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O MISTÉRIO DA CASA VERDE / Moacyr Scliar
O MISTÉRIO DA CASA VERDE / Moacyr Scliar

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MISTÉRIO DA CASA VERDE

 

Na falta de outro lugar, Arturzinho resolveu criar um clube para sua turma num antigo casarão abandonado, que é lendário na pequena cidade de Itaguaí, no Rio de Janeiro. Ali, na chamada Casa Verde, cerca de dois séculos antes, havia funcionado um asilo para doentes mentais, cuja história inspirou o escritor Machado de Assis a escrever um de seus contos mais célebres: O alienista.

Reunindo sua turma — Pedro Bola, André Catavento e Leo —, o rapaz organiza uma expedição à Casa Verde, para dar início ao projeto. Mas os quatro vão ter que abrir uma entrada na parede dos fundos da casa, já que as portas e janelas originais foram emparedadas há muitos anos. No interior sombrio do casarão, uma primeira surpresa: o ambiente está completamente limpo, não se encontra nem um sinal de sujeira, que deveria ter se acumulado ali com o passar dos anos.

Porém, outra surpresa maior espera os rapazes atrás de uma porta fechada, onde um letreiro exibe a palavra ”Director”. Um enigma que, para ser decifrado, levará Arturzinho, André, Pedro e Leo a tomar contato com o próprio conto de Machado de Assis. Assim, os quatro descobrem O alienista, um texto curto, bem-humorado e gostoso de ler, na opinião deles mesmos, e ao mesmo tempo uma obra que faz uma reflexão profunda sobre a autoridade e o poder. Mas de que
modo um texto literário, escrito há mais de cem anos, pode ajudar a explicar os fatos presentes?

Contando uma trama marcada pelo mistério, que acaba. por envolver quatro jovens da Itaguaí de hoje numa aventura fantástica, Moacyr Scliar — um dos mais importantes escritores brasileiros da atualidade — reconta O alienista, um ”clássico” da literatura brasileira. Proporciona, assim, um duplo prazer para o leitor: a oportunidade de conhecer um conto fascinante de um dos maiores autores brasileiros de todos os tempos e também a história de um grupo de adolescentes que, batalhando pelos seus objetivos, descobrem a solidariedade e enriquecem suas vidas...

 

 

No qual Arturzinho e seus amigos bolam um ousado plano para entrar na Casa Verde

 

Sob muitos aspectos, Itaguaí em nada difere de outras pequenas cidades brasileiras. As mesmas disputas entre dois tradicionais times de futebol, o Itaguaiense e o Conquista, as mesmas brigas políticas entre governo e oposição, as fofocas no ”Vespeiro”, o largo que fica no centro, ao lado da prefeitura e que serve de ponto de reunião no fim da tarde. Contudo, há uma peculiaridade: Itaguaí é uma cidade histórica, antiga. Chegou a ser importante à época do Império e nas primeiras décadas do século XX. Aos poucos foi perdendo importância, à medida que, por causa do desmatamento acelerado, ia desaparecendo a principal fonte de riqueza da região, a exportação de madeira. Desse passado restam poucas lembranças: o chafariz da praça, em bronze, importado da Europa, o vetusto prédio da prefeitura velha (há uma nova), alguns objetos conservados no pequeno museu da cidade, pouco freqüentado; as ruelas sinuosas do Lavradio, bairro antigo, onde agora funciona o pequeno comércio do centro composto de lojinhas de artigos populares.

 

Mas, diferente de outras pequenas cidades, Itaguaí tinha até há pouco tempo um mistério. Este mistério era representado por um lúgubre casarão situado no meio de um grande terreno, na rua Nova. Apesar do nome, a rua Nova era das mais antigas da cidade e, em outros tempos, tinha sido a mais bela. com o tempo, porém, a rua Nova se fora deteriorando; as antigas mansões estavam em ruínas, desabitadas ou então ocupadas por mendigos.

 

O casarão mencionado era conhecido como Casa Verde. O nome aludia à cor das janelas — numerosas, cinqüenta de cada lado — mas a pintura de há muito se fora. Na verdade, nem janelas existiam mais: para evitar que o lugar fosse invadido, algum prefeito mandara murá-las. Murada fora também a porta de entrada, o que dava ao local um ar ainda mais fantasmagórico. Os moradores das redondezas o evitavam. Preferiam até atravessar a rua a passar na frente da casa. Havia razões para tal temor: em Itaguaí, todos diziam que a centenária Casa Verde era mal-assombrada. As mães, quando queriam ameaçar os filhos — porque não comiam, porque recusavam ir para a cama — recorriam a uma tradicional ameaça:

 

— Olha que eu vou botar você na Casa Verde, e de lá você nunca mais sai.

 

Era o que bastava para que as crianças imediatamente se comportassem como anjinhos. com a Casa Verde ninguém brincava. Apesar de ela ter sido celebrada por Machado de Assis em O alienista, ou talvez até por causa disso, muitos itaguaienses achavam que era melhor evitar o assunto. Que era objeto de polêmica. A professora Isaura, por exemplo, que lecionava no segundo grau da Escola Itaguaí, era uma entusiasta defensora da obra do grande escritor. É preciso ler O alienista, sustentava, para entendermos o passado de nossa cidade, e para desfazer as lendas sobre a Casa Verde. Outras pessoas discordavam. Achavam que a obra havia prejudicado a imagem de Itaguaí e que o melhor era esquecê-la.

 

Por que se dizia que a Casa Verde era mal-assombrada? Nunca ficou bem claro: as origens da lenda perdiam-se no tempo. Sabia-se — e daí teria se originado a obra de Machado — que ali funcionara, em outros tempos, um hospício, um lugar para loucos. A tal aludia o dístico gravado sobre o frontispício: ”São veneráveis os loucos: Deus tirou-lhes o juízo para não pecarem”. Entre parênteses, o nome do suposto autor, o papa Benedito VIII. De fato, a frase era do AlCorão, o livro sagrado dos muçulmanos; a menção ao papa era para evitar conflitos com os católicos.

 

Um lugar para loucos, certo; mas isto não explicava o temor que nos itaguaienses despertava a Casa Verde. Antigos hospícios existem em muitas cidades, e alguns deles seguem funcionando, e apesar da aparência em geral sombria, não chegam a inspirar temor. Não, a razão forçosamente seria outra. Qualquer que fosse a causa, a má fama da Casa Verde era alimentada por constantes rumores: não faltava quem garantisse ter ouvido ali, à noite, gritos e gemidos.

 

Nem todo o mundo, em Itaguaí, partilhava de tais temores. Arturzinho era um deles. Conhecido como o Xereta — os amigos diziam que se metia em tudo —, sempre tivera uma enorme curiosidade em relação ao local, que conhecia desde criança: uma tia morava não longe dali, e quando o convidava para passar o fim de semana com ela o Arturzinho não se fazia de rogado. Passava horas rondando o soturno lugar. Crivava a tia de perguntas a respeito; a boa senhora persignava-se e pedia que mudassem de assunto: aquilo não era coisa sobre a qual gostasse de falar. Melhor, dizia, era deixar as assombrações em paz; que o sobrinho esquecesse a Casa e parasse de ir até lá, sob pena de criar confusão.

 

Esquecer, porém, não era um verbo muito usado no vocabulário de Arturzinho, que não costumava desistir facilmente das coisas. Perseguia seus objetivos com tenacidade, mesmo que envolvessem confusão. Melhor dito: principalmente se envolviam alguma confusão. Arturzinho adorava, envolver-se em situações difíceis, arriscadas até — para depois sair delas, o que, felizmente, sempre conseguia. Aos dezesseis anos (mas, alto e forte, aparentava mais), já passara por muitas aventuras. Por exemplo: uma vez escondera-se no compartimento de carga de um caminhão e viajara até Porto Alegre, deixando os pais, que não sabiam de seu paradeiro, quase malucos.

 

Quando esta história começa, Arturzinho estava às voltas com um outro projeto, não tão arrojado, mas ainda assim complicado. Esse projeto nascera de um problema. Arturzinho, cara popular, tinha uma turma, razoavelmente grande, de rapazes e moças que gostavam de ouvir rock a todo o volume, gostavam de dançar, gostavam de tocar instrumentos musicais. Nada de especial, nada diferente de outros jovens — mas, onde ouvir e fazer música, onde dançar? O pai de Arturzinho, um médico que trabalhava muito e prezava o seu descanso, proibira qualquer tipo de zoeira em casa. Os pais dos seus amigos e amigas haviam adotado a mesma atitude: barulho, não, era a palavra, de ordem. Nos bares, a consumação era um obstáculo. No clube da cidade não podiam entrar: tinham batido boca com o gerente. Enfim: sentiam-se como refugiados que país nenhum quer aceitar. E era esse o problema que vinha incomodando o Arturzinho, e que chegava até a lhe tirar o sono: onde se reunir com a turma? Onde encontrar um local adequado para uma diversão que, se não fosse barulhenta, não teria graça? Até que um dia, caminhando pela rua, teve uma inspiração, uma idéia dessas que fazem a pessoa ficar de respiração suspensa, pensando: que coisa genial!

 

Correu para casa, telefonou para os amigos mais chegados dizendo que tinha algo muito importante a comunicar. E marcou, para aquela mesma noite, uma reunião na pizzaria do Marcolino, cujo dono, um calabrês de pitoresco sotaque, era conhecido por sua tolerância em relação à zoeira dos jovens freqüentadores que às vezes até ganhavam desconto especial.

 

Quando Arturzinho chegou os outros já estavam lá: o Pedro, conhecido como Pedro Bola, um gordinho risonho quase tão agitado quanto Artur; André Catavento, alto, boapinta, igualmente safado; e Leo, o intelectual da turma, rapaz de óculos, ar melancólico, que andava sempre com um livro sob o braço. Os quatro estavam sempre juntos — sob a chefia de Arturzinho, líder nato. Uma liderança não muito pacífica: André não escondia a inveja que sentia de Arturzinho, cujo sucesso com garotas era um fato bem conhecido. E foi justamente André que interpelou o recém-chegado:

 

— Então? O que é que você está inventando agora? Fale logo, porque tenho um grande programa para esta noite e não posso perder tempo.

 

—Já conto — Arturzinho gostava de um suspense, e gostava ainda mais de incomodar o rival. — Mas primeiro vamos comer, porque estou morrendo de fome.

 

E, apesar dos resmungos de André, pediu aquilo que Marcolino chamava de megapizza — oitenta centímetros de diâmetro. Devoraram-na até a última migalha — Pedro Bola, que fazia jus ao apelido, comendo boa parte da quota do Leo. Quando terminaram, André voltou à carga:

 

— Então, Xereta, o que é que você está aprontando?

 

Em outras circunstâncias Arturzinho teria se irritado: detestava o apelido, como André sabia muito bem. Naquele momento, contudo, optou por fingir que não tinha ouvido e foi direto ao assunto:

 

— Como vocês estão carecas de saber, precisamos de um lugar para nossas reuniões — proclamou, em tom veemente. — Um lugar em que a gente possa ouvir música sem que ninguém nos incomode, um lugar para dançar, para bater papo. Enfim, o nosso próprio clube.

 

Fez uma pausa dramática e concluiu:

 

— E eu tenho esse lugar.

 

— É? — André Catavento, mal contendo o despeito. — E que lugar é esse, pode-se saber?

 

Nova pausa. Arturzinho sorriu, misterioso e superior:

 

— A Casa Verde.

 

Os outros se olharam, espantados, e Pedro Bola protestou:

 

— Essa não, Arturzinho. A Casa Verde é um lugar mal-assombrado, todo o mundo sabe disso. Está cheio de fantasmas dos malucos que morreram lá.

 

— Exatamente — replicou Arturzinho.

 

— Exatamente o quê? — André, cada vez mais irritado.

 

— Exatamente: a Casa Verde tem fama de ser mal-assombrada. E é por isso que vamos tomar conta do local. Lá, ninguém nos incomodará. A gente limpa aquilo, a gente arruma, traz umas mesas, umas cadeiras, uns sofás, um som legal, e pronto, temos o nosso clube, o lugar de onde ninguém vai nos mandar embora.

 

— A não ser as almas penadas — riu Pedro Bola.

 

— É — Arturzinho, irônico. — As almas penadas. Se você acredita nessas coisas...

 

— Não sei — respondeu Pedro, meio desconcertado. — Tanta gente fala nisso...

 

— É superstição — interveio Leo. — Essa história não passa de superstição.

 

Leo falava pouco, mas quando afirmava algo, era definitivo. Os outros o respeitavam, porque Leo lia muito, sabia das coisas. Arturzinho, sua autoridade agora reforçada, voltou à carga:

 

— Além disso, a Casa Verde não tem dono. Podemos ficar lá o tempo que quisermos.

 

— Mas o pessoal das redondezas não vai gostar — ponderou Pedro Bola. — São capazes de criar caso.

 

— Criarão caso — replicou Arturzinho — se virem a gente entrar. Mas eu já pensei nisso.

 

Pegou um lápis e um papel e desenhou um retângulo:

 

— Isto aqui é a Casa Verde. Aqui está a rua e a porta de entrada. Que, como sabemos, agora está murada, bem como as janelas. É o que as pessoas vêem: porta murada, janelas muradas. Pensam que não há ninguém lá dentro. Agora: se nós abrirmos uma outra porta, bem pequena, aqui... estão vendo?... na parede dos fundos, poderemos entrar e sair sem que ninguém perceba, mesmo porque o mato ali está muito crescido.

 

— Mesmo que a gente consiga entrar — André ainda não estava convencido — , como fica com o resto? com a luz, por exemplo?

 

— Para que luz? Usamos velas ou lampiões. É muito mais bonito. De mais a mais, temos em casa um gerador pequeno, que posso usar quando quiser.

 

— Não sei — André estava mesmo a fim de contrariar. — Acho que isso tem tudo para dar errado. Porque se a gente...

 

— Sabe de uma coisa? — interrompeu Arturzinho. — Vamos votar. A maioria decide. Cada um escreve num pedaço de papel ”sim” ou ”não”. E pronto: a questão estará resolvida.

 

Uma jogada muito hábil. Arturzinho sabia que podia contar com o voto do silencioso Leo, que sempre o apoiava. Quanto a Pedro Bola, no fundo tímido e assustadiço, respeitava os corajosos, os destemidos. Falando grosso, Arturzinho conquistava o seu respeito. De fato, quando abriram os votos, constataram: três ”sim”, um ”não”.

 

— Está decidido — proclamou Arturzinho, triunfante. — Amanhã vamos até lá, tomar conta do nosso clube.

 

Às nove da noite seguinte — uma noite escura, de céu carregado, portanto muito conveniente para uma operação secreta — encontraram-se na ruazinha ao lado da Casa Verde. Arturzinho foi o último a chegar; vinha carregando com esforço uma grande bolsa plástica.

 

— Já não era sem tempo — reclamou André, que não perdia ocasião para implicar com o rival.

 

— Desculpem. Eu me atrasei porque tive de pegar o material na casa do irmão da nossa empregada, que é pedreiro.

 

Abriu a bolsa e mostrou marretas e talhadeiras.

