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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MEU PAÍS INVENTADO Isabel Allende
O MEU PAÍS INVENTADO Isabel Allende

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MEU PAÍS INVENTADO

 

                 Umas palavras para começar

Nasci no meio da fumaça e da mortandade da Segunda Guerra Mundial e a maior parte da minha juventude transcorreu na expectativa de ver o planeta voar em pedaços quando alguém premisse distraidamente um botão e fossem disparadas as bombas atómicas. Ninguém esperava ter uma vida muito longa; devorávamos angustiadamente cada momento antes que o apocalipse nos surpreendesse; não havia tempo para examinar o próprio umbigo e tomar notas, como se faz agora. Ainda por cima cresci em Santiago do Chile, onde qualquer tendência natural para a autocontemplação é cortada pela raiz. A máxima que define o estilo de vida dessa cidade é: «Camarão que dorme, vai na corrente». Noutras culturas mais sofisticadas, como as de Buenos Aires ou de Nova Iorque, a visita ao psicólogo era uma actividade normal; abster-se era considerado uma evidente falta de cultura ou rusticidade mental. Mas no Chile só os loucos perigosos o faziam, e metidos numa camisa-de-forças; mas, nos anos setenta, com a chegada da revolução sexual isso mudou. Talvez exista uma ligação... Na minha família nunca ninguém recorreu à terapia, apesar de alguns de nós sermos casos de estudo clássicos, porque a ideia de confiar assuntos íntimos a um desconhecido, a quem ainda por cima se pagava para ouvir, era absurda. Para isso serviam os padres e as tias. Estou pouco preparada para a reflexão, mas nas últimas semanas dei comigo a reflectir sobre o meu passado com tal frequência que só pode explicar-se como um sinal de senilidade prematura.

Dois acontecimentos recentes desencadearam esta epidemia de recordações. O primeiro foi uma observação ocasional do meu neto Alejandro, o qual me surpreendeu a esquadrinhar diante do espelho o mapa das minhas rugas e disse, compassivo: «Não te preocupes, velha, vais viver pelo menos mais três anos». Decidi nesse momento que tinha chegado a hora de olhar a minha vida de modo diferente, para averiguar como desejo conduzir esses três anos que tão generosamente me foram concedidos. O outro acontecimento foi a pergunta de um desconhecido durante uma conferência de escritores de viagens, que me coube inaugurar. Devo esclarecer que não pertenço a esse estranho grupo de pessoas que viaja para lugares remotos, sobrevive às bactérias e publica livros para convencer os incautos a seguirem os seus passos. Viajar é um esforço excessivo, e mais ainda a lugares onde não haja serviço de quartos. As minhas férias ideais são as passadas debaixo de um guarda-sol no meu terraço, lendo livros sobre aventurosas viagens que nunca faria, a menos que fosse para fugir de algo. Venho do chamado Terceiro Mundo (qual é o segundo?) e tive de arranjar um marido para viver legalmente no primeiro; não tenho a mínima intenção de regressar ao subdesenvolvimento sem uma boa razão. Contudo, e muito a contragosto, deambulei por cinco continentes e ainda por cima coube-me ser auto-exilada e imigrante. Sei alguma coisa de viagens e por isso me pediram que falasse naquela conferência. Quando terminei o meu breve discurso, levantou-se um braço no meio do público e um jovem perguntou-me qual o papel da nostalgia nos meus romances. Fiquei momentaneamente sem palavras. Nostalgia... segundo o dicionário é «a dor de estar ausente da pátria, a melancolia provocada pela recordação de uma felicidade perdida». A pergunta cortou-me a respiração, porque até esse instante não me tinha dado conta de que escrevo como um exercício constante de saudade. Fui estrangeira durante quase toda a minha vida, condição que aceito porque não tenho alternativa. Várias vezes me vi forçada a partir, rompendo laços e deixando tudo para trás, para começar de novo noutro lugar; fui peregrina por mais caminhos do que os que a memória me consente. De tanto me despedir secaram-se-me as raízes e tive de gerar outras que, à falta de um lugar geográfico onde se fixarem, o fizeram na memória; mas, cuidado!, a memória é um labirinto onde espreitam minotauros.

Se até há pouco tempo me tivessem perguntado de onde sou, teria respondido, sem pensar muito, que não sou de sítio nenhum, ou latino-americana, ou talvez chilena de coração. Hoje, porém, digo que sou americana, não só porque assim o testemunha o meu passaporte, ou porque essa palavra inclui a América de norte a sul, ou porque o meu marido, o meu filho, os meus netos, a maioria dos meus amigos, os meus livros e a minha casa estão no Norte da Califórnia, mas também porque ainda não há muito um atentado terrorista destruiu as torres gémeas do World Trade Center e a partir desse momento algumas coisas mudaram. Não se pode permanecer neutral numa crise. Esta tragédia confrontou-me com o meu sentido de identidade; descubro que hoje sou mais uma dentro da variegada população norte-americana, tanto como antes fui chilena. Já não me sinto uma estranha nos Estados Unidos. Ao ver o colapso das torres, tive a sensação de haver vivido esse pesadelo de forma quase idêntica. Por uma arrepiante coincidência - karma histórico - os aviões sequestrados nos Estados Unidos despedaçaram-se contra os seus objectivos numa terça-feira, 11 de Setembro, exactamente o mesmo dia da semana e do mês - e quase à mesma hora da manhã - em que ocorreu o golpe militar do Chile, em 1973. Este último foi um acto terrorista orquestrado pela CIA contra uma democracia. As imagens dos edifícios a arder, do fumo, as chamas e o pânico, são semelhantes em ambos os cenários. Nessa longínqua terça-feira de 1973 a minha vida despedaçou-se, nada voltou a ser como antes, perdi o meu país. A terça-feira fatídica de 2001 foi também um momento decisivo, nada voltará a ser como antes e eu ganhei um país.

Essas duas perguntas, a do meu neto e a do desconhecido na conferência, deram origem a este livro, que ainda não sei para onde irá; por enquanto divago, como sempre divagam as recordações, mas peço ao leitor que me acompanhe mais um pouco.

Escrevo estas páginas num socalco incrustado numa colina escarpada, vigiada por uma centena de carvalhos retorcidos, contemplando a baía de São Francisco, mas eu venho de outro lado. A nostalgia é o meu vício. A nostalgia é um sentimento melancólico e um pouco piegas, como a ternura; é quase impossível abordar o tema sem cair no sentimentalismo, mas vou tentá-lo. Se resvalar e cair na pieguice, tenha o leitor a certeza de que me porei de pé umas linhas mais à frente. Na minha idade - sou tão antiga como a penicilina sintética - começamos a recordar coisas que estiveram enterradas durante meio século. Não pensei na minha infância nem na minha adolescência durante décadas; na realidade nem sequer me importavam aqueles períodos do passado remoto em que ao ver os álbuns de fotografias da minha mãe não reconhecia ninguém, excepto uma cadela buldogue com o nome improvável de Pelvina López-Pun, e a única razão pela qual me ficou gravada é porque nos parecíamos de forma notável. Existe uma fotografia de ambas, quando eu tinha poucos meses de idade, na qual a minha mãe teve de indicar com uma seta quem era quem. Certamente que a minha pouca memória se deve a que esses tempos não foram particularmente ditosos, mas suponho que acontece o mesmo com a maior parte dos mortais. A infância feliz é um mito; para o compreender basta lançar um olhar aos contos infantis, nos quais o lobo come a avozinha, e logo vem um lenhador que abre o pobre animal de cima a baixo com o seu machado, tira a velha viva e inteira, volta a encher a barriga com pedras e em seguida cose a pele com linha e agulha, provocando uma tal sede no lobo que este desata a correr para ir beber água no rio, onde se afoga com o peso das pedras. Por que não o eliminou de maneira mais simples e humana?, interrogo-me. Seguramente porque nada é simples nem humano na infância. Nesses tempos não existia o termo «abuso infantil», supunha-se que a melhor forma de criar meninos era com o chicote numa mão e a cruz na outra, tal como se dava por adquirido o direito do homem a abanar a sua mulher se a sopa chegasse fria à mesa. Antes de os psicólogos e as autoridades intervirem no assunto, ninguém duvidava dos efeitos benéficos de uma boa sova. Não me batiam como aos meus irmãos, mas também eu vivia com medo, como todas as outras crianças à minha volta.

No meu caso, a infelicidade natural da infância era agravada por uma quantidade de complexos tão emaranhados que já nem sequer consigo enumerá-los, mas que felizmente não me deixaram feridas que o tempo não curasse. Uma vez ouvi dizer a uma famosa escritora afro-americana que desde criança se tinha sentido uma estranha na sua família e na sua terra; acrescentou que é o que sentem quase todos os escritores, mesmo que nunca saiam da sua cidade natal. É uma condição inerente a este trabalho, garantiu; sem o desassossego de se sentir diferente não haveria necessidade de escrever. A escrita, ao fim e ao cabo, é uma tentativa de compreender as circunstâncias próprias e clarificar a confusão da existência, inquietudes que não atormentam as pessoas normais, só os inconformistas crónicos, muitos dos quais acabam convertidos em escritores depois de terem fracassado noutros oficios. Esta teoria tirou-me um peso de cima: não sou um monstro, há outros como eu.

Nunca vesti em parte alguma, nem na família, a classe social ou a religião que me tocaram em sorte; não pertenci aos bandos que andavam de bicicleta pela rua; os primos não me incluíam nas suas brincadeiras; era a rapariguinha menos popular do colégio e depois fui durante muito tempo a que menos dançava nas festas, mais por ser tímida do que por ser feia, prefiro supor. Fechava-me na capa do orgulho, fingindo que não me importava, mas teria vendido a alma ao diabo para ser do grupo, se por acaso Satanás se tivesse apresentado com uma proposta tão atractiva. A raiz do meu problema foi sempre a mesma: incapacidade de aceitar o que a outros parece natural e uma tendência irresistível para emitir opiniões que ninguém deseja ouvir, o que afugentou alguns potenciais pretendentes. (Não quero ser convencida, nunca foram muitos.) Mais tarde, durante os meus anos de jornalista, a curiosidade e o atrevimento tiveram algumas vantagens. Pela primeira vez fiz então parte de uma comunidade, tinha carta de alforria para fazer perguntas indiscretas e divulgar as minhas ideias, mas isso acabou bruscamente com o golpe militar de 1973, que desencadeou forças incontroláveis. Da noite para o dia vi-me estrangeira na minha própria terra, até que finalmente tive de partir, porque não podia viver e criar os meus filhos num país onde imperava o medo e onde não havia lugar para dissidentes como eu. Nesse tempo a curiosidade e o atrevimento estavam proibidos por decreto. Fora do Chile esperei durante anos que se reinstalasse a democracia para regressar, mas quando isso aconteceu não o fiz, porque estava casada com um norte-americano, a viver perto de São Francisco. Não voltei a residir no Chile, onde na verdade passei menos de metade da minha vida, embora o visite com frequência; mas para responder à pergunta daquele desconhecido sobre a nostalgia, devo limitar-me quase exclusivamente aos anos que lá vivi. E para o fazer devo ter como referência a minha família, porque pátria e tribo confundem-se na minha cabeça.

 

                 País de essências longitudinais

Comecemos pelo princípio, pelo Chile, essa terra remota que poucos conseguem situar no mapa porque é o mais longe que se pode ir sem cair do planeta. «Porque não vendemos o Chile e compramos algo mais perto de Paris...?», perguntava um dos nossos escritores. Ninguém passa casualmente por aqueles lados, por mais perdido que ande, mas muitos visitantes decidem ficar para sempre, apaixonados pela terra e pelas gentes. É o fim de todos os caminhos, uma lança no sul do Sul da América, quatro mil e trezentos quilómetros de montes, vales, lagos e mar. Assim a descreve Neruda na sua ardente poesia:

Noite, neve e areia fazem a forma da minha fina pátria, há todo o silêncio na sua longa linha, toda a espuma sai da sua barba marinha, todo o carvão a enche de misteriosos beijos.

Este esbelto território é como uma ilha, separada do resto do continente a norte pelo deserto de Atacama, o mais seco do mundo, como gostam de dizer os seus habitantes, mas isso deve ser falso, porque na Primavera uma parte desse cascalho lunar costuma cobrir-se com um manto de flores, qual prodigiosa pintura de Monet; a leste pela cordilheira dos Andes, formidável maciço de pedra e neves eternas; a oeste pelas abruptas costas do oceano Pacífico; em baixo pela solitária Antártida. Este país de topografia dramática e climas diversos, salpicado de caprichosos obstáculos e sacudido pelos suspiros de centenas de vulcões, que existe como um milagre geológico entre as alturas da cordilheira e as profundezas do mar, está unido de ponta a ponta pelo obstinado sentimento de nação dos seus habitantes.

Os Chilenos continuamos ligados à terra, como os camponeses que antes fomos. A maioria de nós sonha ter um pedaço de terra, nem que seja para plantar meia dúzia de alfaces. O diário mais importante, El Mercurio, publica um suplemento semanal de agricultura que informa a população em geral sobre o último bicho insignificante que apareceu nas batatas, ou a produção de leite que se obtém com determinada forragem. Os leitores, que vivem no meio do asfalto e do cimento, lêem-no apaixonadamente, mesmo que nunca tenham visto uma vaca viva.

Em traços gerais pode dizer-se que quatro climas muito diferentes existem ao longo deste meu espigado Chile. O país está dividido em províncias de nomes formosos, aos quais os militares, que possivelmente tinham alguma dificuldade em memorizá-los, acrescentaram um número. Recuso-me a usá-los, porque não é possível que uma nação de poetas tenha o mapa salpicado de números, como um delírio aritmético. Falemos das quatro grandes regiões, começando pelo grande norte, inóspito e rude, vigiado por altas montanhas, que ocupa uma quarta parte do território e esconde nas suas entranhas um tesouro inesgotável de minerais.

Fui ao norte na minha infância e não o esqueci, apesar de entretanto ter decorrido meio século. Mais tarde na vida tive de atravessar um par de vezes o deserto de Atacama e, mesmo que a experiência seja sempre extraordinária, as recordações mais persistentes são as dessa primeira vez. Na minha memória, Antofagasta, que em língua quechua quer dizer «povo da salina grande», não é a cidade moderna de hoje, mas um porto antiquado e pobre, com cheiro a iodo, salpicado de botes pesqueiros, gaivotas e pelicanos. Antofagasta surgiu no século xix como uma miragem no deserto, graças à indústria do salitre, que foi um dos principais produtos de exportação do país durante várias décadas. Mais tarde, quando se inventou o nitrato sintético, o porto não perdeu a sua importância, porque agora exporta cobre, mas as companhias salitreiras foram fechando uma a uma e a pampa ficou semeada de povoados fantasmas. Estas duas palavras, «povoado fantasma», deram asas à minha imaginação naquela primeira viagem.

Recordo-me que a minha família e eu subimos, afogados debaixo de tantas malas, para um comboio que andava a passo de caracol pelo inclemente deserto de Atacama até à Bolívia. Sol, pedras calcinadas, quilómetros e quilómetros de uma solidão espectral, de vez em quando um cemitério abandonado, uns edificios de adobe ou madeira em ruínas. Nem as moscas sobreviviam àquele calor seco. A sede era inextinguível; bebíamos litros de água, chupávamos laranjas e defendíamo-nos da poeira, que se introduzia por cada resquício, a muito custo. Os nossos lábios gretavam até sangrar, doíam-nos os ouvidos, estávamos desidratados. À noite caía um frio duro como cristal, enquanto a lua iluminava a paisagem com um resplendor azul. Muitos anos mais tarde visitei Chuquicamata, a maior mina de cobre a céu aberto do mundo, um imenso anfiteatro onde milhares de homens da cor da terra, como formigas, arrancam o minério das pedras.

O comboio subiu a mais de quatro mil metros e a temperatura desceu até ao ponto em que a água gelava nos copos. Passámos pela salina de Uyuni, um branco mar onde reina um silêncio puro e onde não voam pássaros, e por outras salinas onde vimos elegantes flamingos. Pareciam pinceladas de cor entre os cristais formados no sal, como pedras preciosas.

O chamado pequeno norte, que alguns não consideram propriamente uma região, divide o norte seco da fértil zona central. É lá que se situa o vale de Elqui, um dos centros espirituais da Terra que, segundo dizem, é mágico. As forças misteriosas de Elqui atraem peregrinos que acorrem para se ligarem à energia cósmica do universo e muitos deles ficam a viver em comunidades esotéricas. Meditação, religiões orientais, gurus de pelagens diversas, há de tudo em Elqui; é como um recanto da Califórnia. Ali também se faz o nosso pisco, um licor de uva moscatel, translúcido, virtuoso e sereno como a força angélica que emana dessa terra. É a matéria-prima do pisco sour, a nossa doce e traiçoeira bebida nacional, que se toma com confiança, mas que ao segundo copo dá um coice capaz de derrubar o mais valente. O nome deste licor usurpámo-lo sem contemplações à cidade de Pisco, no Peru. Se a qualquer vinho com borbulhas costuma chamar-se champanhe, embora o autêntico só seja o de Champagne, em França, suponho que também o nosso pisco se pode apropriar de um nome alheio. No pequeno norte foi construída La Silla, um dos observatórios astronómicos mais importantes do mundo, porque o ar é tão límpido que nenhuma estrela - nem morta nem por nascer - escapa ao olho do gigantesco telescópio. A propósito disto, contou-me alguém que ali trabalhou durante três décadas que os mais célebres astrónomos do mundo esperam durante anos a sua vez para esquadrinhar o universo. Comentei que devia ser estupendo trabalhar com cientistas que têm os olhos sempre postos no infinito e vivem desapegados das misérias terrenas; mas informou-me que é exactamente o contrário: os astrónomos são tão mesquinhos como os poetas. Disse que brigam pela marmelada do pequeno-almoço. A condição humana é surpreendente.

O vale central é a zona mais próspera do país, terra de vinha e de maçãs, onde se aglomeram as indústrias e um terço da população, que vive na capital. Santiago foi fundada neste local por Pedro de Valdivia em 1541, porque depois de marchar durante meses pelas securas do norte, lhe pareceu ter alcançado o jardim do Éden. No Chile tudo está centralizado na capital, apesar dos esforços dos diversos governos que durante meio século procuraram dar poder às províncias. Parece que o que não acontece em Santiago carece de importância, ainda que a vida no resto do país seja muitíssimo mais agradável e tranquila.

A zona sul começa em Puerto Montt, a quarenta graus de latitude sul, uma região encantada de bosques, lagos, rios e vulcões. Chuva e mais chuva alimenta a emaranhada vegetação da selva fria, onde crescem as nossas árvores nativas milenares, hoje ameaçadas pela indústria madeireira. A caminho do sul, o viajante percorre pampas varridas por ventos inclementes, até que o país se desfia num rosário de ilhas despovoadas e brumas leitosas, um labirinto de fiordes, ilhotas, canais, água por todos os lados. A última cidade continental é Punta Arenas, mordida por todos os ventos, áspera e orgulhosa, de cara virada aos páramos e nevadas.

O Chile possui uma parte do ignoto continente antárctico, um mundo de gelo e solidão, de brancura infinita, onde nascem as fábulas e perecem os homens; plantámos a nossa bandeira no pólo sul. Durante muito tempo ninguém deu valor à Antárctica, mas agora sabemos quantas riquezas minerais esconde, além de ser um paraíso de fauna marinha, pelo que não há país que não a tenha cobiçado. Um cruzeiro permite visitá-la com relativa comodidade no Verão, mas é caro e por enquanto a viagem só é feita por turistas ricos e ecologistas pobres, mas determinados.

Em 1888 anexámos a misteriosa Ilha da Páscoa, «o umbigo do mundo», ou Rapanui, como se chama no idioma pascuense. Está perdida na imensidade do oceano Pacífico, a duas mil e quinhentas milhas do Chile continental, mais ou menos a seis horas de avião de Valparaíso ou Taiti. Não sei bem porque nos pertence. Naquele tempo bastava que o comandante de um navio plantasse uma bandeira para se apoderar legalmente de uma talhada do planeta, mesmo que os seus habitantes, neste caso de pacífica raça polinésica, não estivessem de acordo. Era assim que faziam as nações europeias; o Chile não podia ficar atrás. Para os Pascuenses, o contacto com a América do Sul foi fatal. Em meados do século xix a maior parte da população masculina foi levada para trabalho escravo nas guaneiras do Peru, enquanto o Chile encolhia os ombros perante a sorte daqueles cidadãos esquecidos. Foram tais os maus-tratos recebidos por essa pobre gente, que na Europa se levantou um movimento internacional de protesto e, depois de uma longa luta diplomática, os últimos quinze sobreviventes foram devolvidos às suas famílias. Iam infectados de varíola e em pouco tempo a doença exterminou oitenta por cento dos Pascuenses que permaneciam na ilha. O destino dos restantes não foi muito melhor. Os rebanhos de ovelhas comeram a vegetação, transformando o terreno num árido cascalho de lava, e a inércia das autoridades - neste caso, a marinha chilena lançou os habitantes na miséria. Nas duas últimas décadas o turismo e o interesse do mundo científico resgataram Rapanui.

Disseminadas pela ilha, há monumentais estátuas de pedra vulcânica, algumas com mais de vinte toneladas de peso. Estes moais intrigaram durante séculos os especialistas. Talhá-los nas encostas dos vulcões e arrastá-los depois por um terreno irregular, erguê-los numa plataforma quase sempre inacessível e pôr-lhes em cima um chapéu de pedra vermelha, foi obra de titãs. Como o fizeram? Não há rastos de uma civilização avançada que expliquem semelhante proeza. A ilha foi povoada por duas raças diferentes e, segundo a lenda, uma delas, os Arikis, tinha poderes mentais superiores, mediante os quais fazia levitar os moais e os transferia flutuando sem esforço físico até aos seus íngremes altares. É uma pena que essa técnica se tenha perdido. Em 1940, o antropólogo norueguês Thor Heyerdahl fabricou uma jangada, chamada Kon Tiki, na qual navegou desde a América do Sul até à Ilha da Páscoa, a fim de provar que existiu contacto entre os Incas e os Pascuenses.

Fui à Ilha da Páscoa no Verão de 1974, quando só havia um voo semanal e o turismo quase não existia. Apaixonada pelo sítio, fiquei três semanas a mais do que o planeado e assim coincidi com a estreia da televisão e uma visita do general Pinochet, que encabeçava ajunta militar que derrubara a democracia uns meses antes. A televisão foi recebida com mais entusiasmo do que o flamante ditador. A estadia do general foi deveras pitoresca, mas não é esta a oportunidade para entrar em pormenores. Basta dizer que uma nuvem travessa se colocava estrategicamente por cima da sua cabeça sempre que ele quis falar em público, empapando-o como um esfregão. Levava o propósito de entregar títulos de propriedade aos Pascuenses, mas ninguém mostrou um interesse especial em recebê-los, já que desde tempos muito antigos cada um sabia o que pertencia a quem e receavam, com razão, que aquele papelito do governo só viesse complicar-lhes a existência.

O Chile também possui a ilha de Juan Fernández, onde em 1704 foi abandonado o marinheiro escocês Alexander Selkirk, o qual inspirou o romance de Daniel Defoe, Robison Crusoe. Selkirk viveu na ilha mais de quatro anos, sem um papagaio amestrado e sem a companhia de um nativo chamado Sexta-Feira, como no livro, até ser resgatado por outro capitão que o levou de regresso a Inglaterra, onde o seu destino também não foi muito melhor. O turista teimoso, depois de um agitado voo em avioneta ou de uma interminável travessia de barco, pode visitar a caverna onde o escocês sobreviveu alimentando-se de ervas e de peixe.

A lonjura dá-nos, a nós, Chilenos, uma mentalidade insular e a portentosa beleza da terra envaidece-nos. Julgamo-nos o centro do mundo - consideramos que Greenwich deveria estar em Santiago - e viramos as costas à América Latina, comparando-nos sempre com a Europa. Somos auto-referentes, o resto do universo só existe para consumir os nossos vinhos e produzir equipas de futebol às quais possamos ganhar.

O conselho que dou ao visitante é que não ponha em dúvida as maravilhas que ouvir sobre o país, sobre o seu vinho e as suas mulheres, porque ao estrangeiro não se lhe permite criticar; para isso há mais de quinze milhões de nativos que não param de o fazer. Se Marco Polo tivesse desembarcado nas nossas costas depois de trinta anos de aventuras pela Ásia, a primeira coisa que lhe teriam dito é que as nossas empanadas são muito mais saborosas do que toda a cozinha do Celeste Império. (Ah! Esta é outra característica bem nossa: opinamos sem fundamento, mas com tal convicção, que ninguém o põe em dúvida.) Confesso que também sofro deste terrível chauvinismo. A primeira vez que visitei São Francisco e tive diante dos olhos os suaves cerros dourados, a majestade dos bosques e o espelho verde da baía, o meu único comentário foi que se parecia com a costa chilena. Depois comprovei que a fruta mais doce, os vinhos mais delicados e o peixe mais fino são importados do Chile, naturalmente.

Para olhar o meu país com o coração é preciso ler Pablo Neruda, o poeta nacional que imortalizou nos seus versos as soberbas paisagens, os aromas e as alvoradas, a chuva teimosa e a pobreza digna, o estoicismo e a hospitalidade. É esse o país das minhas nostalgias, o que invoco nas minhas solidões, o que aparece como pano de fundo em tantas das minhas histórias, o que me aparece em sonhos. Há outras caras do Chile, como é evidente: uma materialista e arrogante, cara de tigre, que vive a contar as rugas e a pentear o bigode; outra deprimida, cruzada pelas brutais cicatrizes do passado; uma que se apresenta sorridente a turistas e banqueiros; aquela que espera resignada o próximo cataclismo geológico ou político. O Chile dá para tudo.

 

                   Doce de leite, realejos e ciganas

A minha família é de Santiago, mas isso não explica todos os meus traumas: há lugares piores debaixo do Sol. Ali me criei, mas agora mal a reconheço e perco-me nas ruas. A capital foi fundada por soldados a golpes de espada e picareta, com o traçado clássico das cidades espanholas de antanho: uma praça de armas ao centro, de onde saíam ruas paralelas e perpendiculares. Disso só resta a lembrança. Santiago espalhou-se como um polvo demente, estendendo os seus tentáculos ansiosos em todas as direcções; hoje alberga cinco milhões e meio de pessoas que sobrevivem o melhor que podem. Seria uma cidade bonita, porque é limpa e não lhe faltam parques, se não tivesse por cima dela um capacete pardo de poluição, que no Inverno mata bebés nos berços, velhos nos asilos e pássaros no ar. Os santiaguenses habituaram-se a consultar a taxa diária do smog tal como acompanham as cotações da bolsa de valores e os resultados do futebol. Nos dias em que a taxa sobe demasiado, a circulação de veículos é restringida segundo o número da matrícula, as crianças não fazem desporto na escola e o resto dos cidadãos procura respirar o menos possível. A primeira chuva do ano lava a imundície da atmosfera e cai como ácido sobre a cidade; se você andar sem guarda-chuva sentirá como se lhe lançassem sumo de limão aos olhos; mas não se preocupe, ainda ninguém ficou cego por isso. Nem sempre é assim, às vezes o dia amanhece desanuviado e é possível apreciar o espectáculo magnífico das montanhas nevadas.

Há cidades, como Caracas ou o D. F. no México, onde pobres e ricos se misturam, mas em Santiago os limites são claros. A distância entre as mansões dos ricos no sopé da cordilheira, com guardas à porta e quatro garagens, e os casebres das populações proletárias, onde vivem quinze pessoas amontoadas em dois quartos sem casa de banho, é astronómica. Sempre que vou a Santiago reparo que uma parte da cidade é a preto e branco e a outra em cores vivas. No centro e nos bairros de operários tudo parece cinzento, as poucas árvores que existem estão exaustas, as paredes sujas, as pessoas cansadas; até os cães que vagueiam entre os caixotes do lixo são uns raquíticos pulguentos de cor indefinida. Nos sectores da classe média há árvores frondosas e as casas são modestas, mas bem tratadas. Nos bairros dos ricos só se vê a vegetação: as mansões escondem-se atrás de paredes intransponíveis, ninguém anda pelas ruas e os cães são mastins que só são soltos durante a noite para defender as propriedades.

O Verão na capital é longo, seco e quente. Uma poeira amarelada cobre a cidade nesses meses; o sol derrete o asfalto e afecta o humor dos santiaguenses, por isso quem pode tenta fugir. Quando eu era pequena, a minha família ia para a praia durante dois meses, um autêntico safari no automóvel do meu avô, carregado com uma tonelada de malas sobre o tejadilho e três garotos completamente enjoados lá dentro. Nessa época os caminhos eram péssimos e tínhamos de serpentear monte acima, monte abaixo com um esforço descomunal para o veículo. Não havia viagem em que não tivéssemos de mudar um ou dois pneus, tarefa que requeria a descarga de todas as malas. O meu avô levava sobre os joelhos um pistolão daqueles que antigamente se usavam para os duelos, porque acreditava que na encosta de Curacaví, chamada apropriadamente A Sepultura, costumavam postar-se alguns bandidos. Se os havia, não creio que fossem mais do que uns pedintes que teriam fugido ao primeiro tiro para o ar, mas, pelo sim pelo não, passávamos a encosta a rezar, método infalível contra os assaltos, visto que nunca pusemos os olhos nos sinistros bandoleiros. Nada disso existe hoje. Chegamos às zonas balneares em menos de duas horas por estradas magníficas. Até há pouco os únicos caminhos maus eram os que conduziam aos sítios onde veraneiam os ricos, que tudo faziam para manter a exclusividade das suas praias. Horrorizava-os ver chegar a chusma em autocarros aos fins-de-semana, com os seus filhos morenos, melancias, frangos assados e rádios com música popular; por isso mantinham o caminho de terra no pior estado possível. Tal como disse um senador de direita: «Quando a democracia se torna democrática, não serve». Isso mudou. O país está ligado por uma grande artéria, a estrada Panamericana, que se une com a Austral, e por uma extensa rede de caminhos pavimentados e muito seguros. Nada de guerrilheiros à procura de quem sequestrar, ou bandos de traficantes de droga defendendo o seu território, ou polícias corruptos à caça de subornos, como noutros países latino-americanos algo mais animados que o nosso. É muito mais provável ser-se assaltado em pleno centro da cidade do que num caminho despovoado no campo.

Mal se sai de Santiago, a paisagem torna-se bucólica: potreiros bordeados de álamos, outeiros e vinhedos. Recomendo ao visitante que pare para comprar fruta e legumes nos postos de venda ao longo da estrada, ou que se desvie um pouco e entre nas vilórias à procura da casa onde se desfralda um pano branco, pois aí oferece-se pão caseiro, mel e ovos da cor do oiro.

Pela estrada da costa há praias, lugares pitorescos e pequenas enseadas com redes e botes, onde se encontram os fabulosos tesouros da nossa cozinha: primeiro o congro, rei do mar, com o seu colete de escamas enjoladas; seguidamente a corvina, de suculenta carne branca, acompanhada de um cortejo de cem outros peixes mais modestos, mas igualmente saborosos; depois o coro dos nossos mariscos: santolas, ostras, mexilhões, lagostins, ouriços-do-mar e muitos outros, incluindo alguns de aspecto tão suspeito que nenhum estrangeiro se atreve a prová-los, como o ouriço ou o pícoroco, iodo e sal, pura essência marinha. São tão bons os nossos peixes, que não é necessário saber de cozinha para os preparar. Coloque uma camada de cebola picada num tacho de barro ou pirex, ponha por cima o seu reluzente peixe banhado em sumo de limão, com umas quantas colheres de manteiga, salpicado de sal e pimenta; meta-o no forno quente até que a carne fique cozinhada, mas não em excesso, para que não seque; sirva-o com um dos nossos vinhos brancos bem frios, na companhia dos seus melhores amigos.

Todos os anos em Dezembro íamos com o meu avô comprar os perus de Natal, que os camponeses criavam para essa data. Revejo esse velho que arrastava a sua perna coxa, correndo num potreiro para caçar o pássaro em questão. Tinha de calcular o salto antes de lhe cair em cima, esmagá-lo contra o solo e dominá-lo, enquanto um de nós procurava atar-lhe as pernas com um cordel. Depois dava-se uma gorjeta ao camponês para que matasse o peru longe do olhar das crianças, que de outro modo se negariam a comê-lo depois de cozinhado. É muito dificil torcer o pescoço a uma criatura com a qual se estabeleceu uma relação pessoal, como pudemos comprovar daquela vez que meu avô levou uma cabra para a engordar no pátio da casa e assá-la no dia do seu aniversário. A cabra morreu de velha. Ainda por cima verificou-se que não era fêmea, mas macho, e mal lhe despontaram os cornos atacava-nos à traição.

A Santiago da minha infância tinha pretensões de grande cidade, mas alma de aldeia. Tudo se sabia. Faltou alguém à missa de domingo? A notícia circulava depressa e antes de quarta-feira o pároco batia à porta do pecador para saber das suas razões. Os homens caminhavam hirtos, de tanta goma e vaidade; as mulheres, com alfinetes no chapéu e luvas de pelica; a elegância era requisito indispensável para ir ao centro ou ao cinema, que ainda se chamava «biógrafo». Poucas casas tinham frigorífico - nisso a de meu avô era muito moderna - e todos os dias passava um corcunda a distribuir blocos de gelo e sal grosso para a geleira. O nosso frigorífico, que durou quarenta anos sem avarias, possuía um ruidoso motor de submarino que de vez em quando estremecia a casa com ataques de tosse. A cozinheira tirava com uma vassoura os cadáveres electrocutados dos gatitos, que se metiam debaixo dele à procura de calor. No fundo, esse era um bom método profiláctico, porque no telhado nasciam dezenas de gatos e sem os choques eléctricos do frigorífico ter-nos-iam invadido por completo.

Como em todos os lares chilenos, havia animais em nossa casa. Os cães eram adquiridos de diferentes maneiras: herdavam-se, recebiam-se como prenda, encontravam-se, atropelados mas ainda vivos, ou seguiam a criança à saída da escola e já não havia maneira de os mandar embora. Sempre foi assim e espero que não mude. Não conheço nenhum chileno normal que tenha comprado um; os únicos que o fazem são uns fanáticos do Kennel Club, mas na realidade ninguém os leva a sério. Na sua maioria, os nossos cães nacionais chamam-se Negro, mesmo que sejam de outra cor, e os gatos chamam-se genericamente Micifú ou Cucho; no entanto, as mascotes da minha família recebiam tradicionalmente nomes bíblicos: Barrabás, Salomé, Caim, excepto um cão de duvidosa linhagem que se chamou Sarampo, porque apareceu durante uma epidemia dessa doença. Nas cidades e aldeias do meu país vagueiam levas de cães sem dono, que não constituem matilhas esfomeadas e desoladas, como as que se vêem noutras partes do mundo, mas comunidades organizadas. São animais mansos, satisfeitos da sua posição social, um pouco sonolentos. Uma vez li um estudo cujo autor defendia que, se todas as raças existentes de cães se misturassem livremente, em poucas gerações haveria uma única espécie: um animal forte e astuto, de tamanho médio, pelo curto e rijo, focinho pontiagudo e cauda voluntariosa, ou seja, o típico rafeiro chileno. Suponho que chegaremos a isso. Quando também se fundirem numa só todas as raças humanas, o resultado será uma gente mais baixa, de cor indefinida, adaptável, resistente e resignada aos avatares da existência, como nós, os Chilenos.

Nesses tempos ia-se buscar o pão duas vezes por dia à padaria da esquina e trazia-se para casa envolvido num pano branco. O aroma desse pão recém-saído do forno e ainda morno é uma das recordações mais persistentes da minha infância. O leite era um creme espumoso que se vendia a granel. Uma campainha pendurada no pescoço do cavalo e o cheiro a estábulo que invadia a rua anunciavam a chegada da carroça do leite. As criadas punham-se em fila com as suas vasilhas e compravam ao copo, que o leiteiro media metendo o seu braço peludo até à axila nos grandes tarros, sempre cobertos de moscas. Algumas vezes compravam-se vários litros a mais, para fazer manjar branco - ou doce de leite -, que durava vários meses guardado na penumbra fria da cave, onde também se guardava o vinho, engarrafado em casa. Começavam por fazer uma fogueira no pátio com lenha e carvão. Em cima pendurava-se de um tripé uma panela de ferro negra pelo uso, onde se deitavam os ingredientes, na proporção de quatro taças de leite para uma de açúcar, aromatizava-se com dois pauzinhos de baunilha e a casca de um limão, fervia-se pacientemente durante horas, mexendo de vez em quando com uma compridíssima colher de madeira. Nós, as crianças, olhávamos de longe, esperando que terminasse o processo e o doce esfriasse para rapar a panela. Não nos deixavam aproximar e estavam sempre a repetir-nos a triste história daquele menino guloso que caiu dentro da panela e, tal como nos explicavam, «se desfez no doce a ferver, de tal modo que nem os ossos encontraram». Quando se inventou o leite pasteurizado em garrafas, as donas de casa ataviavam-se com os seus trajes de domingo para serem fotografadas, como nos filmes de Hollywood, junto do camião pintado de branco que substituiu a imunda carroça. Hoje não só há leite integral, desnatado e com sabores como também o manjar branco se compra embalado; já ninguém o faz em casa.

No Verão passavam pelo bairro humildes rapazitos com cestos de amoras e sacos de marmelos para fazer doce; também aparecia o musculoso Gervasio Lonquimay, que estirava as molas metálicas dos catres e lavava a lã dos colchões, uma tarefa que podia durar três ou quatro dias, porque a lã secava ao sol e depois havia que carmeá-la à mão antes de a recolocar nos forros. De Gervasio Lonquimay murmurava-se que tinha estado preso por degolar um rival, rumor que lhe outorgava uma aura de indubitável prestígio. As empregadas ofereciam-lhe orchata para a sede e toalhas para o suor.

Um tocador de realejo, sempre o mesmo, percorria as ruas, até que um dos meus tios lhe comprou o realejo e começou a tocar a musiquita e a distribuir papelinhos da felicidade com um papagaio patético, perante o horror do meu avô e do resto da família. Acho que o meu tio pretendia seduzir assim uma prima, mas o plano não deu o resultado esperado: a rapariga casou-se à pressa e escapuliu-se para o mais longe possível. Finalmente o meu tio ofereceu o instrumento musical e o papagaio ficou lá em casa. Tinha mau génio, e ao primeiro descuido era capaz de arrancar um dedo com uma picada a quem se aproximasse, mas o meu avô achava-lhe graça porque praguejava como um corsário. Aquele passaroco viveu vinte anos com ele e quem sabe quantos mais tinha vivido antes; era um Matusalém emplumado. Também as ciganas passavam pelo bairro, enganando os incautos com o seu castelhano arrevesado e aqueles olhos irresistíveis que tinham visto tanto mundo, sempre em grupos de duas ou três, com meia dúzia de criaturas ranhosas agarradas às saias. Inspiravam-nos horror, porque se dizia que roubavam crianças pequenas, fechavam-nas em jaulas para crescerem deformadas e serem vendidas como fenómenos aos circos. Deitavam mau-olhado se lhes negassem uma esmola. Eram-lhes atribuídos poderes mágicos: podiam fazer desaparecer jóias sem lhes tocarem e desencadear epidemias de piolhos, verrugas, calvície e dentes podres. Ainda assim, não resistíamos à tentação de que nos lessem a sina na palma das mãos. A mim diziam-me sempre o mesmo: um homem moreno de bigodes levar-me-ia para muito longe. Como não me lembro de nenhum namorado com essas características, suponho que se referiam ao meu padrasto, que tinha bigode de foca e me levou para muitos países nas suas peregrinações de diplomata.

