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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTÉRIO DE BRUNSWICK GARDENS / Anne Perry
O MISTÉRIO DE BRUNSWICK GARDENS / Anne Perry

 

 

                                                                                                                                   

  

 

 

 

 

Nos ricos jardins Brunswick a batalha sobre a teoria revolucionária de Charles Darwin da evolução se intensifica a medida que o respeitado reverendo Parmenter é audazmente questionado por sua bela assistente, Unity Bellwood, uma 'nova mulher', cujo feminismo e agressivo darwinismo ele acha espantosos.

Quando Unity , grávida de três meses, sofre uma queda pela escada que causa sua morte, Pitt tem certeza que um dos três homens, profundamente devotos, da moradia cometeu o assassinato.

 

 

 

 

Pitt bateu na porta do escritório do subchefe de polícia e esperou. Devia tratar-se de um assunto delicado e urgente, ou do contrário Cornwallis não teria recorrido ao telefone para solicitar sua presença. Desde que o tinham posto no comando da delegacia de polícia do Bow Street, Pitt não intervinha pessoalmente nos casos a menos que pudessem ser embaraçosos para alguma pessoa importante, ou ter perigosas conseqüências políticas, como por exemplo, o assassinato do Ashworth Hall ocorrido cinco meses atrás, em outubro de 1890. Devido a este fato se frustrou o esforço de reconciliação entre católicos e protestantes irlandeses, embora com o escândalo do divórcio do Katie O"Shea, em que se havia visto envolvido Charles Stewart Parnell - o líder da maioria irlandesa no Parlamento -, a situação estava de todo modo à beira do desastre.

Abriu a porta Cornwallis em pessoa. Embora não se igualava ao Pitt em estatura, era magro e ágil, como se a força física e galharda presença que tinha necessitado na marinha formassem ainda parte de sua natureza. De sua época no mar conservava deste modo a sobriedade de palavras, a pressuposição de obediência e certa simplicidade de pensamento própria de um homem habituado à inclemência dos elementos, mas alheio às artimanhas dos políticos e a duplicidade do comportamento em público. Estava aprendendo, mas ainda dependia do Pitt. Uma taciturna expressão escurecia naquele momento seu rosto de nariz longo e boca larga.

—Adiante, Pitt. - Cornwallis se fez a um lado, mantendo a porta aberta. —Perdoe a pressa, mas nos achamos ante uma espinhosa situação, ou isso parece, por causa de um fato ocorrido em Brunswick Gardens.

Com o sobrecenho franzido, Cornwallis fechou a porta e retornou a sua escrivaninha. Era um escritório agradável e estava muito mudado em relação à época em que o ocupava seu antecessor. Agora fazia parte da decoração diversos instrumentos náuticos, na parede do fundo pendia uma carta de navegação do Canal da Mancha, e entre os imprescindíveis livros de direito e procedimento policial havia também uma antologia poética, uma novela do Jane Austen e uma Bíblia.

Pitt aguardou que Cornwallis se sentasse e depois tomou assento ele mesmo. As abas de sua jaqueta pendiam pesadamente aos lados porque levava os bolsos cheios. Apesar da promoção, não dedicava muito mais atenção que antes a seu alinho pessoal.

—Diga-me - insistiu Pitt com tom interrogativo.

Cornwallis se reclinou contra o espaldar e a luz se refletiu em sua cabeça. Sua total calvície lhe favorecia. Custava imaginá-lo de outro modo. Nunca brincava nervosamente com as mãos, mas quando estava preocupado, juntava as pontas dos dedos formando um campanário. E foi essa atitude que adotou naquele momento.

—Uma jovem faleceu de morte violenta em casa de um respeitável clérigo, muito estimado por suas publicações eruditas e firme candidato a um bispado, o reverendo Ramsay Parmenter, pároco da igreja de San Miguel. - Sem afastar o olhar do rosto do Pitt, Cornwallis respirou fundo. —Foram atrás de um médico que vive perto dali, e quando este viu o cadáver, telefonou à polícia. Apresentaram-se imediatamente uns agentes que por sua vez telefonaram.

Pitt não o interrompeu.

—Conforme parece, trata-se de um assassinato e o próprio Parmenter poderia estar comprometido.

Cornwallis se guardou de acrescentar sua impressão a respeito, mas seus temores eram patentes em cada uma das rugas que irradiavam de seus lábios apertados e na expressão compungida de seus olhos. Para ele, a liderança, tanto moral como política, era um serviço a outros, uma forma de confiança que se se defraudava, tinha sempre graves conseqüências. Tinha passado toda sua vida até data recente no mar, onde a palavra do capitão não admitia disputa. A sobrevivência da tripulação dependia de sua destreza e bom julgamento. O capitão devia tomar decisões acertadas, e suas ordens se obedeciam. Descumpri-las equivalia a um motim, conduta castigada com a morte. O próprio Cornwallis tinha aprendido a obedecer, e no seu devido tempo tinha subido até essa solitária cúspide. Conhecia tanto as responsabilidades como os privilégios de tal posição.

—Compreendo - disse Pitt lentamente. —Quem era essa jovem?

—A senhorita Unity Bellwood - respondeu Cornwallis. —Uma especialista em línguas mortas. Colaborava com o reverendo Parmenter nas tarefas de documentação para seu novo livro.

—Por que suspeitam o médico e a polícia do distrito que se trata de um assassinato? - perguntou Pitt.

Cornwallis contraiu ainda mais seus finos lábios em uma careta de aversão.

—Imediatamente antes do fato, ouviu-se à senhorita Bellwood gritar: "Não, não, reverendo!" Ao cabo de um momento, a senhora Parmenter saiu do salão e a achou estendida ao pé da escada. Quando se aproximou dela, já estava morta. Pelo visto, rolou escada abaixo e fraturou o pescoço.

—Quem a ouviu gritar?

—Várias pessoas - respondeu Cornwallis com semblante sombrio. —Muito temo que não fica lugar a dúvidas. Tomara pudesse dizer o contrário. Achamo-nos ante uma situação muito desagradável, uma tragédia doméstica de alguma espécie, suponho, mas devido à posição social dos Parmenter se converterá em um escândalo de proporções maiúsculas se não atuarmos depressa... e com muito tato.

—Obrigado - disse Pitt ironicamente. —E a polícia do distrito não deseja continuar com o caso? - Era uma pergunta retórica, formulada sem esperança. Era evidente que não tinham o menor interesse em se ocupar do caso, e até se o tivessem, com toda probabilidade não lhes permitiria. Prometia ser um assunto extremamente embaraçoso para todos os implicados.

Cornwallis não se incomodou em responder.

—Brunswick Gardens, número dezessete - informou lacónicamente. —Sinto muito, Pitt. - Pareceu a ponto de acrescentar algo mais, mas trocou de idéia, como se fosse incapaz de expressar com palavras.

Pitt ficou em pé.

—Como se chama o inspetor do distrito responsável pelo caso?

—Corbett.

—Irei, tirar esse peso de cima do inspetor Corbett - declarou Pitt sem o mínimo entusiasmo. —bom dia, senhor.

Cornwallis manteve um sorriso nos lábios até que Pitt chegou à porta e logo voltou a inundar-se em seus papéis.

Pitt telefonou à delegacia de polícia do Bow Street e ordenou ao sargento Tellman que se reunisse com ele em Brunswick Gardens, sem adiantar-se o sob nenhum pretexto, e a seguir saiu em busca de um cabriolé de aluguel.

Eram quase onze e meia quando se apeou sob a luz fria e intensa do sol frente ao espaço aberto e as árvores desfolhadas próximos à igreja. Havia um curto trecho até o número dezessete, e inclusive a vinte passos de distância percebeu já um ar diferente na casa. As cortinas estavam fechadas e a envolvia um peculiar silêncio, como se não tivesse criadas arejando os aposentos, abrindo janelas ou correndo ao pátio para recolher as entregas dos serviços de partilha.

Tellman aguardava na calçada ante a porta, com seu sério aspecto de costume, uma expressão de receio em seu rosto enxuto, semicerrados seus olhos cinzas.

—O que aconteceu aqui? - perguntou com tom grave. —roubaram a prata da família, não?

Pitt lhe contou rapidamente o que sabia, acrescentando uma advertência a respeito da necessidade de levar o assunto com supremo tato.

Tellman tinha uma cáustica opinião da riqueza, dos privilégios e da autoridade estabelecida em geral quando provinham de um direito de nascimento, e ele sempre

dava como certo que assim era, a menos que se demonstrasse o contrário. Guardou silêncio, mas seu semblante era eloqüente.

Pitt puxou a campainha ante a porta principal, a abriu imediatamente um agente de polícia visivelmente preocupado. Olhando Pitt, o agente reparou em seu cabelo muito longo, os volumes dos bolsos e a gravata, e tomou ar disposto a lhe negar a entrada. Depois que percebeu a presença do Tellman, que esperava bem mais atrás.

—Sou o delegado Pitt - se apresentou. —E me acompanha o sargento Tellman.

O senhor Cornwallis nos pediu que viessemos. Está aqui o inspetor Corbett?

Uma expressão de alívio apareceu no rosto do agente.

—Sim, senhor Pitt. Passe, senhor. O inspetor Corbett está no vestíbulo. Venham por aqui.

Pitt aguardou o Tellman e fechou a porta assim que entrou. Ele e Tellman seguiram o agente através do saguão até o ornamentado vestíbulo interior. O chão era um mosaico composto de raias negras e volutas brancas que, em opinião de Pitt, tinha um marcado ar italiano. A escada, negra e alta, era de mogno e estava encostada a três paredes. Azulejos de cor azul marinho cobriam a quarta parede. Justo debaixo do pilar de chegada do corrimão da escada se erguia uma enorme palmeira plantada em uma tina negra. Duas colunas brancas e redondas sustentavam uma galeria, e a principal peça do mobiliário era um delicioso biombo turco. Tudo era muito moderno e em outras circunstâncias teria sido imponente.

Naquele momento, em troca, um grupo de pessoas reunido ao pé da escada constituía o centro de atenção: um médico jovem e abatido guardando o instrumental em sua maleta, outro homem jovem, imóvel, seu corpo em tensão, como se desejasse atuar de algum modo mas não soubesse o que fazer; o terceiro era um homem uma geração mais velho, de cabelo espaçado e expressão séria e preocupada. A quarta e última figura jazia enfraquecida no chão, parcialmente tampada com uma manta, e Pitt só via a curva de seus ombros e quadris.

O homem de maior idade se voltou ao ouvir os passos do Pitt.

—O senhor Pitt - anunciou o agente a esse homem, seu rosto com expectativa, como se, se soubesse portador de uma boa notícia. —E o sargento Tellman. Envia-os o subchefe de polícia.

Corbett compartilhou a sensação de alívio de seu subordinado, sem realizar o menor esforço por dissimulá-lo.

—Ah! bom dia, senhor - disse. —O doutor Green terminou agora mesmo. Não pôde fazer-se nada pela pobre mulher, como era de esperar. E este outro cavalheiro é o senhor Mallory Parmenter, o filho do reverendo Parmenter.

—Muito prazer, senhor Parmenter - respondeu Pitt, e saudou o médico inclinando a cabeça.

Lançou uma olhada ao vestíbulo e depois à escada. Era alta, sem tapete.

Qualquer um que fosse empurrado do alto e caísse rodando até o chão muito provavelmente seria ferido com gravidade. Não lhe surpreendeu, pois, que naquele caso a queda tivesse tido um desenlace fatal. Aproximou-se do grupo, agachou-se e, retirando a manta, examinou o corpo da jovem. Jazia de lado, seu rosto visível só em parte. Pitt viu que tinha sido em extremo formosa, com um atrativo sensual e cultivado. Tinha feições marcadas, sobrancelhas retas e uniformes, e lábios carnudos. Se alguém houvesse dito ao Pitt que em vida foi uma mulher de grande inteligência, não o teria posto em dúvida. Entretanto, percebeu pouca doçura nela.

—Morreu por causa da queda - informou Corbett quase em um sussurro. —Faz aproximadamente uma hora e meia. - Tirou um relógio do bolso do colete. —O carrilhão do vestíbulo deu as dez pouco depois. Imagino que falará pessoalmente com as testemunhas, mas se o desejar, posso lhe pôr à corrente do que já sabemos.

—Sim - aceitou Pitt, com a vista fixa ainda no cadáver. —Sim, por favor. - fixou-se nos pés da desafortunada. Calçava sapatilhas de interior em lugar de botas, e virtualmente lhe tinham saído as duas na queda. Examinou com atenção a prega da saia, em todo seu contorno, considerando a possibilidade de que tivesse alguns pontos descosturados, tivesse lhe enganchado o salto e tivesse tropeçado. Mas se achava intacto. Na sola de uma das sapatilhas detectou uma curiosa mancha escura e perguntou: —O que é isso?

Corbett observou a mancha.

—Não sei, senhor. - agachou-se e a tocou experimentalmente com a ponta de um dedo, que logo se aproximou do nariz. —Uma substância química. Está seca na sola, mas conserva um penetrante aroma, assim deve ser recente. - ergueu-se e se voltou para Mallory Parmenter. —Sabe se a senhorita Bellwood saiu da casa esta manhã?

—Não, não sei - respondeu Mallory sem demora. Estava muito pálido e mantinha as mãos firmemente entrelaçadas para controlar o tremor. —Eu me retirei para estudar... na estufa anexa. Deu de ombros em um gesto de desculpa, como se isso requeresse alguma explicação. —Em alguns momentos é a zona mais tranqüila da casa. E muito agradável. A criada ainda não tinha tido tempo de acender o fogo do salão da manhã, assim a estufa era também o lugar menos frio. É possível que Unity tenha saído, mas ignoro para que. Pode ser que meu pai saiba.

—Onde está o reverendo Parmenter? - perguntou Pitt.

Mallory o olhou. Era um jovem bonito, de cabelo escuro e liso e feições proporcionais que facilmente podiam parecer encantadoras ou ásperas segundo a expressão que adotasse.

—Meu pai está em cima, em seu gabinete - respondeu. —Como é lógico, encontra-se muito afetado pelo ocorrido e prefere estar só, ao menos durante um momento. Se necessitarem algo, estou a sua inteira disposição.

—Obrigado, senhor - disse Corbett, —mas não acredito que seja necessário retê-lo aqui mais tempo. Certamente deseja estar ao lado de sua família. – Era uma maneira cortês de lhe pedir que se fosse.

Mallory vacilou, olhando para Pitt. Por alguma razão resistia a partir, como se em sua ausência pudesse acontecer algo que devesse ter prevenido. Baixou a vista para a figura imóvel estendida no chão.

—Poderiam voltar a cobri-la... ou fazer algo? - solicitou, incapaz de conter-se.

—Quando o delegado der por concluída sua inspeção, transladaremo-la ao necrotério - respondeu Corbett. —Mas agora nos permita continuar com nosso trabalho.

—Sim.... sim, claro - concedeu Mallory. Deu meia volta e se afastou até desaparecer através de uma porta primorosamente lavrada.

Corbett se voltou para Pitt.

—Sinto muito, senhor Pitt. Parece tratar-se de um assunto muito desagradável. Terá que falar você mesmo com as testemunhas. São a senhora Parmenter, a criada e o valete.

—Sim. - Pitt olhou uma vez mais pra Unity Bellwood, gravando-se na memória a postura em que jazia, o rosto, o abundante cabelo moreno, as mãos fortes, de longos dedos, cuidadas, agora hirtas. Uma mulher interessante. Mas provavelmente, a diferença do que ocorria na maioria de seus casos, não se veria na necessidade de conhecer muitos detalhes sobre sua vida. Este caso parecia infelizmente claro, uma simples tragédia, possivelmente difícil de demonstrar nos tribunais. Voltou-se para o Tellman, de pé a um par de passos detrás dele. —Melhor será que fale com o resto dos criados. Averigúe onde estavam todos no momento da morte, e se viram ou ouviram algo. E tente descobrir o que é a substância que observamos na sola da sapatilha. E atue com discrição. Por agora é pouco o que sabemos com total certeza.

—Sim, senhor - respondeu Tellman com desgosto. Partiu, os ombros rígidos, certa arrogância no porte, como se andasse procurando briga. Era um homem de caráter difícil, mas perspicaz, paciente, e sempre disposto a aceitar qualquer conclusão, por desagradável que lhe fosse.

Dirigindo-se de novo para Corbett, Pitt disse:

—Eu gostaria de ver a senhora Parmenter.

—Está no salão. Ali. - Corbett indicou outra porta, também profusamente lavrada, do outro lado do vestíbulo, entre as colunas brancas.

—Obrigado.

Pitt se dirigiu para ali, e seus passos sobre os pequenos fragmentos de mármore ressoaram no silêncio da casa. Bateu na porta, e uma criada abriu imediatamente.

Entrou em um lindo salão, decorado igualmente em um estilo muito moderno, com numerosas obras de arte chinesas e japonesas, destacando um biombo de seda com caudas de pavão bordadas em um canto; inclusive o papel pintado das paredes, com um tênue desenho de canos de bambu, tinha reminiscências orientais. Mas naquele momento Pitt só prestou atenção à mulher que jazia em um divã negro laqueado. Naquela posição, era difícil adivinhar sua estatura, mas era esbelta, de cabelo castanho, e feições atraentes e pouco comuns. Tinha uns olhos enormes e muito separados, as maçãs do rosto salientes e o nariz inesperadamente pronunciado. Seu aspecto induzia a pensar que era uma mulher que, em circunstâncias normais, sorria com facilidade e ria a menor ocasião. Nesse momento

estava muito séria e mal conseguia manter a serenidade.

—Rogo-lhe que me desculpe por vir incomodá-la, senhora Parmenter – disse Pitt, fechando a porta. —Sou o delegado Pitt, do Bow Street. O senhor Cornwallis, subchefe da polícia, encarregou-me a investigação da morte da senhorita Bellwood. - Não ofereceu maiores explicações. Com aquelas palavras, parecia admitir que estavam dispostos a ocultar algo, ou a prejulgar a magnitude e as conseqüências da tragédia.

—Claro, delegado, compreendo - respondeu ela com um indício de sorriso.

Voltou um pouco a cabeça para ele, mas continuou reclinada.

A criada aguardava discretamente no canto, possivelmente se por acaso sua senhora necessitasse um pouco mais de reconstituinte ou ajuda.

—Quer que lhe conte o que sei, imagino - prosseguiu Vita Parmenter, baixando um pouco a voz.

Pitt tomou assento, nem tanto por sua própria comodidade por ficar à mesma altura que ela e lhe evitar assim ter que falar levantando a vista.

—Se for amável - disse ele.

Obviamente a senhora Parmenter se preparou para aquilo, e parecia ter a mente muito clara, só se percebia um ligeiro tremor em suas mãos. Mantinha seus assombrosos olhos fixos nele.

—Meu marido tinha tomado o café da manhã cedo, como é seu costume quando trabalha. Suponho que Unity.... a senhorita Bellwood.... fez o mesmo. Não a vi sentada à mesa, mas isso não tem nada de estranho. Outros têm tomado o café da manhã na hora de sempre. Pelo que lembro, não falamos de nenhum assunto de especial interesse.

—Outros? - perguntou Pitt.

—Meu filho, Mallory - precisou ela. —Minhas filhas, Clarice e Tryphena, e o ajudante que reside atualmente conosco.

— Ah. Continue, por favor.

—Mallory foi à estufa para ler e estudar. Acha-a um lugar agradável; é quente e silencioso, e ali ninguém o interrompe, já que as criadas nunca entram e o jardineiro tem pouco que fazer nesta época do ano. - Observava Pitt atentamente. Seus olhos eram de uma cor cinza muito clara, as pestanas longas e escuras, as sobrancelhas delicadas. —Clarice subiu a seu quarto. Não disse para que. Tryphena entrou aqui para tocar o piano. Não sei o que fez o ajudante. Eu também estive aqui, e o mesmo Lizzie, a criada encarregada do andar térreo. Dediquei-me a arrumar as flores. Ao terminar, dirigia-me para o vestíbulo, e já quase na porta ouvi Unity gritar... -interrompeu-se, seu rosto lívido e contraído.

—Ouviu o que dizia, senhora Parmenter? - quis saber Pitt com semblante circunspeto.

Ela engoliu as saliva. Pitt notou o movimento em sua garganta.

—Sim - sussurrou a senhora Parmenter. —Disse: "Não! Não!" e algo mais, e Depois deu um grito. Continuando, ouviu-se uma série de golpes surdos... e depois silencio. - Olhou fixamente para Pitt, e o horror se refletiu em seu rosto, como se ainda ouvisse aqueles sons em sua mente, repetindo uma e outra vez.

—E esse "algo mais" que disse? - perguntou Pitt, apesar de conhecer já a resposta, informado pelo Cornwallis das declarações dos criados. Não esperava que respondesse, mas devia ao menos lhe dar a oportunidade.

Como ele previa, Vita Parmenter demonstrou sua lealdade.

—Não... não... - Baixou o olhar. —Não tenho certeza. - Pitt não a pressionou.

—E o que viu ao sair ao vestíbulo, senhora Parmenter? Desta vez ela não titubeou.

—Vi Unity estendida ao pé da escada.

—Havia alguém em cima, no patamar?

Ela permaneceu em silêncio, evitando novamente o olhar do Pitt.

—Senhora Parmenter?

—Vi o ombro e as costas de um homem atrás da jardineira e as flores do corredor.

—Sabe quem era?

Estava muito pálida, mas nesta ocasião não fugiu ao Pitt, olhou-o nos olhos sem piscar sequer.

—Não estou tão certa disso para responder, delegado, e prefiro não extrair conjecturas.

—Como ia vestido esse homem, senhora Parmenter? O que viu exatamente?

Vita Parmenter hesitou, esforçando-se em recordar. Sua profunda desdita era evidente.

—Uma jaqueta escura - respondeu por fim. —Com abas.... acredito.

—Há algum homem nesta casa com quem concorda essa descrição? fixou-se na estatura, na compleição, qualquer detalhe?

—Não - murmurou ela. —Não, não recordo nada em particular. Foi só um segundo. Movia-se muito depressa.

—Compreendo. Obrigado, senhora Parmenter - disse Pitt com tom grave. —Pode me falar da senhorita Bellwood? Como era? Por que desejaria alguém lhe causar algum mal?

Ela baixou o olhar com um sorriso quase imperceptível.

—Senhor Pitt, é me muito difícil responder a isso. Não... eu não gosto de falar mal de uma pessoa que acaba de sofrer uma trágica morte, em minha casa, e tão jovem.

—Naturalmente - concordou Pitt, inclinando-se um pouco para ela. No salão, quente pelo fogo, estava-se à vontade. —Ninguém gostaria. Lamento ter que perguntar-lhe, mas espero que compreenda que devo conhecer a verdade, e se realmente a empurraram, a situação será dolorosa... e por força muito desagradável. Sinto muito, mas não há escolha.

—Sim.... sim, certamente. - sorveu-se o nariz. —Lhe peço desculpas por minha estupidez. Conserva-se a esperança.... e não é muito sensato. Quer saber como pôde ocorrer uma coisa assim e por que. - Permaneceu calada por uns momentos, talvez procurando as palavras para explicar-se.

No resto da casa reinava um completo silêncio. Nem sequer se ouvia o tic tac de um relógio em nenhuma parte, nem passos de criados no vestíbulo, do outro lado da porta. De pé no canto, a criada parecia um elemento mais da carregada decoração.

—Unity era uma mulher muito inteligente - se decidiu Vita por fim. —Em um sentido acadêmico. Era uma lingüista brilhante. Desdobrou-se em grego e aramaico tão facilmente como você ou eu em Inglês. Nesse aspecto sua colaboração era de grande ajuda a meu marido. Ele é teólogo, sabe, eminente em seu campo, mas possui uma aptidão limitada para a tradução. Capta plenamente o sentido de uma obra, se for de caráter religioso, ela, em troca, percebia os matizes das palavras, o sabor, a intenção poética. Mas Unity tinha ao mesmo tempo um amplo conhecimento da história secular. - Franziu o sobrecenho. —Suponho que é o normal quando se estuda uma língua. Aprendem-se também muitas coisas das pessoas que as falavam... através de seus escritos e demais.

—Imagino que assim é - concordou Pitt. Tinha lido muita literatura inglesa, mas desconhecia aos clássicos. Sir Arthur Desmond, o dono da propriedade onde Pitt cresceu, preocupara-se em proporcionar uma boa educação ao Pitt, o filho do guarda-florestal, assim como a seu filho, na atualidade sir Matthew Desmond. Mas sua aprendizagem se concentrou mais nas ciências que no latim e grego, e certamente jamais se expôs estudar aramaico. A tradução oficial da Bíblia em língua inglesa era mais que suficiente para satisfazer suas inquietações religiosas. Pitt dissimulou com muita dificuldade sua impaciência. Nada do que Vita havia dito até o momento parecia ter a menor transcendência. E, entretanto, para ela, devia ser muito difícil abordar o tema.

Pitt não devia mostrar-se crítico com o grande esforço que fazia por falar com franqueza.

—Está escrevendo o reverendo Parmenter um livro de teologia? - disse Pitt para incitá-la a seguir.

—Sim - sussurrou ela. —Sim, escreveu já dois, e um bom número de artigos que mereceram grandes elogios. Mas este devia ser muito mais profundo que os anteriores, e possivelmente também mais controvertido. - Olhou ao Pitt para assegurar-se de que a compreendia. —Por isso necessitava os conhecimentos de Unity, para traduzir as fontes de documentação em que está apoiado o trabalho.

—Estava ela interessada na matéria? - perguntou Pitt, obrigando-se a conservar a paciência. Todos esses circunlóquios podiam ser o único caminho para que ela conseguisse dizer a única e amarga verdade que importava.

Vita sorriu.

—Não, delegado, no aspecto teológico não, no mais mínimo. Unity é... era... uma mulher de crenças muito modernas. Não acreditava em Deus. De fato, era uma grande admiradora da obra do senhor Charles Darwin. - Uma expressão de profundo rechaço passou fugazmente por seus olhos e sua boca. —Soa a você? Claro que sim. Conhecerá no mínimo suas teorias sobre a origem da espécie humana. Nunca se tinha formulado uma idéia tão perigosa e atrevida desde... não sei quando! - cada vez mais concentrada, voltou o corpo no divã para colocar-se de frente a Pitt, apesar do incômodo da postura. —Se descermos todos dos símios e a Bíblia está equivocada e Deus não existe, por que vamos a missa e respeitamos os Mandamentos?

—Porque os Mandamentos se apóiam na virtude e são a melhor ordem social e moral que conhecemos - respondeu Pitt, —tenham sua origem em Deus ou sejam fruto das idéias dos homens longamente defendidas e aperfeiçoadas. Se a Bíblia estiver certa ou se o estiver o senhor Darwin, ignoro. Inclusive pode ser que de algum modo tão certo seja uma como o outro. Se não for assim, espero sinceramente que a verdade esteja na Bíblia. O senhor Darwin nos deixa pouco mais que a fé no progresso e o contínuo avanço da moralidade humana.

—Não acredita que isso seja assim? - perguntou Vita com toda seriedade. —Unity acreditava firmemente. Pensava que progredimos sem cessar, que nossas idéias são mais nobres e livres com cada geração. Tornamo-nos mais justos, mais tolerantes e em geral mais ilustrados.

—Sem dúvida nossos inventos melhoram cada década - concedeu Pitt, medindo as palavras. —E nossos conhecimentos científicos crescem quase cada ano. Mas não estou muito certo de que possa dizer o mesmo de nossa bondade, nosso valor ou nosso sentido da responsabilidade com respeito ao próximo, e estes valores são os que verdadeiramente determinam o grau de civilização.

Vita o observou surpreendida e confusa.

—Unity achava que agora somos muito mais ilustrados que antes. Desprendemo-nos da opressão do passado, da ignorância e superstição. O ouvi dizer muitas vezes. E também que somos mais responsáveis em nossa atenção aos pobres, menos egoístas e injustos que no passado.

Assaltou ao Pitt uma súbita lembrança de sua época de formação trinta anos atrás.

—Um dos faraós do antigo o Egito proclamava com orgulho que em seu reino ninguém passava fome e todos tinham um teto sob o qual cobrir-se.

—Ah! Não acredito que Unity estivesse inteirada disso - disse ela com surpresa... e possivelmente com um indício de satisfação.

Talvez se aproximava por fim às questões relevantes.

—O que pensava seu marido das opiniões da senhorita Bellwood?

A tensão apareceu de novo no rosto de Vita, que baixou a vista, evitando o olhar de Pitt.

—Considerava-as abomináveis. Não posso negar que discutiam com freqüência. Se não o digo eu, outros o farão. Era um fato que a ninguém podia passar inadvertido.

Pitt se formou uma clara imagem da situação: a expressão de opiniões em torno da mesa, os silêncios tensos, as indiretas, as atitudes dogmáticas, e por último as confrontações. Poucas coisas eram tão fundamentais para as pessoas como suas crenças na ordem das coisas, não na metafísica, mas em seu próprio lugar no universo, sua valia e propósito.

—E discutiram esta manhã? - perguntou Pitt.

—Sim. - Vita o olhou com tristeza e apreensão. —Não sei exatamente o motivo.

Possivelmente minha criada possa dizer-lhe Ela também os ouviu, assim como o valete de meu marido. Eu só notei o volume das vozes. - Deu a impressão de que queria acrescentar algo e logo trocava de idéia ou não achava as palavras para expressá-lo.

—Poderia a discussão ter chegado à violência? - inquiriu Pitt com tom grave.

—É possível. - Sua voz era apenas um murmúrio. —Mas me custa acreditar. Meu marido não é... - interrompeu-se.

—Poderia ter saído indignada do gabinete a senhorita Bellwood e perdido logo o equilíbrio, talvez tropeçado e caído de costas, por acidente?

Vita guardou silêncio.

—Existe essa possibilidade, senhora Parmenter?

Ela ergueu a vista o olhou nos olhos. Mordeu o lábio.

—Se disser que sim, delegado, minha criada me contradirá. Por favor, não me

force a falar mais de meu marido. É para mim muito... doloroso. Não sei o que pensar. Sinto-me como se estivesse em meio de um redemoinho de confusão... e escuridão.... uma espantosa escuridão.

—Perdoe. - Pitt não pôde menos que oferecer uma desculpa, e era sincera. Compadecia-se dela, ao mesmo tempo que admirava sua compostura e sua devoção pela verdade, até a custa de um extraordinário sacrifício pessoal. —Falarei do assunto

com sua criada.

—Obrigada - murmurou Vita com um sorriso vacilante.

Não tinha mais pergunta que lhe fazer, e não desejava alongar o interrogatório.

Vita Parmenter devia preferir sem dúvida estar a sós ou com sua família. desculpou-se e foi em busca da criada.

A senhorita Braithwaite era uma mulher por volta de cinqüenta e cinco anos, por norma metódica e sensata, mas nesse momento muito alterada. Estava pálida e tinha a respiração ofegante. Achava-se sentada à beira de uma das poltronas da sala de estar da governanta, tomando um chá fumegante. O carvão ardia vivamente em um braseiro de ferro brunido, e havia um pequeno tapete um pouco gasto, agradáveis quadros nas paredes e várias fotografias no aparador.

—Sim - admitiu com pesar quando Pitt lhe assegurou que sua senhora lhe tinha

dado permissão para falar com inteira liberdade e que dizer a verdade era seu principal dever. —ouvi suas vozes. Não pude evitá-lo. Gritavam muito.

—Ouviu o que diziam? - perguntou Pitt.

—Bom.... sim, ouvi... - respondeu ela lentamente. —Mas se lhe interessa saber o que diziam, sou incapaz de repetir. - A senhorita Braithwaite percebeu a expressão de Pitt. —Não é que fossem vulgaridades - se apressou a corrigir. —O reverendo Parmenter nunca usaria um vocabulário de baixo calão, seria impróprio dele, entende? Um cavalheiro em todos os sentidos, isso é o reverendo. - Engoliu um gole de chá. —Mas, como todo mundo, às vezes fica furioso, sobre tudo quando defende seus princípios. - Declarou-o com manifesta admiração, deixando claro que compartilhava as crenças de seu senhor. —Sou incapaz de repetir simplesmente porque não entendi nada - explicou. —Me consta que a senhorita Bellwood, que em paz descanse, não acreditava em Deus, e o reconhecia sem a menor perturbação. Para falar a verdade, sentia prazer nisso... - Ruborizando-se, interrompeu-se em seco. —Deus me perdoe, não deveria falar mal dos mortos. Agora terá descoberto quão equivocada estava, a desventurada.

—Era uma discussão religiosa? - deduziu Pitt.

—Teológica, diria eu - retificou a senhorita Braithwaite, esquecendo do chá apesar de manter a xícara entre as mãos. —Sobre o significado de certas passagens. Raramente ficavam de acordo. Ela acreditava nas idéias desse tal Darwin, e em outras muitas coisas a respeito da liberdade que eu chamaria incontinência. Ou ao menos sempre andava apregoando-o. - Apertou os lábios. —Às vezes me perguntava se o dizia por pura maldade, só para irritar ao senhor Parmenter.

—Por que tem essa impressão? - perguntou Pitt.

—Pela expressão que via em seu rosto. - Meneou a cabeça em um gesto de censura. —Como um menino, forçando a situação para ver o que acontece. - Respirou fundo e deixou escapar o ar em um suspiro. —Embora já pouco importa. Pobre moça.

—Onde se produziu essa discussão?

—No gabinete do senhor Parmenter, onde estavam trabalhando, como sempre... ou quase sempre. Uma ou duas vezes ela desceu para trabalhar na biblioteca.

—Ouviu-a ou viu-a sair?

A senhorita Braithwaite desviou o olhar.

—Sim...

—E ao senhor Parmenter?

—Sim, acredito que sim - respondeu ela, baixando a voz. —seguiu à senhorita Bellwood ao corredor e depois até o patamar, a julgar pelas vozes.

—Onde se achava você?

—No quarto da senhora Parmenter.

—Onde está o quarto em relação com o gabinete e o patamar?

—Do outro lado do corredor, uma porta mais à frente olhando da escada.

—A porta estava aberta ou fechada?

—A porta do quarto estava aberta. Eu tinha ido pendurar uns vestidos no armário e ordenar a roupa branca. Entrei com as mãos cheias e não me incomodei em fechar. A porta do gabinete estava fechada. Por isso só ouvi parte do que diziam, inclusive quando mais levantavam a voz. - Olhou ao Pitt visivelmente abatida.

—Mas quando a senhorita Bellwood abriu a porta do gabinete para sair, terá ouvido possivelmente o que dizia - insistiu Pitt.

—Sim... - admitiu a contra gosto.

—O que disse?

Pitt ouviu passos no corredor, ligeiros e rápidos, um sapateio, mas passaram ao largo.

O rubor apareceu de novo nas faces da senhorita Braithwaite, e era evidente que se sentia desconfortável. Dentro dela, o recato e a lealdade pugnavam com sua consciência do dever para com a verdade... e possivelmente também com o medo à lei.

—Senhorita Braithwaite - disse Pitt com delicadeza, —tenho que sabê-lo. Isso não pode ocultar-se. Morreu uma mulher. Talvez fosse uma mulher néscia, guiada pelo engano, desagradável, ou inclusive pior, mas isso não a priva do direito a uma investigação justa para esclarecer as circunstâncias de sua morte e chegar tão perto da verdade como é possível. Me conte, por favor, o que ouviu.

Sua desolação era patente, mas não resistiu mais.

—O senhor Parmenter lhe disse que era uma mulher arrogante e estúpida, apesar de sua suposta inteligência, que estava muito obcecada com suas idéias de liberdade para dar-se conta de que em realidade falava de caos, desordem e destruição – explicou. —Lhe disse que era como um menino perigoso, brincando com

o fogo das idéias, e que um dia queimaria a casa e todos pereceriam com ela.

—A senhorita Bellwood respondeu?

—-A gritos, respondeu-lhe que era um velho arbitrário. - A senhorita Braithwaite

fechou os olhos. Obviamente a envergonhava repetir. —E que suas limitações intelectuais e carências emocionais lhe impediam de olhar a realidade de uma maneira honesta. - Pronunciou atropeladamente as palavras, desejando acabar quanto antes. —Isso disse, uns comentários maliciosos e ingratos. - Olhou ao Pitt com expressão desafiante. —Onde teria estado ela, eu gostaria de saber, a não ser por cavalheiros importantes como o senhor Parmenter, que lhe davam a oportunidade de trabalhar para eles?

—Não sei. Alguma outra coisa? - perguntou Pitt, incitando-a a continuar.

Ela apertou os lábios.

—Senhorita Braithwaite, dou-me conta de que lhe repugna reproduzir as palavras dessa mulher, e que distam muito de sua própria opinião.

A senhorita Braithwaite lhe lançou um olhar de gratidão.

—Enfim, lhe disse que era um covarde espiritual que dedicava sua vida a superstições e contos de fadas porque não tinha coragem para confrontar a verdade.

—Pelo que se vê, foi realmente uma disputa muito desagradável - observou Pitt

com um sombrio pressentimento em seu interior. —E ouviu o senhor Parmenter segui-la até o patamar?

—Isso acredito. Procurava não ouvir. Era... era um assunto entre eles. Agachei-

me e comecei a pôr a roupa branca nas gavetas. E em todo caso não teria ouvido seus passos, porque o corredor e o patamar estão atapetados. A seguir ouvi à senhorita Bellwood gritar, e depois uma espécie de golpe, e depois ela disse algo.

—O que disse?

—Agora... agora não estou certa - respondeu de maneira evasiva, mas em seu

semblante se viu claramente que mentia. Concentrou-se no chá, deixando a xícara na

mesa com supremo cuidado.

—O que disse a senhorita Bellwood? Não me cabe a menor duvida de que o

recordará se se propõe.

A senhorita Braithwaite não respondeu.

—Não deseja ajudar à polícia a descobrir a verdade do ocorrido? – pressionou Pitt.

—Bom, sim, claro.... mas...

—Mas o que ouviu é tão comprometedor para alguém que preferiria calar-se para protegê-lo.

A senhorita Braithwaite o olhou alarmada.

—Não... eu... está me acusando, senhor, e eu não fiz nada.

—O que ouviu, senhorita Braithwaite? - insistiu Pitt com tom amável. —Mentir à polícia ou ocultar provas é em realidade um grave delito. Converte-a em cúmplice do que seja que ocorreu.

—Eu não tive nada que ver! - exclamou horrorizada.

—O que ouviu, senhorita Braithwaite? - repetiu Pitt.

—Disse: "Não... não, reverendo!" - resmungou ela.

—Obrigado. E você o que fez então?

—Eu? -Parecia surpreendida. —Nada. Suas brigas não são minha coisa. Terminei de guardar a roupa branca e comecei a ordenar o quarto. Logo ouvi os gritos do senhor Stander, dizendo que tinha ocorrido uma desgraça, e naturalmente fui ver o que acontecia, como o resto da casa. - Olhou ao Pitt nos olhos com tristeza. Sua voz se reduziu a um murmúrio. —E ali estava a senhorita Bellwood, estendida no vestíbulo.

—Onde se achava o reverendo Parmenter nesse momento?

A senhorita Braithwaite permanecia imóvel à beira da poltrona, os joelhos

juntos, as mãos entrelaçadas.

—Não sei. Vi a porta do gabinete fechada, assim suponho que estava ali.

—Não se cruzou com ele no corredor?

—Não.

—Viu a alguém mais?

—Não.... acredito que não.

—Obrigado. Sua declaração me foi de grande ajuda. -Teria desejado dizer algo diferente, algo que arrojasse maiores duvidas sobre a possibilidade de um assassinato, mas a tinha pressionado muito, e ela tinha contado a verdade tal como a conhecia.

Pitt subiu ao primeiro piso e falou com o Stander, o valete de Parmenter, cuja declaração coincidiu em essência com a da senhorita Braithwaite. No momento de produzir-se o fato, ele estava escovando um traje no quarto de vestir e só conseguiu entender uma ou outra palavra, mas ouviu claramente o grito de Unity Bellwood e sua posterior exclamação "Não, não, reverendo!", e logo a chamada de socorro da senhora Parmenter. Foi em extremo resistente a admiti-lo, mas sabia que a senhorita Braithwaite tinha ouvido o mesmo, e não andou com evasivas.

Pitt não podia adiar já mais sua conversa com o próprio Ramsay Parmenter para escutar sua versão do acontecido. Temia esse encontro. Se Parmenter negava sua implicação, seria inevitável levar a cabo uma investigação minuciosa. Passo a passo, Pitt teria que arrancar da família os mais deprimentes detalhes da história, até que Parmenter estivesse encurralado e à beira do desespero, debilitado pelo peso da evidência, lutando contra o inelutável.

Se admitisse sua culpa, tudo seria mais rápido, mas nem por isso menos lamentável ou destrutivo, a espécie de fatos que em Pitt, a seu pesar, inspiravam-lhe

lástima, por sórdidos ou absurdos que fossem.

Bateu na porta do gabinete.

—Entre.

A voz era cortês, a dicção perfeita. Isso não deveria estranhar a Pitt. Aquele era um homem acostumado a pregar no púlpito. Ao que parecia, tinha méritos para conseguir breve o bispado.

Pitt abriu a porta e entrou. O gabinete, com as paredes forradas de madeira de carvalho, era extremamente formal. Uma estante cobria a parede esquerda, na direita, havia uma enorme escrivaninha de carvalho. À frente, as janelas abrangiam quase do chão até o teto, e as entupidas cortinas de veludo desafinavam ligeiramente com o tapete da Índia de cor vinho.

Ramsay Parmenter se achava de pé junto à lareira. Aparentava mais idade do que Pitt esperava, e sem dúvida era muito mais velho que Vita. Tinha as têmporas grisalhas e amplas entradas. Suas feições regulares faziam pensar que devia ser um homem moderadamente atraente em sua juventude. Era um semblante reflexivo, o de um pensador e estudioso. Nesse instante se notava tenso e profundamente abatido.

Pitt se apresentou e explicou o motivo de sua visita.

—Sim.... sim, faço-me encarregado. - Ramsay se aproximou e lhe estendeu a mão. Era um gesto pouco comum em um homem que acabava de ver-se comprometido em um homicídio. Dava a impressão de que não tinha plena consciência da magnitude do ocorrido. —Entre, senhor Pitt. - Assinalou uma das grandes poltronas de pele, mas ele permaneceu de pé de costas ao fogo.

Pitt tomou assento, unicamente para deixar claro que tinha a intenção de ficar ali até que a conversa concluísse.

—Seria amável, reverendo, de me explicar o que se passou entre você e a senhorita Bellwood esta manhã? - perguntou. Teria desejado que Parmenter se sentasse, mas possivelmente o nervosismo o fazia estar inquieto. Apesar de não se mover do lugar onde estava, deslocava sem cessar o peso do corpo de uma a outra perna.

—Sim.... sim - respondeu Ramsay. —discutimos como infelizmente fazíamos com muita freqüência. - Contraiu os lábios. —A senhorita Bellwood possuía um excelente conhecimento das línguas clássicas, mas suas opiniões teológicas eram descabeladas, e insistia em arejá-las, apesar de saber de sobra que nesta casa todos as achávamos ofensivas.... exceto possivelmente minha filha menor. Por desgraça, Tryphena é uma moça e gosta de acreditar em sua independência de pensamento... quando em realidade se deixa dirigir facilmente por alguém com os dotes de persuasão da senhorita Bellwood.

—Isso devia ser muito aborrecido para você - comentou Pitt, observando o rosto de Ramsay.

—Foi em extremo desagradável - reconheceu Ramsay, mas não revelou o menor aumento de emoção. Se sentia indignação, dissimulava-o perfeitamente.

Acaso essa situação fosse já antiga e se acostumara a ela.

—Discutiram, pois - disse Pitt para induzi-lo a continuar.

Ramsay deu de ombros. Seu abatimento era manifesto, mas não se percebia nele indício algum de ansiedade, e menos ainda de verdadeiro temor.

—Sim, e muito acaloradamente. Infelizmente, disse coisas à senhorita Bellwood das quais agora me arrependo.... considerando que já não teremos a oportunidade de resolver essas diferenças entre nós. -mordeu o lábio. —É muito... muito... desafortunado, senhor Pitt, descobrir que alguém dirigiu suas últimas palavras a alguém deixando-se levar pela ira.... as últimas palavras que essa pessoa ouvirá em sua vida... antes de partir ao... mais à frente.

Era uma estranha maneira de falar para um homem da Igreja. Expressava-se sem veemência, inclusive sem certeza. Procurava as palavras e descartava as que ao Pitt teriam parecido mais óbvias. Não fazia menção de Deus nem do Julgamento Final.Possivelmente se achava mais afetado do que aparentava. Se com efeito a tinha

matado, como a senhorita Braithwaite suspeitava, devia achar-se em um estado de atordoamento.E entretanto Pitt só via em seu semblante confusão e dúvida. Era acaso possível que tivesse isolado sua mente contra o horror e de fato não recordasse o ocorrido?

—A senhorita Bellwood saiu que daqui presa de uma grande indignação – disse Pitt. — Ouviram-na gritar com você, ou no mínimo lhe falar em voz muito alta e em termos ofensivos.

—Sim...., sim, assim foi - admitiu Ramsay. —Também eu, por desgraça, falei-lhe com um tom igualmente ofensivo.

—Desde onde, reverendo Parmenter?

Ramsay Parmenter arregalou os olhos.

—Desde onde? -repetiu. —Desde... da qui. Desde este gabinete. Hei... fui até a porta, segui-a até lá... e então me... dei-me conta de que era inútil. - Fechou os punhos. —Estava tão furioso que temia dizer coisas das quais depois me arrependesse ainda mais. E... voltei para o escritório e continuei trabalhando, ou melhor dizendo, tentei-o.

—Não saiu atrás da senhorita Bellwood até o patamar? - perguntou Pitt, ocultando com muita dificuldade sua incredulidade.

—Não. - Ramsay parecia surpreso. —Não. Já o disse: temia que a discussão chegasse a um ponto irreparável se continuasse. Estava muito zangado com ela. - Contraiu o rosto com a lembrança de sua própria irritação. —A senhorita Bellwood tinha às vezes um comportamento arrogante e censurável. - Voltou a deslocar o peso do corpo de um pé a outro e se aproximou um pouco mais ao fogo. —Mas era uma especialista em línguas clássicas de primeira talha, apesar de que em algumas áreas sua compreensão dos textos se achava limitada e enviesada por suas extravagantes idéias. - Olhou para Pitt no rosto. —Nela podiam mais as emoções que o intelecto, receio. Mas ao fim e ao cabo era uma mulher, e jovem. Não seria justo esperar mais dela. Igual ao resto dos mortais, estava limitada por sua própria natureza.

Pitt escrutinou as feições do reverendo, tratando de descobrir que espécie de sentimentos lhe induziam a fazer comentários tão peculiares e contraditórios. Sua antipatia por Unity Bellwood era evidente, mas dava a impressão de que tentava ser sincero e ao mesmo tempo tão benévolo como essa antipatia lhe permitisse. E por outra parte não se discernia em sua atitude a menor sensação de tragédia, como se não tivesse assimilado plenamente a realidade de sua morte. Inclusive a criada e o valete pareciam mais conscientes de que a sombra de um assassinato se abatia sobre eles. Realmente pensava Parmenter que os motivos das limitações intelectuais de Unity Bellwood tinham nesse momento alguma importância? Ou era essa sua maneira - ao menos provisoriamente - de escapar ao horror do que ele mesmo parecia ter feito? Pitt tinha visto algumas pessoas refugiarem-se em trivialidades para evadir-se de uma circunstância entristecedora. As mulheres às vezes, em instantes de dor, ocupavam-se da comida ou as tarefas domésticas, como se a exata colocação de um quadro em uma parede tivesse uma importância permanente. A prata devia reluzir como um espelho, a prancha devia deixar a roupa lisa como um cristal. Possivelmente concentrar-se em raciocínios irrelevantes era o modo em que Parmenter se protegia da verdade.

—Onde estava você quando a senhora Parmenter ouviu pedir auxílio à senhorita Bellwood e se inteirou que de tinha ocorrido uma desgraça? - perguntou Pitt.

—Como? - Ramsay parecia surpreso. —Ah, não a ouvi. Veio Braithwaite me dizer que se produziu um acidente, e então, naturalmente, fui ver o que tinha se passado e se podia ajudar em algo. Como já sabe, qualquer ajuda era impossível. - Olhou ao Pitt sem vacilar.

—Não seguiu você, pois, à senhorita Bellwood ao corredor e continuou discutindo com ela no patamar? - inquiriu Pitt, até conhecendo já a resposta.

Ramsay arqueou suas sobrancelhas pouco cheias.

—Não, delegado. Já o disse. Não saí daqui.

—O que acredita que ocorreu à senhorita Bellwood, reverendo Parmenter?

—Não sei - respondeu Ramsay com um tom um pouco mais áspero. —Só posso conjeturar que por alguma razão escorregou.... perdeu o equilíbrio.... ou algo assim. Em realidade, não entendo que necessidade tem que se encarregue do caso um policial do Bow Street. Com a polícia do distrito, ou inclusive com o médico, haveria mais que suficiente.

—Na escada não há nada com o que tropeçar. Nem tapete nenhuma parte do corrimão solto - observou Pitt sem afastar o olhar do rosto do Ramsay. - E tanto Stander como a senhorita Braithwaite ouviram à senhorita Bellwood gritar "Não, não, reverendo" antes de cair. E a senhora Parmenter viu a alguém abandonar o patamar nesta direção.

Ramsay o olhou atônito e lentamente o horror se estendeu por seu semblante, pondo de relevo as rugas em torno do nariz e boca.

—Deve havê-los interpretado mal - protestou, mas tinha empalidecido e lhe custava articular as palavras, como se os lábios e a língua não o obedecessem. —Isso é ridículo! Que insinua,.... que a empurrei? - Engoliu a saliva. —Lhe asseguro, senhor Pitt, que a considerava uma jovem em extremo irritante, insensível e arrogante, com princípios morais mais que duvidosos, mas certamente não a empurrei. - Tomou ar. —De fato, não a toquei sequer, nem saí que daqui depois de... nossas diferenças. - Falava com paixão, levantando grandemente a voz. Sustentava o olhar de Pitt sem vacilar, mas estava assustado. Seu medo se refletia nas gotas de suor que apareciam em sua pele, no brilho de seus olhos e na rigidez de seu corpo.

Pitt ficou em pé.

—Obrigado por me conceder seu tempo, reverendo Parmenter. Falarei com as outras pessoas que vivem na casa.

—Deve... deve averiguar o que ocorreu! - exigiu Ramsay, dando um passo à frente. —Eu não a toquei!

Pitt se desculpou e voltou para baixo em busca de Mallory Parmenter. Quando a senhorita Braithwaite e Stander descobrissem que tudo dependia de sua palavra, havia a possibilidade de que ambos retirassem suas declarações, e Pitt ficaria com as mãos vazias, sem nada mais que uma morte e uma acusação que não podia demonstrar. De certo modo, esse seria talvez o elo mais insatisfatório de todos.

Cruzou o espetacular vestíbulo, já sem o cadáver do Unity Bellwood, e achou Mallory Parmenter na biblioteca. Estava na janela, contemplando a chuva da primavera que nesse momento açoitava os vidros, mas se voltou imediatamente assim que ouviu abrir a porta. Tinha uma expressão interrogativa no rosto.

Pitt fechou a porta ao entrar.

—Sinto importuná-lo, senhor Parmenter, mas sem dúvida compreenderá que necessito de algumas respostas mais.

—Sim, suponho - disse Mallory a seu pesar. —Mas não sei o que posso lhe dizer. Não tenho conhecimento direto do ocorrido. Não saí da estufa. Não vi à senhorita Bellwood depois do café da manhã. Imagino que foi ao gabinete para trabalhar com meu pai, mas em realidade não estou certo disso nem sei o que aconteceu depois.

—Pelo visto, discutiram, conforme dizem o próprio reverendo Parmenter, e também a criada e o valete, que os ouviram.

—Não me surpreende - respondeu Mallory, olhando as mãos. —Discutiam com muita freqüência. A senhorita Bellwood era muito dogmática e, por falta de tato ou consideração com os sentimentos alheios, nunca se abstinha de expressar suas opiniões, que eram polêmicas para não dizer mais.

—Não lhe inspirava simpatia, pois - disse Pitt.

Mallory o olhou fixamente, seus olhos castanhos muito abertos.

— Achava suas opiniões ofensivas - retificou, —mas não sentia a menor aversão por ela. - Aparentemente, considerava importante que Pitt desse crédito a esta asseveração.

—Vive você na casa, senhor Parmenter?

—Temporariamente. Logo mudarei para Roma para me incorporar ali a um seminário. Estou me preparando para o sacerdócio. - Disse-o com certa satisfação, mas olhava Pitt no rosto.

—A Roma? - repetiu Pitt, perplexo.

—Sim. Tampouco eu compartilho as crenças de meu pai, ou a falta de convicções. Não é minha intenção ferir sua sensibilidade, senhor Pitt, mas, sentindo muito, considero que a Igreja Anglicana perdeu de certo modo o rumo. No meu entender, não é tanto um credo como uma ordem social. Necessitei de muitas horas de reflexão e oração, mas agora estou convencido de que a Reforma foi um grave engano. Voltei para o seio da Igreja Romana. Naturalmente, isso não agrada a meu pai.

Não ocorreu nada a Pitt para dizer que soasse medianamente acertado. Mal conseguia imaginar os sentimentos do Ramsay Parmenter quando seu filho lhe revelou a notícia. A história do Cisma entre as duas igrejas, os séculos de derramamento de sangue, perseguição, proscrições e inclusive martírios - formava parte da malha da nação. Fazia só uns meses - em outubro passado, para ser exato - que tinha tido ocasião de observar de perto a política irlandesa, assentada em um exacerbado ódio entre as duas religiões. O protestantismo tinha um caráter mais profundo e intensamente crítico, isso devia reconhecer-se estivesse ou não de acordo com essa classe de ética.

—Entendo - disse com tom sombrio. —Não me surpreende, pois, que o ateísmo da senhorita Bellwood lhe fosse ofensivo.

—Compadecia-me dela - voltou a corrigi-lo Mallory. —É muito triste que um ser humano esteja desorientado até o ponto de não acreditar em Deus. Essa atitude destrói os fundamentos da moralidade.

Mentia. Delatou-o a brusquidão de seu tom, um brilho de cólera no olhar, a prontidão de sua resposta. Fossem quais fossem seus sentimentos por Unity Bellwood, não incluíam a compaixão. Desejava fazer Pitt acreditar, bem precisava acreditá-lo ele mesmo. Possivelmente pensava que um aspirante ao sacerdócio não devia albergar rancores pessoais ou ressentimento, e menos ainda em relação com alguém que tinha morrido. Pitt não queria entrar em discussões sobre os fundamentos da moralidade, apesar de que uma réplica foi a sua língua. Eram legião os homens e mulheres cuja moralidade se afundava no amor ao próximo, e não no amor a Deus. Mas havia algo no semblante do Mallory Parmenter que fazia pensar que de nada serviria aduzir razões sobre o tema. Sua convicção não procedia da mente mas sim do coração.

—Acaso está pondo em tecido de julgamento, da maneira mais considerada possível, a moralidade da senhorita Bellwood? - perguntou Pitt com delicadeza.

Mallory ficou desconcertado. Não esperava a pergunta e não sabia o que responder.

—Não.... não poderia assegurá-lo em um sentido literal, claro está - negou. —Me refiro só a sua maneira de falar. Infelizmente defendia muitas posturas que a maioria de nós consideraríamos caprichosas e irresponsáveis. A pobre morreu. Preferiria não falar disso. - Seu tom era concludente, dava por resolvido o assunto.

—Manifestava esses pontos de vista nesta casa? - continuou Pitt. —Ou melhor dizendo, você tinha a impressão de que ela influía negativamente nos membros de sua família ou o criadagem?

Mallory abriu desmesuradamente os olhos em um gesto de surpresa. Aparentemente, essa possibilidade nem sequer lhe tinha passado pela cabeça.

—Não, que eu tenha notado. Era simplesmente... - interrompeu-se. —Preferiria não especular, delegado. A senhorita Bellwood achou a morte nesta casa, e pelo que se vê, cada vez alberga mais sérias dúvidas a respeito de que tenha sido um acidente. Ignoro o que ocorreu, ou por que, e não posso contribuir com informação decisiva. Sinto muito.

Pitt se deu por vencido de momento. Não adiantava nada pressionar. Agradeceu ao Mallory sua colaboração e saiu em busca da Tryphena Parmenter, quem provavelmente era a mais afetada pela morte de Unity Bellwood. Averiguou que a jovem se retirara a seu quarto e enviou a uma criada a lhe perguntar se não tinha inconveniente em descer para falar com ele.

Aguardou no salão da manhã, onde alguém tinha aceso já um bom fogo e o ambiente estava quente. A chuva produzia um agradável som contra as janelas, criando uma sensação de isolamento no calor e na segurança da mansão. Aquele salão também se achava decorado conforme o gosto pelo moderno, com uma notável influencia árabe, embora atenuada a fim de combiná-la com os materiais de construção e o clima ingleses.

O lugar agradava a Pitt mais do que teria suposto. Os arcos em forma de bulbo pintados nas paredes e reproduzidos nas cortinas não pareciam deslocados, como tampouco os azulejos verdes e brancos dispostos geométricamente ao redor da lareira.

A porta se abriu e entrou Tryphena, a cabeça alta, os olhos debruados. Era uma mulher esbelta e atraente de abundante cabelo loiro, magnífica tez, e muito pouco espaço entre os dentes dianteiros, como se revelou quando abriu a boca para falar.

