Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O MENINO ENJEITADO
Um menino malcriado
Pouco mais ou menos um ano depois do senhor Jorge Gerrells ter comprado aquela linda propriedade perto de Epsom, onde passou a residir com a família, sucedeu um facto extraordinário. A Alicinha, que contava então oito anos e já andava na escola, nunca mais o pôde esquecer. Logo nos dias seguintes o contou às suas condiscípulas, que não cessaram de fazer comentários, atrevendo-se algumas a ir a casa dela pedir licença à mãe para ver o bebé. E regressavam de lá encantadas.
O bebé na verdade era um amor. Devia contar uns três anos, ou talvez mais. Tinha uma cabeça de querubim, desses que aparecem pintados nos quadros religiosos de outros tempos, cheios de caracóis louros, uma boquinha rosada de romã, uns olhos azuis muito vivos e risonhos. Estendia os bracinhos a toda a gente que tivesse artes de o cativar e pairava desenvoltamente. Mas o que mais impressionava nas pessoas que o foram ver, pois o caso dera brado por algumas léguas em redor, fora a maneira misteriosa como o bebé aparecera em casa dos Gerrells.
A senhora Eva de Gerrells não se cansava de o contar, tinha mesmo um certo empenho em que o estranho acontecimento se divulgasse.
Deviam ser umas nove horas da noite. Tinham acabado de jantar pouco antes, porque o senhor Gerrells regressara de Londres um pouco atrasado nesse dia. Afazeres no seu escritório na «city» haviam-no retido até mais tarde que o normal. A refeição decorrera na paz e na alegria do costume.
O senhor Gerrells, como tivesse tido muitas preocupações nesse dia, sentia-se um pouco fatigado. Sentara-se no «maple», junto da telefonia, a fumar o seu cigarro. Mas depressa fechou as válvulas, porque o ruído musical o enervava. Alice viera encarrapitar-se-lhe nos joelhos, como tantas vezes fazia, e contava-lhe episódios da escola, que ela principiara a frequentar pela primeira vez nesse ano lectivo.
A senhora Gerrells acabava de dar as suas ordens à Clara, a criada, e viera acomodar-se no outro «maple» na vasta sala de jantar do lindo «cottage» que lhes servia ao mesmo tempo de sala de visitas quando era preciso. Até ralhara com Alice por ela estar a maçar o pai, que precisava de repouso.
Jorge dissera:
- Deixa estar a pequena... Não me maça nada...
Então, a senhora Gerrells acendera o radiador, porque, apesar de o mês de Março se ter apresentado bastante quente, de noite a temperatura baixava muito. Em seguida, pegara no bordado, para lhe dar mais um avanço, pois só o podia fazer nos momentos em que as ocupações do lar a não absorviam tanto.
Alice acabava de dizer ao pai que a senhora professora a elogiara nesse dia durante a lição de leitura. Fora ela, de entre todas as suas companheiras da primeira classe, a que lera sem hesitações um trecho de oito linhas.
Jorge prometeu:
- Se, no fim do ano, tiveres boa aplicação, faço-te uma surpresa.
- Que surpresa é ?... - indagou Alice, cheia de curiosidade.
- Se te vou dizer, deixa de ser surpresa - redarguiu o senhor Gerrells, sorrindo.
- Calem-se!-gritou bruscamente a senhora Gerrells.
Pai e filha olharam-na, intrigados. Fez-se um grande silêncio na sala. Eva inclinava a cabeça para o lado da porta, na atitude de quem escuta atentamente. Ouviu-se o ligeiro uivo de uma lufada de vento que se levantara depois do anoitecer. Alice, sem saber porquê, teve medo e sentiu um arrepio.
- Não oiço nada...-disse Jorge Gerrells. Antes que sua esposa pudesse redarguir, alguma coisa soou lá fora. Desta vez todos ouviram. Entreolharam-se, atónitos.
- Uma criança a chorar... - murmurou Eva.
- Também me pareceu... - concordou o marido.
- Eu também ouvi...-sussurrou Alice, levantando para seu pai os olhos escancarados, onde havia temor e espanto ao mesmo tempo.
- Iria jurar que uma criança chorou aqui, à porta - tornou a afirmar a senhora Gerrells, franzindo as suas sobrancelhas castanhas e finas como um risco traçado a capricho.
A porta de entrada não era longe. Saía-se da sala de jantar para um pequeno vestíbulo. Desse vestíbulo passava-se pela porta principal para o jardim, que ficava entre o «cottage» e o portão aberto no muro, que corria ao longo da estrada. O portão raras vezes se fechava no trinco. Aliás, qualquer pessoa o podia abrir, da parte de fora, metendo a mão por entre as grades. À noite, depois do senhor Gerrells passar com o automóvel, no seu regresso de Londres, Eduardo, o caseiro, encostava o portão, ou fechava-o no trinco.
Foi junto da porta principal que dava acesso ao vestíbulo, que os Gerrells julgaram ouvir uma criança chorar. E ainda vacilavam, perguntando a si próprios se não teria sido ilusão dos seus ouvidos, quando desta vez, o choro soou de novo e uma vozita infantil, num tom aflitivo, começou a chamar:
- Marta!... Marta!...
Quem chamaria assim tão aflitivamente por um nome que ninguém usava naquela casa ? O senhor Gerrells, pondo bruscamente a sua filha no chão, ergueu-se de chofre e exclamou:
- É preciso ver o que é !...
Já sua esposa corria na sua frente para o vestíbulo. Em poucos instantes, deu a volta ao comutador, acendendo o lampeão exterior, que iluminava a curta escadaria da entrada e, abrindo a porta, ia precipitar-se para o jardim, quando se deteve com uma exclamação de susto.
Por pouco não pisara um grande rolo de roupas, uma espécie de trouxa que estava no solo do vasto patamar de pedra. De dentro daquela confusão de trapos emergia um rosto muito alvo em que luziam, aterrados, uns olhinhõs claros. A criança chamava agora num tom mais desesperado:
- Marta!... Marta!...
Jorge, mais resoluto, tomou o imenso volume nos seus braços e, correndo para dentro, exclamava:
- Deve ser uma criança enjeitada !...
Eva e a filha reentraram em casa, seguindo-o, num grande alvoroço. Alicinha não saberia explicar o que sentia. Aquela cena, tão inesperada, fazia-lhe bater apressadamente o coração. Tremia toda sem saber porquê.
Gerrells entrara na sala de jantar e pousara o fardo humano no «maple» onde momentos antes repousava tão regaladamente. E logo verificou:
- Amarraram a criança para que ela não fugisse...
Efectivamente, cordas fortes tinham sido passadas em volta do enchumaço de roupas que serviam simultaneamente para a manietar e agasalhar.
- Pobre bebé!... -lamentava a senhora Gerrells, ajudando seu marido a tirar as cordas e em seguida a desenrolar a criança das inúmeras voltas de panos velhos, alguns de lã, em que a tinham enrolado.
Alice, que juntara nervosamente as mãos uma à outra, assistia aos esforços de seu pai, sem ter forças para exprimir a estranha comoção que a fazia tremer dos pés à cabeça. A criança cessara de chorar e, com os olhinhos ainda cheios de lágrimas, olhava assustada para aquela menina que o contemplava.
Mas o seu pranto apenas se interrompera por alguns instantes. Não tardou em estender o beicinho inferior e, soluçando, embora com menos estridência, voltava a chamar aflitivamente:
- Marta !... Marta !...
- Cala-te... Sossega... A Marta já vem!...
- asseverava a senhora Gerrells, em tom carinhoso.
A criança estava livre, enfim, da trapagem que lhe servira, ao mesmo tempo, de abrigo e de prisão. Depois de Eva lhe tirar o último farrapo, Jorge colocou-a de pé sobre o quente tapete.
Era um menino de aparência robusta. Vestia calção e camisola de malha de lã azul-clara, polai-nitos brancos, sapatinhos de cabedal amarelo, forrados de pele de cabra. Na cabeça trazia um gorro de lã azul, como o fato, de sob o qual espreitavam alguns anéis do cabelo louro, cor de palha. Devia ter uns três anos, não muito mais.
Os Gerrells, agora, olhavam-no, perplexos, e ele, com os làbiozinhos a tremer, batendo as mãozinhas uma na outra, repetia:
- Marta!... Marta!... Quero a Marta!... Clara, a criada, mocetona de vinte e oito anos,
viera, bisbilhoteira, espreitar à porta da sala, atraída pelos gritos do pequeno. Depois, mais afoita, veio juntar-se ao grupo formado pelos patrões, a inquirir, num assombro:
- Ah !... Que bonito menino !... Quem o trouxe ?...
Seus amos estavam nesse momento muito preocupados para lhe satisfazerem a curiosidade.
- Quero a Marta !... Onde está a Marta ?...
- choramingou o menino.
Então, Eva aproximou-se da criança para lhe pegar ao colo.
- Não!... Não te quero!... A Marta... Quero a Marta!...-gritava o menino, empurrando-a e começando a bater com os pés no chão, furiosamente.
A senhora Gerrells deteve-se para não o irritar ainda mais e olhou para o marido que, muito pensativo, parecia observá-lo cuidadosamente.
- É preciso captar-lhe a confiança... - disse ele. - De contrário, nada faremos dele.
- Talvez esteja com fominha !... - lembrou Eva.
- Experimentemos dar-lhe de comer - alvitrou Jorge.
- Clara, traze um pouco de compota num pires!...-ordenou a senhora Gerrells à criada, que abalou para cumprir a ordem.
Alice saiu, com ela, de corrida.
- Escuta, meu menino. Como te chamas ?...
- inquiriu Eva, dirigindo-se carinhosamente ao bebé.
- Não te quero!...-gritou ele, irado, levantando a mãozinha papuda, num ar de ameaça. E começou a gritar, com toda a força dos seus pulmões, que se revelavam robustos: -Marta !... Marta!... Quero ir à tia Marta !...
Ao senhor Gerrells não escapava nem uma atitude, nem uma palavra do pequeno.
- Quem é a tia Marta?... - inquiriu ele.
- É a tia Marta !... Quero a Marta !... - foi a resposta do pequeno desconhecido.
Mostrava-se mais irritado do que medroso. Fixava aquelas pessoas que via pela primeira vez, com rancor. Fazia-lhes arremessos, levantando a mão ameaçadora.
- Vê-se que a sua educação não tem sido muito esmerada - disse Gerrells a sua esposa.
- Já o notei - concordou esta. - Contudo, o vestuário denota um certo gosto e conforto...
Clara entrou com um pires de compota de pêra e uma colherinha de chá.
- Venha cá, meu menino... Vamos papar doce!...-disse ela, jovial, aproximando-se, com a colher já cheia.
O pequeno fez uma careta irritada e com um sopapo atirou o pires e a compota, que caíram das mãos da criada sobre o tapete, manchando-o. E ao mesmo tempo redobrou de fúria nos seus clamores.
- Quero a Marta !... Não gosto de ti!... Clara recuou, contristada, comentando:
- Tão bonito e tão mauzinho...
- É melhor não insistir - opinou Jorge. Primeiro, temos de o tornar mais confiante... Deixemo-lo à vontade, dando-lhe pouca importância... É a melhor táctica a adoptar...
Neste instante, Alice, que desaparecera uns momentos antes, surgiu na sala. Trazia ao colo a sua grande boneca de porcelana, que andava sempre vestida que era um amor.
- Olha, Bebé !... - exclamou ela. - Gostas desta menina ?...
E mostrava-lhe a boneca, que parecia fixá-lo com seus olhinhos. O pequeno quedou-se, primeiro, a olhar cheio de surpresa para aquele bonito. A sua fronte acusava uma pregazinha de atenção. Estava calado, o beicinho inferior estendido em ar de ferrabrás.
- Queres esta menina?... - perguntou-lhe Alice. - Queres?... Queres brincar com ela?...
O pequeno não respondia. Parecia examinar a boneca, com ar de entendido, severo, circunspecto. De súbito, estendeu a mão. Nesse momento, Jorge tirou a boneca das mãos da filha e falou ao pequenito:
- Queres a boneca ?... Tens de dizer como te chamas !...
Uma gritaria colérica foi a resposta do desconhecido. Bateu com os pés, fez caretas de raiva e as lágrimas saltaram-lhe mais abundantes dos olhos.
- Dá-lhe a boneca - aconselhou Eva. Quem sabe o que ele não terá sofrido... Já é tão infeliz, na situação em que se encontra...
E ela própria tirou a boneca das mãos do marido e passou-a às mãozinhas da criança, que a tomou sofregamente, não para a reter, mas para a atirar, num arremesso, ao chão.
Alice soltou um grito de pavor. Tinha aquela boneca em alta estimação. Quase nem lhe mexia para não a estragar. Apressou-se a apanhá-la e a verificar se tinha algum membro partido, o que felizmente não sucedera porque o tapete amortecera o choque. Endireitou-lhe o vestido de tarlatana, que se amarrotara um pouco.
Entretanto, o lindo menino deitava a língua de fora ao senhor Gerrells, para lhe manifestar o seu desdém, Clara já viera com um pano enxugar a nódoa que a compota pusera no tapete. Então, o pequeno aproximou-se dela, deu-lhe um pontapé, exclamando, num tom vingativo:
- Toma!... Toma!...
A senhora Gerrells trocou com o marido um olhar de mágoa e lastimou:
- É uma pena ser tão mal-educado...
- Numa semana a gente modificava-o... asseverou ele.
O pequeno volvera de novo a sua atenção para Alice, que tinha agora a boneca ao colo e sorria para o recém-chegado. Ele parecia outra vez interessado na boneca. Aproximou-se. A pequenita receava que, noutro acesso de rancor, o menino lhe tirasse a boneca e a atirasse ao chão.
Mas o bebé sorriu-se, mostrando uns dentinhos muito curtos e brancos como pérolas miúdas. A sua expressão era agora tão aliciante que todos ficaram encantados. Pôs as mãos atrás das costas e debruçou-se para diante, como que para observar melhor a boneca. Depois, num tom que ainda todos lhe desconheciam, pronunciou:
- É bonita... Dás-ma? ... Alice replicou:
- Como te chamas?...
Ele fez de conta que não a ouviu e tornou, numa insistência:
- Gosto dela... Dás-ma ?...
- Queres esta menina para ti ?...
- Quero ! - respondeu ele, estendendo a mão.
- Então, dize-me o teu nome... Só a mim. Depois, dou-te a boneca.
- Para mim ?
- Sim, só para ti. Como te chamas ?
- Nick - respondeu, enfim, a criança, pondo um sorriso de triunfo em todos os circunstantes.
- Pronto. Nick, é tua!... - replicou Alice, entregando-lhe a boneca, que ele tomou nos braços, sentando-se no tapete para começar a brincar.
Um lenço ordinário de senhora
Jorge puxou uma cadeira e sentou-se, pensativo. Eva imitou-o, chegando-se para junto dele, sem proferir palavra. Ficaram, assim, calados, por muito tempo, a ver as crianças a brincar.
Aquele menino que aparecera de repente em sua casa, como se tivesse caído do céu, levantava em suas mentes uma série de problemas e interrogações, que os tornava apreensivos. A quem pertenceria ? Quem teria tido a lembrança de lho pôr na soleira da porta ? Decerto, pessoa que os conhecia, que sabia da sua predilecção por crianças e das possibilidades de poderem criá-lo.
Estes eram, mais ou menos, os pensamentos que tumultuavam no cérebro dos cônjuges. Contudo, o mistério que envolvia a proveniência da criança é que mais os intrigava. Causava-lhes como que um mal-estar ignorarem quem seriam os pais e que motivos os teriam levado a abandoná-lo já tão crescido, tão bonito, precisamente na idade em que os bebés mais nos prendem com os seus encantos.
Eva, que envolvia Nick num olhar caricioso, murmurou:
- Será possível que exista uma mãe capaz de enjeitar um filho, e tão bonito como este é?...
- Quem sabe se o menino ainda terá mãe ?...
- replicou Gerrells. E acentuou: - Já notaste que ele não fala em mãe, que é das primeiras palavras que as crianças aprendem a pronunciar ?
- Só falou em tia - observou Eva. - E nem sempre chamava tia a essa Marta para quem ele apelava constantemente. Fiquei com a impressão de que existe na vida desta criança uma mulher chamada Marta, decerto a pessoa com quem ela teria mais convivência...
- E nem um só momento falou em mãe ou em pai... - insistiu o senhor Gerrells, muito grave.
- Podes crer que este menino é órfão e que estava entregue a uma tia, uma tia de empréstimo talvez, chamada Marta. Provavelmente, era mulher de maus instintos, que não teve hesitação em abandonar um bebé tão lindo... Além disso, deu-lhe, como já tivemos ensejo de verificar em tão pouco tempo, uma péssima educação...
- Basta !... - exclamou Jorge, com um sorriso de ironia. - Já estás deixando correr com demasiada liberdade a tua imaginação... Não podemos começar a construir hipóteses com alguma lógica senão depois de a criança, mais confiante, se deixar interrogar e responder de boa mente às nossas perguntas...
- Parece-me que ainda não será hoje que obteremos essa confiança... -vaticinou Eva.
- Mas repara como ele já se entende maravilhosamente com a Alice... - aconselhou o marido.
Com efeito, os pequenos davam a impressão de que já se conheciam há muito tempo.
Alicinha tinha-se sentado também no tapete junto do menino, que deitara a boneca sobre os joelhos. Conversavam animadamente.
- A boneca é minha...-dizia Nick. que tinha um certo tom autoritário no falar.
- Pois é... Fui eu quem ta deu, não é verdade?...- replicou Alicinha, tornando mais infantil a sua voz, para o apaparicar.
- Foste...
- E gostas de mim ?... - insistia a pequena.
- Gosto - replicava ele, num ar condescendente.
- Se gostas muito de mim, hei-de dar-te mais bonitos...
- Mais?...-proferia o pequenito, num ar de dúvida. - Onde estão eles ?
- Estão guardados...
- Eu quero mais bonecos - disse Nick, no seu ar imperativo.
- Ainda não brincaste com a menina... Sabes como ela se chama?... - E como Nick movesse a cabeça em sinal negativo, ela revelou:
- Chama-se Helena. Gostas desse nome?...
O menino não ligou importância ao que ela dizia. Estava observando, cheio de curiosidade, o movimento dos olhos da boneca. Tinha feito uma descoberta que o encantava. Percebera que a boneca, quando se deitava, fechava os olhos e os abria quando a punha de pé sobre os joelhos. Levantou-a e baixou-a por várias vezes. Depois soltou uma risada. Deitou-a, por fim, e, com os deditos nédios, agarrou as longas pestanas da boneca e puxou-as com força.
- Ai!... - gritou Alicinha, magoada como se lhe tivessem arrancado as suas próprias pestanas. E como Nick já se preparasse para fazer o mesmo às pestanas do outro olho, ela advertiu-o:
- Não faças isso, Nick!...
O pequeno conteve-se e, encarando a sua recente amiguinha, redarguiu:
- Eu quero !...
- Não se faz isso. A Helena depois chora... Causa-lhe uma dor muito grande.
- Chora ?... - duvidou Nick.
- Chora, sim... E fica mais feia.
- Chora ?... - repetiu Nick.
E, rapidamente, agarrou as outras pestanas e arrancou-as, sem a mais leve sombra de piedade.
- Ai, a minha querida Helena !... - lastimou Alicinha, volvendo os olhos já húmidos de lágrimas para os pais, que observavam atentamente esta cena.
- Não te apoquentes, filha, a mamã compra-te depois outra boneca mais bonita - prometeu a senhora Gerrells.
- Aliás, não lhe tinhas dado essa ?... - lembrou Jorge.
- Mas não era para ele estragar... - redarguiu a menina.
- É que Nick não foi ensinado a poupar brinquedos... É ainda muito pequeno para compreender que não os deve estragar... Havemos de ensiná-lo, a pouco e pouco...
- E Nick fica sempre connosco ?... -indagou Alice.
- É possível... Se não aparecerem os pais...
- respondeu o sr. Gerrells, olhando a esposa, como que a consultá-la.
Eva sorriu. Era uma das aspirações daquele casal que Deus lhe desse um menino, um rapazote desenvolto para fazer companhia à Alicinha. Mas o desejado menino nunca viera ao mundo. Agora, talvez muito no seu íntimo perguntassem a si próprios se Deus não teria resolvido enviar-lhes o rapazinho ambicionado, por aquela maneira tão estranha e misteriosa.
Clara, que se conservara calada a observar a criança; alvitrou, lá do limiar da porta:
- Porque não adoptam os senhores este bebé?
O casal Gerrells volveu-se para a porta. Não tinham dado pela presença da criada.
- Ainda aí estás?... -estranhou Eva. Atrasas o teu serviço na cozinha...
- Eu queria ver o menino... - desculpou-se Clara. - Mesmo que me deite um bocadinho mais tarde, não me importo. - E voltou a perguntar: - Porque não adoptam a criança ?... Gostavam tanto de ter um menino...
- Mas este menino não é nosso...-ponderou Jorge. - De um momento para o outro, podem aparecer os pais. Depois, teríamos uma série de dificuldades e maçadas... Pouco ou nada sabemos das intenções de quem o trouxe.
- Ora!... - acudiu Clara. - As intenções estão mais do que conhecidas. Vieram trazê-lo aqui para os senhores ficarem com ele... Disso não tenho a menor dúvida...
Com estas palavras, retirou-se para a cozinha a cantarolar baixinho.
As duas crianças voltaram a brincar em boa harmonia. Nick, com a mão gordinha e espalmada, simulava dar açoites na boneca.
- Toma!... Toma, velhaca!... Toma!... gritava ele, batendo-lhe.
- Pronto, Nick, já chega... Não lhe batas mais, senão ela chora... - acudiu Alicinha, no caridoso intuito de evitar a tareia à pobre Helena.
- Mas ela ainda não chorou... Toma!... Toma!...
- Assim, escangalhas a boneca e depois já não tens brinquedo... - lembrou a pequena.
O menino, ante esta advertência, suspendeu o severo castigo.
Jorge, que já dera alguns passos através da sala, um pouco cismático, deteve-se e disse:
- Ainda me está fazendo confusão a maneira como foi deposta a criança à nossa porta, sem nós darmos por isso...
- Foi decerto enquanto jantávamos - deduziu a senhora Gerrells.
- Evidentemente. Aproveitaram o momento depois da minha entrada, após o regresso de Londres. Quando eu cheguei, não estava lá a criança, como tu viste. Pouco depois de jantarmos é que ela chorou.
- É para admirar que o pequeno não chorasse no momento em que o abandonaram à nossa porta - raciocinou Eva. - Estas coisas costumam fazer-se com crianças de dias, ou meses, enquanto elas dormem. Agora um menino que, se não tem uns quatro anos, deve andar próximo deles, acho extraordinário.
- Deviam tê-lo trazido a dormir, talvez sob um sono artificial - supôs Jorge. - Depuseram-no ali no momento em que estávamos a jantar. O caseiro e a mulher estão ainda mais distantes do portão do que nós, lá na sua cozinha. Além disso, também jantavam nesse momento. O ensejo era esplêndido. Entraram com a criança adormecida e manietada, depuseram-na no degrau e abalaram sem ser vistos... Suponho que o pequeno só acordou por ter rolado do degrau para o patamar, talvez devido a algum movimento feito durante o sono. Os trapos em que se encontrava enrolado amorteceram-lhe a queda, mas o choque, muito brusco, devia tê-lo despertado.
- Sim, há muita lógica nessas deduções... concordou a senhora Gerrells. E lembrou: Talvez se nós tivéssemos corrido logo ao portão ainda víssemos alguém suspeito...
- Hum... - resmungou o marido, torcendo o nariz. - O autor ou autores da proeza já deviam ir longe, quando o menino chorou...
- É possível - anuiu Eva.
- O que nós podemos é ir dar uma volta lá fora. Talvez tivesse ficado algum vestígio... Às vezes um lenço caído, um objecto insignificante representam um ponto de partida para uma pista decisiva.
- É melhor Clara ficar aqui a tomar conta das crianças - ponderou a senhora Gerrells. E chegando ao limiar da porta, chamou a criada.
- Alicinha - recomendou Jorge -, entretém o menino enquanto vamos dar uma volta pelo jardim... Faze de conta que é um irmãozinho.
- Oh!... Gostava tanto de ter um irmãozinho assim!...-exclamou a pequenita, apertando as mãozitas uma contra a outra.
Clara chegou, contente de ter aso de ficar junto de Nick, que ela não se cansava de admirar. Era doida por crianças. Mas aquela, em virtude certamente das misteriosas circunstâncias em que aparecera, prendera-a logo nos primeiros momentos em que a vira. Apesar de ser uma rapariga de vinte e oito anos, sentou-se no chão junto dos pequeninos, disposta a colaborar com eles nas suas brincadeiras.
- Vê se consegues tirar dele algum indício sobre a família ou o local onde vivia - lembrou-lhe sua ama.
- Sim, minha senhora... Assim ele goste de mim, como eu já gosto dele - replicou Clara, para quem Nick já olhava desconfiado, franzindo a fronte voluntariosa.
Jorge e a esposa envergaram os abafos que estavam no vestíbulo. O primeiro apanhou em seguida um lampeão que costumava estar sempre a um canto, pronto para a eventualidade de ser preciso percorrer a herdade de noite, acendeu a luz e saíram ambos.
Logo no patamar, o senhor Gerrells se deteve para confirmar uma das suas deduções.
- Vês ?... - disse ele. - Foi no degrau que depuseram aquele grande embrulho de roupas. Mas o degrau é estreito e o embrulho devia ter ficado em precário equilíbrio. Um ligeiro movimento, mesmo a dormir, fez cair a criança do degrau abaixo e com a brusquidão do choque despertou e começou a gritar por se ver aqui sozinho e manietado.
- Pobre inocente!... - foi o comentário de Eva.
Atravessaram em seguida o vasto patamar de pedra, que teria uns três metros de largura, e, descendo meia dúzia de degraus, pisaram a areia escura do arruamento que, vindo desde lá do portão, se bifurcava em frente do «cottage», em dois braços que o circundavam. Da escadaria ao portão não distavam mais de uns trinta metros.
Jorge, estendendo o braço com o lampeão, ora para um lado, ora para o outro, iluminava um bom perímetro à sua volta. Tanto os seus olhos, como os de sua esposa perscrutavam a areia lisa, um pouco húmida, da álea, onde estavam perfeitamente marcados os trilhos recentes do automóvel em que o senhor Gerrells regressara de Londres. Esses trilhos, bastante superficiais, vinham em linha recta desde o portão, davam uma curva para a direita e sumiam-se em direcção ao barracão improvisado em garagem, que ficava nas traseiras do edifício.
À parte os trilhos das rodas, viam-se confusamente e muito mais leves várias pegadas, que não forneciam qualquer indício seguro, porque foram deixadas pelo caseiro, a mulher e alguns camponeses que trabalhavam na herdade. Aliás, tirando uma ou outra, eram demasiado leves, porque o solo do arruamento, muito batido, não favorecia uma boa impressão, senão quando chovia muito. Acontecia, porém, que havia cerca de uma semana que o tempo, numa Primavera efémera e precoce, se mostrava bastante seco, não caindo mais humidade do que a de algum nevoeiro e do orvalho nocturno.
- Parece-me que estamos perdendo o nosso tempo... - disse Eva, a meio do trajecto para o portão.
- Em todo o caso, sempre quero ver até à estrada... - insistiu Jorge.
Nesse instante, estalaram alguns passos na areia, um vulto aproximou-se e uma voz inquiriu:- Perdeu alguma coisa, senhor Gerrells ?...
Era Eduardo, o caseiro, homem dos seus cinquenta anos, entroncado, robusto, barba ruiva sempre mal cuidada, falas rudes, que, ouvindo vozes no jardim, saíra lá do seu tugúrio à esquerda e a retaguarda do «cottage», sob a protecção de um pequeno bosque de bétulas, e viera saber do que se tratava.
-Não, não perdemos coisa alguma... Mas achamos sem o querer... -replicou Jorge, detendo-se à espera de que o homem se aproximasse.
Eduardo levou a mão ao velho chapéu de feltro muito amarrotado, com que se cobria de dia e de noite, para ocultar uma calva bastante Vasta.
- Como vi andarem aí com a luz para um lado e Para oUtro -disse ele, um pouco intrigado.
alguém veio aqui, depois de eu ter entrado - disse o senhor Gerrells.
Sua esposa, não podendo guardar segredo do grande acontecimento, informou, comovida:
- Alguém abandonou uma criança à nossa porta.
- Uma criança?! estranhou Eduardo escancarando os olhos miudinhos, num assombro.
- Ainda não há meia hora que chorou à nossa porta. Não a ouviu?...
- Não senhora, não ouvimos - disse a mulher de Eduardo, que chegava num passo apressado. Era uma quarentona, de faces muito redondas, com uma covinha no queixo, que lhe dava um certo quê de criança muito grande.
- Aconteceu alguma coisa?... - inquiriu ela, um pouco alarmada.
- Abandonaram uma menina à porta do «cottage» - respondeu o caseiro.
- É um menino - emendou Eva.
- Sempre há gente muito malvada!... comentou Mariana, cruzando os dedos sobre o vasto ventre, num gesto que lhe era peculiar.
- E é ainda de peito? - interrogou Eduardo.
Foi Jorge que o esclareceu:
- Deve andar por uns quatro anos. É muito desenvolvido e parece que o tratavam bem...
Enquanto ia contando tudo o que sabia do estranho caso, que arrancava de quando em quando a Mariana exclamações de assombro, avançava lentamente para o portão, que era constituído por dois batentes gradeados. Um desses batentes estava escancarado.
- Nem tiveram tempo de fechar a porta...
- resmungou o senhor Gerrells.
- Pois, posso garantir-lhe que fechei o portão no trinco depois de o senhor passar com o carro - asseverou Eduardo.
- Este portão devia fechar-se à chave, todas as noites - disse Eva. - Tem sido um desleixo da nossa parte...
- Não seria essa precaução que impediria os ladrões de entrarem na propriedade. Há por aí muitas passagens fáceis...-observou Jorge.
- E temos o cão...
- É verdade, o Mastim não deu alarme ?...
- Realmente, ladrou um pouco... Tenho uma ideia. Mas tornou a sossegar... - disse Mariana.
- O Mastim, como guarda, não é grande coisa - proferiu o caseiro. - Já tenho dito ao senhor Gerrells por várias vezes. Todas as noites o solto quando me vou deitar. Não há dúvida de que se trata de um animal valente e resoluto. Se encontrar alguém desconhecido dentro da herdade, é capaz de fazê-lo em fanicos... Mas se estiver a dormir aqui e um ladrão entrar além, a uns metros de distância, fica indiferente. Quase que é preciso que as pessoas se lhe metam nos dentes para ele atacar...
- Não tem raça de guarda - interrompeu Jorge, temendo que o caseiro nunca mais rematasse os seus comentários.
Já na estrada, marginada por um estreito passeio, ele ainda fez algumas pesquisas. No leito do asfalto não era possível distinguir-se coisa alguma de concreto. Passavam por ali durante o dia centenas de automóveis, cujos vestígios se baralhavam confusamente. Aliás, os portadores da criança que teriam decerto vindo de automóvel, não iriam pará-lo mesmo defronte do portão, o que despertaria atenções. Ter-se-iam detido ou mais para um lado ou mais para o outro.
Já sem esperanças de encontrar qualquer indício, o senhor Gerrells ainda deu alguns passos para os lados de Epsom. E quando ia a regressar, deteve-se bruscamente. Parecera-lhe ver um objecto claro no outro lado da estrada, um papel, supôs ele.
No entanto, atravessou a via, aproximou o lampeão e, baixando-se, apanhou um pequeno lenço de algodão, de senhora, com barras finas, azuis e vermelhas.
- É curioso... - resmungou.
- Que achaste?...-indagou sua esposa, que o vira baixar-se.
- Um lencinho...
A senhora Gerrells e os caseiros atravessaram também o caminho, cheios de curiosidade.
Jorge examinava agora o leito da estrada nas proximidades do seu achado, que já passava às mãos de sua mulher.
- Hum...-pronunciou ele, entre dentes.
- Aqui esteve um automóvel parado durante algum tempo...
Uma mancha de óleo é que lhe dava essa indicação. Durante a paragem, alguns pingos foram caindo, formando uma pequena poça gordurosa, que se transformava numa nódoa sobre o resto do asfalto limpo.
Gerrells ainda circunvagou um olhar por aquele sítio, mas não achou qualquer outro vestígio.
- Que depreendes tu ?... - perguntou Eva.
- Esteve um carro aqui parado há pouco tempo... Este lenço indica que uma mulher, ao entrar ou ao sair do veículo, deixou-o cair na precipitação... Talvez o lenço que limpasse algumas lágrimas, depois de ter abandonado o pequeno... Essa mulher não era muito fina, a avaliar pela qualidade do lenço que usava...
- E pelo perfume que preferia - ajuntou a senhora Gerrells aproximando o lencinho do nariz do seu marido.
- É extraordinário como o senhor pôde tirar todas essas conclusões!...-exclamou Mariana, voltando a cruzar os dedos sobre o ventre.
- Ainda se podem tirar mais algumas disse Jorge. - Pelo local em que o lenço foi achado, no lado da estrada que se toma para Epsom, depreende-se que o carro seguiu para aquela cidade. Ainda aqui estão os sinais impressos pelos pneus no momento em que arrancou. São os únicos que se distinguem dos inúmeros produzidos pelo trânsito.
- O Senhor Gerrells não tarda em descobrir tudo, como Sherlock Holmes - disse Eduardo sem a menor sombra de gracejo.
Jorge encolheu os ombros e, empreendendo o regresso à herdade, replicou:
- Infelizmente todos estes pormenores nada adiantam sobre a identidade da criança.
- Vamos a ver se o pequeno, mais familiarizado, já poderá fornecer alguma indicação - lembrou Eva guardando o lencinho achado, que já planeava conservar para recordação.
O sinalzinho escuro no peito
Quando os Gerrells, depois daquela digressão pelo jardim e pela estrada, regressaram à sala de jantar, seguidos dos caseiros, que estavam impacientes por ver o menino, tiveram o grato prazer de achá-lo muito bem-disposto, sentado à mesa. Clara achava-se radiante. Fora ela a autora daquela proeza. Muito entusiasmada, dirigira-se logo a seus amos a contar como conseguira meter aquela lança em África.
- Imagine, minha senhora, convenci-o a comer uma papinha de flocos. Ele gosta muito de mim, não é verdade, menino Nick ?
O pequeno, que segurava a colher, como quem empunha uma espada, redarguiu:
- Gosto.
- Como fizeste tu esse milagre ? - perguntou Eva.
