Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
MEIA-NOITE AO MEIO DIA
Uma jovem de cabelos ruivos abriu-me a porta. Seu corpinho "mignon" era firme, bronzeado pelo sol e generosamente dotado de curvas, sendo pouco protegido pela roupa de banho de duas peças que usava desafiadoramente. Com um "maillot" "bikini" ela seria eleita rainha de beleza em qualquer praia famosa. Compreendi que gostaria muitíssimo de estar ao seu lado quando ela resolvesse adotar vestimentas ainda mais reduzidas.
Ela ouviu o meu nome, sorriu, disse que eu era esperado e conduziu-me através da casa para o pátio dos fundos, além do qual resplandecia uma piscina de ladrilhos azuis ao sol do meio-dia. A piscina não era tão grande assim. Tenho visto outras maiores em Hollywood.
A beldade de cabelos ruivos inclinou a cabecinha para trás botou as mãos em concha diante da boca e gritou um nome com uma voz que me soaria sempre aos ouvidos como a coisa mais macia e encantadora do mundo.
— Olá, chefe! – gritou ela. — O detetive particular que o senhor mandou chamar está aqui. Chama-se Nick Ransom.
A plataforma dos trampolins, no outro lado da piscina, não era alta quanto o Empire State Building. Lá em cima, no último trampolim estava um sujeito forte e cabeludo, preparando-se para saltar. Ele flexionou as pernas duas vezes, experimentando a prancha.
— Esperem aí mesmo um momento – exclamou num tom forte e baixo e sua voz rolou pelos ares como um trovão. Então deixou cair uma pedra, inclinou a cabeça, esperando o ruído da pedra contra a superfície da água. Um instantes depois, precipitou-se ele mesmo no espaço num salto mortal.
Foi um belo salto. Eu não o teria feito melhor, mesmo nos velhos dias em que trabalhava nos estúdios como profissional de loucuras e empresas arriscadas. O sujeito cabelo entrou na água como uma navalha, descendo até o fundo. Pouco depois voltou a romper a superfície. Quando começou a nadar em direção à borda da piscina, lançou no ar apenas esta pergunta "Maggie".
Maggie era o nome da menina de cabelos ruivos.
— Para cá, chefe! – respondeu ela muito distintamente.
E quando o camarada voltou-se para o nosso lado, começando a nadar em nossa direção, qualquer pessoa perceberia maravilhada que ele precisava da voz da moça para guiar-se, simplesmente porque era cego! A menos que já se soubesse deste fato, como acontecia comigo.
Toda a gente do mundo cinematográfico conhecia Griff Borlund. Era um dos escritores prediletos dos magnatas da indústria cinematográfica, um dramaturgo que produzia argumentos verdadeiramente interessantes, a despeito da sua cegueira ou talvez por causa dela, justamente.
Tendo perdido a vista quando estudante, ele desenvolvera uma agudeza de ouvido para todas os nuanças de frasear e da conversação, uma habilidade fonográfica para captar e reproduzir a maneira de os outros falarem. Em conseqüência, quando ditava uma peça, carregava-se de conversações e fraseados de tal forma naturais e em concordâncias com o caráter do personagem correspondente que os diretores sentiam-se honrados em obter um argumento da sua pena.
Borlund ganhava então verdadeiras fortunas, embora não tivesse nunca a satisfação de ver um de seus filmes.
Ele todavia parecia não se importar com isto. Vivia num ambiente de esplendor opulento, cercava-se das mais belas mulheres que se poderia encontrar no harém de sultão, trabalhava somente quando se sentia com disposição e passava a maior parte do tempo tomando sol à beira de sua bela piscina e se deliciando com a frescura daquela água azul. Pareceu-me muito satisfeito da vida quando saiu d’água para falar comigo.
— Ransom? – disse ele. — Muito prazer. Ouvi falar muito da sua maneira de trabalhar.
Inclinou a cabeça para um lado, prestando ouvidos e localizou-me então, provavelmente pela respiração e estendeu-me a mão.
— Muito obrigado por ter atendido prontamente.
Apertei-lhe a mão. Sou um sujeito alto e bastante forte e muito me orgulho de me conservar sempre em forma, porém, quando Borlund me largou a mão, eu estava com os dedos dormentes, os ossos moídos, e esperei mesmo que as unhas caíssem a qualquer momento. Borlund tinha a força de um gorila. Não que ele estivesse procurando fazer um "show" ou me impressionar com a força de seus músculos. Era apenas um sujeito que não sabia da sua própria força, provavelmente porque não podia ver os estragos que ocasionava.
Fiz uma massagem ligeira nos meus dedos, reprimindo a custo um gemido de dor.
— De hoje em diante serei canhoto para qualquer efeito.
— Como assim?
— Oh, nada. Apenas uma idéia que tive – respondi magnanimamente.
Afinal de contas, quem era eu para insinuar uma reclamação contra um cliente provável? Especialmente um cliente tão conceituado e abastado quanto aquele Borlund. A custo esbocei um gesto de perdão, lembrei-me depois que o homem não poderia ver a minha natural benevolência e acabei resolvendo que o melhor era entrarmos em entendimento logo.
Para começar olhei para o meu relógio de pulso e murmurei.
— Hum, meio-dia e meia.
— Meio-dia e meia – confirmou ele mansamente. — Se não fosse o calor do sol, para mim seria a mesma coisa que meia-noite. É um dos inconvenientes da cegueira. Mas o senhor não está interessado nisto. Está interessado no motivo que me levou a chamá-lo aqui.
— Sim, senhor.
Ele se voltou ligeiramente.
— Maggie?
— Pois não, chefe.
— Onde estão as outras moças?
— Dei a tarde de folga a elas. Disse-lhes que o senhor não ia ditar nada hoje.
— E os criados?
— Também se foram.
— Ótimo. E agora você também, menina. Dê o fora.
— Oh, chefe! E eu que vesti o meu traje de banho mais reduzido para impressionar o simpático Sr. Ransom. – E ela me sorriu cinicamente.
— Se me aceita como juiz das suas vestes para banho, saiba que já causou sensação. E agora dê o fora. Preciso obter informações confidenciais com o Sr. Ransom sobre certos detalhes policiais para o meu próximo trabalho. Até logo mais beleza.
— Está bem, se o senhor quer mesmo de verdade. Maggie Sullivan não é moça que permaneça onde não a querem. Sullivan, não se esqueça, Ransom. O primeiro nome é realmente Maggie, e não Margaret.
Ou ela tinha algum cisco no olho ou então piscava realmente.
— Procure no catálogo de telefones, caso se interesse. – E dirigiu-se para a casa, desaparecendo pouco depois. Uma porta bate.
Borlund sorriu mansamente.
— A secretária perfeita, Ransom. Mas um pouco ousada.
— Para ela fica muito bem. – disse eu sinceramente – para ela qualquer coisa ficaria bem.
— Eu só emprego gente desse tipo. Atrai os meus amigos. Sem visitas, um homem permanentemente mergulhado nas trevas haveria de sentir-se muito solitário.
Tateou à procura de uma cadeira, encontrou-a e tratou de experimentá-la primeiro antes de sentar-se.
— Agora estamos realmente sozinhos? – perguntou ele em voz baixa.
Olhei em volta.
— Sim. Ninguém por perto para nos escutar, se é isto que o senhor tem em mente.
— Tenho muitas coisas em mente e nenhuma delas é agradável. Ransom, eu gostaria que você me fizesse um favor. Não se torne muito íntimo de Miss Sullivan. Procure esquecer-se daquela sugestão que ela fez, a fim de lhe telefonar.
— Oh! Ela é propriedade sua?
— Gostaria que fosse – disse ele, e pela sua expressão percebi claramente que o homem estava louco pela diabinha de cabelos ruivos. Mas logo em seguida esboçou um sorriso sardônico.
