Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O MEU PÉ DE LARANJA LIMA
O descobridor das coisas
A GENTE VINHA DE MÃOS DADAS, sem pressa de nada pela rua.
Totoca vinha me ensinando a vida. E eu estava muito contente porque meu irmão mais velho estava me dando a mão e ensinando as coisas. Mas ensinando as coisas fora de casa. Porque em casa eu aprendia descobrindo sozinho e fazendo sozinho, fazia errado e fazendo errado acabava sempre tomando umas palmadas.
Até bem pouco tempo ninguém me batia. Mas depois descobriram as coisas e vivem dizendo que eu era o cão, que eu era capeta, gato ruço de mau pêlo. Não queria saber disso. Se não estivesse na rua eu começava a cantar. Cantar era bonito. Totoca sabia fazer outra coisa além de cantar, assobiar. Mas eu por mais que imitasse, não saía nada. Ele me animou ‘dizendo que era assim mesmo, que eu ainda não tinha boca de soprador. Mas como eu não podia cantar por fora, fui cantando por dentro. Aquilo era esquisito, mas se tornava muito gostoso. E eu estava me lembrando de uma música que Mamãe cantava quando eu era bem pequenininho. Ela ficava no tanque, com um pano amarrado na cabeça para tapar o sol. Tinha um avental amarrado na barriga e ficava horas e horas, metendo a mão na água, fazendo sabão virar muita espuma. Depois torcia a roupa e ia até a corda.
Prendia tudo na corda e suspendia o bambu. Ela fazia igualzinho com todas as roupas. Estava lavando a roupa da casa do Dr. Faulhaber para ajudar nas despesas da casa. Mamãe era alta, magra, mas muito bonita. Tinha uma cor bem queimada e os cabelos pretos e lisos. Quando ela deixava os cabelos sem prender, dava até na cintura. Mas bonito era quando ela cantava e eu ficava junto aprendendo.
“Marinheiro, Marinheiro
Marinheiro de amargura
Por tua causa, Marinheiro
Vou baixar à sepultura...
As ondas batiam
E na areia rolavam
Lá se foi o Marinheiro
Que eu tanto amava...
O amor de Marinheiro
É amor de meia hora
O navio levanta o ferro
Marinheiro vai embora...
As ondas batiam"...
Até agora aquela música me dava uma tristeza que eu não sabia compreender.
Totoca me deu um puxão. Eu acordei.
— Que é que você tem, Zezé?
— Nada. Tava cantando.
— Cantando?
— É.
— Então eu devo estar ficando surdo.
Será que ele não sabia que se podia cantar para dentro? Fiquei calado. Se não sabia eu não ensinava.
Tínhamos chegado na beira da estrada Rio-São Paulo. Passava tudo nela. Caminhão, automóvel, carroça e bicicleta.
— Olhe, Zezé, isso é importante. A gente primeiro olha bem. Olha para um lado e para outro. Agora.
Atravessamos correndo a estrada.
— Teve medo?
Bem que tive mas fiz não com a cabeça.
— Nós vamos atravessar de novo juntos. Depois quero ver se você aprendeu.
Voltamos.
— Agora você sozinho. Nada de medo que você está ficando um homenzinho.
Meu coração acelerou.
— Agora. Vai.
Meti o pé e quase não respirava. Esperei um pedaço e ele deu o sinal para que eu voltasse.
— Pela primeira vez, você foi muito bem. Mas esqueceu uma coisa. Tem que olhar para os dois lados para ver se vem carro. Nem toda hora eu vou ficar aqui para lhe dar o sinal. Na volta, a gente treina mais. Agora vamos que eu vou mostrar uma coisa para você.
Agarrou a mão e saímos novamente devagar. Eu estava impressionado com uma conversa.
— Totoca.
— Que é?
— Idade da razão pesa?
— Que besteira é essa?
— Tio Edmundo quem falou. Disse que eu era “precoce” e que ia entrar logo na idade da razão. E eu não sinto diferença.
— Tio Edmundo é um bobo. Vive metendo coisas na sua cabeça.
— Ele não é bobo. Ele é sábio. E quando eu crescer quero ser sábio e poeta e usar gravata de laço. Um dia eu vou tirar retrato de gravata de laço.
— Por que gravata de laço?
— Porque ninguém é poeta sem gravata de laço. Quando Tio Edmundo me mostra retrato de poeta na revista, todos têm gravata de laço.
— Zezé, deixe de acreditar em tudo que ele fala pra você. Tio Edmundo é meio trongola. Meio mentiroso.
— Então ele é filho da puta?
— Olhe que você já apanhou na boca de tanto dizer palavrão; Tio Edmundo não é isso. Eu falei trongola. Meio maluco.
— Você falou que ele era mentiroso.
— Uma coisa nada tem a ver com a outra.
— Tem, sim. Noutro dia Papai conversava com seu Severino, aquele que joga escopa e manilha com ele e falou assim de seu Labonne: “o filho da puta do velho mente pra burro"... E ninguém bateu na boca dele.
— Gente grande pode dizer, que não faz mal.
Fizemos uma pausa.
— Tio Edmundo não é... Que é que é mesmo trongola, Totoca?
Ele girou o dedo na cabeça.
— Ele não é, não. Ele é bonzinho, me ensina as coisas e até hoje só me deu uma palmada e não foi com força.
Totoca deu um pulo.
— Ele deu uma palmada em você? Quando?
— Quando eu estava muito levado e Glória me mandou para a casa de Dindinha. Aí ele queria ler o jornal e não achava os óculos. Procurou, danado da vida. Perguntou para Dindinha e nada. Os dois viraram a casa pelo avesso. Aí eu disse que sabia onde estava e se ele me desse um tostão para comprar bolas de gude, eu dizia. Ele foi no colete e apanhou um tostão.
— Vai buscar que eu dou.
— Eu fui no cesto de roupa suja e apanhei eles. Aí ele me xingou. — “Foi você, seu patife!” Me deu uma palmada na bunda e me tomou o tostão.
Totoca riu.
— Você vai lá para não apanhar em casa e apanha lá. Vamos mais depressa se não a gente não chega nunca.
Eu continuava pensando em Tio Edmundo.
— Totoca, criança é aposentado?
— O quê?
— Tio Edmundo não faz nada, ganha dinheiro. Não trabalha e a Prefeitura paga ele todo mês.
— E daí?
— Criança não faz nada, come, dorme e ganha dinheiro dos pais.
— Aposentado é diferente, Zezé. Aposentado é quem já trabalhou muito, ficou de cabelo branco e anda devagarzinho como Tio Edmundo. Mas vamos deixar de pensar coisas difíceis. Que você goste de aprender com ele, vá lá. Mas comigo, não. Fique igual aos outros meninos. Diga até palavrão, mas deixe de encher essa cabecinha com coisas difíceis. Senão, não saio mais com você.
Fiquei meio emburrado e não quis mais conversar.
Também não tinha vontade de cantar. Meu passarinho que cantava pra dentro voou pra longe.
Paramos e Totoca apontou a casa.
— É bem ali. Você gosta?
uma casa comum. Branca de janelas azuis. Toda fechada e caladinha.
— Gosto. Mas por que a gente tem que mudar para cá?
— É bom a gente sempre se mudar.
Ficamos observando pela cerca um. pé de mangueira de um lado e um tamarindeiro do outro.
— Você que quer saber tudo não desconfiou o drama que vai lá em casa. Papai está desempregado, não está? Ele faz mais de seis meses que brigou com Mister Scottfield e puseram ele na rua. Você não viu que Lalá começou a trabalhar na Fábrica? Não sabe que Mamãe vai trabalhar na cidade, no Moinho Inglês? Pois bem, seu bobo. Tudo isso é pra juntar um dinheiro e pagar o aluguel dessa nova casa. A outra, Papai já está devendo bem oito meses. Você é muito criança para saber dessas coisas tristes. Mas eu vou ter que acabar ajudando missa para ajudar em casa.
Demorou-um pouco, em silêncio.
— Totoca, vão trazer a pantera negra e as duas leoas pra cá?
— Claro que vão. E o escravo aqui é que vai ter de desmontar o galinheiro.
Me olhou com certa meiguice e pena.
— Eu é que vou desmontar o jardim zoológico e armar ele aqui.
Fiquei aliviado. Porque senão eu teria que inventar uma nova coisa para brincar com o meu irmãozinho mais novo: Luís.
— Bem, viu como eu sou seu amigo, Zezé. Agora não custava me contar como foi que você conseguiu “aquilo”...
— Juro, Totoca, que não sei. Não sei mesmo.
— Você está mentindo. Você estudou com alguém.
— Não estudei nada. Ninguém me ensinou. Só se foi o diabo que Jandira diz que é meu padrinho, que me ensinou dormindo.
Totoca estava perplexo. No começo até me dera cocorotes para eu contar. Mas nem eu sabia contar.
— Ninguém aprende essas coisas sozinho.
Mas ficava embatucado porque realmente ninguém vira ninguém me ensinar nada. Era um mistério.
Fui me lembrando de alguma coisa que tinha acontecido uma semana antes. A família ficou atarantada. Começou quando eu me sentei perto de Tio Edmundo na casa de Dindinha, que lia o jornal.
— Titio.
— Que é, meu filho. Ele puxou os óculos para a ponta do nariz como toda gente grande e velha fazia.
— Quando o senhor aprendeu a ler?
— Mais ou menos com seis ou sete anos de idade.
— E uma pessoa pode ler com cinco anos?
— Poder, pode. Ninguém gosta de fazer isso porque a criança ainda é muito pequena.
— Como é que o senhor aprendeu a ler?
— Como todo mundo, na Cartilha. Fazendo B mais A: BA.
— Todo mundo tem que fazer assim?
— Que eu saiba, sim.
— Mas todo mundo mesmo?
Ele me olhou intrigado.
— Olhe, Zezé, todo mundo precisa fazer assim. Agora me deixe terminar a minha leitura. Veja se tem goiaba no fundo do quintal.
Colocou os óculos no lugar e tentou se concentrar na leitura.
Mas eu não saí do canto.
— Que pena!...
A exclamação saiu tão sentida que ele de novo trouxe os óculos para a ponta do nariz.
— Não adianta, quando você quer...
— É que eu vim lá de casa, andei pra burro só para contar uma coisa para o senhor.
— Então vamos, conte.
— Não. Não é assim. Primeiro preciso saber quando o senhor vai receber a aposentadoria.
— Depois de amanhã. Deu um suave sorriso me estudando.
— E quando é depois de amanhã?
— Sexta-feira.
— Pois na sexta-feira o senhor não quer trazer um “Raio de Luar” pra mim, da cidade?
— Vamos devagar, Zezé. O que é Raio de Luar?
— É o cavalinho branco que eu vi no cinema. O dono dele é Fred Thompson. É um cavalo ensinado.
— Você quer que eu traga um cavalinho de rodas?
— Não, senhor. Quero aquele que tem uma cabeça de pau com rédeas. Que a gente coloca um cabo e sai correndo. Eu preciso treinar porque eu vou trabalhar no cinema mais tarde.
Ele continuou rindo.
— Compreendo. E se eu trouxer, o que eu ganho?
— Eu faço uma coisa pro senhor.
— Um beijo?
— Não gosto muito de beijos.
— Um abraço?
Aí eu olhei Tio Edmundo com uma pena danada. Meu passarinho lá dentro falou uma coisa. E eu fui lembrando que muitas vezes tinha escutado... Tio Edmundo era separado da mulher e tinha cinco filhos ... Vivia tão sozinho e caminhava devagar, devagar ... Quem sabe se ele não andava devagar era porque tinha saudade dos filhos? E os filhos nunca vinham fazer uma visita para ele.
Dei a volta na mesa e apertei com força o seu pescoço. Senti o seu cabelo branco roçar na minha testa, bem macio.
— Isto não é pelo cavalinho. O que eu vou fazer é outra coisa. Vou ler.
— Você sabe ler, Zezé? Que história é essa? Quem foi que lhe ensinou?
— Ninguém.
— Você está com lorotas. Me afastei e da porta comentei:
— Traga meu cavalinho sexta-feira pra ver se eu não leio!...
Depois quando foi de noite e Jandira acendeu a luz do lampião porque a Light cortara a luz por falta de pagamento, eu fiquei na ponta dos pés para ver a “estrela”. Tinha um desenho de uma estrela num papel e embaixo uma oração para proteger a casa.
— Jandira me pegue no colo que eu vou ler ali.
— Deixe de invenções, Zezé. Estou muito ocupada.
— Pois me pegue e veja se eu não sei ler.
— Olhe, Zezé, se você estiver me aprontando alguma, você vai ver.
Me colocou no colo e me levou bem atrás da porta.
— Então, leia. Quero ver. Aí eu li mesmo. Li a oração que pedia aos céus, bênção e proteção para a casa e afugentasse os maus espíritos.
Jandira me depositou no chão. Estava de queixo caído.
— Zezé, você decorou aquilo. Você está me enganando.
— Juro, Jandira. Eu sei ler tudo.
— Ninguém pode ler sem ter aprendido. Foi Tio Edmundo? Dindinha?
— Ninguém. Ela pegou um pedaço de jornal e eu li. Li direitinho. Ela deu um grito e chamou Glória. Glória ficou nervosa e foi chamar Alaíde. Em dez minutos uma porção de gente da vizinhança veio ver o fenómeno.
Era isso que Totoca estava querendo saber.
— Ele ensinou e prometeu o cavalinho se você aprendesse.
— Não foi, não.
— Eu vou perguntar a ele.
— Pois vá perguntar. Eu não sei dizer como foi, Totoca. Se eu soubesse eu contava pra você.
— Então vamos embora. Você vai ver. Quando precisar de uma coisa...
Pegou minha mão, zangado, e me puxou de volta para a casa. Aí ele pensou numa coisa para se vingar.
— Bem feito! Aprendeu cedo demais, seu bobo. Agora vai ter que entrar na Escola em fevereiro.
Aquilo tinha sido idéia de Jandira. Assim a casa ficava a manhã inteira em paz e eu aprendia a ter modos.
— Vamos treinar a Rio-São Paulo. Porque não pense que no tempo da Escola eu vou ficar de sua empregada, atravessando você todo tempo. Você é muito sabido, que aprenda logo isso também.
— Taqui o cavalinho. Agora eu quero ver.
Abriu o jornal e me mostrou uma frase de reclame de um remédio.
— “Esse produto se encontra em todas as pharmacias e casas do ramo”.
Tio Edmundo foi chamar Dindinha no quintal.
— Mamãe. Até Pharmacia ele leu direitinho. Os dois juntos começaram a me dar coisas para ler e eu lia tudo.
Minha avó resmungou que o mundo estava perdido. Ganhei o cavalinho e novamente abracei Tio Edmundo. Então ele pegou no meu queixo e me falou emocionado.
— Você vai longe, peralta. Não é à toa que você se chama José. Você será o sol, e as estrelas vão brilhar ao seu redor.
Fiquei olhando sem entender e pensando que ele era mesmo trongola.
— Isto você não entende. É a história de José do Egipto. Quando você crescer mais eu conto essa história.
Eu era doido por histórias. Quanto mais difíceis, mais eu gostava.
Alisei o meu cavalinho, bastante tempo e depois levantei a vista para Tio Edmundo e perguntei:
— A semana que vem, o senhor acha que eu já cresci?...
Um certo pé de Laranja Lima
LÁ EM CASA cada irmão mais velho criava um mais moço. Jandira tomara conta de Glória e de outra irmã que fora dada para ser gente no Norte. Antônio era o quindim dela. Depois Lalá tomara conta de mim até bem pouco tempo. Até ela gostar de mim, depois parece que enjoou ou ficou muito apaixonada pelo namorado dela que era um almofadinha igualzinho ao da música: de calça larga e paletó curtinho. Quando a gente ia aos domingos fazer o “footing” (o namorado dela falava assim) na Estação, ele comprava bala pra mim que dava gosto. Era para eu não falar nada em casa. Nem também podia perguntar a Tio Edmundo o que era aquilo, senão descobriam...
Meus outros dois irmãozinhos morreram pequenos e eu só ouvi falar deles. Contavam que eram dois bugrezinhos Pinagés. Bem queimadinhos e de cabelos negros e lisos. Por isso que a menina se chamou Aracy e o menino Jurandyr.
Depois então vinha o meu irmãozinho Luís. Esse quem tomava mais conta dele era Glória e depois eu. Ninguém precisava tomar conta dele, porque menininho mais lindo, bonzinho e quietinho não existia.
Foi por isso que quando ele falou com aquela falinha toda sem errar, e eu que já ia ganhar o mundo da rua, mudei de idéia.
— Zezé, você vai me levar ao Jardim Zoológico? Hoje não está ameaçando chuva, não é?
Mas que gracinha, como ele falava tudo direitinho. Aquele menino ia ser gente, ia longe.
Olhei o dia lindo todo de azul no céu. Fiquei sem coragem de mentir. Porque às vezes eu não estava com vontade e dizia:
— Tá doido, Luís. Veja só o temporal que vem!...
Dessa vez agarrei a mãozinha e saímos para a aventura do quintal.
O quintal se dividia em três brinquedos. O Jardim Zoológico, A Europa que ficava perto da cerca bem feitinha da casa de seu Julinho. Por que Europa? Nem meu passarinho sabia. Lá que a gente brincava de bondinho de Pão de Açúcar. Pegava a caixa de botão e enfiava todos eles num barbante. (Tio Edmundo falava cordel). Eu pensei que cordel fosse cavalo. E ele explicou que era parecido, mas cavalo era corcel. Depois a gente amarrava uma ponta na cerca e a outra na ponta dos dedos de Luís. Subia todos os botões e soltava devagarzinho um por um. Cada bonde vinha cheio de gente conhecida. Tinha um bem pretão que era o bonde do negro Biriquinho. Não raro ouvia uma voz do outro quintal:
— Você não está estragando a minha cerca, Zezé?
— Não senhora, Dona Dimerinda. Pode ver.
— É assim que eu gosto. Brincando bonitinho com o irmão. Não é melhor assim?
Podia ser mais bonito mas no momento que o meu “padrinho”, o capeta, me empurrava, não podia haver nada mais gostoso do que fazer artes...
— A senhora vai me dar uma folhinha no Natal, como no ano passado?
— O que você fez da que eu dei?
— Pode ir lá dentro ver, Dona Dimerinda. Está em cima do saco do pão.
Ela riu e prometeu. O marido dela trabalhava no armazém de Chico Franco.
O outro brinquedo era Luciano. Luís, no começo, tinha um medo danado dele e pedia pra voltar puxando as minhas calças. Mas Luciano era amigo. Quando me via soltava guinchos fortes.
Glória também não queria aquilo, dizendo que morcego é vampiro e chupa sangue de criança.
— É não, Godóia. Luciano não é desses. É amigo. Ele me conhece.
— Você com essa mania de bicho e de falar com as coisas...
Foi um custo a convencer que Luciano não era um bicho.
Luciano era um avião voando no Campo dos Afonsos.
— Olhe só, Luís. E Luciano rodava em volta da gente todo feliz como se compreendesse o que se falava. E compreendia mesmo.
— Ele é um aeroplano. Está fazendo...
Embatucava. Precisava pedir de novo para Tio Edmundo repetir aquela palavra. Não sabia se era acorbacia, acrobacia ou arcobacia. Era uma daquelas. Só que não devia ensinar errado ao meu irmãozinho.
Mas agora ele estava querendo o Jardim Zoológico. Chegamos até perto do galinheiro velho. Dentro as duas frangas claras estavam ciscando e a velha galinha preta era tão mansa que a gente até coçava a cabeça dela.
— Primeiro vamos comprar os bilhetes de entrada. Dê-me a mão que a criança pode se perder nessa multidão. Viu como está cheio aos domingos?
Ele olhava e começava a enxergar gente por toda a parte e apertava mais minha mão.
Na bilheteria empinei a barriga para frente e dei um pigarro para ter importância. Meti a mão no bolso e perguntei à bilheteira:
— Até que idade criança não paga?
— Até cinco anos.
— Então uma de adulto, faz favor. Peguei as duas folhinhas de laranjeira de bilhete e fomos entrando.
— Primeiro, meu filho, você vai ver que beleza são as aves. Olhe papagaios, periquitos e araras de todas as cores. Aquelas bem cheias de penas diferentes são as araras arco-íris.
E ele arregalava os olhos extasiado. Caminhávamos devagar, vendo tudo. Vendo tanta coisa que até eu vi por trás de tudo que Glória e Lalá estavam sentadas no tamborete e descascavam laranjas. Os olhos de Lalá me olhavam de um jeito... Será que já tinham descoberto? Se já, aquele Jardim Zoológico ia acabar em grandes chineladas na bunda de alguém. E só quem podia ser esse alguém era eu.
— E agora, Zezé, o que nós vamos visitar?
Novo pigarro e pose.
— Vamos passar nas jaulas dos macacos. Tio Edmundo diz sempre, os símios.
Compramos algumas bananas e atiramos aos bichos. A gente sabia que aquilo era proibido, mas como tinha muita multidão, os guardas nem davam conta.
— Não se chegue muito perto que eles atiram cascas de banana em você, pequerrucho.
— Eu queria era chegar logo nos leões.
— Já vamos lá.
Relanceei a vista onde as duas “símias” chupavam laranja. Da jaula dos leões, daria para escutar a conversa.
— Chegamos. Apontei as duas leoas amarelas, bem africanas.
Quando ele quis alisar a cabeça da pantera negra...
— Que idéia, pequerrucho. Essa pantera negra é o terror do Jardim. Ela veio pra cá porque arrancou dezoito braços de domadores e comeu.
Luís fez uma cara de medo e retirou o braço apavorado.
— Ela veio do circo?
— Veio.
— De que circo, Zezé? Você nunca me contou antes.
Pensei e pensei. Quem que eu conhecia que tinha nome pra circo?
— Ali! Veio do circo Rozemberg.
— Mas lá não é padaria?
Já estava ficando difícil enganar ele. Começava a ficar muito sabido.
— É outro. É melhor sentarmos um pouco e comer a merenda. Andamos muito.
Sentamos e fingimos que comíamos. Mas meu ouvido estava lá, escutando as conversas.
— A gente devia aprender com ele, Lalá. Veja só a paciência que ele tem com o irmãozinho.
— É, mas o outro não faz o que ele faz. Isso já é maldade. Não é arte.
— Tá certo que ele tem o diabo no sangue, mas mesmo assim é engraçado. Ninguém fica com raiva dele na rua, por mais que pinte...
— Aqui ele não passa sem tomar umas chineladas. Um dia ele aprende.
Joguei uma flecha de piedade nos olhos de Glória. Ela sempre me salvara e eu sempre prometia a ela que não ia fazer nunca mais...
— Mais tarde. Agora não. Eles estão brincando tão quietinhos...
Ela já sabia de tudo. Sabia que eu tinha ido pelo valão e entrado nos fundos do quintal de Dona Celina. Fiquei fascinado com a corda de roupa balançando ao vento uma porção de pernas e braços. Aí o diabo me disse que eu podia dar uma queda ao mesmo tempo em todos os braços e pernas. Eu concordei com ele que ia ser muito engraçado. Procurei no valão um caco de vidro bem afiado e subi na laranjeira e cortei a corda com paciência.
Eu quase que caí ao mesmo tempo que aquilo tudo veio abaixo.
Um grito e todo mundo correu.
— Acode minha gente, que a corda rebentou.
Mas uma voz, não sei de onde, gritou mais alto.
— Foi aquela peste do menino de seu Paulo. Eu vi ele trepando na laranjeira com um caco de vidro...
— Zezé?
— Que é, Luís?
— Conte pra mim como é que você sabe tanta coisa do Jardim Zoológico?
— Já visitei muitos na vida.
Mentia, tudo o que eu sabia era Tio Edmundo quem me contara e até me prometera me levar lá um dia.
Mas ele andava tão devagarzinho que quando a gente chegasse lá, já não existia mais nada. Totoca fora uma vez com Papai.
— O que eu gosto mais é o da Rua Barão de Drummond, na Vila Isabel. Você sabe quem foi o Barão de Drummond? Claro que você não sabe. É muito criança para saber dessas coisas. O tal Barão devia ser muito amigo de Deus. Porque foi ele que ajudou Deus a criar o jogo de bicho e o Jardim Zoológico. Quando você ficar maiorzinho...
As duas continuavam lá.
— Quando eu ficar maiorzinho o quê?
— Ai que criança perguntadeira. Quando você chegar lá eu ensino os bichos e o número dos bichos. Até número vinte.
Do número vinte até o número vinte cinco, eu sei que tem vaca, touro, urso, veado e tigre. Não sei direito o lugar deles, mas vou aprender para não ensinar errado.
Ele estava se cansando do brinquedo.
— Zezé, cante pra mim a Casinha Pequenina.
— Aqui no Jardim Zoológico? Tem muita gente.
— Não. A gente Já veio s'imbora...
— É muito grande a letra. Vou cantar só o pedaço que você gosta. Sabia que era onde falava de cigarras.
Abri o peito.
“Você sabe de onde eu venho
É de uma casinha que tenho
Fica junto de um pomar...
É uma casa pequenina
Lá no alto da colina
E se vê ao longe, o
Pulei uma porção de versos.
“Entre as palmeiras bizarras’
Cantam todas as cigarras
Ao pôr de oiro do sol.
Do beiral vê-se o horizonte.
No jardim canta uma fonte
E na fonte um rouxinol...”
Parei. Elas continuavam firmes lá me esperando. Tive uma idéia; ficava cantando ali até chegar de noite. Elas iam acabar, desistindo.
Mas qual o que. Cantei a Casinha toda, repeti, cantei “Por teu afeto passageiro” e até Ramona. As duas letras diferentes que eu sabia de Ramona... e nada. Aí me deu um desespero danado. Era melhor acabar com aquilo. Fui lá.
— Pronto, Lalá. Pode me bater. Virei as costas e ofereci o material. Trinquei os dentes porque a mão de Lalá tinha uma força danada no chinelo.
Mamãe quem teve a idéia.
— Hoje, todo mundo para ver a casa.
Totoca me chamou de lado e me avisou num sussurro:
— Se você contar que a gente já conhece a casa, eu te rebento.
Mas eu não tinha nem pensado nisso. Foi aquele mundão de gente pela rua. Glória me dava a mão e tinha ordens para não me desgrudar um minuto. E eu segurava a mão de Luís.
— Quando é que a gente tem de mudar, Mamãe?
Mamãe respondeu para Glória com uma certa tristeza.
— Dois dias depois do Natal temos que começar a arrumar os cacarecos.
Ela falava com uma voz cansada, cansada, E eu estava com muita pena dela. Mamãe nasceu trabalhando. Desde os seis anos de idade quando fizeram a Fábrica que puseram ela trabalhando. Sentavam Mamãe bem em cima de uma mesa e ela tinha que ficar limpando e enxugando ferros. Era tão pequenininha que fazia molhado em cima da mesa porque não podia descer sozinha... Por isso ela nunca foi à Escola e nem aprendeu a ler. Quando eu escutei essa história dela fiquei tão triste que prometi que quando fosse poeta e sábio eu ia ler minhas poesias para ela...
E o Natal se anunciava pelas lojas e armarinhos. Já tinham desenhado Papai Noel -em tudo que era vidro de porta. Tinha gente comprando cartão para que quando chegasse a hora não enchesse demais de gente tudo quanto era casa de comércio. Eu tinha uma esperança lá longe que dessa vez o Menino Deus fosse nascer. Ele mesmo para mim. Enfim quando eu ficasse da idade da razão, talvez eu melhorasse um pouco.
— É aqui.
Todos ficaram encantados. A casa era um pouco menor. Mamãe ajudada por Totoca destorceu um arame que prendia o portão e foi aquele avança. Glória soltou a minha mão e esqueceu-se que estava ficando mocinha. Desabalou à carreira e abraçou a mangueira.
— A mangueira é minha. Peguei primeiro.
Antônio fez a mesma coisa com o pé de tamarindo. Não sobrara nada para mim. Olhei quase chorando para Glória.
— E eu, Godóia?
— Corre lá no fundo. Deve ter mais árvore, bobo.
Corri, mas só encontrei um capinzal crescido. Um bando de laranjeira velha e espinhuda. Junto do valão tinha um pequeno pé de Laranja Lima.
Fiquei desapontado. Todos estavam visitando os cômodos e determinando para quem seriam os quartos.
Puxei a saia de Glória.
— Não tinha nada mais.
— Você não sabe procurar direito. Espere aí que vou achar uma árvore para você.
E logo depois ela veio comigo. Examinou as laranjeiras.
— Você não gosta daquela? Olhe que é uma bela laranjeira.
Não gostava de nenhuma mesmo. Nem daquela. Nem daquela e nem de nenhuma. Todas tinham muito espinho.
— Pra ficar com essas feiúras eu ainda preferia o pé de Laranja Lima.
— Onde?
Fomos lá.
— Mas que lindo pezinho de Laranja Lima! Veja que não tem nem um espinho. Ele tem tanta personalidade que a gente de longe já sabe que é Laranja Lima. Se eu fosse do seu tamanho, não queria outra coisa.
— Mas eu queria um pé de árvore grandão.
— Pense bem, Zezé. Ele é novinho ainda. Vai ficar um baita pé de laranja. Assim ele vai crescer junto com você. Vocês dois vão se entender como se fossem dois irmãos. Você viu o galho? É verdade que o único que tem, mas parece até um cavalinho feito pra você montar.
Estava me sentindo o maior desgraçado da vida. Me lembrava da garrafa de bebida que tinha a figura dos anjos escoceses.
Lalá disse, esse sou eu. Glória apontou outro para ela. Totoca pegou outro pra ele e eu? Eu fiquei sendo aquela cabecinha lá atrás, quase sem asa. O quarto anjo escocês que nem era um anjo inteiro... Sempre eu tinha que ser o último.
Quando crescesse iam ver só. Ia comprar uma selva amazónica e todas as árvores que tocavam no céu, seriam minhas. Compraria um armazém de garrafas cheias de anjo e ninguém ganhava um pedaço de asa.
Emburrei. Sentei no chão e encostei a minha zanga no pé de Laranja Lima. Glória se afastou sorrindo.
— Essa zanga não dura, Zezé. Você vai acabar descobrindo que eu tinha razão.
Cavouquei o chão com um pauzinho e começava a parar de fungar. Uma voz falou vindo de não sei onde, perto do meu coração.
— Eu acho que sua irmã tem toda a razão.
— Sempre todo mundo tem toda a razão. Eu é que não tenho nunca.