 

                   Uma velha casa encantada

A minha primeira recordação do Chile é uma casa que não conheci. Ela foi a protagonista do meu primeiro romance A Casa dos Espíritos, onde aparece como a mansão que alberga a estirpe dos Trueba. Essa família fictícia parece-se de forma alarmante com a da minha mãe; eu não poderia ter inventado personagens como aquelas. Além disso não era necessário, com uma família como a minha não é preciso ter imaginação. A ideia da «grande casa da esquina», que figura no livro, surgiu da antiga residência da rua Cueto, onde nasceu a minha mãe; era tantas vezes evocada pelo meu avô que me parece ter vivido nela. Já não há casas assim em Santiago, foram devoradas pelo progresso e pelo crescimento demográfico, mas ainda existem nas províncias. Estou a vê-la: vasta e sonolenta, decrépita pelo uso e abuso, de tectos altos e janelas estreitas, com três pátios, o primeiro de laranjeiras e jasmins, onde cantava uma fonte; o segundo com uma horta mal tratada e o terceiro, uma desordem de tinas de lavagem, canis, galinheiros e insalubres quartos de criadas, como celas de uma masmorra. Para ir de noite à casa de banho tinha de se sair em viagem com uma lanterna, desafiando as correntes de ar e as aranhas, fazendo ouvidos moucos ao ranger das madeiras e às corridas dos ratos. O casarão, com entrada por duas ruas, era de um piso com mansarda e albergava uma tribo de bisavós, tias solteiras, primos, criadas, parentes pobres e hóspedes que se instalavam para sempre sem que ninguém se atrevesse a expulsá-los, porque no Chile os «chegados» estão protegidos por um código de hospitalidade sagrado. Havia também um ou outro fantasma de duvidosa autenticidade, daqueles que não faltam na minha família. Há quem afirme que as almas penavam entre aquelas paredes, mas um dos meus velhos parentes confessou-me que em catraio se disfarçava com um vetusto uniforme militar para assustar a tia Cupertina. A pobre solteirona nunca duvidou que aquele visitante noctâmbulo fosse o espírito de dom José Miguel Carrera, um dos pais da pátria, que vinha pedir-lhe dinheiro para dizer missas pela salvação da sua aguerrida alma.

Os meus tios maternos, os Barros, foram doze irmãos bastante excêntricos, mas nenhum tão louco que tivesse de ser internado. Quando algum deles se casava, ficava com o cônjuge e os filhos na casa da rua Cueto. Assim fez a minha avó Isabel, casada com o avô Agustín. O casal não só viveu naquele galinheiro de estrafalários parentes, como por morte dos bisavós comprou a casa e ali criaram os seus quatro filhos durante vários anos. O meu avô modernizou-a, mas a sua mulher sofria de asma devido à humidade dos quartos; além disso a vizinhança encheu-se de pobres e a «gente bem» começou a emigrar em massa para a parte leste da cidade. Dobrado pela pressão social, construiu uma casa moderna no bairro de Providencia, que então ficava extramuros, mas se supunha que ia prosperar. O homem tinha visão, porque em poucos anos Providencia tornou-se a zona residencial mais elegante da capital, se bem que tenha deixado de o ser há muito, quando a classe média começou a trepar pelas encostas dos cerros e os verdadeiramente ricos partiram cordilheira acima, onde nidificam os condores. Actualmente, Providencia é um caos de tráfego, comércio, escritórios e restaurantes, onde só vivem os mais velhos em antigos edificios de apartamentos, mas naquela época confinava com os campos onde as famílias abastadas tinham casas de veraneio, onde o ar era límpido e a existência bucólica. Desta casa falarei um pouco mais adiante; por agora voltemos à minha família.

O Chile é um país moderno com quinze milhões de habitantes, mas com ressaibos de mentalidade tribal. Isto não mudou muito, apesar da explosão demográfica, sobretudo nas províncias, onde cada família continua fechada no seu círculo, seja ele grande ou pequeno. Estamos divididos em clãs, que partilham um interesse ou uma ideologia. Os seus membros assemelham-se, vestem-se de maneira similar, pensam e actuam como clones e, claro, protegem-se uns aos outros, excluindo os demais. Por exemplo, o clã dos agricultores (refiro-me aos proprietários de terra, não aos humildes camponeses), os médicos, os políticos (não importa qual o partido a que pertençam), os empresários, os militares, os camionistas e, por fim, todos os outros. Acima dos clãs está a família, inviolável e sagrada, ninguém foge aos seus deveres para com ela. Por exemplo, o tio Ramón costuma telefonar-me para a Califórnia, onde vivo, a comunicar-me a morte de um tio em terceiro grau, que não conheci, e que deixou uma filha em má situação. A jovem quer estudar enfermagem, mas não tem meios para o fazer. Ao tio Ramón, sendo o membro mais idoso do clã, compete-lhe pôr-se em contacto com quem tiver laços de sangue com o defunto, desde os parentes próximos aos mais remotos, para financiar os estudos da futura enfermeira. Negar-se seria um acto infame, recordado seguramente por várias gerações. Dada a importância que para nós tem a família, escolhi a minha como fio condutor deste livro, de modo que se me alongo sobre alguns dos seus membros é certamente porque há uma razão, mesmo que às vezes essa razão mais não seja do que o meu desejo de não perder esses laços de sangue que me unem também à minha terra. Os meus parentes servirão para ilustrar certos vícios e virtudes do carácter dos Chilenos. Como método científico pode ser contestável, mas do ponto de vista literário tem algumas vantagens.

O meu avô, que descendia de uma família pequena e arruinada pela morte prematura do pai, enamorou-se de uma rapariga com fama de bela, chamada Rosa Barros, mas a moça morreu misteriosamente antes da boda. Só restam dela um par de fotografias de cor sépia, desbotadas pela bruma do tempo, nas quais se distinguem apenas os seus traços. Anos depois o meu avô casou-se com Isabel, a irmã mais nova de Rosa. Nesses tempos, toda a gente dentro de uma classe social se conhecia em Santiago, de maneira que os casamentos, embora não fossem negociados como na índia, eram sempre assuntos de família. Ao meu avô pareceu lógico que se tinha sido aceite pelos Barros como noivo de uma das filhas, não havia razão para que o não fosse de outra.

Na sua juventude o avô Agustin era magro, de nariz aquilino, vestido de negro com um fato arranjado do seu defunto pai, solene e orgulhoso. Pertencia a uma antiga família de origem castelhano-basca, mas ao contrário dos seus parentes, era pobre. Os parentes dele não davam que falar, excepto o tio Jorge, bom moço e elegante como um príncipe, com um futuro brilhante a seus pés, cobiçado por várias das jovens em idade de casar, que teve a fraqueza de se apaixonar por uma mulher «de medio pelo», como chamam no Chile à esforçada classe média baixa. Noutro país talvez se pudessem amar sem tragédia, mas no ambiente em que lhes coube viver estavam condenados ao ostracismo. Ela adorou o tio Jorge durante cinquenta anos, mas usava uma estola de raposa roída pela traça, pintava o cabelo cor de cenoura, fumava com desembaraço e bebia cerveja pela garrafa, razões de sobra para que a minha bisavó Ester lhe declarasse guerra e proibisse que o filho a mencionasse na sua presença. Ele obedeceu sem protestar, mas no dia seguinte à morte da mãe casou-se com a bem-amada, que já era então uma mulher madura e doente dos pulmões, mas sempre encantadora. Amaram-se na miséria sem que nada os separasse: dois dias depois de ele ter sido despachado por um ataque de coração, encontraram-na a ela morta na cama, envolvida no velho roupão do seu marido.

Tenho de dizer umas palavras sobre a bisavó Ester, porque julgo que a sua poderosa influência é a explicação para alguns aspectos do carácter da sua descendência e, de algum modo, representa a matriarca intransigente, tão comum então e agora. A figura materna tem proporções mitológicas no nosso país, por isso não me espanta a atitude submissa do tio Jorge. A mãe judia e a mamma italiana são diletantes, se comparadas com as Chilenas. Acabo de descobrir por acaso que o marido de dona Ester tinha pouca cabeça para os negócios e perdeu as terras e a fortuna que havia herdado; parece que os credores eram os seus próprios irmãos. Ao ver-se arruinado, dirigiu-se à casa de campo e rebentou o peito com um tiro de espingarda. Digo que acabo de saber este facto, porque a família o escondeu durante cem anos e mesmo hoje só o menciona em sussurros; o suicídio era considerado um pecado particularmente desagregador, porque o corpo não podia ser enterrado na terra consagrada de um cemitério católico. Para evitar a vergonha, os seus parentes vestiram o cadáver com casaca e chapéu alto, sentaram-no num coche puxado por cavalos e levaram-no para Santiago, onde puderam dar-lhe sepultura cristã porque toda a gente, incluindo o pároco, fez vista grossa. Este facto dividiu a família entre os descendentes directos, que consideram a história do suicídio uma calúnia, e os descendentes dos irmãos do morto que acabaram por ficar com os seus bens. Seja como for, a viúva caiu na depressão e na pobreza. Tinha sido uma mulher alegre e bonita, virtuosa do piano, mas com a morte do marido vestiu-se de luto rigoroso, trancou o piano e desse dia em diante só saía de casa para assistir à missa diária. Com o tempo, a artrite e a obesidade fizeram dela uma monstruosa estátua fechada entre quatro paredes. Uma vez por semana o pároco levava-lhe a comunhão a casa. Essa viúva sombria inculcou nos seus filhos a ideia de que o mundo é um vale de lágrimas e estamos cá só para sofrer. Presa à sua cadeira de inválida, julgava as vidas alheias; nada escapava aos seus olhitos de falcão e à sua língua de profeta. Para as filmagens de A Casa dos Espíritos tiveram de levar de Inglaterra para o estúdio em Copenhaga uma actriz do tamanho de uma baleia para interpretar esse papel, obrigando a libertar vários assentos do avião a fim de conter a sua inacreditável corpulência. Aparece no ecrã apenas um instante, mas produz uma impressão inesquecível.

Ao contrário de dona Ester e da sua descendência, gente solene e séria, os meus tios maternos eram alegres, exuberantes, gastadores, mulherengos, sempre prontos para apostar nos cavalos, tocar música e dançar a polca. (Isto de dançar é pouco usual entre os Chilenos, a quem em geral falta o sentido do ritmo. Uma das grandes descobertas que fiz na Venezuela, para onde fui viver em 1975, é o poder terapêutico da dança. Mal se juntam três venezuelanos, um deles ou toca tambor ou guitarra e os outros dançam; não há dor que resista a este tratamento. As nossas festas, pelo contrário, parecem funerais: os homens retiram-se para falar de negócios e as mulheres aborrecem-se. Só dançam os jovens, seduzidos pela música norte-americana, mas logo que se casam tornam-se solenes, como os pais.) A maior parte das histórias e personagens dos meus livros baseiam-se na original família Barros. As mulheres eram delicadas, espirituais e divertidas. Os varões eram altos, bonitos e sempre prontos para uma zaragata; também eram «chineros», como chamavam aos frequentadores de bordéis, e mais do que um acabou com alguma doença misteriosa. Imagino que a cultura do prostíbulo é importante no Chile, porque aparece com frequência na literatura, como se os nossos autores vivessem obcecados com isso. Apesar de não me considerar uma especialista no tema, não me livrei de criar uma prostituta com coração de ouro, Trânsito Soto, no meu primeiro romance.

Tenho uma tia-avó centenária que aspira à santidade e cujo único desejo é entrar no convento, mas nenhuma congregação, nem sequer as Irmãzinhas da Caridade, a tolera mais de duas semanas, pelo que a família teve de a tomar a seu cargo. Creiam-me, nada há de mais insuportável que um santo, não o desejo nem ao meu pior inimigo. Nos almoços dominicais em casa do avô, os meus tios faziam planos para a assassinar, mas ela conseguia sempre escapar ilesa e ainda está viva. Na sua juventude esta dama usava um hábito de sua invenção, cantava a todas as horas hinos religiosos com voz angélica e ao menor descuido fugia para ir à rua Maipú catequizar aos gritos as meninas de vida airada, que a recebiam com uma chuva de hortaliças podres.

Na mesma rua, o tio Jaime, primo de minha mãe, ganhava o dinheiro para os seus estudos de medicina maltratando um acordeão nas «casas de má fama». Acordava a cantar a plenos pulmões uma canção chamada «Eu quero uma mulher nua», com o que causava tal escândalo que as beatas saíam a protestar. Nesses tempos a lista negra da Igreja católica incluía livros como O Conde de Monte Cristo; imagine-se o espanto que deve ter causado o desejo por uma mulher despida vociferado pelo meu tio. Jaime viria a ser o pediatra mais famoso e querido do país, o político mais pitoresco - capaz de recitar os seus discursos em verso rimado no Senado - e sem dúvida o mais radical dos meus parentes, comunista à esquerda de Mao, quando Mao ainda usava cueiros. Hoje é um ancião bonito e lúcido, que usa peúgas de cor vermelho vivo como símbolo das suas ideias políticas. Outro dos meus parentes tirava as calças na rua para as dar aos pobres e a sua fotografia em cuecas, mas de chapéu, casaco e gravata, costumava aparecer nos jornais. Tinha uma tão alta ideia de si mesmo que no seu testamento deixou instruções para ser enterrado de pé, pois assim podia encarar Deus olhos nos olhos quando batesse à porta do céu.

Nasci em Lima, onde o meu pai era um dos secretários da embaixada. A razão pela qual me criei em casa do meu avô em Santiago é que o casamento dos meus pais foi um desastre do princípio ao fim. Um dia, quando eu tinha cerca de quatro anos, o meu pai saiu para comprar cigarros e nunca mais voltou. A verdade é que não foi comprar cigarros, como sempre foi dito, mas partiu disfarçado de índia peruana, com saias multicolores e uma peruca de longas tranças. Deixou a minha mãe em Lima, com um montão de contas por pagar e três filhos pequenos, o mais novo recém-nascido. Suponho que esse primeiro abandono fez alguma mossa na minha psique, porque nos meus livros há tantas criaturas abandonadas que poderia fundar um orfanato; os pais das minhas personagens estão mortos, desaparecidos, ou são tão autoritários e distantes que é como se existissem noutro planeta. Ao encontrar-se sem marido e à deriva num país estrangeiro, a minha mãe teve de vencer o monumental orgulho em que tinha sido criada e regressar ao lar do meu avô. Os primeiros anos que passei em Lima perderam-se na bruma do esquecimento; todas as recordações da minha infância estão ligadas ao Chile.

Cresci numa família patriarcal onde o meu avô era como Deus: infalível, omnipresente e todo-poderoso. A sua casa no bairro de Providencia não era nem sombra da mansão dos meus bisavós na rua Cueto, mas durante os meus primeiros anos foi o meu universo. Há pouco tempo foi a Santiago um jornalista japonês com a intenção de fotografar a suposta «grande casa da esquina» que aparece no meu primeiro romance. Foi inútil explicar-lhe que era ficção. Depois de fazer uma tão longa viagem, o pobre homem sofreu uma tremenda decepção, porque Santiago foi demolida e reconstruída várias vezes desde então. Nada dura nesta cidade. A casa que o meu avô construiu é agora uma discoteca de má fama, um deprimente aborto de plástico negro e luzes psicadélicas. A residência da rua Cueto, que fora dos meus bisavós, desapareceu há muitos anos e no seu lugar erguem-se umas torres modernas para inquilinos de baixos rendimentos, irreconhecíveis entre tantas dezenas de edificios similares.

Seja-me permitido um comentário sobre aquela demolição, como capricho sentimental. Um dia as máquinas do progresso chegaram com a missão de pulverizar o casarão dos meus antepassados e durante semanas os implacáveis dinossáurios de ferro aplanaram o solo com as suas patas dentadas. Quando por fim assentou a poeirada de beduínos, os passantes puderam comprovar, assombrados, que nesse descampado ainda se erguiam intactas várias palmeiras. Solitárias, despidas, com as suas melenas murchas e um ar de humildes desamparadas, esperavam o seu fim; mas, em vez do temido verdugo, apareceram uns trabalhadores suarentos e, como diligentes formigas, cavaram trincheiras à volta de cada árvore, até desprendê-la do chão. As esguias árvores agarravam punhados de terra seca com as suas magras raízes. As gruas levaram as palmeiras feridas até umas covas, que os jardineiros tinham aberto noutro lugar, e ali as plantaram. Os troncos gemeram em surdina, as folhas caíram em fiapos amarelos e durante algum tempo parecia que nada poderia salvá-las de tanta agonia, mas são criaturas tenazes. Uma lenta rebelião subterrânea foi estendendo a vida, os tentáculos vegetais abriram caminho, misturando os restos de terra da rua Cueto com o novo solo. Numa Primavera inevitável as palmeiras amanheceram agitando as suas perucas e perfilando a cintura, vivas e renovadas, apesar de tudo. A imagem dessas árvores da casa dos meus antepassados ocorre-me com frequência à mente quando penso no meu destino de desterrada. A minha sina é andar de um sítio para o outro e adaptar-me a novos solos. Creio que o consigo porque tenho punhados da minha terra nas raízes e os levo sempre comigo. Em todo o caso, o jornalista japonês que foi ao fim do mundo para fotografar uma mansão de novela regressou à sua pátria de mãos vazias.

A casa do meu avô era igual às dos meus tios e à de qualquer outra família de um meio semelhante. Os Chilenos não se caracterizam pela originalidade: por dentro, as suas casas são todas mais ou menos iguais. Dizem-me que agora os ricos contratam decoradores e até as chaves das casas de banho compram no estrangeiro, mas naqueles tempos ninguém ouvira falar de decoração interior. No salão, varrido por inexplicáveis correntes de ar, havia cortinados de felpa cor sangue de boi, lâmpadas de lágrimas, um desafinado piano de cauda e um grande relógio de pé, negro como um ataúde, que marcava as horas com toques fúnebres. Também havia duas horrendas figuras de porcelana francesa de umas meninas com perucas empoeiradas e uns cavalheiros de tacões altos. Os meus tios usavam-nas para afinar os reflexos: lançavam-nas pela cabeça uns aos outros, com a vã esperança de que caíssem ao chão e se fizessem em pedaços. A casa era habitada por humanos excêntricos, animais meio selvagens e alguns fantasmas amigos da minha avó, que a tinham seguido desde a mansão da rua Cueto e que, mesmo depois da sua morte, continuaram a rondar-nos.

O meu avô Agustin era um homem robusto, forte como um guerreiro, apesar de ter nascido com uma perna mais curta que a outra. Nunca lhe passou pela cabeça consultar um médico por causa disso, preferia um «endireita». Tratava-se de um cego que recuperava as patas dos cavalos acidentados no Clube Hípico e sabia mais de ossos do que qualquer ortopedista. Com o tempo a coxeadura de meu avô piorou, a artrite deformou-lhe a coluna vertebral, de modo que cada movimento era um suplício, mas nunca o ouvi queixar-se das suas dores ou dos seus problemas, embora, como qualquer chileno que se preze, se queixasse de tudo o resto. Aguentava o tormento do seu pobre esqueleto à custa de aspirinas e grandes tragos de água. Depois soube que não era água inocente, mas genebra, que bebia como um pirata, sem que isso lhe afectasse o comportamento ou a saúde. Viveu quase um século sem perder um só parafuso do seu cérebro. A dor não o dispensava dos deveres de cavalheirismo e até ao fim dos seus dias, quando não era mais do que um atado de pele e ossos, levantava-se trabalhosamente da cadeira para cumprimentar e despedir-se das senhoras.

Tenho a sua fotografia sobre a minha mesa de trabalho. Parece um camponês basco. Está de perfil, com uma boina preta na cabeça, que acentua o seu nariz de águia e a expressão firme do seu rosto marcado de caminhos. Envelheceu armado pela inteligência e reforçado pela experiência. Morreu com uma mata de cabelo branco e o seu olhar azul tão perspicaz como na juventude. Que dificil é morrer!, disse-me um dia, quando já estava muito cansado da dor de ossos. Falava em provérbios, sabia centenas de contos populares e recitava de memória longos poemas. Este homem formidável deu-me o dom da disciplina e o amor pela linguagem, sem os quais não me poderia hoje dedicar à escrita. Também me ensinou a observar a natureza e amar a paisagem do Chile. Dizia que, tal como os Romanos vivem entre estátuas e fontes sem dar por elas, os Chilenos vivem no país mais deslumbrante do planeta sem o apreciarem. Não damos pela quieta presença das montanhas nevadas, dos vulcões adormecidos e dos montes intermináveis que nos cobrem num monumental abraço; não nos surpreende a espumante fúria do Pacífico lançando-se contra as costas, nem os plácidos lagos do sul e as suas sonoras cascatas; não veneramos como peregrinos a milenária natureza da nossa floresta nativa, as paisagens lunares do norte, os fecundos rios araucanos, ou os glaciares azuis onde o tempo se pulverizou.

Estamos a falar dos anos quarenta e cinquenta... o que eu vivi, meu Deus! Envelhecer é um processo paulatino e solapado. Às vezes esqueço a passagem do tempo, porque por dentro ainda não fiz trinta anos; mas, inevitavelmente, os meus netos confrontam-me com a dura verdade quando me perguntam se no «meu tempo» havia electricidade. Estes mesmos netos afirmam que há um lugar habitado dentro da minha cabeça onde as personagens dos meus livros vivem os seus enredos. Quando lhes conto histórias do Chile julgam que me refiro a esse lugar inventado.

 

                         Um bolo de mil-folhas

Quem somos nós, os Chilenos? Não me é fácil definir-nos por escrito, mas basta-me um olhar para distinguir um compatriota a cinquenta metros de distância. Além disso, encontro-os em todo o lado. Num templo sagrado do Nepal, na selva do Amazonas, num carnaval de Nova Orleães, sobre os gelos brilhantes da Islândia, onde se quiser, há sempre um chileno com a sua inconfundível maneira de caminhar e o seu sotaque cantante. Mesmo separados por milhares de quilómetros ao longo do nosso estreito país, somos teimosamente parecidos; compartilhamos o mesmo idioma e temos costumes semelhantes. As únicas excepções são a classe alta, que descende sem grandes desvios de Europeus, e os indígenas, Aymaras e alguns Quechuas, no norte, e Mapuches, no sul, que procuram manter as suas identidades num mundo onde há cada vez menos espaço para eles.

Cresci embalada pela história da carochinha segundo a qual não há problemas raciais no Chile. Não percebo como nos atrevemos a repetir semelhante falsidade. Não falamos de racismo, mas de «sistema de classes» (agradam-nos os eufemismos) que são praticamente a mesma coisa. Não só há racismo e/ou classismo, como eles estão profundamente enraizados. Quem disser que é coisa do passado engana-se rotundamente, como verifiquei na minha última visita: um dos alunos mais brilhantes da Faculdade de Direito da Universidade do Chile não foi aceite num conhecido escritório de advogados, porque «não encaixava no perfil corporativo». Por outras palavras, era mestiço e tinha um apelido mapuche. Os clientes da firma não se sentiriam confiantes se fossem representados por ele; muito menos aceitariam que saísse com alguma das suas filhas. A exemplo do que acontece no resto da América Latina, a nossa classe alta é relativamente branca e quanto mais se desce na íngreme escala social, mais acentuados são os traços indígenas. Porém, à falta de outras referências, na sua maioria os chilenos consideram-se brancos; foi para mim uma surpresa descobrir que nos Estados Unidos sou «pessoa de cor». (Uma vez em que tive de preencher um formulário de imigração, abri a blusa para mostrar a minha cor a um funcionário afro-americano, que pretendia colocar-me na última categoria racial da sua lista: «Outra». O homem não achou graça nenhuma.)

Embora não restem muitos índios puros - mais ou menos dez por cento da população - o seu sangue corre pelas veias do nosso povo mestiço. Os Mapuches são em geral de baixa estatura, pernas curtas, tronco esguio, pele morena, cabelo e olhos escuros, pómulos marcados. Sentem uma desconfiança atávica - e justificada - contra os não índios, a quem chamam «huincas», que não significa «brancos», mas «ladrões de terra». Estes índios, divididos em várias tribos, contribuíram fortemente para forjar o carácter nacional, apesar de outrora ninguém merecedor de respeito admitir sequer a menor associação com eles; tinham fama de bêbedos, preguiçosos e ladrões. Não é essa a opinião de don Alonso de Ercilla y Zúíïiga, notável soldado e escritor espanhol, que esteve no Chile em meados do século xvi e escreveu La Araucana, um longo poema épico sobre a conquista espanhola e a feroz resistência dos indígenas. No prólogo dirige-se ao rei, seu senhor, dizendo dos Araucanos que: «...com puro valor e porfiada determinação redimiram e defenderam a sua liberdade, derramando em sacrificio da mesma muito sangue, tanto seu como de espanhóis, que com verdade se pode dizer, haver poucos lugares que não estejam dele tingidos, e cobertos de ossos... E é tanta a falta de gente, pela muita que morreu nesta demanda, que para fazer mais volume e completar os esquadrões também as mulheres vão para a guerra, e, lutando algumas vezes como varões, se entregam com grande ânimo à morte».

Nos últimos anos, algumas tribos mapuches sublevaram-se e o país não pode continuar a ignorá-los. Na realidade, os índios estão na moda. Não faltam intelectuais e ecologistas que procuram algum antepassado com lança para engalanar a sua árvore genealógica; um heróico indígena na árvore genealógica é muito mais chique do que um mortiço marquês de amarelados brasões, debilitado pela vida cortesã. Confesso que tentei adquirir um apelido mapuche a fim de me ufanar de um bisavô cacique, tal como antes se compravam títulos de nobreza europeia, mas até agora sem resultado. Suspeito que foi assim que o meu pai obteve o seu escudo heráldico: três cães famélicos num campo azul, segundo me lembro. O brasão em questão permaneceu escondido no sótão e nunca era mencionado, porque os títulos de nobreza foram abolidos quando se declarou a independência face à Espanha e não há nada tão ridículo no Chile como tentar passar por nobre. Quando trabalhei nas Nações Unidas tive por chefe um conde italiano de verdade, o qual teve de mudar os seus cartões de visita perante as gargalhadas que o seu brasão provocava.

Os chefes indígenas ganhavam o posto com proezas sobre-humanas de força e valor. Colocavam sobre as costas um tronco daquelas florestas imaculadas e quem aguentasse o seu peso durante mais horas tornava-se toqui. Como se isso não bastasse, recitavam sem pausa nem respiração um discurso improvisado porque, além de provarem a sua capacidade física, deviam convencer com a coerência e beleza das suas palavras. Talvez venha daí o nosso vício antigo da poesia... A autoridade do triunfador não voltava a ser questionada até ao próximo torneio. Nenhuma tortura inventada pelos engenhosos conquistadores espanhóis, por mais espantosa que fosse, conseguia desmoralizar aqueles heróis escuros, que morriam sem um queixume empalados numa lança, esquartejados por quatro cavalos, ou queimados lentamente num braseiro. Os nossos índios não pertenciam a uma cultura esplêndida, como os Aztecas, os Maias ou os Incas; eram toscos, primitivos, irascíveis e pouco numerosos, mas tão corajosos, que estiveram em pé de guerra durante trezentos anos, primeiro contra os colonizadores espanhóis e depois contra a república. Foram pacificados em 1880 e durante mais de um século pouco se ouviu falar deles, mas agora os Mapuches - «gente da terra»-voltaram à luta para defender as poucas terras que lhes restam, ameaçadas pela construção de uma barragem no rio Bío Bío.

As manifestações artísticas e culturais dos nossos índios são tão sóbrias como tudo o resto produzido no país. Tingem os seus tecidos em tons vegetais: castanho, negro, cinzento, branco; os seus instrumentos musicais são lúgubres como canto de baleias; as suas danças são pesadas, monótonas e tão persistentes, que a prazo fazem chover; o seu artesanato é belo, mas não tem a exuberância e variedade dos do México, do Peru ou da Guatemala.

Os Aymaras, «filhos do sol», muito diferentes dos Mapuches, são os mesmos da Bolívia, que vão e vêm ignorando as fronteiras, porque essa região foi sua desde sempre. São de carácter afável e, mantendo embora os seus costumes, a sua língua e as suas crenças, integraram-se na cultura dos brancos, sobretudo no que se refere ao comércio. Nisso diferem de alguns grupos de indígenas Quechuas nas zonas mais isoladas da serra peruana, para os quais o governo é o inimigo, tal como nos tempos coloniais; a guerra de independência e a criação da República do Peru não modificaram a sua existência.

Os desafortunados índios da Terra do Fogo, no extremo sul do Chile, pereceram há muito, vítimas das balas e das epidemias; daquelas tribos só resta um punhado de Alacalufes. Pagavam aos caçadores uma recompensa por cada par de orelhas que trouxessem como prova de terem matado um índio; foi assim que os colonos despovoaram a região. Eram uns gigantes que viviam quase nus num território de gelos inclementes, onde só as focas se podem sentir em casa.

Para o Chile não trouxeram sangue africano, que nos teria dado ritmo e cor; também não chegou, como à Argentina, uma forte imigração italiana, que poderia ter-nos tornado extrovertidos, vaidosos e alegres; nem sequer chegaram asiáticos suficientes, como ao Peru, que teriam compensado a nossa solenidade e condimentado a nossa cozinha; mas estou certa de que se dos quatro pontos cardeais tivessem convergido aventureiros entusiastas para povoar o nosso país, as orgulhosas famílias castelhano-bascas teriam conseguido um modo de misturar-se o menos possível, salvo se fossem europeus do norte. Há que dizê-lo: a nossa política de imigração foi abertamente racista. Durante muito tempo não se aceitaram asiáticos, negros nem muito escuros. Um presidente do século xix teve a ideia de trazer alemães da Floresta Negra e dar-lhes terras no sul, que, é claro, não eram suas, pertenciam aos Mapuches, mas ninguém deu importância a tal detalhe, a não ser os legítimos proprietários. A ideia era que o sangue teutónico melhorasse o nosso povo mestiço, inculcando-lhe espírito de trabalho, disciplina, pontualidade e organização. A pele cítrica e o cabelo liso dos índios eram mal vistos; uns quantos genes germânicos não nos calhariam nada mal, pensavam as autoridades de então. Esperava-se que os imigrantes se casassem com chilenos e que da mistura saíssemos a ganhar os humildes nativos, o que aconteceu em Valdivia e Osorno, províncias que hoje podem fazer alarde de terem homens altos, mulheres fartas de peito, crianças de olhos azuis e o mais autêntico strudel de maçã. O preconceito da cor ainda é tão forte, que basta que uma mulher tenha o cabelo loiro, mesmo acompanhado por uma cara de iguana, para que as pessoas se voltem a olhar para ela quando passa na rua. A mim descoloriram-me o cabelo desde a mais tenra infância com um líquido de fragrância adocicada chamado Bayrum; não há outra explicação para o milagre de as mechas negras com que nasci se transformarem antes dos seis meses em angelicais caracóis doirados. Com os meus irmãos não foi necessário recorrer a tais extremos porque um era crespo e o outro ruivo. Em todo o caso, os emigrantes da Floresta Negra foram muito influentes no Chile e, segundo numerosas opiniões, salvaram o sul da barbárie, convertendo-o no paraíso esplêndido que é hoje.

Depois da Segunda Guerra Mundial chegou ao Chile uma vaga diferente de alemães refugiados; havia aqui tanta simpatia por eles, que o nosso governo não se uniu aos Aliados até à última hora, quando foi impossível permanecer neutral. Durante a guerra o partido nazi chileno desfilava com uniformes castanhos, bandeiras com suásticas e o braço estendido. A minha avó corria a seu lado atirando-lhes tomates. Esta dama era uma excepção, porque no Chile as pessoas eram tão anti-semitas que a palavra «Judeu» era uma grosseria; tenho amigos aos quais lavavam a boca com água e sabão se se atrevessem a pronunciá-la. Para se referir a eles dizia-se «Israelitas» ou «Hebreus», e quase sempre num sussurro. Ainda existe a misteriosa colónia Dignidad, um acampamento nazi completamente fechado, como se fosse uma nação independente, que nenhum governo conseguiu desmantelar porque se supõe que beneficia da protecção disfarçada das Forças Armadas. Nos tempos da ditadura (1973 -1989) foi um centro de tortura usado pela polícia secreta. Actualmente o seu chefe encontra-se a monte, fugido da justiça que o acusa dos crimes de violação de menores e outros delitos. Os camponeses dos arredores, contudo, simpatizam com estes supostos nazis, porque mantêm um excelente hospital que põem ao serviço da população. À entrada da colónia existe um restaurante alemão, onde se oferece a melhor pastelaria da zona, servido por uns estranhos homens loiros cheios de tiques faciais, que respondem com monossílabos e têm olhos de lagarto. Isto não o comprovei, contaram-me.

Durante o século xix chegaram ingleses em bom número, os quais controlaram os transportes marítimo e ferroviário, assim como o comércio de importação e exportação. Alguns dos seus descendentes de terceira ou quarta geração, que nunca puseram os pés em Inglaterra, mas lhe chamavam home, tinham muita honra em falar castelhano com sotaque e saber as notícias por jornais atrasados que vinham de lá. O meu avô, que teve muitos negócios com companhias que criavam ovelhas na Patagónia para a indústria têxtil britânica, contava que nunca assinou um contrato; a palavra dita e um aperto de mãos eram mais do que suficientes. Os ingleses - «gringos», como chamamos genericamente a qualquer um de cabelos loiros ou cuja língua materna seja o inglês - abriram colégios, clubes e ensinaram-nos vários jogos aborrecidíssimos, bridge incluído.

Nós, Chilenos, gostamos dos Alemães pelas salsichas, pela cerveja e pelo capacete prussiano, além do passo de ganso que os nossos militares adoptaram nos desfiles; mas na realidade procuramos imitar os Ingleses. Admiramo-los tanto que nos julgamos os Ingleses da América Latina, tal como consideramos que os Ingleses são os Chilenos da Europa. Na ridícula guerra das Malvinas (1982) em vez de apoiarmos os Argentinos, que são nossos vizinhos, apoiámos os Britânicos; e assim a primeira-ministra, Margaret Thatcher, tornou-se amiga de peito do sinistro general Pinochet. A América Latina nunca nos perdoará semelhante passo em falso. Não há dúvida que temos algumas coisas em comum com os filhos da loira Albion: individualismo, bons modos, sentido do fair play, classismo, austeridade e má dentadura. (A austeridade britânica não inclui, claro está, a realeza, que é para o espírito inglês o que Las Vegas é para o deserto de Mojave.) Fascina-nos a excentricidade habitual dos Britânicos, mas não somos capazes de a imitar, porque temos demasiado medo do ridículo; em troca tentamos copiar o seu aparente autocontrolo. Digo aparente, porque em certas circunstâncias, como por exemplo um jogo de futebol, os Ingleses e os Chilenos perdem por igual a cabeça e são capazes de esquartejar os seus adversários. Do mesmo modo, apesar da sua fama de equânimes, ambos podem ser de uma crueldade feroz. As atrocidades cometidas pelos Ingleses ao longo da sua história equivalem às que os Chilenos cometem quando lhes surge um bom pretexto coberto pela impunidade. A nossa história está salpicada de exemplos de barbárie. Não é por acaso que o lema da pátria é «pela razão ou pela força», uma frase que sempre me pareceu particularmente estúpida. Durante os nove meses da revolução de 1891 morreram mais chilenos do que durante os quatro anos da guerra contra o Peru e a Bolívia (1879-1883), muitos deles baleados pelas costas ou torturados, outros lançados ao mar com pedras atadas aos tornozelos. O método de fazer desaparecer os inimigos ideológicos, que as diversas ditaduras latino-americanas tanto aplicaram durante os anos setenta e oitenta do século xx, já se praticava no Chile quase um século antes. Isto não obstou a que a nossa democracia fosse a mais sólida e antiga do continente. Sentíamo-nos orgulhosos da eficácia das nossas instituições, dos nossos incorruptíveis «carabineros», da seriedade dos juízes e do facto de nenhum presidente ter enriquecido no poder; pelo contrário, o mais frequente era ele sair do Palácio de la Moneda mais pobre do que entrara. A partir de 1973 não voltámos a gabar-nos dessas coisas.

Além de ingleses, alemães, árabes, judeus, espanhóis e italianos, arribaram às nossas costas imigrantes da Europa Central, cientistas, inventores, académicos, alguns verdadeiros génios, a quem tratamos, sem distinção de classes, por «Jugoslavos».

Depois da Guerra Civil de Espanha, chegaram refugiados que fugiram aos efeitos da derrota. Em 1939 o poeta Pablo Neruda, em nome do governo chileno, fretou um barco, o Winnipeg, que zarpou de Marselha cheio de intelectuais, escritores, artistas, médicos, engenheiros, artesãos competentes. As famílias abastadas de Santiago correram a Valparaíso para receberem o barco, oferecendo hospitalidade aos viajantes. O meu avô foi um deles; na sua mesa houve sempre uma cadeira guardada para os amigos espanhóis que chegassem de improviso. Eu ainda não era nascida, mas criei-me a ouvir as histórias da guerra civil e as canções salpicadas de palavrões daqueles ardorosos anarquistas e republicanos. Essa gente sacudiu a modorra colonial do país com as suas ideias, as suas artes e oficios, os seus sofrimentos e paixões, as suas extravagâncias. Um desses refugiados, um catalão amigo da minha família, levou-me um dia a ver uma tipografia. Era um jovem seco de carnes, nervoso, com perfil de ave furibunda, que não comia legumes porque os considerava alimento de burros e vivia obcecado com a ideia de regressar a Espanha quando Franco morresse, não suspeitando que o homem viveria mais quarenta anos. Era tipógrafo de oficio e cheirava a uma mistura de alho e tinta. Do meu lugar no fim da mesa, eu via-o comer sem apetite e vociferar contra Franco, as monarquias e os padres, sem que os seus olhos se voltassem uma única vez na minha direcção, porque detestava por igual as crianças e os cães. Surpreendentemente, num dia de Inverno o catalão anunciou que me levaria a passear, envolveu-se no seu longo cachecol e partimos em silêncio. Chegámos a um edificio cinzento, cruzámos uma porta metálica e avançámos por corredores onde se empilhavam enormes rolos de papel. Um ruído ensurdecedor estremecia as paredes. Então vi como ele se transformava, os seus passos ficaram mais leves, os seus olhos brilhavam, sorria. Tocou-me pela primeira vez. Segurando-me a mão conduziu-me até uma máquina prodigiosa, uma espécie de locomotiva negra, com todos os seus mecanismos à vista, estripada e furiosa. Tocou as suas cavilhas e com um estrondo de guerra caíram as matrizes que formavam as linhas de um texto.

- Um maldito relojoeiro alemão, emigrado para os Estados Unidos, patenteou esta maravilha em 1884 - gritou-me ao ouvido. - Chama-se linotipia, line of types. Antes era preciso compor o texto colocando os tipos à mão, letra a letra.

- Porquê maldito? - perguntei, igualmente aos gritos.

- Porque doze anos antes o meu pai inventou a mesma máquina e pô-la a funcionar no seu pátio, mas ninguém lhe deu importância - respondeu.