 

— O quê! — Pedro Bola, surpreso. — Não me diga que nós vamos ter de fazer o trabalho.

 

— E quem mais faria? — Arturzinho, bem-humorado. — Vamos lá, gordo. Pelo menos uma vez na vida você vai dar duro.

 

Embrenharam-se pelo verdadeiro matagal que existia nos fundos da Casa Verde. Lanterna na mão, Arturzinho procurava um bom lugar para a futura porta, enquanto os outros, assustados, olhavam ao redor. De repente:

 

— Ouvi um barulho — sussurrou Pedro Bola, os olhos arregalados. — Gente, juro que ouvi um barulho aí dentro.

 

— Deixe de ser medroso — replicou Arturzinho. — Isso deve ser a sua imaginação.

 

— Ou então um rato — ponderou Leo.

 

— Não sei o que é pior — gemeu Pedro Bola. — Tenho pavor de ratos.

 

— Deixa pra lá. Olhem, acho que aqui a porta vai ficar bem. — Arturzinho abriu a bolsa, distribuiu as ferramentas. — Vamos começar. Dois trabalham, dois descansam. Depois a gente troca.

 

Abrir a espessa parede não foi tão difícil quanto parecia: com o tempo, o material perdera a solidez. Antes da meia-noite a tarefa foi concluída.

 

— Muito bem — disse Arturzinho, ainda ofegante. — Até aqui, tudo bem. Agora vamos entrar.

 

— Não sei... — Pedro Bola, numa voz trêmula. — Acho que vou embora. Já é tarde, amanhã tem aula...

 

— Você está é assustado — cortou Arturzinho. — Mas não tem importância: deixa que eu vou na frente, vocês me seguem.

 

Lanterna de mão acesa, introduziu-se pela abertura. Depois de alguma hesitação, os outros foram atrás.

 

Era realmente um lugar tétrico, aquela Casa Verde, como constataram logo ao entrar. Viam-se numa vasta sala vazia, gradeada; das paredes, pendiam velhas correntes enferrujadas, ali presas por argolas.

 

— Aqui decerto era onde eles prendiam os loucos furiosos — disse Arturzinho. E, querendo animar os companheiros, acrescentou: — E aqui nós podemos fazer um lugar para dançar.

 

— A Danceteria Loucura — resmungou André, irônico. — Escuta, gente, agora que já vimos como é o lugar por dentro... que tal ir embora? Eu não gosto disso aqui.

 

— Não, vamos explorar o resto — comandou Arturzinho. Lanterna na mão, saiu pela porta daquela espécie de grande jaula e avançou pelo corredor. À direita e à esquerda, salas gradeadas, umas menores, outras maiores.

 

— Estranho — murmurou Leo.

 

— Estranho o quê? — Pedro Bola, numa voz esganiçada que traía o medo.

 

— A limpeza. Isto aqui está perfeitamente limpo. Não há sujeira no chão, não há teia de aranha...

 

— E você queria sujeira? — Pedro Bola, assombrado. — E teias de aranha? Era só o que faltava, Leo!

 

— Não estou dizendo isso. Estou me perguntando é como este lugar ficou limpo depois de tantos anos de abandono.

 

— Sabe que você tem razão? — Pedro Bola, intrigado. — Está muito limpo, isto aqui. A não ser que o prefeito tenha mandado fazer uma faxina. Ele tem mania de limpeza, você sabe...


— E por onde entraram os faxineiros? - Pergunta para a qual Pedro Bola não tinha resposta. Mas que era intrigante a limpeza do local, isso era. Sala após sala, todas muito limpas.

 

Chegavam ao fim do corredor — na verdade, o início dele, o grande vestíbulo de entrada. À esquerda, havia uma sala, esta não gradeada, com uma porta comum, fechada. Afixado nela, um antiquíssimo letreiro: ”Director”.

 

— Pelo jeito aqui era a sala da direção — disse Arturzinho. E, num tom de gozação: — Este pode ser o lugar para os encontros mais reservados... Vamos entrar?

 

Sem esperar a resposta dos amigos, abriu a porta. E no instante seguinte estavam ali, olhos arregalados, paralisados de susto.

 

No meio da sala, sentado em uma grande cadeira e de frente para eles, estava um homem. Um homem estranhíssimo: desgrenhada cabeleira grisalha, imensa barba, e os olhos — que olhos, aqueles! De sob as espessas sobrancelhas, miravam fixo os garotos, com um brilho verdadeiramente hipnótico.

 

Durante um instante os quatro ficaram ali, petrificados de terror. Depois, e como que obedecendo a um comando, deram meia-volta e dispararam pelo corredor. Ao chegar ao buraco de saída, novo momento de pânico: queriam sair ao mesmo tempo, não conseguiam, embolavam-se — até que finalmente emergiram dali, Arturzinho e André na frente, Pedro Bola atrás, Leo, ainda meio atarantado, por último. Atravessaram o matagal, lanhando-se nos galhos,- e correndo como malucos pela rua chegaram finalmente a um lugar seguro — a casa de André, a mais próxima dali.

 

No qual, mais calmos, eles tentam decifrar o mistério da Casa Verde

 

Por algum tempo ficaram ali, ofegantes, sem poder falar. Finalmente, André bradou, apontando a Arturzinho um dedo acusador:

 

— Eu disse, cara! Eu disse que essa história ia terminar mal! Todo o mundo sabe que essa tal de Casa Verde é mal-assombrada e que a gente não deveria passar nem perto. Mas você tinha de inventar essa coisa de clube. Porque você pensa que é o maior, que sabe tudo. Viu, cara? Viu no que deu?

 

Arturzinho não teve como responder: aparentemente André tinha razão. Pedro Bola, então, não tinha dúvida: era um fantasma, aquilo que eles haviam visto. Leo, porém, discordava:

 

— Para mim não era fantasma.

 

André olhou-o, assombrado com aquela audácia. Desde quando o baixinho ousava contrariá-lo? Mas Leo repetiu:

 

— Não era fantasma coisa alguma.

 

— Ah, não — André, irônico, a custo contendo-se: a vontade que tinha era de dar um tabefe no outro. — Não era fantasma. E o que era, então? Diga, você que sabe tudo, o que era aquilo? Uma visão, por acaso? Nós quatro tivemos, ao mesmo tempo, uma visão? Foi isso?

 

— Não. Não era uma visão — Leo, no mesmo tom surpreendentemente calmo.

 

— Ah, não. E o que era? Pode o amiguinho nos dizer, por favor? Estamos ansiosos por ouvi-lo, senhor professor doutor Leo.

 

Leo optou por ignorar a gozação.

 

— Era uma pessoa. Um homem. Alguém de carne e osso, como nós.

 

— Essa não — protestou Pedro Bola. — A Casa Verde está completamente fechada, ninguém poderia ter entrado lá. Além disso, como é que você sabe que era uma pessoa? Você tocou o homem, por acaso?

 

— Não. Não toquei.

 

— E então? De onde é que você tirou a certeza de que era alguém como nós?

 

— Por causa das bananas.

 

— Bananas? — Pedro Bola não estava entendendo mais nada. — Que bananas, cara? De que você está falando?

 

— Estou falando — continuou Leo, no mesmo tom calmo — de um prato com bananas que estava sobre aquela mesinha ao lado do homem.

 

Os outros se olharam, perplexos: ninguém tinha visto banana alguma. Mas Leo insistiu:

 

— Havia, sim, um prato com bananas maduras. Tenho certeza absoluta.

 

— Muito bem — disse André, irônico. — Então havia ali um prato com bananas. E daí, espertinho?

 

— Daí que fantasma não come banana. Os outros calaram-se, estarrecidos.

 

— Pensando bem — admitiu Arturzinho —, Leo tem razão. Fantasma não come banana. Aliás, que eu saiba, fantasma não come coisa alguma. Logo, aquele homem que nós vimos lá não era um fantasma. — E para Leo: — Você tem uma grande cabeça, cara.

 

Admiração sincera, mas não partilhada por todos. Pedro Bola achava o Leo um garoto encolhido, insignificante. Já André o invejava: Leo era o melhor aluno da classe, tirava sempre notas excelentes. Sempre que podia, André debochava dele, tentava ridicularizá-lo. O que deixava Arturzinho indignado. Sabia que Leo tinha uma existência sofrida. Órfão de pai, fazia o que podia para ajudar a mãe, costureira pobre, a sustentar a casa; além disso, cuidava de uma irmã inválida. E mesmo assim conseguia ler e estudar, o que a Arturzinho parecia uma coisa heróica.

 

— Mas esperem um pouco — disse Pedro Bola, intrigado. — De fantasma eu não entendo, mas de banana entendo, e muito: como meia dúzia todos os dias. Como é que aquelas bananas foram parar lá? Sei que não tem nenhuma bananeira por perto, uma vez andei olhando aquela área. Logo, o homem deve ter comprado. Mas se comprou em algum lugar...

 

— ... ele seria uma figura conhecida — completou Leo. — Ninguém poderia esquecer aquele tipo. Vocês repararam nas roupas dele?

 

Ninguém tinha reparado. Todos se lembravam da feroz expressão do desconhecido, mas nas roupas não tinham atentado.

 

— Ele estava vestido — continuou Leo — como um cavalheiro do século XIX: casaca preta, camisa branca, gravata de laço. Seria impossível uma figura assim andar por aí sem chamar a atenção. Principalmente numa cidade pequena como a nossa.

 

— Você quer dizer — Arturzinho, intrigado — que o homem nunca sai da Casa Verde?

 

— É o que eu acho — disse Leo. — Inclusive por causa de um outro detalhe: eu nunca vi um sujeito tão pálido. Aquela cara não vê sol há muito tempo. Aposto que ele...

 

— Não interessa — interrompeu André. — Eu não quero nada com esse cara. Fantasma ou não, ele já ocupou a Casa Verde. De modo que a idéia do Arturzinho foi para o espaço. Podemos esquecer esse tal de clube.

 

— Talvez não — disse o Arturzinho.

 

— Como não?

 

— Estamos partindo da hipótese — continuou Arturzinho — que esse homem quer ficar sozinho, que ele não quer ver ninguém. Mas será que é assim mesmo? Não sei.

 

— Como? — André não percebia aonde o outro queria chegar.

 

— Nós não sabemos — continuou Arturzinho. — Ele não disse nada. Nem nós. Não sabemos que tipo de homem ele é. De repente, é um cara até legal... esquisito, mas legal, um cara que não se importará se a gente fizer o nosso clube numa das salas, e que até gostará disso... quem sabe a gente o convida para ser uma espécie de presidente de honra? Eu acho que temos de bater um papo com o sujeito, descobrir quem é, porque se veste daquela maneira... Enfim, temos de ficar amigos dele.

 

— Essa não! — bradou Pedro Bola, indignado. — Bater um papo com aquele tipo? De jeito nenhum. Eu estou fora. Não volto lá nem amarrado.

 

— Espere um pouco — disse Leo. — Essa idéia eu não acho de todo má. Arturzinho tem razão: o cara não mandou a gente embora. Aliás, nem falou. Só nos olhou.

 

— É, só nos olhou — disse André Catavento. — Agora: se olhar matasse, já estaríamos mortos.

 

— Isso é a sua impressão — disse Arturzinho.

 

— É a minha também — acrescentou Pedro Bola.

 

— Bem—disse Arturzinho —, parece que temos um empate de votos. Vamos decidir no cara ou coroa. Cara: nós vamos lá, falar com o homem. Descobrimos quem ele é, o que está fazendo na Casa Verde, perguntamos se topa a idéia do clube. Coroa: esquecemos tudo, fazemos de conta que nada vimos.

 

Tirou do bolso uma moeda, jogou-a para o ar, apanhoua, mostrou-a a todos-, cara.

 

— Puxa vida, Arturzinho — disse André, despeitado. — Você não gosta de seu apelido, mas cá entre nós, só um xereta como você para ter a idéia de procurar o homem, hein?

 

— Eu tive a idéia — Arturzinho, triunfante —, mas quem decidiu foi o destino. Você viu.

 

— Vi — concedeu André. — Mas ainda acho que vamos fazer uma bobagem.

 

— Ora — disse Arturzinho. — Na pior das hipóteses, vamos ter de correr de novo. Mas no mínimo é uma aventura. Você não gosta de aventuras? Você que só vê filmes de ação? Faça de conta que está num filme: O mistério da Casa Verde.

 

— Desde que a gente não leve um tiro... — suspirou Pedro Bola.

 

— Não vamos levar tiro algum — garantiu Arturzinho. — Vamos ficar amigos daquele homem. E ele ainda vai cuidar do clube para a gente, vocês vão ver.

 

Combinaram um encontro para a noite seguinte, à mesma hora. E separaram-se. Arturzinho foi para a confortável casa em que morava com os pais e dois irmãos mais velhos. André permaneceu ali, no apartamento de andar inteiro, do qual — filho único que era — tinha um quarto enorme. Pedro Bola também morava num apartamento com a mãe, divorciada, uma irmã e uma tia. Leo era o que tinha de percorrer um trajeto maior: morava numa casa modesta, num bairro afastado.

 

Quando se deitaram, já madrugada, os quatro pensavam na mesma coisa: no estranho homem da Casa Verde.

 

 No qual eles se apresentam ao hóspede da Casa Verde

 

O dia seguinte foi difícil para os quatro. Pedro Bola foi tirado da cama à força pelo irmão mais velho, mas adormeceu de novo na mesa do café. Arturzinho cochilou três vezes nas aulas da manhã e teve de ser advertido pelos professores. André movia-se como um zumbi. Mesmo o dedicado Leo teve dificuldade em fazer o exame de inglês, no qual habitualmente se saía bem. Por tudo isso, quando se encontraram, à noite, estavam num péssimo humor. Pedro Bola queria mesmo desistir daquela história: é muito trabalho para arranjar um clube. Além disso, a idéia de enfrentar de novo o maluco — seu diagnóstico já estava feito — não lhe agradava em nada. Em vão Arturzinho tentava animar os companheiros. Leo, ainda que cansado, o acompanharia. Mas Pedro Bola e André, irritados, relutavam em entrar na casa. Por fim Arturzinho saiu-se com uma fórmula conciliadora:

 

— Eu e o Leo entramos, vocês esperam aqui. Se tudo der certo com o homem, chamamos vocês, continuamos com nosso plano. Se não der certo, desistimos.

 

Todos de acordo, Arturzinho e Leo embrenharam-se de novo no matagal. Quando chegaram aos fundos da casa, uma surpresa: a abertura que tinham feito na noite anterior estava fechada com tábuas. Colocadas sem dúvida pelo estranho morador.

 

— Está certo — observou Arturzinho. — O homem tem o direito de se proteger.

 

Experimentou as tábuas: não estavam fixas. Sem muito esforço, conseguiu afastá-las, empurrando-as junto com os tijolos que as calçavam. Leo olhava-o, sem dizer nada. Arturzinho hesitou; agora também ele estava obviamente apreensivo. Mas não era de desistir:

 

— Que diabos — gritou —, já que chegamos até aqui vamos em frente.

 

E meteu-se pelo buraco na parede. Leo seguiu-o.