— Não é verdade. Se você me olhasse bem, você acabava descobrindo.
Eu levantei assustado e olhei a arvorezinha. Era estranho porque sempre eu conversava com tudo, mas pensava que era o meu passarinho de dentro que se encarregava de arranjar fala.
— Mas você fala mesmo?
— Não está me ouvindo?
E deu uma risada baixinha. Quase saí aos berros pelo quintal. Mas a curiosidade me prendia ali.
— Por onde você fala?
— Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encoste seu ouvido aqui no meu tronco que você escuta meu coração bater.
Fiquei meio indeciso, mas vendo o seu tamanho, perdi o medo.
Encostei o ouvido e uma coisa longe fazia tique... tique...
— Viu?
— Me diga uma coisa. Todo mundo sabe que você fala?
— Não. Só você.
— Verdade?
— Posso jurar. Uma fada me disse que quando um menininho igualzinho a você ficasse meu amigo, que eu ia falar e ser muito feliz.
— E você vai esperar?
— O quê?
— Até eu me mudar. Vai demorar mais de uma semana. Será que você não vai se esquecer de falar nesse tempo?
— Nunca mais. Isto é, para você só. Você quer ver como eu sou macio?
— Como é que...
— Monte no meu galho.
Obedeci.
— Agora, dê um balancinho e feche os olhos.
Fiz o que mandou.
— Que tal? Você alguma vez na vida teve cavalinho melhor?
— Nunca. É uma delícia. Até vou dar o meu cavalinho Raio de Luar para meu irmão menor. Você vai gostar muito dele, sabe?
Desci adorando o meu pé de Laranja Lima.
— Olhe, eu vou fazer uma coisa. Sempre quando puder, antes de mudar, eu venho dar uma palavrinha com você... Agora preciso ir, já estão de saída lá na frente.
— Mas, amigo não se despede assim.
— Psiu!
Lá vem ela.
Glória chegou mesmo na hora em que eu o abraçava.
— Adeus, amigo. Você é a coisa mais linda do mundo!
— Não falei a você?
— Falou, sim Agora se vocês me dessem a mangueira e o pé de tamarindo em troca da minha árvore, eu não queria.
Ela passou a mão nos meus cabelos, ternamente.
— Cabecinha, cabecinha!...
Saímos de mãos dadas.
— Godóia, você não acha que sua mangueira é meio burrona?
— Ainda não deu para saber, mas parece um pouco.
— E o pé de tamarindo de Totoca?
— É meio sem jeitão, por quê?
— Não sei se posso contar. Mas um dia eu conto um milagre para você, Godóia.
Os dedos magros da pobreza
QUANDO EU LANCEI o problema a Tio Edmundo, ele o encarou com seriedade.
— Então, é isso que preocupa você?
— É, sim senhor. Tenho medo que mudando de casa, Luciano não vá com a gente.
— Você acha que o morcego gosta muito de você?
— Se gosta...
— Do fundo do coração?
— Nem tem dúvida.
— Então, pode ficar certo que ele vai. Pode ser que demore a aparecer, mas um dia ele descobre.
— Eu já contei que rua e que número a gente vai morar.
— Pois então é mais fácil. Se ele não puder ir, porque tem outros compromissos, ele manda um irmão, um primo, qualquer parente e você nem vai notar.
Entretanto eu estava ainda indeciso. Que adiantava dar o número e a rua se Luciano não sabia ler? Podia ser que ele fosse perguntando aos passarinhos, aos louva-a-deus, às borboletas.,
— Não se assuste, Zezé, que morcego tem o senso de orientação.
— Tem o quê, titio?
Ele me explicou o que era senso de orientação e eu fiquei cada vez mais admirado com a sua sabedoria.
Resolvido o meu problema fui para a rua contar para todo mundo o que nos esperava: a mudança. A maioria das pessoas grandes me dizia com um jeito alegre:
— Vocês vão mudar, Zezé? Que bom!... Que maravilha!... Que alívio!...
Só quem não estranhou muito foi Biriquinho.
— Ainda bem que é na outra rua. Fica pertinho da gente. E aquele negócio de que eu lhe falei...
— Quando é?
— Amanhã, às oito, na porta do Cassino Bangu. O pessoal disseram que o dono da Fábrica mandou comprar um caminhão de brinquedo. Você vai?
— Vou. Vou levar Luís. Será que eu ainda ganho?
— Claro. Um porqueirinha desse tamanho. Tá pensando que já é um home?
Chegou perto de mim e eu senti que era ainda bem pequeno.
Menor do que eu pensava ainda.
— Pois se eu vou ganhar... Mas agora eu tenho que fazer. Amanhã a gente se encontra lá.
Voltei para casa e fiquei rondando Glória.
— Que é, menino?
— Você bem que podia levar a gente. Tem um caminhão que veio da cidade entupidinho de brinquedo.
— Ora, Zezé. Eu tenho um mundão de coisas pra fazer. Tenho que passar, ajudar Jandira a arrumar a mudança. Tenho que ver as panelas no fogo...
— Vem uma porção de cadetes de Realengo.
Além de colecionar pregando num caderno retratos de Rodolfo Valentino que ela chamava de Rudy, ela tinha mania de cadete.
— Onde você já viu, cadete às oito horas da manhã? Quer me fazer de boba, garoto? Vai brincar, Zezé.
Mas eu não fui.
— Sabe, Godóia. Não é por mim, não. Eu prometi a Luís que levava ele lá. Ele é tão pequenininho. Criança nessa idade só pensa no Natal.
— Zezé, já disse que não vou. E isso é conversa: é você que está querendo ir. Tem muito tempo para você ganhar Natal na vida...
— E se eu morrer? Morri sem ter ganhado esse Natal.
— Você não vai morrer tão cedo, meu velho. Vai viver duas vezes mais do que Tio Edmundo ou seu Benedito. Agora, chega disso. Vá brincar.
Mas não fui. Fiz de um jeito que ela toda hora “esbarrasse” comigo. Ela ia na cómoda pegar não sei o quê, dava comigo sentado na cadeira de balanço pedindo com o olhar. Pedindo com o olhar fazia muito efeito nela. Ela ia pegar água no tanque, eu estava sentado na soleira da porta, olhando. Ia no quarto apanhar peças de roupa para lavar. Eu estava sentado na cama com as mãos no queixo, olhando...
Aí ela não se aguentou.
— Chega, Zezé. Já disse que não e não. Por amor de Deus, não fique me atazanando a paciência. Vá brincar.
Mas eu não fui. Isto é, pensei que não ia. Porque ela me pegou, me carregou porta a fora e me depositou no quintal. Depois entrou em casa e fechou a porta da cozinha e a da sala. Não desisti. Fui ficando sentado defronte de toda janela que ela ia passar. Porque agora ela estava começando a espanar a casa e arrumar as camas. Ela dava comigo espiando e fechava a janela. Acabou fechando a casa todinha para não me ver.
— Diaba ruim! Ruça de mau pêlo! Tomara que você nunca se case com um cadete! Tomara que você se case com um soldado raso, desses que não têm um tostão para engraxar a perneira.
Quando vi mesmo que estava perdendo tempo, saí danado da vida e ganhei de novo o mundo da rua.
Na rua descobri Nardinho brincando com uma coisa. Estava de cócoras olhando, distraído da vida. Chequei perto. Ele tinha feito uma carrocinha de caixa de fósforos e amarrado um besourão que nunca vira tão grande.
— Puxa!
— Grande, não é?
— Quer trocar?
— Por quê?
— Se você quiser figurinha...
— Quantas?
— Duas.
— Tinha graça. Um besouro desses e você só dá duas figurinhas.
— Besouro assim tem de monte no valão da casa de Tio Edmundo.
— Por três ainda troco.
— Dou três, mas não pode escolher.
— Assim, não. Pelo menos duas eu escolho.
— Tá bem.
Dei uma de Laura La Plante que eu tinha muitas repetidas. E ele escolheu uma de Hoot Gibson e outra de Patsy Ruth Miller.
Peguei o besouro, enfiei no bolso e fui-me embora.
— Depressa, Luís. Glória foi comprar pão e Jandira está lendo na cadeira de balanço.
Saímos nos espremendo pelo corredor. Fui ajudar ele a desaguar.
— Faz bastante que na rua ninguém pode fazer de dia.
Depois, no tanque, lavei o rosto dele. Fiz o mesmo e voltamos para o quarto.
Vesti ele sem fazer barulho. Calcei os seus sapatinhos.
Porcaria esse negócio de meia, só serve para atrapalhar.
Abotoei o seu terninho azul e procurei o pente. Mas o cabelo dele não sentava. Precisava fazer alguma coisa. Não tinha nada em canto algum. Nem brilhantina, nem óleo. Fui na cozinha e voltei com um pouco de banha na ponta dos dedos.
Esfreguei a banha na palma da mão e cheirei antes.
— Num fede nada. Sapequei nos cabelos de Luís e comecei a penteá-los. Aí a cabeça dele ficou linda. Cheia de cachinhos que parecia um São João de carneirinho nas costas.
— Agora você fique em pé, aí, para não se amarrotar. Eu vou me vestir.
Enquanto enfiava as calças e a camisinha branca, olhava meu irmão.
— Como ele era lindo! Não havia ninguém mais bonito em Bangu.
Calcei os meus sapatinhos ténis que tinham que durar até quando eu fosse pra Escola, no outro ano. Continuei a olhar Luís.
Lindo como estava e arrumadinho, dava até para confundir com o Menino Jesus mais crescidinho. Aposto como ele vai ganhar presente pra burro. Quando olharem ele...
Estremeci. Glória acabara de voltar e colocava o pão sobre a mesa. O papel fazia aquele barulho nos dias que tinha pão.
Saímos de mãos dadas e nos postamos diante dela.
— Ele não está lindo, Godóia? Fui eu que arrumei. Em vez de se zangar, ela se encostou na porta e olhou para cima. Quando abaixou a cabeça estava com os olhos cheios d'água.
— Você está lindo também. Oh! Zezé!...
Se ajoelhou e tomou minha cabeça contra o seu peito.
— Meu Deus! Por que a vida há de ser tão dura para uns?...
Conteve-se e começou a nos arrumar direitinho.
— Eu disse que não poderia levar vocês. Não posso mesmo, Zezé. Tenho tanto que fazer. Primeiro vamos tomar café enquanto penso alguma coisa. Mesmo que quisesse não dava tempo de eu me arrumar...
Botou a nossa canequinha de café e cortou o pão. Continuava a olhar aflitamente para nós dois.
— Tanta força para ganhar umas porcarias de uns brinquedos vagabundos. Também eles não podem dar coisa muito boa pra tanto pobre que existe.
Fez uma pausa e continuou:
— Talvez seja a única oportunidade. Não posso impedir que vocês vão... Mas, meu Deus, vocês são muito pequenininhos...
— Eu levo ele direitinho. Dou a mão o tempo todo, Godóia. Nem precisa atravessar a Rio — São Paulo.
— Mesmo assim é perigoso.
— Não é, não, e eu tenho senso de orientação.
Ela riu dentro da sua tristeza.
— Quem ensinou isso agora?
— Tio Edmundo. Ele disse que Luciano tinha, e se Luciano que é menor que eu tem, eu tenho mais...
— Vou falar com Jandira.
— É perder tempo. Ela deixa, sim. Jandira só vive lendo romance e pensando nos namorados. Nem se importa.
— Vamos fazer o seguinte: acabem com o café e nós vamos para o portão. Se passar gente conhecida que for para aquele lado, eu peço para acompanhar vocês.
Nem quis comer pão, para não demorar. Fomos para o portão.
Não passava ninguém, só o tempo. Mas acabou passando. Lá vinha seu Paixão, o carteiro. Cumprimentou Glória, tirou o quepe e se prontificou a nos acompanhar.
Glória beijou Luís e me beijou. Comovida, perguntou sorrindo:
— E aquele negócio de soldado raso e de perneira...
— É mentira. Não foi de coração. Você vai casar com um major de aeroplano cheio de estrelinha no ombro.
— Por que vocês não foram com Totoca?
— Totoca disse que não ia lá. E que não estava disposto a rebocar “bagagem”.
Saímos. Seu Paixão mandava a gente andar na frente e ia entregar carta nas casas. Depois apressava o passo e pegava a gente. Tornava a repetir a acção, seguidamente. Quando chegamos na Rio- São Paulo ele riu e falou:
— Meus filhos. Estou com muita pressa. Vocês estão atrasando o meu serviço. Agora vocês vão por ali, que não tem perigo algum.
Saiu, apressado, com o maço de cartas e papéis debaixo do braço.
Pensei, revoltado.
— Covarde! Abandonar duas criancinhas na estrada depois de ter prometido a Glória que levava a gente.
Peguei a mãozinha de Luís com mais força e continuamos a andar. O cansaço começava a se manifestar nele. Cada vez diminuía os passos.
— Vamos, Luís. Está pertinho. Tem muito brinquedo.
Ele andava um pouco mais depressa e voltava a atrasar.
— Zezé, estou cansado.
— Vou carregar você um pedacinho, quer?
Ele abriu os braços e o carreguei um pouco. Arre que ele pesava como chumbo. Quando chegamos na Rua do Progresso quem estava bufando era eu.
— Agora você anda mais um pedacinho.
O relógio da igreja bateu oito horas.
— E agora? Era para a gente estar lá às sete e meia. Mas não faz mal, tem muita gente e vai sobrar brinquedo. Tem um caminhão cheio.
— Zezé, meu pé está doendo.
Abaixei.
— Vou desabotoar um pouco o cordão que melhora.
Íamos cada vez mais devagar. Parecia que o Mercado não chegava nunca. E depois ainda tínhamos que passar a Escola Pública e virar à direita na Rua do Cassino Bangu. O pior era o tempo que voava de propósito.
Mortos de cansaço, chegamos lá. Não havia ninguém. Nem parecia que houvera distribuição de brinquedo. Mas houvera, sim, porque a rua estava cheia de papel de seda amarrotado. A areia estava toda colorida de papel rasgado.
Meu coração começou a inquietar-se. Chegamos defronte e seu Coquinho estava fechando as portas do Cassino.
Falei, afogueado, para o porteiro:
— Seu Coquinho, já acabou tudo?
— Tudo, Zezé. Vocês vieram muito tarde. Foi uma enchente.
Fechou meia porta e sorriu com bondade.
— Não sobrou nada. Nem para os meus sobrinhos.
Fechou a porta toda e veio para a rua.
— Ano que vem, vocês precisam vir mais cedo, seus dorminhocos!...
— Não faz mal.
Bem que fazia. Estava tão triste e decepcionado que preferia morrer a que tivesse acontecido aquilo.
— Vamos sentar ali. A gente precisa descansar um pouco.
— Estou com sede, Zezé.
— Quando a gente passar no seu Rozemberg a gente pede um copo d'água. Chega pra nós dois.
Só então ele descobriu toda a tragédia. Nem falou. Olhou pra mim, fazendo beicinho e com os olhos boiando.
— Não faz mal, Luís. Você sabe o meu cavalinho Raio de Luar? Eu vou pedir a Totoca mudar o cabo dele e dar de Papai Noel para você.
Mas ele fungou comprido.
— Não, não faça isso. Você é um rei. Papai disse que batizou você de Luís, porque era o nome de rei. E um rei não pode chorar na rua, defronte dos outros, viu?
Encostei a cabeça dele no meu peito e fiquei alisando o seu cabelo encaracolado.
— Quando eu crescer vou comprar um carro bonito como o de seu Manuel Valadares. Aquele do Português, você se lembra? Aquele que passou pela gente uma vez na Estação quando a gente estava dando adeus para o Mangaratiba... Pois bem vou comprar um carrão lindo daqueles cheio de presente e só para você... Mas não chore que um rei não chora.
Meu peito explodiu numa mágoa enorme.
— Juro que vou comprar. Nem que tenha de matar e roubar...
Por dentro não era meu passarinho que comentava aquilo. Devia ser o coração.
Só assim mesmo. Por que o Menino Jesus não gosta de mim? Ele gosta até do boi e do burrinho do presépio. Mas de mim, não.
Ele se vingava porque eu era afilhado do diabo. Se vingava de mim, deixando de dar presente ao meu irmão. Mas Luís, não merecia isso, porque era um anjo. Nenhum anjinho do céu podia ser melhor do que ele...
Aí as lágrimas me desceram covardemente.
— Zezé, você está chorando...
— Passa logo. Mesmo eu não sou um rei, como você. Só sou uma coisa que não presta pra nada. Um menino muito malvado, bem malvado mesmo... Só isso.
— Totoca, você tem ido na casa nova?
— Não. Você tem ido?
— Sempre que posso dou um pulo lá.
— Mas por que tudo isso?
— Quero saber se Minguinho está bem.
— Que diabo é Minguinho?
— É o meu pé de Laranja Lima.
— Você arranjou um nome que se parece muito com ele. Você é danado para achar as coisas.
Riu e continuou a afinar o que seria o novo corpo do Raio de Luar.
— Como ele está?
— Não cresceu nada.
— E nem cresce se você fica espiando o tempo todo. Está ficando bonito? É assim que você queria o cabo?
— Era. Totoca por que você sabe fazer tudo, hem? Você faz gaiola, galinheiro, viveiro, cerca, cancela...
— Isso é porque nem todo mundo nasceu para ser poeta de gravata de laço. Mas se você quisesse mesmo aprendia.
— Acho que não. Para isso é preciso a pessoa ter “inclinação”.
Ele parou um instante e me olhou entre rindo e reprovando aquela possível novidade de Tio Edmundo.
Na cozinha, Dindinha tinha vindo para fazer rabanada molhada no vinho. Era a ceia de Natal. Era tudo.
Eu comentei para Totoca:
— E olhe lá. Tem gente que nem tem isso. Tio Edmundo foi quem deu o dinheiro para o vinho e para comprar as frutas da salada do almoço de amanhã.
Totoca estava fazendo o trabalho de graça porque soube a história do Cassino Bangu. Pelo menos Luís ia ganhar uma coisa. Uma coisa velha, usada, mas muito linda e que eu gostava muito.
— Totoca.
— Fale.
— Será que a gente não vai ganhar nada, nada, de Papai Noel?
— Acho que não.
— Diga sério, você acha que eu sou tão ruim, tão malvado como todo mundo diz?
— Malvado, malvado, não. O que acontece é que você tem o diabo no sangue.
— Quando chega o Natal eu queria tanto não ter! Eu gostava tanto que antes de morrer, uma vez na vida, nascesse o Menino Jesus em vez do Menino Diabo, pra mim.
— Quem sabe se ano que vem... Por que você não aprende e não faz como eu?
— E como é que você faz?
— Não espero nada. Assim a gente não fica desapontado. Mesmo o Menino Jesus não é essa coisa tão boa que todo mundo fala. Que o padre conta nem que o Catecismo diz...
Fez uma pausa e ficou indeciso se contava o resto do que pensava ou não.
— E como é então?
— Bem, vamos dizer que você foi muito levado, não mereceu. Mas Luís?
— É um anjo.
— E Glória?
— Também.
— E eu?
— Bem, você às vezes é... é... meio pegador das minhas coisas, mas é muito bonzinho.
— E Lalá?
— Bate com muita força, mas é boa. Um dia vai costurar minha gravata de laço.
— E Jandira?
— Jandira é daquele jeito, mas não é ruim.
— E Mamãe?
— Mamãe é muito boa; só me bate com pena e devagar.
— E Papai?
— Ah! Esse eu não sei. Ele nunca tem sorte. Eu acho que ele deve ter sido como eu, o ruim da família.
— Pois então. Todo mundo é bom na família. E por que o Menino Jesus não é bom pra gente? Vai na casa do Dr. Faulhaber e veja o tamanho da mesa cheia de coisas. Na casa dos Villas-Boas, também. Na casa do Dr. Adaucto Luz, nem se fala...
Pela primeira vez eu vi que Totoca estava quase chorando.
— Por isso que eu acho que o Menino Jesus só quis nascer pobre para se mostrar. Depois Ele viu que só os ricos é que prestavam... Mas não vamos mais falar disso. Pode ser até que o que eu falei seja um pecado muito grande.
Ele ficou tão abatido que nem quis mais conversar. Nem mesmo queria levantar os olhos do corpo do cavalo que alisava agora.
Foi uma ceia tão triste que nem dava vontade de pensar. Todo mundo comeu em silêncio e Papai só provou um pouco de rabanada. Não quisera fazer a barba nem nada. Nem foram à Missa do Galo. O pior era que ninguém falava nada com ninguém. Parecia mais o velório do Menino Jesus do que o nascimento.
Papai pegou o chapéu e saiu. Saiu mesmo de tamancos, sem dar até logo nem desejar felicidades. Acho que foi por isso que não deu boas-festas. Dindinha tirou o lencinho e limpou os olhos e pediu para ir embora com Tio Edmundo. Tio Edmundo botou uma pratinha de quinhentos réis na minha mão e outra na mão de Totoca. Talvez ele quisesse dar mais e não tinha. Talvez ele quisesse em vez de dar pra gente, estar dando para os seus filhos lá na cidade. Foi por isso que eu o abracei. Talvez o único abraço da noite de festas. Ninguém se abraçou ou quis dizer nada de bom. Mamãe foi para o quarto. Garanto que ela estava chorando escondido. E todos estavam com vontade de fazer o mesmo. Lalá foi deixar Tio Edmundo e Dindinha no portão e comentou quando eles se afastaram andando devagarzinho, devagarzinho.
— Parece que estão velhinhos demais para a vida e cansados de tudo...
O mais triste é que o sino da igreja encheu a noite de vozes felizes. E alguns foguetes se elevaram aos céus, para Deus espiar a alegria dos outros.
Quando voltamos para dentro, Glória e Jandira lavavam a louça usada e Glória tinha os olhos vermelhos como se tivesse chorado doído.
Disfarçou e disse para Totoca e eu:
— Está na hora de criança ir para a cama.
Ela falava isso e olhava para a gente. Ela sabia que naquele momento não havia criança mais ali. Todos eram grandes, grandes e tristes, ceando a mesma tristeza aos pedaços.
Talvez que a culpa de tudo tenha sido a luz do lampião meio mortiça que substituíra a luz que a Light mandara cortar.
Talvez.
Feliz era o Reizinho que dormia com o dedo na boca. Botei o cavalinho em pé, bem perto dele. Não pude evitar de passar as mãos de leve em seus cabelos. Minha voz era um rio imenso de ternura.
— Meu pequerrucho.
Quando toda a casa estava às escuras eu perguntei baixinho:
— Tava boa a rabanada, não estava Totoca?
— Nem sei. Não provei.
— Por quê?
— Fiquei com uma coisa entalada no gogó que não passava nada... Vamos dormir. O sono faz a gente esquecer tudo.
Eu me levantara e fazia barulho na cama.
— Onde você vai, Zezé?
— Vou botar meus ténis do lado de fora da porta.
— Não ponha, não. É melhor.
— Vou pôr, sim. Quem sabe, se não vai acontecer um milagre. Sabe, Totoca, eu queria um presente. Um só. Mas que fosse uma coisa novinha. Só pra mim...
Ele virou para o outro lado e enfiou a cabeça embaixo do travesseiro.
Mal acabei de acordar e chamei Totoca.
— Vamos ver? Eu digo que tem.
— Eu não iria ver.
— Pois eu vou. Abri a porta do quarto e os sapatinhos ténis estavam vazios para a minha decepção. Totoca aproximou-se limpando os olhos.
— Não falei?
Uma mistura de tudo criou-se na minha alma. Era ódio, revolta e tristeza. Sem poder me conter exclamei:
— Como é ruim a gente ter pai pobre!...
Desviei meus olhos do ténis para uns tamancos que estavam parados à minha frente.
Papai estava em pé nos olhando. Seus olhos estavam enormes de tristeza. Parecia que seus olhos tinham crescido tanto, mas crescido tanto que tomavam toda a tela do cinema Bangu. Havia uma mágoa dolorida tão forte nos seus olhos que se ele quisesse chorar não ia poder. Ficou um minuto que não acabava mais nos fitando, depois em silêncio, passou por nós.
Estávamos estatelados sem poder dizer nada. Ele apanhou o chapéu sobre a cómoda e foi de novo para rua. Só então Totoca me tocou no braço.
— Você é ruim, Zezé. Ruim como cobra. É por isso que...
Calou-se emocionado.
— Eu não vi que ele estava ali.
— Malvado. Sem coração. Você sabe que Papai está desempregado há muito tempo. Foi por isso que ontem eu não podia engolir, olhando o rosto dele. Um dia você vai ser pai e vai saber o quanto dói uma hora dessas.
Por mais, eu chorava.
— Mas eu não vi, Totoca, eu não vi...
— Sai de perto de mim. Você não presta pra nada mesmo. Suma!
Tive vontade de sair correndo pela rua e me agarrar chorando às pernas de Papai. Dizer que fora muito mau, muito mau mesmo. Mas continuava parado, sem saber o que fazer. Precisei me sentar na cama. E de lá espiava os sapatinhos ténis no mesmo canto, vazio de tudo. Vazio como o meu coração que flutuava sem governo.
— Por que fui fazer isso, meu Deus? Logo hoje. Porque eu tinha de ser mais malvado ainda quando tudo já estava tão triste. Com que cara eu vou olhar para ele na hora do almoço? Nem a salada de frutas vai conseguir descer.
E os olhos grandes dele, como tela de cinema, estavam grudados me olhando. Fechava os olhos e enxergava os olhos grandes, grandes...
Bati com o calcanhar na minha caixa de sapato e tive uma idéia. Talvez assim Papai me perdoasse toda a maldade.
Abri a caixa de Totoca e apanhei emprestado mais uma lata de graxa preta porque a minha estava no fim. Não falei com ninguém. Saí caminhando triste pela rua sem sentir o peso da caixinha. Parecia que eu estava caminhando sobre os olhos dele. Doendo dentro dos olhos dele.
Era muito cedo e todo mundo devia estar dormindo por causa da Missa e da Ceia. A rua estava cheia de crianças exibindo e comparando os brinquedos. Aquilo me abateu mais. Todos eram meninos bons. Nenhuma daquelas crianças nunca faria o que eu fiz.
Parei perto do “Miséria e Fome” esperando encontrar um freguês. O botequim estava aberto até nesse dia. Não era à toa que tinham posto aquele apelido nele.
Vinha gente de pijama, de chinelos, de tamanco, mas sapato mesmo nenhum.
Não tomara nem café e não sentia nenhuma fome. Minha dor era muito maior que qualquer fome. Andei até à Rua do Progresso. Rodei o Mercado. Sentei na calçada da padaria de seu Rozemberg e nada.
As horas foram se ligando às horas e eu não conseguia nada.
Mas tinha que conseguir. Tinha.
O calor aumentou e a correia da caixa doía no meu ombro, sendo preciso trocar a caixa de posição. Senti sede e fui beber na biquinha do Mercado.
Sentei no degrau da porta da Escola Pública que breve deveria me receber. Botei a caixa no chão e desanimei. Encostei a cabeça nos joelhos como um boneco e fiquei sem vontade de nada. Depois escondi o rosto entre os joelhos, cobrindo-o com os braços. Era melhor morrer do que voltar para casa sem o que pretendia.
Um pé bateu na minha caixa e uma voz conhecida e amiga me chamou.
— Eh seu engraxate, quem dorme não ganha dinheiro.
Suspendi o rosto sem acreditar. Era seu Coquinho, o porteiro do Cassino.
Colocou um pé e eu primeiro passei o pano. Depois molhei o sapato e enxuguei. Depois é que comecei a passar a graxa com cuidado.
— O senhor pode, por favor, levantar um pouco a calça.
Ele obedeceu ao pedido.
— Engraxando hoje, Zezé?
— Nunca precisei como hoje.
— E o Natal como foi?
— Foi regular.
Bati com a escova na caixa e ele trocou de pé.
Repeti a manobra e comecei então a lustrar. Quando acabei, bati na caixa e ele retirou o pé.
— Quanto, Zezé?
— Duzentos réis.
— Por que só duzentos réis? Todos cobram quatrocentos.
— Só quando eu for um bom engraxate mesmo é que posso cobrar tanto. Por enquanto, não.
Apanhou quinhentos réis e me deu.
— O senhor não quer pagar depois? Eu não fiz nada até agora.
— Fique com o troco pro Natal. Até logo.
— Boas-festas, seu Coquinho.
Talvez ele tivesse vindo engraxar por causa do que acontecera três dias antes...
O dinheiro no bolso me deu um certo ânimo que não durou muito; já passava de duas horas da tarde, gente trançava pelas ruas e nada. Ninguém, nem para tirar o pó e soltar um tostão.
Fiquei perto de um poste da Rio-São Paulo e soltava de vez em quando a minha voz fina.
— Graxa, freguês!
— Graxa, patrão. Graxa para ajudar o Natal dos pobres!
Um carro de rico parou perto. Eu aproveitei para gritar sem esperança alguma.
— Uma mãozinha, doutor. Só pra ajudar o Natal dos pobres!
A senhora bem vestida e os meninos atrás no carro ficaram me espiando, espiando. A senhora se comoveu.
— Coitadinho, tão pequeno e tão pobrezinho. Dê qualquer coisa a ele, Artur.
Mas o homem me analisou, desconfiado.
— Isso é malandrinho e dos vivos. Ele está se aproveitando do tamanho e do dia.
— Mesmo assim eu vou dar. Vem cá, menininho. Abriu a bolsa e esticou a mão pela janela.
— Não, senhora, obrigado. Eu não estou mentindo, não. Só quem precisa muito trabalha num dia de Natal.
Apanhei a caixa e coloquei no ombro e fui andando devagar.
Hoje não tinha nem mais força de ter raiva.
Mas a porta do carro abriu-se e um menininho desatou a correr para perto de mim.
— Tome, garoto. Mamãe mandou dizer que ela não acredita que você seja mentiroso, não. Botou mais quinhentos réis no meu bolso e nem esperou que agradecesse... Só ouvi o ronco do motor se afastando.
Quatro horas já tinham passado e eu continuava com os olhos de Papai me martirizando.
Fui procurando o caminho de volta. Dez tostões não davam, em todo caso podia ser que o Miséria e Fome me fizesse mais barato ou me permitisse pagar o resto outro dia.
Num canto de uma cerca uma coisa me chamou a atenção. Era uma meia preta e furada de mulher. Abaixei e apanhei. Rodei ela na mão e ela ficou fininha. Guardei a meia na caixa, pensando: “dá uma bela cobra”.
Mas briguei comigo mesmo. “Outro dia. Hoje, de jeito nenhum"...
