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O MISTÉRIO DA ESTRELA / Neil Gaiman
O MISTÉRIO DA ESTRELA / Neil Gaiman

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MISTÉRIO DA ESTRELA

 

Era uma vez um rapaz que queria realizar o Desejo de seu Coração.

E apesar de esse início não ser totalmente original (pois todas as histórias sobre rapazes que já existiram ou vierem a existir poderiam começar de modo semelhante), nesse rapaz e no que lhe aconteceu havia muita coisa extraordinária, embo­ra nem mesmo ele tenha jamais chegado a saber a história por inteiro.

A história começou, como muitas começaram, em Muralha.

O lugarejo de Muralha se encontra hoje, como se encontra há seiscentos anos, num alto afloramento de granito no meio de uma pequena região de floresta. As casas de Muralha são quadradas e velhas, feitas de pedra cinza, com telhados escuros, de ardósia, e chaminés altas. Para aproveitar cada centímetro do espaço sobre a rocha, as casas se apóiam umas nas outras, cons­truídas encostadas umas nas outras, com uma eventual árvore ou arbusto brotando direto da lateral de uma construção.

De Muralha sai somente uma estrada, uma trilha sinuosa que sobe íngreme da floresta, onde é margeada por pedras pequenas e rochas. Seguindo-se o suficiente por ela na direção sul, sai-se da floresta e a trilha se torna uma estrada de verdade, asfaltada. Mais adiante, a estrada se amplia e está sempre lotada de automóveis e caminhões que se apressam de uma cidade a outra, a qualquer hora. A estrada acaba nos levando a Londres, mas a distância de Muralha até Londres é de uma noite inteira dirigindo.

Os moradores de Muralha são uma raça taciturna, que se encaixa em dois tipos distintos: a população natural de Muralha, todos altos, cinzentos e reforçados como o aflo­ramento de granito sobre o qual a cidadezinha foi construída, e os outros, que fixaram residência em Muralha ao longo dos anos, e seus descendentes.

Abaixo de Muralha, para o lado oeste, está a floresta. Para o sul, há um lago traiçoeiramente plácido, formado pelos regatos que descem dos montes por trás de Muralha, lá para o norte. Nos montes há campos, onde carneiros pastam. Para o leste, mais florestas.

Imediatamente a leste de Muralha, vê-se uma alta muralha de rocha cinzenta, que inspirou o nome do lugarejo. Essa muralha é antiga, construída de pedaços quadrados e toscos de granito mal cortado, e ela sai dos bosques para voltar nova­mente para eles.

Há somente uma brecha na muralha: uma abertura de cerca de um metro e oitenta de largura, um pouquinho ao norte do lugarejo.

Pela abertura na muralha, pode-se ver uma grande campina verde; para lá da campina, um riacho; e, para lá do riacho, ár­vores. De vez em quando vêem-se vultos e figuras entre as árvores, ao longe. Vultos enormes e vultos estranhos; bem como pequenas criaturas cintilantes que refulgem e lampejam para depois desaparecerem. Apesar de essa campina ser perfeita­mente fértil, nenhum dos moradores do lugarejo jamais levou animais para pastar ali, do outro lado da muralha. Tampouco a usaram para qualquer tipo de lavoura.

Em vez disso, há centenas, talvez milhares, de anos, eles postam guardas em cada lado da abertura na muralha e fazem o possível para não pensar nela.

Até mesmo hoje, dois moradores do povoado ficam ali de cada lado da abertura, dia e noite, em turnos de oito horas, arma­dos de pesados porretes. Protegem a abertura do lado do vilarejo.

Sua principal função é impedir que as crianças do povoa­do passem pela abertura e sigam para a campina e mais além. Muito de vez em quando, são forçados a desencorajar algum perambulante solitário, ou algum dos poucos visitantes que chegam ao lugarejo, de passar pelo portal.

As crianças, eles conseguem deter com a mera exibição dos porretes. Quando se trata de visitantes ou pessoas que vagueiam por ali, eles são mais criativos, apenas recorrendo à força física como último recurso, caso não sejam suficientes histórias de capim recém-plantado ou de um touro perigoso à solta.

É muito raro que chegue a Muralha alguém que saiba o que está procurando, e essas pessoas às vezes têm permissão para passar. É uma expressão que têm nos olhos: uma vez vista, ela é inconfundível.

Em todo o século XX, não houve casos de passagem clan­destina pela muralha de que os aldeões tenham conhecimen­to, e disso eles se orgulham.

A guarda é dispensada uma vez de nove em nove anos, na Festa da Primavera, quando uma feira se instala na campina.

 

Os acontecimentos que se seguem ocorreram há muitos anos. A rainha Vitória ocupava o trono da Inglaterra, mas ainda não era a viúva trajada de negro de Windsor. Tinha as boche­chas rosadas e caminhava com energia. E lorde Melbourne costumava ter motivo para repreender a jovem rainha, com delicadeza, por sua imprudência. Naquela época, ela ainda esta­va solteira, mas muito apaixonada.

O Sr. Charles Dickens publicava em folhetins seu romance Oliver Twist. O Sr. Draper tinha acabado de tirar a primeira fotografia da Lua, retendo sua face pálida no papel frio. O Sr. Morse anunciara recentemente um método para transmitir mensagens por meio de fios de metal.

Se você tivesse mencionado a magia ou a Terra Encantada para qualquer um deles, eles teriam dado um sorriso desde­nhoso, com exceção, talvez, do Sr. Dickens, que na época era jovem e imberbe. O olhar que ele teria lhe lançado seria de interesse e anseio.

Naquela primavera, estava chegando gente às ilhas Britâ­nicas. Vinham sozinhas, aos pares, e desembarcavam em Dover, Londres ou em Liverpool. Homens e mulheres com a pele branca como papel, escura como rocha de origem vulcânica, da cor de canela, falando uma infinidade de idiomas. Foram chegando durante todo o mês de abril, de trem a vapor, a cava­lo, de carroção ou carroça aberta, e muitos deles a pé.

Naquela época, Dunstan Thorn tinha dezoito anos e não era um rapaz romântico.

Tinha cabelos castanhos, olhos castanhos e sardas castanhas. Era de altura mediana e de fala vagarosa. Tinha um sorriso espontâneo que iluminava seu rosto de dentro para fora e, quando sonhava de olhos abertos nos campos de seu pai, ima­ginava deixar o povoado de Muralha e todo o seu encanto imprevisível e ir para Londres, Edimburgo, Dublin ou alguma outra grande cidade, onde nada dependesse da direção na qual o vento estivesse soprando. Ele trabalhava na fazenda do pai e não possuía nada, a não ser um pequeno chalé num campo dis­tante, que tinha sido presente dos pais.

Os visitantes estavam chegando a Muralha naquele mês de abril para a feira, e Dunstan não gostava da presença deles. A estalagem do Sr. Bromios, a Sétima Pega, normalmente uma colmeia de cômodos vazios, já estava cheia com uma semana de antecedência. E agora os desconhecidos tinham começado a alugar quartos nas fazendas e nas residências, pagando pela acomodação com moedas estranhas, com ervas e especiarias, e até mesmo com pedras preciosas.

À medida que se aproximava o dia da feira, aumentava o clima de expectativa. As pessoas acordavam mais cedo, con­tavam os dias, contavam os minutos. Os guardas postados de cada lado do portal na muralha estavam inquietos e nervosos. Vultos e sombras se movimentavam nas árvores na borda da campina.

Na Sétima Pega, Bridget Comfrey, que a opinião geral considerava a mais bela taberneira da História, estava provo­cando um atrito entre Tommy Forester, com quem a tinham visto sair durante o ano anterior, e um homem enorme de olhos escuros, acompanhado por um mico que piava como um passarinho. O homem falava mal o inglês, mas sorria de modo expressivo quando Bridget passava por ele.

No salão da taberna, os fregueses de sempre, numa proxi­midade constrangedora com os visitantes, conversavam:

— É só de nove em nove anos.

— Dizem que antigamente era todos os anos, no solstício de verão.

— Pergunte ao Sr. Bromios. Ele sabe.

O Sr. Bromios era alto e tinha a pele amorenada. Os cabe­los pretos eram bem encrespados. Os olhos eram verdes. Quando as meninas do vilarejo se tornavam mulheres, elas se davam conta do Sr. Bromios, mas ele não retribuía a atenção. Dizia-se que ele chegara ao vilarejo muito tempo atrás, como visitante. Mas tinha ficado ali, e seu vinho era bom, segundo a opinião das pessoas do lugar.

No salão, começou uma discussão ruidosa entre Tommy Forester e o homem de olhos escuros, cujo nome parecia ser Alum Bey.

— Façam os dois parar! Pelo amor de Deus! Façam com que parem! — gritou Bridget. — Eles vão sair pelos fundos para brigar por minha causa! — E ela balançou a cabeça, com graça, de um modo que fez a luz dos candeeiros se refletir nos per­feitos cachos dourados.

Ninguém moveu um dedo para impedir os dois homens, se bem que uma boa quantidade de gente, tanto moradores como recém-chegados, saísse para assistir à briga.

Tommy Forester tirou a camisa e levantou os punhos fecha­dos diante de si. O desconhecido riu, cuspiu no capim e, pegan­do Tommy pela mão direita, o atirou de cara no chão. Tommy se levantou com esforço e investiu contra o desconhecido. Seu golpe resvalou no rosto do homem, antes que Tommy se desco­brisse caído de bruços no chão, com o rosto sendo empurrado na lama, sem conseguir recuperar o fôlego. Alum Bey sentou em cima dele, dando risinhos, e disse alguma coisa em árabe.

Com essa rapidez e facilidade, a briga terminou.

Alum Bey saiu de cima de Tommy Forester e foi todo empavonado até onde estava Bridget Comfrey, fez uma pro­funda reverência e abriu para ela um sorriso reluzente.

Bridget não lhe deu atenção e correu para acudir Tommy.

— Ai, ai, o que foi que ele fez com você, meu amorzinho? — perguntou ela, enquanto limpava a lama do rosto de Tommy com o avental e o chamava por todo tipo de nome carinhoso.

Com os espectadores, Alum Bey voltou para o salão da estalagem e gentilmente ofereceu a Tommy Forester uma gar­rafa do Chablis do Sr. Bromios, quando Tommy voltou para a taberna. Nenhum dos dois tinha muita certeza de quem saíra vencedor, quem fora derrotado.

Naquela noite, Dunstan Thorn não estava na Sétima Pega. Era um garoto prático, que ao longo dos seis últimos meses vinha cortejando Daisy Hempstock, moça de propensão igual­mente prática. Nas noites de tempo bom, davam a volta no vilarejo, conversando sobre a teoria da rotação de culturas, o clima e outros assuntos razoáveis. Nesses passeios, em que eram invariavelmente acompanhados pela mãe e irmã mais nova de Daisy, a uns bons seis passos de distância, de quando em quan­do os dois se entreolhavam amorosamente.

À porta da residência da família Hempstock, Dunstan para­va, fazia uma reverência e se despedia.

E Daisy Hempstock entrava em casa e tirava a touca.

— Ai, como eu queria que Sr. Thorn se decidisse a me pedir em casamento. Tenho certeza de que papai não se oporia.

— É verdade. Tenho a mesma certeza — concordou a mãe de Daisy nessa noite, como dizia todas as noites em que saíam. Ela também tirou a touca e as luvas e levou a filha até a sala de estar, onde um senhor muito alto, com uma barba negra bem comprida, estava sentado, organizando sua bagagem. Daisy, a mãe e a irmã fizeram mesuras diante do cavalheiro (que falava pouco inglês e tinha chegado havia alguns dias). O hóspede temporário, por sua vez, se levantou e se inclinou para elas, voltando então para sua bagagem de peças avulsas de madeira, classificando, arrumando e lustrando.

 

Fazia frio naquele mês de abril, com a estranha inconstância da primavera inglesa.

Os visitantes chegavam do sul, subindo pela estrada estreita que atravessava a floresta. Eles enchiam os quartos de hóspedes, arrumavam um jeito para dormir em estábulos e celeiros. Alguns armaram tendas coloridas, outros chegaram em seus próprios carroções puxados por enormes cavalos cinzentos ou por pequenos pôneis peludos.

O chão da floresta estava coberto por um tapete de cam­painhas.

Na manhã de 29 de abril, Dunstan Thorn e Tommy Forester estavam de guarda na abertura na muralha. Cada um deles ficou de um lado da abertura, esperando.

Dunstan já tinha estado de guarda muitas vezes, mas até aquele dia sua função fora apenas ficar ali parado e, de vez em quando, espantar crianças.

Hoje ele estava se sentindo importante. Segurava um por­rete de madeira. E, quando qualquer um que desconhecesse as normas do vilarejo se aproximava da abertura na muralha, Dunstan ou Tommy faziam uma advertência.

— Amanhã, amanhã. Ninguém vai passar hoje, meus senhores.

E os forasteiros recuavam um pouco e ficavam olhando pela abertura na muralha para a campina despretensiosa lá do outro lado, para as árvores nada extraordinárias dispersas na campina, para a floresta bastante sem graça que ficava por trás. Alguns tentavam puxar conversa com Dunstan ou Tommy, mas os rapazes, orgulhosos de sua condição de guardas, se recusa­vam a conversar, contentando-se em erguer a cabeça, contrair os lábios e simplesmente assumir ares de importância.

Na hora do almoço, Daisy Hempstock trouxe para cada um deles uma pequena porção de bolo de batata com carne moída, e Bridget Comfrey, um caneco de cerveja forte tem­perada.

E, ao entardecer, outra dupla de rapazes bem-dispostos chegou do lugarejo para rendê-los, cada um portando uma lanterna. Tommy e Dunstan desceram então até a estalagem, onde o Sr. Bromios lhes deu um caneco da melhor cerveja — e sua melhor cerveja era realmente ótima — como recompensa pelo serviço de guarda. A estalagem, tão apinhada de gente que era difícil acreditar, fervilhava de empolgação. Estava repleta de visitantes de todas as nações do mundo, ou pelo menos era o que parecia a Dunstan, que não tinha noção das distâncias para além dos bosques que cercavam o lugarejo de Muralha. Era assim que ele encarava o homem alto de cartola, proveniente de Londres, à mesa a seu lado, com tanto assombro quanto encarava o outro com quem ele estava jantando, um homem ainda mais alto, da cor de ébano, vestido com uma túnica bran­ca de uma única peça.

Dunstan sabia que era uma grosseria ficar olhando para os outros e que, como habitante de Muralha, tinha todo o direito de se sentir superior a todos os forasteiros. Mas sentia aromas diferentes no ar e ouvia homens e mulheres falando uns com os outros em centenas de idiomas. Com isso, ficava boquiaberto e observava os outros descaradamente.

O homem da cartola preta de seda percebeu que Dunstan es­tava olhando para ele e fez um gesto para o rapaz se aproximar.

— Você gosta de pudim caramelado? — perguntou, sem rodeios, como se estivesse se apresentando. — Mutanabbi foi chamado daqui, e eles serviram mais pudim do que um ser humano consegue consumir sozinho.

Dunstan fez que sim. O pudim caramelado ainda quente parecia convidativo no prato.

— Pois bem — disse seu novo amigo —, pode se servir. — Ele passou para Dunstan uma vasilha limpa de porcelana e uma colher. Dunstan não precisava de mais nenhum incentivo e começou a devorar o pudim.

— Agora, meu jovem — disse a Dunstan o senhor alto, com a cartola de seda preta, assim que as vasilhas e o prato do pudim estavam totalmente vazios. — Parece que a estalagem já não dis­põe de acomodações. Além disso, todos os quartos vagos no lugarejo já foram alugados.

— É mesmo? — perguntou Dunstan, sem nenhuma surpresa.

— É mesmo — respondeu o senhor de cartola. — E o que eu estava me perguntando era se você saberia de alguma casa que pudesse ter um quarto disponível.

— A esta altura, os quartos já estão todos tomados — respon­deu Dunstan, dando de ombros. — Eu me lembro de quando tinha nove anos e minha mãe e meu pai me mandaram dormir nas vigas do telheiro do estábulo por uma semana e alugaram meu quarto para uma senhora do Oriente acompanhada de sua família e criadagem. Em agradecimento, essa senhora me deixou uma pipa, que eu costumava empinar na campina, até que um dia a linha se partiu e a pipa saiu voando pelo céu.

— E onde você mora agora? — perguntou o senhor de cartola.

— Num chalé nos limites das terras de meu pai — respon­deu Dunstan. — Era de nosso pastor, até ele morrer. Fez dois anos no último dia 1o de agosto, festa da colheita, e então meus pais me deram o chalé.

— Leve-me lá — disse o senhor de cartola, e não ocorreu a Dunstan lhe dizer não.

A lua de primavera estava alta e brilhante, e a noite, lumi­nosa. Saíram do lugarejo para a floresta logo abaixo e passaram por toda a fazenda da família Thorn (onde o senhor de cartola se assustou com uma vaca, adormecida na relva, que bufou enquanto sonhava) até chegarem ao chalé de Dunstan.

Era um cômodo com lareira. O forasteiro fez que sim.

— Até que gostei disso aqui — disse ele. — Olhe só, Dunstan Thorn, quero alugar de você o chalé pelos próximos três dias.

— E o que vai me dar por ele?

— Um soberano de ouro, um meio-xelim de prata, um pêni de cobre e um vintém novinho em folha.

Ora, um soberano de ouro por duas noites era um aluguel mais do que justo, nos tempos em que um lavrador podia ter esperança de ganhar quinze libras num bom ano. Ainda assim, Dunstan hesitou.

— Se o senhor está aqui para a feira — disse ele ao homem alto —, vai negociar milagres e assombros.

O homem alto concordou.

— Quer dizer que você estaria atrás de milagres e assombros? — Ele passou novamente os olhos pelo único aposento do chalé de Dunstan. Nesse momento, começou a chover, um delicado tamborilar no telhado de colmo. — Pois bem — prosseguiu o homem alto, com uma pontinha de mau humor —, um milagre, um assombro. Amanhã, você vai realizar o Desejo de seu Coração. Pronto, aqui está seu dinheiro. — E ele o tirou da orelha de Dunstan sem nenhum esforço. Dunstan tocou a moeda no prego de ferro da porta do chalé, para verificar se o ouro era encantado. Depois, fez uma profunda reverência para o homem e saiu pela chuva afora, com o dinheiro bem amarrado no lenço.

Dunstan caminhou até o estábulo na chuva que não para­va. Subiu para o celeiro de feno e logo estava dormindo.

Durante a noite, percebeu raios e trovões, mas não acor­dou. E depois, de madrugada, foi despertado por alguém que pisou sem querer em seus pés.

— Desculpe — disse uma voz. — Quer dizer, me desculpe.

— Quem está falando? Quem está aí? — perguntou Dunstan.

— Só eu — disse a voz. — Estou aqui para a feira. Ia passar a noite dormindo num oco de árvore, mas um raio a derrubou, quebrou-a em pedaços como um ovo e a destroçou como um graveto. E a chuva escorreu por meu pescoço e ameaçou entrar em minha bagagem, e tenho coisas ali que precisam ser mantidas secas como poeira. E em toda a viagem até chegar aqui eu consegui protegê-las como se estivessem dentro de casa, mesmo que estivesse molhado como...

— Como água? — sugeriu Dunstan.

— Isso mesmo — prosseguiu a voz na escuridão. — Por isso, eu me perguntava se você se importaria de me deixar ficar aqui sob seu teto, já que não sou muito grande e não iria per­turbá-lo.

— É só não pisar em mim — disse Dunstan, com um suspiro. Foi então que o lampejo de um raio iluminou o estábulo, e, com o clarão, Dunstan viu no canto uma criatura pequena e pelu­da, com um chapelão molengo. E depois, a escuridão de novo.

— Espero que eu não o esteja perturbando — disse a voz, que sem dúvida parecia muito peluda, agora que Dunstan reparava mais.

— Não está — retornou Dunstan, exausto.

— Que bom — disse a voz peluda —, porque eu não ia querer perturbá-lo.

— Por favor — implorou Dunstan. — Deixe-me dormir. Por favor!

Ouviu-se um resfolegar, ao qual se seguiu um ronco delicado.

Dunstan rolou para o outro lado no feno. A pessoa, quem quer ou o que quer que fosse, soltou um pum, se coçou e começou a roncar de novo.

Dunstan ficou escutando a chuva no telhado do estábulo e pensou em Daisy Hempstock. Em seus pensamentos, eles estavam andando juntos, e seis passos atrás vinha um homem alto de cartola e uma pequena criatura peluda cujo rosto Dunstan não conseguia ver. Estavam indo ver o Desejo de seu Coração...

 

O sol brilhava forte em seu rosto, e o estábulo estava vazio. Dunstan se lavou e caminhou até a sede da fazenda.

Lá vestiu sua melhor camisa, seu melhor casaco e seus me­lhores calções. Raspou a lama das botas com o canivete. Depois entrou na cozinha e deu um beijo no rosto da mãe. Serviu-se de um pão caseiro e uma boa porção de manteiga recém-batida.

E então, com o dinheiro amarrado no fino lenço domin­gueiro de cambraia, foi andando até o lugarejo de Muralha e desejou bom-dia aos guardas no portal.

Pela abertura na muralha, dava para ver tendas coloridas sendo armadas, barraquinhas sendo instaladas, bandeiras colo­ridas e gente andando para lá e para cá.

— Não podemos deixar ninguém passar antes do meio-dia — disse o guarda.

Dunstan deu de ombros e foi até a taberna, onde refletiu sobre o que iria comprar com suas economias (a brilhante meia-coroa que tinha poupado, e o meio-xelim da sorte, com um furo no meio, que trazia num cordão de couro ao pescoço), além do lenço de bolso cheio de moedas. Por enquanto, tinha se esquecido totalmente de qualquer outro tipo de promessa que lhe tivesse sido feita na noite anterior. Quando soou meio-dia, Dunstan se encaminhou até a mura­lha e, nervoso, como se estivesse desrespeitando o mais severo tabu, passou pela abertura, percebendo que estava ao lado do cavalheiro de cartola preta de seda, que o cumprimentou com um movimento de cabeça.

— Ah! Meu senhorio. E como está passando, senhor?

— Muito bem — respondeu Dunstan.

— Venha comigo — disse o homem alto. —Vamos seguir juntos. Os dois atravessaram a campina, indo na direção das barracas.

— Já veio aqui? — perguntou o homem alto.

— Compareci à última feira, há nove anos. Eu não passava de um menino — admitiu Dunstan.

— Bem — disse o inquilino —, lembre-se de ter boas ma­neiras e não aceite presentes. Lembre-se de que é um convi­dado. E agora vou lhe dar a última parte do aluguel que lhe devo. Pois fiz um juramento. E meus presentes duram muito tempo. Você, seu primogênito e o primogênito de seu primo­gênito (ou de sua primogênita)... É uma dádiva que perdurará enquanto eu estiver vivo.

— E qual seria essa dádiva, senhor?

— O Desejo de seu Coração, está lembrado? — disse o senhor de cartola. — O Desejo de seu Coração.

Dunstan fez uma reverência, e os dois continuaram a avançar na direção da feira.

— Olhos! Olhos! Troque os velhos por novos! — gritava uma mulherzinha diante de um tabuleiro coberto com garrafas e potes de vidro cheios de olhos de todos os tipos e cores.

— Instrumentos de música de uma centena de países!

— Apitos a um pêni! Piões a dois! Cânticos para coral a três!

— Tente a sorte! Aproxime-se! Responda a uma charada simples e ganhe uma flor de vento!

— Alfazema eterna! Tecido de campainhas!

— Sonhos engarrafados, um xelim a garrafa!

— Mantos da noite! Mantos do crepúsculo! Mantos do lusco-fusco!

— Espadas da fortuna! Varinhas do poder! Anéis da eter­nidade! Cartões da bem-aventurança! Venham, venham, por aqui!

— Bálsamos e ungüentos, poções e panacéias!

Dunstan parou diante de uma banca coberta de pequenos enfeites de cristal. Examinou os animais em miniatura, pen­sando em comprar um para Daisy Hempstock. Apanhou um gato de cristal, que não era maior do que seu dedo polegar. Com ar sério, o gato piscou os olhos para ele, e Dunstan, assus­tado, o deixou cair. O bichinho se endireitou em plena queda e, como um gato de verdade, caiu de pé nas quatro patas. Seguiu então, arrogante, para o canto da barraca e começou a se lamber.

Dunstan passou adiante, em meio à multidão.

A feira estava abarrotada de gente. Estavam lá todos os foras­teiros que tinham chegado a Muralha nas semanas anteriores, bem como muitos dos moradores do lugarejo. O Sr. Bromios instalara uma barraca, na qual vendia vinhos e salgadinhos para o povo do lugarejo, que costumava se sentir tentado pelos ali­mentos postos à venda pelo povo de Para Lá da Muralha, mas que tinha ouvido de seus avós, que tinham ouvido dos avós deles, que era profundamente, totalmente errado comer comi­da encantada, frutas encantadas, beber água encantada e bebericar vinho encantado.

É que de nove em nove anos, o povo de Para Lá da Muralha e do outro lado do morro armava suas barraquinhas e, por um dia e uma noite, a campina abrigava a Feira Encantada. E, por um dia e uma noite em nove anos, havia comunicação entre as nações.

Estavam à venda assombros, maravilhas e milagres. Havia coisas com as quais ninguém teria sonhado e objetos que ninguém teria imaginado (Dunstan se perguntava, por exem­plo, “que necessidade alguém poderia ter de cascas de ovos re­cheadas com tempestade?”). Ele fazia tilintarem as moedas no lenço de bolso e procurava alguma coisa pequena e de preço baixo com que pudesse agradar a Daisy.

Ouviu um delicado repicar de sinos, acima do alvoroço da feira, e se encaminhou para aquela direção.

Passou por uma barraca na qual cinco homens enormes estavam dançando ao som da música de um realejo tocado por um urso negro de aparência tristonha. Passou por uma barra­ca em que um homem que começava a ficar careca, num qui­mono de cores vivas, estava destruindo pratos de porcelana para atirá-los numa cuba em chamas, da qual se desprendia uma fumaça colorida, enquanto chamava os transeuntes o tempo todo.

O repicar tilintante ficou mais alto.

Chegando à barraca da qual provinha o som, Dunstan viu que ela estava deserta. Era toda enfeitada com flores: cam­painhas, dedaleiras, bons-dias e narcisos, mas também violetas e lírios, com minúsculas rosas-caninas vermelhas, pálidas fura-neves, miosótis azuis e uma quantidade de outras flores cujos nomes Dunstan desconhecia. Cada flor era feita de vidro ou de cristal, soprado ou entalhado, ele não saberia dizer. Eram uma perfeita imitação da flor real. E repicavam e tilintavam como distantes sinos de vidro.

— Alguém aí? — chamou Dunstan.

— Bons ventos o tragam a este Dia de Feira — disse a encar­regada da barraca, descendo meio estabanada do carroção pin­tado estacionado ali atrás. Ela lhe deu um largo sorriso com os dentes brancos num rosto moreno. Pertencia ao povo de Para Lá da Muralha, isso ele pôde ver pelos olhos, e pelas orelhas, que estavam visíveis por baixo dos cabelos negros e crespos. Seus olhos eram de um violeta escuro, enquanto as orelhas talvez fossem como as de um gato, com uma curva delicada e uma levíssima penugem escura. Era linda.

Dunstan escolheu uma flor da barraca.

— É muito bonita — disse ele. Era uma violeta e tilintava e cantava enquanto ele a segurava, emitindo um som semelhante ao produzido por um dedo molhado esfregado lentamente em torno de uma taça de vinho. — Quanto custa?

Ela deu de ombros, e como foi delicioso esse seu dar de ombros.

— Nunca se discute o preço no início — disse ela. — Talvez seja muito mais do que o freguês esteja disposto a pagar. E nesse caso o freguês vai embora, e nós dois sairíamos perden­do com isso. Vamos examinar a mercadoria de um modo mais amplo.

Dunstan hesitou. Foi nesse instante que o senhor da cartola preta de seda passou pela barraca.

— Pronto — murmurou o inquilino de Dunstan. — Minha dívida está liquidada, e meu aluguel está quitado.

Dunstan sacudiu a cabeça, como se quisesse se livrar de algum sonho, e se voltou para a moça.

— E, então, de onde vêm essas flores? — perguntou. Ela sorriu, com cumplicidade.

— Na encosta do monte Calamon cresce um jardim de flores de vidro. A viagem até lá é arriscada, e a de volta, ainda mais.

— E para que servem? — perguntou Dunstan.

— A utilidade e função dessas flores são de natureza princi­palmente recreativa e ornamental. Elas dão prazer. Podem ser dadas como símbolo de admiração e afeto a quem se ama. E o som que emitem é agradável. E também encantador seu modo de captar a luz. — Ela segurou uma campainha no alto, e Dunstan não pôde deixar de perceber que a cor da luz solar que rebrilhava através do cristal roxo era inferior tanto em matiz como em intensidade, se comparada aos olhos dela.

— Entendi — disse Dunstan.

— Elas também são usadas em certos encantamentos e feitiços. Se o senhor for um mago...

Dunstan fez que não. Estava se dando conta de que havia algo de extraordinário na moça.

— Ah! Mesmo assim, elas são encantadoras — disse ela, com mais um sorriso.

O que era extraordinário na moça era uma fina corrente de prata que descia do pulso até o tornozelo, do qual seguia para dentro do carroção pintado ali atrás.

Dunstan fez um comentário sobre ela.

— A corrente? Ela me prende à barraca. Sou escrava pessoal da bruxa que é dona da barraca. Ela me capturou há muitos anos... Eu estava brincando perto das cachoeiras nas terras de meu pai, bem no alto das montanhas, quando ela, transformada num sapo bonitinho, que sempre estava um pouquinho fora do meu alcance, me atraiu para que a acompanhasse, até que saí das terras de meu pai, sem me dar conta disso, e nesse instante ela retomou sua forma verdadeira e me enfiou num saco.

— E você vai ser escrava dela para sempre?

— Para sempre, não. — E com isso a garota encantada sorriu. Ganharei a liberdade no dia em que a Lua perder sua filha, se isso ocorrer numa semana em que dois Domingos se jun­tem. Espero paciente por esse dia. E, enquanto isso, faço o que me mandam e também sonho. Agora, senhor, quer comprar de mim uma flor?

— Meu nome é Dunstan.

— E ainda por cima um nome honesto — disse ela, com um sorriso de provocação. — Onde estão suas tenazes, Sr. Dunstan? Quer pegar o diabo à unha?

— E qual é seu nome? — perguntou Dunstan, com o rosto muito vermelho de vergonha.

— Já não tenho nome. Sou uma escrava, e o nome que eu tinha me foi tomado. Atendo quando chamam “ei, você!”, “garota!”, “sua relaxada!” ou muitos outros impropérios.

Dunstan percebeu como o tecido de seda das vestes se gru­davam ao corpo da moça. Deu-se conta de curvas elegantes e dos olhos cor de violeta grudados nele, e engoliu em seco.

Enfiou a mão no bolso e tirou o lenço. Não conseguia con­tinuar a olhar para a mulher. Despejou as moedas sobre o balcão.

— Pegue o suficiente para esta aqui — disse ele, apanhando do tabuleiro uma bela fura-neve branca.

— Nesta banca, não aceitamos dinheiro. — Ela empurrou as moedas de volta para ele.

— Não? Aceitam o quê, então? — Pois a esta altura ele esta­va totalmente perturbado, e sua única missão era comprar uma flor para... para Daisy, Daisy Hempstock... pegar a flor e sair dali, porque, para dizer a verdade, a moça lhe estava causando uma inquietação extrema.

— Eu poderia aceitar a cor de seu cabelo — disse ela. — Ou todas as suas lembranças de quando você tinha menos de três anos de idade. Poderia ficar com a audição de seu ouvido esquerdo, não toda, mas o suficiente para você não conseguir ouvir música, captar o barulho das águas de um rio ou o zunido do vento.

Dunstan abanou a cabeça.

— Ou um beijo seu. Um beijo, aqui no meu rosto.

— Assim eu pago com prazer! — disse Dunstan. Com isso, ele se debruçou por cima da banca, em meio ao tilintar das flo­res de cristal, e deu um casto beijo no rosto macio da moça. Nesse instante, sentiu o cheiro dela, um cheiro mágico, ine­briante, que lhe encheu a testa, o peito e a cabeça.

— Agora sim — disse ela e lhe entregou a fura-neve. Ele a segurou com mãos que de repente pareciam enormes e desajeitadas, totalmente diferentes das mãos pequenas e abso­lutamente perfeitas da garota encantada. — E vou ver você de novo aqui, Dunstan Thorn, quando a lua se esconder. Venha e pie como uma corujinha. Sabe fazer isso?

Ele fez que sim e foi embora, cambaleando. Não precisava perguntar como ela sabia seu sobrenome. Ela o tinha arranca­do dele, juntamente com outras coisas como, por exemplo, seu coração, quando ele a beijou.

A fura-neve cantarolava em sua mão.

 

— Ora, ora, Dunstan Thorn — disse Daisy Hempstock, quando ele a encontrou junto da barraca do Sr. Bromios, sentada com a família e os pais de Dunstan, comendo enormes salsichões marrons e bebendo cerveja preta —, afinal, o que houve?

— Eu lhe trouxe um presente — murmurou Dunstan, empurrando na direção de Daisy a fura-neve que ainda canta­rolava, rebrilhando ao sol da tarde. Daisy a apanhou, confusa, com os dedos lustrosos da gordura do salsichão. Num impulso, Dunstan se inclinou e, diante da mãe, do pai e da irmã de Daisy, diante de Bridget Comfrey, do Sr. Bromios e de todos, lhe deu um beijo no rosto.

A indignação era previsível, mas o Sr. Hempstock não tinha vivido cinqüenta e sete anos na fronteira com a Terra Encan­tada e as regiões Para Lá da Muralha sem aprender nada.

— Calem-se! — exclamou ele. — Olhem para os olhos do rapaz. Não conseguem ver que ele está atordoado? Atordoado e confuso? Parece até enfeitiçado, posso apostar. Ei! Tommy Forester! Venha cá! Leve o rapaz Dunstan Thorn de volta para o povoado e fique de olho nele. Ele que durma, se quiser, ou fale, se precisar falar...

Tommy conduziu Dunstan para longe da feira, de volta ao lugarejo de Muralha.

— Pronto, pronto, Daisy — disse a mãe da menina, afagando seu cabelo. — Ele só deve ter roçado em algum elfo. Só isso. Você não precisa ficar tão abalada. — E tirou do busto enorme um lencinho de renda, para secar o rosto da filha, que de repente estava coberto de lágrimas.

Daisy olhou para a mãe, apanhou o lenço e assoou o nariz nele, fungando. E a Sra. Hempstock notou, com certa perplexi­dade, que Daisy parecia estar sorrindo enquanto chorava.

Mas, mamãe, Dunstan me beijou — disse Daisy Hempstock, prendendo a fura-neve de cristal na pala da touca, onde a flor continuou a cantarolar e rebrilhar.

Depois de algum tempo de procura pela banca em que estavam sendo vendidas as flores de cristal, o Sr. Hempstock e o pai de Dunstan a encontraram, mas ela estava sob a respon­sabilidade de uma mulher idosa, acompanhada por uma ave exótica e belíssima, acorrentada a um poleiro por uma fina corrente de prata. Não houve como conversar com a velha, pois quando os dois tentaram lhe perguntar o que tinha acon­tecido com Dunstan, ela não conseguia falar em outra coisa que não fosse o fato de uma das melhores peças de sua coleção ter sido dada de graça por uma imprestável. E esse era o resul­tado da ingratidão, da tristeza desses nossos tempos e da cria­dagem de hoje em dia...

 

No povoado vazio (pois quem ia ficar no povoado durante a feira da Terra Encantada?), Dunstan foi levado para a Sétima Pega e ali Tommy lhe deu um banco de madeira para sentar. Dunstan pousou a testa numa das mãos e ficou com o olhar perdido no nada, dando de vez em quando suspiros fortes como o vento.

Tommy tentou puxar conversa com ele:

— E então, colega, trate de se aprumar. É isso aí. Um sor­risinho, hein? E o que acha de comer alguma coisa? Ou está com sede? Não? Ai, ai, você está muito esquisito, Dunstan, meu amigão... — Mas, como não obteve nenhum tipo de resposta, o próprio Tommy começou a sentir falta da feira, na qual naque­le mesmo instante (e ele passou uma das mãos pelo queixo dolorido) a bela Bridget estava sem dúvida sendo acompanha­da por algum cavalheiro enorme e imponente, com roupas exóticas e um mico que tagarelava. E, depois de se certificar de que o amigo ficaria a salvo na estalagem vazia, Tommy voltou a atravessar o lugarejo para passar pela abertura na muralha.

Quando entrou de novo na feira, Tommy observou que o lugar estava uma algazarra: uma bagunça de espetáculos de marionetes, malabaristas e animais que dançavam, de leilões de cavalos e todos os tipos de mercadorias à venda ou para troca.

Mais tarde, ao anoitecer, surgiu um tipo de gente diferente. Apareceu um arauto, que gritava notícias como as manchetes de um jornal moderno — “Senhor da Fortaleza das Tempestades Sofre de Enfermidade Misteriosa!”, “Morro do Fogo Mudou-se para o Reduto de Dene!”, “Único Herdeiro do Fidalgo de Garamond é Transformado em Leitãozinho!” — e por uma moeda se dispunha a contar os pormenores dessas histórias.

O sol se pôs e uma enorme lua de primavera surgiu, já alta no céu. Soprava uma brisa fria. Agora os mercadores se recolhiam para o interior de suas tendas, e os visitantes da feira se descobriam sendo alvo de murmúrios, convites para presenciar inúmeros assombros, cada um oferecido a um determinado preço.

E, enquanto a lua ia baixando no horizonte, Dunstan Thorn caminhava em silêncio pelas ruas com calçamento de pedras arredondadas do lugarejo de Muralha. Passou por muitos foliões — visitantes ou estrangeiros —, embora poucos se dessem conta dele em sua caminhada.

Passou discretamente pela abertura na muralha — como era grossa a muralha! — e se descobriu querendo saber, como seu pai tinha feito antes dele, o que aconteceria se resolvesse andar pelo alto dela.

Atravessou a abertura, entrou na campina e naquela noite, pela primeira vez na vida, Dunstan pensou em continuar pela campina afora, cruzar o riacho e se embrenhar entre as árvores da outra margem. Acolheu esses pensamentos com certo cons­trangimento, como alguém pode acolher uma visita inespera­da. Depois, quando atingia seu destino, afastou de vez esses pensamentos, exatamente como alguém se desculpa diante da visita, murmurando algum pretexto sobre um compromisso anterior, e a deixa só. A lua estava se pondo.

Dunstan levou as mãos à boca e piou. Não obteve resposta. Lá em cima, o céu estava com uma cor escura — talvez azul ou roxa, não negra —, pontilhado com mais estrelas do que a mente poderia guardar.

Ele piou mais uma vez.

— Isso — disse ela, em tom de censura, no seu ouvido — não tem nada a ver com uma corujinha. Quem sabe uma coruja branca real, ou até mesmo um coruja-de-igreja? Se minhas orelhas estivessem tampadas com gravetos, pode ser que eu pensasse que fosse um mocho. Mas nunca uma corujinha.

Dunstan deu de ombros e sorriu com um ar meio bobo. A mulher encantada se sentou a seu lado. Ela o inebriava. Era como se ele a respirasse, percebendo-a pelos poros de sua pele. Ela se inclinou mais para perto dele.

— Você acha que está enfeitiçado, meu belo Dunstan?

— Não sei.

Ela riu, e o som era o de um córrego borbulhando por pedras e rochas.

— Você não está enfeitiçado de modo algum, meu belo menino. — Ela se deitou na grama e olhou para o céu. — Suas estrelas — perguntou ela —, como é que elas são?

Dunstan se deitou a seu lado na grama fresca e ficou olhando para o céu noturno. Sem dúvida havia alguma coisa estranha com as estrelas. Talvez houvesse mais cor nelas, porque refulgiam como minúsculas pedras preciosas; talvez estivesse relacionado à quantidade de estrelinhas, às constelações. Havia um quê de estranho e maravilhoso nas estrelas. Mas na verdade...

Os dois estavam deitados um ao lado do outro, olhando para o céu lá em cima.

— O que você quer da vida? — perguntou a moça encantada.

— Não sei — admitiu Dunstan. —Você, eu acho.

— Eu quero minha liberdade — disse ela.

Dunstan estendeu a mão até a corrente de prata que pren­dia o pulso ao tornozelo da moça e seguia longe pela grama. Deu-lhe um puxão. Era mais forte do que parecia.

— Foi feita de bafo de gato, escama de peixe e luar, tudo misturado na prata — disse ela. — É impossível quebrá-la enquanto os termos do encantamento não forem cumpridos.

— Ah! — Dunstan voltou a se deitar na grama.

— Eu não devia me importar, porque é uma corrente com­prida, muito comprida, mas só saber que ela existe já me inco­moda. E sinto saudade da terra de meu pai. E a bruxa não é a melhor das patroas.

E ela se calou. Dunstan se debruçou na direção dela, esten­deu uma das mãos até seu rosto e sentiu que encostava em alguma coisa quente e molhada.

— Ora, ora, você está chorando.

Ela não disse nada. Dunstan puxou a garota para junto de si, tentando em vão enxugar seu rosto com a mão grande demais. Aproximou-se então do rosto que soluçava e, indeciso, sem saber se o que estava fazendo era certo naquelas circuns­tâncias, deu-lhe um beijo, direto na boca.

Houve um instante de hesitação, e logo ela se abriu para ele, enfiando a língua na boca de Dunstan, que ali, debaixo daquelas estrelas estranhas, se sentiu totalmente, irrevogavel­mente perdido.

Já beijara antes as meninas do povoado, mas não tinha avançado além disso.

Sua mão apalpou os seios pequenos por baixo do vestido de seda, tocou os mamilos enrijecidos. Ela se grudou a ele, com força, como se estivesse se afogando, remexendo na saia, nos calções.

Ela era tão pequena. Ele estava apavorado, com medo de lhe causar algum ferimento, alguma fratura. Mas não causou. Ela se debatia e se contorcia por baixo, ofegante, dando chutes e o guiando com a mão.

Deu centenas de beijos febris no rosto e no peito de Dunstan, e de repente ela estava por cima, a cavalo, com a res­piração forçada, rindo, suada e escorregadia como um peixinho; e ele estava se arqueando, forçando, exultante, com ela e só ela na cabeça. E se tivesse sabido seu nome, ele o teria gritado.

No fim, ele teria se afastado, mas ela o prendeu ali dentro, com as pernas enroladas em torno dele, forçando tanto seu corpo contra o dele que Dunstan teve a impressão de que os dois ocupavam o mesmo lugar no universo. Como se, por um momento poderoso, irresistível, eles fossem a mesma pessoa, dando e recebendo, enquanto as estrelas iam se apagando no céu antes do amanhecer.

Ficaram ali deitados, lado a lado.

A mulher encantada arrumou suas vestes de seda e voltou a se cobrir, com decência. Dunstan vestiu de novo os calções, com tristeza. Apertou a pequena mão da mulher na sua.

A transpiração secou em sua pele, e ele se sentiu solitário e com frio.

Agora ele conseguia vê-la, à medida que o céu clareava, assumindo o tom cinzento do amanhecer. Ao redor, os animais começavam a se agitar. Cavalos batiam com as patas, aves des­portavam e começavam a cantar para que a alvorada chegasse. E, aqui e ali, por toda a campina da feira, quem estava nas ten­das começava a se levantar e a se movimentar.

— Agora, chegou sua hora — disse ela, baixinho, olhando para ele, meio entristecida, com olhos do mesmo tom de vio­leta que as nuvens leves, lá no alto. E ela lhe deu um beijo na boca, com lábios que tinham o sabor de amoras esmagadas. Levantou-se então e voltou para o carroção de cigana por trás da barraca.

Atordoado e sozinho, Dunstan passou por toda a feira, sentindo-se mais velho do que seus dezoito anos.

Voltou ao estábulo, tirou as botas e dormiu, até acordar quando o sol já estava alto no céu.

No dia seguinte, a feira terminou, embora Dunstan a ela não tivesse voltado. Os forasteiros deixaram o lugarejo, e a vida de Muralha voltou ao normal, que talvez fosse ligeiramente menos normal que a vida da maioria dos lugarejos (principal­mente quando o vento estava na direção errada), mas, no fim das contas, até que era normal o suficiente.

 

Duas semanas depois da feira, Tommy Forester pediu Bridget Comfrey em casamento, e ela aceitou. E na semana seguinte, num dia de manhã, a Sra. Hempstock foi fazer uma visita à Sra. Thorn. As duas ficaram tomando chá na sala de visitas.

— É uma bênção essa história do garoto Forester — disse a Sra. Hempstock.

— É mesmo — concordou a Sra. Thorn. — Pegue mais um bolinho, minha cara. Imagino que sua Daisy vá ser dama-de-honra.

— Espero que seja — disse a Sra. Hempstock —, se ainda estiver viva.

Assustada, a Sra. Thorn olhou para ela.

— Ora, Sra. Hempstock, Daisy não está doente, está? Por favor, diga que não.

— Ela não come, Sra. Thorn. Está definhando. Só bebe um pouco d’água de vez em quando.

— Ai, ai!

— Ontem à noite — prosseguiu a Sra. Hempstock — final­mente descobri o motivo. É o seu Dunstan.

— Dunstan? Ele não... — A Sra. Thorn cobriu a boca com uma das mãos.