- Olhe, minha senhora, sentei-me no chão a brincar com ele. Andei de gatas... Vesti e despi a boneca... Fila dançar sobre o tapete... Ah! Se ouvisse as gargalhadas dele, ao ver Helena pular à sua frente!... Depois, ele disse que queria comer... «Queres compota?...» perguntou a menina Alicinha. «Não!» Só queria que ouvissem como ele dizia aquele «não». Fazia mesmo cara de carrasco.
Foi então que a criada se lembrou de lhe perguntar se gostava de papinha. Ele respondera simplesmente: «Gosto».
Clara levou-o consigo para a cozinha. Ela pegou-lhe numa mão. Alice pegou-lhe na outra. Assim seguro, avançou aos saltos até à cozinha. A criada preparara rapidamente a papa de flocos de aveia, enquanto Alicinha o entretinha com a boneca. Voltaram depois à sala de jantar. Clara sentou-o na cadeira alta que fora de Alicinha e que já se pusera de parte, para um canto, colocara-lhe também o guardanapo da menina. Já ele comera as primeiras colheradas pela mão de Clara, quando os Gerrells entraram.
Nick não lhes ligou grande importância. Sua atenção volvera-se para Eduardo e a mulher, que se aproximava para o ver melhor.
- Que encanto de criança!... - exclamou Mariana cruzando os dedos sobre o ventre, no seu gesto habitual, e envolvendo-o num olhar enternecido.
- É muito lindo !... - corroborou o caseiro, que tirara o chapéu e mostrava a sua calva luzidia.
Nick ficara suspenso a olhar a superfície luzente daquela estranha cabeça. Fechava a boca, impedindo que Clara lhe desse mais uma colherada de papa, como se não quisesse interromper um exame tão atento. Seu olhar desceu depois da calva para o bigode e barbas avermelhadas e hirsutas que pareciam causar-lhe uma certa confusão. Eduardo sorriu-lhe e baixou-se para aproximar o seu rosto do do menino.
- Dá-me um beijinho?... - perguntou o homem.
- Não. És feio...-replicou Nick, voltando para o lado as facezinhas claras, num movimento de repulsa.
A sua atitude provocou uma risada geral.
- Tem razão, menino... Ele é feio - apoiou Mariana, aproximando-se por sua vez.
- Tu és feia... - proferiu a criança depois de envolvê-la num gracioso olhar de desdém.
Novas gargalhadas rebentaram em torno. Alicinha batia as palmas de contente. O menino exprimia uma opinião que ela nunca se atrevera a formular em voz alta, porque era bem-educada e sua mãe lhe ensinava a guardar respeito a toda a gente. Na verdade, tanto Mariana, com a sua cara de bolacha, como seu marido, com aquela calva em bola de bilhar e os pêlos eriçados da sua barba ruiva, lhe pareciam horríveis comparados com o papá e a mamã.
- E a senhora Gerrells é bonita, não é?...
- indagou Clara.
- É bonita... - respondeu o pequeno.
- E o senhor Gerrells?... - perguntou a criada, apontando para seu amo.
Nick fixou-o, franziu o sobrecenho e ficou calado.
- Dêem-lhe de comer e não o macem com perguntas - aconselhou Jorge, que observava a criança, cheio de ternura.
A boneca estava sentada em cima da mesa, amparada carinhosamente por Alicinha, que permanecia de pé ao lado da cadeira de Nick. Do outro lado, Clara introduzia-lhe, de quando em quando, na boca uma colher de papa, que ele mastigava distraidamente.
A senhora Gerrells foi sentar-se a um dos lados da mesa e ensaiava um interrogatório.
- Escuta, Nick, tu gostas do papá ?
O menino circunvagou um olhar, como se procurasse alguma coisa, e fixou Jorge, mas não respondeu.
- Onde está o papá ?... - insistiu Eva, tentando obter algum indício sobre o pai do menino.
A esta pergunta, porém, o pequeno limitou-se a apontar para o senhor Gerrells.
- Está reconhecido que a criança não está habituada à convivência de pai, nem de mãe disse Jorge. - Nem mesmo nos momentos de maior susto, chamou por eles. Talvez seja órfão e se encontrasse a cargo de parentes afastados ou mesmo de pessoas estranhas, entre as quais se encontrava uma pessoa mais da sua intimidade, chamada Marta.
Ao ouvir pronunciar este nome, Nick levantou a cabeça paru o anfitrião e, abrindo muito os olhitos esguios, bradou:
- Marta!... Quero a Marta!...
Todos perceberam que a mulher que usava o nome de Marta era a pessoa de maior influência na vida do bebé.
- Não devem falar-lhe dessa mulher, senão ele aflige-se - aconselhou Eva.
- Pelo contrário, embora ele sofra, devemos obter dele o maior número de indícios sobre essa mulher - redarguiu Jorge. E dirigindo-se a Nick:
- Onde está a Marta ?
- Está em casa... Quero ir à Marta...
- Onde é a casa?...-interrogou Gerrells.
- É ali!... A Marta está lá...
E Nick erguia o dedito, muito espetado, e apontava vagamente para a porta.
- Ele não é capaz de explicar - disse Eva.
- Olha, Nick, quem está lá com a Marta ?...
- O Nero... O Nero está lá... - redarguiu o pequeno.
Clara introduziu-lhe mais uma colher de papa na boca.
- É o cão ?... - indagou Gerrells.
Com a boca cheia, Nick moveu a cabeça afirmativamente.
- E quem mais está lá em casa?... - perguntou Jorge.
- Maria... Eu também quero a Maria...
- E quem é a Maria ?...
- É a Maria...-retorquiu Nick, com um movimento de enfado.
- O Nero é mau?... -perguntou Alicinha, metendo-se na conversa, embora soubesse que seus pais não gostavam de que ela fosse intrometida.
- É bonito... O Nero é bonito...-pronunciou Nick.
- Gostas dele ?...
- Gosto.
- E de quem mais ?... - interveio Eva.
- Da Marta... Quero ver a Marta.
- Quem é Marta?... - perguntou Jorge.
- É a Marta!...-respondeu o pequeno, mostrando-se irritado com tanta pergunta.
- É melhor não insistir... Isto vai aos poucos... Distraiam-no - disse o senhor Gerrells. E enquanto Alice fazia dançar a boneca em cima da mesa, dirigiu-se a sua esposa e aos caseiros, acrescentando: - Havemos de ir obtendo, pouco a pouco, o maior número de informações possíveis. Parecendo que não, já conseguimos algumas, relativamente importantes.
- Coisas tão vagas... - lamentou Eva.
- Não tão vagas como supões - acudiu vivamente o marido. - Ora vejamos: sabemos que, além de Marta, a pessoa de maior intimidade do pequeno, existe também uma Maria.
- Quem será essa Maria ? - proferiu a senhora Gerrells.
- Talvez alguma criada - lembrou Mariana.
- É muito possível - admitiu Jorge. - Há também um cão chamado Nero. Marta, Maria e Nero... Eis três elementos que, juntos ao lencinho, podem identificar as pessoas que abandonaram o menino e, portanto, identificá-lo a ele próprio.
- Eu o que admiro é como o senhor Gerrells congemina tão depressa todas essas coisas!... exclamou Eduardo, cheio de assombro. - Eu nunca seria capaz de fazer esses cálculos.
- Homem, estas coisas estão a meter-se pelos olhos dentro. Não é preciso ir a Oxford para aprender a raciocinar e a deduzir sobre pormenores tão simples - disse o senhor Gerrells. E acrescentou: - Resta-nos ainda examinar bem o pequeno. É possível que ele tenha algum sinal particular ou traga consigo algum objecto que permita a sua identificação...
- Tens razão. Ainda não me tinha lembrado disso - concordou sua esposa. - Vamos observá-lo?...
- Havemos de fazê-lo mais à vontade, quando ele estiver mergulhado no sono - pronunciou Jorge.
- Seria melhor adormecê-lo quando acabar de comer a papa - lembrou Eva.
- Duvido de que ele adormeça tão cedo...
- disse o marido.
- Porquê?... Já são dez... Até me admiro de como uma criança do seu tamanho ainda não lhe apetece dormir... - estranhou a senhora Gerrells.
- Tenho a impressão de que deviam tê-lo mergulhado num sono artificial para o transportarem para aqui e o abandonarem sem que ele desse por isso - supôs Jorge. - E, provavelmente, se não tivesse caído do degrau, ainda estaria dormindo. Agora, que espertou, há-de ser difícil adormecê-lo...
- Como o senhor imagina logo essas coisas !
- exclamou o caseiro, cheio de espanto.
- Eu, que não tenho a idade dele, já estou cheia de sono - confessou Mariana, risonha, com a covinha no queixo muito marcada.
- Tem razão. Vocês levantam-se muito cedo
- disse Jorge. - É melhor irem-se deitar.
- Se os senhores nos dão licença...-proferiu a mulher.
- Retirem-se quando quiserem. Os caseiros deram as boas-noites.
- Adeus, menino Nick, até amanhã, se Deus quiser!...-pronunciou Mariana, dirigindo-se ao pequeno, que interrompeu a brincadeira para lhe deitar a língua de fora.
Alicinha ficou muito admirada da sua má criação.
- É preciso desculpá-lo, minha filha - disse Eva. - As pessoas que o tinham a seu cuidado não o sabiam educar. Mas agora há-de aprender connosco. Em breve; será um menino modelo.
Gerrells foi com os caseiros até à porta. E quando eles já desciam a escadaria, ainda lhes recomendou:
- Soltem o Mastim... Apesar de tudo, ainda serve de alguma coisa.
- Vou soltá-lo já, patrão... - replicou Eduardo.
Jorge viu os seus vultos sumirem-se para o lado do seu tugúrio. Circunvagou um olhar pelo jardim e levantou os olhos. Estava uma noite sem nuvens e miríades de estrelas cintilavam docemente nas alturas.
Regressando de novo à sala, ordenou:
- A Alicinha que vá deitar-se.
- Oh, papá !... Eu ainda não tenho sono protestou a menina, cujos olhos muito piscos a desmentiam.
- São horas - proferiu o pai. - Amanhã, tem que levantar-se cedo para ir para a escola.
Embora tristonha, Alice não insistiu. Tinha muito respeito a seus pais. Não ignorava que a
teimosia é um dos defeitos mais antipáticos de uma criança. Dirigiu-se a sua mãe e, abraçando-a, deu-lhe as boas-noites. Depois, fez o mesmo a seu pai. Por fim, beijou repetidamente o pequeno, que acabou por repeli-la, irritado. Saudou a criada e, antes de retirar-se, disse:
- Hei-de levantar-me muito cedo amanhã, para brincar com Nick, sim?...
- Está bem, se ele já estiver acordado...- anuiu Eva.
Alice já sabia despir-se, envergar o seu pijama e deixar a sua roupa do dia muito bem dobrada e colocada sobre uma cadeira. Seus pais também a tinham habituado a não ter medo de ficar sozinha no seu quartinho todo forrado a cor-de-rosa, com mobílias coloridas no mesmo tom combinado com branco e ouro. Aliás, ficava acesa durante a noite a lâmpada velada. Antes de adormecer, a boa menina fazia sempre as suas orações, pedindo a Deus por seus pais. Nessa noite pediu também por Nick e para que ele ficasse sempre na sua companhia.
- Precisamos de ver se adormecemos esse menino - disse Jorge, depois de sua filha se ir deitar.
- E onde vão deitá-lo?...-perguntou a criada.
Eva lembrou então que podia utilizar-se o berço de Alice, que estava na arrecadação, e incumbiu Clara de ir buscá-lo, limpá-lo, pôr-lhe os pequenos colchões e roupas.
A rapariga, depois de beijar furiosamente a criança, partiu a cumprir as ordens.
- Maria!... Vem cá!... Maria!...-gritou Nick, vendo que ela saía do aposento.
O senhor Gerrells trocou um olhar mais vivo com sua esposa e disse:
- Julgo ter feito mais uma descoberta...
- Como ?...
- Pela maneira como ele chamou Clara, alguma coisa há nela que lhe lembrou a tal Maria. Deve ser o avental de criada... Portanto, a Maria tem todas as probabilidades de ser uma criada da casa onde ele se encontrava.
Nick continuava a chamar desesperadamente:
- Maria!... Maria!...
A senhora Gerrells tentava acalmá-lo.
- Ela já vem... Esta não se chama Maria... É Clara...
- Não é Clara, é Maria! Maria!... Anda cá!... -gritava o pequeno, já com um princípio de birra, mais uma vez denunciava a péssima educação recebida.
- Creio que há um pouco de sono nessa birrinha - disse Jorge, que não cessava de observá-lo.
- Também me parece que sim - concordou Eva. E afagando a cabeça da criança, perguntou-lhe: - Queres vir ao meu colo, Nick?...
- Não quero!... Não quero!...
Carinhosa, mas firme, falando-lhe com brandura, a senhora Gerrells tirou-o da cadeira alta e pô-lo ao colo. Nick chorava e esperneava, chamando sempre:
- Não quero!... Não quero!... Velhaca, deixa-me!... Grande velhaca.
Eva segurou-o bem pelas pernas e pelo tronco, chegando-o ao seu peito e encostando a sua face ao rostinho colérico e banhado em lágrimas, começou a passear ao longo da sala e a falar-lhe com doçura, ora repreendendo-o, ora acarinhando-o.
- Nick não quer chorar mais... Os meninos bonitos não choram... Nem chamam velhacas às pessoas mais velhas... O menino vai dormir... Amanhã, vai passear ao jardim...
- Não quero!... Não quero!... - gritava a criança, abafadamente, junto do peito da senhora Gerrells, que insistia:
- Os meninos bonitos nunca dizem «não quero»...
- Estás a cansar-te. Ele deve ser muito pesado - disse Jorge. - Clara depois o adormecerá.
Eva sorriu-lhe e continuou a falar para a criança:
- O menino vai fazer ó ó, para amanhã ir brincar com a Alicinha... E se ficar calado, apanha muitos brinquedos...
Mais frouxamente, Nick ainda chorava e repetia, de espaço a espaço:
- Não quero...
Pelo tom da sua voz, o senhor Gerrells percebeu que ele não tardaria em adormecer. Estava ancioso por que isso acontecesse, para poder observá-lo mais à vontade. E, enquanto esperava, ia pensando que, pela maneira de falar, pelo ar decidido das suas atitudes, aquele menino já denunciava um temperamento bastante voluntarioso. Percebia-se que a má educação agravava essa faceta natural da sua índole que, não sendo dirigida com inteligência, poderia degenerar num defeito terrível, ao passo que, devidamente educada, devia dar um homem resoluto, leal, valente e pertinaz. Quantos temperamentos assim, por defeito de educação, não dão mais do que homens irascíveis, brutais, autoritários, de convivência detestável!...
Clara veio perguntar onde se punha o berço.
- No nosso quarto - respondeu Eva, num murmúrio, que foi o bastante para despertar o pequeno, que já tinha cerrado os olhos, embora continuasse a choramingar, numa lenga-lenga monótona.
No entanto, dois minutos decorridos, dormia.
- Vamos deitá-lo agora e deixá-lo pegar bem no sono - disse Jorge.
Saíram da sala de jantar e dirigiram-se para o quarto de dormir, que era amplo e confortável. Eva levava o menino ao colo e não dizia palavra.
Clara acabava de colocar o berço, que era quase uma pequena cama de madeira, junto do leito de seus amos. Ao vê-los, informou:
- Minha senhora, aqueci os lençóis, Suponho que fiz bem...
- Schiu... - soprou Jorge, ordenando silêncio.
Eva sentou-se no rebordo do seu leito e começou a despir o menino. A criada ajoelhara no tapete e tirava-lhe os sapatos e os polainitos.
A atmosfera do quarto era tépida e não havia perigo de a criança se constipar. Cada peça de roupa que Eva ou Clara punham de parte era minuciosamente observada pelo senhor Gerrells.
- Nem uma letra, nem uma marca... - resmungou ele, entre dentes.
Só restava tirar a camisinha. Nem mesmo esta tinha qualquer sinal particular, que lhes chamasse
a atenção.
- Dá-me a camisinha de dormir...-ordenou Eva à criada.
- Está ali quente dentro da caminha.
- Esperem!... - pediu Jorge, surdamente.
- Deixem-me ver primeiro o corpo da criança, antes de lha envergarem.
O menino estava nuzinho. Agora, podiam os Gerrells verificar quanto ele era robusto e bonito. Tinha o peito roliço e alto, as costas direitas, os membros sólidos. Cobria-os uma epiderme lisa, muito branca e rosada.- Esta criança, pela configuração do corpo, talvez ainda não tenha quatro anos - disse Gerrells. - Mas, deve estar muito desenvolvida para a idade.
- É lindo!... - murmurou Clara, enlevada.
- Um verdadeiro amor... - sussurrou Eva. Jorge tomara-o nas mãos e elevando-o na
sua frente e voltando-o, ora de um lado ora de outro, examinava-lhe o corpo, rapidamente. Depois, deitando-o de costas no pequeno leito, disse:
- Querem ver ?...
Ama e criada olharam-no interrogativamente.
- Reparem aqui... - disse ele, apontando para o peito do bebé.
A senhora Gerrells, debruçando-se, pronunciou:
- Apenas vejo uma coisa, muito engraçada...
- Que é, minha senhora ? - indagou Clara, cheia de curiosidade.
- Um sinalzinho escuro...
-Já vi... Cor-de-rosa escuro, não é, minha senhora ?...
- Precisamente ao meio do esterno. Tem graça, porque parece que foi ali posto de propósito - disse Jorge.
- No entanto, deve ser de nascença... proferiu Eva.
- Sim - confirmou seu marido. - Nasceu com ele. É mesmo ligeiramente saliente, como uma verruga...-E ordenou à criada: - Veste-lhe a camisa de dormir e agasalha-o bem.
- Se esse sinal o pudesse identificar!...- lembrou a senhora Gerrells.
- É muito pouco... Contudo, é sinal - replicou o marido, pensativo.
Depois de Clara se despedir, marido e mulher permaneceram por muito tempo a contemplar o rosto do bebé, que emergia das roupas muito alvas. Suas faces rosadas, seus caracóis dourados, sua boquinha rubra e seus olhinhos pestanudos e cerrados num sono cheio de serenidade e inocência pareciam fascinar quem os contemplava.
Alice nunca se levantou tão cedo
Ao lusco-fusco da manhã, já Alicinha estava acordada. Nunca despertara tão cedo como nesse dia. Em regra, era um pouco preguiçosa no levantar. Gostava muito do aconchego da cama e de permanecer de olhos fechados, de cabeça tapada, numa quente modorra, a sonhar acordada, sobretudo no Inverno, quando nevava lá fora, ou as lufadas do vento uivavam nas vidraças.
Era preciso Clara vir chamá-la duas e três vezes, enganando-a nas horas, dizendo-lhe que já não faltavam senão alguns minutos para se levantar, vestir e fazer o trajecto para a escola, que distava uns dez minutos da herdade, na povoação próxima. Então, amedrontada, pulava para fora do leito, com medo de que a mamã ralhasse, fazia à pressa a sua «toilette» e só sossegava quando, na sala de jantar onde ia tomar o pequeno almoço, olhava para o relógio e via que tinha o tempo suficiente para chegar pontualmente ao colégio. Agradecia à criada a solicitude, pois sem o seu cuidado correria o risco de entrar tarde na aula, o que seria para ela uma vergonha.
Mas, naquela manhã, a preocupação de Nick despertara-a muito cedo. Alicinha abrira muito os olhos, para verificar se seria sonho ou realidade o que povoava seus pensamentos durante o sono. Ela estivera deitada naquela mesma caminha, muito calada, a observar como Nick brincava com o seu grande cavalo de pasta que o papá trouxera propositadamente de Londres para lhe oferecer. Agora, já desperta, é que Alice notava o que havia ? de inverosímil no seu sonho, que, dormindo, lhe parecia tão real. Ela nunca poderia ver o menino brincar no jardim, conservando-se deitada no leito, a não ser que o seu olhar tivesse poder de atravessar as paredes como se estas fossem de vidro transparente.
Contudo, sabia-lhe bem recordar o lindo sonho e tornava a rever mentalmente Nick, com aquele ar còmicamente grave que o tornava tão gracioso, a pular do cavalo abaixo e a saltar de novo para a garupa do grande corcel de pasta, com a ligeireza de um acrobata, que ela vira uma vez no circo, em Londres.
O que lhe parecia mais extraordinário, embora no sonho lhe não causasse a menor estranheza, era que o cavalo, embora fosse de pasta, assentado nas quatro patas num estrado de madeira munido de rodas, saltava como um ser vivo, movia a cabeça para um lado e para o outro, arrebitava as orelhinhas de papelão e até lançava pelas narinas jactos de vapor, tal como o cavalo Ruço, quando Eduardo o atrelava à carroça, nas manhãs frias de Inverno.
Alicinha, agora muito quieta na caminha, pensava quanto os sonhos são disparatados, mesmo os mais aliciantes, e considerava que a realidade não era menos consoladora. O menino existia. Devia, a essa hora, estar a dormir no bercinho que lhe servira outrora, no quarto de seus pais.
A sua vontade era levantar-se e ir vê-lo. Mas temia desagradar a seus pais que, provavelmente, ainda dormiam. De ouvido atento, tentava captar algum rumor dentro de casa. Mas tudo era silêncio àquela hora. Decerto, nem mesmo Clara estava a pé, apesar de ser a pessoa que se levantava mais cedo na sua casa, para acender o fogão e preparar o pequeno almoço, pois o papá costumava sair no carro para Londres, por volta das oito horas da manhã. Ele, às vezes, ia mais tarde, ou porque o retinham alguns problemas da herdade, ou porque não lhe apetecia ir ao escritório senão depois de almoço. Havia ocasiões, sobretudo no Verão, que ficava na herdade dois e três dias seguidos, e até uma semana inteira.
Alice não sabia as horas, ao certo. Ignorava a que horas rompia o Sol, pois raramente assistia a esse espectáculo. Mas, pelo silêncio da casa, depreendia que devia ser demasiado cedo, e isto impacientava. Apenas uma claridade frouxa, como uma leve tinta lilás, cobria as vidraças da janela do seu quarto, que deitava para o jardim.
Teve um sobressalto. O relógio da sala de jantar batera uma badalada, mas uma apenas. A menina ficou suspensa alguns segundos à espera de mais badaladas para contá-las. Depois, sentiu-se defraudada nas suas esperanças. Soara apenas meia hora. Seriam seis e meia?... Sete e meia?... Não o podia precisar. Tinha de resignar-se a esperar mais meia hora até que de novo soassem badaladas, que ela havia de contar com todo o cuidado, para ficar sabendo ao certo que horas eram.
Entretanto, pensava ela, talvez alguém se levantasse lá em casa. Clara não deixaria de vir chamá-la. Ia pregar-lhe uma partida: fingiria dormir e, quando ela começasse a impacientar-se e a dizer que ia chegar tarde à escola, saltaria para o chão, começaria a dançar em pijama e rir-se-ia às bandeiras despregadas no seu nariz. Clara havia de ficar de cara à banda.
Mas, por mais que apurasse o ouvido, não apercebia ruído algum dentro de casa. Clara, por certo, deixara-se dormir até mais tarde essa manhã, pensava a menina. A sua vontade era subir ao primeiro andar, onde ficavam o quarto e a sala de banho da criada, e acordá-la com dois gritos, como ela costumava fazer-lhe.
Ouviu passos surdos não muito longe da sua janela. Uma voz, na qual logo reconheceu Eduardo, soou a pouca distância. Alice percebeu distintamente as suas palavras.
- Mariana, prende o Mastim... Não vá ele fazer alguma das suas...
A voz da mulher respondeu alguma coisa, ao longe, mas Alice já não percebeu o que ela dizia.
Depois, recaiu tudo num silêncio, num sossego, apenas gentilmente perturbado pelo chilrear dos pássaros nas árvores mais próximas do «cottage». Alice até chegou a assustar-se daquela quietação. Os minutos deviam decorrer muito lentamente, para que tanto tardasse o relógio a bater horas outra vez.
As suas cogitações voltaram a concentrar-se em Nick. Revia as suas faces rosadas, as suas mãozinhas sapudas, a maneira como estendia o làbiozinho inferior quando se irritava, as suas risadas ao ver Clara fazer bailar a boneca sobre o tapete. Estava mesmo a ver o seu cabelo louro anelado, que lembrava as aparas da madeira que os carpinteiros arrancam com a plaina.
A lembrança de que, indo para a escola, ficaria privada durante quase todo o dia da sua convivência, entristeceu-a. Havia de pedir à mamã que a deixasse ficar em casa, nem que fosse só nesse dia, para poder brincar muito com ele. Se o tempo continuasse bonito, iriam os dois para o jardim com a trouttinette. Alice já planeava dá-la a Nick. Tinha tantos brinquedos, bem poderia privar-se daquele que era mais próprio para meninos do que a boneca. Nick iria ficar encantado, com certeza.
Lembrou-se, de repente, de que era sexta-feira. Nem no sábado, nem no domingo tinha escola. Se ficasse em casa nesse dia, somariam três de brincadeira com o menino.
E se alguém o viesse buscar ? Esta pergunta que acudiu, repentina, ao seu pensamento encheu-a de receios. Talvez ainda tivesse os pais vivos. Mas não, o papá asseverava que não era provável. Nick, coitadinho, devia ser uma criança abandonada, como aquela que foram pôr à porta da condessa na noite de Natal (Alice ouvira ler isto num conto que a comoveu até às lágrimas). A condessa tinha muito bom coração. Tomara o menino como uma dádiva dos céus, criara-o e educara-o como se fosse seu filho e fizera-o depois herdeiro de todos os seus bens, e ele fora um grande homem, que chegara a ministro e a lorde.
Mas o menino que puseram à porta da condessa, segundo rezava a história, era ainda de colo. Alice gostava mais deste que falava, andava, brincava e ria. Teria o menino da condessa uns caracóis tão bonitos como os de Nick ou uns olhinhos azuis tão vivos, ou uma boquinha tão vermelhinha ? Oh, não!... Não tinha, por certo, tantos encantos. Nick era a criança mais formosa do mundo. Não conhecia nenhuma outra que se lhe comparasse.
Se ninguém aparecesse a reclamá-lo, ficaria lá em casa como se fosse seu irmão. Tanto o papá como a mamã, pensava Alice, bem o desejavam. Ela já planeava pedir a seu pai que não dissesse nada, para ninguém procurar o menino e este ficar definitivamente com eles.
Que horas seriam ? Havia tanto tempo que havia soado uma badalada no relógio da sala de jantar!... Talvez o relógio tivesse parado. O pai, às vezes, esquecia-se de lhe dar corda e, quando menos se esperava, parava.
Alicinha começou a mover-se no leito. Estava de costas e voltou-se para o lado esquerdo, de modo que ficava com os olhos mesmo fixos nas vidraças. O que momentos antes era uma confusa mancha lilás, tornara-se mais distinto. Já via perfeitamente as «bise-brises», que subiam até meio do batente e, por cima, através dos vidros, enxergava um céu azul muito pálido e as cristas das árvores muito negras, de um verde que lhe parecia preto.
A manhã já ia tão adiantada, e ninguém se movia naquela casa!... Alicinha volveu-se para o outro lado, amuada, ficando de costas para a janela. Fechou os olhos e ficou muito quieta, como se quisesse convencer-se a si própria de que dormia. Talvez o menino tivesse o hábito de acordar cedo, começando a gritar, acordando aquela gente tão dorminhoca.
Não conseguiu manter-se de olhos cerrados, nem dois minutos, que lhe pareceram dois séculos. Abriu-os, fixando o tapete que era de lã alva, com arabescos cor-de-rosa e amarelo dourado. A impaciência provocava-lhe como que um formigueiro nos pés. Um estremecimento percorreu-a toda.
Bruscamente, sem mesmo ter tomado conscientemente essa resolução, achou-se de pé sobre o tapete. Ah!... O mover-se sabia-lhe bem. Fez, com os braços, alguns movimentos ginásticos um, dois !... um, dois !... - como na escola. Sentou-se no rebordo do leito e calçou as botas forradas de pele. Depois foi envergar o felpudo roupão do banho. Estava resolvida a fazer a sua «toilette», enquanto todas as outras pessoas dormiam. Far-lhes-ia a grande surpresa: quando acordassem, encontrá-la-iam lavada, penteada e enroupada no seu vestido de lã, que levava ultimamente para a escola.
Este plano encantava-a. Correu à casa de banho. Mas, depois, desanimou. Clara ainda não acendera o fogão. Ela não gostava do chuveiro frio... Arrepiava-se, fazia-lhe muita impressão... Se fosse em Julho ou Agosto!... Mas estávamos em Março. A água saía gelada dos canos. Era de morrer...
Teve uma lembrança: volveu sobre os seus passos, percorreu o corredor e começou a subir cautelosamente a escada que se encontrava ao fundo. Em cima, havia vários compartimentos de rebaixos, dois dos quais se destinavam a Clara.
Outros eram utilizados, no verão, pela tia Joana e as duas filhas, suas primas Ana e Laura, que vinham ali passar algumas semanas das férias. Durante o resto do ano era só Clara quem vivia lá em cima.
Alicinha foi direita ao quarto da criada, cuja porta estava apenas encostada. Ao aproximar-se, pressentiu lá dentro algum rumor. Clara devia estar a levantar-se.
A menina resolveu fazer-lhe uma surpresa. Coseu-se com a parede do corredor, mesmo junto à porta do compartimento, e, muito quieta e calada, esperou. Instantes depois, Clara saiu como um foguete. Devia ter acordado mais tarde que de costume e parecia muito apressada. Quando passava no corredor um pouco escuro, sem notar a presença de Alice, esta deu um salto, gritando:
- Uh!... Uh!...
Clara deu um salto e um grito de susto...
- Ai, menina, que medo me meteu!...- disse ela, arquejante, ao reconhecer a sua pequena ama, que ria perdidamente.
- Hoje, se quisesse, era eu quem te acordava...- vangloriou-se Alice, dominando o riso.
- Não vim cá meter-te medo durante o sono porque não quis... Já acordei há um ror de horas...
- É muito cedo para si, menina... Ainda não deram sete horas... - disse Clara, recobrando a serenidade. - Que mania foi essa de levantar-se tão cedo ?... Veja lá se se constipa...
- Tu é que és uma dorminhoca...
- Não, a menina é que acordou hoje muito cedo. Até estou admirada. Nos outros dias, quase é preciso arrancá-la da cama.
- Não tinha sono. Quando abri os olhos, ainda não era bem dia.
- Mas que mania foi essa?... Faltava um quarto para as sete...
Conversando, foram descendo as escadas e dirigiram-se à cozinha.
- Sabes, eu tencionava fazer uma surpresa à mamã. Quando ela se levantasse, encontrava-me lavada, penteada e vestida. Ela ficava muito contente. Depois pedia-lhe para não ir hoje à escola...
- Porquê ?... Não se sente bem ?... -estranhava Clara que, desembaraçada, ia acendendo o fogão e dispondo a louça para servir o pequeno almoço:
- Nunca me senti tão bem como hoje... É que eu gostava de ficar a brincar com Nick...
- Ah !... Sonhei toda a noite com ele!... exclamou a criada, num alvoroço.
- É tão lindo, não achas ?...
- Um amor.
- Hei-de pedir ao papá para o fazer meu irmão. Ele, se quiser, pode, não achas ?...
- Ora !... É só querer. A menina Alice gosta muito dele ?
- Gosto tanto, tanto, que nem tu calculas. Clara, baixando a voz, aconselhou-a:
- Peça muito, muito, ao seu papá para ficar com ele. Se calhar já cá lho vieram trazer para isso...
- Achas ?...
- É mais do que certo - afirmou Clara, muito grave.
- Lembras-te daquela história do menino que foram colocar à porta da condessa numa noite de Natal ?
- Lembro-me. Era tão lindo!...
- Pois eu acho que fizeram o mesmo com Nick.
- Deus a oiça, Alicinha.
O relógio bateu finalmente as sete horas, na sala de jantar.
- Olhe, se quiser, pode tomar agora o seu banho, já há água morna no depósito.
- Vou aproveitar - anuiu a menina. - Se, entretanto, a mamã se levantar, não lhe digas que já acordei. Quero fazer-lhe a surpresa.
Alice dirigiu-se, a correr, para a casa de banho, onde se fechou. Clara ficou só na cozinha, toda entregue à sua lida. Cantarolava em surdina e, ao mesmo tempo, deixava à solta os seus pensamentos.
Havia um ano que estava ao serviço dos Gerrells e sentia-se feliz. Entrara para aquela casa, poucos dias depois de eles terem comprado a herdade. Fora Mariana, a mulher do caseiro, quem a inculcara. Logo se tomara de amizade por seus amos e pela menina. Ela adorava as crianças. E como era nova ainda, ia fazer vinte e oito anos, pensava que, se um dia chegasse a casar, a sua maior felicidade seria achar-se rodeada de filhos.
Gostava de conversar com os bebés, identificar-se com o seu espírito infantil e colaborar nas suas brincadeiras. Como provinha de uma família humilde e tivera uma infância amargurada, devido à morte prematura de sua mãe, dir-se-ia que ainda lhe faltava brincar o que não conseguira em pequena. Seu pai dera-lhe madrasta, quando ela contava apenas cinco anos de idade. Cedo de mais, tivera que encarar a vida a sério. Sua madrasta impunha-lhe obrigações, que não eram ainda para a sua tenra idade.
Levantava-se muito cedo, à hora em que as outras crianças se deliciavam com a quentura da cama. Tinha de varrer, esfregar, cozinhar, como se fosse uma mulher, enquanto a madrasta passava o dia a dar à língua com as vizinhas. E ainda por cima, a ruim mulher, quando o marido regressava à noite fatigado do trabalho na oficina, enchia-o de intrigas e queixas contra a filha. Algumas vezes, o homem, que não tinha mau fundo, saía fora de si e castigava a filha injustamente.
Clara nunca se queixava. Sofria e resignava-se. Aos catorze anos, resolveu empregar-se. A madrasta achou bem que ela fosse servir. O pai sentiu uma espécie de alívio, pois estava convencido de que a filha era a origem do seu mau viver com a mulher.
Durante alguns anos, Clara não teve muita sorte nas casas onde trabalhou. Os patrões desconsideravam-na. Contudo, ela suportava-os com paciência, pois não gostava de andar mudando constantemente de casa. Estava servindo em Epsom, na vivenda de um industrial, cuja esposa, nascida do nada, se julgava uma rainha só porque tinha dinheiro, quando Mariana, que conhecera muito bem a sua falecida mãe, lhe perguntou se desejaria ir para casa dos Gerrells. Tais louvores fez de seus amos a mulher do caseiro, que Clara decidiu-se a entrar ao seu serviço. Ficou contentíssima. A senhora Gerrells tratava-a como se fosse da família, a menina logo lhe ganhara grande amizade, o senhor Jorge era a bondade em pessoa.
