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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MIRANTE / Michael Connelly
O MIRANTE / Michael Connelly

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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A LIGAÇÃO VEIO À meia-noite. Harry Bosch estava acordado na sala, no escuro. Ele gostava de pensar que fazia isso porque assim podia ouvir melhor o saxofone. Ao encobrir um dos sentidos, acentuava o outro.
Mas lá no fundo ele sabia a verdade. Estava esperando.
A ligação era de Larry Gandle, seu supervisor na Delegacia Espe­cial de Homicídios. Era a primeira ligação de Bosch no novo emprego. E era aquela pela qual estivera esperando.
— Harry, tá acordado?
— Tô.
— Que que é isso que cê tá ouvindo?
— Frank Morgan, ao vivo no Jazz Standard, em Nova York. O cara no piano é o George Cables.
— É “All Blues” que eles tão tocando?
— Acertou na mosca.
— Coisa boa. Detesto obrigar você a parar de ouvir.

 

 

 


 

 

 


Bosch usou o controle para desligar o som.

— Por que ligou, tenente?

— Hollywood quer que você e Iggy cuidem de um caso. Eles já tiveram três hoje e não dão conta de mais um. Esse aí também tem cara de que pode virar hobby. Parece execução.

O Departamento de Polícia de Los Angeles era dividido geogra­?camente em 17 setores, cada um com sua própria delegacia e seu de­partamento de investigação, incluindo um esquadrão de homicídios. Mas os
esquadrões divisionais eram a linha de frente e não podiam ?car atolados em casos prolongados. Quando um assassinato tinha conexões com a política, celebridades ou atenção da mídia, era geral­mente encaminhado
para a Especial de Homicídios, que operava a partir da Divisão de Roubos e Homicídios, em Parker Center. Todo caso parecendo particularmente difícil e demorado — e que invaria­velmente continuava em aberto
a ponto de virar um hobby — torna­va-se um candidato imediato para a Especial de Homicídios. Esse era um deles.

— Onde é? — perguntou Bosch.

— Naquele mirante no alto da represa da Mulholland. Sabe onde é?

— Sei, já subi lá uma vez.

Bosch levantou e foi até a mesa na sala de jantar. Abriu a gaveta de talheres e tirou uma caneta e um bloquinho. Na primeira página, escreveu a data e o lugar da cena do crime.

— Mais algum detalhe que eu deva saber? — perguntou Bosch.

— Não muita coisa — disse Gandle. — Como eu disse, descre­veram pra mim como execução. Dois tiros na parte de trás da cabeça. Alguém levou o cara lá pra cima e mandou os miolos dele pelos ares enquanto
observava a vista.

Bosch absorveu isso por alguns instantes antes de fazer a próxima pergunta.

— Já sabem a identidade da vítima?

— As outras divisões estão trabalhando nisso. Quem sabe já vão ter alguma coisa quando você tiver chegado lá. É praticamente aí do lado, não é?

— Não muito longe.

Gandle forneceu a Bosch mais detalhes sobre o local da cena do crime e perguntou a Harry se ele podia ligar para o seu parceiro. Bosch disse que cuidaria disso.

— Ok, Harry, dá um pulo lá e vê o que tá acontecendo, depois me liga e me informa. Pode me acordar. Não vai ser o primeiro.

Bosch pensou que era bem coisa de supervisor se queixar de ser acordado por alguém que ele rotineiramente iria acordar enquanto tra­balhassem juntos.

— Deixa comigo — disse Bosch.

Bosch desligou e telefonou em seguida para Ignacio Ferras, seu novo parceiro. Os dois ainda estavam se conhecendo. Ferras era vinte anos mais novo e pertencia a um outro mundo. A intimidade viria, Bos­ch
tinha certeza, mas iria chegar devagar. Sempre chegava.

Ferras acordou com o telefonema de Bosch, mas ficou alerta rapi­damente e pareceu ansioso em atender, o que era bom. O único proble­ma era que ele morava em Diamond Bar, o que adiava o horário previsto
de sua chegada à cena do crime em pelo menos uma hora. Bosch falara com ele sobre isso desde o primeiro dia em que foram designados como parceiros, mas Ferras não pensava em se mudar. Tinha a família co­mo
apoio em Diamond Bar e queria continuar contando com eles.

Bosch sabia que chegaria à cena do crime bem antes de Ferras e que isso signi?cava que teria de lidar com qualquer atrito divisional so­zinho. Assumir um caso longe do esquadrão divisional era sempre um
negócio delicado. A decisão era geralmente tomada pelos supervisores, não pelos detetives da Homicídios no local. Nenhum detetive da Ho­micídios digno do folheado a ouro em seu distintivo abriria mão de
um caso. Simplesmente não fazia parte do trabalho.

— Encontro você lá, Ignacio — disse Bosch.

— Harry — disse Ferras —, já falei pra você. Me chama de Iggy. Todo mundo chama.

Bosch não respondeu. Não queria chamar o rapaz de Iggy. Não achava condizente com o peso da função ou da incumbência. Queria que o parceiro se desse conta disso e parasse de pedir.

Bosch pensou em algo e acrescentou uma instrução, dizendo a Fer­ras para fazer um desvio em Parker Center quando estivesse a caminho e pegar o carro da prefeitura a que tinham direito. Isso iria atrasá-lo
em mais alguns minutos, mas Bosch planejava ir com seu próprio carro à cena do crime e sabia que tinha pouca gasolina.

— Ok, encontro você lá — disse Bosch, sem chamá-lo de um jeito nem de outro.

Desligou e apanhou o casaco no armário perto da porta da frente. Quando en?ava os braços nas mangas, deu uma olhada em si mesmo no espelho da porta. Aos 56 anos, continuava magro e em forma, e alguns quilos
a mais nem lhe cairiam mal, enquanto outros detetives da mesma idade ganhavam contornos redondos na cintura. Na Especial de Homicídios, havia uma dupla de detetives conhecida como Caixote & Barril de tanto
que haviam crescido para os lados. Bosch não tinha que se preocupar com isso.

Os ?os grisalhos em seu cabelo ainda não haviam vencido a bata­lha territorial contra os castanhos, mas a vitória estava próxima. Seus olhos escuros eram vivos e brilhantes, a postos para o desa?o que
o aguardava no mirante. No seu próprio entendimento, Bosch tinha uma visão básica sobre o trabalho com homicídios, a de que, assim que pu­nha o pé para fora da porta, iria onde quer que fosse — e faria
o que quer que fosse necessário — para cumprir sua missão. Isso o fazia se sentir à prova de balas.

Ele estendeu a mão esquerda cruzando-a pelo corpo para puxar a arma do coldre no lado direito do quadril. Era uma Kimber Ultra Carry. Checou rapidamente a câmara e o funcionamento e a enfiou de volta no
coldre.

Tudo pronto. Abriu a porta.

O tenente não soubera dizer grande coisa sobre o caso, mas numa coisa estava certo. A cena do crime não era longe da casa de Bosch. Ele desceu para Cahuenga e depois tomou a Barham pela Rodovia 101. De
lá, era um pulo, via Lake Hollywood Drive, até um bairro de ca­sas espalhadas pelas colinas que cercavam o reservatório e a Represa de ­Mulholland. Casas caras.

Contornou a cerca do reservatório, parando um momento quando cruzou com um coiote na estrada. Os olhos do animal refletiram os fa­róis e brilharam forte. Ele então se virou e atravessou a estrada devagar,
desaparecendo no mato. Não mostrou a menor pressa em sair da frente, quase desa?ando Bosch a fazer alguma coisa. Aquilo o lembrou de seus dias de policial, quando via o mesmo desa?o nos olhos da maioria
dos jovens que encontrava pelas ruas.

Depois de passar o reservatório, tomou a Tahoe Drive, mergulhan­do ainda mais entre as colinas, para então chegar ao ponto onde esta se juntava com a extremidade leste da Mulholland Drive. Aquele lugar
se tornara um mirante da cidade. Nele viam-se placas de NÃO ESTACIONE e MIRANTE FECHADO APÓS O ANOITECER. Mas estas eram rotineiramente ignoradas a qualquer hora do dia ou da noite.

Bosch encostou atrás do grupo de veículos o?ciais — a van dos investigadores forenses e a caminhonete do legista, além de vários carros de polícia, identi?cados ou não. Havia um perímetro externo de fita
policial amarela cercando a cena do crime e no seu interior estava um Porsche Carrera prata com o capô aberto. O carro fora separado com ainda mais ?ta amarela e isso levou Bosch a imaginar que muito prova­velmente
era o carro da vítima.

Bosch estacionou e desceu. Um policial designado para o períme­tro externo anotou seu nome e número de distintivo — 2997 — e dei­xou que passasse sob a ?ta amarela. Ele se aproximou da cena do crime. Duas
barreiras de lâmpadas portáteis haviam sido erguidas de ambos os lados do corpo, que estava no centro de uma clareira com vista para a cidade. Quando Bosch se aproximou, viu os técnicos forenses e a equipe
do legista trabalhando no corpo e em volta dele. Um técnico com uma câmera de vídeo documentava a cena.

— Harry, aqui.

Bosch se virou e viu o detetive Jerry Edgar apoiado no capô de uma viatura sem identi?cação. Tinha um copo de café na mão e parecia estar apenas esperando. Ele desencostou do carro quando Bosch se aproximou.

Edgar fora parceiro de Bosch, no passado, quando ele trabalhava na Divisão de Hollywood. Na época, Bosch era chefe de equipe do es­quadrão de homicídios. Agora era Edgar que ocupava essa posição.

— Estava esperando alguém da DRH — disse Edgar. — Não sa­bia que ia ser você, cara.

— Sou eu.

— Tá trabalhando sozinho nesse?

— Não, meu parceiro tá vindo.

— Seu novo parceiro, né? Não tenho notícia sua desde aquela mer­da em Echo Park no ano passado.

— Pois é. Então, o que tem aqui?

Bosch não queria conversar sobre Echo Park com Edgar. Com ninguém, pra falar a verdade. Queria se concentrar naquele caso. Era a primeira vez que o chamavam desde a transferência para a Especial de Homicídios.
Sabia que haveria um monte de gente observando seus movimentos. E alguns só esperando um vacilo seu.

Edgar se virou para que Bosch pudesse ver o que estava espalhado no porta-malas do carro. Bosch en?ou a mão no bolso e pôs os óculos conforme se curvava para ver mais de perto. A luz era fraca, mas ele
pôde enxergar uma série de sacos plásticos com provas. Cada saco con­tinha um item tirado do corpo. Entre eles, uma carteira, um molho de chaves e um crachá. Havia também um grosso maço de notas presas
em um clipe e um BlackBerry ainda funcionando, sua luz verde piscando, pronto para transmitir chamadas que seu dono nunca mais iria fazer ou receber.

— O cara do legista acabou de me dar tudo isso — disse Edgar. — Devem encerrar com o corpo daqui a uns dez minutos.

Bosch apanhou o saco com o crachá e posicionou-o sob a luz. Dizia Clínica Saint Agatha para Mulheres. Nele havia a fotografia de um homem com cabelos e olhos escuros. Estava identi?cado como dr. Stanley
Kent. O sujeito sorria para a câmera. Bosch notou que o crachá também servia de cartão magnético para abrir portas.

— Você conversa bastante com a Kiz? — perguntou Edgar.

Ele se referia à antiga parceira de Bosch, que depois de Echo Park fora transferida para um trabalho burocrático no gabinete do chefe de polícia.

— Não muito. Mas tá tudo bem com ela.

Bosch adiantou-se aos outros sacos com provas e queria afastar a conversa de Kiz Rider e passar ao caso que tinham diante de si.

— Por que não conta o que tem pra mim, Jerry? — ele disse.

— Com prazer — disse Edgar. — Faz uma hora que acharam o cadáver. Como você pode ver pelas placas na rua, não é permitido esta­cionar nem ?car depois do anoitecer. Hollywood sempre mantém uma radiopatrulha
circulando por aqui de vez em quando, à noite, pra man­ter os curiosos a distância. Deixa os ricaços da área felizes. Me disseram que aquela casa ali é da Madonna. Ou foi.

Ele apontou para uma mansão esparramada a cerca de 100 metros da clareira. O luar recortava uma torre que se projetava da estrutura. O exterior da mansão era listrado em matizes alternados de ferrugem
e amarelo, como uma igreja toscana. Ficava em um promontório que propiciaria a qualquer um que olhasse por suas janelas uma vista abran­gente e magní?ca da cidade mais abaixo. Bosch imaginou a pop star
no alto da torre, olhando para a cidade sujeitada à sua vontade.

Bosch voltou a encarar o antigo parceiro, pronto para o restante do relatório.

— A radiopatrulha passa por aqui mais ou menos às onze e vê o Porsche com o capô aberto. O motor desses Porsches é na traseira, Har­ry. Quer dizer que o porta-malas tava aberto.

— Eu sei.

— Tá, então você já sabia disso. Bom, a radiopatrulha encosta, eles não veem ninguém dentro ou em volta do Porsche, então os dois poli­ciais descem. Um deles caminha até a clareira e encontra nosso sujeito.
O cara tá de bruços, dois tiros na cabeça, aqui atrás. Execução, pura e simples.

Bosch meneou a cabeça indicando o crachá no saco de provas.

— E esse é o cara, Stanley Kent?

— Parece que é. O crachá e a carteira dizem que é Stanley Kent, 42 anos, mora perto da esquina da Arrowhead. Consultei a placa do Porsche e é de um lugar chamado K & K Física Médica. Acabei de con­sultar
esse Kent pelo rádio e me disseram que o cara tá limpo. Algumas multas por velocidade, mas é só. Nenhuma ficha.

Bosch balançava a cabeça, registrando toda a informação.

— Não vou ?car nem um pouco triste se você assumir esse caso, Harry — disse Edgar. — Tenho um parceiro no tribunal este mês e dei­xei o outro na primeira cena que encontramos hoje: tacada tripla, com a
quarta vítima nos aparelhos lá no Queen of Angels.

Bosch lembrou que em Hollywood a unidade de homicídios ope­rava em equipes de três homens, em vez das tradicionais parcerias.

— Alguma chance de essa tacada tripla ter a ver com isso aí?

Apontou para o aglomerado de técnicos em torno do corpo no mirante.

— Não, lá foi um faroeste normal de gangue — disse Edgar. — Acho que o jogo aqui é bem outro e ?co feliz de você tomar conta.

— Ótimo — disse Bosch. — Libero você assim que puder. Al­guém já examinou o carro?

— Na verdade, não. Tava esperando você.

— Certo. Alguém foi na casa da vítima em Arrowhead?

— Negativo, também.

— Alguém já bateu em alguma porta?

— Ainda não. A gente tá trabalhando na cena, primeiro.

Edgar, obviamente, decidira antes disso que o caso seria passado para a DRH. Bosch ?cou incomodado por nada ainda ter sido feito, mas, ao mesmo tempo, sabia que seriam ele e Ferras pegando a coisa fresca
desde o início, e isso não era nada mal. O departamento tinha um longo histórico de casos prejudicados ou arruinados na transição da divisional para as equipes de detetives do centro.

Ele olhou para a clareira iluminada e contou um total de cinco homens trabalhando no corpo ou perto dele para as equipes forense e legista.

— Bom — disse —, já que você está mexendo primeiro na cena do crime, alguém procurou marcas de pegada perto do corpo antes que as equipes se aproximassem?

Bosch não conseguia disfarçar o tom de irritação de sua voz.

— Harry — disse Edgar, seu tom agora mostrando irritação com a irritação de Bosch —, umas duzentas pessoas andam nesse mirante todo santo dia. A gente podia ?car procurando pegada até o Natal, se tivesse
tempo. Acho que a gente não tem. Tem um corpo jogado aqui num lugar público e a gente precisa examinar. Além do mais, esse assassinato parece coisa de profissional. Signi?ca que os sapatos, a arma, o carro,
tudo isso já era faz um bom tempo.

Bosch balançou a cabeça. Queria deixar isso pra lá e seguir em frente.

— Ok — disse, calmamente —, então acho que você pode ir.

Edgar fez que sim e Bosch achou que talvez estivesse sem graça.

— Como eu disse, Harry, não esperava que fosse você.

Ou seja, ele não teria pisado na bola com Harry, só com outro qualquer da DRH.

— Claro — disse Bosch. — Entendo.

Depois que Edgar foi embora, Bosch voltou até seu carro e apa­nhou a Maglite no porta-malas. Voltou para o Porsche, calçou luvas e abriu a porta do motorista. Curvou-se sobre o carro e olhou em torno.
No banco do passageiro havia uma valise. Não estava trancada e quan­do ele destravou os fechos ela se abriu para revelar diversas pastas, uma calculadora e vários blocos de anotações, canetas e papéis.
Ele a fechou e deixou no lugar. A posição dela no banco sugeria que provavelmente a vítima chegara sozinha ao mirante. O homem encontrara seu assassino ali. Ele não levara o assassino consigo. Isso, Bosch
pensou, podia ser significativo.

Abriu o porta-luvas e havia mais uma porção de crachás como o que fora encontrado no corpo caído no piso de tábuas. Apanhou-os um por um e viu que cada um daqueles cartões magnéticos pertencia a um hospital
local diferente. Mas todos eles tinham o mesmo nome e a mesma foto. Stanley Kent, o sujeito (assim Bosch presumiu) morto na clareira.

Ele observou que na parte de trás de vários crachás havia anotações escritas à mão. Ficou olhando para aquilo por um bom tempo. A maio­ria eram números com as letras E (esquerda) ou D (direita) no fim
e ele chegou à conclusão de que eram combinações de cofre.

Bosch olhou mais fundo no porta-luvas e encontrou ainda mais cartões magnéticos de identi?cação. Até onde podia perceber, o morto — se é que era Stanley Kent — tinha livre acesso a quase todos os hos­pitais
do condado de Los Angeles. Também tinha as combinações das travas de segurança de praticamente todos. Bosch considerou por um momento se talvez os crachás não seriam parte de um esquema usado pela vítima
para fraudar hospitais.

Bosch devolveu tudo ao porta-luvas e o fechou. Então olhou de­baixo e entre os bancos e não encontrou nada relevante. Voltou à trasei­ra do carro para examinar o porta-malas.

O pequeno porta-malas estava vazio. Mas à luz de sua lanterna ele notou quatro marcas no forro acarpetado do fundo. Sem dúvida algu­ma coisa quadrada e pesada com quatro pernas ou rodas fora carregada
ali. Como o porta-malas fora achado aberto, era provável que o objeto — fosse ele qual fosse — tivesse sido tirado durante o crime.

— Detetive?

Bosch se virou e apontou o facho de sua lanterna para o rosto de um patrulheiro. Era o policial que pegara seu nome e seu número de distintivo no perímetro. Abaixou a luz.

— O que foi?

— Tem uma agente do FBI aqui. Está pedindo permissão para entrar na cena do crime.

— Onde ela está?

O o?cial seguiu em frente na direção da fita amarela. Quando Bosch chegou mais perto, viu uma mulher parada junto à porta aberta de um carro. Estava sozinha e não sorria. Bosch sentiu uma desconfor­tável
pontada de reconhecimento no peito.

— Oi, Harry — ela disse quando o viu.

— Oi, Rachel — ele disse.


DOIS

FAZIA QUASE SEIS meses desde que vira a agente especial Rachel Walling do FBI. Conforme se aproximava dela junto à ?ta, Bosch tinha a convicção de que nem um dia se passara nesse tempo todo sem que tivesse
pensado nela. Mas jamais teria imaginado que pudessem voltar a se encontrar — se é que algum dia o fariam — no meio da noite na cena de um crime. Ela usava jeans, camisa oxford e um blazer azul-escuro.
Tinha o cabelo despenteado, mas ainda parecia linda. Obviamente fora chamada em casa, assim como Bosch. Não sorria e Bosch se lembrou de como as coisas haviam terminado mal, da última vez.

— Olha — ele disse —, sei que andei ignorando você, mas não precisava se dar o trabalho de me seguir até a cena de um crime só pra...

— A hora não é boa pra piadas — ela disse, cortando. — Se isso for o que eu penso que é.

O último contato dos dois fora no caso de Echo Park. Na época, ele a encontrara trabalhando para uma obscura unidade do FBI chama­da Inteligência Tática. Ela jamais lhe explicou qual era exatamente o papel
da unidade e Bosch nunca a pressionou, já que não fazia diferença para a investigação de Echo Park. Ele havia buscado sua ajuda em razão do passado dela como especialista em per?s — e do antigo histórico
pessoal dos dois. O caso de Echo Park desandara, assim como qualquer possibilidade de um novo romance. Ao olhar para ela, agora, Bosch sabia que aquilo não passaria de trabalho e teve a sensação de que
estava prestes a descobrir qual o papel da Unidade de Inteligência Tática.

— O que acha que pode ser? — perguntou.

— Digo assim que puder. Posso ver a cena, por favor?

Relutante, Bosch ergueu a ?ta da cena do crime e retribuiu sua atitude indiferente com o sarcasmo habitual.

— Ora, vamos entrando, agente Walling — disse. — Não repara na bagunça.

Ela passou por baixo e parou, pelo menos respeitando seu direito a conduzi-la à cena do crime.

— Eu posso muito bem ser de alguma ajuda, aqui — ela disse. — Se puder ver o corpo, acho que consigo fazer uma identificação formal pra você.

Mostrou a pasta que estivera segurando sob o braço.

— Por aqui, vamos — disse Bosch.

Conduziu-a até a clareira, onde a vítima era banhada pela estéril luz ?uorescente das unidades móveis. O morto jazia estendido no chão alaranjado a menos de dois metros da beirada em declive do mirante.
Para lá do corpo e acima da beirada, o luar brilhava sobre o reservatório, lá embaixo. Além da represa, a cidade se esparramava num tapete de um milhão de luzes. O frio ar noturno fazia as luzes cintilarem
como em um sonho oscilante.

Bosch estendeu o braço para barrar Walling na periferia do círculo de luz. A vítima fora rolada sobre as costas pelo médico-legista e agora estava com o rosto virado para cima. Havia esfoladuras no rosto
e na testa do homem, mas Bosch achou que dava para reconhecer o sujeito das fotos nos crachás de hospital do porta-luvas. Stanley Kent. Sua ca­misa estava aberta, expondo um peito sem pelos de pele muito
branca. Havia uma marca de incisão na lateral direita do torso, onde o legista en?ara uma sonda termométrica no fígado.

— ’noite, Harry — disse Joe Felton, o médico-legista. — Ou será que já é bom-dia? Quem é a sua amiga ali? Achei que seu parceiro fosse Iggy Ferras.

— Estou com Ferras — respondeu Bosch. — Aquela é a agente especial Walling, da Unidade de Inteligência Tática do FBI.

— Inteligência Tática? O que mais vão inventar?

— Acho que é uma dessas operações do tipo Segurança Interna. Sabe como é, não pergunte, não fale, esse tipo de coisa. Ela diz que tal­vez seja capaz de con?rmar uma identidade pra nós.

Walling lançou um olhar para Bosch dizendo-lhe que estava sendo infantil.

— Tudo bem se a gente se aproximar, doutor? — perguntou ­Bosch.

— Claro, Harry, a gente praticamente já terminou por aqui.

Bosch fez menção de avançar, mas Walling rapidamente se adian­tou a ele e caminhou sob a luz fria. Sem hesitar, posicionou-se sobre o corpo. Abriu a pasta e tirou de dentro uma foto colorida 8 x 10 de
um rosto. Curvou-se e segurou-a junto ao rosto do morto. Bosch ficou de pé a seu lado para comparar também.

— É ele — disse. — Stanley Kent.

Bosch balançou a cabeça concordando e então ofereceu sua mão para ajudá-la a se endireitar. Ela o ignorou e fez isso sem sua ajuda. Bosch olhou para Felton, agachado perto do corpo.

— E aí, doutor, vai nos dizer o que temos aqui?

Bosch se inclinou do outro lado do cadáver para olhar mais de perto.

— A situação é que o homem foi trazido aqui ou veio até aqui por algum motivo e foi obrigado a ?car de joelhos.

Felton apontou as calças da vítima. Havia manchas alaranjadas de terra nos dois joelhos.

— Então alguém disparou duas vezes na parte posterior da cabeça e ele caiu de frente. Os ferimentos no rosto que você está vendo aconte­ceram quando bateu no chão. Ele já tava morto, então.

Bosch balançou a cabeça.

— Nenhum ferimento de saída de bala — acrescentou Felton. — Provavelmente arma pequena, uma .22, com efeito de ricochete den­tro do crânio. Muito eficiente.

Bosch se deu conta então de que o tenente Gandle falara no sen­tido ?gurado quando mencionou que os miolos da vítima tinham ido pelos ares no alto do mirante. Melhor não esquecer a tendência do te­nente
para o exagero no futuro.

— Hora da morte? — perguntou a Felton.

— Pela temperatura do fígado, eu diria que já faz quatro ou cinco horas — respondeu o legista. — Às oito, mais ou menos.

Essa última informação deixou Bosch incomodado. Ele sabia que lá pelas oito já teria escurecido e que todos os adoradores do pôr do sol teriam se mandado muito antes. Mas os dois disparos teriam ecoado
lá do mirante e pelas casas das encostas adjacentes. Contudo, ninguém chamara a polícia, e o corpo só fora achado quando uma radiopatrulha passou por ali, três horas mais tarde.

— Sei o que cê tá pensando — disse Felton. — O barulho. Pode ser que tenha uma explicação. Pessoal, vamos virar ele de novo.

Bosch ?cou de pé e saiu da frente, enquanto Felton e um de seus assistentes viravam o cadáver de bruços. Bosch olhou para Walling e por uma fração de segundo os dois se encararam, então ela voltou a fitar
o cadáver.

Com o corpo virado, os ferimentos de entrada das balas, na parte posterior da cabeça, ?caram expostos. O cabelo preto da vítima estava encrostado de sangue. As costas de sua camisa branca estavam borri­fadas
de leve com uma substância marrom que chamou a atenção de Bosch na mesma hora. Ele já presenciara cenas de crime demais para conseguir lembrar ou contar. Não achou que aquilo na camisa do ho­mem fosse
sangue.

— Isso não é sangue, é?

— Não, não é — disse Felton. — Acho que vamos descobrir no laboratório que é a velha e boa Coca-Cola. O resíduo que ?ca no fundo de uma garrafa ou lata vazia.

Antes que Bosch pudesse responder, Walling o fez.

— Um silenciador improvisado pra abafar o som dos tiros — ela disse. — Você en?a a boca de uma garrafa de Coca de um litro no cano da arma e o som do tiro ?ca bastante reduzido, já que as ondas sonoras
são projetadas dentro da garrafa, em vez de no ar livre. Se a garrafa tiver um resíduo de Coca dentro, o líquido é borrifado no alvo do tiro.

Felton olhou para Bosch e fez um sinal de aprovação com a ­cabeça.

— Onde você a arrumou, Harry? É um achado.

Bosch olhou para Walling. Também estava impressionado.

— Internet — ela disse.

Bosch balançou a cabeça a?rmativamente, embora sem acreditar.

— E tem mais uma coisa que você precisa observar — disse Felton, chamando a atenção de novo para o corpo.

Bosch abaixou-se outra vez. Felton esticou o braço sobre o corpo e apontou a mão do lado em que Bosch estava.

— Tem um desses em cada mão.

Ele apontava para um anel de plástico vermelho no dedo médio. Bosch olhou aquilo e então checou a outra mão. Lá estava o anel verme­lho, combinando. No lado interno de cada mão o anel exibia uma faixa
branca parecida com uma etiqueta.

— O que é isso? — Bosch perguntou.

— Ainda não sei — disse Felton. — Mas acho...

— Eu sei — disse Walling.

Bosch ergueu o olhar. Balançou a cabeça. Claro que ela sabia.

— Chama anel TLD — disse Walling. — Um dosímetro termo­luminescente. É um dispositivo de alerta. O anel acusa exposição a ­radiação.

A informação provocou um silêncio desconfortável no grupo. Até que Walling continuou.

— E também tem isso — ela disse. — Quando está virado pra den­tro, como esses dois, com o mostrador TLD virado pra palma da mão, em geral signi?ca que a pessoa lida diretamente com material radioativo.

Bosch ?cou de pé.

— Ok, todo mundo — ordenou —, longe do corpo. Todo mun­do, pra trás, agora mesmo.

Os técnicos da cena do crime, o pessoal do legista e Bosch come­çaram todos a se afastar. Mas Walling não se moveu. Ergueu as mãos como se estivesse conclamando a congregação de uma igreja.

— Calma, calma — ela disse. — Ninguém precisa se afastar. Está tudo bem, tudo bem. É seguro.

Todos pararam, mas ninguém voltou à posição original.

— Se houvesse alguma ameaça de exposição aqui, os mostradores TLD dos anéis estariam pretos — ela disse. — É o sinal de advertência. Mas não estão pretos, então estamos seguros. Além do mais, eu tenho
isto.

Puxou o blazer para revelar uma pequena caixa preta presa ao cinto como um bipe.

— Monitorador de radiação — explicou. — Se tivesse algum pro­blema, podem acreditar em mim, esta coisa ia estar se esgoelando e eu seria a primeira a dar no pé. Mas não. Tá tudo bem, ok?

O pessoal na cena do crime começou a voltar hesitante para suas po­sições. Harry Bosch se aproximou de Walling e puxou-a pelo cotovelo.

— Será que a gente pode conversar um minuto?

Afastaram-se da clareira na direção do meio-fio da Mulholland. Bosch sentia as coisas escapando de suas mãos, mas tentou não dar mostras disso. Estava agitado. Não queria perder o controle da cena do crime
e aquele tipo de informação ameaçava fazer justamente isso.

— O que está fazendo aqui, Rachel? — perguntou. — O que está acontecendo?

— Como você, recebi uma ligação no meio da noite. Me manda­ram pular da cama.

— Isso não explica nada.

— Garanto que estou aqui pra ajudar.

— Então começa me dizendo exatamente o que está fazendo aqui e quem mandou você. Isso já ia me ajudar bastante.

Walling olhou em torno e então voltou a Bosch. Indicou um pon­to além da fita amarela.

— Vamos?

Bosch estendeu a mão, dizendo-lhe para ir na frente. Passaram por baixo da ?ta e chegaram à estrada. Quando julgou que não poderiam ser ouvidos por ninguém mais na cena do crime, Bosch parou e olhou para
ela.

— Ok, já estamos longe o bastante — disse ele. — O que tá acon­tecendo? Quem chamou você aqui?

Ela o encarou outra vez.

— Olha, o que eu vou te dizer aqui tem que permanecer em segre­do — ela disse. — Por enquanto.

— Olha, Rachel, não tenho tempo pra...

— Stanley Kent faz parte de uma lista. Quando você ou um de seus colegas consultou o nome no sistema nacional de registros crimi­nais esta noite, o alerta vermelho soou lá em Washington, e uma ligação
foi feita pra mim na Tática.

— Como, ele era um terrorista?

— Não, um físico médico. E até onde sei, um cidadão cumpridor da lei.

— Então que negócio é esse de anéis de radiação e FBI aparecendo no meio da noite? Que lista é essa em que estava Stanley Kent?

Walling ignorou a questão.

— Vou perguntar uma coisa, Harry. Alguém já checou casa ou esposa desse homem?

— Ainda não. Estamos trabalhando na cena do crime, primeiro. Eu planejava...

— Então acho melhor fazer isso agora mesmo — disse ela, com urgência na voz. — Você pode perguntar o que quiser pelo caminho. Pegue as chaves do sujeito, caso a gente precise entrar. Vou buscar meu carro.

Walling começou a se mexer, mas Bosch pegou-a pelo braço.

— Eu dirijo — disse.

Apontou seu Mustang e deixou-a lá. Foi até a viatura, na qual os sacos com provas continuavam espalhados no porta-malas. Enquanto caminhava, arrependeu-se de já ter liberado Edgar da cena. Acenou cha­mando
o ex-parceiro.

— Escuta, preciso deixar a cena do crime pra veri?car a casa da ví­tima. Não devo demorar muito e o detetive Ferras vai chegar a qualquer momento. Segure um pouco a onda até um de nós dois estar presente.

— Pode deixar.

Bosch puxou o celular e ligou para o parceiro.

— Onde cê tá?

— Acabei de passar Parker Center. Estou a vinte minutos daí.

Bosch explicou que estava deixando a cena e que era melhor Ferras se apressar. Desligou, apanhou o saco de provas contendo as chaves no porta-malas da viatura e en?ou no bolso do casaco.

Quando foi até seu carro, viu Walling já sentada no banco do pas­sageiro. Ela estava terminando uma ligação e fechando o celular.

— Quem era? — perguntou Bosch depois de entrar. — O ­presidente?

— Meu parceiro — ela respondeu. — Falei pra ele encontrar a gente na casa. Onde tá seu parceiro?

— Vem vindo.

Bosch ligou o carro. Assim que andaram, ele começou a fazer ­perguntas.

— Se Stanley Kent não era terrorista, então que lista é essa em que ele estava?

— Como físico médico, ele tinha acesso direto a material radioati­vo. Isso o punha em uma lista.

Bosch pensou em todos aqueles crachás que encontrara no Porsche do morto.

— Acesso onde? Nos hospitais?

— Isso mesmo. É onde ?ca guardado. Esses materiais são mais usados para tratamento de câncer.

Bosch balançou a cabeça. Começava a fazer uma ideia, mas ainda não tinha informação suficiente.

— Ok, então o que eu ainda não sei, Rachel? Explica pra mim.

— Stanley Kent tinha acesso direto a materiais em que algumas pessoas adorariam pôr as mãos. Materiais que poderiam ser muito, mui­to valiosos pra elas. Mas não no tratamento de câncer.

— Terroristas.

— Isso mesmo.

— Cê tá dizendo que aquele cara podia simplesmente ir entrando num hospital e pegar essas coisas? Não tem procedimentos de controle?

Walling balançou a cabeça.

— Claro que tem, Harry. Mas isso nem sempre basta. A repetição, a rotina... são as falhas em qualquer sistema de segurança. A gente cos­tumava deixar as portas da cabine dos aviões comerciais destrancadas.
Agora não deixamos mais. É preciso um evento de consequências trági­cas para mudar os procedimentos e fortalecer as precauções. Entende o que eu tô dizendo?

Ele pensou nas anotações no verso de um dos crachás no Porsche da vítima. Será que Stanley Kent poderia ter sido tão relaxado com a segurança desses materiais que teria escrito combinações de acesso no
verso daqueles cartões? O instinto de Bosch lhe disse que a resposta provavelmente era sim.

— Entendo — disse para Walling.

— Bom, então, se você quisesse driblar um sistema de segurança existente, independentemente de fraco ou forte, quem você procuraria? — ela perguntou.

Bosch balançou a cabeça.

— Alguém com um conhecimento íntimo desse sistema de ­segurança.

— Isso mesmo.

Bosch entrou na Arrowhead Drive e começou a olhar os números dos endereços no meio-fio.

— Então você está dizendo que isso pode ser um evento de conse­quências trágicas?

— Não, não estou dizendo isso. Ainda não.

— Você conhecia Kent?

Bosch olhou para Walling enquanto perguntava e ela pareceu sur­presa com a pergunta. Fora uma aposta arriscada, mas ele a fez espe­rando uma reação, não uma resposta, necessariamente. Walling virou o rosto
e olhou pela janela antes de responder. Bosch conhecia o gesto. A evasiva clássica. Agora sabia que ela ia mentir para ele.

— Não, nunca vi o sujeito.

Bosch subiu na entrada de uma casa e parou o carro.

— O que cê tá fazendo? — ela perguntou.

— É aqui. A casa de Kent.

Estavam diante de uma casa sem nenhuma luz, dentro ou fora. Parecia que não morava ninguém, ali.

— Não, não é — disse Walling. — A casa ?ca em outra quadra e...

Parou quando se deu conta de que Bosch lhe passara a perna. Ele encarou-a por um momento no carro escuro antes de falar.

— Você vai se abrir comigo agora ou quer descer do carro?

— Olha, Harry, eu disse. Tem coisas que eu não posso...

— Desce do carro, agente Walling. Vou cuidar disso sozinho.

— Olha, cê precisa entend...

— Isso é um homicídio. Meu homicídio. Desce do carro.

Ela não se mexeu.

— É só eu dar um telefonema e você seria afastado da investigação antes que conseguisse voltar à cena — ela disse.

— Então pode ligar. Pre?ro ser chutado agora mesmo do que bancar o boneco na mão dos federais. Não é esse um dos lemas deles? Man­ter o povo no escuro com um monte de lorotas? Bom, não eu, não esta noite
e não num caso meu.

Estendeu o braço diante dela para abrir a porta do passageiro. Walling empurrou-o de volta e ergueu os braços, se rendendo.

— Tá bom, tá bom — ela disse. — O que você quer saber?

— A verdade, agora. Toda ela.


TRÊS

BOSCH VIROU EM seu banco para olhar diretamente para Walling. Não ia tirar o carro dali enquanto ela não começasse a falar.

— É óbvio que você sabia quem era Stanley Kent e onde ele mo­rava — ele disse. — Você mentiu pra mim. Então, ele era ou não um terrorista?

— Já disse, não, e isso é verdade. Era um cidadão. Um físico. Esta­va em uma lista de vigilância porque lidava com fontes radioativas que poderiam servir, nas mãos erradas, para machucar pessoas.

— Do que você está falando? Como seria isso?

— Por exposição. E isso poderia ser de muitas formas diferentes. Ataque individual... lembra-se do último feriado de Ação de Graças, aquele russo envenenado com polônio em Londres? Aquilo foi um ata­que
a um alvo especí?co, embora tenha havido vítimas colaterais, tam­bém. O material ao qual Kent tinha acesso poderia ser usado também em larga escala... um shopping, o metrô, sei lá. Tudo depende da quan­tidade
e, é claro, do dispositivo de detonação.

— Dispositivo de detonação? Você tá falando de bomba? Alguém poderia fazer uma bomba suja com o material que ele trabalhava?

— Pra certos usos, poderia.

— Eu achava que fosse uma lenda urbana, que não existisse de verdade, bomba suja.

— O nome que a gente usa é DEI: dispositivo de explosão impro­visado. E se você prefere assim, só é uma lenda urbana precisamente até o momento em que a primeira é detonada.

Bosch balançou a cabeça e voltou à carga. Fez um gesto na direção da casa diante deles.

— Como sabia que essa não era a casa de Kent?

Walling esfregou o rosto, como se estivesse cansada das perguntas irritantes e sentindo dor de cabeça.

— Porque já estive nessa casa antes, ok? No começo do ano passado meu parceiro e eu viemos à casa de Kent e o instruímos sobre os poten­ciais perigos de sua pro?ssão. Fizemos uma checagem de segurança
na casa e lhe dissemos para tomar algumas precauções. Fomos designados para isso pelo Departamento de Segurança Interna. Tá bom?

— Tá, ok. E isso era rotina da Unidade de Inteligência Tática e do Departamento de Segurança Interna ou foi porque ele estava sob ameaça?

— Não uma ameaça especi?camente dirigida contra ele, não. Olhe, estamos perdendo...

— Então contra quem? Uma ameaça contra quem?

Walling se ajeitou no banco e soltou um suspiro de exasperação.

— Não houve ameaça especi?camente a ninguém. Eram simples medidas de precaução. Dezesseis meses antes disso, alguém entrou em uma clínica de câncer em Greensboro, na Carolina do Norte, driblou um forte
esquema de segurança e removeu 22 tubos pequenos de um radioisótopo chamado césio 137. O legítimo uso médico desse material ali era para o tratamento de câncer ginecológico. A gente não sabe quem entrou
nem por quê, mas o material sumiu. Quando a notícia do roubo vazou pelos canais competentes, alguém da Força-Tarefa Conjunta de Terrorismo aqui em L.A. pensou que seria uma boa ideia avaliar a segu­rança
desse tipo de material nos hospitais locais e advertir quem tivesse acesso e manuseasse esse negócio para tomar algumas precauções e ficar em alerta. Será que agora podemos ir, por favor?

— E foi aí que você entrou.

— Isso. Você entendeu. Foi o jogo de empurra federal entrando em funcionamento. Sobrou pra mim e pro meu parceiro sair na rua e conversar com gente como Stanley Kent. A gente se encontrou com Kent e a
esposa na casa dele, para fazer uma checagem de segurança do lugar ao mesmo tempo em que avisava pra que se cuidasse. Foi por esse mesmo motivo que fui eu quem recebeu a ligação quando o nome dele piscou
no alerta vermelho.

Bosch engatou a marcha a ré e se afastou rapidamente da entrada da casa.

— Por que não me contou tudo isso logo de cara?

Na rua, o carro avançou com um solavanco quando Bosch engatou a primeira.

— Porque ninguém foi assassinado em Greensboro — disse Walling, com expressão desa?adora. — Esse negócio todo podia ser outra coisa completamente diferente. Me disseram pra me aproximar com cuidado e discrição.
Desculpe ter mentido pra você.

— Meio tarde demais pra pedir desculpa, Rachel. Sua turma recu­perou o césio em Greensboro?

Ela não respondeu.

— Então?

— Não, ainda não. Dizem que foi vendido no mercado negro. O material é muito valioso só pelo dinheiro, mesmo que seja usado no contexto médico adequado. É por isso que a gente não tem muita certe­za sobre
com quem tá lidando. Foi por isso que me mandaram.

Dez segundos depois estavam na quadra certa da Arrowhead e Bosch começou a olhar os números da rua outra vez. Mas Walling deu as coordenadas.

— Aquela ali, do lado esquerdo, acho. Com venezianas pretas. É difícil dizer, no escuro.

Bosch encostou e pôs o câmbio em ponto morto antes que o carro parasse. Desceu e foi até a entrada. A casa estava às escuras. Nem mes­mo a luz sobre a porta estava acesa. Mas quando se aproximou, Bosch
percebeu que a porta fora deixada entreaberta.

— Tá aberta — ele disse.

Bosch e Walling puxaram as armas. Bosch pôs a mão na porta e empurrou vagarosamente. Com as armas para cima, entraram na casa escura e silenciosa e Bosch rapidamente apalpou a parede com a mão até achar
o interruptor.

As luzes se acenderam, revelando uma sala arrumada mas vazia, sem nenhum sinal de problemas.

— Senhora Kent? — chamou Walling, em voz alta. Depois, falan­do baixo, disse para Bosch: — Tem só a esposa, nenhuma criança.

Walling chamou uma vez mais, mas a casa continuava em silêncio. Havia um corredor à direita e Bosch foi nessa direção. Encontrou outro interruptor que iluminou outro corredor com quatro portas fechadas
e um cômodo pequeno.

O cômodo era um escritório, vazio. Ele viu um re?exo azul na janela, projetado pela tela de um computador. Passaram pelo escritório e foram de porta em porta, veri?cando o que parecia um quarto de hóspedes
e depois uma sala de ginástica com aparelhos ergométricos e colchonetes pendurados na parede. A terceira porta era um banheiro, vazio, e a quarta dava para a suíte do casal.

Entraram no quarto e Bosch mais uma vez acendeu um interrup­tor. Encontraram a sra. Kent.

Estava sobre a cama, nua, amordaçada e amarrada com os pés e as mãos atrás das costas. Seus olhos estavam fechados. Walling correu para a cama para ver se estava viva, enquanto Bosch atravessou o quarto
para checar o banheiro e um closet. Ninguém.

Quando voltou junto à cama, viu que Walling removera a morda­ça e usava um canivete para cortar as correias de plástico preto usadas para prender os pulsos e os tornozelos da mulher às suas costas. Rachel
puxava a coberta da cama sobre o corpo nu inerte da mulher. Havia um pungente odor de urina no quarto.

— Ela está viva? — perguntou Bosch.

— Está. Acho que só desmaiou. Foi deixada aqui desse jeito.