— Não, não — apressou-se a responder a Sra. Hempstock, abanando a cabeça e franzindo os lábios. — Nada disso. É só que ele não lhe dá atenção. Faz dias que ela não o vê. E agora enfiou na cabeça que ele não liga mais para ela. E tudo o que faz é segurar a fura-neve que ele lhe deu e chorar.

A Sra. Thorn mediu mais um pouco de chá do pote e o deitou no bule, acrescentando água quente.

— Para dizer a verdade — admitiu ela —, estamos um pouco preocupados com nosso Dunstan, Thorney e eu. Ele anda meio no mundo da lua. É a única forma de descrever seu comporta­mento. Simplesmente não faz o trabalho que lhe cabe. Thorney estava mesmo dizendo que ele precisa pôr os pés no chão, esse nosso menino. Se ele tomasse juízo, Thorney disse que lhe passaria todos os nossos campos do oeste.

A Sra. Hempstock concordou, abaixando a cabeça devagar.

— Sem dúvida, Hempstock não se oporia a ver nossa Daisy feliz. Garanto que ele daria um rebanho de nossos carneiros para ela. — Os carneiros dos Hempstock eram famosos por serem os melhores num raio de quilômetros: de pelame des­grenhado e inteligentes (para carneiros), com chifres enrasca­dos e cascos afiados. A Sra. Hempstock e a Sra. Thorn beberi­caram seu chá. E assim tudo ficou acertado.

Em junho, Dunstan Thorn se casou com Daisy Hempstock. E, se o noivo parecia um pouco atordoado, a noiva estava boni­ta e radiante como nenhuma outra.

Pelas suas costas, os pais dos dois estudavam a planta para a casa que iam construir para os recém-casados no prado do oeste. As mães concordavam que Daisy estava linda e que era uma pena Dunstan não ter deixado Daisy usar no vestido de noiva a fura-neve que tinha comprado para ela na feira no fim de abril.

E é aí que vamos deixá-los, numa revoada de pétalas de rosas: vermelhas, amarelas, brancas e cor-de-rosa. Ou quase.

Eles foram morar no chalé de Dunstan, enquanto era cons­truída sua pequena sede de fazenda, e eram sem dúvida bas­tante felizes. Além disso, as tarefas diárias de criar, pastorear, tosquiar e cuidar de carneiros foram aos poucos tirando do olhar de Dunstan aquela expressão de distanciamento.

Primeiro, veio o outono. Depois, o inverno. Foi no fim de fe­vereiro, na época das parições dos cordeiros, quando fazia frio e um vento implacável uivava pelas charnecas e pela floresta desprovida de folhas, quando a chuva gelada caía dos céus de chumbo, em aguaceiros constantes, às seis da noite, depois que o sol tinha se posto e que o céu estava escuro, que um cesto de vime foi empurrado pela abertura na muralha. Os guardas que ficavam postados dos dois lados da falha de início não percebe­ram o cesto. Afinal de contas, estavam voltados para o lado errado; estava escuro e chovia; e eles não paravam de bater com os pés no chão e olhar com tristeza e inveja para as luzes do lugarejo.

E então começou uma choradeira forte e estridente.

Foi só nesse instante que eles olharam para baixo e viram o cesto a seus pés. No cesto havia uma trouxa: uma trouxa de seda impermeável e mantas de lã, e do alto dela saía um rosto vermelho, que não parava de berrar, com os olhinhos contraí­dos, a boca aberta, veemente e faminta.

E ali, preso à manta do bebê com um alfinete de prata, havia um pedaço de pergaminho, no qual estavam escritas as seguintes palavras, numa caligrafia elegante, se bem que ligeira­mente antiquada:

 

Os anos se passaram.

A Feira Encantada seguinte se realizou na época marcada, do outro lado da muralha. O pequeno Tristran Thorn, com oito anos de idade, não compareceu, descobrindo-se despacha­do para passar o período com parentes muito distantes num povoado que ficava a um dia de cavalgada dali.

Sua irmãzinha, Louisa, no entanto, seis meses mais nova que ele, teve permissão para ir à feira, o que provocou enorme revolta no menino, tanto quanto o fato de Louisa ter trazido da feira um globo de vidro, repleto de pontinhos de luz que cintilavam e coruscavam ao entardecer, e que emitia uma clari­dade delicada e aconchegante na escuridão do quarto dos dois na fazenda; ao passo que Tristran só trouxe da visita aos paren­tes um forte sarampo.

Pouco tempo depois, a gata da fazenda teve três filhotes: dois preto-e-brancos, como ela mesma, e uma muito pequena, com um brilho azul-acinzentado no pêlo e olhos que muda­vam de cor, de acordo com sua disposição, do verde para o dourado, para salmão, coral e vermelho vivo.

Essa gatinha foi dada de presente a Tristran para compen­sá-lo por não ter ido à feira. Ela cresceu devagar, essa gatinha azul, e era a gata mais dengosa do mundo, até que uma noite começou a andar pela casa com impaciência, rosnando e chis­pando os olhos, que estavam da cor vermelho-arroxeada das dedaleiras. E quando o pai de Tristran voltou do dia de traba­lho nos campos, a gata deu um forte miado, disparou pela porta e sumiu no lusco-fusco.

Os guardas junto da muralha eram para gente, não para gatos, e Tristran, que tinha doze anos nessa época, nunca mais viu a gata azul. Por um tempo, ele ficou inconsolável. Uma noite, seu pai entrou no quarto do menino e sentou na cama.

— Do outro lado da muralha — disse ele, com rispidez —, ela vai ser mais feliz. Com sua própria gente. Agora deixe isso para lá, meu filho.

A mãe não lhe disse nada sobre a questão, da mesma forma que pouco lhe dizia sobre qualquer assunto. Às vezes, ao levan­tar os olhos, Tristran via que a mãe o observava atentamente, como se estivesse querendo arrancar algum segredo de seu rosto.

Louisa, a irmã, o provocava a respeito disso no caminho até a escola de manhã, como costumava implicar com ele sobre tantas outras coisas: o formato das orelhas dele, por exemplo (a direita era bem grudada na cabeça e quase pontuda; a esquer­da não era), e as bobagens que ele dizia. Uma vez, Tristran lhe disse que as nuvenzinhas, brancas e fofas, que se reuniam no horizonte na hora do pôr-do-sol quando eles voltavam da escola para casa, eram carneiros. Não fez diferença que ele mais tarde alegasse que quisera dizer simplesmente que elas lhe lem­bravam carneiros, ou que eram fofas e semelhantes a carneiros. Louisa ria, zombava dele e o provocava como se fosse um dia­brete. E pior, ela contou para as outras crianças e as instigou a fazer “bééé” baixinho sempre que Tristran passava. Louisa era uma instigadora nata e costumava dançar em volta do irmão.

A escola do lugarejo era muito boa. E, sob a orientação da Sra. Cherry, a professora, Tristran Thorn aprendeu tudo sobre frações, latitude e longitude. Ele sabia perguntar em francês pela caneta da tia do jardineiro; e na realidade pela caneta da sua própria tia. Aprendeu os nomes dos reis e das rainhas da Inglaterra desde Guilherme, o Conquistador, em 1066, até Vitória, em 1837. Aprendeu a ler e tinha uma bela caligrafia floreada. Eram raros os viajantes que chegavam ao lugarejo, mas de vez em quando um mascate passava por ali vendendo livros baratíssimos, relatos de assassinatos medonhos, encontros fatais, feitos horrendos e escapadas extraordinárias. A maioria dos mascates vendia partituras, duas por um pêni, e as famílias cos­tumavam comprá-las e se reunir em torno do piano para can­tar melodias como “Cherry Ripe” e “In My Father’s Garden”.

E assim iam passando os dias, as semanas. E também os anos se passaram. Aos catorze anos de idade, por um processo de osmose, de piadas indecentes, segredos murmurados e músicas obscenas, Tristran descobriu o sexo. Quando estava com quinze anos, machucou o braço ao cair da macieira no quintal da casa do Sr. Forester, mais especificamente da macieira diante da janela do quarto da srta. Victoria Forester. Para tristeza sua, Tristran não viu mais do que um vislumbre cor-de-rosa e tor­turante de Victoria, que era da idade da irmã dele e, sem a menor dúvida, a garota mais bela num raio de centenas de quilômetros.

Na época em que Victoria tinha dezessete anos, e Tristran também, ela era, com toda a probabilidade, a mais bela garota das ilhas Britânicas. Tristran teria insistido em ser ela a mais bela de todo o Império Britânico, se não do mundo inteiro, e poderia ter lhe dado um soco, ou se preparado para dá-lo, se você tivesse discordado dele.

Mas seria muito difícil encontrar em Muralha uma pessoa sequer que discordasse dele. Victoria virava a cabeça de muitos e, com toda a probabilidade, destruía muitos corações.

Uma descrição: Victoria tinha os olhos cinzentos da mãe e seu rosto em forma de coração; do pai, os cabelos castanhos encaracolados. Os lábios eram vermelhos e tinham o formato perfeito. Era lindo seu jeito de enrubescer quando falava. Era uma menina de tez pálida e simplesmente um encanto. Quando completou dezesseis anos, teve uma briga séria com a mãe. É que Victoria tinha enfiado na cabeça a idéia de ir trabalhar na Sétima Pega, servindo os fregueses.

— Já falei com o Sr. Bromios — disse ela à mãe —, e ele não faz nenhuma objeção.

— O que o Sr. Bromios pensa ou deixa de pensar — respon­deu a mãe, Bridget Comfrey, quando solteira — não vem ao caso. Essa é uma ocupação das mais inadequadas para uma mocinha.

O lugarejo de Muralha assistia fascinado ao confronto de vontades, perguntando-se qual seria o resultado, pois ninguém contrariava Bridget Forester. Dizia-se que sua língua era tão cáustica que conseguia fazer soltar a tinta da porta de um celeiro e arrancar a casca de um carvalho. Não havia no lugare­jo quem se dispusesse a desagradar Bridget Forester; e todos diziam que era mais provável a muralha sair do lugar do que Bridget Forester mudar de idéia.

Por outro lado, Victoria Forester estava acostumada a que tudo saísse do seu jeito. E se tudo o mais falhasse, ou mesmo se não falhasse, ela recorria ao pai, que cedia às suas exigências.

Mas nesse caso até mesmo Victoria teve uma surpresa. O pai concordou com a mãe, afirmando que trabalhar no balcão da Sétima Pega era uma atividade que não servia para uma moça de boa criação. Thomas Forester retesou o maxilar e com isso encerrou o assunto.

 

Todos os rapazes do lugarejo estavam apaixonados por Victoria Forester. E muitos senhores sossegados, tranqüilos no casamento, com a barba já grisalha, ficavam olhando para a menina, quando ela seguia pela rua. Por instantes, eles se trans­formavam em rapazes de novo, de volta à juventude, com o passo animado.

— Dizem que o próprio Sr. Domingos é um de seus admi­radores — disse Louisa Thorn a Victoria Forester no pomar de macieiras numa tarde de maio.

Cinco garotas estavam sentadas ao lado e em cima dos galhos da macieira mais velha do pomar, com seu tronco enorme servindo perfeitamente de assento e apoio. E, sempre que sopra­va a brisa de maio, as flores cor-de-rosa caíam como neve, indo parar no cabelo e nas saias das moças. O sol da tarde lançava man­chas verdes, prateadas e douradas através das folhas do pomar.

— O Sr. Domingos — disse Victoria Forester, com desdém — tem no mínimo quarenta e cinco anos. — E fez uma careta para indicar como considerava alguém dessa idade velho, em espe­cial porque ela mesma tinha apenas dezessete anos.

— Seja como for — disse Cecília Hempstock, prima de Louisa —, ele já foi casado. Eu não ia querer me casar com alguém que já tivesse sido casado. Seria como pedir a outra pessoa que domasse nosso próprio pônei.

— Eu, por mim, imaginaria ser essa a única vantagem de casar com um viúvo — disse Amelia Robinson. — O fato de outra pessoa já ter aparado as arestas, domado a criatura, por assim dizer. Além disso, imagino que, quando um homem chega a essa idade, seus desejos já estejam saciados há muito tempo e, com isso, reduzidos, o que nos pouparia de uma série de indignidades.

Uma revoada de risinhos reprimidos às pressas em meio às flores da macieira.

— Ainda assim — disse Lucy Pippin, hesitante —, não seria mau morar no casarão, ter uma carruagem completa, poder viajar a Londres para a temporada, a Bath para as águas ou a Brighton para banhos de mar, mesmo que o Sr. Domingos tenha quarenta e cinco anos.

As outras meninas deram risos estridentes e jogaram nela punhados de flores de macieira. E nenhuma riu mais alto ou jogou mais flores do que Victoria Forester.

 

Tristran Thorn, aos dezessete anos e apenas seis meses mais velho que Victoria, estava a meio caminho entre menino e homem e se sentia igualmente constrangido nos dois papéis. Parecia que era composto principalmente de cotovelos e pomos-de-adão. Seu cabelo era do castanho da palha enchar­cada e era espigado em ângulos esquisitos, típicos dos dezessete anos, por mais que ele o molhasse e o penteasse.

Era tímido de dar dó, o que, como costuma acontecer com os excessivamente tímidos, ele procurava compensar sendo expansivo demais na hora errada. A maior parte do tempo, Tristran vivia contente — ou tão contente quanto um rapaz de dezessete anos com o mundo pela frente poderia se sentir — e, quando sonhava acordado nos campos ou na escrivaninha nos fundos de Domingos & Brown’s, o armazém do lugarejo, ele se imaginava indo de trem até Londres ou Liverpool, embar­cando no vapor que cruzaria o Atlântico cinzento para levá-lo aos Estados Unidos, fazendo fortuna lá entre os selvagens das novas terras.

Mas também havia ocasiões em que o vento soprava vindo do outro lado da muralha, trazendo junto o cheiro de hortelã, tomilho e groselhas. Nessas horas, viam-se cores estranhas nas chamas das lareiras do lugarejo. Quando esse vento soprava, mesmo os inventos mais simples — desde os fósforos do tipo lúcifer até a fotografia em placas de vidro — se recusavam a fun­cionar.

E nessas ocasiões os devaneios de Tristran Thorn eram fan­tasias estranhas e repletas de culpa, confusas e esquisitas, com viagens por florestas para salvar princesas presas em palácios, sonhos com cavaleiros, trolls e sereias. E, quando se abatia sobre ele um estado de espírito desses, o garoto simplesmente saía de fininho e ia se deitar na grama para ficar olhando as estrelas.

Hoje poucos de nós viram as estrelas como as pessoas daquela época viam. Nossas cidades, grandes e pequenas, lançam luz em excesso no espaço da noite. Mas, lá no lugare­jo de Muralha, as estrelas se apresentavam como mundos ou como idéias, incontáveis, como as árvores na floresta ou como as folhas de uma árvore. Tristran ficava olhando para a escu­ridão do céu até não pensar em absolutamente nada. Então voltava para a cama e dormia como se tivesse morrido.

Era uma criatura desengonçada, cheia de potencial, um barril de pólvora à espera de que alguém ou alguma coisa acendesse seu rastilho. Mas, como isso não acontecia, nos fins de semana e ao anoitecer, ajudava o pai na fazenda, e durante o dia trabalhava para o Sr. Brown na Domingos & Brown’s, como caixeiro.

Domingos & Brown’s era a loja do lugarejo. Apesar de manter em estoque uma quantidade de itens essenciais, grande parte de seus negócios era feita por meio de listas. Os moradores passavam para o Sr. Brown uma lista das mercado­rias de que precisavam, de carne enlatada a banhos parasitici­das para carneiros, de facas para peixe a revestimento para chaminés. Um funcionário da Domingos & Brown’s elabora­va então uma lista geral de tudo o que tinha sido pedido. O Sr. Domingos pegava a lista geral e uma carroça puxada por dois enormes cavalos de tiro; e partia para a cidade mais próxima do condado, voltando em dois ou três dias, com a carroça abarro­tada de mercadorias de todos os tipos.

Fazia frio e o vento zunia naquele dia do fim de outubro, o tipo de dia em que se tem a impressão de que a qualquer momento vai cair uma chuva, mas ela nunca chega. Era o fim da tarde quando Victoria Forester entrou na loja Domingos & Brown’s, com uma lista escrita na caligrafia impecável de sua mãe, e tocou a pequena campainha do balcão para ser atendida.

Pareceu que ela ficou ligeiramente decepcionada ao ver Tristran Thorn vir do escritório dos fundos.

— Boa-tarde, srta. Forester.

Ela lhe deu um sorriso forçado e lhe entregou a lista. Seu conteúdo era o seguinte:

 

250 g de sagu

10 latas de sardinhas

1 vidro de ketchup de cogumelos

3 quilos de arroz

1 lata de melaço claro

1 quilo de passas sultanas

1 vidro de corante carmim

meio quilo de açúcar de cevada

1 caixa de cacau especial Rowntrees (grande)

1 lata de polidor de facas Oakey (pequena)

6 medidas de charão preto Brunswick

1 envelope de cola de peixe Swinborne

1 vidro de lustra-móveis

1 concha para regar assados

1 peneira de molho (grande)

1 escadinha de cozinha

 

Tristran leu a lista em silêncio, à procura de alguma coisa que lhe permitisse começar uma conversa. Algum comentário, de qualquer tipo. Ouviu então sua própria voz.

— Imagino então que vão fazer arroz-doce, Srta. Forester. — Assim que disse isso, Tristran soube que tinha cometido um erro. A boca perfeita de Victoria se contraiu, e ela piscou os olhos cinzentos.

— É, Tristran. Vamos fazer arroz-doce. — Sorriu, então, para ele. — Mamãe diz que uma boa quantidade de arroz-doce ajuda a prevenir resfriados, gripes e outras enfermidades do outono.

— Minha mãe — confessou Tristran — sempre garantiu o mesmo do mingau de tapioca. — Ele pôs a lista num espeto. — Podemos entregar a maior parte dos mantimentos amanhã de manhã, e o que faltar chegará com o Sr. Domingos, no início da semana que vem.

Veio então uma lufada de vento, tão forte que fez matraquea­rem as janelas do lugarejo e fez girarem tanto os cata-ventos que eles não sabiam mais distinguir o norte do oeste, ou o sul do leste.

O fogo que estava aceso na lareira da Domingos & Brown’s cresceu e se retorceu numa revoada de verdes e vermelhos, que se completou com um crepitar de cintilações prateadas, do tipo que se pode criar na lareira da sala de visitas, atirando ao fogo um punhado de limalha de ferro.

O vento soprava da Terra Encantada e do leste, e Tristran Thorn de repente descobriu dentro de si alguma coragem que não suspeitava ter.

— Sabe, Srta. Forester, saio do serviço daqui a pouco. E se eu a acompanhasse um pouco no caminho de casa? Não é muito fora de mão para mim. — E esperou, com o coração na mão, enquanto os olhos cinzentos de Victoria Forester continuavam fixos nele, achando graça. Depois do que pareceu um século, ela respondeu:

— Sem dúvida.

Tristran entrou apressado no salão e informou ao Sr. Brown que ia sair naquele momento. E o Sr. Brown resmungou, mas não de modo totalmente antipático, e disse a Tristran que quando ele era jovem não só precisava trabalhar até tarde todas as noites e fechar a loja, mas também tinha de dormir no chão ao lado do balcão, com o casaco servindo de travesseiro.

Tristran concordou que realmente era um rapaz de sorte e desejou boa-noite ao Sr. Brown. Depois apanhou o casaco no cabide e o novo chapéu-coco no porta-chapéus, antes de sair para a rua calçada de pedras, onde Victoria Forester esperava por ele.

O entardecer de outono avançou rápido para uma noite escura enquanto eles seguiam caminho. Tristran sentia no ar o inverno distante — uma mistura de nevoeiro noturno, de uma escuridão fresca e do cheiro forte de folhas caídas.

Eles seguiram por uma alameda sinuosa na direção da fazenda da família Forester, com a lua crescente muito branca no céu e as estrelas ardendo na escuridão lá no alto. — Victoria — disse Tristran depois de um tempo.

— O que foi, Tristran? — disse Victoria, que tinha estado dis­traída a maior parte do caminho.

—Você acha que seria um atrevimento meu eu lhe dar um beijo? — perguntou Tristran.

— Acho — respondeu Victoria, sem rodeios e com frieza. — Seria muito atrevimento.

— Ah — disse Tristran.

Eles subiram o morro Dyties, sem falar. No alto do morro, os dois se viraram e viram lá embaixo o lugarejo de Muralha, com todas as velas e lâmpadas acesas tremeluzindo através das janelas, luzes amarelas e aconchegantes que acenavam, con­vidativas. E, lá em cima no céu, as luzes de uma infinidade de estrelas que cintilavam, rebrilhavam e chamejavam, frias, dis­tantes e mais numerosas do que a mente poderia calcular.

Tristran baixou a mão e segurou a mãozinha de Victoria, que não a recolheu.

— Você viu aquilo? — perguntou Victoria, que estava con­templando a paisagem ao longe.

— Não vi nada — disse Tristran. — Estava olhando para você. Victoria sorriu ao luar.

— Você é a mulher mais linda do mundo inteiro — disse Tristran, do fundo do coração.

— Não me venha com essa — disse Victoria, sem grosseria.

— O que você viu? — perguntou Tristran.

— Uma estrela cadente. Acho que nesta época do ano elas não são nada incomuns.

— Vicky, você quer me dar um beijo?

— Não.

— Mas você me beijou quando nós éramos mais novos. Me beijou debaixo do Carvalho do Compromisso, no seu aniver­sário de quinze anos. E na última festa da primavera, você me beijou atrás do estábulo do seu pai.

— É que eu era outra pessoa naquela época. E agora não quero lhe dar um beijo, Tristran Thorn.

— Bem, já que não quer me beijar, você quer se casar co­migo?

Fez-se silêncio ali no alto do morro. Só se ouvia o farfalhar das folhas com o vento de outubro. E depois um tilintar: era o som da mais bela garota das Ilhas Britânicas rindo com prazer e divertimento.

— Eu, me casar com você? — repetiu ela, sem acreditar. — E por que cargas d’água eu me casaria com você, Tristran Thorn? O que você poderia me dar?

— Dar a você? Eu iria à Índia por você, Victoria Forester, e traria de volta presas de elefantes, pérolas do tamanho do seu polegar e rubis do tamanho de ovos de cambaxirra.

“Eu iria à África e traria de volta diamantes do tamanho de bolas de críquete. Descobriria a nascente do Nilo e lhe daria seu nome.

“Iria à América, chegando até San Francisco e suas minas de ouro, e só voltaria quando tivesse conseguido seu peso em ouro. E então traria esse ouro para cá e o colocaria a seus pés.

“Eu viajaria às distantes terras do norte, bastando que você me ordenasse, mataria os poderosos ursos-polares e traria as peles para você. “

— Achei que você estava se saindo muito bem — disse Victoria Forester —, até chegar a essa parte de abater ursos-polares. Seja como for, meu pequeno caixeiro e lavrador, não vou lhe dar um beijo. Nem me casar com você.

Os olhos de Tristran chisparam ao luar.

— Por você eu viajaria até a China e lhe traria um junco enorme que eu teria capturado do rei dos piratas, carregado com jade, seda e ópio.

“Eu iria à Austrália, nos confins do mundo, e lhe traria... humm... “Tristran remexeu em todos os livrinhos baratos que guardava na cabeça, tentando lembrar se algum dos heróis tinha visitado a Austrália. “Um canguru”, disse então. “E opalas”, acrescentou. Tinha total certeza quanto às opalas.

Victoria Forester apertou sua mão.

— E me diga o que eu ia fazer com um canguru? — per­guntou. — Agora a gente devia ir andando. Ou meu pai e minha mãe vão querer saber o que me atrasou tanto. E vão tirar conclusões totalmente injustificadas. Porque eu não lhe dei nenhum beijo, Tristran Thorn.

— Me dê um beijo — implorou ele. — Não há nada que eu não faria por um beijo seu, nenhuma montanha que eu não escalaria, nenhum rio que não atravessaria, nenhum deserto que não cruzaria.

Ele fez um gesto largo, indicando o povoado de Muralha ali embaixo, o céu da noite lá no alto. Na constelação de Órion, bem baixa no horizonte lá para o leste, uma estrela lampejou, cintilou e caiu.

— Por um beijo e a promessa de sua mão — disse Tristran, pomposo —, eu lhe traria aquela estrela que caiu.

Ele estremeceu. O casaco era fino, e estava evidente que ele não ia ganhar o tal beijo, o que considerava estranho. Os heróis viris dos livros de terror e dos romances baratos nunca tinham problemas para conseguir um beijo.

— Então, pronto — disse Victoria. — Se você cumprir sua parte, eu cumpro a minha.

— O quê? — perguntou Tristran.

— Se você me trouxer aquela estrela — disse Victoria —, a que acabou de cair, eu lhe dou um beijo. Quem sabe o que mais eu me disporia a fazer. É isso aí: agora você não precisa ir à Austrália, à África nem às lonjuras da China.

— Como assim? — perguntou Tristran.

E Victoria riu dele, recolheu a mão e começou a andar na direção da fazenda do pai.

Tristran correu para alcançá-la.

— Você está falando sério? — perguntou ele.

— Estou falando tão sério quanto você com todas aquelas promessas fantásticas de rubis, ouro e ópio. Falando nisso, o que é um ópio?

— É alguma coisa que tem nos xaropes para tosse — respon­deu Tristran. — Como eucalipto.

— Não parece muito romântico — comentou Victoria Forester. — De qualquer modo, você não deveria estar se aprontando para ir colher minha estrela caída? Ela caiu lá para aquele lado, para o leste. — E ela riu de novo. — Seu bobo. Já vai ser muito você conseguir me garantir a entrega dos ingredientes do arroz-doce.

— E se eu lhe trouxer a estrela que caiu? — perguntou Tristran, descontraído. — O que você me daria? Um beijo? Sua mão em casamento?

— O que for seu desejo — respondeu Victoria, achando divertido tudo aquilo.

— Jura? — perguntou Tristran.

Eles agora já estavam a menos de cem metros da sede da fazenda dos Forester. As janelas lançavam um clarão amarelo e laranja.

— É claro — disse Victoria, sorrindo.

O caminho até a fazenda da família Forester era de pura lama, que o pisoteio de cavalos, vacas, carneiros e cachorros tinha transformado num lodaçal. Tristran Thorn caiu de joe­lhos na lama, sem se preocupar com o casaco, nem com as calças de lã.

— Muito bem — disse ele.

Nesse momento, o vento soprava do leste.

— Vou deixá-la aqui, minha senhora — disse Tristran Thorn. — Pois tenho negócios urgentes, lá para o leste. — Ele se levan­tou, sem se dar conta da lama e da água estagnada em seus joe­lhos e no casaco. Fez uma reverência para ela e tirou o chapéu-coco.

Deliciada, Victoria Forester riu do caixeiro magricela, riu alto, riu muito, e seu riso cristalino acompanhou Tristran morro abaixo e pelo caminho afora.

Tristran Thorn correu o tempo todo até entrar em casa. Plantas espinhentas se agarravam às suas roupas enquanto ele corria, e um galho derrubou seu chapéu.

Trôpego, ofegante e com a roupa rasgada, ele entrou na cozinha da casa das Campinas do Oeste.

— Olhe só para seu estado! — exclamou a mãe. — É brin­cadeira? Nunca vi nada igual.

Tristran apenas sorriu para ela.

— Tristran? — disse o pai, que aos trinta e cinco anos de idade continuava de altura mediana e ainda tinha sardas, apesar de não serem poucos os cabelos grisalhos entre os cachos cas­tanhos. — Sua mãe falou com você. Você não ouviu?

— Desculpem, papai, mamãe — disse Tristran —, mas vou deixar o lugarejo hoje à noite. Pode ser que fique longe por um tempo.

— Tolice e bobagem! — disse Daisy Thorn. — Nunca ouvi tamanha patetice.

Dunstan Thorn viu, porém, a expressão nos olhos do filho.

— Deixe-me falar com ele — disse Dunstan à mulher. Ela lhe lançou um olhar ferino, mas depois concordou.

— Tudo bem — disse ela. — Mas quem vai consertar o casaco do menino? É o que eu gostaria de saber. — E saiu alvoroçada da cozinha.

A lareira da cozinha lançou chispas prateadas e tremeluziu em tons de verde e roxo.

— Aonde você vai? — perguntou Dunstan.

— Para o leste — respondeu o filho.

Para o leste. O pai concordou em silêncio. Havia dois lestes — o leste que levava ao condado vizinho, através da floresta, e o leste do outro lado da muralha. Sem perguntar, Dunstan Thorn sabia a qual leste seu filho se referia.

— E você pretende voltar? — perguntou o pai.

— Claro que sim — respondeu Tristran com um largo sor­riso.

— Bem — disse o pai. — Então, está tudo certo. — Ele coçou o nariz. — Você chegou a pensar num jeito de passar pela muralha?

Tristran fez que não.

— Tenho certeza de que vou descobrir um jeito — disse ele.

— Se necessário, luto com os guardas para conseguir passar.

— Nada disso — disse o pai, fungando. — Se você estivesse de plantão, ou mesmo eu, ia gostar de uma coisa dessas? Não quero que ninguém se machuque. — Ele coçou o lado do nariz mais uma vez. — Vá arrumar uma bolsa de viagem, dê um beijo de despedida em sua mãe, e eu vou junto com você até o povoado.

Tristran arrumou a bolsa, e sua mãe lhe trouxe seis maçãs vermelhas maduras, um pão caseiro e uma forma de queijo fresco, que ele guardou na bolsa. A Sra. Thorn se recusava a olhar para Tristran. Ele lhe deu um beijo no rosto, de despedi­da, e foi caminhando com o pai até o povoado.

Tristran cumprira seu primeiro turno de vigia na muralha quando tinha dezesseis anos. Tinham lhe dado apenas uma instrução: que a tarefa dos guardas era impedir, a qualquer custo, qualquer pessoa proveniente do vilarejo de passar pela abertura na muralha. Se isso não fosse possível, os guardas de­veriam pedir ajuda de todos no povoado.

Enquanto seguiam em frente, ele se perguntava qual seria o plano do pai. Talvez os dois juntos conseguissem dominar os guardas. Talvez o pai distraísse os guardas para permitir que ele passasse às escondidas... talvez...

Quando acabaram de passar pelo povoado e chegaram à abertura na muralha, Tristran tinha imaginado todas as possi­bilidades, menos a que aconteceu.

De plantão na muralha naquela noite estavam Harold Crutchbeck e o Sr. Bromios. Harold Crutchbeck, filho do moleiro, era um rapagão corpulento, alguns anos mais velho que Tristran. O Sr. Bromios tinha o cabelo preto e crespo, os olhos verdes e o sorriso muito branco. Cheirava a uvas, a suco de uva, a cevada e a lúpulo.

Dunstan Thorn se aproximou do Sr. Bromios e parou diante dele. Bateu os pés para espantar o frio da noite.

— Boa-noite, Sr. Bromios. Boa-noite, Harold — disse Dunstan.

— Boa-noite, Sr. Thorn — disse Harold Crutchbeck.

— Boa-noite, Dunstan — disse o Sr. Bromios. — Espero que tudo esteja bem com você.

Dunstan confirmou que estava; e eles ficaram conversando sobre o tempo, concordando que seria péssimo para os lavra­dores, e que, pela quantidade de frutos de azevinho e de teixo que já estava aparecendo, o inverno seria frio e difícil.

Enquanto ouvia a conversa deles, Tristran se sentia prestes a explodir de irritação e frustração, mas mordeu a língua e não disse nada.

— Sr. Bromios, Harold — disse seu pai, por fim —, creio que vocês dois conhecem meu filho, Tristran. — Nervoso, Tristran levantou o chapéu-coco para os dois.

E então seu pai disse uma coisa que ele não compreendeu:

— Suponho que vocês dois saibam de onde ele veio — disse Dunstan Thorn.

O Sr. Bromios fez que sim, em silêncio. Harold Crutchbeck disse que tinha ouvido histórias, mas que não se deve dar atenção à metade do que se ouve.

— Pois bem, é verdade — disse Dunstan. — E chegou a hora de ele voltar.

— Tem uma estrela — começou Tristran a explicar, mas o pai fez com que se calasse.

O Sr. Bromios esfregou o queixo e passou a mão pelo cabelo cacheado.

— Muito bem — disse ele, voltando-se para falar com Harold em voz baixa, dizendo coisas que Tristran não conseguiu escutar.

Seu pai enfiou em sua mão um objeto frio.

— Vá em frente, menino. Vá e traga de volta sua estrela. E que Deus e todos os Seus anjos o acompanhem.

E o Sr. Bromios e Harold Crutchbeck, os guardas do portão, abriram espaço para deixá-lo passar.

Tristran passou pela abertura, com a muralha de pedra de cada lado, e saiu para a campina do outro lado.

Voltando-se, ele olhou para os três homens, emoldurados pela abertura, e se perguntou por que o teriam deixado passar.

Depois, com a bolsa balançando numa das mãos, o objeto que seu pai lhe tinha dado na outra, Tristran Thorn começou a subir o morro suave, na direção do bosque.

 

Enquanto ele caminhava, o frio da noite foi diminuindo. E, quando chegou ao bosque no alto do morro, Tristran ficou surpreso ao perceber que a lua agora brilhava forte através de uma abertura nas árvores. Ficou surpreso porque a lua tinha se posto uma hora antes; e a surpresa foi dupla, porque a lua que tinha se posto era fina, um perfeito crescente de prata, e a que brilhava agora lá no alto era uma enorme lua dourada, cheia e de cor forte.

O objeto frio em sua mão deu uma cantarolada: um retinir cristalino como os sinos de uma minúscula catedral de vidro. Ele abriu a mão e o segurou ao luar.

Era a fura-neve, toda feita de vidro.

Uma brisa suave afagou o rosto de Tristran: tinha o cheiro de menta, de folhas de groselheira e de ameixas vermelhas maduras. E a enormidade do que tinha feito se abateu sobre Tristran Thorn. Estava entrando na Terra Encantada, em busca de uma estrela caída, sem a menor idéia de como a encon­traria, nem de como se manter são e salvo enquanto tentava encontrá-la. Olhou para trás e imaginou que via as luzes de Muralha ao longe, oscilando e bruxuleando como que distor­cidas pelo calor, mas ainda convidativas.

E ele soube que, caso se virasse de costas e voltasse, ninguém o menosprezaria — não seu pai, nem sua mãe. E até mesmo era bem provável que Victoria Forester simplesmente sorrisse para ele na próxima vez que o visse e o chamasse de “caixeiro”, acrescentando que costuma ser dificílimo encontrar uma estrela, depois que ela cai. Nesse instante, ele parou.

Pensou na boca de Victoria, nos olhos cinzentos e no som de seu riso. Endireitou os ombros, prendeu a fura-neve na casa do botão mais alto do casaco, que agora estava desabotoado. E, inexperiente demais para sentir medo, jovem demais para se deixar assombrar, Tristran Thorn transpôs os campos que conhecemos...

...e entrou na Terra Encantada.

 

A Fortaleza das Tempestades tinha sido escavada no pico do Monte Huon por seu primeiro senhor, que reinou do fim da Primeira Era até os anos iniciais da segunda. Ela foi amplia­da, reformada, com mais escavações e túneis, pela sucessão de senhores da Fortaleza das Tempestades, até o pico original da montanha agora riscar o céu como a presa primorosamente entalhada de algum enorme animal cinzento de granito. A própria fortaleza estava empoleirada ali nas alturas, onde as nuvens de tempestade se reuniam antes de descer, derramando chuva, raios e devastação sobre o que estava embaixo.

O octogésimo primeiro Senhor da Fortaleza das Tempes­tades jazia moribundo em seu aposento, que tinha sido escava­do no pico mais alto como um buraco num dente cariado. Para lá dos campos que conhecemos, a morte ainda existe.

Ele chamou os filhos a seu leito, e eles vieram, tanto os mortos como os vivos, e tremiam nos frios salões de granito. Reuniram-se em torno do leito e esperaram respeitosos, os vivos à direita, os mortos à esquerda.

Quatro dos filhos estavam mortos: Secundus, Quintus, Quartus e Sextus. E esses estavam ali postados imóveis, vultos cinzentos, impalpáveis e mudos.

Três estavam vivos: Primus, Tertius e Septimus. Sólidos, constrangidos, estavam parados à direita do aposento, mudan­do o pé de apoio, coçando o rosto ou o nariz, como se estives­sem envergonhados diante da silenciosa serenidade dos irmãos mortos. Eles não lançavam olhares para os irmãos mortos, do outro lado do quarto, fazendo o possível para fingir que eles e o pai eram as únicas pessoas no cômodo frio, no qual as janelas eram enormes buracos abertos no granito, pelos quais ventos gelados sopravam. E, se era porque não conseguiam enxergar os irmãos mortos, ou se porque, depois de tê-los assassinado (cada um tinha se encarregado de um, com exceção de Septimus, que tinha matado Quintus e Sextus, envenenando o primeiro com um prato de enguias temperadíssimas, e, rejeitando a sutileza em nome da eficácia e da gravidade, simplesmente empurrando Sextus do alto de um precipício numa noite em que os dois estavam admirando uma tempestade com raios lá embaixo), preferiam agora fingir que eles não existiam, com pavor da culpa, da revelação ou de fantasmas, seu pai não saberia dizer.

No íntimo, o octogésimo primeiro senhor tinha tido esperanças de que, quando chegasse seu fim, seis dos sete jovens lordes da Fortaleza da Tempestade já tivessem morrido e ape­nas um ainda estivesse vivo. Esse seria o octogésimo segundo Senhor da Fortaleza da Tempestade e Mestre dos Altos Penhascos. Afinal de contas, tinha sido assim que ele mesmo conquistara o título alguns séculos antes.

Mas a juventude de hoje em dia não era de nada, não tinha a determinação, nem o vigor e a vitalidade de que ele se lem­brava dos tempos da juventude...

Alguém estava dizendo alguma coisa. Ele fez um esforço para se concentrar.

— Papai — repetiu Primus, com a voz grave e retumbante. — listamos todos aqui. O que vai querer fazer conosco?

O velho olhou fixamente para ele. Com um assobio medonho, inspirou um pouco do ar gelado e rarefeito para dentro dos pulmões, e então falou num tom frio e agudo, como o próprio granito:

— Estou morrendo. Em breve, meu tempo estará termina­do. Vocês então levarão meus restos para bem fundo no interior da montanha, para a Galeria dos Antepassados, e os porão... me porão... no octogésimo primeiro buraco que descobrirem, o que quer dizer, no primeiro que não estiver ocupado. E lá me deixarão. Se não fizerem isso, cada um de vocês será amaldiçoa­do e a torre da Fortaleza da Tempestade tombará por terra.

Os três filhos vivos nada disseram. Mas uma espécie de murmúrio passou pelos quatro mortos: tristeza, talvez, por seus restos terem sido devorados por águias, levados para longe pelas correntezas velozes, caindo do alto de cascatas, para chegar ao mar, sem nunca poder repousar na Galeria dos Antepassados.

— Agora, a questão da sucessão. — A voz do senhor saía num guincho como o ar que sai espremido de um fole estragado. Os filhos vivos levantaram a cabeça. Primus, o mais velho, com alguns pêlos brancos na densa barba castanha, o nariz aquilino, os olhos cinzentos, com um ar de expectativa. Tertius, com a barba ruiva e dourada, os olhos de um castanho amarelado, tinha um ar de cautela. Septimus, cuja barba negra ainda esta­va surgindo, alto e semelhante a um corvo, tinha a expressão neutra, como sempre.

“Primus, vá até a janela.”

Primus foi até a abertura na parede de rocha e olhou lá para fora.

— O que está vendo?

— Nada, senhor. Vejo o céu noturno acima de nós e nuvens lá embaixo.

O velho estremeceu por baixo do cobertor de pele de urso-pardo.

— Tertius, vá até a janela. O que está vendo?

— Nada, papai. É como Primus falou. O céu da noite está acima de nós, da cor de uma contusão, e um tapete de nuvens, todas cinzentas e retorcidas, cobre o mundo abaixo de nós.

Os olhos do velho se reviraram no rosto como os olhos loucos de uma ave de rapina.

— Septimus. Sua vez. Vá à janela.

Septimus foi até a janela e parou ali ao lado dos irmãos mais velhos, embora não perto demais.

— E você? O que está vendo?

Ele olhou pela abertura. O vento batia implacável em seu rosto, fazendo com que os olhos ardessem e chorassem. Uma estrela bruxuleou, fraca, no céu cor de anil.

— Estou vendo uma estrela, papai.

— Aaahh — chiou o octogésimo primeiro senhor. — Levem-me à janela. — Os quatro filhos mortos olharam com tristeza enquanto os três vivos carregavam o pai até a janela. O velho ficou parado, ou quase parado, apoiando todo o seu peso nos ombros largos dos filhos, com os olhos fixos no céu de chumbo.

Os dedos, magros como gravetos e de articulações in­chadas, começaram a remexer no topázio preso a uma pesada corrente de prata cm torno de seu pescoço. Essa corrente se partiu como se fosse uma teia de aranha nas mãos do velho. Ele agora segurava o topázio, com os pedaços quebrados da cor­rente de prata ainda pendurados.

Os falecidos lordes da Fortaleza da Tempestade murmu­raram entre si na voz dos mortos, que parece o som de neve caindo. O topázio era o Poder da Fortaleza da Tempestade. Quem o usasse seria o Senhor da Fortaleza da Tempestade, desde que seu sangue fosse o sangue da linhagem. A qual dos filhos sobreviventes o octogésimo primeiro senhor daria a pedra?

Os filhos vivos nada disseram, mas estavam, respectiva­mente, ansioso, preocupado e de expressão vazia (mas era um vazio enganoso, o vazio de uma encosta rochosa que a gente só percebe que não pode ser escalada quando já se está no meio da escalada e já não há como descer).

O velho se livrou do apoio dos filhos e ficou parado, alto e empertigado. Por um instante, ele era o Senhor da Fortaleza da Tempestade, que tinha derrotado os Duendes do Norte na batalha da Ponta dos Penhascos, que tinha gerado oito filhos — sete deles meninos — em três esposas, que, antes dos vinte anos de idade, tinha matado cada um de seus quatro irmãos em combate, apesar de seu irmão primogênito ter tido quase cinco vezes a sua idade e sido um poderoso guerreiro de enorme renome. Foi esse homem que segurou o topázio e disse quatro palavras numa língua morta havia muito tempo, palavras que pairaram no ar como os toques de um imenso gongo de bronze.

E então jogou a pedra para o alto. Os irmãos vivos pren­deram a respiração, enquanto a pedra descrevia um arco por cima das nuvens. Ela chegou ao que eles tinham certeza ser o zênite da curva, e então, num desafio a toda a razão, continuou a subir pelo ar.

Agora, outras estrelas rebrilhavam no céu da noite.

— Aquele que recuperar a pedra, que é o Poder da Fortaleza da Tempestade, deixo minha bênção e o domínio da Fortaleza da Tempestade e de todos os seus territórios — disse o octogési­mo primeiro senhor, com a voz perdendo a força à medida que falava, até que, mais uma vez, ela voltou a ser o som rachado de um homem velhíssimo, como o vento que sopra através de uma casa abandonada.

Os irmãos, os mortos e os vivos, ficaram olhando para a pedra. Ela foi caindo para o alto no céu até que a perderam de vista.

— Deveríamos então capturar águias e nelas pôr arreios para que nos arrastem pelos céus afora? — perguntou Tertius, confu­so e irritado.

O pai não disse nada. A última claridade do dia se apagou, e as estrelas surgiram lá no alto, incontáveis em seu esplendor. Uma estrela caiu.

Embora não tivesse certeza, Tertius achou que era a primeira estrela da noite, aquela que seu irmão Septimus tinha notado.

A estrela despencou, um rastro de luz pelo céu noturno, e foi cair em algum ponto para o sul e para o oeste de onde eles estavam.

— Pronto — murmurou o octogésimo primeiro senhor, caindo sobre o piso de pedra do quarto, onde não respirou mais.

Primus coçou a barba e olhou para aquela coisa amarfa­nhada.

— Me deu uma vontade — disse ele — de lançar o corpo do filho-da-mãe pela janela. Que idiotice foi essa?

— Melhor não fazer nada disso — recomendou Tertius. — Não queremos ver a ruína e queda da Fortaleza da Tempestade. Nem queremos uma maldição sobre nossa cabeça. O melhor é simplesmente levar o corpo para a Galeria dos Antepassados.

Primus apanhou do chão o corpo do pai e o levou de volta para as cobertas de pele sobre a cama.

— Vamos informar ao povo que ele morreu.

Os quatro irmãos mortos se reuniram em torno de Septimus à janela.

— O que você acha que ele está pensando? — perguntou Quintus a Sextus.

— Ele está se perguntando onde terá caído a estrela e como chegar lá primeiro — disse Sextus, lembrando-se da queda do alto do rochedo que o fez entrar na eternidade.

— É o que eu esperava — disse o falecido octogésimo pri­meiro senhor da Fortaleza da Tempestade aos quatro filhos mor­tos. Mas os três que ainda não tinham morrido nada ouviram.

 

Uma pergunta com o objetivo de descobrir o tamanho da Terra Encantada não tem uma resposta simples.

A Terra Encantada, afinal de contas, não é uma terra única, um principado ou um domínio. Mapas da Terra Encantada não são confiáveis, e não se pode contar com eles.

