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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MILAGRE DE SÃO FRANCISCO / John Steinbeck
O MILAGRE DE SÃO FRANCISCO / John Steinbeck

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MILAGRE DE SÃO FRANCISCO

 

Esta é a história de como esse grupo se constituiu, de como floresceu e se transformou numa bela e sábia organização. Esta história trata das aventuras dos amigos de Danny, do bem que fizeram, dos seus pensamentos e dos seus esforços. No fim, conta-se como se perdeu o talismã e como o grupo se dissolveu.

Em Monterey, essa velha cidade da costa da Califórnia, conhecem bem estas coisas, transmitem-nas de uns para os outros e, algumas vezes, acrescentam-lhes pormenores. É bom que este ciclo seja fixado no papel para que, mais tarde, os estudiosos, ao ouvir as lendas, não possam dizer, tal como dizem do rei Artur, de Rolando e de Robin dos Bosques: «Não houve nenhum Danny, nem nenhum grupo de amigos de Danny, nem nenhuma casa. Danny é um deus da Natureza e os seus amigos são símbolos primitivos do vento, do céu e do sol.» Esta história destina-se a afastar, agora e sempre, os sorrisos escarninhos dos lábios de azedos eruditos.

 

Monterey está situada na vertente de uma colina debruçada sobre uma baía azul e tem na retaguarda uma mata de pinheiros altos e escuros. As partes mais baixas da cidade são habitadas por americanos, italianos, pescadores e conserveiros de peixe. Mas na colina, onde a mata e a cidade se interpenetram, onde as ruas estão puras de asfalto e as esquinas livres das luzes da cidade, os velhos habitantes de Monterey encontram-se cercados por muralhas como os antigos bretões no País de Gales. São os paisanos.

 

As velhas casas de madeira em que vivem estão colocadas em cercados cheios de erva. Os paisanos estão isentos de comercialismo, libertos dos complicados sistemas americanos de negócios e, como não têm nada que possa ser roubado, explorado ou hipotecado, não foram muito atacados por esse sistema. O que é um paisano? É uma mistura de sangue espanhol, índio, mexicano e diversas variedades de caucasiano. Os seus antepassados vivem na Califórnia há cem ou duzentos anos. Fala inglês e espanhol com um sotaque paisano. Quando interrogado sobre a sua raça, afirma com indignação a pureza do seu sangue espanhol e, arregaçando a manga, mostra como é quase branco o macio interior do seu braço. A sua cor, semelhante a um cachimbo bem acastanhado com boquilha de sepiolite, atribui-a ele à crestadura do sol. É um paisano e vive na zona superior da colina situada acima de Monterey a que chamam Tortilla Flat, embora não seja, de modo algum, uma planura.

 

Danny era um paisano e cresceu na Tortilla Flat. Todos gostavam dele, apesar de não sobressair especialmente dos garotos barulhentos do sítio. Pouca gente havia com quem ele não tivesse qualquer afinidade, quer pelo sangue, quer pela sua natureza apaixonada e imaginativa. O seu avô, homem importante e respeitado pela sua riqueza, possuía duas pequenas casas na Tortilla Flat. Se Danny cresceu com um gosto marcado para dormir na mata, trabalhar em ranchos e arrancar o seu sustento a um mundo hostil, não foi por não ter tido parentes com influência. Danny era baixo, moreno e decidido. Aos vinte e cinco anos as suas pernas arqueadas ajustavam-se perfeitamente aos flancos de um cavalo.

 

Tinha Danny vinte e cinco anos de idade quando a guerra com a Alemanha foi declarada. Na ocasião em que ele e o seu amigo Pilon (a propósito, Pilon é qualquer coisa que se dá a mais quando se fecha um negócio - um brinde) ouviram falar da guerra, tinham ambos dez litros de vinho. Big Joe

 

(*) O autor faz um trocadilho com a expressão «Tortilla Flat», visto a palavra «Fiat» significar não só «plano, planura, liso» como também «andar», podendo este último termo ser aqui entendido, em sentido lato, por Bairro. (N. do T.)

 

Portagee viu o reflexo dos garrafões por entre os pinheiros e foi ter com eles.

 

À medida que o líquido baixava nas vasilhas o patriotismo subia nos três homens. E, quando o vinho desapareceu, os três, de braço dado, por uma questão de camaradagem e de segurança, desceram a colina a caminho de Monterey. Em frente de um posto de alistamento berraram vivas à América e desafiaram a Alemanha a fazer o maior mal que pudesse. Uivaram ameaças ao Império Alemão, até que o sargento do posto acordou e, vestindo a farda, saiu para a rua a fim de os calar. Depois, ficou para os alistar.

 

O sargento alinhou-os em frente da secretária. Passaram todas as provas menos a da sobriedade. Em seguida, o sargento começou a interrogar Pilon.

 

- Para que arma queres ir?

 

- Interessa-me lá bem-respondeu Pilon, com desenvoltura.

 

- Acho que precisamos de homens como tu na Infantaria. E Pilon ficou assim alistado.

 

O sargento voltou-se em seguida para o Big Joe Portagee, que estava a ficar normal.

 

- Para onde queres ir?

 

- Para casa - respondeu o Big Joe lastimosamente.

 

O sargento alistou-o também na Infantaria. Por fim, dirigiu-se a Danny, que estava a dormir em pé.

 

- Para onde queres ir?

 

- Hum?

 

- Para que arma?

 

- O que vem a ser isso «arma»?

 

- Que é que sabes fazer?

 

- Eu? Sei fazer qualquer coisa.

 

- Que é que fazias antes?

 

- Eu? Sou garimpeiro.

 

- Ah, és? Quantas mulas és capaz de montar?

 

Danny inclinou-se para a frente, numa expressão vaga de entendido.

 

- Quantas é que tem?

 

- Cerca de trinta mil - respondeu o sargento. Danny acenou com a mão.

 

- Ate-mas.

 

E, deste modo, Danny foi para o Texas amansar mulas enquanto a guerra durou, Pilon marchou para os lados do Orégão com a Infantaria, e Big Joe, como se verá mais tarde, foi parar à prisão.

 

(2) No original «Mule-skinner». A expressão refere-se aos velhos colonos do Oeste Americano que, na sua busca de metais preciosos, percorriam distâncias enormes montados em mulas. O termo brasileiro e o que, em nossa opinião, se aproxima mais da expressão americana. (N. do T.)

 

Como Danny, ao chegar a casa vindo da guerra, se viu na posse de uma herança; e como jurou proteger os desamparados

 

QUANDO Danny, depois de sair da tropa, regressou à terra, soube que tinha herdado uma propriedade. O viejo, isto é, o seu avô, havia morrido e deixara-lhe as duas pequenas casas em Tortilla Flat.

 

Ao ter conhecimento do caso, Danny sentiu-se um tanto vergado sob o peso da sua responsabilidade de proprietário. Antes mesmo de ir ver a propriedade, comprou um garrafão de vinho tinto e bebeu-o quase todo. O peso da responsabilidade deixou-o e o pior de si próprio veio à superfície. Berrou, partiu algumas cadeiras num salão de jogo da Rua Alvarado e teve duas curtas mas gloriosas zaragatas. Ninguém lhe prestou grande atenção. As suas vacilantes e arqueadas pernas acabaram por levá-lo ao cais onde, àquela hora matutina, os pescadores italianos, de botas de borracha, iam a passar a fim de se fazerem ao largo.

 

Uma antipatia de natureza racial dominou o bom senso de Danny. Ameaçou os pescadores. Injuriou-os:

 

- Sicilianos bastardos; escória da ilha prisão; cães filhos de cães. - E gritou: - Chinga tu madre, Tiojo!

 

Passou o polegar pelo nariz e fez gestos obscenos abaixo da cintura. Os pescadores limitaram-se a mostrar os dentes num sorriso, mudaram os remos e disseram:

 

-Olá, Danny! Quando é que chegaste? Vem ter connosco esta noite. Temos vinho novo.

 

Danny sentiu-se ultrajado. Berrou:

 

- Ton un condo a Ia cabeza! Os outros volveram:

 

- Adeus, Danny. Até logo.

 

Meteram-se nos barquitos, remaram para as lanças, ligaram os motores e afastaram-se para o largo.

 

Danny ficou ofendido. Voltou à Rua Alvarado, e, à medida que a subia, ia partindo os vidros das janelas. No segundo quarteirão, um polícia prendeu-o. O grande respeito que Danny sentia pela lei fê-lo caminhar ordeiramente. Se não tivesse acabado de sair da tropa depois da vitória sobre a Alemanha, teria sido condenado a seis meses. Mas, assim, o juiz só lhe deu trinta dias.

 

Danny passou, pois, um mês na sua tarimba de prisão de Monterey, ora a fazer bonecos obscenos nas paredes, ora a pensar na vida que levara na tropa. Muito lhe pesava o tempo naquela cela de prisão. De vez em quando, lá punham um bêbedo a passar a noite, mas na maioria das vezes o crime mantinha-se estagnado e Danny ficava só. Ao princípio, os percevejos ainda o incomodavam um tanto, mas como se foram habituando ao gosto do seu corpo, e ele se foi acostumando às suas mordeduras, passaram a viver em paz.

 

Danny arranjou então um jogo satírico. Apanhava um

 

percevejo, esborrachava-o contra a parede, fazia um círculo com um lápis à volta dele e chamava-lhe «Mayor Clough». Depois, apanhava outros e dava-lhes nomes tirados do Conselho Municipal. Em pouco tempo tinha a parede decorada com percevejos esborrachados, sendo o nome de cada um deles o de um dignitário local. Punha-lhes orelhas e rabos e desenhava também enormes narizes e bigodes. Tito Ralph, o carcereiro, ficou escandalizado mas não se queixou, visto Danny não ter incluído na sua troça, nem o juiz de paz que o havia condenado, nem qualquer elemento da Polícia. Danny tinha um respeito enorme pela lei.

 

Uma noite em que não havia ninguém na cadeia, Tito Ralph entrou na cela de Danny com duas garrafas de vinho na mão. Uma hera depois saiu para ir buscar mais vinho e Danny foi com ele. Era triste a prisão. Deixaram-se ficar na loja do Torrelli, onde compraram o vinho, até aquele os pôr na rua. Depois, Danny subiu a encosta, instalou-se no meio dos pinheiros e adormeceu enquanto Tito Ralph, aos tombos, voltava para trás e participava a fuga.

 

Quando, cerca do meio-dia, a luz refulgente do Sol o acordou, Danny decidiu esconder-se durante todo o dia para escapar à perseguição. Largou a correr, dissimulando-se por detrás dos arbustos e espreitando como uma raposa perseguida por entre tufos de outros de menor porte. Ao cair da noite, cumpridas as regras que a si se impusera, saiu do esconderijo e foi tratar da vida.

 

E fê-lo sem rodeios. Foi para junto da porta de serviço de um restaurante.

 

- Tem aí algum pão duro para eu dar ao meu cão? - perguntou ao cozinheiro.

 

E, enquanto o simplório cozinheiro embrulhava a comida, Danny roubou duas fatias de presunto, quatro ovos, uma costeleta de carneiro e um enxota-moscas.

 

- Um dia lhe pagarei - disse.

 

- Não tem nada a pagar. Eu atirava estes restos fora se você não os levasse.

 

Danny sentiu-se mais tranquilo em relação ao roubo que fizera. Se à superfície da sociedade se pensava daquele modo, nesse caso estava inocente. Voltou à loja do Torrelli, trocou os quatro ovos, a costeleta e o enxota-moscas por um copo grande cheio de grapa e retirou-se para a mata a fim de fazer a ceia.

 

A noite estava escura e húmida. O nevoeiro, qual branda gaze, estava suspenso dos negros pinheiros que, do lado da terra, marcam os limites de Monterey. Danny baixou a cabeça e dirigiu-se apressadamente para o refúgio do bosque. À sua frente lobrigou um outro vulto apressado; e, como a distância entre eles diminuísse, reconheceu o andar rápido do seu amigo Pilon. Danny era um homem de bom coração, mas lembrou-se de que vendera toda a comida que tinha, menos as duas fatias de presunto e o embrulho do pão duro.

 

«Vou passar por ele e fingir que não o vejo», decidiu. «Vai a andar como se tivesse a barriga cheia de peru assado e de outras coisas boas.»

 

Então, de súbito, Danny reparou que Pilon apertava ternamente o casaco contra o peito.

 

-Olá, Pilon, amigo! - gritou.

 

Pilon apressou mais o passo. Danny largou numa corrida miúda.

 

- Pilon, Pilon amigo! Aonde é que vais tão depressa?

 

Pilon aceitou com resignação o inevitável e esperou. Danny aproximou-se cautelosamente, embora na sua voz houvesse uma entonação entusiástica.

 

- Andei à tua procura, ó meu amigo; ó amigo mais querido entre todos os amigos bons como anjos. Eu procurei-te porque tenho aqui dois grandes bifes do porco que o Nosso Senhor em pessoa pôs no mundo, e um saco de belo pão branco. Compartilha, pois, da minha fartura, ó Pilon estremecido.

 

Pilon encolheu os ombros.

 

- Seja - murmurou, ríspido.

 

Entraram juntos na floresta. Pilon estava intrigado. Por fim, parou e voltou-se para o amigo.

 

- Danny - perguntou numa voz triste -, como é que soubeste que eu tinha uma garrafa de aguardente debaixo do casaco?

 

- Aguardente?! - exclamou Danny. - Tu tens aguardente? É capaz de ser para alguma velhinha doente- prosseguiu ingenuamente. - Talvez estejas a guardá-la para o Nosso Senhor quando Ele cá vier outra vez. Quem sou eu para julgar do destino dessa aguardente? Eu nem sei ao certo se a tens. Além disso, não estou com sede. Nessa aguardente não tocava eu. Fico muito feliz em te dar do porco assado que aqui trago, mas, com respeito à tua aguardente, ela é tua e é tua mesmo.

 

Pilon respondeu-lhe com rudeza:

 

- Danny, não me importo de dividir a aguardente contigo, metade para cada um. Tenho é de olhar por que não ma bebas toda.

 

Danny, então, mudou de assunto:

 

Vou passar a carne pelas brasas aqui na clareira e tu

torras os bolos deste saco. Põe aqui a aguardente, Pilon. É melhor pô-la aqui onde a gente se veja e a veja também.

 

Fizeram uma fogueira, grelharam o presunto e comeram o pão duro. A aguardente descia rapidamente na garrafa. Depois de terem comido, encostaram-se um ao outro junto da fogueira, sorvendo em pequenos goles, delicadamente, como abelhas exaustas, o líquido da garrafa. O nevoeiro desceu sobre eles e pôs-lhes os casacos cinzentos de humidade. À sua volta o vento suspirava tristemente por entre os pinheiros.

 

Momentos depois a solidão baixou sobre Danny e Pilon. Danny pensou nos amigos que perdera.

 

- Onde está o Artur Morales? - perguntou, voltando as palmas das mãos para cima e estendendo os braços. - Em França, morto - respondeu a si próprio, ao mesmo tempo que voltava as palmas das mãos para baixo e deixava cair os braços, desalentado. - Morto pela Pátria. Morto num país estrangeiro. Junto da campa passam pessoas que não o conheceram e não sabem que ele está ali.

 

Voltou de novo as palmas das mãos para cima.

 

- Onde está o bom do Pablo?

 

- Na prisão - respondeu Pilon. - O Pablo roubou um ganso e foi esconder-se no meio dos arbustos; o ganso mordeu-lhe, Pablo gritou e, pronto!, foi apanhado. Agora está na prisão por seis meses.

 

Danny suspirou e mudou de assunto, pois compreendeu que havia prodigamente consumido o assunto acerca da única pessoa conhecida de algum modo adequado à oratória. A solidão, porém, ainda pesava sobre ele e exigia um escape.

 

- Aqui estamos sentados...-começou por fim.

 

- ... os nossos corações despedaçados - acrescentou Pilon, com ritmo.

 

- Não, isto não é um poema - disse Danny. - Aqui estamos sentados, sem um lar. Demos a vida pela Pátria e agora nem um tecto temos para nos cobrir.

 

- Nunca o tivemos - acrescentou Pilon, solidário. Sonhador, Danny bebeu até Pilon lhe tocar no cotovelo e lhe tirar a garrafa.

 

- Isto faz-me lembrar - disse Danny - a história de um homem que era dono de duas casas de rameiras... -Ficou de boca aberta. - Pilon! - exclamou. - Pilon, ó Pilon do meu coração! Tinha-me esquecido. Recebi uma herança. Sou dono de duas casas.

 

- De rameiras? - perguntou Pilon, esperançado. - És um bêbedo e um mentiroso - acrescentou.

 

-Não. Estou a falar a sério, Pilon. O viejo morreu. O herdeiro sou eu. Eu, o neto favorito.

 

- O único neto -volveu Pilon, realista.- Onde são essas casas?

 

- Sabes onde fica a casa do viejo na Tortilla Flat?

 

- Aqui em Monterey?

 

-Sim, aqui na Tortilla Flat.

 

- E essas casas prestam para alguma coisa?

 

Danny sentou-se pesadamente, exausto pela comoção.

 

- Sei lá! Tinha-me esquecido que elas me pertencem. Pilon continuou sentado em silêncio e absorto. O seu rosto

 

tornou-se melancólico. Atirou uma mão-cheia de agulha de pinheiro para a fogueira e observou as chamas elevarem-se freneticamente por entre elas e morrer. Durante muito tempo perscrutou ansiosamente o rosto de Danny; depois, suspirou ruidosamente e voltou a suspirar.

 

- Agora acabou - disse tristemente. - Os belos dias já lá vão. Os teus amigos vão lamentar-se, mas os lamentos nada remediarão.

 

Danny pôs a garrafa no chão; Pilon pegou nela e colocou-a em cima das pernas.

 

- Mas que é que acabou? Que queres tu dizer com isso?

 

- Não é a primeira vez - prosseguiu Pilon. - Quando uma pessoa é pobre, uma pessoa pensa: «Se eu tivesse dinheiro repartia-o pelos meus amigos.» Mas venha o dinheiro que lá se vai a bondade. É o que se passa contigo, meu amigo de outros tempos. Agora estás acima dos teus amigos. Tens propriedades. Vais esquecer-te dos amigos que contigo partilharam tudo, até a aguardente.

 

As palavras de Pilon entristeceram Danny.

 

- Eu não sou desses! - exclamou. - Eu nunca te esquecerei.

 

- Isso pensas tu agora -disse Pilon com frieza.- Mas , quando tiveres duas casas para lá dormires, vais ver. Pilon continuará a ser um pobre paisano, ao passo que tu comerás com o mayor.

 

Danny ergueu-se, vacilante, e encostou-se direito a uma árvore.

 

- Pilon, juro: o que tenho é teu. Enquanto tiver casa, tu tens casa. Dá aí um gole.

 

- Tenho de ver para acreditar - volveu Pilon numa voz sem alento. - Se isso se passasse como dizes, o mundo ficava espantado. Havia de vir gente de milhares de quilómetros para ver. E, demais a mais, a garrafa está vazia.

 

Como Tilon foi engodado, pela avidez de alcançar uma posição, a renunciar à hospitalidade de Danny

 

O advogado deixou-os ao portão da segunda casa e, metendo-se no seu Ford, desceu, aos solavancos, a colina até Monterey.

 

Danny e Pilon ficaram em frente da vedação de estacas sem pintura e olharam com admiração a propriedade, uma casa baixa, com vestígios de antigas pinceladas de cal, e janelas sem cortinas. No alpendre, porém, havia uma grande roseira-de-castela e os gerânios do avô cresciam por entre as ervas do pátio fronteiro.

 

- Esta é a melhor das duas - disse Pilon. - É maior do que a outra.

 

Danny pegou numa chave-mestra, nova. Atravessou em bicos de pés o arruinado telheiro e abriu a porta da frente. A sala principal estava tal qual havia sido quando o viejo lá vivera. O calendário encarnado para 1906, a bandeira de seda na parede com o lutador Bob Evans a olhar por entre as superstruturas de um barco de guerra, o ramo de rosas de papel vermelho, os molhos de pimentos escarlates e alhos cobertos de pó, o fogão hermético, as cadeiras de balanço meio destruídas.

 

Pilon espreitou para dentro.

 

- Três quartos - disse, ofegante. - E uma cama e um fogão. Aqui é que a gente vai ser feliz, Danny.

 

Danny avançou cautelosamente. Tinha amargas recordações do viejo. Pilon dirigiu-se a passos largos, à frente dele, direito à cozinha.

 

- Olha, uma pia com torneira! - exclamou. Fez rodar a torneira. - Não há água. Tens de dizer à Companhia para abrir a água.

 

Sorriram um para o outro. Pilon reparou que no rosto de Danny se instalavam as preocupações que a propriedade causa. Aquele rosto nunca mais estaria livre de inquietações. Agora que Danny tinha vidraças suas, nunca mais partiria as dos outros. Pilon tivera razão. Danny elevara-se acima dos seus companheiros. Os seus ombros tinham-se endireitado para resistir à complexidade da vida. Danny, porém, antes de abandonar para todo o sempre a sua simples existência de outrora, deixou escapar um grito de dor.

 

- Pilon - disse tristemente. - Quem me dera que isto te pertencesse e fosse eu que viesse viver contigo.

 

Enquanto Danny foi a Monterey para lhe abrirem a água, Pilon percorreu o pátio traseiro que estava cheio de ervas emaranhadas umas nas outras. Aí havia também árvores de fruta, negras e secas de tão velhas, e quebradas e torcidas devido à falta de cuidado. Entre as ervas encontravam-se algumas capoeiras em forma de tenda, uma pilha de aros de barril enferrujados, um monte de cinza e um colchão empapado. Pilon olhou por cima da vedação, para a capoeira da Sr.a Morales, e, depois de um momento de reflexão, abriu na cerca uns pequenos buracos destinados às galinhas.

 

«Elas vão gostar de fazer o ninho nestas ervas altas», pensou carinhosamente.

 

Pensou igualmente na maneira de montar uma armadilha, no caso de os galos também entrarem e andarem atrás das galinhas, impedindo-as de ir para o ninho.

 

«A gente aqui vai ser feliz», disse, de novo, de si para si.

 

Danny regressou de Monterey indignado.

 

- A Companhia quer um depósito.

 

- Depósito?

 

- Sim. Querem três dólares para abrir a água.

 

- Três dólares - disse Pilon com ar severo - são três garrafões de vinho. E quando ele acabar pedimos um balde de água aqui à vizinha do lado, a Sr.a Morales.

 

- Mas a gente não tem os três dólares para o vinho.

 

- Eu sei - volveu Pilon. - Talvez a gente possa pedir uma pinga à Sr.a Morales.

 

A tarde passou.

 

- Amanhã - disse Danny - instalamo-nos cá e limpamos e esfregamos isto; tu cortas as ervas e atiras o lixo para a ravina.

 

- As ervas?! - exclamou Pilon, horrorizado. Aquelas ervas.

 

Pilon explicou a sua teoria acerca das galinhas da Sr.a Morales.

 

Danny concordou imediatamente.

 

Amigo - disse -, estou satisfeito por teres vindo morar comigo. Agora, enquanto vou apanhar um bocado de lenha, tens tu de ir arranjar qualquer coisa para o jantar.

 

Pilon, lembrando-se da aguardente, achou que isto não era justo.

 

«Estou a ficar em dívida para com ele», disse amargamente de si para si. «A minha liberdade vai acabar. Não tarda muito que eu não passe a ser um escravo por causa da casa deste judeu.»

 

No entanto, sempre saiu à procura de qualquer coisa para o jantar.

 

Passados dois quarteirões, perto da orla do pinhal, deu com um galo Plymouth Rock, meio desenvolvido, a esgaravatar na estrada. O bicho havia chegado àquela fase da adolescência em que têm uma voz rachada e as pernas, o pescoço e o peito ainda não estão cobertos de penas. Talvez fosse por Pilon ter estado a pensar, compadecido, nas galinhas da Sr.a Morales que este franguito lhe despertou a simpatia. Continuou a caminhar lentamente na direcção do pinhal, enquanto o frango corria à sua frente.

 

Pilon disse de si para si: «Pobre avezita sem penas. Como deves ter frio de madrugada quando o orvalho cai e o ar arrefece com o amanhecer. O bom Deus nem sempre é assim tão bom para os pobres bichinhos.» E pensou: «Andas a brincar aqui na estrada, meu pobre franguito. Qualquer dia ficas debaixo de algum carro; e se morreres, ainda é o melhor que te pode acontecer. Mas podes ficar só com uma perna ou uma asa partida. Então, passarás o resto dos teus dias a arrastares-te miseravelmente. A vida é demasiado cruel para ti, minha avezita.»

 

Pilon caminhava lenta e cautelosamente. De vez em quando, o frango tentava voltar para trás, mas Pilon encontrava-se sempre no lugar para onde ele decidia ir. Por fim, meteu-se no pinhal e Pilon seguiu-o como se o fizesse por acaso.

 

Diga-se, para glória da sua alma, que do bosque não se ouviu qualquer grito de dor. O frango, ao qual Pilon profetizara uma existência dolorosa, morreu em paz ou, pelo menos, em sossego. E isto não é tributo de somenos à técnica de Pilon.

 

Dez minutos depois, Pilon emergiu do bosque e voltou para casa de Danny. O pequeno galo, depenado e em pedaços, ia distribuído pelas algibeiras. Se para Pilon havia uma regra de conduta mais rígida do que qualquer outra, essa regra era a seguinte: nunca, sejam quais forem as circunstâncias, trazer penas, cabeças ou pés para casa, pois sem isso é impossível identificar um frango. À noite, acenderam o fogão com pinhas. Na chaminé as chamas produziam um ruído surdo. Danny e Pilon, bem comidos, quentes e felizes, estavam sentados em cadeiras de balanço e balouçavam-se lentamente. Haviam jantado à luz de um coto de vela, mas, agora, só a luz que passava através das fendas do fogão dissipava as trevas do aposento. Para tornar perfeito o ambiente, a chuva começou a tamborilar no telhado.

 

Apenas alguns pingos passavam por entre as fendas e caíam em lugares onde ninguém de modo algum queria sentar-se.

 

- Está-se bem aqui -disse Pilon.- Pensa nas noites que dormimos ao relento. Isto assim é viver.

 

- Pois é. E é estranho: durante anos não tive casa; agora tenho duas. Não posso dormir em duas casas.

 

Pilon detestava desperdiçar.

 

- É isso mesmo que tem estado a preocupar-me. Porque não alugas a outra casa? - sugeriu.

 

Danny bateu violentamente com os pés no soalho.

 

- Pilon! - exclamou. - Porque é que eu não pensei nisso? A ideia tornou-se mais familiar.

 

- Mas quem é que quererá alugá-la?

 

- Quero eu. Pago-te dez dólares por mês.

 

- Quinze -insistiu Danny.- A casa é boa. Vale quinze. Pilon concordou, resmungando. Mas teria concordado com um preço muito mais elevado, pois via como se elevava o homem que vivia em casa própria, e ele aspirava a essa ascensão.

 

- Ficamos então de acordo - concluiu Danny. - Alugas tu a casa. Eu hei-de ser um bom senhorio, Pilon. Não te incomodarei.

 

Nunca Pilon, à excepção do ano que passara na tropa, tivera quinze dólares. Porém, pensou que antes de ter de pagar a renda ainda se passava um mês e quem sabe o que pode acontecer num mês.

 

Balançavam-se, satisfeitos, junto do lume.

 

Passado um bocado, Danny saiu por uns momentos e voltou com maçãs.

 

- De qualquer modo, a chuva teria dado cabo delas - disse como desculpa.

 

Pilon, para não se sentir inferiorizado, levantou-se e acendeu a vela; foi ao quarto de dormir e, instantes depois, voltava trazendo uma bacia e um jarro, dois vasos de vidro encarnado e um ramalhete de penas de avestruz.

 

- Não é bom ter para aqui tantas coisas que se partam

- disse. - Quando se partem ficamos aborrecidos. É muito melhor nunca as termos tido.

 

Tirou da parede as rosas de papel.

 

- Uma lembrança para a Sr.a Torrelli - explicou ao sair.

 

Pouco tempo depois voltava encharcado devido à chuva, mas triunfante, pois trazia na mão um jarro de vinho tinto.

 

Mais tarde discutiram azedamente, mas nenhum se importou em saber quem ganhara, visto as excitações do dia os haver cansado. O vinho fê-los sonolentos e deitaram-se no soalho. O fogo apagou-se; o fogão soltou estalidos à medida que arrefeceu. A vela inclinou-se e extinguiu-se na sua própria gordura, soltando azuis chamazinhas de protesto. A casa ficou às escuras, sossegada, envolta em paz.

 

Como o veneno da posse trabalhou dentro de Tilon e como o mal triunfou temporariamente nele

 

No dia seguinte, Pilon foi viver para a outra casa. Esta era exactamente igual à de Danny, mas mais pequena. Lá tinha a sua rosa-de-castela sobre o telheiro, o seu quintal cheio de ervas, as suas árvores de fruta velhas e estéreis, os seus gerânios vermelhos e o retiro das galinhas da Sr.a Soto ficava ao lado.

 

Danny tornou-se um homem importante devido a ter uma casa para alugar e Pilon subiu na escala social por alugar uma casa.

 

É impossível dizer se Danny esperava receber qualquer renda ou se Pilon esperava pagar alguma. Se esperavam, ambos ficaram desapontados. Danny nunca a pediu, e Pilon jamais a ofereceu.

 

Os dois amigos estavam muitas vezes juntos. Arranjasse Pilon um jarro de vinho ou um bocado de carne, que tinha pela certa a visita de Danny. E se Danny tivesse igual sorte ou astúcia, Pilon passava com ele uma noite de arromba. O pobre Pilon teria pago o dinheiro se alguma vez tivesse tido algum, mas nunca teve... pelo menos durante tempo que lhe chegasse para encontrar Danny. Pilon era um homem honesto. Havia alturas em que o preocupava pensar na bondade de Danny e na sua própria pobreza.

 

Uma noite arranjou um dólar de uma maneira tão espantosa que imediatamente tentou esquecer-se dele com receio de que a recordação o fizesse enlouquecer. Em frente do Hotel San Carlos um homem havia-lhe posto um dólar na mão dizendo:

 

- Corre lá abaixo e traz-me quatro garrafas de ginger-ale. No hotel acabaram-se.

 

Estas coisas eram quase um milagre - pensou Pilon. Uma pessoa devia aceitá-las com fé e não se preocupar com elas, nem fazer perguntas. Subiu a estrada levando o dólar para dar a Danny, mas, no caminho, comprou um garrafão de vinho e, usando-o como isca, atraiu duas roliças raparigas para sua casa. Danny, que ia a passar, ouviu a algazarra e entrou todo contente. Pilon caiu-lhe nos braços e pôs-lhe tudo à sua disposição. Mais tarde, depois de Danny ter colaborado, dispondo de uma das raparigas e de metade do vinho, houve uma bela cena de pancadaria. Danny perdeu um dente e Pilon ficou com a camisa rasgada. As raparigas assistiam à cena soltando gritos penetrantes e dando pontapés naquele que por acaso caísse. Por fim, Danny levantou-se do chão e deu uma cabeçada no estômago de uma das raparigas, que saiu pela porta fora a coaxar como uma rã. A outra roubou dois tachos e foi atrás da primeira.

 

Durante algum tempo, Danny e Pilon carpiram a perfídia das mulheres.

 

- Tu não sabes que cabras as mulheres são - disse Danny

judiciosamente.

 

- Sei, sei - retorquiu Pilon.

 

- Não sabes.

 

- Sei.

 

- Aldrabão.

 

Nova luta, embora não muito animada.

 

Depois disto, Pilon sentiu-se melhor no respeitante à falta de pagamento da renda. Não tinha ele sido o anfitrião do seu senhorio?

 

Passaram alguns meses. Pilon começou de novo a preocupar-se com a renda. À medida que o tempo passava, a preocupação tornava-se intolerável. Por fim, movido pelo desespero, trabalhou um dia inteiro a amanhar lulas para o Chin Kee e ganhou dois dólares.

 

À noite, pôs o lenço encarnado à volta do pescoço, colocou na cabeça o venerando chapéu do pai e começou a subir a colina a fim de dar a Danny dois dólares por conta.

 

No caminho, porém, comprou dois garrafões de vinho.

 

«É melhor assim», pensou. «Se der ao meu amigo o dinheiro que me custou os olhos da cara a ganhar, não mostro com isso como são calorosos os meus sentimentos para com ele. Enquanto que um presente... E digo-lhe que os garrafões custaram cinco dólares.» Isto era palermice e Pilon sabia-o; no entanto, ficou contente consigo mesmo. Não havia ninguém em Monterey que soubesse melhor o preço do vinho do que Danny.

 

Pilon avançava, feliz. Decidira-se; caminhava direito a casa de Danny. Os seus pés moviam-se, não rapidamente, mas no entanto com firmeza, na direcção adequada. Debaixo de cada braço um cartucho de papel, em cada cartucho um garrafão de vinho.

 

Havia um crepúsculo rosado. Era aquela doce hora em que a sesta já está terminada e o prazer e as conversas da noite ainda não começaram. Os pinheiros, muito escuros, recortavam-se contra o céu; no solo, todas as coisas estavam mergulhadas em escuridão. O céu, porém, estava tão melancolicamente brilhante como uma recordação. As gaivotas voavam preguiçosas para os seus ninhos nas rochas da costa depois de terem, durante o dia, visitado as fábricas de conserva de peixe de Monterey.

 

Pilon era um místico e amava a beleza. Ergueu o rosto em direcção ao céu e a sua alma elevou-se para a luminosidade serena que o Sol deixa no ocaso. Aquele Pilon, que não era propriamente um modelo de virtudes, que armava sarilhos e zaragatas e que bebia e praguejava, prosseguia lenta e dificilmente no seu caminho; mas um Pilon, resplandecente e anelante, subia até onde as gaivotas banhavam as suas sensíveis asas no entardecer. Esse Pilon era belo e nos seus pensamentos não havia a mácula do egoísmo e do desejo. É bom, pois, que conheçamos os seus pensamentos.

 

«O Nosso Senhor está na tarde», pensou. «Estas aves passam voando através da fronte do Pai. Queridos pássaros, queridas gaivotas, como vos amo a todos! As vossas vagarosas asas tocam no meu coração da mesma maneira que a mão de um dono carinhoso bate no estômago cheio de um cão adormecido, ou a mão de Cristo afagava a cabeça das criancinhas. Queridas aves, voem para junto de Nossa Senhora das Boas Dores com o meu coração aberto.»

 

En seguida as palavras mais belas que conhecia:

 

- Avemaría, gratia plena...

 

Os pés do Pilon mau tinham deixado de mover-se. Em verdade, o Pilon mau deixara por momentos de existir. (Ouve isto, ó anjo que tudo registas!) Não havia, nem há nem jamais houve, alma mais pura que a de Pilon naquele momento. O feroz buldogue do Gálvez aproximou-se das desamparadas pernas de Pilon que se encontrava sozinho na escuridão; e o buldogue do Gálvez cheirou e afastou-se sem lhe morder as pernas.

 

Uma alma lavada e salva é uma alma duplamente em perigo, pois tudo no mundo conspira contra ela. «Até as palhas sob os meus joelhos», diz Santo Agostinho, «gritam para afastar os meus pensamentos da oração.»

 

A alma de Pilon nem sequer era à prova das suas recordações, visto que, ao contemplar os pássaros, lembrou-se de que a Sr.a Pastano usava algumas vezes gaivotas nos seus tamales, e essa lembrança fez-lhe fome e a fome precipitou-lhe a alma do céu. Pilon prosseguiu no seu caminho; era, uma vez mais, uma manhosa mistura de bem e de mal. O feroz buldogue do Gálvez voltou para trás rosnando, arrependido agora de ter deixado passar uma oportunidade tão boa de morder as pernas de Pilon.

 

Pilon curvou os braços para que os garrafões não lhe pesassem tanto.

 

É um facto, já verificado e registado em muitas histórias, que a alma capaz do maior bem é igualmente capaz do maior mal. Quem há mais ímpio do que um padre apóstata? Quem e mais sensual do que a mulher que acaba de perder a virgindade? Isto, contudo, pode ser uma questão de aparência.

 

Pilon, acabado de chegar do céu, era, embora não o soubesse.

 

Mas voltemos à primeira marca que indica conversa com propósitos e concentração, uma vez que foi aí que Pilon deu o golpe.

 

- Pablo - disse-, nunca te cansas de andares a dormir em valas, todo molhado, sem um lar, sem amigos, sempre sozinho?

 

- Não - respondeu Pablo.

 

Pilon pôs na sua voz o mel da persuasão.

 

- Era o que eu pensava, meu amigo, quando era um imundo cão de sarjeta; também eu andava satisfeito, pois não sabia como é bom a gente ter uma casinha, e um tecto e um jardim. Ah, Pablo, assim é que é mesmo viver!

 

- Realmente é bom - concordou Fábio. Pilon lançou o bote:

 

- Olha, Pablo, não gostavas de alugar uma parte da minha casa? Acabava-se para ti a terra fria. Nos teus sapatos nunca mais entrava nem areia dura, nem os caranguejos do cais. Não gostavas de viver aqui comigo?

 

- Lá isso gostava - respondeu Pilon.

 

- Olha, pagas só quinze dólares por mês! E a casa toda, menos a minha cama, e o jardim todo, ficam à tua disposição. Pensa lá, Pablo! E se alguém te escrever uma carta tem um sítio para onde a mancar.

 

- Pois tem - disse Pablo. - isso é formidável!

 

Pilon suspirou aliviado. Não tinha compreendido como a dívida para com Danny se instalara nos seus ombros. O facto de ter quase a certeza de que Pablo nunca lhe pagaria renda nenhuma não mitigava o seu triunfo. Se algum dia Danny lhe pedisse dinheiro, Pilon podia dizer: «Pago, quando Pablo pagar.»

 

Prosseguiram até à graduação seguinte e Pilon recordou-se como havia sido feliz nos seus tempos de criança.

 

- Nessa altura não tinha eu preocupações, Pablo. Não sabia o que era o pecado. Era bem feliz.

 

- Desde então nunca mais fomos felizes - concordou tristemente Pablo.

 

Como jesus Maria Corcoran, um bom homem, se tornou um involuntário veículo do mal

 

PARA Pilon e Pablo a vida corria calmamente. De manhã, quando o Sol se elevava acima da copa dos pinheiros, quando, na baía, a azul superfície de água se enchia de pregas resplandecentes, saíam da cama, lenta e pensativamente.

 

Uma manhã de sol é um lapso de tempo de serena alegria. Quando o reluzente orvalho repousa sobre as folhas de malva, cada uma delas é uma bela, se não valiosa jóia. Não é altura nem para pressas, nem para azáfamas. Os pensamentos são vagarosos, profundos e dourados.

 

Pablo e Pilon, de calças azuis justas e camisas azuis, iam, como dois camaradas, até à ravina situada por detrás da casa e, momentos depois, voltavam para se sentar ao sol no alpendre fronteiro, ouvir as cornetas dos vendedores de peixe nas ruas de Monterey, e falar, num tom sonolento e devaneante, dos acontecimentos de Tortilla Flat, pois aí, em cada dia que a Terra forja no seu girar, há milhares de excitantes eventos.

 

No telheiro estavam eles em sossego. Só os dedos dos pés se mexiam sobre as quentes tábuas quando as moscas neles pousavam.

 

- Se todas as gotas de orvalho fossem diamantes - disse Pablo-muito ricos seríamos. Passávamos a vida bêbedos.

 

Pilon, contudo, a quem a maldição do realismo fazia sentir o seu incómodo peso, acrescentou:

 

- Toda a gente teria montes de diamantes. Deixavam de ter valor; mas o vinho custa sempre dinheiro. Se ao menos durante um dia chovesse vinho e nós tivéssemos um tanque para o apanhar...

 

- Mas vinho do bom - interrompeu Pablo -, não daquela zurrapa que tu arranjaste da última vez.

 

- Não o paguei - retorquiu Pilon. - Alguém o escondeu na erva perto da sala de baile. Que é que se espera do vinho que se acha?

 

Sentaram-se e sacudiram molemente as moscas com as mãos.

 

- Ontem a Cornelia Ruiz deu uma facada no mexicano, no moreno - observou Pilon.

 

Pablo levantou os olhos, moderadamente interessado.

 

- Zaragata? - perguntou.

 

- Não. O moreno não sabia que a Cornelia tinha arranjado ontem outro e tentou entrar; de modo que ela deu-lhe uma facada.

 

- Devia ter sabido - sentenciou Pablo, moralizador.

 

- Bem, é que estava lá em baixo na cidade quando a Cornelia arranjou o outro. Quando ela fechou a porta o mexicano tentou entrar pela janela.

 

- É parvo - sentenciou Pablo. - Morreu?

 

- Não. Ela só lhe fez uns golpezitos nos braços. Não estava zangada. O que ela queria era que ele não entrasse.

 

- A Cornelia não é lá uma mulher muito certa - continuou Pablo. - Mas ainda manda dizer missas pela alma do pai, que já morreu há dez anos.

 

- E ele bem precisa delas - observou Pilon. - Era um homem ruim e no entanto nunca se foi confessar. Quando o velho Ruiz estava a morrer, o padre veio confortá-lo e ele confessou-se. Cornelia disse que o padre estava branco como a cal da parede quando saiu do quarto do doente. Mais tarde, o padre afirmou que não acreditava em metade do que o Ruiz tinha confessado.

 

Pablo, num movimento de gato, matou uma mosca que lhe pousara no joelho.

 

- O Ruiz sempre foi mentiroso - disse. - Muita missa aquela alma vai precisar. Mas achas que uma missa faz efeito quando o dinheiro para ela sai das algibeiras dos homens que dormem embriagados em casa da Cornelia?

 

- Uma missa é uma missa - respondeu Pilon. - Ao homem que te vende o vinho não lhe interessa o sítio onde tu arranjas os cobres. Deus também não quer saber donde vêm as missas. Gosta delas, assim como tu gostas de vinho. O padre Murphy costumava passar a vida à pesca e, meses a fio, a hóstia sagrada sabia a sarda, mas isso não a fazia menos sagrada. Os padres é que têm de explicar estas coisas. Não são coisas com que a gente tenha de se preocupar. Gostava era de saber onde é que a gente pode arranjar uns ovos. Um ovo agora sabia bem.

 

Pablo inclinou o chapéu por cima dos olhos para o sol não o incomodar.

 

- O Charlie Meeler contou-me que o Danny está com a Rosa Martin, a filha dos Portagees.

 

Alarmado, Pilon sentou-se direito.

 

- Talvez a rapariga queira casar com o Danny. Esses Portagees andam sempre a querer casar e gostam imenso de dinheiro. Depois de casado, o Danny é capaz de nos arranjar sarilhos com a questão da renda. Essa tal Rosa vai querer vestidos novos; todas querem, eu conheço-as.

 

Pablo também parecia aborrecido.

 

- E se a gente fosse falar com o Danny, talvez... sugeriu.

 

- Pode ser que ele lá tenha uns ovos - disse Pilon. - As frangas da Sr.a Morales são boas poedeiras.

 

Enfiaram os sapatos nos pés e dirigiram-se vagarosamente a casa de Danny.

 

Pilon dobrou-se e apanhou uma tampinha de garrafa de cerveja; depois, atirou-a fora com uma praga.

 

- Foi algum homem ruim que a pôs ali para enganar as pessoas.

 

- A noite passada fui eu quem a apanhou - disse Pablo. Olhou para dentro de um pátio onde havia maçarocas ainda verdes a amadurecer e, mentalmente, tomou nota do seu grau de amadurecimento.

 

Foram encontrar Danny sentado sob o telheiro, atrás da roseira, mexendo os dedos dos pés para afugentar as moscas.

 

- Eh, amigos - saudou-os ele, molemente. Sentaram-se ao lado de Danny e tiraram os chapéus e os

sapatos. Danny puxou de uma bolsa de tabaco e de alguns jornais e passou-os a Pilon. Este pareceu ficar um tanto chocado, mas não fez qualquer comentário.

 

- A Cornelia Ruiz deu uma facada no mexicano preto disse.

 

- Também ouvi dizer - volveu Danny. Pablo interveio com azedume:

 

- Essas mulheres não têm qualidades de espécie nenhuma.

 

- É perigoso uma pessoa dormir com elas - disse Pilon.

- Disseram-me que há cá na Tortilla Flat uma rapariga, uma Portagee, capaz de dar a um homem uma coisa que o fará lembrar-se dela para toda a vida se ele se meter no sarilho de querer saber o que é.