—Veio para descobrir o que ocorreu a pobre Unity e encarregar-se de que se faça justiça? - Era mais uma provocação que uma pergunta. Tremiam-lhe os lábios e se controlava com esforço, mas nesse momento a ira era sua emoção dominante. Possivelmente não demoraria para lhe seguir a dor.

—Tentarei-o, senhorita Parmenter - respondeu Pitt, voltando-se para ela. —Sabe algo que possa me ser de ajuda?

—Senhora Whickham - corrigiu ela, contraindo ligeiramente a boca. —Sou viúva.

—A expressão com que acompanhou esta última palavra era inescrutável. —Não vi nada se, se referir a isso. - Avançou para Pitt e, ao passar sob o lampião do teto, a luz cintilou em seu cabelo. Tinha um aspecto muito inglês naquele exótico salão. —Não sei o que posso lhe dizer, salvo que Unity era uma das pessoas mais corajosas e heróicas do mundo - prosseguiu, sua voz cheia de emoção. —Deve ser vingada a qualquer preço. Se alguma vítima da violência e opressão merece justiça, essa é ela. Não é irônico que alguém que lutou com denodo e honradez pela liberdade tenha morrido apunhalada pelas costas? - estremeceu, empalidecendo mais ainda. —Que tragédia! Mas não espero que você o compreenda.

Pitt não saía de seu assombro. Não previa nem remotamente uma reação semelhante.

— Caiu pela escada, senhora Whickham...

Tryphena lhe lançou um olhar fulminante.

—Já sei. Falava em sentido figurado. Foi traída. Mataram-na aqueles em quem confiava. Sempre toma tudo tão ao pé da letra?

O primeiro impulso do Pitt foi replicar a sua recriminação, mas se conteve, sabendo que não convinha a seus interesses.

—Parece muito segura de que foi intencional, senhora Whickham – disse quase com indiferença. —Sabe o que ocorreu?

Tryphena tomou ar.

—Unity não caiu, empurraram-na.

—Como sabe?

—Ouvi-a gritar: "Não, não, reverendo!" Minha mãe estava na porta do salão. Teria visto se não fosse pela borda do biombo. Em todo caso, viu a um homem partir do patamar e afastar-se pelo corredor. Por que se iria uma pessoa inocente em lugar de correr imediatamente prestar ajuda? —Brilhavam-lhe os olhos, e com o olhar o desafiava a discutir.

—Diz você que o culpado é alguém em quem ela confiava - lhe recordou Pitt. —Quem podia esperar-se que a agredisse, senhora Whickham?

—A ordem estabelecida, os interesses criados do poder dos homens e as restrições da liberdade de pensamento, emoção e imaginação - respondeu com tom desafiante.

—Entendo...

—Não, não entende nada! - contradisse-o. —Não tem a menor idéia!

Pitt meteu as mãos nos bolsos.

—Não, talvez você tenha razão. Se eu lutasse por essas idéias, e fosse uma mulher em lugar de um homem, veria em um destacado membro da Igreja o bastião mesmo dos privilégios arraigados e da perpetuação dos atuais valores. É aí onde esperaria achar oposição, ou inclusive inimigos.

Tryphena se ruborizou. Começou a falar e se interrompeu.

—Quem considerava seus inimigos a senhorita Bellwood? - insistiu Pitt.

Com os ombros tensos e as mãos crispadas, Tryphena se esforçou por recuperar a compostura. Discutir lhe exigia concentrar-se, e era mais fácil que abandonar-se à dor.

—A ninguém desta casa - respondeu. —Uma pessoa não espera tal violência depois de uma aparência de amizade, não se, se é totalmente sincera e se fala com outros com absoluta franqueza e sem temor nem enganos.

—Tem um elevado conceito da senhorita Bellwood - observou Pitt. —Se importaria de me contar algo mais sobre ela para que tente compreender o que pode ter ocorrido aqui?

Tryphena relaxou um pouco, refletindo-se em seu semblante uma evidente vulnerabilidade e inclusive a incipiente conciência de achar-se só em um sentido novo e atroz.

—Unity acreditava no progresso para uma maior liberdade para todos – afirmou com orgulho. —Para as pessoas de toda classe e condição, mas especialmente para aquelas que se viram oprimidas durante séculos, obrigadas a desempenhar determinadas funções contra sua vontade, privadas da oportunidade de aprender e amadurecer, de desdobrar o talento que possuíam e poderiam ter depurado até produzir grandes obras de arte. - Franziu o sobrecenho. —Sabe, delegado, quantas mulheres que têm composto música ou pintado quadros tiveram que publicar ou exibir seu trabalho usando o nome de seus pais ou irmãos? - Elevou a voz e quase se afogou em sua indignação. Tinha os punhos dos lados e os cotovelos ligeiramente flexionados. —Se imagina o que é criar uma grande arte, a realização das próprias idéias, a marca visível dos próprios sonhos, e ter que atribuir a outro a autoria por respeito à vaidade de um opressor? É... é indescritível! É uma forma de tirania que não tem perdão!

Pitt não podia lhe contrariar. Expresso nesses termos, era monstruoso.

—Lutava pela liberdade artística? - perguntou.

—Era muito mais que isso! - afirmou Tryphena com veemência. —Lutava pela liberdade no sentido mais amplo: o direito das pessoas a ser elas mesmas, a não ter que amoldar-se às antiquadas idéias de outras pessoas. Sabe o que se sente quando uma pessoa está sozinha em sua luta, realmente sozinha? Quando terá que fingir ignorância para adular a vaidade de indivíduos estúpidos, só porque eles nasceram de diferente sexo? - Seu rosto se crispou em uma careta de impaciência. —Não, claro que não sabe! Você é homem, parte da classe dominante. Considera o poder um direito de nascimento. Ninguém põe em tecido de julgamento sua valia, nem lhe diz que carece do caráter ou a inteligência necessários para chegar a algo... ou inclusive para expressar suas próprias opiniões e decidir por si mesmo seu destino. – Abrindo desmesuradamente seus olhos azuis e redondos, lançou ao Pitt um iracundo olhar de desprezo. Mantinha tensos os magros ombros e apertados os punhos a ambos os lados do corpo.

—Meu pai era guarda-florestal e minha mãe lavadeira - respondeu Pitt, olhando-a no rosto. —Sei bastante a respeito de direitos de nascimento e as distintas posições das pessoas na sociedade. Também conheci o frio e a fome. E você, senhora Whickham?

Seu rosto se tingiu de um vermelho intenso.

—Eu...eu... não falo... disso - disse, gaguejando. —Falo de liberdade intelectual. É... algo muito mais importante.

—É só mais importante se as pessoas tiverem o estômago cheio e um lugar quente e seguro onde cobrir-se - replicou Pitt com a mesma paixão que ela. —Existem muitas batalhas dignas de lutar-se, e não só a crença da senhorita Bellwood na igualdade de reconhecimento e oportunidades intelectuais.

—Bom... - A franqueza lutou com a dor e a raiva em seu interior. Venceu a franqueza, mas por uma estreita margem. —Boa, sim, suponho. Não digo o contrário. Você me perguntou por Unity. Ela questionava as rígidas idéias da sociedade, e da Igreja, e sua atitude ofendia aos hipócritas e aos covardes que não têm a honra espiritual ou a valentia de atrever-se a pensar por si mesmos.

—Inclui isso a seu pai?

Tryphena ergueu o queixo.

—Sim.... sim, incluído meu pai. - Desafiou-o a censurar sua esmagadora sinceridade. —Se quer saber a verdade, meu pai é um covarde moral e um fanfarrão intelectual. Como a maioria dos homens de mentalidade acadêmica, sente pavor ante as idéias novas ou algo que ponha em dúvida os ensinos que recebeu. Unity tinha um sem-fim de novas percepções que ele, por suas limitações, não entendia, nem o tentava sequer. E embora o tivesse tentado, carece da imaginação necessária. Sabia que ela estava superando-o, e tratou de submetê-la, fazê-la calar a gritos, intimidá-la. Falo metaforicamente, é claro. Compreende-o?

—Pelo que ouvi, esta manhã o tentou em um sentido bastante literal –indicou Pitt.

Os olhos se inundaram em lágrimas e piscou com força, tratando em vão de dissipá-las. Escorregaram por suas faces. Parecia uma menina furiosa e assustada. Pitt descobriu que Tryphena despertava simpatia e ao mesmo tempo o exasperava.

—Não duvido que as pessoas como a senhorita Bellwood são pouco comuns - declarou com mais humor, e também gratidão, do que ela notou.

—São únicas - se apressou a corroborar Tryphena. —Deve procurar que se faça justiça, delegado, independentemente de qual seja o resultado ou quem fique em seu caminho. É sua obrigação, por uma questão de honra. Não deve temer a ninguém. Unity não temia a ninguém. E merece isso de seu vingador. Não deve permitir que os privilégios ou superstições o dissuadam de seu propósito.... ou nem sequer a compaixão pelos outros que tenham que sofrer as conseqüências. - Enrouqueceu por causa da intensidade de seus sentimentos. —Não se pode anular-se às pessoas simplesmente porque morreram, se não lhes devermos nada porque elas já não estão em situação de nos exigir isso então não valemos nada. - Cortou o ar com a mão. —A civilização mesma não vale nada. O passado carece de sentido, e o futuro nos esquecerá de igual forma. E o teremos merecido, você pode cumprir sua missão na história, delegado Pitt? - perguntou. —Estará à altura das circunstâncias?

—Tenho o firme propósito de tentá-lo, senhora Whickham, porque nisso consiste meu trabalho, sejam quais forem as repercussões - respondeu Pitt com um tom de total seriedade. Embora Tryphena fala-se com grande presunção, no fundo não se diferenciava em muito de sua filha Jemima, de quase nove anos de idade. Também Jemima sentia prazer nessa espécie de extremos com igual naturalidade, e se ofendia facilmente se achava que alguém ria.

Tryphena o escrutinou.

—Alegra-me ouvi-lo. Assim deve ser. Só... só desejaria que meu pai não fosse tão... implacável, tão dominante. - Fez um gesto de indiferença. —Mas suponho que os fracos freqüentemente são obstinados porque não têm nada mais a que aferrar-se.

Pitt não achou uma resposta cortês a esse comentário, assim o passou por cima.

—Obrigado. Lamento lhe haver tido que fazer estas perguntas - disse de maneira protocolar. —Lhe agradeço sua franqueza, senhora Whickham. E agora seria amável de pedir a sua irmã que venha a reunir-se comigo, seja neste salão ou em outro aposento da casa se for mais de seu agrado.

—Certamente virá aqui - respondeu Tryphena. —Embora duvide que possa lhe

dizer grande coisa. Ela não conhecia o Unity tão bem como eu. E sairá em defesa de nosso pai. É leal com às pessoas. - O desdém voltou a aparecer fugazmente a seu rosto. —Não entende que as idéias são mais importantes. Os princípios devem reger nossas vidas, ou do contrário não seriam princípios. Se podemos acomodá-los a nossa conveniência, não servem de nada. "Não poderia te amar tanto a ti, querida, se não amasse mais ainda a honra", em palavras do Richard Lovelace. Conhece-o? - Arqueou as sobrancelhas. —Não, suponho que não. Não importa, é a verdade. Irei procurar Clarice. - E sem aguardar sua resposta, deu meia volta e saiu, deixando a porta totalmente aberta.

Tinham transcorrido mais de dez minutos quando entrou Clarice Parmenter.

Ouviu seus apressados passos no vestíbulo antes de vê-la. Era de estatura e compleição similares às de sua irmã, mas tinha o cabelo escuro e não a igualava em beleza. Tinha a boca mais larga e o nariz ligeiramente torcido, conferindo a seu rosto um aspecto assimétrico, possivelmente cômico.

Entrou no salão e fechou a porta.

—Não posso lhe ajudar - declarou sem preâmbulos. —Exceto para dizer que este assunto é absurdo. Deve ter sido um acidente. Terá tropeçado com algo e caído.

—Tropeçado com o que? - perguntou Pitt.

—Não sei. - Agitou as mãos em um gesto de impaciência. Eram mãos delicadas e expressivas. —Mas uma pessoa não atira às pessoas pela escada porque não acredita em Deus. Isso é um disparate. Se a pessoa for cristã, claro que não faz uma coisa assim. - Deu de ombros e torceu o gesto. —De fato, os queima na fogueira, não? - Não riu. Estava muito perto da histeria para atrever-se. Mas em seus olhos cintilou uma expressão jocosa. —Aqui não temos fogueiras, mas ninguém se rebaixaria a empurrar a alguém escada abaixo. A execução por blasfêmia deve realizar-se com a devida cerimônia, ou se não, não conta.

Pitt estava desconcertado. Clarice não se correspondia com nada que tivesse podido prever. Possivelmente se preocupava mais do que ao Pitt o tinham induzido a pensar.

—Sentia muito apreço pela senhorita Bellwood? - perguntou.

—Eu? - Estava surpreendida, seus olhos cinzas muito abertos. —Absolutamente. Ah, já vejo. Pensa que estou perturbada emocionalmente por meus comentários a respeito de mandar aos ateus à fogueira. Sim, é provável. Nem todos os dias se produz uma morte nesta casa e aparece a polícia suspeitando que se trata de um assassinato. Por isso veio, delegado, não? Não alteram um pouco às pessoas, estas situações? Teria dito que está acostumado a ver pessoas chorar e desmaiar. - Era quase uma pergunta. Aguardou um momento para lhe dar tempo a responder.

—Estou acostumado a ver pessoas chocadas – admitiu Pitt. —Não são poucos os que chegam a desmaiar. - Deu um passo atrás e convidou Clarice a tomar assento.

—Isso é prático. - Clarice se sentou na beira da poltrona mais próxima ao fogo. —Imagino que pessoas desmaiadas não lhe são de grande utilidade. – Moveu ligeiramente a cabeça em um gesto de auto-recriminação. — Desculpe. Isso não vem ao caso, não é? Não sentia especial simpatia por Unity, e em troca quero muito a meu pai. Sinceramente, por indignado que estivesse, não acredito que a tenha empurrado, ao menos de maneira intencional. Pode ser que tenham lutado. Poderia tê-lo empurrado ela e escorregar? - Olhou ao Pitt com um vislumbre de esperança. —Possivelmente se ele se afastou ou tentou escapar dela...? É uma possibilidade, não? Então seria um acidente. E um acidente pôde ocorrer a qualquer um.

Pitt se sentou em frente a ela.

—Não é isso o que seu pai declarou, senhorita Parmenter. Segundo ele, nem sequer saiu do gabinete. E a criada de sua mãe e o valete ouviram à senhorita Bellwood gritar: "Não, não, reverendo!" Também o ouviu sua irmã. Clarice guardou silêncio. Seu rosto traduzia pesar e confusão, assim como um total rechaço a admitir que seu pai fosse responsável por pouco mais que um infortúnio.

—Se seu pai se houvesse visto envolvido em um acidente assim, teria mentido em lugar de confrontá-lo? - perguntou Pitt, esperando que ela respondesse afirmativamente. Isso explicaria todas as provas, excluindo de uma vez o assassinato.

Clarice refletiu a respeito por uns segundos. Por fim levantou o queixo e olhou ao Pitt no rosto.

—Sim. Sim o faria.

Pitt notou que mentia. Tryphena já o tinha prevenido. Clarice anteporia seu amor filial à verdade. E pensava que possivelmente seu pai tivesse atuado de igual modo em caso de achar-se ante um dilema semelhante.

—Obrigado, senhorita Parmenter - disse Pitt. —Desculpe o aborrecimento. Conforme soube, também vive na casa um ajudante, não é assim?

Clarice ficou ligeiramente tensa.

—Sim. Quer falar com ele? Imagino que tampouco lhe será de grande ajuda, mas tem você que cumprir com as formalidades, não? Irei buscá-lo. - Clarice ficou em pé e se dirigiu para a porta, voltando-se no preciso instante em que Pitt se levantava também. —O que vai fazer, delegado? Sem provas concludentes ou uma declaração de culpa, não pode deter meu pai, não é?

—Não, não posso.

—E não tem nem um nem o outro, não é verdade? - Isso era um desafio, algo que desejava com toda sua alma.

—No momento, não.

—Estupendo! irei trazer o ajudante.

Clarice saiu andando ligeiro, e Pitt ficou a sós, refletindo sobre a peculiar situação em que se achava. Atendendo aos testemunhos da Tryphena, a criada e o valete, cabia pensar que Unity Bellwood havia sustentado uma violenta discussão com Ramsay Parmenter e, depois de expressar-se em termos sobremaneira insultantes, tinha saído do gabinete feito uma fúria. Ele a tinha seguido, disposto a prosseguir com a discussão, e se tinha produzido certa resistência no alto da escada.

Ela havia gritado e caído com tal impulso que tinha rodado até o pé da escada, quebrando o pescoço. Era absurdo chegar a uma briga física por umas diferenças teóricas quanto a Deus e a origem do homem. Era a forma menos apropriada de demonstrar um raciocínio. Qualquer enfrentamento corporal entre um clérigo de meia idade e uma jovem filóloga era inverossímil e continha ingredientes de farsa. Clarice, que era a única que não dava crédito a essa possibilidade, estava sem dúvida certa. E entretanto parecia inegável que era isso o que tinha ocorrido.

Pitt não albergava a menor esperança de que o jovem ajudante fosse de alguma utilidade. Provavelmente, por lealdade profissional e religiosa, respaldaria ao Ramsay Parmenter e negaria conhecer os fatos.

Abriu-se a porta e entrou um homem extraordinariamente bonito. Era magro, quase da estatura de Pitt. Tinha o cabelo escuro, umas delicadas feições aquilinas e uma boca que revelava senso de humor e sensibilidade. Usava colarinho eclesiástico.

—Olá, Thomas - disse com toda naturalidade depois de fechar a porta.

Pitt ficou tão atônito que por um instante foi incapaz de articular palavra. Aquele homem era Dominic Corde, o viúvo da irmã da esposa do Pitt, que tinha sido assassinada fazia quase dez anos, quando Charlotte e Pitt se conheceram. Se Dominic não tinha contraído segundas núpcias, cabia supor que seguiam sendo cunhados.

Dominic se aproximou da poltrona situada junto à lareira e se sentou. Os anos

não tinham passado embalde para ele desde a última vez que Pitt o viu. Devia ter completado já os quarenta. Finas rugas sulcavam sua fronte e irradiavam das comissuras de suas pálpebras. Em torno do nariz e da boca, as rugas eram muito mais profundas, e algum cinza salpicavam suas têmporas. A desenvoltura e a arrogância da juventude tinham desaparecido. A seu pesar, Pitt pensou que lhe favorecia a mudança. Não tinha esquecido por completo que quando Charlotte e ele se conheceram, ela estava apaixonada por Dominic.

-Não posso acreditar - disse Dominic com gravidade, observando ao Pitt. —Ramsay Parmenter é um homem sério e compassivo dedicado plenamente ao estudo

e a vida eclesiástica. Às vezes, Unity Bellwood podia acabar com a paciência de um santo, mas imaginar que o reverendo Parmenter a tenha empurrado pela escada de propósito excede os limites da realidade. Tem que haver outra explicação.

—Um acidente? - perguntou Pitt, recuperando por fim a fala mas ainda em pé. —Conhece-o bem? - Entretanto a pergunta que assaltou sua mente era outra muito distinta: Que demônios faz nesta casa, receber as ordens sagradas? Você precisamente! Você que, estando casado com Sarah, seduzia às criadas e flertava imperdoavelmente a menor oportunidade com outras jovens.

Dominic pareceu a ponto de sorrir, mas o sorriso se desvaneceu em seus lábios até antes de materializar-se.

—Ramsay Parmenter me ajudou quando estava ao à beira desespero - explicou com seriedade. —Sua fortaleza e paciência, sua fé serena e infinita bondade me resgataram de uma iminente autodestruição e me puseram no melhor caminho possível. Pela primeira vez desde que tenho memória, contemplo o futuro com um objetivo e com a esperança de ser útil a outros. Isso me ensinou Ramsay Parmenter, e não com palavras, mas pregando com o exemplo. - Elevou a vista e olhou ao Pitt. —Sei que é seu trabalho averiguar o que ocorreu aqui esta manhã, e que sua honra obriga a isso, seja qual for o resultado. Mas quer conhecer a verdade, e esta não inclui a possibilidade de que Ramsay Parmenter incorresse na violência contra outra pessoa, nem sequer Unity, por mais que ela o provocasse. - inclinou-se um pouco, seu rosto contraído pela peremptória necessidade de falar. —Pense bem, Thomas. Se, se for um homem racional e se pretende convencer a alguém da existência, a finalidade e as virtudes de Deus, quão último a pessoas faria é atacá-lo. Não tem sentido.

—As emoções religiosas raramente têm sentido - lhe recordou Pitt, sentando-se em frente a ele. —Não tem que estudar isso antes de ser autorizado a levar o colarinho clerical?

Dominic se ruborizou ligeiramente.

—Sim, claro que sim. Mas estamos em 1891, não no século XVI. Nestes tempos impera a razão, e Ramsay Parmenter é um dos homens mais razoáveis que conheci. Quando tiver falado mais com ele, você também se dará conta disso. Não posso arrojar a menor luz sobre o ocorrido. Estava em meu quarto lendo, me preparando para sair para visitar paroquianos.

—Ouviu à senhorita Bellwood gritar?

—Não. Tinha a porta fechada, e meu quarto se encontra na outra ala da casa.

—A senhora Whickham cre, ao parecer, que seu pai poderia ser culpado. E tanto a criada como o valete ouviram Unity dirigir-se a gritos ao reverendo - indicou Pitt.

Dominic deixou escapar um suspiro.

—Tryphena deve estar consternada pela morte de Unity - disse com tristeza. —Unia-as um grande afeto. Ela admirava muito a Unity. De fato, acredito que adotou algumas de suas opiniões. - Respirou fundo. —Quanto aos criados, não encontro explicação. Só posso dizer que devem estar equivocados. Não sei o que os induziu a semelhante engano. - Era óbvia sua confusão ante esses testemunhos. Procurou em vão alguma justificação. Estava profundamente abatido.

Pitt compreendia os conflitos de lealdades, assim como a comoção experimentada ante uma morte repentina. Essas espécies de fatos deixavam à maioria das pessoas fisicamente afundadas, com as emoções em carne viva, e incapazes de pensar com normalidade ou altera a razões.

—Não vou detê-lo - assegurou Pitt. -Não existem provas suficientes. Mas devo continuar investigando. Há muitos indícios de assassinato para fechar o caso sem mais.

—Assassinato! - Dominic empalideceu. Olhou ao Pitt com os olhos arregalados —Isso é... - Deixou cair a cabeça entre as mãos. —meu Deus, outra vez não!

Por um momento os dois se lembraram de Sarah, e as outras vítimas do CaterStreet, e os temores e receios, as relações rompidas e a dor.

—Sinto muito - disse Pitt em um sussurro quase inaudível. —Não há escolha.

Dominic guardou silêncio.

As brasas crepitaram ao reassentar-se na lareira.

 

Quando Pitt partiu, Dominic Corde tomou clara consciência da aflição que, ao menos em certa medida, tinha ficado encoberta pela presença de desconhecidos.

Tinham retirado já o cadáver de Unity. A polícia tinha examinado tudo aquilo que tinha considerado oportuno e tomado notas sobre o lugar e circunstâncias da morte.

Nesse momento reinava na casa um silêncio anormal. As cortinas e persianas estavam fechadas por respeito a defunta e para indicar a todos os transeuntes e possíveis visitantes que agora aquela casa se achava de luto. Ninguém tinha querido seguir com seus afazeres cotidianos até que se cumprissem as últimas formalidades. Sua atitude parecia insensível, ou pior ainda, dava a impressão de que tivessem medo de algo. Agora se achavam no vestíbulo, coibidos e cabisbaixos.

Clarice foi a primeira a falar.

—Não é absurdo? depois de um fato tão grave, tudo continua igual a sempre. Antes disto, tinha uma dúzia de coisas por fazer. Agora todas me parecem muito inúteis.

—Nada é igual a antes! - exclamou Tryphena irada. —Unity foi assassinada em nossa casa por um membro desta família. Nada será nunca mais como antes. Claro que tudo o que vai fazer lhe parece inútil! Que sentido poderia ter?

—Em realidade, não sabemos o que ocorreu - se aventurou a dizer Mallory, deslocando o peso do corpo de um a outro pé. —Acredito que não deveríamos extrair conclusões precipitadas...

Tryphena lhe lançou um olhar colérico, seus olhos debruados e chorosos.

—Se você não sabe, é porque se nega a admiti-lo. E se começar a me exortar, gritarei. Se for sair com sua habitual cantinela sobre os inescrutáveis caminhos do Senhor e a necessidade de aceitar os intuitos divinos, juro-te que atirarei algo à cabeça, e será o maior e mais pesado que encontrar. - Tinha a respiração agitada. — Unity era mais valente e sincera que todos nós juntos. Ninguém poderá substitui-la! - deu meia volta e, correndo, afastou-se pelo chão de mosaico e subiu pela escada, acompanhada do sonoro tamborilar dos saltos contra a madeira.

—Você poderia - resmungou Clarice, referindo-se, cabia pensar, às possibilidades da Tryphena como substituta de Unity. —Acredito que o faria muito bem. Tem a mesma espécie de idéias desatinadas e nunca escuta a ninguém nem olha aonde vai. Para falar a verdade, faria o papel à perfeição.

—Já basta, Clarice! - protestou Mallory com impaciência. —Não há nenhuma necessidade disso. Tryphena está desolada.

—Sempre está desolada - disse Clarice entre dentes. —Vive desolada. Quando se lembrou de seu matrimônio com Spencer, estava compungida. Depois, quando decidiu que era um fanfarrão e um pesado, estava ainda mais compungida. E nem segue-se que quando ele morreu ficou contente.

—Por amor de Deus, Clarice! - Mallory a olhava com estupor. —Não tem a menor consideração? Clarice fez caso omisso.

—Você não está penalizado? - perguntou Dominic a Clarice com tom aprazível.

Clarice se voltou para ele, e a ira desapareceu de seu semblante.

—Sim, claro que sim - admitiu. —E Unity nem sequer me era simpática. - Olhou para seu pai, que se achava de pé junto ao poste da escada.

Ramsay Parmenter continuava muito pálido, mas parecia ter recuperado em parte a compostura. Em geral, era um homem de grande serenidade, e nele a razão sempre prevalecia sobre as emoções, a autocomplacencia ou qualquer classe de indisciplina. Até então tinha evitado os olhares de outros. Lógicamente, conhecia as declarações que Stander e a senhorita Braithwaite faziam à polícia, e devia perguntar-se o que pensava o resto da família de tão assombrosa acusação. Não obstante, tinha chegado o momento de romper seu silêncio.

—Duvido que haja nada novo que dizer. - Falou com voz rouca, fraca, carente por completo de seu timbre costumeiro. —Ignoro o que ocorreu à senhorita Bellwood. Acredito sinceramente que ninguém desta casa saiba tampouco. O melhor será que, na medida do possível e dadas as circunstâncias, prossigamos com nossas obrigações e nos comportemos de maneira digna. Estarei em cima, em meu gabinete. - E sem esperar resposta alguma, partiu andando compassado mas um tanto lento.

Dominic o observou com uma mescla de tristeza e culpa, porque não sabia como ajudá-lo. Sentia uma funda admiração por Ramsay Parmenter, e o tinha sempre muito presente. Ramsay o tinha encontrado em uma época de intensa angústia; descrevê-la como "desespero" não era de modo algum exagerado. Naquele tempo, a paciência e fortaleza do Ramsay lhe tinham servido de sustento, e ao final lhe tinham permitido refazer-se. E agora, quando era Ramsay quem necessitava a alguém que acreditasse nele e lhe estendesse uma mão em que apoiar-se, não ocorria a Dominic o que dizer ou fazer.

—Acredito que também eu continuarei com meus estudos - disse Mallory, pesaroso. —Nem sequer sei que horas são. Não entendo por que a criada embainhou o carrilhão do relógio. Ao fim e ao cabo, não morreu nenhum membro da família. - Meneou a cabeça em um gesto de irritação e se foi. Clarice partiu sem dar explicações, saindo ao jardim pela porta lateral. Vita e Dominic ficaram sós.

—Agi bem? - perguntou Vita em um sussurro olhando para Dominic no rosto. Era uma mulher extraordinária, de uma beleza pouco convencional: olhos muito grandes, boca muito larga, o rosto algo pequeno em proporção. E entretanto quanto mais a contemplava, mais formosa parecia, até que os traços clássicos de outras mulheres eram em comparação muito finos, muito alongados, dotados de uma uniformidade que acabava sendo tediosa. —Acaso não deveria haver dito nada a esse policial?

Dominic desejou lhe oferecer consolo. Vita se achava em uma situação horrível, ante um dilema que ninguém deveria ver-se obrigado a confrontar. Com a fé que Dominic tinha encontrado nos últimos anos, como podia aconselhar a mentira, até para proteger ao próprio marido? A maior lealdade devia reservar-se ao moralmente correto. Isso estava fora de toda dúvida. A dificuldade residia em saber o que era o correto, qual de todas as opções era a menos má. Para isso, a pessoa precisava prever as conseqüências, o que freqüentemente era impossível.

—Ouviu Unity gritar? - perguntou.

—Claro. - Vita cravou nele um olhar limpo e firme. —Acredita que, do contrário, diria algo assim? Não pretendia dar a entender que não fosse certo. Perguntava se deveria me ter calado.

—Sei -se apressou a responder Dominic-. Pensava que o fato mesmo de saber que era verdade implicava a obrigação de revelá-la.... acredito... -Teria contado ele se achasse-se no lugar de Vita, se tivesse ouvido os gritos de Unity? O teriam induzido a calar a gratidão e a lealdade? O que teria ocorrido nesse caso? E se, se demonstrava de algum outro modo que se cometeu um assassinato e a culpa recaía em outra pessoa? Até se isso não acontecesse, devia ficar impune um assassinato —Não, claro que devia falar - asseverou com convicção. —É só que lamento muito que tenha que agüentar essa carga. Mal posso imaginar a coragem que necessitou para dizê-lo, ou a profunda dor que com toda segurança agora sente.

Vita estendeu uma mão e apoiou no braço do Dominic as pontas dos dedos.

—Obrigado, Dominic - murmurou. —Não tem idéia do consolo que me proporcionam essas palavras. Suspeito que se aproximam tempos difíceis. Não sei como os suportaremos, a menos que nos apoiemos mutuamente. - interrompeu-se e por um instante olhou ao Dominic sem dissimular sua aflição. —Duvido que consigamos persuadir Tryphena.... não acha?Receio que está muito furiosa e muito penalizada. Ela via Unity com olhos muito diferentes aos nossos. Suas lealdades se acham em extremo... divididas.

Dominic teria desejado discrepar a respeito, mas uma mentira não a reconfortaria; talvez unicamente a faria sentir-se mais só em sua angústia.

—Ainda não - respondeu em voz baixa. —Mas Tryphena ainda não teve tempo de parar para pensar ou de dar-se conta de que o resto da família vai necessitá-la.

—Vamos necessitá-la, não é, Dominic? - Falava com voz tensa, empanada por um medo cada vez maior à medida que tornava mais clara consciência da situação. —Esse polícial não vai render se. Persistirá até que averigúe a verdade. E logo agirá em conseqüência.

Isso era a única coisa que Dominic sabia com total certeza.

—Sim. Não fica outra alternativa.

Um meio sorriso de melancolia se desenhou nos lábios de Vita.

—-Que má sorte! Poderia nos ter tocado um policial mais estúpido, ou que se deixasse impressionar mais facilmente pela Igreja, ou evitasse as dificuldades, ou temesse trazer a luz um assunto incômodo e impopular. E será impopular. Sem dúvida haverá quem exerça sua influência.... ou assim o fará no mínimo o bispo Underhill. Acredito que se deve em grande medida a sua recomendação o que Ramsay possa ser nomeado ele mesmo bispo. - Exalou um suspiro quase inaudível. —Às vezes é muito difícil saber o que é o correto, o que é o melhor para o futuro. Nem sempre coincide com o que nos parece melhor agora. O mundo pode nos julgar com muita severidade.

—Às vezes assim é - concedeu Dominic. —Mas as vezes nos julga benévolamente.

De novo apareceu um fugaz sorriso aos lábios de Vita.

—Vai dizer me que averiguarei quem são meus verdadeiros amigos? —Um vislumbre de humor se refletiu em seu semblante. —Que saberei quando chegar o escândalo, os jornais publiquem coisas horríveis sobre nós e não venha nos visitar quase ninguém? - Levantou um ombro em um característico gesto cheio de graça, que desta vez expressava uma negação. —Não, por favor. A verdade, acredito é que não desejo sabê-lo. Forçosamente haverá surpresas muito desagradáveis, pessoas nas quais depositei meu afeto e confiança, convencida de que é um sentimento mútuo. - Tinha desviado o olhar, que agora mantinha fixo em algum ponto do extraordinário vestíbulo, e falava em voz muito baixa. —Descobriremos covardia onde menos a esperávamos, e preconceitos, e toda classe de reações ingratas. Preferiria não me inteirar. Preferiria ver rostos sorridentes sem ter que descobrir atrás deles a debilidade ou o temor ou o desprezo. - voltou-se de novo para ele. —Dominic, tenho muito medo...

—É lógico. - Dominic desejou tocá-la, mas teria sido indecoroso. Era o modo mais instintivo de oferecer consolo quando as palavras de nada serviam, mas ele não podia permitir-se não com ela, nem com nenhum paroquiano. Devia achar as palavras adequadas. —Todos estamos assustados. Quão único podemos fazer é confrontar cada novo dia com coragem e nos amar.

Vita sorriu.

—Assim é. Graças a Deus que está você aqui, vamos necessitá-lo. Ramsay vai necessitar de você. - Baixou ainda mais a voz, e esta pareceu a ponto de quebrar-se. —Como pode ter ocorrido uma coisa assim? Sei que Unity era uma jovem conflitiva, mas já antes tínhamos acolhido aqui pessoas de trato difícil. - Olhou ao Dominic nos olhos. —Bem sabe Deus que tivemos a alguns ajudantes que teriam levado a um santo ao desespero. O jovem Havergood era todo entusiasmo, sempre vociferando e fazendo dramalhões. - Agitou os braços com delicadeza imitando ao ajudante em questão. —Não poderia sequer contar o sem-fim de coisas que quebrou, incluído meu melhor vaso do Lauque, que me obsequiou um primo como presente de bodas. E não falemos já do Gorridge, que passava o dia inteiro estalando a língua e contando piadas más. - Sorriu para Dominic. —Ramsay os tratava tão bem...., inclusive ao Sherringham, que sempre andava repetindo os comentários de outros e recordava tudo o que lhe dizia, mas ligeiramente tergiversado, o justo para lhe trocar o sentido por completo.

Dominic ia dizer algo, mas ela se encaminhou para a porta da estufa e entrou.

Dominic a seguiu. O aroma de umidade das folhas era muito agradável, quase tonificante. por cima das palmeiras e dos lírios, a estufa formava uma sucessão de arcos de vidro e madeira branca.

—Tão diferente era o caso de Unity? - prosseguiu Vita, passeando pelo caminho de tijolo entre os maciços. A uns vinte passos, a cadeira onde Mallory tinha estudado estava vazia, mas seus livros e papéis continuavam ali, empilhados em uma mesa de ferro coado pintado de branco. Vita caminhava agora muito devagar, com a vista fixa no chão. —Ramsay mudou, sabe? Já não é o que era. Você antes não o conhecia e não pode haver-se dado conta, claro está. É como se uma sombra negra flutuasse sobre ele, algo que corrói a segurança em si mesmo e a fé que antes tinha. Anos atrás era tão... positivo. Em outro tempo transbordava paixão. Seu próprio timbre de voz despertava o interesse das pessoas. Isso mudou.

Dominic sabia a que se referia Vita: as dúvidas seculares que tinham começado a assaltar muitas pessoas desde a difusão das teorias de Charles Darwin sobre a origem da espécie humana, que postulavam uma evolução gradual desde formas de vida inferiores contra a tradicional concepção cristã da criação divina. Ele mesmo tinha notado essas dúvidas na voz do Ramsay, a ausência de paixão em sua fé e a maneira de pregá-la aos paroquianos. Mas Unity Bellwood não era a responsável por isso. Certamente não era a única pessoa que acreditava no darwinismo, nem a única atéia com quem tropeçou Ramsay. O mundo estava cheio de ateus e sempre o tinha estado. A essência da fé era o valor e a confiança, sem conhecimento direto. Vita se deteve. No caminho havia uma mancha escura, de uns seis palmos de largura e forma irregular. Enrugou o nariz ao perceber o ligeiro aroma acre que ainda despedia.

—Eu gostaria que o ajudante do jardineiro tivesse um pouco mais de cuidado. Bostwick não deveria deixá-lo entrar aqui. Sempre se esquece de tampar os potes e frascos. Dominic se agachou e tocou a mancha com a ponta do dedo. Estava seca. Os tijolos deviam tê-la absorvido. Era marrom, como a marca encontrada na sapatilha de Unity. A conclusão era inelutável. Mas se Mallory a tinha visto essa manhã, por que tinha mentido?

—O que é? - perguntou Vita.

Dominic se ergueu.

—Não tenho a menor idéia. Mas está seca. Pode pisar se quiser. Deve haver-se filtrado nos tijolos muito depressa.

Vita recolheu a saia de todos os modos e passou nas pontas dos pés por cima da mancha. Dominic a seguiu até a área central, entre as palmeiras e as plantas trepadeiras. Vita fixou o olhar além dos lírios, alheia a seu delicado aroma, o rosto tenso e pálido.

—Suponho que se devia a uma insuportável frustração - disse em um sussurro —Unity falava e falava sem descanso, não? – mordeu o lábio, e seus olhos e a inclinação da cabeça revelaram uma intensa tristeza. —Nunca sabia quando era o momento oportuno de moderar a língua. Está muito bem apregoar o que alguém considera a verdade, mas quando isso faz em pedacinhos os alicerces do mundo de outra pessoa, não é muito inteligente. Não ajuda; só destrói. - Estendeu o braço e tocou um lírio. —Há pessoas incapazes de assumir uma perda dessa magnitude. Simplesmente não podem restabelecer suas crenças. A Igreja foi tudo na vida para o Ramsay, já desde sua juventude, viveu só para isso, derrubou-se por completo, sacrificou seu tempo e seus recursos. Poderia ter-se destacado no mundo universitário, sabia?

Dominic albergava certas dúvidas a esse respeito. Tinha a desagradável sensação de que a capacidade de estudo do Ramsay era limitada. Ao conhecê-lo, Ramsay lhe tinha parecido um homem brilhante, mas nos três ou quatro últimos meses, durante o período em que Unity Bellwood tinha colaborado com ele, Dominic tinha escutado comentários e discussões que não conseguia esquecer. Tinha procurado não perceber que ela via antes que Ramsay uma possibilidade, um significado alternativo a determinada passagem. Unity era capaz de assimilar uma idéia que inicialmente não gostava, em lugar de negar-se a considerá-la. Encontrava soluções imaginativas, relacionava conceitos inverossímeis e logo visualizava as novas conclusões. Ramsay, confuso e indignado, não conseguia compreendê-la.

Não tinha ocorrido com excessiva freqüência, mas as vezes suficientes para que agora Dominic pensasse, a seu pesar, que a inveja acadêmica podia ser a origem, ao menos em parte, da antipatia do Ramsay por Unity. Acaso o intelecto dela, sua rapidez e agilidade, intimidavam-no, faziam-no sentir-se velho, incapacitado para defender as crenças que tanto lhe importavam e às que se entregara em corpo e alma?

O próprio Dominic estava confuso e não sabia o que pensar. A violência era imprópria do homem que ele conhecia. Ramsay era pura razão, oratória, pensamento civilizado. Desde que Dominic o conhecia, a bondade e a paciência do Ramsay nunca tinham fraquejado. Era essa atitude um mero verniz sob o qual se agitavam emoções mal dominadas? Era difícil de aceitar, e entretanto as circunstâncias obrigavam ao Dominic a contemplar a possibilidade.

—Pensa realmente que ele a empurrou de propósito? - perguntou. Vita o olhou. - Dominic, tomara pudesse dizer que não. Daria algo por voltar para ontem, quando nada disto tinha ocorrido. Mas ouvi Unity gritar. Não pude evitá-lo. Nesse preciso instante saía para o vestíbulo. Disse: "Não, não, reverendo!", e um segundo depois caiu. - interrompeu-se, a respiração agitada, o rosto lívido. —Que outra coisa posso pensar? - disse com desespero, olhando horrorizada para Dominic.

Era como se alguém tivesse fechado uma porta à esperança, uma porta de ferro, sem trinco. Até esse momento Dominic tinha acreditado que devia tratar-se de um engano, de umas palavras mal interpretadas por efeito da histeria. Mas Vita nunca teria confirmado uma vaga impressão. Não sentia apreço por Unity, não enfrentava um conflito de lealdades, e tinha falado por própria vontade, sem que ninguém a pressionasse ou tratasse de confundi-la.

Dominic tentou achar algum raciocínio válido, mas não lhe ocorreu nada que não soasse absurdo.

Vita o observava com medo no olhar.

—Como disse o policial, no alto da escada não há nada com que tropeçar. Dominic sabia que isso era certo. Ele mesmo tinha subido e descido por aquela escada centenas de vezes.

—É algo ao qual preferiria não ter que enfrentar - prosseguiu Vita. —Mas se tento me evadir, à longa será pior. Meu pai... teria gostado dele, meu pai.... ele era um verdadeiro grande homem. Sempre me advertia que as mentiras se tornam cada dia mais perigosas. Crescem cada vez que temos que avivá-las com novas mentiras, até que no final são maiores que nós e nos devoram. - Baixou a vista, afastando-a por fim dele. —E por muito que ame ao Ramsay, devo ser fiel deste modo a minhas próprias crenças. Parece-lhe isso egoísmo e deslealdade?

—Absolutamente -se apressou a dizer Dominic. Vita oferecia um aspecto muito frágil sob a luz salpicada que se filtrava através das folhas. Era uma mulher mais miúda do que aparentava a primeira vista. Alguém se esquecia às vezes disso ante a força de sua personalidade. —Absolutamente - repetiu ainda com maior convicção. —Ninguém tem direito a esperar que minta sobre algo assim a fim de protegê-lo. Devemos fazer o que estiver em nossa mão para evitar um prejuízo, mas isso não inclui renegar das leis civis ou a lei de Deus. - Temia que suas palavras fossem grandes demais. Teria dito isso mesmo a um paroquiano sem a menor vacilação, mas com alguém a quem conhecia bem, a quem via diariamente, era diferente. E Vita o avantajava em todos os sentidos; o fato de que fosse de maior idade carecia de importância, mas sua experiência da vida eclesiástica era muito superior a dele. Sua reação surpreendeu ao Dominic. voltou-se e o olhou com os olhos muito abertos, radiantes, como se lhe tivesse proporcionado um consolo real e tangível.

—Obrigado -disse sinceramente. —Não sabe quanto ânimo me infundiu com sua convicção a respeito do que é correto e certo. Não tenho a sensação de me achar sozinha, e isso é o mais importante. Suportarei o que seja se não tiver de fazê-lo sozinha.

—Claro que não está sozinha! - assegurou Dominic. Apesar do calafrio da comoção e a um estranho cansaço, como se tivesse passado toda a noite em claro, ao ouvir as palavras de Vita se difundiu por seu interior uma espécie de relaxação, um desentumecimiento de músculos duros durante muito tempo. Não teria desejado tal tragédia a ninguém, e menos à família que tanto tinha feito por ele; mas possuir a fortaleza e compaixão necessárias para ajudá-los era a essência da fé que tinha adotado e sobre a qual edificava sua vocação. —Não me moverei desta casa.

Vita sorriu.

—Obrigada. Agora acredito que devo pôr ordem em minhas idéias durante um momento...

—Naturalmente - concordou Dominic imediatamente. —Preferirá ficar a sós. E sem esperar resposta, Dominic se voltou e se dirigiu para o vestíbulo pelo caminho de tijolo. Quando cruzava o mosaico, Mallory saiu da biblioteca. O rosto deste se escureceu ao vê-lo.

—O que fazia na estufa? - perguntou Mallory com aspereza. —O que queria?

—Não fui buscar a você - replicou Dominic com cautela.

—Pensava que estaria ocupado em encontrar a maneira de ajudar a meu pai.depois do ocorrido, duvido que seja capaz de levar a cabo seu trabalho pastoral. Não se supõe que é essa sua obrigação? - Um corrosivo tom crítico estava patente em sua voz crispada.

—Para mim, o primeiro é esta casa - replicou Dominic. —Como deveria sê-lo para você. Estava falando com sua mãe para lhe garantir que todos nos apoiaríamos mutuamente durante esta etapa...

—Nos apoiar mutuamente? - Mallory arqueou suas escuras sobrancelhas em um vislumbre de sarcasmo. —Não é isso um tanto absurdo considerando que a jovem em extremo censurável que colaborava com meu pai acaba de morrer de morte violenta nesta casa? Uma de minhas irmãs insinuou virtualmente que meu pai é o culpado, e a outra se dedica a defendê-lo e fazer comentários irresponsáveis que ela acha engraçados. Temos à polícia na porta, e sem dúvida as coisas irão piorar. - Em sua voz ficou ainda mais manifesto seu tom de repulsa. —o melhor que pode fazer é descarregar meu pai de sua missão pastoral para que não tenha que sair de casa. Assim, proporcionará-nos ao menos um pouco de intimidade para fazer frente a nossa comoção e nossa dor, e os paroquianos continuaram atendidos.

Dominic notou crescer sua própria indignação. Todas as discrepâncias surgidas entre ele e Mallory ao longo dos últimos meses formaram redemoinhos em sua memória, e a ira aflorou à superfície. Sensibilizado pela recente comoção, foi incapaz de controlá-la.

—Talvez se deixasse de lado seus estudos para Roma durante uns dias e fosse oferecer consolo a sua mãe e lhe assegurar sua lealdade, não teria que me encarregar eu disso - respondeu. —E assim ficaria livre para cumprir com minhas obrigações habituais. Entretanto, no momento decidiu ir ler mais livros, o que pode ser muito instrutivo, mas de pouca ajuda.

Uma labareda tingiu o rosto do Mallory.

—Não me ocorre o que pôde dizer a minha mãe que lhe sirva de ajuda e ao mesmo tempo se aproxime mínimamente à verdade. Unity era uma mulher ímpia, teimada em exibir suas opiniões imorais e blasfemas nesta casa. Meu pai se equivocou ao contratar seus serviços. Deveria haver-se informado de que espécie de mulher era antes de aceitá-la como colaboradora. - Tomou fôlego. Uma criada passou furtivamente pelo vestíbulo e desapareceu pelo corredor que conduzia à porta lateral - um pouco de tempo e esforço, umas quantas indagações, e teria descoberto de que pé coxeava essa mulher. —Fossem quais fossem suas aptidões acadêmicas, perdiam todo valor por causa de seus radicais pontos de vista morais e políticos. Note no que converteu a Tryphena! Isso por si só bastaria para condená-la. - Apertou os lábios e levantou um pouco o queixo, mostrando os músculos contraídos do pescoço. —Sei que em seu credo se defendem posturas muito liberais, consentindo que pessoas façam pouco mais ou menos o que lhe venha em vontade, mas possivelmente compreenda agora a insensatez dessa atitude. É impossível escapar à influência das idéias errôneas que nos rodeiam. Existem neste mundo mais padecimentos provocados pelo senhor Darwin que por toda a pobreza e enfermidades imagináveis.

—Porque suscitou a dúvida? - disse Dominic, incapaz de dar crédito ao que ouvia. —Também o fez duvidar, Mallory?

—Claro que não! - E certamente não se percebia em seu olhar o menor indício de dúvida. Seus olhos ardiam de certeza. —Mas minha fé não recorre a equívocos nem adorna a doutrina para adequá-la às conveniências do momento. Meu pai teve menos sorte. Já tinha comprometido sua vida, seu tempo e toda sua energia. Já não poderia voltar atrás, sacrificar tudo.

—Isso é puro sofisma - replicou Dominic, irado. —Se uma fé é verdadeira, deveria resistir a qualquer raciocínio contra, e se não o é, pouco importa o esforço que alguém lhe tenha dedicado. Nenhum ser humano pode modelar a Deus a seu desejo.

—Possivelmente deveria subir ao gabinete e reconfortar a meu pai com essas idéias - sugeriu Mallory. —Pelo visto, assumiu a responsabilidade de guiar à família, embora não sei quem lhe pediu isso.

—Sua mãe. Mas se o tivesse a seu lado, sem dúvida pediria isso a você -respondeu Dominic. —Ignorava que sentisse tal aversão por Unity. Sempre a tratou com gentileza. Mallory arqueou as sobrancelhas.

—O que esperava, que me mostrasse descortês com ela sob o teto de meu pai? Unity conhecia perfeitamente minha opinião a respeito de suas idéias.

Dominic recordou várias confrontações em extremo embaraçosa entre Mallory e Unity Bellwood. centraram-se basicamente em dois pontos: por uma parte, as brincadeiras dela em relação à fé cega de Mallory na Igreja católica e seus ensinamentos; por outra, as provocações muito mais sutis relacionadas com o celibato que lhe viria imposto por sua escolha. Se Dominic não tivesse conhecido tão bem Unity, se fosse da idade do Mallory em lugar de ser um viúvo de mais de quarenta anos com um conhecimento próximo das mulheres, possivelmente nem sequer teria percebido o significado profundo das brincadeiras de Unity. As insinuações eram veladas; os comentários tinham duplo sentido. Possivelmente não teria sabido interpretar seus olhares e suas risadas, as hesitações ante ele, seguidas de um sorriso. O próprio Mallory nunca esteve muito certo do que significava essa atitude. Sabia que ela se divertia a sua custa, e que sempre parecia haver uma piada na qual ele não participava. Não era surpreendente que agora não lamentasse sua perda.

—Considera-me muito comedido para lhe falar claramente - prosseguiu Mallory com tom acusador. —Me permita lhe assegurar uma coisa: sou muito consciente de minhas crenças, e nunca me calei nem me calarei ante blasfêmias como as que ela apregoava. - Falava com firmeza, satisfeito de si mesmo. —Era uma mulher por completo desorientada, e os princípios morais que defendia eram uma atrocidade. Mas por certo teria preferido dissuadir a de seu engano a ver que sofria o menor dano. Como teria preferido qualquer um, imagino. - Respirou fundo. — Hoje é um dia trágico para todos nós. Espero que sobrevivamos sem maiores perdas. – Olhou muito fixamente para Dominic por um instante. —Eu não posso oferecer consolo a meu pai. Agora necessita de fé, e discrepo muito dele para lhe servir de ajuda, apesar de sua estatura, - parecia muito jovem, como um menino muito crescido para suas verdadeiras forças. Sob sua expressão de ira se percebia tristeza e confusão. —Entre ele e eu há uma grande distancia nas questões que mais importam. Por isso pode ver-se você tem uma fé apoiada em algo mais que as palavras e um meio de vida respeitável. Estou espremendo os miolos desde que pude me concentrar, mas não me ocorre nada que lhe dizer. Nossas diferenças duram já muitos anos.

—Não chegou a hora de esquecer as diferenças? - propôs Dominic.

Mallory ficou tenso e, sem sequer parar a pensar, respondeu:

—Não. Por Deus, Dominic! Se Tryphena estiver certa, é possível que meu pai, a sangue frio, tenha empurrado, tenha empurrado a uma mulher pela escada lhe causando a morte. - Quase à beira do pânico, não pôde evitar levantar excessivamente a voz. —O que pode lhe dizer alguém desta família? Necessita orientação espiritual. Se tiver cometido uma ação horrível, deve achar a maneira de assumi-la e depois procurar o arrependimento em sua alma. Eu não posso lhe pedir algo assim. É meu pai. - Embora obviamente sentia uma profunda impotência, seu descontentamento se concentrava em Dominic, assim este não podia dizer nada para ajudá-lo. —Em sua fé, não se aceita a confissão, não existe a absolvição - prosseguiu Mallory com a boca torcida pela raiva. —Eliminaram tudo isso quando Enrique VIII decidiu divorciar-se da Ana Bolena. Não fica nenhum instrumento útil para os mais difíceis momentos de prova, os momentos de profunda escuridão em que só os sagrados sacramentos da verdadeira Igreja poderiam lhes salvar. - Mantinha o porte erguido, o queixo alto, os ombros retos. Teria podido pensar-se que se dispunha a confrontar uma briga física.

—Se Ramsay a matou, e alguma parte dele tinha verdadeira intenção de fazê- lo - respondeu Dominic, enquanto em sua mente lutavam o rechaço a acreditar uma coisa assim e o assombroso conteúdo das palavras de Vita, —necessitará algo mais que consolo e orientação espiritual para achar certo grau de paz consigo mesmo. - Moveu a mão em um gesto brusco, desprezando a idéia. —Não basta dizer "Te perdôo" para que tudo desapareça como se nunca tivesse existido. Alguém deve ver a diferença entre o que é e o que deveria ser, e compreendê-la. Um débito... - interrompeu-se. Mallory estava preparado para encetar-se em uma interminável discussão teológica sobre a verdadeira Igreja e seus mistérios, e a heresia da Reforma. Havia já tomado ar para começar. Era mais fácil que falar da realidade que enfrentavam. Dominic acrescentou com tom cortante: —Este não é o momento. Subirei para vê-lo quando tiver meditado um pouco mais a respeito.

Mallory lhe lançou um olhar de ceticismo e partiu.

Dominic deu meia volta e quase tropeçou com Clarice. Embora esta levasse o cabelo preso, tinha se soltado parcialmente, e teria estado muito favorecida se não fosse pela vermelhidão dos olhos e a palidez da pele.

—Antes meu irmão não era tão pomposo - disse ela com tom severo. —Agora me recorda à carpa dissecada que há no salão da manhã. A pobre tem sempre um aspecto tão surpreso.... como um pároco que sem querer fechou um dos registros do órgão.

—Clarice, que ocorrências! - exclamou Dominic, reprimindo o desejo de rir, consciente do inapropriado da ocasião. Ela mesma parecia ainda muito alterada.

—Também você vai fazer me recriminações? - Clarice tratou de aparar o cabelo, conseguindo só alvoroçar-se o mais ainda. —Tryphena encerrou-se em seu quarto, e suponho que é compreensível. Realmente apreciava Unity, que Deus a tenha em sua glória. Embora provavelmente está bem que assim seja. Todos deveríamos ter ao menos uma pessoa que guarde luto por nós depois de mortos, não acha? - Empanou-se a voz e um olhar de lástima apareceu em seus olhos. —Que horrível deve ser morrer sem ninguém que o chore, sem ninguém que pense que perdeu algo insubstituível! Eu não poderia substituir Unity, mas tampouco o tentaria. Achava-a bastante odiosa. Sempre estava mofando do Mau. Já sei que ele o busca, mas é um alvo muito fácil para merecer a pena a alguém que se aprecia de sua inteligência.

Falava depressa, nervosa, retorcendo-as mãos. Sem necessidade de perguntar Dominic soube que também ela temia que seu pai fosse culpado.

Achavam-se no vestíbulo, perto da porta do salão da manhã. Dominic supôs que Vita continuava na estufa.

—Vou subir para ver meu pai. - Clarice fez gesto de dirigir-se para a escada. —Pode ser que Mal pense que nosso pai necessita agora um largo bate-papo teológico, mas pessoalmente o duvido. Eu em seu lugar só desejaria saber que alguém me quer, houvesse ou não perdido o controle e empurrado pela escada a essa detestável mulher. - Afirmou-o com tom desafiante, desafiando-o a discrepar.

—Também eu - respondeu Dominic. —Ao menos em um primeiro momento. E desejaria deste modo que alguém considerasse a possibilidade de que fosse inocente, e talvez que me escutasse se precisasse falar.

—Custa-lhe imaginar a si mesmo empurrando-a pela escada, não é? – Clarice olhou para Dominic com expressão de curiosidade. apesar de seu olhar sério, percebia-se nela essa faísca de humor que a caracterizava, como se, depois de sua aflição, representasse-se em algum canto da mente a imagem de seu pai em tal situação e visse quão absurdo era.

—Em realidade, posso imaginar facilmente - admitiu Dominic.

—Sério? - Clarice se surpreendeu.

Dominic acreditou perceber nela também um indício de satisfação. devia-se a que ela teria preferido que fora ele o culpado em lugar de seu pai? A idéia lhe provocou um calafrio, de repente tomou consciência de que era um intruso, a única pessoa da casa que não pertencia à família. Causou-lhe certa consternação que fosse Clarice precisamente quem o tivesse recordado. Lhe tinha parecido sempre a mais afetuosa, a que menos barreiras levantava entre si mesma e o mundo.

—Imagino que todos seríamos capazes de algo assim ante determinadas ofensas - disse com certa frieza. —Mallory, sem ir mais longe, expressou com bastante clareza sua satisfação pela morte de Unity.

—Mau? - Clarice arqueou as sobrancelhas-. Achava que, discussões à parte, sentia simpatia por ela.

—Simpatia por ela? - repetiu Dominic, assombrado.

—Sim. - Clarice se voltou e se encaminhou para a escada. —Pendurou outra vez esse quadro do Rossetti na biblioteca por ela. Mal o detesta. Tinha-o escondido no salão da manhã, onde quase nunca entra ninguém da família.

—Tem certeza de que Mallory não gosta do quadro?

—Sim, claro. É muito sensual, quase provocador. - Clarice se deu de ombros. —Unity gostava, como era de esperar.