— Eu teria muita sorte com uma menina como ela. Porém, nada há de romântico na vida de um homem cego.
— Um momento! Se o que há entre vocês dois é estritamente platônico, para que me fazer tal advertência?
— Porque... – Ele hesitou e então explicou-se em poucos palavras: — Escute, Ransom. O que eu quero não é informação sua para escrever uma peça. Disse isto apenas para impedir que Maggie adivinhasse o verdadeiro motivo que me levou a chamá-lo.
— Então vamos examinar este motivo verdadeiro.
— Tenho uma investigação para você fazer. É por esse motivo que lhe peço que não se torne muito amigo dela. Fará um trabalho muito melhor se agir objetivamente, sem nenhum compromisso passional.
— Talvez você tenha razão – concordei. — O que deverei descobrir a respeito dela?
— Ela anda metida em alguma embrulhada, alguma coisa perigosa, relacionada com criminosos. Quero saber do que se trata. Quero saber quem é o sujeito.
Parou de repente, fazendo uma careta. Considerei-o atentamente. Para mim, associar uma menina adorável como Maggie Sullivan com um criminoso era perder dinheiro à-toa com detetives. Mas, afinal de contas, o dinheiro não era meu, era de Borlund. Quando um camarada como ele quer contratar um detetive, o detetive não pode discutir. De maneira que tratei de me conservar impassível. Esperei respeitosamente que ele continuasse a conversação.
— Que barulho foi esse? – perguntou ele, entretanto.
— Barulho? Que barulho? Não ouvi barulho algum.
— Espere aqui – disse ele levantando-se da cadeira. Dirigiu-se para o lado da casa, sem vacilar, errando a porta dos fundos por menos de seis polegadas, encontrou-a, entretanto, abriu-a e precipitou-se para dentro. Então veio de lá de dentro um grito feminino agudo, histérico. E depois um ruído seco, uma pancada forte. Seguiu-se o silêncio, pesado como nunca.
— Que passa aí? – gritei, correndo pelo pátio em direção à casa. Precipitei-me para o interior, mas estoquei gelado a meio caminho. Havia uma moça estendida no chão, e estava mais morta do que um peixe de frigorífico.
QUEDA DO BALCÃO
A casa de Griff Borlund era de construção moderna, em forma de caixote, de dois andares apenas. No centro havia um pátio interno calçado com ladrilhos vermelhos. Lá em cima, a clarabóia era de vidro pesado e fosco, pintado de verde, de maneira que a luz esverdeada do pátio dava a impressão de a gente estar caminhando no interior de um aquário.
Esta impressão se tornava mais forte ainda devido as inúmeras plantas ali cultivadas. Palmeirinhas, arbustos, copados, folhagens vistosas, samambaias. Um balcão em ferro trabalhado corria ao longo de três paredes do pátio, à meia altura. Era uma espécie de corredor aberto, por onde se entrava nos vários aposentos do segundo andar. Deste balcão, uma escada de ferro e mármore descia para o térreo, onde a mobília era constituída de alguns bancos de ferro, mesas e cadeiras espalhadas entre a vegetação luxuriante. O ar ali era pesado, úmido, impregnado daquele odor de terra molhada e de cheiro das folhagens. Porém, a loura estendida sobre os ladrilhos vermelhos não podia apreciar nada disso.
Jazia bem em baixo do balcão esquerdo, com a cabeça numa posição esquisita, que significa sempre pescoço quebrado. E, mesmo antes de lhe segurar o pulso, percebi que já estava morta. Compreendi também que ou ela caíra lá do balcão ou fora lançada de lá.
Borlund achava-se ao pé da escada, às tantas, fungando fortemente e agitando o ar, em volta com as mãos. Seu rosto parecia vermelho, apesar da luz esverdeada que filtrava da clarabóia, e a sua boca se achava retorcida numa careta.
— Que foi isto? – exclamou ele. — Quem é? Que ruído foi este? Respondam-me! Vamos! Ninguém responde? Oh, que tolo em dar folga a todos. Raios partam os meus olhos que de nada me podem valer! Não há ninguém aí? É você quem está aí, Ransom? Diga alguma coisa. Diga-me alguma coisa, Ransom! Que foi que aconteceu?
— Calma. Fique quieto um pouco, homem – disse eu. – Então, quando ele ouviu minha voz, girou nos calcanhares. — Onde estava você quando ela gritou – perguntei.
— Eu... eu... aqui na escada... tinha acabado de entrar... de quem é que você está falando? Quem foi que gritou? Que barulho foi aquele? Alguém caiu?
— Sim – respondi. — Uma loura alta, de suéter e blusa.
Os seus dedos se crisparam.
— Deve... deve ser Florence Byerne. Uma das minhas datilógrafas. Ela é jovem?
— Deve ter uns vinte e quatro anos. E nunca mais ficará velha.
— Quer... quer dizer que ela está morta?
— Exatamente. – aproximei-me da escada e passei por ele. — Fique aqui. Se alguém entrar pela porta dos fundos ou da frente, grite por mim.
— Não compreendo. Espere. Onde é que vai?
Sem responder às suas perguntas insistentes, subi as escadas depressa. Segui pelo corredor e comecei a revistar os quartos de cima. Não encontrei viva alma. Havia um binóculo sobre o parapeito de uma janela que dava para o pátio, mas ele não me revelou mais que os aposentos vazios.
Perdi dez minutos nesta busca infrutífera. Desci então para terminar o meu serviço de investigação local e só então descobri que Borlund não se encontrava mais ao lado da vítima, mas havia um substituto em seu lugar.
O substituto era um sujeito que eu conhecia e ao qual devotava manifesta aversão. Chamava-se Herman Herkimer. Era um camarada pequeno, com cara de raposa que dava até nojo. Era desses advogados que assistem a missa aos domingos e roubam os constituintes durante os outros seis dias da semana. Legalmente, ele sempre conseguia conservar os dedos limpos, mas eu não daria um vintém pela sua ética profissional.
Ele se achava curvado sobre o corpo da moça, fazendo alguma coisa. Mas, quando percebeu que eu me aproximava, levantou-se logo e girou nos calcanhares para o meu lado. E não foi sem tempo, pois eu já ia agarrá-lo pelo colarinho e obrigá-lo a se explicar.
— Eh, Ransom!
E ele me fez uma saudação untuosa, procurando mostrar-se agradável.
— Sem dúvida alguma você quer saber o que é que estou dizendo aqui. Posso explicar-lhe em poucas palavras.
E fez um gesto de oratória bastante barata, enquanto os olhos se desviavam medrosamente dos meus.
— Tomei parte ontem à noite numa festa de Mr. Borlund e esqueci-me da cigarreira. Voltei agora para buscá-la. Imagine só meu pesar por ter chegado no meio desta lamentável tragédia. Que coisa horrível.
— É mesmo muito interessante o fato de você ter chegado exatamente nesta hora. Sem dúvida alguma você deve ter uma bola de cristal! Onde está Borlund?
— Mas que é isto? – exclamou ele franzindo as sobrancelhas. — Não gosto de ouvir indelicadezas. Caso não saiba, isso é um caso de difamação, sujeito a processo jurídico.
— Pois não – concordei. — E caso o senhor também não saiba, menino, há uma lei que proíbe que se toque nos cadáveres antes de chegar a Polícia para o exame oficial. Onde está Griff Borlund?
— Eu não estava movendo o corpo. Estava apenas procurando localizar a causa da morte enquanto Mr. Borlund se encontra na biblioteca notificando as autoridades, como eu mesmo sugeri.
— Está certo de que não o mandou para lá a fim de poder fazer algumas investigações que não são da sua conta? Hem?
Tremendo de indignação, ele retrucou:
— Vá para o diabo, Ransom, não sou obrigado a escutar as suas porcas insinuações.