 

Pablo deu alguns estalidos desaprovadores com a língua. Abriu as mãos esticando os dedos.

 

- Que é que um homem há-de fazer? - perguntou.- Pode ter-se confiança em alguém?

 

Observaram o rosto de Danny e viram que este não revelava sinais de alarme.

 

- O nome da tal rapariga é Rosa - disse Pilon. - Agora o apelido não digo.

 

- Ah, estás a referir-te à Rosa Martin - observou Danny muito pouco interessado. - Bom, que é que se pode esperar de um Portagee?

 

Pablo e Pilon suspiraram aliviados.

 

- Então que tal vão os frangos da Sr.a Morales? - perguntou Pilon como por acaso.

 

Danny abanou tristemente a cabeça.

 

- Morreram todos. A Sr.a Morales plantou uns feijões de trepar numas jarras; as jarras rebentaram e ela deu os feijões aos frangos e morreram todos.

 

- Onde é que esses frangos estão agora? - perguntou Pablo.

 

Danny agitou dois dedos para a frente e para trás em sinal de negação.

 

- Disseram à Sr.a Morales para não comer os frangos porque podia ficar doente, mas nós raspámo-los bem lá por dentro e vendemo-los no talho.

 

- Morreu alguém? - quis saber Pablo.

 

- Não. Acho que os frangos acabavam por ficar bons.

 

- O dinheiro dos frangos deu-te para comprares uma pinga de vinho, não? - sugeriu Pilon.

 

Danny sorriu-lhe cinicamente.

 

- Comprou a Sr.a Morales e eu fui lá a casa ontem à noite. É uma bonita mulher em certos aspectos e também não é lá muito velha.

 

Pablo e Pilon voltaram a ficar alarmados.

 

- O meu primo Weellie afirma que ela tem 50 anos disso Pilon com alvoroço.

 

Danny estendeu as mãos.

 

- Que importância tem a idade dela?-observou filosoficamente. - É uma mulher cheia de vida. E tem uma casa e duzentos dólares no Banco. - Depois ficou um tanto embaraçado. - Gostava de lhe dar um presente.

 

Pilon e Pablo puseram-se a olhar para os pés e tentaram por meio de um violento esforço mental evitar o que se aproximava. Os seus esforços, porém, não surtiram qualquer efeito.

 

- Se eu tivesse uns cobres - disse Danny - dava-lhe uma grande caixa com doce. - Olhou os seus inquilinos com uma expressão cheia de significado, mas nenhum deles lhe respondeu.- Só precisava de um dólar ou dois - sugeriu.

 

- Chin Kee anda na secagem das lulas - observou Pilon,

- Pode ser que tu arranjes para cortar lulas durante meio dia.

 

Danny retorquiu azedamente:

 

- Parecia mal que um homem que tem duas casas fosse cortar lulas. Agora se se pagasse uma rendazinha...

 

Pilon ergueu-se arreliado.

 

- Sempre a renda - exclamou. - Tu atiravas com a gente para o meio da rua... para as sarjetas, enquanto dormes na tua fofa cama. Anda, Pablo - disse, irritado. - Vamos arranjar o dinheiro para dar a este miserável, este judeu.

 

Afastaram-se ambos.

 

- Onde é que a gente vai buscar o dinheiro? - perguntou Pablo.

 

- Não sei - retorquiu Pilon. - Talvez ele não volte a pedi-lo.

 

A desumana exigência tinha, porém, penetrado fundo na paz de espírito dos dois homens.

 

- Quando o virmos, chamamos-lhe «Velho judeu» - disse Pilon. - Há anos que somos amigos dele. Quando ele teve precisão, demos-lhe de comer; quando teve frio, demos-lhe roupa.

 

- Quando foi isso? - perguntou Pablo.

 

- Bem, isto é o que a gente teria feito se ele necessitasse de alguma coisa e a gente a tivesse. É este o género de amizade que tivemos por ele. E ele agora, para dar uma caixa de doces a uma velha gorda, calca-a aos pés.

 

- Os doces só fazem mal - disse Pablo.

 

Pilon ficou fatigado com tanta emoção. Sentou-se na vala ao lado da estrada e descansou o queixo nas mãos, desconsolado.

 

Pablo sentou-se também, mas apenas para descansar, pois a sua amizade para com Danny não era tão antiga e bela como a de Pilon.

 

O fundo da vala estava atafulhado de erva seca e de arbustos. Pilon, ao olhar para baixo, triste e ressentido, viu um braço humano surgir debaixo de um arbusto. Depois, ao lado do braço, surgiu um garrafão de vinho meio-cheio. Pilon agarrou o braço de Pablo e apontou.

 

Pablo olhou fixamente.

 

- É capaz de estar morto, Pilon. ; Pilon recuperara a respiração e a sua bela vista.

 

- Se está morto, o vinho não lhe serve para nada. Não pode levá-lo para a cova.

 

O braço mexeu-se, afastou os arbustos para trás fazendo aparecer o rosto pisado e a barba ruiva e emaranhada de Jesus Maria Corcoran.

 

- Ai, Pilon. Ai, Pilon - disse, estonteado. - Quê tomas? Pilon saltou para o pé dele.

 

- Amigo. Jesus Maria! Tu não estás bem. Jesus Maria sorriu docemente.

 

- Bêbedo, é só - murmurou.

 

- Venham cá, amigos. Bebam-lhe bem que há muito. Pilon inclinou o garrafão por cima do ombro. Levou-o quatro vezes à boca e emborcou mais de meio litro de vinho. Depois, Pablo tirou-lho das mãos e pôs-se a brincar com ele, como um gato com uma pena. Com a manga limpou o gargalo. Cheirou o vinho. Sorveu primeiramente três ou quatro vezes e deixou cair algumas gotas de vinho para se tantalizar. Por fim exclamou:

 

- Madre de Dios, quê vino!

 

Ergueu o garrafão e o vinho tinto gorgolejou-lhe alegremente pela garganta abaixo.

 

A mão de Pilon já se encontrava estendida há muito tempo

 

antes de Pablo voltar a tomar fôlego. Pilon encarou o seu amigo Jesus Maria com uma expressão suave e admirativa.

 

- Descobriste algum tesouro aqui no bosque? - perguntou.- Ou foi algum homem importante que morreu e se lembrou de ti no testamento, meu amigo?

 

Jesus Maria era um humanitário e a bondade nunca o abandonava. Tossicou para aclarar a voz e cuspiu.

 

- Dá-me daí um gole - disse. - Tenho a garganta seca. Já te conto como as coisas se passaram.

 

Pôs-se a beber, o olhar sonhador, como o de um homem que tem tanto vinho que pode gastar o seu tempo a bebê-lo e até mesmo a entornar um pouco sem remorso.

 

- Estava a dormir na praia aqui há duas noites - disse. Na praia ao pé de Seaside. Durante a noite as ondas arrojaram à praia um barco a remos. Era um bonito barquito e trazia uns remos lá dentro. Meti-me nele e remei até Monterey. Valia à vontade vinte dólares, mas o negócio estava fraco e só me deram sete.

 

- Ainda tens dinheiro? - perguntou Pilon, alvoroçado.

 

- Estou a contar-te como as coisas se passaram - volveu Jesus Maria com certa dignidade. - Comprei dois garrafões de vinho e trouxe-os para aqui; depois, fui dar umas voltas com a Arabella Gross. Em Monterey comprei-lhe umas calcinhas de seda de que ela gostou muito, tão macias e tão cor-de-rosa elas eram. Comprei-lhe também meio litro de whisky; passado um bocado, porém, encontrámos uns soldados e ela foi com eles.

 

- Ai o ladrão; roubar assim o dinheiro de um homem generoso! - exclamou Pilon, horrorizado.

 

- Não - disse Jesus Maria, sonhador. - De qualquer modo era altura de ela se ir embora. Depois, vim para aqui e deitei-me a dormir.

 

- Então, já não tens dinheiro?

 

- Não sei - respondeu Jesus Maria. - Deixa-me ver. Rebuscou as algibeiras e tirou duas notas de dólar amachucadas e uma moeda de dez centimos. - Esta noite vou comprar-lhe uma daquelas coisas que se usam assim à volta.

 

- São umas bolsinhas de seda presas a um fio, não é?

 

- É - respondeu Jesus Maria -, mas não são assim tão pequenas como tu julgas.

 

Tossicou para aclarar a voz. Pilon encheu-se logo de solicitude.

 

- É do ar da noite - afirmou. - Não faz nada bem dormir ao ar livre. Anda, Pablo, vamos levá-lo para a nossa casa e tratá-lo da constipação. Os pulmões já estão bastante atacados, mas a gente põe-no bom.

 

- Que é que vocês estão para aí a dizer? - inquiriu Jesus Maria. - Eu estou fino.

 

- Isso é o que tu achas - volveu Pilon. - Também o Rodolfo Kelling pensava assim e, no entanto, faz agora um mês que foste ao enterro dele. Também a Angelina Vásquez pensava do mesmo modo e morreu a semana passada.

 

Jesus Maria ficou horrorizado.

 

- Que é que vocês acham que seja a causa disto?

 

- É este ar da noite - respondeu Pilon com sabedoria. Os teus pulmões não aguentam.

 

Pablo envolveu o garrafão de vinho numa grande erva, disfarçando-o de tal modo que qualquer pessoa que passasse teria ficado consumida de curiosidade antes de saber o que a erva continha.

 

Pilon caminhou ao lado de Jesus Maria, tocando-lhe de vez em quando debaixo do cotovelo para lembrá-lo que a sua saúde estava abalada. Levaram-no para a casa de ambos e deitaram-no num catre; depois, embora o dia estivesse quente, cobriram-no com uma velha manta. Pablo, comovido, falou das pobres criaturas a quem a tuberculose fazia sofrer dores intoleráveis. Depois, Pilon pôs na voz um acento de doçura. Falou com reverência dá alegria que era viver numa casinha. Noite alta, quando já nada mais havia a dizer e o vinho se tinha acabado e, lá fora, os mortais vapores do nevoeiro se agarravam ao chão como fantasmas de gigantescas sanguessugas, uma pessoa não ia deitar-se na terra húmida e doentia de alguma vala. Não, uma pessoa metia-se mas era numa cama quente e macia e dormia como uma criancinha.

 

Nessa altura Jesus Maria adormeceu. Pilon e Pablo tiveram de acordá-lo e dar-lhe de beber. Depois Pilon falou enternecido das manhãs em que se ficava aconchegado na cama até o Sol ir suficientemente alto para ser de algum préstimo. Não se tinha de andar de um lado para o outro a tremer de frio na madrugada e a esfregar as mãos para não gelsrem.

 

Por fim, Pilon e Pablo acercaram-se de Jesus Maria como dois cães de caça convergindo para a presa. Deixavam que ele se servisse da casa por quinze dólares mensais. Jesus Maria aceitou alegremente. Houve apertos de mão. O garrafão saiu da erva. Pilon bebeu um longo trago, pois sabia que tinha perante si a sua mais difícil tarefa. Então, desprendida e delicadamente, enquanto Jesus Maria tinha os lábios no garrafão, disse:

 

- E agora só pagas três dólares por conta.

 

Jesus Maria baixou o garrafão e olhou para ele, horrorizado.

 

- Não! - explodiu. - Prometi à Arabella Gross que lhe comprava uma coisa daquelas. Pago a renda mas é quando chegar a altura.

 

Pilon viu que tinha cometido crasso erro.

 

- Quando estavas deitado lá na praia ao pé de Seaside, Deus mandou o bsrquito ter contigo. Achas que Deus fez isso para que tu comprasses cuecas de seda a uma jabardona lá da fábrica de conservas? Não! Deus procedeu assim para tu não morreres por andares a dormir no chão ao frio. Achas que Deus está interessado nos peitos de Arabella? E, além do mais, aceitamos um depósito de dois dólares - continuou. Com um dólar podes comprar uma dessas coisas tão grandes que chegam para aparar as tetas de uma vaca.

 

Ainda assim Jesus Maria protestou.

 

- Vou dizer-te uma coisa - continuou Pilon. •- Se não pagarmos dois dólares ao Danny somos todos postos na rua e és tu quem tem a culpa. Que a gente ande a dormir em valas, é coisa que na tua alma há-de pesar sempre.

 

Sob tantos ataques, vindos de tantas direcções, Jesus Maria Corcoran cedeu. Passou a Pilon duas das amachucadas notas.

 

Depois, a atmosfera tensa abandonou o quarto e, em seu lugar, instalou-se a paz e uma camaradagem calma, profunda e quente. Pilon descontraiu. Pablo levou a velha manta para a sua cama e a conversa restabeleceu-se.

 

- Temos de entregar este dinheiro ao Danny.

 

Saciados os primeiros apetites, estavam agora a beberricar o vinho das jarras.

 

- Danny tem assim uma precisão tão grande dos dois dólares?- perguntou Jesus Maria.

 

Pilon tornou-se mais confidencial. As suas mãos puseram-se a brincar como se fossem duas borboletas iguais, que apenas os pulsos e os braços impedissem de voar para a porta.

 

- O Danny, o nosso amigo Danny, anda a fazer a corte à Sr.a Morales. Não julgues que Danny é parvo. A Sr.a Morales tem duzentos dólares no Banco. Danny quer comprar uma grande caixa de doce para lhe dar.

 

- Os doces são coisas ruins - observou Pablo -, fazem dores de dentes.

 

- Isso é com o Danny - disse Jesus Maria.-Se quiser fazer dores de dentes à Sr.a Morales, é lá com ele. Que é que a gente tem a ver com os dentes da Sr.a Morales?

 

Uma nuvem de inquietação sombreara o rosto de Pilon.

 

- Mas - interrompeu ele com severidade - se o nosso amigo Danny oferecer alguns doces à Sr.a Morales, come também alguns e, portanto, será a ele que lhe doerão os dentes.

 

Pablo abanou a cabeça, inquieto.

 

- Seria uma feia acção se os amigos de Danny, de quem ele depende, lhe causassem dores de dentes.

 

- Então que havemos de fazer? - perguntou Jesus Maria, embora ele, e todos os outros, soubessem exactamente o que havia a fazer. Delicadamente, cada um esperou que o outro fizesse a inevitável sugestão. O silêncio prolongou-se. Pilon e Pablo sentiam não ser deles que devia vir a sugestão, uma vez que, segundo certa linha de raciocínio, podiam ser considerados partes interessadas. Jesus Maria manteve-se silencioso como se isso fosse seu dever para com os seus hóspedes, mas quando o silêncio o fez compreender aquilo que exigiam dele, saltou imediatamente para a brecha.

 

- Um garrafão de vinho é um belo presente para uma senhora - sugeriu num tom pensativo.

 

Pilon e Pablo ficaram espantados com a brilhante ideia.

 

- Podemos dizer ao Danny que para os dentes dele o vinho era melhor.

 

- Mas Danny é capaz de não prestar atenção ao nosso aviso. Quem lhe der dinheiro fica sem saber o que é que ele lhe faz. De qualquer modo pode comprar os doces, e lá se perdem o nosso tempo e os nossos cuidados.

 

Tinham feito de Jesus Maria o motor das suas acções, a chave de situações difíceis.

 

- Se nós comprarmos o vinho e o dermos ao Danny, talvez não haja perigo - sugeriu ele.

 

- Ora aí está - exclamou Pilon -, é isso mesmo! Jesus Maria sorriu modestamente ao lhe ser dado crédito pelas suas palavras.

 

Sentiu que mais cedo ou mais tarde este princípio teria sido promulgado por algum dos presentes.

 

Pablo deitou a última gota de vinho dentro das jarras e todos, fatigados, beberam após o seu esforço. Orgulhava-os terem chegado tão logicamente àquela ideia numa tal filantrópica causa.

 

- Agora estou com fome - disse Pablo.

 

Pilon levantou-se, dirigiu-se à porta e olhou para o Sol.

 

- Já passa do meio-dia - disse. - Pablo e eu vamos Torrelli comprar o vinho, enquanto tu, Jesus Maria, vais a Monterey arranjar alguma coisa que se coma. Talvez no cais a Sr.a Bruno te dê um peixe. Talvez consigas arranjar em qualquer lado um bocado de pão.

 

- Antes queria ir com vocês - disse Jesus Maria, pois suspeitava que uma sequência, tão lógica como inevitável, estava a começar a formar-se na cabeça dos seus amigos.

 

Não, Jesus Maria - retorquiram firmemente. - São duas horas, coisa menos coisa. Dentro de uma hora temos aí as três. Encontramo-nos então contigo aqui e come-se qualquer coisa. Talvez haja uma pinga para acompanhar.

 

Jesus Maria pôs-se a caminho de Monterey com muita relutância, mas Pablo e Pilon desceram, felizes, a colina direitos à loja do Torrelli.

 

Como São Francisco mudou o curso dos acontecimentos e castigou suavemente pilon, Tablo e Jesus Maria

 

A tarde desceu tão imperceptivelmente como a idade atinge o homem feliz. Ouro penetrou na luz do Sol. As águas da baía ficaram mais azuis e pregueadas pelo vento que soprava da praia. Os pescadores solitários que acreditam que o peixe morde durante a maré alta deixaram as suas rochas, e os seus lugares foram ocupados por aqueles que estavam convencidos ser na maré baixa que o peixe pega no isco.

 

Às três horas o vento mudou e pôs-se a soprar mansamente da baía, trazendo toda a espécie de cheiros das algas. Os pescadores, que nos sítios desertos de Monterey remendavam as redes, puseram de parte as agulhas e enrolaram tabaco nas mortalhas. Pelas ruas da cidade, senhoras gordas, em cujas pupilas havia o cansaço e a sabedoria que tantas vezes se vêem nos olhos dos porcos, iam instaladas em poderosos automóveis a caminho do Hotel dei Monte, a fim de tomarem chá e gim com soda.

 

Na Rua Alvarado, Hugo Machado, o alfaiate, colocou na porta da loja uma tabuleta que dizia «Volto dentro de cinco minutos», e foi para casa passar o resto do dia. Os pinheiros ondeavam lenta e voluptuosamente. As galinhas que, às centenas, eram criadas em cercados, lamentaram plàcidamente a sua triste sorte.

 

Pilon e Pablo, sentados debaixo de uma roseira-de-castela no quintal de Torrelli, bebiam tranquilamente o seu vinho e deixavam que a tarde crescesse sobre eles, pouco a pouco, como o cabelo.

 

- É bom que a gente não leve ao Danny dois garrafões de vinho-disse Pilon.- É homem que pouca moderação põe no beber.

 

Pablo concordou.

 

- Danny tem um aspecto saudável - disse -, mas é gente assim que, volta não volta, se apaga. Olha o Rudolfo Kelling, olha a Angelina Vásquez.

 

O realismo de Pilon veio calmamente à superfície.

 

- Rudolfo caiu numa pedreira em Pacific Grove - comentou numa reprovação amável. - Angelina comeu uma lata de peixe estragado. Mas - prosseguiu, bondoso -eu sei o que queres dizer. E há muita gente que morre por abusar do vinho.

 

Toda a cidade começou a preparar-se para a noite, gradual e instintivamente. A Sr.a Guttierez cortou pequenos pimentos para o seu molho de enchilada. Rupert Hogan, o vendedor de bebidas alcoólicas, deitou água no gim e pô-lo de parte para o vender depois da meia-noite. Depois despejou um pouco de pimenta no whisky que ia servir ao fim da tarde. No pavilhão de dança El Paseo, Bullet Rosendale abriu uma caixa de biscoitos e dispô-los, como uma grosseira renda castanha, em grandes travessas de cerimónia. Na Palace Drug Company enro-

laram-se os toldos. Um pequeno grupo de homens que tinha passado a tarde em frente dos Correios saudando os amigos, pôs-se a caminho da estação para ver chegar o Del Monte Express, vindo de São Francisco. Saciadas, as gaivotas levantaram voo das praias em frente das fábricas de conservas de peixe e lançaram-se na direcção das rochas da costs. Filas de pelicanos batiam teimosamente as asas por sobre as águas, fosse qual fosse o sítio para onde se dirigissem nessa noite. Nos barcos de pesca, os italianos dobraram as redes em cima de grandes cilindros. A pequena Miss Alma Alvarez, de 90 anos de idade, levou, como todos os dias, o seu ramo de gerânios cor-de-rosa à imagem da Virgem situada no muro exterior da Igreja de San Carlos. Na vizinha e metodista aldeia de Pacific Grove, as participantes do W. C. T. A. encontram-se para tomar chá e discutirem, ao mesmo tempo que escutavam uma senhora baixinha descrever com energia e cor o vício e a prostituição em Monterey. Achava ela que uma comissão devia visitar esses antros a fim de ver exactamente como, na verdade, eram terríveis as condições aí existentes. Haviam examinado a situação e precisavam de factos novos.

 

O Sol dirigiu-se para o ocidente e ganhou uma vermelhidão alaranjada. No quintal de Torrelli, debaixo da roseira, Pablo e Pilon esvaziaram o primeiro garrafão de vinho. Torrelli saiu de casa e passou pelo quintal sem reparar nos seus antigos fregueses. Estes esperaram que ele desaparecesse a caminho de Monterey; depois, entraram em casa e, com um conhecimento consciente da arte de adular, levaram a Sr.a Torrelli a dar-lhes ceia. Deram-lhe umas palmadas nas nádegas, chamaram-lhe Butter Duck, permitiram-se uma liberdadezitas corteses com a sua pessoa e, por fim, foram-se embora, deixando-a envaidecida e um tanto despenteada.

 

Fizera-se noite em Monterey e as luzes haviam-se acendido. Nas janelas havia uma claridade baça. As luzes do teatro de Monterey começaram a soletrar continuamente: «As Crianças do Inferno - As Crianças do Inferno». Um pequeno mas fanático grupo de homens que acreditam que o peixe morde de noite assentaram arraiais nas frias rochas da costa. Através das ruas deslizou uma ligeira névoa que ficou a flutuar à roda das chaminés; o ar encheu-se do belo aroma que o pinho larga ao ser queimado.

 

Pablo e Pilon voltaram para a roseira e sentaram-se no chão, mas já não estavam tão satisfeitos como haviam estado.

 

- Está frio aqui - disse Pilon, bebendo um trago de vinho para se aquecer.

 

- Devíamos ir para a nossa casa que lá está quente - volveu Pablo.

 

- Mas não temos lenha para o fogão.

 

- Bem - prosseguiu Pablo-, se levares o vinho, encontro-me contigo à esquina da rua.

 

E foi o que fez, passado cerca de meia hora.

 

Pilon esperou com paciência, pois sabia que há coisas que mesmo os nossos amigos não podem remediar. Enquanto aguardava, Pilon olhava cuidadosamente a rua na direcção que Torrelli havia tomado, visto este ser um homem violento para quem as explicações, por mais cuidadosamente planeadas ou melhor ditas que fossem, não passavam de ridicularias. Além disso, Torrelli tinha, Pilon sabia-o, a ideia exagerada e quixotesca dos italianos no que se refere às relações matrimoniais.

 

A sua vigilância, porém, foi em vão. Nenhum Torrelli regressou brutalmente a casa. Instantes depois, Pablo veio ter com ele e Pilon reparou com admiração e contentamento que o amigo trazia um braçado de cavacos de pinheiro tirados do monte de lenha de Torrelli. Até chegarem a casa, Pablo não fez qualquer comentário acerca da sua recente aventura. Depois repetiu as palavras de Danny:

 

- Uma mulher mexida, aquela «Butter Duck».

 

Pilon, no escuro, fez um sinal de concordância com a cabeça, ao mesmo tempo que enunciava uma calma filosofia:

 

- Raramente se acha tudo no mesmo mercado: vinho, comida, amor e lenha. Não devemos esquecer-nos do Torrelli, meu amigo. É homem para saber. Qualquer dia temos de lhe levar um presente.

 

Pilon acendeu o fogão. Em breve o lume crepitava estrepitosamente. Os dois amigos puxaram as cadeiras para o pé do fogão e seguraram as jarras perto do fogo para aquecerem um pouco o vinho. Nessa noite a luz era sagrada, pois Pablo havia comprado uma vela para acender a-São Francisco. Alguma coisa, porém, distraíra o seu espírito antes de esse sagrado plano ter sido levado a cabo. Agora o pequeno círio ardia, cheio de beleza, na concha de um búzio e lançava as sombras de Pilon e de Pablo contra a parede fazendo-as dançar.

 

- Gostava de saber para onde é que Jesus Maria foi disse Pilon.

 

- Já passou um bom bocado desde que disse que voltava - volveu Pablo. - Não sei se é homem em quem se possa ter confiança ou não.

 

- Talvez tenha acontecido qualquer coisa sem importância que o faça denorar-se. Jesus Maria, com aquela barba ruiva e aquele seu coração bondoso, anda quase sempre em embrulhadas por causa de mulheres.

 

- Ele tem é miolos de cigarra - respondeu Pablo. - Só sabe cantar e divertir-se. Não leva nada a sério.

 

Não tiveram de esperar muito tempo. Mal haviam encetado o segundo jarro de vinho quando Jesus Maria entrou cambaleando. Para se aguentar, segurou-se aos dois lados da porta. A camisa estava rasgada e o rosto cheio de sangue. Dançando, a luz da vela revelou um olho negro e que nada augurava de bom.

 

Pablo e Pilon precipitaram-se para ele.

 

- O nosso amigo está ferido. Caiu de algum rochedo. Foi atropelado pelo comboio!

 

Não havia nestas palavras o mais ligeiro tom satírico, mas Jesus Maria reconheceu nelas o mais destruidor género de sátira. Encarou-os fixamente com o olho que em tais assuntos ainda tinha algum querer.

 

- As vossas mães eram umas grandíssimas vacas! - exclamou.

 

Ambos recuaram horrorizados perante a grosseria da imprecação.

 

- O nosso amigo está a delirar.

 

- Partiu os ossos da cabeça.

 

- Deita-lhe aí uma pinga de vinho, Pablo.

 

Jesus Maria sentou-se, taciturno, ao pé do fogo e afagou o jarro de vinho enquanto os amigos aguardavam pacientemente a explicação da tragédia. Jesus Maria, porém, parecia comprazer-se em deixar os amigos na ignorância do revés que lhe acontecera. Apesar de Pilon pigarrear diversas vezes, e embora Pablo o fitasse com uns olhos que ofereciam simpatia e compreensão, Jesus Maria continuou amuado, contemplando o fogão, o vinho e o círio sagrado, até que, por fim, a sua indelicada reticência levou Pilon a igual indelicadeza. Depois não compreendeu como pôde ter feito aquilo.

 

- Outra vez os soldados? - perguntou.

 

- Sim - rosnou Jesus Maria -, desta vez vieram cedo de mais.

 

- Devem ter sido uns vinte para te terem posto neste estado - comentou Pablo, a fim de confortar o espírito do amigo. - Toda a gente sabe que em zaragatas és um homem perigoso.

 

Jesus Maria pareceu realmente ter ficado um pouco mais feliz.

 

- Eram quatro-disse. - Arabella Gross também ajudou. Deu-me com uma pedra na cabeça.

 

Pilon sentiu elevar-se dentro de si uma onda de ressentimento moral.

 

- Eu bem costumava lembrar-te - disse severamente como os teus amigos te avisavam para teres cuidado com essa badalhoca das fábricas.

 

Não sabia se tinha ou não avisado Jesus Maria; mas pareceu-lhe que tinha.

 

- Essas brancas que vão por pouco dinheiro são traiçoeiras, amigo - interrompeu Pablo. - Sempre lhe deste aquela coisa que se põe à roda?

 

Jesus Maria meteu a mão na algibeira e tirou um amarrotado soutien de rayon cor-de-rosa.

 

- Não tinha chegado a altura - disse. - Estava quase; demais a mais, ainda não tínhamos entrado no bosque.

 

Pilon fungou e abanou a cabeça, mas não sem uma certa entristecida tolerância.

 

- Andaste a beber whisky.

 

Jesus Maria confirmou com um gesto de cabeça.

 

- Onde é que foste arranjá-lo?

 

-Nos soldados - respondeu Jesus Maria. - Tinham-no debaixo de uma passagem subterrânea. Arabella sabia que ele lá estava e disse-me. Mas os soldados viram-nos com a garrafa. A pouco e pouco, como Pilon gostava, a história ia tomando forma. Dava cabo de uma narrativa contá-la rapidamente. Uma boa história reside nas coisas meio contadas que devem ser preenchidas pela própria experiência do ouvinte. Pilon tirou o soutien cor-de-rosa do colo de Jesus Maria e, passando os dedos por ele, pôs-se a cismar. Passado um momento os olhos brilharam-lhe alegremente.

 

- Já sei! - exclamou. - Vamos dar isto ao Danny para ele o oferecer à Sr.a Morales.

 

Todos, excepto Jesus Maria, que se sentiu impotente perante a superioridade numérica, aplaudiram a ideia. Pablo, com uma delicada compreensão da derrota, encheu o jarro de Jesus Maria. Momentos depois, os três homens começaram a sorrir. Pilon contou uma história muito divertida a respeito de uma coisa que acontecera ao pai. A satisfação voltou a reinar; cantaram. Jesus Maria arrastou os pés num arremedo de dança, para provar que não estava seriamente magoado. Dentro da jarra, o vinho ia descendo cada vez mais, mas antes de se acabar os três amigos começaram a ficar com sono. Pilon e Pablo dirigiram-se para a cama, cambaleando. Jesus Maria deitou-se confortàvelmente no soalho, ao lado do fogão.

 

O fogo extinguiu-se. A casa encheu-se dos ruídos profundos que os homens faziam a dormir. Na sala de fora apenas uma coisa tinha movimento. A pequena chama, aguçada como ponta de lança, que o círio sagrado dardejava, subia e descia com incrível rapidez.

 

Mais tarde, esta pequena vela deu a Pilon, a Pablo e a Jesus Maria matéria de natureza ética para reflectirem. Um simples rolo de cera atravessado por um fio: tal coisa está, diríamos nós, sujeita a certas leis da física e a mais nenhumas. A sua conduta, pensar-se-ia, está garantida por certos princípios de calor e combustão. Acende-se o pavio, a cera é apanhada e o pavio é puxado para cima; a vela arde durante um certo número de horas, extingue-se e é tudo. Acabou-se o incidente. Em breve a vela é esquecida e depois, claro, nunca existiu.

 

Esquecestes-vos que esta vela era sagrada? De que num momento de consciência ou (quem sabe?) de pura exaltação religiosa, Pablo a dedicara a São Francisco? É este o princípio que coloca o rolo de cera fora da jurisdição da física.

 

A vela dirigia ao céu a sua lança de luz, tal como o artista que a si próprio se consome para se tornar divino. A pouco e pouco o círio foi ficando mais curto. Lá fora gerou-se uma rabanada de vento que perpassou através das fendas da parede. A vela inclinou-se para o lado. Um calendário de seda representando o rosto de uma bela jovem que emergia do meio de uma rosa Americana Beauty foi levado pela corrente de ar e, afastando-se um pouco da parede, alcançou a lança de fogo. A chama lambeu a seda e correu direita ao tecto. Um papel de parede descolado incendiou-se e caiu em chamas sobre um monte de jornais.

 

No céu, santos e mártires contemplavam a cena com uma expressão rígida e implacável. A vela era abençoada. Pertencia a São Francisco. Esta noite, em lugar dela, São Francisco terá uma outra, enorme.

 

Se fosse possível avaliar a profundidade do sono, poder-se-ia dizer com justiça que Pablo, cuja culposa acção era responsável pelo fogo, dormia ainda mais profundamente do que os seus dois amigos. Mas, uma vez que não há bitola, apenas se pode afirmar que o seu sono era muito profundo.

 

As labaredas subiram pelas paredes e, achando pequenos buracos no telhado, esgueiraram-se através deles para a noite. A casa encheu-se com o rugir do fogo. Jesus Maria, desassossegado, voltou-se e, sem acordar, começou a despir o casaco. Então, uma ripa em chamas caiu-lhe na cara. Levantou-se com um berro e ficou perplexo perante o fogo que à sua volta se enfurecia.

 

- Pilon! Pablo!-gritou.

 

Correu para o outro quarto, tirou os amigos da cama e empurrou-os para fora de casa. Pilon ainda tinha o soutien preso aos dedos.

 

Ficaram em frente da casa em chamas, olhando para o interior através da porta aberta que uma cortina de fogo cobria. Sobre a mesa podiam ver o jarro que ainda continha uma boa pinga de vinho.

 

Pilon pressentiu o selvagem heroísmo que começava a surgir em Jesus Maria.

 

- Não faças isso! - gritou. - Deve desaparecer no fogo como um castigo para nós por o termos deixado.

 

O grito das sereias e o barulho dos carros de bomba que, vindos do quartel dos bombeiros de Monterey, subiam a encosta em segunda, chegou-lhes aos ouvidos. Os grandes carros vermelhos aproximaram-se e as luzes dos seus faróis ondearam através dos pinheiros.

 

Pilon voltou apressado para junto de Jesus Maria.

 

- Vai a correr dizer ao Danny que a casa está a arder. Corre depressa, Jesus Maria.

 

- Porque é que não vais tu?

 

- Escuta - respondeu Pilon. - Danny não sabe que é a ti que a casa está alugada. Podia ficar um bocado arreliado com o Pablo e comigo.

 

Jesus Maria compreendeu esta lógica e deitou a correr para casa de Danny. A casa estava às escuras.

 

- Danny! - gritou. - Danny, a tua casa está a arder.

 

Não houve resposta.

 

- Danny! - gritou de novo.

 

Na casa da Sr.a Morales, ao lado da de Danny, abriu-se uma janela. Danny pareceu irritado.

 

- Que diabo queres tu?

 

- A tua outra casa, aquela onde o Pablo e o Pilon vivem, está a arder.

 

Durante um momento Danny não respondeu. Depois perguntou:

 

- Estão lá os bombeiros?

 

- Estão! - gritou Jesus Maria.

 

O céu estava já todo iluminado. Ouvia-se o estralejar dos madeiramentos a arder.

 

- Bom - disse Danny -, se os bombeiros não podem fazer nada, que é que o Pilon espera que eu faça?

 

Jesus Maria ouviu a janela fechar-se com um estrondo; voltou-se e dirigiu-se para o local do fogo. Era uma altura má para chamar o Danny, sabia-o, mas depois como é que se lhe podia dizer? Se Danny não tivesse sabido do fogo podia ter ficado furioso. Jesus Maria sentia-se satisfeito por, de qualquer modo, tê-lo avisado. Agora a responsabilidade era da Sr.a Morales.

 

A casa era pequena, havia muita corrente de ar e as paredes estavam perfeitamente secas. Talvez desde o incêndio do velho Bairro Chinês não tivesse havido um fogo tão rápido e tão completo. Os bombeiros deram uma vista de olhos pelas paredes a arder e depois começaram a molhar os arbustos, as árvores e as moradias circunvizinhas. Em menos de uma hora a casa havia completamente desaparecido. Só então as mangueiras se voltaram para o monte de cinzas a fim de apagar as brasas e as faúlhas.

 

Pilon, Pablo e Jesus Maria, ombro com ombro, observavam a cena. Metade da população de Monterey e toda a gente de Tortilla Flat, excepto Danny e a Sr.a Morales, andava por ali divertida a ver o incêndio.

 

Por fim, quando tudo estava terminado, quando do montão negro apenas se elevava uma nuvem de fumo, Pilon afastou-se silenciosamente.

 

- Aonde vais? - perguntou Pablo.

 

-Para o bosque, dormir. Aconselho-te a vires também; será bom que durante um certo tempo Danny não nos veja.

 

Graves e silenciosos, os outros concordaram e seguiram-no.

 

- É uma lição para nós - disse Pilon. - Assim aprendemos a nunca deixar vinho de uma noite para a outra dentro de casa.

 

- Para a próxima - volveu Pablo, desanimado - pomo-lo lá fora e roubam-no.

 

Como três pecadores alcançaram a paz por meio da contrição. Como os amigos de Danny juraram ser companheiros

 

O oSol já se erguia acima dos pinheiros, o chão estava quente e o orvalho da noite ia secando nas folhas dos gerânios, quando Danny saiu do telheiro para se sentar à soalheira e meditar, ao calor, acerca de certos acontecimentos. Descalçou os sapatos e deixou que os dedos dos pés remexessem sobre as pranchas aquecidas pelo sol.

 

Manhã cedo tinha ido ver as negras cinzas quadradas e os canos torcidos do que havia sido a sua outra casa. Entregara-se a uma pequena ira convencional contra os seus descuidados amigos e lamentara por momentos a transitoriedade dos bens terrenos que tornavam as riquezas espirituais muito mais valiosas. Meditara na ruína da sua situação, como proprietário de Uma casa para alugar; e, tendo satisfeito e afastado de si todo este emaranhado de emoção decente e necessária, refugiara-se no seu verdadeiro sentimento, o de alívio, por, pelo menos, um dos seus pesos lhe ter sido alijado.

 

«Se ainda houvesse casa, teria a ambição de receber a renda», pensou. «Os meus amigos ter-se-iam mostrado frios para comigo por me deverem dinheiro. Agora podemos ser outra vez livres e felizes.»

 

Danny, porém, sabia que devia disciplinar um pouco os seus amigos, ou estes considerá-lo-iam mole. Por conseguinte, enquanto estava sentado no telheiro afastando as moscas com gestos da mão que eram mais avisos do que ameaças para elas, meditou no que devia dizer aos amigos antes de os aceitar de novo no curral da sua afeição. Tinha de lhes mostrar que não era homem que se deixasse pisar. Mas desejava ardentemente passar essa fase e ser mais uma vez aquele Danny de quem toda a gente gostava, aquele Danny que as pessoas procuravam quando tinham um garrafão de vinho ou um naco de carne. Como dono de duas casas tinha sido considerado rico e perdera inúmeros bons petiscos.

 

Pilon, Pablo e Jesus Maria dormiram bastante tempo sobre a caruma dos pinheiros. Tinha sido uma noite cheia de acontecimentos terrivelmente excitantes e estavam cansados. Mas o refulgente sol do meio-dia acabou por brilhar-lhes no rosto, as formigas passearam por cima deles e os dois gaios azuis, que se não tinham afastado dali, chamaram-lhes toda a espécie de nomes trocistas. Contudo, o que os acordou foi um grupo que estava a fazer um piquenique mesmo no outro lado dos arbustos, onde abrira um enorme cesto merendeira do qual se desprenderam cheiros que lhes chegaram ao nariz. Acordaram; sentaram-se; e, então, a enormidade da sua situação explodiu sobre eles

 

- Como começou o fogo? - perguntou Pablo, lamentoso. Ninguém sabia.

 

- Talvez - disse Jesus Maria - fosse melhor irmos por uns tempos para a cidade; para Watsonville ou para Salinas; são umas terras bem bonitas.

 

Pilon tirou o soutien da algibeira e passou os dedos sobre a macia superfície cor-de-rosa. Depois, ergueu-o contra o Sol e olhou através dele.

 

- Isso só trazia demoras a este caso - concluiu. - Penso que seria melhor irmos ter com o Danny e confessar a nossa falta, como as crianças fazem com o pai. Assim, ele não pode dizer nada sem sentir pena. E, além do mais, não tem a gente aqui um presente para a Sr.a Morales?

 

Os amigos anuíram com um gesto de cabeça. Os olhos de Pilon vaguearam através do espesso arbusto até ao grupo do piquenique e particularmente até ao enorme cesto merendeiro, do qual se desprendiam os penetrantes odores de ovos fortemente condimentados. O nariz de Pilon franziu-se um pouco, como o de um coelho. Sorriu, absorvido em calmo devaneio.

 

- Vou dar um passeio, amigos. Daqui a bocado encontro-me com vocês na pedreira. Não tragam o cesto se puderem deixar de trazê-lo.

 

Pablo e Jesus Maria ficaram-se a olhar tristemente enquanto Pilon se erguia e se afastava, pelo meio das árvores, direito ao piquenique e ao cesto. Momentos depois ouviram, sem surpresa, um cão ladrar, um galo cantar, uma alta e estridente gargalhada, o rosnar de um gato bravo, um rápido grito e um berro de alguém que pedia socorro; o grupo, porém, ficou surpreendido e fascinado. Os dois homens e as duas mulheres largaram o cesto e correram direitos àqueles versáteis sons.

 

Pablo e Jesus Maria obedeceram a Pilon. Não levaram o cesto., mas os chapéus e as camisas ficaram para sempre com nódoas de ovos.

 

Por volta das quinze horas os três penitentes caminhavam lentamente na direcção da casa de Danny. Os braços iam carregados com ofertas de reconciliação: laranjas, maçãs, bananas, frascos com azeitonas e pickles, sanduíches de fiambre, sanduíches de ovos, garrafas de soda, um cartão de salada de batata e um número do Saturday Evening Tost.

 

Danny viu-os chegar, levantou-se e tentou lembrar-se das coisas que tinha a dizer-lhes. De cabeça baixa, os três alinharam-se em frente dele.

 

- Cães, ladrões das casas das pessoas decentes, patifes! chamou-lhes.

 

Chamou vacas às mães deles e carneiros velhos aos pais. Pilon abriu a mala e exibiu as sanduíches de fiambre. Danny disse que já não tinha confiança nos amigos, que a sua fé havia sido destruída e a sua amizade espezinhada. Depois começou a achar um pouco difícil lembrar-se, pois Pablo tinha tirado dois ovos bem condimentados de debaixo da camisa. Contudo, voltou a referir-se aos antepassados dos amigos, criticando a virtude das mulheres e a masculinidade dos homens.

 

Pilou tirou o soutien cor-de-rosa da algibeira e, indiferente, deixou-o ficar suspenso dos dedos, a balançar.

 

Danny então esqueceu-se de tudo. Sentou-ss no telheiro, os seus amigos sentaram-se também e abriram os embrulhos. Comeram até a comida deixar de lhes saber bem. Uma hora depois, quando se encontravam confortàvelmente recostados, e por pouco mais se interessando que não fosse a sua digestão, Danny perguntou por acaso, como se se tratasse de qualquer coisa remota:

 

- Como é que o fogo começou?

 

- Não se sabe - explicou Pilon. - Fomos dormir e depois começou. Talvez a gente tenha quem nos queira mal.

 

- Talvez - ecoou Pablo numa voz de devoto -, talvez haja nisto o dedo de Deus.

 

-Pode alguém dizer o que leva Deus a fazer o que faz? - acrescentou Jesus Maria.

 

Quando Pilon lhe entregou o soutien e explicou que era um presente para a Sr.a Morales, Danny ficou reticente. Olhou um tanto céptico para o soutien. Os seus amigos, pensou, estavam a adular a Sr.a Morales.

 

- Ela não é mulher a quem se dê presentes - disse, por fim. - Muitas vezes ficamos presos a uma mulher pelas meias de seda que lhe demos.

 

Não podia explicar aos seus amigos a frieza que se instalara nas suas relações com a Sr.a Morales desde que ficara dono apenas de uma casa, nem podia, por delicadeza para com a vizinha, descrever como essa frieza lhe agradava.

 

- Vou pôr esta coisa para aí. Pode ser que algum dia tenha préstimo para alguém.

 

Quando a noite chegou e escureceu, foram para dentro de casa e deitaram fogo a umas pinhas dentro do fogão. Danny, como prova do seu perdão, foi buscar um litro de grapa e partilhou o fogo desta com os seus amigos.

 

Acomodaram-se facilmente à nova vida.

 

- É realmente pena que os frangos da Sr.a Morales estejam todos mortos - observou Pilon.

 

Mas mesmo aqui não havia qualquer obstáculo à felicidade.

 

- Na segunda-feira ela vai comprar duas dúzias deles, novos - disse Danny.

 

Pilon sorriu satisfeito.

 

- As galinhas da Sr.a De Soto não prestavam. Eu disse-lhe que precisavam de cascas de ostras, mas ela não me ligou.

 

Beberam o litro da grapa, o que chegava bem para promover a doçura da camaradagem.

 

-- É bom ter amigos - disse Danny. - Como uma pessoa se sente só se não tem amigos com quem se sentar e partilhar a grapa!

 

- Ou as sanduíches - acrescentou Pilon, rapidamente. Pilon ainda não estava completamente liberto do remorso, pois tinha dúvidas quanto à verdadeira situação da política celestial que havia provocado o incêndio da casa.

 

- No mundo inteiro há poucos amigos como tu, Danny. Não é dado a muitos ter uma tal consolação.

 

Antes de submergir completamente sob as ondas dos seus amigos, Danny lançou um aviso.

