Honeymoon tentou de novo. Ninguém ia parar. Ver aquele homem grandalhão, de terno caro e sapatos lustrosos, de pé num acostamento poeirento tentando conseguir uma carona, deu a Priest uma pequena satisfação e ajudou-o a sufocar a aborrecida suspeita de que Honeymoon, de algum modo, conseguira levar a melhor no encontro, muito embora fosse Priest quem estivesse armado.

 Honeymoon desistiu de sinalizar para os carros que passavam e começou a andar. Priest sorriu e voltou para a cidade. Melanie o esperava onde ele a deixara. Ele estacionou o Lincoln, deixando as chaves, e entrou no `Cuda.

 — O que aconteceu? — perguntou ela.

 Priest sacudiu a cabeça, desgostoso.

 — Nada — respondeu, enraivecido. — Foi uma perda de tempo. Vamos.

 Ela deu a partida no carro e arrancou.

 

 Priest rejeitou a primeira locação a que Melanie o levou.

 Era uma cidadezinha à beira-mar a uns oitenta quilômetros. Pararam em cima do penhasco, onde a brisa forte e constante chegou a balançar o velho carro nas suas molas cansadas. Priest abaixou o vidro para sentir o cheiro do mar. Gostaria de tirar as botas e caminhar descalço pela praia, sentindo a areia molhada sob os pés, mas não havia tempo. Aquela locação era demasiado exposta. O caminhão ficaria muito evidente. A distância grande da auto-estrada impossibilitaria uma retirada rápida. Mais importante que tudo, não havia muita coisa de valor para ser destruída — só umas poucas casas grupadas em torno de um porto.

 Melanie disse:

 — Um terremoto às vezes causa os maiores danos a muitos quilômetros de distância do seu epicentro.

 — Mas não se pode ter certeza se isto acontecerá — retrucou Priest.

 — Verdade. Não se pode ter certeza de nada.

 — Ainda assim, a melhor coisa para derrubar um arranha-céu é ter um terremoto em baixo, estou certo?

 — Todas as outras coisas sendo iguais, sim.

 Eles seguiram para o sul pelas verdejantes colinas do condado de Marin e depois atravessaram a Golden Gate. A segunda locação de Melanie era no coração da cidade. Seguiram a Rota 1 através do Presídio e do parque Golden Gate, indo parar não muito longe do campus da Universidade do estado da Califórnia em San Francisco.

 — Aqui é melhor — disse Priest imediatamente. Por toda a parte ao redor havia casas e escritórios, lojas e restaurantes.

 — Um tremor com o epicentro aqui causaria o dano maior à área da marina — disse Melanie.

 — Como é que pode? São quilômetros de distância!

 — É tudo aterrado. Os depósitos sedimentares sob o aterro são saturados de água, o que amplifica o tremor. Enquanto que o terreno aqui provavelmente é sólido. E estes prédios parecem fortes. A maior parte dos prédios sobrevive a um terremoto. Os que caem são as construções tipicamente de baixo custo, não reforçadas, ou estruturas de concreto sem suportes especiais.

 Aquilo tudo eram subterfúgios, decidiu Priest. Ela só estava nervosa. Um terremoto é um terremoto, pelo amor de Deus. Ninguém sabe o que vai desmoronar. Eu não dou a mínima, desde que alguma coisa caia.

 — Vamos ver outro lugar — disse ele.

 Melanie o levou para o sul, pela Interestadual 280.

 — Bem onde a falha de Santo André cruza a Rota 101, há uma cidadezinha chamada Felicitas — disse ela.

 Rodaram por vinte minutos. Quase passaram a rampa de saída para Felicitas.

 — Aqui, aqui! — berrou Melanie. — Não viu a placa?

 Priest deu um golpe de direção para a direita e conseguiu pegar a rampa.

 — Eu não estava olhando — explicou-se.

 A saída da auto-estrada conduzia a um ponto alto com vista para a cidade. Priest parou o carro e saltou. Felicitas estava à sua frente, como se fosse um quadro.

 A rua principal corria da esquerda para a direita em todo o seu campo de visão, com suas casas de um andar, revestidas de madeira cortada em sarrafos estreitos, onde funcionavam lojas e escritórios, uns poucos carros estacionados em quarenta e cinco graus. Havia uma pequena igreja, também de madeira, com um campanário. Ao norte e ao sul da rua principal via-se a trama precisa das ruas arborizadas. Todas as casas eram de um só andar. Em cada extremidade da cidadezinha a rua principal se transformava, antecipando a auto-estrada e desaparecendo em meio aos campos. A região ao norte de Felicitas era dividida por um rio sinuoso que lembrava uma rachadura em uma vidraça. Mais distante, a linha da estrada de ferro, reta como um risco num desenho, cortava a paisagem de leste para oeste. Atrás de Priest, a auto-estrada passava sobre um viaduto apoiado em altos arcos de concreto. Um pouco mais abaixo passava um conjunto de seis imensos e brilhantes canos azuis que mergulhavam sob a rodovia, passavam pela cidade na direção oeste e desapareciam no horizonte, lembrando um xilofone interminável.

 — Que diabo é aquilo ali? — perguntou Priest. Melanie pensou por um momento.

 — Acho que deve ser um gasoduto.

 Priest deixou escapar um longo suspiro de satisfação.

 

 Fizeram mais uma parada naquele dia.

 Depois do terremoto, Priest ia precisar esconder o vibrador sísmico. Sua única arma era a ameaça de mais terremotos. Tinha que fazer Honeymoon e o governador Robson acreditarem que ele tinha o poder para fazer aquilo tantas vezes quanto fosse necessário para que cedessem. Por isso era crucial que mantivesse o caminhão escondido.

 Seria cada vez mais difícil dirigir o vibrador em estradas públicas, de modo que ele precisava escondê-lo onde pudesse, se necessário, detonar outro terremoto sem ter que se deslocar muito.

 Melanie conduziu-o até uma rua que corria paralela ao mar no imenso porto natural que era a baía de San Francisco. Entre ela e o mar ficava uma decadente zona industrial, com trilhos em desuso correndo por ruas cheias de buracos, fábricas enferrujadas e abandonadas com as vidraças espatifadas e pátios sinistros cheios de caixotes, pneus e carros batidos.

 — Ótimo — disse Priest. — Apenas a meia hora de Felicitas e o tipo do lugar onde ninguém presta muita atenção nos vizinhos. Cartazes anunciando corretores de imóveis eram vistos presos em alguns prédios, numa demonstração de otimismo. Melanie, posando de secretária de Priest, telefonou para o número de um dos cartazes e perguntou se tinham um armazém para alugar, que fosse bem barato, com uns cento e cinqüenta metros quadrados de área.

 Um jovem e ansioso corretor apareceu para se encontrar com eles uma hora mais tarde. Mostrou-lhes uma ruína de blocos de concreto e teto de zinco todo esburacado. Via-se um cartaz quebrado em cima da porta, que Melanie leu em voz alta: "Perpetua Diaries". Havia lugar de sobra para estacionar o vibrador. Havia também um banheiro funcionando e um pequeno escritório com uma chapa elétrica para aquecer café ou comida e uma velha televisão Zenith deixadas pelo antigo locatário.

 Priest disse ao corretor que precisava de um lugar para estocar barris de vinho mais ou menos por um mês. O homem estava pouco se incomodando com o que Priest queria fazer daquele espaço e ficou entusiasmado por conseguir algum dinheiro de aluguel numa propriedade praticamente sem o menor valor. Prometeu que a luz e a água estariam ligadas no dia seguinte.

 Priest pagou quatro semanas adiantadas, em dinheiro, quantia tirada do bolo que ele guardava escondido no violão velho.

 O corretor parecia que tinha acertado na loteria. Deu as chaves a Melanie, apertou as mãos dos dois e saiu correndo antes que Priest mudasse de idéia.

 Priest e Melanie voltaram para a comunidade.

 

 Quinta-feira à noite, Judy Maddox tomou um banho de imersão. Deitada na água, lembrou do terremoto de Santa Rosa que tanto a amedrontara quando era bem pequena.

 A lembrança do acontecido voltou-lhe tão vivamente como se tivesse sido na véspera. Nada é mais aterrorizante do que descobrir que o solo sob seus pés não é fixo ou estável, e sim traiçoeiro e mortal. Às vezes, nos momentos de tranqüilidade, tinha pesadelos, visões de acidentes múltiplos de automóveis, pontes ruindo, edifícios desmoronando, incêndios e enchentes — mas nada tão apavorante para ela quanto a memória do pavor que sentira aos seis anos de idade. Lavou o cabelo e guardou as lembranças num canto da mente. Depois arrumou uma bolsa com as coisas que precisava para passar a noite e voltou ao clube dos oficiais às dez horas.

 O posto de comando estava quieto, mas a atmosfera era tensa. Ninguém sabia ainda ao certo se o Martelo do Éden poderia causar um terremoto. Mas desde que Ricky Granger seqüestrara Al Honeymoon sob a mira de um revólver na garagem do prédio do Capitólio e o deixara em plena auto-estrada I-80, todos tinham certeza absoluta de que era preciso levar os terroristas a sério.

 Havia mais de cem pessoas no antigo salão de bailes. O comandante da operação era Stuart Cleever, o figurão que viera de Washington na terça-feira à noite. A despeito das ordens de Honeymoon, não havia como o Bureau deixar uma agente de escalão hierárquico inferior assumir o controle geral de uma coisa tão grande. Judy também não queria isso e não discutira. Só fizera questão de se assegurar de que nem Brian Kincaid nem Marvin Hayes fossem diretamente envolvidos.

 O título de Judy era coordenadora das operações de investigação. O que lhe dava todo o controle de que precisava. Junto com ela estava Charlie Marsh, coordenador das operações de emergência, em comando da equipe da SWAT, de prontidão numa sala ao lado. Charlie era um homem com uns quarenta e cinco anos de idade, cabelo grisalho cortado à escovinha. Tinha sido do Exército, era alucinado por preparo físico e colecionador de armas. Não era do tipo que Judy normalmente gostava, mas tratava-se de um homem franco e confiável, com quem podia trabalhar. Entre a chefa e a mesa da equipe de investigação ficavam Michael Quercus e seus jovens sismólogos, sentados diante dos respectivos monitores, atentos a sinais de abalos sísmicos. Michael dera um pulo em casa, como Judy, e voltara trajando uma calça cáqui limpa e camisa pólo preta e trazendo uma bolsa de lona tipo esportivo, pronto para um longo plantão.

 Tinham conversado durante o dia sobre questões práticas, enquanto ele montava o equipamento que ia usar e apresentava seus auxiliares. A princípio, tinham se mostrado sem graça um com o outro, mas logo Judy percebeu que rapidamente ia vencendo seus sentimentos de raiva e culpa por causa do incidente de terça-feira. Achara que fosse ficar ressentida por um ou dois dias, mas na verdade estava ocupada demais para se aborrecer. Assim, a coisa toda foi guardada num canto da sua memória e ela passou a desfrutar a presença de Michael nas proximidades. Estava tentando imaginar uma desculpa para falar com ele quando o telefone em cima de sua mesa tocou.

 Ela atendeu.

 — Judy Maddox.

 A telefonista disse:

 — Uma ligação para você de Ricky Granger

 — Rastreie! — exclamou Judy. A telefonista precisaria apenas de alguns segundos para contatar o centro de segurança da Pacific Bell que funcionava vinte e quatro horas por dia. Acenou para Cleever e Marsh, indicando que eles deviam ouvir.

 — Passe a ligação. E grave tudo — houve um clique. — Judy Maddox falando.

 Uma voz masculina:

 — Você é esperta, agente Maddox. Mas será esperta o bastante para convencer o governador a ter bom senso?

 Ele parecia enraivecido, frustrado. Judy imaginou um homem com cerca de cinqüenta anos, magro, mal vestido, mas acostumado a ser ouvido. Estava perdendo o controle sobre a vida e ficara ressentido, especulou ela.

 — Estou falando com Ricky Granger? — perguntou Judy.

 — Você sabe com quem está falando. Por que eles estão me forçando a causar um outro terremoto?

 — Forçando? Você está querendo se convencer de que tudo isto ocorre por culpa de outra pessoa?

 A observação dela pareceu irritá-lo ainda mais.

 — Não sou eu quem está usando mais e mais eletricidade a cada ano — respondeu ele. — Não quero mais usinas. Não uso eletricidade.

 — Não usa? Mesmo? O que é então que está alimentando a corrente do seu telefone: vapor? Uma seita que não usa eletricidade. Uma pista.

 Enquanto ironizava, ela tentava imaginar o que aquilo significaria? Mas onde eles estão?

 — Não me enche o saco, Judy. É você quem está encrencada.

 Ao lado dela, o telefone de Charlie tocou. Ele atendeu prontamente e escreveu em letras grandes no bloco:

 — Telefone público — Oakland — I-980 & I-580 — Texaco.

 — Nós todos estamos encrencados, Ricky — disse ela, num tom de voz mais moderado. Charlie encaminhou-se para o mapa preso na parede. Ela o ouviu pronunciar a palavra "barricadas".

 — Sua voz mudou — disse Ricky, desconfiado. — O que foi que aconteceu?

 Judy sentiu que estava fora da sua praia. Não tinha treinamento especial para negociar. Tudo o que sabia era que tinha que segurá-lo no telefone.

 — De repente pensei na catástrofe que haverá se você e eu não conseguirmos chegar a um acordo qualquer — respondeu ela.

 Judy ouviu Charlie dando ordens urgentes, em voz baixa:

 — Ligue para a polícia de Oakland, de Alameda e para a Patrulha Rodoviária Estadual.

 — Você está mentindo para mim — disse Granger. — Já conseguiram rastrear esta ligação? Jesus, foi rápido. Está tentando me conservar falando enquanto sua equipe da SWAT vem me pegar? Esquece! Tenho cento e cinqüenta maneiras de dar o fora daqui!

 — Mas só há uma saída para a enrascada em que você se meteu.

 — Já passou de meia-noite — disse ele. — Seu prazo terminou. Vou provocar outro terremoto e não há absolutamente nada que você possa fazer para me deter — ele desligou.

 Judy bateu o telefone.

 — Vamos, Charlie! — ela arrancou o retrato eletrônico de Granger do quadro e saiu correndo. O helicóptero esperava no campo de parada, com as hélices girando. Judy embarcou, com Charlie logo atrás.

 Quando levantaram vôo, ele pôs os fones de ouvido e fez um gesto para que ela o imitasse.

 — Imagino que sejam necessários vinte minutos para colocar as barricadas no lugar — disse. — Presumindo que ele esteja dirigindo a noventa por hora, para não ser detido por excesso de velocidade, poderá estar a trinta quilômetros de distância na hora em que estivermos prontos para pegá-lo. Por isso, mandei que as principais auto-estradas sejam fechadas em um raio de quarenta quilômetros.

 — E as outras estradas?

 — Temos que esperar que ele tenha que cobrir uma longa distância. Se sair da auto-estrada, nós o perdemos. Esta é uma das tramas rodoviárias mais movimentadas da Califórnia. Não se pode bloqueá-la nem com a ajuda do Exército.

 

 Ao virar na I-80, Priest ouviu o barulho do motor de um helicóptero e olhou para cima a tempo de vê-lo passar, vindo de San Francisco e cruzando a baía na direção de Oakland.

 — Que merda — exclamou. — Não podem estar atrás de nós, podem?

 — Eu falei — disse Melanie. — Eles podem rastrear telefonemas instantaneamente.

 — Mas o que é que vão fazer? Nem mesmo sabem que rumo segui depois de sair do posto de gasolina.

 — Podem fechar a estrada, acho eu.

 — Qual? Noventa e oito, oitenta e oito, cinqüenta e oito ou oitenta? Norte ou sul?

 — Talvez todas. Você sabe, a polícia faz o que bem entende.

 — Merda! — Priest meteu o pé no acelerador.

 — Não vá ser parado por excesso de velocidade.

 — OK. OK. — Ele reduziu a marcha.

 — Não podemos sair da rodovia principal? Ele sacudiu a cabeça.

 — Não há outro caminho para casa. Há estradas secundárias, mas elas não atravessam a baía. O que podíamos fazer é nos esconder em Berkeley. Estacionar em algum lugar e dormir no carro. Mas não temos tempo, precisamos ir para casa a fim de pegar o vibrador — ele sacudiu a cabeça. — Nada a fazer senão ir correndo pegá-lo. O tráfego diminuiu bastante depois que deixaram para trás Oakland e Berkeley. Priest manteve-se alerta, preocupado com o possível aparecimento das luzes características da polícia. Foi um alívio chegar à ponte Carquinez. Uma vez do outro lado, poderiam usar estradas secundárias. Depois talvez até viessem a gastar metade da noite para chegar em casa. Mas estariam fora de perigo. Aproximou-se vagarosamente da praça do pedágio, sempre procurando sinais de atividade da polícia. Só uma cabine estava aberta, mas não era surpreendente depois da meia-noite. Nada de luzes azuis, carros de radiopatrulha ou policiais. Parou e procurou troco nos bolsos da calça.

 Quando levantou a cabeça deu com um elemento da polícia rodoviária. O coração de Priest pareceu que ia parar.

 O policial estava na cabine, por trás do cobrador, olhando fixamente para Priest com uma expressão de espanto na fisionomia.

 O homem do pedágio recolheu o dinheiro de Priest mas não acendeu a luz verde.

 — Merda! — exclamou Melanie. — E agora?

 Priest considerou a possibilidade de sair correndo mas rapidamente decidiu-se contra. Só serviria para dar início a uma perseguição em que seu carro velho não conseguiria escapar.

 — Boa noite, senhor — disse o policial. Era um homem gordo de cerca de cinqüenta anos usando um colete à prova de balas sobre o uniforme. — Por favor, encoste do lado da estrada.

 Priest fez o que ele disse. O carro da patrulha rodoviária estacionado ao lado da estrada não podia ser visto por quem chegava na praça do pedágio. Melanie murmurou:

 — O que é que você vai fazer?

 — Tentar permanecer calmo — respondeu Priest.

 Havia outro policial esperando no carro. Ele saltou quando Priest encostou. Também usava um colete à prova de balas sobre o uniforme. O primeiro policial saiu da cabine e se aproximou.

 Priest abriu o porta-luvas e tirou o revólver que roubara naquela manhã em Los Alamos. Depois saltou do `Cuda.

 

 Judy só gastou uns poucos minutos para chegar ao posto Texaco de onde fora feito o telefonema. A polícia de Oakland agira depressa. Colocaram no estacionamento quatro viaturas, uma em cada canto, viradas para dentro, as luzes azuis no teto faiscando e os faróis iluminando o local da aterrissagem. O helicóptero pousou.

 Judy saltou e foi recebida por um sargento da polícia.

 — Leve-me ao telefone — disse ela.

 O telefone público ficava num canto próximo dos toaletes. Atrás do balcão havia duas pessoas, uma preta de meia-idade e um jovem branco com um brinco. Pareciam assustados.

 Judy perguntou ao sargento se já os tinha interrogado.

 — Não — respondeu ele. — Só falei que era uma inspeção de rotina.

 Eles tinham que ser idiotas para acreditar, pensou Judy, vendo quatro viaturas da polícia e o helicóptero do FBI do lado de fora. Ela apresentou-se e perguntou:

 — Vocês notaram alguém usando o telefone mais ou menos — Judy checou o relógio — há uns quinze minutos?

 A mulher disse:

 — Muita gente usa o telefone — e Judy na mesma hora viu que ela não gostava de polícia.

 Judy olhou para o rapaz.

 — Estou falando de um homem branco, alto, com cerca de cinqüenta anos.

 — Teve um cara assim — respondeu ele, virando-se para a mulher. – Você não reparou? Parecia um hippie velho.

 — Não vi — replicou a mulher, teimosamente. Judy mostrou a foto eletrônica.

 — Poderia ser este homem?

 O rapaz pareceu ficar na dúvida.

 — Ele não usava óculos. E o cabelo era comprido pacas. Foi por isso que pensei que parecia um hippie — ele examinou a foto mais detidamente. — Mas podia ser ele, sim.

 A mulher resolveu examinar também a foto que Judy trouxera.

 — Eu me lembro agora — disse. — Acredito que fosse ele. Um sujeito muito magro usando uma camisa azul de jeans.

 — Poxa, vocês ajudaram um bocado — disse Judy, agradecida. — Agora, esta pergunta é realmente importante: que carro ele estava dirigindo?

 — Não olhei — respondeu o rapaz. — Sabe quantos carros passam por aqui todos os dias? E está escuro.

 Judy olhou para a mulher, que balançou a cabeça melancolicamente.

 — Querida, você está perguntando à pessoa errada — não sei dizer a diferença entre um Ford e um Cadillac.

 Judy não conseguiu ocultar seu desapontamento.

 — Droga — disse, controlando-se novamente logo em seguida. – De qualquer forma, muito obrigada a vocês dois. Ela saiu.

 — Mais alguma testemunha? — perguntou ao sargento.

 — Nenhuma. Pode ser que tenha havido outros clientes presentes ao mesmo tempo que ele, mas já foram embora há muito tempo. E só aqueles dois trabalham aqui.

 Charlie Marsh aproximou-se correndo com um telefone celular no ouvido.

 — Granger foi localizado — disse para Judy. — Dois policiais rodoviários o detiveram na praça do pedágio da ponte Carquinez.

 — Não acredito! — disse Judy. Depois alguma coisa no rosto de Charlie a fez perceber que a notícia talvez não fosse boa. — Nós o prendemos?

 — Não — respondeu Charlie. — O cara atirou neles. Estavam de colete, mas atirou na cabeça dos dois. Fugiu.

 — Conseguiram saber qual era o carro dele?

 — Não. O funcionário da cabine não reparou.

 Judy não foi capaz de ocultar o tom de desespero da sua voz.

 — Quer dizer então que ele conseguiu fugir?

 — Exato.

 — E os dois patrulheiros rodoviários?

 — Ambos mortos.

 O sargento empalideceu.

 — Que Deus tenha piedade de suas almas — murmurou. Judy virou de costas, revoltada.

 — E Deus nos ajude a pegar Ricky Granger — disse — antes que ele mate mais alguém.

 

 Oaktree realizara um excelente trabalho ao fazer com que o vibrador sísmico parecesse ser um caminhão com um brinquedo de mafuá montado na carroceria. Os painéis da Boca do Dragão pintados alegremente em vermelho e amarelo escondiam por completo a placa de aço maciço, o imenso motor que gerava as vibrações e o complexo de tanques e válvulas que controlavam a máquina. Quando Priest atravessou o estado na tarde de sexta-feira, indo do sopé da Serra Nevada através do vale do Sacramento até a cadeia de montanhas que acompanhava a costa, outros motoristas sorriam e buzinavam amistosamente, e as crianças acenavam pelas janelas de trás das camionetas.

 A Patrulha Rodoviária o ignorou.

 Priest foi dirigindo com Melanie ao seu lado. Star e Oaktree seguiram no velho `Cuda. Chegaram em Felicitas no início da noite. A janela sísmica se abriria pouco depois das sete horas, o que era bom porque Priest teria o crepúsculo para proteger sua fuga. Mais ainda, o FBI e os policiais a esta altura já estariam em alerta por dezoito horas — ficando cansados, com as reações lentas. Podiam estar começando a acreditar que não haveria terremoto.

 Priest saiu da estrada e parou o caminhão. No fim da rampa de saída havia um posto de gasolina e um restaurante Big Ribs onde diversas famílias jantavam. Pelas janelas, as crianças não tiravam os olhos do caminhão. Nas proximidades do restaurante havia um campo com cinco ou seis cavalos pastando; em seguida vinha um escritório, numa construção baixa revestida de vidro. A rua que ia do ponto onde ele se encontrava em direção à cidade tinha casas em ambos os lados, e Priest podia ver uma escola e um pequeno prédio de madeira que parecia ser uma capela batista.

 Melanie disse:

 — A falha corre por baixo da rua principal.

 — Como você pode dizer?

 — Olha só as árvores nas calçadas — havia uma linha de pinheiros adultos no lado mais afastado. — As árvores do lado oeste estão cerca de um metro e meio mais para trás que as do lado leste.

 Sem dúvida, Priest viu que a oeste do que devia ser a falha, as árvores cresciam no meio da calçada, em vez de junto ao meio-fio. Ele ligou o rádio do caminhão. O programa de John Truth estava começando.

 — Perfeito — aprovou. O locutor disse:

 — Um importante auxiliar do governador Mike Robson foi seqüestrado em Sacramento num incidente bizarro ocorrido ontem. O seqüestrador abordou o secretário do gabinete, Al Honeymoon, no estacionamento subterrâneo do Capitólio, forçou-o a sair da cidade e depois o abandonou na I-80.

 — Reparou que não falaram no Martelo do Éden? — comentou Priest. -Eles sabem que era eu, lá em Sacramento. Mas estão tentando fingir que não tem nada a ver conosco. Pensam que assim evitam que haja uma onda de pânico. Estão perdendo tempo. Em vinte minutos vai haver o maior pânico que a Califórnia já viu.

 — Exatamente! — concordou Melanie. Estava tensa mas excitada, o rosto congestionado, os olhos brilhantes de esperança e medo.

 Só que, secretamente, Priest estava cheio de dúvidas. Será que ia funcionar desta vez?