E ele me endereçou um soco muito desajeitado. Mas nada conseguiu para o meu lado e não tive dó do sujeito. Dei um passo para o lado e agarrei-lhe o pulso, obrigando-o a curvar-se. E então desci-lhe um bom direito por baixo dos queixos. O homem devia ser de vidro. Caiu como um saco, ficando amontoado no chão, inerte.
— Que isto lhe sirva de lição – observei, para ser ouvido no caso de o homem estar fingindo — Nunca procure brigar com camarada mais forte do que você.
Depois continuei a minha investigação. Por acaso, entrei primeiramente na biblioteca. Naquele aposento escuro, Griff Borlund acabava de desligar o telefone, e inclinou a cabeça para um lado.
— É você, Herkimer? A polícia está a caminho para investigar o acidente.
— Não é Herkimer, é Ransom – disse eu. — Herkimer está temporariamente indisposto. E por que está tão certo de que a morte da menina não passa de um acidente?
Ele empalideceu.
— Quer dizer que encontrou alguém escondido lá em cima?
— Não – murmurei de mau humor — Não encontrei ninguém, mas em compensação ainda não procurei aqui em baixo.
A minha resposta pareceu deixá-lo aliviado.
— Não será preciso, Ransom. Já foi feito isto. E muito bem.
— Como assim?
— Afinal de contas, Ransom, eu não sou inteiramente estúpido. Embora você não me tenha dito nada, compreendi por que foi que você se precipitou para o segundo andar. Naturalmente ia à procura de alguém que poderia ter empurrado Florence lá em cima do balcão.
— Sim.
— Se existisse tal pessoa, talvez já tivesse descido mansamente antes de você entrar na casa. Talvez eu não tivesse ouvido. Talvez esta pessoa tivesse se aproveitado da minha cegueira para passar calmamente, entrando num dos primeiros aposentos da parte de baixo. Você provavelmente se lembrou disto quando me disse que gritasse se alguém aparecesse.
— Vamos diretamente ao que interessa.
— Um momento depois de você subir, a campainha da frente tocou. Era Herkimer. Deixei-o entrar, expliquei-lhe a situação. Ele procurou em todo o andar térreo e não encontrou ninguém. Muito bem. Se você não encontrou ninguém lá em cima e ele não encontrou ninguém aqui em baixo, neste caso deve tratar-se simplesmente de um acidente. Não há criminoso algum.
— Você deixou uma lacuna nesta história, meu cara. Quando Herkimer tocou a campainha um sujeito que estivesse escondido num aposento lateral podia ter dado o fora pela porta do fundos, passando pelas suas costas.
— Tolice! – exclamou ele teimosamente, teimosamente demais. — Miss Byerne, não era moça que tivesse inimigos. Seria loucura imaginar algum homem querendo matá-la.
— E por que haveríamos de limitar as nossas conjecturas somente para os homens?
A face de Borlund empalideceu novamente.
— Eu... eu não sei o que você quer dizer.
— Escute – disse eu, então. — Todos os seus empregados foram dispensados por hoje: secretárias, datilógrafas e criados. A própria Maggie Sullivan nos disse isto.
— Deixe Maggie fora desta encrenca, Ransom.
— Às vezes é bem difícil – retruquei. — Vamos supor que Maggie não tenha ido para casa quando você pediu a ela que desaparecesse. Suponhamos que ela tenha entrado e se vestido, permanecendo depois por aqui a fim de fazer alguma coisa que não devia fazer.
— Como o que, por exemplo?
— Ainda não sei dizer. Espionando, roubando...
— Pare com esta conversa fiada! – berrou ele.
Não me incomodei com seus berros.
— Suponhamos que ela tenha achado que o lugar estava deserto. Mas ela se enganava. Florence Byerner não havia partido ainda. Permanecera em seu quarto. Florence, então, pega a outra em flagrante e ameaça de contar tudo ao chefe. Então Maggie a empurra por cima do balcão, a fim de que a outra não conte nada do que viu.
— Que diabo, Ransom, você não tem motivos algum para acusá-la.
— Um momento. Não estou acusando. Estou apenas formando uma teoria sobre o caso. Nada posso provar. Tudo o que sei é que você queria contratar-me para investigar o procedimento da moça. Você mesmo me disse que ela estava comprometida com algum criminoso.
Gotas de suor começaram a surgir da testa de Borlund.
— Eu receava que você se apegasse a isso. Quero que se esqueça do que lhe disse. Esqueça-se do que falei a respeito de Maggie. Não estava falando sério, era apenas uma brincadeira de mau gosto. Uma farsa.
— Ora, vamos deixar de tolices.
— A morte de Miss Byerne foi acidente – insistiu ele desesperadamente. — Vamos ficar por aí. Faz de conta que o mandei chamar somente por causa de um argumento. Você não haverá de se arrepender de ter vindo até aqui.
— Se eu ocultar evidências e provas, talvez me cassem a licença profissional, camarada.
— Evidências? Provas? Você nada tem sobre isso que acabou de se passar aqui. Tudo o que tem são algumas palavras que eu lhe disse em particular. Não pode nem mesmo provar que eu lhe disse alguma coisa. É a minha palavra contra a sua. Ela está inocente, Ransom. Nada tem a ver com isto. Não quero que sofra por uma coisa que não praticou.
Um pensamento rápido me ocorreu neste momento.
— Se há um motivo para levá-la a ser tão positivo e categórico, então foi você mesmo quem empurrou a moça lá de cima.
— Não! – exclamou ele abafado. — Não, não fiz isto!
— Ou talvez queira inculpar Herkimer! – prossegui. Atrás de mim soou uma voz irada.
— Já é demais. Primeiro insultos, depois você me desfere um soco tão forte a ponto de me deixar inconsciente. Agora planeja me envolver neste homicídio.
Era Herkimer sem dúvida. Entrando na biblioteca, a primeira coisa que ouvira fora as minhas palavras sarcásticas.
— Já estou farto disso, Ransom!
Girei nos calcanhares mas tarde demais. Ele me golpeou na cabeça com um vaso de plantas, pondo-me fora de combate.
AS CONDIÇÕES DO CEGO
Quando recobrei os sentidos, sentia uma impressão horrível de estar morto e enterrado. Encontrava-me estendido de costas num lugar estreito que mais parecia um caixão de defunto. Os meus cabelos estavam cheios de limo e folhas secas. Não sentia nenhuma comichão de vermes me rodeando, porém uns bichinhos de planta tropical andavam-me pelo rosto e pelo pescoço. Evidentemente eu estava plantado ali algum tempo já. Mas por que, lembrei-me desconsoladamente, haveria o coveiro metido-me uma mordaça na boca e me amarrado as mãos e as pernas? Outra coisa que me impressionou foi a dor de cabeça que me fazia até gemer. Principalmente, doía atrás da orelha. E aconteceu justamente que eu ainda me lembrava de que cadáveres não podem ter dor de cabeça. Portanto, eu não era ainda um defunto. Eu fora simplesmente enterrado vivo.
Enterrado vivo?
Fiz um esforço sobre-humano procurando sentar-me. Dei com a cabeça contra a tampa do caixão e nada consegui de aproveitável. Porém aquela pancada me fez voltar a memória. Lembrei-me de Maggie Sullivan, Griff Borlund e a loura Florence Byerne, que falecera caindo de um balcão. Por fim lembrei-me ainda de Herman Herkimer, o raio do advogado que me golpeara com um vaso de flores na cabeça, deixando-me os cabelos sujos de limo, para afinal me instalar naquele lugar incômodo.
