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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTÉRIO DA CASA VIZINHA / R. F. Lucchetti
O MISTÉRIO DA CASA VIZINHA / R. F. Lucchetti

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

 

 

     Eu estava podando os "ficus" do muro. Estávamos em fins de abril e os "ficus" se encontravam em tal desordem que pareciam o pelo de um caso do inverno passado. Era muito alto o muro e eu tinha que subir a uma cadeira. A tesoura atirava ao chão as folhinhas decepadas como flocos de neve verde e quando o desconhecido falou atrás e olhei para ver quem era, havia folhinhas espalhadas por cima de seu chapéu e até uma ou duas no seu rosto. Tal como eu, ele trazia uma tesoura de podar nas mãos.

     — Não acha que está precisando de auxílio senhor? – perguntou, com um tom de leve esperança na voz.

     A tarde estava muito quente e eu realmente me sentia fatigado.

     Era um homem mal vestido, sem colarinho e havia dois dias, no mínimo, que não raspava a barba. Não gostei do seu aspecto. Mas não havia de faltar quem também não gostava de mim. Afinal de contas, o mundo é feito de homens de todos os tipos e todos eles precisam viver. De algum modo, tive pena do pobre diabo.

     — Talvez o senhor não me acredite – disse-lhe eu — mas é a única ocupação que tenho. Se não cuidasse pessoalmente do meu jardim, não sei como poderia matar o tempo. Desculpe.

     — Ninguém quer dar-me serviço – disse ele, quase para si mesmo.

     — Por que não se oferece ao vizinho? É possível que tenha lá uma oportunidade. Meu vizinho não tem quem o auxilie e pode-se ver que está precisando de auxílio.

     Na próxima porta morava o Nababo. Nós ainda não sabíamos seu verdadeiro nome, naquela ocasião e chamavamo-lo de Nababo. Parecia, realmente, um Nababo. Solitário, não falava com ninguém, mas vivia na abundância, a julgar pelas aparências. Era dessa espécie de homens que "têm que pagar" tudo o que desejam.

     — Muito obrigado, senhor – disse o homem maltrapilho.

     E seguiu para casa do meu vizinho.

     Ouvi o portão do Nababo abrir-se e fechar-se por detrás dele. Depois, não ouvi mais nada. Continuei a podar os "ficus".

     Alguns minutos depois, entretanto, perguntei a mim mesmo que era que havia acontecido. Sim, não havia dúvida que o portão devia abrir-se de novo para o homem sair.

     Mas refleti que não tinha razão. Se ele havia conseguido trabalhar, não sairia, naturalmente. Era isso. O homem tinha conseguido o serviço. Mas o primeiro pensamento voltou e tornei a interromper o meu trabalho. Não, não estava direito. Se ele tivesse conseguido ser contratado para podar os "ficus" do vizinho, àquela hora eu estaria ouvindo o ruído da sua tesoura, como qualquer um poderia ouvir, a uma centena de metros, o barulho da minha.

     Fiquei um momento imóvel, na cadeira a escutar. Não se ouvia o menor ruído! Tudo sossegado e em silêncio. Estranho, aquilo! Parecia que o homem não tinha conseguido o trabalho, mas, também, não tinha saído, que estaria fazendo? Quem sabe se havia caído morto, ao transpor o portão do Nababo? E o dono da casa nem sequer saberia do que se estava passando.

     Falei no caso com a minha mulher, à hora do chá.

     — Se alguém tivesse caído morto dentro do portão do Nababo, nós já saberíamos disso – respondeu ela.

     — Sim, sim, acho que sim...

     — E não creio que alguém fizesse uma coisa dessas.

     — Não, certamente. Não, acho que você tem razão.

     E como, afinal de contas, ninguém podia fazer nada nesse sentido, encerramos o assunto. De fato, no dia seguinte eu me havia esquecido completamente do homem maltrapilho que tinha entrado no portão do Nababo e não saíra de lá.

     Mas no dia seguinte tive verdadeiro choque.

     Estava ao portão, com o cachorro, quando o portão do Nababo se abriu e o homem maltrapilho saiu.

     Mas o curioso é que de "maltrapilho" não podia mais ser chamado!

