Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O MENINO DO PIJAMA LISTRADO
Bruno tem nove anos e não sabe nada sobre o Holocausto e a Solução Final contra os judeus.Também não faz idéia de que seu país está em guerra com boa parte da Europa, e muito menos de que sua família está envolvida no conflito. Na verdade, Bruno sabe apenas que foi obrigado a abandonar a espaçosa casa em que vivia em Berlim e mudar-se para uma região desolada, onde ele não tem ninguém para brincar nem nada para fazer. Da janela do quarto, Bruno pode ver uma cerca, e, para além dela, centenas de pessoas de pijama, que sempre o deixam com um frio na barriga.
Em uma de suas andanças Bruno conhece Shmuel,um garoto do outro lado da cerca que curiosamente nasceu no mesmo dia que ele. Conforme a amizade dos dois se intensifica, Bruno vai aos poucos tentando elucidar o mistério que ronda as atividades de seu pai. "O Menino do Pijama Listrado" é uma fábula sobre amizade em tempos de guerra, e sobre o que acontece quando a inocência é colocada diante de um monstro terrível e inimaginável.
BRUNO FAZ UMA DESCOBERTA
Certa tarde, quando Bruno chegou em casa vindo da escola, surpreendeu-se ao ver Maria, a governanta da família – que sempre mantinha a cabeça abaixada e jamais levantava os olhos do tapete, - de pé no seu quarto, tirando todos os seus pertences do guarda-roupa e arrumando-os dentro de quatro caixotes de madeira, até mesmo aquelas coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém.
“O que você está fazendo?”, ele perguntou tão educadamente quanto pôde, pois, embora não estivesse contente por chegar em casa e descobrir alguém remexendo nas suas coisas, sua mãe sempre lhe dissera para tratar Maria com respeito e não simplesmente imitar a maneira com que seu pai a tratava. “Tire as mãos das minhas coisas.”
Maria sacudiu a cabeça e apontou para a escada atrás dele, onde a mãe de Bruno acabara de aparecer. Era uma mulher alta, de longos cabelos ruivos, presos numa espécie de rede atrás da cabeça; ela estava retorcendo as mãos em sinal de nervosismo, como se houvesse algo que ela não quisesse falar ou alguma coisa em que não quisesse acreditar.
“Mãe”, disse Bruno, marchando em direção a ela, “o que está acontecendo? Por que a Maria está mexendo nas minhas coisas?”
“Ela está fazendo suas malas”, a mãe explicou.
“Fazendo minhas malas?”, ele perguntou, repassando rapidamente os eventos dos últimos dias para avaliar se fora um mau menino ou se dissera em voz alta as palavras que ele sabia não poder dizer e, por isso, estava sendo mandado embora. Mas não conseguiu pensar em nada que justificasse tal pensamento. Na verdade, durante os últimos dias ele se comportara de maneira perfeitamente decente com todos e não conseguia se lembrar de ter criado nenhuma confusão. “Por quê?”, ele perguntou então. “O que eu fiz?”
A mãe já havia entrado em seu próprio quarto a essa altura, mas Lars, o mordomo, estava lá, fazendo as malas dela também. Ela suspirou e jogou as mãos para o ar em sinal de frustração antes de marchar de volta à escada, seguida por Bruno, que não ia deixar o assunto morrer sem uma explicação satisfatória.
“Mãe”, ele insistiu. “O que está havendo? Estamos de mudança?”
“Venha comigo até o andar de baixo”, disse ela, levando-o até a ampla sala de jantar onde o Fúria estivera para comer com eles na semana anterior. “Conversaremos lá embaixo.”
Bruno desceu as escadas correndo e até a ultrapassou na descida, de maneira que já estava esperando pela mãe na sala de jantar quando ela chegou. Ele observou-a sem dizer nada por um momento e pensou consigo que ela não devia ter aplicado corretamente a maquiagem naquela manhã, pois as órbitas dos olhos estavam mais avermelhadas do que de costume, como os seus próprios olhos ficavam quando ele criava confusão e se metia em encrenca e acabava chorando.
“Veja, Bruno, não há motivo para se preocupar”, disse a mãe, sentando-se na cadeira na qual se sentara a bela mulher loira que viera jantar acompanhando o Fúria e que acenara para ele quando o pai fechou a porta. “Na verdade, acho que será uma grande aventura.”
“Que aventura?”, ele perguntou. “Estão me mandando embora?”
“Não, não é apenas você”, ela disse, parecendo que ia abrir um sorriso momentâneo, mas mudando de idéia. “Todos nós vamos embora. Seu pai e eu, Gretel e você. Todos os quatro.”
Bruno pensou a respeito e franziu o cenho. Não o incomodava em especial se Gretel fosse mandada embora, porque ela era um Caso Perdido e só o metia em encrencas. Mas parecia um pouco injusto que todos tivessem que acompanhá-la.
“Mas para onde?”, ele perguntou. “Aonde vamos exatamente? Por que não podemos ficar aqui?”
“É o trabalho do seu pai”, explicou a mãe. “Sabe como isto é importante, não sabe?”
“Sim, é claro”, disse Bruno, acenando com a cabeça, pois sempre havia na casa muitos visitantes – homens em uniformes fantásticos, mulheres com máquinas de escrever das quais ele deveria manter longe as mãos sujas -, e eram todos sempre muito educados com o pai e diziam que ele era um homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele.
“Bem, às vezes, quando uma pessoa é muito importante”, prosseguiu a mãe, “o homem que o emprega lhe pede que vá a outro lugar, porque lá há um trabalho muito especial que precisa ser feito.”
“Que tipo de trabalho?”, perguntou Bruno, porque, se fosse honesto consigo mesmo – e ele sempre tentava ser -, teria de admitir que não sabia ao certo qual era o trabalho do pai.
Na escola todos conversaram um dia sobre seus pais, e Karl dissera que seu pai era quitandeiro, o que Bruno sabia ser verdade, porque o homem cuidava da quitanda no centro da cidade. E Daniel dissera que seu pai era professor, o que Bruno sabia ser verdade, porque o homem ensinava aos meninos maiores, dos quais era sempre melhor manter distância. E Martin dissera que seu pai era chef de cozinha, o que Bruno sabia ser verdade, porque, nas vezes em que o homem vinha buscar Martin na escola, sempre vestia bata branca e avental xadrez, como se tivesse acabado de deixar a cozinha.
Mas, quando perguntaram a Bruno o que seu pai fazia, ele abriu a boca para dizer-lhes e então percebeu que ele próprio não sabia. Só era capaz de dizer que seu pai era um homem para ser observado e que o Fúria tinha grandes planos para ele. Ah, e que ele também tinha um uniforme fantástico.
“É um trabalho muito importante”, disse a mãe, hesitando por um momento. “Um trabalho que precisa ser feito por um homem muito especial. Você consegue entender isso, não é?”
“E todos nós temos que ir também?”, indagou Bruno.
“Claro que sim”, disse a mãe. “Você não gostaria que seu pai fosse até o novo trabalho e se sentisse solitário lá, gostaria?”
“Acho que não”, disse Bruno.
“Papai sentiria muito a nossa falta se não fôssemos com ele”, ela acrescentou.
“De quem ele sentiria mais saudade?”, perguntou Bruno. “De mim ou de Gretel?”
“Ele teria saudades de ambos igualmente”, disse a mãe, que era partidária da opinião de não escolher favoritos, o que Bruno respeitava, especialmente porque sabia que, na verdade, era ele o favorito dela.
“Mas e quanto à nossa casa?”, perguntou Bruno. “Quem vai cuidar dela enquanto estivermos longe?”
A mãe suspirou e olhou o quarto ao redor, como se nunca mais fosse vê-lo novamente. Era uma casa muito bonita e tinha ao todo cinco andares, se incluirmos o porão, onde o cozinheiro preparava toda a comida e Maria e Lars sentavam-se à mesa discutindo um com o outro e chamando-se de nomes que não se deviam empregar. E se considerássemos o pequeno quarto no topo da casa, que tinha as janelas oblíquas através das quais Bruno conseguia ver até o outro lado de Berlim, se ficasse na ponta dos pés e segurasse firme no parapeito.
“Teremos que fechar a casa por enquanto”, disse a mãe. “Mas voltaremos algum dia.”
“Mas e quanto ao cozinheiro?”, perguntou Bruno. “E Lars? E Maria? Eles não vão ficar morando aqui na casa?”
“Eles vêm conosco”, explicou a mãe. “Mas agora basta de perguntas. Talvez seja melhor você subir e ajudar Maria a fazer as malas.”
Bruno levantou-se da cadeira mas não foi a lugar nenhum. Havia apenas mais algumas perguntas que ele precisava fazer, antes que pudesse deixar o assunto de lado.
“É muito longe?”, ele perguntou. “O emprego novo, quero dizer. Fica a mais de um quilômetro de distância?”
“Oh, céus”, disse a mãe, rindo, embora fosse uma risada estranha porque ela não parecia feliz e se virou como se não quisesse que Bruno visse seu rosto. “Sim, Bruno”, disse ela. “Fica a mais de um quilômetro de distância. Bem mais que isso, na verdade.”
Os olhos de Bruno se arregalaram e a boca fez o formato de um O. Ele sentiu os braços pendendo estendidos ao seu lado, como costumavam ficar quando alguma coisa o surpreendia. “Você não quer dizer que iremos deixar Berlim, não é?”, ele perguntou, sem fôlego, esforçando-se para proferir as palavras.
“Temo que sim”, disse a mãe, acenando tristemente com a cabeça. “O trabalho de seu pai é...”
“Mas e quanto à escola?”, disse Bruno, interrompendo-a, algo que ele sabia que não podia fazer, mas que pensou ser perdoável naquela ocasião. “E quanto a Karl, e Daniel e Martin? Como eles saberão onde eu estarei quando quisermos fazer alguma coisa juntos?”
“Você terá que se despedir dos seus amigos, por enquanto”, disse a mãe. “Mas estou certa de que você os verá novamente com o tempo. E não interrompa sua mãe quando ela estiver falando, por favor”, acrescentou, pois, apesar das notícias estranhas e desagradáveis, decerto não havia necessidade de Bruno quebrar as regras de boa educação que lhe foram ensinadas.
“Despedir-me deles?”, ele perguntou, encarando-a com surpresa. “Despedir-me deles?”, repetiu, cuspindo as palavras como se a boca estivesse cheia de bolachas que ele mastigara mas ainda não engolira. “Despedir-me de Karl e Daniel e Martin?’, prosseguiu Bruno, a voz se aproximando perigosamente do grito, o que não era permitido dentro de casa. “Mas eles são os três melhores amigos da minha vida toda!”
“Ah, você fará novas amizades”, disse a mãe, acenando com a mão no ar, como se dispensasse o assunto, supondo que, para um menino, fazer três grandes amizades para a vida toda fosse coisa fácil.
“Mas nós tínhamos planos”, protestou ele.
“Planos?”, perguntou a mãe, erguendo uma sobrancelha. “Que tipo de planos?”
“Bem, eu não posso entregar o jogo”, disse Bruno, que não podia revelar a natureza exata dos planos – os quais incluíam criar muita confusão, especialmente dentro de algumas semanas, quando a escola fechasse para as férias de verão e eles não precisassem mais passar todo o tempo apenas fazendo os planos, mas pudessem, finalmente, colocá-los em prática.
“Sinto muito, Bruno”, disse a mãe, “mas os seus planos terão que esperar. Não há escolha quanto a isso.”
“Mas, mãe!”
“Já chega, Bruno”, disse ela, agora ríspida, se levantando para indicar-lhe que tinha falado sério quando disse que já bastava. “Francamente, na semana passada você estava reclamando do quanto as coisas mudaram por aqui nestes últimos tempos.”
“Bem, eu não gosto dessa história de apagar todas as luzes quando chega a noite”, admitiu ele.
“Todos têm que fazer isso”, disse a mãe. “É para a nossa segurança. E quem sabe, talvez seja menos perigoso se nos mudarmos daqui. Agora eu quero que você suba as escadas e vá ajudar a Maria a arrumar suas malas. Não temos tanto tempo quanto gostaríamos para fazer os preparativos, graças a certas pessoas.”
Bruno acenou e saiu cabisbaixo, sabendo que “certas pessoas” era uma expressão que os adultos usavam para “pai”, e que ele próprio não podia usar.
Ele foi vagarosamente até as escadas, segurando o corrimão com uma das mãos, e se perguntou se a casa nova, onde seria o novo trabalho, tinha um corrimão tão bom de escorregar quanto aquela. Pois o corrimão daquela casa vinha desde o andar mais alto – começava do lado de fora do pequeno quarto onde, se ele ficasse na ponta dos pés e segurasse firme no parapeito da janela, era possível ver até o outro lado de Berlim – até o piso térreo, bem diante das duas enormes portas de carvalho. E o que Bruno mais gostava de fazer era subir a bordo do corrimão no andar de cima e escorregar pela casa toda, fazendo barulho de vento ao longo do caminho.
Descia do andar de cima até o próximo, onde estavam o quarto do pai e da mãe e o grande banheiro, e onde ele não deveria ficar de maneira nenhuma.
Descia até o próximo andar, onde ficavam o seu próprio quarto e o de Gretel e o banheiro menor, que ele deveria utilizar com freqüência maior do que de fato fazia.
Descia até o térreo, onde caía do final do corrimão e tinha de aterrissar equilibrado nos dois pés, ou então perdia cinco pontos e tinha de começar tudo outra vez.
O corrimão era a melhor coisa da casa – além do fato de vovô e vovó morarem tão perto -, e quando pensou nisso ele se perguntou se eles também viriam até o emprego novo e acreditou que sim, pois seria impossível deixá-los para trás. Ninguém precisava muito de Gretel, porque ela era um Caso Perdido – seria bem mais fácil se ela ficasse para tomar conta da casa -, mas vovô e vovó? Aí já era outra história.
Bruno subir devagar as escadas até seu quarto; porém, antes de entrar, olhou para trás e para baixo na direção do piso térreo e viu a mãe entrando no escritório do pai, que dava de frente para a sala de jantar – e onde era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção -, e escutou-a falando alto com ele, até que o pai falou mais alto do que a mãe era capaz, e isso terminou com a conversa entre eles. Então a porta do escritório se fechou, e, como Bruno não conseguiu mais ouvir nada, pensou que seria boa idéia voltar ao seu quarto e assumir a tarefa de fazer as malas, porque senão Maria era capaz de retirar todos os seus pertences do guarda-roupa sem o devido cuidado e consideração, até mesmo as coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém.
A CASA NOVA
Quando Bruno viu a casa nova pela primeira vez, seus olhos se arregalaram, a boca fez o formato de um O, e os braços penderam estendidos ao lado do corpo novamente. Tudo nela parecia ser o oposto da casa antiga, e ele não podia acreditar que eles iriam de fato morar lá.
A casa de Berlim ficava numa rua calma ao longo da qual havia mais um punhado de casas grandes como a dele, e era sempre agradável olhar para elas, porque eram quase iguais à sua própria, mas não exatamente, e nelas moravam outros meninos com quem ele brincava (se fossem amigos) ou de quem mantinha distância (se fossem encrenca) A casa nova, no entanto, ficava isolada num lugar vazio e desolado, e não havia nenhuma outra casa à vista, o que significava que não haveria outras famílias por perto nem meninos com quem brincar, fossem amigos ou fossem encrenca.
A casa de Berlim era enorme, e, mesmo tendo morado lá durante nove anos, ele sempre conseguia encontrar novos cantos e passagens que ainda não tinha explorado inteiramente. Havia até mesmo cômodos – como o escritório do pai, onde era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção – nos quais ele estivera apenas uma ou outra vez. A casa nova, contudo, tinha só três andares: o andar de cima, onde ficavam todos os três quartos e um único banheiro, o andar térreo, com a cozinha, a sala de jantar e um escritório novo para o pai (que ele presumia apresentar as mesmas restrições do antigo), e o porão, onde dormiam os criados.
À volta toda a casa antiga de Berlim havia outras ruas com casas grandes, e, ao se chegar ao centro da cidade, havia sempre gente caminhando e parando para conversar umas com as outras, ou correndo e dizendo que não tinham tempo para parar, hoje não, não quando havia cento e uma coisas a se fazer. Eram lojas com lustrosas fachadas comerciais, e bancas de frutas e legumes repletas de bandejas em que se erguiam pilhas altas de repolhos, cenouras, couves-flores e milho. Algumas transbordavam de alho-poró e cogumelos, nabos e couves-de-bruxelas; outras estavam cheias de alface e feijões-verdes, abobrinhas e pastinacas. Às vezes ele se divertia ficando bem na frente dessas bancas, cerrando os olhos e respirando seus aromas, sentindo a cabeça rodopiar com os cheiros misturados da doçura e da vida. Mas, ao redor da casa nova, não havia outras ruas, ninguém caminhando por lá ou correndo por ali, e certamente nada de lojas, nem de bancas de frutas e legumes. Quando fechava os olhos, tudo ao seu redor parecia simplesmente vazio e frio, como se ele estivesse no lugar mais solitário do mundo. No meio de lugar nenhum.
Em Berlim havia mesas postas na rua, e, de vez em quando, ao caminhar para casa vindo da escola com Karl, Daniel e Martin, via homens e mulheres sentados nessas mesas, bebendo refrescos espumantes e rindo alto; as pessoas sentadas naquelas mesas deviam ser muito engraçadas, ele costumava pensar, porque, não importava o que dissessem, alguém sempre ria. Porém, havia algo a respeito da casa nova que fazia Bruno pensar que ninguém jamais ria por lá; que não havia motivo para riso e nada com que se alegrar.
“Acho que isso foi uma má idéia”, disse Bruno algumas horas depois de terem chegado, enquanto Maria estava desfazendo suas malas no andar de cima. (Maria não era a única criada na casa, inclusive: havia outras três, bastante magras e que só se comunicavam por meio de sussurros. Havia também um velho que, segundo lhe disseram, deveria preparar-lhes os legumes todo dia e servi-los à mesa, e cujo semblante era sempre infeliz, mas também um pouco bravo.)
“Não temos o luxo de achar coisa alguma”, disse a mãe, abrindo a caixa que continha o jogo de sessenta e quatro taças com o qual o vovô e a vovó a haviam presenteado por ocasião do casamento com o pai. “Há pessoas que tomam todas as decisões em nosso nome.”
Bruno não sabia o que ela queria dizer com isso e fingiu que a mãe nada dissera. “Acho que isso foi uma má idéia”, ele repetiu. “Acho que o melhor a fazer seria esquecer tudo isto e simplesmente voltar para casa. Podemos considerar que valeu como experiência”, acrescentou ele, frase que aprendera recentemente e que estava determinado a empregar com a maior freqüência possível.
A mãe sorriu e depositou os copos cuidadosamente sobre a mesa. “Tenho mais uma frase para você aprender”, ela disse. “É a seguinte: temos que procurar fazer o melhor de uma situação ruim.”
“Bem, eu não sei se temos mesmo”, disse Bruno. “Acho que você devia dizer ao papai que você mudou de idéia e que, bem, se tivermos de ficar aqui pelo resto do dia e jantar aqui esta noite e dormir aqui já que estamos cansados da viagem, então tudo bem, mas seria melhor levantar bem cedo amanhã, se quisermos chegar a Berlim antes da hora do chá.”
A mãe suspirou. “Bruno, por que você não sobe logo e vai ajudar a Maria a desfazer as suas malas?”, ela perguntou.
“Mas não faz sentido desfazer as malas se nós só vamos...”
“Bruno, vá logo, por favor!”, disse ela, ríspida, pois aparentemente não havia problema se ela o interrompesse, embora na situação contrária não funcionasse assim. “Estamos aqui, já chegamos, e este será nosso lar durante o futuro previsível, e é melhor que tentemos aproveitar o que for possível. Está entendendo?”
Ele não sabia o que queria dizer “futuro previsível” e disse isto a ela.
“Significa que é aqui que nós moramos agora, Bruno”, disse a mãe. “E chega deste assunto.”
Bruno sentiu uma dor na barriga e percebeu algo crescendo dentro dele, alguma coisa que, quando conseguisse sair das maiores profundezas de dentro dele até o mundo exterior, o faria gritar e berrar que tudo aquilo era errado e injusto e um grande engano pelo qual alguém haveria de pagar algum dia, ou, em vez disso, simplesmente o faria desmanchar-se em lágrimas. Ele não conseguia compreender como tudo acontecera. Num dia ele estava perfeitamente alegre, brincando em casa, com os três melhores amigos da vida toda, escorregando pelos corrimãos, tentando ver toda a cidade de Berlim da ponta dos pés, e agora estava encalhado nesta casa fria e desagradável, com três criadas sussurrantes e um servente que era a um só tempo infeliz e bravo, onde ninguém parecia ser capaz de rir novamente.
“Bruno, quero que suba e desfaça as malas e quero que vá agora”, disse a mãe numa voz pouco amigável, e ele sabia que ela estava falando sério, então deu meia-volta e marchou para o outro lado, sem dizer mais nenhuma palavra. Ele sentia as lágrimas brotando sob seus olhos, mas estava determinado a não deixa-las aparecer.
Bruno subiu as escadas e virou-se lentamente numa volta completa, na esperança de encontrar uma pequena porta ou cubículo que pudesse afinal ser explorado decentemente, mas não havia nada. Naquele piso havia apenas quatro portas, duas de cada lado, de frente umas para as outras. A porta de seu quarto, a porta do quarto de Gretel, a porta do quarto da mãe e do pai e a porta do banheiro.
“Aqui não é minha casa e nunca vai ser”, ele murmurou, enquanto atravessava a sua própria porta para encontrar todas as suas roupas espalhadas sobre a cama e as caixas de brinquedos e livros ainda fechadas. Era óbvio que Maria não tinha estabelecido suas prioridades direito.
“Mamãe mandou eu ajudar”, ele disse baixinho, e Maria acenou e apontou para uma sacola grande, contendo todas as suas meias, e cuecas, e camisetas.
“Se você separar tudo isto, pode colocar no baú de gavetas bem ali”, ela disse, apontando para um baú grosseiro que ficava do outro lado do quarto, junto a um espelho coberto de pó.
Bruno suspirou e abriu a sacola; estava cheia até a boca com as suas cuecas, e ele queria apenas rastejar para dentro dela e torcer para que, quando tornasse a rastejar para fora, ele acordasse e estivesse em casa novamente.
“O que você acha de tudo isso, Maria?”, ele perguntou após um longo silêncio, pois sempre gostara de Maria e a considerava um membro da família, embora o pai dissesse que ela era apenas uma criada, e muito bem paga por sinal.
“Tudo isso o quê?”, perguntou ela.
“Isso”, disse ele, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo. “Vir a um lugar como este. Não acha que cometemos um grave engano?”
“Isto não cabe a mim dizer, senhor Bruno”, disse Maria. “Sua mãe já lhe explicou sobre o trabalho de seu pai e...”
“Ah, eu já cansei de ouvir sobre o trabalho do meu pai”, disse Bruno, interrompendo-ª “É só disso que se fala, se é que você não sabe. O trabalho do papai isso e aquilo. Bem, se o trabalho do meu pai significa que temos de mudar da nossa casa, para longe do corrimão-escorregador e dos meus três melhores amigos, então acho que meu pai devia pensar duas vezes a respeito do trabalho dele, não acha?”
Neste exato momento houve um ranger no corredor do lado de fora, e Bruno viu a porta do quarto da mãe e do pai se abrir, deixando uma pequena fresta à vista. Ele congelou, incapaz de se mover por um momento. A mãe ainda estava no andar de baixo, o que significava que o pai estava lá dentro e era bem capaz que tivesse escutado tudo o que Bruno acabara de dizer. Ele observou a porta, mal ousando respirar, imaginando se o pai sairia de lá e o levaria para baixo para uma conversa séria.
A porta se abriu mais, e Bruno deu um passo atrás conforme apareceu uma figura, porém não era o pai. Era um homem bem mais jovem, e também mais baixo que o pai, embora usasse um tipo de uniforme igual, mas sem o mesmo número de condecorações. Ele parecia muito sério, e o quepe estava bem preso à cabeça. Ao redor das têmporas, Bruno viu que seu cabelo era bem loiro, num tom de amarelo quase sobrenatural. Ele trazia uma caixa nas mãos e caminhava em direção à escada, no entanto parou por um instante quando viu Bruno ali o observando. Ele mediu o garoto de cima a baixo, como se jamais tivesse visto uma criança antes e não soubesse ao certo o que fazer com uma: se devia comê-la, ignorá-la ou chutá-la escada abaixo. Em vez disso, acenou brevemente com a cabeça e seguiu seu caminho.
“Quem era esse?”, perguntou Bruno. O jovem parecera tão sério e ocupado que ele presumiu ser uma pessoa de grande importância.
“Creio que era um dos soldados de seu pai”, disse Maria, que ficara bem ereta quando o jovem apareceu e mantivera as mãos diante de si como numa prece. Ela voltara os olhos para o chão em vez de olhar para o seu rosto, como se temesse ser transformada em pedra se olhasse diretamente para ele; e só relaxou quando o jovem se foi. “Nós vamos conhecê-los com o tempo.”
“Acho que não gostei dele”, disse Bruno. “Ele era sério demais.”
“Seu pai também é muito sério”, disse Maria.
“Sim, mas ele é o papai”, explicou Bruno. “Pais devem ser sérios. Não importa se são quitandeiros ou professores ou chefs de cozinha ou comandantes”, disse ele, relacionando todas as profissões que sabia serem exercidas por pais decentes e respeitáveis e em cujos títulos pensara mil vezes. “E não acho que aquele homem se parecia com um pai. Embora ele fosse muito sério, não há dúvida disso.”
“Bem, eles têm empregos muito sérios”, disse Maria com um suspiro. “Ou ao menos é o que eles pensam. Mas, se eu fosse você, ficaria longe dos soldados.”
“Parece que não há outra coisa a se fazer por aqui além disso”, disse Bruno, triste. “Acho que não haverá sequer outras crianças com quem brincar além de Gretel, e que graça há nisso afinal de contas? Ela é um Caso Perdido.”
Ele sentiu como se fosse chorar novamente, mas se conteve, pois não queria parecer um bebê na frente de Maria. Olhou ao redor do quarto sem erguer completamente os olhos do chão, tentando ver se havia algo de interessante para ser achado. Não havia. Ou não parecia haver. Mas, então, uma coisa lhe chamou a atenção. No canto do quarto que ficava de frente para a porta havia uma janela do teto descia pela parede, um pouco como aquela no andar de cima da casa de Berlim, ainda que não tão alta. Bruno observou-a e pensou que poderia ver o lado de fora sem mesmo ter de ficar nas pontas dos pés.
Ele caminhou lentamente na direção da janela, na esperança de que fosse possível ver todo o caminho de volta até Berlim, e a sua casa e as ruas ao redor e as mesas onde as pessoas se sentava e bebiam os refrescos espumantes e contavam histórias hilariantes umas às outras. Andou devagar porque não queria se decepcionar. Mas era apenas o quarto de um menino pequeno e não havia muito espaço para caminhar até chegar à janela. Bruno pôs o rosto junto ao vidro e olhou o que estava do lado de fora, e desta vez, quando seus olhos se arregalaram e a boca fez o formato de um O, as mãos ficaram bem juntas ao corpo, porque havia algo que o fez se sentir muito inseguro e com frio.
O CASO PERDIDO
Bruno estava certo de que teria feito muito mais sentido se eles estivessem deixado Gretel para trás, em Berlim, para cuidar da casa, porque ela era só encrenca. Na verdade ele já a ouvira sendo descrita como Encrenca Desde o Primeiro Dia.
Gretel era três anos mais velha do que Bruno e fizera questão de deixar claro, desde que ele conseguia se lembrar, que, quanto aos assuntos do mundo, especialmente os eventos do mundo que diziam respeito a eles dois, ela estava no comando. Bruno não gostava de admitir que tinha um pouco de medo dela, mas se fosse honesto consigo mesmo – e ele sempre tentava ser – teria de reconhecê-lo.
Gretel tinha hábitos desagradáveis, como era de se esperar das irmãs. Ela passava muito tempo no banheiro durante as manhãs, por exemplo, e não parecia se importar que Bruno ficasse do lado de fora, pulando ora de um pé ora de outra, desesperado para usar o banheiro.
A irmã tinha uma grande coleção de bonecas dispostas em prateleiras ao redor do quarto, que observavam Bruno quando ele entrava e o seguiam por lá, registrando tudo o que ele fazia. O menino tinha certeza de que, se fosse explorar o quarto da irmã enquanto ela estivesse fora de casa, as bonecas lhe contariam tudo o que ele tivesse feito. Ela tinha também algumas amigas bastante desagradáveis, que pareciam achar muito inteligente fazer gracinhas a respeito dele, algo que Bruno jamais faria se fosse três anos mais velho do que ela. Todas as amigas desagradáveis de Gretel, acima de qualquer coisa, pareciam se deliciar em atormentá-lo, dizendo-lhe coisas inapropriadas sempre que a mãe ou Maria não estavam por perto.
“O Bruno não tem nove anos, mas apenas seis”, dizia uma monstrenga em especial, repetindo de novo e de novo numa voz cantarolante, dançando e cutucando-o entre as costelas.
“Não tenho seis anos, tenho nove”, ele protestava, tentando escapar.
“Então por que você é tão pequeno?”, indagava o mostro. “Todos os outros meninos de nove anos são maiores que você.”
Isso era verdade, e também um assunto muito delicado para Bruno. O fato de ele não ser tão alto quanto qualquer outro menino de sua classe era fonte de constantes aborrecimentos. Na verdade, ele batia na altura dos ombros dos outros meninos. Quando caminhava pelas ruas com Karl, Daniel e Martin, as pessoas às vezes o tomavam pelo irmão mais novo de algum deles, mas, na verdade, era o segundo mais velho.
“Então você deve ter apenas seis anos”, insistia a monstrenga, e Bruno saía correndo para fazer seus exercícios de alongamento, torcendo para no dia seguinte acordar uns trinta ou quarenta centímetros mais alto.
O lado bom de não estar mais em Berlim era que nenhuma delas estaria por perto para atormentá-lo. Talvez, se fossem obrigados a ficar na casa nova por algum tempo, quem sabe até um mês, quando retornassem à casa antiga, ele já tivesse crescido bastante, e então elas não poderiam mais maltratá-lo. Era algo a se pensar, afinal, se ele pretendia seguir a recomendação da mãe e fazer o melhor de uma situação ruim.
Bruno correu até o quarto de Gretel sem bater na porta e a descobriu dispondo a civilização de bonecas nas muitas prateleiras pelo quarto.
“O que está fazendo aqui?”, ela gritou, dando meia-volta. “Não sabe que não se deve entrar no quarto de uma dama sem antes bater na porta?”
“É claro que você não trouxe todas as suas bonecas para cá, não?”, perguntou Bruno, que desenvolvera o hábito de ignorar a maioria das perguntas da irmã e fazer suas próprias perguntas em vez de responder às dela.
“Claro que trouxe”, ela respondeu. “Pensou que eu as deixaria em casa? Ora, pode levar semanas até que voltemos para lá.”
“Semanas?”, disse Bruno, parecendo desapontado, mas secretamente satisfeito, pois já se resignara com a idéia de passar um mês ali. “Acha mesmo que levará tanto tempo?”
“Bem, eu perguntei ao papai e ele disse que ficaremos aqui pelo futuro previsível.”
“Mas o que é o futuro previsível exatamente?”, perguntou Bruno, sentando na lateral da cama dela.
“Quer dizer daqui a semanas”, disse Gretel com um aceno inteligente de cabeça. “Talvez até mesmo três semanas.”
“Então não é tão mal”, disse Bruno. “Desde que seja apenas pelo futuro previsível e não chegue a completar um mês. Eu detesto aqui.”
Gretel olhou para o irmão mais novo e descobriu-se concordando com ele, para variar. “Sei o que quer dizer”, disse ela. “Aqui não é muito agradável, não é?”
“É horrível”, disse Bruno.
“De fato é”, disse Gretel, reconhecendo a observação do irmão. “Agora está horrível. Mas depois que dermos um jeito na casa, provavelmente não será mais tão ruim. Eu ouvi o papai dizer que quem quer que tenha morado aqui em Haja-Vista perdeu o emprego bem rápido e não teve tempo de ajeitar o lugar para nós.”
“Haja-Vista?”, perguntou Bruno. “O que é um Haja-Vista?”
“Não é um Haja-Vista, Bruno”, disse Gretel num suspiro. “É só Haja-Vista.”
“Bem, e o que é Haja-Vista, afinal?”, repetiu ele. “Haja-Vista o quê?”
“É o nome da casa”, explicou Gretel. “Haja-Vista.”
Bruno parou para pensar a respeito disso. Ele não vira nenhuma placa do lado de fora, informando qual era o nome do lugar, nem havia nada escrito na porta da frente. Sua própria casa em Berlim não tinha nome; era apenas chamada de número 4.
“Mas o que isso quer dizer?”, perguntou ele exasperado. “Haja-Vista por quê?”
“Haja-Vista por causa das pessoas que moraram aqui antes de nós, eu acho”, disse Gretel. “Deve ter algo a ver com o fato de elas terem sumido porque não fizeram um serviço muito bom e alguém botou elas para fora e chamou alguém capaz de cumprir as tarefas direito.”
“Quer dizer o papai.”
“É claro”, disse Gretel, que sempre falava sobre o pai como alguém incapaz de causar qualquer mal e que jamais ficava bravo e sempre vinha dar-lhe um beijo de boa-noite antes de ela ir dormir, o que, se Bruno fosse realmente justo e deixasse de lado a tristeza casada pela mudança, teria de admitir que o pai fazia por ele também.
“E então nós estamos em Haja-Vista porque os coitados que moravam aqui antes foram embora?”
“Exatamente, Bruno”, disse Gretel. “Agora saia de cima da minha cama. Você está amassando tudo.”
Bruno saltou da cama e aterrissou num carpete, numa pancada surda. Ele não gostou do ruído que ouviu. Era muito oco, e o menino imediatamente decidiu que seria melhor não sair pulando pela casa com muita freqüência, ou ela era capaz de desabar sobre suas orelhas.
“Não gosto daqui”, disse pela centésima vez.
“Eu sei que não gosta”, disse Gretel. “Mas não há nada que possamos fazer a respeito, não é?”
“Eu sinto falta de Karl e Daniel e Martin”, disse Bruno.
“E eu tenho saudades de Hilda e Isobel e Louise”, disse Gretel, e Bruno tentou lembrar qual das garotas era a monstrenga.
“Acho que as outras crianças não parecem nem um pouco amigáveis”, disse Bruno, e Gretel imediatamente parou de ajeitar uma das bonecas mais horrendas na prateleira e se voltou de frente para ele, encarando-o.