 Só havia uma maneira de descobrir.

 Ele engrenou o caminhão e desceu a colina.

 A pista que saía da auto-estrada dava uma volta e se confundia com uma estrada velha que dava na cidade, vinda do leste. Priest virou na rua principal. Havia um café bem em cima da falha. Ele parou no estacionamento em frente e o `Cuda veio colocar-se ao lado do caminhão.

 — Vá comprar uns doughnuts — disse a Melanie. – Pareça natural.

 Ela saltou e caminhou sem pressa até o café.

 Priest puxou o freio de mão e acionou o botão que comandava o martelo do vibrador sísmico. Um policial uniformizado saiu do café.

 — Merda! — exclamou Priest.

 O polícia carregava um saco de papel e dirigia-se com jeito decidido para o outro lado do estacionamento. Priest imaginou que ele devia ter parado para comprar café para si e seu parceiro. Mas onde estaria o carro-patrulha? Priest olhou em torno e acabou localizando a luz branca e azul no teto de um carro quase totalmente escondido por uma minivan.Não tinha visto quando chegara. Amaldiçoou a si próprio pela desatenção. Mas era tarde demais para lamentações. O policial viu o caminhão, mudou de rumo e aproximou-se da janela de Priest.

 — Oi, como vamos? — cumprimentou ele, amistosamente.

 Era um rapaz alto e magro, com pouco mais de vinte anos e cabelo louro cortado curto.

 — Tudo bem, graças a Deus — disse Priest. Policiais de cidade pequena agem como se todo mundo fosse conhecido. — E você?

 — Sabe que não pode funcionar com isso sem permissão, não sabe?

 — É a mesma coisa em toda a parte — disse Priest. — Mas nossa idéia é ir para Pismo Beach. Só paramos para um café, como você.

 — Tudo bem. Aproveite o resto do dia.

 — Igualmente.

 O polícia afastou-se e Priest sacudiu a cabeça, assombrado. Se você percebesse quem sou eu, ia morrer engasgado com essa rosca de chocolate. Ele deu uma olhada pela janela de trás e checou os mostradores do mecanismo vibratório. Tudo estava verde.

 Melanie reapareceu.

 — Vá para o carro com os outros — disse Priest. — Estarei lá daqui a pouco.

 Ele preparou a máquina para vibrar a um sinal do controle remoto e saltou. O motor ficou funcionando.

 Melanie e Star estavam sentadas no banco de trás do `Cuda, o mais afastadas uma da outra que conseguiram: tratavam-se com polidez, mas não podiam ocultar sua hostilidade mútua. Com Oaktree ao volante, Priest pulou para o banco do carona.

 — Volta para o mesmo lugar onde paramos antes — disse. Oaktree acelerou e saiu.

 Priest ligou o rádio e sintonizou no programa de John Truth.

 — Sete e vinte e cinco da noite de sexta-feira e a ameaça de um terremoto feita pelo grupo terrorista do Martelo do Éden não se materializou, graças a Deus. Qual foi a coisa mais assustadora que já aconteceu a você? Ligue para John Truth agora e conte para nós. Pode ser uma coisa boba, como um camundongo na geladeira, ou quem sabe se você foi vítima de um assalto. Compartilhe suas idéias com o mundo, no John Truth Live de hoje.

 Priest virou-se para Melanie.

 — Telefone para lá no seu celular.

 — E se rastrearem a ligação?

 — É uma estação de rádio, não a porra do FBI, não podem rastrear ligações. Vamos, telefone.

 — Tudo bem — Melanie teclou o número que John Truth repetia pelo rádio. — Ocupado.

 — Insiste.

 — Este telefone tem rediscagem automática.

 Oaktree parou o carro no topo da elevação, de onde contemplaram a cidadezinha. Priest examinou ansiosamente o estacionamento na frente do café. Os policiais continuavam lá. Não queria dar início às vibrações enquanto estivessem tão perto — um deles podia ter a presença de espírito de pular dentro da cabine e desligar o motor.

 — Malditos! — resmungou. — Por que não vão pegar uns criminosos?

 — Não diga isso — eles podem vir atrás de nós — brincou Oaktree.

 — Nós não somos criminosos — disse Star, convincente. Estamos tentando salvar o nosso país.

 — Absolutamente certo! — exclamou Priest com um sorriso, e deu um soco no ar.

 — Estou falando sério — disse ela. — Daqui a cem anos, quando as pessoas voltarem os olhos para trás, dirão que os racionais fomos nós e que o governo é que foi insensato ao deixar o país ser destruído pela poluição. Como os desertores na Primeira Grande Guerra — foram odiados na época, mas hoje todo mundo diz que só eles não eram loucos.

 Oaktree concordou: — É verdade.

 O carro da polícia saiu da frente do café.

 — Consegui ! — exclamou Melanie. — Consegui — alô? Sim, sim, eu espero para falar com John Truth... Ele disse para desligar o rádio... — Priest desligou prontamente o rádio do carro. — Quero falar sobre o terremoto — prosseguiu Melanie, respondendo às perguntas que lhe faziam. — É... Melinda. Oh! O cara não está mais ouvindo. Porra, quase que falei meu nome verdadeiro!

 — Não faz mal, mesmo que tivesse falado deve haver um milhão de Melanies — disse Priest. — Me dá o telefone.

 Ela deu e Priest pôs-se a escutar. Ouviu um comercial inteiro de uma concessionária Lexus em San José. Parecia que a estação irradiava o programa para as pessoas que ficavam aguardando ao telefone. Ele viu a viatura da polícia subir a colina na sua direção. Passou pelo caminhão, entrou na auto-estrada e desapareceu.

 De repente ele ouviu:

 — E Melinda quer falar sobre a ameaça de terremoto. Alô, Melinda, você está no John Truth Live!

 Priest falou:

 — Alô, John, aqui não é a Melinda, é o Martelo do Éden. Houve uma pausa. Quando John Truth falou de novo, sua voz tinha assumido o tom portentoso que ele usava para declarações muito graves.

 — Companheiro, é melhor que você não esteja brincando, porque se estiver poderá ir para a cadeia, sabe disso?

 — Acho que posso ir para a cadeia se não estiver brincando. Truth não riu.

 — Por que está ligando para mim?

 — Só queríamos ter certeza, desta vez, de que todo mundo saiba que o terremoto foi causado por nós.

 — Quando acontecerá?

 — Dentro de alguns minutos.

 — Onde?

 — Não posso dizer, porque pode dar ao FBI a chance de nos pegar, mas vou lhe dizer algo que ninguém poderia adivinhar. Terá lugar exatamente em cima da Rota 101.

 

 Raja Khan pulou em cima de uma mesa do posto de comando. — Cala a boca todo mundo e escutem! — berrou. Todos perceberam o tom agudo do medo na sua voz e o silêncio que se fez no salão foi mortal. — Um sujeito afirmando ser do Martelo do Éden está no John Truth Live.

 Todo mundo fez perguntas ao mesmo tempo e Judy se levantou:

 — Silêncio! — gritou. — Raja, o que foi que ele disse?

 Carl Theobald, que estava sentado com o ouvido grudado no alto-falante de um rádio portátil, respondeu à pergunta dela. — Disse que o próximo terremoto terá lugar na Rota 101, dentro de poucos minutos.

 — Ótimo, Carl! Aumenta o volume — Judy virou-se para o outro lado. — Michael — isso se ajusta a qualquer das locações que temos sob vigilância?

 — Não! — respondeu ele.

 — Merda, adivinhei errado.

 — Então adivinhe de novo! Tente calcular de novo onde essa gente pode estar!

 — Tudo bem — disse ele. — Mas pare de gritar. — Michael sentou-se diante do seu computador e pegou o mouse.

 No rádio de Carl Theobald uma voz disse: — Aí vem agora.

 Soou um alarme no computador de Michael.

 — O que é isso? — quis saber Judy. — Um tremor? Michael clicou o mouse.

 — Espera, está aparecendo na tela... Não, não é um tremor. É um vibrador sísmico.

 Judy olhou por cima do ombro dele. Viu na tela do monitor um padrão exatamente como o que ele lhe mostrara no domingo.

 — Onde é isso? — disse ela. — Me dá uma localização!

 — Estou trabalhando nisso — retrucou ele prontamente. Gritar comigo não vai fazer o computador triangular mais depressa.

 Como é que ele podia ser tão suscetível numa hora dessas? — Por que não está havendo um terremoto? Talvez o método deles não esteja funcionando!

 — Em Owens Valley não funcionou na primeira vez.

 — Eu não sabia.

 — OK, aqui estão as coordenadas.

 Judy e Charlie Marsh foram até o mapa da parede. Michael cantou as coordenadas.

 — Aqui! — exclamou ela, triunfante. — Bem em cima da Rota 101, ao sul de San Francisco. Uma cidade chamada Felicitas. Carl, telefone para a polícia local. Raja, notifique a polícia rodoviária. Charlie, vou com você no helicóptero.

 — Olha que essas coordenadas não são cem por cento precisas – advertiu Michael. — O vibrador pode estar em qualquer lugar em um raio de uns dois quilômetros a partir do ponto definido por elas.

 — Como é possível reduzir a margem de erro?

 — Se eu examinar a paisagem, posso localizar a linha da falha.

 — É melhor você ir conosco no helicóptero. Peque um colete e venha!

 

 — Não está funcionando! — exclamou Priest, tentando esconder sua inquietação.

 Melanie disse:

 — Não funcionou na primeira vez em Owens Valley, não se lembra? – ela pareceu exasperada. — Tivemos que deslocar o caminhão e tentar de novo.

 — Que merda, espero que tenhamos tempo — disse Priest. — Toca, Oaktree! Vamos voltar para o caminhão!

 Oaktree engrenou o carro velho e desceu velozmente a colina.

 Priest virou-se e gritou para Melanie, esforçando-se para ser ouvido sobre o ronco do motor.

 — Para onde você acha que devemos ir?

 — Há uma transversal quase em frente ao café — desça por lá cerca de quatrocentos metros. É onde a falha corre.

 — OK.

 Oaktree parou o carro diante do café e Priest saltou fora. Uma mulher gorda, de meia-idade, parou diante dele.

 — Está ouvindo esse barulho? — perguntou ela. — Parece estar sendo produzido pelo seu caminhão. É de arrebentar os ouvidos!

 — Saia da minha frente ou eu arrebento a porra da sua cabeça — replicou Priest, pulando dentro do caminhão: Levantou o prato de aço, engrenou o motor e saiu.

 Quando virou para pegar a rua em frente ao café cortou a frente de uma caminhonete velha e enorme. Ela parou, ruidosamente, e o motorista buzinou, indignado. Priest seguiu e entrou na rua transversal. Andou quatrocentos metros e parou em frente a uma casa de um só andar muito bem arrumadinha, cujo jardim era protegido por uma cerca. Um cachorrinho branco latiu furiosamente para ele através da cerca. Trabalhando com rapidez febril, mais uma vez baixou a placa circular do vibrador e verificou os instrumentos. Configurou para controle remoto, saltou fora e voltou para o `Cuda.

 Oaktree fez uma curva de cento e oitenta graus cantando pneu e arrancou, acelerando o que dava. Ao percorrerem velozmente a rua principal, Priest observou que as atividades deles começavam a atrair a atenção. Estavam sendo observados por um casal carregando sacolas de compras, dois meninos de bicicleta e três gordos que saíram de um bar para ver o que estava acontecendo. Chegaram ao fim da rua e viraram para subir a colina.

 — Aqui já chega — disse Priest. Oaktree parou o carro e Priest ativou o controle remoto.

 Dava para ouvir o caminhão vibrando a seis quadras de distância.

 Star perguntou, trêmula:

 — Estamos seguros aqui?

 Os quatro ficaram em silêncio por um momento, imobilizados pela ansiedade, aguardando o terremoto. O caminhão vibrou por trinta segundos e parou.

 — Seguros demais — respondeu Priest.

 Oaktree disse:

 — Não está funcionando, Priest!

 — Aconteceu a mesma coisa da outra vez! — disse Priest , desesperado.

 — Vai funcionar!

 Melanie disse:

 — Sabe o que eu acho? A terra aqui é muito mole. A cidade fica à margem do rio. Solos pouco consistentes, encharcados, abafam as vibrações.

 Priest voltou-se para ela acusadoramente.

 — Ontem você me disse que os terremotos causam mais danos em terreno molhado.

 — O que eu disse foi que os edifícios construídos em solo molhado tendem a sofrer mais danos, porque o solo sob eles se desloca mais. Mas para transmitir as ondas de choque até a falha, o solo rochoso seria melhor.

 — Esquece a maldita aula! — exclamou Priest. — Onde tentamos agora?

 Ela apontou para cima da elevação.

 — O ponto de onde saímos da auto-estrada. Não fica diretamente em cima da falha, mas lá o solo deve ser rochoso. Oaktree levantou uma sobrancelha para Priest, que disse:

 — De volta para o caminhão, já!

 Eles percorreram velozmente a rua principal, agora no sentido contrário, observados desta vez por mais gente. Oaktree entrou a toda velocidade na ruazinha transversal onde estava o caminhão e freou ruidosamente. Priest pulou para a cabine, levantou o prato e seguiu em frente, acelerando ao máximo.

 O enorme caminhão deslocou-se com penosa lentidão através da cidade e se arrastou na subida da rampa. Quando estava na metade do caminho, a viatura da polícia que eles tinham visto veio na direção contrária, com as luzes faiscando e a sirene aberta. Até que por fim o caminhão chegou ao ponto do qual Priest contemplara a cidade pela primeira vez e a considerara perfeita. Parou do outro lado da estrada, na linha do restaurante Big Ribs. E, pela terceira vez, arriou o prato de aço do vibrador. À sua retaguarda podia ver o `Cuda. Voltando da cidade , vinha o carro da polícia. Levantando a cabeça, localizou um helicóptero no céu. Não tinha tempo de sair do caminhão e usar o controle remoto. Teria que ativar o vibrador sentado ali no lugar do motorista. Pôs a mão no controle, hesitou e puxou a alavanca.

 

 Do helicóptero, Felicitas parecia adormecida.

 Era uma noite clara, com excelente visibilidade. Judy podia ver a rua principal e a trama das ruas que a cercavam, as árvores nos jardins e os carros diante das casas, mas nada parecia estar se movendo. Um homem regando flores parecia uma estátua, de tão imóvel; uma mulher com um chapéu de palha grande estava parada na calçada; três adolescentes numa esquina estavam como que congeladas nos respectivos lugares; dois meninos pararam suas bicicletas no meio da rua. Havia movimento na auto-estrada que passava pela cidade sobre os elegantes arcos de um viaduto. Com a usual mistura de carros e caminhões, ela localizou duas radiopatrulhas a mais ou menos dois quilômetros de distância, aproximando-se da cidade em alta velocidade, atendendo, supôs Judy, ao seu chamado de emergência. Mas na cidade ninguém se movia. Após um momento ela descobriu o que estava acontecendo. Eles estavam ouvindo.

 O barulho do helicóptero a impedia de escutar o que eles estavam ouvindo em terra, mas podia adivinhar. Era o vibrador sísmico. Mas onde estava ele?

 O aparelho passou a voar baixo o bastante para identificar as marcas dos carros estacionados na rua principal, mas Judy não viu nenhuma viatura grande o bastante para ser um vibrador sísmico. Nenhuma das árvores que obscureciam parcialmente as ruas transversais parecia frondosa o bastante para ocultar um caminhão de grande porte. Ela se dirigiu a Michael usando o equipamento de intercomunicação.

 — Consegue ver a falha?

 — Consigo — ele estudava um mapa e o comparava com a paisagem que tinha diante dos olhos. — Atravessa a estrada de ferro, o rio, a auto-estrada e o oleoduto. Meu Deus Todo-Poderoso, vai haver danos.

 — Mas onde está o vibrador?

 — O que é aquilo lá na encosta?

 Judy seguiu a direção indicada pelo dedo dele. Acima da cidade, perto da estrada, viu um grupinho de edificações: um restaurante qualquer de comida rápida, um prédio de escritórios com as paredes de vidro e uma pequena estrutura de madeira, provavelmente uma capela. Na estrada, perto do restaurante, havia um cupê cor de lama que parecia um velho carro esporte do início dos anos 70, uma viatura da polícia parando atrás dele e um caminhão muito grande todo pintado com dragões, em vermelho escarlate e amarelo luminoso. Dava para ler as palavras "A Boca do Dragão".

 — É um desses brinquedos de mafuá — disse ela.

 — Ou um disfarce — sugeriu ele. — O tamanho é o de um vibrador sísmico.

 — Meu Deus, aposto como você está com a razão! — exclamou ela. — Charlie, está ouvindo?

 Charlie Marsh estava sentado ao lado do piloto. Seis membros da sua equipe da SWAT podiam ser vistos atrás de Judy e Michael, armados com submetralhadoras MP- 5, um tanto volumosas mas de pequeno comprimento. O resto do pessoal deslocava-se velozmente pela auto-estrada em uma viatura blindada que servia como centro de operações táticas da equipe.

 — Estou ouvindo — disse Charlie. — Piloto, pode dar um jeito para a gente descer perto daquele caminhão?

 — Não dá muito jeito — replicou o piloto. — As encostas da colina são íngremes e a estrada não tem largura suficiente. — Eu preferia descer no estacionamento daquele restaurante.

 — Pois desça — disse Charlie.

 — Não vai haver terremoto, vai? — quis saber o piloto. Ninguém respondeu.

 Justo quando o helicóptero desceu, um vulto saltou do caminhão. Judy viu que era um homem alto e magro, com o cabelo escuro comprido e sentiu imediatamente que se tratava do seu inimigo. Ele fixou os olhos no aparelho e Judy achou que tinha os olhos fixos nela. Mesmo longe demais para ver com clareza as feições, teve certeza de que se tratava de Ricky Granger.

 Fica aí, seu filho da mãe, que vou pegá-lo.

 O helicóptero pairou sobre a área de estacionamento e começou a descer.

 Judy deu-se conta de que ela e todo o pessoal que a acompanhava podiam morrer nos próximos segundos.

 Quando o helicóptero tocou no chão, ouviu-se um barulho que parecia anunciar o dia do julgamento final.

 

 O estrondo foi como um trovão, tão alto que abafou o barulho feito pelo vibrador e pelo troar das hélices e do motor do helicóptero. O solo pareceu se levantar e atingiu Priest como se fosse um soco. Ele estava prestando atenção na aterrissagem do aparelho na área de estacionamento do Big Ribs, achando que o vibrador estava funcionando à toa, que seu plano falhara e que agora seria preso e jogado numa cela. No momento seguinte caiu de cara no chão, sentindo-se como se tivesse sido atingido por um soco do Mike Tyson. Rolou de lado, respirando com dificuldade, e viu as árvores que o cercavam retorcidas como se estivessem em meio a um furacão. Até que, um momento depois, recuperou os sentidos e percebeu que tinha dado certo! Ele havia provocado um terremoto. Sim! E agora estava bem no meio da área atingida pelo terremoto. Priest teve medo pela própria vida.

 O ar ressoava com um estrondo que lembrava o de pedras sendo sacudidas num copo imenso, como dados. Com algum esforço conseguiu levantar-se, mas o solo não parou quieto, e, ao tentar pôr-se de pé, Priest caiu de novo.

 Puta merda, estou liquidado.

 Rolou mais uma vez e conseguiu sentar-se direito.

 Foi então que ouviu um barulho como o de centenas de vidraças se espatifando. Olhando por cima para sua direita, viu que era exatamente isso que estava acontecendo.

 As paredes de vidro do prédio de escritórios estavam se estilhaçando todas ao mesmo tempo. Milhões de cacos de vidro caíram como uma cascata. Sim! A capela batista que ficava mais adiante era uma construção frágil de madeira e suas paredes finas caíram em meio a uma nuvem de poeira, ficando coladas ao chão. No meio dos destroços ficou apenas um imponente púlpito de carvalho todo entalhado.

 Eu consegui! Eu consegui!

 As janelas do Big Ribs se partiram e os gritos das crianças aterrorizadas puderam ser ouvidos longe. Um canto do teto cedeu, fez uma barriga e depois caiu esmagando um grupo de cinco ou seis adolescentes, suas mesas e pratos de comida. Os outros clientes se levantaram todos ao mesmo tempo e se lançaram numa onda de encontro às janelas, agora sem vidros, quando o resto do teto começou a cair em cima deles.

 O ar estava impregnado do cheiro acre de gasolina. O tremor rompera os tanques subterrâneos do posto, avaliou Priest. Viu um mar de combustível se espalhando no pátio diante das bombas. Uma motocicleta descontrolou-se e saiu da rua, derrapando de um lado para o outro, até que o motociclista caiu e a máquina deslizou pelo piso de concreto, levantando centelhas. A gasolina derramada pegou fogo com um barulho apavorante e um segundo depois estava tudo em chamas.

 Jesus Cristo!

 O fogo estava assustadoramente perto do `Cuda. Priest podia ver o carro balançando de um lado para o outro e o rosto aterrorizado de Oaktree atrás do volante.

 Ele nunca tinha visto Oaktree assustado.

 Os cavalos do campo ao lado do restaurante irromperam pela cerca quebrada e galoparam a toda velocidade ao longo da rua, na direção de Priest, olhos fixos, bocas abertas, apavorados. Priest não teve tempo para sair do caminho. Cobriu a cabeça com as mãos. Os cavalos passaram

por um lado ou pelo outro.

 Na cidadezinha, o sino da igreja batia loucamente.

 

O helicóptero levantou vôo de novo um segundo depois de ter tocado no solo. Judy reparou que o chão debaixo dela tremia como um bloco de gelatina, e depois foi diminuindo de tamanho, à medida que o helicóptero ia ganhando altura novamente. Arfante, ela viu o vidro das paredes do pequeno prédio comercial transformar-se em algo que lembrava espuma do mar e cair numa enorme onda até o solo. Depois viu um motociclista bater no posto de gasolina e deixou escapar um grito, profundamente angustiada, quando o combustível pegou fogo e as chamas engolfaram o pobre motociclista caído no chão.

 O helicóptero deu uma virada e o ponto de vista dela mudou. Diante dos seus olhos estendia-se uma área plana. À distância, um trem de carga cruzava os campos. A princípio pensou que o trem escapara ileso, mas depois percebeu que estava reduzindo bruscamente a velocidade. Tinha descarrilado, e, enquanto olhava, horrorizada, a locomotiva mergulhou no campo que acompanhava a linha. Os vagões carregados foram encaixotando um no outro contra a parte de trás da locomotiva. O helicóptero girou de novo, ainda ganhando altura.

 Judy passou a poder ver a cidade. E foi uma visão chocante. Pessoas desesperadas, em pânico, apareciam correndo na rua, as bocas abertas em gritos de pavor que ela não conseguia ouvir, tentando fugir enquanto suas casas desmoronavam as paredes rachando, as janelas explodindo e os telhados oscilando de maneira assustadora para cair nos jardins bem cuidados ou esmagar automóveis na frente das casas. A rua principal parecia, ao mesmo tempo, em chamas e debaixo d'água. As ruas estavam cheias de carros batidos. Judy viu uma lanterna piscando e depois outra, e adivinhou que as linhas de força estavam se rompendo.

 Quando o helicóptero ganhou mais altura, a auto-estrada passou a ser visível e as mãos de Judy voaram para a boca, num gesto que traduziu o horror que lhe causou ver que um dos arcos gigantescos que sustentavam o viaduto tinha se partido. O leito da estrada rachara e uma língua de asfalto ficou pairando no ar. Pelo menos dez carros tinham batido de ambos os lados da fenda, e alguns se incendiaram. E a carnificina não acabara. Diante dos olhos dela um enorme Chevrolet velho, do tipo que chamavam de rabo-de-peixe, mergulhou no precipício, derrapando de lado, enquanto o motorista tentava inutilmente frear. Judy ouviu o grito que ela própria deixou escapar quando o carro caiu no vazio. Pôde ver o rosto aterrorizado do motorista, um homem ainda jovem, quando percebeu que ia morrer. O carro foi girando no ar, com chocante lentidão, e

finalmente caiu em cima do telhado de uma casa, incendiando-se e incendiando também a casa.

 Judy escondeu o rosto nas mãos. Aquilo era horrível demais para olhar. Mas aí se lembrou que era uma agente do FBI. Obrigou-se a olhar de novo. Os carros na estrada agora reduziam a marcha com a antecedência necessária para frearem antes de bater. Mas as viaturas da Patrulha Rodoviária e o caminhão da SWAT não conseguiriam atingir Felicitas pela auto-estrada.

 Uma súbita lufada de vento afastou a nuvem de fumaça preta que cobria o posto de gasolina e Judy viu o homem que supôs ser Ricky Granger. Você fez isso. Você matou toda essa gente. Seu merda, vou botar você na cadeia nem que seja a última coisa que eu faça na vida. Com dificuldade, Granger conseguiu ficar de pé e correu para o cupê marrom, gritando e gesticulando para as pessoas que se encontravam lá dentro.

 A viatura da polícia estava logo atrás do cupê, mas os policiais pareceram lentos na sua reação.

 Judy viu que os terroristas estavam prestes a fugir. Charlie chegou à mesma conclusão.

 — Desce, piloto! — gritou ele pelo aparelho de intercomunicação.

 — Você está maluco, cara? — retrucou o piloto.