—E eu também. A modelo utilizada pelo Rossetti me parece encantadora.

—É sim, mas Mallory a considera uma desavergonhada.

—E por que, pois, voltou a pendurar o quadro na biblioteca?

—Porque Unity o pediu! - respondeu ela com um gesto de impaciência pela lentidão do Dominic. —Também ia recolher pacotes de livros à estação por ela.... três vezes nas últimas duas semanas. Mal interrompia seus estudos e saía apesar de estar chovendo a mares. Por que? - Levantou a voz. —Porque ela o pediu! E deixou de usar a jaqueta verde a qual tinha tanto apego.... porque ela fez algum comentário desfavorável. Assim não estou muito certa de que Unity lhe desagradasse tanto como você acredita.

Dominic rememorou os incidentes a que Clarice se referia e concluiu que tinha razão em todos os casos. Quanto mais pensava nisso, menos concordava com a habitual atitude de Mallory. Aborrecia a chuva. Freqüentemente dizia que esperava com impaciência o clima mais seco e quente de Roma, uma vantagem adicional de sua vocação. Pelo que Dominic sabia, Mallory nunca fazia recados a ninguém. Inclusive sua mãe recebia uma cortês negativa quando lhe pedia que fosse ao farmacêutico. A desculpa era sempre a mesma: estava estudando, e isso tinha prioridade sobre qualquer outra coisa. Dominic não recordava o detalhe da jaqueta verde. Embora sempre estivesse muito atento à indumentária das mulheres, nunca se fixava na dos homens. Mas o quadro de Rossetti era diferente. Isso era inesquecível.

Era francamente curioso. Mallory, pois, fazia uns quantos favores ao Unity apesar do aparente desprezo que sentia por ela. Dominic não tinha que esforçar-se muito para achar uma explicação plausível. Unity tinha sido uma mulher de um notável atrativo. Seu encanto ia muito além da mera beleza de um rosto ou um cabelo; residia em sua vitalidade, sua inteligência, sua permanente consciência da alegria e provocação de viver. O próprio Dominic o recordava com dor. Mas não se dera conta de que tivesse despertado o interesse do Mallory.

—Possivelmente tenha razão – disse. —Não sabia.

—Provavelmente tentava convertê-la - comentou Clarice com ironia. —Teria sido uma esmagadora derrota para meu pai se Mal tivesse conseguido ganhar sua adesão à Igreja católica depois de todo o tempo que ela dedicou a traduzir documentos eruditos para a Igreja anglicana.

—No período de que tratam esses documentos eram ainda a mesma Igreja - explicou Dominic.

—Já sei! - afirmou ela com aspereza, embora fosse evidente que tinha esquecido. —Por isso necessitam traduções distintas, uma para cada seita, não sabia? - acrescentou, e em seguida correu escada acima sem voltar a vista atrás.

Ninguém se incomodou em descer à sala de jantar à hora do almoço. Ramsay permaneceu no gabinete. Vita atendeu sua correspondência; Tryphena manteve seu duelo em privado, e Clarice entrou na sala de música e tocou a "Marcha Fúnebre" de Saul de Haendel ao piano.

Teria representado um alívio pensar que a tragédia ficaria como um mistério sem resolver, algo sobre o qual nunca se conheceria a verdade. Mas Dominic conservava uma vivida lembrança de sua passada relação com o Pitt que lhe impedia de alimentar essa ilusão. Pitt tinha partido, mas investigaria as provas, os detalhes, e possivelmente aspectos que a ninguém tinham ocorrido. Examinaria o cadáver. Veria a marca nas sapatilhas, e cedo ou tarde descobriria a mancha no chão da estufa. Saberia que Unity tinha entrado ali para ver Mallory. Interrogaria e raciocinaria até averiguar por que.

Atuaria com cautela, mas sondaria até o último detalhe da vida em Brunswick Gardens. Traria a luz todas as discussões entre Ramsay e Unity; desvelaria as fraquezas pessoais de ambos, todas as faltas menores que acaso não guardassem relação alguma com a morte de Unity mas fossem dolorosas e estivessem por isso mesmo melhor escondidas.

Dominic estava só na biblioteca. Fechou os olhos e acreditou achar-se de novo no Cater Street dez anos atrás, percebendo o comichão do medo no ar.

Recordou com uma pontada de vergonha que por então Charlotte estava apaixonada por ele. Em realidade, Dominic não o tinha notado até que era muito tarde. Pitt sabia.

Dominic o tinha adivinhado em seu olhar. Um resto de aversão ainda perdurava.

Cater Street parecia pertencer a outro mundo. Muitas coisas tinham ocorrido depois, coisas boas e más. Mas nesse momento Dominic tinha a sensação de estar outra vez ali, dez anos mais jovem, mais arrogante, mais assustado. Casado com Sarah; todos atemorizados pelo Verdugo, que tinha assassinado uma e outra vez na vizinhança. Olhando-se uns aos outros, albergando dúvidas e suspeitas, falando de fraquezas e enganos que teria preferido não conhecer mas não podia já esquecer. Naquela ocasião Pitt, com sua natural perseverança, descobriu tudo até obter a resposta. Agora voltaria a fazê-lo. E Dominic novamente tinha medo, tanto da resposta em si como de tudo o que sairia à luz no processo de descobri-la sobre ele e sobre aquelas circunstâncias de seu passado que preferiria esquecer. A existência ali, em casa dos Parmenter, era mais suportável, porque o viam como ele desejava ver-se: jovem em sua vocação, cometendo algum ou outro engano, mas entregue de todo coração. Só Ramsay conhecia sua anterior vida.

Sem tomar uma decisão consciente, Dominic se dirigiu para o fundo do vestíbulo e cruzou a porta das dependências dos criados. Posto que Ramsay estava no gabinete e não se achava em situação nem com o ânimo necessário para fazê-lo, talvez correspondesse a Dominic tranqüilizar, reconfortar e recordar suas obrigações aos criados. Mallory não parecia disposto a ocupar-se disso, e estava à corrente dos sentimentos suscitados por sua conversão ao "papismo", como o chamavam os membros da criadagem. apesar de conhecer o Mallory desde sua infância, alguns dos criados mais devotos o consideravam uma traição.

Talvez esse mesmo fato acentuava o rechaço.

A primeira pessoa que encontrou foi o mordomo, um homem de meia idade, em geral tranqüilo, que governava a casa com um paternalismo sob o qual se escondia uma extraordinária disciplina. Aquele dia, entretanto, estava em extremo alterado enquanto, sentado na despensa, verificava e voltava a verificar o estoque, tendo contado já três vezes as mesmas coisas e vendo-se incapaz de recordar nada.

—Bom dia, senhor Corde - saudou, recebendo a interrupção com manifesto alívio. ficou em pé. —No que posso lhe servir, senhor?

—Bom dia, Emsley - respondeu Dominic, fechando a porta ao entrar. —Vim ver como andam os ânimos dos criados depois dos acontecimentos desta manhã.

Emsley moveu a cabeça em um gesto de desolação.

—Não consigo compreendê-lo, senhor. ouvi o que contam, mas me parece impossível. servi nesta casa durante trinta anos, desde antes de nascer o senhor Mallory, e resisto a acreditar, digam o que digam Stander e Braithwaite.

—Sente-se - convidou Dominic, e ocupou a outra cadeira para que Emsley não se sentisse obrigado a ficar de pé.

—Antes veio o sargento, senhor - prosseguiu o mordomo, aceitando sentar-se agradecido. —Fez muitas perguntas que pareciam absurdas. Nenhum de nós sabia nada. - Apertou os lábios.

—Ninguém da criadagem estava perto da escada? - Dominic não sabia que resposta preferiria ouvir. Tudo aquilo era um pesadelo do que pelo visto não podia despertar.

—Não, senhor - disse Emsley com expressão sombria. —Eu estava repassando umas contas com a senhora Henderson no aposento dela. Necessitamos mais roupa de cama. É curioso que tudo pareça desgastar-se ao mesmo tempo. Ao menos uma dúzia de lençóis, e do melhor fio irlandês. Assim e tudo, nada dura eternamente, suponho.

—E a cozinheira? - perguntou Dominic, procurando empregar um tom diferente de que devia ter usado a polícia.

Emsley negou com a cabeça.

—Na cozinha. E todos seus ajudantes estavam ali ou na copa. Quanto a outros, James limpava as facas; Lizzie acendia o fogo no salão principal; Rose acabava de dar a volta aos colchões e trocar as camas e tinha descido à lavanderia com os lençóis sujos; Margery lustrava os vasilhames de latão na mesa da copa; e Nellie tirava o pó na sala de jantar.

Era absurdo pensar que algum membro da criadagem pudesse ter empurrado Unity pela escada, mas ao fim e ao cabo não o era menos conceber a possibilidade de que o tivesse feito Ramsay.

—Tem certeza? - perguntou, e ao ver a expressão de vulnerabilidade no rosto do mordomo, desejou achar alguma maneira de explicar-se-. Ninguém poderia ter visto ou ouvido algo e ter medo de dizê-lo?

—O sargento perguntou isso mesmo - disse Emsley com pesar. —Não, senhor Corde. Sei quanto demora uma criada em lustrar o latão. Me teria dado conta se tivesse interrompido sua tarefa. E se Rose ou Nellie não tivessem estado onde disseram, a senhora Henderson saberia.

—E a criada? Como se chama? Gwen?

—Estava repreendendo o engraxate - informou Emsley com um fugaz sorriso. —Da cozinha os ouvia claramente. Nenhum de nós sabe o que passou. Tomara soubéssemos. - Moveu a cabeça, desconsolado. —Tem que haver uma explicação melhor que a que acharam. Conheço reverendo Parmenter desde antes de casar-se, senhor. Essa senhorita Bellwood foi um equívoco, não me importa dizê-lo. Eu não gostei desde o começo. Em minha opinião, as mulheres, e mais ainda dessa idade, deveriam ficar à margem de qualquer reflexão séria em questões de religião. - Emsley olhou ao Dominic com semblante circunspeto. —Não me interprete mal, senhor Corde. Acredito que as mulheres podem ser tão religiosas como qualquer homem, possivelmente mais ainda, em certos sentidos. Possuem ingenuidade e pureza, ao menos as melhores. Mas não são feitas para o estudo dos aspectos profundos, e quando se dedicam a isso, no final há sempre complicações. Mas, claro está, o reverendo Parmenter desejava agir com justiça. Sempre foi um homem justo, e aberto a qualquer possibilidade, talvez um pouco muito aberto, o pobre. - Observou Dominic com inquietação. —Pode você ajudá-lo, senhor? trata-se de um assunto muito grave, e lhe asseguro que não sei o que pensar.

Dominic estava tão confuso como ele. Mas sua missão era oferecer consolo, não buscá-lo.

—Concordo com você, Emsley. - Fez o esforço de sorrir. —Tem que haver outra explicação. - levantou-se antes que Emsley tentasse lhe surrupiar qual podia ser, a seu julgamento, essa explicação. —Como se encontra a senhora Henderson?

—Ah, muito afetada, senhor. Como todos. E isso apesar de ninguém lhe ter muita simpatia a pobre senhorita Bellwood. Às vezes chegava a ser uma mulher francamente difícil. Desconcertava às pessoas com suas idéias.

—Ah, sim?

—Sim, senhor, certamente. Zombava de nossas orações.... sempre muito correta, nunca abertamente, mas deixando cair comentários que preocupavam às pessoas. - Contraiu o rosto em uma expressão aflita. —Uma vez encontrei Nellie desfeita em lágrimas. Sua avó acabava de falecer, e a senhorita Bellwood fez certas observações sobre as idéias do senhor Darwin. A pobre Nellie ficou convencida de que sua avó não iria ao céu depois de tudo.

—Não estava informado disso - se apressou a dizer Dominic. Era sua obrigação saber. Se alguém sofria pela perda de um ser querido ali, naquela mesma casa, como podia estar tão cego para não vê-lo? Se era incapaz de reconfortar às pessoas mais próximas, qual era sua função? —Ninguém me informou.

—Não, claro que não, senhor - respondeu Emsley com serenidade. —Por nada do mundo o incomodaríamos com nossas preocupações. A senhora Henderson teve um bate-papo com o Nellie. Uma boa cristã, a senhora Henderson, e não outra dessas charlatãs de hoje em dia. Nellie se tranqüilizou depois disso. Bastou evitar à senhorita Bellwood, e se acabou a estupideze.

—Compreendo. Mesmo assim, gostaria de sabê-lo.

Dominic se desculpou e foi falar com outros criados, um por um. Dedicou algo mais de tempo a Nellie, em compensação por sua anterior inadvertência.

Entretanto, não demorou para dar-se conta de que seus esforços eram desnecessários. Fossem quais fossem as palavras que a senhora Henderson lhe tinha dirigido, tinham sido mais que suficientes. Nellie não albergava a menor incerteza a respeito da natureza e a existência de Deus, nem duvidava de que, em seu devido tempo, Ele perdoaria seus pecados inclusive Unity Bellwood, que,no julgamento do Nellie, deviam ser muitos.

—Eram muitos, seus pecados? - perguntou Dominic com ingenuidade. —Possivelmente não a conhecia tanto como eu achava.

—Você queria pensar bem dela, senhor - respondeu Nellie com um gesto de assentimento. —É seu trabalho. Mas não é o meu. Eu a via tal como era. Tinha na cabeça idéias espantosas, essa mulher. Isso no mínimo. Agora se terá dado conta de seu equívoco, a pobre desventurada. Mas o fez passar mal o senhor Mallory, isso certamente. ria dele descaradamente. - Meneou a cabeça em um gesto de repulsa. —Nunca entendi por que a tinha tomada com ele. Devia ser por sua religião, suponho. - Para ela, isso explicava tudo. Era um fato estranho, e não cabia esperar que ninguém o entendesse.

Deixou Nellie e seguiu com suas pesquisas, mas nenhum dos criados pôde ajudá-lo, exceto no sentido mais negativo. Na hora de produzir-se o trágico acontecimento - as dez menos cinco, como tinha podido estabelecer-se com toda exatidão -, todos estavam em situação de demonstrar seu paradeiro, e nenhum se achava perto do alto da escada. Nesse momento só se achavam no piso de cima a senhorita Braithwaite e o valete, Stander, e ambos deveriam ter passado em frente à porta do gabinete para chegar ao patamar.

Era possível que com efeito Ramsay a tivesse empurrado? Acaso a contínua erosão de sua segurança em si mesmo e de sua fé arraigada na realidade lhe tinha produzido tal desgaste ao longo das semanas e meses que ao final, de repente, tinha perdido o controle e arremetido contra sua torturante, contra a voz que o tinha despojado de suas velhas certezas, do sentido mesmo do trabalho de toda uma vida? Tanto tinha perdido o contato com as realidades da fé, do espírito humano, da emoção vivida, que seu desespero o tinha privado até do último vislumbre de sensatez?

Dominic entrou de novo no vestíbulo da cozinha e dependências do serviço. Apesar da exótica decoração, era muito acolhedor, e ao mesmo tempo muito funcional, com seu cabideiro de guarda-chuvas para lhe recordar-se o clima inglês e os aspectos práticos dos passeios sob a chuva. O alto relógio de pé dava geralmente os quartos de hora, advertindo da necessária pontualidade cotidiana. Agora, logicamente, o carrilhão tinha sido embainhado para anular seu som, por respeito à presença da morte na casa. No console encostado à parede estava a bandeja dos cartões de visita. O cabideiro se erguia em um canto, junto às arcas onde às vezes se guardavam as mantas de viagem. O espelho, destinado aos habituais retoques do último momento, refletia a luz. A varinha da janela de guilhotina - usada pelo lacaio para correr a folha superior, o cordão da campainha, o aparelho de telefone discretamente situado em um canto.... tudo isso parecia tão ancorado na prudência. Inclusive a palmeira era normal e comum, muito grande possivelmente, mas em definitivo como as que adornavam milhares de casas inglesas. Quanto ao biombo e o mosaico do chão, tão acostumado estava Dominic a eles que mal lhes prestou atenção.

Subiu lentamente pela escada, apoiando-se no corrimão negro de madeira.

Tudo voltava a ser como no Cater Street. Dominic descobriu-a si mesmo pensando em outros e perguntando-se se seus sentimentos diferiam totalmente de suas palavras, da fachada que mostravam. Enquanto subia degrau a degrau, as suspeitas tomavam forma em sua imaginação. A atitude de Mallory com respeito à Unity parecia incoerente. Recordou as pequenas crueldades a que ela o submetia. Mallory deveria tê-la detestado por essas coisas, ou no mínimo tê-la desprezado. E entretanto, pelo visto, afastou-se de seu habitual comportamento para agradá-la com favores. Era assim como Mallory lutava contra suas próprias emoções, como tentava ser a pessoa que achava que devia ser?

Também Vita provavelmente tinha se aborrecido com Unity em mais de uma ocasião. Sem dúvida tinha notado como minava ela o aprumo e a felicidade de seu marido e seu filho. Mas Vita e Tryphena eram os dois membros da família que de modo algum podiam ter empurrado Unity. No momento do fato, as duas estavam no andar térreo. Lizzie tinha jurado. E além disso, quanto a Tryphena, nunca teria causado o menor ferimento à Unity. Era a única pessoa da casa que lamentava sinceramente sua morte.

Era Tryphena com quem Dominic se propunha falar a seguir. Aparentemente, ninguém mais lhe oferecia compreensão. Como era até certo ponto lógico, todos se achavam consumidos por seus próprios temores.

Unity tinha discutido com Clarice várias vezes, mas sempre por uma questão de idéias, sem violência nem alusões a sentimentos pessoais ou necessidades importantes. Suas disputas se mantinham na superfície do intelecto.... ou ao menos essa impressão dava. Também era isso possivelmente uma mera aparência?

Dominic bateu na porta do quarto de Tryphena.

—Quem é? - perguntou ela de dentro com tom hostil.

—Dominic.

Depois de uns segundos de silêncio, a porta se abriu. Tryphena estava despenteada, pendendo em torno de sua cabeça as mechas de cabelo desprendidos das forquilhas. Tinha os olhos debruados e não se esforçava em dissimular o fato de que tinha estado chorando.

—Se tiver vindo para tentar me convencer que mude de opinião a respeito de meu pai ou disposto a defendê-lo, perde o tempo. - Elevou ainda mais o queixo. — Morreu minha amiga, a pessoa que mais admirei de quantas conheci. Era uma viva luz de sinceridade e valor em uma sociedade obscurecida pela hipocrisia e a opressão, e não vou consentir que alguém apague essa luz sem que ninguém eleve uma voz de protesto. - Lançou um olhar de ira a Dominic como se já o tivesse julgado e declarado culpado.

—Vim ver como está - disse ele com calma.

—Ah. - Tryphena tratou de sorrir. —Sinto muito. - Abriu a porta da saleta de estar que compartilhava com Clarice. —Mas não me exorte. - Guiou-o ao interior da saleta e o convidou a tomar assento. —Agora seria incapaz de digerir um sermão. Constam-me suas boas intenções, mas não resistiria.

—Não desejaria ser tão insensível para isso - respondeu ele com franqueza, esboçando ao mesmo tempo um leve sorriso. Conhecia parte de seu descontentamento com o que ela considerava o tédio e a condescendência da Igreja. Dominic não tinha chegado a conhecer o Spencer Whickham - o marido e a viuvez de Tryphena eram anteriores a sua relação com a família-, mas tinha ouvido falar dele por Clarice e visto refletido em Tryphena de uma dúzia de maneiras distintas a dor que lhe tinha causado. Sem sequer ser consciente disso, seu finado marido havia possuído ao que parecia uma fanfarronice e uma agressividade inatas. Não era estranho que Tryphena tivesse desenvolvido tão veemente admiração por Unity, que tinha tanto a vontade como as armas para lutar ali onde via dominação masculina e contra tudo aquilo que via como injustiça. Com delicadeza, Dominic perguntou: —Posso dizer algo que lhe sirva de ajuda? Inclusive que havia muitos traços em Unity que admirava? Tryphena o olhou surpreendida, enrugando a fronte e mal conseguindo conter o pranto.

—Ah, sim?

—É claro.

—Sinto-me tão sozinha. - Atrás de suas palavras se traduzia ira e dor. —Os outros estão todos horrorizados, sem dúvida, mas temem em realidade por si mesmos. - Agitou as mãos com fúria. Era um gesto cheio de desprezo. —Aterroriza-os que se produza um escândalo porque nosso pai cometeu uma ação monstruosa. Claro que se produzirá! A menos que todos fiquem de acordo para guardar silêncio. Isso é precisamente o que poderia ocorrer, não, Dominic? – Era uma pergunta, mas Tryphena prosseguiu atropeladamente sem esperar a resposta. A tensão de seus ombros se percebia através do tecido do vestido, estampado de flores. Ainda não tinha pensado em vestir-se de negro. - Isso é o que estão tramando neste mesmo instante. enviaram esse policial importante do Bow Street, que está muito longe daqui, só para poder mantê-lo em segredo. - Moveu a cabeça em um gesto de assentimento. —Já o verá. Em qualquer momento se apresentará aqui o bispo exibindo falsa aflição e concentrando-se em como resolver o assunto de uma maneira discreta, fazê-lo passar por um acidente; e então todos respirarão aliviados. Unity será esquecida para que assim eles se livrem da vergonha. –Virtualmente cuspiu a última palavra. —Muito pregam sobre Deus, a verdade e o amor, mas pensarão só em salvar as aparências e fazer o que for mais conveniente. - Voltou a elevar uma mão com brutalidade, e as lágrimas se derramaram por suas faces. —Sou a única que realmente sentia apreço por ela, pela pessoa que era.

Dominic não a interrompeu. Tryphena precisava desafogar-se sem que ninguém lhe contrariasse. E para falar a verdade, Dominic temia que os receios dela não fossem de todo infundados. Certamente era a única aflita por Unity mais que pela situação. Dominic não estava disposto a ofendê-la, a degradá-la, tentando desmentir suas suspeitas.

Tryphena engoliu a saliva.

—Você não imagina pelo que teve que passar. - Era uma acusação, e através das lágrimas que empanavam seus olhos azuis lançou a Dominic um olhar desafiante e severo. —Não sabe quanto teve que lutar para que lhe permitissem aprender e que a aceitassem, nem a coragem que se requeria para isso. Para você foi tudo muito fácil. É um homem, e ninguém lhe diz que não foi criado para ter inteligência. – sorveu-se o nariz com fúria. —As pessoas não conspiram às escondidas para excluí-lo, não cruza a suas costas olhares e gestos, acordos tácitos. Simplesmente não tem a menor idéia do que é isso. - Agora sua cólera nascia da frustração e amargura —Unity era conflitiva. Jogava nos rosto dos homens alguns de seus preconceitos, o medo e a opressão que exercem sem sequer sabê-lo. - Apertou os punhos. —Estão tão convencidos de sua superioridade moral que às vezes lhe bateria. No fundo de seus corações, todos se alegram de que tenha morrido, porque expor dúvidas violentava-os. Obrigava-os a se olhar a si mesmos, e vocês não gostavam do que viam.... porque viam uns hipócritas. Deus santo! Nunca me senti tão sozinha!

—Sinto muito - disse Dominic com toda a franqueza possível. Em sua opinião, Tryphena estava profundamente equivocada; parecia ter contraído as paixões de Unity como se, se tratasse de um contágio. Mas seus sentimentos eram autênticos, a esse respeito Dominic não albergava a menor duvida, e nisso se concentrou. —Vejo que sofre sua perda com maior sinceridade que o resto de nós. Possivelmente seja capaz de prosseguir seu trabalho na defesa dessas idéias e crenças.

—Eu? - Em um primeiro momento Tryphena pareceu surpreendida, mas logo a perspectiva não lhe desagradou de todo. —Não estou preparada para isso. Minha formação se reduz à costura, a pintura e a supervisão de uma casa. - Contraiu o rosto em uma careta de indignação. —Desde que dispuser de uma governanta e uma boa cozinheira, naturalmente. Foi Clarice quem estudou.... e nada menos que teologia entre todos os inúteis passatempos aptos para uma jovem. Acredito que o fez só para agradar a meu pai e para demonstrar que era mais inteligente que Mallory.

—Não aprendeu francês no colégio?

—Tive uma preceptora francesa durante um tempo. Sim, claro que falo francês. Mas, pelo amor de Deus, isso não tem utilidade alguma! Não há textos antigos ou teológicos escritos em francês.

—Não serviria por igual qualquer ramo do saber para triunfar e reivindicar essas mesmas questões em relação às mulheres?

Os olhos da Tryphena cintilaram de fúria.

—É isso o que devo fazer? Vai dizer me agora que a morte de Unity faz parte dos planos de Deus, que nossa missão é aceitar mas não compreender? Tudo me será explicado quando subir ao céu?

—Não, não ia dizer isso - replicou Dominic com tom cortante. —Não lhe interessa ouvi-lo, e em qualquer caso duvido que seja verdade. No meu entender, a morte de Unity faz parte de algum plano muito humano, e não guarda a menor relação com Deus.

—Pensava que Deus era onipotente - comentou ela com ironia, e estendendo o braço, acrescentou: —O que significa que tudo isto é culpa Dele.

—Quer dizer que Deus é como um titiritero que dirige as cordas de todo o mundo?

—Suponho que sim.

—Por que? -perguntou Dominic.

Tryphena o olhou com o sobrecenho franzido.

—Como?

—Por que? - repetiu ele. —Por que ia Deus ter o trabalho? Me parece muito uma atividade sem nenhum sentido, e muito solitária.

—Não sei por que! - Tryphena começava a exasperar-se, e sua voz subiu de volume e adquiriu um timbre agudo. —O ajudante é você, não eu. É você quem acredita em Deus. lhe pergunte. Acaso não lhe responde? - Estava furiosa, mas agora ressoava em suas palavras um tom triunfal. —Possivelmente não lhe falou bastante alto?

—Isso depende do longe que Deus esteja - replicou Clarice, entrando pela porta. —Eu a ouvia desde o primeiro lance da escada.

—Que insinúa? - perguntou Tryphena, irada, a sua irmã. Estava indignada pela intromissão. —Que Deus vive no primeiro lance da escada?

—Não acredito - respondeu Clarice, torcendo o gesto. —Se assim fosse, teria detido Unity antes de chegar abaixo, e a pobre só teria feito um entorse de tornozelo em lugar de quebrar o pescoço.

—Deus santo! - exclamou Tryphena, e dando meia volta, saiu apressadamente pela porta do lado oposto da saleta e fechou com tal violência que tremeram os quadros das paredes.

—Não deveria ter dito isso - admitiu Clarice, arrependida. —Nunca sei quando devo morder a língua. Sinto muito.

Dominic não sabia o que dizer. Pensava que se acostumara já à irresponsável idéia do humor que Clarice tinha, mas de repente descobriu que não era assim. Uma parte dele desejou pôr-se a rir, a modo de válvula de escape para a dor e a ansiedade, mas obviamente teria sido em extremo inapropriado.... ou desconcertante, de fato. Sentiu-se culpado por não demonstrar de maneira mais contundente sua desaprovação.

—Isso esteve muito mal, Clarice - disse com aspereza. —foi muito desconsiderado de sua parte. A pobre Tryphena sente sincero pesar pela morte de uma amiga, e não simplesmente consternação e temor como o resto de nós.

Clarice fez uma careta, manifestando claramente sua tristeza. Voltou o rosto para que ele não a visse.

—Sim, sei. Tomara pudesse eu dizer que apreciava Unity, mas não era assim. Aterra-me o que possa lhe passar a meu pai, e o medo me leva a falar sem pensar. - Respirou fundo. —Não, não é o medo. Em realidade, sim penso nas coisas... e as digo de todos os modos. É simplesmente minha maneira de ser. - de repente tinha aparecido em sua voz um tom desafiante. Voltou-se de novo para ele e o olhou no rosto. —Pergunto se devemos nos vestir todos de negro para o jantar. Por minha parte, acredito que será o mais conveniente. - Imediatamente acrescentou: —Mas não penso guardar um ano de luto. Um dia é sinal de boa educação; um ano é uma hipocrisia. Nego-me a agir hipócritamente. Melhor será que vá ver se Braithwaite me encontra algo para eu pôr. - Fez um gesto de indiferença e deu meia volta para partir.

Durante o jantar, a tensão foi evidente. Ramsay permaneceu em seu quarto, e ninguém na sala de jantar tinha a menor idéia de se tinha provado ou não a comida que lhe subiram. Sentados ao redor da longa mesa de mogno, permaneceram em silêncio a maior parte do tempo. Os criados serviam os pratos e voltavam a levá-los quase intactos. Vita tratou de iniciar uma conversa corriqueira, mas não recebeu apoio de ninguém.

—A cozinheira se ofenderá - comentou Tryphena, vendo recolher os pratos cheios. —Para ela, a comida é a solução a qualquer problema.

—Bom, a verdade é que não comer em nada ajuda, a menos que se tenha uma decomposição de ventre - indicou Clarice. —Ou outras coisas que é de mau gosto mencionar. Estar fraco não serve de nada. Como tampouco serve ficar em claro toda a noite.

—Ninguém ficou em claro toda a noite - disse Mallory com paciência —ocorreu hoje pela manhã. E se esta noite ficamos em claro, será porque a angústia e a preocupação não nos deixam dormir. Deus sabe o que acontecerá agora.

—Claro está - resmungou Clarice.

—Claro está o que? - Mallory a olhou fixamente. —O que sabe? De que fala? Soube de algo?

—Claro está que Deus sabe - explicou Clarice com a boca cheia de pão. —Não se supõe que Deus sabe tudo?

—Por favor! - interrompeu-os Vita com severidade. —Não falemos na mesa de nossas idéias sobre Deus. Pensava que esse tema já nos tinha causado suficientes transtornos, e que estaríamos todos de acordo em deixá-lo de lado indefinidamente.

—Nem sequer entendo por que nos incomodamos em tratar de falar. – Tryphena percorreu os outros com o olhar. —Nenhum de nós sabemos o que dizer, e em qualquer caso estamos todos muito absortos em nossos próprios pensamentos. Não diremos nada que pensemos realmente.

—Tentamos conversar porque é o mais civilizado - respondeu Vita com firmeza. —Aconteceu algo espantoso, mas seguiremos adiante com nossas vidas com a coragem e a dignidade que cabe esperar. E por outra parte, Tryphena, querida, se admirava tanto à Unity como parece, tem que saber que ela seria a última em querer que abandonássemos às emoções. Não tinha tempo para condescer com as fraquezas.

—A menos que fossem as suas - apostilou Clarice em um sussurro.

Dominic a ouviu, confiando em que não a tivesse ouvido ninguém mais. Estendeu uma perna para o lado e, com força, deu um pontapé em Clarice por debaixo da mesa.

Ela abafou um gemido quando a ponteira do sapato entrou em contato com seu tornozelo, mas teve a sensatez de calar-se.

—Amanhã, naturalmente, farei as habituais visitas aos paroquianos – anunciou Dominic. —Tem alguém algum recado que me encarregar?

—Obrigado - disse Vita. —Certamente necessitaremos de várias coisas. Se o armarinho lhe cair de passagem, poderia trazer fita negra.

-Sim, é claro. Quanta?

-Uns doze metros, diria.

Dominic pensou em alguma outra coisa normal que dizer, mas não lhe ocorreu nada. Tudo lhe parecia muito forçado e insensível. Percebeu que Tryphena o olhava com aversão, e que Mallory permanecia calado com toda intenção. Pelo visto, correspondia a ele e a Vita manter viva a conversa para que o silêncio não se fizesse insuportável.

- Amanhã escreverei as cartas oportunas - prosseguiu Vita, olhando atentamente ao Dominic do outro lado da mesa. —Consultarei antes Ramsay, claro está, mas nas atuais circunstâncias possivelmente considerará mais conveniente que você seja quem se informe a respeito das formalidades.

—Mamãe, todos conhecemos de sobra as formalidades! - prorrompeu Mallory, levantando de repente a cabeça. —Virtualmente nascemos na igreja. Conhecemos os rituais eclesiásticos de cor.

—Não refiro a essa classe de formalidades, Mallory - corrigiu Vita. —Falo do delegado Pitt.

Mallory se ruborizou e não disse uma palavra mais, concentrando-se no prato apesar de mal provar a comida.

Desta vez se produziu um silêncio definitivo. Vita olhou ao Dominic, mas com resignação. Quando teve ocasião de escapar sem incorrer em uma descortesia, e consciente de que não podia adiar mais, Dominic abandonou a sala de jantar e subiu ao gabinete.

Se vacilasse um só instante, não acharia a coragem necessária para fazê-lo. Se a vocação que achava possuir era real, certamente nenhuma situação excederia sua capacidade de confrontar os fatos com honradez e certo grau de amabilidade.

Bateu na porta. A resposta foi imediata:

—Adiante.

Já não podia voltar atrás. Abriu a porta. Ramsay estava sentado em sua escrivaninha. Deu a impressão de que sentia alívio ao reconhecer Dominic.Talvez temesse mais um encontro com alguém de sua família.

—Entre, Dominic. - Indicou-lhe uma das outras cadeiras, colocou um pedaço de papel entre as páginas do livro que estava lendo e o fechou. —Foi um dia sinistro. Como se encontra?

Dominic se sentou. Era difícil achar uma maneira de começar. Ramsay agia como se tivesse ocorrido um mero acidente doméstico e as acusações da Tryphena fossem só fruto de sua dor.

—Admito que estou consternado - disse Dominic com franqueza.

—Como não ia estar? - concordou Ramsay, enrugando a testa e brincando com um lápis que tinha entre as mãos. —A morte causa sempre uma funda comoção, sobre tudo quando falece uma pessoa tão jovem e que víamos diariamente. Às vezes Unity Bellwood punha a prova a paciência dos outros, mas ninguém lhe teria desejado uma coisa assim. Lamento que tenha ocorrido apenas um momento depois de discutir com ela. - Olhou para Dominic nos olhos. —Isso deixa um sentimento de culpa porque é já irreparável. É absurdo, já sei. - Apertou os lábios. —A razão me diz que tais sentimentos carecem de sentido, mas não consigo escapar à tristeza. - Suspirou. —Receio que Tryphena vai tomar o muito mal. Sentia um grande carinho por ela. Eu não o aceitava, mas nada podia fazer. - Estava cansado, como se tivesse lutado durante muito tempo e o final não estivesse ainda à vista, ou certamente não a vitória.

—Sim, tomou muito mal. - Dominic moveu a cabeça em um gesto de assentimento. —E sente uma grande indignação.

—-Uma parte habitual da dor. Passará. - Falava com convicção, mas ao mesmo tempo não parecia achar consolo nisso. Sua certeza não incluía a esperança em tempos melhores.

—Não sabe quanto o lamento - disse Dominic impulsivamente. —Desejaria poder dizer algo que desse sentido a esta situação, mas só sou capaz de repetir as palavras que você me dirigiu em meus momentos de maior desespero. — Aquilo o comovia ainda profundamente. —Exponha-se as coisas dia a dia, aferre-se à fé que agora tem, seja muita ou pouca, e aumenta-a, por devagar que seja, por pequeno que seja cada novo passo. Não pode retroceder. Tenha a coragem de ir adiante. Ao final de cada dia, elogie-se pelo que conseguiu e depois relaxe.... descansa e conserva a esperança. Nunca perca a esperança.

Ramsay sorriu tristemente, mas seu olhar refletiu ternura.

—Isso lhe disse?

—Sim.... e eu acreditei em você , e graças a isso me salvei. - Dominic o recordava com toda clareza. Fazia já quatro anos. De certo modo, parecia-lhe como se tivesse sido ontem, e ao mesmo tempo o via como algo muito longínquo, como algo ocorrido em outra vida em que se convertera em outro homem, um homem completamente diferente, com sonhos novos e pensamentos novos. Ansiava poder ajudar ao Ramsay como Ramsay o tinha ajudado a ele, lhe devolver o presente quando mais o necessitava. Escrutinou o rosto do Ramsay mas não achou nele resposta alguma.

—Eu tinha então um tipo de fé diferente - disse Ramsay, fixando a vista além de Dominic como se falasse só. —estudei muito desde que a tese do Charles Darwin se difundiu tanto que já não podia passá-la por alto. - Moveu a cabeça em um leve gesto de negação. —A princípio, faz trinta anos, quando se publicou, era só a teoria científica de um homem. Depois, gradualmente, dava-me conta de que outras muitas pessoas a aceitavam. Agora a ciência parece onipresente, a origem e a solução de tudo. Já não fica mistério, mas só dados que ainda não conhecemos. Sobre tudo, não fica esperança em nada que esteja acima de nós mesmos, nada que seja maior, mais sábio e especialmente mais bondoso que nós. - Por um instante pareceu um menino perdido que de repente compreende o pleno significado da solidão. Dominic o percebeu como uma dor física. —Admiro a certeza que pelo visto tinham os antigos bispos e Santos. Mas já não posso compartilhá-la, Dominic. - Permanecia estranhamente imóvel para as emoções que deviam formar redemoinhos em seu interior. —O furacão de prudência do senhor Darwin levou minha certeza como se fosse papel. Seus raciocínios me obcecam. Durante o dia consulto todos estes livros. - Assinalou as prateleiras com um amplo gesto. —Leio a são Paulo, santo Agostinho, santo Tomas de Aquino, e a todos os teólogos e apologistas posteriores. Inclusive posso me remontar aos originais aramaicos ou gregos, e por um momento me encontro a gosto. Logo, ao cair a noite, volto a ouvir a fria voz de Charles Darwin, e a escuridão envolve todas as velas que acendi com o passar do dia. Juro que daria quanto possuo para que esse homem não tivesse nascido.

—Se ele não tivesse postulado essas teses, o teria feito outro - indicou Dominic com toda a delicadeza possível. —Era uma teoria já amadurecida para seu tempo. E há nela um fio de verdade. Qualquer granjeiro ou jardineiro lhe poderia confirmar isso extinguem-se velhas espécies e outras se criam, de maneira acidental ou intencional. Isso não significa que Deus não exista.... mas só que emprega meios que podem explicar-se mediante a ciência.... ao menos em parte. Por que teria que ser Deus irracional? Ramsay se reclinou em sua cadeira e fechou os olhos.

—Percebo seus esforços, Dominic, e lhe agradeço isso. Mas se a Bíblia não é a verdade, não temos fundamento algum, mas só sonhos, desejos, lendas formosas, mas que em última instância não são mais que contos de fadas. Devemos continuar pregando-as porque a maioria das pessoas acredita nelas.... e ainda mais importante, necessita-as. -Voltou a abrir os olhos. —Mas é um gorado consolo, Dominic, e não encontro nele a menor satisfação. Possivelmente por isso odiava Unity Bellwood, porque no mínimo a esse respeito tinha razão, até se, se equivocava em todo o resto, especialmente quanto a sua moralidade.

Dominic teve a sensação de ter engolido gelo. Transparecia em Ramsay uma amargura que nunca antes tinha visto, uma profunda confusão que não era fruto só do cansaço ou comoção causada pela morte e acusações, um temor mais antigo que qualquer dos acontecimentos que aquele dia tinha proporcionado. Era a perda íntima da fé, o núcleo de esperança que subjaze na razão. Pela primeira vez se viu obrigado a admitir a possibilidade de que Ramsay tivesse matado realmente Unity. Já não parecia pertencer à esfera do inconcebível o fato de que o último ataque de Unity contra sua fé tivesse sido a gota que enche o copo, e Ramsay, incapaz de controlar-se por causa de sua sensação de perda, tivesse atacado contra Unity, e ela tivesse escorregado e rodado escada abaixo em uma queda mortal. Era um horrendo infortúnio. Poderiam ter discutido centenas de vezes e chegado inclusive à agressão física sem que se produzissem lesões de gravidade.

Possivelmente devido à inocência mesma de suas intenções, Ramsay não se deu conta de que aquilo era no mínimo um homicídio... e o final de sua carreira. Mas distava ainda muito de ser um assassinato. Como podia Dominic lhe oferecer ajuda?

O que podia dizer para transpassar o muro de desespero atrás do qual se achava Ramsay?

—Ensinou-me que a fé é algo próprio do espírito, da confiança, não do conhecimento - disse.

—Isso acreditava então -respondeu Ramsay, e riu sarcásticamente. Olhou Dominic nos olhos. —Agora estou apavorado, e nem toda a fé do mundo me serviria de ajuda. Esse condenado policial pensa, pelo visto, que alguém empurrou Unity, e que se trata de um assassinato. - inclinou-se sobre a escrivaninha com semblante sério. —Eu não a empurrei, Dominic. Não saí daqui até depois de sua morte. Custa-me imaginar que algum dos criados...

—Não foi nenhum deles - confirmou Dominic. —Todos estavam à vista de alguém ou realizavam tarefas que podem demonstrar.

—Nesse caso só pôde ser algum membro desta família... ou você. E só a idéia é espantosa. Embora tenha perdido a fé, como se tivesse despertado de um sonho, continuo acreditando que a bondade é algo real, que a ajuda ao próximo em seus momentos de angústia sempre será um bem precioso e duradouro. Você é meu único êxito autêntico, Dominic. Quando penso que fracassei, lembro-me de você e sei que minha vida não foi um fracasso.

Dominic se sentia desconfortável. Tinha subido ao gabinete com a intenção de falar com Ramsay com franqueza, deixar de lado as habituais cortesias e trivialidades atrás das quais se ocultava a verdadeira emoção, e uma vez feito, não sabia como confrontá-lo. Aquela nua avidez de consolo o violentava; era um assunto pessoal, uma dívida entre eles. Ramsay tinha estendido a mão ao Dominic e o tinha tirado do pântano do desespero, um pântano que ele mesmo tinha criado. Agora Ramsay necessitava dessa mesma ajuda, precisava saber que não tinha fracassado, que Dominic era tal como ele tinha desejado que fosse. E temia que Dominic tivesse matado ao Unity Bellwood. E compreenderia seus motivos.

—E Mallory é meu filho - prosseguiu Ramsay. —Como poderia suportar a suspeita de que foi ele?

Devia Dominic lhe recordar que tinha sido seu nome, ou para ser exato seu tratamento -"reverendo"- e não "Dominic" nem "Mallory" o que Unity havia dito a gritos antes de morrer? As palavras foram a seus lábios, mas foi incapaz de pronunciá-las. Era inútil. Ramsay não a tinha matado. E se não tinha sido ele, ficava só Mallory... ou o impensável: Clarice. Ninguém mais tinha tido oportunidade de fazê-lo.

—Deve haver algum detalhe que lhes passou por cima - disse Dominic, abatido-. Se... se houver algo que possa fazer para ajudar, conta comigo, por favor. Qualquer tarefa...

—Obrigado - se apressou a dizer Ramsay. —Acredito que possivelmente, dadas as circunstâncias, deveria se ocupar você dos preparativos do funeral. Poderia começar com isso amanhã. Imagino que será uma cerimônia muito discreta. Pelo que sei, não tinha família.

—Não.... não, acredito que não...

Aquilo era um disparate. Estavam ali sentados, em um gabinete silencioso, rodeados de papéis e livros, iluminados pelo titilante resplendor do fogo que ardia na lareira, fazendo civilizados comentários sobre os detalhes do funeral de uma mulher sobre cujo homicídio albergavam mútuas suspeitas.

Salvo pelo fato de que Dominic, para seu crescente pesar, achava que Ramsay simplesmente se negava a admitir o ocorrido, seguia comocionado, pela própria morte, pela realidade física desta, e pela realidade espiritual da ação cometida. Talvez isso mudasse de maneira radical no dia seguinte. Talvez Ramsay despertasse com a consciência e o medo das terríveis circunstâncias que aquilo conduziria. Dominic conhecia os receios, os esmagadores horrores que atormentariam a quem vivia naquela casa até que se descobrisse a verdade. Já tinha visto tudo antes, tinha-o sofrido, as relações arruinadas, as velhas feridas reabertas, os maus pensamentos que seria impossível passar por cima, a confiança diminuída dia a dia.

Era difícil recordar que essa situação lhe tinha proporcionado também novas amizades, tinha-lhe permitido achar honra e bondade onde menos esperava. Nesse momento recordava só as rupturas. Ramsay dava instruções sobre a celebração do funeral, e Dominic não tinha ouvido nenhuma só palavra.

 

Charlotte Pitt descansava comodamente no salão com os pés apoiados no tamborete de costura, um agradável fogo na lareira e uma apaixonante novela nas mãos, quando ouviu abrir a porta da entrada. Apesar deque lhe agradasse a volta do Pitt, deixou o livro quase com relutância. Estava em meio de uma dramática cena entre dois amantes.

Jemima desceu pela escada correndo e gritando:

-Papai! Papai!

-Chega cedo - comentou Charlotte quando Pitt se aproximou para beijá-la. Continuando, derrubou sua atenção nas crianças. Jemima lhe contava com entusiasmo o que tinha aprendido aquele dia no colégio sobre a rainha Isabel e a Armada espanhola. Simultaneamente, Daniel tentava lhe falar das locomotivas de vapor e o fantástico trem que queria ir ver ou, melhor ainda, montar nele. Inclusive sabia o preço do bilhete, acrescentou com o rosto resplandecente de esperança.

Transcorreu quase uma hora até que Pitt ficou a sós com Charlotte e pôde pô-la à corrente em relação aos extraordinários acontecimentos de Brunswick Gardens.

—De verdade acha que o reverendo Parmenter perdeu por completo o controle e a empurrou pela escada? - perguntou ela, surpreendida. —Pode demonstrar-se?

—Não sei. - Pitt estirou as pernas e apoiou os pés no guarda-fogo. Era sua postura preferida. Todo inverno lhe chamuscavam as sapatilhas e ela tinha que comprar outras novas.

—Não é possível que simplesmente caiu? - insistiu Charlotte. —Não seria a primeira que cai por uma escada.

—Não, mas quando alguém tropeça ou escorrega não exclama "Não, não!", acompanhado do nome de outra pessoa - observou Pitt. —Além disso, ali não havia nada com o que tropeçar. É uma escada de mogno, sem tapete nem varinhas que possam estar soltas.

—Uma mulher poderia enredar os pés com sua própria saia se a prega se descosturou - disse Charlotte pensativamente. —Não é uma possibilidade?

—Não. Comprovei-o. A prega estava perfeita.

—Ou dar simplesmente um tropeção - prosseguiu Charlotte. —Tinha os sapatos em bom estado? Não havia nada solto ou quebrado? Um salto frouxo, um cordão desatado? Me aconteceu mais de uma vez.

—Nem saltos frouxos nem cordão algum - respondeu ele com um indício de sorriso. —Só uma mancha escura que, conforme averiguou Tellman, provém de uma substância derramada na estufa, e isso significa que Mallory Parmenter mentiu ao declarar que não a tinha visto esta manhã.

—Talvez ele tenha saído um momento da estufa por alguma razão - sugeriu Charlotte. —Pode ser que ela, ao entrar, não o tenha encontrado ali.

—Não, Mallory não se moveu da estufa, ou teria pisado nessa mesma mancha ao sair - esclareceu Pitt. —Tellman também verificou esse detalhe.

—Pode ter isso alguma importância?

—Provavelmente não. Possivelmente signifique só que estava assustado e disse uma mentira estúpida. O não sabia que Unity Bellwood tinha pronunciado umas palavras antes de cair.

—Poderia ela ter gritado "Não, não!" a uma pessoa e depois chamar o reverendo Parmenter pedindo auxílio? - aventurou Charlotte imediatamente. —Quero dizer primeiro "Não, não!" e logo o tratamento dele para que fosse em sua ajuda. Pitt se endireitou parcialmente, aguçando a atenção.

—Poderia ser... poderia ser. Ao menos o terei em conta. O reverendo admite que tiveram uma violenta discussão, mas jura que não abandonou o gabinete em nenhum momento.

—Que motivo poderia ter Mallory para matá-la? - perguntou Charlotte. —O mesmo?

—Não.... vive entregue a sua vocação, ou isso no mínimo parece, e em todo caso não tem dúvidas. -Pitt fixou o olhar no fogo, observando como se assentavam as brasas. Teria que avivá-lo dentro de uns minutos. —Pelo pouco que sei até agora, dá a impressão de que Parmenter atravessa uma crise de fé, e era o questionamento intelectual da religião exposto por Unity Bellwood o que o indignava. Pelo visto, Mallory não padece esse conflito.

—E quem são os outros suspeitos?

Pitt apertou os lábios e olhou Charlotte, ela não conseguiu interpretar a expressão de seus olhos, brilhantes, de um cinza muito claro.

—Quem são os outros? - repetiu Charlotte, notando um estremecimento de apreensão.

—Uma das filhas que tinha certa antipatia a Unity, mas sem grande virulência, pelo que pude apreciar... e o ajudante.

Charlotte descartou à filha. Conhecia o Pitt o suficiente para saber com toda certeza que era o ajudante quem o preocupava.

—Vamos, continue!

Pitt vacilou, como se procurasse a maneira de dizer isso. Tomou ar e o expulsou lentamente.

—O ajudante é Dominic Corde...

Por um fugaz instante Charlotte pensou que se tratava de uma brincadeira de mau gosto, mas em seguida compreendeu que Pitt falava a sério. Sulcava sua fronte

uma profunda ruga que aparecia só quando algo lhe inquietava em extremo e não conseguia entender.

—Dominic! Nosso Dominic! - disse ela.

—Nunca tinha pensado nele como "nosso", mas suponho que é uma forma como outra de dizê-lo - confirmou Pitt. —tomou o hábito.... imagina?

—Dominic?

Parecia impossível. As lembranças assaltaram a Charlotte com a mesma força que se fosse transportada fisicamente dez anos atrás. De repente se viu outra vez no Cater Street, na casa de seus pais, suportando a exasperação de sua mãe porque não se comportava devidamente, nem respirava a pretendentes apropriados.

Charlotte achava que nunca amaria a ninguém salvo ao Dominic. Sentia um grande afeto por sua irmã Sarah, naturalmente, mas também um intenso ciúmes. Depois, com a morte de Sarah, o mundo inteiro mergulhou em um caos. Dominic mostrou suas fraquezas. No prazo de uma semana passou de ser um ídolo de ouro a um ídolo de barro. Charlotte sofreu uma amarga decepção, mesclada com dor e medo. No final aprendeu a amar ao Pitt, não como um sonho ou um ideal mas sim como homem real, humano, às vezes exasperante, falível, desafiante, mas dotado de um valor e uma honradez que Dominic jamais tinha possuído. E quanto ao Dominic, Charlotte tinha desenvolvido uma amizade apoiada na tolerância e certa ternura. Mesmo assim, era incapaz de imaginar Dominic dedicando sua vida à Igreja.

—Dominic é ajudante em casa do reverendo Parmenter? - perguntou erguendo a voz, ainda desconfiada.

—Sim - respondeu Pitt, olhando-a com atenção, escrutinando seu rosto. —Dominic é a outra pessoa que poderia ter matado ao Unity Bellwood.

—Não pôde ser ele! - disse Charlotte imediatamente.

O olhar do Pitt se escureceu.

—Provavelmente não - concordou. —Mas alguém a empurrou.

Charlotte guardou silêncio, procurando outra explicação, algo que desse sentido ao pouco que sabia, que não soasse ridículo e defensivo quando o dissesse, mas não lhe ocorreu nada. Pitt se inclinou e jogou mais carvão ao fogo. Finalmente, depois de vinte minutos sem outro som que o tic tac do relógio, os estalos das brasas e o ruído da chuva contra os vidros da janela, Charlotte abordou outro tema. Sua irmã Emily estava em viajem pela Europa, e em suas cartas da Itália incluía um sem-fim de anedotas e descrições. Falou-lhe da última, escrita de Nápoles, onde descrevia vividamente a baía, o Vesubio e sua excursão a Herculano.

Às onze da manhã seguinte, depois de assegurar-se mediante discretas perguntas de que Pitt se dedicaria a examinar as provas legistas e informar ao Cornwallis, Charlotte desembarcou de um cabriolé de aluguel ante o número dezessete de Brunswick Gardens e puxou o cordão da campainha. Reparou em que as persianas estavam fechadas e havia uma pequena braçadeira de luto na porta.

Inclusive haviam coberto de palha o meio-fio para amortecer o ruído dos cascos dos cavalos, apesar de Unity não ser da família.

Quando saiu para atendê-la um lúgubre mordomo, sorriu-lhe.

—Bom dia, senhora. No que posso lhe servir?

—Bom dia. - Charlotte tirou um cartão de visita e o entregou. —Lamento importuná-los em um momento tão desafortunado, mas acredito que se aloja aqui o senhor Dominic Corde. É meu cunhado. Faz vários anos que não nos vemos, mas desejaria lhe oferecer meus parabéns por sua recente ordenação. -Evitou qualquer menção concreta da morte do Unity. Possivelmente a notícia não tinha aparecido nos jornais, e embora se publicasse, em uma casa como aquela veriam com maus olhos que as damas lessem essa classe de coisas. Era muito melhor fingir ignorância.

—Muito bem, senhora. Se for amável de entrar, irei ver se o senhor Corde está em casa.

O mordomo a guiou através do saguão e de um extraordinário vestíbulo que Charlotte de boa vontade teria contemplado com maior vagar. Deixou-a em um salão da manhã decorado em um estilo só um pouco menos exótico que o vestíbulo e, levando seu chapéu e sua capa salpicados de chuva, foi presumivelmente perguntar ao ajudante se com efeito tinha uma cunhada e, em tal caso, se desejava vê-la.

Tinham transcorrido apenas dez minutos quando se abriu a porta. Charlotte deu imediatamente meia volta e viu o Dominic, com dez anos mais, uns toques de cinza no cabelo, e muito mais atraente de como ela o recordava. A maturidade favorecia-o, os sofrimentos pelos que tinha passado, fossem quais fossem, sem dúvida tinham posto fim a seu juvenil aspecto de antes. A antiga arrogância tinha dado passagem a uma aparência de maior sensatez. Apesar de tudo, era em extremo chocante vê-lo com um colarinho clerical branco.

Inesperadamente, Charlotte foi incapaz de articular palavra.

—Charlotte! - Dominic se aproximou dela com um melancólico sorriso nos lábios. —Thomas deve tê-la informado da tragédia que ocorreu ontem aqui.

—Em realidade vim felicitá-lo por sua vocação e ordenação - disse Charlotte com uma cortesia um tanto enrijecida e não de tudo sincera.

Ele sorriu mais abertamente, e desta vez com certo humor.

—Nunca se deu bem em mentir.

—Sim me dou bem! - respondeu ela imediatamente. —Bom.... não muito mal.

—Perturba você. -Olhou-a de cima abaixo. —Não é necessário perguntar-lhe como está, pois é evidente que está muito bem. Como estão Emily... e sua mãe?

—Gozam de excelente saúde, obrigado. Minha mãe tornou a casar-se - comunicou Charlotte, considerando que possivelmente não era o momento idôneo para dizer que seu novo marido era dezessete anos mais novo que ela, ator e judeu.

—Boa notícia. Alegra-me sabê-lo. - Obviamente imaginava Caroline com um homem mais velho que ela, de posição sólida e respeitável, provavelmente um viúvo. A anterior determinação de Charlotte se desvaneceu. —Seu atual marido é ator -disse, ruborizando-se. —É muito mais jovem que ela, e em extremo bonito. - Agradou-lhe ver a expressão de assombro que se desenhou no semblante de Dominic.

—Como?

—Joshua Fielding, chama-se - continuou Charlotte, observando-o com satisfação. —É um dos melhores atores do ambiente teatral londrino neste momento.

Dominic relaxou. A tensão desapareceu de seus ombros e o familiar sorriso apareceu novamente a seus lábios.

—Por um momento achei que falava a sério.

—Já pode acreditá-lo - confirmou Charlotte. —É a verdade. Só omiti o detalhe de que a avó nunca a perdoou, porque ele é judeu. Nem sequer vive sob o mesmo teto que eles. Se obstinou tanto em sua negativa que quando minha mãe levou a cabo seu propósito de todo modo, à avó não ficou mais remédio que partir. Atualmente vive com Emily e Jack, e não lhe entusiasma porque mal há nada de que queixar-se, além do fato de que não tem com quem falar. Em particular agora, já que Emily e Jack estão de férias na Itália.

—Jack? - perguntou Dominic, olhando-a com curiosidade, e uma expressão quase risonha.

—Quando George morreu, também Emily voltou casar-se. Jack é membro do Parlamento - explicou Charlotte. —Ainda não o era quando contraíram matrimônio, mas agora sim.

—Tanto tempo faz desde a última vez que nos vimos? - Em seu assombro, Dominic não pôde evitar levantar muito a voz, mas a alegria de ver Charlotte ficava manifesta em seu semblante. —Pelo que conta, dir-se-ia que aconteceram décadas.

Você continua igual a antes?

—Sim, é claro. Mas você não!

Charlotte lançou um eloqüente olhar ao colarinho. Dominic o tocou timidamente.

—Não. Não, aconteceram muitas coisas após. Não entrou em detalhes, e por um momento se produziu um incômodo silêncio. De repente se abriu a porta e apareceu uma chamativa mulher. Tinha os olhos muito grandes e separados, e uns traços pouco comuns que revelavam uma mescla de senso de humor e fortaleza. Era miúda e em extremo elegante. Levava um vestido escuro, muito simples, como se pretendesse produzir um efeito de austeridade, e entretanto o corpete revelava um primoroso corte que era um pouco menos austero. Longe de parecer um objeto de luto, o vestido realçava sua tez clara e sua graciosa figura.

Dominic se voltou ao ouvi-la entrar.

—Senhora Parmenter, me permita que a presente a minha cunhada, a senhora Pitt. Charlotte, a senhora Parmenter.