“O que você disse?”
“Disse que acho que as outras crianças não parecem nem um pouco amigáveis”, repetiu ele.
“As outras crianças?”, disse Gretel, parecendo confusa. “Que outras crianças? Eu não vi nenhuma criança.”
Bruno correu os olhos pelo quarto. Havia uma janela, mas o quarto de Gretel ficava do outro lado do corredor, de frente para o dele, portanto a janela dava para uma direção completamente diferente. Tentando disfarçar, ele caminhou casualmente até a janela. Meteu as mãos nos bolsos das calças curtas e tentou assoviar uma música que conhecia, enquanto evitava olhar para a irmã.
“Bruno?”, perguntou Gretel. “O que você pensa que está fazendo? Ficou maluco?”
Ele continuou a caminhada e o assovio e prosseguiu evitando-a até chegar à janela, a qual, por um golpe de sorte, era também baixa o bastante para que ele pudesse enxergar através dela. Bruno viu do lado de fora o carro no qual haviam chegado, bem como três ou quatro outros veículos que pertenciam aos soldados que trabalhavam para o pai, alguns dos quais estavam por lá fumando e rindo de alguma coisa enquanto olhavam nervosos para a casa. Mais além, via-se a saída que vinha da estrada e, ao longe, uma floresta que parecia pronta para ser explorada.
“Bruno, você poderia, por favor, me explicar o que quis dizer com esse último comentário?”, pediu Gretel.
“Tem uma floresta ali”, disse Bruno, ignorando-a.
“Bruno!”, disse Gretel, ríspida, marchando na direção dele com tamanha velocidade que o garoto saltou da janela e se recostou na parede.
“O que foi?”, ele perguntou, fingindo não saber do que ela estava falando.
“As outras crianças”, disse Gretel. “Você disse que não parecem nem um pouco amigáveis.”
“E não parecem mesmo”, disse Bruno, sem querer julgá-las antes de conhecê-las, mas se deixando levar pelas aparências, coisa que a mãe já lhe dissera diversas vezes para não fazer.
“Mas quais outras crianças?”, perguntou Gretel. “Onde elas estão?”
Bruno sorriu e caminhou na direção da porta, indicando a Gretel que o seguisse. Ela soltou um suspiro fundo ao fazê-lo, parando para depositar a boneca na cama, mas mudou de idéia e a pegou novamente, apertando o brinquedo contra o peito, enquanto entrava no quarto do irmão, onde quase foi derrubada por Maria, que corria para fora segurando algo muito parecido com um camundongo morto.
“Elas estão lá fora”, disse Bruno, que havia chegado à sua janela outra vez e estava olhando através dela. Ele não se voltou para ver se Gretel estava no quarto; estava ocupado demais observando as crianças. Por alguns instantes até se esqueceu de que ela estava ali.
Gretel ainda estava um pouco atrás e queria desesperadamente olhar por si mesma, mas havia algo no jeito como ele falara e no jeito com que observava que a fez sentir-se nervosa. Bruno jamais fora capaz de enganá-la quanto a coisa alguma, e ela tinha certeza de que o irmão não a estava enganando agora, mas o jeito como ele olhava para fora lhe dava a sensação de que talvez não quisesse ver aquelas crianças, afinal. Ela engoliu em seco e fez uma prece silenciosa para que, de fato, voltassem logo a Berlim no futuro previsível e não tivessem que esperar um mês, conforme Bruno sugerira.
“E então?”, ele disse, voltando-se para ela e vendo-a parada na porta, agarrada à boneca, o cabelo dourado dividido simetricamente em dois rabos-de-cavalo, caídos nos ombros, convidando a um puxão. “Não quer vê-las?”
“Claro que quero”, respondeu ela, caminhando hesitante na direção dele. “Saia da frente, então”, disse, afastando-o com o cotovelo.
Aquela tarde em Haja-Vista era de um dia brilhante e ensolarado, e o sol reapareceu de trás de uma nuvem, justo no instante em que Gretel olhava para fora da janela, mas, após um instante, seus olhos se ajustaram à luz; o sol tornou a desaparecer, e ela viu a respeito do que Bruno estivera falando.
O QUE ELES VIRAM ATRAVÉS DA JANELA
Para começar, não eram crianças, afinal. Ao menos, não todos. Havia meninos pequenos e grandes, pais e avôs. Talvez alguns tios também. E algumas daquelas pessoas que vivem sozinhas nas ruas da vida e não parecem ter parentes. Era gente de todo o tipo.
“Quem são eles?”, perguntou Gretel, tão boquiaberta quanto o irmão costumava ficar. “Que tipo de lugar é esse?”
“Não sei bem ao certo”, disse Bruno, mantendo-se o mais fiel possível a verdade. “Só sei que não é tão gostoso quanto a nossa casa.”
“E aonde estão as meninas? E as mães? E as avós?”
“Talvez elas morem em outra parte”, sugeriu Bruno.
Gretel concordou. Ela não queria continuar olhando, mas era muito difícil voltar os olhos para outra direção. Até então, tudo o que vira fora a floresta diante de sua própria janela, que parecia um pouco escura, mas um bom lugar para piqueniques, se houvesse uma clareira mais adiante. Mas, daquele lado da casa, a vista era bem diferente.
Começava até agradável. Havia um jardim logo abaixo da janela de Bruno. E era bem grande, repleto de flores crescendo em seções bastante ordenadas, que aparentavam ser cuidadas com muito zelo por alguém que sabia que plantar flores num lugar como aquele era uma boa coisa a se fazer, como acender uma pequena vela no canto de um enorme castelo numa charneca enevoada durante uma noite escura de inverno.
Para além das flores havia um pátio bastante aprazível com um banco de madeira, onde Gretel se imaginou sentada à luz do sol lendo um livro. Havia uma placa instalada na parte superior do banco, mas ela não conseguiu lê-la àquela distância. O banco estava voltado para a casa – o que seria habitualmente estranho, mas, naquelas circunstâncias, ela compreendeu o motivo.
A uns cinco metros mais adiante no jardim e das flores e do banco com a placa, tudo ficava diferente. Havia uma enorme cerca de arame que envolvia toda a casa e se voltava para dentro no topo, estendendo-se em todas as direções para onde a vista de Gretel não alcançava. A cerca era muito alta, ainda maior do que a casa na qual estavam, e havia imensos mourões de madeira, como postes telegráficos, distribuídos ao longo dela, mantendo-a de pé. Sobre a cerca havia grandes rolos de arame farpado entrelaçados em espirais, e Gretel sentiu uma pontada inesperada de dor dentro de si ao olhar para as pontas afiadas que sobressaíam ao longo de toda a extensão.
Não havia grama do outro lado da cerca; na verdade não havia verde nenhum. Em vez disso, o chão parecia feito de uma substância arenosa, e até onde sua vista alcançava tudo o que havia eram cabanas baixas e prédios quadrados e amplos espalhados pelos arredores, e uma ou duas colunas de fumaça ao longe. Ela abriu a boca para dizer alguma coisa, mas então percebeu que não encontrava as palavras para expressar sua surpresa e fez a única coisa que podia fazer, fechando-a novamente.
“Está vendo?’, disse Bruno do canto do quarto, sentindo-se silenciosamente satisfeito consigo mesmo porque o que quer que houvesse lá fora – e fossem eles quem fossem – fora ele quem primeiro os descobrira e poderia vê-los sempre que quisesse, pois estavam do lado de fora da janela do seu quarto, e não do dela, e portanto pertenciam a ele, e ele era o rei de tudo o que eles viam, e ela era sua súdita inferior.
“Não entendo”, disse Gretel. “Quem seria capaz de construir um lugar tão assustador?”
“É mesmo assustador, não é?”, concordou Bruno. “Acho que aquelas cabanas têm apenas um andar. Veja como são baixas.”
“Devem ser casas de tipo moderno”, disse Gretel. “Papai odeia as coisas modernas.”
“Então acho que ele não vai gostar delas”, disse Bruno.
“Não”, respondeu Gretel. Ela ficou parada um bom tempo olhando para elas. Com doze anos, era considerada uma das meninas mais inteligentes da classe, então apertou os lábios e estreitou os olhos e forçou o cérebro a entender o que ela estava vendo. Ao final, só conseguiu pensar em uma explicação.
“Aqui deve ser o interior”, disse Gretel, voltando-se triunfante para encarar o irmão.
“O interior?”
“Sim, é a única explicação, não está vendo? Quando estamos em casa, em Berlim, estamos na cidade. É por isso que há tanta gente e tantas casas, e as escolas são cheias, e não dá para chegar ao centro da cidade no sábado à tarde sem ser empurrado de poste em poste.”
“Sim...”, disse Bruno, acenando com a cabeça, tentando acompanhar o raciocínio.
“Mas aprendemos na aula de geografia que no interior, onde ficam os fazendeiros e os animais, e onde a comida é produzida, há grandes áreas como esta, onde as pessoas moram e trabalham e de onde mandam toda a comida para nos alimentar.” Ela olhou pela janela novamente, para a grande imensidão diante dela e para a distância que havia entre cada uma das cabanas. “Deve ser aqui. É o interior. Talvez aqui seja nossa casa de férias”, acrescentou, esperançosa.
Bruno pensou a respeito e balançou a cabeça. “Acho que não”, disse ele com grande convicção.
“Você tem nove anos” retrucou Gretel. “Como poderia saber? Quando tiver a minha idade, você entenderá essas coisas muito melhor.”
“Pode ser que sim”, disse Bruno, que sabia que era mais jovem, mas não concordava que isso diminuísse suas chances de acertar o palpite, “só que, se aqui é o interior, como você diz, onde estão todos os animais de que você falou?”
Gretel abriu a boca para responder, mas não conseguiu pensar numa resposta adequada e então optou, em vez disso, por olhar uma vez mais pela janela e procurar pelos bichos, porém eles não estavam em parte alguma.
“Deveria haver vacas e porcos e ovelhas e cavalos”, disse Bruno. “Quero dizer, se fosse uma fazenda. Para não falar nos patos e galinhas.”
“E não há bichos aqui”, admitiu Gretel em voz baixa.
“E se eles cultivassem alguma comida aqui, como você sugeriu”, prosseguiu Bruno, divertindo-se muito, “então acho que o solo teria de ter um aspecto bem melhor do que esse, não acha? Nessa sujeira não deve dar para plantar nada.”
Gretel olhou novamente e acenou com a cabeça, pois não era tola a ponto de insistir que estava certa o tempo todo, quando estava claro que os argumentos se voltavam contra ela.
“Talvez não seja uma fazenda, então”, ela disse.
“Não é”, concordou Bruno.
“O que quer dizer que aqui talvez não seja o interior”, ela prosseguiu.
“Não, acho que não é”, ele respondeu.
Ele se sentou na cama e por um instante desejou que Gretel se sentasse ao seu lado e pusesse o braço ao seu redor e dissesse que tudo ficaria bem e que mais cedo ou mais tarde os dois aprenderiam a gostar de lá e jamais quereriam voltar a Berlim. Mas ela ainda estava olhando pela janela e desta vez não observava as flores nem o pátio nem o banco com a placa ou a cerca alta ou os postes de maneira nem os rolos de arame farpado ou o chão estéril para além deles nem as cabanas ou os pequenos prédios ou mesmo as colunas de fumaça; em vez disso, ela estava olhando para as pessoas.
“Quem são todas aquelas pessoas?”, ela perguntou em voz baixa, como se não estivesse conversando com Bruno, mas pedindo uma resposta de outra pessoa. “E o que elas estão fazendo lá?”
Bruno se levantou, e pela primeira vez eles ficaram juntos,observando, ombro a ombro, aquilo que acontecia a menos de cento e cinqüenta metros da própria casa.
Por toda parte que olhavam, viam pessoas altas e baixas, velhas e jovens, todas perambulando. Algumas ficavam imóveis em grupos, as mãos ao lado do corpo, tentando manter a cabeça erguida, enquanto um soldado marchava diante delas, abrindo e fechando a boca com rapidez como se estivesse gritando alguma coisa. Algumas formavam uma espécie de corrente, empurrando carrinhos de mão de um lado da instalação até o outro, surgindo de um lugar além do alcance da vista e levando os carrinhos mais adiante até chegarem atrás de uma cabana, onde desapareciam novamente. Algumas permaneciam perto das cabanas em grupos silenciosos, sempre olhando para o chão, como naquele tipo de brincadeira cujo o objetivo é não ser visto. Outras usavam muletas e muitas tinham ataduras em torno da cabeça. Algumas carregavam pás e eram levadas por grupos de soldados até um lugar onde não podiam mais ser vistas.
Bruno e Gretel podiam ver centenas de pessoas, mas havia ali tantas cabanas, e o campo ia tão mais longe que eles não conseguiam ver, que parecia haver milhares de pessoas lá.
“E todos morando tão perto de nós”, disse Gretel, franzindo o cenho. “Em Berlim, na nossa rua calma e agradável havia apenas seis casas. E agora são tantas. Por que o papai aceitaria um emprego aqui, num lugar tão feio e tão cheio de vizinhos? Não faz sentido.”
“Olhe ali”, disse Bruno, e Gretel seguiu com os olhos a direção que ele apontava, e viu emergir de uma cabana na distância um grupo de crianças, todas juntas, acompanhadas por soldados que gritavam com elas. Quanto mais eles gritavam, mais juntos os pequenos ficavam, mas então um dos soldados se lançou na direção do grupo e elas se separaram e fizeram o que ele parecia exigir desde o início, que era formar uma fila única. Quando assim fizeram, os soldados começaram a gargalhar e as aplaudiram.
“Deve ser algum tipo de ensaio”, sugeriu Gretel, ignorando o fato de que algumas crianças, mesmo as mais velhas, mesmo aquelas que pareciam ter a idade dela, davam a impressão de estar chorando.
“Eu falei que havia crianças aqui”, disse Bruno.
“Não são o tipo de criança com quem eu gostaria de brincar”, disse Gretel com a voz determinada. “Elas parecem imundas. Hilda e Isobel e Louise tomam banho toda a manhã e eu também. Aquelas crianças parecem nunca ter tomado banho em suas vidas.”
“Lá parece mesmo bem sujo”, disse Bruno. “Mas e se elas não tiverem banheiro?”
“Não seja burro”, disse Gretel, apesar de já ter ouvido incontáveis vezes que não deveria chamar o irmão de burro. “Que tipo de gente não tem banheiro?”
“Não sei”, disse Bruno. “Gente que não tem água quente?”
Gretel observou-os mais alguns momentos antes de ter um calafrio e se afastar. “Vou para o meu quarto arrumar minhas bonecas”, disse ela. “A vista de lá é bem mais bonita.”
Com esse comentário, ela se foi, voltando pelo corredor até o quarto e fechando a porta atrás de si, mas demorou um pouco antes de retomar a arrumação. Sentou-se na cama e muitas coisas passaram pela sua cabeça.
E um pensamento final passou pela cabeça de seu irmão, enquanto ele observava as centenas de pessoas na distância prosseguindo com seus assuntos, e era o fato de que todos eles – os meninos pequenos, os meninos grandes, os pais, os avôs, os tios, as pessoas que vivem sozinhas nas ruas da vida e não parecem ter parentes – usavam as mesas roupas: um conjunto de pijama cinza listrado com um boné cinza listrado na cabeça.
“Que coisa incrível”, ele murmurou, antes de se voltar para o outro lado.
PROIBIDO ENTRAR EM TODOS OS MOMENTOS SEM EXCEÇÃO
Só havia uma coisa a fazer, e era falar com o pai.
O pai não viera de Berlim no mesmo carro que eles naquela manhã. Ele tinha vindo alguns dias antes, na noite daquele mesmo dia em que Bruno havia chegado em casa e encontrado Maria remexendo nas suas coisas, até mesmo as coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém. Durante os dias que se seguiram, a mãe, Gretel, Maria, o cozinheiro, Lars e Bruno passaram todo o tempo empacotando seus pertences e carregando-os num grande caminhão para que fossem trazidos até a nova casa em Haja-Vista.
Foi nessa manhã final, na qual a casa parecia vazia e tão diferente do lar de antes, que as últimas coisas que lhes pertenciam foram metidas em malas, e um carro oficial com bandeiras vermelhas e negras na parte da frente estacionou diante da porta para levá-los embora.
A mãe, Maria e Bruno foram os últimos a deixar a casa, e Bruno acreditou que a mãe não tinha percebido a governanta ainda de pé junto a eles, porque, ao lançarem um último olhar para a sala vazia onde haviam passado tantos momentos felizes, para o lugar onde ficava a árvore de Natal, onde os guarda-chuvas molhados eram depositados durante os meses de inverno, e para o lugar onde Bruno deveria deixar os sapatos enlameados ao chegar em casa, coisa que nunca fazia, a mãe balançou a cabeça e disse algo muito estranho. “Nunca deveríamos ter recebido o Fúria para o jantar”, ela disse. “Certas pessoas e a sua determinação em progredir na carreira.”
Assim que disse isso, ela se voltou, e Bruno pôde ver que havia lágrimas em seus olhos, mas ela deu um salto quando viu Maria ali, observando-a.
“Maria”, disse ela, numa voz transtornada. “Pensei que estivesse no carro.”
“Eu já estava de saída, madame”, disse Maria.
“Eu não quis dizer...”, começou a mãe, antes de balançar a cabeça e repensar o que ia dizer. “Eu não quis sugerir a idéia de que...”
Eu já estava de saída, madame”, repetiu Maria, que aparentemente não sabia a regra de não interromper a mãe, e logo saiu pela porta e correu na direção do carro.
A mãe franziu o cenho, mas depois deu de ombros, como se nada daquilo importasse mais, fosse como fosse. “Vamos então, Bruno”, ela disse, tomando a mão dele e trancando a porta às suas costas. “Só nos resta torcer para que um dia voltemos aqui, depois de tudo isto acabar.”
O carro oficial com as bandeiras sobre o capô os levara até uma estação de trem, na qual havia dois trilhos separados por uma plataforma ampla, e em ambos os lados havia um trem esperando pelo embarque dos passageiros. Por causa do grande número de soldados marchando do outro lado, para não falar no fato de que havia uma longa cabana pertencente ao sinaleiro separando os trilhos, Bruno não pôde ver muito da multidão que lá estava, antes de embarcar junto com a família num vagão muito confortável, que trazia poucos outros passageiros, cheio de bancos vazios e ar fresco quando as janelas era abertas. Se os trens seguissem em direções diferentes, ele pensou, não pareceria estranho, porém não era o caso: estavam ambos apontados para o leste. Por um instante ele pensou em correr pela plataforma avisando aquelas pessoas dos assentos livres no seu vagão, mas mudou de idéia, pois algo lhe dizia que, se aquilo não deixasse a mãe brava, provavelmente enfureceria Gretel, o que seria ainda pior.
Desde que chegaram a Haja-Vista e à casa nova, Bruno não vira o pai. Pensou que talvez ele estivesse em seu quarto quando a porta rangeu e se abriu, mas, afinal, se tratava apenas do soldado pouco amigável que encarara Bruno sem nenhum calor nos olhos. Ele não ouvira a potente voz do pai em parte alguma, nem mesmo os pesados passos de suas botas contra as tábuas do assoalho no andar de baixo. Mas era certo que havia pessoas indo e vindo, e, enquanto pensava no que seria melhor fazer, escutou uma grande agitação subindo do térreo, e foi até o corredor para se debruçar sobre o corrimão.
Lá embaixo ele viu a porta do escritório do pai aberta e um grupo de cinco homens de pé do lado de fora, gargalhando e apertando-se as mãos. O pai estava no meio deles e parecia muito importante no uniforme recém-passado. O cabelo escuro e espesso fora obviamente penteado com brilhantina havia pouco, e, enquanto os observava de cima, Bruno se sentia ao mesmo tempo assustado e maravilhado com a presença do pai. Aos seus olhos, os outros homens não pareciam tão bonitos quanto o pai. Nem os seus uniformes eram tão alinhados quanto o dele. Tampouco as suas vozes eram tão profundas, nem as botas tão reluzentes. Todos traziam os quepes sob o braço e pareciam disputar entre si a atenção de seu pai. Bruno só conseguiu entender algumas das frases da conversa conforme se aproximavam dele.
“... cometeu erros desde o momento em que pôs os pés aqui. A coisa chegou ao ponto em que o Fúria não teve escolha senão...”, disse um deles.
“... disciplina!”, disse outro. “E eficiência. A eficiência nos falta desde 42 e sem isso...”
“... fica claro, os números não deixam mentir. É claro, comandante...”, disse o terceiro.
“... e se construirmos mais um”, disse o último, “imagine o que poderíamos conseguir... Imagine...!”
O pai ergueu uma mão no ar, o que imediatamente fez com que os outros se calassem. Era como se ele fosse o regente de um quarteto de barbearia.
“Senhores”, ele disse, e desta vez Bruno pôde compreender cada palavra, pois jamais houvera um homem tão capaz de ser ouvido de um lado ao outro do cômodo quanto o pai. “As suas sugestões e o seu apoio são muito bem-vindos. E o passado é o passado. Aqui temos a oportunidade de um novo começo, mas este começo fica para amanhã. Agora, é melhor eu ajudar minha família a se instalar, ou haverá tanta encrenca para mim aqui dentro quanto há para eles lá fora, compreendem?”
Os homens soltaram uma gargalhada e apertaram a mão do pai. Ao sair, formaram juntos uma fila, como soldados de brinquedo, e os braços se projetaram para a frente na mesma saudação que o pai havia ensinado a Bruno, a palma estendida, vinda do peito em direção ao ar em frente a eles num movimento brusco, enquanto gritavam as duas palavras que Bruno fora ensinado a repetir, sempre que alguém as dissesse para ele. Então os homens foram embora e o pai voltou ao escritório, no qual era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção.
Bruno desceu lentamente as escadas e hesitou durante um instante à porta. Ele se ressentia de o pai não ter subido para dizer oi desde que chegara, mas há haviam lhe explicado em diversas ocasiões o quanto o pai era ocupado, que ele não podia ser incomodado com coisas como vir falar oi para o filho o tempo todo. Mas os soldados já tinham ido embora e ele achou que não haveria problema em bater na porta.
Ainda em Berlim, Bruno só estivera no escritório do pai em raras ocasiões, e em geral era porque tinha se comportado mal e precisava de uma conversa séria. Mesmo assim, a regra que se aplicava ao escritório em Berlim era uma das mais importantes que já tinha aprendido, e Bruno não era tolo a ponto de pensar que a regra não se aplicaria igualmente aqui em Haja-Vista. Mas como já havia alguns dias que eles não se encontravam, o menino pensou que ninguém se importaria se ele batesse na porta agora.
E então ele bateu cuidadosamente na porta. Duas vezes, bem fraco.
Talvez o pai não tivesse escutado, talvez Bruno não tivesse batido forte o bastante, mas o fato é que ninguém veio até a porta, e então Bruno bateu de novo, e desta vez com mais força, e ao fazê-lo ouviu a voz retumbante vinda lá de dentro: “Entre!”.
Bruno girou a maçaneta e entrou no cômodo, adotando sua típica pose de olhos arregalados, a boca em formato de um O e os braços estendidos pendendo ao lado do corpo. O resto da casa podia ser um pouco escuro e melancólico e bastante limitado nas suas possibilidades de exploração, mas aquele cômodo era outra história. Para começar, o pé-direito era muito alto e sobre o assoalho havia um carpete no qual Bruno pensou que poderia afundar. As paredes mal eram visíveis; estavam cobertas de prateleiras de mogno escuro, repletas de livros, como aqueles que ficavam na biblioteca da casa de Berlim. Havia janelas enormes na parede diante dele, e no centro de tudo isso, sentado atrás de uma grande escrivaninha de carvalho, estava o pai, que ergueu os olhos de seus papéis quando Bruno entrou e abriu um largo sorriso.
“Bruno”, ele disse, saindo de trás da mesa e cumprimentando o garoto com um sólido aperto de mão, pois o pai não era do tipo que abraça as pessoas, ao contrário da mãe e da avó, que pareciam distribuir abraços com uma freqüência grande demais, completando o serviço com beijos melados. “Meu menino”, acrescentou ele após um instante.
“Olá, papai”, disse Bruno em voz baixa, um pouco estupefato pelo esplendor do cômodo.
“Bruno, eu estava indo lá em cima para vê-lo dentro de mais alguns minutos, juro que estava”, disse o pai. “Só precisava terminar a reunião e redigir uma carta. Vejo que vocês chegaram bem, não?”
“Sim, papai”, disse Bruno.
“Ajudou sua mãe e sua irmã a fechar a casa antiga?”
“Sim, papai”, disse Bruno.
“Então, eu estou orgulhoso de você”, disse o pai num tom de aprovação. “Sente-se, menino.”
Ele indicou uma ampla cadeira em frente à escrivaninha e Bruno escalou-a, com os pés próximos ao chão, mas sem tocá-lo, enquanto o pai retornava à sua cadeira atrás da escrivaninha para encará-lo. Eles não disseram nada um ao outro por um instante, até que finalmente o pai quebrou o silêncio.
“E então?”, perguntou ele. “O que acha?”
“O que eu acho?”, perguntou Bruno. “O que eu acho a respeito do quê?”
“A nossa nova casa. Gosta dela?”
“Não”, disse Bruno rapidamente, pois sempre tentava ser honesto e sabia que, se hesitasse mesmo que por um momento, não teria mais coragem de dizer o que pensava. “Acho que nós devíamos ir para casa”, acrescentou, destemido.
O sorriso do pai diminuiu um pouco e ele lançou o olhar sobre a carta por um instante antes de erguer os olhos novamente, como se quisesse pensar com cuidado na resposta. “Bem, estamos em casa, Bruno”, disse por fim numa voz gentil. “Haja-Vista é a nossa nova casa.”
“Mas quando poderemos voltar a Berlim?”, pergunta Bruno, com o coração apertado após a resposta do pai. “Lá é muito mais gostoso.”
“Ora, vamos”, disse o pai, não querendo entrar naquele jogo. “Deixe disso, está bem?”, pediu ele. “Nossa casa não é uma construção, ou uma rua, ou uma cidade, ou coisa alguma tão artificial quanto os tijolos e a argamassa. O lar é onde mora a família de alguém, não é mesmo?”
“Sim, mas...”
“E a nossa família está aqui, Bruno. Em Haja-Vista. Ergo, este é o nosso lar.”
Bruno não entendeu o que significava ergo, mas não precisava entender, pois tinha uma resposta inteligente para o pai. “Mas o vovô e a vovó estão em Berlim”, ele disse. “E os dois são parte da nossa família. Então, aqui não pode ser o nosso lar.”
O pai ponderou sobre isso e acenou com a cabeça. Esperou um longo tempo antes de responder. “É verdade, Bruno, eles estão lá. Mas você, e eu, e a mamãe e Gretel somos as pessoas mais importantes da nossa família, e é aqui que moramos agora. Em Haja-Vista. Agora pare de ficar emburrado por causa disso! (pois Bruno estava fazendo uma cara deliberadamente emburrada). Você nem mesmo deu uma chance a este lugar. É capaz de gostar daqui.”
“Eu não gosto daqui”, insistiu Bruno.
“Bruno...”, disse o pai com a voz cansada.
“Karl não está aqui e nem Daniel e nem Marin, e não há outras casas nas redondezas e nada de bancas de frutas e legumes nem ruas e cafés com as mesas postas do lado de fora, e ninguém para nos empurrar de poste em poste nas tardes de sábado.”
“Bruno, às vezes há coisas na vida que temos de fazer e não temos escolha a respeito delas”, disse o pai, e Bruno percebeu que ele estava se cansando daquela conversa. “E eu temo que esta seja uma dessas coisas. Este é o meu trabalho, um trabalho importante. Importante para o nosso país. Importante para o Fúria. Algum dia você entenderá.”
“Eu quero ir para casa”, disse Bruno. Ele sentia as lágrimas se acumulando nos olhos, e o que mais queria era que o pai percebesse quão horrível era aquele tal de Haja-Vista e concordasse que era hora de ir embora.
“Você precisa entender que já está em casa”, disse ele em vez disso, desapontando Bruno. “E assim será pelo futuro previsível.”
Bruno fechou os olhos por um instante. Tinham sido poucas as ocasiões em sua vida nas quais estivera tão determinado a conseguir o que queria, e certamente ele jamais se dirigira ao pai com tamanho desejo de que este mudasse de idéia a respeito de alguma coisa, mas a noção de que teriam de ficar lá, morando um lugar tão horrível onde não havia mais ninguém para brincar, tudo aquilo era demais par a cabeça do menino. Quando abriu os olhos, um momento depois, o pai havia saído de trás da escrivaninha e se acomodara numa poltrona ao seu lado. Bruno o observou abrir uma caixa de prata, retirar um cigarro e bate-lo contra a mesa antes de o acender.
“Eu me lembro de quando era criança”, disse o pai, “lembro que havia certas coisas que eu não queria fazer, mas quando meu pai dizia que seria melhor para todos se eu obedecesse, eu simplesmente seguia em frente e fazia o que tinha de ser feito.”
“Que tipos de coisas eram essas?”, perguntou Bruno.
“Ah, eu não sei”, disse o pai, dando de ombros. “Não era nada demais. Eu era apenas uma criança e não sabia o que era o melhor a fazer. Às vezes, por exemplo, eu não queria ficar em casa e terminar a lição; queria sair pelas ruas, brincando com meus amigos, assim como você, e hoje eu olho para trás e vejo como eu era tolo.”
“Então você sabe como eu me sinto”, disse Bruno, esperançoso.
“Sim, mas eu também sabia que o meu pai, seu avô, sabia o que era melhor para mim e que eu seria sempre mais feliz se simplesmente aceitasse isso. Acha que eu teria sido tão bem-sucedido na vida se não tivesse aprendido quando é hora de discutir e quando é hora de ficar com a boca fechada e seguir ordens? E então, Bruno? O que você acha?”
Bruno olhou ao redor. Seu olhar se deteve na janela que ficava no canto do cômodo, e, através dela, ele podia ver a paisagem desoladora para além do vidro.
“Você fez alguma coisa errada?”, perguntou ele após um instante. “Alguma coisa que deixou o Fúria bravo?”
“Eu?”, disse o pai, olhando surpreso para ele. “O que você quer dizer?”
“Fez alguma coisa ruim no trabalho? Eu sei que todos dizem que você é um homem importante e que o Fúria tem em mente grandes coisas reservadas a você, mas não acho que ele o enviaria para um lugar como este se você não tivesse feito alguma coisa pela qual ele quisesse castigá-lo.”
O pai riu, o que deixou Bruno ainda mais triste; nada o deixava mais bravo do que quando um adulto ria dele por não saber alguma coisa, especialmente quando ele estava tentando descobrir a resposta fazendo perguntas.
“Você não compreende o significado de uma posição como esta”, disse o pai.
“Bem, eu não acho que você tenha feito um bom trabalho, se isso significa ter de nos mudar da nossa bela casa e para longe de nossos amigos e vir morar num lugar tão horrível quanto este. Acho que você deve ter feito alguma coisa errada e talvez seja melhor pedir desculpas ao Fúria, e, quem sabe, isso encerre a questão. Talvez ele o perdoe, se você for bem sincero nos eu pedido.”
As palavras saíram antes que ele pudesse pensar se eram razoáveis ou não; depois de ouvi-las flutuando no ar, elas não pareceram o tipo de coisa que ele deveria dizer ao pai, mas lá estavam elas, já ditas, e não havia nada que pudesse fazer para retirá-las. Bruno engoliu em seco e, após alguns momentos de silêncio, olhou para o pai, que o encarava com o olhar pétreo. Bruno lambeu os lábios e desviou os olhos. Ele sentiu que seria má idéia olhar o pai nos olhos.
Depois de alguns minutos silenciosos e desconfortáveis, o pai se ergueu lentamente da poltrona ao seu lado e voltou para trás da escrivaninha, deixando o cigarro no cinzeiro.
“Eu me pergunto se você está sendo muito corajoso”, ele disse em voz baixa após um momento, como se estivesse remoendo o problema na cabeça, “em vez de simplesmente desrespeitoso. Talvez não seja uma coisa tão ruim, afinal.”
“Eu não quis dizer...”
“Mas agora você ficará em silêncio”, disse o pai, elevando a voz e interrompendo-o, porque nenhuma das regras que normalmente se aplicavam à vida familiar valia para ele. “Eu tive grande consideração pelos seus sentimentos neste caso, Bruno, porque sei que esta mudança é difícil para você. E escutei o que você tinha a dizer, muito embora a sua juventude e a falta de experiência o obriguem a formular as coisas de maneira tão insolente. E você reparou que eu não reagi a nada disso. Mas é chegado o momento de você simplesmente aceitar o fato de que...”
“Eu não quero aceitar nada!”, gritou Bruno, piscando surpreso, pois não sabia que iria pronunciar aquelas palavras em voz alta. (Foi de fato uma enorme surpresa para ele.) Ele ficou um pouco nervoso e se preparou para fugir correndo caso fosse necessário. Mas nada parecia irritar o pai naquele dia – e se Bruno fosse honesto, teria de admitir que raramente o pai ficava bravo; ele ficava quieto e distante e sempre conseguia o que queria no fim das contas -, e, em vez de gritar com ele ou persegui-lo pela casa, ele apenas balançou a cabeça e indicou que a conversa havia chegado ao fim.
“Vá para o seu quarto, Bruno”, disse ele numa voz tão baixa que o menino soube imediatamente que ele falava sério agora, e então se levantou, as lágrimas de frustração se formando nos seus olhos. Ele caminhou na direção da porta, mas, antes de abri-la, voltou-se para o pai e fez uma última pergunta.
“Pai?”, começou ele.
“Bruno, eu não vou...”, começou o pai, irritado.
“Não é isso”, disse Bruno rapidamente. “Eu só quero fazer uma outra pergunta.”
O pai suspirou, mas indicou que ele deveria fazê-la e, então, seria o fim daquele assunto, sem mais discussões.
Bruno pensou sobre a pergunta, procurando formulá-la com precisão desta vez, para que não soasse mal-educada ou pouco colaborativa. “Quem são todas aquelas pessoas do lado de fora?”, disse ele finalmente.
O pai inclinou a cabeça para a esquerda, parecendo um pouco confuso por causa da pergunta. “São soldados, Bruno”, disse ele. “E secretários. Empregados do gabinete. Você já os viu antes, é claro.” “Não estou falando deles”, disse Bruno. “Quero saber daquelas pessoas que eu vejo da minha janela. As que moram nas cabanas, lá longe. Estão todas com as mesmas roupas.”
“Ah, aquelas pessoas”, disse o pai, acenando com a cabeça e sorrindo levemente. “Aquelas pessoas... Bem, na verdade elas não são pessoas, Bruno.”