 — Aquela gente ali é a responsável por isto! — gritou Judy, apontando por cima do ombro do piloto. — São os responsáveis por toda esta carnificina e agora estão fugindo!

 — Merda! — exclamou o piloto. E o helicóptero guinou na direção do solo.

 

 Priest gritou para Oaktree pela janela aberta do `Cuda. — Vamos dar o fora daqui !

 — Tudo bem — por onde?

 Priest apontou a estrada que ia para a cidade.

 — Vá por aqui, mas em vez de entrar na rua principal vire à direita e siga pela velha estrada secundária — que volta para San Francisco. Eu verifiquei.

 — OK!

 Priest viu os dois policiais locais saltarem da radiopatrulha. Ele pulou no caminhão, levantou o pesado prato de aço e saiu atrás do `Cuda. Oaktree fez uma curva de cento e oitenta graus e desceu a ladeira. Priest virou o caminhão mais lentamente.

 Um dos policiais estava de pé no meio da rua, apontando a arma para o caminhão. Era o rapaz magro que dissera a Priest para aproveitar bem o resto do dia e que agora gritava:

 — Polícia! Pára!

 Priest seguiu direto em cima dele.

 O guarda atirou de qualquer maneira e pulou fora.

 À frente, a estrada contornava a cidade pelo leste, evitando a parte que mais sofrera com o terremoto, que era no centro da cidade. Priest teve que desviar-se de dois carros batidos em frente ao edifício comercial de vidro que fora destruído, mas depois não parecia haver mais nada. O caminhão ganhou velocidade.

 Vamos conseguir!

 Foi quando o helicóptero do FBI aterrissou no meio da estrada a uns quinhentos metros de distância.

 Merda. Priest viu que o `Cuda freava ruidosamente.

 Tudo bem, seus babacas, vocês pediram. Priest acelerou ao máximo. Os agentes da SWAT, armados até os dentes, saltaram do helicóptero um por um e começaram a entrar em posição ao lado da estrada. No caminhão, Priest acelerou colina abaixo, ganhando velocidade e passou pelo `Cuda parado. — Agora vem atrás de mim — murmurou, na esperança de que Oaktree adivinhasse o que esperava que ele fizesse. Priest viu Judy Maddox saltar do helicóptero. Tinha nas mãos uma escopeta e um colete à prova de balas escondia seu corpo gracioso. Ela ajoelhou-se atrás de um poste e foi seguida por um homem, que Priest reconheceu como sendo o marido de Melanie, Michael. Priest deu uma espiada nos espelhos laterais. Oaktree o seguia bem de perto, transformando o `Cuda num alvo difícil. Oaktree não esquecera tudo que aprendera nos Fuzileiros. Atrás do Cuda, distanciado uns cem metros, mas avançando como um raio azul e aproximando-se rapidamente, vinha a radiopatrulha. O caminhão de Priest estava a vinte metros dos agentes indo reto na direção do helicóptero. Um agente do FBI levantou-se ao lado da estrada e apontou uma metralhadora pequena mas volumosa. Jesus, tomara que os federais não tenham lançadores de granadas. O helicóptero levantou vôo.

 

 Judy soltou um palavrão. O piloto do helicóptero, ruim no cumprimento de ordens, pousara demasiado perto dos veículos que se aproximavam. Mal houve tempo para o pessoal da SWAT e os outros agentes saltarem e tomarem posição. Michael pulou para o lado da estrada.

 — Deita! — gritou Judy.

 Ela viu o motorista do caminhão mergulhar atrás do painel quando um dos homens da SWAT abriu fogo com sua submetralhadora. O pára-brisa atingido ficou fosco, apareceram buracos de balas nos pára-lamas e no capô, mas o caminhão não parou. Judy deixou escapar um grito de frustração.

 Apressadamente ela apontou sua escopeta M870 de cinco tiros e alvejou os pneus, mas estava desequilibrada e perdeu os tiros.

 Logo o caminhão passou ao lado dela. Todos os tiros foram suspensos: os agentes recearam se atingir uns aos outros.

 O helicóptero estava levantando vôo para sair da frente do caminhão — mas aí Judy viu, para seu horror, que o piloto fora uma fração de segundo lerdo demais. O teto da cabine do caminhão bateu no trem de aterrissagem do helicóptero. A aeronave inclinou-se subitamente. O caminhão seguiu em frente, intacto. O `Cuda marrom passou a toda, grudado no caminhão.

 Judy disparou loucamente contra os dois veículos.

 O helicóptero pareceu oscilar enquanto o piloto tentava corrigir a inclinação. Aí uma das lâminas do rotor tocou no solo.

 — Oh, não! — gritou Judy. — Por favor, não!

 A cauda do aparelho balançou e subiu. Judy pôde ver a expressão aterrorizada do piloto, lutando com os controles. Depois, de repente, o nariz mergulhou no meio da estrada com um estrondo, seguido imediatamente pelo ruído musical do vidro se estilhaçando. Por um momento o helicóptero ficou parado quase na vertical, apoiado no nariz. Depois começou a cair devagar, de lado.

 A radiopatrulha, que vinha a uns cento e vinte por hora, freou desesperadamente, derrapou e bateu no helicóptero. Houve um estrondo ensurdecedor e os dois veículos, a aeronave e o automóvel, pegaram fogo.

 

Priest viu a batida pelos retrovisores laterais e soltou um grito de vitória. Tudo indicava que o FBI não tinha mais como prosseguir, sem helicóptero e sem carros. Nos minutos que se seguiram eles iriam tentar desesperadamente salvar os policiais e o piloto, caso ainda estivessem vivos. Quando um deles se lembrasse de conseguir um carro numa casa próxima, Priest estaria a quilômetros de distância. Ele empurrou o vidro estilhaçado do pára-brisa sem diminuir a marcha. Meu Deus, acho que conseguimos! Atrás dele o `Cuda começou a oscilar de um modo estranho. Após um instante, Priest concluiu que devia estar com um pneu furado. Como seguia em frente, devia ser um pneu traseiro. Oaktree era capaz de continuar mais uns dois quilômetros daquele jeito.

 Eles atingiram a encruzilhada. Três carros tinham empilhado ali: uma minivan Toyota com um banco de bebê preso ao assento, uma picape Dodge bem usada e um velho Cadillac Coupe de Ville branco. Priest examinou os três cuidadosamente. Nenhum tinha sido seriamente danificado, e o motor da minivan ainda funcionava. Os motoristas não estavam — deviam ter ido procurar um telefone. Priest contornou os carros e virou à direita, na direção contrária à da cidade. Encostou o caminhão depois da primeira curva. Estavam agora a quase dois quilômetros de distância do FBI e completamente fora de vista. Ficaria em segurança por um minuto ou dois. Saltou fora do caminhão.

 O `Cuda parou atrás e Oaktree pulou na estrada, com um sorriso largo.

 — Missão completada com sucesso, general! — disse ele. — Nunca vi coisa parecida nem quando servi nos Fuzileiros!

 Priest bateu a palma da mão na dele, os braços de ambos esticados.

 — Mas agora precisamos nos afastar do campo de batalha e depressa.

 Star e Melanie também saltaram do carro. As bochechas de Melanie estavam rosadas, quase como se estivesse sexualmente excitada.

 — Meu Deus, nós conseguimos, nós conseguimos! — disse ela.

 Star abaixou-se e vomitou ao lado da estrada.

 

 Charlie Marsh estava falando num telefone celular.

 — O piloto morreu, e os dois policiais da cidade também. A Rota 101 está um inferno, cheia de carros batidos, e tem de ser fechada ao tráfego. Aqui em Felicitas temos acidentes de automóveis, incêndios, inundações, um gasoduto arrebentado e um trem descarrilado. Você vai ter que se ligar com o pessoal do gabinete do governador, sem dúvida nenhuma.

 Judy fez um gesto pedindo o telefone. Ele balançou a cabeça e disse no bocal:

 — Ponha uma pessoa da equipe de Judy na linha.

 — Aqui é Judy, quem fala? — disse ela rapidamente.

 — Carl. Como é que você está, Judy?

 — Estou bem, mas furiosa comigo mesma por ter perdido os suspeitos. Divulgue uma ordem para deter dois veículos. Um é um caminhão pintado com dragões vermelhos e amarelos, parece um desses caminhões que transportam e servem de base para brinquedos de parques de diversões. O outro é um Plymouth marrom `Cuda, com vinte e cinco ou trinta anos de idade. Mande também outro helicóptero para procurar esses veículos nas estradas que saem de Felicitas — ela deu uma olhada para o céu. – Já está bastante escuro, mas não faz mal. Qualquer veículo com essas características deve ser parado e seus ocupantes interrogados.

 — E se alguma pessoa corresponder à descrição de Granger...?

 — Leve para aí e prenda-o até eu chegar.

 — O que é que você vai fazer?

 — Acho que vou requisitar uns carros e voltar ao escritório. De alguma maneira... — ela interrompeu-se e lutou contra uma onda de exaustão e desespero. — De alguma maneira, temos que impedir que isto aconteça de novo.

 

 — Ainda não acabou — disse Priest. — Em questão de uma hora todos os policiais da Califórnia estarão procurando um caminhão com a pintura "A Boca do Dragão" — ele virou-se para Oaktree. — Quanto tempo levamos para tirar os painéis?

 — Alguns minutos, com alguns bons martelos.

 — O caminhão tem um estojo de ferramentas.

 Trabalhando depressa, os dois tiraram os painéis do caminhão e jogaram por cima de uma cerca de arame farpado em um campo. Com sorte, e na confusão que se seguiu ao terremoto, se passariam um ou dois dias até que alguém prestasse atenção naquilo.

 — O que é que você vai dizer ao Bones? — perguntou Oaktree enquanto trabalhavam.

 — Eu penso em alguma coisa.

 Melanie ajudou, mas Star permaneceu de costas para eles, debruçada na mala do `Cuda. Estava chorando. Priest sabia que Star ia criar problema, mas não havia tempo para consolá-la agora.

 Quando terminaram, recuaram um pouco para apreciar o resultado. Oaktree comentou, preocupado:

 — Agora essa droga está parecendo de novo um vibrador sísmico.

 — Eu sei — concordou Priest. — Mas não há nada que eu possa fazer. Está ficando escuro. Não tenho que ir para muito longe e todos os policiais num raio de oitenta quilômetros vão ser recrutados para os trabalhos de salvamento. Só espero ter sorte. Agora dê o fora daqui. Leve Star.

 — Primeiro tenho que trocar um pneu.

 — Não se dê ao trabalho. De qualquer maneira vamos ter que nos livrar do `Cuda. Os homens do FBI o viram e vão procurar por ele. — Apontou na direção da encruzilhada. — Vi três carros lá atrás. Peque um para você.

 Oaktree saiu correndo.

 Star encarou Priest com olhos acusadores.

 — Não posso acreditar que tenhamos feito isso — disse ela. – Quantas pessoas nós matamos?

 — Não tínhamos escolha — retrucou ele, irado. — Você me disse que faria qualquer coisa para salvar a comunidade — não lembra?

 — Mas você está tão tranqüilo. Toda aquela gente morta, um número muito maior de feridos, famílias que perderam suas casas — você não se sente profundamente deprimido?

 — Claro que sim.

 — E ela — Star apontou para Melanie. — Olha só para a cara dela. Está toda animada. Meu Deus, eu acho que gosta disso tudo.

 — Star, nós conversamos depois, está bem?

 Ela sacudiu a cabeça, como se estivesse atônita.

 — Passei vinte e cinco anos com você e nunca cheguei realmente a conhecê-lo.

 Oaktree voltou dirigindo o Toyota.

 — Nada de errado com ele, exceto a lataria amassada disse.

 Priest disse para Star: — Vá com Oaktree.

 Ela hesitou por um longo momento, depois entrou no carro. Oaktree arrancou e desapareceu depressa.

 — Entre no caminhão — disse Priest, dirigindo-se agora a Melanie. Ele acomodou-se ao volante e recuou até a encruzilhada. Aí os dois saltaram e examinaram os dois carros remanescentes. Priest gostou da aparência do Cadillac. A mala estava muito amassada, mas a frente nada sofrera, e as chaves estavam na ignição.

 — Siga-me no Cadillac — disse ele.

 Melanie entrou no carro e virou a chave. O motor pegou na mesma hora. Ela perguntou:

 — Para onde vamos?

 — Para o armazém Perpetua Diaries.

 — Tudo bem.

 — Me passe o telefone.

 — Vai telefonar para quem? Não há de ser para o FBI.

 — Não, só a estação de rádio.

 Ela entregou o telefone.

 Quando já estavam prestes a sair, houve uma imensa explosão à distância. Priest olhou na direção de Felicitas e viu um jato de fogo subir alto no céu. Melanie disse:

 — Uau, o que é aquilo?

 A labareda recuou e transformou-se numa luz brilhante no céu da noite.

 — Acho que o gasoduto acaba de pegar fogo — disse Priest.

 — Puxa vida, é isso o que eu chamo de fogos de artifício.

 

 Michael Quercus estava sentado num pequeno gramado do lado da estrada. Parecia chocado e impotente.

 Judy aproximou-se.

 — Levanta — disse ela. — Controle-se. Todo dia morre gente.

 — Eu sei — disse ele. — Não são as mortes — embora tenham sido tantas. É outra coisa.

 — O quê?

 — Você viu quem estava no carro?

 — O `Cuda? Havia um cara preto dirigindo.

 — Mas no banco de trás?

 — Não vi ninguém!

 — Eu vi. Uma mulher.

 — Você a reconheceu?

 — Claro que sim — respondeu ele. — Era minha mulher.

 

 Foram necessários vinte minutos de rediscagem no celular de Melanie para Priest conseguir ligação com o programa de John Truth. Quando ele ouviu o sinal de chamada já estava nas cercanias de San Francisco. O programa ainda estava no ar. Priest disse que era do Martelo do Éden e a conexão foi imediata.

 — Você fez uma coisa terrível — disse Truth. Usou sua voz mais portentosa mas Priest podia garantir que por baixo do tom solene o homem estava exultante. O terremoto praticamente acontecera durante seu programa. Aquilo o tornaria a personalidade mais importante do rádio nos Estados Unidos. Sai da frente, Howard Stern!

 — Você está enganado — retrucou Priest. — As pessoas que estão transformando a Califórnia num deserto improdutivo e envenenado é que fizeram uma coisa terrível. Eu só estou tentando detê-las.

 — Matando gente inocente?

 — A poluição mata gente inocente. Os automóveis matam gente inocente.

 Ligue para o concessionário Lexus que anuncia no seu programa e diga a ele que fez uma coisa terrível vendendo cinco carros hoje.

 Seguiu-se um minuto de silêncio. Priest sorriu. Truth não sabia ao certo como responder. Não podia começar a discutir a ética dos seus patrocinadores. Ele mudou rapidamente de assunto.

 — Faço-lhe um apelo para que se entregue agora, imediatamente.

 — Tenho uma coisa para dizer a você e ao povo da Califórnia — contestou Priest. — O governador Robson deve anunciar a suspensão da construção de usinas elétricas em todo o estado — caso contrário haverá outro terremoto.

 — Você faria aquilo de novo! — Truth parecia genuinamente chocado.

 — Pode apostar. E. .. Truth tentou interromper.

 — Como é que você afirma que. . . Priest não cedeu: ... o próximo terremoto será pior do que este.

 — Onde será?

 — Isso eu ainda não posso dizer.

 — Pode dizer quando?

 — Oh, claro. A menos que o governador mude de idéia, — outro terremoto terá lugar dentro de dois dias — ele fez uma pausa, visando a um efeito dramático, e finalizou — dentro de exatamente dois dias.

 Priest desligou.

 — E agora, senhor governador — disse em voz alta. — Diga ao povo para não entrar em pânico.

 

 Judy e Michael voltaram para o centro de operações de emergência poucos minutos antes da meia-noite.

 Judy não dormia havia quarenta horas, mas não sentia sono. O horror do terremoto ainda a dominava. A todo instante ela via, com os olhos da mente, uma das imagens de pesadelo daqueles poucos segundos: o desastre do trem, as pessoas gritando, o helicóptero pegando fogo ou o velho Chevy girando uma porção de vezes no ar. Estava assustadiça e irrequieta quando entrou no clube dos oficiais.

 Mas a revelação de Michael lhe dera nova esperança. Se bem que tivesse sido um choque saber que a mulher dele era um dos terroristas, fora também a melhor pista até agora. Se Judy pudesse encontrar Melanie, encontraria o Martelo do Éden.

 Entrou no antigo salão de bailes que servia agora como posto de comando. Stuart Cleever, o mandachuva de Washington que supervisionava a operação, estava de pé no canto reservado à chefia. Era caprichoso, muito organizado, imaculadamente vestido com um terno cinza, camisa branca e gravata listrada.

 A seu lado estava Brian Kincaid.

 O filho da mãe conseguiu insinuar-se ardilosamente de volta no caso. Quer impressionar o cara de Washington. Brian estava à sua espera.

 — O que diabos saiu errado? — exclamou, assim que a viu.

 — Chegamos alguns segundos atrasados — disse ela, exausta.

 — Você nos disse que tinha todos os sítios sob vigilância contrapôs ele.

 — Tínhamos os mais prováveis. Mas eles sabiam disso, e fugiram da vigilância escolhendo um sítio secundário. Representava um risco maior para eles — pela maior possibilidade de não dar certo — mas funcionou.

 Kincaid virou-se para Cleever com um encolher de ombros, como que dizendo: "Acredite nisso e você acreditará em qualquer coisa."

 Cleever disse para Judy:

 — Assim que você fizer um relatório completo quero que vá para casa e descanse um pouco. Brian assumirá sua equipe. Eu sabia. Kincaid envenenou Cleever contra mim.

 Hora de partir para o tudo ou nada.

 — Eu gostaria de um descanso — disse Judy — mas ainda não. Acredito que teremos os terroristas presos em doze horas. Brian deixou escapar uma exclamação de surpresa.

 Cleever perguntou:

 — Como?

 — Acabo de descobrir uma nova pista. Sei quem orienta os terroristas no tocante aos terremotos.

 — Quem é?

 — O nome dela é Melanie Quercus. Esposa de Michael Quercus, de quem está separada. Ele está nos ajudando aqui. Ela conseguiu a informação dos pontos da falha sob maior tensão com o marido — roubou do computador dele. E eu suspeito que tenha roubado também a lista de sítios que tínhamos sob vigilância.

 — O marido também devia ser considerado suspeito! exclamou Kincaid. — Pode estar mancomunado com ela!

 Judy antecipara essa.

 — Tenho certeza de que não está — disse. — Mas por via das dúvidas ele está passando por um teste com o detector de mentiras neste instante.

 — Ótimo — aprovou Cleever. — Você consegue encontrar a mulher dele?

 

 — Ela disse a Michael que estava vivendo em Del Norte. Minha equipe já está pesquisando nossos bancos de dados para ver o que temos a respeito de comunidades naquela área. Temos uma agência com dois homens funcionando em caráter permanente nas proximidades, em uma cidade chamada Eureka, e pedi a eles para entrarem em contato com a polícia local.

 Cleever balançou a cabeça, aprovando, e avaliou Judy com um olhar.

 — O que é que você quer fazer?

 — Gostaria de ir para lá agora. Durmo no carro. Quando chegar, o pessoal já deve ter levantado os endereços de todas as comunidades da área. Gostaria de vasculhar tudo ao raiar do dia.

 — Você não tem indícios suficientes para conseguir mandados de busca — ponderou Brian.

 Ele tinha razão. O mero fato de Melanie ter dito que estava morando em uma comunidade situada em Del Norte não constituía causa provável. Mas Judy conhecia a lei melhor que Brian.

 — Depois de dois terremotos, as circunstâncias configuram um caso de força maior, não acha?

 Aquilo significava que havia a desculpa legal da existência de vidas em perigo. Brian ficou perplexo, mas Cleever entendeu a referência feita por Judy.

 — Nossa assessoria legal pode resolver este problema, é para isto que estão aqui.

 Cleever fez uma pausa e continuou:

 — Gosto deste plano — disse. — Acho que devemos executá-lo. Brian, tem algum outro comentário?

 Kincaid pareceu amuado.

 — É melhor que ela esteja certa, só isso.

 

 Judy seguiu para o norte em um carro dirigido por uma agente que ela não conhecia, uma entre os diversos agentes recrutados nos escritórios do FBI de Sacramento e Los Angeles a fim de ajudar na crise.

 Michael sentou-se ao lado de Judy, no banco de trás. Ele suplicara para ir. Estava morto de preocupação com Dusty. Se Melanie fazia parte de um grupo de terroristas que causava terremotos, a que tipo de perigo seu filho poderia estar sujeito? Judy conseguira a autorização de Cleever alegando que alguém tinha que tomar conta do menino depois que Melanie fosse presa. Logo depois de atravessarem a Golden Gate, Judy recebeu um telefonema de Carl Theobald. Michael tinha informado qual das quinhentas e tantas companhias de telefone celular existentes no país Melanie usava e Carl conseguira cópias dos registros das suas ligações. A companhia telefônica conseguira identificar a área de onde cada ligação se originara por causa da variação das tarifas. Judy esperava que a maioria tivesse partido de Del Norte, mas ficou desapontada.

 — Na verdade não há nenhum padrão lógico — disse Carl, fatigado. – A moça ligou da área de Owens Valley, de San Francisco, de Felicitas e de vários lugares intermediários; mas tudo isso nos diz apenas que ela estava viajando por todo o estado, o que já sabíamos. Não há telefonemas originados na parte do estado para onde você está se dirigindo.

 — O que sugere a existência de um telefone de linha fixa lá.

 — Ou que ela é cautelosa.

 — Obrigada, Carl. Valeu a tentativa. Agora vê se dorme um pouco.

 — Você está querendo me dizer que isto não é um sonho? Droga.

 Judy riu e desligou.

 A agente que dirigia o carro sintonizou o rádio numa estação de música melodiosa, e Nat King Cole cantou "Let There be Love" enquanto atravessavam velozmente a noite.

 Judy e Michael puderam conversar sem ser ouvidos.

 — O terrível é que não estou surpreso — disse ele, após um período de silenciosa meditação. — Acho que eu mais ou menos sempre soube que Melanie era maluca. Nunca deveria ter deixado que o levasse — mas ela é a mãe dele, sabe? Judy apertou a mão dele, no escuro do carro.

 — Você fez o melhor que pôde, acho eu.

 — É, fiz.

 Ela foi cedendo ao sono, mas continuou apertando a mão de Michael.

 

 Todos se reuniram às cinco horas da manhã no escritório de Eureka, do FBI. Além dos agentes residentes locais, havia representantes do departamento de polícia da cidade e do escritório do xerife do condado. O FBI gostava sempre de envolver todos os elementos ligados à atividade policial quando se tratava de fazer uma incursão daquele tipo, porque era um modo de manter um bom relacionamento com gente cuja ajuda era necessária freqüentemente.

 Havia quatro comunidades residenciais no condado de Del Norte listadas no Catálogo das Comunidades: Um Guia para a da Cooperativa. Informações colhidas nos bancos de dados do FBI revelaram uma quinta e o conhecimento de campo do pessoal baseado na área acrescentara mais duas.

 Um dos agentes locais do FBI lembrou que a comunidade conhecida como Aldeia Fênix ficava apenas a doze quilômetros do local proposto para a construção de uma usina nuclear. O ritmo da pulsação de Judy acelerou ao ouvir isso e ela liderou o grupo que ia incursionar em Fênix.

 Quando se aproximou do lugar, em uma radiopatrulha do xerife do condado, à testa de um comboio de quatro viaturas, seu cansaço desapareceu. Sentiu-se alerta e enérgica de novo. Não conseguira impedir o terremoto de Felicitas, mas podia garantir que não haveria um outro.

 A entrada de Fênix era marcada por um cartaz onde fora pintada uma ave erguendo-se das chamas. Não havia portão ou guardas. As viaturas entraram ruidosamente por uma rua bem cuidada, fizeram um balão à direita e pararam na pista circular. Os agentes saltaram dos carros e espalharam-se por entre as casas. Cada um tinha uma cópia do retrato de Melanie e Dusty que Michael tinha na sua escrivaninha. Ela está aqui, em algum lugar, provavelmente na cama com Ricky Granger, dormindo depois da canseira das últimas horas. Tomara que esteja tendo pesadelo.

 A aldeia era a imagem da paz iluminada pelas primeiras luzes do dia. Havia diversas construções com a forma de celeiros e também um marco geodésico. Os agentes vigiavam as portas de trás e da frente antes de baterem. Perto do estacionamento, Judy encontrou um mapa da aldeia pintado num painel de madeira, onde apareciam as casas e os outros prédios. Havia uma loja, um centro de massagens, uma agência de correio e uma oficina de automóveis. Assim como as quinze casas, o mapa mostrava pastos, pomares, playgrounds e um campo de esportes. Fazia frio naquela hora. Afinal, estavam bem ao norte, e Judy tremia, arrependida por não ter vestido uma roupa mais quente. Enquanto Michael andava de um lado para outro, extremamente tenso, ela esperava pelo grito de triunfo que lhe diria que um dos agentes identificara Melanie.

 Que choque, saber que sua mulher havia se tornado uma terrorista, o tipo de pessoa que um policial mataria a tiros para a alegria de todo mundo. Não é de admirar que ele esteja tenso. É um milagre que não esteja batendo com a cabeça na parede.