A entrada de Eva na cozinha interrompeu as cogitações de Clara.
- Bom dia, minha senhora...
- Bom dia. Clara... Escusas de andar a correr - disse a bondosa senhora. - O senhor Gerrells não vai hoje a Londres. Podemos tomar o pequeno almoço sem pressa.
- Fica por causa do menino ?... - inquiriu a criada.
- Sim, é preciso fazer algumas pesquisas nas imediações. É possível que a criança seja de perto.
- Não o creio - replicou a serva. E logo indagou: - Como passou ele a noite ?
- Admiravelmente. Tem feito um sono magnífico. Ainda não acordou desde que o deitámos.
- Então, o senhor Gerrells não gostaria de ficar com ele ? - perguntou Clara.
Eva esboçou um sorriso.
- Não se pode ficar assim, do pé para a mão, com uma criança que não nos pertence.
- Vieram cá trazê-la. Pertence-nos... acudiu a criada, num alvoroço, como se se sentisse também com alguns direitos sobre a criança.
- Mas a nossa obrigação é participar o caso às autoridades...-ponderou a senhora Gerrells.
- Ora, as autoridades só servem para complicar estas coisas. O menino é nosso. Vieram abandoná-lo à nossa porta. Ah!... Se tivesse casa, ficava com ele para mim.
- Gostavas, Clara ?
- Tanto, minha senhora!..
- Também eu - confessou Eva, com um suspiro. - Mas, infelizmente, as coisas não se podem resolver com tanta simplicidade. O senhor Gerrells tem obrigação de participar o caso. As autoridades têm o dever de protegê-lo. Há asilos próprios para a infância desvalida...
Pressentindo passos, a senhora Gerrells volveu-se. Sua filha, já lavada e penteada um tanto à pressa, envergando o seu vestido de lã, entrava muito séria e com uma certa solenidade.
- Bom dia, mamã !...
- Que vejo eu!... - exclamou a senhora Gerrells. - Nunca a Alicinha se levantou tão cedo na sua vida!
- É preciso tomar conta de Nick. Clara tem o seu serviço, a mamã está sempre muito ocupada... Creio que devo ser eu quem...
Uma gargalhada da mãe interrompeu-a, deixando-a um pouco desconcertada.
- E tu - ajuntou Eva, dominando o riso tens o teu tempo ocupado na escola...
- Pois é... - murmurou Alice, baixando os olhos. - Mas creio que hoje sou muito precisa em casa, e posso faltar à escola.
A mãe, adivinhando-lhe as intenções, abraçou-a e condescendeu:
- Está bem - disse ela. - Hoje não irás ao colégio.
Qual será o destino de Nick ?
Alice andava radiante. Nunca se sentira tão feliz como nesse dia. O menino só acordara pouco depois de todos já terem tomado o pequeno almoço. O senhor Gerrells já tinha envergado o sobretudo e posto o chapéu para seguir no seu carro até Epsom, onde iria participar o caso às autoridades e aconselhar-se com elas sobre o que havia de fazer. Sua esposa advertia-o:
- Dize-lhes que nós só entregaremos a criança a quem provar pertencer-lhe.
- Ou às próprias autoridades, se elas assim o exigirem... - acrescentou Jorge.
Eva e a filha exprimiram, pelo seu triste silêncio, a sua desaprovação ao último alvitre. No fundo, o que ambas principiavam a desejar era que o menino ficasse sempre com elas.
- Bem - disse o senhor Gerrells, após um momento de silêncio -, verei o que se poderá fazer...
Já se encaminhava para a porta, a fim de ir buscar o carro à garagem, quando lá dentro soou a vozita imperativa de Nick, a chamar:
- Marta!... Marta!... Anda cá!...
- Acordou !... - exclamou Alice, correndo para o quarto de seus pais.
- Venham depressa!...-chamava Clara.- O menino já está acordado.
Foi um alvoroço. Correram todos para junto do berço. O senhor Gerrells seguiu-as, a sorrir do tumulto que um ente tão pequeno provocava na sua casa.
O menino estava sentado no seu leitozinho. Olhava um pouco surpreso as pessoas que o rodeavam. Parecia querer reconhecê-las, como se o sono tivesse apagado as suas imagens da sua recordação. Fixando Alice, sorriu e estendeu-lhe os bracitos nus, rechonchudos, os dedos muito abertos. A pequena debruçou-se a abraçá-lo, precipitadamente, e a cobrir-lhe de beijos as faces gorduchas, ao mesmo tempo que dizia:
- Como ele me reconheceu !... Sou eu, Nick, a tua mana.
Depois de abraçá-la, o pequeno empurrou-a,
dizendo:
- Quero a Marta !...
- A Marta já vem - interveio a senhora Gerrells. E falando para a criada: - Traze a banheirinha de Alice para aqui. Vamos dar-lhe o banho.
- Deixe-me dar-lhe um beijinho, primeiro pediu a criada, inclinando-se e aplicando-lhe dois ósculos ruidosos, muito repenicados.
Em seguida retirou-se a correr, para cumprir as ordens da sua ama.
- Eis o menino nas mãos das bruxas!...- comentou Jorge, com bonomia. - Cabe-me agora a vez. Quero beijá-lo antes de sair.
Estendeu-lhe as mãos e, retirando-o do leito, pegou-lhe ao colo.
- Ora, viva o nosso lorde... Como passou a noite ?
Nick não o repeliu. Começou a passar-lhe as mãozinhas papudas pelas faces. Quis puxar-lhe os pelos do bigode, que ele usava muito curto, puxou-lhe o lábio inferior e espreitou-lhe os dentes. Esta observação minuciosa parecia despertar-lhe grande curiosidade. Por fim, depois de tentar meter-lhe os dedos pelos olhos, teve um movimento de amuo e disse:
- És feio!...
Volveu-se para a senhora Gerrells e estendeu-lhe os bracinhos. Ela apressou-se a pegar nele ao colo.
Jorge, consultando o relógio, pronunciou:
- Quase nove horas... É tempo de partir... Adeus, até logo!...
Saiu a passo apressado. Entretanto, já Clara tinha colocado a pequena banheira no chão e transportado dois jarros de água, um quente, outro frio.
Ao ver aqueles preparativos, Nick começou a protestar:
- Não quero banho!... Não gosto... Não quero banho!...
A senhora Gerrells tinha-se sentado numa cadeirinha baixa, junto da banheira, onde a criada estava deitando água, ora de um jarro, ora de outro. Alice tentava convencer o menino.
- Olha que é bom, Nick... A Alice já tomou e gostou muito... Vais ver...
- Não quero banho... quero a Marta!...- continuava a criança a protestar.
A senhora Gerrells, que já lhe arrancara a camisinha de dormir, metia a mão na água, para experimentar a temperatura.
- Mais uma pinga quente, Clara... Só uma pinga... - ordenou ela.
- Não quero banho!... Quero a Marta!... O menino esperneava, percebendo que se aproximava o momento do sacrifício.
- Vais tomar banho. Depois, vamos ver a Marta, sim ? - dizia Eva, para o convencer. Além disso, a Alice vai contar-te a história do coelhinho branco. Tu sabes o que é um coelhinho?...
- Quero a Marta!...-clamava o menino.
- Vamos, Alice, conta a história do coelhinho... - disse a senhora Gerrells.
A pequena ajoelhou-se junto da banheira e principiara a recitar o conto do coelhinho branco, muito bonito, de olhos encarnadinhos, esperto, saltitante, a quem a mamã, uma coelha muito grande e muito alva, como uma bola de algodão, recomendava que não se afastasse de casa. Nick principiava a prestar atenção.
- Era bonito o coelhinho branco ?... -perguntou ele.
- Lindo !... - replicou Alice.
A senhora Gerrells aproveitou o ensejo para o sentar dentro da água, na banheira. Ele ainda protestou:
- Não quero!... Mas Alice já lhe dizia:
- O coelhinho branco era muito traquina e desobediente. O seu irmão, o coelhinho preto, esse sim, esse é que era muito bonzinho.
- Também é bonito o coelhinho preto?...
- indagou Nick, todo interessado.
- Mesmo bonito ! - asseverava a pequena.
- E onde está ele ?... - inquiriu o menino. Alice lembrou-se dos coelhos que tinham na
capoeira.
- Está além... - disse ela, apontando vagamente para a janela. - A gente logo vai vê-lo, sim ?...
- Quero ver!...-exclamou a criança, tentando erguer-se.
Eva teve de o deter.
- Primeiro, toma-se o banhinho. O coelhinho não gosta das pessoas que não se lavam disse ela.
Clara não estava inactiva. Com uma esponja de borracha, já lhe molhara as costas e o peito. Agora fazia muita espuma com o sabão, passando-lho por todo o corpo.
- Devíamos ter começado por ensaboar-lhe a cabeça - advertiu a senhora Gerrells.
- Ele gritava - alegou a criada.
- Mas tem de ser.
- Clara espremeu-lhe a esponja pela cabeça abaixo. Nick levou as mãos aos olhinhos e começou a esfregá-los desesperadamente, ao mesmo tempo que choramingava. Rapidamente, a criada encheu-lhe a cabeça de espuma e tirou-lha em seguida com bastante água.
- Não quero !... Marta !...
- Pronto, já passou !... - dizia Eva, a friccionar-lhe a cabeça com uma toalha felpuda.
- Ah, que lindo que está o Nick!... - exclamou Clara. - O banho fê-lo mais bonito ...
As pernas e os pèzinhos foram lavados num ápice, pela mão lépida da criada. A senhora Gerrells embrulhou-o no lençol turco e deitou-o no solo, começando a friccionar com ele o corpinho bem revestido de carnes.
Nick já não chorava. Parecia muito calmo e bem-disposto.
- Que maçada...-disse Eva.-Temos de lhe vestir as roupas que trazia ontem.
- Eu encontrei uma camisa da menina Alice, quando era mais pequenina - disse Clara, indo buscar a peça de roupa.
Era um pouco grande, mas remediava.
- Que engraçado é o sinalzinho!...-dizia a pequena, apontando o pontinho rosado que a criança tinha a meio do peito.
- É cor de morango - achou a senhora Gerrells, debruçando-se para examiná-lo melhor, à luz do dia.
Poucos instantes depois, Nick, agasalhado no fatinho de lã, bem penteado, seguia pela mão de Eva e da filha para a sala de jantar, onde lhe foi servido leite, acompanhado de biscoitos, que ele acolheu com manifestações de regozijo.
Alicinha pediu depois a sua mãe que a deixasse levar o menino até ao jardim.
Eva acedeu, recomendando-lhe o máximo cuidado.
- Faze de conta que ele é teu irmão - disse.
- E ainda pode vir a ser meu mano, não é verdade, mamã ? - replicou a menina. - Se o papá não lhe encontrar os pais, fica na nossa casa e passa a ser o meu irmão mais pequenino.
A senhora Gerrells sorriu e concordou, para a contentar.
Vestiram-lhe um casaquinho de lã que pertencia a Alice e arregaçaram-lhe as mangas muito compridas. A garota tomou-o pela mão e, toda ufana do seu papel de irmã mais velha, saiu para o jardim.
Eva e a criada foram vê-los ao patamar.
- Não levas brinquedos?... - perguntou aquela a sua filha.
- Venho buscá-los daqui a bocadinho. Primeiro, quero dar um pequeno passeio com ele.
Depois de descerem a escadaria de pedra, que tinha apenas uns seis ou oito degraus baixos, atingiram o terreno liso da álea, coberta de areia fina.
O menino manifestou, por gritos e exclamações, o prazer de sentir-se ao ar livre. A manhã estava fresca, mas não corria vento. No céu muito azul brilhava um lindo sol, no arvoredo já despontavam muitas folhinhas novas, de um verde-claro e tenro, anunciando a proximidade da Primavera, e nos canteiros que cercavam o edifício, muitas corolas se abriam deliciadas para colher os benéficos raios solares. Entre as ramagens, gorjeavam aves maviosamente.
Nick soltou-se da mão da sua amiguinha e começou a correr com bastante desembaraço. Apesar de se mostrar bem firme das pernitas irrequietas, ela, receando que o menino caísse, começou a correr atrás dele para retomar a mão que se lhe escapara.
O menino, porém, dificilmente se deixava agarrar. Quando a sentia mais perto, trocava-lhe as voltas e fugia noutra direcção, a rir às gargalhadas.
- Anda cá, Nick!... Olha que tu cais...- gritou-lhe Alice, ofegante.
- Deixa-o andar à vontade! - gritou-lhe Eva, que os observava da soleira da porta. Evita apenas que ele vá para os canteiros, pois pode estragar as flores e ferir-se nas roseiras.
Alice, porém, sentia-se apoucada na sua autoridade de irmã mais velha. Tanto correu que conseguiu segurá-lo com firmeza.
- O menino tem de fazer o que a mana Alice diz., percebe ? - proferia ela, num tom grave, que tornava mais graciosa a sua própria infantilidade.
Tomava uns ares da pessoa crescida que não convencia o pequeno rebelde.
- Não quero!... Deixa-me !... - gritava ele. E como ela não o largasse, começou aos guinchos e a bater com os pés.
- Deixa-o à vontade!... Larga-o!...- recomendava Eva, lá de longe.
Um pouco amuada perante a falência da sua autoridade, Alice resignou-se a soltá-lo. Nick correu a toda a velocidade para o arvoredo, que formava, de um e outro lado do arruamento central, um pequeno parque, muito aprazível.
Mal penetrou na área do arvoredo, que era bastante espaçado, não contou com a diferença do piso, e, desequilibrando-se, caiu.
Alice soltou um grito de aflição. Esquecendo o agravo recente, correu em auxílio do traquina e ajudou-o a levantar-se. Nick chorava sentidamente e a pequena sentiu logo os seus próprios olhos marejados de lágrimas.
- Coitadinho do meu menino... - lastimava ela. - Onde é que dói ?...
- Aqui... Aqui!... - dizia ele, queixoso, apontando os joelhos.
Ela viu que estavam sujos de verde da relva onde se estatelara. Por felicidade, fora cair já fora do leito arenoso do arruamento. As ervas entre o arvoredo amorteceram-lhe o choque.
Alice limpou-lhe os joelhos com saliva.
- Vê o pago de ser desobediente ? Se o menino me tivesse obedecido, não caía, nem chorava... Assim sucedeu-lhe como ao coelhinho branco que desobedeceu à sua mãe...
- O coelhinho!... - exclamou o pequeno, rindo entre as lágrimas. - Quero o coelhinho!...
Já estava esquecido do seu desastre. Outra ideia o empolgava. Alice pôde tomar-lhe a mão e notou, com alegria, que se deixava conduzir docilmente.
- Magoou-se ? - perguntou de lá a senhora Gerrells.
- Não, mamã...
- É com esses trambulhões que ele vai aprendendo a ser mais prudente. Vês como já se deixa conduzir sem resistência ? No entanto, vigia-o.
- Vamos ver os coelhinhos - anunciou Alice.
- Os coelhinhos!... - repetiu Nick, agitando o bracito livre.
A menina levou-o em direcção à capoeira. Tomara pelo arruamento que ladeava o edifício pelo lado esquerdo, que ficava voltado ao Norte. O cottage» projectava uma sombra muito fresca que parecia aveludar o tom verde das plantas do canteiro. O solo estava coberto de um musgo verdoso e húmido.
Não tardaram em se aproximar da casa do caseiro, que se via por entre os troncos do arvoredo. Enveredaram por uma senda estreita, toda sombreada pelas altas ramagens, e depressa atingiram a clareira onde se erguia o tugúrio de Eduardo.
Um cão ladrou. Ao limiar da porta assomou um volumoso vulto de mulher. Era Mariana que, ao vê-los, irrompeu logo em exclamações de alegria, descendo dois degraus e vindo ao seu encontro.
- Viva o lindo menino!...-dizia ela, na sua voz altissonante. - Tão cedo já levantado! Mas que lindo ele vem!...
Agachou-se para aproximar a sua cara redonda como a da lua cheia do rostozinho da criança.
Nick escondeu-se atrás de Alice e deitou-lhe a língua de fora.
- És feia!... Não gosto de ti...
- Isso não se diz, Nick - repreendeu a menina, tomando ares graves de preceptora. Estenda a sua mão a esta senhora e diga: «Bom dia, senhora Mariana, como está? O seu marido está bom» ?
O pequeno não tomou a sério a lição.
- Feia!... Feia!... És feia...
- Deixe-o lá, menina Alicinha. Por enquanto, ainda está estranho - disse Mariana.- Quando ele se habituar comigo, não há-de ver outra coisa...
Levantou-se, com esforço, da incómoda posição.
- Vamos ver os coelhinhos - participou Alice.
- Ah !... o menino há-de gostar.
O cão, preso por uma corrente à sua casa de madeira, ladrava e fazia grandes esforços por soltar-se. Nick agarrava-se mais à sua amiguinha e olhava-o, desconfiado.
- Cala-te, Mastim !... - gritou-lhe a caseira.
- Parece que não conheces a menina Alice.
- Deve ser por causa de Nick - lembrou a pequena, e falou para o animal: - Então, Mastim, que barulho tão grande...
O animal aquietou-se. Ficou a dar à cauda, soltando apenas uns pequenos latidos de quando em quando. Era um grande «bull-dog», mas decerto cruzado com outra raça. Tinha um peito robusto, as pernas ligeiramente arqueadas e o corpo, coberto de pêlo cinzento, era maior que o dos vulgares «bull-dogs». O seu aspecto metia um certo respeito.
- Ele não fará mal ao menino ?... - perguntou Alice, olhando Mariana.
- Não, não faz...
A pequena aproximou-se do animal, segurando sempre Nick, cada vez menos tranquilo.
- Coitadinho do Mastim...-pronunciou a menina, passando-lhe a mão pelo lombo.
O cão mostrava-se satisfeito. Estendeu o focinho e lambeu uma mãozita de Nick, que a retirou, assustado.
- Olha que o Mastim é teu amigo. Faz-lhe uma festinha - aconselhou Alice.
O menino aventurou-se a passar a palma da mão sobre o áspero pêlo do cão, e riu-se. Mas quando sentiu a língua quente na sua face, soltou um grito de susto.
- Não chores... Não faz mal... O Mastim não sabe dar beijos de outra maneira... - disse a pequena, a desculpar o cão e a tranquilizar a criança.
- É melhor não insistir - aconselhou Mariana, vendo que ela pretendia fazer aproximar de novo o pequeno. - Ele há-de habituar-se, a pouco e pouco.
- Vamos ver os coelhos!...-lembrou a menina.
- Os coelhinhos!... - exclamou a criança, alegremente.
Partiram ambos a correr para o lado das capoeiras, que já não ficavam longe, deixando Mariana a contemplá-los, enternecida, com os dedos cruzados sobre o alto ventre, segundo o seu hábito inveterado.
Barracões cobertos de placas de cimento, com paredes de rede de arame em parte e de madeira noutra, serviam de abrigo a inúmeras espécies de galináceos, que erguiam um coro de cacarejos.
Nick, ao ver alguns galos e galinhas, através das redes, soltou grandes exclamações de júbilo e, escapando-se da mão de Alice, correu a agarrar-se aos arames e a gritar:
- Eh!... Pipis!... Eh, pipis!...
- Tu gostas dos pipis, Nick ?... - perguntou Alice.
- Gosto... Quero ovo... O pipi dá ovo para Nick...
- A senhora Mariana logo há-de levar ovos dos pipis para o menino... - prometeu a pequena.
- A Marta apanha o ovo...
- Quem apanha é a Mariana...
- É Marta !... - teimou Nick, batendo o pé.
- Eu quero o ovo. A Marta dá o ovo a Nick.
A menina condescendeu, para que ele não chorasse.
- Está bem. Logo a Marta vem buscar ovos para o menino... Olha, vamos ver os coelhinhos...
O compartimento para os coelhos ficava no extremo da capoeira, que era bastante extensa.
Aí, de novo se manifestou a alegria do bebé. Mas agora havia mais curiosidade e surpresa no seu olhar, como se não estivesse tão habituado a ver aquela espécie de animais. De cada vez que algum coelho se movia aos saltos, soltava grandes risadas.
Olha, lá vai um coelhinho branco!... exclamou Alice, apontando um vulto fugidio, que se sumiu na sua toca ao fundo.
Só se viam os seus olhinhos a espreitar. Nick espetava muito o dedinho indicador e gritava:
- Está ali!... Está ali!...
Tornaram à parte destinada às galinhas. Novamente a criança se lembrou de Marta para apanhar os ovos.
- Quero a Marta!... Chama a Marta... O menino quer o teté da galinha.
Desta vez a sua insistência era maior. E como ele já principiasse a fazer beicinho para chorar, a sua companheira decidiu iludi-lo e levá-lo dali, a fim de fazê-lo esquecer as galinhas.
- Vamos procurar a Marta!...-disse ela.
- Vamos chamá-la para ela apanhar os ovos todos para o menino.
- Sim, todos... - anuía ele, deixando-se levar.
Mas Alicinha já pensava em distraí-lo com um brinquedo mais sedutor: a trottinete.
- O menino gosta de andar de pópó ? indagou ela.
- O menino gosta - respondeu ele.
- Então, vamos buscar um a casa.
Mas Nick ainda não esquecera as galinhas.
- Pipi pôs ovos... A Marta vai buscar... disse ele.
Como se não o tivesse ouvido, Alicinha falou-lhe na trotinete, sem que ele se mostrasse muito entusiasmado. De súbito, quando já se aproximavam do arruamento central, soou um klaxon, que a pequena logo reconheceu.
- Aí vem o papá!... - exclamou ela.Realmente, ouviu-se um ruído de motor. Alice desatou a correr, seguida de Nick, que soltava verdadeiros guinchos de alegria.
Atingiram a escadaria da entrada, no momento em que o senhor Gerrells saltava ligeiramente para fora do carro. Eva assomara ao limiar.
- Papá ? - gritou Alice, lançando-se-lhe nos
braços.
Jorge abraçou-a. Depois, levantou Nick ao
ar, o que lhe provocou grandes risadas.
- Então, o menino fica connosco ?... - perguntou Eva, numa impaciência.
- Ainda não sei... Vamos a ver... - replicou o senhor Gerrells, numa evasiva.
Muitos indícios que nada indicam
O senhor Gerrells mostrava-se muito preocupado, talvez um pouco enervado. Parecia nem notar a presença de toda a sua família, incluindo a criada, que acorrera na esperança de saber novidades.
De testa franzida, dirigiu-se apressado para o seu gabinete de trabalho. Era um compartimento aconchegado, onde ele em certas noites se metia, a escrever, a folhar papéis, a fazer contas. Fora mobilado com simplicidade: uma secretária, uma estante, uma cadeira giratória e dois «maples» e algumas cadeiras. Em cima da secretária estava um telefone. Foi para este que Jorge se encaminhou imediatamente.
A senhora Gerrells, a filha e a criada não ousaram passar da porta. Alice continha a custo o rebelde garoto que pretendia entrar no gabinete que via pela primeira vez, cheio de curiosidade. A pequena pôs os dedos nos lábios a impor-lhe silêncio.
Era costume, quando o senhor Gerrells estava no seu gabinete, evitar-se todo o ruído para não o perturbar. Aquele compartimento da casa tinha o seu quê de sagrado. Era ali que o chefe de família, por vezes, se entregava ao cuidadoso exame dos seus negócios, dos quais provinham as receitas com que se mantinha o bem-estar da
família.
Em certas ocasiões, também ali eram recebidas certas visitas de cerimónia, quase sempre cavalheiros circunspectos, que vinham conferenciar com o anfitrião sobre transacções muito importantes.
Alicinha percebeu que seu pai falava para o seu escritório em Londres e dizia que não podia lá ir nesse dia. Muito longe, no outro extremo de fio, devia estar o guarda-livros. Jorge dava-lhe indicações, citava números e firmas comerciais, pronunciava rapidamente certas quantias em libras. Por fim, dizia:
- Bem, se houver alguma coisa urgente, telefona-me. Eu devo estar aqui depois das cinco. Tenho de voltar a Epsom. É aqui perto e vou no carro. Não devo demorar-me. - Esteve calado uns momentos, apenas resmoneando «hum... hum...», como se quisesse dar sinal de que estava ouvindo, e acabou por pronunciar mais distintamente: - Está entendido. Nesse caso, até logo ou até amanhã... Sim, devo ir, a não ser que surja algum embaraço. Adeus...
Cortou a ligação e ficou parado, no meio da casa, ainda pensativo. Depois, sacudiu a cabeça, num movimento brusco, como se acordasse, e sorriu para as pessoas que se aglomeravam à porta.
- Porque não entram?... - estranhou ele.
- Não queríamos perturbar-te - respondeu a senhora Gerrells, avançando.
Alice seguiu-a, sem largar a mão do pequerrucho. Clara ficou à porta, a torcer a ponta do avental, para entreter a sua impaciência.
Jorge sentara-se à sua secretária e a esposa deixara-se cair num dos «maples» em frente, ao mesmo tempo que perguntava:
- Afinal, que se passou em Epsom ?
O senhor Gerrells esboçou um leve gesto de enfado, antes de replicar:
- Estas coisas são sempre maçadoras... Não se pode ficar assim com uma criança, sobretudo depois das autoridades serem sabedoras de que foi abandonada...
- Parece-me que fizeste mal em participar-lhes... - insinuou Eva.
- Talvez... Mas que queres ?... - retorquiu Jorge, um tanto aborrecido. - Vieram trazer-nos esta complicação a casa. O chefe é uma pessoa cheia de escrúpulos. Pediu-me que lhe contasse tudo, sem ocultar o mínimo pormenor. Tomou alguns apontamentos. Por fim, disse-me: «Senhor Gerrells, a polícia tem de fazer todos os possíveis para descobrir a quem pertence a criança. O abandono é um crime que precisa de ser castigado. Para mim, é ponto de fé que a trouxeram de Londres e em Londres é que devem ser procurados os parentes...» Eu vou telefonar à Scotland Yard, a pedir a sua intervenção...
- Que complicações!... - exclamou a senhora Gerrells, que não perdera nem uma palavra.
- Mas levam-nos o menino ?... - ousou Clara perguntar, lá do limiar da porta onde se encontrava.
- Enquanto não se encontrar a família, não
- respondeu Gerrells. - Permitem-nos e até nos agradecem que tomemos conta dele. E mais tarde, se a polícia se convencer de que não descobre os parentes ou que as pesquisas vão levar muito tempo, é que o menino, ou vai para um asilo de infância desvalida ou fica connosco, desde que assomamos todas as responsabilidades de sustento e educação. E, mesmo neste caso, estamos sujeitos a uma fiscalização oficial...
- Nós não receamos essa fiscalização!...- exclamou Eva. - Temos a certeza de que o pequeno será mais bem tratado por nós do que num asilo.
- Claro, essa fiscalização cessaria se o perfilhássemos...- lembrou Jorge.
A sua esposa ficou calada. Puxara Nick para os seu joelhos e acariciava-lhe a cabeça, introduzindo os seus dedos esguios e brancos por entre os anéis do seu cabelo muito fino. O menino, como se se apercebesse da gravidade do que se estava tratando, permanecia muito sério e calado, com os olhinhos fitos no rosto grave do senhor Gerrells.
- Acho mais prudente - disse, enfim, a mãe de Alice, rompendo o silencio que se fizera aguardar o resultado das investigações. Pode, às vezes, a polícia encontrar os pais, o que seria maçador se já o tivéssemos perfilhado.
- Estou inteiramente de acordo contigo acudiu Jorge, vivamente. E ajuntou, com um sorriso mais alegre: - Aliás, tenho cá um palpite de que nunca mais se descobre coisa alguma.
- Ah !... Deus queira, papá, que nunca mais se encontrem os pais de Nick!... -exclamou Alicinha, batendo as palmas numa antecipada alegria, que uma advertência de sua mãe cortou.
- A menina - disse ela, sem querer, está a deixar-se arrastar pelo seu egoísmo. A menina, como eu e como seu papá e como Clara, sofreria um grande desgosto, se aparecessem os pais de Nick e o levassem. Mas devia suportar de bom grado esse sofrimento, que significava certamente a felicidade de Nick. Quem sabe se esta criança não teria sido roubada aos pais ? O que não terão eles sofrido, privados do seu bebé ? Imagine que nos levavam a menina e que alguém caridoso tomava conta de si. Um dia descobríamos o seu paradeiro e iríamos buscá-la. Os seus protectores, que lhe teriam tomado amizade, sofreriam muito, mas consolá-los-ia a ideia de que a menina, voltando para a companhia dos seus, iria ser mais feliz...
- Tem razão, mamã... -exclamou Alicinha, envergonhada, apressando-se a abraçá-la e a beijá-la.- Eu não me lembrei de tudo isso... Só pensei que sofreria muito se nos levassem Nick.
- Enquanto não no-lo levarem - disse Jerrells-, façamos de conta que ele nos pertence...
- Eu já o considero meu irmão - declarou Alice. E afagando as faces do pequeno: - Tu és o meu mano, não é verdade, Nick ?
- Sim!... - respondeu ele, sem ter bem a noção do que dizia.
- Vêem?... Vêem?!-exclamava a pequena, num ar triunfante. - Ele também diz que é meu irmão. - E volvendo de novo para o menino:
- De quem gostas muito, não é de mim ?...
- Gosto - replicou ele, no seu tom decidido e enérgico.
- E de quem gostas mais?... - indagou Alice.
- Da Marta - respondeu Nick, quase maquinalmente.
Os membros da família Cerrells entreolharam-se todos, quase consternados.
- Sempre essa misteriosa Marta que a gente não sabe quem é, nem como é... - resmoneou Jorge;
Eva segurou o menino pelos ombros, obrigando-o a olhar para ela, e interrogou:
- Quem é a Marta ?
- A tia Marta... É a tia Marta...
- Onde está a tia Marta ?
- Está em casa ?...
- E onde é a casa ?...
Nick apontou vagamente para a porta e replicou:
- É lá na casa... Gerrells quis interrogá-lo.
- Escuta, Nick, a Marta é bonita ?
- É bonita. Eu gosto dela...
Como se falasse consigo, Jorge pronunciou:
- Não se sabe se essa Marta é nova ou velha, alta ou baixa, gorda ou magra... A criança ainda não tem idade para explicar estas coisas...
- Suponho que, com tão escassas indicações, a polícia nunca chegará a tirar qualquer conclusão de préstimo - disse a senhora Gerrells.
- É também a minha opinião - declarou o marido.
- Eu acho que o melhor é não atormentar a criança com perguntas a que ela não pode responder - disse Clara.
- A nossa obrigação é tentar obter o maior número possível de informações - ponderou o senhor Gerrells. - Não devemos deixar-nos arrastar apenas pelo nosso desejo de conservar o menino em nosso poder.
- Deixemos esse trabalho à polícia. Ela que o interrogue como entender - decidiu Eva.
- Muito bem. Falaste com acerto - apoiou seu esposo. - Para que havemos nós de estar a maçar-nos e a maçar o pequeno ?... A polícia que proceda como entender. Nós vamos mas é tratar de outro assunto mais urgente...
Como ele se calasse, todos os olhares o interrogaram.
- Vamos a Epsom... É preciso comprar vestuário para esta criança que não tem senão o que traz no corpo.
- Bravo!...-gritou Alicinha, batendo as palmas.82
- É só o tempo de me vestir!... - exclamou a senhora Gerrells, levantando-se num alvoroço.
- Vamos lavar as mãos e a carinha ao menino!...- alvitrou Clara. - Menina Alice, traga-o consigo...
- Enquanto vocês se arranjam, vou eu buscar o carro para a porta - declarou Jorge.
- E ainda teremos tempo de ir e voltar antes de almoço ? - lembrou a senhora Gerrells, detendo-se à porta do gabinete.
Jorge consultou o relógio.
- Onze e um quarto... - murmurou ele.- Fez-se, realmente, um pouco tarde. A que horas almoçamos hoje ?
- Ao meio-dia e meia hora, como de costume - replicou Eva.
- Então, para não andarmos a correr e termos tempo de fazer as compras sem precipitação, almocemos ao meio-dia e sigamos depois para Epsom. Está aprovado ?
- Se o senhor Gerrells quer, até lhe posso servir o almoço antes do meio-dia - declarou a criada.
- Ao meio-dia é boa hora - replicou o senhor Gerrells.
Fizeram, realmente, como tinham combinado. Cerca da uma da tarde, Jorge instalou-se ao volante do carro, uma «conduite». Eva e Alice sentaram-se no banco de trás, com Nick entre elas. O pequeno mostrava-se encantado por ir de
automóvel.
- É o pópó?... O menino vai no pópó!...
- dizia ele, soltando risadinhas alegres.
- Gostas de andar de pópó, Nick... - perguntava a pequena.
- Gosto.
- Tu andas muitas vezes de automóvel ? indagou, por. seu turno, a mãe de Alice.
A resposta da criança foi evasiva.
- Gosto... O menino gosta do pópó...
Ela ficou na incerteza. Não pôde concluir que o pequeno estivesse habituado a andar de automóvel, o que seria uma indicação que, aliada, a outras, poderia esclarecer sobre a categoria das pessoas que o tinham à sua conta e com quem convivia. De súbito, lembrou-se de perguntar de outra maneira:
- Com quem é que tu andavas de automóvel, Nick?...
- Com a Marta...
- E quem mais ?...
- O Guilherme...
- E quem é o Guilherme ?
Nick ficou pensativo, por um curto instante, e respondeu, por fim, no seu ar decidido:
- É o Guilherme...
Apesar de reprovar que se atormentasse a criança com perguntas, que poderiam subitamente rasgar o véu que encobria a sua identidade e a sua proveniência, a senhora Gerrells não resistia à tentação de perguntar. Seu marido que, à frente, ao volante, ia escutando o diálogo, gracejou:
- Bem prega frei Tomás...
- Mas reparaste neste pequeno indício, Jorge ? - redarguiu a senhora Gerrells. - O menino parece que está habituado a andar de automóvel...
- No nosso tempo, não há cão nem gato que não tenha andado de automóvel... Os «táxis» são acessíveis a todas as bolsas.
Seguiram durante algum tempo silenciosos. O pequeno espreitava, através da vidraça da portinhola, a paisagem fugidia, que a estrada atravessava. Os vultos de alguma árvore ou de casas isoladas, que se enxergavam por momentos, dando a ilusão de que corriam no sentido inverso da marcha do carro, arrancavam-lhe pequenas exclamações de alegria.
- Ih!... Olha!...
Ficava-se a sorrir, como se o encantasse tanto como o intrigava a fugida rápida dos objectos.
Eva quebrou o sossego para falar de novo ao marido, que estava à sua frente, atento ao volante.