O tipógrafo nunca regressou a Espanha, continuou a manobrar a máquina de palavras, casou-se, caíram-lhe filhos do céu, aprendeu a comer legumes e adoptou várias gerações de cães vadios. Deixou-me para sempre a recordação da linotipia e o gosto pelo cheiro a tinta e a papel.

Na sociedade onde nasci, por volta dos anos quarenta, existiam fronteiras intransponíveis entre as classes sociais. Essas fronteiras são hoje mais subtis, mas continuam eternas como a grande muralha da China. Antes era impossível subir na escala social, descer era mais frequente, às vezes bastava mudar de bairro ou fazer um mau casamento, isto é, não por se casar com um vilão ou com uma desalmada, mas abaixo da sua classe. O dinheiro pesava pouco. Tal como não se descia de classe por ficar pobre, também não se subia por juntar uma fortuna, como puderam comprovar árabes e judeus que, por muito que enriquecessem, não eram aceites nos círculos exclusivos da «gente bem». Por este termo designavam-se a si próprios os que se encontravam na parte superior da pirâmide social (dando por assente, suponho, que todos os outros eram «gente má»).

Os estrangeiros raramente se dão conta de como funciona este chocante sistema de classes, porque em todos os meios o trato é amável e familiar. O pior epíteto contra os militares que tomaram o governo nos anos setenta era «rotos alzados». Opinavam as minhas tias que não havia nada mais kitsch do que ser pinochetista; não o diziam como crítica à ditadura, com a qual estavam plenamente de acordo, mas por classismo. Agora poucos se atrevem a empregar a palavra «roto» em público, porque cai muito mal, mas a maioria tem-na na ponta da língua. A nossa sociedade é como um bolo mil-folhas, cada ser humano no seu lugar e na sua classe, marcado pelo seu nascimento. As pessoas apresentavam-se - e ainda é assim na classe alta - com os seus dois apelidos, para estabelecer a sua identidade e procedência. Nós, os Chilenos, temos os olhos bem treinados para determinar a classe à qual pertence uma pessoa pelo aspecto fisico, cor da pele, maneirismos e, especialmente, pela forma de falar. Noutros países o sotaque varia de um lugar para outro, no Chile muda segundo o estrato social. Normalmente também podemos adivinhar de imediato a subclasse; subclasses há umas trinta, segundo os diferentes níveis de jargão, arrivismo, afectação, dinheiro recém-adquirido, etc. Sabe-se, por exemplo, a que classe pertence uma pessoa segundo a praia onde veraneia.

O processo de classificação automática que nós, Chilenos, pomos em prática quando nos conhecemos tem um nome: «ubicar-se» e equivale ao que fazem os cães quando cheiram o traseiro mutuamente. A partir de 1973, ano do golpe militar que mudou muitas coisas no país, o ubicar-se» complicou-se um pouco, porque também é preciso adivinhar nos primeiros três minutos de conversa se o interlocutor esteve a favor ou contra a ditadura. Actualmente são poucos os que se confessam a favor, mas de qualquer modo convém averiguar qual é a posição política de cada qual antes de emitir alguma opinião contundente. O mesmo acontece entre os chilenos que vivem no estrangeiro, onde a pergunta de rigor é quando saiu do país; se foi antes de 1973 quer dizer que é de direita e fugiu do socialismo de Salvador Allende; se saiu entre 1973 e 1978 é seguramente um refugiado político; mas depois dessa data pode ser «exilado económico», como se qualificam os que emigraram à procura de oportunidades de trabalho. No entanto, é mais dificil determiná-lo entre os que ficaram no Chile, em parte porque se acostumaram a calar as suas opiniões.

 

                         Sereias olhando o mar

Ao compatriota que regressa ninguém lhe pergunta onde esteve nem o que viu; ao estrangeiro que chega de visita apressamo-nos a informá-lo que as nossas mulheres são as mais belas do mundo, a nossa bandeira ganhou um misterioso concurso internacional e o nosso clima é idílico. Mas a bandeira é quase igual à do Texas e o mais notável do nosso clima é que quando há seca no norte, o mais certo é haver inundações no sul. E quando digo inundações, refiro-me a dilúvios bíblicos que deixam um saldo de centenas de mortos, milhares de lesados e a economia em ruínas, mas servem para reactivar o mecanismo da solidariedade, que costuma avariar em tempos normais. Nós, Chilenos, adoramos o estado de emergência. Em Santiago a temperatura é pior do que em Madrid, no Verão morremos de calor e no Inverno de frio, mas ninguém tem ar condicionado ou um aquecimento decente, porque não pode pagá-los e além disso seria admitir que o clima não é tão bom como se diz. Quando o ar fica demasiado agradável, é sinal certo de que vai haver um tremor de terra. Temos mais de seiscentos vulcões, e nalguns deles ainda não arrefeceu a lava de antigas erupções; outros com poéticos nomes mapuches: Pirepillán, o demónio das neves; Petrohué, lugar de brumas. De vez em quando estes gigantes adormecidos agitam-se em sonhos com um longo bramido, e então o mundo parece que vai acabar. Dizem os peritos em terramotos que mais tarde ou mais cedo o Chile desaparecerá sepultado em lava ou arrastado para o fundo do mar por uma onda das que costumam levantar-se furiosas no Pacífico, mas espero que isto não desanime os potenciais turistas, porque é bastante remota a possibilidade de que tal ocorra justamente durante a sua visita.

Quanto à beleza feminina, isso exige um comentário à parte. Trata-se de um comovedor piropo a nível nacional. Na realidade nunca ouvi no estrangeiro que as chilenas sejam tão espectaculares como os meus amáveis compatriotas garantem. Não são melhores do que as venezuelanas, que ganham todos os concursos internacionais de beleza, ou as brasileiras, que pavoneiam as suas curvas de mulata nas praias, para só mencionar um par das nossas rivais; mas segundo a mitologia popular, desde tempos imemoriais os marinheiros desertam dos navios, apanhados pelas sereias de cabelos compridos que esperam, olhos fixos no mar, nas nossas praias. Esta monumental lisonja dos nossos homens é tão saborosa, que por ela, nós as mulheres estamos dispostas a perdoar-lhes muitas coisas. Como negar-lhes o que desejam se eles nos acham lindas? Se algo de verdade há nisto, talvez a atracção consista numa mistura de força e coqueteria a que poucos homens conseguem resistir, segundo dizem, embora tal não tenha sido em absoluto o meu caso. Contam-me os amigos que o jogo amoroso de olhares, de subentendidos, de dar rédea para logo puxar o freio, é o que os apaixona, mas suponho que isso não foi inventado no Chile, importámo-lo da Andaluzia.

Trabalhei durante vários anos numa revista feminina por onde passaram as modelos mais solicitadas e as candidatas ao concurso de Miss Chile. As modelos eram em geral tão anorécticas, que permaneciam a maior parte do tempo imóveis e com o olhar parado, como tartarugas, o que se tornava muito atraente, porque qualquer homem que se pusesse à frente delas podia imaginar que estavam embevecidas olhando-o a ele. Estas belezas pareciam turistas; pelas suas veias corria sem excepção sangue europeu: eram altas, magras, de pele e cabelo claros. Não é assim a chilena típica, a que se vê nas ruas, mulher mestiça, morena e para o baixo, embora deva admitir que as novas gerações cresceram. Os jovens de hoje parecem-me altíssimos (claro que eu meço um metro e meio...). Quase todas as personagens femininas das minhas novelas se inspiram nas Chilenas, que conheço bem, porque trabalhei com elas e para elas durante vários anos. Mais do que as jovens da classe alta, com as suas pernas longas e as suas melenas ruivas, impressionam-me as mulheres do povo, maduras, fortes, trabalhadoras, telúricas. Na juventude são amantes apaixonadas e depois são o pilar da sua família, boas mães e boas companheiras de homens que muitas vezes não as merecem. Debaixo das suas asas albergam os filhos próprios e alheios, amigos, parentes, chegados. Vivem cansadas e ao serviço dos outros, sempre a preterir-se, as últimas entre os últimos, trabalham sem tréguas e envelhecem prematuramente, mas não perdem a capacidade de rir-se de si mesmas, o romantismo para desejar que o seu companheiro seja outro e uma pequena chama de rebeldia no coração. A maioria tem vocação de mártir: são as primeiras a levantar-se para servir a família e as últimas a deitar-se; sentem orgulho do seu próprio sofrimento, do seu próprio sacrificio. Com que gosto suspiram e choram quando contam mutuamente os abusos do marido e dos filhos!

As Chilenas vestem-se com simplicidade, quase sempre de calças, usam o cabelo solto e muito pouca maquilhagem. Na praia ou numa festa andam todas iguais, parecem clones. Pus-me a folhear revistas antigas, desde finais dos anos sessenta até hoje, e vejo que neste sentido mudaram muito pouco em quarenta anos; creio que a única diferença é o volume do penteado. A nenhuma falta um «vestidito negro», sinónimo de elegância, que com poucas variações as acompanha desde a puberdade até ao caixão. Uma das razões pelas quais não vivo no Chile é porque não teria que vestir. O meu roupeiro contém véus, plumas e brilhantes suficientes para ataviar o elenco completo de O Lago dos Cisnes; além disso pintei o cabelo com todas as cores ao alcance da química e nunca saí da casa de banho sem maquilhagem nos olhos. Fazer dieta permanentemente é um símbolo de estatuto entre nós, apesar de em vários inquéritos os homens entrevistados usarem termos como «meiguinha, curvilínea, que tenha por onde agarrar», para descrever como preferem as mulheres. Não acreditamos neles: dizem-no para nos consolar... Por isso cobrimos as protuberâncias com coletes compridos e blusões engomados, ao contrário das caribenhas, que exibem com orgulho a sua abundância peitoral em decotes generosos e o traseiro forrado em spandex fluorescente. Quanto mais dinheiro tem uma mulher, menos come: a classe alta distingue-se pela magreza. Em todo o caso, a beleza é uma questão de atitude. Lembro-me de uma senhora que tinha o nariz de Cyrano de Bergerac. Dado o seu pouco êxito em Santiago, foi a Paris e pouco tempo depois apareceu fotografada em oito páginas a cores na mais sofisticada revista de moda, com um turbante na cabeça e... de perfil! A partir daí aquela dama com um nariz implantado passou à posteridade como símbolo da tão cacarejada beleza da mulher chilena.

Alguns frívolos opinam que o Chile é um matriarcado, talvez enganados pela tremenda personalidade das mulheres, que parecem ter a palavra decisiva na sociedade. São livres e organizadas, mantêm o seu nome de solteira quando se casam, competem de igual para igual no campo do trabalho e não só dirigem as suas famílias como também, com alguma frequência, as mantêm. São mais interessantes que a maioria dos homens mas isso não impede que vivam num patriarcado implacável. Em princípio, o trabalho ou o intelecto de uma mulher não são respeitados; temos de fazer o dobro do esforço de qualquer homem para obter metade do reconhecimento. E que dizer no campo da literatura? O melhor é nem falarmos disso, porque me faz subir a tensão. Os homens têm o poder económico e político, que passam de uns para os outros, como uma corrida de estafetas, enquanto as mulheres, salvo algumas excepções, ficam à margem. O Chile é um país machista: anda tanta testosterona no ar, que é um milagre que às mulheres não lhes cresçam pêlos na cara.

No México o machismo exibe-se em toda a parte, mas entre nós é mais dissimulado, embora nem por isso menos maligno. Os sociólogos procuraram as suas causas recuando no tempo até à conquista, mas como se trata de um problema mundial, as raízes devem ser muito mais antigas. Não é justo lançar as culpas de tudo sobre os Espanhóis. Seja como for, repetirei o que tenho lido por aí. Os índios araucanos eram polígamos e tratavam as mulheres com bastante rudeza; costumavam abandoná-las com os filhos e partir em grupo à procura de outros terrenos de caça, onde formavam novos casais e tinham mais filhos, que logo deixavam também para trás. As mães tomavam conta das crias como podiam, costume esse que de certa forma perdura na psique do nosso povo; as Chilenas tendem a aceitar - mas não a perdoar o abandono do homem, porque lhes parece um mal endémico, próprio da natureza masculina. Pelo seu lado, os conquistadores espanhóis, na sua maioria, não trouxeram as respectivas mulheres, arranjavam-se com as índias, a quem davam muito menos valor do que a um cavalo. Dessas uniões desiguais nasciam filhas humilhadas que por sua vez seriam violadas, e filhos que temiam e admiravam o pai soldado, irascível, volúvel, possuidor de todos os direitos, incluindo o da vida e da morte. Ao crescer identificavam-se com ele, nunca com a raça vencida da mãe. Alguns conquistadores chegaram a ter trinta concubinas, sem contar as mulheres que violavam e abandonavam em poucos minutos. A Inquisição encarniçava-se contra os Mapuches devido aos seus costumes polígamos, mas fazia vista grossa ante os serralhos de índias cativas que acompanhavam os espanhóis, porque a multiplicação de mestiços significava súbditos para a coroa espanhola e almas para a religião cristã. Daqueles abraços violentos provém o nosso povo e ainda no dia de hoje os homens actuam como se estivessem em cima do seu cavalo olhando o mundo do alto, mandando, conquistando. Como teoria não está mal... não é verdade?

As Chilenas são cúmplices do machismo: educam as filhas para servir e os filhos para serem servidos. Por um lado lutam pelos seus direitos e trabalham sem descanso, por outro atendem o marido e os filhos varões, secundadas pelas filhas, a quem inculcam desde pequenas as suas obrigações. As jovens modernas rebelam-se, é verdade, mas logo que se apaixonam repetem o esquema aprendido, confundindo amor com serviço. Entristece-me ver essas raparigas esplêndidas servindo os noivos como se estes fossem inválidos. Não só lhes põem a comida no prato, também se oferecem para lhes cortar a carne. Fazem-me pena porque eu era igual. Houve recentemente uma personagem cómica da televisão que teve um grande sucesso: um homem vestido de mulher que imitava a esposa modelo. A pobre Elvira - assim se chamava - engomava camisas, cozinhava pratos complicadíssimos, fazia as tarefas dos filhos, encerava o chão à mão e, além disso, voava a arranjar-se antes que o seu homem chegasse, para que este não a achasse feia. Nunca descansava e era culpada de tudo. Chegava a correr uma maratona pela rua atrás do autocarro onde ia o marido, para lhe entregar a pasta de que ele se tinha esquecido. Os homens riam a bom rir com o programa, mas as mulheres sentiam-se de tal modo incomodadas que acabaram com ele: não lhes agradava verem-se retratadas tão fielmente pela inefável Elvira.

O meu marido americano, que executa metade das tarefas domésticas em nossa casa, escandaliza-se com o machismo chileno. Quando um homem lava o prato em que comeu, considera que «está a ajudar» a sua mulher ou a sua mãe, e espera ser elogiado por isso. Entre as nossas amizades chilenas há sempre uma mulher que leva o pequeno-almoço numa bandeja à cama dos filhos adolescentes, lhes lava a roupa e lhes faz a cama. Se não há uma «náná», fá-lo a mãe ou a irmã, coisa que jamais aconteceria nos Estados Unidos. Willie também fica espantado com a instituição da empregada doméstica. Prefiro não lhe contar que em décadas anteriores os deveres destas mulheres costumavam ser bastante íntimos, embora nunca se falasse disso: as mães fechavam os olhos, enquanto os pais se ufanavam das proezas do jovem no quarto da criada. É «filho de tigre», diziam, recordando as suas próprias experiências. A ideia geral era que, ao aliviar-se com a criada, o rapaz não se excederia com alguma menina do seu meio social e, em todo o caso, era mais seguro fazê-lo com ela do que com uma prostituta. Nos campos existia uma versão crioula do «direito de pernada», que em tempos feudais permitia que o senhor violasse as noivas antes da sua primeira noite de casadas. Entre nós a coisa não era tão organizada: o patrão deitava-se com quem e quando lhe apetecia. Assim semearam as suas terras de bastardos; existem regiões onde praticamente toda a gente tem o mesmo apelido. (Um dos meus antepassados orava de joelhos depois de cada violação: «Senhor, não fornico por gosto ou por vício, mas para dar filhos ao teu serviço...») Hoje as «nánás» emanciparam-se tanto que as patroas preferem contratar imigrantes ilegais do Peru, a quem ainda podem maltratar como antes faziam com as Chilenas.

Em matéria de educação e saúde, as mulheres estão a par ou acima dos homens, mas não é assim no que se refere a oportunidades e poder político. O normal no campo laboral é que elas façam o trabalho pesado e eles mandem. Poucas ocupam os postos mais altos do Governo, da indústria, das empresas privadas ou públicas: esbarram num muro que as impede de alcançar o topo. Quando alguma atinge um nível elevado, digamos ministra no Governo ou administradora de um banco, isso é motivo de assombro e admiração. Nos últimos dez anos, contudo, a opinião pública tem uma percepção positiva das mulheres como líderes políticos, vê-as como uma alternativa viável, porque demonstraram ser mais honestas, eficientes e trabalhadoras do que os homens. Quando elas se organizam conseguem exercer grande influência, mas parecem não ter consciência da sua própria força. Durante o governo de Salvador Allende, as mulheres da direita saíram à rua de caçarola na mão em protesto contra a falta de bens alimentares e lançaram penas de galinha na Escola Militar, incitando os soldados à subversão. Contribuíram assim para provocar o golpe militar. Anos depois, outras mulheres foram as primeiras a sair à rua para denunciar a repressão dos militares, enfrentando canhões de água, bastões e balas. Formaram um grupo poderoso chamado Mulheres pela Vida, que desempenhou um papel fundamental no derrube da ditadura, mas depois das eleições decidiram dissolver o movimento. Mais uma vez, cederam o seu poder aos varões.

Devo esclarecer que as Chilenas, tão pouco agressivas na luta pelo poder político, são verdadeiras guerreiras no que se refere ao amor. Quando apaixonadas, são muito perigosas. E, há que dizê-lo, apaixonam-se muitíssimo. Segundo as estatísticas, cinquenta e oito por cento das casadas são infiéis. Lembro-me agora que é frequente os casais cruzarem-se: enquanto o homem seduz a esposa do seu melhor amigo, a sua própria mulher deita-se no mesmo motel com o bom amigo. Nos tempos coloniais, quando o Chile dependia do vice-reinado de Lima, chegou um padre dominicano do Peru, enviado pela Inquisição, para acusar umas senhoras da sociedade de praticarem sexo oral com os maridos (como o descobriu?). O processo não chegou a lado nenhum, porque as damas não se deixaram esmagar. Nessa mesma noite mandaram os maridos, que afinal também tinham participado no pecado, se bem que a eles ninguém os julgasse, dissuadir o inquisidor. Surpreenderam o cura num beco escuro e sem mais o caparam, como a um novilho. O pobre dominicano voltou a Lima sem testículos e nunca mais se falou no assunto.

Não chegando a tais extremos, tenho um amigo que não conseguia livrar-se de uma amante apaixonada e que, por fim, a deixou um dia a dormir a sesta e saiu em passo de corrida. Havia enfiado uns quantos pertences numa mochila e corria pela rua atrás de um táxi, quando sentiu que um urso lhe caía em cima, atirando-o de bruços ao chão, onde ficou esmagado como uma barata: era a amante, que tinha saído em sua perseguição completamente nua e aos gritos. Das casas do bairro assomaram curiosos a gozar o espectáculo. Os homens observavam divertidos, mas logo que outras mulheres compreenderam do que se tratava ajudaram na tarefa de dominar o meu escorregadio amigo. Por último algumas delas pegaram nele e levaram-no de volta, suspenso no ar, até à cama que tinha abandonado durante a sesta.

Poderia dar centenas de outros exemplos, mas suponho que este é suficiente.

 

                         Rezando a Deus

O que acabei de contar sobre as damas da época colonial que desafiaram a Inquisição é um daqueles momentos excepcionais na nossa história; na realidade, o poder da Igreja católica é inquestionável e agora, com o avanço dos movimentos fundamentalistas católicos, como o Opus Dei e os Legionários de Cristo, é muito pior.

Os Chilenos são religiosos, embora a sua prática tenha muito mais de fetichismo e superstição do que de inquietação mística ou conhecimento teológico. Ninguém se diz ateu, nem mesmo os comunistas de pura cepa, porque esse termo é considerado um insulto, prefere-se a palavra agnóstico. Em geral, até os mais incrédulos se convertem no momento da morte, já que é muito o que arriscam não o fazendo e uma confissão de última hora não faz mal a ninguém. Esta compulsão espiritual vem da própria terra: um povo que vive entre montanhas, eleva logicamente os olhos para o céu. As manifestações de fé são impressionantes. Convocados pela Igreja saem milhares e milhares de jovens em longas procissões, com velas e flores, louvando a Virgem Maria ou implorando a paz em altos gritos, com o mesmo entusiasmo com que noutros países guincham nos concertos de rock. Rezar o terço em família e o mês de Maria costumavam ser um sucesso rotundo, mas agora as telenovelas ganharam mais adeptos.

É claro que nunca faltaram esotéricos na minha família. Um dos meus tios passou setenta anos da sua vida a predicar o encontro com o nada; tem muitos seguidores. Se na minha juventude lhe tivesse prestado atenção, hoje não estaria a estudar budismo e a tentar em vão deixar de pensar na aula de ioga. Aquela centenária tia demente, disfarçada de freira, que tentava regenerar as prostitutas da rua Maipú, não chegava, em matéria de santidade, aos calcanhares de uma irmã da minha avó a quem cresceram asas. Não eram asas com plumas doiradas, como as dos anjos renascentistas, que chamassem a atenção, mas discretos cotozitos nos ombros, erradamente diagnosticados pelos médicos como deformação nos ossos. Às vezes, segundo o ângulo da iluminação, podíamos ver-lhe a auréola como um prato de luz flutuando por cima da cabeça. Contei a sua história nos Contos de Eva Luna e não vou agora repeti-la; basta dizer que, em contraste com a tendência generalizada para se queixar de tudo, característica dos Chilenos, ela andava sempre contente, embora tenha tido um destino trágico. Noutra pessoa essa atitude de injustificada felicidade teria sido imperdoável, mas àquela mulher transparente tudo se tolerava. Tive sempre a sua fotografia sobre a minha mesa de trabalho, para a reconhecer quando entra dissimuladamente nas páginas de um livro ou quando me aparece em algum recanto da casa.

No Chile abundam santos para todos os fins, o que não admira, porque é o país mais católico do mundo, mais do que a Irlanda e certamente muito mais do que o Vaticano. Há alguns anos tivemos uma donzela, muito parecida de figura com a estátua do mártir São Sebastião, que realizava curas notáveis. Caíram-lhe em cima a imprensa, a televisão e multidões de peregrinos, que não lhe davam um minuto de descanso. Ao ser examinada de perto verificou-se que se tratava de um travesti, mas isso não lhe tirou prestígio nem pôs fim aos prodígios, bem pelo contrário. Despertamos a cada instante com o anúncio de que outro santo ou um novo Messias fez a sua aparição, o que atrai sempre multidões esperançadas. Nos anos setenta, quando trabalhava como jornalista, fui incumbida de fazer uma reportagem sobre o caso de uma rapariga à qual se atribuíam profecias e o dom de sarar animais e consertar motores avariados sem lhes tocar. A cabana humilde onde vivia enchia-se de camponeses que ali acorriam todos os dias, sempre à mesma hora, para assistirem aos seus discretos milagres. Garantiam que uma invisível chuva de pedras desabava sobre o tecto da choça com uma barulheira de fim do mundo, a terra tremia e a jovem caía em transe. Tive a oportunidade de assistir a dois destes eventos e comprovei o transe, durante o qual a santa adquiria a descomunal força fisica de um gladiador, mas não me recordo de caírem penhascos do céu nem da terra tremer. É possível que, tal como explicou um pregador evangélico do lugar, isso não acontecesse devido à minha presença: eu era uma descrente capaz de arruinar o mais legítimo dos milagres. Em todo o caso, o assunto saiu nos jornais e o interesse popular pela santa foi subindo de tom, até que chegou o exército e lhe pôs fim à sua maneira. Dez anos mais tarde incluí a história num dos meus romances.

Os católicos são a maioria no país, mesmo que haja cada vez mais evangélicos e pentecostais, que irritam toda a gente porque tratam directamente com Deus, quando os demais têm de passar pela burocracia sacerdotal. Os mórmones, que também são bastantes e muito poderosos, ajudam os seus adeptos como uma verdadeira agência de emprego, tal como antes faziam os membros do partido radical. O resto são judeus, uns poucos muçulmanos e, entre os da minha geração, espiritualistas da Nova Era, um cocktail de ecologia, cristianismo, práticas budistas, uns quantos ritos recentemente resgatados das reservas indígenas e o acompanhamento habitual de gurus, astrólogos, psíquicos e outros guias da alma. Desde que se privatizou o sistema de saúde e os medicamentos são um negócio imoral, a medicina folclórica e oriental, as machis ou meicas, os xamãs indígenas, o ervário autóctone e as curas milagrosas substituíram em parte a medicina tradicional, com iguais resultados. Metade dos meus amigos está nas mãos de algum psíquico que lhes dirige o destino e os mantém sãos lavando-lhes a aura, impondo-lhes as mãos ou conduzindo-os em viagens astrais. Na última vez que estive no Chile fui hipnotizada por um amigo, que está a estudar para curandeiro, e me fez retroceder várias encarnações. Não foi fácil regressar ao presente, porque o meu amigo ainda não tinha concluído o curso, mas a experiência valeu a pena, porque descobri que em vidas anteriores não fui Gengis Khan, como pensa a minha mãe.

Não consegui livrar-me por completo da religião e perante qualquer apuro a primeira coisa que me ocorre é rezar, pelo sim pelo não, como o fazem todos os Chilenos, mesmo os ateus, perdão, agnósticos. Digamos que preciso de um táxi; a experiência demonstrou-me que basta um pai-nosso para que ele apareça. Houve uma época, entre a infância e os quinze anos, em que alimentei a fantasia de ser freira, para dissimular o facto de, seguramente, nunca conseguir arranjar um marido, ideia que não descartei; ainda me assalta a tentação de acabar os meus dias na pobreza, no silêncio e na solidão de uma ordem beneditina ou num mosteiro budista. As subtilezas teológicas não importam, o que me agrada é o estilo de vida. Apesar da minha invencível frivolidade, a existência monástica parece-me atraente. Aos quinze anos afastei-me para sempre da Igreja e ganhei horror às religiões em geral e às monoteístas em particular. Não estou sozinha nesta posição, muitas mulheres da minha idade, guerrilheiras da libertação feminina, também não se sentem bem nas religiões patriarcais - haverá alguma que o não seja? - e tiveram de inventar os seus próprios cultos, que no Chile, todavia, têm sempre um matiz cristão. Por mais animista que alguém se declare, terá sempre uma cruz em casa ou pendurada ao peito. A minha religião, para o caso de alguém se interessar, limita-se a uma pergunta simples: O que é que de mais generoso se pode fazer nesse caso? Se a pergunta não se aplicar à situação em apreço, tenho outra: «Que pensaria disto o meu avô? O que não impede que me persigne em momento de aflição.

Costumava eu dizer que o Chile é um país fundamentalista, mas depois de comprovar os excessos dos Talibãs, sou obrigada a moderar o meu juízo. Talvez não sejamos fundamentalistas, mas pouco nos falta. Tivemos a sorte, isso sim, de, ao contrário do que acontece noutros países latino-americanos, a Igreja católica - com poucas e lamentáveis excepções - ter estado quase sempre do lado dos pobres, o que lhe granjeou imenso respeito e simpatia. Nos tempos da ditadura muitos párocos e freiras assumiram a tarefa de ajudar as vítimas da repressão e pagaram caro por isso. Como disse Pinochet em 1979, «os únicos que choram pela restauração da democracia no Chile são os políticos e um ou dois sacerdotes». (Essa era a época em que, segundo os generais, o Chile gozava de uma «democracia totalitária».)

As igrejas enchem-se aos domingos e o Papa é venerado, embora quase ninguém lhe obedeça no que diz respeito aos anticoncepcionais: parte-se do princípio básico de que um ancião celibatário, que não precisa de ganhar a vida, não pode ser um perito nesse delicado assunto. A religião é colorida e ritualista. Não temos carnavais, mas em troca temos procissões. Cada santo distingue-se pela sua especialidade, como os deuses do Olimpo: para devolver a vista aos cegos, para castigar maridos infiéis, para encontrar noivo, para protecção dos automobilistas; mas o mais popular é sem dúvida o Padre Hurtado, que ainda não é santo, mas todos esperamos que em breve o seja, embora o Vaticano não se caracterize pela celeridade nas suas decisões. Este extraordinário sacerdote fundou uma obra chamada El Hogar de Cristo, que hoje é uma empresa multimilionária dedicada por inteiro a ajudar os pobres. O Padre Hurtado é tão milagroso, que raramente lhe pedi algo que não se tenha cumprido, mediante o pagamento de uma justa soma às suas obras de caridade ou de algum sacrificio importante. Devo ser uma das poucas pessoas vivas que leram os três volumes completos da imortal epopeia La Araucana, em verso rimado e espanhol antigo. Não o fiz por curiosidade nem para dar ares de culta, mas para cumprir uma promessa que fiz ao Padre Hurtado. Este homem de coração límpido afirmava que a crise moral se gera quando os próprios católicos que vivem na opulência vão à missa e ao mesmo tempo negam aos seus trabalhadores um salário digno. Estas palavras deveriam estar gravadas nas notas de mil pesos, para que nunca fossem esquecidas.

Existem também várias representações da Virgem Maria, que são rivais entre si; os fiéis da Virgem del Carmen, padroeira das Forças Armadas, consideram inferiores a Virgem de Lourdes ou La Tirana, sentimento que se paga com iguais finezas pelos devotos destas. A propósito de La Tirana, vale a pena referir que no Verão se celebra a sua festa num santuário próximo da cidade de Iquique, no norte, onde os grupos de devotos dançam em sua honra. Aproxima-se um pouco da ideia do carnaval brasileiro, mas guardando as devidas proporções porque, como eu já disse, no Chile não somos gente extrovertida. As escolas de dança preparam-se durante todo o ano ensaiando as coreografias e fabricando o vestuário, e no dia marcado dançam perante a santa disfarçados, por exemplo, de Batman. As raparigas usam nesse dia decotes bem expressivos, vestem mini-saias que apenas lhes tapam o traseiro e calçam botas de salto alto. Não é raro, por isso, que a Igreja se veja obrigada a moderar estas demonstrações de fé popular.

Como se o numeroso e variegado rol de santos não bastasse, ainda contamos com uma saborosa tradição oral de espíritos malignos, intervenções do demónio, mortos que se levantam dos túmulos. O meu avô jurava que o diabo lhe apareceu num autocarro e que o reconheceu porque tinha patas verdes de bode. Em Chiloé, um conjunto de ilhas no sul do país, frente a Puerto Montt, contam-se histórias de feiticeiras e monstros maléficos; da Pincoya, uma formosa donzela que sai da água para apanhar os homens incautos; do Caleuche, um barco encantado que leva os defuntos. Nas noites de lua cheia brilham luzes indicando os sítios onde há tesouros escondidos. Diz-se que em Chiloé existiu durante muito tempo um governo de bruxos, chamado a Recta Província, que se reunia em cavernas durante a noite. Os guardiões dessas cavernas eram os «imbunches», pavorosas criaturas que se alimentam de sangue, às quais os bruxos quebraram os ossos e coseram as pálpebras e o ânus. A imaginação chilena para a crueldade nunca pára de me surpreender...

Chiloé tem uma cultura diferente da do resto do país e as pessoas têm tanto orgulho do seu isolamento que se opõem à construção de uma ponte para unir a ilha grande a Puerto Montt. É um lugar tão extraordinário, que todos os Chilenos e os turistas deviam visitá-lo pelo menos uma vez, mesmo correndo o risco de ficarem para sempre. Os chilotes vivem como há cem anos, dedicados à agricultura, à pesca artesanal e à indústria do salmão. A construção é integralmente de madeira e no coração de todas as casas há um grande fogão a lenha aceso dia e noite para cozinhar e dar calor à família, aos amigos e inimigos reunidos à sua volta. O cheiro dessas casas no Inverno é uma recordação inapagável: lenha perfumada e ardente, lã molhada, sopa no tacho... Os chilotes foram os últimos a render-se à república quando o Chile declarou a sua independência da Espanha e em 1826 pretenderam unir-se à coroa de Inglaterra. Dizem que a Recta Provincia, atribuída aos bruxos, foi na realidade um governo paralelo, nos tempos em que os habitantes se negavam a aceitar a autoridade da república chilena.

A minha avó Isabel não acreditava em bruxas, mas não me espantaria se alguma vez tentasse voar numa vassoura, porque passou a sua existência a praticar fenómenos paranormais e a tentar comunicar com o Além, actividade que naquela época a Igreja católica via com muito maus olhos. De algum modo a boa senhora arranjou as coisas de forma a atrair forças misteriosas que moviam a mesa nas suas sessões de espiritismo. Essa mesa está hoje em minha casa, depois de ter dado a volta ao mundo várias vezes, seguindo o meu padrasto na sua carreira diplomática, e de se ter perdido durante os anos do exílio. A minha mãe recuperou-a mediante um golpe de astúcia e enviou-ma de avião para a Califórnia. Teria sido mais barato mandar um elefante, porque se trata de um pesado móvel espanhol de madeira talhada, com um formidável pé no centro, formado por quatro leões ferozes. São precisos três homens para a levantar. Não sei qual era o truque da minha avó para fazê-la dançar pela sala empurrada suavemente pelo seu dedo indicador. Esta senhora convenceu a sua descendência que depois de morrer viria de visita quando a chamassem e suponho que manteve a promessa. Não presumo que o seu fantasma, ou qualquer outro, me acompanhe todos os dias - suponho que terá assuntos mais importantes a tratar -, mas agrada-me a ideia de que esteja disposto a acudir em caso de necessidade imperiosa.

Essa boa mulher afirmava que todos possuímos poderes psíquicos, mas como não os praticamos, eles atrofiam-se - como os músculos - e acabam por desaparecer. Devo deixar claro que as suas experiências parapsicológicas nunca foram uma actividade macabra, nada de salas escuras, candelabros mortuários nem música de orgão, como na Transilvânia. A telepatia, a capacidade de mover objectos sem lhes tocar, a clarividência ou a comunicação com as almas do Além sucediam a qualquer hora do dia e do modo mais casual. Por exemplo, a minha avó não confiava nos telefones, que no Chile foram um desastre até se inventar o telemóvel, pelo que usava a telepatia para ditar receitas de tarte de maçã às três irmãs Morla, suas compinchas da Irmandade Branca, que viviam do outro lado da cidade. Nunca se comprovou se o método funcionava porque as quatro eram péssimas cozinheiras. A Irmandade Branca era formada por essas excêntricas senhoras e pelo meu avô, que não acreditava em nada daquilo, mas insistia em acompanhar a mulher para a proteger em caso de perigo. O homem era céptico por natureza e nunca aceitou a possibilidade de as almas dos mortos moverem a mesa, mas quando a sua mulher sugeriu que talvez não fossem almas, mas extraterrestres, ele abraçou a ideia com entusiasmo, porque lhe pareceu uma explicação mais científica.

Não há nada de estranho em tudo isto. Metade do Chile guia-se pelo horóscopo, por adivinhas ou pelos vagos prognósticos do I Chin, e a outra metade pendura cristais ao pescoço ou estuda feng-shui. No consultório sentimental da televisão resolvem os problemas com as cartas do Tarot. A maior parte dos antigos revolucionários da esquerda militante dedicam-se agora a práticas espirituais. (Entre a guerrilha e o esoterismo há um passo dialéctico que não consigo precisar.) As sessões da minha avó parecem-me mais razoáveis do que as promessas aos santos, as compras de indulgências para ganhar o céu, ou as peregrinações das beatas locais em autocarros cheios de gente. Ouvi muitas vezes dizer que a minha avó movia o açucareiro sem lhe tocar, só com a sua força mental. Não sei bem se alguma vez vi esta proeza ou se, de tanto a ouvir, acabei por me convencer de que é real. Não me lembro do açucareiro, mas parece-me que havia uma campainha de prata com um príncipe efeminado em cima, que se usava à mesa para chamar a criada entre cada prato. Não sei se sonhei o episódio, se o inventei ou se na realidade aconteceu: vejo a campainha deslizando silenciosamente sobre a toalha, como se o príncipe tivesse ganho vida própria, dar uma volta olímpica, ante a estupefacção dos comensais, e regressar para junto da minha avó, na cabeceira da mesa. Isto acontece-me com muitos eventos e histórias da minha existência, que me parece ter vivido, mas que ao reduzi-los a escrito e confrontá-los com a lógica resultam algo improváveis, mas o problema não me preocupa. Que importa se na realidade sucederam ou se os imaginei? Seja como for, a vida é sonho.

Não herdei os poderes psíquicos da minha avó, mas ela abriu-me a mente aos mistérios do mundo. Aceito que qualquer coisa seja possível. Ela afirmava que existem múltiplas dimensões da realidade e não é prudente confiar só na razão e nos nossos limitados sentidos para entender a vida; existem outras ferramentas de percepção, como o instinto, a imaginação, os sonhos, as emoções, a intuição. Iniciou-me no realismo mágico muito antes de o chamado boom da literatura latino-americana o ter posto na moda. Isto serviu-me no meu trabalho, porque enfrento cada livro segundo o mesmo critério com que ela conduzia as suas sessões: chamando os espíritos com delicadeza, para que me contem as suas vidas. As personagens literárias, tal como os aparecidos da minha avó, são seres frágeis e assustadiços; devem ser tratados com todo o cuidado, para que se sintam comodamente nas páginas.

Aparecidos, mesas que se movem sozinhas, santos milagreiros e diabos com patas verdes nos transportes colectivos, tornam a vida e a morte mais interessantes. As almas penadas não reconhecem fronteiras. Tenho um amigo no Chile que acorda à noite com a visita de uns africanos altos e magros, vestidos com túnicas e armados de lanças, que só ele consegue ver. A mulher, que dorme ao lado, nunca viu os africanos, só viu duas senhoras inglesas do século xix que atravessam as portas. E outra minha amiga, em cuja casa de Santiago caíam misteriosamente as lâmpadas e se viravam as cadeiras, descobriu que a causa eram os ossos de um geógrafo dinamarquês, que desenterraram no pátio, onde jazia junto dos seus mapas e do seu bloco de notas. Como veio o pobre morto parar tão longe? Nunca o saberemos, mas o facto é que rezadas várias novenas e ditas umas quantas missas o infeliz geógrafo foi-se embora. Parece que em vida era calvinista ou luterano e não lhe agradaram os ritos papistas.

A minha avó afirmava que o espaço está cheio de presenças, os mortos e os vivos todos misturados. É uma ideia estupenda, por isso o meu marido e eu construímos no Norte da Califórnia uma casa grande, de tectos altos, vigas e arcos, capaz de convidar os fantasmas de várias épocas e latitudes, especialmente os do sul. Numa tentativa de imitar o casarão dos meus bisavós, deteriorámo-la mediante o esforçado e dispendioso trabalho de atacar as portas à martelada, manchar as paredes com tinta, oxidar os ferros com ácido e espezinhar o jardim. O resultado é bastante convincente; creio que algumas almas distraídas podem instalar-se entre nós, enganadas pelo aspecto da propriedade. Durante o processo de lhe deitar séculos em cima, os vizinhos observavam da rua com a boca aberta, sem perceberem para que construímos uma casa nova se queríamos uma velha. Na Califórnia não se usa o estilo colonial chileno e, de resto, nada é realmente antigo. Não esqueçamos que antes de 1849 São Francisco não existia, no seu lugar havia uma aldeia chamada Yerba Buena, povoada por um punhado de mexicanos e mórmones. Os únicos visitantes eram traficantes de peles. Foi a febre do oiro que atraiu multidões. Uma casa com a aparência da nossa é uma impossibilidade histórica por estes lados.