 

- Quero-vos longe da minha cama - ordenou. - É a única coisa que tenho de ter para mim.

 

Embora nenhum o tivesse mencionado, cada um dos quatro sabia que iam viver todos na casa de Danny.

 

Pilon deu um suspiro de satisfação. Passada estava a preocupação com a renda, passada estava a responsabilidade de dever dinheiro. Já não era inquilino, mas sim hóspede. Em espírito, deu graças pelo incêndio da outra casa.

 

- Vamos ser felizes aqui, Danny - disse. - À noite, sentamo-nos ao fogo e os nossos amigos vêm visitar-nos. E talvez tenhamos, algumas vezes, um copo de vinho para bebermos à amizade.

 

Então, Jesus Maria, num frenesi de gratidão, fez uma ousada promessa. Era a grapa quem a fazia, a noite do incêndio e todos os ovos picantes. Sentiu que tinha recebido grandes presentes e queria dar um também.

 

- Será nosso dever e obrigação fazermos com que nesta casa nunca ao Danny falte comida - disse com arrebatamento. -O nosso amigo nunca há-de passar fome.

 

Pilon e Pablo levantaram os olhos, alarmados, mas a coisa já estava dita, uma bela e generosa coisa. Ninguém podia impunemente destruí-la. Até Jesus Maria compreendeu, depois de a ter dito, a grandeza da sua afirmação. Apenas podiam ter esperança de que Danny a esquecesse.

 

«Porque», disse Pilon de si para si, «se esta promessa fosse exigida, seria pior do que a renda. Seria uma escravidão.»

 

- Juramos, Danny! - disse.

 

Sentaram-se à volta do fogão, com lágrimas nos olhos. O amor que cada um tinha pelo outro era quase insuportável.

 

Com as costas da mão, Pablo limpou os olhos húmidos das lágrimas e repetiu a afirmação de Pilon.

 

- Viveremos muito felizes aqui - disse.

 

Como os amigos de Danny se tomaram uma torça ao serviço do bem. Como socorreram o pobre Pirata.

 

TodA a gente via o Pirata todos os dias; uns riam-se dele, outros lamentavam-no, mas ninguém o conhecia muito bem e ninguém se metia com ele. Era um homem enorme, largo de costas, de barba cerrada e tremendamente negra. Usava «jeans», camisa azul e não tinha chapéu. Na cidade andava de sapatos. Quando estava perante qualquer adulto, havia nos seus olhos um retraimento, a expressão reveladora do animal que gostaria de fugir se se atrevesse a voltar as costas durante tempo suficiente. Devido a esta expressão, os paisanos de Monterey sabiam que a sua cabeça não tinha crescido com o resto do corpo. Chamavam-lhe o Pirata por causa da barba. Todos os dias as pessoas o viam passar pelas ruas empurrando o seu carrinho de mão com madeira de pespanho até vender a carga. E, sempre atrás dele, apinhando-se uns contra os outros, seguiam os seus cinco cães.

 

Enrique fazia lembrar um galgo, embora o seu rabo fosse espesso. Pajarito era castanho e tinha o pêlo encaracolado, sendo estas as duas coisas que nele se notavam. Rudolph era um cão do qual as pessoas diziam: «Este cão é americano.» Fluff era um cãozinho rasteiro e o Senor Alec Thompson parecia ser uma espécie de Airedale. Caminhavam em bando atrás do Pirata, cheios de respeito para com ele e extremamente interessados em fazê-lo feliz. Quando, fatigado de empurrar o carrinho, ele se sentava para descansar, todos procuravam subir-lhe para o colo para que ele lhes coçasse as orelhas.

 

Havia quem tivesse visto o Pirata de manhã cedo na Rua Alvarado; havia quem o tivesse visto a cortar madeira de pespanho; havia quem soubesse que ele vendia acendalhas; mas ninguém, à excepção de Pilon, sabia tudo quanto o Pirata fazia. Pilon conhecia toda a gente e sabia tudo a respeito de todos.

 

O Pirata vivia na Tortilla Flat, numa capoeira deserta, construída num quintal de uma casa abandonada. Teria achado presunção da sua parte morar mesmo na casa. Os cães viviam à volta e por cima dele, e isto agradava-lhe, pois nas noites muito frias os animais aqueciam-no. Se os pés lhe arrefecessem, bastava-lhe pôr-lhes em cima a barriga quente do Senor Alec Thompson. A capoeira era tão baixa que o Pirata se via obrigado a entrar de gatas.

 

Todas as manhãs, muito cedo, bem antes de o Sol nascer, o Pirata gatinhava para fora da capoeira, seguido pelos cães que se roçavam uns contra os outros e espirravam ao contacto com o ar frio. Depois, o grupo descia a Monterey e punha-se a trabalhar ao longo de um beco. As portas das traseiras de quatro ou cinco restaurantes davam para esse beco. Por todas elas o Pirata entrava direito a cozinhas quentes e rescendendo a comida. Cozinheiros resmungões punham-lhe na mão embrulhos com restos, sem saber porque o faziam.

 

Depois de haver visitado cada uma das portas traseiras e ter os braços cheios de embrulhos, o Pirata voltava a subir a colina direito à Rua Munroe e, seguido do rodopiar alvoroçado dos cães, instalava-se num terreno deixado ao abandono. Em seguida, abria os embrulhos e dava de comer aos animais. Para si, tirava de cada embrulho um pedaço de pão ou de carne, mas não escolhia o melhor. Os cães sentavam-se em redor dele, lambendo nervosamente os beiços e esticando e encolhendo as patas enquanto esperavam a comida. Nunca bulhavam por causa dela, o que era surpreendente. Os cães do Pirata nunca brigavam uns com os outros, mas lutavam contra tudo quanto, com quatro patas, andasse pelas ruas de Monterey. Era um belo espectáculo ver aquela matilha de cinco cães correr atrás de fox-terriers ou pomeranians como se estes fossem coelhos.

 

Quando o dia despontava já a refeição havia chegado ao fim. Sentado no chão, o Pirata observava o céu tingir-se do azul da manhã. Via, lá em baixo, as escunas fazerem-se ao mar carregadas de madeira. Ouvia o sino da bóia soar docemente ao largo da Ponta da China. Os cães, deitados à volta dele, roíam os ossos. O Pirata parecia mais estar à escuta do dia do que a vê-lo, pois, enquanto que os seus olhos tinham uma expressão fixa, havia nele um ar de concentração. Passeava, ao acaso, as suas grandes mãos pelos cães e afagava-os metendo-lhes os dedos pelo áspero pêlo. Cerca de meia hora depois, o Pirata dirigia-se para um canto do terreno, tirava do carrinho a cobertura de sacos e desenterrava o machado do sítio onde todas as noites o enterrava. Em seguida, colina acima, empurrando o carro, metia-se pelo bosque dentro até encontrar uma árvore morta cheia de breu. Por volta do meio-dia, tinha já uma bela carga de acendalhas; depois, sempre seguido pelos cães, calcorreava as ruas até vender a carga por vinte e cinco cêntimos.

 

Era possível observar-se isto, mas o que ele fazia ao dinheiro é que ninguém sabia. Nunca o gastava. De noite, defendido dos perigos pelos cães, ia para o bosque e escondia a moeda ao pé de centenas de outras. Fosse onde fosse, o Pirata tinha escondida uma grande soma de dinheiro.

 

Pilon, homem sagaz a quem não escapavam os pormenores da vida dos seus semelhantes e que ficava duplamente encantado ao dar com os segredos profundamente anichados nos cérebros dos seus conhecidos, descobriu o tesouro do Pirata por um processo lógico. Raciocinou assim: «Todos os dias o Pirata arranja vinte e cinco centimes. Quando recebe duas moedas de dez centimes e uma de cinco, vai a uma loja e troca-as por uma de vinte e cinco. Nunca gasta dinheiro nenhum. Portanto, deve escondê-lo.»

 

Pilon tentou calcular a soma escondida. Há anos que o Pirata vinha vivendo deste modo. Seis dias por semana cortava madeira e aos domingos ia à igreja. As roupas, arranjava-as nas traseiras das casas e a comida nas traseiras dos restaurantes. Pilon ainda ficou um bocado às voltas com grandes cifras, mas depois desistiu. «Deve ter pelo menos cem dólares», pensou.

 

Durante muito tempo, Pilon havia meditado nestas coisas. Mas foi só depois de, parva e entusiasticament a promessa de sustentar Dani ter sido feita que o pensamento acerca do tesouro do Pirata começou a ganhar para ele um significado pessoal.

 

Antes de se acercar do problema, Pilon sujeitou o seu espírito a uma longa e surpreendente preparação. Sentia verdadeira pena do Pirata. «Pobre dementinho», disse de si para si. «Deus não lhe deu todo o juízo que devia dar-lhe. O pobre Pirata não é capaz de tomar conta de si. Vejam lá: vive no meio da porcaria numa capoeira velha, sustenta-se de sobejos que só servem para os cães, e anda com uma roupa toda coçada e rota. E como não regula bem da cabeça esconde o dinheiro.»

 

Depois de estabelecer as bases da sua piedade, Pilon prosseguiu a caminho da sua solução. «Não seria louvável», pensou, «fazer-lhe aquilo que ele sozinho não é capaz de fazer? Comprar-lhe roupas quentes, dar-lhe comida de gente? Mas», lembrou-se, «eu não tenho dinheiro para fazer estas coisas, embora elas estejam bem entranhadas no meu coração. Como é que se há-de levar a cabo esta obra de caridade?»

 

Aproximava-se agora de um certo ponto. Como um gato que, durante uma longa hora, se acerca de um pardal, Pilon estava preparado para dar o seu bote. «Aí está!», exclamou o seu cérebro. «O Pirata tem dinheiro, mas não tem cabeça para se servir dele. Eu tenho-a! Vou pô-la à sua disposição. Inteiramente à sua disposição. Será esta a minha obra de caridade para com aquele pobre dementinho.»

 

Era uma das mais finas estruturas jamais levadas a cabo por Pilon. A vontade irresistível do artista de apresentar a sua obra a uma assistência invadiu-o. «Vou contar ao Pablo», pensou. Mas não sabia se ousaria fazê-lo. Era Pablo realmente honesto? Não quereria ele desviar alguma parte do dinheiro para os seus próprios fins? Fosse como fosse, Pilon decidiu não correr logo o risco.

 

Causa espanto descobrir que o ventre das coisas más e negras é branco como a neve. E entristece ver como são leprosas as partes escondidas dos anjos. Honra e paz para Pilon porque achara a maneira de revelar e mostrar ao mundo o bem que se encontra em cada coisa má. Nem era cego, como o são tantos santos, para o mal das boas coisas. Tem de admitir-se com tristeza que Pilon não tinha nem a estupidez, nem o farisaísmo, nem a avidez pela recompensa que lhe permitisse vir algum dia a ser santo. Bastava-lhe fazer o bem e ser recompensado pelo fulgor da fraternidade humana realizada. Nessa mesma noite foi fazer uma visita à capoeira onde o Pirata vivia com os cães. Danny, Pablo e Jesus Maria, sentados ao pé do fogão, viram-no sair mas não disseram nada. Porque, pensaram com delicadeza, ou um sopro de amor se havia evolado até Pilon ou ele sabia onde poderia ir buscar uma pinga de vinho. Em qualquer dos casos, nada tinham a ver com o assunto até ele lhes contar.

 

Estava bem escuro, mas Pilon levava uma vela na algibeira, pois poderia ser bom observar a expressão do rosto do Pirata quando este falasse. Levava também numa mala um grande bolo redondo, que Susie Francisco, empregada numa padaria, lhe tinha dado como paga de uma fórmula para conseguir o amor de Charlie Guzmán. Charlie era mensageiro do Telégrafo Postal e andava de mota; e Susie tinha um boné de homem para usar no assento de trás, caso Charlie alguma vez lhe pedisse para ir com ele. Na opinião de Pilon, o Pirata era capaz de gostar do bolo.

 

A noite estava muito escura. Pilon meteu-se por uma ruela ladeada de terrenos abandonados e de jardins desprezados e cobertos de ervas.

 

O feroz buldogue do Gálvez saiu a rosnar do quintal do dono, e Pilon, para o amansar, dirigiu-lhe palavras amáveis.

 

- Que cão tão bonito - disse suavemente, que lindo cão. Ambas as expressões eram mentiras palpáveis; o buldogue, porém, ficou impressionado por elas, pois retirou-se para o quintal do dono.

 

Pilon chegou, por fim, à propriedade deserta onde o Pirata vivia. Sabia que, agora, tinha de ter cuidado, pois era do conhecimento de toda a gente que os cães, se suspeitassem que alguém queria fazer mal ao dono, se transformavam em fúrias protectoras. Assim que Pilon entrou no pátio, ouviu uns rosnados cavos e ameaçadores vindos da capoeira.

 

- Pirata - chamou - é o teu bom amigo Pilon que vem falar contigo.

 

Fez-se silêncio. Os cães deixaram de rosnar.

 

- Pirata, sou eu, o Pilon.

 

Uma voz cava e azeda respondeu-lhe:

 

- Vai-te embora. Estou a dormir e os cães também. Já é escuro. Vai para a cama.

 

- Tenho aqui uma vela na algibeira - volveu Pilon. A tua escura casa ficará tão clara como o dia. Tenho também um grande bolo para ti.

 

Na capoeira ouviu-se um sumido bulício.

 

- Anda lá, então - disse o Pirata. - Eu digo aos cães que não há novidade.

 

À medida que avançava pelo meio das ervas, Pilon ia ouvindo o Pirata falar baixinho com os cães, explicando-lhes que se tratava apenas de Pilon, que não fazia mal nenhum. Em frente da escura entrada, Pilon curvou-se, riscou um fósforo e acendeu a vela.

 

O Pirata estava sentado no chão imundo rodeado pelos cães. Enrique rosnou e teve de ser de novo sossegado.

 

- Este não é tão esperto como os outros - disse o Pirata, prazenteiro.

 

Os seus olhos eram os olhos contentes de uma criança divertida. Quando sorriu, os seus grandes dentes brancos brilharam à luz da vela.

 

Pilon levantou a mala.

 

- Trago-te aqui um belo bolo - disse.

 

O Pirata pegou na mala e olhou para dentro; depois, sorrindo com solicitude, tirou o bolo. Os cães arreganharam os dentes, olharam para ele, mexeram as patas e lamberam os beiços. O Pirata partiu o bolo em sete fatias. A primeira foi para Pilon, seu hóspede.

 

  • -E agora tu, Enrique. Agora o Fluff. Agora o Senor Alec Thompson.

 

Cada cão recebeu a sua parte, engoliu-a e ficou à espera de mais. Por fim, o Pirata comeu a sua fatia e levantou as mãos para os cães.

 

- Não há mais - disse-lhes.

 

Imediatamente os cães se deitaram à volta dele.

 

Pilon sentou-se no chão e colocou a vela à sua frente. O Pirata, acanhado, interrogava-o com o olhar. Pilon mantinha-se em silêncio a fim de deixar que pela cabeça do Pirata passassem muitas perguntas. Por fim, disse:

 

- És uma constante preocupação para os teus amigos.

 

Os olhos do Pirata encheram-se de espanto.

 

- Eu? Para os meus amigos? Que amigos? Pilon baixou a voz.

 

- Tens muitos amigos que pensam em ti. Nunca vêm ver-te porque és um orgulhoso. Julgam que talvez ferisse o teu orgulho verem-te viver aqui nesta capoeira, coberto com uns farrapos e a comer sobejos com os cães. Mas esses teus amigos andam ralados porque têm medo que uma vida assim tão má te ponha doente.

 

Atónito e boquiaberto, o Pirata seguia as palavras do outro, tentando compreender as coisas novas que estava a ouvir. Não lhe ocorria pô-las em dúvida, uma vez que era Pilon quem as dizia.

 

- Eu tenho esses amigos todos? - perguntou, espantado. E eu que não sabia. E eles ralam-se por minha causa. Não sabia, Pilon. Se eu tivesse sabido não lhes teria dado motivo para ralações. - Engoliu a saliva para dominar a emoção que lhe tomava a garganta. - Tu compreendes, Pilon, os cães gostam de aqui estar. Eu gosto também, por causa deles. Não calculava era que causava preocupações aos meus amigos.

 

As lágrimas vieram-lhe aos olhos.

 

- Contudo - prosseguiu Pilon - a tua maneira de viver causa mal-estar aos teus amigos.

 

O Pirata baixou os olhos e tentou pensar com clareza, mas, como sempre lhe acontecia quando forcejava por arrostar com um problema, o cérebro tornava-se-lhe cinzento e dele nenhum auxílio surgia, mas apenas um sentimento de impotência. Olhou para os cães, procurando protecção, mas aqueles tinham ido dormir, pois o assunto não lhes dizia respeito. Depois, gravemente, fitou Pilon nos olhos.

 

- É preciso que me digas o que é que eu hei-de fazer. Eu não sabia nada disto.

 

Era demasiado fácil. Pilon estava um tanto envergonhado por ser tão fácil. Hesitou; esteve a pontos de desistir; sabia, porém, que ficaria furioso consigo próprio se o fizesse.

 

- Os teus amigos são pobres - disse. - Gostariam de te ajudar, mas não têm dinheiro. Se tens dinheiro escondido trá-lo para a luz do dia. Compra roupas. Come coisas que não sejam aquelas que as pessoas deitam para o lixo. Tira o dinheiro do sítio onde o tens escondido, Pirata.

 

Enquanto falara, Pilon tinha fitado atentamente os olhos do Pirata. Vira-os baixarem-se com suspeita e depois com mau humor. Num momento teve a certeza de duas coisas: primeiro, que o Pirata tinha dinheiro escondido; segundo, que não era fácil deitar-lhe a mão. Este último facto agradou-lhe. O Pirata tornara-se um problema táctico do género dos que ele gostava.

 

O Pirata estava agora de novo a olhar para ele. Nos seus olhos havia astúcia e, coroando-a, uma estudada ingenuidade.

 

- Não tenho dinheiro em parte nenhuma - disse.

 

- Mas todos os dias, meu amigo, vejo-te receber vinte e cinco centimes e nunca dei fé que os gastasses.

 

Desta vez o cérebro do Pirata veio em seu auxílio.

 

- Dou-os a uma pobre velhota - disse. - Não tenho dinheiro em nenhum lado.

 

E com este tom fechou firmemente a porta sobre o assunto.

 

«Aqui deve haver patranha», pensou Pilon. Por conseguinte, aqueles dotes que nele eram tão agudos tiveram de ser postos em jogo. Levantou-se e ergueu a vela.

 

- Eu apenas tive em vista dizer-te como os teus amigos

 

se inquietam - disse em tom de crítica. - Se não quiseres tentar ajudar, não posso fazer nada por ti.

 

A doçura voltou aos olhos do Pirata.

 

- Diz-lhes que estou bem de saúde -pediu.- Diz aos meus amigos que venham ver-me. Eu não serei orgulhoso. Ficarei muito contente em os ver, seja quando for. Dizes-lhes isto por mim, Pilon?

 

-Digo. - volveu Pilon com rudeza.- Mas os teus amigos não ficarão contentes quando virem que não fazes nada para os sossegar.

 

Pilon soprou a vela e afastou-se envolvido na escuridão. Sabia que o Pirata nunca diria onde tinha o dinheiro. Este tinha de ser descoberto furtivamente e tirado à força. Depois dar-se-iam todas aquelas coisas boas ao Pirata. Não havia outro meio.

 

E assim, Pilon meteu ombros à tarefa de vigiar o Pirata. Seguia-o na floresta quando ele ia cortar lenha. Ficava à espera, de noite, junto da capoeira. Teve com ele longas e graves conversas, mas delas nada surtiu. O tesouro estava tão longe de ser descoberto como sempre o estivera. Ou se encontrava enterrado na capoeira ou jazia escondido no fundo da floresta e apenas de noite era visitado.

 

As longas e infrutíferas vigílias deram cabo da paciência de Pilon. Sabia que tinha de conseguir ajuda e conselho. E quem melhor do que os seus camaradas, Danny, Pablo e Jesus Maria, lhos poderia dar? Quem mais facilmente do que eles era capaz de os fundir com a generosidade?

 

Pilon concedeu-lhes a sua confiança, mas primeiro preparou-os tal como se tinha preparado a si mesmo: a pobreza do Pirata, o seu desamparo e, finalmente, a solução. Quando chegou a este ponto, os amigos estavam num filantrópico frenesi. Aplaudiram-no. O rosto brilhou-lhes de generosidade. Pablo chegou à conclusão de que o dinheiro escondido era bem capaz de ascender a mais de cem dólares.

 

Quando a alegria cedeu o passo a um entusiasmo empreendedor, puseram-se a fazer planos.

 

- Temos de o vigiar - disse Pablo.

 

- Eu tenho-o vigiado - replicou Pilon. - Mas é que ele esgueira-se de noite e uma pessoa não pode segui-lo de perto por causa dos cães que parecem demónios a guardá-lo. A coisa não vai ser fácil.

 

- Usaste os argumentos todos? - perguntou Danny.

 

- Sim, todos.

 

No fim, foi Jesus Maria, esse compadecido homem, quem encontrou a solução.

 

- A coisa é difícil enquanto ele viver naquela capoeira - disse. - Mas suponham que ele vivia aqui, com a gente? Ou o seu silêncio se ia abaixo sob o peso da nossa bondade, ou seria mais fácil para nós saber quando saía de noite.

 

Os amigos consideraram demoradamente esta sugestão.

 

- Algumas vezes as coisas que ele arranja nos restaurantes estão praticamente boas - disse Pablo, meditabundo. - Já o tenho visto com bifes aos quais bem pouco falta para estarem inteiros.

 

- É capaz de lá ter aí uns duzentos dólares - disse Pilon. Danny pôs uma objecção:

 

- Mas os cães? Ele há-de querer trazer os cães.

 

- Os cães são bons - afirmou Pilon. - Obedecem-lhe cegamente. Pode fazer-se um risco no chão à volta de um canto e dizer-lhe: «Não deixes os cães passar deste traço.» Ele diz-lhes e os bichos não passam.

 

- Uma vez, de manhã, vi o Pirata; tinha na mão quase meio bolo só um tanto húmido de café - disse Pablo.

 

O problema ficou arrumado. A casa converteu-se em comissão e a comissão foi ter com o Pirata.

 

Com todos lá dentro, a capoeira ficou apinhada. O Pirata tentou disfarçar a felicidade que sentia, usando de um tom rude.

 

- O ternpo tem estado mau - disse ele, no cumprimento do seu dever social. - Talvez não acreditem que achei no pescoço do Rudolph uma carraça do tamanho de um ovo de pombo. -Depois, no seu papel de dono de casa, desfez nas acomodações. - A casa é muito pequena. Não é própria para uma pessoa receber os amigos. Mas é quente e aconchegada, especialmente para os cães.

 

Pilon, então, falou. Disse ao Pirata que os seus amigos estavam extremamente apoquentados por sua causa, mas que se ele fosse viver com eles poderiam dormir de novo em paz.

 

O Pirata ficou muitíssimo abalado ao ouvir isto. Olhou para as mãos; depois, para os cães, à procura de apoio, mas aqueles não o fitaram. Por fim, com as costas da mão, limpou dos olhos lágrimas de felicidade e enxugou a mão na grande barba negra.

 

- E os cães? - perguntou baixinho. - Vocês não se importam que eles também vão? Vocês gostam dos cães?

 

Pilon fez com a cabeça um gesto de assentimento.

 

- Gostamos; os cães também podem vir. Põe-se de parte um canto inteiro para os cães.

 

O Pirata era muito orgulhoso. Tinha medo de não poder portar-se como devia ser.

 

- Vão-se embora agora - suplicou. - Vão para casa. Eu amanhã vou.

 

Os amigos sabiam como ele se sentia. Gatinharam para fora e deixaram-no só.

 

- Ele há-de ser feliz com a gente - disse Jesus Maria.

 

- Pobre homem; para aí anda ao deus-dará - acrescentou Danny.- Se eu tivesse sabido, há muito tempo que o tinha chamado, mesmo que ele não possuísse nenhum tesouro.

 

Uma chama de alegria brilhou em todos eles. Em breve as novas relações ficaram estabelecidas. Danny, com um pedaço de giz azul, traçou um segmento de círculo delimitando um canto da casa de fora, onde os cães tinham de permanecer quando estivessem em casa. O Pirata dormia também nesse canto com os cães. A casa começava a ficar um bocado cheia com cinco homens e cinco cães, mas, desde o princípio, Danny e os amigos compreenderam que o convite feito ao Pirata fora inspirado por aquele fatigado e ansioso anjo que velava pelos seus destinos e os protegia do mal.

 

Todas as manhãs, muito antes de os seus amigos acordarem, o Pirata levantava-se do seu canto e, seguido pelos cães, fazia a volta do cais e dos restaurantes. Era daquelas figuras por quem toda a gente sente benevolência. Os embrulhos tornaram-se maiores. Os paisanos recebiam as suas ofertas e faziam uso delas; peixe fresco, pastéis quase inteiros, bocados intactos de pão duro, carne que precisava apenas de um pouco de soda para deixar de ficar queimada. Começaram realmente a viver.

 

A aceitação que davam aos seus presentes comovia o Pirata mais profundamente do que tudo quanto podiam ter feito por ele. Os seus olhos tinham um fulgor de adoração quando os via comer a comida que lhes trazia.

 

Quando, à noite, eles se sentavam em redor do fogão, discutindo o que se passava na Tortilla Flat numa voz indolente de deuses saciados, os olhos do Pirata voavam de boca para toca e os seus próprios lábios moviam-se ciciando as palavras que ouvia. À sua volta, ciumentos, os cães comprimiam-se uns contra os outros.

 

Estes eram os seus amigos, dizia de si para si, noite adiante, quando a casa estava mergulhada na escuridão e os cães se aninhavam junto a ele para todos se aquecerem. Estes homens gostavam tanto dele que os afligia deixarem-no viver sozinho. Muitas vezes o Pirata tinha de repetir isto a si próprio, pois tratava-se de uma coisa espantosa, de uma coisa inacreditável. Deixava agora ficar o carrinho de mão no quintal de Danny e todos os dias cortava lenha e vendia-a. Mas, tão grande era o seu medo de perder alguma palavra do que os seus amigos diziam à noite, se por acaso não estivesse lá para absorver algo da corrente da quente camaradagem, que há vários dias não visitava o tesouro para aí deixar mais moedas.

 

Os seus amigos eram carinhosos para com ele. Tratavam-no com doçura e afabilidade, mas havia sempre sobre ele um olho vigilante. Quando ia para a mata com o carrinho, um dos amigos acompanhava-o e sentava-se num tronco enquanto ele trabalhava. Quando ia à ravina, a última coisa que à noite fazia. Danny, Pablo, Pilon ou Jesus Maria não deixavam de

 

o acompanhar. E, de noite, era preciso que ele tivesse sido muito silencioso para ter conseguido esgueirar-se sem que uma sombra o seguisse.

 

Durante uma semana, os amigos limitaram-se a vigiar o Pirata. Mas, por fim, a inactividade acabou por cansá-los. Sabiam que nem sequer podiam pensar na acção directa. E, assim, uma noite, o desejo das pessoas esconderem dinheiro surgiu como tema de discussão.

 

Pilon começou:

 

- Tive um tio, um perfeito avarento, que escondia o dinheiro na floresta. Ora um dia, quando foi por ele, já ele tinha desaparecido. Alguém o achou e o roubou. O meu tio era velho, ficou sem dinheiro nenhum e depois enforcou-se.

 

Pilon reparou, com uma certa satisfação, que no rosto do Pirata surgira uma sombra de inquietação. Danny reparou também e, por sua vez, continuou:

 

- O meu avô, o viejo, a quem esta casa pertencia, também enterrou dinheiro. Não sei quanto, mas como era considerado rico, devem ter sido uns trezentos ou quatrocentos dólares. O vejo fez um buraco muito fundo e pôs o dinheiro lá dentro; depois tapou o buraco e espalhou umas agulhas de pinheiro pelo chão até ficar convencido que ninguém podia ver o que ali se tinha passado. Mas quando lá voltou o buraco estava aberto e o dinheiro tinha-se ido

 

Os lábios do Pirata seguiam as palavras. No rosto estampara-se-lhe o terror. Os seus dedos metiam-se por entre os pêlos do pescoço do Senor Alec Thompson. Os amigos trocaram um olhar e, provisoriamente, mudaram de conversa. Passaram a falar dos amores de Cornelia Ruiz.

 

Alta noite, o Pirata saiu furtivamente de casa seguido pelos

 

cães; e, atrás deles, seguiu Pilon. O Pirata dirigiu-se rapidamente para o pinhal, saltando com destreza por cima de troncos e arbustos. Pilon tropegava na sua esteira. Depois de ter percorrido pelo menos duas milhas, Pilon já não tinha fôlego e estava todo arranhado pelas trepadeiras. Parou então um momento para descansar e reparou que todos os ruídos à sua frente haviam cessado. Esperou, pôs-se à escuta e deu uns passos agachado. O Pirata, porém, tinha desaparecido.

 

Duas horas mais tarde, Pilon voltou para trás num passo lento e fatigado. O Pirata já estava em casa dormindo a sono solto no meio dos cães. Estes, quando Pilon entrou, levantaram a cabeça e ele teve a impressão de que lhe sorriram num ar de mofa.

 

Na manhã seguinte realizou-se uma conferência na ravina.

 

- É impossível segui-lo - comunicou Pilon. - Desapareceu. Ele vê no escuro. Conhece todas as árvores da mata. Temos de arranjar outro processo.

 

- Talvez só um não seja suficiente - sugeriu Pablo. Se fôssemos todos atrás dele, talvez um de nós não o perdesse de vista.

 

- Esta noite voltamos a falar - disse Jesus Maria. - Simplesmente, dizemos coisas ainda piores. Uma senhora que eu conheço vai dar-me uma pinga de vinho -acrescentou com modéstia. - Talvez o Pirata, com uma pinga no bucho, não desapareça tão facilmente.

 

Assim ficou decidido.

 

A senhora de Jesus Maria deu-lhe um garrafão de vinho. Que podia haver de comparável ao deleite do Pirata nessa noite, quando lhe passaram para as mãos uma jarra com vinho e ele se sentou ao pé dos amigos, bebericando e ouvindo conversar? Muito poucas vezes tivera uma tal alegria na sua vida. Desejou poder apertar esta gente tão querida contra o peito e dizer-lhes quanto os amava. Isto, porém, era coisa que não podia fazer, não fossem eles julgar que estava bêbedo. Desejou poder fazer qualquer coisa de formidável para lhes mostrar o seu amor.

 

- A noite passada falámos de dinheiro enterrado - disse Pilon. - Hoje, lembrei-me de um primo meu, um homem esperto. Se havia alguém neste mundo capaz de esconder dinheiro num sítio onde ninguém podia dar com ele, esse alguém era o meu primo. De modo que um dia agarrou no dinheiro e escondeu-o. Talvez vocês já o tenham visto: é aquele pobre diabo sem eira nem beira que anda pelo cais a pedir cabeças de peixe para fazer sopa. Esse é que é o meu primo. Foi a ele que lhe roubaram o dinheiro.

 

A inquietação voltou ao rosto do Pirata. Cada história excedia a anterior e, em todas elas, as pessoas que escondiam dinheiro eram perseguidas por todas as formas que o mal podia assumir.

 

- É melhor ter-se o dinheiro ao pé, gastar-se um pouco de vez em quando e dar algum aos amigos - concluiu Danny. Tinham estado a observar cuidadosamente o Pirata e haviam reparado que, no meio da história mais assustadora, a inquietação se lhe varrera do rosto e um sorriso de alívio tomara o seu lugar. Agora o Pirata bebia o vinho em pequenos goles e os olhos brilhavam-lhe de alegria.

 

O desespero apossou-se dos amigos. Todos os seus planos haviam falhado. Ficaram profundamente desgostosos. Depois de toda a sua generosidade e de toda a sua caridade acontecia-lhes aquilo. De certa maneira, o Pirata escapara ao bem que

eles tinham tencionado fazer-lhe. Acabaram de beber o vinho e foram deitar-se de mau humor.

 

Poucas coisas podiam acontecer de noite que Pilon não soubesse. Os seus ouvidos mantinham-se abertos enquanto o resto do corpo dormia. Ouviu a saída furtiva do Pirata e dos cães e saltou da cama para avisar os amigos. Um momento depois, os quatro seguiam o Pirata na direcção da floresta. Quando entraram no pinhal a escuridão era profunda. Os quatro amigos foram de encontro às árvores e tropeçaram nas vides silvestres; mas durante bastante tempo ouviram o Pirata caminhar à sua frente. Seguiram-no até onde Pilon tinha chegado na noite anterior; de súbito, só o silêncio, o ramalhar das árvores e o vago vento da noite. Esquadrinharam a mata e os tufos de arbustos, mas o Pirata desaparecera de novo.

 

Por fim, cheios de frio e desconsolados, reuniram-se e arrastaram-se na direcção de Monterey. A madrugada rompeu antes de chegarem. O Sol brilhava já sobre a baía. De Monterey subiu até eles o fumo dos primeiros lumes da manhã.

 

O Pirata, sorrindo de felicidade, veio ao telheiro saudá-los. Passaram por ele de mau humor e enfiaram-se na casa de fora. Sobre a mesa encontrava-se um grande saco de lona.

 

O Pirata seguiu-os.

 

- Menti-te, Pilon. Disse-te que não tinha dinheiro, porque estava com medo. Nessa altura eu não conhecia os meus amigos. Agora vocês disseram que o dinheiro escondido é tanta vez roubado, que já estou com medo outra vez. Só ontem é que me veio à ideia uma solução. Ao pé dos meus amigos o dinheiro estará em segurança. Ninguém conseguirá roubá-lo se os meus amigos mo guardarem.

 

Os quatro homens fitaram-no, horrorizados.

- Agarra no dinheiro e esconde-o na mata - disse Danny, furioso. - A gente não vai lá ver.

 

- Não - volveu o Pirata -, não me sentia seguro se o escondesse. Mas ficarei feliz sabendo que os meus amigos mo guardam. Vocês são capazes de não acreditar, mas nestas duas últimas noites alguém me seguiu até à floresta para me roubar o dinheiro.

 

Embora o golpe fosse terrível, Pilon, esse homem sagaz, tentou iludi-lo.

 

- Antes de este dinheiro vir para as nossas mãos, talvez tu queiras tirar algum - sugeriu suavemente.

 

O Pirata abanou a cabeça.

 

- Não. Não posso fazer isso. Tenho quase mil moedas de um quarto de dólar. Quando tiver mil, compro um castiçal para oferecer a São Francisco de Assis. Tive uma vez um cão, que adoeceu e eu então prometi a São Francisco que lhe daria um castiçal de ouro comprado com o dinheiro junto durante mil dias, se o bichinho ficasse bom. E ficou - concluiu, estendendo as mãos enormes.

 

- É algum destes? - perguntou Pilon.

 

- Não - respondeu o Pirata. - Passado pouco tempo foi atropelado por um camião.

 

Assim se acabava toda a esperança de desviar o dinheiro. Danny e Pablo levantaram lentamente o pesado saco com moedas de prata, levaram-no para o outro quarto e puseram-no debaixo da almofada de Danny. Tempo viria em que experimentariam um certo prazer em saber que aquele dinheiro estava debaixo da almofada, mas agora a sua derrota era amarga. Nada podiam fazer. A oportunidade surgira e fora-se embora.

 

O Pirata estava defronte deles; tinha nos olhos lágrimas de felicidade, pois provara o seu amor pelos amigos.

 

- E pensar -disse- que todos estes anos vivi naquela capoeira e não conheci qualquer prazer. Mas agora -acrescentou -, agora, sou muito feliz.

 

Como, na véspera de Santo André, os amigos de Danny andaram à procura do tesouro místico. Como Pilon o achou e como, mais tarde, um par de calças de sarja mudou duas vezes de dono.

 

Se não tivesse sido um herói, Portagee teria passado na tropa um tempo desgraçado. O facto de Big Joe Portagee ser senhor de um decente treino adquirido na cadeia de Monterey, não só o poupou à desgraça de um patriotismo frustrado, mas também consolidou a sua convicção de que, assim como é legítimo ao homem consagrar metade dos seus dias ao sono e a outra metade à vigília, de igual modo lhe é lícito passar metade dos seus anos na cadeia e a outra metade fora dela. Durante o tempo que a guerra durou, joe Portagee esteve mais vezes preso do que em liberdade.

 

Na vida civil é-se punido por aquilo que se faz, mas a isto acrescenta o código militar um novo princípio... castiga um homem por aquilo que ele não faz. Joe Portagee nunca compreendeu isto. Não limpava a espingarda; não se barbeava; e, uma vez ou duas, estando de licença, não voltou para o quartel. A estes defeitos aliava-se a sua propensão para arranjar argumentos geniais quando o punham de serviço.

 

Em geral, passava metade do tempo na cadeia; dos dois anos que esteve na tropa, passou dezoito meses na prisão. Muito pouco satisfeito ficou Big Joe com a vida que se levava nas prisões da tropa. Na cadeia de Monterey havia camaradagem e à-vontade; na tropa, só encontrou trabalho. Em Monterey, havia contra ele sempre a mesma acusação: «Embriaguez e Conduta Desordeira.» Na tropa, as acusações que lhe faziam desorientavam-no tão completamente que o efeito exercido no seu espírito foi provavelmente permanente.

 

Quando a guerra acabou e todos os soldados foram licenciados, Big Joe ainda tinha a cumprir seis meses de pena. A acusação fora: «Embriaguez em serviço. Agressão a um sargento com uma lata de querosene. Negação da identidade (não era capaz de lembrar-se dela e por isso negava tudo). Roubo de duas latas de feijão já cozinhado e utilização ilícita do cavalo do major, durante ausência não autorizada.»

 

Se o Armistício não tivesse sido já assinado, provavelmente Big Joe teria sido fuzilado. Chegou à terra muito depois de os outros veteranos terem regressado e conhecido a doçura da vitória.

 

Quando Big Joe saltou do comboio envergava um capote, um dólman e um par de calças azuis de sarja.

 

A cidade não estava muito mudada; apenas se proibira a venda de bebidas alcoólicas, mas isso não afectara o negócio do Torrelli. Joe trocou o capote por um garrafão de vinho e foi à procura dos amigos.

 

Amigos verdadeiros não encontrou nenhum nessa noite, mas em Monterey não Lhe faltaram aquelas vis e falsas harpias e alcoviteiras, sempre prontas a levar um homem ao abismo.

 

Joe, cujo forte não era a moral, não tinha qualquer aversão ao abismo; gostava dele.

 

Antes de muitas horas terem decorrido, já estava sem vinho e sem dinheiro; então, as harpias procuraram retirar Joe do abismo, mas ele não arredou pé. Sentia-se lá bem.

 

Quando tentaram fazê-lo sair à força, Big Joe, movido por um justo e terrível ressentimento, deu cabo da mobília, partiu as janelas todas, e atirou com as raparigas, meio vestidas e aos berros, para o escuro da noite. Depois de um momento de reflexão, decidiu lançar fogo à casa. Não era nada seguro meter Big Joe pelo caminho da tentação; não opunha qualquer resistência.

 

Por fim, um polícia interveio e prendeu-o. Portagee suspirou de felicidade. Estava outra vez em casa.

 

Depois de um breve julgamento sem júri, em que foi condenado a trinta dias, Joe deitou-se refasteladamente na tarimba de couro e dormiu a sono solto um décimo da pena.

 

Portagee gostava da cadeia de Monterey. Era um belo ponto de encontro. Se lá estivesse tempo suficiente, todos os seus amigos entrariam e sairiam. O tempo passava rapidamente. Entristeceu-o um pouco o facto de ter de ir-se embora; saber, porém, que lhe era muito fácil regressar, temperou um tanto a sua tristeza.

 

Gostaria de ter voltado para o abismo, mas não tinha dinheiro nem vinho. Calcorreou as ruas à procura dos seus velhos amigos, Pilon, Danny e Pablo, mas não conseguiu encontrá-los. Na esquadra, o sargento disse-lhe que há muito tempo não assentava o nome deles no livro de registos.

- Devem ter morrido - disse Portagee. Vagueou tristemente até à taberna do Torrelli, mas este não era amável para quem não tivesse dinheiro ou mercadoria susceptível de ser trocada e pouco consolo deu a Portagee; no entanto, sempre lhe disse que Danny havia herdado uma casa na Tortilla Flat e que todos os seus amigos viviam lá com ele.

 

O afecto e o desejo de ver os amigos apossou-se de Big Joe. À tardinha pôs-se a caminho da Tortilla Flat para ir ter com o Danny e com o Pilon. Quando, ao lusco-fusco, subia a rua, encontrou o Pilon que ia a passar com um ar muito atarefado.

 

- Ei, Pilon. Ia mesmo agora ter contigo.

 

- Olá, Joe Portagee - disse Pilon, brusco. - Onde é que tens estado?

 

- Na tropa - respondeu Joe.

 

O espírito de Pilon estava arredado do encontro.

 

- Tenho de ir andando.

 

- Eu vou contigo• disse Joe.

 

Pilon parou e olhou-o de alto a baixo.

 

- Não sabes que noite é esta? - perguntou.

 

- Não. Que noite é?

 

- É véspera de Santo André.

 

Então Portagee lembrou-se; pois nesta noite todo o paisano que não estivesse preso errava sem descanso pela mata fora. Era a noite em que todos os tesouros enterrados emitiam uma pálida fosforescência através do solo. A mata estava cheia de tesouros. Em duzentos anos, Monterey fora muitas vezes invadida e em todas elas haviam sido escondidas na terra coisas preciosas.

 

A noite estava clara. Pilon emergia da sua rija carapaça de todos os dias, como o fazia de vez em quando. Nessa noite era o idealista, o dador de oferendas. Nessa noite estava empenhado numa missão de generosidade.

 

- Podes vir comigo, Big Joe Portagee. Porém, se acharmos algum tesouro sou eu quem decide o que lhe havemos de fazer. Se não concordas, podes ir sozinho à procura do teu.

 

Big Joe não era perito em dirigir os seus próprios esforços.

 

- Eu vou contigo, Pilon. Não quero saber do tesouro para coisa nenhuma.

 

Caía a noite quando chegaram à orla da floresta. Os seus pés encontraram camas de caruma. Pilon sabia agora que a noite era como devia ser. O céu estava coberto por alto nevoeiro; por detrás dele, a Lua brilhava de tal forma que enchia a floresta de uma luz semelhante a gaze. Não havia nenhum contorno definido do género daqueles que nos ocorrem quando pensamos na realidade. Os troncos das árvores não eram negras colunas de madeira, mas sombras flexíveis e insubstanciais. Os tufos de arbustos, sem forma, ondeavam numa luz estranha. Nessa noite os fantasmas podiam andar à vontade sem terem de recear a incredulidade dos homens, pois a noite era assombrada e só um insensível o ignorava.

 

De vez em quando, Pilon e Big Joe cruzavam-se com outros que, com o mesmo objectivo, ziguezagueavam sem descanso por entre os pinheiros. Caminhavam em silêncio, de cabeça baixa, sem saudar ninguém. Quem podia afirmar que todos eles eram na realidade homens vivos? Joe e Pilon sabiam que alguns eram sombras daqueles antigos que haviam enterrado os tesouros e que, na véspera de Santo André, voltavam a errar pela terra para não deixar mexer no seu ouro. À volta do pescoço, por fora da roupa, Pilon usava uma medalha do seu santo, de modo que não tinha medo dos espíritos. Big Joe caminhava fazendo o Sinal-da-Cruz. Embora, possivelmente, tivessem medo, sabiam que gozavam de protecção mais do que adequada para fazer face àquela noite sobrenatural.

 

Enquanto caminhavam, levantou-se vento, e o nevoeiro, semelhante a uma fina camada de aguarela cinzenta, foi arrastado em frente da pálida Lua. Correndo, o nevoeiro dava uma forma movediça à floresta, de modo que os arbustos moviam-se sem ruído e as árvores deslocavam-se furtivamente como grandes gatos escuros. A voz rouca das copas das árvores agitadas pelo vento falava de sinas e augurava mortes. Pilon sabia que não era bom ouvir a voz das árvores. Conhecer o futuro nunca trouxe bem fosse a quem fosse, e, além disso, era ímpio este sussurrar das folhas. Fechou os ouvidos ao murmúrio das árvores.