Falamos dos reis e das rainhas da Terra Encantada, como falaríamos dos reis e das rainhas da Inglaterra. Mas a Terra Encantada é maior do que a Inglaterra, da mesma forma que c maior do que o mundo (pois, desde o alvorecer dos tempos, acabaram se refugiando na Terra Encantada todas as terras forçadas a sair do mapa por exploradores e aventureiros que partiram em sua busca só para provar que elas não existiam; tanto que, neste momento em que estou escrevendo a respeito dela, ela é na realidade um lugar imenso, que contém todos os tipos de paisagens e terrenos). Aqui, realmente, existem dragões. Além de grifos, dragões alados, hipogrifos, basiliscos e hidras. Há também todos os tipos de animais mais conhecidos: gatos carinhosos e distantes, cachorros nobres e covardes, lobos e raposas, águias e ursos.

No meio de um bosque, tão denso e tão escuro que era quase uma floresta, havia uma pequena casa, construída de colmo, madeira e taipa de barro cinzento, que tinha um aspec­to extremamente sinistro. Um pequeno pássaro amarelo numa gaiola estava sentado no poleiro do lado de fora. Ele não can­tava, mas estava ali calado, entristecido, com a plumagem arrepiada e descorada. O chalé tinha uma porta, da qual a tinta que um dia tinha sido branca estava descascando.

Por dentro, o chalé tinha apenas um cômodo, sem divisões. Dos caibros do telhado estavam suspensas peças de carne e lingüiças defumadas, bem como uma carcaça encarquilhada de crocodilo. Um fogo de turfa estava aceso, gerando muita fumaça, na grande lareira numa das paredes, e a fumaça saía fina pela chaminé lá no alto. Havia três cobertores em três camas — uma grande e antiga, as outras duas pouco mais do que camas de rodinhas.

Havia utensílios de cozinha e uma grande gaiola de madeira, no momento vazia, em outro canto. As janelas eram imundas demais para se conseguir enxergar por elas, e tudo estava coberto por uma grossa camada de poeira grudenta.

O único objeto na casa que estava limpo era um espelho de vidro negro, da altura de um homem, largo como uma porta de igreja, encostado numa parede.

A casa pertencia a três mulheres idosas. Elas se revezavam para dormir na cama grande, para fazer o jantar, preparar armadilhas no bosque para pegar pequenos animais, puxar água do poço fundo por trás da casa.

As três falavam pouco.

Na pequena casa havia outras três mulheres. Eram esguias, misteriosas e divertidas. O salão que ocupavam era muitas vezes maior do que o chalé. O piso era de ônix e as colunas, de obsidiana. Atrás delas, havia um pátio, ao ar livre, e havia estrelas lá no alto no céu. Uma fonte murmurava no pátio, com a água rolando e caindo de uma estátua de uma sereia em êxtase, com a boca bem aberta. Jorrava dessa boca uma água negra e límpida, caindo no laguinho ali embaixo, fazendo rebrilharem e tremeluzirem as estrelas.

As três mulheres e seu salão se encontravam dentro do espelho.

As três velhas eram as Lilim — rainhas das bruxas —, total­mente isoladas no bosque.

As três mulheres no espelho também eram as Lilim. Mas se elas eram as sucessoras das velhas, ou sombras de seus eus, ou se somente o chalé no bosque era de verdade, ou ainda se em algum lugar as Lilim viviam num salão negro, com uma fonte no formato de uma sereia murmurando no pátio das estrelas, ninguém sabia ao certo, e ninguém saberia dizer a não ser as Lilim.

Nesse dia, uma velhinha chegou do bosque, trazendo um arminho, com uma grande mancha de sangue no pescoço.

Ela o deitou na tábua de carne, toda empoeirada, e pegou uma faca afiada. Cortou em torno das pernas dianteiras, tra­seiras e do pescoço. Depois, com a mão imunda, puxou a pele da criatura, como se estivesse tirando uma criança de dentro do pijama, e largou o corpo nu no cepo de madeira.

— Vísceras? — perguntou, com a voz trêmula.

— Por que não? — disse a menor, a mais velha, das três a de cabelos mais desgrenhados, balançando para a frente e para trás na cadeira de balanço.

A primeira velha pegou o arminho pela cabeça e lhe deu um corte do pescoço até a virilha. As entranhas se derramaram pela tábua de cortar carne, vermelhas, roxas e da cor de ameixa, intestinos e órgãos vitais parecendo pedras preciosas molhadas na madeira empoeirada.

A mulher deu um grito estridente.

— Venham! Depressa! — Então, com delicadeza, empurrou com a faca as entranhas do arminho e deu mais um grito.

A velhota na cadeira de balanço conseguiu se levantar. (No espelho, uma mulher morena se espreguiçou e se levantou do divã.) A última velha, que vinha voltando da casinha lá fora, chegou toda apressada.

— O quê? O que foi? — perguntou.

(No espelho, uma terceira mulher jovem se reuniu às ou­tras duas. Tinha os seios pequenos e altos, e os olhos escuros. )

— Vejam — disse a primeira velha, apontando com a faca. Seus olhos eram do cinza desbotado da velhice extrema e se contraíam para examinar os órgãos na tábua.

— Finalmente — disse uma delas.

— Já não era sem tempo — disse outra.

— E qual de nós, então, vai à procura? — perguntou a terceira. As três fecharam os olhos, e três mãos idosas atacaram as vísceras na tábua.

Uma mão se abriu.

— Fiquei com o rim.

— E eu com o fígado.

A terceira mão se abriu. Era a da mais velhas das Lilim.

— Fiquei com o coração — disse ela, vitoriosa.

— Como vai viajar?

— Em nossa velha carrocinha, puxada pelo que eu encon­trar na encruzilhada.

—Você vai precisar de alguns anos. A mais velha concordou.

A mais nova, a que tinha chegado da casinha lá fora, foi andando a duras penas até uma cômoda alta e desengonçada, e ali se curvou. Tirou uma caixa enferrujada da gaveta de baixo e a levou até as irmãs. Estava amarrada com três pedaços de barbante velho, cada um com um nó diferente. Cada mulher desatou o nó de seu próprio barbante e então a que tinha trazido a caixa abriu a tampa.

Alguma coisa dourada cintilou no fundo da caixa.

— Não nos resta muito — disse, com um suspiro, a mais jovem das Lilim, que já era velha quando o bosque em que moravam ainda estava no fundo do mar.

— Então é bom que a gente tenha encontrado um novo, não é? — perguntou a mais velha, em tom mordaz. E com isso enfiou a mão com suas garras na caixa. Alguma coisa dourada tentou evitar a mão, mas ela conseguiu apanhá-la, enquanto se contorcia e cintilava, abriu a boca e a engoliu.

(No espelho, três mulheres olhavam cá para fora. )

Houve um estremecimento e um calafrio no centro de tudo.

(Agora, duas mulheres olhavam do espelho negro. )

No chalé, duas velhas, com uma mistura de inveja e espe­rança no rosto, olhavam para uma mulher alta e bonita, de ca­belos negros, olhos escuros e a boca muito vermelha.

— Ai, como esse lugar está imundo. — Ela foi até a cama. Ao lado havia um grande baú de madeira, coberto por uma tapeçaria desbotada. Ela arrancou a tapeçaria dali e abriu o baú, remexendo dentro dele.

“Pronto, lá vamos nós”, disse ela, exibindo uma veste ver­melha. Jogou-a em cima da cama e tirou os farrapos que tinha usado enquanto era velha.

As duas irmãs olhavam para seu corpo nu, ansiosas.

— Quando eu voltar com o coração, vai haver anos de sobra para todas nós — disse ela, observando com desprezo o queixo peludo e os olhos encovados das irmãs. Pôs no braço uma pul­seira vermelha, na forma de uma cobra com a boca mordendo a cauda.

— Uma estrela — disse uma das irmãs.

— Uma estrela — repetiu a segunda.

— Isso mesmo — disse a rainha das bruxas, pondo na cabeça um diadema de prata. — A primeira em duzentos anos. E eu vou trazê-la para nós. — Ela lambeu os beiços vermelhos com a lín­gua de um vermelho escuro. — Uma estrela caída.

 

 

E

ra noite na clareira junto ao laguinho, e o céu estava salpi­cado de estrelas sem conta.

Vaga-lumes cintilavam nas folhas dos olmos, nas samam­baias e nas aveleiras, piscando como as luzes de uma cidade estranha e distante. Uma lontra entrou ruidosa no regato que alimentava o laguinho. Uma família de arminhos chegou ziguezagueando até a água para beber. Um pequeno rato silvestre encontrou no chão uma avelã e começou a tentar roer a casca dura com os dentes afiados que nunca param de crescer, não por estar com fome, mas porque era um príncipe en­cantado que poderia recuperar sua forma exterior somente quando mastigasse a Noz da Sabedoria. Mas sua empolgação o deixou descuidado, e a sombra que encobriu o luar foi o único aviso que teve da descida de uma enorme coruja cin­zenta, que o apanhou nas garras afiadas e voltou a subir pela noite adentro.

O rato soltou a avelã, que caiu no regato e foi levada dali, para ser engolida por um salmão. A coruja engoliu o rato num instante, deixando só o rabo saindo do bico, como um cadarço de bota. Alguma criatura resfolegou e grunhiu enquanto abria caminho pelo bosque cerrado — “um texugo”, pensou a coru­ja (ela também encantada e impedida de reassumir sua forma original enquanto não comesse o rato que tivesse comido a Noz da Sabedoria), “ou talvez um urso pequeno”.

Folhas farfalharam, a água murmurou, e então a clareira se encheu de uma luz que vinha do alto, uma pura luz branca, que brilhava cada vez mais. A coruja viu o reflexo no laguinho, uma pura luz ofuscante, tão forte que ela alçou vôo para es­capar para outra parte da floresta. As criaturas da mata olhavam em volta, apavoradas.

De início, a luz no céu não era maior do que a lua. Depois foi ficando maior, infinitamente maior, e todo o arvoredo estremeceu, enquanto cada animal prendia a respiração e os vaga-lumes refulgiam mais do que nunca na vida, cada um convencido de que isso era finalmente o amor, mas em vão... E então...

Ouviu-se um estrondo, forte como um tiro, e a luz que tinha iluminado o local sumiu.

Ou quase sumiu. Havia um clarão meio apagado que pul­sava no meio das aveleiras, como se uma minúscula nuvem de estrelas estivesse cintilando ali.

E ouviu-se uma voz, uma voz feminina, aguda e clara:

— Ai! — E depois, bem baixinho: — Droga! — E mais uma vez: — Ai!

Depois disso, mais nada. E fez-se silêncio na clareira.

 

Outubro ia ficando para trás a cada passo que Tristran dava. Ele tinha a impressão de estar entrando a pé no verão. Havia um caminho que atravessava o bosque, com uma sebe alta de um lado, e ele seguiu por ali. Lá no alto, as estrelas refulgiam e cintilavam; enquanto a lua cheia do outono luzia num amarelo dourado, da cor do trigo maduro. Ao luar, ele via roseiras-bravas na sebe.

Agora estava começando a sentir sono. Por um tempo, lutou para se manter acordado. Mas depois tirou o sobretudo e pôs a bolsa no chão — uma bolsa grande de couro de dois compartimentos iguais, que uns vinte anos mais tarde estaria na moda com o nome de bolsa Gladstone. Descansou então a cabeça na bolsa e se cobriu com o sobretudo.

Tristran ficou olhando para as estrelas. E naquele instante elas lhe pareceram bailarinas, graciosas e imponentes, que apre­sentavam uma dança quase infinita em sua complexidade. Imaginou que estava enxergando o rosto de cada estrela. Rostos pálidos, a sorrir delicadamente, como se tivessem pas­sado tempo demais lá em cima, observando as dificuldades, a alegria e a dor das pessoas aqui embaixo, tanto que não conseguiam deixar de achar engraçado cada vez que mais um ínfi­mo ser humano acreditava ser o centro de seu universo, como cada um de nós acredita.

E então ocorreu a Tristran que ele estava sonhando: entra­va em seu quarto, que também era a sala de aula do povoado de Muralha, e a Sra. Cherry batia no quadro-negro, pedindo que todos ficassem em silêncio, e Tristran baixava os olhos até sua lousa para ver o assunto da aula, mas não conseguia ler o que tinha escrito ali. E então, a Sra. Cherry, que era tão pareci­da com a mãe de Tristran que ele ficou espantado por nunca ter se dado conta antes de que as duas eram a mesma pessoa, chamou Tristran para dizer a toda a turma as datas de todos os reis e rainhas da Inglaterra...

— Com licença — disse uma voz baixa e peluda junto de seu ouvido —, mas você poderia fazer o favor de sonhar um pouco mais baixo? Seu sonho está se derramando por cima dos meus e, se existe uma coisa que nunca me interessou, são as datas. Guilherme, o Conquistador, 1066, é o máximo que consigo dizer. E até isso eu trocaria por um camundongo que soubesse dançar.

— Hein? — disse Tristran.

— Não exagere nos sonhos — disse a voz. — Se não for incô­modo.

— Desculpe — disse Tristran, e daí em diante seus sonhos foram sobre a escuridão.

 

— Comida! — disse uma voz junto de seu ouvido. — É cu­cumelo, frito na manteiga, com aliaria.

Tristran abriu os olhos: a luz do dia brilhava através da sebe de rosas silvestres, manchando a grama de dourado e verde. Ele sentiu o aroma do paraíso.

Puseram uma lata a seu lado.

— Comida de pobre — disse a voz. — Comida do campo é o que é. Nada parecido com o que a elite está acostumada, mas gente como eu aprecia um bom cucumelo.

Tristran piscou e enfiou a mão na lata, de onde tirou um grande cogumelo entre o polegar e o indicador. Estava quente. Deu uma mordida com cuidado, sentiu os sucos invadirem sua boca. Nunca na vida tinha comido nada tão bom. E, depois de mastigar e engolir o cogumelo, disse o que pensava.

— Gentileza sua — disse a pequena criatura que estava sen­tada do outro lado de uma pequena fogueira que crepitava e fumegava no ar da manhã. — Gentileza sua, tenho certeza. Mas você sabe e eu sei que é só cucumelo do campo frito, e que não chega aos pés...

— Tem mais? — perguntou Tristran, dando-se conta de como estava faminto. Às vezes, um pouquinho de comida já provoca essa sensação nas pessoas.

— Agora sim, isso é o que se chama de boas maneiras — disse a pequena criatura, que usava um grande chapéu desabado e um sobretudo folgado demais. — “Tem mais?”, diz o garoto, como se fossem ovos de codorna pochés e gazela defumada com trufas, não um simples cucumelo, que tem mais ou menos o gosto de uma criatura que morreu faz uma semana e que um gato se recusaria a tocar. Boas maneiras!

— É verdade, eu realmente queria mais um cogumelo — disse Tristran —, se não for muito trabalho.

O homenzinho — se é que era mesmo um homem, o que Tristran considerava bastante improvável — deu um suspiro sentido, estendeu uma das mãos até a frigideira que chiava no fogo e, com a faca, fez saltar dois cogumelos para a lata de Tristran.

Tristran soprou os cogumelos para esfriá-los e depois os segurou com os dedos para comê-los.

— Veja só — disse a pequena pessoa peluda, com uma mis­tura de orgulho e melancolia na voz. —Você come esses cucu­melos como se estivesse gostando deles, como se em sua boca eles não fossem como serragem, losna e arruda.

Tristran lambeu os dedos e garantiu a seu benfeitor que aqueles tinham sido os cogumelos mais deliciosos que tinha tido o privilégio de comer.

— Isso é o que você diz agora — disse o anfitrião, com um prazer sinistro —, mas daqui a uma hora não vai dizer a mesma coisa. Sem dúvida, eles não vão lhe fazer bem, como a peixeira que se desentendeu com seu rapaz por causa de uma sereia. E dava para se ouvir de Garamond até a Fortaleza das Tempestades. Que linguajar! Quase me queimou as orelhas. — A pequena criatura peluda deu um suspiro profundo. — E, falando no processo digestivo, vou dar atenção ao meu atrás daquela árvore ali. Você me faria o extraordinário favor de ficar de olho em minha bagagem? Sou-lhe grato.

— Claro que sim — disse Tristran, com cortesia.

O homenzinho peludo desapareceu atrás de um carvalho. Tristran ouviu alguns grunhidos, e logo seu novo amigo rea­pareceu.

— Pronto. Conheci um homem na Paflagônia que engolia uma cobra todos os dias de manhã, ao se levantar. Ele dizia que tinha certeza de uma coisa, de que nada pior do que isso lhe aconteceria durante o dia inteiro. A verdade é que o forçaram a engolir uma tigela de centopéias peludas antes de o enfor­carem, de modo que essa afirmação dele foi um pouco pre­tensiosa.

Tristran pediu licença e foi urinar na lateral do carvalho, junto ao qual havia um montinho de fezes, sem dúvida nada que fosse produzido por um ser humano. Pareciam excremen­tos de veados ou coelhos.

— Eu me chamo Tristran Thorn — disse Tristran, quando voltou. Seu companheiro da refeição matinal já tinha arruma­do tudo o que tinha sido usado na refeição: fogueira, frigideira, tudo, fazendo tudo sumir dentro da mochila.

Ele tirou o chapéu, empurrou-o contra o peito e olhou para o alto, para Tristran.

— Encantado — disse ele. Deu uma batidinha na lateral da mochila, onde estava escrito: encantado, enfeitiçado, embruxado e confusionado. — Eu já fui confusionado — revelou ele em tom de confidência —, mas você sabe como são essas coisas.

E com isso seguiu pelo caminho. Tristran foi atrás.

— Ei! Ei! — gritou Tristran. — Dá para ir mais devagar?

É que, apesar da mochila enorme (que fez Tristran pensar no fardo de Christian em O peregrino, um livro que a Sra. Cherry gostava de ler para a turma todas as segundas, de manhã, dizendo-lhes que, embora tivesse sido escrito por um funileiro, ainda assim era um belo livro), o homenzinho — será que ele se chamava Encantado? — estava se afastando dele com a velocidade de um esquilo subindo numa árvore.

A pequena criatura voltou apressada pelo caminho.

— Algum problema? — perguntou.

— Não consigo acompanhar seu passo — admitiu Tristran. — É que você anda terrivelmente depressa.

O homenzinho peludo reduziu o ritmo.

— Peço que me perdoe — disse ele, enquanto Tristran vinha tropeçando atrás. — Como sempre ando sozinho, acho que me acostumei a meu próprio ritmo.

Seguiram um ao lado do outro, à luz verde-dourada do sol filtrada pelas folhas recém-abertas. Era uma qualidade de luz que, pelas observações de Tristran, era exclusiva da primavera. Ele se perguntou se tinham deixado o verão tão para trás quan­to tinham deixado outubro. De vez em quando, Tristran fazia algum comentário sobre um lampejo de cor numa árvore ou num arbusto, e o homenzinho peludo dava alguma resposta como “Martim-pescador. Antigamente era chamado de Sr. Halcyon. Bela ave”, ou “Colibri roxo. Bebe o néctar das flores. Consegue pairar no ar”, ou ainda “Pintassilgo. Gosta de se manter a algu­ma distância, mas você que não vá querer examinar de perto ou ficar procurando encrenca, porque é isso o que encontrará com esses safados”.

Eles se sentaram à margem de um regato para almoçar. Tristran tirou da bolsa o pão caseiro, as maçãs vermelhas e maduras, bem como a forma de queijo — duro, picante e esfare­lento — que sua mãe tinha lhe dado. E apesar de os encarar lá com suas suspeitas, o homenzinho simplesmente os devorou e lambeu as migalhas de pão e pedacinhos de queijo dos dedos, para depois dar uma ruidosa dentada na maçã. Em seguida, encheu uma chaleira no regato e ferveu a água para fazer chá.

— E se você me contasse o que está fazendo por aqui? — perguntou o homenzinho peludo, quando se sentaram no chão para tomar o chá.

Tristran pensou por alguns instantes e depois respondeu:

— Sou do povoado de Muralha, onde mora uma moça cha­mada Victoria Forester, que não tem igual entre as mulheres. E foi para ela, e só para ela, que dei meu coração. Seu rosto tem...

— As partes normais que o compõem? — perguntou a cria­turinha. — Olhos? Nariz? Dentes? O de sempre?

— Claro que sim.

— Então, pode deixar para lá tudo isso — disse o homenzi­nho peludo. — Vamos admitir que você tenha dito tudo. E então que idiotice essa moça quis que você fizesse?

Tristran pôs no chão a taça de madeira e se levantou, ofendido.

— O que poderia fazer você imaginar — perguntou ele, num tom que tinha certeza de ser arrogante e desdenhoso — que minha amada me houvesse despachado em alguma missão tola?

O homenzinho olhou para ele, com os olhos como contas de azeviche.

— Porque esse é o único motivo pelo qual um rapaz como você faria a estupidez de atravessar a fronteira e entrar na Terra Encantada. Os únicos que chegam a vir aqui, provenientes de sua terra, são os menestréis, os apaixonados e os enlouqueci­dos. Você não tem a menor aparência de menestrel. E, perdoe-me se lhe digo isso, mas é a verdade, você me parece não ter nada de fora do comum. Então, só pode ser o amor, se quer saber.

— Porque — anunciou Tristran — todo enamorado, no fundo do coração, é um enlouquecido, e, na cabeça, um menestrel.

— É mesmo? — perguntou o homenzinho, em tom de dúvi­da. — Eu nunca tinha percebido. Quer dizer que existe uma mocinha. Ela o mandou para cá em busca de fortuna? Antigamente era um pedido muito comum. A gente via uns rapazolas perambulando por todos os cantos, à procura do tesouro que algum pobre coitado de um dragão ou ogro tinha acumulado ao longo de séculos sem fim.

— Não. Não é em busca da fortuna. Foi mais uma promes­sa que fiz à dama que mencionei. Eu... nós estávamos conver­sando, e lhe prometia um monte de coisas, e então vimos uma estrela cadente, e eu prometi que lhe traria a estrela. E ela caiu... — ele fez um gesto na direção de uma cadeia de mon­tanhas em algum ponto mais ou menos na direção do nascente — ...lá para aquele lado.

O homenzinho peludo coçou o queixo. Ou o focinho. É, bem poderia ter sido o focinho.

— Sabe o que eu faria?

— Não — respondeu Tristran, com a esperança começando a brotar no coração. — O quê?

O homenzinho limpou o nariz.

— Eu a mandaria enfiar a cabeça na lama do chiqueiro e trataria de sair para procurar outra que quisesse me beijar sem pedir a terra em troca. Sem dúvida, você encontraria alguma. Lá nas terras de onde você vem, é difícil conseguir atirar um tijolo sem acertar uma.

— Não existe nenhuma outra garota — disse Tristran, confi­ante.

O homenzinho fungou, os dois arrumaram suas coisas e continuaram a andar juntos.

— Você estava falando sério? — disse o homenzinho. — A respeito da estrela que caiu?

— Estava — respondeu Tristran.

— Bem, eu não mencionaria esse assunto por aí, se fosse você — disse o homenzinho. — Tem gente que teria um interes­se meio perigoso nesse tipo de informação. Melhor ficar de bico calado. Mas nunca minta.

— Então, o que devo dizer?

— Bem, por exemplo, se alguém lhe perguntar de onde você vem, você poderia responder “Do que ficou para trás”. E se lhe perguntarem para onde está indo, poderia dizer “Para o que estiver à minha frente”.

— Entendi — disse Tristran.

O caminho pelo qual estavam seguindo foi se tornando mais difícil de distinguir. Uma brisa fria despenteou o cabelo de Tristran, e ele estremeceu. O caminho os fez entrar num bosque cinzento de bétulas finas e descoradas.

— Você acha que falta muito? — perguntou Tristran. — Para chegar à estrela?

— Quanto falta para chegar à Babilônia? — perguntou o homenzinho, por sua vez. — Esse bosque não estava aqui na última vez que passei por esse caminho — acrescentou.

— Quanto falta para chegar à Babilônia? — recitou Tristran consigo mesmo, enquanto os dois seguiam pelo bosque cinzento.

 

“Sessenta milhas e mais dez,

A luz de velas eu consigo chegar lá?

Claro, e ainda dá para voltar.

É, se forem ágeis e leves seus pés,

A luz de velas você consegue chegar lá. “

 

— E isso aí — disse o homenzinho peludo, virando a cabeça para um lado e para outro como se estivesse preocupado ou um pouco nervoso.

— É só um versinho de criança — disse Tristran.

— Só um versinho... ? Pois eu lhe garanto que, deste lado da muralha, há quem dê sete anos de trabalho duro por esse pequeno feitiço. E lá de onde você vem, as pessoas cantarolam essas palavras para os bebês junto com “Dorme, neném” ou “Bão, balalão”, sem nem imaginar... Você está com frio, rapaz?

— Agora que você falou, estou, sim, com um pouco de frio.

— Olhe em volta. Está vendo algum caminho?

Tristran piscou os olhos. O bosque cinzento absorvia a luz, a cor, a distância. Tinha imaginado que estavam seguindo por um caminho, mas agora que tentava enxergar a trilha, ela tremeluziu e desapareceu, como uma ilusão de ótica. Ele tinha suposto que aquela árvore, aquela outra e aquela rocha delimi­tassem o caminho... mas agora não havia caminho, só a penum­bra, o crepúsculo e as árvores descoradas.

— Agora é que nós vamos ver — disse o homem peludo, com a voz bem baixa.

— Será que devíamos sair correndo? — Tristran tirou o chapéu-coco e o segurou diante do corpo.

— Não vai fazer diferença — disse o homenzinho, abanando a cabeça. — A gente caiu na armadilha e vai continuar dentro dela mesmo que saia correndo.

Ele foi até a árvore mais próxima, um tronco alto, pálido, como o de uma bétula, e lhe deu um chute com força. Caíram algumas folhas secas, e depois uma coisa branca tombou dos galhos no chão com um ruído seco, sussurrado.

Tristran foi olhar e viu que era o esqueleto de um pássaro, limpo, branco e seco.

O homenzinho estremeceu.

— Eu podia trocar de posição com alguém — disse ele a Tristran —, mas não existe ninguém com quem eu pudesse tro­car que se sairia melhor aqui do que nós... Não há como fugir, nem mesmo voando, a julgar por esse passarinho. — Ele deu uma cutucada na ave com um pé semelhante a uma pata. — E as pessoas de sua espécie jamais conseguiram aprender a se enfurnar na terra... Não que isso pudesse nos ser útil agora...

— E se nós nos armássemos? — sugeriu Tristran.

— Nos armássemos?

— Antes que eles cheguem.

— Antes que eles cheguem? Ora... eles já estão aqui, seu cabeça de minhoca. São as próprias árvores. Estamos numa flo­resta murcha.

— Floresta murcha?

— A culpa foi minha. Eu devia ter prestado mais atenção à direção para onde estávamos seguindo. Agora, você nunca vai conseguir sua estrela, nem eu, minha mercadoria. Um dia, algum pobre coitado perdido na mata vai encontrar nossos esqueletos limpinhos como uma moeda, e só.

Tristran olhava assustado ao redor. Na penumbra, teve a impressão de que as árvores estavam se acotovelando em volta deles, apesar de não ter visto nenhum movimento de verdade. Ele se perguntava se o homenzinho não estava sendo bobo ou imaginando coisas.

Sentiu uma picada na mão esquerda. Deu um tapa, espe­rando ver um inseto. E quando olhou viu uma folha de um amarelo desbotado. Ela caiu no chão com um leve farfalhar. No dorso da mão, o desenho das veias começou a se inchar de sangue vermelho, úmido. O bosque murmurava em torno deles.

— Não tem nada que a gente possa fazer? — perguntou Tristran.

— Não consigo pensar em nada. Ai, se eu soubesse onde fica o caminho de verdade... Nem mesmo uma floresta murcha poderia destruir o caminho de verdade. Ela só o esconderia de nós, nos afastaria dele... — O homenzinho deu de ombros e sus­pirou.

Tristran levantou a mão e esfregou a testa.

— Mas... mas eu sei onde fica o caminho de verdade — disse, apontando numa direção. — É para aquele lado.

Os olhos do homenzinho, negros como contas, cintilaram.

— Você tem certeza?

— Tenho sim. Depois daquele arvoredo, subindo um pou­quinho para a direita. É lá que está o caminho.

— Como é que você sabe? — perguntou o homem.

— Eu só sei — respondeu Tristran.

— Certo. Vamos! — E o homenzinho apanhou seu fardo e correu, controlando a velocidade o suficiente para Tristran conseguir acompanhar, com a bolsa de couro balançando e batendo nas pernas, o coração querendo sair pela boca, a res­piração ofegante.

— Não! Não por aí. Mais para a esquerda! — gritou Tristran. Galhos e espinhos se prendiam em suas roupas e as rasgavam. Eles continuaram correndo em silêncio.

Parecia que as árvores tinham se disposto na forma de uma muralha. Revoadas de folhas caíam em torno deles, picando e ferindo quando tocavam na pele de Tristran, cortando e ras­gando suas roupas. Ele subiu o morro a duras penas, espantando as folhas com a mão livre, golpeando os raminhos e os galhos com a bolsa.

O silêncio foi rompido pelo uivo de alguma criatura. Era o homenzinho peludo. Ele estava parado, sem se mexer, tinha esticado a cabeça para trás e começado a uivar para o céu.

— Coragem! — disse Tristran. — Estamos quase chegando. — Ele agarrou a mão livre do homenzinho peludo com sua mão bem maior e o puxou dali.

E de repente eles estavam no caminho de verdade: uma faixa verde gramada que atravessava o bosque cinzento.

— Será que a gente está em segurança aqui? — perguntou Tristran, arquejando e olhando em volta, com apreensão.

— Está, desde que a gente não saia do caminho — disse o homenzinho peludo, pondo o fardo no chão. Ele se sentou na grama do caminho e ficou olhando para as árvores ao redor.

As árvores descoradas balançaram, apesar de não estar soprando nenhum vento, e a Tristran pareceu que elas balan­çavam de raiva.

Seu companheiro tinha começado a tremer, com os dedos peludos varrendo e afagando a grama verde. Depois ele olhou para o alto, para Tristran.

— Imagino que você não tenha trazido nada que se assemelhe a uma garrafa de alguma bebida alcoólica. Ou quem sabe um bule de chá quente e doce?

— Não — respondeu Tristran. — Lamento dizer que não.

O homenzinho fungou e começou a remexer no fecho de sua mochila imensa.

— Vire para o outro lado — disse ele a Tristran. — Nada de espiar.

Tristran virou as costas para ele.

Ouviu-se o ruído de busca desordenada, de grande esforço. Depois veio o som do fecho que se trancou.

— Pode olhar agora, se quiser. — O homenzinho estava segurando uma garrafa esmaltada. Lutava em vão para arrancar a rolha.

— Hummm... Quer que eu ajude com isso aí? — Tristran esperou que o homenzinho peludo não se ofendesse com a pergunta. Mas não precisava ter se preocupado. Seu compa­nheiro enfiou a garrafa em suas mãos.

— Pronto, experimente — disse ele. — Você tem os dedos perfeitos para isso.

Tristran deu uns puxões e conseguiu tirar a rolha da garrafa. Sentiu um cheiro inebriante, como o de mel misturado com fumaça de lenha e cravo. Devolveu a garrafa ao homenzinho.

— É um crime tomar uma bebida tão rara e tão boa como esta direto da garrafa — disse o homenzinho peludo. Soltou do cinto a pequena taça de madeira e, tremendo, serviu nela uma pequena quantidade do líquido da cor de âmbar. Sentiu o cheiro, tomou um pequeno gole e então sorriu, mostrando dentes pequenos e afiados.

— Aaaaaah! Agora sim. — E passou a taça para Tristran. — Vá bebericando bem devagar — disse o homenzinho. — Só essa gar­rafa já vale uma fortuna. Ela me custou dois diamantes grandes, de um branco azulado, um azulão de brinquedo que cantava e uma escama de dragão.

Tristran tomou a bebida bem devagar. Ela o aqueceu até a ponta dos dedos dos pés e lhe causou a impressão de que sua cabeça estava cheia de bolhas minúsculas.

— Boa, não é? Tristran fez que sim.

— Boa demais para gente como você e eu, lamento dizer. Mesmo assim. É perfeita para uma hora difícil, como esta é, sem dúvida. Vamos sair desse bosque — disse o homenzinho peludo. — Mas em que direção...?

— Para lá — respondeu Tristran, apontando para a esquerda. O homenzinho arrolhou a pequena garrafa e a enfiou num bolso, levantou a mochila aos ombros, e os dois começaram a seguir pelo caminho verde que cortava o bosque cinzento.

Depois de algumas horas, as árvores brancas começaram a rarear e logo em seguida eles tinham saído da floresta murcha e caminhavam entre dois muros baixos de pedras toscas, ao longo de uma ribanceira. Quando Tristran olhou para trás pelo caminho por onde tinham vindo, não viu sinal de absoluta­mente nenhum bosque. Atrás deles, a paisagem era de morros cobertos de urzes, com o topo arroxeado.

— Podemos parar aqui — disse seu companheiro de viagem. — A gente precisa ter uma conversinha sobre umas coisas. Sente-se.

Ele pôs no chão a bolsa enorme e a escalou para se sentar no alto dela, de modo que olhava de cima para baixo para Tristran, que estava sentado numa pedra ao lado da estrada.

— Tem alguma coisa aqui que não estou conseguindo en­tender. Agora, me diga. De onde você é?

— De Muralha — respondeu Tristran. — Já lhe disse.

— Quem são seu pai e sua mãe?

Meu pai é Dunstan Thorn. Minha mãe é Daisy Thorn.

— Humm. Dunstan Thorn... Huuummm. Conheci seu pai faz muito tempo. Ele me arrumou lugar para dormir. Não era má pessoa, apesar de parecer que não termina nunca de falar enquanto a gente está tentando tirar uma soneca. — Ele coçou o focinho. — Mesmo assim, não está explicado... Na sua família, não tem, assim, nada de extraordinário?

— Minha irmã, Louisa, consegue mexer as orelhas.

O homenzinho peludo mexeu as próprias orelhas grandes e peludas, com desdém.

— Não, não se trata disso. Eu estava pensando mais numa avó que tivesse sido famosa pelos encantamentos, um tio que fosse um mago importante ou um par de fadas em algum ponto da árvore genealógica.

— Não que eu saiba — admitiu Tristran. O homenzinho mudou de tática:

— Onde fica o vilarejo de Muralha? — perguntou. Tristran apontou. — Onde ficam as Colinas Contestáveis? — Tristran apontou novamente, sem hesitar. — Onde ficam as Ilhas Cata­varianas? —Tristran apontou para o sudoeste. Só tomou conhe­cimento da existência das Colinas Contestáveis ou das Ilhas Catavarianas quando o homenzinho as mencionou, mas tinha tanta certeza de sua localização quanto tinha de seu próprio pé esquerdo ou de seu nariz.

— Hummm. Bem, então, você sabe onde está Sua Imen­sidão, o Bezerro Almiscarado?

Tristran fez que não.

— Você sabe onde fica a Cidadela Transluminar de Sua Imensidão, o Bezerro Almiscarado?

Tristran apontou com segurança.

— É Paris? A da França?

Tristran pensou um pouco.

— Bem, se Muralha fica para lá, imagino que Paris deva ficar mais ou menos na mesma direção, não é?

— Vejamos... — disse o homenzinho peludo, falando consigo mesmo tanto quanto com Tristran. —Você consegue encontrar os lugares na Terra Encantada, mas não em seu próprio mundo, com exceção de Muralha, que é uma fronteira. Você não sabe onde encontrar pessoas... mas... diga-me, garoto, você sabe onde está essa estrela que você está procurando?

— É naquela direção — respondeu Tristran, apontando ime­diatamente.

— Hummm. Isso é bom. Mas ainda não explica nada. Está com fome?

— Um pouco. E estou todo rasgado e esfarrapado — men­cionou Tristran, passando os dedos pelos buracos enormes nas calças e no casaco, onde os galhos e os espinhos tinham tenta­do agarrá-lo, e as folhas tinham tentado cortá-lo enquanto cor­ria. — E olhe só para minhas botas...

— O que você trouxe na bolsa?

Tristran abriu a bolsa de dois compartimentos.

— Maçãs. Queijo. Meia forma de pão. Um pote de pasta de peixe. Meu canivete. Trouxe uma muda de roupa de baixo e dois pares de meias de lã. Acho que devia ter trazido mais roupa...

— Fique com a pasta de peixe — disse o companheiro de viagem, dividindo rapidamente os alimentos restantes em duas pilhas iguais. — Você me salvou — prosseguiu ele, mordendo uma maçã fresca — e isso não é coisa que se esqueça. Primeiro, vamos cuidar de sua roupa e depois você pode ir em busca de sua estrela. Certo?

— É muita gentileza sua — disse Tristran, nervoso, cortando o queijo para seu pedaço de pão.

— Certo — disse o homenzinho peludo. — Vamos arrumar um cobertor para você.

 

Ao amanhecer, três lordes da Fortaleza da Tempestade des­ciam pela estrada da montanha, cercada de penhascos, numa carruagem puxada por seis cavalos negros. Os cavalos usavam plumas negras que balançavam, a carruagem estava recém-pintada de preto, e cada um dos lordes da Fortaleza da Tempes­tade estava de luto.

No caso de Primus, o luto assumiu a forma de uma longa túnica negra, semelhante ao hábito de um monge. Tertius esta­va vestido no estilo sóbrio de um comerciante de luto, en­quanto Septimus usava um gibão preto com calções de malha, um chapéu preto com uma pluma também preta, o que lhe dava a perfeita aparência de um assassino afetado, de alguma insignificante peça histórica do período elisabetano.

Os lordes da Fortaleza da Tempestade se entreolhavam: um cauteloso, outro desconfiado, o terceiro com a expressão vazia.

Não diziam nada. Se tivesse sido possível fazer alguma aliança, Tertius poderia ter tomado o partido de Primus contra Septimus. Mas não havia alianças que pudessem ser feitas. A carruagem balançava, ruidosa.

Parou uma vez para que cada um dos três lordes se alivias­se. Depois continuou a descer barulhenta pela estrada íngreme. Juntos, os três lordes da Fortaleza da Tempestade tinham posto os restos mortais do pai na Galeria dos Antepassados. Seus irmãos mortos observavam das portas da galeria, mas sem dizer nada.

Mais para o anoitecer, o cocheiro avisou que estavam chegando a “Bem Perto” e fez parar seus cavalos diante de uma estalagem caindo aos pedaços, construída como anexo do que parecia ser a ruína do chalé de um gigante.

Os três lordes da Fortaleza da Tempestade saltaram da car­ruagem e esticaram as pernas emperradas. Rostos os espiavam através das janelas de vidros grossos da estalagem.

O estalajadeiro, que era um gnomo raivoso, de péssimo humor, olhou pela porta.

—Vamos precisar arejar as camas e pôr no fogo uma panela de ensopado de carneiro — avisou ele.

— Arejar quantas camas? — perguntou Letitia, a camareira, de lá do alto da escada.

— Três — respondeu o gnomo. — Aposto que vão mandar o cocheiro dormir com os cavalos.

— Três mesmo — murmurou Tilly, a taberneira, para Lacey, o cavalariço — quando qualquer um pode ver nada menos que sete desses finos senhores parados na estrada.

Mas quando os lordes da Fortaleza da Tempestade entra­ram, eles eram apenas três e logo avisaram que o cocheiro dormiria na estrebaria.

O jantar foi ensopado de carneiro e pães recém-assados, tão quentes que saía vapor quando eram partidos. E cada um dos lordes tomou uma garrafa intacta do melhor vinho da Baragonha (pois nenhum deles se dispôs a dividir uma garrafa com os companheiros, nem a permitir que o vinho fosse servido da garrafa para uma taça). Isso deixou o gnomo escandalizado, já que ele era da opinião — que, entretanto, não foi exposta diante dos hóspedes — de que deveria se permitir que o vinho respirasse.

O cocheiro comeu sua tigela de ensopado, bebeu duas canecas de cerveja e foi dormir na estrebaria. Cada um dos três irmãos foi para seu respectivo quarto e cada um passou a tran­ca em sua porta.

Tertius tinha passado discretamente uma moeda de prata para Letitia, a camareira, quando ela lhe trouxe o esquentador para a cama. Por isso, ele não se surpreendeu quando, pouco antes da meia-noite, ouviu uma batida discreta na porta.

Ela estava usando um camisão branco e fez uma mesura para ele, com um sorriso tímido, quando ele abriu a porta. Trazia uma garrafa de vinho.

Ele trancou a porta e a levou para a cama, onde, depois de tê-la feito tirar o camisão, e de ter examinado seu rosto e seu corpo à luz de uma vela, depois de lhe ter beijado a testa, a boca, os mamilos, o umbigo e os dedos dos pés, depois de ter apagado a vela, fez amor com ela, sem falar, à luz fraca do luar.

Depois de algum tempo, ele grunhiu e ficou parado.

— Pronto, querido, foi bom? — perguntou Letitia.

— É — disse Tertius, desconfiado, como se as palavras da moça escondessem alguma armadilha. — Foi.

— Quer mais uma vez, antes de eu ir embora?

Em resposta, Tertius apontou para o meio das pernas. Leti­tia reprimiu um risinho.

— Ora, ele, a gente pode fazer ficar em pé num piscar de olhos — disse ela. Tirou a rolha da garrafa, que tinha trazido e posto ao lado da cama, e a entregou a Tertius.

Ele lhe deu um sorriso e bebeu um pouco do vinho. Depois, puxou a moça para junto de si.

— Aposto que está uma delícia — disse ela. — Agora, queri­do, desta vez vou lhe mostrar como eu gosto... Ei, o que está acontecendo? — É que lorde Tertius, da Fortaleza da Tempes­tade, estava se contorcendo na cama, com os olhos arregalados, a respiração forçada.

— Esse vinho? — disse ele, ofegante. — Onde você o apa­nhou?

— Foi seu irmão que me deu — disse Letty. — Eu o encon­trei na escada. Ele me garantiu que era um bom revigorante e enrijecedor, e que nos daria uma noite que nunca haveríamos de esquecer.

— E deu mesmo — disse Tertius, sem voz, estrebuchando uma, duas, três vezes, até ficar rígido. E totalmente imóvel.

Tertius ouviu Letitia começar a berrar, como se ele estivesse a uma enorme distância dali. Deu-se conta de quatro presenças conhecidas, paradas com ele nas sombras junto da parede.

— Ela era linda — murmurou Secundus, e Letitia achou que ouviu o farfalhar das cortinas.

— Septimus é de uma astúcia extrema — disse Quintus. — Esse foi o mesmíssimo preparado de erva-de-são-cristóvão que ele derramou em meu prato de enguias. — E Letitia achou que estava ouvindo o vento zunindo pelos penhascos das montanhas.

Ela abriu a porta que dava para os aposentos do dono e da criadagem, todos acordados pelos gritos, e teve início uma busca. Lorde Septimus, porém, não estava em parte alguma; e um dos garanhões negros tinha sumido da estrebaria (onde o cocheiro dormia e roncava, demonstrando ser impossível des­pertá-lo).

Lorde Primus ficou de péssimo humor quando acordou na manhã do dia seguinte.

Recusou-se a mandar matar Letitia, afirmando que ela era tão vítima da astúcia de Septimus quanto Tertius tinha sido, mas ordenou que ela acompanhasse o corpo de Tertius de volta ao castelo da Fortaleza da Tempestade.

Deixou um cavalo negro para carregar o corpo, bem como uma bolsa cheia de moedas de prata. Era o bastante para pagar algum morador de Bem Perto para viajar com ela, e garantir que nenhum lobo desse um fim ao cavalo ou aos restos mor­tais de seu irmão. Além disso, aquela soma daria para pagar o cocheiro quando ele acabasse por acordar.

E então, sozinho na carruagem, puxada por duas parelhas de garanhões negros como carvão, lorde Primus deixou o lugarejo de Bem Perto, num estado de humor significativa­mente pior do que o de quando chegou ali.

 

Brevis chegou à encruzilhada puxando uma corda com força. A corda estava presa a um bode barbudo, Chifrudo e mal-encarado que Brevis estava levando à feira para vender.

Naquele dia, de manhã, a mãe de Brevis tinha posto um único rabanete na mesa diante dele.

— Brevis, meu filho. Esse rabanete foi tudo o que consegui arrancar do chão hoje. Toda a nossa lavoura secou, e não temos mais comida. Não temos nada para vender, a não ser o bode. Quero que você ponha um cabresto nele e o leve até a feira para vender a algum fazendeiro. E com as moedas que con­seguir pelo bode... e, preste atenção, você não vai aceitar menos que um florim... quero que compre uma galinha, milho e nabos. E pode ser que assim a gente não morra de fome.

E Brevis mastigou seu rabanete, que estava lenhoso e ardi­do na língua, e passou o restante da manhã correndo atrás do bode no cercado, ganhando com isso uma contusão nas coste­las e uma mordida na coxa. Por fim, com a ajuda de um funileiro que passava por ali, conseguiu subjugar o bode o sufi­ciente para pôr nele o cabresto e, deixando sua mãe fazendo curativos nos ferimentos causados pelo bode no funileiro, saiu arrastando o animal na direção da feira.

Às vezes, o bode cismava de avançar correndo, e Brevis era arrastado por ele, com o tacão das botas rangendo na lama seca da estrada, até o bode decidir parar — de repente e sem aviso, por nenhum motivo que Brevis fosse capaz de entender. Nessa hora, Brevis se empertigava e voltava a arrastar o animal.

Ele chegou à encruzilhada na beira do bosque, suado, fa­minto e machucado, puxando um bode que se recusava a cola­borar. Uma mulher alta estava parada na encruzilhada. Um diadema de prata prendia o toucado da cor de carmim que envolvia seus cabelos escuros, e seu vestido era vermelho como seus lábios.

— Como você se chama, menino? — perguntou ela, com uma voz igual a um mel escuro e almiscarado.