 

De novo viram-se na sala gradeada, com as correntes na parede. Detiveram-se um instante: nada. Não se ouvia um som. Avançaram cautelosamente pelo corredor, chegaram à porta do ”Director”. Estava entreaberta. Detiveram-se, olharam-se à luz fraca da lanterna: entramos ou não entramos? Mas então:

 

— Entrai — disse uma voz vinda lá de dentro, uma voz grossa, profunda.

 

De puro susto, Arturzinho quase deixou cair a lanterna. O convite (ou a ordem?) repetiu-se:

 

— Entrai.

 

Depois de uma pequena hesitação, Arturzinho finalmente abriu a porta. Entraram, ambos. E ali estava o homem, na mesma posição da noite anterior, a mirá-los, fixamente.

 

— Eu já vos esperava — disse por fim, numa voz grossa, rouca.

 

De novo, Arturzinho e Leo estremeceram. Mas agora já não sentiam tanto medo. Tendo falado, o homem parecia-lhes mais próximo do normal do que na noite anterior; esquisito, decerto, mas já não tão aterrorizante.

 

— Vós sois persistentes — acrescentou ele.

 

”Vós sois”? Arturzinho jamais ouvira alguém falando daquela maneira. Contudo, a questão era secundária. O importante era que o homem estava iniciando um diálogo. com o que se revelava, se não amistoso, pelo menos não tão hostil. De modo que resolveu ir em frente:

 

— Desculpe, mas... o senhor nos conhece? — (A rigor, deveria optar por um ”Desculpai...”, mas isto exigiria muito esforço em sua capacidade de conjugar verbos.)

 

O homem esboçou um pálido e desdenhoso sorriso.

 

— Se vos conheço? Pessoalmente, não. Mas posso dizer tudo a vosso respeito. Posso penetrar em vossos corações, posso percorrer os sombrios corredores de vossa mente. Posso fazer tudo isto, e mais ainda, sabeis por quê? Porque sou o alienista. E o alienista reconhece de imediato os loucos. Como vós.

 

Arturzinho arregalou os olhos, de espanto.

 

— Loucos, sim — prosseguiu o homem, tranqüilamente. — Estranhais o que estou dizendo? Não é de admirar: os loucos sempre estranham o que é normal, o que é sábio. Foi o que constatei depois de estudar muitos anos a loucura. Conheço-a profundamente: os seus diversos graus, os casos em que se pode classificar. Sou um cientista, como vedes. E, baseado na ciência, posso garantir que vós sois loucos.

 

Sorriu, desdenhoso:

 

— A bem da verdade, nem era preciso ser alienista para diagnosticá-los. Vossas esquisitas vestimentas, vosso esdrúxulo penteado, as estranhas palavras que usais, tudo isto apregoa aos quatro ventos a vossa insanidade, a vossa alienação.

 

Calou-se um instante, e continuou:

 

— Sei o que pretendeis: quereis refugiar-vos aqui, na Casa Verde, como muitos outros doentes mentais que vos precederam e que ocuparam estas dependências. Em verdade, todos foram por mim admitidos. Até o momento em que, pela quantidade de gente aqui confinada, dei-me conta: o lugar de loucos, como vós, é lá fora. O mundo é um hospício, o vosso hospício. A Casa Verde é o meu reduto, o reduto da ciência, coisa séria, que merece ser tratada com seriedade. Portanto, nada tendes a fazer aqui.

 

— Mas escute uma coisa... — começou a dizer Arturzinho. O homem levantou-se, os olhos brilhando de fúria:

 

— Não me interrogueis! Não vos concedi esse privilégio! Não dou razão dos meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus!

 

E, transtornado, apontou a porta:

 

— Fora! Fora daqui, insanos!

 

Arturzinho ainda tentou acalmá-lo, que é isto, meu senhor, nós somos amigos, estamos aqui em missão de paz — mas aí o homem passou a mão numa barra de ferro. Os dois amigos precipitaram-se pelo corredor, passaram pelo buraco e se viram fora da casa, diante de Pedro Bola e André que, espantados, os olhavam.

 

Durante uns bons minutos, ficaram ali, ofegantes, sem poder falar.

 

— Já sei — disse André, sem disfarçar o sorriso de triunfo. — O cara correu vocês lá de dentro. Bem feito, Xereta. Eu disse que essa história não ia terminar bem. Ah, mas você tinha de insistir. Porque você é o espertinho, você é o cara que sabe tudo, o cara que ia convencer o maluco a fazer parte do nosso clube. Bem feito, cara. Pena que o sujeito não te deu uma surra.

 

Arturzinho, a respiração opressa, não ouvia.

 

— Deus, que cara estranho — disse, por fim. — Que cara estranho.

 

Ainda ofegante, voltou-se para Leo:

 

— Hein, Leo? Que é que você diz? Não é um bicho muito louco, o sujeito?

 

— É — disse Leo, numa voz sumida. — Muito estranho.

 

— Mas afinal — Pedro Bola, agora curioso — o que aconteceu lá dentro? O cara falou com vocês, Arturzinho?

 

— Falou.

 

— E o que ele disse? Arturzinho pensou um pouco:

 

— Sabe que eu não sei, cara? Falou uns negócios muito complicados. E o jeito que ele falava! Vós sois isto, vós sois aquilo. Ah, sim, nos chamou de loucos.

 

— Loucos? — Pedro Bola, deliciado. — Essa é ótima. Nós somos os loucos. E ele é o quê?

 

— O alienista — disse Leo.

 

— Alienista? O que é isso?

 

— Alienista — explicou Leo — era o nome dos doutores que tratavam malucos. Eu acho...

 

Interrompeu-se.

 

— Acha o quê? — André, impaciente. — Desembucha, cara. O que é que você acha?

 

— Acho — continuou Leo — que temos uma pista para descobrir quem é esse homem.

 

— Temos uma pista, não — protestou André. — Você pode ter uma pista, cara, mas a mim não interessa. Porque eu não quero descobrir coisa alguma. Já estou com o saco cheio dessa história. E acho que o Pedro Bola também. Não é, Pedro Bola?

 

— Bem... — começou Pedro Bola. Ao contrário do amigo, estava obviamente interessado no assunto.

 

—Já sei — suspirou André —, vocês estão todos contra mim. Está bom, vamos em frente. Diga, Leo: que pista é essa que você descobriu?

 

— Eu acho que sei do que o homem está falando. — Uma pausa. — Mas não tenho certeza. Tenho de fazer uma pesquisa na biblioteca. Amanhã eu conto mais.

 

André não disse nada. Pesquisa era uma palavra que lhe dava alergia, e da qual não queria nem ouvir falar. Voltou-se para o Arturzinho:

 

— E você, cara? Também quer descobrir quem é o homem?

 

— Claro. E acho que sei por onde começar. Vejam bem: como o Leo disse, esse homem deve ter contato com alguém aqui de fora. Quem é que lhe leva a comida? Aquelas bananas, por exemplo, quem trouxe? Temos de descobrir quem é essa pessoa. Ela pode nos esclarecer quem é esse tal de alienista, e o que ele está fazendo aí dentro. Essa pessoa pode nos dizer quem ele é. E pode servir de contato também.

 

Ficaram todos em silêncio, pensativos.

 

— Uma coisa que eu não entendo — disse Pedro Bola, por fim. — É: se existe essa tal pessoa, como é que entra na casa? A porta lá na frente está murada. As janelas também. A única abertura é essa que nós fizemos...

 

— Quem disse que é a única? — perguntou Leo.

 

— Como? — Pedro Bola não estava entendendo.

 

— Nós achamos que é a única abertura — disse Leo. — Será que é mesmo? Será que não existe uma outra?

 

Os outros olhavam-no, surpresos. Aquela possibilidade não tinha ocorrido a ninguém.

 

— Só há uma maneira de saber — concluiu Arturzinho. — É procurando. Vamos procurar essa tal de abertura.

 

— Um momento — protestou André. — Não me digam que vocês querem mais confusão. Já não chega o susto que a gente levou? Pô, gente, vamos esquecer essa tal de Casa Verde, isso aí dá azar.

 

— Vamos votar — propôs Arturzinho. — Quem acha que a gente deve continuar investigando, levanta a mão.

 

André voltou-se para Pedro Bola, fez-lhe um apelo:  

 

— Por favor, cara. Não vai atrás do Xereta, cara, você vai se dar mal. Por favor...

 

Mas Pedro Bola já estava de mão levantada:

 

— Desculpa, cara, mas agora estou gostando da história, isso aqui já está parecendo até aqueles filmes de aventura... Me desculpa, mas eu vou em frente.

 

— Se você quiser cair fora, André — Arturzinho, irônico —, não se constranja: nós entendemos. Coragem não é coisa para qualquer um. Mas tudo bem, depois nós convidaremos você para fazer parte do Clube da Casa Verde.

 

— Está bem, está bem — resmungou André. — Eu fico. Agora, uma coisa eu vou dizer: para mim, maluco não é só aquele cara lá dentro. Eu acho que vocês pegaram a loucura dele. Pelo jeito, o único aqui com a cabeça no lugar sou eu.

 

Voltaram à casa e puseram-se a procurar a entrada secreta. Começaram pela própria parede dos fundos. Nada. Ali, só o buraco que haviam feito — de novo fechado com as tábuas: realmente o cara lá dentro não queria nada com aqueles que chamara de loucos. Exploraram em seguida, e sem resultado, uma das paredes laterais. Na outra parede também não havia nada, a não ser as janelas muradas.

 

— Estranho — disse Pedro Bola. — Parece que o cara está mesmo incomunicável aí dentro.

 

— Quem sabe a abertura está no telhado? — perguntou André.

 

— Pouco provável — disse Arturzinho. — A pessoa teria de colocar escadas, teria de subir, talvez com pacotes... Não, a abertura não deve ser no telhado.

 

Nesse momento, Leo, que se metera no matagal — para fazer xixi —, chamou-os:

 

— Venham cá ver uma coisa.

 

Correram para lá. Arturzinho não pôde conter uma exclamação: à luz da lanterna, o que eles viam, muito bem disfarçado pela vegetação abundante, era uma espécie de alçapão, construído em alvenaria, com uma pequena, mas muito sólida porta.

 

— Está aqui a resposta — disse Leo. — Aposto que este alçapão dá num túnel. E aposto que este túnel leva até a Casa Verde. Deve ser por aí que levam comida para ele.

 

Cuidadosamente, Arturzinho tentou abrir a porta. Não conseguiu: estava fechada — por dentro.

 

— Não estou entendendo — disse André. — Se é por aqui que entra a pessoa de fora, como é que ela avisa para o sujeito abrir a porta?

 

Leo mostrou um orifício na porta, através do qual emergia um cordel com uma argola na ponta.

 

— Isto aí deve estar amarrado a uma sineta lá dentro. Provavelmente na sala em que o cara está.

 

Pedro Bola já ia puxar o cordel, Arturzinho deteve-o:

 

— Está maluco, cara? Se você fizer isso, o homem saberá que conhecemos o segredo. E aí perderemos a chance de descobrir quem vem aqui.

 

— Verdade — disse Pedro Bola, desconcertado. — E como vamos descobrir quem vem aqui?

 

— Vigiando — disse Arturzinho.

 

— Como, vigiando? — André, atônito. — Vamos ficar aqui, esperando que apareça alguém?

 

— Claro que não. A gente se reveza, compreendeu? E aí ficamos escondidos...

 

Apontou uma árvore próxima, de grosso tronco:

 

— Atrás daquela árvore, por exemplo. Somos quatro. Cada um faz um turno de seis horas.

 

— Não acredito — André, incrédulo diante daquela proposta que lhe parecia o maior dos absurdos. — Não acredito que vou ficar de guarda seis horas atrás daquela árvore.

 

— Qual é o problema? — Arturzinho, bem-humorado. — Você não faz nada, mesmo, pode passar umas horas vigiando. De qualquer jeito, é só até aparecer a pessoa. Não vai levar muito tempo. O cara lá dentro precisa comer, não precisa?

 

André limitou-se a suspirar. Ali mesmo Arturzinho organizou a escala de plantão para as próximas vinte e quatro horas. E, para dar o exemplo, ofereceu-se para ser o primeiro. Passavam alguns minutos da meia-noite; ficaria, pois, até as seis da manhã, quando Leo, sorteado para ser o segundo, o substituiria. Foi até um orelhão próximo, ligou aos pais, disse que iria dormir na casa de André. Depois, despediu-se dos amigos, que foram para casa, e instalou-se em seu posto, atrás da árvore.

 

Foi uma longa noite, aquela. com frio, com fome, Arturzinho muitas vezes pensou em desistir — será que o clube valia tanto sacrifício? Foi com alívio que viu o dia clarear: tudo o que queria era um banho e cama. Já estava se preparando para ir embora — eram cinco e meia — quando ouviu um barulho: alguém caminhava pelo matagal. Cuidadosamente, espiou.

 

Era uma garota — quinze, dezesseis anos. Dois detalhes lhe chamaram imediatamente a atenção. O primeiro: a maneira como estava vestida. Parecia ter saído de um filme sobre o século XIX, com o seu vestido longo, severo. O segundo detalhe era mais importante: a garota era linda. Linda, não, lindíssima. Morena, longos cabelos, alta, corpo perfeito. Deus, gemeu Arturzinho, de onde é que saiu esta maravilha?

 

A jovem, que carregava várias sacolas de pano — provavelmente com alimentos ou roupas —, aproximou-se do alçapão. Tal como Arturzinho esperava, puxou a argola. Tal como imaginara, depois de alguns segundos a portinhola se abriu. A jovem desapareceu.

 

Arturzinho estava desnorteado. Quem seria a moça? Ele, que se gabava de conhecer todo o mundo, todas as garotas que freqüentavam os bares, os cinemas, as reuniões sociais, nunca a vira. Provavelmente a jovem era, portanto, uma reclusa. Agora — qual seria a relação dela com o homem da Casa Verde?

 

Ali estava uma coisa para ser investigada. Enquanto pensava no que fazer, a portinhola do alçapão se abriu, e a moça de lá saiu, agora sem as sacolas. Arturzinho consultou o relógio. Um quarto para as seis. Dentro em breve, Leo deveria aparecer para substituí-lo. Mas não tinha tempo para esperar, para contar o que havia acontecido. A moça já se afastava, apressadamente. Sem hesitar, Arturzinho foi atrás dela.

 

Segui-la sem ser visto, àquela hora em que as ruas ainda estavam desertas, não foi fácil, mas Arturzinho não teve de andar muito. A moça entrou numa casa modesta de um bairro próximo. Arturzinho anotou o endereço e se mandou.

 

No qual as coisas começam a se esclarecer

 

Voltando para a Casa Verde, Arturzinho encontrou, junto à árvore, um preocupado Leo:

 

— Onde é que você se meteu, Arturzinho? Cheguei aqui, não encontrei você, me apavorei... achei que o homem tinha seqüestrado você...

 

— Seqüestrado, nada! — Arturzinho, excitadíssimo. — Eu estava dando uma de detetive, cara! E você não imagina o que aconteceu!

 

Um instante de suspense, e revelou, triunfante:

 

— Descobri quem traz a comida para o maluco. É uma garota, e lindíssima, cara! Disparado a garota mais bonita da cidade!