     Vestia um terno cinza de corte magnífico que, evidentemente, não tinha sido cortado para ele. Levava um chapéu mole e... luvas. Um diamante lhe brilhava na gravata e ia fumando um charuto de uma marca que eu não me animava a comprar. É claro que aquilo não me podia interessar pessoalmente, mas posso garantir que nunca estive tão espantado.

     Acenou-me com a cabeça, ao passar e disse:

     — Bom dia.

     Não foi um "Bom dia" respeitoso e amável, mas um simples "Bom dia", de igual para igual.

     Como não sabia mais o que fazer, respondi, também:

     — Bom dia.

     Quando ele desapareceu da minha vista, contei o fato a minha mulher.

     — É extraordinário. — Quer isso dizer que ele está vivendo na casa ao lado! Que significará tudo isso? – exclamou ela.

     — Quem sabe se ele assassinou o Nababo e saiu, agora com dos seus melhores ternos? – aventurei.

     Mas reconheci logo que aquela explicação era simplesmente ridícula. Se o ex-maltrapilho tivesse assassinado o Nababo, não sairia assim, em pleno dia, à minha vista, com toda aquela calma. E roubaria, naturalmente, algo mais do que um bom terno de casimira e um charuto.

     Entretanto, que explicação se poderia encontrar, para aquele caso, que não fosse ridícula? Um sujeito qualquer, da rua, morando na casa do Nababo, fumando seus melhores charutos e vestindo a sua melhor fatiota!

     — Afinal de contas – disse eu — nosso Nababo é, de fato um nababo. Basta olhar para ele. E esse sujeito não é possível que seja um irmão considerado perdido e subitamente chegado da Austrália ou de vinte anos de prisão. Nem mesmo um parente distante.

     — Mas deve haver alguma razão para tudo isso – disse minha mulher.

     — Naturalmente deve haver.

     E, na verdade havia...

 

     Sendo o Nababo o nosso vizinho mais próximo, nós naturalmente nos interessávamos mais pela sua vida do que pelas dos outros vizinhos mais distantes ainda que do mesmo subúrbio. E somente muito depois foi que os outros vieram a interessar-se pelo caso. Nós nos ocupávamos com ele todos os dias. E, apesar de termos uma cerca muito alta, diariamente espiávamos um pouco para a casa dele.

     Porque imaginem que o ex-maltrapilho voltou à casa vizinha no mesmo dia, como voltou de seus passeios nos dias seguintes. O que mais nos causava estranheza era que aquele desconhecido, aquele jardineiro sem trabalho, estava vivendo na casa do Nababo, permanentemente, em companhia do próprio Nababo.

     Continuei a podar minha cerca, desta vez abaixando-a mais um pouco, afim de poder ver melhor a casa do Nababo. E da janela do banheiro podíamos ver ainda melhor. Mas quase nunca víamos o Nababo.

     Somente uma ou duas vezes o vimos. Não era tão freqüente como nos dias anteriores, quando o ex-maltrapilho não se andava ainda oferecendo para podar as cercas de "ficus". Mas uma ou duas vezes conseguimos vê-lo. E foi com verdadeiro espanto que verificamos a mudança que se tinha operado na expressão do seu rosto. A transformação tinha sido espantosa.

     — Ele parece... parece... – disse minha mulher.

     — Parece que anda vendo fantasmas – disse eu.

     Ela concordou.

     — Isso mesmo.

     Sentei-me à borda do banheiro e comecei a pensar. O Nababo parecia realmente, assombrado. Não era exagero. Nunca vi uma expressão tão trágica no rosto de um homem. Olhou pelo jardim com tanta tristeza que parecia não sentir mais amor a coisa alguma na vida. Nunca tinha sido comunicativo, mas agora, parecia mais um ermitão do que outra coisa. Por outro lado o ex-maltrapilho, com um ar de grande senhor, cada vez mais emproado e respirando boa vida, passava a maior parte do seu tempo numa cadeira preguiçosa, no pátio, assobiando. O mundo parecia pertencer inteiramente àquele homem, que havia aparecido como um pobre diabo.