 

Meteu por um carreiro em ziguezague que seguia através da mata; a seu lado caminhava Big Joe como um grande e atento cão. Homens silenciosos e solitários passavam por eles e continuavam o seu caminho sem um aceno; e os mortos passavam em silêncio por eles e continuavam o seu caminho sem um aceno.

 

Na Ponta, lá longe, por baixo deles, a sereia do nevoeiro começou a ulular; carpia todos os bons barcos que o escolho de ferro fizera naufragar e todos os outros que, aí, algum dia encontrariam o seu fim.

 

Pilon estremeceu e sentiu frio, embora a noite estivesse quente. Murmurou uma ave-maria.

 

Passaram por um homem grisalho que caminhava de cabeça baixa e que não os saudou.

 

Uma hora depois, ainda Pilon e Big erravam tão sem descanso como os mortos que enchiam a noite.

De repente, Pilon estacou e agarrou o braço de Big Joe.

 

- Vês? - perguntou num murmúrio.

 

- Onde?

 

- Mesmo ali em frente.

 

- Vê... vejo; parece que sim.

 

Pilon julgou ver elevar-se do solo, cerca de nove metros à sua frente, um inconsistente pilar de luz azul.

 

- Big Joe - sussurrou -, vê se me arranjas dois paus de um metro, metro e meio. Eu não quero desviar os olhos, posso perder aquilo de vista.

 

Pilon deixou-se ficar na posição em que estava, atento como um cão de caça, enquanto Big Joe corria a procurar os paus. Ouviu-o arrancar de um pinheiro dois pequenos ramos mortos; depois, ouviu os estalidos que os ramitos faziam ao serem separados do tronco. Pilon não tirava os olhos da ténue haste de nebulosa luz. Tão desmaiada era ela que algumas vezes parecia desaparecer completamente. Algumas vezes, Pilon não tinha a certeza se a via ou não. Não olhou para o lado quando Big Joe lhe pôs os paus na mão. Pilon cruzou-os em ângulo recto e avançou lentamente, segurando a cruz à sua frente. Como se aproximasse, a luz pareceu desvanecer-se, mas ele vira donde ela jorrara: uma depressão perfeitamente redonda feita na caruma que cobria o chão.

 

Pilon colocou a cruz em cima da depressão e disse:

 

- Tudo o que está aqui é meu porque o descobri. Espíritos maus, ide-vos embora. Espíritos dos homens que enterraram este tesouro, ide-vos embora. In Nomen Tatrís et Filius et Spirítu Sancti.

 

Em seguida soltou um profundo suspiro e sentou-se no chão.

 

- Achámo-lo, ó meu amigo! - exclamou. - Procurei durante tantos anos, mas agora encontrei-o.

 

- Vamos desenterrá-lo - disse Big Joe.

 

Pilon, porém, abanou a cabeça com impaciência.

 

- Com todos estes espíritos à solta? Quando, até, só estar neste lugar é perigoso? És doido, Big Joe. A gente senta-se mas é aqui até amanhecer, depois pomos um sinal no lugar e amanhã à noite é que cavamos. Agora ninguém pode ver a luz porque eu pus-lhe a cruz em cima. Amanhã à noite já não há perigo.

 

Agora que estavam sentados na caruma, a noite parecia mais terrível, mas da cruz emanava um calor de santidade e segurança, como se no chão houvesse uma fogueira. Contudo, o fogo apenas os aquecia de frente. As costas estavam expostas ao frio e ao mal que errava pela floresta.

 

Pilon traçou um grande círculo à volta do lugar e deixou-se ficar lá dentro.

 

-Que nenhuma coisa má atravesse esta linha; abençoado seja o Sagrado Nome de Jesus - disse, como se entoasse um cântico.

 

Depois sentou-se de novo. Tanto ele como Big Joe sentiam-se melhor. O ruído abafado dos passos dos fantasmas que se arrastavam penosamente chegava até eles; viam as luzinhas que as formas transparentes emitiam ao passar; a sua linha protectora, porém, era inexpugnável. Nada de mau, deste mundo ou de qualquer outro conseguiria atravessar aquele círculo.

 

- Que é que vais fazer ao dinheiro? - perguntou Big Joe. Pilon encarou-o com desprezo.

 

- Vê-se que nunca andaste à procura de tesouros, pois de contrário sabias como se deve proceder. Eu não posso ficar com este tesouro. Se o procurar com essa intenção, ele enterra-se cada vez mais, como uma amêijoa na areia e eu nunca o encontrarei. Não, não é assim que se deve proceder. Eu quero descobrir o tesouro para dá-lo ao Danny.

 

Então, Pilon manifestou todo o seu idealismo. Disse a Joe. como Danny era bom para os amigos.

 

- E nós não fazemos nada por ele. Não pagamos renda. Às vezes embebedamo-nos e partimos-lhe os móveis. Quando nos zangamos com ele, brigamos e chamamos-lhe nomes. Somos muito maus. De modo que, todos nós, Pablo, Jesus Maria, o Pirata e eu, fizemos uma combinação. Virmos todos esta noite à mata procurar o tesouro para lho darmos. Ele é tão bom, Big Joe; tão generoso; e nós somos tão maus. Mas se lhe levarmos um grande saco de tesouro ele ficará muito satisfeito. E é por o meu coração não estar manchado de egoísmo que eu sou capaz de encontrar o tesouro.

 

- Não ficas com coisa nenhuma para ti? - perguntou Big Joe, incrédulo. - Nem mesmo para um garrafão de vinho?

 

Nessa noite não havia em Pilon mácula alguma do Pilon mau.

 

- Não, nem com uma apara do ouro; nem com a mais pequena das moedas! É tudo para o Danny, tudo, mas tudo!

 

Joe ficou desapontado.

 

- Andei este caminho todo e nem sequer arranjo dinheiro para um copo de vinho - lamentou-se.

 

- Quando o Danny tiver o dinheiro - disse Pilon com brandura - é possível que pague uma pinga. É claro que eu não lhe sugerirei isso, pois o dinheiro é dele, mas acho que é capaz de o fazer. De modo que, se fores bom para ele, talvez apanhes um copo.

 

Big Joe ficou descansado, pois conhecia o Danny há muito tempo. Achava que era possível que Danny lhe pagasse uma bela porção de vinho.

 

A noite decorria. A Lua desapareceu e deixou a floresta envolta em negrume. A sereia do nevoeiro uivava sem descanso. Durante toda a noite Pilon manteve-se sem mácula. Fez a Big Joe uma pequena prédica, como é próprio dos recém-converttidos.

 

- Vale a pena ser-se bom e generoso - afirmou -, não só porque as acções boas e generosas erguem no Céu uma morada de alegria, mas também porque aqui na terra a recompensa não se faz esperar. Sente-se um calor dourado que nos aquece como se tivéssemos enchilada no estômago. O Espírito de Deus envolve-nos num manto tão suave como pele de camelo. Nem sempre tenho sido um homem bon, Big Joe. Confesso-o abertamente.

 

Big Joe sabia-o perfeitamente.

 

- Tenho sido mau-prosseguiu Pilon em êxtase. Deleitava-se com as suas próprias palavras. - Menti e roubei. Cometi o pecado da luxúria e do adultério. Invoquei o nome de Deus em vão.

 

- Eu também - disse Big Joe, alegremente.

 

- E qual foi o resultado? Sentir-se uma pessoa amarfanhada. Sabia que ia para o Inferno. Mas agora compreendo que um pecador nunca é tão mau que não possa ser perdoado. Embora ainda não tenha ido confessar-me, sinto que a mudança dentro de mim agrada a Deus, pois a Sua Graça está sobre a minha cabeça. Se tu também mudasses a tua maneira de viver, se deixasses de te embriagar, de armar zaragatas e de querer saber daquelas raparigas da casa da Dora Williams, talvez também pudesses sentir o que eu sinto.

 

Big Joe, porém, adormecera. Nunca se mantinha acordado durante muito tempo quando estava quieto.

 

Pilon não sentia tanto os efeitos da Graça quando não estava a falar dela a Big Joe, mas ficou sentado a observar o lugar do tesouro, enquanto o céu ganhava uns tons acinzentados e a madrugada despontava por detrás do nevoeiro. Viu os pinheiros ganhar forma e emergir da obscuridade. O vento sossegou e os pequenos coelhos azuis saíram dos tufos de arbustos e saltitaram sobre a caruma de um lado para o outro. Pilon sentia os olhos pesados, mas estava feliz.

 

Quando o dia clareou, sacudiu Big Joe com o pé.

 

- São horas de irmos para casa do Danny. Já faz dia. Pilon atirou fora a cruz porque já não era precisa e apagou o círculo.

 

- Agora não devemos fazer qualquer marca, mas temos de nos lembrar deste sítio por meio de árvores e pedras.

 

-Porque é que não desenterramos já o tesouro? - quis saber Joe.

 

- Para toda a gente da Tortilla Flat vir cá ajudar-nos comentou Pilon, sarcástico.

 

Olharam diversas vezes para o terreno à volta, procurando fixá-lo na memória e dizendo:

 

- Três árvores juntas à direita, duas à esquerda. Em baixo há um tufo de ervas, aqui está uma pedra. Por fim, afastaram-se do tesouro, registando mentalmente o caminho à medida que caminhavam.

 

Em casa de Danny, encontraram um fatigado grupo de amigos.

 

- Acharam alguma coisa? - inquiriram.

 

- Não - respondeu rapidamente Pilon para impedir a confissão de Big Joe.

 

- Pablo julgou ter visto uma luz, mas ela desapareceu antes de ele a ter alcançado. E o Pirata viu o fantasma de uma velha que tinha o cão dele.

 

A boca do Pirata rasgou-se num sorriso.

 

- A velha disse-me que o meu cão agora era feliz.

 

- Está aqui o Big Joe que veio da tropa - anunciou Pilon.

 

- Olá, Joe.

 

- Vocês têm aqui um belo cantinho - disse o Portagee sentando-se, cheio de à-vontade, numa cadeira.

 

- Na minha cama é que não - avisou Danny, pois sabia que o Big Joe tinha vindo para ficar. O modo como se sentava na cadeira e cruzava as pernas tinha um aspecto de permanência.

 

O Pirata saiu com o carrinho de mão e dirigiu-se à mata para cortar lenha; os outros cinco homens, porém, deixaram-se ficar ao sol que irrompia através do nevoeiro. Passado pouco tempo estavam a dormir.

 

A tarde já ia no meio sem que nenhum acordasse. Por fim, esticaram os braços, sentaran-se e olharam com indiferença para a baía, lá em baixo, onde um petroleiro castanho se fazia lentamente ao largo. O Pirata deixara os sacos em cima da mesa, e os amigos abriram-nos e tiraram a comida que ele havia arranjado.

 

Big Joe desceu o carreiro direito ao arruinado portão.

 

- Até logo - disse para Pilon.

 

Pilon observou ansiosamente Big Joe até ver que este descia a colina na direcção de Monterey e não se encaminhava para o pinhal. Os quatro amigos sentaram-se e contemplaram sonhadoramente a tarde a chegar.

 

Big Joe regressou ao lusco-fusco. Pilon foi conferenciar com ele para o pátio, de modo que de dentro da casa não os ouvissem.

 

- Pedimos ferramentas emprestadas à Sr.a Morales - disse Pilon. - Ao pé da capoeira dela há uma picareta e uma pá.

 

Quando já estava bastante escuro saíram.

 

- Vamos ter com umas amigas de Joe - explicou Pilon. Entraram de gatas no pátio da Sr.a Morales e trouxeram

 

as ferramentas. Depois, Big Joe tirou um garrafão de vinho de entre umas ervas que cresciam na berma da estrada.

 

- Vendeste o tesouro! - gritou Pilon, enfurecido. - És um traidor, meu filho de um cão!

 

Big Joe acalmou-o com firmeza.

 

- Eu não disse onde é que o tesouro está -afirmou com certa dignidade. - Foi assim que eu disse: «Achámos um tesouro, mas é para dar ao Danny. Quando estiver nas mãos dele, peço-lhe um dólar emprestado e pago o vinho.»

 

Pilon ficou perplexo.

 

-E acreditaram e deixaram-te trazer o vinho? - inquiriu.

 

- Bem... - Big Joe hesitou. - Deixei lá ficar uma coisa para provar que levaria o dólar.

 

Pablo voltou-se rápido como um relâmpago e agarrou o outro pelo pescoço.

 

- Que é que lá deixaste?

 

- Foi só um cobertorzito -respondeu Big Joe num lamento. - Foi só um.

 

Pilon sacudiu-o, mas Big Joe era tão pesado que a única coisa que conseguiu foi sacudir-se a si próprio.

 

- Um cobertor?! - gritou. - Que cobertor é que tu roubaste?

 

Big Joe choramingou:

 

- Foi só um; foi só um. Ele tem dois. Eu só tirei um muito pequenito. Não me faças mal, Pilon. O outro era maior. Quando a gente achar o tesouro eu volto a dá-lo ao Danny.

 

Pilon rodopiou à volta dele, desferindo-lhe golpes com gana e precisão.

 

- Porco; porco sujo; ladrão! Ou tratas de ir buscar o cobertor ou desanco-te!

 

Big Joe tentou acalmá-lo.

 

- Pensei, como nós estamos a trabalhar para o Danny... - murmurou. - Pensei: «Danny vai ficar tão contente que pode comprar cem cobertores novos.»

 

- Quieto! - ordenou Pilon. - Ou trazes o mesmo cobertor preto ou dou-te com uma pedra. - Pegou no garrafão, tirou-lhe a rolha e bebeu uma pinga para acalmar a sua sensibilidade irritada; depois, voltou a pôr a rolha e recusou a Portagee até mesmo uma gota.

 

- Por causa desse roubo, só tu é que vais cavar. Pega-me nessas ferramentas e anda comigo.

 

Big Joe ganiu como um cachorrinho e obedeceu. Não podia resistir à justa fúria de Pilon.

 

Durante bastante tempo tentaram dar com o tesouro. Já era tarde quando Pilon apontou para as três árvores em fila.

- Ali - disse.

 

Depois de terem andado à procura, encontraram a depressão. Havia algum luar para os guiar, pois nessa noite o céu não estava coberto de nevoeiro.

 

Como não ia cavar, Pilon desenvolveu uma nova teoria acerca da descoberta do tesouro.

 

- Algumas vezes o dinheiro está metido em sacos - disse - e os sacos estão podres. Se cavares a direito, podes perder alguma coisa. -Traçou um amplo círculo em redor da depressão. -• Vamos, abre uma vala funda à volta e depois então é que vamos direitos ao tesouro.

 

- Tu não cavas? - perguntou Big Joe. Pilon explodiu, furioso:

 

- Ouve lá, eu ando a roubar cobertores da cama de um amigo que me dá guarida? - gritou.

 

- Eu sozinho não cavo - disse Big Joe.

 

Pilon pegou num dos ramos que na noite anterior havia constituído uma parte da cruz e avançou, ameaçador, para Big Joe.

 

- Ladrão- rosnou -, porco sujo; pega-me nessa pá.

 

Big Joe sentiu a coragem fugir-lhe e curvou-se para apanhar a pá. Se a consciência não o acusasse, talvez tivesse recalcitrado; mas era grande o medo que sentia de Pilon, a quem a justiça da causa e um tronco de pinheiro serviam de arma.

 

Big Joe abominava os princípios que informavam o acto de cavar. A linha que a pá, movendo-se, descrevia, era desgraciosa. O fim em vista, o de tirar terra de um lado para colocar num outro, era, para quem possuísse uma visão mais ampla, disparatada e improfícua. Uma vida inteira passada a cavar não alcançaria, praticamente, resultado algum. A reacção de Big Joe era um pouco mais simples do que isto. Não gostava de cavar. Tinha ido para a tropa para combater e não fizera outra coisa senão cavar.

 

Mas Pilon não arredava pé, de modo que a vala ia crescendo em redor do lugar do tesouro. De nada valia pretextar doença, fome ou fraqueza. Pilon era inexorável e o crime de Joe - o roubo do cobertor - erguia-se contra si. Por mais que Joe gemesse, se queixasse e erguesse as mãos para mostrar como estavam doridas, Pilon mantinha-se na beira da vala, forçando-o a cavar.

 

Quando deu meia-noite, a vala tinha um metro de altura. Os galos de Monterey cantaram. A Lua desapareceu por detrás das árvores. Por fim, Pilon ordenou a Big Joe que fosse cavando mais perto do tesouro. A terra, agora, era tirada lentamente. Big Joe estava exausto. Quase ao romper do dia, a pá bateu numa coisa dura.

 

- Ai! - exclamou Joe. - Cá está ele, Pilon!

 

O achado era grande e quadrado. Freneticamente, desataram a cavar às escuras, sem ver onde cavavam.

 

- Cuidado - avisou Pilon -, não vás estragar alguma coisa.

 

Quando a manhã surgiu ainda não tinham desenterrado o achado. Pilon sentiu metal e inclinou-se para ver. A luz cinzenta da madrugada revelou um quadrado de cimento de grandes dimensões. No topo havia uma placa redonda de cor castanha.

 

Pilon soletrou:

 

«Inspecção Geodésica dos Estados Unidos - 1915 - Elevação 800 metros.»

 

De ombros curvados sob o peso da derrota, Pilon sentou-se na beira da vala.

 

- Não há tesouro? - perguntou Big Joe, lastimoso. Pilon não lhe respondeu.

 

O Portagee inspeccionou o poste de cimento. Na fronte instalou-se-lhe uma ruga de reflexão. Voltou-se para o amargurado Pilon.

 

- Talvez a gente pudesse levar este belo bocado de metal e vendê-lo.

 

Pilon saiu do abatimento.

 

- Johnny Pom-Pom achou um bocado destes - respondeu com a tranquilidade que um grande desapontamento dá-, levou-o e tentou vendê-lo. É um ano de cadeia desenterrar uma coisa destas -lamentou-se.-- Um ano de cadeia e uma multa de mil dólares.

 

Na sua dor, Pilon o que queria era apenas fugir daquele trágico lugar. Levantou-se, enrolou o garrafão numa erva e começou a descer a colina.

 

Big Joe seguiu-o, solícito.

 

- Aonde é que vamos? - perguntou.

 

- Sei lá - respondeu Pilon.

 

O Sol já ia alto quando chegaram à praia, mas nem ali Pilon se deteve. Arrastou-se ao longo da areia firme, junto à água, até Monterey ficar muito para trás e apenas as dunas de Seaside e as ondas encrespadas da baía poderem ver a sua dor. Por fim, sentou-se ao sol na areia seca. Big Joe sentou-se a seu lado, sentindo que, de certo modo, era responsável pelo sofrimento mudo de Pilon.

 

Pilon tirou o garrafão da erva, desarrolhou-o e bebeu um longo trago; depois, como a amargura é a mãe da compaixão universal, passou o vinho de Joe ao seu incrédulo dono.

 

- O que a gente arquitecta - exclamou Pilon.- Como vamos atrás dos nossos sonhos. E tinha eu pensado levar sacos cheios de ouro ao Danny. Até parece que estava a ver a cara dele. Que surpresa ele não teria. Durante muito tempo nem havia de acreditar -tirou o garrafão das mãos de Joe e bebeu copiosamente. - Foi tudo por água abaixo esta noite. O sol ia aquecendo a praia. Apesar do seu desapontamento, Pilon sentiu que um conforto traiçoeiro se ia apoderando dele e que um impulso traidor o levava a descobrir alguns pontos bons na situação.

 

Big Joe, na sua maneira sossegada, estava já a beber mais do que aquilo que lhe cabia. Pilon, indignado, tirou-lhe o garrafão e bebeu repetidas vezes.

 

- Visto bem - filosofou ele -, se tivéssemos achado ouro, talvez isso não tivesse sido bom para o Danny. Ele sempre foi pobre e a riqueza podia dar-lhe volta ao juízo.

 

Big Joe acenou solenemente com a cabeça, concordando. O vinho ia descendo no garrafão.

 

- A felicidade é melhor do que a riqueza - disse Pilon. Se procurarmos fazer Danny feliz, será melhor do que lhe dar dinheiro.

 

Big Joe acenou de novo e tirou os sapatos.

 

- Fazê-lo feliz; isso é que é.

 

Pilon voltou-se para ele, entristecido.

 

- Não passas de um porco; não devias viver com gente

- disse brandamente. - Tu, tu que roubaste o cobertor ao Danny, devias era ser metido numa pocilga e comeres cascas de batata.

 

O sol estava quente e eles iam ficando cada vez com mais sono. As pequenas ondas sussurravam ao longo da praia. Pilon descalçou os sapatos.

 

- Vamos ao resto - disse Big Joe. Escorropicharam o vinho do garrafão.

 

A praia oscilava brandamente, subindo e descendo num movimento semelhante ao de uma onda de fundo.

 

- Tu não és mau homem - disse Pilon.

 

Big Joe, porém, já estava a dormir. Pilon despiu o casaco e cobriu-lhe a cara. Momentos depois, também ele próprio dormia suavemente.

 

O Sol percorreu a sua rota no céu. A maré alagou a praia e depois retirou-se. Um grupo de aves marinhas inspeccionou os dois homens adormecidos. Um cão vadio cheirou-os. Duas senhoras de idade que andavam a apanhar conchas, viram os corpos e afastaram-se apressadamente, não fossem os homens acordar encolerizados, persegui-las e assaltá-las. Na sua opinião, era uma vergonha que a Polícia nada fizesse para pôr cobro a casos daqueles.

 

- Estão bêbedos - disse uma.

 

A outra voltou-se para trás e olhou para os homens deitados a dormir.

 

- Perdidos de bêbedos, os animais - concordou. Quando, por fim, o Sol se escondeu atrás da colina para lá

 

de Monterey, Pilon acordou. Tinha a boca seca como uma palha, o corpo entorpecido de dormir sobre a areia dura e doía-lhe a cabeça. Big Joe continuava a ressonar.

 

- Joe! - gritou.

 

O Portagee, porém, não estava ao alcance de gritos. Pilon deitou-se sobre o cotovelo e olhou para o mar. «Uma pinga fazia bem a esta secura que tenho na boca», pensou. Inclinou o garrafão, mas não conseguiu uma gota sequer para consolo da sua seca língua. Depois, puxou para fora o forro das algibeiras na esperança de que se tivesse dado algum milagre enquanto estivera a dormir; nada, porém, acontecera. Lá estava o canivete partido que, pelo menos vinte vezes, ele vira recusado quando havia querido trocá-lo por um copo de vinho. Lá estava o anzol espetado numa rolha, um bocado de cordel sujo, um dente de cão e algumas chaves que não serviam em qualquer fechadura que Pilon conhecesse. No lote todo não havia nada que Torrelli considerasse valer a pena possuir, mesmo num momento de loucura.

 

Pilon olhou para Big Joe numa atitude especulativa. «Pobre diabo», pensou. «Quando acordar vai sentir a boca tão seca como eu. Se eu lhe arranjasse uma pinga, ficava todo satisfeito.» Abanou Big Joe com força várias vezes. Como o Portagee apenas falasse entre dentes, e voltasse a ressonar, Pilon examinou-lhe as algibeiras. Encontrou um botão de bronze para calças, um pequeno disco de metal que dizia «No Holandês come-se bem», quatro ou cinco fósforos sem cabeça e um pouco de tabaco de mascar.

 

Pilon sentou-se nos calcanhares. Não adiantava. Tinha de ficar ali na praia, a secar, enquanto a garganta lhe pedia veementemente vinho.

 

Reparou nas calças de sarja que Joe trazia e passou os dedos por elas. «Belo pano», disse de si para si. «Porque é que este porco veste roupa tão boa e os seus amigos andam com calças ordinárias?» Reparou então como as calças assentavam mal ao Joe, como a cintura lhe ficava justa, mesmo com dois botões desabotoados, como as dobras estavam alguns centímetros acima dos sapatos. «Estas calças faziam feliz um homem de tamanho decente.»

 

Lembrou-se do crime que Big Joe cometera contra Danny e transformou-se num anjo de vingança. «Como é que preto enorme se atreveu a ofender o Danny daquela maneira! Quando ele acordar, dou-lhe um par de murros.» «Mas», argumentou um Pilon mais subtil, «o crime dele foi o roubo. Não lhe serviria de lição saber como é que uma pessoa se sente quando é roubada? De que serve o castigo se não se aprender nada? Para Pilon, a posição era de triunfo. Se, com uma só acção, podia vingar Danny, disciplinar Big Joe, dar uma lição de moral e arranjar uma pinga de vinho, quem poderia criticá-lo?»

 

Deu um vigoroso empurrão no Portagee, mas este apenas fez um aceno como se enxotasse uma mosca. Pilon tirou-lhe destramente as calças, enrolou-as e afastou-se na direcção das dunas.

 

Torrelli não estava. Foi a Sr.a Torrelli que abriu a porta a Pilon. Este começou com modos misteriosos, mas acabou por erguer as calças para ela inspeccionar.

 

A Sr.a Torrelli abanou a cabeça com decisão.

 

- Mas repare - disse Pilon -, a senhora só está a ver as nódoas e a sujidade. Olhe-me para este fino pano. Imagine só! A senhora tirou as nódoas e passou as calças a ferro. O seu marido entra em casa. Vem calado, aborrecido. Então, a senhora apresenta-lhe este belo par de calças. Como os olhos dele se iluminam! Como fica feliz! Pega em si ao colo, sorri-lhe. Um garrafão de vinho tinto é um preço demasiado alto para tanta felicidade?

 

- As calças estão puídas atrás - replicou ela. Pilon ergueu-as contra a luz.

 

- A senhora consegue ver através delas? Não! Estas calças já perderam a rijeza da goma e são bem confortáveis. Não podiam estar melhores.

 

- Não - volveu ela com firmeza.

 

-’A senhora é cruel para o seu marido; recusa-lhe a felicidade. Não me admirava nada que ele fosse ter com outras mulheres menos cruéis. Ficam então por um litro?

 

Por fim, a resistência da Sr.a Torrelli foi vencida; Pilon recebeu o litro de vinho e bebeu-o imediatamente.

 

- A senhora está a procurar desvalorizar o preço do prazer - avisou Pilon. - Devia era dar-me dois litros.

 

A Sr.a Torrelli manteve-se firme como uma rocha. Pilon não levaria nem mais uma gota. Pilon sentou-se na cozinha, meditabundo. «É uma judia, é o que ela é. Vigarizou-me e fica com as calças do Joe.»

 

Pilon pensou com tristeza no amigo que ficara na praia. Que podia ele fazer? Se se dirigisse à cidade, era preso. Que tinha aquela harpia feito para merecer as calças? Tinha tentado comprar as calças do amigo de Pilon por um litro de vinho miserável. Pilon sentiu-se inteiramente dominado pela cólera.

 

- Vou-me embora - disse ele à Sr.a Torrelli.

 

As calças estavam penduradas numa pequena alcova longe da cozinha.

 

- Adeus - volveu ela por cima do ombro, ao mesmo tempo que entrava na pequena copa a fim de fazer o jantar.

 

Pilon, ao passar pela alcova, não tirou somente as calças mas tambén o cobertor de Danny. Em seguida, voltou para o sítio da praia onde havia deixado o Big Joe. Distinguiu, primeiro, o brilho intenso de uma fogueira acesa na praia, e, à medida que se foi aproximando, viu umas pequenas figuras escuras que passavam em frente das chamas. A noite estava agora muito escura e ele guiava-se apenas pelo fogo. Quando chegou ao pé viu que se tratava de um grupo de escuteiras a assar pequenas salsichas. Aproximou-se cautelosamente.

 

Durante uns momentos não conseguiu ver o Big Joe, mas, por fim, lá o descobriu meio coberto de areia, sem fala, devido ao frio e ao mal-estar.

 

Caminhou com decisão direito a ele e levantou as calças nas mãos.

 

- Toma lá, Big Joe. Podes dar-te por feliz por as teres de novo.

 

Joe batia o queixo.

 

- Quem me roubou as calças, Pilon? Estou aqui há uma porção de horas sem poder ir-me embora por causa daquelas raparigas.

 

Delicado, Pilon sentou-se entre Big Joe e as raparigas que corriam em redor da fogueira. Big Joe sacudiu a areia molhada das pernas e vestiu as calças. Em seguida, lado a lado, puseram-se a caminho ao longo da praia envolta em trevas, na direcção de Monterey, onde as luzes, suspensas como colares colocados uns por cima dos outros, se recortavam contra a colina. Na lomba da praia, as dunas faziam lembrar cães agachados a descansar; as ondas batiam mansamente contra a areia e resfolgavam um pouco ao desfazer-se. A noite estava fria e distanciadora; o calor da vida havia-a abandonado e, assim, toda ela estava repleta de amargos avisos ao homem que está sozinho no mundo e solitário entre os seus companheiros: que de parte nenhuma lhe virá uma palavra de conforto.

 

Pilon estava ainda a meditar e Big Joe compreendeu quão profundos eram os sentimentos do seu amigo. Por fim, Pilon, voltando-se para Big Joe, disse:

 

- Estas coisas assim é que nos ensinam que confiar numa mulher é uma loucura muito grande.

 

- Foi uma mulher que me levou as calças? - perguntou Big Joe, alvoroçado - Quem foi? Eu dou cabo dela.

 

Pilon, porém, abanou tristemente a cabeça, como o velho Jeová que, ao descansar no sétimo dia, vê quanto o seu mundo é enfadonho.

 

- Já está castigada - disse. - Pode dizer-se que foi ela que se castigou a si mesma e da maneira melhor. Era ela que tinha as tuas calças; comprou-as, levada pela avareza,

mas agora já não as tem.

 

Estas coisas não estavam ao alcance de Big Joe. Eram mistérios em que mais valia não tocar; e era assim que Pilon desejava.

 

Big Joe disse humildemente:

 

- Obrigado por teres conseguido trazer-me as calças, Pilon Este, porém, estava tão embrenhado na filosofia, que os agradecimentos não tinham qualquer valor.

 

- Não tem importância. Em todo este caso só a lição que a gente aprende vale de alguma coisa.

 

Saíram da praia e passaram junto da grande torre cor de prata da fábrica de gás.

 

Big Joe Portagee sentia-se feliz por ir com Pilon. «Ora aqui está uma pessoa que se interessa pelos seus amigos», disse de si para si. «Mesmo quando eles estão a dormir, ele está atento para que não lhes suceda mal nenhum.» Resolveu ter um dia uma atitude simpática para com Pilon.

 

Como Danny foi engodado por um aspirador e como os seus amigos o salvaram

DOLORES ENGRACIA RAMÍREZ vivia no limite superior da Tortilla Flat, numa pequena casa própria. Trabalhava a dias para algumas senhoras de Monterey e fazia parte das Filhas Nativas de Golden West. Não era bonita esta paisana de rosto esguio, mas na sua figura havia uma certa voluptuosidade de movimentos; a sua voz possuía um certo tom gutural que alguns homens consideravam revelador. Os seus olhos eram capazes de brilhar por detrás de uma cortina de névoa com uma paixão sonolenta que aqueles homens, para quem a carne é importante, achavam atraente e convidativa em extremo.

 

Nos seus momentos bruscos nada tinha de apetecível, mas dentro dela produzia-se uma combinação amorosa com frequência suficiente para lhe chamarem a Sweets Ramirez da Tortilla Flat.

 

Dava gosto vê-la nos momentos em que nela o animal manifestava o seu instinto de caçador. Como se debruçava por cima do portão da frente! Como ronronava num semiadormecimento feliz! Como movia suavemente as ancas, ora comprimindo-as contra a vedação, ora deixando-as avolumar de novo como uma onda, para em seguida voltar a apertá-las contra a cerca! Quem melhor que ela era capaz de carregar de tanta intenção velada as palavras: «Ai, amigo. À onde vás?»

 

É verdade que, de ordinário, a sua voz era estridente, o rosto duro e anguloso como uma machadinha, o seu aspecto pesado e as suas intenções egoístas. Só uma ou duas vezes por semana e, em geral, à noitinha, o seu eu mais brando vinha à superfície.

 

Quando Sweets soube da herança de Danny ficou contente por ele. Sonhou casar com ele, como todas as mulheres de Tortilla Flat. Ao entardecer, debruçava-se por cima do portão da frente à espera que Danny passasse e caísse na armadilha. Durante bastante tempo a sua ratoeira nada apanhou a não ser alguns pobres índios e paisanos que não eram donos de casas nenhumas e cujas roupas haviam, algumas vezes, fugido de melhores guarda-fatos.

 

Sweets não estava satisfeita. A sua casa encontrava-se situada acima da de Danny, numa direcção que ele raramente tomava. Sweets não podia ir à procura dele. Era uma senhora, e a sua conduta era ditada pelas normas muito rígidas da propriedade. Se Danny passasse, se falassem como velhos amigos que eram, se, cumprindo um dever social, ele entrasse para beber um copo de vinho, e, então, a natureza desse provas de ser demasiado forte, e a sua resistência feminina demasiado fraca, não haveria grave infracção às normas da. propriedade. Mas abandonar a teia urdida junto à cancela da entrada, isso era inimaginável.

 

Muitas tardes a fio, durante vários meses, ela esperou em vão, aceitando aqueles presentes que uns pares de calças trazem consigo. Mas na Tortilla Flat o número de veredas é limitado. Era inevitável que, mais cedo ou mais tarde, Danny passasse em frente do portão de Dolores Engracia Ramirez; e, de facto, passou.

 

Durante todo o tempo em que eles se haviam conhecido, nunca houvera uma ocasião em que a passagem de Danny trouxesse mais vantagens a Sweets. Na verdade, Danny tinha achado nessa manhã um barrilito com pregos de ripas que a Central Supply Company perdera. Considerara-os abandonados, visto que nenhum membro da Companhia se encontrava perto. Danny tirou os pregos do barril e meteu-os num saco. Depois, pediu ao Pirata que lhe emprestasse o carrinho de mão e que o empurrasse, e levou o achado à Western Supply Company, onde vendeu o cobre por três dólares. O barril deu-o ao Pirata.

 

- Podes guardar coisas aí dentro - disse. O Pirata ficou muito contente.

 

Danny, com os três dólares na algibeira, desceu a colina, e dirigiu-se com admirável precisão à casa do Torrelli.

 

Dolores pôs na voz a entoação docemente velada de um zumbido de abelha.

 

- Aí amigo. À onde vás?

 

Danny estacou. Nos seus planos deu-se uma revolução.

 

- Como estás, Sweets?

 

-Que é que isso importa? Nenhum dos meus amigos quer saber - respondeu ela com malícia, ao mesmo tempo que fazia ondular as ancas num movimento circular e gracioso.

 

- Que queres tu dizer? - perguntou ele.

 

- Bom, o meu amigo Danny vem alguma vez visitar-me?

 

- Aqui estou agora - volveu Danny, galanteador. Dolores abriu um pouco o portão.

 

- Não queres entrar para beberes um copito de vinho em nome da nossa amizade?

 

Danny entrou.

 

- Que tens andado a fazer na mata? - arrulhou ela. Então Danny cometeu um erro. Vangloriou-se do negócio que fizera e gabou-se de ter três dólares.

 

- É claro que o vinho que tenho cá em casa só dá para encher dois dedais - disse ela.

 

Sentaram-se na cozinha e beberam um copo de vinho. Momentos depois, Danny assaltou, heróica e vigorosamente, a virtude de Dolores. Com grande espanto seu, encontrou nela uma resistência verdadeiramente desproporcionada para o seu tamanho e reputação. A feia besta do prazer despertou nele. Irritou-se. Só quando ia a sair começou a ver mais claro.

 

A voz velada disse:

 

- Não quererás vir cá esta noite ver-me, Danny? - Os olhos de Sweets vogavam numa nuvem de lânguido convite. - Uma pessoa tem vizinhos- sugeriu ela delicadamente.

 

Danny compreendeu.

 

- Eu volto - prometeu.

 

A tarde ia a meio. Danny desceu a rua e pôs-se de novo a caminho da loja do Torrelli; dentro dele o animal modificara-se. O feroz lobo rugidor transformara-se num enorme urso, hirsuto e sentimental.

 

«Vou levar vinho àquela simpática rapariga», disse de si para si.

 

No caminho, quem havia ele de encontrar senão Pablo?

Este deu-lhe uma das duas pastilhas elásticas que levava e pôs-se a caminhar a seu lado.

 

- Aonde vais?

 

- Não é altura para amizades -disse Danny com azedume.- Em primeiro lugar vou comprar vinho para levar a uma senhora. Podes vir comigo e beber um copo, mas só um. Estou farto de comprar vinho para oferecer a senhoras e serem os meus amigos que o bebem todo.

 

Pablo concordou que não se podia tolerar um tal habite, Pelo que lhe dizia respeito, não queria o vinho de Danny, mas apenas a sua companhia.

 

Foram para a loja do Torrelli. Beberam um copo de vinho do garrafão acabado de comprar. Danny confessou que dar apenas um copo de vinho ao seu amigo era tratá-lo com mesquinhez. Bebeu outro, a despeito dos veementes protestos de Pablo. «As mulheres», pensou Danny, «não devem beber muito vinho. Ficam logo com tendência para se fazerem idiotas; além disso, o vinho embota muitas das faculdades que um homem gosta de encontrar despertas numa mulher.»

 

Beberam mais uns copos. Um garrafão de quatro litros meio cheio era uma generosa oferta, especialmente tendo-se em vista o facto de Danny se preparar para ir comprar outro presente. Deixaram ficar vinho até meio do garrafão e beberam o que sobejara. Em seguida, Danny escondeu o garrafão entre as ervas de uma vala.

 

- Gostava que viesses comigo comprar o presente - disse.

 

Pablo sabia por que razão ele o convidava. Por um lado, devido a querer a sua companhia; por outro, porque receava abandonar o vinho enquanto ele andasse por ali. Puseram-se a caminho de Monterey, descendo a colina num passo estudadamente direito e digno.

 

O Sr. Simon da Simon’s Investment, Jewelry and Loan Company, acolheu-os prazenteiro na sua loja. O nome dssta definia os limites exteriores da mercadoria vendida pela Companhia, pois sobre o balcão havia saxofones, telefonias, espingardas, facas, canas de pesca e moedas antigas; todas as coisas eram em segunda mão, mas estavam melhores do que se fossem novas, pois o pouco uso que tinham tornara-as mais funcionais.

 

- O senhor desejava alguma coisa?-perguntou o Sr. Simon.

 

- Desejava - respondeu Danny.

 

O dono da loja enunciou uma série de artigos e, de repente, parou no meio de uma palavra, pois viu que Danny estava a olhar para um grande aspirador de alumínio. O saco do pó era azul com listas amarelas. O cordão era comprido, negro e escorregadio. O Sr. Simon aproximou-se do aparelho, esfregou-o com a mão e afastou-se para o admirar.

 

- Interessado num aspirador? - perguntou.

 

- Quanto?

 

- Por este, catorze dólares.

 

Era mais uma tentativa de averiguar quanto Danny possuía do que, propriamente, a indicação do preço. E Danny queria o aparelho por ser grande e reluzente, e nenhuma mulher na Tortilla Flat ter aspirador. Na altura, esqueceu-se de que na terra não havia electricidade. Pôs os dois dólares em cima do balcão e aguardou enquanto a explosão se produzia; a fúria, a cólera, a tristeza, a pobreza, a ruína, a trapaça. Invocou-lhe o brilho, a cor do saco, o cordão extralongo, o valor do metal em si mesmo. E, quando tudo acabou, Danny saiu da loja levando consigo o aspirador.

 

Muitas vezes, à tarde, como pasatiempo, Sweets levava o aspirador para fora e encostava-o contra uma cadeira. Enquanto os seus amigos observavam, ela empurrava o aparelho para a frente e para trás, a fim de mostrar como ele se movia com facilidade. Ao mesmo tempo, com a voz, imitava o zumbido do motor.

 

--O meu amigo é rico - dizia. - Acho que já não falta muito para trazerem fios eléctricos até aqui mesmo a casa e depois é zip, zip, zip, e pronto! aí está a casa limpa.

 

Os amigos tentavam minorizar o presente dizendo:

 

- É pena que não possas pôr o aparelho a funcionar... e sempre fui da opinião de que uma vassoura e uma pá, usadas como deve ser, ainda dão mais resultado.

 

Mas a inveja deles nada podia contra o aspirador. A posse deste fez Sweets ascender ao topo da escala social da Tortilla Flat. As pessoas que não se lembravam do nome dela referiam-se-lhe como «aquela que tem a máquina de varrer». Muitas vezes, quando os seus inimigos passavam em frente da casa, via-se a Sweets, através das vidraças, empurrando o aspirador para a frente e para trás, ao mesmo tempo que da garganta lhe saía um ruidoso zumbido. De facto, todos os dias, depois de varrer a casa, ela andava com o aspirador de um lado para o outro, baseando-se na teoria segundo a qual a limpeza levava a cabo por meio da electricidade seria sem dúvida melhor, mas que não se podia ter tudo.

 

Despertou a inveja em muitas casas. Os seus modos tornaram-se graves e graciosos, e passou a andar de queixo levantado como convinha a uma pessoa que possuía um aspirador.

 

Quando conversava com alguém falava sempre nele. «Quando o Ramón passou por lá esta manhã, andava eu com o aspirador pela casa fora.» «Louise Meater cortou-se esta manhã na mão, ainda não tinham passado três horas depois de ter andado a trabalhar com o aspirador.»

 

A sua ascensão, contudo, não a fez esquecer-se de Danny. Quando ele se encontrava perto, havia na sua voz uns ronsrons de emoção. Balanceava como um pinheiro ao vento. Danny passava todas as noites em casa de Sweets.

 

Ao princípio, os seus amigos ignoraram a sua ausência, pois todos os homens têm direito a pequenas aventuras daquelas. Mas, como as semanas passassem e uma vida doméstica bastante extenuante começasse a tornar Danny apático e pálido, os seus amigos ficaram convencidos de que a gratidão de Sweets pelo aspirador não era de molde a acautelar os melhores interesses físicos de Danny. Tinham inveja de uma situação que há tanto tempo lhe prendia a atenção.

 

Durante a ausência de Danny, Pilon, Pablo e Jesus Maria, cada um por sua vez, assaltaram o ninho dos seus afectos. Sweets, porém, ainda que se tivesse mostrado sensível à homenagem, manteve-se fiel ao homem que elevara a sua situação a un nível tão agradável. Procurou conservar a amizade que eles lhe ofereciam, para uma necessidade futura, pois sabia quanto a fortuna é inconstante, mas recusou vigorosamente partilhar com eles aquilo que, por enquanto, dedicava a Danny. Por esse motivo os amigos, desesperados, organizaram um grupo consagrado à destruição de Sweets.

 

é possível que Danny, bem no fundo da sua alma, começasse a ficar cansado da afeição de Sweets e do dever de comparência que isso lhe exigia. Mas se tal modificação se estava a operar, recusava-se a admiti-la.

 

Uma tarde, eram três horas, Pilon, Pablo e Jesus Maria, seguidos vagamente por Big Joe Portagee, regressaram, triunfantes, de três quartos de um dia de esforço extenuante. A sua campanha pusera em acção e levara ao extremo a lógica impiedosa de Pilon, o engenho artístico de Pablo e a gentileza e a humanidade de Jesus Maria Corcoran. Big Joe não contribuíra com coisa nenhuma.

 

Agora, porém, como quatro caçadores, regressavam da caça mais felizes porque a vitória fora difícil. E, em Monterey, um pobre italiano baralhado chegava gradualmente à convicção de que fora vítima de uma vigarice.

 

Pilon levava um garrafão de vinho embrulhado num molho de hera. Entraram alegremente em casa de Danny e Pilon pôs o garrafão em cima da mesa.

 

Danny, arrancado a um profundo sono, sorriu calmamente, levantou-se da cama, foi buscar as jarras e vazou o vinho. Os seus quatro amigos atiraram-se para cima das cadeiras, pois o dia havia sido extenuante.

 

Beberam com toda a tranquilidade. Era a hora do entardecer, esse curioso intervalo do dia. Nessa altura, quase toda a gente em Tortilla Flat faz uma pausa, examina o que se passou no dia que acaba de morrer e medita nas possibilidades que a noite que se avizinha oferece. Ao entardecer há muitas coisas para se falar.

 

- A Cornelia Ruiz arranjou outro homem esta manhã• disse Pablo. - É careca; chama-se Kilpatrick. A Cornelia diz que o anterior, na semana passada, não lhe apareceu em casa durante três noites. Ela não gostou nada da graça.

 

- A Cornelia é uma mulher que muda de opinião muito depressa - observou Danny, pensando com satisfação na estabilidade do seu próprio caso, assente sobre a rocha do aspirador.