Herkimer! Roguei uma praga surda e medonha. Depois jurei que se batesse as botas haveria de voltar a este mundo par agarrar o diabo do Herkimer e aterrorizá-lo até matá-lo de medo. E se ainda vivesse depois daquele aperto em que me havia metido, haveria de pôr as mãos sobre ele e transformá-lo em picadinho.
A tampa do caixão abriu-se então.
— Ransom? – chamou uma voz solicita.
Era Griff Borlund quem se curvava sobre mim.
Afinal de contas eu não me encontrava num caixão de defunto, mas apenas num malão para roupa de cama que se encontrava num aposento de guardados. Consegui sentar-me então e lutei contra os laços que me prendiam. Mas nada consegui. As cordas eram fortes e os laços muito bem dados.
— Graças a Deus você está bem – disse Borlund, estendendo a mão para me tocar. — Você... você está bem, não é mesmo?
Tive ímpetos de soltar uma porção de palavrões e pragas que deixariam qualquer camarada com dor de ouvidos, mas não pude articular mais que gemidos.
— Sei como você se sente – comentou Borlund com simpatia. — E gostaria que soubesse que eu nada tive com o ato de Herkimer, de golpeá-lo na cabeça, embora tenha que lhe confessar que tirei partido da situação depois que o ato já estava consumado. Naquelas circunstâncias, pareceu-me melhor impedir que a polícia o visse, que conversasse com você.
O olhar que lhe lancei seria capaz de derretê-lo de medo, de reduzí-lo às dimensões de um pequeno Polegar. Porém o pobre homem não podia ver. Que felizardo!
— A turma da polícia já veio e já se foi. O corpo de Miss Byerne foi removido. Herkimer relatou que ele e eu estávamos no pátio quando ela caiu e que não havia mais ninguém aqui na casa. O que quer dizer que o veredicto será morte acidental. Não haverá mais investigação alguma.
— Isto é o que você pensa – procurei dizer, mas em vez disso saíram da minha boca palavras desconexas.
— Agora que todos se foram, inclusive Herkimer, quero soltá-lo. Vamos ser amigos, nada de ressentimentos. Mas ainda há certas condições. Você não vai causar aborrecimentos a Maggie Sullivan. Deverá esquecer-se do que lhe disse a respeito dela. Não deverá prestar informação alguma à Polícia. Caso o interroguem, dirá que me deu algumas informações técnicas para uma obra que estou escrevendo, tendo saído antes de ocorrer o acidente.
— Patacoada! – gritei indignado.
— Lembre-se de que nada há que você possa provar – disse ele. — Com Herkimer para me secundar, para me apoiar, poderemos transformá-lo em mentiroso aos olhos da Polícia, seja qual for a declaração que você prestar contra nós. Por outro lado, o seu silêncio vale mil dólares. Que tal? – e ele removeu então a minha mordaça.
Ele tinha me metido num beco sem saída e sabia disto perfeitamente. Eu também sabia. Podia falar contra eles dois na Polícia, durante uma hora, mas ninguém seria capaz de tomar uma providência sequer sem a base de provas. Além do mais, ainda restava sempre a possibilidade de o fato não passar, na verdade, de um mero acidente. Talvez eu estivesse enganado, embora não o reconhecesse. Somente mais tarde é que poderia saber com certeza.
— Está bem, estamos de acordo. Negócio fechado.
Mas eu tinha os dedos cruzados ao dizer isto. Com dinheiro ou sem dinheiro, eu estava realmente resolvido a meter o bedelho nos negócios pessoais de Maggie Sullivan. Haveria de procurar a tal ligação com gente criminosa, aludida por Borlund na nossa conversação na borda da piscina. E então eu seguiria esta pista, a fim de ver se chegava até ao "acidente" com a loura Byerne.
Pretendia também causar um pouco de aborrecimento ao rato chamado Herkimer enquanto estivesse lidando com aquele caso. E se a foguetada que eu ia soltar queimasse Borlund também, tanto melhor. Eu posso me tornar terrivelmente vingativo quando abusam de minha paciência, e tinham abusado de mim graciosamente, sem dúvida alguma, e não seriam apenas um miseráveis mil dólares que me deixariam inerte. Alguém haveria de se arrepender um bocado com aquela história. Muito mesmo.
Com o pagamento do ricaço cego no bolso e o coração fervendo de ódio e vingança, deixei aquele local. Ao me dirigir para o auto que se achava estacionado do outro lado da rua, perguntava a mim mesmo qual seria o melhor ângulo para atacar em primeiro lugar. Foi então que a sorte sorriu na forma de um desconhecido de Borlund. Era um jovem alto, bem apessoado, atlético. Quando nos aproximamos mais, ele deu uma olhada para o meu lado e parou:
— Você não é Nick Ransom?
— Sim.
O seu sorriso mostrou dentes claros e regulares.
— Julguei reconhecê-lo pelas fotografias que tenho visto nos jornais. Como foi que você se saiu com Griff? Bem?
— Que quer o senhor dizer com isto? Como foi que me sai com ele? – retruquei de mau humor — E que diabo pensa o senhor que é que para me fazer perguntas? Somente porque viu a minha fachada nas periódicas. Acha que tem o privilégio de me pôr na berlinda? Nem mesmo sei com que estou falando!
— Oh! – exclamou ele, corando. — Desculpe-me. Sou Donald Keenan. Sobrinho de Griff Borlund. Ensino na escola de meninos mutilados que Griff doou ao Estado no ano passado. – Sorriu novamente procurando desculpar-se. — Naturalmente estou interessado no que o senhor pensa sobre Maggie e os cochichos.
Um palpite começou a florir na minha cabeça dolorida.
— Maggie! E que cochichos?
— Ora, a conversa que o tio Griff surpreendeu ontem à noite. Ou será que estou sendo indiscreto em mencionar tudo isso?
— Absolutamente! – disse eu, depressa. Era evidente que ele estava chegando em casa naquele momento e não estava a par do que se passara com a menina loura. Era igualmente evidente que ele sabia alguma coisa a respeito de Maggie Sullivan, alguma coisa que eu ficaria sabendo graças a ele se usasse um pouco de diplomacia.
— Não quer dar um passeio comigo agora, rapaz? Há alguns pontos que eu gostaria de discutir com você, se é que dispõe de um pouco de tempo.
Ela pareceu embaraçado.
— Sim, pois não, se é que eu posso-lhe prestar algum auxílio.
Deixou-me conduzi-lo para o meu carro e um momento depois rodávamos devagar e sem destino enquanto eu procurava aquele poço de informações.
— Acerca de Maggie e os cochichos – disse eu. — Conte-me tudo que o sabe, Donald.
— Mas o tio Griff já não lhe contou tudo?
— Vamos dizer então de início que eu estou aqui para submetê-lo a um teste. Quero saber se você entra realmente nas confidências de seu tio.
— Naturalmente que sou confidente de meu tio! Se assim não fosse, como é que saberia da conversa sobre assassinato?
Levei um susto tão grande que quase joguei o carro sobre uma árvore do meio-fio.
— Conversação sobre assassinato? – disse eu, depois de recobrar um pouco do meu velho aprumo — Suponhamos que você diga tudo quanto sabe.
— Está certo. O senhor sabe que o tio Griff tem ouvidos anormais, muitíssimo delicados. Escuta com uma precisão espantosa os menores ruídos. Ontem à noite ele tinha bastante convidados, dez ou mais. Eu não estava presente, mas ele me contou, mais tarde, que, de repente, escutou um casal conversando no terraço muito baixinho, nos seguintes termos — "Mas isto é crime! É assassinato!" "Estamos muito abalados para recuar agora, Maggie. Temos que prosseguir".
O rapaz olhou para mim.
— Não é isso mesmo? Não é esta a história da tio Griff?
— De fato, mas que mais pode você acrescentar?