 

— Não diga! — Leo, encantado. — bom, eu achava que alguém deveria existir... E você diz que é uma garota? Será a filha dele?

 

— Não sei — disse Arturzinho. — Uma coisa me chamou a atenção: estava vestida à moda antiga, com um vestido comprido, mangas longas...

 

— Interessante — disse Leo. — Provavelmente uma roupa da mesma época daquela que o homem usa. Será que ela quer manter o cara na sua ilusão? E por que faria isso?

 

— Só há uma maneira de descobrir — disse Arturzinho, decidido. — Vamos falar com ela. Contamos o nosso projeto, pedimos a sua ajuda. Já pensei até na proposta que faremos. É assim: ele nos cede uma sala para o nosso clube. Em compensação, a gente ajuda o homem, na limpeza da casa, na conservação e em outras coisas. Se ele quiser uma pizza, por exemplo, a gente traz a pizza. Não precisa ficar dependendo só da garota.

 

Estava tão entusiasmado que Leo teve de contê-lo:

 

— Calma, Arturzinho, calma. Você está indo longe demais. Você nem sabe qual será a reação dessa garota...

 

— Quanto a isso, você pode deixar comigo. Modéstia à parte, eu sei falar com uma menina. E estou ansioso por falar com ela.

 

— Você parece muito interessado — disse Leo, irônico. — E não é só por causa do homem ou da Casa Verde...

 

Arturzinho teve de admitir que estava, sim, impressionado com a garota:

 

— Ela é linda, Leo. E não tenho a menor idéia de quem seja. E eu achava que conhecia todo o mundo em Itaguaí, imagina só. Mas isso não será problema: sei onde ela mora, é só ir até lá.

 

Olhou o relógio:

 

— Mas todas essas coisas nós vamos fazer depois. Agora eu vou dormir. Estou podre, cara. Essa de passar a noite acordado foi de matar... E você também pode ir. Avise o André e o Pedro Bola que eles não precisam vir. E marque um encontro para as seis, na pizzaria do Marcolino.

 

Foi para casa, encontrou o pai, que estava saindo para o hospital, e que o mirou com estranheza:

 

— Onde é que você andou, Arturzinho?

 

— Na casa do André, onde mais? Eu avisei que ia dormir lá, não avisei?

 

— Avisou. Só que, quando você dorme na casa dos seus amigos, não volta antes do meio-dia. E agora são sete da manhã. Você não está aprontando alguma, está?

 

— Não estou. — Riu. — E se estivesse? De vez em quando a gente precisa viver uma aventura, não é mesmo?

 

— É — suspirou o pai. — Bem, agora vá descansar um pouco. Você está um caco, rapaz. Vá dormir.

 

Arturzinho entrou, foi direto à geladeira, estava morrendo de fome. Comeu quatro sanduíches, tomou meio litro de leite — e então foi se deitar: naquele dia, havia reunião dos professores, as aulas tinham sido suspensas. Cansado, dormiu a sono solto. Acordou sobressaltado: seis e quinze da tarde.

 

— Que horror! O pessoal lá me esperando e eu aqui, dormindo!

 

Correu até a pizzaria, e, de fato, os amigos já estavam lá, à espera.

 

— Leo contou que você tem grandes novidades — disse André, não sem uma ponta de despeito, que Arturzinho preferiu ignorar:

 

— Verdade. Acho que temos como descobrir o segredo da Casa Verde — disse, e em seguida contou o que acontecera.

 

— Quer dizer que tudo depende dessa garota — concluiu André. — E como é ela?

 

— Um avião — disse Arturzinho. — Uma das meninas mais bonitas que já vi.

 

— É? — André, os olhos brilhando.

 

— Calma, André — protestou Arturzinho. — O negócio não é namorar. O nosso negócio é fazer um clube na Casa Verde.

 

— Uma coisa não impede a outra — observou André, com um sorriso safado.

 

— Escuta, André... — começou Arturzinho, mas antes que aquilo se transformasse num bate-boca, Leo resolveu intervir:

 

— Eu também tenho novidades.

 

Mostrou o livro que tinha sob o braço. O desenho da capa mostrava um homem de expressão feroz, cabeleira e barba grisalhas. Usava pincenê, casaca e uma gravata de laço, e apontava para o provável leitor um dedo ameaçador.

 

— Mas é igual ao homem da Casa Verde! — disse Pedro Bola, assombrado.

 

— O que não é de estranhar — disse Leo. — Olhem o nome do livro.

 

— O alienista — disse Arturzinho. — Espera um pouco, Leo: alienista... O maluco lá não falou nisso? Não disse que era um alienista?

 

— Disse. E é por isso que este livro vai nos esclarecer muito sobre ele.

 

— Mas o que é um alienista? — quis saber André.

 

— Era o nome que se usava antigamente para o médico que cuidava dos loucos.

 

— Espera um pouco: o cara disse que é um médico que cuida de loucos? Mas ele tem mais cara de maluco do que de médico...

 

— Um pouco como o personagem do livro — ponderou Leo.

 

Pedro Bola olhava a capa interessado:

 

— É do Machado de Assis — disse. — Esse eu conheço, a professora Isaura falou nele. Não prestei muita atenção, mas é um cara do século passado, não é isso?

 

— É — disse Leo. — Este livro é de 1882.

 

— Espere um pouco — protestou André. — Você quer me dizer que um livro de mil oitocentos e tantos vai explicar porque o maluco se meteu na Casa Verde?

 

— Explicar, talvez não. Mas acho que vai ajudar a entender o que está se passando. Inclusive porque ele conta a história da Casa Verde.

 

— Mas como é que a gente não sabia desse livro? — perguntou Arturzinho.

 

— A gente, não — corrigiu Leo. — Você não sabia. Como o Pedro Bola disse, está na lista dos livros indicados pela professora Isaura. Aliás, uma grande indicação: o livro é muito bom.

 

— Mas você já leu? — Pedro Bola, assombrado.

 

— Já. O livro é curto. E é ótimo de ler. O Machado de Assis sabe contar uma boa história em poucas páginas.

 

— Então dê uma de Machado — propôs André, que não era muito chegado a livros. — Conte para nós o que você leu.

 

— Vamos fazer uma coisa melhor: vamos conversar com a professora Isaura sobre o livro. Ela disse que está à nossa disposição no colégio. Estava em reunião, mas, assim que terminasse, poderia nos atender.

 

— E o que estamos esperando? — disse Arturzinho. — Vamos lá.

 

A reunião estava no fim quando chegaram. A professora veio ao encontro deles. Baixinha, morena, olhos buliçosos, Isaura era extremamente popular entre os alunos. Fã incondicional de Machado de Assis, não perdia uma oportunidade para falar aos alunos (ou a quem quisesse ouvir) sobre as obras do escritor:

 

— Vamos lá, pessoal. Estou à disposição de vocês. Foram para uma sala vazia, sentaram-se todos.

 

— Muito bem — disse ela. — O Leo me contou que o grupo de vocês está interessado em saber mais sobre O alienista, do Machado de Assis, é isso?

 

— É — confirmou Arturzinho. — Essa coisa da Casa Verde, a gente tem discutido muito sobre aquele lugar.

 

— Então vamos lá. Primeiro vamos falar um pouco sobre o Machado de Assis, que é tão importante para a cidade.

 

— Ele morou aqui em Itaguaí? — quis saber Arturzinho.

 

— Não, o Machado era do Rio de Janeiro. Criou-se lá, no subúrbio, menino pobre. Além disto era mulato, e naquela época estavam em moda teorias racistas sustentando que os mulatos eram inferiores. Quer dizer: sofreu muito, ele. Mas foi em frente, tornou-se jornalista e escritor.

 

— E a troco de quê escreveu um livro sobre loucura?

 

— Esse era um tema que o interessava muito. Já havia aparecido em outros livros, como Quincas Borba. Mas nesta obra é o tema central.

 

Pediu o livro ao Leo, abriu-o.

 

— O Machado de Assis começa assim: ”As crônicas da vila de Itaguaí dizem que em tempos remotos vivera ali um certo médico, o doutor Simão Bacamarte, filho da nobreza da terra e o maior dos médicos do Brasil, Portugal e das Espanhas”.

 

— Bacamarte... Bacamarte... Não é uma arma antiga? — perguntou Pedro Bola.

 

— É. Mas vocês já vão ver que o Machado escolheu esse nome de propósito para o doutor. Depois de estudar na Europa... naquele tempo o Brasil era governado por Portugal... ele veio para a vila de Itaguaí, casou com uma moça chamada Evarista e começou a trabalhar. Aos poucos, foi-se interessando pela doença mental. Não era um assunto muito popular, digamos assim. Conta o Machado: ”A vereança de Itaguaí, entre outros pecados de que é argüida pelos cronistas, tinha o de não fazer caso dos dementes. Assim é que cada louco furioso era trancado em uma alcova, na própria casa, e não curado, mas descurado, até que a morte o vinha defraudar do benefício da vida; os mansos andavam à solta pela rua”. O doutor Bacamarte então teve a idéia de construir um lugar para os malucos. Para isso, ele pretendia conseguir verba da câmara de vereadores.

 

— E os itaguaienses, o que disseram? — perguntou Pedro Bola.

 

— Ficaram curiosos, mas não gostaram muito da idéia. Diz o Machado: ”A idéia de meter os loucos na mesma casa, vivendo em comum, pareceu em si mesma sinal de demência”. Até o vigário sugeriu à dona Evarista, mulher do Bacamarte:

 

”Veja se seu marido dá um passeio ao Rio de Janeiro”. Tinha esperança de que, com a viagem, o alienista mudasse de idéia. Mas o doutor era persistente. Foi à câmara, defendeu o projeto, conseguiu até um imposto especial: quem quisesse colocar penachos decorativos nos carros funerários teria de pagar uma quantia. E aí começou a construção da casa dos loucos.

 

— A Casa Verde...

 

— É. A Casa Verde. ”Inaugurou-se com imensa pompa; de todas as vilas e povoações vizinhas, e até remotas, e da própria cidade do Rio de Janeiro, correu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias.” Logo começaram a chegar os doentes. ”Eram furiosos, eram mansos, eram monomaníacos, era toda a família dos deserdados do espírito.” O doutor Bacamarte estudava cada caso. O objetivo dele era, diz Machado, ”... estudar profundamente a loucura, os seus diversos graus, classificar-lhe os casos, descobrir enfim a causa do fenômeno e o remédio universal”.

 

— Espere um pouco — interrompeu Arturzinho. — Que história é essa, ”remédio universal”? Quer dizer que o doutor Bacamarte queria um remédio que curasse todos os tipos de doenças mentais? Será que o cara não estava exagerando?

 

— Estava. Agora: ele acreditava no que fazia. Machado conta que o homem se dedicava mesmo: ”... analisava os hábitos de cada louco, as horas de acesso, as aversões, as simpatias, as palavras, os gestos, as tendências”. Trabalhava tanto, que a mulher, a dona Evarista, se chateou. Diz o Machado: ”A ilustre dama, no fim de dois meses, achou-se a mais desgraçada das mulheres; caiu em profunda melancolia, ficou amarela, magra, comia pouco, e suspirava a cada canto. Não ousava fazer-lhe nenhuma queixa ou reproche, porque respeitava nele o seu marido e senhor, mas padecia calada, e definhava a olhos vistos”. O doutor Bacamarte simplesmente mandou que ela fosse passar uns tempos no Rio de Janeiro. Podia fazer isso, porque estava ganhando muito dinheiro.

 

— O homem era fogo, então — disse André.

 

— Era mesmo. Muito pior foi quando ele começou a achar que em Itaguaí havia muito mais loucos do que parecia no início. Como disse ao farmacêutico Crispim Soares: ”A loucura, objeto dos meus estudos, era até agora uma ilha perdida no oceano da razão; começo a suspeitar que é um continente”. Ele queria ”ampliar o território da loucura”. Para isso, era preciso separar a razão da maluquice: ”A razão é o perfeito equilíbrio de todas as faculdades; fora daí insânia, insânia e só insânia”. E a partir daí foi recolhendo as pessoas à Casa Verde. O primeiro foi o Costa, pessoa estimada em Itaguaí. Rico, que acabou empobrecido: emprestava dinheiro a todos, sem juros; muitos simplesmente ficavam devendo. O doutor Bacamarte achou que esse comportamento era anormal, coisa de louco, e trancou o Costa na Casa Verde. Uma prima do homem veio procurá-lo com uma explicação para o caso: o dinheiro não durava porque o pai do Costa tinha sido amaldiçoado por um homem a quem negara um pouco d’água. O doutor Bacamarte ouviu a história e não teve dúvida: recolheu a prima do Costa também.

 

— E o pessoal da cidade? — perguntou Arturzinho. — Qual foi a reação deles?

 

— A primeira versão foi que se tratava de vingança: o alienista teria tido uma paixão secreta pela tal prima, que o rejeitara, com apoio do indignado Costa. Mas a versão não pegou, porque, diz Machado, ”... a austeridade do alienista, a vida de estudos que ele levava, pareciam desmentir uma tal hipótese”. Depois disso, outra pessoa conhecida foi internada: o Mateus, um homem muito rico, que construíra uma bela casa, e que tinha o costume de ficar na janela, com ”atitude de senhoril”, como se quisesse ser admirado. Ouvindo falar da história, o alienista foi até a casa de Mateus, ”viu-o à janela, passou cinco, seis vezes por diante, devagar, parando, examinando as atitudes, as expressões do rosto”. com isso, fez o diagnóstico: Mateus foi recolhido à Casa Verde.

 

—Mas era um pavor, aquilo! — Pedro Bola, impressionado.

 

— Era. O pânico foi crescendo. Conta o Machado: ”O terror acentuou-se. Não se sabia quem estava são, nem quem estava doido. As mulheres, quando os maridos saíam, mandavam acender uma lamparina a Nossa Senhora; e nem todos os maridos eram valorosos, alguns não andavam fora sem um ou dois capangas. Positivamente o terror. Quem podia emigrava”.

 

— E os caras da vila? Não faziam nada?

 

— Bem, lá pelas tantas eles se rebelaram. Quem comandou a revolta foi o barbeiro Porfírio Caetano das Neves. E tinha muita gente no movimento. O que eles queriam era botar abaixo a Casa Verde. Ouçam só: ”O barbeiro declarou que iam dali levantar a bandeira da rebelião, e destruir a Casa Verde; que Itaguaí não podia continuar a servir de cadáver aos estudos e experiências de um déspota; que muitas pessoas estimáveis, algumas distintas, outras humildes mas dignas de apreço, jaziam nos cubículos da Casa Verde...”

 

— E o alienista? — perguntou Arturzinho. — Fugiu?

 

— Que nada. O homem era teimoso. Enfrentou aquela multidão, fez um discurso. Ouçam só o que ele disse: ”Meus senhores, a ciência é coisa séria e merece ser tratada com seriedade. Não dou razão de meus atos de alienista a ninguém, salvo aos mestres e a Deus. Se quereis emendar a administração da Casa Verde, estou pronto a ouvir-vos; mas se exigis que me negue a mim mesmo, não ganhareis nada. Poderia convidar alguns de vós em comissão dos outros a vir ver comigo os loucos reclusos; mas não o faço, porque seria dar-vos razão do meu sistema, o que não farei a leigos nem a rebeldes”.