Walling começou a esfregar os pulsos e as mãos da mulher. Haviam ?cado escuros, quase roxos, com a falta de circulação.

— Pede ajuda — ela disse.

Irritado consigo mesmo por não ter reagido senão quando orde­nado, Bosch sacou o celular e andou pelo corredor enquanto pedia à central de comunicações que enviasse os paramédicos.

— Dez minutos — disse, depois de desligar e entrar de novo no quarto.

Bosch sentiu uma onda de animação percorrer seu corpo. Ago­ra tinham uma testemunha viva. A mulher na cama seria capaz de lhes dizer pelo menos alguma coisa sobre o que acontecera. Ele sabia que seria
de vital importância fazer com que falasse o mais rápido ­possível.

Houve um audível gemido quando a mulher recobrou a ­consciência.

— Senhora Kent, está tudo bem — disse Walling. — Está tudo bem. A senhora está em segurança, agora.

A mulher ?cou tensa e seus olhos se arregalaram quando viu os dois estranhos diante de si. Walling mostrou as credenciais.

— FBI, senhora Kent. Lembra de mim?

— O quê? O que é... onde está meu marido?

Começou a se levantar, mas então se deu conta de que estava nua sob a colcha e tentou ajeitá-la em volta do corpo. Seus dedos aparen­temente ainda estavam dormentes e não conseguiam agarrar. Walling a
ajudou a se cobrir.

— Onde Stanley está?

Walling se ajoelhou ao lado da cama, de modo a ?car na mesma al­tura dela. Encarou Bosch, como que procurando orientação sobre como lidar com a pergunta da mulher.

— Senhora Kent, seu marido não está aqui — disse Bosch. — Sou o detetive Bosch, da polícia de Los Angeles, e essa é a agente Walling, do FBI. Estamos tentando descobrir o que aconteceu com seu marido.

A mulher olhou para Bosch e depois para Walling, e continuou olhando para a agente federal.

— Lembro de você — ela disse. — Você veio aqui em casa para nos avisar. É isso que está acontecendo? Os homens que estiveram aqui estão com Stanley?

Rachel curvou-se para ?car mais perto e disse, com a voz calma:

— Senhora Kent, a gente... Alicia, não é? Alicia, a gente precisa que você se acalme um pouco, para podermos conversar e quem sabe ajudar. Gostaria de se vestir?

Alicia Kent balançou a cabeça.

— Ok, vamos deixá-la sozinha um pouco — disse Walling. — Pode se vestir, que aguardamos na sala. Primeiro, deixe eu perguntar, está ferida de algum modo?

A mulher fez que não.

— Tem certeza...?

Walling não terminou, como que intimidada pela própria pergun­ta. Bosch não. Sabia que precisavam saber exatamente o que acontecera ali.

— Senhora Kent, foi atacada sexualmente esta noite?

A mulher voltou a balançar a cabeça.

— Me ?zeram tirar a roupa. Foi só.

Bosch estudou seus olhos, esperando ser capaz de lê-los e conseguir perceber se estava mentindo.

— Ok — disse Walling, interrompendo o momento. — Vamos deixar que se vista. Quando os paramédicos chegarem vamos precisar que a examinem, para ver se há algum ferimento.

— Por mim tudo bem — disse Alicia Kent. — O que aconteceu com meu marido?

— A gente não sabe direito o que aconteceu — disse Bosch. — Melhor se vestir e ir para a sala, então contamos o que sabemos.

Prendendo a colcha em torno do corpo, fez um esforço para se le­vantar da cama. Bosch viu a mancha no colchão e sabia que Alicia Kent devia ter sentido tanto medo durante o ataque que havia urinado, ou
que a espera pelo socorro fora longa demais.

Deu um passo na direção do closet e pareceu cair. Bosch saltou e agarrou-a antes que caísse.

— Está tudo bem?

— Tudo bem. Só estou um pouco tonta. Que horas são?

Bosch olhou para o relógio digital no criado-mudo do lado direito da cama, mas o mostrador estava apagado. Fora desligado ou tirado da tomada. Girou o braço direito sem desampará-la e viu as horas em seu
relógio.

— Quase uma da manhã.

O corpo da mulher pareceu se contrair em seu aperto.

— Ai, meu Deus! — gemeu. — Já é tarde... onde está Stanley?

Bosch levou as mãos aos ombros dela e ajudou-a a ficar ereta.

— Vista-se e conversamos depois — disse.

Ela caminhou sem ?rmeza até o closet e abriu a porta. Havia um espelho de corpo inteiro no lado externo da porta. Ao abri-la, o reflexo de Bosch apareceu diante dele. Por um momento, ele achou que talvez
visse algo novo em seu olhar. Algo que não estava lá quando se exami­nou no espelho antes de sair de casa. Uma expressão de desconforto, talvez até medo do desconhecido. Era compreensível, concluiu. Havia
trabalhado em milhares de casos de assassinato, mas nenhum que o con­duzisse na direção que ia agora. Talvez medo fosse apropriado.

Alicia Kent tirou um roupão atoalhado que estava pendurado numa parede do closet e se dirigiu para o banheiro. Deixou a porta do closet aberta, de modo que Bosch teve de desviar o olhar de seu próprio
reflexo.

Walling saiu do quarto e Bosch a seguiu.

— O que você acha? — perguntou ela, quando estavam no ­corredor.

— Acho que temos sorte de ter uma testemunha — respondeu Bosch. — Ela vai poder nos dizer o que aconteceu.

— Espero.

Bosch decidiu inspecionar a casa mais uma vez enquanto aguar­davam que Alicia Kent se vestisse. Dessa vez, ele checou o quintal e a garagem, além de todos os cômodos mais uma vez. Não percebeu nada faltando,
embora houvesse notado que a garagem para dois carros estava vazia. Se os Kent tinham mais um carro além do Porsche, então ele não estava na casa.

Seguindo o roteiro, ele parou no quintal, observando o letreiro de Hollywood e ligando para a central de comunicações mais uma vez para pedir que uma segunda equipe forense fosse despachada para examinar
a casa dos Kent. Também veri?cou a previsão de chegada dos paramé­dicos chamados para examinar Alicia Kent e disseram-lhe que estavam a cinco minutos dali. Isso foi dez minutos depois que haviam lhe dito
que estavam a dez minutos dali.

Em seguida ele ligou para o tenente Gandle, acordando-o em casa. O supervisor escutou atentamente enquanto Bosch o punha a par dos fatos. A participação dos federais e a possibilidade crescente de envolvi­mento
terrorista na investigação ?zeram Gandle parar para pensar.

— Bom... — disse, quando Bosch terminou. — Parece que vou ter que acordar umas pessoas.

Ele queria dizer que teria de informar aos superiores do departa­mento sobre o caso e as dimensões mais amplas que estava tomando. A última coisa que um tenente da DRH iria querer ou precisar era ser cha­mado
no gabinete do chefe de polícia pela manhã para ser questionado por que não alertara o comando mais cedo sobre o caso e suas maiores implicações. Bosch sabia que Gandle agora agiria para se proteger, bem
como para buscar orientações superiores. Por ele tudo bem, era de se esperar. Mas isso também o fez parar para pensar. O DPLA tinha seu próprio Gabinete de Segurança Interna. Era comandado por um ho­mem
que a maioria das pessoas no departamento via como um desequi­librado que não era nem quali?cado nem adequado para o serviço.

— Uma dessas ligações vai incluir o capitão Hadley? — perguntou Bosch.

O capitão Don Hadley era o irmão gêmeo de James Hadley, que vinha a ser membro da Comissão de Polícia, órgão cuja composição era formada por indicação política, com supervisão do DPLA e autoridade para
indicar e contratar o chefe de polícia. Menos de um ano depois que James Hadley foi colocado na comissão por indicação majoritária e com a aprovação do conselho municipal, seu irmão gêmeo pulou de segundo
em comando da Divisão de Trá?co do Vale para comandante do recém-formado Gabinete de Segurança Interna. Isso foi encarado na época como um movimento político pelo então chefe de polícia, que tentava desesperadamente
manter o emprego. Não funcionou. Ele foi exonerado e indicaram um novo chefe de polícia. Mas, na transição, Hadley manteve o comando do GSI.

A missão do GSI era estabelecer uma interface com as agências federais e manter um ?uxo de dados do serviço de informações. Nos últimos seis anos, Los Angeles fora alvo de terroristas pelo menos duas vezes,
ao que se sabia. Em cada incidente, o DPLA soube da amea­ça depois que fora repelida pelos federais. Isso era embaraçoso para o departamento, e o GSI havia sido formado para que o DPLA pudesse conseguir
avanços no serviço de informações e enfim ?car sabendo o que o governo federal sabia sobre seu próprio quintal.

O problema era que, na prática, havia fortes suspeitas de que o DPLA continuava sendo mantido na ignorância pelos federais. E, a fim de ocultar essa fraqueza e para justi?car sua posição e unidade, o capitão
Hadley era dado a convocar enormes coletivas de imprensa e aparecer com sua unidade GSI vestida de preto em qualquer cena de crime em que houvesse a mais remota possibilidade de envolvimento terrorista.
Um caminhão-tanque tombado na Hollywood Freeway punha as for­ças do GSI a caminho até que se descobria que transportava leite. O atentado contra um rabino em um templo de Westwood provocou a mesma reação
até que se descobriu que o incidente fora provocado por um triângulo amoroso.

E assim por diante. Após mais ou menos o quarto alarme falso, o comandante do GSI foi agraciado com um novo nome entre os supe­riores e os comandados. O capitão Don Hadley ficou conhecido como capitão
Done Badly, ou Faz-Merda. Mas ele conservou seu posto, gra­ças ao sutil teor político que pairava sobre sua indicação. A última que Bosch ouvira sobre Hadley à boca miúda pelo departamento era que pusera
o esquadrão inteiro para treinar táticas de guerrilha urbana na academia.

— Não sei quanto a Hadley — disse Gandle como resposta a Bosch. — Provavelmente, vai ?car sabendo. Vou começar pelo meu capitão e ele é quem vai levar adiante a informação a partir daí. Mas isso não é
da sua conta, Harry. Faça seu trabalho e não se preocupe com Hadley. É com os federais que você precisa se cuidar.

— Certo.

— Não esqueça que com os federais todo cuidado é pouco quando começam a dizer exatamente o que você quer escutar.

Bosch balançou a cabeça. O conselho era parte de uma longa tra­dição de descon?ança do DPLA em relação ao FBI. E, é claro, uma tradição tão antiga quanto por parte do FBI em retribuir a desconfiança do
DPLA. Foi por esse motivo que o GSI nasceu.

Quando Bosch voltou para dentro da casa, encontrou Walling no celular e um homem que nunca vira antes parado na sala. Era alto, com uns quarenta e poucos anos, exalando aquela indisfarçável segurança de
FBI que Bosch vira tantas vezes antes. O homem estendeu a mão.

— Você deve ser o detetive Bosch — ele disse. — Jack Brenner. Rachel é minha parceira.

Bosch apertou sua mão. O modo como dissera que Rachel era sua parceira não tinha grande importância, mas dizia muito para Bosch. Havia qualquer coisa de propriedade, ali. Brenner estava lhe dizendo que
o parceiro principal se encarregava do serviço, agora, fosse ou não essa a opinião de Rachel.

— Então, vocês dois já se conheceram.

Bosch virou. Walling saíra do telefone.

— Desculpe — ela disse. — Estava passando informações para o agente especial encarregado. Ele está decidido a empregar toda a Tática nisso. Vai mandar três equipes para começar a checar os hospitais, para
ver se Kent esteve em algum dos laboratórios quentes hoje.

— Laboratório quente é onde guardam material radioativo? — perguntou Bosch.

— É. Kent podia passar pela segurança de praticamente qualquer um no condado. Precisamos descobrir se entrou em algum deles, hoje.

Bosch sabia que provavelmente poderia limitar a busca a uma ins­talação médica. Clínica Saint Agatha para Mulheres. Kent usava um crachá do hospital quando foi assassinado. Walling e Brenner não sa­biam
disso, mas Bosch decidiu não contar, por ora. Sentia que a inves­tigação escapava de suas mãos e pretendia se agarrar ao que poderia ser a única informação sigilosa que ainda tinha.

— E quanto ao DPLA? — preferiu perguntar.

— O DPLA? — disse Brenner, tomando a frente de Walling na questão. — Você quer dizer e quanto a você, Bosch? É o que está ­perguntando?

— É, isso mesmo. Como fico nisso?

Brenner abriu bem as mãos, num gesto de franqueza.

— Não se preocupe, você está dentro. Está cem por cento ­conosco.

O agente federal balançava a cabeça como se aquilo fosse uma pro­messa valiosa como ouro.

— Ótimo — disse Bosch. — Era só isso que eu queria ouvir.

Fitou Walling para ver se con?rmava o que o parceiro dissera. Ela olhou para o outro lado.


QUATRO

QUANDO ALICIA KENT en?m saiu do quarto, havia escovado os ca­belos e lavado o rosto, mas vestia apenas o roupão branco. Bosch agora percebia como era atraente. Pequena, morena, com algo de exóti­co. Imaginou
que assumir o nome do marido ocultara uma ascendência estrangeira longínqua. O cabelo negro emitia uma espécie de lumines­cência. Emoldurava um rosto trigueiro que era bonito e triste ao mesmo tempo.

Ela notou a presença de Brenner e ele a cumprimentou com a cabeça e se apresentou. Alicia Kent parecia tão entorpecida com o que estava acontecendo que não deu mostras de reconhecê-lo, tal como havia se
lembrado de Walling. Brenner guiou-a até o sofá e disse-lhe que se sentasse.

— Onde está meu marido? — perguntou, dessa vez com uma voz mais forte e calma do que antes. — Quero saber o que está ­acontecendo.

Rachel sentou-se a seu lado, pronta para consolá-la, se necessário. Brenner puxou uma cadeira para perto da lareira. Bosch continuou de pé. Não gostava de ?car sentado no maior conforto quando dava esse
tipo de notícia.

— Senhora Kent — disse Bosch, tomando a dianteira, num es­forço possessivo de manter controle do caso. — Sou um detetive de homicídios. Estou aqui porque esta noite encontramos o corpo de um homem que
acreditamos ser seu marido. Lamento informá-la.

Sua cabeça pendeu para a frente conforme a notícia foi dada, então suas mãos se ergueram e cobriram seu rosto. Um tremor percorreu seu corpo e o som de um gemido desamparado se fez ouvir sob suas mãos.
Depois ela começou a chorar, fortes soluços que sacudiram seus ombros de tal forma que teve de baixar as mãos e segurar o roupão para que não abrisse. Walling esticou o braço e pousou a mão em sua nuca.

Brenner se ofereceu para pegar um copo d’água e ela fez que sim. Enquanto saía, Bosch estudou a mulher e viu as lágrimas escorrendo por sua face. Trabalhinho sujo, esse de contar a alguém que o ente que­rido
havia morrido. Fizera-o centenas de vezes, mas não é o tipo de coisa com a qual a pessoa se acostuma ou em que vai ?cando cada vez melhor. Ele também já estivera do outro lado. Quando sua mãe fora assassinada,
mais de quarenta anos antes, recebeu a notícia de um policial assim que saía de uma piscina num centro esportivo. Sua reação foi pular de volta e tentar nunca mais voltar à tona.

Brenner entregou-lhe a água, e a agora viúva bebeu metade. Antes que qualquer um pudesse fazer alguma pergunta houve uma batida na porta e Bosch foi abrir para a entrada de dois paramédicos carregando
grandes caixas de equipamento. Bosch saiu do caminho enquanto eles se aproximaram para veri?car a condição física da mulher. Sinalizando para Walling e Brenner, chamou-os à cozinha, onde poderiam conversar
baixinho. Percebeu que deveriam ter feito isso antes.

— Então, como vocês querem abordá-la? — perguntou Bosch.

Brenner abriu bem as mãos outra vez, como que aberto a suges­tões. Ao que parecia, aquilo era um gesto característico.

— Acho que você deve tomar a iniciativa — disse o agente. — A gente entra depois, se precisar. Se não estiver bom, a gente pod...

— Não, assim tá bom. Eu tomo a iniciativa.

Olhou para Walling, esperando uma objeção, mas por ela tudo bem, também. Virou-se para sair da cozinha, mas Brenner o impediu.

— Bosch, quero jogar aberto com você — disse Brenner.

Bosch se virou.

— O que você quer dizer com isso?

— Quero dizer que mandei veri?car você. Ouvi dizer que...

— Como assim, mandou me verificar? Andou perguntando sobre mim?

— Precisava saber com quem a gente estava trabalhando. Tudo o que sabia a seu respeito antes disso foi o que ouvi sobre Echo Park. Queria...

— Se tiver qualquer pergunta, pode fazer pra mim.

Brenner ergueu as mãos, palmas abertas.

— Muito justo.

Bosch saiu da cozinha e foi para a sala, aguardando que os para­médicos ?nalizassem o exame em Alicia Kent. Um deles punha uma espécie de creme nos esfolados de seus pulsos e tornozelos. O outro veri?cava
a pressão. Bosch viu que as bandagens haviam sido colocadas no pescoço e em um dos pulsos, aparentemente cobrindo ferimentos que não notara antes.

Seu celular tocou e Bosch voltou para a cozinha para atender. Des­cobriu que Walling e Brenner não estavam mais lá, ao que parecia ha­viam saído por outra parte da casa. Uma ponta de ansiedade o percor­reu.
Bosch não sabia o que estavam procurando ou aprontando.

Era seu parceiro no celular. Ferras ?nalmente chegara ao local do crime.

— O corpo continua aí? — perguntou Bosch.

— Não, o legista acaba de sair — disse Ferras. — Acho que os forenses também estão no fim.

Bosch o deixou a par dos rumos que o caso parecia estar tomando, explicando sobre o envolvimento federal e os materiais potencialmente perigosos a que Stanley Kent tinha acesso. Depois o instruiu a sair
ba­tendo em algumas portas atrás de testemunhas que pudessem ter visto ou ouvido alguma coisa relacionada ao assassinato de Stanley Kent. Sa­bia que era um tiro no escuro, porque ninguém ligara para o
911 depois dos tiros.

— Quer que eu faça isso agora, Harry? Estamos no meio da noite e as pessoas estão dorm...

— Isso, Ignacio, faça isso agora.

Bosch não estava preocupado em acordar quem quer que fosse. De todo modo, havia uma boa chance de que o gerador que alimentava a iluminação da cena do crime houvesse acordado os arredores. Mas a in­vestigação
de porta em porta pela vizinhança tinha de ser feita e sempre era melhor encontrar testemunhas mais cedo do que mais tarde.

Quando Bosch saiu da cozinha, os paramédicos haviam guardado as coisas e estavam de saída. Disseram a Bosch que Alicia Kent estava bem ?sicamente, com pequenos ferimentos e alguns arranhões na pele. Também
informaram que haviam lhe dado um calmante e um tubo de pomada para continuar a passar nas marcas de esfoladura dos pulsos e dos tornozelos.

Walling estava sentada no sofá, ao lado dela, outra vez, e Brenner voltara a sua poltrona junto à lareira.

Bosch sentou na cadeira do lado oposto da mesinha de vidro dian­te de Alicia Kent.

— Senhora Kent — começou —, lamentamos sua perda e todo esse trauma pelo qual está passando. Mas é da mais extrema urgência que prossigamos com a investigação. Num mundo ideal, iríamos espe­rar até que
estivesse em condições de conversar com a gente. Mas não é um mundo ideal. Sabe disso mais do que nós, agora. Precisamos fazer algumas perguntas sobre o que aconteceu aqui esta noite.

Ela cruzou os braços diante do peito e balançou a cabeça, ­assentindo.

— Então vamos começar — disse Bosch. — Pode nos dizer o que aconteceu?

— Dois homens — respondeu, entre lágrimas. — Não pude ver os dois. Quero dizer, o rosto deles. Não vi o rosto deles. Alguém bateu na porta e fui atender. Não tinha ninguém. Daí eu comecei a fechar a porta
e eles apareceram. Pularam na frente. Estavam com máscara e capuz... tipo um blusão com capuz. Entraram empurrando e me agar­raram. Tinham uma faca e um deles me agarrou e ?cou segurando ela na minha garganta.
Ele disse que ia cortar minha garganta se não fizesse exatamente o que mandava.

Ela tocou suavemente o curativo no pescoço.

— Lembra que horas eram? — perguntou Bosch.

— Quase seis — ela disse. — Já tinha escurecido fazia algum tem­po e eu estava preparando o jantar. Stanley chega em casa quase sempre às sete toda noite. A não ser quando está trabalhando em South County
ou no deserto.

A lembrança da rotina do marido despertou uma nova explosão de lágrimas nos olhos e na voz de Alicia Kent. Bosch tentou mantê-la fo­cada passando à questão seguinte. Achou que já detectava uma lentidão
em sua fala. O calmante dos paramédicos começava a fazer efeito.

— O que os homens ?zeram, senhora Kent? — ele perguntou.

— Eles me levaram para o quarto. Mandaram que eu sentasse na cama e tirasse toda a roupa. Então eles, um deles começou a me fazer perguntas. Fiquei com medo. Acho que ?quei histérica e ele me deu um tapa
e gritou comigo. Disse para me acalmar e responder às perguntas.

— O que ele perguntou?

— Não consigo me lembrar. Estava assustada demais.

— Tente, senhora Kent. É importante. Isso vai nos ajudar a achar os assassinos de seu marido.

— Ele me perguntou se tínhamos uma arma e perguntou onde...

— Um minuto, senhora Kent — disse Bosch. — Uma coisa de cada vez. Ele perguntou se vocês tinham uma arma. O que falou pra ele?

— Eu estava assustada. Eu disse, temos, temos uma arma. Ele me perguntou onde estava, e eu falei que na gaveta do lado da cama de meu marido. Era a arma que a gente arranjou depois que vocês nos avisaram
dos perigos do trabalho de Stan.

Ela disse essa última parte olhando diretamente para Walling.

— Não ?cou com medo de que usassem a arma para matar você? — perguntou Bosch. — Por que contou aos homens onde estava a arma?

Alicia Kent baixou os olhos para as mãos.

— Eu estava ali sentada, sem roupa. Tinha certeza de que iam me estuprar e matar. Acho que pensei que não fazia mais nenhuma ­diferença.

Bosch balançou a cabeça, compreensivo.

— O que mais perguntaram, senhora Kent?

— Queriam saber onde estavam as chaves do carro. Eu disse. Disse tudo o que queriam saber.

— Era do seu carro que falavam?

— É, meu carro. Na garagem. Eu guardo as chaves no balcão da cozinha.

— Dei uma olhada na garagem. Está vazia.

— Ouvi a porta da garagem... depois que estiveram aqui. Devem ter levado o carro.

Brenner ?cou de pé de repente.

— A gente precisa ver isso — interrompeu. — Pode nos dizer o modelo e o número da placa?

— É um Chrysler 300. Não me lembro da placa. Posso dar uma olhada na ?cha do seguro.

Brenner fez um sinal com a mão para que não ?casse de pé.

— Não precisa. Eu consigo. Vou ligar para descobrir agora ­mesmo.

Foi à cozinha para telefonar sem perturbar o inquérito. Bosch vol­tou a fazer perguntas.

— O que mais quiseram saber, senhora Kent?

— Queriam nossa câmera. A câmera que meu marido usava com o computador. Disse a eles que eu achava que a câmera de Stanley es­tava na mesa dele. Sempre que eu respondia a uma pergunta, um dos homens, o
que perguntava, traduzia pro outro, e então esse homem saiu do quarto. Acho que foi procurar a câmera.

Agora Walling ?cou de pé e se dirigiu ao corredor que conduzia aos quartos.

— Rachel, não toque em nada — disse Bosch. — Tenho uma equipe de investigação da cena do crime a caminho.

Walling acenou conforme desaparecia pela porta. Brenner então voltou a entrar no quarto e acenou com o queixo para Bosch.

— Já pus o sobreaviso — ele disse.

Alicia Kent perguntou do que estava falando.

— Ele quer dizer que deu o alerta geral pelo rádio — explicou Bosch. — Estão procurando seu carro. O que aconteceu então com os dois, senhora Kent?

Ela começou a chorar de novo conforme respondia.

— Eles... eles me amarraram daquele jeito horrível e me amor­daçaram com uma das gravatas de meu marido. Daí, depois que um voltou com a câmera, o outro tirou uma foto de mim daquele jeito.

Bosch observou o rosto da mulher queimar de humilhação.

— Ele tirou uma foto?

— É, só isso. Depois os dois saíram do quarto. O que falava inglês se abaixou e sussurrou que meu marido viria me tirar dali. Daí eles foram.

Isso trouxe um longo silêncio, antes que Bosch continuasse.

— Depois que eles saíram do quarto, foram embora imediatamen­te da casa? — ele perguntou.

A mulher fez que não.

— Ouvi os dois conversando por um tempo, depois ouvi a porta da garagem. O barulho faz a casa tremer como um terremoto. Ouvi duas vezes... ela abriu, depois fechou. Depois disso achei que tinham ido.

Brenner interrompeu as perguntas outra vez.

— Quando estava na cozinha ouvi a senhora dizer que um dos homens traduzia para o outro. Sabe que língua estavam falando?

Bosch ?cou irritado com a intromissão de Brenner. Ele pretendia perguntar sobre a língua usada pelos criminosos, mas procurava cobrir cuidadosamente cada aspecto da entrevista por vez. Sabia de casos ante­riores
que era o que funcionava melhor com vítimas traumatizadas.

— Não tenho certeza. O que falava inglês tinha sotaque, mas não sei de onde. Acho que do Oriente Médio. Acho que quando falavam um com o outro era em árabe ou algo assim. Era um som estrangeiro, muito
gutural. Mas não sei diferenciar as línguas.

Brenner balançou a cabeça como se a resposta confirmasse alguma coisa.

— Lembra-se de mais alguma coisa sobre o que os homens podem ter perguntado ou dito em inglês? — quis saber Bosch.

— Não, nada.

— Disse que usavam máscara, que tipo de máscara?

Ela pensou um momento antes de responder.

— Tipo um pulôver. Como as que os ladrões usam nos filmes, ou pessoas quando esquiam.

— Uma máscara de esqui, de lã.

Ela fez que sim.

— Isso, isso mesmo.

— Certo, eram do tipo com um furo só para os dois olhos ou com um furo separado para cada olho?

— Hã, separado, acho. É, separado.

— Tinha abertura para a boca?

— Hmm... tinha, tinha sim. Lembro-me de ter observado a boca do homem quando ele falava em outra língua. Eu queria entender.

— Muito bem, senhora Kent. Está sendo de grande ajuda. O que eu deixei de perguntar para a senhora?

— Como assim? Não entendo.

— Que detalhes a senhora lembra que eu não tenha perguntado ainda?

Ela pensou um pouco e então sacudiu negativamente a cabeça.

— Não sei. Acho que já disse tudo o que eu lembrava.

Bosch não se deu por vencido. Começou a repassar todo o rela­to outra vez, voltando às mesmas informações sob novos ângulos. Era uma técnica de inquérito testada e aprovada para obter novos detalhes e
aquilo não foi em vão. A informação mais interessante a emergir da segunda vez foi que o homem que falava inglês também perguntou qual era a senha pessoal de e-mail dela.

— Pra que ele ia querer uma coisa dessas? — perguntou Bosch.

— Sei lá — disse Alicia Kent. — Não perguntei. Só disse o que ele queria.

Perto do ?m do segundo interrogatório, a equipe forense chegou e Bosch anunciou que iam fazer uma pausa. Enquanto Alicia Kent conti­nuou no sofá, ele acompanhou a equipe técnica à suíte do casal, para
que começassem por lá. Depois foi para um canto do quarto e ligou para seu parceiro. Ferras relatou que ainda não encontrara ninguém que tivesse visto ou ouvido qualquer coisa no mirante. Bosch lhe disse
que quando resolvesse fazer uma pausa na investigação, que veri?casse uma arma de propriedade de Stanley Kent. Precisavam saber o ano e o modelo. Ao que tudo indicava, haviam usado sua própria arma para
assassiná-lo.

Assim que Bosch fechou o celular, Walling o chamou do escritó­rio. Harry encontrou-a junto com Brenner de pé atrás da escrivaninha, olhando para a tela do computador.

— Olhe só isso — disse Walling.

— Já disse — ele falou —, não devem encostar em nada, ainda.

— A gente não pode mais se dar ao luxo de perder tempo — disse Brenner. — Veja isso aqui.

Bosch deu a volta na mesa e olhou para o computador.

— O e-mail dela está aberto — disse Walling. — Entrei na pasta de e-mails enviados. E isso foi mandado para o e-mail do marido dela às 6h21 na noite passada.

Ela clicou com o mouse e abriu o e-mail que havia sido enviado de Alicia Kent para seu marido. A linha do assunto dizia:

EMERGÊNCIA DOMÉSTICA: LEIA IMEDIATAMENTE!

Anexado no corpo do e-mail havia uma foto de Alicia Kent nua e amarrada na cama. O impacto da foto ?caria óbvio para qualquer um, não só um marido.

Sob a foto lia-se a mensagem:

Estamos com sua esposa. Resgate para nós todas as fontes de césio que você dispõe. Leve tudo em um recipiente seguro para o mirante de Mulholland perto de sua casa às oito da noite. Iremos vigiar. Se contar
para alguém ou ?zer alguma ligação, ire­mos saber. As consequências serão que estupraremos sua esposa, torturaremos e vamos deixar em pedaços de mais para contar. Use toda precaução quando ma­nusear fontes.
Não se atrase ou iremos matá-la.

Bosch leu a mensagem duas vezes e sentiu o mesmo terror que Stanley Kent devia ter sentido.

— “Iremos vigiar... iremos saber... iremos matá-la” — disse Walling. — “Pedaços de mais” escrito errado, e todas essas construções esquisitas das frases. Não acho que tenha sido escrito por alguém que
tenha o inglês como primeira língua.

Assim que ela disse isso, Bosch percebeu que tinha razão.

— Enviaram a mensagem daqui mesmo — disse Brenner. — O marido a recebe no trabalho ou no PDA dele... ele tinha um PDA?

Bosch era leigo no assunto. Hesitou.

— Um assistente digital pessoal — explicou Walling. — Sabe como é, tipo um Palm Pilot ou um celular cheio de ferramentas.

Bosch balançou a cabeça.

— Acho que sim — disse. — Acharam um BlackBerry junto. Pa­recia ter um miniteclado.

— Serve — disse Brenner. — Onde quer que estivesse, ele recebeu a mensagem e provavelmente viu a foto, também.

Todos os três ?caram em silêncio absorvendo o impacto do e-mail. Por ?m, Bosch falou, sentindo-se culpado por ter retido a informação antes.

— Acabo de me lembrar de uma coisa. Havia um crachá no corpo. Da Saint Aggy’s, lá no vale.

Os olhos de Brenner se estreitaram.

— Acaba de se lembrar de uma informação como essa? — pergun­tou, furioso.

— Isso mesmo. Esq...

— Tanto faz agora — interrompeu Walling. — A Saint Aggy’s é uma clínica de câncer para mulheres. O césio é usado quase exclusiva­mente para tratar câncer cervical e uterino.

Bosch balançou a cabeça.

— Então é melhor a gente ir andando.


CINCO

ACLÍNICA SAINT AGATHA para Mulheres ?cava em Sylmar, no ex­tremo norte do Vale de San Fernando. Por ser alta madrugada, percorriam em boa velocidade a Auto-Estrada 170. Ele sabia que pre­cisaria de gasolina
antes de voltar para a cidade. Iam ele e Brenner no carro. Ficara decidido — por Brenner — que Walling ?caria para trás com Alicia Kent, para continuar as perguntas e acalmá-la. Walling não pareceu muito
feliz com a incumbência, mas Brenner, mostrando sua precedência na parceria, não deixou margem para discussão.

Brenner passou a maior parte do trajeto recebendo e fazendo uma série de ligações, de e para superiores e colegas agentes. Ficou claro para Bosch, pelo lado das coisas que pôde escutar, que a grande engrenagem
federal para a batalha entrara em funcionamento. Um alarme ainda maior soara agora. O e-mail enviado para Stanley Kent pusera as coisas em melhor foco, e o que antes era apenas curiosidade federal, agora
saía completamente de escala.

Quando Brenner por ?m desligou o celular e o en?ou de volta no bolso do paletó, virou levemente em seu banco e olhou para Bosch.

— Tenho uma equipe RAT a caminho da Saint Aggy’s — ele disse. — Vão entrar nos cofres de materiais para checar.

— Equipe rato?

— Radiological-attack team, equipe de ataque radiológico.

— Qual a previsão de chegada?

— Não perguntei, mas é capaz de eles chegarem primeiro. Eles têm um helicóptero.

Bosch estava impressionado. Signi?cava que havia uma equipe a postos e pronta para agir em algum lugar no meio da noite. Pensou em como permanecera acordado à espera da ligação naquela noite. Os membros
da equipe de ataque radiológico deviam esperar que a liga­ção jamais ocorresse. Lembrou-se do que ouvira dizer sobre a própria unidade GSI do DPLA em treinamento de táticas de guerrilha urbana. Imaginava
se o capitão Hadley não teria uma equipe RAT, também.

— Eles vão entrar com tudo nessa — disse Brenner. — O Depar­tamento de Segurança Interna está supervisionando da capital. Agora de manhã, às nove, vai ter reuniões de costa a costa pra pôr todo mundo pra
trabalhar junto nisso.

— Quem é todo mundo?

— Existe um protocolo. Vão requisitar a Segurança Interna, a JTTF, todo mundo. Vai ser uma sopa de letrinhas. A NRC, o DOE, RAP... vai saber, antes que a gente consiga segurar o vazamento, pode ser que
até a FEMA arme sua tenda. Vai ser um pandemônio federal.

Bosch não sabia o que queriam dizer todos aqueles acrônimos, mas não precisava. Todos signi?cavam uma coisa só, para ele: federais.

— Quem vai estar no controle?

Brenner olhou para Bosch.

— Todo mundo e ninguém. Como eu disse, pandemônio. Se abri­rem aquele cofre na Saint Aggy’s e o césio tiver sumido, o melhor a fazer será ir atrás e conseguir recuperá-lo antes de essa bomba explodir às
nove e a gente começar a receber um milhão de ordens estapafúrdias de Washington.

Bosch balançou a cabeça. Achou que talvez houvesse julgado Bren­ner mal. O agente parecia disposto a resolver as coisas, não chafurdar no lamaçal burocrático.

— E qual o status do DPLA numa investigação de carga máxima?

— Já te disse, o DPLA continua dentro. Nada muda nisso. Você continua dentro, Harry. Meu palpite é que as pontes já estão sendo construídas entre nossa turma e a de vocês. Sei que o DPLA tem seu próprio
Gabinete de Segurança Interna. Tenho certeza de que vão cha­má-los para participar. É óbvio que a gente precisa de todo mundo a postos na situação.

Bosch olhou de rabo de olho para ele. Brenner parecia sério.

— Já trabalhou com o GSI antes? — perguntou Bosch.

— Uma vez. A gente trocou informações sobre umas coisinhas.

Bosch balançou a cabeça, mas sentiu que Brenner estava se esqui­vando ou então sendo um completo ingênuo sobre o abismo existente entre as forças locais e os federais. Mas notou que o chamara pelo pri­meiro
nome e imaginou se isso não seria uma das tais pontes sendo construídas.

— Você disse que mandou me veri?car. Com quem fez isso?

— Harry, a gente tá trabalhando bem até aqui, pra que cutucar? Se eu cometi um erro, me desculpe.

— Tudo bem. Com quem você me checou?

— Olha, só vou dizer que perguntei para a agente Walling quem era o homem designado pelo DPLA e ela me deu seu nome. Fiz umas ligações pelo caminho. Me disseram que você era um detetive muito competente.
Que tinha mais de trinta, que há uns anos se aposentou, não gostou muito e voltou pro trabalho, pegando casos arquivados. As coisas desandaram em Echo Park... um negocinho em que você arras­tou a agente
Walling junto. Você foi afastado do trabalho por alguns meses enquanto esse negócio era, ahn, esclarecido, e agora foi chamado de volta e designado para a Especial de Homicídios.

— Que mais?

— Harr...

— Que mais?

— Ok. Disseram que pode ser difícil de lidar com você... princi­palmente quando se trata de trabalhar com o governo federal. Mas vou dizer, até agora não vi nada disso.

Bosch imaginou que a maior parte daquela informação viera de Rachel — lembrou-se de vê-la falando ao telefone, dizendo que era o parceiro dela. Ficou desapontado com ela por falar tais coisas a seu res­peito.
E sabia que Brenner provavelmente estava escondendo a maior parte. A verdade era que tivera tantos pega-pra-capar com os federais — muito antes até de conhecer Rachel Walling — que provavelmente a ?cha
que tinham dele era grossa como uma ?cha de homicídio.

Após um ou dois minutos de silêncio, Bosch decidiu mudar de rumo e voltou a falar.

— Me fale sobre o césio — ele disse.

— O que a agente Walling já disse pra você?

— Não muita coisa.

— É um derivado. A ?ssão do urânio e do plutônio cria o césio. Quando Chernobyl superaqueceu, era césio que foi dispersado pelo ar. Ele vem em pó ou como um metal cinza-prateado. Quando conduzi­ram testes
nucleares no Pacífico Sul...

— Não quis dizer a coisa cientí?ca. Tô pouco me lixando pra ciência. Me diga com que estamos lidando neste caso.

Brenner pensou por um momento.

— Ok — ele disse. — Estamos falando de um negócio que vem em pedaços pequenos, mais ou menos do tamanho de uma borracha na ponta de um lápis. Ele é então contido num tubo de aço inoxidável selado, mais
ou menos do tamanho de um cartucho de bala calibre 45. Quando usam pra tratar câncer ginecológico, en?am dentro do corpo da mulher, no útero, por um período determinado de tempo, irradian­do a área atingida.
Em doses rápidas, acreditam que é muito eficaz. E esse é o trabalho de gente como Stanley Kent: calcular a física envolvida no processo e determinar o tempo de aplicação necessário. Ele então vai, pega
o césio no cofre do hospital e entrega pessoalmente para o oncologista na sala de cirurgia. O sistema foi elaborado de forma que o médico que administra o tratamento na verdade lide com o material o mínimo
de tempo possível. Como o cirurgião não pode usar nenhuma proteção quando está na mesa de operações, ele tem um limite para ficar exposto, sabe como é?

Bosch balançou a cabeça.

— Esses tubos protegem quem manuseia o material?

— Não, a única coisa que impede os raios gama do césio de se propagarem é o chumbo. O cofre em que eles guardam os tubos é re­vestido de chumbo. O equipamento em que eles os transportam é feito de chumbo.

— Ok. Então qual o estrago que essa coisa pode fazer se for espa­lhada por aí?

Brenner pensou um pouco antes de responder.

— Espalhada por aí depende da quantidade, do modo de disper­são e lugar — ele disse. — Essas são as variáveis. A meia-vida do césio é de trinta anos. Em geral, consideram dez meias-vidas uma margem de
segurança.

— Estou boiando. Qual é a questão?

— A questão é que o perigo radioativo diminui pela metade a cada trinta anos. Se você jogar uma boa dose desse negócio em um ambiente fechado, como uma estação do metrô, por exemplo, ou um prédio de escritórios,
o lugar vai ter que ser fechado por trezentos anos.

Bosch ?cou perplexo enquanto digeria isso.

— E as pessoas? — perguntou.

— Também depende da dispersão e da contenção. Uma exposição de alta intensidade pode matar em poucas horas. Mas se for dispersado por um DEI dentro de uma estação do metrô, então meu palpite é que as baixas
imediatas serão muito poucas. Mas o número de mortos não é o que conta, nesse caso. É o componente do medo que importa, para essa gente. Detone uma coisa dessas aqui pelo país e o importante é a onda de
medo que vai se espalhar. Um lugar como Los Angeles? Nunca mais seria o mesmo.

Bosch só balançou a cabeça. Não havia mais nada a dizer.


SEIS

NA SAINT AGGY’S, entraram no saguão principal e perguntaram à recepcionista pelo chefe da segurança. A mulher disse que ele tra­balhava só de dia, mas que iria procurar o supervisor de segurança do turno
da noite. Enquanto aguardavam, ouviram o helicóptero pousar no amplo gramado frontal do centro médico e em seguida os quatro membros da equipe radiológica entraram, cada um usando um traje de radiação
e portando máscara protetora. O líder do grupo — sua plaqueta de identificação dizia KYLE REID — carregava um monitor de radiação portátil.

Finalmente, depois de insistirem mais duas vezes com a mulher no balcão de atendimento, um homem que parecia ter sido arrancado de um leito em algum quarto vago cumprimentou-os no saguão. Disse que seu
nome era Ed Romo e parecia incapaz de desviar os olhos dos trajes de hazmat usados pelos membros da equipe laboratorial. Brenner mostrou o distintivo para Romo e tomou a iniciativa. Bosch não objetou.
Sabia que pisavam num terreno agora em que o agente federal seria mais indi­cado para conseguir algum avanço e manter a rapidez da investigação.

— Precisamos entrar no laboratório quente e checar o inventário de materiais — disse Brenner. — Também precisamos ver qualquer re­gistro ou dados de cartões magnéticos que nos mostrem quem entrou e saiu
dali nas últimas 24 horas.

Romo não se mexeu. Ficou em suspenso como que tentando entender a cena à sua frente.

— O que está acontecendo? — perguntou finalmente.

Brenner deu um passo adiante e invadiu seu espaço.

— Acabei de dizer o que está acontecendo — ele disse. — Precisa­mos entrar no laboratório de oncologia. Se você não pode nos colocar lá dentro, vá buscar alguém que possa. Agora.

— Preciso fazer uma ligação primeiro — disse Romo.

— Ótimo. Pode fazer. Tem dois minutos, depois passamos por cima de você.

Em nenhum momento enquanto fazia a ameaça Brenner deixou de sorrir e balançar a cabeça afirmativamente.

Romo tirou um celular e afastou-se do grupo para fazer a liga­ção. Brenner manteve distância. Olhou para Bosch com um sorriso de ­sarcasmo.

— No ano passado ?z uma inspeção de segurança aqui. Tinham uma fechadura no laboratório, o cofre e só. Melhoraram depois disso. Mas é só construir uma ratoeira melhor para o rato ?car mais esperto.

Bosch balançou a cabeça.

Dez minutos mais tarde, Bosch, Brenner, Romo e o restante da equipe do laboratório saíam do elevador no subterrâneo da clíni­ca. O chefe de Romo estava a caminho, mas Brenner não ia esperar. Romo usou
um cartão magnético para ganhar acesso ao laboratório de ­oncologia.

O laboratório estava deserto. Brenner encontrou uma folha de in­ventário e um registro na mesa de entrada e começou a ler. Havia um pequeno monitor de vídeo na mesa mostrando a imagem de uma câ­mera do
cofre.

— Ele esteve aqui — disse Brenner.

— Quando? — perguntou Bosch.

— Às sete, segundo isto.

Reid apontou o monitor.

— Isso grava? — perguntou a Romo. — Dá para ver o que Kent fez quando entrou ali?

Romo olhou para o monitor como se fosse a primeira vez que o visse.

— É... não, é só um monitor — disse, en?m. — Quem estiver na mesa deve observar qualquer coisa que saia do cofre.

Romo apontou para o outro lado do laboratório, onde havia uma grande porta de aço. O símbolo em trevo do alerta de materiais radioa­tivos estava a?xado no nível dos olhos, junto a uma placa em inglês e
espanhol:

CUIDADO!
PERIGO DE RADIAÇÃO

USO OBRIGATÓRIO DE
EQUIPAMENTO DE PROTEÇÃO

Bosch notou que a porta tinha uma trava de botões, além de uma fenda para inserção de cartão magnético.