Bruno franziu o cenho. “Não são?”, perguntou ele, sem saber o que o pai queria dizer com aquilo.
“Bem, não são pessoas no sentido em que entendemos o termo”, prosseguiu o pai. “Mas você não deve ser preocupar com elas agora. Elas não têm nada a ver com você. Não há nada em comum entre você e elas. Apenas adapte-se à nova casa e comporte-se bem, é tudo o que eu peço. Aceite a situação na qual você se encontra e tudo ficará muito mais fácil.”
“Está bem, papai”, disse Bruno, insatisfeito com a resposta.
Ele abriu a porta e o pai o chamou de volta por mais um instante, levantando-se e erguendo uma sobrancelha como se o menino tivesse esquecido alguma coisa. Bruno lembrou-se assim que o pai fez o sinal, e disse a frase e o imitou com exatidão.
Ele juntou os pés e ergueu o braço direito no ar antes de bater um calcanhar no outro e dizer numa voz tão profunda e clara quanto possível – tão parecida com a do pai quanto ele conseguia fazer – as palavras que dizia sempre que saía da presença de um soldado.
“Heil Hitler”, disse, o que Bruno presumia ser outra forma de dizer: “Bem, até logo, tenha uma boa tarde”.
A CRIADA MUITO BEM PAGA
Alguns dias depois Bruno estava deitado na cama em seu quarto, olhando para o teto sobre a cabeça. A tinta branca estava rachada e descamando de uma maneira bastante desagradável, ao contrário da pintura da casa em Berlim, que nunca ficava arranhada e recebia uma segunda demão de tinta todo verão, quando a mãe trazia os decoradores. Naquela tarde em especial ele ficou lá deitado olhando para as rachaduras em forma de teia de aranha, estreitando os olhos para imaginar o que haveria para além delas. Pensou que poderia haver insetos morando no espaço entre o teto e a tinta, e o movimento deles seria responsável por forçar a pintura, inchando-a por dentro, provocando as rachaduras, tentando abrir uma brecha grande o bastante para que eles pudessem atravessar e procurar a saída pela janela, por onde escapariam. Nada, pensou Bruno, nem mesmo os insetos jamais optaria por ficam em Haja-Vista.
“Tudo aqui é horrível”, ele disse em voz alta, embora não houvesse ninguém presente no quarto para escutar e, de alguma maneira, ele se sentiu melhor por ter ouvido as palavras ditas, fosse como fosse. “Eu odeio esta casa, odeio meu quarto e odeio até mesmo a pintura. Odeio tudo aqui. Absolutamente tudo.”
Assim que ele terminou de falar, Maria entro pela porta carregando uma braçada de roupas devidamente lavadas, secas e passadas. Ela hesitou por um instante quando o viu ali sentado, mas depois fez uma reverência com a cabeça e caminhou em silêncio até o guarda-roupa.
“Olá”, disse Bruno, pois, embora conversar com uma criada não fosse a mesma coisa do que ter amigos com quem conversar, não havia mais ninguém para lhe fazer companhia e era bem mais saudável falar com ela do que ficar falando sozinho. Gretel não estava por perto e ele começou a se preocupar, temendo que pudesse enlouquecer por causa do tédio.
“Senhor Bruno”, disse Maria em voz baixa, separando as camisas das calças e das roupas de baixo e guardando tudo em gavetas e prateleiras separadas.
“Imagino que você esteja tão incomodada com as novidades quanto eu”, disse Bruno, e ela se voltou para encará-lo com uma expressão que sugeria não saber do que se tratava. “Tudo aqui. É horrível, não é? Você não odeia tudo isso, como eu?”
Maria abriu a boca para dizer alguma coisa, mas fechou-a com a mesma rapidez. Ela parecia estar pensando cuidadosamente na resposta, escolhendo as palavras certas, preparando-se para dizê-las, e então pensou melhor e dispensou-as por completo. Bruno a conhecia por quase toda a sua vida – ela viera trabalhar para sua família quando ele tinha apenas três anos – e eles sempre se deram bem juntos, embora ela jamais demonstrasse grandes sinais de vida. Seguia com seu trabalho, lustrando os móveis, lavando as roupas, ajudando na cozinha e nas compras, por vezes levando-o à escola e buscando-o na saída, apesar de isso ter sido mais comum quando ele ainda tinha oito anos; ao completar nove anos, ele decidiu que já tinha idade suficiente para ir e voltar sozinho da escola.
“Então você não gosta daqui?”, disse ela afinal.
“Se eu não gosto daqui?”, respondeu Bruno com uma leve risada. “Gostar daqui?”, ele repetiu, mais alto desta vez. “É claro que eu não gosto daqui! É horrível. Não há nada para se fazer, não há ninguém com quem conversar, ninguém para brincar comigo. Não vá me dizer que você está contente por termos nos mudado para cá.”
“Eu sempre gostei do jardim da casa de Berlim”, disse Maria, respondendo a uma pergunta completamente diferente. “Às vezes, quando a tarde era quente, eu me sentava ali ao sol e almoçava sob a hera junto ao lago. As flores lá eram muito bonitas. Seus perfumes. As abelhas que flutuavam ao redor delas e nunca nos incomodavam se as deixássemos em paz.”
“Então você também não gosta daqui?”, perguntou Bruno. “Acha tão horrível quanto eu acho?”
Maria franziu o cenho. “Não importa”, ela disse.
“O que não importa?”
“O que eu acho.”
“Como assim, é claro que importa”, disse Bruno, irritado, como se ela estivesse deliberadamente dificultando as coisas. “Você é parte da família, não é?”
“Não estou certa de que seu pai concordaria com isso”, disse Maria, permitindo-se um sorriso, pois ficara comovida com o que o menino acabara de dizer.
“Bem, você foi trazida para cá contra sua vontade, assim como eu. Se quer saber, estamos todos no mesmo barco. E ele está afundando.”
Por um instante Bruno achou que Maria fosse de fato lhe dizer o que estava pensando. Ela depositou o resto das roupas sobre a cama e seus punhos se cerravam, como se estivesse muito brava por causa de alguma coisa. A boca se abriu, mas congelou por um momento, como se Maria tivesse medo de tudo o que poderia dizer se permitisse a si mesma começar.
“Por favor, Maria, diga-me”, disse Bruno. “Quem sabe, se todos nós nos sentimos assim poderemos convencer o papai a nos levar de volta para casa.”
Ela desviou o olhar dele por alguns instantes silenciosos e balançou a cabeça, entristecida, antes de encará-lo novamente. “Seu pai sabe o que é melhor para nós”, ela disse. “Você precisa confiar nele.”
“Não tenho tanta certeza disso”, disse Bruno. “Acho que ele cometeu um terrível engano.”
“Então é um engano com o qual teremos que conviver.”
“Quando eu me engano, sou castigado”, Bruno insistiu, irritado pelo fato de que as regras que se aplicavam às crianças pareciam nunca se aplicar aos adultos (apesar de serem eles que aplicavam as regras). “Pai idiota”, disse em voz baixa.
Os olhos de Maria se arregalaram e ela deu um passo na direção dele, cobrindo a própria boca com as mãos num momento de horror. Ela olhou ao redor para certificar-se de que ninguém os estava ouvindo nem ouvira o que Bruno acabara de dizer. “Nunca diga isso”, ela disse. “Jamais fale uma coisa dessas sobre seu pai.”
“Não vejo por que não”, disse Bruno; ele estava um pouco envergonhado de si por ter dito tais palavras, mas a última coisa que faria era sentar e receber uma bronca quando ninguém parecia se importar com as suas opiniões.
“Porque o seu pai é um bom homem”, disse Maria. “Um homem muito bom. Ele cuida de todos nós.”
“Trazendo-nos até este fim de mundo, no meio do nada, você quer dizer? É isso que você chama de tomar conta da gente?”
“Há muitas coisas que o seu pai fez”, disse ela. “Muitas coisas das quais você deveria se orgulhar. Se não fosse pelo seu pai, onde eu estaria, afinal de contas?”
“De volta a Berlim, imagino”, disse Bruno. “Trabalhando numa bela casa. Almoçando sob a hera e deixando as abelhas em paz.”
“Você não se lembra de quando eu vim trabalhar para vocês, não é?”, ela perguntou em voz baixa, sentando-se por um instante ao lado dele na cama, coisa que jamais havia feito antes. “Como poderia se lembrar? Você tinha apenas três anos. Seu pai me acolheu e me ajudou quando eu precisava dele. Deu-me um emprego, um lar, comida. Você nunca passou fome, não é?”
Bruno franziu o cenho. Ele queria mencionar que estava um pouco faminto naquele momento, mas por fim olhou para Maria e percebeu, pela primeira vez, que nunca a havia considerado inteiramente como uma pessoa, com uma vida e uma história próprias. Afinal, ela jamais fizera outra coisa (até onde ele sabia) além de ser a criada da família. Ele nem sequer conseguira se lembrar se já a havia visto trajando outras roupas que não o uniforme de empregada. Mas ao pensar no assunto, como fazia agora, era obrigado a admitir que deveria haver mais na vida dela, além de servir a ele e à sua família. Ela devia ter pensamentos na cabeça, assim como ele. Devia haver coisas das quais ela sentia falta, amigos que gostaria de rever, assim como ele. E devia ter chorado toda noite até dormir, como teriam feito meninos bem menores e menos corajosos do que ele. Bruno notou que ela era até bonita, o que provocou nele uma sensação engraçada.
“Minha mãe conheceu seu pai quando ele era um menino da sua idade”, disse Maria após alguns momentos. “Ela trabalhava para sua avó. Cuidava das roupas dela, enquanto ela viajava pela Alemanha, quando era mais jovem. Preparava todas as roupas para os concertos – lavava-as, passava-as, consertava-as. Todos vestidos maravilhosos. E a costura, Bruno! Cada modelo parecia uma obra de arte. Não se encontram mais costureiras como aquelas hoje em dia.” Ela balançou a cabeça e sorriu, pensando naquelas memórias, enquanto Bruno escutava pacientemente. “Ela se certificava de que todos os vestidos estivessem arrumados e prontos para serem usados a qualquer momento que sua avó entrasse no camarim, antes de um espetáculo. E, depois que sua avó se aposentou, é claro que as duas continuaram amigas e minha mãe até recebia uma pensão dela, mas era uma época difícil e o seu pai me ofereceu um emprego, o primeiro que eu tive. Alguns meses mais tarde minha mãe ficou muito doente e precisou de muitos cuidados hospitalares, e o seu pai cuidou de tudo, mesmo não sendo obrigação dele. Ele pagou tudo do próprio bolso, porque ela fora amiga da mãe dele. E me acolheu no seu lar pelo mesmo motivo. E, quando ela morreu, ele também pagou por todas as despesas do funeral. Então não chame seu pai de idiota, Bruno. Não perto de mim. Isso eu não permitirei.”
Bruno mordeu os lábios. Ele esperava que Maria ficasse ao seu lado na campanha para sair de Haja-Vista, mas agora percebia por quem de fato ela tinha lealdade. E era obrigado a admitir que ficara orgulhoso do pai ao escutar aquela história.
“Bem”, ele falou, incapaz de pensar em algo inteligente para dizer, “acho que foi gentil da parte dele.”
“Sim”, concordou Maria, levantando-se e caminhando até a janela, aquela através da qual Bruno enxergava as cabanas e as pessoas lá longe. “Ele foi muito bom para mim naquela época”, ela prosseguiu em voz baixa, olhando pela janela e observando as pessoas e os soldados ao longe cuidando de suas vidas. “Ele tem muita bondade na alma, tem mesmo, o que me faz imaginar...” A voz dela sumiu enquanto os observava, e depois emitiu um soluço repentino como se fosse chorar.
“Imaginar o quê?”, perguntou Bruno.
“Imaginar o que ele... como ele pode...”
“Como ele pode o quê?”, insistiu Bruno.
O barulho de uma porta batendo veio do andar de baixo e reverberou tão alto pela casa – como o disparo de uma arma – que Bruno deu um salto e Maria soltou um pequeno grito. Bruno distinguiu passos golpeando os degraus da escada vindo na direção deles, cada vez mais rápido, e rastejou de volta à cama, apertando-se contra a parede, subitamente temendo o que poderia acontecer a seguir. Prendeu a respiração, esperando alguma encrenca, mas era apenas Gretel, o Caso Perdido. Ela meteu a cabeça no vão da porta e pareceu surpresa ao encontrar o irmão e a criada da família conversado.
“O que está havendo?”, perguntou Gretel.
“Nada”, disse Bruno na defensiva. “O que você quer? Saia daqui.”
“Saia você”, ela respondeu, embora estivessem no quarto dele, e então a menina se voltou para Maria, estreitando os olhos desconfiados. “Prepare-me um banho, está bem, Maria?”, pediu ela.
“Por que você não prepara o próprio banho?”, retrucou Bruno, ríspido.
“Porque ela é a criada”, devolveu Gretel, olhando para ele. “É para isso que ela está aqui.”
“Ela não está aqui para isso”, gritou Bruno, levantando-se e marchando na direção dela. “Ela não está aqui simplesmente para fazer coisas para nós o tempo todo, sabia? Especialmente coisas que podemos fazer sozinhos.”
Gretel encarou-o como se ele tivesse enlouquecido e então olhou para Maria, que rapidamente balançou a cabeça.
“Mas é claro, dona Gretel”, disse Maria. “Assim que terminar de arrumar as roupas de seu irmão, eu irei prontamente atendê-la.”
“Bem, não demore!”, disse Gretel, grossa – pois, ao contrário de Bruno, ela jamais parava para pensar que Maria era uma pessoa com sentimentos exatamente como os seus -, antes de marchar de volta ao próprio quarto e fechar a porta atrás de si. Os olhos de Maria não a acompanharam, mas suas bochechas haviam adquirido uma coloração rósea.
“Continuo achando que ele cometeu um terrível engano”, disse Bruno em voz baixa após alguns minutos, quando ele teve a sensação de que queria pedir desculpas pelo comportamento da irmã mas não sabia ao certo se essa era a coisa certa a fazer. Situações como aquela sempre deixavam Bruno num grande desconforto, porque, em seu coração, ele sabia que não havia motivo para faltar com a educação a ninguém, mesmo que a pessoa trabalhasse para você. Afinal, era para isso que existiam as boas maneiras.
“Mesmo assim, é melhor não dizer isso em voz alta”, disse Maria rapidamente, caminhando na direção dele com cara de quem queria lhe meter algum juízo na cabeça. “Prometa-me que não dirá.”
“Mas por quê?”, perguntou ele, franzindo o cenho. “Estou apenas dizendo o que sinto. Eu sou livre para fazer isso, não?”
“Não”, disse ela. “Não é, não.”
“Não sou livre para dizer o que sinto?”, ele repetiu, incrédulo.
“Não”, ela insistiu, a voz áspera enquanto tentava explicar a situação a ele. “Apenas não fale neste assunto, Bruno. Não percebe quanta encrenca você poderia causar? Para todos nós?”
Bruno a encarou. Havia algo em seus olhos, uma espécie de preocupação histérica, que ele jamais vira antes e que o inquietava. “Bem”, o menino murmurou, agora de pé e caminhando na direção da porta, de repente ansioso por deixá-la, “estava apenas dizendo que não gosto daqui, é só isso. Só estava jogando conversa fora, enquanto você arrumava as roupas. Não é como se eu estivesse planejando fugir ou coisa assim. Muito embora eu ache que, se fugisse, não poderia ser criticado por isso.”
“E matar de preocupação seu pai e sua mãe?”, perguntou Maria. “Bruno, se você tiver um pingo de juízo, vai ficar quieto e se concentrar nos estudos e fazer tudo o que o seu pai disser. Temos que nos manter a salvo até que tudo isto termine. Pelo menos essa é a minha intenção. Além disso, o que mais podemos fazer? Não cabe a nós mudar as coisas.”
Subitamente, e sem conseguir pensar num motivo em particular, Bruno sentiu uma irresistível vontade de chorar. Até ele ficou surpreso, piscando os olhos rapidamente algumas vezes para que Maria não percebesse seus sentimentos. Apesar disso, quando seus olhos tornaram a se encontrar, ele pensou que talvez houvesse algo de estranho no ar aquele dia, pois os olhos dela também pareciam estar se enchendo de lágrimas. Tudo isso o fez sentir-se estranho, e então o menino deu as costas a ela e rumou até a porta.
“Aonde você vai?”, perguntou Maria.
“Lá fora”, disse Bruno, com raiva. “Se é que você se importa.”
Ele andou devagar, mas, depois que deixou o quarto, aumentou o ritmo rumo às escadas e desceu em alta velocidade, com a repentina sensação de que, se não saísse logo da casa, desmaiaria. Em segundos já estava do lado de fora, e começou a correr para lá e para cá pelo passeio que levava à estrada, ansioso por alguma atividade, algo que fosse cansá-lo um pouco. À distância, viu o portão que levava à estrada que levava à estação de trem que levava à sua casa, mas a idéia de ir até lá, a idéia de fugir e ficar abandonado à própria sorte sem ninguém para ajudá-lo, pareceu ainda mais desagradável do que a idéia de ficar em Haja-Vista.
COMO A MÃE LEVOU O CRÉDITO POR ALGO QUE NÃO FEZ
Várias semanas depois de Bruno ter chegado a Haja-Vista com sua família e sem nenhuma perspectiva de uma visita de Karl, Daniel ou Martin no horizonte, ele decidiu que era melhor inventar alguma maneira de se divertir, ou então acabaria enlouquecendo aos poucos.
Bruno conhecera apenas uma pessoa que ele considerava louca, e era herr Roller, um homem mais ou menos da idade de seu pai, que morava na esquina do seu quarteirão da casa velha em Berlim. Era freqüentemente visto na rua andando para lá e para cá a qualquer hora do dia ou da noite, discutindo sozinho, exaltado. Às vezes, no meio dessas discussões, a disputa saída do controle e o homem tentava atingir a sombra que ele próprio projetava na parede. De tempos em tempos herr Roller lutava com tamanha fúria que os punhos sangravam de tanto bater contra as paredes de tijolo, e então ele caía de joelhos, chorando alto e batendo as mãos contra a cabeça. Em algumas ocasiões Bruno o ouvira proferindo aquelas palavras que ele próprio não podia usar e, nessas vezes, tinha que se controlar para não rir.
“Não ria do pobre herr Roller”, dissera-lhe a mãe numa tarde em que ele relatara sua última aventura. “Você não faz idéia do que ele passou nessa vida.”
“Ele é louco”, disse Bruno, descrevendo com o dedo círculos ao lado da cabeça e assoviando para indicar quão louco ele achava ser o homem. “Outro dia ele se aproximou de um gato e o convidou para tomar o chá da tarde.”
“E o que disse o gato?”, perguntou Gretel, que estava preparando um sanduíche na cozinha.
“Nada”, explicou Bruno. “Era um gato.”
“Estou falando sério”, insistiu a mãe. “Franz era um jovem maravilhoso – eu o conheci quando ainda era uma garotinha. Era gentil e atencioso e atravessava o salão de dança como se fosse Fred Astaire. Mas sofreu um terrível ferimento durante a Grande Guerra, um ferimento na cabeça, e é por isso que age assim agora. Não é motivo de piada. Vocês não fazem idéia do que passaram os jovens daquela época. Não imaginam o sofrimento dele.”
Bruno tinha, então, apenas seis anos e não sabia ao certo a que a mãe estava se referindo. “Foi há muitos anos”, explicou ela quando ele perguntou a respeito. “Antes de você nascer. Franz era um dos jovens que lutaram por nós nas trincheiras. Seu pai o conhecia muito bem naquela época; acredito que eles serviram juntos.”
“E o que aconteceu com ele?”, perguntou Bruno.
“Não importa”, disse a mãe. “A guerra não é um assunto digno de conversa. Temo que em breve passaremos tempo demais conversando sobre a guerra.”
Aquilo tudo ocorrera três anos antes de todos eles chegarem a Haja-Vista, e Bruno não havia pensado muito em herr Roller nesse ínterim, mas de repente ele se convenceu de que, se não tomasse alguma atitude, se não fizesse alguma coisa que lhe ocupasse a mente, então, antes que pudesse perceber, acabaria igualmente vagando pelas ruas e lutando consigo mesmo e convidando animais domésticos para ocasiões sociais.
Para manter-se distraído, Bruno passou uma longa manhã e a tarde de um sábado criando para si uma nova diversão. A certa distância da casa – do lado de Gretel e impossível de se ver da janela de seu próprio quarto – havia um grande carvalho, de tronco bastante alentado. Uma árvore alta, de galhos robustos, fortes o suficiente para suportar um menino pequeno. Parecia tão velha que Bruno estava certo de que fora plantada em algum momento da baixa Idade Média, um período que ele estudara há pouco tempo e descobrira ser muito interessante – em especial as partes que falavam de cavaleiros que saíam para terras desconhecidas em busca de aventuras e desvendavam mistérios curiosos durante o processo.
Bruno precisava apenas de duas coisas para criar seu divertimento: um pedaço de corda e um pneu. A corda foi bastante fácil de encontrar, pois havia rolos no porão da casa e não demorou para que ele fizesse algo extremamente perigoso: encontrando uma faca afiada, cortou tantos pedaços de corda julgou serem necessários. Levou-os até o carvalho e deixou-os no chão para utilizá-los futuramente. O pneu já era outra história.
Naquela manhã em particular, nem a mãe nem o pai estavam em casa. A mãe saíra cedo para tomar o trem até uma cidade próxima e passaria o dia respirando outros ares, enquanto o pai fora visto pela última vez indo na direção das cabanas e das pessoas que ficavam à distância, do outro lado da janela de Bruno. Mas, como de costume, havia muitos caminhões e jipes dos soldados estacionados nas proximidades da casa, e, embora ele soubesse que seria impossível roubar um pneu de qualquer um deles, existia sempre a possibilidade de encontrar um estepe em algum lugar.
Quando estava saindo, viu Gretel conversando com o tenente Kotler e, sem grande entusiasmo, decidiu que seria ele a pessoa certa a quem pedir o favor. O tenente Kotler era o jovem oficial que Bruno vira durante seu primeiro dia em Haja-Vista, o soldado que aparecera no andar de cima da casa e o encarara por um instante antes de acenar com a cabeça e seguir caminho. Bruno o havia visto em muitas ocasiões desde então – ele entrava e saía da casa como se fosse o dono do lugar, e parecia óbvio que o escritório do pai não era proibido para ele -, porém os dois não haviam conversado muito. Bruno não sabia ao certo por quê, mas sabia que não gostava do tenente Kotler. Havia uma atmosfera ao redor dele que fazia com que o menino sentisse frio e tivesse vontade de vestir um macacão. Ainda assim, não havia mais a quem pedir e então marchou na direção deles para dizer oi, reunindo toda a confiança de que era capaz.
Na maioria dos dias o jovem tenente tinha um aspecto muito vistoso, desfilando por ali num uniforme que parecia ter sido passado enquanto ele o vestia. As botas pretas sempre reluziam de tão polidas e o cabelo loiro era repartido de lado e mantido perfeitamente no lugar por alguma coisa que destacava as marcas do pente, parecendo um campo recém-arado. Ele também usava tanta loção pós-barba que tornava possível farejar sua aproximação a uma distância considerável. Bruno aprendeu a evitar encontrá-lo no sentido contrário ao vento, ou acabaria arriscando-se a desmaiar por causa do cheiro.
Naquela manhã em particular, entretanto, por ser sábado e por causa do sol intenso, ele não estava tão impecavelmente arrumado. Ao invés disso, vestia um paletó branco sobre as calças e o cabelo pendia sobre a testa, exausto. Os braços eram surpreendentemente bronzeados e tinham o tipo de músculos que Bruno desejava para si. Ele parecia tão jovem naquele dia que Bruno até ficou surpreso; na verdade ele o fazia lembrar dos meninos mais velhos da escola, aqueles que sempre evitava. O tenente Kotler estava envolvido numa conversa com Gretel, e o quer que estivesse dizendo devia ser irresistivelmente engraçado, pois ela ria alto e enrolava o cabelo ao redor dos dedos, formando anéis.
“Olá”, disse Bruno ao se aproximar deles, e Gretel lançou-lhe um olhar irritado.
“O que você quer?”, perguntou ela.
“Eu não quero nada”, devolveu Bruno, fuzilando-a com o olhar. “Só vim dizer oi.”
“Por favor, desculpe o meu irmão mais novo, Kurt”, disse Gretel ao tenente Kotler. “Sabe como é, ele só tem nove anos.”
“Bom dia, homenzinho”, disse Kotler, estendendo a mão e – para desgosto do menino – passando-a pelo cabelo de Bruno, um gesto que o deixou com vontade de empurrá-lo no chão e saltar sobre sua cabeça. “E qual motivo o tira da cama tão cedo numa manhã de sábado?”
“Não tem nada de ‘tão cedo’”, disse Bruno. “São quase dez horas.”
O tenente Kotler deu de ombros. “Quando eu tinha a sua idade, minha mãe não conseguia me tirar da cama antes da hora do almoço. Ela dizia que eu jamais cresceria e ficaria forte, se passasse a vida toda dormindo.”
“Bem, ela parece ter se enganado completamente, não?”, Gretel deu um sorriso afetado. Bruno olhou enojado para ela. A menina fazia uma voz de boba que dava a impressão de que ela não tinha nada da cabeça. Não havia nada que Bruno quisesse mais do que deixar os dois para trás sem participar da conversa deles, mas não tinha escolha, a não ser priorizar os seus interesses e pedir ao tenente Kotler o impensável. Um favor.
“Eu imaginava se poderia lhe pedir um favor”, disse Bruno.
“Pode pedir”, disse o tenente Kotler, fazendo Gretel rir de novo, embora isso não fosse especialmente engraçado.
“Eu queria saber se não há algum pneu estepe sobrando”, prosseguiu Bruno. “Quem sabe de um dos jipes. Ou de um dos caminhões. Algum que vocês não estejam usando.”
“O único pneu que eu vi sobrando por aqui nos últimos tempos pertence ao sargento Hoffschneider, e ele o traz ao redor da cintura”, disse o tenente Kotler, os lábios assumindo uma forma parecida com um sorriso. Para Bruno aquilo não fazia o menor sentido, mas parecia divertir tanto Gretel que ela estava quase dançando.
“Bem, ele está usando o pneu?”, perguntou Bruno.
“O sargento Hoffschneider?”, perguntou o tenente Kotler. “Temo que sim. Ele é muito apegado ao seu estepe sobressalente.”
“Chega, Kurt”, disse Gretel, secando os olhos. “Ele não entende. Só tem nove amos.”
“Dá para você ficar quieta, por favor?”, gritou Bruno irritado, encarando a irmã. Já era ruim o bastante ter que vir ate o tenente Kotler pedir-lhe um favor, mas ficava ainda pior com a irmã provocando-o durante a história toda. “Você também só tem doze anos”, acrescentou ele. “Então pare de fingir que é mais velha.”
“Eu tenho quase treze anos, Kurt”, retrucou ela, sem rir, o rosto congelado de pavor. “Farei treze em poucas semanas. Serei uma adolescente. Como você.”
O tenente Kotler sorriu e acenou com a cabeça, mas não disse nada. Bruno voltou os olhos para ele. Se fosse qualquer outro adulto ali na sua frente, ele teria girado os olhos sugerindo que ambos sabiam o quanto as meninas eram bobas, e as irmãs, ainda mais ridículas. Porém não se tratava de qualquer outro adulto. Era o tenente Kotler.
“Enfim”, disse Bruno, ignorando o olhar de ódio que Gretel lhe lançava, “além desse pneu, há mais algum lugar onde eu possa encontrar um estepe sobrando?”
“É claro”, disse o tenente Kotler, que havia parado de sorrir e parecia subitamente entediado. “Mas o que você vai fazer com o pneu afinal?”
“Eu pensei em fazer um balanço”, disse Bruno. “Sabe, com um pneu e um pouco de corda amarrada aos galhos de uma árvore.”
“É claro” disse o tenente Kotler, acenando a cabeça com ar de sabedoria, como se tais coisas fossem apenas memórias distantes agora, ainda que, conforme Gretel dissera, ele próprio não passasse de um adolescente. “Sim, eu mesmo fiz muitos balanços quando era criança. Meus amigos e eu passamos muitas tardes felizes brincando assim.”
Bruno ficou estupefato ao perceber que havia algo em comum entre eles (e ainda mais surpreso em saber que o tenente Kotler já tivera amigos na vida). “O que me diz?”, ele perguntou. “Será que tem algum por aí?”
O tenente Kotler olhou para ele e pareceu estar pensando na resposta, como se não soubesse se iria lhe dar uma resposta direta ou se tentaria irritá-lo como costumava fazer. Mas então ele viu Pavel – o velho que vinha todas as tardes ajudar a descascar os legumes na cozinha antes de vestir o paletó branco e servi-los à mesa – caminhando na direção da casa, e isso pareceu dar-lhe clareza quanto ao que fazer.
“Ei, você!”, gritou ele, acrescentando, então, uma palavra que Bruno não entende. “Venha cá, seu...” Ele disse a tal palavra novamente, e alguma coisa no tom rude com que a entoava fez Bruno se sentir envergonhado e desviar os olhos, não querendo tomar parte no que estava acontecendo.
Pavel veio na direção deles e Kotler falou-lhe com insolência, apesar de ser jovem o bastante para ser seu neto. “Leve este homenzinho até o depósito atrás da casa principal. Enfileirados junto à parede, estão alguns pneus velhos. Ele escolherá um deles, e você o carregará para onde quer que ele lhe peça, entendido?”
Pavel segurou o boné nas mãos diante de si e acenou com a cabeça, fazendo-a abaixar ainda mais. “Sim, senhor”, disse em voz baixa, tão baixa que era como se não tivesse dito nada.
“E depois, quando voltar para a cozinha, lave essas mãos antes de tocar na comida, seu imundo...” O tenente Kotler repetiu a palavra que já tinha usado duas outras vezes e cuspiu um pouco enquanto falava. Bruno procurou com o olhar a irmã, que estivera maravilhada observando os raios do sol refletidos no cabelo do tenente Kotler, mas agora, como ele, parecia bastante incomodada com o que acontecera. Nenhum dos dois havia conversado com Pavel antes, mas sabiam que ele era um bom servente, e os bons serventes, segundo o pai, não nasciam em árvores.
“Pode ir, então”, disse o tenente Kotler, e Pavel voltou-se indicando o caminho até o depósito, seguido por Bruno, que de tempos em tempos olhava para trás na direção de sua irmã e do jovem soldado e sentia um grande ímpeto de voltar e tirar Gretel de lá, apesar de ela ser irritante e egocêntrica e desagradável com ele na maioria das vezes. Esse era o trabalho dela, afinal. Era a irmã dele. Mas ele detestava a idéia de deixá-la a sós com um homem como o tenente Kotler. Não havia outra maneira de dizê-lo: aquele sujeito era absolutamente desprezível.
O acidente aconteceu algumas horas mais tarde, depois que Bruno havia encontrado o pneu adequado, e Pavel o arrastara até o grande carvalho que ficava do lado do quarto de Gretel, e depois que Bruno subiu e desceu e subiu e desceu e subiu e desceu pelo tronco para amarar as cordas bem apertadas ao redor dos galhos e do próprio pneu. Até então, a operação tinha sido um estrondoso sucesso. Ele já havia construído um desses antes, mas naquela ocasião tivera a ajuda de Karl e Daniel e Martin. Desta vez ele estava fazendo tudo sozinho, o que tornava o trabalho certamente mais complicado. E ainda assim ele conseguiu, e em poucas horas estava contente, instalado no centro do pneu e balançando para a frente e para trás como se não tivesse uma única preocupação na vida, embora estivesse ignorando o fato de que aquele era um dos balanços mais desconfortáveis em que já estivera.
Bruno se deitou atravessado no centro do pneu e usou os pés para ganhar impulso a partir do chão. Cada vez que o balanço recuava, erguia-se no ar e quase atingia o tronco da árvore, próximo o suficiente para usar os pés a fim de dar novo impulso, subindo cada vez mais alto e mais rápido a cada balançada. Esse procedimento funcionou muito bem, até que ele escorregou um pouco do pneu, bem na hora em que com os pés dava impulso na árvore e, antes que ele percebesse, seu corpo voltou-se para dentro, e Bruno caiu, com um pé ainda dentro do pneu, enquanto aterrissava de cara contra o chão, provocando um ruído alto e surdo.
Tudo escureceu por um momento e depois retomou o foco. Ele se sentou no chão, bem na hora em que o pneu balançava de volta, atingindo-o na cabeça, o que o fez soltar um gemido e sair do caminho. Quando se levantou, percebeu que o braço e a perna estavam ambos bastante doloridos, pois caíra pesadamente sobre eles, mas não a ponto de ele pensar tê-los quebrado. Inspecionou a mão e viu que estava coberta de arranhões e, quando olhou para o cotovelo, viu que havia nele um belo corte. A perna era o que mais incomodava e, quando olhou para o joelho logo abaixo de onde terminavam as calças curtas, havia ali um enorme talho que parecia estar apenas esperando que ele olhasse, pois, assim que toda a atenção de Bruno foi focalizada no ferimento, este começou a sangrar bastante.
“Oh, céus”, disse Bruno em voz alta olhando para a ferida sem saber o que fazer a seguir. Não precisou ficar indeciso durante muito tempo, uma vez que havia construído o balanço no mesmo lado da casa em que ficava a cozinha, e Pavel, o servente que o havia ajudado a encontrar o pneu, estivera à janela descascando os legumes e viu o acidente acontecer. Quando Bruno olhou para cima de novo, viu Pavel vindo rapidamente em sua direção e, só quando ele chegou, Bruno ficou seguro o bastante para deixar a sensação de embriaguez que o rondava dominá-lo por completo. Ele chegou a desabar, mas desta vez não caiu no chão, pois Pavel o pegou no colo.
“Não sei o que aconteceu”, disse o menino. “Não parecia ser perigoso.”
“Você estava balançando muito alto”, disse Pavel numa voz baixa que imediatamente transmitiu a Bruno uma grande segurança. “Eu vi tudo. Achei que a qualquer momento lhe aconteceria um imprevisto.”
“E aconteceu”, disse Bruno.
“Certamente aconteceu.”
Pavel carregou-o pela grama de volta a casa. Levou-o até a cozinha e o acomodou numa das cadeiras de madeira.
“Onde está minha mãe?”, perguntou Bruno, procurando a primeira pessoa a quem ele buscava quando sofria um acidente.
“Sua mãe ainda não voltou, infelizmente”, disse Pavel, ajoelhando-se no chão diante dele e examinando seu joelho. “Sou o único que está aqui.”
“O que vai acontecer comigo, então?”, perguntou Bruno, sentindo o pânico crescer dentro de si, uma emoção que poderia levá-lo às lágrimas. “É capaz de eu sangrar até a morte.”