 Ao lado do mapa ficava um quadro de avisos. Judy leu uma nota sobre uma quadrilha que estava sendo organizada com a finalidade de levantar fundos para uma obra de caridade. Aquela gente tinha um ar de inocência muito plausível. Os agentes entraram em todas as edificações e examinaram cada aposento, movendo-se rapidamente de casa em casa. Após uns poucos minutos um homem saiu de uma das casas maiores e encaminhou-se para o local onde as quatro viaturas haviam estacionado. Tinha cerca de cinqüenta anos, cabelo e barba despenteados, usava sandálias de couro feitas em casa e tinha um cobertor de lã crua nos ombros. Dirigiu-se a Michael:

 — É você o encarregado?

 — Sou eu a encarregada — disse Judy. Ele virou-se para ela.

 — Poderia então fazer o favor de me dizer o que está acontecendo?

 — Com todo o prazer — disse ela, bruscamente. — Estamos procurando esta mulher — Judy estendeu a mão com a foto.

 — Já vi isso — disse ele sem pegar a fotografia. — Ela não é um de nós.

 Judy teve a deprimente sensação de que ele estava falando a verdade.

 — Esta é uma comunidade religiosa — acrescentou ele, com crescente indignação. — Somos cidadãos obedientes às leis. Não usamos drogas. Pagamos os nossos impostos e obedecemos às posturas locais. Não merecemos ser tratados como criminosos.

 — Nós temos que nos assegurar de que esta mulher não está escondida aqui.

 — Quem é ela, e por que você pensa que ela pode estar aqui? Ou é só porque vocês acham que as pessoas que vivem em comunidades sempre são suspeitas?

 — Não, não imaginamos esse tipo de coisa — respondeu Judy. Sentiu-se tentada a dar uma resposta áspera, mas lembrou-se de que tinha sido ela que o acordara às seis da manhã. — Acontece que esta mulher integra um grupo terrorista. Ela disse ao ex-marido que estava morando em uma comunidade no condado de Del Norte. Lamentamos ter que acordar todas as pessoas em cada comunidade do condado, mas espero que possam entender o quanto isto é importante. Se não fosse, não iríamos incomodá-los, e, para ser sincera, não nos disporíamos a ter tanto trabalho. Ele lhe dirigiu um olhar penetrante e balançou a cabeça, sua atitude se modificando.

 — Tudo bem — falou. — Acredito em você. Há alguma coisa que eu possa fazer para facilitar seu trabalho?

 Ela pensou por um momento. — Todas as edificações da sua comunidade aparecem neste mapa?

 — Não. Há três casas novas no lado oeste logo depois do pomar. Mas por favor, tentem não fazer barulho. Tem uma criança recém- nascida numa delas.

 — OK.

 Sally Dobro, uma agente de meia-idade, aproximou-se.

 — Acho que examinamos tudo — informou. — Não há sinal , de nenhum dos nossos suspeitos.

 Judy disse:

 — Há três casas a oeste do pomar — você esteve lá?

 — Não — respondeu Sally. — Sinto muito. Mas vou agora mesmo.

 — Vá sem fazer barulho — disse Judy. — Tem um bebê pequeno numa delas.

 — Deixa comigo.

 Sally afastou-se e o homem do cobertor balançou a cabeça, em sinal de aprovação.

 O celular de Judy tocou. Ela atendeu e ouviu a voz do agente Frederick Tan.

 — Acabamos de checar todas as edificações da comunidade Magic Hill. Nada.

 — Obrigada, Freddie.

 Em mais dez minutos os outros chefes de grupos ligaram. Todos tinham a mesma mensagem. Melanie Quercus não fora encontrada. Judy ficou desesperada.

 — Droga — exclamou -, estraguei tudo.

 Michael ficou igualmente desanimado. E disse, preocupado:

 — Você acha possível que tenhamos pulado alguma comunidade?

 — Ou isso, ou ela mentiu a respeito do local onde estava.

 Ele ficou pensativo.

 — Relembrando a conversa que tivemos — disse — vejo agora que perguntei a ela onde estava morando, mas foi ele quem respondeu.

 Judy fez que sim.

 — Acho que ele mentiu. É inteligente o bastante para não dar uma localização certa numa hora dessas.

 — Acabo de lembrar o nome dele — acrescentou Michael. — Ela o chamou de Priest.

 

 No café da manhã de sábado, Dale e Poem se levantaram na cozinha diante de todo o mundo e pediram silêncio.

 — Temos uma declaração a fazer — disse Poem.

 Priest achou que ela devia estar grávida novamente e preparou-se para gritar e bater palmas e fazer o pequeno discurso de congratulações que todos esperavam dele. Sentia-se cheio de entusiasmo. Embora ainda não tivesse salvo a comunidade, estava perto. Seu oponente podia ainda não ter sido considerado oficialmente nocauteado, mas estava deitado na lona, lutando para permanecer em combate.

 Poem hesitou e olhou para Dale. O rosto dele tinha uma expressão solene.

 — Estamos deixando a comunidade hoje — disse ele.

 Seguiu-se um silêncio de espanto. Priest ficou atônito. As pessoas não iam embora dali, a menos que ele quisesse que fossem. Aquela gente estava sob o seu encanto. E Dale era um especialista em vinicultura, o homem chave na fabricação dos vinhos. Não podiam dar-se ao luxo de perdê-lo.

 E logo hoje, entre todos os dias! Se Dale tivesse ouvido o noticiário — como Priest, uma hora atrás, sentado em um carro estacionado, ouvira no rádio — saberia que a Califórnia estava em pânico. Os aeroportos invadidos por multidões e as estradas também com enormes engarrafamentos causados por gente que fugia das cidades e de todas as localidades próximas da falha de Santo André. O governador Robson tinha convocado a Guarda Nacional. O vice-presidente embarcara em um avião e estava vindo inspecionar os danos sofridos por Felicitas. Um número cada vez maior de pessoas — senadores e deputados estaduais, prefeitos, líderes comunitários e jornalistas — instavam com o governador para que cedesse à exigência feita pelo Martelo do Éden. Mas Dale não sabia de nada disso.

 Priest não foi o único a ficar chocado com a notícia. Apple caiu no choro e com isso Poem começou também a chorar. Melanie foi a primeira a falar. Ela disse:

 — Mas Dale — por quê?

 — Você sabe por quê — disse ele. — Este vale vai ser inundado.

 — Mas para onde você irá?

 — Rutherford. Fica no vale do rio Napa.

 — Tem emprego certo?

 Dale fez que sim. — Em uma vinícola.

 Não era surpresa que Dale tivesse conseguido arranjar um emprego, pensou Priest. Sua capacidade técnica não tinha preço. Provavelmente ele iria ganhar muito dinheiro. A surpresa era ele querer voltar para o mundo careta.

 Diversas mulheres estavam chorando agora. Song perguntou:

 — Vocês não podiam aguardar e confiar, como o resto de nós?

 Poem respondeu em lágrimas.

 — Nós temos três filhos. Não temos o direito de arriscar suas vidas. Não podemos permanecer aqui, esperando por um milagre, até as águas começarem a engolir nossas casas.

 Priest falou pela primeira vez.

 — Este vale não vai ser inundado.

 — Você não pode afirmar isso — disse Dale.

 O salão ficou em silêncio. Não era comum que alguém ousasse contradizer Priest tão diretamente.

 — Este vale não vai ser inundado — repetiu Priest.

 Dale disse:

 — Nós todos sabemos que alguma coisa estava acontecendo, Priest. Nas últimas seis semanas você esteve mais fora de casa do que aqui. Ontem quatro dos nossos ficaram fora até a meia-noite e hoje de manhã havia um Cadillac batido no círculo do estacionamento. Mas seja o que for, você não compartilhou conosco. E eu não posso arriscar o futuro dos meus filhos com base na sua fé. Shirley pensa do mesmo modo que eu. O nome verdadeiro de Poem era Shirley, lembrou Priest. O fato de Dale tê-lo usado significava que já estava se distanciando da comunidade.

 — Vou dizer a vocês o que salvará este vale — afirmou Priest.

 Por que não falar com eles sobre o terremoto — por que não? Eles ficariam satisfeitos — orgulhosos!

 — O poder da oração. A oração nos salvará.

 — Eu vou orar por você — afirmou Dale. — E Shirley também. Vamos orar por vocês todos. Mas não vamos ficar.

 Poem enxugou as lágrimas na manga.

 — Acho que é só isso. Lamentamos muito. Arrumamos nossas coisas ontem à noite, não que tenhamos muito. Espero que Slow nos leve à estação rodoviária de Silver City.

 Priest levantou-se e dirigiu-se a eles. Pôs um braço em torno dos ombros de Dale e o outro nos de Poem. Abraçando-os, disse num tom de voz grave, persuasivo.

 — Eu compreendo a sua dor. Vamos todos para o templo meditar juntos. Depois, o que quer que decidam será a coisa certa.

 Dale recuou, livrando-se do abraço de Priest.

 — Não — disse. — Esse tempo já passou.

 Priest ficou chocado. Estava usando todo o seu poder de persuasão e não adiantava. A fúria aumentou no seu íntimo, perigosamente incontrolável. Teve ímpetos de, aos gritos, lançar na cara de Dale sua infidelidade e ingratidão. Teria matado os dois se pudesse. Mas sabia que demonstrar a raiva que o dominava seria um erro. Tinha de manter uma fachada de calma e autocontrole. Não conseguiu, contudo, reunir forças para se despedir deles afavelmente. Dividido entre o ódio e a necessidade de conter-se, retirou-se silenciosamente, caminhando com tanta dignidade quanto lhe foi possível. Retornou à sua cabana. Mais dois dias e tudo teria se resolvido. Um dia!

 Priest sentou-se na cama e acendeu um cigarro. Spirit continuou deitado no chão, observando-o melancolicamente. Os dois permaneceram em silêncio e quietos, pensativos. Melanie viria atrás dele em um ou dois minutos. Mas foi Star quem entrou.

 Não falava com ele desde quando tinha saído de Felicitas naquela noite, com Oaktree dirigindo a minivan Toyota. Priest sabia que estava furiosa e angustiada por causa do terremoto, mas ainda não tivera tempo para acalmá-la.

 — Vou procurar a polícia — disse ela.

 Priest ficou atônito. Star odiava policiais de forma passional. Ela entrar numa delegacia era como Billy Graham entrar em um clube gay.

 — Você perdeu a cabeça.

 — Nós matamos gente ontem. Ouvi no rádio na viagem de volta. Pelo menos doze pessoas morreram e mais de cem foram hospitalizadas. Bebês e crianças foram feridos. Pessoas perderam suas casas — gente pobre, não apenas os ricos. E fomos nós que fizemos isso a eles.

—  Tudo está desabando — justo quando estou quase vencendo!

 Ele estendeu o braço, querendo segurar a mão dela.

— Você acha que eu queria matar gente?

 Ela recuou, recusando-se a deixar que ele pegasse sua mão.

— Você não parecia nem um pouco triste na hora do terremoto.

 Tenho que manter tudo isto de pé por mais um pouco. É preciso. Ele obrigou-se a fazer cara de arrependido.

 — Eu fiquei satisfeito porque o vibrador funcionou, sim. Fiquei contente porque fomos capazes de cumprir o que tínhamos ameaçado. Não tencionava, no entanto, machucar ninguém. Sabia que havia um risco e decidi correr esse risco, porque o que estava em jogo era muito importante. Pensei que você tivesse tomado a mesma decisão.

 — Tomei, e foi uma decisão ruim, uma decisão perversa. Os olhos dela encheram- se de lágrimas. — Pelo amor de Cristo, você não consegue enxergar o que nos aconteceu? Nós éramos as crianças que acreditavam em paz e amor — e agora estamos matando gente! Você fez como o Lindon Johnson. Ele bombardeou os vietnamitas e justificou. Nós dissemos que ele era um merda e ele era mesmo. Dediquei toda a minha vida a não ser como ele!

 — Então você acha que cometeu um erro — disse Priest. – Posso compreender isso. O que é duro para mim é descobrir que você quer se redimir punindo a mim e a toda a comunidade. Você quer nos entregar à polícia.

 Ela se espantou.

 — Eu não tinha visto desse modo — disse ela. — Não quero punir ninguém.

 Ele a tinha agora sob seu controle.

 — Então o que você quer realmente? — e, sem lhe dar tempo para responder: — Acho que o que precisa é ter certeza de que tudo acabou.

 — Acho que sim.

 Ele adiantou-se e desta vez ela permitiu que lhe segurasse as mãos.

 — Terminou — disse, suavemente.

 — Não sei, não — suspirou ela.

 — Não haverá mais terremotos. O governador cederá. Você vai ver.

 

 Quando voltava velozmente para San Francisco, Judy foi desviada para Sacramento para comparecer a uma reunião no gabinete do governador. Dormiu mais três ou quatro horas no carro e quando chegou no Capitólio sentia-se pronta para morder o mundo. Stuart Cleever e Charlie Marsh tinham vindo de avião de San Francisco. O chefe do escritório de Sacramento juntou-se a eles. Encontraram-se ao meio-dia na sala de reuniões da Ferradura, a suíte do governador. Al Honeymoon presidiu o encontro.

 — Houve um engarrafamento na I-80 de vinte quilômetros, de gente querendo fugir da falha de Santo André. Cleever disse:

 — O presidente ligou para o diretor do FBI e indagou dele como estava a ordem pública — ele olhou para Judy como se a culpa fosse dela.

 — Ele também telefonou para o governador Robson disse Honeymoon.

 — Até o presente momento não temos um problema sério de manutenção da ordem pública — disse Cleever. — Há relatos de saques em três bairros de San Francisco e um em Oakland, mas é coisa esporádica. O governador convocou a Guarda Nacional e a deixou de prontidão nos quartéis, embora ainda não tenha sido preciso. Mas se houver outro terremoto...

 A simples idéia fez com que Judy se sentisse mal.

 — Não poderá haver outro terremoto — disse.

 Todos olharam para ela. Honeymoon fez uma expressão sarcástica.

 — Tem alguma sugestão?

 Judy tinha. Não era grande coisa, mas eles estavam desesperados.

 — Só há uma coisa em que posso pensar — disse. — Montar uma armadilha para ele.

 — Como?

 — Dizer que o governador Robson quer negociar pessoalmente com ele.

 — Não acredito que ele caia nessa — disse Cleever.

 — Não sei, não. — Judy franziu a testa, pensativa. — Ele é inteligente e qualquer pessoa inteligente suspeitaria de uma armadilha. Mas também é psicopata, e adora controlar os outros, chamar a atenção para si mesmo e suas ações, manipulando as pessoas e as circunstâncias. A idéia de negociar pessoalmente com o governador da Califórnia vai ser uma tentação poderosa para ele.

 — Acho que sou a única pessoa aqui que já se encontrou com ele – disse Honeymoon.

 — Exatamente — concordou Judy. — Eu o vi e falei com ele pelo telefone, mas o senhor passou diversos minutos pessoalmente com ele. Qual foi a sua impressão?

 — Você o definiu bem: um psicopata inteligente. Acredito que ficou furioso comigo por não ter me impressionado mais com ele. Como se eu devesse ter sido, não sei, mais respeitoso.

 Judy conteve um sorriso. Honeymoon não se mostrava respeitoso com muitas pessoas.

 Honeymoon prosseguiu:

 — Ele compreendeu as dificuldades políticas do que ele estava pedindo. Eu disse que o governador não podia ceder à chantagem. Ele pensara nisso, e tinha preparado uma resposta.

 — Qual?

 — Ele disse que podíamos negar o que realmente acontecera. Anunciar a suspensão da construção de novas usinas e dizer que não tinha nada a ver com a ameaça de terremotos.

 — Há esta possibilidade? — quis saber Judy.

 — Sim. Eu não recomendaria, mas se o governador me perguntar o que acho, terei de dizer que talvez dê certo. Só que a pergunta é acadêmica. Conheço Mike Robson e ele não fará isso.

 — Mas podia fazer de conta — sugeriu Judy.

 — Como assim?

 — Podíamos dizer a Granger que o governador está disposto a anunciar a suspensão da construção da usina mas apenas dentro das condições corretas, já que ele tem de proteger seu futuro político. Que ele quer falar pessoalmente com Granger para tratar dessas condições.

 Stuart Cleever interveio:

 — A Corte Suprema decidiu que os elementos pertencentes às forças policiais podem usar truques, estratagemas e ardis. A única coisa que não nos permitem fazer é ameaçar de prender os filhos do suspeito. E se prometermos que não vamos iniciar um processo contra ele, teremos que

cumprir a promessa. Mas certamente que podemos fazer o que Judy falou sem violar nenhuma lei.

 — OK — concordou Honeymoon. — Não sei se isso vai funcionar, mas acho que temos de tentar. Vamos em frente.

 

 Priest e Melanie foram para Sacramento no Cadillac amassado. Era uma tarde ensolarada de sábado e a cidade estava atulhada de gente. Ao ligar o rádio do carro logo depois do meio-dia, Priest tinha ouvido a voz de John Truth, embora não fosse hora do seu programa.

 — Atenção para uma mensagem especial para Peter Shoebury da Eisenhower Junior High, dissera Truth. Shoebury era o homem cuja identidade Priest usara na entrevista coletiva do FBI e Eisenhower era a escola imaginária onde Flower estudava. Priest viu logo que a mensagem era para ele. — Pede-se o favor a Peter Shoebury que ligue para o seguinte número — dissera Truth.

 — Eles querem negociar — dissera ele a Melanie. — Terminou – nós vencemos!

 Enquanto Melanie dirigia pelo centro da cidade, entre centenas de carros e milhares de pessoas, Priest fez a ligação usando o celular dela. Mesmo que o FBI estivesse rastreando a chamada, ele imaginava que não seriam capazes de saber de que carro estava sendo feita.

 Foi com o coração na boca que ele ouviu o telefone tocar. Ganhei a loteria e vim apanhar o dinheiro.

 Quem atendeu foi uma mulher, com jeito precavido. Talvez já tivesse atendido a uma porção de trotes em resposta ao aviso irradiado por John Truth.

 — Aqui é Peter Shoebury da Eisenhower Junior High. A resposta foi instantânea.

 — Vou transferi-lo para Al Honeymoon, o secretário do gabinete do governador.

 — Sim! — Só preciso antes verificar sua identidade.

 É um truque.

 — E como você propõe fazer isso?

 — Seria possível me dar o nome da estudante repórter que estava em sua companhia uma semana atrás?

 Priest se lembrou de Flower dizendo "Nunca vou perdoá-lo por ter me chamado de Florence."

 Cautelosamente, ele disse:

 — Era Florence.

 — Transferindo sua ligação agora.

 Não era truque — só uma precaução.

 Priest examinou as ruas ansiosamente, atento a um carro da polícia ou a um bando de homens do FBI de olho no seu carro, mas nada viu exceto pessoas comuns, fazendo compras, ou turistas. Um momento depois ouviu a voz grave de Honeymoon:

 — Sr. Granger?

 Priest foi direto ao ponto:

 — Está disposto a ser sensato?

 — Estamos prontos para conversar.

 — O que isto significa?

 — O governador quer vê-lo hoje, com o objetivo de negociar uma solução para a crise.

 — O governador está disposto a anunciar que serão suspensas as obras das usinas?

 Honeymoon hesitou.

 — Sim — respondeu, relutante. — Mas sob certas condições.

 — De que tipo?

 — Quando conversamos em meu carro e eu lhe disse que o governador não podia ceder à chantagem, você falou em marqueteiros políticos.

 — Sim.

 — Você é um indivíduo sofisticado, compreende que o futuro político do governador está correndo perigo. O anúncio dessa suspensão terá que ser feito com muita delicadeza.

 Honeymoon mudara de tom, reparou Priest, satisfeito. A arrogância desaparecera. Ele tinha desenvolvido respeito pelo seu oponente e isso era gratificante.

 — Em outras palavras — disse Priest -, o governador tem que tirar o dele da reta e quer ter certeza de que não vou prejudicá-lo.

 — Você pode considerar desse modo.

 — Onde nos encontramos?

 — No gabinete do governador, aqui no Capitólio.

 Você está completamente maluco.

 Honeymoon prosseguiu.

 — Sem polícia, sem FBI. Você teria garantida sua liberdade de sair daqui sem nenhum obstáculo, independente do resultado do encontro.

 Claro, claro. Priest disse:

 — Você acredita em fadas?

 — O quê?

 — Você sabe, aquelas criaturas pequenas que voam e sabem fazer mágicas? Acredita que existam?

 — Não, acho que não.

 — Nem eu. Por isso não vou cair na sua armadilha.

 — Eu lhe dou minha palavra. . .

 — Esquece. Vê se esquece, tá bem? Houve silêncio do outro lado da linha.

 Melanie virou uma esquina e eles passaram pela grande fachada clássica do Capitólio. Honeymoon está lá dentro, em alguma parte, cercado por homens do FBI. Olhando para as colunas brancas e para a cúpula, Priest disse:

 — Vou lhe dizer onde nos encontraremos e é melhor que você tome nota. Pronto?

 — Não se preocupe. Estou tomando nota.

 — Arrume uma mesinha redonda e duas cadeiras de jardim em frente ao edifício do Capitólio, em cima do gramado, bem no meio. Será como um cenário para fotografias. Faça com que o governador esteja sentado lá às três horas.

 — Assim em campo aberto?

 — Ei, se eu fosse querer matá-lo, podia arranjar uma maneira mais fácil.

 — Acho que sim...

 — O governador deve levar no bolso uma carta assinada garantindo que não irá me processar.

 — Não posso concordar com tudo isso...

 — Fale com seu chefe. Ele concordará.

 — Falarei com ele.

 — Providencie a presença de um fotógrafo, com uma dessas câmeras instantâneas. Quero uma foto dele me entregando a carta, como prova. Anotou isto?

 — OK.

 — É melhor jogar limpo. Nada de truques. Meu vibrador sísmico já está em posição, pronto para desencadear outro terremoto. O alvo agora será uma cidade grande. Não estou dizendo qual, mas estou falando em milhares de mortes.

 — Eu compreendo.

 — Se o governador não aparecer às três horas... bum. Priest desligou o telefone.

 — Uau — exclamou Melanie. — Um encontro com o governador. Você acha que é uma armadilha?

 Priest franziu a testa, preocupado.

 — Pode ser — disse. — Eu não sei. Simplesmente não sei.

 

 Judy não foi capaz de encontrar um único erro no esquema. Charlie Marsh trabalhou nele junto com o pessoal de Sacramento do FBI. Havia pelo menos uns trinta agentes no campo de visão da mesinha branca de jardim com um guarda-sol no gramado, mas ela não via um só deles. Alguns se encontravam atrás das janelas das salas próximas, outros encolhidos em carros ou vans na rua e no estacionamento, alguns, inclusive, escondidos na cúpula sustentada por pilastras do Capitólio. Todos fortemente armados.

 Judy representava o papel de fotógrafa, com câmaras e lentes penduradas no pescoço. Pusera a arma num estojo de máquina fotográfica pendurado no ombro. Enquanto esperava que o governador aparecesse, olhava para a mesa e as cadeiras através do visor, fingindo procurar o melhor enquadramento.

 Na esperança de que Granger não a reconhecesse, pusera a peruca loura que mantinha constantemente no carro. Costumava usá-la muito em missões de vigilância, especialmente quando passava vários dias seguindo os mesmos alvos, para reduzir o risco de ser notada e reconhecida. Só que tinha de agüentar um bocado de brincadeiras quando a usava. Ei, Maddox, mande aquela loura bonitinha aqui no meu carro, mas você pode ficar onde está.

 Granger estava observando, ela sabia. Ninguém o localizara, mas ele telefonara, uma hora atrás, para protestar contra as barreiras que estavam sendo usadas para cercar o quarteirão. Queria a rua liberada e os turistas passeando no prédio, exatamente como seria o normal. As barreiras foram tiradas.

 Não havia outra grade, de modo que os turistas circulavam livremente pelos gramados e os grupos de excursionistas seguiam as rotas normais dentro do Capitólio, seus jardins e os elegantes prédios do governo nas ruas adjacentes. Subrepticiamente, Judy estudava todo mundo através das lentes. Concentrava-se em detalhes que não podiam ser facilmente disfarçados. Examinava com atenção cada homem alto e magro de meia-idade, independente do cabelo, rosto ou roupa.

 Faltava um minuto para as três horas e ela ainda não tinha visto Ricky Granger.

 Michael Quercus, que tinha estado com Granger cara a cara, também estava observando. Ficara na van de janelas escuras parada na esquina. Tinha que ficar de fora, para que Granger não o reconhecesse.

 Judy falou num pequeno microfone que levava sob a blusa preso na alça do sutiã.

 — Meu palpite é que Granger só vai aparecer depois que o governador chegar.

 Um amplificador minúsculo atrás da sua orelha estalou e ela ouviu a resposta de Charlie Marsh.

 — Acabamos de dizer a mesma coisa aqui. Gostaria de ter feito isso sem expor o governador.

 Tinham falado em usar um dublê de corpo, mas fora o próprio governador Robson que não autorizara, dizendo que não ia permitir que alguém se arriscasse em seu lugar.

 — Mas se não foi possível... — disse Judy.