 

- O pai dela era pior - disse Pablo. - Era incapaz de falar verdade. Uma vez pediu-me um dólar emprestado. Contei isso à filha mas ela não quer saber.

 

- Têm os dois o mesmo sangue. Tal pai tal filha - citou Pilon, virtuoso.

 

Danny encheu outra vez as jarras de vinho. O garrafão ficou vazio. Danny olhou para ele com remorso. Jesus Maria, esse filantropo, disse calmamente:

 

- Vi a Susie Francisco, Pilon. Disse-me que a receita deu resultado. Já saiu três vezes na mota com o Charlie Guzman. Nas duas primeiras vezes que lhe deu o filtro, ele sentiu-se mal e ela pensou que a coisa não prestava. Mas agora disse-me que, quando quiseres, te dá uns bolos.

 

- Que tinha esse filtro? - quis saber Pablo.

 

Pilon tornou-se misterioso. :

 

- Não posso dizer-te tudo. Deve ter sido o veneno da madeira de carvalho que ele continha que fez mal ao Charlie Guzman, acho eu.

 

O garrafão chegara ao fim demasiado depressa. Era tão intensa a sede que cada um dos seis amigos sentia, que o desejo lhes causava dor. Philon baixou os olhos e olhou para os amigos; estes fitaram-no, também. A conspiração estava pronta.

 

Pilon tossicou para aclarar a voz.

 

- Que é que tu fizeste, Danny, para toda a cidade se rir de ti?

 

Danny pareceu ficar inquieto. -Que queres tu dizer com isso? Pilon deu uma breve risada.

 

- Diz-se que compraste um aspirador para uma senhora e que o aparelho não funciona se não puserem electricidade lá em casa. E uma instalação eléctrica custa uma boa porção de dinheiro. Há quem ache que o presente tem realmente muita graça.

 

Danny ficou ainda menos à vontade.

 

- Essa senhora gosta do aspirador - disse, defendendo-se.

 

- Por que razão não havia de gostar? Ela até disse a umas pessoas que tu prometeste instalar electricidade lá em casa para o aspirador trabalhar.

 

Danny parecia cada vez mais perturbado.

 

- Ela disse isso?

 

- Foi o que me disseram.

 

-Não ponho lá electricidade nenhuma!-exclamou Danny.

 

- Se eu não tivesse achado graça, teria ficado arreliado por ver que estavam a fazer pouco de um amigo meu - observou Pablo.

 

- Que é que tu fazes quando ela te pedir para lá instalares electricidade? - quis saber Jesus Maria.

 

- Digo-lhe que não - respondeu Danny. Pilon riu-se.

 

- Quem me dera lá estar. Não é assim tão fácil dizer «não» a essa senhora.

 

Danny sentiu que os amigos estavam contra ele.

 

- Que é que eu devo fazer? - perguntou, desorientado. Pilon encarou o assunto com a sua gravidade habitual e recorreu ao seu realismo para resolver a questão.

 

- Se essa senhora não tivesse aspirador, não quereria electricidade - disse.

 

Os amigos concordaram com um aceno de cabeça.

 

- Por conseguinte - continuou Pilon-, o que há a fazer é tirar-lhe o aspirador.

 

- Ela não deixará que eu lho tire - protestou Danny.

 

- Nesse caso, a gente ajuda-te - volveu Pilon. - Eu tiro-lhe o aparelho e tu, em paga, ofereces à senhora um garrafão de vinho. Ela nem há-de fazer ideia aonde é que o aspirador foi parar.

 

- É capaz de alguma das vizinhas te ver.

 

- Não, não vê - prosseguiu Pilon. - Fica aqui. Eu vou lá buscar o aspirador.

 

Danny suspirou de alívio ao ver que o seu problema estava nas mãos dos seus bons amigos.

 

Poucas coisas se passavam em Tortilla Flat que Pilon não soubesse. No seu espírito gravavam-se curtas mas incisivas anotações de tudo quanto os seus olhos viam, ou os seus ouvidos escutavam. Sabia que todas as tardes, às quatro e meia, Sweets ia às compras. Contava com este hábito quase invariável para levar a cabo o seu plano.

 

- É melhor que não saibas nada a este respeito - disse a Danny.

 

Tinha no pátio um saco de juta já preparado. Cortou um ramo de roseira de boas dimensões e rneteu-o no saco.

 

Ao chegar a casa de Sweets viu que ela não estava lá, como havia esperado e confiado que aconteceria.

 

«É mesmo o aspirador do Danny», disse de si para si.

 

Levou um momento a entrar em casa, a colocar o aspirador no saco e a dispor artisticamente o ramo da roseira no saco.

 

Quando ia a sair do pátio encontrou Sweets e tirou delicadamente o chapéu.

 

- Entrei para estar um bocado contigo - disse.

 

- Porque é que não ficas?

 

-Não posso. Tenho que fazer em Monterey. Já é tarde.

 

- Aonde é que vais com essa roseira?

 

- Vou vendê-la a um sujeito de Monterey. É um ramo bem bonito. Repara como é forte.

 

- Passa por cá noutra altura.

 

Pilon não ouviu qualquer explosão de cólera enquanto descia a rua de mansinho.

 

«Ela é capaz de não dar logo pela falta», pensou.

 

Metade do problema estava solucionado, mas faltava ainda encarar a outra metade.

 

«Que é que Danny pode fazer a este aparelho?», perguntou Pilon a si mesmo. «Se ficar com ele, Sweets saberá que foi ele quem o tirou. Poderei atirá-lo fora? Não, porque vale dinheiro. O que há a fazer é livrar-me dele e colher o proveito que o seu valor dá.»

 

Agora o problema estava inteiramente resolvido. Pilon desceu a colina direito à loja do Torrelli.

 

O aspirador era grande e reluzente. Quando Pilon subiu de novo a colina, levava um garrafão de vinho em cada mão.

 

Foi recebido em silêncio pelos amigos. Pôs um dos garrafões em cima da mesa e o outro no chão.

 

- Trouxe-te um presente para levares à senhora - disse, dirigindo-se a Danny. - Está aqui também uma pinga para a gente.Juntaram-se, cheios de satisfação, pois a sede que sentiam era como um devastador incêndio. Quando o primeiro garrafão estava quase no fim, Pilon ergueu o copo contra a luz da vela e olhou-o à transparência.

 

- As coisas que acontecem não têm importância - disse mas de tudo quanto sucede há uma lição a tirar. Com isto, aprendemos que um presente, especialmente quando se destina a uma mulher, não deve ser de molde a exigir um outro presente. Aprendemos, também, que é um pecado dar presentes demasiado valiosos, porque podem suscitar cobiça.

 

O primeiro garrafão acabara. Os amigos olharam para Danny a fim de ver como é que ele encarava esse facto. Tinha estado muito quieto, mas agora compreendia que os seus amigos aguardavam uma decisão sua.

 

- Era uma mulher com muita vida - disse, judicioso. Tinha uma maneira de ser muito simpática. Mas, diabos levem isso tudo; estou farto!

 

Pegou no segundo garrafão e tirou a rolha. O Pirata, sentado ao canto no meio dos cães, sorriu e murmurou com admiração:

 

- Diabos levem isto tudo; estou farto! - Achava estas expressões formidáveis.

 

Ainda não tinham bebido mais de metade do segundo garrafão e só haviam cantado duas cantigas, quando um homem novo entrou. Era o Johnny Pom-Pom.

 

- Estive na loja do Torrelli - disse. - O homem está furioso. Anda para lá aos gritos e a dar murros na mesa.

 

Os amigos levantaram os olhos moderadamente interessados.

 

- Alguma coisa se passou. Se calhar o Torrelli merece-a.

 

- Tem recusado muita vez um copito a bons fregueses.

 

- Que é que sucedeu ao Torrelli? - perguntou Pablo. Johnny Pom-Pom aceitou uma jarra de vinho.

 

- Diz que comprou um aspirador ao Pilon e que, ao ligá-lo à corrente, viu que o aparelho não funcionava. De modo que olhou lá para dentro e viu que não tinha motor. Diz que há de matar o Pilon.

 

Pilon pareceu ficar chocado.

 

- Eu não sabia que o aspirador tinha defeito. Mas, não disse eu que o Torrelli merecia o que lhe aconteceu? O aparelho valia três ou quatro garrafões de vinho e aquele unhas-de-fome disse que não dava mais de dois.

 

Danny sentia ainda o calor da sua gratidão por Pilon. Bebeu um trago e deu um estalido com a língua, provando o vinho.

 

- Esta zurrapa do Torrelli está cada vez pior. Quando anda melhor é como lavadura em que nem os porcos pegam, mas ultimamente está tão má que até mesmo o Charlie Marsh era incapaz de bebê-la.

 

Sentiram-se todos, então, um pouco vingados do Torrelli.

 

- Acho - disse Danny - que vamos passar a comprar o vinho noutro lado qualquer se o Torrelli não tomar cuidado com o que faz.

 

Como os amigos consolaram um cabo e, em troca, receberam uma lição de ética paternal

JESUS MARIA CORCORAN era uma vereda que ia dar ao humanitarismo. Tentava aliviar o sofrimento, procurava mitigar a dor, compartilhava a felicidade. Um Jesus Maria endurecido ou com pensamentos negros era coisa que não existia. O seu coração estava disponível para quem quer que fosse que dele quisesse fazer uso. O seu expediente e o seu engenho estavam à disposição de todos que, nesses dons, fossem menos ricos do que ele.

 

Foi ele quem levou às costas José de Ia Nariz durante cinco quilómetros quando este partiu a perna. Quando a Sr.a Paiochico perdeu a cabra do seu coração, a sua rica cabra que lhe dava o leite e o queijo, foi Jesus Maria quem lhe seguiu o rasto até Big Joe Portagee, deteve o criminoso e o obrigou a restituir o animal. Foi Jesus Maria quem, uma vez, tirou o Charlie Marsh de uma fossa onde ele se encontrava atascado na sua própria imundície, e um tal acto exigia não só um coração generoso, como também um estômago forte.

 

Juntamente com essa capacidade de fazer o bem, Jesus Maria tinha o dom de topar com situações em que a prática de um acto generoso era necessária.

 

A sua reputação era tal, que uma vez Pilon disse: «Se o Jesus Maria tivesse ido para padre, Monterey teria dado um santo para o calendário.»

 

Era hábito de Jesus Maria ir todos os dias para a estação dos Correios porque, em primeiro lugar, podia encontrar aí muita gente conhecida, e, em segundo lugar, porque do canto do ventoso edifício em que se colocava podia ver as pernas de um grande número de raparigas. Não se deve supor que neste último interesse havia qualquer grosseria. Critica-se um homem que vai a concertos ou a exposições de arte? Jesus Maria gostava de olhar para as pernas das raparigas.

 

Um dia, depois de ter passado duas horas encostado ao edifício dos Correios, foi testemunha de uma cena lamentável. Um polícia vinha pelo passeio fora, trazendo atrás de si um rapaz de dezasseis anos que, por sua vez, levava nos braços um bebé envolvido num pedaço de cobertor cinzento. O polícia ia dizendo:

 

- Quero lá saber se não te compreendo. Não podes é ficar sentado na valeta o dia inteiro. Anda lá para averiguações.

 

O rapaz respondeu em espanhol num tom peculiar:

 

- Mas, senor, eu não faço mal nenhum. Porque é que me leva?

 

O polícia reparou em Jesus Maria.

 

- Eh, paisano - chamou. - Que é que este cholo está para aqui a dizer?

 

Jesus Maria adiantou-se e dirigiu-se ao rapaz.

 

- Posso ajudar-te nalguma coisa?

 

Uma cachoeira de palavras brotou do aliviado rapaz.

 

- Vim à procura de trabalho. Uns mexicanos disseram-me que aqui havia trabalho, mas não há trabalho nenhum. Estava sentado a descansar e este homem veio ter comigo e tirou-me de lá para fora.

 

Jesus Maria acenou com a cabeça e voltou-se para o polícia.

 

- Este rapazito cometeu algum crime?

 

- Não, mas está quase há três horas sentado numa valeta na Rua Alvarado.

 

- É um amigo meu - volveu Jesus Maria. - Eu tomo conta dele.

 

- Está bem, mas não o deixes sentar-se na valeta. Jesus Maria e o seu novo amigo subiram a colina.

 

- Vou levar-te para a casa onde moro para te arranjarem qualquer coisa de comer. Que bebé é esse?

 

- É o meu - respondeu o rapaz. - Sou caporal, e o bebé é meu. Agora está doente, mas quando for grande há-de ser general.

 

- Que é que ele tem, Senor Caporall

 

- Não sei, só sei que está doente.

 

Descobriu o rosto do bebé. Na verdade a criança parecia estar muito doente.

 

A generosidade de Jesus Maria aumentou.

 

- A casa onde vivo pertence ao meu amigo Danny; é um bom homem, Senor Caporal. É um sujeito de que uma pessoa se pode socorrer quando está em apuros. Vamos lá, que Danny dá-nos guarida. A Sr.a Palochico, que é minha amiga, tem uma cabra. Pedimos-lhe uma pinga de leite para o miúdo.

 

Pela primeira vez surgiu no rosto do cabo um sorriso de conforto.

 

- É bom ter amigos - disse ele. - Em Torreón, tenho eu muitos amigos que eram capazes de pedir esmola só para me ajudar. - Gabou-se um pouco a Jesus Maria:-Tenho amigos ricos, mas, claro, não sabem das minhas necessidades.

 

Pilon abriu o portão do pátio de Danny e entraram todos ao mesmo tempo. Danny, Pablo e Big Joe estavam sentados na sala de fora, aguardando o milagre diário da comida. Jesus Maria empurrou o rapaz para dentro do quarto.

 

- Está aqui um jovem soldado, um caporal - explicou.- Traz um bebé com ele e o bebé está doente.

 

Os amigos levantaram-se com vivacidade. O cabo tirou o cobertor de cima do rosto da criança.

 

- Está mesmo doente - disse Danny. - Era talvez melhor a gente ir chamar o médico.

 

O soldado, porém, abanou a cabeça.

 

- Médicos não. Não gosto de médicos. O bebé não chora, nem comerá muito. Depois de descansar talvez fique outra vez bom.

 

Nessa altura, entrou Pilon e observou a criança.

 

- Este bebé está doente.

 

Pilon tomou imediatamente conta da situação. Mandou Jesus Maria a casa da Sr.a Palochico pedir leite emprestado; disse a Big Joe e a Pablo para arranjarem uma caixa de maçãs, lhe porem um fundo de erva seca e revestirem-na de pele de carneiro. Danny ofereceu a cama, mas foi recusada. O cabo, de pé no meio do quarto, sorria com doçura para aquela boa gente. Por fim, o bebé foi posto na caixa, mas no seu olhar havia uma expressão de apatia e recusou o leite.

 

O Pirata entrou, trazendo um saco com cavalas. Os amigos cozeram o peixe e jantaram. O bebé não queria sequer comer cavalas. De vez em quando um dos amigos levantava-se e ia ver a criança. Depois de jantarem sentaram-se à roda do fogão, dispostos a passar uma noite tranquila.

 

O cabo tinha estado calado; nada dissera a seu respeito. Os amigos estavam um pouco magoados com esta atitude, mas sabiam que havia de chegar uma altura em que ele explicaria a sua presença. Pilon, para quem o saber era como ouro a extrair de mina, tentou várias vezes perfurar as reticências do cabo.

 

- Não se vê muitas vezes um jovem soldado com uma criança nos braços - disse ele numa voz branda.

 

O cabo sorriu, orgulhoso. Pablo continuou:

 

- Este bebé foi provavelmente encontrado no jardim do amor. E é com certeza o melhor dos bebés, pois aí só há coisas boas.

 

- Nós também fomos tropa - disse Danny. - Quando morrermos, somos levados num reparo, e uma secção fará uma descarga por cima de nós.

 

Esperaram para ver se o cabo aproveitaria esta oportunidade para corrigir a sua atitude. Aquele exprimiu a sua gratidão:

 

- Vocês têm sido bons para mim. Têm sido tão bons como o seriam os meus amigos em Torreón. Este é o meu bebé, o bebé da minha mulher.

 

- E onde é que está a tua mulher? - perguntou Pablo. O cabo deixou de sorrir.

 

- No México - respondeu. Depois, recuperando a vivacidade, continuou: - Encontrei um homem que me contou uma coisa curiosa. Disse que a gente pode fazer dos bebés aquilo que a gente quiser. Disse ele: «Diz muitas vezes ao bebé o que tu quiseres que ele faça que, quando ele crescer, faz isso que lhe disseste.» Eu não me canso de dizer a este: «Hás-de ser general.» Vocês acham que ele chegará a ser general?

 

Delicadamente, os amigos disseram que sim com a cabeça.

 

- É possível - disse Pilon. - Eu nunca ouvi falar nesse costume.

 

- Eu digo vinte vezes por dia: «Manuel, um dia hás-de chegar a general. Hás-de ter grandes dragonas, um cinturão e uma espada de ouro. Hás-de montar um cavalo palamino. Que vida, Manuel.» O homem disse que o bebé havia de ser mesmo general se fosse isso que eu lhe dissesse.

 

Danny levantou-se e aproximou-se da caixa de maçãs.

 

- Hás-de ser general - disse ao bebé. - Quando fores grande serás um grande general.

 

Os outros foram atrás dele para ver se a fórmula tinha dado resultado.

 

O Pirata murmurou:

 

- Hás-de ser general - e perguntou a si próprio se aquele método teria efeito num cão.

 

- Este bebé está mesmo doente - disse Danny. - Temos de mante-lo aconchegado.

 

Voltaram a sentar-se.

 

- A tua mulher está no México...-sugeriu Pilon.

 

O cabo franziu o sobrolho e meditou durante um instante; depois, sorriu com exuberância.

 

- Vou contar-vos. Isto não são coisas que se digam a estranhos, mas vocês são meus amigos. Eu era soldado em Chihuahua e como era aplicado e limpo e tinha a espingarda sempre com óleo, fui promovido a caporal. Depois casei com uma bonita rapariga. Não digo que não foi por causa das divisas que ela casou comigo. Mas era bonita e nova e tinha uns olhos claros, belos dentes brancos e um cabelo comprido e brilhante. De modo que em breve nasceu este bebé.

 

- Óptimo - disse Danny. - Gostava de estar no teu lugar. Não há nada tão bom como um bebé.

 

- Pois não - volveu o cabo. - Eu fiquei todo contente. No dia do baptizado levei um cinturão, embora o regulamento militar não o permita. Quando saímos da igreja, um capitão, com dragonas, cinturão e espada de prata viu a minha mulher. Não tardou muito que ela não me abandonasse. Então, fui ter com o capitão e disse-lhe: «Dê-me a minha mulher», e ele respondeu: «Tu não dás valor à vida para falares desse modo com um superior teu.»

 

O cabo estendeu as mãos e levantou os ombros num gesto de resignação.

 

- Oh, o ladrão! - exclamou Jesus Maria.

 

- Reuniste os teus amigos e mataste esse capitão - antecipou Pablo.

 

O cabo ficou atrapalhado.

 

- Não. Não havia nada a fazer. Na primeira noite, alguém disparou contra mim através da janela. No segundo dia, uma peça de campanha disparou-se por engano tão perto de mim que o sopro atirou comigo para o chão. De modo que me vim embora e trouxe o bebé comigo.

 

O rosto dos amigos tinha uma expressão de ferocidade e os seus olhos brilhavam ameaçadores. No seu canto, o Pirata soltou um grunhido e todos os cães rosnaram.

 

- Nós é que havíamos de lá ter estado! - exclamou Pilon.

- Havíamos de fazer com que o capitão se arrependesse de ter nascido. Um padre fez sofrer o meu avô e ele, então, atou-o, nu, a um poste num curral e soltou um novilho lá dentro. Oh, há sempre processos!

 

- Eu era um simples cabo - volveu o rapaz. - Tive de fugir. - Lágrimas de vergonha rolaram-lhe dos olhos. - Quando um cabotai tem um capitão contra ele, não há nada que lhe possa valer. De modo que fugi e trouxe o Manuel comigo. Em Fresno encontrei esse homem sabedor que me disse que eu podia fazer do Manuel o que eu quisesse. Digo ao bebé vinte vezes por dia: «Hás-de ser general. Hás-de usar dragonas e uma espada de ouro.»

 

Aqui estava um drama que fazia as experiências de Cornelia Ruiz parecerem vãs e sem interesse. Aqui estava uma situação que exigia a acção dos amigos. A cena dela, porém, era tão remota que a acção era impossível. Olharam para o cabo com admiração. Era tão novo para ter tido uma aventura daquelas!

 

- Quem me dera - disse Danny, ameaçador - que a gente estivesse agora em Torréon. Pilon fazia um plano. É realmente pena que a gente não possa lá ir.

 

Big Joe tinha-se mantido acordado, prestando assim tributo à fascinação da história do cabo. Aproximou-se da caixa de maçãs e espreitou.

 

- Hás-de ser general - disse. E depois: - Olhem! O bebé está a mexer-se de uma maneira esquisita.

 

Os amigos rodearam a caixa. O espasmo já tinha começado. Os pèzitos bateram no fundo da caixa e depois levantaram-se. As mãozinhas, enclavinhadas, agarravam, impotentes, aqui e ali. O bebé agitava-se violentamente e tremia.

 

- Um médico! - gritou Danny. - É preciso um médico, Mas ele, e todos, sabiam que nada havia a fazer. A morte que se aproxima usa uma capa que a ninguém engana. Enquanto observavam, o bebé inteiriçou-se e a luta cessou. A boca ficou muito aberta. Estava morto. Bondoso, Danny cobriu a caixa de maçãs com um pedaço de cobertor. O cabo, muito direito, olhava fixamente em frente, tão chocado que não podia falar nem pensar.

 

Jesus Maria pôs-lhe a mão no ombro e levou-o para uma cadeira.

 

- És novo - disse. - Hás-de ter mais bebés. O cabo lamentou-se.

 

- Está morto. Nunca será general; nunca terá uma espada e um cinturão.

 

Havia lágrimas nos olhos dos amigos. No canto, os cães ganiam tristemente. O Pirata escondeu a enorme cabeça no pêlo do Senor Alec Thompson.

 

Num tom suave, quase uma bênção, Pilon disse:

 

- Agora, tu próprio tens de matar o capitão. Respeitamos o teu nobre plano de vingança; no entanto, esse plano já não pode ser realizado; tens de ser tu a levar a cabo a tua própria vingança; nós ajudar-te-emos, se pudermos.

 

O cabo encarou Pilon com uma expressão apática.

 

- Vingança? - perguntou. - Matar o capitão? É o que quer dizer?

 

- Era fácil de ver qual era o teu plano - retorquiu Pilon.

- O bebé crescia e seria general; a certa altura encontrava-se com o capitão e matava-o lentamente. Era um bom plano. Uma longa espera e depois o golpe. Um tal plano torna-te credor do nosso respeito.

 

O cabo olhava perplexo para Pilon.

 

- Que é que está a dizer? - perguntou. - Eu não tenho nada a ver com o capitão. Um capitão é um capitão.

 

Os amigos chegaram-se para a frente. Pilon exclamou:

 

- Então que plano vinha a ser esse de fazer do bebé general? Que vinha a ser isso?

 

O cabo ficou um bocado embaraçado.

 

- O pai tem o dever de querer o bem para o seu filho. Eu queria que o Manuel tivesse mais coisas boas do que aquelas que eu tive.

 

- Só isso? - inquiriu Danny.

 

-- Bem - respondeu o cabo -, a minha mulher era muito bonita, mas não era nenhuma puta. Era uma boa mulher e o capitán tirou-ma. O capitão tinha umas dragonas pequenas e um cinturão pequeno e a espada era só da cor da prata. Agora, vejam - continuou ele, estendendo as mãos -: se o capitão com dragonas pequenas e um cinturão pequeno pôde tirar-me a mulher, o que é que um general com um cinturão grande e uma espada de ouro não podia tirar.

 

Fez-se um grande silêncio, enquanto Danny, Pilon, Pablo, Jesus Maria, o Pirata e Big Joe Portagee digeriam o raciocínio. Depois de o terem digerido, aguardaram que Danny falasse.

 

- É uma pena - disse por fim Danny - que tão poucos pais se preocupem com o bem-estar dos filhos. Agora lamentamos mais do que nunca que o bebé tenha morrido, pois, com um pai assim, que feliz vida não seria a dele.

 

Todos os amigos, acenando solenemente a cabeça, concordaram.

 

- E agora que é que vais fazer? - perguntou Jesus Maria, o descobridor.

- Volto para o México - respondeu o cabo. - No fundo, sou um soldado. Pode ser que, se eu continuar a pôr óleo na espingarda, chegue um dia a oficial. Quem sabe?

 

Os seis amigos olharam-no com admiração. Estavam orgulhosos de terem conhecido um homem assim.

 

Como, nas mais adversas circunstâncias, o amor surgiu em Big Joe Portagee

 

PARA Big Joe Portagee, sentir amor significava agir. Esta é a história de um dos seus casos sentimentais.

Tinha estad a chover em Monterey; todo o dia, dos altos pinheiros a chuva não cessara de gotejar. Os paisans de Tortilla Flat não saíam de casa, mas de todas as chaminés elevava-se uma coluna de fumo azul da madeira de pinheiro a ser queimada, de modo que o ar cheirava a lavado e estava perfumado e fresco.

 

Quando, às cinco da tarde, a chuva parou por alguns momentos, Big Joe Portagee, que tinha passado quase todo o dia na praia, debaixo de um bote, saiu e pôs-se a caminho da casa de Danny. Estava com frio e cheio de fome.

 

Na altura em que chegava precisamente à orla de Tortilla Flat, um aguaceiro desabou-lhe em cima. Big Joe ficou completamente encharcado. A fim de fugir da chuva, correu para a casa mais próxima, que era aquela onde morava a Tia Ignacia, uma viúva de cerca de quarenta e cinco anos, cuja longa viuvez conhecera algum êxito. A Tia Ignacia em geral era taciturna e rude, pois nas veias corria-lhe mais sangue índio do que é considerado decente na Tortilla Flat.

 

Quando Big Joe entrou, tinha ela acabado de abrir um garrafão de vinho tinto e estava a preparar-se para encher um copo por causa do estômago. A sua tentativa de empurrar o garrafão para debaixo de uma cadeira foi infrutífera. Big Joe estava já à entrada da porta escorrendo água para cima do soalho.

 

- Entra e seca-te - disse a Tia Ignacia.

 

Big Joe, olhando para o garrafão como um terrier observa um percevejo, entrou. A chuva estrondeava no telhado. A Tia Ignacia atiçou o lume no seu fogão hermético.

 

- Estás interessado num copo de vinho?

 

- Estou.

 

Ainda o primeiro copo de vinho não estava acabado e já os olhos de Big Joe estavam de novo presos ao garrafão. Bebeu três copos antes de proferir palavra e antes de a voracidade lhe abandonar o olhar.

 

A Tia Ignacia considerara perdido o seu novo garrafão de vinho. Bebeu também, pois somente assim conseguiria utilizar um pouco de vinho em seu proveito. Big Joe só descontraiu e começou a saborear o vinho quando teve na mão o quarto copo.

 

- Este vinho não é do Torrelli - disse.

 

- Pois não; uma amiga minha, uma senhora italiani, é que mo arranja.

 

Vazou novo copo.

 

Começou a escurecer. A Tia Ignacia acendeu o candeeiro de querosene e atirou algumas achas para o lume. «já que o vinho tem de ir, que vá», disse de si para si. Aprovadores, os seus olhos fixaram-se no enorme arcaboiço de Big Joe Portagee. O peito afogueou-se-lhe um pouco.

 

- Tens andado a trabalhar debaixo de chuva, meu pobre homem Anda, tira lá o casaco que é para ele secar.

 

Big Joe raramente mentia. O seu cérebro não trabalhava com a rapidez necessária para tal.

 

- ’tive a dormir na praia debaixo de um bote.

 

- Mas estás todo encharcado.

 

Observou-o à procura de alguma reacção à sua gentileza, mas o rosto de Big Joe nada revelou a não ser a satisfação que sentia por estar abrigado da chuva e a beber vinho. Estendeu o copo para ela o encher de novo. Como não metera nada no estômago durante todo o dia, o vinho estava a fazer nele um efeito profundo.

 

A Tia Ignacia fez de novo face ao problema.

 

- Não é conveniente estares aí sentado com o casaco molhado. Apanhas uma constipação. Anda, deixa-me ajudar-te a despi-lo.

 

Big Joe anichou-se confortàvelmente na cadeira.

 

- Estou bem assim - disse, teimoso. A Tia Ignacia vazou outro copo para si. O fogo, estralejando, deu uma sensação de conforto que contrastava com o tamborilar da água no telhado.

 

Big Joe não fez a mínima diligência para se mostrar amável, galanteador eu mesmo para reconhecer a presença da sua anfitriã. Bebia o vinho em grandes tragos, sorria estupidamente para o fogão e balouçava-se na cadeira.

 

A cólera e o desespero cresceram na Tia Ignacia. «Olhem para este porco», disse de si para si. «Olhem que animal imundo me apareceu. Seria melhor para mim ter abrigado uma vaca da chuva. Outro homem qualquer teria para mim, pelo menos, uma palavra amável.»

 

Big Joe estendeu de novo o copo para o encherem.

 

Desta vez a Tia Ignacia bateu-se heroicamente.

 

-Numa casinha assim aconchegadinha há felicidade em noites como esta; quando a chuva cai e no fogão arde um belo lume, as pessoas sentem-se muito amigas umas das outras. Não achas?

 

- Acho.

 

- Talvez a luz esteja demasiado forte para os teus olhos

- arriscou ela. - Queres que a apague?

 

- Não me estorva - respondeu Big Joe -, mas se quiser poupar petróleo, apague.

 

A Tia Ignacia soprou a chaminé do candeeiro e o quarto mergulhou na escuridão. Depois, voltou a sentar-se e esperou que em Big Joe despertasse a galanteria. Aos seus ouvidos chegava o ruído do suave balanceio da cadeira de Joe. Nas esquinas brilhantes dos móveis incidiam umas réstias de luz que passavam através das fendas do fogão. O calor do fogo tornava o quarto quase luminoso. A Tia Ignacia ouviu a cadeira de Big Joe parar de balouçar e apressou-se para o repelir. Nada aconteceu.

 

- Pensar - disse ela - que podias estar lá fora, com um tempo destes, a tremer de frio nalgum barracão ou deitado na areia gelada debaixo de um bote. Mas não; estás aqui, sentado numa boa cadeira, a beber bom vinho e na companhia de uma senhora que te quer bem.

 

De Big Joe não veio qualquer resposta. A Tia Ignacia não o via nem ouvia. Bebeu o resto do vinho e atirou com a virtude por ares e ventos.

 

- A minha amiga Cornelia Ruiz contou-me que alguns dos seus melhores amigos a visitaram numa altura em que estava a chover e fazia muito frio. Ela tratou-os bem e eles foram muito amáveis com ela.

 

Da direcção de Big Joe veio o som de um pequeno estrondo. A Tia Ignacia calculou que ele tivesse deixado cair o copo, mas nenhum movimento se seguiu ao estrondo. «Talvez esteja doente», pensou. «Talvez tenha desmaiado.»

 

Levantou-se, acendeu um fósforo e levou-o à torcida. Depois voltou-se para o seu hóspede.

 

A volumosa massa de Big Joe Portagee estava mergulhada em profundo sono. A cabeça atirada para trás, os pés lançados para a frente, a boca escancarada. Enquanto a Tia Ignacia, confundida e chocada, contemplava a cena, um tremendo ronco saiu da boca de Big Joe. Era-lhe impossível, pura e simplesmente, estar ao calor e confortàvelmente instalado, sem adormecer.

 

Passou-se um momento antes que a Tia Ignacia conseguisse pôr em ordem todas as emoções que se lhe amontoavam no espírito. Nas suas veias corria uma boa dose de sangue índio. Não gritou. Não; embora tremendo de raiva, dirigiu-se ao cesto da lenha, tirou uma acha que lhe pareceu conveniente, tomou-lhe o peso, tornou a pô-la no cesto e escolheu outra. Depois, voltou-se lentamente para Big Joe Portagee. A primeira pancada apanhou-o no ombro e atirou-o da cadeira abaixo.

 

- Porco - gritou a Tia Ignacia -, porco sujo! Vai chafurdar para a lama!

 

Joe rolou pelo chão. A pancada seguinte fez-lhe um recorte franjado no fundo das calças. Big Joe despertava agora rapidamente.

 

- Hum? - disse. - Que é que se passa? Que é que está a fazer?

 

--Já te mostro! - gritou ela.

 

Abriu a porta para trás e voltou a correr para ele. Big Joe levantou-se cambaleando sob as pancadas. O pau martelava-lhe as costas, os ombros, a cabeça. Saiu a correr pela porta fora, protegendo a cabeça com as mãos.

 

- Não - implorou. - Não faça isso. Mas que é que se passa?

 

Como uma vespa, a fúria perseguiu-o pelo carreiro do jardim até à rua cheia de lama. A cólera dela era terrível. Sem deixar de lhe bater seguiu-o pela rua fora.

 

- Eh! - exclamou Big Joe. - Chega.

 

Agarrou-a e segurou-a enquanto ela agitava violentamente os braços, forcejando por se libertar a fim de lhe continuar a bater.

 

- Porco sujo - gritou -, vaca!

 

Não podendo largá-la sem continuar a ser espancado, Big Joe apertou-a contra si; e, estando assim, o amor surgiu nele. Cantou-lhe na cabeça, percorreu-lhe o corpo rugindo como as águas de uma grande inundação, sacudiu-o como uma tempestade tropical sacode um palmar. Apertou-a bem contra si por um momento, até a fúria dela abrandar.

 

À noite, em Monterey, um polícia patrulha as ruas de mota para impedir que as coisas boas degenerem em más. Desta vez era Jake Lake que estava de ronda; a sua capa impermeável tinha um brilho baço semelhante ao do basalto. Jake estava aborrecido e desconsolado. Não era muito mau fazer serviço nas ruas pavimentadas, mas parte do seu itinerário estava situado nos caminhos lamacentos de Tortilla Flat e, aí, a lama amarela salpicava tudo. O pequeno farolim da mota incidia aqui e ali. O motor tossia com esforço.

 

De repente, Jake Lake gritou, espantado, e parou a mota.

 

- Eh, lá! Que diabo vem a ser isso aí? Big Joe voltou o pescoço.

 

- Oh, és tu, Jake? Ouve, já que de qualquer modo vais meter a gente na prisão, não podes aguentar um minuto?

 

O polícia fez a mota dar a volta.

 

- Saiam mas é da rua. Ainda vem alguém e vocês ficam atropelados.

 

O motor roncou na rua enlameada e o bruxuleio do pequeno farolim desapareceu por detrás da esquina de um prédio. A chuva tamborilava de mansinho por entre as árvores de Tortilla Flat.

 

Como os amigos de Danny contribuíram para que o Pirata cumprisse uma promessa, e como, para premiar o seu mérito, os cães do Pirata tiveram uma visão sagrada

 

ToDAS as tardes, o Pirata empurrava o carrinho de mão vazio, - pela colina acima, e metia-o no pátio de Danny. Encostava-o à vedação e cobria-o com um saco; em seguida, enterrava o machado, pois, como toda a gente sabe, o aço metido na terra torna-se muito mais rijo. Só então entrava em casa. De um saco que trazia atado ao pescoço, tirava a moeda de vinte e cinco cêntimos que ganhara nesse dia e entregava-a a Danny. Depois, Danny, o Pirata e qualquer outro dos amigos que por acaso estivesse em casa, entravam solenemente no quarto de dormir passando por cima da roupa da cama espalhada em desordem pelo chão Na presença dos paisanos, Danny metia a mão debaixo da almofada, tirava o saco de lona e depositava aí a nova moeda. Este hábito durava há bastante tempo.

 

O saco do dinheiro tornara-se o centro simbólico da amizade, o ponto de confiança à volta do qual girava a fraternidade. Os amigos estavam orgulhosos do dinheiro, orgulhosos de nunca lhe terem mexido. Em redor da guarda que montavam ao dinheiro do Pirata havia-se erguido uma estrutura formada pelo respeito próprio e por muito pouca complacência. É uma bela coisa um homem saber que confiam nele. No espírito dos amigos este dinheiro há muito deixara de estar em circulação. É verdade que, durante um certo tempo, os amigos haviam sonhado com a quantidade de vinho que com ele podiam comprar, mas em breve deixaram de considerá-lo moeda corrente. O tesouro era destinado à compra de um castiçal de ouro e esse potencial objecto era propriedade de São Francisco de Assis. É muito pior defraudar um santo do que se permitir liberdades com a lei.

 

Uma tarde, trazidas por aquele rápido e preciso telégrafo que ninguém compreende, chegou a notícia de que uma vedeta da guarda costeira tinha ido contra as rochas perto de Carmel. Big Joe Portagee estava ausente, ocupado com assuntos muito seus, mas Danny, Pablo, Pilon, Jesus Maria, o Pirata e os cães puseram-se alegremente a caminho pela serra fora, pois se havia coisa de que gostassem, era de recolher na praia artigos utilizáveis. Achavam que isso era a coisa mais excitante do mundo. Embora chegassem um pouco tarde, recuperaram o tempo perdido. Percorreram a praia durante toda a noite; no fim, juntaram uma bela pilha de salvados: uma lata de manteiga de cinco libras, diversas caixas de artigos enlatados, um Bowditch encharcado, dois jaquetões, um barril para água de um salva-vidas, e uma metralhadora. Quando o dia rompeu, tinham à sua guarda uma pilha muito respeitável.

 

Pelo lote inteiro aceitaram cinco dólares dados por um dos espectadores, pois a hipótese de carregarem com todas aquelas pesadas coisas durante as seis milhas de íngreme caminho até Tortilla Flat era simplesmente impensável.

 

Como o Pirata nesse dia não tinha ido à lenha, recebeu de Danny os vinte e cinco centimes e pô-los no saco que trazia ao pescoço. Depois, fatigados, mas levando no peito a cálida esperança da felicidade, iniciaram o caminho de regresso a Monterey através da serra.

 

Passava do meio-dia quando chegaram a casa de Danny. Ritualmente, o Pirata abriu o saco e entregou a moeda a Danny. O grupo todo entrou no quarto. Danny meteu a mão debaixo da almofada... e retirou-a vazia. Arremessou a almofada para trás, levantou o colchão e depois voltou-se lentamente para os amigos; os olhos haviam-se-lhe tornado ferozes como os de um tigre. Fixou rosto após rosto e todos viram um horror e uma indignação impossível de dissimular.

 

- Bem... - disse. - Bem...

 

O Pirata começou a chorar.

 

- Não chores, amiguinho - disse Danny num tom que deixava entrever uma ameaça. - Hás-de ter o teu dinheiro outra vez.

 

Silenciosos, os paisanos saíram do quarto. Danny dirigiu-se ao pátio. Aí, pegou num pesado toro de pinheiro e volteou-o experimentalmente. Pablo entrou na cozinha e trouxe um velho abre-latas com uma lâmina em mau estado. Jesus Maria tirou debaixo da casa o cabo partido de uma picareta. O Pirata observava-os perplexo. Voltaram todos para casa e sentaram-se tranquilamente.

 

O Pirata estendeu o polegar para a colina. : - Ele ? - perguntou.

 

Danny acenou lentamente com a cabeça, confirmando.

 

O seu olhar era sombrio e ameaçador; o queixo projectava-se-lhe para a frente. Quando se sentou na cadeira, todo o seu corpo foi percorrido por um pequeno frémito como o de uma cascavel prestes a desferir o bote.

 

O Pirata dirigiu-se ao pátio e desenterrou o machado. Continuaram sentados durante muito tempo. Ninguém pronunciava uma palavra, mas uma onda de fúria gelada avassalava o quarto. Havia na casa uma sensação semelhante à que uma rocha experimentaria quando o rastilho está a arder na direcção da dinamite, A tarde declinava; o Sol escondeu-se por detrás da colina. Dir-se-ia que toda a Tortilla Flat estava mergulhada numa expectante acalmia.

 

Na rua ouviram-se os passos de Big Joe; os cacetes foram apertados com mais força. Joe Portagee aproximou-se vacilante do telheiro e entrou pela porta da frente. Trazia na mão um garrafão de vinho. O seu olhar passou de rosto para rosto com inquietação; os amigos, porém, continuaram sentados e não o encararam directamente.

 

- Viva - disse Big Joe.

 

- Viva - volveu Danny, ao mesmo tempo que se levantava e se espreguiçava sem olhar para Big Joe. Não caminhou direito a ele; tomou um ângulo como se fosse passá-lo. Quando se encontrou a seu lado, desferiu o golpe com a rapidez de uma cobra. O cacete acertou em cheio na nuca de Big Joe que tombou redondo no chão.

 

Pensativo, Danny tirou da algibeira uma fita de couro e, juntando os polegares de Big Joe, atou-lhos.

 

- Água - disse.

 

Pablo atirou um balde de água para a cara de Big Joe. Voltou-lhe a cabeça, puxou-lhe o pescoço como se faz aos frangos, abriu-lhe os olhos e encarou perplexo os amigos. Estes mantiveram-se em silêncio. Danny mediu cuidadosamente a distância como faz um jogador de golfe ao dirigir-se à bola. O cacete sbateu-se sobre o ombro de Big Joe; em seguida, fria e metodicamente, os amigos puseram mãos à obra. Jesus Maria encarregou-se das pernas, Danny dos ombros e do peito. Big Joe uivava de dor e rebolava-se no chão. Cobriram-lhe o corpo de pancada dos pés à cabeça. Cada golpe encontrava um espaço ainda não tocado e causava-lhe um vergão. Os gritos eram ensurdecedores. O Pirata, inerte, assistia à cena de machado na mão. Só pararam quando toda a parte da frente do corpo de Big Joe ficou numa ferida.

 

Pablo ajoelhou-se ao lado da cabeça de Big Joe segurando o abre-latas. Pilon tirou os sapatos ao Portagee e pegou de novo no cacete.

 

Então, Big Joe gritou de medo:

 

- Está enterrado lá fora, ao pé do portão da frente - berrou. - Pelo amor de Cristo, não me matem!

 

Danny e Pilon saíram e, passados alguns minutos, regressaram trazendo o saco de lona.

 

- Quantas é que tiraste? - inquiriu Danny numa voz despida de inflexão.

 

- Só quatro, juro. Só tirei quatro. Eu trabalho e ponho-as lá outra vez.

 

Danny baixou-se, pegou-lhe pelo ombro e atirou-o de borco. Em seguida, os amigos ocuparam-se das costas de Big Joe com a mesma implacável decisão. Os gritos tornaram-se mais fracos, mas o trabalho só cessou quando Big Joe desfaleceu de tanta pancada. Nessa altura, Pilon rasgou-lhe a camisa azul e pôs à mostra umas costas carnudas e esfoladas. Depois, com o abre-latas, fez na pele uma incisão em forma de cruz com tanta destreza que de cada linha correu um pouco de sangue. Pablo trouxe-lhe sal e ajudou-o a esfregá-lo nas partes laceradas. Por fim, Danny atirou um cobertor para cima de Big Joe.

 

- Acho que agora passará a ser honesto - disse Danny.

 

- Devíamos contar o dinheiro - observou Pilon. - Há muito tempo que não o contamos.

 

Abriram o garrafão que Big Joe trouxera e encheram as jarras, pois estavam cansados do trabalho e a emoção esgotara-se-lhes.

 

Depois, contaram as moedas em pilhas de dez e, excitados, voltaram a contá-las.

 

- Pirata - exclamou Danny -, já passam sete de um milhar! Já não precisas de mais. Chegou a altura de comprares o castiçal para São Francisco!

 

O dia fora demasiado movimentado para o Pirata. Retirou-se com os cães para o canto, pôs a cabeça em cima do Fluff e desatou a soluçar histèricamente. Os cães andavam à volta desassossegados, ora lambendo-lhe as orelhas, ora empurrando-lhe a cabeça com o nariz; Fluff, porém, sensível à honra de ter sido escolhido, mantinha-se muito quieto esfregando o nariz contra o espesso cabelo do pescoço do Pirata.

 

Danny voltou a pôr o dinheiro no saco e colocou este de novo debaixo da almofada.

 

Big Joe recobrou os sentidos e soltou um gemido, pois o sal estava a fazer-lhe efeito nas costas. Os paisanos não lhe prestaram atnção. Por fim, Jesus Maria, essa vítima do hunanitarismo, desatou os polegares de Big Joe e deu-lhe uma jarra de vinho.