Pavel sorriu gentilmente e balançou a cabeça. “Você não vai sangrar até a morte”, disse o servente, puxando um banco e acomodando sobre ele a perna de Bruno. “Fique parado um instante. Há um estojo de primeiros socorros bem ali.”
Bruno observou-o se movimentar pela cozinha, procurar um estojo verde de primeiros socorros debaixo de uma cômoda, trazê-lo e encher uma pequena tigela com água, testando-a antes com a ponta dos dedos para certificar-se de que não estava fria demais.
“Terei de ir ao hospital?”, perguntou Bruno.
“Não, não”, disse Pavel ao retomar a posição anterior, de joelhos, mergulhando um pano seco na tigela e passando-o delicadamente sobre o joelho de Bruno, o que o fez encolher-se de dor, apesar de não doer tanto assim. “É apenas um pequeno corte. Nem precisará de pontos.”
Bruno franziu o cenho e mordeu os lábios nervosamente, enquanto Pavel limpava o sangue da ferida; depois ele pressionou contra ela outro pano, com força, durante alguns minutos. Quando o retirou, com todo o cuidado, o sangramento havia estancado, e ele sacou do estojo de primeiros socorros um pequeno frasco que continha um líquido verde, o qual borrifou sobre a ferida, coisa que doeu consideravelmente e fez Bruno dizer “Ai” sucessivas vezes.
“Não dói tanto assim”, disse Pavel numa voz gentil e delicada. “Não torne as coisas piores, pensando que dói mais do que você realmente está sentindo.”
De alguma maneira isso fez sentido para Bruno e ele resistiu ao ímpeto de dizer “Ai” de novo. Quando Pavel terminou de aplicar o líquido verde, tirou do estojo de primeiros socorros uma bandagem e grudou-a sobre o corte.
“Pronto”, disse ele. “Bem melhor agora, não?”
Bruno acenou com a cabeça e envergonhou-se um pouco por não ter agido com tanta coragem quanto gostaria. “Obrigado”, disse ele.
“Não foi nada”, disse Pavel. “Agora você precisa ficar aí sentado um pouco, antes de sair andando novamente, está bem? Deixe a ferida repousar. E não chegue perto daquele balanço outra vez, pelo menos hoje.”
Bruno concordou e manteve a perna estendida sobre o banquinho, enquanto Pavel foi até a pia lavar as mãos cuidadosamente, limpando até sob as unhas com uma escova de arame, antes de secá-las e voltar para os legumes.
“Você dirá à mamãe o que aconteceu?”, perguntou Bruno, que havia passado os últimos minutos imaginando se seria considerado um herói, por sofrer um acidente, ou um vilão, por ter construído uma armadilha mortal.
“Acho que ela perceberá tudo sozinha”, disse Pavel, que trouxe as cenouras até a mesa e sentou-se de frente para Bruno, enquanto as descascava sobre um jornal velho.
“É, acho que sim”, disse Bruno. “Talvez ela ache melhor me levar ao médico.”
“Acho que não”, disse Pavel em voz baixa.
“Nunca se sabe”, disse Bruno, que não queria ver reduzida tão facilmente a importância de seu acidente. (Afinal, era a coisa mais emocionante que havia lhe acontecido desde que chegara lá.) “Pode ser pior do que parece.”
“Não é”, disse Pavel, que mal parecia estar escutando o que Bruno falava, as cenouras tomando toda a sua atenção.
“E como você sabe?”, perguntou rapidamente Bruno, irritado agora, apesar de aquele ser o mesmo homem que o resgatara do chão, o trouxera para casa e cuidara dele. “Você não é médico.”
Pavel parou de descascar as cenouras por um instante e olhou para Bruno do outro lado da mesa, a cabeça baixa, erguendo os olhos, como se estivesse pensando no que responder. Ele suspirou e pareceu ponderar a questão por um longo tempo antes de dizer: “Sou, sim.”
Bruno encarou-o, surpreso. Aquilo não fazia sentido para ele. “Mas você é um servente”, disse ele lentamente. “E você descasca os legumes para o jantar. Como pode ser também um médico?”
“Jovem rapaz”, disse Pavel (e Bruno gostou da cortesia de ele o chamar de ‘jovem rapaz’, e não de ‘homenzinho’, como fazia o tenente Kotler), “eu sou, de fato, médico. Só porque um homem olha para o céu à noite, isso não faz dele um astrônomo, sabia?”
Bruno não fazia idéia do que Pavel queria dizer, mas havia algo no que ele dissera que fez o menino observá-lo atentamente pela primeira vez. Era um homem de porte pequeno, bastante magro, de dedos longos e traços angulosos. Era mais velho que o pai, porém mais novo do que o avô, o que ainda lhe conferia bastante idade, e, embora Bruno jamais o tivesse visto antes de chegar a Haja-Vista, havia algo no rosto dele que sugeria que, no passado, Pavel usara barba.
Não mais.
“Não entendo”, disse Bruno, querendo chegar ao fundo da questão. “Se você é médico, então por que está servindo à mesa? Por que não trabalha em algum hospital?”
Pavel hesitou por um longo tempo antes de responder, durante o qual Bruno nada disse. Ele não sabia ao certo por quê, mas sentiu que o mais educado seria esperar até que Pavel estivesse pronto para responder.
“Antes de vir para cá, eu praticava a medicina”, disse afinal.
“Praticava?”, perguntou Bruno, que não estava familiarizado como termo. “Você não era bom, então?”
Pavel sorriu. “Eu era muito bom”, disse ele. “Sempre quis ser médico, sabe? Desde quando era um menino pequeno. Desde que tinha a sua idade.”
“Eu quero ser um explorador”, disse Bruno rapidamente.
“Desejo-lhe sorte”, disse Pavel.
“Obrigado.”
“Já descobriu alguma coisa?”
“Lá na casa de Berlim havia muita exploração para se fazer”, relembrou Bruno. “Mas é porque era uma casa muito grande, maior do que você poderia imaginar, então havia muitos lugares para serem explorados. Mas aqui é diferente.”
“Tudo aqui é diferente”, concordou Pavel.
“Quando você chegou a Haja- Vista?”, perguntou Bruno.
Pavel largou as cenouras e o descascador por um momento e pensou a respeito. “Acho que sempre estive aqui”, disse ele afinal, em voz baixa.
“Você cresceu aqui?”
“Não”, disse Pavel, balançando a cabeça. “Não cresci aqui.”
“Mas você acabou de dizer que...”
Antes que pudesse prosseguiu, a voz da mãe fez-se ouvir do lado de fora. Assim que a ouviu, Pavel saltou rapidamente da cadeira e voltou para a pia com as cenouras e o descascador e o jornal cheio de cascas, dando as costas a Bruno, abaixando a cabeça e emudecendo.
“Meu Deus, o que aconteceu com você?”, perguntou a mãe ao aparecer na cozinha, inclinando-se para examinar o curativo que cobria o corte de Bruno.
“Eu fiz um balanço, mas caí dele”, explicou Bruno. “E depois o balanço me atingiu na cabeça, e eu quase desmaiei, mas Pavel veio me ajudar, e me trouxe para casa, e limpou meus machucados, e fez um curativo em mim, que doeu muito, mas eu não chorei. Não chorei nem uma lágrima, não é mesmo, Pavel?”
Pavel voltou o corpo levemente na direção deles, mas não ergueu a cabeça. “A ferida está limpa”, disse em voz baixa, sem responder à pergunta de Bruno. “Não há com o que se preocupar.”
“Vá para o seu quarto, Bruno”, disse a mãe, que demonstrava claramente seu desagrado.
“Mas eu...”
“Não discuta comigo – vá para o seu quarto!”, insistiu ela, e Bruno desceu da cadeira, jogando o peso sobre o que decidiu chamar de perna ruim, e sentiu um pouco de dor. Ele se voltou e saiu da cozinha, mas ainda pôde ouvir a mãe agradecendo a Pavel, enquanto caminhava na direção das escadas, o que deixou Bruno feliz porque era óbvio que, se não fosse por causa de Pavel, ele teria sangrado até a morte.
Ele ouviu uma última coisa antes de subir as escadas: a última frase que a mãe disse ao servente que afirmava ser médico.
“Se o comandante perguntar, diremos que fui eu quem cuidou do Bruno.”
O que pareceu a Bruno uma coisa terrivelmente egoísta, e uma maneira de a mãe levar o crédito por algo que não fez.
POR QUE A AVÓ FOI EMBORA ABRUPTAMENTE
As duas pessoas de quem Bruno mais sentia saudades eram o avô e a avó. Eles moravam juntos num pequeno apartamento próximo às bancas de frutas e legumes, e, na época em que Bruno se mudou para Haja-Vista, o avô tinha quase setenta e três anos, o que, para os padrões do menino, fazia dele praticamente o homem mais velho do mundo. Certa tarde, Bruno calculara que, se viesse a própria vida de novo e de novo por oito vezes, ainda assim seria um ano mais novo do que o avô.
O avô passara a vida toda cuidando de um restaurante no centro da cidade, e um de seus empregados era o pai do amigo de Bruno, Martin, que trabalhava como chef de cozinha . Embora o avô não cozinhasse mais ou atendesse as mesas, ainda passava lá a maior parte de seus dias, sentado no bar durante as tardes, conversando com os fregueses, fazendo suas refeições à noite e lá ficando até a hora de fecha, rindo com os amigos.
A avó jamais parecia velha em comparação às avós dos outros meninos. Na verdade, quando Bruno descobriu a idade que ela tinha – sessenta e dois –, ficou impressionado. Ela conhecera o avô quando ainda era jovem, após uma de suas apresentações, e de alguma maneira ele a convenceu a se casarem, apesar de todos os defeitos dele. O cabelo dela era comprido e ruivo, surpreendentemente parecido com o da nora, e os olhos, verdes, o que ela atribuía ao sangue irlandês disperso pela família. Bruno sempre sabia quando as festas familiares atingiam o ápice de animação, porque a avó ficava rondando o piano até que alguém se sentasse para tocar e pedisse a ela para cantar.
“Como é?”, fazia ela, levando a mão ao peito como se a idéia de cantar já lhe tirasse o fôlego. “É uma canção o que estão pedindo? Ora, eu não poderia, imagine. Infelizmente, meu jovem, meus dias de cantoria já são coisa do passado.”
“Cante! Cante!”, pediam todos os convivas, e, após a devida pausa – que podia chegar a dez ou doze segundos –, ela afinal cedia e se voltava para o jovem ao piano e dizia rapidamente numa voz bem-humorada:
“La vie en rose, mi bemol maior. E tente acompanhar as mudanças.
As festas na casa de Bruno eram sempre dominadas pela cantoria da avó, que por alguma razão parecia coincidir com o momento em que a mãe saía da área principal da festa e ia para a cozinha seguida por algumas de suas próprias amigas. O pai sempre ficava para escutar o Bruno também, pois não havia nada de ele gostasse mais do que escutar a avó se entregar à música e libertar todo o poder de sua voz, arrancando os aplausos dos convidados ao final. Além disso, La vie en rose lhe dava arrepios e fazia os cabelos da nuca ficarem em pé.
A avó cultivava a idéia de que um dia Bruno ou Gretel pudessem seguir seus passos sobre o palco, e, em todo Natal e em toda festa de aniversário, ela inventava uma pequena peça para ser apresentada pelos três à mãe, ao pai e ao avô. Ela própria escrevia as peças e, conforme a opinião de Bruno, sempre guardava para si as melhores falas, embora ele não se importasse muito com isso. Em geral havia música em alguma parte – “É uma canção o que estão pedindo?”, perguntava ela primeiro – e uma oportunidade para Bruno fazer um truque de mágica e para Gretel dançar. A peça costumava terminar com Bruno recitando um longo poema de um dos Grandes Poetas, palavras que o menino achava muito difíceis de compreender, mas que de alguma maneira soavam mais e mais bonitas à medida que ele as lia.
No entanto, essa não era a melhor parte dessas pequenas funções. A melhor parte era que a avó preparava um figurino para Bruno e Gretel. Não importava qual fosse o papel, não importavam quantas falas ele tivesse, se pouco numerosas em relação às da avó e da irmã, Bruno sempre acabava vestido de príncipe, ou de xeque árabe, ou até mesmo, numa ocasião, de gladiador romano. Havia coroas e, quando não havia coroas, havia lanças. E quando não havia lanças, havia chicotes e turbantes. Ninguém sabia qual seria a próxima invenção dela, mas, uma semana antes do Natal, Bruno e Gretel eram convocados até a sua casa diariamente para ensaiar.
É claro que a última peça que eles encenaram havia terminado desastrosamente e Bruno se lembrava com tristeza daquela noite, embora ao soubesse ao certo o que havia causado a discussão.
Cerca de uma semana antes, a casa passara por um grande frenesi, que tinha algo a ver com o fato de que o pai deveria agora ser chamado de “comandante” por Maria, Lars, o cozinheiro e o mordomo, bem como por todos os soldados que entravam e saíam de lá e usavam a casa – ao que parecia a Bruno – como se fossem os donos do lugar, e não ele. A animação já durava semanas. Primeiro vieram o Fúria e a linda mulher loira para o jantar, o que causara uma verdadeira paralisação na casa, e, depois, essa história de chamar o pai de “comandante”. A mãe dissera a Bruno para felicitar o pai, o que ele havia feito, embora, se Bruno fosse honesto consigo mesmo (o que ele sempre tentava ser), não estivesse bem certo quanto ao motivo da felicitação.
No dia do Natal, o pai vestiu o uniforme novo, todo engomado e passado, o mesmo que ele vestia todos os dias agora, e toda a família aplaudiu quando ele apareceu assim pela primeira vez. Era mesmo algo especial. Comparado aos outros soldados que entravam e saíam da casa, o pai se destacava, e eles pareciam respeitá-lo ainda mais. A mãe foi até ele, beijou-lhe a bochecha e passou a mão pelo seu peito, comentando como era vistoso o tecido. Bruno ficou particularmente impressionado com todas as condecorações no uniforme e lhe foi permitido usar o quepe por um curto período, desde que suas mãos estivessem limpas ao tocá-lo.
O avô ficou muito orgulhoso ao ver o filho de uniforme, mas a avó parecia ser a única que não estava impressionada. Depois de servido o jantar, e depois que ela e Gretel e Bruno tinham apresentado o seu mais novo espetáculo, ela se sentou, triste, numa das poltronas, e olhou para o filho, balançando a cabeça como se ele fosse uma grande decepção para ela.
“Eu me pergunto – será que foi nisso que eu errei com você, Ralf?”, disse ela. “Imagino se todas aquelas performances que eu exigi de você o levaram a isso. Fantasiar-se de fantoche.”
“Ora, mamãe”, disse o pai num tom de voz extremamente tolerante. “A senhora sabe que agora não é o momento certo.”
“Você fica aí no seu uniforme”, prosseguiu ela, “como se isso o tornasse alguém especial. Nem se importa com o seu verdadeiro significado. O que ele representa.”
“Nathalie, nós já conversamos sobre isso”, disse o avô, embora todos soubessem que quando a avó tinha algo a dizer, ela sempre dava um jeito de dizê-lo, não importava quão impopulares fossem suas palavras.
“Você conversou, Mathias”, disse a avó. “Eu era simplesmente a parede a quem você dirigia suas palavras. Como sempre.”
“Estamos numa festa, mamãe”, disse o pai, suspirando. “E é Natal. Não vamos estragar as coisas.”
“Eu me lembro de quando começou a Grande Guerra”, disse o avô orgulhoso, olhando para o fogo e balançando a cabeça. “Eu me lembro de quando você voltou para casa dizendo que havia se alistado e eu tive certeza de que lhes aconteceria algum mal.”
“O que aconteceu a ele foi um grande mal, Mathias”, insistiu a avó. “Olhe para ele e comprove.”
“E olhe para você agora”, prosseguiu o avô, ignorando-a. “Fico tão orgulhoso de vê-lo promovido a uma posição de tamanho destaque. Ajudando seu país a recuperar o orgulho depois de tanto sofrimento que nos foi imposto. Os castigos muito acima e além...”
“Céus, escute o que está dizendo!”, gritou a avó. “Não sei qual dos dois é mais tolo.”
“Mas, Nathalie”, disse a mãe tentando acalmar um pouco os ânimos, “não acha que Ralf ficou lindo no uniforme novo?”
“Se ficou lindo?”, perguntou a avó, inclinando-se para a frente e encarando a nora como se esta tivesse perdido o juízo. “Lindo, você disse? Menina tola! É isso que considera de importância neste mundo? Ficar linda?”
“Eu fico lindo na minha fantasia de animador de circo?”, perguntou Bruno, que naquela noite estava fantasiado assim para a festa – a roupa vermelha e preta de um animador de circo – e ficara muito orgulhoso de si mesmo ao ver-se vestido. Assim que falou, arrependeu-se, pois todos os adultos voltaram os olhares para ele e Gretel, como se tivessem esquecido de que os dois estavam lá.
“Crianças, lá para cima”, disse a mãe rapidamente. “Vão para os seus quartos.”
“Mas nós não queremos ir”, protestou Gretel. “Não podemos ficar brincando aqui embaixo?”
“Não, crianças”, insistiu ela. “Vão para o andar de cima e fechem a porta ao saírem.”
“É só isso que interessa a vocês soldados, afinal”, disse a avó, ignorando completamente as crianças. “Ficar bonitos nos uniformes alinhados. Fantasiando-se para fazer as coisas terríveis, terríveis que vocês fazem. Eu me envergonho. Mas culpo a mim mesma, Ralf, não a você.”
“Crianças, subam já!”, disse a mãe, batendo palma, e desta vez os dois não tiveram escolha senão obedecer.
Mas, ao invés de subir direto para os quartos, eles fecharam a porta e sentaram-se na escada no andar de cima, tentando escutar o que os adultos diziam. Entretanto, as vozes da mãe e do pai estavam abafadas e difíceis de entender, a do avô nem se ouvia, e a da avó arrastava-se, surpreendentemente. Afinal, após alguns minutos, a porta se abriu de um só golpe, e Gretel e Bruno correram escada acima, enquanto a avó pegava o casaco que deixara pendurado na entrada.
“É uma vergonha!”, gritou ela antes de sair. “Envergonha-me que um filho meu seja...”
“Um patriota”, gritou o pai, que talvez jamais tivesse aprendido aquela regra sobre não interromper sua mãe.
“Que belo patriota!”, gritou ela. “As pessoas que você recebe nesta casa para o jantar. Fico com nojo. E vê-lo nesse uniforme me dá vontade de arrancar os olhos da cara!”, acrescentou antes de sair abruptamente e bater a porta atrás de si.
Bruno vira a avó poucas vezes desde então e não tivera chance de se despedir dela antes de vir para Haja-Vista, mas sentia muito a sua falta e decidiu escrever-lhe uma carta.
Naquele dia ele se sentou, munido de papel e tinta, e contou a ela como estava infeliz lá e o quanto queria estar de volta a Berlim. Contou a ela sobre a casa, e o jardim, e o banco com a placa, e a cerca alta, e os postes telegráficos de madeira, e os rolos de arame farpado, e o chão duro que se estendia além deles, e as cabanas, e os pequenos prédios, e as colunas de fumaça, e os soldados, mas contou a ela principalmente sobre as pessoas que moravam lá, vestindo seus pijamas listrados e seus bonés de pano, e então contou a ela o quanto sentia saudades e concluiu a carta com “seu neto querido, Bruno”.
BRUNO SE LEMBRA DE COMO GOSTAVA DE EXPLORAR
Durante um bom tempo nada mudou em Haja-Vista.
Bruno ainda tinha que aturar a antipatia de Gretel, que não perdia a oportunidade de descontar nele seu mau-humor bastante freqüente, já que ela era um Caso Perdido.
E ele ainda queria voltar para casa em Berlim, embora as memórias daquele lugar estivessem começando a se desvanecer e, apesar de suas melhores intenções, já fazia semanas que ele nem sequer pensava em mandar uma carta para a avó ou para o avô, e menos ainda em sentar-se para escrever.
Os soldados continuavam indo e vindo todos os dias da semana, fazendo reuniões no escritório do pai, no qual era Proibido Entrar em Todos os Momentos Sem Exceção. O tenente Kotler continuava andando por ali de botas pretas, como se não houvesse no mundo pessoa mais importante do que ele e, quando não estava com o pai, ficava na entrada de carros conversando com Gretel, enquanto esta ria histérica e enrolava o cabelo em torno dos dedos, ou então ficava sussurrando com a mãe nos cômodos da casa.
Os criados continuaram lavando e varrendo e cozinhando e limpando e servindo e tirando a mesa, sempre mantendo a boca fechada, a não ser quando alguém se dirigia a eles. Maria continuava, na maior parte do tempo, arrumando e ajeitando tudo e garantindo que cada peça de roupa de Bruno que não estivesse em uso fosse guardada bem dobrada no armário. E Pavel continuava indo à casa todas as tardes para descascar as batatas e cenouras e depois punha o paletó branco e servia a mesa do jantar. (De tempos em tempos Bruno o pegava olhando para seu joelho, onde uma pequena cicatriz do acidente com o balanço se destacava, mas fora isso nunca conversavam.)
Mas então as coisas mudaram. O pai decidiu que era hora de as crianças retomarem os estudos, e, embora Bruno achasse ridículo uma escola onde havia apenas dois alunos para ensinar, tanto a mãe como o pai concordaram em chamar um professor particular para vir a casa todos os dias e preencher suas manhãs e tardes com aulas. Algumas manhãs mais tarde, um homem chamado herr Liszt chegou pelo acesso à estrada no seu calhambeque, e era hora de voltar às aulas. Herr Liszt era um mistério para Bruno. Ainda que fosse bastante amigável a maior parte do tempo, jamais erguendo a mão para ele como fazia o antigo professor em Berlim, alguma coisa em seus olhos fazia o menino pensar que havia dentro dele uma raiva pronta para escapar.
Herr Liszt gostava especialmente de história e geografia, enquanto Bruno preferia literatura e arte.
“Essas coisas são inúteis”, insistia o professor. “O bom entendimento das ciências sociais é muito mais importante na nossa época.”
“A vovó sempre nos deixa participar da encenação de peças teatrais em Berlim”, Bruno apontou.
“Sua avó, no entanto, não era sua professora, certo?”, perguntou herr Liszt. “Ela era sua avó. E aqui eu sou o seu professor, portanto você estudará as coisas que eu considero importantes e não apenas os assuntos que são do seu interesse.”
“Mas os livros não são importantes?”, perguntou Bruno.
“Livros que tratam dos assuntos importantes do mundo, é claro”, explicou herr Liszt. “Mas não os livros de histórias. Não os livros que falam de coisas que jamais aconteceram. Quanto você sabe de sua própria história, jovem rapaz?” (Para seu crédito, herr Liszt referia-se a Bruno como “jovem rapaz”, assim como Pavel e ao contrário do tenente Kotler.)
“Bem, eu sei que nasci no dia 15 de abril de 1934...”, disse Bruno.
“Não a sua história”, interrompeu Herr Liszt. “Não estou falando de sua história pessoal. Quero dizer a história de quem você é, de onde vem. A herança de sua família. Sua terra natal.”
Bruno franziu o cenho e parou para pensar. Ele não sabia ao certo se o pai possuía alguma terra, pois, embora a casa de Berlim fosse grande e confortável, não havia muito espaço no quintal ao redor dela. E ele já tinha idade o bastante para saber que Haja-Vista não pertencia a eles, apesar de toda a área do lugar. “Não sei muito a respeito”, ele admitiu afinal. “Mas sei bastante sobre a Idade Média. Gosto de histórias sobre cavaleiros e aventuras de exploração.”
Herr Liszt emitiu um silvo por entre os dentes e balançou a cabeça, irritado. “Então é exatamente isso que eu vim corrigir”, disse ele numa voz sinistra. “Vim tirar da sua cabeça esses livros infantis e ensinar-lhe mais a respeito do lugar de onde você vem. Sobre os terríveis crimes cometidos contra você.”
Bruno concordou e sentiu-se bastante satisfeito, porque presumiu que finalmente lhe seria dada alguma explicação quanto ao porquê de haverem sido todos forçados a deixar sua casa confortável e ir para aquele lugar terrível, o que provavelmente fora o maior crime jamais cometido contra ele durante sua curta vida.
Alguns dias mais tarde, sentado sozinho em seu quarto, Bruno começou a pensar em todas as coisas que ele gostava de fazer em casa e que ainda não tivera ocasião de fazer desde que chegara a Haja-Vista. A maioria delas não era sequer possível de ser feita, já que não havia amigos com quem brincar, e não se podia pensar que Gretel se dignaria a brincar com ele. Mas havia algo que ele podia fazer sozinho e que fazia o tempo todo lá em Berlim: exploração.
“Quando eu era criança”, disse Bruno para si mesmo, “costumava gostar de explorar. E isso ainda em Berlim, onde eu conhecia todos os lugares e sabia encontrar o que quisesse, mesmo vendado. Nunca explorei este lugar. Talvez seja hora de começar.”
E então, antes que pudesse mudar de idéia, Bruno saltou da cama e investigou o guarda-roupa procurando pelo casaco e por um par de botas – o tipo de roupa que ele imaginava usar um verdadeiro explorador – e preparou-se para sair de casa.
Não havia o menor sentido em explorar dentro de casa. Afinal, aquela casa não era como a de Berlim, que, como ele podia se lembrar, tinha centenas de esconderijos e cantos secretos e estranhos quartinhos, para não falar nos cinco andares, contando o porão e o pequeno quarto no topo onde ficava a janela através da qual ele só conseguia olhar se ficasse na ponta dos pés. Não, aquela casa era péssima para exploração. Se fosse explorar, tinha de ser do lado de fora.
Já fazia meses que Bruno olhava pela janela do quarto para o jardim e para o banco com a placa, para a cerca alta e os postes telegráficos de madeira e todas as outras coisas sobre as quais ele havia contado para a avó em sua mais recente carta. E apesar de ter observado tantas vezes as pessoas, todas aquelas pessoas diferentes nos seus pijamas listrados, jamais lhe ocorrera perguntar-se do que se tratava, afinal.
Era como se fosse completamente outra cidade, todas aquelas pessoas morando e trabalhando bem ao lado da casa em que ele vivia. E será que eram mesmo tão diferentes? Todos no campo usavam as mesmas roupas, aqueles pijamas com os bonés de pano também listrados; e todos que passavam pela sua casa (exceção feita à mãe, Gretel e a ele próprio) vestiam uniformes de variadas qualidades e graus de condecoração e quepes e capacetes com grandes braçadeiras vermelhas e negras e traziam armas e estavam sempre com o semblante terrivelmente severo, como se tudo aquilo fosse muito importante e ninguém pudesse pensar diferente.
Qual era a diferença, exatamente?, ele se perguntou. E quem decidia quem usava os pijamas e quem usava os uniformes?
É claro que, às vezes, os dois grupos se misturavam. Ele já vira muitas vezes as pessoas do seu lado da cerca do outro lado da cerca e, ao observá-las, ficava claro que os uniformizados estavam no comando. As pessoas de pijamas ficavam de prontidão sempre que os soldados se aproximava e às vezes caíam no chão e às vezes nem sequer se levantavam, sendo necessário carregá-las para longe.
É curioso que eu jamais tenha me perguntado a respeito daquelas pessoas, pensou Bruno. E é curioso pensar que os soldados vão para o outro lado tantas vezes – e ele vira até mesmo o pai ir ao outro lado em diversas ocasiões -, mas as pessoas de pijama jamais eram convidadas para vir até a casa.
Às vezes – não era freqüente, mas às vezes – alguns dos soldados ficavam para o jantar, e nessas ocasiões muitas bebidas espumantes eram servidas, e no instante em que Gretel e Bruno punham o último bocado de comida na boca, eram mandados para seus quartos, e então havia um grande barulho no andar de baixo e uma cantoria horrível também. A mãe e o pai obviamente apreciavam a companhia dos soldados – Bruno era capaz de perceber. Mas eles jamais, nem por uma vez, haviam convidado alguma das pessoas de pijamas para o jantar.
Ao sair de casa, Bruno deu a volta e olhou para a janela de seu quarto, que, de lá de baixo, não parecia tão alta assim. Seria possível saltar dela sem se machucar muito, ele concluiu, embora não conseguisse imaginar em que circunstâncias seria capaz de tentar algo tão idiota. Talvez se a casa estivesse em chamas e ele estivesse preso do lado de dentro, mas mesmo assim parecia arriscado.
Ele olhou para a direita o mais longe que pôde, e a cerca alta parecia seguir até o horizonte na luz do sol, perdendo-se na distância, o que o deixou feliz, pois isto significava que ele não sabia o que havia além dela e teria de andar bastante para descobrir e era esse o espírito da exploração, afinal de contas. (Havia algo de bom nos ensinamentos de herr Liszt durante as aulas de história: ele falava sobre homens como Cristóvão Colombo e Américo Vespúcio; homens com histórias tão cheias de aventuras e vidas tão interessantes que apenas confirmavam o desejo de Bruno de se tornar como eles quando crescesse.)
Antes de sair naquela direção, entretanto, havia uma última coisa para investigar: o banco. Durante todos aqueles meses ele o observara na distância, reparando na placa e chamando-o de “o banco com a placa”, mas ainda não fazia idéia do que estava escrito nela. Olhando para a esquerda e para a direita para certificar-se de que não vinha ninguém, correu até o banco e estreitou os olhos, enquanto lia as palavras. Era apenas uma pequena placa de bronze, e Bruno leu em voz baixa o que estava escrito:
“Entregue por ocasião da inauguração do...”, Ele hesitou. “Campo de Haja-Vista”, prosseguiu, tropeçando no nome como de costume. “Junho de 1940.”
O menino estendeu o braço e tocou a placa por um instante, e o bronze era muito frio; então ele recolheu os dedos antes de respirar fundo e começar sua jornada. A única coisa em que Bruno procurava não pensar era que tanto a mãe como o pai já haviam lhe dito em incontáveis ocasiões que ele estava proibido de caminhar naquela direção, proibido de chegar perto da cerca ou do campo, e principalmente que a exploração estava proibida em Haja-Vista.
Sem Exceções.
O PONTO QUE VIROU UMA MANCHA QUE BIROU UM VULTO QUE VIROU UMA PESSOA QUE VIROU UM MENINO
A caminhada ao longo da cerca demorou muito mais do que Bruno havia imaginado inicialmente; parecia se estender por quilômetros e quilômetros. Ele andou e andou, e, quando olhou para trás, a casa em que estava morando parecia cada vez menor até sumir de vista completamente. Durante todo aquele tempo ele não viu ninguém perto da cerca; nem viu portas através das quais pudesse entrar, e começou a ficar aflito, pensando que sua exploração acabaria sendo infrutífera. Na verdade, embora a cerca continuasse a perder de vista, as cabanas e os prédios e as colunas de fumaça estavam desaparecendo na distância atrás dele, e a cerca parecia separá-lo de nada além de um grande espaço vazio.
Depois de andar durante quase uma hora e já sentido alguma fome, ele pensou que talvez bastasse de exploração para um dia e que seria boa idéia dar meia-volta. Entretanto, bem nesse instante, um pequeno ponto apareceu na distância, e ele estreitou os olhos para tentar descobrir o que era. Bruno lembrou-se de um livro que lera certa vez, contando a história de um homem que se perdia no deserto e, porque ficava sem comer e sem beber durante muitos dias, começava a imaginar maravilhosos restaurantes e nascentes de água magníficas, mas quando tentava comer ou beber delas, as miragens desapareciam no ar, apenas punhados de areia. Bruno se perguntou se era isso que estava acontecendo com ele agora.
Porém, enquanto pensava, seus pés o levaram, passo a passo, cada vez mais perto do ponto na distância, que nesse meio-tempo havia se tornado uma mancha, dando, dentro em pouco, todos os sinais de se transformar numa forma. E logo depois disso a forma se tornou um vulto. E então, conforme Bruno chegava ainda mais perto, ele viu que não era nem ponto nem mancha nem forma nem vulto, e sim uma pessoa.
Na verdade era um menino.
Bruno já havia lido muitos livros sobre exploradores, o suficiente para saber que nunca se sabia o que se poderia encontrar. Na maioria das vezes eles encontravam alguma coisa interessantes que estava lá, cuidando da própria vida, esperando para ser descoberta (como a América). Outras vezes descobriam algo que deveriam deixar em paz (como um rato morto no fundo do armário).
O menino pertencia à primeira categoria. Ele estava lá, cuidando da própria vida, esperando para ser descoberto.
Bruno diminuiu o ritmo quando viu o ponto que virou uma mancha que virou um vulto que virou uma pessoa que virou um menino. Embora houvesse uma cerca separando-os, ele sabia que a precaução em relação aos desconhecidos nunca era demais e era melhor abordá-los com cuidado. Então ele continuou a andar, e logo estavam um de frente para o outro.
“Olá”, disse Bruno.
“Olá”, disse o menino.
O garoto era menor do que Bruno e estava sentado no chão com uma expressão de desamparo. Ele vestia o mesmo pijama listrado que todas as outras pessoas daquele lado da cerca, e um boné listrado de pano. Não tinha sapatos ou meias, e os pés estavam um pouco sujos. No braço ele trazia uma braçadeira com uma estrela desenhada.
Quando Bruno se aproximou do menino pela primeira vez, ele estava sentado no chão de pernas cruzadas, olhando para a poeira debaixo de si. Entretanto, após um momento, ele olhou para cima e Bruno pôde ver o seu rosto. Era um rosto bastante estranho. A pele era quase cinza, mas diferente de outras tonalidades de cinza que Bruno já havia visto. Os olhos eram bem grandes, da cor de balas de caramelo; os brancos eram muito brancos, e, quando o menino olhou para Bruno, tudo o que este viu foi um par de enormes olhos tristes a encará-lo.
Bruno teve certeza de jamais ter visto um menino tão triste e tão magro em toda a sua vida, mas decidiu que seria melhor conversar com ele.
“Estou explorando”, disse ele.
“Ah, é?”, disse o pequeno menino.
“Sim. Já faz quase duas horas.”
Não era exatamente verdade. Bruno estivera explorando fazia pouco mais de uma hora, no entanto achou que exagerar um pouquinho não seria algo tão terrível de se fazer. Não era o mesmo que mentir e fazia-o parecer mais aventureiro do que era de fato.
“Descobriu alguma coisa?”, perguntou o menino.
“Quase nada.”
“Nada mesmo?”
“Bem, descobri você”, disse Bruno após um instante.