 

— O barbeiro deve ter ficado por conta — observou André.

 

— Ficou. Fez um pronunciamento: ”Meus amigos, lutemos até o fim! A salvação de Itaguaí está em vossas mãos dignas e heróicas. Destruamos o cárcere de vossos filhos e pais, de vossas mães e irmãs, de vossos parentes e amigos, e de vós mesmos. Ou morrereis a pão e água, talvez a chicote, na masmorra daquele indigno”. Mas o objetivo dele não era só destruir a Casa Verde. Ou seja: não era o mocinho da história, assim como o alienista não era o bandido. Os personagens de Machado são seres humanos, complexos como todas as pessoas. Diz ele: ”Foi nesse momento decisivo que o barbeiro sentiu despontar em si a ambição do governo; pareceu-lhe então que, demolindo a Casa Verde e derrocando a influência do alienista, chegaria a apoderar-se da câmara, dominar as demais autoridades e constituir-se senhor de Itaguaí”.

 

— O homem era um ditador em potencial — comentou Leo.

 

— Verdade. E o movimento crescia. Cresceu tanto que as autoridades tiveram de enviar à vila um destacamento militar. Mas na hora do enfrentamento os soldados começaram a passar para o lado dos revoltosos. O barbeiro foi até a câmara e lá assumiu o poder: os vereadores foram direto para a cadeia. Porfírio se proclamou ”Protetor da vila em nome de Sua Majestade, e do povo”. Lançou uma proclamação contra a ”câmara corrupta e violenta” e foi muito aplaudido. O barbeiro então foi à casa do alienista, que o recebeu e disse que não tinha meios de resistir à rebelião: ”Só uma coisa pedia, é que o não constrangesse a assistir pessoalmente à destruição da Casa Verde”. Agora: o que acham vocês que o barbeiro fez?

 

— Expulsou o Bacamarte — disse Pedro Bola.

 

— Mandou prendê-lo — sugeriu André.

 

— Nada disso. Ele veio com um papo conciliador: ”Engana-se Vossa Senhoria em atribuir ao governo intenções vandálicas”... quer dizer, intenções de destruir coisas. E continuou: ”com razão ou sem ela, a opinião crê que a maior parte dos doidos ali metidos estão em seu perfeito juízo, mas o governo reconhece que a questão é puramente científica”.

 

— Questão científica: exatamente como dizia o alienista! — admirou-se Arturzinho.

 

— É. Exatamente como dizia o alienista. O barbeiro queria o doutor Bacamarte como aliado.

 

— O negócio dele era político...

 

— Era. O alienista também é isso, uma fábula política. Mas, continuando: com o apoio do barbeiro, que agora comandava Itaguaí, o doutor Bacamarte não perdeu tempo, continuou metendo mais gente na Casa Verde. Isso provocou grande indignação. Os itaguaienses pensavam que estavam livres do alienista, mas, ao contrário, viram que ele estava com mais poder. E protestaram. O barbeiro quis voltar atrás, fechando o hospício e mandando embora o doutor, mas já era tarde. Foi deposto, aliás por outro barbeiro, João Pina, que o acusou de estar ”vendido ao ouro de Simão Bacamarte”. Nisso, conta Machado, chegou uma força enviada pelo vice-rei e restabeleceu a ordem, acabando com a revolta. A partir de então, o doutor Simão Bacamarte tinha o poder nas mãos. Começou internando o barbeiro Porfírio e vários outros rebeldes. Depois foi o presidente da câmara de vereadores. Foi ”uma coleta desenfreada”, diz o Machado. Acabou metendo a própria mulher, a dona Evarista, no hospício. O padre Lopes, assustado, perguntou ao alienista o que tinha acontecido. Simão Bacamarte contou que a mulher tinha uma dúvida: não sabia que colar usar no baile da câmara: ”Alta noite, seria hora e meia, acordo e não a vejo; levanto-me, vou ao quarto de vestir, acho-a diante dos dois colares ensaiando-os ao espelho, ora um ora outro. Era evidente a demência; recolhi-a logo”. E a Evarista não foi sozinha: àquela altura quatro quintos dos itaguaienses já estavam na Casa Verde. Mas de novo o alienista surpreendeu a todos. Mandou soltar todos os internados.

 

— Mas por quê? — estranhou Pedro Bola.

 

— Ele disse o seguinte: se o número de loucos era tão grande, o normal era ser maluco. Como explicou na carta que mandou à câmara:”... se devia admitir como normal e exemplar o desequilíbrio das faculdades”, ou seja, das faculdades mentais, da mente. Para a Casa Verde só iriam as pessoas ”que se achassem no gozo do perfeito equilíbrio das faculdades mentais”. E o doutor trataria dessas pessoas. O objetivo era fazer com que ficassem perturbadas, para voltar à normalidade, isto é, à maluquice. Machado dá um exemplo: ”Suponhamos um modesto. Ele aplicava a medicação que pudesse incutirlhe o sentimento oposto”. Medicação aí não é injeção ou comprimido: ”Às vezes bastava uma casaca, uma fita, uma cabeleira, uma bengala para restituir a razão ao alienado”. Quer dizer: com enfeites, o cara ficava curado da modéstia. E aí não precisava ficar na Casa Verde. Que, no fim de cinco meses e meio estava vazia: todos ”curados”, entre aspas.

 

— Então o alienista conseguiu o que queria? — perguntou André.

 

— Aparentemente sim. Mas então se deu conta de que, na verdade, aquelas pessoas já eram perturbadas antes: ”Os cérebros bem organizados que ele acabava de curar eram desequilibrados como os outros”. O único que era cem por cento sadio era ele, o alienista. ”Simão Bacamarte achou em si os característicos do perfeito equilíbrio mental e emocional”; ele era inteligente, paciente, leal, tolerante. Chegou a reunir um conselho de amigos, perguntou se tinha algum vício, algum defeito. Não, foi a resposta unânime, ele era perfeito. Portanto, ele era o único que tinha de ir para a Casa Verde. Foi o que fez, apesar dos pedidos da mulher e dos amigos. Conta Machado: ”Fechada a porta da Casa Verde, entregou-se ao estudo e à cura de si mesmo. Dizem os cronistas que ele morréu  daí a dezessete meses, no mesmo estado em que entrou”. E aí termina a história.

 

Sorriu:

 

— Agora vocês já sabem por que muita gente aqui em Itaguaí não gosta da Casa Verde.

 

Os garotos agradeceram à professora Isaura e saíram. Tão impressionados estavam, que ficaram parados na frente do colégio, por uns bons cinco minutos, sem dizer palavra.

 

— Que coisa — murmurou Pedro Bola, por fim. — Que coisa. O alienista trancando todo o mundo na Casa Verde... Parece história de terror. Pode ser inventada, mas está muito bem contada.

 

— Muito bem — disse André. — Nós temos a história do Machado de Assis, e que eu, aliás, estou ansioso para ler. E isso eu que não sou de muita leitura, hein? Mas é que fiquei curioso... Agora: o nosso homem lá da Casa Verde... gente, esse cara também deve ter uma história muito estranha. Acho que nem o Machado de Assis imaginaria um tipo desses. Vocês viram, a história dele termina quando o alienista morre. Como é que ia imaginar um cara se trancando na Casa Verde tantos anos depois? E a troco de quê o sujeito pensa que é o doutor Simão Bacamarte? Isso eu não consigo entender.

 

— Podem deixar comigo — Arturzinho, misterioso. — Em dois dias garanto a vocês que tenho a resposta para esta pergunta.

 

— Ah, é? — André, debochado. — E como, pode-se saber? Consultando um adivinho?

 

— Isso eu resolvo. Tenho os meus métodos.

 

Piscou o olho para Leo, que limitou-se a sorrir. Sabia muito bem por que Arturzinho não queria falar da garota: tinha medo de que André corresse atrás dela. A rivalidade entre os dois se estendia às garotas, e mais de uma vez tinham brigado por causa disso. André suspeitou de algo:

 

— Está bem, sabidinho. Mas aposto um CD como você não consegue.

 

Arturzinho topou. Combinaram novo encontro para daí a três dias, no mesmo lugar.

 

— Você já sabe — avisou André. — Ou traz a resposta ou traz um CD. Que eu vou escolher.

 

— Não: você é que vai comprar o CD que eu escolher. E pode ir preparando a grana, porque não será barato.

 

Feito o desafio, separaram-se. André e Pedro Bola queriam voltar à pizzaria. Mas Arturzinho alegou que precisava dormir cedo. Tinha um compromisso na manhã seguinte.

 

No qual Arturzinho descobre quem é a garota misteriosa

 

Oculto atrás de uma árvore, próximo à casa em que morava a garota, Arturzinho estava irritado: eram nove horas da manhã, ele estava ali desde as seis. Tinha acordado cedíssimo, para grande surpresa do pai, que o encontrara na cozinha, tomando café — caiu da cama, Arturzinho? — e estava morrendo de sono. Já pensara em desistir, em voltar para casa. Mas não o faria por nada neste mundo. A verdade é que a menina o impressionara profundamente. Estava ali por causa do homem da Casa Verde, decerto, mas também, e principalmente, por causa dela.

 

Perto das dez a sua paciência foi, finalmente, recompensada. A porta se abriu e ela apareceu — sozinha, como Arturzinho queria. Já não vestia aquela roupa antiquada — estava com uma blusa e calças jeans que modelavam o seu corpo perfeito.

 

Consultou o relógio e pôs-se a caminhar, apressada. Como da outra vez, Arturzinho a seguiu. Ela dobrou à direita, depois à esquerda, chegou a uma avenida e entrou numa mercearia. Arturzinho hesitou, depois entrou também. Enquanto ela escolhia frutas e verduras, ele pôde observá-la. De perto, era ainda mais linda, e ele não podia tirar os olhos de seu rosto. O que ela acabou percebendo. Pelo jeito, era tímida, porque  ficou claramente perturbada. Mesmo assim, não conseguiu disfarçar um sorriso, o que deixou Arturzinho animado. Resolveu optar pela audácia. Quando ela saiu da mercearia, carregando várias sacolas plásticas, ele saiu também, emparelhou o passo com ela:

 

— Desculpa, mas eu vi que você estava muito carregada... Posso ajudar você com as sacolas?

 

A cantada era tão velha, que ela teve de rir — e ele também. O que teve a vantagem de quebrar o gelo:

 

— Eu sou o Arturzinho — disse, apresentando-se. E acrescentou, com uma desenvoltura que surpreendeu a ele mesmo: — Meus amigos me apelidaram de Xereta. Eu não gosto desse apelido, mas você agora deve achar que eles têm razão, que eu sou metido mesmo...

 

Ela riu de novo, disse que se chamava Lúcia.

 

— E não tenho apelido — acrescentou.

 

Foram caminhando devagar, conversando. Ela contou que estava cursando o segundo grau numa escola ali perto; que gostava de música e de cinema; que jogava vôlei no time do colégio... Enfim, uma garota como qualquer outra. O que deixava Arturzinho ainda mais intrigado. Aquela era a mesma moça que ele avistara, usando um vestido antiquado, entrar na Casa Verde? Havia um mistério ali. Nada perguntou, porém, sobre o que vira na madrugada anterior; afoito que era, soube, entretanto, conter-se. Não era o momento.

 

Quando chegaram à casa dela — uma casa comum, modesta, parecida às outras da rua, ele perguntou se ela não gostaria de ir ao cinema naquela noite. Para sua surpresa, grata surpresa, ela disse que sim.

 

Por uma dessas coincidências, era um filme de mistério. História intrigante: uma casa que adquiria vida própria, por assim dizer, e que queria expulsar os moradores. Quando saíram do cinema, Lúcia tinha mudado. Não queria falar, recusou  o convite dele para comerem qualquer coisa, disse que precisava ir para casa. Foram andando, em silêncio. Quando chegaram à rua dela, já às dez da noite, Arturzinho resolveu arriscar:

 

— Eu sei por que o filme incomodou tanto você.

 

E contou que a vira entrar na Casa Verde pelo alçapão. Falou do homem que lá tinham visto — enfim, relatou tudo o que acontecera.

 

Ela baixou a cabeça e começou a chorar. Chorou muito tempo, um pranto silencioso, sentido. Consternado, Arturzinho não sabia o que dizer. Finalmente, ela falou:

 

— Aquele homem que você viu lá dentro da Casa Verde... Aquele homem estranho... Aquele homem é meu pai.

 

Arturzinho estremeceu. Era pai dela, o maluco? Deus, em que confusão ele fora se meter. Mas ela já continuava — e agora falava com menos dificuldade, como se estivesse aliviada por poder partilhar o segredo com alguém.

 

— Ele é bisneto do doutor Simão Bacamarte. com certeza você ouviu falar nesse homem...

 

— O alienista...

 

— É. O alienista. Aquele, que inspirou o Machado de Assis.

 

— Mas espere um pouco — Arturzinho, surpreso. — Se eu me lembro bem da história, o doutor Bacamarte não teve filhos.

 

— Não teve filhos com a dona Evarista, a mulher dele. Mas você deve recordar que, no fim da vida, ele ficou dezessete meses encerrado na Casa Verde, até falecer...

 

— Verdade.

 

— Nesse período, ele não teve contato com ninguém, a não ser com a mulher que tomava conta do lugar, uma portuguesa chamada Ana. Essa moça tinha muita pena do doutor; cuidava dele, alimentava-o, vestia-o. Para ela, o doutor Bacamarte não era alienista... nem doente; era um infeliz, um homem solitário, que precisava ser ajudado. Ele acabou se apaixonando por ela. Tiveram um filho, mas disso ele não ficou sabendo, porque morreu antes. Os pais de Ana ficaram furiosos com ela; expulsaram-na de casa. Ela teve de criar o filho sozinha, o que conseguiu: era uma moça muito valorosa. O filho cresceu, tornou-se empregado de uma loja, casou, teve seus próprios filhos... Mas a história do doutor Bacamarte ficou um segredo da família, um segredo que ninguém revelava, e que o pessoal da cidade acabou esquecendo.

 

Suspirou.

 

— O único que não conseguia esquecer era o meu pai. Desde pequeno ele era considerado esquisito, um menino que falava pouco, que fugia das pessoas, e que gostava de ficar no porão da casa dos pais. A figura do doutor Bacamarte estava sempre presente na lembrança dele. Leu O alienista não sei quantas vezes, chegava a recitar o livro dormindo. Apesar disso tudo, conseguiu ir levando a vida: abriu uma lojinha de material de escritório, casou. Tiveram uma única filha, eu. Posso te garantir, Arturzinho, que era um pai maravilhoso. Um pouco distante, às vezes, mas muito dedicado. Brincava comigo, e gostava muito de me contar histórias na hora de dormir. Eu tinha medo do escuro, mas quando ele sentava a meu lado, no quarto, abria um livro e lia uma história, aquilo para mim era um conforto, eu às vezes nem escutava o final, adormecia embalada pela voz dele. Mas, você me perguntará, quando é que ele ficou doente? Não sei. Só sei que foi ficando cada vez mais quieto, mais voltado para dentro de si mesmo. Não falava com ninguém, mas às vezes ficava horas resmungando coisas. Lá pelas tantas já não ia trabalhar — minha mãe teve de tomar conta da loja —, passava o dia em casa, lendo o livro do Machado de Assis. E aí começou a rondar a Casa Verde. Ficava horas naquele matagal em que você se escondeu, olhando o lugar. Um dia sumiu. Minha mãe e eu o procuramos por toda parte, até que ela se deu conta: ele deveria estar na Casa Verde. Por sorte, encontramos entre suas coisas uma planta do lugar, feita por ele mesmo, e que mostrava a entrada do alçapão...