Cheguei perto da casa dos Villas-Boas. A casa tinha um jardim grande e o chão era todo cimentado. Serginho rodava entre os canteiros numa bela bicicleta. Botei o rosto na grade espiando:
Era toda vermelha e com pedaços e riscos amarelos e azuis. O metal alumiava de brilhante. Serginho viu e ficou se exibindo para mim. Corria, fazia curvas, dava freada que chegava a chiar. Então se aproximou de mim.
— Gostou?
— É a bicicleta mais linda do mundo.
— Venha para perto do portão que você ainda vê melhor.
Serginho era da idade e da mesma aula que Totoca. Fiquei com vergonha dos meus pés descalços porque ele calçava uns sapatos de verniz, usava meia branca e ligas de elástico vermelho. O brilho do sapato refletia tudo. Até os olhos de Papai começaram a me olhar no brilho. Engoli em seco.
— Que foi, Zezé? Você está esquisito.
— Nada. De perto ela é mais bonita. Você ganhou de Natal?
— Ganhei.
Ele desceu da bicicleta para conversar melhor e abriu o portão.
— Ganhei foi coisa. Uma vitrola, três ternos, um monte de livros de histórias, caixa de lápis de cor das grandes. Uma caixa com todos os jogos, um avião que mexe a hélice. Dois barcos com vela branca...
Abaixei a cabeça e me lembrei do Menino Jesus que só gostava de gente rica como Totoca falara.
— Que foi, Zezé?
— Nada.
— E você... ganhou muita coisa?
Balancei a cabeça, negativamente, sem poder responder.
— Mas nada? Nada mesmo?
— Esse ano não houve Natal lá em casa. Papai ainda está desempregado.
— Não é possível. Vocês nem tiveram castanhas, avelãs, nem vinho?...
— Só rabanada que Dindinha fez e café. Serginho ficou pensativo.
— Zezé, se eu convidar, você aceita?
Estava adivinhando o que era. Mas mesmo sem ter comido nada não tinha vontade.
— Vamos lá dentro. Mamãe faz um prato para você. Tem tanta coisa, tanto doce...
Não me arriscava. Tinha sido muito judiado nesses dias. Por mais de uma vez já tinha escutado:
— “Já não lhe disse para não trazer moleque de rua para dentro de casa?”
— Não, muito obrigado.
— Está bem. E se eu pedir a Mamãe para fazer um pacote de castanhas e coisas para você levar para seu irmãozinho, você leva?
— Também não posso. Tenho que acabar de trabalhar.
Serginho só então descobriu a minha caixinha de engraxar onde me sentara.
— Mas ninguém engraxa no Natal...
— Eu passei o dia e só consegui ganhar dez tostões e assim mesmo cinco deram de esmola. Tenho que ganhar ainda dois tostões.
— Para quê, Zezé?
— Não posso contar. Mas preciso muito mesmo.
Ele sorriu e teve uma idéia generosa.
— Quer engraxar o meu? Eu lhe dou dez tostões.
— Também não posso. Eu não cobro dos amigos.
— E se eu lhe der, isto é, se eu lhe emprestar os duzentos réis?
— Posso demorar a pagar?
— Como você quiser. Pode até me pagar depois em bola de gude.
— Assim, sim. Ele meteu a mão no bolso e me deu um níquel.
— Não se incomode que eu ganhei muito dinheiro. Estou com o cofre cheinho.
Passei a mão na roda da bicicleta.
— Ela é linda mesmo.
— Quando você crescer e souber andar eu deixo dar uma volta, tá?
— Tá.
Saí em desabalada carreira para a venda do Miséria e Fome, chacoalhando a caixa de engraxate.
Entrei de furacão, com medo que ele já fosse fechar.
— O senhor tem ainda daquele cigarro caro?
Ele apanhou duas carteiras quando viu o dinheiro na palma de minha mão.
— Isto não é para você, é, Zezé?
Uma voz por trás falou:
— Que idéia! Um pequeno desse tamanho!
Sem se virar ele contestou.
— Porque você não conhece esse freguês. Esse danado é capaz de tudo.
— É para Papai.
Sentia uma felicidade enorme rolando as carteiras na palma da mão.
— Essa ou essa?
— Você é quem sabe.
— Passei o dia trabalhando para comprar este presente de Natal para Papai.
— Verdade, Zezé? E o que ele te deu?
— Nada, coitado. Ele está ainda desempregado, o senhor sabe.
Ele ficou emocionado e ninguém falou no bar.
— Qual o senhor gostava mais se fosse o senhor?
— As duas são lindas. E qualquer pai gostaria de receber um presente desse jeito.
— O senhor me embrulha essa, por favor. Ele embrulhou mas estava meio esquisito quando me deu o pacotinho. Parecia querer dizer uma coisa e não conseguia.
Dei o dinheiro e sorri.
— Obrigado, Zezé.
— Boas-festas para o senhor!...
Corri de novo até em casa. A noite tinha chegado também. Havia a luz acesa do lampião apenas na cozinha. Todos tinham saído, mas papai estava sentado na mesa olhando o vazio da parede.
Apoiava o rosto na palma da mão e o cotovelo na mesa.
— Papai.
— O que é, meu filho?
Não havia rancor nenhum em sua voz.
— Onde você andou o dia todo?
Mostrei a caixa de engraxar.
Coloquei a caixa no chão e meti a mão no bolso tirando o pacotinho.
— Veja, Papai, comprei uma coisa linda para o senhor.
Ele sorriu compreendendo o quanto custara aquilo.
— O senhor gosta? Era a mais bonita.
Ele abriu a carteira e cheirou o fumo, sorrindo, mas não conseguia dizer nada.
— Fume um, Papai. Fui até ao fogão apanhar um fósforo.
Risquei um e aproximei do cigarro em sua boca.
Me afastei para assistir a sua primeira tragada. E foi me dando uma coisa. Joguei o fósforo apagado no chão. E senti que estava estourando. Rebentando todo por dentro. Rebentando aquela dor tão grande que passara o dia ameaçando.
Olhei Papai. O seu rosto barbado, os seus olhos. Só pude falar.
— Papai... Papai...
E a voz foi sendo consumida pelas lágrimas e soluços. Ele abriu os braços e estreitou-me ternamente.
— Não chore, meu filho. Você vai ter muito que chorar pela vida, se continuar um menino assim tão emotivo...
— Eu não queria, Papai... Eu não queria dizer... aquilo.
— Eu sei. Eu sei. Não fiquei zangado porque no fundo você tinha razão.
Me embalou, um pouco mais.
Depois levantou o meu rosto e enxugou-o com o pano de prato que estava jogado perto.
— Assim é melhor.
Suspendi as minhas mãos e alisei o seu rosto. Passei os dedos de leve sobre os seus olhos tentando colocá-los no lugar, sem aquela tela grande.
Tinha medo que se não o fizesse, aqueles olhos iriam me seguir a vida inteira.
— Vamos acabar o meu cigarro. Ainda com a voz tolhida de emoção gaguejei.
— Sabe, Papai, quando o senhor quiser me bater nunca mais eu vou reclamar... Pode me bater mesmo...
— Está bem. Está bem, Zezé.
Depositou a mim e o resto dos meus soluços no chão. Apanhou no armário um prato.
— Glória guardou um pouco de salada de frutas para você.
Eu não conseguia engolir. Ele sentou-se, foi levando pequenas colheradas à minha boca.
— Agora passou, não passou, meu filho?
Fiz que sim com a cabeça mas as primeiras colheres entravam na boca com gosto salgado. O resto do meu choro que custava a passar.
O passarinho, a escola e a flor
CASA NOVA. Vida nova e esperanças simples, simples esperanças.
Lá vinha eu entre seu Aristides e o ajudante, no alto da carroça, alegre como o dia quente.
Quando ela saiu da rua descalça e entrou na Rio-São Paulo foi aquela maravilha, a carroça agora deslizava macia e gostosa.
Passou um carro lindo ao nosso lado.
— Lá vai o carro do português Manuel Valadares. Quando íamos atravessando a esquina da Rua dos Açudes, um apito ao longe encheu a manhã.
— Olhe seu Aristides. Lá vai o Mangaratiba.
— Sabe tudo você, não?
— Conheço o grito dele. Só as patas dos cavalos fazendo o toque-toque na estrada. Observei que a carroça não era muito nova. Ao contrário. Mas era firme, económica. Com mais duas viagens traria todos os nossos cacarecos. O burro não parecia muito firme. Mas eu resolvi agradar.
— O senhor tem uma carroça muito linda, seu Aristides.
— Dá pro que serve.
— E o burro também é bonito. Como se chama ele?
— Cigano.
Ele não queria muito conversar.
— Hoje é um dia feliz pra mim. A primeira vez que eu ando de carroça. Encontrei o carro do Português e escutei o Mangaratiba.
Silêncio. Nada.
— Seu Aristides, o Mangaratiba é o trem mais importante do Brasil?
— Não. É o mais importante dessa linha.
Não adiantava mesmo. Como era às vezes difícil entender gente grande!
Quando chegamos defronte da casa, entreguei a chave a ele e tentei ser cordial...
— O senhor quer que eu ajude em alguma coisa?
— Só ajuda se não ficar em cima da gente atrapalhando. Vá brincar, que a gente chama você quando voltar.
Peguei e fui.
— Minguinho, agora a gente vai viver sempre perto um do outro. Vou enfeitar você de tão bonito que nenhuma árvore pode chegar a seus pés. Sabe, Minguinho, eu viajei agora numa carroça tão grande e macia que parecia uma diligência daquelas das feitas de cinema. Olhe, tudo que eu souber, venho contar a você, tá?
Cheguei perto do capinzal do valão e olhei a água suja escorrendo.
— Como foi que combinamos noutro dia que esse rio ia se chamar?
— Amazonas.
— É mesmo. Amazonas. Ele lá pra baixo deve estar cheio de canoa de índio selvagem, não tá Minguinho?
— Nem me fale. Só pode estar mesmo.
Nem bem a gente entrosava a conversa e lá estava seu Aristides fechando a casa e me chamando.
— Você fica ou vai com a gente?
— Vou ficar. Mamãe e minhas irmãs já devem vir vindo pela rua.
E fiquei estudando cada coisa de cada canto.
No começo, por cerimónia ou porque queria impressionar aos vizinhos, me comportava bem. Mas uma tarde recheei a meia preta de mulher. Enrolei ela num barbante e cortei a ponta do pé. Depois onde tinha sido o pé peguei uma linha bem comprida de papagaio e amarrei. De longe, puxando devagarzinho parecia uma cobra e no escuro ela ia fazer sucesso.
De noite todo mundo tratava de sua vida. Parecia que a casa nova mudara o espírito de todos. Havia uma alegria na família que não se via há muito tempo.
Fiquei quietinho no portão esperando. A rua vivia da pouca iluminação dos postes e as cercas de altos crótons criavam sombras pelos cantos. Devia ter gente fazendo serão na Fábrica e o serão não ia além das oito horas. Dificilmente passava das nove. Pensei na Fábrica um momento. Não gostava dela. O seu apito triste de manhã tornava-se mais feio às cinco horas. A Fábrica era um dragão que todo dia comia gente e de noite vomitava o pessoal muito cansado. Não gostava ainda porque Mister Scottfield fizera aquilo com Papai...
Pronto! Lá vinha uma mulher. Trazia uma sombrinha debaixo do braço e uma bolsa pendurada na mão. Dava até para ouvir o barulho do tamanco batendo os saltos na rua.
Corri a me esconder no portão e experimentei o puxador da cobra. Ela obedeceu. Estava perfeita. Então eu me escondi bem escondidinho atrás da sombra da cerca e fiquei com o puxador entre os dedos. O tamanco vinha perto, vinha perto, mais perto ainda e zúquete! Comecei a puxar a linha da cobra. Ela deslizou devagar no meio da rua.
Só que eu não esperava aquilo. A mulher deu um grito tão grande que acordou a rua. Jogou a bolsa e a sombrinha pro alto e apertou a barriga sem deixar de berrar.
— Socorro! Socorro!... Uma cobra, minha gente. Me acudam.
As portas se abriram e eu soltei tudo, disparei pelo lado da casa, entrei na cozinha. Destampei depressa o cesto de roupa suja e me meti dentro cobrindo o cesto com a tampa. Meu coração batia assustado e continuava ouvindo os gritos da mulher.
— Ai, meu Deus, que eu vou perder o meu filho de seis meses.
Aí eu já não fiquei só arrepiado, comecei a tremer. Os vizinhos levaram ela para dentro e os soluços e as queixas continuavam.
— Não me aguento, não me aguento. E logo cobra que eu tenho pavor.
— Tome um pouco de água de flor de laranjeira. Acalma. Fique calma porque os homens foram atrás da cobra com pedaços de pau, machado e um lampião para alumiar.
Que confusão danada por causa de uma cobrinha de pano! Mas o pior é que o povo lá de casa também tinha ido espiar.
Jandira, Mamãe e Lalá.
— Mas não é cobra, minha gente. É uma meia velha de mulher.
No meu medo esqueci de retirar a “cobra”. Estava frito.
Atrás da cobra tinha a linha e a linha vinha de dentro do quintal.
Três vozes conhecidas falaram ao mesmo tempo:
— Foi ele!
A caçada agora não era da cobra. Olharam debaixo das camas. Nada. Passaram perto de mim, e eu nem respirava. Foram do lado de fora espiar na casinha.
Jandira teve uma idéia.
— Eu acho que já sei!
Levantou a tampa do cesto e eu fui erguido pelas orelhas até a sala de jantar.
Mamãe me bateu duro dessa vez. O chinelo cantou e eu tive mesmo que berrar para diminuir a dor e ela parar de me bater.
— Pestezinha! Você não sabe como é duro carregar um filho de seis meses na barriga.
Lalá comentou irónica:
— Estava demorando muito ele estrear a rua!
— Agora, para a cama, seu danado.
Saí coçando a bunda e me deitei de bruços. Sorte foi Papai ter ido jogar manilha.
Fiquei no escuro engolindo o resto do choro e achando que a cama era a coisa melhor para sarar uma surra.
Levantei cedo no dia seguinte. Tinha duas coisas muito importantes para fazer: Primeiro dar uma espiada como quem não quer. Se a cobra estivesse ainda por lá, apanhava ela e escondia dentro da camisa. Eu ainda podia usar ela em outro lugar. Mas não estava. Ia ser duro encontrar outra meia que ficasse tão cobra como aquela.
Virei as costas e fui andando para a casa de Dindinha.
Precisava falar com Tio Edmundo.
Entrei lá sabendo que ainda era cedo para a sua vida de aposentado. Portanto ele não tinha saído para jogar no bicho, fazer a fezinha, como dizia, e comprar os jornais.
De fato, ele estava na sala fazendo uma paciência nova.
— A bênção, Titio!
Não respondeu. Estava fingindo de surdo.
Lá em casa todo mundo dizia que ele gostava de fazer assim quando não interessava a conversa.
Comigo não tinha disso, não. Aliás (como eu gostava da palavra aliás) comigo nunca ele era muito surdo mesmo. Puxei a manga da camisa e achei como sempre bonito o suspensório de xadrez branco e preto.
— Ah! É você...
Estava fingindo que não me vira.
— Como é o nome dessa paciência, Titio?
— É a do Relógio.
— É bem bonita. Eu já conhecia todas as cartas do baralho. Só que não gostava muito era do valete. Não sei porque eles tinham jeito de empregados do Rei.
— Sabe, Titio, eu vim falar um negócio com o senhor.
— Estou acabando, quando acabar nós conversamos.
Mas logo, logo, ele misturou todas as cartas.
— Acertou?
— Não.
Fez um montinho do baralho e deixou ele de lado.
— Bem, Zezé, se esse negócio é “negócio” de dinheiro — esfregou os dedos — estou pronto.
— Nem um tostãozinho para bola de gude?
Ele sorriu.
— Um tostãozinho pode ser; quem sabe?
Ia meter a mão no bolso mas eu interrompi.
— Estou brincando, Titio, não é isso.
— Então o quê?
Sentia que ele se deliciava com as minhas “precocidades” e depois que eu li sem aprender, as coisas melhoraram muito.
— Eu queria saber uma coisa muito importante. O senhor é capaz de cantar sem estar cantando?
— Não estou entendendo bem.
— Assim — e cantei uma estrofe da Casinha Pequenina.
— Mas você está cantando, não está?
— Pois aí é que está. Eu posso fazer tudo isso por dentro sem cantar por fora.
Ele riu da singeleza mas não sabia aonde eu queria chegar.
— Olhe, Titio, quando eu era pequenininho eu achava que tinha um passarinho aqui dentro e que cantava. Era ele que cantava.
— Pois então. É uma maravilha que você tenha um passarinho assim.
— O senhor não entendeu. É que agora eu ando meio desconfiado com o passarinho. E quando eu falo e vejo por dentro?
Ele entendeu e riu da minha confusão.
— Vou explicar para você, Zezé. Sabe o que é isso? Isso significa que você está crescendo. E crescendo, essa coisa que você diz que fala e vê, chama-se o pensamento. O pensamento é que faz aquilo que uma vez eu disse que você teria logo...
— A idade da razão?
— Bom que você se lembre. Então acontece uma maravilha. O pensamento cresce, cresce e toma conta de toda a nossa cabeça e nosso coração. Vive em nossos olhos e em tudo que é pedaço da vida da gente.
— Sei. E o passarinho?
— O passarinho foi feito por Deus para ajudar as criancinhas a descobrirem as coisas. Depois então quando o menino não precisa mais, ele devolve o passarinho a Deus. E Deus coloca ele em outro menininho inteligente como você. Não é bonito?
Eu ri, feliz, porque estava tendo um “pensamento”.
— É. Agora vou embora.
— E o tostãozinho?
— Hoje não. Vou ficar muito ocupado.
Saí pela rua pensando em tudo. Mas eu estava lembrando uma coisa que me deixava muito triste. Totoca tinha um coleirinho muito lindo. Mansinho que subia no dedo dele quando mudava o alpiste. Podia até deixar a porta aberta que ele não fugia. Um dia Totoca esqueceu ele de fora no sol. E o sol quente matou ele. Me lembrava de Totoca com ele na mão, chorando, chorando e encostando o passarinho morto no rosto.
Aí ele dizia:
— Nunca mais, nunca mais eu prendo um passarinho. Eu estava junto e disse:
— Totoca, eu também nunca vou prender.
Cheguei em casa e fui direito a Minguinho.
— Xururuca, vim fazer uma coisa.
— O que é?
— Vamos esperar um pouco?
— Vamos.
Sentei e encostei minha cabeça no seu tronquinho.
— Que é que nós vamos esperar, Zezê?
— Que passe uma nuvem bem bonita no céu.
— Pra quê?
— Vou soltar o meu passarinho. Vou, sim. Não preciso mais dele...
Ficamos olhando o céu.
— É aquela, Minguinho?
A nuvem vinha andando devagar, bem grande, como se fosse uma folha branca toda recortada.
— É aquela, Minguinho.
Levantei emocionado e abri a camisa.
Senti que ele ia saindo do meu peito magro.
— Voa, meu passarinho. Bem alto. Vá subindo e pouse no dedo de Deus. Deus vai levar você para outro menininho e você vai cantar bonito como sempre cantou para mim. Adeus, meu passarinho lindo!
Senti um vazio por dentro que não acabava mais.
— Olhe, Zezé. Ele pousou no dedo da nuvem.
— Eu vi.
Encostei minha cabeça no coração de Minguinho e fiquei olhando a nuvem ir-se embora.
— Eu nunca fui malvado com ele...
Aí virei o meu rosto contra o seu galho.
— Xururuca.
— Que foi?
— Fica feio se eu chorar?
— Nunca é feio chorar, bobo. Por quê?
— Não sei, ainda não me acostumei. Parece que aqui dentro a minha gaiola ficou vazia demais...
Glória me chamara muito cedo.
— Deixe ver as unhas. Mostrei as mãos e ela aprovou.
— Agora as orelhas.
— Ih! Zezé. Me levou no tanque, molhou um pano com sabão e foi esfregando a minha sujeira.
— Nunca vi uma pessoa dizer que é um guerreiro Pinagé e viver sempre sujinho! Vá se calçando que eu procuro uma roupinha decente pra você.
Foi na minha gaveta e remexeu. E remexeu mais. E quanto mais remexia menos achava. Todas as minhas calcinhas ou eram furadas, rasgadas, remendadas ou cerzidas.
— Não precisava nem contar para ninguém. Só vendo essa gaveta a pessoa descobria o menino terrível que você é. Vista essa, está menos ruim.
E fomos nós embora para a descoberta “maravilhosa” que eu ia fazer.
Chegamos perto da Escola e uma porção de gente levava menino pela mão para matricular.
— Não vá fazer papel triste e nem esquecer de nada, Zezé.
Ficamos sentados numa sala cheia de meninos e todos espiavam uns para os outros. Até que veio a nossa vez e entramos na sala da directora.
— Seu irmãozinho?
— Sim, senhora. Mamãe não pode vir porque trabalha na cidade.
Ela me olhou bastante e os olhos dela ficavam grandes e pretos porque os óculos eram muito grossos. Gozado é que ela tinha bigode de homem. Por isso é que ela devia ser directora.
— Ele não é muito pequenininho?
— É franzino pra idade. Mas já sabe ler.
— Que idade você tem, menino?
— Dia vinte e seis de fevereiro fiz seis anos, sim, senhora.
— Muito bem. Vamos fazer a ficha. Primeiro a filiação.
Glória deu o nome de Papai. Quando chegou o nome de Mamãe ela falou só: Estefânia de Vasconcelos. Eu não aguentei e soltei a minha correcção.
— Estefânia Pinagé de Vasconcelos.
— Como é?
Glória ficou meio corada.
— É Pinagé. Mamãe é filha de índios. Fiquei todo orgulhoso porque eu devia ser o único que tinha nome de índio naquela Escola.
Depois Glória assinou um papel e ficou parada, indecisa.
— Mais alguma coisa, moça?
— Eu queria saber a respeito dos uniformes... A senhora sabe... Papai está desempregado e somos bastante pobres.
E aquilo foi comprovado quando ela mandou que eu desse uma volta para ver o meu tamanho e número e acabou vendo os meus remendos.
Escreveu um número num papel e mandou a gente lá dentro procurar Dona Eulália.
Dona Eulália também se admirou com o meu tamanho e o menor número que tinha, me fazia parecer um pinto calçudo.
— O único é esse, mas está grande. Que menino miudinho!...
— Eu levo e encurto.
Saí todo contente com dois uniformes de presente. Imagine a cara de Minguinho quando me visse de roupa nova e de aluno.
Com o passar dos dias eu contava tudo para ele. Como era, como não era.
— Tocam um sino grande. Mas não é grande assim como o da igreja. Você sabe, não? Todo mundo entra no pátio grande e procura o lugar que tem a sua professora. Bem aí ela faz a gente fazer fila de quatro e vai tudo que nem carneirinho para dentro da aula. A gente se senta numa carteira que tem uma tampa que abre e fecha e guarda tudo dentro. Vou ter que aprender uma porção de hino, porque a professora disse que para ser bom brasileiro e “patriota” a gente tinha que saber o hino da nossa terra. Quando aprender eu canto, viu Minguinho?...
E vieram as novidades. As brigas. As descobertas de um mundo onde tudo era novo.
— Menina, onde é que você vai com essa flor?
Ela era limpinha e trazia na mão o livro e o caderno encapados. Usava duas trancinhas.
— Levo pra minha professora.
— Por quê?
— Porque ela gosta. E toda aluna aplicada leva uma flor para a professora.
— Menino também pode levar?
— Gostando da professora, pode.
— Ah! é?
Ninguém tinha levado uma flor sequer para minha professora D. Cecília Paim. Devia ser porque ela era feia. Se ela não tivesse uma pintinha no olho, não era tão feia. Mas era a única que dava um tostão pra para comprar sonho recheado no doceiro de vez em quando, quando chegava o recreio.
Comecei a reparar nas outras aulas e todos os copos sobre a mesa tinham flores. Só o copo da minha continuava vazio.
Mas aventura maior foi aquilo.
— Sabe, Minguinho, hoje apanhei um morcego.
— O tal do Luciano que você disse que vinha morar aqui nos fundos?
— Não, bobinho. Morcego de andar. A gente pega os carros que passam bem devagar perto da Escola e gruda no pneu que tem atrás. E vai viajando que é uma beleza. Quando chega na esquina que ele vai entrar, na paradinha para ver se vem outro carro a gente pula. Mas pula com cuidado. Porque se saltar na velocidade achata a bunda no chão e rela os braços.
E ficava tagarelando tudo que acontecia na aula e no recreio para ele. Só vendo como ele ficou inchado de orgulho quando contei que na aula de leitura, D. Cecília Paim disse que eu era quem melhor lia. O melhor “leitureiro”. Aí fiquei com as minhas dúvidas e resolvi que na primeira oportunidade ia perguntar a Tio Edmundo se era leitureiro mesmo.
— Mas falando de novo no morcego, Minguinho. Pra você ter uma idéia de como é, é quase tão bom como andar a cavalo em você.
— Mas comigo você não corre perigo.
— Não corre, é? E quando você galopa, que nem louco, pelas campinas do Oeste quando a gente vai caçar bisão e búfalos? Esqueceu?
Ele teve que concordar porque nunca sabia discutir comigo e ganhar.
— Mas tem um, Minguinho. Tem um que ninguém teve coragem de pegar. Sabe qual é? Aquele carrão do Português, Manuel Valadares. Você já viu nome mais feio do que esse? Manuel Valadares...
— É, sim. Mas eu estou pensando uma coisa.
— Pensa que não sei o que você está pensando? Sei, sim. Mas por enquanto não. Deixe eu treinar mais... Que eu me arrisco...
E os dias foram se passando naquela alegria toda. Uma manhã apareci com uma flor para minha professora. Ela ficou muito emocionada e disse que eu era um cavalheiro.
— Sabe o que é, Minguinho?
— Cavalheiro é uma pessoa muito bem-educada parecida com um príncipe.
E todos os dias fui tomando gosto pelas aulas e me aplicando cada vez mais. Nunca viera uma queixa contra mim de lá.
Glória dizia que eu deixava o meu diabinho guardado na gaveta e virava outro menino.
— Você acha que eu viro, Minguinho?
— Parece que acho.
— É assim, pois eu ia lhe contar um segredo e não conto.
Saí emburrado com ele. Mas ele nem ligou muito porque sabia que a minha zanga não durava nada.
O segredo ia acontecer de noite e meu coração quase saía do peito de ansiedade. Custou a Fábrica apitar e povo passar. Os dias de verão demoravam a carregar noite. Até a hora da comida não chegava. Fiquei no portão vendo as coisas sem idéia de cobra nem nada. Fiquei sentadinho esperando Mamãe. Até Jandira estranhou e perguntou se eu estava com dor de barriga por ter comido fruta verde.
O vulto de Mamãe apareceu na esquina. Era ela. Ninguém no mundo se parecia com ela. Levantei de um pulo e corri.
— A bênção, Mamãe. Beijei a mão dela. Até na rua mal iluminada eu via que o rosto dela estava cansado.
— Trabalhou muito hoje, Mamãe?
— Muito, meu filho. Fazia um calor dentro do tear que ninguém aguentava.
— Me dê a sacola; a senhora está cansada.
Comecei a carregar a sacola com a marmita vazia dentro.
— Muita arte hoje?
— Pouquinho, Mamãe.
— Por que você veio me esperar?
Ela estava adivinhando.
— Mamãe, a senhora gosta pelo menos um bocadinho de mim?
— Gosto de você como gosto dos outros. Por quê?
— Mamãe, a senhora conhece o Nardinho? Aquele que é sobrinho da Pata Choca?
Ela riu.
— Me lembro.
— Sabe, Mamãe. A mãe dele fez um terninho para ele, lindo. É verde com risquinha branca. Tem um coletinho que abotoa no pescoço. Mas ficou pequeno pra ele. E ele não tem irmão pequeno pra aproveitar. E ele disse que queria vender... A senhora compra?
— Ih! meu filho! As coisas estão tão difíceis!
— Mas ele vende de duas vezes. E não é caro. Não paga nem o feitio.
Estava repetindo as frases de Jacob prestamista. Ela guardava silêncio, fazendo contas.
— Mamãe eu estou sendo o aluno mais estudioso da minha aula. A professora diz que vou ganhar distinção... Compre, Mamãe. Eu não tenho uma roupinha nova faz muito tempo...
Mas o silêncio dela chegava até a angustiar.
— Olhe, Mamãe, se não for esse, nunca vou ter minha roupa de poeta. Lalá faz uma gravata assim de laço grande de um pedaço de seda que ela já tem...
— Está bem, meu filho. Eu vou fazer uma semana de serão e compro a sua roupinha.
Aí eu beijei a mão dela e fui andando encostando o rosto em sua mão até dentro de casa.
Foi assim que eu ganhei minha roupa de poeta. Fiquei tão lindo que Tio Edmundo me levou para tirar um retrato.
A escola. A flor. A flor. A escola... Tudo ia muito bem quando Godofredo entrou na minha aula. Pediu licença e foi falar com D. Cecília Paim. Só sei que ele apontou a flor no copo. Depois saiu. Ela olhou para mim com tristeza.
Quando terminou a aula, me chamou.
— Quero falar uma coisa com você, Zezé. Espere um pouco.
Ficou arrumando a bolsa que não acabava mais. Se via que não estava com vontade nenhuma de me falar e procurava a coragem entre as coisas. Afinal se decidiu.
— Godofredo me contou uma coisa muito feia de você, Zezé. É verdade?
Balancei a cabeça afirmativamente.
— Da flor? É, sim, senhora.
— Como é que você faz?
— Levanto mais cedo e passo no jardim da casa do Serginho. Quando o portão está só encostado, eu entro depressa e roubo uma flor. Mas lá tem tanta que nem faz falta.
— Sim. Mas isso não é direito. Você não deve fazer mais isso. Isso não é um roubo, mas já é um furtinho.
— Não é não, D. Cecília — O mundo não é de Deus? Tudo que tem no mundo não é de Deus? Então as flores são de Deus também...
Ela ficou espantada com a minha lógica.
— Só assim que eu podia, professora. Lá em casa não tem jardim. Flor custa dinheiro... E eu não queria que a mesa da senhora ficasse sempre de copo vazio.
Ela engoliu em seco.
— De vez em quando a senhora não me dá dinheiro para comprar um sonho recheado, não dá?...
— Poderia lhe dar todos os dias. Mas você some...