     — Isso deve ser chantagem! – exclamei eu de repente.

     — Chantagem? – disse minha mulher — Como?

     — Eis o que eu suponho. Naquele dia, quando ele andava-se oferecendo para podar as cercas, encontrou-se com o Nababo, de quem conhecia alguma segredo. Como foi, o que foi, nem desde quando o conhecia, isso não sei; mas tenho quase certeza de que foi isso mesmo. Reconheceram-se, e o "jardineiro" convidou-se para viver naquela casa desde aquele dia. "Abriga-me, alimenta-me, veste-me e não direi nada a ninguém. Mas se não fizeres isso..." Parece-me, até, que o estou ouvindo dizer essas palavras. E o Nababo absolutamente não se atreveu a desobedecer. Não duvido, mesmo, que ele faça a cama do outro e lhe prepare a comida. E não se atreve a expulsá-lo.

     — Que coisa extraordinária! – disse minha mulher.

     E eu tinha razão. Era, na verdade, uma chantagem das boas e o "jardineiro" passou a explorá-la à larga. mas foi somente mais tarde que soubemos minuciosamente o que se passava. Entretanto, esse não é ainda o ponto mais importante da história.

     As semanas se passavam, com irritante monotonia. Só de longe em longe espiávamos um momento o Nababo e não era nada agradável o que se apresentava aos nossos olhos, certamente. Estava magro e seu rosto, outrora rosado, ficara amarelo. Dava a impressão de um homem que desperta de um pesadelo e verifica que o pesadelo continuava.

     Na verdade, aquilo era um verdadeiro pesadelo. Viver dia a dia, semanas e semanas com um velho sobre os ombros para sempre, um sujeito detestável como aquele e saber que, não ser por sorte ou acidente, esse estado de coisa persistirá até que um dos dois morra... se isso não é um pesadelo...

     — Por que não foge ele, quando o outro estiver fora dando um de seus passeios diários – disse minha mulher.

     — O Nababo tem muito dinheiro empregado naquela casa, em terreno e móveis, assim como em outras propriedades neste subúrbio. Não podem arrancar as raízes numa hora, sobretudo quando essas raízes são financeiras e profundas. Além disso, para ir embora, há muitas a fazer e pessoas a visitar. Advogados, agentes, solicitadores, avaliadores, etc., etc. e ele não poderia tomar essas providências sem que o outro descobrisse. Parece fácil, mas, na prática, é uma das coisas mais difíceis. É certo que ele podia ir-se embora e abandonar tudo. Mas o Nababo não me parece que seja homem capaz de fazer uma coisa desta caminhando pelo resto dos seus dias pelos campos à procura do serviço e dormindo nas casas em que trabalhar. Não. Francamente, o único meio de livrar-se de um trambolho desses... Se eu fosse o vizinho...

     Interrompi-me e minha mulher olhou para mim.

     — Qual é esse meio? – perguntou ela.

     — Bem... – disse eu.

     — Eu sei o que você quer dizer. Matá-lo, não é?

     Acenei com a cabeça. Eu nem podia falar.

 

     Mas desde aquele momento, quando minha mulher ou eu olhávamos para a casa do vizinho, era furtivamente e... numa nervosa expectativa.

     A casa do vizinho, que sempre tinha sido misteriosa, desde a chegada do jardineiro aparecia aos nossos olhos sob um aspecto sinistro; à noite, tínhamos a impressão de que andava o próprio diabo por lá. Embora nenhum de nós fizemos mais referências à solução que eu havia lembrado, para o caso do Nababo, eu sentia que ela jamais saía dos nossos pensamentos e, quando espiávamos por cima da cerca que nos separava do seu jardim, sempre pensávamos coisas como estas:

     "Quando irá acontecer?" "Seria esta noite?"

     O pesadelo estava começando a trasbordar da casa do vizinho e invadir a nossa.

     Aparte nosso estado de ânimo e a depressão moral do Nababo, a vida exterior continuava inalterada. Vendedores passavam pela avenida; carteiros do correio batiam à porta; os policiais passavam; os cachorros dormiam ao sol. Nós éramos, então, as únicas pessoas que suspeitavam da existência de qualquer coisa fora dos eixos. Aparentemente, os dias corriam sempre iguais uns aos outros. Parecia que nada havia de acontecer, porque não se notava alteração alguma.