 

— Foi ele quem construiu esse alçapão?

 

— Não, o alçapão já existia. Não sabemos quem o construiu. É possível que a casa tenha tido outros moradores clandestinos, no passado... Não sei. De qualquer modo, era antigo, esse alçapão. Alguém o fechara com argamassa, que meu pai removeu, e assim teve acesso à Casa Verde. Decidimos usar o mesmo alçapão. Naquela mesma noite fomos até lá, abrimos a portinhola. Havia uns degraus, e depois uma espécie de túnel muito estreito, e de novo uns degraus, pelos quais subimos. Levantamos a tampa de um outro alçapão e aí chegamos a uma sala... e demos com o papai.

 

Começou a chorar de novo.

 

— Foi um choque, Arturzinho. Um choque. Nos guardados da família ele tinha arranjado aquela roupa do século passado, e estava lá, sentado numa cadeira velha, à luz de uma vela, naquele lugar imundo, com sujeira por toda parte, e até ratos mortos no chão. Ele nos olhava fixo, sem dizer nada. Minha mãe agarrou-se a ele, implorou que saísse dali, que voltasse conosco para casa. Ele, quieto, imóvel. Finalmente falou... para dizer que não, que não sairia dali, que o mundo estava cheio de loucos, e que ele, o alienista, teria de ficar na Casa Verde... como o bisavô, o doutor Simão Bacamarte. Não houve maneira de convencê-lo. A única coisa que permitiu foi que, daí em diante, limpássemos o local, que lhe lavássemos a roupa e levássemos comida. Mas na primeira vez em que fui fazer isso, ele me expulsou: disse que eu era louca, que estava vestida como os loucos. Tive de arranjar aquele vestido antigo, que você viu, e aí, sim, ele me deixa entrar.

 

— E quando começou isso?

 

— Há meio ano. Nós não contamos nada para ninguém. Os vizinhos pensam que ele simplesmente nos abandonou, e não estranham, porque sempre o acharam maluco. E minha mãe prefere que pensem assim.

 

— Mas por que vocês não pediram ajuda a alguém?

 

— Pensamos nisso, Arturzinho. Mas meu pai nos ameaçou: se trouxermos uma pessoa de fora ele nunca mais fala conosco. Eu queria ir em frente assim mesmo, consultar um psiquiatra, mas minha mãe teve medo: ela acha que é melhor ir levando, esperando que ele melhore...

 

Arturzinho não sabia o que dizer. Ficaram em silêncio algum tempo. Por fim, ela disse que precisava entrar, tinha aula na manhã seguinte. Arturzinho pegou-lhe a mão:

 

— Posso ver você de novo?

 

Ela sorriu:

 

— Pode.

 

Deu-lhe o número do telefone, ele se despediu e foi para casa. Tão excitado estava, tão emocionado, que não se conteve: ligou para Leo, contou-lhe o que tinha acontecido.

 

— E agora, Leo? O que é que a gente faz?

 

Leo, o inteligente e sábio Leo, não tinha resposta para essa pergunta. Mas prometeu pensar a respeito. Marcaram um encontro para daí a dois dias, na pizzaria.

 

— Leve o livro — disse Arturzinho. — Eu preciso ler O alienista. Preciso mesmo.

 

No qual Arturzinho recebe uma ajuda inesperada

 

— Você anda meio estranho — disse o pai, na manhã seguinte. Estavam só os dois na mesa do café; a mãe de Arturzinho, professora de inglês, já saíra para a aula.

 

— Estranho, como? O que é que você notou de estranho em mim?

 

— Várias coisas. Para começar: você quase não comeu. Nem parece o Arturzinho que toda manhã devora frutas, sanduíches, cereal. Além disso, você está muito quieto. Quando você era menor, e ficava calado desse jeito, eu dizia à sua mãe: esse garoto está aprontando alguma. Mas agora acho que não é o caso. Melhor dizendo: você até pode estar aprontando, mas não é só isso. Algo está acontecendo, filho. Você não quer me contar? Quem sabe eu posso ajudar em alguma coisa...

 

Arturzinho hesitou. Depois, num repente, contou tudo: a história com a Casa Verde, o homem que tinham encontrado ali, o relato que Lúcia lhe fizera. O pai ouviu em silêncio.

 

— Bem — disse, por fim. — Você falou muitas coisas, mas acho que o principal é esse assunto do homem que se trancou na Casa Verde. Pelo jeito, ele está sofrendo e a família está sofrendo com ele. Talvez a gente possa ajudá-lo.

 

Pensou um pouco:

 

— Vamos conversar com um colega meu, um psiquiatra. Ele pode nos dizer o que fazer. Pegou o telefone, ligou:

 

— Alô, Eduardo? bom que peguei você em casa. Escuta: o meu filho, o Arturzinho, quer falar contigo. Como? Não, ele não está com nenhum problema... Melhor: ele quer ajudar umas pessoas a resolver um problema. Quando é que ele pode ir ao teu consultório? Hoje à noite? Ótimo.

 

Desligou.

 

— O Eduardo vai conversar contigo. Ele é um excelente profissional, e um bom amigo. Acho que você vai gostar desse encontro.

 

Arturzinho passou o dia muito ansioso. Queria contar a alguém o que estava acontecendo. Lúcia? Talvez. Mas temia que ela o achasse metido. Não, o melhor seria procurá-la com sugestões concretas. E os amigos? Não seria o caso de leválos junto para a conversa com o psiquiatra? Depois de pensar um pouco resolveu ir sozinho: talvez o doutor não gostasse de ver o grupo todo entrando em seu consultório. Optou por avisar apenas o Leo.

 

À hora marcada, oito da noite, lá estavam eles, no consultório. O doutor Eduardo, colega do pai de Arturzinho, era um homem alto e elegante, com barba e cabelos grisalhos. Recebeu-os, convidou-os a sentar, pediu que contassem a história, o que Arturzinho fez. Quando terminou, o doutor ficou um instante em silêncio.

 

— A julgar pelo que você contou — disse, por fim —, esse homem tem uma identificação... doentia, com o alienista. Acho que vocês sabem o que é um alienista...

 

— Sabemos — disse Arturzinho. — A nossa professora, a Isaura, contou-nos toda a história. Impressionante... Só não entendo uma coisa: como é que esses tais de alienistas tinham tanto poder?

 

—Já vou responder a essa pergunta. Mas antes, é preciso que vocês saibam uma coisa: loucura é um conceito que mudou com o tempo. Na Idade Média, por exemplo, se alguém ouvia vozes ou tinha visões, esse alguém não era considerado necessariamente um maluco: podia ser um santo, recebendo mensagens do céu. E muitos loucos viviam com suas famílias, nas aldeias, sem que ninguém se preocupasse com eles. Só mais tarde é que surgiu o hospício. O objetivo era tratar os doentes mentais, claro, mas também tirá-los das ruas: perturbavam e além disso davam mau exemplo, porque não trabalhavam, não consumiam... Os loucos não só eram recolhidos, mas eram também acorrentados, como se fossem animais ferozes. Na época da Revolução Francesa essa situação melhorou um pouco: um médico chamado Pinei, que fazia parte do governo, tomou a iniciativa de libertar aquela pobre gente.

 

Abriu o livro e mostrou duas gravuras antigas. Numa, viam-se os doentes mentais presos por pesadas correntes; na outra, estava Pinei, ordenando a libertação dos enfermos.

 

— Mas — continuou o médico — o hospício continuou existindo. A loucura agora chamava-se alienação mental. Alienado quer dizer desligado, estranho...

 

— Teve um filme chamado Alien...

 

— É isso mesmo. Referia-se a seres de outras galáxias, não é? Pois os loucos eram considerados mais ou menos isso, criaturas estranhas, de outras galáxias. E o lugar do alienado era no hospício. Vocês falaram no Machado de Assis. Não é de admirar que ele tenha escrito sobre o assunto. Muitos hospícios surgiram, no Brasil, na época dele: o Dom Pedro II no Rio de Janeiro, o São João de Deus, em Salvador, o Juqueri, em São Paulo, o São Pedro, em Porto Alegre. A figura mais importante lá era o alienista.

 

— Mas, afinal, o que faziam eles pelos pacientes? — perguntou Leo.

 

— Não muito. Estavam mais preocupados em dar nomes às doenças, em classificar os pacientes em diversos tipos. Naquela época não se sabia muito sobre a mente humana. Foi quando surgiu um homem chamado Sigmund Freud, com umas idéias revolucionárias. Ele disse que em todos nós existem mecanismos capazes de provocar problemas emocionais. Os conflitos que a gente vive, especialmente na infância, podem se manifestar mais tarde sob a forma de perturbação mental. Mais tarde surgiram também muitos medicamentos que não chegam a curar as doenças, mas ajudam as pessoas a viver melhor.

 

Nova pausa.

 

— Mas não é só disso que o Machado fala no livro. A loucura talvez nem seja o aspecto mais importante da obra. Na verdade, Machado de Assis está falando em poder, em pessoas que dominam as outras por uma razão qualquer: porque teoricamente sabem mais — como no caso do alienista — ou porque têm mais dinheiro, ou porque têm armas. Os doentes mentais sempre foram vítimas do poder, exatamente porque são doentes, pessoas desamparadas. Vocês devem lembrar que lá pelas tantas ocorre uma revolta contra o alienista, mas o líder da revolta não conseguiu afastá-lo: o doutor Bacamarte representava a ciência e o poder precisa da ciência.

 

— Fantástico — disse Leo, que ouvira fascinado a explicação do médico.

 

Arturzinho tinha outras preocupações, mais práticas:

 

— E o que é que a gente pode fazer por aquele homem da Casa Verde? — perguntou.

 

— Aquele homem... Como é o nome dele? — perguntou o médico.

 

— O nome dele? — Arturzinho, assombrado.

 

— É. Como se chama esse homem?

 

— Pois sabe que eu não sei? Não sei mesmo. - O médico sorriu:

 

— Mas a palavra mais importante para uma pessoa é o nome dela, não é verdade? Se você não sabe o nome do homem, isso quer dizer que você não está pensando nele como uma pessoa, está pensando nele como um maluco, como um alienado, como um ”alien”. E isso é a primeira coisa que precisa mudar.

 

— E o senhor pode nos ajudar?

 

— Posso. Mas é preciso que ele esteja de acordo. Ou que, pelo menos, a esposa e a filha solicitem a minha ajuda. Vejam bem: ele não está atacando ninguém, não está prejudicando ninguém. E se estivesse fazendo isso, vocês teriam de avisar as autoridades do município, não a mim. Não é o caso, mas eu poderei ajudar, se a família quiser.

 

Arturzinho e Leo agradeceram e saíram.

 

— E agora? — perguntou Arturzinho. — O que é que a gente faz?

 

— Eu acho — sugeriu Leo — que você deveria falar com a Lúcia. Afinal, é a filha dele, e, como disse o doutor, a família é que tem de opinar.

 

Arturzinho achou boa a idéia. E resolveu antecipar o encontro com a garota.

 

 

No qual a situação se complica

 

Às quatro da tarde do dia seguinte, Arturzinho bateu à porta da casa de Lúcia. A própria Lúcia abriu. Surpresa:

 

— Pensei que nosso encontro era amanhã...

 

— Era. Mas preciso falar com você.

 

Convidou-a para uma pizza no Marcolino — o que seria, como logo descobriu, um erro. Entraram, sentaram a uma mesa no fundo, e Arturzinho foi logo contando a conversa com o doutor Eduardo.

 

— Ele pode ajudar o seu pai, Lúcia. Mas é preciso que você e sua mãe aceitem a ajuda dele.

 

Uma sombra de tristeza, de angústia toldou o rosto dela.

 

— Não sei, Arturzinho. Sinceramente, não sei. Não imagino como o papai reagiria.

 

— Mas seu pai... — Aí Arturzinho lembrou-se do que o psiquiatra tinha falado: — Como é mesmo o nome dele?

 

— Jorge.

 

— Pois é: o Jorge, teu pai, pode melhorar muito. O doutor Eduardo disse que hoje em dia a psiquiatria mudou, não é mais como na época dos alienistas. Por que vocês não tentam?

 

Ela vacilava, ainda.

 

— Prometa, pelo menos, que você vai pensar no assunto — disse Arturzinho.

 

Lúcia suspirou:

 

— Está bem, Arturzinho. vou pensar no assunto. Desde já quero lhe dizer uma coisa: estou muito grata a você, pelo interesse, pela ajuda. — Consultou o relógio: — vou indo. Tenho aula de computação. Não, não se incomode, você não precisa me acompanhar. É aqui perto.

 

Levantou-se, pegou a bolsa.

 

— Espere aí, garota. — Era André Catavento, que chegava, sorridente. — Estou vendo que o Arturzinho está escondendo você dos amigos. Que feio, né? Isso não se faz. Apresenta a moça pra gente, Arturzinho.

 

Lúcia, constrangida, não sabia o que dizer. Arturzinho irritou-se:

 

— Agora não é o momento, cara. Ela está com pressa, você não está vendo? Deixe-a ir.

 

André soltou o braço de Lúcia que, sem uma palavra, foi-se apressada.

 

— Você é um grosso, mesmo — disse Arturzinho, furioso. — Onde é que se viu, tratar a garota desse jeito?

 

— E você — retrucou André — é um safado. Para enfrentar o maluco da Casa Verde você nos chama. Mas para apresentar uma garota, aí você não conhece ninguém. Quem pensa você que é? Deus?

 

Àquela altura já estava gritando. Muitas pessoas — a pizzaria estava cheia — voltavam-se para ver o que se passava. André deu-se conta de que tinha passado dos limites. Resmungou mais alguns desaforos e foi embora.

 

Arturzinho ficou sentado. Estava aborrecido, muito aborrecido. Conhecia André, sabia de seu gênio difícil — mas poderia ter evitado aquele bate-boca. Agora era tarde.

 

— Com licença — disse alguém a seu lado.

 

Quando Arturzinho viu quem era, estremeceu: tratava-se do Ildefonso, locutor da Rádio Itaguaí, conhecidíssimo por seu programa ”Fofocas da Cidade”. Ninguém escapava à sua língua afiada. Era o terror de Itaguaí esse homem ainda jovem, meio calvo, óculos de lentes grossas, um cigarro sempre a pender do canto da boca.