— Eu não podia aceitar todos os dias...
— Por quê?
— Porque tem outros meninos pobres que também não trazem merenda.
Ela tirou o lenço da bolsa e passou disfarçadamente nos olhos.
— A senhora não vê a Corujinha?
— Quem é a Corujinha?
— Aquela pretinha do meu tamanho que a mãe enrola o cabelo dela em coquinhos e amarra com cordão.
— Sei. A Dorotília.
— É, sim, senhora. A Dorotília é mais pobre do que eu. E as outras meninas não gostam de brincar com ela porque é pretinha e pobre demais. Então ela fica no canto sempre. Eu divido o sonho que a senhora me dá, com ela.
Dessa vez ela ficou com o lenço parado no nariz muito tempo.
— A senhora de vez em quando, em vez de dar para mim, podia dar para ela. A mãe dela lava roupa e tem onze filhos. Todos pequenos ainda. Dindinha, minha avó, todo sábado dá um pouco de feijão e de arroz para ajudar eles. E eu divido o meu sonho porque Mamãe ensinou que a gente deve dividir a pobreza da gente com quem é ainda mais pobre.
As lágrimas estavam descendo.
— Eu não queria fazer a senhora chorar. Eu prometo que não roubo mais flores e vou ser cada vez mais um aluno aplicado.
— Não é isso, Zezé. Venha cá. Pegou as minhas mãos entre as dela.
— Você vai prometer uma coisa, porque você tem um coração maravilhoso, Zezé.
— Eu prometo, mas não quero enganar a senhora. Eu não tenho um coração maravilhoso. A senhora diz isso porque não me conhece em casa.
— Não tem importância. Pra mim você tem. De agora em diante não quero que você me traga mais flores. Só se você ganhar alguma. Você promete?
— Prometo, sim senhora. E o copo? Vai ficar sempre vazio?
— Nunca esse copo vai ficar vazio. Quando eu olhar para ele vou sempre enxergar a flor mais linda do mundo. E vou pensar: quem me deu essa flor foi o meu melhor aluno. Está bem?
Agora ela ria. Soltou minhas mãos e falou com doçura.
— Agora pode ir, coração de ouro...
Numa cadeia eu hei de ver-te morrer
A PRIMEIRA COISA e muito útil que a gente aprendera na Escola, eram os dias da semana. E dono dos dias da semana, eu sabia que “ele” vinha na terça-feira. Depois descobri também que ele uma terça-feira ia para as ruas do outro lado da Estação e na outra, vinha para o nosso lado.
Foi por isso que nessa terça-feira eu gazeteei a aula. Nem queria que Totoca soubesse; senão teria que pagar bolas de gude para ele não contar em casa. Como era cedo e ele deveria aparecer quando o relógio da igreja batesse nove horas, eu fui dar uma volta pelas ruas.
Ruas sem perigo, é claro. Primeiro parei na Igreja e dei uma olhada nos santos. Sentia um certo medo de ver as imagens paradas, cheias de vela. As velas piscando faziam o santo piscar também. Não sabia ainda se era muito bom ser santo e ficar o tempo todo parado, parado.
Dei uma volta pela sacristia e seu Zacarias estava tirando as velas velhas dos castiçais e colocando as novas. Juntava um bando de toquinho em cima da mesa.
— Bom dia, seu Zacarias.
Ele parou, colocou os óculos na ponta do nariz, fungou, desvirou-se e respondeu:
— Bom dia, menino.
— O senhor quer que eu ajude?
Meus olhos devoravam os toquinhos de vela.
— Só se você quiser atrapalhar. Não foi pra aula hoje?
— Fui. Mas a professora não veio. Ficou com dor de dente.
— Ah!
Aí ele tornou a se desvirar e colocar os óculos na ponta do nariz.
— Que idade você tem menino?
— Cinco. Não, seis. Seis não, cinco mesmo.
— Afinal cinco ou seis?
Pensei na Escola e menti.
— Seis.
— Pois com seis anos já está bom de começar o Catecismo.
— E eu posso?
— Por que não? É só vir toda quinta-feira às três horas da tarde. Quer vir?
— Depende. Se o senhor me der os toquinhos de vela, eu venho.
— Para que você quer toco de vela?
O diabo já me cutucara uma coisa. Menti de novo.
— É pra encerar a linha do meu papagaio e ela fica forte.
— Então leve.
Reuni os toquinhos e meti no meio da sacola com os cadernos e as bolas de gude. Estava delirante.
— Muito obrigado, seu Zacarias.
— Olhe lá, hem? Quinta-feira.
Saí voando. Como era cedo dava tempo de fazer aquilo. Corri para defronte do Cassino e quando não vinha ninguém, atravessei a rua e passei o mais depressa possível os toquinhos de cera na calçada. Depois voltei correndo e fui esperar sentado na calçada de uma das quatro portas fechadas do Cassino. Queria ver de longe, quem ia escorregar primeiro.
Já estava quase desanimado de esperar. Subitamente, pluft!
Meu coração deu um pulo, Dona Corinha, mãe de Nanzeazena, saiu com um lenço e um livro no portão e começou a dirigir-se para a igreja.
— Virgem!
Logo ela que era amiga de minha mãe e Nanzeazena amiga íntima de Glória. Nem queria ver. Abri num carreirão para a esquina e parei para olhar. Ela se tinha esborrachado no chão e xingava.
Juntou gente para ver se ela se machucara, mas pelo jeito de xingar ela devia ter só ralado um pouquinho.
— São esses moleques sem-vergonha que andam por aí.
Respirei aliviado. Mas não tão aliviado que deixasse de perceber que uma mão por trás me segurou a sacolinha.
— Aquilo foi coisa sua, não foi, Zezé?
Seu Orlando-Cabelo-de-Fogo. Logo ele que fora nosso vizinho tanto tempo. Perdi a fala.
— Foi ou não foi?
— O senhor não conta lá em casa?
— Não vou contar. Mas venha cá, Zezé. Dessa vez passa porque aquela velha é muito linguaruda. Mas não torne a fazer isso que alguém pode quebrar uma perna.
Fiz a cara mais obediente do mundo e ele me soltou. Voltei a rondar o Mercado, esperando que ele chegasse. Antes passei na confeitaria de seu Rozemberg, sorri e falei para ele:
— Bom dia, seu Rozemberg.
Ele deu um bom dia seco, e nada de dar doce. Filho da puta! Só dava mesmo quando eu estava com Lalá.
— Pronto, lá vai ele.
Nessa hora o relógio bateu as pancadas das nove horas. Ele nunca falhava. Fui seguindo os seus passos a distância. Ele entrou na Rua do Progresso e parou quase na esquina. Depositou a sacola no chão e jogou o paletó sobre o ombro esquerdo. Ah que linda camisa de xadrez! Quando eu ficar homem só vou usar camisa assim. E ainda por cima ele tinha um lenço vermelho no pescoço e o chapéu caído para trás. Aí ele meteu a voizona grossa que encheu a rua de alegria.
— Se chegue, minha gente! As novidade do dia!
A sua voz de baiano era linda também.
— Os sucessos da semana. Claudionor!... Perdão... A última rhúsica do Chico Viola. O último sucesso de Vicente Celestino. Aprenda minha gente que é a última moda.
Aquela maneira bonita de falar as palavras quase cantando me deixava fascinado.
Eu queria que cantasse era Fanny. Ele sempre cantava e eu queria aprender. Quando chegava no pedaço de “Numa cadeia eu hei de ver-te morrer"... Ficava até arrepiado de tanta beleza. Ele abriu o vozeirão e cantou o Claudionor.
“Eu fui a um samba lá no morro da Mangueira
Uma cabrocha me chamou de tal maneira...
Eu não vou lá, tenho medo de apanhar.
Seu marido é muito forte. É capaz de me matar...
Não vou fazer como fez o Claudionor
Para sustentar família, foi bancar o estivador"...
Parava e anunciava.
— Folhetos de todos os preços, desde um tostão a quatrocentos réis. Sessenta cantigas novas! Os últimos tangos.
Aí chegou a minha felicidade. FANNY.
“Aproveitaste ela estar assim sozinha
E não ter tempo de chamar uma vizinha...
Apunhalaste sem ter dó nem compaixão,
(Então sua voz ficava suave, doce, terna de cortar o coração mais duro).
A pobre, pobre Fanny que tinha bom coração.
Por Deus eu juro que também hás de sofrer...
Numa CADEIA EU HEI DE VER-TE MORRER
Apunhalaste sem ter dó nem compaixão
A pobre, pobre Fanny que tinha bom coração”.
Gente saía das casas e comprava um folheto, não antes sem examinar o que mais agradasse. Vai dai que eu já estava grudado nele por causa da Fanny.
Virou-se para mim com um sorriso enorme.
— Quer um, menino?
— Não, senhor. Não tenho dinheiro.
— Logo vi.
Pegou a sua sacola e andou mais gritando pela rua.
— A valsa Perdão! “Fumando, espero” e “Adeus, rapazes”, os tangos mais cantados ainda que “Noite de Reis”. Na cidade só se canta esse tango... “Luz celestial”, uma lindeza de coisa.
Vejam que letra!
E abria o peito.
“Tens no teu olhar a luz celestial que me faz crer...
Ver uma irradiação de estrelas a brilhar no espaço sideral.
Juro até por Deus, que mesmo lá nos céus não pode haver
Olhos que seduzam tanto quanto os teus...
Oh! Deixa que teus olhos fitem bem os meus pra recordar
A história triste de um amor nascido em ondas de luar...
Olhos que dizem bem e sem poder falar o quanto é desditoso amar...”
Anunciou mais coisas, vendeu alguns folhetos e deu comigo.
Parou e me chamou com os dedos.
— Vem cá, pinéu.
Obedeci, rindo.
— Você vai ou não vai deixar de me seguir?
— Não, senhor. Ninguém no mundo canta tão bonito como o senhor.
Ele se sentiu meio lisonjeado e um tanto desarmado. Eu vi que começava a ganhar a parada.
— Mas você está parecendo piolho-de-cobra.
— É que eu queria ver se o senhor cantava mesmo melhor do que Vicente Celestino e Chico Viola. E canta mesmo.
Ele deu um sorrisão.
— E você já ouviu eles, pinéu?
— Já, sim senhor. Numa vitrola na casa do filho do Dr. Adaucto Luz.
— Então é porque a vitrola era velha ou a agulha estava estragada.
— Não senhor. Vitrola novinha que tinha acabado de chegar. É que o senhor canta mesmo muito melhor. Até eu estive pensando uma coisa.
— Diga.
— Eu sigo o senhor todo o tempo. Bem. O senhor me ensina quanto custa cada folheto. Aí o senhor canta e eu vendo o folheto. Todo mundo gosta de comprar de criança.
— Não é má idéia, pinéu. Mas me diga uma coisa. Você vai porque quer. Eu não posso lhe pagar nada.
— Mas eu não quero nada.
— Então por quê?
— É que eu gosto muito de cantar. Gosto de aprender. E acho que Fanny é a coisa mais linda do mundo. Agora se no fim o senhor vendesse muito mesmo, pegava um folheto velho que ninguém quisesse comprar, aí o senhor me dava para eu levar para a minha irmã.
Ele tirou o chapéu e coçou a cabeça onde os cabelos eram quase rentes.
— Eu tenho uma irmã mocinha chamada Glória e eu levava para ela. Só.
— Então vamos. E fomos cantando e vendendo. Ele cantava e eu ia aprendendo.
Quando deu meio-dia ele me olhou meio cismado.
— E você não vai para casa almoçar?
— Só quando acabar nosso trabalho.
Coçou de novo a cabeça.
— Venha comigo.
Sentamos num boteco da Rua Ceres e ele apanhou um sanduichão do fundo da sacola. Tirou uma faca da cintura. Uma faca de meter medo. Cortou um pedaço do sanduíche e me deu. Depois bebeu uma bicada de cachaça e pediu dois refrescos de limão para acompanhar a merenda. Ele falava merenda. Enquanto levava o sanduíche à boca me examinava com os olhos e os olhos dele estavam muito contentes.
— Sabe, pinéu. Você está me dando sorte. Eu tenho uma fileira de menino buchudo e nunca tive a idéia de aproveitar um para me ajudar.
Tomou um gole grande de limonada.
— Que idade você tem?
— Cinco. Seis... Cinco.
— Cinco ou seis?
— Ainda não fiz seis.
— Pois você é um menino muito inteligente e bonzinho.
— Então quer dizer que terça-feira que vem a gente se encontra?
Ele riu.
— Se você quiser.
— Quero sim. Mas vou ter de combinar com minha irmã. Ela vai entender. Até que é bom, porque para o outro lado da Estação eu nunca fui.
— Como é que você sabe que eu vou para lá?
— Porque toda terça-feira eu espero pelo senhor. Uma o senhor vem e outra não. Então eu pensei que o senhor ia pro outro lado da linha.
— Mas que danadinho! Como você se chama?
— Zezé.
— Eu, Ariovaldo. Toque.
Pegou minha mão entre suas mãos calejadas para ficarmos amigos até a morte.
Não foi muito difícil convencer Glória.
— Mas Zezé, um dia por semana? E as lições? Mostrei o meu caderno para ela e minhas cópias estavam todas bem feitinhas e caprichadas. As notas eram ótimas. Fiz o mesmo com o caderno de aritmética.
— E na leitura, Godóia. Eu sou o melhor.
Mesmo assim ela não se decidia.
— O que a gente está estudando demora ainda seis meses repetindo a mesma coisa. Até que aquela cambada de burro aprenda, vai tempo.
Ela riu.
— Que expressão, Zezé.
— Mesmo, Glória, a gente aprende muito mais cantando. Quer ver quanta coisa nova eu aprendi? Depois Tio Edmundo me ensinou. Veja: estivador, celestial, sideral e desditoso. Ainda por cima trago um folheto por semana, e ensino a você as coisas mais lindas do mundo.
— É. Mas tem uma coisa, o que diremos a Papai quando ele notar que toda a terça-feira você não vem almoçar?
— Nem nota. Se uma vez perguntar, a gente mente. Você diz que eu fui almoçar com Dindinha. Que fui levar um recado para Nanzeazena e fiquei lá para almoçar. Virgem Maria! Ainda bem que era de faz de conta porque se aquela velha soubesse o que eu tinha feito!...
Ela acabou concordando porque sabia que era um jeito de eu não inventar traquinagem e, portanto, não apanhar muito. Depois era gostoso na quarta-feira ficar debaixo das laranjeiras ensinando ela a cantar.
Não via a hora de chegar terça-feira. Eu já ia esperar seu Ariovaldo na Estação. Quando ele não perdia o trem, chegava às oito e meia.
Flanava por todo canto vendo tudo. Gostava de passar na confeitaria e olhar o povo descendo as escadas da Estação.
Ali que era lugar bom para engraxar. Mas Glória não deixava.
Porque a polícia corria atrás da gente e tomava a caixa. E ainda por cima tinha os trens. Eu só podia ir com seu Ariovaldo se ele me desse a mão, mesmo para atravessar a linha por cima da ponte.
Aí ele vinha afobado. Depois de Fanny, ele se convenceu que eu sabia o que o povo gostava de comprar.
A gente ia se sentar no muro da Estação, bem defronte do jardim da Fábrica e ele abria o folheto principal e me mostrava a música, cantando um começo. Quando eu não achava boa, ele mudava para outra.
— Essa aqui é nova — “Malandrinha”. Cantou de novo.
— Cante de novo.
Ele repetiu a estrofe final.
— Essa, seu Ariovaldo, e mais Fanny e os tangos, a gente vai vender tudo.
E fomos pelas ruas cheias de sol e de poeira. Éramos nós os passarinhos alegres que confirmavam o verão.
O seu vozeirão lindo abria a janela da manhã.
— O sucesso da semana, do mês e do ano. “Malandrinha” que Chico Viola gravou.
“A lua vem surgindo cor de prata
No alto da montanha verdejante
E a lira do cantor em serenata
Acorda na janela a sua amante.
Ao som da melodia apaixonada
Nas cordas do sonoro violão
Confessa o seresteiro à sua amada
O que dentro lhe vai no coração"...
Aí ele fazia uma pequena pausa, batia duas vezes com a cabeça e eu entrava com minha vozinha afinada.
“ó linda imagem de mulher que me seduz
Ai se eu pudesse tu estarias num altar.
És a imagem dos meus sonhos, és a luz,
És malandrinha, não precisas trabalhar"...
Era uma coisa! Mocinhas vinham correndo comprar. Cavalheiros, gente de todo tamanho e de todos os jeitos.
Eu gostava mesmo era de vender os folhetos de quatrocentos réis e de quinhentos. Quando era moça já sabia.
— Seu troco, dona.
— Guarde para comprar bala.
Eu estava até pegando o modo de seu Ariovaldo falar. Meio-dia, já sabe. A gente entrava no primeiro boteco e tróquete, tróquete, tráquete, devorava o sanduíche ora com refresco de laranja, ora de groselha.
Então eu metia a mão no bolso do troco e esparramava sobre a mesa.
— Taqui, seu Ariovaldo.
E empurrava os niqueis para o seu lado. Ele sorria e comentava:
— Você é um garotinho decente, Zezé.
— Seu Ariovaldo que é que é pinéu como o senhor me chamava antigamente?
— Na minha terra, a santa Bahia, quer dizer, menininho buchudo, pequeno, miudinho...
Ele coçou a cabeça e botou a mão na boca para dar um arroto. Pediu desculpas e apanhou um palito para usar. E o dinheiro continuava no mesmo canto.
— Eu tive pensando, Zezé. De hoje em diante você pode ficar com os trocadinhos. Afinal nós agora somos é um dupla.
— Que é dupla?
— Quando duas pessoas cantam juntas.
— Então posso comprar uma maria-mole?
— O dinheiro é seu. Faça o que bem entender.
— Obrigado, “companheiro”.
Ele riu da imitação. Agora era eu que comia o doce e olhava para ele.
— Eu sou mesmo dupla?
— Agora é.
— Então o senhor deixa eu cantar a parte do coração da Fanny.
O senhor canta forte e eu entro de coração com a voz mais doce do mundo.
— Não é má idéia, Zezé.
— Pois quando a gente voltar depois do almoço. Vamos começar com Fanny que dá uma sorte danada.
E debaixo do sol quente recomeçamos o trabalho.
Estávamos tocando a Fanny para frente quando aconteceu um desastre. Dona Maria da Penha, vinha lá muito beata debaixo da sombrinha, com a cara branca de pó de arroz. Ficou parada ouvindo a nossa Fanny. Seu Ariovaldo adivinhou tragédia e me cutucou para que continuasse cantando mas andasse também.
Qual o quê! Eu estava tão fascinado com o coração da Fanny que nem dei fé.
Dona Maria da Penha fechou a sombrinha e ficou batendo com a ponta no bico do sapato. Quando acabei, fechou uma cara de raiva danada e exclamou:
— Muito bonito. Muito bonito mesmo uma criança cantar uma imoralidade dessas.
— Dona, meu trabalho não tem nada de imoral. Qualquer trabalho honesto é trabalho e eu não me envergonho, sabe?
Nunca vi seu Ariovaldo tão encrespado. Ela queria briga, então pronto.
— Essa criança é seu filho?
— Não senhora, infelizmente.
— Seu sobrinho, seu parente?
— Nada de meu.
— Que idade tem?
— Seis anos.
Ela duvidou olhando o meu tamanho. Mas continuou.
— O senhor não tem vergonha de explorar uma criancinha?
— Não estou explorando coisa nenhuma, dona. Ele canta comigo porque quer e gosta, viu? Depois eu pago a ele, não pago?
Fiz sim com a cabeça. Eu estava achando danado de bom a briga. Minha vontade era dar uma cabeçada na barriga dela e ver o barulho no chão. Bum!
— Pois fique sabendo que eu vou tomar providências. Vou falar com o Senhor Padre. Vou falar com o Juizado de Menores. Vou até à Polícia.
Aí ela calou a boca e arregalou os olhos amedrontada. Seu Ariovaldo tinha puxado aquela faca enorme e chegado perto dela. Via a hora de ela ter um faniquito.
— Pois, vá, dona. Mas vá logo. Eu sou muito bom mas tenho a mania de cortar língua de bruxa faladeira que se mete na vida alheia...
Ela saiu dura como uma vassoura e longe virou-se e apontou a sombrinha!...
— O senhor vai ver só!...
— Desapareça sua Bruxa de Croxóxó!...
Ela abriu a sombrinha e foi sumindo na rua, toda durinha da vida.
De tardinha, seu Ariovaldo contava o lucro.
— Foi tudo, Zezé. Você tinha razão. Você me dá sorte.
Me lembrei de Dona Maria da Penha.
— E ela vai fazer alguma coisa?
— Vai nada, Zezé. O máximo é conversar com o padre e o padre vai aconselhar: — É melhor deixar, Dona Maria. Essa gente do Norte não é de brincadeira.
Meteu o dinheiro no bolso e enrolou a sacola. Depois, como sempre fazia, meteu a mão no bolso das calças e apanhou um folheto dobrado.
— Esse é de sua irmãzinha Glória. Espreguiçou-se.
— Foi um dia pai d'égua!
Ficamos descansando um minuto.
— Seu Ariovaldo.
— Que foi?
— Que é Bruxa de Croxóxó?
— E eu sei, meu filho? Inventei na hora da raiva.
Deu uma risada gostosa.
— E o senhor ia furar mesmo ela?
— Nada. Foi só para assustar.
— Se furasse ia sair tripa ou capim de boneca?
Ele riu, coçou minha cabeça com amizade.
— Quer saber de uma coisa, Zezé? Eu acho que saía era merda mesmo.
Rimos os dois.
— Mas não tenha medo, não. Eu não sou macho de matar nada. Nem galinha. Meu medo da minha mulhé é tanto que até apanho de cabo de vassoura dela.
Levantamos, ele foi até a estação. Apertou minha mão e falou:
— Por garantia a gente vai passar um par de vêiz, sem passar naquela rua.
Apertou com mais força minha mão.
— Inté terça que vem, companheiro. Balancei a cabeça afirmativamente enquanto ele devagar subia um a um os degraus da escada.
Lá de cima ele gritou:
— Você é um anjo, Zezé... Dei adeus e comecei a rir.
— Anjo! É porque ele não sabe...
Foi quando apareceu o Menino Deus em toda a sua tristeza
O morcego
— CORRE, ZÉZÉ, senão você vai perder a Escola!
Estava sentado na mesa tomando minha caneca de café, com o pão seco, e mastigando tudo sem pressa alguma. Como sempre apoiava o cotovelo na mesa e ficava espiando a folhinha pregada na parede.
Glória ficava nervosa e afogueada. Não via a hora da gente sumir a manhã todinha e deixá-la em paz com os serviços da casa.
— Ande, diabinho. Você nem penteou os cabelos; você devia fazer como Totoca que sempre está pronto na hora.
Vinha da sala com um pente e alisava minha franjinha loura.
— Também esse gato ruço não tem nada que pentear. Me suspendia da cadeira e me examinava todo. Se a bluzinha estava decente e as calças também.
— Agora vamos, Zezé.
Totoca e eu púnhamos as nossas sacolinhas a tiracolo. Só os livros, os cadernos e o lápis.
Lanche nenhum, aquilo ficava para os outros meninos.
Glória apertou o fundo da minha sacolinha, sentiu o volume das bolas de gude e sorriu; nas mãos a gente carregava os sapatos ténis para calçar quando chegasse ao Mercado, perto da Escola.
Mal a gente pegava a rua, Totoca sumia na carreira deixando-me sozinho andando devagar. Aí eu já começava a acordar o meu diabo arteiro. Gostava mesmo que ele se adiantasse para poder reinar à vontade. Meu fascínio era a estrada Rio-São Paulo. Morcego. Sem dúvida o morcego. Pegar traseira nos automóveis e sentir a estrada fazendo vento na gente, correndo e chiando. Aquilo era a melhor coisa do mundo. Todos nós fazíamos; Totoca me ensinara, com mil recomendações para segurar bem, porque os outros carros que vinham atrás eram um perigo. Aos poucos aprendia a perder o medo e o sentido da aventura instigava mais a gente a pegar os morcegos mais difíceis. Eu estava ficando tão danado que até no carro de seu Ladislau já morcegara; só faltava mesmo no carro lindo do Português. Carro bonito e bem tratado estava ali. Os pneus sempre novinhos. Tudo que era metal tão reluzente que dava para refletir as pessoas. A buzina dava gosto: era um mugido rouco como se fosse uma vaca no campo. E ele passava duro, dono daquela beleza toda, com a cara mais fechada do mundo. Ninguém se atrevia a pegar uma carona no seu pneu traseiro. Diziam que ele batia, matava e ameaçava de capar antes de matar. Nenhum menino da Escola se atrevia ou se atrevera até agora.
Quando eu estava conversando sobre isso com Minguinho ele falou.
— Ninguém mesmo, Zezé?
— Ninguém mesmo. Ninguém tem coragem.
Senti que Minguinho estava rindo, quase adivinhando o que eu pensava naquele instante.
— Mas você está doido para pegar uma, não?
— Que estou, estou mesmo. Eu acho que...
— Que é que você acha?...
Aí quem tinha rido era eu.
— Diga logo.
— Você é curioso que é danado.
— Você me conta sempre; sempre acaba contando, não aguenta.
— Sabe de uma coisa, Minguinho? Eu saio de casa às sete horas, não é? Quando chego na esquina são sete e cinco. Pois bem, às sete e dez o Português pára o carro na esquina do botequim do Miséria e Fome e compra uma carteira de cigarro... Qualquer dia desses eu crio coragem e espero ele montar no carro e zás!...
— Você não tem coragem.
— Não tenho, Minguinho? Você vai ver.
Agora meu coração estava aos pulos. O carro parado; ele descendo. O desafio de Minguinho mexendo com meu medo e a minha coragem; não querendo ir mas a vaidadezinha me apressando os passos. Contornei o bar e fiquei meio escondido na quina da parede. Aproveitei para enfiar os sapatos ténis dentro da sacola. O coração batia tão apressado que tinha medo de que escutassem dentro do bar; ele saiu sem sequer ter-me notado. Ouvi a porta se abrir...
— Agora ou nunca, Minguinho!
De um salto estava grudado no pneu com todas as forças que o medo me dera. Sabia que até a Escola Pública a distância era enorme. Já começava a antegozar minha vitória diante dos olhos dos meus colegas...
— Ai!
Dei um grito tão grande e agudo que correu gente para as portas do botequim para ver quem fora atropelado.
Eu estava suspenso meio metro do chão, balançando, balançando. Minhas orelhas ardiam como brasas. Uma coisa falhara nos meus planos. Esquecera de ouvir, na minha afobação, o motor funcionar.
A carranca do Português parece que aumentara. Seus olhos dispendiam fagulhas.
— Então, moleque atrevido. Eras tu? Um pirralho desses com tal atrevimento!...
Deixou que meus pés tocassem no chão. Soltou uma das minhas orelhas e com o braço grosso me ameaçava o rosto.
— Pensas, moleque, que eu não te observei todos os dias espiando o meu carro? Vou te dar um correctivo e não terás mais vontade de repetir o que fizeste.
A humilhação doía mais que a própria dor. Só tinha vontade de sapecar uma saraivada de palavrões no bruto.
Mas ele não me soltava e parecendo adivinhar meus pensamentos me ameaçou com a mão livre.
— Fala! Xinga! Por que não falas?
Meus olhos se encheram d'água, da dor, da humilhação, das pessoas que estavam presenciando a cena e rindo com maldade.
O Português continuava a me desafiar.
— Então, por que tu não xingas, moleque?
Uma revolta cruel veio surgindo dentro do meu peito e eu consegui responder com raiva:
— Não falo agora, mas estou pensando. E quando eu crescer vou matar o senhor.
Ele deu uma risada que foi acompanhada pelos circunstantes.
— Pois cresce, molecote. Eu cá te espero. Mas antes disso vou dar-te uma lição.
Soltou rapidamente minha orelha e me debruçou sobre a sua coxa. Aplicou-me uma, só uma palmada, mas com tamanha força que eu pensei que o meu traseiro tinha grudado no estômago. Só então ele me soltou.
Saí zonzo debaixo de uma caçoada enorme. Quando atingi o outro lado da Rio — São Paulo que atravessei sem enxergar, consegui passar a mão na bunda para suavizar o golpe recebido. Filho da puta! Ele ia ver só. Jurava que me vingaria. Jurava que... mas a dor foi diminuindo na proporção que me afastava daquela gente desgraçada. Pior era quando soubessem na Escola. E o que diria para Minguinho? Durante uma semana quando passasse pelo Miséria e Fome estariam rindo de mim naquela covardia toda dos grandes. Era preciso sair mais cedo e cruzar a estrada pelo outro lado...
Nesse estado de espírito me aproximei do Mercado. Fui lavar o pé na bica e calçar os meus sapatinhos ténis. Totoca estava me esperando ansioso. Não contaria nada do meu fracasso.
— Zezé, você precisa me ajudar.
— Que foi que você fez?
— Se lembra de Bié?
— Aquele boisão da Barão de Capanema?
— Aquele mesmo. Ele vai me pegar na saída. Você não quer brigar com ele por mim?
— Mas ele vai me matar.
— Vai nada e mesmo você é brigador e corajoso.
— Tá bem. Na saída?
— Na saída.
Totoca era assim, sempre arranjava brigas e era eu quem ele empurrava no embrulho. Mas até que era bom. Eu ia botar toda a raiva do Português contra Bié.
Verdade que nesse dia eu apanhei tanto, saí de olho roxo e com os braços ralados. Totoca ficava com os outros sentados no chão torcendo com os livros sobre os joelhos, os meus e os dele. Ficavam também orientando.
— Dê uma cabeçada na barriga dele, Zezé. Morde, mete as unhas que ele só tem gordura. Chuta os ovos dele.
Mas mesmo com toda a torcida e orientação se não fosse seu Rozemberg da Confeitaria eu teria virado picadinho. Ele saiu lá detrás do balcão e puxou Bié pela gola da camisa e deu-lhe uns safanões.
— Não tem vergonha? Tamanho marmanjo bater num menininho desses.
Seu Rozemberg tinha uma paixão oculta, como diziam lá em casa por minha irmã Lalá. Ele conhecia a gente e todas as vezes que ela estava com algum de nós, dava docinhos e balas com o maior de todos os sorrisos onde brilhavam vários dentes de ouro.
Não resisti e acabei contando o meu fiasco para Minguinho.