- Condeno que se façam interrogatórios fatigantes à criança, mas reconheço que é necessário obter dele algumas indicações, sem ele mesmo dar por isso nem o fatigarmos.
- Claro!... - concordou o senhor Gerrells, sem se voltar. E ajuntou:-Algumas indicações já nós conseguimos ontem.
- É verdade - confirmou sua esposa. Além de percebermos que a tal Marta é a pessoa da sua maior intimidade, deve haver na casa, onde o pequeno vivia, uma mulher ou criada talvez chamada Maria e um cão que dá pelo nome de Nero.
- Também conhece um homem chamado Guilherme - acrescentou Jorge, fixando sua mulher pelo espelhinho que levava suspenso na sua frente.
- Guilherme!... - repetiu o pequeno, abrindo os seus olhinhos azuis, como se o alvoroçasse ouvir pronunciar este nome.
- O menino gosta do Guilherme ? - perguntou a senhora Gerrells, debruçando-se para ele.
- O menino gosta - replicou Nick no seu habitual tom decidido. - O menino vai ver o Guilherme.
- Vais sempre de pópó ver o Guilherme ?...
- indagou Eva.
- Quero a Marta!... - exclamou o pequeno, como se não ouvisse a pergunta que acabavam de fazer-lhe.
Sem o atender, a senhora Gerrells perguntou:
- Com quem é que o menino vai ver o Guilherme ?
- Com a Marta.
- E quem mais ?
- E a Maria...
- A Maria também vai no pópó ?
- A Maria vai levar o Nero...
- É muito grande o Nero ?...
- Grande!...-exclamou Nick, abrindo os braços, para figurar o tamanho do cão, que por aquela bitola seria aliás bem insignificante.
- O Nero é bonzinho para ti ? - perguntou Alice, que estava morta por meter-se no diálogo.
- O Nero é bonzinho... - confirmou o pequeno.
- Ele nem sabe bem o que está a dizer!...
- pronunciou o senhor Gerrells, lá do seu lugar.
- De uma maneira geral, os animais são bons para as crianças. Esse Nero pode ser até bastante feroz e não lhe fazer mal, a ele. Tão-pouco podemos fazer qualquer ideia nítida do tamanho do cão.
- O Nero é maior que o Mastim ? - inquiriu Alice.
- É grande - respondeu Nick.
- Ele hoje estava com medo do Mastim lembrou a pequena, falando para seus pais.
- Talvez, porque achasse que o Mastim fosse maior do que o tal Nero, com o qual está mais familiarizado - deduziu Jorge.
- É verdade... E como apreciou ele a criação?- perguntou Eva.
- Gostou muito. Reconheceu logo que eram pipis e queria os ovos... - contou Alice.
- De uma maneira geral, ensina-se às crianças, mesmo às que não estão habituadas a ver galinhas, que são estas que põem os ovos para elas comerem - ponderou Jorge.
- Mas ele parece que já viu galinhas disse a menina.
- É provável que as tenha visto várias vezes, mesmo que visse em Londres. É um animal que se traz muitas vezes do mercado para as refeições...
Acho-te muito pessimista! - observou a senhora Gerrells, para o marido. - Pretendes sempre diminuir o valor das revelações do pequeno.
- Quero reduzi-las apenas ao seu justo peso - acudiu Jorge. - Não devemos deixar-nos iludir por estas aparências. O menino fala verdade. Não tem mesmo idade para mentir. Mas a sua verdade é muito relativa. Está condicionada pela pouca existência de raciocínio, pela inexperiência da sua idade. O que a ele parece grande é para nós médio ou pequeno. Não sabe, por exemplo, dizer-nos com precisão se o Nero é maior ou mais pequeno que o Mastim, não sabe explicar quem é a Maria, nem se é uma criada ou pessoa que mantenha algum grau de parentesco com Marta. Ainda não percebi se o tal Guilherme vive na mesma casa ou se Nick iria visitá-lo na companhia das duas mulheres e do cão... Fiquei com a leve suspeita de que, pelo menos, alguma vez ele teria ido visitá-lo de automóvel... Mas não posso asseverar que assim seja...
- Eu iria jurá-lo!... - confessou Eva.
- Pois, eu, não!... - redarguiu Jorge. Não o juraria. Tu sabes que as crianças têm uma imaginação muito viva e excitável. O simples facto de ir agora de automóvel poderia ter-lhe sugerido a ideia de associar o facto presente a outro passado que não o tivesse sido nas mesmas condições, isto é, podia ter ido a pé, ou de autocarro. Prudência!... Prudência e não nos deixemos entusiasmar por coisas ilusórias...
A senhora Gerrells ficou calada após esta peroração do marido. No fundo, era mais uma irresistível curiosidade, e não o desejo de descobrir os parentes da criança, que a impelia a interrogá-la. Como se lhe adivinhasse o pensamento, Alicinha disse:
- A mamã, se continua a fazer-lhe perguntas, acaba por descobrir os pais de Nick. E depois temos de lho entregar, não é verdade ?
- Evidentemente, se aparecessem... - confirmou a senhora Gerrells.
A pequena hesitou um momento e depois pronunciou, num tom suplicante:
- Mamã, não faças mais perguntas a Nick. Isso fatiga-o tanto!...
O senhor Gerrells e a mulher trocaram um sorriso através do espelho. Adivinhavam no pedido da filha o terror que ela tinha de perder Nick.
- Fica descansada, Alice... Não o maço mais... -condescendeu Eva, passando-lhe, numa carícia, a mão pelos cabelos.
Já cruzavam as ruas de Epsom, atravancadas de grandes camiões de carga. Durante longos trechos, apenas se viam de um lado e outro longos edifícios pardos de grandes fábricas.
Logo que pôde, Jorge desviar-se para outros arruamentos mais limpos e alcançou a artéria principal, onde existiam os estabelecimentos mais elegantes da cidade. Deteve-se à porta de uma loja de modas.
Aí, a senhora Gerrells e a Alicinha fizeram a escolha de um enxoval completo para o menino. Roupas interiores, fatinhos de sair, peúgas, meias, sapatos, gorros, não esqueceu coisa alguma. Por vontade da pequena, sua mãe teria trazido a loja em peso.
O empregado encheu o porta-bagagens de embrulhos. Depois, o senhor Gerrells dirigiu-se a um bazar de brinquedos. O entusiasmo de Nick era indiscritível. Sem a menor cerimónia, lançou logo a mão a um urso felpudo quase do seu tamanho e, como Eva lho quisesse tirar, defendeu-se aos berros e a pontapé. Tiveram que lho deixar. Jorge ria com gosto.
Nick conseguira meter o urso debaixo do braço esquerdo e, como tinha a mão direita livre, apoderou-se de uma formidável pistola.
O senhor Gerrells ainda comprou bolas, um cavalo de pasta, um triciclo e alguns objectos mecânicos, como um comboio de corda, um automóvel de corrida e um avião.
Regressaram com o carro bem recheado de compras. Quando, enfim, se apearam de novo à porta da vivenda, Clara veio alvoroçada ao seu encontro e, em voz surda, ainda no patamar, anunciou:
- Está aí um cavalheiro à espera do senhor Gerrells. Diz que vem por causa do menino...
Todos empalideceram, supondo que talvez fosse um parente de Nick a reclamá-lo.
O enigma continua indecifrável
O senhor Gerrells abriu a porta do seu gabinete de trabalho e deparou-se-lhe um cavalheiro de estatura média, largo de ombros, face dura, olhar penetrante, não aparentando mais de quarenta e cinco anos, que inclinou ligeiramente a cabeça e perguntou:
- É o senhor Jorge Gerrells ?
- O próprio...-replicou este. - Tenha a bondade de sentar-se. A que devo a honra da sua visita ?
- Preciso de falar-lhe em particular - disse o homem.
E foi fechar a porta do aposento, que tinha ficado entreaberta. Jorge seguiu-lhe os movimentos um pouco intrigado, perguntando a si próprio se aquele seria o pai de Nick, seu parente ou protector.
O desconhecido volveu, com toda a calma, até junto do anfitrião e disse em voz surda:
- Sou o inspector Artur Kelly, da Scotland Yard.
- Ah! - exclamou Gerrells. - Vem por causa da criança ?...
- Exactamente. Telefonaram-me de Epsom para Londres. O meu chefe enviou-me aqui imediatamente, a fim de proceder ao inquérito.
- Felicito-os pela rapidez - disse Gerrells, sentando-se num «maple», ao mesmo tempo que indicava o outro ao visitante.
- Nestas coisas deve-se proceder sem perda de um minuto - pronunciou o inspector, sentando-se. - De Epsom, já fizeram um relato telefónico para o meu chefe que, por seu turno, me contou o que ouvira. Mas não seria inútil que o senhor me tornasse a narrar tudo minuciosamente, sem omissão de um pormenor. Como sabe, por vezes, um simples pormenor pode abrir-se uma pista decisiva...
- Infelizmente, os pormenores ou indícios elucidativos são muito escassos...-disse Jorge, esboçando um sorriso triste. - Creio até que os esforços do senhor Kelly se vão perder totalmente... É daqueles casos em que não vejo ponta por onde se lhe pegue...
- Nunca devemos desanimar - sentenciou o inspector. - Queira repetir-me o que disse às autoridades de Epsom.
Após um breve silêncio, o senhor Gerrells relatou minuciosamente os acontecimentos, sem esquecer a digressão que fizera pela estrada, na noite anterior, e o achado do lencinho no local onde supusera que tivesse estado um automóvel parado durante algum tempo.
O inspector Kelly ouvira tudo, em silêncio e com muita atenção, sem nunca fazer uma interrupção nem esboçar uma pergunta. Depois de Gerrells terminar, permaneceu bastante tempo com os seus olhos cinzentos muito fixos num ponto vago da atmosfera. O anfitrião ainda disse:
- O caso parece-me bastante bicudo...
- Sim, um pouco bicudo...-concordou o detective», pronunciando as palavras num ar abstracto, como um sonâmbulo. Depois, mais atento, indagou:
- Disse-me que o cão não dera alarme?...
- Diz o caseiro que ladrou uns momentos, mas logo se calou - respondeu o senhor Gerrells.
- Mas não podemos confiar muito no cão, que não é de guarda. É feroz para os desconhecidos, principalmente de noite, mas não serve para dar alarme. Se encontrar um desconhecido no seu caminho, fila-o. Se, porém, o desconhecido passar a certa distância, mesmo dentro da herdade, ele não se incomoda a ir ao seu encontro. Quase que é preciso o inimigo vir meter-se-lhe nos dentes. E então, ai do desgraçado!..
- Não podemos, portanto, suspeitar de que alguém conhecido da casa tivesse colaborado no caso.
- Oh, isso não !... - exclamou Gerrells.
- Podia uma pessoa que o cão conhecesse ter ajudado a pessoa ou as pessoas que quiseram abandonar a criança à sua porta - ponderou o inspector. - Justificava-se, assim, que o cão não ladrasse...
- Mas o cão ladrou, embora sem grande fúria... Portanto deu algum alarme - lembrou Jorge.
- E o senhor ouviu-o ladrar ?
- Confesso que não o ouvi - respondeu Gerrells. - E se ladrou, como Eduardo diz, fê-lo de maneira tão discreta que eu nem dei por isso.
- Claro que, se ladrasse com fúria, o senhor notá-lo-ia...-disse Kelly.
- Evidentemente.
O inspector ficou pensativo por alguns instantes. Em seguida, disse:
- Vejamos que elementos se nos oferecem, como ponto de partida para as investigações: temos o lencinho perdido na estrada. Guardaram-no, não é verdade ?...
- Minha mulher quer conservá-lo para recordação...
- Está muito bem. Bastar-me-á examiná-lo na primeira oportunidade... Temos, portanto, o lencinho e os trapos em que vinha embrulhado. Não os deitaram fora, pois não ?
- Suponho que não.
- Hão-de fazer o favor de mos ceder. Vou levá-los para os examinar bem, assim como as cordas que o manietavam. E a roupa que o menino trazia vestida não tinha qualquer marca, letra ou sinal particular?...
- Suponho que não. Mas pode saber-se já. Se me dá licença, eu chamo minha mulher para lho perguntar.
- Acho útil até que ela nos auxilie - disse Kelly.
O senhor Gerrells dirigiu-se à porta do gabinete e chamou sua esposa, que se apressou a comparecer. Vinha pálida e anciosa, na incerteza de que aquele homem viesse ali para levar o menino, o que já lhe causaria um enorme desgosto.
- Eva, apresento-te o senhor Artur Kelly, inspector da Scotland Yard. Vem fazer um inquérito sobre o caso do menino.
A senhora Gerrells apertou a mão ao polícia, que parecia trespassá-la com o aguçado olhar das suas pupilas cinzentas.
- Vem já buscar a criança ?... - perguntou ela, em voz anciosa.
O inspector, que percebeu a sua inquietação, sorriu e replicou:
- Esteja descansada, minha senhora. Eu apenas vou tentar descobrir a identidade do menino e saber quem cometeu o crime de o abandonar.
Eva soltou um suspiro, mais tranquilizada.
- O senhor inspector desejava que tu lhe mostrasses o lencinho que se encontrou ontem à noite, na estrada.
- Não posso ficar com ele ?... - perguntou a senhora Gerrells, alarmada.
- Pretendo examiná-lo somente - declarou Kelly. - O lenço pode ficar em seu poder.
Eva tirou o lencinho do bolso do seu casaco e passou-o às mãos do inspector, que o examinou de um lado e de outro, palpando bem a qualidade do tecido. Por fim, cheirou-o longamente, como um cão que fareja uma pista.
Devolvendo-o à senhora Gerrells, declarou:
- Um lenço vulgar. Pouco ou nada adianta. Contudo, é conveniente conservá-lo. Pode ser necessário mais tarde.
- Todo o meu empenho é guardá-lo para recordação, bem como as roupinhas que Nick trazia vestidas.
- A propósito de roupinhas - disse Kelly.
- Agradecia-lhes a fineza de mas mostrarem também...
- Da melhor vontade... Agora mesmo acabámos de lhas tirar, para as substituirmos por outras novas.
- Seria bom que me trouxessem tudo o que trazia com ele, incluindo os sapatos - pediu o polícia.
- Eu vou tratar de reunir tudo isso - pronunciou Eva,' dirigindo-se para a porta.
- Olha ! - lembrou o senhor Gerrells, antes de ela sair. - A Clara que traga os trapos e as cordas que o manietavam. Suponho que ainda não deitou nada disso fora.
- Está tudo na arrecadação - respondeu Eva, saindo e fechando novamente a porta.
O detective» sentou-se, a um sinal amável de Jorge, e disse:
- O pequeno cita o nome de várias pessoas com quem parece ter vivido até à data. E não pronunciou o nome de uma terra ou de uma rua?...
- Até agora, que eu saiba, ainda não. Como sabe, é raro crianças de tão tenra idade saberem o nome das terras onde vivem, ou mesmo da rua onde moram. Eu estou em crer que o menino, apesar de robusto e desenvolvido, ainda não deve ter quatro anos. Pouco mais de três terá. Ainda não tive ensejo de lhe observar bem a dentição, que, aliás, numas crianças é mais adiantada do que noutras. Mas a sua maneira de falar e de raciocinar não revela muito mais de três anos.
- Fala muito numa Marta...
- Muito. Parece ser essa Marta a pessoa a quem tem mais apego. Por vezes, chama-lhe tia, mas nem sempre.
- Dá-se em certos meios o nome de tia a mulheres de uma certa idade. Sobretudo nos meios populares. É banal ouvir-se chamar «tia» Marta, ou «tio» José, a pessoas que nunca foram tios...
- A criança não parece ter sido criada num meio muito elevado. Está até bastante mal-educada, embora tivesse sido bem tratada... A sua condição física é óptima...
O regresso de Eva interrompeu-os. Clara seguia-a, ajoujada com os farrapos e as roupas que o menino abandonara pouco antes.
- Deixa tudo isso aí e podes sair - disse o senhor Gerrells.
Clara saiu, não sem primeiro lançar ao visitante um olhar perscrutador.
Kelly debruçou-se avidamente sobre o molho de roupas que a criada deixara a seus pés. Com as pontas dos dedos, levantou os farrapos de uma manta escura já muito velha; depois, uns pedaços de cobertor. Eram estas misérias que envolviam a criança.
- Só numa casa pobre - disse ele - se poderiam encontrar roupas tão velhas e usadas, apesar de limpas.
O senhor Gerrells concordou, com um movimento de cabeça. Sua esposa observou:
- Contudo, as roupas que trazia vestidas, embora modestas, eram novas.
- Talvez o seu fatinho domingueiro...- comentou o inspector, tomando nas mãos e palpando os calçõezinhos de malha de lã azul e a camisola da mesma cor, que examinou atentamente, voltando-os ora do direito, ora do avesso.
Em seguida analisou o gorro, que não apresentava qualquer particularidade que o distinguisse de outro gorro. Deixou cair estas peças e levantou depois os polainitos e os sapatinhos, que submeteu ao mesmo exame minucioso.
Gerrells e a esposa observavam-no com certa ansiedade. O «detective» ficara pensativo, com os sapatinhos como que esquecidos entre os dedos. Teria ele possibilidades de descobrir alguma pista, pela simples análise daquelas peças de vestuário ? Muito no seu íntimo, eles desejavam que o mistério da proveniência de Nick continuasse impenetrável. Desde que ele lhes aparecera, como uma dádiva do Céu, temiam perdê-lo. Já tinham começado a fazer mentalmente os seus planos. Criá-lo-iam como filho. Quando estivesse perfeitamente arredada a hipótese de se encontrarem os seus verdadeiros pais, tencionavam perfilhá-lo. Viria ocupar o lugar do mano de Alice, que eles tanto desejaram ter e que nunca aparecera. Talvez a Providência lhes enviasse Nick em sua substituição.
Pouco a pouco, haviam de anular os defeitos da educação desleixada que denunciava ter recebido, para fazerem dele uma criança decente. Na idade própria, iria para a escola. Ele mostrava ser muito vivo de inteligência. Talvez ainda viesse a ser um grande homem que honrasse o apelido Gerrells que havia de usar com orgulho. Jorge gostava que ele fosse engenheiro. Fora a profissão que ele teria seguido, se seu pai o não contrariasse, obrigando-o a ingressar na carreira comercial e a tomar, muito novo, a gerência dos negócios paternos.
Eva já sonhava que Nick havia de atingir a celebridade como inventor de qualquer coisa que ela nem sabia definir, mas que devia tornar o seu nome - Nicolau Gerrells - tão universalmente conhecido como o de Newton, Darwin, ou Edison.
O inspector interrompeu os devaneios dos cônjuges, pedindo:
- Era favor mandar-me fazer um embrulho de tudo isto, que eu levo comigo para Londres.
A senhora Gerrells apressou-se a chamar Clara para fazer um fardo da trapagem, enquanto Jorge interrogava:
- Descobriu algum indício ?
- Não. Por enquanto, não. Mas não desanimo.
- Não quer interrogar o menino ?
- Quero. Mas primeiro desejaria ouvir o caseiro e a mulher. Pode mandá-los chamar ?
- Da melhor vontade... - acedeu o senhor Gerrells.
Poucos instantes depois, Clara levara as roupas e incumbira-se de chamar os caseiros.
Lá fora, no jardim, Alice e Nick divertiam-se com os brinquedos novos. Seus gritos de alegria chegaram nitidamente ao interior do gabinete.
- Quer espreitar o garoto ?... Queira chegar aqui... - convidou Jorge, abeirando-se da janela e afastando a cortina.
O inspector permaneceu uns momentos a ver o pequeno correr atrás da grande bola de borracha colorida. Soltava grandes gritos de cada vez que conseguia dar-lhe um pontapé. Alice não queria que ele jogasse com os pés, mas com as mãos, e ensinava-o. Ele não fazia caso das lições, e, sempre que se aproximava da bola, era a pontapé que a arremessava para longe, soltando gargalhadas de triunfo.
- É uma linda e robusta criança - comentou o polícia. - Deviam tê-lo tratado bem até à data.
- Talvez o tivessem abandonado por dificuldades económicas - lembrou Gerrells.
- É possível.
A senhora Gerrells entrou, seguida de Eduardo e Mariana, que se mostravam muito acanhados na presença do cavalheiro chegado de Londres. O caseiro, com a sua calva reluzente, seus olhinhos inquietos, sua barbicha ruiva, rolando nas mãos o chapéu amarrotado, parecia nervoso. Sua mulher, depois de ensaiar pôr as mãos nem sabia onde, acabou por cruzar os dedos sobre o alto ventre, como era seu hábito.
- A gente não sabe nada dessa coisa do menino...-declarou Eduardo, antes que o inspector formulasse qualquer pergunta.
- Pois, claro... A gente como é que havia de saber?... Estávamos entretidos lá em casa...
- reforçou a mulher.
Artur Kelly sorriu do susto daquela pobre gente, que receava sempre tratar com a polícia.
- Estejam descansados - disse ele, para os tranquilizar. - Eu só quero saber se conhecem nas imediações alguma mulher chamada Marta.
- A gente não conhece, não senhor...- respondeu Eduardo.
- E Maria ?
- Também não...
- Quê?!... - exclamou Kelly. - Será possível que não conheçam nenhuma Maria ? Um nome tão corriqueiro...
- Quero dizer na minha - acudiu o caseiro, atrapalhado -, quero dizer que conheço Marias, mas, claro, nenhuma se metia nesta trapalhada, creio eu.
- Está bem de ver que não - reforçou Mariana.
- Não se atrapalhem que eu não venho aqui para lhes fazer mal - disse o polícia. - Não suspeitaram de coisa alguma quando o cão ladrou ?
- Não, senhor, nem ligámos importância redarguiu o caseiro.
- Sim, ele ladrou, mas não foi muito... Nós estávamos a cear e continuámos - disse Mariana.
- Só percebemos que se passava alguma coisa, quando vimos o patrão à procura não sei de quê, com uma lanterna.
Kelly e o senhor Gerrells trocaram um olhar .e um sorriso de comiseração por aqueles pobres diabos.
- Podem retirar-se - disse o inspector.
- Ora, então, com sua licença - disse Eduardo.
- Deus lhe dê saudinha... - pronunciou Mariana.
Depois de muitas mesuras abandonaram A casa.
- Tempo perdido - comentou Jorge.
- É preciso perder muito tempo para se ganhar uma causa - replicou o polícia. E ajuntou: - Percamos mais alguns minutos, ouvindo a criança.
A senhora Gerrells saiu, para reaparecer pouco depois com Nick e Alicinha.
- Trouxe também minha filha para ele não se mostrar tão estranho - disse Eva.
Ela pode auxiliar com a sua presença.
- Dá um beijinho àquele senhor, Nick. É teu
amigo... -disse a senhora Gerrells. » .
O pequeno encarou o «detective» e, com um arremesso, protestou:
- Não quero.
- Olha que ele gosta de ti...
- Não gosto - pronunciou Nick de mau modo e apertando sob o bracinho, contra o tronco, o urso felpudo dos seus encantos.
Então, os Gerrells e a criada, que não resistira à tentação de vir espreitar, assistiram cheios de surpresa à prodigiosa transfiguração do inspector Kelly.
O cavalheiro severo, de face grave e dura e frio olhar perscrutador, desapareceu para dar lugar a uma criança grande, abrutada, mas suficientemente infantil para despertar no pequeno, primeiro, um olhar interessado e, depois, um riso de franca simpatia.
Artur Kelly sentara-se no tapete e sacara não se sabe de que bolso uma gaitinha que, soprada por ele habilidosamente, produzia um som que imitava o miar de um gato, ou o cacarejar de uma galinha.
- É o pipi! O pipi!... - exclamou Nick, apontando para a boca do polícia a única mão que tinha livre, pois a outra não largava o urso felpudo que trazia debaixo do sovaco.
- Cocorocó!... - fazia Kelly através do aparelho.
- O galinho!... - gritou o pequeno.
E largando o urso que, perante aquela maravilha, deixara de o interessar, correu de mão estendida e a reclamar:
- Dá cá!... É do menino!... Dá cá... Kelly furtou-se-lhe, num movimento ágil, e
repetiu mais longe o canto do galo. Nick perseguiu-o, pedindo sempre:
- Dá cá!... É para o menino!...
Kelly deu uma volta brusca, sentou-se à beira do «maple», mas apresentava as mãos vazias. Fizera desaparecer a gaitinha, sem que ninguém desse por isso. Alicinha estava maravilhada da sua habilidade.
O pequeno ficou um momento perplexo a olhar para as mãos vazias. Depois, chegando-se, já cheio de confiança, para os joelhos do polícia, perguntou:
- Onde está?...
- Fugiu...
- Eu quero isso !... - pronunciou a criança, no seu habitual tom imperativo.
- Está bem. É para o menino... Mas hás-de dizer onde moras...
- Eu quero isso ! - insistiu Nick.
- Se o menino disser onde mora a Marta...
- Não sei...
- E o Guilherme ?...
- Quero o pipi!... Faz co-co-ro-có!... replicou Nick.
- Onde está o Nero?... Dize onde está...
Depois dou-te o co-co-ro-có que mia como os gatinhos...
- O Nero está em casa - respondeu o pequeno, cheio de propósito, patenteando bem a vontade de atender aquele homem para obter dele o prodigioso brinquedo.
- E onde é a casa ?...
- É lá em casa...
- E em que rua ?
Após uma vacilação, o pequeno proferiu:
- Está no quintal...
- Quem é que está no quintal ?
- O Nero...
- E a Marta onde está ?...
- Em casa...
- E a Maria?...
- Em casa...
- E onde é a casa ?... É em Londres ?... Nick teve um movimento de enfado e gritou:
- Quero o brinquedo !...
- Onde está o Guilherme?... - indagou Kelly.
- Dá cá isso!...-exigiu a criança, num clamor.
E começou a chorar desabaladamente. Alicinha correu para ele, muito aflita, ela própria quase a chorar, e suplicou:
- Nick... Nick, não chores assim!...
- Pronto - disse Kelly, tirando do bolso a pequena gaita e entregando-lha. - Não chores mais...
O choro do pequeno cessou como por encanto. Olhou cheio de curiosidade o pequeno brinquedo e, levando-o depois à boca, não conseguiu arrancar senão uns guinchos inexpressivos a que não sabia dar modulação, mas que no entanto o divertiam muito.
Volvendo-se para o senhor Gerrells, o inspector disse:
- Apenas alcançámos mais um pormenor: a casa onde vivia tem um quintal. Vejam se conseguem, na convivência, ir colhendo mais alguns pequenos informes soltos, que, reunidos depois, nos apresentem um todo mais definido.
Pouco depois, o polícia retirava-se. O senhor Gerrells quis por força levá-lo até Epsom, onde mais facilmente encontraria um autocarro para Londres.
Ao vê-lo partir, tanto a senhora Gerrells, como Clara e os caseiros soltaram um suspiro de alívio. Todos secretamente desejavam que os esforços daquele homem fossem vãos, para que Nick ficasse definitivamente naquela casa.
Jorge regressou, meia hora depois, e parecia muito bem-disposto, certamente pelos mesmos motivos.
Mistério com tendendo para dissipar-se
O resto desse dia decorreu sem mais incidente. O menino desprezara todos os brinquedos caríssimos que os Gerrells lhe tinham comprado para mostrar apenas um obstinado interesse por aquele tubo que continha uma placa que vibrava ao menor sopro, produzindo apenas um som roufenho e cómico.
Era preciso a perícia do inspector para arrancar a essa placa vibrátil sons que imitassem as vozes de vários animais, que eram aliás imitadas pelas pessoas que sopravam. Ora, Nick ainda não tinha discernimento para obter esses sons. Soprou, soprou até se cansar. Por mais que se esforçasse em reproduzir o miar do gato ou o cacarejo da galinha, não conseguia mais do que vibrar uma espécie de zumbido rouco e forte.
- Hum... Ruum-um-um!...
Por fim, descoroçoado, atirou o brinquedo ao chão e calcou-o com o salto do sapatinho novo.
A senhora Gerrells aproveitou o ensejo para fazer a sua primeira intervenção educadora. Simulou um grande assombro pela sua feia acção. Disse-lhe que só os meninos muito feios procediam daquele modo. Os brinquedos não se estragam propositadamente, mesmo que não se goste deles. Fingiu notar que a face de Nick já estava a fazer-se tão feia como o focinho do Mastim, só por ele ter pisado o brinquedo.
O pequeno, a princípio, não ligou importância à peroração da senhora Gerrells. Depois, escutou-a, num misto de curiosidade e respeito. Decerto, nunca lhe tinham falado naquele tom. Por fim, quando lhe disseram que estava a parecer-se com o Mastim, apanhou disfarçadamente a gaitinha e examinou os estragos produzidos pelo seu calcanhar colérico.
- Mamã - pronunciou ele, em voz suplicante-, tu arranjas?... Sim, arranjas, mamã?...
E entregou-lhe o brinquedo. A senhora Gerrells, nem soube descrever o que sentiu ao ouvi-lo chamar-lhe mamã. Ela bem sabia que a criança apenas imitava inadvertidamente as expressões empregadas por Alice. Mas, mesmo assim, comoveu-se profundamente.
Pegou-lhe ao colo e prometeu que faria todos os esforços por consertar o brinquedo, se ele nunca mais tentasse destruir coisa alguma.
- O menino não escangalha mais...-prometeu o pequeno.
- E gosta muito da sua mamã?... -inquiriu Eva.
- Gosta.
Mas esta resposta, não a satisfazendo inteiramente, provocou-lhe outra pergunta:
- De quem é que o menino gosta muito ?
- Da mamã... - respondeu Nick sorrindo por sentir-se amimado.
- E quem sou eu ?...
- A mamã.
Eva cobriu-o de furiosos beijos, aqueles ósculos vorazes, que só as senhoras sabem dar a seus filhos. Quando levantou o olhar, percebeu que seu marido a observava, enternecido.
- Já notei - disse Jorge - que principias a fazer monopólio do menino. Tu e Alicinha... E eu fico esquecido...
A senhora Gerrells, perguntou a Nick, apontando para seu marido:
- Meu filho, quem é aquele ?...
O pequeno ficou um momento vacilante. Depois, lembrando-se de como a Alice o tratava, replicou:
- Tu és o papá!... - E achando graça ao que dissera, repetiu numa cantilena: - És o papá!... És o papá!...
Todos começaram a rir. Alicinha, um pouco zelosa de não ser mencionada, interpelou o menino:
- E quem sou eu ?...
- És a Alice... Alicinha...
- Sou a mana - emendou ela, um pouco enxofrada.
- És a Alice... Alice!... Alice!... - repetiu, a criança, numa teima.
- Ai, mamã, que ele não quer chamar-me mana !... - gemeu a pequena, cheia de desgosto.
- É natural, porque ninguém cá em casa te dá esse tratamento - explicou a Eva. - Aliás, mesmo entre irmãos, esse tratamento é raro.
Chamou-me mamã e a teu pai, papá, porque são essas as expressões que te ouve, e ele imita-te. Todos te chamam Alice ou Alicinha... É por esses nomes que ele te trata, por espírito de imitação vulgar em todas as crianças.
Alice conformou-se mais com estas explicações. Contudo, ainda disse:
- Eu gostava que ele me tratasse por mana Alice...
Nick adormeceu essa noite com o seu pequeno leito povoado de brinquedos. O urso, o preferido, ficou deitado ao seu lado. Sobre a colcha viam-se bolas, a pistola, o automóvel de corda. Logo que ele adormeceu, porém, retiraram tudo, exceptuando o urso, para que ele tivesse uma grata surpresa ao despertar.
No dia seguinte, sábado, o senhor Gerrells levantou-se cedo, como aliás era seu hábito, e partiu para Londres, a fim de pôr em ordem vários assuntos do seu escritório.
Ficou muito surpreendido com a maneira excepcionalmente risonha com que o seu guarda-livros, taciturno de seu feitio, o acolheu essa manhã.
- Bom dia, senhor Gerrells... - pronunciou ele.
- Bom dia, senhor Walsh.
O guarda-livros era um homem franzino, macilento, óculos de lentes muito grossas, por detrás das quais espreitavam uns olhos esverdeados, quase calvo e um pouco corcovado.
- Então, o senhor Gerrells não me quis dar ontem, pelo telefone, a grande novidade...
- insinuou ele, com o seu sorrisinho frouxo.
- Qual novidade?... - perguntou Jorge, adivinhando que Walsh já devia saber alguma coisa a respeito da criança.
- Do menino... - tornou o guarda-livros.
- Ah !... Como o soube ?...
- Como toda a gente, pelos jornais - replicou o empregado. - Eu por acaso li a notícia, há bocado, no Daily Mail. Mas suponho que outras gazetas lhe fazem alusão. Vinham junto de mim, num auto-ónibus, dois cavalheiros a comentar o caso.
Nunca passara pela cabeça do senhor Gerrells que o caso viesse a lume na Imprensa. Agora, achava isso natural e admirava-se de não o ter previsto.
- Mostre-me lá o jornal - pediu ele. Walsh foi buscar um exemplar do Daily-Mail e indicou-lhe com o dedo a notícia, que ainda ocupava um bom pedaço de coluna. Em linguagem sintética, mas muito clara, narrava o acontecimento, desde o misterioso achado do bebé manietado até ao pormenor do lenço encontrado na estrada. Citava os nomes dos Gerrells e rematava, revelando que a polícia estava procedendo a investigações sem grande esperança nos resultados, visto a criança, devido à sua pouca idade, não saber dizer onde vivia e citar nomes vulgaríssimos de pessoas com quem convivia, sem poder dar uma ideia nem da idade nem do aspecto físico dessas pessoas. E na última linha: «O senhor Gerrells, caso não descubram os parentes do menino, está na disposição de adoptá-lo e protegê-lo como se fosse seu filho». Jorge sorriu e comentou:
- É extraordinário, como esta gente já pretende adivinhar as minhas intenções acerca da criança!... - Meneou a cabeça e ajuntou: Ainda não sei o que farei... Vamos a ver...
Walsh perguntou:
- É bonito o menino ?...
- Lindo!... Você nem pode imaginar. Lembra aqueles anjos que os pintores antigos colocavam nos quadros religiosos... Só lhe faltam as asas...
- O senhor ainda vem a ficar com ele vaticinou o guarda-livros. - Lamentava-se tanto de não ter um rapaz...
- Sim, tanto eu como minha mulher sentíamos essa falta. Este pequeno parece vir preencher uma lacuna...
Soltou uma risada bem-humorada e dirigiu-se à sua mesa de trabalho. Tinha pressa de voltar à herdade. Era um sábado. O escritório fechava ao meio-dia. Ele, porém, queria ver se conseguia pôr em ordem o expediente por forma a retirar-se, pelo menos, meia hora mais cedo. Sempre seria mais meia hora que estaria perto da criança.