—  ... então faremos o que for possível — completou Charlie. Um momento depois o governador saiu da grande entrada principal do prédio.

 Judy ficou surpresa de ver como sua estatura era um pouco abaixo da média. Na televisão parecia um homem alto. Também parecia mais corpulento que o usual, por conta do colete à prova de balas que pusera sob o paletó do terno. Ele atravessou o gramado com um passo relaxado e confiante e sentou-se à mesinha, sob o guarda- sol.

 Judy tirou alguns retratos. Manteve o estojo da câmera pendurado no ombro para que pudesse pegar a arma rapidamente. Depois, com o canto do olho, ela viu movimento. Um velho Chevrolet Impala vinha se aproximando lentamente. Tinha duas cores, já desbotadas, azul-celeste e creme e os pára-lamas enferrujados, no recorte correspondente às rodas. O rosto do motorista estava na sombra. Ela deu uma espiada rápida em volta. Não se via um único agente, mas todo mundo estaria observando o carro. Ele encostou no meio-fio oposto ao governador. O coração de Judy bateu mais rápido.

 — Acho que é ele — disse o governador, numa voz espantosamente calma.

 A porta do carro abriu-se.

 A figura que saltou usava calça-jeans azul, camisa xadrez aberta por cima de uma camiseta branca e sandálias. Quando endireitou o corpo, Judy viu que tinha mais de um metro e oitenta, era magro e tinha cabelo comprido e escuro.

 Ele usava óculos escuros de armação grande e um lenço colorido preso na cabeça.

 Judy o encarou fixamente, desejando que pudesse ver seus olhos.

 O micro amplificador no seu ouvido estalou.

— Judy, é ele?

 — Não sei! Mas pode ser.

 Ele olhou ao redor. O gramado era grande e a mesa tinha sido colocada a uns vinte ou trinta metros do meio-fio. Encaminhou-se para o governador.

 Judy podia sentir que todos os olhos estavam em cima dela, esperando pelo seu sinal.

 Ela se deslocou, colocando-se entre ele e o governador. O homem notou seu movimento, hesitou e continuou andando. Charlie falou de novo.

 — Como é?

 — Não sei! — murmurou Judy, tentando não mover os lábios. — Preciso de mais uns segundos!

 — Não demore tanto.

 — Não penso que seja ele — disse ela. Todas as fotos dele mostravam um nariz aquilino como a lâmina de uma faca. Este homem tem um nariz largo, achatado.

 — Tem certeza?

— Não é ele.

 O homem estava a menos de um braço de Judy. Desviou-se dela e aproximou-se do governador. Sem se deter, enfiou a mão dentro da camisa.

 — Ele vai sacar alguma coisa! — exclamou Charlie, no microamplificador de Judy.

 Ela caiu sobre um joelho e pegou nervosamente a pistola no estojo onde a escondera.

 O homem começou a puxar qualquer coisa de dentro da camisa. Judy viu um canudo escuro, lembrando o cano de uma arma e gritou:

 — Imóvel! FBI!

 Os agentes irromperam dos carros e vans e vieram correndo das dependências da sede do governo.

 O homem ficou imóvel.

 Judy apontou a arma para sua cabeça e ordenou:

— Puxe isso aí bem devagar e passe para mim.

 — OK, OK, não atire em mim! — o homem acabou de tirar a mão. Era uma revista enrolada e presa com um elástico. Judy pegou o canudo e, sempre apontando a arma para o homem, examinou a revista. Era o Time daquela semana. Não havia nada dentro.

 O homem explicou, assustado:

 — Um sujeito me deu cem dólares para entregar isto ao governador!

 Agentes cercaram o governador Mike Robson e o levaram de volta para o Capitólio.

 Judy olhou em torno, examinando os jardins do palácio do governo e as ruas próximas. Granger está vendo isto, tem que estar. Mas onde diabos ele se encontra? As pessoas tinham parado para olhar, curiosas, os agentes correndo. Na entrada principal, um grupo de turistas estava descendo os degraus da escada, liderado por um guia. Enquanto Judy olhava, um homem de camisa havaiana afastou-se do grupo e saiu andando. Alguma coisa nele atraiu a atenção de Judy.

 Ela se deteve, preocupada. Era um homem alto. Não era possível dizer se era magro ou gordo porque a camisa era larga e solta nos quadris. O cabelo estava escondido por um gorro com viseira. Foi atrás dele, andando depressa.

 O homem não parecia estar apressado. Judy não deu o sinal de alarme. Se pusesse tudo quanto era agente caçando um turista inocente podia permitir que o verdadeiro Granger fugisse. Mas seu instinto a fez acelerar o passo. Tinha que ver a cara daquele homem.

 Ele contornou uma curva e Judy saiu correndo. Ouviu a voz de Charlie no microamplificador.

 — Judy? O que está acontecendo?

 — Só checando um sujeito — respondeu ela, um pouco ofegante. — Provavelmente um turista, mas mande dois caras me seguirem para o caso de eu precisar de reforço.

 — Falou!

 Ela viu a camisa havaiana passar por entre duas altas portas de madeira e desaparecer dentro do Capitólio. Pareceu-lhe que ele tinha aumentado o ritmo da passada.

 Olhou para trás Charlie estava falando com dois rapazes e apontando para ela.

 Michael saltou de uma van estacionada na ruazinha de trás e correu na direção dela. Judy apontou para dentro do prédio.

 — Você viu aquele sujeito? — gritou.

 — Vi sim, era ele!

 — Você fica aqui! — Judy não queria que um civil como Michael se envolvesse. — Fique fora disso! — ela entrou correndo no prédio do Capitólio.

 Judy viu-se num saguão grande com um piso de mosaico requintado. Um lugar calmo e silencioso. Mais adiante havia uma escadaria larga e acarpetada com uma balaustrada de madeira entalhada. Ele teria ido para a direita ou para a esquerda, para cima ou para baixo? Ela escolheu a esquerda. O corredor fazia um ângulo acentuado para a direita. Passou correndo por uma série de elevadores e viu-se na rotunda, um espaço circular com uma escultura no meio, que se estendia dois andares para cima, até a cúpula ricamente decorada. Aqui tinha que tomar outra decisão — ele teria ido reto em frente, virado à direita para a Ferradura ou subido a escada à sua esquerda? Judy olhou em torno. Um grupo de turistas olhava apavorado para sua arma. Levantou os olhos para a galeria circular no segundo piso e vislumbrou uma camisa vivamente colorida. Subiu voando uma escada.

 Lá em cima deu uma olhada na galeria. No lado mais distante havia uma porta aberta dando para um mundo diferente, um corredor moderno, com luz fluorescente e piso revestido de plástico. A camisa havaiana estava no corredor.

 Ele agora corria.

 Judy foi atrás. Enquanto corria, falou ao microfone preso na alça do sutiã, arquejando.

 — É ele, Charlie! O que diabos aconteceu com o meu reforço?

 — Eles se perderam. Onde você está?

 — Segundo andar, parte onde ficam os escritórios.

 — OK.

 As portas dos escritórios estavam fechadas e não havia ninguém nos corredores: era sábado. Seguiu a camisa, contornando uma curva, mais outra e uma terceira. Continuava a vê-la mas não conseguia adiantar-se.

 O filho da mãe está mesmo em forma.

 Fazendo a volta completa, ele voltou para a galeria. Judy o perdeu de vista momentaneamente e achou que talvez tivesse subido mais um lance.

 Respirando com dificuldade, subiu outro lance da escadaria ornamentada até o terceiro piso. Letreiros diziam que a galeria do senado era à direita e a da assembléia à esquerda. Virou à esquerda, foi até a porta da galeria e viu que estava trancada. Sem dúvida a outra também estaria. Voltou ao patamar. Para onde ele teria ido? A um canto notou uma porta com uma placa que dizia "Escada Norte Sem Acesso ao Telhado". Abriu-a e deu numa escada estreita e funcional com piso de cerâmica comum e balaustrada de ferro. Dali ouviu sua presa descendo.

 Desceu correndo e foi parar no nível térreo da rotunda. Não conseguiu ver Granger, mas viu Michael, olhando em torno, angustiado.

 — Você o viu? — perguntou. — Não.

 — Fica aí!

 Da rotunda, um corredor de mármore levava aos aposentos do governador. A visão dela foi atrapalhada por um grupo de turistas a quem estava sendo mostrada a porta da Ferradura. Será que aquilo logo depois deles era uma camisa havaiana? Não podia ter certeza. Prosseguiu rapidamente ao longo do corredor de mármore, passando pelos quadros em que se podia ver cada condado do estado da Califórnia. À esquerda, outro corredor levava a uma saída com uma porta automática de blindex. Viu a camisa saindo.

 Judy seguiu em frente. Granger atravessou a rua, desviando-se temerariamente do trânsito impaciente. Os motoristas davam golpes de direção para se desviarem dele e buzinavam indignados. Ele saltou sobre o capô de um cupê amarelo, amassando a lataria. O motorista abriu a porta e saltou num ímpeto de fúria, mas aí viu Judy empunhando uma pistola e voltou rapidamente para o carro.

 Ela também saiu em disparada pela rua, correndo os mesmos riscos loucos com o trânsito. Voou na frente de um ônibus que freou cantando pneus, correu por cima do capô do mesmo cupê amarelo e forçou uma limusine daquelas muito compridas a andar em ziguezague por três pistas. Tinha quase chegado na calçada do outro lado quando uma motocicleta veio disparada pela pista de dentro, direto de encontro a ela. Judy recuou e ele deixou de bater nela por um centímetro.

 Granger subiu correndo a rua do lado e virou numa entrada. Judy voou atrás. Ele tinha entrado numa garagem. Ela virou também na mesma entrada, indo tão depressa quanto podia mas alguma coisa a atingiu: um violento soco no rosto. Seu nariz e testa explodiram de dor. Ficou cega. Caiu de costas e bateu no piso de concreto fazendo um barulhão. Deitada, imóvel, paralisada pelo choque e pela dor, não era capaz sequer de pensar. Poucos segundos depois sentiu uma mão forte amparar sua cabeça e ouviu, como se estivesse muito distante, a voz de Michael dizendo:

 — Judy, pelo amor de Deus, você está viva?

 Sua cabeça começou a clarear e a visão voltou. O rosto de Michael apareceu em foco.

 — Fale comigo, diga alguma coisa! — pediu Michael. Ela abriu a boca.

 — Dói — murmurou.

 — Graças a Deus! — ele puxou um lenço do bolso da calça e enxugou a boca de Judy com surpreendente gentileza. — Seu nariz está sangrando.

 Ela sentou direito.

 — O que foi que aconteceu?

 — Vi você entrando, correndo com a velocidade de um raio e no minuto seguinte estava estirada no chão. Acho que ele a ficou esperando e a atingiu quando você virou. Se eu puser as mãos nesse sujeito...

 Judy percebeu que largara a arma.

— Minha pistola...

 Ele olhou em torno, pegou a pistola e deu para ela.

— Me ajude.

 Ele puxou-a.

 O rosto de Judy doía muito mesmo, mas ela já conseguia enxergar com clareza e suas pernas estavam firmes. Tentou pensar direito.

 Talvez eu ainda não o tenha perdido.

 Havia um elevador, mas ele não podia ter tido tempo para tomá-lo. Tinha que ter saído pela rampa. Ela conhecia aquela garagem — tinha estacionado ali quando fora falar com Honeymoon — e se lembrava que ela se estendia pela largura de um quarteirão, com entradas em duas ruas consecutivas. Podia ser que Granger também soubesse disso e já estivesse saindo pela porta da primeira delas. Nada havia a fazer senão seguir em frente.

— Vou atrás dele — avisou Judy.

Subiu correndo a rampa. Michael a seguiu. Ela deixou. — Já tinha mandado por duas vezes que ficasse e agora não tinha fôlego para tentar uma terceira. Chegaram no primeiro nível de estacionamento. A cabeça de Judy começou a latejar e de repente suas pernas ficaram fracas. Sabia que não podia continuar por muito tempo. Atravessavam correndo a garagem quando um carro preto saiu da vaga onde estava direto em cima deles. Judy deu um pulo de lado, caiu no chão e executou um rolamento, desesperadamente rápida, até ver-se embaixo de um automóvel estacionado. Dali ela viu as rodas do carro preto fazer a curva com os pneus cantando e o motorista acelerou rampa acima a toda velocidade. Judy levantou-se, procurando Michael desesperadamente. Tinha ouvido Michael gritar de surpresa e medo. Será que o carro preto o atingira? Ela o viu a poucos metros de distância, apoiado nos pés e nas mãos, branco com o choque.

 — Você está bem? — disse ela.

 Ele se levantou.

 — Estou ótimo, só um pouco abalado.

 Judy virou-se para ver se via qual a marca do carro agressor, mas ele desaparecera.

 — Droga! — exclamou ela. — Eu o perdi.

 

 Assim que Judy entrou no clube dos oficiais, às sete da noite, Raja Khan correu na sua direção.

 Ele parou quando a viu.

 — O que aconteceu com você?

 O que me aconteceu? Não consegui evitar o terremoto tive um palpite errado quanto ao esconderijo de Melanie Quercus e deixei Ricky Granger escapar por entre meus dedos. Estraguei tudo e amanhã haverá outro terremoto e mais gente vai morrer, e tudo por minha culpa.

 — Ricky Granger me deu um soco no nariz — respondeu. Tinha um curativo no rosto. As pílulas que tinham lhe dado no hospital de Sacramento haviam amenizado a dor, mas ela se sentia derrotada e desanimada. – Onde você vai com tanta pressa? — Estávamos procurando um disco chamado Raining Fresh Daisies, lembra?

 — Claro. Tínhamos esperança de que nos desse uma pista sobre a mulher que telefonou para o programa do John Truth.

 — Localizei um exemplar — aqui mesmo em San Francisco. Numa loja chamada Vinyl Vic's.

 — Dêem uma medalha de ouro para este agente? — Judy sentiu a energia voltar. Podia ser a pista de que precisavam. Não era muito, mas encheu-a de esperança de novo.

 — Vou com você.

 Pularam no Dodge Colt de Raja, imundo, com o chão juncado de papéis de barras de chocolate. Raja saiu rachando do estacionamento e seguiu para Haight- Ashbury.

 — O dono da loja se chama Vic Plumstead — disse. Quando estive lá uns dois dias atrás quem me atendeu foi um garoto. Ele achava que não tinham o disco mas mesmo assim ia perguntar ao dono. Deixei um cartão e Vic me deu um telefonema assim que chegou.

 — Finalmente, um pouco de sorte!

 — O disco foi distribuído em 1969 por um selo de San Francisco chamado Transcendental Tracks. Teve alguma publicidade e vendeu uns poucos exemplares na grande San Francisco mas o selo nunca mais teve outro sucesso e saiu do mercado após alguns meses.

 Judy esfriou.

 — O que significa que não há arquivos a serem consultados para ver se descobrimos pistas sobre o atual paradeiro dela.

 — Talvez a própria capa do disco nos dê qualquer coisa.

 A Vinyl Vic's era uma lojinha entulhada de discos velhos. Umas poucas estantes convencionais no meio da loja tinham sido invadidas por caixas de papelão e engradados de frutas empilhados até o teto. O lugar tinha um cheiro de biblioteca velha e empoeirada. Havia um freguês, um sujeito tatuado, de short de couro estudando um dos primeiros discos de David Bowie. No fundo, um homem pequeno e magro de calça-jeans apertada e camiseta tingida em tons desiguais estava de pé atrás da máquina registradora, tomando café em uma caneca onde estava escrito "legalizem!".

 Raja apresentou-se.

 — Você deve ser Vic. Nós nos falamos pelo telefone poucos minutos atrás.

 Vic olhou espantado para eles. Parecia realmente surpreso.

 — Finalmente o FBI aparece na minha loja e são dois asiáticos? O que aconteceu? — perguntou.

 Quem respondeu foi Raja:

 — Eu sou o não-branco representante do meu grupo étnico e ela é a mulher que representa o sexo feminino. Toda agência do FBI tem que ter um de cada um de nós, é uma regra para que o governo não seja criticado ou acusado de discriminação. Todos os outros agentes são homens brancos de cabelo curto.

 — Ah, sim, tudo bem — Vic pareceu desconcertado. Não sabia se Raja estava brincando ou não.

 — E o disco? — perguntou Judy, impaciente.

 — Aqui está — Vic virou de lado e Judy viu que ele tinha um toca-discos atrás da registradora. Ele girou o braço da pick-up para colocá-lo em posição acima do disco e baixou a agulha. Uma explosão de uma guitarra ensandecida fez a introdução de um jazz-funk surpreendentemente calmo, levado por acordes de piano sobre um complexo acompanhamento de bateria. Em dado instante, entrou a voz da mulher: Estou derretendo Me sinto derretendo Liquefação Amaciando.

 — Acho que é bastante significativo, sinceramente comentou Vic.

 Judy achou que era uma bosta, mas não tinha importância. Era a voz da fita de John Truth, sem sombra de dúvida. Mais jovem, mais clara, mais delicada, mas com o mesmo tom inegavelmente sexy, grave. — Você tem a capa? — perguntou, nervosa.

 — Claro — ele lhe passou a capa do disco.

 Estava virada nos cantos e o revestimento de plástico transparente começava a descascar do papel. A frente tinha um desenho multicolorido espiralado que dava uma sensação de desconforto nos olhos. As palavras "Raining Fresh Daisies" mal podiam ser reconhecidas. Judy virou a capa. A parte de trás era imunda, inclusive com uma mancha circular de café no canto direito superior.

 O texto começava: "A música abre portas que levam a universos paralelos..."

 Judy pulou o texto. Em baixo havia uma fileira de cinco fotos em preto e branco, só cabeça e ombros, quatro homens e uma mulher. As legendas diziam:

 Dave Rolands, teclado Ian Kerry, guitarra Ross Muller, baixo Jerry Jones, bateria Stella Higgins, poesia.

 Judy franziu a testa.

 — Stella Higgins — disse, excitadamente. — Acho que já ouvi esse nome antes!

 Tinha certeza, mas não conseguia se lembrar de onde o ouvira. Talvez fosse apenas pensamento desejoso. Examinou a pequenina foto em preto e branco. O que viu foi uma garota de cerca de vinte anos com um rosto sorridente e sensual, emoldurado pelo cabelo escuro e ondulado, e onde se destacava a boca generosa e larga que Simon profetizara.

 — Ela era linda — murmurou Judy, quase que só para si mesma. Procurou naquele rosto a loucura que a fizera ameaçar as pessoas com um terremoto, mas nada viu. Tudo o que viu foi uma jovem cheia de vitalidade e esperança. O que saiu errado em sua vida?

 — Podemos levar isto emprestado? — perguntou Judy. Vic ficou emburrado.

 — Estou aqui para vender discos, não para emprestar. Ela não ia discutir.

 — Quanto é?

 — Cinqüenta pratas. — OK.

 Ele parou o aparelho, pegou o disco e enfiou de novo na capa de papel.

 Judy pagou.

 — Obrigado, Vic. Foi legal a sua ajuda. No caminho de volta, ela disse:

 — Stella Higgins. Onde foi que vi esse nome? Raja sacudiu a cabeça.

 — Não faz com que eu me lembre de nada. Quando saltaram, ela lhe passou o disco.

 — Faça ampliações da foto e submeta ao pessoal dos diversos departamentos de polícia. Dê o disco a Simon Sparrow. Nunca se sabe o que ele pode descobrir.

 Quando entraram no posto de comando viram que o antigo salão de baile parecia agora apinhado de gente. Nova mesa fora acrescentada no setor destinado ao comando. Entre as pessoas que se acotovelavam por ali viam-se mais alguns sujeitos engravatados vindos do quartel-general do FBI em Washington, presumiu Judy, além de elementos das agências de administração de emergências nos diversos níveis de governo.

 Ela dirigiu-se à mesa da equipe de investigação. A maior parte do seu pessoal estava trabalhando em telefones, verificando indícios. Judy falou com Carl Theobald.

 — Está fazendo o quê?

 — Verificando os carros `Cuda de cor bege.

 — Tenho algo melhor para você. Pegue o CD-ROM com os telefones da Califórnia, que está em algum lugar por aí. Procure Stella Higgins.

 — E se eu encontrar?

 — Lique para ela e veja se a voz parece com a da mulher da fita de John Truth.

 Judy sentou-se diante de um computador e iniciou a busca em uma série de listas de prontuários criminais. Descobriu que havia uma Stella Higgins nos arquivos. Uma mulher com esse nome fora multada por estar de posse de maconha e recebido uma sentença posteriormente suspensa por agredir um policial durante uma demonstração.

 A data de nascimento devia ser mais ou menos aquela e o endereço era em uma rua chamada Haight. Não havia foto no banco de dados, mas tudo indicava que se tratava da mesma pessoa.

 Os dois incidentes eram datados de 1968 e de lá para cá não havia mais nada.

 O prontuário de Stella era como o de Ricky Granger, que saíra de cena no início dos anos 70. Judy imprimiu o arquivo e o prendeu no quadro de avisos destinado aos suspeitos. Mandou um agente verificar o endereço da rua Haight. Mesmo que tivesse certeza de que a Higgins não se encontraria lá trinta anos depois.

 Foi quando sentiu uma mão no seu ombro. Era Bo. Seu olhar era de imensa preocupação.

 — Minha filha, o que foi que aconteceu com o seu rosto?

 — Acho que fui descuidada — disse ela.

 Ele beijou o topo da sua cabeça.

 — Estou de serviço hoje, mas tive que dar uma paradinha aqui para ver como você estava.

 — Quem lhe disse que eu estava machucada?

 — Aquele sujeito casado, o Michael.

 Aquele sujeito casado. Ela sorriu. Isso é para me lembrar que Michael pertence a uma outra mulher.

 — Não houve nada de realmente sério, mas acho que vou ficar com dois belos olhos roxos.

 — Você tem que descansar um pouco. Quando vai para casa?

 — Não sei. Acabo de fazer uma descoberta importante. Senta aí – ela lhe falou sobre o Raining Fresh Daisies. — No meu modo de ver, estamos falando de uma bela garota que morava em San Francisco nos anos 60, onde participava de demonstrações de rua, fumava maconha e era ligada a bandas de rock. Os anos 60 se transformam nos anos 70, ela se desilude ou talvez só se sinta entediada. Liga-se a um sujeito carismático, foragido da Máfia, e os dois iniciam uma comunidade religiosa. De algum modo o grupo sobrevive, fazendo jóias de artesanato ou qualquer outra coisa, por três décadas. Aí, de repente, alguma coisa dá errado. A existência deles, de uma maneira ou de outra, é ameaçada pelo projeto da construção de uma usina hidrelétrica. Ante o fim daquilo para que trabalharam durante tanto tempo, decidem impedir a construção da tal usina, de qualquer maneira. Aí, então, uma pessoa especialista em sismologia se junta ao grupo e aparece com uma idéia maluca.

 Bo balançou a cabeça, aprovando.

 — Faz sentido, ou pelo menos o tipo de sentido que atrai os excêntricos.

 — Granger tem a experiência criminosa necessária para roubar o vibrador sísmico e o magnetismo pessoal para persuadir os outros membros do culto para seguirem adiante com o esquema.

 Bo ficou pensativo.

 — Eles provavelmente não são proprietários das casas onde moram — disse.

 — Por quê?

 — Bem, imagine que morem em algum lugar próximo de onde a usina vai ser construída, de modo que serão obrigados a se mudar. Se fossem proprietários das casas, ou fazenda ou o que seja, receberiam uma indenização e poderiam começar de novo em algum outro lugar. Assim o meu palpite é que eles têm uma concessão de arrendamento a curto prazo ou talvez sejam meros posseiros.

 — Você provavelmente tem razão, mas isso não nos ajuda. Não há um banco de dados estadual para cessões de terras.

 Carl Theobald aproximou-se com um caderno de notas na mão.

 — Três acertos na lista de assinantes. Stella Higgins em Los Angeles é uma mulher de cerca de setenta anos com a voz trêmula. A Sra. Higgins que mora em Stockton tem um forte sotaque africano, provavelmente da Nigéria. E S.J. Higgins em Diamond Heights é um homem chamado Sidney.

 — Droga! — exclamou Judy, explicando ao pai que Stella Higgins era a dona da voz na fita de John Truth e acrescentando: — Tenho certeza de que já ouvi esse nome antes.

 — Tente os seus próprios arquivos — sugeriu Bo.

 — O quê?

 — Se o nome parece conhecido, você talvez o tenha visto ou ouvido durante esta investigação. Examine os arquivos deste caso.

 — Boa idéia.

 — Tenho que ir — disse ele. — Com toda essa gente saindo da cidade e deixando as casas vazias, a polícia de San Francisco vai ter uma noite trabalhosa. Boa sorte — e vê se descansa um pouco. — Obrigada, Bo – Judy ativou a função de busca do computador e mandou que procurasse em todos os arquivos do Martelo do Éden o nome "Stella Higgins", ficou olhando por cima do seu ombro. Eram muitos arquivos e a busca levou algum tempo.

 Finalmente a tela piscou e apareceu a mensagem: 1 arquivo(s) encontrado(s)

 Judy vibrou de entusiasmo. Carl gritou.

 — Meu Deus! O nome já constava dos nossos arquivos! Oh, meu Deus, acho que a encontrei.