Nem podia mesmo esconder com aquele olho roxo e empapuçado. Mesmo porque Papai quando me viu assim, ainda me deu uns cascudos e passou um sermão em Totoca. Papai nunca batia em Totoca. Eu, sim, porque era tudo que existia de ruim.
Minguinho ouvira tudo, na certa. Como poderia então deixar de contar? Ele escutou, revoltado, e só comentou quando eu acabei numa voz zangada.
— Que covarde!
— A briga até que não foi nada, se você visse...
Troque-que-troque relatei tudo que se passara com o morcego.
Minguinho estava espantado com a minha coragem e até me aconselhou:
— Um dia você se vinga.
— Vou me vingar, sim. Vou pedir o revólver de Tom Mix e o Raio de Luar de Fred Thompson e vou armar uma armadilha com os índios Comanches; um dia trago a cabeleira dele esvoaçando na ponta de um bambu.
Mas logo, logo a raiva passou e a gente estava conversando de outras coisas.
— Xururuca, você nem sabe. Você se lembra que na semana passada eu ganhei de prémio por ser bom aluno aquele livro de histórias “A rosa mágica”?
Minguinho ficava muito feliz quando eu o tratava de Xururuca; nesse momento ele sabia que eu ainda lhe queria mais bem ainda.
— Lembro, sim.
— Pois eu nem contei que já li o livro. É a história de um príncipe que ganhou de uma fada uma rosa vermelha e branca.
Pois o danado viajava num cavalo lindo todo ajaezado de ouro; é assim que diz no livro. Pois no cavalo ajaezado de ouro ele saía viajando em busca de aventura. Qualquer perigo ele sacudia a rosa mágica e aparecia uma fumaceira danada para que o Príncipe escapasse. Na verdade, Minguinho, eu achei a história meio boba, sabe? Não é como as aventuras que eu quero ter na minha vida. Aventura mesmo tem Tom Mix e Buck Jones. E Fred Thompson e Richard Talmadge. Porque eles lutam como danados, dão tiros, socos... Agora se qualquer um deles fosse puxando uma rosa mágica em cada perigo que viesse, não tinha graça nenhuma. Que é que você acha?
— Acho meio sem graça também.
— Mas não é isso que eu quero saber. Eu quero saber se você acredita mesmo que uma rosa possa fazer mágica assim?
— De fato é mesmo esquisito.
— Esse pessoal vai contando as coisas e pensa que criança acredita em tudo.
— Lá isso é.
Ouvimos um barulho e Luís vinha se aproximando.
Cada vez meu irmãozinho ficava mais lindo. Não era chorão, nem briguento. Mesmo quando eu era obrigado a tomar conta dele, quase sempre eu o fazia de boa vontade.
Comentei para Minguinho:
— Vamos mudar de assunto porque vou contar essa história para ele e ele vai achar linda. A gente não deve tirar as ilusões de uma criança.
— Zezé, vamos brincar?
— Mas eu estou brincando. De que é que você quer brincar?
— Queria passear no Jardim Zoológico.
Olhei desanimado o galinheiro com a galinha preta e as duas frangas novas.
— É muito tarde. Os leões já foram dormir e os tigres de Bengala também. Nessa hora já fecharam tudo. Não vendem mais entrada.
— Então vamos viajar na Europa.
O danadinho aprendia tudo e falava certinho o que ouvia. Mas a verdade é que eu não estava disposto a viajar na Europa.
Queria mesmo era permanecer perto de Minguinho. Minguinho não caçoava de mim nem fazia pouco do meu olho empapuçado.
Sentei perto do meu irmãozinho e falei com calma.
— Pera aí que eu vou pensar um brinquedo.
Mas logo, logo a fada da inocência passou voando numa nuvem branca que agitou as folhas das árvores, os capinzais do valão e as folhas de Xururuca. Um sorriso iluminou meu rosto maltratado.
— Foi você quem fez isso, Minguinho?
— Eu, não.
— Ah que beleza, então é o tempo do vento que está chegando.
Na nossa rua havia tempo de tudo. Tempo de bola de gude. Tempo de pião. Tempo de colecionar figurinhas de artistas de cinema. Tempo de papagaio, o mais bonito de todos os tempos.
Os céus ficavam por todos os lados repletos de papagaios de todas as cores. Papagaios lindos de todos os feitios. Era a guerra no ar. As cabeçadas, as lutas, as laçadas e os cortes.
As giletes cortavam as linhas e lá vinha um papagaio rodopiando no espaço embaraçando a linha do cabresto com a cauda sem equilíbrio; era lindo tudo aquilo. O mundo se tornava só das crianças da rua. De todas as ruas de Bangu.
Depois era um tal de caveirinha enrolada nos fios; era um tal de correr do caminhão da Light. Os homens vinham furiosos arrancar os papagaios mortos, atrapalhando os fios. O vento... o vento...
Com o vento veio a idéia.
— Vamos brincar de caçada, Luís?
— Eu não posso montar no cavalo.
— Logo você cresce e pode. Você fica sentadinho aí e vai aprendendo como é.
De repente Minguinho virou o mais lindo cavalo do mundo; o vento aumentou mais e o capinzal meio ralo do valão se transformou numa planície imensa e verdejante. Minha roupa de cowboy estava ajaezada de ouro. Relampejava em meu peito a estrela de Sheriff.
— Vamos, cavalinho, vamos. Corre, corre...
Plequet-plequet-plequet; já estava reunido a Tom Mix e Fred Thompson; Buck Jones não quisera vir dessa vez e Richard Talmadge trabalhava noutro filme.
— Vamos, vamos, cavalinho. Corre, corre. Lá vêm os amigos Apaches fazendo poeira no caminho.
Plequet-plequet-plequet! A cavalada dos índios estava fazendo um barulho louco.
— Corre, corre, cavalinho, a planície está cheia de bisões e búfalos. Vamos atirar, minha gente. Plaft, plaft, plaft... Teco, teco, teco... Fiúm, fium, fium, as flechas assobiavam...
O vento, a galopada, a carreira louca, as nuvens de poeira e a voz de Luís quase que gritando.
— Zezé! Zezé!...
Fui parando o cavalo devagar e saltei afogueado da proeza.
— Que foi? Algum búfalo veio para o seu lado?
— Não. Vamos brincar de outra coisa. Tem muito índio e estou com medo.
— Mas esses índios são os Apaches. Todos são amigos.
— Mas eu estou com medo. Tem muito índio.
A conquista
NOS PRIMEIROS DIAS eu saía um pouquinho mais cedo para não ter o perigo de encontrar o Português parado com o seu carro a comprar cigarros. Além do mais tinha o cuidado de vir beirando o canto da rua do lado contrário quase encoberto pela sombra das cercas de crótons que unia a frente de cada casa. E mal chegado à Rio-São Paulo, cortava a estrada e seguia com os sapatos ténis na mão, quase me colando ao grande muro da Fábrica. Todo esse cuidado foi se tornando inútil com o passar dos dias. A memória da rua é curta e pouco mais ninguém se lembrava de mais uma das travessuras do menino de seu Paulo. Porque era assim que me conheciam nos momentos de acusação:
— Foi o menino de seu Paulo... Foi o danado do filho de seu Paulo... Foi aquele menino de seu Paulo... Uma vez até inventaram uma coisa horrível: quando o Bangu levou uma surra do Andaraí, comentaram gozando: O Bangu apanhou mais do que “aquele” menino de seu Paulo...
Por vezes eu via o maldito carrão parado na esquina e atrasava o passo para não ter que ver o Português que eu ia matar mesmo quando crescesse, passar naquela bruta pose de dono do carro mais lindo do mundo e de Bangu.
Foi quando ele desapareceu por alguns dias. Que alívio! Na certa tinha viajado para longe ou tirado algumas férias.
Voltei a caminhar para a Escola com o coração sossegado e já meio incerto se valia a pena matar aquele homem mais tarde. Uma coisa ficara positivada: toda santa vez que eu ia pegar um morcego num carro menos importante, já não sentia tanto entusiasmo e minhas orelhas começavam a arder penosamente.
E a vidinha da gente e da rua se desenvolvia normalmente.
Viera o tempo do papagaio e “rua para quem te quer”. O céu azulado se estrelava de dia das estrelas mais bonitas e coloridas. No tempo do vento deixava de lado um pouco o Minguinho ou só o procurava quando me colocavam de castigo depois de uma bela sova. Aí não tentava fugir mesmo porque uma surra muito junto da outra doía pra burro. Nesses momentos ia com o rei Luís adornar, ajaezar, termo que eu achava lindo, o meu pé de Laranja Lima. Por sinal, Minguinho dera uma esticada danada e logo, logo estaria dando flores e frutos para mim. As outras laranjeiras demoravam muito. Mas pé de Laranja Lima era “precoce” como Tio Edmundo dizia que eu era.
Depois ele me explicou o que aquilo queria dizer: das coisas que aconteciam muito antes das outras coisas acontecerem. No final eu acho que ele não soube explicar direito. O que queria dizer era simplesmente tudo que vinha na frente...
Então eu pegava pedaços de cordão, sobras de linha, furava um mundão de tampinhas de garrafa e ia ajaezar Minguinho. Era de se ver que lindo que ele ficava.
O vento dando, chocava uma tampinha contra a outra e parecia que ele estava usando as esporas de prata de Fred Thompson quando montava o seu cavalo Raio de Luar...
O mundo da Escola Pública era também muito bom. Eu sabia todos os hinos nacionais de cor. O grandão que era o verdadeiro, os outros hinos nacionais da Bandeira e o hino nacional da Liberdade, Liberdade, abre as asas sobre nós. Pra mim e eu acho que pra Tom Mix também, era o que eu mais gostava. Quando a gente ia a cavalo sem guerra e sem caçada, ele me pedia com respeito:
— Vamos, guerreiro Pinagé, cante o hino da Liberdade.
Minha voz bastante fina enchia as planícies enormes, com muito mais beleza do que quando eu cantava com seu Ariovaldo, trabalhando de ajudante de cantor às terças-feiras.
Nas terças-feiras, gazeteava a aula como de costume para esperar o trem que trazia o meu amigão Ariovaldo. Ele já vinha descendo as escadas mostrando nas mãos os folhetos da venda nas ruas. Trazia ainda duas sacolas cheias que eram a reserva. Quase sempre ele vendia tudo e isso deixava uma alegria muito grande para nós dois...
Nos recreios, quando dava tempo, a gente jogava até bola de gude. Eu era o que se chamava de rato. Tinha uma pontaria garantida e quase nunca deixava de voltar para casa com a sacolinha sacolejando as bolas muitas vezes até triplicadas.
A coisa comovente era a minha professora, D. Cecília Paini.
Podiam contar a ela que eu era o menino mais endiabrado da minha rua, que ela não acreditava. Como também não acreditaria que ninguém conseguia dizer mais palavrões do que eu. Que nenhum moleque me igualava em travessuras. Isso, ela não acreditava nunca. Na Escola eu era um anjo. Nunca tivera uma repreensão e tornava-me querido das professoras por ser um dos menores garotinhos que aparecera até então. D. Cecília Paim, conhecia de longe a nossa pobreza e na hora do lanche, quando via todo mundo comendo sua merenda, ficava emocionada, me chamava sempre à parte e me mandava comprar o sonho recheado no doceiro. Ela tinha tamanha ternura por mim que eu acho que ficava bonzinho só para ela não se decepcionar comigo.
De repente a coisa aconteceu. Eu vinha devagar, como sempre, pela estrada Rio- São Paulo quando o carrão do Português passou bem devagarinho por mim. A buzina soou três vezes e vi que o monstro me olhava sorrindo. Aquilo me fez renascer a raiva e o desejo de matá-lo de novo quando ficasse grande.
Fechei a cara no meu orgulho todo e fingi ignorá-lo.
— Pois é como lhe disse, Minguinho. É todo santo dia. Parece que ele espera eu passar e lá vem buzinando. Buzina três vezes. Ontem até me deu adeus.
— E você?
— Eu nem ligo. Finjo que não vejo. Tá começando a dar medo nele; você vê, eu vou fazer seis anos e logo, logo estarei um homem.
— Você acha que ele está querendo ficar seu amigo, por medo?
— Não tenho nem dúvida. Pera aí que eu vou buscar o caixotinho.
Minguinho tinha crescido bastante. Para subir na sua sela tornava-se necessário colocar o caixote embaixo.
— Pronto, agora vamos conversar mesmo.
Dali do alto eu me sentia maior que o mundo. Relanceava a vista para a paisagem, para o capinzal do valão, para os tizius e coleiros que vinham catar comidas por ali. De noite, nem bem a escuridão fosse chegando outro Luciano vinha dar vôos em volta da minha cabeça todo alegre como se fosse um aeroplano do Campo dos Afonsos. No começo até Minguinho se admirou que eu não tivesse medo do morcego porque em geral toda criança ficava apavorada. Aliás fazia dias que Luciano não aparecia. Por certo arranjara outros campos dos afonsos em outros lugares.
— Você viu, Minguinho, as goiabeiras da casa da Nega Eugénia começam a amarelecer. As goiabas no mínimo já estão de vez. O diabo é que se ela me pega, Minguinho. Hoje já levei três coças. Se eu estou aqui é porque me puseram de castigo...
Mas o diabo me deu a mão para descer e me puxou até a cerca de erátons. O ventinho da tarde começou a trazer ou inventar o cheiro das goiabas até o meu nariz. Espia daqui, afasta um galhinho dali, escuta que não tem barulho... e o diabo falando: “Vai bobo, não vê que não tem ninguém. Essa hora ela deve ter ido à quitanda da japonesa. Seu Benedito? Qual nada. Ele está quase cego e surdo. Não vê nada. Dá tempo de fugir se ele perceber...”
Segui a cerca até o valão e me decidi. Antes, fiz sinal a Minguinho para não fazer barulho. Já nessa hora meu coração acelerara. A Nega Eugénia não era de brinquedo, não. Tinha uma língua que só Deus sabia. Vinha pé ante pé, sem respirar, quando o seu vozeirão partiu da janela da cozinha.
— Que é isso, menino?
Nem tive a idéia de mentir dizendo que viera apanhar uma bola. Meti o carreirão e tchibum pulei dentro do valão. Mas lá dentro me esperava outra coisa. Uma dor tão grande que quase me fez gritar, mas se gritasse apanharia duas vezes: primeiro, porque fugira do castigo; segundo, porque estava roubando goiaba no vizinho e acabara de enfiar um caco de vidro no pé esquerdo.
Ainda tonto de dor fui arrancando a lasca da garrafa. Gemia baixinho e via o sangue se misturando com a água suja do valão. E agora? Consegui com os olhos cheios d'água retirar o vidro, mas nem sabia como estancar o sangue. Apertava com força o tornozelo para diminuir a dor. Tinha que aguentar firme. Estava perto de chegar a noite e com ela, viriam Papai, Mamãe e Lalá. Qualquer um que me pegasse me batia.
Podia até que cada um me pegasse em três surras divididas.
Subi desorientado a barreira e fui me sentar pulando num pé só debaixo do meu pé de Laranja Lima. Ainda doía muito mas já passara a vontade de vomitar.
— Espia, Minguinho.
Minguinho ficou horrorizado. Era como eu, não gostava de ver sangue.
— Que fazer, meu Deus?
Totoca bem que me ajudaria, mas onde andaria ele a essas horas? Tinha Glória. Glória deveria estar na cozinha. Era a única que não gostava que me batessem tanto. Podia ser que ela me puxasse as orelhas ou me pusesse de castigo de novo. Mas tinha que tentar.
Arrastei-me até a porta da cozinha, estudando um meio de desarmar Glória. Ela estava bordando uns panos. Sentei meio sem jeito e dessa vez Deus me ajudou. Ela me olhou e viu que eu estava de cabeça baixa. Resolveu não dizer nada porque eu estava de castigo. Fiquei com os olhos cheios d'água e funguei. Dei com os olhos de Glória me fitando. Suas mãos tinham parado no bordado.
— Que é, Zezé?
— Nada, Godóia... Por que ninguém gosta de mim?
— Você é muito arteiro.
— Hoje já levei três surras, Godóia.
— E não mereceu?
— Não é isso. É que como ninguém gosta de mim, aproveitam para me bater por qualquer coisa.
Glória começou a comover seu coração de quinze anos. E eu sentia isso.
— Eu acho que é melhor amanhã eu ser atropelado na Rio-São Paulo e ficar todo esmagadinho.
Aí então as lágrimas desceram em torrentes dos meus olhos.
— Não diga bobagens, Zezé. Eu gosto muito de você.
— Não gosta, não. Se gostasse não ia deixar eu apanhar mais uma surra hoje.
— Já está escurecendo e nem vai mais ter tempo de você fazer alguma travessura para apanhar.
— Mas eu já fiz...
Ela soltou o bordado e se aproximou de mim. Quase soltou um grito ao ver a poça de sangue que envolvia o meu pé.
— Meu Deus! Gum, o que foi isso?
Estava ganha a partida. Se ela me chamava de Gum era porque estava salvo.
Me pegou no colo e me sentou na cadeira. Ligeiramente apanhou uma bacia de água com sal e se ajoelhou aos meus pés.
— Vai doer muito, Zezé.
— Já está doendo muito.
— Meu Deus tem quase três dedos de corte. Como você foi fazer isso, Zezé?
— Você não conta pra ninguém. Por favor, Godóia, eu prometo que fico bonzinho. Não deixe ninguém me bater tanto...
— Tá bem, eu não conto. Como vamos fazer? Todo mundo vai ver seu pé amarrado. E amanhã você não poderá ir à Escola. Vão acabar descobrindo.
— Eu vou à Escola, sim. Calço os sapatos até a esquina. Depois é mais fácil.
— Você precisa ir se deitar e ficar com o pé bem esticado, senão isso não dá para você andar amanhã.
Ajudou-me a ir capengando para a cama.
— Vou trazer qualquer coisa para que você coma antes que os outros cheguem.
Quando voltou com a comida, eu não aguentei e dei um beijo nela. Aquilo era muito raro em mim.
Quando todos tinham chegado para o jantar, Mamãe deu falta de mim.
— Cadê Zezé?
— Está deitado. Desde cedo que ele queixa de dor de cabeça.
Eu escutava embevecido esquecendo até o ardor do ferimento.
Gostava de estar sendo o assunto. Foi quando Glória resolveu tomar a minha defesa. Fez uma voz queixosa e ao mesmo tempo acusativa.
— Acho que todo mundo anda batendo nele. Ele hoje estava todo moído. Três surras é demais.
— Mas é uma pestezinha. Só fica quieto quando apanha!
— Vai dizer que você também não bate nele?
— Muito difícil. Quando muito, puxo as suas orelhas.
Fizeram um silêncio e Glória ainda continuou a me defender.
— Afinal, minha gente, ele ainda não tem seis anos. É levado mas ainda é uma criancinha.
Aquela conversa foi uma felicidade para mim.
Glória estava angustiada me arrumando, ajudando a calçar os ténis.
— Dá pra ir?
— Eu aguento, sim.
— Você não vai fazer bobagem na Rio-São Paulo?
— Não vou, não.
— Aquilo que você falou era verdade?
— Era não. É que eu estava muito infeliz pensando que ninguém gostava mesmo de mim.
Ela passou as mãos nas minhas farripas louras e me mandou embora.
Eu pensava que duro só seria chegar até a Estrada. Que quando descalçasse os sapatos a dor melhoraria. Mas quando o pé tocou directamente no chão, tive que ir me apoiando devagarzinho no muro da Fábrica. Daquele jeito nunca que eu chegava.
Aí aconteceu a coisa. A buzina ecoou três vezes. Desgraçado!
Não bastava a gente estar morrendo de dor e ele ainda vinha judiar...
O carro parou bem perto de mim. Ele botou o corpo para fora e perguntou:
— Ó Pirralho, machucaste o pé?
Tive vontade de dizer que não era da conta de ninguém. Mas como ele não me chamasse de moleque, não respondi e continuei andando uns cinco metros.
Ele botou o carro funcionando, passou por mim e parou quase grudado ao muro, saindo um pouco da estrada, me cortando a passagem. Então abriu a porta e desceu. Seu vulto grande estava me acuando.
— Está te doendo muito, Pirralho?
Não era possível que uma pessoa que me batera usasse agora uma voz tão doce e quase amiga. Achegou-se mais de mim e sem que ninguém esperasse, ajoelhou o corpo gordo e me fitou cara a cara. Tinha um sorriso tão suave que parecia espalhar carinho.
— Pelo visto tu te machucaste muito, não? O que foi?
Funguei um pouco antes de responder.
— Caco de vidro.
— Foi profundo?
Fiz o tamanho do talho com os dedos.
— Ah! isso é grave. E por que não ficaste em casa? Pelo jeito vais para a Escola, não?
— Ninguém sabe lá em casa que eu me machuquei. Se descobrissem ainda me batiam por cima para aprender a não machucar...
— Vem que eu te levo.
— Não senhor, obrigado.
— Mas por quê?
— Todo mundo na Escola sabe o que aconteceu.
— Mas tu não podes caminhar assim.
Abaixei a cabeça reconhecendo a verdade e sentindo que por pouco mais o meu orgulhozinho se espatifaria.
Ele suspendeu a minha cabeça, segurando o meu queixo.
— Vamos esquecer umas coisas. Tu já andaste de carro?
— Nunca, não senhor.
— Então eu te levo.
— Não posso. Nós somos inimigos.
— Mesmo assim, eu não me importo. Se tu tens vergonha, eu te deixo antes da Escola. Queres?
Fiquei tão emocionado que nem respondi. Só balancei a cabeça consentindo. Ele me pegou no colo, abriu a porta e me colocou no assento com cuidado. Deu a volta e tomou a sua posição.
Antes de ligar o motor sorriu de novo pra mim.
— Assim está melhor, vê-se.
A sensação gostosa do carro macio andando, dando leves solavancos me fez fechar os olhos e começar a sonhar. Aquilo era mais macio e gostoso do que o cavalo Raio de Luar de Fred Thompson. Mas não demorei muito porque ao abrir os olhos estávamos quase chegando à Escola. Já via a multidão dos alunos penetrando pela porta principal.
Apavorado, escorreguei do banco e me escondi. Falei nervoso:
— O senhor prometeu que parava antes da Escola.
— Mudei de idéia. Esse teu pé não pode ficar assim. Isso pode dar tétano.
Não pude nem perguntar que palavra bonita e difícil era aquela. Também sabia inútil dizer que não queria ir. O carro tomara a Rua das Casinhas e eu voltara à posição anterior.
— Tu me pareces um homenzinho corajoso. Agora vamos ver mesmo se tu provas isso.
Parou defronte à farmácia e em seguida me carregou no colo.
Quando Dr. Adaucto Luz nos atendeu eu fiquei apavorado. Ele era médico do pessoal da Fábrica e conhecia muito a Papai. E meu pavor aumentou quando ele me fixou e perguntou de cara:
— Você é filho do Paulo Vasconcelos, não é? Ele já arranjou alguma colocação?
Tive que responder, muito embora tivesse muita vergonha do Português saber que Papai estava desempregado.
— Ele está esperando. Prometeram muita coisa pra ele...
— Vamos ao que se trata.
Desenrolou os panos grudados no talho e fez um hum de impressionar. Comecei a fazer um beicinho de choro. Mas o Português veio por trás me socorrer.
Sentaram-me em cima de uma mesa cheia de lençóis brancos. Uma porção de ferros apareceram. E eu tremia. Não tremia mais porque o Português apoiou minhas costas sobre o seu peito e me segurava os ombros com força e ao mesmo tempo carinho.
— Não vai doer muito. Quando acabar eu te levo para tomar um refresco e comer doces. Se tu não chorares eu te compro balas de figurinha de artista.
Então eu criei a maior coragem do mundo. As lágrimas desciam e eu deixei fazer tudo. Deram pontos e até uma injecção “antitetânica” me aplicaram. Aguentei até a vontade de vomitar. O Português me agarrava com força como se quisesse que a dor passasse um pouco para ele. Com o seu lenço ele enxugava meus cabelos e o rosto molhados de suor.
Parecia que aquilo não acabava mais. Mas acabou acabando.
Quando ele me levou para o carro, vinha satisfeito. Cumpriu tudo o que prometera. Só que eu não tinha vontade de nada.
Parecia que tinham até arrancado a minha alma pelos pés...
— Agora tu não podes ir para a Escola, Pirralho.
Estávamos no carro e eu me sentava bem perto dele, roçando no seu braço, quase atrapalhando as suas manobras.
— Eu vou te levar perto da tua casa. Inventa qualquer coisa. Podes dizer que te machucaste no recreio e que a professora te mandou à farmácia...
Olhei para ele reconhecidamente.
— És um homenzinho corajoso, Pirralho. Eu sorri cheio de dor, mas dentro daquela dor tinha acabado de descobrir uma coisa importante. O Português tinha se tornado agora a pessoa que eu queria mais bem no mundo.
Conversas para lá e para cá
— SABE, MINGUINHO, eu já descobri tudo. Tudinho. Ele mora no fim da Rua Barão de Capanema. Bem no finzinho. Ele guarda o carrão do lado da casa. Tem duas gaiolas, uma com um canário e outra com um azulão. Fui lá bem cedinho, como quem não quer nada, levando minha caixa de engraxate. Eu ia com tanta vontade de ir, Minguinho, que nem senti minha caixa pesada dessa vez. Aí, olhei bem a casa e achei que era muito grande para uma pessoa viver sozinha. Ele estava do lado, nos fundos, junto do tanque. Estava fazendo a barba. Bati palmas.
— Quer engraxar?
Ele veio de lá com o rosto cheio de sabão. Um pedaço raspado já. Deu um sorriso e falou:
— Ah! És tu? Entra, Pirralho.
Segui os seus passos.
— Espera que já acabo.
E foi fazendo com a navalha no rosto, réquete, réquete, réquete. Eu pensei, quando ficar grande e for homem quero ter uma barba que faça bonito assim, réquete, réquete, réquete...
Sentei na minha caixinha e fiquei esperando. Ele me olhou pelo espelho.
— E a tua aula?
— Hoje é Feriado Nacional. Por isso, saí engraxando para ganhar uns cobres.
— Ah!
E continuou. Depois debruçou-se no tanque e lavou o rosto. Enxugou na toalha. Depois ficou com o rosto corado e brilhando. Depois ele riu, de novo.
— Queres tomar café comigo?
Disse que não queria, querendo.
— Entra.
Só queria que você visse como tudo é limpinho e arrumadinho. A mesa tinha até toalha de xadrez vermelhinho. E lá estava até xícara. Nada de caneca de flandres como lá em casa. Ele contou que uma preta velha vinha todos os dias “pôr em ordem” quando saía para trabalhar.
— Se queres, faze como eu, molha o pão no café. Mas não faças barulho ao engolires. É feio.
Aí eu olhei para Minguinho, ele estava mudo como uma bruxa de pano.
— Que foi?
— Nada. Estou escutando.
— Olhe, Minguinho, eu não gosto de discussões, mas se você está aborrecido é melhor falar logo.
— É que você agora só brinca de Português e eu não posso brincar disso.
Fiquei pensativo. Era isso mesmo. Nem me passava pela cabeça que ele não podia “brincar” daquilo.
— Daqui a dois dias a gente se encontra com Buck Jones. Eu mandei um recado para ele pelo cacique Touro Sentado. Buck Jones. está longe caçando na Savanali... Minguinho, é Savânali ou Savanáli que a gente diz? Na fita tinha um “h” atrás. Não sei. Quando for à casa de Dindinha pergunto a Tio Edimundo.
Novo silêncio.
— Onde é que a gente parou mesmo?
— Em molhar o café no pão.
Dei uma risada
— Molhar o café no pão, não, seu bobo. Bem aí a gente ficou em silêncio e ele me olhava me estudando.
— Tanto fizeste que acabaste por descobrir onde eu moro.
Fiquei meio sem jeito. Resolvi contar a verdade.
— O senhor não zanga se eu disser?
— Não. Entre amigos, não deve haver segredos...
— Eu não vim engraxando nada por aí.
— Eu sabia.
— Mas eu queria tanto... Aqui desse lado ninguém engraxa por causa da poeira. Só quem mora perto da Rio-São Paulo.
— Mas podias ter vindo sem carregar esse peso todo, não?
— Se eu não carregasse esse peso todo, não deixavam sair. Só posso sair para perto. De vez em quando, tenho que aparecer em casa, entende? Agora saindo para longe tenho que fingir que vou trabalhar.
Riu da minha lógica.
— Indo trabalhar, o povo em casa sabe que não estou fazendo arte. É melhor assim, porque não apanho tanto.
— Eu não acredito que sejas assim tão peralta como dizes.
Aí eu fiquei muito sério.
— Eu não presto para nada. Sou muito ruim. Por isso é o diabo que nasce pra mim no dia do Natal e eu não ganho nada. Sou uma peste. Uma pestinha. Um cachorro. Um traste ordinário. Uma das minhas irmãs me disse que coisa ruim como eu não devia ter nascido...
Ele coçou a cabeça admirado.
— Só essa semana já levei um punhado de surras. Umas até bem doídas. Também apanho pelo que não faço. Levo culpa de tudo. Já se acostumaram a me bater.
— Mas o que tu fazes de tão mal assim?
— Deve ser o diabo mesmo. Vem uma vontade de fazer, e... eu faço. Essa semana eu toquei fogo na cerca da Nega Eugénia. Chamei Dona Cordélia, de Pata-Choca e ela virou fera. Chutei uma bola de pano e a burra entrou pela janela e quebrou o espelho grande de Dona Narcisa. Quebrei com a baladeira três lâmpadas. Dei uma pedrada na cabeça do filho de seu Abel.
— Chega, chega.
Ele punha a mão na boca para esconder o sorriso.
— Mas ainda tem mais. Arranquei todas as mudas que Dona Tentena tinha acabado de plantar. Fiz o gato de Dona Rosena engolir uma bola de gude.
— Ah! Isso não. Não gosto de ver maltratar os animais.
— Mas não era das grandes não. Era uma bem pequeninha. Deram um purgante no bicho e ela saiu. Em vez de me darem a bola de novo, me deram foi uma surra danada. Pior foi quando eu estava dormindo e Papai pegou o tamanco e me sapecou. Eu nem sabia por que apanhava.
— E por que foi?