—Muito prazer, senhora Pitt - saudou Vita educadamente, e examinou Charlotte com o olhar, avaliando não seus ganhos ou posição social, como teriam feito outras mulheres, mas sua pele, seus olhos e lábios, e as atraentes formas de seus ombros e seu seio. Sorriu com frieza.

—O prazer é meu, senhora Parmenter - respondeu Charlotte com um sorriso, como se não tivesse notado que a observava. —vim dar parabéns a Dominic por sua vocação. É uma magnífica notícia. Consta-me que minha mãe e minha irmã se alegrarão também por ele.

—Devem ter perdido o contato durante um tempo - indicou Vita com um tom não claramente crítico mas arqueando um pouco suas sobrancelhas perfeitas.

—Infelizmente, assim foi. Entretanto, apesar de minha satisfação por esta oportunidade de me reunir de novo com ele, desejo lhe oferecer minhas condolências

pelo fato que o fez possível. Sinto muito o ocorrido.

—Assombra-me que saiba já - disse Vita, surpreendida. Seus sensuais lábios se curvaram em um sorriso quase imperceptível. —Deve ler as primerísimas edições dos jornais.

Charlotte simulou estranheza.

—Saiu já nos jornais? Não sabia. Mas não podia sabê-lo, claro está, porque não os tenho lido. - Deixou no ar a insinuação de que ela não se dedicava a essas coisas.

Vita ficou momentaneamente desconcertada.

—E como se inteirou, pois, de nossa tragédia? Não é precisamente um tema de conversa muito frequente.

—Disse-me o delegado Pitt, a quem me unem laços familiares: é meu marido.

— Ah! - Por um instante deu a impressão de que Vita poria-se a rir. Perdeu o controle da voz, que alcançou um tom perigosamente próximo à histeria-. Ah.... já vejo. Isso esclarece tudo. - Não explicou a que se referia, mas uma curiosa expressão apareceu fugazmente a seus olhos. —foi uma gentileza que tenha vindo de visita - acrescentou, já mais serena. —Imagino que terão muitas coisas que contar-se depois de tanto tempo. Como é lógico, neste momento não recebemos convidados, mas se quiser almoçar conosco, seja bem-vinda.

Dominic lhe dirigiu um olhar de agradecimento, e ela respondeu com um sorriso.

—Obrigada - aceitou Charlotte sem lhe dar tempo de mudar de idéia.

Vita assentiu com a cabeça e logo se voltou para Dominic. —Não se esquecerá de passar para recolher a fita negra por nós, não é? - perguntou, lhe tocando brevemente o braço com os dedos.

—Não, claro que não - se apressou a responder Dominic, olhando-a nos olhos.

—Obrigado - murmurou ela. -E agora, se me perdoarem... Quando Vita saiu, Dominic indicou a Charlotte que tomasse assento e ele se sentou em frente.

—Pobre Vita - disse com sincero pesar, refletindo-se em seu rosto lástima e ao mesmo tempo uma cálida admiração. —Isto foi uma experiência terrível para ela. Mas suponho que você sabe tão bem como eu. - mordeu o lábio, e o arrependimento aflorou em seu olhar. —Os dois conhecemos esse mesmo horror, o medo que aumenta dia a dia. Neste caso, o pior é que todos sabemos que o culpado foi alguém da casa, e as maiores suspeita recaem no próprio reverendo Parmenter. Imagino que Thomas já a pôs à corrente.

—Por cima - admitiu Charlotte. Desejou oferecer algum tipo de consolo, mas ambos sabiam que era impossível. Desejou também acautelá-lo contra os riscos da situação, mas os dois tinham experimentado já todos os perigos possíveis: os claros, como dizer ou fazer insensatezes, ou calá-la verdade para encobrir aqueles pequenos atos de estupidez ou mesquinharia que alguém preferia não pôr em conhecimento de outros, e dos quais todo mundo escondia algum ou outro; e as armadilhas menos óbvias, como o desejo de ser sincero e dizer algo que a um parecia a verdade, para descobrir logo, quando já era muito tarde, que só conhecia a metade da verdade, e que o resto alterava as coisas por completo. Era muito fácil julgar e muito difícil aprender a esquecer. As pessoas viam muito mais do que queria ver das fraquezas e vulnerabilidades das vidas alheias.

Charlotte se inclinou um pouco.

—Dominic, tenha muito cuidado - disse impulsivamente. —Não lhe... -interrompeu-se e sorriu zombando de si mesma. —ia dizer "Não te precipite", mas é uma tolice. E logo ia dizer "Não tente resolvê-lo você só" e "Não tente resgatar a ninguém". Acredito que será melhor que não diga nada. Simplesmente faz o que considere correto.

Dominic lhe devolveu o sorriso, relaxando-se realmente pela primeira vez desde a chegada de Charlotte. Entretanto o almoço se desenvolveu em um clima de máxima tensão. A comida era excelente. Prato após prato, começando por uma sopa, seguida de um peixe em seu ponto, e depois carne com verduras, os comensais fizeram escassa apreciação do que lhes servia. Ramsay Parmenter tinha decidido comer com sua família e a convidada. Presidiu a mesa, benzendo-a com fria formalidade antes de começar. Charlotte não pôde evitar a impressão de que o reverendo falava como se, se dirigisse a um grupo de vereadores em uma reunião pública, e não a um Deus bondoso que devia conhecê-lo imensamente melhor do que ele se conhecia si mesmo.

Todos responderam "Amém" ao uníssono e começaram a comer.

—Não poderíamos conseguir, além das fitas, um pouco de gaze entupida para fazer véus? - perguntou Clarice com a colher de sopa a meio caminho da boca. —Certamente Dominic não terá inconveniente em ir procurá-la ao armarinho, não é?

—Nenhum inconveniente - respondeu Dominic imediatamente.

—Por mim não se incomodem - disse Tryphena com aspereza. —Não penso ir a nenhuma parte onde se requeira chapéu.

—Se chover, necessitará de um chapéu para sair ao jardim - indicou Clarice. —E conhecendo a primavera inglesa, temos a chuva ainda mais assegurada que a morte ou os impostos.

—Não está morta, e não tem dinheiro, com o qual tampouco paga impostos - replicou Tryphena.

—Precisamente - concordou Clarice. —E padeço a chuva com freqüência. -Olhou ao Dominic. —Saberá o que tem que trazer?

—Não. Mas pedirei à senhora Pitt que me acompanhe, e sem dúvida ela me orientará.

—Não se incomode, por favor. - Vita olhou ao Charlotte com um sorriso. —Não é nossa intenção abusar de você dessa maneira.

Charlotte lhe devolveu o sorriso.

—Ajudarei com muito prazer. E eu adoraria ter a ocasião de conversar com Dominic e ouvir suas notícias.

—O armarinho não está longe daqui - comentou Tryphena com tom cáustico, inclinando-se de novo sobre o prato de sopa. A luz se refletia em seu cabelo claro, convertendo-o em um halo. —A meia hora quando muito.

—Dominic vai encarregar se dos preparativos para o funeral de Unity – explicou Vita. —Nas atuais circunstâncias, parece o mais apropriado. - Contraiu levemente as feições, mas não acrescentou nada mais.

—O funeral! - Tryphena levantou repentinamente a cabeça. —Suponho que refere-se a alguma celebração na igreja, algo com muita pompa e circunstância, e todo mundo de luto para exibir uma dor falsa. Para isso querem a gaze negra. São todos uns hipócritas! Se não sentiam o menor apreço por ela quando vivia, do que serve sentar-se agora em solenes fileiras como corvos em uma cerca e fingir um afeto

inexistente?

—Basta já, Tryphena! - prorrompeu Vita com severidade. —Já conhecemos seus sentimentos e não precisamos ouvi-los de novo, e menos ainda na mesa.

Tryphena afastou a vista de sua mãe e a fixou no Ramsay.

—Imagina que seu Deus acredita em você? - inquiriu com voz crispada e ofensiva. —Deus deve ser um néscio se, se deixa enganar por suas poses. Não me engana! Nem a ninguém que o conheça. - voltou-se para Mallory. —Por que todos tratam a Deus como se fosse idiota? Empregam uma linguagem grandiosa e lhes explicam uma e outra vez, como se Ele não os tivesse entendido à primeira. Falam-lhe como às anciãs que estão surdas e um pouco senis.

Clarice mordeu o lábio e tampou a boca com o guardanapo, emitindo estranhos ruídos guturais como se, se engasgasse.

—Tryphena, mede suas palavras ou deixa a mesa! - ordenou que Vita com tom cortante. Nem sequer olhou ao Ramsay, possivelmente tinha perdido toda esperança de que ele saísse em defesa de si mesmo ou de suas crenças.

—Isso mesmo faz você - disse Clarice em atitude desafiante, baixando de novo o guardanapo.

—Eu nunca falo com Deus! - Tryphena voltou imediatamente a cabeça e cravou um olhar iracundo em sua irmã. —É ridículo. Seria como falar com Alice no País das Maravilhas ou ao Gato do Cheshire.

—Se quiser um público mais receptivo, melhor será que se dirija à Lebre de Março ou o Chapeleiro Louco - sugeriu Clarice. —Estão bastante assobiados para escutar até não poder mais sua cantinela sobre a economia social, o amor livre, a liberdade artística e a permissão generalizada para que cada qual faça o que deseje muito e espere que depois outro recolha os pedaços.

—Clarice! - exclamou Vita com o corpo em tensão e olhar severo. —Com isso, não ajuda a ninguém. Se for incapaz de dizer algo apropriado para a ocasião, faça o favor de se calar.

—Clarice nunca diz nada apropriado para nenhuma ocasião - disse Tryphena com amargo desdém.

Charlotte compreendia a atitude da Tryphena. Por alguma razão, a morte de Unity Bellwood lhe tinha provocado uma dor que não podia conter, e derrramava sua ira em todos aqueles que não compartilhavam sua sensação de perda e solidão, ou não exteriorizava seu medo. Charlotte observou ao Ramsay Parmenter, sentado à cabeceira da mesa, presidindo-a nominalmente mas de fato alheio a tudo.

Voltando-se para Vita, viu em seu rosto o vislumbre de um enraizado cansaço e se perguntou quantas vezes no passado, ante a passividade do Ramsay, teria se visto

obrigada a tomar as decisões, a marcar os limites do comportamento. Possivelmente era essa a expressão máxima da solidão, não a dor pela perda de um ser querido mas o isolamento produzido pela incapacidade de compartilhar em vida, o fato de sentir-se atada à casca de ovo dos próprios sonhos quando a substância desapareceu.

—Bom, por sorte a Igreja compensará nossas deficiências e dirá tudo o que seja apropriado. - Mallory entregou o prato de sopa à criada que recolhia a baixela. —Ao menos até onde possa chegar.

—Chega já bastante longe - respondeu Dominic. —O resto está em mãos de Deus.

Mallory se voltou imediatamente para ele.

—Quem nos deu os sacramentos da confissão e a absolvição para nos salvar, e a extrema-unção destinada a nos preparar para aceitar Sua graça e achar ao final a salvação apesar de nossos pecados e fraquezas. - Com visível esforço, mantinha as mãos quietas sobre a toalha branca de linho, os longos e magros dedos estendidos e rígidos.

—Isso é uma imoralidade! - exclamou Tryphena indignada. —Segundo você, no final tudo se reduz a uma simples questão de magia. Pronunciando o sortilégio oportuno, as culpas desaparecerão. Isso é uma verdadeira infâmia. - Olhou um por um a outros. —Como pode alguém acreditar uma coisa assim? É monstruoso. Nestes tempos prevalecem a razão e a ciência. Inclusive no Renascimento tinham idéias mais avançadas que...

—Não a Inquisição - indicou Clarice, arqueando suas sobrancelhas escuras. —Queimavam na fogueira a todos aqueles cujas crenças diferiam das da Igreja.

—A todos não - retificou Ramsay com pedantería. —Só a quem tinha sido batizados cristãos e depois incorriam na heresia.

—E qual é a diferença? - perguntou Tryphena, erguendo a voz de pura incredulidade. —Está dizendo que isso a justificava?

—Estou corrigindo uma tergiversação - respondeu Ramsay. —Só podemos fazer as coisas o melhor que sabemos, de acordo com nossa fé e nosso entendimento. Celebraremos um funeral por Unity e observaremos as formalidades da Igreja anglicana. Deus saberá que fizemos por ela o que acreditávamos correto e lhe concederá Sua misericórdia e perdão.

—Perdão! - Transbordada pelas emoções, Tryphena ergueu ainda mais a voz, agora aguda e estridente. —Não é Unity quem necessita perdão, mas a pessoa que a matou. Como pode se sentar aí tranqüilamente e falar de perdão como se fosse ela quem agiu mau? Valente ridicularia! - Jogou a cadeira atrás bruscamente, quase derrubando-a, e ficou em pé. —Não posso continuar escutando esses disparates nem um segundo mais. Isto é uma casa de loucos. - partiu da sala de jantar sem voltar a vista atrás, empurrando com todas suas forças a porta de vaivém e tropeçando quase com o lacaio que entrava com o seguinte prato.

—Sinto muito - murmurou Vita, olhando para Charlotte com expressão aflita. —Receio que realmente está muito afetada. Ela e Unity mantinham uma estreita relação. Confio que você saiba desculpá-la.

—Naturalmente. - Charlotte deu a única resposta possível. Ela mesma tinha suportado suficiente vida familiar para ter experiência sobrada nessa classe de cenas. Um leve rubor tingiu suas faces com a lembrança de umas quantas que ela mesma tinha provocado, mais de uma devida a seu amor do Dominic. —Também eu sofri a perda de seres queridos e sei quão alterada uma pessoa pode chegar a estar.

Vita lhe dirigiu um sorriso radiante e vazio.

—Obrigada. É muito generosa.

Clarice observava Charlotte com curiosidade, mas não disse nada. Durante o resto do almoço Dominic e Vita trocaram comentários triviais e Charlotte participou a fim de manter uma aparência de cortesia. Ramsay assentia quando era oportuno, e perguntou educadamente a opinião de Charlotte em uma ou duas ocasiões. Mallory não tentou sequer intervir na conversa, e Clarice guardou um discreto silêncio, pouco habitual nela.

Na primeira hora da tarde Charlotte acompanhou Dominic tal como lhe tinha pedido. Viajaram na segunda carruagem da família. Era descoberta, mas não chovia e soprava uma brisa suave, assim para Charlotte bastou cobrir as pernas com uma manta para sentir-se à vontade. Dominic, depois de dar instruções ao cocheiro, sentou-se junto a ela.

—Agradeço-lhe que tenha vindo - disse Dominic com tristeza quando ficaram em marcha. —Lamento que hajamos tornado a nos ver nestas circunstâncias. O almoço foi um desastre. Estamos todos muito suscetíveis e perdemos o controle ao mínimo toque.

—Sei - respondeu Charlotte com delicadeza. —Recordo perfeitamente...

—Sim, claro que o recorda. - Dominic esboçou um fugaz sorriso. —Sinto muito.

—Ocorreram tantas coisas desde a última vez que nos vimos...

—Você não mudou apenas. - Dominic se voltou de frente a ela e a contemplou atentamente-. Tem o cabelo igual a antes. - percebia-se admiração em seu olhar, e Charlotte sentiu um quente prazer que a envergonhou, embora não teria renunciado a ele.

—Obrigada - disse, aceitando a adulação, e sorriu a seu pesar. —passaram alguns anos, e eu gostaria de pensar que ganhei um pouco em sensatez. Tenho dois filhos...

—Dois? - Dominic se surpreendeu. —Eu recordo a Jemima.

—Tenho também um menino, dois anos menor. Chama-se Daniel. Completou já os seis. - Não pôde dissimular totalmente o orgulho e a ternura que sentia. —Você em troca mudou, e muito. O que foi de sua vida? Como conheceu o Ramsay Parmenter?

Uma mescla de humor e aflição se refletiu no olhar do Dominic.

—Outra vez indagando? - perguntou.

—Não - assegurou Charlotte, embora não era de todo verdade. "Indagar" se tinha convertido em um hábito para ela, mas nesse momento pensava principalmente

em Dominic e em como podia lhe afetar aquela tragédia. Por outra parte, não conseguia afastar de sua mente a imagem do Ramsay Parmenter sentado à cabeceira da mesa na sala de jantar de sua casa, imerso aparentemente em um estado de total confusão. —Não - repetiu. —Tão diferente o vejo que deduzo que devem ter lhe ocorrido coisas extraordinárias. E noto que está muito preocupado pelo reverendo, não só pelas repercussões que isto possa ter para sua família, mas também por seu próprio mal-estar interior. Não acredita que ele empurrasse ao Unity Bellwood intencionadamente, não é? - Era uma afirmação mais que uma pergunta.

Dominic hesitou durante um longo momento antes de responder, e quando o fez, falou devagar, com a fronte enrugada e a vista à frente, perdida no bulício do trânsito.

—Seria uma ação imprópria do homem que conheço - disse por fim. —Quando conheci o Ramsay, achava-me no ponto mais baixo de minha vida. Cada dia me parecia muito um deserto cinza sem nada no horizonte além da mesma luta de sempre carente de sentido. - mordia nervosamente o lábio inferior como se ainda a lembrança daquela época seguisse perturbando-o, a consciência de que era possível sentir essa absoluta incapacidade inclusive para a esperança. Era um abismo cuja existência era em si mesmo temível, e a escuridão desse abismo se refletia em seus olhos.

Charlotte desejou perguntar como tinha chegado a esse ponto, mas isso seria uma intromissão, e ela não tinha direito a saber. Perguntou-se se guardava relação com a morte de Sarah, apesar de que essa crise espiritual devia produzir-se vários anos depois. Desejou tocá-lo, mas isso seria também muito pessoal. Tinha passado muito tempo desde que se conheciam bem, e era impossível salvar a distância em um instante.

—Desprezava-me mesmo - prosseguiu Dominic, ainda sem olhá-la, e falando em um sussurro para que o cocheiro não o ouvisse.

—Por sentir desespero? - disse ela com doçura. —Essa não é razão para desprezar-se. Não é um pecado. Sim, já sei que a doutrina religiosa sustenta o contrário, mas às vezes a pessoa não pode evitá-lo. Possivelmente a auto compaixão

sim o seja, mas não o autêntico desespero.

—Não - corrigiu Dominic, e soltou uma sarcástica gargalhada. —Não me desprezava por meu abatimento, estava abatido porque me desprezava. E tinha uma causa. - Apertou os punhos sobre o regaço. Charlotte viu brilhar a pele das luvas ao esticar-se sobre os dedos. —Não tenho intenção de lhe explicar quão desprezível cheguei a ser, porque não quero que forme essa imagem de mim, embora seja algo do passado. Mas me tinha convertido em um ser absolutamente egoísta, não pensava em ninguém mais, vivia só o presente e sem mais objetivo que meus apetites imediatos. - Moveu ligeiramente a cabeça em um gesto de arrependimento. —Essa não é vida para nenhuma criatura com a faculdade de pensar. É um comportamento infra humano, uma maneira de esbanjar a vida, uma negação da mente, do espírito, da alma. Equivale a matar-se mediante o abandono de tudo aquilo que vale a pena valorizar-se ou amar-se. Não há nisso bondade, nem valor, nem honra, nem dignidade. - Lançou um breve olhar a Charlotte e desviou a vista de novo. —Me desprezava por não ser virtualmente nada do que poderia ter sido. Estava estragando todas minhas possibilidades. Não é lícito condenar a alguém que careceu que oportunidades, mas sim a quem as tem tido e as desperdiçaram por covardia, preguiça ou desonestidade.

Várias desculpas foram à mente de Charlotte, mas adivinhou em seu semblante que Dominic não as consideraria uma amostra de amabilidade por sua parte, a não ser incapacidade para compreendê-lo, assim permaneceu em silêncio. Nesse momento entravam em uma rua com lojas de ambos os lados, e não demorariam para chegar ao armarinho.

—E Ramsay Parmenter te ajudou? - perguntou Charlotte, incentivando-o a continuar.

Dominic endireitou de novo os ombros e um leve sorriso apareceu em seus lábios como se a lembrança lhe fosse grata.

—Sim. Com sua caridade e a firmeza de sua fé, viu em mim muito mais coisas do que eu mesmo via. - Prorrompeu em uma risada entrecortada. —Teve a paciência de perseverar comigo, de tolerar meus enganos e minha auto compaixão, minhas intermináveis duvidas e temores, de me ajudar sem cessar até conseguir que acreditasse em mim mesmo tão firmemente como ele acreditava. Não saberia lhe dizer quantas horas e dias e semanas foram necessárias, mas Ramsay não retrocedeu em nenhum momento.

—Não tomou o hábito por agradá-lo, verdade? - perguntou Charlotte, e se arrependeu imediatamente. A dúvida mesma ofendia, e não era essa sua intenção. —Desculpa...

Dominic se voltou para olhá-la, agora com um amplo sorriso. Seu aspecto físico tinha melhorado com a idade. Seu rosto era menos atraente em um sentido claro, mas as rugas lhe conferiam um ar mais sutil, mais refinado. Já não havia nele nada insosso ou incompleto. Era um atrativo maior porque possuía um conteúdo.

—Tampouco nisso mudou - disse Dominic, movendo a cabeça em um gesto de negação. —É a mesma Charlotte de sempre, dizendo o que pensa assim que o pensa.

—Sim mudei! - afirmou ela imediatamente. —O faço com muito menos freqüência. Posso ser diplomática e matreira se for necessário. E posso guardar silêncio e escutar.

—E não expressar sua opinião quando se aviva por causa da estupidez, injustiça ou hipocrisia? - perguntou Dominic, arqueando as sobrancelhas. —Ou rir no momento menos oportuno? Não me diga isso, por favor. Nego-me a aceitar que o mundo que conheço tenha mudado tão simplesmente porque me tornei clérigo. Certas coisas deveriam permanecer inalteráveis.

—Está zombando de mim, e chegamos já ao armarinho - disse Charlotte alegremente, notando em seu interior uma pequena borbulha de calidez. —Quer que entre eu e compre a fita e a gaze?

—Estaria-lhe muito agradecido. - Dominic tirou vários xelins do bolso e os deu.

—Obrigado.

Charlotte retornou quase um quarto de hora depois, subiu à carruagem com a ajuda do lacaio e entregou ao Dominic o pacote e a mudança. A carruagem ficou de novo em marcha.

—Não - disse Dominic, respondendo a sua anterior pergunta. —Não tomei o hábito para agradar a Ramsay. Teria sido indigno dele, ou de mim, e certamente teria prestado um fraco serviço aos paroquianos que algum dia teria a meu cargo.

—Sei - respondeu Charlotte, arrependida. —Perdoe por havê-lo perguntado. Preocupava-me porque teria sido muito fácil cair nisso. A gratidão exerce um grande peso em todos nós e desejamos corresponder de algum modo. É natural, e que melhor maneira de honrá-lo que tratar de ser como ele? Acaso não realizamos todos alguma vez uma boa ação por razões equivocadas?

—Sim, é claro - concordou Dominic. —E outras vezes agimos mal por uma boa razão. Mas eu entrei na Igreja porque acredito em sua doutrina e porque a ela quero consagrar minha vida. Não por gratidão, ou para me refugiar do passado ou do fracasso, mas sim porque o desejava. Tenho fé em seu sentido e sua finalidade. - Disse-o com plena convicção, sem o menor vislumbre de dúvida.

—Bem - murmurou Charlotte. —Não era necessário que me dissesse isso, mas me agrada sabê-lo. Me alegro por você...

—Se sentisse o menor carinho por mim, deveria... - interrompeu-se, ruborizando-se intensamente. —Não... não queria dizer... Charlotte riu sem reservas, apesar de notar um ligeiro rubor em suas próprias faces.

—Já sei. E sim, claro que sinto carinho por você. Além de ser meu cunhado, considero-o um amigo a muito tempo. Estou muito contente de que tenha encontrado a si mesmo. Dominic deixou escapar um suspiro.

—Pois não esteja tão contente. Pelo visto, sou incapaz de ajudar de modo algum ao pobre Ramsay. Do que serve minha fé se não puder ajudar a outra pessoa, a quem me deu quase tudo o que tenho? - Voltou a franzir o sobrecenho. —Por que acho tal vazio em mim quando me apresenta a oportunidade de lhe devolver parte do que me deu? Por que não me ocorrem as palavras adequadas? Ele sim soube ajudar a mim.

—Possivelmente não existam palavras adequadas - respondeu ela, procurando dizer o que pensava sem lhe causar aflição nem diminuir nele a fortaleza e compaixão que admirava.

A carruagem se deteve ao chegar ao cruzamento. Ante eles passou um Landau descoberto, e em seu interior um grupo de elegantes moças riu dissimuladamente e fingiu não olhar ao Dominic. Fracassaram de maneira estrepitosa. Quando se afastavam, uma delas se virou por completo em seu assento. Ao que parecia, Dominic permaneceu alheio ao revôo que tinha causado. Em outro tempo sua reação teria sido muito distinta.

—Então deve existir um momento adequado e gesto adequado - aduziu com tom premente. —Tem que haver algo que possa fazer! Ele nunca se rendeu comigo, e me acredite, teria sido o mais fácil. Era obstinado, discutia tudo, enfurecia-me comigo mesmo, e também com ele por seu empenho em me fazer sair gracioso daquilo e sua fé em minhas possibilidades. Foi um esforço colossal. Eu o aborrecia por me obrigar a realizá-lo, por pretender me convencer de que valia a pena tentá-lo.

—Desejava ser ajudado? -perguntou Charlotte.

Ele a olhou.

—Insinúa que Ramsay não o deseja?

—Não sei. Você o que acha?

Dominic abriu os olhos desmesuradamente.

—Fala como se eu acreditasse, claro, que, que Ramsay assassinou Unity.

Nisso tinha razão.

—E acredita? - insistiu Charlotte. —por que faria uma coisa assim? Tão séria ameaça representava ela para sua paz de espírito? Como pode um cético conseguir que se cambaleie uma fé verdadeira? - Escrutinou o semblante de Dominic. —Ou não é essa a fonte do conflito? Era formosa Unity, embora não fosse em um sentido convencional?

—Era... -Seu olhar se escureceu. Algo nele deixou de mostrar-se com a mesma franqueza que até esse momento, e Charlotte o percebeu imediatamente, uma fuga da intimidade que compartilhava fazia apenas um instante. —Era uma mulher transbordante de vitalidade, de vida... - Procurava as palavras precisas. —Custa imaginá-la morta. - Pareceu surpreender-se ao dizê-lo-. Suponho que ainda não consigo admiti-lo. Fará falta um tempo.... possivelmente semanas. Uma parte de mim ainda espera que Unity retorne amanhã e dê sua opinião sobre tudo isto, que nos diga o que significa e o que deveríamos fazer. - Um fugaz sorriso, com uma mescla de humor e amargura, desenhou-se em seus lábios. —Tinha opiniões para tudo.

—E sempre as expressava? - perguntou Charlotte.

—Sim, certamente!

Charlotte o observou, tratando de decifrar a expressão do Dominic por seu perfil enquanto ele mantinha a vista fixa no corrimão e o estofo de couro da parte dianteira da carruagem. Ignorava se ele havia sentido algum apreço por Unity Bellwood. De repente achava perceber em seu rosto certa relaxação, quase alivio pelo fato de que ela tivesse desaparecido, como se com sua morte se tirasse um peso de cima, mas instantes depois descobria tristeza em seu semblante, a opressiva sensação que se experimenta ante a proximidade de uma morte violenta. Fugazmente, Charlotte percebeu inclusive uma careta de ironia em seus lábios, como se risse de si mesmo, mas Dominic não ofereceu explicação alguma a respeito.

—Você também trabalhava com ela? - perguntou Charlotte. Em realidade desejava saber se Unity lhe inspirava simpatia, mas não se atrevia a expor a questão diretamente. Não tinha direito a pinçar em seus sentimentos. A amizade entre Charlotte e Dominic era tênue, fruto mais de uns anos de proximidade que de uma compreensão ou confiança profundas. Tinham compartilhado muitas experiências, sentido juntos dor e medo. Voltando a vista ao passado, a situação atual parecia um decalque daquela, mas então eles eram muito diferentes, estavam muito separados, tinham consciência unicamente de sua própria solidão.

—Não - respondeu Dominic, ainda com o olhar à frente, como se lhe interessasse o trajeto que percorriam. —Ela colaborava exclusivamente nos estudos pessoais do Ramsay. Eu não tinha nada que ver com isso. Logo me destinarão a alguma paróquia em outra parte. Minha presença aqui, igual à do Mallory, é só temporária.

Charlotte tinha a impressão de que Dominic omitia algo muito mais importante que os detalhes de que lhe falava.

—Mas devia vê-la nas comidas e as veladas, nos momentos em que não trabalhavam - indicou. —Deve saber algo dela e do que o reverendo Parmenter sentia por ela... - Estava pressionando-o, mas sua própria ansiedade não lhe permitia conter-se.

—Sim, claro - concedeu Dominic, puxando a manta que servia de abrigo à Charlotte ao ver que começava a escorregar de suas pernas. —A conhecia como se conhece alguém com quem... com quem não existem percepções ou crenças comuns. Qualquer esforço parece inútil. Teremos que tratar de lhe dar sentido para que outros o compreendam. Suponho que essa é minha função.... dar sentido à dor e a confusão, e a ações tão horrendas que parecem além de toda possível justificação. Não tem frio?

—Não, estou bem, obrigado - respondeu Charlotte. Seu próprio bem-estar não lhe importava o mínimo; mal o notava. Com total sinceridade, acrescentou: —Se requer muita coragem. - Pela primeira vez desde que Dominic apareceu em Cater Street como pretendente de Sarah, fazia mais de quatorze anos, sentiu por ele uma admiração apoiada no homem que era, não na beleza de seu rosto. Agora não se tratava de uma miragem, não a preocupava o fato de que ele enchesse seus sonhos ou necessidades. Sorriu sem dar-se conta. —Se posso ajudá-lo em algo, não duvide em me dizer.

Dominic se voltou para ela.

—Assim o farei. - Apoiou sua mão na dela em um momentâneo gesto de afeto. —Tomara soubesse como. Eu mesmo procuro passo a passo a maneira de ajudar. A carruagem se deteve. Tinham chegado à funerária e era preciso cumprir formalidades: horários, lugares, escolhas. Dominic se apeou e ofereceu a mão à Charlotte.

Isadora Underhill observava a seu marido passear de um lado a outro do salão, aparando o espaçado cabelo de vez em quando. Estava acostumada a vê-lo preocupado por uma ou outra razão. Era um pouco mais velho que ela, e bispo de uma diocese em que viviam muitas pessoas influentes. Havia sempre alguma crise que reclamava sua atenção. Muitas obrigações recaíam nele e sua esposa, mas quando não se requeria sua colaboração, Isadora tinha aprendido a ocupar-se em outros assuntos ou acompanhada de pessoas, ou a sós. Desfrutava muito com a leitura, especialmente de livros sobre as vidas de homens e mulheres de outros países ou outras épocas. Durante a primavera e o verão passava muitas horas no jardim, levando a cabo mais trabalho físico do que seu marido considerava conveniente. Mas, em cumplicidade com o jardineiro, tinham chegado ao acordo tácito de que ele se atribuiria o mérito de boa parte do que em realidade era obra dela Se por acaso o bispo reparava em algo e fazia algum comentário, coisa que ocorria com escassa freqüência. O bispo não distinguia uma malvarrosa de uma camélia, e não tinha mais que uma muito vaga noção de quão cuidados exigia a beleza que o rodeava.

—Francamente é o pior que jamais nos ocorreu! - exclamou o bispo. —Acredito que não se dá conta da gravidade do fato, Isadora. -Interrompeu seu ir e vir e olhou fixamente a sua esposa com o sobrecenho franzido e finas rugas de raiva ao redor da boca.

—Compreendo que é um fato lutuoso - respondeu ela, enfiando sua agulha de bordar com um fio de seda de cor vermelha intensa. —A morte de uma pessoa jovem é sempre motivo de tristeza. E diria que suas aptidões acadêmicas sentiram muito sua falta. Pelo que ouvi contar, era uma mulher brilhante. –Colocou a meada a um lado, entre as outras.

—Por amor de Deus! - disse ele, exasperado. —Não me prestou a menor atenção. Esse não é o problema. Francamente, poderia no mínimo deixar a costura um momento e me escutar com os cinco sentidos. - Assinalou com indignação as rosas bordadas. —Essa tarefa é intrascendente, e este outro assunto é desolador.

—Não vejo por que a morte tem que te desolar - replicou com sensatez. —É um fato triste, mas por desgraça nos chega notícia de uma ou outra morte muito freqüentemente, e essa é uma das razões pelas que devemos agradecer uma fé...

—O problema não é a morte dessa condenada mulher! - atalhou o bispo, meneando a cabeça em um cortante gesto de negação. Vestia um traje escuro, perneiras e um colarinho muito alto. —Claro que é triste, mas nos encontramos com a morte continuamente. Forma parte da vida, e é inevitável. Dispomos de muito diversas maneiras de lhe fazer frente, tanto para nosso próprio consolo como para o dos parentes. Como já saberia, se estivesse escutando, essa não é a questão.

Depois de sua evidente irritação, Isadora percebeu um temor genuíno e peremptório que não recordava ter notado nunca antes. Empurrou as sedas para a caixa onde as guardava.

—Qual é, pois, a questão? - perguntou.

—Já lhe disse ! Empurraram-na escada abaixo e fraturou o pescoço.

Agora as suspeitas recaem no próprio Ramsay Parmenter.

Isadora se sobressaltou, assaltando-a de repente uma sensação de ansiedade e frio. Conhecia o Ramsay Parmenter. Sempre lhe tinha inspirado simpatia; sua atitude era invariavelmente amável, mas nos últimos tempos Isadora tinha intuído nele uma infelicidade que não podia esquecer nem passar por cima. De repente, como conseqüência de algumas palavras, sua simpatia por ele se converteu em pena.

—Não, não me havia dito - protestou com intenso pesar. —Isso é realmente espantoso. De onde surge essa suspeita? Por que? Por que ia Ramsay Parmenter empurrar a alguém por uma escada? Foi um acidente? Perdeu Ramsay o equilíbrio e a empurrou sem querer? Não bebe, verdade?

O bispo a olhou com manifesta irritação.

—Não, claro que não bebe! De onde tira semelhante idéia? Por Deus, Isadora, eu mesmo falei em seu favor para que lhe outorgassem um bispado. O arcebispo do Canterbury não se esquecerá disso... e tampouco o sínodo.

Isadora não se alterou pelo tom de seu marido. Até a menor falta de decoro o alterava enormemente, e ela estava já acostumada.

—O cônego Black bebia muito - lhe recordou. —Ninguém sabia porque era capaz de andar direito inclusive nos momentos de maior embriaguez.

—Isso eram falatórios mal-intencionados - desmentiu ele. —Você mais que ninguém deveria se abster de escutá-los, e já não digamos de repeti-los. Esse pobre homem padecia de um defeito da fala.

—Já sei. Um defeito conhecido como conhaque Napoleão. – Isadora não pretendia ser desconsiderada de maneira gratuita, mas em certas ocasiões a diplomacia se transformava em covardia e era inaceitável. —Por seu bem, não deveria ter feito a vista grossa.

O bispo arqueou as sobrancelhas.

—-Me permita que seja eu quem diga quais são minhas obrigações, Isadora. O cônego Black é água passada. De nada serve voltar a falar do tema. Neste instante há um assunto grandemente mais grave sobre o que devo tomar uma decisão, e muitas coisas dependem disso. Pesa sobre mim uma enorme responsabilidade.

Isadora estava confusa.

—Que decisão pode você tomar, Reginald? Deve oferecer seu apoio ao pobre reverendo Parmenter e sua família, mas mais não podemos fazer. Acha que deveria ir visitá-los amanhã, ou é muito cedo?

—Sem dúvida é muito cedo. - Descartou a sugestão com um gesto de sua cuidada mão, em que luzia um anel com uma grande comalina engastada.

Isadora estava acostumada a suas mãos, fortes e maciças, de dedos largos, mas nunca as tinha achado atraentes, e se sentia culpada por isso.

—Ocorreu ontem - acrescentou o bispo. —Me inteirei esta manhã, faz só meia hora. A decisão é como devo atuar. Ainda não disponho de suficiente informação. Dei voltas e mais voltas na cabeça à carreira do Parmenter. O que poderia havê-lo desequilibrado até o ponto de que agora se contemple a possibilidade de que seja culpado de algo assim?

Isadora o olhou com incredulidade.

—O que quer dizer, Reginald? Insinua que se trata de algo pior que um acidente?

—-Eu não, a polícia - respondeu ele com aspereza, juntando suas sobrancelhas loiras. —E portanto devo aceitar. Não posso evitar a realidade, goste eu ou não. Se a polícia apresentar queixas contra ele, poderiam chegar a acusá-lo de algo tão horrendo como o assassinato.

Isadora desejou negar-se a admiti-lo, mas teria sido uma idiotice. Reginald nunca teria dito uma coisa assim se não fosse verdade. Observou-o enquanto ele dava meia volta e reatava seus passeios acima e abaixo, abrindo e fechando os punhos. Nunca o tinha visto tão nervoso nem tão angustiado; os músculos de seu corpo robusto estavam tão tensos que a jaqueta lhe puxava nos ombros.

—Acha que é possível? - sussurrou.

Ele se deteve.

—Claro que é possível, Isadora. No interior das pessoas há às vezes uma escuridão cuja existência outros desconhecem. - enfurecia-se com ela porque tinha que lhe dar explicações, e entretanto as teria dado em qualquer caso; ele sempre explicava tudo, e ela tinha deixado de lhe dizer que o entendia fazia já muito tempo.

—Parmenter é um homem que nunca desenvolveu plenamente seu potencial - prosseguiu o bispo, erguendo um dedo em um gesto admonitório. —Recorda quando o conhecemos. Possuía talento. Tinha um brilhante futuro diante. Já então podia ter chegado a bispo. Tinha todos os dotes necessários, discernimento intelectual, habilidade pessoal. Era um pregador magnífico. - Sua voz se crispava mais e mais a cada frase. —Possuía tato, inteligência, bom julgamento, dedicação, e uns antecedentes familiares idôneos. Fez um excelente matrimônio. Vita Parmenter seria um grande trunfo para qualquer homem. E onde está agora? - Olhou a Isadora como se esperasse que ela desse a resposta, mas não aguardou. —perdeu a... esperança no futuro que antes tinha, a... dedicação aos encargos da Igreja. Em algum ponto se desviou do bom caminho, Isadora. E me pergunto quanto se desviou.

Também Isadora tinha percebido uma mudança no Ramsay Parmenter com passagem dos anos. Mas muitas pessoas mudavam. Às vezes por razões de saúde, às vezes por infelicidade pessoal, às vezes por causa de uma decepção ou simplesmente do aborrecimento. Requeria-se uma grande coragem para manter a paixão e a energia da juventude. Mesmo assim, sentiu a necessidade de defender ao Ramsay. Nem sequer pensou; foi uma reação instintiva.

—Obviamente devemos dar como claro que foi um acidente, a menos que nos inteiremos de algo que descarte essa possibilidade. Devemos ser leais com ele...

—Devemos nossa lealdade à Igreja! - retificou ele. —Os bons sentimentos, no lugar que lhes corresponde, são muito louváveis, mas aqui se trata de uma questão de princípios. Estou na obrigação de contemplar a possibilidade real de que seja culpado. Todos somos débeis. Todos adoecemos de tentações e fraquezas, tanto da carne como do espírito. Eu tenho muito mais experiência do mundo que você, querida. Conheço melhor a humanidade e seus aspectos escuros do que você, graças a Deus, conhecerá-os jamais. São coisas das quais uma mulher nunca deveria inteirar-se, e menos ainda presenciar. Mas devo me preparar para o pior. – Levantou ligeiramente o queixo, como se previsse o golpe em qualquer momento, inclusive naquele salão tranqüilo e confortável com um vaso de barro de jacintos tardios banhados pelo sol matutino.

Isadora se teria indignado se não fosse pelo genuíno temor que ouvia em sua voz crispada e via no apertado traço de rugas formada ao redor de sua boca. Nunca o tinha notado tão inquieto. Ao longo de seus trinta anos de matrimônio o tinha visto confrontar muitas decisões difíceis, muitas tragédias nas que tinha tido que consolar aos afligidos e achar as palavras adequadas para todos. Constava-lhe que tinha atuado como mediador em delicadas rivalidades internas entre clérigos ambiciosos, que se tinha visto obrigado a comunicar más notícias, tanto pessoais como profissionais, a muita gente. Em geral, tinha saído gracioso. Sua confiança em si mesmo se caracterizava pela serenidade e se apoiava em uma certeza interior. Possivelmente tinha sido pura fachada e ela não se dera conta, já que nesse momento se achava em um estado de agitação extrema. Isadora não podia deixar de perceber o incipiente pânico que estava apropriando-se dele, e não temia pelo Ramsay Parmenter mas sim por si mesmo, porque tinha assumido o compromisso de recomendá-lo.

—Por que faria uma coisa assim? - perguntou, tentando reconfortá-lo com a idéia de que aquilo não podia ser verdade. Certamente uma ação semelhante não concordava com a personalidade do homem que tinha visto dúzias de vezes todos os anos. Ultimamente o tinha achado mais sério que de costume. Hesitou em usar a palavra "aborrecido"; se o fizesse, só Deus sabia até onde podia chegar. Possivelmente acharia aborrecidos a muitos destacados membros do clero. Era uma idéia indecorosa que preferia não considerar.

Ele a olhou com impaciência.

—Enfim - respondeu, —a razão óbvia que primeiro vai à mente é que Parmenter mantinha uma conduta desonesta com respeito a ela.

—Quer dizer que tinha uma aventura com ela? - perguntou Isadora. por que seu marido o expressava tudo com aqueles retorcidos eufemismos? Obscureciam o significado, mas não o modificavam.

O bispo fez uma careta de aversão.

—Preferiria que não fosse tão direta, Isadora - censurou. —Mas se não puder evitá-lo, então digamos que sim, que isso é o que temo. Ela era uma mulher atraente, e conforme me informaram, sua reputação nesse terreno distava muito de ser admirável. Teria sido muito melhor se Parmenter tivesse contratado os serviços de um homem para sua tradução.... como lhe aconselhei em seu dia, recorda?

—Recordo-o - respondeu Isadora com expressão carrancuda. —Disse que conceder uma oportunidade a uma jovem era algo digno de elogio. Era mais liberal e um bom exemplo de tolerância moderna.

—Tolices! Essas foram as palavras do Parmenter - contradisse ele, mal-humorado. —Me dá a impressão de que sua memória já não é o que era.

Isadora recordava com toda exatidão. Trataram o tema sentados naquele mesmo salão. Ramsay Parmenter se inclinou em seu assento e enumerou os méritos acadêmicos de Unity Bellwood, acrescentando que se propunha contratá-la de maneira temporária, desde que o bispo desse sua permissão. Reginald meditou nisso por um momento, a vista fixa no fogo e os lábios apertados. Era novembro, e um dia especialmente frio. O mordomo lhes tinha servido conhaque, e Reginald o agitava com suavidade na taça; à luz do fogo, parecia âmbar. Finalmente opinou que demonstrava uma atitude liberal e progressista. Devia fomentar o estudo sem discriminação alguma. A Igreja devia pregar com o exemplo quanto à moderna tolerância, valorizando às pessoas em virtude de seus méritos.

Ergueu a vista e olhou a seu marido, de pé ante ela, o sobrecenho franzido, o colarinho um pouco mais alto de um lado que de outro, os ombros cheios pela tensão. Não valia a pena discutir. Em qualquer caso, ele se negaria a aceitar.

—A questão é - declarou o bispo —como minimizar o prejuízo que este fato ocasionará à Igreja, como evitar que o trabalho de mulheres e homens cristãos em seu conjunto se veja obstaculizado pelo escândalo que este assunto pode suscitar se não se dirige com acerto. Não imagina as manchetes dos jornais? "Bispo em florações assassina a sua amante." -Fechou os olhos como se o tivesse transpassado uma pontada de dor física, seu rosto pálido e desencaixado.

Isadora imaginava perfeitamente, mas sua maior preocupação era Vita Parmenter e a comoção e a angústia que sentiria, que em realidade já devia estar sentindo. Por bem que Vita conhecesse seu marido, por mais que confiasse nele, sucumbiria ao pânico ante a possibilidade de que o acusassem. Às vezes pessoas inocentes pagavam por outros com seu sofrimento, ou inclusive com a morte. E o próprio Ramsay devia experimentar um caos de emoções, todas elas dolorosas por igual, tanto se fosse culpado como se não. Aquela situação devia ser um pesadelo para ele.

—Possivelmente consiga persuadi-lo para que alegue loucura - comentou o bispo, olhando a Isadora. —Sem dúvida está completamente louco. Nenhum homem em seu são julgamento embarcaria em uma aventura amorosa com uma mulher como Unity Bellwood, perderia logo todo contato com a moralidade, com suas crenças mais arraigadas e com todos os ensinos recebidos, e finalmente a assassinaria em um arrebatamento de histeria. Alegando loucura, não faltaria à verdade. - Assentiu com a cabeça, resolvido a convencer a sua esposa. —Não pode culpar-se a um louco, mas só compadecê-se dele. E naturalmente confiná-lo em algum lugar adequado. -inclinou-se. —Seria atendido na melhor e mais segura instituição que encontremos. Receberia os cuidados necessários. Seria o melhor para todos.

Isadora estava aturdida pela velocidade com que ele tinha passado de uma dúvida a uma hipótese, e logo a uma suspeita, para chegar por último a uma solução em que Ramsay Parmenter era julgado e sentenciado. Tinha necessitado menos de três minutos. Ela se sentia à margem de tudo isso, como se estivesse presente no salão só de certo modo. Uma parte dela se achava longe dali, contemplando a distância a aprazível dignidade do salão com seu tapete estampado de cor vinho, o suave fogo, o bispo de pé com os punhos fechados ante si, manifestando sua decisão. Apesar de familiar que lhe era a presença física dele, via-o ao mesmo tempo como um estranho, uma mente e uma alma que não conhecia absolutamente.

—Ainda não sabe nada a respeito. - As palavras escaparam de sua boca antes que parasse a considerar como reagiria ele ao ouvi-las. —Possivelmente não seja culpado de nada.

—Não posso ficar de braços cruzados até que o processem, não acha? - perguntou ele irado, retrocedendo para aproximar-se mais ao fogo. —Devo tomar medidas para proteger à Igreja. Dá-se conta disso, não? As conseqüências podem ser desastrosas. - Lançou-lhe um olhar acusador, como se ela tivesse dificuldade de entender de propósito. —Já temos suficientes inimigos no mundo moderno sem esta espécie de fatalidades. Em todas partes há pessoas que negam a existência de Deus, que levantam baluartes intelectuais consagrados à razão como se esta fora uma deidade, como se pudesse dar respostas a todos nossos desejos e aspirações de seguir pelo bom caminho. - Fendeu o ar com um dedo. —Unity Bellwood era só uma apóstola mais do espírito sem moralidade, do abandono aos mais baixos instintos do corpo, como se em certo modo o conhecimento o eximisse a um das regras que governam a outros. Parmenter estava muito equivocado ao pensar que podia inculcar melhores ideais, reformá-la ou, se quiser, convertê-la. Era a máxima arrogância, e já vê o preço que teve que pagar por isso. - Começou a passear de novo, indo até o extremo do salão com enérgicas passadas, dando meia volta e voltando atrás, dando outra vez meia volta e traçando exatamente o mesmo caminho pelo tapete. Este começava a dar sinais de desgaste ali onde ele pisava em uma e outra vez.

—Agora devo pensar o que é o melhor para todos. Não posso me mostrar tolerante com um a custa da maioria. Esse é um luxo que não me posso permitir. Não é momento de sentimentalismos.

—Falou com ele? - perguntou Isadora, procurando algum pretexto para atrasar seus planos. Sem dar-se conta, tinha tomado a determinação de lutar contra ele.

—Ainda não, mas o farei, naturalmente. Primeiro tenho que pensar o que dizer. Não posso me apresentar ante Parmenter confiando na improvisação. Seria injusto com ele e poderia ter um efeito catastrófico.

Isadora se sentiu ainda mais afastada dele, quase uma desconhecida. E o mais doloroso era que desejava sentir-se afastada, distanciar-se tanto dos pensamentos que ele expressava como das ações que se propunha empreender.

—Talvez lhe diga algo que esclareça tudo - replicou. —Não deve atuar antes disso. Ficaria em ridículo se o condenasse e depois se descobrisse que é inocente. O que pensariam as pessoas então da Igreja, vendo que tinha abandonado a um dos seus quando este mais a necessitava? E o que me diz da honra, da lealdade ou inclusive da compaixão? - Pronunciou a última palavra com aspereza, incapaz de continuar contendo sua ira, sem desejar de fato ocultá-la por mais tempo.

O bispo se deteve no meio do salão e a olhou assombrado. Respirou fundo. Parecia preocupado, ou inclusive assustado.

Isadora desejou sentir pena dele. Era uma situação muito delicada. À margem de qual fosse a decisão de seu marido, tinha grandes probabilidades de equivocar-se, e sem dúvida assim o interpretariam muitos. Sempre havia pessoas dispostas a criticar. Tinham suas próprias razões, razões políticas. A política eclesiástica era um formigueiro de rivalidades, sentimentos feridos, ambição, culpa, esperanças frustradas. A mitra do bispo era em muitos sentidos um ornamento tão pesado e incômodo como a coroa. esperava-se muito de quem a levava, uma santidade, uma retidão moral que nenhum mortal podia alcançar. E, entretanto, observando-o, Isadora não via um homem lutando denodadamente para agir de maneira justa ante um difícil dilema. Em lugar disso, via um homem procurando a solução mais conveniente para não sair ele mesmo maltratado, e inclusive a um homem recreando-se em certa auto-suficiência por considerar-se O Salvador da Igreja sob tal pressão. advertia-se nele deste modo certa complacência no papel de mártir. Nenhuma só vez tinha expresso compaixão por nenhum dos membros da família Parmenter, nem dor por Unity.

—Pensa que seria interpretado mal? - perguntou o bispo com seriedade.

—Como? - disse Isadora. Não sabia do que falava. Acaso tinha feito algum

comentário que ela não tinha ouvido?

—Acha que as pessoas interpretariam mal nossos motivos? - repetiu ele, reformulando a pergunta em termos supostamente mais claros.

—Interpretaria mal o que?

—O que vai ser? O fato de que aconselhássemos ao Ramsay Parmenter alegar loucura. Onde tem posta a atenção? - Rugas de inquietação sulcavam seu rosto —Pelo que disse, parece acreditar que poderia entender-se como uma deslealdade ou certa covardia, como se o tivéssemos abandonado.

—E não é isso exatamente o que você propõe, abandoná-lo?

O bispo se ruborizou.

—Não, claro que não! Não sei como lhe ocorre uma idéia semelhante - replicou, indignado. —Pretendo simplesmente antepor os interesses da Igreja, e isso significa não só fazer o correto, mas também além disso que se perceba como correto. Teria pensado que, depois de tantos anos, fosse capaz de compreender no mínimo uma coisa tão elementar como essa.

Isadora se assombrou de sua própria ignorância, mas não por sua suposta incompreensão daqueles raciocínios, mas sim por sua nula percepção de si mesma, e de seu marido. Como era possível que o conhecesse tão pouco, que até então não tivesse visto nele esse traço? Era uma mesquinharia que feria tão profundamente que poderia pôr-se a chorar por causa da decepção e sentimento de solidão.

O bispo falava para si, expressando seus pensamentos em voz alta.

—Possivelmente deva acudir ao Harold Petheridge. Ele poderia exercer certa influência. Ao fim e ao cabo, o governo tem um interesse direto no assunto. – Voltou a passear. —A ninguém convém um escândalo, e terá que pensar-se na família. Para eles, esta situação deve ser horrível.

Olhando-o, Isadora se perguntou se tinha detido a pensar por um só instante no próprio Ramsay Parmenter, nos temores que deviam espreitá-lo, as dúvidas dilaceradoras, a confusão e possivelmente a culpa. Podia existir maior solidão que a que ele sentia então? Ocorreria a Reginald ir oferecer lhe alguma espécie de ajuda espiritual, o apoio de um amigo se era inocente, a coragem para manter-se firme e lutar por ser desculpado? Ou se era culpado, apresentar-se em sua função de pastor para escutar sua confusão e seu pecado, e ajudá-lo a achar alguma forma de arrependimento, no mínimo o princípio de um longo caminho. Isadora precisava acreditar que podia fazer-se algo por ele. Possivelmente o homem que ela conhecia se afastara do bom caminho e feito um terrível engano, mas não era um homem perverso, alguém a quem deixar abandonado como um objeto que perdeu toda utilidade. Acaso o objetivo da Igreja não era, em essência, difundir o Evangelho entre todas as pessoas e chamar ao arrependimento a quantos escutassem, sem excluir a ninguém?

—Irá ver Ramsay, não é verdade? - disse Isadora com súbito apresso.

O bispo se achava junto à janela do fundo do salão.

—Sim, claro que irei - respondeu, irritado. —Já me perguntou isso antes. É vital que fale com ele. Preciso conhecer melhor a situação para formar uma idéia clara que me permita tomar a melhor decisão possível. - arrumou a jaqueta. —Vou a meu gabinete. Tenho que me serenar um pouco. boa noite.

Ela não respondeu, e ele não pareceu notá-lo. Saiu e fechou a porta com suavidade.

 

Na manhã posterior à morte de Unity Bellwood, Pitt foi ao escritório do legista. Não esperava obter nenhum dado útil, mas era uma obrigação que não podia deixar de lado. Era outro desses dias frios de princípios da primavera, e apesar da desagradável tarefa que tinha diante, Pitt caminhava com passo enérgico. No momento não tinha visto a notícia nos tabloides de anúncios que usava a imprensa para seus avanços informativos, e as manchetes dos jornais se concentravam em geral na política africana de Cecil Rhodes, na economia nacional e no perpétuo conflito irlandês.

Subiu os degraus de dois em dois e percorreu os corredores alheio ao aroma de ácido fénico e formol. Bateu na porta do escritório do legista e entrou. Era um espaço reduzido, com livros por toda parte, nas prateleiras, no chão e empilhados sobre a escrivaninha.

—Bom dia, doutor Marshall - saudou com tom alegre. —Tem algo para mim?

Marshall, um homem baixo e enxuto de barba cinza, levantou a vista do papel em que escrevia e o olhou, mantendo a pena em alto sobre a folha.

—Sim, tenho algo, e não vai gostar - anunciou com um sorriso cordial, mas sem satisfação. —Há vezes em que penso que meu trabalho não é apto nem para o homem mais otimista em um dia quente e ensolarado. Mas outras vezes o prefiro ao dele. E esta é uma delas.

—O que descobriu? - perguntou Pitt com repentino desânimo. —Não morreu por causa da queda? Não me diga que a estrangularam. Não havia marcas. Comprovei-o. Tinham-na golpeado antes de cair? - Se for assim, teria que descartar a morte acidental, e inclusive a hipótese de que depois da discussão se produzira uma briga e, como resultado , a posterior queda, que era o que Pitt de fato esperava. A mentira do Parmenter podia ainda explicar-se e logo ocultar-se. Só tinham transcorrido vinte e quatro horas desde a morte de Unity Bellwood. A inicial comoção podia causar uma grande angustia e transtornos mentais transitivos. Sempre podia apresentar o caso de tal modo que parecesse que Parmenter tinha reconhecido sua participação quase imediatamente.

—Não, não - respondeu Marshall. —Não aconteceu nada à garota, salvo pelos machucados, provocados sem dúvida pelos golpes contra os degraus, o corrimão e a parede enquanto caía, e, claro está, a fratura de pescoço. Se todo mundo me chegasse aqui em tão bom estado de saúde como ela, ficaria sem trabalho.

—O que é então que não vou gostar? - perguntou Pitt, tirando os livros da única cadeira do escritório, além da que Marshall ocupava, e sentando-se de meio lado.

—Estava grávida de uns três meses - disse Marshall. Pitt deveria havê-lo imaginado. Era o desastre lógico que deveria ter previsto. A tendência de Unity para o pensamento radical podia facilmente incluir a liberdade sexual, em voga entre uma parte da elite artística e intelectual. Ao longo da história tinha tido destacadas figuras do pensamento e criação que se consideravam à margem das habituais restrições do comportamento. E nunca lhes faltavam seguidores. Não era estranho que para Ramsay Parmenter parecesse uma mulher perigosa. Mas acaso lhe parecia também atraente... irresistivelmente atraente?

Igual suspeita podia recair em Mallory... ou em Dominic Corde. Pitt recordou Dominic tal como o tinha conhecido em outro tempo: bonito, seduzindo com tal facilidade que mal se dava conta, e permitindo-se muitas oportunidades, muitas jovens predispostas. Realmente tinha mudado tanto como aparentava, ou continuava sendo esse seu ponto fraco, só que agora o mascarava atrás do colarinho clerical? Até enquanto iam a sua mente tais pensamentos, Pitt era consciente de que estavam motivados tanto pela razão como por sentimentos pessoais.

—Não sei - disse Marshall, interrompendo suas reflexões.

—Como diz? - Pitt lhe dirigiu um olhar interrogativo.

—Não tenho a menor idéia de quem poderia ser o pai da criatura – esclareceu Marshall. —É impossível sabê-lo, mas se trata de um assunto desagradável, considerando onde vivia ela atualmente.

"Desagradável" era pouco dizer. Qualquer daqueles homens veria arruinada sua vida pelo escândalo, ou possivelmente os três se o caso ficasse sem resolver. E isso era precisamente o que Cornwallis desejava prevenir.