Ele olhou para o menino e pensou em perguntar por que ele estava tão triste, porém hesitou, achando que poderia ser falta de educação. Bruno sabia que às vezes, quando a pessoa está triste, não gosta de falar a respeito; às vezes acaba contando do que se trata por conta própria e às vezes não pára de falar nisso durante meses, mas naquela ocasião ele pensou que seria melhor esperar antes de dizer qualquer coisa. Havia descoberto algo durante sua exploração, e agora que estava finalmente conversando com uma das pessoas do outro lado da cerca pareceu ser uma boa idéia aproveitar ao máximo a oportunidade.
Sentou-se no chão do seu lado da cerca e cruzou as pernas como o menino menor e desejou ter trazido consigo um pedaço de chocolate, ou quem sabe um bolo, pra que pudessem dividir.
“Eu moro na casa que fica deste lado da cerca”, disse Bruno.
“Ah, é? Eu vi a casa uma vez, a certa distância, mas não vi você.”
“Meu quarto fica no primeiro andar”, disse Bruno. “De lá eu enxergo por cima da cerca. Meu nome é Bruno, aliás.”
“Eu sou Shmuel”, disse o menino menor.
Bruno contraiu o rosto, achando que havia escutado mal o que o garoto dissera. “Como é mesmo o seu nome?”, perguntou ele.
“Shmuel”, disse o garoto, como se fosse a coisa mais natural do mundo. “Como é mesmo o seu nome?”
“Bruno”, disse Bruno.
“Nunca havia escutado esse nome antes”, disse Shmuel.
“E eu nunca havia escutado o seu”, disse Bruno. “Shmuel.” Ele ficou pensativo. “Shmuel”, repetiu. “Gosto de como soa o seu nome quando eu o digo. Parece o som do vento soprando.”
“Bruno”, disse Shmuel, acenando com a cabeça alegremente. “É, acho que gosto do seu nome também. Parece alguém esfregando os braços para se aquecer.”
“Nunca conhecei alguém chamado Shmuel antes”, disse Bruno.
“Há dúzias de meninos chamados Shmuel deste lado da cerca”, disse o garoto. “Provavelmente centenas. Queria ter um nome só meu.”
“Nunca conheci ninguém chamado Bruno”, disse Bruno. “Além de mim mesmo, é claro. Acho que devo ser o único no mundo.”
“Sorte sua”, disse Shmuel.
“Deve ser. Quantos anos você tem?”, perguntou Bruno.
Shmuel pensou a respeito e olhou para os dedos, que se agitavam no ar, como se ele estivesse tentando calcular. “Tenho nove anos”, disse o menino. “Eu nasci no dia 15 de abril de 1934.”
Bruno encarou-o, surpreso. “O que você disse?”, perguntou ele.
“Disse que nasci no dia 15 de abril de 1934.”
Os olhos de Bruno se arregalaram e a boca fez o formato de um O. “Não posso acreditar”, disse ele.
“Por que não?”, perguntou Shmuel.
“Não”, disse Bruno, sacudindo a cabeça rapidamente. “Não quis dizer que não acredito em você. Eu fiquei surpreso, só isso. Porque o meu aniversário também é no dia 15 de abril. E eu também nasci em 1934. Nascemos no mesmo dia.”
Shmuel pensou mais um pouco. “Então você também tem nove anos”, disse ele.
“Sim. Não é estranho?”
“Muito estranho”, disse Shmuel. “Pois pode haver dúzias de meninos chamados Shmuel deste lado da cerca, mas acho que nunca conheci ninguém que fizesse aniversário no mesmo dia que eu.”
“Somos como gêmeos”, disse Bruno.
“É, um pouco”, concordou Shmuel.
Bruno sentiu-se muito feliz de repente. Na sua cabeça apareceu uma imagem de Karl e Daniel e Martin, seus três melhores amigos, e ele se lembrou de como costumavam se divertir juntos em Berlim e percebeu como estivera solitário em Haja-Vista.
“Você tem muitos amigos?”, perguntou Bruno, inclinando a cabeça um pouco para o lado, enquanto esperava pela resposta.
“Ah, sim”, disse Shmuel. “Bem, mais ou menos.”
Bruno franziu o cenho. Ele esperava que Shmuel dissesse que não, o que apontaria outro traço em comum entre eles. “Amigos próximos?”, ele perguntou.
“Bem, não são muito próximos”, disse Shmuel. “Mas deste lado da cerca há muitos de nós – meninos da nossa idade, quer dizer. No entanto, brigamos a maior parte do tempo. É por isso que venho aqui. Para ficar sozinho.”
“É tão injusto”, disse Bruno. “Não entendo por que tenho que ficar encalhado do lado de cá da cerca, onde não há ninguém para conversar nem para brincar, e você fica com suas dúzias de amigos e provavelmente brinca durante horas e horas todo o dia Terei que conversar com eu pai a respeito disso.”
“De onde você veio?”, perguntou Shmuel, estreitando os olhos e olhando para Bruno com curiosidade.
“Berlim.”
“Onde fica?”
Bruno abriu a boca para responder, mas percebeu que não sabia ao certo a resposta. “Na Alemanha, é claro”, disse ele. “Você não é da Alemanha?”
“Não, sou da Polônia”, disse Shmuel.
Bruno franziu o cenho. “Então por que você fala alemão?”, perguntou ele.
“Porque você disse olá em alemão. Então eu respondi em alemão. Sabe falar polonês?”
“Não”, disse Bruno, rindo nervosamente. “Não conheço ninguém que saiba falar duas línguas. Que dirá alguém da nossa idade.”
“Minha mãe é professora na escola e me ensinou alemão”, explicou Shmuel. “Ela também fala francês. E italiano. E inglês. Ela é muito inteligente. Eu ainda não falo francês nem italiano, mas ela disse que um dia me ensinará a falar inglês, porque posso precisar.”
“Polônia”, disse Bruno, pensativo, medindo a palavra na língua. “Não é tão boa quanto a Alemanha, é?”
Shmuel franziu o cenho. “Por que não?”, perguntou ele.
“Bem, porque a Alemanha é o maior de todos os países”, respondeu Bruno, lembrando-se de algo que ouvira o pai comentar com o avô em certo número de ocasiões. “Somos superiores.”
Shmuel encarou-o sem dizer nada, e Bruno sentiu um forte desejo de mudar de assunto, pois, enquanto dizia aquelas palavras, havia algo a respeito delas que não soava correto, e a última coisa que queria era que Shmuel pensasse que ele estava sendo mal-educado.
“Afinal onde fica a Polônia?”, ele perguntou depois de alguns instantes em silêncio.
“Bem, fica na Europa”, disse Shmuel.
Bruno tentou se lembrar dos países a respeito dos quais herr Liszt havia falado durante a última aula de geografia. “Já ouviu falar na Dinamarca?”, ele perguntou.
“Não”, disse Shmuel.
“Acho que a Polônia fica na Dinamarca”, disse Bruno, cada vez mais confuso, embora estivesse tentando parecer esperto. “Porque a Dinamarca fica a muitos quilômetros de distância”, repetiu ele, para confirmar o que dizia.
Shmuel encarou-o por um momento e abriu e fechou a boca duas vezes, como se estivesse escolhendo cuidadosamente as palavras. “Mas aqui é a Polônia”, ele disse afinal.
“Ah, é?”, perguntou Bruno.
“É sim. E a Dinamarca fica bem longe, tanto da Polônia como da Alemanha.”
Bruno franziu o cenho. Ele já ouvira falar de todos aqueles lugares, mas sempre achava difícil organizá-los dentro da cabeça. “Bem, está certo”, disse. “Mas é tudo relativo, não? A distância, quero dizer.” Ele queria mudar logo de assunto, porque começava a achar que estava completamente enganado e fez uma promessa interior de prestar mais atenção nas futuras aulas de geografia.
“Nunca estive em Berlim”, disse Shmuel.
“E eu acho que nunca tinha estado na Polônia antes de vir para cá”, disse Bruno, o que era verdade. “Quer dizer, se aqui for mesmo a Polônia.”
“Tenho certeza que é”, disse Shmuel em voz baixa. “Embora não seja a melhor parte do país.”
“Não mesmo.”
“O lugar de onde eu venho é bem mais agradável.”
“Certamente não é tão agradável quanto Berlim”, disse Bruno. “Em Berlim nós tínhamos uma casa enorme, com cinco andares contando o porão e o quartinho de cima com a janela. E havia lindas ruas e lojas e bancas de frutas e legumes e um grande número de cafés. Mas, se algum dia você for para lá, eu não recomendaria andar pelo centro da cidade durante as tardes de sábado, porque há muita gente e você será empurrado de poste em poste. E era muito melhor antes de as coisas mudarem.”
“O que você quer dizer?”, perguntou Shmuel.
“Bem, lá costumava ser um lugar bastante calmo”, explicou Bruno, que não gostava de falar sobre o quanto as coisas tinham mudado. “E eu podia ler na cama à noite. Mas agora há muito barulho, é assustador, e temos de apagar todas as luzes quando começa a escurecer.”
“O lugar de onde eu venho é muito mais gostoso que Berlim”, disse Shmuel, que nunca estivera em Berlim. “Todos são amigáveis e tem muita gente na nossa família e a comida é muito mais gostosa.”
“Bem, temos que concordar em discordar”, disse Bruno, que não queria brigar com seu novo amigo.
“É verdade”, disse Shmuel.
“Gosta de explorar?”, perguntou Bruno um instante depois.
“Nunca explorei, na verdade”, admitiu Shmuel.
“Quando crescer, serei um explorador”, disse Bruno, acenando rapidamente com a cabeça. “Por enquanto não posso fazer muito mais do que ler a respeito dos exploradores, mas ao menos isso significa que, quando eu for um deles, não cometerei os mesmo erros que eles cometeram.”
Shumel franziu o cenho. “Que tipos de erros?”, ele perguntou.
“Ah, erros incontáveis”, explicou Bruno. “O problema da exploração é que você precisa saber se aquilo que encontrou valeu a pena se encontrado. Algumas coisas estão lá, cuidando da própria vida, esperando para serem descobertas. Como a América. Outras coisas é melhor que deixemos em paz. Como um rato morto no fundo do armário.”
“Acho que pertenço à primeira categoria”, disse Shmuel.
“Sim”, respondeu Bruno. “Eu também acho. Posso perguntar uma coisa?”, acrescentou ele após um momento.
“Sim”, disse Shmuel.
Bruno pensou no que ia dizer. Queria formular bem a questão.
“Por que há tantas pessoas do seu lado da cerca?”, perguntou ele. “E o que vocês estão fazendo aí?
O FÚRIA
Alguns meses antes, logo depois de ter recebido o novo uniforme, que significava que todos deveriam chamá-lo de “comandante”, e pouco antes de Bruno ter chegado em casa e encontrado Maria arrumando suas coisas, o pai entrou em casa certa noite mostrando grande animação, o que era muito incomum no caso dele, e marchou até a sala de estar onde a mãe, Bruno e Gretel estavam sentados lendo seus livros.
“Quinta à noite”, ele anunciou. “Se tivermos algum plano para quinta à noite, é necessário que o cancelemos.”
“Você pode mudar seus planos se quiser”, disse a mãe, “mas eu já combinei de ir ao teatro com...”
“O Fúria tem um assunto que quer discutir comigo”, disse o pai, a quem era permitido interromper a mãe, embora mais ninguém tivesse esse privilégio. “Acabo de receber um telefonema esta tarde. O único horário possível para ele é na quinta à noite, e ele se convidou para o jantar.”
Os olhos da mãe se arregalaram e sua boca fez o formato de um O. Bruno olhou para ela e se perguntou se era assim que ele ficava quando era surpreendido por alguma coisa.
“Você não pode estar falando sério”, disse a mãe, empalidecendo um pouco. “Ele vem para cá? Para a nossa casa?”
O pai confirmou com a cabeça. “Às sete horas”, ele disse. “Então é melhor pensarmos em algo muito especial para o jantar.”
“Oh, céus”, disse a mãe, seus olhos indo de lá para cá com rapidez, enquanto ela pensava em todas as coisas que precisavam ser feitas.
“Quem é o Fúria?”, perguntou Bruno.
“Você está pronunciando errado”, disse o pai, pronunciando corretamente o nome para ele.
“O Fúria”, disse Bruno novamente, tentando acertar, mas errando outra vez.
“Não”, disse o pai, “o... Ora, esqueça!”
“Bem, quem é ele afinal?”, perguntou Bruno de novo.
O pai olhou para ele estupefato. “Você sabe muito bem quem é o Fúria”, disse ele.
“Não sei”, disse Bruno.
“Ele manda no país, idiota”, disse Gretel, exibindo-se, conforme a tendência das irmãs. (Eram coisas como essa que a tornavam um tamanho Caso Perdido!) “Você não lê os jornais?”
“Não chama seu irmão de idiota, por favor”, disse a mãe.
“Posso chamá-lo de estúpido?”
“Prefiro que não.”
Gretel sentou-se desapontada, mas mostrou a língua para Bruno mesmo assim.
“Ele vem sozinho?”, perguntou a mãe.
“Esqueci de perguntar”, disse o pai. “Mas presumo que ele vá trazê-la consigo.”
“Oh, céus”, disse a mãe outra vez, levantando-se e contando na cabeça a quantidade de coisas que precisava organizar antes de quinta-feira, que era dali a apenas dois dias. A casa precisava ser limpa de alto a baixo, as janelas lavadas, a mesa de jantar encerada e lustrada, a comida providenciada, os uniformes da governanta e do mordomo lavados e passados e a louça de cerâmica e os copos lustrados até brilharem.
De alguma maneira, apesar de a lista parecer aumentar o tempo todo, a mãe conseguiu terminar tudo a tempo, embora comentasse muitas vezes que a noite seria um grande sucesso se certas pessoas ajudassem um pouco mais no serviço de casa.
Uma hora antes da que o Fúria havia anunciado que iria chegar, Gretel e Bruno foram chamados ao andar de baixo, onde receberam um raro convite para ir ao escritório do pai. Gretel trajava um vestido branco e meias até os joelhos, e o cabelo estava arrumado em cachos trançados. Bruno vestia shorts marrons, uma camisa branca lisa e uma gravata marrom-escura. Usava um par de sapatos novos comprados especialmente para a ocasião, e tinha muito orgulho deles, embora fossem pequenos demais e estivessem apertando seus pés, dificultando-lhe a caminhada. Todas aquelas preparações e todo aquele vestuário pareciam um pouco exagerados, ainda mais porque Bruno e Gretel nem sequer foram convidados para o jantar; já haviam comido uma hora antes.
“Bem, crianças”, disse o pai, sentando-se atrás da escrivaninha e olhando para o filho e para a filha e de volta para o filho enquanto ambos permaneciam diante dele. “Sabem que temos pela frente uma noite muito especial, não é?”
Eles fizeram que sim com a cabeça.
“E que é muito importante para a minha carreira que tudo corra bem esta noite.”
Eles balançaram a cabeça novamente.
“Então há algumas regras básicas que precisam ser esclarecidas antes de começarmos.” O pai acreditava muito em regras básicas. Sempre que havia uma ocasião especial ou importante na casa, mais delas eram criadas.
“Regra número 1”, disse o pai. “Quando o Fúria chegar, vocês ficarão no corredor, em silêncio, prontos para cumprimentá-lo. Não falem com ele até que ele fale com vocês, então respondam numa voz clara, enunciando precisamente cada palavra. Entendido?”
“Sim, pai”, resmungou Bruno.
“É exatamente esse tipo de coisa que não queremos”, disse o pai, referindo-se ao resmungo. “Trate de abrir a boca e falar como um adulto. A última coisa de que precisamos é que algum de vocês comece a se comportar feito criança. Se o Fúria ignorá-los, não digam nada, mas olhem diretamente para a frente e demonstrem a ele o respeito e a cortesia que um líder deste porte merece.”
“É claro, papai”, disse Gretel numa voz bastante clara.
“E quando sua mãe e eu estivermos jantando com o Fúria, vocês tratem de ficar quietos em seus quartos, em silêncio. Nada de correr, nada de escorregar pelo corrimão” – e ele olhou deliberadamente para Bruno – “e nada de interromper. Entendido? Não quero nenhum de vocês criando confusão.”
Bruno e Gretel concordaram com a cabeça, e o pai se levantou para indicar que a conversa tinha acabado.
“Então as regras básicas estão estabelecidas”, ele disse.
Quarenta e cinco minutos depois a campainha tocou, e a casa entrou em erupção de tanta ansiedade. Bruno e Gretel assumiram suas posições na lateral da escada e a mãe esperou ao lado deles, apertando as mãos uma contra a outra em sinal de nervosismo. O pai lançou-lhes um breve olhar e acenou, satisfeito com o que estava vendo, e então abriu a porta.
Havia duas pessoas do lado de fora: um homem pequeno e uma mulher mais alta.
O pai cumprimentou-os e os fez entrar, enquanto Maria, a cabeça inclinada ainda mais baixo do que de costume, tomava-lhes os casacos, e as apresentações eram feitas. Primeiro falaram com a mãe, dando a Bruno a oportunidade de observar os convidados e decidir sozinho se eram dignos ou não dignos de tanto alarde.
O Fúria era bem mais baixo que o pai, e não tão forte quanto ele, supôs o menino. Seu cabelo era escuro, cortado bastante curto, e ele tinha um pequeno bigode – tão minúsculo que Bruno se perguntou por que ele não o cortava, ou se não teria se esquecido de uma parte quando fazia a barba. A mulher ao seu lado, entretanto, era simplesmente a mais bela moça que vira em toda a sua vida. Seu cabelo era loiro e os lábios muito vermelhos, e enquanto a mãe conversava com o Fúria ela se voltou para Bruno e sorriu, fazendo-o corar.
“E estes são meus filhos, Fúria”, disse o pai, enquanto Gretel e Bruno davam um passo adiante. “Gretel e Bruno.”
“E qual é qual?”, disse o Fúria, coisa que fez rir a todos, exceto Bruno, que achava bastante óbvio qual era qual e que isso não era motivo para piadas. O Fúria estendeu a mão e cumprimentou o menino e Gretel, que fez uma cortesia cuidadosa e ensaiada. Bruno deleitou-se quando o gesto deu errado e ela quase caiu.
“Que crianças encantadoras”, disse a mulher loira. “E quantos anos eles têm, se me permite a pergunta?”
“Eu tenho doze, mas ele só tem nove”, disse Gretel, olhando desdenhosamente para o irmão. “E também sei falar francês”, acrescentou ela, o que não era exatamente verdade, embora tivesse aprendido algumas frases na escola.
“Sim, mas por que você faria uma coisa dessas?”, perguntou o Fúria, e desta vez ninguém riu; na verdade, todos se remexeram no lugar, em sinal de desconforto, e Gretel encarou-o, sem saber se deveria responder ou não.
O problema foi rapidamente resolvido, no entanto, pois o Fúria, que era o convidado mais mal-educado que Bruno já vira, deu meia-volta e foi direto até a sala de jantar, sentando-se prontamente na cabeceira da mesa – na cadeira do pai! – sem dizer outra palavra. Um pouco atrapalhados, a mãe e o pai o seguiram, e a mãe disse a Lars que podia começar a esquentar a sopa.
“Eu também sei falar francês”, disse a linda mulher loira, inclinando-se e sorrindo para as duas crianças. Ela não parecia ter medo do Fúria, ao contrário da mãe e do pai. “O francês é um belo idioma e você faz bem em aprendê-lo.”
“Eva”, gritou o Fúria do outro aposento, estalando os dedos como se ela fosse alguma espécie de filhote de estimação. A mulher girou os olhos nas órbitas e levantou-se lentamente, voltando-se para ele.
“Gostei dos seus sapatos, mas eles parecem um pouco apertados em você”, ela acrescentou, sorrindo. “Se não pequenos, é melhor avisar sua mãe, antes que eles o machuquem.”
“Estão um pouco apertados”, admitiu Bruno.
“Eu não costumo pentear os cabelos em cachos”, disse Gretel, com ciúme da atenção que o irmão estava recebendo.
“Mas por que não?”, perguntou a mulher. “Fica tão bonita desse jeito.”
“Eva!”, rosnou o Fúria uma segunda vez, e ela então se afastou deles.
“Foi um prazer conhecê-los”, ela disse, antes de entrar na sala de jantar e sentar-se ao lado esquerdo do Fúria. Gretel foi até a escada, mas Bruno ficou parado no mesmo lugar, observando a mulher loira até que o olhar dela encontrou o seu e ela acenou para o menino, bem quando o pai apareceu e fechou a porta, fazendo um gesto com a cabeça – que Bruno interpretou corretamente como hora de ir para o quarto, ficar bem quieto, não fazer barulho e, principalmente, não escorregar no corrimão.
O Fúria e Eva ficaram lá por quase duas horas, e nem Bruno nem Gretel foram chamados escada abaixo para se despedir deles. Bruno observou-os indo embora da janela do quarto e reparou que, quando chegaram perto do carro, que o impressionou porque tinha um motorista, o Fúria não abriu a porta para sua acompanhante; em vez disso, entrou e começou a ler um jornal, enquanto ela se despedia uma última vez da mãe, agradecendo-lhe o delicioso jantar.
Que homem horrível, pensou Bruno.
Mais tarde naquela noite, Bruno escutou alguns trechos da conversa entre o pai e a mãe. Certas frases escaparam pela fechadura ou por sob a porta do escritório do pai e subiram pela escada e deram a volta pelo andar de cima e deslizaram por sob a porta do quarto de Bruno. Suas vozes estavam estranhamente altas e Bruno só conseguia entender fragmentos do que eles estavam conversando:
“... que deixar Berlim. E ainda trocá-la por um lugar tão horrível...”, dizia a mãe.
“... não temos escolha, ao menos não se quisermos prosseguir com...”, dizia o pai.
“... como se fosse a coisa mais natural do mundo, e não é, simplesmente não é...”, dizia a mãe.
“... o que aconteceria é que eu seria levado embora e tratado como um...”, dizia o pai.
“... esperar que eles cresçam num lugar como...”, dizia a mãe.
“... e o assunto está encerrado. Não quero ouvir nem mais uma palavra sobre...”, dizia o pai.
Aquilo deve ter sido o fim da conversa porque a mãe saiu do escritório do pai e Bruno adormeceu.
Alguns dias mais tarde ele chegou em casa vindo da escola e encontrou Maria em seu quarto, tirando todos os pertences dele do guarda-roupa e arrumando-os dentro de quatro caixotes de madeira, até mesmo aquelas coisas que ele escondera no fundo e que pertenciam somente a ele e não eram da conta de mais ninguém, e foi então que a história começou.
SHMUEL PENSA NUMA RESPOSTA PARA A PERGUNTA DE BRUNO
“Tudo o que eu sei é o seguinte”, começou Shmuel. “Antes de virmos para cá eu morava com minha mãe e meu pai e meu irmão Josef num pequeno apartamento sobre a loja onde papai fazia seus relógios. Todo dia tomávamos o café da manhã juntos às sete horas, e, enquanto íamos à escola, papai consertava os relógios que as pessoas lhe traziam e fazia alguns novos também. Eu tinha um lindo relógio que ele me deu, mas não está mais comigo. Era dourado, e toda noite eu dava corda nele antes de dormir, e ele sempre marcava a hora certa.”
“O que aconteceu com ele?”, perguntou Bruno.
“Eles o tomaram de mim”, disse Shmuel.
“Quem?”
“Os soldados, é claro”, disse Shmuel, como se fosse a coisa mais óbvia do mundo.
“E então um dia as coisas começaram a mudar”, ele prosseguiu. “Eu voltei da escola, e minha mãe estava costurando braçadeiras para nós, feitas de um tecido especial, e desenhando uma estrela sobre cada uma delas. Como esta.” Usando a ponta do dedo, ele reproduziu o desenho no chão poeirento.
“E sempre que saíamos de casa, ela dizia, tínhamos de usar uma daquelas braçadeiras.”
“Meu pai também usa uma”, disse Bruno. “Em seu uniforme. É bem bonita. É de um vermelho brilhante, com um desenho branco e preto feito por cima.” Usando a ponta do dedo ele reproduziu o outro desenho na poeira do chão do seu lado da cerca.
“É, mas elas são diferentes, não?”, disse Shmuel.
“Ninguém jamais me deu uma braçadeira”, disse Bruno.
“Mas eu nunca pedi para usar uma delas”, disse Shmuel.
“Mesmo assim”, disse Bruno, “acho que bem que eu gostaria de usar uma. Não sei qual delas eu preferiria, se a sua ou a do meu pai.”
Shmuel balançou a cabeça e continuou sua história. Ele não costumava mais pensar naquelas coisas, uma vez que relembrar a antiga vida sobre a loja de relógios o entristecia muito.
“Usamos as braçadeiras durante alguns meses”, ele disse. “E então as coisas mudaram novamente. Cheguei em casa um dia, e a mamãe disse que não poderíamos mais morar na nossa casa...”
“Isso também aconteceu comigo!”, gritou Bruno, deleitando-se com o fato de não ser o único menino que fora obrigado a se mudar. “O Fúria veio para o jantar, sabe, e pouco depois nós tivemos que nos mudar para cá. E eu odeio este lugar”, ele acrescentou numa voz exaltada. “Por acaso ele foi até sua casa e fez o mesmo?”
“Não, mas quando nos disseram que não podíamos mais morar na nossa casa, tivemos que nos mudar para outra parte de Cracóvia, onde os soldados haviam construído um grande muro, e minha mãe e meu pai e meu irmão e eu, todos tínhamos que morar no mesmo quarto.”
“Vocês quatro”, perguntou Bruno. “Vivendo num único quarto?”
“E não éramos apenas nós”, disse Shmuel. “Havia lá outra família morando conosco, e a mãe e o pai estavam sempre brigando, e um de seus filhos era maior do que eu e batia em mim, mesmo quando eu não havia feito nada de errado.”
“Não é possível que tenham morado todos no mesmo quarto!”, disse Bruno, balançando a cabeça. “Não faz o menor sentido.”
“Todos nós nos mesmo quarto”, disse Shmuel, acenando afirmativamente. “Éramos onze ao todo.”
Bruno abriu a boca para contradizê-lo novamente – ele não podia acreditar que onze pessoas pudessem viver juntas num mesmo quarto -, mas mudou de idéia.
“Moramos lá por mais alguns meses”, continuou Shmuel, “todos nós naquele único quarto. Havia apenas uma pequena janela, só que eu não gostava de olhar através dela porque, então, via o muro, e eu odiava o muro, porque nossa verdadeira casa ficava do outro lado. E aquela parte da cidade era a parte ruim, porque havia sempre muito barulho e era impossível dormir. E eu odiava o Luka, que era o menino que continuava me batendo, mesmo quando eu não tinha feito nada de errado.”
“Gretel me bate às vezes”, disse Bruno. “É a minha irmã”, acrescentou ele. “E também um Caso Perdido. Mas logo eu serei maior e mais forte e, então, ela não vai nem mesmo saber de onde veio o tapa.”
“Então, um dia vieram os soldados e seus gigantescos caminhões”, continuou Shmuel, que não parecia muito interessado em Gretel. “E todos tiveram que deixar suas casas. Muitas pessoas não queriam ir e se esconderam em qualquer lugar que puderam encontrar, mas, afinal, acho que pegaram todos. E os caminhões nos levaram a um trem, e o trem...” Ele hesitou por um instante e mordeu o lábio. Bruno pensou que ele ia começar a chorar e não entendeu por quê.
“O trem era horrível”, disse Shmuel. “Havia muitos de nós nos vagões, para começar. E não havia ar para respirar. E o cheiro era terrível.”
“Mas isso é porque vocês estavam amontoados num único trem”, disse Bruno, lembrando-se dos dois trens que vira na estação no dia em que deixou Berlim. “Quando viemos para cá, havia outro trem no lado oposto da plataforma, só que ninguém parecia vê-lo. Foi neste que nós entramos. Você devia ter subido neste trem também.”
“Acho que não seríamos admitidos”, disse Shmuel, balançando a cabeça. “Não podíamos sair do vagão.”
“As portas ficam no final”, explicou Bruno.
“Não havia portas”, disse Shmuel.
“É claro que havia portas”, disse Bruno num suspiro. “Ficam no final”, repetiu ele. “Logo depois do restaurante.”
“Não havia portas”, insistiu Shmuel. “Se houvesse, teríamos todos descido.”
Bruno murmurou alguma coisa em voz baixa como “É claro que havia”, mas não muito alto e Shmuel não pôde ouvi-lo.
“Quando finalmente o trem parou”, prosseguiu Shmuel, “estávamos num lugar muito frio e tivemos que caminhar até aqui.”
“Nós tínhamos um carro nos esperando”, disse Bruno, agora em voz alta.
“E levaram minha mãe embora, e papai, Josef e eu fomos colocados nas cabanas logo ali e é onde ficamos desde então.”
Shmuel parecia muito triste ao contar sua história e Bruno não sabia ao certo por quê; para ele não parecia algo tão terrível e, afinal, muito do que acontecera a um acontecera ao outro.
“Há muitos outros meninos do seu lado da cerca?”, perguntou Bruno.
“Centenas”, disse Shmuel.
Os olhos de Bruno se arregalaram. “Centenas?”, ele disse estupefato. “Não é justo. Deste lado da cerca não há ninguém com quem brincar. Nem uma única pessoa.”
“Nós não brincamos”, disse Shmuel.
“Não brincam? Mas por que vocês não brincam?”
“De que brincaríamos?”, perguntou ele, seu rosto parecendo confuso só de pensar na idéia.
“Bem, eu não sei”, disse Bruno. “De qualquer coisa. Futebol, por exemplo. Ou exploração. Como é a exploração aí do seu lado da cerca? É legal?”
Shmuel balançou a cabeça e não respondeu. Ele olhou de volta para as cabanas e se voltou para Bruno. Não queria fazer a próxima pergunta, mas a dor em seu estômago o obrigou a fazê-la.
“Trouxe alguma comida com você?”, ele perguntou.
“Infelizmente não”, disse Bruno. “Eu pensei em trazer um pedaço de chocolate, mas esqueci.”
“Chocolate”, disse Shmuel bem devagar, sua língua saindo de trás dos dentes. “Só comi chocolate uma vez na vida.”
“Uma vez? Eu adoro chocolate. Não consigo enjoar, se bem que minha mãe diga que isso faz os dentes apodrecerem.”
“Trouxe algum pão?”
Bruno balançou a cabeça. “Nada mesmo”, disse ele. “O jantar só é servido às seis e meia. A que horas servem o seu jantar?”
Shmuel deu de ombros e se levantou. “Acho melhor voltar”, ele disse.
“Quem sabe você possa vir jantar conosco uma noite qualquer”, disse Bruno, embora não estivesse certo de que seria uma boa idéia.
“Quem sabe”, disse Shmuel, apesar de não ter soado muito convincente.
“Ou eu poderia ir até aí”, disse Bruno. “Quem sabe você me apresenta aos seus amigos”, acrescentou ele, esperançoso. Ele torceu para que Shmuel abraçasse sua idéia, mas aparentemente ele não o faria.
“É que você está do lado errado da cerca”, disse o outro menino.
“Eu poderia rastejar por baixo dela”, disse Bruno, abaixando-se e agarrando o arame e o erguendo do chão. No meio, entre os postes telegráficos de madeira, o arame levantava facilmente e um menino no tamanho de Bruno conseguiria passar sem dificuldade.
Shmuel observou-o fazendo isso e afastou-se, nervoso. “Tenho que voltar”, disse ele.
“Quem sabe numa outra tarde”, disse Bruno.
“Eu não deveria estar aqui. Se me pegarem, estarei encrencado.”
Ele se voltou e caminhou na direção oposta e Bruno constatou como seu novo amigo era pequeno e magro. Ele nada comentou sobre isso porque sabia muito bem como é desagradável ser criticado por uma coisa tão boba quanto a própria altura, e a última coisa que ele queria era ofender Shmuel.
“Voltarei amanhã”, gritou Bruno para o menino que o deixava, e Shmuel não respondeu; na verdade ele começou a correr na direção do campo, deixando Bruno sozinho.
Bruno decidiu que já explorara mais do que o suficiente para um dia e foi para casa animado pelo que acontecera e desejoso de contar à mãe a ao pai e à Gretel – que teria tanta inveja que era capaz de explodir – e à Maria e ao cozinheiro e a Lars tudo sobre sua aventura naquela tarde com seu novo amigo de nome engraçado e que fazia aniversário no mesmo dia que ele; contudo, quanto mais se aproximava da casa, mais ele pensava que talvez essa não fosse uma boa idéia.
Afinal, Bruno raciocinou, era possível que eles não quisessem mais que ele e Shmuel fossem amigos, e, se isso acontecesse, eles o impediriam de sair de lá para o que quer que fosse. Quando passou pela porta da frente e sentiu o cheiro do filé que estava assando no forno para o jantar, já tinha decidido que o melhor era ficar quieto sobre o que havia acontecido e não dizer uma palavra a respeito. Seria o seu segredo. Bem, o segredo dele e de Shmuel.
Bruno era da opinião de que, em se tratando de pais, e especialmente em se tratando de irmãs, tudo o que eles não sabiam não podia feri-los.
A GARRAFA DE VINHO
Com o passar das semanas, Bruno começou a entender que não voltaria a Berlim no futuro previsível e que era melhor desistir da idéia de escorregar pelos corrimãos da sua casa confortável ou de ver Karl ou Daniel ou Martin tão cedo.
Todavia, a cada dia ele se acostumava mais e mais com a vida em Haja-Vista e parou de se sentir tão infeliz a respeito de sua nova realidade. Afinal, não era mais como se ele não tivesse com quem conversar. Todas as tardes, terminadas as aulas, Bruno caminhava o longo percurso acompanhando a cerca e se sentava para conversar com o novo amigo Shmuel até a hora de voltar para casa, e aquilo começou a valer por todo o tempo que ele passara sentindo saudades de Berlim.
Certa tarde, enquanto enchia os bolsos com uma porção de pão e queijo retirados da geladeira, Maria entrou e parou ao ver o que ele estava fazendo.
“Olá”, disse Bruno, tentando parecer tão casual quanto possível. “Você me deu um susto. Não a escutei chegando.”
“Não está comendo outra vez, está?”, perguntou Maria, sorrindo. “Já almoçou, não? E ainda tem fome?”
“Um pouco”, disse Bruno. “Vou sair para caminhar e pensei que poderia ter fome antes de voltar.”
Maria deu de ombros e foi até o fogão, onde pôs uma panela de água para ferver. Dispostas na mesa ao lado, havia uma pilha de batatas e cenouras, prontas para serem descascadas quando Pavel chegasse mais tarde. Bruno estava prestes a sair quando a comida atraiu sua atenção e lhe veio à mente uma pergunta que havia algum tempo o incomodava. Ele não pensara a quem perguntar antes, mas aquele parecia ser o momento perfeito e Maria, a pessoa perfeita a quem fazê-la.
“Maria”, disse ele, “posso lhe fazer uma pergunta?”