— Bem a única Maggie presente era Maggie Sullivan, de maneira que ela era um dos personagens do diálogo. O outro podia ser qualquer pessoa, homem ou mulher, de vez que não se pode identificar uma pessoa apenas pelos cochichos, por mais aguçados que sejam os nosso ouvidos. Sendo cego, Griff não podia ver quem era. E quando ele chegou ao terraço, os dois já tinham ido embora.
— É tudo quanto você sabe?
Ele deu de ombros.
— É tudo o que se pode saber. Suponho que você já percebeu que Griff está apaixonado por Maggie. Foi por isso que resolveu contratar um detetive. Quer impedir que ela se comprometa num crime de morte. Quer salvá-la antes que seja tarde demais.
Fez uma pausa pensativo.
— Mr. Ransom, o senhor acha que há realmente alguma coisa nesta história? quero dizer, talvez tenha sido brincadeira de Maggie e outro concidadão para cima do tio Griff.
— Tudo é possível – aventurei.
Quanto mais ele demorasse a tomar conhecimento do que se passara na residência do tio, tanto mais útil me seria.
— Mas, brincadeira ou não, o fato é que temos que investigar seriamente. E é ai que você poderá auxiliar-me, se tiver boa vontade.
— Ajudá-lo? – ele pareceu solícito. — Como?
Estacionei o carro e tirei do bolso o livrinho de notas e o lápis,.
— Primeiro vejamos o nome de todos os convidados de ontem à noite.
— Mas o tio Griff não lhe deu uma lista?
— Sim, mas quero apenas verificar se ele não omitiu alguém. Duas memórias são mais aproveitáveis do que uma somente.
E ele engoliu direitinho a minha pílula. Soltou toda a informação de que eu precisava. Herman Herkimer achava-se presente naquela ocasião, naturalmente. O homenzinho oleoso confessara-me ter estado presente à festa, alegando até que deixara a cigarreira. Mas não mencionei isto ao rapaz. Deixei que ele fosse declinando o nome de todos, enquanto ia tomando nota no meu caderninho.
Com exceção de Herkimer, não conhecia nenhuma daquelas pessoas. Mas, pelo menos já tinha como começar o meu trabalho. Tinha muito mais material para trabalhar do que Borlund gostaria de ver em minhas mãos, e devia tudo ao seu sobrinho querido, lembrei com uma careta.
— Muito obrigado, rapaz, você me serviu muito. Agora vou começar a tocar campainhas.
— Mas você vai visitar toda esta gente?
— Sim, talvez consiga pegar alguém em contradição. Espero que você não se incomode de voltar para casa daqui – acrescentei.
Ele fez um gesto para sair do carro, mas parou.
— Talvez você me julgue intrometido, Mr. Ransom, por oferecer sugestões a um detetive experiente, mas... bem, por que não começa com Maggie mesmo? Não precisa conservar-se afastado dela somente porque um "cocktail" pode deixá-la um pouco alegre, talvez ela lhe conte alguma coisa interessante, alguma coisa que lhe possa servir de ponto de partida. E enquanto vocês estiverem fora eu poderia dar uma busca no apartamento dela. Talvez encontre lá alguma pista.
O entusiasmo do moço esfriou tão depressa quanto pegara fogo.
— Estou parecendo um menino com a cabeça cheia de aventuras, não é mesmo? – disse ele, corando. — Desculpe-me, Mr. Ransom.
E ele abriu a porta do carro.
— Um momento. Não fique tão modesto assim. Aprecio muitíssimo boas idéias, que diabo!
Ele arregalou os olhos para mim, mudou de idéia e tornou a sentar-se no carro.
— Acha que é de fato um plano viável? – perguntou muito admirado.
— Vale a pena tentar. Qual o endereço dela?
Doze minutos depois estacionei o carro diante de um despretensioso edifício de tijolos vermelhos em Franklin, e avistamos então a ruiva Sullivan saindo naquele momento de braço dado com um tipinho meloso e com cara de raposa.
Era Herman Herkimer. E antes que se pudesse pensar em alguma coisa, o táxi que já os esperava afastou-se dali.
ATRIBULAÇÕES DE UM "TIRA"
Naturalmente eu devia ter agido com mais calma. Devia ter chamado a Polícia naquele momento. Devia ter procurado o telefone mais próximo e ligado para o meu amigo Ole Brunvig, do Departamento de Homicídios, para lhe contar toda a história, prestar esclarecimentos indispensáveis, e deixá-lo levar a coisa por conta própria. Ole tinha todo o pessoal à sua disposição. Ele podia ter jogado uma isca para Maggie e o advogado. Podia ter estendido o longo braço da Justiça a fim de impedir que se cometesse mais um assassinato.
É preciso não esquecer, porém, que eu teria de fazê-lo acreditar em minhas teorias sem bases e no pouco que podia apresentar de tangível.
E era justamente aí que estava a encrenca. Ole era um policial duro de se convencer com pouca coisa. Era preciso mostrar-lhe provas concretas. Eu não tinha prova nenhuma para apresentar. Griff Borlund, embora cego, conseguia pôr-me fora de combate desde o princípio. Com a ajuda de Herkimer, ele já tinha encerrado o caso da morte de Florence Byerne, afastando-me do cenário de tal forma que ninguém acreditaria no que eu dissesse, mesmo que jurasse sobre uma pilha de livros santos.
De maneira que resolvi levar a coisa avante sozinho, ou antes, apenas com a ajuda do meu assistente amador Donald Keenan.
Ela localizou Maggie e Herkimer no mesmo instante que eu, e os seus olhos quase saltaram das órbitas.
— Ransom, olhe só quem está do outro lado da rua! Maggie e aquele homem! É Herman Herkimer, o advogado de meu tio. Lá vão eles naquele táxi!
— Sim, sim. Mas não me solte foguetes, homem.
— Mas você não vai seguí-los?
— A rua é muito estreita para fazermos a volta. Eu teria que chegar até à esquina e quando voltasse eles já estariam muito longe. Já estão longe, na verdade. Há males que vem para bem. Quem sabe?...
— Que quer dizer você – perguntou ele muito interessado. — O tio Griff o contratou para descobrir quem estava cochichando no terraço com Maggie ontem à noite, não foi? De maneira que deve ter sido o próprio Herman, uma vez que se achava presente na festa.
— O fato de os dois estarem juntos indica que ficamos com uma das mãos completamente livres — está disposto a passar uma revista pelo apartamento de Maggie?
— Oh, pois não!
— Você estará se arriscando – expliquei-lhe. — Você não sabe por quanto tempo ela ficará fora com Herkimer. Poderá voltar mais cedo e surpreendê-lo no meio da tarefa.
— Arriscarei.
— Certo! – disse eu, dei-lhe uma gazua do meu chaveiro, mostrando-lhe como devia usá-lo para forçar fechaduras. Dei-lhe também algumas explicações sobre a técnica do serviço que ia executar.
— Dentro de uma hora ou uma hora e meia você deverá ter acabado tudo.
— Farei todo o possível. Onde poderei encontrá-lo depois?
— Enquanto você trabalha aqui, vou agir pelo meu lado, como detetive particular – disse eu, consultando o relógio do pulso. — Faltam vinte para as quatro, agora. Estarei de volta ao anoitecer, lá pelas cinco e quinze. Espere-me aqui mesmo que virei buscá-lo. Certo?
O meu primeiro ponto de parada foi uma drogaria onde folheei o catálogo telefônico, localizando o escritório de Herman Herkimer. Depois dirigi-me para Altamont, mostrei a minha licença para passar pelo guarda do portão e tratei de visitar um amigo que me devia um grande favor. Ele me obsequiou solícito, atendendo o meu pedido. Entregou-me então uma valise de ferramentas, uma máscara contra gazes e uma pequena bomba química de fumaça, carregada, fechada e pronta para funcionar.