— Brevis, senhora — disse ele, observando uma coisa estra­nha por trás da mulher. Era uma pequena carroça, mas não havia animal atrelado às varas. Ele se perguntou como a carrocinha teria vindo parar ali.

— Brevis — repetiu ela, como que ronronando. — Que nome bonito. Você gostaria de me vender seu bode, menino Brevis?

Brevis hesitou.

— Minha mãe me mandou levar o bode para vender na feira, comprar uma galinha, um pouco de milho e alguns nabos e levar o troco de volta para ela.

— Quanto foi que sua mãe lhe disse para aceitar em troca do bode? — perguntou a mulher nas vestes vermelhas.

— Não menos que um florim — disse ele.

Ela sorriu e ergueu uma das mãos. Nela alguma coisa rebrilhou.

— Ora, eu lhe darei um guinéu de ouro — disse ela —, o sufi­ciente para comprar um galinheiro inteiro e mais de cem sacos de nabos.

O menino ficou boquiaberto.

— Negócio fechado?

O menino fez que sim e estendeu a mão que segurava a corda do cabresto do bode.

— Pronto. — Foi tudo o que ele conseguiu dizer, com a ca­beça cheia de visões vertiginosas de uma fortuna infinita e nabos sem conta.

A mulher pegou a corda. Tocou então a testa do bode, entre os olhos amarelos, com um dedo, e soltou a corda.

Brevis calculou que o bode fosse sair correndo pelo bosque adentro, ou por uma das estradas, mas ele ficou ali onde esta­va, como se estivesse paralisado naquela posição. Brevis esten­deu a mão para receber o guinéu de ouro.

A mulher olhou, então, para ele, examinando-o desde as solas enlameadas dos pés até o cabelo curto, empapado de suor, e sorriu mais uma vez.

— Sabe de uma coisa? — disse ela. — Acho que um par com­binado impressionaria muito mais do que um sozinho. Você não acha?

Brevis não sabia do que ela estava falando e abriu a boca para lhe dizer isso mesmo. Mas nesse exato instante ela esten­deu um dedo comprido e tocou o alto de seu nariz, entre os olhos. E Brevis descobriu que não conseguia dizer nada.

Ela estalou os dedos, e Brevis e o bode se apressaram para se postar entre as varas da carroça. E Brevis ficou surpreso ao perceber que estava andando sobre quatro patas e que não parecia ser mais alto do que o animal a seu lado.

A bruxa estalou o chicote, e a carrocinha saiu sacolejando pela estrada enlameada, puxada por um belo par de bodes brancos chifrudos.

 

O homenzinho peludo pegou as calças, o casaco e o colete rasgados de Tristran e, deixando o garoto enrolado num cober­tor, entrou no vilarejo que se aninhava no vale entre três mor­ros cobertos de urzes.

No calor agradável da noite, Tristran ficou sentado, espe­rando, debaixo do cobertor.

Luzes piscavam no arbusto espinhento por trás dele. Tristran achou que eram vaga-lumes, mas, ao olhar com mais atenção, percebeu que eram pessoas minúsculas, que piscavam e adejavam de um galho para outro.

Ele tossiu, educadamente. Um monte de olhinhos se voltou para ele ali embaixo. Algumas das criaturinhas desapareceram. Outras se recolheram para o alto do arbusto, enquanto um punhado das que eram mais corajosas que as outras veio esvoa­çando em sua direção.

Elas começaram a rir, um riso agudo, como o tilintar de sinos, apontando para Tristran, com suas botas estragadas, só de roupa de baixo, com o cobertor e o chapéu-coco. Tristran ficou vermelho de vergonha e se enrolou mais no cobertor.

Um dos pequenos começou a cantar:

 

Ô, ô, ô, bololô,

Menino de cobertor,

Na busca maluca

Por uma estrela

Sem erro viaja

pela Terra Encantada,

Tire o cobertor

Para ver quem você é.

 

E outro cantou:

 

Tristran Thorn, Tristran Thorn,

Não sabe por que nasceu,

Jurou como quem enlouqueceu,

Calças, casaco e camisa perdeu,

E fica com a alma desamparada

Para logo enfrentar o desdém da amada,

Wistran Bistran Tristran Thorn.

 

— Sumam daqui, seus patetas — disse Tristran, com o rosto em brasa, e, não tendo mais nada à mão, atirou o chapéu-coco contra eles.

Foi assim que, quando o homenzinho peludo voltou do vilarejo de Folia (embora nenhum homem vivo soubesse dizer por que o lugar tinha esse nome, pois era um canto sombrio e melancólico, e tinha sido assim por tempos imemoriais), ele encontrou Tristran sentado, amuado, ao lado de um espinheiro, enrolado num cobertor e se lamentando por ter perdido o chapéu-coco.

— Eles disseram crueldades sobre o amor da minha vida — disse Tristran. — A Srta. Victoria Forester. Que audácia!

— Os pequenos têm ousadia para fazer qualquer coisa — disse o amigo. — E dizem muita bobagem. Mas também dizem muita coisa acertada. Você lhes dá ouvidos por sua própria conta e risco, e também deixa de lhes dar ouvidos por sua própria conta e risco.

— Eles disseram que logo eu enfrentaria o desdém da minha amada.

— Disseram mesmo? — O homenzinho peludo estava dispondo uma variedade de roupas sobre a grama. Mesmo ao luar, Tristran pôde ver que as roupas que o homenzinho esta­va arrumando não tinham absolutamente nenhuma seme­lhança com os trajes que Tristran tinha tirado mais cedo naquele dia.

No lugarejo de Muralha, os homens usavam marrom, cinza e preto. E até mesmo o cachecol mais vermelho usado pelo lavrador mais corado logo estava desbotado pelo sol e pela chuva de modo a apresentar uma cor mais comportada. Tristran olhou para os tecidos carmim, amarelo-canário e cas­tanho-avermelhado das roupas que eram mais parecidas com fantasias de teatro mambembe ou com o conteúdo do baú de pantomima de sua prima Joan.

— E minhas roupas?

— Agora estas são suas roupas — disse com orgulho o homenzinho peludo. — Fiz uma troca. Estas aqui são de melhor qualidade. Veja só, não rasgam nem se desmancham com facili­dade, não estão esfarrapadas e, além disso, você não vai chamar tanta atenção como forasteiro. É isso o que as pessoas usam por aqui, entendeu?

Tristran chegou a pensar em cumprir o que restava de sua busca enrolado num cobertor, como um aborígene selvagem de um de seus livros da escola. Depois, com um suspiro, tirou as botas e deixou o cobertor cair por terra. E, com a orientação do homenzinho peludo (“Não, não, menino, isso aí vai por cima. Deus me livre, o que ensinam às crianças hoje em dia?”), ele logo estava vestido com os belos trajes novos.

As botas novas lhe serviam melhor do que as velhas jamais tinham servido.

Sem dúvida, eram belas roupas novas. Se é verdade que, como às vezes diz o ditado, o hábito não faz o monge e beleza não põe mesa, pode ocorrer que a roupa acrescente um tem­pero a uma receita. E Tristran Thorn em carmim e amarelo-canário não era o mesmo Tristran Thorn de sobretudo e terno domingueiro. Agora havia uma arrogância em seus passos, uma vivacidade nos movimentos que não aparecia antes. O queixo estava para cima, em vez de para baixo. E havia um brilho em seu olhar que ele não possuía nos tempos em que usava chapéu-coco.

Quando acabaram de comer a refeição que o homenzinho peludo tinha trazido de Folia — que consistia em truta defu­mada, uma tigela de ervilhas frescas debulhadas, alguns bo­linhos de passas e uma garrafa de cerveja fraca —, Tristran já estava se sentindo perfeitamente à vontade em sua nova vestimenta.

— Pois bem — disse o homenzinho peludo. — Você salvou minha vida, menino, lá atrás na floresta murcha, e seu pai, ele também foi generoso comigo antes de você nascer, e que nunca se diga que eu sou um camarada que não paga o que deve... — Tristran começou a murmurar alguma coisa sobre o amigo já ter feito mais do que o suficiente por ele, mas o homenzinho peludo não lhe deu atenção e prosseguiu: —... por isso eu estava me perguntando o seguinte: você sabe mesmo onde sua estrela está, não sabe?

Tristran apontou sem hesitar para o horizonte escuro.

— Pois bem, a que distância está sua estrela? Isso você sabe? Até aquele instante, Tristran não tinha pensado nesse assun­to, mas se descobriu respondendo:

— Só parando para dormir um homem poderia andar o tempo todo enquanto a lua se enchia e minguava acima dele meia dúzia de vezes, cruzando montanhas traiçoeiras e deser­tos escaldantes, antes de chegar ao lugar onde a estrela caiu.

De modo algum parecia ser o tipo de coisa que ele diria, e Tristran piscou os olhos, surpreso.

— Como eu imaginava — disse o homenzinho peludo, aproximando-se de seu fardo e se debruçando por cima para Tristran não ver como se abria o fecho. — E você não parece ser o único que está procurando por ela. Está lembrado do que eu lhe disse?

— Para cavar um buraco para enterrar minhas fezes?

— Não essa parte.

— Para não dizer a ninguém meu nome de verdade, nem aonde pretendo ir?

— Nem essa.

— Então, o quê?

— Quanto falta para chegar à Babilônia? — recitou o homem.

— Ah, isso!

— A luz de vela eu consigo chegar lá? E ainda dá para voltar. Só que é a cera das velas, sabe? A maioria das velas não consegue. Encontrar essa aqui me deu um trabalhão. — E ele tirou da mochila um toco de vela do tamanho de uma maçã silvestre e o entregou a Tristran.

Tristran não viu nada de extraordinário no toco de vela. Ela era de cera, não de sebo. E tinha sido muito usada e estava derretida. O pavio estava carbonizado.

— O que é para eu fazer com ela? — perguntou.

— Cada coisa a seu tempo — disse o homenzinho peludo, tirando mais uma coisa da mochila. — Leve isso aqui também. Você vai precisar.

O objeto cintilou ao luar. Tristran o pegou. O presente do homenzinho parecia ser uma fina corrente de prata, com um fecho em cada ponta. Era fria e escorregadia.

— O que é isso?

— O de costume. Bafo de gato, escama de peixe e luar no açude de um moinho, derretido e batido pelos anões. Você vai precisar dela para fazer com que a estrela o acompanhe de volta.

— Vou?

— Ah, vai sim.

Tristran deixou a corrente cair na palma da mão. Ela dava a impressão do mercúrio.

— Onde vou guardar essa corrente? Essas roupas esquisitas não têm bolso.

— Enrole a corrente no pulso até precisar dela. Assim. Pronto. Mas você tem um bolso na túnica, ali embaixo, viu?

Tristran descobriu o bolso escondido. Acima dele havia uma casa de botão, e nessa casa ele pôs a fura-neve, a flor de vidro que seu pai lhe dera para dar sorte no dia em que ele saiu de Muralha. Tristran se perguntava se ela de fato estava lhe trazendo sorte, e, se estava, se ela era boa ou má.

Tristran se levantou. Segurava firme a bolsa de couro na mão.

— Bem — disse o homenzinho peludo. — Ouça o que você pre­cisa fazer. Segure a vela com a mão direita. Vou acender para você. E então ande até sua estrela. Você vai usar a corrente para trazê-la de volta aqui. Não restou muito pavio na vela. Por isso, é melhor você se apressar. Caminhe com entusiasmo. Qualquer moleza e você vai se arrepender. Pés ágeis e leves, certo?

— A... acho que sim — respondeu Tristran.

Ele ficou ali em pé, na expectativa. O homenzinho peludo passou a mão por cima da vela, que se acendeu com uma chama amarela em cima e azul embaixo. Veio uma rajada de vento, mas a chama não tremeu nem um pouco.

Tristran segurou a vela numa das mãos e começou a andar. A luz da vela iluminava o mundo: cada árvore, arbusto e fo­lhinha de grama.

Com o próximo passo, Tristran já estava ao lado de um lago, e a vela reluzia forte na água. Depois ele percorreu mon­tanhas, passando por penhascos solitários, onde a luz da vela se refletia nos olhos das criaturas das altas neves. E então ele esta­va atravessando as nuvens, que embora não fossem totalmente sólidas, ainda assim sustentavam seu peso tranqüilamente. E então, segurando a vela com força, ele estava debaixo da terra, e a luz da vela rebrilhava de volta para ele a partir das paredes úmidas da caverna. Agora, estava de volta nas montanhas. Em seguida, estava numa estrada que cortava uma floresta cerrada e avistou uma carrocinha sendo puxada por dois bodes, con­duzida por uma mulher de vestido vermelho que, de relance, lembrava a Boadicéia da ilustração de seus livros de história. Mais um passo, e ele estava numa ravina repleta de plantas e podia ouvir o murmúrio da água que cantava ao cair num pequeno córrego.

Deu mais um passo, mas continuou na ravina. Havia altas samambaias, olmos e dedaleiras sem conta. E a lua já tinha se posto. Ele segurou a vela bem alto, procurando uma estrela caída, uma rocha ou uma pedra preciosa, talvez, mas não viu nada.

Ouviu, porém, um som mais baixo que o gorgolejar do córrego: umas fungadas, um engolir em seco. O som de alguém tentando não chorar.

— Olá? — disse Tristran.

A fungação parou. Mas Tristran tinha certeza de estar vendo uma luz por baixo de uma aveleira e foi andando em sua direção.

— Com licença — disse ele, esperando tranqüilizar quem quer que estivesse sentado debaixo da aveleira e torcendo para não ser mais um dos pequenos que tinham roubado seu chapéu. — Estou procurando uma estrela.

Em resposta, um torrão de terra úmida saiu voando de debaixo da árvore e o atingiu na lateral do rosto. Fez sua pele arder um pouco, fragmentos de terra caíram por dentro do colarinho e por baixo das roupas.

— Não quero ferir você — disse ele, em voz alta.

Dessa vez, quando outro torrão veio em sua direção em alta velocidade, ele se abaixou para evitá-lo e a terra atingiu um olmo atrás dele. Tristran continuou avançando.

— Vá embora — disse uma voz, ríspida, com a respiração entrecortada, como se tivesse acabado de passar um tempo chorando. — Vá embora e me deixe em paz.

Ela estava estatelada, em posição desconfortável, por baixo da aveleira. Olhou para Tristran ali no alto com uma expressão de total hostilidade. Levantou mais um torrão de terra molhada contra ele, como ameaça, mas não o atirou.

Seus olhos estavam vermelhos e tristes. O cabelo tão louro que era quase branco. O vestido era de seda azul que treme­luzia à luz da vela. Ela cintilava ali sentada.

— Por favor, não jogue mais lama em mim — implorou Tristran. — Olhe, eu não pretendia perturbar você. É só que uma estrela caiu aqui por perto, e eu preciso voltar com ela antes que minha vela se acabe.

— Eu quebrei a perna — disse a mocinha.

— É realmente uma pena — disse Tristran —, mas a estrela?

— Quebrei minha perna quando caí — disse ela, entristecida. E com isso atirou a bola de lama nele. Uma poeira cintilante se desprendeu de seu braço com esse movimento.

A lama atingiu Tristran no peito.

— Vá embora — disse ela, soluçando e escondendo o rosto nos braços. — Vá embora e me deixe em paz.

— Você é a estrela — disse Tristran, começando a entender.

— E você é um palerma — retrucou a garota, com rancor —, um mariquinhas, um pateta, um parvo e um metido!

— É — disse Tristran. — Suponho que eu seja tudo isso. — E, com essas palavras, ele desenrolou uma ponta da corrente de prata e a passou pelo pulso fino da menina. Sentiu a alça da corrente se apertar em seu próprio pulso.

Ela olhou para Tristran com raiva.

— O que — perguntou, com uma voz que de repente estava para lá da indignação, para lá do ódio — você pensa que está fazendo?

— Levando você para casa comigo — disse Tristran. — Foi um juramento que fiz.

E nesse instante o toco de vela acabou de derreter, mo­lhando com violência o fim do pavio que boiava na poça de cera. Por um instante, a chama subiu forte, iluminando a ravi­na, a moça e a corrente, inquebrável, que corria do pulso de Tristran até o dela.

E então a vela se apagou.

Tristran ficou olhando para a estrela — para a moça — e, com o maior esforço, conseguiu não dizer nada.

A luz de vela eu consigo chegar lá?, pensou ele. E ainda dá para voltar. Mas a vela tinha acabado e o lugarejo de Muralha ficava a seis meses de viagem difícil dali.

— Só quero que você saiba — disse a garota, com frieza — que não importa quem você seja, não importa o que pretenda fazer comigo, não lhe darei nenhum tipo de ajuda, nem pretendo cooperar. E ainda hei de fazer tudo o que estiver ao meu alcance para prejudicar seus planos e esquemas. — E então acrescentou com ênfase: — Idiota.

— Humm — disse Tristran. — Você consegue andar?

— Não — respondeu ela. — Minha perna está quebrada. Você é surdo, além de imbecil?

— Gente do seu tipo dorme? — perguntou ele.

— Claro que sim. Mas não à noite. Durante a noite, nós brilhamos.

— Bem, vou tentar dormir um pouco. Não consigo pensar em mais nada para fazer. Foi um longo dia para mim, com tudo o que aconteceu. E talvez você devesse também tentar dormir. Temos uma longa caminhada pela frente.

O céu estava começando a clarear. Tristran descansou a cabeça na bolsa de couro na ravina e fez o possível para não dar atenção aos insultos e imprecações atiradas contra ele pela garota de vestido azul na outra ponta da corrente.

Tristran se perguntou o que o homenzinho peludo faria quando ele não voltasse.

E se perguntou o que Victoria Forester estaria fazendo àquela hora. Concluiu que era provável que estivesse dormin­do, na cama, no quarto, na sede da fazenda do pai.

E se perguntou se seis meses era uma longa caminhada e o que eles comeriam no caminho.

E se perguntou o que as estrelas comiam...

E então adormeceu.

— Boboca. Caipira. Beócio — disse a estrela.

E então ela suspirou e se ajeitou do modo mais confortá­vel possível, naquelas circunstâncias. A dor na sua perna estava amortecida, mas era constante. Ela experimentou a corrente no pulso, mas viu que estava firme, apertada e que não con­seguiria nem tirá-la nem quebrá-la.

— Cretino. Bronco repugnante — resmungou. E então também ela adormeceu.

 

À luz clara da manhã, a mocinha parecia mais humana e menos etérea. Não tinha dito nada desde a hora em que Tristran acordou.

Ele apanhou a faca e cortou, no formato de uma muleta, um galho caído, enquanto ela permanecia sentada à sombra de um sicômoro, olhando para ele com raiva, com ódio, com a cara amarrada, ali de seu lugar no chão. Ele arrancou a casca de um ramo verde e a enrolou na forquilha da muleta.

Ainda não tinham feito a refeição da manhã, e Tristran estava morrendo de fome. Seu estômago roncava enquanto ele trabalhava. A estrela não dizia nada sobre estar com fome. Mas a verdade é que ela não tinha feito outra coisa a não ser olhar para ele, de início com reprovação e depois com um ódio sem disfarces.

Ele esticou bem a casca, enfiou a ponta por baixo dela mesma e apertou um pouco mais.

— Sinceramente, isso que estou fazendo não é nada pessoal contra você — disse ele, filando para a mulher e para o arvore­do. Com o sol brilhando, ela praticamente não cintilava, a não ser nos lugares em que as sombras mais escuras tocavam nela.

A estrela passou um indicador muito branco pela corrente de prata que ia dela até ele, marcando a linha que envolvia seu pulso fino, e não deu resposta.

— Fiz isso por amor — continuou Tristran. — E você é real­mente minha única esperança. O nome dela... quer dizer, o nome da minha amada... é Victoria. Victoria Forester. E ela é a garota mais bonita, mais sábia, mais doce no mundo inteiro.

A garota interrompeu seu silêncio, bufando com ar de deboche.

— E essa criatura sábia e doce o mandou vir aqui para me torturar?

— Bem, não foi exatamente isso. Veja bem, ela me prome­teu qualquer coisa que eu quisesse, sua mão em casamento ou um beijo na boca, se eu lhe trouxesse de volta a estrela que vimos cair anteontem à noite. Eu imaginava — admitiu ele — que uma estrela caída fosse provavelmente semelhante a um diamante ou a uma pedra. Sem dúvida, não estava esperando que fosse uma dama.

— E então, tendo encontrado uma dama, você não poderia tê-la ajudado, ou tê-la deixado em paz? Por que arrastá-la para o meio de sua loucura?

— Foi o amor — explicou ele.

Ela olhou para ele com olhos azuis da cor do céu.

— Tomara que você engasgue com ele — disse ela, categori­camente.

— Não vou me engasgar — disse Tristran, com mais segurança e entusiasmo do que realmente sentia. — Pronto. Experimente usar isto aqui. — Ele lhe passou a muleta e, se estendendo, ten­tou ajudá-la a ficar em pé.

As mãos de Tristran formigaram, de um jeito nada desagra­dável, nos pontos em que sua pele tocou na dela. Ela continuava sentada no chão como um toco de árvore, sem fazer o menor esforço para se levantar.

— Eu lhe disse que faria tudo o que estivesse ao meu alcance para prejudicar seus planos e esquemas. — Ela olhou para o arvoredo ali em volta. — Como este mundo fica sem graça durante o dia. Totalmente opaco.

— É só você jogar seu peso sobre mim e o restante na muleta — disse ele. — Em algum momento, vai ser preciso se movi­mentar. — Ele deu um puxãozinho na corrente e, com relutân­cia, a estrela começou a se levantar, apoiando-se primeiro em Tristran e depois, como se a proximidade dele lhe causasse repulsa, na muleta.

Ela arquejou e então, respirando fundo, tombou de volta na grama, onde ficou deitada com o rosto contraído, fazendo uns barulhinhos de quem sente dor. Tristran se ajoelhou a seu lado.

— Qual foi o problema?

Os olhos azuis da garota chisparam, mas estavam transbor­dando de lágrimas.

— Minha perna. Não consigo ficar em pé. Deve estar que­brada mesmo. — Sua pele estava agora branca como a neve, e ela tremia.

— Sinto muito — disse Tristran, sem mais o que dizer. — Posso fazer uma tala para você. Já fiz para carneiros. Vai dar certo. — Ele deu um pequeno aperto na mão dela, foi até o cór­rego, molhou o lenço e o deu à estrela para que o passasse na testa.

Com a faca, partiu mais madeira caída. Tirou então o gibão e a camisa, que começou a rasgar em tiras para amarrar as talas, com toda a firmeza possível, em torno da perna machucada. A estrela não emitiu nenhum som enquanto ele fazia isso, mas, quando apertou o último nó, Tristran achou que a ouviu gemer baixinho.

— Você devia — disse-lhe ele — ir a um médico de verdade. Não sou cirurgião nem nada semelhante.

— Não mesmo? — disse ela, com ironia. — Você me espanta. Ele a deixou descansar um pouco ao sol.

— Acho melhor tentar outra vez — disse ele, depois de um tempo, fazendo com que ela ficasse em pé.

Os dois saíram da clareira, mancando, com a estrela apoiando todo o peso na muleta e em Tristran, encolhendo-se de dor a cada passo. E todas as vezes que ela se encolhia ou se recolhia, Tristran se sentia culpado e constrangido, mas logo se acalmava pensando nos olhos cinzentos de Victoria Forester. Eles segui­ram por uma trilha de cervos que cortava o bosque de ave­leiras, enquanto Tristran, que tinha decidido que o certo era não parar de conversar com a estrela, lhe perguntava havia quanto tempo ela era estrela, se era agradável ser estrela e se todas as estrelas eram mulheres. Também lhe relatou que ele sempre tinha imaginado que as estrelas, como a Sra. Cherry lhes ensinara, eram bolas flamejantes de gás que queimava, com muitas centenas de quilômetros de diâmetro, exatamente como o sol, só que muito mais distantes.

A todas essas perguntas e afirmações, ela não deu resposta.

— E então por que você caiu? — perguntou ele. — Tropeçou em alguma coisa?

Ela parou de avançar, se virou e ficou olhando firme para ele, como se estivesse examinando alguma coisa muito desa­gradável que estivesse muito longe dali.

— Eu não tropecei — disse ela, por fim. — Fui atingida. Por isso aqui. — Ela enfiou a mão no vestido e tirou uma grande pedra amarelada, pendurada em dois pedaços de corrente de prata. — Estou com uma contusão no lugar em que ela bateu em mim e me derrubou do céu. E agora sou obrigada a car­regá-la por aí comigo.

— Por quê?

Ela deu a impressão de que ia começar a responder, mas depois abanou a cabeça, os lábios se fecharam, e não disse nada. Um riacho corria e saltava à direita deles, acompanhando o passo de sua caminhada. O sol estava a pino, e Tristran se descobriu com uma fome cada vez maior. Pegou o pão seco no fundo da bolsa, molhou-o no riacho e o dividiu ao meio.

A estrela examinou com desdém o pão molhado e não o levou à boca.

— Você vai morrer de fome — avisou Tristran.

Ela nada disse. Só levantou um pouco mais o queixo.

Eles continuaram a atravessar o bosque, avançando muito devagar. Estavam subindo com enorme esforço por uma trilha de cervos na encosta de um morro, que os levava a passar por cima de árvores caídas e que agora tinha se tornado tão íngreme que ameaçava derrubar lá embaixo a estrela capenga e o rapaz que a tinha capturado.

— Será que não há um caminho mais fácil? — perguntou afi­nal a estrela. — Algum tipo de estrada ou uma clareira plana?

E, uma vez que a pergunta tinha sido feita, Tristran sabia a resposta.

— Tem uma estrada a menos de um quilômetro daqui, para aquele lado — disse ele, apontando. — E uma clareira logo ali, depois daquele arvoredo — acrescentou, virando-se em outra direção.

—Você sabia disso?

— Sabia. Não sabia. Bem, eu só soube depois que você perguntou.

— Vamos para a clareira — disse ela, e os dois avançaram como puderam pelo meio do arvoredo. Mesmo assim, levaram quase uma hora para chegar à clareira, mas lá o chão era plano e regular como o de um campo de esportes. A área parecia ter sido limpa de propósito, mas Tristran não conseguia imaginar qual seria o motivo.

No centro da clareira, sobre a grama a alguma distância deles, estava uma coroa dourada, que cintilava ao sol da tarde. Era cravejada de pedras vermelhas e azuis. Rubis e safiras, pen­sou Tristran. Estava pronto para andar até a coroa quando a estrela tocou em seu braço.

— Espere. Você está ouvindo tambores? — disse ela.

Ele se deu conta de que estava: uma batida grave, pulsante, que chegava de todos os lados, bem perto e muito longe, rever­berando pelos montes. Veio então um terrível estrondo das árvores do outro lado da clareira e um berro agudo, sem palavras. Entrou na clareira um enorme cavalo branco, com os francos lanhados, sangrando. Avançou veloz até o meio da clareira e então deu meia-volta, abaixou a cabeça e encarou a criatura que o perseguia — que chegou aos saltos, dando um rugido que deixou Tristran arrepiado. Era um leão, mas bem pouco parecido com o leão que Tristran tinha visto numa feira num povoado vizinho, que era uma criatura desdentada, esquálida, remelenta. Esse leão era imenso, da cor da areia ao entardecer. Entrou correndo na clareira e então parou para ros­nar para o cavalo branco.

O cavalo estava apavorado. Sua crina estava emplastrada de suor e sangue; e seus olhos estavam desvairados. Além disso, Tristran percebeu que o cavalo tinha um longo chifre de marfim que se projetava do centro da testa. Ele se empinou nas patas traseiras, relinchando e bufando, e um casco afiado, sem ferradura, tocou no ombro do leão, fazendo com que ele uivas­se como um grande gato escaldado e desse um salto para trás. E então, mantendo-se a uma distância segura, o leão passou a dar voltas em torno do unicórnio preocupado, com os olhos dourados fixos o tempo todo no chifre afiado que estava sem­pre voltado em sua direção.

— Faça com que parem — murmurou a estrela. — Eles vão se matar.

O leão rosnava para o unicórnio. Começou como um ros­nado baixo, como trovões distantes, e terminou com um rugi­do que abalou as árvores, as rochas e os céus. Depois o leão saltou e o unicórnio investiu. A clareira se encheu de verme­lho, ouro e prata, pois o leão estava montado no unicórnio, com as garras rasgando seus francos, a boca em seu pescoço, enquanto o unicórnio berrava, corcoveava e procurava se jogar de costas no chão na tentativa de se livrar do grande felino, agi­tando loucamente os cascos e o chifre no esforço inútil de ten­tar atingir seu agressor.

— Por favor, faça alguma coisa. O leão vai matá-lo — implorou a garota, insistente.

Tristran teria lhe explicado que tudo o que ele poderia esperar conseguir, caso se aproximasse das feras em luta, era ser espetado, escoiceado, rasgado e devorado. Teria ainda explicado que, se de alguma forma conseguisse sobreviver a essa aproxi­mação, ainda não havia nada que pudesse fazer, já que não tinha à mão nem mesmo o balde de água que era o método tradi­cional de apartar brigas entre animais em Muralha. Mas, quan­do todos esses pensamentos tinham acabado de passar pela sua cabeça, Tristran já estava parado no meio da clareira, podendo tocar nas feras se estendesse o braço. O cheiro do leão era forte, animalesco, apavorante, e Tristran estava perto o suficiente para ver a expressão de súplica nos olhos negros do unicórnio...

“O leão e o unicórnio estavam lutando pela coroa”, pen­sou Tristran com seus botões, lembrando-se dos antigos versos para crianças:

 

O leão derrotou o unicórnio por toda a cidade,

Derrotou-o uma vez,

Derrotou-o a segunda vez

Com todo o seu poder,

Ele o derrotou pela terceira vez

Para seu domínio manter.

 

E com isso Tristran pegou a coroa de cima da grama. Era pesada e suave como o chumbo. Andou na direção dos ani­mais, falando com o leão como tinha falado com os carneiros zangados e as ovelhas agitadas nos campos de seu pai:

— Pronto, pronto... Ora... Calma... Olhe aqui sua coroa... O leão sacudia o unicórnio, segurando-o com a boca, como um gato brincando com um cachecol de lã, e lançou para Tristran um olhar de total incompreensão.

— Olá — disse Tristran. Havia carrapichos e folhas presas na juba do leão. Tristran ofereceu a coroa pesada para a grande fera. — Você venceu. Solte o unicórnio. — E deu mais um passo à frente. Depois estendeu as duas mãos trêmulas e pôs a coroa na cabeça do leão.

O leão desmontou do corpo caído do unicórnio e começou a andar em silêncio pela clareira, com a cabeça bem erguida. Chegou à beira da mata, onde parou por alguns mi­nutos para lamber as feridas com a língua muito vermelha. Depois, ronronando como um terremoto, saiu de mansinho pela floresta adentro.

A estrela veio mancando até o unicórnio ferido e se abaixou na grama, meio desajeitada, com a perna quebrada esticada para um lado. Ela afagou sua cabeça.

— Pobrezinho, pobre coitado — disse. O unicórnio abriu os olhos escuros e olhou fixamente para ela. Depois descansou a cabeça em seu colo e fechou os olhos de novo.

Naquela noite, Tristran comeu o último pedaço do pão duro no jantar, e a estrela não comeu nada. Como ela insistiu em esperar ao lado do unicórnio, Tristran não teve coragem de lhe negar isso.

Agora, a clareira estava às escuras. O céu lá no alto estava cheio do cintilar de mil estrelas. Também a mulher-estrela rebrilhava, como se tivesse roçado na Via Láctea, enquanto o unicórnio luzia delicadamente na escuridão, como uma lua vista através de nuvens. Tristran se deitou ao lado do corpo volumoso do unicórnio, sentindo que seu calor ia se irradian­do pela noite. A estrela estava deitada do outro lado do animal. Quase parecia que ela estava murmurando uma canção para o unicórnio. Bem que Tristran gostaria de poder ouvi-la direito. Os fragmentos de melodia que ele conseguia discernir eram estranhos e instigantes, mas ela cantava tão baixo que ele não ouvia quase nada.

Seus dedos tocaram na corrente que os unia: fria como a neve, tênue como o luar num açude de moinho ou como a luz refletida nas escamas prateadas de uma truta quando ela se ergue ao anoitecer para se alimentar.

E logo ele adormeceu.

 

A rainha das bruxas conduzia sua carrocinha por uma trilha na floresta, açoitando com um chicote os flancos dos dois bodes brancos gêmeos sempre que eles perdiam velocidade. Já à distância de uns quinhentos metros, tinha observado a pequena fogueira para cozinhar, acesa ao lado da trilha, e soube pela cor das chamas que era o fogo de alguém de sua gente, pois as fogueiras de bruxas queimam com certas tonalidades inco­muns. Foi assim que refreou seus bodes quando chegou ao car­roção de ciganos pintado de cores vivas, à fogueira e à velha de cabelos cinzentos que estava sentada junto ao fogo, cuidando do espeto no qual uma lebre estava sendo assada acima das chamas. A gordura gotejava da barriga aberta da lebre, chiando e espirrando no fogo, do qual emanavam os aromas mesclados de carne assando e lenha queimando.

Uma ave multicor estava pousada junto do lugar do con­dutor na frente do carroção, num poleiro de madeira. Ela eriçou as penas e deu um grito de alarme quando viu a rainha das bruxas, mas estava acorrentada ao poleiro e não tinha como fugir.

— Antes que você diga qualquer coisa — disse a mulher grisalha —, devo informar que não passo de uma pobre vende­dora de flores, uma velhota inofensiva que nunca fez mal a ninguém e que fica dominada pelo medo e pelo pavor quando vê uma dama imponente e apavorante do seu tipo.

— Não lhe farei mal — disse a rainha das bruxas.

A megera contraiu os olhos até parecerem fendas e exami­nou da cabeça aos pés a dama de túnica vermelha.

— Isso é o que você diz. Mas como vou ter certeza de que é verdade, uma velhinha doce como eu, que não pára de tremer desde os dedos dos pés até a bexiga? Você poderia estar pla­nejando me roubar no meio da noite, ou coisa pior. — E atiçou o fogo com uma vara, de modo que a chama deu um salto. O aroma da carne assada ficou suspenso no ar parado da noite.

— Juro — disse a dama de túnica vermelha — que, pelas leis e proibições da Irmandade à qual você e eu pertencemos, pelo poderio das Lilim, e por minha boca, meus seios e minha vir­gindade, juro que não pretendo lhe fazer mal e que a tratarei como se fosse minha própria convidada.

— Para mim isso basta, queridinha — disse a velha, com o rosto se abrindo num sorriso. — Venha se sentar. O jantar vai ficar pronto em duas abanadas do rabo de um cordeiro.

— Com prazer — disse a dama de túnica vermelha.

Os bodes farejavam e mastigavam o capim e as tolhas ao lado da carrocinha, olhando com repulsa para as mulas que puxavam o carroção.

— Belos bodes — disse a velha. A rainha das bruxas inclinou a cabeça e deu um sorriso modesto. A luz do fogo refulgiu na pequena cobra escarlate enrolada como um bracelete em seu pulso. — Agora, minha cara — prosseguiu a velha —, meus olhos já não são de modo algum o que costumavam ser, mas eu estaria certa em supor que um desses belos camaradas come­çou a vida andando sobre duas pernas em vez de quatro.

— Já se ouviu falar nesse tipo de coisa — admitiu a rainha das bruxas. — Aquele seu pássaro magnífico, por exemplo.

— Esse pássaro entregou de mão beijada uma das peças mais valiosas do meu estoque à venda. Simplesmente deu para um zé-ninguém, há quase vinte anos. E depois disso é até difícil calcular todo o trabalho que me deu. Por isso, hoje em dia, a criatura fica sendo pássaro, a menos que seja preciso fazer algum trabalho ou cuidar da barraca de flores. E se eu con­seguisse encontrar uma criada boa e forte, que não tivesse medo de um pouquinho de serviço duro, ora, essa aí continua­ria pássaro para sempre.

O pássaro gorjeou entristecido no poleiro.

— Chamam-me de Madame Semele — informou a velha.

“Costumavam chamá-la de Sally da Água Podre, quando você era jovem e franzina”, pensou a rainha das bruxas, mas isso ela não disse em voz alta.

— Pode me chamar de Morwanneg — preferiu dizer a bruxa. Pensou que era quase uma piada (pois Morwanneg sig­nifica “onda do mar”, e havia muito tempo seu verdadeiro nome tinha afundado e desaparecido nas profundezas do frio oceano).

A Madame Semele ficou em pé e entrou no carroção, sain­do de volta com duas cumbucas de madeira pintada, duas facas com cabo de madeira e um pequeno pote com ervas secas, esmagadas até se tornarem um pó verde.

— Eu ia comer com os dedos num prato feito de folhas recém-colhidas — disse ela, entregando uma cumbuca para a dama da túnica escarlate. A cumbuca tinha um girassol pinta­do, por baixo de uma camada de poeira. — Mas então pensei: quantas vezes eu recebo gente tão fina? Portanto, vamos usar só o melhor. Dianteiro ou traseiro?

— Escolha você — disse a convidada.

— Fique então com a cabeça, com os olhos e os miolos deliciosos, além das orelhas crocantes. E eu fico com o traseiro, que não tem nada, a não ser carne sem graça para mordiscar. — Enquanto falava, ela levantou o espeto do fogo e, usando as duas facas, com tanta rapidez que não dava para ver muito mais do que o cintilar das lâminas, abriu a carcaça e soltou a carne dos ossos, dividindo-a, de maneira bastante justa, entre as cum­bucas. Entregou o pote de ervas à convidada. — Não tenho sal, minha cara, mas se salpicar isso aqui, vai resolver. Um pouco de manjericão, um pouco de tomilho... minha receita pessoal.

A rainha das bruxas pegou sua porção da lebre assada, uma das facas e salpicou um pouco das ervas no prato. Fincou a faca num pedaço e o comeu com prazer, enquanto a anfitriã remexia na própria porção e depois a soprava meticulosa­mente, com o vapor saindo da carne dourada e crocante.

— O que achou? — perguntou a velha.

— Perfeitamente aceitável — respondeu a convidada, com franqueza.

— São as ervas que deixam a carne tão gostosa — explicou a megera.

— Sinto o sabor do manjericão e do tomilho — disse a con­vidada. — Mas tem outro sabor que estou tendo dificuldade para identificar.

— Ah — disse Madame Semele, mordiscando uma fatia fina da carne.

— É sem dúvida um sabor dos mais extraordinários.

— É mesmo. É uma erva que só dá em Garamond, numa ilha no meio de um lago enorme. Combina perfeitamente com todos os tipos de carnes e peixes, e me lembra um pouco o sabor das folhas de funcho, com um leve toque de noz-moscada. As flores são de um tom de laranja muito bonito. Ela é boa para gases e para a sezão. Além disso, é um soporífero suave que tem a interessante propriedade de fazer com que a pessoa que o prove não diga nada, a não ser a verdade, por algumas horas.

A dama da túnica vermelha deixou cair no chão sua cum­buca de madeira.

— Erva-do-limbo? — perguntou ela. — Você teve a audácia de me dar erva-do-limbo para comer?

— É, queridinha, parece que foi isso mesmo. — E a velha dava pequenas gargalhadas e uivava de prazer. — Então, diga-me agora, Madame Morwanneg, se for esse o seu nome, aonde é que você está indo, nessa sua bela carrocinha? E por que você me faz lembrar uma pessoa que conheci há muito tempo...? E Madame Semele não se esquece de nada nem de ninguém.

— Estou indo em busca de uma estrela — disse a rainha das bruxas — que caiu na grande floresta do outro lado do Monte Pança. E, quando eu a encontrar, vou pegar minha faca enorme e lhe arrancar o coração enquanto ela ainda estiver viva e enquanto seu coração ainda lhe pertencer. Porque o coração de uma estrela viva é um remédio sem par contra todas as armadilhas do tempo e da velhice. Minhas irmãs me esperam de volta.

Madame Semele ululava e se abraçava, balançando de um lado para outro, com os dedos ossudos agarrados aos lados do corpo.

— Ah, o coração de uma estrela, é isso? Oba! Que con­quista para mim! Vou provar o suficiente dele para ter de volta minha juventude, meu cabelo passar do grisalho para o doura­do, meus peitos se inflarem, tornando-se firmes e altos. Depois vou levar tudo o que sobrar do coração para a Grande Feira em Muralha. Oba!

— Você não vai fazer nada disso — disse a convidada, em voz bem baixa.

— Não? Você é minha convidada, minha cara. E fez um juramento. Você provou da minha comida. De acordo com as leis de nossa Irmandade, não há nada que você possa fazer para me prejudicar.

— Ah, são tantas as coisas que eu poderia fazer para lhe causar mal, Sally da Água Podre, mas vou apenas salientar que a pessoa que comeu erva-do-limbo não pode falar outra coisa a não ser a verdade por algumas horas a partir desse momento; e mais uma coisa... — Relâmpagos distantes faiscavam em suas palavras enquanto ela falava; e a floresta ficou em silêncio, como se cada folha e cada árvore estivessem escutando atenta­mente o que ela dizia. — Isto eu lhe digo: você roubou conhe­cimentos que não conquistou, mas eles não lhe trarão nenhuma vantagem. Pois você será incapaz de ver a estrela, incapaz de percebê-la, incapaz de tocá-la, de prová-la, de encontrá-la, de matá-la. Mesmo que outra pessoa arrancasse o coração da es­trela e o desse para você, você não o reconheceria, nunca saberia o que estava em suas mãos. É o que digo. São essas as minhas palavras e são a expressão da verdade. E saiba também o seguinte: jurei, pelo pacto de nossa Irmandade, que não lhe faria nenhum mal. Se não tivesse jurado, eu a transformaria num besouro preto e lhe arrancaria as pernas, uma a uma, deixando-a para que os pássaros a encontrassem, tudo por ter me feito passar por essa indignidade.

Os olhos de Madame Semele se arregalaram de pavor, e ela ficou olhando para a convidada por cima das chamas da fogueira.

— Quem é você? — perguntou.

— A última vez em que você soube de mim — disse a mu­lher da túnica escarlate — eu reinava, com minhas irmãs, em Carnadine, antes que desaparecesse.

— Você? Mas você já morreu faz muito, muito tempo.

— No passado, andaram dizendo que as Lilim tinham mor­rido, mas foi sempre mentira. O esquilo ainda não encontrou a bolota da qual crescerá o carvalho que será cortado para a construção do berço da criança que há de crescer para me matar.

Faíscas prateadas cintilavam e chispavam nas chamas en­quanto ela falava.

— Quer dizer que é você mesma. E você tem sua juventude de volta. — Madame Semele deu um suspiro. — E agora eu tam­bém vou voltar a ser jovem.

A dama da túnica escarlate se levantou e lançou a cumbu­ca que continha sua porção da lebre no meio do fogo.

— Nada disso — retrucou ela. — Será que você não me ouviu? Um instante após minha partida, você se esquecerá de ter me visto. Há de se esquecer de tudo isso, até mesmo de minha maldição, se bem que o conhecimento de sua existên­cia vai perturbá-la e irritá-la, como uma coceira que se sente numa perna amputada há muito tempo. E que no futuro você trate seus convidados com mais elegância e respeito.

A cumbuca de madeira explodiu em chamas, uma enorme labareda que chamuscou as folhas do carvalho lá no alto. Com uma varinha, Madame Semele afastou a cumbuca enegrecida do meio da fogueira e conseguiu apagá-la no capim alto.

— O que pode ter dado em mim para eu deixar a cumbu­ca cair no fogo? — queixou-se ela em voz alta. — E, vejam só, uma de minhas melhores facas, toda queimada e destruída. O que é que eu estava pensando?

Não houve resposta. De mais adiante na estrada vinha o tamborilar de alguma coisa que poderiam ter sido cascos de bodes em disparada pela noite adentro. Madame Semele abanou a cabeça, como que para sacudir poeira e teias de aranha.

— Estou ficando velha — disse ela ao pássaro multicor, empoleirado ao lado do banco do condutor da carroça. O pás­saro tinha observado tudo e não tinha se esquecido de nada. — É... ficando velha. E não há nada que se possa fazer. — A ave, constrangida, mudou de posição no poleiro.

Hesitando um pouco, um esquilo vermelho farejou no cír­culo iluminado pela fogueira. Encontrou uma bolota, segurou-a por um instante nas patas dianteiras, semelhantes a mãos, como se estivesse rezando. Depois fugiu correndo, para enterrar a bolota e se esquecer dela.

 

Vaza de Scaithe é um pequeno porto marítimo, construído sobre granito, uma cidade de carpinteiros, fabricantes de velas de cera e de velas para embarcações; de velhos marujos com membros e dedos faltando que abriram tabernas próprias ou que passam o dia nelas, com o que restou de seu cabelo ainda preso com breu em rabos compridos, mesmo que a barba por fazer em seu queixo já há muito esteja salpicada de branco. Não há prostitutas em Vaza de Scaithe, ou não há nenhuma mulher que se considere prostituta, apesar de sempre ter havido muitas que, sob pressão, se descreveriam como muito bem casadas, com um marido neste navio que pára aqui de seis em seis meses e outro naquele outro navio que volta ao porto por cerca de um mês, de nove em nove meses.

A matemática do arranjo sempre manteve satisfeita a maior parte das pessoas. E, se um dia ela falhar e um homem voltar para a mulher, enquanto outro marido dela ainda estiver ocu­pando a vaga, ora, nesse caso, ocorre uma briga. E sempre há as tabernas para consolo do perdedor. Os marujos não se impor­tam com o sistema porque sabem que, no mínimo, sempre terão uma pessoa que, no momento final, perceberá quando eles não voltarem do mar e que há de chorar sua perda. E as mulheres se contentam em saber que também seus maridos são infiéis. Pois não há como competir com o mar pelo afeto de um homem, já que o mar é tanto mãe como amante, e com o tempo também há de lavar seu cadáver, lavá-lo para que se transforme em coral, marfim e pérolas.