A governanta deu meia-volta e o olhou, surpresa. “É claro, senhor Bruno”, disse ela.
“E se eu lhe fizer a pergunta, promete não contar a ninguém o que vou perguntar?”
Ela estreitou os olhos, desconfiada, mas acenou afirmativamente. “Está bem”, disse ela. “O que você quer saber?”
“É sobre o Pavel”, disse Bruno. “Você o conhece, não é? O homem que vem descascar os legumes e depois nos serve à mesa.”
“Ah, sim”, disse Maria, sorrindo. Ela parecia aliviada pelo fato de a pergunta não ser sobre nada mais sério. “Eu conheço Pavel. Já conversamos em inúmeras ocasiões. Por que pergunta sobre ele?”
“Bem”, disse Bruno, escolhendo cuidadosamente as palavras para não dizer algo que não deveria, “lembra-se de que pouco tempo depois de virmos para cá eu fiz um balanço no carvalho e caí e machuquei o joelho?”
“Sim”, disse Maria. “Não está doendo de novo, está?”
“Não, não é isso”, disse Bruno. “Mas, quando eu me machuquei, Pavel era o único adulto por perto e ele me trouxe para casa e limpou o corte e o lavou e passou nele o ungüento verde, que doeu, mas acho que ajudou a sarar, e depois fez um curativo sobre o ferimento.”
“É o que qualquer pessoa faria por alguém que se machucou”, disse Maria.
“Eu sei”, prosseguiu ele. “Só que naquela ocasião ele me disse que na verdade não era um servente.”
O rosto de Maria congelou-se e por um instante ela não disse nada. Em vez disso, olhou em outra direção e lambeu levemente os lábios antes de acenar com a cabeça. “Sei”, disse ela. “E o que ele disse que era?”
“Disse que era médico”, respondeu Bruno. “O que me pareceu muito estranho. Ele não é médico, é?”
“Não”, disse Maria, balançando a cabeça. “Não, ele não é médico. Ele é um servente.”
“Eu sabia”, disse Bruno, bastante satisfeito consigo mesmo. “Então por que ele mentiu para mim? Não faz sentido.”
“Pavel não é mais um médico, Bruno”, disse Maria, em voz baixa. “Mas ele foi. Em outra vida. Antes de vir para cá.”
Bruno franziu o cenho e se pôs a pensar a respeito daquilo. “Não entendo”, disse ele.
“Poucos de nós entendem”, disse Maria.
“Mas se ele era médico, por que não é mais?”
Maria suspirou e olhou para fora da janela para certificar-se de que não vinha ninguém e então acenou com a cabeça na direção das cadeiras, e ela e Bruno se sentaram.
“Se eu lhe contar o que Pavel me disse sobre a vida dele”, disse ela, “você não poderá contar a mais ninguém – entendido? Estaríamos todos muito encrencados.”
“Eu não contarei a ninguém”, disse Bruno, que adorava ouvir segredos e quase nunca os traía, a não ser quando era absolutamente necessário, é claro, e não houvesse nada que ele pudesse fazer para preservá-los.
“Está bem”, disse Maria. “Isto é tudo o que eu sei.”
Bruno chegou atrasado ao ponto da cerca onde ele encontrava com Shmuel todo dia, mas, como sempre, o novo amigo o estava esperando sentado no chão de pernas cruzadas.
“Desculpe o atraso”, disse ele, entregando ao menino um pouco de pão e queijo através da cerca – os pedaços que ele ainda não havia comido durante o caminho, quando de fato ficara com fome. “Estava conversando com a Maria.”
“Quem é Maria?”, perguntou Shmuel, sem erguer os olhos, enquanto metia a comida goela abaixo, faminto.
“É a nossa criada”, explicou Bruno. “Ela é muito legal, embora meu pai diga que ela é muito bem paga para tanto. Maria estava me contando sobre um sujeito chamado Pavel, que vem cortar os legumes para nós e nos serve à mesa. Acho que ele mora do seu lado da cerca.”
Shmuel ergueu os olhos por um momento e parou de comer. “Do meu lado?”, ele perguntou.
“Sim. Você o conhece? Ele é muito velho e usa um paletó branco quando está servindo o jantar. Provavelmente você já o viu.”
“Não”, disse Shmuel, balançando a cabeça. “Nunca o vi.”
“Tenho certeza que sim”, disse Bruno, irritado, como se Shmuel estivesse sendo deliberadamente difícil. “Ele não é tão alto quanto a maioria dos adultos, tem a postura pouco inclinada e seu cabelo é grisalho.”
“Acho que você ainda não entendeu quantas pessoas há aqui deste lado da cerca”, disse Shmuel. “Há milhares de nós.”
“Mas este de quem estou falando se chama Pavel”, insistiu Bruno. “Quando eu caí do balanço, ele limpou o ferimento para que não infeccionasse e fez um curativo na minha perna. Enfim, o motivo pelo qual estou lhe contando tudo isso é porque ele também é da Polônia. Como você.”
“A maioria de nós é da Polônia”, disse Shmuel. “Embora também haja gente de outros lugares, como a Checoslováquia e...”
“Sim, mas foi por isso que eu pensei que você pudesse conhecê-lo. Enfim, Pavel era um médico em sua cidade natal antes de vir para cá, mas agora ele não tem mais permissão para ser médico, e se meu pai soubesse que foi ele quem limpou meu joelho quando me machuquei, então haveria uma grande encrenca.”
“Em geral os soldados não gostam de ver as pessoas melhorando de saúde”, disse Shmuel, engolindo o último pedaço de pão. “Costuma ser o contrário.”
Bruno acenou com a cabeça, ainda que não soubesse exatamente o que Shmuel queria dizer, e dirigiu o olhar para o céu. Após alguns momentos ele olhou através da cerca e fez outra pergunta que estivera rondando sua mente.
“Você sabe o que quer ser quando crescer?”, perguntou ele.
“Sim”, disse Shmuel. “Quero trabalhar num zoológico.”
“Num zoológico?”, perguntou Bruno.
“Gosto de animais”, disse Shmuel em voz baixa.
“Eu serei um soldado”, disse Bruno numa voz determinada. “Como meu pai.”
“Eu não gostaria de ser soldado”, disse Shmuel.
“Não quero dizer um soldado como o tenente Kotler”, disse Bruno rapidamente. “Não como ele, que anda por aí, como se fosse o dono do lugar e ri com a sua irmã e fala baixinho com a sua mãe. Não acho que ele seja um bom soldado. Quero dizer um soldado como meu pai. Um dos soldados bons.”
“Não existem soldados bons”, disse Shmuel.
“É claro que existem”, disse Bruno.
“Quem?”
“Bem, meu pai, por exemplo”, disse Bruno. “É por isso que ele usa um uniforme tão imponente e é por isso que todos o chamam de comandante e fazem qualquer coisa que ele diz. O Fúria tem grandes planos para o meu pai justamente porque ele é um soldado tão bom.”
“Não existem soldados bons”, repetiu Shmuel.
“Exceto o meu pai”, repetiu Bruno, que esperava que Shmuel não dissesse aquilo outra vez, pois não queria ter que discutir com ele. Afinal, ele era seu único amigo em Haja-Vista. Mas o pai era o pai, e Bruno não achava certo uma pessoa falar algo ruim a respeito dele.
Os dois meninos ficaram bem quietos por alguns minutos, já que não queriam dizer algo de que pudessem se arrepender depois.
“Você não sabe como são as coisas aqui”, disse Shmuel afinal, em voz baixa, suas palavras mal chegando ao ouvidos de Bruno.
“Você não tem irmãs, tem?”, perguntou Bruno rapidamente, fingindo que não tinha escutado o que o outro dissera, pois assim não teria que responder.
“Não”, disse Shmuel, balançando a cabeça.
“Você tem sorte”, disse Bruno. “Gretel tem apenas doze anos e acha que sabe de tudo, mas na verdade ela é um Caso Perdido. Fica sentada olhando pela janela e, quando vê o tenente Kotler se aproximar, corre escada abaixo, direto até a entrada, e finge que esteve lá o tempo todo. Outro dia eu a flagrei fazendo isso e, quando ele chegou, ela deu um salto e disse: ‘Ora, tenente Kotler, não sabia que você estava aí’. E eu sei muito bem que ela estava esperando por ele.”
Bruno não olhou para Shmuel enquanto dizia aquilo, mas quando o fez percebeu que o amigo estava ainda mais pálido do que o habitual.
“Qual o problema?”, perguntou ele. “Você parece estar passando mal.”
“Não gosto de falar sobre ele”, disse Shmuel.
“Sobre quem?”, perguntou Bruno.
“O tenente Kotler. Ele me assusta.”
“Ele também me assusta um pouco”, admitiu Bruno. “É um valentão. E tem um cheiro engraçado. É por causa de toda aquela loção pós-barba que ele usa.” E então Shmuel começou a tremer e Bruno olhou ao redor, como se pudesse ver em vez de sentir se estava frio ou não. “Qual o problema?”, ele perguntou. “Não está tão frio assim, está? Você devia ter trazido um casaco, sabe. As noites estão mesmo ficando mais frias.”
Mais tarde naquela noite, Bruno ficou desapontado ao descobrir que o tenente Kotler ia se juntar a ele, à mãe, ao pai e à Gretel para o jantar. Pavel usava o paletó branco de sempre e os serviu enquanto comiam.
Bruno observou Pavel caminhar ao redor da mesa e descobriu que se sentia triste cada vez que olhava para ele. Perguntava-se se o paletó branco que ele usava como servente era o mesmo que usava antes, quando era médico. Ele trazia os pratos e os depositava na frente de cada um deles e, enquanto comiam a comida e conversavam, ele ficava um passo atrás contra a parede e mantinham o corpo absolutamente imóvel, sem olhar para frente nem para outro lugar. Era como se o corpo tivesse adormecido de pé e com os olhos abertos.
Sempre que alguém precisava de alguma coisa, Pavel trazia o que quer que fosse imediatamente, mas quanto mais Bruno o observava, mais certo ficava de que uma catástrofe estava prestes a acontecer. Ele parecia menor a cada semana que passava, se é que isso era possível, e a cor que deveria estar corando suas faces havia se esgotado quase por completo. Os olhos pareciam pesados de lágrimas, e Bruno pensou que uma piscadela mais demorada poderia desencadear uma verdadeira torrente delas.
Quando Pavel trouxe os pratos, Bruno não pôde deixar de reparar que as suas mãos estavam ligeiramente trêmulas sob o peso deles. E, quando o servente se afastou para reassumir sua posição habitual, pareceu oscilar sobre os dois pés e teve que apertar uma mão contra a parede para se endireitar. A mãe teve que pedir duas vezes por mais uma colherada de sopa antes que ele a ouvisse, e ele deixou a garrafa de vinho ficar vazia antes de abrir outra a tempo de encher o copo do pai.
“Herr Liszt não nos deixa ler poesias durante a aula, nem peças de teatro”, queixou-se Bruno durante o prato principal. Como havia convidados para o jantar, a família estava vestida formalmente – o pai de uniforme, a mãe num vestido verde que lhe destacava os olhos, e Gretel e Bruno com as roupas que costumavam vestir para ir à igreja quando moravam em Berlim. “Eu perguntei se poderíamos lê-las só um dia por semana, mas ele disse que não, não enquanto ele for o encarregado da nossa educação.”
“Tenho certeza de que ele tem seus motivos”, disse o pai, atacando uma perna do cordeiro.
“Tudo o que ele quer é que estudemos história e geografia”, disse Bruno. “E eu estou começando a odiar história e geografia.”
“Por favor, Bruno, não diga que odeia”, disse a mãe.
“Por que você odeia história?”, perguntou o pai, deixando o garfo de lado e olhando através da mesa para o filho, que deu de ombros, um dos seus maus hábitos.
“Porque é chata”, disse ele.
“Chata?”, disse o pai. “Um filho meu chamando de chato o estudo da história? Vou lhe contar uma coisa, Bruno”, continuou ele, inclinado-se pra a frente e apontando a faca para o menino, “foi a história que nos trouxe até aqui hoje. Se não fosse pela história nenhum de nós estaria sentados à nossa mesa da nossa casa em Berlim. Estamos corrigindo a história aqui.”
“Mesmo assim é chata”, repetiu Bruno, que não estava prestando atenção realmente.
“Terá de desculpar meu irmão, tenente Kotler”, disse Gretel, depositando uma mão sobre o braço dele por um instante, o que fez a mãe encará-la e estreitar os olhos. “Ele é um menininho muito ignorante.”
“Eu não sou ignorante”, retrucou Bruno, que já estava farto dos insultos dela. “Terá de desculpar minha irmã, tenente Kotler”, acrescentou ele educadamente, “mas ela é um Caso Perdido. Há muito pouco que possamos fazer por ela. Os médicos dizem que ela está além de qualquer ajuda.”
“Cale a boca”, disse Gretel, corando inteira.
“Cale a boca você”, disse Bruno, sorrindo de orelha a orelha.
“Crianças, por favor”, pediu a mãe.
O pai bateu a faca levemente contra a mesa repetidas vezes e todos ficaram em silêncio. Bruno olhou na direção dele. Não parecia exatamente bravo, mas sua expressão indicava que ele não ia tolerar mais discussões.
“Eu gostava muito de história quando era menino”, disse o tenente Kotler após alguns instantes silenciosos. “E, embora meu pai fosse professor de literatura na universidade, eu sempre preferi as ciências sociais às artes.”
“Não sabia disso, Kurt”, disse a mãe, voltando-se para olhá-lo por um momento. “Ele ainda é professor?”
“Acho que sim”, disse o tenente Kotler. “Na verdade, não sei.”
“Mas como pode não saber?”, perguntou ela, contraindo o rosto. “Você não mantém contato com ele?”
O jovem tenente meteu na boca um grande bocado de cordeiro, o que lhe deu uma oportunidade para pensar em uma resposta. Ele olhou para Bruno como se desejasse que o menino jamais tivesse tocado no assunto.
“Kurt”, repetiu a mãe, “você não mantém contato com seu pai?”
“Na verdade, não”, ele respondeu, dando de ombros, como se dispensasse o assunto, e nem sequer voltou a cabeça para encará-la. “Ele deixou a Alemanha há alguns anos. Acho que foi em 1938. Desde então não o vi mais.”
O pai parou de comer por um instante e olhou para o tenente Kotler do outro lado da mesa, franzindo levemente o cenho. “E para onde ele foi?”, perguntou.
“Perdão, herr comandante, pode repetir, por favor?”, perguntou o tenente Kotler, apesar de o pai ter falado numa voz perfeitamente clara.
“Perguntei aonde ele foi”, repetiu ele. “Seu pai. O professor de literatura. Para onde ele foi quando deixou a Alemanha?”
O rosto do tenente Kotler enrubesceu levemente e ele gaguejou um pouco ao responder. “Creio que... Acho que está na Suíça agora”, disse afinal. “A última notícia que tive é de que ele estava lecionando numa universidade em Berna.”
“Ah, mas a Suíça é um lindo país”, disse rapidamente a mãe. “Nunca estive lá, admito, mas pelo que ouço contar...”
“Ele não deve ser muito velho, o seu pai”, disse o pai, silenciando a todos com sua voz grave. “Quero dizer, você tem apenas... quanto? Dezessete? Dezoito anos de idade?”
“Acabei de completar dezenove, herr comandante.”
“Então seu pai teria... pouco mais de quarenta anos, imagino?”
O tenente Kotler não disse nada e continuou comendo, embora não parecesse estar saboreando a comida.
“Estranho que ele tenha decidido deixar a pátria”, disse o pai.
“Não somos próximos, meu pai e eu”, disse o tenente Kotler rapidamente, olhando ao redor para todos na mesa, como se devesse a eles alguma explicação. “É verdade, não nos falamos há anos.”
“Se me permite perguntar, qual motivo ele teria alegado”, prosseguiu o pai, “para abandonar a Alemanha no seu momento de maior glória e de necessidade mais vital, quando é dever de todos nós cumprir nosso papel na renovação do país? Ele sofria de tuberculose, por acaso?”
O tenente Kotler encarou o pai, confuso. “Perdão, comandante?”, perguntou ele.
“Ele foi para a Suíça por causa do clima?”, insistiu o pai. “Ou será que havia outro motivo particular para que ele abandonasse a Alemanha? Em 1938”, acrescentou ele, após um instante.
“Infelizmente eu não sei, herr comandante”, disse o tenente Kotler. “Teria de perguntar a ele.”
“Bem, seria algo bem difícil de fazer, não é? Quero dizer, com ele estando tão longe. Mas talvez fosse isso. Talvez ele estivesse doente.” O pai hesitou um pouco antes de pegar a faca e o garfo novamente e continuar a comer. “Ou quem sabe ele tivesse... divergências.”
“Divergências, herr comandante?”
“Quanto à política do governo. Ouvimos histórias de gente assim de tempos em tempos. Sujeitos curiosos, imagino eu. Alguns, perturbados da cabeça. Outros, traidores. Covardes também. Certamente você informou os seus superiores a respeito das opiniões de seu pai, não, tenente Kotler?”
O jovem tenente abriu a boca e então engoliu, apesar de não estar comendo nada.
“Esqueça”, disse o pai, animado. “Talvez este não seja um tema apropriado para a mesa do jantar. Podemos discuti-lo com maior profundidade no futuro.”
“Herr comandante”, disse o tenente Kotler, inclinando-se ansiosamente para a frente, “posso garantir que...”
“Não é um assunto apropriado para a mesa do jantar”, repetiu o pai, ríspido, calando-o imediatamente, e Bruno correu os olhos de um para o outro, ao mesmo tempo impressionado e assustado com a atmosfera criada.
“Eu adoraria ir à Suíça”, disse Gretel após um longo silêncio.
“Coma seu jantar, Gretel”, disse a mãe.
“Mas eu só estava dizendo que...!”
“Coma seu jantar”, repetiu a mãe, que estava prestes a falar mais quando foi interrompida pelo pai chamando Pavel outra vez.
“Qual é o seu problema hoje à noite?”, perguntou ele, enquanto Pavel abria outra garrafa. “É a quarta vez que preciso pedir por mais vinho.”
Bruno observou-o, torcendo para que ele estivesse se sentindo bem, embora tivesse conseguido sacar a rolha sem nenhum acidente. Mas, depois de encher o copo do pai, ele voltou-se para encher o do tenente Kotler, e então acabou deixando a garrafa escapar das mãos e cair no chão, espatifando-se e derramando todo o conteúdo diretamente sobre o colo do jovem.
O que aconteceu então foi ao mesmo tempo inesperado e extremamente desagradável. O tenente Kotler ficou muito bravo com Pavel e ninguém – nem Bruno, nem Gretel, nem a mãe, nem mesmo o pai – interveio para impedi-lo de fazer o que fez a seguir, muito embora nenhum deles tivesse sido capaz de olhar. Muito embora aquilo tenha feito Bruno chorar e Gretel empalidecer.
Mais tarde naquela noite, quando foi para a cama, Bruno pensou a respeito de tudo o que tinha acontecido durante o jantar. Lembrou-se de como Pavel fora gentil com ele na tarde em que fizera o balanço, e como havia estancado o sangramento no joelho e tinha sido muito cuidadoso ao aplicar o ungüento verde. E apesar de Bruno entender que o pai era em geral um homem gentil e cheio de consideração, parecia injusto e errado que ninguém tivesse impedido o tenente Kotler de ficar tão bravo com Pavel, e se esse era o tipo de coisa que acontecia em Haja-Vista, então era melhor ele não discordar de ninguém acerca de coisa alguma; na verdade seria bom ficar de boca fechada e não criar encrenca nenhuma. Era capaz de alguém não gostar.
A antiga vida em Berlim parecia agora uma lembrança distante, e ele nem mesmo conseguia se lembrar de como eram Karl, Daniel e Martin, a não ser pelo fato de que um deles era ruivo.
BRUNO CONTA UMA MENTIRA PERFEITAMENTE RAZOÁVEL
Durante muitas semanas após o ocorrido, Bruno continuou a sair de casa sempre que herr Liszt dava o dia por encerrado e a mãe tirava uma de suas sonecas da tarde, e empreendia a longa jornada acompanhando a cerca para se encontrar com Shmuel, que quase toda tarde ficava esperando por ele, sentado de pernas cruzadas sobre o chão, olhando para a poeira embaixo de si.
Certa tarde, Shmuel apareceu com um olho roxo, e quando Bruno perguntou por que seu olho estava daquele jeito, ele simplesmente balançou a cabeça e disse que não queria falar sobre aquilo. Bruno imaginou que houvesse valentões por todo o mundo, e não apenas nas escolas de Berlim, e que um deles devia ter feito aquilo a Shmuel. Ele sentiu um anseio de ajudar o amigo, mas não conseguia pensar em nada que pudesse fazê-lo sentir-se melhor, e era fácil adivinhar que Shmuel preferia fingir que nada acontecera.
Todo dia Bruno perguntava a Shmuel se podia rastejar por sob o arame para que pudessem brincar juntos do outro lado da cerca, e todo dia Shmuel respondia que não, que não era uma boa idéia.
“Não sei por que você quer tanto vir deste lado”, disse Shmuel. “Não é muito bom.”
“Você não sabe o que é viver na minha casa”, disse Bruno. “Para começar, ela não tem cinco andares, tem apenas três. Como pode uma pessoa morar num lugar tão pequeno?” Ele havia se esquecido da história de Shmuel, na qual onze pessoas tinham que dividir um quarto antes de serem mandados para Haja-Vista, inclusive o garoto Luka, que insistia em bater nele, mesmo quando Shmuel não havia feito nada de errado.
Um dia Bruno perguntou por que Shmuel e todas as outras pessoas daquele lado da cerca usavam os mesmos pijamas listrados e bonés de pano.
“Foi o que nos deram para vestir, quando chegamos aqui”, explicou Shmuel. “Levaram embora todas as nossas roupas.”
“Mas não chega uma hora em que você acorda pela manhã com vontade de vestir outra coisa? Deve haver alguma outra roupa no seu armário.”
Shmuel piscou os olhos e abriu a boca para dizer algo, mas então mudou de idéia.
“Eu nem mesmo gosto de listras”, disse Bruno, embora aquilo não fosse verdade. De fato ele gostava de listras e estava cada vez mais farto de ter que usar calças e camisas e gravatas e sapatos que eram pequenos demais para ele, enquanto Shmuel e seus amigos podiam ficar de pijama listrado o dia inteiro.
Alguns dias mais tarde, quando Bruno acordou, estava chovendo forte pela primeira vez em semanas. A chuva começara a cair durante a noite e Bruno até pensou que ela é que o havia acordado, mas era difícil de dizer, porque, uma vez acordado, era impossível determinar qual fora a causa do despertar. Enquanto tomava o café-da-manhã, a chuva prosseguiu. Durante todas as aulas matinais de herr Liszt, a chuva prosseguiu. Enquanto almoçava, a chuva prosseguiu. E quando tece fim mais uma sessão de história e geografia à tarde, a chuva prosseguiu. Essa era uma má notícia, pois significava que ele não poderia sair de casa para se encontrar com Shmuel.
Naquela tarde Bruno deitou-se na cama com um livro, mas achou difícil se concentrar, e foi então que o Caso Perdido entrou para vê-lo. Ela não costumava vir ao quarto do irmão, preferindo arrumar constantemente de novo e de novo sua coleção de bonecas durante o tempo livre. Entretanto, algo naquele clima úmido a havia enfastiado da brincadeira de sempre e ela ainda não tinha vontade arrumá-las outra vez.
“O que você quer?”, perguntou Bruno.
“Belo jeito de me dar as boas-vindas”, disse Gretel.
“Estou lendo”, disse Bruno.
“Está lendo o quê?”, ela perguntou, e, em vez de responder, o menino simplesmente mostrou-lhe a capa, para que pudesse ver com os próprios olhos.
Ela emitiu um som áspero por entre os lábios, e um pouco de sua saliva aterrissou no rosto de Bruno. “Chaaaatooo”, cantarolou ela.
“Não é nada chato”, disse Bruno. “É uma aventura. Bem mais divertido do que arrumar bonecas, disso não há dúvida.”
Gretel não mordeu a isca desta vez. “O que está fazendo?”, ela repetiu, o que irritou Bruno ainda mais.
“Já disse, estou tentando ler”, disse ele numa voz emburrada. “Se algumas pessoas permitirem.”
“Eu não tenho nada para fazer”, ela respondeu. “Odeio chuva.”
Bruno achou difícil de entender o que Gretel dizia. Não era como se ela tivesse o que fazer, ao contrário dele, que embarcava em aventuras e saía explorando os lugares e até fizeram um amigo. Ela raramente deixava a casa. Era como se tivesse decidido ficar entediada simplesmente porque não tinha escolha quanto a sair ou não. Mesmo assim, há momentos em que um irmão e uma irmã podem deixar de lado seus instrumentos de tortura por um instante e conversar como seres humanos civilizados, e Bruno decidiu fazer daquele um desses momentos.
“Eu também odeio chuva”, disse ele. “Já deveria estar com Shmuel a esta altura. Ele vai pensar que eu esqueci dele.”
As palavras saíram de sua boca mais rápido do que ele pôde contê-las. Bruno sentiu uma dor no estômago e ficou furioso consigo mesmo por ter dito aquilo.
“Deveria estar com quem?”, perguntou Gretel.
“O quê?”, perguntou Bruno, piscando para ela.
“Com quem você disse que deveria estar?”, ela perguntou novamente.
“Desculpe”, disse Bruno, tentando pensar rápido. “Não escutei direito. Pode repetir?”
“Com quem você disse que deveria estar?”, gritou ela, inclinando-se para a frente para que não houvesse confusão desta vez.
“Nunca disse que deveria estar com ninguém”, disse ele.
“Disse sim. Disse que alguém vai pensar que você esqueceu dele.”
“Perdão?”
“Bruno!”, exclamou a irmã numa voz ameaçadora.
“Está louca?”, ele perguntou, tentando fazê-la pensar que tinha inventado tudo sozinha, mas sem conseguir convencê-la, pois não era um ator natural como a avó, e Gretel balançou a cabeça e apontou o dedo para ele.
“O que você disse, Bruno?”, insistiu ela. “Você falou que deveria estar com uma pessoa. Quem era? Diga! Não há ninguém por aqui com quem brincar, há?”
Bruno pensou no problema em que se metera. Apesar de tudo, ele e a irmã tinham algo de crucial em comum: não eram adultos. E embora ele nunca tivesse pensado em perguntar-lhe, havia uma grande chance de que Gretel estivesse tão solitária quanto ele lá em Haja-Vista. Afinal, em Berlim ela tinha Hilda e Isobel e Louise para brincar; podiam ser garotas irritantes, mas ao menos eram suas amigas. Aqui não havia com quem conversar além da coleção de bonecas sem vida. Quem poderia dizer quão louca Gretel podia estar? Talvez, em seu pensamento, as bonecas falavam com ela.
Mas ao mesmo tempo havia o fato indiscutível de que Shmuel era amigo dele e não dela, e Bruno não queria dividi-lo. Só havia uma coisa a fazer: mentir.
“Eu tenho um novo amigo”, começou ele. “Um novo amigo que vou visitar todos os dias. E ele está esperando por mim agora. Mas você não pode contar a ninguém.”
“Por que não?”
“Porque é um amigo imaginário”, disse Bruno, esforçando-se ao máximo para parecer constrangido, assim como ficou o tenente Kotler ao se enredar na história a respeito de seu pai na Suíça. “Nós brincamos juntos todos os dias.”
Gretel abriu a boca e o encarou antes de cair na gargalhada. “Um amigo imaginário!”, gritou ela. “Você não está meio grandinho para ter amigos imaginários?”
Bruno tentou parece envergonhado e encabulado de modo a fazer sua história soar mais convincente. Ele se remexeu na cama e não a olhou nos olhos, o que funcionou perfeitamente e o fez pensar que talvez não fosse mau ator, afinal. Ele queria poder ficar vermelho, mas era difícil, e então começou a pensar em coisas embaraçosas que já haviam lhe acontecido ao longo dos anos e se perguntou se isso bastaria para obter o efeito desejado.
Ele se lembrou da vez em que se esqueceu de trancar a porta do banheiro e a avó acabou entrando e vendo tudo. Pensou na vez em que levantou a mão na sala de aula e, num ato falho, chamara a professora de “mãe”, fazendo todos rirem. Pensou na vez em que caiu da bicicleta na frente de um grupo de meninas e acabou cortando o joelho e chorando.
Uma das lembranças funcionou e ele sentiu o rosto enrubescendo.
“Olhe só para você”, disse Gretel, confirmando o que ele havia sentido. “Ficou todo vermelho.”
“É porque eu não queria te contar”, disse Bruno.
“Um amigo imaginário. Francamente, Bruno, você é um caso perdido.”
Bruno sorriu, pois sabia de duas coisas. A primeira era que a mentira havia funcionado, e a segunda era que, se alguém era um Caso Perdido por lá, certamente não era ele.
“Deixe-me em paz”, disse ele. “Quero ler meu livro.”
“Então por que você não fecha os olhos, se deita na cama e deixa seu amigo imaginário ler o livro para você?, disse Gretel, deleitando-se sozinha agora que tinha algo que o comprometia, sem pressa de esquecer a recém-descoberta fraqueza do irmão. “Assim você descansa.”
“Talvez eu devesse mandá-lo até o seu quarto, para jogar todas as suas bonecas pela janela”, disse ele.
“Se fizer isso, vai ter encrenca”, disse Gretel, e ele sabia que ela falava sério. “Então me diga, Bruno. O que fazem você e seu amigo imaginário para torná-lo tão especial?”
Bruno pensou no que responder. Percebeu que na verdade queria falar um pouco a respeito de Shmuel e que aquela era uma boa oportunidade para fazê-lo, sem ter de contar a ela a verdade sobre sua existência.
“Conversamos sobre muitas coisas”, ele contou. “Eu falo de nossa casa em Berlim e sobre todas as outras casas e ruas e sobre as bancas de frutas e legumes e os cafés, e sobre como não se deve ir ao centro na tarde de sábado para não ser empurrado de poste em poste, e sobre Karl e Daniel e Martin e sobre a nossa amizade.”
“Que interessante”, disse Gretel sarcasticamente, pois acabara de completar treze anos e achava que o sarcasmo era o cúmulo da sofisticação. “E o que ele lhe conta?”
“Ele me fala de sua família e da relojoaria sobre a qual morava e das aventuras pelas quais passou a caminho daqui e dos amigos que tinha e das pessoas que conhece por aqui e sobre os meninos que costumavam brincar com ele mas não brincam mais porque sumiram sem nem mesmo se despedir.”
“Ele parece ser muito divertido”, disse Gretel. “Queria que ele fosse o meu amigo imaginário.”
“E ontem ele me contou que o seu avô não é visto há dias e ninguém sabe onde está o avô, o pai começa a chorar e o abraça com tanta força que ele tem medo de ser apertado até a morte.”
Quando Bruno chegou ao final da frase, percebeu que sua voz havia quase emudecido. Estas eram coisas que Shmuel havia de fato lhe contado, mas por alguma razão ele não havia entendido até aquele momento o quanto o amigo devia estar triste por causa delas. Quando Bruno as enunciou com a própria voz, sentiu-se mal por não ter dito nada de encorajador para animar Shmuel; na verdade ele mudara de assunto para algo mais fútil, como as explorações. Amanhã direi que sinto muito, disse a si mesmo.
“Se o papai souber que você fala com amigos imaginários, você estará encrencado”, disse Gretel. Acho melhor parar com isso.”
“Por quê?”, perguntou Bruno.
“Porque não é saudável”, disse ela. “É o primeiro indício de loucura.”
Bruno concordou com a cabeça. “Não acho que consiga parar”, disse ele após uma longa pausa. “Acho que não quero parar.”
“Bem, seja como for”, disse Gretel, que ficava cada vez mais afável, “se eu fosse você, não contaria a ninguém.”
“Bem”, disse Bruno, tentando fingir tristeza, “acho que você está certa. Promete que não vai contar a ninguém?”
“A ninguém. Só para a minha amiga imaginária.”
Bruno engasgou. “Você também tem uma?”, ele perguntou, imaginando-a em outra parte da cerca, conversando com uma menina de sua idade, as duas passando horas juntas trocando sarcasmos.
“Não”, disse ela, rindo. “Pelo amor de Deus, eu já tenho treze anos! Não posso agir feito uma criança, ainda que você o faça.”
E assim ela saiu do quarto, e Bruno pôde ouvi-la falando com as bonecas no quarto do outro lado do corredor dando-lhes uma bronca por fazerem tamanha bagunça enquanto ela não estava por perto e dizendo que não tinha escolha senão arrumá-las novamente, como se não tivesse mais o que fazer.
“Certas pessoas!”, disse ela em voz alta, antes de pôr as mãos à obra.
Bruno tentou voltar para o livro, mas havia perdido o interesse. Em vez disso, ficou olhando para chuva, perguntando-se se Shmuel, onde quer que estivesse, estaria pensando nele também e sentindo tanta falta de suas conversas quanto ele sentia.
ALGO QUE ELE NÃO DEVIA TER FEITO
Durante muitas semanas a chuva começou e parou e começou e parou, e Bruno e Shmuel não puderam se encontrar tanto quanto desejavam. Quando se encontraram, Bruno percebeu que estava preocupado com o amigo, pois ele parecia mais magro a casa dia, e o seu rosto, mais cinza. Às vezes ele trazia consigo um pouco de pão e queijo para levar a Shmuel, e conseguiu até mesmo esconder um pedaço do bolo de chocolate no bolso, mas a caminhada da casa até o ponto na cerca onde os dois costumavam se encontrar era longa, e às vezes Bruno sentia fome no meio do caminho. Ele acabou descobrindo que uma mordida de bolo levava a outra, que por sua vez levava a outra e, quando restava apenas um bocado, sabia que não seria certo oferecer tão pouco a Shmuel, porque apenas serviria para abrir-lhe o apetite sem satisfazê-lo.
O aniversário do pai estava chegando, e, embora ele tivesse dito que não queria estardalhaço nenhum, a mãe preparou uma festa para todos os oficiais que estavam servindo em Haja-Vista, e houve grande estardalhaço nos preparativos. Toda vez que ela se sentava para fazer mais planos para a festa, o tenente Kotler estava ao seu lado para auxiliá-la, e os dois pareciam fazer listas e mais listas, muito mais do que seriam necessárias.
Bruno decidiu fazer sua própria lista. Uma lista de todos os motivos pelos quais ele não gostava do tenente Kotler.
Antes de tudo, havia o fato de que ele nunca sorria e sempre parecia procurar alguém para esfaquear de acordo com sua vontade.
Nas raras ocasiões em que se dirigia a Bruno, tratava-o de “homenzinho”, o que era simplesmente um desaforo, pois, como a mãe já afirmara, o menino ainda não tivera o seu estirão de crescimento.