Enquanto lia a correspondência, anotava facturas e fazia operações aritméticas, seu pensamento estava longe, lá em Epsom Hill, onde ficava a sua herdade. A essa hora, estaria Nick no jardim, com os seus magníficos brinquedos, em grande folgança com a irmã... Gerrells sorriu, por já em pensamento considerar Nick irmão de Alicinha... Sim, era o que viria a suceder, se o inquérito de Kelly resultasse vão.
Não tinha a mínima esperança de que a polícia, apesar da sua já tradicional perícia nestes complicados assuntos, viesse a descobrir coisa alguma. De todas as diligências de Kelly, que mais se apurou que já não se soubesse ?... Que na casa onde vivia existia um quintal. Há milhões de casas com quintal por esse mundo. Aquele pormenor nada esclarecia.
Cerca das onze horas, um empregado falou pelo telefone interno para o seu gabinete de trabalho a perguntar:
- O senhor Gerrells está para o senhor Artur Kelly?...
Jorge teve um sobressalto e respondeu:
- Estou, sim... Onde se encontra ele?...
- Ao telefone. Posso ligar para aí?...
- Ligue !... - ordenou o pai de Alice, um pouco nervoso.
E ficou perguntando a si próprio que lhe quereria o inspector. Já teria descoberto quem abandonara a criança ? Iria participar-lhe que lha tiravam para a restituir aos pais, a quem talvez tivesse sido raptada?... Estes pensamentos desagradáveis foram interrompidos por uma voz que ele reconheceu.
- Aqui, Artur Kelly. É o senhor Gerrells ?
- O próprio... Como passou ?... - proferiu Jorge, ainda um pouco enervado. - Tem alguma novidade ?
- Sim, mas primeiro gostaria de saber se não se produziu mais nenhum acontecimento depois da minha visita...
- Tudo correu normalmente até às oito da manhã, hora a que saí da herdade - replicou Gerrells.
- Seria conveniente informar-me do mínimo acontecimento, mesmo que lhe pareça insignificante. .. Às vezes, pode ter muita importância.
Sem poder conter por mais tempo a sua impaciência, Jorge inquiriu:
- Afinal, qual é a novidade ?...
- Coisa de pouca monta, pelo menos, por agora... - redarguiu o inspector.
E calou-se como se tivesse o deliberado propósito de fazer sofrer de mais impaciência o seu interlocutor.
- Mas, não se pode saber o que é?...- inquiriu este.
- Pode... no entanto, recomendo-lhe um certo sigilo... Nós não costumamos revelar, nem mesmo às pessoas mais interessadas, os pormenores das nossas investigações... Por vezes, a indiscrição de uma insignificância prejudica profundamente um inquérito... Conto, portanto, com a sua discrição.
- Pode contar absolutamente...
- Ontem mesmo, quando cheguei à Scotland Yard, voltei a examinar detidamente as roupas e a trapagem... - contou o inspector. E este segundo exame foi muito proveitoso.
Abriu uma longa pausa.
- Descobriu alguma coisa?... - indagou Jorge.
- Sim... um dos sapatos tinha gravadas nas palmilhas umas letras já quase totalmente sumidas... Por meio de lentes e com muito trabalho, consegui decifrar algumas palavras incompletas, mas cujo sentido pude, no entanto, formar claramente. Era o nome da loja onde foram comprados. Chama-se «Casa Sport»... Não consegui descobrir o nome da terra, que está muito sumido. No entanto, parece-me que é uma palavra curta, da qual apenas se percebe mais nitidamente a letra S. E é tudo.
- Representa alguma coisa... Mas parece-me que não basta dissipar o mistério... - comentou Gerrells.
- Pois não - concordou Kelly. - O principal, que é o nome da terra, é que nos falta. Cidades e aldeias em cujo nome entre a letra S existem inúmeras por toda a Inglaterra. Os sapatinhos revelam uso aturado de dois ou mesmo três meses. Suponho que já deviam estar um pouco curtos à criança. Portanto, admitindo que descobrimos o nome da terra e tínhamos possibilidade de fazer um inquérito na casa vendedora, quem se iria lembrar, ao cabo de dois ou três meses, da pessoa que os comprou, não acha?...
- Também me parece muito difícil... opinou Jorge.
Recomendando mais uma vez que lhe participassem todas as ocorrências relativas ao menino. Artur Kelly despediu-se e cortou a ligação.
Gerrells ficou um momento pensativo. Aquela notícia deixara-o mal-disposto. Tomava-o uma vaga inquietação.
Lamentou a perda daqueles minutos que fora obrigado a desperdiçar num telefonema que, afinal, adiantava tanto como saber da existência do quintal da casa onde Nick vivia, e retomou atabalhoadamente o trabalho. Sentia-se cada vez mais ansioso por regressar ao seu lar. E já pensava, com agrado, que teria todo o resto desse dia e o seguinte para estar junto do pequeno. Havia de fazer dele um homem...
Consultou maquinalmente o relógio. Eram onze horas e vinte minutos. E se telefonasse para sua casa ? Ainda chegou a pousar a mão no aparelho para ordenar a ligação. Mas logo a retirou. Não!... Iria perder tempo. Era preferível despachar o serviço e retirar-se imediatamente.
Atirou-se com fúria ao trabalho. Ainda tinha a seu lado um montão de papéis para ver e despachar. Os seus olhos liam rapidamente palavras e números, mas o seu pensamento permanecia longe, no jardim da herdade, onde o pequenito, nesse momento, andaria aos pulos atrás da sua grande bola de borracha colorida.
Era meio-dia menos vinte e cinco quando o senhor Gerrells se sentou ao volante do seu carro. Despedira-se, à pressa, do guarda-livros e do resto do pessoal. Estava impaciente por chegar a sua casa.
Sabia que todos o esperavam com ansiedade para o almoço. Só aos sábados e domingos ele podia almoçar com a família. Durante o resto da semana, almoçava em Londres, no restaurante.
Pelo caminho, voltou-lhe à lembrança a conversa telefónica que tivera com o detective». Na verdade, pensava de si para consigo, nada escapa aos homens da Scotland Yard. Ninguém notara, em casa, aquele pormenor das letras, quase sumidas, gravadas na palmilha do sapatinho muito usado. O senhor Gerrells recordava-se de ter tido o sapatinho nas mãos e não lhe ocorrera procurar a marca da casa vendedora, que muitos comerciantes costumam imprimir nos seus artigos. Não se percebia o nome da localidade, que devia achar-se por debaixo do nome da loja. Só se sabia que tinha um S.
Jorge, meditando neste pormenor, chegou à conclusão de que a descoberta de Kelly era muito mais importante do que parecia à primeira vista. Por exclusão de partes, de uma coisa já se tinha a certeza: os sapatos não foram comprados em Londres - London. Indicaria isto que o pequeno não residia em Londres? Talvez... Contudo, poderia admitir-se que as pessoas que o criavam, embora residindo em Londres - London em inglês - tivessem incidentalmente comprado os sapatos noutra localidade, cujo nome tivesse um s. Mas o mais provável seria que as pessoas que tinham a criança em seu poder lhe houvessem comprado os sapatinhos na própria povoação onde residiam. Portanto, se Kelly conseguisse o nome da povoação ou cidade, apoderava-se de um fio de meada que poderia conduzi-lo a bom fim.
Sabia de casos em que a polícia, partindo de indícios muito mais débeis, lograva descobrir os acontecimentos mais enigmáticos. Por um cabelo se pode identificar um criminoso. Porque não se havia de descobrir, por um S, o nome de uma cidade ? E uma vez esta decifrada, com a maior facilidade Kelly descobriria o estabelecimento que tivesse por designação «Casa Sport». Procedendo a um inquérito na loja, talvez algum empregado se lembrasse da pessoa a quem vendera os sapatos de criança que o inspector teria o cuidado de lhe mostrar.
Estas deduções começavam a inquietar o senhor Jorge Gerrells, porque lhe faziam temer que lhe arrebatassem a criança, agora que já principiava a tomar-lhe tanta amizade.
Esta ideia causava-lhe uma certa amargura. Estaria ele a deixar-se empolgar por um sonho irrealizável ? Para que tomar tanto entusiasmo pelo menino, se, de hoje para amanhã, lho podiam arrebatar ?
Nem queria pensar no desgosto que sua mulher iria sofrer. Ele bem sabia que ela já acalentava os mais belos planos sobre o futuro da criança. Embora não ousasse propô-lo abertamente, Eva desejava pedir-lhe que o adoptasse como filho. Mas temia desagradar-lhe. Ele não queria pronunciar-se abertamente sobre o assunto, sem ter a certeza de poder ficar definitivamente com ela. Uma resolução precipitada podia trazer grandes desgostos futuros, caso aparecessem os pais ou outros parentes próximos a reclamá-la com todos os direitos.
A prudência aconselhava a esperar os acontecimentos. Ninguém sabia ainda até onde poderiam conduzir as investigações de Artur Kelly, que parecia ser um homem muito experiente e atilado.
A verdade é que, pouco a pouco, iam-se acumulando pormenores sobre a vida de Nick. Eram minúcias dispersas. Mas de um momento para o outro, seria possível que um pequeno acontecimento, uma palavra do menino, um nada, ligassem todas essas coisas díspares e as iluminassem e as transformassem numa revelação clara, insofismável, da sua identidade.
O senhor Gerrells surpreendeu-se, ainda a matutar nestas coisas, já nas proximidades da sua herdade. O carro corria velozmente ao longo do muro, por cima do qual apareciam as ramagens das árvores. Fez soar o klaxon, com força. Ao aproximar-se do portão abrandou a velocidade. Numa viragem rápida, penetrou na álea central que dividia o pequeno parque ao meio, vendo-se a vivenda ao fundo.
Jorge avançou com o carro lentamente até meio caminho e deteve-se, porque já Alice vinha ao seu encontro, com Nick pela mão.
Saltou para o piso arenoso do arruamento e estendeu as mãos. O menino precipitou-se para ele, às risadas, cheio de confiança, a gritar:
- Papá!... É o papá!...
O pequeno já se mostrava tão confiante como se tivesse com ele uma convivência de meses.
- Papá!...-exclamou Alice, levantando-se nos bicos dos pés para beijar a face que o pai lhe estendia, curvando-se com o pequeno nos braços.
- Sabes, papá... Nick diz que a Marta tem galinhas e que o Nero fazia «béu-béu» a elas...
A menina dava esta novidade, com um grande alvoroço. O senhor Gerrells apenas comentou:
- Ah, ele disse isso !...
- Agora mesmo, um pouco antes do papá chegar... - informou Alice.
Jorge pensou rapidamente que os pormenores se iam acumulando. As trevas que envolviam a proveniência daquele menino recuavam, passo a passo. Talvez não tardasse muito que tudo se revelasse. E, então, adeus esperança de poder adoptar aquele menino que ele chegava a supor ter-lhe sido enviado pela Providência.
Como que para confirmar os seus receios, Nick, ouvindo falar em Marta, dizia, muito satisfeito:
- Marta dá papa aos pipis... Assim!... Assim!...
E estendia a mãozínha em concha, no jeito de pessoa que dá milho às galinhas na palma da mão.
- E como faz o Nero?...
- Béu-béu!... Béu-béu!... - gritava a criança, agitando na mãozinha a sua pistola de brincar.
Jorge pensou: não resta a menor dúvida de que o pequeno, à medida que vai tomando confiança, faz pequenas revelações que dificilmente se lhe arrancariam por meio de um interrogatório apertado.
A senhora Gerrells, no largo patamar de pedra, contemplava o marido e as crianças que se aproximavam. Um sorriso feliz iluminava a sua bela face, de feições muito correctas e ainda frescas, pois contava apenas trinta anos, menos cinco do que Jorge. Um brilho mais vivo animava os seus belos olhos castanhos rasgados em amêndoa.
- Não calculas o lindo quadro que formavas agora, com as crianças!... - exclamou ela, quando seu esposo começou a subir as escadas.
- Havemos de tirar logo uma fotografia, depois do almoço.
Jorge beijou-a.
- Parece que te vejo triste...-notou ela.
- Pequeninas coisas aborrecidas... - replicou o senhor Gerrells.
E logo começou a contar a conversa que tivera com Kelly pelo telefone e a novidade que Alice acabava de dar-lhe, à sua chegada.
Eva exprimiu a opinião de que esses pequenos nadas pouco adiantariam para identificar o menino.
- Verás que ficaremos com o menino. E nesse caso...
- Teremos de perfilhá-lo?... - interrogou Jorge.
A senhora Gerrells respondeu-lhe, abraçando-o ternamente.
Uma carta para a senhora Gerrells
Durante o almoço, bastou a presença de Nick à mesa para dissipar as apreensões do senhor Gerrells.
O pequeno nunca estava quieto, nem calado. Ora agitava no ar a sua colherzinha de prata, que fora de Alice e que esta lhe cedera da melhor vontade, ora interpelava a mamã ou o papá na sua linguagem de trapos. Clara, de cada vez que vinha trazer algum prato, deixava-se sempre ficar um bocadinho junto dele, para o apaparicar ou lhe provocar alguma risada com uma momice.
- Nick, quem é que dava de comer ao menino na outra casa ? - inquiriu Eva, não podendo resistir à curiosidade de tudo querer saber.
- Era a Marta - replicou o pequeno, sem hesitação.
- E quem mais ?...
- A Marta... - repetiu ele.
- E o Nero onde comia?...
O menino, com o dedinho muito espetado, apontou para o chão, como que a indicar que o animal comia a seu lado, no solo, alguma goluseima que lhe atiravam.
Volvendo-se para o marido, a senhora Gerrells deduziu:
- Depreende-se que essa casa não seria de grande categoria e, provavelmente, não teria carpete na sala de jantar. Ninguém de bom senso permite que os cães comam sobre boas tapeçarias. Devia ser um lar modesto e talvez pouco limpo.
- Sim, é admissível - disse Jorge. E acrescentou: - Não o maces com perguntas; deixa-o comer descansado...
A verdade é que o pai de Alice começava a recear interrogar a fundo o pequenito, não fosse ele fazer alguma revelação tão concludente, que os forçasse a devolvê-lo a quem de direito, perdendo-o talvez para sempre.
Eva adivinhou-lhe os receios e, por sua vez, experimentou-os também.
- Talvez tenhas razão - disse ela. - O melhor é pôr uma pedra sobre esse passado do qual, aliás, sabemos tão pouco, mas que, se se revelasse inteiramente, nos daria algum desgosto.
Resolveu falar à criança nas galinhas que Alice o levara a ver novamente essa manhã.
- Gostas de ver os pipis, Nick?...-indagou ela.
- Os pipis põem ovo para o menino!...- exclamou ele, alegremente. - Marta vai buscar ovo para o menino.
A lembrança de Marta desagradou aos Gerrells. A criança já não exigia voltar à presença dessa mulher, que eles não conheciam e que principiava a ser-lhes odiosa. Desde que se familiarizara naquele lar, parecia prescindir da protecção e do carinho desse ente que, ainda no dia anterior, ele não podia evocar sem saudades.
Recordava Marta e, provavelmente, o outro lar, com perfeita serenidade, porque os Gerrells já não eram para ele uns estranhos. À força de carinho e solicitude, tinham-se convertido rapidamente na sua família, no seio da qual se sentia tão bem como a avezinha no seu ninho.
Eva tomava consigo própria o firme compromisso de não dar seguimento à conversa, de cada vez que o pequeno evocasse alguma cena ou pessoa do seu passado desconhecido e misterioso.
Agora, tinha desejos de que ele esquecesse rapidamente a sua existência anterior à sua chegada àquele lar, que iria ser como se nele tivesse nascido. Tinha esperança de que, devido à tenra idade, em breve se apagaria da sua memória ainda -pouco consistente tudo o que lhe sucedera até então.
- Dentro de alguns dias não se lembrará de coisa alguma - disse Jorge, como se estivesse seguindo os pensamentos de sua esposa.
- As crianças deste tamanho esquecem depressa - asseverou ela. - É certo que eu recordo ainda certos episódios de quando tinha três e quatro anos. Mas creio que não devo essas recordações à natureza da minha memória, mas ao facto de, no decurso dos anos, ouvir minha mãe falar neles, o que me permitiu fixá-los numa idade mais avançada.
- É isso... - concordou Jorge. - Comigo sucede a mesma coisa, e creio que com toda a gente... - E após um momento de silêncio, aconselhou: - O melhor será deixá-lo esquecer. Mais tarde, convencer-se-á de que somos seus pais e votar-nos-á um autêntico amor filial, sem reservas. Mesmo que, em adulto, venha a conhecer toda a verdade, porque um dia seremos obrigados a dizer-lha, nessa altura já o seu coração estará tão repleto do nosso amor que não o poderá transferir para os autênticos pais, se acaso ainda existem ou algum dia aparecerem.
- Nós próprios nos esqueceremos de que ele não é do nosso sangue... - murmurou Eva, sonhadora.
No fim do almoço, já num ambiente mais desanuviado, Jorge anunciou:
- Vamos todos ver as vaquinhas!... Alice, vai lavar as mãos e a boca ao menino.
- O menino vai às vaquinhas ! - exclamou Nick, alegremente.
- Tu já viste vaquinhas ? - inquiriu Gerrells, ao mesmo tempo que se lembrava de que estava provocando uma evocação perigosa, que já não tinha forma de emendar.
- O menino gosta da vaquinha!... Quer leite da vaquinha...
A maneira como ele se expressava parecia indicar que estava habituado a ver vacas. Mesmo sem querer, pela primeira vez, o senhor Gerrells perguntava a si próprio se aquela criança viveria habitualmente no campo ou na cidade. Maquinalmente, juntou o pormenor das vacas, que ele demonstrava saber muito bem que davam leite para beber, pois até o queria, ao do quintal com as galinhas. Estas recordações eram mais de carácter rural do que citadino. Da cidade, ainda não lhe surpreendera qualquer evocação. As crianças habituadas aos grandes centros mostram, naquela idade, uma ignorância quase total dos animais e dos seus hábitos. Falam de ónibus, «eléctricos», polícias, pastelarias, do padeiro ou do leiteiro, e muito raramente de galinhas e de vacas que dão leite...
Jorge quedara-se naquela cisma, enquanto Alice levava Nick consigo, para o lavar, como seu pai recomendara.
- Em que pensas ? - perguntou-lhe Eva, docemente.
- Ele explicou-lhe os seus raciocínios.
- Parece-me justa essa observação, que eu ainda não me lembrara de fazer - disse a senhora Gerrells. - Agora, estou também pelo teu prisma.
Até mesmo o ar saudável e um pouco rude da criança me parece confirmar o que acabas de deduzir. Se não vivia propriamente no campo, habitaria talvez uma povoação pouco importante ou pequena cidade de província, onde as casas com quintal são mais vulgares e onde há como que uma fácil penetração do ambiente rural... Gerrells soltou uma risada e perguntou:
- Não estaremos nós a deixar-nos arrastar pela nossa fantasia?
- Parece que quanto menos desejamos aprofundar o misterioso passado do menino, maior atracção ele exerce sobre os nossos espíritos, a ponto de não nos deixar pensar noutra coisa, nem nos conceder um momento de tranquilidade.
A senhora Gerrells pediu ao marido licença de retirar-se, por uns instantes, para ir mudar de vestido e vigiar como Alice cuidava do menino, e disse ainda:
- A presença da criança é excelente para a educação de Alicinha. Enche-se de brio, compenetra-se da sua situação de irmã mais velha e aprende a cuidar de um bebé, criando sentimentos de responsabilidade muito úteis para o seu futuro.
Jorge aproveitou o ensejo para ir meter o carro na garagem. Quando voltou, encontrou sua esposa, Alice e o menino a descer a escadaria da vivenda. A pequena penteara o seu pupilo a capricho, fazendo-lhe com muita habilidade um grande caracol, que ia desde a testa até à nuca.
O pequeno ficava, assim com uma cara muito ladina e engraçada.
- Vê a obra de tua filha!...-disse a senhora Gerrells, apontando para o penteado do pequeno.
- Bravo!... Está uma maravilha - achou Jorge, sinceramente agradado.
- Eu queria pôr-lhe um lacinho azul no cabelo, mas a mamã não deixou... - disse a garota, contristada.
- Lacinhos no cabelo não são próprios de meninos. Estaria bem, se ele fosse uma menina redarguiu Eva.
- Evidentemente - apoiou o marido. Aliás, ele assim ficou encantador.
Alice confortou-se com a apreciação de seu pai e, volvendo-se para o pequeno, perguntou, não sem certo orgulho:
- Quem foi que penteou o menino muito bem ?
- Foi a mana - replicou ele, num ar bonachão.
A pequena já o ensinara a chamar-lhe mana, o que a enchia de contentamento e não deixava de agradar aos próprios pais.
Iam-se encaminhando para um dos extremos da herdade, onde ficavam os estábulos. Alice prosseguia no seu diálogo com o menino, que dava uma mão a Jorge e outra à senhora Gerrells.
- Escuta, Nick, quem é que te penteava na outra casa ? - indagou a pequena.O senhor Gerrells teve um sobressalto. Ainda pensou em proibir a filha de interrogar a criança sobre o passado. Mas já não ia a tempo.
- Era a Marta - respondeu Nick.
- Sempre essa Marta... - resmungou Jorge, entre dentes.
- Há-de acabar por esquecê-la... -murmurou a senhora Gerrells, também contrariada.
Dir-se-ia que entre ela e a desconhecida chamada Marta se estabelecera como que uma rivalidade. Eva sentia desse fantasma um vago ciúme. Todo o seu empenho seria que a sua imagem ocupasse no coração da criança todo o espaço que a outra, a que o abandonara, ainda tomava.
- Alice, é preciso evitar falar-lhe na outra casa - recomendou ela a sua filha.
- Porquê, mamã?...
A senhora Gerrells não gostava de mentir. Mas sua filha ainda era muito criança para compreender os seus sentimentos, que ela própria não saberia definir claramente. Por isso, limitou-se a dizer:
- Não é conveniente. Convém que ele esqueça todo esse passado para bem da sua educação. Trouxe da outra casa defeitos que havemos de corrigir, a pouco e pouco.
- Sim, mamã - prometeu Alice, para quem aquela explicação era perfeitamente plausível.
Havia cinco vacas nos estábulos. O senhor Gerrells, juntando o útil ao agradável, tirava da herdade, que comprara para seu recreio, o maior rendimento possível. Fornecia para Epsom leite, hortaliças e legumes e, na época própria, algumas frutas. As receitas destes produtos quase cobriam todas as despesas, não só da própria herdade, como as da manutenção do lar. Por esta forma, ele vivia uma existência saudável, como sempre idealizara, e economizava quase todos os lucros provenientes do seu negócio em Londres, que consistia em colocar na Europa produtos coloniais. Estava acumulando metodicamente uma bonita fortuna, que lhe permitiria educar primorosamente a Alicinha e assegurar-lhe e a sua esposa uma velhice descansada.
Novo ainda, pois não contava senão trinta e cinco anos, Jorge encarava o porvir com muita confiança. Agora, que o destino lhe trazia mais um filho, ele já pensava em alargar a exploração da herdade, por métodos científicos modernos, o que, em sua opinião, lhe proporcionaria o dobro dos rendimentos. Era preciso dar uma esmerada educação a Nick, fazer dele um grande homem. E para isso não deviam faltar os meios financeiros necessários.
O menino mostrou grande entusiasmo, ao ver as vaquinhas que, ouvindo os seus gritos, volviam para ele uns grandes olhos muito doces.
Um vitelinho, um pouco assustado com as suas exclamações, foi o seu maior encanto. Passou-lhe a mãozinha pelo lombo, e, como o animal se movesse sobressaltado, soltou grandes gargalhadas.
O estábulo era um pavilhão muito comprido, que o senhor Gerrells mandara construir para aquele fim. As paredes de azulejos brancos e o solo em ladrilhos da mesma cor, laváveis - pois se procedia a limpeza três vezes por dia - davam ao local um ambiente saudável, em que as próprias pessoas se sentiam bem. Por vastas janelas envidraçadas entrava luz a jorros.
Tanto Jorge como sua esposa perceberam que o menino não se assustava perante animais tão grandes, antes se mostrava familiarizado com eles, talvez porque estivesse habituado a ver outros da mesma espécie com certa frequência.
Já o mesmo não sucedeu na cavalariça, que também foram visitar para observarem a reacção da criança.
Aí revelou-se Nick mais timorato. Não se atreveu a aproximar-se de nenhum dos três cavalos que lá estavam. Retraiu-se, agarrando-se às saias da senhora Gerrells.
Quando Alicinha o puxou, para o levar junto de um grande cavalo castanho, ele fincou os pés no solo, para não se deixar levar, e soltou alguns brados de protesto, estendendo o beicinho, em jeito de quem está prestes a chorar.
- Deixa-o... Não insistas - recomendou Eva a sua filha. - Ele se irá habituando a estimá-los, aos poucos.
- Os cavalinhos são bonitos... - disse Jorge. Olha este, tão lindo... Chama-se Castanho...
E dava palmadas amigáveis na vasta anca do animal. Nick, porém, parecia não acreditar nas suas palavras. Carrancudo, limitou-se a dizer:
- É feio... Não gosto dele, não. Eduardo, o caseiro, que vira os amos, de longe, a entrar para a cavalariça, veio a correr inquirir se precisavam de alguma coisa.
- Andamos a mostrar os animais ao pequeno - explicou o senhor Gerrells.
- O menino quer andar a cavalo ?... - perguntou o caseiro. - Venha cá, que eu subo-o à garupa do Castanho.
Estendeu-lhe os braços para lhe pegar ao colo.
- Não quero!...-bradou a criança.
E correu a refugiar-se junto de Jorge, como se pressentisse que este lhe ofereceria uma defesa mais forte.
- Que vergonha!... Tem medo... Um homem nunca deve ter medo... - comentou Eduardo, fazendo uma cara muito cómica, ao rir-se. - Olhe, a menina Alicinha até gosta. Quer ver ?...
O caseiro pegou em Alice e sentou-a na larga anca do Castanho, um mansarrão que nem se moveu.
A pequena bateu as palmas de contentamento por sentir-se tão alta.
- Ai, que bom, Nick!... Queres vir para o pé de mim ?
- Não quero!... - redarguiu o pequeno, olhando desconfiado para aquelas alturas, que lhe pareciam tremendas.
- É melhor não insistir - disse Jorge. Vamos dar uma volta pela herdade e regressamos depois ao jardim...
O caseiro desceu Alice. Saíram e meteram por um arruamento que atravessava um pedaço de horta. Eduardo despediu-se, porque tinha muito que fazer, e afastou-se, breve se sumindo para lá de um acidente de terreno.
Nick olhava muito interessado à sua volta. De repente parou e, espetando muito o dedinho, exclamou, radiante da sua descoberta:
- Couve !... É couve !... Mana, olha couve !...
Realmente, cresciam em torno grandes couves repolhudas. Uma delas, talvez devido às suas mais avantajadas proporções, despertara a curiosidade e a alegria da criança.
- Estará ele, realmente, habituado às coisas do campo?...-perguntou Eva, em voz baixa.
Seu esposo limitou-se a encolher os ombros, numa dúvida. Ele inclinava-se a acreditar que Nick fora criado num ambiente rural, mas resistia à tentação de interrogá-lo a fundo, não fosse descobrir a sua proveniência, com risco de que lho arrebatassem.
Um pouco mais adiante, Alice apontou umas plantas de folhagem mui viçosa e indagou:
- Sabes o que é aquilo, Nick ?
O pequeno não sabia. Eram nabos. Era natural que ele não os conhecesse apenas pela rama. Jorge arrancou um e, mostrando-lho, perguntou:
- Que é isto, Nick ?
- Nabo!... - respondeu ele, prontamente.
- O facto de ele conhecer uma couve, um nabo ou mesmo uma cenoura, ou uma alface não prova que tenha vivido em ambiente rural. São produtos agrícolas vulgares em qualquer casa da cidade, onde se podia ter familiarizado com eles - disse Eva.
- Tens razão - concordou o senhor Gerrells.
- Nós estamos, mais uma vez, a deixar-nos arrastar pela fantasia.
Mas, nesse momento, o menino deteve-se muito agitado e a apontar para o meio de um terreno plantado de espinafres.
- Querem ver que ele vai reconhecer estas plantas ?... - resmungou Jorge.
- Olha!... Olha... Mana, olha... - gritava o menino, apontando.
- Que é?... São nabos?... -perguntava Alicinha.
- Não!... - replicou ele, amuado. E apontava:- Ali... A enxada!...
Eva e Jorge entreolharam-se. O pequeno reconhecia uma enxada. Ora, raras são as crianças daquele tamanho, educadas na cidade, que têm ensejo de ver uma enxada e de reconhecê-la, ao primeiro olhar.
E para mais desconcertar os Gerrells, ele levantava e baixava os braços, no movimento de quem cava a terra, mostrando-se muito contente da sua mímica.
- O menino não tem força para cavar com a enxada - disse Alicinha.
- O homem cava...-redarguiu ele.
- Não resta a menor dúvida - pronunciou Jorge. - Esta criança, se não foi criada num ambiente rural, devia fazer frequentes visitas ao campo.
- Ele, assim não estranha tanto viver connosco, pois não ? - perguntou Alice, que escutara a observação de seu pai.
- Verifica-se que ele não acusou a menor estranheza em passar para o nosso ambiente campesino - disse o senhor Gerrells.
Neste momento, Clara surgiu ao longe a chamar por sua ama.
- Minha senhora!...
Viram que ela agitava na mão alguma coisa que parecia um papel. Vinha a correr.
- Traz uma carta!... - exclamou Alice. Eva fez-se pálida. A criada aproximou-se e,
ofegante, anunciou:
- Uma carta para a senhora... Veio agora neste correio.
A senhora Gerrells recebeu a missiva com mão trémula e, lendo rapidamente o endereço, observou:
- É-me dirigida a mim...
E quedou-se a olhar seu marido, num ar de grande estranheza. Ele gracejou:
- Parece que é a primeira vez que recebes uma carta...
Contudo, ele próprio não se sentia muito seguro e olhava para a missiva que sua esposa conservava entre os dedos trémulos.
- É que não sei que pressentimento me assaltou... - murmurou Eva, muito agitada.
- Ai, minha senhora!... - exclamou Clara.
- Parece que uma coisa me diz cá dentro do coração que é por causa do menino Nick.
- Pois é precisamente o que eu sinto também...- confessou a senhora Gerrells.
O marido tomou-lhe a carta das mãos e examinou-a, voltando-a, ora de um lado, ora do outro. O sobrescrito era escrito à máquina, dirigido à senhora Eva Gerrells. Não tinha remetente. Pelo carimbo do selo, verificou que fora expedida de Londres nesse mesmo dia, provavelmente de manhã.
Devolvendo-a a sua mulher, comentou:
- Não lhe acho nada de estranho...
Eva levou-a ao nariz, a cheirá-la. Não acusava perfume algum particular.
- É melhor abri-la - aconselhou Jorge.
- Não, aqui, não - replicou a senhora Gerrells. - Prefiro abri-la em casa. Vamos-nos embora...
E começou a avançar precipitadamente para a vivenda, seguida dos pequenos que chilreavam inocentemente como aves, e de Clara e Jorge, ambos muito apreensivos.
Pressentiam alguma coisa de fatal.
Algumas novidades impressionantes
Ao chegar a casa, a senhora Gerrells correu a deixar-se cair num «maple» da sala de jantar. Sentia-se exausta, como se tivesse palmilhado léguas. A sua respiração era precipitada; as cores tinham-lhe subido, mui intensas, ao rosto.
Seu marido, vendo-a tão alterada, recomendou-lhe calma. Para que havia de estar a inquietar-se antes do tempo ? Talvez a carta tratasse de um assunto muito diferente...
Eva permanecia com a missiva pousada no regaço, sem coragem de abri-la. Os gritos dos pequenos, brincando no jardim, perto do edifício, ouviam-se distintamente no aposento.
- Provavelmente, é a anunciar que vamos perdê-lo... Talvez o venham buscar... - murmurou a mãe de Alice.
- Não acho isso muito possível - redarguiu Jorge. E ajuntou: - É melhor abri-la... Vale mais uma certeza dolorosa, do que esta inquietação... Vamos, toma alento... Ou preferes que eu a leia ?
- Não!... Tenho de ser corajosa - replicou a pobre senhora.
E num movimento brusco, rasgou o sobrescrito, tirou uma folha de papel branco e, ofegante, começou a ler para si.
O senhor Gerrells, especado na sua frente, os braços cruzados sobre o peito, não tirava os olhos dela, como se quisesse adivinhar o conteúdo da carta pela expressão muito grave e concentrada da leitora.
À porta, quieta e recolhida na penumbra, como se não quisesse dar nas vistas, a criada continha a custo a sua impaciência.
Finalmente, Eva soltou um grande suspiro e, entregando o papel a seu marido, disse, simplesmente:
- Lê.
- Agradável ? - inquiriu este.
- Nem sei... Baralham-se-me confusamente as ideias. Lê tu... Deixa-me descansar um pouco...
Reclinou-se para trás e ficou muito calada e melancólica, talvez a tentar formar uma opinião sobre o que acabava de ler.
As sobrancelhas do senhor Gerrells tinham-se franzido, denunciando a grande atenção com que lia. Decerto, não desejaria perder o mínimo sentido daquelas palavras, que, de longe, Clara via bem alinhadas como regimentos em parada.
Por fim, ele quedou-se pensativo, com a missiva pendente dos dedos ligeiramente trémulos. Então, a criada, não podendo conter-se mais, perguntou, num grito de angústia:
- Sempre levam o menino?!...
Ambos se volveram, surpresos, pois nem tinham dado pela sua presença.
- Não, suponho que não... - respondeu Jorge. - Estou convencido de que ele agora será mais nosso do que nunca.
- Ora, o Senhor seja louvado!... - pronunciou a mocetona, mais aliviada. - Deus queira que ele nunca mais saia de cá...
E retirou-se a correr, para a cozinha, onde o serviço se lhe estava a atrasar.
Pensativo, Jorge deu alguns passos através da sala. Detendo-se em seguida, disse:
- Não sei explicar o que acho nesta carta. Parecendo dizer tudo, dir-se-ia ocultar muita coisa.
- Confesso que me deixou num estado de espírito, que não me permite juntar duas ideias claras - pronunciou Eva. E pediu: - Lê-ma tu, com calma, para ver se lhe apreendo todo o sentido.
O senhor Gerrells leu lentamente, espaçando bem as palavras, o que se segue:
Senhora Gerrells:
É à senhora que me dirijo e não ao seu bondoso marido, porque uma mulher tem possibilidades de melhor compreender e perdoar a outra mulher. Aliás eu sei que o senhor Gerrells é uma alma bem formada, um coração generoso e que, portanto, teria junto dele tantas probabilidades de ser perdoada como junto de si.