Foi a Vaza de Scaithe, portanto, que lorde Primus, da Fortaleza da Tempestade, chegou uma noite, todo trajado de negro, com uma barba tão densa e séria quanto um dos ninhos de cegonha nas chaminés da cidade. Chegou numa carruagem puxada por quatro cavalos negros e alugou um quarto no Re­pouso do Marinheiro, na rua Crook.

Ele foi considerado extremamente estranho nas exigências e nos pedidos que fazia, pois trouxe sua própria comida e bebi­da para seus aposentos, onde guardou tudo trancado num baú de madeira, que abria somente para tirar uma maçã, uma fatia de queijo ou uma taça de vinho de especiarias. O dele era o quarto que ficava mais alto no Repouso do Marinheiro, um prédio alto e estreito, construído numa saliência rochosa para facilitar o contrabando.

Lorde Primus subornou uma quantidade de garotos de rua para lhe passarem a informação no instante em que vissem qualquer pessoa que não conhecessem chegar à cidade, por terra ou por mar. Em especial, deveriam procurar um homem muito alto, ossudo, de cabelos escuros, com o rosto magro e esfaimado e os olhos sem expressão.

— Sem dúvida, Primus está aprendendo a ser cauteloso — disse Secundus aos outros quatro irmãos mortos.

— Bem, você sabe o que dizem — murmurou Quintus, no tom saudoso dos mortos, que naquele dia se assemelhava a ondas distantes a lamber os seixos da praia. — O homem que cansar de se preocupar com a possibilidade de estar sendo seguido por Septimus está cansado de viver.

De manhã, Primus costumava conversar com os capitães de navios em Vaza de Scaithe, pagando bebida para eles à vontade, mas sem comer nem beber junto. A tarde, ele inspecionava os navios atracados.

Logo os mexeriqueiros de Vaza de Scaithe (e esses eram muitos) estavam por dentro de tudo: o cavalheiro barbudo pre­tendia embarcar para o Oriente. E a essa história logo se seguiu outra: a de que ele viajaria sob o comando do capitão Yann, no Coração de um Sonho, um navio todo acabado em preto com os conveses pintados de um vermelho-carmim, de reputação mais ou menos questionável (e com isso quero dizer que era de opinião geral que suas atividades de pirataria eram restritas a águas distantes), e que estariam de partida assim que ele desse ordem para tal.

— Meu bom patrão! — disse um dos malandrinhos para lorde Primus. — Tem um homem na cidade que chegou por terra. Está hospedado com a Sra. Pettier. É magro e parece um corvo. Vi esse homem no Bramido do Oceano, pagando bebi­da para todo mundo que estava lá. Ele diz que é marujo desempregado, em busca de serviço.

Primus afagou a cabeça imunda do menino e lhe entregou uma moeda. Voltou então para seus preparativos e, naquela tarde, foi anunciado que o Coração de um Sonho deixaria o porto em três dias.

No dia anterior ao da partida do Coração de um Sonho, Primus foi visto vendendo sua carruagem com quatro cavalos para o dono da estrebaria na rua Wardle, e depois disso seguiu a pé até o cais, dando pequenas moedas aos moleques. Ele entrou em sua cabine no Coração de um Sonho e deu ordens rigorosas de que ninguém o perturbasse, por motivo algum, bom ou ruim, enquanto não se tivesse passado no mínimo uma semana da saída do porto.

Naquela noite, um acidente infeliz atingiu um marujo competente que fazia parte da tripulação do Coração de um Sonho. Bêbado, ele caiu nas pedras escorregadias do calçamento da rua Revenue e quebrou a bacia. Por sorte, havia um substi­tuto a postos: aquele mesmo marujo com quem ele estava bebendo naquela noite e para quem o ferido tinha sido con­vencido a demonstrar um passo extremamente complicado de uma antiga dança de marinheiros, bem no calçamento molha­do. E esse outro marujo, alto, moreno e parecido com um corvo, naquela mesma noite marcou com um círculo seus do­cumentos de serviço no navio e já estava no convés ao amanhecer, quando a embarcação saiu do porto no meio do nevoeiro. O Coração de um Sonho seguiu para o leste.

Do alto do penhasco, lorde Primus, da Fortaleza da Tem­pestade, com a barba recém-feita, observou o navio se afastar até perdê-lo de vista. Desceu, então, à rua Wardle, onde devolveu ao encarregado da estrebaria seu dinheiro acrescido de mais um pouco, e partiu pela estrada costeira na direção do oeste, numa carruagem escura puxada por quatro cavalos negros.

 

Era a solução óbvia. Afinal de contas, o unicórnio enorme vinha perambulando atrás deles durante a maior parte da manhã, de vez em quando roçando a grande testa no ombro da estrela. Os ferimentos em seus flancos malhados, que ti­nham se aberto como flores vermelhas sob as garras do leão no dia anterior, agora estavam secos e marrons, com uma casca se formando.

A estrela arrastava a perna, mancava e tropeçava, e Tristran caminhava a seu lado, com a corrente fria unindo o pulso dela ao dele.

Por um lado, Tristran achava que era quase um sacrilégio pensar em montar no unicórnio. Ele não era um cavalo. Não tinha firmado nenhum dos antigos pactos entre o Homem e o Cavalo. Em seus olhos negros, havia algo de selvagem, e em seu passo uma elasticidade imprevisível que era perigosa e indo­mável. Por outro lado, Tristran começava a achar, de um modo que não conseguia expressar, que o unicórnio se importava com a estrela e queria ajudá-la. Por isso, resolveu falar:

— Olhe, sei de toda essa história de prejudicar meus planos a cada passo do caminho, mas, se o unicórnio estiver disposto, talvez ele pudesse carregá-la no lombo um pouco.

A estrela nada disse.

— E então?

Ela deu de ombros.

Tristran se voltou para o unicórnio, olhando no poço fundo de seus olhos.

— Você consegue me entender? — perguntou. O unicórnio não disse nada. Tristran tinha esperado que ele fizesse que sim com a cabeça, ou batesse com um casco no chão, como um cavalo treinado que tinha visto no campo do povoado, quan­do era mais novo. Mas o unicórnio só o encarava. — Você quer carregar a moça? Por favor.

O animal não disse palavra, nem fez sinal com a cabeça ou com a pata. Mas foi andando até a estrela e se ajoelhou aos pés dela.

Tristran ajudou a estrela a subir no unicórnio. Com as duas mãos, ela agarrou a crina emaranhada e ficou montada de lado, com a perna quebrada esticada. E foi assim que eles viajaram por algumas horas.

Tristran andava ao lado deles, carregando a muleta no ombro, com sua bolsa pendurada na ponta. Descobriu que era tão difícil viajar com a estrela montada no unicórnio quanto tinha sido antes. Antes, ele era forçado a andar devagar, procu­rando manter o mesmo ritmo claudicante da estrela. Agora, estava se apressando para conseguir acompanhar o unicórnio, nervoso com medo de que este avançasse demais e que a cor­rente que os unia acabasse puxando a estrela de cima do ani­mal. Seu estômago roncava enquanto ele ia andando. A percep­ção de como estava com fome chegava a doer. Logo Tristran começou a achar que ele não era mais do que fome, fome cer­cada por uma fina camada de pele, que, com a maior veloci­dade possível, andava e andava sem parar... Ele tropeçou e soube que ia cair.

— Pare, por favor — disse ofegante.

O unicórnio reduziu a velocidade e parou. A estrela olhou para ele lá do alto. Fez então uma careta e abanou a cabeça.

— Era melhor também você vir aqui para cima — disse ela. — Se o unicórnio deixar. Caso contrário, você vai simples­mente desmaiar ou coisa que o valha e me arrastar junto para o chão. E nós precisamos chegar a algum lugar para você con­seguir comer.

Grato, Tristran concordou em silêncio.

O unicórnio pareceu não fazer nenhuma objeção, esperando, submisso. Tristran, desajeitado, tentou então subir no animal. Era como tentar escalar um muro vertical, um esforço em vão. Por fim, Tristran conduziu o animal até uma faia que tinha sido arrancada alguns anos antes por uma tempestade, um vendaval ou algum gigante irritadiço e, segurando sua bolsa e a muleta da estrela, conseguiu subir pelas raízes até o tronco, de onde passou para o dorso do unicórnio.

— Tem um povoado do outro lado daquele morro — disse Tristran. — Calculo que vamos conseguir alguma coisa para comer quando chegarmos lá. — E, com a mão livre, deu um tapinha no flanco do unicórnio, que começou a andar. Tristran levou então a mão à cintura da estrela para se firmar. Sentiu a textura sedosa do vestido fino e, por baixo, a grossa corrente do topázio em torno da cintura.

Andar de unicórnio não era nada parecido com andar a cavalo. Para começar, ele não se movimentava como um cavalo, era um jeito mais impetuoso e mais estranho. O unicórnio esperou até Tristran e a estrela estarem bem acomodados e então, aos poucos e sem esforço, tratou de ganhar velocidade.

As árvores cresciam e passavam por eles aos saltos. A estrela se inclinou para a frente, com os dedos enredados na crina do unicórnio. Tristran, esquecido da fome por conta do medo, estava grudado aos flancos do unicórnio com os joelhos enquanto rezava, pedindo simplesmente para não ser derru­bado ao chão por um galho extraviado. Logo descobriu que estava gostando da experiência. Cavalgar um unicórnio, para aquelas pessoas que ainda conseguirem fazê-lo, é uma expe­riência diferente de qualquer outra: empolgante, inebriante e deliciosa.

O sol estava se pondo quando chegaram às cercanias do povoado. Num prado ondulante, à sombra de um carvalho, o unicórnio parou, desconfiado, e se recusou a prosseguir. Tristran desmontou e caiu com um baque surdo no capim do prado. Seu traseiro estava doendo, mas, com a estrela olhando para ele, lá de cima, sem se queixar, não teve coragem de esfre­gar o lugar.

— Você está com fome? — perguntou ele à estrela. Ela não disse nada.

— Olhe, eu estou com fome. Morrendo de fome. Não sei se vocês, as estrelas, comem ou o que é que vocês comem. Mas não vou querer que você passe fome. — Tristran olhou para ela com ar de interrogação. A estrela o encarou de volta, de início impassível e depois, num átimo, seus olhos azuis se encheram de lágrimas. Ela levou a mão ao rosto e enxugou as lágrimas, deixando uma mancha de lama na bochecha.

— Nós só comemos escuridão — disse ela — e só bebemos luz. Por isso, nã-não estou com fome. Estou me sentindo sozi­nha, apavorada, com frio, mu-muito infeliz e acorrentada, mas nã-não estou com fome.

— Não chore — disse Tristran. — Olhe só, vou entrar no povoado para tentar conseguir comida. Você fica esperando aqui. O unicórnio vai protegê-la, se aparecer alguém. — Ele estendeu a mão para cima e, com delicadeza, a retirou de cima do unicórnio, que sacudiu a crina e, satisfeito, começou a mor­discar o capim do prado.

A estrela fungou.

— Esperar aqui? — perguntou ela, mostrando a corrente que os unia.

— Ah — disse Tristran. — Me dê sua mão. — Ela lhe estendeu a mão. Ele mexeu e remexeu na corrente para soltá-la, mas a corrente se recusava a abrir. — Humm — disse Tristran, puxan­do a corrente em torno de seu próprio pulso, mas essa ponta também não se soltava. — Parece que estou tão preso a você quanto você a mim.

A estrela balançou o cabelo para trás, fechou os olhos e deu um forte suspiro. Depois, abriu os olhos, novamente com con­trole sobre si mesma.

— Talvez haja algum tipo de fórmula mágica — disse ela.

— Não conheço nenhuma fórmula mágica — disse Tristran, segurando a corrente no alto. Ela cintilou vermelha e roxa à luz do sol poente. — Por favor? — Ouviu-se um murmúrio no material da corrente, e ele conseguiu livrar a mão.

— Pronto — disse ele, passando para a estrela a outra ponta da corrente que a prendia. — Vou tentar não me demorar. E, se alguém do povo encantado vier cantar bobagens para você, por tudo o que é sagrado, não jogue sua muleta neles. Porque eles simplesmente a roubarão.

— Não vou jogar — disse ela.

— Vou precisar confiar em você, em sua honra de estrela: você não vai fugir.

Ela tocou na perna com as talas.

— Vai demorar um bom tempo até que eu consiga fugir — disse ela, em tom incisivo. E com isso Tristran teve de se con­tentar.

Aquele último meio quilômetro até o povoado ele percor­reu a pé. Lá não havia estalagem porque o povoado se encon­trava muito afastado dos trajetos costumeiros dos viajantes, mas a velha corpulenta que lhe deu essa explicação insistiu que ele a acompanhasse até seu chalé, onde quase o forçou a aceitar uma cumbuca de madeira cheia de mingau de cevada com cenouras e uma caneca de cerveja fraca. Ele trocou seu lenço de cambraia por uma garrafa de licor de flor de sabugueiro, uma forma de queijo fresco e uma quantidade de frutas desco­nhecidas. Eram macias e peludas, como damascos, mas sua cor era o azul-arroxeado das uvas, e seu perfume era um pouco parecido com o de peras maduras. A mulher ainda lhe deu um pequeno fardo de feno para o unicórnio.

Tristran voltou para o prado onde os havia deixado, masti­gando um pedaço da fruta que era suculenta, consistente e muito doce. Ele se perguntou se a estrela gostaria de provar uma e se gostaria do sabor, caso a provasse. Esperava que ela ficasse satisfeita com o que ele lhe trazia.

De início, Tristran achou que devia ter se confundido e se perdido na noite enluarada. Não: aquele era o mesmo carvalho, aquele sob o qual a estrela estava sentada quando ele partiu.

— Alô? — chamou ele. Vaga-lumes cintilavam verdes e amarelos nas cercas vivas e nos galhos das árvores. Não houve resposta e Tristran teve uma sensação de náusea, de idiota e, na boca do estômago. — Alô? — gritou ele. E então parou de gri­tar porque não havia ninguém ali para responder.

Deixou cair no chão o fardo de feno e o chutou.

Ela agora estava a sudoeste dele, seguindo a uma velocidade muito maior do que a que ele conseguiria apenas andando, mas ele foi atrás dela na noite enluarada. Por dentro, estava se sentindo entorpecido e tolo, atingido pela aflição da culpa, ver­gonha e do arrependimento. Não devia ter soltado a corrente. Devia tê-la amarrado a uma árvore. Devia ter forçado a estrela a seguir com ele até o povoado. Tudo isso lhe passava pela cabeça enquanto andava. Mas outra voz também lhe falou, salientando que, se ele não a tivesse soltado da corrente naque­le momento, haveria de fazê-lo em algum ponto no futuro próximo, e nessa ocasião ela teria fugido dele.

Tristran se perguntava se um dia voltaria a ver a estrela e tropeçava em raízes à medida que o caminho enveredava pela mata fechada, em meio a árvores antigas. O luar foi aos poucos desaparecendo por trás do espesso dossel de folhas. E, depois de algum tempo seguindo trôpego e em vão no escuro, ele se deitou à sombra de urna árvore, descansou a cabeça na bolsa, fechou os olhos e sentiu pena de si mesmo até adormecer.

 

Num rochoso passo de montanha, nas encostas mais ao sul do Monte Pança, a rainha das bruxas refreou os bodes que puxavam sua carrocinha, parou e farejou o ar gelado.

A infinidade de estrelas rebrilhava fria lá no alto no céu.

Seus lábios muito vermelhos se curvaram num sorriso de tamanha beleza, tamanho brilho, de uma felicidade tão pura e perfeita que qualquer um que visse esse sorriso ficaria com o sangue paralisado nas veias.

— Pronto — disse ela. — Ela está vindo para mim. E, como que em resposta, o vento do passo da montanha zuniu ao redor dela em triunfo.

 

Primus sentou junto às brasas da fogueira e estremeceu por baixo da grossa túnica preta. Um dos garanhões negros, acor­dado ou sonhando, relinchou e bufou, para depois voltar a des­cansar mais um pouco. Primus sentia um frio estranho em seu rosto. Era a falta da barba. Com uma varinha, tirou das brasas uma bola de barro. Cuspiu nas mãos e então partiu ao meio o barro quente, sentindo o aroma delicioso do porco-espinho, que tinha assado lentamente nas brasas, enquanto ele dormia.

Comeu meticulosamente, cuspindo os ossinhos na roda do fogo depois de ter arrancado toda a carne deles. Ajudou a carne a descer com um pedaço de queijo duro e um vinho branco ligeiramente avinagrado.

Depois de comer, limpou as mãos nas vestes e lançou as runas para encontrar o topázio que conferia o domínio sobre as cidades dos penhascos e os vastos territórios da Fortaleza da Tempestade. Lançou-as e ficou olhando fixamente, intrigado, para as pequenas peças quadradas de granito vermelho. Reco­lheu-as de novo, agitou-as nas mãos de dedos longos, deixou-as cair no chão e ficou olhando mais uma vez. Então, Primus cuspiu nas brasas, que chiaram preguiçosas. Juntou as runas do chão e as guardou no bolso do cinto.

— Está se movimentando com maior velocidade, avançando mais — disse Primus para si mesmo.

Ele urinou nas brasas da fogueira, porque estava numa região selvagem, onde havia bandidos, duendes e coisa pior a solta, e ele não tinha nenhum desejo de avisá-los de sua pre­sença. Atrelou então os cavalos à carruagem, subiu ao banco do cocheiro e os guiou para a floresta, para o oeste e para a cordi­lheira mais além.

A garota estava agarrada firme ao pescoço do unicórnio en­quanto ele seguia em disparada pela floresta escura.

Entre as árvores não se via o luar, mas o unicórnio refulgia e brilhava com uma luz fraca, como a da lua, enquanto a garota cintilava e rebrilhava como se tivesse uma esteira de poeira de luz. E, enquanto passava em meio às árvores, pode ter parecido a algum observador distante que ela estava piscando, acendendo e apagando, acendendo e apagando, como uma pequena estrela.

 

Tristran Thorn estava sonhando.

Estava numa macieira, espiando por uma janela para Victoria Forester, que estava trocando de roupa. Quando ela tirou o vestido, revelando um enorme volume de anáguas, Tristran sentiu que o galho começava a ceder debaixo de seus pés, e então ele despencou pelo ar ao luar...

Estava caindo dentro da lua.

E a lua estava falando com ele: “Por favor”, murmurou a lua com uma voz que fez com que ele se lembrasse um pouco da voz de sua mãe. “Proteja-a. Proteja minha filha. Eles pre­tendem lhe fazer mal. Já fiz tudo o que podia.” E a lua lhe teria dito mais, e talvez tenha dito mesmo, mas ela se tornou o reflexo do luar na água muito abaixo dele, e então ele se deu conta de uma pequena aranha que andava de um lado ao outro de seu rosto, de um estalido no pescoço, e ergueu então a mão para afastar a aranha com cuidado, e nesse momento o sol da manhã apareceu a seus olhos, e o mundo estava todo verde e dourado.

— Você estava sonhando — disse a voz de uma mulher jovem, em algum lugar acima dele. A voz era delicada e tinha um sotaque estranho. Ele ouviu o farfalhar das folhas lá em cima na faia vermelha.

— É — respondeu ele a quem quer que estivesse na árvore —, andei sonhando.

— Também tive um sonho ontem à noite — disse a voz. — No meu sonho eu olhava para cima e conseguia ver a floresta inteira. E alguma coisa enorme estava passando por ela. E vinha se aproximando cada vez mais, e eu sabia o que era. — De repente, ela parou de falar.

— O que era? — perguntou Tristran.

— Tudo — disse ela. — Era Pã. Quando eu era muito peque­na, alguém... pode ser que tenha sido um esquilo, porque eles falam muito, ou uma pega, ou quem sabe um peixinho... me disse que Pã possuía toda esta floresta. Bem, não que possuísse realmente... Não que ele pudesse vender a floresta para outra pessoa, ou cercá-la com um muro...

— Ou derrubar as árvores — disse Tristran, querendo ajudar. Veio um silêncio. Ele se perguntou aonde a garota teria ido. — Olá? Olá?

Houve outro farfalhar de folhas lá no alto.

— Você não devia dizer coisas desse tipo — disse ela.

— Peço desculpas — disse Tristran, sem saber ao certo por que motivo estava se desculpando. — Mas você estava me con­tando que Pã possuía a floresta...

— É claro que possui — disse a voz. — Não é difícil possuir uma coisa. Ou tudo. Você só precisa saber que ela é sua e depois estar disposto a se desapegar dela. Pã possui a floresta, desse jeito. E no meu sonho ele vinha filar comigo. Você esta­va no meu sonho também, levando uma garota triste presa por uma corrente. Ela estava muito triste, tristíssima. Pã me man­dou ajudar você.

— Me ajudar?

— O pedido me deixou com um calorzinho, toda formi­gando e mole por dentro, desde a ponta de minhas folhas até o início de minhas raízes. E então acordei, e lá estava você, dor­mindo a sono solto com a cabeça junto de meu tronco, ron­cando como um leitãozinho.

Tristran coçou o nariz. Parou de procurar por uma mulher nos galhos lá do alto da faia vermelha e olhou direto para a própria árvore.

—Você é uma árvore — disse Tristran, pondo o pensamento em palavras.

— Nem sempre fui árvore — disse a voz no farfalhar das folhas da faia. — Um mago me transformou em árvore.

— E o que você era antes? — perguntou Tristran.

— Você acha que ele gosta de mim?

— Quem?

— Pã. Se você fosse o Senhor da Floresta, não daria uma tarefa para alguém, não lhes diria para dar toda a ajuda e socor­ro possível, se não gostasse deles, não é mesmo?

— Bem... — disse Tristran, mas antes que resolvesse qual era a resposta mais diplomática, a árvore já tinha falado.

— Uma ninfa. Eu era uma ninfa dos bosques. Mas acabei sendo perseguida por um príncipe, não dos bons, do outro tipo, e, bem, seria de imaginar que um príncipe, mesmo do tipo erra­do, compreendesse alguma coisa sobre limites, não é mesmo?

— Seria?

— É exatamente o que eu acho. Mas ele não compreendia, e eu fiz algumas invocações enquanto fugia, e então... ba-bum!... virei árvore. O que você acha?

— Bem — disse Tristran. — Não sei como era como ninfa dos bosques, senhora, mas é uma árvore magnífica.

A árvore não deu resposta de pronto, mas fez um lindo barulhinho com as folhas.

— Eu era bem bonita como ninfa também — admitiu ela, com ar recatado.

— Exatamente de que tipo de ajuda e socorro você está falando? — perguntou Tristran. — Não que eu esteja me quei­xando. Quer dizer, neste momento preciso de toda a ajuda e o socorro que conseguir. Mas uma árvore não é necessariamente o lugar mais óbvio para procurar ajuda. Você não poderá vir comigo, nem me alimentar, nem trazer a estrela de volta para cá, nem nos despachar para Muralha para eu me encontrar com meu verdadeiro amor. Tenho certeza de que você cum­priria a missão de modo extraordinário se precisasse me pro­teger da chuva, caso chovesse, mas no momento não está chovendo...

A árvore fartalhou.

— Por que você não me conta sua história até agora — per­guntou ela — e deixa que eu julgue se posso ou não ser útil?

Tristran ia começar a protestar. Dava para ele sentir a estrela se afastando cada vez mais dele, à velocidade de um unicórnio a meio-galope. E, se havia uma coisa para a qual não tinha tempo, era para recitar as aventuras de sua vida até aquele dia. Foi quando se lembrou de que cada avanço que tinha con­seguido em sua busca até então tinha se concretizado por meio da aceitação da ajuda que alguém lhe oferecia. Por isso, ele se sentou no chão do bosque e contou à faia vermelha tudo o que lhe ocorreu: falou de seu amor, puro e verdadeiro, por Victoria Forester, da promessa de lhe levar de volta uma estrela caída... não qualquer estrela caída, mas aquela que eles viram juntos do alto do Morro Dyties, e de sua viagem pela Terra Encantada. Contou à árvore suas peripécias, seu encontro com o homenzinho peludo e com o povo pequeno que roubou seu chapéu-coco. Falou da vela mágica e das léguas que percorreu para chegar ao lado da estrela na clareira, do leão e do unicór­nio e de como tinha perdido a estrela.

Terminou sua história, e só se ouvia o silêncio. As folhas acobreadas da árvore estremeceram de leve como se com o sopro de um vento suave, e depois mais forte, como se estivesse se aproximando uma tempestade. E então as folhas formaram uma voz baixa e implacável:

— Se você a tivesse mantido acorrentada e ela tivesse con­seguido escapar das correntes, nenhum poder no céu ou na Terra jamais conseguiria ajudá-lo, nem se o Grande Pã ou a própria lady Sylvia me pedissem ou implorassem. Mas você soltou a corrente, e por isso vou ajudá-lo.

— Obrigado — disse Tristran.

— Vou lhe dizer três verdades. Duas vou lhe dizer agora, e a última é para quando você mais precisar. Caberá a você mesmo avaliar quando isso vai ocorrer.

“Em primeiro lugar, a estrela está correndo enorme peri­go. O que ocorre no meio de um bosque logo passa a ser do conhecimento geral mesmo nos confins mais remotos, e as árvores falam com o vento, e o vento passa a informação adi­ante para o próximo bosque a que chegar. Há forças que querem lhe fazer mal, e pior do que isso. Você precisa encon­trá-la e protegê-la.

“Em segundo lugar, corre um caminho por esta floresta, pouco depois daquele pinheiro (e eu poderia lhe contar histórias sobre aquele pinheiro que fariam enrubescer uma rocha), e daqui a alguns minutos uma carruagem vai passar por lá. Corra e não a perderá.

“E, em terceiro lugar, estenda as mãos.”

Tristran as estendeu. De lá do alto, uma folha da cor de cobre veio caindo devagar, girando, deslizando e tombando. Ela pousou perfeitamente na palma da mão direita de Tristran.

— Pronto! — disse a árvore. — Guarde-a bem. E escute o que ela tiver a dizer quando você sentir que tem a maior necessi­dade. Agora, a carruagem está quase chegando. Depressa! Corra!

Tristran apanhou a bolsa e correu, enquanto enfiava a folha no bolso da túnica. Através das árvores, estava ouvindo as bati­das dos cascos dos cavalos no chão. Sabia que não conseguiria alcançá-la a tempo, tinha perdido a esperança de alcançá-la, mas mesmo assim corria cada vez mais, até que tudo o que conseguia ouvir era seu coração batendo forte no peito e nos ouvidos, e o chiado do ar que sugava para dentro dos pulmões. Avançou com enorme esforço no meio das samambaias e chegou ao caminho no instante em que a carruagem vinha descendo.

Era uma carruagem negra puxada por quatro cavalos negros como a noite, conduzido por um camarada descorado, numa longa túnica preta. Estava a vinte passos de Tristran. Ele ficou ali, procurando respirar, e depois tentou gritar, mas a gar­ganta estava seca e ele estava sem fôlego. Sua voz saiu num sussurro seco, como um grasnado. Ele tentou gritar, mas só conseguiu chiar.

A carruagem passou sem reduzir a velocidade.

Tristran sentou no chão e recuperou o fôlego. Depois, temendo pela estrela, voltou a se pôr de pé e seguiu, o mais rápido possível, pelo caminho da floresta. Não tinha andado mais de dez minutos quando deparou com a carruagem negra. Um galho enorme, tão grande quanto algumas árvores, tinha caído de um carvalho sobre o caminho, bem diante dos cavalos.

E o cocheiro, que era também o único ocupante da carrua­gem, estava tentando tirá-lo dali.

— Coisa incrível! — disse o cocheiro, que usava uma longa túnica preta e que deveria ter quase cinqüenta anos, pelos cál­culos de Tristran. — Não havia vento, nem tempestade. O galho simplesmente caiu. Apavorou os cavalos. — Sua voz era grave e retumbante.

Tristran e o cocheiro desatrelaram os cavalos e os amarra­ram ao galho do carvalho. Depois, os dois homens o empurraram enquanto os quatro cavalos puxavam, e juntos eles arrastaram o galho para o lado da trilha. Tristran agradeceu em silêncio ao carvalho cujo galho tinha caído, à faia vermelha e a Pã das flo­restas. Perguntou então ao cocheiro se ele lhe daria uma carona no percurso através da floresta.

— Não levo passageiros — disse o homem, esfregando o queixo barbudo.

— É claro — respondeu Tristran. — Mas sem minha ajuda você ainda estaria preso aqui. Sem dúvida foi a Providência que o enviou a mim, da mesma forma que a Providência me enviou a você. Não o farei sair de seu caminho, e pode ser que volte a ocorrer alguma situação em que você se alegre de dis­por de minha ajuda.

O cocheiro examinou Tristran da cabeça aos pés. Depois enfiou a mão na bolsa de veludo pendurada em seu cinto e dali tirou um punhado de peças quadradas de granito vermelho.

— Apanhe uma — disse ele a Tristran.

Tristran apanhou uma peça e mostrou o símbolo entalhado nela para o homem.

— Humm. — Foi tudo o que o condutor disse. — Pegue outra. — Tristran obedeceu. — Mais outra. — O homem esfregou o queixo mais uma vez. — É, você pode vir comigo. As runas parecem ter certeza disso. Apesar de que haverá perigo. Mas talvez encontremos mais galhos caídos a serem removidos. Você pode se sentar aqui em cima comigo, se quiser, ao lado do assento do cocheiro, e me fazer companhia.

Esquisito, observou Tristran quando subiu até o banco do cocheiro, mas, na primeira vez que olhou de relance para o interior da carruagem, imaginou ter visto cinco senhores descorados, todos em trajes cinzentos, olhando com tristeza para ele ali fora. Mas da vez seguinte que olhou não havia absolutamente ninguém ali.

A carruagem seguiu chocalhando e retumbando pelo ca­minho coberto de grama, por baixo de um dossel de folhas verdes e douradas. Tristran estava preocupado com a estrela. Ela podia ser mal-humorada, pensou, mas tinha alguma justificati­va, afinal de contas. Esperava que ela conseguisse não se meter em nenhuma encrenca até que ele a alcançasse.

 

Havia quem dissesse que a cordilheira negra e cinza que corria como um espinhaço de norte a sul por aquela parte da Terra Encantada tinha sido um gigante, que cresceu tanto e ficou tão pesado quo, um dia, exausto do simples esforço de se movimentar e viver, tinha se esticado na planície e caído num sono tão profundo que séculos se passavam entre os batimen­tos de seu coração. Isso teria acontecido muito tempo atrás, se é que realmente aconteceu, na Primeira Era do Mundo, quan­do tudo era pedra e fogo, água e vento; e restavam poucos ainda com vida para denunciar a mentira, se realmente não fosse verdade. Mesmo assim, verdade ou não, os quatro grandes picos da cordilheira eram chamados de Monte Cabeça, Monte Ombros, Monte Pança e Monte Joelhos, e os contrafortes mais ao sul eram conhecidos como Os Pés. Havia passos que cor­tavam essas montanhas, um entre a cabeça e os ombros, onde teria sido o pescoço, e um imediatamente ao sul do Monte Pança.

Eram montanhas perigosas, habitadas por criaturas ferozes: trolls da cor da ardósia, silvícolas peludos, homens selvagens perdidos, cabras montesas e gnomos mineradores, eremitas, exilados e uma ou outra bruxa moradora no alto de um pico. Essa não era uma das cadeias de montanhas realmente altas da Terra Encantada, como a do Monte Huon, em cujo topo está a Fortaleza da Tempestade. Mas, mesmo assim, era uma cordi­lheira difícil para ser transposta por viajantes solitários.

A rainha das bruxas tinha cruzado o passo ao sul do Monte Pança em cerca de dois dias, e agora esperava na abertura do desfiladeiro. Os bodes estavam amarrados a um arbusto espi­nhento, que mastigavam sem entusiasmo. Ela estava sentada na lateral da carrocinha desatrelada e amolava suas facas com uma pedra de amolar.

As facas eram antiqüíssimas: os cabos feitos de osso, enquanto as lâminas eram de vidro vulcânico, lascado, preto como azevi­che, com formas de flocos brancos de neve imobilizados para sempre na obsidiana. Eram duas: a menor, um cutelo pesado e resistente, com a lâmina de machadinha, para abrir a caixa to­rácica, esquartejar e picar; a outra, com uma lâmina comprida, semelhante a uma adaga, para extrair o coração. Quando as facas estavam tão afiadas que ela poderia ter passado qualquer uma das duas por seu pescoço, e você não teria sentido mais do que o toque de um levíssimo fio de cabelo, enquanto o calor de seu sangue vital se espalhava, escapando de mansinho, a rainha das bruxas as guardou e começou os preparativos.

Aproximou-se dos bodes e murmurou uma palavra pode­rosa para cada um deles.

Ali onde antes estavam os bodes, agora viam-se um homem com um cavanhaque branco e uma moça de olhos opacos e ar de menino. Eles nada disseram.

A feiticeira se agachou junto da carrocinha e sussurrou algumas palavras. Nada aconteceu com a carroça, e a bruxa, com raiva, bateu com o pé na rocha.

— Estou ficando velha — disse ela aos dois criados. Em resposta, eles nada disseram, não deram a menor indicação de sequer terem compreendido o que ela dizia. — Os objetos ina­nimados sempre foram mais difíceis de transformar do que as criaturas animadas. É que sua alma é mais antiga, mais estúpi­da e mais difícil de convencer. Ah, se eu tivesse de volta minha verdadeira juventude... Ora, no início dos tempos, eu podia transformar montanhas em mares e nuvens em palácios. Podia povoar cidades com os seixos de uma praia. Quem me dera voltar a ser jovem...

Ela suspirou e ergueu a mão: uma chama azul bruxuleou em torno de seus dedos por um instante; e então, quando baixou a mão e se curvou para tocar na carrocinha, o fogo desapareceu.

A rainha das bruxas se empertigou. Agora havia mechas grisalhas em seu cabelo negro, e bolsas escuras abaixo de seus olhos. Mas a carrocinha tinha desaparecido, e ela agora se encontrava diante de uma pequena estalagem à beira do passo da montanha.

Ouvia-se ao longe o trovão roncar, baixinho, e via-se o pis­car distante de relâmpagos.

A placa da estalagem balançava e rangia com o vento. Nela estava pintada a figura de uma carrocinha.

— Vocês dois — disse a bruxa —, já para dentro. Ela vem caval­gando para cá e será forçada a passar por este desfiladeiro. Agora, só preciso me certificar de que ela entre comigo. Você — disse ela ao homem do cavanhaque branco — é Billy, dono desta taberna. Eu serei sua mulher, e esta — ela apontou para a menina de olhos opacos, que um dia tinha sido Brevis — é nossa filha, a que atende aos fregueses.

Outro trovão reverberou de lá de cima dos picos, dessa vez mais alto.

— Daqui a pouco vai começar a chover — disse a bruxa. — Vamos preparar a lareira.

 

Tristran sentia a estrela mais adiante, avançando sempre. Também tinha a impressão de que estava ganhando terreno, diminuindo a distância que o separava dela.

E, para seu alívio, a carruagem negra continuava a seguir o mesmo trajeto da estrela. Uma hora, quando a estrada se bifur­cou, Tristran ficou preocupado com a possibilidade de seguirem pelo caminho errado. Estava disposto a saltar da carruagem e seguir viagem sozinho, caso isso acontecesse.

Seu companheiro refreou os cavalos, desceu de qualquer maneira do banco do cocheiro e apanhou suas runas. Depois de terminada a consulta, voltou a subir e conduziu a carrua­gem pelo caminho da esquerda.

— Se não for muito atrevimento meu querer saber — disse Tristran —, posso lhe perguntar em busca do quê está viajando?

— Em busca de meu destino — respondeu o homem, depois de uma breve pausa. — De meu direito de governar. E você?

— Com meu comportamento ofendi determinada moça — disse Tristran. — Quero reparar meu erro. — E no instante em que disse isso, soube que era a verdade.

O cocheiro grunhiu.

O dossel da floresta estava rareando rapidamente. As árvores iam ficando mais esparsas e Tristran olhou para as montanhas à frente, abafando um grito de espanto.

— Que montanhas! — disse ele.

— Quando você for mais velho — disse o companheiro de viagem —, precisa vir visitar minha cidadela, no alto dos pe­nhascos do Monte Huon. Aquilo, sim, é que é uma montanha. De lá de cima podemos olhar para montanhas lá embaixo, ao lado das quais essas — e ele fez um gesto indicando as alturas do Monte Pança, ali à frente — não passam de contrafortes.

— Para dizer a verdade — disse Tristran —, espero passar o resto de minha vida como criador de ovelhas no lugarejo de Muralha, porque me parece que já passei por todas as emoções de que um homem poderia precisar, seja pelo acontecido com velas e árvores, seja pela moça e pelo unicórnio. Mas aceito o convite com o mesmo espírito com que foi feito e sou grato por ele. Se você algum dia chegar a visitar Muralha, deverá ir à minha casa, e eu lhe darei roupas de lã, queijo de ovelha e todo o ensopado de carneiro que conseguir comer.

— É muita gentileza sua — disse o cocheiro. O caminho agora estava mais fácil, feito de cascalho prensado e pedras niveladas, e ele estalou o chicote para que os quatro garanhões negros aumentassem a velocidade. — Você disse que viu um unicórnio?

Tristran estava prestes a contar ao companheiro de viagem tudo sobre o encontro com o unicórnio, mas pensou melhor.

— Era um animal dos mais nobres — disse simplesmente.

— Os unicórnios são criaturas da lua — disse o cocheiro. — Nunca vi um. Mas dizem que eles são servos da lua e fazem o que ela manda. Chegaremos às montanhas antes da próxima noite. Vamos fazer uma parada hoje ao anoitecer. Se quiser, pode dormir dentro da carruagem. Eu mesmo vou dormir ao lado da fogueira. — Não houve nenhuma mudança no seu tom de voz, mas Tristran soube, com uma certeza que foi ao mesmo tempo súbita e impressionante por sua intensidade, que o homem estava apavorado por algum motivo, morrendo de medo até às profundezas de sua alma.

Naquela noite, relâmpagos faiscaram no topo das montanhas. Tristran dormiu no banco de couro do coche, com a cabeça num saco de aveia. Sonhou com fantasmas, com a lua e as estrelas.

A chuva começou ao amanhecer, abruptamente, como se o céu tivesse se transformado em água. Nuvens baixas e cin­zentas impediam a visão das montanhas. Na chuva forte, Tristran e o condutor atrelaram os cavalos à carruagem e partiram. Agora o caminho era só ladeira acima e os cavalos não conseguiam ir mais rápido que a passo.

— Você podia ficar lá dentro — disse o cocheiro. — Não faz sentido nós dois nos molharmos. — Eles tinham vestido capas de oleado encontradas por baixo do banco do cocheiro.

— Seria difícil eu ficar mais molhado do que já estou — disse Tristran —, a menos que mergulhasse num rio. Prefiro ficar aqui. Dois pares de olhos e dois pares de mãos podem acabar significando nossa salvação.

O companheiro de viagem deu um grunhido e enxugou a chuva dos olhos e da boca com a mão fria e molhada.

—Você é um bobo, menino. Mas sou grato. — Ele transferiu as rédeas para a mão esquerda e estendeu a direita. — Sou co­nhecido como Primus. Lorde Primus.

— Tristran. Tristran Thorn — disse ele, sentindo que o homem de algum modo tinha conquistado o direito de saber seu verdadeiro nome.

Eles trocaram apertos de mãos. A chuva caía mais forte. Os cavalos passaram a andar ainda mais devagar à medida que o caminho se transformava num riacho e que a chuva pesada fechava sua visão com a mesma eficácia do mais denso dos nevoeiros.

— Existe um homem — disse lorde Primus, gritando para ser ouvido com todo o barulho da chuva, com o vento arrancando as palavras de seus lábios. — Ele é alto, parece um pouco comigo, porém é mais magro, mais semelhante a um corvo. Seus olhos parecem inocentes e inexpressivos, mas a morte está neles. Ele se chama Septimus, porque foi o sétimo filho homem gerado por nosso pai. Se algum dia você o vir, corra e se esconda. O assunto dele é comigo. Mas ele não hesitará em matá-lo se você estiver atrapalhando, ou talvez ele queira fazer de você seu instrumento para me matar.

Uma forte rajada de vento derrubou um balde de chuva pelo pescoço de Tristran abaixo.

— Parece que é um homem perigosíssimo — disse ele.

— É o homem mais perigoso que você chegará a conhecer.

Tristran olhava atento em silêncio para a chuva e a escuri­dão que se adensava. Estava se tornando mais difícil ver a estrada. Primus voltou a falar:

— Se você quer saber, tem alguma coisa que não é nada na­tural nesta tempestade.

— Nada natural?

— Ou mais do que natural; sobrenatural, como queira. Espero que haja uma estalagem no caminho. Os cavalos pre­cisam descansar e para mim até que cairia bem uma cama seca e uma lareira acesa. Além de uma boa refeição.

Tristran gritou, concordando. Seguiam os dois sentados, juntos, cada vez mais ensopados. Tristran pensou na estrela e no unicórnio. Aquela altura, ela já estaria molhada e com frio. Ficou preocupado com a perna quebrada e pensou em como seu corpo devia estar moído de tanto cavalgar. Era tudo culpa dele. Sentiu-se um desgraçado.

— Sou a criatura mais infeliz que já existiu — disse ele a lorde Primus, quando pararam para alimentar os cavalos com embornais de aveia úmida.

— Você é jovem e está apaixonado — disse Primus. — Todo rapaz em sua posição é o rapaz mais infeliz que já existiu.

Tristran se perguntou como lorde Primus poderia ter adi­vinhado a existência de Victoria Forester. Ele se imaginou rela­tando suas aventuras para ela, lá em Muralha, diante da lareira acesa na sala de visitas. Mas de algum modo todas as suas his­tórias pareciam um pouco sem graça.

O crepúsculo naquele dia parecia ter começado de manhã cedo. E agora o céu estava quase negro. O caminho continua­va em subida. A chuva dava uma trégua de alguns momentos e depois voltava a cair mais pesada que antes.

— Aquilo lá é uma luz? — perguntou Tristran.

— Não estou vendo nada. Vai ver que é um fogo-fátuo ou talvez raios... — respondeu Primus. Mas, quando fizeram uma curva na estrada, ele prosseguiu: — Eu estava errado. É mesmo uma luz. Muito bem, meu rapaz. Mas existe muita maldade nes­tas montanhas. Devemos apenas torcer para que sejam amáveis.

Os cavalos pareceram ganhar novas forças agora que o des­tino estava à vista. Um relâmpago revelou as montanhas, que se erguiam íngremes de cada lado do caminho.

— Que sorte! — disse Primus, com sua voz de baixo retum­bando como o trovão. — É uma estalagem.

 

A estrela estava encharcada quando chegou ao desfila­deiro, tristonha e trêmula. Estava preocupada com o unicórnio. Durante o último dia de viagem, não encontraram alimento para ele, porque os capins e as samambaias da floresta tinham cedido lugar a rochas cinzentas e arbustos mirrados e espi­nhentos. Seus cascos sem ferraduras não eram adequados para a estrada pedregosa, nem seu lombo tinha sido destinado a servir de montaria, e seu ritmo ia ficando cada vez mais lento.

Enquanto viajavam, a estrela amaldiçoava o dia em que tinha caído neste mundo úmido e hostil. Visto de lá do alto do céu, ele parecia tão delicado e acolhedor. Mas isso tinha sido antes. Agora, ela detestava tudo nele, com exceção do uni­córnio. E cansada de cavalgar em total desconforto, até mesmo teria ficado feliz de passar algum tempo longe dele.

Depois de um dia inteiro de chuva implacável, as luzes da estalagem foram a imagem mais acolhedora que ela viu em sua estada na Terra.

— Cuidado onde pisa, cuidado onde pisa — repetiam as gotas de chuva ao bater na pedra. O unicórnio parou a cinqüenta passos da estalagem e se recusou a se aproximar mais. A porta da frente estava aberta, inundando o mundo cinzento com sua aconchegante luz amarela.

— Olá, minha querida — chamou uma voz acolhedora, vindo do portal aberto.

A estrela afagou o pescoço molhado do unicórnio e falou baixinho com ele, mas o animal não se mexeu. Ficou ali para­do, imóvel à luz da estalagem como um fantasma descorado.

—Você vai entrar, queridinha? Ou vai querer ficar aí parada na chuva? — A voz simpática da mulher comoveu a estrela, con­seguindo acalmá-la: era a mistura exata de praticidade e preo­cupação. — Podemos lhe dar comida, se você estiver procurando isso. Temos um belo fogo aceso na lareira e água quente em quantidade suficiente para expulsar o frio de seus ossos.

— Eu... eu vou precisar de ajuda para entrar... — disse a estrela. — Minha perna...

— Ai, pobrezinha — disse a mulher. —Vou pedir a meu mari­do, Billy, para trazê-la no colo aqui para dentro. Na estrebaria tem feno e água limpa para seu animal.

O unicórnio olhou ao redor, em desespero, quando a mu­lher se aproximou.

— Pronto, pronto, meu bem. Não vou chegar perto demais. Afinal de contas, já se passaram muitos anos desde a época em que eu era virgem e podia tocar num unicórnio. E também faz muitos anos desde que um deles foi visto por aqui...

Nervoso, o unicórnio acompanhou a mulher e entrou na estrebaria, sempre se mantendo a certa distância dela. Foi an­dando pela estrebaria até a última cocheira, onde se deitou na palha seca, e a estrela desmontou de qualquer jeito, ensopada e infeliz.