—Ela conhecia seu estado, suponho? - disse.

Marshall deu de ombros em um gesto de dúvida.

—Provavelmente, mas sei de mulheres que passaram toda a gravidez e o parto as pegaram de surpresa. Mas pelo que ouvi dizer desta, imagino que sabia. Normalmente, a maioria das mulheres sabe.

—Ah. - Pitt reclinou-se na cadeira e meteu as mãos nos bolsos.

—Chantagem? - perguntou Marshall, observando-o com expressão compassiva. —Ou um grande amor? Uma esposa traída, enganada depois de trinta anos de fidelidade conjugal?

—Não - respondeu Pitt com um sorriso. —Desta vez não. Duvido que Vita Parmenter seja dessa espécie de mulher que permite que algo assim ocorra ou reage com violência se chega a acontecer. Em todo caso, ela é uma das duas únicas pessoas da família que não tiveram oportunidade de empurrar Unity. Se me houvesse dito que a estrangularam depois da queda, possivelmente poderia havê-lo feito ela.

—Não, morreu por causa da queda - se reafirmou Marshall com tom taxativo.

Tomou ar. —O qual ainda deixa abertas várias possibilidades. Um amante despeitado: "Se não puder ser minha, não será de ninguém." A chantagem por parte dela a algum dos homens da casa, ameaçando-o de revelar que ele era o pai, ou temia ser o pai. -Olhava ao Pitt enquanto falava. —O ciúmes de algum deles porque sabia que não era o pai e achava que ela o tinha enganado com outro... e era uma fulana, ou algo pior. -Arqueou uma sobrancelha. —Ou ciúmes por parte de alguma das mulheres da casa se o pai era o ajudante. Ou inclusive uma das mulheres para proteger da chantagem o pai da criatura.

—Obrigado -disse Pitt com tom sarcástico. —Já tinha pensado em quase todas essas possibilidades.

—Sinto muito. - Marshall esboçou um sorriso sombrio. —Como disse, às vezes

acredito que seu trabalho é pior que o meu. Ao menos, as pessoas com que eu trato já não é suscetível de sofrimento humano. E neste caso em particular, a morte foi rápida, questão de segundos.

Embora Pitt já o supunha, proporcionou-lhe certo consolo ouvi-lo dizer em voz alta. Era um motivo de dor a menos.

—Obrigado - disse, desta vez sem a menor castidade. —Há algum outro dado de interesse? Alguma prova que pode ser esclarecedora? Conhecemos a hora. Sabemos o que ocorreu. Não apresenta o cadáver algum sinal que possa revelar a identidade do agressor.... a estatura, o peso, um fio, a marca de uma mão?

Marshall o olhou com expressão pouco alentadora.

—Só posso lhe dizer que a mancha da sapatilha era um pesticida usado para proteger dos insetos as plantas da estufa.

—Posto que averiguamos que procedia da estufa, isso não nos ajuda - respondeu Pitt. —Salvo que Mallory declarou que Unity não tinha entrado ali, e pelo visto tinha entrado. Às vezes as pessoas mentem por medo, e nem sempre forçosamente por culpa.

—Considerou a possibilidade de que haja mais de uma pessoa implicada? - sugeriu Marshall solicitamente, os olhos muito abertos e o olhar firme. —Talvez o pai da criatura e alguém disposto a protegê-lo?

Pitt lhe lançou um olhar iracundo e ficou em pé, arrastando ruidosamente a cadeira sem querer.

—Obrigado por sua informação, doutor Marshall. Deixo-o com seu trabalho antes de que lhe ocorra alguma outra coisa que complique ainda mais o meu. – E esboçando meio sorriso, encaminhou-se para a porta.

—Bom dia -se despediu Marshall com bom humor.

 

 

Pitt foi direto ao escritório do Cornwallis. Era necessário lhe informar do achado do doutor Marshall. Duvidava que isso alterasse as instruções do subchefe de polícia com respeito ao caso, mas convinha que estivesse informado. Se a informação viesse à luz mais adiante, Cornwallis seria tachado de inapto se não estivesse ao corrente.

—De quanto? - perguntou Cornwallis, de pé junto à janela. A um passo dele, o sol da primavera formava figuras geométricas no chão de mogno.

—Uns três meses - respondeu Pitt, percebendo uma careta no rosto do Cornwallis. Adivinhou que por um instante o subchefe tinha albergado a esperança de que o princípio da gravidez fosse anterior à chegada de Unity a Brunswick Gardens.

Cornwallis se voltou para o Pitt com lúgubre semblante. Não era necessário que explicasse o motivo de sua expressão. Todas as possibilidades que se baralhavam eram potencialmente desastrosas e com toda certeza trágicas.

—É uma má notícia - sussurrou. —Que impressão tem do Parmenter? Parece-lhe o tipo de homem que se deixaria tentar por uma jovem e sucumbiria logo ao pânico?

Pitt tratou de pensar com sincera objetividade. Recordou o rosto ascético do Ramsay, a dor e a confusão refletidos em seu olhar, os repentinos estalos de ira quando falava de Charles Darwin.

—Não acredito - respondeu com cautela. —Unity lhe desagradava, às vezes de maneira intensa, mas aparentemente era só por suas idéias... - interrompeu-se, recordando os comentários do Ramsay a respeito da imoralidade dela. Teria feito-os se ele mesmo se aproveitara dessa imoralidade?

—E? - perguntou Cornwallis, atento a suas palavras.

—Em opinião do Parmenter, Unity era uma mulher imoral - explicou Pitt. —Mas não disse em que sentido concretamente. Possivelmente não se referia a sua sexualidade.

Cornwallis arqueou as sobrancelhas em uma expressão de incredulidade. Pitt preferiu não discrepar. Era um argumento pouco sólido e sabia. Ele mesmo tinha interpretado em seu momento que Ramsay aludia à falta de castidade, não a alguma forma de desonestidade intelectual, egoísmo, frieza, crueldade, ou qualquer outro dos pecados humanos. Por uma convenção da linguagem, a palavra "imoralidade" transmitia em geral um único sentido.

—Não acredito que o tivesse mencionado se tivesse existido uma relação ilícita entre eles - indicou. —E menos ainda depois da morte de Unity. Tinha que saber que descobriríamos a gravidez.

—Acredita que é inocente? - Cornwallis estava desconcertado. —Ou que este novo dado não tem nada que ver com o ocorrido?

—Não sei - admitiu Pitt. —Se for culpado, demonstra uma sutil inteligência em certos aspectos e uma estupidez única em outros. Não consigo entender isso. As provas físicas parecem claras. Quatro pessoas a ouviram gritar: "Não, não, reverendo!"

—Quatro? - perguntou Cornwallis. —Disse que o tinham ouvido a criada, o valete e uma filha. Quem é a quarta?

—A senhora Parmenter. Evitou dizê-lo tão diretamente, mas por força deve tê-lo ouvido. Não o negou; simplesmente se mostrou evasiva quanto às últimas palavras pronunciadas por Unity, como é lógico.

—Compreendo. Bem, me mantenha informado... interrompeu-se ao ouvir que alguém batia na porta. Quando deu sua permissão, um agente apareceu e anunciou que sir Gerald Smithers, do escritório do primeiro-ministro, estava ali e desejava ver o capitão Cornwallis urgentemente. Imediatamente apareceu depois do agente o próprio Smithers, que o afastou e entrou no escritório. Esboçou um breve sorriso que desapareceu de seu semblante sem deixar rastro. Era um homem de aspecto comum, salvo pela extrema segurança em si mesmo que exibia. Ia bem vestido de uma maneira discreta e cara.

—Bom dia, Cornwallis - disse com urgência. Olhou ao Pitt. —Senhor.... alegra-me encontrá-lo aqui. Sua presença não podia ser mais oportuna. - Fechou a porta, deixando fora o agente. —Um lamentável assunto, o acontecimento de Brunswick Gardens. Devemos cooperar todos nisto. Estou certo de que o entendem. - Observou-os a ambos como se sua última frase fosse uma pergunta, mas não aguardou a resposta. Dirigindo-se ao Cornwallis, acrescentou-: Alguma novidade a respeito?

Cornwallis ficou tenso, adotando uma postura rígida, quase como se tratasse de manter o equilíbrio na ponte de um navio sacudido pelas ondas.

—Sim. Unity Bellwood estava grávida de três meses - informou.

—Ah. - Smithers assimilou a alarmante noticia. —Valha-me Deus! Suponho que era de se esperar algo assim. Um incidente francamente desafortunado. O que se propõem fazer para conter a situação?

—Acabo de me inteirar - respondeu Cornwallis com surpresa. —Duvido que possamos ocultar isso. É muito provável que seja o motivo do crime.

—Confio em que não seja assim - disse Smithers, e o sol se refletiu em abotoaduras de ouro com suas iniciais. —É nossa responsabilidade procurar que as coisas não cheguem a esse ponto. - Olhou por fim ao Pitt. —Existe alguma possibilidade de que fosse um simples acidente?

—Quatro pessoas a ouviram gritar: "Não, não, reverendo!" - indicou Pitt. —E não havia nada com que tropeçar.

—Que pessoas? - inquiriu Smithers. —São de confiança? Pode se dar crédito?

Não poderiam haver-se confundido?

Cornwallis, seu semblante sombrio, parecia em posição de firmeza. Pitt o conhecia bem e sabia que essa atitude formal era uma mera aparência para esconder seu desgosto.

—Uma delas é a esposa do Parmenter - disse, antecipando-se ao Pitt.

—Ah, estupendo! - exclamou Smithers ostensivamente agradado. —Não pode ser obrigada a testemunhar contra ele. - esfregou as mãos. —As perspectivas melhoram cada vez mais. E as outras? desvaneceram-se as formas de luz projetadas no chão pelo sol. Fora o ruído da rua era contínuo e monótono.

—Dois são criados. - Desta vez foi Pitt quem respondeu. Viu crescer a satisfação no olhar do Smithers. —E a outra é sua filha, que se mostra inflexível. Smithers arqueou as sobrancelhas.

—Uma moça? Um tanto histérica, possivelmente? - Sorria. —Pouco equilibrada? Apaixonada, talvez perturbada pela desaprovação de seus pais e reagindo agora com um excesso de emotividade? - Todo seu corpo se relaxou. —Estou certo de que podemos persuadi-la para que reconsidere sua postura. Ou no pior dos casos, se não houver mais remédio, desacreditá-la. Mas confio que vocês solucionem de maneira que não terei que adotar uma medida tão extrema. - Lançou um eloqüente olhar ao Pitt.

—Então vale mais que encontremos provas que apontem em outra direção - respondeu Pitt, tentando dissimular seu desprezo. —A filha seria uma excelente testemunha. É inteligente, sabe expressar-se e está muito indignada. Acredita fervorosamente na honestidade e na justiça e duvido muito que se deixe convencer para que oculte algo que considera aberrante. Se esperar que cometa perjúrio para defender a seu pai, acredito que se verá defraudado. Tinha em alta estima à senhorita Bellwood.

—Ah, sim? - disse Smithers com frieza, contraindo um lábio. Observou ao Pitt com desagrado. —Enfim, isso não parece muito natural. Que jovem normal ficaria do lado de uma empregada, por culta que esta fosse, e contra seu próprio pai? – Olhou fixamente para Cornwallis. - Não acredito que seja necessário acrescentar nada mais a esse respeito. Fala por si só. Uma atitude muito molesta. Procurem deixar isso à margem do assunto, em consideração ao decoro e aos sentimentos da família. Cornwallis ardia de indignação, mas ao mesmo tempo estava desconcertado. Não entendia o propósito do Smithers. Durante seus anos na marinha tinha aprendido muito sobre os homens e o comando, sobre a liderança moral e física, sobre o valor e a sabedoria em muito diversas formas. Mas havia aspectos das relações humanas que escapavam totalmente a sua compreensão, e mal conhecia o mundo das mulheres.

—Sim, senhor - disse Pitt ao Smithers. Poucos homens lhe tinham despertado tão instantânea e profunda antipatia. —Mas se chegarmos a julgamento, a senhora Whickham testemunhará quase com toda segurança, já que ouviu gritar à senhorita Bellwood, e qualquer promotor a consideraria uma excelente testemunha. Sua concepção da justiça e da integridade imporiam respeito.

—Como diz? - Smithers estava confuso. —falou de "sua filha". Quem é essa senhora Whickham?

—Sua filha - respondeu Pitt com tom equânime. —É viúva.

Smithers foi às nuvens.

—Se não entendi mau, insinua que essa mulher sentia um desequilibrado afeto pela senhorita Bellwood, preferindo-a a sua própria família - disse com tom acusador.

—Quero dizer que a senhora Whickham sentia uma grande admiração pela luta da senhorita Bellwood em favor dos direitos políticos e educativos das mulheres - corrigiu Pitt. —E da justiça em geral, e que dificilmente cometeria perjúrio em defesa de quem quer que assassinasse a sua amiga, mesmo se, se demonstrasse que foi alguém de sua própria família.

Smithers arqueou as sobrancelhas desmesuradamente.

—Ah! Está me falando de uma "nova mulher". Uma dessas criaturas ridículas e pouco femininas que pretendem que as mulheres se comportem como os homens, e que os homens o aceitem. - Soltou uma cáustica gargalhada. —Bem, se for assim, me alegro de que você se dedique só a investigar, e não lhe corresponda tomar as decisões finais sobre o que convém fazer. - voltou-se para Cornwallis. —Se esse desventurado Parmenter for culpado, o melhor para todos seria demonstrar que padecia de algum tipo de transtorno mental, que se declarasse culpado mas alegasse loucura, e que o assunto se resolvesse com prontidão e discrição. - Falava com tom imperioso. —Ao pobre homem deve afligir alguma forma de demência. Podem cuidar dele em uma instituição adequada onde não faça mal a ninguém. Sua família não tem por que saber mais que o imprescindível. Moderaremos a justiça com misericórdia. - Sorriu, obviamente satisfeito de sua frase.

A chuva açoitou ruidosamente os vidros das janelas, como se caíssem pequenas pedras em lugar de gotas de água. Cornwallis, lívido, olhou com fixidez ao Smithers.

—E se não for culpado? - perguntou, sua voz quase um sussurro.

—Se ele não o for, será-o outro - respondeu Smithers tranqüilamente. —Se for filho católico, o assunto tem pouca importância; e se for o novo ajudante, será um fato desafortunado mas não trágico. - voltou-se para o Pitt. Nesse momento chovia torrencialmente, uma típica tormenta de março. —Mas seja qual for o resultado, é vital que cheguem quanto antes a uma conclusão. O ideal seria... o melhor seria... dispor de algum tipo de comunicado amanhã. É possível?

—Não, a menos que o reverendo Parmenter se declare culpado voluntariamente - respondeu Pitt.

Nos lábios do Smithers se desenhou um frio sorriso.

—Nesse caso, tente convencê-lo. Faça-o ver as vantagens. Seria em seu próprio benefício. Estou certo de que pode consegui-lo. - Pronunciou estas últimas palavras a modo de ordem —Me mantenha informado se por acaso posso ajudar em algo.

—E me diga, senhor, em nome de que ministério vem? - perguntou Cornwallis.

—Ah, isto não é uma visita oficial - respondeu Smithers com um indício de irritação. —Só estou aqui para lhe oferecer conselho, por assim dizer. Sem dúvida o compreenderão. bom dia, cavalheiros. - E sem aguardar resposta, caminhou até a porta, hesitou por um instante e saiu.

—Se Parmenter tiver perdido o juízo - comentou Pitt com amargo sarcasmo —até o ponto de ter uma aventura com uma "nova mulher" radical em sua própria casa e logo assassiná-la arrojando-a escada abaixo, duvido que se atenha a razões sobre a conveniência de aceitar docilmente sua reclusão em um manicômio, seja público ou privado. Não acredito possuir os dotes de persuasão necessários para convencê-lo disso.

—Nem sequer deve tentá-lo! - exclamou Cornwallis, de costas à janela. A luz cinzenta do dia amortecia as cores do escritório. —Só a idéia é uma aberração! - Sua fúria era tal que não podia parar quieto. Inclusive seus lábios tinham empalidecido. —Não pode proteger-se mediante a mentira uma fé apoiada na honra e na obediência às leis da justiça e a integridade. - passeou de um lado a outro.

—A compaixão é a maior de todas as virtudes, mas a liberdade não consiste em transpassar culpas ou encobrir o pecado com enganos. Essas atitudes correm os fundamentos mesmos em que tudo se apóia. O perdão vem depois do remorso, não antes.

Pitt não o interrompeu.

Cornwallis se movia a sacudidas, os ombros tensos, os punhos fechados, os dedos reluzentes.

—E nem sequer contempla a possibilidade de que Parmenter seja inocente - acrescentou. —Admito que parece o verdadeiro culpado, mas não temos a total certeza, e ele o nega. - deu meia volta e se dirigiu novamente para a janela, olhando não obstante ao Pitt enquanto falava. —Smithers não tem direito a pressupor sua culpa enquanto esta não se demonstrar além de toda dúvida fundada. Se negarmos ao Parmenter a oportunidade de defender-se ante os tribunais, em caso de que ele a queira, seremos culpados de uma injustiça atroz.... imperdoável, porque nossa responsabilidade é respeitar e proteger a lei, administrá-la. Se não o fizermos nós, em quem vão confiar as pessoas? - Olhou ao Pitt com uma expressão quase desafiante, embora era sua própria indignação a que falava por ele.

—Assim, tenho suas ordens de continuar com a investigação - perguntou Pitt.

—Acaso não era essa sua idéia? - disse Cornwallis com um indício de consternação.

Pitt lhe sorriu.

—Sim, era, mas eu não tinha por que lhe informar disso... se o punha em uma situação comprometedora.

—Obrigado - respondeu Cornwallis com um fugaz sorriso. —Mas não quero que me protejam de minhas responsabilidades. Ordeno-lhe que faça quanto esteja em sua mão para averiguar a verdade, e toda a verdade, a respeito do ocorrido em Brunswick Gardens. Se considerar prudente, o darei por escrito.

Fora deixou de chover.

—Obrigado, mas considero imprudente - respondeu Pitt. Desejava atuar com tato, mas às vezes Cornwallis não compreendia as necessidades da política. —Uma linha reta nem sempre é o caminho mais curto entre dois pontos.

Uma faísca de compreensão brilhou no olhar do Cornwallis, mas sua indignação com o Smithers lhe impedia ainda relaxar.

—Tome o caminho que julgue oportuno – disse, —mas faça-o! Falei claro?

Pitt se ergueu ligeiramente.

—Sim, senhor. Informarei-lhe mal saiba algo com segurança.

—Sim, me informe.

Cornwallis tomou ar como se fora a perguntar algo, mas finalmente trocou de idéia e desejou ao Pitt um bom dia.

Não havia mais prova físicas que investigar. Pitt não via modo algum de averiguar de quem tinha ficado grávida Unity, ao menos enquanto não dispusesse de muito mais informação sobre os homens da casa. Tinha conhecido Dominic no passado, mas não sabia nada de sua vida nos últimos seis ou sete anos, época pelo visto em que tinha experimentado grandes mudanças. Sendo sincero consigo mesmo, devia admitir que era injusto julgar a um homem por seu passado, sem incluir o presente.

Também devia conhecer melhor ao Mallory Parmenter. Não existiam razões para suspeitar dele, salvo pela marca na sola da sapatilha de Unity, e isso tinha sido uma mentira compreensível, embora denotava certo infantilismo e carência da dignidade ou da maturidade de discernimento que cabia esperar de um homem a ponto de consagrar-se ao sacerdócio de qualquer credo.

Mas primeiro devia se aprofundar na personalidade do Ramsay Parmenter. Se realmente se achava tão à beira do desequilíbrio psíquico ou emocional como o assassinato de Unity fazia pensar, forçosamente tinham que perceber-se indícios de seu estado.

Pitt tinha dedicado a maior parte do dia anterior a localizar pessoas que tivessem conhecido ao Ramsay ao longo dos anos. Foi Tellman quem descobriu a um amigo e companheiro da universidade que residia atualmente no Highbury, quase nos subúrbios de Londres, e combinou para Pitt uma entrevista com ele.

Pitt viajou de trem até o Highbury, com baldeação no Islington, e na estação pegou um cabriolé de aluguel que o levou a tranqüila residência do reverendo Frederick Glover, no Aberdeen Park, perto da igreja de São Salvador.

—No que posso lhe servir? - perguntou Glover, guiando ao Pitt a um escritório pequeno e abarrotado. Fileiras de livros cobriam todas as paredes, salvo as profundas saliências onde se achavam as pequenas janelas que davam a um jardim cheio de flores tardias, delimitado por árvores e taipas musgosas. Em outras circunstâncias Pitt lhe teria perguntado pelo jardim e aprendido possivelmente algum ou outro aspecto da arte da jardinagem. Saltava à vista que aquele era um jardim cuidado com amor e alegria. Mas no momento a situação do Ramsay Parmenter excluía qualquer outro interesse.

—Conforme acredito, estudou você na universidade com o Ramsay Parmenter - disse Pitt, aceitando o convite a sentar-se em uma grande poltrona marrom de couro parcialmente orientada para uma janela.

—Assim é - confirmou Glover. —Já o disse ontem a seu subordinado. - Olhou ao Pitt com expressão afável. Era um homem de perto de sessenta anos, alto e de uma corpulência adquirida com a idade, sem cabelo, no alto da cabeça. Tinha feições agradáveis, onde só rompia as proporções um nariz muito longo. Em sua juventude devia ser bastante bonito. Seu caráter tinha impresso bondade em seu rosto, uma bondade em que não estava ausente de modo algum a inteligência. —Por que esse interesse no Ramsay Parmenter? - Não foi necessário que explicasse a razão dessa pergunta. Não falava da pessoas à ligeira e não faltava à confiança de um amigo. Isso se adivinhava em sua correta atitude e cortês atenção, mas também em uma certa distância que impunha respeito.

Não havia mais resposta útil que a verdade, ou ao menos uma parte dela.

—Porque teve lugar uma tragédia na casa do Parmenter - respondeu Pitt, cruzando as pernas e acomodando-se na poltrona. —Ainda não sabemos com exatidão o que ocorreu. Algumas declarações discrepam das provas físicas, e de fato com as versões de outras testemunhas.

—Uma investigação policial, e de certa gravidade. - Glover moveu a cabeça em um gesto de assentimento. —Ou do contrário não interviria você. Disse-me que vem da delegacia de polícia do Bow Street? - Enrugou a testa. —Achava que Parmenter vivia em Brunswick Gardens.

—E ali vive. O assunto é em extremo delicado.

—Melhor será que me diga a verdade, delegado, e eu farei todo o possível por ajudá-lo. - Parecia perplexo. —Embora não sei do que pode lhe servir o que eu diga. Faz anos que não vejo o Ramsay Parmenter. Encontrei-me com ele em algumas cerimônias, claro está, mas, além das saudações de rigor, não falo com ele há quinze ou talvez vinte anos. Qual é o problema exatamente? Fale com confiança. Tratarei como segredo profissional tudo o que me disser. É minha obrigação, e também meu desejo.

—Contarei, reverendo Glover - respondeu Pitt. —Mas eu gostaria de lhe fazer antes umas perguntas. Não serão de caráter privado ou confidencial.

Glover entrelaçou as mãos sobre seu amplo ventre e inclinou ligeiramente a cabeça, dispondo-se a escutar. Pela naturalidade da postura, Pitt supôs que Glover a adotava com freqüência.

—Quando conheceu o Ramsay Parmenter? - começou Pitt.

—Em 1853, quando ingressamos na universidade - respondeu Glover.

—Que espécie de jovem era ele? Que espécie de estudante?

—Um jovem tranqüilo em sua vida pessoal, e tomava tudo muito a sério. - Glover remontou na lembrança, centrando o olhar no passado-. Zombávamos dele porque tinha pouco senso de humor. Era em extremo ambicioso. - Sorriu —Pessoalmente, sempre pensei que Deus deve ter uma excelente percepção do humorístico e o absurdo; do contrário, não nos teria criado como filhos Dele, ou não nos teria amado depois. Caímos no ridículo muito freqüentemente. - Depois de sua atitude benévola e despreocupada, observava atentamente ao Pitt. —Além disso, considero a capacidade de rir algo muito saudável e uma resposta inteligente tanto às dificuldades como aos prazeres da vida. Às vezes é a base e a demonstração exterior do valor. Mas não veio você para me ouvir filosofar. Desculpe. Ramsay era um magnífico estudante, inclusive brilhante. muito melhor que eu, certamente. Superou todos seus exames com qualificações altas, freqüentemente as mais altas.

—Qual era a meta de sua ambição? - perguntou Pitt por curiosidade. Não sabia bem para aonde apontavam os desejos de um teólogo. —Uma alta posição na hierarquia eclesiástica?

—Sim, isso em parte, sem dúvida. - Glover assentiu com a cabeça. —Mas também escrever a obra definitiva sobre algum tema. Ao fim e ao cabo, isso é uma forma de imortalidade. Não da mesma espécie que a que alcança a alma, naturalmente. Devo admitir que isso teria sua componente de vaidade, não acha? Embora não pretendo insinuar com isso que Ramsay fosse vaidoso.

—Era?

Glover deu de ombros em um gesto de claudicação.

—Sim, era. Ao menos do ponto de vista acadêmico. E era deste modo um brilhante orador. naquela época possuía paixão e entusiasmo, e uma boa voz. Tinha um vocabulário amplo e variado, e conhecimentos suficientes para não repetir-se quase nunca.

Essa descrição não se correspondia à a imagem que Pitt formara dele. Tinha-o despojado dessa paixão a morte do Unity, ou se tinha murchado já antes?

—Teria lhe augurado então um brilhante futuro, uma carreira sobressalente na Igreja? - perguntou Pitt.

—Acredito que todos o esperávamos - afirmou Glover. Um vislumbre de pesar se traduziu em seu semblante, uma leve contração dos lábios, algo em torno dos olhos.

—Mas essas expectativas não se realizaram plenamente - concluiu Pitt. Via ainda o reflexo dourado dos narcisos na periferia de sua visão, e uma onda de luz propagando-se pela erva.

—Não na medida que eu previa então. - Glover o observou, tentando medir até aonde devia chegar em suas declarações. —Eu esperava que a... a paixão perdurasse, aquela enorme convicção. Esperava algo mais original que uns quantos livros doutos e, Deus me perdoe, bastante áridos.

—O que foi feito de sua paixão? - insistiu Pitt.

Glover deixou escapar um suspiro, um som suave, triste e livre de culpa.

—Não tenho certeza. Só posso fazer conjeturas. Por aqueles tempos, tinha menos duvida que qualquer de nós. - Sorriu para si. —Lembro que passávamos as noites em claro bebendo vinho briguento e falando com veemência dos mais diversos temas: Deus e o sentido da vida, a expulsão do Paraíso, o papel da Eva, a predestinação, a graça divina, a justificação da Reforma, toda sorte de heresias a respeito da natureza do Muito alto... Discutíamos tudo, ponto por ponto. Ramsay era o que menos duvidava de si mesmo. Seus raciocínios eram sempre tão convincentes, tão bem argumentados, que em geral era ele quem ganhava.

—Permaneceu em contato com ele depois da universidade?

—Sim, durante um tempo. Lembro a época em que conheceu Vita Stourbudge e começou a cortejá-la. - Tinha o olhar perdido, e um tanto risonho. —Isso o invejamos todos. Ela era muito bonita. - Meneou a cabeça em um gesto de negação. —Não, "bonita" não é a palavra; era mais que isso. Era uma mulher fascinante, cheia de entusiasmo e inteligência. Estou certo de que Ramsay a amava, mas embora não tivesse sido assim, dificilmente poderia ter encontrado melhor esposa. Ela o respaldava em tudo. Parecia tão entregue como ele. - Riu discretamente. —E certamente era um partido muito bom, já que seu pai possuía riqueza e distinção, além de ser um pilar da Igreja.

Assim, Vita não tinha mudado. Pitt via nela tal como era agora à mulher que Glover descrevia, salvo pelo fato de que ele antes ignorava esse dado sobre sua ascendência, embora não lhe surpreendesse.

—Escreveu Ramsay Parmenter a obra definitiva sobre alguma das questões de que falavam? - perguntou. Eram temas que Pitt nunca sequer se expôs. Para ele, a religião se reduzia a uma maneira de comportar-se apoiada nos fundamentos verdadeiros da fé em um ser supremo -simplesmente, a que lhe tinham inculcado na infância- e a uma conduta derivada de uma compreensão cada vez mais profunda da compaixão e da honra. Possivelmente era isso o que tinha em comum com Cornwallis, apesar deque ambos tinham chegado a essa convicção por caminhos muito diferentes.

—Até o momento não, acredito - respondeu Glover. —Sua obra, em conjunto, é muito respeitada pelas altas hierarquias, mas para o público em geral é um tanto... -interrompeu-se, hesitando na escolha do adjetivo. Pitt olhou os narcisos e o sol, mais à frente do reverendo. —Um tanto abstrusa. Muito difícil de entender pela complexidade dos raciocínios. Nem todo mundo possui a preparação intelectual necessária.

—Mas você sim? - perguntou Pitt, obrigando-se a contra gosto a atender. Nada daquilo parecia ter a menor relação com o caso.

—Em realidade, não - respondeu Glover com um sorriso de arrependimento. —Só li a metade de seus livros. Esse tipo de escritos me aborrece. O debate em vivo estava bem, ao menos quando éramos jovens, porque eu gostava de discutir. Mas quando não tenho ao adversário diante em carne e osso... ou talvez fosse mais exato dizer "em espírito".... não me atrai. Reconheço, delegado, que não me interessam as escuridões dos estudos de alto nível. Esse é meu ponto fraco, profissionalmente falando.

—E ao Ramsay Parmenter interessam?

—Antes sim. Não percebo a menor paixão em suas obras recentes. Mas não tem sentido que me pergunte isso . Não sei. Possivelmente não possuo a capacidade necessária para segui-lo. Há quem a tem. É um autor muito admirado.

—Poderia me remeter a alguém em condições de me falar das atuais convicções e aptidões do Ramsay Parmenter?

—Se o desejar... Mas ainda não me contou para que precisa saber tudo isso.

—Uma jovem morreu em trágicas circunstâncias em casa do reverendo Parmenter - respondeu Pitt. —Há ainda certos aspectos que requerem explicação.

Glover se surpreendeu, erguendo as costas e deixando cair as mãos aos lados.

—Um suicídio? - disse com pesar, sua voz apagada por causa da consternação. —meu Deus, quanto o sinto! Já sei que, desgraçadamente, estas coisas acontecem. Um desengano amoroso, imagino. Estava grávida? - Viu assentimento no semblante do Pitt. Suspirou. —Que tragédia! Que inútil perda! Sempre me pareceu um fato tão desnecessário... Deveríamos ter uma maneira melhor de confrontar essas coisas. - Respirou fundo. —Mas que relação pode haver entre isso e os méritos acadêmicos do Ramsay? meu deus... não seria uma de suas filhas, não é? Lembro que a menor, Clarice se chama, acredito, ia casar se com um jovem, mas no final não aceitou o acordo. Nem sequer se celebraram os esponsais. Um desafortunado incidente. Acredito que ela tinha uma concepção excessivamente romântica do matrimônio e não estava disposta a aceitar os compromissos necessários com a vida. - Esboçou um triste sorriso, não isento de compreensão.

—Não - respondeu Pitt, tomando nota mentalmente do que Glover acabava de lhe contar. —Não era uma filha do Ramsay. Era uma especialista em línguas clássicas; ajudava ao reverendo Parmenter com suas traduções.

Aparentemente Glover não saía ainda de seu assombro.

—Não foi um suicídio - acrescentou Pitt. —No momento parece que poderia tratar-se de um homicídio intencional.

Glover ficou estupefato.

—Um assassinato, quer dizer? - perguntou com voz rouca. —Ramsay nunca faria uma coisa assim, asseguro, se for isso o que pensa. Agora carece já da paixão, assim como da crueldade necessária, que ele nunca demonstrou.

Recordando sua entrevista com o Ramsay Parmenter, Pitt não se surpreendeu ante aquela afirmação. Mas ele tinha suposto que a fria atitude do clérigo se devia à comoção, e ao domínio de si mesmo que cabia esperar em um homem de sua posição. Mesmo assim, produzia-lhe certo assombro ouvir dizer isso outra pessoa. Era uma defesa, e ao mesmo tempo uma condenação. Quando tinha morrido a paixão, e por que?

Glover o observava.

—Sinto muito - se desculpou, seu rosto algo contraído pelo arrependimento. —Não deveria ter dito isso. - Um sorriso apareceu em seus olhos, como se zombasse de si mesmo. —Possivelmente invejo sua capacidade intelectual e ao mesmo tempo me indigna que não lhe tenha tirado o rendimento que eu esperava dele. Tomara pudesse ajudá-lo, delegado, mas temo que não posso lhe proporcionar nenhuma informação útil. Lamento muito a morte dessa jovem. Permite-me que lhe ofereça ao menos uma taça de chá?

Pitt sorriu.

—Preferiria dar um passeio por seu jardim, e possivelmente não lhe importe me explicar como consegue esses magníficos narcisos.

Glover ficou de pé imediatamente, quase em um único movimento, sem fazer caso à pontada de dor que sentiu nas costas.

—Com muito gosto - respondeu, e passou a lhe explicar seu método até antes de que saíssem ao jardim, ilustrando com gestos o sentido de suas palavras, o rosto cheio de entusiasmo.

O doutor Sixtus Wheatcroft era um homem muito diferente. Vivia no Shoreditch, a cinco estações do Highbury em trem, mais outro curto trajeto em cabriolé. Sua moradia era ampla mas não tinha jardim, e havia nela ainda mais livros que na do Glover.

—No que posso ajudá-lo, cavalheiro? - perguntou com um indício de impaciência. Era evidente que nesse momento estava estudando algo de grande interesse para ele, e não se esforçou em dissimular que o tinha interrompido com sua visita.

Pitt respondeu formalmente, apresentando-se por seu nome e profissão.

—Investigo a morte da senhorita Unity Bellwood... - E a seguir descreveu de maneira muito resumida as circunstâncias.

Wheatcroft estalou a língua.

—Lamentável. Uma verdadeira desgraça. - Meneou a cabeça em um gesto de pesar -. irei ver o reverendo Parmenter e lhe darei minhas condolências. Deve causar grande consternação que ocorra algo assim na casa de uma pessoa, e mais ainda tratando-se de uma ajudante, sejam quais forem suas qualidades. Sem dúvida não demorará para achar a alguém mais apto para o trabalho, mas deve ser uma experiência perturbadora. Pobre mulher. E em que modo corresponde a você esse assunto, delegado? - Olhou ao Pitt por cima dos óculos. Seguia de pé e não o convidou a tomar assento.

—Precisamos conhecer com maior exatidão o ocorrido... - começou a dizer Pitt.

—Não está já bastante claro? - As sobrancelhas do Wheatcroft formaram dois arcos sobre seus olhos redondos castanhos claros. —Pode isso requerer muita observação e dedução?

—Unity Bellwood caiu pela escada e fraturou o pescoço - esclareceu Pitt. —Ao que parece, empurraram-na.

Wheatcroft demorou uns instantes em digerir aquela assombrosa informação. Depois, com renovada impaciência, franziu o sobrecenho.

—Mas, por que, Deus santo? Por que empurraria alguém a uma jovem escada abaixo? E que espera que eu lhe diga? Conheço a reputação acadêmica do reverendo Parmenter, assim como as radicais opiniões dela, que acho abomináveis. Nunca deveriam haver permitido a essa mulher abordar o estudo sério de questões teológicas. - Apertou os lábios, e inconscientemente adotou uma atitude corporal mais rígida, como se tivesse duros os músculos sob a larga jaqueta. —Essa não é uma matéria adequada para as mulheres. Por natureza, carecem de faculdades para isso. Na teologia, a emoção não tem capacidade; é um terreno para a razão e o espírito puro, livre da ofuscação que se deriva dos sentimentos e preconceitos. - A ele mesmo representava um notável esforço dominar suas emoções.

—De todo modo, isso é água passada e não podemos mudar isso. Pobre Parmenter. Às vezes pagamos muito caros nossos enganos, e estou certo de que só pretendia demonstrar uma atitude liberal, mas não compensa.

—Não tinha ela um bom nível acadêmico? - quis saber Pitt, perguntando-se se Ramsay tinha entabulado relação com ela e logo a tinha contratado por motivos pessoais mais que profissionais.

Wheatcroft permaneceu em pé, como se não tivesse intenção de permitir que Pitt se sentisse bastante cômodo para esquecer que o estava interrompendo em seu trabalho. encolheu os ombros levemente e falou com expressão carrancuda.

—Achava ter explicado já, delegado. Por razões inatas, as mulheres não estão capacitadas para desenvolver uma atividade intelectual séria. - Negou com a cabeça. —A senhorita Bellwood não era uma exceção. Possuía uma mente ágil, e aprendia os meros dados e os recordava tão bem como qualquer um, mas não alcançava uma compreensão profunda.

Observou ao Pitt como se avaliasse seu possível nível de formação. —Uma coisa é traduzir as palavras de uma passagem, e outra muito distinta entrar na mente do autor, assimilar o significado fundamental. Ela não era capaz de fazê-lo, e aí reside a essência do estudo puro. O outro é - estendeu as mãos - uma simples técnica. Muito útil, é claro. Teria realizado um excelente trabalho ensinando aos jovens a mecânica de uma língua estrangeira. Esse teria sido o trabalho ideal para ela. Mas era caprichosa e obstinada, e não se deixava guiar. Demonstrava igual rebeldia em tudo, delegado. Em sua vida pessoal não existia a menor disciplina. Isso em si mesmo deveria lhe servir para compreender claramente meu ponto de vista.

—Por que acredita que a contratou o reverendo Parmenter, sendo ele mesmo um excelente estudioso? - perguntou Pitt, até albergando escassas esperanças de receber uma resposta útil.

—Não tenho a menor ideia. - Era evidente que ao Wheatcroft não interessava sequer parar a pensar nisso.

—Poderia ter tido alguma razão de caráter pessoal? - insistiu Pitt.

—Se a tinha, a mim não me ocorre - respondeu Wheatcroft com impaciência. -Era filha de um parente, talvez, ou amiga de um colega?

—Não.

—Não.... já o supunha. Ela era um tipo de pessoa muito distinta dele. Criada em um entorno liberal e artístico. - Pronunciou essas palavras como se fossem uma condenação em si mesmo. —Francamente, delegado, não sei que deseja ouvir de mim, mas acredito que não posso ajudá-lo.

—Que opinião lhe merecem as publicações acadêmicas do reverendo Parmenter, doutor Wheatcroft? - Falava sem hesitações.

—Magníficas, realmente magníficas. Sobressalente, de fato. É um homem de uma inteligência complexa e profunda. optou por explorar alguns dos temas mais intrincados, estudando os de maneira exaustiva. - Meneou a cabeça em um gesto de entusiasmo, erguendo a voz. —Sua obra é tomada muito a sério pelos contados homens que sabem valorizar tais coisas em sua justa medida. Sua obra perdurará quando ele morrer. É uma contribuição inestimável. - Cravou um severo olhar no Pitt. —Deve fazer quanto esteja a seu alcance para resolver este assunto com a máxima urgência. Um fato realmente lamentável.

—Parece tratar-se de um assassinato, doutor Wheatcroft - informou Pitt com não menos severidade. —Atuar corretamente é mais importante que atuar depressa.

—Algum criado, suponho - comentou Wheatcroft, irritado. —Lamento falar mal dos mortos, mas sem dúvida neste caso a sinceridade é mais importante que a caridade. - Arremedou o tom do Pitt. —A senhorita Bellwood era uma mulher que não considerava necessário nem desejável o autocontrole em questões de apetite carnal, e receio que essa classe de conduta tem seu preço.

—Vejo que é fiel a sua palavra - disse Pitt com acrimônia.

—Como?

—Decididamente antepor a sinceridade à caridade.

—Esse é um comentário de muito mal gosto, cavalheiro - replicou Wheatcroft com surpresa e irritação. —Acho-o ofensivo. Faça o favor de recordar qual é aqui sua posição.

Pitt moveu os ombros e deslocou o peso do corpo de um a outro pé como se, se sentisse incomodado. Sorriu, mostrando os dentes.

—Obrigado por sua hospitalidade - acrescentou Pitt. —Comunicarei suas condolências ao reverendo Parmenter a próxima vez que tenha ocasião de interrogá-lo sobre o assunto, embora provavelmente lhe estaria agradecido se lhe escrevesse uma nota de seu punho e letra. bom dia, cavalheiro.

E antes que Wheatcroft tivesse oportunidade de responder, deu meia volta e se dirigiu para a porta, onde o esperava um criado para acompanhá-lo até a saída.

Já fora da casa, caminhou com passo enérgico. Estava furioso, tanto com o Wheatcroft por seu descortês comportamento como consigo mesmo por replicar a sua provocação. Embora lhe tinha proporcionado considerável satisfação e esperava que Wheatcroft ficasse lívido de raiva.

Chegou a sua casa, no Bloomsbury, pouco antes de anoitecer, ainda iracundo.

Depois do jantar, quando Jemima e Daniel se deitaram e ele e Charlotte estavam sentados no salão ao amor da luz, lhe perguntou a causa de seu aborrecimento, e lhe falou de suas visitas ao Glover e Wheatcroft.

—Que atrocidade! - exclamou Charlotte, deixando cair o trabalho de tricô que tinha entre as mãos. —Diz tudo isso porque ela era uma mulher e não gosta do que imagina que era sua moralidade. E depois tem a descomunal hipocrisia de afirmar que Unity era incapaz do raciocínio objetivo porque se regia por suas emoções. Esse indivíduo é um fanático da pior espécie! - dispôs-se à batalha, cravando as agulhas na meada de lã para prevenir um possível acidente. —Se Unity Bellwood tinha que lutar contra pessoas como essa para fazer um espaço onde poder desenvolver suas aptidões, não estranho que fosse uma mulher conflitiva. Eu também o seria se me insultassem, rechaçassem e tratassem com essa condescendência, e não por meus atos mas simplesmente por não ser um homem. -Tomou fôlego mas não deu ao Pitt oportunidade de interrompê-la. Inclinando-se para ele, perguntou: —De que têm medo? É absurdo. Se uma mulher for melhor que eles, ou se for pior, estúpida ou incompetente, que importância tem que seja homem ou mulher? Acaso o resultado não é o mesmo? Se uma mulher for melhor, eles perderão sua posição e a assumirá ela. Se for incompetente, perde um material ou o danifica, despedem-na. Não ocorreria exatamente o mesmo se fosse um homem? -Erguendo uma mão. —Sim ou não?

Pitt sorriu contra sua vontade, não porque sua própria ira tivesse diminuído, mas sim pelo arrebatamento de justificada indignação de Charlotte. Era muito próprio dela. No mínimo nesse aspecto, não tinha mudado um ápice desde que a conhecera dez anos atrás. Sua espontaneidade era a mesma de sempre, essa coragem para apresentar batalha quase irreflexivamente ali onde via uma injustiça. Qualquer pessoa oprimida podia contar imediatamente com seu apoio.

—Sim! - respondeu ele com total sinceridade. —Começo a fazer idéia da situação de Unity Bellwood. Se perdia a calma de vez em quando, ou se desfrutava de cada engano que Ramsay Parmenter cometia, parece-me muito compreensível. Sobre tudo se com efeito era mais inteligente que ele. - Não falava por falar. No escritório do Wheatcroft, sob uma opressiva sensação, tinha vislumbrado a impenetrável barreira que devia ter dificultado os esforços de Unity Bellwood para conseguir que a tomassem a sério, uma barreira apoiada não nas limitações de seu intelecto mas única e exclusivamente nas percepções e temores de outras pessoas. Não era surpreendente que a indignação a induzira a causar todo o desassossego possível naqueles homens cuja displicência achava intolerável. E igualmente compreensível era a raiva da Tryphena ante a injustiça, e sua convicção de que Unity tinha sido sossegada por pôr em perigo certos interesses criados.

Elevou a vista e viu que Charlotte o observava, e por sua expressão soube que na mente dela rondavam esses mesmos pensamentos.

—Poderia ter sido ele, não é verdade? - disse Charlotte. Era uma afirmação. —Unity, asfixiada por tanta injustiça, arremeteu com a única arma de que dispunha, as idéias que ele não tolerava, desafiando-o. E ele, sem capacidade intelectual suficiente para rebater-lhe tão consciente como ela de sua própria impotência, agrediu-a fisicamente. Possivelmente não fosse seu propósito atirá-la pela escada. Tudo ocorreu em questão de segundos, e logo ele o negou porque parecia irreal, um pesadelo.

—Sim - concordou Pitt em um sussurro, —poderia ter sido ele.

No dia seguinte Pitt visitou outras pessoas que tinham conhecido ao Ramsay Parmenter em alguma época de sua vida. A primeira hora da tarde se entrevistou com a senhorita Alice Cadwaller. Tinha mais de oitenta anos, mas possuía um engenho e uma capacidade de observação muito superiores aos das outras duas pessoas com quem Pitt tinha falado previamente, e era certamente muito mais hospitaleira que o doutor Wheatcroft. Convidou-o a entrar em sua pequena sala de estar e lhe ofereceu chá em um delicioso jogo de porcelana com campânulas pintadas à mão. Havia sandwiches do tamanho de um dedo do Pitt, e massas igualmente minúsculas.

Estava reclinada em sua poltrona com um xale sobre os ombros. Sustentava sua xícara com delicadeza e observava ao Pitt com a sagacidade de um tordo velho e aguerrido.

—E bem, delegado - disse, movendo a cabeça em um ligeiro gesto de assentimento, —o que deseja ouvir? Eu não gosto de falar mal de ninguém. Sempre julgo às pessoas pelo que dizem dos outros. Os comentários desconsiderados revelam mais da pessoa mesma do que costuma acreditar-se.

—Sem dúvida, senhorita Cadwaller - concedeu Pitt. —Mas nos casos de morte repentina e violenta, quando se deve agir ao serviço da justiça e evitar a injustiça, costuma ser necessário expor verdades que em outras circunstâncias se preferiria calar. Desejaria conhecer sua opinião sobre o Ramsay Parmenter. Conforme soube, conhece-o ao menos há vinte anos.

—Conheço-o, sim, por chamá-lo de algum modo - precisou ela. —Mas seria mais exato dizer que o observei. Não é exatamente o mesmo.

—Não tem a sensação de conhecê-lo? - perguntou Pitt, e tomou um gole de chá e um pedaço do sanduiche que tinha na mão, tentando fazê-lo durar ao menos dois bocados.

—Possui uma imagem pública que mostra a seus paroquianos - explicou a senhorita Cadwaller. —Mas ignoro se em privado tem ou não outra imagem.

—Por que suspeita que essa não é também sua imagem privada? - Perguntou Pitt com curiosidade.

Ela o olhou com um paciente sorriso.

—Porque se dirige para mim como se falasse em público, inclusive quando estamos sós, algo assim como se, se dirigisse a Deus.... como a alguém que deseja impressionar, mas com quem prefere não ter uma estreita relação por temor a que viole sua intimidade ou altere seus planos ou idéias.

Pitt teve que esforçar-se para reprimir um sorriso. Entendia perfeitamente a que se referia a anciã. Ele mesmo tinha percebido essa distancia no Ramsay. Mas, dadas as circunstâncias, tampouco esperava outra atitude por parte dele. No caso da senhorita Cadwaller, essa frieza devia interpretar-se de maneira muito distinta.

—Acredito que o reverendo Parmenter foi de grande ajuda ao senhor Corde quando este atravessou uma época difícil faz uns anos - observou Pitt, perguntando-se como reagiria a anciã ao comentário.

—Não me surpreende. - A senhorita Cadwaller assentiu com a cabeça. —O senhor Corde sempre se desfaz em elogios quando fala dele. De fato, seu respeito e gratidão são comovedores. É um jovem de fundas convicções, e acredito que prestará um grande serviço a Deus.

—Isso acredita? - perguntou Pitt com delicadeza. Ainda não podia imaginar ao Dominic Corde no papel de pároco. Pregar do púlpito era uma coisa, quase como agir, e Pitt sempre tinha pensado que o ofício de ator se teria dado bem ao Dominic. Tinha os atributos necessários: os olhos, um perfil atraente, encanto, bom porte e uma excelente voz. E sabia converter-se no centro de atenção com elegância; era precisamente ao ver-se deslocado do centro de atenção quando mostrava muito menos elegância. Entretanto, atender discretamente as necessidades das pessoas era algo muito diferente.

—Surpreende-lhe acaso? - respondeu ela com acuidade.

—Eu...- começou a dizer Pitt, mas titubeou.

—Vejo-o em seu rosto, jovem - disse a anciã com um afável sorriso.

—Sim, surpreende-me - admitiu Pitt. Devia lhe revelar que eram cunhados? Possivelmente isso influíra em suas respostas. Embora contemplando seu rosto enrugado e seu vivo olhar, era muito possível que não lhe afetasse em modo algum. De repente recordou com inquietação a anterior observação da anciã em relação aos comentários a respeito de outras pessoas, que segundo ela diziam mais sobre quem os fazia que sobre a pessoa de quem tratavam. —Vejo que sua opinião é fundada. me tire de dúvidas se for amável.

—É um assunto relacionado com o irmão da senhorita Dinmont - disse ela, e tomou outro gole de chá.

Pitt aguardou.

—Desgraçadamente não era um bom homem, mas lhe doeu muito sua morte. É o normal. Os laços de sangue não podem esquecer-se facilmente, por mais que a pessoa queira. E era seu irmão mais novo. Acredito que ela tinha a sensação de ter fracassado com ele.

—E que papel desempenhou aí o senhor Corde?

—Quando se soube a notícia da morte de seu irmão, fiz-lhe companhia durante um tempo - prosseguiu a anciã a seu ritmo. Não estava disposta a consentir que um jovem policial que necessitava as atenções de um bom barbeiro a apressasse enquanto contava algo sem utilidade real mas importante em si mesmo. —A senhorita Dinmont é uma boa cristã e praticante. Como é lógico, o reverendo Parmenter veio lhe oferecer consolo. celebraria-se um funeral, aqui na paróquia.

Pitt assentiu com a cabeça e pegou outro sanduiche.

—Estava muito aflita - continuou a senhorita Cadwaller. —O pobre reverendo não soube o que dizer ou fazer ante uma dor real. Leu várias passagens da Bíblia muito adequadas para a ocasião. Juraria que os lê a todos os que sofrem a perda de um ser querido. Mas não punha o coração nisso, isso saltava à vista. - Tinha a expressão triste e o olhar em outra parte. —Me deu a clara impressão de que ele mesmo não acreditava naquelas palavras. Falava da ressurreição dos mortos como se recitasse um horário de trens. - Deixou a xícara. —Se os trens forem pontuais, sempre vem bem, mas não é um milagre de Deus, não é motivo de júbilo e esperança eterna. Quando vão com atraso, é muito irritante, mas não é o fim do mundo. As pessoas simplesmente tem que esperar um momento mais. E as plataformas das estações, até deixando muito que desejar, não são o inferno, nem um lugar onde nos relegam ao esquecimento. - Voltou a pegar a xícara e olhou ao Pitt por cima. —Embora admita que às vezes me pareceram isso. Mas isso me ocorria quando era jovem e a realidade da morte me era muito mais longínqua. E então andava com pressa.

—E Dominic Corde? - insistiu Pitt, sorrindo ao mesmo tempo que se servia da última massa.

—Ah.... isso foi muito diferente - declarou a senhorita Cadwaller. —Ele veio depois; dois dias depois, acredito recordar. Simplesmente se sentou ao lado dela e pegou sua mão. Sem ler, usando suas próprias palavras, falou-lhe dos ladrões crucificados a ambos os lados de nosso Senhor, e da manhã da Ressurreição, e da María Madalena ao ver Jesus Cristo na horta e confundi-lo com o hortelão até que Ele a chamou por seu nome. - de repente lhe umedeceram os olhos. —Acredito que o fato de conhecer seu nome foi a chave de tudo. De repente a pobre senhorita Dinmont se deu conta de que Deus nos conhece todos por nosso nome. O amor é algo pessoal, Você e Eu, não uma questão de raciocínios e ensinos. Eis aí a força que supera a todo o resto. Bastaram esses breves momentos para que ela sentisse consolo. O senhor Corde o entendeu, e o reverendo Parmenter não.

—Compreendo - disse Pitt, surpreendendo-se por tê-la compreendido tão claramente.

—Quer um pouco mais de chá? - ofereceu a anciã.

—Sim, obrigado, senhorita Cadwaller - aceitou Pitt, lhe estendendo a xícara e o pires. —Acredito que agora compreendo algo sobre o reverendo Parmenter que antes não entendia.

—Sem dúvida o compreende - confirmou ela, levantando o bule e lhe enchendo a xícara. —O pobre homem perdeu a fé, não no que fazia mas sim no motivo pelo que o fazia. Isso não pode substituir-se com nada. Nem toda a razão do mundo infundiria calor em nossos corações, nem proporcionaria consolo ante a dor e o fracasso. O ministério sacerdotal consiste em amar a quem não é dignos de amor e em ajudar às pessoas a agüentar a aflição e padecer perdas inexplicáveis sem cair no desespero. Em último extremo é uma questão de fé. Se a pessoa tiver fé em Deus, o resto das peças encaixarão cedo ou tarde.

Pitt não a contradisse nem fez observação alguma. A anciã tinha resumido em umas poucas palavras tudo o que ele se esforçou por descobrir. Bebeu o chá, falou um pouco mais a respeito de trivialidades, admirou a porcelana e a toalha bordada da mesa e logo, depois de expressar seu agradecimento à senhorita Cadwaller, partiu.

Às cinco da tarde Pitt estava em casa do bispo Underhill, expondo-se que perguntas devia lhe formular para afundar um pouco mais na personalidade de Ramsay Parmenter. Provavelmente Underhill, como bispo do Ramsay, teria dele percepções mais profundas que nenhuma outra pessoa. Pitt temia que o bispo o rechaçasse amparando-se na inviolabilidade de seu cargo e o segredo a que o obrigava sua relação com o Ramsay. Estava preparado para receber uma cortês negativa. Entretanto, quando o bispo entrou na biblioteca decorada em cores vermelha e marrom onde tinham feito aguardar o Pitt, seu aspecto pressagiava algo menos um sereno e diplomático rechaço. Fechou a porta ao entrar e olhou ao Pitt com o rosto contraído por um intenso desassossego, o escasso cabelo arrepiado, os ombros rígidos quase como se esperasse um ataque físico.

—É você o policial encarregado deste lamentável assunto? - perguntou ao Pitt com tom acusador. —Quanto tempo vai demorar para chegar a uma conclusão aceitável? Tudo isto é francamente inquietante.

—Sim, sua senhoria - concedeu Pitt, plantado ante ele quase em posição de firmeza. Ao fim e ao cabo, achava-se em presença de um príncipe da Igreja. Underhill era digno de respeito. —Todo crime é inquietante, e este em particular ainda mais - acrescentou. —Por isso vim, com a esperança de que me ajude a desvelar o que ocorreu exatamente.

—Ah. - O bispo assentiu com a cabeça, aparentemente com renovado otimismo. —Sente-se, delegado. Fique a vontade, e vejamos o que podemos tirar claro. Me alegro de que tenha vindo. - Tomou assento em uma poltrona vermelha de pele frente ao marrom que tinha ocupado Pitt, e lhe concedeu toda sua atenção. —quanto antes solucionemos o problema, melhor para todos.

Por um instante Pitt teve a desagradável sensação de que ambos entendiam a palavra "solução" de maneira muito diferente. Imediatamente tentou convencer-se de que não tinha motivos para pensar isso.

—Levo a cabo minhas pesquisas com a máxima celeridade possível -assegurou Pitt ao bispo. —Mas além das provas físicas, que parecem irrefutáveis, a situação dista muito de ser clara.

—Pelo que eu sei, essa desventurada jovem era extremamente conflitiva em questões de conduta e moralidade e causava um contínuo mal-estar. Discutiu com o reverendo Parmenter e caiu pela escada. - Tinha a respiração entrecortada e tensos os músculos, a mandíbula e as faces. —Não tem a menor duvida de que foi empurrada, suponho, ou do contrário não teria continuado se ocupando do assunto. Uma simples tragédia doméstica não requereria sua investigação. - Um vislumbre de esperança iluminou seu olhar.

—Não há indícios de que tropeçasse, sua senhoria - respondeu Pitt. —E por outra parte suas últimas palavras, acusando na aparência ao reverendo Parmenter, obrigam-nos a realizar uma investigação mais profunda do incidente.

—Suas últimas palavras? - repetiu o bispo, erguendo a voz com estridência. —Quais foram essas palavras exatamente, delegado? Imagino que deixam certa margem à interpretação. acharam alguma outra prova que indique que um homem da reputação e dos conhecimentos do reverendo Parmenter pudesse perder o juízo e empurrá-la pela escada, jogando por terra sua carreira? Sinceramente, delegado, é difícil acreditar nisso.

—Antes de cair, Unity Bellwood gritou: "Não, não, reverendo!" - respondeu Pitt.

—Não poderia ter escorregado e ter pedido auxílio ao reverendo, sabendo que era a pessoa que estava mais perto e antes iria em sua ajuda? - instou o bispo. —Diria que é uma explicação muito mais verossímil. Certamente se o expõe às pessoas que a ouviram gritar, o confirmarão. - Tinha empregado um tom de mandato, pressupondo que seria obedecido.