Mas prefiro entender-me consigo, com quem me sinto mais à vontade. A senhora é mãe, como eu o sou. Mas tem a sorte (e Deus lha conserve) de viver numa situação desafogada. Comigo acontece precisamente o contrário. A sorte tem-me sido adversa. Lutei enquanto pude, para que a desgraça não atingisse o meu Nick. Passei necessidades para que ele as não passasse. Cheguei a uma situação desesperada. Já não o podia proteger contra a miséria. Sem pai o pobre Nick encontra-se agora como se igualmente não tivesse mãe, visto que eu já não tenho mais possibilidades de criá-lo.
No meu desespero, lembrei-me de si. Conheço-a de tradições, bem como a seu marido. Sei que possuem uma filhinha encantadora, para a qual tem desejado baldadamente um irmão. Porque não há-de Nick preencher esse lugar? Suponho que o aceitarão como uma dádiva do Céu. Foi este raciocínio que me levou a cometer o abuso de lho confiar. Podem ficar com ele. É vosso, inteiramente vosso. Na certeza de que o meu sacrifício só redundará em benefício de meu filho, resolvi abdicar totalmente dos meus direitos de mãe, para vos deixar livre esse lugar, minha querida senhora Gerrells.
Terei sempre meios de obter notícias de Nick, sem que jamais alguém suspeite da minha identidade, nem sequer da minha existência. Será como se eu tivesse morrido e minha alma assistisse, de uma região imponderável e inacessível aos olhares humanos, a tudo o que se passasse com Nick.
Pode perfilhá-lo, se quiser, na certeza de que ninguém lhe causará embaraços. O pai morreu, a mãe pode considerar-se morta. Sejam, pois, os senhores Gerrells os seus pais e Alicinha a sua irmã.
Peço-lhe que evite quaisquer pesquisas. A descoberta do que está na sombra e na sombra deve permanecer, só lhe acarretaria desgostos que não merece. Não meta a polícia no caso, porque ela só serve, minha senhora, para complicar e maçar.
Escuso de fazer-lhe recomendações sobre o meu Nick, que é seu agora, visto que a senhora, pela sua educação, pela sua fortuna e pela generosidade de sua alma, poderá fazê-lo muito mais feliz do que eu.
Creio que posso morrer descansada. Por isso, me despeço de si, agradecendo-lhe tudo o que fizer por Nick. Beije-o muito por mim. Mil felicidades para seu marido. Boa sorte para sua filha.
Peça a Deus por esta pobre Mulher Desesperada.
Após esta leitura, os Gerrells quedaram um longo momento silenciosos.
Rompendo, enfim, esse silêncio, Eva disse, com um gesto de amargura:
- Há qualquer coisa de estranho, nessa carta, que eu não sei explicar...
- É curioso que eu também experimento essa sensação, que é um tanto vaga...
- Essa mulher parece dar a impressão de que tenciona suicidar-se, não achas ?... - observou a senhora Gerrells.
- A declaração de que quer matar-se não está bem expressa - replicou Jorge. - Esta frase: «Creio que posso morrer descansada», tanto se pode interpretar como tencionando ela pôr fim à sua existência, como pensando em aguardar resignadamente que Deus a leve.
- Ah!... Mas eu adivinho aí uma trágica decisão. Foi precisamente essa frase que mais me impressionou. Eu entendo que devemos fazer todo o possível por encontrar essa mulher e dissuadi-la do seu propósito.
- Quem sabe se ainda iremos a tempo... murmurou o senhor Jerrels, apreensivo.
- Atormentar-me-iam remorsos por toda a vida, se não empregássemos todos os nossos esforços para encontrar essa mulher!... - exclamou a senhora Gerrells, muito excitada.
- Precisamos de pensar em tudo isto com calma - ponderou seu marido. - Tu já pensaste que, descobrindo a mãe de Nick, talvez com essa descoberta nos escape a oportunidade de fazer dele um filho nosso, exclusivamente nosso?...
- E seremos tão cruéis e egoístas que, para satisfazermos o nosso amor, para ficarmos com a criança, deixemos morrer de desespero essa anónima, que tanta confiança depositou em nós ?
- Não! - exclamou Jorge. - Isso seria realmente o cúmulo do egoísmo e da crueldade !... Mas, se encontrarmos a mãe de Nick...
- Seria preferível, apesar de tudo!... interrompeu Eva. - Se ela quisesse voltar à posse de Nick, resignar-me-ia. Alguma coisa nos havia de compensar dessa perda. Essa mulher, reconhecendo a amizade que temos à criança, permitirá decerto que ela continue a viver por longos períodos em nossa casa, que a visitemos na sua... Ou, se for uma pessoa de fracos recursos, com certeza não recusará a nossa protecção. Admiti-la-íamos no nosso lar. Assim, estaria permanentemente ao pé do seu filho, e nós nunca nos apartaríamos dele e teríamos a ilusão de que ele era também nosso filho...
O senhor Gerrells, pela expressão do seu rosto, dir-se-ia não concordar inteiramente com o que ouvia.
- Estás a deixar-te empolgar de novo pela tua fantasia - disse ele. - Que sabes tu da mãe deste pequeno para já admitires a hipótese de ela ingressar no nosso lar? Acaso, será uma pessoa decente a quem possamos dar a nossa confiança, sem nos apoucarmos e à própria criança ?
- Mas podíamos protegê-la, embora afastada de nossa casa - lembrou Eva. - Seria preferível procurá-la e propor-lhe uma situação assim, a permitir, com o nosso desleixo e o nosso egoísmo, que essa pobre mulher procure voluntariamente a morte.
Jorge mostrava-se agora mais inclinado para esta decisão.
- Sim, é melhor fazer todo o possível por encontrá-la - pronunciou ele. - Protegê-la-íamos e, em troca, ela abdicaria em nós de todos os seus direitos sobre a criança, permitindo que fôssemos os seus pais adoptivos.
- Vês!... - exclamou a senhora Gerrells, com alegria. - Bastou pores de lado o teu egoísmo, para encontrares uma solução cheia de humanidade!...
- Que não exclui um certo egoísmo...- acrescentou seu marido, com um sorriso de ironia! - É preciso não esquecer que, em troca de um acto de caridade, eu pretendo obter a vantagem de ficar com a criança.
- Mas, neste caso, o teu egoísmo é dirigido no duplo sentido de fazer bem à mãe e ao filho...
- E a nós próprios... - ajuntou Jorge, já com melhor disposição.
- Entendo que não se deve perder um minuto nas nossas pesquisas!...-disse Eva, erguendo-se, impaciente, como se se preparasse para sair ao acaso à procura da anónima que lhe escrevera a carta.
- As pesquisas foram iniciadas ontem mesmo - ponderou seu esposo. - Os esforços de Kelly não têm outro objectivo senão encontrar a pessoa que abandonou o menino.
- Ah ! Mas estão tão atrasadas as suas investigações!... - exclamou a senhora Gerrells, com um doloroso sorriso. - É preciso fornecer-lhe os elementos novos que esta carta contém; sempre dizem mais alguma coisa do que o lenço encontrado na estrada e as letras sumidas da palmilha do sapato.
- Achas que lhe devo telefonar ? - indagou Jorge, vacilante.
- Imediatamente.
O senhor Gerrells deu meia volta e dirigiu-se resolutamente para o seu gabinete de trabalho. Sua esposa seguiu-o, a passo precipitado.
Enquanto ele se sentava à sua secretária e estabelecia a ligação para a Scotland Yard, ela não cessava de falar, um pouco nervosa ainda das comoções que vinha sofrendo.
- Não sei se reparaste numa coisa... A desconhecida parece perfeitamente informada da nossa vida, da nossa situação e até do nosso desgosto de não termos filho varão... Não notaste?...
Jorge movia a cabeça em sinal afirmativo.
- Há até um período da carta que cita o nome da nossa filha... Chama-lhe Alicinha, tal como a tratamos na intimidade, recordas-te ?...
O senhor Gerrells sacudiu a cabeça a confirmar.
- Alo ? - pronunciou ele. E depois de escutar, por uns segundos, disse: - Desejo falar ao inspector Artur Kelly, com muita urgência... Hein?... Fala Jorge Gerrells... É urgente...
Tapou o bocal com a mão e falou para sua esposa:
- Seria uma grande maçada se não o encontrasse...- E acrescentou, noutro tom:-Acho conveniente informá-lo da familiaridade da criança com as coisas do campo. O pormenor da enxada, por exemplo... -Interrompeu-se bruscamente para falar ao bocal: - O senhor Kelly ?
- Ah!... Andei com sorte! - exclamou o senhor Gerrells, visivelmente satisfeito.
- Sim, há uma novidade muito importante.
- Recebemos uma carta da mãe da criança.
- Não, anónima... Infelizmente anónima e sem qualquer indicação do remetente.
Pelas palavras do marido, Eva ia depreendendo o que dizia Artur Kelly.
Percebeu que ele perguntava se tinha observado o carimbo do correio, porque Jorge replicara:
- Foi posta em Londres, certamente esta manhã, porque a recebi aqui já depois de almoço.
- Sim, podiam ter ido propositadamente a Londres para despistar.
- É curioso que nós também nos inclinamos para esta hipótese, devido a certas atitudes da criança. Parece bastante familiarizada com as coisas do campo... Conhece facilmente os nomes de certas plantas e, ainda há pouco, indicou uma enxada pelo seu nome.
Eva depreendeu que o inspector dissera admitir a hipótese de a criança viver fora de Londres e de a desconhecida ir à capital propositadamente pôr a carta no correio, para despistar.
Seu marido dizia agora:
- É escrita à máquina...
- A redacção e a ortografia revelam pessoa medianamente culta...
- É um pouco extensa. Posso ler-lha ao telefone.
- Como quiser.
- Amanhã?... É domingo...
- Nesse caso estarei aqui na segunda-feira.
- Não me faz transtorno algum. Telefonarei para o escritório a dizer que irei só de tarde e fico inteiramente à sua disposição.
- Realmente, parece que a anónima nos conhece e sabe bem da nossa vida.
- Se vivesse nas proximidades, seria natural que alguma vez tivéssemos visto o menino.
- Não era possível que um pequeno tão interessante tivesse passado alguma vez ao alcance da vista de minha mulher, sem que ela o notasse. É impossível... Ela olha para todas as crianças. Acarinha-as sempre, principalmente os meninos... Nick é demasiado interessante para que, visto uma vez, se pudesse esquecer...
- Nem tão-pouco minha filha. Acontece com ela o mesmo que sucede com a mãe: corre para todas as crianças.
- Vivemos aqui há um ano aproximadamente.
- Sim, temos passeado pelos arredores. Pouca coisa há que não conheçamos. E já somos bastante conhecidos.
A senhora Gerrells ia calculando mentalmente as perguntas que o inspector estaria formulando do outro lado do fio. Certamente, admitia a hipótese de Nick e a mãe viverem nas proximidades da herdade e de ela ou Alicinha alguma vez o terem visto. Ah, ela tinha bem a certeza de nunca ter visto nas vizinhanças um bebé que lhe despertasse tanta simpatia!
- Vamos frequentemente a Epsom fazer algumas compras, porque fica aqui a dois passos - dizia Jorge. - Mas as compras mais importantes costumo fazê-las em Londres, onde temos fornecedores antigos e certos.
- Não me pode dizer já pelo telefone?... Eva redobrou de atenção. Que notícia teria
Kelly hesitações em dar pelo telefone ?
- É curioso!... - exclamou Jorge, com assombro.
- Não será engano ?...
- Bem, poderia ter sucedido com os sapatos o mesmo que sucedeu com a carta. Uma pessoa residente numa terra muito distante podia ter ido lá comprá-los...
- Realmente, não haveria nessa altura nenhuma necessidade de despistar, como agora.
A senhora Gerrells compreendeu, enfim, a grande novidade. A sua imaginação deduziu tudo: o inspector devia ter descoberto que a localidade onde foram comprados os sapatinhos do menino era Epsom. Na verdade, a palavra tinha um S. E agora tinha ela uma vaga ideia de ter visto nesta pequena cidade das vizinhanças uma tabuleta com um título em que entrava a palavra «Sport». Não se admitindo que tivessem vindo a Epsom propositadamente comprar os sapatos, Kelly devia concluir que a criança e família deviam residir em Epsom ou circunvizinhanças.
Jorge anuía, nestes termos, a uma qualquer observação do seu invisível interlocutor:
- Claro que, num ano, não pude tomar senão um conhecimento superficial de toda esta região. Há, por exemplo, toda uma população operária que desconheço quase inteiramente. Estou um pouco mais relacionado com os principais proprietários rurais...
- O problema parece-me complicado...
- Muito bem. Até segunda-feira, senhor Kelly.
Desligou o telefone e, volvendo-se para Eva, perguntou:
- Percebeste ?
- Mais ou menos tudo.
- O inspector descobriu que o nome da terra onde os sapatinhos foram comprados é Epsom e que, portanto, a criança viveria nesta cidade ou nos subúrbios... Acha que não tardará a descobrir a proveniência de Nick.
- Parece-me que está na boa pista... - murmurou Eva, pensativa.
De repente, soaram no jardim gritos de Alicinha.
- Mamã!... Mamã!...
A senhora Gerrells, correu, num sobressalto, à janela do aposento, que deitava para o exterior.
A pequena estava contentíssima. Aproximou-se aos saltos, seguida de Nick e de outra menina, a Ana, condiscípula de Alice, que vinha visitá-la algumas vezes, mas que nessa tarde viera propositadamente para ver o menino enjeitado.
- Mamã?... - disse Alicinha, ofegante. A Anita diz que já conhecia Nick !...
Esta novidade arrancou ao casal Gerrells um simultâneo grito de surpresa.
Imprevistas revelações de Anita
Aquela revelação, feita assim de improviso, lançou no espírito já tão perturbado dos Gerrells um alvoroço enorme. Eva, sem bem saber o que fazia, correu através da habitação até alcançar a escadaria exterior, que desceu precipitadamente, seu marido quase lhe pisava os calcanhares, tal a pressa com que a seguiu. E ambos, perante o espanto da pequenita, a assediaram simultaneamente de perguntas que ela dificilmente entendia.
Ana, ou Anita, como lhe chamavam, era uma menina da idade de Alicinha e condiscípula desta. Filha de uns lavradores um tanto rudes mas prósperos, das vizinhanças da herdade dos Gerrells, a menina vinha às vezes brincar com Alice, nas tardes de verão, ou nos feriados.
Muito viva e um pouco endiabrada, mais forte do que Alice, os brinquedos desta viam uma fona com ela e os ares vibravam dos seus gritos festivos, das suas gargalhadas saudáveis. Pulava como um rapaz e gostava de correr, de movimento, de dança. Tudo nela era irrequietismo e vivacidade, em contraste com Alice, cujo temperamento pedia folguedos repousados, a um cantinho onde arrumava as mobílias das suas bonecas, e distracções que imitassem já as tarefas graves das pessoas adultas.
Apesar da diferença de suas índoles e educação, ou talvez mesmo por isso, eram extremamente amigas. No entanto, as escaramuças eram frequentes entre elas; cortavam as relações com grande solenidade. Anita dizia secamente:
- Boa tarde. Passa por cá muito bem... Nunca mais te visito.
- Não fazes falta nenhuma... - replicava Alicinha, tomando os seus grandes ares de pessoa crescida.
Ana encaminhava-se para o portão a passo estugado. Ao aproximar-se da saída, a sua marcha tornava-se, porém, mais vagarosa. Às vezes até parava, simulando grande interesse por alguma árvore, aliás muito sua conhecida. Alice observava-a de soslaio, franzindo a testa, para se convencer a si própria de que estava profundamente ofendida.
Então, a vizinha decidia-se: dava uma corridinha em direcção à estrada - uma corridinha de pouca velocidade, como que vista ao retardador. Acontecia o inevitável. No momento em que ela ia a transpor o portão, um grito soava.
- Anita!...
Era Alicinha que a chamava. Anita parava, de chofre, e volvia-se para trás a perguntar em tom enfadado:
- Que deseja?...
- Olha!... Queria perguntar-te uma coisa, só uma coisa... Depois, continuamos zangadas e podes ir-te embora...
Afectando má vontade, ou um grande favor de condescendência, Ana volvia lentamente sobre os seus passos, olhando ora para um lado, ora para outro, a fingir-se desentendida. Mas, lá por dentro, o seu coraçãozinho pulava de alegria. Já percebia que Alice a chamava para haver pretexto de fazerem as pazes. Contudo, mantinha aparência fria, de pessoa muito ofendida nos seus brios.
Aproximava-se. Alice rebuscava na memória a pergunta a formular. Ela não queria perguntar coisa alguma, o que realmente desejava era dissipar a atmosfera de amuo que as dividia.
- Escuta, Anita... Olha, eu só queria saber uma coisa; nós, lá por deixarmos de nos falar, deixamos de ser amigas ?...
A outra punha-se nas suas tamanquinhas e redarguia:
- Tua amiga continuo a ser. O que escusamos é de falar uma com a outra... a não ser lá na escola, para as outras meninas não perceberem que estamos zangadas, não te parece?...
- Sim, a mim também me parece - anuía Alicinha. - Se elas soubessem que nós, sendo tão amigas, não nos falávamos, seriam glórias para elas...
Ana sentava-se, fazendo-se distraída, pegava numa boneca e dizia, com ares senhoris:
- Ai, esta pequena com a fralda toda molhada!... Capaz de se constipar...
Abria a gavetinha de uma cómoda, retirava um quadradinho de pano - a fralda - que Alice tinha sempre muito bem dobrada e começava a pôr a menina de enxuto.
-Pois é... -pronunciava. Alicinha, só por dizer alguma coisa, para haver mais alguma conversa, como a amiga, franzindo o sobrecenho, ainda ficasse calada, ajuntava: eu gosto mais de brincar assim, aqui sossegadas, do que andar em correrias. Dão sempre mau resultado...
A menina, agora, está enxuta, já não tem razão para chorar - dizia Anita, falando com a boneca, simulando não dar importância às palavras da companheira.
- Essa criança sempre foi muito rabugenta...
- comentava Alice, imiscuindo-se na brincadeira da amiga. - Suponho que anda agora com os dentinhos...
- Porque não a levas ao doutor ?... - inquiria Anita, com naturalidade.
- Tem sido um desleixo imperdoável da minha parte - confessava a menina Gerrells, que tomava as suas brincadeiras tanto ao vivo, que chegava a convencer-se de que as bonecas padeciam como as pessoas.
Depressa esqueciam o motivo por que se tinham zangado e as risadas alegres, amistosas, não tardavam em recomeçar como anteriormente. O sangue de Anita refervia. Não podia estar muito tempo quieta.
- Vamos brincar aos polícias e ladrões?...
- propunha ela, de repente, atirando com a boneca, já sem receio de a magoar.
Alice ainda lembrava:
- E as meninas» ficam para aqui, abandonadas...
- Depois, quando estivermos cansadas, voltamos a brincar com elas e descansamos ao mesmo tempo.
Alicinha não resistia. A falar verdade, ela também gostava de dar a sua corridita. Ana fazia sempre de ladrão, para se esconder atrás das árvores do parque, para correr como uma louca de um esconderijo para outro.
Lá andavam ambas num virote. Às vezes, o polícia» ainda tocava com os dedos no vestido do «ladrão» e gritava, ofegante da carreira:
- Está preso! Está preso!... Em nome da lei...
Anita, porém, mostrava um sacrílego desprezo pela lei e continuava a fugir. A amiga estacava, amuada.
- Assim, não vale!... Assim, não vale... Todos têm de obedecer à lei... Quando o polícia dá voz de prisão, ninguém se mexe...
- Mas os ladrões andam fora da lei...- argumentava Anita, de longe, cautelosa, não fosse aquilo um ardil para prendê-la.
Alice já não tinha fôlego para mais.
- Assim não quero brincar... Começava a encaminhar-se para a escadaria,
em cujos degraus quase sempre instalavam os seus brinquedos. Então, Anita, para não interromper o jogo, condescendia.
- Está bem. Considero-me presa... Agora, fazes tu de ladrão. Podes ir esconder-te.
Mas nem mesmo com esta condescendência Alicinha se dispunha a brincar mais.
- Estou muito cansada... Logo recomeçamos... As nossas meninas» estão sozinhas em casa... Vamos sossegá-las.
Voltavam às bonecas, pacatamente, durante alguns minutos, até que, pela cabeça de Ana, tornasse a passar outra ideia luminosa que as obrigasse a correr.
Ora, nessa tarde, a Anita apresentava-se na herdade, pouco depois dos Gerrells se terem recolhido para lerem a carta anónima.
Mal se vira apontar ao portão, Alicinha correu com Nick ao seu encontro. Estava radiante por mostrar à sua amiga o seu «futuro mano», como ela o qualificou.
Anita já sabia que em casa dos Gerrells havia um menino que tinha sido achado num bercinho, à porta de casa. A história de Nick já principiara a espalhar-se, bastante deformada, pelas herdades vizinhas. O pormenor do bercinho já era fruto da fantasia popular, que não sabe contar um conto sem lhe acrescentar um ponto...
Foram, como sempre, exuberantes as manifestações de Ana ao ver o menino.
- Ai, que encanto de bebé!... Disseram-me que era bonito, mas eu não o esperava tanto!... Dá-me um beijinho...
Nick recusou com a sua habitual sem-cerimónia.
- Não quero.
E em reforço da sua recusa, bateu com força no solo o seu sapatinho novo, recentemente estreado.
Esta energia, longe de ofender Anita, antes lhe despertou maior simpatia. Ela, cuja educação não era das mais esmeradas, também apreciava muito a má-criação alheia, principalmente nas crianças mais pequenas.
- Ai, que amor de menino!... Que graça ele tem a dizer «não quero»...
E arremedava tão còmicamente o pequeno, que este desatou à gargalhada e concordou em receber um beijo na face, sem a empurrar nem protestar.
Logo se estabeleceu entre ambos uma quase instantânea familiaridade. Com o seu feitio muito dado e brincalhão, Anita conquistou sem dificuldade a confiança do menino. Dentro de alguns instantes, estavam ambos a jogar a bola. A menina dava pontapés como os rapazes, e disso é que o menino gostava.
Não faltavam risadas e guinchos estridentes. Alice cansava-se a censurar inutilmente a sua amiga.
- Anita, olha que fazes cair o menino!... Anita, não jogues com os pés, que não é próprio de uma menina!... Anita, estás a fazer o pequeno mal-criado!...
Mas Anita ligava-lhe tanta importância como às mudas árvores do parque. Continuou desaustinada, pelo tempo que lhe apeteceu. Por fim, descobrindo o grande cavalo de pasta, resolveu cavalgá-lo como os homens. Alicinha, escandalizada, quis obrigá-la a apear-se. A amazona não se convenceu. Agarrou-se às rédeas com quanta força tinha. Nick, naquele transe, acudiu por Alice, porque não queria o seu cavalo usado por outrem, senão por ele.
- O cavalo é meu!...-gritava ele com toda a força dos seus robustos pulmões,
-Deixa-me só andar um bocadinho... Eu dou-te depois uma coisa boa... -suplicava Ana, agarrando-se às crinas.
Alice, cheia de nervos, puxou e Nick ajudou-ai E cavalo e amazona tombaram pesadamente no solo.
Anita gemeu que estava ferida. A sua amiga, logo abrandada na sua cólera, baixou-se a examinar-lhe o joelho esfolado.
- Ai, minha querida!... Como tu estás... lamentava ela. - Não será um ferimento mortal ?...
Anita sentou-se na areia do arruamento a friccionar o joelho com saliva.
- Isto não é nada...-dizia ela, com voz entrecortada de suspiros. Fazia inauditos esforços para não chorar.
- E a culpada fui eu - acusava-se Alicinha, pesarosa. - É melhor amarrares aí um lenço... A mamã diz que, às vezes, as tripas podem sair por certos ferimentos...
- Mas nos joelhos não há tripas, pois não Alice?...-perguntou a sinistrada, com os seus grandes olhos muito abertos.
- Creio que só existem na barriga... replicou Alicinha, pouco segura.
- Sabes, isto foi castigo... - confessou Ana.
- Eu fui teimosa; não devia ter cavalgado como os garotos... Foi castigo...
Entretanto, já Nick se tinha apoderado avidamente do seu cavalo e, depois de laboriosamente o ter posto de novo em pé, conseguira montar. Alegre do seu triunfo, soltava exclamações intempestivas:
- Eh!... Eh!... IhU. Ih!... Agitava-se muito sobre a sela, para se dar mais perfeita ilusão de um galope.
Alice ajudara a sua amiga a levantar-se e pedia-lhe que se amparasse aos seus ombros, a fim de experimentar mover a perna, de contrário iria pedir à mamã um remédio que a pusesse boa.
- Não, não digas nada à tua mamã, senão ela diz que sou uma desinquieta, um cavalão, e já não deixa que tu brinques mais comigo... aconselhava Anita, aterrorizada.
Experimentou dar alguns passos.
- Isto não está mal...
De súbito, correu para a grande bola colorida e aplicou-lhe um pontapé.
- Estou boa!... Já estou boa!... - gritou ela, radiante. - Não me doeu absolutamente nada...
Dava pulos para confirmar a cura.
- Mas é melhor descansares um pouco recomendou Alicínha. - Queres vir brincar com as minhas bonecas ?
Ana não respondeu. A sua face tornara-se subitamente grave, pensativa. Assustada, Alice correu para ela e, sacudindo-lhe um braço, perguntou:
- Que tens ?... Sentes-te pior ?
A pequena não respondeu. Dir-se-ia não a ter ouvido. Ficara abstracta. Os seus olhos fixavam Nick, que continuava no seu simulado galope e a gritar:
- Eh!... Eh!... Ih!... Ih!...
- Ai, meu Deus!... Que tens, Anita?... Dói-te mais a perna ferida ?...
A outra volveu lentamente o olhar para a sua amiguinha e respondeu, enfim:
- Estou a ver se me lembro.
- Se te lembras de quê ?...
- Onde vi eu este menino. Já o vi em qualquer parte, mas onde, é que não há maneira de me recordar - disse Anita, a franzir muito a testa, como que num grande esforço de memória.
- Será possível ?... - pronunciou Alicinha, em voz sumida.
- Ah, iria jurá-lo!...
- Creio que deves estar enganada... este menino parece que veio de muito longe... Enjeitaram-no, sabes ?... Apareceu aqui, à nossa porta, tal qual como um menino de uma história 160
que me contaram, que foram pôr à porta de um palácio...
- Então, não o vieram trazer de automóvel ?
- inquiriu Anita.
- O papá teve essa desconfiança... Mas a certeza não há...
- É que disseram à minha mamã que veio um sujeito de automóvel com um bercinho lá dentro e dentro do berço estava o menino. O homem pôs o berço à porta e fugiu.
- Não, não foi nada disso...-rectificou Alicinha. - O menino vinha a dormir, enrolado nuns trapos muito velhos que o polícia levou para casa dele...
- O polícia ?... - estranhou Ana.
- Sim. Veio de Londres um polícia para ver se adivinhava quem eram os papás do menino.
- E adivinhou?... - inquiriu Anita, cheia de curiosidade.
- Não adivinhou nada. Levou os trapos e as roupas, do menino para casa dele.- E para que quer ele os trapos? Já eram assim tão velhos ?...
- Umas mantas esfarrapadas. Mas o polícia parece que, pelos trapos, pode adivinhar muita coisa - disse a filha da senhora Gerrells.
- Eu .gostava de saber como é que os polícias adivinham essas coisas... - murmurou Anita, pensativa.
- Eu não sei bem. Mas julgo que é pelo cheiro...-replicou Alice.
Ana voltava a fitar Nick, cada vez mais entusiasmado com o seu cavalo, e insistiu:
- Não pode haver dúvida. Eu já vi alguma vez este menino...
- Vê se te recordas, Anita. A minha mamã, com certeza, que gostaria de saber disso.
- Parece-me que foi... Não, na escola não foi...
Muito impaciente, Alicinha insistia:
- Puxa pela memória. Vê se te recordas...
- E não podendo ter mão no seu nervosismo, correu para junto da vivenda e começou a chamar por sua mãe.
Agora, a senhora Gerrells, que acabara por sentar-se nos degraus da escadaria, atraíra Anita a si e rogava-lhe, num tom comovido que bastante surpreendia a amiga da Alice:
- Minha filha... Vê se te recordas... Tu nem podes calcular a importância que pode ter uma recordação destas. Onde viste Nick ?... Tens a certeza de que já o viste alguma vez ?...
- Tenho a certeza, senhora Gerrells... Mas onde ?... Ai, deixe-me pensar um bocadinho.
Eva sentou-a nos seus joelhos e encostou a sua bonita cabeça loura ao seu peito, no jeito de quem quer adormecer uma criança.
- Assim, sossegadinha, para pensares melhor...
Jorge e Alice, muito calados, contemplavam-nas em silêncio e expectativa.
A figura obesa de Mariana, a mulher do caseiro, surgiu da vereda que vinha desde o seu tugúrio desembocar no largo arruamento central. Notando o grupo na escadaria, aproximou-se a passo lento e pesado. Parou, saudando:
- Boas tardes, senhores... Boas tardes, minhas meninas..,
- Schiu !... - soprou a senhora Gerrells, ordenando-lhe silêncio.
- Ah!... - exclamou Anita, agitando-se muito e batendo as mãos uma na outra. - Foi em Epsom!... Foi lá que eu vi o menino...
- Qual menino?... - interrogou Mariana.
- Nick - respondeu a senhora Gerrells. Mas cale-se, deixe falar esta menina. - E dirigindo-se a Anita. - Conta como foi, minha filha. Depois dou-te pudim, queres ?
Os olhos da pequena, que era bastante gulosa, luziram.
- Quero sim, senhora Gerrells.
- Então, conta lá... Foi em Epsom...
- Foi em Epsom... Naquela rua onde está a Pastelaria Tamisa... Sempre que vou a Epsom com a mamã, ela leva-me àquela pastelaria. Como eu gosto muito de doces... É lá que me leva a merendar... Tem uns cremes...
- Mas conta: como viste o menino?...
- Olhe, senhora Gerrells, eu já tinha comido tantos bolos, que até não podia mais... Sentia-me enjoada... Então, vim até à porta... Gosto muito de estar à porta a ver passar automóveis, camiões, bicicletas...
- Etc. - cortou Eva. - E o menino?...
- Pois, foi isso... Quando eu estava à porta passou este menino...
- Sozinho ?...
- Não, ia pela mão de uma mulher.
- E como era a mulher?... - indagou o senhor Gerrells.
- Não sei bem explicar...
- Era alta ?...
- Sim, alta como a senhora Gerrells.
- Nova ou velha ? - inquiriu Eva,
- Nem nova... Isto é, não era nova, mas também não era muito velha.
- Assim como a senhora Mariana? - interrogou Jorge,
- Como eu?... -protestou a mulher do caseiro.
- Não, não era como a senhora Mariana... Era magra - disse Anita.
- Se a visses, serias capaz de reconhecê-la ?
- Quase ia jurar que sim - replicou a pequena.
- E há quanto tempo foi isso?...
- Há muito...
- Dias, meses, semanas?...-pronunciou o senhor Gerrells para lhe despertar a memória.
- Olhe, foi quando minha mãezinha me comprou os livros para a escola.
- Em Outubro!... -exclamaram simultaneamente Jorge e Eva.
- Ai, os senhores a darem ouvidos a essa mentirosa!... - lamentou Mariana. - Toda a gente sabe que ela mente com quantos dentes tem na boca.
- É verdade!... - protestou Anita, fazendo-se muito vermelha. - Mentirosa é você!...
- Então, Anita - admoestou a mãe de Alice.
- Não se fala assim às pessoas mais velhas. Se não estás com juízo, não te dou o pudim. Além disso, ainda não acabaste de contar o caso. O menino ia a passar na rua. E depois...
- Olhe, eu estava à porta. O menino passou pela mão da mulher. Eu achei-o tão bonito que lhe fiz uma festinha na cara. O menino deitou-me a língua de fora. A mulher deu-lhe um bofetão e gritou-lhe: «Isso não se faz!» Eu ainda disse: «Não lhe bata, coitadinho». A mulher, voltou-se para mim e deitou-me uns olhos... Depois, foi-se embora, arrastando o menino, que choramingava...
Mariana afastou-se a resmungar:
- Vê-se mesmo que está a mentir...
- Vem cá, Anita. Quero cumprir o que prometi- disse Eva.
- É uma fatia grande que me vai dar?...
- Sim, bem a mereces. - E volvendo-se para sua filha: - Vem, Alicinha, e traz Nick. Todos vão comer pudim. São horas da merenda.
Mais revelações que nada revelam
A noite de sábado e o dia de domingo decorreram sem qualquer incidente notável. Nick já se familiarizara de tal forma com a família Gerrells que dir-se-ia nunca ter conhecido outro lar. As palavras «mamã» e papá» entraram definitivamente no seu vocabulário para designar Eva e Jorge. À Alicinha tratava-a umas vezes pelo nome, outras por «mana». Clara era também uma das pessoas da sua predilecção, pois a excelente moçoila tinha muita paciência para lhe fazer momices e, a todas as refeições, fazia a surpresa de um petisquinho para o menino. O que lhe faltava era tempo.
A senhora Gerrells pensava em descobrir outra criada para a ajudar, de maneira a Clara poder dedicar-se quase exclusivamente à criança. Este projecto trazia a rapariga num alvoroço. A toda a hora perguntava ela:
- Então, minha senhora, quando vem a outra mulher ?... O menino precisa de ser constantemente vigiado. É muito traquina e pode dar alguma queda perigosa...
Eva sorria bondosamente. Sabia que a pressa de Clara provinha mais do desejo que ela tinha de dedicar todas as suas horas à criança, do que do receio de alguma queda...
- Não tenho tido tempo para procurar a tua colega... Mas durante a semana há-de arranjar-se...- prometia a senhora Gerrells para a sossegar.
Durante o dia de domingo, visitaram a herdade várias meninas, condiscípulas de Alicinha a quem constara a notícia da aparição quase milagrosa daquele menino tão bonito.
O jardim e o parque animaram-se com as conversas e gritos festivos das crianças. Brincou-se às escondidas, fizeram danças de rodas, e os brinquedos de Nick e Alicinha andaram por todas as mãos, não sem sofrerem alguns danos graves, que muito contristaram a pequena.