 

                         A paisagem da infância

Não é nada fácil determinar como é uma família chilena típica, mas posso dizer, sem medo de errar, que típica é que a minha não era. Tão pouco eu fui uma típica jovem, de acordo com os cânones do meio em que me criei. Digamos que passei despercebida. Descreverei um pouco da minha juventude, a ver se de caminho clarifico alguns aspectos da sociedade do meu país, que nesse tempo era bastante mais intolerante do que agora, o que já é dizer muito. A Segunda Guerra Mundial foi um cataclismo que abalou o mundo e mudou tudo, desde a geopolítica e a ciência, até aos costumes, a cultura e a arte. Novas ideias varreram sem contemplações aquelas que suportaram a sociedade durante os séculos anteriores, mas as inovações demoravam muito a navegar por dois oceanos ou cruzar o muro infranqueável da cordilheira dos Andes. Tudo chegava ao Chile com vários anos de atraso.

A minha avó vidente morreu subitamente de leucemia. Não lutou para viver, entregou-se à morte com entusiasmo porque sentia uma grande curiosidade de ver o céu. Durante a sua existência neste mundo teve a sorte de ser amada e protegida pelo marido, que aguentou de boa cara as suas extravagâncias, caso contrário talvez tivesse acabado internada num asilo para loucos.

Li algumas cartas que deixou escritas pelo seu punho, onde se revela uma mulher melancólica, com um fascínio mórbido pela morte; não obstante recordo-a como um ser luminoso, irónico e cheio de gosto pela vida. A sua ausência foi sentida como um vento de catástrofe, a casa ficou de luto e eu aprendi a ter medo. Temia o diabo que aparecia nos espelhos, os fantasmas que deambulavam pelos cantos, os ratos na cave, receava que a minha mãe morresse e eu fosse parar a um orfanato, temia que o meu pai aparecesse - esse homem cujo nome não se podia pronunciar - e me levasse para longe, tinha medo de cometer pecados e ir para o inferno, das ciganas e das lagartas com as quais a ama me ameaçava; enfim, a lista era interminável, existiam razões de sobra para viver apavorada.

O meu avô, furioso ao ver-se abandonado pelo grande amor da sua vida, vestiu-se de negro dos pés à cabeça, pintou os móveis da mesma cor e proibiu festas, música, flores e sobremesas. Passava o dia no escritório, almoçava no centro, jantava no clube da União e nos fins-de-semana jogava golfe e pelota basca ou ia esquiar para as montanhas. Foi um dos que iniciaram este desporto nos tempos em que subir às canchas era uma odisseia equivalente a escalar o Evereste; nunca imaginou que um dia o Chile seria a meca dos desportos de Inverno, onde se treinam as equipas olímpicas de todo o mundo. Só o víamos um minuto pela manhã muito cedo; mas nem por isso deixou de ser decisivo na minha formação. Antes de irmos para o colégio, os meus irmãos e eu íamos cumprimentá-lo; recebia-nos no seu quarto de móveis fúnebres, que cheirava a um sabão inglês da marca Lifebuoy.

Nunca nos fez uma carícia - considerava esse gesto malsão -, mas uma palavra sua de aprovação valia qualquer esforço. Mais tarde, aí pelos meus sete anos, quando comecei a ler o jornal e a fazer perguntas, notou a minha presença e então iniciou-se uma relação que haveria de prolongar-se muito depois da sua morte, porque ainda hoje continuo a ter a marca da sua mão no meu carácter e alimento-me das histórias que me contou.

A minha infância não foi alegre, mas foi interessante. Não me aborrecia graças aos livros de meu tio Pablo, que ainda era solteiro e vivia connosco. Era um leitor impenitente; os seus volumes empilhavam-se no chão, cobertos de pó e teias de aranha. Roubava livros das livrarias e dos seus amigos sem problemas de consciência, porque considerava que todo o material impresso - menos o seu - era património da humanidade. Deixava-me lê-los porque decidiu passar-me o seu vício da leitura a qualquer custo: ofereceu-me uma boneca quando acabei de ler Guerra e Paz, um livro espesso com letra minúscula. Não havia censura naquela casa, mas o meu avô não permitia as luzes acesas no meu quarto depois das nove da noite, por isso o tio Pablo ofereceu-me uma lanterna de pilhas. As melhores recordações desses anos são os livros que li debaixo dos lençóis à luz da minha lanterna. As crianças chilenas liam as novelas de Emílio Salgari e Júlio Verne, o Tesouro da Juventude e colecções de novelazinhas edificantes, que promoviam a obediência e a pureza como virtudes máximas; também a revista El Peneca, que se publicava todas as semanas à quarta-feira. Eu esperava-a à porta logo a partir de terça-feira, para impedir que ela caísse nas mãos de meus irmãos antes de estar nas minhas. Devorava-a como aperitivo, para atacar logo de seguida pratos mais suculentos, como Ana Karenina e Os Miseráveis. À sobremesa saboreava contos de fadas. Esses livros estupendos permitiram-me fugir da realidade mais sórdida daquela casa enlutada, onde as crianças, tal como os gatos, eram um estorvo.

A minha mãe, uma jovem solteira de novo, uma vez que conseguiu anular o seu casamento, e a viver à sombra do pai, contava com alguns admiradores, calculo que uma ou duas dúzias. Além de ser bela, tinha aquele aspecto etéreo e vulnerável de algumas raparigas de antigamente, completamente perdido nestes tempos em que as fêmeas levantam pesos. A sua fragilidade acabava por ser muito atraente, porque até o mais enfermiço dos homens se sentia forte a seu lado. Era uma dessas mulheres que apetece proteger, exactamente o contrário de mim, que sou um tanque em plena marcha. Em vez de se vestir de negro e chorar pelo abandono do seu frívolo marido, como se esperava dela, procurava divertir-se na medida do possível, que era mínimo, porque então as damas não podiam ir a um salão de chá sozinhas, muito menos ao cinema. A censura classificava os filmes de algum interesse como «não recomendáveis a meninas», o que significava que só podiam vê-los acompanhadas por um homem da família, o qual se responsabilizava pelos danos morais que o espectáculo viesse a provocar na sensível psique feminina. Foram preservadas algumas fotografias desses anos nas quais minha mãe aparece como uma irmã mais nova da actriz Ava Gardner. Possuía uma beleza sem artificios: a pele luminosa, o riso fácil, feições clássicas e uma grande elegância natural, razões de sobra para que as más-línguas a não deixassem em paz. Se os seus pretendentes platónicos espantavam a hipócrita sociedade santiaguense, imagine-se o escândalo que foi ao saber-se dos seus amores com um homem casado, pai de quatro filhos e sobrinho de um bispo.

Entre muitos candidatos, a minha mãe escolheu o mais feio de todos. Ramón Huidobro parecia um sapo verde, mas com o beijo de amor transformou-se em príncipe, como no conto, e agora posso jurar que é bonitão. Relações clandestinas sempre tinham existido, nisso nós Chilenos somos peritos, mas de clandestino esse romance nada tinha, transformando-se rapidamente num segredo em voz alta. Ante a impossibilidade de dissuadir a filha ou de impedir o escândalo, o meu avô decidiu atalhar terreno e trouxe o amante a viver sob o seu tecto, desafiando a sociedade inteira e a Igreja. O bispo em pessoa veio com a intenção de repor as coisas no seu lugar, mas o meu avô conduziu-o amavelmente até à porta, argumentando que com os seus pecados podia ele e com os de sua filha também. Esse amante viria a ser o meu padrasto, o incomparável tio Ramón, amigo, confidente, meu único e verdadeiro pai; mas quando foi viver para nossa casa considerei-o um inimigo e decidi tornar-lhe a vida impossível. Cinquenta anos mais tarde ele garante que isto não é verdade, que eu nunca lhe declarei guerra; mas di-lo por nobreza, para me aliviar a consciência, porque recordo muito bem os planos que elaborei para lhe dar uma morte lenta e dolorosa.

O Chile é possivelmente o único país da galáxia onde não existe o divórcio, porque ninguém se atreve a desafiar os padres, apesar de setenta e um por cento da população o reclamar desde há muito tempo. Nenhum parlamentar, nem sequer os que se separaram das suas mulheres e se juntaram com uma série de outras em rápida sucessão, faz frente aos padres. O resultado é que a lei do divórcio dorme ano após ano no arquivo de assuntos pendentes e quando finalmente for aprovada terá tantas restrições e condicionamentos, que será mais eficaz assassinar o cônjuge do que divorciar-se. A minha melhor amiga, cansada de esperar a anulação do seu casamento, consultava diariamente a necrologia dos jornais com a esperança de encontrar escrito o nome do marido.

Nunca se atreveu a rezar para que o homem recebesse a morte que merecia, mas se o tivesse pedido certamente que o Padre Hurtado a teria atendido. Pelo menos esse. Os buracos legais serviram durante mais de cem anos a milhares de casais para anular os seus casamentos. Assim o fizeram os meus pais. Bastaram a vontade do meu avô e as suas ligações, para que o meu pai desaparecesse por artes mágicas e a minha mãe fosse declarada solteira com três filhos ilegítimos, a que a nossa lei chama «putativos». O meu pai assinou os papéis sem pestanejar, uma vez que lhe garantiram que não teria de manter os seus rebentos. A nulidade obtém-se quando uma série de testemunhas falsas jura em vão perante um juiz, o qual finge acreditar na veracidade do que lhe dizem. Para conseguir uma nulidade é preciso pelo menos um advogado, para quem o tempo é oiro, porque ganha à hora, de modo que não lhe convém abreviar os trâmites. O único requisito para que o advogado saque a nulidade é que o casal esteja de acordo, porque se um deles se nega a participar no embuste, como fez a primeira mulher do meu padrasto, não há caso. O resultado é que homens e mulheres se juntam e se separam sem papéis de nenhuma espécie, como fizeram quase todas as pessoas que conheço. Enquanto escrevo estas reflexões, no terceiro milénio, a lei do divórcio ainda está pendente, isto apesar de o presidente da República ter anulado o seu primeiro casamento e se ter voltado a casar. Por este andar a minha mãe e o tio Ramón, que já estão na casa dos oitenta e viveram juntos bastante mais de meio século, morrerão sem conseguirem legalizar a sua situação. Já nenhum deles se importa com isso e mesmo que pudessem, não se casariam; preferem ser recordados como amantes de lenda.

O tio Ramón trabalhava no Ministério de Relações Exteriores, tal como o meu pai, e pouco depois de se instalar sob o tecto protector do meu avô na qualidade de genro ilegítimo, foi enviado numa missão diplomática para a Bolívia. Estávamos nos começos dos anos cinquenta. A minha mãe e nós, seus filhos, seguimos atrás dele.

Antes de começar a viajar, eu estava convencida de que todas as famílias eram como a minha, que o Chile era o centro do universo e que o resto da humanidade tinha o nosso aspecto e falava castelhano como primeira língua; o inglês e o francês eram aquisições escolares, como a geometria. Mal cruzámos a fronteira tive a primeira suspeita da vastidão do mundo e dei-me conta de que ninguém, absolutamente ninguém, sabia quão especial era a minha família. Aprendi rapidamente o que se sente ao ser-se rejeitado. Desde o momento em que deixámos o Chile e começámos a andar de um país para outro, transformei-me na menina nova do bairro, na estrangeira no colégio, no bicho raro que se vestia de modo diferente e nem sequer conseguia falar com os outros. Nunca mais chegava o momento de regressar ao meu terreno conhecido em Santiago, mas quando finalmente isso ocorreu, vários anos mais tarde, também não me adaptei ali, porque tinha estado fora demasiado tempo. Ser estrangeira, como o fui quase sempre, significa que tenho de esforçar-me muito mais do que os nativos, o que me manteve alerta e me obrigou a desenvolver flexibilidade para me adaptar a diversos ambientes. Esta condição tem algumas vantagens para alguém que ganha a sua vida a observar: nada me parece natural, quase tudo me surpreende. Faço perguntas absurdas, mas às vezes faço-as a gente adequada e assim consigo temas para os meus romances.

Francamente, uma das características de Willie que mais me atrai é a sua atitude desafiante e confiada. Não duvida de si mesmo ou das suas circunstâncias. Sempre viveu no mesmo país, sabe comprar por catálogo, votar pelo correio, abrir um frasco de aspirina e para onde ligar quando a cozinha se inunda. Invejo a sua segurança; ele sente-se totalmente confortável com o seu corpo, a sua língua, o seu país, a sua vida. Há uma certa frescura e inocência nas pessoas que permaneceram sempre no mesmo lugar e contam com testemunhos da sua passagem pelo mundo. Em troca, aqueles de nós que partimos, muitas vezes desenvolvemos por necessidade uma couraça mais dura. Como carecemos de raízes e de testemunhos do passado, temos de confiar na memória para dar continuidade às nossas vidas; mas a memória é sempre confusa, não podemos confiar nela. Os acontecimentos do meu passado não têm contornos precisos, estão esfumados, como se a minha vida tivesse sido uma simples sucessão de ilusões, de imagens fugazes, de assuntos que não compreendo ou que compreendo só em parte. Não tenho certezas de nenhuma espécie. Nem sinto o Chile como um lugar geográfico com certas características precisas, um sítio definível e real. Vejo-o como se vêem os caminhos do campo ao entardecer, quando as sombras dos álamos enganam a vista e a paisagem não parece mais do que um sonho.

 

                     Gente orgulhosa e séria

Uma amiga minha diz que nós, Chilenos, somos pobres, mas delicados dos pés. Refere-se, obviamente, à nossa injustificada susceptibilidade, sempre à flor da pele, ao nosso orgulho solene, à nossa tendência para, à primeira oportunidade, nos convertermos em doidos varridos. De onde nos vêm tais características? Suponho que em parte são atribuíveis à mãe pátria, a Espanha, que nos legou uma mescla de paixão e severidade; outro tanto devemo-lo ao sangue dos sofridos Araucanos e do resto podemos culpar o destino.

Tenho alguma coisa de sangue francês, por parte da minha mãe, e sem dúvida algo de indígena, basta ver-me ao espelho, mas as minhas origens são principalmente castelhano-bascas. Os fundadores de famílias como a minha tentaram estabelecer dinastias e para isso alguns deles atribuíram a si mesmos um passado aristocrático, quando na realidade eram labregos e aventureiros espanhóis, chegados há alguns séculos à cauda da América com uma mão à frente e outra atrás. De sangue azul, como costuma dizer-se, não tinham nada. Eram ambiciosos e trabalhadores, apoderaram-se das terras mais férteis nos arredores de Santiago e lançaram-se ao trabalho para se tornarem notáveis. Como imigraram antes e enriqueceram depressa, puderam dar-se o luxo de olhar do alto os que chegaram depois. Casavam-se entre eles e, como bons católicos, produziam copiosa descendência. Os filhos normais destinavam-se à terra, aos ministérios e à hierarquia eclesiástica, mas nunca ao comércio, que era para outra classe de gente; os menos favorecidos intelectualmente iam parar à Marinha. De vez em quando sobrava algum filho para presidente da República. Temos estirpes de presidentes, como se o cargo fosse hereditário, porque os Chilenos votam num nome conhecido. A família Errázuriz, por exemplo, teve três presidentes, trinta e tantos senadores e não sei quantos deputados, além de vários hierarcas da Igreja. As filhas virtuosas de famílias «conhecidas» casavam-se com os seus primos ou ficavam beatas de duvidosos milagres; das filhas desgarradas tratavam as freiras. Era gente conservadora, devota, honorável, altiva e mesquinha, mas em geral de disposição bondosa, não tanto por temperamento, mas na tentativa de ganhar méritos para chegar ao céu. Vivia-se no temor de Deus. Criei-me convencida de que cada privilégio tem como consequência natural uma longa lista de responsabilidades. Essa classe social chilena mantinha uma certa distância relativamente aos seus semelhantes, porque havia sido colocada na Terra para dar o exemplo, carga pesada que assumia com devoção cristã. Devo esclarecer, porém, que apesar das suas origens e apelidos, o ramo da família do meu avô não fazia parte dessa oligarquia, gozava de um bom passadio, mas carecia de fortuna ou de terras.

Uma das características dos Chilenos em geral e dos descendentes de Castelhanos e Bascos em particular, é a sobriedade, que contrasta com o temperamento exuberante tão comum no resto da América Latina. Cresci entre tias muito ricas, primas do meu avô e da minha mãe, vestidas com roupões negros até aos pés, que faziam alarde em «virar» os fatos dos maridos, dificultoso processo que consistia em descosê-lo, engomar as peças e voltar a uni-las do avesso para lhes dar nova vida. Era fácil distinguir as vítimas, porque tinham o bolso superior da jaqueta à direita, em vez de ser à esquerda. O resultado era sempre patético, mas o esforço demonstrava quão poupada e laboriosa era a boa senhora. Isso de ser laboriosa é fundamental no meu país, onde a preguiça é privilégio masculino. Aos homens perdoa-se-lhes, tal como se lhes tolera o alcoolismo, porque se supõe que são características biológicas inevitáveis: quem torto nasce... Não é o caso das mulheres, entenda-se. As Chilenas, mesmo as de fortuna, não pintam as unhas, porque isso indicaria que não trabalham com as mãos e um dos piores epítetos é ser apelidada de mandriona. Antigamente, quando se entrava num autocarro via-se que todas as mulheres faziam tricot; mas agora já não é assim, porque chegam toneladas de roupa em segunda mão dos Estados Unidos e lixo em poliéster de Taiwan, de modo que o tricotar passou à história.

Especulou-se que a nossa tão ponderada sobriedade é herança de esgotados conquistadores espanhóis, que chegavam meio mortos de fome e sede, impelidos mais por desespero do que por codícia. Esses valentes capitães - os últimos na partilha dos despojos da Conquista - tinham de cruzar a cordilheira dos Andes por passagens traiçoeiras, ou atravessar o deserto de Atacama sob um sol de lava ardente, ou desafiar as ondas e os ventos fatídicos do cabo Horn. A recompensa quase não justificava o esforço, porque o Chile não oferecia, como outras regiões do continente, a possibilidade de enriquecimento exorbitante. As minas de oiro e prata contavam-se pelos dedos de uma só mão e para arrancar as suas pedras era necessário um esforço descomunal; nem o clima dava para prósperas plantações de tabaco, café ou algodão. O nosso foi sempre um país semi-pobre; o mais que o colono podia aspirar era a uma existência tranquila dedicada à agricultura.

Antes a ostentação era inaceitável, como já disse, mas infelizmente isso mudou, pelo menos entre os santiaguenses. Tornaram-se tão pretensiosos que vão ao hipermercado aos domingos de manhã, enchem o carrinho com os produtos mais caros - caviar, champanhe, carne da melhor -, passeiam um bom bocado para que outros admirem as suas compras, e pouco depois abandonam o carro num corredor e saem discretamente com as mãos vazias. Também ouvi dizer que uma boa percentagem dos telemóveis são imitações; só servem para exibicionismo. Há alguns anos isto seria impensável; os únicos que viviam em mansões eram os árabes novos-ricos e ninguém no seu perfeito juízo vestiria um casaco de peles, nem que fizesse um frio polar.

O lado positivo de tanta modéstia - falsa ou autêntica - era seguramente a simplicidade. Nada de bailes de debutantes com cisnes tingidos a cor-de-rosa, nada de casamentos imperiais com bolos de quatro pisos, nada de festas com orquestra para garotos fraldiqueiros, como noutras capitais do nosso exuberante continente. A sobriedade nacional foi um traço notável que desapareceu com o capitalismo selvagem imposto nas últimas duas décadas, quando ser rico e parecê-lo se tornou moda, mas espero que voltemos rapidamente ao Chile que conhecemos. O carácter dos povos é resistente. Ricardo Lagos, o actual presidente da República (princípios do ano 2002), vive com a sua família numa casa alugada num bairro sem pretensões. Quando é visitado por dignitários de outras nações, estes ficam pasmados perante as reduzidas dimensões da casa e o espanto aumenta ao verem o dignitário preparar as bebidas e a primeira dama ajudar a servir à mesa.

Embora a direita não perdoe o facto de Lagos não ser «gente como eles», admira a sua simplicidade. Este casal é um típico expoente da classe média da velha cepa, formada em escolas e universidades estatais gratuitas, laicas e humanistas. Os Lagos são chilenos criados nos valores de igualdade e justiça social, que não parecem tocados pela obsessão materialista dos nossos dias. Esperemos que o exemplo sirva para acabar de uma vez por todas com os carrinhos abandonados no hipermercado e com os telemóveis a fingir.

Penso agora que essa sobriedade, tão arreigada na minha família, assim como a tendência para dissimular a alegria ou o bem-estar, era consequência da vergonha que sentíamos ao ver a miséria que nos rodeava. Parecia-nos que ter mais do que os outros não só era uma injustiça divina, mas também uma espécie de pecado pessoal. Devíamos fazer penitência e caridade para compensar. A penitência era comer feijões, lentilhas ou grão-de-bico todos os dias e passar frio no Inverno. A caridade era uma actividade familiar que correspondia quase exclusivamente às mulheres. Desde muito pequenas nós, as meninas, íamos pela mão das mães ou das tias distribuir roupa e comida pelos pobres. Esse costume acabou há uns cinquenta anos, mas ajudar o próximo continua a ser uma obrigação que os Chilenos assumem com alegria, como se compreende num país onde não faltam ocasiões de a exercer. No Chile a pobreza e a solidariedade andam de mãos dadas.

Não há dúvida que existe uma tremenda disparidade entre ricos e pobres, tal como acontece em quase toda a América Latina. O povo chileno, por mais pobre que seja, é mais ou menos bem-educado, mantém-se informado e conhece os seus direitos, embora nem sempre consiga fazê-los valer. No entanto, a pobreza mostra a sua face horrenda a cada instante, sobretudo em tempos de crise. Para ilustrar a generosidade nacional, nada melhor do que alguns parágrafos de uma carta que a minha mãe me enviou do Chile, a propósito das inundações do Inverno de 2002 que submergiram metade do país num oceano de água suja e barro.

«Choveu vários dias seguidos. De repente amaina e é uma chuva miudinha que continua a molhar-nos e precisamente quando o Ministério do Interior diz que o tempo vai melhorar, cai outra chuvada tempestuosa e lá vai tudo por água abaixo. Foi outra dura prova para a população. Vimos a verdadeira face da miséria no Chile, a pobreza envergonhada da classe média baixa, a que mais sofre, porque tem esperanças. Essa gente trabalha uma vida inteira para obter uma casa decente e é enganada pelas empresas: pintam as casas muito bonitas por fora, mas não lhes fazem esgotos e, com a chuva, não só se inundam, como começam a desfazer-se como migalhas de pão. A única coisa que distrai do desastre é o campeonato mundial de futebol. Iván Zamorano, o nosso ídolo futebolístico, ofereceu uma tonelada de alimentos e passa os dias junto das populações sinistradas entretendo as crianças e distribuindo bolas. Não podes imaginar as cenas de dor; são sempre os de menos recursos que sofrem as piores inclemências. O futuro prevê-se negro, porque o temporal deixou os campos de legumes debaixo de água e o vento arrasou plantações inteiras. Em Magallanes as ovelhas morrem aos milhares, presas na neve à mercê

dos lobos. Claro que a solidariedade dos Chilenos se manifesta em todo o lado. Homens, mulheres e adolescentes com a água até aos joelhos e cobertos de lama, cuidam dos mais pequenos, distribuem roupa, protegem povoações inteiras que a água arrasta para as quebradas. Na Plaza Italia instalou-se um enorme toldo; passam os automóveis e sem parar lançam pacotes de cobertores e alimentos para os braços dos estudantes que esperam. A Estação Mapocho está transformada num enorme refúgio de sinistrados, com o seu palco onde os artistas de Santiago, os grupos de rock e até a orquestra sinfónica tornam ameno o local, obrigando as pessoas entorpecidas de frio a dançar, que assim esquecem por uns instantes a sua desgraça. Esta é uma enorme lição de humildade. O presidente, acompanhado pela mulher e pelos ministros, percorre os refúgios oferecendo consolo. O melhor é que a ministra da Defesa, Michelle Bachelet, filha de um assassinado pela ditadura, pôs o exército a trabalhar para as vítimas e anda encarrapitada num carro de assalto com o comandante-chefe a seu lado, ajudando dia e noite. Enfim! Cada um faz o que pode. A questão será ver o que fazem os bancos, que são um escândalo de corrupção neste país.

Se o chileno se irrita com o êxito alheio, ele é magnífico perante a desgraça; então põe de lado a sua mesquinhez e torna-se subitamente a pessoa mais solidária e generosa deste mundo. Há várias maratonas anuais, transmitidas pela televisão, destinadas a obras de caridade e todos, especialmente os mais humildes, se lançam numa verdadeira competição a ver quem dá mais. Ocasiões para apelar à compaixão pública não faltam numa nação permanentemente abalada por fatalidades que corroem os alicerces da vida, dilúvios que arrastam povoações inteiras, ondas descomunais que põem barcos no meio das praças. Estamos habituados à ideia de que a vida é incerta, estamos sempre à espera que outro infortúnio nos caia em cima. O meu marido - que mede um metro e oitenta e tem joelhos pouco flexíveis - não conseguia entender a razão pela qual eu guardo os copos e os pratos nas prateleiras mais baixas da cozinha, onde ele só chega deitado de costas no chão, até que o terramoto de 1988 em São Francisco destruiu a baixela dos vizinhos, mas a nossa ficou intacta.

Nem tudo é bater no peito com sentimento de culpa e fazer caridade para compensar a injustiça económica. Nada disso. A nossa seriedade é amplamente compensada com a glutonaria; no Chile a existência decorre à volta da mesa. A maior parte dos empresários que conheço sofrem de diabetes porque as reuniões de negócios fazem-se ao pequeno-almoço, almoço ou jantar. Ninguém assina um papel sem tomar pelo menos um café com biscoitos ou uma bebida.

Sendo certo que comíamos legumes todos os dias, a verdade é que a ementa mudava aos domingos. Um típico almoço dominical em casa do meu avô começava com umas agressivas empanadas, uns pastéis de carne com cebola capazes de provocar acidez ao mais sadio; seguia-se a cazuela, uma sopa de carne, milho, batata e legumes capaz de levantar os mortos; e depois um suculento chupe de mariscos, um guisado cujo delicioso aroma enchia a casa, e para terminar uma colecção de sobremesas irresistíveis, entre as quais não podia faltar a tarte de manjar branco ou doce de leite, antiga receita da tia Cupertina, tudo acompanhado com litros do nosso fatídico pisco sour, e várias garrafas de bom vinho tinto envelhecido durante anos na adega da casa. Ao sair davam-nos uma colherada de leite de magnésio. Isto multiplicava-se por cinco quando se comemorava o aniversário de um adulto; nós, as crianças, não merecíamos tal deferência. Nunca ouvi pronunciar a palavra colesterol. Os meus pais, que têm mais de oitenta anos, consomem noventa ovos, um litro de natas, meio quilo de manteiga e dois de queijo por semana. Estão sãos e frescos como catraios.

Aquela reunião familiar não só era uma boa oportunidade para comer e beber com gula, mas também para discutir com fúria. Ao segundo copo de pisco sour os gritos e os insultos entre os meus parentes ouviam-se em todo o bairro. Depois cada qual seguia para seu lado jurando não voltar a falar-se, mas no domingo seguinte ninguém se atrevia a faltar, o meu avô não o perdoaria. Acho que este pernicioso costume se manteve no Chile, apesar do muito que se evoluiu noutros aspectos. Sempre me espantaram essas reuniões obrigatórias, mas acontece que agora, na maturidade da minha existência, as reproduzi na Califórnia. O meu fim-de-semana ideal é ter a casa cheia de gente, cozinhar para um regimento e acabar o dia a discutir em altos berros.

As brigas entre parentes não saíam da esfera privada. A privacidade é um luxo das classes abastadas porque a maior parte dos chilenos não a tem. As famílias da classe média para baixo vivem em promiscuidade, em muitos lares dormem várias pessoas na mesma cama. No caso de existir mais de um quarto, as divisórias são tão finas que se ouvem até os suspiros no quarto do lado. Para fazer amor há que esconder-se em sítios inverosímeis: balneários públicos, debaixo das pontes, no jardim zoológico, etc.

Dado que a solução para o problema habitacional pode demorar vinte anos, se formos optimistas, ocorre-me que o Governo tem a obrigação de proporcionar motéis gratuitos para casais desesperados. Evitar-se-iam assim muitos problemas mentais.

Cada família alberga o seu estroina, mas a palavra de ordem é sempre cerrar fileiras em torno da ovelha negra e evitar o escândalo. Nós, Chilenos, aprendemos desde o berço que «a roupa suja lava-se em casa» e não se fala dos parentes alcoólicos, dos que se endividam, dos que espancam a mulher ou passaram pela prisão. Tudo se esconde, desde a tia cleptómana ao primo que seduz velhinhas para lhes tirar o seu mísero pé-de-meia e, especialmente, aquele que canta num cabaret vestido de Liza Minelli, porque no Chile qualquer originalidade em matéria de preferência sexual é imperdoável. Foi o cabo dos trabalhos para se discutir publicamente o impacte da sida, porque ninguém quer admitir as causas. Também não se legisla sobre o aborto, um dos problemas de saúde mais sérios do país, na esperança de que, não se tocando no tema, ele desaparecerá como por encanto.

A minha mãe tem uma fita gravada com uma lista de saborosas anedotas e escândalos familiares, mas não me deixa ouvi-la, porque teme que eu divulgue o seu conteúdo. Prometeu-me que depois de morrer, quando estiver definitivamente a salvo da vingança apocalíptica dos parentes, herdarei essa gravação. Cresci rodeada de segredos, mistérios, cochichos, proibições, assuntos sobre os quais nunca se deveria falar. Tenho uma dívida de gratidão para com aqueles inumeráveis esqueletos ocultos no armário, porque plantaram em mim as sementes da literatura. Em cada história que escrevo tento exorcizar algum deles.

Na minha família não se propagavam mexericos, nisso éramos algo diferentes do Homo chilensis comum e corrente, porque o desporto nacional é falar nas costas da pessoa que acaba de sair da sala. Nisto também nos diferenciamos dos nossos ídolos, os Ingleses, que têm por norma não fazer comentários pessoais. (Conheço um ex-soldado do exército britânico, casado, pai de quatro filhos e avô de vários netos, que decidiu mudar de sexo. Da noite para o dia apareceu vestido de mulher e absolutamente ninguém da sua aldeia na campina inglesa, onde vivera quarenta anos, fez a mínima observação.) Entre nós falar mal do próximo tem mesmo um nome: «depenar», cujo étimo provém seguramente de depenar frangos, ou deixar o ausente a nu. Tanto assim é, que ninguém quer ser o primeiro a sair, por isso as despedidas eternizam-se à porta. Na nossa família, pelo contrário, a norma de não falar mal dos outros, imposta pelo meu avô, chegava ao extremo de ele nunca ter dito à minha mãe as razões pelas quais se opunha ao seu casamento com o homem que haveria de ser o meu pai. Negou-se a repetir os rumores que circulavam sobre o seu comportamento e o seu carácter, porque não tinha provas e, antes de manchar o nome do pretendente com uma calúnia, preferiu arriscar o futuro de sua filha, a qual acabou por se casar na total ignorância com um noivo que não a merecia. Com os anos libertei-me deste traço familiar; não tenho escrúpulos em repetir mexericos, falar nas costas dos outros e divulgar segredos alheios nos meus livros; é por isso que metade dos meus parentes não me fala.

Esta história de a família não falar a um dos seus membros é coisa corrente. O grande romancista José Donoso viu-se obrigado pela pressão familiar a eliminar um capítulo das suas memórias sobre uma extraordinária bisavó que, ao enviuvar, abriu uma casa de jogo clandestina, servida por raparigas muito atraentes. A mancha no nome da família impediu que o seu filho chegasse a presidente, segundo se diz, e um século mais tarde os seus descendentes ainda procuram escondê-la. É uma pena essa bisavó não ser da minha tribo. Se o fosse, eu ter-me-ia encarregado de explorar a sua história com justificado orgulho. Quantos romances saborosos se podem escrever com uma bisavó assim!

 

                     Sobre vícios e virtudes

Na minha família quase todos os homens estudaram leis, mas, que me lembre, nenhum exerceu a advocacia. O chileno gosta de leis, quanto mais complicadas melhor. Nada nos fascina tanto como a papelada e as tramitações processuais. Quando alguma diligência se mostra simples, suspeitamos logo que é ilegal. (Eu, por exemplo, sempre duvidei da validade do meu casamento com o Willie, porque se realizou em menos de cinco minutos, bastando um par de assinaturas num livro. No Chile, um tal acto exigiria várias semanas de burocracia.) O chileno é legalista, não há melhor negócio no país do que um cartório notarial: queremos tudo em papel selado com várias cópias e muitos carimbos. Somos tão legalistas, que o general Pinochet não quis passar à história como usurpador do poder, mas como presidente legítimo, para o que teve de alterar a Constituição. Por uma dessas ironias tão abundantes na história, depois foi apanhado na teia das leis que ele próprio tinha criado para se perpetuar no cargo. Segundo a sua Constituição, exerceria as funções durante mais oito anos -já levava vários no poder - até 1988, ano em que devia consultar o povo para que este decidisse se ele continuava ou se se convocavam eleições. Perdeu o plebiscito e no ano seguinte perdeu a eleição e teve de entregar a faixa presidencial ao seu opositor, o candidato democrático. É dificil explicar no estrangeiro a forma

como terminou a ditadura, que contava com o apoio incondicional das Forças Armadas, da direita e de um sector numeroso da população. Os partidos políticos estavam suspensos, não havia Congresso e a imprensa era censurada. Tal como afirmou muitas vezes o general, «não se movia uma folha no país sem o seu consentimento». Sendo assim, como foi ele derrotado por uma votação democrática? Isto só pode acontecer num país como o Chile. Do mesmo modo, aproveitando um buraco legal, tenta-se agora julgá-lo juntamente com outros militares acusados de violação dos direitos humanos, apesar do Supremo Tribunal ter sido designado por ele e de uma ampla lei de amnistia os proteger por actos ilegais cometidos durante os anos do seu governo. Acontece que houve centenas de pessoas detidas, que os militares negam ter matado, mas como não apareceram são consideradas sequestradas. Nesses casos o delito não prescreve, pelo que os culpados não se podem entrincheirar atrás da amnistia.

O amor aos regulamentos, por mais inoperantes que eles sejam, encontra os seus melhores expoentes na imensa burocracia da nossa pátria sofredora. Essa burocracia é o paraíso do «chilenito del montón» ou o homem de cinzento. Nela pode vegetar a seu gosto, totalmente a salvo das armadilhas da imaginação, perfeitamente seguro no seu posto até ao dia da reforma, desde que não cometa a imprudência de tentar mudar as coisas, tal como garante o sociólogo e escritor Pablo Huneeus (o qual, diga-se de passagem, é um dos poucos excêntricos chilenos que não tem laços de parentesco com a minha família). O funcionário público deve compreender desde o seu primeiro dia na repartição que qualquer sinal de iniciativa ditará o fim da sua carreira, porque não está ali para exibir méritos, mas para alcançar dignamente o seu nível de incompetência. O propósito de mover papéis com selos e carimbos de um lado para o outro não é resolver problemas, mas impedir soluções. Se os problemas se resolvessem, a burocracia perderia poder e muita gente honesta ficaria sem emprego; pelo contrário, se piorarem, o Estado aumenta o orçamento, contrata mais gente e assim diminui a taxa de desemprego e todos ficam contentes. O funcionário abusa da sua migalha de poder, partindo do princípio que o público é o seu inimigo, sentimento que é plenamente correspondido. Foi uma surpresa comprovar que nos Estados Unidos basta ter uma carta de condução para se movimentar no país e a maioria dos trâmites é feita por correio. No Chile, o empregado de turno exigiria ao solicitante prova de que nasceu, não está preso, pagou os seus impostos, se recenseou para votar e continua vivo, porque mesmo que esperneie para provar que não morreu, mesmo assim não fica isento de apresentar um «certificado de sobrevivência». Como será agora que o governo criou uma repartição para combater a burocracia? Os cidadãos podem reclamar quando são maltratados e acusar os funcionários ineptos... em papel selado com três cópias, claro. Recentemente, para passar a fronteira com a Argentina, num autocarro de turismo, tivemos de esperar uma hora e meia enquanto nos revistavam os documentos. Era mais fácil saltar o antigo muro de Berlim. Kafka era chileno.

Creio que esta nossa obsessão pela legalidade é uma espécie de seguro contra a agressividade que temos dentro de nós; sem o garrote da lei, andaríamos à paulada uns com os outros. A experiência ensinou-nos que quando perdemos as estribeiras somos capazes de qualquer barbaridade, por isso procuramos ser cautelosos, defendidos atrás de um molho de papéis com selos. Evitamos na medida do possível o confronto, procuramos o consenso e à primeira oportunidade que surja submetemos a decisão a votos. Adoramos votar. Se se juntam uns quantos garotos no pátio da escola a jogar futebol, a primeira coisa que fazem é escrever o regulamento e votar para eleger um presidente, um vogal e um tesoureiro. Isto não significa que sejamos tolerantes, longe disso: agarramo-nos às nossas ideias como maníacos (sou um caso típico). A intolerância vê-se em toda a parte, na religião, na política, na cultura. Qualquer pessoa que se atreva a discordar é esmagada com insultos ou com o ridículo, isto quando não se pode fazê-la calar com métodos mais drásticos.

Nos costumes somos conservadores e tradicionais, preferimos o mal que conhecemos ao bem desconhecido, mas em tudo o mais andamos sempre à caça das novidades. Consideramos que tudo o que vem do estrangeiro é naturalmente melhor que o nosso e devemos experimentá-lo, desde o último brinquedo electrónico até aos sistemas económicos ou políticos. Passámos uma boa parte do século xx a experimentar diversas formas de revolução, oscilámos entre o marxismo e o capitalismo selvagem, passando por cada uma das tonalidades intermédias. A esperança de que uma mudança de governo possa melhorar o nosso destino é como a esperança de ganhar a lotaria, não tem fundamento racional. No fundo sabemos bem que a vida não é fácil. O nosso é um país de terramotos, como não havemos de ser fatalistas? Dadas as circunstâncias, não temos outro remédio senão ser também um pouco estóicos, mas não há necessidade de o ser com dignidade, podemos queixar-nos à vontade.

No caso da minha família, creio que éramos tão espartanos como estóicos. Conforme pregava o meu avô, a vida fácil provoca o cancro, em troca a incomodidade é saudável; recomendava duches frios, comida difícil de mastigar, colchões duros, bancos de terceira classe nos comboios e galochas pesadas. A sua teoria da incomodidade saudável foi reforçada por vários colégios britânicos, onde o destino me colocou durante a maior parte da minha infância. Se sobrevivermos a este tipo de educação, depois agradecemos os mais insignificantes prazeres; sou da espécie de pessoas que murmuram uma prece silenciosa quando sai água quente da torneira. Espero que a existência seja problemática e quando não há angústia ou dor durante vários dias, fico preocupada, porque o mais certo é isso significar que o céu me está a preparar uma desgraça maior. Contudo, não sou completamente paranóica, pelo contrário; na realidade, dá gosto estar comigo. Não preciso de muito para ser feliz, em geral basta um fio de água quente a correr pela torneira.