 

— Posso sentar? — perguntou, e antes que Arturzinho dissesse qualquer coisa, já estava confortavelmente abancado à mesa. Olhou o rapaz, curioso: — Você é o Arturzinho, não é? O filho do doutor Rodrigues... Eu conheço você desde pequenino. Ainda o chamam de Xereta?

 

Riu:

 

— Não leve a mal. Para mim, chamar alguém de Xereta não é ofensa. É o que eu sou, sabe? Um xereta. Estou sempre me metendo onde não sou chamado. Mas o que posso fazer? É a minha profissão, você sabe. E é o que eu gosto de fazer. Aliás, é por isso que vim falar com você. Eu ouvi o bate-boca entre vocês dois. E uma coisa me chamou a atenção.

 

Arturzinho estremeceu de novo, adivinhando o que estava por vir. Não deu outra:

 

— O seu amigo falou num maluco da Casa Verde. Que história é essa, Arturzinho? Que eu saiba, na Casa Verde não mora ninguém há muitas décadas. Ou mora? Estou enganado, Arturzinho?

 

Arturzinho gaguejou qualquer coisa: maluco da Casa Verde era um amigo deles, o Leo, que estava sempre falando no assunto:

 

— Por causa do livro do Machado de Assis, você sabe... O alienista...

 

— Ah. O alienista... Sei. — Ildefonso não parecia nem um pouco convencido. Mirava Arturzinho com um olhar tão desconfiado e zombeteiro que o rapaz chegou a se engasgar. Mas o jornalista optou por não insistir:

 

— Bem, desculpe pela intromissão. Se souber qualquer coisa sobre a Casa Verde, você me avisa? Qualquer história a respeito daquele lugar dará uma grande matéria.

 

Despediu-se, levantou-se e saiu.

 

Arturzinho respirou fundo. De momento, tinha se safado. Mas algo lhe dizia que aquele risco não estava inteiramente afastado. Um receio que veio a se confirmar, e mais cedo do que ele esperava.

 

No qual as coisas se precipitam e tomam rumo imprevisto

 

Arturzinho dormiu muito mal naquela noite. Estava apreensivo com o papo do jornalista — e chateado com a discussão que tivera com André. Certo, de vez em quando os dois se estranhavam, mas afinal eram amigos de infância, e faziam parte de um grupo. De manhã cedo resolveu telefonar. André atendeu. Ríspido:

 

— Estou indo para a escola. O que você quer?

 

— Queria reunir a turma. Acho que temos coisas para conversar... Você topa?

 

Na verdade, não se tratava só de uma proposta, tratava-se de uma reconciliação. André entendeu; depois de um instante de vacilação, aceitou o convite.

 

— Está bem. No Marcolino, às quatro. Eu aviso o Pedro Bola.

 

— E eu aviso o Leo. — Arturzinho desligou, aliviado: de momento, ao menos, a briga com o André parecia superada.

 

Desceu para o café, encontrou o pai na cozinha.

 

— bom dia, Arturzinho. — Mirou-o, atento: — Vejo que você não dormiu bem de novo. Ainda é a história da Casa Verde?

 

— Mais ou menos.

 

— A propósito, você falou com o Eduardo?

 

— Falei.

 

— E o que ele disse?

 

— Disse que pode ajudar. Desde que a família, quer dizer, a esposa e a filha do homem, lhe peçam isto. Conversei com a Lúcia. Mas ela...

 

— Espere um pouco — interrompeu o médico. — Quem é a Lúcia? É a filha?

 

— É. A Lúcia...

 

— Estou começando a desconfiar — o pai, com um sorriso cúmplice — que seu interesse não está só na Casa Verde...

 

— Ora, papai...

 

— Está bom, deixa pra lá. Eu acho que o Eduardo tem razão. Ele só pode fazer alguma coisa se alguém lhe pedir, o paciente ou a família. E imagino que para a família não seja uma decisão fácil. Talvez você tenha de dar um tempo, Arturzinho. Pelo jeito, não há nada urgente aí, certo?

 

Errado: havia, sim, urgência. Mas isso Arturzinho só descobriria depois.

 

Foi para a escola, mas, cansado e ansioso, não conseguia prestar atenção em nada. Também não conseguiu almoçar — o que lhe valeu uma reclamação da mãe:

 

- Você não está comendo nada, Arturzinho, desse jeito vai ficar pele e osso.

 

Fez os trabalhos da escola e, às três e meia, voou para a pizzaria. Foi, naturalmente, o primeiro a chegar. Depois veio o Leo e, um pouco mais tarde, o André Catavento — de cara ainda fechada:

 

— Que sacanagem você me fez ontem, hein, Arturzinho? Sacanagem, mesmo! Quem era aquela garota, afinal?

 

— Esta era a pergunta que você deveria ter se feito ontem — replicou Arturzinho. — Ela se chama Lúcia. É a filha do homem da Casa Verde.

 

— O quê! — André não podia acreditar no que estava ouvindo. — É a filha do maluco? Aquela garota bonérrima?

 

Sentou-se, ainda aparvalhado:

 

— A filha do maluco! Quem diria!

 

— Pois é — continuou Arturzinho. — Como você pode imaginar, essa garota não tem uma vida fácil. Ela é quem leva a comida para o pai, a roupa lavada. E tem de fazer isso de madrugada, escondida. Era disso que estávamos falando, e eu estava tentando ajudá-la... Aí chega você com umas brincadeiras sem graça... Me desculpe, mas você cometeu um erro.

 

— Bem, se é assim — disse o outro, sem jeito —, acho que sou quem deve pedir desculpas.

 

— Deixa pra lá — disse Arturzinho, estendendo-lhe a mão. — Somos amigos, e amigos brigam de vez em quando. Faz parte.

 

Apertaram-se as mãos, comovidos.

 

— Mas então — prosseguiu André — como é que a gente fica? Estou vendo que aquela sua idéia do clube está cada vez mais complicada...

 

Clube? Àquela altura Arturzinho pouco pensava no clube. Pensava em Lúcia, sim. Pensava o tempo todo. Estaria apaixonado? Provavelmente sim, mas sentia que a garota não estava em condições de lhe corresponder: aquela coisa do pai encerrado na Casa Verde monopolizava toda a sua atenção, todas as suas emoções.

 

— Pois é — suspirou. — Eu acho que o clube agora ficou em segundo plano. O negócio é a gente fazer alguma coisa por aquele homem. Estivemos conversando com um psiquiatra, colega do meu pai... Conta pra ele, Leo.

 

Leo relatou o papo com o médico, que André ouviu de testa franzida:

 

— Deus, é complicado mesmo. E o que foi que ele disse... Interrompeu-se. Pedro Bola entrava correndo, esbaforido:

 

— Gente, vocês nem sabem o que está acontecendo! Tem uma multidão na frente da Casa Verde. Está todo o mundo lá, a polícia, o prefeito...

 

— Mas o que houve? — Arturzinho, alarmado.

 

— O Ildefonso, aquele da rádio, sabe?, está apresentando o programa dele da rua. Diz que daqui a pouco vai revelar o segredo da Casa Verde...

 

Arturzinho ficou pálido. Teria Ildefonso descoberto tudo? Mas como? Pedro Bola tinha a explicação:

 

— Ele botou uns garotos pra vigiarem a casa, como nós. E aí descobriram essa moça, que vai lá levar comida para o maluco. O Ildefonso concluiu que tem alguém lá dentro. Daqui a pouco eles vão abrir a antiga porta...

 

Arturzinho saltou da cadeira:

 

— Temos de impedi-los — gritou. — Leo, você vai telefonar para a Lúcia e para o doutor Eduardo. Peça para eles irem imediatamente à Casa Verde. E vocês dois, venham comigo!

 

Seguiram correndo para a Casa Verde que — Itaguaí sendo uma cidade pequena—não ficava muito longe dali. Quando chegaram, Arturzinho assustou-se: de fato, havia pelo menos umas trezentas pessoas no lugar. Ali estava Ildefonso, com microfone na mão e fones no ouvido, fazendo uma transmissão direta. Quando avistou Arturzinho, seus olhos brilharam:

 

— E olhem quem acaba de chegar, senhoras e senhores! O jovem itaguaiense que foi o primeiro a descobrir o segredo da Casa Verde! Justiça lhe seja feita, ele foi discreto e não quis contar nada. Mas para o nosso programa, para o ”Fofocas da Cidade”, não existem segredos, senhoras e senhores! Foi só questão de um ou dois dias. A nossa investigação mostra que há alguma coisa nessa centenária casa, tão temida pela cidade. Mas dentro de mais alguns minutos, e com o consentimento do senhor prefeito, esse segredo será revelado! Fale aqui para os nossos ouvintes, Arturzinho! Conte como você desvendou o mistério, diga como está se sentindo agora!

 

Mas Arturzinho recusou-se a falar. Em vez disso, e sempre seguido por André Catavento e Pedro Bola, dirigiu-se para a entrada, ainda murada. Dois operários, com ferramentas, esperavam a ordem do prefeito, que ali estava, para arrancarem os tijolos que bloqueavam a velha porta.

 

— Senhor prefeito — disse Arturzinho em voz baixa, trêmula —, o senhor não pode permitir que isso aconteça.

 

— Por quê? — perguntou surpreso o prefeito, um homem gordo e calvo, com grandes bigodes. — Esta casa está abandonada há anos. O Ildefonso está dizendo que não, que há uma pessoa morando aí. Nós vamos tirar isso a limpo, abrindo a porta. Qual o problema?

 

Arturzinho vacilou um instante:

 

— O problema — disse — é que tem alguém aí dentro. Um homem, um doente mental. E essa confusão toda vai fazer muito mal a ele.

 

— bom... — O prefeito, confuso, não sabia o que dizer. Ildefonso já se aproximava:

 

— Então, senhor prefeito? Chegou o momento tão esperado. Dê a ordem, por favor.

 

— Não façam isso — disse alguém. Todos se voltaram para o recém-chegado. Era o doutor Eduardo, que acabara de desembarcar de seu carro. Nesse momento, esbaforida, chegava também Lúcia.

 

— O senhor não é o doutor Eduardo? — perguntou o prefeito. — O psiquiatra?

 

— Eu mesmo. E como médico estou lhe dando o meu parecer: não é prudente abrir a Casa, ainda mais na frente dessa multidão. Será uma violência contra o homem que está aí dentro.

 

— Mas espere aí — disse Ildefonso, irritado com aquela intromissão que ameaçava estragar o prometido desfecho. — Esse homem... ele é seu paciente?

 

— É — disse Lúcia. — A partir de agora, o homem que está aí dentro, meu pai, será tratado pelo doutor Eduardo. Minha mãe e eu estamos de acordo nisto.

 

Ildefonso voltou-se para o prefeito, que, visivelmente contrafeito, teve de admitir que o doutor tinha razão: o importante era proteger uma pessoa enferma. Diante disto, o radialista não teve outra saída:

 

— Senhoras e senhores — anunciou ao microfone —, infelizmente, e por motivos de força maior, teremos de adiar a sensacional revelação prometida para hoje.

 

A reação geral foi de desapontamento. E as pessoas já iam embora, quando de repente alguém gritou:

 

— Nada disso! Quero ver o que tem aí dentro!

 

Ato contínuo, alguém irrompeu da multidão. Ao vê-lo, todo o mundo se afastou. Era um rapaz conhecido como Gorílão. O apelido fazia jus ao tipo físico: baixo, atarracado, fortíssimo, era conhecido como um brutamontes sempre pronto a comprar uma encrenca. Nos fins de semana, não eram poucos os que iam parar no pronto-socorro, a cara amassada pelos murros dele. Andava sempre acompanhado por três ou quatro capangas, tão sinistros quanto ele. Ao vê-los, Ildefonso tremeu. Gorilão arrebatou a marreta de um dos operários da prefeitura:

 

— Se vocês não vão botar esses tijolos abaixo, deixem que eu faço.

 

— Que história é essa? — gritou o prefeito, irritado. — Largue essa marreta, Gorilão. Largue já isso.

 

Voltou-se, procurando um policial. Não foi preciso: o homem já se aproximava, a mão no coldre do revólver. A tensão era grande. Mas então Arturzinho interveio — e com uma audácia e uma desenvoltura que depois até a ele próprio o surpreenderiam. Colocou-se na frente do Gorilão, pediu-lhe calma:

 

— Você ouviu o que o doutor disse, Gorilão. Há um doente aí dentro, e o que você quer fazer pode ser um desastre para ele.

 

Gorilão não podia acreditar no que estava ouvindo. Quem era aquele que ousava enfrentá-lo?

 

— Sai da frente, cara — rosnou. — Sai da frente ou te desmancho junto com os tijolos.

 

Novo momento de tensão, mas aí:

 

— Olha lá — gritou alguém, apontando para um canto da casa. Todos se voltaram para aquele ponto.

 

Ali estava, aquela estranha figura, na sua casaca e sua gravata de fita: o recluso da Casa Verde.

 

No qual o suposto alienista deixa de ser alienado

 

Depois do assombro inicial, Lúcia correu para o pai, abraçou-o. Para surpresa dela — e de todos que estavam ali, Arturzinho principalmente — o homem correspondeu ao abraço. Parecia surpreso, assustado mesmo, com aquela agitação — mas em nada lembrava o tipo soturno que aterrorizara os garotos poucas noites antes. Piscando muito (pelo visto, estava desacostumado à luz do dia) mirou, intrigado, a multidão:

 

— Diga, filha, o que está fazendo toda esta gente aqui?

 

Lúcia hesitou. Em busca de socorro, olhou o doutor Eduardo que acenou afirmativamente, como a indicar: diga a verdade. O que Lúcia fez:

 

— Eles vieram saber qual o mistério da Casa Verde.

 

— É? — Ele franziu a testa. — E qual o mistério da Casa Verde?

 

— Você — disse Lúcia.

 

— Eu? — ele, surpreso. — Eu sou o mistério da Casa Verde? E por quê?

 

— Porque — Lúcia escolhia cuidadosamente as palavras, com medo da reação do pai — você ficou tanto tempo lá dentro...

 

— Ah. Por isso. Mas eu não estava incomodando ninguém, estava?

 

— Não, papai. — Lágrimas nos olhos, Lúcia sorria. — Você não estava incomodando ninguém.

 

— Eu não queria incomodar ninguém — continuou Jorge, no mesmo tom baixo, contido. — Só queria ficar sozinho. Como o alienista.

 

— Eu sei.

 

As pessoas, ao redor, ouviam aquele diálogo sem entender muito. Gorilão impacientou-se: aquele era o mistério da Casa Verde? Aquele homenzinho estranho? Vamos embora, gente, disse aos amigos, estamos perdendo nosso tempo aqui. Ildefonso, porém, resolveu não perder a oportunidade. Adiantou-se rapidamente com o microfone:

 

— Eu queria ouvir algumas palavras do senhor... Lúcia, indignada, tentou afastar o radialista, mas o pai a impediu:

 

— Pode deixar, filha. O homem quer me fazer apenas algumas perguntas, que mal tem? Vamos lá, senhor... Como é mesmo o seu nome?

 

— Ildefonso.

 

— Ildefonso. Pode perguntar, senhor Ildefonso.