Sem falar no fato de que ele estava sempre com a mãe na sala de estar fazendo piadas, das quais ela ria mais do que das piadas do pai.
Certa vez, quando estava observando o campo da janela de seu quarto, Bruno viu um cachorro se aproximar da cerca e começar a latir bem alto. Quando o tenente Kotler o ouviu, marchou direto para o cão e atirou nele. E ainda havia todas as besteiras que vinham de Gretel sempre que ele estava por perto.
E Bruno ainda não se esquecera do que ocorrera naquela noite com Pavel, o servente que na verdade era médico, e de como o jovem tenente havia ficado bravo.
Além disso, sempre que o pai era chamado a Berlim para uma viagem e passava a noite fora, o tenente ficava na casa como se estivesse no comando: estava lá quando Bruno ia para a cama e estava de volta pela manhã, antes mesmo de o menino acordar.
Havia muito mais razões pelas quais Bruno não gostava do tenente Kotler, mas estas foram as primeiras que lhe vieram à mente.
Na tarde anterior à festa de aniversário, Bruno estava no seu quarto, com a porta aberta, quando ouviu o tenente Kotler chegando na casa e falando com alguém, embora não ouvisse ninguém responder. Alguns minutos mais tarde, quando estava descendo as escadas, ele escutou a voz da mãe passando instruções quanto ao que deveria ser feito e o tenente Kotler dizendo: “Não se preocupe, este aqui sabe quais botas lamber”. E depois deu uma horrível gargalhada.
Bruno foi até a sala de estar com o novo livro que o pai havia lhe dado, chamado A ilha do tesouro, com a intenção de sentar-se por lá durante uma ou duas horas para lê-lo, mas, ao passar pelo corredor, deu de cara com o tenente Kotler, que estava saindo da cozinha.
“Olá, homenzinho”, disse o soldado, caçoando dele como de costume.
“Olá”, disse Bruno, franzindo o cenho.
“O que está aprontando?”
Bruno olhou para ele e começou a pensar em mais sete motivos para detestá-lo. “Vou até ali para ler meu livro”, disse ele, apontando para a sala de estar.
Sem dizer uma palavra, Kotler tomou o livro das mãos de Bruno e se pôs a folheá-lo. “A ilha do tesouro”, disse ele. “É sobre o quê?”
“Bem, há uma ilha”, disse Bruno lentamente, para certificar-se que o soldado estava acompanhando. “E há um tesouro nela.”
“Isso eu poderia ter adivinhado”, disse Kotler, olhando para Bruno como se houvesse coisas que faria ao menino se fosse filho dele e não o filho do comandante. “Diga algo a respeito dele que eu ainda não saiba.”
“Há um pirata”, disse Bruno. “Chamado Long John Silver. E um menino chamado Jim Hawkins.”
“Um menino inglês?”, perguntou Kotler.
“Sim”, disse Bruno.
“Hmpf”, grunhiu Kotler.
Bruno encarou-o e pensou quanto tempo demoraria até que recebesse o livro de volta. O soldado não parecia interessado na história, mas quando Bruno estendeu a mão para pegá-lo, ele afastou o livro do menino.
“Desculpe”, ele disse, deixando o livro ao alcance de Bruno; contudo, quando este estendeu a mão para pegá-lo, ele afastou o livro novamente. “Oh, eu sinto muitíssimo”, disse Kotler, repetindo o gesto, mas desta feita Bruno tomou-o da mão do soldado mais rápido do que este poderia afastá-lo.
“Rapidinho, hein?”, murmurou entre os dentes o tenente Kotler.
Bruno tentou passar por ele, porém por algum motivo o tenente Kotler parecia querer conversar com o menino naquele dia.
“Estamos todos preparados para a festa amanhã?”, ele perguntou.
“Bem, eu estou”, disse Bruno, que estivera passando mais tempo na companhia de Gretel ultimamente e desenvolvera o gosto pelo sarcasmo. “Não posso falar por você.”
“Haverá muita gente aqui”, disse o tenente Kotler, respirando pesado e olhando ao redor como se aquela fosse a sua casa, e não a de Bruno. “Ficaremos bem comportadinhos, não é?”
“Bem, eu ficarei”, disse Bruno. “Não posso falar por você.”
“Você tem muito a dizer para um homenzinho tão pequeno”, disse o tenente Kotler.
Bruno estreitou os olhos e desejou ser mais alto, mais forte e oito anos mais velho. Uma bola de raiva explodiu dentro dele e o fez desejar que tivesse a coragem de dizer exatamente o que queria dizer. Ele decidiu que uma coisa era ser mandado pela mãe e pelo pai – o que era perfeitamente razoável e de se esperar -, mas outra coisa completamente diferente era ser mandado por outra pessoa. Mesmo que fosse alguém com um título importante como “tenente”.
“Oh, Kurt, querido, você ainda está aqui”, disse a mãe, saindo da cozinha e vindo na direção deles. “Tenho um pouco de tempo livre agora se... Oh!”, disse ela ao notar Bruno ali de pé. “Bruno! O que está fazendo aqui?”
“Estava indo até a sala de estar para ler meu livro”, disse Bruno. “Ao menos era o que eu estava tentando fazer.”
“Bem, entre na cozinha por um instante”, disse ela. “Eu preciso ter uma conversa a sós com o tenente Kotler.”
Fumegando de raiva, Bruno entrou na cozinha e teve a maior surpresa de toda a sua vida. Ali, sentado à mesa, muito longe do outro lado da cerca, estava Shmuel. Bruno mal podia acreditar nos próprios olhos.
“Shmuel!”, disse ele. “O que você está fazendo aqui?”
Shmuel ergueu os olhos e o seu rosto aterrorizado deu lugar a um grande sorriso quando viu o amigo ali com ele. “Bruno!”, ele disse.
“O que você está fazendo aqui?”, repetiu Bruno, pois, embora ainda não entendesse exatamente o que acontecia do outro lado da cerca, havia algo a respeito das pessoas que ficavam lá que fazia Bruno pensar que elas não deveriam estar ali na casa dele.
“Ele me trouxe aqui”, disse Shmuel.
“Ele?”, perguntou Bruno. “Está falando do tenente Kotler?”
“Sim. Ele disse que havia um serviço para mim aqui.”
E, quando Bruno olhou para baixo, viu sessenta e quatro pequenas taças, do tipo que a mãe usava para tomar seus tragos de xerez medicinal, dispostas sobre a mesa da cozinha, e ao lado delas uma tigela de água quente e ensaboada e muitos guardanapos de papel.
“Mas o que você está fazendo?”
“Eles me pediram para lustrar as taças”, disse Shmuel. “Disseram que precisavam de alguém com dedos pequenos.”
Como se quisesse provar algo que Bruno já sabia, ele estendeu a mão, e Bruno não pôde deixar de reparar que era como a mão do esqueleto de mentira que herr Liszt trouxera certo dia quando estavam estudando a anatomia humana.
“Eu nunca tinha reparado antes”, disse ele numa voz incrédula, quase para si mesmo.
“Nunca tinha reparado no quê?”, perguntou Shmuel.
Em resposta, Bruno estendeu a própria mão de maneira que as pontas de seus dedos médios quase se tocaram. “Nossas mãos”, disse ele. “São tão diferentes. Veja!”
Os dois meninos olharam para baixo ao mesmo tempo e a diferença era evidente. Embora Bruno fosse pequeno para idade, e certamente não era gordo, sua mão parecia saudável e cheia de vida. As veias não eram visíveis através da pele, os dedos não eram pouco mais do que galhos retorcidos e moribundos. A mão de Shmuel, entretanto, contava uma história muito diferente.
“Como ficou assim?”, perguntou Bruno.
“Não sei”, disse Shmuel. “Antigamente ela era mais parecida com a sua, mas eu não percebi a mudança. Todos do meu lado da cerca são assim agora.”
Bruno franziu o cenho. Pensou a respeito de todas aquelas pessoas de pijama listrado e imaginou o que estaria acontecendo em Haja-Vista e, o que quer que fosse, devia ser uma má idéia, uma vez que fazia as pessoas ficarem com um aspecto tão debilitado. Nada daquilo fazia sentido para ele. Não querendo mais olhar para a mão de Shmuel, Bruno deu meia-volta e abriu a geladeira, procurando descobrir alguma coisa para comer. Havia meia galinha recheada que sobrara do almoço, e seus olhos faiscaram deleitados pela visão, pois havia pouquíssimas coisas na vida de que ele gostasse mais do que galinha fria com recheio de sálvia e cebola. Pegou uma faca na gaveta e cortou para si alguns pedaços respeitáveis, cobrindo-os com o recheio, antes de voltar a atenção novamente para o amigo.
“Fico muito contente por vê-lo aqui”, disse ele, falando de boca cheia. “Pena que você tem que lustrar estas taças, senão eu poderia mostrar-lhe o meu quarto.”
“Ele me disse para não sair desta cadeira ou haveria encrenca.”
“Eu não daria muita bola se fosse você”, disse Bruno, tentando parecer mais corajoso do que realmente era. “Esta não é a casa dele, é a minha, e quando meu pai está fora sou eu quem manda aqui. Acredita que ele nunca leu A ilha do tesouro?”
Shmuel parecia não estar ouvindo o que o outro dizia; seus olhos estavam focados nos pedaços de galinha recheada que Bruno lançava casualmente à boca. Após um instante, Bruno se deu conta de que o amigo estava olhando para a sua comida e imediatamente sentiu-se culpado.
“Desculpe-me, Shmuel”, disse ele rapidamente. “Eu deveria ter lhe oferecido um pouco de galinha também. Está com fome?”
“Esta é uma pergunta que você nunca precisa me fazer”, disse Shmuel, que, apesar de não ter conhecido Gretel, também sabia alguma coisa de sarcasmo.
“Espere um pouco, vou servir umas fatias para você”, disse Bruno, abrindo a geladeira e cortando mais três pedaços generosos.
“Não, se ele volta...”, disse Shmuel, virando a cabeça rapidamente, olhando ora para Bruno, ora para a porta.
“Se quem voltar? Está falando do tenente Kotler?”
“Eu só vim lustrar as taças”, ele disse, olhando desesperado para a bacia de água diante de si e para as fatias de galinha que Bruno estava oferecendo.
“Ele não vai se importar”, disse Bruno, que estava confuso por causa da evidente ansiedade de Shmuel. “É apenas comida.”
“Não posso”, disse Shmuel, balançando a cabeça e dando a impressão de que ia chorar. “Ele vai voltar, eu sei que vai”, prosseguiu o menino, as frases rápidas e embaralhadas. “Eu devia ter comido quando você ofereceu pela primeira vez, agora é tarde demais, se eu aceitar ele vai voltar e...”
“Shmuel! Tome!”, disse Bruno, dando um passo adiante e pondo as fatias na mão do amigo. “Apenas coma. Tem muito mais para a hora do chá – não precisa se preocupar com isso.”
O menino olhou primeiro para a comida em sua mão e depois para Bruno com olhos arregalados e agradecidos, porém aterrorizados. Ele deu uma última olhada na direção da porta e então pareceu ter tomado uma decisão, porque meteu os três pedaços de uma só vez na boca e os engoliu em exatos vinte segundos.
“Bom, também não precisa comer tão depressa”, disse Bruno. “Assim vai passar mal.”
“Não me importo”, disse Shmuel, sorrindo levemente. “Obrigado, Bruno.”
Bruno sorriu de volta e estava prestes a oferecer-lhe mais um pouco de comida, quando o tenente Kotler reapareceu na cozinha e se deteve ao ver os dois meninos conversando. Bruno olhou para ele, sentindo a atmosfera fica tensa, vendo os ombros de Shmuel se abaixarem enquanto o menino procurava outra taça e começava a lustrá-la. Ignorando Bruno, o tenente Kotler marchou até Shmuel e ficou olhando ameaçadoramente para ele.
“O que está fazendo?”, gritou ele. “Eu não mandei lustrar as taças?”
Shmuel acenou com a cabeça rapidamente e começou a tremer enquanto pegava outro guardanapo e o mergulhava na água.
“Quem disse que você podia falar nesta casa?”, prosseguiu Kotler. “Ousa me desobedecer?”
“Não, senhor”, disse Shmuel em voz baixa. “Desculpe-me, senhor.”
Ele ergueu os olhos para o tenente Kotler, que franziu o cenho, projetando-se levemente para a frente e inclinando a cabeça ao examinar o rosto do garoto. “Você andou comendo?”, perguntou numa voz baixíssima, como se nem pudesse acreditar naquilo.
Shmuel balançou a cabeça.
“Andou comendo, sim”, insistiu o tenente Kotler. “Roubou alguma coisa daquela geladeira?”
Shmuel abriu a boca e a fechou. Abriu-a novamente, procurando as palavras, mas não as encontrou. Ele olhou para Bruno, seus olhos implorando por ajuda.
“Responda!”, gritou o tenente Kotler. “Roubou alguma coisa daquela geladeira?”
“Não, senhor. Foi ele quem me deu”, disse Shmuel, as lágrimas se juntando em seus olhos enquanto lançava um olhar de soslaio para Bruno. “Ele é meu amigo”, acrescentou.
“Seu...?”, começou o tenente Kotler, olhando confuso para Bruno do outro lado da cozinha. Ele hesitou. “Como assim, ele é seu amigo?”, perguntou. “Conhece este menino, Bruno?”
Bruno abriu a boca e tentou se lembrar de como eram os movimentos quando se quer dizer a palavra “sim”. Ele jamais vira alguém tão aterrorizado quanto Shmuel naquele instante e queria dizer a coisa certa para melhorar a situação, mas então percebeu que não conseguia, pois estava tão aterrorizado quanto o amigo.
“Conhece este menino?”, repetiu Kotler numa voz mais alta. “Esteve conversando com os prisioneiros?”
“Eu... ele estava aqui quando entrei”, disse Bruno. “Estava limpando as taças.”
“Não foi o que eu perguntei”, disse Kotler. “Já o viu antes? Conversou com ele? Por que ele diz que vocês são amigos?”
Bruno queria poder fugir. Ele odiava o tenente Kotler, que agora avançava sobre ele, e tudo o que Bruno conseguiu se lembrar foi da tarde em que vira o tenente atirar no cachorro e da noite em que ele ficara tão bravo com Pavel que...
“Diga, Bruno!”, gritou Kotler com o rosto vermelho. “Não perguntarei pela terceira vez.”
“Nunca falei com ele”, disse Bruno imediatamente. “Nunca o vi antes em minha vida. Não o conheço.”
O tenente Kotler balançou a cabeça e pareceu ficar satisfeito com a resposta. Lentamente ele voltou a cabeça para olhar para Shmuel, que não estava mais chorando; o menino apenas olhava para o chão, dando a impressão de que tentava convencer sua alma a não mais habitar o pequeno corpo e a fugir pela janela e voar bem alto até o céu, indo o mais longe possível.
“Termine de lustrar estas taças”, disse o tenente numa voz muito baixa, tão baixa que Bruno quase não pôde ouvi-lo. Foi como se toda a sua raiva tivesse se transformado em outra coisa. Não o oposto, mas em algo inesperado e assustador. “E depois eu virei buscá-lo e o levarei de volta ao campo, onde teremos uma conversa sobre o que acontece com meninos que roubam. Entendido?”
Shmuel fez que sim com a cabeça, pegou outro guardanapo e começou a lustrar outra taça; Bruno observou como seus dedos tremiam e soube quanto medo ele tinha de acabar quebrando uma delas. Parecia que seu coração ia afundar, mas, por mais que quisesse, não conseguia desviar os olhos.
“Venha, homenzinho”, disse o tenente Kotler, indo na direção de Bruno e colocando um braço pouco amigável ao redor do ombro do garoto. “Vá até a sala de estar ler o seu livro e deixe o pequeno... terminar seu trabalho.” Ele usou a mesma palavra que usara para se referir a Pavel quando o mandou à procura do pneu.
Bruno assentiu, deu meia-volta e saiu da cozinha sem olhar para trás. Seu estômago estava revirado por dentro, e ele pensou por um instante que fosse vomitar. Jamais se sentira tão envergonhado em toda sua vida; nunca imaginou que seria capaz de se comportar com tamanha crueldade. Perguntou-se como poderia um menino que pensava ser uma boa pessoa agir de maneira tão covarde em relação a um amigo. Ele se sentou na sala de estar durante muitas horas, mas não conseguiu se concentrar no livro nem ousou voltar à cozinha até bem mais tarde, quando o tenente Kotler já havia voltado e levado Shmuel de novo ao campo.
Nas tardes seguintes, Bruno retornou ao ponto da cerca onde os dois costumavam se encontrar, mas Shmuel nunca mais apareceu. Depois de quase uma semana ele se convenceu de que o que havia feito fora tão terrível que jamais seria perdoado, porém no sétimo dia ficou extasiado ao ver Shmuel esperando por ele, sentado de pernas cruzadas no chão, como sempre, e olhando para a poeira debaixo de si.
“Shmuel’, disse ele, correndo na direção do amigo e sentando-se, quase chorando de alívio e arrependimento. “Eu sinto tanto, Shmuel. Não sei por que fiz aquilo. Diga que me perdoa.”
“Tudo bem”, disse Shmuel, olhando para ele. Seu rosto estava todo machucado e Bruno fez uma careta, por um instante se esquecendo das desculpas que estava pedindo.
“O que aconteceu com você?”, ele perguntou, mas não esperou pela resposta. “Foi a bicicleta?” Porque uma vez isso aconteceu comigo lá em Berlim há uns dois anos. Eu caí da bicicleta quando estava indo rápido demais e fiquei todo roxo durante semanas. Está doendo?”
“Nem sino mais”, disse Shmuel.
“Parece que dói.”
“Já não sinto mais nada”, disse Shmuel.
“Bem, sinto muito pela semana passada”, disse Bruno. “Eu odeio aquele tenente Kotler. Ele pensa que é o manda-chuva, mas não é.” Bruno hesitou por um instante, sem querer perder o fio da meada. Sentiu que deveria dizer mais uma vez e com muita sinceridade. “Eu sinto muitíssimo, Shmuel”, disse numa voz bem clara. “Não posso acreditar que não contei a ele a verdade. Nunca desapontei um amigo dessa maneira antes. Shmuel, estou envergonhado de mim mesmo.”
Quando Bruno disse isso, Shmuel sorriu e balançou a cabeça e Bruno soube que estava perdoado. Então Shmuel fez algo que nunca havia feito antes: ele ergueu a parte de baixo da cerca como sempre fazia quando o amigo lhe trazia comida, mas desta vez ele estendeu a mão por baixo e a manteve lá, esperando até que Bruno fizesse o mesmo. Os dois meninos apertaram as mãos e sorriram um para o outro.
Foi a primeira vez que eles se tocaram.
O CORTE DE CABELO
Já fazia quase um ano desde o dia em que Bruno chegara em casa e encontrara Maria empacotando suas coisas, e as suas memórias da vida em Berlim haviam se desvanecidos quase completamente. Quando tentava se lembrar, sabia que Karl e Martin eram dois de seus três melhores amigos, mas não conseguia mais se lembrar do nome do terceiro. E então aconteceu uma coisa que fez com que ele passasse dois dias longe de Haja-Vista e retornasse à casa antiga: a avó tinha morrido e a família fez a viagem de volta para o funeral.
Enquanto esteve lá, Bruno se deu conta de que não era mais tão pequeno, pois agora conseguia ver por cima das coisas de um modo que não conseguia antes e, quando pernoitaram na antiga casa, ele pôde olhar através da janela, no último andar, e ver Berlim sem ter que ficar na ponta dos pés.
Bruno não vira mais a avó desde que deixaram Berlim, mas pensava nela quase todos os dias. As coisas de que mais se lembrava eram os esquetes que ela, ele e Gretel encenavam durante o Natal e os aniversários, e como ela sempre tinha o figurino certo para qualquer papel que se fosse representar. Quando pensava que eles nunca mais poderiam fazer aquilo de novo, Bruno ficara realmente muito triste.
Os dois dias que passaram em Berlim também foram muito tristes. Houve o funeral, e Bruno e Gretel e o pai e a mãe e o avô sentaram-se na primeira fila, o pai vestindo seu mais importante uniforme, aquele engomado e passado cheio de condecorações. O pai estava especialmente triste, a mãe contou a Bruno, porque havia brigado com a avó e eles não fizeram as pazes antes de ela morrer.
Muitas coroas funerárias foram entregues na igreja, e o pai ficou muito orgulhoso em saber que uma delas fora mandada pelo próprio Fúria; no entanto, quando a mãe ficou sabendo, disse que a avó se reviraria no túmulo se soubesse daquilo.
Bruno ficou quase feliz de voltar a Haja-Vista. A casa ali já se tornara o seu lar e ele havia parado de se preocupar se ela tinha cinco andares ou apenas três, e não se importava tanto com os soldados indo e vindo como se fossem os donos do lugar. Ele lentamente se deu conta de que as coisas não eram tão más assim por ali, principalmente depois de ter conhecido Shmuel. Bruno sabia que havia muitas coisas com as quais se alegrar, como, por exemplo, o fato de que o pai e a mãe pareciam mais felizes, e a mãe não precisava de tantas sonecas pela tarde nem de tantos tragos do xerez medicinal. E Gretel estava passando por uma nova fase – nas palavras da mãe – e sua tendência era ficar fora do caminho dele.
Havia também o fato de o tenente Kotler ter sido transferido para longe de Haja-Vista, portanto ele não estava mais por perto para atormentar Bruno e irritá-lo o tempo todo. (A sua partida ocorrera subitamente e causara grande gritaria entre a mãe e o pai durante a noite, mas ele se foi, disso não havia dúvida, e não ia voltar mais; Gretel ficou inconsolável.) Este era outro motivo de felicidade: ninguém mais o chamava de “homenzinho”.
Mas o melhor de tudo é que ele tinha um amigo chamado Shmuel.
Ele adorava caminhar ao longo da cerca todas as tardes e ficou satisfeito em ver que o amigo parecia muito mais feliz ultimamente, e os seus olhos não estavam mais tão fundos, embora o corpo ainda fosse ridículo de tão magro, e o rosto de uma desagradável tonalidade cinza.
Certo dia, enquanto estavam sentados no lugar de sempre, um de frente para o outro, Bruno comentou: “Esta é a amizade mais estranha que já tive.”
“Por quê?”, perguntou Shmuel.
“Porque com todos os outros meninos com os quais eu fiz amizade eu podia brincar”, respondeu ele. “E nós nunca podemos brincar juntos. Tudo o que podemos fazer é ficar aqui sentados conversando.”
“Eu gosto de ficar aqui sentado conversando”, disse Shmuel.
“Bom, eu também gosto, é claro”, disse Bruno. “Mas é uma pena que não possamos fazer algo mais divertido de vez em quando. Talvez explorar um pouco. Ou jogar futebol. Nunca sequer nos vimos sem esta cerca de arame no caminho.”
Bruno freqüentemente fazia comentários desse tipo porque preferia fingir que o incidente de alguns meses antes, quando ele negou ser amigo de Shmuel, jamais tivesse acontecido. Aquilo ainda o assombrava e o fazia sentir-se mal a respeito de si mesmo, embora Shmuel, para seu crédito, parecesse ter esquecido de tudo completamente.
“Quem sabe um dia nós possamos”, disse Shmuel. “Se é que vão nos deixar sair.”
Bruno começou a pensar mais e mais sobre os dois lados da cerca e o motivo de sua existência. Ele pensou em perguntar à mãe e ao pai a respeito dela, mas suspeitava que eles ou ficariam bravos por mencioná-la ou lhe diriam algo desagradável sobre Shmuel e sua família, e então ele decidiu fazer algo bastante incomum. Decidiu conversar com o Caso Perdido.
O quarto de Gretel havia mudado consideravelmente desde a última vez em que ele estivera lá. Não havia uma única boneca à vista. Certa tarde, mais ou menos um mês antes, perto da época em que o tenente Kotler se foi de Haja-Vista, Gretel decidira que não gostava mais de bonecas e as colocou todas dentro de quatro grandes sacolas e as jogou fora. Em seu lugar havia pendurado mapas da Europa que o pai lhe dera, e todo dia ela espetava pequenos pinos sobre eles, os quais se movia constantemente depois de consultar o jornal do dia. Bruno pensou que talvez a irmã estivesse enlouquecendo. Ainda assim, ela não o provocava nem incomodava tanto quanto antes, o que o fez pensar que talvez não fosse má idéia conversar com ela.
“Olá”, disse ele, batendo educadamente na porta, pois sabia como ela ficava brava quando ele simplesmente ia entrando.
“O que você quer?”, perguntou Gretel, que estava sentada à cômoda, experimentando novos penteados.
“Nada”, disse Bruno.
“Então vá embora.”
Bruno balançou a cabeça, mas entrou do mesmo jeito e sentou-se na lateral da cama. Gretel observou-o com o canto dos olhos, mas não disse nada.
“Gretel”, disse ele afinal, “posso perguntar uma coisa?”
“Se for rápido, pode”, disse ela.
“Tudo aqui em Haja-Vista”, começou ele, mas ela o interrompeu imediatamente.
“Não é Haja-Vista, Bruno”, disse Gretel com raiva, como se fosse o pior erro jamais cometido na história da humanidade. “Por que você não consegue pronunciar direito?”
“O nome é Haja-Vista”, protestou ele. “Não é”, disse ela, pronunciando corretamente o nome do campo para ele.
Bruno franziu o semblante e deu de ombros ao mesmo tempo. “Pois foi o que eu disse”, disse ele.
“Não foi, não. Seja como for, não vou discutir com você”, disse Gretel, já perdendo a paciência, coisa que ela nunca teve muita. “O que é, afinal? O que quer saber?”
“Quero saber sobre a cerca”, disse ele com firmeza, decidindo que essa era a coisa mais importante para começo de conversa. “Quero saber por que está lá.”
Gretel voltou-se na cadeira e olhou-o com curiosidade. “Quer dizer que não sabe?”, perguntou ela.
“Não”, disse Bruno. “Não entendo por que não podemos ir ao outro lado. O que há de errado conosco a ponto de não podermos ir até o outro lado da cerca e brincar?”
Gretel encarou-o e então começou a rir, parando apenas quando percebeu que Bruno estava falando absolutamente sério.
“Bruno”, disse ela numa voz infantil, como se aquilo fosse a coisa mais óbvia do mundo, “a cerca não está lá para nos impedir de ir ao outro lado. É para impedi-los de virem até aqui.”
Bruno avaliou a resposta, entretanto ela não melhorou seu entendimento. “Mas por quê?”, perguntou ele.
“Porque eles têm que ser mantidos juntos”, explicou Gretel.
“Com suas famílias, você quer dizer?”
“Bem, sim, com suas famílias. Mas principalmente com a sua própria laia.”
“Como assim, sua própria laia?”
Gretel suspirou e balançou a cabeça. “Com os outros judeus, Bruno. Não sabia disso? É por isso que precisam ficar juntos. Eles não podem se misturar com a gente.”
“Judeus”, disse Bruno, testando a nova palavra. Ele bem que gostou do som. “Judeus”, repetiu ele. “Aquelas pessoas todas do outro lado da cerca... são judeus.”
“Sim, é isso mesmo”, disse Gretel.
“E nós, somos judeus?”
Gretel abriu a boca espantada, como se tivesse recebido um tapa no rosto. “Não, Bruno”, disse ela. “Nós absolutamente não somos judeus. E você não devia sequer dizer uma coisa dessas.”
“Mas por que não? O que nós somos, então?”
“Nós somos...”, começou Gretel, mas então teve que, parar e pensar a respeito. “Somos...”, repetiu, ainda sem saber qual era a resposta para essa pergunta. “Bem, não somos judeus”, disse ela afinal.
“Já sei que não somos”, disse Bruno, frustrado. “Estou perguntando: já que não somos judeus, o que nós somos então?”
“Somos o contrário”, disse Gretel, respondendo rapidamente e parecendo mais satisfeita com esta resposta. “Sim, é isso. Nós somos o contrário.”
“Certo”, disse Bruno, feliz porque finalmente esclareceu o problema. “E o contrário mora deste lado da cerca, e os judeus, daquele lado.”
“É isso mesmo, Bruno.”
“Os judeus não gostam do contrário, então?”
“Não, estúpido, somos nós que não gostamos deles.”
Bruno enrugou a testa. Gretel já fora repreendida incontáveis vezes por chamar o irmão de estúpido, e mesmo assim insistia.
“Então, por que não gostamos deles?”, perguntou ele.
“Porque são judeus”, disse Gretel.
“Entendi. E o contrário e os judeus não se dão bem.”
“Não, Bruno”, disse Gretel, mas disse-o lentamente porque acabara de descobrir algo esquisito no cabelo e estava examinando aquilo com toda atenção.
“Bem, será que não dá para alguém chamá-los para conversar e...”
Bruno foi interrompido pelo som de Gretel soltando um grito agudo, que acordou a mãe de sua soneca vespertina e a trouxe correndo até o quarto querendo descobrir qual de seus filhos assassinara o outro.
Enquanto experimentava diferentes penteados, Gretel encontrou um minúsculo ovo, do tamanho da cabeça de um alfinete. Ela o mostrou para a mãe, que vasculhou o cabelo dela, separando rapidamente algumas mechas, antes de marchar até Bruno e fazer o mesmo com ele.
“Oh, eu não posso acreditar”, disse ela, brava. “Eu sabia que aconteceria uma coisa dessas num lugar como este.”
Ela descobriu que tanto Gretel como Bruno tinham piolhos nos cabelos. A menina precisou de um tratamento com um xampu especial que tinha cheiro muito ruim e depois ficou horas em seu quarto, chorando e chorando.
Bruno também precisou do xampu, mas então o pai decidiu que seria melhor para ele começar do zero e pegou uma navalha e raspou todo o cabelo do menino, o que o fez chorar. Não demorou muito, e ele detestou ver o cabelo flutuando da cabeça e aterrissando no chão aos seus pés, mas o pai disse que aquilo tinha de ser feito.
Mais tarde Bruno foi olhar no espelho do banheiro e se sentiu mal. Sua cabeça toda parecia deformada agora que estava careca, e os olhos davam a impressão de ser grandes demais para o rosto. Ele quase teve medo do próprio reflexo.
“Não se preocupe”, encorajou o pai. “Vai crescer de novo. Basta esperar algumas semanas.”
“Foi toda essa sujeira daqui que provocou isto”, disse a mãe. “Se certas pessoas ao menos percebessem o efeito que este lugar está tendo sobre todos nós.”
Quando se viu no espelho, Bruno não pôde evitar de pensar em como estava parecido com Shmuel, e ele se perguntou se as pessoas do outro lado da cerca teriam piolhos também e se era por isso que todas tinham as cabeças raspadas.
Ao ver o amigo no dia seguinte, Shmuel começou a rir da aparência de Bruno, o que não ajudou muito a restaurar-lhe a autoconfiança abalada.
“Agora fiquei parecido com você”, disse Bruno, triste, como se aquela fosse uma coisa terrível de se admitir.
“Só que mais gordo”, acrescentou Shmuel.
A MÃE CONSEGUE O QUE QUERIA
No decorrer das semanas seguintes a mãe parecia cada vez mais descontente com a vida em Haja-Vista, e Bruno entendia perfeitamente quais eram os seus motivos. Afinal, quando eles chegaram, o menino havia detestado o lugar porque era muito diferente da antiga casa e não tinha coisas como os três melhores amigos da vida toda. Mas tudo aquilo mudara ao longo do tempo, principalmente por causa de Shmuel, que era mais importante para ele do que Karl ou Daniel ou Martin jamais haviam sido. Porém a mãe não tinha o seu Shmuel. Não havia ninguém com quem pudesse conversar, e o único com quem ela travara uma amizade ainda que passageira – o jovem tenente Kotler – fora transferido para outro lugar.
Embora ele se esforçasse para não ser um daqueles meninos que gastavam o tempo olhando pelo buraco das fechaduras e escutando conversas pelas chaminés, certa tarde Bruno passou pelo escritório do pai, num momento em que a mãe e o pai estavam lá dentro, tendo uma das suas conversas. Ele não queria ser enxerido, mas os dois estavam falando em voz alta e o menino não pôde deixar de ouvir o que diziam.
“É horrível”, dizia a mãe. “Simplesmente horrível. Eu não posso mais agüentar.”
“Não temos escolha”, disse o pai. “Esta é a tarefa que nos foi designada e...”
“Não, esta é a tarefa que lhe foi designada”, disse a mãe. “Designada a você, não a nós. Fique aqui se quiser.”
“E o que as pessoas vão pensar”, perguntou o pai, “se eu permitir que você e as crianças voltem a Berlim sem mim? Farão perguntas quanto ao meu comprometimento com o trabalho feito aqui.”
“Trabalho?”, gritou a mãe. “Chama isto de trabalho?”
Bruno não ouviu muito mais porque as vozes estavam se aproximando da porta e sempre havia a chance de que a mãe saísse do escritório de uma vez em busca de um trago do xerez medicinal, e então ele correu escada acima. Ainda assim, ouviu o bastante para saber que havia a chance de eles voltarem a Berlim e, para sua surpresa, não soube como se sentir a respeito da idéia.
Havia uma parte dele que se lembrava do quanto ele gostava da sua antiga vida lá, mas tantas coisas estariam mudadas agora. Karl e os outros dois amigos cujos nomes não conseguia mais lembrar provavelmente já o teriam esquecido àquela altura. A avó estava morta e eles quase nunca tinham notícias do avô, que, segundo o pai havia ficado senil.
Por outro lado, ele havia se acostumado com a vida em Haja-Vista: não se incomodava com herr Liszt, tinha ficado muito mais próximo de Maria do que jamais fora em Berlim, Gretel ainda estava passando por uma fase e ficava fora do caminho dele (e também não parecia mais um Caso tão Perdido assim) e suas conversas com Shmuel às tardes o enchiam de alegria.
Bruno não sabia como se sentir e decidiu que, acontecesse o que acontecesse, aceitaria a decisão sem se queixar.
Nada mudou durante algumas semanas; a vida prosseguiu normalmente. O pai passava a maior parte do tempo no escritório ou do outro lado da cerca. A mãe passava os dias em silêncio e tirava cada vez mais sonecas vespertinas, algumas nem mesmo à tarde, mas antes do almoço, e Bruno estava preocupado com a sua saúde porque nunca tinha visto alguém precisar de tantos tragos de xerez medicinal quanto ela. Gretel ficava em seu quarto, concentrada nos muitos mapas que havia colado pelas paredes e consultando os jornais durante horas antes de mover um pouco os seus pinos. (Herr Liszt ficava muito satisfeito em vê-la fazendo isso.)