A boneca grande que Alice tinha numa grande estimação apareceu com um braço arrancado, o robusto cavalo de pasta ficou sem uma orelha e com as rédeas quebradas. Alguém teria posto um pé sobre uma carruagem do caminho de ferro de corda, esmagando-a. O que mais desesperava Alicinha é que nunca se sabia quem eram os autores de tão bárbaras devastações, que dir-se-iam propositadas. Apesar de Anita ser muito desinquieta, não suspeitava dela. A endiabrada menina tinha sempre a coragem de confessar os seus delitos. As outras calavam os seus pecados. Sabiam apenas dizer perante algum «bonito» destroçado:
- Escangalhou-se!... Que pena! Eu cá não fui...
Alice comentava, indignada:
As coisas não se podem escangalhar por si próprias... Alguém as estragou...
A senhora Gerrells, que aparecia, de vez em quando, no patamar a vigiá-las, tranquilizou sua filha.
- O papá manda a tua boneca ao hospital das bonecas em Londres e vem de lá curada... Quanto aos brinquedos de Nick, comprar-se-ão outros...
O menino não exteriorizava o mínimo desgosto perante os seus brinquedos devastados. Pelo contrário, ao ver o cavalo sem uma orelha, rompeu às gargalhadas. Achava-lhe um cómico irresistível. Quando descobriu a carruagem de caminho de ferro esmagada, acabou, com o seu próprio pèzinho, que bateu com toda a gana, a obra de destruição iniciada por alguma das suas irrequietas companheiras.
À hora da merenda, a senhora Gerrells chamou as crianças todas à sala de jantar e sentou-as todas à mesa. Eram seis meninas estranhas, todas pouco mais ou menos da idade de Alice. Nick, na sua cadeira de bebé, de assento elevado, ficava mais alto do que todas e parecia presidir àquela ranchada gárrula, que não podia estar calada um só momento.
O menino gritava mais do que falava. Exprimia quase tudo por gritos intempestivos e batia com a sua colher pequenina no tampo da mesa, quando as outras, distraídas, não lhe prestavam a atenção a que ele se julgava com direito.
Eva e o marido não se cansavam de observar a pequenada ruidosa. Clara servia leite e pão com manteiga a todos. Depois, compota de pêra.
Terminada a refeição, correram todas novamente para o jardim. Nick esforçava-se por alcançá-las, movendo vertiginosamente as suas pernas ainda demasiado curtas para competir com crianças que tinham mais do dobro da sua idade.
Contudo, o senhor Gerrells, observando-o com um sorriso bonachão, vaticinou:
- Há-de vir a ser um bom corredor de velocidade, um verdadeiro «sprinter».
Eva chamava Anita de parte. A pequena interrompeu, com grande desgosto, a sua folia para vir atendê-la. Tinha muito respeito à senhora Gerrells e obedecia-lhe de melhor vontade do que à própria mãe que, tendo-lhe dado excessiva confiança, a tornara respondona e malcriada. Mas, encaminhada com doce severidade, a pequena, que era dotada de óptimos sentimentos, poderia tornar-se uma criança adorável.
A senhora Gerrells apenas quis tornar a interrogá-la sobre o seu encontro com Nick. Anita repetiu a versão da véspera, sem lhe fazer qualquer alteração. Jorge que, devido aos comentários da caseira, ficara na dúvida de que ela tivesse sido rigorosamente verdadeira, convenceu-se desta vez de que a menina não mentira.
Eva não a quis privar por muito tempo do recreio, em que Clara, já despachada do seu serviço, colaborava com um espírito infantil mais acentuado do que Alice, que tinha certa propensão para as atitudes graves.
Dava gosto ver aquela criança muito grande, alta e forte, pulando nas danças de roda, batendo as palmas e levando o seu par ao colo para o deslocar mais depressa. As suas gargalhadas soavam mais alto do que a vozearia da criançada. Tinham-lhe subido as cores ao rosto e os olhos brilhavam como se contivessem luz própria.
Ao declinar da tarde, as visitas foram-se retirando. Clara voltou à cozinha a fim de dar a última demão no jantar, que deixara meio alinhavado. Fez-se subitamente um grande silêncio no parque, que se enchia de sombras. Alice começou a trazer para casa os seus brinquedos, para os arrumar, com um ar muito sério, num caixote grande que lhes era destinado.
A menina caíra numa brusca melancolia que não passava despercebida a sua mãe, que a observava disfarçadamente. Nick instalara-se nos joelhos de Jorge que, mergulhado no «maple» da sala de jantar, folheava um livro de bonecos. O menino soltava, de vez em quando, exclamações de alegria e de surpresa, perante os macacos saltadores que faziam caretas, as girafas esgrouviadas, os elefantes trombudos, os gatos assanhados com o pêlo todo eriçado e a espinha curva, os papagaios de grandes pupilas redondas e bico em gancho...
O senhor Gerrells aproveitava o ensejo para ensinar ao menino o nome de todos aqueles animais, que tencionava em breve mostrar-lhe ao vivo numa visita ao Jardim Zoológico. O pequeno repetia os nomes com relativa facilidade e quando, ao volver de uma página, surgia algum animal com que o seu olhar estivesse mais familiarizado, gritava logo os respectivos nomes, pondo o dedito muito esticado sobre a estampa.
- Boi!... Cão!... Cavalo... Coelhinho... Depois de arrumar os seus brinquedos e os
de Nick, pois achava que ele era muito pequeno para já ter esses cuidados, Alicinha veio para a sala de jantar encostar-se muito calada ao «maple» onde seu pai se instalara com Nick ao colo.
Ela, que tanto gostava daquele livro das estampas de animais, alegria da sua mais tenra infância e ainda hoje atraente para o seu espírito, não falava, não fazia um comentário. Limitava-se a sorrir às ingénuas manifestações do menino. Mas a senhora Gerrells, descobrindo tristeza nesse sorriso, chamou-a a si, quase num ar de confidência, e, em voz baixa, perguntou-lhe:
Que tens tu, Alicinha? Não te vejo alegre como nos outros dias...
Alice baixou ao solo o seu doce olhar e ficou toda enleada, as cores mais fortes a subirem-lhe ao rosto.
- Então, porque não respondes ?... - insistiu sua mãe. - Decerto não tens segredos para mim.
- Oh, não, mamã!... Não tenho segredos para si.
Passou-lhe os bracitos em volta do pescoço e beijou-a com ternura.
- Nesse caso, conta-me o teu desgosto tornou Eva. - Sim, porque eu sei que tens um desgosto... Decerto, que não é por causa dos brinquedos escangalhados. O papá manda raparar os que tiverem concerto e comprar-te-á outros, por alturas da Páscoa, que não tarda...
- Eu nunca me posso queixar da falta de brinquedos - disse a pequena. - O papá até me dá mais do que eu realmente mereço.
- Tu merece-los enquanto fores boazinha, como até hoje, e franca para os pais...-acentuou a senhora Gerrells.
Alice tornou a baixar o olhar e sumidamente confessou:
- Eu tenho vergonha de o dizer, mas estou triste porque o domingo está a acabar...
Eva sorriu e acrescentou:
- E amanhã, segunda-feira, é dia de escola e já não poderás brincar com Nick, senão à tarde, não é isso ?
Esforçando-se por conter as lágrimas, Alicinha só pôde confirmar as palavras de sua mãe, com um movimento sacudido de cabeça.
A senhora Gerrells acariciou-lhe docemente os cabelos e falou-lhe com brandura a confortá-la.
- Ainda ficas com muito tempo livre, depois da escola, para brincares com Nick. O papá já te permitiu que faltasses na sexta-feira. É caso para lhe estares muito grata. Ele foi até demasiado condescendente. E tu és uma menina inteligente e boazinha. Deves compreender, portanto, que faltar à escola só prejudica o estudo. Precisas de
saber muito para te fazeres uma senhora educada. Não gostarias de ensinar a Nick as primeiras letras ?
- Eu julgo que já seria capaz de o ensinar, mamã!... - exclamou Alicinha, num alvoroço.
- Por enquanto, ainda não estás muito segura. Precisas de aprender bem para ensinares bem. Seria uma glória para ti o menino, quando chegar à idade escolar, já saber alguma coisa ensinada por sua mana mais velha.
- Então, a mamã acha que eu devo estudar muito, para poder ser a primeira mestra do mano ?
- perguntou Alice.
- Pois, quanto mais aplicada tu fores, mais proveito tira o mano das tuas lições - replicou a senhora Gerrells.
A pequena permaneceu silenciosa durante alguns momentos, sob a dissimulada observação de sua mãe. Depois, dando-lhe um beijo, como quem se despede, afastou-se e saiu da sala.
Eva ficou a pensar no caso. Depois, as manifestações de alegria daquele que ela já considerava seu filho distraíram-na.
Levantou-se e foi juntar-se ao grupo de Jorge e Nick.
- Esta vaquinha é a Dourada - dizia o pequeno, pousando a ponta do dedinho, de unha muito rosada, sobre a imagem de uma vaca de grandes malhas amarelas.
O facto de ele dar ao boneco um nome que nunca lhe tinham ouvido pronunciar despertou a atenção dos Gerrells. Dourada era, certamente, o nome de um animal que ele já tinha visto, sabia-se lá onde. Talvez no local onde vivia...
Jorge não resistiu à tentação de aproveitar aquele ensejo para interrogar a criança.
- Onde está a Dourada? - inquiriu ele.
- Está lá - respondeu o pequeno.
- Mas lá onde?...-insistiu Eva.
- Na casa dela.
- E onde é a casa dela?...
- É lá... Ali... - respondia o menino, apontando para os lados da janela, como era seu costume sempre que pretendia designar distância.
- Oh meu Deus... - murmurou Eva. É uma tortura uma criança saber as coisas e não saber explicá-las...
- Onde está a vaquinha?... É em casa da Marta ?... - interrogou Gerrells.
- Não, na casa da Marta há galinhas... Põem o tété para o menino comer...
- Isso sei eu - cortou Jorge. - Quero saber se a Dourada também está em casa de Marta.
- Não! - redarguiu Nick. - A vaquinha está ali... Muito longe... A Marta vai buscar leitinho para o menino...
Eva, que devorava as imprecisas explicações do pequeno, julgou perceber quase tudo e apressou-se a revelar ao marido o que depreendia:
- Está provado que a tal Marta, em casa de quem ele vivia, tem um quintal, onde certamente Haverá uma capoeira com galinhas...
- Sim, as galinhas a brincar no quintal... O menino brinca com as galinhas !... - interrompeu Nick, que estava seguindo com atenção as explicações de Eva.
- Vês ? - disse esta, com um ar de triunfo.
- As coisas começam a surgir com mais clareza. Agora a vaca. Deve haver um estábulo, onde a tal Marta, provavelmente acompanhada da criança, ia buscar o leite.
- Confirma-se a nossa suspeita de que o pequeno tem vivido no campo ou proximidades Daí a sua facilidade em reconhecer vacas, cães, galinhas, hortaliças, a enxada.
O menino tornara-se muito sério e atento às palavras dos Gerrells, como se quisesse apreender-lhes todo o sentido, que ainda escapava à sua tenra idade.
- Mamã - disse ele. - Tu não tens cá a Dourada ?
- Não, a mamã tem aí outras vaquinhas, mas não são douradas... - replicou Eva, a sorrir.
- O menino queria uma Dourada para dar leite para mim...
- As outras vaquinhas também dão leite para o menino... Não as viste ontem ?
- Vi, mas não vi a Dourada!
- O papá há-de comprar uma Dourada para o menino, sim ? - prometeu Jorge.
- Compras ?.., - duvidou o pequeno. Onde está ela ?
- Tu é que sabes - acudiu Eva. - Onde está a Dourada ?
- Está lá... Marta leva lá o menino.
- E onde está a Marta ?
- Em casa - respondia o pequeno.
- E onde é a casa ?
- É lá!...
A criança tornava a erguer o dedito, apontando vagamente para o exterior.
- Não se sai deste círculo vicioso ! - pronunciou Jorge, revelando uma certa impaciência.
- A Marta está em casa e a casa é ali!... Nem o nome da terra, nem uma indicação concreta sobre as pessoas...
- Sabes ? - disse Eva. - As indicações de Anita foram mais claras, embora ainda um pouco vagas. Ficámos sabendo que, pelo menos, uma vez, há uns quatro para cinco meses, o pequeno esteve em Epsom, acompanhado de uma mulher da minha estatura, relativamente nova. Seria a tal Marta?...
- E seria nessa altura que compraram os sapatinhos que ele trazia nos pés ? - acudiu o senhor Gerrells.
- É muito possível - admitiu a mãe de Alice. - Mas ainda há outro pormenor em que me fartei de pensar esta noite...
- Qual?
- Seria Marta a autora da carta que me escreveram ?...
- Também já pensei no caso - disse Jorge.
- Acho, porém, que Marta não é a mãe do menino. Ele não estava habituado a chamar mamã a ninguém. Nem mesmo nos momentos
de desespero, em que essa palavra acode inconscientemente aos lábios das crianças, ele a pronunciava... Apenas, por vezes, e raras, juntava a palavra tia ao nome de Marta ...
Nick desinteressava-se da conversa e folheava o compêndio dos bonecos.
Eva, depois de um silêncio, disse:
- Tudo me leva a crer que o menino não vivia com a mãe. Talvez estivesse, por favor, em casa dessa Marta que, por qualquer motivo, o restituiu à mãe. Esta, provavelmente, uma pobre mulher sem haveres, decidiu enjeitá-lo.
- Falta-nos conhecer muita coisa para podermos encadear os factos que, afinal, não passam de meras hipóteses - proferiu Jorge.
Ficaram ambos silenciosos a seguir os movimentos de Nick, cuja mãozinha, nédia e rosada, passava as grandes folhas com uma certa violência.
Cada vez os atraía mais o misterioso passado daquele ente tão pequeno e, afinal, ainda com tão pouco passado. Como seria a mãe?... De que viveria?... E o pai?... Diziam na carta que ele tinha morrido. Seria verdade?... Talvez não passasse de um miserável, talvez um criminoso... Mas Nick tinha qualquer coisa, um quê, que parecia denunciar uma proveniência altiva e nobre... Oh, mas essas aparências raras vezes correspondem à realidade. Há meninos altivos oriundos de famílias humildes e meninos comedidos e tímidos, descendentes de nobres avoengos guerreiros...
Nick constituía para os Gerrells um enigma vivo que, por mais que se esforçassem, não conseguiam decifrar. Teria Artur Kelly mais argúcia para ler claro naqueles pormenores em que eles não viam senão névoa a encobrir misteriosos acontecimentos ?
- Não podemos deixar de mencionar ao inspector estas pequenas coisas: a versão de Anita e o reconhecimento da Dourada na imagem de uma vaca de malhas amarelas - disse Jorge, rompendo o silêncio.
- E julgas que ele tirará daí alguma conclusão ?... - indagou Eva.
- Talvez.
A Senhora Gerrells lembrou-se subitamente de sua filha. Onde se teria ela metido ?... Parecia tê-la impressionado muito a sua prelecção sobre os deveres escolares e a possibilidade de ela vir a ser a primeira mestra de Nick.
Deixou o marido e o menino e foi direita à cozinha, supondo que Alice estivesse à conversa com Clara.
Embora esta fosse uma excelente mocetona, Eva não gostava que sua filha permanecesse muito tempo na cozinha. Por uma questão de princípio apenas. Mais tarde, quando ela já fosse mais crescidinha, sim, durante uns dias por mês, aprenderia a fazer todo esse serviço, desde a lavagem dos pratos e areados de metais até aos repastos mais simples ou mais complicados. Queria que sua filha soubesse fazer - e bem feito - todo o trabalho caseiro.
Alice, porém, não estava junto de Clara, nem esta a tinha visto desde que regressara do jardim.
Um pouco inquieta, a senhora Gerrells foi espreitar ao seu quarto de dormir. Não a viu. Regressava pelo outro corredor à sala de jantar, quando notou, pela bandeira da porta, luz acesa no escritório de seu marido.
Abriu a porta de mansinho. Alice, sentada à secretária, não a pressentiu. Estudava as suas lições. A sua cabeça emergia do outro lado da mesa, que era alta de mais para a sua apoucada estatura.
A senhora Gerrells enterneceu-se.
Avançou sem produzir ruído. A menina, porém, viu-a e sorriu-lhe.
- Não venha interromper-me, mamã - suplicou ela. - Estou a estudar as minhas lições...
Contudo, Eva aproximou-se, para a beijar e dizer-lhe:
- Deus há-de compensar-te, conservando Nick ao teu lado...
Saiu sem ruído e tornou a fechar a porta.
Tudo correu normalmente até à manhã seguinte, que era segunda-feira.
Como prometera, o inspector Artur Kelly apareceu ainda não eram nove horas, pouco depois de Mariana levar Alicinha à escola.
Meada que começa a deslindar-se
A senhora Gerrells não sabia explicar por que motivo, ao ver entrar o inspector, se apossara dela um nervosismo tão grande que durante alguns minutos não pudera dizer coisa com coisa.
Em compensação, seu marido mostrava-se extremamente calmo, de uma calma que ela lhe desconhecia.
Artur Kelly, recebido pelos Gerrells no gabinete de trabalho, onde já estivera na sexta-feira anterior, parecia um tanto sombrio, muito preocupado. Apesar da sua inexplicável inquietação, Eva pôde observar nele essa particularidade.
Jorge principiou por lhe entregar a carta, que ele leu e releu vagarosamente, como pessoa que mal soubesse soletrar. Dir-se-ia pesar meticulosamente cada palavra, tomar o paladar a cada frase. Por fim, pousando a missiva em cima da secretária, levantou os seus olhos cinzentos para a senhora Gerrells e disse, pausadamente:
- A mulher que escreveu esta carta não é a mãe da criança, como quer fazer supor. É uma pessoa estranha a simular de mãe.
- É curioso!... -exclamou Eva. -Agora é que eu descobri o que havia de estranho na carta... Era qualquer coisa que eu não podia definir e me causava uma impressão de falso...
- Falso!... É esse o termo - acudiu Kelly. A pessoa que lhe quis confiar o menino, fez-se passar por mãe dele, para simplificar o problema perante as vossas consciências. Calcularia que os senhores tivessem escrúpulos em ficar com o menino, se este lhes fosse entregue por um parente afastado ou uma pessoa estranha. Fez-se então passar por mãe. Esqueceu, porém, que a criança nunca fala em mãe, demonstrando que ou a perdeu ou viveu sempre afastada dela.
- E quem teria escrito a carta?... - indagou Gerrells.
- Até prova em contrário, as minhas suspeitas recaem todas sobre a tal Marta.
- Também assim penso...-concordou Eva.
- Só há aí uma objecção a fazer - atalhou o marido. - As vagas indicações que temos sobre Marta, levam-me a imaginá-la uma pessoa de pouca educação, incapaz de redigir uma carta tão eloquente como a que recebemos.
- Que indicações têm dela, além das fornecidas pela criança, que são quase nulas ? - inquiriu Artur Kelly.
Chegou então a oportunidade de Jorge narrar minuciosamente a revelação de Anita e as observações mais recentes sobre o pequeno, que pareciam denunciar hábitos do campo.
- Talvez essa Marta fosse uma espécie de ama a quem o pequeno estivesse confiado... lembrou o inspector.
- E acha que uma ama abandonaria assim uma criança que lhe confiassem, sem temer as responsabilidades ? - inquiriu Eva.
- Há, realmente, umas certas contradições em tudo isso - confessou o polícia. - Contudo, alguns dados positivos já obtivemos: o menino esteve, pelo menos, uma ou duas vezes em Epsom. Foi lá que lhe compraram os sapatos e provavelmente esteve na sapataria para lhos provarem. Foi lá que essa pequenina o viu. É de Epsom que parte a pista. É a Epsom que temos de ir sem perda de um minuto. O senhor Gerrells está disposto a acompanhar-me, trazendo o pequeno ?
- Inteiramente ao seu dispor.
- Não poderemos interrogar a tal Anita?...
- É questão de nos dirigirmos à escola. A professora certamente autorizará...
- O ideal seria que Anita nos acompanhasse a Epsom - lembrou Kelly.
- Vamos pedir aos pais. São meus vizinhos, a dois passos daqui... -replicou Jorge.
Poucos instantes depois, a senhora Gerrells via-os partir. Nick não teve relutância em acompanhá-los, porque ia de pópó e lhe disseram que iriam ver Alicinha.
Mariana também assistiu à abalada do carro. Depois, com os dedos entrelaçados sobre o ventre, como era seu hábito, volveu-se para a patroa, que ficara pensativa, e disse:
- Sabe o que eu lhe digo, minha senhora ?... Se este homem de Londres continua nestas danças, não tarda muito que não lhe leve o menino Nick...
- É preciso averiguar bem a proveniência da criança. A polícia tem obrigação de investigar...
- Isto são uns verdadeiros demónios!... exclamou a mulher. - Deus me livre de me meter com gente da polícia...
O pessimismo da caseira coadunava-se bem com o estado de espírito de Eva. Também pensava que talvez tivesse sido melhor terem-se calado. Guardariam o menino, já que havia o deliberado propósito de lho darem, conforme a carta recebida depois o asseverava. Criá-lo-iam sossegadamente, fazendo dele um grande homem, e escusavam de sofrer tantos sobressaltos, tantas ansiedades.
E se a autora da carta não fosse a mãe da criança ? E se a verdadeira mãe aparecesse a exigir que lha entregassem?... Que desgosto não iria naquela casa!... Quem havia de calar Alicinha?... E Jorge, cuja alma muito sensível, a despeito de uma certa frieza aparente, já estava toda cheia do menino, como iria ele suportar o golpe da separação ?
Todas estas ideias tumultuavam na mente da senhora Gerrells, enquanto a mulher do caseiro, um tanto rezingona, continuava a dizer mal dos polícias e do seu trabalho. E, para agravar a atmosfera de pessimismo, não tardou Eduardo a aparecer, para reforçar a argumentação da sua consorte.
- Eu cá, se fosse ao senhor Gerrells, dizia ao tal polícia de Londres que não se metesse mais nisto - declarou ele. - É uma peste de gente que só serve para nos meter a alma no Inferno!... O que é que ele quer, afinal ? Descobrir a mãe do menino?... Só se for buscá-la debaixo dos torrões,
- Mas, senhor Eduardo, Nick tem mãe... Ela escreveu-nos uma carta !...
- Tem mãe ?!... - estranhou o caseiro, trocando com a mulher um olhar de assombro. Essa agora para mim é nova. Sempre ouvi dizer que o menino era órfão...
- Cala-te, homem!... - ordenou Mariana.
- Tu sabes lá o que estás para aí a dizer!... Que podes tu saber da vida do menino ?
- Sei o que ouvi por aí...
- Nós também supúnhamos que Nick não tinha mãe-explicou a senhora Gerrells.-Como ele nunca pronunciava essa palavra... Afinal, a carta que nos escreveram parece ter sido escrita pela mãe... Apesar de que nós duvidamos... E a polícia também... A verdadeira pista está na tal Marta... Se nós a descobríssemos, saberíamos tudo...
- Ora, ora... Águas passadas não movem moinhos!... - exclamou Eduardo. - O melhor é não mexerem mais nisso...
- Ainda se arriscam a ficar sem a criança!...
- recordou Mariana.
Eva sentia-se tão mal-disposta, que aproveitou o primeiro ensejo para recolher-se. Em casa, Clara quis assediá-la de perguntas ansiosas. Também ela não via o inspector com bons olhos e temia que ele, descobrindo tudo, fosse o causador de se perder o menino.
- Nunca mais o tornaremos a ver... - disse ela, a choramingar, correndo a refugiar-se na cozinha.
A senhora Gerrells foi meter-se no seu quarto. Sentia umas vagas dores de cabeça e deitou-se no divã, tapando-se com o «edredon». A vista do bercinho onde agora dormia Nick, e que ela já ornamentara com seda e laços cor-de-rosa, provocou-lhe lágrimas de comoção.
Fechou os olhos. Sentia uma imperiosa necessidade de sossego. Deixou-se ficar muito quieta e acabou por adormecer. Mas o sono povoou-se-lhe de pesadelos que tinham sempre por tema o menino. Uma mulher desgrenhada, velha, magra, nariz adunco e unhas recurvas, surgia de uma nuvem pardacenta e confusa e estendia os braços esqueléticos. Era para levar Nick, que Eva apertava desesperadamente contra si, disposta a defendê-lo enquanto tivesse um alento de vida. Queria gritar, mas a voz afogava-se-lhe na garganta, asfixiando-a. Mas outro vulto aparecia e a velha horrenda escoava-se na sombra, para, dentro de alguns momentos, reaparecer, mas disfarçada de jovem camponesa, a sorrir. A senhora Gerrells, porém, bem a reconhecia: era a velha que tomara aquela aparência simpática e juvenil para a enganar. O sorriso pérfido traía-a. E era como se Eva estivesse a ver a sua face execranda sob a máscara transparente de uma jovem.
Por vezes, eram figuras monstruosas e mal definidas que pulavam de repente e lançavam as garras ao menino. Mas Eva lograva sempre, ao cabo de uma luta fatigante, recuperá-lo e fugir... De uma das vezes em que corria com ele nos braços, sentiu que se abria sob os seus pés uma grande cova negra e caiu lá em baixo. Acordou devido ao choque da queda.
Soergueu-se no divã. Ainda sentia a cabeça muito pesada, embora não lhe doesse. Quanto tempo teria dormido ? Não o sabia ao certo. Um «klaxon» soou lá fora. A senhora Gerrells saltou para o solo, como que movida por uma mola, e correu à porta da vivenda. Eram eles que já estavam de regresso.
O automóvel acabava de dar uma curva impecável para se deter junto ao primeiro degrau da escadaria. Jorge e Kelly saltaram, cada um por seu lado do banco da frente. As duas portinholas da retaguarda abriram-se e Eva, não sem certa surpresa, viu descer uma mulher alta, trajando sem gosto, que ficou parada e de costas para o edifício, à espera de que os dois fossem retirando de dentro do carro, primeiro, Nick ao colo de Jorge, depois Anita e Alice, a quem o polícia dera sucessivamente a mão, para as ajudar a descer.
Subiram todos precipitadamente as escadas ao encontro de Eva, que enxergou os caseiros a espreitarem entre as árvores do quintal.
A senhora Gerrells sentia-se um pouco embaraçada na presença da desconhecida, mulher que andaria pelos quarenta anos e que baixava a vista como se temesse encará-la. Alguma coisa lhe segredava que aquela devia ser a mãe de Nick. Mas seria possível que, com aquela aparência rude, pudesse redigir a carta que a comovera tanto ?
Enquanto pensava confusamente estas coisas, a senhora Gerrells conduzia os recém-chegados para o escritório. Respirava-se um ambiente tão opressivo que até o pequenito parecia acusá-lo com o sossego tão raro nele.
Eva indicou apenas com um gesto uma cadeira à desconhecida que ficou de pé e silenciosa, como se não a tivesse compreendido. Apertava uma maleta na mão esquerda, que tremia, e comprimia na direita um pequeno lenço.
- Queira sentar-se, senhor Kelly - convidou o anfitrião.
- Sinto-me melhor de pé - replicou o polícia, que, volvendo-se para Eva e indicando a visitante, disse: - Eis a tão falada Marta.
A senhora Gerrells sentiu o coração dar-lhe um salto dentro do peito.
- Supus que era a mãe de Nick... - pronunciou ela, em voz sumida.
- Não, minha senhora, não lhe sou nada!
- replicou a mulher num tom sacudido. E acrescentou: - Esse menino é um enjeitado.
Eva experimentou um arrepio ao ouvir uma mulher exprimir-se tão desabridamente acerca de uma criança tão encantadora.
O polícia, apesar de já ter ouvido de Marta a história de Nick, preferia que ela a contasse novamente, para ver se a encontrava em contradição.
- Conte a essa senhora o que sabe - ordenou ele.
- Estão a fazer de mim relógio de repetição...- resmungou ela, com enfado. E ajuntou:
- Tudo se explica em poucas palavras. Esse menino veio para a minha casa com dez meses. Ensaiava os primeiros passos. Foi um sujeito chamado Guilherme quem mo trouxe...
- Ah!... Nick fala às vezes nesse Guilherme... - lembrou a senhora Gerrells.
- Pois bem, o senhor Guilherme, quando mo confiou, contou-me uma história. Que o menino era órfão de pai e mãe. Ele, Guilherme, não lhe era nada, mas tivera dó da criança. Como era solteirão, resolveu proteger o menino e pô-lo numa ama, de preferência fora de Londres por causa dos ares. Como ele pagava duas libras por semana, achei bom o negócio e aceitei. Eu sou viúva. Meu marido enforcou-se, felizmente...
- Felizmente !... - repetiu Eva com horror.
- Digo felizmente e repito-o porque ele era um alcoólico e batia-me por dá cá aquela palha. Fiquei melhor sozinha... Tenho uma casinha na aldeia de Green Hill, para cima de Epsom umas dez milhas. Aquilo é um descampado. Depois de enviuvar, comecei a trabalhar em casa deste e daquele e vivia com dificuldades. O senhor Guilherme, dando-me duas libras por semana, permitiu-me viver descansada em minha casa, ter uma criadita para me ajudar, comer bem e trazer o menino que era um primor.
- Tinha alguma vaquinha chamada Dourada ? - indagou Eva.
- Não, senhora. O dinheiro não era tanto que chegasse para comprar vacas. E sucede que, ao fim de um ano, o senhor Guilherme, que vinha visitar-me todos os meses, começou a falhar. Ultimamente, não me aparecia há três meses. Esteve lá na quinta-feira. Andava em atraso de pagamento dezasseis semanas. Queria pagar-me seis e ficar-me a dever o resto até não sei quando. Mandei-o pentear macacos e que levasse a criança.
- E ele ?... - interrogou Eva.
- Ele levou a criança...
- E depois ?
- Depois, não sei mais nada.
Eva e o marido trocaram um olhar de assombro. Kelly interveio bruscamente para perguntar:
- Onde vive o senhor Guilherme ?
- Em Londres.
- Em que rua ?
- Não sei. Nunca mo disse, nunca lho perguntei.
O inspector esboçou um ligeiro sorriso de dúvida e pronunciou:
- Você apenas disse metade da verdade.
A outra metade deformou-a consoante as suas conveniências.
- Já disse o que tinha a dizer e não saio disto. Nem que me cortem a cabeça!...
Exprimia-se sempre com brusquidão, lançando às pessoas olhares coléricos.
Artur Kelly não se alterava. Com calma firmeza, retomou a palavra.
- É verdade o senhor Guilherme confiar-lhe a criança. É verdade a senhora receber duas libras por semana para sua manutenção. É verdade ele dever-lhe dezasseis semanas. Só não é verdade ele ter-lhe aparecido na quinta-feira...
- Apareceu, sim senhor, até deixou o carro lá em baixo na estrada, pouco mais ou menos no sítio onde os senhores deixaram hoje o vosso...
- Ah, óptimo!... Você tem razão. Apareceu na quinta-feira a saber se você já tinha combinado tudo com os seus padrinhos e...
- É falso... Eu não tenho padrinhos...
- E como você respondesse afirmativamente
- prosseguiu o polícia, sem se alterar - o senhor Guilherme deu o remédio à criança para a adormecer, embrulharam-na em farrapos de mantas que você forneceu e trouxeram-na no automóvel até aqui, detendo-se na estrada. O senhor Guilherme tocou o «klaxon», como estava combinado, e a sua madrinha foi buscar o menino, entrou o portão, depôs o fardo humano junto da porta, enquanto o automóvel desaparecia...
Marta fixou no inspector um olhar em que havia um misto de assombro e de ira. Por várias vezes movera os lábios, sem produzir som. Até que conseguiu articular, estranguladamente.
- Falso!...
Sempre sereno, Kelly puxou do lencinho achado na estrada e, mostrando-lho, disse:
- Até você perdeu o lenço na estrada, por sinal precisamente igual a esse que traz na mão...
As faces de Marta tingiram-se de um vermelhão intenso.
- Falso!... Falso !... - protestou ela.
- Calma! - aconselhou Kelly. - É inútil negar porque a sua madrinha já confessou tudo...
- Eu não tenho madrinha... - negou a mulher, sem poder descerrar os dentes.
- Minha senhora - pediu o detective», volvendo-se para Eva -, podia mandar chamar a caseira ?...
- Sim, senhor Kelly... - anuiu ela, muito nervosa, encaminhando-se para a porta.
Jorge inquiriu:
- Mariana está metida nisto?...
- Evidentemente... Ela colaborou, embora sem má intenção, no abandono da criança. Mariana nasceu em Green Hill. Conhece Marta desde criança. Foram companheiras de folguedos. Mais tarde foi madrinha do seu casamento. Toda a gente o sabe em Green Hill. E eu já alimentava desconfianças sobre a colaboração dos caseiros, só porque o Mastim não ladrou; resolvi fazer um pequeno inquérito em Green Hill antes de procurar Marta. Esse o motivo por que estou ao par do seu parentesco.
A caseira entrou com um ar comprometido. As três crianças, que tinham assistido um tanto assustadas à alteração dos adultos, foram entregues por Eva à criada, que viera espreitar.
Desenrolou-se então uma cena chocante e imprevista. Marta, que até ali se mostrara tão enérgica e ríspida, caiu de joelhos, lavada em lágrimas, a gritar para a Mariana:
- Ai, mulher!... Está tudo descoberto... Tudo perdido... Já sabem tudo.
A caseira cruzou os dedos sobre o ventre, olhou para uns e para outros e acabou por perguntar:
- E já não querem o menino ?...
- Querem, desde que acabem de confessar o que falta - replicou o inspector, antes que os Gerrells pudessem responder.
Mariana soltou um profundo suspiro e disse:
- Nesse caso, porque não contas tudo, Marta ?
- Não posso... Não tenho cabeça para pensar... - lamuriou a ama de Nick.
Um pouco trémula, mas não embaraçada, a mulher de Eduardo narrou:
- Eu cá nunca tinha visto o menino. Há muito tempo que não vou à minha terra. Há dias, porém, a minha afilhada veio aí visitar-me. Era um sábado de tarde, os senhores tinham ido para Londres de automóvel e Clara, de folga, não estava cá. Minha afilhada contou-me que o senhor Guilherme, depois de uma longa ausência, lhe aparecera a dizer que estava arruinado, não podia manter a pensão da criança e lhe pedia que fosse aguentando, por esmola, até ele endireitar a vida. Ora, a minha afilhada não podia. Tinha de trabalhar e a criança passava a ser um estorvo. O senhor Guilherme disse que ia ver se arranjava algum dinheiro e que voltava. Entretanto Marta veio consultar-me. E eu lembrei-me: «Quem havia de gostar de um menino assim era a minha patroa». Palavra puxa palavra e combinámos que, se o tal Guilherme continuasse com falta de fundos, como a criança não era dele, talvez anuísse em entregá-la aos senhores Gerrells. O senhor Guilherme concordou, mas havia de ser segundo o plano que ele fez e que foi o que se executou: traziam o menino adormecido até aqui à estrada, onde eu o ia buscar para o depor à porta da vivenda. E assim se fez... E tudo ficaria em bem, se o senhor polícia não se metesse nisto...