— Diz aqui que ele levou uma fonte de césio — disse Brenner, continuando a examinar o registro. — Um tubo. É um estojo de transporte. Ele estava levando a fonte para o Centro Médico de Burbank para um
tratamento lá. Informa o nome do paciente. Hanover. Diz que ?caram 31 pedaços de césio no estoque.

— É tudo que vocês precisam, então? — perguntou Romo.

— Não — disse Brenner. — Precisamos inspecionar o estoque pessoalmente. Vamos precisar entrar na sala do cofre e depois abri-lo. Qual a combinação?

— Não tenho — disse Romo.

— Quem tem?

— Os físicos. O chefe do laboratório. O chefe da segurança.

— E onde está o chefe da segurança?

— Já disse. Tá vindo.

— Põe ele no viva voz.

Brenner apontou para o telefone na mesa. Romo sentou. Pôs o telefone em viva voz e teclou um número de memória. Atenderam ­imediatamente.

— Aqui é Richard Romo.

Ed Romo curvou-se sobre o aparelho e pareceu um tanto constran­gido com a revelação do óbvio nepotismo da situação.

— Hmm, é, pai, aqui é o Ed. O cara do FB...

— Senhor Romo? — interrompeu Brenner. — Aqui é o agente especial John Brenner, do FBI. Creio que nos encontramos e discutimos algumas questões de segurança há um ano. A que distância o senhor está daqui?

— Uns vinte, 25 minutos. Eu lembr...

— Vai demorar demais, senhor. Precisamos abrir o cofre do labo­ratório quente agora mesmo para determinar o conteúdo.

— Você não pode abrir isso aí sem a aprovação do hospital. Tô pouco ligando pra quem...

— Senhor Romo, temos motivos para acreditar que o conteúdo do cofre foi parar nas mãos de pessoas que se opõem aos interesses ou à segurança do povo americano. Precisamos abrir o cofre para saber exatamente
o que continua aqui e o que está faltando. E não pode­mos esperar vinte, 25 minutos para fazer isso. Agora, já me identifiquei apropriadamente para seu filho e tenho uma equipe de radiação no la­boratório
a postos. Precisamos agir, senhor. Então, como abrimos o cofre?

Houve um silêncio no viva voz por alguns instantes. Então Ri­chard Romo cedeu.

— Ed, pelo que entendi vocês estão ligando da mesa no ­laboratório?

— Isso.

— Ok, destranque e abra a gaveta de baixo, à esquerda.

Ed Romo rolou com a cadeira para trás e examinou a escrivaninha. Havia uma fechadura na gaveta superior direita que aparentemente des­trancava todas as três gavetas.

— Qual a chave? — ele perguntou.

— Espere um pouco.

No viva voz, ouviu-se o som de um molho de chaves tilintando.

— Tente 14-14.

Ed Romo puxou um molho de chaves de seu cinto e manuseou uma por uma até encontrar a que tinha o número 1.414. Então a in­seriu na fechadura da gaveta e girou. A gaveta de baixo agora estava destravada
e ele a puxou.

— Pronto.

— Ok, tem um ?chário aí na gaveta. Abra e procure a página com as listas de combinações da sala do cofre. Ela muda toda semana.

Segurando o ?chário nas mãos, Romo começou a abri-lo num ângulo que permitisse apenas a ele ver o conteúdo. Brenner esticou o braço sobre a mesa e arrancou o ?chário de suas mãos sem a menor cerimônia.
Abriu-o sobre a mesa e começou a folhear as páginas com os protocolos de segurança.

— Onde está? — disse com impaciência para o viva voz.

— Deveria estar na última seção. Vai estar marcado claramente como combinações do laboratório quente. Mas tem uma manha. A gente usa a semana anterior. A combinação da semana atual está errada. Use a combinação
da semana passada.

Brenner encontrou a página e percorreu a lista com o dedo até achar a combinação da semana anterior.

— Ok, tá aqui. E o cofre lá dentro?

Richard Romo respondeu de seu carro.

— Você vai usar o cartão magnético outra vez e outra combinação. Essa eu sei. Não muda. É seis-seis-seis.

— Original.

Brenner estendeu a mão para Ed Romo.

— Me dê o cartão.

Romo obedeceu e Brenner passou o cartão para Reid.

— Ok, Kyle, vai lá — ordenou Brenner. — A combinação da por­ta é cinco-seis-um-oito-quatro e o restante você ouviu.

Reid virou e apontou para um dos outros usando traje de hazmat.

— É apertado ali dentro. Só Miller e eu entramos.

O líder e o ajudante designado baixaram as máscaras e usaram o cartão e a combinação para abrir a porta da sala do cofre. Miller carre­gava o monitor de radiação e eles entraram no recinto, fechando a
porta atrás de si.

— Sabe, as pessoas entram ali o tempo todo e não usam roupa espacial — disse Ed Romo.

— Fico feliz por elas — disse Brenner. — A situação aqui é um pouco diferente, não acha? A gente não sabe o que pode ou não ter es­capado dentro daquele ambiente.

— Só falei por falar — disse Romo, na defensiva.

— Então me faz um favor e não fala mais nada, ?lho. Deixa a gente trabalhar.

Bosch observava o monitor e logo viu uma falha no sistema de segurança. A câmera fora montada acima do nível da cabeça, mas assim que Reid abaixou para digitar a combinação do cofre de materiais, ele bloqueou
a visão da câmera e não era possível ver o que estava fazendo. Bosch percebeu que mesmo que alguém houvesse visto Kent quando entrou no cofre, às sete da noite anterior, ele poderia facilmente ter ocultado
o que pegava.

Menos de um minuto depois de entrarem na sala do cofre, os dois sujeitos em trajes de hazmat saíram. Brenner ?cou de pé. Os homens tiraram as máscaras e Reid olhou para Brenner. Ele sacudiu a cabeça.

— O cofre tá vazio — disse.

Brenner pegou o celular no bolso. Mas antes que pudesse chamar algum número, Reid deu um passo adiante, segurando um pedaço de papel rasgado de um caderno espiral.

— Só ?cou isso — ele disse.

Bosch olhou o bilhete por cima do ombro de Brenner. Estava es­crito com caneta-tinteiro e era difícil de decifrar. Brenner leu em voz alta.

— “Estou sendo observado. Se não ?zer isso vão matar minha es­posa. Trinta e duas fontes, césio. Deus me perdoe. Sem escolha.”


SETE

BOSCH E OS agentes federais ?caram em silêncio. Uma sensação de terror quase palpável pairava no ar do laboratório de oncologia. Haviam acabado de con?rmar que Stanley Kent tirara 32 cápsulas de césio
do cofre na Saint Agatha’s e que muito provavelmente as pusera nas mãos de gente desconhecida. Esses desconhecidos foram os que o executaram no mirante de Mulholland.

— Trinta e duas cápsulas de césio — disse Bosch. — Qual o estra­go que isso pode fazer?

Brenner olhou sombriamente para ele.

— A gente precisa perguntar pros caras da ciência, mas meu pal­pite é que pode servir pro que essas pessoas têm em mente — ele disse. — Se alguém tá a ?m de mandar um recado, ele vai ser ouvido em alto
e bom som.

Bosch de repente pensou em algo que não encaixava na sequência conhecida de fatos.

— Espera aí — ele disse. — Os anéis de radiação de Stanley Kent não indicavam nenhuma exposição. Como ele ia conseguir tirar o césio daí sem fazer com que aqueles monitores de advertência piscassem mais
do que uma árvore de natal?

Bosch sacudiu a cabeça desconsiderando.

— Obviamente ele usou um porco.

— Um o quê?

— Porco é como eles chamam o equipamento de transporte. Basi­camente, parece um balde de esfregão de chumbo com rodas. Com uma tampa segura, é claro. É pesado e feito pra rodar rente ao chão... como um
porco. Então chamam de porco.

— E ele poderia simplesmente entrar e sair andando daqui com um negócio desses?

Brenner apontou a prancheta sobre a mesa.

— Transferência de fontes radioativas para tratamento de câncer de um hospital para outro não é algo incomum — ele disse. — Ele deu baixa em uma fonte só, mas levou todas. Isso é incomum, mas quem ia abrir
o porco e verificar?

Bosch pensou nas marcas que vira no carpete do porta-malas do Porsche. Alguma coisa pesada fora carregada no carro e depois removi­da. Agora Bosch sabia o que era e constituía mais um indicativo do pior
cenário possível.

Bosch sacudiu a cabeça de um lado para o outro e Brenner achou que estava condenando a segurança do laboratório.

— Deixe eu dizer uma coisa — disse o agente. — Antes de a gente vir aqui no ano passado para reforçar a segurança, qualquer um usando um avental de médico podia ter entrado a pé e levado o que quer que
fosse desse cofre. A segurança era zero.

— Não estava me referindo à segurança. Est...

— Preciso fazer uma ligação — disse Brenner.

Afastou-se dos demais e pegou o celular. Bosch decidiu fazer sua própria ligação. Sacou seu celular, foi até um canto para conseguir pri­vacidade e ligou para o parceiro.

— Ignacio, sou eu. Acabei de checar a clínica.

— Me chama de Iggy, Harry. O que aconteceu por aí?

— Nada bom. Kent esvaziou o cofre. O césio sumiu, tudo.

— Cê tá de sacanagem comigo? É aquele negócio que você disse que usavam para fazer bomba suja?

— Esse mesmo, e parece que foi em quantidade su?ciente para dar conta do recado. Você ainda tá na cena do crime?

— Tô, escuta, tem um garoto aqui que pode ter testemunhado alguma coisa.

— Como assim, “pode ter testemunhado”? Quem é, um vizinho?

— Não, é uma história meio maluca. Sabe aquela casa que poderia ser da Madonna?

— Sei.

— Então, bom, era dela, mas não é mais. Fui até lá bater na porta e o sujeito que mora lá agora disse que não viu nem ouviu nada... foi a mesma coisa em todas as outras casas. Então, bom, tô saindo quando
vejo esse cara escondido atrás dessas árvores no pátio. Vou me esguei­rando na sua direção e chamo o reforço, sabe como é, achando que podia ser o atirador do mirante. Mas não era nada disso. É só um mo­leque,
20 anos, recém-chegado do Canadá, veio de ônibus, acha que a Madonna ainda mora na casa. Tem um mapa de estrelas dizendo que ela ainda mora ali e está tentando ver a mulher ou ouvir alguma coisa. É um
desses maníacos. Ele pulou um muro pra invadir o pátio da frente.

— Ele viu os tiros?

— Diz que não viu nem ouviu nada, mas não sei, Harry. Acho que podia estar espreitando a casa da Madonna quando o negócio no miran­te aconteceu. Depois ?cou escondido e tentou esperar a poeira assentar.
Só que achei ele primeiro.

Tinha alguma coisa na história que não se encaixava, para Bosch.

— Por que ele ia ?car escondido? Por que simplesmente não caiu fora daí? A gente só encontrou o corpo três horas depois dos tiros.

— É, sei. Essa parte não faz sentido. Pode ser apenas que estivesse assustado ou pensasse que se fosse visto nas imediações do corpo podia ser considerado suspeito ou algo assim.

Bosch balançou a cabeça. Era uma possibilidade.

— Você o deteve por invasão? — perguntou.

— Claro. Pedi ao cara que comprou a casa da Madonna pra dar uma força pra gente. Ele vai apresentar queixa se a gente pedir. Então não se preocupe, a gente pode segurar o menino e apertar ele sobre isso.

— Ótimo. Leva ele pro centro, põe numa salinha e vai aquecendo.

— Deixa comigo, Harry.

— Ei, Ignacio, não conte a ninguém sobre o césio.

— Certo, não vou.

Bosch desligou o telefone antes que Ferras pudesse lhe dizer para chamá-lo de Iggy mais uma vez. Ele escutou o ?m da conversa de Brenner. Era óbvio que não estava falando com Walling. O comporta­mento
e o tom de voz eram respeitosos. Estava conversando com um chefe.

— Segundo o registro aqui, sete da noite — dizia. — Isso empurra a entrega no mirante para umas oito da noite, então estamos falando de umas seis horas e meia de vantagem, a essa altura.

Brenner escutou alguma coisa e então começou a falar diversas vezes, mas era repetidamente interrompido pela pessoa na outra ponta da linha.

— Sim, senhor — disse, ?nalmente. — Sim, senhor. Estamos vol­tando, agora.

Fechou o telefone e olhou para Bosch.

— Vou voltar no helicóptero. Tenho que prestar contas numa te­leconferência com Washington. Eu podia levar você comigo, mas acho que vai ser mais útil se puder ?car na rua, atrás do caso. Mando alguém
buscar meu carro mais tarde.

— Sem problema.

— Seu parceiro encontrou uma testemunha? Foi o que ouvi?

Bosch tentou imaginar como Brenner conseguira escutar isso en­quanto tinha sua própria conversa ao telefone.

— Pode ser, mas parece mais um tiro no escuro. Estou indo agora mesmo para o centro verificar isso.

Brenner balançou a cabeça com gravidade, depois estendeu um cartão pessoal para Bosch.

— Se conseguir alguma coisa, ligue pra mim. Todas as informa­ções de que precisa estão aí. Seja o que for, ligue.

Bosch apanhou o cartão e en?ou no bolso. Brenner e os agentes então deixaram o laboratório e poucos minutos mais tarde ele viu o he­licóptero federal se elevando no céu escuro. Entrou em seu carro e saiu
do estacionamento da clínica na direção sul. Antes de chegar à rodovia, encheu o tanque num posto da San Fernando Road.

O tráfego em direção ao centro da cidade estava leve e pôde man­ter os 120 quilômetros por hora ao longo do trajeto. Ligou o som e apanhou um CD no console entre os bancos sem ver o que era. Com cinco
notas da primeira canção percebeu que era um importado japonês do baixista Ron Carter. Boa música para dirigir, então aumentou.

A música ajudou Bosch a aclarar os pensamentos. Percebeu que o caso estava mudando de rumo. Os federais, pelo menos, estavam pro­curando o césio desaparecido, não os assassinos. Havia uma sutil dife­rença
aí que Bosch julgou importante. Ele sabia que precisava se manter concentrado no mirante e não perder de vista em momento algum que aquela era uma investigação de homicídio.

— Encontre os assassinos que você encontrará o césio — disse em voz alta.

Quando chegou ao centro, tomou a saída da Los Angeles Street e estacionou em frente à central de polícia. Àquela hora, ninguém daria a mínima que não fosse um VIP ou membro do comando.

Parker Center estava em petição de miséria. Por quase uma década, uma nova central de polícia tivera sua construção aprovada, mas em virtude dos constantes adiamentos orçamentários e políticos, o projeto
apenas se arrastava rumo à concretização. Enquanto isso, pouca coisa havia sido feita para impedir a atual sede da polícia de mergulhar na decrepitude. Agora o novo prédio estava a caminho, mas a estimativa
era de quatro anos para ser terminado. Muitos dos que trabalhavam em Parker Center perguntavam-se se conseguiriam aguentar tudo isso.

A sala do esquadrão da DRH no terceiro andar estava deserta quando Bosch entrou. Ele abriu o celular e ligou para o parceiro.

— Onde cê tá?

— Ei, Harry. Tô no DIC. Estou vendo o que dá pra fazer para começar a montar a ?cha do homicídio. Você está no prédio?

— Acabei de chegar. Onde você en?ou a testemunha?

— Pus em banho-maria na sala dois. Quer começar com ele?

— Talvez fosse bom partir pra cima com alguém que ele não viu antes. Alguém mais velho.

Era uma sugestão delicada. A potencial testemunha fora encontrada por Ferras. Bosch não iria apertá-la sem a aprovação no mínimo tácita de seu parceiro. Mas a situação exigia alguém com a experiência de
Bosch para se sair melhor na condução de um interrogatório tão importante.

— Cuide dele, Harry. Quando eu voltar, assisto da sala ao lado. Se precisar de mim, é só sinalizar.

— Ok.

— Tem um café fresco que eu ?z na sala do capitão, se quiser.

— Ótimo. Vou precisar. Mas primeiro me fale sobre a testemunha.

— O nome é Jesse Mitford. De Halifax. É meio que um vagabun­do. Me disse que veio de carona até aqui e dormiu em abrigos e às vezes lá nas colinas... quando está mais quente. É só.

Era pouco, mas era um começo.

— Talvez ele fosse dormir ali no pátio da Madonna. Por isso não caiu fora.

— Não pensei nisso, Harry. Você pode ter razão.

— Pode deixar que eu pergunto.

Bosch encerrou a ligação, pegou a caneca de café na gaveta de sua escrivaninha e foi para a sala do capitão da DRH. Havia uma antessala na qual a mesa da secretária ?cava, além de uma mesa com a cafeteira.
O cheiro de café recém-passado invadiu as narinas de Bosch quando en­trou e só isso quase foi su?ciente para fornecer a dose de cafeína de que ele precisava. Serviu-se um tanto, jogou uma moeda no cesto
e então voltou para sua mesa.

A sala do esquadrão tinha longas ?leiras de mesas perfiladas, de modo que os parceiros se sentavam de frente uns para os outros. A dis­posição não permitia qualquer tipo de privacidade, pessoal ou profissio­nal.
A maioria das outras agências de detetives da cidade adotara cubí­culos com paredes sólidas e privativas, mas em Parker Center nenhum dinheiro era gasto em melhorias, por causa da demolição iminente.

Como Bosch e Ferras eram as mais recentes aquisições do esqua­drão, seu conjunto de duas escrivaninhas ?cava localizado no fim de uma ?leira em um canto sem janelas e com péssima circulação de ar, e os
dois seriam os mais distantes da saída no caso de uma emergência, como um terremoto.

A área de trabalho de Bosch estava limpa e ordenada, exatamente como a deixara. Ele notou uma mochila e um saco plástico de provas so­bre a mesa do parceiro diante da sua. Esticou o braço e pegou primeiro
a mochila. Abriu e descobriu que continha na maior parte roupas e outros itens pessoais que pertenciam à potencial testemunha. Havia um livro chamado A Dança da Morte, de Stephen King, e uma bolsa com
escova e pasta de dente. Os parcos pertences resultantes de uma parca existência.

Devolveu a mochila e apanhou o saco de provas ao lado. Continha uma pequena quantia em dólares, um molho de chaves, uma carteira e um passaporte canadense. Continha também um mapa “Casas das Estrelas”
dobrado, que Bosch sabia ser do tipo vendido em toda esquina em Hollywood. Desdobrou-o e localizou o mirante junto à Mulholland Drive acima de Lake Hollywood. Logo à esquerda do ponto havia uma estrela
preta com o número 23. Estava circulado com uma caneta-tin­teiro. Ele veri?cou o índice do mapa e a estrela número 23 dizia, Casa de Madonna em Hollywood.

O mapa, obviamente, não fora atualizado com as mudanças de Madonna, e Bosch suspeitou que poucas localizações das estrelas e as listas de celebridades que as acompanhavam fossem acuradas. Isso ex­plicava
por que Jesse Mitford espreitava uma casa em que Madonna não morava mais.

Bosch voltou a dobrar o mapa, guardou tudo de volta no saco de provas e devolveu-o à mesa do parceiro. Então puxou um bloco tim­brado amarelo e um formulário de isenção de uma gaveta e levantou-se para
se dirigir à sala de interrogatório 2, localizada em um corredor nos fundos da sala do esquadrão.

Jesse Mitford não aparentava a idade que tinha. Seus cabelos escu­ros eram cacheados e tinha pele cor de mármore. O restolho de barba em seu queixo dava a impressão de ter levado a vida toda para crescer.
Argolas prateadas enfeitavam uma narina e uma sobrancelha. Parecia alerta e assustado. Estava sentado a uma pequena mesa na pequena sala de interrogatório. O ambiente cheirava a odor corporal. Mitford
estava suando, o que, é claro, era o objetivo. Bosch verificara o termostato no corredor antes de entrar. Ferras deixara a temperatura dentro da sala em 28 graus.

— Jesse, como vai? — perguntou Bosch, sentando na cadeira vazia diante dele.

— É, não muito bem. Tá quente aqui.

— Sério?

— Você é meu advogado?

— Não, Jesse, sou seu detetive. Meu nome é Harry Bosch. Sou detetive de homicídios e estou trabalhando no caso do mirante.

Bosch pousou o bloco de anotações e a caneca de café na mesa. Notou que Mitford continuava com as algemas. Foi um gesto bem pen­sado de Ferras manter o rapaz confuso, assustado e preocupado.

— Falei praquele detetive mexicano que não quero mais conversa. Quero um advogado.

Bosch balançou a cabeça.

— Ele é cubano-americano, Jesse — disse. — E você não tem di­reito a advogado. Advogados são só para cidadãos americanos.

Isso era mentira, mas Bosch apostava que aquele sujeito de 20 anos de idade não saberia disso.

— Cê se meteu numa encrenca, garoto — ele continuou. — Uma coisa é ?car espreitando uma antiga namorada ou namorado. Outra bem diferente é com uma celebridade. Essa é uma cidade de celebri­dades num país
de celebridades, Jesse, e a gente toma conta de quem é daqui. Não sei como é lá no Canadá, mas por aqui as penas para o que você andou fazendo esta noite são bem severas.

Mitford sacudiu a cabeça, como que tentando afastar os problemas com isso.

— Mas me disseram que ela nem mora mais lá. Madonna, quer dizer. Então eu não tava espreitando ela de verdade. Foi só a invasão.

Agora Bosch balançava a cabeça.

— Tem a ver com intenção, Jesse. Você achou que ela pudesse estar lá. Tinha um mapa que dizia que estava lá. Até circulou o ponto. Então, no que diz respeito à lei, isso constitui espreitar uma celebridade.

— Então por que vendem mapas das casas delas?

— E por que os bares têm estacionamento se dirigir bêbado é ile­gal? A gente não vai entrar nesse jogo, Jesse. A questão é: não tem nada no mapa dizendo o que quer que seja sobre ser legal pular um muro
e invadir, entende o que eu tô dizendo?

Mitford baixou os olhos para as algemas em seus pulsos e balançou a cabeça tristemente.

— Mas tem uma coisa — disse Bosch. — Não precisa ficar tão desanimado, porque as coisas não estão tão ruins como parecem. Tem queixa de espreita e invasão contra você, mas acho que dá pra gente suspender
e cuidar disso tudo se você concordar em cooperar comigo.

Mitford curvou-se para a frente.

— Mas como eu disse para o detetive mexic... cubano, eu não vi nada.

Bosch esperou um longo momento antes de responder.

— Não me interessa o que você disse pra ele. É comigo que você tem que se preocupar, agora, ?lho. E eu acho que você está escondendo alguma coisa.

— Não, não estou. Juro por Deus.

Estendeu as mãos abertas o mais amplamente que as algemas permi­tiram, num gesto de súplica. Mas Bosch não caiu na dele. O rapaz era novo demais para ser um mentiroso capaz de convencê-lo. Decidiu ser
direto.

— Deixa eu dizer uma coisa, Jesse. Meu parceiro é bom e vai subir neste departamento. Não tenho dúvida disso. Mas bem agora ele não passa de um bebê. Está na carreira de detetive mais ou menos pelo mesmo
tempo que você vem cultivando esse pelinho de pêssego aí no seu queixo. Já eu ro­dei um bocado, e isso quer dizer que conheci um bocado de mentirosos. Às vezes, acho que a única coisa que existe são os
mentirosos. E Jesse, vou dizer um negócio, você tá mentindo pra mim, e ninguém mente pra mim...

— Não! Eu...

— Então, tudo o que você tem agora são trinta segundos pra come­çar a falar comigo, ou vou levar você lá embaixo e te jogar na cela do condado. Tenho certeza de que vai ter alguém ali esperando um cara
como você pra cantar O Canada! no microfone antes de o sol nascer. Sabe, foi isso que eu quis dizer quando falei de penas severas por espreitar.

Mitford ?cou olhando para as próprias mãos sobre a mesa. Bosch aguardou e vinte vagarosos segundos transcorreram. Por ?m, o detetive ?cou de pé.

— Ok, Jesse, de pé. Vamos indo.

— Espera, espera, espera!

— Esperar o quê? Eu disse de pé! Vamos. Isto aqui é uma investi­gação de assassinato e não vou ?car perdendo tempo com...

— Tá certo, tá certo, eu falo. Eu vi o negócio todo, ok? Eu vi tudo.

Bosch o estudou por um momento.

— Está falando sobre o mirante? — perguntou. — Viu os tiros no mirante?

— Vi tudo, cara.

Bosch puxou a cadeira e voltou a sentar.


OITO

BOSCH NÃO PERMITIU que Jesse Mitford continuasse a falar enquanto não assinasse o documento abrindo mão de seus direitos. Não fazia diferença que agora fosse considerado uma testemunha do assassinato que
ocorrera no mirante de Mulholland. Fosse o que fosse que houvesse visto, isso só ocorreu porque estava cometendo seu próprio crime — in­vasão e espreita. Bosch tinha de tomar todo cuidado para não deixar
nenhuma brecha no caso. Nada de apelação por informação obtida ile­galmente. Nada de operações clandestinas. Havia muita coisa em jogo, os federais eram mestres em cair matando depois que alguém resolvia
agir e ele sabia que tinha de fazer tudo direitinho.

— Ok, Jesse — disse, depois que o formulário de isenção foi assi­nado. — Agora me diga o que viu e ouviu no mirante. Se for honesto e prestativo, vou retirar todas as queixas contra você e deixá-lo sair
daqui livre.

Tecnicamente, Bosch estava exagerando seu poder. Ele não tinha autoridade para retirar queixas ou fazer acordos com suspeitos. Mas não precisava de nenhuma, nesse caso, pois Mitford ainda não fora acusado
formalmente de nada. Aí residia a in?uência de Bosch. Tudo se resumia à semântica. O que Bosch realmente estava oferecendo era o não anda­mento da acusação contra Mitford em troca da franca cooperação
do jovem canadense.

— Entendo — disse Mitford.

— Mas lembre, só a verdade. Apenas o que você viu e ouviu. Mais nada.

— Entendo.

— Me dá suas mãos aqui.

Mitford ergueu os pulsos e Bosch usou sua própria chave para re­mover as algemas do parceiro. Mitford imediatamente começou a esfre­gá-los para fazer voltar a circulação. Aquilo lembrou a Bosch a imagem
de Rachel esfregando os pulsos de Alicia Kent, antes.

— Tá melhor? — perguntou.

— Sim, tá sim — respondeu Mitford.

— Ok, então vamos começar do início. Conte pra mim de onde você veio, pra onde estava indo e exatamente o que viu no mirante.

Mitford balançou a cabeça e então ofereceu a Bosch um relato de vinte minutos que começava no Hollywood Boulevard com a compra do mapa das estrelas de um camelô e sua longa jornada a pé colinas aci­ma.
A caminhada levou quase três horas e provavelmente explicava em grande parte o odor que emanava de seu corpo. Ele contou a Bosch que no momento em que chegou no alto da Mulholland Drive começava a escurecer
e se sentiu cansado. A casa onde o mapa dizia que Madonna morava estava às escuras. Aparentemente, não havia ninguém no lugar. Desapontado, ele decidiu descansar da longa jornada e esperar para ver se
a cantora pop que queria encontrar chegaria mais tarde. Ele achou um ponto atrás de alguns arbustos onde poderia se recostar contra o lado externo do muro que circundava a casa de sua presa — não usou
essa palavra — e esperar. Mitford disse que adormeceu ali até alguma coisa acordá-lo.

— O que acordou você? — perguntou Bosch.

— Vozes. Eu ouvi vozes.

— O que elas diziam?

— Não sei. Só me acordaram.

— A que distância estava do mirante?

— Não sei. Uns cinquenta metros, acho. Bem longe.

— O que disseram depois que você foi acordado e conseguiu ­ouvir?

— Nada. Pararam.

— Certo, então o que você viu quando acordou?

— Vi três carros estacionados na clareira. Um era um Porsche e os outros dois eram maiores. Não sei o tipo, mas os dois parecidos.

— Você viu os homens no mirante?

— Não, não vi ninguém. Estava escuro demais ali. Mas daí ouvi uma voz outra vez e ela vinha de lá de cima. No escuro. Foi mais um grito. Bem na hora que eu olhei, houve dois clarões rápidos e tiros. Tipo
tiro abafado. Deu pra ver alguém na clareira de joelhos. Sabe, com o clarão da luz. Mas foi tão rápido que não vi mais nada.

Bosch balançou a cabeça.

— Muito bom, Jesse. Está indo muito bem. Vamos repassar isso outra vez para ver se entendi direito. Você estava dormindo e então as vozes te acordaram, daí você olhou e viu os três carros. É isso mesmo?

— É.

— Ok, ótimo. Daí você ouviu uma voz outra vez e olhou na dire­ção do mirante. Só então os tiros foram disparados. Até aí tudo certo?

— Isso.

Bosch balançou a cabeça. Mas sabia que Mitford podia simplesmente estar dizendo o que ele queria ouvir. Tinha que testar o rapaz para se certi?car de que não era o caso.

— Bom, você disse que no clarão da arma você viu a vítima cair de joelhos, isso mesmo?

— Não, não é bem isso.

— Então me conte exatamente o que você viu.

— Acho que ele já estava de joelhos. Foi tão rápido que eu não teria visto ele cair de joelhos, como você disse. Acho que já estava ­ajoelhado.

Bosch balançou a cabeça. Mitford passara no primeiro teste.

— Ok, bem pensado. Agora vamos falar sobre o que você ouviu. Você disse que ouviu alguém gritar pouco antes dos tiros, certo?

— Certo.

— Ok, o que essa pessoa gritou?

O jovem pensou por um momento e então sacudiu a cabeça.

— Não tenho certeza.

— Ok, tudo bem. Não queremos a?rmar nada que a gente não tem certeza. Vamos tentar um exercício e ver se ajuda. Feche os olhos.

— Como?

— Feche os olhos, só isso — disse Bosch. — Pense no que viu. Tente trazer de volta a memória visual que o áudio aparece. Você está olhando para os três carros e então uma voz chama sua atenção para o mirante.
O que a voz diz?

Bosch falava de modo calmo e tranquilizador. Mitford seguiu suas instruções e fechou os olhos. Bosch aguardou.

— Não tenho certeza — disse o rapaz, ?nalmente. — Não deu pra entender. Acho que ele estava dizendo alguma coisa sobre Alá e daí atirou no cara.

— Alá? Está querendo dizer a palavra árabe, Allah?

— Não tenho certeza. Acho que sim.

— O que mais você ouviu?

— Mais nada. Os tiros interromperam tudo, entendeu? Começou a gritar sobre Alá e então os tiros abafaram todo o resto.

— Você acha que é tipo Allah Akbar, foi isso que ele gritou?

— Não sei. Só ouvi a parte de Alá.

— Dava pra dizer se ele tinha sotaque?

— Sotaque? Não sei dizer. Ouvi uma coisa só.

— Inglês? Árabe?

— Não sei dizer, mesmo. Eu estava longe demais e só ouvi uma palavra.

Bosch re?etiu sobre isso por alguns instantes. Lembrou-se do que lera sobre as caixas-pretas dos aviões sequestrados nos ataques de 11 de setembro. Os terroristas gritaram Allah Akbar — “Deus é grande”
— no último minuto. Será que um dos assassinos de Stanley Kent fez o mesmo?

Mais uma vez, sabia que tinha de ser cuidadoso e metódico. Grande parte da investigação podia girar em torno da única palavra que Mitford achou ter ouvido no mirante.

— Jesse, o que o detetive Ferras contou sobre esse caso antes de pôr você aqui nesta sala?

A testemunha deu de ombros.

— Não me contou nada, na verdade.

— Não explicou pra você do que a gente acha que se trata ou que direção o caso pode estar tomando?

— Não, nada disso.

Bosch o encarou por alguns instantes.

— Ok, Jesse — disse, ?nalmente. — O que aconteceu em seguida?

— Depois dos tiros, alguém correu da clareira para os carros. Havia um poste de iluminação ali e eu vi o cara. Ele entrou num dos carros e deu ré para ?car perto do Porsche. Daí ele abriu o porta-malas
e saiu. O porta-malas do Porsche já estava aberto.

— Onde estava o outro sujeito enquanto ele fazia isso?

Mitford pareceu confuso.

— Acho que morto.

— Não, o segundo bandido. Havia dois bandidos e uma vítima, Jesse. Três carros, lembra?

Bosch esticou três dedos como apoio visual.

— Eu vi um bandido só — disse Mitford. — O que atirou. Alguém ?cou no carro que estava atrás do Porsche. Mas esse nunca desceu.

— Só ?cou dentro do outro carro, o tempo todo?

— Isso mesmo. Pra falar a verdade, logo depois dos tiros, esse carro fez meia-volta e foi embora.

— E o motorista em nenhum momento desceu, o tempo todo que esteve no mirante.

— Não enquanto eu olhava.

Bosch pensou nisso por um momento. O que Mitford havia des­crito indicava uma divisão real de trabalho entre os dois suspeitos. Isso re?etia a descrição de eventos que Alicia Kent dera antes; um homem
fazendo as perguntas e depois traduzindo e dando ordens para o segun­do. Bosch presumiu que o que falava inglês era o que permanecera no carro no mirante.

— Ok — disse, ?nalmente —, vamos voltar para a história, Jesse. Você disse que logo depois dos tiros um deles vai embora num carro enquanto o outro encosta de ré junto ao Porsche e abre o porta-malas.
Daí o que aconteceu?

— Ele desceu, pegou alguma coisa no Porsche e pôs no porta-malas do outro carro. O negócio era muito pesado e o cara teve o maior traba­lho. Parecia ter alças dos lados, pelo jeito como ele tava segurando.

Bosch sabia que ele estava descrevendo o porco usado para trans­portar material radioativo.

— E depois?

— Ele voltou para o carro e foi embora. Deixou o porta-malas do Porsche aberto.

— E você não viu mais ninguém?

— Mais ninguém. Juro.

— Descreva o homem que você viu.

— Não dá pra descrever direito. Ele tava usando um blusão de aga­salho, com o capuz na cabeça. Não deu pra ver o rosto nem nada. Acho que debaixo do capuz ele tava usando uma máscara de esqui, também.

— Por que acha isso?

Mitford deu de ombros outra vez.

— Sei lá. Foi só o que pareceu, pra mim. Posso estar enganado.

— Ele era grande? Pequeno?

— Acho que de estatura média. Mais para pequeno.

— Qual a aparência dele?

Bosch tinha de tentar de novo. Era importante. Mas Mitford sa­cudiu a cabeça.

— Não deu pra ver — insistiu. — Tenho certeza absoluta de que estava com máscara.

Bosch não desistiu.

— Branco, preto, do Oriente Médio?

— Não dava pra dizer. Ele tava com capuz e máscara e eu estava muito longe.

— Pense nas mãos, Jesse. Você disse que a coisa que ele levou de um carro para o outro tinha alças. Deu pra ver as mãos dele? De que cor eram?

Mitford pensou por um momento e seus olhos brilharam.

— Não, ele usava luvas. Lembro das luvas porque eram bem gran­des, do tipo que aqueles sujeitos usam para trabalhar nos trens que vol­tam para Halifax. Resistentes, com o punho comprido no antebraço, pra
não se queimar.

Bosch balançou a cabeça. Jogara a isca para uma coisa, mas pegara outra. Luvas de proteção. Perguntou-se se havia luvas feitas especifica­mente para manusear material radioativo. Percebeu que esquecera
de perguntar a Alicia Kent se os homens que haviam entrado em sua casa usavam luvas. Esperava que Rachel Walling houvesse repassado os deta­lhes outra vez depois que a deixara lá.

Bosch fez uma pausa. Às vezes, os silêncios são os momentos mais desconfortáveis para uma testemunha. Começavam a preencher as ­lacunas.

Mas Mitford não disse nada. Depois de um longo momento, Bosch continuou.

— Ok, temos dois carros lá ao lado do Porsche. Descreva o carro que encostou no Porsche.

— Não dá, sério. Sei o que é um Porsche de ver um, mas os ou­tros carros, não sei dizer. Os dois eram bem grandes, tipo com quatro portas.

— Vamos pensar no que estava na frente do Porsche. Era um sedã?

— Não conheço a marca.

— Não, sedã é um tipo de carro, não uma marca. Quatro portas, porta-malas... tipo um carro de polícia.

— Era, isso mesmo.

Bosch pensou na descrição de seu carro desaparecido.

— Sabe como é um Chrysler 300?

— Não.

— Qual a cor do carro que você viu?

— Não tenho certeza, mas era escuro. Preto ou azul-escuro.

— E o outro carro? O que estava atrás do Porsche.

— A mesma coisa. Um sedã escuro. Era um pouco diferente do outro da frente, um pouco menor, acho, mas não sei de que tipo era. Desculpe.

O rapaz franziu a testa, como se fosse uma falha pessoal não co­nhecer marcas e modelos de carro.

— Tudo bem, Jesse, está indo bem — disse Bosch. — Você foi de grande ajuda. Acha que se eu mostrar fotos de vários sedãs você conse­gue identi?car os carros?

— Não, não vi o bastante. A luz da rua não era muito boa e eu estava longe demais.

Bosch balançou a cabeça com ar compreensivo, mas estava desa­pontado. Re?etiu por um momento. A história de Mitford batia com a informação fornecida por Alicia Kent. Os dois intrusos da residência dos
Kent precisaram de transporte para chegar lá. Um teria ficado com o veículo original, enquanto o outro pegou o Chrysler de Alicia Kent para transportar o césio. Parecia o óbvio.

Seus pensamentos levaram a uma nova pergunta para Mitford.

— Que caminho tomou o segundo carro quando saiu?

— Também fez meia-volta e desceu a colina.

— Só isso?

— Só.

— O que você fez, depois?

— Eu? Nada. Só ?quei onde estava.

— Por quê?

— Eu tava com medo. Tinha certeza de que tinha visto um cara sendo assassinado.

— Você não foi lá checar para ver se ele estava vivo e precisava de ajuda?

Mitford desviou o rosto e sacudiu a cabeça.

— Não, ?quei com medo. Desculpe.

— Tudo bem, Jesse. Não precisa se preocupar com isso. Ele já es­tava morto. Estava morto antes de bater no chão. Mas o que me deixa curioso é por que você ?cou escondido tanto tempo. Por que não des­ceu
a colina? Por que não ligou para o 911?

Mitford ergueu as mãos e deixou caírem na mesa.

— Sei lá. Acho que tava com medo. Segui o mapa para subir a colina, então era o único caminho que eu conhecia. Eu ia ter que voltar pelo mesmo lugar e pensei, e se a polícia chegar quando eu estiver an­dando
por lá? Podem me culpar. E daí pensei, e se for tipo a máfia ou qualquer coisa assim que fez aquilo e eles descobrirem que eu vi tudo, daí vão me matar ou sei lá.

Bosch balançou a cabeça.

— Acho que você andou vendo ?lme americano demais lá no Ca­nadá. Não precisa se preocupar. A gente vai tomar conta de você. Quan­tos anos você tem, Jesse?

— Vinte.

— Então, o que você fazia na casa da Madonna? Ela não é meio velha pra você?

— Não, não era nada disso. É por causa da minha mãe.

— Você estava espreitando para sua mãe?

— Não sou do tipo que faz isso. Só queria conseguir um autó­grafo para minha mãe ou ver se ela tinha uma foto ou qualquer coisa assim pra me dar. Eu queria mandar alguma coisa pra minha mãe e não tinha
nada. Sabe como é, só pra mostrar que eu estava bem. Pensei que se pudesse contar pra ela que tinha conhecido a Madonna, então eu não ia me sentir como um... você sabe. Eu cresci ouvindo Madonna, porque
minha mãe ouve as músicas dela. Só achei que ia ser legal mandar alguma coisa. O aniversário dela está perto e eu não tinha nada.

— Por que veio para L.A., Jesse?

— Sei lá. Parecia o lugar certo pra vir, só isso. Eu tinha esperança de entrar numa banda ou qualquer coisa assim. Mas parece que quase todo mundo aqui já tem sua banda. Eu não.

Bosch achou que Mitford estivera bancando o músico de rua, mas não tinha nenhum violão nem qualquer outro instrumento em sua mo­chila na sala do esquadrão.

— Você é músico ou cantor?

— Eu toco violão, mas tive que penhorar faz uns dias. Vou pegar de volta.

— Onde cê tá dormindo?

— Não tenho lugar pra ?car no momento. Eu ia dormir lá no alto a noite passada. Acho que esse é o verdadeiro motivo de eu não ter ido embora depois do que aconteceu com o cara. Eu não tinha mesmo nenhum
lugar pra ir.

Bosch entendia. Jesse Mitford não era diferente de um milhão de outros que desciam do ônibus todo mês ou chegavam de carona na ci­dade. Mais sonhos do que planos ou dinheiro. Mais esperança do que esperteza,
capacidade ou inteligência. Nem todo mundo que não con­seguia chegar lá saía por aí espreitando quem conseguia. Mas se havia alguma coisa que todos eles tinham em comum era aquele não-sei-quê de desespero.
E alguns jamais deixavam de ter, mesmo depois de ver seus nomes nos luminosos e comprar casas no topo das colinas.

— Vamos dar um tempo agora, Jesse — disse Bosch. — Preciso dar uns telefonemas e depois a gente provavelmente vai ter que repassar tudo de novo. Sem problema pra você? Também vou ver se consigo um quarto
de hotel ou algo assim.

Mitford balançou a cabeça.

— Pense nos carros e no cara que você viu, Jesse. A gente precisa que você se lembre de mais detalhes.

— Tô tentando, mas...

Nem terminou e Bosch o deixou ali.

No corredor, Bosch ligou o ar-condicionado da sala de interrogatório e ajustou para 18 graus. Logo começaria a gelar ali dentro e, em vez de suar, Mitford começaria a sentir frio — embora, sendo do Canadá,
talvez não. Depois de refrescá-lo um pouco, Bosch faria outra sessão e veria se mais alguma coisa viria à tona. Olhou o relógio. Quase cinco da manhã, e a reunião dos federais ainda ia demorar quatro horas
para começar. Havia muito a se fazer, mas ele ainda dispunha de algum tempo para trabalhar com Mitford. A primeira rodada fora produtiva. Não havia motivo para achar que não conseguiria mais alguma coisa
numa segunda tentativa.

Na sala do esquadrão, Bosch encontrou Ignacio Ferras trabalhan­do em sua escrivaninha. Estava de costas em sua cadeira, digitando em um laptop sobre o tampo lateral embutido da mesa. Bosch notou que os
objetos pessoais de Mitford haviam dado lugar a outros sacos de provas e pastas de arquivo. Era tudo do DIC que o caso havia desovado até ali nas duas cenas de crime.

— Harry, desculpe não ter voltado lá pra olhar — disse Ferras. — Alguma coisa nova com o garoto?

— A gente tá chegando lá. Só tô fazendo uma pausa.

Ferras tinha 30 anos de idade e corpo de atleta. Em sua mesa havia um troféu com seu nome por ter sido o melhor de sua classe na acade­mia em condicionamento físico e nas provas. Também era bonito, com
pele café e cabelo à escovinha. Tinha olhos verdes penetrantes.

Bosch foi até sua própria escrivaninha para usar o telefone. Ia acor­dar o tenente Gandle mais uma vez para mantê-lo atualizado sobre as últimas novidades.

— Já rastreou a arma da vítima? — perguntou a Ferras.

— Já, peguei no computador da ATF. Ele comprou uma 22 de cano curto seis meses atrás. Smith & Wesson.

Bosch balançou a cabeça.

— Vinte e dois encaixa — ele disse. — Sem ferimento de saída.

— As balas fazem o check in, mas não fazem o check out.

Ferras soltou a frase como numa chamada comercial de televisão e riu da própria piada. Bosch pensou no que havia por trás da piada. Stanley Kent fora avisado de que sua pro?ssão o deixava vulnerável. Sua
reação foi comprar uma arma para se proteger.