Billy se revelou um camarada meio tosco, de barba branca. Quase não falou, mas carregou a estrela para dentro da esta­lagem e a colocou num banquinho de três pernas, diante do fogo crepitante de uma tora.

— Coitadinha — disse a mulher do estalajadeiro, que tinha vindo atrás deles. — Olhe só para você. Molhada como uma ninfa das águas. Olhe só a poça que está se formando debaixo de você. E seu lindo vestido, ai, em que estado ficou! Você deve estar molhada até os ossos... — E, mandando o marido embora dali, ajudou a estrela a tirar o vestido empapado, que pendurou num gancho perto da lareira, na qual cada gota chiava e desa­parecia quando caía nos tijolos quentes do piso.

Havia uma tina de estanho diante da lareira, e a mulher do estalajadeiro dispôs um biombo de papel ao redor.

— Como você gosta do banho? — perguntou, solícita. — Morno, quente ou de escaldar lagosta?

— Não sei — disse a estrela, nua a não ser pelo topázio na corrente de prata em volta de sua cintura, com a cabeça num turbilhão pela estranha reviravolta dos acontecimentos —, porque nunca tomei banho antes.

— Nunca tomou banho? — A mulher do estalajadeiro pare­ceu espantada. — Ora, coitadinha. Bem, então não vamos esquentar a água demais. Me chame se precisar de mais um caldeirão de água. Estou esquentando água no fogo da cozinha. E, quando você terminar o banho, vou lhe trazer vinho quente e uns nabos assados caramelados.

E, antes que a estrela pudesse avisar que não comia nem bebia, a mulher já tinha saído apressada, deixando a estrela sen­tada na tina, com a perna quebrada com suas talas fora da água, pousada no banquinho de três pés. De início, a água estava realmente quente demais, mas, à medida que foi se acostu­mando ao calor, a estrela relaxou e, pela primeira vez desde que tinha caído do céu, se sentiu perfeitamente feliz.

— Pronto, meu amorzinho — disse a mulher do estalajadeiro, ao voltar. — Como está se sentindo agora?

— Muito, muito melhor, obrigada — respondeu a estrela.

— E seu coração? Como está seu coração? — perguntou a mulher.

— Meu coração? — Era uma pergunta estranha, mas a preo­cupação da mulher parecia ser verdadeira. — Ele está mais feliz. Mais tranqüilo. Menos perturbado.

— Bom. Isso é bom. Vamos fazer com que o calor dele fique bem forte, está bem? Brilhando forte aí dentro.

— Tenho certeza de que, com seus cuidados, meu coração há de refulgir de felicidade — disse a estrela.

A mulher do estalajadeiro debruçou-se e fez um carinho por baixo do queixo da estrela.

— Pronto, meu amor. Você é uma gracinha. Como diz coisas bonitas. — E a mulher deu um sorriso complacente e passou a mão pelo cabelo grisalho. Pendurou um roupão de toalha macia na beirada do biombo. — Isso aqui é para você usar quando tiver terminado o banho... ah, não, não é para se apressar, menina... nele você vai se sentir bem aquecida. Seu vestido bonito ainda vai continuar úmido por um tempo. Quando quiser sair da banheira é só dar um grito que eu venho ajudar. — Ela então se debruçou um pouco mais e tocou o peito da estrela, entre os seios, com um dedo gelado. — Um coração bom e forte — disse, com um sorriso.

Havia gente boa neste mundo cercado de trevas, concluiu a estrela, aquecida e contente. Lá fora a chuva batia e o vento zunia através do desfiladeiro, mas dentro da Estalagem da Carrocinha tudo estava quentinho e confortável.

Passado algum tempo, a mulher do estalajadeiro, auxiliada pela filha, de expressão apática, ajudou a estrela a sair da tina. A luz do fogo refulgiu no topázio engastado em prata que a estrela usava numa corrente de prata amarrada em torno da cintura, até que o topázio e o corpo da estrela desapareceram dentro do espesso roupão de toalha.

— Agora, meu docinho — disse a mulher do estalajadeiro —, venha cá e trate de ficar à vontade.

Ela ajudou a estrela a se aproximar de uma mesa comprida, de madeira, em cuja cabeceira estavam um cutelo e uma faca, ambos com o cabo de osso e a lâmina de vidro escuro. Man­cando e se apoiando, a estrela conseguiu chegar à mesa e se sentou no banco ao lado.

Lá fora, houve uma rajada de vento e as chamas subiram em tons de verde, azul e branco. Foi então que, mais alto que o alarido dos elementos, uma voz grave retumbou, vindo de lá de fora da estalagem.

— Atendimento! Comida! Vinho! Lareira! Onde está o ca­valariço?

Billy, o estalajadeiro, e a filha não fizeram nenhum movi­mento. Apenas olharam para a mulher do vestido vermelho, como se lhe pedissem instruções. Ela franziu os lábios.

— Dá para esperar. Um pouco — disse ela, então. — Afinal de contas, você não vai a parte alguma, não é mesmo, minha queridinha? — Esta última frase dirigida à estrela. — Não com essa sua perna, e só quando a chuva parar, não é?

— Agradeço sua hospitalidade mais do que consigo expres­sar em palavras — disse a estrela, com simplicidade e sentimento verdadeiro.

— É claro que sim — disse a mulher do vestido vermelho e seus dedos irrequietos roçaram impacientes nas facas negras, como se houvesse alguma coisa que ela mal conseguisse espe­rar para fazer. — Tempo à vontade quando esses estorvos tive­rem ido embora, não é?

 

A luz da estalagem era o que Tristran tinha visto de melhor e mais alegre em sua viagem pela Terra Encantada. Enquanto Primus berrava para ser atendido, Tristran desatrelou os cavalos exaustos e os levou um a um para as cocheiras ao lado da esta­lagem. Um cavalo branco dormia na cocheira dos fundos, mas Tristran estava ocupado demais para parar e olhar para ele.

Ele sabia — em algum ponto daquele lugar estranho dentro dele que conhecia caminhos e distâncias de coisas que ele nunca tinha visto e de lugares onde nunca tinha estado — que a estrela estava por perto, e isso o consolava e o deixava ner­voso. Tristran sabia que os cavalos estavam mais exaustos e com mais fome do que ele. Seu jantar — portanto, suspeitava ele, seu confronto com a estrela — podia esperar.

— Vou cuidar dos cavalos — disse ele a Primus. — Se eu não fizer isso, eles podem pegar um resfriado.

O homem alto pousou a mão enorme no ombro de Tristran.

— Você é um bom rapaz. Vou mandar um garoto lhe trazer uma cerveja quente.

Tristran pensava na estrela enquanto escovava os cavalos e limpava seus cascos. O que ele diria? O que ela diria? Estava escovando o último cavalo quando uma criada de aparência apática lhe trouxe um caneco de vinho fumegante.

— Pode deixar ali — disse ele. —Vou beber com prazer assim que minhas mãos estiverem livres. — Ela deixou o caneco em cima de uma caixa de apetrechos e saiu, sem dizer nada.

Foi nesse momento que o cavalo na última cocheira se levantou e começou a dar patadas no portão.

— Calma aí, camarada — disse Tristran para que ele ouvisse. — Calma, vou ver se consigo encontrar um pouco de aveia quente e farelo para vocês todos.

Havia um pedregulho na parte interna do casco dianteiro do cavalo e Tristran o retirou com cuidado. “Senhora”, tinha decidido dizer, “com humildade peço que aceite minhas sin­ceras desculpas. “ “Senhor”, diria por sua vez a estrela, “isso farei do fundo do coração. Agora, vamos a seu lugarejo, onde serei apresentada a seu verdadeiro amor, como símbolo de sua devoção a ela... “

Suas ruminações foram interrompidas por um enorme estrépito, quando um imenso cavalo branco — mas Tristran percebeu de imediato que não se tratava de um cavalo — der­rubou a porta da cocheira a patadas e investiu desesperado, na direção de Tristran, com o chifre baixo.

Tristran se jogou na palha do chão da estrebaria, com os braços protegendo a cabeça.

Alguns momentos se passaram. Ele ergueu a cabeça. O unicórnio tinha parado diante do caneco e estava enfiando o chifre no vinho quente.

Tristran conseguiu se pôr em pé, todo desajeitado. O vinho fumegava e borbulhava. E então ocorreu a Tristran — a infor­mação vindo à tona de algum conto de fadas ou alguma obra de folclore infantil há muito esquecida — que o chifre de um unicórnio era à prova de...

— Veneno? — murmurou ele, e o unicórnio levantou a cabeça e olhou fundo nos olhos de Tristran. E Tristran soube que era verdade. Seu coração batia forte no peito. Em torno da estalagem. o vento uivava como uma bruxa enlouquecida.

Tristran correu para a porta de estrebaria. Então parou e pensou. Remexeu no bolso da túnica, encontrando o toco de cera, que era tudo o que restava da vela, com uma folha seca da cor de cobre, grudada nele. Com cuidado, foi separando a folha da cera. Depois, levou a folha ao ouvido e escutou o que ela lhe disse.

 

— Vinho, milorde? — perguntou a mulher de meia-idade, no vestido longo vermelho, quando Primus entrou na estalagem.

— Lamento recusar — disse ele —, mas tenho uma superstição pessoal de, enquanto não chegar o dia em que eu veja o cadáver de meu irmão, já frio no chão diante de mim, beber somente meu próprio vinho e comer somente o alimento que eu mesmo tenha obtido e preparado. É o que farei aqui, se a senhora não fizer objeção. É claro que pagarei como se estivesse bebendo de seu vinho. Posso lhe pedir o favor de pôr essa minha garrafa perto da lareira para quebrar um pouco o gelo? Agora, estou com um companheiro de viagem, um rapaz que está cuidando dos cavalos. Ele não fez nenhum voto semelhante e tenho certeza de que, se lhe mandarem uma caneca de cerveja quente, isso ajudará a aquecer seus ossos...

A criada fez uma breve mesura e saiu apressada na direção da cozinha.

— E então, meu anfitrião — disse Primus ao estalajadeiro de barba branca —, como são suas camas aqui neste fim de mundo? Os colchões são de palha? Os quartos dispõem de lareiras? E é com um prazer cada vez maior que vejo essa tina para banho diante da lareira. Se houver outro caldeirão de água fervente, tomarei um banho mais tarde. Mas preste atenção: não lhe pagarei mais do que uma pequena moeda de prata por isso. Com o olhar, o estalajadeiro consultou a mulher.

— Nossas camas são boas — respondeu ela. — E mandarei a criada acender a lareira no quarto para o senhor e seu com­panheiro.

Primus tirou o manto negro empapado e o pendurou junto ao fogo, ao lado do vestido azul ainda úmido da estrela. Virou-se então e viu a moça sentada à mesa.

— Outra hóspede? Prazer em conhecê-la, senhora, neste clima abominável. — Nesse momento, ouviu-se uma barulhei­ra, proveniente da estrebaria, grudada à estalagem. — Alguma coisa deve ter perturbado os cavalos — disse Primus, preocupado.

— Talvez os trovões — disse a mulher do estalajadeiro.

— Talvez, sim — concordou Primus. Mas outra coisa estava ocupando sua atenção. Ele se aproximou da estrela e olhou no fundo de seus olhos por algumas batidas de seu coração. — Você... — Ele hesitou e depois prosseguiu com certeza: — Você está com a pedra do meu pai. Você está com o Poder da Fortaleza da Tempestade.

A garota olhou para ele com raiva, com os olhos azuis como o céu.

— Muito bem — disse ela. — Basta que você o peça e eu vou poder me livrar dessa idiotice.

A mulher do estalajadeiro correu para se postar à cabeceira da mesa.

— Não vou tolerar que os outros convidados sejam impor­tunados, meus queridos — disse ela a Primus, com ar severo.

Os olhos de Primus bateram nas facas no tampo de madeira da mesa. Ele as reconheceu: havia pergaminhos esfar­rapados nos subterrâneos da Fortaleza da Tempestade nos quais aquelas facas apareciam em ilustrações, com a indicação do nome de cada uma. Eram objetos antiqüíssimos, da Primeira Era do Mundo.

A porta da frente da estalagem se abriu com violência.

— Primus! — gritou Tristran, entrando ali correndo. — Eles tentaram me envenenar!

Lorde Primus procurou sacar seu espadim, mas no mesmo instante em que o segurava a rainha das bruxas pegou a faca mais comprida e passou a lâmina, num único movimento sim­ples e prático, de um lado a outro de seu pescoço...

Para Tristran, tudo aconteceu rápido demais para ele con­seguir acompanhar. Ele entrou, viu a estrela e lorde Primus, o estalajadeiro e sua família esquisita, e em seguida o sangue esguichava como um chafariz vermelho à luz do fogo.

— Peguem o garoto! — gritou a mulher de vestido escarlate. — Peguem o moleque!

Billy e a criada correram na direção de Tristran, e foi nesse instante que o unicórnio entrou na estalagem.

Tristran se atirou para longe. O unicórnio se empinou, e um golpe de um casco afiado jogou longe a criada.

Billy abaixou a cabeça e investiu contra o unicórnio, como se quisesse golpeá-lo com a testa. O unicórnio também abaixou a cabeça, e esse foi o triste fim de Billy, o estalajadeiro.

— Idiotas! — berrou a mulher do estalajadeiro, furiosa. Ela avançou contra o unicórnio, com uma faca em cada mão, o sangue manchando sua mão direita e seu antebraço com a mesma cor de seu vestido.

Tristran tinha se jogado de quatro no chão e engatinhado na direção da lareira. Na mão esquerda, ele segurava o toco de cera, o que restava da vela que o tinha trazido até ali. Ele a vinha espremendo na mão para ela ficar mole e maleável.

— Acho bom que isso funcione — disse Tristran consigo mesmo. Esperava que a árvore soubesse do que estava falando.

Atrás dele, o unicórnio deu um grito de dor. Tristran arrancou um cadarço de seu gibão e fechou a cera em torno dele.

— O que está acontecendo? — perguntou a estrela, que tam­bém tinha engatinhado na direção de Tristran.

— No fundo, eu não sei — admitiu ele.

E então a bruxa uivou. O unicórnio tinha fincado o chifre em seu ombro. Ele a levantou do chão, em triunfo, preparan­do-se para atirá-la de volta e depois levá-la à morte, pisoteada por seus cascos afiados, quando ela, apesar de estar espetada no chifre, conseguiu se virar e enfiar a ponta da faca mais longa no olho do unicórnio até penetrar em seu crânio.

O animal caiu no piso de madeira da estalagem, com o sangue escorrendo do flanco, do olho e da boca aberta. Pri­meiro, caiu de joelhos e depois desmoronou totalmente à medida que a vida lhe fugia. Sua língua era malhada, e dava uma pena imensa vê-la caída para fora da boca do unicórnio morto.

A rainha das bruxas arrancou o próprio corpo do chifre e, com uma das mãos agarrando o ombro ferido, a outra segu­rando o cutelo, conseguiu com enorme esforço ficar em pé.

Seus olhos varreram a sala, parando em Tristran e na estrela, aconchegados junto ao fogo. Devagar, com uma lentidão de dar agonia, ela foi na direção deles, um cutelo na mão, um sorriso no rosto.

— O coração dourado e flamejante de uma estrela tranqüila é muito melhor do que o coração bruxuleante de uma estre­linha assustada — disse ela, com a voz estranhamente calma e indiferente, apesar de vir de um rosto ensangüentado. — Mas mesmo o coração de uma estrela que está assustada e com medo é de longe melhor do que nenhum coração.

Tristran pegou a mão da estrela na mão direita.

— Levante-se — disse ele.

— Não consigo — respondeu ela, simplesmente.

— Levante-se ou vamos morrer agora mesmo — disse ele, pondo-se de pé. A estrela fez que sim e, apoiando desajeitada o peso nele, começou a tentar ficar em pé.

— Levante-se ou vamos morrer agora mesmo? — repetiu a rainha das bruxas. — Ora, crianças, vocês morrem agora, em pé ou sentados. Para mim, dá na mesma. — Ela deu mais um passo na direção deles.

— Agora — disse Tristran, com uma das mãos agarrando o braço da estrela, e a outra segurando a vela improvisada —, agora, andei

E ele enfiou a mão esquerda no fogo.

Veio a dor e a queimadura, dor tamanha que ele poderia ter berrado. E a rainha das bruxas olhava para Tristran como se ele fosse a loucura personificada.

E então o pavio improvisado se acendeu, gerou uma chama azul firme e o mundo começou a tremeluzir em torno deles.

— Ande, por favor — implorou ele à estrela. — Não largue minha mão.

E ela deu um passo desajeitado.

Os dois deixaram para trás a estalagem, com os uivos da rainha das bruxas ecoando nos ouvidos.

Estavam num subsolo, e a luz da vela bruxuleava nas pare­des úmidas da caverna. E, com o próximo passo hesitante, estavam num deserto de areias brancas ao luar. E, com o ter­ceiro passo estavam muito acima da superfície da terra, con­templando os montes, as árvores e os rios lá embaixo.

Foi então que o fim da cera derreteu sobre a mão de Tristran, e para ele o ardor da queimadura se tornou impossível de suportar, e aquela última chama se extinguiu para sempre.

 

Amanhecia nas montanhas. As tempestades dos últimos dias tinham seguido adiante, e o ar estava limpo e frio.

Lorde Septimus, da Fortaleza da Tempestade, alto e seme­lhante a um corvo, vinha subindo pelo passo da montanha, olhando ao redor enquanto caminhava como se estivesse procurando alguma coisa perdida. Conduzia um pônei castanho, pequeno e desgrenhado. Onde o passo se alargava, ele parou, como se tivesse encontrado, ao lado da trilha, o que estava procurando. Era uma carrocinha pequena e malconservada, pouco mais do que um carrinho de bodes, que estava ali caída de lado. Nas proximidades estavam dois corpos. O primeiro era de um bode branco, a cabeça toda manchada de vermelho, de sangue. Septimus experimentou mexer com um dos pés no bode morto, para virar sua cabeça. O animal tinha recebido um ferimento profundo e fatal na testa, num ponto eqüidistante entre os chifres. Ao lado do bode, estava o corpo de um rapa­zinho, com o rosto tão inexpressivo na morte como devia ter sido em vida. Não havia ferimentos que revelassem como ele teria morrido, nada, a não ser um hematoma muito escuro na têmpora.

A alguns passos de distância desses corpos, Septimus en­controu, meio escondido ao lado de uma rocha, o cadáver de um homem de meia-idade, de bruços, em trajes escuros. A pele do homem estava descorada e seu sangue tinha se acumulado numa poça no chão rochoso. Septimus se agachou ao lado do corpo e, hesitando, levantou a cabeça puxando pelo cabelo. O pescoço tinha sido cortado com perícia, num risco que ia de uma orelha à outra. Septimus olhava intrigado para o corpo. Ele o conhecia, mas...

E então, com um barulho como uma tosse seca e engasga­da, ele começou a rir.

— A barba — disse, dirigindo-se ao corpo. — Você raspou a barba. Como se eu não fosse reconhecê-lo sem ela, Primus.

Primus estava ali parado, cinzento e espectral, ao lado dos outros irmãos.

— Você sempre teria me reconhecido, Septimus — disse ele. — Mas a falta da barba poderia ter me garantido mais alguns instantes, nos quais eu talvez o tivesse visto antes que você me reconhecesse. — E a voz do morto não era mais do que a brisa da manhã fazendo farfalhar o arbusto espinhento.

Septimus se levantou. O sol começava a nascer acima do pico mais oriental do Monte Pança, emoldurando Septimus com sua luz.

— Portanto, eu serei o octogésimo segundo Senhor da Fortaleza da Tempestade — disse ele ao cadáver no chão —, além de Mestre dos Altos Penhascos, Senescal das Cidades dos Espigões, Protetor da Cidadela, Supremo Guardião do Monte Huon e tudo o mais.

— Não sem o Poder da Fortaleza da Tempestade no pescoço, meu irmão — disse Quintus, com acidez.

— E ainda há a questão da vingança — atalhou Secundus, com a voz do vento que zunia pelo desfiladeiro. — Antes de mais nada, você agora precisa se vingar do assassino de seu irmão. É a lei de talião.

Como se os tivesse ouvido, Septimus abanou a cabeça.

— Por que você não podia ter esperado só mais alguns dias, irmão Primus? — perguntou ao cadáver a seus pés. — Eu o teria matado sozinho. Tinha um belo plano para sua morte. Quando descobri que você não estava mais a bordo do Coração de um Sonho, levei pouquíssimo tempo para roubar um escaler do navio e voltar para buscar uma pista sua. E agora preciso me vingar por conta dessa sua triste carcaça, e tudo pela honra de nosso sangue e da Fortaleza da Tempestade.

— E assim Septimus será o octogésimo segundo Senhor da Fortaleza da Tempestade — concluiu Tertius.

— Há um velho ditado cuja intenção principal é advertir contra o cálculo antecipado do valor numérico dos ovos antes que a galinha os ponha — salientou Quintus.

Septimus se afastou um pouco do corpo para urinar numa grande pedra cinzenta. Depois voltou até o corpo do irmão.

— Se eu o tivesse matado, poderia abandoná-lo aqui para apodrecer — disse ele. — Mas como coube a outra pessoa esse prazer, eu o levarei comigo um pouco e o deixarei no alto de um penhasco, para ser devorado pelas águias. — Com isso, gru­nhindo com o esforço necessário, levantou do chão o corpo de frente grudenta e o içou por sobre o lombo do pônei. Reme­xeu no cinto do cadáver, retirando a bolsa com as runas. — Obrigado, meu irmão, por elas — disse, dando um tapinha no corpo sobre o pônei.

— Que você morra engasgado com elas se não se vingar da vagabunda que cortou minha goela — disse Primus, com a voz das aves da montanha que despertavam para acolher o novo dia.

 

Estavam sentados, um ao lado do outro, numa nuvem bran­ca e fofa, do tamanho de uma pequena cidade. A nuvem era macia por baixo deles e um pouco fria. Tornava-se mais fria quanto mais você afundasse nela, e Tristran ali empurrou a mão queimada tanto quanto pôde: a textura ofereceu ligeira resistência, mas aceitou sua mão. O interior da nuvem era gela­do e esponjoso, ao mesmo tempo real e insubstancial. A nuvem amenizou um pouco a dor da mão, permitindo que ele pen­sasse com mais clareza.

— Bem — disse ele, depois de algum tempo —, parece que estraguei tudo.

A estrela estava sentada a seu lado na nuvem, usando o roupão que tinha apanhado emprestado com a mulher da esta­lagem. Sua perna quebrada estava esticada para o meio do espesso nevoeiro à sua frente.

— Você salvou minha vida — disse ela, por fim. — Não salvou?

— Imagino que tenha feito isso mesmo.

— Odeio você — disse ela. — Já o odiava por tudo isso, mas agora eu o odeio ainda mais.

Tristran abriu e fechou a mão queimada no abençoado frescor da nuvem. Estava se sentindo cansado e ligeiramente fraco.

— Algum motivo em particular?

— Porque — disse ela, com a voz tensa — agora que você salvou minha vida, pela lei do meu povo, você se tornou responsável por mim, e eu por você. Aonde você for, eu tam­bém devo ir.

— Ah — disse ele. — Não é tão mau assim, hein?

— Seria preferível eu passar minha vida acorrentada a um lobo cruel, a um porco fedorento ou a um espectro dos pân­tanos — respondeu ela, categórica.

— Sinceramente, não sou tão ruim assim — disse ele —, não quando as pessoas começam a me conhecer. Olhe, peço des­culpas por toda aquela história de prendê-la na corrente. Talvez nós pudéssemos começar tudo de novo, simplesmente fingir que nada disso chegou a acontecer. Então, meu nome é Tristran Thorn, prazer em conhecê-la. — Ele estendeu a mão não queimada para ela.

— Mãe Lua, me proteja! — disse a estrela. — Eu preteriria pegar a mão de um...

— Tenho certeza de que sim — disse Tristran, sem esperar para descobrir com que criatura ele seria comparado desfavo­ravelmente dessa vez. — Já pedi desculpas. Vamos começar tudo de novo. Sou Tristran Thorn. Prazer em conhecê-la.

Ela deu um suspiro.

O ar era frio e rarefeito a uma altitude daquelas, mas o sol os aquecia e as formas das nuvens ao redor lembravam a Tristran uma cidade fantástica ou uma urbe etérea. Muito, muito lá embaixo, ele conseguia ver o mundo real: com o sol fazendo sobressair cada árvore diminuta, transformando cada rio sinuoso num fino rastro prateado de lesma, a rebrilhar enquanto percorria a paisagem da Terra Encantada.

— E então? — perguntou Tristran.

— É — disse a estrela. — É uma tremenda piada, não é mesmo? Aonde tu fores, eu hei de ir. Mesmo que signifique minha morte. — Ela fez girar a superfície da nuvem com a mão, formando um remoinho na névoa. E então, por um instante, sua mão tocou na de Tristran. — Minhas irmãs me chamam de Yvaine — disse ela. — Porque eu era uma estrela do anoitecer.

— Olhe só para nós dois — disse ele. — Que belo par! Você, com a perna quebrada, e eu com essa minha mão.

— Mostre-me sua mão.

Ele a tirou de dentro da nuvem fresca. A mão estava ver­melha e bolhas surgiam em cada lado, bem como no dorso, onde as chamas tinham lambido a carne.

— Dói? — perguntou ela.

— Dói — respondeu ele. — Na verdade, dói muito.

— Que bom! — disse Yvaine.

— Se eu não tivesse queimado minha mão, era provável que você já estivesse morta agora — ressaltou ele. A estrela teve a elegância de baixar o olhar, envergonhada. — Você sabia — acrescentou ele, mudando de assunto — que deixei minha bolsa na estalagem daquela maluca? Agora não temos nada, a não ser essas roupas em que nos encontramos.

— Em que nos perdemos — corrigiu a estrela.

— Não temos comida, nem água, estamos mais de meio quilômetro acima do mundo, sem meios para descer e sem nenhum controle sobre a direção para onde a nuvem está indo. E nós dois estamos feridos. Deixei alguma coisa de fora?

— Você se esqueceu da parte sobre as nuvens terem o hábito de se dissipar e desaparecer como se nunca tivessem existido — disse Yvaine. — Elas fazem isso. Já presenciei. Eu não sobrevive­ria a mais uma queda.

— Bem — disse Tristran, dando de ombros. — É provável que estejamos condenados. Mas bem que podíamos dar uma olha­da por aí enquanto estamos aqui no alto.

Ele ajudou Yvaine a ficar em pé e, desajeitados, os dois deram alguns passos claudicantes em cima da nuvem. E então Yvaine se sentou de novo.

— Não adianta — disse ela. — Vá você dar uma olhada por aí. Vou esperar por você aqui.

— Promete? — perguntou ele. — Nada de fugas desta vez?

— Juro. Juro por minha mãe, a lua — disse Yvaine, entriste­cida. —Você salvou minha vida.

E com isso Tristran precisou se contentar.

 

Seu cabelo agora estava quase todo grisalho, e seu rosto estava repleto de bolsas, com rugas no pescoço, em torno dos olhos e nos cantos da boca. Não havia cor em seu rosto, apesar de seu traje ser uma mancha sangrenta só. Ele tinha sido rasgado no ombro, e por baixo do rasgo via-se, franzida e obscena, uma cicatriz profunda. O vento açoitava o cabelo em volta de seu rosto, enquanto ela forçava a carruagem negra a atravessar os Escalvados. Os quatro garanhões tropeçavam com freqüência. O suor espesso gotejava de seus flancos e uma espuma sangren­ta escorria de sua boca. Mesmo assim, seus cascos continuavam a seguir pela trilha enlameada que atravessava os Escalvados, onde nada cresce.

A rainha das bruxas, a mais velha das Lilim, parou os cava­los ao lado de um pináculo rochoso da cor de azinhavre, que se projetava do solo pantanoso dos Escalvados como uma agu­lha. Depois, tão devagar quanto seria de esperar de uma dama que já não estava na primeira, nem mesmo na segunda, juven­tude, ela desceu do assento do cocheiro para a terra úmida.

Deu a volta na carruagem e abriu a porta. Com isso, a cabeça do unicórnio morto, com a adaga ainda enfiada, caiu toda mole. A bruxa subiu na cabine da carruagem e forçou a boca do unicórnio a se abrir. O rigor mortis estava começando a se instalar, e foi só com muita dificuldade que o maxilar se abriu. A bruxa mordeu a própria língua com força, com tanta força que sentiu uma dor aguda e metálica, mordeu até sentir o gosto do sangue. Fez girar o sangue na boca, misturando-o com a saliva (dava para sentir que alguns de seus dentes estavam começando a se soltar), e depois cuspiu na língua malhada do unicórnio morto. Sua boca e seu queixo estavam salpicados de sangue. Ela resmungou algumas sílabas, que não serão regis­tradas aqui, e então fechou a boca do unicórnio novamente.

— Saia da carruagem — disse ela ao animal morto.

Com rigidez, desajeitado, o unicórnio levantou a cabeça. Depois mexeu as pernas como uma corça recém-nascida ou um potrinho que mal está começando a andar e se torceu e forçou-se a ficar em pé nas quatro patas. E meio saindo, meio caindo, ele tombou da porta da carruagem em cima da lama, onde se pôs em pé. Seu lado esquerdo, sobre o qual estava deitado na carruagem, estava inchado e escuro com sangue e fluidos. Meio cego, o unicórnio morto foi cambaleando na direção da agulha de pedra verde até chegar a uma depressão em sua base, onde caiu ajoelhado sobre as pernas dianteiras numa medonha paródia de uma postura de oração.

A rainha das bruxas estendeu a mão e arrancou a faca do olho do animal. Cortou-lhe então o pescoço de um lado a outro. O sangue começou a escorrer, devagar demais, do corte que ela fez. Ela voltou à carruagem para apanhar o cutelo. E então começou a golpear o pescoço do unicórnio, até separá-lo do corpo, e a cabeça do unicórnio cair na bacia na rocha, que agora estava se enchendo com uma poça escura de sangue que causava náusea.

A bruxa apanhou a cabeça do unicórnio pelo chifre e a colocou ao lado do corpo, na rocha. Contemplou, então, com seus olhos duros e cinzentos, a poça vermelha que tinha feito. Dois rostos olhavam para ela dali da poça: duas mulheres, muito mais velhas na aparência do que ela estava agora.

— Onde ela está? — perguntou o primeiro rosto, impaciente.

— O que você fez com ela?

— Olhe só para sua cara! — disse a segunda Lilim. — Você levou o que restava da juventude que tínhamos poupado. Eu mesma a arranquei do peito da estrela tantos, tantos anos atrás, enquanto ela berrava, se contorcia e chorava em desespero. Pela sua aparência, você já desperdiçou a maior parte daquela juventude.

— Cheguei tão perto — disse a bruxa para as irmãs na poça.

— Mas a estrela tinha um unicórnio a protegê-la. E agora eu tenho a cabeça do unicórnio, que vou levar de volta comigo. Já faz muito tempo que não temos chifre de unicórnio recém-moído em nossas artes.

— Que se dane o chifre de unicórnio — disse a irmã mais nova. — E o que houve com a estrela?

— Não consigo descobrir onde ela está. É quase como se ela não estivesse mais na Terra Encantada.

Fez-se uma pausa.

— Não — disse uma das irmãs. — Ela ainda está na Terra Encantada. Mas está se dirigindo para a feira em Muralha, e esse lugar fica perto demais do mundo do outro lado da muralha. Uma vez que entre naquele mundo, estará perdida para nós.

Pois cada uma delas sabia que, se a estrela passasse para o outro lado da muralha e entrasse no mundo das coisas como elas são, instantaneamente se transformaria em nada mais do que uma massa de rocha metálica de superfície toda irregular que tinha caído dos céus: fria, morta e sem nenhuma utilidade para elas.

—Vou então ao Fosso de Diggory para esperar. Quem quer que vá a Muralha é obrigado a passar por lá.

De dentro da poça, as imagens das duas velhas olharam para ela com desaprovação. A bruxa passou a língua pelos dentes (“esse aqui no alto, pelo jeito que está balançando, vai cair antes do anoitecer”, pensou ela) e cuspiu na poça de sangue. As pequenas ondulações se espalharam pela poça inteira, apa­gando todos os traços das Lilim. Agora, a poça refletia somente o céu acima dos Escalvados e as leves nuvens brancas lá nas alturas.

Ela deu um chute no corpo sem cabeça do unicórnio, de modo que ele caiu de lado no chão. Pegou então a cabeça e a levou consigo para o banco do cocheiro. Colocou-a a seu lado, segurou as rédeas e açoitou os cavalos inquietos para que saíssem num trote cansado.

 

Sentado no alto do torreão da nuvem, Tristran se perguntava por que nenhum dos heróis dos romances baratos de aventuras que ele costumava ler com tanta avidez nunca passava fome. Sua barriga roncava, e sua mão doía muito.

“É claro que as aventuras têm seu valor”, pensou ele, “mas não há como negar as vantagens das refeições às horas certas e de não sentir dor. “

Mesmo assim, ele estava vivo, o vento soprava em seu cabe­lo e a nuvem seguia veloz pelos céus como um galeão a todo pano. Olhando lá de cima para o mundo, ele não se lembrava de jamais ter se sentido tão vivo quanto naquele instante. O céu estava tão celeste, e o mundo tão real como ele não se lem­brava de jamais ter visto, sentido ou percebido.

Tristran compreendia que, de certo modo, estava acima de seus problemas, exatamente como estava acima do mundo. A dor em sua mão estava muito, muito distante. Ele pensou em suas ações e aventuras, na viagem que tinha pela frente, e teve a impressão de que toda aquela história de repente era muito pequena e muito simples. Ficou em pé no torreão da nuvem e deu alguns gritos de “Olá!” repetidamente, com a voz mais alta possível. Chegou a agitar a túnica acima da cabeça, sentindo-se meio bobo enquanto fazia isso. Depois começou a descer do torreão com dificuldade. Quando estava a pouco mais do que sua altura da base, perdeu o pé de apoio e caiu na maciez enevoada da nuvem.

— Por que você estava gritando? — perguntou Yvaine.

— Para as pessoas saberem que estamos aqui — disse-lhe Tristran.

— Que pessoas?

— Nunca se sabe — respondeu ele. — É melhor eu chamar pessoas que não estão por perto do que pessoas que realmente estejam por perto deixem de nos ver porque eu não disse nada.

A isso ela não deu resposta.

— Estive pensando — disse Tristran. — E o que estive pen­sando é o seguinte: depois que tivermos feito o que eu preciso fazer... levar você até Muralha, para entregar a Victoria Forester... talvez nós pudéssemos fazer o que você precisa.

— O que eu preciso?

— Bem, você quer voltar, não quer? Lá para cima, para o céu. Para brilhar de novo à noite. Nós podemos tentar resolver isso.

Ela olhou para ele e fez que não.

— Isso não acontece — explicou. — As estrelas caem. Elas não voltam para o seu lugar.

— Você poderia ser a primeira — disse ele. — Só precisa acredi­tar. Se não, nunca vai acontecer mesmo.

— Nunca vai acontecer mesmo — retrucou ela. — Da mesma forma que seus gritos não vão atrair ninguém aqui em cima, porque aqui não existe ninguém. Não importa se eu acredito ou não, é assim que as coisas são. Como está sua mão?

— Doendo — disse ele, dando de ombros. — E sua perna?

— Doendo, mas não tanto como antes.

— Ó de bordo! — Foi uma voz vindo de muito mais alto. — Ei, vocês aí embaixo! Precisam de ajuda?

Era um pequeno navio, que rebrilhava dourado ao sol, com as velas enfunadas. Um rosto corado, de bigodes, olhava para eles do alto do costado.

— Era você, garoto, que estava pulando e dançando agorinha mesmo?

— Era eu — respondeu Tristran. — E acho que precisamos de ajuda, sim.

— Muito bem — disse o homem. — Então prepare-se para agarrar a escada.

— Lamento informar que minha amiga está com a perna quebrada — disse ele — e que eu feri minha mão. Acho que nenhum de nós dois consegue subir pela escada.

— Nenhum problema. Nós podemos içar vocês. — E com isso o homem deixou cair uma longa escada de corda do alto do costado do navio. Tristran conseguiu pegá-la com a mão boa e a firmou enquanto Yvaine, com esforço, se arrastava para pisar nela. Tristran então subiu na escada logo atrás dela. O rosto desapareceu do alto do costado do navio quando Tristran e Yvaine se penduraram desconfortavelmente na extremidade da escada de corda.

O vento atingiu o navio dos céus, fazendo com que a escada se afastasse da nuvem. E Tristran e Yvaine ficaram ali, girando lentamente no ar.

— Agora, já! — gritaram algumas vozes em uníssono, e Tristran se sentiu sendo içado alguns palmos. — Já, já, já! — Cada grito indicava que eles estavam sendo içados mais alto. A nuvem na qual tinham estado sentados já não estava abaixo deles. Em vez disso, havia uma queda que Tristran calculava ser de dois quilômetros ou mais. Ele se segurava com força à corda, formando com o cotovelo da mão queimada um gan­cho que o prendia à escada.

Mais um tranco para o alto e Yvaine estava no nível do alto da amurada do navio. Alguém a ergueu com cuidado e a colo­cou no convés. Tristran escalou sozinho a amurada e se deixou cair no convés de carvalho.

O homem de rosto corado estendeu a mão.

— Bem-vindos a bordo — disse ele. — Esta é a nau livre Perdita, em plena expedição de caça a relâmpagos. Capitão Johannes Alberic, à sua disposição. — Ele tossiu, uma tosse pro­funda no peito. E então, antes que Tristran pudesse dizer uma palavra que fosse em resposta, o capitão se deu conta da mão esquerda de Tristran. — Meggot! Meggot! Sua condenada, onde é que você se meteu? Aqui, aqui! Passageiros necessitados de cuidados. Pronto, meu garoto, Meggot vai cuidar de sua mão. Comemos aos seis toques do sino. Vocês sentarão à minha mesa.

Logo, uma mulher de aparência nervosa com uma gaforinha da cor de cenoura — Meggot — o estava acompanhando pelas entranhas do navio e passando em sua mão um ungüento grosso, verde, o que a esfriou e aliviou a dor. Depois ele foi conduzido ao refeitório, que era uma pequena sala de jantar ao lado da cozinha (que Tristran ficou feliz de saber que era chamada de “cozinha de bordo”, exatamente como nas histórias sobre o mar que ele tinha lido).

Tristran acabou comendo mesmo à mesa do capitão, se bem que não houvesse de fato nenhuma outra mesa no refeitório. Além do capitão e de Meggot, havia mais cinco integrantes da tripulação, uma turma desigual que parecia se contentar em deixar o capitão Alberic se encarregar de toda a conversa, o que ele fez, com o caneco de cerveja numa das mãos, enquanto a outra alternava entre segurar o cachimbo rombudo e levar alimento à boca.

A comida era uma sopa grossa de legumes, feijão e cevada, e ela matou a fome de Tristran e o deixou satisfeito. Para beber, a água mais pura, mais fria que Tristran jamais tinha provado.

O capitão não fez qualquer pergunta sobre como os dois tinham ido parar no alto de uma nuvem, e eles não ofereceram respostas. Deram a Tristran um leito com Estranheza, o imedia­to, um cavalheiro tranqüilo, com grandes asas e uma forte gagueira, enquanto Yvaine foi acomodada na cabine de Meggot, e a própria Meggot passou para uma rede.

Durante o restante de sua viagem pela Terra Encantada, Tristran costumava se flagrar contemplando em retrospectiva esse seu tempo no Perdita como um dos períodos mais felizes de sua vida. A tripulação o deixava ajudar com as velas e até mesmo, de vez em quando, segurar o leme. Às vezes, o navio navegava acima de escuras nuvens de tempestade, grandes como montanhas, e a tripulação pescava relâmpagos com um pequeno baú de cobre. O vento e a chuva costumavam lavar o convés do navio, e era freqüente que Tristran se descobrisse rindo, exultante, enquanto a chuva escorria por seu rosto, agar­rado com a mão boa à corda da amurada para não ser der­rubado no mar pela tempestade.

Meggot, que era um pouco mais alta e um pouco mais magra do que Yvaine, tinha lhe emprestado alguns vestidos, que a estrela aceitou com alívio, tendo o prazer de usar roupas novas em dias diferentes. Muitas vezes ela subia até a figura de proa, apesar da perna quebrada, e ficava ali sentada, olhando para o chão lá embaixo.

 

— Como está sua mão? — perguntou o capitão.

— Muito melhor, obrigado — respondeu Tristran. A pele estava brilhosa, cheia de cicatrizes, e os dedos estavam com o tato prejudicado, mas o bálsamo de Meggot tinha eliminado a maior parte da dor e acelerado imensamente o processo da cura. Ele estava sentado no convés, com as pernas suspensas sobre o costado, olhando lá para fora.

— Vamos lançar âncora daqui a uma semana, para receber provisões e alguma carga — informou o capitão. — Talvez fosse melhor se nós os deixássemos desembarcar nesse lugar.

— Ah, sim, obrigado — disse Tristran.

— Vocês estarão mais perto de Muralha. Ainda faltando uma boa viagem de dez semanas, pode ser que mais. Mas Meggot diz que a perna de sua amiga já está praticamente perfeita. Em breve, ela vai poder sustentar o seu peso.

Ficaram ali sentados, um ao lado do outro. O capitão soltava baforadas com seu cachimbo. Suas roupas viviam cobertas por uma fina camada de cinzas e, quando ele não estava fumando o cachimbo, mascava o bocal, escavando o fornilho com um instrumento afiado de metal ou colocando ali mais tabaco.

— Você sabe — disse o capitão, com os olhos no horizonte distante — que não foi totalmente por acaso que nós o encon­tramos. Bem, foi por sorte que o encontramos, mas também seria verdade dizer que eu estava alerta para ver se o encontrava. Eu e mais alguns por aqui.

— Por quê? — perguntou Tristran. — E como você sabia da minha existência?

Em resposta, o capitão desenhou com o dedo uma forma na umidade condensada na madeira encerada.

— Parece um castelo — disse Tristran.

O capitão piscou um dos olhos para ele.

— Não é palavra para se dizer muito alto, mesmo aqui em cima. Considere que se trata de uma Irmandade.

Tristran olhou espantado para ele.

— Você conhece um homenzinho peludo, que usa chapéu e carrega um enorme fardo repleto de coisas?

O capitão deu uma batidinha com o cachimbo no costado do navio. Um movimento de sua mão já tinha apagado o desenho do castelo.

— Conheço. E ele não é o único membro da Irmandade que tem interesse em sua volta para Muralha. O que me fez lembrar de uma coisa. Você deveria dizer à mocinha que, se ela pretende tentar se passar por outra coisa que ela não é, seria bom procurar dar a impressão de que come alguma coisa, qual­quer coisa, de vez em quando.

— Eu nunca mencionei Muralha em sua presença — disse Tristran. — Quando você perguntou de onde eu vinha, respondi “Do que ficou para trás”, e quando perguntou aonde estávamos indo, eu disse “Para o que estiver à nossa frente”.

— Isso mesmo, garoto — disse o capitão. — Perfeito. Passou-se mais uma semana, no quinto dia da qual Meggot declarou que Yvaine estava pronta para que lhe retirassem a tala. A mulher soltou as ataduras improvisadas e a tala, e Yvaine experimentou andar mancando pelo convés, da popa à proa, segurando-se na amurada. Logo conseguia andar pelo navio sem dificuldade, embora arrastasse um pouquinho a perna.

No sexto dia, houve uma tempestade poderosíssima e eles apanharam seis belos relâmpagos na caixa de cobre. No sétimo dia, chegaram ao porto. Tristran e Yvaine se despediram do capitão e da tripulação da nau livre Perdita. Meggot deu a Tristran um pequeno pote do bálsamo verde, para a mão dele e para Yvaine passar na perna. O capitão deu a Tristran uma bolsa de couro, a tiracolo, com carnes e frutas secas, tabaco picado, uma faca e uma caixa de pederneira (“Ora, garoto, não é problema. Estamos apanhando provisões aqui de qualquer forma. “), enquanto Meggot deu de presente a Yvaine um vesti­do de seda azul, no qual estavam aplicadas estrelas e luas de prata muito pequeninas (“Porque ele fica muito melhor em você do que jamais ficou em mim, querida”).

O navio atracou ao lado de uma dúzia de outros navios celestes semelhantes, no alto de uma árvore enorme, grande o suficiente para agüentar centenas de moradias embutidas em seu tronco. Ela era habitada por gente e anões, gnomos e entes das selvas, além de outras criaturas ainda mais esquisitas. Uma escada descia em torno do tronco e Tristran e Yvaine desceram por ela devagar. Tristran sentiu alívio por estar de novo pisando em alguma coisa ligada à terra firme. E no entanto, de algum modo que ele nunca conseguiria expressar em palavras, sentia-se decepcionado, como se, quando seus pés tocassem na terra de novo, ele tivesse perdido algo muito especial.

Foram três dias de caminhada até a árvore-porto desapare­cer no horizonte.

Viajavam para o oeste, na direção do poente, por uma estrada larga e poeirenta. Dormiam ao lado de cercas vivas. Tristran comia nozes e frutos e nozes dos arbustos e das árvores e bebia a água de córregos cristalinos. Eles encontraram pou­cas pessoas na estrada. Quando conseguiam, paravam em pequenos sítios, onde Tristran trocava uma tarde de trabalho por alimento e um pouco de palha no celeiro para servir de colchão. Às vezes, paravam nas cidadezinhas e nos povoados do caminho para tomar banho e comer — ou, no caso da estrela, para fingir que comia —, e se hospedar, sempre que tinham condição de pagar, na estalagem do lugar.