Disse-se muitas vezes que somos invejosos, que nos incomoda o triunfo alheio. É verdade, mas a explicação não é inveja, é senso comum: o êxito é anormal. O ser humano está biologicamente estruturado para o fracasso, prova disso é que tem pernas e não rodas, cotovelos em vez de asas e metabolismo em vez de baterias. Para quê sonhar com o êxito se podemos vegetar tranquilamente nos nossos fracassos? Para quê fazer hoje o que se pode fazer amanhã? Ou fazê-lo bem se se pode fazer assim-assim? Detestamos que um compatriota sobressaia dos outros, salvo quando o faz noutro país, caso em que o afortunado se converte numa espécie de herói nacional. O triunfador local, porém, é péssimo; há que, rapidamente, baixar-lhe a garimpa. A este outro desporto chamamos «chaqueteo»: agarrar o próximo pelo casaco e puxá-lo para baixo. Apesar do «chaqueteo» e da mediocridade ambiental, de vez em quando alguém consegue assomar a cabeça acima da linha de água. O nosso povo produziu homens e mulheres excepcionais: dois prémios Nobel, Pablo Neruda e Gabriela Mistral, os cantores e poetas Victor Jara e Violeta Parra, o pianista Claudio Arrau, o pintor Roberto Matta, o romancista José Donoso, para referir apenas alguns de que me lembro.

Nós Chilenos adoramos funerais, porque o morto já não pode fazer-nos concorrência nem «depenar-nos» pelas costas. Não só vamos em massa aos enterros, onde se fica de pé durante horas ouvindo pelo menos quinze discursos, como também celebramos os aniversários do finado. Outra das nossas diversões é contar e ouvir histórias, quanto mais macabras e tristes melhor; nisso, e no gosto pela pinga, parecemo-nos com os irlandeses. Somos grandes consumidores de telenovelas, porque as desgraças dos seus protagonistas nos oferecem uma boa desculpa para chorar as dores próprias. Fui criada a ouvir dramáticos folhetins radiofónicos na cozinha, apesar do meu avô ter proibido o rádio, porque o considerava um instrumento diabólico, propagador de mexericos e vulgaridades. Crianças e empregadas sofríamos com o interminável folhetim O direito de nascer, que durou vários anos, se bem me lembro.

As vidas das personagens da telenovela são muito mais importantes do que as da nossa família, mesmo que o argumento nem sempre seja fácil de seguir. Por exemplo: o galã seduz uma mulher e deixa-a em estado interessante; vai logo casar-se por vingança com uma rapariga coxa e também a deixa «esperando guagua, como dizemos no Chile, mas rapidamente foge para Itália onde se junta à sua primeira esposa. Creio que a isto se chama trigamia. Entretanto a coxa faz uma operação à perna, vai

 

Autocarro. Literalmente: à espera do autocarro; grávida. (N. do E.)

 

ao cabeleireiro, herda uma fortuna, torna-se executiva de uma grande empresa e atrai novos pretendentes. Quando o galã regressa de Itália e vê aquela fêmea rica e com duas pernas do mesmo tamanho, arrepende-se da sua felonia. E então começam os problemas do argumentista para desenredar aquele carrapito de velha em que a história se transformou. Tem de fazer um aborto à primeira seduzida, para que não fiquem bastardos às voltas pelo canal de televisão, e matar a infortunada italiana, para que o galã - que se supõe ser o bom da telenovela - fique devidamente viúvo. Isto permite que a ex-coxa se case vestida de branco, apesar de não poder esconder uma tremenda barriga, e dentro de pouco tempo dê à luz um varãozinho, claro está. Ninguém trabalha, vivem das suas paixões, e as mulheres usam pestanas postiças e andam vestidas de cerimónia desde que se levantam da cama. Ao longo desta tragédia quase todos acabam hospitalizados; há partos, acidentes, violações, drogados, jovens que fogem de casa ou da cadeia, cegos, loucos, ricos que se tornam pobres e pobres que se tornam ricos. Sofre-se muito. No dia seguinte a um capítulo especialmente dramático os telefones de todo o país estão ocupados com os pormenores; as minhas amigas de Santiago ligam-me (a pagar no destino) para a Califórnia, só para comentar o episódio. A única coisa capaz de competir com o capítulo final de uma telenovela é uma visita do Papa, mas isso só aconteceu uma vez na nossa história e é muito provável que não se repita.

Além dos funerais, das histórias mórbidas e das telenovelas, contamos com os crimes, que são sempre um tema interessante de conversa. Os psicopatas e os assassinos fascinam-nos; se forem da classe alta, tanto melhor. «Temos má memória para os crimes do Estado, mas nunca esquecemos os pecadilhos do próximo», comentou um célebre jornalista. Um dos assassinatos mais sonantes da história foi cometido por um tal senhor Barceló, que matou a mulher depois de a ter tratado pessimamente durante os anos de vida em comum, e depois alegou que tinha sido um acidente. Estava a abraçá-la, disse, quando se escapou um balázio que lhe perfurou a cabeça. Não conseguiu explicar porque tinha na mão uma pistola carregada apontada à nuca da mulher, em face do que a sua sogra iniciou uma cruzada para vingar a filha infeliz; não a culpo, eu teria feito o mesmo. Esta dama pertencia à mais distinta sociedade de Santiago e estava acostumada a levar a sua avante: publicou um livro denunciando o genro e depois de este ser condenado à morte instalou-se no gabinete do presidente da República para impedir que este o indultasse. Fuzilaram-no. Foi o primeiro e um dos poucos réus da classe alta a ser executado, porque um tal castigo era reservado aos que não tinham relações e bons advogados. Entretanto, a pena de morte foi abolida, como em qualquer país decente.

Também cresci com as histórias familiares contadas pelos meus avós, tios e pela minha mãe, muito úteis na hora de escrever romances. O que há de verdade nelas? Não importa. Quando se trata de recordar, ninguém quer a constatação dos factos, basta a lenda, como a triste história daquele aparecido numa sessão de espiritismo que indicou à minha avó o local de um tesouro escondido debaixo da escada. Devido a um erro nos planos da propriedade, e não por maldade do espírito, o tesouro nunca foi encontrado, apesar de terem demolido metade da casa. Procurei averiguar como e quando sucederam estes factos lamentáveis, mas ninguém da minha família se interessa por documentação; e se faço muitas perguntas os meus parentes ofendem-se.

Não quero dar a impressão de que só temos defeitos, também contamos com algumas virtudes. Vamos lá ver se me lembro de alguma... Por exemplo, somos um povo com alma de poeta. A culpa não é nossa, mas da paisagem. Ninguém que nasce e vive numa natureza como a nossa pode deixar de fazer versos. No Chile levanta-se uma pedra e em vez de uma lagartixa sai um poeta ou um cantor-autor popular. Admiramo-los, respeitamo-los e suportamos as suas manias. Antigamente, nas concentrações políticas, o povo recitava em voz alta os versos de Pablo Neruda, que todos guardávamos na memória. Preferíamos os seus versos de amor, porque temos um fraco pelo romance. Também a desgraça nos comove: desgosto, nostalgia, desengano, luto; as nossas tardes são longas, suponho que a isso se deve a preferência pelos temas melancólicos. Se nos falha a poesia, restam-nos sempre outras formas de arte. Todas as mulheres que conheço escrevem, pintam, esculpem ou fazem diversos artesanatos nos seus minutos de ócio, que são muito poucos. A arte substituiu o tricot. Ofereceram-me tantos quadros e cerâmicas que o meu automóvel já não cabe na garagem.

Sobre o nosso carácter posso acrescentar que somos carinhosos, distribuímos beijos à direita e à esquerda. Os adultos saúdam-se com um beijo sincero na face direita; as crianças beijam os mais velhos ao chegar e ao despedir-se, a quem por respeito chamam tio e tia, como na China, mesmo às professoras da escola. As pessoas adultas são beijadas impiedosamente, mesmo contra a sua vontade. As mulheres fazem-no entre elas, mesmo que se detestem, e beijam qualquer varão que apanhem a jeito, sem que a idade, a classe social ou a higiene consigam dissuadi-las. Só os machos em idade reprodutora, digamos entre os catorze e os setenta anos de idade, não se beijam uns aos outros, salvo pais e filhos, mas dão-se palmadas e abraços que dá gosto ver. O carinho tem muitas outras manifestações, desde abrir as portas da casa para receber quem se apresente de surpresa, até compartilhar o que se tem. Não se lembre de gabar algo que outra pessoa tenha vestido, porque é certo que o tira para lhe oferecer. Se sobrar comida na mesa, o delicado é entregá-la aos hóspedes para que a levem, tal como não se chega de visita a uma casa de mãos vazias.

A primeira coisa que se diz dos Chilenos é que somos hospitaleiros: à primeira insinuação abrimos os braços e as portas das nossas casas. Ouvi contar a muitos estrangeiros de visita que ao pedirem ajuda para localizar um endereço, o interpelado acompanha-os pessoalmente e, se os vê muito perdidos, é capaz de os convidar para sua casa e oferecer-lhes comida e até uma cama em caso de apuro. Confesso, porém, que a minha família não era particularmente amistosa. Um dos meus tios não permitia que ninguém respirasse perto dele e o meu avô arremetia à bastonada contra o telefone, porque considerava uma falta de respeito que lhe ligassem sem o seu consentimento. Vivia agastado com o carteiro porque lhe trazia correspondência que não tinha solicitado e não abria cartas que não tivessem o remetente à vista. Os meus parentes sentiam-se superiores ao resto da humanidade, embora as razões para isso me pareçam nebulosas. De acordo com a escola de pensamento do meu avô, só podíamos confiar nos nossos parentes mais chegados, o resto da humanidade estava sob suspeita. Era um católico fervoroso, mas inimigo da confissão, porque desconfiava dos padres e afirmava que podia entender-se directamente com Deus para o perdão dos seus pecados. O mesmo se aplicava à sua mulher e filhos. Apesar deste inexplicável complexo de superioridade, na nossa casa sempre se recebeu bem as visitas, por mais baixa que fosse a sua condição. Nesse sentido, os Chilenos são como os árabes do deserto: o hóspede é sagrado e a amizade, uma vez declarada, converte-se em vínculo indissolúvel.

Não se pode entrar numa casa, rica ou pobre, sem aceitar algo de comer ou de beber, nem que seja só um cházinho. Esta é outra tradição nacional. Como o café foi sempre escasso e caro - até o Nescafé era um luxo - bebíamos mais chá do que toda a população da Ásia, mas na minha última viagem comprovei maravilhada que finalmente entrou a cultura do café e agora, quem estiver disposto a pagar, encontra expressos e cappuccinos como em Itália. Diga-se de passagem, para tranquilidade dos turistas potenciais, que também existem instalações sanitárias públicas impecáveis e água engarrafada em todo o lado; já não é inevitável apanhar colite ao primeiro golo de água, como antigamente. De certa forma lamento que assim seja, porque os que nos criámos com água chilena estamos imunizados contra todas as bactérias conhecidas e por conhecer; posso beber água do Ganges sem efeitos visíveis na minha saúde, mas o meu marido, se lava os dentes fora dos Estados Unidos, apanha um tifo. No Chile não somos muito refinados no que respeita ao chá, qualquer infusão escura com um pouco de açúcar nos parece deliciosa. Além disso, existe uma infinidade de ervas locais, às quais são atribuídas propriedades curativas, e em caso de verdadeira miséria temos a «aguita perra», simples água quente numa chávena lascada. A primeira coisa que oferecemos ao visitante é um «cházinho», uma «aguinha» ou um «vinhinho». No Chile falamos em diminutivos, como corresponde ao nosso afã de passar despercebidos e ao nosso horror de dar ares de convencidos, ainda que seja nas palavras. Depois oferecemos para comer «o que houver na panela», o que pode significar que a dona de casa tirará o pão da boca dos seus filhos para o dar à visita, que tem por obrigação aceitá-lo. Se se trata de um convite formal, pode-se esperar um banquete pantagruélico; o objectivo é deixar os comensais com uma indigestão para vários dias. Claro que as mulheres fazem sempre o trabalho pesado. Agora existe a moda de pôr os homens a cozinhar, uma verdadeira desgraça, porque enquanto eles ficam com os louros, a mulher tem de lavar o monte de panelas e pratos sujos que eles deixam empilhados. A cozinha típica é simples, porque a terra e o mar são generosos; não existem frutas nem mariscos mais saborosos que os nossos, isto posso jurá-lo. Quanto mais difícil é obter os ingredientes, mais elaborada e picante é a comida, como acontece na índia ou no México, onde há trezentas maneiras de preparar o arroz. Nós temos apenas uma e parece-nos mais do que suficiente. A criatividade que não precisamos para inventar pratos originais empregamo-la nos nomes, que podem induzir no estrangeiro as piores suspeitas: locos panados, queijo de cabeça, preta de sangue, miolos fritos, dedos de dama, braço de rainha, suspiros de freira, bebés enrolados, calções rotos, rabo de macaco, etc.

Somos gente com sentido de humor e que gosta de rir, mesmo que no fundo prefiramos a seriedade. Do presidente Jorge Alessandri (1958-1964), um solteirão neurótico, que só bebia água mineral, não permitia que se fumasse na sua presença e andava Inverno e Verão com sobretudo e cachecol, as pessoas diziam com admiração: «Que triste está dom Jorge!». Isso tranquilizava-nos, porque era sinal de que estávamos em boas mãos: as de um homem sério, ou melhor ainda, as de um velho depressivo que não perdia o seu tempo com alegrias inúteis. Isto não impede que a desgraça nos pareça divertida; afinamos o sentido de humor quando as coisas andam mal e como nos parece que andam sempre mal, rimo-nos com frequência. Assim compensamos um pouco a nossa vocação de queixosos impenitentes. A popularidade de uma personagem mede-se pelas anedotas que provoca; dizem que o presidente Salvador Allende inventava piadas sobre si mesmo - algumas bastante picantes - e punha-as a circular. Durante muitos anos mantive uma coluna numa revista e um programa de televisão com pretensões humorísticas, que foram tolerados porque não havia muita concorrência, já que no Chile até os palhaços são melancólicos. Anos mais tarde, quando comecei a publicar uma coluna semelhante num jornal da Venezuela, fui pessimamente recebida e caiu-me em cima uma chusma de inimigos, porque o humor dos Venezuelanos é mais directo e menos cruel.

A minha família distingue-se pelas graças pesadas, mas falta-lhe refinamento em matéria de humor; as únicas piadas que entende são as anedotas alemãs de dom Otto. Por exemplo: uma jovem muito elegante solta uma involuntária ventosidade e para disfarçar faz barulho com os sapatos; então dom Otto diz-lhe (com sotaque alemão): «Romperás un zapato, romperás el otro, pero nunca harás el ruído que hiciste con el pato» (partirás um sapato, partirás o outro, mas nunca farás o ruído que fizeste com o peido). Só por escrever isto choro de riso. Tentei contá-la ao meu marido, mas a rima é intraduzível e além disso na Califórnia uma piada racista não tem nenhuma graça. Fui criada com anedotas de Galegos, Judeus e Turcos. O nosso humor é negro, não perdemos uma oportunidade de troçarmos dos outros, sejam eles quem forem: surdos-mudos, atrasados mentais, epilépticos, gente de cor, homossexuais, padres, «rotos», etc. Temos anedotas sobre todas as religiões e raças. Ouvi pela primeira vez a expressão politically correct aos quarenta e cinco anos e não consegui explicar aos meus amigos ou aos meus parentes no Chile o que isso significa. Uma vez quis arranjar na Califórnia um cão desses que treinam para os cegos mas que são dispensados porque não passam as duras provas do treino. No meu pedido tive a má ideia de mencionar que queria um dos cães «rejeitados» e na volta do correio recebi uma seca nota informando-me que não se usa o termo «rejeitado», diz-se que o animal «mudou de profissão». Vá lá alguém explicar isto no Chile!

O meu casamento misto com um gringo americano não foi mau de todo; cá nos arranjamos, mesmo que na maioria das vezes nenhum de nós faça ideia do que o outro diz, porque estamos sempre dispostos a dar-nos mutuamente o beneficio da dúvida. O maior inconveniente é que não partilhamos o sentido de humor; Willie não pode acreditar que em castelhano costumo ter graça e por meu lado nunca sei de que diabo se ri ele. A única coisa que nos diverte em uníssono são os discursos improvisados do presidente George W. Bush.

 

                       Onde nasce a nostalgia

Disse muitas vezes que a minha nostalgia começa com o golpe militar de 1973, quando o meu país mudou tanto que já não consigo reconhecê-lo, mas na realidade deve ter começado muito antes. A minha infância e a minha adolescência foram marcadas por viagens e despedidas. Ainda não tinha criado raízes num lugar, e já estava a fazer as malas e a partir para outro.

Aos nove anos deixei a casa da minha infância e despedi-me, com muita tristeza, do meu inesquecível avô. Para me entreter durante a viagem para a Bolívia, o tio Ramón ofereceu-me um mapa do mundo e as obras completas de Shakespeare traduzidas em espanhol, que devorei com sofreguidão, reli algumas vezes e ainda conservo. Fascinavam-me aquelas histórias de maridos ciumentos que assassinam as suas esposas por um lenço, reis a quem os seus inimigos destilam veneno nas orelhas, amantes que se suicidam por comunicações inadequadas. (Que diferente teria sido o destino de Romeu e Julieta se tivessem tido um telefone ao dispor!) Shakespeare iniciou-me nas histórias de sangue e paixão, caminho perigoso para os autores que vivem, como nós, na era minimalista. No dia em que embarcámos no porto de Valparaíso, rumo à província de Antofagasta, onde tomaríamos um comboio para La Paz, a minha mãe deu-me um caderno com instruções para iniciar um diário de viagens. Desde então escrevi quase todos os dias; é o hábito mais antigo que tenho. À medida que o comboio avançava, mudava a paisagem e algo se rasgava dentro de mim. Por um lado sentia curiosidade pelo que de novo desfilava diante dos meus olhos e, por outro, uma tristeza insuperável, que se ia cristalizando no meu interior. Nos pequenos povoados bolivianos onde o comboio parava comprávamos milho, massa de pão, batatas negras que pareciam podres e deliciosos doces que as índias bolivianas, com as suas saias multicolores de lã e os seus chapéus de feltro negros, como os dos banqueiros ingleses, nos ofereciam. Eu escrevia no meu caderno com uma tenacidade de notário, como se já então pressentisse que só a escrita poderia ancorar-me à realidade. Através da janela, o mundo via-se difuso pelo pó nos vidros e deformado pela pressa da viagem.

Esses dias sacudiram-me a imaginação. Ouvi histórias de espíritos e demónios que rondam os lugarejos abandonados, de múmias tiradas de campas profanadas, de montes de crânios humanos, alguns com mais de cinquenta mil anos, expostos num museu. Na aula de história do colégio tinha aprendido que por essas desolações andaram durante meses os primeiros espanhóis que chegaram ao Chile vindos do Peru no século xvi. Imaginava esse punhado de guerreiros com as armaduras ao rubro, os cavalos exaustos e os olhos alucinados, seguidos por mil índios cativos carregando víveres e armas. Foi uma proeza de incalculável coragem e de louca ambição. A minha mãe leu-nos umas páginas sobre os desaparecidos índios Atacamenhos e outras sobre os Quechuas e Aymaras, com os quais conviveríamos na Bolívia. Sem poder adivinhá-lo, nessa viagem começou o meu destino de nómada. O diário ainda existe, o meu filho guarda-o escondido e nega-se a mostrá-lo porque sabe que eu o destruiria. Arrependi-me de muitas coisas escritas na minha juventude: poemas espantosos, contos trágicos, notas de suicídio, cartas de amor dirigidas a infortunados amantes e sobretudo aquele diário piroso. (Cuidado aspirantes a escritores: nem tudo o que se escreve vale a pena guardar para beneficio de gerações futuras.) Ao dar-me aquele caderno, a minha mãe teve a intuição de que se poderiam perder as minhas raízes chilenas e que, à falta de terra onde plantá-las, deveria fazê-lo no papel. A partir desse instante escrevi sempre. Mantinha correspondência com o meu avô, com o tio Pablo e com os pais de algumas amigas, uns pacientes senhores a quem relatava as minhas impressões de La Paz, as suas montanhas arroxeadas, os seus índios herméticos e o seu ar tão fino, que os pulmões estão sempre prestes a encher-se de espuma e a mente de alucinações. Não escrevia a meninos da minha idade, só aos adultos, porque estes respondiam-me.

Na minha infância e juventude vivi na Bolívia e no Líbano, seguindo o destino diplomático do «homem moreno de bigodes» que as ciganas tanto me anunciaram. Aprendi qualquer coisa de francês e inglês; também aprendi a ingerir comida de aspecto suspeito sem fazer perguntas. A minha educação foi caótica, para não dizer pior, mas compensei as tremendas lacunas de informação lendo tudo o que me caía nas mãos com uma voracidade de piranha. Viajei em barcos, aviões, comboios e automóveis, escrevendo sempre cartas nas quais comparava o que via com a minha única e eterna referência: o Chile. Não me separava da minha lanterna, da qual me servi para ler nas mais adversas condições, nem do meu caderno de anotar a vida.

Passados dois anos em La Paz, partimos com armas e bagagens rumo ao Líbano. Os anos passados em Beirute foram de isolamento para mim, fechada em casa e no colégio. Que saudades do Chile! Numa idade em que as raparigas dançavam rock'n'roll, eu lia e escrevia cartas. Vim a saber da existência de Elvis Presley quando ele já estava gordo. Vestia-me com um severo fato cinzento para contrariar a minha mãe, que sempre foi coquete e elegante, enquanto sonhava acordada com príncipes caídos das estrelas que me resgatassem de uma existência vulgar. Durante os recreios no colégio escondia-me atrás de um livro no último recanto do pátio, para esconder a minha timidez.

A aventura do Líbano terminou bruscamente em 1958, quando desembarcaram os marines norte-americanos da Sexta Esquadra para intervir nos violentos acontecimentos políticos que pouco depois dilaceraram aquele país. A guerra civil tinha começado meses antes, ouviam-se disparos e gritos, havia confusão nas ruas e medo no ar. A cidade estava dividida em sectores religiosos, que se enfrentavam com ódios acumulados durante séculos, enquanto o exército tentava manter a ordem. Os colégios, um a um, fecharam as portas, menos o meu, porque a nossa fleumática directora decidiu que a guerra não era da sua conta, uma vez que a Grã-Bretanha não participava. Infelizmente, esta interessante situação durou pouco: o tio Ramón, atemorizado ante o cariz que a revolta tomava, mandou para Espanha a minha mãe mais o cão e as crianças de volta ao Chile. Mais tarde a minha mãe e ele foram destacados para a Turquia, e nós ficámos em Santiago, os meus irmãos internos num colégio e eu com o avô.

Cheguei a Santiago aos quinze anos, desorientada porque tinha passado vários anos no estrangeiro e me tinha desligado das minhas antigas amizades e dos primos. Ainda por cima tinha um sotaque estranho, o que é um problema no Chile, onde as pessoas se «posicionam» na sua classe social pela forma de falar. Santiago dos anos sessenta parecia-me bastante provinciana, comparada, por exemplo, com o esplendor de Beirute, que se gabava de ser a Paris do Médio Oriente, mas isso não significava que o ritmo fosse tranquilo, longe disso, já então os santiaguenses andavam com os nervos à flor da pele. A vida era incómoda e dificil, a burocracia esmagadora, os horários muito longos, mas eu cheguei decidida a adoptar essa cidade no meu coração. Estava cansada de me despedir de lugares e pessoas, desejava criar raízes e não mais sair. Creio que me enamorei do país pelas histórias que o meu avô me contava e pela forma como juntos percorremos o sul. Ensinou-me história e geografia, mostrou-me mapas, obrigou-me a ler autores nacionais, corrigia a minha gramática e a minha ortografia. Não tinha paciência para mestre, mas sobrava-lhe severidade; os meus erros deixavam-no vermelho de raiva, mas quando ficava contente com as minhas tarefas, premiava-me com um pedaço de queijo Camembert, que deixava a curar no seu armário; ao abrir a porta o cheiro a botas podres de soldado inundava o bairro inteiro.

O meu avô e eu entendíamo-nos bem porque ambos gostávamos de estar calados. Podíamos passar horas lado a lado, lendo ou vendo a chuva a bater na janela, sem sentir a necessidade de falar por falar. Creio que tínhamos simpatia e respeito mútuos. Escrevo esta palavra - respeito - com alguma hesitação, porque ele era autoritário e machista, estava acostumado a tratar as mulheres como flores delicadas, mas a ideia do respeito intelectual por elas não lhe passava pela mente. Eu era uma fedelha intratável e rebelde, de quinze anos, que discutia com ele de igual para igual. Isso picava a sua curiosidade. Sorria divertido quando eu alegava em defesa do meu direito a ter a mesma liberdade e educação que os meus irmãos, mas pelo menos escutava-me. Vale a pena referir que a primeira vez que ouviu a palavra «machista» foi dos meus lábios. Não sabia o seu significado e quando lho expliquei quase morreu de riso; a ideia de que a autoridade masculina, tão natural como o ar que se respira, tivesse um nome, pareceu-lhe uma piada muito engenhosa. Quando comecei a questionar aquela autoridade, deixou de achar graça, mas creio que entendia e talvez admirasse o meu desejo de ser como ele, forte e independente, e não uma vítima das circunstâncias como a minha mãe.

Quase consegui ser como o avô, mas a natureza traiu-me: cresceram-me seios - apenas um par de ameixas sobre as costelas - e o meu plano foi por água abaixo. A explosão das hormonas foi um desastre para mim. Numa questão de semanas transformei-me numa rapariguinha complexada, com a cabeça quente de sonhos românticos, cuja principal preocupação era atrair o sexo oposto, tarefa nada fácil porque era destituída de qualquer encanto e andava quase sempre furiosa. Não podia esconder o meu desprezo pela maioria dos rapazes que conhecia, porque me parecia evidente que eu era mais esperta. (Demorei vários anos a aprender a fazer-me tonta para que os homens se sentissem superiores. O trabalho que isso dá!) Passei esses anos dividida entre as ideias feministas que fervilhavam na minha mente, sem que conseguisse expressá-las de uma forma articulada, porque ainda ninguém tinha ouvido falar de algo assim no meu meio, e o desejo de ser como as outras raparigas da minha idade, de ser aceite, desejada, conquistada, protegida.

Coube ao pobre do meu avô a tarefa de lidar com a adolescente mais desgraçada da história da humanidade. Nada que o pobre velho dissesse podia consolar-me. Não que ele dissesse muito. Às vezes resmungava que para mulher eu não estava mal, mas isso não alterava o facto de ele ter preferido que eu fosse homem, em cujo caso me teria ensinado a usar as suas ferramentas. Ao menos conseguiu desfazer-se do meu fato cinzento mediante o método simples de queimá-lo no pátio. Armei um escândalo, mas no fundo senti-me grata, embora tivesse a certeza de que com aquele mamarracho cinzento ou sem ele nenhum homem olharia para mim. Contudo, poucos dias mais tarde aconteceu um milagre: declarou-se-me o primeiro rapaz, Miguel Frias. Estava tão desesperada que me agarrei a ele como um caranguejo e nunca mais o soltei. Cinco anos depois casámo-nos, tivemos dois filhos e permanecemos juntos durante vinte e cinco anos. Mas não quero adiantar-me...

Por essa altura o avô tinha abandonado o luto e voltara a casar-se com uma matrona de aspecto imperial por cujas veias corria o sangue daqueles colonos alemães chegados da Floresta Negra no século xix para povoarem o sul. Comparados com ela, nós parecíamos selvagens e comportávamo-nos como tais. A segunda esposa de meu avô era uma valquíria imponente, alta, branca e loira, dotada de proa bojuda e popa memorável. Teve de suportar que o marido murmurasse em sonhos o nome da sua primeira mulher e lidar com a sua família política, que nunca a aceitou completamente e muitas vezes lhe fez a vida impossível. Lamento que assim fosse, porque sem ela a velhice do patriarca teria sido muito solitária. Era uma excelente dona de casa e cozinheira; também era mandona, laboriosa, poupada e incapaz de entender o sentido de humor retorcido da nossa família. Sob o seu reinado foram desterrados da cozinha os eternos feijões, lentilhas e grão-de-bico; ela preparava delicados pratos que os seus enteados cobriam com molho picante antes de os provarem. Também bordava toalhas primorosas, que eles costumavam usar para limpar os sapatos. Imagino que os almoços dominicais com esses bárbaros tenham sido um imenso tormento para ela, mas manteve-os em vigor durante décadas para nos demonstrar que, fizéssemos o que fizéssemos, nunca a poderíamos vencer. Naquela guerra de vontades, ela ganhou de longe.

Essa digna dama não participava na cumplicidade que me ligava ao meu avô, mas acompanhava-nos à noite, quando ouvíamos uma radionovela de terror com a luz apagada, ela tricotando de cor, indiferente, ele e eu mortos de medo e riso. O velho reconciliara-se com os meios de comunicação e possuía um rádio pré-diluviano que ele mesmo tinha de reparar dia sim, dia não. Com a ajuda de um «mestre» tinha instalado uma antena e uns cabos ligados a uma grade metálica, com a intenção de captar mensagens dos extraterrestres, visto que minha avó já não estava à mão para os convocar nas suas sessões.

No Chile existe a instituição do «mestre», como chamamos a qualquer tipo (nunca uma mulher) que tenha em seu poder um alicate e um arame. Tratando-se de alguém especialmente primitivo, chamamos-lhe carinhosamente «maestro chasquilla», de outro modo é simplesmente «mestre», título honorífico equivalente a «licenciado». Com um alicate e um arame o homenzinho pode compor desde um simples lavatório à turbina de um avião; a sua criatividade e audácia são ilimitadas. Na maior parte da sua longa vida o meu avô raramente precisou de recorrer a um destes especialistas, porque não só era capaz de solucionar qualquer avaria, como também fabricava as suas próprias ferramentas; mas na velhice, quando já não podia baixar-se ou levantar coisas pesadas, recorria a um «mestre», que costumava visitá-lo para trabalharem juntos entre uns goles de genebra. Nos Estados Unidos, onde a mão-de-obra é cara, metade da população masculina tem uma garagem cheia de ferramentas e aprende desde jovem a ler os manuais de instruções. O meu marido, advogado de profissão, possui uma pistola que dispara pregos, uma máquina para cortar pedra e outra que vomita cimento por uma mangueira. O meu avô era uma excepção entre os Chilenos, porque nenhum, da classe média para cima, sabe decifrar um manual e muito menos suja as mãos com óleo de motor: para isso existem os «mestres», que improvisam as mais engenhosas soluções com os mais modestos recursos e um mínimo de luxo. Conheci um que caiu do nono andar quando tentava arranjar uma janela e saiu milagrosamente ileso. Subiu no elevador, apalpando as contusões, a pedir desculpas porque o seu martelo se partira. A ideia de usar um cinto de segurança ou pedir uma indemnização nunca lhe passou pela cabeça.

Havia uma casita ao fundo do jardim do avô, que certamente tinham feito para uma empregada, onde me instalaram. Pela primeira vez na minha vida tive privacidade e silêncio, um luxo ao qual me habituei. Estudava de dia e à noite lia romances de ficção científica, que alugava em edições de bolso por uns centavos no quiosque da esquina. Como todos os adolescentes chilenos de então, andava com A Montanha Mágica e o Lobo das Estepes debaixo do braço para impressionar; não me lembro de os ter lido. (o Chile é possivelmente o único país onde Thomas Mann e Hermann Hesse foram eternos best sellers, embora eu não consiga imaginar o que teremos em comum com Narciso e Goldmunda, por exemplo.) Na biblioteca do meu avô tropecei com uma colecção de novelas russas e com as obras completas de Henri Troyat, que escreveu longas sagas familiares sobre a vida na Rússia antes e durante a Revolução. Reli esses livros muitas vezes, e anos depois dei ao meu filho o nome de Nicolás influenciada por uma personagem de Troyat, um jovem camponês, radioso como um sol matinal, que se apaixona pela esposa do seu amo e sacrifica por ela a própria vida. É uma história tão romântica que ainda hoje, quando a recordo, tenho vontade de chorar. Assim eram os meus livros favoritos e ainda o são: personagens apaixonadas, causas nobres, ousados actos de coragem, idealismo, aventura e, na medida do possível, lugares longínquos com péssimo clima, como a Sibéria ou algum deserto africano, isto é, sítios que faço tenções de nunca visitar. As ilhas tropicais, tão apetecíveis nas férias, são um desastre para a literatura.

Também escrevia diariamente à minha mãe, que estava na Turquia. As cartas demoravam dois meses a chegar, mas isso nunca foi problema para nós, que somos viciadas do género epistolar: escrevemos uma à outra quase todos os dias durante quarenta e cinco anos com a promessa mútua de que na morte de uma de nós, a outra rasgará a montanha de cartas acumuladas. Sem essa garantia não poderíamos escrever com liberdade; não quero pensar na tragédia que seria se essas cartas, onde dizemos cobras e lagartos dos parentes e do resto do mundo, caíssem em mãos indiscretas.

Recordo esses Invernos da adolescência, quando a chuva inundava o pátio e se metia debaixo da porta da minha casita, quando o vento ameaçava levar o tecto e os trovões e relâmpagos sacudiam o mundo. Se tivesse podido ficar ali fechada a ler durante todo o Inverno, a minha vida teria sido perfeita, mas tinha de ir às aulas. Odiava esperar o autocarro, exausta e ansiosa, sem saber se estaria entre os felizardos que conseguiriam entrar, ou se seria um dos derrotados que ficavam em terra e tinham de esperar o próximo. A cidade tinha-se estendido e era dificil deslocarmo-nos de um ponto para outro; subir para um autocarro («micro») equivalia a uma acção suicida. Depois de esperar horas junto a uma vintena de cidadãos tão desesperados como eu, às vezes debaixo de chuva e com os pés num charco de lama, havia que saltar como uma lebre quando o veículo se aproximava, tossindo e lançando fumo pelo tubo de escape, para se pendurar nem que fosse da roupa de outros passageiros que tinham conseguido pôr os pés na porta. Isto deixou de ser assim, logicamente. Passaram quarenta anos e Santiago é uma cidade completamente diferente da de então. Hoje os autocarros são rápidos, modernos e numerosos. O único inconveniente é que os condutores competem entre eles para serem os primeiros a chegar à paragem e apanhar o máximo de passageiros, de modo que voam pelas ruas esmagando tudo o que se ponha à frente. Detestam os estudantes porque pagam menos e os velhos porque demoram muito a subir e a descer, pelo que fazem o possível para impedir que se aproximem do seu veículo. Quem queira conhecer o temperamento chileno deve usar os transportes colectivos em Santiago e viajar pelo país de autocarro, a experiência é muito instrutiva. Para os micros sobem cantores cegos e vendedores de agulhas, calendários, estampas de santos e flores, também mágicos, malabaristas, ladrões, loucos e mendigos. Em geral os Chilenos andam de mau humor e não trocam olhares na rua, mas nos micros estabelece-se uma solidariedade humana como havia nos refúgios anti-aéreos de Londres durante a Segunda Guerra Mundial.

Mais algumas palavras sobre o trânsito: os Chilenos, tão tímidos e amáveis em pessoa, convertem-se em selvagens quando têm um volante nas mãos: aceleram como doidos a ver quem chega primeiro ao próximo semáforo, andam aos ziguezagues, mudam de mão sem fazer sinal, insultam-se aos gritos ou com gestos. A maioria dos nossos insultos terminam em «on», soando como francês. Uma mão colocada como se fosse para pedir esmola é uma alusão directa ao tamanho dos genitais do inimigo; vale a pena saber isto para não cometer a imprudência de depositar nela uma moeda.

Com o meu avô fiz algumas viagens inesquecíveis à costa, à montanha e ao deserto. Levou-me um par de vezes às explorações ovinas na Patagónia argentina, verdadeiras odisseias em comboio, de jeep, carro de bois e a cavalo. Viajávamos para sul, percorrendo as magníficas florestas de árvores nativas, onde chove continuamente; navegávamos pelas águas imaculadas dos lagos que, como espelhos, reflectiam os vulcões nevados; atravessávamos a escarpada cordilheira dos Andes por rotas escondidas usadas por contrabandistas. No outro lado éramos recebidos por arrieiros argentinos, uns homens rudes e silenciosos, de mãos hábeis e rostos curtidos como o couro das suas botas. Acampávamos debaixo das estrelas envolvidos em pesadas mantas de Castela, com os arreios por almofada. Os arrieiros matavam um borrego e assavam-no no espeto; comíamo-lo regado com mate, um chá verde e amargo servido numa cabaça, que passava de mão em mão, todos chupavam da mesma boquilha metálica. Seria uma descortesia mostrar cara de enjoado diante da boquilha empapada de saliva e tabaco mascado. O meu avô não acreditava em germes pela mesma razão que não acreditava em fantasmas: nunca os tinha visto. Ao amanhecer lavávamo-nos com água gelada e um fortíssimo sabão amarelo, fabricado com gordura de ovelha e soda cáustica. Essas viagens deixaram-me uma recordação tão indelével, que trinta e cinco anos mais tarde fui capaz de descrever a experiência e a paisagem sem vacilar, quando contei a fuga dos protagonistas no meu segundo romance, De Amor e de Sombra.

 

                       Os anos confusos da juventude

Durante a infância e juventude via a minha mãe como uma vítima e decidi muito cedo que não queria seguir os seus passos. Ter nascido mulher parecia-me uma evidente má sorte; era muito mais fácil ser homem. Isso levou-me a ser feminista muito antes de ter ouvido a palavra. É tão antigo o desejo de ser independente e de que ninguém mande em mim, que não me lembro de um só momento sem que esse desejo guiasse as minhas decisões. Olhando para o passado, compreendo que à minha mãe coube um destino dificil e que na realidade o enfrentou com grande coragem, mas então julguei-a débil, porque dependia dos homens em seu redor, como o pai dela e o irmão Pablo, que controlavam o dinheiro e davam as ordens. Só lhe concediam importância quando estava doente, de maneira que o estava com frequência. Depois juntou-se com o tio Ramón, homem de enormes qualidades, mas tão machista como o meu avô, os meus tios e o resto dos chilenos em geral.

Sentia-me asfixiada, presa num sistema rígido, tal como o estávamos todos, especialmente as mulheres que me rodeavam. Não se podia dar um passo fora das normas, devia comportar-me como os outros, fundir-me no anonimato ou enfrentar o ridículo. Entendia-se que eu devia completar a escola secundária, manter o meu noivo com as rédeas curtas, casar-me antes dos vinte e cinco anos - depois já não valia a pena - e ter filhos rapidamente para que ninguém pensasse que usava contraceptivos. A propósito disso, devo esclarecer que já tinha sido inventada a famosa pílula responsável pela revolução sexual, mas no Chile falava-se dela em surdina; a Igreja proibira-a e só era possível arranjá-la através de um médico amigo e de pensamento liberal, desde que se pudesse exibir uma certidão de casamento. As solteiras estavam tramadas, porque poucos homens chilenos têm a cortesia de usar um preservativo. Nos guias turísticos deveria ser recomendado aos visitantes que tenham sempre um na carteira, porque não lhes faltarão oportunidades de o usar. A sedução de qualquer mulher em idade reprodutora é uma tarefa que o chileno cumpre conscienciosamente. Em geral, os meus compatriotas dançam pessimamente, mas falam muito bonito; foram os primeiros a descobrir que o ponto G está nas orelhas femininas e que procurá-lo mais abaixo é uma perda de tempo. Uma das experiências mais terapêuticas para qualquer mulher deprimida é passar diante de uma obra e comprovar como o trabalho pára e dos andaimes se penduram vários operários a lisonjeá-la. Esta actividade atingiu o nível de uma arte e existe um concurso anual para premiar os melhores piropos segundo a sua categoria: clássicos, criativos, eróticos, cómicos e poéticos.