Então dirigi-me ao "Colossus" e repeti a manobra, mas desta vez a pessoa que me devia um favor era uma moça da seção de vestimentas do estúdio. Consegui emprestados com ela uma capa de borracha preta e um capacete de bombeiro. Assim equipado, telefonei para o escritório de Herkimer.
Uma estenógrafa me disse que o senhor Herkimer não estava. Não sabia dizer se ele ainda voltaria ao escritório hoje ou se só estaria lá no dia seguinte. Não, não havia ali mais ninguém que me pudesse auxiliar na resolução de um problema legal. Herkimer não tinha sócios. E também ela não podia prestar-me auxílio algum. Era apenas datilógrafa. Não queria por acaso deixar o meu nome e marcar um encontro, uma entrevista.
— Não, obrigado! – respondi, e desliguei. Então meti-me no carro e dirigi-me sem demora para o antro de Herkimer.
O escritório ficava no terceiro andar de um edifício próximo a Hollywood e Vine. Com o meu material emprestado numa sacola a tiracolo, percorri o corredor e descobri que Herkimer ocupava duas salas contíguas. A primeira era uma saleta de recepção e ao lado a segunda, bem maior e arejada. Era o santuário de labuta daquele agente do diabo. A porta desta sala privada achava-se fechada, mas a janelinha basculante do alto achava-se aberta. E era somente disto que eu precisava.
Tirei da sacola a minha bomba de fumaça, puxei o gatilho e lancei-a por cima da porta. Um minuto depois precipitei-me para dentro da sala do escritório gesticulando excitado.
— Fogo! Fogo!
A datilógrafa de Herkimer achava-se sentada comodamente numa poltrona. Apontei para os rolos espessos de fumaça que vinham da sala vizinha.
— Fogo! Depressa! Corra para se salvar.
Ela saltou da poltrona como uma galinha que estivesse chocando os seus ovos e que descobrisse com espanto. Soltando um grito de horror, ela se lançou para o lado da janela como se estivesse decidida a suicidar-se. Agarrei-a tempo e dei-lhe um empurrão para o lado da porta.
— Telefone para os Bombeiros! Puxe o alarme!
Ela não esperou por mais nada, saiu dali numa correria medonha, desaparecendo no fundo do corredor. Então tirei a máscara da sacola, ajeitei-a convenientemente e entrei no escritório de Herkimer, fechando a porta, a fim de evitar qualquer interrupção, abri uma janela do escritório de Herkimer e voltei toda a minha atenção ao trabalho que tinha que realizar.
Não dispunha de muito tempo, de maneira que tratei de agir com rapidez. Revirei todo o arquivo e afinal encontrei um envelope amarelo no qual estava escrito com letras garrafadas: "Borlund". Estava cheio de documentos, os quais eu não podia examinar naquele momento. Lá em baixo, na rua, as sirenas gemiam como cigarras angustiadas, com cólicas. Mas perto já se ouvia o ruído de passos. O pessoal do fogo já tinha chegado para entrar em ação. Tirei a máscara de gás. Puxei da sacola a capa de borracha e o capacete de bombeiro. Vesti-me imediatamente. A máscara, a bomba de fumaça e o envelope de Borlund, escondi tudo na sacola, a qual meti sob a capa, tornando-me o mais gordo lutador contra o fogo que poderia ter aparecido no quartel. Depois escondi-me debaixo da mesa de Herkimer.
Dentro de um momento, veio da saleta ao lado o ruído de madeira rachada. Eram os heróis da luta contra o fogo pondo abaixo a porta do escritório de Mr. Herkimer. Entraram na saleta, destruindo a mobília à medida que progrediam. Entraram afinal na sala do escritório em que eu me achava. Encheram a sala toda como uma legião de abelhas atarefadas.
Juntei-me a eles. Nem perceberam que havia mais um no meio deles. Quem é que se detém para contar quantos companheiros são justamente quando há cadeiras e mesas para serem destruídas? Para me tornar menos conspícuo, cheguei mesmo a pedir um machado emprestado para arrebentar a mesinha.
Depois tratei de dar o fora para o corredor, tirando proveito da confusão reinante. Avistei uma porta no fundo do "hall" onde se lia "HOMENS". Era daquilo que eu precisava. Entrei imediatamente. Tirei o capacete, a capa, e meti tudo dentro da sacola. Não era mais um bombeiro. Era um detetive particular com oportunidade de ler os papéis que se encontravam dentro do envelope amarelo.
Tirei o maço de documentos do envelope. O primeiro documento que examinei era um acordo mediante o qual Griff doava ao Estado uma escola para meninos mutilados. Estabelecia o capital cujos juros manteriam a escola perpetuamente.
Estipulava também que o sobrinho de Borlund, Donald Keenan, devia conservar durante toda a vida o seu lugar de professor dos queridos meninos, recebendo um salário que daria para mantê-lo sempre numa confortável "Cadillac"’, até que a sua barba chegasse aos sapatos. Que grande generosidade, sem dúvida. Mas daquele jeito o rapaz recebia mais que o primeiro funcionário do Tesouro nacional.
Havia também um testamento no envelope. Os ítens deste documento deixaram-me impressionado, principalmente depois de constatar a quantia que herdaria Maggie Sullivan no caso de morrer Griff Borlund. Ela receberia praticamente quase toda a parte imobiliária da herança. Donald receberia uma boa quantia em dinheiro. Também os empregados da casa e os auxiliares de escritório. Herman ganharia uma soma regular pelos serviços prestados. Herman era ainda o executor e, além disto, deveria administrar o capital que mantinha a escola.
Eu quase podia ver o homenzinho avarento metendo as mãos naquele tesouro, rindo de gozo. E podia vê-lo!... E afinal o vi realmente.
Ele entrou ofegante no reservado sanitário e deu comigo ali, examinando os arquivos de Borlund. Então precipitou-se para o meu lado como um louco.
— Ladrão! Polícia! Ladrão! — berrava ele, furioso. E procurava agarrar-me doidamente.
Empurrei-o para fora e precipitei para a porta. Abri-a depressa e avistei a horda de policiais uniformizados. A gente sempre encontra polícias pelas redondezas de um local de incêndio, mesmo quando se trata de um falso alarme. Ouvindo os berros de Herkimer, aqueles lobos se precipitavam para o meu lado.
De maneira que fiz meia volta e voltei correndo para o reservado. Dominei o advogado imbecil e emborquei-o de cabeça par baixo, metendo-o no vazo sanitário, e puxei a descarga. O homem engasgou e agitou as pernas como se estivesse morrendo afogado. Recusei acreditar nisto. Era bom demais para ser verdade. Nem tive tempo de transformar esta possibilidade em realidade.
Corri para a janela, que abri sem demora. Do outro lado, a uns quatro metros de distancia, havia outra janela diretamente oposta. Subi no parapeito e, reunindo toda a coragem que pude encontrar armazenada no peito, dei um salto através do espaço, alcançando felizmente o outro lado.
Um policial tentou deter-me com um tiro. A bala ricocheteou na porta do reservado como um besouro procurando um buraco para entrar. Soltei um grito de dor e cai por terra.
— Acertei – ouvi dizer uma voz com toda a satisfação possível neste mundo — Vamos juntar os pedaços do pobre coitado.
E assim ganhei uns trinta segundos de prazo.
Os policiais vieram com calma pelo longo corredor que dava ao edifício. Tirei o avental que estava pendurado num cabide por trás da porta e o vesti e um escovão e sai correndo do reservado o mais depressa possível.
Dobrei depressa uma esquina e dei com os mantenedores da ordem e da lei. Era agora ou nunca. Voltei-me e apontei com o escovão.
— Ele foi por aquele lado, moço! – gritei.