 

- Até os inimigos de Nosso Salvador lhe deram algum consolo - disse, desculpando-se.

 

Esta acção fez cessar o castigo. Os amigos rodearam ternamente Big Joe. Colocaram-no na cama de Danny, lavaram-lhe o sal das feridas, puseram-lhe panos frios na cabeça e não deixaram que o vinho se lhe acabasse na jarra. Big Joe gemia todas as vezes que lhe tocavam. Provavelmente a sua conduta não fora afectada, mas, no entanto, teria sido seguro profetizar que nunca mais voltaria a roubar fosse o que fosse aos paisanos da casa de Danny.

 

A histeria do Pirata acabara. Bebia o vinho e o rosto brilhava-lhe de prazer ao ouvir os planos que Danny fazia a seu respeito.

 

- Se levarmos todo este dinheiro a um banco da cidade, pensarão que o roubámos de alguma máquina automática. Devemos é entregá-lo ao Padre Ramón e contar-lhe o que se passa. Depois, ele compra o castiçal de ouro, abençoa-o e o Pirata vai à igreja. Talvez no domingo o Padre Ramón diga alguma coisa a respeito dele. O Pirata deve lá estar para ouvir.

 

Pilon olhou com desagrado para as roupas sujas e rasgadas que o Pirata trazia.

 

- Amanhã - disse com severidade -, agarras nos cobres que sobejam e vais comprar roupa decente. Para andares por aí, as que tens podem servir, mas numa ocasião destas não podes ir à igreja com esse aspecto de rato de cano. Deixavas mal vistos os teus amigos.

 

O Pirata sorriu.

 

- Amanhã faço o que estás a dizer - prometeu.

 

Na manhã seguinte, fiel à sua promessa, foi a Monterey. Viu tudo muito bem antes de comprar e regateou os preços com uma astúcia que parecia desmentir o facto de que há mais de dois anos não comprava nada. Regressou triunfante a casa de Danny, trazendo um enorme lenço de seda púrpura e verde e um largo cinto profusamente salpicado de jóias de vidro colorido. Os seus amigos olharam para as compras com admiração.

 

- Mas que é que tu vais levar vestido? - perguntou Danny, desesperado. - Saem-te dois dedos dos sapatos no sítio onde fizeste um buraco para tirares os calos. Só tens um fato-macaco todo rasgado e não tens chapéu.

 

- Temos de lhe emprestar roupa - disse Jesus Maria. - Eu tenho um casaco e um colete. Pilon tem um bom chapéu que lhe ficou do pai. Tu, Danny, tens uma camisa e o Big Joe empresta as suas belas calças azuis.

 

- Mas assim a gente não pode ir - protestou Pilon.

 

- Também não é do nosso castiçal que se trata - replicou Jesus Maria. - O Padre Ramón provavelmente não nos vai dar qualquer elogio.

 

Nessa tarde escoltaram o tesouro até à casa do Padre Ramón. Este ouviu a história do cão doente e os seus olhos enterneceram-se.

 

- ... e depois, senhor prior - disse o Pirata-, o cãozinho tinha o nariz seco e os olhos faziam lembrar o vidro das garrafas que se tiram do mar e ele gemia porque tinha dores lá por dentro. E depois, senhor prior, prometi a São Francisco que lhe oferecia um castiçal comprado com o dinheiro junto durante mil dias. Ele é mesmo o meu padroeiro, pode crer, senhor prior. E depois deu-se o milagre! O cão deu ao rabo três vezes e começou logo a sentir-se bem. Foi São Francisco que fez o milagre, não foi, senhor prior?

 

O padre meneou a cabeça com gravidade.

 

- Foi - respondeu. - Foi um milagre do nosso bom São Francisco. Eu compro o castiçal para ti.

 

O Pirata ficou muito contente, pois não era coisa de somenos ver-se uma prece satisfeita por um milagre autêntico. Se a coisa começasse a espalhar-se, o Pirata passaria a gozar de maior consideração em Tortilla Flat. Os seus amigos olhavam-no já com outro respeito.

 

Não achavam que a sua inteligência tivesse aumentado, mas sabiam agora que a pobreza do seu espírito era compensada por todo o poder do Céu e toda a força dos santos.

 

Voltaram para casa de Danny seguidos pelos cães. O Pirata sentiu que fora banhado por um fluido dourado de beatitude. Rápidos arrepios e pequenos espasmos febris de prazer percorriam-lhe o corpo, uns após outros. Os paisanos estavam satisfeitos por lhe terem guardado o dinheiro, pois, assim, até eles partilhavam um pouco da santidade do acto. Pilon sentia-se aliviado por não haver roubado o dinheiro logo ao princípio. Que terrível coisa não teria podido acontecer se tivesse tirado umas moedas que pertenciam a um santo! Todos os amigos se mostravam dominados como se estivessem na igreja.

 

Dir-se-ia que os cinco dólares que os salvados tinham rendido, queimavam como fogo na algibeira de Danny; agora, porém, sabia que lhes haviam de fazer. Danny e Pilon foram ao mercado comprar quatro quilos de carne para bife, um saco de cebolas, pão e um grande cartucho de rebuçados. Pablo e Jesus Maria foram à loja do Torrelli buscar dois garrafões de vinho, do qual nem sequer uma gota beberam a caminho de casa.

 

Nessa noite, com o fogo a arder no fogão e duas velas acesas sobre a mesa, os amigos banquetearam-se até não poderem mais. A festa era em honra do Pirata. Este comportou-se com muita dignidade; embora devesse manter-se sério, sorria sem descanso. Não conseguia deixar de o fazer.

 

Depois de terem ingerido uma grande dose de comida, recostaram-se e puseram-se a beberricar o vinho das jarras. Chamavam ao Pirata «o nosso amiguinho».

 

Jesus Maria perguntou:

 

- Que é que tu sentiste quando aquilo se deu? Quando tu prometeste o castiçal e o cão começou a sentir-se bem, como é que tu ficaste? Viste alguma imagem sagrada?

 

O Pirata tentou recordar-se.

 

- Acho que não... Talvez visse uma pequena imagem... talvez visse São Francisco no ar, brilhante como o sol...

 

- Não te lembras? - inquiriu Pilon.

 

- Lembro-me... acho que me lembro... São Francisco olhou para mim... e sorriu como o bom santo que é. Então fiquei a saber que o milagre se tinha dado. São Francisco disse-me: «Sê bom para os cãezinhos, meu porcalhão.»

 

- Ele chamou-te porcalhão?

 

- Bem, eu era um porcalhão e ele não é santo para mentiras.

 

- Acho que não te lembras de nada disso - observou Pablo.

 

- Bem, talvez não. Eu acho que sim, no entanto.

 

O Pirata estava embriagado de felicidade devido à honra e à atenção que lhe prestavam.

 

- A minha avó viu a Nossa Senhora - disse Jesus Maria. - Estava doente, quase a morrer, e eu próprio ouvi-a gritar:

 

«Ai, estou a ver a Mãe de Deus. Ai, Nossa Senhora, cheia de graça.»

 

- Há gente a quem é concedido ver essas coisas - comentou Danny. - O meu pai não era lá um sujeito muito bom, mas algumas vezes viu santos e outras vezes viu coisas más. Dependia de como estava. Se estava bom via coisas boas, se estava mau via coisas más. Já mais alguma vez viste outras aparições, Pirata?

 

- Não - respondeu o Pirata. - Ficava com medo se visse mais.

 

Durante muito tempo a festa esteve decente. Os amigos sabiam que nessa noite não estavam sós. Através das paredes, das janelas e do tecto, sentiam os olhos dos santos fixados sobre eles.

 

- No domingo já cá estará o teu castiçal - disse Pilon.

- Nós não podemos ir porque tu vais usar as nossas roupas. Não digo que o Padre Ramón mencione o teu nome, mas é capaz de dizer alguma coisa acerca do castiçal. Tens de fazer o possível por não te esqueceres daquilo que ele diz, que é para nos contares.

 

Em seguida, acrescentou com severidade:

 

- Hoje, meu amiguinho, havia cães por toda a casa do Padre Ramón. Hoje a coisa admite-se, mas tens de ver se não os levas no domingo à igreja, pois não é próprio levar-se cães para um sítio daqueles. Deixa-os em casa.

 

O Pirata pareceu desapontado.

 

- Eles querem ir - lamentou-se. - Como é que posso deixá-los ficar? Onde é que eu os deixo?

 

Pablo estava chocado.

 

- Até aqui tens-te portado de uma maneira digna de elogio, meu pequeno Pirata. É agora no fim que queres cometer um sacrilégio?

 

- Não - respondeu o Pirata com humildade.

 

- Então deixa cá os cães que a gente toma conta deles. Seria um sacrilégio levá-los para a igreja.

 

Era curioso como nessa noite bebiam ponderadamente. Passaram três horas antes mesmo de principiarem a cantar cantigas obscenas. Só bastante tarde os seus pensamentos descambaram para as mulheres fáceis. E, quando começaram a sentir vontade de brigar, o sono que tinham quase os impediu de o fazer. Essa noite constituiu uma pedra branca das suas vidas.

 

Na manhã de domingo os preparativos foram extenuantes. Lavaram o Pirata e inspeccionaram-lhe os ouvidos e as narinas. Big Joe, embrulhado num cobertor, observou o Pirata vestir as suas calças azuis de sarja. Pilon trouxe o chapéu do pai. Convenceram o Pirata a não usar o cinto salpicado de jóias falsas por fora do casaco e mostraram-lhe que podia deixar este desabotoado, de modo a que as jóias brilhassem de vez em quando. Os sapatos é que constituíram o maior problema. Só os sapatos de Big Joe eram suficientemente grandes para o Pirata, mas ainda estavam em pior estado do que os dele. A dificuldade residia nos buracos por onde se viam os dedos, e que haviam sido feitos por causa dos calos. Pilon acabou por resolvê-la com a ajuda de um bocado de fuligem tirada de dentro do fogão. Bem esfregada na pele, a fuligem fazia com que fosse muito difícil ver-se os buracos dos sapatos.

 

Finalmente ficou pronto; o chapéu do pai de Pilon posto na cabeça num jeito amalandrado, a camisa de Danny, as calças de Big Joe, o enorme lenço à volta do pescoço e, de vez em quando, o cintilar das jóias do cinto. Deu uns passos para os amigos o verem. Estes contemplaram-no criticamente.

 

- Levanta os pés, Pirata.

 

- Não arrastes os calcanhares.

 

- Deixa de puxar pelo lenço.

 

- Quem te vir pensará que não estás habituado a vestir roupa boa.

 

Por fim, o Pirata voltou-se para os amigos.

 

- Se ao menos os cães pudessem ir comigo - queixou-se. Eu dizia-lhes para não entrarem na igreja.

 

Os paisanos, porém, não cederam.

 

- Não - disse Danny. - Eles podiam arranjar maneira de entrar. A gente toma conta deles.

 

- Eles não vão gostar - disse o Pirata, descorçoado. - São capazes de sentir a minha falta. - Voltou-se para os cães que estavam no canto. - Vocês têm de ficar aqui. É melhor para vocês não irem à igreja. Fiquem com os meus amigos até eu voltar.

 

Depois saiu sorrateiramente e fechou a porta atrás de si. Imediatamente se elevou dentro de casa um furioso clamor de latidos e uivos. Apenas a sua fé no discernimento dos amigos impediu o Pirata de ceder.

 

Ao descer a rua sentiu-se nu e desprotegido sem os cães. Era como se um dos seus sentidos tivesse desaparecido. Teve medo de andar sozinho. Qualquer pessoa o podia atacar. Continuou, porém, a caminhar corajosamente através da cidade até chegar à Igreja de São Carlos, nos arrabaldes.

 

O ofício divino ainda não tinha começado, mas as portas de vaivém já estavam abertas. O Pirata molhou a ponta dos dedos na pia de mármore com água benta, persignou-se, ajoelhou defronte da Virgem, entrou na igreja, fez a sua obrigação junto do altar e sentou-se. A comprida igreja era bastante escura, mas o altar-mor refulgia com o brilho das velas. Em frente das imagens laterais ardiam círios votivos. Doce e antigo incenso enchia o templo de perfume.

 

Durante uns momentos, o Pirata ficou sentado a olhar para o altar, mas este era demasiado remoto, demasiado sagrado para servir de matéria aos seus pensamentos, demasiado inacessível para um pobre homem como ele. Os seus olhos procuraram qualquer coisa de mais quente, qualquer coisa que não lhe causasse medo. Em frente da imagem de São Francisco estava um belo castiçal de ouro no qual ardia uma comprida vela.

 

O Pirata suspirou, emocionado. E, embora as pessoas entrassem, as portas estivessem fechadas, a missa começasse e já tivesse cumprido o ritual, o Pirata não podia tirar os olhos do santo e do castiçal. Como era belo! Nem queria acreditar que fora ele, o Pirata, quem o tinha dado. Perscrutou o rosto do santo para ver se o castiçal lhe agradava. Tinha a certeza de que, de vez em quando, a imagem exibia o sorriso intermitente de quem pensa em coisas agradáveis. Por fim, o sermão começou.

 

- Há uma nova beleza na nossa igreja - disse o Padre Ramón. - Um dos filhos da igreja ofereceu um castiçal de ouro em honra de São Francisco.

 

Contou a história do cão e fê-lo de propósito bastante mal. Os seus olhos examinaram o rosto dos paroquianos até ver neles esboçarem-se sorrisos.

 

- Não é coisa que deva ser considerada divertida - disse. - São Francisco gostava tanto dos animais que até lhes fez sermões.

 

Em seguida, o Padre Ramón contou a história do lobo feroz de Gubbio, a história das rolas bravas e das irmãs cotovias. Maravilhado, o Pirata escutava-o sem tirar os olhos dele.

 

De repente, ouviu-se arranhar e latir furiosamente. As portas abriram-se com estrépito e pela igreja dentro irromperam Fluff, Rudolph, Enrique, Pajarito e o Senor Alec Thompson. Ergueram o nariz, precipitaram-se à porfia na direcção do Pirata e saltaram-lhe para cima, ganindo e soltando pequenos gritos. O Pirata ficou submerso debaixo deles.

 

O padre interrompeu a prédica e olhou com severidade para o burburinho. O Pirata voltou-se para trás, impotente e angustiado. Os seus esforços haviam sido baldados; o sacrilégio fora cometido.

 

Então o Padre Ramón riu-se e a congregação riu-se, também.

 

- Leva os cães lá para fora - disse. - Eles que esperem até nós acabarmos.

 

O Pirata, embaraçado, cheio de gestos de desculpa, pôs os cães na rua.

 

- Procederam mal - disse-lhes -, estou zangado com vocês; estou envergonhado por vossa causa.

 

Os cães deitaram-se no chão, ganindo lamentosamente.

 

- Sei muito bem o que foi que vocês fizeram. Morderam os meus amigos, partiram o vidro da janela e desataram a correr para a igreja. Agora ficam aqui à espera, ouviram, seus malvados? Vocês cometeram um sacrilégio.

 

Deixou-os, pesarosos e arrependidos, e entrou de novo na igreja. As pessoas, que continuavam a rir, voltaram-se e seguiram-no com o olhar até ele se sentar, todo encolhido, a tentar sumir-se no lugar.

 

- Não estejas envergonhado - disse o Padre Ramón. - Não é pecado nenhum os cães gostarem de ti, nem é nenhum pecado tu gostares deles. Repara como São Francisco gostava dos animais.

 

Em seguida contou mais histórias do bom santo. O embaraço abandonou o Pirata. Os lábios tremeram-lhe. «Ah», disse de si para si, «se os cães pudessem ouvir isto, que contentes não ficavam!»

 

Já o sermão tinha acabado e ainda lhe soavam nos ouvidos as histórias que escutara. Seguia automaticamente o ritual, mas não ouvia o serviço divino. Assim que este terminou, precipitou-se para a porta. Foi o primeiro a sair da igreja. Os cães, ainda tristes e desconfiados, apinharam-se em redor dele.

 

- Vamos - exclamou. - Tenho umas coisas para vos contar.

 

Desatou a subir a colina numa corrida miúda na direcção da mata, seguido pelos cães que corriam e pulavam à sua volta. Nem quando, por fim, se encontrou protegido pelo bosque, se deteve; continuou até ir dar a uma comprida clareira entre os pinheiros, cujas copas se encontravam formando abóbada e cujos troncos quase se juntavam. Durante um momento olhou em redor, irresoluto.

 

- Quero que as coisas se passem da mesma maneira -• anunciou. - Se vocês pudessem lá ter estado e ouvido o que o senhor prior disse...-Colocou uma grande pedra em cima de uma outra. - Aqui está a imagem. - Espetou uma varazita no chão. - Isto aqui é o castiçal com uma vela.

 

Na clareira havia uma luz velada e o ar estava impregnado de um doce cheiro a resina. A brisa fazia as árvores murmurar suavemente. Autoritário, o Pirata disse:

 

- Agora, senta-te aqui, Enrique. Tu, Rudolph, ali. Aqui, quero o Fluff porque é o mais pequeno. Pajarito, meu grande tonto, senta-te aí e não faças disparates. O Senor Alec Thompson não pode deitar-se.

 

Dispô-los em duas fileiras, dois na fila da frente e três na de trás.

 

- Quero contar-vos como as coisas se passaram - disse. Perdoaram-vos a vossa entrada à força na igreja. O Padre Ramón disse que desta vez não foi sacrilégio. Bom. Agora atenção, tenho coisas a contar.

 

Os cães, sentados nos seus lugares, observavam-no com gravidade. O Senor Alec Thompson deu ao rabo, mas o Pirata, dirigindo-se-lhe, disse:

 

- Aqui não é lugar para essas coisas. São Francisco não se importaria, mas eu não gosto que dês ao rabo enquanto estás a ouvir. Agora vou falar-vos a respeito de São Francisco.

 

Nesse dia a memória do Pirata estava inspirada. O Sol, achando intervalos entre a folhagem, lançava reluzentes desenhos no tapete de caruma. Os cães, pacientemente sentados, não tiravam os olhos dos lábios do dono. O Pirata contou-lhes tudo quanto o padre dissera, todas as histórias, todas as observações, raramente deslocando uma palavra do sítio que lhe pertencia.

 

Depois de acabar, fitou solenemente os cães.

 

- São Francisco fez isto tudo que eu vos contei.

 

As árvores cessaram de murmurar. O bosque ficou encantado e em silêncio.

 

De súbito, ouviu-se um débil ruído por trás do Pirata.

 

Todos os cães ergueram os olhos. O Pirata teve medo de voltar a cabeça. Decorreu um longo momento.

 

Depois o momento passou. Os cães baixaram os olhos. A vida voltou aos topos das árvores que se agitaram de novo; os desenhos feitos pelo sol buliram intrigantemente.

 

O Pirata ficou tão feliz que o coração lhe doeu.

 

- Vocês viram-no? - exclamou. - Era São Francisco? Oh, que cães bons vocês devem ser para verem uma aparição!

 

Ao ouvir estas palavras, os cães puseram-se em pé de um pulo, abriram a boca e bateram com o rabo no chão.

 

Como os amigos de Danny se lançaram em auxílio de uma senhora aflita

 

A Sr.a Teresina Cortez vivia com os seus oito filhos e a sua velha mãe numa alegre vivenda situada na beira da profunda ravina que define a fronteira sul da Tortilla Flat. Teresina, que tinha cerca de trinta anos, era o que se chama uma bela mulher madura. A mãe, essa velha chupada e sem dentes, relíquia de uma geração de outros tempos, tinha quase cinquenta. Desde a última vez que alguém se lembrara que seu nome era Angélica, muito tempo já passara.

 

Durante a semana o trabalho não abandonava esta vieja, pois tinha por obrigação dar de comer, castigar, intrujar, vestir e pôr na cama sete das oito crianças. Teresina ocupava-se da oitava e fazia preparativos para a nona.

 

Aos domingos, contudo, a vieja, vestida de cetim negro ainda mais velho do que ela e levando na cabeça um horrendo e resistente chapéu de palha preta no qual estavam presas duas cerejas de gesso esmaltado, atirava com o dever por ares e ventos e dirigia-se resolutamente à igreja, onde se sentava tão imóvel como os santos nos nichos. Uma vez por mês, de tarde, confessava-se. Seria interessante saber-se que pecados confessava e onde é que ia arranjar tempo para os cometer, uma vez que em casa de Teresina não faltava quem gatinhasse, andasse de rastos, fosse contra coisas, berrasse, matasse gatos e caísse de árvores abaixo; e podia ter-se a certeza de que cada um destes objectos dos seus cuidados estava esfomeado de duas em duas horas.

 

É, pois, de admirar que a alma da vieja andasse alheada e os seus nervos fossem de aço? Outra qualquer ter-lhe-ia saído do corpo aos guinchos como pequenos foguetes.

 

No que se refere ao espírito, o de Teresina era um tanto ou quanto parado. O seu corpo era uma dessas perfeitas retortas para fabricar crianças. O seu primeiro bebé, concebido aos catorze anos, fora um choque para ela; um choque tão grande, que teve a criança de noite, num baile, e a embrulhou num jornal, deixando-a de maneira que o guarda da noite a encontrasse. Isto é um segredo. Mesmo presentemente, Teresina podia meter-se em trabalhos se isso fosse conhecido.

 

Tinha ela dezasseis anos quando o Sr. Alfredo Cortez a desposou e lhe deu o nome e os dois alicerces da sua família, Alfredo e Ernie. O Sr. Cortez deu-lhe o nome de boa vontade. De qualquer modo, apenas temporariamente estava a usá-lo. O seu nome, antes de vir para Monterey e depois de se ir embora, era Guggliemo. Foi-se embora depois de Ernie nascer. Talvez previsse que, estando casado com Teresina, a vida com ela não seria sossegada.

 

A regularidade com que se tornava mãe espantava sempre Teresina. Vezes havia em que ela não era capaz de se lembrar quem seria o pai da criança que não tardaria a nascer; e, de vez em quando, quase ficava convencida de que nem lhe era preciso companheiro. Até concebeu numa altura em que esteve de quarentena por ser portadora de bacilos de difteria. Contudo, quando certos problemas se tornavam demasiado complicados para que a sua inteligência conseguisse resolvê-los, punha-os, quase sempre, nas mãos da Mãe de Jesus que, sabia-o, tinha mais conhecimentos de tais assuntos, mais interesse e mais tempo do que ela.

 

Teresina, que se confessava frequentemente, era o desespero do Padre Ramón. De facto, este tinha observado que, enquanto os joelhos dela, as rnãos e os lábios se penitenciavam de algum pecado antigo, os seus olhos modestos e provocantes, cintilando sob as pestanas baixadas, assentavam os fundamentos do próximo.

 

Durante o tempo em que tenho estado a narrar isto, nasceu o nono filho de Teresina e ela ficou temporariamente desobrigada. A vieja recebeu un novo encargo; Alfredo foi, pela terceira vez, para o primeiro grau, Ernis, pela segunda, e Panchito começou a andar na escola.

 

Por esta altura, começou a ser moda na Califórnia as enfermeiras escolares visitarem as aulas e catequizarem as crianças acerca de pormenores íntimos da sua vida familiar. No primeiro grau, foi Alfredo o chamado para ir ao gabinete do director, pois acharam que ele andava magro.

 

A enfermeira, pessoa experiente em psicologia escolar, disse com doçura:

 

- Alfredinho, lá em casa comes comida que te chegue?

 

- Como - respondeu Alfredo.

 

- Bem, e então que é que tu tomas ao pequeno-almoço?

 

- Bolo de milho e feijões - respondeu Alfredo.

 

A enfermeira dirigiu ao director um entristecido aceno de cabeça.

 

- E o que é que comes quando vais almoçar a casa?

 

- Eu não vou a casa.

 

- Então ao meio-dia tu não comes?

 

- Pois como. Trago uns feijões metidos num bolo de milho.

 

Desta vez o alarme chegou a declarar-se nos olhos da enfermeira, mas dominou-se.

 

- Ao jantar que é que tu tens para comer?

 

- Bolo de milho e feijões. A psicologia abandonou-a.

 

- Queres tu dizer-me que andas aqui sem comer mais nada senão bolos de milho e feijões?

 

Alfredo ficou atónito.

 

- Jesus Cristo! Que é que a senhora quer mais?

 

Na altura devida, o médico escolar ouviu o horrorizado relatório da enfermeira. Um dia, dirigiu-se a casa de Teresina a fim de se inteirar da situação. Enquanto atravessava o pátio, saía da garganta de miúdos que andavam a gatinhar, a arrastar-se pelo chão e a correr contra coisas, uma terrível sinfonia. A porta da cozinha estava aberta. O médico parou aí e viu com os seus próprios olhos a vieja aproximar-se do fogão, mergulhar uma grande concha num tacho e derramar feijões cozidos pelo chão fora. Imediatamente o berreiro cessou. Os miúdos deixaram de gatinhar, de se arrastar pelo chão e de correr contra coisas, e puseram mãos à obra, deslocando-se de feijão para feijão e só parando para os comer. A vieja voltou para a cadeira a fim de gozar uns momentos de paz. Com uma decisão de pequenos insectos, as crianças metiam-se debaixo da cama, das cadeiras, do fogão. O médico ficou lá duas horas, pois o seu interesse científico fora espicaçado. Foi-se embora, abanando a cabeça.

 

Enquanto apresentava o relatório abanava a cabeça com incredulidade.

 

- Submeti-os a todos os testes que conheço - disse -: dentes, pele, sangue, ossos, olhos, coordenação. Meus senhores, aquelas crianças sustentam-se desde o berço daquilo que constitui um veneno lento. Pois bem, meus senhores, nunca na minha vida vi crianças mais saudáveis! - A emoção dominou-o.- Que animaizinhos!--exclamou. - Nunca na minha vida vi dentes assim. Nunca vi dentes assim!

 

Pode constituir motivo de espanto a maneira como Teresina arranjava comida para a família. Depois da debulha, vê-se nos lugares onde os debulhadores pararam, grandes montes de alimpadura de feijão. Se se estender um cobertor na terra e, * numa tarde de vento, se atirar a alimpadura ao ar por cima do cobertor, compreender-se-á que os debulhadores não são infalíveis, pois numa tarde de trabalho é possível arranjar-se dez quilos ou mais de feijão.

 

No Outono, a vieja e as crianças que já sabiam andar, iam para os campos e joeiravam a alimpadura. Os proprietários não se importavam, pois ela não estragava nada. Era mau ano aquele em que a vie já não arranjasse cento e cinquenta ou duzentos quilos de feijão.

 

Quando se tem em casa duzentos quilos de feijão não se tem medo de morrer de fome. Outras coisas, acepipes tais como açúcar, tomates, pimentos, café, peixe ou carne, podem algumas vezes aparecer miraculosamente por intercessão da Virgem, outras vezes por meio do esforço diligente ou da esperteza; mas, de uma maneira ou de outra, os feijões lá estão e uma pessoa está salva. Os feijões são um telhado para o estômago e uma quente capa contra o frio da penúria.

 

Só uma coisa podia ameaçar a vida e a felicidade da Sr.a Teresina Cortez: uma má colheita de feijões.

 

Quando os feijões estão maduros, tiram-se da terra os pequenos feijoeiros e juntam-se em pilhas a fim de ficarem bem secos para a debulha. Depois, é altura de rezar para que a chuva não venha. Quando as pequenas pilhas de feijões estão dispostas em fileiras amarelas que se recortam contra os campos escuros, vêem-se os lavradores observando o céu e franzindo o sobrolho com inquietação para toda a nuvem que sobre eles passe, porque se chover, tem-se de virar as pilhas dos feijões para secarem de novo. E se chover mais antes de eles estarem secos, têm outra vez de ser voltados. Se cair novo aguaceiro, apodrecem, enchem-se de míldio e a colheita perde-se.

 

A vieja tinha por hábito acender uma vela à Virgem durante a secagem dos feijões.

 

No ano de que falo, os feijões estavam empilhados e a vela fora acesa. Em casa de Teresina os sacos de juta estavam preparados.

 

As debulhadoras estavam oleadas e limpas.

 

Um aguaceiro caiu.

 

Para os campos houve uma corrida precipitada. Mais mãos apressaram-se a voltar os montículos de feijões encharcados. A vieja acendeu outra vela.

 

Caiu mais chuva.

 

Depois a vieja comprou duas velas com uma pequena moeda de ouro que há muitos anos guardava. De novo, nos campos, os feijões foram voltados para apanharem sol; em seguida voltou a cair outra chuvada fria. Não se colheu nem um só feijão em todo o concelho de Monterey. Os montículos encharcados foram enterrados pelos arados.

 

Então a miséria entrou em casa da Sr.a Teresina Cortez. O sustentáculo da vida foi quebrado; o pequeno telhado destruído. Desaparecera aquela eterna verdade: os feijões. De noite as crianças choravam aterrorizadas com a fome fatal que se aproximava. Ninguém lhes dissera nada, mas elas sabiam. A vieja continuava a ir à igreja como sempre, mas quando olhava para a Virgem desenhava-se-lhe nos lábios um sorriso de escárnio. «Ficaste com as minhas velas», dizia de si para si. «Sim, sim, lá gulosa por velas sois vós. Estouvada.» E, repentinamente, transferiu a sua fé para Santa Clara. Contou a Santa Clara a injustiça que lhe havia sido feita. Permitiu-se um pensamento um tanto malicioso a respeito da concepção da Virgem. «Pois é, muitas vezes a Teresina também não é capaz de se lembrar», disse maldosamente a Santa Clara.

 

Tem-se afirmado que Jesus Maria Corcoran era um homem de grande coração. Tinha também aquele dom, que alguns filantropos possuem, de ser inevitavelmente arrastado para aquelas esferas onde o seu instinto era necessário. Quantas vezes não havia ele encontrado jovens senhoras que necessitavam de conforto. Era irresistivelmente atraído para qualquer dor ou aflição. Há muitos meses que não ia a casa de Teresina. Se não há nenhuma atracção mística entre a dor e o humanitarismo, como se explica que a tenha visitado precisamente no dia em que o último feijão do ano decorrido era posto na panela?

Sentado na cozinha, suavemente sacudindo as crianças de cima das pernas, olhava para Teresina com uma expressão delicada e compadecida, enquanto ela lhe descrevia a calamitosa situação. Fascinado, viu-a voltar o forro do último saco para mostrar que não restava nem um feijão. Meneou a cabeça, compreensivo, quando Teresina, apontando para as crianças, tão depressa lhe fazia ver que morreriam de fome, com as mostrava já esqueletos.

 

Depois, a vieja contou, amargurada, como fora enganada pela Virgem. A este respeito, contudo, Jesus Maria não se mostrou simpático.

 

- Que é que tu sabes disso, ó velha? - disse com severidade. - Talvez a Nossa Senhora tivesse que fazer em qualquer outro lado.

 

- Mas eu acendi quatro velas -insistiu a vieja, esganiçando-se.

 

Jesus Maria fitou-a com un ar frio.

 

- Que são quatro velas para Ela? Vi uma vez uma igreja em que Ela tinha centenas. Velas não lhe faltam.

 

A aflição de Teresina, porém, pôs-lhe o espírito em brasa. Nessa noite, em casa de Danny, dirigiu-se aos amigos de uma maneira eloquente e compadecida. Extraiu do coração uma instigadora oratória, uma apaixonada argumentação em favor das criancinhas que não tinham feijões. E tão eficaz foi o seu discurso, que o fogo do seu coração se propagou ao dos amigos. Estes, de olhos brilhantes, levantaram-se exclamando:

 

- As crianças não morrerão de fome! Nós velaremos por isso!

 

- Vivemos no luxo - disse Pilon.

- Dar-lhe-emos do nosso sustento - concordou Danny. E se precisassem de uma casa podiam viver aqui.

 

- Amanhã lançamos mãos à obra - exclamou Pablo. Acabe-se com a preguiça! Ao trabalho, que há coisas a tratar!

 

Jesus Maria sentiu a satisfação de ser um chefe com seguidores.

 

Os amigos não prometeram em vão. Apanharam peixe. Fizeram uma rápida incursão ao talhão das hortaliças do Hotel dei Monte. Era um jogo cheio de glória. O roubo despojado do estigma do roubo, o crime cometido por altruísmo... Que pode haver de mais satisfatório?

 

O Pirata elevou o preço das acendalhas para trinta centimes e passou a visitar três novos restaurantes todas as manhãs. Big Joe roubou a cabra da Sr.a Palochico vezes sem conta, mas sempre que tal acontecia o animal voltava para casa.

 

Na casa de Teresina a comida começava a amontoar-se. No telheiro havia caixas de alfaces, o cheiro activo de sardas estragadas enchia as redondezas. A chama da caridade mantinha-se acesa nos amigos.

 

Se se pudesse ver o livro de reclamações da Polícia de Monterey, notar-se-ia que, durante aquele período, houve na cidade uma onda de delitos menores. O carro da Polícia corria de um lado para o outro.

 

Aqui, roubavam uma galinha; ali, desaparecia um talhão inteiro de abóboras. A Companhia Paladini participou a perda de duas caixas contendo cada uma cinquenta quilos de búzios em conserva.

 

A casa de Teresina ia-se enchendo. Na cozinha havia uma elevada pilha de comida. O telheiro das traseiras transbordava de hortaliça. Odores semelhantes aos que se desprendem de

um matadouro industrial atravessavam a Tortilla Flat. Os amigos passavam sem descanso de roubo para roubo e discutiam com Teresina os planos para eles.

 

A princípio, Teresina ficou doida de alegria ao ver tanta comida e profundamente sensibilizada com a atitude dos amigos. Uma semana depois, já tinha certas dúvidas. O bebé andava com cólicas, Ernie tinha umas perturbações intestinais e o rosto de Alfredo apresentava uma vermelhidão. Os miúdos que ainda gatinhavam passavam o dia a chorar. Teresina tinha vergonha de dizer aos amigos aquilo que se via forçada a dizer-lhes. Andou vários dias a arranjar coragem; durante esse tempo chegaram vinte e cinco quilos de aipo e uma grade de melão especial.

 

Por fim teve de lhes dizer. Os vizinhos estavam a começar a olhar para ela de sobrolho franzido.

 

Reuniu todos os amigos de Danny na cozinha e, depois, modesta e cuidadosamente, para não os ofender, pô-los ao corrente do problema.

 

- As hortaliças e a fruta não fazem bem às crianças - explicou.- O leite faz prisão de ventre aos bebés depois do desmame.

 

Apontou para as crianças. Irritáveis, afogueados. Todos doentes. Não comiam comida conveniente.

 

- O que vem a ser comida conveniente? - perguntou Pilon.

 

- Feijões -respondeu ela.- Feijões é qualquer coisa que não passa só por uma pessoa e pronto.

 

Os amigos foram-se embora em silêncio. Fingiram para eles próprios que tinham ficado desanimados, mas sabiam que : há vários dias lhes vinha faltando o fogo inicial do seu entusiasmo.

 

Em casa de Danny reuniran-se em conferência.

 

Não se deve dizer isto em certos círculos, pois a acusação pode ser grave.

 

Muito depois da meia-noite, quatro formas escuras, cujos nomes não serão citados, deslccaram-se como sombras pela cidade. Quatro imprecisas silhuetas treparam rastejando, sem ser vistas, para a plataforma da Western Warehouse Company. Mais tarde, o guarda disse que tinha ouvido ruídos; investigara, mas nada vira. Não podia dizer como a coisa fora feita, como a fechadura tinha sido quebrada e a porta forçada. Só quatro homens sabem que o guarda dormia a sono solto e nunca o denunciarão.

 

Um pouco mais tarde, quatro sombras deixaram o armazém vergadas ao peso de tremenda carga que as fazia resfolegar e arquejar.

 

Às três da manhã, Teresina foi acordada ao ouvir a porta de trás ser aberta.

 

- Quem está aí? - gritou.

 

Como resposta ouviram-se quatro grandes baques que abalaram a casa. Teresina acendeu uma vela e, descalça, dirigiu-se à cozinha. Ali, encostadas à parede, encontravan-se quatro sacas de cinquenta quilos de feijão encarnado.

 

Teresina voltou para dentro a correr e acordou a vieja.

 

- Um milagre! - exclamou. - Anda ver o que está na cozinha.

 

A visja contemplou envergonhada as sacas bem cheias.

 

- Oh, que miserável pecadora eu sou! - lamentou-se.- Oh, Virgem Santa, tende piedade de uma velha tonta! Enquanto eu for viva, todos os meses haveis de ter uma vela.

 

Em casa de Danny, felizes, quatro amigos encontravam-se deitados nos seus cobertores. Que almofada pode uma pessoa ter que se assemelhe a uma boa consciência? Dormiram bem pela tarde dentro, pois a sua obra estava feita.

 

E Teresina descobriu, por um método que, por experiência própria, sabia ser infalível, que ia ter um bebé. E, ao deitar na panela um litro de feijões novos, perguntou molemente a si mesma qual dos amigos de Danny seria o responsável.

 

Da boa vida em casa de Danny, de um porco dado como presente, da dor de Tall Bob e do amor frustrado do viejo Ravanno

Os paisanos da Tortilla Flat não usavam nem relógios de parede, nem de bolso. De vez em quando, um dos amigos arranjava um relógio de alguma maneira pouco vulgar, mas só ficava com ele o tempo suficiente para o trocar por qualquer coisa que realmente desejasse. Em casa de Danny, os relógios gozavam de boa reputação, mas apenas como objecto de troca. Para fins práticos havia o grande relógio de ouro do Sol. Era melhor e mais seguro que um relógio, pois não havia possibilidade de ser desviado para o bolso do Torrelli.

 

No Verão, quando os ponteiros do relógio indicam as sete, é uma bela altura para uma pessoa se levantar; mas no Inverno, a mesma hora não tem valor de espécie nenhuma. Quão melhor não é o Sol! Quando ele ilumina as copas dos pinheiros e se fixa ao telheiro da frente, seja Verão ou Inverno, essa é uma altura razoável para se sair da cama. É uma altura em que nem as mãos de uma pessoa tiritam de frio, nem o estômago tem contracções por estar sem nada.

 

O Pirata e os cães dormiam, quentes e seguros, no seu canto da casa de fora. O quarto de dormir era para Pilon, Pablo, Jesus Maria, Danny e Big Joe Portagee. A despeito de toda a sua amabilidade e generosidade, Danny nunca permitiu que a sua cama fosse ocupada por alguém que não ele. Big Joe, que por duas vezes tentou fazê-lo, levou um par de bastonadas nas solas dos pés, de modo que até ele ficou inteirado da inviolabilidade da cama de Danny.

 

Os amigos dormiam no chão e utilizavam uma invulgar roupa de cama. Pablo tinha três peles de carneiro cosidas umas às outras. Jesus Maria dormia com os braços enfiados nas mangas de um sobretudo velho e com as pernas metidas nas mangas de um outro. Pilon embrulhava-se num grande pedaço de tapete. A maior parte das vezes, Big Joe enroscava-se simplesmente como um cão e dormia vestido.

 

Se, por um lado, Big Joe era incapaz de ficar muito tempo com o que quer que fosse, por outro, possuía, bem desenvolvido, o dom de trocar tudo quanto lhe fosse parar às mãos por uma pinga de vinho. Assim dormiam, pois, ruidosamente algumas vezes, mas sempre confortàvelmente. Numa fria noite, Big Joe tentou levar de empréstimo um cão para lhe aquecer os pés, mas ficou todo mordido, pois os cães do Pirata não eram coisas que se emprestassem.

 

As janelas não tinham cortinas, mas uma natureza generosa obscurecia as vidraças com teias de aranha, pó e nítidas marcas feitas com a água da chuva.

 

- Aquela janela ficava muito bonita se fosse lavada com água e sabão - disse uma vez Danny.

 

O agudo espírito de Pilon ocupou-se imediatamente do problema com energia, mas aquele era demasiado fácil e não exigia uma decente comparticipação dos seus poderes.

 

- Depois entrava mais luz - disse. - Se houvesse luz aqui dentro, não passávamos tanto tempo ao ar livre. E à noite, quando o ar está cheio de venenos, não temos precisão de luz.

 

Danny abandonou a luta, pois, se uma ligeira menção havia desencadeado uma tão rápida e clara refutação ao seu projecto, que lógica esmagadora não produziria uma insistência? A janela ficou como estava; e, como o tempo passasse, como mosca após mosca alimentasse com o seu sangue a família das aranhas e deixasse o seu sugado corpo nas teias, contra as vidraças, como o pó aderisse ao pó, o quarto de dormir ganhou uma agradável obscuridade que tornava possível dormir-se numa luz velada, mesmo ao meio-dia.

 

Os amigos dormiam, pois, em paz; mas quando, de manhã, o sol batia na janela e, impedido de entrar, transformava a poeira em prata, e brilhava nas indescentes moscas varejeiras, os amigos acordavam, espreguiçavam-se e punham-se à procura dos sapatos. É que sabiam que quando o sol dava na janela, o telheiro estava quente.

 

Não acordavam com rapidez, não se precipitavam de um lado para o outro, nem abalavam os seus sistemas com quaisquer movimentos repentinos. Não; emergiam do sono com a gentileza de uma bola de sabão desprendendo-se de um tubo. Aos tropeções, ainda meio a dormir, lá desciam à ravina. A pouco e pouco, a vontade ia-se-lhes coagulando. Acendiam o lume e faziam uma pinga de chá que bebiam nas jarras de fruta. Depois, instalavan-se ao sol no telheiro da frente. Moscas reluzentes faziam-lhes halos à volta da cabeça. Em redor dos amigos a vida ia ganhando contornos, a forma de ontem, a forma de amanhã.

 

Começavam a falar lentamente, pois cada um deles guardava como um tesouro o pouco sono que ainda lhe restava. Dessa altura em diante, até um bom bocado depois do meio-dia, manifestava-se uma camaradagem intelectual. Então, levantavam-se telhados, espreitavam-se casas, inspeccionavam-se motivos, tornavam-se a contar aventuras. Em geral, os seus pensamentos iam primeiro para Cornelia Ruiz, pois raros eram os dias e as noites em que Cornelia não tivesse alguma aventura curiosa e interessante. E muito extraordinária seria aquela, da qual se não pudesse extrair qualquer conclusão moral.

 

O sol cintilava nas agulhas dos pinheiros. A terra tinha um cheiro seco e bom. A roseira-de-castela enchia o mundo com o perfume das suas flores. Este era um dos melhores momentos dos amigos de Danny. A luta pela vida estava longe. Arrogavam-se o direito de julgar os seus semelhantes, não o fazendo, porém, pela moral, mas pelo interesse. Qualquer deles que tivesse uma boa coisa para contar, guardava-a para a narrar nessa altura. As grandes borboletas castanhas pousavam nas flores da roseira e adejavam lentamente como se estivessem a extrair mel à força de bater as asas

 

- Vi o Alberto Rasrnussen - disse Danny -, vinha da casa da Cornelia. Todos os dias aquela rapariga se mete em sarilhos.

 

- Só sabe viver assim - comentou Pablo. - Não sou homem para atirar pedras a ninguém, mas em certas alturas penso que a Cornelia é um bocado remexida de mais. Só lhe acontecem duas coisas na vida: amor e zaragatas.

 

- Mas que é que tu queres? - disse Pilon.

 

-Nunca tem sossego - deplorou Jesus Maria.

 

- Também não o quer para nada - volveu Pilon. - Dar-Ihe sossego é matá-la. Amor e zaragatas. Está bem visto. Amor, zaragatas e uma pinga de vinho e aí está uma pessoa sempre jovem, sempre feliz. Mas que é que aconteceu ontem à Cornelia?

 

Danny olhou para Pilon com uma expressão de triunfo. Não era vulgar que Pilon desconhecesse fosse o que fosse do que quer que se passasse. Desta vez, porém, Danny podia ver pelo aspecto magoado e irritado do rosto de Pilon que este não estava ao par da novidade.

 

- Vocês todos conhecem a Cornelia - começou. - Há homens que algumas vezes lhe levam presentes, um frango, um coelho ou uma couve. Não passam de pequenas coisas, mas Cornelia aprecia-as. Ora bem, ontem, Emílio Murietta levou-lhe um leitãozito; um porquito assim pequenito e rosado que ele encontrara na ravina. A porca ainda o perseguiu quando ele pegou no porquito, mas ele deitou a correr e chegou a casa da Cornelia com o animal.

 

«Como sabem, conversa é coisa que não falta ao Emílio. Disse ele à Cornelia: ”Não há nada melhor do que ter um porco. Come de tudo. Este aqui é muito bonito; vais gostar muito dele. Mas depois ele cresce e muda; torna-se velhaco e mau e deixas de gostar dele. Um dia morde-te e ficas para aí toda arreliada; depois mata-lo e come-lo.”»