     No começo, minha mulher queria que eu fosse à polícia, mas quando eu lhe perguntei se ela não achava que me iriam tomar por louco ela não teve o que responder.

     Certa vez, creio que em agosto, tive oportunidade de encontrar-me com o jardineiro e de conversar com ele. Foi no bar do Railway Hotel onde, segundo vim a saber, ele passava grande parte do tempo, como um grão senhor sempre com dinheiro no bolso. Era a primeira vez que eu falava com ele, depois daquela manhã em que ele saiu da casa do Nababo vestindo um terno deste.

     Encontramo-nos frente a frente e ele não teve outro remédio senão falar-me.

     Começou a conversar sobre o tempo, como de um vizinho para outro. Quis saber o meu nome e disse-me o seu. Chamava-se Buntley. Referiu-se ao Nababo como seu "amigo" e disse que ele não andava passando muito bem ultimamente. Mas não entrou em detalhes. Na verdade, não ficou muito tempo comigo. Nessa ocasião, estávamos informados de que ele obedecia rigorosamente a um programa de vida diário. Todas as manhãs, às onze, saía, creio que para o Railway Hotel, e voltava às doze e trinta. Todas as noites, às seis tornava a sair e voltava às oito. Começamos a observá-lo, vendo-o quando passava pelo portão do vizinho. O que sempre pensávamos, apesar de não o confessar um ao outro era: "Bem... o homem ainda está vivo..." Não era um pensamento muito agradável para manifestá-lo abertamente. Pensamentos que não se expressam em palavras não podem servir para debelar um pesadelo.

     Setembro chegou, um setembro úmido e frio. E numa manhã de setembro, aconteceu o que nós vínhamos antecipando havia várias semanas. Buntley não apareceu, como sempre, às onze horas da manhã, nem à tarde, às seis. Minha mulher se mostrava muito calma, mas eu estava terrivelmente nervoso. Não saímos da janela, vigiando a casa do vizinho. Ambos pensávamos:

     "Terá acontecido à noite passada?"

     Patrulhei o jardim e acabei convencendo-me de que sentia falta do alegre assobio de Buntley e do cheiro de seu charuto caro. Foi um dia horrível, seguido de uma noite não menos terrível. Estive a ponto de chamar a polícia.

     No dia seguinte, senti-me satisfeito por não ter obedecido àquele impulso, até certo ponto. Vamos Buntley.

     Mas foi um Buntley terrivelmente alterado... Aquele homem estava doente. Sua aparência pelo menos, era a de um homem muito doente. Estava sentado na cadeira preguiçosa tão fraco que não podia caminhar. Pelo menos foi o que me pareceu.

     — Santo Deus! Aquele homem está muito mal. É preciso chamar um médico.

     — O que será que há com ele? – perguntou minha mulher.

     — Só Deus o sabe. A menos que...

     Comecei a pensar em veneno. Naturalmente eu não podia dizer isso. Mas não era preciso dizer. Bastou-me que ela pensava o mesmo que eu.

     — Por que não chamarão um médico?

     — Talvez o Nababo não queria.

     — Mas eles têm telefone. Se ele se encontra tão doente, por que não vai ao telefone?

     Mas parece que, realmente, telefonaram. Porque, no dia seguinte, vimos nosso médico, o Dr. Cobb, descer do seu carro azul em frente ao portão do vizinho e entrar. Ficou lá dentro pouco mais de vinte minutos. E voltou mais, três vezes durante o dia.

     — Parece que a coisa é seria – comentei. — E se houver complicações, tenho pena do Nababo. Cobb é um homem muito escrupuloso e, se descobrir alguma coisa suspeita, não ficará calado.

     Durante alguns dias mais, o Dr. Cobb continuou a ir à casa do vizinho duas vezes por dia. Por fim, passou a ir uma vez só. Buntley não foi mais visto sentado no jardim, nem se via mais o Nababo. Creio que até as compras ele as fazia por telefone.