 Dois outros agentes estavam olhando por cima do ombro de Judy quando ela abriu o arquivo. " Era um documento grande contendo todas as anotações feitas pelos agentes que participaram da incursão fracassada a Los Alamos seis dias atrás.

 — Que negócio é esse? — Judy estava confusa. — Ela estava em Los Alamos e nós não a vimos?

 Stuart Cleever aproximou-se também.

 — O que é que está havendo?

 — Encontramos a mulher que telefonou para John Truth.

 — Onde?

 — Silver River Valley.

 — Como foi que ela escorregou pelos seus dedos?

 Foi Marvin Hayes, e não eu, quem organizou a incursão.

 — Não sei, estou trabalhando nisso, me dá um minuto! ela mandou localizar o nome nas anotações.

 Stella Higgins não vivia em Los Alamos. Por isto não a tinham visto. Dois agentes haviam visitado uma vinícola alguns quilômetros vale acima. Era um terreno cedido pelo governo federal e o nome do arrendatário era Stella Higgins.

 — Droga, estivemos tão perto! — exclamou Judy, exasperada. — Quase a pegamos uma semana atrás!

 — Imprima isso para que todo mundo possa ver — disse Cleever.

 Judy clicou em cima do botão da impressora e continuou a leitura. Os agentes tinham anotado meticulosamente o nome e a idade de todos os adultos que encontraram na vinícola. Judy viu que alguns eram casais com filhos, e que a maioria deu a própria vinícola como endereço. Talvez fosse um culto e os agentes simplesmente não tivessem percebido. Ou aquelas pessoas podiam ter sido cautelosas para esconder a verdadeira natureza de sua comunidade.

 — Nós os pegamos! — disse Judy. — Fomos desviados na primeira vez para Los Alamos, que parecia abrigar os suspeitos perfeitos. Depois, quando vimos que tínhamos errado, fomos descuidados e não verificamos as outras comunidades naquele vale. Assim não chegamos aos verdadeiros culpados. Mas os encontramos agora.

 Stuart Cleever disse:

 — Acho que você tem razão — ele virou-se para a mesa da SWAT. — Charlie, entre em contato com o pessoal de Sacramento e organize uma incursão conjunta. Judy tem a localização. A batida começa ao raiar do sol.

 — Nós devíamos agir agora — disse Judy. — Se esperarmos até amanhã de manhã, podem ir embora.

 — Por que motivo iriam fugir agora? — contestou Cleever, sacudindo a cabeça. — De noite é muito arriscado. Os suspeitos podem fugir aproveitando a escuridão, especialmente numa zona rural.

 Ele tinha razão, mas o instinto dizia a Judy para não esperar.

 — Eu preferia assumir o risco — disse ela. — Agora que sabemos onde se encontram, vamos pegá-los.

 — Não — disse ele, em tom final. — Não se discute mais, por favor, Judy. Vamos fazer a incursão de madrugada.

 Ela hesitou. Tinha certeza de que era a decisão errada, mas estava cansada demais para continuar discutindo.

 — Que seja — concordou. — A que horas saímos, Charlie? Marsh olhou para o relógio.

 — Saímos daqui às duas da manhã.

 — Acho que vou tirar duas horas de descanso.

 Judy tinha a vaga idéia de que estacionara o carro no campo de parada. Parecia ter sido meses atrás, mas na verdade fora apenas na noite de quinta-feira, quarenta e oito horas antes.

 Ao sair, encontrou com Michael.

 — Você parece exausta — disse ele. — Deixe eu levá-la para casa.

 — Como é que vou poder voltar para cá?

 — Eu cochilo no sofá e trago você de volta.

 Ela parou e olhou para ele.

 — Tenho que lhe dizer uma coisa; meu rosto dói tanto que acho que não consigo nem beijar, muito menos qualquer outra coisa.

 — Eu me conformo em segurar sua mão — disse ele com um sorriso.

 Estou começando a achar que esse sujeito gosta de mim. Ele ergueu uma sobrancelha.

 — Bem, o que é que você me diz?

 — Você me põe na cama e me traz leite quente e aspirina?

 — Claro. Você me deixa ficar olhando para você dormindo?

 Puxa vida, vou gostar mais disso do que qualquer outra coisa neste mundo.

 Ele entendeu a expressão do rosto de Judy.

 — Acho que estou ouvindo um sim — disse.

 Ela sorriu.

 — Sim.

 

 Priest estava furioso quando voltou de Sacramento. Tinha ido para lá certo de que o governador faria um trato. Achava que estava prestes a alcançar a vitória. Já tinha se congratulado pelo êxito. E tudo não passara de uma impostura. A coisa toda fora uma armação. O FBI achara que podia pegá-lo numa armadilha idiota, como se ele fosse um ladrãozinho barato. Foi o desrespeito que na verdade o irritou. Pensaram que fosse um imbecil. Iam aprender a verdade. E a lição seria cara. Ia lhes custar um outro terremoto.

 Todo mundo na comunidade ainda estava atônito com a partida de Dale e Poem. Aquilo fizera com que se lembrassem de que no dia seguinte todos deveriam abandonar o vale.

 Priest contara aos Comedores de Arroz quanta pressão tinham exercido sobre o governador. As estradas ainda estavam engarrafadas com minivans cheias de crianças e malas na fuga do próximo terremoto. Nos bairros semidesertos, saqueadores saíam das casas carregados de fornos de microondas, aparelhos de CD e computadores.

 Mas eles sabiam também que o governador não mostrara sinais de que cederia.

 Embora já fosse a noite de sábado, ninguém queria partir. Depois da ceia e do culto noturno, quase todos se retiraram para suas cabanas. Melanie foi ler para as crianças em seu dormitório. Priest sentou-se do lado de fora da sua cabana, contemplando a descida da lua sobre o vale, e lentamente foi se acalmando. Abriu uma garrafa de vinho fabricado ali mesmo, por eles, com cinco anos, de uma safra com leve sabor defumado e de que ele gostava muito.

 Era uma batalha de nervos, disse a si mesmo quando foi capaz de pensar com calma. Quem poderia agüentar mais tempo, ele ou o governador? Qual deles seria capaz de melhor controlar sua gente? Será que os terremotos fariam o governo ceder antes que o FBI pudesse rastrear Priest no seu esconderijo nas montanhas?

 Star apareceu no campo visual dele, iluminada por trás pelo luar, caminhando descalça e fumando um baseado. Deu uma tragada funda, inclinou-se sobre Priest e o beijou, abrindo a boca. Ele inalou a intoxicante fumaça diretamente dos pulmões dela. Quando terminou, Priest sorriu e disse:

 — Eu me lembro da primeira vez em que você fez isso. Foi a coisa mais sexy que já me aconteceu.

 — É mesmo? Mais sexy que uma boa chupada?

 — Muito mais. Eu me lembro que quando tinha sete anos vi minha mãe chupando um sujeito qualquer. Mas ela nunca os beijava. Eu era a única pessoa a quem beijava, me dizia.

 — Priest, que merda de vida você teve.

 Ele franziu a testa.

 — Você fala de um jeito que dá a impressão de que ela acabou.

 — Esta parte vivida aqui acabou, não?

 — Não!

 — Já é quase meia-noite. Seu prazo limite está prestes a acabar. O governador não vai ceder.

 — Ele tem de ceder — insistiu Priest. — É uma questão de tempo.

 Ele se levantou.

 — Preciso ouvir o noticiário do rádio — disse.

 Ela o acompanhou na enluarada travessia do vinhedo e na subida da trilha que dava nos carros.

 — Vamos embora — disse, subitamente. — Só eu, você e Flower. Entramos num carro, agora mesmo, e vamos. Não nos despedimos, nem fazemos malas nem mesmo levamos outras mudas de roupa ou qualquer outra coisa. Simplesmente sumimos, como quando saí de San Francisco em 1969. Iremos para onde nosso capricho nos levar — Oregon ou Lãs Vegas ou mesmo Nova York. Que tal Charleston? Sempre quis conhecer o Sul.

 Sem responder, ele entrou no Cadillac e ligou o rádio. Star sentou-se ao seu lado. Brenda Lee estava cantando "Let's Jump the Broomstick".

 — Como é, Priest, o que é que você diz?

 O noticiário começou e ele aumentou o volume.

 — Richard Granger, suspeito de ser o líder terrorista do Martelo do Éden, escapou das mãos do FBI hoje, em Sacramento. Enquanto isso, as pessoas que fugiam das localidades próximas da falha de Santo André encontraram engarrafamentos em praticamente todas as estradas da área da baía de San Francisco. São quilômetros de automóveis bloqueando trechos enormes das rotas 280, 580, 680 e 880. E um negociante de discos raros de Haight-Ashbury afirma que agentes do FBI compraram dele um disco onde há a fotografia de outra suspeita de ser terrorista.

 — Disco? — exclamou Star. — Que porra de...?

 — Vic Plumstead, o proprietário da loja, contou aos nossos repórteres que o FBI recorreu a ele para encontrar um disco dos anos 60, onde os agentes daquele órgão acreditavam que pudessem encontrar a gravação da voz de uma das pessoas suspeitas de integrarem o Martelo do Éden. Após dias de intensos esforços, disse ele, encontrou finalmente o disco, gravado por uma obscura banda de rock chamada Raining Fresh Daisies.

 — Jesus Cristo! Eu mesma quase tinha me esquecido da existência desse disco!

 — O FBI não confirma nem nega que esteja procurando a vocalista, Stella Higgins.

 — Puta merda! — explodiu Star. — Eles sabem o meu nome.

 A cabeça de Priest funcionava a toda velocidade. Quanto aquilo era perigoso? O nome não era muito útil para eles. Star não o usava havia quase trinta anos. Não sabiam onde Stella Higgins vivia.

 Sabiam, sim.

 Ele conteve um gemido de desespero. O nome de Stella Higgins constava do termo de cessão da terra. E ele dissera isso aos dois agentes que tinham aparecido ali depois da incursão a Los Alamos. Aquilo mudava tudo. Mais cedo ou mais tarde o FBI faria a conexão. E se por algum acaso o FBI falhasse, ainda havia o policial que trabalhava no gabinete do xerife de Silver Valley que se encontrava em férias nas Bahamas, e que tinha escrito o nome "Stella Higgins" em um processo que deveria subir à corte em duas semanas.

 O vale não era mais um segredo.

 Esta simples idéia fez com que ele se sentisse intoleravelmente triste.

 O que podia fazer?

 Talvez devesse fugir com Star. As chaves estavam no carro. Poderiam estar em Nevada em cerca de duas horas. No dia seguinte estariam a oitocentos quilômetros de distância.

 Pombas, não. Ainda não estou derrotado. Ainda era capaz de manter o controle.

 Seu plano original era de que as autoridades jamais soubessem quem era o Martelo do Éden ou o porquê da exigência de suspender a construção de novas usinas elétricas.

 Agora o FBI estava prestes a descobrir isso — mas talvez pudesse ser forçado a manter tudo em segredo. O segredo poderia ser parte da exigência de Priest. Se viessem a concordar com a suspensão da construção de novas usinas, poderiam muito bem engolir a exigência de conservar tudo em segredo.

 Sim, era ultrajante, mas claro que a coisa toda era ultrajante. Ele era capaz de fazer isso.

 Mas teria que ficar longe das garras do FBI. Abriu a porta do carro e saltou.

 — Vamos — disse para Star. — Tenho muito o que fazer. Ela saiu lentamente do carro.

 — Você não vai fugir comigo? — perguntou, triste.

 — Claro que não, droga — ele bateu a porta e se afastou. Ela o seguiu pelo vinhedo e na volta à aldeia. Dirigiu-se para sua cabana sem dizer boa-noite.

 Priest foi para a cabana de Melanie. Ela dormia. Ele a sacudiu bruscamente e a acordou.

 — Levanta — disse. — Temos que ir. Depressa.

 

 Judy ficou olhando, enquanto esperava que Stella Higgins acabasse de chorar.

 Stella era uma mulher grande e embora pudesse ser atraente em circunstâncias diferentes, agora parecia destruída. Tinha o rosto contorcido de angústia, a pintura antiquada dos olhos escorria pelas faces e os ombros pesados sacudiam com os soluços.

 As duas estavam sentadas na minúscula cabana que era a casa de Stella. Por toda a parte viam-se suprimentos médicos: caixas de ataduras, caixas de aspirina e Rolaids, Tylenol e Trojans, frascos de elixir paregórico, xarope para tosse e tintura de iodo. As paredes eram decoradas com desenhos feitos pelas crianças e que representavam Star tomando conta delas. Era uma construção primitiva, sem luz elétrica ou água encanada, mas tinha um ar de felicidade.

 Judy foi até a porta e ficou olhando para fora, dando a Star um minuto para recuperar o controle. O lugar era lindo à luz débil dos primeiros raios do sol. As últimas fitas de uma leve neblina iam desaparecendo das árvores nas encostas íngremes das montanhas e o rio brilhava, resplandecente lá embaixo. Nas encostas mais baixas havia um vinhedo bem cuidado, filas e filas de parreiras presas em treliças de madeira. Por um momento Judy foi tomada por uma sensação de paz espiritual, a impressão de que aquele era um lugar onde as coisas eram como deviam ser e o resto do mundo é que era estranho. Ela sacudiu a cabeça para livrar-se daquela sensação ilusória.

 Michael apareceu. Ele dissera que queria estar ali para cuidar do filho, e Judy dissera a Stuart Cleever que o atendesse porque sua opinião técnica de perito era importantíssima para a investigação. Ele trazia Dusty pela mão.

 — Como está ele? — perguntou Judy.

 — Ótimo — respondeu Michael.

 — Você encontrou Melanie?

 — Ela não está. Dusty diz que uma garota grande chamada Flower é que tem tomado conta dele.

 — Alguma idéia do lugar para onde foi Melanie?

 — Não — ele indicou Star com um gesto de cabeça. — O que ela diz?

 — Nada, ainda — Judy voltou para dentro e se sentou à beira da cama. — Fale-me sobre Ricky Granger — pediu.

 — Ele tem tanto um lado mau quanto um lado bom — disse Star, quando parou de chorar. — Era um desordeiro antigamente, eu sei, chegou inclusive a matar gente, mas em todo esse tempo em que estivemos juntos, mais de vinte e cinco anos, não magoou ninguém até agora, até que alguém teve esta idéia idiota de construir aqui a porra de uma represa.

 — Tudo o que eu quero fazer — disse Judy, delicadamente – é encontrá-lo antes que ele machuque mais gente.

 Star fez que sim.

 — Eu sei.

 Judy fez Star encará-la.

 — Onde ele foi?

 — Eu lhe diria se soubesse — disse Star. — Mas não sei.

 

 Priest e Melanie foram para San Francisco na picape da comunidade. Priest achou que o Cadillac dava muito na vista e que a polícia podia estar procurando o Subaru cor de laranja de Melanie.

 Todo o trânsito fluía na direção contrária, de modo que eles não foram muito retardados e atingiram a cidade pouco depois das cinco horas da manhã. Havia pouca gente na rua: um casal de adolescentes se abraçando em uma parada de ônibus, dois viciados em crack, atrevidos, comprando a última pedra de um traficante metido num casaco comprido, um bêbado ziguezagueando no meio da rua. A região do cais, contudo, estava deserta. A dilapidada paisagem industrial era sombria e assustadora à luz do início da manhã. Encontraram o armazém Perpetua Diaries e Priest destrancou a porta. O corretor de imóveis cumprira a promessa — a luz tinha sido ligada e havia água no banheiro.

 Melanie guardou a picape e Priest examinou o vibrador sísmico. Deu a partida no motor, abaixou e levantou o prato de aço. Tudo funcionou. Deitaram no sofá do pequeno escritório, bem juntinhos. Priest permaneceu acordado, examinando sua posição vezes sem conta. Fosse qual fosse a maneira pela qual visse a questão, a única coisa inteligente que o governador podia fazer era ceder. Priest viu-se fazendo discursos imaginários no programa de John Truth, mostrando como o governador estava sendo burro. Ele podia impedir o terremoto com uma única palavra! Depois de uma hora daquilo viu que era inútil. Deitado de costas, seguiu o ritual de relaxamento que usava para meditação.

 Seu corpo se acalmou, o batimento cardíaco voltou ao normal e ele acabou dormindo.

 Quando acordou, eram dez horas da manhã.

 Pôs uma panela com água na chapa elétrica. Ele trouxera da comunidade uma lata de café orgânico moído e umas xícaras. Melanie ligou a televisão.

 — Sinto falta dos noticiários, vivendo na comunidade — disse. – Eu costumava assistir o tempo todo.

 — Eu normalmente odeio noticiários — disse Priest. Fazem com que você se preocupe com milhões de coisas a respeito das quais não pode fazer nada — mas assistiu ao lado dela, para ver se tinha alguma notícia a seu respeito.

 Era tudo a seu respeito.

 — As autoridades estaduais estão considerando seriamente a ameaça de um terremoto hoje, quando o prazo dado pelos terroristas aproxima-se do fim — disse o âncora, mostrando em seguida uma cena em que funcionários municipais levantavam um hospital de campanha no parque Golden Gate. Aquela visão irritou Priest.

 — Por que não nos dão simplesmente o que queremos? exclamou, dirigindo-se ao aparelho de televisão.

 Na cena mostrada a seguir viam-se agentes do FBI examinando cabanas construídas de toros de madeira nas montanhas. Após um momento Melanie disse:

 — Meu Deus, é a nossa comunidade!

 Viram Star, vestindo seu velho robe de seda púrpura, o rosto uma máscara de dor, sendo conduzida para fora de sua cabana por dois homens que envergavam coletes à prova de balas.

 Priest praguejou. Não se surpreendia — fora a possibilidade de uma blitz que o levara a sair tão apressadamente na noite anterior – mas assim mesmo aquela visão o encheu de raiva e desespero. Sua casa fora violada por aqueles hipócritas filhos da mãe.

—  Vocês deveriam nos ter deixado em paz. Agora é muito tarde. Ele viu Judy Maddox, parecendo abatida. Você estava esperando me pegar na sua rede, não estava? Hoje não parecia tão bonita. Tinha os dois olhos roxos e um Band-Aid largo preso transversalmente no nariz. Você mentiu para mim e tentou me pegar numa armadilha e ganhou um nariz machucado por causa disso.

 Mas no fundo do coração sentia-se abatido. Tinha subestimado o tempo todo o FBI. Quando começara, nunca imaginara que iria ver agentes invadindo o santuário do vale, mantido em segredo por tantos anos. Judy Maddox era mais esperta do que ele imaginara.

 Melanie levou um susto. Na tela apareceu Michael, seu marido, carregando Dusty.

 — Oh, não! — exclamou.

 — Eles não estão prendendo Dusty — disse Priest, impaciente.

 — Mas para onde Michael vai levá-lo?

 — Faz alguma diferença?

 — Faz, se for acontecer um terremoto!

 — Michael sabe melhor do que ninguém onde se encontram as falhas. Não vai para nenhum lugar perigoso.

 — Oh, meu Deus, espero que não, especialmente se estiver com Dusty.

 Priest decidiu que bastava de televisão.

 — Vamos sair — disse. — Traga o telefone.

 Melanie foi dirigindo a picape e Priest trancou o armazém.

 — Direto para o aeroporto — disse quando entrou. Evitando as auto-estradas, conseguiram chegar perto do aeroporto antes de ficarem presos num engarrafamento. Priest imaginou que haveria milhares de pessoas usando telefones celulares por ali — tentando fazer reservas, ligando para suas famílias, checando a extensão do engarrafamento. Ligou para o programa de John Truth.

 Foi o próprio John Truth quem atendeu. Priest imaginou que estivesse esperando pelo seu telefonema.

 — Tenho uma nova exigência, portanto é bom que você ouça com cuidado.

 — Não se preocupe, porque estou gravando.

 — Acho que estarei no seu programa de hoje à noite, John? – disse Priest, com um sorriso.

 — Espero que você esteja na cadeia — retrucou Truth

 — Ora, vá se foder — o cara não precisava ficar aborrecido – Minha nova exigência é um perdão presidencial para todo mundo do Martelo do Éden.

 — Vou levar ao conhecimento do presidente.

 Agora ele estava querendo ser sarcástico. Será que entendia a importância do que estava em jogo?

 — Além disso, a suspensão da construção de novas usinas

 — Espere um minuto — retorquiu Truth. — Agora que todo mundo sabe onde fica sua comunidade, você não precisa de uma suspensão em todo o estado. Só quer que o seu vale não seja inundado, não é isso?

 Priest considerou o que acabara de ouvir. Não tinha pensado naquela hipótese. Truth tinha razão. Ainda assim, devia não concordar.

 — Nada disso — disse. — Tenho princípios. A Califórnia precisa gastar menos energia elétrica, e não mais, para se lugar decente onde meus netos possam viver. Nossa exigência inicial continua. Haverá outro terremoto se o governador não concordar.

 — Como você é capaz de fazer uma coisa dessas?

 A pergunta pegou Priest de surpresa.

 — O quê?

 — Como é que você pode causar tanto sofrimento e desespero a tanta gente — matando e ferindo as pessoas, danificando suas propriedades, fazendo com que fujam apavoradas de lares... Como é que você consegue encostar a cabeça no travesseiro e dormir?

 A pergunta enfureceu Priest.

 — Não venha querer se passar por ético — disse.

 — E tentando salvar a Califórnia.

 — Matando gente.

 Priest perdeu a paciência.

 — Cala a porra da boca e escuta — disse. — Vou lhe falar sobre o novo terremoto. — De acordo com Melanie, a janela sísmica se abriria às seis e quarenta da tarde. — Sete da noite disse Priest. — Vou atacar às sete da noite.

 — Você pode me dizer...

 Priest cortou a ligação.

 Ficou em silêncio por algum tempo. A conversa o deixara com uma sensação de desconforto. Truth deveria estar morrendo de medo, mas quase zombara dele. Tratara-o como um perdedor, era isso. Chegaram num entroncamento.

 — Podíamos virar aqui e voltar — disse Melanie. — Não tem movimento no outro sentido.

 — OK.

 Ela virou, pensativa.

 — Será que um dia voltaremos ao vale? — perguntou. Agora que o FBI e todo mundo sabe onde fica?

 — Sim! — disse ele.

 — Não grita!

 — Sim, voltaremos — disse ele, mais baixo. — Sei que as coisas parecem más e pode ser que tenhamos de ficar longe de lá por algum tempo. Não tenho dúvidas de que perderemos a safra deste ano. Mas com o tempo, eles vão se esquecer de nós. Haverá uma guerra, uma eleição ou um escândalo sexual e perderemos o interesse. Aí poderemos voltar para lá sem chamar a atenção, ocupar de novo as nossas casas, tratar do vinhedo e cultivar uma nova safra.

 Melanie sorriu.

 — É... — disse.

 Ela acredita. Eu não tenho certeza se acredito. Mas não vou pensar mais nisso. Preocupar-me só servirá para corroer minha vontade. Nada de dúvidas agora. Só ação.

 — Você quer voltar para o armazém? — perguntou Melanie.

 — Não. Vou enlouquecer fechado naquele buraco o dia inteiro. Toca para a cidade e vamos ver se conseguimos encontrar um restaurante que esteja servindo brunch. Estou morrendo de fome.

 

 Judy e Michael levaram Dusty para Stockton, onde moravam os pais de Michael. Dusty ficou entusiasmado por andar de helicóptero. O pouso foi no campo de futebol de uma escola secundária.

 O pai de Michael era um contador aposentado que morava numa boa casa, cujos fundos davam para um campo de golfe. Judy tomou um café na cozinha, enquanto ele acomodava o filho. A Sra. Quercus comentou, preocupada:

 — Talvez essa coisa terrível venha melhorar os negócios de Michael. De qualquer forma, é um vento ruim que não beneficia ninguém.

 Judy lembrou que os pais de Michael tinham aplicado dinheiro na consultoria aberta pelo filho e que ele estava preocupado em pagar o que lhes devia. Mas a mãe estava certa — o fato de ele ser o especialista do FBI em terremotos podia ajudar.

 A cabeça de Judy estava no vibrador sísmico. Não o tinham encontrado na comunidade. Não fora visto desde a noite de sexta-feira, embora os painéis anunciando o brinquedo de parque de diversões tivessem sido encontrados ao lado da estrada por um dos cento e tantos operários que ainda trabalhavam na região de Felicitas atingida pelo terremoto. Judy sabia em que tipo de carro Granger se encontrava. Descobrira perguntando aos membros da comunidade que carros tinham e checando os que faltavam. Ele estava usando uma picape e ela expedira um comunicado geral para encontrá-lo. Em teoria, cada policial da Califórnia deveria estar agora procurando a picape, mas Judy sabia que quase todos certamente estariam ocupados enfrentando os problemas decorrentes da emergência.

 Judy viu-se atormentada de maneira quase insuportável pela idéia de que poderia ter pego Granger na comunidade, caso tivesse insistido mais com Cleever e o persuadido a realizar a incursão na noite da véspera. Mas fora vencida pelo cansaço. Sentia-se melhor agora — a incursão bombeara adrenalina no seu sistema e lhe dera energia. Mas estava ferida física e mentalmente, sentia-se vazia por dentro.