 

Os amigos acenaram gravemente com a cabeça e Pilon disse:

 

- Emílio tem coisas em que não é parvo. Vejam lá o que ele não conseguiu com o porco... afeição, amor, vingança e comida. Um dia destes tenho de falar com ele.

Mas os amigos viam bem que Pilon estava com inveja de um lógico capaz de lhe fazer sombra.

 

- Anda lá com essa história do porco - disse Pablo.

 

- Bom - disse Danny -, a Cornelia ficou com o leitão e mostrou-se simpática para com o Emílio. Disse-lhe que quando ficasse arreliada com o porco, ele podia contar com um pedaço para comer. Depois, o Emílio foi-se embora e a Cornelia fez uma caixinha para o leitão dormir e pô-lo ao pé do fogão.

 

«Depois, vieram uma senhoras visitá-la e a Cornelia deixou que elas pegassem no leitãozinho e lhe fizessem festas. A certa altura, a Sweets Ramirez pisou o rabo do porquito. Nem imaginam. O bicho guinchava como um apito de vapor. A porta da frente estava aberta. A porca entrou por ali dentro à procura do filhote. As mesas e os pratos ficaram em cacos; as cadeiras ficaram partidas. Em seguida, a porca grande mordeu na Sweets Ramirez e rasgou a saia da Cornelia e, depois, quando todas as mulheres estavam fechadas na cozinha, foi-se embora e levou o porquito com ela. Agora a Cornelia anda furiosa e diz que há-de pregar uma sova no Emílio.»

 

- Aí está! - disse Pablo. - A vida é mesmo assim, nunca corre conforme aos planos que a gente faz. Já quando o Tall Bob Smoke se matou, foi a mesma coisa.

 

O rosto dos amigos oscilaram, apreciativamente, na direcção de Pablo.

 

- Vocês devem saber bem quem é o Bob Smoke -começou Pablo. - Parece mesmo um vaquem, pernas compridas e corpo delgado; mas não é lá grande coisa a montar. Nos rodeos é muitas vezes atirado ao chão. Pois bem, o homem não quer outra coisa senão que o admirem. Quando há paradas, gosta de levar a bandeira; quando há zaragatas quer ser o árbitro; nos espectáculos é sempre o primeiro a gritar: ”Vamos a sentar aí à frente!” Não há dúvida, está ali um tipo que quer ser um grande homem, que as pessoas olhem para ele, que o admirem e, talvez vocês não saibam, que gostem dele.

 

«Pobre desgraçado, veio a este mundo para se rirem dele. Há pessoas que o lastimam, mas a maior parte ri-se dele. E rirem-se dele é apunhalá-lo.

 

«Talvez vocês se lembrem daquela vez na parada em que ele levou a bandeira. Ia montado, muito direito, num grande cavalo branco. Mesmo em frente da tribuna dos juizes, o estúpido do cavalo desmaiou por causa do calor e o Bob foi atirado por cima da cabeça do bicho e largou a bandeira que voou como uma lança e foi cravar-se no chão, às avessas.

 

«São deste género as coisas que lhe acontecem. Sempre que procura ser um grande homem, sucede-lhe qualquer coisa e toda a gente se ri. Vocês lembram-se de uma vez em que era guarda do canil e tentou uma tarde inteira laçar um cão. Toda a gente da cidade veio ver. Ele atirava o laço, o cão agachava-se, a corda escorregava e o bicho fugia. As pessoas riam-se. Bob estava tão envergonhado que pensou: ”Vou matar-me e esta gente há-de ficar com pena. Hão-de arrepender-se de terem rido.” E depois pensou: ”Mas eu estarei morto e não saberei se terão ou não pena de mim.” De modo que fez este plano: ”Espero até ouvir alguém aproximar-se do meu quarto e aponto uma pistola à cabeça. Depois esse amigo faz-me ver o disparate que eu ia cometer e arranca-me a promessa de eu não me matar.” Foi assim que ele pensou a coisa.

 

«Em seguida dirigiu-se à casita onde vivia. No caminho, toda a gente que passava por ele dizia-lhe: ”Então, Bob, apanhaste o cão?” Muito triste chegou ele a casa. Pegou na pistola, pôs-lhe uns cartuchos, sentou-se e esperou que aparecesse alguém.

 

«Planeou a coisa e ensaiou-a com uma pistola. O amigo diria: ”Ei, que é que estás a fazer, Bob? Deixa-te dessas ideias, meu pobre rapaz.” Depois o Bob respondia que estava farto da vida porque as pessoas eram muito vis.

 

«Pensou no caso e voltou a pensar, mas ninguém apareceu. No dia seguinte voltou a esperar e nada. À noite, porém, apareceu Charlie Meeler. Bob ouviu-o no átrio Q levou a pistola à cabeça. Em seguida, destravou-a para dar maior realismo. ”Agora vai pôr-se a discutir comigo e eu deixo-o convencer-me”, disse Bob de si para si.

 

«Charlie Meeler abriu a porta. Viu o Bob apontar a pistola à cabeça, mas não gritou; pelo contrário, deu um pulo e agarrou a arma, que se desfechou levando um bocado do nariz ao Bob. Depois as pessoas ainda se riram mais. Os jornais referiram-se ao caso. Toda a cidade se riu.

 

«Vocês todos já viram o nariz do Bob com a ponta cortada. As pessoas riram-se, mas as gargalhadas eram cruéis e as pessoas sentiam-no. E, então, desde essa altura, deixaram o Tall Bob levar a bandeira em todas as paradas que haja e o município deu-lhe uma rede para apanhar cães.

 

«Mas, com o nariz daquela maneira, o Bob não consegue ser feliz.»

 

Pablo calou-se, apanhou uma varazita e chicoteou um pouco as pernas.

 

- Lembro-me do nariz dele -disse Danny.- Esse Bob não é mau tipo. O Pirata é que pode dizer qualquer coisa, quando voltar. Às vezes põe os cães na carroça de Bob e as pessoas julgam que foi ele que os apanhou e dizem: «Ora aí está um tipo que sabe do seu ofício.» Apanhar cães não é assim tão fácil quando se faz por obrigação.

 

Jesus Maria, que tinha estado a meditar de cabeça encostada à parede, observou:

 

- É pior fazerem pouco de uma pessoa do que lhe darem com um chicote. Toda a gente troçou daquele pateta esfarrapado do velho Tomás até ele morrer. Mas depois ficaram com pena de se terem rido dele. Mas há ainda outro género de gargalhadas. Essa história do Tall Bob é divertida; mas quando uma pessoa abre a boca para rir, parece que dá uma mão que nos aperta o coração. Eu sei o que se passou com o velho Ravanno que se enforcou o ano passado. É também uma história engraçada, mas não dá vontade de rir.

 

- Ouvi contar qualquer coisa a esse respeito - disse Pilon-, mas não conheço a história.

 

- Bem - disse Jesus Maria -, eu vou contá-la e vocês logo vêem se dá vontade de rir. Quando eu era miúdo, costumava brincar com o Petsy Ravanno. Era bom rapazito e esperto, mas andava sempre metido em sarilhos. Com ele vivia o pai, o velho Pete, dois irmãos e quatro irmãs. Já toda essa gente desapareceu daqui. Um dos irmãos está em San Quentin e o outro foi morto por um jardineiro japonês por estar a roubar melancias de uma carroça. As raparigas, vocês sabem muito bem o que são raparigas, foram-se embora cá da terra. Susy está agora na casa da velha Jenny, em Salinas.

 

«De modo que só ficaram o Petey e o velho. Petey cresceu e os sarilhos nunca o largaram. Passou uma temporada no reforma tório e depois voltou para casa. Aos sábados apanhava uma bebedeira e ia parar à prisão até segunda-feira. O pai era um daqueles tipos de bom coração e todas as semanas se embebedava com o filho. De modo que estavam quase sempre os dois na cadeia. O velho Ravanno sentia-se só quando não tinha o Petey ao pé de si. Gostava do moço. Tudo o que o rapaz fazia, o velho fazia também, mesmo quando já tinha sessenta anos.

 

«Talvez vocês se lembrem da Gracie Montez - prosseguiu Jesus Maria. - Não era uma rapariga lá muito decente. Não tinha mais de doze anos quando uma esquadra veio a Monterey e ela ficou logo com um filho nos braços, tão nova ainda. Era bonita e esperta e tinha sempre uma resposta na ponta da língua. Parecia andar constantemente a fugir dos homens e os homens bem corriam atrás dela. E algumas vezes apanhavam-na. Mas uma pessoa não lhe podia chegar ao pé. A moça parecia ter qualquer coisa de encantador que não queria dar, qualquer coisa lá no fundo dos olhos que dizia: ”Se eu realmente quisesse, seria para ti diferente de qualquer mulher que até hoje conheceste.”

 

«Eu sei isto - continuou Jesus Maria - porque também andei atrás dela; eu e o Petey. Simplesmente o Petey era diferente. - Jesus Maria olhou os amigos bem nos olhos para vincar este ponto.

 

«Petey desejava tanto o que Gracie tinha, que emagreceu e ficou com uns olhos muito grandes e doridos como os fumadores de marijuana. Não conseguia comer e adoeceu. O velho Ravanno foi falar com a Gracie e disse-lhe: ”Se não te mostrares simpática para com o Petey ele morre.” Ela, porém, limitou-se a rir. Não era lá grande coisa. Nessa altura, a irmãzita dela, a Tonia, uma miúda de catorze anos, entrou no quarto. O velho olhou para ela e a respiração ficou-lhe suspensa. Tonia era como a irmã, tinha aquela coisa de que não deixava os homens aproximar-se. O velho Ravanno não pôde resistir. Disse: ”Anda cá, minha menina.” Mas Tonia não era menina nenhuma. Ela sabia. De modo que deu uma gargalhada e fugiu do quarto.

 

«O velho Ravanno foi para casa. Petey disse:

 

”Alguma coisa se passa com o pai.”

 

”Não, Petey”, respondeu o velho, ”só me rala é que não consigas que a Gracie te dê atenção, que era para ficares outra vez bom.”

 

«Tinham o sangue na guelra esses Ravannos!

 

«Que é que vocês julgam que eles depois fizeram? - continuou Jesus Maria. - Petey foi cortar lulas para o Chin Kee e deu presentes a Gracie, frascos grandes de Água Florida, fitas, ligas. Pagou-lhe um retrato a cores no fotógrafo.

 

«Gracie ficava-lhe com os presentes, mas fugia-lhe e ria-se. Vocês deviam ter ouvido como ela se ria. Uma pessoa ficava com gana de lhe apertar o pescoço e, ao mesmo tempo, de a acariciar. Dava vontade de a abrir e de lhe tirar aquela coisa que ela tinha lá dentro. Eu sei bem como era. Andei atrás dela e o Petey disse-me, também. Simplesmente, ao Petey dava-lhe cabo do juízo. Já nem conseguia dormir. Um dia disse-me: ”Se a Gracie casar comigo pela igreja, deixará de ter coragem de me fugir, pois nessa altura é casada e é um pecado fugir do marido.” De maneira que pediu-a em casamento. Ela desatou a rir daquela maneira ruidosa que dava vontade de a esganar.

 

«Oh! O Petey ficou desvairado. Foi para casa, prendeu uma corda a uma viga e pôs-se em cima de uma caixa; em seguida, colocou a corda à volta do pescoço e deu um pontapé na caixa. Nessa altura o pai entrou em casa. Cortou a corda e chamou o médico. Mas ainda se passaram duas horas antes de Petey conseguir abrir os olhos e quatro dias antes de poder falar.»

 

Jesus Maria calou-se. Via, com orgulho, que os seus amigos acompanhavam a história com interesse.

 

- A coisa era deste género.

 

- Mas a Gracie Montez casou com o Petey Ravanno! - exclamou Pilon, excitado. - Eu conheço-a. É uma boa mulher; nunca falta a uma missa e confessa-se uma vez por mês.

 

- Isso é agora - concordou Jesus Maria. - O velho Ravanno ficou danado. Correu a casa da Gracie e gritou: ”Dás-me cabo do rapaz com as tuas doidices. Quis matar-se por tua causa, minha badalhoca.”

 

«Gracie ficou com medo, mas, ao mesmo tempo, satisfeita também, porque não há muitas que sejam capazes de levar um homem a ir tão longe. Foi ver o Petey que estava na cama com o pescoço torcido. Passado pouco estavam casados.

 

«As coisas também se passaram da maneira que o Petey tinha pensado. A Igreja disse a Gracie que fosse uma boa esposa e ela foi uma boa esposa. Deixou de se rir para os homens. Como não fugia, deixaram de se interessar por ela. Petey continuou a cortar lulas e, passado pouco tempo, o Chin Kee deixou-o despejar as caixas. Não tardou muito a ser capataz. Como vêem, esta história é boa. Era digna de ser contada por um padre, se acabasse aqui.»

 

- Pois era - disse Pilon com gravidade. - Esta história ensina-nos certas coisas.

 

Os amigos acenaram com a cabeça em sinal de apreço, pois gostavam de uma história com sentido.

 

- No Texas conheci uma rapariga como essa - disse Danny. - A única diferença é que não se modificou. Chamavam-lhe a mulher do segundo pelotão. «A Dona Segundo Pelotão», era o nome que lhe davam.

 

Pablo levantou a mão.

 

- A história ainda não acabou - disse. - Deixa lá o Jesus Maria contar o resto.

 

- Sim, ainda não acabou. E no fim, a história não é lá tão boa como isso. O viejo tinha mais de sessenta anos. Petey e Gracie foram viver para outra casa. O velho Ravanno ficou sozinho, pois vivera sempre com o filho. Não sabia como ocupar o tempo. Passava a vida sentado, triste; até que um dia viu Tonia outra vez. Tinha quinze anos e estava ainda mais bonita do que a Gracie. Metade dos soldados do Presídio andava atrás dela como se fossem cães. Então, o que se tinha passado com o Petey, deu-se com o velho. O desejo causava-lhe dores no corpo todo. Não comia nem dormia. O rosto ficou escaveirado e os olhos ganharam aquele aspecto alarmado que os fumadores de marijuana têm. Levava rebuçados à Tonia e ela, tirando-lhos da mão, punha-se a rir dele. «Anda cá, minha pequerrucha, anda cá ao teu amigo.» Ela voltava a rir-se.

 

((Então o viejo contou ao Petey o que se passava. Petey riu-se também. ”Meu velho tonto - disse •-, já tiveste na vida muita mulher. Não andes atrás de crianças.” Mas não serviu de nada. O velho Ravanno ficou doente de desejo. Esses Ravannos é gente de sangue quente. Escondia-se na erva para vê-la passar. O coração doía-lhe no peito.

 

«Como precisava de dinheiro para comprar presentes, arranjou trabalho na Estação de Serviço Standard. Limpava o cascalho com o rodo, regava as flores, punha água nos radiadores e limpava os pára-brisas. Tudo quanto ganhava, gastava-o em presentes para a Tonia, rebuçados, fitas, vestidos. Pagou-lhe um retrato a cores.

 

«Ela não fazia outra coisa senão rir-se e o viejo estava quase doido. De maneira que pensou: ”Se o casamento pela Igreja fez de Gracie uma boa mulher, também de Tonia conseguirá fazer o mesmo.” E, assim, pediu-a em casamento. Ela riu-se ainda mais do que nunca e, sacolejando as saias, fez-lhe negaças para o arreliar. Era um diabo aquela Tonia.»

 

- E ele um parvo - disse Pilon com afectação. - Os velhos não devem andar atrás de crianças. Devem mas é ficar sentados ao sol.

 

Jesus Maria, irritado, prosseguiu:

 

- Os Ravannos são diferentes; ferve-lhes o sangue.

 

- De qualquer modo, foi indecente. Foi uma vergonha para o Petey - disse Pilon.

 

Pablo voltou-se para ele.

 

- Deixa lá o Jesus Maria continuar. É a história dele e não a tua. Um dia destes contas tu.

 

Jesus Maria olhou para Pablo com gratidão.

 

- Como ia dizendo, o viejo não podia aguentar mais, mas não era capaz de inventar fosse o que fosse. Não era como o Pilon. Como não tinha jeito para descobrir nada de novo, pensou: «Gracie casou com o Petey porque ele se enforcou. Vou fazer o mesmo, talvez a Tonia case comigo.» Depois reflectiu: «Mas se ninguém dá comigo a tempo, morro. É preciso que alguém me encontre.»

 

«Vocês devem saber •- prosseguiu Jesus Maria - que lá na estação de serviço há uma arrecadação. Logo de manhã, o viejo abria a porta da arrecadação, limpava o cascalho com o rodo e regava as flores antes de a estação abrir. Os outros empregados pegavam às oito. Uma manhã, o viejo entrou na arrecadação e pendurou uma corda. Depois, esperou até às oito. Viu os homens chegar. Passou a corda à volta do pescoço e atirou os pés para fora do banco. Ele a fazer isto e a porta a fechar-se.»

 

Rasgados sorrisos surgiram no rosto dos amigos. Algumas vezes, pensaram, a vida tinha coisas com piada, com muita piada.

 

- Os homens não deram logo por falta dele - continuou Jesus Maria. - Disseram: «O velho é capaz de andar por aí bêbedo.» Só passada uma hora é que abriram a porta da arrecadação.

 

Jesus Maria olhou em redor.

 

No rosto dos amigos mantinham-se os sorrisos, mas eram diferentes.

 

- Vocês estão a ver - disse Jesus Maria -, a coisa é engraçada, mas também dá um certo aperto.

 

- O que é que a Tonia disse - perguntou Pilon.--Aprendeu a lição e mudou de proceder?

 

--Não. Não mudou. Petey contou-lhe e ela riu-se. Petey riu-se também, mas ficou envergonhado. Tonia disse: «Que velho parvo ele me saiu» e olhou para Petey daquela maneira muito dela. Então Petey volveu: «É bom ter uma irmãzinha como tu. Uma noite destas vamos os dois para o pinhal.» Tonia riu-se outra vez e deu uma corridinha. Em seguida perguntou:

«Achas que sou tão bonita como a Gracie?» Depois Petey entrou em casa com ela. Pilon queixou-se:

 

- Essa história não presta. Tem sentidos a mais e podem tirar-se dela demasiadas lições, e algumas delas são opostas. Não é história que valha a pena fixar. Não chega a conclusão nenhuma.

 

- Eu gosto dela - volveu Pablo. - Gosto dela porque não tem nenhum sentido à vista; no entanto, parece que realmente quer dizer qualquer coisa, embora eu não saiba o quê.

 

Já passava do meio-dia e o ar estava quente.

 

- Que é que o Pirata nos trará de comer? - disse Danny.

 

- Na baía há um cardume de cavalas - observou Pablo. Os olhos de Pilon brilharam.

 

- Estive a meditar no seguinte plano - disse. - Quando eu era miúdo vivia ao pé da linha do comboio. Todos os dias, quando o comboio passava, os meus irmãos e eu atirávamos pedras à máquina e o fogueiro atirava-nos com carvão. Havia alturas em que enchíamos um grande balde com carvão que levávamos à nossa mãe. Pensei agora que talvez a gente pudesse levar pedras para o cais. Quando os barcos se aproximarem, chamamos nomes e atiramos pedras aos pescadores. Como é que eles podem responder-nos? Atirando-nos com os remos ou com as redes? Não. Só podem atirar-nos com as cavalas.

 

Danny levantou-se cheio de contentamento.

 

- Ora aqui está um belo plano! - exclamou. - Isto é que o : Pilon é nosso amigo! Que é que a gente fazia sem ele? Vamos; eu sei onde é que há um grande monte de pedras.

 

- E a cavala é o meu peixe preferido - disse Pablo.

 

Como Danny se pôs a cismar e enlouqueceu. Como o Diabo, na figura do TorrelH, assaltou a casa de Danny

TONTEREY possui uma qualidade imutável. Quase todos os dias, de manhã, o Sol brilha nas janelas do lado ocidental das ruas; e, de tarde, brilha no lado oposto. Diariamente, o autocarro vermelho passa, retinindo, no seu vaivém entre Monterey e Pacific Grove. Todos os dias as fábricas de conservas expelem para o ar o desagradável cheiro do peixe a que reduzem o tamanho. Todas as tardes, o vento sopra da baía e agita os pinheiros nas colinas. Os pescadores à linha sentam-se nas rochas de cana na mão e no rosto vinca-se-lhes a paciência e o cinismo.

 

Na Tortilla Flat, por cima de Monterey, a rotina também se mantém inalterável, pois a Cornelia não pode ter senão um determinado número de aventuras com o seu cortejo de amantes de morosa substituição. É bem conhecido o facto de ela aceitar de novo um homem há muito posto à margem.

 

Na casa de Danny, as mudanças eram ainda menos sensíveis. Os amigos tinham caído numa rotina que podia ter sido monótona para toda a gente menos para um paisano: levantar de manhã, ficar sentado ao sol e magicar acerca do que o Pirata traria. O Pirata continuava a cortar madeira e a vendê-la nas ruas de Monterey, mas agora comprava comida com os 25 centimes que ganhava todos os dias. De vez em quando os amigos lá arranjavam uma pinga de vinho e havia cantigas e zaragatas.

 

O tempo é ainda mais complexo junto ao mar do que em qualquer outro sítio, pois, além do girar do Sol e do volver das estações, há o bater das ondas contra os rochedos, marcando o fluir das horas, e o subir e descer da maré como os de uma grande clepsidra.

 

Danny começou a sentir o bater do tempo. Olhava para os amigos e via que todos os dias se passavam com eles sempre as mesmas coisas. Quando de noite saía da cama e tropeçava nos adormecidos paisanos, ficava arreliado com eles por estarem ali. No telheiro, sentado ao sol, Danny começou pouco a pouco a sonhar com os dias em que fora livre. Durante o Verão dormira na mata; no Inverno, quando o frio se fazia sentir, passara as noites nos quentes palheiros de feno. Sobre os seus ombros não havia o peso da propriedade. Lembrava-se de como o nome de Danny era um nome de violência. Oh, as cenas de pancadaria! As corridas pela mata fora com uma maltratada galinha debaixo do braço! Os esconderijos na ravina quando um maltratado marido abria hostilidades. Tempestade e violência, doce violência! Quando Danny pensava nos velhos tempos idos, era capaz de sentir de novo na boca o belo gosto da comida roubada e enchia-se de saudades. Desde que a herança o elevara socialmente, só raramente se metia em zaragatas. Embebedava-se, é certo, mas não da mesma maneira aventureira. Sobre os seus ombros havia sempre o peso da casa; sempre a responsabilidade em relação aos seus amigos.

 

Como começasse a ter uma expressão abatida quando se sentava no telheiro, os amigos pensaram que estivesse doente.

 

- Chá de yerba buena fazia-te bem - sugeriu Pilon. Mete-te na cama, Danny, que a gente põe-te pedras quentes aos pés.

 

Mas não era mimos que Danny queria, era liberdade. Durante um mês andou ensimesmado, olhando fixamente para o chão, encarando com uma expressão carrancuda os seus omnipresentes amigos e correndo a pontapé os afectuosos cães que se lhe atravessavam no caminho.

 

Por fim pôs termo às saudades. Uma noite fugiu. Meteu-se no pinhal e desapareceu.

 

Quando, de manhã, os amigos acordaram e deram pela falta dele, Pilon disse:

 

- Aqui anda mulher. Está apaixonado.

 

Não pensaram mais no caso, pois toda a gente tem direito a amar. Continuaram a viver como até aí. Mas, como passasse uma semana e Danny não desse sinais de si, começaram a ficar inquietos. Como um só homem, foram ao pinhal procurá-lo.

 

- O amor é bom - disse Pilon. - Não se pode censurar um homem por ir atrás de uma rapariga, mas uma semana é uma semana. Deve tratar-se de uma rapariga com muita vida, para conseguir manter o Danny há uma semana fora de casa.

 

Pablo comentou:

 

- O amor numa pequena dose é como uma pinga de vinho. Qualquer dos dois em demasia faz um homem doente.

 

Quem sabe se o Danny não está doente. Talvez essa rapariga seja mexida de mais.

 

Jesus Maria estava igualmente preocupado.

 

- Não parece coisa do Danny que a gente conhece ausentar-se tanto tempo. É capaz de lhe ter acontecido qualquer coisa.

 

O Pirata levou os cães para a mata. Os amigos disseram aos animais:

 

- Descubram o Danny. Se calhar está doente. O bom homem que vos deixa dormir em sua casa é capaz de estar morto.

 

O Pirata murmurou-lhes ao ouvido:

 

- Cães ruins e ingratos, encontrem o nosso amigo.

 

Os cães, porém, abanaram o rabo alegremente, seguiram a pista de um coelho e foram-se atrás dele.

 

Os paisanos andaram todo o dia pelo pinhal fora, gritando o nome de Danny, procurando em lugares que eles próprios poderiam ter escolhido para dormir, as belas covas entre as raízes das árvores, as espessas camas de caruma com arbustos à volta. Conheciam os sítios onde um homem podia dormir, mas não viram nem traço de Danny.

 

- Talvez tenha endoidecido - arriscou Pilon. - Se calhar foi alguma preocupação que lhe deu volta ao juízo.

 

Ao anoitecer voltaram para casa do Danny; abriram a porta e entraram. Imediatamente ficaram em alvoroço. Estivera lá um ladrão. Os cobertores de Danny tinham desaparecido. Toda a comida fora roubada. Faltavam duas panelas.

 

Pilon olhou rapidamente para Big Joe Portagse e depois sacudiu a cabeça.

 

- Não, tu não foste. Tu estavas com a gente.

 

- Foi o Danny - disse Pablo em alvoroço. - Está realmente doido. Anda a correr pela mata como um animal.

 

A preocupação e o cuidado instalaram-se em casa de Danny.

 

- Temos de dar com ele - afirmaram os amigos uns aos outros-, não vá acontecer-lhe qualquer coisa na sua loucura. Temos de procurá-lo por toda a parte até o encontrarmos.

 

Sacudiram a preguiça dos ombros. Todos os dias procuravam o amigo e, então, começaram a ouvir boatos curiosos:

 

«Sim, o Danny esteve aqui a noite passada. Oh, aquele bêbedo! Oh, que patife! Vejam lá, Danny atirou o viejo ao chão com uma pancada que lhe deu com uma estaca e roubou uma garrafa de grapa. Que amigos são esses que deixam o amigo fazer tais coisas?»

 

«Sim, vimos o Danny. Tinha um olho fechado e estava a cantar: ”Venham raparigas, vamos para a mata dançar”, mas a gente não ia. Tivemos medo. Ele parecia não estar lá muito bom.»

 

No cais encontraram mais sinais do amigo.

 

«Ele esteve aqui», disseram os pescadores. «Queria andar à pancada com toda a gente. O Benito quebrou-lhe um remo na cabeça. Depois o Danny partiu os vidros de umas janelas e um polícia levou-o para a cadeia.»

 

Continuaram ardorosamente a seguir o rasto do seu caprichoso amigo.

 

- McNear trouxe-o para cá a noite passada - informou o sargento-, mas ele lá arranjou maneira de se pôr ao fresco antes de romper o dia. Quando o apanharmos damos-lhe seis meses.

 

Os amigos ficaram cansados com as buscas. Foram para casa e, com grande horror seu, viram que o novo saco de batatas, achado por Pilon nessa manhã, tinha desaparecido.

 

- Agora é de mais! - exclamou Pilon.- O Danny está doido e em perigo. Se não o salvamos, ainda lhe acontece qualquer coisa de muito grave.

 

- Iremos à procura dele - disse Jesus Maria.

 

- Procuraremos atrás de cada árvore, dentro de cada palheiro - garantiu Pablo.

 

- Na praia, debaixo dos botes-sugeriu Big Joe.

 

- Os cães ajudam - afirmou o Pirata. , Pilon abanou a cabeça.

 

- Não é esse o processo. Todas as vezes que procuramos Danny num sítio, ele já de lá saiu. Temos é de esperar em qualquer parte onde ele vá. Temos de proceder com inteligência e não como idiotas.

 

- Mas onde é que ele irá? Imediatamente se fez luz no espírito de todos.

 

- À taberna do Torrelli! Mais cedo ou mais tarde, Danny acabará por lá ir. É aí que temos de nos dirigir para o apanhar, para pôr um travão à loucura que caiu sobre ele.

 

- Pois claro - concordaram todos-, temos de salvá-lo. Dirigiram-se como um só homem à loja do Torrelli. Este, porém, não quis deixá-los entrar.

 

- Estão a perguntar-me - gritou através da porta - se vi o Danny? Ele trouxe-me cá três cobertores e duas panelas e eu dei-lhe um galão de vinho. Sabem o que é que esse demónio fez depois? Insultou a minha mulher, e a mim injuriou-me, bateu no meu filho, deu pontapés no cão e roubou-me a rede que eu tinha no telheiro. - Torrelli arfava de comoção. - Fui atrás dele para ir buscar a rede e, quando voltei, estava ele com a minha mulher! Devasso, ladrão, bêbedo, é o que é o vosso amigo. Hei-de metê-lo na penitenciária. Os olhos dos amigos faiscaram.

 

- Ó meu porco da Córsega - disse Pilon calmamente - olha que estás a falar do nosso amigo e ele não anda bem.

 

Torrelli fechou a porta à chave. Ouviram-no correr o ferrolho, mas Pilon prosseguiu, mesmo com a porta fechada:

 

- Judeu! Se fosses um bocado mais generoso com o teu vinho, estas coisas não aconteceriam. Vê lá mas é se deixas de sujar o nosso amigo com essa tua língua imunda como um sapo. Vê se o tratas bem; olha que ele tem muitos amigos. Se não fores bom para ele, a gente abre-te essa barriga.

 

Lá dentro, Torrelli não tugia nem mugia, mas o tom feroz das palavras de Pilon fazia-o tremer de raiva e medo. Ficou aliviado ao ouvir os passos dos amigos que se afastavam subindo o carreiro.

 

Nessa noite, depois de os amigos terem ido para a cama, ouviram-se passos furtivos na cozinha. Sabiam que se tratava do Danny, mas este escapou-se-lhes antes de terem podido deitar-lhe a mão. Andaram de um lado para o outro, chamando desconsola damente:

 

- Anda cá, Danny, anda cá, amiguinho querido do nosso coração, precisamos de ti.

 

Não houve qualquer resposta, mas uma grande pedra atingiu Big Joe na barriga e fê-lo atirar-se ao chão dobrado em dois. Oh, como os amigos ficaram consternados, como o coração se lhes alanceou de dor!

 

- Assim, ainda acaba por se matar - disseram com tristeza.- Não podemos ajudar o nosso amigo que tanto precisa de ser auxiliado.

 

Agora era difícil manter a casa, pois Danny roubara tudo quanto lá havia. Uma cadeira foi parar às mãos de um fabricante clandestino de bebidas alcoólicas. Toda a comida desapareceu e, uma vez, quando os amigos andavam no pinhal à procura do Danny, ele roubou o fogão; porém, como este era pesado, abandonou-o na ravina. Dinheiro era coisa que não havia, pois Danny roubou o carrinho de mão do Pirata e deu-o ao Joe Ortiz em troca de uma garrafa de whisky. Deixara de haver paz em casa de Danny; havia apenas preocupações e tristeza.

 

- Para onde foi a nossa felicidade? - lamentou-se Pablo.

- Algum pecado nós cometemos. Isto é castigo. Devíamos ir confessar-nos.

 

Nunca mais falaram da marital parada de Cornelia Ruiz. Acabara-se o interesse pela moral, perdera-se o sentimento de amor pelo próximo. Decididamente, a vida virtuosa estava por terra, em ruínas. E os boatos vieram acrescentar-se à desolação:

 

«A noite passada Danny cometeu parcialmente um rapto.»

 

«Danny tem andado a roubar o leite de cabra da Sr.a Palochico.»

 

«Danny andou à pancada com os soldados anteontem à noite.»

 

Tristes com a ruína moral de Danny, os amigos não sentiam a mínima inveja da bela vida que ele levava.

 

- Se não está doido, há-de ser castigado, podem ter a certeza - disse Pilon. - Danny está a pecar de uma maneira que, pecado por pecado, ultrapassa todas as marcas de que eu até hoje ouvi falar. Oh, que penitência ele não terá que fazer quando quiser viver outra vez decentemente! Só em algumas

 

semanas acumulou mais pecados do que o velho Ruiz em toda a sua vida.

 

Nessa noite, Danny, a quern a amizade dos cães deixava os movimentos livres, introduziu-se em casa, silencioso como a sombra de alguém que se desloca sob a luz de um poste de iluminação, e, desavergonhadamente, roubou os sapatos de Pilon. De manhã, este não levou muito tempo a perceber o que se tinha passado. Dirigiu-se resolutamente ao telheiro, sentou-se ao sol e olhou para os pés.

 

- Desta vez foi longe de mais - disse. - Pregou-nos partidas e nós aguentamos com paciência. Mas agora passou ao crime. Este não é o Danny que a gente conhece. É outro homem, é um homem ruim. Temos de deitar a mão a esse homem ruim.

 

Pablo olhou com complacência para os sapatos. -- Desta vez é capaz também de não passar de uma partida - aventou.

 

- Não - retorquiu Pilon com severidade -, isto é um crime. Não é que os sapatos fossem por aí além, mas roubá-los é um crime contra a amizade. E esse é o pior dos crimes. Se Danny rouba os sapatos aos amigos, não há crime nenhum que não cometa.

 

Os amigos concordaram com um gesto de cabeça.

 

- Sim, temos de o agarrar - disse o humanitário do Jesus Maria. - A gente sabe que ele está doente. Atamo-lo à cama e fazemos os possíveis por o curar. Temos de ver se lhe expulsamos as trevas da cabeça.

 

- Mas para já - disse Pablo -, antes de lhe deitarmos as mãos, não devemos esquecer-nos de pôr os sapatos debaixo da almofada, quando formos dormir.

 

A casa ficou em estado de sítio. Por todo o lado, em redor, Danny lá estava ameaçador; e Danny divertia-se a valer.

 

Raramente o rosto de Torrelli apresentava outras emoções que não fossem a suspeita e a cólera. Na sua actividade de fabricante clandestino de bebidas alcoólicas e no seu trato com as pessoas de Tortilla Flat, o seu coração socorria-se muitas vezes dessas duas emoções e o seu rosto revelava-lhes os contornos.

 

Além disso, nunca Torrelli fora a casa de ninguém. Bastava-lhe ficar em casa para que todos o visitassem. Por esse motivo, quando, de manhã, Torrelli se dirigiu a casa de Danny com um sorriso de feroz antegozo estampado no rosto, as crianças abalaram a fugir para os pátios e puseram-se a espreitá-lo por detrás das vedações, os cães meteram o rabo entre as pernas e fugiram lançando receosas olhadelas para trás e os homens, ao passar por ele, afastaram-se para o lado e cerraram os punhos para se defenderem de um louco.

 

Nessa manhã o céu estava coberto de nevoeiro. O Sol, depois de algumas infrutíferas escaramuças, desLstiu e afastou-se por detrás das pregas cinzentas. Dos pinheiros gotejava um orvalho sujo de pó; e, no rosto das poucas pessoas que por ali andavam, o reflexo do dia era dado pelos olhares sombrios e pelo tom cinzento da pele. Ninguém se saudava com alegria. Não havia nenhum daquele humano idealismo que põe no dia de hoje a doce esperança de que seja melhor que todos os outros.

 

O velho Roca, vendo o Torrelli sorrir, foi para casa e disse à mulher:

 

- Aquele tipo acabou de matar os filhos e de os comer. Tu verás!

 

Torrelli estava feliz, pois levava dobrado no bolso um papel precioso. Os seus dedos percorriam o casaco vezes sem conta e apertavam-no até um pequeno estralejar lhe garantir que o papel ainda lá se encontrava. Nessa manhã cinzenta, à medida que caminhava, Torrelli ia murmurando para si próprio:

 

- Ninho de víboras. Hei-de acabar com essa peste dos amigos de Danny. Nunca mais lhes hei-de dar vinho em troca das coisas e ficar sem elas outra vez. Cada um, por si só, não é assim muito mau, mas quando estão juntos! Madonna, vê como eu os vou atirar a todos para o olho da rua! Sapos, piolhos, moscas do Inferno! Quando voltarem outra vez a dormir na mata ao relento, deixam de ser tão orgulhosos. Hão-de saber que o Torrelli venceu. Pensam que me enganavam, que me tiravam a mobília de casa, e a virtude da mulher! Hão-de ver que o Torrelli, o grande sofredor, lhes sabe responder. Ah, sim, hão-de ver!

 

Assim murmurava Torrelli enquanto caminhava apertando o papel dentro da algibeira. Na poeira caíam melancólicas gotas que pingavam das árvores. As gaivotas descreviam círculos no ar, soltando trágicos pios. Semelhante ao cinzento Destino, Torrelli acercava-se da casa de Danny.

 

Ali reinava a desolação. Os amigos não podiam sentar-se no telheiro ao sol, porque não havia sol. Não se pode arranjar melhor motivo de tristeza. Tinham trazido da ravina o fogão roubado e haviam-no montado. Estavam agora apinhados à volta dele, e Johnny Pom-Pom, que viera visitá-los, contava as novidades que trazia.

 

- Tito Ralph - disse - já não é carcereiro na cadeia da cidade. Esta manhã, o juiz da Polícia mandou-o embora.

 

- Eu cá gostava dele - disse Pilon. - Quando um homem estava preso, o tipo trazia-lhe umas pingas. E sabia mais histórias do que cem homens juntos. Porque é que ele foi despedido?

 

- É isso que vim cá contar-lhes. Como sabem, Tito Ralph esteve muitas vezes na cadeia e era um preso às direitas. Sabia como se deve governar uma prisão. Passados uns tempos conhecia mais de cadeias do que qualquer outro. Então, Daddy Karks, o velho carcereiro, morreu, e Tito Ralph ficou no lugar dele. Nunca lá tinha estado um guarda tão bom como o Tito Ralph. Fazia tudo como devia ser. Mas tinha um pequeno defeito. Quando bebia vinho, esquecia-se de que era carcereiro, e fugia, e depois tinham de o agarrar.

 

Os amigos concordaram com um aceno de cabeça.

 

- Eu sei - disse Pablo. •- Já ouvi dizer que é difícil de lhe deitar a mão. Esconde-se.

 

- Pois é - continuou Johnny Pom-Pom. - Tirando isso, é o melhor guarda que eles já lá tiveram. Bon, foi isto que vim cá dizer. A noite passada, Danny tinha vinho que chegava para dez homens e bebeu-o todo. Depois pôs-se a fazer desenhos nas janelas. Estava cheio de dinheiro e comprou ovos para atirar a um chinês. Mas um dos ovos não acertou no chinês e atingiu um polícia. De modo que foi parar à cadeia.

 

«Mas, como tinha dinheiro, disse ao Tito Ralph para ir buscar vinho, e depois mandou-o buscar mais.

 

«Estavam quatro homens na prisão. Todos beberam. Por fim, veio ao de cima aquele defeito do Tito Ralph. Fugiu e todos os outros se escaparam com ele. Esta manhã foi apanhado e disseram-lhe que não podia continuar a ser guarda. O homem ficou tão triste que partiu uma janela e agora está outra vez na prisão.

 

- Mas o Danny - exclamou Pilon -, que é feito dele?

 

- O Danny - volveu Johnny Pom-Pom-, o Danny fugiu também, mas não o agarraram.

 

Os amigos suspiraram, desanimados.

 

- Danny está a andar mal -- disse Pilon com um ar sério.

- A coisa não vai dar bom resultado. Sempre gostava de saber aonde é que ele foi buscar o dinheiro.

 

Foi nesse momento que o triunfante Torrelli abriu o portão e avançou a passos largos pelo carreiro fora. Nervosos, os cães do Pirata levantaram-se do canto e aproximaram-se da porta, rosnando. Os amigos ergueram a cabeça e interrogaram-se com o olhar. Big Joe agarrou no cabo da picareta que recentemente havia sido utilizado contra ele. O andar pesado e confiante do Torrelli ressoou no telheiro. A porta abriu-se para trás e ele surgiu, sorridente. Não se mostrou fanfarrão para com os amigos. Não; aproximou-se deles tão delicadamente como um gato e deu-lhes umas amáveis pancadinhas, como faria um bichano a brincar com uma barata.

 

- Ah, meus amigos - disse com brandura, ao ver o alarme desenhar-se-lhes no rosto-, meus queridos amigos e fregueses! O coração estala-se-me no peito por ter de dar más notícias àqueles a quem amo.

 

Pilon ergueu-se de um pulo

 

- Trata-se do Danny, está doente, está ferido? Conta-nos. Torrelli abanou delicadamente a cabeça.

 

- Não, meus meninos, não se trata do Danny. O meu coração sangra, mas sou obrigado a dizer-vos que não podem continuar a viver aqui.

 

Os olhos abriram-se-lhe de maligna satisfação ao ver o espanto que as palavras haviam provocado. Os amigos ficaram de boca muito aberta e arregalaram os olhos de admiração.

 

- Isso é um disparate! - exclamou Pilon. - Porque é que a gente não pode continuar a viver aqui?

 

Torrelli meteu amorosamente a mão no bolso de dentro do casaco e, tirando o precioso papel, acenou com ele.

 

- Calculem lá o meu sofrimento - continuou. - A casa já não pertence ao Danny.

 

- O quê?! - exclamaram os amigos. - Que é que tu queres dizer com isso? Como é que a casa já não pertence ao Danny? Fala, porco da Córsega.

 

Torrelli abafou uma risada. Foi tão terrível que os paisanos recuaram.

 

- Porque - disse - me pertence a mim. Danny veio ter comigo a noite passada e vendeu-ma por vinte e cinco dólares.

 

Maldosamente, observou os pensamentos amontoarem-se-lhes no rosto.

 

«É mentira», diziam mudamente. «Danny não fazia uma coisa dessas.» E depois: «Mas, há uns tempos para cá, ele tem andado a proceder mal. Tem andado a roubar-nos. Talvez tenha mesmo vendido a casa sem nos consultar.»

 

- É mentira! - exclamou Pilon em voz alta. - É uma mentira descarada e nojenta.

 

Torrelli continuou a sorrir e acenou com o papel.

 

- Tenho aqui a prova - disse. - Aqui está o papel que Danny assinou. É o que cá a gente de negócios chama um contrato de venda.

 

Pablo aproximou-se dele, furioso.

 

- Embebedaste-lo. Ele não soube o que fez. Torrelli abriu um pouco o papel.

 

- A lei não se vai ralar com isso. E agora, meus queridos amiguinhos, vejo-me obrigado a cumprir o dever de vos anunciar que têm de sair de minha casa. Tenho projectos a respeito dela. - O sorriso apagou-se-lhe do rosto e toda a crueldade aflorou de novo. - Se até ao meio-dia vocês não saírem, mando cá um polícia.

 

Suavemente, Pilon aproximou-se dele. (Torrelli, toma cuidado quando Pilon se acercar de ti, a sorrir! Foge, esconde-te em qualquer quarto de ferro e solda a porta.)

 

-Não compreendo estas coisas - disse Pilon com suavidade. - É claro que me entristece que Danny tivesse feito uma coisa destas.

 

Torrelli abafou de novo uma risada.

 

- Nunca tive casas para vender - prosseguiu Pilon. Danny assinou esse papel, é isso?

 

- Pois é - arremedou-o Torrelli. - Danny assinou este papel, é isso.

 

Pilon, estupidamente, prosseguiu nos seus diparates:

 

- E isso prova que és tu o dono da casa?

 

- Claro, meu idiota. Este papel é que prova que sou eu o dono da casa.

 

Pilon pareceu embaraçado.

 

- Julguei que tinhas de fazer uma escritura e depois registá-la.

 

Torrelli riu com desprezo. (Toma cuidado, Torrelli. Não vês como essas víboras se deslocam de mansinho? Lá está o Jesus Maria em frente da porta. Lá está o Pablo junto da entrada da cozinha. Repara como os nós dos dedos do Big Joe perdem a cor ao agarrarem no cabo da picareta.) Torrelli continuou:

 

- Vocês não sabem nada de negócios, seus vagabundos sem eira nem beira. Quando sair daqui, vou com este papel...

 

A coisa passou-se tão rapidamente que as últimas palavras lhe saíram da garganta com a violência de uma explosão. Os pés ergueram-se no ar e caiu no meio do chão fazendo um enorme estrondo, ao mesmo tempo que as sapudas mãos se agarravam ao ar. Depois, ouviu bater a porta do fogão.