E Bruno fazia exatamente o que lhe pediam e não criava confusão e se divertia com o fato de ele ter um amigo secreto sobre o qual ninguém sabia.
Então um dia o pai convocou Bruno e Gretel a seu escritório e informou-os sobre as mudanças que estavam por vir.
“Sentem-se, crianças”, disse ele , indicando duas grandes poltronas de couro nas quais eles habitualmente eram proibidos de se sentar quando visitaram o escritório do pai, por causa de suas mãos sujas. O pai sentou-se do outro lado da escrivaninha. “Decidimos fazer algumas mudanças”, prosseguiu ele, parecendo triste enquanto falava. “Digam-me uma coisa: vocês são felizes aqui?”
“Sim, pai, é claro”, disse Gretel.
“Certamente, pai”, disse Bruno.
“E não sentem falta nenhuma de Berlim?”
As crianças fizeram uma pausa e se entreolharam, perguntando-se qual dos dois iria se comprometer com uma primeira resposta. “Bem, eu sinto muita falta”, disse Gretel afinal. “Não me importaria de ter algumas amigas novamente.”
Bruno sorriu, pensando no seu segredo.
“Amigas”, disse o pai, acenando com a cabeça. “Sim, muitas vezes pensei nisso. Aqui deve ter sido solitário para você em alguns momentos.”
“Muito solitário”, disse Gretel numa voz determinada.
“E você, Bruno?”, perguntou o pai, agora olhando para ele. “Sente falta de seus amigos?”
“Bem, sim”, respondeu ele, pensando cuidadosamente na resposta. “Mas acho que sentiria falta das pessoas aonde quer que eu fosse.” Era uma referência indireta que ele fazia a Shmuel, mas não queria ter de ser mais explícito.
“Mas você gostaria de voltar a Berlim?”, perguntou o pai. “Se houvesse a oportunidade?”
“Todos nós?”, perguntou Bruno.
O pai deu um suspiro profundo e balançou a cabeça. “Mamãe, Gretel e você. De volta a nossa antiga casa em Berlim. Gostaria de voltar para lá?”
Bruno pensou a respeito. “Bom, eu não gostaria se você não estivesse lá”, disse ele, pois era a verdade.
“Prefere ficar aqui comigo?”
“Prefiro que nós quatro fiquemos juntos”, disse ele, relutantemente incluindo Gretel no “nós”. “Seja em Berlim ou em Haja-Vista.
“Oh, Bruno!”, disse Gretel, exasperada, o que ele não soube dizer se era porque ele estaria estragando os planos dela de voltar à cidade ou se era porque (de acordo com ela) continuava pronunciando errado o nome da casa atual.
“Bem, no momento temo que isso seja impossível”, disse o pai. “Infelizmente o Fúria não vai me dispensar da tarefa no momento. Sua mãe, por outro lado, acha que seria uma boa hora para vocês três voltarem a Berlim e reabrirem a casa, e quando eu penso a respeito...” Ele parou por um instante e olhou para a janela à sua esquerda – a janela que tinha vista para o campo do outro lado da cerca. “Quando penso a respeito, talvez ela esteja certa. Talvez este não seja um lugar para crianças.”
“Há centenas de crianças aqui”, disse Bruno, sem pensar realmente nas palavras antes de dizê-las. “Só que elas ficam do outro lado da cerca.”
Um silêncio se seguiu a esse comentário, mas não foi um silêncio normal, quando por acaso não há ninguém falando. Era como se fosse um silêncio muito barulhento. O pai e Gretel ficaram olhando para ele, que piscou os olhos, surpreso.
“Como assim, há centenas de crianças do outro lado?”, perguntou o pai. “O que você sabe sobre o que acontece daquele lado?”
Bruno abriu a boca para falar, porém teve medo de se meter em encrenca se revelasse demais. “Eu as vejo da janela do meu quarto”, disse afinal. “Estão muito longe, é claro, mas parecem centenas. Todas vestindo os mesmos pijamas listrados.”
“Os pijamas listrados, sim”, disse o pai, acenando afirmativamente. “E você as esteve observando, não é?”
“Bem, eu as vi”, disse Bruno. “Não sei se é a mesma coisa.”
O pai sorriu. “Muito bem, Bruno”, disse ele. “E você está certo, não é bem a mesma coisa.” Ele hesitou novamente e então acenou com a cabeça, como se tivesse tomado uma decisão final.
“Não, ela está certa”, disse ele, falando em voz alta, mas sem olhar para Gretel ou Bruno. “Ela tem toda a razão. Vocês já passaram tempo demais aqui. É hora de irem todos para casa.”
E então a decisão foi tomada. Mandaram avisar que a casa precisava ser limpa, as janelas lavadas, o corrimão encerado, as roupas de cama e mesa passadas, as camas feitas, e o pai anunciou que a mãe, Gretel e Bruno voltariam a Berlim dentro de uma semana.
Bruno descobriu que não estava esperando por aquele momento tanto quanto havia previsto e temia ter que dar a notícia a Shmuel.
PLANEJANDO A ÚLTIMA AVENTURA
No dia seguinte àquele em que o pai contara a Bruno que ele logo voltaria a Berlim, Shmuel não apareceu na cerca como de costume. Nem veio no dia seguinte. No terceiro dia, quando Bruno chegou lá não havia ninguém sentado de pernas cruzadas no chão, e ele esperou por dez minutos e estava prestes a dar meia-volta e ir para casa, extremamente preocupado por ter que deixar Haja-Vista sem ver o amigo uma última vez, quando um ponto na distância se transformou numa mancha que virou um vulto que virou uma pessoa que virou um menino de pijama listrado.
Bruno abriu um grande sorriso ao ver o vulto caminhando na sua direção e sentou-se no chão, pegando em seu bolso o pedaço de pão e a maça que contrabandeara consigo para dar a Shmuel. Contudo, mesmo à distância ele podia perceber que o amigo parecia ainda mais triste do que o habitual, e quando chegou à cerca ele não aceitou a comida com a ansiedade de sempre.
“Achei que você não vinha mais”, disse Bruno. “Eu vim ontem e anteontem também, mas você não estava aqui.”
“Desculpe”, disse Shmuel. “Aconteceu uma coisa.”
Bruno olhou para ele e estreitou os olhos, tentando adivinhar o que poderia ter ocorrido. Imaginou se Shmuel também fora notificado de que iria para casa; afinal, coincidências como essas aconteciam, como, por exemplo, o fato de os dois fazerem aniversário no mesmo dia.
“E então?”, perguntou Bruno. “O que houve?”
“Meu pai”, disse Shmuel. “Não conseguimos encontrá-lo.”
“Não conseguem encontrá-lo? Que estranho. Quer dizer que ele se perdeu?”
“Suponho que sim”, disse Shmuel. “Ele estava aqui na segunda e então foi mandado para o trabalho com mais alguns homens e nenhum deles voltou.”
“E ele não mandou uma carta?”, perguntou Bruno. “Ou será que deixou um bilhete, avisando quando estaria de volta?”
“Não”, disse Shmuel.
“Que estranho”, disse Bruno. “Você tentou procurar por ele?”, perguntou após um instante.
“Claro que sim”, disse Shmuel num suspiro. “Fiz aquilo de que você sempre fala. Fui explorar.”
“E não encontro nenhuma pista?”
“Nada.”
“Bem, isso é muito esquisito”, disse Bruno. “Mas acho que deve haver uma explicação simples.”
“E qual é?”, disse Shmuel.
“Imagino que os homens tenham sido levados para trabalhar em outra cidade e têm de ficar lá por alguns dias, até o serviço estar terminado. E o correio por aqui não é lá essas coisas. Acho que ele estará de volta dentro dos próximos dias.”
“Espero que sim”, disse Shmuel, que dava a impressão de que ia chorar. “Não sei o que devemos fazer sem ele.”
“Eu posso perguntar ao meu pai, se quiser”, disse Bruno cuidadosamente, torcendo para que Shmuel não dissesse sim.
“Não acho que seria uma boa idéia”, disse Shmuel, o que, para desapontamento de Bruno, não era uma negativa explícita.
“Por que não?”, perguntou ele. “Meu pai sabe muito sobre a vida do seu lado da cerca.”
“Acho que os soldados não gostam de nós”, disse Shmuel. “Bom”, acrescentou ele juntamente com o mais próximo de uma risada de que foi capaz, “eu sei que eles não gostam de nós. Eles nos odeiam.”
Bruno recostou-se, surpreso. “Tenho certeza de que não odeiam vocês”, disse ele.
“Odeiam sim”, disse Shmuel, inclinando-se para a frente, os olhos mais estreitos e os lábios levemente retorcidos pela raiva. “Mas tudo bem, porque eu odeio eles também. Eu odeio todos eles”, repetiu ele, convicto.
“Não odeia o meu pai, não é?”, perguntou Bruno.
Shmuel mordeu os lábios e não disse nada. Ele já vira o pai de Bruno em diversas ocasiões e não compreendia como era possível tal homem ter um filho tão amável e gentil.
“Enfim”, disse Bruno após uma pausa devida, não querendo mais discutir o assunto, “eu também tenho algo a lhe contar.”
“Tem, é?”, perguntou Shmuel, olhando para ele cheio de esperança.
“Sim. Vou voltar a Berlim.”
O queixo de Shmuel caiu, tamanha foi sua surpresa. “Quando?”, ele perguntou, a voz presa na garganta enquanto falava.
“Bom, hoje é quinta-feira”, disse Bruno. “E nós vamos no sábado. Depois do almoço.”
“Mas por quanto tempo?”, perguntou Shmuel.
“Acho que é para sempre”, disse Bruno. “Minha mãe não gosta daqui de Haja-Vista – ela disse que aqui não é lugar para se criar duas crianças -, e então meu pai vai ficar aqui para trabalhar porque o Fúria tem grandes planos para ele, mas o resto de nós vai para casa.”
Ele usou a palavra “casa”, apesar de não saber mais onde era sua verdadeira “casa”.
“Então eu não vou mais ver você?”, perguntou Shmuel.
“Bem, algum dia sim”, disse Bruno. “Você pode ir a Berlim passar as férias. Não é possível que você tenha que ficar aqui para sempre, não é?”
Shmuel balançou a cabeça. “Acho que não”, disse, triste. “Não terei com quem conversar depois que você se for”, ele acrescentou.
“Não”, disse Bruno. Ele quis acrescentar as palavras “Eu também vou sentir sua falta, Shmuel” à sua frase, mas percebeu que estava um pouco envergonhado para dizê-las. “Então amanhã será a última vez em que nos veremos”, prosseguiu ele. “Teremos que nos despedir então. Vou tentar lhe trazer um lanche especial.”
Shmuel acenou afirmativamente, mas não encontrou palavras para expressar sua tristeza.
“Queria que a gente pudesse brincar juntos”, disse Bruno, após uma longa pausa. “Só uma vez. Só para ter a lembrança.”
“Eu também queria”, disse Shmuel.
“Já faz mais de um ano que conversamos e nunca tivemos a chance de brincar. E sabe o que mais?”, acrescentou ele. “Todo este tempo eu fiquei olhando da minha janela o lugar onde você mora, mas nunca vi com meus próprios olhos como é de fato o outro lado.”
“Você não iria gostar”, disse Shmuel. “Sua casa é muito mais confortável”, ele acrescentou.
“Mesmo assim eu gostaria de conhecer”, disse Bruno.
Shmuel pensou por alguns instantes e então se abaixou e meteu a mão na cerca, erguendo-a um pouco, apenas o suficiente para passar um menino pequeno, talvez do tamanho de Bruno.
“E então?”, disse Shmuel. “Por que não vem olhar?”
Bruno piscou e pensou a respeito. “Acho que não me deixariam”, ele disse, cheio de dúvidas.
“Bom, provavelmente também não deixam você vir até aqui e conversar comigo todos os dias”, disse Shmuel. “E mesmo assim você vem, não vem?”
“Mas se me pegassem, eu estaria encrencado”, disse Bruno, certo de que a mãe e o pai não aprovariam suas escapadas.
“É verdade”, disse Shmuel, abaixando a cerca novamente e olhando para o chão com lágrimas nos olhos. “Então acho que amanhã nos veremos para dizer adeus.”
Nenhum dos meninos disse nada por um momento. Subitamente Bruno teve um lampejo.
“A não ser que...”, ele começou, pensando por um instante e deixando seu plano crescer em sua mente. Ele levou a mão à cabeça e apalpou onde costumava haver cabelo e onde agora só restava uma penugem que ainda não crescera inteiramente. “Lembra-se de que você disse que eu estava parecido com você?”, perguntou a Shmuel. “Quando rasparam minha cabeça?”
“Só que mais gordo”, concordou Shmuel.
“Bem, se é assim”, disse Bruno, “e se eu também tivesse um par de pijamas listrados, aí eu poderia passar para o seu lado e fazer uma visita, sem que ninguém percebesse.”
O rosto de Shmuel se iluminou, e ele abriu um grande sorriso. “Acha mesmo?”, ele perguntou. “Faria isso?”
“É claro”, disse Bruno. “Seria uma grande aventura. Nossa última aventura. Finalmente eu poderei explorar um pouco.”
“E você poderia me ajudar a procurar meu pai”, disse Shmuel.
“Por que não?”, disse Bruno. “Vamos dar uma volta e procurar alguma pista. É o que se deve fazer quando se está explorando. O único problema é conseguir um par sobressalente de pijamas listrados.”
Shmuel balançou a cabeça. “Não tem problema”, ele disse. “Sei de uma cabana onde eles ficam guardados. Posso pegar um do meu tamanho e trazê-lo para você. Aí você se troca e nós poderemos procurar meu pai.”
“Maravilha”, disse Bruno, levando pelo entusiasmo do momento. “Então esse é o nosso plano.”
“Vamos nos encontrar amanhã no mesmo horário”, disse Shmuel.
“Não vá se atrasar desta vez”, disse Bruno, levantando-se e batendo o pó de si. “E não se esqueça do pijama listrado.”
Os dois meninos foram animados para casa naquela tarde. Bruno imaginou uma grande aventura diante de si; finalmente ele teria a oportunidade de ver o que havia do outro lado da cerca antes de voltar a Berlim – sem falar na chance de fazer alguma exploração de verdade. Shmuel viu a oportunidade de conseguir alguém para ajudá-lo a procurar seu pai. Tudo considerado, o plano parecia muito inteligente e era uma boa maneira de se despedir.
O QUE ACONTECEU NO DIA SEGUINTE
O dia seguinte – sexta-feira – foi mais um dia molhado. Quando Bruno acordou pela manhã, olhou pela janela e ficou desapontado ao ver a chuva caindo. Se não fosse pelo fato de que aquela seria a última chance de ele e Shmuel passarem algum tempo juntos – sem falar que a aventura prometia ser muito emocionante, especialmente porque envolvia fantasias e roupas, - ele teria desistido de sair e teria esperado por outra tarde na semana seguinte, quando não tivesse planejado nada de especial.
Entretanto, o tempo estava passando e não havia nada que ele pudesse fazer o respeito. E, afinal, era apenas de manhã, muita coisa poderia acontecer até a tarde, no horário em que os meninos costumavam se encontrar. Certamente a chuva já teria parado àquela altura.
Ele ficou olhando pela janela durante as aulas matinais de herr Liszt, mas a chuva não deu sinais de enfraquecimento e até golpeava com maior força as janelas. Bruno observou a janela durante o almoço na cozinha, quando estava chorando definitivamente menos, e até viu um raio de sol saindo de trás de uma nuvem escura. Ele olhou a chuva durante as aulas de geografia e história ao longo da tarde, quando o vento atingiu sua força máxima e a chuva até ameaçou derrubar as janelas.
Felizmente a chuva parou quase na hora de herr Liszt ir embora, e então Bruno vestiu um par de botas e o pesado casaco de chuva, esperou até que ninguém estivesse olhando e saiu de casa.
As botas chafurdavam na lama e ele passou a apreciar a caminhada mais do que em qualquer outra ocasião anterior. A cada passo Bruno parecia enfrentar o perigo de tropeçar e cair, o que não chegou a acontecer, pois ele conseguiu manter o equilíbrio, até mesmo num trecho especialmente ruim onde, ao erguer a perna esquerda, a bota ficou presa na lama enquanto seu pé escorregou direto para fora do calçado.
Ele olhou para o céu e, embora ainda estivesse bastante escuro, pensou que já havia chovido o suficiente por um dia e que estaria a salvo durante a tarde. É claro que depois haveria o desafio de explicar por que estaria tão sujo ao voltar para casa mais tarde, mas Bruno pensou que poderia usar como argumento o fato de ser um menino típico, o que a mãe sempre dizia que ele era, e assim provavelmente não se meteria em muita encrenca. (A mãe estivera especialmente feliz durante os dias anteriores, à medida que cada um dos pertences da família era empacotado e mandado para Berlim.)
Shmuel estava esperando por Bruno quando este chegou, e pela primeira vez ele não estava sentado de pernas cruzadas no chão, olhando para a poeira sob seus pés; ao contrário, estava de pé, apoiado contra a cerca.
“Olá, Bruno”, disse ele quando viu o amigo se aproximando.
“Olá, Shmuel”, disse Bruno.
“Não sabia se nos veríamos novamente – com a chuva e tudo o mais, quero dizer”, disse Shmuel. “Achei que talvez você tivesse que ficar dentro de casa.”
“Foi arriscado no começo”, disse Bruno. “Com a chuva tão forte.”
Shmuel confirmou com a cabeça e estendeu as mãos para Bruno, que abriu a boca, encantado. Ele trazia um par de calças listradas, o paletó listrado e o boné listrado de pano que compunham um pijama exatamente igual ao que estava vestindo. Não estava muito limpo, mas servia como disfarce, e Bruno sabia que os melhores exploradores sempre usam as roupas certas.
“Ainda quer me ajudar a encontrar meu pai?”, perguntou Shmuel, ao que Bruno acenou rapidamente com a cabeça.
“É claro”, ele disse, embora na sua cabeça procurar o pai de Shmuel não fosse tão importante quanto a possibilidade de explorar o mundo do outro lado da cerca. “Não iria desapontá-lo.”
Shmuel ergueu do chão a parte de baixo da cerca e passou por baixo dela as roupas para Bruno, tomando muito cuidado para não deixá-las tocar o chão enlameado.
“Obrigado”, disse Bruno, coçando a cabeça rala e se perguntando por que não lembrara de trazer uma sacola na qual deixar as próprias roupas. O chão naquele ponto era tão sujo que elas ficariam arruinadas se fossem deixadas ali. Não havia escolha, na verdade. Ele poderia deixá-las ali até mais tarde e aceitar o fato de que estariam completamente tomadas pela lama; ou podia desistir da coisa toda, e isso, como qualquer explorador sabia, estava absolutamente fora de questão.
“Bem, vire para lá”, disse Bruno, apontando para o amigo que estava ali sem jeito, “não quero que fique me observando.”
Shmuel deu meia-volta e Bruno tirou o casaco e depositou-o o mais delicadamente que pôde no chão. Depois tirou a camisa e tremeu no ar frio por um instante antes de vestir o paletó do pijama. Enquanto o passava pela cabeça, teve a infeliz idéia de respirar pelo nariz; o odor não era bom.
“Quando foi a última vez que foi lavado?”, perguntou ele, e Shmuel voltou-se novamente.
“Não sei se já foi lavado”, disse Shmuel.
“Vire para lá!”, gritou Bruno, e Shmuel obedeceu. Bruno olhou para a esquerda e para a direita oura vez; como não havia ninguém à vista, ele começou o difícil processo de tirar as calças enquanto descalçava uma bota, e depois a outra, passando as pernas alternadamente. Parecia muito estranho tirar as calças ao ar livre e ele não era capaz de imaginar o que pensaria uma pessoa que o visse naquele momento, mas finalmente, e após grande esforço, conseguiu completar a tarefa.
“Pronto”, disse ele. “Pode virar de novo.”
Shmuel voltou-se bem quando Bruno aplicava o toque final ao disfarce, colocando o boné de pano na cabeça. Shmuel piscou e balançou a cabeça. Estava realmente muito bom. Se não fosse pelo fato de que Bruno não era nem de longe tão magro quanto os meninos daquele lado da cerca, nem tão pálido, seria difícil distinguir entre eles. Era quase (pensou Shmuel) como se fossem mesmo exatamente iguais.
“Sabe o que isso tudo me lembra?”, perguntou Bruno, e Shmuel balançou a cabeça.
“O quê?”, perguntou ele.
“Isso me lembra da minha avó”, disse ele. “Lembra-se de quando eu lhe falei dela? Aquela que morreu?”
Shmuel acenou com a cabeça; ele se lembrava porque Bruno falara muito dela ao longo do ano e lhe contara o quanto gostava da avó e como gostaria de ter aproveitado melhor o tempo para poder escrever-lhe mais cartas antes que ela morresse.
“Lembra-me das peças que ela costumava encenar comigo e com Gretel”, disse Bruno, tirando os olhos de Shmuel, enquanto recordava aqueles dias distantes, ainda em Berlim, parte das muito poucas memórias que se recusavam a se desvanecer. “Lembra-me de como ela sempre tinha a roupa certa para mim. Usando a roupa certa, você se sente como a pessoa que está fingindo ser, ela sempre me dizia. Creio que é isso o que estou fazendo, não? Fingindo ser uma pessoa do outro lado da cerca.”
“Um judeu, você quer dizer”, disse Shmuel.
“Sim”, disse Bruno, equilibrando-se nos pés em sinal de desconforto. “Isso mesmo.”
Shmuel apontou para os pés de Bruno e para as botas pesadas que ele trouxera de casa. “Vai ter que deixá-las para trás também”, disse ele.
Bruno fez cara de desgosto. “Mas e a lama?”, disse ele. “Você não espera que eu vá descalço.”
“Se não for, será reconhecido”, disse Shmuel. “Não tem escolha.”
Bruno suspirou, mas sabia que o amigo tinha razão; então tirou as botas e as meias e as deixou ao lado da pilha de roupas no chão. De início pareceu horrível colocar os pés descalços dentro de tanta lama; eles afundavam até os tornozelos e, cada vez que ele erguia o pé, a coisa parecia ficar pior. Depois porém ele até que começou a gostar da sensação.
Shmuel abaixou-se e ergueu a base da cerca, que só cedia até certa altura, e Bruno foi obrigado a rolar por baixo dela, cobrindo de lama completamente o pijama listrado. Ele gargalhou quando olhou para si mesmo. Jamais estivera tão sujo em toda a vida, e a sensação era maravilhosa.
Shmuel também sorriu e os dois meninos ficaram juntos, sem jeito por um instante, desacostumados que estavam a ficar do mesmo lado da cerca.
Bruno sentiu um impulso de abraçar Shmuel, apenas para mostrar-lhe o quanto gostava dele e como fora bom conversar com ele durante o ano que passara ali.
Shmuel também sentiu um impulso de abraçar Bruno, apenas para agradecer-lhe pelas incontáveis gentilezas, e pela comida que trazia de presente, e pelo fato de que iria ajudá-lo a procurar pelo pai.
No entanto, nenhum deles abraçou o outro; em vez disso, começaram a caminhada desde a cerca até o campo, uma caminhada que Shmuel fizera quase todos os dias já há quase um ano, quando escapava dos olhares dos soldados e conseguia chegar até a única parte de Haja-Vista que parecia não estar sob vigilância constante, um lugar no qual ele tivera a sorte de encontrar um amigo como Bruno.
Não demorou para que alcançassem o campo. Bruno abriu os olhos, assombrado com as coisas que via. Na sua imaginação ele pensara que todas as cabanas estavam cheias de famílias felizes, algumas das quais se sentavam do lado de fora em suas cadeiras de balanço durante o anoitecer e contavam histórias sobre como as coisas eram melhores quando eram crianças e tinham respeito pelos mais velhos, ao contrário das crianças de hoje. Pensou que todos os meninos e meninas que moravam ali estariam em grupos diferentes, jogando tênis ou futebol, pulando corda e desenhando no chão quadrados para jogar amarelinha.
Imaginou que haveria uma loja no centro, e quem sabe um pequeno café como aqueles que ele vira em Berlim; perguntava-se se haveria uma banca de frutas e legumes.
Como ele pôde ver, todas as coisas que ele imaginou estarem lá – não estavam.
Não havia adultos sentados em cadeiras de balanço nas varandas.
E as crianças não estavam brincando em grupos.
E não só faltava uma banca de frutas e legumes, como tampouco havia algum café parecido com os de Berlim.
Em vez disso, o que havia eram multidões de pessoas sentadas juntas em grupos, olhando para o chão, com uma aparência terrivelmente triste; todos tinham uma coisa em comum: eram absurdamente magros, e os olhos eram fundos, e as cabeças, raspadas, o que Bruno imaginou indicar que lá também houvera uma epidemia de piolhos.
Num canto Bruno viu três soldados que pareciam encarregados de um grupo de cerca de vinte homens. Estavam gritando com eles, e alguns dos homens haviam caídos de joelhos e lá estavam com as cabeças entre as mãos.
Noutro canto ele viu mais alguns soldados montando guarda e rindo e olhando pelas miras das armas, apontando-as em várias direções, mas sem dispará-las.
Na verdade, para onde quer que ele olhasse, só via dois tipos de gente: se não eram os soldados felizes, sorridentes e gritalhões nos seus uniformes, então eram as pessoas infelizes e choronas de pijama listrado, a maioria das quais parecia estar olhando para o nada, como se estivessem de fato adormecidas.
“Acho que não gosto daqui”, disse Bruno depois de um tempo.
“Eu também não gosto”, disse Shmuel.
“Acho que é melhor ir para casa”, disse Bruno.
Shmuel parou de andar e olhou para ele. “Mas e o meu pai?”, disse ele. “Você falou que ia me ajudar a encontrá-lo.”
Bruno pensou um pouco. Havia feito uma promessa ao amigo e ele não era do tipo que não cumpria uma promessa, especialmente considerando que era a última vez que me veriam. “Tudo bem”, ele disse, embora estivesse bem menos seguro do que antes. “Mas onde devemos procurar?”
“Você disse que precisávamos encontrar pistas”, disse Shmuel, que estava chateado porque pensava que, se Bruno não o ajudasse, então quem ajudaria?
“Pistas, claro”, disse Bruno, concordando com a cabeça. “Você tem razão. Vamos começar a procurá-las.”
Bruno manteve sua palavra e os dois meninos passaram uma hora e meia procurando pistas pelo campo. Não sabiam ao certo o que estavam procurando, mas Bruno seguiu dizendo que um bom explorador saberia reconhecer o que procurava quando encontrasse. No entanto, eles não encontraram nada que lhes desse alguma idéia do que teria acontecido como pai de Shmuel, e estava começando a ficar escuro.
Bruno olhou para o céu e parecia que ia chover novamente. “Sinto muito, Shmuel”, disse afinal. “É uma pena que não tenhamos encontrado nenhuma pista.”
Shmuel consentiu com a cabeça, triste. Ele não estava realmente surpreso. Já não esperava encontrar nada. Mas mesmo assim tinha sido legal trazer o amigo para ver como era o lugar onde ele morava.
“Acho que agora é hora de ir para casa”, disse Bruno. “Podemos ir juntos até a cerca?”
Shmuel abriu a boca para responder, mas bem naquele instante ouviu-se um apito alto e dez soldados – o maior número deles que Bruno vira reunidos num só lugar – cercaram um setor do campo, o setor em que estavam Bruno e Shmuel.
“O que está havendo?”, sussurrou Bruno. “O que vai acontecer?”
“Isso acontece de vez em quando”, disse Shmuel. “Fazem as pessoas saírem para marchar.”
“Marchar!”, disse Bruno, desgostoso. “Não posso sair para marchar. Tenho que estar em casa a tempo do jantar. Hoje tem rosbife.”
Ssh”, disse Shmuel, pondo um dedo sobre seus lábios. “Não diga nada, senão eles ficam bravos.”
Bruno franziu a testa, mas ficou aliviado ao ver que todas as pessoas de pijama listrado daquela parte do campo estavam se reunindo, a maioria sendo empurradas pelos soldados, de maneira que ele e Shmuel ficaram escondidos no meio deles e não podiam ser vistos. Ele não sabia por que estavam todos tão assustados – afinal, marchar não era lá tão terrível – e queria sussurrar para eles que tudo ia ficar bem, que o pai dele era o comandante, e se esse era o tipo de coisa que ele queria das pessoas, então não poderia ser nada de ruim.
Os apitos soaram novamente, e desta vez o grupo, que devia ser de cerca de cem pessoas, começou a marchar lentamente, todo mundo junto, com Bruno e Shmuel ainda presos no centro. Houve algum tipo de tumulto na parte de trás, onde alguns homens pareciam se recusar a marchar, mas Bruno era pequeno demais para ver o que estava acontecendo e tudo o que ouviu foi um barulho muito alto, como o de tiros, porém não foi capaz de precisar o que era.
“Será que a marcha demora muito?”, sussurrou ele, pois estava começando a sentir fome.
“Acho que não”, disse Shmuel. “Quando as pessoas saem para marchar, eu nunca mais as vejo. Mas imagino que não demore.”
Bruno franziu o cenho novamente e olhou para o céu, e enquanto fazia isso ouviu outro barulho alto, desta vez o som de um trovão, e nesse mesmo instante o céu pareceu ficar mais escuro, quase negro, e a chuva caiu com força ainda maior do que pela manhã. Bruno fechou os olhos por um instante e sentiu os pingos lavando-lhe o corpo. Quando tornou a abri-los, não estava de fato marchando, mas sim sendo arrastado junto com o grupo de pessoas, e tudo o que podia sentir era a lama que cobria seu corpo e o pijama grudado à pele por causa da intensidade da chuva e ele quis muito estar de volta em casa, observando tudo aquilo à distância, sem tomar parte dos acontecimentos.
“Já chega”, disse ele a Shmuel. “Desse jeito eu vou pegar um resfriado aqui. Tenho que ir para casa.”
Mas, enquanto ele dizia essas palavras, seus pés o levaram a um lance de degraus, e, ao prosseguir marchando, percebeu que não estava mais chovendo, porque estavam todos se amontoando num longo cômodo que era surpreendentemente quente e devia ter sido construído de maneira bastante segura, pois a chuva não entrava por parte alguma. Na verdade o cômodo dava a impressão de ser absolutamente hermético.
“Bem, melhor agora”, ele disse, contente por estar fora da tempestade, nem que fosse por alguns minutos. “Acho que teremos que esperar aqui até a chuva passar e então iremos para casa.”
Shmuel se aproximou bastante de Bruno e olhou para ele assustado.
“Sinto muito por não termos encontrado seu pai”, disse Bruno.
“Tudo bem”, disse Shmuel.
“E sinto muito que não tenhamos podido brincar, mas, quando você for a Berlim, é só o que faremos, e eu o apresentarei a... Puxa, como era mesmo que eles se chamavam?”, Bruno se perguntou, frustrado, pois eles deveriam ser os seus três melhores amigos para toda a vida, mas tinham desaparecido de sua memória àquela altura. Ele não se lembrava de seus nomes nem de seus rostos.
“Pensando bem”, ele disse, olhando para Shmuel, “não importa se eu lembro ou não. Eles não são mais meus melhores amigos mesmo.” Ele olhou para baixo e fez algo bastante incomum para a sua personalidade: tomou a pequena mão de Shmuel e apertou-a com força entre as suas.
“Você é o meu melhor amigo, Shmuel”, disse ele. “Meu melhor amigo para a vida toda.”
Shmuel poderia ter aberto a boca para responder alguma coisa, mas Bruno não teria escutado porque neste instante ouviu-se o alto ruído de todos os que haviam marchado para dentro engolindo em seco, enquanto a porta da frente foi subitamente trancada e um forte barulho metálico ecoou vindo de fora.
Bruno ergueu uma sobrancelha, incapaz de compreender o sentido daquilo tudo, mas presumiu que tivesse algo a ver com a necessidade de manter a chuva longe e impedir que as pessoas ficassem resfriadas.
E então o cômodo ficou escuro e de alguma maneira, apesar do caos que se seguiu, Bruno percebeu que ainda estava segurando a mão de Shmuel entre as suas e nada no mundo o teria convencido a soltá-la.
O ÚLTIMO CAPÍTULO
Nada mais se soube de Bruno depois disso.
Muitos dias mais tarde, depois que os soldados haviam revistado cada canto da casa e ido a todas as cidades e vilas com fotos do garoto, um deles descobriu a pilha de roupas e as botas que Bruno acomodara perto da cerca. O soldado deixou tudo lá, intocado, e foi buscar o comandante, que examinou a área e olhou para a esquerda e para a direita assim como Bruno fizera, sem ser capaz de compreender o que acontecera ao filho. Era como se ele tivesse simplesmente desaparecido da face da Terra e largado as roupas para trás.
A mãe não voltou a Berlim tão rápido quanto esperava. Ficou em Haja-Vista por muitos meses à espera de notícias de Bruno, até que um dia, muito subitamente, pensou que ele tivesse ido sozinho para casa, e então de imediato retornou à casa antiga, de certo modo acreditando encontrá-lo sentado na soleira da porta, esperando por ela.
É claro que ele não estava lá.
Gretel voltou a Berlim com a mãe e passava boa parte do tempo chorando sozinha em seu quarto, não porque havia jogado fora todas as suas bonecas, nem porque havia deixado os mapas para trás em Haja-Vista, e sim porque sentia muito a falta de Bruno.
O pai ficou em Haja-Vista por mais um ano depois daquilo e acabou sendo hostilizado pelos outros soldados, nos quais mandava e desmandava sem escrúpulos. Todas as noites ele dormia pensando em Bruno e quando acordava estava pensando nele também. Um dia ele formulou uma teoria sobre o que poderia ter ocorrido e foi novamente até o ponto na cerca onde as roupas haviam sido encontradas um ano antes.
Não havia nada de especial naquele lugar, nada de diferente, mas então ele explorou um pouco e descobriu que naquele ponto a parte de baixo da cerca não estava tão bem fixada ao chão quanto nas demais, e que, quando erguida, a cerca deixava um vão grande o bastante para uma pessoa pequena (como um menino) conseguir passar por baixo rastejando. Ele olhou para a distância e seguiu alguns passos lógicos e, ao fazê-lo, percebeu que as pernas não estavam funcionando direito – como se não pudessem mais manter seu corpo ereto – e acabou sentado no chão, quase na mesma posição em que Bruno passara as suas tardes durante um ano, embora sem cruzar as pernas sob si.
Alguns meses mais tarde alguns soldados vieram a Haja-Vista, e o pai recebeu ordens de acompanhá-los, e foi sem reclamar, contente de ir com eles, pois não se importava com o que lhe fizessem agora.
E assim termina a história de Bruno e sua família. Claro que tudo isso aconteceu há muito tempo e nada parecido poderia acontecer de novo.
Não na nossa época.
John Boyne
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