— A gente foi, uma meninada inteira, ver um filme. Entramos na segunda porque é mais barato. Aí eu tive vontade, sabe?... e fiquei bem no canto da parede e fiz. Foi aquela água escorrendo. É bobagem a gente sair e perder um pedaço da fita. Mas o senhor sabe o que é menino. Basta um fazer e todos os outros ficam com vontade. Foi todo mundo tocando para o cantinho e foi aquele rio. No fim descobriram e já sabe: foi o filho de seu Paulo. Aí me proibiram por um ano, até eu criar juízo, de entrar no Cinema Bangu. De noite o dono contou pra Papai e ele não achou graça nenhuma... eu que diga.
Mesmo assim Minguinho continuava emburrado.
— Olha Minguinho, não precisa ficar desse jeito. Ele é meu maior amigo. Mas você é o rei absoluto das árvores, como Luís é o rei absoluto dos meus irmãos. Você precisa saber que o coração da gente tem que ser muito grande e caber tudo que a gente gosta.
Silêncio.
— Sabe de uma coisa, Minguinho? Vou jogar bola de gude. Você anda muito enjoado.
No começo o segredo existiu só porque eu tinha vergonha de ser visto no carro do homem que me dera umas palmadas. Depois persistiu porque sempre era bom existir um segredo. E o Português fazia todas as minhas vontades nesse aspecto.
Tínhamos jurado, de morte, que ninguém deveria saber da nossa amizade. Primeiro, porque não queria dar carona à garotada.
Quando vinha gente conhecida, ou mesmo Totoca, eu me abaixava. Segundo, porque ninguém devia atrapalhar o mundo de conversas que a gente tinha para conversar.
— O senhor nunca viu minha Mãe? Pois ela é índia. Filha de índio mesmo. Todos lá em casa são meio índios.
— E como saíste clarito assim? E ainda por cima com estes cabelos loiros, quase brancos?
— É a parte de Português. Pois Mamãe é índia. Bem morena e de cabelos lisos. Só Glória e eu é que saímos assim gato-ruço-de-mau-pêlo. Ela trabalha nos teares do Moinho Inglês para ajudar a pagar a casa. Ela, no outro dia, foi suspender uma caixa de espulas e sentiu uma dor danada. Precisou ir ao médico. O médico deu uma cinta a ela por causa de uma hérnia que rebentou. Sabe que Mamãe até que é boazinha comigo. Quando me bate, pega aquelas varinhas de guanxuma do quintal e me acerta nas pernas só. Ela vive tão cansada que quando chega em casa de noite, nem tem vontade de conversar.
E o carro andava e eu tagarelava.
— Danada é minha irmã mais velha. Namoradeira que não tem fim. Quando Mamãe mandava ela tomar conta da gente e passear, recomendava que não fosse para cima da rua, porque sabia que na esquina ela tinha um namorado esperando. Pois ela ia para o lado de baixo e tinha outro namorado esperando também. Lápis nem podia existir, porque ela vivia escrevendo cartas pro namorado...
— Chegamos...
Estávamos perto do Mercado e ele parava no lugar combinado.
— Até amanhã, Pirralho.
Ele sabia que eu ia arranjar um jeito de dar um pulinho no ponto de estacionamento e tomar refresco e ganhar figurinhas. Eu já conhecia até os horários em que ele não tinha muito o que fazer.
E esse jogo já durava mais de um mês. Muito mais. Agora nunca pensei que ele pudesse ficar com aquela cara de gente grande triste como quando contei as histórias de Natal. Ficou até com os olhos cheios d'água e passou as mãos nos meus cabelos, prometendo que nunca mais eu deixaria de ganhar um presente nesse dia.
E os dias andaram sem pressa e sobretudo muito felizes. Até que lá em casa começaram a notar a minha transformação. Eu já não fazia tantas travessuras e vivia no meu mundinho de fundo de quintal. Verdade que algumas vezes o diabo vencia os meus propósitos. Mas já não dizia tantos palavrões como antigamente e deixava em paz a vizinhança.
Sempre que ele podia inventava um passeio e foi num desses passeios que ele parou o carro e sorriu para mim.
— Gostas assim de passear em “nosso” carro?
— Ele também é meu?
— Tudo que é meu é teu. Como dois grandes amigos.
Fiquei delirante. Ah se eu pudesse contar a todo mundo que era meio dono do carro mais bonito do mundo.
— Quer dizer então que agora somos completamente amigos?
— Somos.
— Então posso te perguntar uma coisa?
— Pode, sim senhor.
— Agora não vais querer, penso cá comigo, cresceres logo para me matares?
— Não. Nunca faria isso.
— Mas disseste, não?
— Disse quando estava com raiva. Eu nunca vou matar ninguém porque quando matam galinha lá em casa, eu nem gosto de ver. Depois, eu descobri que o senhor não era nada do que se dizia. Não era antropófago nem nada.
Ele quase deu um pulo.
— O que disseste?
— Antropófago mesmo.
— E sabes lá o que é isso?
— Sei, sim. Tio Edmundo me ensinou. Ele é um sábio. Tem um homem na cidade que convidou ele para fazer um dicionário. Até hoje ele só não soube me contar o que é carborundum.
— Estás fugindo do assunto. Quero que me expliques exactamente o que é antropófago.
— Antropófagos eram índios que comiam carne humana. Na história do Brasil tem uma figurinha deles descascando os portugueses para comer. Eles também comiam os outros guerreiros das tribos inimigas. É o mesmo que canibal. Só que canibal é na África e gosta muito de comer missionário barbado.
Ele soltou uma gargalhada gostosa que nenhum brasileiro sabia soltar.
— Tens uma cabecinha doiro, Pirralho. Às vezes eu até me assusto.
Depois me fitou com seriedade.
— Digá lá, Pirralho, que idade tu tens?
— De mentira ou de verdade?
— De verdade, é claro. Não quero ter um amigo mentiroso.
— É assim: de verdade tenho ainda cinco anos. De mentira, seis. Porque senão não podia entrar na Escola.
— E por que te puseram tão cedo na Escola?
— Imagine! Todo mundo queria se ver livre de mim durante umas horas. O senhor sabe o que é carborundum?
— Donde foste tirar isso?
Meti a mão no bolso e procurei entre os seixos da atiradeira, as figurinhas, o cordão do pião e bolas de gude.
— É isso.
Trazia na mão uma medalha com a cabeça de um índio. Índio da América do Norte, cheio de penas nos cabelos. Do lado de trás, estava escrita a palavra.
Ele virou na mão e revirou a medalha.
— Pois olha que eu também ignoro. Onde achaste isso?
— Isso fazia parte do relógio de Papai. Vinha amarrada com uma correia para ficar dependurada no bolso da calça. Papai disse que o relógio ia ser minha herança. Mas aí ele precisou de dinheiro e vendeu o relógio. Um relógio tão lindo. Me deu o resto da herança que era isso. Cortei a correia porque tinha um cheiro azedo danado.
Tornou a alisar os meus cabelos.
— És um menininho muito complicado, mas confesso que estás enchendo de alegria o velho coração de um Português. Lá isso, estás. Vamos agora?
— Está tão bom. Só um bocadinho mais. Eu preciso falar uma coisa muito séria.
— Então, fala.
— A gente é amigo que não pode mais, não é?
— Não há dúvida.
— Até o carro já é meio meu, não foi?
— Um dia será teu, inteiro.
— É que...
Estava custando a sair.
— Vamos, empacaste? Não és disso...
— Não fica zangado?
— Garanto.
— Tem duas coisas na nossa amizade que eu não gosto.
Mas não saía tão fácil como planejara.
— Quais são?
— Primeiro, se nós somos dois grandes amigos, como é que eu tenho de chamar senhor pra lá, senhor pra cá...
Ele riu.
— Pois me trata como quiseres. Por você, por tu...
— Tu, não, é muito difícil; sou capaz de repetir todas as conversas nossas para Minguinho. Mas quando vou eu falar de tu, não acerto. Melhor você. Não ficou zangado?
— Ora! Por quê? É um pedido muito justo até. Quem é esse Minguinho que eu nunca ouvi falar?
— Minguinho é Xururuca.
— Bem, Xururuca é Minguinho e Minguinho é Xururuca. Fiquei na mesma.
— Minguinho é o meu pé de Laranja Lima. Quando eu quero muito bem a ele eu chamo de Xururuca.
— Então possuis um pé de Laranja Lima que se chama Minguinho.
— E ele é um danado. Ele fala comigo, vira cavalo, sai com a gente. Com Buck Jones, com Tom Mix... Com Fred Thompson... Você... (os primeiros vocês foram duros de dizer, mas eu tinha decidido ... ) Você gosta de Ken Maynard?
Ele fez um gesto de desentendido sobre cowboy de cinema.
— Outro dia Fred Thompson me apresentou a ele. Gostei muito do chapelão de couro que ele usa. Mas ele parece que não sabe rir...
— Vamos embora, que estou ficando tonto com esse mundo que existe na tua cabecinha. E a outra coisa?
— A outra coisa é mais difícil ainda. Mas já que falei do você e você não se zangou... Eu não gosto muito do seu nome. Não é que não goste, mas entre amigos fica muito...
— Virgem Santíssima, o que virá agora?
— Acha que eu posso chamar você de Valadares? Ele pensou um pouco e sorriu.
— De fato, não soa bem.
— De Manuel, eu também não gosto. Você nem pode saber como eu fico fulo quando Papai conta anedotas de Português e fala: ó Manuel... Se vê logo que o filho da mãe nunca teve um amigo português...
— Que acabaste de falar?
— Que meu pai imita português?
— Não. Antes. Uma coisa feia.
— Filho da mãe é tão feio como o outro filho?...
— Quase a mesma coisa.
— Então vou ver se não falo mais. Então?
— Eu que te pergunto. Que conclusão tiraste? Não me queres chamar de Valadares e pelo jeito de Manuel, também não.
— Tem um nome que eu acho lindo.
— Qual?
Aí eu fiz a cara mais sem vergonha do mundo.
— Como seu Ladislau e os outros chamam você na Confeitaria...
Ele fechou a mão fingindo zanga de brincadeira.
— Sabes que és o maior atrevidaço que eu conheço. Queres me chamar de Portuga, não é assim?
— Fica mais de amigo.
— É tudo quanto desejas? Pois bem. Eu to permito. Agora vamos, sim?
Ligou o motor e andou um pedaço, pensativo. Colocou a cabeça por fora da janela e olhou o caminho. Não vinha ninguém. Abriu a porta do carro e ordenou:
— Desce. Obedeci e segui-o até a traseira do carro. Apontou o pneu sobressalente.
— Agora, agarra-te bem. Mas cuidado. Aboletei-me de morcego, feliz da vida. Ele montou no carro e saiu rodando devagar.
Depois de cinco minutos parou e veio me ver.
— Gostaste?
— Como num sonho.
— Agora chega. Vamos que começa a escurecer.
A noite vinha chegando mansinha e ao longe as cigarras cantavam nos espinheiros, anunciando mais verão.
O carro rodava macio.
— Bem. De agora em diante, não se fala mais naquele assunto. Está bem?
— Nunca mais.
— Só gostaria de te ver chegando em casa e dizendo onde estiveste esse tempo todo.
— Já pensei nisso. Vou dizer que fui à aula de Catecismo. Hoje não é quinta-feira?
— Ninguém pode contigo. Tens saída para tudo. Aí eu me aproximei bem dele e encostei minha cabeça junto ao seu braço.
— Portuga
— Hum...
— Eu nunca mais quero sair de perto de você, sabe?
— Por quê?
— Porque você é a melhor pessoa do mundo. Ninguém judia de mim quando estou perto de você e sinto um “sol de felicidade dentro do meu coração”.
Duas surras memoráveis
— VOCÊ DOBRA AQUI. Agora corta com a faca o papel bem na dobra.
O ruído macio do gume da faca dividindo o papel.
— Agora cole bem de fininho deixando essa margem. Assim.
Eu estava ao lado de Totoca aprendendo a fazer um balão.
Depois de tudo colado, Totoca prendeu o balão pelo bico de cima, com um pregador de roupa, no varal.
— Só depois de bem seco que a gente faz a boca. Aprendeu, seu burrinho?
— Aprendi.
Ficamos sentados na soleira da porta da cozinha espiando o balão colorido que custava a secar. Aí Totoca enfronhado na qualidade de mestre ia explicando:
— Balão-tangerina a gente só deve fazer depois de muita prática; no começo você deve fazer de dois gomos que é mais fácil.
— Totoca, se eu fizer um balão sozinho, você bota a boca pra mim?
— Depende.
Lá estava ele querendo fazer negócios. Avançar nas minhas bolas de gude ou na minha colecção de figurinhas de artista de cinema que “ninguém compreendia como crescia tanto”.
— Puxa, Totoca, quando você me pede, eu até brigo por você.
— Está bem. A primeira eu faço de graça e se você não aprender, as outras só na base da troca.
— Está certo.
Naquele momento eu tinha jurado comigo mesmo que ia aprender tanto, que nunca mais ele iria botar as mãos nos meus balões.
Aí o meu balão não me saiu mais da idéia. Tinha que ser o “meu” balão. Imagine o orgulho do Portuga quando eu contasse a proeza. A admiração de Xururuca quando visse o bicho balançando em minhas mãos...
Dominado pela idéia, enchi os bolsos de bolas de gude e algumas figurinhas repetidas e ganhei o mundo da rua. Ia vender bola de gude e figurinhas o mais barato possível para poder comprar pelo menos duas folhas de papel de seda.
— Vamos, minha gente! Cinco bolas por um tostão. Novinhas como se viessem da loja!
E nada.
— Dez figurinhas por um tostão. Vocês não compram nem no armarinho de Dona Lota.
Nada. O mundo da molecada estava completamente sem dinheiro. Fui para a Rua Progresso de cima a baixo oferecendo mercadoria. Visitei a Rua Barão de Capanema quase trotando, mas nada. Se eu fosse na casa de Dindinha? Fui lá, mas minha avó nem se interessou.
— Não quero comprar figurinhas nem bolas de gude. É melhor que você as guarde. Porque amanhã você vem e me pede para comprar de novo.
Na certa Dindinha estava sem dinheiro. Ganhei a rua e olhei para as minhas pernas. Estavam sujas de tanto eu apanhar poeira de rua. Olhei o sol que já começava a abaixar. Foi quando aconteceu o milagre.
— Zezé! Zezé!
Biriquinho vinha correndo como um louco em minha direção.
— Estou procurando você por toda parte. Você está vendendo?
Sacudi os bolsos balançando as bolas.
— Vamos sentar.
Sentamos ao mesmo tempo e esparramei no chão a mercadoria.
— Quanto?
— Cinco bolas a um tostão e dez figurinhas pelo mesmo preço.
— Está caro.
Já ia me enfezar. Ladrão desgraçado! Caro quando todo mundo vendia cinco figurinhas e três bolas pelo que estava pedindo. Já ia guardar tudo no bolso.
— Espere. Posso escolher?
— Quanto você tem?
— Trezentos réis. Duzentos eu posso gastar.
— Pois bem, te dou seis bolas e doze figurinhas.
Entrei voando na venda do Miséria e Fome. Ninguém se lembrava mais “daquela cena”. Só havia seu Orlando conversando junto do balcão. Quando a Fábrica apitasse, aí sim, o pessoal vinha todo tomar uma bicada e ninguém poderia mais entrar.
— O senhor tem papel de seda?
— E você tem dinheiro? Na conta de seu Pai, você não leva mais nada.
Não me ofendi. Apenas mostrei os dois níqueis de tostão.
— Só tem cor-de-rosa e cor de abóbora.
— Só?
— Com o tempo do papagaio vocês mesmos me levaram tudo. Mas que diferença faz? Papagaio de qualquer cor sobe, não sobe?
— Mas não é para papagaio. Eu vou fazer o meu primeiro balão.
Queria que o meu primeiro balão fosse o balão mais bonito do mundo.
Não havia tempo a perder. Se corresse até o armazém do Chico Franco perdia muito tempo.
— Vai assim mesmo.
Agora a coisa era diferente. Botei uma cadeira junto da mesa e trepei o rei Luís para espiar.
— Você fica quietinho, promete? Zezé. vai fazer uma coisa dificílima. Quando você crescer eu lhe ensino sem cobrar nada.
Começou a escurecer rapidamente, e a gente trabalhando. A Fábrica apitou. Precisava andar depressa. Jandira já estava colocando os pratos na mesa. Ela tinha a mania de dar a comida pra gente mais cedo, para ninguém amolar os mais velhos.
— Zezé!... Luís!...
O berro vinha tão forte como se a gente estivesse lá pelos lados do Murundu. Desci Luís e falei:
— Vai indo na frente que eu já vou.
— Zezé!... Venha logo, senão vai ter.
— Já vou já!
A diaba estava de mau humor. Devia ter brigado com um dos seus namorados. Ou o da ponta da rua ou o do começo.
Agora, parecia de propósito, a cola estava ficando seca e a farinha grudava nos dedos dificultando o trabalho.
O berro veio mais forte. Quase não havia mais luz para o meu trabalho.
— Zezé!...
Pronto. Estava perdido. Ela veio de lá, furiosa.
— Pensa que eu sou sua empregada? Venha comer logo.
Invadiu a sala e me agarrou pelas orelhas. Foi me arrastando até a sala e me atirou contra a mesa. Aí eu me danei.
— Não janto. Não janto. Não janto. Eu quero é acabar o meu balão.
Escorreguei e voltei correndo para o lugar anterior. Ela virou fera. Em vez de avançar para mim, caminhou em direção da mesa. E era uma vez um belo sonho. Meu balão inacabado se transformara em tiras se rasgando. Não satisfeita com isso (e tamanho foi o meu estupor, que nada fiz) ela me pegou pelas pernas, pelos braços e me atirou no meio da sala.
— Quando eu falo é para obedecer.
O diabo se soltou dentro de mim. A revolta estourou como um furacão. No começo veio uma simples rajada.
— Sabe o que você é? É uma puta!
Ela colou o rosto ao meu. Seus olhos dispendiam fagulhas.
— Repete se você tem coragem.
Destaquei bem as sílabas.
— Pu-ta!
Ela apanhou a mão de couro sobre a cómoda e começou a me bater sem piedade. Virei as costas e escondi a cabeça entre as mãos. A dor era menor que a minha raiva.
— Puta! Puta! Filha de uma puta!...
Ela não parava e meu corpo era uma só dor de fogo. Foi quando entrou Antônio. E correu em auxílio de minha irmã que estava começando a cansar de tanto me bater.
— Mata, assassina! A cadeia está aí para me vingar!
E ela batia, batia a ponto de eu ter caído de joelhos, me apoiando na cómoda.
— Puta! Filha da puta.
Totoca me suspendeu e me virou para a frente.
— Cala a boca, Zezé, você não pode xingar assim a sua irmã.
— Ela é uma puta. Assassina. Uma filha da puta!
Então ele começou a me bater na cara, nos olhos, no nariz e na boca. Sobretudo na boca...
Minha salvação foi Glória ter ouvido. Ela estava no vizinho, conversando com Dona Rosena e veio voando, atraída pela gritaria. Penetrou na sala como um furacão. Glória não era de brincadeira e quando viu que o sangue lavava minha cara, empurrou Totoca para o lado e nem se importou que Jandira fosse mais velha, afastando-a com um safanão. Eu jazia no chão sem quase poder abrir os olhos e respirando com dificuldade. Levou-me para o quarto. Eu nem chorava, mas em compensação o rei Luís tinha se escondido no quarto de Mamãe e fazia um berreiro terrível. De medo e por que estavam judiando de mim.
Glória invectivava,
— Um dia vocês matam essa criança e eu quero ver! Vocês são uns monstros sem coração.
Me deitara na cama e ia providenciar a santa bacia de salmoura. Totoca entrou sem jeito no quarto. Glória o empurrou.
— Sai pra lá, seu covarde!
— Você não ouviu o que ele estava xingando?
— Ele não estava fazendo nada. Vocês é que provocaram. Quando eu saí ele estava quietinho fazendo o seu balão. Vocês não têm é coração. Como se pode bater tanto num irmão?
E conforme me limpava o sangue, eu cuspi na bacia um pedaço de dente. Aquilo tocou fogo no vulcão.
— Veja o que você fez, seu medroso. Quando você quer brigar, tem medo e chama ele. Seu cagão! Com nove anos e ainda mija na cama. Eu vou mostrar pra todo mundo o seu colchão e suas calças mijadas que você esconde na gaveta todas as manhãs.
Depois ela botou todo mundo para fora do quarto e trancou a porta. Acendeu a luz porque a noite viera completa.
Tirou minha camisa e ficou lavando as manchas e os lanhos do meu corpo.
— Dói, Gum?
— Dessa vez está doendo muito.
— Eu faço bem de leve, meu diabinho querido. Você precisa ficar de bruços um bocadinho de tempo para secar, senão a roupa gruda e dói.
Mas o que doía mesmo era o rosto. Doía de dor e de raiva ante tanta maldade sem motivo.
Depois que as coisas melhoraram ela deitou-se ao meu lado e ficou alisando a minha cabeça.
— Você viu, Godóia. Eu não estava fazendo nada. Quando eu mereço eu não me importo de apanhar. Mas eu não estava fazendo nada.
Ela engoliu em seco.
— O mais triste foi o meu balão. Estava ficando tão lindo. Pergunte só a Luís.
— Eu acredito. Ia ser lindo mesmo. Mas não faz mal. Amanhã a gente vai à casa de Dindinha e compra papel de seda. E vou ajudar a você a fazer o balão mais bonito do mundo. Tão bonito que até as estrelas vão ficar com inveja.
— Não adianta, Godóia. A gente só faz um primeiro balão bonito. Quando esse não presta, nunca mais acerta ou tem vontade de fazer.
— Um dia... um dia... eu vou levar você para longe dessa casa. A gente vai morar...
Embatucou. Na certa, pensara na casa de Dindinha, mas lá seria o mesmo inferno. Foi então que ela resolveu participar diretamente do meu pé de Laranja Lima e dos meus sonhos.
— Eu levo você para morar no rancho de Tom Mix ou Buck Jones.
— Mas eu gosto ainda mais de Fred Thompson.
— Pois nós vamos para lá.
E completamente desamparados, começamos a chorar juntos e baixinho...
Durante dois dias, apesar da minha saudade, não fui ver o Português. Nem deixavam que eu fosse à Escola. Ninguém queria testemunho de tanta brutalidade. Logo que meu rosto desinchasse e meus lábios cicatrizassem eu recomeçaria o meu ritmo de vida. Passava os dias sentado com o meu irmãozinho junto de Minguinho, sem vontade de conversar. Com medo de tudo. Papai tinha me jurado que me moeria de pancada se eu repetisse outra vez o que dissera à Jandira. De modo que eu respirava até com medo. Melhor era me refugiar na pequena sombra do meu pé de Laranja Lima. Ficar vendo as montanhas de figurinhas que o Portuga me dava e ensinar com paciência o rei Luís jogar bolinhas de gude. Ele era meio sem jeito, mas um belo dia acabaria por aprender.
Entretanto minha saudade era muito grande. O Portuga deveria estranhar a minha ausência e se ele soubesse realmente onde eu morava, era até capaz de me vir procurar. Fazia falta ao meu ouvido, à ternura daquele jeito de falar meio carregado e cheio de “tu”. D. Cecília Paim me dissera que a gente para tratar os outros de tu, precisava saber muita gramática.
Estava fazendo falta também à saudade dos meus olhos, o seu rosto moreno, a sua roupa escura sempre impecável, a gola da camisa sempre durinha como se houvesse saído da gaveta naquele momento, o seu colete de xadrezinho, até as suas abotoaduras douradas em formato de âncora.
Mas logo, logo, estaria bom. Ferimento de criança cicatrizava logo, muito antes do que aquela frase que costumavam citar: quando casar, sara.
Naquela noite Papai não saíra. Ninguém se encontrava em casa, salvo Luís que já dormia. Mamãe deveria estar chegando da cidade. Tinha vezes que ela fazia serão no Moinho Inglês que a gente só a via aos domingos.
Eu resolvera ficar perto de Papai, porque assim não faria arte alguma. Ele se sentara na cadeira de balanço e olhava perdidamente para a parede. Seu rosto sempre com a barba por fazer. Sua camisa nem sempre muito limpa.
Quer ver que não saíra para jogar Manilha com os amigos porque não tinha dinheiro. Pobre Papai, devia ser triste, saber que Mamãe trabalhava para ajudar a sustentar a casa.
Lalá já entrara para a Fábrica. Devia ser duro ir procurar uma porção de empregos e voltar desanimado sempre com aquela resposta: Precisamos de uma pessoa mais moça...
Sentado da soleira da porta eu contava as lagartixinhas branquicelas na parede e desviava a vista para olhar Papai.
Somente naquela manhã do Natal eu o vira tão triste.
Precisava fazer alguma coisa por ele. E se eu cantasse? Eu poderia cantar bem baixinho que iria, tinha certeza, melhorar o seu abandono. Passei o repertório na cabeça e me lembrei da última música que aprendera com seu Ariovaldo. O tango; o tango era das coisas mais bonitas que eu já ouvira. Comecei baixinho:
Eu quero uma mulher bem nua
Bem nua eu a quero ter...
De noite no clarão da lua
Eu quero o corpo da mulher...”
— Zezé!
— Pronto, Papai.
Levantei-me prestamente. Papai devia estar gostando muito e queria que eu viesse cantar perto.
— Que é que você está cantando?
Repeti.
— “Eu quero uma mulher bem nua...”
— Quem ensinou essa música a você?
Seus olhos tinham adquirido um brilho fosco como se fosse ficar louco.
— Foi seu Ariovaldo.
— Eu já disse que não queria que andasse na sua companhia.
Ele não dissera nada. Acho que nem sabia que eu trabalhava de ajudante de cantor.
— Repita de novo a canção.
— É um tango da moda: “Eu quero uma mulher bem nua...”
Uma bofetada estalou no meu rosto.
— Canta de novo:
— “Eu quero uma mulher bem nua...”
Outra bofetada, outra, mais outra. As lágrimas pulavam dos meus olhos sem querer.
— Vamos, continua a cantar:
— “Eu quero uma mulher bem nua...”
Meu rosto quase não se podia mexer, era arremessado. Meus olhos abriam-se para se tornar a fechar com o impacto das bofetadas. Eu não sabia se devia parar ou se tinha de obedecer... Mas na minha dor tinha resolvido uma coisa. Seria a última surra que eu levaria, seria a última mesmo que morresse para isso.
Quando ele parou um pouco e mandou cantar, eu não cantei.
Olhei Papai com um desprezo enorme e falei:
— Assassino!... Mate de uma vez. A cadeia está aí para me vingar.
Tomado de fúria, só então ele se ergueu da cadeira de balanço. Desabotoou o cinto. Aquele cinto que tinha duas rodelas de metal e começou a me xingar apoplético. De cachorro, de porcaria, de traste vagabundo, se era assim que falava do seu Pai.
O cinto zunia com uma força danada sobre o meu corpo. Parecia que o cinto tinha mil dedos que me acertavam em qualquer parte do corpo. Eu fui caindo, me encolhendo no cantinho da parede. Estava certo que ele ia me matar mesmo. Ainda pude ouvir a voz de Glória que entrava para me salvar. Glória, a única ruça como eu. Glória que ninguém tocava. Ela segurou a mão de Papai e segurou o golpe.
— Papai. Papai. Por amor de Deus, me bata, mas não bata mais nessa criança.
Ele jogou o cinto sobre a mesa e passou as mãos sobre o rosto. Chorava por ele e por mim.
— Eu perdi a cabeça. Pensei que ele estava caçoando de mim. Fazendo pouco caso.
Quando Glória me apanhou do chão, eu desmaiei. Quando eu me apercebi das coisas, ardia em febre. Mamãe e Glória estavam à minha cabeceira e me diziam coisas carinhosas. Na sala havia movimento de muita gente. Até Dindinha tinha sido chamada. Eu doía todo a cada movimento. Depois eu soube que queriam chamar o médico, mas não ficava bem.
Glória me trouxe um caldo que fizera e tentou me dar algumas colheradas. Mal podia respirar, quanto mais engolir. Ficava numa sonolência danada e quando acordava a dor ia diminuindo.
Mas Mamãe e Glória continuavam me velando. Mamãe passou a noite comigo e só bem de madrugada se levantou para preparar-se.
Precisava ir trabalhar. Quando ela veio se despedir de mim eu me agarrei ao seu pescoço.
— Não vai ser nada, meu filho. Amanhã você ficará bom...
— Mamãe...
Falei baixinho, talvez a maior acusação da vida.
— Mamãe, eu não devia ter nascido. Devia ter sido como o meu balão...
Ela alisou tristemente a minha cabeça.
— Todo mundo deve ter nascido como nasceu. Você também. Só que às vezes você, Zezé, é levado demais...
Suave e estranho pedido
UMA SEMANA foi preciso para que eu me recuperasse todo. Não provinha das dores nem das pancadas o meu desânimo. Verdade que em casa começaram a me tratar bem que dava para desconfiar. Mas faltava qualquer coisa. Qualquer coisa importante que me fizesse voltar a ser o mesmo, talvez a acreditar nas pessoas, na bondade delas. Eu ficava tão quietinho, sem vontade de nada, sentado quase sempre perto de Minguinho, olhando a vida, perdido no desinteresse. Nada de conversar com ele nem de ouvir as suas histórias. O mais que acontecia era deixar meu irmãozinho ficar perto de mim. Fazer bondinho de Pão de Açúcar que ele adorava com os botões, e deixá-lo subir e descer os cem bondinhos, o dia inteiro. Eu o olhava com uma ternura imensa, porque quando eu era criança, como ele, também gostava daquilo...
Glória estava preocupada com o meu mutismo. Punha ela mesmo meu monte de figurinhas, meu saquinho de bolas de gude perto e às vezes eu nem mexia. Não sentia vontade de ir ao cinema, nem de sair engraxando sapatos. A realidade era que não conseguia deixar de esticar a minha dor de dentro. De bichinho batido maldosamente, sem saber por quê...
Glória perguntava pelo meu mundo de fantasias.
— Eles não estão. Foram para longe...
Estava certamente me referindo a Fred Thompson e aos outros amigos.
Mas ela não sabia a revolução que se realizava dentro de mim. O que eu tinha resolvido. Iria mudar de filmes. Nada mais de filmes de cowboy, nem índio nem nada. Eu de agora em diante só iria ver filme de amor, como os grandes chamavam. Filme que tivesse muito beijo, muito abraço e que todo mundo se gostasse. Já que eu só servia para apanhar, poderia pelo menos ver os outros se gostarem.