Ensinaram-me desde pequena a ser discreta e fingir virtude. Digo fingir, porque aquilo que se faz pela calada não importa, desde que não se saiba. No Chile sofremos de uma forma particular de hipocrisia: escandalizamo-nos ante qualquer tropeção do próximo, mas cometemos pecados bárbaros em privado. A franqueza choca-nos um pouco, somos dissimulados, preferimos falar com eufemismos (amamentar é «dar papa ao bebé»; tortura é «apertos ilegítimos»). Fazemos alarde de ser muito emancipados, mas suportamos estoicamente o silêncio em torno dos temas que se consideram tabu e não se discutem, desde a corrupção (a que chamamos «enriquecimento ilícito») até à censura do cinema, para só mencionar dois. Antes não se podia exibir Um Violinista no Telhado; agora não mostram A Última Tentação de Cristo, porque os padres se opõem e os fundamentalistas católicos podem pôr uma bomba no cinema. Passaram O Último Tango em Paris quando Marlon Brando era já um velho obeso e a margarina tinha passado de moda. O tabu mais forte, sobretudo para as mulheres, continua a ser o tabu sexual.

Algumas famílias emancipadas mandavam as filhas para a universidade, mas não era o caso da minha. A minha família considerava-se intelectual, mas na realidade éramos uns bárbaros medievais. Esperava-se que os meus irmãos tivessem uma profissão - na medida do possível advogados, médicos ou engenheiros, as restantes ocupações eram de segunda ordem -, mas que eu me conformasse com um trabalho mais decorativo, até que o casamento e a maternidade me absorvessem por completo. Nesses anos as mulheres com uma profissão eram na sua maioria oriundas da classe média, que é a firme coluna vertebral do país. Isso mudou e hoje o nível de educação das mulheres é mesmo superior ao dos homens. Eu não era má estudante, mas como já tinha noivo ninguém se lembrou que podia ter uma profissão; nem sequer eu me lembrei disso. Acabei o secundário aos dezasseis anos, tão confusa e imatura que não soube qual era o passo seguinte, embora me fosse claro que devia trabalhar, porque não há feminismo que valha sem independência económica. Como dizia o meu avô: quem paga a conta, manda. Empreguei-me como secretária numa organização das Nações Unidas, onde copiava estatísticas florestais em grandes folhas quadriculadas. Nos momentos de ócio não bordava o meu enxoval, mas lia romances de autores latino-americanos e jogava o braço de ferro com quanto varão se cruzava no meu caminho, a começar pelo avô e pelo bom tio Ramón. A minha rebelião contra o sistema patriarcal exacerbou-se ao entrar no mercado de trabalho e comprovar as desvantagens de ser mulher.

E quanto à escrita? Suponho que secretamente desejava dedicar-me à literatura, mas nunca me atrevi a pôr em palavras tão pretensioso projecto, porque teria desabado uma avalanche de gargalhadas ao meu redor. Ninguém tinha interesse no que eu pudesse dizer, muito menos escrever. Não conhecia autoras notáveis, salvo duas ou três solteironas inglesas do século xix e a poetisa nacional, Gabriela Mistral, mas essa parecia homem. Os escritores eram cavalheiros maduros, solenes, distantes e na sua maioria mortos. Pessoalmente não conhecia nenhum, exceptuando esse meu tio que percorria o bairro tocando realejo, o qual publicara um livro sobre as suas experiências místicas na índia. Na cave amontoavam-se centenas de exemplares desse gordo romance, seguramente comprados pelo meu avô para os retirar de circulação, que os meus irmãos e eu usámos quando éramos pequenos para construir fortificações. Não, definitivamente a literatura não era um caminho razoável num país como o Chile, onde o desprezo intelectual pelas mulheres ainda era absoluto. Mediante uma guerra sem quartel, nós mulheres conseguimos ganhar o respeito dos nossos trogloditas em certas áreas, mas, mal nos descuidamos, o machismo levanta de novo a sua cabeça façanhuda.

Ganhei a vida como secretária durante algum tempo, casei-me com Miguel, o noivo de sempre, e fiquei logo grávida da minha primeira filha, Paula. Apesar das minhas teorias feministas, fui uma típica esposa chilena, abnegada e serviçal como uma gueixa, dessas que infantilizam o marido com premeditação e perfidia. Basta dizer, por exemplo, que tinha três trabalhos; governava a casa, tomava conta dos filhos e corria como um atleta o dia inteiro para cumprir todas as responsabilidades que me impusera carregar sobre os ombros, incluindo uma visita diária ao meu avô, mas à noite esperava o meu marido com a azeitona do seu martini entre os dentes e preparava-lhe a roupa que haveria de vestir na manhã seguinte. Nos meus momentos livres engraxava-lhe os sapatos e cortava-lhe o cabelo e as unhas, como uma Elvira qualquer.

Em breve consegui uma transferência de serviço e comecei a trabalhar no departamento de informação, onde tinha de redigir relatórios e manter-me em contacto com a imprensa, o que era mais divertido do que contar árvores. Devo admitir que não escolhi o jornalismo, andava distraída e este agarrou-me de supetão; foi amor à primeira vista, uma paixão súbita que determinou uma boa parte da minha existência. Nessa época foi inaugurada a televisão no Chile, com dois canais a preto e branco que dependiam das universidades. Era televisão da Idade da Pedra, mais primitiva seria impossível, por isso pude pôr um pé lá dentro apesar de os únicos ecrãs que eu tinha visto serem os do cinema. Vi-me lançada numa carreira jornalística, embora não tivesse feito os estudos regulares na universidade. Nesse tempo ainda era um oficio que se aprendia na rua e havia uma certa tolerância para com os espontâneos como eu. Diga-se a propósito que no Chile as mulheres constituem a maioria entre os jornalistas e são mais preparadas, visíveis e corajosas que os seus colegas masculinos, embora quase sempre tenham de trabalhar sob as ordens de um homem. O meu avô recebeu a notícia com indignação; considerava que essa era uma ocupação de trapaceiros, ninguém no seu perfeito juízo falaria com a imprensa e nenhuma pessoa decente optaria por um oficio cuja matéria-prima eram os mexericos. Secretamente, contudo, creio que via os meus programas de televisão porque às vezes deixava escapar um ou outro comentário revelador.

Nesses anos cresceram de forma alarmante os cordões de pobreza à volta da capital, com as suas paredes de cartão, os seus tectos de lata e os seus habitantes em farrapos. Viam-se claramente no caminho do aeroporto, dando uma péssima impressão aos visitantes; durante muito tempo a solução foi construir muralhas para os esconder. Como dizia um político de então: «Se há miséria, que não se veja». Actualmente ainda restam populações marginais, apesar do esforço sustentado dos governos para reinstalar os moradores em bairros mais decentes, mas nada como o que havia antes. Imigrantes chegados do campo ou das províncias mais abandonadas acorriam em massa procurando trabalho e, ao verem-se desamparados, erguiam as suas barracas de lata. Apesar de fustigadas pelos polícias, estas povoações cresciam como cogumelos e organizavam-se; logo que as pessoas ocupassem um terreno era impossível expulsá-las ou impedir que continuassem a chegar. As barracas alinhavam-se ao longo de ruelas de terra batida, que no Verão levantavam uma enorme poeirada e no Inverno se convertiam num lodaçal. Centenas de crianças descalças corriam entre as habitações, enquanto os pais partiam todos os dias para a cidade à procura de trabalho de ocasião para «enganar a panela», termo vago que significa qualquer coisa, desde umas notas de pouco valor até um osso para fazer sopa. Visitei algumas vezes essas populações, primeiro com sacerdotes amigos, tentando levar ajuda, e pouco depois, quando o feminismo e as inquietações políticas me obrigaram a sair da casca, frequentava-as para aprender. Como jornalista pude fazer reportagens e entrevistas que me serviram para compreender melhor a nossa mentalidade chilena.

Entre os problemas mais agudos ligados à falta de esperança estavam o alcoolismo e a violência doméstica. Vi muitas mulheres com a violência bem marcada na cara. A minha compaixão caía no vazio, descobriam sempre uma desculpa para o agressor: «estava bêbado», «zangou-se», «ficou ciumento», «se me bate, é porque gosta de mim», «que terei eu feito para o provocar...?». Dizem-me que isto não mudou muito, apesar das campanhas de prevenção. Na letra de um tango muito popular o varão espera que a menina lhe prepare o seu mate para logo «lhe espetar trinta e cinco punhaladas». Agora os polícias são treinados para irromper nas casas sem esperar que lhes abram gentilmente a porta ou que apareça um cadáver com trinta e cinco facadas pendurado na janela; mas ainda há muito por fazer. E que dizer da maneira como batem nos filhos? Estão sempre a aparecer na imprensa casos espantosos de crianças torturadas ou mortas à pancada pelos seus pais. Segundo o Banco Interamericano de Desenvolvimento, a América Latina é uma das regiões mais violentas do mundo, a segunda depois de África. A violência na sociedade começa nos lares; não se pode eliminar o crime nas ruas se não se atacarem os maus-tratos domésticos, já que as crianças agredidas se convertem com frequência em adultos violentos. Actualmente fala-se disto, denuncia-se na imprensa, existem refúgios, programas de educação e protecção policial para as vítimas, mas naqueles anos era um tema tabu.

Nos bairros de lata havia consciência de classe, orgulho de pertencer ao proletariado, o que foi para mim surpreendente numa sociedade tão arrivista como a chilena. Descobri então que o arrivismo era próprio da classe média; os pobres estavam demasiado ocupados na dificil arte da sobrevivência. Nos anos seguintes estas comunidades adquiriram educação política, organizaram-se e converteram-se em terra fértil para os partidos de esquerda. Dez anos mais tarde, em 1970, foram determinantes na eleição de Salvador Allende, e por isso mesmo haveriam de sofrer a mais dura repressão durante a ditadura militar.

Levei o jornalismo muito a sério, apesar de os meus colegas daquela época julgarem que eu inventava as reportagens. Não as inventava, só exagerava um pouco. Desse tempo fiquei com várias manias: ainda ando à caça de notícias e de histórias, sempre com um lápis e um caderno na carteira para anotar o que me chama a atenção. O que aprendi nessa época serve-me agora na literatura: trabalhar sob pressão, conduzir uma entrevista, realizar uma investigação, usar a linguagem de forma eficiente. Não esqueço que o livro não é um fim em si mesmo. Tal como um jornal ou uma revista, é simplesmente um meio de comunicação, por isso procuro agarrar o leitor pelo pescoço e só o largar no final. Nem sempre o consigo, claro está, o leitor é muitas vezes evasivo. Quem é esse leitor? Quando os norte-americanos prenderam no Panamá o general Noriega, que tinha caído em desgraça, encontraram dois livros na sua posse: a Bíblia e A Casa dos Espíritos. Ninguém sabe para quem escreve. Cada livro é uma mensagem metida numa garrafa e lançada ao mar com a esperança de que chegue a outra costa. Sinto-me muito grata quando alguém a encontra e a lê, sobretudo alguém como Noriega.

Entretanto o tio Ramón fora nomeado representante do Chile nas Nações Unidas, em Genebra. As cartas entre a minha mãe e eu demoravam menos tempo a chegar do que à Turquia e de vez em quando era possível falar pelo telefone. Quando a nossa filha Paula tinha um ano e meio o meu marido conseguiu uma bolsa para estudar engenharia na Bélgica. No mapa, Bruxelas aparecia muito perto de Genebra e eu não quis perder a oportunidade de visitar os meus pais. Ignorando a promessa que tinha feito de lançar raízes e não viajar para o estrangeiro por nenhum motivo, fizemos as malas e partimos para a Europa. Foi uma excelente decisão, entre outras razões porque me foi possível estudar rádio e televisão e aperfeiçoar o meu francês, que não usava desde os tempos do Líbano. Durante esse ano descobri o Movimento de Libertação Feminina e compreendi que eu não era a única bruxa deste mundo; éramos muitas.

Na Europa pouca gente ouvira falar do Chile; o país ficou na moda quatro anos depois, com a eleição de Salvador Allende. Voltou a estar na moda com o golpe militar de 1973, com o cortejo de violações dos direitos humanos e finalmente com a prisão do ex-ditador em Londres no ano de 1998. Sempre que o nosso país foi notícia isso aconteceu por eventos políticos de excepcional importância, salvo quando aparece brevemente na imprensa a propósito de um terramoto. Se me perguntavam a minha nacionalidade, tinha de dar longas explicações e desenhar um mapa para demonstrar que o Chile não ficava no meio da Ásia, mas no Sul da América. Era muitas vezes confundido com a China, porque o nome soava parecido. Os Belgas, habituados à ideia das colónias em África, surpreendiam-se ao verem que o meu marido parecia inglês e eu não era negra: uma vez perguntaram-me porque não usava o trajo típico, que talvez imaginassem como os vestidos de Carmen Miranda nos filmes de Hollywood: saia às cores e um cabaz de abacaxis na cabeça. Percorremos a Europa desde os países escandinavos até ao Sul de Espanha num Volkswagen desconjuntado, dormindo numa tenda de campismo e alimentando-nos de salsichas, carne de cavalo e batatas fritas. Foi um ano de turismo frenético.

Regressámos ao Chile em 1966 com a nossa filha Paula, que aos três anos falava com a correcção de um académico e se tinha tornado especialista de catedrais, e com Nicolás no meu ventre. Por contraste com a Europa, onde se viam por todo o lado hippies cabeludos, se geravam revoluções estudantis e se celebrava a libertação sexual, o Chile era muito enfadonho. Senti-me de novo uma estranha, mas reafirmei a minha promessa de lançar raízes e não voltar a sair dali.

Nicolás mal tinha nascido quando voltei a trabalhar, desta vez numa revista feminina chamada Paula, que acabava de se apresentar no mercado. Era a única que promovia a causa do feminismo e expunha temas nunca ventilados até então, como divórcio, anticoncepcionais, violência doméstica, adultério, aborto, drogas, prostituição. Considerando que nesse tempo não se podia pronunciar a palavra cromossoma sem corar, éramos de uma audácia suicida.

O Chile é um país hipócrita, pudibundo e cheio de escrúpulos a respeito da sensualidade, temos mesmo uma expressão crioula para definir esta atitude: somos «cartuchos». Existe uma moral dupla. Tolera-se a promiscuidade nos homens mas as mulheres devem fingir que o sexo não lhes interessa, só o amor e o romance, embora na prática gozem da mesma liberdade que os homens, senão com quem o fariam eles? As raparigas nunca devem parecer que colaboram abertamente com o macho no processo de sedução, devem fazê-lo discretamente. Supõe-se que se forem «dificeis», o pretendente mantém-se interessado e respeita-as, de contrário há epítetos muito pouco elegantes para as qualificar. Esta é mais uma manifestação da nossa hipocrisia, outro dos nossos rituais para salvar as aparências, porque na realidade há tanto adultério, adolescentes grávidas, filhos fora do casamento e abortos como em qualquer outro país. Tenho uma amiga, médica ginecologista especializada no atendimento a adolescentes solteiras grávidas, que garante que isto raras vezes acontece entre raparigas universitárias. Sucede nas famílias de menores rendimentos, onde os pais preferem educar e dar oportunidades aos filhos varões, muito mais do que às filhas. Essas raparigas não têm planos, o seu futuro é cinzento, carecem de educação e de auto-estima; algumas ficam grávidas por pura ignorância. Surpreendem-se ao descobrir o seu estado, porque cumpriram à letra o aviso de «não se deitarem» com ninguém. O que acontece de pé atrás de uma porta não conta.

Passaram mais de trinta anos desde que a revista Paula investiu contra a pudibunda sociedade chilena e ninguém pode negar que teve o efeito de um furacão. Cada uma das controversas reportagens da revista colocava o meu avô à beira de uma paragem cardíaca; discutíamos aos gritos, mas no dia seguinte eu voltava a visitá-lo e ele recebia-me como se nada tivesse acontecido. Nos seus começos, o feminismo, que hoje damos por adquirido, era uma extravagância, e na sua maioria as chilenas perguntavam para que o queriam, se de qualquer maneira elas eram rainhas nas suas casas e lhes parecia natural que lá fora mandassem os homens, como o haviam estabelecido Deus e a natureza. Era dificil convencê-las de que não eram rainhas em parte nenhuma. Não havia muitas feministas visíveis, eram meia dúzia no máximo. O melhor é nem pensar nas agressões que suportámos! Descobri que esperar que nos respeitem por sermos feministas é como esperar que o touro não invista contra nós por sermos vegetarianas. Também regressei à televisão, agora com um programa de humor, no qual ganhei uma certa visibilidade, como acontece a qualquer pessoa que apareça regularmente num ecrã. Em breve abriram-se-me todas as portas, as pessoas cumprimentavam-me na rua e pela primeira vez na minha vida senti-me à vontade num lugar.

 

                 O charme discreto da burguesia

É frequente perguntar a mim mesma em que consiste exactamente a nostalgia. No meu caso não é tanto o desejo de viver no Chile como o de recuperar a segurança com que ali me movimento. É esse o meu terreno. Cada povo tem os seus costumes, manias, complexos. Conheço a idiossincrasia do meu como a palma da minha mão, nada me surpreende, posso prever as reacções dos outros, entendo o que significam os gestos, os silêncios, as frases de cortesia, as reacções ambíguas. Só ali me sinto socialmente à vontade, apesar de serem raras as vezes em que ajo como se espera de mim, porque sei comportar-me e é muito raro que me faltem os bons modos.

Quando aos quarenta e cinco anos e divorciada de fresco emigrei para os Estados Unidos, obedecendo ao apelo do meu impulsivo coração, a primeira coisa que me surpreendeu foi a atitude infalivelmente optimista dos norte-americanos, tão diferente da das pessoas do sul do continente, que estão sempre à espera do pior. E o pior acontece, é claro. Nos Estados Unidos a Constituição garante o direito à procura da felicidade, o que seria uma presunção ofensiva em qualquer outro sítio. Este povo também julga ter direito a estar sempre bem-humorado e se qualquer destes direitos lhe falta sente-se frustrado. O resto do mundo, pelo contrário, espera que a vida seja de um modo geral dura e enfadonha, e por isso celebra muito as chispas de alegria e as diversões, por modestas que sejam, quando estas se apresentam.

No Chile é quase uma descortesia dizer-se que se está demasiado satisfeito, porque pode irritar os menos afortunados, por isso, para nós a resposta correcta à pergunta «como estás?», é «mais ou menos». É uma demonstração de simpatia pela situação do outro. Por exemplo, se o interlocutor conta que acaba de lhe ser diagnosticada uma doença fatal, seria de péssimo gosto lançar-lhe à cara a nossa felicidade, não é assim? Mas se o outro acaba de casar com uma rica herdeira, temos a liberdade de confessar a nossa própria sorte sem medo de ferir ninguém. É essa a ideia do «mais ou menos», que costuma lançar alguma confusão no espírito dos estrangeiros que nos visitam: dá tempo para apalpar o terreno e não meter a pata na poça. Dizem os sociólogos que quarenta por cento dos chilenos sofrem de depressão, sobretudo as mulheres, que têm de aguentar os homens. Deve ter-se em conta igualmente que - tal como disse mais atrás - no nosso país ocorrem desgraças enormes e há muita gente pobre, portanto não é elegante mencionar a própria boa sorte. Tive um parente que ganhou duas vezes a sorte grande na lotaria, mas continuou sempre a dizer que estava «mais ou menos», para não ofender. Já agora vale a pena contar como sucedeu um tal prodígio. Era um homem muito católico e como tal nunca quis ouvir falar de contraceptivos. Quando lhe nasceu o sétimo filho, foi à igreja, ajoelhou-se diante do altar e, desesperado, falou cara a cara com o seu Criador: «Senhor, se me mandaste sete filhos, bem poderias ajudar-me a criá-los...», e de seguida tirou do bolso uma longa lista de gastos, que havia preparado cuidadosamente. Deus ouviu com paciência os argumentos do seu leal servidor e acto contínuo revelou-lhe em sonhos o número da sorte grande. Os milhões deram para alguns anos, mas a inflação, que naquela época era um mal endémico no Chile, reduziu o capital na mesma medida em que aumentava a família. Quando nasceu o último dos seus filhos, o número onze, o homem voltou à igreja a expor a sua situação e de novo Deus se comoveu enviando-lhe outro sonho revelador. À terceira já não resultou.

Na minha família, a felicidade era irrelevante. Os meus avós, tal como a imensa maioria dos chilenos, ficariam de boca aberta ao saberem que há gente disposta a gastar dinheiro em terapia para vencer a desgraça. Para eles, a vida era dificil e o resto são tontices. A satisfação encontrava-se em agir bem, na família, na honra, no espírito de serviço, no estudo e na própria força. A alegria estava presente de muitas maneiras nas nossas vidas e suponho que o amor não seria a menos importante; mas também não falávamos disso, morreríamos de vergonha antes de pronunciar a palavra. Os sentimentos fluíam em silêncio. Ao contrário da maioria dos chilenos, nós tínhamos o mínimo de contacto físico e ninguém mimava os filhos pequenos. O costume moderno de elogiar tudo o que fazem as crianças como se fosse uma tremenda graça não se usava então; muito menos existia a preocupação de os criar sem traumas. Ainda bem que assim foi, porque se eu tivesse crescido protegida e feliz, de que raio escreveria agora? Por isso procurei fazer a infância o mais dificil possível aos meus netos, para que venham a ser adultos criativos. Os pais deles não apreciam nada os meus esforços.

A aparência física era ignorada na família; a minha mãe afirmou que só soube que era bonita depois de fazer quarenta anos, porque nunca se tinha falado disso. Digamos que nisto éramos originais, porque no Chile as aparências são fundamentais. As primeiras impressões que duas mulheres trocam quando se encontram são comentários sobre a roupa, o penteado ou a dieta. A única coisa que os homens comentam sobre as mulheres - nas suas costas, claro - é a maneira como se apresentam, e em geral fazem-no em termos muito pejorativos, sem suspeitarem que elas lhes pagam na mesma moeda. As coisas que ouvi dizer às minhas amigas sobre os homens fariam corar uma pedra. Na minha família também era de mau gosto falar de religião e, sobretudo, de dinheiro; quase só se falava de doenças, tema predilecto dos chilenos. Especializámo-nos na troca de remédios e conselhos médicos; ali todos receitam. Desconfiamos dos médicos, porque é óbvio que a saúde alheia não lhes convém, por isso só os procuramos quando tudo o resto nos falha, depois de termos provado todos os remédios que amigos e conhecidos nos recomendam. Suponhamos que o leitor desmaia à porta do hipermercado. Em qualquer outro país chamam uma ambulância, menos no Chile, onde o levantam seguro por vários voluntários, o levam pelo ar para trás do balcão, lhe borrifam a cara com água fria e lhe metem aguardente pela goela abaixo, para que espevite; depois obrigam-no a engolir umas pílulas que uma qualquer senhora tira da carteira, porque «tenho uma amiga que costuma ter ataques e este remédio é óptimo». Haverá um coro de especialistas que diagnosticarão o seu estado em linguagem clínica, porque todo o cidadão com dois dedos de testa sabe muito de medicina. Um dos peritos dirá, por exemplo, que o leitor sofreu obturação de uma válvula no cérebro, mas haverá outro que suspeita de uma dupla torção dos pulmões e um terceiro a dizer que o seu pâncreas rebentou. Em poucos minutos haverá uma gritaria à sua volta e chegará alguém que foi à farmácia comprar penicilina para o injectar, pelo sim pelo não. Em suma, se o leitor for estrangeiro, o melhor conselho que lhe posso dar é que não desmaie num hipermercado chileno; pode ser uma experiência mortal.

É tanta a nossa facilidade para receitar que durante um cruzeiro pelo sul, cujo destino era visitar a maravilhosa lagoa de San Rafael, nos deram soporíferos com a sobremesa. Na hora do jantar o capitão avisou os passageiros de que iríamos navegar numa zona particularmente agitada e depois a mulher dele passou por entre as mesas distribuindo umas pastilhas soltas, cujo nome ninguém se atreveu a perguntar. Tomámo-las obedientemente e passados vinte minutos todos os passageiros dormiam a sono solto, como na história da Bela Adormecida. O meu marido disse que nos Estados Unidos teriam processado o capitão e a mulher por anestesiarem os passageiros. No Chile ficámos muito agradecidos.

Antigamente, o tema obrigatório, mal se juntavam duas ou mais pessoas, era a política; se havia dois chilenos numa sala, era certo que havia três partidos políticos. Entendo que numa época tenhamos tido mais de uma dúzia de minipartidos socialistas; até a direita, que é monolítica no resto do mundo, entre nós estava dividida. Porém, agora a política não nos apaixona; só nos referimos a ela para nos queixarmos do governo, uma das actividades nacionais favoritas. Já não votamos religiosamente, como nos tempos em que cidadãos moribundos iam de maca cumprir o seu dever cívico; também não se dão, como antes, os casos de mulheres que pariam no acto de votar. Os jovens não se inscrevem nos registos eleitorais, 84,3 % deles pensam que os partidos políticos não representam os seus interesses e um número maior manifesta-se satisfeito por não participar em nada que diga respeito à condução do país. Parece que se trata de um fenómeno do mundo ocidental. Os jovens não se interessam por esquemas políticos fossilizados que se arrastam desde o século xix; estão preocupados em viver bem e prolongar a adolescência o mais possível, digamos até aos quarenta ou cinquenta anos. Não sejamos injustos, também há uma percentagem militante da ecologia, da ciência e da tecnologia; até se sabe de alguns que fazem trabalho social através das igrejas.

Os temas que substituíram a política nas massas chilenas são o dinheiro, que falta sempre, e o futebol, que serve de consolo. Mesmo o último dos analfabetos conhece os nomes de todos os jogadores que passaram pela nossa história, e tem a sua opinião própria sobre cada um deles. Este desporto é tão importante que nas ruas penam as almas quando há um jogo, porque a população inteira fica em estado catatónico frente ao televisor. O futebol é das poucas actividades humanas em que se prova a relatividade do tempo: pode-se congelar o guarda-redes no ar durante meio minuto, repetir a mesma cena várias vezes em câmara lenta ou de trás para a frente e, graças à mudança de hora entre continentes, ver em Santiago um jogo entre húngaros e alemães antes de o jogarem.

Em nossa casa, como no resto do país, não se dialogava; as reuniões consistiam numa série de monólogos simultâneos, sem que ninguém escutasse ninguém, puro barulho e estática, como uma transmissão de rádio em onda curta. Nada importava, porque também não havia interesse em averiguar o que pensavam os outros, só em repetir o próprio conto. Na velhice o meu avô negou-se a usar um aparelho auditivo, porque considerava que a única coisa boa da sua muita idade era não ter de escutar as tolices que as pessoas dizem. Tal como afirmou eloquentemente o general César Mendoza em 1983: «Estamos a abusar da expressão diálogo. Há casos em que o diálogo não é necessário. É mais necessário um monólogo, porque um diálogo é uma simples conversa entre duas pessoas». A minha família teria estado plenamente de acordo com ele.

Nós, Chilenos, temos tendência para falar em falsete. Mary Graham, uma inglesa que visitou o país em 1822, comentou no seu livro Diário da Minha Estadia no Chile que as pessoas eram encantadoras, mas tinham um tom de voz desagradável, sobretudo as mulheres. Comemos metade das palavras, aspiramos o «s» e trocamos as vogais, de maneira que «cómo estás, pues?» transforma-se em «com tai puh» e a palavra «senhor» pode ser «inhol». Existem pelo menos três idiomas oficiais: o educado, que se usa nos meios de comunicação, em assuntos oficiais e que é falado por alguns membros da classe alta quando não estão à vontade; o coloquial, usado pelo povo, e o dialecto indecifrável e sempre mutante dos jovens. O estrangeiro de visita não deve desesperar, porque mesmo que não entenda nem uma palavra, verá que as pessoas se desvelam para o ajudar. Além disso falamos baixinho e suspiramos muito. Quando vivi na Venezuela, onde homens e mulheres são muito seguros de si mesmos e do terreno que pisam, era fácil distinguir os meus compatriotas pela sua maneira de caminhar como se fossem espiões disfarçados e pelo seu invariável tom de pedir desculpa. Eu passava diariamente pela padaria de uns portugueses para tomar a minha primeira chávena de café da manhã, local onde havia sempre uma apressada multidão de clientes lutando por chegar ao balcão. Os venezuelanos gritavam da porta «Un marroncito, vale!» e palavras não eram ditas o copo de papel com o café com leite chegava até eles, passando de mão em mão. Os chilenos, que naquela época eram muitos, porque a Venezuela foi dos poucos países latino-americanos que recebiam refugiados e imigrantes, levantavam um trémulo dedo indicador e suplicavam num fio de voz: «Por favor, dá-me um cafezinho, senhor?». Podíamos esperar em vão toda a manhã. Os Venezuelanos troçavam dos nossos modos de mequetrefe, ao mesmo tempo que os chilenos se espantavam com a rudeza deles. Os que vivemos nesse país durante vários anos mudámos o nosso carácter e, entre outras coisas, aprendemos a pedir o café aos gritos.

Clarificados alguns pontos sobre o carácter e os costumes dos Chilenos, entendem-se as dúvidas da minha mãe: eu não tinha por onde sair como sou. Nada possuo do decoro, da modéstia ou do pessimismo dos meus parentes; nada do seu medo do que dirão os outros, do esbanjamento e de Deus; não falo nem escrevo em diminutivo, sou mais para o grandiloquente, e gosto de chamar a atenção. Ou melhor, sou assim agora, depois de muito viver. Na minha infância fui um bicho raro, na adolescência um roedor tímido - o meu sobrenome foi durante muitos anos «chucha», como chamamos aos insignificantes ratos domésticos - e na juventude fui de tudo, desde iracunda feminista até hippie coroada de flores. O mais grave é que conto segredos próprios e alheios. Um desastre total. Se vivesse no Chile ninguém me falaria. Agora hospitaleira, isso sou. Ao menos essa virtude conseguiram inculcar-me na infância. Bata à minha porta a qualquer hora do dia ou da noite e eu, mesmo que tenha partido o fémur recentemente, irei a correr recebê-lo para lhe oferecer o primeiro chazinho. Em tudo o resto sou a antítese da dama que os meus pais, com grandes sacrificios, tentaram fazer de mim. Não é culpa deles, simplesmente faltou-me matéria-prima e ainda por cima o meu destino deu muitas voltas.

Se tivesse ficado na minha pátria, como sempre quis, casada com um dos meus primos em segundo grau, no caso improvável de algum deles mo ter proposto, talvez hoje transportasse com dignidade o sangue dos meus antepassados, e talvez o brasão dos cães pulguentos adquirido pelo meu pai estivesse pendurado em lugar de honra na minha casa. Devo acrescentar que, por muito rebelde que tenha sido na minha vida, mantenho os estritos modos de cortesia que me inculcaram a ferro e fogo, como se espera de uma pessoa «decente». Ser decente era fundamental na minha família. Essa palavra abarcava muito mais do que seria possível explicar nestas páginas, mas posso dizer que, sem dúvida, os bons modos constituíam uma alta percentagem da suposta decência.

Tenho andado a divagar mas devo retomar o fio, se é que há algum fio neste vaguear. É assim a nostalgia: uma lenta dança de roda. As recordações não se organizam cronologicamente, são como o fumo, tão cambiantes e efémeras que, se não forem escritas, desaparecem no esquecimento. Tento organizar estas páginas por temas ou por épocas, mas isso torna-se para mim quase um sacrificio, visto que a memória vai e vem, como uma interminável banda desenhada de Moebius.

 

                   Um pouco de história

E porque falamos de nostalgia, suplico ao leitor que tenha um pouco de paciência, pois não posso separar o tema Chile da minha própria vida. O meu destino é feito de paixões, surpresas, êxitos e perdas; não é fácil contá-lo em duas ou três frases. Suponho que em todas as vidas humanas há momentos nos quais a sorte muda ou o rumo se desvia e há que partir noutra direcção. Na minha isso ocorreu diversas vezes, mas um dos acontecimentos mais definitivos deve ter sido o golpe militar de 1973. Se não fosse este evento, certamente que eu nunca teria emigrado do Chile, não seria escritora e não estaria casada com um americano a viver na Califórnia; tão pouco me acompanharia esta imensa nostalgia e hoje não estaria a escrever estas páginas. E assim me dirijo inevitavelmente ao tema da política. Para entender como ocorreu o golpe militar, devo referir-me brevemente à nossa história política, desde os começos até ao general Augusto Pinochet, que hoje é um avô senil em prisão domiciliária, mas cuja importância não é possível ignorar. Não faltam historiadores que o consideram a figura política mais singular do século, o que não é, necessariamente, um juízo favorável.

No Chile, o pêndulo político oscilou de um extremo ao outro, experimentámos todos os sistemas de governo existentes e sofremos as consequências; não admira, portanto, que tenhamos mais ensaístas e historiadores por metro quadrado do que qualquer outra nação do mundo. Estudamo-nos até ao infinito; temos o vício de analisar a nossa realidade como se fosse um permanente problema que pedisse soluções urgentes. Os cabeçudos que queimam as pestanas a estudar-nos são uns enfadonhos herméticos dos quais não entendemos uma palavra; por isso ninguém lhes dá grande importância, o que não os desanima, pelo contrário, todos os anos publicam centenas de tratados académicos, todos muito pessimistas. Entre nós o pessimismo é de bom-tom, supõe-se que só os tolos andam contentes. Somos uma nação em vias de desenvolvimento, a mais estável, segura e próspera da América Latina e uma das mais organizadas, mas não gostamos nada que alguém diga que «o país está a ir muito bem». Quem se atrever a dizer tal coisa será rotulado de ignorante que não lê os jornais.

A partir da sua independência, em 1810, o Chile foi governado pela classe social com poder económico. Antes eram os donos de terras, hoje são os empresários, os industriais, os banqueiros. Antes pertenciam a uma pequena oligarquia descendente de europeus, composta por um punhado de famílias; hoje a classe dirigente é mais extensa, são uns quantos milhares de pessoas, que têm a faca e o queijo na mão. Durante os primeiros cem anos da república, os presidentes e os políticos saíam da classe alta, mas depois a classe média também participou no governo. Poucos, todavia, eram oriundos da classe operária. Os presidentes com consciência social foram homens comovidos pela desigualdade, pela injustiça e pela miséria do povo, mas não as sofreram pessoalmente. Na actualidade, o presidente e a maioria dos políticos, exceptuando alguns de direita, não fazem parte do grupo económico que controla realmente o país. Verifica-se neste momento o paradoxo do governo ser formado por uma coligação de partidos de centro e de esquerda (Concertación), com um presidente socialista, mas a economia ser neocapitalista.

A oligarquia conservadora dominou o país com mentalidade feudal até 1920. Uma excepção foi o presidente liberal José Manuel Balmaceda em 1891, que intuiu as necessidades do povo e tentou levar a cabo algumas reformas que feriam os interesses dos patrões, apesar de ele próprio vir de uma família poderosa, proprietária de um imenso latifúndio. O Parlamento conservador fez-lhe uma oposição feroz, verificou-se uma crise social e política, a Marinha sublevou-se para apoiar o Parlamento e desencadeou-se uma cruenta guerra civil, que terminou com o triunfo do Parlamento e o suicídio de Balmaceda. No entanto, já tinham sido lançadas as sementes das ideias sociais e nos anos seguintes apareceram os partidos radical e comunista.

Em 1920 foi eleito pela primeira vez um caudilho que apregoava justiça social, Arturo Alessandri Palma, apodado «o Leão», pertencente à classe média, da segunda geração de imigrantes italianos. Embora não fosse de família rica, a sua ascendência europeia, a sua cultura e educação colocavam-no naturalmente na classe dirigente. Promulgou leis sociais e no seu governo os trabalhadores organizaram-se e tiveram acesso aos partidos políticos. Alessandri propôs a alteração da Constituição de modo a estabelecer-se uma verdadeira democracia, mas as forças conservadoras de oposição impediram-no, apesar de ele ser apoiado pela maioria dos chilenos, sobretudo a classe média. O Parlamento (outra vez o Parlamento!) tornou-lhe o governo difícil, exigiu-lhe que abandonasse o cargo e se exilasse na Europa. Sucessivas juntas militares tentaram governar, mas o país perdeu o rumo e o clamor popular exigiu o regresso do Leão, o qual terminou o seu mandato promulgando uma nova Constituição.

As Forças Armadas, que se sentiam à margem do poder e entendiam que o país lhes devia muito, dadas as suas vitórias nas guerras do século xix, instalaram, pela força, o general Carlos Ibánez dei Campo na presidência. Ibánez tomou rapidamente medidas ditatoriais, a que os Chilenos tinham até então sido alheios, e isso produziu uma oposição civil tão formidável que paralisou o país e o general teve de renunciar. Iniciou-se então um período que podemos qualificar de sã democracia. Formaram-se alianças de partidos e a esquerda subiu ao poder com o presidente Pedro Aguirre Cerda, da Frente Popular, na qual participavam os partidos comunista e radical. Depois de Pedro Aguirre Cerda, o derrubado Ibáfez uniu-se às forças de esquerda e sucederam-se três presidentes radicais consecutivos. (Apesar de nesse tempo eu ser muito jovem, lembro-me que, quando Ibánez foi eleito para governar pela segunda vez, na minha família houve luto. Do meu esconderijo debaixo do piano ouvia as previsões apocalípticas do meu avô e dos meus tios; passei noites sem dormir, convencida de que as hostes inimigas arrasariam a nossa casa. Nada disso aconteceu. O general tinha aprendido a lição anterior e manteve-se dentro da lei.) Durante vinte anos houve governos de centro-esquerda, até 1958, quando a direita triunfou com Jorge Alessandri, filho do Leão e completamente diferente do pai. O Leão era populista, de ideias avançadas para a época e tinha uma personalidade tremenda; o filho era conservador e projectava uma imagem bem mais pusilânime.

Enquanto na maioria dos outros países latino-americanos se sucediam as revoluções e os caudilhos se apoderavam do governo à bala, no Chile consolidava-se uma democracia exemplar. Na primeira metade do século xx os avanços sociais cristalizaram-se. A educação estatal, gratuita e obrigatória, a saúde pública ao alcance de todos e um dos sistemas mais avançados de segurança social do continente, permitiram o fortalecimento de uma vasta classe média educada e politizada, assim como de um proletariado com consciência de classe. Formaram-se sindicatos, centrais de operários, de empregados, de estudantes. As mulheres obtiveram o direito de voto e os processos eleitorais aperfeiçoaram-se. (Uma eleição no Chile é tão civilizada como a hora do chá no hotel Savoy de Londres. Os cidadãos põem-se na fila para votar, sem a menor altercação, mesmo que os ânimos políticos estejam ao rubro. Homens e mulheres votam em locais separados, enquadrados por soldados, para evitar distúrbios ou subornos. Não se vende álcool desde o dia anterior, comércio e escritórios permanecem fechados; nesse dia não se trabalha.)