E agora Bosch apostava que a arma que ele comprara havia sido usada contra ele mesmo, usada para assassiná-lo por um terrorista que gritou o nome de Alá quando puxou o gatilho. Que mundo, pensou Bosch,
quando alguém tinha coragem de puxar o gatilho contra outro homem invocando seu Deus.

— Um jeito nada agradável de morrer — disse Ferras.

Bosch olhou por sobre a mesa para ele.

— Vou dizer uma coisa — ele disse. — Sabe o que vai descobrir nesse trabalho?

— Não, o quê?

— Que não existe jeito agradável de morrer.


NOVE

BOSCH FOI À sala do capitão para encher de novo a caneca de café. Quando en?ou a mão no bolso para apanhar outro dólar para a cesta, achou o cartão de Brenner e lembrou de como ele pedira para ser mantido
informado quanto à possibilidade de haver uma testemu­nha. Mas Bosch acabara de pôr o tenente Gandle a par do que o jovem canadense vira e ouvira no mirante e ambos haviam decidido manter Mitford na moita
por enquanto. Pelo menos até a reunião das nove, quando chegaria a hora do vamos ver com os federais. Se as autoridades federais resolvessem manter o DPLA envolvido na investigação, isso ?caria claro na
reunião. Então seria hora do toma lá, dá cá. Bosch infor­maria o relato da testemunha em troca de participar da investigação.

Enquanto isso, Gandle disse que enviaria outra atualização pela cadeia de comando do departamento. Com aquela última revelação da palavra Alá surgindo na investigação, recaía sobre ele a responsabilidade
de assegurar que a gravidade cada vez maior do caso fosse comunicada aos superiores.

Com a caneca cheia, ele voltou à sua mesa e começou a examinar as provas colhidas na cena do assassinato e na casa onde Alicia Kent fora mantida enquanto o marido cumpria as exigências de seus captores.

Ele já tinha ciência da maior parte do que fora encontrado na cena do crime. Começou removendo os pertences pessoais de Stanley Kent dos sacos de provas e os examinando. Nesse estágio, já haviam sido pro­cessados
pela equipe forense e não havia problema em manuseá-los.

O primeiro item era o BlackBerry do físico. Bosch não era um en­tusiasta do mundo digital e admitia isso prontamente. Aprendera a lidar com seu celular, mas era um modelo básico que fazia e recebia ligações,
armazenava números na agenda e mais nada — até onde ele sabia. Isso signi?cava que ?cou completamente perdido quando tentou manipular o dispositivo hiperevoluído.

— Harry, precisa de ajuda com isso?

Bosch ergueu o rosto e viu Ferras sorrindo para ele. Bosch sentia vergonha de sua inabilidade tecnológica, mas não a ponto de recusar ajuda. Isso transformaria uma falha pessoal em algo pior.

— Sabe como mexe nisso?

— Claro.

— Ele tem e-mail, não tem?

— Deve ter.

Bosch teve de se erguer para lhe passar o aparelho por cima das duas mesas.

— Mais ou menos às seis horas ontem Kent recebeu um e-mail es­crito urgente de sua esposa. Tinha uma foto nele, com ela amarrada na cama. Quero que você o encontre e veja se há algum jeito de imprimir,
junto com a foto. Quero dar uma olhada na foto outra vez, mas não nessa telinha.

Enquanto Bosch estivera falando, Ferras já mexera no BlackBerry.

— Sem problema — ele disse. — O que dá para fazer é simplesmen­te reenviar o e-mail para meu e-mail daqui. Depois eu abro e imprimo.

Ferras começou a usar os polegares para digitar no minúsculo teclado do aparelho. Para Bosch, parecia uma espécie de brinquedo. Como os que ele vira crianças usando em aviões. Não entendia por que as pessoas
viviam teclando febrilmente em seus telefones. Tinha certeza de que era uma espécie de aviso, um sinal do declínio da civilização ou da humanidade, mas era incapaz de determinar a explicação correta do
que sentia. O mundo digital sempre era citado como um grande avan­ço, mas ele permanecia cético.

— Certo, achei e já mandei — disse Ferras. — Provavelmente vai chegar daqui a uns minutos e então eu imprimo. Que mais?

— Isso aí mostra as ligações feitas e as recebidas?

Ferras não respondeu. Ele manipulava os controles no telefone.

— Até onde você quer que eu volte? — ele perguntou.

— Por enquanto, que tal voltar até mais ou menos meio-dia de ontem — respondeu Bosch.

— Certo, tô na tela. Você quer que eu mostre como usa esse negó­cio ou quer apenas que eu diga os números?

Bosch se levantou e deu a volta nas mesas para poder olhar por cima do ombro do parceiro para a pequena tela do telefone.

— Só me mostre por alto agora e a gente dá uma geral mais tarde — ele disse. — Se você tentar me ensinar, a gente não vai sair daqui nunca mais.

Ferras balançou a cabeça e sorriu.

— Bom — ele disse —, se ele fez ou recebeu uma ligação de algum número que está na agenda, o nome associado ao número registrado vai aparecer.

— Sei.

— Aqui mostra um monte de ligações feitas e recebidas do escritó­rio dele e de vários hospitais, e nomes da agenda, provavelmente médi­cos com quem ele trabalha, a tarde inteira. Três ligações estão marcadas
“Barry” e imagino que seja seu sócio. Dei uma olhada nos registros de empresas online, e K & K Física Médica é de propriedade de Kent e alguém chamado Barry Kelber.

Bosch balançou a cabeça.

— É — ele disse —, isso me lembra que a primeira coisa a fazer de manhã é conversar com o sócio.

Bosch se inclinou sobre a mesa de Ferras para alcançar o blo­co de anotações em sua própria mesa. Então escreveu o nome Barry Kelber enquanto Ferras continuava a percorrer as telas com o registro de ­chamadas.

— Agora aqui estamos, depois das seis, e ele começa alternada­mente a ligar para sua casa e para o celular de sua esposa. Desconfio de que nenhuma ligação foi atendida, porque foram feitas dez ligações
em três minutos. Ele ?cou ligando sem parar. E foram todas feitas depois que ele recebeu o e-mail urgente da esposa.

Bosch começou a formar um retrato da situação. Kent tinha uma rotina diária no trabalho, fazia e recebia um monte de ligações de pes­soas e lugares familiares para ele e então recebeu aquele e-mail em
que a esposa era o remetente. Viu a foto anexada e começou a ligar para casa. Ela não respondeu, o que só o deixou mais alarmado. Finalmente, saiu e fez o que o e-mail o instruía a fazer. Mas mesmo com
todo o seu esforço e depois de fazer o que mandavam, ainda assim o mataram no mirante.

— Então, o que deu errado? — perguntou em voz alta.

— Como assim, Harry?

— Lá no mirante. Ainda não entendo por que mataram o cara. Ele fez o que pediram. Entregou o material. O que deu errado?

— Sei lá. Vai ver que mataram porque viu o rosto de um deles.

— A testemunha disse que o atirador estava usando máscara.

— Bom, então vai ver que não deu nada errado. Vai ver o plano era matar o cara desde o início. Fizeram aquele silenciador, lembra? E o jeito que o outro grita Alá não faz parecer que alguma coisa deu errado.
Parece mais parte de um plano.

Bosch balançou a cabeça.

— Mas se esse era o plano, por que mataram ele e não ela? Pra que deixar uma testemunha?

— Não sei, Harry. Mas esses muçulmanos casca grossa não têm uma lei sobre ferir mulheres? Tipo deixar eles de fora do nirvana ou do paraíso ou do sei lá como chamam?

Bosch não respondeu à pergunta porque não sabia a respeito das práticas culturais às quais o parceiro grosseiramente se referia. Mas a questão deixou claro para ele como estava fora de seu elemento naquele
caso. Estava acostumado a caçar assassinos motivados por cobiça, luxú­ria ou qualquer um dos sete grandes pecados. Extremismo religioso não costumava entrar na lista.

Ferras pousou o BlackBerry e voltou ao computador. Como mui­tos detetives, preferia usar seu próprio laptop, porque os computadores cedidos pelo departamento eram velhos e lentos e a maioria carregava
mais vírus do que uma prostituta do Hollywood Boulevard.

Ele salvou o que estivera trabalhando e abriu o programa de cor­reio eletrônico. O e-mail enviado pela conta de Kent estava lá. Ferras abriu o e-mail e assobiou quando viu a foto anexada de Alicia Kent
nua e amarrada na cama.

— É, não tinha como não funcionar — disse.

Signi?cando que entendia por que Kent entregara o césio. Ferras estava casado havia menos de um ano e tinha um bebê a caminho. Bosch mal começara a conhecer o novo parceiro, mas já sabia que era profundamente
apaixonado pela esposa. Sob o tampo de vidro de sua mesa, Ferras tinha uma colagem de fotos dela. Sob o tampo de vidro da sua, Bosch tinha fotos de vítimas de homicídio cujos assassinos ele ainda procurava.

— Quero uma cópia impressa disso — disse Bosch. — Ampliada, se der. E continue a fuçar naquele telefone. Veja o que mais você pode descobrir.

Bosch voltou para seu lado da área de trabalho e sentou. Ferras ampliou e imprimiu o e-mail e a foto numa impressora colorida que ?cava no fundo da sala do esquadrão. Foi até lá, apanhou-a e trouxe para
Bosch.

Bosch já estava com seus óculos de leitura, mas de uma gaveta na escrivaninha ele puxou uma lente de aumento retangular que com­prou quando percebeu que sua receita já não dava mais conta de ver de perto.
Nunca usava a lupa quando a sala do esquadrão estava cheia de detetives. Não queria fornecer aos outros uma deixa para caçoarem dele — fosse em tom de brincadeira ou não.

Pôs a foto impressa em cima da mesa e se curvou com a lente. Primeiro examinou as correias que prendiam os membros da mulher às suas costas. Os bandidos haviam usado seis tiras de plástico, dando uma volta
em torno de cada pulso e tornozelo, depois uma para prender um tornozelo no outro e a última para prender os anéis dos pulsos com o anel ligando os tornozelos.

Parecia um jeito muito complicado de prender as extremidades da mulher. Não era o jeito que Bosch teria feito se estivesse tentando imobi­lizar uma mulher que provavelmente estaria se debatendo. Ele teria
usado menos correias e executado o trabalho de um jeito mais fácil e rápido.

Não tinha certeza do que isso signi?cava, se é que significava al­guma coisa. Talvez Alicia Kent não houvesse lutado e em troca de sua cooperação os captores usaram os anéis extras para tornar seu tempo
presa na cama menos árduo. Parecia a Bosch que, da forma como estava amarrada, seus braços e suas pernas não haviam sido puxados para trás o tanto que poderiam ter sido.

Ainda assim, lembrando das marcas nos pulsos de Alicia Kent, ele percebia que, fosse como fosse, o tempo passado nua e amarrada na cama não fora algo fácil. Chegou à conclusão de que a única coisa de que
podia ter certeza ao estudar a foto era que precisava conversar com Alicia Kent outra vez e repassar o que acontecera e os detalhes mais precisos.

Em uma página limpa de seu bloco ele escreveu suas dúvidas sobre as amarras. Planejava usar o restante da página para acrescentar mais per­guntas, como preparativo para uma eventual pauta de interrogatório.

Mais nada lhe veio à mente durante o estudo da fotografia. Quan­do terminou, deixou a lupa de lado e começou a folhear os relatórios forenses da cena do crime. Neles também nada prendeu sua atenção e rapidamente
passou aos relatórios e às provas da residência dos Kent. Como ele e Brenner haviam rapidamente deixado a casa para ir à Saint Agatha’s, Bosch não estava presente quando os técnicos do DIC procu­raram
por provas deixadas pelos intrusos. Estava ansioso em descobrir o que encontraram, se é que haviam encontrado alguma coisa.

Mas havia um único saco de provas e continha as correias pretas de plástico usadas para amarrar os pulsos e tornozelos de Alicia Kent e que Rachel Walling cortara para soltar a mulher.

— Espera aí — disse Bosch, segurando o saquinho transparente no alto. — Essa é a única prova que recolheram na casa dos Kent?

Ferras ergueu os olhos.

— Foi o único saco que me deram. Já veri?cou o registro de provas? Deve estar aí. Talvez ainda estejam processando alguma coisa.

Bosch examinou os documentos que Ferras obtivera até que en­controu o registro de evidências forense. Cada item removido da cena de um crime pelos técnicos sempre era incluído no registro. Isso ajudava
a acompanhar o encadeamento das provas.

No registro ele observou que estavam incluídos diversos itens re­movidos pelos técnicos da residência dos Kent, a maioria minúsculos cabelos e amostras de ?bras. Isso era de se esperar, embora não houvesse
como dizer se alguma das amostras tinha relação com os suspeitos. Mas em todos aqueles anos trabalhando num caso após outro, Bosch ain­da estava por ver uma cena de crime imaculada. Era infalível, uma
lei básica da natureza que todo crime ocorrido sempre deixava sua marca — não importava quão pequena fosse — no ambiente. Sempre fica alguma coisa. É só questão de encontrar.

Na lista, cada tira de plástico fora indicada individualmente, e a elas se seguiam inúmeras amostras de cabelo e ?bra extraídas de lugares que iam do tapete da suíte do casal até a pia do banheiro no quarto
de hóspedes. O mouse pad do computador também estava na lista, assim como a tampa da lente da câmera Nikon, que fora encontrada sob a cama do quarto de casal. O último item da lista era o mais interessante
para Bosch. Uma prova descrita simplesmente como cinza de cigarro.

Bosch não conseguia imaginar que valor cinza de cigarro podia ter como prova.

— Tem alguém ainda lá no DIC da busca na residência dos Kent? — perguntou a Ferras.

— Há meia hora tinha — respondeu Ferras. — Buzz Yates e a mulher das impressões que eu sempre esqueço o nome.

Bosch apanhou o telefone e ligou para o escritório do DIC.

— Divisão de Investigação Científica, Yates.

— Buzz, é com você exatamente que eu queria falar.

— Quem é?

— Harry Bosch. Sobre a busca na residência dos Kent, me fale sobre essa cinza de cigarro que você colheu.

— Ah, sei, isso foi um cigarro que queimou inteiro até virar cinzas. A agente do FBI que estava na casa me pediu para colher.

— Onde estava isso?

— Ela encontrou no alto da caixa acoplada da privada, no banhei­ro do quarto de hóspedes. Como alguém que tira o cigarro pra dar uma mijada e depois esquece. Ele queimou inteirinho até apagar.

— Então só restavam cinzas quando você achou?

— Isso. Uma lagarta cinza. Mas ela quis que a gente colhesse pra ela. Disse que o laboratório deles podia conseguir fazer alguma coisa c...

— Peraí um minuto, Buzz. Você deu a prova pra ela?

— Bom, mais ou menos. É. Ela...

— Como assim mais ou menos? Deu ou não deu? Você deu pra agente Walling a cinza de cigarro que colheu na cena do crime?

— Sim — admitiu Yates. — Mas não sem discutir um bocado e ela me dar garantias, Harry. Ela disse que o laboratório cientí?co deles con­seguia analisar as cinzas e determinar o tipo de tabaco, que então
podia servir para determinar o país de origem. A gente não tem como fazer um negócio desses, Harry. A gente não consegue nem chegar perto disso. Ela disse que ia ser importante pra investigação, porque
pode acontecer de estarem lidando com terroristas de fora do país. Então eu concordei. Ela me contou que uma vez trabalhou em um caso de incêndio criminoso em que encontraram apenas uma cinza de um cigarro
que começou o fogo. Conseguiram determinar a marca e ligar com um possível suspeito.

— E você acreditou?

— Ah... sim, eu acreditei.

— E aí deu minha prova pra ela.

Bosch disse isso num tom resignado.

— Harry, a prova não é sua. A gente tá trabalhando e jogando todo mundo no mesmo time, não é?

— É, Buzz, tá.

Bosch desligou o telefone e praguejou. Ferras perguntou qual o problema, mas Bosch sinalizou um deixa pra lá com um gesto de mão.

— Só a merda corporativa de sempre.

— Harry, você dormiu alguma coisa antes de ser chamado?

Bosch olhou através das escrivaninhas para seu parceiro. Sabia exa­tamente aonde Ferras pretendia chegar com a pergunta.

— Não — respondeu Bosch. — Eu estava acordado. Mas falta de sono não tem nada a ver com minha frustração com o FBI. Venho fazendo isso desde antes de você nascer. Sei como lidar com a privação de sono.

Estendeu a caneca de café.

— Saúde — ele disse.

— Mesmo assim, não é legal, parceiro — respondeu Ferras. — Sua cabeça vai começar a funcionar devagar logo, logo.

— Não se preocupe comigo.

— Ok, Harry.

Bosch voltou a se concentrar na cinza de cigarro.

— E fotos? — perguntou a Ferras. — Você bateu fotos na casa dos Kent?

— Bati, elas estão aqui em algum lugar.

Ferras mexeu nas pastas sobre sua mesa, puxou a que tinha as foto­gra?as e a passou para ele. Bosch olhou uma por uma e encontrou três fotos do banheiro no quarto de hóspedes. Uma inteira do local, uma
em ângulo da privada, que mostrava a trilha de cinzas na descarga, e um close da lagarta de cinzas, como Buzz Yates a chamara.

Dispôs as três à sua frente e usou a lente de aumento mais uma vez para examiná-las. No close das cinzas, o fotógrafo pusera uma régua de 15 centímetros sobre o tampo, para fornecer a escala da foto. As
cinzas tinham cerca de 5 centímetros de comprimento, um cigarro inteiro, praticamente.

— Tá vendo alguma coisa aí, Sherlock? — perguntou Ferras.

Bosch olhou para ele. Seu parceiro sorria. Bosch não devolveu o sorriso, percebendo agora que não podia usar a lupa nem na frente do próprio parceiro sem virar alvo de piada.

— Ainda não, Watson — ele disse.

Achou que com isso Ferras fechava o bico. Ninguém gosta de ser Watson.

Examinou a foto da privada e observou que a tampa fora erguida. Isso indicava que um homem usara o banheiro para urinar. A cinza do cigarro ajudaria a con?rmar se fora um dos dois invasores. Bosch olhou
a parede acima do vaso. Havia uma pequena foto emoldurada de uma cena invernal. As árvores desfolhadas e o céu cor de chumbo fizeram Bosch pensar em Nova York ou algum outro lugar no leste.

A foto fez Bosch se lembrar de um caso que arquivara um ano antes, quando ainda estava na Unidade de Abertos/Não Resolvidos. Pe­gou o telefone e ligou para o DIC mais uma vez. Quando Yates aten­deu, Bosch
perguntou pela pessoa que procurara impressões digitais na casa dos Kent.

— Espera um pouco — disse Yates.

Aparentemente ainda irritado com a ligação anterior de Bosch, Yates demorou um tempão até chamar a técnica de impressões digitais ao telefone. Bosch teve de esperar quase quatro minutos, usando a lente
para observar as fotos dos Kent o tempo todo.

— Aqui é Wittig — disse uma voz, finalmente.

Bosch a conhecia de casos anteriores.

— Andrea, Harry Bosch. Queria conversar com você sobre a casa dos Kent.

— De que você precisa?

— Passou o laser no banheiro dos hóspedes?

— Claro. Onde encontraram as cinzas e a tampa do vaso estava erguida? Fiz isso, sim.

— Achou alguma coisa?

— Não, nada. Limparam.

— E a parede acima da privada?

— É, veri?quei lá também. Nada.

— É só o que eu queria saber. ‘Brigado, Andrea.

— Tenha um bom dia.

Bosch desligou e olhou para a foto das cinzas. Alguma coisa ali o incomodava, mas ele não tinha certeza do quê.

— Harry, o que você quis saber sobre a parede acima da privada?

Bosch olhou para Ferras. Parte do motivo de o jovem detetive ter sido escalado para trabalhar com Bosch era que o detetive mais tarim­bado poderia orientar o inexperiente. Bosch decidiu deixar a piadinha
de Sherlock Holmes de lado e contar a história.

— Uns trinta anos atrás houve um caso em Wilshire. Uma mulher e seu cachorro afogados na banheira. As impressões tinham sido apaga­das no lugar todo, mas a tampa do vaso tinha ?cado pra cima. Isso fez
eles saberem que estavam procurando um homem. A privada tinha sido limpa também, mas na parede atrás encontraram a impressão de uma palma. O cara tinha dado uma mijada e se apoiado na parede enquanto isso.
Medindo a altura da impressão, eles conseguiram descobrir a altura do sujeito. Também perceberam que era canhoto.

— Como?

— Porque a palma apoiada na parede era da mão direita. Eles ima­ginaram que a pessoa segura o negócio com a mão de preferência quan­do mija.

Ferras balançou a cabeça concordando.

— Então ligaram a palma com um suspeito?

— É, mas só trinta anos depois. A gente resolveu no ano passado na Abertos/Não Resolvidos. Não havia muitas impressões de palmas nos bancos de dados, na época. Meu parceiro e eu pegamos o caso e jogamos
a impressão no computador. Achamos uma. Rastreamos o cara em Ten Thousand Palms, no deserto, e fomos atrás dele. Ele puxou uma arma e se matou antes que a gente pudesse fazer a prisão.

— Uau.

— É. Sempre achei isso esquisito, sabe?

— O quê? Ele se matar?

— Não, isso não. Achei que foi meio esquisito rastrear a palma até Ten Thousand Palms.

— Ah, é. Irônico. Então não teve nem chance de falar com ele?

— Não de verdade. Mas a gente tinha certeza de que era ele. E pra mim o cara ter se matado na frente da gente foi meio que uma admissão de culpa.

— Não, é, claro. O que eu quis dizer é que teria gostado de conver­sar com o cara e perguntar por que ele matou o cachorro, só isso.

Bosch arregalou os olhos para seu parceiro por um momento.

— Acho que se pudéssemos ter conversado, a gente ia estar mais interessado em saber por que ele matou a mulher.

— É, sei. Só ?quei pensando, por que o cachorro, saca?

— Acho que pensou que o cachorro seria capaz de fazer uma iden­ti?cação dele. Tipo, o cachorro sabia quem ele era e ia reagir em sua presença. Não queria correr o risco.

Ferras balançou a cabeça, como que aceitando a explicação. Bosch acabara de inventar aquilo. A questão do cachorro jamais viera à baila durante a investigação.

Ferras voltou ao trabalho, e Bosch se reclinou na cadeira para refle­tir sobre os fatos do presente caso. No momento, tudo era uma confusão de pensamentos e perguntas. E mais uma vez o que mais pesava
em sua mente era a questão básica de entender por que Stanley Kent fora morto. Alicia Kent disse que os dois homens que a mantiveram cativa usavam máscaras de esqui. Jesse Mitford disse que achava que
o homem que ele vira matar Kent no mirante usava uma máscara de esqui. Para Bosch, isso implicava a questão de saber por que matar Stanley Kent se ele não seria capaz sequer de fazer uma identi?cação?
E por que usar máscara se o pla­no era matá-lo desde o início? Ele supunha que o uso da máscara poderia ter sido um estratagema para tranquilizar Kent enganosamente e obrigá­-lo a cooperar. Mas essa conclusão
não lhe parecia correta, tampouco.

Mais uma vez, deixou as perguntas de lado, decidindo que não ti­nha informação su?ciente para tentar respondê-las adequadamente. Be­beu um pouco de café e preparou-se para outra sessão com Jesse Mitford
na sala de interrogatório. Mas primeiro pegou seu celular. Ainda tinha o número de Rachel Walling, desde o caso em Echo Park. Decidira nunca deletá-lo.

Apertou a tecla e chamou o número, preparando o espírito para dar com uma linha desativada. O número ainda existia, mas quando ouviu sua voz, era uma gravação dizendo-lhe que deixasse uma mensagem após
o bipe.

— É Harry Bosch — ele disse. — Preciso conversar umas coisas com você e quero minhas cinzas de cigarro de volta. Aquela cena de crime é minha.

Desligou. Sabia que a mensagem ia irritá-la, talvez até deixá-la lou­ca da vida. Sabia que rumava a uma confrontação incontornável com Rachel e sua turma que provavelmente era desnecessária e poderia facil­mente
ter sido evitada.

Mas Bosch não conseguiu se segurar. Nem mesmo por Rachel e pela lembrança do que um dia tiveram juntos. Nem mesmo pela espe­rança de um futuro juntos que ele ainda carregava como um número no coração de
um telefone celular.


DEZ

BOSCH E FERRAS saíram pela porta de entrada do Mark Twain Hotel e observaram a manhã. A luz mal começava a invadir o céu. A ca­mada de azul surgia acinzentada e espessa e aprofundava as sombras nas ruas.
Fazia com que parecesse uma cidade de fantasmas e, por Bosch, tudo bem. Combinava com seu aspecto.

— Acha que ele vai ?car aqui? — perguntou Ferras.

Bosch deu de ombros.

— Não tem nenhum outro lugar pra ir — ele disse.

Acabavam de registrar sua testemunha no hotel com o pseudôni­mo de Stephen King. Jesse Mitford se tornara um recurso valioso. Era o ás na manga de Bosch. Embora não tivesse sido capaz de fornecer uma descrição
do homem que matou Stanley Kent e levou o césio, Mitford conseguira fornecer aos investigadores uma visão clara do que acon­tecera no mirante de Mulholland. Também seria útil caso a investiga­ção levasse
à detenção e a um julgamento. Seu relato poderia ser usado como a narrativa do crime. Um promotor poderia usá-lo para ligar os pontos para o júri e isso o tornava valioso, pudesse ou não identificar o
atirador.

Depois de Bosch ter consultado o tenente Gandle, ficou decidido que não poderiam perder o rastro do jovem vagabundo. Gandle apro­vou um vale de hotel que manteria Mitford no Mark Twain por quatro dias.
Até lá, as coisas estariam mais claras quanto aos rumos que o caso estava tomando.

Bosch e Ferras entraram no Crown Victoria que Ferras havia re­quisitado pouco antes e deixaram a Wilcox rumo ao Sunset. Bosch ia ao volante. No semáforo, ele pegou seu celular. Não tivera notícias de Rachel
Walling, então ligou para o número que o parceiro dela lhe dera. Brenner atendeu na mesma hora e Bosch procedeu com cautela.

— Só pra dar notícias — disse. — A reunião das nove continua de pé?

Bosch queria ter certeza de que continuava como parte da investi­gação, antes de atualizar Brenner sobre qualquer coisa.

— Ahh, claro... claro, ainda estamos esperando a reunião, mas ela foi adiada pra mais tarde.

— Pra quando?

— Acho que às dez, agora. Pode deixar que a gente avisa.

A resposta não dava a entender que a reunião com a polícia local fosse um fato consumado. Decidiu pressionar Brenner.

— Onde vai ser? Na Tática?

Bosch sabia, por ter trabalhado com Walling em outra ocasião, que a localização da unidade Tática era sigilosa. Queria ver se Brenner deixava escapar.

— Não, no prédio do FBI, no centro. Décimo quarto andar. Per­gunte pela reunião da UIT. A testemunha ajudou?

Bosch decidiu não abrir o jogo enquanto não ?zesse uma ideia melhor de sua situação.

— Ele viu os tiros de longe. Depois viu a entrega. Disse que um homem fez tudo, matou Stanley Kent e depois tirou o porco do Porsche para a traseira de outro veículo. O outro cara esperou dentro de outro
carro, só olhando.

— Conseguiu alguma placa?

— Não, nada de placa. O carro dos Kent provavelmente era um dos que foram usados para buscar o material. Assim não ficaria nenhum traço de césio no carro deles.

— E quanto ao suspeito que ele viu?

— Como eu disse, não conseguiu identi?car o sujeito. O cara con­tinuava usando máscara de esqui. Além disso, nada.

Houve uma pausa antes de Brenner responder.

— Que droga — ele disse. — O que você fez com ele?

— O rapaz? Levamos ele embora.

— Onde ele mora?

— Halifax, Canadá.

— Bosch, sabe do que eu tô falando.

Bosch notou a mudança de tom. Isso e o uso de seu último nome. Não achou que Brenner estivesse apenas casualmente perguntando pela localização exata de Mitford.

— Ele não tem endereço fixo aqui — respondeu. — O cara é um vagabundo. A gente deixou ele no Denny’s, no Sunset. Foi onde ele pediu pra ir. A gente deu vinte paus pra ele tomar um café.

Bosch sentiu Ferras o encarando conforme mentia.

— Pode esperar um segundo, Harry? — disse Brenner. — Tem alguém ligando aqui. Pode ser Washington.

De volta ao primeiro nome, observou Bosch.

— Claro, Jack, mas se quiser pode desligar.

— Não, espera aí.

Bosch escutou a música entrar na linha e olhou para Ferras. O parceiro começou a falar.

— Porque você disse pra ele...

Bosch pôs um dedo nos lábios e Ferras parou.

— Só um segundo — disse Bosch.

Meio minuto passou enquanto Bosch esperava. Uma versão em saxofone de “What a Wonderful World” começou a tocar no telefone. Bosch sempre adorou a parte “dark sacred night”.

O vermelho do sinal ?nalmente mudou e Bosch entrou no Sunset. Então Brenner voltou à linha.

— Harry? Desculpe. Era Washington. Como você pode imaginar, estão entrando com tudo nessa história.

Bosch decidiu levar as coisas para o terreno aberto.

— O que tem de novo aí do seu lado?

— Não muita coisa. A Segurança Interna enviou uma frota de helicópteros com equipamento para rastrear vestígios de radiação. Vão começar pelo mirante e tentar captar uma assinatura específica do césio.
Mas a realidade é que ele precisa estar fora do porco antes de conseguirem pegar algum sinal. Enquanto isso, estamos organizando a reunião, pra ter certeza de que todo mundo está lendo pela mesma cartilha.

— Nosso grande governo não conseguiu nada além disso?

— Bom, a gente tá só se organizando. Eu falei pra você o que ia ser. Sopa de letrinhas.

— É. Você chamou de pandemônio. Os federais são bons nisso.

— Não, não sei se eu disse isso tudo. Mas vivendo e aprendendo. Acho que depois da reunião a gente vai pôr a máquina pra funcionar a pleno vapor.

Bosch sabia agora com certeza que as coisas haviam mudado. A resposta na defensiva de Brenner mostrou para ele que a conversa estava sendo gravada ou ouvida por terceiros.

— Ainda faltam algumas horas para a reunião — disse Brenner. — O que vai fazer agora, Harry?

Bosch hesitou, mas não por muito tempo.

— Agora estou voltando para a casa pra conversar com a senhora Kent outra vez. Tenho umas perguntas anotadas. Depois vamos para a torre sul em Cedars. O escritório de Kent ?ca lá e a gente vai ver se consegue
conversar com o sócio dele.

Não houve resposta. Bosch estava chegando no Denny’s, no Sun­set. Entrou no estacionamento e parou. Pelas janelas dava para ver que o restaurante 24 horas estava praticamente deserto.

— Continua aí, Jack?

— Ahh... continuo, Harry, estou aqui. Preciso dizer que isso pro­vavelmente não vai ser necessário, voltar para a casa e depois para o escritório de Kent.

Bosch sacudiu a cabeça. Eu sabia, ele pensou.

— Você já recolheu todo mundo, não foi?

— A ordem não foi minha. De qualquer maneira, pelo que ouvi, o escritório tava limpo e estamos com o sócio de Kent aqui para ser in­terrogado bem agora. A gente trouxe a sra. Kent como uma espécie de medida
de precaução. Estamos conversando com ela, também.

— Não foi ordem sua? Então foi ordem de quem, Rachel?

— Não vou começar com isso, Harry.

Bosch desligou o motor do carro e pensou no que responder.

— Bom, então talvez seja melhor meu parceiro e eu irmos para o centro, para a UIT — disse, ?nalmente. — Isso continua sendo uma investigação de homicídio. E, pelo que sei, continuo nela.

Houve um longo intervalo silencioso antes que Brenner ­respondesse.

— Olha, detetive, o caso tá assumindo proporções maiores. Você foi convidado para a reunião. Você e seu parceiro. E daí vai ?car a par do que o senhor Kelber tinha a dizer e algumas outras coisas. Se o
senhor Kelber ainda estiver aqui com a gente, vou fazer tudo o que puder pra você conversar com ele. E com a senhora Kent, também. Mas pra ser bem franco, a prioridade aqui não é o homicídio. A prioridade
não é descobrir quem matou Stanley Kent. A prioridade é descobrir o césio, e nós já estamos com quase dez horas de desvantagem.

Bosch balançou a cabeça.

— Tenho o palpite de que se encontrarmos o assassino encontra­remos o césio — ele disse.

— Pode ser — respondeu Brenner. — Mas a gente sabe por expe­riência que esse tipo de material viaja muito rápido. De mão em mão. A investigação precisa ser feita com muita rapidez. É nisso que a gente
tá empenhado, agora. Conseguir rapidez. Não queremos que nada nos atrase.

— Como os caipiras locais.

— Você sabe o que eu quis dizer.

— Claro. Até as dez, agente Brenner.

Bosch desligou o telefone e desceu do carro. Enquanto ele e Ferras cruzavam o pátio do estacionamento em direção às portas do restauran­te, seu parceiro o bombardeava com perguntas.

— Por que mentiu sobre a testemunha, Harry? O que tá aconte­cendo? O que a gente tá fazendo?

Bosch ergueu as mãos, fazendo um gesto para que se acalmasse.

— Calma, Ignacio. Fique calmo. Vamos sentar, tomar um café e quem sabe comer alguma coisa, depois eu explico o que está ­acontecendo.

O lugar era praticamente deles. Bosch foi para um reservado no canto que lhes permitiria uma visão desimpedida da porta da frente. A garçonete atendeu rápido. Uma senhora de expressão belicosa e ca­belos
grisalhos presos num coque apertado. O turno da madrugada no Denny’s em Hollywood exaurira a vida de seus olhos.

— Harry, há quanto tempo — ela disse.

— Ei, Peggy. Acho que já faz algum tempo que não preciso ir atrás de um caso no meio da noite.

— Bom, seja bem-vindo de volta. O que posso fazer por você e pelo seu parceiro bem mais jovem?

Bosch ignorou a provocação. Pediu café, torrada e ovos estrela­dos. Ferras pediu uma omelete de clara e um café com leite. Quando a atendente sorriu e lhe disse que não seria possível nem uma coi­sa nem
outra, contentou-se com ovos mexidos e café normal. Assim que a mulher se afastou, Bosch começou a responder às perguntas de ­Ferras.

— Eles estão tesourando a gente — ele disse. — É isso que está acontecendo.

— Cê tem certeza? Como você sabe?

— Porque eles já pegaram o sócio e a esposa da vítima e garanto a você que não vão deixar a gente conversar com nenhum dos dois.

— Harry, eles disseram isso? Disseram pra você que a gente não podia conversar com eles? Tem muita coisa em jogo e acho que você tá sendo um pouco paranoico. Já tá logo concluindo q...

— Estou? Bom, espera só pra ver, parceiro. Observe e aprenda.

— A gente ainda vai na reunião das nove, não vai?

— Em princípio sim. Só que agora é às dez. E provavelmente vai ser só um teatrinho pra nós. Não vão nos dizer coisa nenhuma. Vão jogar aquela conversa mole pra cima de nós e depois chutar a gente de escanteio.
“Muito obrigado, rapazes, a gente assume, daqui pra frente.” Eles que se fodam. Isso é um homicídio e ninguém, nem o FBI, me põe na geladeira.

— Tenha um pouco de fé, Harry.

— Só tenho fé em mim mesmo. Pode crer. Já passei por isso an­tes. Sei como vai terminar. Por um lado, quem dá a mínima? Eles que ?quem com o caso. Mas, por outro, eu dou. Não con?o que vão fazer isso direito.
Eles querem o césio. Eu quero os ?lhos da puta que ater­rorizaram Stanley Kent por duas horas, ?zeram ele ?car de joelhos e meteram duas balas na sua cabeça.

— Isso é segurança nacional, Harry. Isso é diferente. Tem um inte­resse mais amplo, aqui. Você sabe como é, no interesse da ordem.

Para Bosch, parecia que Ferras estava citando um livro didático da academia ou o código de uma espécie de sociedade secreta. Que fosse. Ele tinha seu próprio código.

— O interesse da ordem começa com aquele cara morto no miran­te. Se a gente esquecer dele, pode esquecer todo o resto.

Nervoso por discutir com seu parceiro, Ferras pegara o saleiro e brincava com ele, derrubando sal na mesa.

— Ninguém está esquecendo, Harry. Tem a ver com prioridades. Tenho certeza de que quando as coisas se organizarem durante a reu­nião, vão dividir qualquer informação relacionada ao homicídio.

Bosch ?cava cada vez mais frustrado. Estava tentando ensinar al­guma coisa, mas o rapaz não estava ouvindo.

— Deixe eu te dizer um negócio sobre dividir com os federais — disse Bosch. — Quando se trata de dividir informação, o FBI come feito elefante e caga como rato. Tipo, tá entendendo? Não vai ter reu­nião
nenhuma. Eles jogaram isso pra que a gente ?casse na espera até as nove, e agora até as dez, pensando o tempo todo que a gente ainda faz parte da equipe. Mas aí a gente aparece e eles adiam de novo, e
depois de novo, até aparecerem com algum grá?co organizacional pra fazer a gente achar que está participando de tudo quando na verdade não faz parte de nada, e daí já se mandaram pela porta dos fundos.

Ferras balançava a cabeça como se estivesse decorando o conselho. Mas então falou de algum outro lugar.

— Ainda acho que não deveríamos ter mentido sobre a testemu­nha. Ele pode ser bem valioso pra eles. Alguma coisa que disse pra gente talvez encaixe em algo que eles já saibam. Qual o problema de dizer
onde ele está? Pode ser que façam uma tentativa com ele e consigam alguma coisa que a gente não conseguiu. Vai saber?

Bosch sacudia enfaticamente a cabeça.

— O caralho! Ainda não. A testemunha é nossa, e a gente não vai dar de bandeja. Ou a gente troca por acesso e informação, ou a gente guarda pra nós.

A garçonete trouxe os pratos e olhou do sal esparramado na mesa para Ferras e depois para Bosch.

— Sei que ele é novo, Harry, mas não dá pra ensinar a ter um pouco de modos?

— Tô tentando, Peggy. Mas esses jovens não querem nem saber de aprender.

— Não mesmo.

Afastou-se da mesa e Bosch caiu imediatamente sobre a comida, segurando o garfo numa das mãos e um pedaço de torrada na outra. Es­tava faminto e tinha a sensação de que dali a pouco teriam de ir a algum
lugar. Quando teriam tempo para comer de novo era um exercício de imaginação.

Comera metade de seus ovos quando viu quatro homens de ternos escuros entrarem com uma postura inconfundível de agentes federais. Sem dizer palavra, dividiram-se em dois e começaram a caminhar pelo restaurante.

Havia menos de uma dúzia de clientes ali, na maioria strippers e seus namorados gigolôs voltando para casa dos clubes noturnos, cria­turas da noite de Hollywood abastecendo um pouco antes de cair na cama.
Bosch continuou a comer calmamente e observou os homens de terno parando de mesa em mesa, mostrando credenciais e pedindo identidades. Ferras estava ocupado demais jogando molho de pimenta em seus ovos
para notar o que acontecia. Bosch chamou sua atenção e apontou os federais com a cabeça.

A maioria dos que se espalhavam pelas mesas estavam cansados ou mamados demais para fazer qualquer coisa que não obedecer à ordem de mostrar a identidade. Uma garota com um Z tosado na lateral da ca­beça
começou a bater boca com uma dupla de agentes, mas era mulher e eles estavam procurando um homem, então a ignoraram e aguarda­ram pacientemente que o namorado com um Z combinando mostrasse a identidade.

Finalmente, uma dupla de agentes veio para a mesa no canto. Suas credenciais diziam que eram agentes do FBI, Ronald Lundy e John ­Parkyn. Ignoraram Bosch porque era velho demais e pediram a Ferras sua
identidade.

— Quem vocês estão procurando? — perguntou Bosch.

— Isso é problema do governo, senhor. A gente só precisa checar umas identidades.

Ferras abriu a carteira com o distintivo. Em um lado havia sua foto e identidade policial, do outro, seu distintivo de detetive. Isso pareceu paralisar os dois agentes.

— Engraçado — disse Bosch. — Se estão pedindo identidades é porque têm um nome. Mas eu não dei o nome da testemunha para o agente Brenner. Fico só imaginando. Vocês da Inteligência Tática por acaso não
tiveram acesso ao nosso computador ou quem sabe à sala do esquadrão, tiveram?

Lundy, obviamente o encarregado de qualquer eventual detenção, olhou diretamente para Bosch. Seus olhos eram cinza como cascalho.

— E você, quem é? — perguntou.

— Quer ver minha identidade também? Eu não passo por alguém de 20 anos há muito tempo, mas vou encarar isso como um elogio.

Puxou a carteira com o distintivo e estendeu-a fechada para Lundy. O agente abriu e examinou o conteúdo muito detidamente. Não teve pressa.

— Hieronymus Bosch — disse, lendo o nome na identidade. — Não tinha um merda de um pintor pervertido com esse nome? Ou será que eu confundi com um daqueles sanguessugas que li a respeito ontem no relatório?

Bosch devolveu o sorriso.

— Alguns consideram o pintor um mestre do Renascimento — ele disse.

Lundy deixou a carteira cair no prato de Bosch. Bosch ainda não terminara seus ovos, mas por sorte haviam sido fritos além do ponto.

— Não faço ideia de que jogo é esse, Bosch. Onde está Jesse ­Mitford?

Bosch apanhou a carteira e usou seu lenço para limpar os pedaços de ovo. Fez isso com calma, pôs a carteira de lado e então olhou para Lundy.

— Quem é Jesse Mitford?

Lundy se curvou e apoiou as duas mãos na mesa.

— Sabe muito bem quem é e precisamos levá-lo.

Bosch balançou a cabeça, como que entendendo perfeitamente a situação.

— Podemos conversar sobre Mitford e tudo mais na reunião, às dez. Depois que eu interrogar o sócio e a esposa de Kent.

Lundy sorriu de um jeito completamente destituído de cordialida­de ou humor.

— Quer saber de uma coisa, cara? Quem vai precisar de um Re­nascimento é você quando tudo isso acabar.

Bosch sorriu outra vez.

— Até a reunião, agente Lundy. Enquanto isso, vamos comer. Vê se vai encher o saco de outro, ok?

Bosch pegou sua faca e começou a espalhar geleia de morango de uma pequena embalagem plástica em seu último pedaço de torrada.

Lundy se aprumou e apontou para o peito de Bosch.

— É melhor tomar cuidado, Bosch.

Dizendo isso, virou e se dirigiu para a porta. Fez um sinal para a outra dupla de agentes e apontou a saída. Bosch assistiu-os sair.

— Obrigado pelo aviso — disse.


ONZE

OSOL AINDA não ultrapassara a crista da colina, mas o alvorecer já tomara conta do céu. À luz do dia, o mirante de Mulholland não mostrava qualquer sinal da violência da noite anterior. Até mes­mo o tipo
de coisa que sempre ?cava para trás numa cena de crime — luvas de borracha, copos de café, ?ta amarela — fora de algum modo recolhido ou talvez soprado pelo vento. Era como se Stanley Kent não houvesse
sido assassinado, seu corpo abandonado no pro­montório com a vista aérea da cidade ali embaixo. Bosch investigara centenas de mortes ao longo de sua carreira. Nunca se acostumou com o modo rápido como
a cidade parecia se curar — ao menos externamente — e seguir em frente. Agindo como se nada tivesse acontecido.

Bosch deu um pontapé no chão macio cor de laranja e ficou vendo a terra rolar pela beirada e cair nos arbustos mais abaixo. Tomou uma decisão e caminhou na direção do carro. Ferras observou-o ir.