—Não é isso o que dizem, sua senhoria - respondeu Pitt, observando o semblante do bispo. —Mas sim é possível que ela gritasse "Não, não!" à pessoa que a empurrou e logo pedisse auxílio ao senhor Parmenter. Entretanto, não utilizou palavras como "socorro" ou "por favor".

—Lógicamente. - O bispo se inclinou para Pitt. - Isso tem fácil explicação: caiu pela escada justo depois, sem tempo já de acrescentar nada mais. Inclusive pode ser que começasse a dizê-lo, a pobre moça, e se interrompesse no momento da queda. Pelo que .se vê, já resolvemos o problema. Magnífico. - Sorriu, mas sem o menor entusiasmo.

—Se não a empurrou o reverendo Parmenter, teve que fazê-lo outra pessoa - indicou Pitt. —Depois das comprovações realizadas, ficam livres de suspeita todos os criados, assim como à senhora Parmenter... - Percebeu uma careta de desgosto no rosto do bispo. —E também a senhora Whickham. Isso nos deixa à senhorita Clarice Parmenter, o senhor Mallory Parmenter, e o ajudante que atualmente reside na casa, o senhor Dominic Corde.

—Ah, sim.... Corde. - O bispo se reclinou em sua poltrona. —Bem, provavelmente fosse Mallory Parmenter. É muito de lamentar, mas se trata de um jovem pouco equilibrado, com uma grande instabilidade emocional. Você não deve conhecer seus antecedentes, claro está, mas sempre foi propenso ao ceticismo e a discrepância. Em sua adolescência, punha reparos a tudo. Não aceitava nada sem discutir. - Com a lembrança, contraiu a boca em uma expressão de irritação. —Tão logo transbordava de entusiasmo como se dedicava a criticar tudo com igual veemência. Um jovem muito insatisfatório. A rebelião contra seu pai, sua família e todos seus valores dão fé disso. Ignoro por que cometeria uma ação tão violenta e trágica, mas nunca compreendi essa espécie de comportamentos. Só posso condená-los e lamentá-los. - Franzindo o sobrecenho, apressou-se a acrescentar: —E compadecer às vítimas, naturalmente.

—A senhorita Bellwood estava grávida - anunciou Pitt a queima-roupa.

O bispo empalideceu. A satisfação desapareceu no ato de seu semblante.

—Lamentável. De alguma relação anterior ao início de sua colaboração com o reverendo Parmenter, suponho.

—Posterior. Desgraçadamente é muito provável que o pai fora um dos três homens que vivem na casa.

—Agora isso só tem um interesse anedótico. - O bispo fez um gesto de desconforto, como se o colarinho o oprimisse. —Possivelmente nunca descubramos quem era o pai, e devemos supor que era o jovem Parmenter, e que por esse motivo... matou-a. Essa ilícita paternidade é o pecado menor, delegado, e dá-la a conhecer publicamente só serviria para manchar a reputação da jovem. Deixemo-la descansar em paz, à desventurada. - Engoliu a saliva. —Não é necessário, nem nos corresponde, julgar suas fraquezas.

—Poderia ter sido Mallory Parmenter - concordou Pitt, notando em seus adentros uma injustificada indignação. Não tinha direito a julgar ao bispo; ignorava que tipo de jovem tinha sido Mallory, ou em que medida tinha posto a prova sua paciência. Mesmo assim, sentia um profundo descontentamento. —Mas também poderia não ter sido - acrescentou. —Não posso agir sem provas.

Um visível nervosismo se apropriou do bispo.

—Mas que provas espera? - perguntou. —Ninguém se declarou culpado. Não houve testemunhas presenciais, e acaba de me dizer que qualquer desses três homens poderia ser o autor do crime. O que se propõe fazer? - Sua voz subia de volume cada vez mais. —Não pode deixar o assunto sem resolver. Isso arruinaria a reputação dos três. Seria uma atrocidade.

—Pode me falar com mais detalhe do Mallory Parmenter, me dizer algo mais concreto? - perguntou Pitt. —E também, possivelmente, do senhor Corde. E sem dúvida, ao menos em certos aspectos, conhece melhor que ninguém ao Ramsay Parmenter.

—Sim.... claro. Bom.... não estou muito seguro.

—Como diz?

Um vislumbre de mal-estar se refletiu no rosto do bispo. Não obstante, começou a explicar-se:

—Conheço o Mallory Parmenter a muito tempo, naturalmente. Na adolescência, foi um moço um pouco difícil, saltando sempre de um entusiasmo a outro, como já lhe disse. A maioria das pessoas superam essas etapas. Não parece ter sido esse seu caso. Era incapaz de decidir o que fazer com sua vida. É indeciso, compreende? -Olhou ao Pitt com expressão crítica. —Se expôs ir estudar a Oxford, mas não o fez. Nunca se apaixonou. Ninguém estava à altura de suas inalcançáveis exigências. Vivia em um mundo isolado da realidade. Um idealista. Nunca aceitou as coisas tal qual são. - Hesitou por um instante.

—Sim? - disse Pitt, incitando-o a continuar.

—Um insensato - concluiu o bispo, satisfeito da palavra. —Sim, um insensato. Agora é mais evidente que nunca, temo

Pitt supôs que se referia à conversão do Mallory ao catolicismo, mas se absteve de fazer comentários a respeito.

—E o senhor Corde? - perguntou.

—Ah, sim. Um homem prometedor. - A voz do Underhill se encheu súbitamente de satisfação e um fugaz sorriso apareceu em seus lábios. -Em extremo prometedor. Sempre é motivo de alegria ver que alguém descobre a fé verdadeira e está disposto a sacrificar tudo por segui-la.

—É um sacrifício? - perguntou Pitt com inocência, recordando o desespero que Dominic havia descrito e a paz que atualmente se via em seu semblante e seu proceder. —Teria pensado que era o contrário. Não vale mais o que o senhor Corde tem agora que qualquer das coisas à que renunciou?

O bispo avermelhou de ira.

—Claro que sim! Entendeu-me mau. Falava de... - Desprezou o assunto com   um gesto. —É algo que não posso lhe descrever, os anos dedicados ao estudo, a disciplina, as restrições econômicas a uns ganhos mínimos. Tudo isso aceito gostosamente, sim, mas ao mesmo tempo é um sacrifício, é claro que o é.

—E considera que Dominic Corde é um homem de moralidade irreprochável, por cima das fraquezas e as tentações da vaidade, a ira ou a luxúria...

O bispo se inclinou para frente na grande poltrona vermelha.

—Sim, sem a menor duvida. De fato, acho ofensiva a mera insinuação de que... - interrompeu-se, consciente de que estava comprometendo-se muito. —Bom, logicamente é só uma opinião, delegado. Tenho muitas razões para pensar... nunca nos chegou o menor rumor...

—E Ramsay Parmenter? - perguntou Pitt sem esperança de receber uma resposta com sentido, e menos ainda útil.

—Até a data, um homem de uma reputação irrepreensível - respondeu o bispo com solenidade.

—Mas certamente sua senhoria conhece dele algo mais que sua reputação -insistiu Pitt.

—É claro! - O bispo começava a estar incomodado, e em extremo zangado. Trocou de postura na poltrona. —Compartilhamos uma mesma vocação, delegado. Mas não sei de nada em seu caráter ou seus atos que induza a pensar que o reverendo Parmenter não é o que parece ou que tenha alguma fraqueza pior que as que afligem ao comum dos mortais.

Deu a impressão de que ia acrescentar algo, mas se absteve. Pitt se perguntou se acaso tinha recordado que foi ele quem recomendou ao Ramsay Parmenter para um bispado.

—Tem dúvidas sobre sua vocação, sua fé? - continuou Pitt. —Cai em estados de desespero?

O bispo adotou um tom condescendente.

—A todos assalta a dúvida em algum momento, delegado. Faz parte da natureza humana; é uma função do homem inteligente.

Pitt intuiu a inutilidade de discutir com ele. Respondia com evasivas a fim de sair gracioso daquilo, fosse qual fosse o resultado.

—Quer dizer que os clérigos que nos guiam não possuem uma fé mais sólida que a de um secular comum? - perguntou Pitt, olhando fixamente ao bispo.

—Não! Claro que não! O que quero dizer é... é que todos podemos cair alguma vez no desalento. A todos acossam... certos... pensamentos...

—Mostrou Ramsay Parmenter em alguma ocasião tendência aos excessos ou a violência? Por favor, bispo Underhill, é de vital importância que antepor a sinceridade ao desejo de encobrir a verdade por benevolência.

O bispo permaneceu em silencio durante tanto tempo que Pitt pensou que não tinha intenção de responder. Parecia profundamente abatido, como se o atormentassem idéias em extremo dolorosas. Pitt teve a cruel suspeita de que era sua própria posição, cada vez mais delicada, o motivo de seu desassossego.

—Devo refletir a respeito mais atentamente - disse por fim o bispo. —Neste momento, não me é grato falar do tema. Sinto muito, delegado. É tudo o que posso dizer.

Pitt não o pressionou mais. Agradeceu e partiu. O bispo foi imediatamente ao telefone, um invento que despertava sentimentos ambivalentes, e chamou o escritório de John Cornwallis.

—Cornwallis? Cornwallis.... ah, bem. - clareou a garganta. Aquilo era absurdo. Não devia sucumbir ao nervosismo. —Agradeceria uma oportunidade de falar com você em privado. Melhor aqui que em seu escritório, acredito. Gostaria de vir jantar? Não há de que. Bem.... muito bem. Jantamos às oito. Estaremo-lo esperando. -Pendurou o aparelho com uma sensação de alívio. Aquela situação adquiria uma aparência alarmante. Melhor seria que informasse a sua esposa. Ela por sua vez informaria à cozinheira.

Cornwallis chegou uns minutos antes das oito. Isadora Underhill sabia quem era, mas não o conhecia pessoalmente. Tinha começado a tarde muito zangada com seu marido pela desconsideração de convidar a um desconhecido para jantar numa noite que ela tinha previsto descansar tranqüilamente. Todas as noites na semana anterior tinham surgido compromissos de uma ou outra índole que reclamavam sua atenção ou seu cortês interesse, em sua maior parte extremamente aborrecidos. Tinha pensado dedicar essa noite à leitura. Tinha entre mãos uma novela que a transportava plenamente com sua paixão e profundidade. Adiou-a a contra gosto... e com menos elegância do que geralmente exibia.

Também conhecia de sobra os motivos do convite do Reginald. Aterrorizava-o um possível escândalo que escapasse a seu controle e tivesse conseqüências negativas para ele, por ser quem tinha insistido em que Ramsay Parmenter fosse promovido à posição de bispo. Pretendia convencer aquele polícial para que tratasse o assunto de maneira discreta e expedita, até se isso implicava uma transgressão das regras estabelecidas. A Isadora, essa atitude lhe repugnava, e mais importante ainda, marcava o final de um lento desencanto que, como agora compreendia, iniciou-se muitos anos antes; simplesmente não o tinha reconhecido como tal. Aquilo era sua vida, o homem cujo trabalho compartilhava, o sentido que tinha escolhido para si. E já não despertava a menor admiração.

Decidiu vestir-se com simplicidade, escolhendo um vestido azul escuro com mangas de seda vincadas. Realçava seu cabelo escuro e sua mecha prateada. Cornwallis a surpreendeu. Isadora não sabia o que esperava exatamente, possivelmente alguém como os dignitários eclesiásticos que tão bem conhecia: corretos, seguros de si mesmos, um tanto insossos. Cornwallis não possuía nenhuma dessas características. Saltava à vista que se sentia desconfortável, e suas maneiras eram secas, como se lhe custasse esforço pensar o que dizer. Isadora estava habituada a uma cortesia que lhe concedia reconhecimento e ao mesmo tempo a relegava a um segundo plano. Cornwallis, pelo contrário, parecia muito pendente dela, e apesar não ser um homem de grande estatura, Isadora percebeu sua presença física de um modo novo para ela.

—Muito prazer, senhora Underhill. - Cornwallis inclinou a cabeça, e a luz se refletiu em sua superfície totalmente Lisa.

Isadora nunca tinha pensado que a calvície pudesse lhe ser atraente, mas no caso dele parecia um traço tão natural que ela só se deu conta dessa atração depois... e com surpresa.

—Encantada de conhecê-lo, senhor Cornwallis - respondeu ela. —Me alegra que tenha podido vir apesar do inapropriado do convite. foi muito amável de sua parte. Cornwallis se ruborizou. Tinha o nariz pronunciado e a boca larga. Era evidente que não sabia o que dizer. Parecia resistente a dissimular o fato de que tinha ido em resposta ao pânico do bispo, e uma vez consciente da inconveniência de admiti-lo.

Isadora sorriu, desejando lhe facilitar as coisas.

—Já sei que é a chamada do dever - se limitou a dizer. —Assim e tudo, demonstrou uma grande generosidade vindo. Por favor, sente-se e fique a vontade.

—Obrigado - aceitou Cornwallis, sentando-se na poltrona com as costas muito erguidas.

O bispo ficou de pé junto à lareira, a menos de um passo do guarda-fogo. A noite era fria, e aquela era a posição mais vantajosa.

—Francamente lamentável - disse de repente. —Sua polícia esteve aqui esta tarde. Não é um homem sensível aos elementos em jogo, receio. Seria possível substituí-lo por alguém um pouco mais... compreensivo?

Isadora se sentiu muito perturbada. Aquela era uma sugestão inadmissível.

—Pitt é meu melhor homem - respondeu Cornwallis com calma. —Se alguém pode averiguar a verdade, ele o conseguirá.

—Pelo amor de Deus! - replicou o bispo, mal-humorado. —Isto não se reduz a averiguar a verdade. Necessitamos tato, diplomacia, compaixão.... discrição. Qualquer néscio pode deixar descoberta uma tragédia e exibi-la ante o mundo... e arruinar o bom nome da Igreja, destruir a fé e um trabalho de décadas, causar um grave prejuízo a pessoas inocentes que confiam em que nós... - Olhou ao Cornwallis com autêntico desdém.

Isadora sentiu vergonha. Era muito embaraçoso ouvir o bispo falar com tal desprezo ao Cornwallis e deixar acreditar neste que ela compartilhava esse sentimento, mas toda uma vida de lealdade lhe impediu desmarcar-se da atitude de seu marido.

—Estou certa de que o bispo expressou sua posição de maneira muito simples - disse ela, inclinando-se um pouco e notando o calor do sangue nas faces. —Todos sentimos grande consternação pela morte da senhorita Bellwood e pelas escuras emoções que na aparência a causaram. Como é lógico, preocupa-nos que possam recair suspeitas sobre pessoas inocentes, e inclusive que o culpado veja convertida sua tragédia privada em algo de domínio público. – Olhou para Cornwallis, confiando que aceitasse essa explicação retificada.

—Todos desejamos evitar sofrimentos desnecessários - respondeu Cornwallis muito tenso, apesar de manter uma expressão amável em seu olhar, fixo nela.

Isadora não via censura nem hostilidade em seus olhos. Reginald tinha comentado que Cornwallis procedia da marinha. Possivelmente seu desconforto se devesse a muitos anos de vida em alto mar e em companhia só de homens. Tentou representá-lo o de uniforme, de pé na coberta sob umas velas enormes e inchadas, mantendo o equilíbrio no vaivém das ondas, o vento no rosto. Talvez por isso tinha o olhar tão cristalino e os olhos faiscantes e serenos. Havia algo nos elementos, sua pura magnitude, que reduzia a pomposidade a algo ridículo e insignificante. Não imaginava ao Cornwallis fanfarroneando, empregando evasivas ou defendendo-se atrás de uma mentira.

—Compreende, pois, meu ponto de vista quanto à necessidade de dirigir o assunto com suma habilidade - dizia o bispo, sua voz marcada pela urgência e, pensou Isadora, por um tom de temor pouco comum nele. Não recordava havê-lo visto nunca tão agitado.

—Também necessitamos honradez e persistência - respondeu Cornwallis com firmeza. —E Pitt é o melhor. Trata-se de um assunto muito delicado. Unity Bellwood estava grávida, e é de se supor que muito provavelmente o assassinato guarda relação com esse fato.

O bispo, adotando uma careta de desgosto, olhou a Isadora. Cornwallis se ruborizou.

—Deixemos de tolices! - protestou ela imediatamente. —Não há necessidade de evitar esse tema porque eu estou presente. Certamente falei com mais jovens solteiras grávida que você, Reginald, ou o senhor Cornwallis. Muitas foram seduzidas por seus superiores, mas em alguns casos elas mesmas foram as sedutoras.

—Preferiria que não falasse dessas questões em tais termos - repreendeu o bispo. afastou-se um pouco do fogo. Estavam lhe chamuscando as pernas das calças pela parte de trás. —Isso é ao mesmo tempo um pecado e uma tragédia. Se lhe acrescentarmos malícia, é espantoso. Se for... foi... Ramsay Parmenter, só me ocorre pensar que se tornou louco, e se for assim, o melhor para todos será declará-lo demente e encerrá-lo em um lugar seguro onde não possa mais ferir a ninguém. - Fez uma careta de dor quando o tecido quente da calça lhe roçou a perna. —Não poderia você fazer isso, Cornwallis? Exercer um pouco de compaixão judiciosa em lugar de arruinar a vida de toda uma família por aplicar a lei a todo custo. Adiar o inevitável servirá só para converter em um espetáculo público a queda em desgraça privada de um homem excelente... - Interrompendo-se, apressou-se a retificar: —Excelente até a data, quero dizer, claro está.

Isadora conteve a respiração. Olhou ao Cornwallis.

—O assassinato não é uma queda em desgraça privada - asseverou Cornwallis com frieza. —É um delito, e a lei exige que se responda por ele publicamente, em benefício de todos os afetados.

—Tolices! - replicou o bispo. —Como vai beneficiar ao Parmenter ou a sua família, e não digamos já à Igreja, que este assunto se resolva em público? E a quem menos beneficia é ao próprio público, que teria que presenciar a decadência e perda da razão de um dos guias de seu bem-estar espiritual. O mordomo entrou em silêncio.

—O jantar está servido, sua senhoria - anunciou com uma inclinação de cabeça.

O bispo lhe lançou um olhar de fúria. Isadora ficou em pé. Tremiam-lhe as pernas.

—Senhor Cornwallis, importa-lhe que passemos à sala de jantar? - sugeriu. O que podia dizer para paliar aquela horrível situação? Achava Cornwallis que ela participava de semelhante hipocrisia? Como podia lhe fazer saber que não era assim sem incorrer ao mesmo tempo em uma deslealdade e mostrar ainda maior duplicidade?

Sem dúvida Cornwallis era um homem que valorizava a lealdade. Ela mesma a valorizava. Em inumeráveis ocasiões tinha mantido em silêncio suas discrepâncias. Em alguns casos tinha compreendido posteriormente seu engano ou sua falta de visão, e se tinha alegrado então de não ter intervindo e posto de manifesto seu desconhecimento. Cornwallis se levantou.

—Obrigado - aceitou, e os três se dirigiram à sala de jantar, a tensão evidente no ambiente.

Na sala de jantar dominavam o azul e o dourado. Por uma vez, o gosto de Isadora tinha prevalecido sobre o do bispo. Ele tinha proposto o tapete de cor borgonha e pesadas cortinas cujas dobras inferiores se estendessem pelo chão. A decoração escolhida por Isadora era menos carregada, e o espelho alongado produzia um efeito de maior espaço.

Já sentados à mesa e servido o primeiro prato, o bispo reatou a conversa.

—Fazer público este assunto não beneficia a ninguém - repetiu, olhando ao Cornwallis por cima da sopa. —Tenho certeza de que o compreende.

—Muito ao contrário - respondeu Cornwallis com voz equânime. —É em benefício de todos. E é muito especialmente em benefício do Parmenter. Ele sustenta que não é culpado. Merece o direito a ser julgado e nos exigir que demonstremos sua culpa sem que fique lugar a dúvida.

—Ora veja! - exclamou o bispo. Estava colérico, com o rosto avermelhado e um brilho febril nos olhos.

Isadora, observando-o, experimentou um entristecedor sentimento de culpa. Seu marido não parecia um amigo que perdeu temporalmente o rumo e cometeu um engano; era um desconhecido, e além disso um desconhecido que não lhe inspirava especial simpatia. Ela não deveria sentir coisas assim. Era indesculpável. Concentrou a atenção no Cornwallis, furioso mas sereno, seguro de si mesmo e de seus princípios.

—Isso é puro sofisma , cavalheiro - acusou o bispo. —E prefiro não insinuar os motivos que o empurram a pensar assim para não ofendê-lo.

—Mas, Reginald! - disse Isadora entre dentes.

—Você o que proporia, bispo Underhill? - perguntou Cornwallis sem evitar seu olhar. —Tirar do meio Parmenter em segredo, sem lhe dar a oportunidade de provar sua inocência nem nos ater a nossa obrigação de provar sua culpa? Encerrá-lo em um manicômio pelo resto de sua vida para nos economizar a vergonha?

O bispo ficou de mil cores. Tremiam-lhe as mãos.

—Cavalheiro, está tergiversando minhas palavras! Essa insinuação é monstruosa!

Essa insinuação era precisamente o que ele tinha dado a entender, e Isadora sabia. Como podia sair em seu resgate e ao mesmo tempo preservar sua própria integridade?

—Não me cabe dúvida de que tem você toda a razão, senhor Cornwallis – disse com cautela sem olhar acredito que não compreendíamos as conseqüências do que sugeríamos. Nosso conhecimento das leis é limitado, e graças a Deus nunca antes tinha ocorrido algo assim. Vivemos desgraças, certamente, mas nenhuma incluía um delito real, mas só pecados ante a Igreja. - Finalmente ergueu a vista para olhar para Cornwallis.

—Compreendo. - Ele a observava atentamente, e o que Isadora percebia em sua expressão não era desgosto, mas acanhamento, e admiração. Foi como se uma repentina calidez se propagasse dentro dela. —Estamos ante... ante uma tragédia insólita para todos... -Titubeou, sem saber o que dizer. —Mas não posso me afastar dos procedimentos da lei. Não me atrevo, porque não conheço a verdade com certeza suficiente para assumir a responsabilidade de julgar e sentenciar eu mesmo a esse homem. - Deixou a colher no prato de sopa. —Mas acredito saber o que é o correto, no mínimo no que se refere à necessidade de averiguar a verdade. É muito provável que Ramsay Parmenter matasse à senhorita Bellwood, porque ela era uma jovem direta e ofensiva que punha em tecido de julgamento tudo aquilo no que ele tinha depositado sua fé. - Sua voz se apagou e seu semblante se encheu de tristeza. —Pode ser que fosse ele o pai da criatura, mas também é possível que não o fosse. Se o eram Mallory Parmenter ou Dominic Corde, também eles tinham motivos para desejar a morte da senhorita Bellwood. Para qualquer deles, teria sido um obstáculo insolúvel na realização de suas vocações. Se ela tentou chantagear a alguém, ignoramo-lo, mas devemos descobrir. Desejaria que não fosse necessário.

—Todos compartilhamos esse desejo. - Isadora sorriu aflita. —Mas isso não muda as coisas.

O bispo clareou ruidosamente a garganta.

—Confio em que me mantenha à corrente de qualquer novidade na investigação - disse.

—Informarei-lhe imediatamente de qualquer fato que possa incidir na boa marcha da Igreja - prometeu Cornwallis, sem um vislumbre de calidez no rosto. Poderia ter estado dirigindo-se ao capitão de navio inimigo em meio de um mar gelado.

Isadora se perguntou se Cornwallis seria um homem crente. Possivelmente a colossal força dos oceanos, a relativa incapacidade do homem, o fato de depender da luz das estrelas, dos ventos e das grandes correntes marítimas o tinham imbuído de uma forma mais profunda de conhecimento de Deus, a necessidade de apoiar-se em uma fé a que encomendava sua própria vida, e não a mera conveniência ou a adulação e a reputação dos colegas. Quanto tempo fazia que Reginald não se ocupava de assuntos de vida ou morte, mas sim de simples questões administrativas? A partir desse ponto sustentaram uma conversa forçada. Os criados retiraram os pratos de sopa e continuaram servindo o jantar. O bispo fez algum comentário. Cornwallis respondeu, acrescentando alguma observação. Como era sua obrigação de anfitriã, Isadora encheu os silêncios com frases inocentes, mas tinha a mente concentrada em assuntos mais urgentes. por que Reginald não conhecia o Ramsay Parmenter o suficiente para saber se tinha ou não uma aventura com aquela mulher? Ele deveria estar à corrente de uma violação da fé e moralidade tão grave por parte de um de seus clérigos. Por que tinha insistido tanto na promoção do Parmenter se mal o conhecia? Era simplesmente uma questão de colocar no posto a um homem de sua exclusiva confiança? Tinha falado alguma vez com o Parmenter de algo realmente importante? Sobre o bem e o mal, sobre o gozo, sobre o arrependimento e a compreensão da terrível autodestruição que conduzia o pecado. Falava alguma vez do pecado como algo real, e não meramente como uma palavra que pronunciar com grandilocuencia do púlpito? Dedicava tempo a examinar o egoísmo e a desdita, a confusão e escuridão, que o pecado causava? Fazia algo além de administrar, de dizer a outros o que fazer e como fazê-lo? Visitava os doentes e os carentes, os perturbados e os extraviados, os coléricos, os autoritários, os ambiciosos e os cruéis, e se aproximava deles com um espelho no qual pudesse ver refletidas suas fraquezas? Reforçava a fé daqueles que padeciam aborrecimento, medo ou a perda de seres queridos? Ou simplesmente falava de edifícios, música e cerimônias.... e de como impedir que o problema do Ramsay Parmenter se convertesse em um escândalo? Se era incapaz de confrontar a realidade da dor, do que serviam todos aqueles cânticos e preces? Como era o verdadeiro homem que se escondia sob as vestimentas clericais? Era alguém a quem ela amava ou simplesmente alguém a quem se acostumara?

Uma vez concluído o jantar, Cornwallis partiu assim que o permitiram as mais elementares normas de cortesia. Reginald voltou para seu gabinete para ler, e Isadora se deitou em silêncio, seus pensamentos ressoando ainda com muita estridência em sua mente para poder descansar. E quando fechou os olhos, foi o rosto do Cornwallis o que finalmente lhe permitiu relaxar, e por um momento um leve sorriso se desenhou em seus lábios.

 

Enquanto Pitt estava no escritório do Cornwallis escutando ao Smithers, Dominic conversava com Vita Parmenter no salão principal de Brunswick Gardens. As criadas já tinham tirado o pó e varrido, e o fogo começava a arder bem. Era uma manhã ensolarada mas fria, e Vita tremia um pouco e, muito nervosa para permanecer quieta, ia de um lado a outro.

—Teria gostado de saber o que pensava esse policial - comentou, e com o rosto contraído pela ansiedade, voltou-se para olhar ao Dominic. —Aonde terá ido? Com quem estará falando?

—Não sei - respondeu Dominic com franqueza, desejando poder lhe dar consolo em lugar de contemplar impotente seu medo. —Mal conheço seus métodos de trabalho. Possivelmente se tenha dedicado a solicitar informação sobre Unity.

—Por que? - Vita estava confusa. —Que importância pode isso ter? – Seus movimentos eram bruscos. Tão logo estendia as mãos como as fechava com tal força que as unhas deviam cravar-se o dolorosamente nas Palmas. —Quer dizer que por ter sido uma mulher de vida relaxada no passado, possivelmente ele pense que pôde comportar-se assim nesta casa?

Dominic ficou perplexo. Pensava que Vita nada conhecia sobre o passado de Unity. Era perturbador, mas deveria ter caído na conta de que Vita tinha ouvido Unity falar de liberdade moral, o direito a atuar conforme às emoções e apetites, os disparates que com freqüência dizia a respeito da influência liberadora das paixões e o constrangimento no que viviam as pessoas, em especial as mulheres, por causa dos compromissos. Em uma ou duas ocasiões Dominic tinha tentado fazer entender a Unity que os compromissos em realidade protegiam às pessoas, muito particularmente às mulheres, e ela tinha arremetido contra ele com ira e desprezo. Pensando agora, era absurdo supor que Vita não tinha visto ou ouvido a menor parte dessas declarações.

Vita estava na beira do tapete do Aubusson, olhando ao Dominic com verdadeiro temor em seus grandes olhos. Parecia muito vulnerável, apesar da fortaleza interior que ao Dominic constava que possuía.

—Nem sequer sei se realmente é isso o que o delegado está fazendo - respondeu Dominic com voz serena, aproximando-se um pouco a ela. —É só uma possibilidade. Parece o mais sensato investigar a vida de uma pessoa que foi... assassinada... quando se tenta descobrir ao responsável.

—Suponho que sim. - Vita tinha a voz empanada. —Significa isso que... você Acha... que possivelmente não foi Ramsay? - Olhou fixamente Dominic, o rosto pálido, a expressão oscilando entre o desespero e a esperança.

Sem pensar, Dominic estendeu o braço e a pegou pela mão, segurando-a com ternura. Os dedos de Vita permaneceram inertes por um momento e logo se aferraram à mão dele.

—Sinto-o - sussurrou Dominic. —Tomara pudesse fazer algo. O que fosse. Estou tão em dívida com esta família...

Vita esboçou um débil sorriso, apenas um imperceptível movimento nas comissuras dos lábios mas suficiente para dar a entender que o apoio do Dominic era importante para ela.

—Ramsay me ajudou quando mais fundo estava - prosseguiu Dominic. —E agora, ao que parece, sou incapaz de ajudá-lo.

Vita baixou o olhar.

—Se Ramsay matou ao Unity, nada podemos fazer para ajudá-lo nenhum de nós. É... - engoliu em seco... —é a incerteza insuportável. - Negou com a cabeça. —Isso que acabo de dizer é uma estupidez... e uma amostra de debilidade. Devemos suportá-lo. - Sua voz se apagou. —Mas a dor é imensa, Dominic.

—Sei...

—Idéias espantosas formam redemoinhos em minha mente. - Vita seguia falando em um sussurro, como se lhe custasse reunir ânimo suficiente para expressar seus pensamentos com clareza, apesar de não haver ninguém mais no salão. —É uma deslealdade de minha parte? - Escrutinou o olhar de Dominic. —Me despreza você por isso? Acredito que possivelmente eu me desprezo a mim mesma. Mas me corrói a dúvida de se Ramsay sentia atração por ela. Unity era... era uma mulher tão... tão apaixonada, tão transbordante de idéias e emoções. Tinha uns olhos bonitos, não acha?

Dominic não pôde evitar sorrir apesar do ingrato da situação. Os olhos de Unity eram muito menos bonitos que os de Vita. Unity era voluptuosa. Dominic recordou seu corpo e seus lábios com um estremecimento.

—Nada excepcional - respondeu, atendo-se à verdade em um sentido literal. - —Tinha-os muito menos bonitos que você. - Dominic não prestou atenção ao rubor que apareceu nas faces de Vita. —E me custa acreditar que Ramsay a achasse atraente. Suas opiniões lhe desagradavam muito. Como você já sabe, ela tinha uma atitude muito crítica. - Sustentava ainda a mão dela na sua, e ela a pegava com força. —Se Unity surpreendia a alguém em um equívoco, o reprovava sem reprimir-se, e geralmente com desfrute. Isso predispõe pouco a um homem a conceber sentimentos românticos.

Vita o olhou fixamente durante uns segundos.

—De verdade o pensa? - disse por fim. —Unity era um pouco brusca, não? Fazia comentários um tanto cruéis...

—Muito cruéis! - corrigiu Dominic, lhe soltando a mão. —Em minha opinião, deve desprezar esse temor. A mera possibilidade é imprópria do homem que eu conheço.

—Trabalhavam juntos muito tempo. - Vita não podia desprender-se plenamente de seu receio. —Unity era jovem e... muito...

Dominic adivinhou o que queria dizer, apesar dela resistir a expressá-lo com palavras. Unity possuía um grande atrativo físico.

—Em realidade não trabalhavam tão juntos - indicou ele. —Ramsay trabalhava sempre no gabinete, e ela freqüentemente se instalava na biblioteca.Reuniam-se só quando surgia a necessidade. E sempre tinha criados perto. E de fato Mallory e eu estamos aqui quase desde a chegada de Unity. A casa está cheia de pessoas. Sem contar Clarice e Tryphena. Isso é algo que Pitt também deve saber.

Vita não parecia muito reconfortada. Entre seus olhos seguia havendo rugas de ansiedade e estava ainda muito pálida.

—Alguma vez viu você algo que justifique essas suspeitas? - perguntou Dominic, quase seguro de que a resposta seria negativa. Não imaginava ao Ramsay em uma relação com Unity que não fosse o trato formal e farto crispado que ele mesmo tinha presenciado. Sempre que os tinha observado juntos bem estavam trabalhando, e sua conversa girava em torno de questões acadêmicas, em geral marcada pelo desacordo, ou se achavam em público e se tratavam com frieza. Existiam entre eles muitas divergências de opinião, mascaradas freqüentemente depois de uma aparência de urbanidade mas derivadas sempre claramente da necessidade de Unity de demonstrar que ela tinha a razão. Unity obviamente sentia prazer em defender a capa e espada suas posturas. Nunca deixava escapar a menor oportunidade de fazê-lo. Não tinha contemplações com os sentimentos de ninguém. Possivelmente fosse uma forma de integridade intelectual, mas Dominic opinava que mais provavelmente se tratava de um desejo infantil de ganhar. Ramsay, por sua parte, aceitava mal suas derrotas em qualquer discussão. Embora o dissimulasse mediante uma fingida indiferença, saltava à vista em seus lábios apertados e largos silêncios. E a paixão física entre eles era inimaginável.

—Não... - Vita moveu a cabeça em um gesto de negação. —Não.... nunca vi nada.

—Então não pense nessa possibilidade - disse ele com tom tranqüilizador. —Não a conceba sequer. Não é digno de você nem do Ramsay.

Um sorriso voltou a aparecer fugazmente aos lábios de Vita. Respirou fundo e olhou ao Dominic.

—É muito amável comigo, Dominic. Muito atento. Não sei o que faríamos sem sua fortaleza. Confio em você como em ninguém mais.

—Obrigado - disse Dominic com uma súbita satisfação que nem sequer as circunstâncias puderam empanar. Inspirar confiança era um de seus mais ferventes desejos. No passado ninguém confiava nele, nem de fato o merecia. Com muita freqüência antepunha suas necessidades e apetites a todo o resto. Raramente agia com malícia; simplesmente pensava só em si mesmo, sem a menor consideração por ninguém, e atuava de uma maneira impulsiva, como um menino. Desde que Ramsay o achou e lhe repartiu seus ensinos, os desejos do Dominic não eram já os mesmos. Experimentou a mais absoluta solidão ao tomar consciência de que quem o valorizava só tinham em conta seu atraente rosto e a satisfação de seus próprios apetites. Dominic era como uma saborosa comida, intensamente desejada, devorada e logo esquecida. naquela época tudo carecia de sentido, de durabilidade. Agora, em troca, Vita confiava nele. Ela conhecia um grande número de homens bons e cultos consagrados a ajudar ao próximo, e entretanto percebia no Dominic fortaleça e honra. Dominic não pôde menos que lhe sorrir.

—Nada desejo mais que lhe servir de consolo nestes difíceis momentos - asseverou Dominic com fundo ardor. —Se posso fazer algo por você, seja o que for, não tem mais que me dizer. Ignoro o que nos proporcionará o futuro, mas lhe prometo que, aconteça o que acontecer, permanecerei a seu lado e lhe darei meu apoio.

Vita pareceu relaxar por fim, desaparecendo a tensão de seus ombros e a rigidez de suas costas. Inclusive recuperou ligeiramente a cor das faces.

—Quando entrou nesta casa, foi um dia muito afortunado - disse Vita com doçura. —vou necessitar de você, Dominic. Dá-me medo o que o policial possa averiguar.

—Sim, acredito que tem razão: Ramsay nunca manteve uma relação romântica com Unity. - Sorriu. —quanto mais penso no que acaba de me dizer, mais absurda me parece a idéia. Desagradava-lhe muito para isso. - Estava muito quieta, a uns dois passos dele. Dominic percebia o aroma de seu perfume. —Para falar a verdade, acredito que a temia. Por sua mente rápida e sua língua afiada, mas sobre tudo pelos comentários que fazia em relação à fé. Unity era uma mulher extremamente destrutiva, Dominic. Poderia aborrecê-la por isso. - Tomou ar e o deixou escapar em um trêmulo suspiro. —Estranha perversidade para zombar de propósito da fé de uma pessoa e destruí-la sistematicamente, lhe deixando só os pedaços quebrados. Deveria lamentar sua morte, não? Mas não posso. Está muito mal isso de minha parte?

—Não - se apressou a responder Dominic. —Não, é muito compreensível. Viu os prejuízos que ocasionou, e a situação lhe dá medo. Também a mim. A vida é já bastante difícil para a maioria de nós. A fé é o único que nos permite agüentar as penalidades com dignidade e fortaleza. Graças à fé, cicatrizam nossas feridas, somos capazes de perdoar e concebemos esperança quando não conseguimos ver o final das dificuldades ou a dor. Despojar a alguém de sua fé é monstruoso, e se a vítima é um ser querido, quanto maior não será nossa aflição.

—Obrigado. - Vita lhe roçou a mão com delicadeza, e a seguir endireitou os ombros, deu meia volta e se encaminhou para as dependências da criadagem para falar com o mordomo. As necessidades domésticas não se detinham por causa do luto, nem do temor, nem de uma investigação policial centrada nas tragédias da vida de uma pessoa.

Dominic subiu para ver Ramsay. Devia haver tarefas práticas nas quais dar uma mão. Possivelmente também houvesse alguma maneira de oferecer, se não consolo, no mínimo amizade. Ramsay devia saber que não o abandonaria nem por uma suspeita nem por covardia.

Meteu a mão no bolso para tirar o lenço, mas não o achou. Devia haver lhe caído, uma circunstância aborrecida porque era de boa qualidade, de linho e com as iniciais bordadas, um vestígio da época em que desfrutava de uma situação econômica mais abonada. Mesmo assim, pouca importância tinha naquele momento.

Bateu na porta do gabinete, e quando ouviu Ramsay responder, abriu e entrou.

—Ah, Dominic - disse Ramsay com forçado ânimo. Apresentava um aspecto doentio, como se tivesse adormecido pouco e seu cansaço não fosse meramente físico. Tinha os olhos afundados e o olhar vazio. —Me alegro de que tenha vindo. - Revolveu com gestos enérgicos os papéis espalhados sobre a escrivaninha, como se procurasse algo da máxima importância. —Eu gostaria que fosse ver umas pessoas. -Ergueu a vista com um direto sorriso. —Velhos amigos, em certo sentido, paroquianos que necessitam umas palavras de consolo e orientação. Estaria-lhe muito agradecido se pudesse achar tempo hoje mesmo. Aqui está. - Levantou uma folha de papel onde constavam quatro nomes e seus respectivos endereços. Estendeu o braço por cima da escrivaninha e a entregou. —Nenhum vive longe daqui. Se fizer bom dia, pode se aproximar a pé. - Jogou uma olhada pela janela. —Sim, parece que luz o sol.

Dominic pegou a lista, leu-a e a guardou no bolso.

—Claro que irei. - Desejava acrescentar algo, mas agora que estava a sós com o Ramsay não sabia o que dizer. Uma geração os afastava. Ramsay o superava com acréscimo tanto em idade como em experiência. Tinha resgatado ao Dominic quando este se achava imerso no desespero e se aborrecia a si mesmo de tal modo que inclusive se expôs tirá-la vida. Foi Ramsay quem, pacientemente, ensinou-lhe um caminho diferente e melhor, quem o introduziu na fé verdadeira, e não a insípida e rotineira prática dominical a que ele estava acostumado. Como podia agora confrontar ao Ramsay com aquela tragédia e pressioná-lo para que falasse quando era evidente que não desejava fazê-lo? Ou possivelmente sim? Sentado em sua enorme cadeira, notava-o perturbado. Manuseava os papéis, levantava a vista para olhar ao Dominic, voltava a baixá-la e a erguia de novo.

—Quer falar do assunto? - perguntou Dominic. Não sabia se aquilo era uma intromissão imperdoável, mas ficar sentado em silêncio lhe parecia muito uma covardia.

Ramsay não simulou incompreensão.

—O que pode dizer-se? - Deu de ombros. Parecia desconcertado, e Dominic percebeu que depois do esforço de mostrar-se ocupado, de aparentar normalidade, estava também muito assustado. —Não sei o que ocorreu. - Contraiu o rosto. —Discutimos. Saiu daqui irritada, me gritando. Envergonha-me admitir que eu gritei para ela em termos igualmente ofensivos. Logo voltei para meu escritório. Não ouvi nada mais. Nunca ponho atenção aos ruídos da casa, algum ou outra portada ou grito. - Por um instante se interrompeu sua concentração no presente. —Lembro que em uma ocasião uma criada derrubou um balde de água no tapete da biblioteca. Estava limpando as janelas. Gritou como se a atacasse um ladrão. - Parecia perplexo. —Grande alvoroço! Todos acudiram correndo. E também há os ratos.

—Os ratos? - repetiu Dominic, desconcertado. —Os ratos são muito pequenos. Mal lhes ouço.

Um sorriso iluminou os olhos do Ramsay por um instante.

—Dominic, as criadas gritam quando vêem ratos. Uma vez Nellie lançou tal alarido que achei que iram quebrar os vidros dos lustres.

—Ah, já, claro. - Dominic teve a sensação de que tinha feito o ridículo. —Não pensava...

Ramsay exalou um suspiro e se reclinou na poltrona.

—Como foi pensar nisso? Tentava me ajudar. Dou-me conta disso e lhe agradeço. Queria me dar a oportunidade de falar se tinha algum peso entristecedor na consciência.... se realmente empurrei Unity pela escada, fosse de propósito ou acidentalmente. Não deve lhe ter sido fácil me expor o assunto, e sou consciente da coragem que requer. -Olhou Dominic no rosto. —Possivelmente falar disso sirva de desafogo...

Dominic notou crescer o pânico em seu interior. Não estava à altura das circunstâncias. E se Ramsay admitisse sua culpa? Estava Dominic obrigado a guardar silêncio por algum juramento de confidencialidade, ou embora fora por um acordo tácito? O que deveria fazer nesse caso? Convencer ao Ramsay para que se entregasse ao Pitt? Por que? Ajudá-lo a arrepender-se ante Deus? Compreendia sequer Ramsay o que tinha feito? Sem dúvida isso era o mais importante. Dominic o observou e não percebeu nele uma expressão de dilaceradora culpa. Temor sim, certamente, e também certo grau de culpa, certa consciência da enormidade da situação. Mas não a culpa do assassinato.

—Sim... - Dominic engoliu a saliva e quase se engasgou. Entrecruzou as mãos com força sobre o regaço, sob a escrivaninha, onde Ramsay não as via.

Ramsay sorriu mais abertamente.

—Sua expressão diz tudo, Dominic. Não vou carregar em você o peso da culpa. Quão pior posso admitir é que não sinto dor por sua morte.... ao menos não o que deveria sentir. Era outro ser humano, jovem e cheio de energia e inteligência. Não devo supor que, apesar de que seu comportamento induzisse às vezes a pensar o contrário, não era capaz de sentir ternura e esperança, amor e dor como o resto dos mortais. - mordeu o lábio, a confusão patente em seu olhar. —O cérebro me diz que é uma tragédia que sua vida se truncou. E por outro lado, as emoções me dizem que é um enorme alívio não ter que ouvir já sua arrogante convicção sobre a superioridade da espécie humana sobre todo o resto, e em particular sobre a superioridade do senhor Darwin. Um alívio profundo... intenso... - Fechou os dedos em torno da pena com tal violência que a dobrou. —Não desejo ser um organismo aleatório que descende do macaco! - Empanou-lhe a voz, próxima ao pranto. —Quero ser a criação de Deus, um Deus que criou tudo que me rodeia e se preocupa com isso, que me redimirá de minhas fraquezas, perdoará meus enganos e meus pecados, e de algum modo desembaraçará o enredo que são nossas vidas humanas e ao final lhes dará sentido. - Baixou a voz até falar em um sussurro. —E já não posso acreditar nisso, salvo em momentos de solidão, pelas noites, quando o passado parece voltar para mim, e posso me esquecer dos livros, dos raciocínios, e sentir como em outro tempo.

A chuva açoitou as janelas e ao cabo de um momento o sol fez ressaltar as gotas brilhantes nos vidros.

—Unity não é a causa de todas as dúvidas do mundo - prosseguiu Ramsay.

—Claro que não. Já tinha ouvido esses argumentos antes que ela viesse a Brunswick Gardens. Todos os conhecíamos. Tínhamos falado deles. tranqüilizei a muitos paroquianos confusos e alarmados, como sem dúvida terá feito você mesmo, e terá que continuar fazendo. - Engoliu a saliva, juntando os lábios em uma fina linha de dor. —Mas nela se concentraram todas as dúvidas, tão grande era sua certeza. - Agora Ramsay tinha o olhar fixo além de Dominic, na estante com portas de vidro onde nesse momento se refletia o sol. —A raiz do problema não é nenhum de seus comentários em particular, mas essa aparência de segurança em si mesma que mantinha um dia após outro. Nunca perdia ocasião de zombar. Sua lógica era implacável. - Calou por um instante. Dominic procurou algo que dizer, mas compreendeu que não devia interrompê-lo. —Era capaz de demolir a minha em qualquer discussão. - encolheu os ombros. —Às vezes conseguia que me sentisse ridículo. Admito-o, Dominic, nesses momentos a odiava. Mas não a empurrei pela escada, isso juro. - Olhou fixamente ao Dominic, suplicando-lhe com os olhos que acreditasse, sem querer não obstante perturbá-lo expressando seu rogo abertamente. E possivelmente temia ouvir a resposta.

Dominic se sentia desconfortável. Desejava acreditar nele, e entretanto como podia ser verdade? Quatro pessoas tinham ouvido Unity gritar: "Não, não, reverendo!" Acaso não tinha sido uma queixa mas uma chamada de socorro? Em tal caso, o culpado só podia ser Mallory.

Por que? Unity não tinha sacudido os alicerces de sua fé. Mallory se reafirmava em suas crenças ante qualquer oposição. Para ele, isso era uma prova mais de que se achava no bom caminho. Cada vez que ela mofava dele ou rebatia suas cegas declarações aplicando a lógica, ele se limitava a manter-se em suas convicções. Se ela não o compreendia, pensava Mallory, devia-se a sua falta de humildade. Se seus próprios raciocínios eram defeituosos, ou inclusive totalmente circulares, era porque nisso residia o mistério de Deus, que o homem não devia compreender. Se Unity fazia uma afirmação científica que não era do agrado do Mallory, ele a contradizia sem mais. Podia encolerizar-se, mas nunca se alterava internamente.

—Dominic, eu não a matei - repetiu Ramsay, e desta vez o medo e a solidão afloraram claramente a sua voz, irrompendo nas emoções de Dominic.

Dominic tinha uma dívida com ele que devia saldar. Mas como sem ficar ele mesmo em perigo? E sem dúvida Ramsay, que o tinha convertido no que era, não desejaria desfazer sua criação forçando-o a renunciar a sua honestidade.

—Nesse caso, foi Mallory - disse Dominic, obrigando-se a olhar Ramsay nos olhos. —Porque eu tampouco a empurrei.

Ramsay cobriu o rosto com as mãos e abaixou a cabeça sobre a escrivaninha. Dominic permaneceu imóvel. Não sabia o que fazer. A angústia do Ramsay parecia encher o gabinete. Era impossível que passasse inadvertida. Fingir era inconcebível. Ramsay nunca tinha fingido ante ele, nunca tinha evitado uma questão nem devotado palavras insinceras. Esse era o momento, naquele aposento silencioso, de pagar a dívida contraída. Tinha chegado a hora de pôr em prática as idéias, os princípios pelos quais tinha trabalhado com tanto afinco. Do que serviam as teorias se, por incapacidade ou relutância, não confrontava a realidade? convertiam-se em uma farsa, tão goradas e inúteis como Unity Bellwood afirmava. Dominic não podia permitir.

Pensou em inclinar-se sobre a escrivaninha e lhe tocar a mão, agarrar-lhe mas imediatamente abandonou a idéia. conheciam-se tão bem em alguns sentidos... Ramsay tinha visto em toda sua profundidade a confusão e desesperança do Dominic. Então inclusive o tinha abraçado sem o menor reparo. Mas aquilo era diferente. Ao mesmo tempo que forjava um vínculo entre eles, tinha-os separado, deixando ao Ramsay para sempre no papel do guia, o invulnerável, o resgatador. Pretender inverter os papéis equivaleria a lhe arrebatar o que ficava de dignidade. Dominic não o importunaria.

Manteve as mãos no regaço.

—Se foi Mallory, devemos confrontá-lo - disse. —Devemos ajudá-lo de todas as formas possíveis. Devemos lhe ajudar a admitir o ocorrido e, se pudermos, compreendê-lo. Tanto se foi um acidente como se foi intencional. - Sua voz soava fria, em extremo racional. Não era esse seu propósito. —Se atuou a propósito, devia ter uma razão de peso. Possivelmente ela o provocou mais da conta, e ao final Mallory perdeu o controle. Imagino que agora o lamenta amargamente. Todos os homens perdem o controle em algum momento da vida. É fácil compreender isso, e mais ainda sendo Unity a causa.

Ramsay levantou lentamente a cabeça e olhou ao Dominic. Estava lívido, e seu olhar destilava angústia.

Dominic mal podia dominar sua voz. ouvia-se falar como se ouvisse outra pessoa, longe dali. Parecia ainda extraordinariamente sereno.

—Depois o ajudaremos a enfrentar a polícia e a lei. Deve saber que não o abandonaremos, que não o condenaremos. Sem dúvida compreenderá a diferença entre condenar o pecado e condenar ao pecador. Devemos lhe mostrar essa realidade.

Ramsay respirava devagar.

—Mallory diz que não foi ele.

Dominic não se moveu. Acaso pensava Ramsay que tinha sido ele, Dominic? Seria natural. Ao fim e ao cabo, Mallory era seu filho, por profundas que fossem suas diferenças.

—Acha que pôde ser Clarice? - perguntou Dominic, esforçando-se por raciocinar.

Devia falar com sensatez.

—Não, claro que não! - exclamou Ramsay, revelando-se em seu semblante o absurdo que lhe parecia a idéia.

—Eu não fui - repetiu Dominic com firmeza. —Não sentia especial simpatia por ela, mas não tinha motivos para matá-la.

—Não foi você? - perguntou Ramsay com uma inflexão de curiosidade na voz. —Não estou cego, Dominic, embora dê a impressão de que vivo abstraído em meus livros e papéis. Notei o muito que você a atraía, como o olhava. Zombava de Mallory, provocava-o, mas ele era muito vulnerável para que ela o visse como um verdadeiro desafio. Você, em troca, representava uma provocação. É mais velho que Mallory, e mais judicioso; conheceu melhor às mulheres, a muitas mulheres, como você mesmo me disse em uma de nossas primeiras conversas. E o teria adivinhado embora não me houvesse isso dito. Nota-se na segurança com que se comporta ante elas. Entende muito bem às mulheres para ser um inexperiente. Rechaçou ao Unity, não é verdade?

Dominic, desconfortável, ruborizou-se.

—Sim...

—Nesse caso foi o desafio perfeito para ela - concluiu Ramsay. —Fascinava-a lutar por algo, e a vitória era seu maior prazer. A vitória intelectual era muito doce, e sabe Deus que a buscava freqüentemente comigo, e a encotrava com muita freqüência... - Contraiu o rosto em um passageiro vislumbre de ira e humilhação. —Mas a intensidade de uma vitória emocional era maior. Está certo de que não te provocou além do passível, e foi você quem perdeu momentaneamente o controle com ela? Não é difícil imaginar que a afaste de você, literalmente, fisicamente, causando o acidente que lhe custou a vida.

—Não, não é difícil imaginar - concedeu Dominic, sentindo crescer o medo em seu interior. Tampouco ao Pitt seria difícil. Ao Pitt, de fato, convinha-acreditar nessa possibilidade. Representava uma escapatória para o Ramsay, e para Vita.

Isso exatamente pedia Clarice em suas preces, uma escapatória tanto para seu pai como para seu irmão. E Mallory receberia de bom grado a notícia, é claro. Quanto a Tryphena, tanto lhe dava sempre e quando aparecesse um culpado.

Dominic engoliu a saliva, notando tensa a garganta. Ele não tinha empurrado Unity. Nem sequer estava perto do patamar quando ela caiu pela escada, e ignorava quem o tinha feito. Aquilo era ainda pior que Cater Street. Pois então, tudo era novo, e Dominic não sabia o que esperar. Tinha a mente ofuscada pela comoção da morte de Sarah. Agora estava muito mais alerta, cada um de seus nervos consciente das temíveis possibilidades. Tinha presenciado já uma vez o processo.

—Mas eu não a empurrei - repetiu. —Está certo: tenho experiência com as mulheres. - Voltou a engolir a saliva. Tinha a boca seca. —Sei rechaçar a uma mulher sem me deixar levar pelo pânico, sem provocar uma discussão, e menos ainda uma briga violenta. - Isso era verdade só em parte, mas não era momento para entrar em matizações.

Ramsay guardou silêncio.

Dominic pensou o que devia dizer a seguir. Ramsay virtualmente tinha sido acusado do homicídio. Se era inocente, devia experimentar a mesma sensação de terror que por um momento tinha assaltado ao Dominic. Todo mundo tinha comprometido Ramsay, inclusive sua própria família, e na aparência a polícia dava crédito a essas declarações. Devia sentir uma solidão inimaginável.

De maneira instintiva, Dominic estendeu uma mão e a apoiou no pulso do Ramsay. Quando tomou consciência do que tinha feito, era já muito tarde para voltar atrás.

—Pitt descobrirá a verdade - disse com firmeza. —Não permitirá que se acuse ou detenha um homem inocente. Por isso o enviaram a ele. Não cederá à pressão de ninguém, e nunca se rende.

Ramsay o olhou vagamente surpreso.

—Como sabe?

—É casado com a irmã de minha esposa. Conheci-o faz muito tempo.

—Sua esposa?

—Morreu. Foi assassinada... faz dez anos.

—Ah.... sim, claro. Sinto muito. Por um momento me tinha esquecido – se

desculpou Ramsay. Com delicadeza, afastou sua mão da do Dominic e se aparou o cabelo, muito espaçado para necessitá-lo. —Estes últimos dias me custa muito me concentrar. Tenho a sensação de avançar às escuras em um sonho. Continuamente tropeço com algo.

Dominic ficou em pé.

—Irei visitar estas pessoas. Por favor.... por favor, não se deixe vencer pelo desespero...

Ramsay esboçou um sombrio sorriso.

—Resistirei. Suponho que lhe devo isso, não?

Dominic não respondeu. Era ele quem estava em dívida, e sabia. Saiu do gabinete e fechou a porta com cuidado.

Em primeiro lugar visitou a senhorita Edith Trethowan, uma mulher de idade difícil de determinar porque a má saúde a tinha privado da vitalidade de que teria desfrutado em condições normais. Tinha a tez pálida e o cabelo quase branco. Ao conhecê-la, Dominic tinha calculado que passava os sessenta anos, mas logo, apoiando-se em um par de referências surgidas na conversa, deduziu que provavelmente não tinha mais de quarenta e cinco, envergonhando-se de sua própria estupidez. Era a dor, não o tempo, o que tinha deixado rastro em seu rosto e curvado seus ombros.

Embora totalmente vestida, jazia em um divã, como costumava em seus melhores dias. Obviamente se alegrou de vê-lo.

—Entre, senhor Corde! - apressou-se a dizer, e seus olhos se iluminaram. Elevando uma mão sulcada de finas veias azuis, indicou uma poltrona. —Me agrada vê-lo. - Examinou-o com o olhar. —Mas o noto cansado. Outra vez esteve trabalhando mais da conta?

Dominic sorriu e se sentou onde lhe tinha indicado. Esteve a ponto de lhe explicar o verdadeiro motivo de seu cansaço, mas serviria só para alarmá-la. À senhorita Trethowan gostava de ouvir boas notícias. Tinha já bastante com seus próprios sofrimentos.

—Sim, possivelmente - respondeu ele, com um gesto de indiferença. —Mas não importa. Embora talvez deveria usar mais o bom senso. Em todo caso, hoje é um dia para visitar amigos. Como se encontra?

Também ela ocultou a realidade.

—Ah, muito bem, obrigado, e com um ânimo excelente. Acabo de ler umas cartas lindas de uma mulher que viajou pelo Egito e Turquia. Que vida tão agitada! Eu desfruto lendo-o, mas acredito que me daria um medo atroz fazer coisas assim. - estremeceu. —Não é uma sorte poder participar desses fatos graças às experiências de outras pessoas? Em seus escritos achamos tudo interessante, e não temos que suportar as moscas, o calor, as enfermidades.

—Nisso lhe dou a razão - concordou Dominic. —Também nos liberamos dos enjôos, dos vai véns de viajar a lombos de uma mula ou um camelo, e das noites ao relento. Admito, senhorita Trethowan, que para mim não há nada mais importante que um bom quarto de banho.

Ela riu.

—Estou de acordo com você. Nem todos temos perfil de exploradores.

—E, além disso se ninguém ficasse em casa, a quem contariam eles suas peripécias ao voltar?

A senhorita Trethowan achou muito divertido o comentário. Falou durante meia hora de tudo o que tinha lido, e ele a escutou atentamente, intercalando as observações pertinentes cada vez que as pausas dela o permitiam. Dominic prometeu lhe buscar mais livros sobre temas similares, e ao partir, ela ficou com um sentimento de satisfação. O bate-papo não tinha incluído uma só alusão a temas religiosos, mas ele não caiu na conta até mais tarde. Não lhe tinha parecido oportuno.