- E onde mora o senhor Guilherme?...- perguntou Eva, ajudando Marta a levantar-se.
- Ai, nunca o soube!... Ele dizia que morava em Londres... - respondeu a mulher, sempre no seu ar abatido.
- O senhor Smith, o dono da Dourada, que visitei hoje na companhia de Nick - declarou Kelly - viu-o várias vezes e forneceu-me os seus ? sinais. Havemos de resolver tudo até o encontrarmos.
- Sim, o mistério agora reside todo no senhor Guilherme - disse Jorge. - Continuamos sem saber o passado da criança.
- Afinal, ainda não sabemos quem é Nick, nem se os pais são vivos ou mortos... - observou Eva. - E enquanto não esclarecermos tudo isso, não podemos ficar descansados na posse da criança.
- Tudo se há-de averiguar - prometeu o polícia. - Como medida preventiva, a senhora Marta acompanha-me a Londres... As suas responsabilidades ficariam bastante atenuadas se pudesse indicar-nos a pista de Guilherme.
- Ai, infelizmente, nada sei desse homem, senão que aparenta uns vinte oito a trinta anos, é louro, de olhos azuis, magro e alto... Parece uma pessoa muito importante...
- Um importante patife, se dermos crédito às minhas desconfianças - rematou o polícia.
Pouco depois, Jorge conduzia-o, mais à chorosa Marta, no seu carro até Epsom, onde tomariam a camioneta para Londres.
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É difícil descrever o alvoroço que estes acontecimentos produziram em casa dos Gerrells. Nick não tinha idade para compreender o que se passava à sua volta e por sua causa. O que mais o interessou foi a alegre brincadeira em que passou o resto do dia, pois nem Alice nem Anita voltaram à escola de tarde. Ana almoçara na vivenda e tivera ensejo de comer doce à sua vontade, pois Eva condescendera em encher-lhe um pouco mais o prato, atendendo aos altos serviços prestados.
Durante a refeição, Jorge contava minuciosamente as diligências a que Artur Kelly procedera, desde que saíram de manhã, visto sua mulher nada saber do que se passara.
O inspector dirigira-se, primeiro, à herdade vizinha, onde obteve dos pais de Anita licença para esta os acompanhar. Em seguida, foram buscá-la à escola e, para Alicinha não ficar pesarosa, trouxeram-na também.
Partiram imediatamente para Epsom. Entraram na Casa Sport. À vista dos sapatinhos, um empregado não hesitou em afirmar que tinham lá sido comprados. Mostraram-lhe depois Nick, perguntando se o reconhecia. O homem permaneceu um momento a observá-lo. O menino pareceu não gostar da insistência do seu olhar e deitou-lhe a língua de fora.
- Ah!... - exclamou o empregado, soltando uma risada. - Agora recordo-me perfeitamente!... Este menino vinha na companhia de uma mulher de Green Hill, que é nossa cliente há bastantes anos. Lembro-me de que era muito desinquieto. Via-me doido para lhe calçar os sapatos, que eram estes precisamente... Deitava a língua de fora, queria dar socos e pontapés. Até perguntei a essa mulher se o menino era filho dela. Que não, que era filho de uma vizinha...
- E sabe o nome dessa mulher?... - perguntou o inspector.
O empregado não estava bem certo.
- Seria Marta?...
- Exactamente... Marta, de Green Hill... Era por esta designação que a conhecíamos cá na casa... Vinha cá mais no tempo do marido, que já morreu...
- Artur Kelly não perdeu mais tempo prosseguiu Jorge. - Partimos para Green Hill. Detivemos o carro na estrada e dirigimo-nos para a aldeia, que ficava a meia milha, através de um caminho que serpeava numa colina. Aí, o inspector interpelou um camponês, perguntando-lhe se conhecia um homem que tinha uma vaca que dava pelo nome de Dourada. «Olhe, é além que ele vive !» - disse o homem apontando uma sebe a pouca distância.
Aí, Artur Kelly não teve grandes dificuldades. O proprietário da vaca, um velho bonachão
de apelido Smith, não tinha papas na língua. Contou a vida toda da sua vizinha Marta. Na verdade, sofrera muito durante uns doze anos que fora casada. Lembrava-se bem do casamento. «Fora a Mariana, a que casara com o Eduardo, a madrinha». Este pormenor não escapara, nem ao inspector nem a Jorge, que apenas trocaram um olhar de entendimento. Depois, a vida de Marta melhorara quando um sujeito de Londres lhe trouxera aquele menino para criar. O Smith apontava Nick.
- Veio ela aí algumas vezes, ou mandava a criada, a Maria, comprar leite para ele - disse o velhote. - Este patife gostava muito da Dourada. Estava convencido de que ela existia para lhe fornecer o leite, só a ele... - E o ancião acrescentou, noutro tom: - O pai da criança, ou lá quem ele era, parece que começou a lutar com dificuldades. E um dia destes veio aí buscá-lo. Eu supunha que o menino estivesse agora em Londres.
O inspector inventou uma história a justificar a presença de Nick e, despedindo-se de Smith, foi direito à casa de Marta.
A mulher já se apercebera da presença daquela gente estranha e de Nick na aldeia. Recebeu os visitantes com muita reserva. Acolheu secamente o pequeno, aliás, segundo os seus hábitos. O próprio Smith dissera:
- Ela tem uma aparência brusca, mas o seu fundo é bom.
Não negou que o pequeno tivesse estado na sua companhia e contou o mesmo que Eva ouvira da sua boca.
- E será verdade ela ignorar a verdadeira identidade do tal Guilherme ? - indagou a senhora Gerrells.
Seu marido estava convencido de que ela não mentia. O investigador tinha a mesma convicção.
- Vai ser muito difícil - disse ele - descobrir-se a família da criança, se acaso ainda tem alguns parentes próximos.
- Talvez o tal Guilherme não mentisse, dizendo a Marta que o pequeno era órfão - lembrou Eva.
- Talvez... - admitiu seu esposo. - Contudo, o mistério da proveniência de Nick intriga-me.
- E a mim assusta-me - disse a senhora Gerrells. - Tenho receio de que apareçam os verdadeiros pais e o levem.
A responsabilidade de Mariana naquele embrulhado caso parecia não ter ido além de indicar a Marta a porta dos Gerrells para deixarem o menino, certa de que eles o adoptariam, fazendo a felicidade daquele pequenino ente que não tinha culpa de andar aos baldões da sorte.
Chamada à vivenda, depois do almoço, enquanto as crianças pulavam no jardim, ela apresentou-se acompanhada do marido.
- Se eu soubesse que dava tão grande sarilho, não me tinha metido nisto... - confessou ela, limpando uma lágrima teimosa.
- Não foi por minha vontade que ela deu a sua ajuda a uma coisa destas - declarou Eduardo, torcendo na mão nervosa a barbicha ruiva. - Mas como se tratava de fazer bem a um inocente...
- E eu lembrei-me de que os senhores sofriam um grande desgosto por Deus não lhes dar um menino - acrescentou Mariana. - Algumas vezes, ouvi a senhora lamentar-se. E quando Marta me falou no pequeno, que não podia sustentar, acudiu-me logo à lembrança que aqui é que ele estava bem e disse-lho. Eu queria que ela viesse cá falar-lhe. Mas o tal senhor Guilherme é que impôs que tudo se fizesse à sucapa. Assim, os senhores não teriam hesitações em ficar com a criança, que criariam como sua.
Os caseiros retiraram-se mais aliviados. O senhor Gerrells apenas os censurou de não lhe terem falado francamente. O menino seria aceito talvez ainda com mais entusiasmo, se tudo ficasse combinado e arrumado com o tal senhor Guilherme, que era a personagem enigmática daqueles acontecimentos.
Durante o resto do dia os senhores Gerrells não fizeram senão discutir e matutar no caso. A personalidade do misterioso Guilherme é que os intrigava. Esse homem, que se dissimulava na sombra, podia de um momento para o outro aparecer a reclamar a criança, provando que tinha todos os direitos sobre ela. Quem sabe se não seria ele o pai ?...
A história que ele contara a Marta de que o menino era órfão e que ele, por dó, o tomara à sua conta, não devia passar de uma invenção para ocultar a verdade. Os pais de Nick, possivelmente, ainda seriam vivos e talvez vivessem bem desgostosos, por lhes haverem roubado o filho por qualquer questão de família ou por vingança. Eva começava a acreditar que aquelas intrigas dos romances em que gente malvada rouba crianças eram menos fantásticas do que supunha.
No dia seguinte, os jornais voltaram a ocupar-se do caso, revelando que a Scotland Yard já trilhava uma boa pista e que parte da verdade estava descoberta. Um homem que interviera no caso estava identificado e não seria para admirar que, de um momento para o outro, caísse nas mãos da polícia.
O alarme dos jornais criou uma atmosfera de apaixonado interesse em torno da vivenda dos Gerrells. Durante o dia, foram inúmeras as pessoas de Epsom e arredores que acorreram para ver a criança. Eva teve de mandar Eduardo de guarda ao portão, para não deixar entrar senão meia dúzia de pessoas de cada vez. Ela própria conservou-se sempre junto do menino, temendo alguma traição, nem sabia de quem.
As senhoras assediavam Nick com perguntas a que ele não sabia responder. Quando o maçavam de mais, vingava-se em deitar a língua de fora.
Muitas pessoas traziam bolos e rebuçados. Mas Eva delicadamente guardava todas essas prendas de comer, alegando que o menino as comeria à hora das refeições. Ela, porém, tencionava deitar tudo fora, porque se lembrou de que algumas daquelas guloseimas poderiam conter veneno para matar a criança.
Por fim, como já algumas dezenas de pessoas se aglomerassem ao portão, ela decidiu não deixar entrar mais ninguém. Que o vissem por entre as grades.
Teve de abrir, porém, excepções para os «reporters», que entraram com as suas máquinas fotográficas e os seus cadernos de notas, crivando-a de perguntas, algumas bem disparatadas, por sinal.
O menino e a sua protectora tiraram dezenas de retratos, em várias posições.
E no dia seguinte os jornais apareceram cheios de grandes reportagens em que se contava a história de Nick, muito romanceada, e se lembravam as mais disparatadas hipóteses sobre a identidade do «senhor Guilherme». A própria família Gerrells era posta em foco pelos jornalistas, aliás, de uma maneira elogiosa. Dizia-se que a senhora Gerrells estava disposta a conservar a criança consigo, mesmo que os pais aparecessem. Se estes a enjeitaram, perdiam todos os seus direitos e deviam ser condenados a severas penas, conferindo-se esses direitos às pessoas que tão carinhosamente a acolheram.
Durante dois dias, tanto Eva como seu marido aquela, em sua casa, este, no seu escritório, sofreram as torturas e os enfados da celebridade que tanta gente desejaria experimentar.
No escritório, Jorge não conhecia um momento de sossego. Os telefonemas sucediam-se quase sem interrupção. Pessoas curiosas perguntavam-lhe pormenores do caso; sociedades filantrópicas quase exigiam que aceitasse nomearem-no seu sócio honorário em sessão solene a que o homenageado deveria assistir; engraçados ociosos brincavam com ele, oferecendo-lhe meninos para criar.
As visitas sucediam-se. Senhoras da direcção de colectividades protectoras da infância vinham pedir-lhe auxílio para meninos desamparados; uma viúva apareceu com dois gémeos de colo a suplicar-lhe que tomasse um deles sob a sua protecção; agentes de companhias de seguros pretendiam, à força, que ele fizesse um seguro de vida em favor do menino...
Jorge Gerrells quase endoidecia. A meio da tarde, decidiu fugir. Meteu-se no carro e voltou para casa, cuja tranquilidade o seduzia mais do que nunca. Mas, ao voltar a curva da estrada, surpreendeu-o um magote de gente em frente ao portão. O automóvel passou a custo por entre a turba que não se queria afastar. Eduardo, auxiliado por um trabalhador da herdade, fechou em seguida a grande grade de ferro, de contrário alguns dos bisbilhoteiros teriam entrado.
Foi encontrar sua esposa no gabinete de trabalho a atender três jornalistas que pretendiam informações mais completas sobre a vida dos Gerrells, para as suas ilustrações e magazines. A aparição de Jorge foi por eles saudada com alegria. Vinha mesmo a propósito. Obrigaram-no a tirar retratos, em grupo, com a esposa, Alicinha e Nick.
- Por favor, sorria um pouco... - pedia um dos fotógrafos.
Ele não tinha vontade alguma de rir. Na sua face só se reflectia fadiga e preocupação.
Só à noite puderam sossegar um pouco.
Nick estava muito irritado. Referindo-se aos jornalistas e curiosos, ele dizia:
- Os homens maus... Os homens feios... Deitaram-se cedo, derreados, como se tivessem percorrido muitas léguas.
Depois, durante os dois dias seguintes, tudo foi voltando à tranquilidade. Os jornais já tinham arranjado outro assunto. Os curiosos perderam o entusiasmo. Clara já não praguejava contra os intrusos e Kelly não voltara a dar sinal de si.
O seu silêncio começava agora a preocupar mais os Gerrells do que a sua anterior actividade. O mistério sobre as origens do menino parecia, com esse silêncio, tornar-se mais denso.
A senhora Gerrells pressentia, nessa aparente tranquilidade, uma tenebrosa ameaça.
- Meu Deus, que estará para acontecer!...
- dizia ela na quinta-feira, à noite, perante o marido.
- Ora, não há-de acontecer mais nada replicara ele. - Creio que já sucederam bastantes coisas. Basta de maçadas!... O que quero é que nos deixem esquecidos, mais ao menino...
No fundo de sua alma havia, porém, uma inquietação. Os pressentimentos de sua esposa não lhe pareciam descabidos.
Fazia nessa noite precisamente oito dias que Nick fora colocado à porta da vivenda. Fora na quinta-feira anterior. No decurso dessa semana, quantas comoções, quantas surpresas!... Era já tempo de gozarem um pouco de repouso.
Alicinha e Nick, igualmente fatigados dos acontecimentos desses dias, já dormiam a sono solto, cada um no seu leito.
O relógio bateu nove horas. Jorge e Eva entreolharam-se. Ambos tinham tido o mesmo pensamento. Fora precisamente àquela hora que, na quinta-feira anterior, o menino chorara na soleira da porta.
Nesse momento, retiniu a campainha do telefone. O senhor Gerrells teve um gesto de enfado. Quem seria ? Talvez um engraçado a querer divertir-se à sua custa. Mas a campainha insistia, mecânica e irritantemente. Era preciso atender, de contrário nunca mais se calaria.
Jorge ergueu-se de má vontade e dirigiu-se, sem pressas, ao seu gabinete de trabalho, onde se encontrava o aparelho. Levantou o auscultador. Eva viera postar-se à entrada do aposento.
- Alo?... Ah!... Sou eu, Gerrells. Diga, meu caro inspector.
Era Artur Kelly quem telefonava.
- Você desculpe maçá-lo... É um pouco tarde... Mas trata-se de um assunto tão importante que não quis deixar de lho comunicar.
- Relaciona-se com o menino ? - indagou
Jorge.
- Sim, de uma maneira muito íntima replicou o inspector. E perguntou: - Você leu os jornais da tarde?
- Li apenas os da manhã...
- Ah, o caso veio relatado nos da tarde... Mas eu conto-lho o mais resumidamente possível.
- Kelly fez uma pausa, que encheu de impaciência o seu interlocutor. - Esta manhã, apareceu inanimado no seu leito o senhor Henrique Stone, que residia numa esplêndida moradia de West End. Deitara-se ontem à noite, de perfeita saúde. De manhã, o seu criado de quarto, quando o chamou, teve a impressão de que ele estava morto. Alarmado, telefonou ao médico. Este não se demorou e verificou que o senhor Henrique Stone tinha realmente morrido. Ora, o senhor não sabe quem é este Henrique Stone ?
- Não, nunca ouvi falar nesse nome - replicou Jorge, que ainda não percebia que espécie de ligação poderia haver entre este caso e o de Nick.
- Pois, se não sabe, contenha por mais uns momentos a sua impaciência, que na devida altura lho direi - disse Kelly. - Por enquanto basta que lhe revele que Henrique Stone é irmão de «Lady» Isabel Westlake, viúva do Lord Westlake e marquês de Nordstrom, que desapareceu precisamente há dois anos no naufrágio do seu iate de recreio, no Golfo de Biscaia. Estes pormenores não despertam alguma coisa na sua imaginação ?
- Espere!... - exclamou Gerrells. - Lembro-me agora de qualquer coisa... A viúva foi vítima de uma série de dissabores terríveis... O marquês morrera no naufrágio e pouco tempo depois, raptaram-lhe o filho...
- Exactamente!... - interrompeu Kelly. A criança foi raptada e, um mês depois, foi encontrado o seu cadáver no Tamisa... Pelo menos, a marquesa, apesar de o corpo da criança estar muito decomposto, afirmou reconhecer nele o filho, pelos cabelos e pelo tamanho. Deu-se até uma cena comovedora no momento em que ela viu o pequeno cadáver no necrotério...
- Sim... Sim, tenho bem presentes na memória todos esses casos, apesar de já terem passado dois anos - disse Jorge, - Os jornais fizeram-lhe larga referência. Depois, calaram-se.
- Calaram-se. O assunto esgotara-se - pronunciou o inspector, em cuja voz havia uma inflexão de ironia. - Pois, o senhor Henrique Stone é irmão de «Lady» Isabel Westlake. Era pessoa muito abastada, mas, dissipador sem freio, tinha há tempo a sua fortuna comprometida. Ia vivendo de expedientes. A sua moradia em West End, já despojada de quase todo o seu valioso recheio, estava hipotecada. De maneira que não houve relutância em acreditar que ele, à beira da miséria, assediado de credores por todos os lados, tivesse posto termo à vida durante esta noite.
O senhor Gerrells, um tanto enervado, inquiriu:
- Mas isso relaciona-se com Nick?
- Evidentemente. Se não se relacionasse não lho contava... É que Henrique Stone, antes de morrer, deixou escrita uma carta que lhe é endereçada e que eu tomei a liberdade de abrir e ler, antes de lha entregar.
- Dirigida a mim ?...
- Sim, ao senhor Jorge Gerrells - informou Kelly. - Estava em cima da mesa de cabeceira. Deitei-lhe a mão, quando fui a West End a fim de investigar as origens da morte desse senhor. A carta tudo explica.
- E por que razão me explicava ele tudo isso a mim, que nem sequer o conheço ?
- Porque Nick é sobrinho de Stone.
- Quê?!...-exclamou Gerrells, cheio de assombro. - Sobrinho dele?... Será possível!...
- Muito possível...
- Nesse caso, o menino é filho de «Lady» Isabel.
- Claro.
- E do marquês de Nordstrom?...
- Sim, esse menino que o senhor acolheu, como enjeitado, é o actual Lord Westlake e marquês de Nordstrom.
Durante alguns instantes, Jorge sentiu-se tão sucumbido que nem pôde articular palavra, a despeito dos esforços que fazia. Vendo-o tão perturbado, sua esposa correu para ele, a gritar:
- Jorge !... Que tens ?...
- O menino!... O menino!... - articulou ele a custo - é o marquês... de Nordstrom...
Eva deixou-se cair no «maple». Faltaram-lhe subitamente as forças. Aquela revelação vinha destruir os fagueiros sonhos que fora construindo durante aquela semana em que tanto se afeiçoara à criança. Nick estava tão altamente colocado, que se tornava inacessível à sua ternura. Já não precisava da sua protecção. Ela conhecia a dolorosa história da marquesa, que andara relatada nos jornais. Essa nobre senhora ia delirar de alegria quando soubesse que o filho, que ela supusera ter reconhecido num cadáver de criança apanhado no rio, ressuscitara para o seu carinho, para lhe suavisar a viuvez. E, para que essa senhora tão rica pudesse ser feliz, ia ela, a modesta senhora Gerrells, chorar a perda daquele a quem já considerava e amava como verdadeiro filho.
Meio entontecido, Jorge Gerrells escutava a súmula da carta de Stone.
- Foi ele quem raptou a criança, segundo confessa e assina por seu punho. É que, desaparecida ela - acrescentou Kelly -, ficaria ele, Stone, como único herdeiro da marquesa sua irmã. Esta padecia dos pulmões e os médicos davam-na como perdida. Henrique Stone fez os seus cálculos: raptou o menino e foi colocá-lo em Green Hill, onde se apresentou com o nome suposto de Guilherme. Por mero acaso, apareceu no Tamisa, poucos dias depois, o corpo de uma criança em que, a pobre marquesa julgou reconhecer o filho. Tudo parecia favorecer o raptor, que redobrou a sua vida de dissipação, na esperança de que em breve a irmã morreria, deixando-lhe uma fortuna imensa. A marquesa, porém, devido a tratamento constante, vai vivendo. Encontra-se na Suíça rodeada de especialistas, num «chalet» que mandou construir. Lutando com dificuldades cada vez maiores, Henrique resolve abandonar a criança. A sugestão de Marta de colocá-la à sua porta sedu-lo. Ele era um estróina, mas repugnara-lhe sempre um crime... Resolve então executar o plano, que surtiu bom efeito até ao ponto em que a polícia começou a levantar o véu do mistério. Então, supondo que seria descoberto e desmascarado, de um momento para o outro, decidiu desaparecer deste mundo e deixar esta carta em que se confessa culpado...
- Essas revelações deixam-me atónito... confessou Jorge, em voz sufocada.
- Outro pormenor - acrescentou Kelly. Ele confessa também ter sido o autor da carta, simulando a mãe a recomendar Nick à vossa benevolência.
- E agora que vamos fazer do menino?...
- perguntou Gerrells.
- Guardá-lo até a marquesa nos dizer quais são as suas decisões. Já lhe telegrafei, contando tudo minuciosamente.
- Pobre senhora!... - lamentou Jorge.
- E pobres de nós... - gemeu Eva, enxugando as lágrimas.
Pouco depois, o inspector despedia-se e cortava a ligação. Os Gerrells, esses, iam passar uma noite de insónia e inquietação.
A marquesa de Nordstrom
Decorreram uns quatro dias de uma tranquilidade que a senhora Gerrells considerava assustadora. A única pessoa que se sentia completamente feliz naquela casa era Nick, porque Alicinha, apesar de seus pais nada lhe dizerem das revelações do suposto senhor Guilherme, dir-se-ia pressentir alguma coisa no ar. Andava nervosa, e o mais pequeno incidente fazia-a soltar um grito de susto.
Artur Kelly tivera o cuidado de ocultar aos jornalistas a ligação que havia entre a morte de Henrique Stone e o caso de Nick. Não queria fazer declarações, sem para isso estar devidamente autorizado pela marquesa de Nordstrom. Desta forma, tomou-se o acto de Stone por um recurso desesperado a que ele lançou mão, ao ver-se completamente arruinado e cheio de dívidas, prestes a ser descoberto como raptor do sobrinho.
O inspector, sempre que Gerrells lhe perguntava, impaciente, o que havia sobre o assunto, respondia que ainda não obtivera da Suíça uma única palavra sobre o seu telegrama; aguardava uma resposta, de um momento para o outro.
Aquela expectativa enervava tanto Eva, como o marido. Clara nada sabia do que se passava e os caseiros, vendo que tinham sido perdoados, haviam recuperado a sua boa disposição e entregavam-se com entusiasmo aos seus afazeres. Nick estava perfeitamente integrado na família Gerrells. Raras vezes perguntava por Marta, que continuava detida na Scotland Yard, pois a Justiça encontrava-lhe algumas culpas e entendia que devia responder em tribunal.
O mistério que cercava a origem de Nick estava dissipado. Os Gerrells sabiam que tinham sob a sua guarda Lord Nicolau Westlake, marquês de Nordstrom. Mas por quanto tempo ? Quando lho arrebatariam ?
Esta perspectiva entristecia-os. Antes Nick fosse filho de algum casal humilde, para quem o lar de Gerrells constituísse uma felicidade, uma melhoria de situação. Assim «lord» e marquês, aquela casa era demasiado modesta para habitar e os Gerrells excessivamente plebeus para lhe servirem de pais.
Na segunda-feira, à tarde, o menino dormia a sua sesta, Jorge estava no seu escritório em Londres, Clara cantarolava a meia voz na cozinha e a senhora Gerrells isolara-se no gabinete de trabalho de seu marido e, sentada numa cadeirinha baixa, bordava um lindo babete para Nick. De súbito, um claxon», soou repetidas vezes ao portão. Ela, espreitando por um canto da cortina, viu na estrada um automóvel preto.
Mariana correra a abrir o portão. O automóvel, numa curva hábil, penetrou na herdade. Era uma soberba «limousine» de boa marca, que veio deter-se junto da escadaria, onde a senhora Gerrells acorrera, tomada de um negro pressentimento que quase a sufocava. Vinham buscar o menino, com certeza.
Viu Kelly saltar lestamente, cumprimentando-a com um sorriso, e um homem baixo, franzino, bem vestido, abrir a portinhola e auxiliar uma dama a sair.
Num relance, Eva viu que era uma senhora, alta, nova ainda, uns vinte e tantos anos, olhos claros, face pálida e correcta, vestida de preto com sóbria elegância. Parecia muito fatigada, subiu pelo braço do desconhecido e de Kelly uns dois degraus e deteve-se, com um suspiro. Olhou para a senhora Gerrells e sorriu-lhe docemente. Tornou a suspirar e pronunciou em voz débil, mas clara:
- Suponho que estou vendo a minha benfeitora, não é verdade?...
- Oh, minha senhora - protestou Eva, descendo ao seu encontro-, eu sou uma pobre mulher e nada mais...
Quis prosseguir, mas as lágrimas não a deixaram. A dama, então, abraçou-a, dizendo docemente:
- Pobre mulher sou eu... Sou Isabel Westlake, a infeliz mãe de Nick...
Permaneceram uns momentos abraçadas, muito comovidas, a chorar. Até que o sujeito franzino, que era o doutor Walter, célebre médico suiço de doenças pulmonares, interveio aconselhando:
- Convém evitar essas comoções... É preciso ter em conta a fadiga da viagem...
Separando-se da marquesa, Eva convidou os visitantes a entrar e conduziu-os para o gabinete de trabalho de seu marido, que era o aposento mais luxuoso que possuía.
Depois de todos acomodados e para romper um embaraçoso silêncio, Eva pronunciou, ainda numa voz muito alterada pelo seu profundo desgosto:
- Já sei que vem buscar o seu filho... O marquês... Ele está a dormir...
«Lady» Isabel sorriu, fixou-a por um momento. Seus olhos febris pareciam sondar a sua interlocutora.
- Teria um grande desgosto se o levasse comigo?... - indagou ela, brandamente.
- Oh, minha senhora!... - exclamou Eva. E não pôde continuar, porque os soluços embargaram-lhe a voz.
- Sossegue, senhora Gerrells - pediu a marquesa.- Eu venho somente ver o meu filho, visitá-lo... - E depois de descansar numa longa pausa, acrescentou: - Infelizmente, não o posso ter junto de mim. A minha doença poderia transmitir-se-lhe e seria um crime. Sei, por informações do senhor Kelly, que o meu Nick, que tem apenas dois anos e meio, está muito forte e saudável. Herdou a vitalidade do pai, que era extraordinária...
Deteve-se a enxugar uma lágrima. O médico aproveitou a pausa para declarar:
- A senhora marquesa está muito doente, mas se seguir o tratamento à risca, salva-se.
Ela esboçou um sorriso céptico.
- Agradeço-lhe, doutor, as suas palavras misericordiosas. Mas eu sei perfeitamente como me sinto.
- Quer que vá buscar Nick, minha senhora ? - perguntou Eva.
- É melhor descansar mais um pouco recomendou o doutor Walter.
Nesse momento, a porta do aposento abriu-se e Nick irrompeu numa corrida. Mas vendo pessoas estranhas deteve-se, a encará-las muito carrancudo.
- Meu filho!... - bradou Isabel, erguendo-se e colhendo-o nos braços, com tanto ímpeto, que o pequeno nem teve tempo de escapar-se.
Deixava-se abraçar e acariciar, observando com estranheza aquela linda dama e lançando a Eva olhares inquiridores.
Todos se sentiam profundamente chocados perante aquela cena. O médico, inexorável, lembrou:
- Senhora marquesa, é conveniente não beijar muito a criança.
Isabel pousou-o no chão e deixou-se cair no «maple», a arquejar, enquanto o menino corria a refugiar-se nos braços de Eva e a perguntar, em voz baixa:
- Quem é aquela ?
- É a tua mamã, meu querido...
- Não!... - protestou o garoto. - Tu é que és mamã...
A senhora Gerrells explicou, como que a desculpar-se:
- Já o tínhamos ensinado a tratar-me por mãe, meu marido, por pai, e minha filha Alice,
por mana...
- E são a sua verdadeira família, pela generosidade com que o receberam...
- Tencionávamos adoptá-lo... - revelou a senhora Gerrells, timidamente.
- Eu sei. O senhor Kelly contou-me tudo. Nunca poderei pagar-lhes o favor que lhes devo. A minha vida é demasiado curta, não tenho tempo de manifestar-lhes plenamente a minha gratidão.
- É preciso criar ideias optimistas. Representam meia cura - sentenciou o médico.
A marquesa teve um sorriso resignado. Depois, mais grave, pronunciou:
- Minha senhora, venho pedir-lhe o favor de me deixarem permanecer por três dias junto de meu filho. Depois terei de voltar para a Suíça. O meu médico assistente não me dá uma licença mais larga...
- Oh, senhora marquesa!... Seria para nós uma honra se, em vez de três dias, quisesse estar três meses ou mais!... - exclamou Eva, que recuperava a sua alegria ao perceber que não lhe arrebatariam Nick.
Aqueles três dias de permanente contacto com a marquesa foram deliciosos para os Gerrells, que nunca mais os esqueceriam enquanto vivessem.
Jorge não foi a Londres nesse interregno, limitando-se a resolver pelo telefone os problemas mais urgentes. Alicinha gozou umas curtas férias, que lhe souberam a pouco.
Como o tempo estava magnífico, todas as tardes Eva mandava instalar no jardim uma cómoda cadeira de viagem, onde Isabel, por ordem do médico, fazia um repouso de uma hora, vendo distraidamente Nick e Alice a brincar.
O menino perdera rapidamente a sua estranheza e conversava com a mãe, que evitava beijá-lo. Mas o seu olhar era tão caricioso que parecia um longo e terno ósculo.
O senhor Gerrells e o doutor Walter fizeram em automóvel alguns curtos passeios pelas imediações e regressavam à herdade a toda a pressa, pois o médico não queria estar muito tempo longe da enferma.
Esta e a senhora Gerrells entendiam-se como duas irmãs. Dir-se-ia conhecerem-se de longa data. Unia-as uma fraternal amizade, feita de pequenas gentilezas de uma para com a outra. Conversavam longamente, à boa paz. A marquesa insistia em afirmar que era uma condenada à morte, mas que agradecia a Deus o permitir-lhe tornar a ver o filho como que numa prodigiosa ressurreição e saber que ele ficava tão bem entregue aos Gerrells como aos próprios pais.
Artur Kelly telefonou uma vez, dando conta da sua tarefa. Marta fora levada à presença do cadáver de Henrique Stone e logo reconhecera nele o senhor Guilherme». As informações que dera aos jornais tinham sido muito escassas. Limitara-se a dizer que Stone se matara por dívidas e que Nicolau Wastlake, que se supunha morto ou desaparecido, reaparecera e fora entregue aos cuidados de sua mãe. Nem sequer mencionara que a marquesa de Nordstrom chegara da Suíça em avião e estava em casa dos Gerrells.
A imprensa limitou-se, por isso, a umas locais lacónicas, e outros acontecimentos passaram a prender a atenção dos jornalistas e do público.
Durante os passeios que dera com Jorge, o doutor Walter confidenciara-lhe que Isabel tinha uma probabilidade contra noventa e nove de se salvar. A Ciência estava diligenciando prolongar-lhe a vida, e nada mais. As últimas comoções e a viagem tinham-na abalado um pouco, aliás, não tanto como ele esperava, o que lhe parecia um bom sintoma.
Esta revelação que Gerrells transmitiu a sua esposa era a única nuvem que ensombrava o horizonte de felicidade em que viveram durante aqueles três dias, felicidade que Nick enriquecera com as suas risadas, as suas traquinices e a sua alegria exuberante, a que, por vezes, se associava Anita, a quem a marquesa presenteara com um par de brincos que valiam duas mil libras.
Aos Gerrells não se atreveu ela a fazer qualquer oferta, sabendo que os melindraria profundamente no seu desinteresse.
A hora da despedida foi particularmente dolorosa, apesar de o médico ter fortalecido a doente com algumas injecções.
- Nunca mais verei o meu filho, nem os seus protectores... Olhem por ele... - foram as suas últimas palavras.
Nesse mesmo dia, um avião fretado especialmente foi depor a marquesa e o médico na Suíça, sem o menor contratempo, segundo o telegrama que os Gerrells receberam à noite.
Menos de um mês depois do seu regresso à Suíça, a marquesa de Nordstrom falecia. Nick era o seu universal herdeiro, visto não haver mais família.
A marquesa, porém, tivera o cuidado de, no seu testamento, deixar bem expressas as suas últimas vontades. Instituía os Gerrells tutores e administradores dos imensos bens do marquês de Nordstrom, compensando-os com honorários de muitos milhares de libras. Clara recebeu um legado de dez mil libras, mas não quis abandonar o serviço de seus amos.
O inspector Kelly foi contemplado com cinquenta mil libras.
Os Gerrells sentiram-se, de começo, um pouco atrapalhados com a nova situação que o seu pupilo lhes criara. Tiveram de ir viver para o palácio do pequeno marquês, em West End. Mas tiveram a habilidade de não alterar os seus hábitos simples, embora cercassem o menino da sumptuosidade que o seu título requeria. Os fins de semana e as férias escolares eram gozados quase sempre na vivenda de Epsom Hill.
Jorge resolveu aplicar a maior parte dos seus honorários, que eram fabulosos, na manutenção de um internato para dez meninos enjeitados, ao qual pôs o nome de Isabel Westlake.
Nick, apesar dos seus títulos nobiliárquicos de «lord» e marquês, continuou a ser muito traquina, embora pouco a pouco a senhora Gerrells lhe fosse corrigindo as feias maneiras que aprendera com a tia Marta». Tinha, no entanto, um óptimo coração e momentos de grande ternura para os Gerrells, que tratava por papá e mamã, e para Alicinha, que era a sua «mana querida».
J. W. Powell
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