— O que vai fazer? — perguntou Ferras.

— Vou entrar lá. Se quer vir junto, entre no carro.

Ferras hesitou e então trotou atrás de Bosch. Voltaram para o Crown Vic e rumaram para a Arrowhead Drive. Bosch sabia que os fe­derais estavam com Alicia Kent, mas ele continuava com a chave mestra do
Porsche de seu marido.

O carro dos federais que havia visto quando passaram por lá dez minutos antes continuava parado diante da residência dos Kent. Bosch parou na entrada, desceu e dirigiu-se com determinação para a porta
da frente. Ignorou o carro na rua, mesmo quando ouviu a porta sendo aberta. Conseguiu achar a chave certa e en?ou-a na fechadura antes que fosse abordado pela voz vinda de trás.

— FBI. Pode ir parando.

Bosch pôs a mão na fechadura.

— Não abra essa porta.

Bosch virou e encarou o homem que se aproximava pela calçada da frente. Sabia que qualquer um incumbido de vigiar a casa seria o sujeito mais baixo na hierarquia da Inteligência Tática, um trapa­lhão ou
agente problemático. Sabia que podia usar isso como uma ­vantagem.

— Especial de Homicídios do DPLA — disse. — Só estamos fi­nalizando aqui.

— Não está não — disse o agente. — O bureau assumiu a jurisdi­ção dessa investigação e vai tomar conta de tudo, daqui para a frente.

— Desculpe, cara, não recebi o memorando — disse Bosch. — Se nos dá licença.

Virou de frente para a porta.

— Não abra essa porta — disse o agente, outra vez. — Essa é uma investigação de segurança nacional, agora. Pode perguntar pros seus ­superiores.

Bosch sacudiu a cabeça.

— Você pode ter superiores. Eu tenho supervisores.

— Tanto faz. Você não vai entrar nessa casa.

— Harry — disse Ferras. — Talvez nós...

Bosch ergueu a mão e o cortou. Virou para o agente.

— Quero ver sua credencial — disse.

O agente arregalou os olhos irritado e puxou a carteira. Abriu-a diante dele com o braço estendido. Bosch estava preparado. Agarrou o agente pelo pulso e o girou. O corpo do agente veio para a frente e
passou por ele e Bosch usou um dos antebraços para pressionar o rosto do homem contra a porta. Puxou a mão dele — ainda segurando as credenciais — às suas costas.

O agente começou a lutar e protestar, mas era tarde demais. Bosch jogou o ombro em cima dele para mantê-lo contra a porta e deslizou a mão livre sob o paletó do sujeito. Encontrou e puxou as algemas no
cinto e começou a algemá-lo.

— Harry, o que cê tá fazendo? — gritou Ferras.

— Falei pra você. Ninguém vai chutar a gente de escanteio.

Assim que as mãos do agente ?caram presas nas costas, ele arrancou as credenciais da mão dele. Abriu e checou o nome. Clifford Maxwell. Bosch o virou e en?ou a carteira no bolso lateral do paletó.

— Sua carreira acabou — disse Maxwell, calmamente.

— Não me diga — disse Bosch.

Maxwell olhou para Ferras.

— Continue com isso e sua carreira vai descer junto pela privada, também — ele disse. — Melhor pensar nisso.

— Cala a boca, Cliff — disse Bosch. — A única coisa que vai descer pela privada é você quando voltar para a Tática e contar pra eles como foi que deixou dois caipiras locais passarem a perna em você.

Isso fez com que ?casse quieto. Bosch abriu a porta da frente e fez o agente entrar. Obrigou-o rudemente a sentar na poltrona estofada da sala.

— Senta um pouquinho — ele disse. — E cala a boca, caralho.

Esticou o braço e abriu o paletó de Maxwell, de modo que pudesse ver onde ele carregava a arma. Ela estava num coldre sob o braço es­querdo. Não conseguiria alcançá-la com os pulsos algemados atrás das
costas. Bosch apalpou as canelas do agente para se certi?car de que não estava carregando uma arma extra. Satisfeito, deu um passo para trás.

— Relaxe, agora — disse. — Não vai demorar muito.

Bosch se dirigiu ao corredor, fazendo um gesto para que o parceiro o acompanhasse.

— Comece pelo escritório que eu começo pelo quarto — instruiu. — Estamos procurando toda e qualquer coisa. A gente vai saber quando vir. Veri?que o computador. O que você achar de estranho, fale pra mim.

— Harry.

Bosch parou no corredor e olhou para Ferras. Dava para perceber que seu parceiro começava a ?car apavorado. Deixou que dissesse o que pensava mesmo estando ao alcance de Maxwell.

— A gente não devia fazer isso desse jeito — disse Ferras.

— Como a gente devia fazer, Ignacio? Quer dizer que a gente devia tentar pelos canais competentes? Pedir pro nosso chefe conversar com o chefe dele, pegar um café e ?car aguardando permissão pra fazer
nosso trabalho?

Ferras apontou a sala no ?m do corredor.

— Eu entendo a necessidade de rapidez — disse. — Mas acha que ele vai deixar isso pra lá? Ele vai tomar nossos distintivos, Harry, e não me importo de me estrepar no cumprimento do dever, mas não pelo
que a gente acabou de fazer.

Bosch admirou Ferras por dizer a gente e isso lhe forneceu a paciên­cia necessária para voltar e pôr a mão no ombro do parceiro. Baixou a voz para que Maxwell não pudesse ouvi-lo da sala.

— Escuta, Ignacio, não vai acontecer nada com você por causa disso. Absolutamente nada, ok? Estou nessa vida há um pouco mais de tempo que você e sei como funciona o bureau. Porra, minha ex traba­lhava
no FBI, ok? E se tem uma coisa que eu sei mais do que tudo é que a prioridade número um dos federais é não passar vexame. Essa é uma filoso?a que eles aprendem em Quantico e penetra em cada poro de cada
agente de cada escritório de cada cidade. Não envergonhe o bureau. Então, quando a gente tiver acabado aqui e soltado aquele cara, ele não vai contar pra ninguém o que a gente fez ou que a gente esteve
aqui. Por que você acha que o puseram de plantão aqui na casa? Porque ele é um F-B-Einstein? A-hã. Ele vai se poupar esse mico... pra ele mesmo e pro bureau. E não vai fazer nem dizer uma palavra pra piorar
as coisas ainda mais pro lado dele.

Bosch fez uma pausa para que Ferras pudesse responder. Ele ficou quieto.

— Então vamos andar rápido aqui e veri?car a casa — continuou Bosch. — Quando passei aqui hoje de manhã só me preocupei com a viúva e como ela estava e depois tivemos que sair correndo para a Saint Aggy’s.
Quero fazer isso com calma, mas quero que seja rápido, enten­de como é? Quero ver o lugar à luz do dia e ruminar sobre o caso um pouco. É assim que eu gosto de trabalhar. Você ?caria surpreso de ver as
coisas que aparecem, às vezes. Nunca se esqueça de que sempre fica alguma coisa. Aqueles dois assassinos deixaram sua marca em algum lugar nessa casa e eu acho que o DIC e todo mundo deixou passar. Tem
que ter um vestígio. Vamos encontrar.

Ferras balançou a cabeça.

— Ok, Harry.

Bosch bateu em seu ombro.

— Ótimo. Vou começar pelo quarto. Veja o escritório.

Bosch andou pelo corredor e estava na soleira da porta quando Ferras o chamou outra vez. Bosch virou e voltou pelo corredor para a entrada do escritório. Seu parceiro estava atrás da mesa.

— Onde tá o computador? — perguntou Ferras.

Bosch sacudiu a cabeça de frustração.

— Na mesa. Eles levaram.

— O FBI?

— Quem mais? Não estava na lista do DIC, só o mouse pad. Ape­nas dê uma olhada por aí, procure na mesa. Veja se dá para encontrar mais alguma coisa. Não vamos levar nada. Só estamos olhando.

Bosch foi pelo corredor até o quarto do casal. Parecia do mesmo jeito desde a última vez que o vira. O leve cheiro de urina continuava no colchão sujo.

Andou até o criado-mudo no lado esquerdo da cama. Viu pó de impressão digital preto jogado sobre os puxadores das duas gavetas e das superfícies lisas. Sobre o tampo havia uma luminária e uma foto emoldurada
de Stanley e Alicia Kent. Bosch apanhou a foto e a exami­nou. O casal estava parado perto de uma roseira ?orida. Alicia tinha o rosto sujo de terra, mas exibia um largo sorriso, como que orgulhosa junto
à própria cria. Bosch percebeu que a roseira era dela e no fundo dava para ver outras iguais. Mais além, na encosta da colina, viam-se as três primeiras letras do HOLLYWOOD e ele deduziu que a foto fora
tirada provavelmente nos fundos da casa. Nunca mais haveria outra foto do casal feliz como aquela.

Bosch pousou a foto e abriu as gavetas, uma por uma. Estavam cheias de objetos pessoais pertencentes a Stanley. Vários óculos de leitu­ra, livros e frascos de remédios. A gaveta de baixo estava vazia e
Bosch lembrou que era ali que Stanley costumava guardar a arma.

Bosch fechou as gavetas e se dirigiu ao canto do quarto no lado oposto do criado-mudo. Procurava um novo ângulo, uma espécie de olhar renovado sobre a cena do crime. Ele se deu conta de que precisava das
fotos da cena do crime e que as deixara em uma pasta, no carro.

Atravessou o corredor para chegar à porta da entrada. Quando chegou à sala, viu Maxwell deitado no chão, diante da poltrona em que o deixara. Ele de algum jeito conseguira mexer os pulsos alge­mados por
baixo do quadril. Seus joelhos estavam dobrados, com os pulsos nas algemas sob eles. Olhou para Bosch com o rosto vermelho, suando.

— Estou preso — disse Maxwell. — Me ajuda.

Bosch quase riu.

— Só um minuto.

Passou pela porta da frente e foi até o carro, onde apanhou as pastas contendo os relatórios do DIC sobre a cena do crime e as fotos. Pusera a cópia da foto do e-mail de Alicia Kent junto.

Quando entrou de novo na casa e foi na direção do corredor para os quartos do fundo, Maxwell o chamou.

— Vamos, cara, me ajuda aqui.

Bosch o ignorou. Seguiu pelo corredor e olhou rapidamente para o escritório quando passou. Ferras examinava as gavetas da escrivaninha, empilhando coisas que queria ver sobre o tampo.

No quarto, Bosch tirou a foto do e-mail e pôs as pastas sobre a cama. Ergueu a foto de modo a compará-la com o quarto. Depois foi até a porta com espelho do closet e abriu-a em um ângulo que combi­nasse
com a fotogra?a. Notou que na foto o roupão branco atoalhado estava sobre o encosto de uma espreguiçadeira no canto do quarto. En­trou no closet e procurou o roupão, encontrou e o pôs no mesmo lugar, na
espreguiçadeira.

Bosch foi até o lugar do quarto onde acreditava que a foto do e-mail fora tirada. Esquadrinhou o ambiente, na esperança de que al­guma coisa lhe saltasse aos olhos e falasse com ele. Notou o relógio desligado
sobre o criado-mudo e então comparou com a foto do e-mail. O relógio estava parado na foto, também.

Bosch foi até lá, agachou e olhou atrás do criado-mudo. O relógio estava fora da tomada. Esticou o braço e en?ou o pino na tomada. O mostrador digital começou a piscar 12:00 em numerais vermelhos. O relógio
funcionava. Só precisava ser ajustado.

Bosch pensou nisso e percebeu que seria algo a perguntar para Alicia Kent. Presumiu que os homens que estavam na casa haviam des­ligado o relógio. A questão era por quê. Talvez não quisessem que Alicia
Kent soubesse quanto tempo, se muito ou se pouco, transcorrera desde que fora deixada amarrada na cama.

Bosch deixou a questão do relógio de lado e foi até a cama, onde abriu uma das pastas e tirou as fotos da cena do crime. Examinou-as e notou que a porta do closet estava aberta em um ângulo ligeiramente
diferente em relação à foto do e-mail e que não havia roupão algum, obviamente porque Alicia Kent o vestira após ser libertada. Foi até o closet, comparou o ângulo da porta com o da foto da cena do crime,
depois retrocedeu até a porta e esquadrinhou o quarto.

Nada surgiu. O vestígio ainda se furtava a ele. Sentiu um descon­forto no estômago. Era como se estivesse perdendo alguma coisa. Algu­ma coisa que estava bem ali no quarto junto com ele.

Fracasso acarreta pressão. Bosch olhou seu relógio e viu que a reu­nião federal — se é que haveria uma, de fato — começaria em menos de três horas.

Saiu do quarto e atravessou o corredor rumo à cozinha, parando em cada quarto e verificando armários e gavetas, sem ver nada suspeito ou faltando. Na sala de ginástica ele abriu uma porta de armário e
viu que estava abarrotado de roupas de frio com cheiro de mofo, pendu­radas em cabides. Os Kent obviamente haviam migrado para L.A. de climas mais frios. E, como a maioria das pessoas que vinha de outros
lu­gares, recusavam-se a se separar de seus agasalhos. Ninguém nunca sabia ao certo quanto de L.A. aguentaria. É sempre bom ?car a postos para se mandar. Não mexeu no conteúdo do armário e fechou a porta.
Antes de sair da sala, observou uma descoloração retangular na parede perto dos ganchos nos quais os colchonetes de ginástica estavam pendurados. Havia leves marcas de ?ta adesiva indicando que um pôster
ou talvez um calendário grande havia ?cado pregado na parede.

Quando entrou na sala, Maxwell continuava no chão, o rosto ver­melho e suando com o esforço. Ele agora passara uma das pernas pelo arco de seus pulsos algemados, mas aparentemente não conseguia fazer passar
a outra, de modo a deixar as mãos diante do corpo. Estava sobre o chão de azulejos, com os pulsos entre as pernas. Lembrou a Bosch uma criança de 5 anos se segurando para controlar a bexiga.

— Já estamos quase terminando, agente Maxwell — disse Bosch.

Maxwell não respondeu.

Na cozinha, Bosch foi para a porta dos fundos e saiu para o pátio com jardim. Ver o quintal à luz do dia mudou sua perspectiva. Ficava em um aclive e ele contou quatro ?leiras de roseiras subindo pelo
bar­ranco. Umas ?oridas, outras não. Algumas sustentadas por armações de madeira com etiquetas para identi?car os diferentes tipos de rosas. Aproximou-se da encosta e estudou algumas, então voltou para
a casa.

Depois de trancar a porta atrás de si, caminhou pela cozinha e abriu outra porta, que sabia levar à garagem contígua de dois carros. Uma barreira de armários per?lava-se junto à parede do fundo da ga­ragem.
Abriu um por um e examinou os conteúdos. Eram na maioria ferramentas de jardinagem e de serviços domésticos, além de diversos sacos com fertilizantes e nutrientes de terra para o cultivo das rosas.

Havia uma lata de lixo com rodinhas na garagem. Bosch abriu-a e viu um saco plástico de lixo ali dentro. Puxou, abriu e descobriu que continha o que parecia ser apenas lixo básico de cozinha. Em cima de
tudo havia um chumaço de papel-toalha manchado de roxo. Como se alguém houvesse limpado uma poça. Ergueu um dos papéis e sentiu o cheiro de suco de uva.

Depois de devolver o lixo à lixeira, Bosch saiu da garagem e topou com o parceiro na cozinha.

— Ele está tentando se soltar — disse Ferras para Maxwell.

— Deixa tentar. Terminou no escritório?

— Quase. Queria saber onde você estava.

— Termine lá e vamos cair fora daqui.

Depois que Ferras se foi, Bosch veri?cou os armários de cozinha e a despensa e examinou todos os suprimentos e objetos empilhados nas prateleiras. Depois disso, foi para o banheiro do quarto de hóspedes
e observou a mancha em que a cinza de cigarro fora colhida. Sobre a por­celana branca da caixa acoplada havia uma descoloração amarronzada mais ou menos do tamanho de meio cigarro.

Bosch ?cou olhando para a marca, curioso. Fazia sete anos que não fumava, mas não se lembrava de jamais ter deixado o cigarro queiman­do daquele jeito. Se houvesse terminado, ele o teria jogado na privada
e dado descarga. Sem dúvida aquele cigarro fora esquecido.

Com a busca completa, voltou para a sala e chamou o parceiro.

— Ignacio, está pronto? Vamos indo.

Maxwell continuava no chão, mas parecia cansado do esforço e resignado com sua situação.

— Vamos, droga! — gritou, ?nalmente. — Tire essas algemas!

Bosch se aproximou.

— Onde está sua chave? — perguntou.

— No bolso do paletó. Do lado esquerdo.

Bosch se curvou e en?ou a mão no bolso do agente. Puxou um molho de chaves e viu uma por uma até achar a chave da algema. Agar­rou a corrente entre as duas algemas e puxou, para que pudesse enfiar a chave.
Não foi nem um pouco delicado.

— Agora seja bonzinho se eu ?zer isso — ele disse.

— Bonzinho? Vou quebrar sua cara.

Bosch soltou a mão da corrente e os pulsos de Maxwell caíram no chão.

— Que cê tá fazendo? — berrou Maxwell. — Me solta!

— Vou dar um conselho, Cliff. Da próxima vez que quiser amea­çar quebrar minha cara, melhor esperar até eu ter soltado você.

Bosch se endireitou e jogou as chaves no chão do outro lado da sala.

— Se solta sozinho.

Bosch foi para a porta da frente. Ferras já ia saindo por ela. Conforme a fechava, Bosch voltou a olhar Maxwell esparramado no chão. O rosto do agente estava vermelho como uma placa de “pare” e ele cuspiu
uma última ameaça na direção de Bosch.

— Isso ainda não acabou, seu babaca.

— É, eu sei.

Bosch fechou a porta. Quando se aproximou do carro, olhou por sobre a capota para o parceiro. Ferras parecia tão mortificado quanto alguns suspeitos que já haviam ocupado o banco traseiro.

— Ânimo — disse Bosch.

Enquanto entrava, teve uma visão do agente federal rastejando em seu belo terno pelo chão da sala, tentando apanhar as chaves.

Bosch sorriu.


DOZE

DESCENDO A COLINA rumo à autoestrada, Ferras seguia silencio­so, e Bosch sabia que devia estar pensando na situação delicada em que sua jovem e promissora carreira fora colocada por causa das atitudes
inconsequentes do parceiro mais velho. Bosch tentou tirá-lo ­daquilo.

— Bom, foi uma perda de tempo — ele disse. — Não consegui niente. E você, encontrou alguma coisa no escritório?

— Não muito. Mostrei pra você, levaram o computador.

Havia um tom emburrado em sua voz.

— E quanto à escrivaninha? — perguntou Bosch.

— Praticamente vazia. Uma gaveta com declarações de renda e coisas assim. Outra com a cópia de um título de propriedade. A casa deles, um terreno investido em Laguna, apólices de seguro, todas essas coisas
que costumam pôr nesse tipo de documento. Os passaportes es­tavam na mesa, também.

— Certo. Quanto o cara faturou no ano passado?

— Duzentos e cinquenta mil. Ele também detém 51% da empresa.

— A esposa faturou algum?

— Renda nenhuma. Não trabalha.

Bosch foi ficando calado conforme considerava as coisas. Quando terminaram a descida, decidiu não pegar a autoestrada. Em vez disso, tomou a Cahuenga para a Franklin e foi para o leste. Ferras olhava pela
janela do passageiro, mas notou rapidamente o desvio.

— O que está acontecendo? Pensei que a gente estivesse indo para o centro.

— Vamos passar em Los Feliz, primeiro.

— O que tem em Los Feliz?

— O Cantinho do Donut, em Vermont.

— A gente acabou de comer faz uma hora.

Bosch olhou o relógio. Eram quase oito e esperava que não estives­se atrasado demais.

— Não estou indo lá por causa dos donuts.

Ferras praguejou e sacudiu a cabeça.

— Vai conversar com o Homem? — perguntou. — Cê tá de ­brincadeira?

— A menos que eu não alcance mais ele. Se estiver preocupado com isso, pode ?car no carro.

— Você está pulando mais ou menos cinco elos na corrente, sabe muito bem. O tenente Gandle vai arrancar nossa pele por causa disso.

— Vai arrancar a minha pele. Você ?ca no carro. Vai ser como se nem tivesse estado lá.

— Só que o que um parceiro faz, o outro leva a culpa igual. Cê sabe disso. É assim que funciona. É por isso que o nome é parceiros, Harry.

— Olha, eu cuido disso. Não dá tempo de passar pelos canais ade­quados. O chefe precisa saber o que está acontecendo e eu vou contar. Ele provavelmente vai acabar nos agradecendo pelo alerta.

— É, bom, o tenente Gandle não vai agradecer.

— Então deixa que eu cuido dele também.

Os parceiros seguiram pelo resto do trajeto em silêncio.

O Departamento de Polícia de Los Angeles era uma das burocracias mais isoladas do mundo. Sobrevivera mais de um século raramente olhando para fora em busca de ideias, respostas ou líderes. Alguns anos
antes, quando o conselho da cidade decidiu que após anos de escândalo e perturbação social ele precisava de uma liderança de fora do departa­mento, foi apenas a segunda vez na longa história do DPLA que
a po­sição do chefe de polícia não foi preenchida com uma promoção vinda de dentro de suas ?leiras. Posteriormente, o sujeito de fora trazido para comandar o show passou a ser visto com tremenda curiosidade,
para não dizer ceticismo. Seus movimentos e hábitos eram documentados e os dados canalizados todos num ducto informal de polícia que ligava os 10 mil policiais do departamento como vasos sanguíneos de
um punho cerrado. O serviço de informações era passado adiante na hora da cha­mada e nos vestiários, nas mensagens de texto trocadas entre os compu­tadores das radiopatrulhas, nos e-mails e ligações telefônicas,
nos bares de policiais e churrascos em quintais. Com isso, os guardas de rua de South LA sabiam a que estreia de Hollywood o novo chefe comparecera na noite anterior. Vice-comandantes no Valley sabiam
aonde ele levava seus uniformes para serem passados, e o grupo especial em Venice sabia em que supermercado sua esposa gostava de fazer compras.

Isso também signi?cava que o detetive Harry Bosch e seu parceiro Ignacio Ferras sabiam em que loja de donuts o chefe parava para tomar um café todas as manhãs a caminho de Parker Center.

Às oito da manhã, Bosch parou no estacionamento do “Cantinho do Donut”, mas não viu o menor sinal do carro sem identificação do chefe. A espelunca era um estabelecimento de nome apropriado nas planícies
sob as encostas cheias de casas das colinas de Los Feliz. Bosch desligou o motor e olhou para o parceiro.

— Você vai ficar aqui?

Ferras olhava ?xo na direção do para-brisa. Balançou a cabeça sem olhar para Bosch.

— Faça como quiser — disse Bosch.

— Ouça, Harry, sem ofensa, mas isso não está funcionando. Você não quer um parceiro. Quer um ajudante, alguém que não questione nada do que faz. Acho que vou pedir pro tenente me designar para al­guma
outra pessoa.

Bosch o ?tou e ordenou os pensamentos.

— Ignacio, é nosso primeiro caso juntos. Não acha que devia me dar um pouco de tempo? Isso é tudo o que Gandle vai dizer a você. Ele vai dizer que você não vai querer começar na DRH com a reputação de
alguém que tesourou o parceiro.

— Não estou tesourando. É só que isso não está funcionando ­direito.

— Ignacio, cê tá fazendo uma bobagem.

— Não, acho que vai ser melhor assim. Pros dois.

Bosch olhou para ele por um longo momento antes de se virar para a porta.

— Como eu disse, faça como quiser.

Bosch desceu e foi na direção da loja de donuts. Estava decep­cionado com a reação e as decisões de Ferras, mas sabia que precisava dar um desconto. O cara tinha um ?lho chegando e tinha de agir com cautela.
Bosch era do tipo que nunca agia com cautela e isso lhe custara mais de um parceiro no passado. Faria outra tentativa de mudar a cabe­ça do rapaz assim que a poeira do caso assentasse.

Dentro da loja, Bosch esperou na ?la atrás de duas pessoas e então pediu um café preto para o oriental atrás do balcão.

— Nenhum donut?

— Não, só café.

— Cappuccino?

— Não, café preto.

Desapontado com o pedido miserável, o homem se virou para uma máquina na parede do fundo e encheu uma xícara. Quando se virou de novo, Bosch exibia o distintivo.

— O chefe ainda não passou aqui?

O homem hesitou. Não fazia ideia da rede de informações e ficou inseguro quanto a responder. Sabia que podia perder um ótimo cliente se falasse o que não devia.

— Não tem erro — disse Bosch. — Fiquei de encontrar com ele aqui. Tô atrasado.

Bosch tentou sorrir como se estivesse encrencado. Não saiu direito e ele parou.

— Ele não aqui ainda — disse o balconista.

Aliviado por ter chegado a tempo, Bosch pagou o café e depositou o troco no jarro de gorjeta. Foi até uma mesa vazia no canto. O movi­mento estava mais para viagem, àquela hora do dia. As pessoas pegando
alguma coisa pra comer a caminho do trabalho. Por dez minutos, Bosch observou um apanhado da cultura da cidade se aproximar do balcão, todos tendo em comum o vício de cafeína e açúcar.

Finalmente, viu o Town Car preto estacionar. O chefe ia na frente, no banco do passageiro. Tanto ele como o motorista desceram. Ambos esquadrinharam em torno e se dirigiram à loja de donut. Bosch sabia
que o motorista era um policial que também servia de guarda-costas.

Não havia ?la no balcão quando entraram.

— Olá, chefe — disse o balconista.

— Bom dia, senhor Ming — respondeu o chefe. — Me vê o de sempre.

Bosch ?cou de pé e se aproximou. O segurança, que estava atrás do chefe, virou e se enquadrou na direção de Bosch. Bosch parou.

— Chefe, posso pagar uma xícara de café? — perguntou Bosch.

O chefe virou e teve de olhar duas vezes até reconhecer Bosch e perceber que não era um cidadão querendo fazer um agrado. Por um momento, Bosch viu um franzir de desagrado atravessar o rosto do su­jeito
— ele ainda tinha que aparar algumas arestas do caso em Echo Park —, mas aquilo rapidamente se esvaneceu para dar lugar a uma expressão impassível.

— Detetive Bosch — ele disse. — Não está aqui para trazer más notícias, está?

— Mais para um alerta, senhor.

O chefe se virou para pegar um copo com café e um pequeno saco com Ming.

— Vamos sentar — ele disse. — Tenho uns cinco minutos e eu pago meu próprio café.

Bosch voltou para sua mesa enquanto o chefe pagava seu café e os donuts. Sentou e aguardou enquanto ele se dirigia a outro balcão e punha creme e adoçante no café. Bosch acreditava que o chefe fora algo
bom para o departamento. Cometera alguns deslizes políticos e tomara algumas decisões questionáveis no comando das missões, mas no geral fora o grande responsável por elevar o moral dos homens.

Isso não era tarefa fácil. Herdara um departamento operando sob um decreto de consentimento federal negociado na esteira do inquéri­to por corrupção no Rampart feito pelo FBI e uma miríade de outros escândalos.
Todos os aspectos de operação e desempenho eram sujeitos a revisão e autorização supervisionada de monitores federais. O resulta­do foi que o departamento não só tinha de prestar contas aos federais, como
também ?cou mergulhado em papelada. Em um departamento que já era enxuto, às vezes ?cava difícil ver onde algum trabalho policial estava sendo feito. Mas sob o novo chefe os homens de algum modo arregaçaram
as mangas e cumpriram o dever. As estatísticas criminalís­ticas haviam até caído, o que para Bosch signi?cava que havia uma boa possibilidade de que o crime de verdade também houvesse diminuído — ele via
as estatísticas com desconfiança.

Mas, à parte tudo isso, Bosch gostava do chefe por um motivo mais além. Dois anos antes ele dera a Bosch seu trabalho de volta. Bosch havia se aposentado e trabalhava como detetive particular. Não levou
muito tempo para perceber que aquilo fora um erro e, quando o fez, o novo chefe o recebeu de volta. Isso conquistou-lhe a lealdade de Bosch e foi por esse motivo que ele forçou a reunião na loja de donut.

O chefe sentou do outro lado da mesa.

— Teve sorte, detetive. Na maioria dos dias eu já teria vindo e saí­do há uma hora. Mas trabalhei até tarde, ontem à noite, comparecendo a reuniões da Crime Watch em três lugares da cidade.

Em vez de abrir o saquinho e apanhar um donut, o chefe o rasgou no meio e pôs diante de si os dois donuts que ia comer. Um era polvi­lhado de açúcar, o outro, com cobertura de chocolate.

— Aqui está o assassino mais perigoso da cidade — disse, enquan­to erguia o donut com cobertura de chocolate e dava uma mordida.

Bosch balançou a cabeça.

— Provavelmente tem razão.

Bosch sorriu com desconforto e tentou quebrar o gelo. Sua antiga parceira, Kiz Rider, acabara de voltar ao trabalho, depois de se recuperar dos ferimentos dos tiros. Transferiu-se do Roubos e Homicídios
para o escritório do chefe, onde já trabalhara antes.

— Como minha antiga parceira está se saindo, chefe?

— Kiz? Kiz está ótima. Faz um bom trabalho pra mim e acho que está no lugar certo.

Bosch balançou a cabeça. Fazia isso um bocado.

— E você, está no lugar certo, detetive?

Bosch olhou para o chefe e ?cou imaginando se já não estaria ques­tionando o fato de ter passado por cima de seu superior. Antes que pudesse pensar em uma resposta, o chefe fez outra pergunta.

— Está aqui por causa do mirante de Mulholland?

Bosch balançou a cabeça. Presumia que a notícia subira através da rede de informações pelo tenente Gandle e que o chefe fora deixado a par do caso com algum nível de detalhamento.

— Malho uma hora de manhã, só pra poder comer isto aqui — disse o chefe. — Os relatórios são enviados pra mim e eu leio eles na bicicleta reclinada. Sei que você pegou o caso do mirante e que é de interesse
federal. O capitão Hadley também me ligou hoje de manhã. Disse que envolve terrorismo.

Bosch ?cou surpreso de descobrir que o capitão Done Badly e o GSI já estavam na jogada.

— O que o capitão Hadley está fazendo? — ele perguntou. — Ele não ligou pra mim.

— O de sempre. Checando nosso próprio serviço de inteligência, tentando abrir uns canais com os federais.

Bosch balançou a cabeça.

— Então, o que tem pra me dizer, detetive? Por que está aqui?

Bosch lhe forneceu um relato detalhado do caso, enfatizando o envolvimento federal e o que estava parecendo um esforço para chutar o DPLA para fora da investigação. Bosch concordava que o césio desapa­recido
era uma prioridade e o verdadeiro motivo de os federais andarem pondo as manguinhas de fora. Mas disse que era um caso de homicídio, e que isso cabia ao DPLA. Falou sobre as provas que conseguira e expli­cou
algumas das teorias que andara considerando.

O chefe comera os dois donuts quando Bosch terminou. Limpou a boca com um guardanapo e olhou o relógio antes de responder. Já havia passado muito dos cinco minutos que oferecera inicialmente.

— O que está me dizendo? — perguntou.

Bosch encolheu os ombros.

— Não muita coisa. Só tive um pequeno entrevero com um agente na casa da vítima, mas acho que não vai dar em nada.

— Por que seu parceiro não entrou? Por que ele está esperando no carro?

Bosch entendeu. O chefe vira Ferras quando observou o pátio do estacionamento, ao chegar.

— A gente meio que bateu boca sobre como proceder. O rapaz é cem por cento, mas quer entregar o jogo pros federais muito fácil.

— E é claro que a gente não faz isso no DPLA.

— No meu tempo não, chefe.

— Seu parceiro acha apropriado ignorar a hierarquia de comando vindo falar direto comigo desse jeito?

Bosch baixou os olhos para a mesa. A voz do chefe ganhara um tom áspero.

— Pra falar a verdade, ele não está muito contente com isso, chefe — disse Bosch. — Não foi ideia dele. Foi minha. Achei só que não tinha tempo pra...

— Tanto faz o que você pensou. É o que você fez. Então se eu fosse você, eu guardava este encontro pra mim mesmo, e vou fazer a mesma coisa. Nunca mais faça isso, detetive. Ficou claro?

— Ficou, sim.

O chefe olhou para as prateleiras de vidro em que estavam os do­nuts, sobre bandejas.

— E, a propósito, como sabia que eu ia estar aqui? — perguntou.

Bosch encolheu os ombros.

— Não lembro. Eu meio que sabia, só isso.

Ele então se deu conta de que o chefe podia estar pensando que a fonte de Bosch era a antiga parceira.

— Não foi a Kiz, se é isso que o senhor quer saber, chefe — disse, rapidamente. — É só o tipo de coisa que todo mundo fica sabendo, entende? As coisas correm, no departamento.

O chefe de polícia fez que sim.

— Uma pena — disse. — Eu gostava deste lugar. Conveniente, os donuts são bons, e o senhor Ming me atende bem. Que pena.

Bosch percebeu que o chefe agora teria de mudar sua rotina. Não era um bom negócio para ele que soubessem onde podia ser encontrado e quando.

— Desculpe, senhor — disse Bosch. — Mas posso fazer uma su­gestão? Tem um lugar no Farmer’s Market chamado Bob’s Coffee and Doughnuts. Fica um pouco fora de mão, mas o café e os donuts valem a pena.

O chefe balançou a cabeça, pensativo.

— Vou pensar. Agora, o que quer de mim, detetive Bosch?

Bosch concluiu que o chefe obviamente queria ir direto ao assunto.

— Preciso assumir o caso no pé que está e fazer o que for preciso para ter acesso a Alicia Kent e o sócio do marido, um cara chamado Kelber. Os federais estão com os dois e acho que minha janela de acesso
se fechou há umas cinco horas.

Após uma pausa, Bosch chegou ao ponto daquela reunião comple­tamente inesperada.

— É por isso que estou aqui, chefe. Preciso de acesso. Imagino que o senhor pode conseguir isso pra mim.

O chefe balançou a cabeça.

— Além de minha posição no departamento, faço parte da Força-Tarefa Mista de Terrorismo. Posso fazer umas ligações, dar uns esporros e provavelmente abrir a janela. Como eu disse antes, já estamos com
a unidade do capitão Hadley nisso, e quem sabe ele consiga abrir os ca­nais de comunicação. A gente já foi chutado pra escanteio nessas coisas em outras épocas. Posso ligar o alerta vermelho, dar um telefonema
para o diretor.

Para Bosch, isso signi?cava que o chefe iria defender seu lado.

— Sabe o que re?uxo quer dizer, detetive?

— Refluxo?

— É quando você tá mal e toda a sua bile volta pela garganta. Queima, detetive.

— Hum.

— O que estou dizendo é que se eu tiver que entrar em ação e abrir essa janela pra você, não quero nenhum refluxo. Entendeu?

— Entendi.

O chefe limpou a boca outra vez e enfiou o guardanapo no saqui­nho rasgado. Depois amassou tudo numa bola, tomando cuidado para não espalhar o açúcar de confeiteiro em seu terno preto.

— Vou fazer as ligações, mas não vai ser fácil. Você não está perce­bendo as implicações políticas disso, está, Bosch?

Bosch olhou para ele.

— Como, senhor?

— O contexto mais amplo, detetive. Pra você, é uma investigação de homicídio. Mas na verdade é muito mais do que isso. O que você precisa entender é que para o governo federal cai como uma luva se esse
negócio do mirante for parte de um plano terrorista. Uma ameaça interna genuína ajudaria bastante a desviar a atenção do público e ali­viar a pressão em outras áreas. A guerra deu merda, a eleição foi
um desastre. Você tem o Oriente Médio, o preço da gasolina e uma taxa de aprovação do presidente lá embaixo. A lista não para por aí e de repente aparece uma oportunidade redentora. Uma chance de limpar
os erros de antes. Uma chance de desviar a atenção da opinião pública.

Bosch balançou a cabeça.

— Está dizendo que talvez eles queiram ?car enrolando com essa história, exagerando um pouco a ameaça, até?

— Não estou dizendo nada, detetive. Só estou tentando fornecer uma perspectiva mais ampla pra você. Num caso como esse, a gente precisa ?car ligado no cenário político. Não pode sair por aí como um touro
numa loja de porcelana... uma especialidade sua, no passado.

Bosch balançou a cabeça.

— Não é só isso, tem os políticos locais pra levar em consideração — continuou o chefe. — Tem um cara no conselho municipal só esfre­gando as mãos e pensando em mim.

O chefe estava se referindo a Irvin Irving, um comandante de lon­ga data do departamento que pusera para fora. Ele concorrera a um lugar no conselho municipal e vencera. Agora era o crítico mais duro do
departamento e do chefe.

— Irving? — disse Bosch. — Ele é só um voto no conselho.

— O cara sabe uma porção de segredos. Isso o ajudou a começar uma base política. Depois da eleição, ele me mandou um recado. Duas palavras. “Me aguarde.” Não transforme isso em algo que ele possa usar,
detetive.

O chefe se levantou, pronto para ir.

— Pense nisso e seja cuidadoso. Lembre, nada de re?uxo. Nada de vazamentos.

— Sim, senhor.

O chefe se virou e fez um gesto com o queixo para o motorista. O homem foi até a porta, abriu e segurou aberta para o homem a quem devia proteger.


TREZE

BOSCH NÃO DISSE nada enquanto não se viram fora do estacionamen­to. Imaginou que àquela hora do dia a Hollywood Freeway estaria tão cheia com o tráfego matinal que as ruas debaixo dela estariam me­lhores.
Achou que o Sunset era o caminho mais rápido para o centro.

Ferras só aguentou duas quadras antes de perguntar o que aconte­cera na loja de donuts.

— Não se preocupe, Ignacio. Nós dois continuamos com nossos empregos.

— Então, o que aconteceu?

— Ele disse que você estava com a razão. Eu não deveria ter passa­do por cima do meu supervisor. Mas ele disse que ia dar uns telefone­mas e tentar abrir algumas portas com os federais.

— Então é esperar pra ver.

— É, esperar pra ver.

Andaram em silêncio por algum tempo até que Bosch perguntou pelos planos de seu parceiro quanto a deixá-lo.

— Ainda pretende conversar com o tenente?

Ferras hesitou antes de responder. Ficou incomodado com a ­pergunta.

— Não sei, Harry. Ainda acho que ia ser melhor. Melhor pra nós dois. Talvez você se dê melhor com uma parceira mulher.

Bosch quase riu. Ferras não conhecia Kiz Rider, sua última par­ceira. Ela nunca se dera o trabalho de se dar melhor com Harry. Como Ferras, protestava toda vez que Bosch bancava o líder de equipe com ela.
Já ia explicar isso para Ferras quando seu celular começou a zunir e o tirou do bolso. Era o tenente Gandle.

— Harry, onde você tá?

A voz estava mais alta do que normalmente, e mais urgente. Algu­ma coisa o deixara agitado e Bosch ?cou pensando se já tivera notícias da reunião no Cantinho do Donut. Será que o chefe o havia traído?

— Estou no Sunset. Estamos indo.

— Já passou Silver Lake?

— Ainda não.

— Ótimo. Vai pra Silver Lake. O lugar é o centro recreativo, em­baixo do reservatório.

— O que está acontecendo, tenente?

— O carro de Kent foi localizado. Hadley e a equipe dele já estão lá montando o QG. Pediram os investigadores na cena.

— Hadley? Por que ele tá lá? Pra que tem um quartel-general?

— O gabinete de Hadley recebeu a denúncia e veri?cou antes de decidir chamar a gente. O carro está estacionado em frente de uma casa que pertence a uma pessoa de interesse. Querem vocês na cena.

— Pessoa de interesse? O que isso quer dizer?

— A casa é a residência de uma pessoa em que o GSI está interes­sado. Uma espécie de suspeito de ser simpatizante do terrorismo. Não sei os detalhes. Vai até lá, Harry.

— Tudo bem. Estamos indo.

— Me liga e me conta o que está acontecendo. Se precisar de mim por lá, é só dizer.

Claro que Gandle não pretendia de fato sair do escritório e ir para o local. Isso atrasaria suas tarefas diárias de gerenciamento e o trabalho burocrático. Bosch fechou o telefone e tentou acelerar, mas
o tráfego es­tava pesado demais para que conseguisse chegar a algum lugar. Deixou Ferras a par do pouco que obtivera com a ligação.

— E o FBI? — perguntou Ferras.

— Que tem eles?

— Estão sabendo?

— Não perguntei.

— E a reunião das dez?

— Acho que só vamos nos preocupar com isso às dez.

Dez minutos depois ?nalmente entraram no Silver Lake Boule­vard e Bosch rumou para o norte. Aquela parte da cidade devia seu nome ao reservatório de Silver Lake, que ?cava no meio da vizinhança majoritariamente
classe média de bangalôs e casas pós-Segunda Guerra Mundial com vista para o lago artificial.

Conforme se aproximaram do centro recreativo, Bosch viu duas picapes pretas reluzentes que reconheceu como os veículos padrão do GSI. Ao que parecia, pensou, não era nem um pouco difícil conseguir fundos
para uma unidade que supostamente caçava terroristas. Havia duas radiopatrulhas e um caminhão de lixo da prefeitura, também. Bosch estacionou atrás de uma das viaturas e ele e Ferras desceram.

Havia um grupo de dez homens em ternos pretos — também um traço distintivo do GSI — reunidos em torno da traseira de uma das picapes. Bosch se aproximou e Ferras ?cou alguns passos mais atrás. A presença
dos dois foi notada imediatamente, o grupo se dividiu e lá es­tava o capitão Don Hadley sentado na traseira. Bosch nunca o conhece­ra pessoalmente, mas o vira diversas vezes na televisão. Era um homem
grande, de rosto vermelho e cabelo cor de areia. Tinha cerca de 40 anos e parecia ter puxado ferro numa academia por pelo menos a metade disso. A pele corada dava-lhe a aparência de alguém que se esforçara
além da conta ou segurava a respiração.

— Bosch? — perguntou Hadley. — Ferras?

— Eu sou Bosch. Aquele é Ferras.

— Caras, como é bom ter vocês aqui. Acho que estamos com o caso de vocês aqui embrulhado pra presente, de bandeja. É só esperar um dos meus homens trazer o mandado pra poder entrar.

Ficou de pé e fez um sinal para um policial. Hadley definitivamen­te transmitia confiança.

— Perez, veja aquele mandado de busca, pode ser? Estou cansado de esperar. Depois cheque o posto de observação e veja o que está acon­tecendo por lá.

Então se virou outra vez para Bosch e Ferras.

— Venham comigo.

Hadley se afastou do grupo e Bosch e Ferras foram atrás. Seguiu com os dois para trás do caminhão de lixo, a ?m de poder conversar longe da aglomeração dos demais homens. O capitão adotou uma pose de autoridade,
apoiando um dos pés na traseira do caminhão e descan­sando o cotovelo no joelho. Bosch notou que portava a arma em um coldre na perna, a?velado em torno da grossa coxa direita. Como um pistoleiro do Velho
Oeste, tirando o fato de que era uma semiautomá­tica. Estava mastigando chiclete e não tentava disfarçar.

Bosch ouvira muitas histórias sobre Hadley. Agora tinha a sensa­ção de que estava prestes a tomar parte em uma delas.

— Quero que seus homens estejam aqui para isso — disse Hadley.

— O que exatamente é isso, capitão? — respondeu Bosch.

Hadley bateu uma mão na outra antes de falar.

— Localizamos seu Chrysler 300 aproximadamente a meia quadra daqui, numa rua perto do reservatório. A placa bate com o alerta de furto e eu mesmo dei uma olhada no veículo. É o carro que a gente tava procurando.

Bosch balançou a cabeça. Essa parte foi boa de ouvir, pensou. Que mais?