A seguir visitou senhor Landells, um viúvo que se sentia profundamente só, e cuja amargura aumentava cada vez mais.

—Bom dia, senhor Landells - saudou Dominic alegremente quando o fizeram entrar ao frio salão. —Como está?

—O reumatismo me está matando - respondeu Landells, mal-humorado. —O médico não me serve de nada. Este é o ano mais chuvoso que lembro, e lhe asseguro que lembro de muitos. Não estranharia que também tivéssemos um verão frio; de fato, é frio um de cada dois. - Estava sentado em uma postura rígida, e Dominic tomou assento frente a ele. Era evidente que aquela seria uma árdua tarefa.

—Chegaram-lhe notícias de sua filha da Irlanda? - perguntou Dominic.

—Ali chove mais ainda - respondeu Landells com satisfação. —Não entendo como lhe ocorreu partir.

—Se não recordo mau, comentou-me que o marido de sua filha tinha ali um bom emprego. Ou estou equivocado? Landells lhe lançou um olhar de indignação.

—Achava que vinha me levantar o ânimo! Não é essa a missão da Igreja, que tudo isto é por nosso bem, que algum dia Deus fará que valha a pena? -Com um irado gesto de sua mão reumática, indicou o mundo em geral. —Você não pode me explicar por que morreu minha Bessie e eu estou aqui só, sem nada que fazer nem ninguém a quem preocupe se estiver vivo ou morto. Você vem unicamente porque é sua obrigação. - sorveu-se o nariz e olhou com raiva para Dominic. —Por que, se não? O reverendo me visita de vez em quando porque é seu dever. Fala-me de Deus e a redenção, e tudo isso. Conta-me que Bessie ressuscitou em algum lugar e voltaremos a nos ver, mas nem ele nem eu acreditamos numa só palavra! - Fez uma careta de desgosto. —Vejo em seu rosto. Sentamo-nos um frente ao outro e falamos de um montão de tolices sem nos acreditar nada. – Tirou um enorme lenço do bolso e se soou ruidosamente. —O que sabe você do que é fazer-se velho, descobrir que o corpo já não responde, ver que os seres queridos morreram, e não esperar já nada salvo a morte? Não quero ouvir sua enxurrada de frases feitas sobre Deus.

—Não - concordou Dominic com um sorriso, mas olhando ao Landells nos olhos. —O que você quer é alguém a quem jogar a culpa. Sente-se só e assustado, e é mais fácil deixar-se levar pela ira que admitir essa realidade. É uma boa válvula de escape. Se conseguir que me parta daqui absolutamente abatido, terá a sensação de que exerce poder sobre alguém.... embora esse poder lhe sirva só para ferir. - Dominic não soube por que disse aquilo. Ouvia suas próprias palavras como se fossem de outro. Ramsay teria ficado horrorizado.

Landells também o estava. ficou de mil cores.

—Você não tem direito a me falar assim! – protestou. —É um ajudante. Deve me tratar com amabilidade. É seu trabalho. Para isso lhe pagam.

—Não, muito menos - rebateu Dominic. —Me pagam para lhe dizer a verdade, e você não gosta de ouvi-la.

—Eu não estou assustado - replicou Landells com aspereza. —Como se atreve a me dizer isso? Informarei de sua atitude ao reverendo Parmenter. Já veremos o que tem ele que dizer a respeito. Ele vem aqui e reza por mim, trata-me com respeito, fala-me da ressurreição, e me ajuda a me sentir melhor. Não se senta aí e começa a me criticar.

—Acaba de me dizer que nem ele nem você acreditam uma só palavra de tudo isso - indicou Dominic.

—Sim, assim é, mas essa não é a questão. O reverendo ao menos o tenta.

—Eu acredito no que digo. Acredito que todos ressuscitaremos, incluídos você e Bessie - respondeu Dominic. —Pelo que ouvi contar dela, era uma mulher adorável, generosa e sensata, honrada, alegre e feliz. Ria muito... - Viu lágrimas nos olhos do Landells, mas as passou por cima. —Ela teria sentido muito sua falta se tivesse morrido antes, mas não teria ficado de braços cruzados acumulando ira dia a dia e culpando de tudo a Deus. Só imagine por um instante que existe a ressurreição... Seu corpo se regenerará e voltará a ser como era quando se achava você na flor da vida, mas seu espírito seguirá sendo o mesmo. Está disposto a reunir-se com Bessie com esse ânimo... por não falar já de reunir-se com Deus?

Landells o olhou fixamente. No braseiro mal ardia o fogo. Era necessário avivá-lo, mas não restava suficiente carvão no balde.

—De verdade acredita? - perguntou lentamente o ancião.

—Sim, acredito - declarou Dominic sem uma sombra de dúvida. Sem saber por que, albergava uma total certeza. Acreditava no que tinha lido No domingo de Ressurreição e a aparição do Senhor a Maria Madalena no horto. Acreditava deste modo no episódio da Bíblia em que os discípulos, indo a caminho de Emaus, encontraram-se com o Cristo ressuscitado e seguiram adiante em sua companhia, reconhecendo-o só no último momento, quando ele partiu o pão com eles.

—E o que me diz do senhor Darwin e seus bonitos? - inquiriu Landells, cintilando em seu olhar uma expressão entre a esperança e o desespero, entre a momentânea vitória e a permanente derrota. Uma parte dele desejava sair vencedora da discussão com o Dominic; outra parte, maior e mais honesta, desejava perder com toda sua alma.

—Não entendo essas teorias - admitiu Dominic. —Mas o senhor Darwin se equivoca se sustentar que Deus não criou a Terra e quanto há nela, ou que os homens não são algo especial para Ele, mas simplesmente uma forma de vida acidental. Note os prodígios e a beleza do universo, senhor Landells, e me diga se tudo é fruto do acaso e carece de um sentido profundo.

—Minha vida agora não tem sentido - declarou Landells, com o rosto contraído. Estava ganhando, e não queria.

—Desde a morte de Bessie? - perguntou Dominic. —E tinha sentido antes? Não era ela algo mais que um mero acidente, uma descendente de um macaco convertido em um extraordinário acerto?

—O senhor Darwin... - começou a argumentar Landells, e de repente, sorrindo por fim, afundou-se em sua poltrona. —De acordo, senhor Corde. Acredito em você. Não o compreendo, isso certamente, mas acredito em você. E me diga: por que o reverendo Parmenter não me fala assim? Ele tem mais experiência que você... muito mais. Você é só um principiante, isso.

Dominic conhecia a resposta a isso, mas não pensava dá-la ao Landells. A fé do Ramsay partia da razão, e a razão o tinha abandonado ao confrontá-la com uma argumentação mais forte que a sua, apoiada em um campo da ciência que não compreendia.

—Mesmo assim, estou certo - disse Dominic com firmeza, ficando em pé. —Leia a Bíblia, senhor Landells... e sorria enquanto o faz.

—Sim, senhor Corde. me poderia aproximar isso se for amável? Estou muito intumescido para me levantar desta poltrona. -Um vislumbre de humor brilhou no olhar do ancião, uma despedida final da vitória.

Dominic visitou depois aos senhores Norland, foi almoçar e passou o resto da tarde com o senhor Rendlesman. Voltou para Brunswick Gardens a tempo de compartilhar com a família Parmenter um jantar tardio, que foi a comida mais tensa que recordava. achavam-se todos pressentes e muito nervosos. O silêncio da polícia parecia confirmar seus temores, e os ânimos estavam muito exaltados até antes de retirar o primeiro prato e servir o segundo. A conversa foi entrecortada, falando freqüentemente duas pessoas ao mesmo tempo e ficando depois em silêncio, sem que ninguém continuasse.

Só Vita tratou de manter certa aparência de normalidade. Ocupou seu lugar em um extremo da mesa, e embora estivesse pálida e assustada, ia impecavelmente penteada como de costume e levava um vestido cinza claro guarnecido de negro, adequado para guardar luto por alguém que, até sendo próximo, não pertencia à família. Dominic não pôde evitar dar-se conta uma vez mais de quão adorável era, de uma graça e uma atitude muito melhores que a beleza convencional. Seu encanto não murchava, nem era tedioso jamais.

Tryphena, por sua parte, apresentava um aspecto desastroso. Não se tinha incomodado em arrumar o cabelo, em geral lindo. Nesse momento o tinha alvoroçado e sem brilho, e ainda tinha os olhos inchados e um pouco vermelhos. Mantinha uma atitude áspera, como se reprovasse a todos os pressente sua incapacidade de sentir a mesma dor que ela. Vestia-se totalmente de negro, sem o menor adorno.

Clarice também mostrava certo desalinho, mas em realidade ela nunca havia possuído a sofisticação de sua mãe nem no vestir nem nas maneiras. Freqüentemente levava o cabelo tão revolto como nessa ocasião, mas seu brilho e suas ondas naturais lhe conferiam apesar de tudo certa beleza. Estava muito pálida e lançava olhares de aversão a uns e outros, e se dirigia a seu pai com desnecessária freqüência, como se realizasse o esforço sobre-humano de atuar com normalidade ante ele mas não acreditasse no que outros pareciam acreditar. Entretanto só conseguiu centrar mais a atenção nesse fato.

Mallory se achava absorto em seus pensamentos e não dizia uma palavra a menos que alguém lhe falasse diretamente. Fossem quais fossem suas preocupações, não as pôs ao conhecimento de ninguém.

Na mesa, como sempre, havia um centro de flores procedentes da estufa. Dominic procurou algo que dizer que não fosse muito insensível, como se não se produzisse tragédia alguma. Deveriam ser capazes de falar entre si com sensatez, trocar comentários a respeito de algum tema, além do tempo, sem chegar a discutir. Três deles eram homens consagrados ao serviço de Deus, e entretanto todos ao redor da mesa evitavam mutuamente seus olhares e comiam de maneira mecânica. O medo e a desconfiança podiam apalpar-se no ambiente. Todos sabiam que um dos três homens pressentes tinha matado Unity, mas só um deles sabia com absoluta certeza quem o tinha feito, e carregava em sua consciência o peso do terror e da culpa.

Mastigando um pedaço de carne que lhe parecia muito uma bola de serrín na boca, perguntando-se como engoli-la Dominic escrutinou ao Ramsay sem mal levantar a vista. Parecia mais velho, mais cansado que de costume, também temeroso possivelmente, mas Dominic não percebeu nele o menor rastro de culpa, nada que o induzisse a pensar que era um homem que tinha matado e negava seu delito, deixando que as suspeitas recaíssem em seu amigo e, pior ainda, em seu filho.

Dominic se voltou para o Mallory e viu a tensão em seus ombros e seu pescoço, seu olhar fixo no prato, evasivo. Não tinha dirigido a seu pai nem sequer um fugaz olhar. Era isso culpa? Dominic não sentia especial apreço por Mallory Parmenter, mas sempre o tinha considerado um homem honrado, embora aborrecido e sem o menor senso de humor. Talvez sua atitude se devesse basicamente à insensibilidade. Com o tempo isso mudaria, aprenderia que era possível servir a Deus e ao mesmo tempo rir, inclusive saborear os aspectos formosos e absurdos da vida, a riqueza de matizes da natureza e das pessoas.

Era Mallory tão covarde para permitir que seu pai pagasse em lugar dele por um crime... o que... passional?

—Imagino que faz muito calor em Roma. - A voz de Clarice interrompeu os pensamentos do Dominic. dirigia-se ao Mallory. —Chegará ali a começos do verão. Mallory ergueu a vista, seu semblante sombrio e mal-humorado.

—Se é que chego...

—por que não ia chegar? - perguntou Vita, enrugando a testa como se compreendesse o comentário. —Pensava que estava tudo resolvido.

—E estava - respondeu Mallory. —Mas não tinha previsto a morte de Unity. Talvez ali vejam as coisas de outra maneira agora.

—Por que? - disse Tryphena com descaramenteo. —Isto não tem nada que ver com você. São tão injustos para responsabilizá-lo de algo que não fez?

Deixou o garfo, esquecendo-se da comida —Esse é o problema com sua religião; acham que todo mundo é culpado do pecado de Adão, e para cúmulo agora parece que Adão nem sequer existiu, o que não impede que continuam jogando água nas crianças para limpá-las do pecado original... e os pobres não têm a menor ideia do que lhes fazem. Eles só sabem que vão vestidos de gala, entregam-nos a um desconhecido que os sustenta nos braços e fala sobre eles, não com eles, e depois os devolvem a suas famílias. E se supõe que com isso se arruma tudo? Nunca na vida ouvi uma idiotice semelhante. Pura superstição. Essas são coisas próprias da Idade Média, como os ordálios, o costume de inundar em água às bruxas e a idéia de que chega o fim do mundo cada vez que há um eclipse de sol. Não entendo como pode ser tão confiante.

Mallory abriu a boca para replicar.

—Tryphena... - interrompeu-a Vita, inclinando-se sobre a mesa.

—Quando eu queria pôr calças para montar em bicicleta – prosseguiu Tryphena sem alterar-se, —simplesmente porque era mais prático, papai quase teve uma apoplexia. - Fez um brusco gesto, e por muito pouco não atirou seu copo de água. —Entretanto a ninguém parece estranho que lhes vistam com longas saias, adornem-lhes com fileiras de contas penduradas no pescoço, cantem juntos, e bebam algo que, segundo vocês, é vinho convertido em sangue, o qual, além disso, é em extremo repugnante, para não dizer blasfemo. E apesar disso, opinam que os canibais são uns selvagens que deveriam...

Mallory tomou ar para responder.

—Tryphena, basta já! - antecipou-se Vita de novo. Com um cenho de irritação, voltou-se para Ramsay. —Pelo amor de Deus, diga algo a sua filha! Defenda-se!

—Deu-me a impressão de que era ao Mallory a quem atacava – observou Ramsay sem alterár-se. A doutrina da transubstanciação da sagrada hóstia é uma crença católica.

—E para que o fazem? - contra-atacou Tryphena. —Algum sentido devem lhe

achar. Ou por que se engalanam com tecidos bordados e representam o número de princípio a fim?

Ramsay a olhou com tristeza mas guardou silêncio.

—Isso é um aviso dos quais somos e das promessas que temos feito – explicou Dominic com toda a paciência de que pôde fazer provisão. —E desgraçadamente é necessária recordar.

—Nesse caso, pouco importaria se em lugar de pão e vinho se usassem bolachas e leite - respondeu ela com tom desafiante e um brilho triunfal no olhar.

—Não importaria o mínimo - corroborou Dominic com um sorriso. —Desde que acreditasse em suas palavras e fosse com o espírito adequado, e sobre tudo sem ira nem malícia.

Tryphena se ruborizou, sentindo que lhe escapava a vitória.

—Unity dizia que a missa não era mais que uma magnífica representação teatral, concebida para impressionar aos fiéis e assegurar-se de sua obediência e seu respeito - concluiu como se citar uma frase de Unity fosse em si mesmo prova de algo. —Não é mais que um espetáculo sem conteúdo. É fruto de um desejo de poder por parte do clero, e de uma mentalidade supersticiosa por parte dos fiéis. ficam mais tranqüilos se confessarem seus pecados e os perdoarem; assim, podem começar de novo. E se não voltarem a pecar, é porque vivem aterrorizados por vocês.

—Unity era uma néscia! - exclamou Mallory com crispação. —E uma blasfema.

Tryphena se voltou imediatamente para ele.

—Ah, nunca ouvi-o lhe dizer isso na cara quando vivia! Agora que não está para responder-lhe, saca de repente a valentia. - Seu desprezo era devastador. —Antes lhe faltava tempo para fazer tudo o que ela lhe pedia. E não recordo que a contradissesse nunca em público com esse tom. Que convicção nasceu em você de repente, e que ardor para defender sua fé!

Mallory empalideceu, olhando-a com expressão irada e defensiva.

—Não tinha sentido discutir com Unity - disse com voz trêmula. —Nunca escutava a ninguém porque prejulgava as opiniões de outros antes que começassem a falar. Tinha as idéias muito claras.

—E você não as tem? - replicou Tryphena.

—Claro que sim! - Mallory arqueou as sobrancelhas. —Minhas idéias são uma questão de fé, e isso é muito diferente.

Tryphena deixou o garfo com um violento golpe. Não quebrou o prato por milagre.

—Por que todos dão por sentado que seus princípios se apóiam em algo virtuoso como a fé, algo digno de elogio, e que os princípios de Unity, em troca, eram perversos e falaciosos e se apoiavam nas emoções ou ignorância? Essa superioridade moral dá náuseas... e é ridícula. Se, se vissem desde fora, poriam-se a rir. - Arrojou-lhes essas palavras com o rosto distorcido pela fúria e a consciência de sua própria impotência. —Pensariam que são uma paródia. Exceto pelo fato de que são muito cruéis para fazer graça. E ganham! Isso é o mais insuportável. Ganham. Há superstição, opressão e ignorância por toda parte, e uma injustiça catastrófica. - ficou em pé, olhando-os com lágrimas nos olhos. —Estão todos aqui sentados jantando, e Unity jaz amortalhada em uma fria mesa, esperando sepultura.

Enganarão-se todos...

—Tryphena! - protestou Vita, em vão. voltou-se para o Ramsay com desespero, mas ele permaneceu impassível.

—... com seus preciosos vestidos e trajes - continuou Tryphena com voz afogada - e tocarão o órgão e cantarão e rezarão por ela. por que não podem falar com voz própria? - Olhou a seu pai com atitude desafiante. —Como podem falar assim se em realidade não acreditam em uma só palavra do que dizem? Seguirão com sua cantinela como em um mal oratório, e enquanto isso um de vocês é seu assassino. Ainda espero despertar e descobrir que tudo isto é um pesadelo, só que me dou conta de que se prolonga já há anos de um modo ou outro. Acaso é isto o inferno? - Estendeu os braços, roçando a cabeça de Dominic. —Tudo isto é... uma hipocrisia! Embora digam que no inferno faz calor, possivelmente não seja assim. Talvez simplesmente seja algo luminoso e interminável.... nauseabundo. - voltou-se para Vita. —E não se incomode em me pedir que abandone a sala de jantar.... essa é minha intenção. Se continuar aqui um segundo mais, vomitarei.

Derrubou a cadeira ao afastá-la e correu para a porta.

Dominic ficou em pé e levantou a cadeira. Era inútil apresentar desculpas por Tryphena.

Ramsay estava visivelmente abatido, com o olhar fixo no prato, a pele branca em torno dos lábios, manchas de rubor nas faces. Clarice o observava com manifesto pesar. Vita mantinha a vista à frente, como se não pudesse resistir mais aquela situação nem escapar dela.

—Por falar com tanto desdém do teatro - comentou Clarice com voz rouca, —se dá muito bem na interpretação dramática. Embora possivelmente super atua um pouco, não lhes parece? o da cadeira estava demais. Ninguém gosta de uma atriz que eclipsa ao resto da companhia.

—Pode ser que ela esteja atuando - replicou Mallory, —mas eu não.

Clarice exalou um suspiro.

—Que lástima! seria sua melhor desculpa.

Dominic lhe lançou um olhar, mas ela se voltou para seu pai.

—Uma desculpa para que? - perguntou Mallory, decidido a continuar com o assunto.

—Para tudo - respondeu Clarice.

—Eu não fiz nada! - disse Mallory na defensiva, e indicou a seu pai com a cabeça.

Nas faces do Clarice apareceram dois círculos de intenso rubor.

—Quer dizer que não empurrou Unity? estive dando voltas ao assunto. Talvez ela tivesse uma aventura com o Dominic.

Vita olhou com fúria a sua filha, os olhos arregalados. Tomou ar como se, se dispusera a falar, mas Clarice prosseguiu com voz alta e clara.

—Lembro muitos detalhes, agora que o penso, momentos em que Unity procurava a companhia do Dominic, olhares furtivos, aproximações...

—Isso não é verdade! - interrompeu-a Vita por fim com voz tensa, como se as palavras mal pudessem sair de sua garganta. —Isso é um comentário espantoso e irresponsável, e não quero voltar a ouvi-lo. Entendido, Clarice?

Clarice olhou a sua mãe com surpresa.

—Não há inconveniente, pois, em insinuar que papai assassinou a Unity, mas não pode dizer-se que Unity tinha uma aventura com o Dominic? por que?

Dominic notou que lhe ardia o rosto. Também ele recordava esses momentos, com uma clareza que lhe horrorizava e o fazia desejar achar-se em qualquer parte menos sentado a aquela mesa, vendo veta doída e consternada, Mallory com uma expressão de desprezo nos lábios, Ramsay em atitude evasiva, imerso em seu medo e sua solidão.

—Suponho que Dominic se cansou dela - prosseguiu Clarice, inexorável. —Todo esse palavrório político pode chegar a causar certo tédio. Em alguns momentos é muito previsível, e isso sempre aborrece. Unity nunca escutava, e os homens detestam às mulheres que não fingem ao menos beber suas palavras, embora tenham a mente em outro lugar. É uma arte. Mamãe sabe fazê-lo como ninguém. Observei-a centenas de vezes.

Vita se ruborizou e pareceu a ponto de dizer algo, mas tinha ficado muda de vergonha.

Salvo Dominic, ninguém percebeu que a porta se abria e Tryphena aparecia na soleira.

—Juraria que achou mais atraente a mamãe - continuou Clarice, rompendo o tenso silêncio. —Isso é. Dominic se apaixonou por mamãe...

—Clarice.... por favor... - disse Vita com desespero, mas mal pôde levantar a voz.

Mallory olhou fixamente a sua irmã, prestando por fim verdadeira atenção.

—Imagino perfeitamente. - Clarice preparou o terreno para conseguir o efeito dramático que perseguia. recostou-se na cadeira com os olhos fechados e o queixo alto. Também ela estava oferecendo uma excelente interpretação. —Unity continua locamente apaixonada por Dominic, mas ele começa a aborrecer-se e desagrada seu interesse por uma mulher mais feminina, mais atraente. - Tinha uma expressão de encantamento, profundamente concentrada. —Mas Unity não está disposta a renunciar a ele. Não pode resistir ao rechaço. Chantageia-o, ameaçando-o revelar sua passada relação. O dirá a todo mundo. A papai, à Igreja. Expulsarão-no.

—Isso é um disparate! - protestou Dominic, indignado. —Basta já! É uma acusação irresponsável, e uma falsidade.

—Por que? - Clarice abriu os olhos e se voltou para ele. —Por que não se pode jogar a culpa a ninguém mais? Se for justo culpar a meu pai, por que não a você, ou Mallory.... ou a mim, de fato? Sei que não a empurrei eu, mas não sei se foram ou não vocês. Não é essa a razão de que estejamos aqui receando uns aos outros, tentando recordar algum detalhe revelador para achar sentido a isto? Não é esse o motivo de nosso medo? - Estendeu os braços em um amplo gesto, com os olhos muito abertos-. Poderia ter sido qualquer de nós. Como vamos proteger nos a não ser demonstrando que foi outra pessoa? Até que ponto nos conhecemos uns aos outros, a personalidade oculta atrás do rosto conhecido? Não me faça calar, Mallory! - Afastou com impaciência a seu irmão, que se tinha inclinado para ela. —É a verdade! - Soltou uma gargalhada histérica. —Possivelmente Dominic se cansou de Unity, apaixonou-se por mamãe, e quando Unity resistiu a deixá-lo, ele a matou. E agora se alegra de que acusem a papai, porque assim escapa da forca e de passagem se desfaz dele. Desse modo mamãe fica livre para casar-se com ele, e...

—Isso é absurdo! - exclamou Tryphena da porta com voz alta e iracunda. —É impossível.

Clarice se voltou para olhar a sua irmã.

—Por que? Não seria a primeira vez que alguém mata por amor. É muito mais lógico que pensar que a matou papai porque era atéia. Deus santo, o mundo está cheio de ateus! supõe-se que os cristãos se dedicam a convertê-los, não a matá-los.

—Conte isso à Inquisição! - replicou Tryphena, entrando na sala de jantar. —É impossível porque Dominic não teria rechaçado ao Unity. Se ela se fixasse em Dominic com essas intenções, o que é muito improvável, teria sido ela mesma quem tinha acabado aborrecendo-se e rompendo a relação. E Unity nunca se degradaria à chantagem. É impensável. - Olhou ao Clarice com desprezo. —Tudo o que diz demonstra unicamente sua pobreza de espírito. Voltei para me desculpar por ter causado um alvoroço durante o jantar, o que é de muito má educação. Mas agora vejo que era desnecessário, posto que Clarice acaba de acusar a um de nossos convidados de manter uma relação ilícita com a outra convidada e assassiná-la depois para carregar a meu pai com a culpa e casar-se com minha mãe. Ao lado disso que importância pode ter algo tão insignificante como alterar a marcha do jantar?

—Unity não era uma convidada - respondeu Clarice em tom pedante. —Era uma empregada. Papai a contratou para ajudá-lo com as traduções.

Dominic ficou em pé. Percebeu com surpresa que estava tremendo. Inclusive lhe fraquejavam as pernas. Segurou o espaldar da cadeira e olhou de um em um aos outros.

—Clarice disse uma coisa que sim é certa: todos temos medo, e isso altera nosso comportamento. Não sei o que ocorreu a Unity, salvo que está morta. Só uma das pessoas aqui pressentes sabe, e de nada serve que nos declaremos inocentes ou, a menos que tenhamos uma prova concludente, acusemos a outros. – Desejou acrescentar que não tinha mantido uma relação amorosa com Unity, mas só conseguiria desencadear outra ronda de negativas, precisamente o que lhes tinha sugerido que não fizessem. —vou estudar um momento. - E deu meia volta e abandonou a mesa, ainda trêmulo, notando na pele o contato frio do medo. A insinuação de Clarice era absurda, é claro, mas não inverossímil. Era um motivo muito mais lógico que qualquer dos que podiam atribuir-se ao Ramsay.

A noite por si espantosa se somou a chegada do bispo Underhill às nove e quinze. Tanto Dominic como Ramsay se viram obrigados a descer ao salão principal para recebê-lo. Lá em visita oficial para expressar suas condolências e oferecer apoio à família naqueles momentos difíceis e dolorosos.

Em respeito a seu status na Igreja, a família inteira fez ato de presença. Todos se sentiam desconfortáveis por distintas razões. Tryphena o observou com ira. Vita permaneceu sentada com recato, pálida e temerosa. Mallory tratou de aparentar indiferença. Clarice, felizmente, guardou silêncio, ficando imóvel em uma poltrona e lançando algum ou outro olhar a Dominic.

—Tenho certeza de que todos nossos corações estão com vocês durante esta difícil prova - declarou o bispo com voz sonora, como se, se dirigisse a uma multidão de fiéis. —Rogaremos por esta família de todas as maneiras... de todas as maneiras possíveis.

Clarice cobriu o rosto com as mãos e abafou algo que podia passar por um espirro. Dominic se deu conta de que tentava dissimular a risada e acreditou adivinhar que imagens rondavam por sua mente. Desejou ter a liberdade de poder fazer o mesmo em lugar de ver-se obrigado a escutar com seriedade e aparentar um profundo respeito.

—Obrigado - sussurrou Vita. —É tudo muito confuso.

—Claro que o é, minha querida senhora Parmenter. - O bispo procurou alguma resposta adequada. —Para achar o bom caminho, alguém deve deixar-se guiar pela honradez e a luz da verdade. O Senhor nos prometeu ser um farol para iluminar nossos passos. Devemos depositar nossa confiança nele.

Tryphena ergueu a vista ao teto em um gesto de desespero, mas o bispo não a olhava.

Ramsay guardava um patético silêncio, e Dominic sentia lástima por ele. Parecia uma mariposa, ainda viva, presa por um alfinete.

—Devemos ter coragem - continuou o bispo. Clarice abriu a boca e voltou a fechá-la. Em seu rosto se refletia seu esforço por controlar o mau gênio, e por uma vez Dominic se identificou plenamente com ela.

A que se referia o bispo? Coragem para que? Para abster-se de estender a mão da amizade ou fazer uma promessa de lealdade ou ajuda. O bispo se guardou muito disso. Não tinha pronunciado mais que cautelosas frases feitas.

—Todos faremos o que possamos - prometeu Vita, olhando ao bispo. —foi muito amável de sua parte vir nos ver. Sei que está muito ocupado...

—Nada disso, senhora Parmenter - respondeu ele, sorridente. —É quão mínimo podia fazer...

—O mínimo - disse Clarice entre dentes. Logo, erguendo a voz, acrescentou. —Sabíamos que não podia esperar-se menos do senhor, bispo Underhill.

—Obrigado, querida. Obrigado.

—Espero que nos ajude a nos comportar de maneira honorável e ter o valor de agir como é devido - prosseguiu Vita imediatamente. —Possivelmente uma palavra de conselho de vez em quando. Agradeceríamos muito. Eu... - Deixou as palavras no ar, a frase inacabada testemunho de seu mal-estar.

—Naturalmente - assegurou o bispo. —Naturalmente que o farei. Tomara... tomara soubesse... minha própria experiência...

Dominic sentia vergonha alheia e se envergonhava também de si mesmo pelo desprezo que lhe inspirava o bispo. Deveria vê-lo admirado, deveria vê-lo como um firme sustento, mais sábio que eles, mais forte, transbordante de compaixão e honra. Mas o bispo havia se abstraído do conflito, devotado vagos conselhos que não necessitavam, e evitado comprometer-se.

A visita do bispo se prolongou durante meia hora, e quando por fim se foi, Dominic experimentou um profundo alívio. Vita o acompanhou até a porta, e quando voltava, Dominic lhe saiu ao encontro no vestíbulo. Estava exausta, sem forças. Dominic não imaginava de onde tirava forças para manter aquela compostura. Era difícil conceber um dilema pior que aquele ante o que ela se achava. Sua admiração por ela era infinita. Procurou alguma maneira de fazer saber que não soubessem que aumentava sua ansiedade e seu constrangimento.

—Demonstra você uma valentia extraordinária - disse com ternura, aproximando-se de Vita para falar em voz baixa e que ninguém mais o ouvisse. —Todos estamos em dívida com você. Acredito que possivelmente esta situação seja passível só graças a sua fortaleza.

Vita sorriu com uma repentina satisfação que por um momento ao Dominic pareceu genuína, como se lhe tivesse dado um presente pequeno mas precioso.

—Obrigada... - sussurrou Vita. —Obrigada, Dominic.

 

—Acha que foi Ramsay Parmenter? - perguntou Charlotte, empurrando a geléia para o Pitt sobre a mesa do café da manhã.

Era o quarto dia da morte do Unity. Charlotte, naturalmente, tinha informado ao Pitt de sua visita a Brunswick Gardens, e ele não tinha reagido bem. Charlotte tinha tido que lhe dar muitas explicações, e mesmo assim não tinha saído muito graciosa.

Constava-lhe que ele seguia aborrecido, e não pela intromissão - ao qual estava já mais que acostumado, mas sim por haver-se apressado tanto em ir ver Dominic.

—Não sei - respondeu Pitt. —Se limitar aos fatos, parece muito provável, e se julgar pelo que averigüei que a personalidade do Parmenter, é quase inverossímil.

—Às vezes as pessoas cometem atos impróprios delas - aduziu Charlotte, pegando uma torrada.

—Não, não é assim - contradisse Pitt. —Cometem ações impróprias da imagem que temos delas. Se Parmenter for um homem capaz disso, algo o delatará.

—Mas se não foi ele, teve que ser Mallory - indicou ela. —por que faria uma coisa assim? Pela mesma razão? - Embora Charlotte tentava dissimulá-lo, no fundo de sua mente albergava o frio temor de que as suspeitas recaíssem em Dominic. Sua mudança tinha sido tão radical que talvez Pitt não conseguisse acreditar nele. Talvez veria sempre Dominic tal como o tinha conhecido no Cater Street, egoísta, fácil de adular, entregue a satisfazer seus apetites ao primeiro desejo, apesar dele mesmo ter admitido suas passadas fraquezas.

—Duvido-o -respondeu Pitt. —Unity o exasperava com suas opiniões, mas é homem de firmes convicções, e não se deixava perturbar. Mas sim poderia ser o pai da criança, se referir-se a isso.

Charlotte notou crescer a frieza em seu interior. Tratou de recordar a imagem do Dominic quando foram na carruagem a caminho do armarinho. Ele tinha ocultado algo, algo que o inquietava e guardava relação com o Unity.

—Nesse caso, provavelmente foi Mallory - insistiu Charlotte, servindo mais chá ao Pitt sem lhe perguntar. —Sustentei uma longa conversa com o Dominic quando o visitei. Tive ocasião de ficar a sós com ele na carruagem. Mudou realmente, Thomas. desprendeu-se do egoísmo de outro tempo. Acredita no que faz. Vive-o como uma verdadeira vocação. Seu rosto se ilumina quando fala disso...

—Ah, sim? - disse Pitt com tom áustico, concentrando-se em sua torrada.

—Deveria falar você mesmo com ele - insistiu Charlotte. —Se dará conta de que é outra pessoa. É como se de repente tivesse amadurecido quanto tinha que bom nele. Ignoro o que lhe ocorreu, mas atravessou momentos de grande desespero, e Ramsay Parmenter o ajudou a sair da crise, e através da dor descobriu uma bondade muito maior. Pitt deixou a faca.

—Charlotte, leva todo o café da manhã me falando do muito que mudou Dominic. Alguém dessa casa matou Unity Bellwood, e investigarei até que descubra quem foi, ou até que esgote todas as possibilidades e não tenha como continuar. E isso inclui Dominic em igual medida que a outros.

Charlotte percebeu crispação na voz do Pitt, mas continuou discutindo de todo modo.

—Mas não acha que possa ter sido Dominic, verdade? Conhecemos o Dominic, Thomas. É da família. - esqueceu-se do chá, que se esfriava cada vez mais.

—Talvez se era um insensato no passado, de fato nos consta que o era, mas existe uma grande diferença entre isso e cometer um assassinato. É impossível. Dominic teme pelo Ramsay Parmenter. Tem toda sua mente posta na dívida de gratidão contraída com ele e na maneira de ajudá-lo agora que o necessita.

—Nada do que descarta a possibilidade de que conhecesse Unity melhor do que deu a entender - respondeu Pitt. —Nem de que ela o achasse muito atraente e o perseguisse, possivelmente mais do que ele desejava, e o tentasse e finalmente o chantageasse. - Bebeu o chá e deixou a xícara. —Quando um homem toma o hábito, está-lhe proibido abandonar-se a seus desejos naturais, mas isso não significa que deixe de senti-los. Adota uma atitude tão idealista sobre o Dominic como a que tinha no Cater Street. É um homem real, com fraquezas reais, como todos nós. - levantou-se da mesa, abandonando o resto da torrada. —vou tentar averiguar algo mais sobre Mallory.

—Thomas! - exclamou ela, mas ele já partira. Tinha conseguido o que menos se propunha. longe de ajudar ao Dominic, só tinha conseguido enfurecer ao Pitt. Ela de sobra sabia que Dominic era tão humano e falível como qualquer outra pessoa. Esse era precisamente seu maior medo.

Ficou em pé e começou a recolher a mesa.

Gracie entrou com expressão de perplexidade, seu avental limpo e engomado.

Era ainda tão baixa de estatura que tinha que lhe cortar todas as saias, mas tinha ganho peso, e ninguém reconheceria nela à menina abandonada que eles tinham acolhido sete anos atrás. Por então contava treze anos e procurava emprego no serviço doméstico, qualquer emprego. Estava orgulhosa de trabalhar para um policial, além disso um de alta categoria que resolvia toda espécie de casos importantes.

Nunca permitia que o peixeiro ou o aprendiz do açougueiro tomassem liberdades com ela, e os tirava de cima com palavras destemperadas se ficavam impertinentes.

Estava perfeitamente capacitada para dar instruções à mulher que ia duas vezes por semana realizar uma limpeza a fundo e lavar a roupa.

—O senhor Pitt não terminou o café da manhã - disse, olhando a torrada.

—Acredito que não gostou - respondeu Charlotte. De nada servia inventar-se mentiras com Gracie. Guardaria silêncio, mas era muito observadora para deixar-se enganar.

—Provavelmente está preocupado por esse reverendo que empurrou uma garota pela escada - comentou Gracie, assentindo com a cabeça. Agarrou o bule e a colocou na bandeja. —Outro assunto feio, esse. Estou certa de que ela não era uma mulher como Deus manda. Zombar de um reverendo é muito mal, sabendo que logo, se pecarem, têm que pendurar a jaqueta ou coisas assim. - dispôs-se a acabar de recolher a mesa.

—Pendurar a jaqueta? - disse Charlotte com seriedade. —A maioria dos homens penduram a jaqueta...

—Claro que sim - a interrompeu Gracie alegremente, pondo a geléia e a manteiga na bandeja. —Quero dizer que o bispo os leva ante um tribunal e os obriga a pendurar a jaqueta para sempre. E então já não são reverendos. Não podem pregar nem nada.

—Ah! Quer dizer pendurar os hábitos! - Charlotte mordeu o lábio para conter a risada. — Sim, exato. É um problema muito grave. - Pensou no Dominic, e o desânimo voltou a apoderar-se dela. —Possivelmente a senhorita Bellwood não era uma pessoa muito agradável.

—Algumas pessoas gostam de fazer essas coisas - continuou Gracie, pegando a bandeja para levá-la à cozinha. —Irá a senhora averiguá-lo tudo sobre eles? Eu posso me ocupar enquanto isso da casa. Se for um caso difícil, temos que ajudar ao senhor. Ele confia em nós.

Charlotte lhe abriu a porta.

—Deve estar muito preocupado - prosseguiu Gracie, voltando-se de meio lado para passar pela porta. —Se partiu muito cedo, e nunca deixa o pão, porque gosta da geléia.

Charlotte não mencionou que Pitt se foi zangado, porque ela tinha elogiado mais da conta Dominic e reaberto torpemente velhas feridas.

Entraram na cozinha, e Gracie deixou a bandeja. Um gato rajado de pelagem avermelhada com o peito branco se estirou languidamente junto ao fogo e saiu de cima de um emaranhamento de roupa.

—Deixa meu guarda-pó, Archie! - exclamou Gracie. —Já não sei de quem é esta cozinha... dele ou minha. - Meneou a cabeça em um gesto de desespero. —E com ele e Angus perseguindo-se todo o dia pela casa, não sei como não se quebram mais coisas. A semana passada os encontrei aos dois adormecidos no armário da roupa branca. Freqüentemente vão ali, estes dois. Havia pelos negros e vermelhos por toda parte.

Soou a campainha da porta, e Gracie foi abrir. Charlotte a seguiu até o vestíbulo e viu o sargento Tellman. Deteve-se em seco, conhecendo as complicadas emoções do Tellman por Gracie, e a simples reação dela ante ele.

—Se busca ao senhor Pitt, já se foi - informou Gracie, observando o rosto enxuto do Tellman, a séria expressão que o caracterizava suavizando-se ao vê-la.

Tellman extraiu o relógio do bolso do colete.

—Foi cedo - confirmou Gracie, assentindo com a cabeça. —Não há dito por que.

Tellman hesitou. Charlotte notou que desejava ficar um momento e falar com Gracie. Tellman albergava sentimentos hostis em relação à criadagem. Desprezava a aceitação do papel de criada que mostrava Gracie, e ela por sua parte pensava que ele era estúpido e tinha pouca prática se não via as vantagens desse trabalho.

Gracie dormia em um lugar seco e quente à noite, dispunha de comida mais que suficiente, e não tinha que padecer a perseguição dos oficiais, nem outras indignidades que afligiam aos pobres. Era uma discussão em que poderiam ter estado encetados indefinidamente, só que ela considerava que não valia a pena incomodar-se.

—Tomou o café da manhã já? - perguntou Gracie, escrutinando ao Tellman de cima abaixo. —Juraria que tem o estômago vazio. Embora sempre traz esse aspecto de coelho desnutrido e essa cara de cão espancado.

Tellman decidiu passar por cima o insulto, apesar de que lhe representou um notável esforço.

—Ainda não -respondeu.

—Bom, pois se gosta de um par de torradas e uma xícara de chá quente, achará-as na cozinha - ofereceu ela com tom de indiferença.

—Obrigado - aceitou Tellman, e entrou. —Depois melhor será que me vá procurar ao senhor Pitt. Não posso ficar muito tempo.

—Ninguém lhe pediu que fique muito tempo. - Gracie deu meia volta e se encaminhou para a cozinha com passo enérgico, a saia agitando-se em torno dela. —Tenho trabalho. Não posso ter diante a um estorvo como você meia manhã.

Charlotte retornou ao salão e simulou não havê-los visto.

Ela mesma partiu pouco depois das nove, e às dez já tinha chegado à casa de sua irmã Emily no Mayfair. Naturalmente, sabia que Emily estava na Itália. Tinha recebido freqüentes cartas dela lhe narrando com todo detalhe o esplendor da primavera napolitana; a mais recente, entregue no dia anterior, procedia de Florença.

Pelo visto, a cidade era de uma beleza extraordinária e estava cheia de pessoas fascinante, artistas, poetas, expatriados ingleses de muito diversas índole, para não falar dos italianos, a quem Emily achava corteses e mais cordiais do que esperava.

As próprias ruas florentinas a entusiasmavam. No mercado de objetos artesanais, contra o que era habitual nela, interessou-se mais em uma soberba estátua de são Jorge esculpida por Donatello que no gênero posto à venda.

Charlotte invejava sua irmã nessa aventura do corpo e espírito. Mas tinha prometido a Emily que, em sua ausência, visitaria no mínimo uma ou duas vezes à avó, que se tinha ficado ali virtualmente sozinha, ao menos pelo que se referia à família. Caroline iria vê-la em alguma ocasião, mas estava muito ocupada para acudir com freqüência, e quando Joshua atuava fora de Londres, coisa que ocorria esporadicamente, ela o acompanhava. A avó não estava ainda preparada para receber visitas, e a criada pediu a Charlotte que esperasse, como ela tinha previsto.

Fosse à hora que fosse, nunca era a indicada, e as dez da manhã não podia ser muito tarde, assim devia ser muito cedo. Concentrou-se na leitura da edição matutina do jornal, que o lacaio lhe ofereceu em uma bandeja. Charlotte o aceitou com um sorriso e procurou os comentários a respeito da morte do Unity Bellwood. Felizmente, não o apresentavam ainda como um escândalo, mas sim como uma tragédia sem uma explicação satisfatória. Provavelmente não a teriam mencionado sequer se não tivesse produzido na residência do futuro bispo da Beverly.

A porta se abriu e a anciã ficou parada na soleira. Como de costume, vestia-se de negro. Se obstinava em guardar luto do falecimento de seu marido fazia já trinta e cinco anos. Se a própria rainha o considerava o mais correto, era sem dúvida uma pauta digna de emulação.

—Lendo os escândalos outra vez, não? - reprovou a anciã. —Se esta fosse minha casa, proibiria ao lacaio lhe dar os jornais. Mas não o é. Eu já não tenho casa. - Adotou um tom de auto compaixão. —Sou uma hóspede, uma carga. Ninguém tem em conta meus desejos.

—Estou certa de que pode fazer o que lhe agrade, tanto se os jornais como se não, avó - respondeu Charlotte, pregando o diário e deixando-o sobre a mesa.

Ficou em pé e se aproximou da anciã. —Como está? Tem bom aspecto.

—Não seja impertinente - replicou a anciã, torcendo o gesto. —Não estou bem. Mal dormi.

—Está cansada? - perguntou Charlotte.

A anciã lhe lançou um olhar iracundo.

—Se disser que sim, sugerirá-me que volte para a cama; se disser que não, responderá que então não precisava dormir mais. Diga o que disser, farei mau. Hoje a noto muito discutidora. Para que veio se sua única intenção é me contradizer? Brigou com seu marido? - Uma expressão esperançosa se refletiu em seu semblante. —Certamente está já cansado de suas intromissões em assuntos que não são de seu interesse e dos quais uma mulher decente nem sequer teria notícia. - Avançou para Charlotte brandindo sua bengala e se deixou cair em uma das poltronas situadas junto à lareira.

Charlotte voltou para sua poltrona e se sentou também.

—Não, não briguei com Thomas - disse. Era a verdade, se não literalmente, sim ao menos no sentido ao que se referia a avó. E inclusive se Pitt lhe tivesse dado uma surra, não o teria contado à anciã. —vim vê-la.

—Não tinha outra coisa melhor que fazer, suponho - comentou a anciã.

Charlotte esteve tentada de responder que tinha muitas coisas melhores que fazer e tinha ido ali por obrigação, mas decidiu que não conseguiria nada com isso e

se conteve.

—No momento não.

—Nenhum assassinato no qual se intrometer? - perguntou a anciã, arqueando as sobrancelhas.

—Dominic é agora ministro de... - começou a dizer Charlotte, mudando de assunto.

—Uma vulgaridade, em minha opinião - a interrompeu a anciã. —A maioria deles são corruptos, sempre tentando ganhar o favor dos cidadãos, que são tão ineptos como eles. O governo deveria estar em mãos de cavalheiros, nascidos para o mando, e não de indivíduos escolhidos ao acaso pelas massas sem critério. – Plantou a bengala ante si e cruzou as mãos sobre o punho, tal como costumava fazer a rainha. A seguir anunciou: —Eu sou contra as eleições. Esse sistema traz à luz o pior que levamos dentro. E quanto ao voto feminino, considero-o um disparate. Nenhuma mulher decente quereria votar, porque compreenderia que carecia dos conhecimentos necessários sobre os que apoiar sua decisão. O que deixa o voto ao resto... e a quem interessa pôr o destino da nação em mãos de rameiras e "novas mulheres"? Embora, seja dito de passagem, tanto umas como outras vão atrás do mesmo.

—Um ministro da Igreja, avó, não do governo - corrigiu Charlotte.

—Ah, bom, isso já está melhor, suponho. Mas não imagino como espera manter Emily com o salário de um pároco. - Sorriu. —Terá que deixar de ter esses vestidos tão elegantes, não? Acabaram-se para ela as sedas e os cetins. E também as cores indecorosas. - Parecia lhe agradar a perspectiva.

—Dominic, avó, não Jack.

—Quem?

—Dominic, o homem que estava casado com Sarah.

—E então por que não disse? Dominic? Aquele Dominic de quem você estava tão apaixonada?

Charlotte teve que realizar um notável esforço para controlar-se.

—Agora é ajudante.

A anciã se deu conta de que tinha posto o dedo na chaga.

—Vá, vá! - Deixou escapar um suspiro. —Não há ninguém mais reto que o pecador reformado, não é assim? Terminaram-se para ele os devaneios, pois, não? - Abriu desmesuradamente seus olhos negros. —O que o impulsionou a isso? Perdeu seus encantos, possivelmente? O que ocorreu? Contraiu a varíola? - Assentiu com a cabeça. —Viver para ver. - de repente entreabriu os olhos em uma expressão de malicia. —E você como soube? Foi buscá-lo, não é?

—Dominic conhecia a mulher cuja morte investiga Thomas atualmente. Fui lhe dar parabéns por sua ordenação - explicou Charlotte.

—Foi intremoter se - corrigiu a anciã com desfruto. —E porque queria ver outra vez ao Dominic Corde. Sempre disse que não era de confiar. O adverti a Sarah, a pobre, quando se comprometeu com ele. Também a avisei, mas me escutou? Claro que não! Nunca escuta. E já vê em que situação se encontra. Casada com um policial. Não estranharia se esfregasse você mesma o chão. E metida em lugares em que uma mulher decente não deveria nem aproximar-se. Compadeceria-me de sua mãe se seu caso não fosse ainda pior. Caroline deve ter se transtornado com a morte de meu querido Edward. —Voltou a assentir com a cabeça, ainda com as mãos apoiadas na bengala. —Contrair matrimônio com um ator que poderia ser seu filho! Sentiria-o por ela se me permitisse isso a vergonha. Não me atrevo nem a sair de casa pelo constrangimento que sinto.

Infelizmente, não havia muito que dizer a esse respeito. Vários antigos amigos de Caroline tinham decidido não lhe dirigir a palavra. E não lhe importava já o mínimo. Por outra parte, desfrutava ainda da amizade de quem tinha superado o inicial sobressalto por sua excentricidade.

—É muito triste para você. - Charlotte decidiu provar um novo enfoque. —Sinto muito, de verdade. Certamente já não lhe fala nenhum de seus amigos. É uma desonra.

A anciã a olhou com ira admonitória.

—Isso que disse é uma atrocidade. Meus amigos são da velha escola. Nenhum participa do egoísmo moderno. Um amigo é um amigo para toda a vida. – Pôs ênfase na última palavra. —Se não mantivéramos firmes laços de lealdade, o que teria sido de nós? - Fungou e se inclinou um pouco sobre a bengala. —Tenho muito mais experiência da vida que você, e lhe vaticino que esta nova idéia de que as mulheres queiram ser como os homens acabará em uma tragédia. Deve ficar em casa, minha filha, e cuidar de sua família. Mantém sua casa limpa e bem organizada, e também sua mente. - Assentiu com a cabeça. —Um homem tem direito a esperar isso de sua esposa. Ele a mantém, protege-a e a instrui. Assim deve ser. Se de vez em quando não cumprir como é devido, tem que ter paciência. Essa é sua obrigação. Tudo se apóia nos privilégios e fortaleza do homem, e na humildade e virtude da mulher. -Voltou a fungar. Com toda intenção, acrescentou: —Isso deveria ter lhe ensinado sua mãe... se atendesse a suas responsabilidades.

—Sim, avó.

—Não seja impertinente! Sei que não está de acordo comigo. Adivinho-o em sua cara. Sempre pensei que fosse mais sensata, mas vejo que não.

Charlotte ficou em pé.

—Salta à vista que está muito bem, avó. Se voltar a falar com o Dominic, transmitirei-lhe seus parabéns. Tenho certeza de que se alegra que tenha encontrado o caminho da retidão.

A anciã soltou um grunhido.

—E agora aonde vai?

—Ver a tia avó Vespasia. Almoçarei com ela.

—Ah, sim? Não se ofereceu sequer a almoçar comigo.

Charlotte a olhou com atenção. Tinha algum sentido lhe dizer a verdade? Dizer-lhe que sua companhia era insuportável por causa de suas intermináveis críticas, que a única maneira de suportá-la sem chorar era levar na risada? Que por estar com ela nunca se sentiu mais contente, mais animada ou mais iludida?

—Caberia pensar que prefere a sua própria família em lugar de uma senhora com quem está aparentada só pelo matrimônio de sua irmã - prosseguiu a avó. —Isso diz muito de seus valores, não acha?

—Seria o desejável, sem dúvida - concordou Charlotte. —Mas a tia Vespasia sente simpatia por mim, e não acredito que possa dizer o mesmo de você.

A anciã, sobressaltada, ruborizou-se.

—Sou sua avó! De seu sangue. Isso é muito diferente.

—Com efeito - concedeu Charlotte com um sorriso. —Os laços familiares vêm dados pelo nascimento; gozar da simpatia de alguém terá que ganhar. Desejo-lhe que passe um bom dia. Se quer inteirar-se do escândalo pelo jornal, está na página oito. Adeus.

Saiu dali com sentimento de culpa, e zangada consigo mesma por cair na provocação da anciã. Parou outro cabriolé e ocupou o assento fervendo de cólera e perguntando-se se Unity Bellwood teria sofrido com algum familiar como a avó. Conhecia sua própria raiva e o ardente desejo de reafirmar-se que esta engendrava. Padecer contínuas frustrações, ter que ouvir uma e outra vez que não era apta para os sonhos que acariciava, que seu papel na vida seria sempre limitado, fazia aflorar o pior dela, um desejo de justificar-se a qualquer preço. Concebia idéias de uma crueldade que a teria horrorizado em momentos de maior tranqüilidade.

Pitt lhe tinha explicado as atitudes do acadêmico eclesiástico com o que tinha falado, o modo como tinha denegrido a capacidade de Unity, declarando, como se fosse um fato constatado, que por sua condição de mulher possuía forçosamente menos estabilidade emocional e não estava portanto capacitada para os estudos superiores. A necessidade compulsiva de demonstrar o contrário a respeito disso e a todo o resto devia ter sido entristecedora.

Desembarcou do cabriolé frente à casa de lady Vespasia Cumming-Gould, pagou ao cocheiro e subiu pela escadaria ao mesmo tempo que a criada lhe abria a porta. Vespasia era a tia avó do primeiro marido de Emily, mas tinha tomado um especial carinho por Emily e Charlotte que tinha perdurado depois da morte do George e crescido com cada encontro. Passava já de oitenta anos. Em sua juventude tinha sido uma das mulheres mais formosas de sua geração. Continuava sendo deliciosa e vestia-se com elegância e estilo, mas já não lhe importava o que a alta sociedade pudesse pensar dela, e expressava suas opiniões com engenho e franqueza, o que despertava a admiração de muitos, a ira de alguns, e terror em outros.

Aguardava Charlotte no espaçoso salão principal da mansão, que com suas cores pálidas e superfícies limpas produzia uma grande sensação de calma.

Recebeu-a com satisfação e interesse.

—Entre, querida, e sente-se. Acredito que possivelmente seja uma estupidez lhe dizer que se ponha cômoda. - Escrutinou ao Charlotte com um sorriso. —Vejo-a muito indignada para isso. A que se deve? - Assinalou a Charlotte uma poltrona estofada, de madeira esculpida, e ela ocupou um divã. Levava um vestido de tons marfim e creme, suas cores preferidas, e um longo colar de pérolas que caía quase até a cintura. Todo o corpete era de renda de guipur sobre seda, com uma peça triangular de seda no pescoço. A anquinha era quase inexistente, tão alheio na moda que parecia adiantar-se a modas futuras.

—Venho de visitar a avó - respondeu Charlotte. —Estava insuportável, e eu não me levei bem. Disse coisas que deveria ter calado. Detesto-a quando tira o pior que há em mim.

Vespasia sorriu.

—Um sentimento muito familiar - disse com tom compreensivo. —É assombroso que a família nos produza isso tão freqüentemente. - Uma expressão jocosa apareceu por um instante em seus olhos de um cinza prateado. —Em particular Eustace.

Charlotte notou que se diluía sua tensão. Nas lembranças do Eustace March, o genro da Vespasia, mesclavam-se a tragédia, a ira e o regozijo, e em dia mais recentes uma absoluta farsa e uma precária aliança que tinha acabado em vitória.

—Eustace possui certas qualidades positivas - disse Charlotte, forçada por sua sinceridade. —A avó é impossível. Suponho que removeu em minha mente determinados aspectos do último caso do Thomas. - interrompeu-se, perguntando-se se Vespasia desejaria ouvir ou não os detalhes.

—O almoço pode esperar - comentou Vespasia com um brilho no olhar. —Aprecio-a muito, querida, mas me nego a falar do tempo com ninguém, nem sequer com você. E não temos conhecidos comuns a cuja custa nos divertir, e eu não gosto de falar dos amigos salvo para dar notícias. Emily me tem escrito, assim não tenho necessidade de lhe perguntar por ela. Sei que vai muito bem.

—De acordo - assentiu Charlotte com um sorriso. —Acha que um homem cuja fé religiosa é a base de sua profissão e sua posição social, assim como de seu código moral, poderia transtornar-se tanto pela dúvida, ataques ou brincadeiras dos ateus para perder o domínio de si mesmo e matar... em um arrebatamento de ira?

—Não - respondeu Vespasia quase sem pensar. —Se der a impressão de que assim foi, eu procuraria um motivo baseado mais no homem real, nem tanto no cérebro como nas paixões. Os homens matam por medo a perder algo sem o que não podem viver, seja amor, prestígio ou dinheiro. Ou matam para conseguir essas mesmas coisas se não as tiverem. - Seu semblante revelava interesse mas não duvida. —Às vezes é por vingar uma ofensa que lhes parece intolerável ou por inveja de outra pessoa que possui o que acreditam merecer eles. As vezes é por ódio, apoiado normalmente no sentimento de que os despojaram de amor ou honra...ou o dinheiro. - Esboçou um leve sorriso, curvando apenas as comissuras dos lábios. —Por uma idéia, brigam, mas só matam se se vê ameaçada sua posição social, sua percepção de si mesmos no mundo, de certo modo sua vida... ou o que a faz valiosa para eles, sua concepção de sua própria importância.

—Ela se converteu em uma ameaça para a fé dele - disse Charlotte com um estremecimento. Não desejava que fosse verdade, mas de fato não havia nenhuma resposta que desejasse, nenhuma que fosse possível. —Não equivale isso a sua posição como clérigo?

Vespasia se pôs-se a rir, sacudindo-se ligeiramente seus magros ombros sob a seda e a renda. Em seu olhar se advertia ira e compaixão, assim como humor.

—Querida, se todos os clérigos da Inglaterra com dúvidas a respeito de sua fé renunciassem a seu meio de vida, ficariam muito poucas igrejas abertas. E as que ficassem, estariam principalmente em aldeias onde o pastor viveria tão dedicado às vítimas do medo, das enfermidades e da solidão que leria só os Evangelhos e não disporia de um só instante para debates eruditos. Essa classe de pastor não se pergunta quem é Deus, porque já sabe.

Charlotte guardou silêncio. Pressentia que Ramsay Parmenter não possuía esse tipo de conhecimento. Possivelmente era essa ausência, esse vazio no centro de suas crenças, o que tinha provocado o trágico desmoronamento de sua fé.

—Vejo que o assunto a inquieta - disse Vespasia com ternura. —Por que? É Thomas quem se preocupa?

—Em realidade não. Ele fará o que tenha que fazer. Será desagradável, certamente, mas estas coisas sempre o são.

—Quem se preocupa, pois?