A preocupação pela justiça social tocou igualmente a Igreja católica, muito influente no Chile, que na base das novas encíclicas fez grandes esforços para apoiar as mudanças que se tinham verificado no país. Entretanto, afirmavam-se no mundo dois sistemas políticos opostos: capitalismo e socialismo. Para fazer frente ao marxismo, nasceu na Europa a democracia cristã, partido de centro, com uma mensagem humanista e comunitária. No Chile, onde prometia uma «revolução em liberdade», a democracia cristã foi arrasadora nas eleições de 1964, derrotando a direita conservadora e os partidos de esquerda. O triunfo esmagador de Eduardo Frei Montalva, com uma maioria democrata-cristã no Parlamento, constituiu um marco; o país tinha mudado, supunha-se que a direita passava à história, que a esquerda nunca mais teria a sua oportunidade e que a democracia cristã governaria eternamente, mas o plano não resultou e em poucos anos o partido perdeu apoio popular; a direita não foi pulverizada, como se havia prognosticado, e a esquerda, recuperada da derrota, organizou-se. As forças estavam divididas em três sectores: direita, centro e esquerda.

Findo o período de Frei Montalva, o país estava frenético. Havia um desejo de vingança por parte da direita, que se sentia expropriada dos seus bens e temia perder definitivamente o poder que sempre ostentara, e um grande ressentimento por parte das classes baixas, que não se sentiram representadas pela democracia cristã. Cada sector apresentou o seu candidato: Jorge Alessandri pela direita, Radomiro Tomic pela democracia cristã e Salvador Allende pela esquerda.

Os partidos de esquerda juntaram-se numa coligação chamada Unidade Popular, que incluía o partido comunista. Os Estados Unidos alarmaram-se, apesar das sondagens darem a direita como vencedora, e destinou vários milhões de dólares para combater Allende. As forças políticas estavam repartidas de tal modo, que Allende, com o seu projecto de «a via chilena para o socialismo» ganhou por margem estreita, com trinta e oito por cento dos votos. Como não obteve maioria absoluta, o Congresso teria de ratificar a eleição. Tradicionalmente era designado o candidato com mais votos. Allende era o primeiro marxista a alcançar a presidência de um país mediante votação democrática. Os olhos do mundo viraram-se para o Chile.

Salvador Allende Gossens era um médico carismático, que tinha sido ministro da Saúde na sua juventude, senador durante muitos anos e o eterno candidato presidencial da esquerda. Ele próprio fazia com graça o seu epitáfio: «Aqui jaz o próximo presidente do Chile». Era valente, leal para com os seus amigos e colaboradores, magnânimo com os seus adversários. Chamavam-lhe vaidoso pela sua forma de vestir, pelo seu gosto pela boa vida e pelas mulheres bonitas, mas era muito sério no campo das convicções políticas; nesse aspecto ninguém o pode acusar de frivolidade. Os seus inimigos preferiam não o enfrentar pessoalmente, porque tinha fama de manipular qualquer situação a seu favor. Pretendia realizar profundas reformas económicas no quadro da Constituição, alargar a reforma agrária iniciada pelo governo anterior, nacionalizar empresas privadas, bancos e as minas de cobre, que estavam nas mãos de companhias norte-americanas. Propunha-se chegar ao socialismo respeitando todos os direitos e liberdades dos cidadãos, uma experiência que até então ninguém tentara.

A revolução cubana já tinha dez anos de existência, apesar dos esforços dos Estados Unidos para a destruir, e havia movimentos guerrilheiros de esquerda em muitos países latino-americanos. O herói indiscutível da juventude era Che Guevara, assassinado na Bolívia, cujo rosto de santo com boina e cigarro se tinha transformado no símbolo da luta pela justiça. Eram os tempos da guerra fria, quando uma paranóia irracional dividiu o mundo em duas ideologias e determinou a política externa da União Soviética e dos Estados Unidos durante várias décadas. O Chile foi um dos peões sacrificados nesse conflito de titãs. A administração de Nixon decidiu intervir directamente no processo eleitoral chileno. Henri Kissinger, responsável pela política externa, que admitia não saber nada sobre a América Latina, considerando-a o pátio das traseiras dos Estados Unidos, disse «não existir razão para ver um país tornar-se comunista por irresponsabilidade do seu próprio povo, sem fazer algo a esse respeito». (Na América Latina circula esta anedota: Nos Estados Unidos não há golpes militares. Sabe porquê? Porque não há embaixada norte-americana.) Para Kissinger, a via democrática para o socialismo de Salvador Allende era mais perigosa do que a revolução armada, porque podia contagiar o resto do continente como uma epidemia.

A CIA idealizou um plano para evitar que Allende assumisse a presidência. Primeiro tentou subornar alguns membros do Congresso para que não o designassem e convocassem uma segunda votação na qual só haveria dois candidatos, Allende e um democrata cristão apoiado pela direita. Como o suborno não resultou, planeou o sequestro do comandante em chefe das Forças Armadas, general Renê Schneider, por um suposto comando de esquerda, que na realidade era um grupo neofascista, com o objectivo de provocar o caos e uma intervenção militar. O general morreu baleado na refrega e o plano teve o efeito contrário: uma onda de horror sacudiu o país e o Congresso, por unanimidade, entregou a Salvador Allende a presidência. A partir desse momento a direita e a CIA conspiraram para derrubar o governo da Unidade Popular, mesmo que à custa da destruição da economia e da longa trajectória democrática do Chile. Puseram em acção o plano dito de «desestabilização», que consistia em cortar os créditos internacionais e uma campanha de sabotagem para provocar a ruína económica e a violência social. Simultaneamente seduziam com cantos de sereia os militares, que em última instância representavam a carta mais valiosa do baralho.

A direita, dona da imprensa no Chile, organizou uma campanha de terror, que incluía cartazes com soldados soviéticos arrancando crianças dos braços de suas mães a fim de os levarem para os gulagues. No dia da eleição, em 1970, quando o triunfo de Allende se tornou evidente, o povo veio para a rua celebrar; nunca se vira uma manifestação popular de tal magnitude. A direita acabou por acreditar na sua própria propaganda do medo e entrincheirou-se em casa, convencida de que os «rotos» inflamados iam cometer toda a espécie de tropelias. A euforia do povo foi extraordinária - palavras de ordem, bandeiras e abraços -, mas não houve excessos e ao amanhecer os manifestantes retiraram-se para as suas casas, roucos de tanto cantar. No dia seguinte havia longas filas diante dos bancos e das agências de viagens do bairro alto de Santiago: muita gente retirava o seu dinheiro e comprava passagens de fuga para o estrangeiro, convencida de que o país ia pelo mesmo caminho de Cuba.

Para dar uma palmada de amizade nas costas do governo socialista, Fidel Castro chegou de visita, o que agravou o pânico da oposição, sobretudo ao ver a recepção dada ao controverso comandante. O povo juntou-se ao longo do caminho desde o aeroporto até ao centro de Santiago, organizado por sindicatos, escolas, uniões de profissionais, partidos políticos, etc., com bandeiras, estandartes e bandas de música, além da imensa massa anónima que foi ver o espectáculo por curiosidade, com o mesmo entusiasmo com que anos depois daria as boas-vindas ao Papa. A visita do barbudo comandante cubano estendeu-se por tempo excessivo: vinte e oito longos dias nos quais percorreu o país de norte a sul acompanhado por Allende. Creio que todos soltámos um suspiro de alívio quando partiu; estávamos exaustos, mas não se pode negar que a sua comitiva deixou o ar cheio de música e de risos; os Cubanos mostraram-se encantadores. Vinte anos mais tarde conheci cubanos exilados em Miami e comprovei que são tão simpáticos como os da ilha. Os Chilenos, sempre tão sérios e solenes, foram sacudidos: não sabiam que a vida e a revolução podiam viver-se com tanta alegria.

A Unidade Popular era popular, mas não era unida. Os partidos da coligação lutavam como cães por cada naco de poder e Allende não só tinha de enfrentar a oposição da direita, mas também os críticos pertencentes às suas fileiras, que exigiam mais velocidade e radicalismo. Os trabalhadores tomavam fábricas e fazendas, cansados de esperar a nacionalização das empresas privadas e a extensão da reforma agrária. A sabotagem da direita, a intervenção norte-americana e os erros do governo de Allende provocaram uma crise económica, política e social muito grave. A inflação chegou oficialmente a trezentos e sessenta por cento ao ano, mas a oposição garantia que era mais de mil por cento, isto é, uma dona de casa acordava sem saber quanto lhe custaria o pão do dia. O governo fixou os preços dos produtos básicos; industriais e agricultores faliram. Era tal a escassez, que as pessoas passavam horas à espera para conseguirem um frango raquítico ou uma chávena de azeite, mas quem podia pagar comprava o que queria no mercado negro. Com a sua modesta maneira de falar e de comportar-se, os Chilenos referiam-se à «f lita», mesmo que esta tivesse três quarteirões de comprimento, e costumavam meter-se nela sem saberem o que estava à venda, por puro hábito. Em breve chegou a psicose do racionamento e mal se juntavam mais de três pessoas, colocavam-se automaticamente em fila. Assim adquiri cigarros, embora nunca tenha fumado, e assim consegui onze frascos de cera incolor para dar lustro aos sapatos e um galão de extracto de soja, que não sei para que serve. Existiam profissionais das «filas», que ganhavam gorjetas para guardar o lugar; parece-me que os meus filhos arredondavam a mesada deste modo.

Apesar dos problemas e do clima de confrontação permanente, o povo estava entusiasmado porque sentiu pela primeira vez que tinha o destino nas suas mãos. Verificou-se um verdadeiro renascimento das artes, do folclore, dos movimentos populares e estudantis. Multidões de voluntários acorreram às jornadas de alfabetização levadas a cabo em todos os cantos do Chile; publicavam-se livros ao preço de um jornal, para que em cada casa houvesse uma biblioteca. Por seu lado, a direita económica, a classe alta e um sector da classe média, em especial as donas de casa, insatisfeitas com a falta de géneros e com a desordem, detestavam Allende e temiam que ele se perpetuasse no governo, como Fidel Castro em Cuba.

Salvador Allende era primo do meu pai e foi a única pessoa da família Allende que permaneceu em contacto com a minha mãe depois que o pai se foi embora. Era muito amigo do meu padrasto, por isso tive várias oportunidades de estar com ele durante a sua presidência. Embora não tenha colaborado com o seu governo, esses três anos da Unidade Popular foram seguramente os mais interessantes da minha vida. Nunca me senti tão viva, nem voltei a participar tão intensamente numa comunidade ou nos acontecimentos de um país.

Vistas as coisas segundo uma perspectiva actual, pode dizer-se que o marxismo morreu como projecto económico, mas creio que alguns dos postulados de Salvador Allende continuam a ser atractivos, como a procura de justiça e de igualdade. Tratava-se de estabelecer um sistema que desse a todos as mesmas oportunidades e de criar «o homem novo», cuja motivação não seria o lucro pessoal, mas o bem comum. Acreditávamos que é possível mudar as pessoas através da doutrinação; negávamo-nos a ver que noutros lugares, onde até se tinha tentado impor o sistema com mão de ferro, os resultados eram muito duvidosos. Ainda não se vislumbrava o desmoronamento do mundo soviético. A premissa de que a natureza humana é susceptível de uma mudança tão radical hoje parece ingénua, mas nesse tempo era a máxima aspiração de muitos de nós. Isto pegou como fogo no Chile. As características próprias dos Chilenos que já referi, como a sobriedade, o horror da ostentação, de destacar-se acima dos outros ou de chamar a atenção, a generosidade, a sua tendência para transigir mais do que confrontar, a mentalidade legalista, o respeito pela autoridade, a resignação perante a burocracia, o gosto pela discussão política, e muitas outras, encontraram o seu lugar perfeito no projecto da Unidade Popular. Até a moda foi afectada. Durante esses três anos, nas revistas femininas as modelos apareceram vestidas com rudes têxteis artesanais e galochas proletárias; usavam-se sacos de farinha branqueados com cloro para fazer blusas. Eu era responsável pela secção de decoração na revista onde trabalhava e o meu desafio era fotografar ambientes acolhedores e agradáveis a baixo custo: lâmpadas feitas com frascos, tapetes de canhamaço, móveis de pinho escurecido e queimados a maçarico para parecerem antigos. Chamávamos-lhes «móveis fradeiros», e a ideia era que qualquer pessoa podia fazê-los em sua casa com quatro tábuas e um serrote. Era a época dourada do chamado DFL 2, que permitia adquirir casas de cento e quarenta metros quadrados no máximo, a preço reduzido e com beneficios fiscais. A maioria das casas e apartamentos eram do tamanho de uma garagem para dois carros; a nossa media noventa metros quadrados e parecia-nos um palácio. A minha mãe, que tinha a seu cargo a secção de culinária da revista Paula, devia inventar receitas baratas que não incluíssem produtos escassos; tendo em conta que faltava de tudo, a sua criatividade estava um pouco limitada. Uma artista peruana que chegou de visita durante esse tempo perguntou, surpresa, a razão pela qual as Chilenas se vestiam de leprosas, viviam em casotas de cão e comiam como faquires.

Apesar dos muitos problemas que a população enfrentou durante esse tempo, desde a escassez de géneros até à violência política, três anos mais tarde a Unidade Popular aumentou os seus votos nas eleições parlamentares de Março de 1973. Os esforços para derrubar o Governo com sabotagem e propaganda não tinham dado os resultados esperados; então, a oposição entrou na última etapa da conspiração e provocou um golpe militar. Nós, Chilenos, não fazíamos ideia do que isso significava, porque tínhamos gozado de uma longa e sólida democracia, e gabávamos-nos de ser diferentes dos outros países do continente aos quais chamávamos depreciativamente «repúblicas das bananas», onde a cada passo um caudilho se apoderava do Governo à bazucada. Não, isso nunca nos aconteceria, afirmávamos, porque no Chile até os soldados eram democratas e ninguém se atreveria a violar a Constituição. Era pura ignorância, porque se tivéssemos revisitado a nossa história, conheceríamos melhor a mentalidade militar.

Ao fazer a investigação para o romance Retrato a Sépia, publicado em 2000, descobri que no século XIX as nossas Forças Armadas tiveram várias guerras, dando mostras de tanta crueldade como de coragem. Um dos momentos mais famosos da nossa história foi a tomada do cerro de Arica (Junho de 1880) durante a guerra do Pacífico, contra o Peru e a Bolívia. O monte é um alto promontório inexpugnável, duzentos metros de queda vertical até ao mar, onde havia numerosas tropas peruanas munidas de artilharia pesada, defendidas por três quilómetros de parapeitos de sacos de areia e rodeadas por um campo minado. Os soldados chilenos lançaram-se ao ataque com punhais nos dentes e baionetas caladas. Muitos caíram sob as balas inimigas ou voaram em pedaços ao pisar as minas, mas nada conseguiu deter os restantes, que chegaram até às fortificações e as treparam, ávidos de sangue. Estriparam a punhal e baioneta os Peruanos e conquistaram o cerro numa incrível proeza que não durou mais de cinquenta e cinco minutos; depois assassinaram os vencidos, deram o golpe de misericórdia nos feridos e saquearam a cidade de Arica. Um dos comandantes peruanos atirou-se ao mar para não cair nas mãos dos Chilenos. A figura do galhardo oficial lançando-se da imponente falésia no seu cavalo preto com ferraduras douradas faz parte da lenda daquele episódio feroz. A guerra decidiu-se mais tarde com o triunfo chileno na batalha de Lima, que os Peruanos recordam como um massacre, apesar dos textos de história do Chile afirmarem que as nossas tropas ocuparam ordeiramente a cidade.

Os vencedores escrevem a história à sua maneira. Cada país apresenta os seus soldados sob a luz mais favorável, ocultam os erros, matiza-se a maldade e, depois da batalha ganha, todos são heróis. Como fomos criados com a ideia de que as Forças Armadas chilenas eram compostas por obedientes soldados a mando de oficiais irrepreensíveis, tivemos uma tremenda surpresa na terça-feira, 11 de Setembro de 1973, quando os vimos em acção. Foi tanta a selvajaria, que se disse que estavam drogados, tal como se supõe que os homens que tomaram o cerro de Arica estavam intoxicados com «chupilca del diablo», uma mistura explosiva de aguardente e pólvora. Cercaram com tanques o Palácio de La Moneda, sede do Governo e símbolo da nossa democracia, após o que o bombardearam do ar. Allende morreu dentro do palácio; a versão oficial é que se suicidou. Houve centenas de mortos e tantos milhares de prisioneiros, que os estádios desportivos e até algumas escolas foram convertidos em cárceres, centros de tortura e campos de concentração. Com o pretexto de libertar o país de uma hipotética ditadura comunista que poderia ocorrer no futuro, a democracia foi substituída por um regime de terror que iria durar dezassete anos e deixar sequelas durante um quarto de século.

Recordo o medo como um permanente sabor metálico na boca.

 

                     Pólvora e sangue

Para se ter uma ideia do que foi o golpe militar, imagine-se o que sentiria um norte-americano ou um inglês se os seus soldados atacassem com armamento de guerra a Casa Branca ou o palácio de Buckingham, provocassem a morte de milhares de cidadãos, entre eles o presidente dos Estados Unidos ou a rainha e o primeiro-ministro britânicos, fechassem o Congresso ou o Parlamento por tempo indefinido, destituíssem o Supremo Tribunal, suspendessem as liberdades individuais e os partidos políticos, impusessem a censura absoluta aos meios de comunicação e assumissem a tarefa de expurgar qualquer voz dissidente. Agora imagine-se que esses mesmos soldados, possuídos de fanatismo messiânico, se instalavam no poder durante longo tempo, dispostos a eliminar pela raiz os seus adversários ideológicos. No Chile aconteceu tudo isto.

A aventura socialista acabou tragicamente. Ajunta militar, presidida pelo general Augusto Pinochet, aplicou a doutrina do capitalismo selvagem, nome dado à experiência neoliberal, mas ignorou que para o seu funcionamento equilibrado se exige uma força laboral em pleno uso dos seus direitos. Para destruir a última semente de pensamento de esquerda e implantar um capitalismo sem dó nem piedade, exerceu uma repressão brutal. O Chile não foi um caso isolado, a longa noite das ditaduras cobriria uma boa parte do continente durante mais de uma década. Em 1975 metade dos Latino-Americanos vivíamos debaixo de algum tipo de governo repressivo, muitos deles apoiados pelos Estados Unidos, que detêm um vergonhoso recorde no que respeita ao derrube de governos eleitos por outros povos e ao apoio dado a tiranias que nunca seriam toleradas no seu próprio território, como Papa Doc no Haiti, Trujillo na República Dominicana, Somoza na Nicarágua e tantas outras.

Apercebo-me que ao descrever estes factos sou subjectiva. Deveria contá-los desapaixonadamente, mas se o fizesse estaria a trair as minhas convicções e sentimentos. Este livro não pretende ser uma crónica política ou histórica, mas uma série de recordações, que são sempre selectivas e marcadas pela experiência e ideologia próprias.

A primeira parte da minha vida terminou naquele 11 de Setembro de 1973. Não me alargarei demasiado neste ponto, porque já o contei nos últimos capítulos do meu primeiro romance e na minha memória Paula. A família Allende, ou seja, aqueles que não morreram, foram presos ou passaram à clandestinidade, partiu para o exílio. Os meus irmãos, que estavam no estrangeiro, não regressaram. Os meus pais, que eram embaixadores na Argentina, ficaram em Buenos Aires durante algum tempo, até que foram ameaçados de morte e tiveram de fugir. A família da minha mãe, pelo contrário, era na sua maioria inimiga acérrima da Unidade Popular e muitos celebraram com champanhe o golpe militar. O meu avô detestava o socialismo e esperava ansiosamente o fim do governo de Allende, mas nunca quis que fosse à custa da democracia. Ficou horrorizado ao ver no poder os militares, que desprezava, e ordenou-me que não me metesse em sarilhos; mas era impossível manter-me à margem dos acontecimentos. Há meses que o velho me observava e fazia perguntas capciosas, creio que suspeitava que a qualquer momento a sua neta se esfumaria. Até que ponto saberia o que se passava à sua volta? Vivia isolado, quase não saía à rua e o seu contacto com a realidade era através da imprensa, que ocultava e mentia. Provavelmente, a única que lhe contava o reverso da medalha era eu. No princípio tentei mantê-lo informado, porque na minha qualidade de jornalista tinha acesso à rede clandestina de boatos que nesse tempo substituiu as fontes sérias de informação, mas depois deixei de lhe dar as más notícias para não o deprimir e assustar. Começaram a desaparecer amigos e conhecidos, às vezes alguns regressavam após semanas de ausência, com olhos de loucos e marcas de tortura. Muitos procuraram refúgio noutras paragens. México, Alemanha, França, Canadá, Espanha e vários outros países receberam-nos inicialmente, mas algum tempo depois deixaram de o fazer, porque à onda de chilenos juntavam-se milhares de outros exilados latino-americanos.

No Chile, onde a amizade e a família são muito importantes, sucedeu um fenómeno que só se explica pelo efeito que o medo tem na alma da sociedade. A traição e as delações acabaram com muitas vidas; bastava uma voz anónima pelo telefone para que os mal intitulados serviços de inteligência deitassem a mão ao acusado e em muitos casos não voltasse a saber-se dele. As pessoas dividiram-se entre os que apoiavam o governo militar e os opositores; ódio, desconfiança e medo arruinaram a convivência. A democracia foi reinstaurada há mais de uma década, mas essa divisão ainda é palpável, mesmo no seio de muitas famílias. Os Chilenos aprenderam a calar, a não ouvir e a não ver, porque enquanto pudessem ignorar os factos, não se sentiriam cúmplices.

Conheço pessoas para as quais o governo de Allende representava o que de mais desagregador e perigoso podia acontecer. Para elas, gente que se preza de conduzir a sua vida de acordo com estritos preceitos cristãos, a necessidade de o destruir foi tão imperiosa, que não questionaram os métodos. Nem sequer o fizeram quando um pai desesperado, Sebastián Acevedo, se regou com gasolina e acendeu um fósforo, imolando-se como um bonzo na praça de Concepción, como forma de protesto porque os seus filhos estavam a ser torturados. Fizeram por ignorar as violações aos direitos humanos - ou fingiram que o faziam - durante muitos anos e, para minha surpresa, ainda encontro alguns que negam o ocorrido, apesar das evidências. Posso entendê-los, porque estão agarrados às suas crenças como eu o estou às minhas. A opinião que têm do governo de Allende é quase idêntica à que eu tenho da ditadura de Pinochet, com a diferença de que no meu caso o fim não justifica os meios. A pouco e pouco, os crimes perpetrados durante esses anos emergiram inevitavelmente da sombra. Encarar a verdade é o começo da reconciliação, mesmo que as feridas tardem muito a cicatrizar porque os responsáveis pela repressão não admitiram as suas faltas e não estão dispostos a pedir perdão. As acções do regime militar ficarão impunes, mas já não podem ser escondidas ou ignoradas. Muitos pensam, sobretudo os jovens que se criaram sem espírito crítico nem diálogo político, que basta de escavar o passado, devemos olhar para a frente, mas as vítimas e seus familiares não podem esquecer. Talvez tenhamos de esperar pela morte da última testemunha daqueles tempos para podermos fechar este capítulo da nossa história.

Os militares que tomaram o poder não eram modelos de cultura. Com o distanciamento que os muitos anos transcorridos consentem, as coisas que diziam dão vontade de rir, mas naqueles momentos eram aterradoras. A exaltação da pátria, dos «valores cristãos ocidentais» e do militarismo atingiu níveis ridículos. O país era governado como um quartel. Durante anos escrevi uma coluna de humor numa revista e dirigi um programa ligeiro na televisão, mas nesse ambiente não o podia fazer, porque de facto nada havia de que pudéssemos rir-nos, a não ser dos governantes, o que podia custar a vida. O único resquício de humor talvez fossem «as terças-feiras com Merino». Um dos generais da junta, o almirante José Toribio Merino, reunia-se semanalmente com a imprensa para dissertar sobre diferentes temas. Os jornalistas aguardavam ansiosamente estas pérolas de clareza mental e sabedoria. Por exemplo, a propósito da alteração constitucional com que se pretendia legalizar o assalto dos militares ao poder em 1980, afirmava com a maior seriedade que «a primeira transcendência que lhe vejo é que é transcendental». E logo de seguida o almirante explicava para que todos entendessem: «Houve dois critérios na elaboração desta Constituição; o critério político, diríamos platónico-aristotélico no clássico grego, e do outro lado o critério absolutamente militar, que vem de Descartes, a que chamaríamos cartesiano. No cartesianismo a Constituição encontra toda aquela, aquele tipo de definições que são extraordinariamente positivas, que procuram a verdade sem alternativas, na qual o um mais dois não pode ser mais do que três, não havendo outra alternativa senão o três... ». Admitindo que chegado a tão alto ponto a imprensa podia ter perdido o fio do seu discurso, Merino esclarecia:« ...e a verdade cai nessa forma face à verdade aristotélica, ou a verdade clássica, digamos, que dava certos matizes para a procura dela; tem uma importância enorme num país como o nosso, que procura novos caminhos, que busca novas formas de viver...».

Este mesmo almirante justificou a decisão do Governo de o pôr à frente da pasta da economia, dizendo que tinha estudado economia como hobby em cursos da Enciclopédia Britânica. E com a mesma candura dizia que «a guerra é a profissão mais bela que há. E o que é a guerra? A continuação da paz, na qual se realiza tudo aquilo que a paz não permite, para levar o homem à dialéctica perfeita, que é a extinção do inimigo».

Em 1980, quando estas maravilhas apareciam na imprensa, eu já não estava no Chile. Permaneci algum tempo, mas quando senti que a repressão era como um nó corrediço à volta do meu pescoço, fui-me embora. Vi mudar o país e as pessoas. Tentei adaptar-me e não chamar a atenção, como me pedia o meu avô, mas era impossível, porque na minha condição de jornalista sabia demais. No início o medo era qualquer coisa de vago e dificil de definir, como um mau cheiro. Desvalorizava os terríveis rumores que circulavam, alegando que não havia provas, e quando era confrontada com as provas, dizia que eram excepções. Julgava-me a salvo porque «não me metia na política», ao mesmo tempo que protegia fugitivos desesperados em minha casa ou os ajudava a saltar o muro de uma embaixada em busca de asilo. Supunha que se fosse presa poderia explicar que o fazia por razões humanitárias; claro que andava na lua. Cobri-me de equimoses dos pés à cabeça, não conseguia dormir, bastava o ruído de um automóvel na rua depois do toque de recolher para ficar a tremer durante horas. Levei ano e meio a dar-me conta dos riscos que corria e por fim, em 1975, depois de uma semana particularmente agitada e perigosa, parti para a Venezuela, levando comigo um punhado de terra chilena do meu jardim. Um mês depois, o meu marido e os meus filhos foram ter comigo a Caracas. Julgo que sofro do mal de muitos chilenos que saíram nessa época: sinto-me culpada de ter abandonado o meu país. Perguntei mil e uma vezes a mim mesma o que teria acontecido se tivesse ficado, como tantos que travaram lá dentro a batalha contra a ditadura, até que a conseguiram derrotar em 1989. Ninguém pode responder a essa pergunta, mas de uma coisa estou certa: não seria escritora se não tivesse vivido a experiência do exílio.

A partir do instante em que atravessei a cordilheira dos Andes, numa manhã chuvosa de Inverno, comecei o processo inconsciente de inventar um país. Voltei a voar sobre a cordilheira muitas vezes e emociono-me sempre, porque a recordação daquela manhã me assalta intacta ao ver do alto o espectáculo soberbo das montanhas. A infinita solidão desses cumes brancos, desses abismos vertiginosos, desse céu azul profundo, simboliza a minha despedida do Chile. Nunca imaginei que estaria ausente por tanto tempo. Como todos os chilenos - menos os militares - estava convencida de que, dada a nossa tradição, em breve os soldados regressariam aos quartéis, haveria outra eleição e teríamos um governo democrático, como sempre havíamos tido. No entanto, algo devo ter intuído sobre o futuro, porque passei a minha primeira noite em Caracas a chorar inconsolável numa cama emprestada. No fundo pressentia que algo tinha acabado para sempre e que a minha vida mudava violentamente de rumo. A nostalgia apoderou-se de mim desde essa primeira noite e não me largou durante muitos anos, até que a ditadura caiu e voltei a pisar o chão do meu país. Entretanto vivia de olhos no sul, pendente das notícias, esperando o momento de voltar enquanto seleccionava as recordações, alterava alguns factos, exagerava ou ignorava outros, afinava as emoções e assim construía pouco a pouco esse país imaginário onde plantei as minhas raízes.

 

Há exílios que mordem e outros São como o fogo que consome. Há dores de pátria morta Que vão subindo do chão, Desde os pés e as raízes E de repente o homem afoga-se,

  • não conhece as espigas,
  • se calou a guitarra,
  • não há ar para essa boca,
  • não pode viver sem terra E então cai de bruços,

Não na terra, mas na morte.

         PABLO NERUDA, «Exilios», in Cantos ceremoniales

 

Entre as mudanças notórias produzidas pelo sistema económico e pelos valores implantados pela ditadura, entrou na moda a ostentação: se uma pessoa não é rica, há que endividar-se para o parecer, mesmo que ande com buracos nas peúgas. O consumismo é a ideologia actual no Chile, como na maior parte do mundo. A política económica, as negociatas e a corrupção, que atingiu níveis nunca antes vistos no país, criaram uma nova casta de milionários. Uma das coisas positivas que aconteceram é que ruiu a muralha que separava as classes sociais; os apelidos rançosos deixaram de ser o único passaporte para se ser aceite na sociedade. Os que se consideravam aristocratas foram varridos do mapa por jovens empresários e tecnocratas nas suas motos cromadas e nos seus Mercedes Benz e por alguns militares que enriqueceram em postos chave do Governo, da indústria e da banca. Pela primeira vez viam-se homens de uniforme em todo o lado: ministérios, universidades, empresas, salões, clubes, etc.

A pergunta que se impõe é esta: porquê um terço da população, no mínimo, apoiou a ditadura, apesar de para a maioria a vida não ter sido fácil e mesmo os apoiantes do governo militar viverem com medo. A repressão foi geral, mas é claro que as pessoas de esquerda e os pobres sofreram muito mais. Todos se sentiam vigiados, ninguém podia dizer que estava completamente a salvo das garras do Estado. É certo que a informação era censurada e havia uma máquina de propaganda destinada a lavar os cérebros; é igualmente certo que a oposição levou muitos anos e muito sangue a organizar-se; mas isso não explica a popularidade do ditador. A percentagem da população que o aplaudia não o fez só por medo; os Chilenos gostam do autoritarismo. Acreditaram que os militares iam «limpar» o país. «Acabou a delinquência, não há muros pintados com grafitti, tudo está limpo e graças ao toque de recolher os maridos chegam cedo a casa», disse-me uma amiga. Para ela isso compensava a perda dos direitos cívicos, porque essa perda não a tocava directamente; tinha sorte: nenhum dos seus filhos fora despedido do trabalho sem indemnização ou fora preso. Compreendo que a direita, que historicamente não se caracterizou pela defesa da democracia e que durante esses anos enriqueceu como nunca, apoiasse a ditadura, mas e os outros? Não encontrei resposta satisfatória para esta pergunta, só conjecturas.

Pinochet representou o pai intransigente, capaz de impor disciplina. Os três anos da Unidade Popular foram de experimentação, mudança e desordem; o país estava cansado. A repressão pôs fim à politiquice, e o neoliberalismo obrigou os Chilenos a trabalhar com a boca fechada e a ser produtivos, para que as empresas pudessem competir favoravelmente nos mercados internacionais. Privatizou-se quase tudo, até a saúde, a educação e a segurança social. A necessidade de sobreviver estimulou a iniciativa privada. Hoje o Chile não só exporta mais salmões do que o Alasca, como vende também coxas de rã, penas de ganso e alhos fumados, entre centenas de outros produtos não tradicionais. A imprensa dos Estados Unidos celebrava o triunfo do sistema económico e atribuía a Pinochet o mérito de ter transformado esse pobre país na estrela da América Latina; mas os índices não mostravam a distribuição da riqueza; nada se sabia sobre a pobreza e a insegurança em que viviam vários milhões de pessoas. Não se mencionavam as sopas dos pobres nos bairros de lata, que alimentavam milhares de famílias - chegaram a existir mais de quinhentas só em Santiago - nem o facto de a caridade privada e das igrejas tentarem substituir o trabalho social que compete ao Estado. Não existia nenhum fórum aberto para discutir as acções do Governo ou dos empresários; assim se entregaram impunemente a companhias privadas os serviços públicos e a empresas estrangeiras os recursos naturais, como as florestas e os mares, que foram explorados com muito pouca consciência ecológica. Criou-se uma sociedade inclemente na qual o lucro é sagrado; se tu és pobre, a culpa é tua; e se te queixas, certamente que és comunista. A liberdade consiste em haver muitas marcas para escolher o que se pode comprar a crédito.

As taxas de crescimento económico, que o Wall Street Journal aplaudia, não significavam desenvolvimento, já que dez por cento da população possuía metade da riqueza e havia cem pessoas que ganhavam mais do que o Estado gastava em todos os seus serviços sociais. Segundo o Banco Mundial, o Chile é um dos países com pior distribuição das receitas, lado a lado com o Quénia e o Zimbabué. O gestor de uma empresa chilena ganha o mesmo ou mais do que o seu equivalente nos Estados Unidos, enquanto um operário chileno ganha aproximadamente quinze vezes menos do que um norte-americano. Ainda hoje, ao cabo de mais de uma década de democracia, a desigualdade económica é pavorosa, porque o modelo económico não mudou. Os três presidentes que sucederam a Pinochet estiveram de mãos atadas, porque a direita controla a economia, o Congresso e a imprensa. Apesar disso, o Chile fixou a meta de se converter num país desenvolvido no prazo de uma década, o que é muito possível, desde que se redistribua a riqueza de forma mais equilibrada.

Quem era realmente Pinochet, esse soldado que tanto marcou o Chile com a sua revolução capitalista e duas décadas de repressão? (Conjugo os verbos no passado apesar de ele ainda estar vivo, porque permanece em reclusão e o país procura esquecer a sua existência. Pertence ao passado, mesmo que a sua sombra continue a pairar.) Porque era tão temido? Porque era admirado? Não o conheci pessoalmente e não vivi no Chile durante a maior parte do seu consulado, de modo que só posso opinar a partir dos seus actos e do que outros escreveram sobre ele. Suponho que para o entender convém ler romances como A Festa do Chibo de Mario Vargas Llosa e O Outono do Patriarca de Gabriel Garcia Márquez, porque tinha muito em comum com a figura típica do caudilho latino-americano, tão bem descrita por estes autores. Era um homem rude, frio, escorregadio e autoritário, sem escrúpulos nem sentido da lealdade, salvo ao Exército como instituição, mas não aos seus camaradas de armas, que mandou assassinar segundo as suas conveniências, como o general Carlos Prats e outros. Julgava-se escolhido por Deus e pela história para salvar a pátria. Gostava de condecorações e da parafernália militar; era um egomaníaco, criou mesmo uma fundação com o seu nome destinada a promover e preservar a sua imagem. Era astuto e desconfiado, tinha modos afáveis e conseguia ser simpático. Admirado por uns, odiado por outros, temido por todos, foi possivelmente a personagem da nossa história que mais poder teve nas suas mãos e durante mais tempo.

 

                     O Chile no coração

No Chile evita-se falar do passado. As gerações mais jovens acreditam que o mundo começou com elas; o que se passou antes não interessa. Nos outros parece-me haver uma espécie de vergonha colectiva pelo ocorrido durante a ditadura, algo próximo do que a Alemanha deve ter sentido depois de Hitler. Jovens e velhos procuram evitar o conflito. Ninguém deseja envolver-se em discussões que separem ainda mais as pessoas. Por outro lado, a maioria está tão ocupada a tentar chegar ao fim do mês com um salário que não estica e cumprindo de bico calado para que não o despeçam do trabalho que lhe falta tempo para se preocupar com a política. Acredita-se que rebuscar muito o passado pode «desestabilizar» a democracia e provocar os militares, receio infundado, porque a democracia se fortaleceu nos últimos anos - desde 1989 - e os militares perderam prestígio. Além disso, já não estamos no tempo dos golpes militares. Apesar dos seus múltiplos problemas - pobreza, desigualdade, crime, droga, guerrilha - a América Latina optou pela democracia e, por seu lado, os Estados Unidos começam a admitir que a sua política de apoio a tiranias não resolve nenhum problema, só cria outros.

O golpe militar não surgiu do nada; as forças que apoiaram a ditadura estavam ali, mas não tínhamos dado por elas. Alguns defeitos dos Chilenos que antes estavam na sombra, emergiram em glória e majestade durante esse período. Não é possível que da noite para o dia se organizasse uma repressão em tão vasta escala sem que a tendência totalitária existisse num sector da sociedade; pelos vistos não éramos tão democráticos como julgávamos. Por seu lado, o governo de Salvador Allende não era tão inocente como gosto de o imaginar; houve inépcia, corrupção, soberba. Na vida real heróis e vilões costumam confundir-se, mas posso garantir que nos governos democráticos, incluindo o da Unidade Popular, nunca houve a crueldade que a nação sofreu quando e sempre que os militares intervieram.

Como milhares de outras famílias, Miguel e eu fugimos com os nossos dois filhos, porque não queríamos continuar a viver numa ditadura. Estávamos em 1975. O país que escolhemos para emigrar foi a Venezuela, uma das últimas democracias que restavam numa América Latina sacudida por golpes militares e um dos poucos países onde podíamos conseguir vistos e trabalho. Diz Neruda:

 

         Como posso viver tão longe

         De tudo o que amei, de tudo o que amo?

         Das estações envoltas Em vapor e fumo frio?

 

(Curiosamente, do que senti mais falta naqueles anos de auto-exílio foi das estações do ano da minha pátria. No verde eterno do trópico fui profundamente estrangeira.)

Na década de setenta a Venezuela vivia o apogeu da riqueza do petróleo: o oiro negro brotava do seu solo como um rio inextinguível.

Tudo parecia fácil; com um mínimo de trabalho e relações adequadas as pessoas viviam melhor do que em qualquer outro lugar; o dinheiro corria a jorros e era gasto sem pudor numa folia sem fim: era o povo que mais champanhe consumia no mundo. Para nós, que tínhamos passado pela crise económica do governo da Unidade Popular, quando o papel higiénico era um luxo, e que chegávamos fugidos de uma tremenda repressão, a Venezuela paralisou-nos de assombro. Não conseguíamos assimilar o ócio, o desperdício e a liberdade desse país. Os Chilenos, tão sérios, sóbrios, prudentes e amantes dos regulamentos e da legalidade, não entendiam a alegria desenfreada nem a indisciplina. Habituados aos eufemismos, sentíamo-nos ofendidos pela franqueza. Éramos vários milhares, aos quais em breve se somaram aqueles que fugiram da «guerra suja» na Argentina e Uruguai. Alguns chegavam com marcas recentes de cativeiro, todos com ar de derrotados.