— O veículo está estacionado na frente da casa de um homem chamado Ramin Samir — continuou Hadley. — É um cara em que a gente tá de olho já faz alguns anos. Uma pessoa que nos interessa muito, podemos
dizer assim.

O nome era familiar para Bosch, mas ele não conseguia se lembrar de onde, em princípio.

— Por que ele é de interesse, capitão? — perguntou.

— Esse Samir é um conhecido partidário de organizações religio­sas que querem ferir americanos e trazer danos aos nossos interesses. Pior do que isso é que ensina nossos jovens a odiar seu próprio país.

Essa última parte chacoalhou a memória de Bosch e as peças se encaixaram.

Não conseguia se lembrar de que país do Oriente Médio ele era, mas Bosch lembrava que Ramin Samir fora um antigo professor-visi­tante de política internacional na University of Southern California que
conquistara ampla notoriedade defendendo o sentimento antiamerica­no entre seus alunos e na mídia.

Ele vinha agitando a mídia antes dos ataques terroristas de 11 de setembro. Depois disso, as marolas viraram ondas. Postulou abertamen­te que os ataques eram justi?cados, em razão das intervenções e agres­sões
americanas por todo o planeta. Explorou a atenção que isso lhe proporcionou conquistando a posição do sujeito a quem a mídia sem­pre procurava quando queria uma frase ou expressão antiamericana de efeito.
Ele comprometia a política do governo em relação a Israel, fazia objeções à ação militar no Afeganistão e chamava a guerra no Iraque de nada mais que roubo de petróleo.

O papel de Samir como agente provocador por alguns anos serviu bem às mesas-redondas de atualidades dos canais a cabo, nas quais todo mundo costuma gritar com todo mundo. Ele era o contraponto perfeito
tanto para a direita como para a esquerda e estava sempre disposto a acordar às quatro da manhã para aparecer nos programas matutinos de domingo da Costa Leste.

Enquanto isso, usava seu palanque e seu status de celebridade para começar e custear inúmeras organizações dentro e fora dos campi, que logo foram acusadas por grupos conservadores e matérias inves­tigativas
de jornais de estarem ligadas, ao menos superficialmente, a organizações terroristas e jihads antiamericanas. Alguns chegaram a sugerir que havia elos com o grande mestre de todo terror, Osama bin Laden.
Mas embora investigassem Samir com frequência, ele nunca foi acusado de nenhum crime. Foi, porém, mandado embora da USC com base em uma tecnicalidade — não deixara patente que as opiniões expressadas eram
suas e não da instituição quando escreveu um arti­go na página de debates do Los Angeles Times sugerindo que a guerra ao Iraque era um genocídio de muçulmanos planejado pelos Estados Unidos.

Os quinze minutos de Samir se esgotaram. Acabou sendo descar­tado pela mídia como um provocador narcisista que dava declarações absurdas a ?m de chamar a atenção para si, em vez de fazer comentários re?etidos
sobre assuntos atuais. No ?m, chegou até a batizar uma de suas organizações de YMCA — ou Young Muslim Cause in Ameri­ca —, levando a tradicional Associação Cristã de Moços, com suas ini­ciais internacionalmente
reconhecidas, a mover um processo de ampla ­repercussão.

A estrela de Samir perdeu o brilho e ele saiu da berlinda. Bosch não conseguia se lembrar da última vez que o vira fazendo algum discurso ou escrevendo em um jornal. Mas à parte toda a retórica, o fato
de que Samir jamais fora formalmente acusado durante o período em que o clima nos Estados Unidos estava quente com o medo do desconhecido e a sede de vingança sempre indicou para Bosch que não tinha com
que se preocupar. Se houvesse algum fogo por trás daquela fumaça, então Ramin Samir estaria numa cela de prisão ou atrás de uma cerca na baía de Guantánamo. Mas lá estava ele, morando em Silver Lake, e
Bosch viu com ceticismo as declarações do capitão Hadley.

— Me lembro desse cara — ele disse. — Era só um agitador, capi­tão. Nunca houve nenhum elo sólido entre Samir e...

Hadley estendeu um dos dedos, como um professor pedindo ­silêncio.

— Nunca um elo sólido estabelecido — corrigiu-o. — Mas isso não quer dizer nada. Esse cara arrecada dinheiro para a jihad palestina e outras causas muçulmanas.

— Jihad palestina? — perguntou Bosch. — O que é isso? E quais causas muçulmanas? Está me dizendo que causas muçulmanas podem ser legalizadas?

— Olha, tudo o que estou dizendo é que esse sujeito é do mal e que tem um carro que foi usado num assassinato e roubo de zécio esta­cionado bem na frente da casa dele.

— É césio — disse Ferras. — É césio que foi roubado.

Desacostumado a ser corrigido, Hadley estreitou os olhos e enca­rou Ferras por um momento, antes de falar.

— Tanto faz. Não vai fazer grande diferença o nome que você dá pra isso, meu ?lho, se ele jogar no reservatório do outro lado da rua ou se estiver naquela casa pondo tudo em uma bomba enquanto a gente
tá aqui esperando o mandado.

— O FBI não disse nada sobre ameaça de espalhar pela água — disse Bosch.

Hadley sacudiu a cabeça.

— Não interessa. Na prática, é uma ameaça e ponto final. Tenho certeza de que isso o FBI disse. Bom, o bureau pode dizer o que quiser. Nós vamos agir.

Bosch recuou um pouco, tentando trazer um pouco de ar fresco para a discussão. Aquilo estava indo rápido demais.

— Então vai entrar? — perguntou.

Hadley ocupava seu maxilar dando poderosas dentadas no chicle­te. Parecia não notar o forte cheiro de lixo emanando do caminhão.

— Pode apostar que sim — ele disse. — Assim que aquele manda­do chegar na minha mão.

— Você tem um juiz para assinar um mandado baseado em um car­ro roubado estacionado na frente de uma casa? — perguntou Bosch.

Hadley sinalizou para um de seus homens.

— Traz os sacos, Perez — chamou. Depois, para Bosch, ele disse: — Não, não é só isso que a gente tem. Hoje é dia do lixeiro, detetive. Mandei o caminhão de lixo subir a rua e dois dos meus homens esvazia­ram
as duas latas da frente da casa de Samir. Perfeitamente legal, como você sabe. E olha só o que a gente achou.

Perez veio trotando com os sacos plásticos de provas e os estendeu para Hadley.

— Capitão, chequei o posto de observação — disse Perez. — Con­tinua silencioso ali dentro.

— Obrigado, Perez.

Hadley apanhou os sacos e virou para Bosch e Ferras. Perez voltou para a picape.

— Nosso posto de observação é um cara numa árvore — disse Ha­dley, sorrindo. — Vai nos informar se alguém ?zer qualquer movimento antes que a gente esteja pronto.

Estendeu os sacos para Bosch. Dois deles continham máscaras de esqui pretas, de lã. O terceiro continha um pedaço de papel com um mapa desenhado à mão. Bosch examinou de perto. Era uma sé­rie de linhas
cruzadas com duas delas assinaladas como Arrowhead e Mulholland. No que ele as assimilou, se deu conta de que o mapa era um desenho razoavelmente preciso dos arredores onde Stanley Kent vivera e morrera.

Bosch passou o saco de volta e sacudiu a cabeça.

— Capitão, acho que o senhor devia aguardar.

Hadley pareceu chocado com a sugestão.

— Aguardar? Ninguém aqui vai aguardar. Se aquele cara e os par­ceiros dele contaminarem o reservatório com esse veneno, acha que as pessoas nessa cidade vão aceitar que a gente ?cou aqui esperando e so­mando
dois mais dois? Ninguém vai esperar.

Enfatizou sua decisão tirando o chiclete da boca e jogando na tra­seira do caminhão de lixo. Tirou o pé do para-choque e começou a andar na direção da equipe, mas então fez uma súbita meia-volta e foi
diretamente para Bosch.

— Até onde sei, a gente tem o líder de uma célula terrorista ope­rando daquela casa e vamos entrar e acabar com ela. Qual o seu proble­ma com isso, detetive Bosch?

— Está fácil demais, esse é meu problema. Não tem nada a ver com somar dois e dois, porque isso foi o que os assassinos já fizeram. Esse foi um crime cuidadosamente planejado, capitão. Não iam sim­plesmente
deixar o carro na frente da casa ou jogar suas coisas na lata do lixo. Pensa bem.

Bosch esperou e observou Hadley ruminar por alguns instantes. Ele então sacudiu a cabeça.

— Talvez o carro não tenha sido deixado ali — disse. — Talvez ainda estejam planejando usá-lo como parte do serviço. Tem um monte de variáveis, Bosch. Coisas que a gente não sabe. Vamos entrar. Apre­sentamos
tudo pro juiz e ele disse que provavelmente tínhamos algo. Isso está bastante bom, para mim. Tem um mandado de busca a cami­nho e vamos usá-lo.

Bosch se recusou a desistir.

— De onde veio a dica, capitão? Como o carro foi encontrado?

O maxilar de Hadley começou a funcionar, mas então ele lembrou que jogara o chiclete fora.

— Uma das minhas fontes — ele disse. — A gente vem construin­do uma rede de inteligência nesta cidade há quase quatro anos. Hoje valeu a pena.

— Está me dizendo que sabe quem é a fonte ou que veio de uma denúncia anônima?

Hadley fez um gesto de desprezo com as mãos.

— Não interessa — ele disse. — A informação era quente. O carro está ali. Não tem dúvida sobre isso.

Apontou na direção do reservatório. Bosch percebeu pela evasiva de Hadley que a denúncia fora anônima, típica característica de uma armação.

— Capitão, insisto em aguardar — ele disse. — Tem alguma coisa errada com isso. Está simples demais e o caso não é simples. Foi algum tipo de informação enganosa e a gente precisa descobrir...

— Ninguém vai aguardar, detetive. Têm vidas em jogo.

Bosch balançou a cabeça. Não ia conseguir nada com Hadley. O homem acreditava estar prestes a conseguir uma vitória que redimiria todos os erros que um dia cometera.

— Onde está o FBI? — perguntou Bosch. — Eles não deveriam...

— A gente não precisa do FBI — disse Hadley, encarando Bosch outra vez. — Temos o treinamento, o equipamento e a capacidade. E, além do mais, temos colhão. E pelo menos uma vez vamos cuidar sozi­nhos do
que acontece no nosso pedaço.

Fez um gesto para o chão, como se o lugar fosse o derradeiro cam­po de batalha entre o bureau e o DPLA.

— E quanto ao chefe? — tentou Bosch. — Ele já sabe? Eu estava...

Bosch parou, lembrando da advertência do chefe sobre manter a reunião no Cantinho do Donut entre os dois.

— Estava o quê? — quis saber Hadley.

— Estava pensando se ele tá sabendo e aprova.

— O chefe me dá plena autoridade pra cuidar da minha unidade. Você liga para o chefe toda vez que sai para fazer uma prisão?

Virou e marchou a passos largos para seus homens, deixando que Bosch e Ferras o vissem ir.

— Ô-ôu — disse Ferras.

— Pois é — disse Bosch.

Bosch se afastou da traseira do caminhão malcheiroso e puxou seu celular. Percorreu a agenda até achar o telefone de Rachel Walling. Aca­bara de apertar o botão de ligar quando se viu cara a cara com Hadley
outra vez. Bosch não o ouvira se aproximar.

— Detetive! Pra quem está ligando?

Bosch não hesitou.

— Meu tenente. Ele me disse para mantê-lo informado depois de chegar aqui.

— Nada de celulares nem transmissões de rádio. Podem estar ­monitorando.

— Podem quem?

— Me dá o telefone.

— Capitão?

— Me dá o telefone ou vou ter que tirar de você. Ninguém vai pôr essa operação em risco.

Bosch fechou o telefone sem encerrar a ligação. Se estivesse com sorte, Walling teria atendido e estaria escutando. Seria capaz de juntar as peças e entender o aviso. O bureau podia até triangular a transmissão
de celular e chegar em Silver Lake antes que fosse tudo por água abaixo.

Estendeu o telefone para Hadley, que então virou para Ferras.

— Seu telefone, detetive.

— Senhor, minha esposa está grávida de oito meses e eu preciso...

— Seu telefone, detetive. Você está conosco ou contra nós.

Hadley esticou o braço e Ferras com relutância tirou o celular do cinto e lhe deu.

Hadley marchou em direção a uma das picapes, abriu a porta do passageiro e en?ou os dois aparelhos no porta-luvas. Bateu a porta do compartimento com autoridade e olhou para Bosch e Ferras, como que os
desa?ando a tentar pegá-los de volta.

A atenção do capitão foi então distraída por uma terceira picape preta entrando na área. O motorista fez um sinal de positivo com o polegar para o capitão. Hadley então apontou um dedo no ar e fez um gesto
de girar.

— Ok, todo mundo — chamou. — Estamos com o mandado e vocês já sabem o plano. Perez, chame o apoio aéreo e consiga uma visão lá de cima. O resto de vocês com o equipamento! Vamos entrar.

Bosch observou com crescente pavor os componentes do GSI mu­niciando suas armas e pondo capacetes com escudos no rosto. Dois homens começaram a vestir trajes espaciais, como se fossem a equipe designada
para a contenção de radiação.

— Isso é loucura — disse Ferras, num sussurro.

— Charlie não surfa — replicou Bosch.

— O quê?

— Nada. Não é do seu tempo.


CATORZE

OHELICÓPTERO SOBREVOOU a plantação de borracha de trinta acres e baixou na área de pouso com o costumeiro mergulho final de comprimir a espinha. Hari Kari Bosch, Bunk Simmons, Ted Furness e Gabe Finley
desceram no meio da lama e o capitão Gillette estava lá à espera deles, segurando o capacete no cocuruto de modo a não per­dê-lo para a sucção do rotor. O helicóptero lutou para tirar os skids da lama
— era o primeiro dia seco depois de seis dias de chuva — e alçou voo, acompanhando a linha de um canal de irrigação conforme voltava na direção do QG do III Corps.

— Me acompanhem, homens — disse Gillette.

Bosch e Simmons já estavam na selva havia tempo suficiente para ganhar apelidos, mas Furness e Finley eram novos e estritamente ETF — em treinamento para a função —, e Bosch sabia que estavam se cagando
de medo. Aquela seria sua primeira descida e nada do que houvessem aprendido na escola de túneis em San Diego seria capaz de prepará-los para o que veriam, ouviriam e cheirariam na realidade.

O capitão os conduziu a uma mesa de carteado montada den­tro da tenda de comando e delineou seu plano. O sistema de túneis sob Ben Cat era extenso e precisava ser anulado como parte de uma primeira tentativa
de tomar controle da aldeia acima. As baixas em função dos sapadores e dos ataques furtivos dentro do perímetro do acampamento só faziam subir. O capitão explicou que estava tomando no rabo numa base diária
do comando do III Corps. Não mencionou qualquer preocupação quanto aos mortos e feridos que estava per­dendo. Eles eram substituíveis, suas boas graças junto ao coronel do III Corps, não.

O plano era uma simples operação de coerção. O capitão desenro­lou o mapa desenhado com a ajuda de camponeses que conheciam os túneis. Apontou para quatro buracos de aranha separados e disse que os quatro
túneis de ratos desabariam simultaneamente e forçariam os VC nos túneis em direção a um quinto buraco, no qual os soldados de Tropic Lightning estariam à espera para o massacre. Por todo o caminho Bosch
e seus colegas ratos iriam montar explosivos e a operação termi­naria com a implosão do sistema de túneis inteiro.

O plano era bastante simples até que eles desceram lá na escuridão e o labirinto não batia com o mapa que haviam estudado na mesa de cartas sob a tenda. Quatro desceram, mas apenas um voltou com vida.
Tropic Lightning teve zero baixas naquele dia. E foi nesse mesmo dia que Bosch soube que a guerra estava perdida — pelo menos, para ele. Foi então que descobriu que os soldados comuns muitas vezes lutam
batalhas contra inimigos do lado de dentro.

BOSCH EFERRAS foram no banco traseiro da picape do capitão Hadley. Perez dirigia e Hadley levava o ri?e e usava um headset de rádio para que pudesse comandar a operação. O alto-falante do rádio do veículo
estava no máximo e ajustado na frequência secreta da operação — uma que não estava listada em nenhum catálogo público.

Eram os terceiros na ?la de picapes negras. Meio quarteirão an­tes do alvo, Perez freou para permitir que os outros veículos seguissem como o planejado.

Bosch curvou-se entre os dois bancos da frente para conseguir ver melhor através do para-brisa. Cada uma das outras picapes tinha quatro homens montados nos estribos de ambas as laterais. Os veículos ganha­ram
velocidade e então deram uma guinada na direção da casa de Samir. Um desceu pela entrada do pequeno bangalô pré-montado na direção do quintal dos fundos, enquanto o outro subiu pelo meio-fio e atraves­sou
o gramado da frente. Um dos homens do GSI se soltou quando o pesado veículo se chocou com a guia e saiu rolando pelo gramado.

Os outros pularam dos estribos e moveram-se para a porta da fren­te. Bosch presumiu que o mesmo estivesse em andamento na porta dos fundos. Não concordava com o plano, mas admirava sua precisão. Hou­ve
um sonoro estouro quando a porta da frente foi aberta com um arte­fato explosivo. E quase que imediatamente houve outro nos fundos.

— Ok, vamos — Hadley ordenou a Perez.

Conforme se puseram em marcha, o rádio ganhou vida com os informes de dentro da casa.

— Estamos dentro!

— Estamos nos fundos!

— Sala da frente ok! Nós...

A voz foi cortada pelo som de tiros de automática.

— Estão atirando!

— Tem...

— Estão atirando!

Bosch ouviu mais tiros, mas não pelo rádio. Estavam perto o bas­tante agora para escutar ao vivo. Perez brecou a picape em ângulo fe­chando a rua diante da casa. Todas as quatro portas abriram simultane­amente
quando saltaram, permanecendo abertas atrás de si, com o rádio berrando.

— Tudo limpo! Tudo limpo!

— Suspeito atingido. Precisamos de médico para suspeito atingi­do. Precisamos de médico!

Tudo estava acabado em menos de vinte segundos.

Bosch correu pelo gramado atrás de Hadley e Perez. Ferras estava à sua esquerda. Entraram pela porta da frente com as armas apontadas para cima. Imediatamente veio ao encontro deles um dos homens de Hadley.
Acima do bolso direito de sua farda via-se o nome Peck.

— Tudo limpo! Tudo limpo!

Bosch baixou a arma junto à lateral do corpo, mas não a enfiou no coldre. Olhou em torno. Era uma sala parcamente mobiliada. Sentiu o cheiro de pólvora detonada e viu a fumaça azul pairando no ar.

— O que temos aqui? — quis saber Hadley.

— Um atingido, um detido — disse Peck. — Aqui no fundo.

Seguiram Peck por um curto corredor até um quarto com esteiras de sisal no chão. Um homem que Bosch reconheceu como Ramin Sa­mir estava estendido, o sangue de dois ferimentos no peito escorrendo sobre
o manto cor de creme, o chão e uma das esteiras. Uma jovem com um manto parecido estava deitada de bruços, choramingando, as mãos algemadas às costas.

Bosch viu um revólver no chão junto à gaveta aberta de um peque­no armário com velas votivas acesas em cima. A arma estava a cerca de meio metro de onde Samir se encontrava.

— Ele tentou pegar a arma e o derrubamos — disse Peck.

Bosch baixou os olhos para Samir. Não estava consciente e seu peito subia e descia num ritmo irregular.

— Tá no bico do corvo — disse Hadley. — O que a gente ­encontrou?

— Até agora material nenhum — disse Peck. — Estamos entran­do com o equipamento.

— Tudo bem, vamos olhar o carro — ordenou Hadley. — E tirem ela daqui.

Enquanto dois homens do GSI ergueram a mulher chorando e a carregaram para fora do quarto como se fosse um aríete, Hadley saiu da casa e foi até a calçada, onde o Chrysler 300 esperava. Bosch e Ferras
o seguiram.

Olharam o interior do carro, mas sem tocá-lo. Bosch percebeu que estava destrancado. Inclinou-se para ver através da janela no lado do passageiro.

— As chaves estão lá dentro — disse.

Puxou um par de luvas de látex do bolso de seu casaco, esticou-as e calçou.

— Vamos fazer uma leitura nisso aí primeiro, Bosch — disse ­Hadley.

O capitão sinalizou para um de seus homens que carregava o mo­nitor de radiação. O sujeito passou o aparelho sobre o carro e captou apenas uns estalos fracos junto ao porta-malas.

— Pode ser que tenha algo bem aí — disse Hadley.

— Duvido — disse Bosch. — Não está aí.

Abriu a porta do motorista e se curvou.

— Bosch, espere...

Bosch apertou o botão do porta-malas antes que Hadley pudes­se terminar. Ouviu o clique pneumático e o compartimento se abriu. Afastou-se do carro e foi até a traseira. O porta-malas estava vazio, mas
Bosch notou as mesmas quatro depressões que vira antes no porta-ma­las do Porsche de Stanley.

— Já era — disse Hadley, ?tando o porta-malas. — Já devem ter feito a entrega.

— É, bem antes de terem trazido o carro aqui.

Bosch olhou Hadley direto nos olhos.

— Foi uma denúncia falsa, capitão. Eu falei.

Hadley foi na direção de Bosch para que pudesse falar sem que toda a sua equipe o ouvisse. Mas Peck o interceptou.

— Capitão?

— O que é? — vociferou Hadley.

— O suspeito está em código sete.

— Então cancele os paramédicos e chame o legista.

— Certo, senhor. A casa está limpa. Nenhum material e os moni­tores não acusaram traço nenhum.

Hadley olhou Bosch de rabo de olho e então rapidamente voltou a Peck.

— Mande checarem o lugar outra vez — ordenou. — O filho da puta tentou pegar a arma. Com certeza estava escondendo alguma coisa. Arrebente com tudo, se precisar. Principalmente aquele quarto, parece um
local de reunião de terroristas.

— É uma sala de orações — disse Bosch. — E talvez o cara foi atrás da arma porque estava se cagando de medo quando seu pessoal entrou com tudo pelas portas.

Peck não saíra do lugar. Estava ouvindo Bosch.

— Vai! — ordenou Hadley. — Arregaça esse lugar! O material tava num recipiente de chumbo. Só porque não tem leitura não quer dizer que não está ali!

Peck voltou voando para a casa e Hadley voltou a encarar Bosch.

— A gente precisa dos forenses para processar o carro — disse Bosch. — E eu estou sem telefone para ligar.

— Vai pegar seu celular e fazer a ligação.

Bosch voltou até a picape. Viu a mulher que fora tirada da casa sendo en?ada na traseira da picape estacionada no gramado. Continua­va chorando e Bosch presumiu que as lágrimas não cessariam tão cedo.
Por Samir, agora, por ela, mais tarde.

Quando se curvou através da porta da picape de Hadley, percebeu que o veículo continuava ligado. Desligou o motor, depois abriu o por­ta-luvas e pegou os dois telefones. Abriu o seu e veri?cou se a ligação
para Rachel Walling continuava conectada. Não estava, e não sabia nem se a ligação fora completada, para começo de conversa.

Quando se virou, deu com Hadley de pé atrás dele. Estavam longe dos outros e ninguém poderia ouvi-los.

— Bosch, se tentar trazer algum problema para esta unidade, vou trazer problemas pra você. Entendeu?

Bosch o estudou por um momento antes de responder.

— Claro, capitão. Fico feliz por pensar na unidade.

— Tenho conexões lá no alto e muito além desse departamento. Você pode se dar mal.

— Obrigado pelo conselho.

Bosch começou a se afastar, mas então parou. Quis dizer algo, mas hesitou.

— O que foi? — disse Hadley. — Diga.

— Só tava pensando num capitão pra quem trabalhei uma vez. Isso foi há muito tempo e em outro lugar. O cara vivia tomando deci­sões erradas e a merda que ele fazia custou a vida de muita gente. Bons homens.
Então no ?m aquilo teve que acabar. O capitão acabou explo­dindo na latrina com uma granada de um dos seus. Como contaram depois, não dava pra separar os pedaços de gente da merda.

Bosch se afastou, mas Hadley o deteve.

— E onde você quer chegar com isso? É uma ameaça?

— Não, só uma história.

— E você está chamando aquele cara ali dentro de homem bom? Deixa eu dizer uma coisa, caras como ele deram urras de alegria quando os aviões acertaram os prédios.

Bosch continuou andando conforme respondia.

— Não sei que tipo de homem ele foi, capitão. Só sei que não fazia parte disso e armaram pra ele do mesmo jeito que armaram pra cima de você. Se conseguir lembrar quem fez a denúncia do carro, me avise.
Pode ser que ajude.

Bosch foi até Ferras e devolveu seu telefone. Disse ao parceiro que ?casse no local para supervisionar a análise forense do Chrysler.

— Pra onde você tá indo, Harry?

— Centro.

— E a reunião com o bureau?

Bosch nem olhou o relógio.

— Perdemos. Me liga se o DIC descobrir alguma coisa.

Bosch o deixou ali e começou a andar pela rua na direção do cen­tro recreativo, onde o carro estava estacionado.

— Bosch, onde você tá indo? — gritou Hadley. — Você não ter­minou por aqui!

Bosch acenou sem olhar para trás. Continuou andando. Na me­tade do caminho para o centro recreativo, o primeiro furgão de TV passou por ele a caminho da casa de Samir.


QUINZE

BOSCH ESPERAVA CHEGAR ao prédio federal no centro antes da notícia da batida na casa de Samir. Tentara ligar para Rachel Walling, mas sem sucesso. Imaginava que devia estar na sede da Inteligência Tática,
mas não sabia onde ?cava isso. Sabia apenas onde ?cava o prédio federal e contava com a ideia de que o tamanho e a importância cada vez maior da investigação determinassem que ela fosse conduzida do edifício
prin­cipal, e não de um escritório-satélite secreto.

Entrou no prédio pela porta do pessoal autorizado e disse ao po­licial que checou sua identidade que ia subir ao FBI. Pegou o elevador para o décimo quarto andar e foi cumprimentado por Brenner assim que
as portas se abriram. A notícia de que Bosch estava no prédio ob­viamente fora transmitida de lá de baixo.

— Pensei que tivesse recebido a mensagem — disse Brenner.

— Que mensagem?

— Que a reunião foi cancelada.

— Acho que eu devia ter recebido a mensagem assim que seu pes­soal entrou no caso. Nunca teve reunião nenhuma, não é mesmo?

Brenner ignorou a pergunta.

— Bosch, o que você quer?

— Quero ver a agente Walling.

— Sou o parceiro dela. O que for dizer pra ela, pode dizer pra mim.

— Só com ela. Quero falar com ela.

Brenner o estudou por um momento.

— Me acompanhe — disse finalmente.

Não esperou uma resposta. Usou um crachá magnético para abrir uma porta e Bosch o seguiu. Andaram por um longo corredor e Brenner fazia perguntas por sobre o ombro conforme andavam.

— Cadê seu parceiro? — perguntou.

— Na cena do crime — disse Bosch.

Não era mentira. Bosch só esqueceu de dizer em qual cena de cri­me estava Ferras.

— Além do mais — acrescentou —, achei que ia ser mais seguro para ele ?car por lá. Não quero sua gente caindo em cima dele pra me atingir.

Brenner parou de repente, girou bruscamente e ?cou cara a cara com Bosch.

— Sabe o que está fazendo, Bosch? Está comprometendo uma investigação que pode ter implicações de enorme alcance. Onde está a testemunha?

Bosch encolheu os ombros, como que dizendo que sua resposta era óbvia.

— Onde está Alicia Kent?

Brenner sacudiu a cabeça, mas não respondeu.

— Espera aqui — disse. — Vou trazer a agente Walling.

Brenner abriu uma porta com o número 1.411 e deu um passo para trás para que Bosch entrasse. Quando passou pela porta, Bosch viu que era uma pequena sala de interrogatório, sem janelas, similar àque­la
na qual passara a manhã com Jesse Mitford. Bosch foi subitamente empurrado por trás e virou a tempo apenas de ver Brenner no corredor fechando a porta.

— Ei!

Bosch agarrou a maçaneta, mas era tarde demais. A porta esta­va trancada por fora. Socou-a duas vezes, mas sabia que Brenner não pretendia abrir. Virou-se e olhou para o pequeno espaço ao qual esta­va
con?nado. Parecido com aquele do DPLA, a sala de interrogatório continha apenas três peças de mobília. Uma pequena mesa quadrada e duas cadeiras. Presumindo que houvesse uma câmera em algum lugar, ergueu
a mão e mostrou o dedo do meio. E girou a mão para enfatizar a mensagem.

Bosch puxou uma das cadeiras e sentou apoiando-se no espaldar, pronto para aguardar. Tirou o celular e o abriu. Sabia que se o estivessem observando, não iam querer que ligasse para alguém e informasse
a si­tuação — seria embaraçoso para o bureau. Mas quando olhou para a tela não havia sinal. Era uma sala de segurança. Sinais de rádio não entravam nem saíam. Só os federais mesmo, pensou Bosch. Eles pensam
em tudo.

Longos vinte minutos se passaram e então a porta finalmente se abriu. Rachel Walling entrou. Ela fechou a porta, pegou a cadeira dian­te de Bosch e sentou calmamente.

— Desculpe, Harry, eu estava na Tática.

— Puta merda, Rachel. Sua gente segura policiais contra a vonta­de, agora?

Ela pareceu surpresa.

— Do que você tá falando?

— Do que eu tô falando? — repetiu Bosch com um tom de escár­nio. — Seu parceiro me trancou aqui.

— Não estava trancada quando entrei. Vai ver.

Bosch fez um gesto de deixa pra lá.

— Esquece. Não tenho tempo pra essas brincadeiras. O que está acontecendo com a investigação?

Ela franziu os lábios, como que considerando como responder.

— O que está acontecendo é que você e seu departamento estão andando por aí como ladrões numa joalheria, quebrando cada vitrine que aparece na frente. Não dá pra diferenciar o vidro dos diamantes.

Bosch balançou a cabeça.

— Então já sabe sobre Ramin Samir.

— Quem não sabe? Já apareceu até no I-Missed-It. O que acon­teceu por lá?

— Uma merda classe A, foi o que aconteceu. Armaram pra gente. Armaram pro GSI.

— Parece mesmo que foi.

Bosch se curvou sobre a mesa.

— Mas aí tem coisa, Rachel. As pessoas que puseram o GSI em cima de Samir sabiam quem ele era e que era um alvo fácil. Deixaram o carro de Kent bem na frente da casa, porque sabiam que a gente ia acabar
perdendo tempo.

— E também teria funcionado como um troco para Samir.

— Como assim?

— Todos aqueles anos dele na CNN jogando lenha na fogueira. Alguém poderia tê-lo visto como prejudicial à causa, por dar um rosto ao inimigo e intensi?car a raiva e determinação dos americanos.

Bosch não entendeu.

— Achei que agitação fosse uma das ferramentas deles. Achei que adorassem o cara.

— Talvez. Difícil dizer.

Bosch não tinha certeza do que ela queria dizer. Mas quando Ra­chel se curvou sobre a mesa, de repente pôde perceber como estava furiosa.

— Agora vamos falar de você e de como vem fodendo sozinho com tudo até mesmo antes de aquele carro ter sido achado.

— Do que você tá falando? Estou tentando resolver um homicí­dio. É min...

— É, tentando resolver um homicídio possivelmente às custas de pôr a cidade toda em perigo com essa insistência mesquinha, egoísta e hipócrita em...

— Vamos lá, Rachel, não acha que eu faço alguma ideia do que pode estar em jogo aqui?

Ela sacudiu a cabeça.

— Não se estiver escondendo uma testemunha-chave de nós. Não vê o que está fazendo? Você não faz ideia do lugar pra onde tá indo essa investigação porque anda ocupado demais escondendo testemunhas e acertando
agentes por trás, de surpresa.

Bosch reclinou para trás, claramente surpreso.

— Foi isso que Maxwell disse, que eu o peguei de surpresa?

— O que ele disse não interessa. Nós estamos tentando controlar uma situação potencialmente devastadora e não entendo por que você está agindo desse jeito.

Bosch balançou a cabeça.

— Faz sentido — ele disse. — Você afasta o cara da própria inves­tigação e é compreensível que não saiba o que ele está pensando.

Ela ergueu as mãos, como que para deter um trem que se ­aproxima.

— Ok, vamos parar com tudo isso agora mesmo. Vamos conversar, Harry. Qual é o seu problema?

Bosch olhou para ela e então para o teto. Examinou os cantos su­periores da sala e voltou a ?tá-la nos olhos.

— Quer conversar? Vamos lá fora, daí a gente pode conversar.

Ela não hesitou.

— Ok, certo — disse. — Vamos sair e conversar. E então você me entrega Mitford.

Walling ?cou de pé e foi na direção da porta. Bosch notou que ela olhou de relance para a grade do ar-condicionado no alto da parede do fundo, e isso con?rmou para ele que estavam com uma câmera.

Ela abriu a porta destrancada e Brenner e outro agente estavam aguardando no corredor.

— Vamos sair um pouco — disse Walling. — Sozinhos.

— Bom passeio — disse Brenner. — Vamos ?car por aqui, tentan­do achar o césio e quem sabe salvar umas vidas.

Walling e Bosch não responderam. Ela o conduziu pelo corredor. Quando estavam na porta do elevador, Bosch escutou uma voz vinda de trás.

— Ei, colega!

Virou-se e na mesma hora levou uma ombrada no peito do agente Maxwell. Foi empurrado contra a parede e ?cou pressionado ali.

— Está em minoria dessa vez, não é, Bosch?

— Pare! — gritou Walling. — Cliff, pare com isso!

Bosch jogou o braço em torno da cabeça de Maxwell e ia derru­bá-lo num mata-leão. Mas Walling conseguiu entrar no meio e puxar Maxwell, depois empurrá-lo para trás no corredor.

— Cliff, pra trás! Sai daqui!

Maxwell começou a retroceder pelo corredor. Apontou um dedo para Bosch por cima do ombro de Walling.

— Sai do meu prédio, ?lho da puta! E não volta mais!

Walling o enxotou para o primeiro escritório que viu aberto e fe­chou a porta atrás dele. A essa altura, vários outros agentes haviam apa­recido no corredor para ver do que se tratava aquele tumulto todo.

— Acabou — anunciou Walling. — Todo mundo, de volta pro trabalho.

Ela voltou para Bosch e o empurrou pela porta do elevador.

— Tudo bem?

— Só dói quando eu respiro.

— Aquele ?lho da puta! O cara anda descontrolado.

Desceram de elevador até a garagem e de lá subiram pela rampa até a Los Angeles Street. Ela dobrou à direita e ele foi junto. Estavam se afastando do barulho da avenida. Ela olhou o relógio e então apontou
um prédio de escritórios novo e com um design moderno.

— Tem um café decente ali — disse. — Mas não quero demorar muito.

Era o novo prédio da Social Security Administration.

— Outro prédio federal — suspirou Bosch. — O agente Maxwell pode achar que é dele também.

— Dá pra parar com isso, por favor?

Ele deu de ombros.

— Só ?quei surpreso que Maxwell chegasse a admitir que nós vol­tamos para a casa.

— Por que ele não faria isso?

— Porque imaginei que puseram ele de plantão ali por já estar de castigo por alguma trapalhada. Pra que admitir que foi dominado e ser obrigado a continuar fazendo aquilo?

Walling sacudiu a cabeça.

— Você não entende — ela disse. — Pra começar, Maxwell tem andado meio tenso ultimamente, mas ninguém da Inteligência Tática está de castigo. O trabalho é importante demais pra ter alguém que pos­sa fazer
trapalhada na equipe. Em segundo lugar, ele não deu a mínima pro que alguém pudesse pensar. O que achou foi que era importante todo mundo ?car sabendo que você anda fodendo com tudo.

Ele tentou outro caminho.

— Deixa eu perguntar uma coisa. Eles sabem sobre você e eu lá? Sobre nós dois, quer dizer.

— Seria difícil não saber depois de Echo Park. Mas Harry, deixa isso pra lá. Isso não é importante, agora. Qual é o problema com você? Tem césio su?ciente aí fora pra fechar um aeroporto e você não parece
nem um pouco preocupado. Parece que pra você é um caso de assassi­nato. É, um homem morreu, mas não tem nada a ver com isso. É um roubo, Harry. Entendeu? Eles queriam o césio e agora estão com ele. E quem
sabe ia ajudar se pudéssemos falar com a única testemunha co­nhecida. Então, onde ele está?

— Está seguro. Onde está Alicia Kent? E o sócio do marido dela?

— Estão seguros. O sócio está sendo interrogado aqui e a esposa está sendo mantida na Tática até termos certeza de que tiramos dela tudo o que tinha pra tirar.

— Ela não vai ser de grande ajuda. Não conseg...

— Aí é que você se engana. Ela já ajudou bastante.

Bosch não conseguiu disfarçar o olhar de surpresa.

— Como? Ela disse que nem deu pra ver o rosto deles.

— E não viu. Mas ouviu um nome. Quando conversavam um com outro, ela ouviu um nome.

— Que nome? Ela não disse isso antes.

Walling balançou a cabeça.

— E é por isso que você tem que entregar sua testemunha. A gente tem pessoas que são especialistas em conseguir informação das teste­munhas. A gente consegue tirar coisas que você é incapaz de conseguir.
Conseguimos dela, podemos conseguir dele.

Bosch sentiu que seu rosto ficava vermelho.

— Qual o nome que esse mestre interrogador conseguiu tirar dela?

Ela sacudiu a cabeça.

— Isso não é uma negociação, Harry. É um caso envolvendo segu­rança nacional. Você está de fora. E, a propósito, nada vai mudar isso, pode fazer seu chefe de polícia ligar pra quem ele quiser.

Bosch percebeu daí que sua reunião no Cantinho do Donut fora em vão. Até o chefe estava do lado de fora, só olhando. Fosse qual fosse o nome entregue por Alicia Kent, devia ter feito o placar federal piscar
mais que a Times Square.

— Tudo o que eu tenho é minha testemunha — ele disse. — Troco ele pelo nome.

— Pra que você quer o nome? Não vai chegar nem perto desse cara.

— Porque eu quero saber.

Ela cruzou os braços diante do peito e pensou por um momento. Finalmente, olhou para ele.

— Você primeiro — ela disse.

Bosch hesitou enquanto estudava seus olhos. Seis meses antes, te­ria lhe confiado a própria vida. Agora as coisas tinham mudado. Bosch não estava tão seguro.

— Escondi ele na minha casa — disse. — Acho que você lembra onde é.

Ela puxou um telefone do bolso do paletó e o abriu para fazer uma ligação.

— Só um segundo, agente Walling — ele disse. — Que nome Alicia Kent deu pra vocês?

— Desculpe, Harry.

— A gente tinha combinado.

— Segurança nacional, desculpe.

Ela começou a apertar um número no teclado. Bosch balançou a cabeça. Apostara certo.

— É mentira — ele disse. — Ele não tá na minha casa.

Ela fechou o telefone.

— Qual o problema com você? — ela perguntou, furiosa, a voz ?cando aguda. — A gente tá correndo faz mais de 14 horas atrás do césio. Já parou pra pensar que ele já pode estar montado numa bomba? Pode ser
que...

Bosch deu um passo em sua direção.

— Me dá o nome que eu te dou a testemunha.

— Tá bom!

Ela o empurrou. Bosch sabia que estava furiosa consigo mesma por ser pega numa mentira. Era a segunda em menos de 12 horas.

— Ela disse que ouviu o nome Moby, tá? Não pensou em nada disso na hora porque não percebeu que era mesmo um nome que tinha ouvido.

— Tá, quem é Moby?

— Tem um terrorista sírio chamado Momar Azim Nassar. Acredi­ta-se que esteja no país. Os amigos e aliados o chamam de Moby. Nin­guém sabe por que, mas acontece que parece mesmo com o Moby.

— Quem?

— Deixa pra lá. Não é da sua geração.

— Mas você tem certeza de que ela ouviu esse nome?

— Tenho. Ela forneceu o nome pra gente. E eu estou fornecendo ele agora pra você. Agora, onde tá a testemunha?

— Espera um pouco. Você já mentiu pra mim uma vez.

Bosch puxou o celular e ia ligando para o parceiro quando se lem­brou de que Ferras provavelmente ainda estaria na cena do crime de Silver Lake e que seria incapaz de fornecer o que ele precisava. Abriu
a agenda do telefone, encontrou o número de Kiz Rider e apertou o botão de chamar.

Rider atendeu na mesma hora. O número de Bosch aparecera na tela.

— Oi, Harry. Anda ocupado hoje, hein?

— Foi o chefe que falou?

— Tenho minhas fontes. Qual o problema?

Bosch falou enquanto olhava para Walling e observava a raiva es­curecendo seus olhos.

— Preciso de um favor da minha velha parceira. Você ainda carre­ga o laptop com você pro trabalho?

— Claro. Que favor?

— Dá pra acessar os arquivos do New York Times nesse ­computador?

— Dá.

— Ok. Tem um nome aqui. Quero que dê uma checada pra ver se aparece em alguma história.

— Peraí. Deixa eu conectar.

Passaram-se vários segundos. O telefone de Bosch começou a bi­par com outra ligação. Mas ele continuou com Rider e logo ela estava pronta.

— Qual o nome?

Bosch pôs a mão sobre o telefone e perguntou a Walling o nome completo do terrorista sírio outra vez. Então ele o repetiu para Rider e esperou.

— Tem, um monte — ela disse. — Até oito anos atrás.

— Me dá um resumo.

Bosch esperou.

— Ah, só umas coisas do Oriente Médio. Ele é suspeito de envol­vimento numa série de sequestros e explosões, coisas assim. Tá ligado à al-Qaeda, segundo fontes federais.

— O que diz a história mais recente?

— Ah, vamos ver. Tem a ver com um ônibus explodindo em Bei­rute. Dezesseis mortos. Foi em 3 de janeiro, 2004. Mais nada depois disso.

— Aí diz apelidos ou pseudônimos?

— Hmm... não. Não tô vendo nada.

— Ok, valeu. Te ligo depois.

— Pera um minuto. Harry?

— O que foi? Preciso desligar.

— Escuta, só queria avisar, cuidado com isso, tá? Esse pessoal com quem você tá mexendo é completamente outro.

— Sei, entendi — disse Bosch. — Preciso ir.

Bosch encerrou a ligação e olhou para Rachel.

— Não tem nada no New York Times sobre esse cara estar no país.

— Porque ninguém sabe. Por isso a informação de Alicia Kent foi tão autêntica.

— Como assim? Você se ?a no que ela disse de que esse cara tá no país só porque ela ouviu uma palavra que pode nem ser um nome?

Ela cruzou os braços. Estava perdendo a paciência.

— Não, Harry, a gente sabe que ele tá no país. Temos um vídeo dele desembarcando no porto de Los Angeles em agosto último. Só não conseguimos chegar a tempo de prendê-lo. Acreditamos que estava com outro
membro da al-Qaeda, chamado Muhammad El-Fayed. Eles de algum jeito conseguiram entrar no país... merda, a fronteira é uma peneira... e vai saber o que tinham em mente.

— E você acha que eles estão com o césio?

— Disso a gente não sabe. Mas a inteligência em cima de El-Fayed diz que ele fuma cigarros turcos sem filtro e...

— As cinzas no vaso.

Ela balançou a cabeça.

— Isso mesmo. Ainda estamos analisando, mas a aposta no bureau está oito contra um de que é cigarro turco.

Bosch balançou a cabeça e de repente se sentiu um idiota pelas atitudes que andara tomando, a informação que segurara.

— A gente pôs a testemunha no hotel Mark Twain, na Wilcox — disse. — Quarto 303, com o nome de Stephen King.

— Que gracinha.

— Rachel?

— O quê?

— Ele disse que ouviu o atirador gritar Alá antes de puxar o ­gatilho.