 

     Depois de duas semanas desse estado de coisas, um belo dia uma abelha me ferrou e tive que procurar o Dr. Cobb para uma consulta. Para dizer a verdade, fiquei agradecido àquela abelha, pois estava ansioso para "saber alguma coisa" e não encontrava um pretexto para ir falar com o médico. Enquanto eu estava esperando na ante-sala do consultório, pensava ativamente na maneira de encaminhar a conversa para o assunto. Ele me deixou para o fim e, depois que me examinou, sentou-se, acendeu o cachimbo e começou a conversar.

     — Um homem curioso, aquele Cavern – disse ele, pensativo, seguindo com o olhar as espirais de fumo.

     — Quem é Cavern?

     — Seu vizinho.

     — Oh! Cavern? Então é esse o nome dele? Nós sempre lhe chamamos Nababo. Bem... quero dizer... nunca cheguei a falar com ele. Cavern... que nome curioso.

     E olhando-me novamente:

     — Ele arranjou um amigo...

     "Estamos chegando", pensei.

     — O homem chama-se Buntley – acrescentou Cobb.

     — Eu conheço-o. Isto é não o conheço muito intimamente...

     — É um sujeito mal-encarado. Anda muito bem vestido, mas é a cara mais impressionante que já vi. Que estará ele fazendo lá? Você não sabe?

     — Não. O senhor sabe, doutor?

     "Vamos chegando, vamos chegando..." , pensei outra vez.

     Mas enganei-me.

     — Eu não tenho a mais remota idéia a respeito – replicou o Dr. Cobb. — Mas apesar de Cavern ser um homem da velha escola e Buntley ser um bruto, parece-me que Cavern receberia um duro golpe, se o outro morrer. E quase morreu, na semana passada.

     Fiquei olhando para ele, muito pensativo.

     Um duro golpe! Seria possível! Eu não podia acreditar no que estava ouvindo. Eu e minha mulher estávamos convencidíssimos de que se fosse possível encontrar um veneno que pusesse Buntley fora do caminho do Nababo sem deixar traços, este já teria liquidado o outro havia muitas semanas. E agora vinha o doutor Cobb dizer que se ele morresse o Nababo receberia um duro golpe!

     — Que é que há? – perguntou Cobb, ao ver a minha expressão.

     — Nada – disse eu. — Escute... que é que se está passando com Buntley?

     — É do peito – respondeu Cobb — Ele já teve pneumonia dupla, segundo me informaram. Sofre, mesmo, do pulmão. É um homem que precisa cuidar-se. Mas por que perguntou isso? Que é que pensa a respeito?

     — Não sei – disse eu, reconhecendo que estava perdendo tempo.

     Se a pergunta me tivesse sido feita cinco minutos antes, eu teria despejado tudo, contando o que sabia e o que suspeitava. Mas agora, depois daquela afirmação de que Nababo se interessava pela sua vida, percebi que devia ter certa cautela com as palavras.

     — O que me surpreende é como foi que um homem da espécie de Buntley foi parar naquela casa – disse Cobb. — Cavern nada diz a esse respeito. Posso dizer-lhe, entretanto, que não podia ter caído em melhores mãos. O velho o trata como se fosse uma verdadeira mãe. E está preocupadíssimo com o seu estado.

     Eu me sentia cada vez mais constrangido e Cobb não tirava os olhos de mim. Mudei de assunto, comecei a falar sobre coisas fúteis e tratei de voltar para casa o mais depressa que pude, para dar à minha mulher a extraordinária notícia.

     — Nesse caso, não pode tratar-se de chantagem – disse ela. — Estávamos enganados.

     — Se não há nada extraordinário – disse eu – por que, então, conservou ele o desconhecido em sua casa? Basta olhar para ele, para ver que não está nada satisfeito com aquele hóspede indesejável. Você não vê que ele anda assombrado, desde que aquele homem está na sua casa? Mas ele não somente o deixa ficar em casa. Trata dele! É incrível!

     No dia seguinte, bateram à minha porta. Eu estava no "hall". Abri a porta pessoalmente e encontrei-me diante do Dr. Cobb.

     — Alôo! – disse eu. — Entre.