Chegou o dia que eu já podia ir para a Escola. Fui mas não para a Escola. Sabia que o Portuga passara uma semana me esperando com o “nosso” carro e naturalmente só recomeçaria a me esperar quando eu o avisasse. Ele devia estar muito preocupado com a minha ausência. Mesmo que me soubesse doente não viria me procurar. Nós tínhamos dado a nossa palavra, tínhamos feito um pacto de morte com o nosso segredo. Ninguém, só Deus, deveria saber da nossa amizade.
Junto à Confeitaria, defronte à Estação, estava o carrão lindo parado. Nasceu o primeiro raio de sol de alegria. Meu coração se adiantou na frente cavalgando a minha saudade. Ia ver o meu amigo mesmo.
Mas nesse momento um apito lindo que me deixou todo arrepiado ecoou na entrada da Estação. Era o Mangaratiba. Violento, orgulhoso, dono de todos os trilhos. Passou voando, chacoalhando os vagões naquela lindeza toda. As pessoas das janelinhas olhavam para fora. Todo mundo que viajava era feliz. Quando era criança gostava de ficar vendo o Mangaratiba passar e dar adeus que não acabava mais. Adeus até o trem sumir no fim da linha. Hoje quem estava nessa fase era Luís.
Procurei entre as mesas da Confeitaria e lá estava ele. Na última mesa para poder ver quando os fregueses chegavam.
Estava de costas, sem paletó e com o lindo colete de xadrezinho, deixando escapar as mangas alvas da camisa limpa.
Foi me dando uma fraqueza tão grande que mal eu consegui chegar perto de suas costas. Quem deu o alarme foi seu Ladislau.
— Espia, Portuga, quem está aí.
Ele virou-se devagar e abriu o rosto num sorriso de felicidade. Abriu os braços e me apertou demoradamente.
— Meu coração estava me dizendo que tu virias hoje.
Depois me olhou um certo tempo.
— Então, fujão. Onde estiveste esse tempo todo?
— Estive muito doente.
Puxou a cadeira.
— Senta-te.
Estalou o dedo chamando o garçom que já sabia o que eu gostava. Mas quando depositou o refresco e o doce, eu nem os toquei. Apoiei a cabeça sobre os braços e fiquei assim, me sentindo amolecido e triste.
— Não queres?
E como não respondesse, o Portuga suspendeu o meu rosto. Eu mordia os lábios com força e meus olhos estavam inundados.
— Ora o que é isso, Pirralho? Conta cá para o teu amigo...
— Não posso. Aqui não posso...
Seu Ladislau estava balançando a cabeça negativamente como se não compreendesse. Resolvi falar uma coisa.
— Portuga, é verdade que o carro ainda é “nosso” carro?
— É. Ainda tens dúvida?
— Você seria capaz de me levar para dar um passeio?
Ele se espantou com o pedido.
— Se queres, vamos já.
Como ele visse que meus olhos estavam mais molhados ainda, me puxou pelo braço, me levou até o carro e me sentou sem precisar abrir a porta.
Voltou para pagar a despesa e ouvi que ele conversava com seu Ladislau e os outros.
— Ninguém entende essa criança em sua casa. Nunca vi um menino com tamanha sensibilidade.
— Conta a verdade, Portuga. Você gosta muito desse diabrete.
— O que tu pensas ainda é pouco. É um Pirralho maravilhoso e inteligente.
Veio para o carro e sentou-se.
— Onde queres ir?
— Só sair daqui. A gente pode ir até o caminho do Murundu. É perto e não gasta muita gasolina.
Ele riu.
— Não és muito criança para entenderes dos problemas de gente grande?
A pobreza lá em casa era tanta que a gente desde cedo aprendia a não gastar qualquer coisa. Tudo custava muito dinheiro. Era caro.
Durante a pequena viagem ele nada disse. Deixava que eu me recuperasse. Mas quando tudo se afastou e o caminho ficou aquela maravilha de verdes capinzais ele estancou o carro, olhou-me e sorriu com aquela bondade que enchia o que faltava de bondade no resto do mundo.
— Portuga, olhe para minha cara. Cara não, focinho. Lá em casa dizem que eu tenho focinho porque não sou gente, sou bicho, sou índio Pinagé, sou filho do diabo.
— Prefiro ainda olhar tua cara.
— Mas olhe mesmo. Olhe como ainda estou todo inchado de apanhar.
Os olhos do Português adquiriram uma expressão de inquietude e pena.
— Mas porque te fizeram isso?
Fui contando, contando tudo, sem exagerar uma palavra. Quando acabei seus olhos estavam húmidos e não sabia o que fazer.
— Mas não podem bater tanto numa criancinha como tu. Ainda nem fizeste seis anos. Minha Nossa Senhora de Fátima!
— Eu sei por quê. Eu não presto mesmo. Sou tão ruim que quando chega o Natal acontece aquilo: Nasce o Menino Diabo em vez do Menino Deus!...
— Besteiras, tu és um anjinho ainda. Podes ser um tanto traquinas...
Aquela idéia fixa tornou a me angustiar a mente.
— Eu sou tão ruim que nem devia ter nascido. Eu falei isso para Mamãe outro dia.
Pela primeira vez ele gaguejou.
— Não devias ter dito essas coisas.
— Eu pedi para falar com você porque precisava muito. Eu sei que é ruim Papai com aquela idade não pode arranjar trabalho. Sei que deve doer muito. Mamãe ter que sair de madrugada, para ajudar a pagar a casa. Mamãe trabalha nos teares do Moinho Inglês. Ela usa uma cinta porque foi suspender uma caixa de espulas e ficou com aquela hérnia. Lalá é uma moça que até estudou muito e teve que virar operária da Fábrica... Tudo isso é coisa malvada. Mas também ele não precisava me bater tanto daquele jeito. No Natal, eu prometi que ele podia me bater o quanto quisesse, mas dessa vez foi demais.
Ele me encarava atônito.
— Senhora de Fátima! Como pode uma criança assim entender e sofrer com os problemas de gente grande. Nunca vi!
Engoliu um pouco da emoção.
— Somos amigos, não somos? Vamos conversar de homem para homem? Se bem que me dá calafrios às vezes falar certas coisas contigo. Pois bem, eu acho que tu não devias falar aqueles palavrões para a tua irmã. Aliás tu não devias nunca falar palavrões, sabes?
— Mas eu sou pequeno. Só assim é que eu me vingo.
— Sabes o que significam?
Fiz sim com a cabeça.
— Então nem podes e nem deves.
Fizemos uma pausa.
— Portuga!
— Hum.
— Você não gosta que eu diga palavrões?
— Simplesmente não.
— Pois bem, se eu não morrer, eu prometo a você que não xingo mais.
— Muito bem. E que negócio de morrer é esse?
— Quando chegar daqui a pouco eu conto.
Tornamos a nos calar e o Português estava cismado.
— Preciso saber de outra coisa já que confias em mim. Aquela história da música. O tal do Tango. Tu sabias o que estavas cantando?
— Eu não quero mentir para você. Eu não sabia direito. Eu aprendi porque aprendo tudo. Porque a música é muito bonita. Nem pensava no que, queria dizer ... Mas ele me bateu tanto, tanto, Portuga. Não faz mal ...
Funguei compridamente.
— Não faz mal, eu vou matar ele.
— Que é isso menino, matares teu pai?
— Vou, sim. Eu já até que comecei. Matar não quer dizer a gente pegar o revólver de Buck Jones e fazer bum! Não é isso. A gente mata no coração. Vai deixando de querer bem. E um dia a pessoa morreu.
— Que cabecinha imaginosa que tu tens.
Dizia isso mas não conseguia esconder a emoção que o assaltava.
— Mas tu também não disseste que me matavas?
— Disse no começo. Depois matei você ao contrário. Fiz você morrer nascendo no meu coração. Você é a única pessoa que eu gosto, Portuga. O único amigo que eu tenho. Não é porque me dá figurinhas, refresco, doce ou bola de gude... Juro que estou falando a verdade.
— Ora, todo mundo te quer bem. Tua mãe, mesmo o teu pai. Tua irmã Glória, o rei Luís... Por acaso, esqueceste o teu pé de Laranja Lima? o tal de Minguinho e...
— Xururuca.
— Pois então...
— Agora é diferente, Portuga. Xururuca é uma simples laranjeirinha que nem sequer sabe dar uma flor... Isso é que é a verdade... Mas você, não. Você é meu amigo e foi por isso que eu pedi para passear no nosso carro que daqui a pouco vai ser só seu. Eu vim dizer adeus para você.
— Adeus?
— Sério. Você vê, eu não presto para nada, estou cansado de sofrer pancada e puxões de orelha. Vou deixar de ser uma boca a mais...
Comecei a sentir um nó doloroso na garganta. Precisava muito de coragem para contar o resto.
— Vais fugir então?
— Não. Eu passei esta semana toda pensando nisso. Hoje de noite eu vou me atirar debaixo do Mangaratiba.
Ele nem falou. Me apertou fortemente nos braços e me confortou do jeito que só ele sabia fazer.
— Não. Não digas isso, por amor de Deus. Tens uma vida linda pela frente. Com essa cabeça e essa inteligência. Não digas assim que é pecado! Eu não quero nem que penses, nem que repitas isso. E eu? Tu não me queres bem? Se me queres e não estás mentindo, não deves falar mais assim.
Afastou-se de mim e me olhou nos olhos. Passou as costas das mãos sobre as minhas lágrimas.
— Eu te quero muito, Pirralho. Muito mais do que tu pensas. Vamos, sorri.
Sorri meio aliviado com a confissão.
— Tudo isso vai passar. Logo serás dono das ruas com teus papagaios, rei da bola de gude, um vaqueiro tão forte como Buck Jones... Demais a mais, eu pensei numa coisa. Queres saber?
— Quero.
— Sábado, não irei ver minha filha no Encantado. Ela foi passar uns dias em Paquetá com o marido. Eu tinha pensado, como o tempo está firme, em ir pescar lá no Guandu. Como estou sem um grande amigo para me acompanhar, pensei em ti.
Meus olhos se iluminaram.
— Você me levaria?
— Bem, se queres. Não és obrigado a ir. A resposta foi que encostei meu rosto no seu rosto barbeado e o apertei nos meus braços, enrodilhando o seu pescoço.
Estávamos rindo e a tragédia se afastara toda.
— Tem um lugar lindo. Levaremos alguma coisa para comer. Do que mais gostas?
— De você, Portuga.
— Falo de salames, ovos, bananas...
— Eu gosto de tudo. Lá em casa a gente aprende a gostar de tudo que tem e quando tem.
— Vamos então?
— Nem vou dormir pensando nisso. Mas havia um grave problema circundando a felicidade.
— E o que vais dizer para te afastares de casa um dia todo?
— Invento qualquer coisa.
— E se te pegam depois?
— Até o fim do mês ninguém pode me bater. Prometeram à Glória, e Glória é uma fera. É a única ruça parecida comigo.
— Verdade?
— É, sim. Eu só posso apanhar depois de um mês quando me “recuperar”.
Ligou o motor e recomeçou a marcha da volta.
— Quer dizer que aquilo, não se fala mais?
— Aquilo o quê?
— Do Mangaratiba?
— Vou demorar mais um tempo para fazer isso...
— Ainda bem.
Depois eu soube, por seu Ladislau, que apesar da minha promessa o Portuga só foi para casa depois que o Mangaratiba passou de volta. Bem tarde da noite.
A gente tinha viajado por caminhos lindos. A estrada não era larga nem asfaltada, nem calçada, mas em compensação as árvores e os capinzais eram uma beleza. Para não falar do sol e do céu alegre tão azul. Dindinha uma vez dissera que alegria é um “sol brilhante dentro do coração”. E que o sol iluminava tudo de felicidade, Se era verdade, o meu sol dentro do peito embelezava tudo...
Voltamos a conversar sobre certas coisas, enquanto o carro deslizava sem pressa nenhuma. Parecia até que ele queria escutar a conversa.
— Pois é, quando estás comigo és uma seda e bonzinho. Tu dizes que com a tua professora, como se chama mesmo ela?
— D. Cecília Paim. Sabe que ela tem uma pintinha branca num dos olhos?
Ele riu.
— Pois com D. Cecília Paim tu disseste que ela não acreditaria no que fazes fora das aulas. Com teu irmãozinho e com Glória tu és bonzinho. Então por que é que tu mudas assim?
— Isso é que não sei. Só sei que tudo que faço dá em travessura. Toda rua sabe do meu malfeito. Parece que o diabo fica soprando coisas no meu ouvido. Senão eu não inventava tanta peraltice como diz meu Tio Edmundo. Sabe o que eu fiz uma vez com Tio Edmundo? Eu nunca contei, contei?
— Não contaste.
— Pois olhe que faz bem seis meses. Ele recebeu uma rede do Norte e ficou todo prosa. Não deixava nem a gente se balançar nela, o filho da puta...
— O que disseste?
— Bem, o miserável quando acabava de dormir, desarmava ela e carregava debaixo do braço. Como se a gente fosse tirar pedaço dela. Pois um dia eu fui em casa de Dindinha e ela não me viu entrar. Devia estar com os óculos na ponta do nariz, lendo anúncio. Dei volta na casa. Espiei as goiabeiras e nada. Aí vi Tio Edmundo roncando na rede armada entre a cerca e um tronco de laranjeira. Ele roncava como um porco. A boca meio mole e aberta. O jornal tinha caído no chão. O diabo então me falou uma coisa e eu vi que tinha uma caixa com algum fósforo dentro do bolso. Rasguei uma tira de jornal sem fazer barulho. Juntei as outras folhas de jornal e risquei fogo no pavio que fizera. Quando apareceram as chamas bem embaixo da...
Fiz uma pausa e perguntei seriamente:
— Portuga, bunda eu posso falar?
— Bem. É meio palavrão e não se deve falar sempre.
— E o que a gente podia falar quando quisesse falar bunda?
— Nádegas.
— O quê? Preciso aprender essa palavra que é difícil. Nádegas. NÁ-DE-GAS. Bem, quando começou a queimar embaixo das nádegas da bunda dele eu corri, fugi pelo portão e fiquei pelo buraquinho da cerca vendo no que ia dar. Foi um berro danado. O velho deu um pulo e suspendeu a rede. Dindinha correu e ainda passou um pito nele. “Estou cansada de falar que você não deve deitar na rede fumando” — e vendo o jornal queimado ainda reclamou que não tinha lido aquele.
O Português ria gostosamente e eu estava contente de vê-lo alegre.
— Não te pegaram?
— Nem descobriram. Só contei isso pra Xururuca. Se me pegassem me cortavam o saco.
— Cortavam o quê?
— Bem, me capavam.
Ele voltou a rir e ficamos olhando a estrada. Soprava uma poeira amarela por todo canto onde o carrão passava. Mas eu estava matutando uma coisa.
— Portuga, você não me mentiu, não?
— Sobre o que, Pirralho?
— Olhe que eu nunca escutei ninguém falar: Levou um pontapé nas nádegas. Você já ouviu?
Ele tornou a rir.
— És um danadinho. Eu também nunca ouvi. Mas vá lá. Esquece as nádegas e usa em vez, traseiros. Mas vamos mudar de conversa senão acabarei sem saber o que responder-te. Espia a paisagem que vai ficar mais cheia de árvores grandes. O rio está ficando cada vez mais perto.
Ele virou para a direita e tomou um atalho. O carro foi indo, foi indo e parou bem num descampado, Só havia uma árvore grande cheia de raízes enormes.
Bati palmas de felicidade.
— Que lindo! Que lugar mais lindo! Quando me encontrar com Buck Jones vou dizer que as campinas e planícies dele, nem chegam aos pés do nosso lugar.
Ele passou a mão na minha cabeça.
— Assim é que eu quero te ver sempre. Vivendo os bons sonhos e não com caraminholas na cabeça.
Descemos do carro e ajudei a carregar as coisas para a sombra da árvore.
— Você vem sempre aqui sozinho, Portuga?
— Quase sempre. Vês? Também tenho uma árvore.
— Como é que ela se chama, Portuga? Quem tem uma árvore tão grande assim tem que batizar ela.
Ele pensou, sorriu e pensou.
— É um segredo meu, mas vou te contar. Chama-se Rainha Carlota.
— E ela fala com você?
— Falar não fala. Porque uma rainha nunca fala directamente com os seus súditos. Mas eu sempre a trato de Majestade.
— Que que é súditos?
— É o povo que obedece o que a rainha manda.
— E eu vou ser súdito seu?
Soltou uma gargalhada tão gostosa que fez vento no capinzal.
— Não, porque eu não sou rei e não mando nada. Eu sempre te pedirei as coisas.
— Mas você podia ser rei. Você tem tudo para ser rei. Todo rei é gordo como você. O rei de copas, o de espadas, o de paus e o de ouros. Todos os reis do baralho são bonitos como você, Portuga.
— Vamos. Vamos com o trabalho, senão com essa conversa comprida não se pesca nada.
Ele apanhou uma vara de pesca, uma lata onde tinha uma porção de minhocas, descalçou os sapatos e tirou o colete. Sem colete ele ficava ainda mais gordo. Apontou o rio.
— Até ali tu podes brincar. É raso. Para o outro lado não, que é muito fundo. Agora eu vou ficar ali pescando. Se quiseres ficar comigo, não podes falar. Senão os peixes fogem.
Deixei ele sentado lá e fui reinar. Descobrir coisas. Como era lindo aquele pedaço de rio. Molhei os pés e vi um mundo de sapinhos pra lá e pra cá na correnteza. Fiquei vendo a areia, os seixos e as folhas sendo puxados pela correnteza. Me lembrei de Glória.
“Deixa-me fonte, dizia
A flor a chorar
Eu fui nascida no monte
Não me leves para o mar.
Ai balanços dos meus galhos
Balanço dos galhos meus
Ai claras gotas de orvalho
Caídas do azul do céu...
E a fonte sonora e fria
Com um sussurro zombador
Por sobre a areia corria
Corria levando a flor...”
Glória tinha razão. Aquilo era a coisa mais bonita do mundo.
Pena que eu não pudesse contar pra ela que vira a poesia viver. Não era com flor, mas com uma porção de folhazinhas que caíam das árvores e iam embora para o mar. Será que o rio, esse rio vai também pro mar? Podia perguntar ao Portuga.
Não, ia atrapalhar a sua pescaria.
Mas a pescaria resultou apenas em dois lambaris que até davam dó de terem sido pescados.
O sol estava bem alto, Meu rosto se achava afogueado de tanto que eu brincava e conversava com a vida. Foi quando o Portuga veio de lá e me chamou. Vim correndo como um cabritinho.
— Mas que sujo tu estás, Pirralho.
— Brinquei de tudo. Me deitei no chão. Buli com água...
— Vamos comer. Mas tu não podes comer assim sujinho como se fosses um porquinho. Vamos, despe-te e mergulha ali naquele lugar raso.
Mas eu fiquei indeciso sem querer obedecer.
— Eu não sei nadar.
— Mas não é preciso. Vamos, eu fico perto.
Continuava parado. Não queria que ele visse...
— Não venhas me dizer que estás com vergonha de te despires perto de mim.
— Não. Não é isso...
Não tinha outra alternativa; virei-me de costas e comecei a tirar a roupa. Primeiro a camisa, depois as calças com os suspensórios de pano.
Joguei tudo no chão e virei-me súplice para ele. Realmente não disse nada mas tinha o horror e a revolta estampados nos olhos. Eu não queria que ele visse as manchas, os vergões e as cicatrizes das surras que eu tinha apanhado.
Apenas murmurou emocionado,
— Se te dói, não entra n'água.
— Agora não dói mais.
Comemos ovos, banana, salame, pão e mariolas. Isso só eu quem gostava. Fomos beber água no rio e voltamos para debaixo da Rainha Carlota.
Ele já ia se sentar, mas fiz sinal que parasse. Coloquei a mão no peito e reverenciei a árvore.
— Majestade, seu súdito o cavalheiro Manuel Valadares e o maior Guerreiro da Nação Pinagé... Nós vamos sentar debaixo da Senhora.
Rimos e nos sentamos.
O Portuga estendeu-se no chão, forrou com o colete uma raíz da árvore e falou:
— Agora, toca a tirar uma soneca.
— Mas eu não estou com vontade.
— Não importa. Não vou te deixar solto por aí, peralta como és.
Passou a mão sobre o meu peito e me fez prisioneiro. Ficamos um tempão olhando as nuvens escaparem por entre os galhos da árvore. Tinha chegado o momento. Se eu não falasse agora, nunca mais o faria.
— Portuga!
— Hum...
— Você está dormindo?
— Ainda não.
— É verdade aquilo que você disse a seu Ladislau, na Confeitaria?
— Ora, tantas coisas eu tenho dito a seu Ladislau, na Confeitaria.
— A meu respeito. Eu ouvi. Do carro eu ouvi.
— E o que ouviste?
— Que você gosta muito de mim?
— Está claro que gosto de ti. Que diferença faz?
Aí eu me virei, sem me libertar dos seus braços. Fitei os seus olhos semicerrados. Seu rosto assim ficava mais gordo e mais parecido com um rei.
— Não, mas eu quero saber com força se você gosta mesmo de mim?
— Claro, bobinho.
E me apertou mais para comprovar o que dissera.
— Eu estive pensando seriamente. Você só tem aquela filha do Encantado, não é?
— É.
— Você mora sozinho naquela casa com as duas gaiolas de passarinho, não é?
— É.
— Você disse que não tem netos, não é?
— É.
— E você disse que gosta de mim, não é?
— É.
— Então porque você não vai lá em casa e não pede para Papai me dar para você?
Ele ficou tão emocionado que se sentou e me segurou o rosto com as duas mãos.
— Tu gostarias de ser meu filhinho?
— A gente não pode escolher o pai antes de nascer. Mas se pudesse eu queria você.
— Verdade, Pirralho?
— Posso até jurar. Depois, eu seria uma pessoa a menos para comer. Eu prometo que não falo mais palavrões, nem bunda mesmo. Eu engraxo os seus sapatos, trato dos passarinhos na gaiola. Fico bonzinho de todo. Não vai haver melhor aluno na Escola. Faço tudo, tudo direitinho.
Ele nem sabia o que responder.
— Lá em casa todo mundo morre de alegria se eu for dado. Vai ser um alívio. Eu tenho uma irmã entre Glória e Antônio que foi dada pro Norte. Foi viver com uma prima, que é rica, para estudar e ser gente...
O silêncio continuava e os seus olhos estavam cheios de lágrimas.
— Se não quiserem dar, você me compra. Papai está sem dinheiro nenhum. Garanto que ele me vende. Se pedir muito caro você pode me comprar a prestações, do jeito que seu Jacob vende...
Como ele não respondesse eu voltei à antiga posição e ele também.
— Sabe, Portuga, se você não me quer, não faz mal. Eu não queria fazer você chorar...
Ele alisou demoradamente os meus cabelos.
— Não é isso, meu filho. Não é isso. A vida a gente não resolve assim de uma só manobra. Mas eu vou te propor uma coisa. Não poderei tirar-te dos teus pais nem da tua casa. Se bem que gostasse muito de o fazer. Isso não é direito. Mas de agora em diante, eu que gostava de ti como um filhinho, vou te tratar como se fosses mesmo o meu filho.
Eu me ergui exultante.
— Verdade, Portuga?
— Posso até jurar, como tu sempre dizes.
Fiz uma coisa que raramente fazia ou gostava de fazer com os meus familiares. Beijei o seu rosto gordo e bondoso...
De pedaço em pedaço é que se faz ternura
— E NENHUMA DELAS FALAVA, nem você podia montar a cavalo, Portuga?
— Nenhuma delas.
— Mas você não era criança então?
— Era. Mas nem toda criança tem a felicidade que tens de entender as árvores. E mesmo porque nem todas as árvores gostam de falar.
Riu-se afectuosamente e prosseguiu.
— Não eram bem árvores, eram parreiras e antes que me perguntes vou te explicando: Parreiras são as árvores das uvas. Onde nasce a uva. São apenas grossas trepadeiras. Que bonito quando vinham as vindimas (aí ele explicou) e o vinho que se faz no lagar (explicou de novo)...
Do jeito em que as coisas iam ele sabia explicar muita sabedoria. Tão bem como Tio Edmundo.
— Conte mais.
— Estás gostando?
— Muito. Se eu pudesse conversar com você oitocentos e cinquenta e dois mil quilómetros sem parar.
— E a gasolina para tanto?
— Era gasolina do faz de conta.
Aí ele contou do capim que vira feno no inverno e da fabricação dos queijos. Aliás, queijos não, “caijos”. Ele mudava muito a música das palavras mas eu achava que ficavam com mais música...
Ele parou de contar e deu um suspiro muito grande...
— Muito em breve gostaria de lá voltar. Talvez para esperar a minha velhice calmamente, num lugar de paz e encantamento. Folhadela, pertinho de Monreal, no meu belo Trás-os-Montes.
Só então prestei bem atenção que o Portuga era mais velho que Papai, se bem que seu rosto gordo estivesse menos marcado, brilhando sempre. Uma coisa esquisita se passou dentro de mim.
— Você está falando sério? Só então notou o meu desapontamento.
— Tolinho, isso vai demorar muito. Talvez nem aconteça mais em minha vida.
— E eu? Custou tanto para fazer você ficar do jeito que eu queria.
Meus olhos ficaram covardemente cheios de lágrimas.
— Mas tu deves admitir que às vezes a gente também possa sonhar.
— É que você não me botou no seu sonho. Ele sorriu embevecido.
— Tudo que é sonho meu, Portuga, eu boto você. Quando saio pelas verdes campinas com Tom Mix e Fred Thompson, já aluguei uma diligência para você viajar e não se cansar muito. Você está em todo canto que eu vou. De vez em quando, na aula, eu olho pra porta e penso que você chega lá e me dá adeus...
— Santo Deus! Nunca vi uma alminha tão sedenta de ternura como tu. Mas não devias te apegar tanto a mim, sabes?...
Era isso que eu estava contando para Minguinho. Minguinho era pior do que eu para gostar de conversar.
— Mas a verdade, Xururuca, é que depois que ele ficou meu pai ficou todo coruja. Tudo que eu faço, ele acha bonito. Mas acha bonito diferente. Não é como os outros que falam: esse menino vai longe. Vai longe mas a gente nunca sai de Bangu.
Olhei Minguinho com ternura. Agora que descobrira mesmo o que era ternura, em tudo que eu gostava colava ternura.
— Olhe, Minguinho, eu quero ter doze filhos e mais doze. Você entende? Os primeiros serão todos crianças e nunca vão apanhar. Os outros doze vão ficando homens. E eu pego pergunto para eles: O que é que você quer ser, meu filho? Lenhador? Então, pronto: está aqui o machado e a camisa de xadrez. Você quer ser domador de circo? Pronto: está aqui o chicote e a farda...
— E no Natal, como é que você vai fazer com tanta criança?
Também Minguinho tinha cada coisa! Interromper numa hora daquelas.
— No Natal vou ter muito dinheiro. Comprarei um caminhão de castanhas e avelãs. Nozes, figos e passas. Tanto brinquedo que até eles vão dar e emprestar pros vizinhos pobres... E vou ter muito dinheiro, porque de agora em diante quero ser rico, rico demais e ainda vou ganhar na Loteria...
Olhei desafiante Minguinho e reprovei a sua interrupção.
— Deixe acabar de contar o resto que ainda tem muito filho. Bem, meu filho, você quer ser vaqueiro? Está aqui a sela e o laço. Você quer ser maquinista do Mangaratiba? Está aqui o boné e o apito...
— Pra que o apito, Zezé? Você acaba maluquinho de tanto falar sozinho.
Totoca tinha se chegado e sentado perto de mim. Examinou com um sorriso amigo, o meu pezinho de Laranja Lima, cheio de laço e de tampinhas de cerveja. Ele estava querendo coisa.
— Zezé, você quer me emprestar quatrocentos réis?
— Não.
— Mas você tem, não tem?
— Tenho.
— E diz que não empresta sem saber para quê?
— Vou ficar riquíssimo para poder viajar para Trasos-Montes.
— Que maluquice é essa agora?
— Não conto.
— Pois engula.
— Engulo e não empresto os quatrocentos réis.
— Você é rato, tem pontaria. Amanhã você joga e ganha mais bolas para vender. Num instante recupera os quatrocentos réis.
— Mesmo assim não empresto e não venha brigar que eu estou bonzinho, sem mexer com ninguém.
— Não quero brigar. Mas é que você é o irmão que eu mais gosto. E de repente deu para ficar um monstro sem coração....
— Não estou virando monstro. Eu agora sou um troglodita sem coração.
— É o quê?
— Troglodita. Titio Edmundo me mostrou um retrato da revista. Tinha um macacão cabeludo com porrete na mão. Pois bem, Troglodita era gente do começo do mundo que vivia nas cavernas de Nem... Nem... Nem sei o que. Não consegui decorar o nome por que era estrangeiro e difícil demais...
— Tio Edmundo não devia meter tanta minhoca na sua cabeça. Mas você empresta?
— Eu nem sei se tenho...
— Puxa, Zezé, quantas vezes que a gente sai engraxando e você não faz nada, eu divido. Quantas vezes que você está cansado e eu trago a sua caixa de engraxate...
Era verdade. Totoca poucas vezes era ruim comigo. Eu sabia que ia acabar emprestando.
— Se você me emprestar eu conto duas coisas maravilhosas.
Fiquei em silêncio.
— Eu digo que o seu pé de Laranja Lima é muito mais bonito do que o meu pé de tamarindo.
— Você diz mesmo?
— Já disse. Meti a mão no bolso e sacudi as moedas.
— E as outras duas coisas?
— Sabe, Zezé, a nossa miséria vai se acabar; Papai arranjou um lugar de gerente na Fábrica de Santo Aleixo. Nós vamos ser ricos de novo, Ué! Você não ficou contente?
— Fiquei, sim, por Papai. Mas eu não quero sair de Bangu. Vou ficar morando com Dindinha. Daqui só saio para Trás-os- Montes...
— Sei. Você prefere ficar com Dindinha e tomar purgante todos os meses do que ir com a gente?
— Prefiro. Você nunca vai saber por quê... E a outra?
— Não posso falar aqui. Tem “alguém” que não pode ouvir.
Saímos e fomos para junto da privada. Mas mesmo assim ele falou baixo.
— Preciso avisar você, Zezé. Pra você ir se acostumando. A prefeitura vai alargar as ruas. Vai aterrar todos os valões e avançar no fundo de todos os quintais.
— Que que tem isso?
— Você que é tão inteligente não entendeu? É que aumentando as ruas ela vai derrubar tudo aquilo ali.