Ela o ?tou com um olhar de condenação enquanto abria o telefone outra vez. Apertou um único botão e disse para Bosch enquanto espe­rava completar.

— Melhor torcer pra gente pegar esses caras antes...

Parou quando a ligação foi atendida. Passou a informação sem se identi?car ou fazer qualquer tipo de anúncio.

— Ele tá no Mark Twain, na Wilcox. Quarto 303. Vão buscar.

Fechou o celular e olhou para Bosch. Pior do que condenação, ele via desapontamento e rejeição em seus olhos, agora.

— Preciso ir — ela disse. — Eu ?caria longe de aeroportos, metrô e shoppings até acharmos aquele césio.

Virou e o deixou ali. Bosch observou-a se afastar até que seu telefo­ne começou a zunir outra vez e ele atendeu sem tirar os olhos dela. Era Joe Felton, o legista.

— Harry, tenho tentado falar com você.

— Qual o problema, Joe?

— Acabamos de chegar no Queen of Angels pra ver um caso... um vagabundo em que meteram uma bala depois de um tiroteio ontem em Hollywood.

Bosch lembrou da história que Jerry Edgar tinha mencionado.

— E?

Bosch sabia que o médico-legista não teria ligado para fazê-lo perder tempo. Algum motivo havia.

— Então, a gente tá aqui agora e vim até a sala do cafezinho e ouvi uns paramédicos conversando sobre um cara que acabaram de apanhar. Eles tavam falando que acabaram de deixar o cara na emergência e que
a avaliação era de SAR e aí eu ?quei pensando se isso não tinha ligação com o cara do mirante. Sabe, já que ele tava usando os anéis de alerta de radiação.

Bosch acalmou sua voz.

— Joe, o que é SAR?

— Síndrome aguda de radiação. Os caras disseram que não sabiam o que o sujeito tinha. Estava todo queimado e vomitando pra todo lado. Eles o transportaram e o médico da emergência disse que era uma expo­sição
muito feia, Harry. Agora os paramédicos estão esperando pra ver se eles não ficaram expostos.

Bosch começou a andar na direção de Rachel Walling.

— Onde encontraram o cara?

— Não perguntei, mas acho que em algum lugar de Hollywood, pra terem trazido aqui.

Bosch começou a acelerar o passo.

— Joe, preciso que você ?que aí e consiga alguém da segurança do hospital pra olhar esse sujeito. Tô indo praí.

Bosch fechou o celular e começou a correr atrás de Rachel o mais rápido que pôde.


DEZESSEIS

OTRÁFEGO NA Hollywood Freeway no sentido centro ia a passo de tartaruga. Pelas leis da física do trânsito — a de que para toda ação há uma reação igual e contrária —, Harry Bosch seguia desimpedido na
pista rumo norte. Claro, ajudavam a sirene e as luzes piscando em seu carro, obrigando o pouco tráfego que aparecia à sua frente a sair rápido para o lado e dar passagem. Força aplicada era outra lei que
Bosch co­nhecia bem. O velho Crown Vic ia a 150 por hora e os nós de suas mãos estavam brancos da tensão ao segurar o volante.

— Onde a gente tá indo? — gritou Rachel Walling acima do som da sirene.

— Já disse. Tô te levando até o césio.

— Como assim?

— Uns paramédicos acabam de deixar um homem com síndrome aguda de radiação na emergência no Queen of Angels. A gente vai estar lá em quatro minutos.

— Droga! Por que não me disse?

A resposta era que ele queria sair em vantagem, mas não disse isso para ela. Ficou em silêncio enquanto ela abria o celular e apertava um nú­mero. Ela então esticou o braço até o teto do carro e desligou
a sirene.

— O que você tá fazendo? — exclamou Bosch. — Preciso dela p...

— Eu preciso conseguir conversar!

Bosch tirou o pé do acelerador e diminuiu para 110km/h por ques­tão de segurança. Um instante depois, a ligação dela foi atendida e Bos­ch a ouviu vociferar ordens. Esperava que para Brenner, não Maxwell.

— Desvie a equipe do Mark Twain para o Queen of Angels. Junte uma equipe de contaminação e leve-a pra lá, também. Mande unidades de apoio e uma equipe de veri?cação do Departamento de Energia. Temos um
caso de exposição que pode levar ao material desaparecido. Faça isso e me ligue de volta. Vou estar no local em três minutos.

Fechou o telefone e Bosch acionou a sirene.

— Eu disse quatro minutos! — ele berrou.

— Sua chance de me impressionar — ela berrou de volta.

Ele pisou fundo no acelerador outra vez, mesmo sem necessida­de. Estava con?ante de que chegariam primeiro ao hospital. Já haviam passado Silver Lake e se aproximavam de Hollywood. Mas a verdade era que
toda vez que podia ir a 150km/h na Hollywood Freeway sem exceder o limite ele aproveitava. Não havia muita gente na cidade que podia se gabar de ter feito isso durante o dia.

— Quem é a vítima? — gritou Rachel.

— Não faço ideia.

Ficaram em silêncio por um bom tempo. Bosch concentrado em dirigir. E nos seus pensamentos. Havia um monte de coisa que o inco­modava naquele caso. Logo ele teria de falar sobre isso.

— Como acha que o identificaram? — ele disse.

— O quê? — rebateu Walling, sendo tirada de seus próprios ­pensamentos.

— Moby e El-Fayed. Como escolheram Stanley Kent como alvo?

— Não sei. Quem sabe se for um deles no hospital a gente consegue perguntar.

Bosch deixou passar algum tempo. Estava cansado de gritar. Mas então fez outra pergunta.

— Você não fica incomodada de pensar que tudo veio daquela casa?

— Do que você tá falando?

— A arma, a câmera, o computador que usaram. Tudo. Tem garrafas de Coca de um litro na despensa e amarraram Alicia Kent com as mesmas presilhas de plástico que ela usa nas roseiras do jardim. Isso não
te incomo­da? Tudo o que eles tinham quando entraram por aquela porta era uma faca e máscaras de esqui. Isso não te incomoda nem um pouco, neste caso?

— Você não pode esquecer que esses caras são engenhosos. Eles apren­dem essas coisas nos acampamentos. El-Fayed recebeu treinamento em todos os acampamentos da al-Qaeda no Afeganistão. E depois ensinou
Nassar. Eles agem com o que têm à disposição. Pode-se dizer que derrubaram o World Trade Center com dois aviões ou com dois estiletes. Depende de como você enxerga. Mais importante do que as ferramentas
que eles têm é a obsti­nação deles, um negócio que tenho certeza que você aprecia.

Bosch já ia respondendo quando chegou na saída e teve de se con­centrar em desviar dos carros nas ruas sob a freeway. Em dois minutos ?nalmente desligou a sirene e parou na vaga da ambulância no Queen
of Angels.

Felton os encontrou no pronto-socorro lotado e seguiu na frente até a área de tratamento, onde havia seis baias de emergência. Um segu­rança particular estava diante de um dos espaços com cortinas e Bosch
avançou, mostrando o distintivo. Mal tomando conhecimento do segu­rança, abriu a cortina e entrou na baia.

Sozinho dentro do espaço com cortinas havia um paciente, um homem pequeno de cabelos escuros e pele morena deitado sob uma rede emaranhada de tubos e fios conectados do maquinário médico no alto a seus
membros, peito, boca e nariz. O leito do hospital estava sob uma tenda de plástico transparente. O homem mal ocupava metade da cama e de certa forma parecia uma vítima sob ataque do aparato em torno dele.

Seus olhos estavam entreabertos e imóveis. A maior parte de seu corpo estava exposta. Uma espécie de toalha recatada tapava seus geni­tais, mas suas pernas e seu torso estavam visíveis. O lado direito
de sua barriga e do quadril estava coberto de feridas de queimaduras. A mão direita exibia as mesmas marcas — anéis vermelhos de aspecto doloroso em torno de erupções úmidas arroxeadas na pele. Um gel
claro havia sido espalhado sobre as queimaduras, mas não parecia estar ajudando.

— Onde está todo mundo? — quis saber Bosch.

— Harry, não chegue perto — advertiu Walling. — Ele está in­consciente, então vamos sair e conversar com o médico antes de fazer qualquer coisa.

Bosch apontou as queimaduras do paciente.

— Isso pode ser césio? — perguntou. — Dá pra agir tão rápido assim?

— Se a exposição for direta e numa quantidade concentrada, dá. Depende do tempo da exposição. Esse cara parece que carregou o ne­gócio no bolso.

— Ele se parece com Moby ou El-Fayed?

— Não, com nenhum dos dois. Vamos.

Ela saiu por entre as cortinas e Bosch a seguiu. Mandou o segurança buscar o médico da emergência que estava tratando o homem. Abriu o celular e apertou um único botão. A ligação foi atendida rapidamente.

— Esse é autêntico — ela disse. — Temos uma exposição direta. Precisamos estabelecer um posto de comando e um protocolo de con­tenção, aqui.

Escutou e então respondeu a uma pergunta.

— Não, nenhum deles. Não tenho identidade ainda. Ligo assim que tiver.

Fechou o telefone e olhou para Bosch.

— A equipe de radiação vai chegar em dez minutos — disse. — Estou na che?a do posto de comando.

Uma mulher com o avental azul da equipe de UTI caminhou na direção deles, carregando uma prancheta.

— Sou a doutora Garner. Precisam manter distância do paciente até que saibamos mais sobre o que aconteceu com ele.

Walling e Bosch mostraram suas credenciais.

— O que pode nos dizer? — perguntou Walling.

— Não muita coisa, ainda. O quadro é todo de pródromo: os primeiros sintomas da exposição. O problema é que não sabemos a que ele foi exposto e por quanto tempo. Sem isso não temos contagem de gray e sem
ela não dá pra ter um protocolo de tratamento específico. Estamos improvisando.

— Quais os sintomas? — perguntou Walling.

— Bom, você viu as queimaduras. Aquilo é o menor dos proble­mas. O dano mais sério é interno. Seu sistema imunológico está entran­do em colapso e teve aspirada a maior parte da parede de seu estômago.
O aparelho gastrointestinal foi atingido. Ele está estabilizado, mas não tenho grandes esperanças. O estresse corporal provocou parada cardía­ca. A equipe de UTI acabou de sair faz 15 minutos.

— Quanto tempo leva entre a exposição e o começo desse quadro de produro sei lá o quê? — perguntou Bosch.

— Pródromo. Pode ser a partir de uma hora após a exposição.

Bosch olhou para o homem sob o pavilhão de plástico em volta da cama. Veio-lhe à mente a frase que o capitão Hadley usara quando Samir estava morrendo no chão de sua sala de orações. No bico do corvo.
Sabia que o homem no leito de hospital também estava no bico do corvo.

— O que pode nos dizer sobre quem ele é e onde foi encontrado? — Bosch perguntou à médica.

— Precisa conversar com os paramédicos sobre onde o encontra­ram — respondeu Garner. — Não tive tempo para chegar a isso. E tudo o que ouvi dizer é que o encontraram na rua. Sem sentidos. E quanto a quem
é...

Ergueu a prancheta e leu a folha de cima.

— Aqui diz Digoberto Gonzalves, 41 anos. Nenhum endereço. É tudo o que sei até o momento.

Walling se afastou, pegando o telefone outra vez. Bosch sabia que ia mandar verificar o nome, mandar procurar nos bancos de dados por terroristas.

— Onde estão as roupas? — perguntou à médica. — Onde está a carteira?

— As roupas e todos os pertences pessoais foram removidos da emergência por precaução contra exposição.

— Alguém examinou?

— Não, senhor, ninguém ia correr o risco.

— Pra onde levaram?

— Essa informação quem tem é a equipe de enfermagem.

Apontou um posto de enfermagem no centro da área de trata­mento. Bosch foi na frente. A enfermeira no balcão disse a Bosch que tudo o que havia com o paciente fora depositado num recipiente de lixo hospitalar
com destino ao incinerador do prédio. Não ?cou claro se isso foi feito de acordo com o protocolo do hospital para lidar com casos de contaminação ou por puro medo dos fatores desconhecidos envolvidos com
Gonzalves.

— Onde ?ca o incinerador?

Em vez de dar instruções, a enfermeira chamou o segurança e disse-lhe para levar Bosch à sala do incinerador. Antes que Bosch pudesse ir, Walling o chamou.

— Leve isto — disse, estendendo o monitor de alerta de radiação que tirou do cinto. — E não esqueça que tem uma equipe de radiação a caminho. Não se arrisque. Se isso disparar, cai fora. É sério. Cai fora.

— Entendi.

Bosch en?ou o monitor de alerta no bolso. Ele e o guarda atraves­saram rapidamente o corredor e então desceram por uma escada para o porão. Depois seguiram por outro corredor que parecia percorrer pelo
menos a extensão de um bloco até o lado mais distante do prédio.

Quando chegaram na sala do incinerador, o espaço estava vazio e parecia não haver qualquer queima de lixo hospitalar em andamento. Havia uma lata de um metro no chão. A tampa estava selada com uma ?ta,
com a inscrição PERIGO: RESÍDUOS TÓXICOS.

Bosch puxou seu molho de chaves, em que havia um pequeno ca­nivete. Agachou perto da lata e cortou a ?ta de segurança. Na sua visão periférica, percebeu o segurança dando um passo para trás.

— Talvez fosse melhor esperar lá fora — disse Bosch. — Não tem necessidade dos dois...

Ouviu a porta se fechando antes que terminasse a frase.

Olhou para a lata, prendeu a respiração e removeu a tampa. As roupas de Digoberto Gonzalves estavam jogadas ao acaso ali dentro.

Bosch apanhou no bolso o monitor que Walling lhe dera e o passou sobre a lata aberta como se fosse uma varinha de condão. O apare­lho continuou em silêncio. Soltou o ar. Então, tão suavemente como se esvaziasse
um cesto de papéis em casa, virou a lata de cabeça para baixo e jogou o conteúdo no piso de concreto. Rolou a lata para o lado e mais uma vez moveu o monitor em um padrão circular sobre as roupas. Ne­nhum
alarme.

As roupas de Gonzalves haviam sido tiradas de seu corpo com te­souras. Havia uma calça jeans suja, uma camisa de trabalho, uma ca­miseta, cueca e meias. E um par de botas de trabalho com os cadarços cortados
com a tesoura, também. Jogada no chão no meio da roupa havia uma pequena carteira preta de couro.

Bosch começou pela roupa. No bolso da camisa de trabalho havia uma caneta e um calibrador de pneu. Ele achou luvas de trabalho meio en?adas no bolso de trás do jeans e depois tirou um molho de chaves e
um celular do bolso esquerdo da frente. Pensou nas queimaduras que vira no lado direito do quadril e na mão direita de Gonzalves. Mas quando abriu o bolso direito da frente do jeans não viu césio algum.
Estava vazio.

Bosch pôs o celular e as chaves perto da carteira e examinou o que tinha. Em uma das chaves Bosch viu o logo da Toyota. Agora sabia que um veículo era parte da equação. Abriu o telefone e tentou achar
a lista de chamadas, mas não conseguiu. Deixou-o de lado e abriu a carteira.

Não havia muita coisa. Continha uma carteira de motorista do México com o nome e a foto de Digoberto Gonzalves. Ele era de Oa­xaca. Em uma das repartições ele encontrou fotos de uma mulher e três crianças
pequenas — que, Bosch imaginou, haviam sido tiradas no Mé­xico. Nenhum green card ou documento de legalização. Nada de cartões de crédito e na repartição do dinheiro havia apenas seis dólares, além de
vários canhotos de casas de penhor localizadas no Vale.

Bosch deixou a carteira de lado junto ao telefone, ergueu-se e pe­gou seu próprio celular. Procurou na agenda o número de Walling.

Ela atendeu imediatamente.

— Veri?quei as roupas. Nada de césio.

Nenhuma resposta.

— Rachel, você...

— Ouvi, ouvi. Minha esperança era de que tivesse encontrado, Harry. Só queria que isso acabasse.

— Eu também. Conseguiu alguma coisa com o nome?

— Que nome?

— Gonzalves. Você mandou checar, não foi?

— Ah, claro, é. Não, nada. E quero dizer nada, mesmo, nem car­teira de motorista. Acho que pode ser um pseudônimo.

— Eu estou com uma carteira de motorista bem aqui. Acho que o cara é ilegal.

Ela pensou um pouco antes de responder.

— Bom, a gente acha que Nassar e El-Fayed vieram pela fronteira mexicana. Pode ser que tenha uma ligação. Talvez esse cara estivesse trabalhando com eles.

— Sei lá, Rachel. Tenho roupas de trabalho aqui. Botas. Acho que esse cara...

— Harry, preciso ir. Minha equipe está aqui.

— Tudo bem. Já tô voltando.

Bosch guardou o telefone, depois juntou as roupas e as botas e en­?ou tudo de volta na lata. Pôs a carteira, as chaves e o celular em cima do resto e levou a lata consigo. Na longa caminhada pelo corredor
até as escadas ele tirou o telefone outra vez e ligou para o centro de comu­nicações municipal. Pediu à operadora que procurasse os detalhes da ligação dos paramédicos que levaram Gonzalves ao Queen of
Angels e ?cou na espera.

Subiu as escadas e chegou na emergência antes que a operadora voltasse à linha.

— A ligação que perguntou foi às 10h05, de um telefone registrado para Easy Print, no número 39 de Cahuenga Boulevard. Homem caído no estacionamento. Paramédicos do corpo de bombeiros responderam do posto
54. Tempo de resposta: seis minutos e dezenove segundos. Mais alguma coisa?

— Qual o cruzamento mais próximo do local?

Depois de alguns instantes a operadora disse que o cruzamento era Lankershim Boulevard. Bosch agradeceu e desligou.

O endereço onde Gonzalves foi achado não ?cava longe do miran­te de Mulholland. Bosch percebeu que quase todos os lugares associados com o caso até o momento — o local do assassinato, a casa da vítima,
a casa de Ramin Samir, agora o ponto onde Gonzalves caíra — podiam ser encontrados em uma única página de um guia de mapas Thomas Brothers. Casos de assassinato em L.A. em geral o arrastavam por todo o
guia de mapas. Mas esse não estava se movendo. Ficava sempre por perto.

Bosch olhou em torno pela emergência. Notou que o aglomerado de gente que estava antes na sala de espera agora sumira. Um alerta de evacuação fora dado e agentes com equipamento de proteção andavam por
ali com monitores de radiação. Viu Rachel Walling perto do balcão de enfermagem e foi até lá. Mostrou a lata.

— Aqui estão as coisas do cara.

Ela apanhou a lata e a pôs no chão, depois chamou um dos homens com equipamento de proteção. Pediu-lhe que se encarregasse da lata. Depois voltou a olhar para Bosch.

— Tem um celular ali dentro — ele disse. — Pode ser que consi­gam alguma coisa.

— Eu falo pra eles.

— Como está a vítima?

— Vítima?

— Envolvido ou não com o caso, ainda é uma vítima.

— Se você diz. Ainda desacordado. Não sei se vamos ter alguma chance de conversar com ele.

— Então eu vou indo.

— O quê? Pra onde? Eu vou junto.

— Achei que tivesse que che?ar o posto de comando.

— Passei isso pra frente. Se não tem césio nenhum aqui, não vou ficar. Vou ?car junto com você. Espera só um pouco enquanto vou dizer a algumas pessoas que estou saindo atrás de uma pista.

Bosch hesitou. Mas lá no fundo sabia que queria que fosse junto com ele.

— Vou esperar lá fora, no carro.

— Onde a gente vai?

— Não sei se Digoberto Gonzalves é um terrorista ou só uma vítima, mas uma coisa eu sei. Ele dirige um Toyota. E eu acho que sei onde está.


DEZESSETE

HARRY BOSCH SABIA que a física do tráfego não agiria em seu favor em Cahuenga Pass. A Hollywood Freeway sempre ia devagar em ambas as direções através do gargalo criado pelo corte na cadeia mon­tanhosa.
Decidiu continuar nas ruas ali de baixo e tomar a Highland Avenue depois do Hollywood Bowl na direção do desfiladeiro. Infor­mou Rachel Walling no caminho.

— A ligação para os paramédicos veio de uma grá?ca em Cahuen­ga, perto de Lankershim. Gonzalves deve ter estado na área quando perdeu os sentidos. A ligação inicial dizia que havia um homem caído no estacionamento.
Espero que o Toyota que ele dirigia continue por lá. Aposto que se a gente encontrar o carro, a gente encontra o césio. O mistério é saber por que estava com ele.

— E por que ia ser burro o bastante de en?ar no bolso sem prote­ção — acrescentou Walling.

— Você está supondo que ele sabia o que era. Talvez não soubesse. Talvez não fosse o que pensava.

— Tem que ter uma ligação, Bosch, entre Gonzalves e Nassar e El-Fayed. Ele provavelmente os transportou através da fronteira.

Ele quase sorriu. Sabia que ela usara seu sobrenome como uma expressão de carinho. Lembrou-se de como costumava fazer isso.

— E não se esqueça de Ramin Samir — ele disse.

Walling sacudiu a cabeça.

— Ainda acho que foi só pra desviar a atenção — ela disse. — Uma pista falsa.

— Das boas — respondeu Bosch. — Tirou o poderoso capitão Done Badly da jogada.

Ela riu.

— É assim que vocês o chamam?

Bosch balançou a cabeça.

— Não na frente dele, é claro.

— E como chamam você? Um nome que lembre machão e cabeça-dura, com certeza.

Ele olhou de rabo de olho para ela e encolheu os ombros. Pensou em contar que seu nome no Vietnã era Hari Kari, haraquiri, mas isso ia exigir explicações adicionais e não havia tempo agora, e aquele não
era o lugar.

Deixou a Highland e pegou a ladeira para Cahuenga. Ela passava paralela à freeway e assim que olhou percebeu que tinha razão. O tráfego na via elevada estava paralisado nas duas direções.

— Sabe, ainda tenho seu número no meu celular — ele disse. — Acho que nunca quis apagar.

— Eu ?quei pensando nisso depois que você me deixou aquela mensagem malcriada sobre as cinzas do cigarro.

— Imagino que não tenha guardado o meu, Rachel.

Ela demorou um longo tempo antes de responder.

— Acho que você também continua na minha agenda, Harry.

Dessa vez ele teve de sorrir, ainda que tendo voltado a ser Harry para ela. Havia esperança, afinal, pensou.

Estavam chegando perto de Lankershim Boulevard. À direita, a avenida mergulhava num túnel que passava sob a freeway. À esquerda, terminava no pequeno centro comercial que incluía a Easy Print de onde a
ligação para os paramédicos fora feita. Os olhos de Bosch examinaram os veículos no pequeno estacionamento, à procura de um Toyota.

Ele pegou a faixa da esquerda e esperou para entrar. Girou em seu banco e esquadrinhou o estacionamento dos dois lados de Cahuenga. Um rápido olhar não mostrou nenhum Toyota, mas ele sabia que havia muitos
modelos diferentes de carros e picapes com essa marca. Se não encontrassem o veículo ali na grá?ca, então teriam de procurar entre os estacionados na rua.

— Tem uma placa ou alguma descrição? — perguntou Walling. — E a cor?

— Nenhuma das três.

Bosch lembrou na hora de seu hábito de fazer perguntas múltiplas de uma vez.

Virou na placa amarela e entrou no estacionamento. Não havia vaga livre, mas não estava preocupado em estacionar. Andou devagar, veri?cando carro por carro. Nenhum Toyota.

— Onde está um Toyota quando você precisa de um? — ele disse. — Tem que estar aqui em algum lugar.

— Talvez a gente devesse olhar na rua — sugeriu Walling.

Fez que sim e embicou o carro na viela no ?m do estacionamen­to. Estava manobrando à esquerda para virar e voltar para a rua. Mas quando olhou para veri?car se a direita estava livre, viu uma velha pica­pe
branca com capota na traseira estacionada meia quadra adiante, na viela, junto a uma lixeira verde. A picape estava de frente para eles e não dava para perceber o modelo.

— Aquilo é um Toyota? — ele perguntou.

Walling virou e olhou.

— Bosch, você é um gênio — ela exclamou.

Bosch virou e foi naquela direção e, conforme se aproximou, viu que de fato era um Toyota. E Walling também viu. Ela puxou o telefo­ne, mas Bosch esticou o braço e pôs a mão em cima.

— Vamos dar uma olhada primeiro. Pode ser que eu esteja ­errado.

— Não, Bosch, está indo bem.

Mas ela guardou o celular. Bosch passou pela picape, olhando ra­pidamente. Então fez meia-volta no ?m da quadra e voltou. Parou seu carro três metros mais atrás. Não havia placa na traseira. Uma cartolina
escrita CHAPA PERDIDA fora presa no lugar.

Bosch desejou ter trazido as chaves encontradas no bolso de Digo­berto Gonzalves. Saíram e se aproximaram da picape, um de cada lado. Quando chegou bem perto, Bosch observou que a abertura da capota na
traseira fora deixada um pouco aberta. Com a mão, ele empurrou até que abrisse tudo. Uma dobradiça pneumática a manteve assim. Bosch se curvou mais perto para olhar o interior. Estava escuro, porque a
ca­mionete fora estacionada na sombra e as janelas da capota haviam sido pintadas com tinta escura.

— Harry, está com aquele monitor?

Ele tirou o monitor de radiação do bolso e o segurou com as mãos esticadas dentro da escuridão do compartimento de carga da picape. Nenhum alarme soou. Ele se endireitou e prendeu o monitor no cinto. Então,
procurou a tranca da tampa traseira e a abriu.

A traseira da picape estava atulhada de lixo. Havia garrafas e latas vazias por todo lado, uma cadeira de escritório de couro com um pé quebrado, pedaços de alumínio, um water cooler velho e outros refugos.
E ali, perto da elevação na lataria sobre a roda direita, havia um objeto cinzento que parecia um pequeno balde de esfregão sobre rodas.

— Ali — ele disse. — Aquilo é o porco?

— Acho que é — disse Walling, empolgada. — Acho que é!

Não havia qualquer adesivo com um sinal de advertência ou o sím­bolo de alerta de radiação. Haviam sido arrancados. Bosch debruçou-se na traseira e agarrou um dos punhos. Puxou-o libertando do entulho
em torno e o trouxe rodando para mais perto. O topo tinha quatro travas.

— Vamos abrir para ter certeza se o negócio está aí dentro? — ­perguntou.

— Não — disse Walling. — Vamos nos afastar e chamar a equipe. Eles têm proteção.

Puxou o telefone outra vez. Enquanto ligava para a equipe de ra­diação e as unidades de apoio, Bosch foi para a frente da picape. Olhou através da janela para dentro da cabine. Viu um burrito de café da
ma­nhã comido pela metade sobre um saco de papel pardo achatado no console do meio. E viu mais lixo no lado do passageiro. Seus olhos se detiveram em uma câmera sobre uma velha valise com o fecho quebra­do
no banco do passageiro. A câmera não parecia suja ou quebrada. Mas nova em folha.

Bosch tentou a porta e viu que estava destrancada. Percebeu que Gonzalves esquecera sua picape e suas coisas quando o césio começou a queimar em seu corpo. Descera do veículo e cambaleara para o es­tacionamento,
procurando ajuda, deixando tudo mais para trás, sem trancar.

Bosch abriu a porta do motorista e apanhou o monitor de radia­ção. Nada. Nenhum alerta. Recuou e colocou-o no cinto. Do bolso, tirou um par de luvas de látex e vestiu-as enquanto ouvia Walling falar com
alguém sobre o porco.

— Não, a gente não abriu — dizia. — Querem que abra?

Ouviu um pouco antes de responder.

— Achei mesmo que não. Então venham pra cá o mais rápido possível e quem sabe tudo isso termine.

Bosch se curvou outra vez dentro da picape pela porta do motorista e apanhou a câmera. Era uma Nikon digital e ele lembrou que a tampa da lente encontrada debaixo da cama na casa dos Kent pela equipe do
DIC tinha o nome Nikon gravado. Acreditou que segurava a câmera que havia tirado a foto de Alicia Kent. Virou-a e pelo menos uma vez soube o que estava fazendo ao examinar um equipamento eletrônico. Tinha
uma câmera digital que costumava levar quando ia a Hong Kong visitar a ?lha. Ele a comprara quando foi com ela à Disneylândia da China.

Sua câmera não era uma Nikon, mas foi fácil para ele descobrir que a câmera que acabara de achar não tinha fotos na memória, pois o chip fora removido.

Bosch baixou a câmera e começou a olhar as demais coisas em­pilhadas no banco do passageiro. Além da valise quebrada, havia uma lancheira de criança, um manual de operação de computador Apple e um atiçador
de lareira. Nada relacionado e nada o interessou. Notou um taco de minigolfe e um pôster enrolado no piso diante do banco.

Tirou o saco com o burrito da frente e jogou o peso do corpo sobre um dos cotovelos no apoio entre os bancos, a ?m de se esticar e alcançar o porta-luvas. E ali, no compartimento praticamente vazio, viu
uma arma. Bosch a ergueu e observou-a em sua mão. Era uma Smith & Wesson calibre .22.

— Acho que temos a arma do crime aqui — gritou.

Não houve resposta de Walling. Ela continuava atrás da picape, ao celular, ainda dando ordens com a voz exaltada.

Bosch devolveu o revólver ao porta-luvas e o fechou, achando me­lhor deixar a arma no lugar para a equipe forense. Olhou para o pôster enrolado outra vez e decidiu por pura e simples curiosidade ver o
que era. Usando o cotovelo no apoio do centro para se equilibrar, ele o desenrolou sobre o lixo do banco do passageiro. Era um esquema repre­sentando 12 posições de ioga.

Bosch pensou na mesma hora na marca descorada na parede da sala de ginástica dos Kent. Não tinha certeza, mas achou que as dimensões do pôster casavam direitinho com aquele espaço na parede. Enrolou-o
rapidamente de novo e começou a sair da cabine, pronto para contar sua descoberta para Walling.

Mas quando se movia, percebeu que o apoio entre os bancos tam­bém era um compartimento. Parou e o abriu.

Ficou paralisado. Havia um porta-copos e dentro dele várias cáp­sulas de metal parecidas com cartuchos de bala, fechadas nas duas ex­tremidades achatadas. O metal era tão polido que quase parecia prata.
Poderia até ser confundido com prata.

Bosch passou o monitor de radiação com um movimento circular sobre as cápsulas. Nenhum sinal. Virou o aparelho em sua mão e olhou para ele. Viu um pequeno botão na lateral. Com o polegar, empurrou-o. Um
alarme intenso de repente começou a tocar, a frequência dos tons tão rápida que soava como uma longa sirene a?igindo os tímpanos.

Bosch saiu num pulo da picape e bateu a porta. O pôster caiu no chão.

— Harry! — gritou Walling. — O que foi?

Ela correu em sua direção, batendo o celular no quadril para fechá-lo. Bosch empurrou o botão outra vez e desligou o monitor.

— O que foi? — ela gritou.

Bosch apontou a porta da cabine.

— A arma está no porta-luvas e o césio está no compartimento do meio.

— O quê?

— O césio está no compartimento debaixo do apoio do braço. Ele tirou as cápsulas do porco. É por isso que não estavam no bolso dele. Estavam no compartimento do meio.

Encostou no lado direito de seu quadril, o lugar onde Gonzalves fora queimado pela radiação. O mesmo ponto teria ?cado perto do apoio de braço quando ele estava sentado na picape.

Rachel ?cou sem dizer nada por um bom tempo. Só o encarava.

— Tudo bem com você? — perguntou, finalmente.

Bosch quase riu.

— Não sei — ele disse. — Me pergunte daqui a dez anos.

Ela hesitou, como que sabendo algo que não podia dizer.

— O que foi? — perguntou Bosch.

— Nada. Mas a gente precisa examinar você.

— O que eles vão poder fazer? Olha, não ?quei na picape tanto tempo assim. Não é como Gonzalves, que ?cou ali sentado com essa coisa. Ele foi praticamente comido por ela.

Ela não respondeu. Bosch lhe deu o monitor.

— Tava desligado o tempo todo. Achei que tivesse ligado quando você deu pra mim.

Ela o pegou e olhou em sua mão.

— Também pensei que tivesse.

Bosch pensou em como levara o monitor em seu bolso em vez de prendê-lo no cinto. Provavelmente, ele o desligara sem perceber ao en­?á-lo e tirá-lo por duas vezes. Olhou de novo para a picape e imaginou
se acabara apenas de se ferir ou de se matar.

— Preciso tomar um gole d’água — ele disse. — Tem uma garrafa no meu porta-malas.

Bosch voltou caminhando até a traseira do carro. Usando a tampa aberta do capô para se ocultar de Walling, apoiou as mãos no para-cho­ques e tentou decifrar as mensagens que seu corpo estava enviando para
seu cérebro. Sentiu alguma coisa acontecendo, mas não sabia se era fi­siológico ou se os tremores eram apenas uma resposta emocional ao que acabara de acontecer. Lembrou o que a médica da emergência dissera
sobre Gonzalves e de como os danos mais sérios eram internos. Seu siste­ma imunológico estava entrando em colapso? Estava no bico do corvo?

Subitamente, pensou em sua ?lha, tendo uma visão dela no aero­porto da última vez que a vira. Xingou em voz alta.

— Harry?

Bosch olhou pelo capô. Viu Rachel se aproximando.

— As equipes estão a caminho. Vão chegar em cinco minutos. Como está se sentindo?

— Acho que tudo bem.

— Ótimo. Falei com o chefe da equipe. Ele acha que a exposição foi curta demais pra ser algo sério. Mas ainda assim você precisa ir para a emergência pra ser examinado.

— Vamos ver.

En?ou a mão no porta-malas e apanhou uma garrafa de um li­tro em seu estojo de equipamentos. Era uma garrafa de emergência que mantinha para operações de vigilância que se prolongavam além do esperado.
Abriu e deu dois grandes goles. A água não estava fresca, mas sentiu uma sensação agradável quando desceu. Sua garganta estava seca.

Bosch tampou a garrafa outra vez e a guardou de volta no esto­jo. Deu a volta no carro em direção a Walling. Conforme caminhava, olhou além dela, para o sul. Percebeu que a viela onde estavam estendia-se
por diversos blocos, passando atrás da Easy Print e de todas as lojas e escritórios em Cahuenga. Chegando até Barham.

Na rua, a cada 20 metros, mais ou menos, havia uma lixeira Dumpster verde posicionada perpendicularmente com a parte de trás das construções. Bosch percebeu que haviam sido tiradas da frente dos espaços
entre os prédios e pátios cercados. Assim como em Silver Lake, era dia de recolhimento, e as lixeiras aguardavam a chegada dos cami­nhões municipais.

De repente, tudo ficou claro para ele. Como uma fusão. Dois ele­mentos juntando-se e criando algo novo. O que o incomodava sobre as fotos da cena do crime, o pôster de ioga, tudo. Os raios gama haviam
passado direto através dele, mas haviam-no iluminado. Ele percebeu. Ele compreendeu.

— O cara é um catador de lixo.

— Quem?

— Digoberto Gonzalves — disse Bosch, os olhos ?xos no fim da viela. — É dia da coleta. As lixeiras foram todas empurradas para os caminhões. Gonzalves é um catador de lixo, ele fuça nas lixeiras, e sabia
que estariam aqui fora e seria um bom momento para procurar.

Olhou para Walling antes de completar o pensamento.

— E mais alguém sabia, também — ele disse.

— Quer dizer que ele encontrou o césio numa lixeira?

Bosch balançou a cabeça e apontou a viela.

— Indo até o ?m, ali é a Barham. De Barham você vai pra Lake Hollywood. De Lake Hollywood chega no mirante. Esse caso não sai da página do guia.

Walling se aproximou e ?cou diante dele, bloqueando sua visão. Bosch agora ouvia sirenes distantes.

— O que você quer dizer com isso? Que Nassar e El-Fayed rouba­ram o césio e jogaram numa lixeira no pé da colina? Que depois apare­ceu esse catador de lixo e encontrou?

— Estou dizendo que você conseguiu recuperar o césio, agora o caso é de homicídio outra vez. Descendo do mirante, dá pra chegar aqui nessa rua em cinco minutos.

— E daí? Eles roubaram o césio e mataram Kent só pra descer aqui e esconder no lixo? É isso que está dizendo? Ou está dizendo que sim­plesmente jogaram tudo fora? Pra que iam fazer uma coisa dessas? Quer
dizer, qual o sentido disso? Quer dizer, não vejo como isso pode assustar as pessoas do jeito que a gente sabe que eles querem assustar.

Bosch observou que ?zera seis perguntas de uma vez, agora, possi­velmente um novo recorde.

— Nassar e El-Fayed nunca chegaram nem perto do césio — ele disse. — É isso que estou dizendo.

Foi até a picape e pegou o pôster enrolado no chão. Estendeu-o para Rachel. As sirenes ?cavam mais altas.

Ela desenrolou o pôster em suas mãos e olhou para ele.

— O que é isso? O que quer dizer?

Bosch o pegou de volta e começou a enrolar.

— Gonzalves encontrou isso na mesma lixeira onde encontrou a arma, a câmera e o porco de chumbo.

— E daí? O que isso quer dizer, Harry?

Dois federais entraram na viela uma quadra mais atrás e foram em sua direção, contornando as lixeiras posicionadas para o recolhimento. Conforme se aproximaram, Bosch pôde ver que o motorista do primei­ro
carro era Jack Brenner.

— Está me ouvindo, Harry? O que isso...

Os joelhos de Bosch de repente pareceram falhar e ele caiu sobre ela, jogando os braços em volta de seu corpo para não parar no chão.

— Bosch!

Ela o agarrou e segurou.

— Ahn... Não estou me sentindo muito bem — murmurou. — Acho melhor... pode me levar para o meu carro?

Ela o ajudou a se endireitar e começou a ampará-lo na direção do carro. Ele passou os braços em torno de seus ombros. Portas de carros eram batidas às suas costas enquanto os agentes desciam.

— Cadê as chaves? — perguntou Walling.

Ele lhe passou o molho bem no momento em que eram alcançados por Brenner.

— O que aconteceu? Qual o problema?

— Ele foi exposto. O césio está no console do centro na cabine da picape. Cuidado. Vou levá-lo pro hospital.

Brenner deu um passo para trás, como se o que Bosch tivesse fosse contagioso.

— Ok — ele disse. — Me ligue quando der.

Bosch e Walling continuaram andando na direção do carro.

— Vamos, Bosch — disse Walling. — Fique acordado. Aguenta aí que vamos cuidar de você.

Ela o chamara pelo sobrenome outra vez.


DEZOITO

AOS SOLAVANCOS, WALLING saiu com o carro da viela e entrou no ­tráfego rumo sul em Cahuenga.

— Estou levando você de volta ao Queen of Angels, para a doutora Garner dar uma olhada em você — ela disse. — Aguente ?rme aí, Bosch.

Ele sabia que muito provavelmente o carinhoso tratamento pelo sobrenome estava prestes a acabar. Apontou para a faixa da esquerda que levava a Barham Boulevard.

— Esquece o hospital — ele disse. — Me leva de volta pra casa dos Kent.

— O quê?

— Depois eu faço um exame. Vamos para a casa dos Kent. Essa é a entrada. Vai!

Ela desviou para a faixa da esquerda.

— O que está acontecendo?

— Está tudo bem. Tô ótimo.

— Está me dizendo que... que aquele pequeno desmaio lá atrás foi...

— Eu precisava tirar você de perto da cena do crime e de Brenner, pra que pudesse conferir isso e conversar com você. A sós.

— Conferir o quê? Conversar sobre o quê? Percebe o que acabou de fazer? Achei que estivesse salvando sua vida. Agora Brenner ou um daqueles outros caras vai levar o crédito por recuperar o césio. Muito
obrigada, seu babaca. Aquela cena de crime era minha.

Ele abriu o paletó e puxou o pôster de ioga enrolado.

— Não se preocupa com isso — disse. — Você ?ca com o crédito das prisões. Mas pode ser que não queira.

Ele abriu o pôster, deixando a parte de cima se dobrar sobre seus joelhos. Só estava interessado na parte de baixo.

— Dhanurasana — disse.

Walling olhou para ele e depois para o pôster.

— Será que dá pra começar a me dizer o que é que tá ­acontecendo?

— Alicia Kent faz ioga. Eu vi os colchonetes na sala de ginástica da casa.

— Eu também vi. E daí?

— Viu uma marca diferente na parede de onde um quadro, um calendário ou quem sabe um pôster foi tirado?

— Vi, eu vi.

Bosch ergueu o pôster.

— Aposto que vamos chegar lá e isso aqui vai encaixar direitinho. Esse é um pôster que Gonzalves encontrou com o césio.

— E o que isso quer dizer?... se encaixar direitinho?

— Quer dizer que foi quase um crime perfeito. Alicia Kent cons­pirou para matar o marido e, se não fosse por Digoberto Gonzalves ter encontrado as provas no lixo, ela teria se safado com essa.

Walling sacudiu a cabeça, discordando.

— Vamos, Harry. Está dizendo que conspirou com dois terroristas internacionais pra matar o marido em troca do césio? Não acredito que estou fazendo isso. Preciso voltar pra cena do crime.

Começou a olhar o retrovisor, preparando-se para dar meia-volta. Encaminhavam-se para Lake Hollywood Drive, agora, e chegariam na casa em dois minutos.

— Não, continue. Já estamos quase chegando. Alicia Kent cons­pirou com alguém, mas não terroristas. O césio jogado no lixo prova isso. Você mesma disse, não tem como Moby e El-Fayed terem rouba­do aquilo
pra jogar numa lixeira. Então o que isso revela? Que não foi um roubo. Na verdade, foi um assassinato. O césio era só pra desviar a atenção. E Ramin Samir também. E Moby e El-Fayed? Também faziam parte
da tática diversionária. E esse pôster vai ajudar a provar.

— Como?

— Dhanurasana, o arco que balança.

Esticou o pôster de modo que ela pudesse ver rapidamente a posi­ção de ioga retratada no canto de baixo. Mostrava uma mulher com os braços atrás das costas, segurando os tornozelos e criando um arco com
a frente do corpo. Era como uma vítima amarrada.

Walling prestou atenção na estrada sinuosa e depois voltou a olhar longamente para o pôster e a posição.

— Vamos até a casa para ver se isso encaixa no espaço da parede — disse Bosch. — Se encaixar, signi?ca que ela e o assassino tiraram da parede porque não queriam arriscar que a gente visse e ligasse com
o que aconteceu com ela.

— Isso é muito forçado, Harry. Muito.

— Não quando você vê dentro de um contexto.

— Coisa que, é claro, você consegue fazer.

— Assim que a gente chegar na casa.

— Só espero que você ainda tenha a chave.

— Pode apostar que sim.

Walling entrou na Arrowhead Drive e pisou no acelerador. Mas uma quadra depois tirou o pé, reduziu e sacudiu a cabeça outra vez.

— Isso é ridículo. Ela deu o nome Moby pra nós. Não tinha como saber que ele estava no país. E depois no mirante sua testemu­nha disse que o atirador tinha gritado Alá quando puxou o gatilho. Como...

— Vamos ver esse pôster na parede primeiro. Se encaixar, explico o caso todo pra você. Prometo. Se não encaixar, eu paro... paro de te incomodar com isso.

Ela entregou os pontos e guiou pelo restante do caminho até a casa dos Kent sem dizer mais nenhuma palavra. Não havia mais carro do bureau parado em frente. Bosch imaginou que estariam todos a postos na
cena de recuperação do césio.

— Graças a Deus não preciso lidar com Maxwell outra vez — ele disse.

Walling sequer sorriu.