 

— O senhor há pouco afirmou, senhor Jorge, que nada há de misterioso no que o senhor faz. Mas parece que o senhor passou um longo tempo trancado aí na Casa Verde... Pode-se saber o que o senhor estava fazendo?

 

— Eu? —Jorge hesitou. — Eu estava... como posso dizer?... pensando...

 

— Pensando?

 

— É. Pensando.

 

— E... as suas roupas? Jorge mirou-se:

 

— Que é que têm as minhas roupas?

 

— Parecem um pouco antigas.

 

— São antigas. Foram do meu bisavô, sabe? O alienista... A minha família guardava, como recordação. Quando eu fui para a Casa Verde resolvi usá-las. O senhor acha que está mal?

 

— Não — Ildefonso, contrafeito. — Não está. Mas diga-me: o senhor pretende continuar morando na Casa Verde?

 

Ele ficou um instante em silêncio, pensando:

 

— Não — disse por fim. — De momento, não. De momento quero voltar para casa, com a minha mulher e a minha filha. E agora, se o senhor me dá licença, vou me retirar...

 

— E assim, ouvintes, foi esclarecido o mistério da Casa Verde — proclamou Ildefonso. Meio decepcionado, contudo: esperava revelações sensacionais. De qualquer modo, porém, o programa estava no fim, de modo que ele se despediu e foi embora. As pessoas se dispersaram também. Ficaram ali Lúcia e o pai, Arturzinho e seus amigos, e mais o doutor Eduardo.

 

— Quem é esse senhor? — perguntou Jorge à filha.

 

— Deixe que eu me apresente — disse o médico. — Eu sou o Eduardo, psiquiatra.

 

— Psiquiatra? —Jorge sorriu, pela primeira vez. — Uma espécie de alienista, então...

 

— Um pouco diferente. Os tempos mudaram, o senhor sabe. Eu gostaria de conversar com o senhor...

 

— Conversar comigo? —Jorge, surpreso. — Tanta gente querendo conversar comigo... Mas está bem, se o senhor quer conversar comigo, eu estou à sua disposição.

 

Voltou-se para a filha, perguntou se podiam ir.

 

— Vamos — disse Lúcia. Voltou-se para Arturzinho, mirou-o bem nos olhos: — Obrigada, Arturzinho. Você e seus amigos foram ótimos.

 

E, sob o aplauso de André, Pedro Bola e Leo, beijou-o no rosto. Depois, pegou a mão do pai e foram para casa.

 

No qual os fantasmas revivem

 

Jorge estava curado, milagrosamente curado? Não: essas coisas, como explicou depois o doutor Eduardo, não acontecem. Ele tinha tido uma melhora, verdade que providencial. Mas nos dias que se seguiram, voltou a ficar estranho; mantinha-se quieto num canto, olhar parado. O psiquiatra ia vê-lo todos os dias, conversava com ele, receitou-lhe medicamentos. O tratamento funcionou. Ele podia ir à loja, por exemplo, e atender as pessoas. Continuava muito calado, mas ocasionalmente falava sobre o período que passara na Casa Verde. No começo, dizia, fora horrível, aquela solidão, os ratos correndo pelos corredores. Em seus sonhos, agitados, o alienista aparecia freqüentemente, perguntava o que estava fazendo ali, mandava-o embora. Mas ele queria ficar. Mais que isso: queria, ele próprio, tornar-se um alienista. E então a transformação foi total:

 

— Eu já não vivia mais no presente, eu estava na Itaguaí daquela época, falava com o boticário, com o barbeiro...

 

Aos poucos, acostumara-se com a Casa Verde e com a solidão. Era como se ali se sentisse protegido de um mundo que muitas vezes lhe parecera hostil; mais que isso, parecia-lhe que estava aplacando a figura que o perseguia em imaginação: o alienista. Mas não tinha saudades desse período; ao contrário, sentia que agora estava se libertando desse penoso passado.

 

Arturzinho e Lúcia começaram a namorar, claro, como era de esperar. Ele estava muito feliz. Mas não desistia da idéia do clube, coisa que agora parecia difícil. Afinal a Casa Verde não era mais um lugar misterioso; muitas pessoas iam lá, movidas pela curiosidade. Uma grande discussão passou a animar todas as rodas da pequena cidade: o que fazer com o lugar? O radialista Ildefonso dedicou uma série de programas ao assunto. Todos os dias entrevistava dez, doze pessoas. As opiniões eram as mais diversas, tão diversas que o prefeito resolveu realizar um debate público, em que propostas seriam apresentadas. Na noite aprazada, centenas de pessoas concentraram-se no Clube Comercial: até o Gorilão e sua turma compareceram. Como disse o Gorilão a uma senhora que estranhou a presença deles:

 

— Todo o mundo aqui é cidadão. Todo o mundo tem direito a um palpite.

 

A expectativa era grande. As propostas eram muitas e variadas. Uma delas era, no mínimo, curiosa: o Everardo, dono de uma lanchonete, queria transformar o lugar num grande restaurante chamado ”O Alienista”, que ele administraria. Para isso já tinha até elaborado um modelo de cardápio, que mostrava com orgulho. Haveria uma salada chamada ”Maluquice” e um ”Ensopadinho Esquizofrênico”, sem falar no sorvete ”Delírios e Alucinações”. Mas o Everardo tinha pouca chance de conseguir apoio: Itaguaí não era terra de gurmês, e os nomes dos pratos pareciam de mau gosto.

 

Algumas pessoas achavam que o casarão deveria ser simplesmente demolido — esta era a posição do vereador Araújo:

 

— A Casa Verde — dizia, em altos brados — é o símbolo de uma época ultrapassada, uma época em que os doentes mentais eram tratados como criminosos. É uma mancha vergonhosa no passado de nossa cidade. Não admira que as pessoas aqui não gostassem de ler O alienista. Machado de Assis nos colocou no mapa do Brasil, sim, mas de que forma? Nossa cidade passou a ser um símbolo de atraso, e a Casa Verde era a imagem viva desse atraso. Bota abaixo!

 

Não faltava quem aplaudisse. Gorilão, por exemplo, estava deliciado: deixa comigo, garantia, eu arraso aquilo tudo em meia hora.

 

No final, porém, ganhou a proposta defendida por um grupo de professores das escolas municipais, comandados pela incansável professora Isaura: a Casa Verde foi dividida em duas partes. Numa delas — a antiga sala gradeada dos fundos — funciona o clube de jovens com que Arturzinho sonhava: um lugar para música e dança, com bom isolamento acústico, naturalmente. A outra parte da Casa é a sede do Centro Cultural Machado de Assis. Uma sala foi transformada em biblioteca, outra em sala de vídeo, numa terceira funciona a oficina de artes. Mas a grande atração do Centro Cultural é o Museu do Alienista, organizado pelo doutor Eduardo, com a ajuda de Arturzinho e seus amigos. Trata-se de uma sala que foi preservada como estava, com as grades e tudo. Ali estão documentos antigos, encontrados num velho armário. Entre eles, uma preciosidade: o diário que o doutor Simão Bacamarte manteve nos dezessete meses em que lá passou, trancado.

 

Gravuras e textos, selecionados pelo doutor Eduardo, mostram como mudou o tratamento da doença mental através dos tempos.

 

Mas esta não é a maior atração da Sala Simão Bacamarte. A maior atração é outra coisa, uma encenação que se realiza todas as sextas-feiras à noite e que atrai até gente de outros estados — os ingressos são disputados semanas antes.

 

Às sextas-feiras à noite as pessoas que vão à Casa Verde têm um encontro marcado com o alienista. Que é Jorge, pai de Lúcia. Aos poucos ele foi se descobrindo como um excelente ator amador. E o que ele apresenta, às sextas-feiras à noite, é um monólogo intitulado ”O Alienista na Casa Verde”, extraído da obra de Machado de Assis. As pessoas vão entrando, e sentam em bancos e no chão, enquanto ele, usando a casaca escura, a gravata de fita e o pincenê — as roupas que herdou de sua família —, circula por ali, consultando livros, abrindo arquivos. Quando todos estão acomodados, ele se volta para o público e declara, em tom imperioso:

 

— A ciência é meu emprego único; Itaguaí é o meu universo.

 

Começa então a narrar a sua história: os estudos em Coimbra e Pádua, a volta ao Brasil, o casamento com dona Evarista:

 

— Feia? Sim. Mas tinha condições anatômicas e fisiológicas de primeira ordem: digeria com facilidade, dormia regularmente, tinha visão excelente.

 

Resolvido o problema conjugal, a busca do caminho profissional:

 

— Descobri que não havia no reino nenhum especialista em doença mental. O que me surpreendeu: a saúde da alma é a ocupação mais digna do médico. A ela resolvi, pois, me dedicar. Para isto precisava de um lugar onde pudesse internar os doentes, a fim de observá-los e estudá-los. E aí surgiu a Casa Verde: este local em que agora estais representa a materialização dos meus sonhos. Foi inaugurada com imensa pompa: de todas as vilas e povoações próximas, e até remotas, e da cidade do Rio de Janeiro acorreu gente para assistir às cerimônias, que duraram sete dias. E aí... torrentes de loucos. De todas as vilas e arraiais vizinhos afluíam loucos à Casa Verde. Comecei a suspeitar que a loucura não era apenas uma ilha perdida no oceano da razão, era um continente. Para onde eu me voltava, via loucos. E comecei a mandar todos eles para a Casa Verde.

 

E o monólogo prossegue: Simão Bacamarte enfrentando a rebelião da vila, Simão Bacamarte recuperando sua autoridade, Simão Bacamarte mudando subitamente de idéia e expulsando todos os internos da Casa Verde, Simão Bacamarte recolhendo-se ao hospício. E aí vem um momento lírico: o momento em que ele se apaixona pela portuguesa Ana, aquela que tomava conta do lugar e do próprio Simão Bacamarte. O alienista faz-lhe ardentes declarações de amor. Mas essa paixão não dura muito: doente, ele vem a morrer. A cena da morte é impressionante: deitado num catre, à luz de uma vela, o alienista se despede da moça:

 

— Dirão de mim, Ana, que eu morri louco como sempre fui. Não é verdade, Ana. Aqui aprendi muita coisa. Sou agora melhor pessoa do que era quando aqui entrei. Não foram os livros que me ensinaram a viver, Ana, foste tu.

 

Muitos espectadores até soluçam. Mas então as luzes se acendem: a encenação terminou. Todos aplaudem. Jorge é sempre muito cumprimentado. Não falta quem diga que ele faria sucesso no teatro ou na tevê. Modesto, ele diz que não aspira a tanto: tudo o que quer é viver, a cada semana, a trajetória do doutor Simão Bacamarte, seu bisavô:

 

— Isso me ajuda a entender aquele homem — garante.

 

Em geral terminam a noite na pizzaria do Marcolino, batendo papo. As luzes da Casa de Cultura se apagam e só o seu Armindo, o velho zelador, lá fica. Ele e seus fantasmas: garante que muitas vezes já encontrou, no corredor deserto, um homem imponente, usando casaca e gravata de fita. Mas o seu Armindo não se assusta. Até gosta. O que seria de Itaguaí, pergunta, se não tivesse uma Casa Verde mal-assombrada?

 

OUTROS OLHARES SOBRE O ALIENISTA

 

Depois de conhecer a história de Arturzinho e seus amigos, saiba também como outros artistas se inspiraram nesta obra clássica de Machado de Assis.
O alienista:
nas telas, contra a ditadura militar.

 

Em dezembro de 1968, o governo militar que se impusera ao Brasil quatro anos antes assumiu uma postura claramente ditatorial, decretando o Ato Institucional n2 5, que restringiu fortemente as liberdades políticas e civis. A partir daí, a repressão aos oposicionistas deixou de limitar-se ao âmbito estritamente político, atingindo também as manifestações culturais.

 

Já no início dos anos 60, as artes e as ciências humanas no Brasil haviam assumido uma postura de contestação não somente em relação a sistemas políticos, mas também a padrões de comportamento e modelos sociais. com o endurecimento do regime militar, para um grande número de artistas e intelectuais, alinhados com a oposição pelos mais diversos motivos, não restou outra saída senão o exílio no exterior ou mesmo no interior do país.

 

O cineasta Nelson Pereira dos Santos, por exemplo — que desde os anos 50 se destacara como um pioneiro da renovação do cinema brasileiro, tendo produzido obras que retratavam criticamente a nossa realidade —, refugiou-se na cidade histórica de Parati, no Rio de Janeiro, juntamente com outros artistas e técnicos que integravam a sua equipe cinematográfica.

 

Parati cenário das filmagens, em 1969, de Azyllo muito louco, uma adaptação livre de O alienista

 

Ali, em 1969, dada a impossibilidade de expressar-se explicitamente, o cineasta decidiu rodar um filme alegórico que apresentasse ao público o autoritarismo policialesco que vigorava no país. Para isso, recorreu a O alienista, conto que tematiza justamente a autoridade e o poder, e adaptou a obra de Machado de Assis às necessidades da época, rodando o filme Azyllo muito louco, que estrearia nos cinemas em 1970.

 

Linguagem alegórica para escapar à censura

 

Azyllo muito louco, que tem Nildo Parente no papel principal, é um retrato do Brasil na virada da década, representando o desespero político-cultural gerado pelo governo ditatorial. O roteiro, que não segue à risca a obra de Machado, apresenta sucessivos personagens que tentam estabelecer os limites entre loucura e sanidade, tendo sempre como resultado um sistema autoritário que determina sem critérios quem deve ser isolado e preso como ”anormal”.

 

Rodado totalmente em Parati e contando com a participação especial da atriz Leila Diniz — um verdadeiro mito da época —, Azyllo muito louco é com certeza a mais célebre adaptação de O alienista para uma outra linguagem, de cunho não-literário. Antes disso, porém, o conto de Machado de Assis já havia inspirado outro grande artista brasileiro, o pintor Cândido Portinari (1903-1962). Uma luxuosa edição da Sociedade dos 100 Bibliófilos — entidade dedicada a produzir edições especiais de obras importantes da literatura brasileira, em pequenas tiragens —, publicada em 1948, traz o conto primorosamente ilustrado por Portinari, que se utiliza das técnicas da água-forte e do nanquim.

 

Dinamismo dramático no palco e na TV

 

O caráter dinâmico do enredo de O alienista torna esse conto particularmente atraente para as adaptações em linguagem dramática ou teatral. Em função disso, o texto conheceu também versões para a televisão. A extinta TV Tupi, a primeira emissora televisiva brasileira, levou ao ar uma versão de O alienista na forma de novela, sob o título de ”Vila do Arco”, em 1973.

 

Vinte anos depois, o núcleo de dramaturgia da Rede Globo transformou o texto numa minissérie, com direção de Guel Arraes, tendo o ator Marco Nanini no papel de Simão Bacamarte. O ahenista também conheceu versões para o teatro. Em 1999, o Grupo Ria representou o texto em São Paulo, com adaptação e direção de José Paulo Rosa. O grupo, especializado em Machado de Assis, alternou a apresentação de O alienista com uma versão cênica de outra obra do escritor: Memórias póstumas de Brás Cubas.

 

                                                                                            Moacyr Scliar  

 

                      

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