     — Não posso demorar. Acabo de sair da casa de seu vizinho. Achei que devia chegar aqui um momento. Você está enganado, creio eu.

     — Enganado?

     Ele fitou o olhar em mim.

     — Sim. A doença dele é perfeitamente natural.

     Creio que corei até as orelhas.

     — Oh, o senhor já me deu a entender isso, ontem. Mas eu tenho observado...

     Bem, na verdade eu não podia mais ficar naquele ponto. Era preciso dizer-lhe tudo. E contei. Ele se mostrou interessado e acabou concordando comigo que aquilo tudo realmente parecia estranho. Mas assegurou-me novamente que a doença de Buntley era perfeitamente natural e que ninguém poderia ter cuidado dele melhor do que o fizera o Nababo.

     — Uma noite estivemos conversando longamente – disse ele, ao sair.

     As coisas ficaram nesse pé durante quatro dias. Até que, certa vez, depois da meia noite, perdi o sono, não sei porque. Levantei-me, cheguei à janela. Não se podia ver nada, porque a noite estava muito escura. Não havia sequer uma estrela no céu.

     Há ocasiões que a gente "sente" que qualquer coisa está fora dos eixos. Eu tinha a certeza sem poder explicar porque, de que havia algo extraordinário na casa do vizinho. Não sabia o que era, mas "sentia" que havia alguma coisa. Vesti o roupão, desci a escada e sai de casa, andando nas pontinhas dos pés pelo jardim. Durante alguns minutos fiquei ali, sem ver mais do que quando estava à janela. Mas, súbito, ouvi...

     Alguém estava cavando no jardim do Nababo.

     Cavando, sim.

 

     Não sei quanto tempo fiquei ali. Meia hora, talvez. Fiquei ali, até que aquele ruído de pá na terra cessou. Depois, como ele não recomeçasse, voltei para casa. Mas não tornei a deitar-me.

     Não disse nada a minha mulher, na manhã seguinte. Mas quando espiei da janela de meu banheiro e vi a forma e o tamanho da cova que tinha sido aberta, tratei de procurar imediatamente Cobb. E contei-lhe o que se havia passado na noite anterior.

     — Não me está cheirando bem esse negócio. Acho que será preciso tomar providências.

     — Vou até lá ver como está passando Buntley – disse Cobb. — E se encontrar os dois... Afinal de contas, pode ser que alguém estivesse enterrando algum cachorro morto.

     — De noite? — e consumindo tanto tempo nesse serviço.

     — Bem, eu vou saber. – disse o médico.

     E foi. Mas não viu Buntley.

     O Nababo o informou de que Buntley estava melhor e tinha ido fazer uma viagem de recreio e voltaria dali a um mês.

     — É mentira! – exclamei, quando Cobb me disse isso.

     — Desconfio que sim.

     — Que acha que devemos fazer?

     — Deixe o caso comigo – respondeu o médico.

     E, de fato, deixei o caso com ele.

     Naquela mesma noite, cavou-se, novamente no jardim do Nababo. E antes que o dia despontasse, o corpo de Buntley foi desenterrado e o Nababo metido na cadeia sob a acusação de "ter ocultado a morte de Thomas Buntley, de cinqüenta e sete anos, da mesma residência".

     Uma curiosa acusação. Mas não havia dúvida que ainda não se podia afirmar que tinha havido assassinato. Isso, somente depois se poderia averiguar. Por enquanto, somente se sabia que o homem tinha morrido e fora, naturalmente.

     O caso fez sensação, naturalmente. Sobretudo quando se soube que o Nababo tinha feito tentativas desesperadas para vender tudo quanto possuía no subúrbio. Tinha dito a todo mundo que ia mudar-se para o estrangeiro, mas soube-se que havia comprado uma pequena propriedade no sul.

     — Mas por que terá matado Buntley? – todo mundo perguntava. — Que história haverá, por detrás de tudo isso?