Indicou o lugar onde estava o meu pé de Laranja Lima. Fiz beiço de choro.
— Você está mentindo, não está, Totoca?
— Não precisa ficar com essa cara de choro. Ainda vão demorar muito.
Meus dedos nervosamente estavam contando as moedinhas no meu bolso.
— É mentira, não é, Totoca?
— Não. É a pura verdade. Mas você é ou não é um homem?
— Sou, sim.
Mas as lágrimas covardemente desciam pelo meu rosto. Abracei a barriga dele, implorando.
— Você vai ficar do meu lado, não, Totoca? Vou juntar muita gente para fazer guerra. Ninguém vai cortar o meu pé de Laranja Lima...
— Tá bem. Nós não deixaremos. E agora, você me empresta o dinheiro?
— É para quê?
— Como você não pode entrar no Cinema Bangu, lá está passando um filme de Tarzã. Depois eu conto tudo para você.
Peguei uma pratinha de quinhentos réis e entreguei a ele enquanto limpava os olhos com as fraldas da camisa.
— Fique com o troco. Dá para comprar balas...
Voltei para o pé de Laranja Lima sem vontade de falar só me lembrando do filme de Tarzã. Eu já o vira na véspera. Fui lá e contei para o Portuga.
— Queres ir?
— Querer bem que eu queria, mas não posso entrar no Cinema Bangu.
Lembrei por que não podia. Ele riu.
— Essa cabecinha não está inventando coisas?
— Juro, Portuga. Mas eu acho que se uma pessoa grande fosse comigo, ninguém diria nada.
— E se essa pessoa grande fosse eu... É isso o que tu queres?
Meu rosto iluminou-se de felicidade.
— Mas eu tenho que trabalhar, meu filho.
— Essa hora nunca tem movimento. Em vez de você ficar conversando ou cochilando no carro, ia ver Tarzã lutando com leopardo, jacaré e gorilas. Sabe quem trabalha? É Frank Merrifi.
Mas ele ainda estava indeciso.
— Tu és um diabrete. Tens ardis para tudo.
— Só são duas horas. Você já é muito rico, Portuga.
— Então vamos. Mas vamos a pé. Vou deixar o meu carro estacionado cá no ponto.
E fomos. Mas na bilheteria a moça disse que tinha ordens terminantes de não me deixar entrar por um ano.
— Eu me responsabilizo por ele. Isso foi antigamente, agora ele criou juízo.
A bilheteira me olhou e eu sorri para ela. Peguei, dei um beijo na ponta dos dedos e soprei para ela.
— Olhe lá, Zezé. Se você se comporta mal eu perco meu emprego.
Era isso o que eu não estava com vontade de contar para Minguinho, mas não demorou muito e acabei contando.
O Mangaratiba
QUANDO DONA CECÍLIA PAIM perguntou se alguém queria ir ao quadro-negro escrever uma frase, mas uma frase que fosse invenção do aluno, ninguém se atreveu. Mas eu pensei uma coisa e levantei o dedo.
— Quer vir, Zezé? Saí da carteira e me dirigi para o quadronegro enquanto ouvia orgulhoso o seu comentário.
— Vocês viram? Logo o menorzinho da turma. Eu nãoalcançava nem na metade do quadro. Peguei o giz e caprichei na letra.
“Faltam poucos dias para chegarem as férias”.
Olhei para ela vendo se havia algum erro. Ela sorria contente e sobre a mesa existia o copo vazio. Vazio, mas com a rosa da imaginação como ela dissera. Talvez porque D. Cecília Paim não fosse bonita, era raro alguém levar uma flor para ela.
Voltei para a minha carteira contente da minha frase.
Contente porque quando as férias chegassem eu ia passear pra burro com o Portuga.
Depois apareceram outros decididos para escrever uma frase.
Mas o herói tinha sido eu.
Alguém pediu licença para entrar na aula. Um atrasado. Era o Jerónimo. Chegou estabanado e sentou-se bem por trás de mim.
Colocou os livros com barulho e comentou para o vizinho. Não prestei bem atenção. Queria era estudar direitinho para ser sábio, mas uma palavra da conversa sussurrada me chamou a atenção. Falaram em Mangaratiba.
— Pegou o carro?
— O carrão. Aquele bonito do seu Manuel Valadares, Virei-me atarantado.
— Que f oi que você disse?
— Disse isso: que o Mangaratiba pegou o carro do Português na passagem da Rua da Chita. Foi por isso que eu cheguei tarde. O trem esmigalhou o carro. Tem gente à beça. Chamaram até o Corpo de Bombeiros de Realengo.
Comecei a suar frio e meus olhos ameaçavam ficar escuros.
Jerónimo continuava respondendo às perguntas do vizinho.
— Não sei se morreu. Não deixavam criança chegar perto.
Fui me levantando sem sentir. Aquela vontade de vomitar me atacando enquanto o corpo estava molhado de suor frio. Saí da carteira e caminhei para a porta da saída. Nem reparei direito no rosto de Dona Cecília Paim que viera ao meu encontro espantada talvez com a minha palidez.
— O que foi, Zezé?
Mas eu não podia responder. Meus olhos começavam a se encher de lágrimas. Então me deu a loucura enorme, comecei a correr e sem pensar na sala da directora, continuei correndo. Alcancei a rua e me esqueci da Rio-São Paulo, de tudo. Só queria correr, correr e chegar lá. Meu coração doía mais do que o estômago e corri toda a Rua das Casinhas sem parar. Alcancei a Confeitaria e relanceei a vista pelos carros, para ver se Jerónimo não mentira. Mas o nosso carro não se encontrava lá.
Soltei um gemido e recomecei a correr. Fui agarrado pelos braços fortes de seu Ladislau,
— Onde você vai, Zezé?
As lágrimas molhavam o meu rosto.
— Vou lá.
— Você não tem que ir.
Esperneei como um louco mas não conseguia me livrar dos seus braços.
— Fique calmo, meu filho. Eu não deixarei você ir lá.
— Então o Mangaratiba matou ele...
— Não. A assistência já veio. Só estragou muito o automóvel.
— O senhor está mentindo, seu Ladislau.
— Por que ia mentir? Não contei que o trem pegou o automóvel? Pois bem, quando ele puder receber visitas no hospital, eu levo você, prometo. Agora vamos tomar um refresco.
Pegou um lenço e enxugou meu suor.
— Eu preciso vomitar um pouco.
Encostei na parede e ele ajudou a segurar minha cabeça.
— Está melhor, Zezé? Fiz que sim com a cabeça.
— Vou levar você em casa, quer? Fiz que não com a cabeça e saí andando devagarzinho, completamente desorientado. Sabia de toda a verdade.
O Mangaratiba não perdoava nada. Era o trem mais forte que havia. Vomitei mais umas duas vezes e pude ver que ninguém se incomodava comigo. Que não havia mais ninguém na vida. Não voltei para a Escola, fui seguindo o que o coração mandava.
De vez em quando fungava e enxugava o rosto na blusa do uniforme. Nunca mais iria ver o meu Portuga. Nunca mais; ele se fora. Fui andando, fui andando. Parei na estrada onde ele deixou que o chamasse de Portuga e me colocou de morcego.
Sentei num tronco de árvore e me encolhi todo, encostando o rosto nos joelhos.
Surgiu um desabafo grande que eu nem esperava.
Você é malvado, Menino Jesus. Eu que pensei que você ia nascer Deus essa vez e você faz isso comigo? Por que você não gosta de mim como dos outros meninos? Eu fiquei bonzinho. Não briguei mais, estudei as lições, deixei de falar palavrão. Nem bunda mais eu falava. Por que você faz isso comigo, Menino Jesus? Vão cortar o meu pé de Laranja Lima e nem por isso eu me zanguei. Só chorei um pouquinho... E agora... E agora... Nova enxurrada de lágrimas.
— Eu quero o meu Portuga de volta, Menino Jesus. Você tem que me dar o meu Portuga de volta...
Aí uma voz muito suave, muito doce, falou para o meu coração. Devia ser a voz amiga da árvore em que eu me sentara.
— Não chore, menininho. Ele foi pro céu.
Quando estava ficando de noite, já sem forças, sem poder mesmo vomitar mais ou chorar, eu fui encontrado por Totoca sentado no degrau da entrada da Dona Helena Villas-Boas.
Ele falou comigo e eu só pude gemer.
— Que é que você tem, Zezé? Fale comigo. Mas eu continuava gemendo baixinho. Totoca pôs a mão na minha testa.
— Você está ardendo de lebre. O que foi, Zezé? Venha comigo, vamos para casa. Eu ajudo a você ir devagarzinho.
Consegui falar entre gemidos.
— Deixe, Totoca. Eu não vou mais para aquela casa.
— Vai, sim. É a nossa casa.
— Eu não tenho mais nada lá. Tudo acabou. Tentou ajudar a levantar-me mas viu que eu não tinha mais forças.
Enrodilhou os meus braços no seu pescoço e me carregou nos braços. Entrou em casa e me deitou na cama.
— Jandira! Glória! Onde está essa gente?
Foi encontrar Jandira conversando na casa de Alaíde.
— Jandira, Zezé está muito doente. Ela veio resmungando.
— Deve ser fita de novo. Umas boas chineladas...
Mas Totoca entrara no quarto nervoso.
— Não, Jandira. Dessa vez ele está muito doente e vai morrer...
Durante três dias e três noites, fiquei sem querer nada. Só a febre me devorando e o vómito que me atacava quando tentavam me dar coisa para comer ou beber. Ia definhando, definhando.
Ficava de olhos espiando a parede sem me mexer horas e horas.
Ouvia o que falavam a meu redor. Entendia tudo, mas não queria responder. Não queria falar. Só pensava em ir para o céu.
Glória mudou de quarto e passava as noites a meu lado. Não deixava nem apagar a luz. Todo mundo só usou doçura. Até Dindinha veio passar uns dias com a gente.
Totoca ficava horas e horas com os olhos arregalados, me falando, de vez em quando.
— Foi mentira, Zezé. Pode me acreditar. Foi tudo maldade. Não vão aumentar nem a rua nem nada...
A casa foi-se vestindo de silêncio como se a morte tivesse passos de seda. Não faziam barulho. Todo mundo falava baixo.
Mamãe ficava quase toda a noite perto de mim. E eu não me esquecia dele. Das suas risadas. Da sua fala diferente. Até os grilos lá fora imitavam. o réquete, réquete da sua barba.
Não podia deixar de pensar nele. Agora sabia mesmo o que era a dor. Dor não era apanhar de desmaiar. Não era cortar o pé com caco de vidro e levar pontos na farmácia. Dor era aquilo, que doía o coração todinho, que a gente tinha que morrer com ela, sem poder contar para ninguém o segredo. Dor que dava desânimo nos braços, na cabeça, até na vontade de virar a cabeça no travesseiro.
E a coisa piorava. Meus ossos estavam saltando da pele.
Chamaram o médico. Dr. Faulhaber veio e me examinou. Não demorou muito a descobrir.
— Foi um choque. Um trauma muito forte. Ele só viverá se conseguir vencer esse choque.
Glória levou o médico para fora e contou.
— Foi choque mesmo, doutor. Desde que ele soube que iam cortar o pé de Laranja Lima, ficou assim.
— Então precisam convencê-lo de que não é verdade.
— Já tentamos de todas as maneiras, mas ele não acredita. Para ele o pezinho de laranja é gente. É um menino muito estranho. Muito sensível e precoce.
Eu ouvia tudo e continuava desinteressado de viver. Queria ir pro céu e ninguém vivo ia para lá.
Compraram remédios, mas eu continuava vomitando. Foi então que aconteceu uma coisa linda. A rua se movimentou para me visitar. Esqueceram que eu era o diabo em figura de gente.
Veio seu Miséria e Fome e me trouxe doce de maria-mole. A Nega Eugénia me trouxe ovos e me rezou a barriga para deixar de vomitar.
— O filho de seu Paulo está morrendo...
Me diziam coisas agradáveis.
— Você precisa ficar bom, Zezé. Sem você e suas diabruras a rua fica uma tristeza.
Dona Cecília Paim veio me ver, trazendo a minha sacolinha e uma flor. Aquilo só serviu para voltar a chorar de novo.
Ela contava como eu saíra da aula e só sabia daquilo. Mas tristeza grande mesmo foi quando surgiu seu Ariovaldo. Eu reconheci sua voz e fingi que dormia.
— O senhor espera lá fora até que ele acorde.
Ele sentou e ficou falando para Glória.
— Escute, Dona, vim por todo canto perguntando pela casa até que descobri.
Fungou grandemente.
— Meu santinho não pode morrer, não. Num deixe, Dona. Era para a senhora que ele trazia os meus folhetos, num era?
Glória quase não podia responder.
— Num deixe não Dona, esse bichinho morrer. Se assucede qualquer coisa com ele, nunca mais que venho nesse subúrbio desgraçado.
Quando ele entrou no quarto, se sentou perto da cama e ficou encostando minha mão no seu rosto.
— Espie, Zezé. Você precisa ficar bom e ir cantar mais eu. Quase não tenho vendido nada. Todo mundo pergunta. Ei, Arlovaldo, cadê o teu canarinho? Você promete que vai ficar sãozinho, promete?
Meus olhos ainda tiveram forças para se encher e vendo que eu não devia mais ficar emocionado Glória levou seu Ariovaldo embora.
Comecei a melhorar. Já conseguia engolir alguma coisa e sustentar no estômago. A febre só aumentava e os vómitos voltavam trazendo os tremores e o suor frio, quando eu me lembrava mais. Não podia às vezes deixar de ver o Mangaratiba voando e esmagando ele. Pedia ao Menino Deus, se é que ele se importava alguma vez comigo, para que ele não tivesse sentido nada.
Vinha Glória e passava as mãos na minha cabeça.
— Não chore, Gum. Tudo isso vai passar. Se você quer, eu dou minha mangueira todinha para você. Ninguém nunca vai mexer com ela.
Mas de que me servia uma mangueira velha, sem dentes, que não sabia mais dar manga? Até meu pé de Laranja Lima logo, logo perderia o encanto e tornar-se-ia uma árvore como outra qualquer... Isso se dessem tempo ao pobrezinho.
Como era fácil para uns morrer. Era só vir um trem malvado e pronto. E como era difícil para mim ir para o céu. Todo mundo estava segurando minhas pernas para eu não ir.
A bondade e dedicação de Glória conseguiam fazer que eu chegasse a conversar um pouco. Até Papai deixou de sair de noite. Totoca emagreceu tanto de remorso que Jandira chegou a lhe dar um carão.
— Já não basta um, Antônio?
— Você não está no meu lugar para sentir. Fui eu que contei para ele. Ainda sinto na barriga, até quando estou dormindo, o rosto dele chorando, chorando...
— Agora não vá você chorar também. Você já está um marmanjo e ele vai viver. Deixe disso e vá me comprar uma lata de leite condensado no Miséria e Fome.
— Então me dê o dinheiro que ele não fia mais para Papai...
A fraqueza ia me dando uma sonolência contínua. Não sabia mais quando era dia ou noite. A febre ia cedendo e os meus tremores e agitamentos começavam a se distanciar.
Abria os olhos e na semi-escuridão encontrava Glória que não se arredava de mim. Ela tinha trazido a cadeira de balanço para o quarto e muitas vezes adormecia de cansaço.
— Godóia, já é de tarde?
— Quase de tarde, coração.
— Você quer abrir a janela?
— Não vai doer sua cabeça?
— Acho que não. A luz entrou e via-se uma nesga de céu lindo.
Olhei o céu e de novo comecei a chorar.
— Que é isso, Zezé? Um céu tão lindo, tão azul que o Menino Deus fez pra você. Ele me disse isso hoje...
Ela não entendia o que o céu significava para mim. Se encostava perto de mim, pegava nas minhas mãos e falava tentando me animar. Seu rosto estava abatido e emagrecido.
— Olhe, Zezé, daqui a pouco você estará bom. Soltando papagaios, ganhando rios de bola de gude, subindo nas árvores, montando no Minguinho. Quero ver você o mesmo, cantando as canções, me trazendo folhetos de músicas. Tanta coisa bonita. Você viu como a rua anda triste? Todo mundo sente falta de sua vida e da sua alegria na rua... Mas você tem que ajudar. Viver, viver e viver.
— Sabe, Godóia, eu não quero mais. Se eu ficar bom, vou ser ruim de novo. Você não entende. Mas eu não tenho mais para quem ficar bonzinho.
— Pois não precisa ficar tão bonzinho. Seja menino, seja criança como sempre foi.
— Pra que, Godóia? Pra todo mundo me bater muito? Pra todo mundo judiar de mim?...
Ela pegou meu rosto entre os dedos e falou resoluta:
— Olhe, Gum. Eu juro para você uma coisa. Quando você ficar bom, ninguém, ninguém, nem mesmo Deus, vai botar as mãos sobre você. Só se passarem antes sobre o meu cadáver. Você acredita?
Fiz um hum afirmativo.
— Que é que é cadáver?
Pela primeira vez o rosto de Glória se iluminou de uma grande alegria. Deu uma risada, porque sabia que eu me interessando por palavras difíceis estava novamente querendo viver.
— Cadáver é mesmo que morto, que defunto. Mas não falemos disso agora que não é conveniente.
Também achei melhor, mas não podia deixar de pensar que ele já era cadáver há muitos dias. Glória continuava falando, prometendo coisas mas eu pensava agora nos dois passarinhos, o azulão e o canarinho. O que fariam com eles? Podia ser que morressem de tristeza como no caso do avinhado de Orlando Cabelo de Fogo. Talvez abrissem a porta da gaiola e dessem liberdade a eles. Mas isso seria o. mesmo que a morte. Eles não sabiam mais voar. Ficavam bobinhos parados nos pés de laranja até que a meninada acertasse neles com atiradeiras.
Quando Zico ficou sem dinheiro para conservar o viveiro de Tié-Sangue, abriu as portas e foi aquela maldade. Não escapou um da pontaria dos meninos...
As coisas começaram a pegar um ritmo normal na casa. Já se ouvia barulho por todas as partes. Mamãe voltara a trabalhar.
A cadeira de balanço retornou à sala onde sempre morara.
Somente Glória permanecia no seu posto. Enquanto não me visse de pé não se arredava.
— Toma essa canja, Gum. Jandira matou a galinha preta só para fazer essa canjinha para você. Olhe como está cheirosa.
E soprava o calor da colher. “Se queres, faze como eu, molha o pão no café. Mas não faças barulho ao engolires. É feio.”
— Ora, o que é isso, Gum? Não vai querer chorar agora porque mataram a galinha preta. Ela estava velha. Tão velha que não botava mais ovo... “Tanto fizeste que acabaste de descobrir onde eu moro"...
— Eu sei que ela era a pantera negra do Jardim Zoológico, mas a gente compra outra pantera negra muito mais selvagem do que aquela. “Então, fujão, onde estiveste este tempo todo?”
— Godóia, agora não. Se eu tomar eu vou começar a vomitar.
— Se eu der mais tarde, você toma? E a frase veio aos borbotões sem que eu pudesse me controlar: “Prometo que fico bonzinho, que não brigo mais, que não falo mais palavrão, nem bunda mais eu digo... Mas eu quero ficar sempre junto de você"...
Olharam-me penalizados porque julgavam que eu estava falando de novo com Minguinho...
No começo era apenas um roçar suave na janela, mas depois aquilo se transformou em batidas. Uma voz vinha do lado de fora bem mansinha.
— Zezé!... Levantei-me e encostei a cabeça na madeira da janela.
— Quem é?
— Eu. Abre. Puxei o trinco sem fazer ruído para não acordar Glória. No escuro, parecia um milagre, brilhava todo “ajaezado” o Minguinho.
— Posso entrar?
— Poder, pode. Mas não faça barulho que ela pode acordar.
— Garanto que não acorda. Pulou para dentro do quarto e eu voltei para a cama.
— Olhe o que eu trouxe para você. Ele fez questão de vir visitar também.
Trouxe o braço para a frente e eu vi uma espécie de pássaro prateado.
— Não dá pra ver direito, Minguinho.
— Repare bem que você vai ter uma surpresa. Eu ajaezei ele todo com penas de prata. Não está lindo?
— Luciano! Que bonito você ficou. Você devia ser sempre assim. Pensei que você era um falcão daquela história do califa Stork.
Alisei sua cabeça emocionado e senti pela primeira vez que ela era maciazinha e que até morcego gostava de ternura.
— Você não reparou uma coisa. Espie bem. Deu uma volta para mostrar-se.
— Estou com as esporas de Tom Mix. O chapéu de Ken Maynard. As duas pistolas de Fred Thompson. O cinturão e as botas de Richard Talmadge. Ainda por cima, seu Ariovaldo me emprestou a camisa de xadrezinho que você tanto gosta.
— Nunca vi coisa mais linda, Minguinho. Como você conseguiu juntar tudo?
— Bastou eles saberem que você estava doente e me emprestaram.
— Que pena que você não possa ficar sempre vestido assim.
Fiquei olhando Minguinho e preocupado se ele sabia do destino que o esperava. Mas não disse nada.
Aí, ele se sentou na beira da cama e seus olhos só expandiam doçura e preocupação. Aproximou seu rosto dos meus olhos.
— Que é que há, Xururuca?
— Mas Xururuca é você, Minguinho.
— Pois então, você é o Xururuquinha. Não posso querer a você com mais amizade, como você faz comigo?
— Não fale assim. O médico me proibiu de chorar e de ficar emocionado.
— Nem eu quero isso. Eu vim porque estava com muita saudade e quero ver você bom e alegre de novo. Na vida tudo passa. Tanto que vim para levar você a passear. Vamos?
— Estou muito fraco.
— Um pouco de ar livre, cura você. Eu ajudo para que pule a janela.
E saímos.
— Aonde vamos?
— Vamos passear no encanamento.
— Mas eu não quero ir pela Rua Barão de Capanema. Nunca mais eu vou passar por lá.
— Vamos pela Rua dos Açudes até o fim. Já agora Minguinho se transformara num cavalo que voava. No meu ombro, Luciano se equilibrava feliz.
No encanamento Minguinho me deu a mão para que eu me equilibrasse nos grossos canos. Era gostoso quando havia um buraco e a água espirrava como fontezinha, molhando a gente e fazendo cócegas na sola dos pés. Sentia um pouco de tontura, mas a alegria que Minguinho estava me proporcionando dava a impressão de que já ficara bom. Pelo menos meu coração batia leve.
De repente, um apito apitou longe.
— Você ouviu, Minguinho?
— É uma apito de trem ao longe. Mas um estranho ruído veio se achegando e novos apitos cortavam a solidão.
O horror me atingiu todo.
— É ele, Minguinho. O Mangaratiba. O assassino. E o barulho das rodas sobre os trilhos crescia assustadoramente.
— Sobe aqui, Minguinho. Sobe depressa, Minguinho. Minguinho não conseguia se equilibrar no cano por causa das esporas brilhantes.
— Sobe, Minguinho, me dá a mão. Ele quer matar você. Ele quer matar você. Ele quer esmagar você. Quer cortar você em pedaços.
Mal Minguinho trepara no cano e o trem malvado passou por nós apitando e soltando fumaceira.
— Assassino!... Assassino!... —
Entretanto o trem continuava rápido sobre os trilhos. Sua voz vinha entrecortada de gargalhadas.
— Eu não sou culpado... Eu não fui culpado... Eu não sou culpado... Eu não fui culpado...
Todas as luzes da casa se acenderam e meu quarto foi invadido por rostos semi-adormecidos.
— Foi um pesadelo. Mamãe me tomara nos braços tentando contra o peito esmagar os meus soluços.
— Foi só um sonho, meu filho... Um pesadelo.
Recomecei a vomitar enquanto Glória contava para Lalá.
— Acordei quando ele gritava assassino. Falava de matar, esmagar, cortar... Meu Deus, quando vai acabar tudo isso?
Mas poucos dias depois acabou. Estava condenado a viver, viver. Numa manhã, Glória entrou radiante. Eu estava sentado na cama e olhava a vida com uma tristeza de doer.
— Olhe, Zezé.
Em suas mãos existia uma florzinha branca.
— A primeira flor de Minguinho. Logo ele vira uma laranjeira adulta e começa a dar laranjas.
Fiquei alisando a flor branquinha entre os dedos. Não choraria mais por qualquer coisa. Muito embora Minguinho estivesse tentando me dizer adeus com aquela flor; ele partia do mundo dos meus sonhos para o mundo da minha realidade e dor.
— Agora vamos tomar um mingauzinho e dar umas voltas pela casa como você fez ontem. Já vem já.
Foi quando o rei Luís subiu na minha cama. Agora deixavam sempre que viesse perto de mim. No começo não queriam que se impressionasse.
— Zezé!...
— Que é, meu Reizinho? Na verdade ele era mesmo o único rei.
Os outros, o de ouros, o de copas, o de paus e o de espadas eram apenas figuras sujas dos dedos que jogavam. E o outro, ele, nem chegara a ser um rei mesmo.
— Zezé, eu gosto muito de você.
— Eu também, de você meu irmãozinho.
— Você hoje quer brincar comigo?
— Hoje eu brinco com você. O que você quer fazer?
— Eu quero ir no Jardim Zoológico, depois quero ir na Europa. Depois eu quero ir nas selvas do Amazonas e brincar com Minguinho.
— Se eu não ficar muito cansado, a gente vai fazer tudo isso.
Depois do café, sob o olhar feliz de Glória, nós fomos saindo de mãos dadas para o fundo do quintal. Glória encostou-se na porta aliviada. Antes de chegar ao galinheiro, virei-me e dei adeus para ela. Nos seus olhos brilhava a felicidade. Eu na minha estranha precocidade adivinhava o que se passava em seu coração: “Ele voltou para os seus sonhos, graças a Deus!”
— Zezé...
— Hum.
— Cadê a pantera negra? Era difícil recomeçar tudo sem acreditar nas coisas. A vontade era contar o que de fato existia. “Bobinho, nunca existiu pantera negra. Era apenas uma galinha preta e velha, que eu comi numa canja”.
— Só ficaram as duas leoas, Luís. A pantera negra foi passar as férias na selva do Amazonas.
Era melhor conservar a sua ilusão o mais possível. Quando eu era criancinha também acreditava naquelas coisas.
O Reizinho arregalou os olhos.
— Ali naquela selva?
— Não tenha medo. Ela foi tão longe que nunca mais vai acertar o caminho da volta.
Sorri com amargura. A selva do Amazonas era apenas meia dúzia de laranjeiras espinhudas e hostis.
— Sabe, Luís, Zezé está muito fraco, precisa voltar. Amanhã a gente brinca mais. De bondinho de Pão de Açúcar e do que você quiser.
Acedeu e começou a voltar devagarzinho comigo. Ele ainda era muito pequeno para adivinhar a verdade. Eu não queria chegar perto do valão ou do Rio Amazonas. Eu não queria deparar com o desencanto de Minguinho. Luís não sabia que aquela flor branquinha tinha sido o nosso adeus.
Tantas são as velhas árvores
AINDA NÃO ANOITECERA e a notícia tinha sido confirmada.
Parecia que uma nuvem de paz voltaria a reinar sobre a nossa casa e nossa família.
Papai me pegou pela mão e diante de todos me sentou no colo.
Balançou devagar a cadeira para que eu não ficasse tonto.
— Tudo passou, meu filho. Tudo. Você um dia vai ser pai e vai também descobrir como são difíceis certos momentos na vida de um homem. Parece que nada dá certo, provocando um desespero interminável. Mas agora, não. Papai foi nomeado gerente da Fábrica de Santo Aleixo. Nunca mais vai faltar nada nos seus sapatinhos na noite de Natal.
Fez uma pausa. Ele também nunca mais ia esquecer daquilo para o resto da vida.
— Vamos viajar muito. Mamãe não precisará mais trabalhar, nem suas irmãs. Você ainda tem a medalha do índio?
Remexi os bolsos e encontrei a medalha.
— Pois bem, vou comprar de novo um relógio e colocar a medalha. Um dia será seu...
“Portuga, você sabe o que é carborundum?”
E Papai falava e falava sempre. Me fazia mal seu rasto barbado roçar no meu rosto.
O cheiro que escapava da sua camisa muito usada me fazia arrepios. Fui escorregando pelos seus joelhos e caminhei para a porta da cozinha. Sentei-me nos degraus e contemplei o quintal com o morrer de todas as luzes. Meu coração se revoltara sem raiva. “Que quer esse homem que me pega no colo?” Ele não é meu pai. Meu pai morreu. O Mangaratiba matou ele.
Papai tinha me seguido e viu que os meus olhos se encontravam de novo molhados.
Quase se ajoelhou para falar comigo.
— Não chore, meu filho. Nós vamos ter uma casa muito grande. Um rio de verdade passa bem atrás. Grandes árvores e tantas, que serão só suas. Você pode fazer, armar balanços.
Ele não entendia. Ele não entendia. Nenhuma árvore deveria ser tão linda na vida, como a Rainha Carlota.
— O primeiro a escolher as árvores, será você.
Olhei os seus pés, os dedos saindo dos tamancos. Ele era uma velha árvore de raízes escuras. Era um pai-árvore. Mas uma árvore que eu quase não conhecia.
— Depois tem mais. Tão cedo não vão cortar o seu pé de Laranja Lima. Quando o cortarem você estrá longe e nem sentirá.
Agarrei-me soluçando aos seus joelhos.
— Não adianta, Papai. Não adianta... E olhando o seu rosto que também se encontrava cheio de lágrimas murmurei como um morto:
— Já cortaram, Papai, faz mais de uma semana que cortaram o meu pé de Laranja Lima.
A CONFISSÃO FINAL
OS ANOS SE PASSARAM, meu caro Manuel Valadares. Hoje tenho quarenta e oito anos e às vezes na minha saudade eu tenho impressão que continuo criança. Que você a qualquer momento vai me aparecer me trazendo figurinhas de artista de cinema ou mais bolas de gude. Foi você, quem me ensinou a ternura da vida, meu Portuga querido. Hoje sou eu que tento distribuir as bolas e as figurinhas, porque a vida sem ternura não é lá grande coisa. Às vezes sou feliz na minha ternura, às vezes me engano, o que é mais comum.
Naquele tempo. No tempo de nosso tempo, eu não sabia que muitos anos antes, um Príncipe Idiota ajoelhado diante de um altar perguntava aos ícones, com os olhos cheios d'água: “POR QUE CONTAM COISAS AS CRIANCINHAS’
A verdade, meu querido Portuga, é que a mim contaram as coisas muito cedo.
José Mauro de Vasconcelos
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