 

- Ladrões! - berrou. - O sangue congestionou-se-lhe no pescoço e na cara. - Ladrões, um raio vos parta! Dêem-me o meu papel.

 

Pilon, que estava em frente dele, tinha um ar espantado.

 

- Papel? - perguntou com delicadeza. - Que papel é esse de que falas com tanto ardor?

 

- É o meu contrato de venda, o meu título de posse. A Polícia há-de saber do caso.

 

- Não me recordo de papel nenhum - replicou Pilon.-• Pablo, sabes de que papel é que ele está a falar?

 

-Papel? - perguntou Pablo. - Será papel de mortalha ou papel de jornal? Pilon prosseguiu:

 

- Johnny Pom-Pom?

 

- Esse tipo é capaz de estar a sonhar - respondeu Johnny Pom-Pom.

 

- Jesus Maria? Sabes alguma coisa acerca de um papel?

 

- Acho que ele está mas é bêbedo - volveu Jesus Maria numa voz escandalizada - e é demasiado cedo para se estar bêbedo.

 

- Joe Portagee?

 

-Eu não estava cá. Cheguei agora mesmo.

 

- Pirata?

 

- Ele não tinha papel nenhum. - Dirigiu-se aos cães: Tinha?

 

Pilon voltou-se para o apopléctico Torrelli.

 

- Estás enganado, meu amigo. É possível que eu não tivesse tido razão acerca desse papel, mas, como podes verificar com os teus próprios olhos, ninguém, a não ser tu, o viu. Censuras-me por eu pensar que talvez não haja papel nenhum? Talvez fosse melhor ires para a cama e descansar um bocado.

 

Torrelli estava demasiado atordoado para continuar a gritar. Os amigos rodearam-no, ampararam-no até à porta e fizeram-no sair rapidamente, mergulhado na sua derrota.

 

Depois, olharam para o céu e ficaram contentes; o Sol lutara de novo e, desta vez, abrira uma brecha através do nevoeiro. Os amigos não voltaram para dentro. Sentaram-se, felizes, no telheiro da frente.

 

- Vinte e cinco dólares - disse Pilon. - Bem gostava eu de saber o que é que ele fez ao dinheiro.

 

O Sol, uma vez vencida a sua primeira escaramuça, varreu do céu o nevoeiro. As tábuas do telheiro aqueceram e as moscas zumbiram na luz. A exaustão instalara-se nos amigos.

 

- Foi por pouco - disse Pablo, fatigado. - Danny não devia fazer coisas destas.

 

- Para compensarmos o Torrelli passamos a comprar sempre lá o vinho - propôs Jesus Maria.

 

Um pássaro veio pousar no telheiro e meneou as penas do rabo. As frangas novas da Sr.a Morales entoaram um esporádico hino ao Sol. Os cães, no pátio fronteiro, rasparam o chão, pensativamente, aqui e ali, e morderam o rabo.

 

Ao ouvirem o ruído de passos vindos da estrada, os amigos ergueram os olhos e depois levantaram-se exibindo sorrisos de boas-vindas. Danny e Tito Ralph, cada um deles com dois pesados sacos, passaram o portão. Jesus Maria correu para dentro de casa e trouxe as jarras de fruta.

 

Os amigos repararam que Danny parecia um pouco fatigado quando pôs as garrafas no telheiro.

 

- Subir aquela colina faz calor - disse.

 

- Tito Ralph - gritou Johnny Pom-Pom -, ouvi dizer que tinhas ido parar à cadeia.

 

- Fugi outra vez - respondeu Tito, exausto. - Ainda tinha as chaves.

 

As jarras encheram-se de borbulhante vinho. Um grande suspiro saiu do peito dos homens; um suspiro de alívio por tudo ter acabado.

 

Pilon bebeu um grande trago.

 

- Danny - disse -, aquele porco do Torrelli veio cá esta manhã com aldrabices. Trazia um papel e disse que tu o tinhas assinado.

 

Danny ficou embaraçado.

 

- Onde é que está esse papel? - inquiriu.

 

- Bem - continuou Pilon-, nós sabíamos que era mentira, de maneira que o queimámos. Tu não o assinaste, pois não?

 

- Não - respondeu Danny, metendo a jarra à boca e acabando com o vinho.

 

- Era óptimo termos qualquer coisa de comer - observou Jesus Maria.

 

Danny sorriu com doçura.

 

- Já me esquecia. Num desses sacos há três frangos e um bocado de pão.

 

Tão grandes foram o prazer e o alívio de Pilon, que se levantou e fez um pequeno discurso.

 

- Onde é que há um amigo como o nosso amigo? -• declamou.-- Abriga-nos do frio em sua casa, partilha connosco a sua boa comida e o seu belo vinho. Oh, que homem generoso, que amigo tão querido!

 

Danny ficou enleado e, pondo os olhos no chão, murmurou:

 

- Não tem importância; não há mérito nenhum nisso.

 

A alegria de Pilon, porém, era tão grande que abarcava o mundo e até mesmo as suas coisas más.

 

- Um dia destes temos de ter um gesto simpático para com o Torrelli.

 

Da tristeza de Danny. Como os amigos de Danny se sacrificaram e deram uma festa. Como Danny foi trasladado

 

QUANDO, depois do seu amok, Danny voltou para casa e para os seus amigos, vinha, não ralado de remorsos, mas sim muito cansado. A sua alma fora dedilhada pelos ásperos dedos da violenta experiência. Começou a viver de uma maneira apática, levantando-se da cama unicamente para se sentar no telheiro debaixo da roseira-de-castela, erguendo-se do telheiro apenas para comer, só saindo da mesa para se deitar. As conversas corriam à sua volta, ele ouvia-as, mas não se interessava. A Cornelia Ruiz teve uma rápida e soberba série de maridos e em Danny não se produziu a mínima emoção. Quando, uma noite, Big Joe se meteu na cama dele, foram Pilon e Pablo que tiveram de o expulsar de lá, tão apático Danny estava. Quando Sammy Rasper, armado e com um galão de whisky, festejou uma Véspera de Ano Novo já muito fora de época, matou uma vaca e foi parar à cadeia, não conseguiram sequer arrastar Danny para a discussão da moral do caso, embora os argumentos fervilhassem à sua volta e o seu parecer fosse apaixonadamente solicitado.

 

Não tardou muito que os amigos não começassem a ficar preocupados por causa dele.

 

- Está mudado - disse Pilon. - Está velho. Jesus Maria sugeriu:

 

- Em três breves semanas o Danny gozou tudo o que há de bom para gozar numa vida inteira. Fartou-se de prazeres.

 

Debalde os amigos tentaram tirá-lo da caverna da sua apatia. De manhã, no telheiro, contavam as histórias mais divertidas que conheciam. Narravam os pormenores da vida amorosa da Tortilla Flat com tanta agudeza que teriam conquistado o interesse de uma aula de anatomia. Pilon esquadrinhava a Tortilla Flat à procura de notícias e trazia para casa tudo quanto tivesse o mínimo interesse para Danny; mas nos seus olhos lia-se a idade e o cansaço.

 

- Tu não andas bem - insistia em vão Jesus Maria. - Há qualquer amargo segredo no teu coração.

 

- Não - replicava Danny.

 

Repararam que deixava as moscas pousarem-lhe nos pés durante muito tempo e que, quando as afugentava, o fazia desajeitadamente. A pouco e pouco, a boa disposição, a gargalhada pronta, foram desaparecendo da casa de Danny e precipitaram-se no escuro charco da sua inacção.

 

Oh, que pena dava ver esse Danny que lutara por causas perdidas ou de qualquer outro género; esse Danny que era capaz de beber fosse com quem fosse; esse Danny que respondia ao apelo do amor como um tigre enfurecido! Agora passava o tempo sentado no telheiro, sentado ao sol, de blue-jeans, os joelhos levantados contra o peito, os braços caídos, as mãos balouçando-lhe dos pulsos sem vigor, a cabeça pendendo para a frente como se nela houvesse um negro e pesado pensamento. Nos seus olhos não se lia o prazer, nem o descontentamento, nem a alegria, nem a dor.

 

Pobre Danny, como a vida te abandonou! Aqui estás sentado como o primeiro homem antes de o mundo crescer à sua volta; e como o último, depois de o mundo se ter consumido. Mas repara, Danny! Não estás só. Os teus amigos estão presos a esse teu estado! Olham para ti pelo canto do olho. Semelhantes a cães atentos ao primeiro gesto de despertar que o dono possa fazer, eles esperam. Uma palavra alegre da tua parte, Danny, um olhar jovial, e eles põem-se a ladrar e a dar ao rabo. Não te pertence mandares na tua vida, Danny, porque ela controla outras vidas. Vê como os teus amigos sofrem! Desperta para a vida, Danny, para que os teus amigos vivam de novo!

 

Foi isto, na verdade, embora não em palavras tão bonitas, o que Pilon disse. Depois, erguendo uma jarra com vinho, deu-a ao Danny.

 

- Anda lá - disse -, sai-me dessa casca.

 

Danny pegou na jarra e bebeu o vinho. Em seguida voltou à sua inquietação e tentou de novo encontrar o seu Nirvana emocional.

 

- Dói-te alguma coisa? - perguntou Pilon.

 

- Não - respondeu Danny.

 

Pilon vazou-lhe outra jarra de vinho e observou-lhe o rosto enquanto o vinho desaparecia. Os olhos ganharam um certo brilho. Algures, lá no fundo, o velho Danny emergiu por um momento para a vida. Matou uma mosca com uma pancada digna de um mestre.

 

Lentamente, um sorriso alastrou no rosto de Pilon. Mais tarde reuniu os amigos todos, Pablo, Jesus Maria, Big Joe, o Pirata, Johnny Pom-Pom e Tito Ralph.

 

Levou-os para a ravina por detrás da casa.

 

- Dei-lhe o resto do vinho e fez-lhe bem. O que ele precisa é de muito vinho, e talvez de uma festa. Onde é que se pode arranjar vinho?

 

Esquadrinharam mentalmente todas as possibilidades de Monterey, como cães rateiros num celeiro, mas não havia ratos. Estes amigos eram movidos por um altruísmo mais puro do que a maioria dos homens e capaz de conceber. Tinham amor por Danny.

 

Por fim, Jesus Maria disse:

 

- No Chin Kee anda-se agora na embalagem das lulas.

 

A mente dos amigos saltou como uma mola, andou à roda da coisa com curiosidade, olhou-a, recuou furtivamente e cheirou-a. Passaram-se alguns momentos antes que as suas chocadas imaginações pudessem habituar-se à ideia.

 

- Mas, porque não? - discorreram eles em silêncio. - Um dia não era assim tão mau... mas só um dia.

 

Os rostos revelavam o progresso da batalha e o modo como, no interesse de Danny, os receios iam sendo vencidos.

 

- Vamos a isso - disse Pilon. - Amanhã vamos cortar lulas e à noite damos uma festa em honra de Danny.

 

Quando, na manhã seguinte, Danny acordou, a casa estava deserta. Levantou-se da cama e percorreu os quartos silenciosos. Mas não era homem para perder muito tempo a cismar. Desistiu de encarar o facto como um problema e depois deixou de pensar nele. Foi para o telheiro e sentou-se, apático

 

Será uma premunição, Danny? Tens medo do destino que se abeira de ti? Já não descobres prazeres na vida? Não. Danny contínua mergulhado em si mesmo como o tem feito durante a semana

 

A Tortilla Flat, pelo contrário, está bem diferente. O boato espalhou-se cedo. «Os amigos do Danny andam a cortar lulas no Chin Kee.» Tratava-se de um prodígio semelhante à queda de um governo ou mesmo do sistema solar- Fala-se dele na rua, era participado por cima das vedações dos quintais a mulheres que, por seu turno, se apressavam para contá-lo. «Os amigos do Danny andam a cortar lulas no Chin Kee.»

 

A manhã estava tensa de novidades. Devia haver alguma razão, algum segredo. Mães deram instruções aos filhos e mandaram-nos a correr à fábrica do Chin Kee. Atrás das cortinas havia moças recém-casadas, ansiosamente esperando as últimas notícias. E as notícias chegaram.

 

«Pablo deu um golpe na mão com uma faca de cortar lulas.»

 

«Chin Kee deu pontapés nos cães do Pirata.»

 

Zaragata.

 

«Os cães voltaram.»

 

«Pilon anda carrancudo.»

 

Fizeram-se algumas apostas de pouco dinheiro. Havia meses que não acontecia nada de tão excitante. Durante uma semana inteira nem uma só pessoa falou da Cornelia Ruiz. Só ao meio-dia vieram a público notícias dignas de crédito, mas vieram de um jacto-

 

«Vão dar uma festa em honra de Danny.»

 

«Toda a gente vai.»

 

Do pátio da fábrica começaram a emergir instruções. A Sr.a Morales limpou o pó do gramofone e escolheu os discos mais barulhentos que tinha. Saltara uma faísca e a Tortilla

 

Flat era uma mecha. É que eram sete amigos que iam dar uma festa en honra de Danny! Dito assim, parece que Danny só tinha sete amigos! A Sr.a Soto desceu ao retiro das galinhas com uma machadinha na mão. A Sr.a Palochico despejou um cartucho de açúcar no seu maior tacho para fazer um bolo. Uma delegação de raparigas foi à loja Woolworth, em Monterey, comprar toda a existência de papel crepe de cor que havia. Por toda a Tortilla Flat as violas e os acordeões fizeram ouvir a sua voz ao serem experimentados.

 

«Notícias! Mais notícias do pátio da fábrica. Vão dar a festa. Estão decididos. Terão pelo menos catorze dólares. Vejam lá se há catorze garrafões de vinho a postos.»

 

Torrelli não tinha mãos a medir. Toda a gente queria comprar um garrafão para levar para casa de Danny. O próprio Torrelli, apanhado na fúria do movimento, disse à mulher:

 

- Talvez a gente lá vá a casa dele- Levo alguns garrafões para os meus amigos.

 

À medida que a tarde decorria, nuvens de entusiasmo desabaram sobre a Tortilla Flat. Vestidos guardados durante uma vida inteira foram tirados das malas e pendurados ao ar. Xailes, há duzentos anos cobiçados pelas traças, estavam suspensos de gradeamentos e exalavam um cheiro a naftalina.

 

E Danny? Danny estava sentado como um homem meio consumido, só se deslocando quando o Sol se deslocava. Se se deu conta de que nessa tarde todos os moradores da Tortilla Flat haviam transposto a sua porta, não o mostrou. Pobre Danny! Pelo menos doze pares de olhos observavam o portão da frente. Por volta das quatro levantou-se, espreguiçou-se e saiu do pátio a caminho de Monterey.

 

Mal o perderam de vista, vá de torcer e de esticar papéis crepe vermelhos, verdes, amarelos. Depois, toca de raspar velas, e atirar as aparas para o chão. E era ver as crianças a esfregar sem descanso a cera no soalho.

 

Apareceu comida. Tigelas de arroz, panelas com frangos a fumegar, pudins de maçã que eram um regalo! E veio vinho, garrafões e garrafões dele. Martinez desenterrou um barrilito de aguardente de batata do seu monte de esterco e levou-o para casa de Danny.

 

Às cinco e meia os amigos começaram a subir a colina, cansados e ensanguentados, mas triunfantes- Devia ser este o aspecto da Velha Guarda quando voltou para Paris depois de Austerlitz. Viram a casa cheia de agressivas cores. Riram e o cansaço abandonou-os. Ficaram tão felizes que as lágrimas lhes chegaram aos olhos.

 

Mama Chipo avançou pelo pátio seguida dos seus dois filhos que seguravam, um de cada lado, uma cuba de barreia cheia de salsa pura. Paulito, esse rico patife, espevitou o fogo debaixo de uma grande panela de feijões e chili. Berros, pedaços de cantigas, gritos de mulheres, a algazarra que as crianças em alvoroço faziam por todo o lado.

 

Um carro cheio de apreensivos polícias subiu a colina vindo de Monterey.

 

«Oh, é só uma festa! Pois claro que bebemos um copo. Não matem é ninguém.»

 

Onde está o Danny? Solitário como fumo numa noite clara e fria, vagueia por Monterey nesse princípio de tarde. Vai aos Correios, à estação, aos salões de jogo da Rua Alvarado, aos cais onde as negras águas se lamentam entre os postes. Que é isso, Danny? Que é que te faz sentir assim? Danny não sabia. O coração doía-lhe como se se despedisse de uma mulher querida; havia nele uma mágoa difusa semelhante à desesperança do Outono. Passou pelos restaurantes cujo cheiro costumava despertar-lhe interesse, e não sentiu em si qualquer apetite. Passou junto ao grande estabelecimento da Madame Zuca e não trocou quaisquer gestos obscenos com as raparigas que estavam às janelas. De novo se dirigiu ao cais. Debruçou-se na vedação e olhou para a água profunda, profunda. Sabes tu, Danny, como o vinho da tua vida está sendo vazado nas jarras de fruta dos deuses? Vês a procissão dos teus dias nas águas oleosas entre os postes? Permaneceu imóvel fitando a água. Quando começou a escurecer, em casa de Danny ficaram preocupados. Os amigos abandonaram a festa e dirigiram-se ràpidmente a Monterey. Perguntaram:

 

- Viram o Danny?

 

- Vimos, passou por aqui há uma hora, ia devagar. Pablo e Pilon procuraram juntos. Seguiram o rasto do amigo, até que o viram no fim do escuro molhe. Estava iluminado pela pálida luz eléctrica do cais. Precipitaram-se para ele.

 

Pablo não fez então qualquer referência, mas depois, sempre que Danny era mencionado, costumava descrever o que vira, quando ele e Pilon se tinham dirigido ao seu encontro no cais.

 

- Lá estava - dizia sempre Pablo. - Só consegui vê-lo, a ele, encostado à vedação. Olhei para ele e então vi mais qualquer coisa. A princípio pareceu-me que era uma nuvem negra que estava por cima da cabeça de Danny- Mas depois vi que era um grande pássaro preto, tão grande como um homem. Pairava no ar como um falcão por cima da toca de um coelho. Fiz o Sinal-da-Cruz e disse duas ave-marias. Quando chegámos ao pé de Danny, já o pássaro desaparecera.

 

Pilon nada vira. De resto, Pilon não se lembrava de Pablo se ter benzido e dito as ave-marias. Mas nunca interferira na narração porque a história era de Pablo.

 

Caminharam rapidamente em direcção a Danny; as pranchas do molhe soltavam um ruído surdo debaixo dos seus pés. Danny não se voltou. Eles pegaram-lhe pelos braços e fizeram-no voltar-se.

 

- Danny! Que se passa?

 

- Nada. Estou bem.

 

- Estás doente, Danny? N -Não.

 

- Então que é que te faz tão triste?

 

- Não sei - disse Danny. - Sinto-me assim, é só. Não quero fazer nada.

 

- Talvez um médico pudesse dar com o que tens, Danny.

 

- Já vos disse que não estou doente.

 

- Então olha - exclamou Pilon. - Estamos a dar uma festa em tua honra lá em tua casa. Toda a gente de Tortilla Fiat está presente. Temos música e vinho e frangos! Há para aí uns vinte ou trinta garrafões de vinho, e papel brilhante, pendurado. Não queres vir?

 

Danny inspirou profundamente. Voltou-se por um momento para a água profunda e negra. Talvez ele murmurasse aos ouvidos dos deuses uma promessa ou um desafio.

 

Voltou-se rapidamente para os amigos. Havia febre nos seus olhos.

 

- Pois claro que quero ir- Despachem-se. Tenho sede. Há lá raparigas?

 

- Montes delas. Todas as raparigas.

 

- Então embora. Aviemo-nos.

 

Com Danny na dianteira, subiram a colina a correr. Muito antes de chegarem já ouviam os doces sons da música através dos pinheiros, e as agudas notas de vozes felizes e excitadas. Os três chegaram estafados de correr. Danny ergueu a cabeça e uivou como um coiote. Braços estenderam jarros de vinho ao seu encontro. Bebeu um gole de cada um.

 

Aquilo é que foi uma festa! Mais tarde, sempre que um homem falava de uma festa com entusiasmo, era certo e sabido que havia alguém que dizia com reverência: «Foste àquela festa lá em casa do Danny?» E, a não ser que o primeiro interlocutor fosse um recém-chegado, ele tinha lá estado. Aquilo é que foi uma festa! Ninguém mais tentou dar uma melhor. Tal coisa era impensável; de facto, dois dias depois, a festa de Danny era erguida a umas alturas que a punham acima de toda a possível comparação com todas as festas jamais realizadas. Qual foi o homem que saiu de lá nessa noite sem alguns gloriosos golpes ou escoriações? Nunca houvera tanta pancadaria; não foram lutas entre dois homens, mas devastadoras batalhas em que participaram cachos de homens, cada um lutando contra os outros. Oh, as gargalhadas das mulheres! Finas, altas e frágeis como lã de vidro. Oh, os femininos gritinhos de protesto que se elevavam da ravina! Na semana seguinte o Padre Ramón, absolutamente aterrado e incrédulo, ouviu as confissões. Toda alma feliz de Tortilla Flat rompeu com as restrições e se elevou nos ares, unida em êxtase. Dançou-se tanto que o soalho cedeu num dos cantos. Os acordeões tocaram tão alto que ficaram para sempre pulmoeirados como cavalos arruinados dos brônquios.

 

E Danny... tal como esta festa, não sofreu comparação. Também Danny pediu meças como festejador. Diga no futuro algum pateta pretensioso cheio de alvoroço: «Viste-me? Viste-me pedir àquela preta para dançar? Viste a gente andar à volta, à volta como dois gatos?», que algum olho velho, sábio e saudoso se voltará para ele; que alguma voz farta de ter conhecido o limite das possibilidades perguntará calmamente: «Viste o Danny na noite da festa?»

 

Algum dia um historiador escreverá, talvez, uma fria e morbosa história da Festa. Possivelmente referir-se-á ao momento em que Danny, empunhando a perna de uma mesa, desafiou e atacou toda a gente, homens, mulheres e crianças. E poderá concluir: «Observa-se com frequência que um organismo moribundo é capaz de uma resistência e de uma força extraordinárias.» Em referência à sobre-humana actividade amorosa de Danny nessa noite, o mesmo historiador é capaz de escrever com mão firme: «Quando qualquer organismo vivo é atacado, toda a sua função parece dirigir-se para a reprodução.»

 

Mas eu digo, e toda a gente de Tortilla Flat o diria: «Vá para o diabo com isso! Danny era um homem a valer!» Ninguém tomou verdadeiramente nota e, mais tarde, naturalmente, mulher alguma admitiria de bom grado ter sido ignorada; por esse motivo é possível que a reputada proeza de Danny seja um tanto exagerada. Um décimo disto seria um exagero para qualquer pessoa.

 

Onde quer que Danny fosse, surgia uma grandiosa loucura. Afirmou-se apaixonadamente na Tortilla Flat que Danny, só ele, bebeu três garrafões de vinho. É preciso não esquecer, contudo, que agora Danny é um deus. Dentro de alguns anos são capazes de dizer trinta garrafões. Daqui a vinte anos é possível que se lembrem distintamente que as nuvens se inflamaram e formaram o nome DANNY com letras tremendas; que da Lua pingava sangue; que nas montanhas da Via Láctea o lobo do mundo uivou profeticamente.

 

A pouco e pouco, aqueles cuja massa era menos rija do que a de Danny começaram a esmorecer, a abrandar, a escapar-se à socapa. Os que ficaram, sentindo a falta, berraram mais alto, lutaram mais traiçoeiramente, dançaram com maior animação. Em Monterey os motores dos carros da bomba foram postos a funcionar, e os bombeiros, de capacetes de estanho vermelho e capas de borracha, sentaram-se silenciosos em seus lugares e aguardaram.

 

A noite passou rapidamente e Danny não abrandou na sua violenta agitação.

 

O que aconteceu é atestado por muitas testemunhas, tanto homens como mulheres. E embora o seu valor como testemunhas seja alguma vez posto em dúvida com base no facto de terem bebido trinta garrafões de vinho e um pequeno barril de aguardente de batata, essas pessoas estão obstinadamente certas dos pontos principais. Levou algumas semanas a arruinar esta história; uns afirmavam uma coisa, outros diziam outra. Mas, pouco a pouco, a narração foi-se tornando clara e ganhou a forma plausível que actualmente tem e terá.

 

Danny, diz a gente de Tortilla Flat, mudara rapidamente de aspecto. Tornara-se num homem enorme e terrível. Os seus olhos brilhavam como os faróis de um automóvel. Havia nele qualquer coisa de temível. Lá estava ele, de pé, no quarto da sua própria casa. Na mão direita empunhava a perna da mesa e até essa tinha crescido. Danny desafiava o mundo.

 

- Quem quer lutar? - gritou. - Há alguém neste mundo que não tenha medo?

As pessoas tiveram medo. Aquela horrível perna da mesa, tão viva, tornara-se o terror de todos eles. Danny brandiu-a para a frente e para trás. O som dos acordeões descaiu para um arfar e cessou. Os pares que dançavam estacaram. O quarto ficou gelado e o silêncio pareceu rugir no ar como um oceano.

 

- Ninguém? - gritou Danny de novo. - Então estou sozinho no mundo? Ninguém quer lutar comigo?

 

Os homens estremeceram perante os seus terríveis olhos e observaram fascinados a cutilante trajectória que a perna da mesa descrevia no ar. E ninguém aceitou o desafio.

 

Danny retesou-se. Dizem que por pouco a sua cabeça quase tocava no tecto.

 

- Então irei ter com Aquele que é capaz de lutar. Encontrarei o Inimigo digno de Danny!

 

Encaminhou-se para a porta a passos largos, mas um pouco cambaleantes. As pessoas, aterrorizadas, abriram uma larga senda para ele passar. Curvou-se para sair na porta. As pessoas ficaram imóveis e escutaram.

 

Ouviram-no lá fora bramar o seu desafio. Ouviram a perna da mesa silvar como um meteoro pelo ar fora. Ouviram o estrépito dos seus passos a descer o pátio. E, depois, por detrás da casa, na ravina, ouviram uma resposta ao desafio, tão terrível e tão gelada que a espinha dorsal lhes ficou frouxa como caules de nastúrcio sob geada. Mesmo presentemente, quando as pessoas falam no Adversário de Danny, baixam a voz e olham furtivamente em redor. Ouviram Danny precipitar-se para a luta. Ouviram o seu último agudo grito de desafio e depois um baque. E o silêncio.

 

Durante um longo momento as pessoas esperaram, suspendendo a respiração para que o áspero fluir do ar vindo dos seus pulmões não abafasse som nenhum. Mas em vão escutaram. A acalmia descera sobre a noite e o cinzento despontar do dia aproximava-se.

 

Pilon quebrou o silêncio.

 

-Que teria acontecido? - exclamou.

 

E Pilon foi o primeiro a precipitar-se pela porta fora- Homem corajoso, não havia terror que o detivesse. Os outros seguiram-no. Foram atrás da casa, onde se tinham ouvido os passos de Danny. Nem sinal dele. Chegaram à borda da ravina, onde um íngreme carreiro em ziguezague descia até ao fundo daquele antigo curso de água seco há muitas gerações. As pessoas que seguiam Pilon viram-no descer velozmente o carreiro. Lentamente, foram atrás dele. Encontraram-no no fundo da ravina, debruçado sobre Danny que estava feito num molho. Tinha caído de treze metros de altura. Pilon acendeu um fósforo.

 

- Parece-me que está vivo - berrou. - Vão buscar um médico. Tragam o Padre Ramón.

 

O povo espalhou-se. Quinze minutos depois, quatro médicos eram acordados e arrancados da cama por frenéticos paisanos. Não lhes permitiram aquela lentidão nas deliberações pela qual os médicos gostam de mostrar que não são escravos das emoções. Não! Foram acotovelados, atirados para a frente, empurrados, as caixas dos instrumentos foram-lhes atiradas para as mãos por homens desesperadamente incapazes de dizer o que queriam. O Padre Ramón, arrancado da cama, subiu ofegante a colina, sem saber ao certo se ia esconjurar o Diabo, baptizar um recém-nascido que estivesse à morte, ou assistir a um linchamento. Entretanto, Pilon, Pablo e Jesus Maria subiram a colina transportando Danny e deitaram-no na cama. À volta dele colocaram velas. Danny respirava pesadamente.

 

Os médicos foram os primeiros a chegar. Deitaram um rápido e suspicaz olhar uns para os outros, tendo em vista a precedência. Esse momento de demora, porém, provocou expressões ameaçadoras nos olhos dos circunstantes. Não levaram muito tempo a examinar Danny. Já tinham acabado quando o Padre Ramón chegou.

 

Não entrarei no quarto com o Padre Ramón, pois Pilon, Pablo, Jesus Maria, Big Joe, Johnny Pom-Pom, Tito Ralph, o Pirata e os cães encontravam-se lá; e eles eram a família de Danny. A porta estava, e está, fechada.

 

Pois, apesar de tudo, há orgulho no homem e não é decente espreitar certas coisas.

 

Mas no quarto grande, onde o povo de Tortilla Flat se apinhava a ponto de sufocar, havia tensão e um silêncio expectante. Padre e médicos desenvolveram um subtil meio de comunicação. Quando o Padre Ramón saiu do quarto de dormir, o seu rosto não mudara; mas, ao vê-lo, as mulheres romperam num ruidoso e terrível pranto. Os homens rasparam os pés no chão como cavalos em cavalariça e depois saíram. O dia despontava. O quarto de Danny permaneceu fechado.

 

Como o luto dos amigos de Danny desafiou as convenções. Como a Talismânica Aliança foi destruída pelo fogo. Como os amigos se foram embora sozinhos

 

A morte é um assunto pessoal que provoca tristeza, desespêro, ou furor ou uma endurecida filosofia. Os funerais, por outro lado, são funções sociais. Imagine-se ir a um enterro sem primeiro dar brilho ao carro. Imagine-se estar-se à beira da campa sem se ter vestido o melhor fato escuro e calçado os melhores sapatos pretos, primorosamente engraxados. Imagine-se enviar-se flores para um funeral sem fazer acompanhar o ramo de um cartão para se provar que se tornou a atitude correcta. Em nenhuma instituição social é o ritual codificado do comportamento mais rígido do que nos funerais. Imagine-se a indignação se o padre alterasse o sermão ou ensaiasse expressões faciais. Calcule-se o choque se, nos velatórios, se usassem outras cadeiras que não aquelas cadeirinhas de tortura amarelas, articuladas e de assentos rijos. Não. Moribundo, um homem pode ser amado, odiado, chorado, lamentado; mas, uma vez morto, passa a ser o principal ornamento de uma celebração social complicada e formal.

 

Danny estava morto, morto há dois dias; e já deixara de ser o Danny. Embora o rosto das pessoas estivesse decente e sentidamente velado de tristeza, havia alvoroço nos corações. O Governo prometera um funeral militar a todos os seus filhos ex-soldados que o desejassem. Danny foi o primeiro da Tortilla Flat a morrer e o povo estava pronto a pôr à prova as promessas do Governo. Já se havia informado o Presídio, e o corpo de Danny tinha sido embalsamado a expensas do Governo. Já se havia pintado de novo uma caixa de munições que fora colocada, à espera, no telheiro de artilharia com uma bela bandeira nova, dobrada, sobre um dos extremos. Já fora redigida a ordem do dia referente a sexta-feira:

 

«Funeral, dez e cinquenta da manhã. Escolta, Esquadrão A

- Cavalaria n, Banda e Secção da’Cavalaria n.»

 

Não era isto motivo suficiente para que todas as mulheres da Tortilla Flat fossem ver as montras da National Dollar Store, em Monterey? Durante o dia, crianças de tez escura calcorrearam as ruas da cidade pedindo flores dos jardins para o funeral de Danny. E, à noite, as mesmas crianças visitaram os mesmos jardins para aumentarem os seus ramos.

 

Na festa tinham-se usado as melhores roupas. Durante o intervalo de dois dias, essas roupas tiveram de ser limpas, lavadas, engomadas, remendadas e passadas a ferro. A actividade era frenética; o alvoroço decentemente intenso.

 

Na tarde do segundo dia, os amigos estavam reunidos em casa de Danny. O choque e o vinho haviam passado; estavam horrorizados, visto que, em toda a Tortilla Flat, só eles, as pessoas que mais tinham amado a Danny, que mais tinham recebido das suas mãos, só eles, os paisanos, é que não podiam ir ao funeral. Haviam já tomado consciência desta aterradora tragédia através do nebuloso estado de espírito causado pelas dores de cabeça, mas só nessa tarde a situação se tornava tão concreta que tinha de ser encarada. Em geral, nas suas roupas não havia ponta por onde se lhes pegasse. A festa pusera anos em cima das calças e das camisas azuis. Onde é que havia calças que não estivessem rotas nos joelhos? Onde é que havia uma camisa que não estivesse rasgada? Se fosse outra pessoa que tivesse morrido, podiam pedir roupas emprestadas; mas não havia ninguém na Tortilla Flat que não levasse ao funeral os seus melhores fatos. Só Cocky Riordan não ia, mas Cocky estava de quarentena por causa das bexigas e a roupa também. Pode pedir-se ou roubar-se dinheiro para se comprar um bom fato, mas dinheiro para seis fatos era simplesmente impossível de arranjar.

 

Pode perguntar-se: Eles não gostavam suficientemente de Danny para irem esfarrapados ao funeral? Iria alguém coberto de andrajos estando os vizinhos vestidos a primor? Não seria maior o desrespeito por Danny se fossem esfarrapados, do que, pura e simplesmente, não aparecessem?

 

O desespero que lhes enchia o coração era incalculável. Amaldiçoaram o destino. Pela porta da frente viam o Gálvez exibindo-se. O Gálvez comprara um fato novo para o funeral e usava-o já com vinte e quatro horas de antecedência. Os amigos estavam sentados, de queixo apoiado na mão, esmagados pela sua má sorte. Todas as possibilidades haviam sido discutidas.

 

Pela primeira vez na sua vida, Pilon descera ao absurdo.

 

- Cada um de nós podia, esta noite, ir roubar um fato sugeriu.

 

Sabia que era uma proposta idiota, pois nessa noite todos os fatos estariam colocados numa cadeira ao lado da cama. Era morte certa roubar um fato.

 

- O Exército de Salvação às vezes dá fatos - disse Jesus Maria.

 

- Já lá estive - volveu Pablo. - Desta vez têm catorze vestidos, mas nem um fato.

 

De todos os lados o destino estava contra eles. Tito Ralph entrou com o seu novo lenço verde emergindo do bolso do peito, mas a hostilidade que provocou fê-lo sair do quarto pedindo desculpa.

 

- Se tivéssemos uma semana à nossa frente, podíamos ir cortar lulas - disse Pilon com heroicidade mas o funeral é amanhã. Temos de olhar bem de frente para esta coisa. É claro que a gente pode mesmo ir ao funeral.

 

-- Como? - quiseram os amigos saber.

 

- Podemos ir no passeio, enquanto a banda e as pessoas desfilam no meio da rua. Há erva a toda a volta do cemitério. Podemos deitar-nos na erva e assistir a tudo.

 

Os amigos olharam para Pilon com gratidão. Sabiam como a sua aguda inteligência tinha estado a estudar todas as possibilidades. Mas assistir ao funeral era apenas metade, menos de metade. Ser visto no funeral era a metade mais importante. Era o melhor que se podia fazer.

 

--Com isto aprendemos uma lição - disse Pilon. - Temos de meter bem na cabeça que devemos ter sempre disponível um fato em condições. Nunca se sabe o que pode acontecer.

 

Deixaram as coisas neste pé, mas sentiam que tinham falhado. Toda a noite vaguearam pela cidade. Que quintal não foi despojado das suas mais belas flores? Que árvore em flor ficou de pé? De manhã, a cova no cemitério que iria receber o corpo de Danny estava quase escondida por montes das mais belas flores tiradas dos melhores jardins de Monterey.

 

Nem sempre a Natureza dispõe os seus efeitos com bom gosto. De facto, choveu antes de Waterloo; treze metros de altura atingiu a neve no caminho do Donner Party. Na sexta-feira, porém, o tempo esteve lindo. O Sol nasceu como se nesse dia fosse haver um piquenique. As gaivotas voaram através da sorridente baía para as fábricas de conserva de sardinha. Os pescadores à linha tomaram lugar nas rochas à espera da baixa-mar. O Palace Drug Company desceu os toldos para proteger os sacos de água quente, expostos na montra, da acção química do sol. O Sr. Machado, o alfaiate, pôs um cartaz na janela: «Volto dentro de dez minutos», e foi para casa vestir-se para o funeral. Três arrastões entraram na baía carregados de sardinha. Louie Duarte pintou o barco e mudou-lhe o nome de «Lolita» para «Os Três Primos». Jake Lake, o polícia, prendeu um ciclista de Del Monte, deixou-o ir-se embora e comprou um charuto.

 

É um enigma. Como é que a vida pode prosseguir o seu estúpido curso num dia destes? Como é que Mamie Jackson pode regar o passeio em frente de casa? Como é que George W. Merk pode escrever a sua quarta e mais azeda carta à Companhia das Águas? Como é que Charlie Marel pode estar tão nojentamente bêbedo como de costume? É um sacrilégio. É um ultraje.

 

Os amigos de Danny acordaram tristes e levantaram-se do chão. A cama de Danny estava vazia. Era como a montada de um oficial que acompanha o dono à cova. Nem Big Joe lançara um olhar cobiçoso à cama de Danny. O sol brilhou

com entusiasmo através da janela e projectou no chão as delicadas sombras das teias de aranha.

 

- O Danny ficava contente em manhãs como esta - disse Pilon.

 

Depois de terem ido à ravina, os amigos sentaram-se por uns instantes no telheiro e exaltaram a memória do amigo. Lealmente, recordaram e proclamaram a virtude de Danny. Lealmente, esqueceram-se dos seus defeitos.

 

- E forte - disse Pablo. - Forte como um touro. Era capaz de levantar um fardo de feno.

 

Contaram curtas histórias acerca de Danny, da sua bondade, da sua coragem, do seu bom coração.

 

Em breve se fez horas de irem para a igreja e de atravessar a rua envergando os seus farrapos. Goraram interiormente quando, gente mais feliz do que eles, gente bem vestida e cheirando tanto a Água Florida, entrou na igreja- Podiam ouvir a música e o penetrante zumbido produzido na missa. Do seu ponto de observação viram chegar a cavalaria e a banda de tambores cobertos de panos pretos, a secção que iria fazer a descarga, a caixa com os seus três pares de cavalos e um cavaleiro no cavalo de sela de cada parelha. O lamentoso clope-clope das ferraduras dos cavalos contra o asfalto encheu de desespero o coração dos amigos de Danny. Viram, sem que nada pudessem fazer, o caixão ser trazido da igreja, colocado em cima da caixa de munições e ornamentado pela bandeira que o cobriu. O oficial apitou, ergueu a mão e fez um gesto para a frente. Os soldados voltaram para baixo o cano das armas e romperam a marcha ao som do lento e pungente rufo dos tambores. A banda executou a sua arrastada marcha. A caixa das munições moveu-se. Atrás, num passo majestoso, caminhavam os homens empertigados e graves, as mulheres erguendo graciosamente as saias do rasto indelével dos cavalos. Toda a gente estava lá, Cornelia Ruiz, a Sr.a Morales, Gálvez, Torrelli e a sua rechonchuda esposa, a Sr,a Palochico, Tito Ralph o traidor, Sweets Ramirez, o Sr. Machado, enfim, todos que na Tortilla Flat valiam alguma coisa e também os que não valiam.

 

É, pois, de espantar que os amigos não pudessem suportar a vergonha e o sofrimento que isto lhes causava? Durante um bocado, ainda lá foram pelo passeio fora, um tanto cosidos à parede, escorados pelo heroísmo.

 

Jesus Maria foi o primeiro a ceder. Soluçando de vergonha, pois o seu pai havia sido um rico e respeitado boxeur, baixou a cabeça e desatou a fugir; os outros cinco amigos seguiram-no e, atrás deles, saltaram os cães.

 

Antes de se avistar o préstito fúnebre, já os amigos de Danny estavam deitados na erva que rodeava o cemitério. Foi uma cerimónia breve e militar. Baixaram o caixão; as armas detonaram; a corneta deu os toques e, ao ouvi-los, Enrique, Fluff, Pajarito, Rudolph e o Senor Alec Thompson atiraram a cabeça para trás e puseram-se a uivar. O Pirata ficou orgulhoso dos seus cães!

 

Acabou demasiado depressa; os amigos afastaram-se rapidamente para que as pessoas não os vissem.

 

Para irem para casa tinham, de qualquer modo, de passar pela loja do Torrelli, deserta naquela altura. Pilon entrou por uma janela e trouxe dois garrafões de vinho. Depois, dirigiram-se lentamente para a sossegada casa de Danny. Encheram cerimoniosamente as jarras e beberam.

 

- Danny gostava de vinho - disseram -, era feliz quando tinha uma pinga.

 

A tarde passou; a noite caiu. O vinho que iam bebendo levava-os a vaguear pelo passado. Às sete horas, um envergonhado Tito Ralph entrou, trazendo uma caixa de charutos que ganhara numa tômbola. Os amigos acenderam os charutos, cuspiram e abriram o segundo garrafão. Pablo tentou entoar algumas notas da canção «Tuli Pan», para ver se a voz não lhe tinha acabado de vez.

 

- Hoje a Cornelia estava sozinha - disse Pilon, especulativo.

 

- Talvez nos ficasse bem cantar algumas canções tristes alvitrou Jesus Maria.

 

- Mas o Danny não gostava de cantigas tristes - insistiu Pablo. - O que lhe agradava eram aquelas com vida, que falavam de mulheres mexidas.

 

Gravemente, todos exprimiram a sua concordância, fazendo um aceno de cabeça.

 

- Sim, para as mulheres não havia como ele.

 

Pablo tentou o segundo verso da «Tuli Pan» e Pilon ajudou-o um pouco; os outros acompanharam-no perto do fim.

 

Acabada a cantiga, Pilon puxou uma fumaça, mas o charuto apagara-se.

 

- Tito Ralph - disse -, porque é que não vais buscar a viola para a gente cantar melhor?

 

Acendeu um cigarro e atirou fora o fósforo com um piparote.

 

O pauzito aceso foi cair num jornal velho que estava encostado à parede. Levantaram-se para apagá-lo com os pés, mas voltaram a sentar-se; havia-lhes ocorrido um pensamento celestial. Fitaran-se nos olhos e ostentaram o sorriso sabedor de homens para quem a esperança e a morte não existem. Observaram, num devaneio, a chama tremular, quase morrer e depois brotar de novo para a vida. Viram-na formar uma flor no papel. Assim falam os deuses com tão diminutas causas. E os homens continuaram a sorrir à medida que o papel ardia e a seca parede de madeira era apanhada.

 

Assim tem de ser, ó sábios amigos de Danny. O vínculo que vos unia foi cortado- O íman que vos atraía perdeu o poder. A casa passará para as mãos de algum estranho, algum triste parente de Danny. Melhor é que este símbolo da amizade sagrada, esta bela casa de festas e lutas, de amor e conforto, morra como morreu Danny, num último, glorioso e desesperançado assalto aos deuses.

 

Sorriam. E a chama trepou até ao tecto como uma cobra e, rugindo, irrompeu através do telhado. Só então os amigos se levantaram das cadeiras e, como se estivessem a sonhar, saíram para a rua.

 

Pilon, que tirava proveito de todas as lições, levou o que restava do vinho. De Monterey uivaram as sereias. Os carros da bomba subiram a colina em segunda. A luz dos faróis ondeava pelo meio das árvores. Quando os bombeiros chegaram, a casa era uma enorme chama em forma de lança achatada. As mangueiras molharam as árvores e os arbustos para evitar a propagação do fogo.

 

Os amigos encontravam-se entre o monte de gente da Tortilla Flat. Fascinados, viram a casa transformar-se numa pilha de cinzas negras e fumegantes. Depois, os carros dos bombeiros deram a volta e desceram a colina, afastando-se.

 

A gente da Tortilla Flat dissolveu-se na escuridão. Os amigos de Danny continuaram a olhar para a fumegante ruína. Encararam-se uns aos outros estranhamente e em seguida olharam de novo para a casa queimada. Instantes depois, voltaram-se e afastaram-se lentamente, sem que, ao lado de um, outro caminhasse.

 

                                                                                John Steinbeck  

 

                      

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