O Miguel encontrou trabalho numa província do interior do país e eu fiquei em Caracas com os dois miúdos, que me suplicavam todos os dias que voltássemos para o Chile, onde tinham deixado os seus avós, os amigos, a escola; enfim, tudo o que conheciam. A separação do meu marido foi fatal, creio que marcou o começo do nosso fim como casal. Não fomos uma excepção, porque a maioria dos casais que fugiram do Chile acabaram por se separar. Longe da sua terra e da família, o casal encontra-se frente a frente, despido e vulnerável, sem a pressão familiar, as muletas sociais e as rotinas que o sustentam no seu meio. As circunstâncias não ajudam: fadiga, medo, insegurança, pobreza, confusão; se ainda por cima estão separados geograficamente, como nos aconteceu a nós, o prognóstico é péssimo. A menos que tenham sorte e a relação seja muito forte, o amor morre.

Não consegui empregar-me como jornalista. O que tinha feito antes no Chile servia de pouco, em parte porque os exilados costumavam exagerar as suas credenciais, acabando por ter pouco crédito; havia falsos doutores que mal tinham concluído a escola secundária e também doutores verdadeiros que acabavam ao volante de um táxi. Eu não conhecia uma alma e ali, como no resto da América Latina, nada se obtém sem conhecimentos. Tive de ganhar a vida com trabalhos insignificantes, nenhum dos quais vale a pena mencionar. Não entendia o temperamento dos Venezuelanos, confundia o seu profundo sentido igualitário com maus modos, a sua generosidade com pedantismo, a sua emotividade com imaturidade. Vinha de um país onde a violência se tinha institucionalizado, mas chocava-me a rapidez com que os Venezuelanos perdiam o controlo e chegavam a vias de facto. (Uma vez no cinema, uma senhora tirou uma pistola da carteira porque me sentei acidentalmente na cadeira que ela tinha reservado.) Não conhecia os costumes; ignorava, por exemplo, que é raro dizerem que não, porque o consideram grosseiro, preferem dizer «volte amanhã». Quando procurava trabalho, entrevistavam-me com grande amabilidade, ofereciam-me café e despediam-me com um firme aperto de mão e um «volte amanhã». Regressava no outro dia e repetia-se a mesma cena até que finalmente me dava por vencida. Sentia que a minha vida era um fracasso; tinha trinta e cinco anos e julgava que nada me restava pela frente, a não ser envelhecer e morrer de tédio. Agora, ao recordar aquela época, compreendo que existiam muitas oportunidades, mas não as vi; fui incapaz de dançar ao ritmo dos outros, andava ofuscada e temerosa. Em vez de fazer um esforço para conhecer e aprender a amar a terra que generosamente me tinha acolhido, estava obcecada pelo regresso ao Chile. Comparando aquela experiência de exílio com a minha actual condição de imigrante, vejo quão diferente é o estado de espírito. No primeiro caso sai-se à força, fugitivo ou expulso, e sentimo-nos como uma vítima a quem roubaram metade da vida; no segundo caso sai-se à aventura, por decisão própria, sentindo-nos donos do nosso destino. O exilado olha para o passado, lambendo as feridas; o imigrante olha para o futuro, disposto a aproveitar as oportunidades ao seu alcance.

Os chilenos, em Caracas, juntávamo-nos para ouvir discos de Violeta Parra e Víctor Jara, trocar autocolantes de Allende e Che Guevara e repetir mil e uma vezes os mesmos boatos sobre a pátria longínqua. Comíamos empadas em todas as reuniões; acabei por me enjoar delas e até hoje nunca mais consegui tocar-lhes. Todos os dias chegavam novos compatriotas contando histórias terríveis e afirmando que a ditadura estava quase a cair, mas passavam os meses e, longe de cair, parecia cada vez mais forte, apesar dos protestos internos e do imenso movimento internacional de solidariedade. Já ninguém confundia o Chile com a China, ninguém perguntava porque não usávamos chapéus com ananases; a figura de Salvador Allende e os acontecimentos políticos colocaram o país no mapa. Circulava uma fotografia, que ficou famosa, da junta militar com Pinochet ao centro, de braços cruzados, óculos escuros e mandíbula protuberante de buldogue, um verdadeiro cliché de tirano da América Latina. A rigorosa censura da imprensa impediu que a maioria dos chilenos dentro do país se desse conta da existência do movimento de solidariedade.

Eu tinha passado ano e meio sob essa censura e não sabia que no exterior o nome de Allende se tinha transformado num símbolo, por isso, ao sair do Chile, surpreendeu-me o respeito reverencial que o meu apelido provocava. Infelizmente essa consideração não me serviu para arranjar trabalho, de que tanto precisava.

De Caracas escrevia ao meu avô, de quem não tive a coragem de me despedir, porque não conseguiria explicar-lhe as minhas razões para fugir, sem admitir que tinha desobedecido às suas instruções no sentido de não me meter em problemas. Nas minhas cartas pintava-lhe um quadro dourado das nossas vidas, mas não era precisa muita sagacidade para perceber a angústia entrelinhas e o meu avô deve ter adivinhado a minha verdadeira situação. Em breve essa correspondência se converteu em pura nostalgia, num exercício paciente de recordar o passado e a terra que havia deixado. Voltei a ler Neruda e citava-o nas cartas ao meu avô, às vezes ele respondia-me com versos de outros poetas, mais antigos.

Não vale a pena falar em pormenor desses anos, das coisas boas que sucederam e das más, como amores frustrados, esforços e dores, porque já os contei antes. Basta dizer que se acentuaram os sentimentos de solidão e de eterna forasteira que me acompanhavam desde a infância. Estava desligada da realidade, mergulhada num mundo imaginário, enquanto ao meu lado cresciam os meus filhos e se desmoronava o meu casamento. Tentava escrever, mas a única coisa que conseguia era dar voltas e voltas às mesmas ideias. À noite, quando a família já estava a dormir, fechava-me na cozinha, onde passava horas a bater violentamente as teclas da Underwood, enchendo páginas e páginas com as mesmas frases, que logo rasgava em mil pedaços, como Jack Nicholson naquele arrepiante filme, Shinning, que deixou meio mundo com pesadelos durante meses. Nada ficou desses esforços, puro papel picado. E assim passaram sete anos.

No dia 8 de Janeiro de 1981 comecei outra carta para o meu avô, que por essa altura tinha quase cem anos e estava moribundo. Desde a primeira frase soube que não era uma carta como as outras e que talvez nunca chegasse às mãos do seu destinatário. Escrevi para desabafar a minha angústia, porque esse ancião, depositário das minhas mais antigas recordações, estava pronto para ir-se deste mundo. Sem ele, que era a minha âncora no território da infância, o exílio parecia definitivo. Escrevi, naturalmente, sobre o Chile e a família longínqua. Com as centenas de histórias que ao longo dos anos ouvi da sua boca, tinha material de sobra: os protomachos fundadores da nossa estirpe; a minha avó, que deslocava o açucareiro com pura energia espiritual; a tia Rosa, morta em finais do século xix, cujo fantasma aparecia para tocar piano durante as noites; o tio que tentou atravessar a cordilheira num balão dirigível, e tantas outras personagens que não deviam perder-se no esquecimento. Quando contava essas histórias aos meus filhos, olhavam-me com expressão preocupada e viravam os olhos para o tecto. Depois de tanto chorarem pelo regresso, Paula e Nicolás tinham-se finalmente adaptado à Venezuela e não queriam ouvir falar do Chile e ainda menos dos seus estranhos parentes. Também não participavam nas nostálgicas conversas de exilados, das falhadas tentativas de fazer pratos chilenos com ingredientes caribenhos, nem das patéticas celebrações das nossas festas pátrias improvisadas na Venezuela. Os meus filhos tinham vergonha da sua condição de estrangeiros.

Perdi rapidamente o rumo daquela estranha carta, mas segui em frente sem parar durante um ano, ao cabo do qual o meu avô morrera e eu tinha sobre a mesa da cozinha o meu primeiro romance, A Casa dos Espíritos. Se então me tivessem pedido para o definir, teria dito que era uma tentativa de recuperar o meu país perdido, de reunir os tresmalhados, de ressuscitar os mortos e de preservar as memórias, que começavam a esfumar-se no torvelinho do exílio. Não era pouco o que pretendia... Agora dou uma explicação mais simples: morria de vontade de contar a história.

Tenho uma imagem romântica de um Chile congelado no começo da década de setenta. Durante anos julguei que quando voltasse a democracia tudo seria como antes, mas até essa imagem congelada era ilusória. Talvez o lugar de que tenho saudades nunca tenha existido. Quando vou de férias tenho de confrontar o Chile real com a imagem sentimental que transportei durante vinte e cinco anos. Dado que vivi no estrangeiro durante um período tão longo tenho a tendência para exagerar as virtudes e para esquecer os traços desagradáveis do carácter nacional. Esqueço o classismo e a hipocrisia da classe alta; esqueço quão conservadora e machista é a maior parte da sociedade; esqueço a esmagadora autoridade da Igreja católica. Espantam-me o rancor e a violência alimentados pela desigualdade; mas também me comovem as coisas boas, que apesar de tudo não desapareceram, como essa familiaridade imediata com que nos relacionamos, a forma carinhosa de nos saudarmos com beijos, o humor retorcido que sempre me faz rir, a amizade, a esperança, a simplicidade, a solidariedade na desgraça, a simpatia, a coragem indomável das mães, a paciência dos pobres. Arquitectei a ideia do meu país como um quebra-cabeças, escolhendo aquelas peças que se ajustam ao meu desenho e ignorando as outras. O meu Chile é poético e pobrezinho, por isso rejeito as evidências dessa sociedade moderna e materialista, onde o valor das pessoas se mede pela riqueza bem ou mal adquirida, e insisto em ver por todo o lado sinais do meu país de antes. Também criei uma versão de mim mesma sem nacionalidade ou, melhor dito, com múltiplas nacionalidades. Não pertenço a um território, mas a vários, ou talvez só exista no âmbito da ficção que escrevo. Não pretendo saber quanto da minha memória são factos verdadeiros e quanto inventei, porque a tarefa de traçar a linha entre ambos me ultrapassa. A minha neta Andrea escreveu uma composição para a escola na qual disse: «Gostava de ter a imaginação da minha avó». Perguntei-lhe ao que se referia e respondeu sem vacilar: «Tu lembras-te de coisas que nunca aconteceram». Não fazemos todos o mesmo? Dizem que o processo cerebral de imaginar e o de recordar se parecem tanto que são quase inseparáveis. Quem pode definir a realidade? Não é tudo subjectivo? Se o leitor e eu presenciarmos o mesmo acontecimento, recordá-lo-emos e contá-lo-emos de forma diferente. A versão da nossa infância que os meus irmãos contam é como se cada um tivesse estado em planetas diferentes. A memória está condicionada pela emoção; recordamos mais e melhor os acontecimentos que nos comovem, como a alegria de um nascimento, o prazer de uma noite de amor, a dor de uma morte próxima, o trauma de uma ferida. Ao contar o passado referimo-nos aos momentos significativos - bons ou maus - e omitimos a imensa zona cinzenta de cada dia.

Se eu nunca tivesse viajado, se tivesse ficado ancorada e segura no seio da minha família, se tivesse aceitado a visão do meu avô e as suas regras, teria sido impossível recriar ou embelezar a minha própria existência, porque esta seria definida por outros e eu seria tão só mais um elo de uma longa cadeia familiar. Mudar de lugar obrigou-me a reajustar várias vezes a minha história e fi-lo aturdida, quase sem me dar conta, porque estava demasiado ocupada na tarefa de sobreviver. Quase todas as vidas se parecem e podem contar-se no tom com que se lê a lista telefónica, a menos que se decida dar-lhe ênfase e cor. No meu caso procurei enriquecer os pormenores para ir criando a minha lenda privada; assim, quando estiver num lar de idosos à espera da morte, terei material para entreter os outros velhinhos senis.

Escrevi o meu primeiro livro ao correr dos dedos sobre as teclas, tal como escrevo este, sem um plano. Precisei de um mínimo de investigação, porque o tinha completo cá dentro, não na cabeça, mas num lugar do peito, onde me oprimia como um perpétuo sufoco. Evoquei a Santiago dos tempos da juventude do meu avô, tal como se tivesse nascido então; sabia exactamente como se acendia um candeeiro a gás antes de instalarem a electricidade na cidade, tal como conhecia a sorte de centenas de prisioneiros no Chile nesses mesmos momentos. Escrevi em transe, como se alguém me ditasse, e sempre atribuí esse favor ao fantasma da minha avó, que me soprava ao ouvido. Só uma vez se repetiu a dádiva de um livro ditado a partir de outra dimensão, quando em 1993 escrevi Paula. Nessa ocasião recebi, sem dúvida, a ajuda do espírito benigno da minha filha. Quem são, na realidade, estes e outros espíritos que vivem comigo? Não os vi a flutuar envoltos num lençol pelos corredores da minha casa, nada tão interessante como isso. São unicamente recordações que me assaltam e que, de tanto as acariciar, vão ganhando consistência material. Sucede-me com as pessoas e também com o Chile, esse país mítico que a nostalgia transformou no país real. Essa terra dentro da minha cabeça, como a descrevem os meus netos, é um cenário onde ponho e tiro a meu bel-prazer objectos, personagens e situações. Só a paisagem permanece verdadeira e imutável; nessa majestosa paisagem chilena não sou forasteira. Preocupa-me esta tendência para transformar a realidade, para inventar a memória, porque não sei até onde me pode conduzir. Acontece-me o mesmo com as pessoas? Se por um instante voltasse a ver os meus avós ou a minha filha, reconhecê-los-ia? É provável que não, porque de tanto procurar o modo de os manter vivos, recordando-os ao mínimo pormenor, fui-os mudando e adornando com virtudes que talvez não tivessem; atribuí-lhes um destino muito mais complexo do que aquele que viveram. Em todo o caso, tive muita sorte, porque essa carta ao meu avô moribundo salvou-me do desespero. Graças a ela encontrei uma voz e uma forma de vencer o esquecimento, que é a maldição dos vagabundos como eu. À minha frente abriu-se o caminho sem retorno da literatura, por onde andei aos tropeções nos últimos vinte anos e penso continuar a fazê-lo enquanto os meus pacientes leitores o suportarem.

Se bem que esse primeiro romance me tenha dado uma pátria fictícia, continuava a chorar a outra, a que tinha deixado para trás. O governo militar tinha-se fixado como uma rocha no Chile e Pinochet reinava com poder absoluto. A política económica dos Chicago boys, como chamavam aos economistas discípulos de Milton Freedman, tinha sido imposta pela força, porque de outro modo teria sido impossível fazê-lo. Os empresários gozavam de enormes privilégios, ao mesmo tempo que os trabalhadores haviam perdido a maioria dos seus direitos. No exterior pensávamos que a ditadura era inamovível mas, na realidade, dentro do país crescia uma corajosa oposição que finalmente haveria de recuperar a democracia perdida. Para o conseguir foi necessário desistir das inúmeras rixas partidárias e unir-se na chamada «Concertación», mas isso aconteceu sete anos mais tarde. Em 1981 poucos imaginavam tal possibilidade.

Até então, a minha vida em Caracas, onde estávamos há dez anos, tinha decorrido em completo anonimato, mas os livros atraíram um pouco de atenção. Desisti do colégio onde trabalhava e mergulhei de cabeça na incerteza da literatura. Tinha em mente outro romance, desta vez situado num lugar das Caraíbas; pensei que o tema Chile estava arrumado e já era tempo de me situar na terra que pouco a pouco se ia tornando na minha pátria adoptiva. Antes de começar Eva Luna tive de investigar escrupulosamente. Para descrever o cheiro de uma mangueira ou a forma de uma palmeira, devia ir ao mercado para cheirar a fruta e à praça para ver as árvores, o que não era necessário no caso de um pessegueiro ou de um salgueiro chilenos. Tenho o Chile tão dentro de mim, que me parece conhecê-lo do direito e do avesso, mas se escrevo sobre qualquer outro lugar tenho de o estudar.

Na Venezuela, terra esplêndida de homens afirmativos e mulheres formosas, libertei-me finalmente da disciplina dos colégios ingleses, da severidade da minha avó, da modéstia chilena e dos últimos vestígios dessa formalidade em que, como boa filha de diplomatas, me tinha criado. Pela primeira vez senti-me bem no meu corpo e deixei de me preocupar com a opinião alheia. Entretanto o meu casamento tinha-se deteriorado sem remédio e uma vez que os filhos voaram do ninho rumo à universidade, acabaram-se as razões para permanecermos juntos. Miguel e eu divorciámo-nos amigavelmente. Sentimo-nos tão aliviados com esta decisão que quando nos despedimos fizemos reverências japonesas durante vários minutos. Eu tinha quarenta e cinco anos mas não me achava mal para a idade, pelo menos era o que pensava, até que a minha mãe, sempre optimista, me avisou que ia passar sozinha o resto da vida. Mas, três meses mais tarde, durante uma longa viagem de promoção nos Estados Unidos, conheci William Gordon, o homem que estava escrito no meu destino, como diria a minha avó vidente.

 

                       Esse povo dentro da minha cabeça

Antes de me perguntarem como é que uma mulher de esquerda com o meu apelido decidiu viver no império ianque, dir-vos-ei que não foi o resultado de um plano, longe disso. Como quase todas as coisas fundamentais da minha existência, aconteceu por acaso. Se Willie estivesse na Nova Guiné, certamente que lá estaria eu agora, vestida de plumas. Há gente que planeia a sua vida, suponho, mas no meu caso deixei de o fazer há muito tempo, porque as minhas intenções nunca resultam. Mais ou menos de dez em dez anos lanço um olhar para o passado e posso ver o mapa da minha viagem, se é que a tal se pode chamar um mapa; parece mais um prato de talharins. Se vivermos o suficiente e olharmos para trás, torna-se óbvio que mais não fazemos do que andar em círculos. A ideia de me instalar nos Estados Unidos nunca me passou pela cabeça, pensava que a CIA tinha provocado o golpe militar no Chile com o único propósito de me arruinar a vida. Com a idade tornei-me mais modesta. A única razão para me converter em mais um dos milhões de imigrantes que perseguem o American dream foi luxúria à primeira vista.

Willie tinha dois divórcios às costas e um rosário de namoros de que mal se lembrava, vivia sozinho há oito anos, a sua vida era um desastre e ainda esperava a loira alta dos seus sonhos, quando apareci eu. Mal olhou para baixo e me descobriu sobre o desenho da carpete, informei-o que na minha juventude eu tinha sido uma loira alta, com o que consegui captar a sua atenção. O que me atraiu nele? Adivinhei que era uma pessoa forte, dessas que caem de joelhos mas voltam a pôr-se de pé. Era diferente do chileno médio: não se queixava, não culpava os outros dos seus problemas, assumia o seu karma, não andava à procura de uma mamã e era evidente que não precisava de uma gueixa que lhe levasse o pequeno-almoço à cama e à noite pusesse numa cadeira a sua roupa para o dia seguinte. Não pertencia à escola dos espartanos, como o meu avô, porque era óbvio que gozava a sua vida, mas tinha a sua mesma solidez estóica. Além disso viajara muito, o que é sempre atraente para nós Chilenos, gente insular. Aos vinte anos deu a volta ao mundo à boleia e a dormir em cemitérios, porque, segundo me explicou, são muito seguros: ninguém entra neles de noite. Estivera exposto a diferentes culturas, tinha vistas largas e era tolerante e curioso. Ainda por cima falava espanhol com sotaque de bandido mexicano e tinha tatuagens. No Chile só os delinquentes se tatuam, pelo que me pareceu muito sexy. Conseguia pedir comida em francês, italiano e português, sabia mastigar umas palavras em russo, tagalo, japonês e mandarim. Anos depois descobri que as inventava, mas já era tarde. Conseguia mesmo falar inglês na rigorosa medida em que um norte-americano consegue dominar a língua de Shakespeare.

Arranjámos maneira de estar juntos dois dias, após o que tive de continuar a minha viagem, mas no termo da mesma decidi voltar e passar uma semana em São Francisco, a ver se o tirava da cabeça. Esta é uma atitude muito chilena, qualquer compatriota minha teria feito o mesmo. Há dois aspectos em que nós Chilenas somos ferozmente decididas: na defesa das nossas crias e quando se trata de apanhar um homem. Temos o instinto do ninho muito desenvolvido, não nos basta uma aventura amorosa, queremos formar um lar e se possível ter filhos, que horror! Ao ver-me chegar a sua casa sem convite, Willie, tomado de pânico, tentou fugir, mas ele não é um competidor à minha altura. Passei-lhe uma rasteira e caí-lhe em cima como um lutador de luta livre. Finalmente aceitou de má vontade que eu era o mais próximo de uma loira alta que podia arranjar e casámo-nos. Estávamos em 1987.

Para ficar junto de Willie estava disposta a renunciar a muito, mas não aos meus filhos nem à escrita pelo que, mal consegui a minha autorização de residência, iniciei o processo de mudança de Paula e Nicolás para a Califórnia. Entretanto tinha-me apaixonado por São Francisco, uma cidade alegre, tolerante, aberta, cosmopolita e tão diferente de Santiago! São Francisco foi fundada por aventureiros, prostitutas, comerciantes e pregadores, que chegaram em 1849 atraídos pela febre do oiro. Quis escrever sobre aquele período estupendo de cobiça, violência, heroísmo e conquista, perfeito para um romance. Em meados do século xix o caminho mais seguro para ir da costa leste dos Estados Unidos, ou da Europa, até à Califórnia passava pelo Chile. Os barcos tinham de atravessar o estreito de Magalhães ou dar a volta ao cabo Horn. Eram odisseias perigosas, mas pior era atravessar o continente norte-americano de carroça ou as selvas infectadas de malária do istmo do Panamá. Os Chilenos tiveram conhecimento da descoberta do oiro antes da notícia incendiar os Estados Unidos, e acorreram em massa, porque têm uma longa tradição de mineiros e gostam de aventuras. Temos um nome para a nossa compulsão de percorrer caminhos, dizemos que somos «patiperros», porque vagueamos como cães que se guiam pelo olfacto, sem rumo fixo. Precisamos de fugir, mas mal atravessamos a cordilheira começamos a ter saudades e acabamos sempre por regressar. Somos bons viajantes e péssimos emigrantes: a nostalgia morde-nos os calcanhares.

A família e a vida de Willie eram caóticas, mas em vez de fugir, como faria uma pessoa razoável, eu arremeti «de frente e à chilena», como o grito de guerra daqueles soldados que tomaram o morro de Arica no século xix. Estava decidida a conquistar o meu lugar na Califórnia e no coração desse homem, custasse o que custasse. Nos Estados Unidos, todos, menos os índios, descendem de outros que vieram de fora; o meu caso nada tem de especial. O século xx foi o século dos imigrantes e dos refugiados, nunca antes o mundo vira tais massas humanas abandonarem o seu lugar de origem a caminho de outros sítios, fugindo da violência ou da pobreza. A minha família e eu somos parte dessa diáspora; não é tão mau como soa. Sabia que não me assimilaria por completo, estava velha demais para me fundir no famoso crisol ianque: tenho aspecto de chilena; sonho, cozinho, faço amor e escrevo em castelhano; a maioria dos meus livros tem um definitivo sabor latino-americano. Estava convencida de que nunca me sentiria californiana, mas também o não pretendia, quanto muito aspirava a ter uma carta de condução e a aprender inglês suficiente para pedir comida num restaurante. Não suspeitava que viria a obter muito mais.

Demorei vários anos a adaptar-me à Califórnia mas o processo foi divertido. Ajudou-me muito o escrever um livro sobre a vida do Willie, O Plano Infinito, porque me obrigou a percorrê-la e a estudar a sua história. Recordo quanto me ofendia inicialmente a maneira directa de falar dos gringos, até que descobri que na realidade eles são ponderados e corteses, na sua maioria. Não podia acreditar como eram hedonistas, até que o ambiente me contagiou e dei por mim a demolhar-me num jacuzzi rodeada de velas aromáticas, enquanto o meu avô dava voltas na tumba perante estes desaforos. Tanto me incorporei na cultura californiana, que pratico meditação e vou à terapia, embora faça sempre batota: durante a meditação invento histórias para não morrer de tédio e na terapia invento outras para não aborrecer o psicólogo. Adaptei-me ao ritmo deste extraordinário lugar, tenho sítios favoritos onde perco o tempo folheando livros, passeando e falando com amigos; gosto das minhas rotinas, das estações do ano, dos grandes carvalhos em torno da minha casa, do aroma da minha chávena de chá, do longo lamento nocturno da sirene que anuncia o nevoeiro aos barcos da baía. Espero ansiosa o peru do dia de Acção de Graças e o esplendor kitsch do Natal. Até participo no obrigatório piquenique do 4 de Julho. A propósito, esse piquenique é muito eficiente, como tudo o resto por estes lados: conduzir depressa, instalar-se no lugar previamente reservado, colocar os cestos, engolir a comida, jogar à bola e correr de volta a casa para evitar o tráfego. No Chile gastaríamos três dias em semelhante projecto.

O sentido do tempo dos Norte-Americanos é muito especial: não têm paciência; tudo deve ser rápido, mesmo a comida e o sexo, que o resto do mundo trata cerimoniosamente. Os gringos inventaram dois termos que não têm tradução: snack e quickie, para designar comer de pé e fazer amor a correr... e muitas vezes também de pé. Os livros mais populares são os manuais: como ser milionário em dez lições fáceis, como perder quinze libras numa semana, como superar o divórcio, etc. As pessoas andam sempre à procura de atalhos e a fugir do que consideram desagradável: fealdade, velhice, obesidade, doença, pobreza e fracasso em qualquer aspecto.

O fascínio deste povo pela violência nunca deixou de me chocar. Poder-se-ia dizer que vivi em circunstâncias interessantes, vi revoluções, guerra e crime urbano, sem mencionar as brutalidades do golpe militar no Chile. Na nossa casa em Caracas entraram ladrões dezassete vezes; roubaram-nos quase tudo, desde um abre-latas a três automóveis, dois que levaram da rua e o terceiro depois de arrancarem de raiz a porta da garagem. Ainda bem que nenhum dos assaltantes tinha más intenções, houve até uma vez em que nos deixaram uma nota de agradecimento colada à porta do frigorífico. Comparados com outros lugares da terra, onde uma criança pode pisar uma mina no seu caminho para a escola e perder as duas pernas, os Estados Unidos são um país seguro como um convento, mas a cultura está ligada à violência. Assim o provam os desportos, jogos, arte e não falemos do cinema, que é terrível. Os Norte-Americanos não querem violência nas suas vidas, mas precisam experimentá-la por tabela. Adoram a guerra, desde que não seja no seu território.

O racismo, em contrapartida, não me chocou, apesar de, segundo Willie, ser esse o problema mais grave do país, porque eu tinha suportado durante quarenta e cinco anos o sistema de classes na América-Latina, onde os pobres e a população mestiça, africana ou indígena vivem inexoravelmente segregados, como se isso fosse a coisa mais natural do mundo. Ao menos nos Estados Unidos existe consciência do conflito e a maioria dos norte-americanos luta contra o racismo.

Quando Willie visita o Chile é objecto de curiosidade para os meus amigos e para as crianças da rua, pela sua inegável pinta de estrangeiro, que ele acentua com um chapéu australiano e botas de vaqueiro. Gosta do meu país, diz que é como a Califórnia há quarenta anos, mas sente-se forasteiro, tal como eu me sinto nos Estados Unidos. Entendo o idioma, mas não tenho as chaves. Quando nos juntamos com amigos, participo pouco na conversa, porque não conheço os acontecimentos ou as pessoas de que falam, não vi os mesmos filmes na minha juventude, não dancei ao som da guitarra epiléptica de Elvis, não fumei marijuana nem saí à rua a protestar contra a guerra do Vietname. Não acompanho os mexericos políticos, porque vejo pouca diferença entre democratas e republicanos. Sou tão estrangeira que nem sequer participei no fascínio nacional pelo escândalo amoroso do presidente Clinton, porque depois de ver as cuecas da menina Lewinsky catorze vezes na televisão perdi o interesse. Até o basebol é um mistério para mim; não entendo tanta paixão por um grupo de gordos à espera de uma bola que nunca chega. Não encaixo socialmente: visto-me de seda enquanto o resto da população usa sapatos de ténis e peço bife quando os outros estão na onda do tofu e do chá verde.

O que mais aprecio da minha condição de imigrante é a estupenda sensação de liberdade. Venho de uma cultura tradicional, de uma sociedade fechada, onde cada um de nós carrega desde o nascimento com o karma dos seus antepassados e onde nos sentimos sempre observados, julgados, vigiados. A honra manchada não pode lavar-se. Uma criança que rouba lápis de cores na creche fica marcada como gatuno para o resto da vida; mas nos Estados Unidos o passado não importa, ninguém pergunta os apelidos, o filho de um assassino pode chegar a presidente... desde que seja branco. Podem cometer-se erros, porque sobram novas oportunidades, basta ir para outro Estado e mudar de nome para começar outra vida; os espaços são tão vastos que os caminhos nunca acabam.

Ao princípio o Willie, condenado a viver comigo, sentia-se tão incomodado com as minhas ideias e costumes chilenos como eu com as dele. Havia problemas mais graves, como o eu tentar impor as minhas normas de convivência antiquadas aos filhos dele e ele não fazer ideia do que é o romantismo; e problemas menores, como o facto de eu ser incapaz de usar os electrodomésticos e ele ressonar; mas superámo-los a pouco e pouco. Talvez o casamento seja isso e nada mais: ser flexíveis. Como imigrante tentei preservar as virtudes chilenas que me agradam e renunciar aos preconceitos que me colocavam numa camisa-de-forças. Aceitei este país. Para amar um lugar há que participar na comunidade e dar algo em troca do muito que se recebe; creio tê-lo feito. Há muitas coisas que admiro nos Estados Unidos e outras que desejo mudar, mas, não será sempre assim? Um país, como um marido, é sempre susceptível de ser melhorado.

Um ano depois de me ter instalado na Califórnia, em 1988, mudou a situação no Chile, porque Pinochet perdeu o plebiscito e o país preparou-se para restaurar a democracia. Então regressei. Fui com receio, porque não sabia o que ia encontrar, e quase não reconheci Santiago nem as suas gentes; tudo tinha mudado. A cidade estava cheia de jardins e edificios modernos, invadida pelo tráfego e pelo comércio, enérgica, acelerada e desenvolvida; mas restavam vestígios feudais, como empregadas com aventais azuis passeando pessoas idosas no bairro nobre e mendigos em cada semáforo. Os Chilenos agiam com prudência, respeitavam as hierarquias e vestiam-se de forma muito conservadora, os homens de gravata, as mulheres com saias e em muitas repartições do governo e escritórios de empresas privadas usavam uniforme, como assistentes de bordo. Apercebi-me que muitos dos que ficaram no Chile e passaram maus bocados consideram traidores os que fugimos e pensam que no estrangeiro a vida era mais fácil. Por outro lado, não faltam exilados que acusam os que permaneceram no país de colaborarem com a ditadura.

O candidato da Concertación, Patricio Aylwin, tinha ganho por pequena margem, a presença dos militares ainda era esmagadora e as pessoas andavam assustadas. A imprensa continuava sujeita à censura; os jornalistas que me entrevistaram, habituados à prudência, faziam-me perguntas cautelosas e ingénuas, e depois não publicavam as respostas. A ditadura tinha feito o possível para apagar a história recente e o nome de Salvador Allende. Ao regressar e ver do avião a baía de São Francisco dei um suspiro de alívio e disse sem pensar: finalmente chego a casa. Era a primeira vez, desde que saí do Chile, em 1975, que me considerava «em casa».

Não sei se a minha casa é o lugar onde vivo, ou simplesmente é o Willie. Estamos juntos há vários anos e parece-me que ele é o único território a que pertenço, onde não sou estrangeira. Juntos sobrevivemos a muitos altos e baixos, grandes êxitos e grandes perdas. A dor mais profunda foi a tragédia das nossas filhas; no espaço de um ano Jennifer morreu de uma overdose e Paula de uma estranha condição genética, chamada porfiria, que a afundou num longo coma e finalmente acabou com a sua vida. Willie e eu somos fortes e teimosos, custou-nos admitir que o nosso coração tinha ficado destroçado. Precisámos de tempo e terapia para finalmente nos abraçarmos e chorarmos juntos.

O luto foi uma longa viagem ao inferno, do qual saí graças a ele e à escrita.

Em 1994 voltei ao Chile em busca de inspiração e a partir daí regresso todos os anos. Encontrei os meus compatriotas mais calmos e a democracia mais firme, mas condicionada pela presença dos militares, ainda poderosos, e dos senadores vitalícios designados por Pinochet para controlar o Congresso. O governo mantinha um dificil equilíbrio entre as forças políticas e sociais. Fui aos bairros de lata, onde antes as pessoas eram lutadoras e organizadas. Os padres e freiras progressistas, que tinham vivido entre os pobres durante esses anos, contaram-me que a miséria era a mesma, mas a solidariedade tinha desaparecido e agora ao alcoolismo, à violência doméstica e ao desemprego somavam-se o crime e a droga, que se tornara o problema mais grave entre os jovens.

A palavra de ordem entre os Chilenos era silenciar as vozes do passado, trabalhar pelo futuro e não provocar os militares por nenhum motivo. Em comparação com o resto da América Latina, o Chile vivia um bom momento de estabilidade política e económica; mas ainda havia cinco milhões de pobres. Salvo as vítimas da repressão, os seus familiares e algumas organizações que velavam pelos direitos humanos, ninguém pronunciava as palavras «desaparecidos» ou «tortura» em voz alta. A situação mudou quando prenderam Pinochet em Londres, cidade onde se encontrava para fazer exames médicos de rotina e para receber a sua comissão por um negócio de armas, acusado do assassínio de cidadãos espanhóis por um juiz que pediu a sua extradição para Espanha. O general, que ainda contava com o apoio incondicional das Forças Armadas, tinha vivido vinte e cinco anos isolado pelos aduladores que sempre rodeiam o poder e, apesar de o terem prevenido dos riscos, viajou confiado na sua impunidade. A surpresa que teve ao ser detido pelos Britânicos só pode comparar-se à que sentiram os restantes Chilenos, habituados à ideia de que ele era intocável. Eu estava por acaso em Santiago quando isso aconteceu e comprovei como no espaço de uma semana se destapou uma caixa de Pandora e o que tinha permanecido oculto sob camadas e camadas de silêncio, começou a emergir. Nos primeiros dias houve furibundas manifestações de rua organizadas pelos pinochetistas, que ameaçavam declarar guerra à Inglaterra ou enviar um comando militar para resgatar o prisioneiro: não o faziam por menos. A imprensa do país, assustada, falava da afronta contra o Excelentíssimo Senador Vitalício e contra a honra e a soberania da pátria; mas uma semana mais tarde as manifestações de rua a seu favor eram mínimas, os militares permaneciam mudos e o tom tinha mudado nos meios de comunicação, que agora se referiam ao «ex-ditador detido em Londres». Ninguém acreditou que os Ingleses entregassem Pinochet para ser julgado em Espanha, como de facto não aconteceu, mas o medo que ainda pairava no Chile diminuiu rapidamente. Os militares perderam prestígio e poder numa questão de dias. O acordo tácito de calar a verdade terminou graças à iniciativa daquele juiz espanhol.

Nessa viagem percorri o sul, deixei-me envolver de novo pela prodigiosa natureza do meu país e reencontrei-me com os meus fiéis amigos, dos quais estou mais próxima que dos meus irmãos, porque a amizade no Chile é para sempre. Retornei à Califórnia com renovadas energias, pronta para trabalhar. Optei por um tema o mais afastado possível da morte e escrevi Afrodite, umas divagações sobre gula e luxúria, os únicos pecados capitais que valem a pena. Comprei um ror de livros de cozinha e outros tantos de erotismo e parti em excursão para o bairro gay de São Francisco, onde percorri durante semanas as lojas de pornografia. (Uma investigação como esta teria sido dificil no Chile. Mesmo que o material existisse, nunca me atreveria a procurá-lo; estava em jogo a honra da minha família.) Aprendi muito. É uma pena que tenha adquirido esses conhecimentos tão tarde na minha vida, quando já não há com quem praticar: Willie declarou que não estava disposto a pendurar um trapézio no tecto.

Esse livro ajudou-me a sair da depressão em que a morte da minha filha me deixou. Desde então escrevi um livro por ano. A verdade é que não me faltam ideias, o que me falta é tempo. Pensando no Chile e na Califórnia, escrevi Filha da Fortuna e logo a seguir Retrato a Sépia, livros nos quais as personagens vão e vêm entre estas minhas duas pátrias.

Para concluir desejo acrescentar que os Estados Unidos me trataram muito bem, me permitiram ser eu mesma ou qualquer versão de mim que eu queira criar. Por São Francisco passa o mundo inteiro, cada um com a sua carga de recordações e esperanças; esta cidade está cheia de estrangeiros, não sou uma excepção. Nas ruas ouvem-se mil e uma línguas, erguem-se templos de todas as denominações, prova-se comida dos lugares mais remotos. Poucos nascem aqui, a maioria são estranhos no paraíso, como eu. A ninguém importa quem sou ou o que faço, ninguém me observa nem me julga, deixam-me em paz, o que implica uma contrapartida: se caio morta no meio da rua ninguém dá por isso. Mas, enfim, é um preço barato para a liberdade. O preço que pagaria no Chile seria muito alto, porque lá ainda não se apreciam as diferenças. Na Califórnia a única coisa que não se tolera é a intolerância.

A observação do meu neto Alejandro sobre os três anos de vida que me restam obriga-me a perguntar a mim mesma se desejo vivê-los nos Estados Unidos ou regressar ao Chile. Não sei. Francamente, duvido que deixasse a minha casa. Visito o Chile uma ou duas vezes por ano e quando chego muitas pessoas parecem contentes de me ver, mas creio que ficam mais contentes quando me vou embora, incluindo a minha mãe, que vive assustada com medo que a sua filha cometa um desatino, como aparecer na televisão a falar do aborto, por exemplo. Sinto-me feliz por uns dias mas passadas duas ou três semanas começo a ter saudades do tofu e do chá verde.

Este livro ajudou-me a compreender que não sou obrigada a tomar uma decisão: posso ter um pé lá e outro cá, é para isso que existem os aviões e não pertenço ao número dos que não voam por medo do terrorismo. Tenho uma atitude fatalista: ninguém morre um minuto antes nem um minuto depois da sua hora. De momento a Califórnia é o meu lar e o Chile é o território da minha nostalgia. O meu coração não está dividido, mas cresceu. Posso viver e escrever quase em qualquer sítio. Cada livro contribui para completar essa «terra dentro da minha cabeça», como lhe chamam os meus netos. No lento exercício da escrita lidei com os meus demónios e obsessões, explorei os recantos da memória, salvei do esquecimento histórias e personagens, roubei vidas alheias e com toda essa matéria-prima construí um sítio a que chamo a minha pátria. É daí que eu sou.

Espero que esta longa diatribe responda à pergunta daquele desconhecido sobre a nostalgia. Não acreditem em tudo o que digo, pois tenho uma certa tendência para exagerar e, tal como preveni no princípio, não consigo ser objectiva quando se trata do Chile. Para ser mais exacta: digamos que quase nunca consigo ser objectiva. De qualquer maneira, o mais importante da minha viagem por este mundo não aparece na minha biografia ou nos meus livros, aconteceu, de forma quase imperceptível, nas câmaras secretas do coração. Sou escritora porque nasci com bom ouvido para as histórias e tive a sorte de ter uma família excêntrica e um destino de peregrina errante. O ofício da literatura definiu-me: palavra a palavra criei a pessoa que sou e o país inventado em que vivo.

 

                                                                                Isabel Allende  

 

                      

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