Na cidade de Simcock-sob-o-Monte, Tristran e Yvaine tiveram um confronto com um pelotão de gnomos, que pode­ria ter terminado mal, com Tristran passando o resto da vida travando as intermináveis guerras dos gnomos nas profundezas da terra, se não fosse pelo pensamento rápido e pela língua afia­da de Yvaine. Na Floresta de Berinhed, Tristran desafiou uma enorme águia castanha, que os teria carregado para o ninho para servir de alimento aos filhotes e que não tinha medo de nada, a não ser do fogo.

Numa taberna em Fulkeston, Tristran conquistou enorme renome recitando de cor partes do Kubla Kahn, de Coleridge, o Salmo 23, a fala sobre a “Qualidade da Misericórdia”, de O mercador de Veneza, e um poema sobre um menino que estava parado no meio do convés incendiado do qual todos tinham fugido, menos ele. Cada um desses textos, ele tinha sido obri­gado a decorar em seus tempos de escola. Ele abençoou a Sra. Cherry por seus esforços por fazer com que Tristran deco­rasse poesia, até ficar evidente que o povo de Fulkeston tinha decidido que ele ficaria com eles para sempre e se tornaria o novo bardo da pequena cidade. Tristran e Yvaine se viram forçados a escapar da cidade sorrateiramente no meio da noite. E somente escapuliram porque Yvaine (de algum modo, sobre o qual Tristran nunca teve uma idéia clara) conseguiu persuadir os cachorros da cidade a não latir enquanto eles saíam.

O sol bronzeou de um tom castanho o rosto de Tristran e desbotou seus trajes até eles ficarem nas cores de ferrugem e poeira. Yvaine continuava branca como a lua e não deixou de mancar, por mais léguas que cobrissem.

Uma noite, quando estavam acampados à beira de uma mata fechada, Tristran ouviu algo que nunca tinha ouvido: uma linda melodia, estranha e comovente. Ela lhe encheu a cabeça de visões e o coração, de assombro e prazer. A música fez com que ele pensasse em espaços sem limites, em imensas esferas cris­talinas que giravam com um vagar indescritível pelos vastos salões do ar. A melodia o transportou, o levou para além de si mesmo.

Depois do que poderiam ter sido horas e também poderiam ter sido apenas minutos, a música terminou, e Tristran deu um suspiro.

— Foi fantástico — disse ele. Os lábios da estrela formaram a contragosto um sorriso, e seus olhos se iluminaram.

— Obrigada — disse ela. — Acho que até agora eu não tinha sentido vontade de cantar.

— Nunca ouvi nada parecido.

— Algumas noites, minhas irmãs e eu costumávamos cantar juntas. Canções como essa, todas sobre a senhora nossa mãe, a natureza do tempo e as alegrias de brilhar e da solidão.

— Sinto muito — disse ele.

— Não sinta — respondeu ela. — Pelo menos, ainda estou viva. Tive sorte de cair na Terra Encantada. E acho provável que tenha tido sorte em encontrar você.

— Obrigado — disse Tristran.

— Não há de quê — respondeu a estrela. Por sua vez, ela também deu um suspiro e ficou olhando para o céu através das falhas na copa das árvores.

 

Tristran estava procurando algum alimento para a refeição matinal. Tinha encontrado alguns cogumelos e uma ameixeira, coberta de frutos roxos que tinham amadurecido e murchado até quase parecerem ameixas secas, quando avistou a ave no mato rasteiro.

Não fez nenhum esforço para pegá-la (tinha sofrido um grande choque algumas semanas antes, quando, depois de ter por pouco deixado de capturar uma grande lebre parda para o jantar, viu que ela parou à beira da floresta, olhou para ele com desdém e disse “Bem, imagino que você se orgulhe muito de si mesmo, só isso”, antes de disparar pelo meio do capim alto), mas ficou fascinado com a ave. Era mesmo extraordinária, grande como um faisão, mas com plumas de todas as cores, vermelhos e amarelos berrantes e azuis fortes. Parecia uma refugiada dos trópicos, totalmente deslocada nesse mundo verde, repleto de samambaias. Quando ele se aproximou, a ave teve um sobressalto, deu uns pulinhos desajeitados e, à medida que ele chegava mais perto, deu gritos de extrema aflição.

Tristran se abaixou apoiado num dos joelhos ao lado dela, murmurando palavras tranqüilizadoras. Estendeu a mão para tocar na ave. A dificuldade estava evidente: uma corrente de prata presa a seu pé tinha se enredado na protuberância retor­cida de uma raiz saliente, e a ave tinha ficado presa ali, sem conseguir se mexer.

Com cuidado, Tristran desenrolou a corrente prateada, desenganchando-a da raiz, enquanto, com a mão esquerda, afa­gava a plumagem eriçada da ave.

— Pronto, pronto — disse ele à ave. — Pode voltar para casa. — Mas a ave não fez menção de sair de perto dele. Em vez disso, olhava fixamente para o rosto de Tristran, com a cabeça inclinada para um lado. — Olhe — disse Tristran, sentindo-se bastante estranho e constrangido —, é provável que alguém esteja preocupado com você. — E estendeu uma das mãos para pegar a ave.

Nesse instante, alguma coisa o atingiu, deixando-o ator­doado. Apesar de estar parado, ele teve a impressão de que tinha colidido a toda velocidade com um muro invisível. Cambaleou e quase caiu.

— Ladrão! — gritou uma voz velha e esganiçada. — Vou trans­formar seus ossos em gelo e assá-lo numa fogueira! Vou lhe arrancar os olhos e prender um num arenque e o outro numa gaivota, para que a dupla visão do mar e do céu o leve à lou­cura! Vou transformar sua língua numa minhoca puladeira, seus dedos vão se tornar navalhas, e formigas-de-fogo vão lhe causar comichão, de modo que cada vez que você for se coçar...

— Não precisa bater tanto na mesma tecla — disse Tristran à velha. — Não roubei sua ave. A corrente estava enganchada numa raiz, e eu tinha acabado de soltá-la.

Furiosa, ela lhe lançou um olhar cheio de suspeita, por baixo da gaforinha grisalha. Depois avançou apressada e apa­nhou a ave. Segurou-a no alto e murmurou alguma coisa para ela. A ave respondeu com um estranho gorjeio melodioso. A velha semicerrou os olhos.

— Bem, pode ser que o que você diz não seja uma mentira deslavada — admitiu ela, com extrema relutância.

— Não é mentira de jeito nenhum — disse Tristran, mas a velha e sua ave já tinham atravessado metade da clareira. Por isso, ele recolheu os cogumelos e as ameixas e voltou para onde tinha deixado Yvaine.

Ela estava sentada à margem do caminho, esfregando os pés. Sentia dor na bacia, e também na perna, enquanto a sen­sibilidade dos pés ia se tornando cada vez mais forte. Às vezes, à noite, Tristran a ouvia soluçar baixinho, sozinha. Ele espera­va que a lua lhes mandasse mais um unicórnio, mas sabia que isso não aconteceria.

— Bem — disse Tristran a Yvaine —, foi esquisito. — Ele lhe narrou os acontecimentos da manhã e achou que o assunto estava encerrado.

É claro que estava enganado. Algumas horas mais tarde, Tristran e a estrela iam seguindo pelo caminho da floresta quando foram ultrapassados por um carroção pintado com cores vivas, puxado por duas mulas cinzentas e conduzido pela velha que tinha ameaçado transformar seus ossos em gelo. Ela refreou as mulas e chamou Tristran, curvando um dedo ossudo. —Venha cá, menino — disse ela.

— Pois não, senhora — respondeu ele, aproximando-se com cautela.

— Parece que lhe devo desculpas — disse ela. — Parece que você estava falando a verdade. Conclusão precipitada de minha parte.

— Foi mesmo — disse Tristran.

— Deixe-me olhar para você — disse ela, descendo para o leito da estrada. Seu dedo gelado tocou no ponto mole por baixo do queixo de Tristran, forçando-o a levantar a cabeça. Os olhos da cor de avelã do menino encararam com firmeza os olhos verdes da velha. —Você até que parece bem honesto — disse ela. — Pode me chamar de Madame Semele. Estou a cami­nho de Muralha, para a feira. Estive pensando que seria bom ter um rapaz para cuidar de minha pequena banca de flores. Sabe, eu vendo flores de vidro. Você nunca viu nada mais boni­to. Você daria um bom feirante, e nós podíamos pôr uma luva nessa sua mão, para você não espantar os fregueses. O que me diz?

— Com licença — disse Tristran, depois de pensar um pouco. Foi então até onde estava Yvaine para decidir com ela. Juntos eles voltaram até onde a velha estava.

— Boa-tarde — disse a estrela. — Nós analisamos sua oferta e achamos que...

— E então? — perguntou Madame Semele, com os olhos fixos em Tristran. — Não fique aí parado como um palerma! Fale! Fale! Fale!

— Não tenho nenhum desejo de trabalhar para a senhora na feira — disse Tristran — porque tenho meus próprios assun­tos a tratar por lá. Mas, se pudéssemos pegar uma carona com a senhora, minha companheira e eu estamos dispostos a pagar pelo transporte.

Madame Semele abanou a cabeça.

— Isso de nada me adiantaria. Posso apanhar lenha para mim mesma e você só seria mais peso para Infiel e Desespe­rançado. Não aceito passageiros. — Ela subiu de novo para o banco do condutor.

— Mas eu lhe pagaria — insistiu Tristran. A megera deu risadinhas, desdenhosa.

— Não existe nada que você possa ter que eu aceitaria em pagamento. Agora, se não quer trabalhar para mim na feira em Muralha, trate de sumir da minha frente.

Tristran levou a mão à casa do botão de seu gibão e apalpou o que estava ali, frio e perfeito como sempre estivera em todas as suas andanças. Tirou o objeto do lugar e o exibiu para a velha segurando-o no alto entre o indicador e o polegar.

— A senhora diz que vende flores de vidro. Será que estaria interessada nesta aqui?

Era uma fura-neve feita de vidro verde e vidro branco, tra­balhada com esmero. Dava a impressão de ter sido colhida da campina naquela manhã, ainda com o orvalho nela. A velha examinou a flor, com os olhos contraídos, apreciando as folhas verdes e as pétalas brancas muito unidas. Soltou então um guincho, que poderia ter sido o grito angustiado de alguma ave de rapina da qual tivesse sido arrancado algo valioso.

— Onde você conseguiu isso? — gritou ela. — Passe já para mim. Agora!

Tristran fechou o dedo em torno da fura-neve, esconden­do-a, e deu uns dois passos para trás.

— Hummm — disse ele, elevando a voz. — Acabo de me lem­brar de que tenho um carinho muito especial por essa flor, que foi um presente de meu pai quando dei início às minhas andanças e que, suspeito eu, tem uma tremenda importância pessoal e familiar. Ela sem dúvida me trouxe sorte, de um modo ou de outro. Talvez o melhor para mim seja ficar com a flor, e eu e minha companheira podemos ir até Muralha a pé.

Madame Semele parecia estar dilacerada entre o desejo de ameaçar e o de engambelar. E as emoções passavam por seu rosto tão abertamente que ela dava a impressão de estar quase vibrando com o esforço que fazia para mantê-las sob controle. E então conseguiu se dominar e falou, com uma voz que esta­lava de tanto autodomínio:

— Ora, ora. Ninguém precisa se precipitar. Tenho certeza de que podemos chegar a um acordo.

— Ah — disse Tristran —, duvido. Seria preciso que fosse um acordo muito bom de verdade para me interessar. E ele precisa­ria incluir certas garantias de segurança e as salvaguardas que assegurassem que seu comportamento e seus atos para comigo e minha companheira fossem sempre inofensivos.

— Deixe-me ver de novo a fura-neve — implorou a velha. A ave de cores vivas, com a corrente de prata numa das pernas, saiu esvoaçando pela porta aberta do carroção e dali do alto ficou observando a negociação.

— Coitadinha! — disse Yvaine. — Acorrentada desse jeito. Por que a senhora não solta essa ave?

Mas a velha não lhe deu resposta, não tomando conheci­mento dela, ou foi o que Tristran pensou.

— Eu o transportarei até Muralha, e juro por minha honra e por meu verdadeiro nome que nenhuma ação de minha parte há de prejudicá-lo nesta viagem.

— Nem que por omissão, ou por ação indireta, mal algum venha a atingir a mim ou a minha companheira.

— Como queira.

Tristran pensou um pouco. Sem dúvida, não confiava na velha.

— Quero que a senhora jure que chegaremos em Muralha com a mesma forma, no mesmo estado e condição em que nos encontramos agora, e que a senhora nos fornecerá abrigo e ali­mento ao longo do caminho.

A velha estalou a língua e fez que sim. Com dificuldade, ela desceu do carroção mais uma vez, pigarreou e cuspiu na terra.

— Agora, você — disse ela, apontando para a rodela de sali­va. Tristran cuspiu ao lado. Com o pé, a velha esfregou as duas manchas para que se unissem. — Pronto. O negócio está feito. Agora me dê a flor.

A ganância e a voracidade estavam tão óbvias em seu rosto que Tristran teve certeza de que poderia ter feito melhor negócio, mas entregou à velha a flor de seu pai. Quando a velha a segurou, seu rosto se abriu num sorriso desdentado.

— Ora, acho mesmo que esta flor é o modelo daquela que essa criança maldita deu de mão beijada há quase vinte anos. Agora, meu rapaz — disse, olhando para Tristran com seus olhos velhos e penetrantes —, diga-me se você sabe que tipo de coisa andou usando na lapela.

— Uma flor. Uma flor de vidro.

A velha deu uma risada tão forte e tão de repente que Tristran achou que ela estava se engasgando.

— É um talismã solidificado — disse ela. — Um objeto de poder. Nas mãos certas, um objeto desses pode realizar assom­bros e milagres. Veja! — Ela segurou a fura-neve acima da própria cabeça e então veio descendo a mão lentamente, até fazer com que a flor roçasse na testa de Tristran.

Por não mais do que um instante, ele teve uma sensação estranhíssima, como se, em vez de sangue, o que estava cor­rendo por suas veias fosse melaço, escuro e espesso. E então as formas do mundo mudaram. Tudo se tornou de enorme tamanho e altura. Parecia que a própria velha era agora uma giganta. E a visão de Tristran estava confusa e pouco nítida.

Duas mãozorras desceram e o apanharam com delicadeza.

— O carroção não é dos maiores — disse Madame Semele, com a voz num retumbar líquido, lento e grave. — E eu vou cumprir meu juramento à risca, pois você não sofrerá nenhu­ma lesão e terá abrigo e alimento durante a viagem até Muralha. — E então ela enfiou o arganaz no bolso do avental e voltou a subir no carroção.

— E o que a senhora pretende fazer comigo? — perguntou Yvaine, mas não ficou totalmente surpresa quando a mulher não respondeu. Acompanhou a velha até o interior escuro do carroção. Era apenas um cômodo. Ao longo de uma lateral havia uma grande vitrine feita de couro e pinho, com cem compartimentos, e foi num desses compartimentos, numa camada de lanugem de cardo, que a velha pôs a fura-neve. Ao longo do outro lado havia uma pequena cama, com uma janela acima dela e um grande armário.

Madame Semele se abaixou e puxou, do espaço entulhado por baixo de sua cama, uma gaiola de madeira. Tirou do bolso o arganaz, que não parava de piscar os olhos, e o colocou den­tro da gaiola. Depois pegou um punhado de nozes, sementes e frutinhos de uma tigela de madeira e os dispôs no interior da gaiola, que pendurou numa corrente no centro do carroção.

— Pronto — disse ela. — Abrigo e alimento.

Tudo isso Yvaine observava com curiosidade do lugar onde estava sentada na cama da velha.

— Eu estaria correta — perguntou, com boas maneiras — em concluir, com base nas provas disponíveis (a saber, que a se­nhora não olhou para mim, ou, se olhou, seus olhos não me registraram; que a senhora não me disse uma palavra sequer; e que transformou meu companheiro num bichinho, sem tomar uma providência semelhante a meu respeito), que a senhora não tem como me ver nem me ouvir?

A bruxa não deu resposta. Foi até o assento do condutor, sentou e segurou as rédeas. A ave exótica foi saltitando até o lado dela e chilreou uma vez, num tom de curiosidade.

— É claro que cumpri a palavra dada, à risca — disse a mulher, como que em resposta. — Ele será transformado de volta na campina da feira. Portanto, vai recuperar sua forma antes de chegar a Muralha. E, depois que eu o transformar de volta, terei de transformar você novamente em ser humano, porque ainda não encontrei uma criada melhor do que você, sua tonta. Eu não ia poder agüentar o fulaninho me estorvando o dia inteiro, cutucando, esmiuçando e fazendo perguntas. E ainda por cima teria de alimentá-lo, com mais do que nozes e sementes. — Ela se deu um abraço apertado, balançando para a frente e para trás. — Ah, ainda está por nascer a criatura que consiga me passar a perna. E acredito que a flor desse caipira seja ainda melhor do que a que você me fez perder, todos esses anos atrás.

Ela estalou a língua, sacudiu as rédeas e as mulas partiram em silêncio pela trilha da floresta.

Enquanto a bruxa conduzia o carroção, Yvaine descansava na cama bolorenta. O carroção estalava e balançava no caminho através da floresta. Quando parava, Yvaine acordava e se levan­tava. Enquanto a bruxa dormia, Yvaine ficava sentada no teto do carroção, olhando para as estrelas no céu. Às vezes, a ave da bruxa vinha sentar a seu lado, e ela a afagava e a cumulava de atenções, porque era bom ter por perto alguma coisa que reconhecesse sua existência. Mas, quando a bruxa estava em ati­vidade, a ave fingia não tomar o menor conhecimento de Yvaine.

Yvaine também se importava com o pobre do arganaz, que passava a maior parte do tempo em sono profundo, todo enro­lado com a cabeça entre as patas. Quando a bruxa saía para recolher lenha ou buscar água, Yvaine abria a porta da gaiola, fazia carinhos nele e conversava com ele. Em algumas ocasiões, chegou a cantar para ele, mas não sabia dizer se alguma coisa de Tristran restava no arganaz, que olhava para ela com olhos plácidos e sonolentos, como gotas de tinta preta, e cujo pêlo era mais macio do que penugem de ganso.

Ela já não sentia dor na bacia, agora que não estava cami­nhando todos os dias. E seus pés também não estavam tão doloridos. Sabia que no futuro sempre haveria de mancar porque Tristran não era nenhum cirurgião, quando se tratava de consertar um osso fraturado, apesar de ele ter feito o me­lhor possível. Meggot tinha reconhecido isso.

Quando, como aconteceu raramente, eles encontravam outras pessoas, a estrela se esforçava ao máximo para não apare­cer. Contudo, ela logo descobriu que, mesmo quando alguém lhe dirigia a palavra dentro do campo de audição da bruxa — quando, como ocorreu uma vez com um lenhador, alguém apontava para ela e fazia a Madame Semele alguma pergunta a seu respeito a feiticeira não parecia ser capaz de perceber a presença de Yvaine, ou mesmo de ouvir qualquer coisa rela­cionada à existência da estrela.

E assim, de uma forma chocalhante, que sacudia os ossos, as semanas se passaram no carroção para a bruxa, a ave, o arga­naz e a estrela caída.

 

O Fosso de Diggory era um corte profundo entre duas colinas de greda — montes altos, verdes, nos quais uma fina camada de capim verde e terra avermelhada cobria a greda, praticamente sem solo suficiente para sustentar árvores. De longe, o Fosso se assemelhava a um rasgo de giz branco num tabuleiro de veludo verde. A lenda da região dizia que o corte foi cavado, em um dia e uma noite, por um certo Diggory, usando uma pá de cavar que tinha sido uma lâmina de espada antes que Wayland, o ferreiro, a derretesse e a batesse no for­mato de pá, na viagem que fez de Muralha para penetrar na Terra Encantada. Houve quem dissesse que a espada tinha sido Flamberge, e outros, que teria sido a espada Balmung. Mas não houve quem alegasse saber exatamente quem era Diggory e tudo podia não ter passado de histórias e tolices. Fosse como fosse, o caminho de Muralha passava pelo Fosso de Diggory, e qualquer viandante ou qualquer pessoa que usasse algum veículo sobre rodas passava pelo Fosso, do qual a greda se erguia de cada lado como grossas paredes brancas, e as colinas se elevavam a partir delas como os travesseiros verdes da cama de um gigante.

A meio caminho no Fosso, ao lado da trilha, havia o que parecia ser à primeira vista pouco mais do que uma pilha de varas e gravetos. Uma inspeção mais minuciosa teria revelado que a natureza da construção se situava entre um pequeno bar­racão e uma grande tenda cônica, com um buraco no teto pelo qual de vez em quando era possível ver uma fumaça cinzenta saindo aos poucos.

Havia dois dias, o homem de preto vinha examinando a pilha de varas com a maior atenção possível, de lá do alto das colinas e, quando teve coragem para tanto, de mais perto. Tinha descoberto que a choupana era habitada por uma mulher de idade avançada. Ela não tinha companheiros, nem ocupação evidente, a não ser a de parar todo e qualquer viajante solitário e cada veículo que passasse pelo Fosso, e não fazer nada o resto do tempo.

Ela parecia suficientemente inofensiva, mas não foi con­fiando em aparências que Septimus se tornou o único sobre­vivente do sexo masculino de sua família imediata; e Septimus estava convencido de que essa velha tinha degolado Primus.

As obrigações da vingança exigiam uma vida em troca de outra, mas não especificavam de que modo a vida deveria ser tomada. Ora, por temperamento Septimus era um dos envene­nadores da natureza. Armas brancas, golpes e armadilhas ti­nham seu próprio valor, mas um frasco de líquido transparente, sem deixar vestígio de sabor ou de odor depois de misturado a algum alimento, essa era a especialidade de Septimus.

Infelizmente, a velha dava a impressão de não consumir nenhum alimento que ela não colhesse ou capturasse sozinha. E, embora ele cogitasse deixar à porta do casebre uma torta fumegante, feita com maçãs maduras e bagas letais, logo descar­tou a idéia por não ser nada prática. Pensou em fazer rolar uma grande pedra do alto dos montes acima dela, deixando-a cair sobre a pequena casa, mas não podia ter certeza de atingir a velha. Ele desejou ter mais talento para a magia — dispunha de certa capacidade para localização, que aparecia aleatoriamente em sua linhagem, e podia recorrer a alguma magia sem importância, que tinha aprendido ou roubado ao longo dos anos, mas nada que lhe fosse útil nesse momento, quando ele precisava invocar inundações, furacões ou tempestades de raios. Por isso, Septimus observava sua futura vítima como um gato vigia a entrada da toca de um rato, horas a fio, noite e dia.

Já passava da meia-noite, e a escuridão era total, sem luar, quando Septimus por fim chegou sorrateiro à porta da casa de varas, com um braseiro numa das mãos e, na outra, um livro de poesia romântica e um ninho de melro, no qual ele tinha posto algumas pinhas secas. Trazia preso no cinto um porrete de car­valho, em cuja ponta estavam crivados pregos de latão. Ele escutou à porta, mas não ouviu mais do que uma respiração ritmada e, de vez em quando, um gemido de quem está dor­mindo. Seus olhos estavam acostumados ao escuro e a casa sobressaía em contraste com a greda branca do Fosso. Ele pas­sou para o lado da construção, de onde pudesse manter a porta à vista.

Para começar, rasgou as folhas do livro de poemas e amas­sou cada um na forma de uma bola ou de um papel torcido, que enfiou no meio das varas da parede do casebre, bem perto do chão. Por cima dos poemas, pôs as pinhas. Seu passo seguinte foi abrir o braseiro e, com a faca, fisgou um punhado de trapos encerados que estavam na tampa, mergulhou-os nos tições em brasa e, quando estavam bem acesos, pôs cada um nos papéis torcidos e nas pinhas, soprando delicadamente as trêmulas chamas amarelas até o fogo pegar firme. Deixou cair os gravetos secos do ninho de passarinho sobre esse pequeno fogo, que começou a crepitar na noite, lançando chamas e crescendo. As varas secas da parede começaram a fumegar um pouco, fazendo com que Septimus reprimisse uma tosse. E então pegaram fogo, e ele sorriu.

Septimus voltou à porta do casebre, erguendo bem alto o porrete. “Pois”, segundo seu raciocínio, “ou a megera queima junto com a casa, e nesse caso minha missão estará cumprida, ou ela sente o cheiro da fumaça, acordando assustada e desnor­teada, para sair correndo lá de dentro. E nesse caso eu lhe dou um golpe de porrete na cabeça, arrebentando com ela antes que consiga dizer uma palavra. Com isso ela morre e meu irmão estará vingado. “

— Belo plano — disse Tertius, no crepitar da madeira seca. — E uma vez que ele a mate, poderá ir adiante para conseguir o Poder da Fortaleza da Tempestade.

—Veremos — disse Primus, e sua voz era o lamento distante de uma ave noturna.

As labaredas lamberam a casinha de madeira e foram crescendo e se espalhando pelos lados em chamas de um amarelo-laranja forte. Ninguém foi à porta do casebre. Logo, aquilo ali era um inferno, e Septimus foi forçado a dar alguns passos para trás, para se afastar do calor intenso. Deu um largo sorriso de vitória e abaixou o porrete.

Sentiu então uma dor aguda no calcanhar. Virou-se e viu uma pequena cobra de olhos brilhantes, vermelha com o ful­gor do incêndio, com as presas fincadas na parte traseira de sua bota de couro. Atirou o porrete na direção dela, mas a peque­na criatura soltou o calcanhar e voltou a enorme velocidade para trás de um pedregão de greda.

A dor no calcanhar começou a diminuir. “Se havia veneno na picada”, pensou Septimus, “o couro deve ter absorvido a maior parte. Vou amarrar minha perna na altura da panturri­lha, depois descalço a bota e faço uma incisão em cruz no lugar da picada, para então chupar o veneno da serpente. “ Com esse pensamento, ele se sentou numa pedra à luz do incêndio e co­meçou a puxar a bota. Ela não saía. O pé estava dormente e ele se deu conta de que estava inchando rapidamente. “Então corto fora a bota. “ Levantou o pé até o nível da coxa. Por um instante, achou que o mundo estava escurecendo e então viu que as chamas, que tinham iluminado o Fosso como uma grande fogueira, tinham sumido. Sentiu o frio enregelar seus ossos.

— Quer dizer — disse uma voz atrás dele, suave como uma corda de seda para um estrangulamento, doce como uma pas­tilha envenenada — que você achava que poderia se aquecer queimando meu pequeno chalé? Esperou à porta para estancar as chamas se elas acabassem por não me agradar?

Septimus teria lhe dado uma resposta, mas os músculos de sua mandíbula estavam travados, com os dentes fortemente cerrados. O coração batia em seu peito como um pequeno tambor, não em sua pulsação normal e regular, mas num aban­dono descontrolado, sem ritmo. Estava sentindo cada veia e artéria de seu corpo enviando fogo para toda a sua estrutura, se é que não era gelo que levavam, ele não saberia dizer.

Uma velha foi entrando em seu campo visual. Era pareci­da com a mulher que tinha ocupado o casebre, porém mais velha, muito mais velha. Septimus tentou piscar, para clarear a visão dos olhos marejados, mas tinha se esquecido de como se pisca, e seus olhos se recusavam a se fechar.

— Você deveria ter vergonha — disse a mulher — de tentar cometer violência e um incêndio criminoso contra a pessoa de uma pobre velhinha solitária, que estaria totalmente à mercê de todos os que por aqui passassem, não fosse a gentileza de seus amiguinhos.

E ela apanhou do chão gredoso alguma coisa que colocou em torno do pulso. Depois voltou para o casebre que, como por milagre, não estava queimado, ou talvez tivesse sido recu­perado, Septimus não sabia se uma coisa ou outra, e também não se importava.

Seu coração tremia e batia sincopado em seu peito. E, se ele pudesse dar um berro, teria dado. Já amanhecia quando a dor terminou e, em seis vozes, seus irmãos mais velhos lhe deram as boas-vindas.

Septimus olhou do alto, uma última vez, para aquela forma retorcida e ainda quente que ele tinha habitado e para a ex­pressão em seus olhos. Depois, deu-lhe as costas.

— Não resta nenhum irmão para se vingar dela — disse ele, com a voz dos passarinhos da manhã — e nenhum de nós jamais virá a ser o Senhor da Fortaleza da Tempestade. Sigamos adiante.

E, depois que ele disse isso, não havia nem mesmo fantas­mas naquele lugar.

 

O sol estava a pino naquele dia, quando o carroção de Madame Semele veio passando pelo corte na greda do Fosso de Diggory.

Madame Semele percebeu o casebre de madeira enegreci­do pela fuligem à beira da estrada e, quando se aproximou, viu a velha encurvada, num vestido escarlate desbotado, que ace­nou para ela de onde estava. O cabelo da mulher era branco como a neve, a pele toda enrugada, e um dos olhos era cego.

— Bom-dia, irmã. O que houve com sua casa? — perguntou Madame Semele.

— Esses jovens de hoje. Um deles achou que seria divertido incendiar a casa de uma pobre velhinha que nunca fez mal a ninguém. Bem, ele aprendeu rapidinho a lição.

— É — disse Madame Semele. — Eles sempre aprendem. E nunca demonstram gratidão pela lição.

— É a pura verdade — disse a mulher do vestido escarlate desbotado. — Agora, minha querida, diga-me uma coisa: quem viaja aí com você hoje?

— Isso — respondeu Madame Semele com arrogância — não é de sua conta e eu lhe agradeço se cuidar da sua própria vida.

— Quem viaja com você? Diga a verdade ou eu lhe mando harpias para esquartejá-la e pendurar seus restos mortais num gancho, bem fundo por baixo do mundo.

— E quem seria você para me ameaçar desse jeito?

A velha olhou para Madame Semele com um olho são e o outro leitoso.

— Conheço você, Sally da Água Podre. Não quero saber desse seu maldito atrevimento. Quem viaja com você?

Madame Semele sentiu que as palavras lhe eram arrancadas da boca, sem importar se ela as queria pronunciar ou não.

— As duas mulas que puxam meu carroção, eu mesma, uma criada que mantenho sob a forma de uma ave grande e um rapaz, sob a forma de um arganaz.

— Mais alguém? Mais alguma coisa?

— Mais ninguém e mais nada. Juro pela Irmandade. A mulher à beira da estrada contraiu os lábios.

— Então vá em frente e trate de sumir daqui.

Madame Semele estalou a língua, sacudiu as rédeas e as mulas saíram a passo.

Na cama emprestada no interior escuro do carroção, a estrela dormia, sem se dar conta de como tinha chegado perto de um fim trágico, nem de como tinha sido por um triz que tinha escapado.

Quando saíram do alcance visual da casa de varas e da brancura mortal do Fosso de Diggory, a ave exótica bateu as asas para subir no poleiro, levantou o bico bem alto e gritou, cantou e alardeou vitória até Madame Semele dizer que torce­ria seu pescoço idiota se não se calasse. E mesmo assim, na escuridão silenciosa no interior do carroção, a bela ave cacare­java baixinho, gorjeava e trinava. E uma vez chegou a piar como uma corujinha.

 

O sol já estava baixo no céu quando eles se aproximaram do lugarejo de Muralha. Ele brilhava direto em seus olhos, deixando-os meio cegos e transformando o mundo em ouro líquido. O céu, as árvores, os arbustos, até mesmo o próprio caminho estavam dourados à luz do sol poente.

Madame Semele fez com que as mulas parassem na cam­pina, no local onde instalaria sua banca. Ela desatrelou as duas mulas e as conduziu ao regato, onde as amarrou a uma árvore. Sedentas, elas beberam à vontade.

Havia outros participantes da feira e visitantes instalando bancas por toda a campina, armando barracas e pendurando cortinados em árvores. Um ar de expectativa envolvia a tudo e a todos, da mesma forma que a luz dourada do sol que caía no oeste.

Madame Semele entrou no carroção e soltou a gaiola da cor­rente que a prendia. Levou-a para a campina lá fora e a colo­cou num montinho coberto de grama. Abriu a porta da gaiola e, com seus dedos ossudos, tirou dali o arganaz adormecido.

— Vamos saindo — disse ela. O arganaz esfregou os olhos muito pretos com as patas dianteiras e piscou diante da luz do dia que ia terminando.

A bruxa enfiou uma das mãos no avental e tirou um nar­ciso de vidro. Com ele, tocou a cabeça de Tristran.

Sonolento, Tristran piscou os olhos e se espreguiçou. Passou a mão pelo cabelo castanho rebelde e olhou do alto para a bruxa, com uma revolta feroz.

— Ora, sua megera do mal... — começou ele.

— Cale essa boca sem juízo — disse Madame Semele, incisi­va. — Eu o trouxe aqui, em perfeita segurança, e no mesmo estado de quando o encontrei. Dei-lhe abrigo e alimentação. E se nenhum dos dois foi de seu agrado ou à altura de suas expectativas, bem, que diferença faz para mim? Agora, fora daqui, antes que eu o transforme numa minhoca puladeira e arranque sua cabeça com uma mordida, se não lhe arrancar a cauda. Fora! Xô!

Tristran contou até dez e depois foi embora, sem nenhu­ma cortesia. Parou a alguns metros dali, ao lado de um arvore­do para esperar pela estrela, que desceu pela escada do carroção e foi até ele.

— Tudo bem com você? — perguntou ele, com verdadeira preocupação, à medida que ela se aproximava.

— Estou bem, obrigada — disse a estrela. — Ela não me mal­tratou. Na verdade, acho que ela nunca soube que eu estava por ali. Não é estranho?

Madame Semele estava agora parada diante da ave. Ela tocou a cabeça emplumada com sua flor de vidro, e a ave foi se desfazendo e se modificando para se transformar numa mulher jovem, na aparência não muito mais velha do que Tristran, com cabelos escuros e cacheados, e orelhas peludas como as de um gato. Ela olhou de relance para Tristran, e havia naqueles olhos da cor de violeta alguma coisa que pareceu a Tristran totalmente conhecida, embora ele não conseguisse se lembrar de onde os tinha visto.

— Quer dizer que essa é a verdadeira forma da ave — disse Yvaine. — Ela foi uma boa companheira de viagem. — E então a estrela percebeu que a corrente de prata que mantinha a ave presa ainda estava ali, agora que a ave tinha se transformado em mulher. Dava para ver seu brilho no pulso e no tornozelo, e Yvaine chamou a atenção de Tristran para isso.

— É — disse Tristran. — Estou vendo. É um horror. Mas não sei se existe alguma coisa que se possa fazer.

Os dois seguiram juntos pela campina, na direção da aber­tura na muralha.

— Vamos visitar meus pais primeiro — disse Tristran —, porque não tenho dúvidas de que sentiram falta de mim tanto quanto eu senti deles — se bem que, para dizer a verdade, Tristran mal tivesse chegado a pensar nos pais durante suas andanças —, depois vamos visitar Victoria Forester e... — E foi com esse “e” que Tristran calou a boca. É que ele já não con­seguia conciliar sua velha idéia de dar a estrela a Victoria Forester com sua atual noção de que a estrela não era um obje­to a ser passado de mão em mão, mas uma pessoa real sob todos os aspectos, e de modo algum um objeto. Mesmo assim, Victoria Forester era a mulher que ele amava.

Decidiu então não passar o carro adiante dos bois. Por enquanto, levaria Yvaine ao povoado e lidaria com os aconteci­mentos à medida que surgissem. Sentiu que seu ânimo melho­rava, e que o tempo passado como arganaz já tinha se tornado em sua cabeça nada mais do que os vestígios de um sonho, como se ele apenas tivesse tirado uma soneca diante da lareira da cozinha e agora estivesse de novo bem acordado. Ele quase conseguia sentir em sua memória o sabor da cerveja do Sr. Bromios, apesar de se dar conta, com um sobressalto de culpa, de ter se esquecido da cor dos olhos de Victoria Forester.

O sol estava vermelho e enorme por trás do contorno dos telhados de Muralha quando Tristran e Yvaine atravessaram a campina e olharam pela abertura na muralha. A estrela hesitou.

—Você realmente quer fazer isso? — perguntou a Tristran. — Porque eu tenho minhas dúvidas.

— Não fique nervosa — disse ele. — Apesar de não ser sur­preendente que você tenha nervos. Meu estômago me dá a impressão de eu ter engolido umas cem borboletas. Você vai se sentir muito melhor quando estiver sentada na sala de visitas de minha mãe, tomando chá... bem, não tomando, mas vai ter chá para você fingir que toma. Puxa, garanto que para uma convi­dada como você e para dar as boas-vindas ao filho de regresso rainha mãe tiraria do armário a melhor porcelana. — E a mão de Tristran procurou a dela e lhe deu um apertinho tran­qüilizador.

A estrela olhou para ele e deu um sorriso delicado, de tristeza. — Aonde tu fores... — murmurou.

De mãos dadas, o rapaz e a estrela caída se aproximaram da abertura na muralha.

 

Costuma-se ouvir o comentário de que é tão fácil deixar de perceber alguma coisa grande e óbvia quanto alguma coisa pequena e insignificante, e que as coisas grandes que as pessoas deixam de perceber podem muitas vezes causar problemas.

Com a estrela mancando a seu lado, Tristran Thorn chegou à abertura na muralha, vindo da Terra Encantada, pela segunda vez desde sua concepção, dezoito anos antes. Sua cabeça estava num turbilhão com os cheiros e os sons de seu lugarejo natal e seu coração pareceu crescer dentro dele. Ele cumprimentou educadamente os guardas na abertura, à medida que se aproxi­mou e os reconheceu. O rapaz que mudava de pé de apoio o tempo todo enquanto bebericava um canecão do que Tristran supôs ser a melhor cerveja do Sr. Bromios era Wystan Pippin, que tinha sido colega de escola de Tristran, apesar de nunca ter sido seu amigo. Já o adulto, que irritantemente pitava seu cachimbo que parecia ter se apagado, era nada menos do que o antigo patrão de Tristran na Domingos & Brown’s, o Sr. Jerome Ambrose Brown. Os homens estavam de costas para Tristran e Yvaine, olhando resolutamente para o povoado, como se considerassem um pecado observar os preparativos em andamento na campina às suas costas.

— Boa-noite, Wystan. Boa-noite, Sr. Brown — disse Tristran, com gentileza.

Os dois homens tiveram um sobressalto. Wystan derramou a cerveja pela frente do paletó. O Sr. Brown, nervoso, ergueu o cajado e direcionou sua ponta para o peito de Tristran. Wystan Pippin pôs a cerveja no chão, apanhou seu cajado e com ele fechou a abertura.

— Parado onde está! — disse o Sr. Brown, fazendo um gesto com o cajado, como se Tristran fosse uma fera prestes a atacá-lo a qualquer momento.

Tristran deu uma risada.

— Vocês não me conhecem? Sou eu, Tristran Thorn.

Mas o Sr. Brown, que era o mais velho dos guardas, isso Tristran sabia, não abaixou o cajado. Examinou Tristran da cabeça aos pés, da gaforinha desgrenhada às botas marrons gas­tas. Olhou então para o rosto bronzeado de Tristran e fungou, sem se deixar impressionar.

— Mesmo que você seja aquele inútil do Thorn, não vejo razão para deixar que vocês entrem. Afinal de contas, somos os guardas da Muralha.

Tristran piscou os olhos.

— Eu também já fui guarda da muralha — salientou. — E sei que não há nenhuma norma que proíba a passagem de pessoas que venham deste lado. A proibição vale somente para quem vem do povoado.

O Sr. Brown fez que sim, devagar. E então falou como quem está se dirigindo a um idiota:

— E, se você for mesmo Tristran Thorn, o que estou acei­tando apenas para facilitar minha argumentação, pois você não tem a menor semelhança com ele e também não fala de modo algum como ele falava, em todos os anos que morou aqui, quantas pessoas passaram pela muralha vindo da campina?

— Ora, nenhuma, ao que eu saiba — disse Tristran.

O Sr. Brown sorriu, o mesmo sorriso que costumava dar quando descontava do salário de Tristran a manhã inteira por conta de um atraso de cinco minutos.

— Isso mesmo. Não havia nenhuma norma contra essa pas­sagem, porque ela não acontece. Ninguém vem para cá vindo do outro lado. Pelo menos não enquanto eu estiver de plantão. Agora, trate de sumir daqui antes que eu lhe dê uma cajadada na cabeça.

Tristran ficou pasmo.

— Se o senhor pensa que passei por tudo o que passei só para ser proibido de entrar na última etapa, por um comer­ciante mesquinho e arrogante e por um colega que colava de mim nas aulas de história... — começou ele, mas Yvaine tocou em seu braço.

— Tristran, deixe para lá por enquanto. Você não deve brigar com sua própria gente.

Tristran nada disse. Virou-se então, sem uma palavra, e jun­tos os dois subiram de volta pela encosta da campina. Em torno deles, uma mixórdia de criaturas e pessoas levantava bar­racas, pendurava bandeiras e empurrava carrinhos. E então, numa onda de um sentimento que lembrava a saudade, mas uma saudade composta em partes iguais de anseio e desespero, ocorreu a Tristran que talvez essa fosse mesmo sua gente, pois ele sentia que tinha muito mais em comum com eles do que com o pálido povo de Muralha, com seus paletós de lã pen­teada e suas botas ferradas.

Eles pararam e ficaram olhando uma mulher pequena, de largura quase igual à altura, fazendo o maior esforço para insta­lar sua banca. Sem que lhe fosse pedido, Tristran se aproximou e começou a ajudá-la, carregando as caixas pesadas da car­rocinha para a banca, subindo numa escada de mão muito alta para pendurar uma quantidade de flâmulas num galho de árvore, desembalando pesadas garrafas e jarros de vidro para dispô-los nas prateleiras. Cada um estava fechado com uma enorme rolha enegrecida, vedado com cera prateada e repleto de uma fumaça colorida que girava lentamente. Enquanto ele e a feirante trabalhavam, Yvaine ficou sentada num toco de árvore ali perto, cantando para eles com sua voz suave e límpi­da as canções das altas estrelas, bem como as canções mais comuns que tinha ouvido e aprendido com as pessoas que os dois encontraram em suas andanças.

Na hora em que Tristran e a mulherzinha terminaram, e a banca estava pronta para o dia seguinte, eles já estavam traba­lhando à luz de lâmpadas. A mulher insistiu em lhes dar uma refeição. Yvaine quase não conseguiu convencê-la de que não estava com fome, mas Tristran comeu com entusiasmo tudo o que lhe foi oferecido e, o que não era seu costume, bebeu a maior parte de uma jarra de vinho doce das Canárias, insistindo que ele não parecia ser mais forte do que suco de uvas recém-espremidas e que não tinha absolutamente nenhum efeito sobre ele. Mesmo assim, quando a mulherzinha vigorosa lhes ofereceu a clareira por trás da carroça para que dormissem ali, em instantes Tristran estava num sono profundo.

Era uma noite fria, de céu limpo. A estrela estava sentada ao lado do rapaz adormecido, que um dia a tinha mantido pri­sioneira e depois se tornara seu companheiro de viagem, e se perguntava para onde tinha ido seu ódio. Ela não estava com sono.

Ouviu um farfalhar no capim atrás dela. Uma mulher de cabelos escuros estava em pé a seu lado e juntas elas olhavam para Tristran ali deitado.

— Ainda resta nele alguma coisa do arganaz — disse a mu­lher de cabelos escuros. Suas orelhas eram pontudas e seme­lhantes às de um gato. E ela parecia ser pouco mais velha do que Tristran. — As vezes eu me pergunto se ela transforma as pessoas em animais ou se descobre o animal que temos dentro de nós e o liberta. Talvez exista em mim alguma coisa que seja, por natureza, uma ave de cores vivas. Já pensei muito a res­peito, mas não cheguei a nenhuma conclusão.

Tristran resmungou alguma coisa ininteligível e se mexeu ali dormindo. Depois começou a roncar baixinho.

A mulher andou em volta de Tristran e se sentou a seu lado.

— Parece que ele tem bom coração — disse ela.

— É — admitiu a estrela. — Suponho que sim.

— Eu deveria avisá-la — disse a mulher — de que, se você sair destas terras... para passar para lá... — e ela fez um gesto na direção do lugarejo de Muralha, com um braço muito magro, de cujo pulso pendia, cintilante, uma corrente de prata —... você será, ao que eu saiba, transformada naquilo que você seria naquele mundo: uma coisa fria e morta, caída do céu.

A estrela estremeceu, mas não disse nada. Em vez disso, estendeu uma das mãos por cima do corpo adormecido de Tristran para tocar na corrente de prata que cingia o pulso e o tornozelo da mulher, seguindo pelo meio dos arbustos e mais além.

— Com o tempo, a gente se acostuma — disse a mulher.

— Verdade? Se acostuma mesmo?

Olhos da cor de violeta se fixaram no fundo de olhos azuis, e então o olhar se afastou.

— Não.

A estrela soltou a corrente.

— Ele chegou a me prender com uma corrente muito pare­cida com a sua. Depois me libertou e eu fugi. Mas ele me encontrou e me prendeu com uma obrigação, que para meu povo prende com mais firmeza do que qualquer corrente.

Uma brisa de abril passou pela campina, agitando os arbustos e as árvores num suspiro longo e gelado. A mulher de orelhas de gato balançou os cabelos cacheados para afastá-los do rosto.

— Você está presa a uma obrigação anterior, não está? Você porta um objeto que não lhe pertence, que deve entregar a seu legítimo dono.

A estrela contraiu os lábios.

— Quem é você? — perguntou.