 A pequena televisão colocada sobre a bancada da cozinha estava ligada sem som. Quando apareceu um noticiário, Judy pediu à Sra. Quercus para aumentar o volume. Estavam mostrando uma entrevista com John Truth, que falara ao telefone com Richard Granger. Ele tocou um extrato da gravação da conversa. — Sete da noite — disse Priest na fita. — Vou atacar às sete da noite. Judy sentiu um calafrio. Ele falava sério. Não havia arrependimento ou remorso em sua voz, tampouco qualquer sinal de que hesitasse em arriscar as vidas de tanta gente. Parecia racional, mas havia uma falha no seu discurso. Na verdade, ele não se importava com o sofrimento dos outros. Era uma característica dos psicopatas. Gostaria de saber o que Simon Sparrow descobriria naquela voz. Mas era tarde demais para psicolingüística. Ela foi , até a porta da cozinha e exclamou:

 — Michael! Temos que ir andando!

 Teria preferido deixar Michael ali com Dusty, onde ambos estariam em segurança. Mas precisava dele no posto de comando. Seus conhecimentos podiam ser importantíssimos.

 Ele veio, com Dusty.

 — Estou quase pronto — disse. Nesta hora o telefone tocou ! e a Sra. Quercus atendeu. Após um momento, passou o aparelho para o neto.

 — Tem uma pessoa querendo falar com você — disse.

 Dusty pegou o telefone e disse, incerto:

 — Alô? — aí seu rostinho iluminou-se. — Oi, mamãe!

 Judy gelou.

 Era Melanie.

 — Acordei hoje de manhã e você não estava! — disse Dusty. – Depois papai veio me pegar!

 Melanie, quase que certamente, estava com Priest e o vibrador sísmico. Judy pegou seu celular e telefonou para o posto de comando. Conseguiu falar com Raja.

 — Quero que você rastreie uma ligação. Melanie Quercus está falando com um telefone em Stockton — ela leu o número ; do aparelho que Dusty estava usando. — O telefonema começou há um minuto e continua.

 

 — Deixa comigo! Judy desligou.

 Dusty estava ouvindo, balançando e sacudindo a cabeça de vez em quando, esquecido de que a mãe não poderia ver seus movimentos. Até que, abruptamente, passou o telefone ao pai. — Ela quer falar com você.

 Judy cochichou para Michael:

 — Pelo amor de Deus, descubra onde ela se encontra!

 Ele segurou o telefone de encontro ao peito, abafando-o.

 — Pegue a extensão do quarto.

 — Onde?

 Foi a mãe de Michael que respondeu. — Logo ali no corredor, querida.

 Judy voou para o quarto, jogou-se em cima da colcha florida e pegou o telefone na mesinha-de-cabeceira, cobrindo o bocal com a mão.

 Ouviu Michael perguntar:

 — Melanie — onde diabos você está?

 — Esquece isso — replicou Melanie. — Vi você e Dusty na televisão. Ele está bem?

 Ela assiste a televisão, onde quer que se encontre.

 — Dusty está legal — disse Michael. — Acabamos de chegar aqui.

 — Eu estava na esperança de encontrar vocês aí. Ela falava baixo, e Michael pediu: — Dá pra falar mais alto?

 — Não, não posso, vê se se esforça mais para escutar, OK? Ela não quer que Granger a ouça. Ótimo — pode ser um sinal de que começam a discordar.

 — Tudo bem — concordou Michael.

 — Você vai ficar aí com Dusty. Certo?

 — Não — respondeu Michael. — Vou para a cidade.

 — O quê? Pelo amor de Deus, Michael, é perigoso!

 — O terremoto vai ser em San Francisco?

 — Não posso lhe dizer.

 — Será na península?

 — Sim, na península, e por isso fique longe com Dusty!

 O celular de Judy chamou. Mantendo o bocal da extensão do telefone fixo fortemente protegido, ela levou o celular ao outro ouvido e disse:

 — Pronto. Era Raja.

 — Ela está falando do celular. Do centro da cidade de San Francisco. Não conseguem mais do que isto quando se trata de telefone celular.

 — Ponha gente na rua procurando a picape.

 — Pode deixar.

 Judy desligou.

 Michael estava dizendo:

 — Se está tão preocupada, porque simplesmente não me diz onde se encontra o vibrador?

 — Não posso! — cochichou ela. — Você está maluco!

 — Ora, deixa disso. Sou eu que estou maluco? É você quem está causando os terremotos!

 — Não posso falar mais.

 Ouviu-se um clique e Judy recolocou o aparelho no lugar e rolou na cama, ficando de costas, a cabeça funcionando a mil. Melanie dera uma grande quantidade de informações. Encontrava-se em alguma parte do centro da cidade de San Francisco e, embora isto não tornasse a tarefa fácil, o palheiro era muito menor do que todo o estado da Califórnia.

 Ela dissera que o terremoto seria em algum ponto da península de San Francisco, a faixa estreita de terra que se estendia entre o oceano Pacífico e a baía de San Francisco. O vibrador sísmico tinha de estar em algum ponto daquela área. O mais intrigante para Judy, contudo, fora o indício de uma divergência entre Melanie e Granger. Obviamente ela dera aquele telefonema sem falar com ele e parecia ter medo de que a ouvisse. Era promissor podia ser que Judy conseguisse tirar alguma vantagem disso.

 Judy fechou os olhos, concentrando-se. Melanie estava preocupada com Dusty. Este era o seu ponto fraco. Poderia .ser usado contra ela? Ouvindo passos, Judy abriu os olhos. Michael entrou no quarto e lhe dirigiu um olhar estranho.

 — O quê?

 — Pode parecer inadequado, mas você fica ótima deitada numa cama.

 Judy lembrou-se de que estava na casa dos pais dele e levantou-se.

 Michael abraçou-a. Ela achou ótimo.

 — Como está seu rosto? — perguntou ele.

 Judy levantou os olhos.

 — Você é muito gentil...

 Ele beijou delicadamente seus olhos.

 Se ele quer me beijar quando estou com esta aparência péssima, deve gostar realmente de mim.

 — Mmm — disse Judy — quando isto terminar...

 — Sim.

 Ela fechou os olhos por um momento e começou a pensar novamente em Melanie.

 — Michael...

 — Não desliguei — pode falar. Judy libertou-se do abraço.

 — Melanie está preocupada com a possibilidade de Dusty estar na zona do terremoto.

 — Ele vai ficar aqui.

 — Mas você não confirmou isto. Ela lhe perguntou, mas você disse que já que estava tão preocupada deveria lhe dizer onde se encontrava o vibrador e você não chegou a responder direito à pergunta.

 — Ainda assim, é evidente que... Quer dizer, por que motivo eu o levaria para um lugar perigoso?

 — Eu só estou dizendo que ela está atormentada por essa dúvida e que, onde quer que se encontre, há uma televisão.

 — Às vezes ela deixa a televisão ligada no canal de notícias o dia inteiro — diz que a acalma.

 Judy sentiu uma pontada de ciúme. Ele a conhece tão bem. E se fizermos um repórter entrevistar você, no centro de operações de emergência de San Francisco, acerca do que está fazendo para ajudar o Bureau... e Dusty estiver, digamos, no fundo, em algum lugar?

 — Aí ela saberá que ele está em San Francisco.

 — E o que faria?

 — Acho que ia me telefonar e ter um ataque.

 — E se não pudesse entrar em contato com você — Ficaria realmente apavorada.

 — Mas impediria Granger de operar o vibrador?

 — Talvez. Se tivesse condições.

 — Vale a pena tentar?

 — Há outra alternativa?

 

 Priest estava em clima de tudo ou nada. Talvez o governador e o presidente não cedessem, nem mesmo depois do terremoto de Felicitas. Mas hoje seria o terceiro terremoto. Depois ele ligaria para John Truth e diria: "Vou fazer de novo! Na próxima vez poderá ser em Los Angeles, San Bernardino ou San José. Posso fazer isto tantas vezes quantas quiser. E vou continuar fazendo até vocês cederem. A escolha é sua!" O centro de San Francisco era uma cidade fantasma. Poucas pessoas queriam fazer compras ou simplesmente passear, embora houvesse muita gente indo às igrejas. O restaurante estava meio vazio. Priest pediu ovos e bebeu três Bloody Marys. Melanie estava abatida, preocupada com Dusty. Priest achava que o garoto estaria bem, já que se encontrava com o pai.

 — Já lhe contei por que me chamo Granger? — perguntou a Melanie.

 — Não é o nome do seu pai?

 — Minha mãe chamava a si própria de Verônica Nightingale. Ela me dizia que o nome do meu pai era Stewart Granger. Que ele fora fazer uma longa viagem, mas haveria de voltar, em uma limusine enorme cheia de presentes — perfumes e bombons para ela e uma bicicleta para mim. Nos dias de chuva, quando eu não podia brincar na rua, costumava ficar sentado junto da janela esperando por ele, hora após hora. Por um momento Melanie pareceu esquecer o próprio problema.

 — Pobre criança — disse.

 — Eu tinha cerca de doze anos quando descobri que Stewart Granger era um grande astro do cinema. Fez o papel de Allan Quatermain em As minas do rei Salomão bem na época em que nasci. Acho que não passava de uma fantasia da minha mãe. Mas me partiu o coração, palavra. Todas aquelas horas olhando pela maldita janela.

 Priest sorriu, mas a lembrança doeu.

 — Quem sabe? — disse Melanie. — Talvez ele fosse mesmo seu pai. Os artistas de cinema procuram as prostitutas.

 — Acho que eu devia perguntar a ele.

 — Está morto.

 — É mesmo? Eu não sabia.

 — Está sim, eu li na revista People há alguns anos.

 Priest sentiu a dor aguda da perda daquilo que fora a coisa mais parecida com um pai que ele já tivera.

 — Bem, agora não saberei nunca — deu de ombros e pediu a conta.

 Quando saíram do restaurante, não quis retornar para o armazém. Podia facilmente ficar sem fazer nada quando estava na comunidade, mas dentro de uma salinha encardida em um armazém arruinado não ia agüentar. Vinte e cinco anos no vale o tinham estragado para a vida na cidade. Assim, ele e Melanie foram dar uma volta pelo Fisherman's Wharf, se fazendo de turistas, desfrutando a brisa salgada da baía.

 Priest ouviu a conversa das poucas pessoas que também estavam caminhando. Todo mundo tinha uma desculpa para não deixar a cidade.

 — Não estou preocupada, o nosso edifício é à prova de terremotos...

 — O meu também, mas às sete horas vou estar no meio do parque...

 — Acredito no destino: ou o meu nome está na lista das fatalidades causadas por esse terremoto ou não está...

 — Exatamente, você pode ir de carro para Las Vegas, bater morrer na estrada...

 — Mandei reforçar a estrutura da minha casa...

 — Ninguém pode causar terremotos, foi uma coincidência...

 Voltaram ao carro poucos minutos depois das quatro horas. Priest não viu o policial senão quando já era quase tarde demais. Os Bloody Marys o tinham tornado estranhamente calmo e ele se sentia quase invulnerável, de modo que não se preocupara com a polícia. Estava apenas a uns três metros da picape quando notou um policial uniformizado olhando para a placa e falando num rádio portátil.

 Priest parou prontamente e agarrou o braço de Melanie. Um momento mais tarde deu-se conta de que o melhor teria sido passar direto, mas aí já era tarde demais.

 O policial tirou o olho da placa e voltou sua atenção para Priest. Priest olhou para Melanie, que não tinha visto o policial. Quase disse “ Não olhe para o carro”. Mas percebeu ainda a tempo que isso com certeza a faria olhar. Por isso falou a primeira coisa que lhe veio à cabeça.

 — Olha para a minha mão — e virou a palma da mão para cima.

 Ela examinou a palma da mão e depois olhou para ele de novo.

 — O que é que eu devo ver?

 — Continua olhando para a minha mão enquanto eu explico. Ela fez o que ele disse.

 — Vamos passar direto pelo carro. Tem um policial anotando o número da placa. Ele reparou em nós; eu o estou vendo com o canto do olho.

 Ela levantou os olhos da mão de Priest para o rosto dele.

 Aí, para seu assombro, deu-lhe uma bofetada. Doeu. Priest sufocou um grito.

 Melanie berrou:

 — E agora você pode voltar para sua loura burra!

 — O quê? — exclamou ele, furioso.

 Ela saiu andando.

 Priest ficou olhando para Melanie, assombrado. Ela passou pela picape em passadas largas e vigorosas.

 O policial virou-se para Priest com um quase sorriso. Priest saiu andando atrás de Melanie, dizendo:

 — Ei, espera um minuto!

 O policial retornou a atenção para a placa da picape. Priest alcançou Melanie e os dois juntos dobraram a esquina.

 — Muito bonitinho — disse ele. — Mas não precisava ter batido com tanta força.

 

 Um poderoso projetor portátil foi aceso em cima de Michael e um microfone em miniatura preso na gola de sua camisa pólo verde-escura. Uma pequena câmera de televisão, montada em cima de um tripé, teve o foco acertado nele. Atrás, os jovens sismólogos trazidos por Michael trabalhavam diante de seus monitores. Na frente de Michael estava sentado Alex Day, um jovem repórter de televisão. Alex vestia uma jaqueta de tecido camuflado, o que Judy considerou excessivamente dramático. Dusty ficou ao lado de Judy, segurando confiantemente a mão dela, vendo o pai ser entrevistado.

 Michael estava dizendo:

 — Sim, podemos identificar os locais onde seria mais fácil desencadear artificialmente um terremoto — mas, lamentavelmente, não podemos dizer qual foi a localização escolhida pelos terroristas senão depois que eles puserem o vibrador sísmico para operar.

 — E qual seria o seu conselho? Como os cidadãos podem se proteger se houver um terremoto?

 — O lema é "Agache-se, proteja-se e fique", e é este o melhor conselho — respondeu ele. — Agache-se embaixo de uma mesa, proteja o rosto dos estilhaços de vidro que voam e fique nessa posição até que o tremor de terra cesse.

 Judy cochichou para Dusty.

 — OK, vá até onde está o papai.

 Dusty entrou no campo da câmera. Michael colocou o menino sentado no joelho. Aproveitando a deixa, Alex Day perguntou:

 — Alguma coisa especial que nos ajude a proteger nossas crianças?

 — Bem, pode-se praticar o "Agache-se, proteja-se e fique" agora, para que elas saibam o que fazer quando ocorrer o tremor. É bom que os pais assegurem-se de que elas estejam usando sapatos pesados, não chinelos ou sandálias de dedo, porque haverá muitos estilhaços de vidro no chão. E que fiquem perto dos pais, para que estes não tenham de sair depois a procurá-las.

 — Alguma coisa que as pessoas devam evitar?

 — Não saiam de casa. A maior parte dos ferimentos em terremotos é causada por tijolos e outros escombros que caem.

 — Professor Quercus, obrigado por ter estado conosco hoje.

 Alex Day sorriu, imóvel, para Michael e Dusty por um longo momento e o homem da câmera disse:

 — Saiu ótimo.

 Todo mundo relaxou. A equipe da televisão começou rapidamente a arrumar o equipamento.

 — Quando vou poder ir para a casa da vovó de helicóptero? — quis saber Dusty.

 — Agora — respondeu Michael.

 Judy disse:

 — Em quanto tempo isso será transmitido, Alex? — perguntou Judy ao entrevistador.

 — Praticamente não precisa de edição, de modo que poderá ir para o ar agora. Dentro de meia hora, eu diria.

 Judy olhou para o relógio. Eram cinco e quinze.

 

 Priest e Melanie andaram meia hora sem ver um táxi. Depois ela ligou para um radio-táxi pelo telefone celular, mas também não conseguiu nada. Priest achou que ia ficar louco de raiva. Depois de tudo o que fizera seu grande esquema estava em perigo porque não conseguia encontrar um maldito táxi!

 Mas por fim, um Chevrolet imundo parou no Píer 39. O motorista tinha um nome típico da Europa central, que era ilegível, e parecia drogado. Não entendia outras palavras que não "esquerda" ou "direita" e provavelmente era a única pessoa em San Francisco que não tomara conhecimento do terremoto.

 Priest e Melanie voltaram para o armazém às seis e vinte.

 

 No centro de operações de emergência, Judy desabou na sua cadeira, olhando fixamente para o telefone.

 Eram seis e vinte e cinco. Dentro de trinta e cinco minutos Granger acionaria seu vibrador sísmico. Se funcionasse tão bem quanto funcionara nas últimas duas vezes, haveria um terremoto. Mas este seria pior. Presumindo que Melanie tivesse dito a verdade e que o vibrador se encontrasse em algum ponto da península de San Francisco, o terremoto quase que certamente atingiria a cidade.

 Cerca de dois milhões de pessoas tinham fugido da área metropolitana desde a noite de sexta-feira, quando Granger anunciara no programa de John Truth que o próximo terremoto atingiria San Francisco. Mas isso deixava de fora mais de um milhão de homens, mulheres e crianças incapazes ou que não queriam sair de suas casas: pobres, velhos, doentes, além de todos os policiais, bombeiros, enfermeiros e funcionários municipais esperando que começasse o trabalho de salvamento. Entre eles, Bo.

 Na tela da televisão, Alex Day falava de um estúdio improvisado montado pelo centro de emergência do prefeito numa rua a poucos quarteirões de distância. O prefeito tinha um capacete na cabeça e trajava um colete púrpura e dizia aos cidadãos para se agacharem debaixo de mesas fortes, protegerem o rosto , dos estilhaços de vidro e para ficarem na primeira posição segura que encontrassem até o fim do tremor de terra.

 A entrevista de Michael era repetida a todo instante; os editores da televisão haviam sido informados do real objetivo dela.

 Melanie, contudo, não parecia estar assistindo.

 A picape de Priest fora encontrada estacionada no Fisherman's Wharf às quatro horas. Estava sob vigilância, mas ele não voltara para pegá-la.

 Naquele exato momento, cada garagem e estacionamento da região estavam sendo examinados na busca ao vibrador sísmico.

 O salão de baile do clube de oficiais estava cheio de gente. E havia pelo menos quarenta homens de terno e gravata na área destinada à chefia. Michael e sua turma estavam agrupados em torno dos computadores esperando pelo primeiro sinal do tremor de terra. A equipe de Judy ainda trabalhava aos telefones, seguindo pistas de pessoas que fossem parecidas com Melanie e Priest, mas havia um tom cada vez mais desesperado em suas vozes. Fazer Dusty aparecer na entrevista de televisão com Michael fora sua última esperança e parecia ter falhado. A maior parte dos agentes que trabalhava ali no Centro de Emergência tinha casas na área da baía. A turma de administração organizara a evacuação das suas famílias.

 A edificação em que se encontravam era considerada tão segura quanto qualquer outra; fora reforçada pelo Exército para torná-la resistente a terremotos. Mas não podiam fugir. Como os soldados, os bombeiros e os policiais, tinham de ir para onde estivesse o perigo. Era seu trabalho. Do lado de fora, no campo de parada, uma frota de helicópteros estava pronta para levantar vôo, motores ligados e rotores girando, esperando para levar Judy e seus companheiros à região do epicentro do terremoto.

 

 Priest foi ao banheiro. Quando estava lavando as mãos, ouviu o grito de Melanie. Correu para o escritório ainda com as mãos molhadas e a encontrou com os olhos fixos na televisão.

 — O que é? — perguntou.

 O rosto dela estava branco, e com uma das mãos tapava a boca.

 — Dusty! — exclamou, apontando para a tela.

 Priest viu o marido de Melanie ser entrevistado, com o filho sentado no joelho. Um momento depois, a cena mudou e apareceu uma apresentadora que disse:

 — Este foi Alex Day, entrevistando um dos maiores sismólogos do mundo, o professor Michael Quercus, no centro de operações de emergência do FBI no Presídio.

 — Dusty está em San Francisco! — exclamou Melanie , histérica.

 — Não, não está — retorquiu Priest. — Talvez estivesse quando fizeram essa entrevista. Mas agora está a quilômetros de distância.

 — Você não sabe disso ao certo!

 — Claro que sei. E você também. Michael vai tomar conta do filho.

 — Quisera saber ao certo — disse Melanie, a voz trêmula.

 — Faça uma xícara de café — disse Priest, só para lhe dar algo para fazer.

 — OK — ela retirou a panela de cima da chapa elétrica e foi enchê-la com água no banheiro.

 

 Judy olhou para o relógio. Eram seis e meia. Seu telefone tocou.

 A sala mergulhou em absoluto silêncio.

 Ela agarrou o aparelho, deixou cair, praguejou, pegou de novo e levou-o ao ouvido.

 — Sim?

 A operadora da mesa disse:

 — Melanie Quercus perguntando pelo marido. Graças a Deus!

 Judy apontou para Raja:

 — Rastreiem a ligação.

 Ele já estava falando ao telefone.

 Judy dirigiu-se para a operadora da mesa.

 — Pode passar.

 Todos os chefões se reuniram em torno da cadeira de Judy. Permaneceram em silêncio, esforçando-se para ouvir. Este pode ser o telefonema mais importante da minha vida. Houve um clique na linha, Judy tentou falar com calma e disse:

 — Agente Maddox falando.

 — Onde está Michael?

 Melanie parecia tão assustada e preocupada que Judy sentiu pena dela. Parecia tão-somente uma mãe qualquer preocupada com o filho.

 Cai na real, Judy. Esta mulher é uma assassina. Judy endureceu o coração.

 — Onde você está, Melanie?

 — Por favor — sussurrou Melanie. — Só quero que você me diga aonde foi que ele levou Dusty.

 — Vamos fazer um trato — disse Judy. — Eu lhe asseguro que Dusty está OK, se você me disser onde se encontra o vibrador sísmico.

 — Posso falar com o meu marido?

 — Você está com Ricky Granger? Quer dizer, Priest?

 — Sim.

 — E vocês têm aí o vibrador sísmico, onde quer que se encontrem?

 — Sim.

 Então estamos quase pegando vocês.

 — Melanie — você realmente deseja matar tanta gente?

 — Não, mas nós temos... .

 — Você não será capaz de tomar conta de Dusty enquanto estiver na cadeia. Não verá seu filho crescer — Judy ouviu um soluço do outro lado da linha. — Só o verá através de uma divisória de vidro. Quando chegar a hora em que for libertada, ele já será um homem adulto, que não conhecerá a própria mãe.

 Melanie estava chorando.

 — Diga-me onde você está, Melanie.

 No grande salão de baile o silêncio foi total. Ninguém se mexeu. Melanie murmurou qualquer coisa mas Judy não conseguiu ouvir.

 — Fala alto!

 No outro lado da linha, ao fundo, um homem gritou:

 — Com quem você está falando, porra?

 Judy insistiu.

 — Depressa, depressa! Diga-me onde você está!

 O homem urrou:

 — Me dá essa merda desse telefone!

 Melanie disse:

 — Perpetua — e em seguida soltou um grito. Um momento depois a ligação estava desfeita.

 Raja disse:

 — Ela está em algum ponto da orla da baía, ao sul da cidade.

 — Não basta! — reclamou Judy.

 — Eles não conseguem ser mais precisos!

 — Bosta!

 Stuart Cleever interveio.

 — Silêncio, todo mundo. Vamos tocar a gravação deste telefonema em um momento. Antes, Judy, ela deu alguma pista?

 — Disse qualquer coisa no fim, pareceu-me algo como "Perpetual". Carl, vê se não tem uma rua com esse nome.

 Raja disse:

 — Vamos procurar uma firma também. Pode ser que estejam na garagem de algum edifício comercial.

 — Faça isso.

 Cleever deu um soco na mesa, de frustração.

 — O que a fez desligar?

 — Acho que Granger a pegou falando e tirou o telefone dela.

 — O que você vai querer fazer agora?

 — Gostaria de pegar um helicóptero.

 — Podemos ir até a orla marítima. Michael vai comigo e aponta os pontos por onde passa a falha. Talvez consigamos localizar o vibrador.

 — Faça isso — disse Cleever.

 Priest encarou Melanie, enfurecido. Ela estava agachada de encontro à pia encardida. Melanie tentara traí-lo. Ele a teria liquidado ali mesmo se tivesse uma arma. Mas o revólver que tomara do guarda de Los Alamos ficara no vibrador, embaixo do banco do motorista.

 Desligou o telefone de Melanie, enfiou-o no bolso da camisa e tentou acalmar- se. Isso era uma coisa que Star lhe ensinara. Quando jovem ele se deixava levar pela raiva, sabendo que assim conseguiria amedrontar as outras pessoas, porque é mais fácil lidar com quem tem medo. Mas Star lhe ensinara a respirar direito, relaxar e pensar, o que era melhor, a longo prazo.

 Considerou o dano que Melanie havia causado. Teria o FBI sido capaz de rastrear o telefonema? Eles poderiam descobrir de onde estava sendo feita uma ligação através de um celular? Tinha que presumir que sim. Neste caso, a esta hora estariam vasculhando aquela área, procurando um vibrador sísmico.

 Não tinha mais tempo. A janela sísmica abria às seis e quarenta. Olhou para o relógio: eram seis e trinta e cinco. Ao diabo com seu limite de sete horas — tinha que dar início ao terremoto agora.

 Saiu correndo do banheiro. O vibrador sísmico estava no meio do armazém vazio, de frente para a porta de entrada. Pulou na cabine e deu a partida ao motor. Precisava-se de uns dois minutos para a pressão subir no mecanismo vibratório. Ele observou os medidores impacientemente. Vamos, vamos! Finalmente os ponteiros chegaram no setor verde.