Passaram correndo por mim, nem mesmo me disseram obrigado, os ingratos. Concluí que não tinham recebido educação bastante, em criança, e precipitei-me para a escada mais próxima. Desci correndo para o vestíbulo do andar térreo, deixando pelo caminho, a cada salto, um por um, todos os objetos que levava como disfarce. Por fim sai para a rua, livre de qualquer perseguição e fogueira como o vento.
Não ousei lançar mão do meu carro, pois o número da licença estaria, dentro de cinco minutos, sendo irradiado para todos os carros da radiopatrulha. Eu ainda tinha os meus pés. Encontrei um táxi não muito longe dali, que me levou rapidamente até ao local de encontro com Donald Keenan, do outro lado da rua onde ficava o edifício em que morava Maggie Sullivan.
Foi então que topei com mais policiais. Desta vez me agarraram. Já haviam agarrado Keenan também.
30 SEGUNDOS DE PRAZO
Foi a bela Sullivan que me pôs a perder. Ela me avistou quando eu descia do táxi e não perdeu tempo para preparar a minha prisão. Maggie era rápida para entrar em ação.
Acabava de sair do edifício, acompanhada de três guardas, que traziam Keenan sob custódia, e era fácil de se compreender o que havia acontecido. Maggie ao voltar para o apartamento, dera com Donald ainda revirando as suas coisas, à procura de algum indício. Conseguira de alguma forma segurá-lo enquanto não chegavam os mantenedores da lei. Agora ele se achava preso e eu segui o mesmo caminho.
— Guardas, agarrem aquele homem do outro lado da rua! – gritou a ruivinha, apontando-me o dedo. — Ele é Nick Ransom o camarada responsável por este desaforo. Foi ele quem deu instruções a Keenan para revistar o meu apartamento. Depressa! Depressa, antes que ele dê o fora!
Era evidente que Keenan me havia inculpado quando se viu em apuros. Bem, não se podia censurá-lo muito, pois afinal eu havia prestado apoio ao plano que ele apresentara modestamente. Agora estava eu pronto para compartilhar do seu infortúnio. Atravessei a rua e me entreguei mansamente, sorrindo para a bela Sullivan.
— Não se preocupe, beldade – disse eu. — Não tentarei fugir. Mas é pena, sem dúvidas.
— O que é que é pena, homem?
— É pena que as coisas tenham saído desta maneira. Esperava que nós dois pudéssemos ser bons amigos. Você sugeriu que eu telefonasse para marcamos um encontro, lembra-se?
Ela fez um gesto violento com a cabeça.
— Não se iluda, meu caro. Eu estava apenas procurando tornar Griff ciumento, a fim de ele desistir daquela timidez e confessar que me ama.
Os seus olhos se estreitaram.
— E agora talvez você queira explicar por que foi que mandou o sobrinho dele para o meu apartamento, seu sujo.
— Ele já não lhe disse?
O próprio Keenan respondeu então.
— Não, não disse não. Contei apenas que foi o senhor quem me mandou. Achei que devia silenciar sobre os cochichos até que o senhor estivesse pronto para pôr tudo em pratos limpos.
— Muito bem – aprovei. — E já estou mais ou menos pronto. Você descobriu alguma coisa lá em cima?
— Não, não descobri nada. Tentei, mas Maggie me surpreendeu logo.
— Que história de cochichos é esta? – berrou o diabinho ruivo. — O que esperava você que o outro descobrisse em meu apartamento?
— Pistas de criminoso, menina!
E voltei-me então para os guardas.
— Rapazes, chegou a hora decisiva. Chame-me imediatamente o tenente Brunvig pelo rádio do carro da radiopatrulha. Ole Brunvig, compreendem? Do Departamento de Homicídios.
Um dos polícias não gostou das minhas maneiras.
— Quem você pensa que é, menino, para dar ordens a um representante da lei?
— Nick Ransom é o meu nome.
E mostrei a minha licença.
— Ransom, o detetive particular? O velho amigo de Brunvig? O senhor então é Ransom?
— Exatamente.
— Oh, mas eu já devia saber – exclamou ele espantado. — E não há ninguém que nos informe destas coisas.
Ele se meteu logo dentro do carro e tratou de estabelecer a ligação. Logo depois estendeu-me o fone e eu disse a Brunvig o que queria com ele, onde queria e por que motivo. Brunvig não estava de bom humor.
— Está bem, menino incorrigível. Não acredito em nenhuma palavra de toda essa sua história, mas quero vê-lo em apuros. E depois que você cometer algumas asneiras vou-lhe tirar a licença e metê-lo no xilindró.
Desliguei o aparelho. Entramos no carro da radiopatrulha e tratamos de correr. Embora tivéssemos corrido um bocado, Ole Brunvig correra muito mais ainda. O seu carro oficial encontrava-se bem atrás do nosso quando paramos diante da residência de Borlund. Além do mais, Brunvig havia levado a cabo as minhas instruções. Parara no meio do caminho e trouxera um passageiro a mais. O passageiro era o próprio Herman Herkimer.
Os nosso grupos se encontraram a meio caminho da residência de Borlund, na alameda que levava até à porta. Herkimer tinha uma expressão de apreensão naquele momento. Começava a compreender que estava metido numa embrulhada. Ole, como sempre, era o tipo do policial magro e doente do fígado.
— Está bem, Sherlock — Vamos parar de falatório e ver o que interessa realmente.
Fiz um gesto de assentimento com a cabeça e lancei um olhar a Herkimer, Maggie e Keenan.
— Todo esse movimento, Ole é por causa da morte de uma datilógrafa, ocorrida hoje, aqui na residência de Mr. Borlund. Chamava-se ela Florence Byerne. Foi considerado caso de acidente, mas eu protesto. Trata-se de um caso de homicídio. Griff Borlund conspirou com Herkimer para encobrir os fatos reais. E fez para proteger uma jovem pela qual está apaixonado. Trata-se desta senhorita ao meu lado, Maggie Sullivan. Ele suspeitava que ela se achava comprometida em alguma ação criminosa.
— Que asneira é esta, moço? Eu, metida em ação criminosa? O que, seu imbecil? É uma mentira ultrajante e você sabe muito bem disto!
Sem ligar a menor importância a estas palavras prossegui calmamente.
— As suspeitas de Borlund eram baseadas num fragmento de diálogo cochichado que ele ouviu por acaso ontem à noite, durante uma festa aqui em sua residência. Era o planejamento de um crime, e Borlund, embora cego, teve boas razões para crer que Maggie era um dos interlocutores.
— Vamos ver isto direito! Vamos entrar logo de uma vez e falar diretamente com Griff.
— Era justamente o que eu ia sugerir! – apertando a campainha.
Mas nada aconteceu. Depois bati à porta. Silêncio. Nenhuma resposta. Nesta altura Maggie tirou uma chave da bolsa e abriu a porta. Todos nós entramos precipitadamente.
O interior da casa estava escuro, pesado de sombras. Nenhuma luz entrava pela clarabóia de vidro espesso. Lá fora a noite descia. Borlund não se achava à vista, nem respondeu quando chamamos por ele.
Descobrimos o motivo quando afinal chegamos ao pátio dos fundos, ao lado da piscina. A senhorita Sullivan acendeu os projetores que iluminavam o pátio e a piscina e logo soltou um grito horror.
A piscina estava vazia. O corpo estraçalhado de Griff Borlund jazia sobre o concreto duro, lá no fundo, diretamente abaixo do trampolim. Não era preciso olhar duas vezes para constatar que ele não ditaria mais nenhuma obra literária, pelo menos neste mundo e para este mundo.
Fiquei parado ali, contemplando aquele corpo inerte. Não esperava de forma alguma encontrar o pobre cego morto em sua própria residência. Na realidade, nunca me passara pela cabeça que ele corresse perigo.