     Multidões se reuniam para ver "onde a coisa tinha acontecido" e tornavam a vida insuportável, na avenida. Isso durou alguns dias. E o caso é que foi no meio dessa multidão que eu encontrei, um dia, o homem que me havia de dar a chave do enigma. Notei-o, creio eu, sobretudo pelo fato de estar ele fazendo quando podia para passar sem ser visto. Nunca se afastava do lugar mais oculto no meio da multidão. Era um homem gordo, calvo, pois quando o vi ele estava tirando o chapéu e coçando a cabeça. E usava óculos demasiadamente escuros. Tal como o falecido Buntley, era um sujeito mal-encarado, um bruto.

     Eu não havia prestado a menor atenção, se não o visse de repente, sentado nas bancadas, no foro, quando se iniciou o processo de Nababo, procurando, muito nervoso, esconder-se de maneira a não chamar a atenção. Mostrei-o ao Dr. Cobb e este preveniu Langley, o superintendente da polícia que dirigia as investigações. Minutos depois o desconhecido, sem que percebesse, estava sendo vigiado.

     O processo marchava com incrível rapidez. O Nababo se limitava a dizer que era inocente, mas não dizia mais nada para defender-se. Tudo ficou assim por uma quinzena.

 

     Durante esse tempo o homem misterioso não saiu do distrito. Eu soube, por Cobb, que o soube pela polícia que ele se chamava Connor e estava hospedado num hotel barato perto da estrada de ferro, onde bebia "whisky" o dia todo e, ao que parecia, esperava alguma coisa que lhe interessava. Essa coisa, ninguém sabia o que era.

     E, subitamente, surgiu uma descoberta providencial, como geralmente acontece em casos como aquele. Connor bebeu demais, certa noite, e a polícia o segurou. Quando lhe deram busca, encontraram uma carta:

 

                 "Prezado Jim.

     Fiquei de escrever-lhe no dia 10, todos os meses, regulamente. Se não fizer, será porque algo extraordinário aconteceu. Só não escreverei se não for possível e, então, será culpado o homem com quem estou morando. Você pode conseguir meu endereço com Charley, mas não me escreva, porque do contrário tudo estará terminado. Vou mandar-lhe uma libra por semana, enquanto você estiver de acordo, mas não me procure, enquanto eu não parar de escrever. Se tal se der, fale à polícia imediatamente, porque será sinal de que fui assassinado.

                               Sempre seu Thos Buntley."

 

     Essa carta causou, como era natural, a maior sensação. Connor passou a ser uma testemunha importante, a carta um documento, pois, ela, além de tudo, evidenciou que o Nababo tinha sido vítima de uma chantagem de Buntley.

     Mas apesar de Connor ser testemunha, pouca coisa adiantou. Jurou que nada sabia. Disse que recebia as cartas de Buntley todos os meses e que elas o haviam surpreendidos. Logo que começou a receber uma libra por semana, como Buntley lhe havia prometido, resolveu conservar-se calado e não fazer mais perguntas. Quando leu nos jornais a notícia do que estava acontecendo; mas quando a polícia tomou conta do caso, achou que devia pôr-se de parte e não intervir em nada, pois não lhe dizia respeito. E foi isso que conseguiram arrancar dele. Prenderam-no por quinze dias, por ter tomado uma bebedeira, mas soltaram-no, depois.

     Mas, apesar de sua inutilidade, ele era uma testemunha excelente, comparado com Nababo. Este se recusou abertamente a dizer uma palavra que fosse. Fizeram tentativas sobre tentativas, inutilmente, para saber "por que" tinha sido ele vítima da chantagem de Buntley. O Nababo conservava a boca fechada. Sentava-se no banco dos réus e abaixava os olhos para o assoalho, deixando os outros falar.

     Certa vez, seguindo para casa em companha de Cobb, perguntei-lhe: — Quando será o processo modificado para assassinato?

     — Nunca.

     Parei e olhei-o admirado.

     — Nunca. Que quer dizer?

     — O que lhe vou dizer é reservado, mas em breve será do domínio público. Eles estão, apenas, procurando ganhar tempo, para descobrir os antecedentes do Nababo. Mas a autópsia revelou que a morte de Buntley foi natural. Quanto a isso, não há mais dúvida alguma.

     — Então?...