— Já lhe disse. Sou a ave do carroção — respondeu a mulher. — Sei o que você é e sei por que a bruxa nunca soube que você estava por perto. Conheço quem está à sua procura e sei por que ela precisa de você. Além disso, conheço a proveniência do topázio que você está usando numa corrente de prata em torno da cintura. Com esse conhecimento e sabendo que tipo de criatura você é, sei a obrigação que você deve cumprir. — Ela se inclinou e, com dedos delicados, afastou com carinho o cabelo que cobria o rosto de Tristran. O rapaz adormecido não se mexeu nem teve qualquer tipo de reação.

— Não sei se acredito em você, nem se confio em você — disse a estrela. Uma ave noturna deu um grito numa árvore acima deles. Na escuridão ele soou muito solitário.

— Vi o topázio em sua cintura quando eu era ave — disse a mulher, voltando a ficar em pé. — Eu estava olhando quando você tomou banho no rio e reconheci a verdadeira natureza da pedra.

— Como? — perguntou a estrela. — Como você a reconhe­ceu?

Mas a mulher de cabelos escuros só abanou a cabeça e vol­tou por onde tinha vindo, lançando não mais que um olhar sobre o rapaz adormecido, deitado ali na grama. E então ela foi engolida pela escuridão.

Rebelde, o cabelo de Tristran tinha caído mais uma vez sobre o rosto. A estrela se inclinou e o afastou delicadamente para um lado, deixando que seus dedos se demorassem um pouco no rosto do rapaz. Ele continuava dormindo.

 

Tristran foi acordado pouco depois do amanhecer por um grande texugo, em pé sobre as patas traseiras, usando um robe de seda vermelha arroxeada, que ficou fungando em sua ore­lha até Tristran abrir os olhos, cheio de sono.

— Alguém atende pelo nome de Thorn? — perguntou ele, cheio de arrogância. — Com o prenome de Tristran?

— Hum? — disse Tristran. Sentia um gosto horrível na boca, que parecia seca e como se tivesse uma camada de pêlo. Pode­ria ter dormido mais algumas horas.

— Andam perguntando por você — disse o texugo. — Lá junto da abertura. Parece que uma moça quer ter uma con­versa com você.

Tristran se sentou e deu um largo sorriso. Tocou no ombro da estrela, que estava dormindo. Ela abriu os olhos azuis, sono­lentos.

— O que foi?

— Boas notícias — disse ele. — Você se lembra de Victoria Forester? Pode ser que eu tenha mencionado o nome dela uma vez ou duas durante nossas andanças.

— É. Pode ser.

— Pois bem, estou saindo para me encontrar com ela. Ela está lá junto da abertura. — Ele fez uma pausa. — Olhe... Bem... É provável que seja melhor você ficar aqui. Eu não ia querer que Victoria ficasse confusa ou coisa semelhante.

A estrela se virou para o outro lado, cobriu a cabeça com um dos braços e não disse mais nada. Tristran concluiu que ela devia ter adormecido de novo. Calçou as botas, lavou o rosto, enxaguou a boca no córrego e saiu correndo atabalhoada­mente pela campina, na direção do povoado.

Nessa manhã, os guardas na muralha eram o reverendo Myles, pároco de Muralha, e o Sr. Bromios, o estalajadeiro. Em pé entre eles, de costas para a campina, estava uma moça.

— Victoria! — chamou Tristran, encantado. Mas então a moça se virou e ele viu que não era Victoria Forester (que tinha os olhos cinzentos, como ele de repente se lembrou, com prazer. Era essa a cor de seus olhos: cinzentos. Como ele tinha se per­mitido esse esquecimento?). Mas Tristran não saberia dizer quem poderia ser essa mocinha, elegante de touca e xale, com olhos que se encheram de lágrimas ao vê-lo.

— Tristran! — disse ela. — É você! Disseram que era! Ai, Tristran! Como você pôde fazer uma coisa dessas? Como pôde? — E então ele se deu conta de quem devia ser a mocinha que o censurava.

— Louisa? — disse ele à irmã. — Você sem dúvida cresceu enquanto eu estive fora. Deixou de ser uma menina mirrada para se transformar numa bela moça.

Ela fungou e assoou o nariz num lenço com acabamento de renda que tirou da manga da roupa.

— E nessas suas andanças você se transformou num cigano desgrenhado e vestido de bobo. Mas parece que você está bem, e isso é ótimo. Vamos logo. — E ela fez um gesto impaciente para ele passar pela abertura na muralha e chegar aonde ela estava.

— Mas a muralha... — disse ele, olhando meio nervoso para o estalajadeiro e o pároco.

— Ah, quanto a essa parte, quando terminaram o turno ontem à noite, Wystan e o Sr. Brown se dirigiram para a Sétima Pega, onde Wystan por acaso mencionou ter encontrado um vagabundo que alegava ser você, e como eles o impediram de passar. Impediram você de passar! Quando essa notícia chegou aos ouvidos de papai, ele foi direto à Pega e passou uma tamanha descompostura nos dois que mal pude acreditar que fosse ele mesmo.

— Alguns de nós queriam deixar que você voltasse hoje de manhã — disse o pároco — e outros preferiam que você ficasse por lá até o meio-dia.

— Mas nenhum dos que queriam fazer você esperar até o meio-dia está de plantão na muralha agora — disse o Sr. Bromios. — O que custou algum esforço para organizar. Especialmente num dia em que eu deveria estar cuidando da banca de comes e bebes. Mesmo assim, é bom ver você de volta. Ande, pode passar. — E com isso ele estendeu a mão, que Tristran apertou com vigor. Depois, Tristran cumprimentou o pároco.

— Tristran — disse o pároco —, suponho que você tenha visto muita coisa estranha em suas andanças.

— Acho que vi mesmo — concordou Tristran, depois de refletir um pouco.

— Você precisa então ir me visitar, na semana que vem — disse o pároco. — Tomaremos chá, e você vai me contar tudo. Assim que estiver bem instalado, certo? — E Tristran, que sem­pre tinha encarado o pároco com certa reverência, não pôde fazer nada a não ser concordar.

Louisa deu um suspiro, um pouquinho teatral, e saiu an­dando, apressada, na direção da Sétima Pega. Tristran correu pela rua calçada de pedras para alcançá-la e logo estava andan­do a seu lado.

— Faz bem ao meu coração ver você de novo, minha irmã — disse ele.

— Como se nós todos não tivéssemos adoecido de tanta preocupação com você — disse ela, irritada —, com todas as suas estripulias. E você nem mesmo me acordou para se despedir. Papai tem andado muito aflito por sua causa, e no Natal, quan­do você não estava aqui, depois que comemos o ganso e o pudim, papai apanhou o vinho do Porto e fez um brinde aos amigos ausentes, e mamãe soluçou como um bebezinho, e é claro que eu também chorei. Com isso, papai começou a assoar o nariz em seu melhor lenço, e vovô e vovó Hempstock insis­tiram em abrir as surpresas de Natal para ler as mensagens ale­gres. E eu não sei como foi que isso só piorou as coisas. Bem, sem mais rodeios, você simplesmente acabou com nosso Natal.

— Sinto muito — disse Tristran. — O que estamos fazendo agora? Aonde estamos indo?

— Vamos à Sétima Pega — disse Louisa. — Imaginei que fosse óbvio. O Sr. Bromios disse que você poderia usar a sala de estar dele. Tem uma pessoa lá que precisa falar com você. — E não disse mais nada enquanto os dois entravam na estalagem. Ali havia uma série de rostos que Tristran reconheceu, e as pessoas o cumprimentaram em silêncio, ou sorriram, ou não sorriram, à medida que ele atravessava a multidão e subia pela escada estreita por trás do balcão até o patamar, com Louisa sempre a seu lado. As tábuas rangiam sob seus pés.

Louisa lançou sobre ele um olhar penetrante. E então seus lábios tremeram. E, para surpresa de Tristran, ela o enlaçou e o abraçou com tanta força que ele não conseguia respirar. Depois, sem dizer mais uma palavra, ela desceu correndo a escada de madeira.

Ele bateu à porta da sala de estar e entrou. A sala era deco­rada com uma quantidade de objetos diferentes, pequenas estatuetas antigas e potes de barro. Na parede, estava pendura­da uma bengala, toda coberta de folhas de hera, ou melhor, coberta com um metal escuro habilmente batido no formato de folhas de hera. Se não fosse a decoração, a sala poderia ter sido a sala de visitas de qualquer solteirão ocupado, com pouco tempo para se sentar. Estava mobiliada com uma pequena espreguiçadeira, uma mesa baixa sobre a qual se encontrava um exemplar encadernado em couro dos sermões de Laurence Sterne, um piano, algumas poltronas de couro, e era numa dessas poltronas que Victoria Forester estava sentada.

Tristran foi até ela num passo lento e firme, e então se abaixou apoiado num único joelho, do mesmo modo que tinha se ajoelhado diante dela na lama de um caminho no campo.

— Ah, por favor, não faça isso — disse Victoria Forester, cons­trangida. — Levante-se, por favor. Por que não se senta ali? Naquela poltrona? Isso. Muito melhor. — A luz da manhã bri­lhava através das cortinas de renda, iluminando por trás seus cabelos castanhos, emoldurando seu rosto em ouro. — Olhe só como você cresceu. Você está um homem. E sua mão? O que houve com a mão?

— Eu a queimei, num incêndio.

De início ela não disse nada em resposta. Apenas olhava para ele. Depois, recostou-se na poltrona e olhou à sua frente, para a bengala na parede ou talvez para uma das estatuetas anti­quadas do Sr. Bromios.

— Tenho uma série de coisas a lhe dizer, Tristran, e nenhu­ma delas vai ser fácil. Eu lhe seria grata se você não dissesse nada, enquanto não terminar o que tenho a dizer. Então, começando pelo que talvez seja o mais importante, preciso lhe pedir desculpas. Foi a minha tolice, a minha idiotice, que o fez partir em suas andanças. Eu achava que você estava brincan­do... não, brincando não é a palavra certa. Achava que você seria covarde demais, criança demais, para chegar a tentar cumprir aquelas promessas lindas, mas bobas. Foi só quando você se foi, e os dias passavam, e você não voltava, que me dei conta cie que você estava falando sério. E àquela altura já era tarde demais.

“Precisei viver... cada dia... com a possibilidade de que eu o tivesse mandado para a morte. “

Ela olhava fixamente para a frente enquanto falava, e Tristran teve a sensação, que se tornou certeza, de que Victoria tinha ensaiado essa conversa mentalmente umas cem vezes durante sua ausência. Era por isso que ele não tinha permissão para dizer nada. Já estava sendo bastante difícil para Victoria Fores­ter, e ela não conseguiria prosseguir se ele a forçasse a se desviar do roteiro pronto.

— E eu não fui justa com você, pobre caixeirinho de loja... mas você não é mais um caixeiro, não é mesmo?... porque eu achava que sua busca era pura bobagem, sob todos os aspec­tos... — Ela parou, e suas mãos agarraram os braços de madeira da cadeira com tanta força que as juntas ficaram vermelhas e depois brancas. — Quero que me pergunte por que eu não quis beijar você naquela noite, Tristran Thorn.

— Era seu direito não me beijar — disse Tristran. — Não vim aqui para lhe trazer tristeza, Vicky. Não encontrei para você a estrela para você ficar infeliz.

Victoria inclinou a cabeça para um lado.

— Quer dizer que você realmente encontrou a estrela que nós vimos naquela noite?

— Claro que encontrei — disse Tristran. — A estrela está lá na campina, neste exato momento. Mas eu fiz o que você me pediu.

— Então, faça mais uma coisa por mim agora. Me pergunte por que eu não quis lhe dar um beijo naquela noite. Afinal de contas, eu já o tinha beijado antes, quando éramos mais novos.

— Está bem, Vicky. Por que você não quis me beijar naquela noite?

— Porque — disse ela, e enquanto dizia havia em sua voz um alívio, um alívio enorme, como se estivesse escapando dela — ... porque um dia antes daquele em que vimos a estrela caden­te, Robert tinha me pedido para casar com ele. Naquela noite, quando vi você, eu tinha ido à loja na esperança de ver Robert, falar com ele e dizer que eu aceitava, e que ele deveria pedir minha mão a meu pai.

— Robert? — perguntou Tristran, com a cabeça girando num turbilhão.

— Robert Domingos. Você trabalhava na loja dele.

— O Sr. Domingos? — repetiu Tristran. — Você e o Sr. Domingos?

— Isso mesmo. — Ela agora estava olhando direto para ele. — E aí você precisava me levar a sério e sair correndo para me trazer uma estrela. E não se passou um dia em que eu não sen­tisse que tinha feito uma coisa idiota e horrível. Porque eu lhe prometi minha mão, se você voltasse com a estrela. E houve alguns dias, Tristran, em que eu sinceramente não sabia o que considerava pior, que você morresse nas Terras do Lado de Lá, só por amor a mim, ou que você tivesse êxito em sua loucura e voltasse com a estrela para exigir que eu o aceitasse como noivo. Agora, é claro que algumas pessoas daqui disseram para eu não me preocupar tanto assim, que era inevitável que você partisse para as Terras do Lado de Lá, por ser de sua natureza, e por você ser de lá, para começar. Mas de algum modo, em meu coração, eu sabia que tinha culpa e que um dia você voltaria para pedir minha mão.

— E você ama o Sr. Domingos? — perguntou Tristran, agar­rando-se à única informação naquilo tudo o que tinha certeza de ter entendido.

Ela fez que sim e levantou a cabeça, de modo que seu belo queixinho ficou apontado para Tristran.

— Mas eu lhe dei minha palavra, Tristran. E hei de cumprir minha palavra. E isso eu já disse a Robert. Sou responsável por tudo o que lhe aconteceu, até mesmo por essa sua pobre mão queimada. E, se você me quiser, serei sua.

— Para ser franco — disse ele —, acho que sou eu o respon­sável por tudo o que fiz, não você. E é difícil eu me arrepender de qualquer parte, mesmo que de vez em quando eu tenha sentido falta de camas macias; e mesmo sabendo que nunca mais vou conseguir olhar para um arganaz exatamente do mesmo jeito. Mas você não me prometeu sua mão, se eu voltasse com a estrela, Vicky.

— Não prometi?

— Não. Você me prometeu qualquer coisa que eu desejasse. Victoria Forester se empertigou toda na cadeira e olhou para o assoalho. Uma mancha vermelha ardia em cada boche­cha claríssima, como se tivessem lhe dado uma bofetada.

— Será que entendi que você... — começou ela, mas Tristran a interrompeu:

— Não — disse ele. — Acho que você não entendeu mesmo. Você disse que me daria o que fosse meu desejo.

— Certo.

— Então... — Ele fez uma pausa. — Então desejo que você se case com o Sr. Domingos. Desejo que se case assim que for possível. Ora, nesta mesma semana, caso consigam organizar tudo. E desejo que sejam mais felizes juntos do que qualquer casal jamais tenha sido.

Ela soltou a respiração, trêmula de alívio. E então olhou para ele.

— Está falando sério? — perguntou ela.

— Case-se com ele, com minha bênção, e tudo estará acer­tado entre nós — disse Tristran. — E é provável que a estrela seja da mesma opinião.

Ouviu-se uma batida na porta.

— Tudo bem aí dentro? — perguntou a voz de um homem. — Tudo muito bem — respondeu Victoria. — Por favor, entre,

Robert. Você se lembra de Tristran Thorn, não lembra?

— Bom-dia, Sr. Domingos — disse Tristran e apertou a mão dele, que estava úmida de suor. — Soube que vocês vão se casar em breve. Permita-me lhe dar parabéns.

O Sr. Domingos abriu um sorriso, apesar de isso fazer com que ele parecesse estar com dor de dente. Ele então estendeu a mão para Victoria, que se levantou da cadeira.

— Se quiser ver a estrela, srta. Forester... — disse Tristran, mas Victoria fez que não.

— Fico feliz por você ter conseguido voltar são e salvo, Sr. Thorn. Espero vê-lo em nosso casamento.

— Tenho certeza de que nada me daria mais prazer do que comparecer à cerimônia — disse Tristran, embora não tivesse certeza alguma.

 

Num dia normal, teria sido um acontecimento inédito a Sétima Pega estar tão cheia de gente antes da refeição da manhã; mas aquele era um dia de feira e o povo de Muralha e os forasteiros estavam apinhados na estalagem, comendo pratos com montanhas de costeletas de cordeiro, cogumelos, bacon, ovos fritos e morcela.

Dunstan Thorn estava esperando por Tristran no bar. Levantou-se quando viu o filho, andou até onde ele estava e segurou firme seu ombro.

— Quer dizer que você conseguiu voltar são e salvo — disse ele, com orgulho na voz.

Tristran ficou pensando se teria crescido durante sua au­sência. Lembrava-se do pai como um homem maior.

— Oi, papai. Machuquei um pouco a mão.

— Sua mãe está esperando por você na fazenda, com a refeição da manhã pronta — disse Dunstan.

— Mal posso esperar para começar a comer — confessou Tristran. — E para ver mamãe de novo também, é claro. Além disso, precisamos conversar. — Porque seu pensamento estava voltado para uma coisa que Victoria Forester tinha dito.

—Você está mais alto — disse o pai. — E está precisando lou­camente de uma passada pelo barbeiro. — Ele acabou o caneco e juntos os dois saíram da Sétima Pega para o sol da manhã lá fora.

Os dois Thorn entraram num dos campos de Dunstan, pas­sando por cima de uma cancela e, enquanto seguiam pelo prado, onde ele tinha brincado quando menino, Tristran levan­tou a questão de seu nascimento. Seu pai respondeu com a franqueza possível durante a longa caminhada até a sede da fazenda, contando a própria história como se estivesse relatan­do algo que tinha acontecido muito tempo atrás, com outra pessoa. Uma história de amor.

E então os dois chegaram à antiga casa de Tristran, onde a irmã esperava por ele e havia uma refeição fumegante no fogão e em cima da mesa, preparada para ele, com amor, pela mulher que ele sempre tinha imaginado ser sua mãe.

 

Madame Semele arrumou a última flor de cristal na banca e observou a feira com desprezo. Passava muito pouco do meio-dia, e os fregueses acabavam de começar a percorrer a feira. Nenhum tinha parado em sua banca.

— Estão sempre vindo em menor número — disse ela — a cada nove anos que se passam. Ouça o que lhe digo: logo, logo essa feira não será mais que uma lembrança. Existem outras feiras e outras praças, é o que estou pensando. O tempo desta feira está quase se encerrando. Mais uns quarenta, cinqüenta, sessenta anos, no máximo, e ela estará extinta para sempre.

— Pode ser — disse a criada de olhos da cor de violeta —, mas para mim isso não tem a menor importância. Esta é a última feira à qual hei de comparecer.

— Eu achava que, com minhas surras, há muito tempo tinha acabado com sua insolência — disse Madame Semele, espantada.

— Não é insolência — respondeu a escrava. — Olhe! — Ela exibiu a corrente de prata que a prendia. Ela cintilou ao sol, mas, mesmo assim, estava mais fina, mais transparente do que nunca. Em certos lugares, parecia ser feita não de prata, mas de fumaça.

— O que você andou fazendo? — Os lábios da velha estavam salpicados de saliva.

— Não fiz nada. Nada que eu não tenha feito dezoito anos atrás. Permaneci presa a você para ser sua escrava até o dia em que a lua perdesse sua filha, se isso ocorresse numa semana em que dois Domingos se unissem. E meu tempo com você está quase terminado.

 

Já passava das três da tarde. A estrela estava sentada na grama da campina, ao lado da banca de vinho, cerveja e comida do Sr. Bromios, olhando fixamente para a abertura na muralha e o lugarejo lá do outro lado. De vez em quando, os fregueses da banca lhe ofereciam vinho, cerveja ou salsichas enormes, gor­durosas, e ela sempre recusava.

— Está esperando por alguém, minha querida? — perguntou uma moça de rosto atraente, quando a tarde ia se arrastando.

— Não sei — respondeu a estrela. — Pode ser.

— Se não estou enganada, é por um rapaz, uma garota linda como você.

A estrela fez que sim.

— De certo modo, sim — disse ela.

— Eu sou Victoria — disse a moça. — Victoria Forester.

— Eu me chamo Yvaine — disse a estrela, olhando para Victoria dos pés à cabeça e descendo de novo. — Quer dizer que você é Victoria Forester. Já ouvi falar muito de você.

— A respeito do casamento, é o que você quer dizer? — per­guntou Victoria, e seus olhos brilhavam de orgulho e prazer.

— Vai haver um casamento? — perguntou Yvaine, levando a mão à cintura para apalpar o topázio preso à corrente de prata. Olhou então para a abertura na muralha e mordeu o lábio.

— Ah, pobre queridinha! Que animal esse cara deve ser para fazer você esperar tanto! — disse Victoria Forester. — Por que você não passa para o outro lado para procurar por ele?

— Porque... — começou a estrela a dizer, e então parou. — É. Pode ser que eu vá. — O céu estava listrado com faixas de nuvens brancas e cinzentas, através das quais dava para ver trechos de azul. — Queria que minha mãe aparecesse, para eu me despedir dela antes. — E meio desajeitada ela se pôs de pé.

Mas Victoria não estava disposta a largar a nova amiga com tanta facilidade, e continuava a tagarelar sobre proclamas, licen­ças para casamento e licenças especiais que somente podiam ser emitidas por arcebispos, e como tinha tido sorte por Robert conhecer o arcebispo. Parecia que o casamento estava marcado para daí a seis dias, ao meio-dia.

E então Victoria chamou um cavalheiro respeitável, já grisalho nas têmporas, que estava fumando um charuto preto e sorria como se estivesse com dor de dente.

— Quero que conheça Robert — disse ela. — Robert, Yvaine. Ela está esperando pelo namorado. Yvaine, este é Robert Do­mingos. E na próxima sexta-feira, ao meio-dia, passarei a ser Victoria Domingos. Meu querido, quem sabe você não dizia alguma coisa a esse respeito em seu discurso na comemoração do casamento? Que na sexta-feira dois Domingos estarão unidos!

E o Sr. Domingos pitou seu charuto e disse à noiva que sem dúvida ia pensar nisso.

— Então — perguntou Yvaine, escolhendo com cuidado as palavras — você não vai se casar com Tristran Thorn?

— Não — respondeu Victoria.

— Ah, bom — disse a estrela, voltando a se sentar.

 

Ainda estava sentada quando Tristran voltou pela abertura na muralha, algumas horas mais tarde. Ele parecia perturbado, mas se animou quando a viu.

— Ei, você — disse ele, ajudando a estrela a se levantar. — Divertiu-se muito esperando por mim?

— Não muito — disse ela.

— Que pena! — disse Tristran. — Acho que eu devia ter leva­do você comigo, até o povoado.

— Não — disse a estrela —, você não devia. Estou viva desde que permaneça na Terra Encantada. Se eu entrasse em seu mundo, não passaria de uma massa fria de ferro, caída do céu, cheia de marcas e buracos.

— Mas eu quase levei você comigo! — disse Tristran, horrorizado. — Ontem à noite, eu tentei!

— É verdade — disse ela. — O que só prova que você é um pateta, palerma e... panaca.

— Boboca — sugeriu Tristran. — Você sempre me chamava de boboca. E de bronco.

— Bem, você é tudo isso e mais. Por que me deixou esperando desse jeito? Achei que alguma coisa terrível lhe tivesse acontecido.

— Desculpe — disse ele. — Nunca mais vou deixar você.

— É — disse ela, com seriedade e certeza —, nunca mais.

A mão de Tristran encontrou a dela. Saíram andando de mãos dadas pela feira. Um vento começou a se formar, enfu­rnando e fazendo panejar a lona das barracas e as bandeiras, e uma chuva fria caiu forte sobre eles. Os dois procuraram se abrigar debaixo do toldo de uma banca de livros, junto de uma quantidade de outras pessoas e criaturas. O dono da banca puxou uma caixa repleta de livros mais para debaixo do toldo, para garantir que não se molhassem.

— Sol e chuva, sol e chuva, casamento de viúva — disse um homem de cartola preta de seda para Tristran e Yvaine. Ele estava comprando do livreiro um pequeno livro encadernado em couro vermelho.

Tristran sorriu e o cumprimentou em silêncio. E, como a chuva parecia estar diminuindo, ele e Yvaine seguiram adiante.

— E esse é todo o agradecimento que vou ter desses dois, posso apostar — disse o homem alto de cartola ao livreiro, que não fazia a menor idéia do assunto do qual o homem estava falando, e não fazia questão de saber.

— Já me despedi de minha família — disse Tristran à estrela enquanto iam andando. — Do meu pai, da minha mãe... talvez eu devesse dizer da mulher do meu pai... e da minha irmã, Louisa. Acho que não volto mais lá. Agora precisamos resolver o problema de como devolver você lá para cima, no céu. Pode ser que eu vá junto.

— Você não ia gostar de ficar lá em cima no céu — garantiu-lhe a estrela. — Quer dizer... Eu soube que você não vai se casar com Victoria Forester.

— Não — disse ele, concordando.

— Eu a conheci — disse a estrela. — Você sabia que ela está esperando um bebê?

— O quê? — Para Tristran, foi um choque e uma surpresa.

— Duvido que ela saiba. A gestação já deve estar com uma ou duas luas.

— Meu Deus! Como você sabe?

Foi a vez de a estrela dar de ombros.

— Você sabia que fiquei feliz de descobrir que você não vai se casar com Victoria Forester?

— E eu também — admitiu Tristran.

A chuva começou mais uma vez, mas eles não fizeram nenhum esforço para se abrigar. Ele apertou a mão da estrela.

— Você sabe — disse ela — que uma estrela e um mortal...

— Na realidade, só meio mortal — disse Tristran, solícito. — Tudo o que sempre pensei de mim mesmo... quem eu era, o que eu sou... era mentira. Ou em parte. Você não faz idéia de como é espantosa a sensação de liberdade que isso me dá.

— Não importa o que você seja — disse ela —, eu só queria ressaltar a probabilidade de que nunca possamos ter filhos. Só isso.

Tristran olhou então para a estrela e começou a sorrir, sem dizer nada. Suas mãos a seguravam pelos ombros. Estava ali em pé, mais alto do que ela, olhando em seus olhos.

— Era só para você saber, só isso — disse a estrela, inclinan­do-se para a frente.

Os dois se beijaram então pela primeira vez na fria chuva de primavera, apesar de nenhum dos dois naquele momento se dar conta de que estava chovendo. O coração de Tristran batia forte em seu peito, como se não tivesse tamanho suficiente para toda a alegria que continha. Tristran abriu os olhos enquanto beijava a estrela. Seus olhos azul-celeste o encararam de volta. E nos olhos da estrela ele viu que nunca se separaria dela.

 

A corrente de prata agora não passava de fumaça e vapor. Por um átimo, ela ficou suspensa no ar, e então uma forte rajada de vento e chuva a desfez, transformando-a em nada.

— Pronto — disse a mulher de cabelo escuro e encaracola­do, esticando-se como um gato e sorrindo. — Cumpri os ter­mos de minha servidão, e agora você e eu não temos mais nada em comum.

A velha olhou para ela, em desamparo.

— Mas o que vou fazer? Estou velha. Não posso cuidar dessa banca sozinha. Você é cruel e tola, sua relaxada, para me abandonar desse jeito.

— Seus problemas não me dizem respeito — disse a ex-escrava —, mas sei que nunca mais serei chamada de relaxada, de escrava ou de qualquer outra coisa que não seja meu próprio nome. Sou lady Una, primogênita e única filha do octogésimo primeiro Senhor da Fortaleza da Tempestade, e os encantamentos e condições com que você me subjugou estão encerrados. Agora, você vai me pedir desculpas e me chamar por meu nome legí­timo, ou eu, com enorme prazer, dedicarei o resto de minha vida a persegui-la e a destruir tudo com que você se importar e tudo o que você for.

As duas então se entreolharam e foi a velha que desviou o olhar primeiro.

— Devo então pedir desculpas por tê-la chamado de relaxa­da, lady Una — disse a velha, como se cada palavra fosse uma serragem amarga que ela estivesse cuspindo.

Lady Una aceitou as desculpas.

— Muito bem. E acredito que você me deva um pagamen­to por meus serviços, agora que meu tempo com você se encerrou — disse ela. Porque essas coisas têm suas normas. Todas as coisas têm normas.

 

A chuva ainda estava caindo em rajadas. E então ficava sem cair apenas pelo tempo suficiente para atrair as pessoas a sair dos abrigos improvisados, quando voltava a cair sobre elas. Tristran e Yvaine estavam sentados, molhados e felizes, perto de uma fogueira, na companhia de uma variedade de pessoas e criaturas.

Tristran perguntou se alguém ali conhecia o homenzinho peludo que ele tinha conhecido em suas andanças e que descreveu da melhor forma possível. Algumas pessoas admiti­ram que o tinham conhecido no passado, mas ninguém o tinha visto naquele ano na feira.

Tristran percebeu que suas mãos se enrascavam, quase como que por vontade própria, no cabelo molhado da estrela. Ele se perguntou como podia ter levado tanto tempo para se dar conta de quanto gostava dela. E disse isso à estrela, que então o chamou de idiota. E ele declarou que aquela era a me­lhor coisa de que um homem jamais tinha sido chamado.

— Então, para onde vamos quando terminar a feira? — per­guntou Tristran à estrela.

— Não sei — respondeu ela. — Mas ainda tenho uma obri­gação a cumprir.

— Tem?

— Tenho. Aquele topázio que lhe mostrei. Preciso entregá-lo à pessoa certa. Da última vez que o homem certo apareceu, aquela estalajadeira o degolou. Por isso, ele ainda está comigo. Mas bem que eu queria que não estivesse.

— Tristran Thorn — disse uma voz de mulher junto de seu ombro —, peça a ela o que ela leva no corpo.

Ele se virou e olhou direto nos olhos da cor das violetas da campina.

— Você era a ave no carroção da bruxa — disse ele à mulher.

— Quando você era o arganaz, meu filho — disse a mulher —, eu era a ave. Mas agora recuperei minha própria forma e meu tempo de servidão terminou. Peça a Yvaine o que ela car­rega no corpo. Você tem o direito.

Ele se voltou de novo para a estrela. — Yvaine?

Ela fez que sim, aguardando.

— Yvaine, você quer me dar o que está levando no corpo?

A estrela pareceu estar confusa. Depois enfiou a mão nas vestes, remexeu com cuidado e tirou um grande topázio preso a uma corrente partida.

— Foi de seu avô — disse a mulher a Tristran. — Você é o últi­mo descendente do sexo masculino da linhagem da Fortaleza da Tempestade. Pendure-o no pescoço.

Tristran obedeceu. Quando fez com que as pontas da cor­rente se tocassem, elas se uniram e se emendaram como se a corrente nunca tivesse se partido.

— É muito bonita — disse Tristran, desconfiado.

— É o Poder da Fortaleza da Tempestade — explicou sua mãe. — Ninguém tem como questionar isso. Você pertence à linhagem e todos os seus tios estão mortos e desapareceram. Você vai ser um excelente Senhor da Fortaleza da Tempestade.

Tristran olhou, espantado, para ela.

— Mas eu não quero ser senhor de lugar nenhum — disse ele —, nem de coisa alguma, a não ser talvez do coração de minha amada. — E ele pegou a mão da estrela e a apertou junto ao peito, com um sorriso.

A mulher agitou as orelhas, impaciente.

— Em quase dezoito anos, Tristran Thorn, eu não lhe pedi absolutamente nada. E agora, ao primeiro pedido simples e insignificante que eu faço... ao menor dos favores que lhe peço... você me diz não. Ora, eu lhe pergunto, Tristran, isso é jeito de tratar sua mãe?

— Não, mamãe — disse Tristran.

— Bem — prosseguiu ela, ligeiramente apaziguada —, eu acho que vai fazer bem a vocês dois terem uma casa só sua e vai ser bom você ter uma ocupação. E se não for do seu agrado, você pode largar tudo, sabe? Não há nenhuma corrente de prata que vá prender você ao trono da Fortaleza da Tempestade.

E Tristran considerou isso tranqüilizador. Já Yvaine ficou menos impressionada, porque sabia que as correntes de prata vêm em todos os modelos e tamanhos. Mas ela sabia também que não seria prudente começar a vida com Tristran brigando com a mãe dele.

— Eu poderia ter a honra de saber qual é seu título? — per­guntou Yvaine, achando que talvez tivesse exagerado na adu­lação. A mãe de Tristran se empertigou, vaidosa, e Yvaine teve certeza de não ter exagerado.

— Sou lady Una da Fortaleza da Tempestade — disse ela. Depois, enfiou a mão numa pequena bolsa, pendurada na cin­tura, e dali tirou uma rosa de vidro, de um vermelho tão escuro que parecia quase negro à luz bruxuleante do fogo. — Este foi meu pagamento. Por mais de sessenta anos de servidão. Foi a contragosto que ela me deu, mas normas são normas e ela teria perdido sua magia e muito mais se não tivesse acertado as con­tas comigo. Agora, planejo trocar esta flor por um palanquim para nos levar de volta à Fortaleza da Tempestade em grande estilo. Ai, como senti falta da Fortaleza da Tempestade. Preci­samos de carregadores, batedores e, quem sabe, um elefante... eles são tão imponentes. Nada diz “saia de meu caminho” como um elefante lá na frente...

— Não — disse Tristran.

— Não? — perguntou a mãe.

— Não — repetiu Tristran. — Você pode viajar de palanquim e elefante, camelo e tudo o mais, se quiser, mamãe. Mas Yvaine e eu vamos chegar lá do nosso jeito, viajando à nossa velocidade.

Lady Una respirou fundo, e Yvaine decidiu que era melhor ela não participar dessa discussão. Por isso se levantou e disse que voltaria dali a pouco, que precisava caminhar e que não se afastaria demais. Tristran lhe lançou um olhar de súplica, mas Yvaine fez que não: aquela era uma luta dele, e ele se sairia melhor se ela não estivesse presente.

Estava escurecendo e ela seguiu, mancando, pela feira, até parar ao lado de uma barraca de onde era possível ouvir músi­ca e aplausos, e da qual a luz acolhedora se derramava como mel dourado. Ficou escutando a música, ensimesmada. Foi ali que uma velha encurvada, de cabelos brancos, cega de um olho, veio manquitolando e se aproximou da estrela.

— Vim buscar seu coração para levar comigo — disse a velha.

— É mesmo? — perguntou a estrela.

— É — respondeu a velha. — Eu quase consegui, lá em cima, naquele passo da montanha. — Ela deu um risinho do fundo da garganta com a lembrança. — Você se lembra?

A velha trazia um grande fardo apoiado nas costas como se fosse uma corcunda. Do fardo, um chifre espiralado de marfim se projetava e Yvaine soube onde tinha visto aquele chifre antes.

— Aquela era você? — perguntou a estrela à mulherzinha diminuta. —Você, a mulher com as facas?

— Hã-hã. Eu mesma. Mas desperdicei toda a juventude que trouxe para a viagem. Cada ato de magia consumia um pouco da juventude que eu usava, e agora estou mais velha do que nunca estive.

— Se tocar em mim, se puser um dedo que seja em mim, há de se arrepender para todo o sempre.

— Se um dia você chegar à minha idade — disse a velha —, saberá tudo o que há a saber a respeito de arrependimentos, e sa­berá que mais um aqui ou ali não faz nenhuma diferença a longo prazo. — Ela farejou o ar. Seu vestido tinha sido vermelho um dia, mas agora parecia ter sido muito remendado, encurta­do e desbotado com o passar dos anos. Estava caindo de um ombro, expondo uma cicatriz franzida que poderia ter séculos de idade. — Pois bem, o que eu quero saber é por que motivo não consigo mais encontrar você, em meu pensamento. Você ainda está lá, mas como um fantasma, um fogo-fátuo. Há não muito tempo, você ardia... seu coração ardia... na minha cabeça corno uma chama de prata. Mas, depois daquela noite na esta­lagem, ela se tornou irregular e fraca. E agora simplesmente não se encontra lá.

Yvaine concluiu que não sentia nada além de pena da criatura que tinha desejado vê-la morta.

— Poderia ser que o coração que você busca não me per­tence mais?

A velha tossiu. Todo o seu esqueleto se sacudiu e teve espas­mos só com esse esforço. A estrela esperou que ela terminasse.

— Já dei meu coração a outra pessoa.

— O rapaz? O que estava na estalagem? Com o unicórnio?

— Esse mesmo.

— Naquela hora, você deveria ter deixado que eu o tomas­se, que o levasse para minhas irmãs e para mim. Nós podería­mos ter voltado à juventude, e ela duraria até a próxima Era do Mundo. Esse seu rapaz vai parti-lo, desperdiçá-lo ou perdê-lo. É o que todos eles fazem.

— Mesmo assim, meu coração é dele. Espero que suas irmãs não sejam duras demais com você quando chegar de volta sem ele.

Foi nesse instante que Tristran foi chegando até onde Yvaine estava, segurou sua mão e cumprimentou a velha, com um gesto de cabeça.

— Tudo resolvido — disse ele. — Nada com que se preocupar.

— E o palanquim?

— Ah, mamãe vai viajar de palanquim. Precisei prometer que, mais cedo ou mais tarde, iríamos à Fortaleza da Tempes­tade, mas podemos nos demorar no caminho. Acho que de­víamos comprar uma parelha de cavalos e sair apreciando as paisagens.

— E sua mãe concordou com isso?

— No fim, sim — disse ele, todo contente. — Seja como for, peço desculpas por interromper a conversa.

— Já estamos quase terminando — disse Yvaine e se voltou cie novo para a velhinha.

— Minhas irmãs serão rigorosas e cruéis — disse a velha rai­nha das bruxas. — No entanto, aprecio seu sentimento. Você tem um bom coração, menina. Pena que ele não venha a ser meu.

A estrela se debruçou então e beijou o rosto encarquilha­do da velha, sentindo os pêlos ásperos arranhando seus lábios macios.

E então a estrela e seu verdadeiro amor foram embora, na direção da muralha.

— Quem era a velhota? — perguntou Tristran. — Ela me pareceu um pouco familiar. Algum problema?

— Nenhum problema — disse a estrela. — Era só uma pessoa que conheci pelo caminho.

Para trás deles, ficaram as luzes da feira, as lanternas, velas, luminárias de bruxas e os brilhos de fadas, como se um sonho do céu noturno tivesse pousado na Terra. Diante deles, do outro lado da campina, para lá da abertura na muralha, agora sem guarda, estava o povoado de Muralha. Lâmpadas a óleo, lâmpadas a gás e velas reluziam nas janelas das casas. Naquele momento, para Tristran, elas pareciam tão distantes e impos­síveis de conhecer quanto o mundo das Mil e Uma Noites.

Tristran contemplou as luzes de Muralha pelo que ele soube ser a última vez. Foi o que lhe ocorreu naquele momen­to com total certeza. Olhou fixamente para elas por algum tempo, sem dizer nada, com a estrela ali a seu lado. E então deu meia-volta e, juntos, eles começaram a caminhar para o leste.

 

Muitos consideraram um dos dias mais importantes na história da Fortaleza da Tempestade aquele em que lady Una, desaparecida havia tantos anos e dada por morta (tendo sido roubada, quando criança, por uma bruxa), voltou à terra montanhosa. Foram semanas de festejos, fogos de artificio e manifestações de regozijo (oficiais e outras), depois que seu palanquim chegou num cortejo encabeçado por três elefantes.

A alegria dos moradores da Fortaleza da Tempestade e de todos os seus domínios atingiu níveis sem precedentes quando lady Una anunciou que, no tempo em que esteve afastada, tinha dado à luz um filho que, na ausência e suposta morte dos dois últimos de seus irmãos, era o próximo herdeiro do trono. Na realidade, disse ela, ele já estava usando no pescoço o Poder da Fortaleza da Tempestade.

Ele e sua noiva estavam por chegar em breve, apesar de lady Una não conseguir ser mais específica que isso a respeito da data da chegada, o que parecia deixá-la constrangida. Enquanto isso, e durante a ausência deles, lady Una anunciou que gover­naria a Fortaleza da Tempestade como regente. O que fez e muito bem; e os territórios no Monte Huon e nos arredores prosperaram e se desenvolveram sob sua autoridade.

Já tinham se passado mais três anos quando dois andarilhos com trajes surrados da viagem, empoeirados e com os pés cansados, chegaram à pequena cidade de Fileira de Nuvens, nos extremos inferiores da Fortaleza da Tempestade em si. Alugaram um quarto numa estalagem e pediram água quente e uma banheira de estanho. Ficaram ali instalados vários dias, conversando com os outros fregueses e hóspedes. Na última noite da estada, a mulher, cujo cabelo era tão louro que era quase branco e que andava sempre mancando, olhou para o homem com ar de interrogação.

— E então?

— Bem — disse ele. — Sem dúvida parece que mamãe está tendo um desempenho excelente no governo.

— Exatamente como você — retrucou ela, atrevida — se sairia tão bem quanto ela, se assumisse o trono.

— Pode ser — admitiu ele. — E decerto parece ser um lugar agradável para onde podemos acabar indo. Mas são tantos os lugares que ainda não vimos. Tanta gente que ainda não co­nhecemos. Para não mencionar todos os males a corrigir, vilões a derrotar, paisagens a ver, tudo isso. Sabe?

— Bem — disse ela, com um sorriso irônico —, pelo menos não vamos nos entediar. Mas seria melhor deixar um bilhete para sua mãe.

Foi assim que lady Una, da Fortaleza da Tempestade, rece­beu uma carta, entregue por um criado da estalagem. A folha estava selada com lacre, e lady Una interrogou o rapaz meticu­losamente a respeito dos viajantes — um homem e sua mulher — antes de quebrar o lacre e ler. Era endereçada a ela e, depois das saudações, dizia:

Fomos inevitavelmente detidos pelo mundo. Espere nos ver quando nos vir.

Era assinada por Tristran e, ao lado da assinatura, havia uma impressão digital, que refulgia e cintilava quando as sombras tocavam nela, como se tivesse sido salpicada com estrelas minúsculas.

E com isso, não havendo mais nada que pudesse fazer a respeito, lady Una precisou se contentar.

Passaram-se mais cinco anos, até que os dois viandantes por fim retornassem definitivamente ao reduto nas montanhas. Estavam empoeirados, cansados e com os trajes em farrapos. Para vergonha de toda a região, foram de início tratados como malandros e vagabundos. Somente quando o homem exibiu o topázio que trazia no pescoço é que foi reconhecido como o filho único de lady Una.

A investidura e os festejos subseqüentes se prolongaram por quase um mês. Desde então, o jovem Senhor da Fortaleza da Tempestade passou a se dedicar a governar. Ele tomava o mínimo possível de decisões, mas as que tomava eram sábias, mesmo que a sabedoria nem sempre estivesse aparente na ocasião. Apesar de sua mão esquerda ter cicatrizes de queima­duras e lhe ser de pouca utilidade, ele era corajoso na batalha e um estrategista sagaz. Levou seu povo à vitória contra os Gnomos do Norte, quando eles fecharam os passos aos via­jantes. Conseguiu também construir uma paz duradoura com as Águias dos Altos Penhascos, uma paz que permanece em vigor até hoje.

Era casado com lady Yvaine, uma mulher de regiões dis­tantes (regiões estas que ninguém jamais soube dizer com certeza quais seriam). Quando o casal chegou à Fortaleza da Tempestade, ela escolheu para si um conjunto de aposentos num dos picos mais altos da cidadela, que tinha sido abandona do havia muito tempo pelo palácio e por seus ocupantes, por ser considerado inutilizável. O teto tinha desmoronado com a queda de uma rocha mil anos antes. Mais ninguém quis usar os aposentos desde aquela época porque eles ficavam a céu aberto e as estrelas e a lua brilhavam tanto através do ar rarefeito da montanha que a impressão era a de que seria possível simples­mente estender a mão para tocar nelas.

Tristran e Yvaine foram felizes juntos. Não para sempre, pois o Tempo, esse ladrão, acaba levando tudo para seu depósito empoeirado, mas foram bastante felizes, na medida do possível. E então uma noite a Morte chegou e murmurou seu segredo no ouvido do octogésimo segundo Senhor da Fortaleza da Tempestade. Ele fez que sim, com a cabeça grisalha, e nada mais disse. Seu povo levou seus restos mortais para a Galeria dos Antepassados, onde jazem até hoje.

Depois da morte de Tristran, houve quem afirmasse que ele pertencia à Irmandade do Castelo e que teria dado impor­tante contribuição para a destruição do poder da Corte do Mal. Mas a verdade, como tantas outras coisas, morreu com ele e nada disso ficou comprovado nem desmentido.

Yvaine passou a ser a Senhora da Fortaleza da Tempestade e se revelou uma monarca melhor, na paz e na guerra, do que qualquer pessoa teria ousado esperar. Ela não envelheceu como o marido, e seus olhos permaneceram tão azuis, os cabe­los tão claros de um branco dourado e — como os cidadãos livres da Fortaleza da Tempestade de vez em quando teriam a oportunidade de descobrir — seu pavio tão curto quanto no dia em que Tristran a viu pela primeira vez na ravina, junto da água.

Até o dia de hoje, ela manca ao andar, apesar de ninguém na Fortaleza da Tempestade jamais comentar esse fato, da mesma forma que não ousam tocar no assunto de como de vez em quando ela cintila e brilha na escuridão.

Dizem que todas as noites, quando os deveres de Estado permitem, ela sobe, a pé, e segue sozinha, mancando, até o pico mais alto do palácio, onde fica parada horas a fio, parecendo não se dar conta dos ventos gelados. Ela não diz nada, mas olha simplesmente para o alto, para a escuridão do céu, e observa, entristecida, a lenta dança das estrelas sem fim.

 

                                                                                Neil Gaiman  

 

                      

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