Keenan foi o primeiro a falar alguma coisa coerente. Por cima dos gritos e gemidos de dor de Maggie Sullivan, ele exclamou;
— Meu Deus! Ele pulou na piscina vazia!
E então lançou um olhar significativo para o lado de Maggie e Herkimer, como se compreendesse agora por que eles haviam saído juntos.
— O culpado da morte de Griff foi quem esvaziou a piscina deliberadamente – disse ele então. — Foi um assassinato frio e premeditado.
— Prepararam o cenário para parecer assim, mas você está enganado – retruquei. — Seu tio era muito cauteloso para cometer este erro inominável de pular numa piscina vazia. Antes de mergulhar, ele sempre lançava uma pedra e esperava ouvir o ruído da queda na água.
Herkimer lançou-me um longo olhar.
— Está sugerindo que foi suicídio? Está procurando mostrar que ele assassinou Florence de manhã para depois suicidar-se?
— Não,– disse eu — porque ele não poderia ter matado a loura. Lembre-se de que eu me achava aqui quando ela morreu. Ela gritou ao cair e o grito soou um segundo apenas depois de Griff ter entrado na casa. Portanto, Griff não podia ter tido tempo de subir as escadas do balcão e empurrá-la por cima da balaustra. Foi outra pessoa quem fez isso. E esta mesma pessoa foi quem arquitetou a morte do próprio Borlund. O assassinato de Miss Byerne foi coisa de momento, sem premeditações, desde o momento em que ele ouviu a conversação suspeita na festa, ontem à noite.
Os olhinhos do advogado brilharam furtivamente.
— Não o compreendo.
— Vou desenhar-lhe um diagrama – disse eu — Você é o testamenteiro de Griff Borlund, não é mesmo? E administrador dos seus bens, não é?
— Exatamente.
— Além disto, Maggie herda a maior parte da fortuna, não é?
Ele engoliu em seco e fez um movimento de assentimento com a cabeça.
— Mas, segundo a lei, se for provado que ela tomou parte numa trama para assassiná-lo, nada receberá. Correto?
— Sim... Sim...
— E uma piscina deste tamanho leva pelo menos umas duas horas ou três horas para esvaziar, concorda?
— Acho que sim.
Voltei-me então para Ole Brunvig.
— Eis aí o seu caso, camarada. Esta piscina foi aberta há muitas horas atrás. Digamos, lá pela uma hora da tarde, talvez uma e meia. Mais tarde, o criminoso ainda voltou, pôs Borlund fora de combate, levou-o até à torre e largou-o lá de cima. Está claro?
Fiz-lhe uma careta de sarcasmo.
— Mas que diabo, homem. Use a cabeça. Olhe para Herkimer. Você acha que ele teria forças para carregar Borlund lá para cima? Não. Uma menina delicada como Maggie poderia tal coisa? Não. Então meta as algemas ao culpado, em Donald Keenan.
O rapaz alto e sardento emitiu um grito violento.
— O que? Espere um momento, seu policial de meia-tigela.
— Esperar o que? – zombei. — Você sabia que seu tio estava apaixonado por Maggie, embora a sua cegueira o tornasse retraído demais para confessar os seus sentimentos. Você sabia também que o testamento deixava a ela a maior parte da fortuna. É verdade que ele lhe assegurava um ótimo lugar na tal escola para meninos aleijados. Mas você não se sentiu satisfeito com o gordo salário. Queria toda a fortuna, e tinha pressa em por as mãos no dinheiro. De maneira que arquitetou um plano para se livrar do tio e empurrar a culpa para cima de Maggie Sullivan. Se ela fosse condenada, seria automaticamente deserdada e você, como único parente, receberia tudo.
— Tolice! Asneira!
— Você não deveria tomar parte na festa ontem à noite, mas conseguiu entrar sem ser visto. E esperou escondido no terraço até que o seu tio surgisse na porta. E então começou a trabalhar na farsa. Fez o papel de Maggie e de outra pessoa. E conversou sobre a necessidade de um crime de morte. Era fácil enganar a um cego. Não se pode identificar cochichos. Você fez o papel dos dois personagens.
— Pare! Pare com estas tolices!
— Não, trata-se da verdade e você não quer ouvi-la. A sua idéia era fazer Griff suspeitar de Maggie, preocupá-lo com a possibilidade de Maggie achar-se envolvida num crime. Assim que ele confiou as suas suspeitas e preocupações a um estranho, um detetive particular, como eu, por exemplo, você já estava com tudo preparado para pô-lo fora de combate. Podia contar com o detetive para empurrar a culpa para cima da moça. Muito hábil, sem dúvida, porém você cometeu um engano grave, comprometendo-se seriamente.
Ele fez uma careta de incredulidade e desafiou.
— Comprometi-me? Como assim?
— Foi quando sugeriu que eu saísse com Maggie enquanto você investigava o apartamento – respondi. — Você me disse que eu não precisava me conservar afastado dela somente porque seu tio pedira que não desse importância às palavras da moça. Se você não estava presente à nossa conversa como poderia saber que ele pedira que não me aproximasse dela?
— Ora, eu.. eu não compreendo.
— Isto foi a chave da charada. Isto e ainda um binóculos que encontrei lá em cima.
Ele empalideceu.
— Binóculos?
— Exatamente. Como já tive oportunidade de averiguar, você se especializou uma certa técnica de ensino. Trabalha com crianças surdas, ensina-as a ouvir pelo movimento dos lábios. Hoje você esteve numa janela que dava para o pátio, observando Griff com os binóculos. Você lia em nossos lábios tudo quanto dizíamos. Florence Byerne não havia partido ainda e o surpreendeu em flagrante.
Ele não agüentou mais a minha investida certeira. Estremeceu visivelmente.
— Você foi obrigado a jogá-la de cima do balcão. O ruído da luta chegou aos ouvidos de Griff, antes que ele acabasse de me contar tudo o que sabia. Infelizmente você escapou, e deve ter sido então quando que abriu o registro da piscina. Mais tarde quando eu já me retirava... você fingiu que estava chegando. Encontrou-se comigo na frente e deixou-me pensar que estava conseguindo informações por seu intermédio. Mas, na verdade, você estava fazendo-me de bobo, preparando novamente o seu cenário.
— Não! – disse ele debilmente. — Não! Não!
Mas eu não lhe dei tréguas.
— Já nesta altura comecei a perceber que fora você mesmo quem matara a menina. Mas precisava de provas. Nunca pensei entretanto que estivesse planejando matar seu próprio tio. Deixei-o no apartamento de Maggie enquanto fui em busca de material para provar que você havia matado Florence. Foi então que você aproveitou-se da oportunidade para vir aqui, matar o tio e voltar ainda a tempo de ser agarrado por Maggie. Era o seu álibi. Mas agora não lhe servirá de nada. Encontraremos impressões digitais no registro da piscina, mostrando que você a esvaziou. Haverá impressões no corrimão da escada da torre dos trampolins também, provando que você levou Griff lá para cima. – Fiz uma pausa então. — A menos que tenha usado luvas!
— E usei mesmo! – gritou ele triunfante. — Não encontrarão nenhum vestígio.
De repente compreendeu que havia confessado tudo nestas palavras. Girou nos calcanhares tomado de pânico, e começou a correr. Ole Brunvig puxou o seu velho revólver, e gritou calmamente com aquele seu vozeirão.
— Pare ou atiro!
Sem ligar importância ao aviso, Keenan disparou de cabeça baixa, às cegas, loucamente, sem parar para refletir.
Talvez tenha sido a justiça divina. O fato é que ele caiu da beirada da piscina – na parte funda. Eram apenas uns seis metros de profundidade, mas caiu de cabeça. Não se poderia fazer um serviço melhor em seu pescoço com o laço da forca.
R. F. Lucchetti
O melhor da literatura para todos os gostos e idades