Bosch desceu com o pôster e sua pasta contendo as fotos da cena do crime. Usou as chaves de Stanley Kent para abrir a porta da frente e depois se dirigiram à sala de ginástica. Postaram-se cada um de um
lado da marca descorada de sol retangular e Bosch desenrolou o pôster. Cada um segurou uma ponta e ajustaram os cantos de cima do papel com os cantos de cima da marca. O pôster encaixava perfeitamente.
Mais ainda, as marcas de ?ta adesiva na parede batiam com as marcas de fita e os pedaços velhos de fita do pôster. Para Bosch, não havia dú­vida. O pôster encontrado por Digoberto Gonzalves em uma lixeira
na travessa da Cahuenga de?nitivamente viera da sala de ioga na casa de Alicia Kent.

Rachel soltou seu lado do pôster e se afastou.

— Estou indo para a sala. Estou só esperando para ouvir sua ex­plicação disso tudo.

Bosch enrolou o pôster e foi atrás. Walling sentou na mesma poltrona em que Bosch deixara Maxwell algemado, algumas horas antes. Ele continuou de pé na frente dela.

— O medo era que o pôster servisse de pista — ele disse. — Algum agente ou detetive mais esperto ia ver a posição do arco e começar a pensar. Essa mulher faz ioga, pode ser que conseguisse ?car presa desse
jeito, pode ser que a ideia tenha sido dela, pode ser que tenha feito isso pra ajudar a vender seu peixe. Assim, não podiam dar sopa pro azar. O pôster tinha que sumir. E foi parar na lixeira junto com
o césio, a arma e tudo o que usaram. A não ser pelas máscaras de esqui e o mapa fajuto que plantaram no carro diante da casa de Ramin Samir.

— Ela é um mestre do crime — disse Walling, sarcástica.

Isso não intimidou Bosch. Sabia que a convenceria.

— Se você mandar seu pessoal por lá veri?car aquela fileira de lixeiras, vai encontrar o resto: o silenciador de Coca-Cola, as luvas, o primeiro jogo de presilhas, tudo...

— Primeiro jogo de presilhas?

— Isso mesmo. Já chego lá.

Walling continuava cética.

— Melhor chegar rápido. Porque há uns furos enormes nessa his­tória, cara. E quanto ao nome Moby? E o Alá dito pelo atirador? E...

Bosch ergueu a mão.

— Espere um pouco — disse. — Preciso de um pouco d’água. Minha garganta está seca de tanto falar.

Foi até a cozinha, lembrando que vira garrafas de água na geladeira quando dera uma busca na cozinha, mais cedo.

— Quer alguma coisa? — gritou.

— Não — gritou ela de volta. — Não é nossa casa, lembra?

Ele abriu a geladeira, tirou uma garrafa de água e bebeu a meta­de diante da porta aberta. O ar frio era agradável, também. Fechou a porta, mas depois abriu imediatamente. Tinha visto alguma coisa. Na
prateleira superior havia uma garrafa plástica de suco de uva. Apanhou-­a e a observou, lembrando que ao vasculhar o saco de lixo na garagem encontrara toalhas de papel sujas com suco de uva.

Outra peça do quebra-cabeça se encaixou. Ele pôs a garrafa de volta na geladeira e então regressou à sala, onde Rachel aguardava pela história. Mais uma vez, ele ?cou de pé.

— Ok, quando foi que você capturou o terrorista conhecido como Moby no vídeo do porto?

— O que isso...

— Por favor, só responda.

— No dia 20 de agosto do ano passado.

— Certo, 20 de agosto. E daí o quê, alguma espécie de alerta cor­reu pelo bureau ou pela Segurança Interna?

Ela balançou a cabeça.

— Mas não imediatamente — disse. — Levou quase dois meses de análise do vídeo pra con?rmar que eram Nassar e El-Fayed. Eu escrevi o relatório. A con?rmação do aparecimento em território doméstico veio
só em 9 de outubro.

— Só por curiosidade, por que não tornaram público?

— Porque a gente tem... na verdade, não posso falar.

— Acaba de fazer. Vocês precisam de alguém ou de algum lugar onde acham que esses dois poderiam aparecer sob vigilância. Se tor­nam público, pode ser que se escondam debaixo da terra e nunca mais ­apareçam.

— Podemos voltar à história, por favor?

— Certo. Então o relatório saiu em 9 de outubro. Foi nesse dia que o plano para matar Stanley Kent começou.

Walling cruzou os braços diante do peito e ?cou olhando para ele. Bosch pensou que talvez estivesse começando a entender aonde ele queria chegar com a história, e não estava gostando.

— Faz mais sentido se você começa pelo ?m e vai de trás para a frente — disse Bosch. — Alicia Kent deu o nome Moby para vocês. Como ela poderia ter conseguido esse nome?

— Ela ouviu um deles chamando o outro por esse nome.

Bosch sacudiu a cabeça.

— Não, ela disse que ouviu. Mas se estava mentindo, como ia saber sobre que nome mentir? É só coincidência que dê o apelido de um cara que menos de seis meses antes foi con?rmado como estando no país...
no condado de Los Angeles, ainda por cima? Acho que não, Rachel, e você também não. As probabilidades contra são impossíveis de calcular.

— Ok, então você está dizendo que alguém no bureau ou outra agência que recebeu o relatório do FBI que eu escrevi deu o nome pra ela?

Bosch balançou a cabeça e apontou para ela.

— Certo. Ele deu o nome a ela, para que pudesse mencioná-lo quando estivesse sendo questionada pelo mestre interrogador. Esse nome junto com o plano de plantar o carro na frente da casa de Ramin Samir
agiriam juntos para fazer com que todo esse negócio fosse por um caminho errado, com o FBI e todo mundo caçando terroristas que não tinham nada a ver com a história.

— Ele?

— Já chego nisso. Você tem razão, qualquer um que desse uma olhada naquele relatório poderia ter dado o nome pra ela. Meu palpite é de que isso signi?ca um monte de gente. Um monte de gente pra ficar só
em L.A. Então como estreitar até chegar em um só?

— Você é quem vai me dizer.

Bosch abriu a garrafa e bebeu o resto da água. Segurou a garrafa vazia na mão conforme continuava.

— Quanto mais pra trás na história a gente for, mais a explicação faz sentido. Onde a vida de Alicia Kent teria se cruzado com uma das pessoas nas agências que sabiam sobre Moby?

Walling franziu o rosto e sacudiu a cabeça.

— Isso poderia ter acontecido em qualquer lugar, por esse tipo de parâmetro. Numa ?la de supermercado, ou quando estava comprando fertilizante para as rosas dela. Em qualquer lugar.

Bosch a tinha agora bem onde queria.

— Então estreite os parâmetros — ele disse. — Onde ela teria cruzado com alguém que sabia sobre Moby, mas também sabia que o marido dela tinha acesso ao tipo de material radioativo que poderia interessar
a Moby?

Agora ela sacudia a cabeça desconsiderando a ideia.

— Em lugar nenhum. Teria que ser uma coincidência absurda pra...

Parou quando foi atingida. Iluminação. E choque, ao compreen­der plenamente aonde Bosch queria chegar.

— Meu parceiro e eu visitamos os Kent para avisá-los no ano pas­sado. Acho que está dizendo que isso me torna suspeita.

Bosch sacudiu a cabeça.

— Eu disse “ele”, lembra? Você não veio aqui sozinha.

Seus olhos faiscaram quando se deu conta da insinuação.

— Isso é ridículo. Não tem como. Não acredito que você pod...

Ela não terminou, pois sua mente enganchou em algo, alguma lembrança que solapou sua con?ança e lealdade para com o parceiro. Bosch pegou a deixa e chegou mais perto.

— O que foi? — ele perguntou.

— Nada.

— O quê?

— Olhe — ela insistiu —, aceite meu conselho e não conte pra ninguém essa teoria sua. Você tem sorte de ter contado primeiro pra mim. Porque faz você parecer meio que um lunático em busca de vin­gança.
Não tem evidência, nenhum motivo, nenhuma afirmação incri­minadora, nada. Só tem esse negócio que tirou de um... de um pôster de ioga.

— Não tem outra explicação que case com os fatos. E estou fa­lando sobre os fatos do caso. Não o fato de que o bureau e a Segurança Interna e o restante do governo federal adorariam que isso fosse um episódio
terrorista, para que pudessem justi?car sua existência e rebater críticas por outras falhas. Contrariamente ao que você quer pensar, exis­tem provas e a?rmações incriminadoras. Se pusermos Alicia Kent
em um detector de mentiras, vai descobrir que tudo o que contou pra mim, pra você e para o mestre interrogador no centro é mentira. A verdadeira mestre foi Alicia Kent. Mestre da manipulação.

Walling se curvou para a frente e olhou para o chão.

— Obrigado, Harry. Acontece que esse mestre interrogador que você está adorando detonar era eu.

O queixo de Bosch caiu por um momento antes que conseguisse falar.

— Ah... bom... então, desculpa... mas não tem importância. A questão é que ela é uma mestra da mentira. Mentiu sobre tudo e, agora que sabemos da história, vai ser fácil desmascará-la.

Walling levantou da poltrona e caminhou até a janela panorâmica da frente. As lâminas da persiana vertical estavam fechadas, mas ela abriu um vão com um dedo para olhar a rua. Bosch pôde perceber que digeria
a história, ruminando.

— E sobre a testemunha? — ela perguntou sem se virar. — Ele ouviu o atirador gritando Alá. Está dizendo que tomou parte nisso? Ou que aconteceu de eles por acaso perceberem que havia alguém e gritado Alá
como parte de sua manipulação de mestre?

Bosch suavemente tentou limpar a garganta. Estava queimando e tornava difícil para ele falar.

— Não, sobre isso só acho que foi uma lição ensinando a não es­cutar apenas o que a gente quer escutar. A culpa foi minha por não ser um mestre interrogador. O rapaz me disse que escutou o atirador gritar
isso quando puxou o gatilho. Disse que não tinha certeza, mas que soava como Alá, e isso, é claro, encaixava no que eu estava pensando no momento. Eu escutei o que queria escutar.

Walling se afastou da janela, sentou de novo e cruzou os bra­ços. Bosch ?nalmente sentou em uma cadeira bem na frente dela. ­Continuou.

— Mas como a testemunha saberia que foi o atirador e não a ví­tima que gritou? — perguntou. — Ele estava a mais de 50 metros de distância. Estava escuro. Como ele ia saber que não era Stanley Kent gri­tando
sua última palavra antes de ser executado? O nome da mulher que amava, porque ia morrer sem nem mesmo saber que ela o havia traído.

— Alicia.

— Isso mesmo. Alicia interrompido por um tiro torna-se Alá.

Walling relaxou os braços e curvou-se para a frente. Até onde a lin­guagem corporal podia dizer, era um bom sinal. Isso mostrou a Bosch que estava conseguindo.

— Você disse primeiro jogo de presilhas, agora há pouco — ela disse. — Do que estava falando?

Bosch balançou a cabeça e lhe estendeu a pasta contendo as fotos da cena do crime. Havia guardado o melhor para o fim.

— Olhe as fotos — ele disse. — O que está vendo?

Ela abriu a pasta e começou a olhar as fotos da cena do crime. Mostravam a suíte do casal de todos os ângulos.

— É a suíte do casal — ela disse. — O que tem pra ver?

— Não, não.

— Como?

— O que não tem pra ver. Não tem roupas na foto. Ela disse pra nós que eles mandaram que sentasse na cama e tirasse a roupa. No que vamos acreditar, que deixaram que fosse guardar as roupas antes de ser
amarrada? Que deixaram que en?asse no cesto de roupa suja? Olha a última foto. É a foto do e-mail que Stanley recebeu.

Walling folheou a pasta até chegar à cópia impressa do e-mail. Olhou atentamente para a foto. Ele viu a compreensão iluminar seus olhos.

— Agora, o que você está vendo?

— O roupão — ela disse, empolgada. — Quando demos licença a ela para se vestir, foi até o closet para pegar o roupão. Não havia ne­nhum roupão sobre a espreguiçadeira!

Bosch balançou a cabeça e começaram a ir e vir com pedaços da história.

— O que isso nos diz? — ele perguntou. — Que os supostos terro­ristas penduraram o roupão no closet para ela depois de tirar a foto?

— Ou que talvez a senhora Kent tenha sido amarrada duas vezes e o roupão mudou de lugar entre uma coisa e outra?

— E olhe mais uma vez para a foto. O relógio sobre o criado-­mudo está desligado.

— Por quê?

— Não sei, mas vai ver que não queriam se preocupar em ter algum indício da hora marcada na foto. Vai ver que a primeira foto não foi tirada nem ontem. Vai ver que sobrou de algum ensaio que fizeram dois
dias antes, ou mesmo duas semanas.

Rachel balançou a cabeça e Bosch soube que conquistara sua con­?ança. Conquistara sua fé.

— Ela foi amarrada uma vez para a foto e depois outra vez para o resgate — ela disse.

— Isso mesmo. E assim ?cou livre para ajudar a levar adiante o plano no mirante. Ela não matou o marido, mas estava lá em cima, no outro carro. E depois que Stanley foi morto, jogaram o césio na lixeira,
deixaram o carro na casa de Samir e ela e o parceiro voltaram para cá e ela foi toda amarrada outra vez.

— Ela não estava desmaiada quando chegamos aqui. Era fingi­mento, era parte do plano. E a urina na cama foi um toque extra, pra ajudar a gente a engolir a história.

— E o cheiro de urina também encobriu o cheiro de suco de uva.

— Como assim?

— As manchas roxas nos pulsos e nos tornozelos. Agora a gente sabe que ela não ?cou amarrada por horas. Mas mesmo assim tinha as marcas. Tem uma garrafa aberta de suco de uva na geladeira e toalhas de
papel sujas na lata do lixo. Ela usou suco de uva para fazer os machucados.

— Ai, meu Deus, não acredito.

— O que foi?

— Quando eu estava na sala com ela, na UIT. Aquele espaço pe­queno. Achei ter sentido cheiro de uva na sala. Achei que alguém podia ter estado lá antes de nós e bebido suco de uva. Eu senti o cheiro!

— Aí está.

Não restava mais dúvida. Bosch a convencera. Mas então uma sombra de preocupação e descon?ança passou sobre o rosto de Walling como uma nuvem de verão.

— E quanto a um motivo? — ela perguntou. — Estamos falando aqui de um agente federal. Para ir em frente com isso, precisamos de tudo, inclusive de um motivo. Não pode ?car nenhuma ponta solta, aberta ao
acaso.

Bosch já se preparara para a pergunta.

— Você viu o motivo. Alicia Kent é uma mulher linda. Jack Bren­ner a desejou e Stanley Kent estava no caminho.

Os olhos de Walling se arregalaram de choque. Bosch seguiu adian­te com o caso.

— Esse é o motivo, Rachel. Você...

— Mas ele...

— Deixa eu terminar. É assim que acontece. Você e seu parceiro aparecem aqui naquele dia no ano passado pra alertar o casal sobre o trabalho dele. Algum tipo de vibração surge entre Alicia e Jack. Ele
fica interessado, ela fica interessada. Eles se encontram escondidos para um café, uma bebida ou sei lá o quê. Uma coisa leva a outra. O caso começa e vai durando até chegar a um ponto em que é preciso
começar a pensar em fazer algo a respeito. Largar o marido. Ou se livrar dele, porque tem o seguro e metade da empresa em jogo. Aí tem motivo suficiente, Ra­chel, e é com isso que esse caso tem a ver.
Não com césio ou terrorismo ou qualquer outra coisa. É a equação básica: sexo mais dinheiro igual a assassinato. Só isso.

Ela franziu o rosto e sacudiu a cabeça

— Não sabe do que está falando. Jack Brenner é casado, tem três ?lhos. O cara é estável, sem graça e nada interessado. Ele não era...

— Todo homem é interessado. Não importa se é casado ou quan­tos filhos tem.

Ela falou com calma.

— Dá pra me ouvir e me deixar terminar, agora? Você se enganou sobre Brenner. Ele nunca viu Alicia Kent até hoje. Não era meu parceiro quando eu vim aqui no ano passado e eu nunca disse pra você que ele
era.

Bosch levou um choque com a novidade. Presumira que seu atual parceiro fosse o mesmo do ano anterior. A imagem de Brenner ficara con­gelada e armazenada em sua mente enquanto desenrolava a história.

— No começo do ano todos os parceiros na UIT foram trocados. É rotina. Promove um melhor conceito de equipe. Estou com Jack desde janeiro.

— Quem era seu parceiro no ano passado, Rachel?

Ela o encarou por um longo momento.

— Era Cliff Maxwell.


DEZENOVE

HARRY BOSCH QUASE riu, mas estava chocado demais para fazer qual­quer coisa além de sacudir a cabeça. Rachel Walling estava lhe dizendo que Cliff Maxwell era parceiro de Alicia Kent no assassinato.

— Não dá pra acreditar — ele disse, en?m. — Há umas cinco horas eu tava com o assassino algemado no chão bem aqui!

Rachel parecia morti?cada em descobrir que o assassinato de Stanley Kent era um inside job e que o roubo do césio nada mais fora que um despiste bem encenado.

— Percebe o resto, agora? — perguntou Bosch. — Percebeu como ele ia fazer? O marido está morto e ele começa a andar em volta, por so­lidariedade, e porque está no caso. Eles começam a se ver, se apaixonam
e ninguém nem ergue a sobrancelha por causa disso. Ainda estão por aí, procurando Moby e El-Fayed.

— E se a gente pegasse esses caras? — disse Walling, dando prosse­guimento à história. — Eles podiam negar ter feito parte disso até Osama bin Laden morrer de velhice numa caverna, mas quem ia acreditar
ou dar a mínima? Não existe nada mais bem bolado que culpar terroristas por um crime que eles não cometeram. Eles não podem nem mesmo se defender.

Bosch balançou a cabeça.

— Um crime perfeito — disse. — O único motivo de não ter dado certo foi Digoberto Gonzalves mexendo naquela lixeira. Sem ele, a gente ainda estaria atrás de Moby e El-Fayed, provavelmente pensando que
haviam usado a casa de Samir como esconderijo.

— Então, o que a gente faz agora, Bosch?

Bosch encolheu os ombros, mas respondeu, assim mesmo.

— Por mim a gente arma a ratoeira clássica. Põe um em cada sala, toca o sino e diz que o primeiro que falar ganha um acordo. Aposto em Alicia. Ela cede e entrega, provavelmente vai pôr a culpa de tudo
em cima dele, dizer que agiu assim porque foi in?uenciada e dominada por ele.

— Alguma coisa me diz que você tem razão. E a verdade é que não acho Maxwell inteligente o bastante pra ter bolado tudo isso. Trabalhei com...

O celular dela começou a zunir. Ela o tirou do bolso e olhou para a tela.

— É Jack.

— Descubra onde está Maxwell.

Ela atendeu a ligação e primeiro respondeu a umas perguntas sobre o estado de Bosch, dizendo a Brenner que estava bem, mas perdendo a voz porque a garganta doía. Bosch levantou para buscar outra garrafa
de água, mas ouviu da cozinha. Walling mudou casualmente para saber de Maxwell.

— Ei, onde está Cliff, aliás? Queria conversar com ele sobre aquele negócio com Bosch no corredor. Não gostei qu...

Ela parou e escutou uma resposta e Bosch viu seus olhos imediata­mente ?carem alerta. Alguma coisa estava errada.

— Quando foi isso? — ela perguntou.

Ouviu de novo e ?cou de pé.

— Escute, Jack, preciso ir. Acho que Bosch vai ser liberado. Apa­reço assim que terminar por aqui.

Ela fechou o telefone e olhou para Bosch.

— Não consigo mentir pra ele. Ele nunca ia esquecer.

— O que ele disse?

— Disse que tinha muitos agentes na cena de recuperação... quase todo mundo veio do centro e estavam por lá esperando a equipe de radiação. Assim Maxwell se ofereceu pra pegar a testemunha no Mark Twain.
Ninguém estava por lá, porque eu desviei a equipe original quando estavam indo.

— Ele foi sozinho?

— Foi o que Jack disse.

— Quanto tempo faz?

— Meia hora.

— Ele vai matar o garoto.

Bosch correu na direção da porta.


VINTE

BOSCH FOI DIRIGINDO, dessa vez. No caminho para Hollywood ele disse a Walling que Jesse Mitford não tinha telefone em seu quarto. O Mark Twain não era grande coisa quanto ao serviço. Em vez disso, Bosch
ligou para o comando da vigilância na Divisão de Hollywood e pediu que mandassem uma viatura ao hotel, para ver como estava a tes­temunha. Depois ligou para informações e foi transferido para o balcão
de atendimento do Mark Twain.

— Alvin, aqui é o detetive Bosch. De hoje de manhã.

— Ah, sim. Pois não, detetive.

— Alguém apareceu perguntando por Stephen King?

— Hmm, não.

— Nos últimos vinte minutos, entrou alguém aí que parecia um policial ou que não estivesse hospedado?

— Não, detetive. O que está acontecendo?

— Ouça, preciso que você suba até o quarto e diga a Stephen King para sair de lá, depois ligue para meu celular.

— Não tenho ninguém pra ?car aqui na entrada, detetive.

— É uma emergência, Alvin. Preciso que você tire ele de lá. Vai ­levar menos de cinco minutos. Olhe, escreva aí. Meu número é 323-­244-5631. Anotou?

— Anotei.

— Ok, então vai. E se alguém além de mim aparecer perguntando por ele, diga que entregou as chaves, pegou o reembolso e caiu fora. Vai lá, Alvin, obrigado.

Bosch fechou o telefone e olhou para Rachel. Seu rosto mostrava a falta de con?ança no homem do balcão.

— Pra mim esse cara é um drogado.

Bosch aumentou a velocidade e tentou se concentrar em dirigir. Haviam acabado de sair da Barham e tomar a Cahuenga na direção sul. Ele estava pensando que, dependendo do tráfego em Hollywood, po­deriam
chegar ao Mark Twain em mais cinco minutos. Essa conclusão fez com que sacudisse a cabeça. Com meia hora de vantagem, Maxwell provavelmente já teria chegado ao Mark Twain. Ele se perguntava se o outro
já não estaria perto de Mitford, nos fundos.

— Maxwell pode já ter entrado pelos fundos — disse a Walling. — Vou entrar pelo beco.

— Sabe — disse Walling —, talvez ele não tenha intenção de ma­chucá-lo. Só tirar dali e conversar, julgar por si mesmo se viu coisa sufi­ciente no mirante pra ser uma ameaça.

Bosch sacudiu a cabeça.

— De jeito nenhum. Maxwell vai saber que, já que o césio foi encontrado, seu plano foi por água abaixo. Precisa agir contra qualquer ameaça. Primeiro a testemunha, depois Alicia Kent.

— Alicia Kent? Acha que pode tentar alguma coisa contra ela? Mas tudo isso foi por causa da mulher.

— Agora não importa mais. Os instintos de sobrevivência vêm em primeiro lugar e agora ela é uma ameaça. Faz parte. Você cruza a linha pra ?car com ela. Você cruza de novo pra tirar o s...

Bosch parou de falar quando uma súbita compreensão atingiu seu peito. Praguejou em voz alta e afundou o pé no acelerador enquanto saíam de Cahuenga Pass. Atravessou três faixas na Highland Avenue em frente
ao Hollywood Bowl e com uma cantada de pneus fez meia-volta diante do tráfego que se aproximava. Pisou fundo, e o carro jo­gou a traseira descontroladamente quando tomou a entrada sul para a Hollywood
Freeway. Rachel segurava no painel e no apoio da porta para se equilibrar.

— Harry, o que você tá fazendo? Esse é o caminho errado!

Ele acionou a sirene e as luzes azuis que piscavam na grade da fren­te e na janela traseira do carro. Ele berrou sua resposta para Walling.

— Mitford é o alvo errado. Esse é o caminho certo. Quem é a maior ameaça para Maxwell?

— Alicia?

— Pode apostar, e agora é a melhor oportunidade que ele tem para tirá-la da Tática. Tá todo mundo lá naquela rua com o césio.

A via elevada estava com o trânsito livre e a sirene ajudou a liberá-la ainda mais. Bosch imaginou que Maxwell talvez já houvesse chegado no centro, dependendo do tipo de tráfego que encontrara.

Rachel pegou o celular e começou a apertar uns números. Tentou um depois do outro, mas ninguém atendia.

— Não consigo falar com ninguém — ela gritou.

— Onde fica a UIT?

Walling não hesitou.

— Na Broadway. Sabe onde é o Million Dollar Theater? No mesmo prédio. Entrada pela Third.

Bosch desligou a sirene e pegou o celular. Ligou para o parceiro e Ferras atendeu na mesma hora.

— Ignacio, onde você está?

— Volta agora mesmo pro escritório. Os forenses verificaram o carro...

— Escuta. Larga o que estiver fazendo agora mesmo e me encontra na entrada do Million Dollar Theater da Third Street. Sabe onde é?

— O que tá acontecendo?

— Sabe onde ?ca o Million Dollar Theater?

— Sei, sei onde é.

— Me encontra lá na entrada da Third Street. Eu explico quando chegar lá.

Fechou o telefone e acionou a sirene outra vez.


VINTE E UM

OS DEZ MINUTOS seguintes duraram dez horas. Bosch desviava e caía de volta no trânsito e ?nalmente chegou à saída da Broadway no centro. Desligou a sirene quando fez a curva e começou a descer a colina
na direção de seu destino. Estavam há três quadras de distância.

O Million Dollar Theater foi construído em uma época em que a indústria cinematográfica se exibia em magníficos palácios ao longo do centro da Broadway. Mas fazia décadas desde que sua tela projetara um
grande lançamento cinematográfico pela última vez. Sua fachada orna­mentada havia sido coberta por uma marquise iluminada que por algum tempo anunciou renascimentos religiosos, em vez de filmes. Agora
o cinema aguardava em abandono por renovação e redenção, enquanto acima dele um outrora majestoso prédio de escritórios abrigava 12 andares de espaços comerciais e lofts residenciais.

— Bom lugar para uma unidade secreta manter um escritório se­creto — disse Bosch, conforme o prédio assomava diante deles. — Nin­guém poderia adivinhar.

Walling não respondeu. Estava tentando fazer outra ligação. Então bateu o celular de frustração.

— Não consigo falar nem com a secretária. Ela sempre almoça depois da uma, pra ter alguém no escritório quando os agentes saem pra almoçar mais cedo.

— Onde exatamente ?ca o esquadrão e onde Alicia Kent vai ­estar?

— Temos todo o sétimo andar. Tem uma sala vazia com um sofá e uma tevê. Puseram ela ali pra poder assisti-la.

— Quantas pessoas no esquadrão?

— Oito agentes, a secretária e uma gerente da unidade. A gerente acaba de sair de licença-maternidade e a secretária deve estar almoçan­do. Espero. Mas não teriam deixado Alicia Kent sozinha. É contra
a nossa política. Alguém deve ter ?cado com ela.

Bosch dobrou à direita na Third e encostou imediatamente. Ignacio Ferras já estava lá, recostado calmamente em sua perua Volvo. Diante dela havia outro carro estacionado. Uma viatura federal. Bosch e Walling
desceram. Bosch se aproximou de Ferras e Walling foi olhar dentro do carro dos federais.

— Você viu Maxwell? — perguntou Bosch.

— Quem?

— O agente Maxwell. O cara que deixamos no chão na casa dos Kent hoje de manhã.

— Não, não vi ninguém. O q...

— É o carro dele — disse Walling quando se juntou a eles.

— Ignacio, esta é a agente Walling.

— Me chama de Iggy.

— Rachel.

Apertaram as mãos.

— Ok, então ele tem que estar lá em cima — disse Bosch. — Quantas escadas?

— Três — disse Walling. — Mas ele vai usar aquela perto do carro.

Apontou para umas portas duplas de aço perto da esquina. Bosch foi até lá para ver se estavam trancadas. Ferras e Walling o seguiram.

— O que está acontecendo? — perguntou Ferras.

— Maxwell é nosso assassino — disse Bosch. — Ele está l...

— O quê?

Bosch veri?cou as portas de saída. Não havia nenhum puxador ou maçaneta do lado de fora. Virou para Ferras.

— Olhe, não temos muito tempo. Acredite em mim, Maxwell é nosso homem e está no prédio para matar Alicia Kent. A gente...

— O que ela tá fazendo aqui?

— O FBI tem uma unidade aqui. Ela está aqui. Chega de pergun­tas, ok? Escute. A agente Walling e eu vamos subir pelo elevador. Quero que ?que perto dessa porta. Se Maxwell sair, você rende ele. Entendeu?
Você rende ele.

— Certo.

— Ótimo. Chame reforço. Estamos subindo.

Bosch esticou o braço e deu um tapinha no rosto de Ferras.

— E fique frio.

Deixaram Ferras ali e foram para a entrada principal do prédio. Não havia saguão digno de nota, só um elevador. Abriu assim que cha­maram e Walling usou um cartão magnético para tocar o botão do séti­mo.
Começaram a subir.

— Algo me diz que você nunca vai chamá-lo de Iggy — disse Walling.

Bosch ignorou o comentário, mas pensou em algo para perguntar.

— Essa coisa tem uma campainha ou um sinal que toca quando chega no andar?

— Não lembr... acho que sim... tem, tem, sim.

— Ótimo. Vamos ser alvo fácil.

Bosch puxou sua Kimber do coldre e engatilhou. Walling fez o mesmo com sua arma. Bosch empurrou Walling para um lado do ele­vador enquanto ele ficou do outro. Ergueu sua arma. O elevador final­mente chegou
ao sétimo e ouviu-se um toque suave do lado de fora. A porta deslizou para abrir, expondo Bosch primeiro.

Ninguém na frente.

Rachel apontou para o lado esquerdo, sinalizando que os escri­tórios ?cavam daquele lado, saindo do elevador. Bosch curvou-se em posição de combate e saiu, a arma erguida e pronta.

Ali também ninguém.

Começou a andar para a esquerda. Rachel se aproximou e andou junto dele em seu ?anco direito. Chegaram em um escritório em esti­lo loft com duas ?leiras de cubículos — a sala do esquadrão — e três salas
particulares construídas independentes uma da outra no amplo ambiente. Havia grandes prateleiras de equipamento eletrônico entre os cubículos, e todas as mesas tinham duas telas de computador sobre elas.
O lugar parecia como que pronto para ser desmontado e transferido dali a qualquer momento, caso necessário.

Bosch avançou e pela janela de um dos escritórios particulares viu um homem sentado em uma cadeira, a cabeça para trás e os olhos aber­tos. Parecia usar um babador vermelho. Mas Bosch sabia que era san­gue.
O homem levara um tiro no peito.

Ele apontou e Rachel viu o homem morto. Sua reação foi uma rápida puxada de ar e um suspiro silencioso.

A porta da sala estava entreaberta. Foram em sua direção e Bosch abriu tudo, enquanto Walling dava cobertura atrás dele. Bosch entrou e viu Alicia Kent sentada no chão, de costas para a parede.

Agachou-se a seu lado. Seus olhos estavam abertos, mas sem vida. Uma arma jazia no chão entre seus pés e a parede atrás dela estava salpi­cada de sangue e pedaços de miolos.

Bosch virou e esquadrinhou a sala. Entendeu a jogada. A cena fora montada de modo a parecer que Alicia Kent puxara a arma do coldre do agente, atirara nele, sentara no chão e tirara a própria vida. Nenhum
bilhete ou explicação, mas foi o melhor que Maxwell pôde arrumar no curto espaço de tempo e com a oportunidade que tinha.

Bosch se virou para Walling. Ela baixara a guarda e ?cara ali para­da, só olhando para o agente morto.

— Rachel — ele disse. — Ele tem que estar por aqui.

Ele ?cou de pé e foi na direção da porta, de modo a procurar pela sala do esquadrão. Quando olhou pelo vidro, viu um movimento atrás das prateleiras de eletrônicos. Parou, ergueu a arma e identificou alguém
se movendo por trás de uma delas na direção de uma porta com uma placa de saída sobre ela.

No mesmo instante, viu Maxwell sair de sua cobertura e correr para a porta.

— Maxwell! — gritou Bosch. — Pare!

Maxwell girou e ergueu uma arma. No momento em que suas cos­tas atingiram a porta de saída, começou a disparar. A janela estilhaçou e o vidro se espalhou em torno de Bosch. Ele atirou de volta e deu seis
tiros na abertura da porta de saída, mas Maxwell se fora.

— Rachel? — ele gritou, sem tirar os olhos da porta. — Tudo bem?

— Tudo.

A voz veio de baixo. Ele percebeu que ela se jogara no chão quando o tiroteio começara.

— Em que saída dá essa porta?

Rachel ?cou de pé. Bosch foi na direção da porta, lançando um olhar de relance para ela, e viu o vidro espalhado em suas roupas, e que sofrera um corte no rosto.

— Essa escada dá no carro dele.

Bosch correu pela sala na direção da porta de saída. Abriu o telefo­ne enquanto isso e apertou a discagem direta para o parceiro. A ligação foi atendida na metade do primeiro toque. Bosch já chegara na
escada.

— Ele tá descendo!

Bosch largou o telefone e começou a descer os degraus. Dava para ouvir Maxwell correndo pelos degraus de metal lá embaixo e instintiva­mente ele sabia que o outro estava bem à sua frente.


VINTE E DOIS

BOSCH COBRIU MAIS três lances, descendo os degraus de três em três. Podia agora ouvir Walling descendo atrás dele. Depois ouviu o som da batida lá embaixo, quando Maxwell chegou à porta de saída. Houve
gritos no mesmo segundo e então tiros. As duas coisas ocorreram tão próximas uma da outra que foi impossível determinar o que viera pri­meiro e quantos tiros haviam sido disparados.

Dez segundos mais tarde Bosch chegou à porta de saída. Ganhou a calçada e viu Ferras encostado no para-choque traseiro do carro oficial de Maxwell. Segurava sua arma com uma das mãos e o cotovelo com a
outra. Uma rosa vermelha de sangue brotava em seu ombro. O tráfego havia parado em ambas as direções na Third e os pedestres corriam pelas calçadas à procura de lugar seguro.

— Acertei ele duas vezes — berrou Ferras. — Ele foi por ali.

Apontou com a cabeça na direção do túnel da Third Street, sob Bunker Hill. Bosch se aproximou do parceiro e viu a ferida em seu om­bro. Não parecia feia.

— Você chamou reforço? — perguntou Bosch.

— Está vindo.

Ferras fez uma careta ao ajustar o apoio do braço ferido.

— Você foi ótimo, Iggy. Segura aí que eu vou atrás desse cara.

Ferras balançou a cabeça. Bosch se virou e viu Rachel passar pela porta, uma mancha de sangue em seu rosto.

— Por aqui — ele disse. — Ele foi atingido.

Começaram a descer a Third em formação defensiva. Alguns pas­sos adiante, Bosch viu o rastro. Maxwell obviamente estava seriamente ferido e perdendo um bocado de sangue. Ia ser fácil de seguir.

Mas quando chegaram na esquina da Third com a Hill, perderam o rastro. Não havia sangue na calçada. Bosch olhou dentro do longo túnel da Third Street e não viu ninguém se movendo a pé. Olhou para cima
ao longo da Hill Street e não viu coisa alguma, até que sua aten­ção foi chamada por uma agitação de pessoas correndo perto do Grand Central Market.

— Por ali — ele disse.

Foram rápido na direção do imenso mercado. Bosch detectou a trilha de sangue logo na entrada e entrou. O mercadão era um prédio de dois andares cheio de barracas de comida, frutas e verduras e pro­dutos
diversos. No ar pairava um forte cheiro de gordura e café que provavelmente impregnava cada andar do edifício acima do mercado. A multidão e o barulho do lugar di?cultavam para Bosch seguir o rastro de
sangue de Maxwell.

Então, de repente, houve gritos bem à sua frente e dois tiros rápi­dos para o alto foram disparados. Isso provocou o estouro imediato da multidão. Dúzias de lojistas gritando e trabalhadores se precipitaram
pela passagem onde Bosch e Walling estavam e começaram a correr em sua direção. Bosch percebeu que iam ser atropelados e pisotea­dos. Com um só movimento, saltou para a direita, agarrando Walling pela
cintura e puxando-a para trás de uma das enormes colunas de ­concreto.

A multidão avançava dos dois lados e Bosch olhou em torno do pilar. O mercado agora estava vazio. Nenhum sinal de Maxwell, mas en­tão Bosch captou um movimento na bancada de vidro de um açougue, no ?m
do corredor. Olhou de novo mais detidamente e percebeu que o movimento vinha de trás da vitrine. Olhando através dos painéis de vidro e por cima dos cortes de carne bovina e suína, Bosch conseguiu divisar
o rosto de Maxwell. Estava no chão, as costas apoiadas no refri­gerador no fundo do açougue.

— Ele tá ali naquele açougue — sussurrou para Walling. — Vai na direita pelo corredor. Você pode se aproximar pelo lado direito dele.

— E você?

— Eu vou direto e vou chamar a atenção dele.

— Ou podemos esperar o reforço.

— Eu não vou esperar.

— Não achei que fosse.

— Pronta?

— Não, faz o contrário. Eu vou reto pra chamar a atenção dele e você se aproxima pelo lado.

Bosch sabia que era um plano melhor, porque ela conhecia Maxwell e Maxwell a conhecia. Mas isso também signi?cava que enfrentaria o perigo maior.

— Tem certeza? — ele perguntou.

— Tenho. É o certo.

Bosch olhou em volta do pilar mais uma vez e viu que Maxwell não se movera. Seu rosto parecia vermelho e suado. Bosch voltou a olhar para Walling.

— Ele continua lá.

— Ótimo. Vamos.

Separaram-se e começaram a se mover. Bosch deslocou-se rapi­damente por um corredor de barracas paralelo ao que terminava no açougue. Quando chegou no ?m deste, viu-se em uma venda de café mexicana com
paredes elevadas. Dava para se proteger e olhar em torno para o açougue. Isso proporcionava uma vista lateral da parte de trás do balcão. Viu Maxwell a seis metros de distância. Estava recostado na porta
do refrigerador, ainda segurando a arma com as duas mãos. Tinha a camisa completamente empapada de sangue.

Bosch apoiou-se em sua cobertura, respirou fundo e preparou­-se para sair e se aproximar de Maxwell. Mas então ouviu a voz de Walling.

— Cliff? Sou eu, Rachel. Deixa eu trazer ajuda.

Bosch olhou em torno da parede. Walling estava de pé, no cor­redor, a cerca de 1,5 metro do balcão do açougue, a arma abaixada ao lado do corpo.

— Não tem mais ajuda — disse Maxwell. — É tarde demais pra mim.

Bosch percebeu que se Maxwell quisesse atirar na colega, a bala teria de passar pelos vidros da frente e de trás do balcão de carnes. Com a placa da frente pendurada em ângulo, seria preciso uma bala mila­grosa
para atingi-la. Mas milagres acontecem. Bosch ergueu sua arma, apoiou-a na parede e preparou-se para atirar, se precisasse.

— Vamos, Cliff — disse Walling. — Desista. Não deixe terminar assim.

— Não tem outro jeito.

O corpo de Maxwell foi subitamente sacudido por uma tosse úmi­da e gutural. Sangue saiu por seus lábios.

— Deus, aquele cara me acertou mesmo — ele disse, antes de tossir outra vez.

— Cliff? — suplicou Walling. — Deixa eu ir aí. Quero ajudar.

— Não, se você entrar aqui eu v...

Suas palavras sumiram quando abriu fogo, apontando e estilhaçan­do completamente as portas de vidro. Rachel se abaixou e Bosch saiu de seu abrigo e retesou os braços, segurando a arma com as duas mãos.
Conteve-se, sem atirar, mas mirava no cano da arma de Maxwell. Se ele apontasse para onde estava Walling, acertaria Maxwell na cabeça.

Maxwell deitou a arma no colo e começou a rir, o sangue escorren­do pelos cantos da boca, dando-lhe um aspecto bizarro de palhaço.

— Acho... acho que acabei de matar um contra-filé.

Riu outra vez, mas isso o fez tossir mais, o que pareceu doloroso. Quando a tosse parou, voltou a falar.

— Só queria dizer... que foi ela. Ela quis ele morto. Eu só... eu só queria ela. Só isso. Mas ela não ia aceitar se não fosse desse jeito... e eu fazia o que ela queria. Por isso... me ferrei...

Bosch deu mais um passo. Achava que Maxwell ainda não o nota­ra. Deu mais um passo e então Maxwell falou outra vez.

— Desculpe — ele disse. — Rachel? Fala pra eles que eu pedi desculpa.

— Cliff — disse Walling. — Você mesmo pode dizer pra eles.

Diante dos olhos de Bosch, Maxwell ergueu a arma e pôs o cano debaixo do queixo. Sem hesitar, puxou o gatilho. O impacto jogou sua cabeça para trás e espalhou um jorro de sangue na porta do refrigerador.
A arma caiu no piso de cimento entre suas pernas abertas. No suicídio, Maxwell adotara a mesma posição da amante, da mulher que acabara de matar.

Walling deu a volta no balcão e se aproximou de Bosch e juntos olharam o agente morto. Ela não disse nada. Bosch olhou o relógio. Quase uma. Aquele caso o absorvera completamente, levando, do iní­cio ao
?m, pouco mais de 12 horas. O balanço eram cinco mortos, um ferido e um morrendo de exposição à radiação.

E também tinha ele. Bosch se perguntou se entraria nesse balanço no ?m das contas. Sua garganta agora queimava e sentia uma enorme compressão no peito.

Olhou para Rachel e viu sangue escorrendo outra vez pela maçã de seu rosto. Ela precisaria de pontos para fechar a ferida.

— Que tal isto? — disse. — Levo você pro hospital se você me levar.

Ela olhou para ele e deu um sorriso meio triste.

— Inclua Iggy nessa e a gente tá fechado.

Bosch deixou-a ali com Maxwell e começou a caminhar de volta ao Million Dollar Theater para ver o parceiro. Conforme voltava, as unidades de reforço paravam por todos os lados e multidões se for­mavam.
Bosch decidiu deixar os policiais tomarem conta das cenas do crime.

Ferras estava sentado em seu carro, com a porta aberta, à espera dos paramédicos. Segurava a arma num ângulo esquisito e sofria clara­mente. O sangue se espalhara por sua camisa.

— Quer um pouco d’água? — perguntou Bosch. — Tem uma garrafa no meu porta-malas.

— Não, vou esperar. Só queria que chegassem logo.

A sirene característica do furgão de socorro dos paramédicos se ouvia ao longe, chegando mais perto.

— O que aconteceu, Harry?

Bosch recostou na lateral do carro e contou que Maxwell acabara de se matar quando eles se aproximaram.

— Que jeito horrível de acabar, acho eu — disse Ferras. — Acua­do desse jeito.

Bosch balançou a cabeça, mas ?cou em silêncio. Enquanto espe­ravam, seus pensamentos o transportaram pelas ruas e colinas até o mi­rante, onde a última coisa que Stanley Kent vira fora a cidade se espar­ramando
sob seus olhos em belas luzes cintilantes. Talvez para Stanley fosse como um paraíso aguardando por ele no ?m de tudo.

Mas Bosch pensou que na verdade não fazia diferença se você morria acossado num açougue ou num mirante com vista para as luzes do paraíso. Você ia morrer, e o ?m não era a parte que importava. Estamos
todos no bico do corvo, pensou. Uns mais perto do que outros. Uns podem ver os golpes a?ados chegando, enquanto outros não vão saber de nada até que as bicadas já estejam sobre seus olhos, mergulhando-os
numa escuridão eterna.

O importante é continuar lutando, disse Bosch para si mesmo. Lutar até o ?m. Lutar contra a escuridão.

A unidade de resgate dobrou a esquina na Broadway, contornando os inúmeros carros parados antes de ?nalmente brecar na entrada do beco e desligar a sirene. Bosch ajudou seu parceiro a ?car de pé e sair
do carro, e os dois caminharam até os paramédicos.

 

 

                                                   Michael Connelly         

 

 

 

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