 A porta do passageiro abriu-se e Melanie subiu.

 — Não faça isso! — gritou ela. — Não sei onde está o Dusty!

 Priest estendeu a mão para a alavanca que abaixava o prato do vibrador até o chão.

 Melanie bateu na mão dele.

 — Por favor, não!

 Priest deu uma bofetada nela com as costas da mão. Melanie gritou e o sangue correu do seu lábio.

 — Sai fora! — gritou ele. Puxou a alavanca e o prato desceu.

 Melanie empurrou a alavanca para a posição inicial.

 Priest perdeu a cabeça. Bateu nela de novo.

 Melanie gritou e cobriu o rosto com as duas mãos, mas não fugiu. Priest empurrou de novo a alavanca para a posição onde o prato ficava no solo.

 — Por favor — disse ela. — Não.

 O que é que eu vou fazer com essa imbecil? Ele se lembrou da arma. Meteu a mão debaixo do banco e puxou-a. Era grande demais, desajeitada naquele espaço tão pequeno. Apontou a arma para Melanie.

 — Saia do caminhão — ordenou.

 Para sua surpresa, ela atirou-se de novo contra ele, comprimindo o corpo de encontro ao cano da arma e levantou a alavanca.

 Ele puxou o gatilho.

 O disparo foi ensurdecedor na pequena cabine do caminhão.

 Por uma fração de segundo, uma pequena parte do cérebro de Priest sentiu remorso por ter arruinado aquele belo corpo; mas ele tirou aquilo do pensamento.

 Melanie foi lançada para trás e, como a porta da cabina ainda estava aberta, caiu e foi bater no chão com um baque nauseante.

 Priest não parou para ver se estava morta. Pela terceira vez puxou a alavanca.

 Quando o prato fez contato com o piso do armazém, Priest acionou a máquina.

 

 Era um helicóptero de quatro lugares. Judy estava sentada ao lado do piloto e Michael atrás. Voavam rumo sul ao longo do litoral da baía de San Francisco quando Judy ouviu nos fones de cabeça a voz de uma das alunas de Michael que trabalhava como sua assistente, chamando do posto de comando.

 — Michael! Aqui é a Paula! Começou — um vibrador sísmico!

 Judy sentiu um arrepio de medo. Eu achava que tinha mais tempo!

 Verificou o relógio: eram seis e quarenta e cinco. O prazo fatal de Granger seria em quinze minutos. O telefonema de Melanie devia tê-lo feito antecipar o início do funcionamento do vibrador.

 Michael estava perguntando:

 — O sismógrafo acusa tremores?

 — Não — só o vibrador sísmico... até agora. Sem terremotos por enquanto. Graças a Deus.

 Judy gritou no seu microfone.

 — Diga as coordenadas, rápido!

 — Espere um minuto, as coordenadas ainda estão sendo calculadas.

 Judy pegou um mapa. Depressa, depressa!

 Um longo momento mais tarde Paula leu os números que tinha na sua tela. Judy localizou-os no mapa e disse para o piloto:

 — Três mil e duzentos metros para o sul e depois cerca de quinhentos metros para dentro.

 Ela sentiu o estômago revirar quando o helicóptero mergulhou e ganhou velocidade.

 Estavam voando sobre a região do velho cais do porto, cheia de fábricas em escombros e depósitos de carros velhos. Teria sido uma região tranqüila em um domingo normal; naquele, estava vazia. Judy esquadrinhou o horizonte, à procura de um caminhão que pudesse ser o vibrador sísmico.

 Viu duas viaturas policiais acelerando na mesma direção em que ia. Olhando para oeste, localizou a van da SWAT do FBI aproximando-se. Lá atrás, no Presídio, os outros helicópteros estariam levantado vôo, cheios de agentes armados. Em breve metade das viaturas policiais do Norte da Califórnia estariam seguindo para as coordenadas que Paula dera.

 Michael voltou a dirigir-se à sua assistente:

 — Paula! O que está acontecendo na sua tela?

 — Nada. O vibrador está operando mas não está provocando qualquer efeito.

 — Graças a Deus! — exclamou Judy.

 — Se ele agir como antes — disse Michael — vai deslocar o caminhão cerca de quinhentos metros e tentar de novo.

 O piloto disse:

 — Pronto. Chegamos às suas coordenadas — o helicóptero começou a circular.

 Judy e Michael examinaram tudo, procurando freneticamente o vibrador. No solo, nada se movia.

 

 Priest praguejou.

 A máquina estava funcionando, mas não havia terremoto. Aquilo acontecera antes, em ambas as vezes. Melanie dissera que na verdade não compreendia por que funcionava numa localização e não funcionava em outra. Provavelmente tinha a ver com diferentes tipos de subsolo. Das duas vezes o vibrador desencadeara o terremoto somente na terceira tentativa. Mas hoje Priest realmente precisava ter sorte da primeira vez. O que não aconteceu.

 Fervendo de raiva e frustração, ele desligou o mecanismo e levantou o prato.

 Tinha que deslocar o caminhão.

 Saltou da cabine. Pulando por cima do corpo de Melanie, caído de encontro à parede e sangrando no piso de concreto, Priest correu até a entrada. A porta dupla, alta e antiquada, recuava cada folha para admitir veículos grandes. Numa delas havia uma porta pequena, para trânsito de pessoas. Priest abriu a porta pequena.

 

 Em cima da entrada de um armazém pequeno, Judy viu uma placa onde leu

"Perpetua Diaries".

 Pensara que Melanie estivesse dizendo "Perpetual". — É ali o lugar! — gritou. — Desce!

 O helicóptero desceu rapidamente, evitando uma linha de alta tensão e aterrissou no meio da rua deserta.

 Assim que sentiu a batida do contato com o chão, Judy abriu a porta.

 

 Priest deu uma olhada do lado de fora.

 Um helicóptero tinha pousado na rua. Enquanto olhava, alguém saltou do aparelho. Era uma mulher com um curativo no rosto. Ele reconheceu Judy Maddox.

 O palavrão que Priest gritou perdeu-se no barulho do helicóptero. Não havia tempo para abrir a porta grande.

 Correu de volta para o caminhão, subiu na cabine e engrenou a ré. Recuou o máximo que pôde dentro do armazém, parando quando bateu na parede. Em seguida, então, engrenou a primeira, acelerou furiosamente o motor e soltou a embreagem com um movimento brusco. O caminhão deu um solavanco para a frente.

 Comprimiu o acelerador até o fim. Com o motor fazendo um barulho infernal, o enorme caminhão ganhou velocidade no interior do armazém e bateu na velha porta de madeira.

 Judy Maddox estava do outro lado, arma na mão. Espanto e medo apareceram nas suas feições quando o caminhão passou derrubando a porta.

 Priest riu ferozmente quando a viu. Judy pulou de lado e o caminhão não a pegou por um centímetro.

 O helicóptero estava no meio da rua. Priest reconheceu o homem que saltava do aparelho — era Michael Quercus. Acertou o volante na direção do helicóptero, mudou de marcha e acelerou.

 

 Judy rolou o corpo, fez pontaria na porta do motorista e deu dois tiros. Achou que podia ter acertado em alguma coisa, mas não conseguiu deter o caminhão.

 O helicóptero levantou vôo rapidamente. Michael correu para o lado da rua.

 Judy achou que Granger estava querendo atingir o trem de aterrissagem do helicóptero, como fizera em Felicitas, mas desta vez o piloto foi mais rápido que ele e subiu depressa, de modo que o caminhão passou direto, sem atingi-lo.

 Mas na pressa o piloto se esqueceu das linhas de alta tensão. Havia cinco ou seis cabos estendidos entre os postes altos. A lâmina do rotor pegou neles, cortando alguns. O motor do helicóptero falhou. Um dos postes cedeu à tensão e caiu. O rotor começou a girar de novo, mas o aparelho aí já tinha perdido altura e caiu no chão com um enorme estrondo.

 

 A Priest restava uma última esperança.

 Se ele pudesse dirigir uns quinhentos metros, abaixar o prato e acionar o vibrador, conseguiria provocar um terremoto antes do FBI pegá-lo. E em meio ao caos do terremoto, talvez escapasse, como já acontecera antes.

 Deu um golpe de direção e afastou-se.

 

 Judy atirou de novo quando o caminhão desviou-se do helicóptero acidentado. Queria atingir Granger ou alguma parte essencial do motor, mas não teve sorte. O caminhão prosseguiu, intacto.

 Ela olhou para o helicóptero. O piloto não se mexia. Olhou de novo para o vibrador sísmico, que ia ganhando velocidade gradualmente. Quisera ter um rifle.

 Michael aproximou-se, correndo.

 — Você está bem?

 — Estou — ela tomou uma decisão. — Vê se consegue ajuda para o piloto — vou atrás de Granger.

 Ele hesitou, mas acabou concordando.

 — OK.

 Judy enfiou a pistola no coldre e correu atrás do caminhão. Era um veículo lerdo, que precisava de longos momentos para acelerar. Em princípio, ela encurtou rapidamente a distância que a separava dele. Depois Granger engrenou uma marcha mais rápida e o caminhão ganhou velocidade. Judy correu o mais depressa que pôde, o coração batendo forte, o peito doendo. Havia uma imensa roda sobressalente presa na tampa de trás do caminhão. Judy ainda ia reduzindo a distância, mas não tão depressa. Justo quando começou a pensar que nunca conseguiria alcançá-lo, Granger mudou de marcha de novo, e, aproveitando a perda momentânea de velocidade, ela apertou o ritmo das passadas e pulou para alcançar a tampa de trás.

 Meteu um pé no pára-choque e se agarrou na roda sobressalente. Por um momento pensou, apavorada, que ia escorregar e cair e olhou para baixo, para ver a rua passando velozmente. Mas conseguiu se segurar. Passou para o piso da caçamba do caminhão entre os tanques e as válvulas da maquinaria. Cambaleou na tentativa de se equilibrar, quase caiu e endireitou-se.

 Não sabia se Granger a tinha visto.

 Ele não podia operar o vibrador enquanto o caminhão estivesse em movimento, de modo que Judy permaneceu onde se encontrava, o coração batendo com força, esperando que ele parasse.

 Mas Priest a vira.

 Ela ouviu barulho de vidro quebrado e viu o cano de uma arma aparecer na janela de trás da cabine. Abaixou-se, instintivamente. No momento seguinte ouviu uma bala ricochetear em um tanque ao seu lado. Chegou para a esquerda para ficar diretamente atrás de Granger e agachou-se, o coração na boca. Ouviu outro tiro, e encolheu-se, a bala não a atingiu. Ele pareceu ter desistido.

Mas não tinha.

 O caminhão freou bruscamente. Judy foi jogada para a frente e bateu com a cabeça num cano. Em seguida Granger deu uma guinada violenta para a direita. Por um terrível momento pensou que fosse ser arremessada para morrer no asfalto da rua, mas conseguiu se agarrar em cima do caminhão. Viu que Granger estava arremetendo de maneira suicida de encontro a um muro de tijolos de uma fábrica abandonada. Agarrou-se a um tanque. No último instante ele freou e girou o volante, só que uma fração de segundo atrasado. Conseguiu evitar uma colisão frontal, mas a parte externa do pára-lama afundou no muro com um barulhão de metal amassado e vidro quebrado. Judy sentiu uma dor terrível nas costelas, esmagada contra o tanque onde se segurava. A seguir foi lançada no ar.

 Por um momento, ficou totalmente desorientada. Depois bateu no chão, caindo em cima do lado esquerdo. Sem conseguir respirar, não pôde gritar de dor. Bateu com a cabeça no chão, o braço esquerdo estava dormente e o pânico se apossou de sua mente.

 A cabeça de Judy clareou um ou dois minutos depois. Sentia muita dor, mas conseguia se mexer. O colete à prova de bala ajudara a protegê-la. A calça preta de veludo cotelê tinha rasgado e um joelho sangrava, mas não era sério. O nariz também sangrava — o ferimento causado por Granger na véspera tinha reaberto. Caíra perto das enormes rodas duplas do caminhão. Se Granger desse marcha à ré, a mataria. Rolou de lado, ficando sob o caminhão mas afastando-se dos pneus gigantescos. O esforço fez com que sentisse muita dor nas costelas, e ela praguejou.

 O caminhão não recuou. Granger não estava tentando matá-la. Talvez não tivesse visto onde caíra.

 Judy olhou para os dois lados da rua. A quatrocentos metros de distância pôde ver Michael lutando para retirar o piloto das ferragens do helicóptero. Na outra direção, não havia sinal da van da SWAT ou das viaturas da polícia que vira do ar, tampouco dos outros helicópteros do FBI. Provavelmente chegariam em segundos — mas não podia perder um único segundo.

 Ficou de joelhos e sacou a pistola. Esperou que Granger saísse da cabina para atirar, só que ele não fez isso.

 Foi doloroso, mas ela conseguiu pôr-se de pé.

 Quase certamente Priest a veria pelo espelho retrovisor lateral se ela se aproximasse pelo lado do motorista. Foi até o outro lado e arriscou uma olhada. Havia outro retrovisor grande também ali.

 Ajoelhou-se, deitou no chão, barriga para baixo, e rastejou por baixo do caminhão. Foi se contorcendo até chegar praticamente sob a cabine. Foi quando ouviu um barulho novo e perguntou-se o que seria. Olhando para cima, viu um imenso prato de aço.

 O prato estava sendo baixado exatamente em cima dela. Desesperada, rolou de lado. Seu pé prendeu-se numa das rodas de trás. Por alguns momentos horríveis lutou para libertar-se enquanto o prato de aço maciço deslocava-se inexoravelmente para baixo. Esmagaria sua perna como um brinquedo de plástico. No último momento conseguiu retirar o pé, abandonando o sapato, e rolou para fora.

 Agora não tinha mais nenhuma proteção. Granger a veria a qualquer segundo. Se olhasse pela janela da direita, arma na mão, poderia atingi-la facilmente.

 Houve uma explosão como uma bomba nos seus ouvidos e a terra começou a tremer. O vibrador entrara em funcionamento.

 Tinha que fazer com que parasse. Pensou por um instante na casa de Bo. Na sua mente, ela a viu desmoronando e depois toda a rua onde ficava. Comprimindo o lado do corpo com a mão esquerda, para minorar a dor, obrigou-se a se levantar.

 Com dois passos chegou à porta. Tinha que abri-la com a mão direita, e, para tanto, passou a pistola para a esquerda — era capaz de atirar indiferentemente com as duas mãos — e virou-a para cima. Agora.

 Saltou sobre o estribo, agarrou a maçaneta da porta e abriu-a com um arrancão.

 Ficou cara a cara com Richard Granger. Ele parecia tão apavorado quanto ela.

 Judy apontou a pistola para ele e gritou:

 — Desliga isso! Desliga, vai!

 — OK — disse Priest, sorrindo e abaixando-se para pegar qualquer coisa embaixo do banco.

 Foi o sorriso que a alertou. Viu que ele não ia desligar o vibrador. Preparou-se para atirar.

 Judy nunca atirara em ninguém antes.

 A mão dele saiu de baixo do banco carregando um revólver que parecia do tempo do Velho Oeste. Quando o cano longo girou na direção dela, Judy apontou para a cabeça de Granger e puxou o gatilho.

 A bala o atingiu no rosto, perto do nariz.

 Ele atirou uma fração de segundo depois. O clarão e o barulho dos dois disparos foram terríveis. Ela sentiu a têmpora direita arder.

 Anos de treinamento entraram em jogo. Ela aprendera a sempre atirar duas vezes, e seus músculos se lembraram. Desta vez atingiu-o no ombro. O sangue jorrou imediatamente. Ele girou de lado e caiu de encontro à porta, os dedos sem energia largando a arma.

 Oh, Jesus, é isto que se sente quando se mata uma pessoa? Judy sentiu o sangue escorrendo pelo rosto e conteve uma onda de tontura e náusea. Manteve a arma apontada para Granger.

 A máquina ainda estava vibrando.

 Olhou para os comandos — uma confusão de interruptores e mostradores. Acabara de atirar na única pessoa que sabia como desligar aquilo.

 Sentiu-se invadida por uma horrível sensação de pânico. Esforçou-se para se controlar. Tinha que haver uma chave.

 Havia. Inclinou-se sobre o corpo inerte de Ricky Granger e virou-a. Subitamente fez-se silêncio.

 Deu uma olhada na rua. Em frente ao armazém Perpetua Diaries o helicóptero estava em chamas.

 Michael! Abriu a porta do caminhão, lutando para permanecer consciente. Sabia que tinha uma coisa para fazer, algo importante, antes de ir ajudar Michael, mas não conseguiu lembrar do que era. Desistiu de tentar e saltou do caminhão.

 Uma sirene da polícia soou cada vez mais perto e ela viu uma radiopatrulha se aproximando. Acenou para o policial.

 — FBI — disse. — Leve-me para aquele helicóptero. — Judy abriu a porta e caiu dentro do carro.

 O policial dirigiu os quatrocentos metros que os separavam do armazém e parou a uma distância segura do helicóptero em chamas. Judy saltou. Não conseguia ver ninguém nos restos do aparelho.

 — Michael! — gritou. — Onde está você?

 — Aqui! — Michael estava atrás da porta arrombada do armazém, debruçado sobre o piloto. Judy correu para ele.

 — Este cara precisa de ajuda — disse Michael. Ele reparou no rosto dela. — Meu Deus, você também! — exclamou.

 — Estou bem — disse ela. — O socorro está vindo aí.

 Judy pegou o celular e ligou para o posto de comando. Conseguiu falar com Raja.

 — Ei, Judy, o que está acontecendo? — perguntou ele.

 — Você é que tem que me dizer o que está acontecendo, pelo amor de Deus!

 — O vibrador parou.

 — Eu sei. Fui eu que desliguei. Algum tremor?

 — Nenhum. Absolutamente nada.

 Judy relaxou. Era um alívio saber que tinha desligado a máquina a tempo. Não haveria terremoto.

 Encostou-se na parede. Sentiu que ia desmaiar. Lutou para manter-se de pé.

 Não se sentia vitoriosa. Talvez a alegria do triunfo viesse mais tarde, com Raja, Carl e os outros, no bar do Everton. Por ora, sentia-se simplesmente vazia.

 Outra radiopatrulha parou.

 — Tenente Forbes — disse o policial que saltou. — O que diabos houve aqui? Onde está o criminoso?

 Judy apontou para o vibrador sísmico, um pouco mais adiante.

 — Está na cabine daquele caminhão — disse. — Morto.

 — Vamos dar uma olhada — o tenente entrou de novo no carro e saiu velozmente.

 Michael desaparecera. Procurando por ele, Judy entrou no armazém. Viu-o sentado no piso de concreto, numa poça de sangue. Mas não era dele o ferimento. Tinha Melanie nos braços. O rosto dela estava ainda mais branco do que o comum e sua camiseta estava encharcada de sangue. Tinha um ferimento horrível no peito.

 Michael estava desfigurado pela aflição.

 Judy aproximou-se e se ajoelhou ao lado dele. Com a mão no pescoço de Melanie tentou encontrar sinais de vida. Nada.

 — Sinto muito, Michael — disse ela. — Sinto muito. Ele engoliu em seco.

 — Pobre Dusty.

 Judy levou a mão ao rosto dele.

 — Vai dar tudo certo — disse.

 

 Poucos minutos depois o tenente Forbes reapareceu.

 — Com licença — disse, polidamente. — A senhora disse que havia um homem morto na cabine daquele caminhão?

 — Sim, foi o que eu disse. Atirei nele.

 — Bem — retrucou o policial. — Não está lá agora.

 

Star ficou presa por sete anos. A princípio a prisão foi uma tortura. A disciplina é um inferno para uma pessoa cuja vida inteira girou em torno de liberdade. Até que uma bonita carcereira chamada Jane se apaixonou por ela e passou a lhe trazer maquilagem, livros e maconha, e as coisas começaram a melhorar.

 Flower foi adotada por um ministro metodista e sua esposa. Eram pessoas de bom coração, mas incapazes de compreender o passado da menina. Ela sentia falta dos pais, saiu-se mal na escola e meteu-se em mais encrencas com a polícia. Até que, uns dois anos depois, encontrou sua avó, Veronica Nightingale, que tinha treze anos quando dera à luz a Priest, de modo que não tinha muito mais que sessenta quando Flower a conheceu. Administrava uma loja em Los Angeles vendendo artigos para sexo, lingerie e vídeos pornô. Tinha um apartamento em Beverly um carro esporte vermelho. Contou a Flower histórias sobre o pai dela quando menino pequeno. Flower fugiu da casa do ministro e foi morar com a avó. Oaktree desapareceu. Judy sabia que tinha havido uma quarta pessoa no `Cuda em Felicitas e conseguira deduzir seu papel no episódio. Obtivera inclusive um conjunto completo de impressões digitais, recolhido na sua oficina de marcenaria na comunidade. Mas ninguém sabia para onde ele fora. Suas digitais, contudo, apareceram dois anos depois em um carro roubado que fora usado em um assalto à mão armada em Seattle. A polícia não suspeitou dele, porque tinha um excelente álibi, mas Judy foi automaticamente notificada. Quando reviu o caso com o promotor — seu velho amigo Don Riley, agora casado com uma corretora de seguros — chegaram à conclusão de que eram fracas as acusações que podiam fazer a Oaktree pela sua participação no Martelo do Éden e decidiram deixá-lo de lado.

 Milton Lestrange morreu de câncer. Brian Kincaid aposentou-se. Marvin Hayes demitiu-se e foi ser diretor de segurança de uma cadeia de supermercados.

 Michael Quercus tornou-se moderadamente famoso. Por ter boa aparência e saber explicar bem sismologia, a televisão passou a chamá-lo sempre que precisava de uma opinião abalizada sobre terremotos. Sua firma prosperou.

 Judy foi promovida a supervisora e passou a morar com Michael e Dusty. Quando a firma dele começou a faturar bem, compraram juntos uma casa e decidiram ter um filho. Um mês depois estava grávida e se casaram. Bo chorou no casamento.

 Judy deduziu como Richard Granger, ou Priest, tinha fugido.

 O ferimento no rosto tinha sido feio mas não sério. A bala no ombro raspara uma veia e a perda súbita de muito sangue fizera com que ele desmaiasse. Judy devia ter checado seus batimentos cardíacos antes de ir ajudar Michael, mas estava enfraquecida pelos ferimentos e confusa com a perda de sangue e não seguiu a rotina.

 A posição em que Granger caíra fez com que a pressão sangüínea se elevasse de novo e ele voltou a si poucos segundos depois que ela se afastou. Dobrou a esquina rastejando e teve a sorte de encontrar um carro esperando o sinal abrir. Entrou, sacou da arma e exigiu que o motorista o levasse à cidade. No caminho usou o telefone celular de Melanie para ligar para Paul Beale, o engarrafador de vinho que fora cúmplice de Priest nos velhos tempos. Beale lhe dera o endereço de um médico inescrupuloso. Granger fizera o motorista largá-lo numa esquina em um bairro barra-pesada. (O cidadão, traumatizado, fora para casa, ligara para a delegacia mais próxima, o telefone estava ocupado e só no dia seguinte é que fora relatar o incidente.) O médico, um cirurgião que perdera as credenciais para clinicar e que era viciado em morfina, dera os pontos em Granger. Este passara a noite no seu apartamento e fora embora.

 Judy nunca soube para onde.

 

 A água sobe depressa. Já inundou todas as casinhas de madeira. Por trás das portas fechadas, as camas e cadeiras artesanais flutuam. A cozinha e o templo também estão inundados.

 Ele esperou semanas para a água atingir o vinhedo. Finalmente chegou o dia, e as preciosas plantas estão se afogando. Tinha esperança de encontrar seu cachorro ali, mas Spirit fora embora havia muito tempo. Bebeu uma garrafa do seu vinho favorito. É difícil beber ou comer por causa do ferimento no rosto, mal costurado por um médico chapado de tanta droga. Mas conseguiu derramar pela garganta abaixo o bastante para embriagar-se.

 Joga a garrafa fora e pega no bolso um enorme baseado de maconha entremeada com heroína em quantidade suficiente para derrubá-lo. Acende, puxa uma tragada e desce a colina. Quando a água chega nas coxas, ele se senta.

 Dá uma última olhada no seu vale, quase irreconhecível. Não há mais o alegre rumorejar da correnteza. Só os telhados das construções são visíveis, e lembram navios afundados flutuando de cabeça para baixo na superfície de uma lagoa. As parreiras que ele plantou vinte e cinco anos atrás estão submersas.

 Não é mais um vale. Tornou-se um lago e tudo que havia ali foi morto. Ele dá uma longa tragada no baseado que tem entre os dedos. Aspira a fumaça mortal até o fundo dos pulmões. Sente a corrida impetuosa do prazer quando a droga entra na corrente sangüínea e os elementos químicos fluem para o cérebro. O pequenino Ricky finalmente feliz, ele pensa.

 

 Ele rola e cai dentro da água. Indefeso, desligado pela droga, o rosto virado para baixo. Bem devagar a consciência se desvanece, como uma lâmpada distante que fica mais e mais mortiça até que, por fim, a luz se apaga.

 

                                                                                            Ken Follett

 

 

                      

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