     — Sabe-se que o Nababo estava informado das cartas que Buntley escrevia ao companheiro. Ele sabia que se Buntley fosse assassinado ou, mesmo morresse de morte natural, as cartas mensais se interromperiam e a coisa tomaria um aspecto grave. Não podia arriscar-se a que mesmo o mais humilde jornalzinho desse notícia da morte de Buntley. Sabia, que, enterrando o outro, ganharia algum tempo. Talvez não fosse mais de dois ou três dias, mas, de qualquer forma, poderia respirar um pouco. Era possível que ele não soubesse em que dia do mês as cartas de Buntley eram colocadas no correio. Talvez pudesse dispor de mais tempo, mas não podia adivinhar. Estava trabalhando a morte do outro, não poderia fazer isso sem despertar suspeitas.

     — Não sei porque – disse eu — uma vez que ele não matou Buntley...

     — O Nababo – interrompeu Cobb — foi muito ruim, quando rapaz. Naturalmente não podia arriscar-se a que seu passado se tornasse conhecido.

     — Mas não se soube de nada.

     — Questão de sorte.

     E a sorte lhe foi fiel . Procuraram-se registros, compararam-se impressões digitais, examinaram-se fotografias aos milhares, mas o passado do Nababo era impenetrável. Talvez houvesse até crimes, assassinatos. Mas nada disso veio à luz.

     Na noite anterior ao júri, Cobb e eu estivemos conversando sobre o caso.

     — Alguém conhece o seu passado – disse Cobb. — Talvez o próprio Buntley nunca entrou em detalhes com ele nem em confidências. Buntley – vê-se pela carta – queria explorar a mina sozinho, sem dividí-la com ninguém. Mas eu me inclino a crer que Connor conhecia muito bem o Nababo e sabia de muita coisa a seu respeito. Mas, como provar isso? Como obrigá-lo a falar?

     — Quantos anos lhe parece que o Nababo terá de prisão?

     — O que ele fez foi mais um desrespeito à lei do que um crime. Terá, quando muito, uns doze meses.

     E foram, realmente, doze meses.

     Depois disso, o mundo o esqueceu. Essas coisas sempre se esquecem.

     O leitor se lembra, acaso de um crime qualquer que preocupou todo mundo, um ano atrás? Pois é isso. Seis meses depois ninguém se lembrava mais do nome Nababo.

 

     A casa do vizinho foi vendida, assim como todo o resto das suas propriedades do subúrbio. E o subúrbio nunca mais o viu.

     Mas alguns anos mais tarde, quando eu andava de automóvel pela costa sul, quis o acaso que chegasse a uma cidadezinha. Eu tinha esquecido tudo a respeito do Nababo, mas o nome da cidade fez com que eu o recordasse. Era naquele lugar, lembro-me, que ele vinha refugiar-se, antes do encontro do corpo de Buntley. Tive curiosidade de saber se ele tinha realmente realizado o seu projeto.

     Procurei a lista telefônica do lugar, mas não havia o nome de Cavern. Se ele morava lá, tinha mudado de nome, possivelmente. Mas à tarde, por verdadeira casualidade, encontrei-o.

     Ia caminhando pela rua sossegada, sombreada de árvores e respeitável. Passou pelos meu carro sem ver-me, mas eu parei e me voltei. Parecia dez anos mais velho e mais assombrado ainda do que quando era meu vizinho, mais magro e mais triste. Ia carregado de compras. Fiquei sentado no carro, vendo-o entrar no portão de um bangalô.

     A curiosidade me fez saltar do carro e desci a rua sossegada. Eu nunca tinha falado com ele, mas ia falar, agora. Quando cheguei ao portão e espiei, o Nababo não estava mais à vista. Tinha entrado na casa, fechado a porta.

     O jardim, porém, não estava vazio. Numa rede suspensa entre duas árvores, bem vestido, satisfeito feliz e descuidado, fumando um fino charuto, estava um homem calvo de óculos muito escuros.

     — Connor!

     Fui-me embora. Afinal de contas, que iria eu fazer ali? Eu não tinha nada com isso. Que se poderia fazer? Nada. A única coisa que se podia fazer era rememorar o caso, de quando em quando, entre amigos.

     E nada mais.

                                                                                R. F. Lucchetti  

 

                      

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