Charlotte nunca tinha mentido a Vespasia, nem sequer indiretamente ou por omissão. Fazê-lo destruiria algo que nunca poderia substituir e que tinha para ela um valor incomensurável. Mudou ligeiramente de posição em seu assento.

—Na casa há três homens, e qualquer deles poderia haver-se achado no patamar da escada quando Unity caiu - explicou lentamente. —O segundo é Mallory, o filho, que está a ponto de ordenar-se sacerdote católico... - Passou por cima a expressão de assombro que apareceu de repente no rosto da Vespasia, suas sobrancelhas arqueadas, elegantes, de cor cinza prata. —O terceiro é o novo ajudante.... meu cunhado Dominic. Estava casado com minha irmã mais velha, Sarah, que foi assassinada no Cater Street.

—Continua, querida...

Charlotte não podia escapar do atento olhar da Vespasia, nem da sensação de calor em suas próprias faces.

—Acreditava estar apaixonada por ele antes de conhecer Thomas – admitiu. -Não, minto: estava apaixonada por ele, obsessivamente. Superei-o, está claro. Dava-me conta do... o superficial e frágil que era Dominic, como facilmente cedia a seus apetites. - Falava muito depressa, mas não podia evitá-lo. —Era muito bonito. Agora o é ainda mais. Essa despreocupação da juventude desapareceu.... essa imaturidade. Seu rosto foi... aperfeiçoado... pela experiência. - Cravou o olhar nos olhos claros da Vespasia, obrigando-se a sorrir. —Agora só sinto por ele amizade... agora e a muito tempo. Mas tenho medo por ele. Unity estava grávida, e conheço bem as debilidades do Dominic. Deseja fervorosamente realizar sua vocação, estou convencida, vejo-o em seu rosto e o ouço em sua voz. Mas a força de vontade não basta para dominar as tentações e necessidades do corpo.

—Compreendo - disse Vespasia com gravidade. —E os outros dois suspeitos, Mallory e o homem de quem falou primeiro? Não poderiam também eles cair na tentação?

—Mallory.... é possível. - Charlotte deu de ombros. —Mas não o reverendo. Tem pelo menos sessenta anos!

Vespasia riu. Não foi um murmúrio contido e elegante mas sonora hilaridade.

Charlotte se ruborizou.

—Queria dizer.... não queria dizer... - balbuciou.

Vespasia se inclinou e apoiou sua mão na de Charlotte.

—Sei o que queria dizer exatamente, querida. E suponho que aos trinta e três anos, os sessenta parecem uma idade senil, mas quando você chegar lá, mudará de idéia. E também aos setenta... e inclusive aos oitenta se tiver sorte.

Ardiam ainda as faces de Charlotte.

—Não acredito que o reverendo Parmenter seja muito afortunado. Está tão ressecado como um ramo morto. Vive só para suas divagações mentais.

—Sendo assim, se algo acordar finalmente suas paixões, será muito mais perigoso - respondeu Vespasia, reclinando-se de novo. —Porque não está acostumado a elas e não terá experiência em as controlar. É então quando mais probabilidades tem que acabar em um desastre como esse.

—Suponho que sim... - disse Charlotte com uma mescla de dor e alívio. Essa possibilidade exonerava a outros, mas deixava uma maior carga sobre os ombros de uma pessoa. Mesmo assim, apesar da lógica do raciocínio, custava-lhe acreditar. —Não percebi paixão nele. Só duvida. Embora seja consciente de que quase tudo o que sei a esse respeito me contou Dominic, acredito que a dúvida é certamente a emoção dominante do reverendo Parmenter. Ele e Unity mantinham acaloradas discussões. encetaram-se em uma briga espantosa só uns minutos antes que ela caísse pela escada. Ouviram-nos várias pessoas. Vejá só, ela questionou sua convicção em tudo aquilo a que tinha dedicado a vida inteira. É terrível fazer a alguém uma coisa assim. De fato, é como lhe dizer que não vale nada, que todas suas idéias são estúpidas e errôneas. Se uma pessoa se deixa influir por isso, pode chegar a odiar à outra pessoa.

—Se foi ela realmente quem fez vacilar sua fé, ele em efeito poderia aborrecer-se dela - concordou Vespasia. —Não há nada tão aterrador como uma idéia ou uma liberdade que nega seu próprio sacrifício e obediência quando é já muito tarde para mudar. Mas a julgar pelo que diz, não é esse o caso do reverendo. Certamente odeia aos iniciadores da idéia, não aos seguidores. - Deixou escapar um suspiro. Embora certamente tem razão. Era essa desventurada jovem quem se achava no alto da escada, e não o senhor Darwin, que não estava a seu alcance. Lamento-o muito. Parece um assunto muito triste.

Vespasia se levantou com dificuldade, um tanto intumescida, e Charlotte também ficou em pé imediatamente, lhe oferecendo o braço, e juntas entraram na pequena sala do café da manhã. O sol entrava em torrentes e no ar flutuava o aroma dos narcisos em flor que havia em um vaso verde. O salmão defumado e umas fatias muito finas de pão moreno estavam já servidos, e o mordomo esperava para retirar a cadeira a Vespasia.

Charlotte sentiu a necessidade de retornar a Brunswick Gardens. O cérebro lhe dizia que não serviria de muito, mas não podia ficar de braços cruzados. Se voltasse, possivelmente averiguasse algo mais, e a informação talvez lhe permitisse atuar. Recebeu-a Vita Parmenter, com certa frieza.

—Muito obrigada por nos visitar de novo - disse. —É muito generosa nos concedendo seu tempo. - "E nos roubando o nosso", queria dar a entender.

—As lealdades familiares são muito importantes nos momentos difíceis - respondeu Charlotte, odiando-se por expressar tais trivialidades.

—Não duvido que é você uma esposa muito fiel - comentou Vita com um sorriso. —Mas não podemos lhe dizer nada que não dissemos já a seu marido.

Aquilo era espantoso. Charlotte notou o rubor em suas faces. Vita era uma adversária mais poderosa do que tinha imaginado, e tão resolvida a proteger a seu marido como Charlotte a proteger ao Dominic. Charlotte deveria tê-la admirado por isso, e em parte assim era, apesar de seu próprio mal-estar. achavam-se cara a cara no refinado e moderno salão principal, Vita, de baixa estatura, elegantemente vestida com um vestido azul debruado de negro; Charlotte, muito mais alta, com um vestido de tênue cor ameixa do ano anterior que realçava seu cabelo castanho avermelhado.

—Não vim indagar os detalhes de sua tragédia, senhora Parmenter - assegurou com cortesia. —vim me interessar por seu bem estar e ver se posso ajudar de algum jeito.

—Não me ocorre como poderia você nos ajudar. - Vita mantinha um tom correto, mas em grau mínimo. —No que tinha pensado?

Charlotte a olhou nos olhos e sorriu.

—Conheço o Dominic há muitos anos, e passamos juntos tragédias e penalidades. pensei que possivelmente ele encontre consolo no fato de falar com inteira liberdade, como a pessoa só pode fazer com os velhos amigos e com as pessoas que não se acham diretamente implicadas e portanto não estão expostas a mesma dor. - Charlotte ficou satisfeita de seu raciocínio. Soava muito judicioso e era quase verdade.

—Entendo - disse Vita lentamente, sua expressão um pouco mais dura, um pouco mais fria. —Nesse caso, devemos chamá-lo e lhe perguntar se pode abandonar suas obrigações por um momento. - Estendeu o braço e puxou bruscamente o cordão da campainha. Não voltou a separar os lábios até que se apresentou a criada, a quem lhe pediu simplesmente que informasse ao senhor Corde de que sua cunhada estava ali e desejava lhe oferecer sua companhia se ele não tivesse inconveniente.

Falaram do tempo até que se abriu a porta e entrou Dominic. Pareceu alegrar-se de ver Charlotte, iluminando-se seu semblante imediatamente, mas ela reparou em suas olheiras e nas finas rugas que a tensão desenhava em torno de sua boca.

—Agradeço-lhe que tenha vindo - disse com sinceridade.

—Estava preocupada com você - respondeu ela. —É difícil não estar alterado nestas circunstâncias.

—Todos o estamos - interveio Vita, afastando a vista de Charlotte e olhando ao Dominic. Sua expressão tinha mudado ao entrar ele no salão, suavizando-se, revelando um respeito vizinho à admiração. —É o pior momento de nossas vidas. -voltou-se para Charlotte como se sua anterior frieza não tivesse existido. Seu rosto refletia tal inocência que Charlotte se perguntou se ela mesma, movida por sua própria culpa, tinha imaginado o inicial rechaço. —Mas também nos temos descoberto mutuamente forças que não conhecíamos. Disse-me, senhora Pitt, que você mesma padeceu penalidades no passado. Estou certa de que passou a mesma experiência. Alguém se dá conta de que aqueles a quem considerava amigos e pessoas de indubitável integridade não têm... o caráter que se esperava deles. E que outros, em troca, possuem compaixão, coragem e uma bondade que supera todas nossas previsões. - Não deu nomes, mas seu fugaz olhar ao Dominic fez ruborizar de prazer a este.

Charlotte o notou. Era uma adulação sutil, dirigida com toda precisão ao ponto onde ele era mais vulnerável. Dominic não desejava que o desejassem nem o achassem divertido, romântico ou engenhoso, mas sim o considerassem bom.

Talvez tenha sido só questão de sorte que Vita acertasse a transpassar um dos orifícios da armadura do Dominic, mas Charlotte estava convencida de que naquilo não tinha intervindo de modo algum o acaso. E entretanto, embora Charlotte tivesse querido advertir ao Dominic disso, não teria podido. Seria cruel e inútil. Serviria só para feri-lo e voltá-lo contra Charlotte. Observando os olhos de Vita por um instante, Charlotte soube que também ela era consciente disso.

—Sim, com efeito - assentiu Charlotte com um sorriso forçado. —É a única coisa que fica inclusive quando se resolve o resto do mistério, o novo conhecimento que alguém adquire sobre as pessoas que achava conhecer. As coisas já nunca voltam a ser como antes.

—Estou certa de que não voltarão a ser - concordou Vita. —Aparecem novas dívidas... e novas lealdades. É um momento decisivo em nossas vidas, acredito. Por isso mesmo é tão aterrador... - Deixou as palavras flutuando no ar. —Uma pessoa faz todo o possível por manter viva a esperança, e isso também dói, pela transcendência que tem. -Olhou ao Dominic com um sorriso e em seguida desviou a vista de novo. Baixou a voz. —Graças a Deus, não temos que suportar tudo em solidão.

—Claro que não - disse Dominic com firmeza. —Isso é o único bom ao que podemos nos aferrar, e eu dou minha palavra de que assim será.

Vita pareceu relaxar. voltou-se para Charlotte e sorriu, como se acabasse de tomar uma importante decisão.

—Possivelmente queira ficar para o chá, senhora Pitt. Seria bem vinda. Fique, por favor.

Charlotte se surpreendeu. produziu-se em Vita uma repentina mudança de atitude, e embora tivesse toda a intenção de aceitar o oferecimento, também a enchia de intranqüilidade.

—Obrigada - se apressou a dizer. —Agradeço sua generosidade, especialmente nas atuais circunstâncias.

Vita sorriu, inundando-se seu semblante de convicção e calidez. Saltava à vista que em outras circunstâncias teria sido uma mulher de um encanto extraordinário, dotada tanto de inteligência como de vitalidade, e também quase com toda certeza de um engenho agudo.

—E agora, por favor, passe um momento com Dominic, que é para que veio, e estou certa de que ele saberá valorizar sua consideração. O chá se servirá às quatro.

—Obrigado - disse Dominic, e em seu rosto se percebeu certa ternura. Depois se dirigiu à Charlotte: —Saímos a passear ao jardim?

Charlotte, pegando-o pelo braço, acompanhou-o, consciente de que Vita os observava afastar-se. Vita tinha mudado por completo de comportamento. Era uma mulher diferente quando Dominic estava presente. Era confiança, o fato de saber que Charlotte era a esposa do policial que investigava a morte de Unity e portanto estava indevidamente vinculada à acusação de assassinato que pesava sobre o Ramsay? Vita dificilmente podia evitar certas suspeitas a respeito de Charlotte, inclusive desagrado à margem de quais fossem seus impulsos naturais. Charlotte teria detestado a quem quer que representasse uma ameaça contra Pitt, até sabendo que fosse injusta.

E Vita devia conhecer a lealdade do Dominic para o Ramsay, sua imensa sensação de gratidão e dívida. Podia contar que Dominic fizesse quanto fosse humanamente possível por ajudar.

Saíram ao jardim pela porta lateral. As árvores estavam ainda desfolhadas, as campainhas de inverno murcharam já e os caules dos narcisos se dobravam sob o peso dos casulos a ponto de abrir-se. Se Charlotte tivesse disposto de um terreno como aquele, teria plantado prímulas, celidonias e anêmonas debaixo daquelas árvores. Os jardineiros tinham sido pouco imaginativos com a erva criada e as samambaias, que mal afloravam sobre a terra.

Dominic falava de algo e Charlotte não o escutava. Tinha a mente posta na emoção que tinha visto no rosto de Vita enquanto olhava ao Dominic. Refletia uma grande admiração. Acaso se aferrava a ele porque Ramsay era mais fraco, e ela sabia? Charlotte recordou que Ramsay, sentado à mesa, tinha permanecido em silêncio e permitido que Tryphena fizesse comentários ofensivos sem defender-se.

Dava a impressão de que em certo modo se houvesse já rendido. Vita não parecia uma mulher que retrocedesse facilmente em seus empenhos. Por mais que a vencessem as circunstâncias, seguiria tentando. Não era estranho que se sentisse atraída pelo Dominic, que admirasse sua energia espiritual e sua convicção. Harmonizava com sua própria força de vontade. Charlotte a tinha visto adular esses aspectos da personalidade do Dominic, e o imenso valor que isso tinha para ele. Sem dúvida Vita sabia também.

Com a mente posta só pela metade nas palavras do Dominic, Charlotte deu uma resposta apropriada a uma pergunta sua. Falava do passado, das lembranças comuns. Não requeria toda sua atenção. achavam-se sob as árvores, contemplando as azaléias. Ainda demorariam dois meses em florescer. Ofereciam um péssimo aspecto, quase como se estivessem murchas sobre a terra nua, mas a finais da primavera se produziria nelas um estalo de cor, brotando em seus ramos flores alaranjadas, douradas e rosadas. Agora custava imaginar que chegaria esse momento. Mas nisso estribava a jardinagem.

Caminharam juntos em amigável silêncio, fazendo um ou outro comentário não pelo significado, mas sim por corroborar a sensação de companhia. Tudo aquilo que tinha importância devia ficar sem expressar. Só eram conscientes dos receios e o medo ensombrecedor, a convicção de que algo horrendo e irreversível aguardava no futuro, e se aproximava mais e mais a cada hora.

Ainda conversavam quando Tryphena atravessou a grama com uma mensagem para o Dominic. Algum assunto reclamava sua presença. Dominic se desculpou e deixou sozinhas às duas mulheres. Para Charlotte, era uma ocasião de conhecer melhor a Tryphena, oportunidade que acaso não voltasse a repetir-se, e muito boa para não aproveitá-la.

—Acompanho-a no sentimento, senhora Whickham - disse Charlotte. —quanto mais ouço falar com meu marido das idéias da senhorita Bellwood, mais convencida estou de que foi uma lamentável perda para todas as mulheres em geral.

Tryphena a olhou com ceticismo. Via em Charlotte uma mulher de pouco mais de trinta anos que tinha assumido o papel mais habitual, mais cômodo e mais fácil para as mulheres. O desdém que isso lhe inspirava ficava patente em seu olhar.

—Interessa-lhe o estudo? - perguntou, mantendo apenas as formas.

—Não especialmente - respondeu Charlotte com igual franqueza, olhando-a nos olhos. —Mas me interessa a justiça. Meu cunhado é membro do Parlamento, e albergo a esperança de influir em seus pontos de vista, mas preferiria atuar de uma maneira mais direta, sem depender de um parente, o que é bastante infeliz e arbitrário.

Tinha conseguido captar o interesse da Tryphena.

—Refere-se ao voto?

—Por que não? Não acredita que as mulheres possuem a inteligência e o discernimento necessários para exercer esse direito pelo menos com a mesma sensatez que os homens?

—Ou ainda mais! - apressou-se a responder Tryphena, detendo-se imediatamente e voltando-se de frente para Charlotte. —Mas é só um minúsculo primeiro passo. Há liberdades muito maiores que não podemos legislar. A liberdade em relação aos convencionalismos, às pessoas que decide o que devemos querer, o que devemos pensar e inclusive o que deve nos fazer felizes. - A emoção se apropriava cada vez mais de sua voz. Permanecia imóvel sob o sol, rígida por causa da indignação. —É a ordem patriarcal da sociedade o que nos oprime. Se tivermos que gozar de liberdade para usar nossas aptidões intelectuais e criativas, e não simplesmente nossas habilidades físicas, devemos romper com os férreos laços do passado e com a dependência econômica e moral que padecemos durante séculos. Charlotte raramente se sentiu restringida ou dependente mas, sendo sincera consigo mesma, devia reconhecer que poucas mulheres desfrutavam de matrimônios tão satisfatórios como o seu, ou que lhes permitissem tal grau de liberdade. Dada a diferença de extração social entre ela e Pitt, em seu casamento existia maior igualdade que na maioria. E posto que Pitt lhe consentia ajudá-lo ou intrometer-se em seus casos, confiando sempre em suas opiniões, a vida de Charlotte tinha mais interesse e diversidade, e lhe permitia realizar-se em aspectos de sua personalidade que os trabalhos domésticos teriam deixado insatisfeitos. Inclusive Emily, apesar de seu dinheiro e posição, aborrecia-se com freqüência devido à estreiteza de miras de seus conhecidos e a suas limitações, à monotonia de um dia atrás de outro.

—Acredito que só conseguiremos mudar as coisas passo a passo - disse com diplomacia e sentido realista. —Mas não podemos permitir perder pessoas como a senhorita Bellwood, se for verdade o que ouvi dizer dela.

—É verdade isso e muito mais! - respondeu Tryphena imediatamente. —Não só tinha uma visão do mundo; tinha também a coragem de levar à prática a qualquer preço. E podia lhe custar muito caro. - A impaciência e o desdém apareceram de novo em seu rosto, e começou a caminhar pela erva, não com um rumo determinado, mas sim pelo desafogo que lhe produzia mover-se. —Mas nisso consiste o valor de confrontar a vida, não? Aferrar-se a ela embora às vezes a dor transpasse a uma a alma.

—Refere-se a sua morte? - perguntou Charlotte, sem afastar-se dela.

—Não, refiro-me à vida em si, o fato de vivê-la - disse Tryphena com expressão sombria. —Era a pessoa de coração mais valoroso que conheci, mas aqueles que amam apaixonadamente podem ser feridos de muitas maneiras por quem é indigno deles, de maneiras que a pessoas inferior nem sequer conceberia. - Em sua cólera, movia-se com brutalidade, como se pensasse nessa pessoas e suas vidas, considerando superficiais seus sentimentos.

Charlotte desejava fazer o comentário adequado. Não devia exasperar ainda mais a Tryphena, deixando que sua curiosidade a delatasse. Sabia Tryphena que Unity estava grávida? Devia dizer algo inteligente, compreensivo, algo que a incitasse à confidencialidade. Sem atrasar-se, Charlotte cruzou a grama com Tryphena em direção ao caminho de cascalho que corria junto ao canteiro de plantas caducas, suas matas ainda pouco mais que montículos escuros na terra úmida, uns quantos caules verdes aqui e lá.

—Bom, se isso não implicasse dor, nem risco - murmurou Charlotte, —qualquer um poderia fazê-lo. Não se necessitariam qualidades especiais.

Tryphena permaneceu em silêncio, absorta em seus pensamentos, e possivelmente em suas lembranças.

—Me conte algo dela - rogou Charlotte por fim quando chegaram ao caminho e o cascalho rangeu sob suas botas. A sutileza não ia sortir efeito. - Devia ser uma mulher muito admirável. Suponho que tinha muitos amigos.

—Dúzias - confirmou Tryphena. —antes de vir aqui vivia com um grupo de pessoas de mentalidade afim que acreditavam na liberdade de viver e amar-se a vontade, sem submeter-se aos condicionantes impostos pelas superstições e hipocrisias da sociedade.

Charlotte pensou que isso se assemelhava muito à libertinagem, mas não o disse. Com freqüência, o que uma pessoa considerava liberdade, a outra parecia muito a egoísmo e irresponsabilidade. Às vezes a diferença residia só no passar do tempo, e em ter filhos próprios para quem se via todos os perigos do mundo; o desejo de protegê-los era entristecedor.

—É preciso muita coragem - disse Charlotte. —Os riscos são enormes.

—Sim. - Tryphena mantinha o olhar fixo no chão enquanto passeava devagar pelo caminho para a escada de degraus baixos. —Às vezes me falava dessa experiência: a sensação de euforia, a intensidade da paixão quando é autêntica, quando as pessoas não estão sujeitas a nenhuma lei, nem inibidas por temores supersticiosos, nem embaraçadas por rituais que obrigam a esperar ou a conter-se até que a paixão e a sinceridade se consumaram.

Sua voz destilava tal amargura, tão profunda emoção, que Charlotte não pôde menos que sentir curiosidade pela experiência conjugal da própria Tryphena. Escrutinou seu semblante e não viu ternura em seus olhos nem em sua boca, nem afeto em suas lembranças. Teria tido voluntariamente ao matrimônio? Ou tinha sido um casamento combinado por sua família, a que ela, de boa ou má vontade, tinha dado seu consentimento?

—É tudo tão... - Tryphena enrugou a testa, procurando a palavra exata... —tão puro. Não há falsidade alguma. - Apertou os lábios, e em seus olhos apareceu um brilho de fúria. —Ninguém é proprietário de ninguém, não se produz uma lenta perda da independência, do amor próprio, da consciência da pessoa mesmo. Ninguém diz: "Deve pensar de tal maneira, porque assim é como penso eu", "Deve acreditar isto porque eu acredito", "Aí é aonde quero ir, assim deve vir". Um matrimônio entre iguais é o único que vale a pena. É a única forma de união onde prevalecem a honra, a decência e a pureza interior. - Tinha os braços retos junto ao corpo e os punhos fechados. —Não estou disposta a ser de segundo nível... de segunda classe... a segunda em tudo.

Charlotte se perguntou se Tryphena era consciente de até que ponto suas palavras revelavam sua própria dor. Possivelmente parte daquilo fossem as idéias de Unity, mas a paixão brotava da alma da Tryphena.

—Acredito que quando alguém nos ama, deseja que estejamos o melhor possível - disse Charlotte com delicadeza, subindo pelos degraus junto a ela. —Não consiste nisso o amor, em desejar que alguém faça realidade o melhor que leva dentro? E uma pessoa desejaria o mesmo para a outra pessoa, não é assim? E para consegui-lo estaria disposta a renunciar a algo talvez muito prezado?

—A que? - Tryphena voltou a cabeça, surpreendida.

—Quando se ama, alguém permanece ao lado da pessoa amada inclusive quando não é cômodo, ou divertido, ou fácil - explicou Charlotte. —Se alguém abandonar no momento em que já não gosta de seguir com a outra pessoa, não é acaso egoísmo? Está você falando de ser livre para fazer o que lhe agrade, livre da dor, ou do aborrecimento, ou das obrigações. A vida consiste em dar e ser vulnerável, e por isso precisamente exige coragem e auto-disciplina.

Tryphena a olhou com fixidez, detendo-se no cascalho perto da estufa exterior, independente da casa.

—Tenho a impressão de que não entendeu nada, senhora Pitt. Possivelmente acredita que luta pela liberdade, mas fala como qualquer mulher tradicional, disposta a obedecer primeiro a seu pai e depois a seu marido. - Suas palavras encerravam tal raiva que por força tinham que derivar-se de sua própria experiência. —As mulheres como você são as que representam um verdadeiro lastro para nós. Unity amava muito sinceramente, e lhe fizeram muito dano. Percebia-o em seus olhos, e às vezes em sua voz. - Olhou Charlotte com expressão acusadora. —Fala você dela como se tivesse sido uma mulher egoísta, como se sua forma de amar tivesse sido inferior a sua, só porque você está casada e ela não o estava. Mas se equivoca. Isso é falso, fruto de sua cegueira. Não se obtêm grandes vitórias jogando no seguro! - Seu desdém era tão visível como o sol que banhava a erva. —Não me cabe dúvida de que suas intenções são boas, e certamente acreditava apoiar às mulheres da nova geração, mas em realidade não entendeu nada absolutamente. - Meneou a cabeça em um veemente gesto de negação, e o vento agitou as mechas soltas de seu cabelo. —Você deseja segurança, e isso não é possível quando se apresenta uma grande batalha. Unity era uma das melhores... e caiu. Desculpe-me, mas não quero continuar falando dela com você. - E dito isto, deu meia volta e se afastou entre as roseiras andando enrijecida, mantendo a cabeça alta como se tentasse conter as lágrimas.

Charlotte permaneceu onde estava por uns minutos, pensando na conversa. Conhecia Tryphena uma tragédia real no passado de Unity? Tinha amado Unity intensamente a alguém, e o menino que levava em seu ventre ao morrer era fruto desse amor? O menino de um dos três homens que viviam naquela casa? Era esse homem quem lhe tinha feito mal? Em tal caso, seria lógico que, como tantas outras antes dela, tivesse reagido cegamente como conseqüência do medo e da dor. Estava assustada? Em sua situação, a maioria das mulheres se aterrorizariam ante a ruína que lhes esperava em sua condição de mães solteiras, mas Charlotte ignorava se seria essa ou não a atitude de Unity. Se Pitt tinha explorado essa questão, não lhe tinha contado nada. Mas possivelmente ele não concebia sequer as emoções que experimentaria uma mulher em tais circunstâncias: por uma parte, a euforia de saber que levava dentro uma nova vida, que pertencia ao homem que amava, que era em certo sentido um laço indissolúvel entre eles; e por outro lado, uma lembrança dele que já nunca a abandonaria, e com isso a lembrança de sua traição... se é que ele a tinha traído. E a isso se acrescentava o próprio temor do parto, de ficar só em um de seus momentos mais vulneráveis tanto física como emocionalmente. Charlotte recordava como se sentiu durante suas duas gravidezes.

Um dia irradiava felicidade e no seguinte mergulhava na depressão mais profunda. Recordava o entusiasmo, a dor das costas, o cansaço, a estupidez de movimentos, o orgulho, o acanhamento. E ela contava com uns pais estáveis e serenos, e com um marido que a fazia rir e a tratava com uma paciência infinita quando ela mais o necessitava.... e com a aprovação da sociedade. Unity estaria sozinha. Sua situação era muito distinta. Tinha tentado chantagear a esse homem? Teria sido compreensível. Charlotte empreendeu o caminho de volta à casa, pensando em Dominic e no amor que tanto dano tinha causado a Unity. Possivelmente essa informação servisse para descobrir ao pai... e sem dúvida não era Dominic. Ou sim o era?

Essa era uma idéia repugnante. O que temia averiguar a respeito do Dominic? E a sensação era intensa e muito conhecida para desprezar. Recordava ter estado apaixonada pelo Dominic ela mesma, comportando-se como uma estúpida, sentindo-se vulnerável, sofrendo quando ele parecia ignorá-la, flutuando no ar se lhe sorria ou dirigia a palavra, consumindo-se de ciúmes se mostrava preferência por alguma outra, sonhando, imaginando as coisas mais díspares. Só a recordação a fez ruborizar-se. Mas assim eram as obsessões, a espécie de amor que absorve por completo a mente, não como o amor sólido e doce que tinha compartilhado com o Pitt. Também esta outra forma de amor tinha sua parte de sofrimento e escuridão, seus momentos de pulso acelerado e ardente vergonha, mas se apoiava na realidade, na afinidade de pensamentos e idéias e, sobre tudo, de pareceres quanto às coisas mais importantes.

Entrou pela porta lateral e percorreu o curto corredor até o vestíbulo. Nesse lance, o chão estava atapetado, amortecendo o som de seus passos. Viu Dominic e Vita ao pé da escada, muito perto um do outro, quase tocando-se. achavam-se virtualmente no mesmo lugar onde devia ter jazido o cadáver de Unity. Vita o contemplava, seus olhos desmesuradamente abertos, sua expressão lânguida, como se ele acabasse de dizer algo íntimo e muito terno. Dominic fez gesto de tocá-la, mas se conteve e sorriu; Depois retrocedeu um passo. Ela vacilou por um momento e depois, de encolher-se de ombros, partiu escada acima.

A mente de Charlotte se acelerou. Como podia Dominic ser tão absolutamente insensato, tão desonesto? Vita era mais velha que ele, mas era deste modo encantadora, formosa e muito inteligente, uma mulher dotada de paixão e engenho. Não podia ser que ele considerasse a possibilidade de manter um idílio com ela, ou sim? Não, não com a esposa de seu mentor, seu amigo, o homem debaixo de cujo teto vivia. Era possível?

O passado se jogou sobre ela, reavivando a dor e a decepção de então. Sim era imaginável.... sim era possível. Era Dominic com quem Unity tinha lutado no alto da escada? Era concebível que Vita mentisse para protegê-lo?

Não. Não, porque outros tinham ouvido Unity gritar dirigindo-se ao Ramsay.

Tryphena o tinha ouvido, ao igual à criada e o valete. Charlotte notou uma sensação de alívio.

Dominic se deu a volta. Não se percebia em seu semblante o menor embaraço, nem sequer um vislumbre de consciência de ter sido surpreendido em uma situação que deveria ter permanecido em segredo.

—Perdoe que a tenha abandonado - se desculpou com um sorriso. —Era um assunto urgente. Infelizmente o reverendo Parmenter não pode ocupar-se de suas responsabilidades como tem por costume. - A preocupação escureceu seu rosto. —Diz a senhora Parmenter que seu marido se encontra muito mal. Tem uma intensa dor de cabeça. Suponho que não é de estranhar que esteja assim, o pobre. - Olhou a Charlotte com tristeza. —É curioso mas, recordando em retrospectiva as tragédias do Cater Street, compreendo-o tudo melhor que na época. —Agora estava perto dela e falava em voz baixa. —Tomara pudesse voltar para o passado e emendar minha conduta de então, mostrar maior sensibilidade com os temores e a dor de outros. - Deixou escapar um suspiro. —E é absurdo, porque nem sequer agora sei como ajudar. Só posso dizer que aqui ao menos estou tentando-o, enquanto que então pensava só em mim.

Charlotte não sabia o que dizer. Desejava acreditar em suas palavras, mas a expressão que tinha visto no rosto de Vita Parmenter o impedia.

Voltou a cabeça para que ele não pudesse interpretar seu olhar e se dirigiu para o salão principal. Faltavam cinco minutos para a hora do chá.

Finalmente o chá se serviu com dez minutos de atraso, e Vita não estava presente. O papel de anfitriã recaiu em Clarice, e com ele a responsabilidade de manter viva a conversa do pequeno grupo ali reunido. Tryphena também estava, mas não fez o menor esforço por entreter a Charlotte. Mallory entrou, pegou um delicioso sanduiche e o comeu em dois bocados, sem incomodar-se em esperar a xícara de chá. Visivelmente nervoso, ficou junto à janela, como se, se sentisse excluído da reunião e ao mesmo tempo obrigado a permanecer ali. Sem dúvida o que o aprisionava não era a casa mas as circunstâncias, e destas não podia escapar.

Clarice surpreendeu a Charlotte falando de diversos temas com tato e interesse. Comentou as estréias teatrais como se a recente morte ocorrida na casa fora um fato normal, parte da vida cotidiana, e não houvesse necessidade de falar em sussurros ou evitar qualquer menção à felicidade ou os acontecimentos sociais. Fez referência a uma recente visita de um monarca estrangeiro, escrita por extenso no London Illustrated News. Fez entrar Charlotte na conversa, e durante quase três quartos de hora teria podido confundi-la ocasião com uma agradável reunião vespertina entre pessoas que acabavam de conhecer-se e possivelmente chegassem a fazer amizade.

Charlotte olhou várias vezes para Dominic e percebeu a mesma surpresa em seus olhos, e também um crescente respeito por Clarice, que pelo visto não sentia até esse momento.

Passavam já das cinco quando de repente se abriu a porta e apareceu Vita na soleira, o cabelo alvoroçado, desprendido das forquilhas em sua maior parte e caído sobre os ombros. Tinha um corte na face e um olho inchado, arroxeando-se cada vez mais.

Mallory se sobressaltou.

Dominic, pálido, levantou-se imediatamente.

—O que aconteceu? Isto o que é? - perguntou, aproximando-se de Vita.

Ela retrocedeu, os olhos dilatados de terror. Tremia e parecia à beira da histeria. Cambaleou como se estivesse a ponto de desabar-se.

Charlotte ficou em pé rapidamente e correu para ela, rodeando a mesa do chá e procurando não derrubá-la.

—Venha sentar-se - ordenou, rodeando a Vita com um braço para lhe dar sustento e guiando-a até a poltrona mais próxima. Voltando-se para o Dominic, disse —Sirva chá em uma xícara e acrescente um pouco de conhaque. E melhor será que alguém vá avisar a sua criada.

Dominic vacilou por um instante, olhando ao Mallory.

—O que ocorreu? - perguntou Tryphena. —Mamãe, parece que alguém tenha atacado-a! Caiu!

—Claro que caiu! - replicou Clarice. —Não diga estupidezes! Quem ia atacá-la? Além disso, estamos todos aqui. Tryphena olhou ao redor, com os olhos muito abertos, e súbitamente todos se deram conta de que o único membro da família que não estava presente era Ramsay. Um por um fixaram de novo o olhar em Vita.

Havia-se encolhido na poltrona e tremia violentamente, seu rosto lívido salvo pelos machucados em torno do olho e a ferida ensanguentada na face. Charlotte lhe segurava a xícara de chá; em seu estado, Vita era incapaz de sustentá-la por si mesma.

—O que se passou? - perguntou Mallory com voz estridente e crispada.

Dominic se achava junto à porta, esperando para ouvir o ocorrido antes de sair.

Vita respirou fundo e tratou de falar, mas um soluço o impediu.

Charlotte a abraçou com delicadeza para não machucá-la se, como era mais que provável, tinha outras feridas ou contusões.

—Possivelmente convenha avisar a um médico - disse, e se voltou para Clarice, considerando que provavelmente era quem melhor conservava o domínio de si mesma e da situação.

Clarice lhe devolveu o olhar mas continuou imóvel.

Tryphena olhava a uns e a outros com expressão acusadora.

Mallory fez gesto de mover-se, mas no ato ficou paralisado.

—Por favor! - apressou Charlotte.

Vita levantou a cabeça.

—Não - disse com voz rouca-. Não.... não chamem o médico. É... é só um corte insignificante...

—É mais que isso - afirmou Charlotte com tom seco. —Esse machucado pode piorar muito, e é impossível saber quanto vai estender se o ferimento. Certamente um pouco de arnica lhe aliviará, mas acho que deveria vê-la um médico de todo modo.

—Não - respondeu Vita com determinação. Realizava um esforço sobre-humano por recuperar o controle de si mesma. As lágrimas escorregavam por suas faces, mas ela não se incomodava em enxugá-las. Provavelmente lhe doía muito o rosto para tocar-se. Todo seu corpo estremecia. —Ainda não, não quero que se informe a nenhum médico.

—Mamãe, é necessário! - insistiu Clarice, aproximando-se por fim e ficando a três ou quatro passos. —Por que não quer? O médico não vai pensar que é boba, se for isso o que a preocupa. Muitas pessoas caem... por acidente. É muito fácil.

Vita fechou os olhos, seu rosto mudado por uma pontada de dor.

—Não caí - sussurrou. —O médico se daria conta se me examinasse. Não poderia resistir... e menos agora. Devemos... - Respirou fundo e quase se engasgou. —Devemos mostrar... lealdade...

—Lealdade! - prorrompeu Tryphena. —A que? A quem? Quando diz lealdade, refere-se a mentir? Encobrir a verdade...

Vita começou a chorar silenciosamente, refugiando-se em sua aflição.

—Já basta! - Dominic acabava de aparecer de novo na soleira da porta e lançou um olhar fulminante a Tryphena. —Palavras como essas não beneficiam a ninguém.

—Ajoelhando-se frente a Vita, observou-a com expressão séria. —Senhora Parmenter, acredito que será melhor que nos diga a verdade. Isso nos permitirá decidir o que é o mais conveniente. Enquanto nos apoiemos em imaginações ou suspeitas, provavelmente cometeremos enganos. Se não caiu, o que se passou?

Vita voltou a levantar lentamente a cabeça.

—Discuti com o Ramsay - revelou com a voz empanada. —foi horrível, Dominic. Nem sequer sei o que ocorreu. Estávamos falando tranqüilamente, e depois começou a olhar sua correspondência, que o mordomo lhe tinha deixado na escrivaninha, e de repente foi às nuvens. Parecia ter perdido por completo o controle. -Não afastava a vista do Dominic, mas devia perceber claramente a presença do Mallory, de pé a um lado do grupo, os ombros tensos, o rosto contraído em um vislumbre de ira e confusão.

Clarice fez ameaça de interromper mas se absteve.

Vita apertava a mão do Charlotte com tal força que a esta começava a lhe doer, entretanto não a retirou.

—Acusou-me de lhe abrir as cartas.... o que é absurdo. Nunca me ocorreria tocar nada dirigido a ele. Mas uma devia haver-se rasgado na distribuição , e ele se pôs furioso e começou a dizer que tinha sido eu. - Falava depressa e em sussurros, sua voz marcada pelo medo. Tinha começado a contar a verdade e já não podia deter-se. As palavras saíam a fervuras de sua boca. —Gritou comigo.... não, "gritar" não é a palavra. Estava tão iracundo que foi mais um grunhido. - Entrechocava os dentes de tal modo que corria o risco de morder a língua.

—Tome um pouco de chá - sugeriu Charlotte. —A tranqüilizará. Está muito alterada, como é natural.

—Obrigada - aceitou Vita, rodeando as mãos de Charlotte em torno da xícara para mantê-la firme. —É você muito amável, senhora Pitt.

—Chamarei o médico - disse Mallory, encaminhando-se para a porta.

—Não! - insistiu Vita. —O proíbo! Ouviste-me, Mallory? O proíbo terminante—mente. - Percebia-se tal tensão em sua voz e tal angustia em seu semblante que Mallory ficou onde estava, resistente a obedecer mas não desejando desafiá-la.

Dominic começou a dizer algo, mas viu o olhar colérico do Mallory e se calou. Vita fechou os olhos.

—Obrigada - murmurou-. Estou certa de que não será nada. Basta que vá deitar-me um momento. Braithwaite cuidará de mim. -Tentou levantar-se, mas os joelhos não a seguravam. —Perdão. Sinto-me tão... inútil. Não sei o que fazer. Acusou-me que escavar sua autoridade, de degradá-lo, de pôr em tecido de julgamento suas decisões. Eu o neguei. Nunca na vida fiz algo assim. E então me...bateu-me.

Clarice a observou por um momento e logo, passando entre a Tryphena e Dominic, dirigiu-se para a porta. Deixou-a aberta, e ouviram suas passadas através do vestíbulo e escada acima, ruidosas na madeira negra e nua.

—Isto é uma atrocidade! - exclamou Mallory, desolado. —Se tornou louco! Não tem outra explicação. Perdeu o juizo. Dominic estava consternado, mas depois de uma breve hesitação dominou seus sentimentos e se voltou para Mallory.

—Devemos respeitar os desejos de sua mãe. Será melhor não falar mais do assunto.

—Não pode permitir uma coisa assim! - protestou Tryphena. —vai esperar até que a mate também a ela? Isso é o que quer? Achava que se interessava por ela. Para falar a verdade, achava que se interessava muito.

Vita a olhou com desespero.

—Tryphena, por favor...!

Dominic se inclinou, levantou Vita em braços e foi carregado com ela para a porta.

Charlotte se apressou a abrir-la de par em par, e Dominic saiu sem voltar a vista atrás. Charlotte olhou aos que ficavam no salão.

—Acredito que não posso fazer nada para ajudar, exceto deixá-los na intimidade de seu lar para que tomem as decisões que considerem oportunas. Sinto muito o ocorrido.

Mallory tomou a substituição como anfitrião em ausência de seus pais e correu à porta atrás dela.

—Obrigado, senhora Pitt. Não.... não sei bem o que lhe dizer. veio nos ver por amabilidade, e a embaraçamos de uma maneira lamentável... – Estava muito perturbado, pálido salvo por duas manchas rosadas nas faces. Não sabia como ficar nem o que fazer com as mãos.

—Não acho que me tenham embaraçado - disse ela, faltando à verdade. —Eu mesma conheci a tragédia em minha própria família, e sei como muda as coisas. Não se preocupe por isso.

Charlotte estava ante a porta de entrada. Tratou de esboçar um sorriso quando ele a abriu, e por um instante seus olhares se cruzaram. Charlotte viu medo em seus olhos, quase pânico, e viu deste modo que era um medo a flor da pele, ameaçando transbordar-se se produzisse um só rasgão mais na malha de sua vida, por pequeno que fosse.

Charlotte desejou poder lhe dizer umas palavras de consolo, mas não tinha sentido lhe prometer que as coisas melhorariam. Provavelmente piorariam.

—Obrigada, senhor Parmenter - sussurrou. —Confio que a próxima vez que nos vejamos, o pior já tenha passado.

Charlotte se voltou, desceu pela escadaria e se aproximou do meio-fio da calçada para procurar um cabriolé de aluguel.

Naquele mesmo dia, umas horas antes, Cornwallis tinha recebido uma inesperada visita em seu escritório. O agente de guarda anunciou que uma tal senhora Underhill desejava vê-lo.

-Sim.... sim, é claro...- Cornwallis ficou de pé e acidentalmente derrubou uma pena com o punho da camisa. Voltou a endireitá-la. —Faça-a entrar. Há... Disse a que vinha?

—Não, senhor. preferi não lhe perguntar, sendo a esposa de um bispo, e todo isso. Quer que o pergunte agora, senhor?

—Não! Não, diga-lhe que entre, por favor.

Inconscientemente, Cornwallis arrumou a jaqueta e retocou o nó da gravata, deixando-o de fato torcido.

Isadora entrou ao cabo de um momento. Levava um vestido escuro entre azul e verde. Ao Cornwallis recordou a cor da cauda de um pato. Realçava sua tez clara e seu cabelo quase negro, com uma mecha branca sobre a fronte. Cornwallis não se deu conta antes, mas era uma mulher formosa. Seu semblante se distinguia pela paz interior que refletia. Era um rosto que poderia contemplar sem chegar a cansar-se, ou a ter a sensação de que conhecia já de cor todas suas expressões e era capaz de predizer sua seguinte luz ou sombra.

Cornwallis engoliu a saliva.

—Bom dia, senhora Underhill. No que posso lhe servir?

Um sorriso passou fugazmente por seu rosto. Era claro que se sentia perturbada

—Sente-se, por favor - ofereceu Cornwallis, indicando a poltrona próxima a sua escrivaninha.

—Obrigada. - Isadora deu uma olhada ao escritório, reparando no sextante colocado na estante e olhando por cima os títulos dos livros. — Me perdoe por lhe fazer perder o tempo, senhor Cornwallis - disse, concentrando a atenção de novo nele.—Possivelmente seja uma estupidez de minha parte vir a importuná-lo. Trata-se de um assunto pessoal, não oficial. Mas durante o jantar me pareceu que lhe causávamos uma lamentável impressão. O bispo... - Utilizou o título em lugar de dizer "meu marido", que era o que cabia esperar.

Cornwallis percebeu a hesitação.

—O bispo estava muito preocupado pelo incidente - prosseguiu com rapidez. —E em seu temor de que as repercussões em sentido amplo possam prejudicar muita gente, acredito que mostrou menos interesse no... bem-estar... do Ramsay Parmenter do que em realidade sente.

Saltava à vista que lhe custava muito falar, e escrutinando seu rosto, seus olhos escurecidos e evasivos, Cornwallis pressentiu que a conduta do bispo a tinha ofendido tanto como a ele mesmo. Só que lhe produzia além disso uma funda vergonha, porque não podia desvincular-se da atitude do bispo sem incorrer em uma grave deslealdade. Tinha ido a seu escritório com a intenção de melhorar a imagem de seu marido nos olhos do Cornwallis, e devia lhe desgostar sobremaneira fazê-lo e irritá-la a necessidade de fazê-lo. Talvez tivesse desejado expressar seu próprio ponto de vista, mas o impedia a honra?

—Compreendo - disse Cornwallis, rompendo o incômodo silêncio. —O bispo tem que ter em conta muitas coisas mais importantes que o puramente pessoal. Assim ocorre a todas as pessoas com grandes responsabilidades. - Sorriu, olhando-a nos olhos. —Eu mesmo capitaneei um navio, e à margem de quais fossem meus sentimentos para um membro em particular da tripulação, à margem da simpatia ou antipatia, da lástima ou o respeito, o navio tinha sempre prioridade sobre todo o resto, ou do contrário teríamos perecido. As vezes uma pessoa se vê obrigada a tomar decisões difíceis, e estas nem sempre parecem justas a outros. - Duvidava que essas normas fossem aplicáveis ao bispo Underhill. Seu "navio" era de caráter moral, enfrentar os elementos da covardia e desonra, e não um casco de navio de madeira e lona que tinha que lutar contra a força do oceano. A missão do Cornwallis na marinha incluía proteger a vida de seus homens; Underhill devia proteger suas almas. Mas não podia dizer a Isadora Underhill nada daquilo. Devia sabê-lo tão bem como ele, ou ao menos isso lhe parecia vendo suas mãos nervosamente entrelaçadas no regaço e o modo em que evitava seu olhar; e não desejava recordar-lhe.

—Todos devemos tomar as decisões que consideremos mais oportunas em circunstâncias difíceis - prosseguiu Cornwallis. —É mais fácil julgar a outros que ficar em seu lugar. Por favor, não pense que extraí conclusões errôneas.

Isadora ergueu a vista imediatamente e o olhou. Notava ela que Cornwallis pretendia ser amável mais que sincero? Ele não estava acostumado ao trato com mulheres. Não tinha mais que uma vaga idéia de como pensavam, do que achavam e sentiam. Acaso ela via claramente suas intenções e o desprezava por isso? Essa possibilidade era em extremo desagradável. Isadora lhe sorriu.

—Acredito que se mostra muito generoso, senhor Cornwallis, e o agradeço. - Deu uma nova olhada ao escritório. —Passou muito tempo no mar?

—Um pouco mais de trinta anos - respondeu ele, sem deixar de olhá-la.

—Deve sentir muito sua falta.

—Sim... - A resposta surgiu dele imediatamente, e com uma convicção que ele mesmo não esperava. Sorriu timidamente. —De certo modo, era muito mais simples que isto. Por desgraça, não estou habituado à política. Pitt se esforça em me instruir sobre o caráter da intriga e das possibilidades da diplomacia... e mais freqüentemente as impossibilidades.

—Suponho que no mar não há necessidade de muita diplomacia – comentou Isadora pensativamente, desviando o olhar. —O capitão tem o comando. Só tem que levar sobre seus ombros a terrível responsabilidade de acertar em suas decisões, porque disso depende a vida de todos. Um grande poder suporta responsabilidade em igual proporção. -Pelo tom reflexivo de sua voz, parecia lhe falar tanto a ele como a si mesma. —Antes eu imaginava que a Igreja era assim.... uma magnífica proclama da verdade, como São João Batista ante Herodes. - riu de si mesma. —O menos diplomática possível, capaz de jogar na cara do rei publicamente que cometeu adultério e seu matrimônio é ilícito, e lhe exigir que se arrependa e peça perdão a Deus.

Cornwallis se tranqüilizou e apoiou as mãos relaxadamente na escrivaninha.

—Como pode dizer uma coisa assim de maneira diplomática? - perguntou com um sorriso. —Sua majestade, tenho a impressão de que suas relações conjugais são um tanto irregulares, e possivelmente deveria renunciá-las ou pedir conselho ao muito alto.

Ela se pôs-se a rir, deleitada de repente pelo absurdo da idéia.

—E ele responderia: "Sinto muito, mas estou muito a gosto com a atual situação, obrigado. E se repetir essa sugestão em público, verei-me obrigado a encarcerá-lo. E quando achar um bom pretexto, porei fim prematuramente a sua vida. Seria melhor que reconhecesse em público que tudo está em ordem e conta com sua aprovação." - Isadora se levantou, repentinamente séria de novo, sua voz cheia de emoção. —Preferiria sair com as velas inchadas e todos os canhões cuspindo fogo a ser marcado com um ferro candente pelo inimigo e manchado por seu crime, por seus propósitos. Desculpe a mescla de metáforas e a apropriação por minha parte de suas imagens navais.

—Considero-o um elogio - respondeu Cornwallis.

—Obrigada. - aproximou-se da porta. —A princípio me parecia uma insensatez ter vindo, mas me deu tranqüilidade. É muito cortês. bom dia.

—Bom dia, senhora Underhill. - Cornwallis lhe abriu a porta e, com pesar, observou-a partir. Esteve a ponto de acrescentar algo para retê-la um momento mais, mas compreendeu que não tinha sentido.

Fechou a porta e voltou para sua escrivaninha, mas permaneceu durante quase um quarto de hora sem mover-se nem concentrar-se de novo em seus papéis.

 

Pitt ia sentado no cabriolé, que abria passagem ruidosamente entre o trânsito da primeira hora da manhã. Eram pouco mais de oito, e a noite anterior ficara em claro até muito tarde escutando as notícias de Charlotte sobre os acontecimentos do dia. Mal tinha mencionado à avó e tinha falado muito por cima do almoço com a tia Vespasia, mas havia dito que, em opinião desta, os homens não assassinavam por idéias mas sim por paixões.

Adiantou-os uma carroça carregada de barris de cerveja, os cavalos magníficos com suas crinas empenadas e seus resplandecentes medalhões de latão. O tinir dos cascos e os gritos dos vendedores de rua inundavam o ar.

Um cão disparou e alguém chamou um cocheiro. O cabriolé parou em seco. ouviu-se o estalo de um chicote, e reataram a marcha a passo mais vivo.

Pitt imaginava a Vespasia dizendo isso. Via com clareza em sua mente o rosto ainda formoso da anciã. Provavelmente vestia-se de marfim, cinza prateado ou lilás, e durante o dia costumava exibir um colar de pérolas.

Vespasia tinha razão. As pessoas matavam porque desejavam algo com tal veemência que perdia todo sentido da razão e proporção. Por um tempo sua própria necessidade eclipsava a de todos outros, e inclusive anulava seu próprio instinto de conservação. Às vezes era uma cobiça minuciosamente meditada. Às vezes era um temor momentâneo, inclusive um medo físico. Raramente se matava por vingança. Para vingar-se existiam outros muitos métodos. Em raras ocasiões se achou com crimes resultantes de uma ira cega e insensata.

Mas como Vespasia dizia, sempre intervinha uma paixão de um tipo ou outro, embora fosse só a mais fria cobiça. Razão pela qual, apesar das provas, custava-lhe acreditar que Ramsay Parmenter tivesse matado intencionalmente Unity Bellwood. Pitt tinha que descobrir quem era o pai da criança. O medo seria um motivo muito compreensível. Era Unity uma mulher que tivesse podido chantageá-lo, ou inclusive delatá-lo e arruinar sua carreira? Por que não? A sua estava já arruinada. Não tinha muito que ganhar, mas haveria nisso certa justiça.

Charlotte o tinha informado do emotivo e um tanto desconexo relato da Tryphena sobre o passado de Unity, que incluía a dor por uma tragédia, um amor que tinha sido muito mais que uma simples aventura, uma esperança e um sonho. Aparentemente, tinha deixado uma profunda ferida em Unity.

Tinha sido uma mulher complexa. Ao fim e ao cabo, pelo que se via, teria que solicitar mais informação sobre ela. Se Ramsay era o pai, por que teria tido Unity uma relação desse tipo com ele? O que podia lhe ter atraído naquele indivíduo seco e pedante?

Ou acaso a tinha tentado mais sua posição social que suas qualidades pessoais? Pôr a descoberto as debilidades do Ramsay era para ela uma espécie de vingança pelos anos de intolerância que tinha padecido à mãos de homens como ele? Pitt tentou imaginar-se por um momento no lugar de Unity, uma mulher de uma inteligência superior, com ambição e vontades de trabalhar, e todos seus afãs frustrados e denegados pelos preconceitos, chocando-se em todas direções contra uma condescendência cega e cortês. Ele mesmo tinha conhecido por própria experiência essa situação, devido a seu nascimento e ao infortúnio de seu pai. Sabia bem o que era a injustiça, dolorosa e fatal no caso de seu pai. Pitt, encontrando-se em seu pequeno quarto no sótão, havia sido consumido com raiva e tristeza por ele depois de sua expulsão por um roubo que não tinha cometido. Pitt e sua mãe poderiam ter morrido de fome se não fosse pela bondade de sir Arthur Desmond. Era o preceptor que tinha compartilhado com o filho do Desmond quem lhe tinha ensinado a falar bem, e isso tinha mudado seu futuro.

Mas Pitt conhecia a discriminação, apesar de ter aprendido a maioria das artes que lhe permitiam vencê-la em sua maior parte. Unity Bellwood nunca teria conseguido livrar-se dela, porque era uma mulher. Se albergava em seu interior uma ira profunda e impossível de erradicar, Pitt o compreendia. Provavelmente poderia deter o Ramsay Parmenter com as provas de que dispunha, incluído o insólito ataque da tarde anterior. Mas qualquer advogado que se apreciasse conseguiria que o caso fosse desprezado ao chegar aos tribunais, se chegasse. E se isso ocorresse, embora mais tarde Pitt conseguisse demonstrar a culpa do Ramsay, não poderia apresentar provas contra ele uma segunda vez.

Necessitava de mais informação sobre Dominic e Unity Bellwood. Seus passados podiam contribuir com algum fato que explicasse tudo ou alterar por completo sua percepção. Era algo que não podia passar por cima. Até o momento possuía uma visão incompleta dos acontecimentos. Havia peças que não encaixavam. Devia averiguar no mínimo quem era o pai do menino que Unity levava em suas entranhas. Assaltou-o um intenso mal-estar ao pensar na dor que sentiria Charlotte se fosse Dominic. E uma parte desagradável e mesquinha do Pitt se alegraria se fosse ele. Isso o envergonhava.

Chegou a Brunswick Gardens e pagou ao cocheiro, prestando apenas atenção ao vendedor de jornais que vozeava as últimas notícias, concentradas em uma acalorada polêmica a respeito de se no Pólo Norte havia terra, gelo ou mar. Dois franceses, monsieur Besancon e monsieur Hermite, tinham criado um artefato para resolver a questão de uma vez por todas. Era um globo de ar quente com capacidade para transportar cinco homens, equipamento e provisões, vários cães para puxar um trenó e inclusive um pequeno bote. A morte do Unity Bellwood empalidecia em comparação. Pitt se aproximou da porta da casa com um vago sorriso. Abriu Emsley, ao que parecia profundamente abatido.

—Bom dia, senhor - disse, sem surpreender-se de vê-lo. Sua expressão dava a entender que Pitt era a realização de seus piores temores.

—Bom dia, Emsley - saudou Pitt, entrando no saguão e passando ao extraordinário vestíbulo onde Unity tinha encontrado a morte. —Posso falar com a senhora Parmenter, por favor?

Emsley já devia ter decidido o que faria em caso de que aparecesse Pitt.

—Informarei à senhora Parmenter de sua chegada, senhor - anunciou com gravidade. —Embora naturalmente não sei se estará em disposição de vê-lo.

Pitt aguardou no salão da manhã de estilo marcadamente oriental, mas sem fixar-se na decoração. Não tinham transcorrido ainda dez minutos quando Vita Parmenter abriu a porta e entrou. Apresentava um aspecto frágil e muito preocupado. Tinha um enorme hematoma ao redor do olho direito e uma cicatriz ainda tenra e vermelha na face. Nem pós nem ruge poderiam tê-la dissimulado, mesmo se ela tivesse sido uma mulher que usasse essa classe de cosméticos.

Pitt procurou não olhar a ferida, mas era uma alarmante mancha em um rosto pelo resto adorável.

—Bom dia, senhora Parmenter - disse. Não precisou afetar lástima ou consternação, já que ambos os sentimentos brotaram dele espontaneamente. —Lamento vir importuná-la por este fato, mas não pode ficar sem explicação.

Vita levou a mão à face instintivamente. Devia lhe doer muito.

—Receio que fez a viagem em balde, delegado - respondeu ela com voz tão rouca e apagada que Pitt mal a ouviu. —Não tenho nenhuma declaração a fazer. Imagino, claro está, que a senhora Pitt lhe contou o que viu ontem à tarde nesta casa. Em sua posição, é lógico que o haja dito. - Não sem esforço, esboçou um sorriso, mas muito débil e próximo às lágrimas, um gesto defensivo mais que cortês. —Mas isto é um assunto pessoal entre meu marido e eu, e desejo que continue sendo-o. - interrompeu-se de repente, como se não soubesse que mais dizer.

Pitt não se surpreendeu. Mais teria estranhado que lhe contasse por própria vontade o ocorrido e acusasse ao Ramsay. Possuía muita dignidade e lealdade para falar abertamente de suas feridas, em especial nesse momento.

Perguntou-se que classe de violência teria padecido no passado. Isso ocorria às vezes às mulheres, devido em parte à sua situação de dependência e obediência. O mau comportamento de uma mulher dava direito a seu marido ao castigo físico. Assim o recolhia a lei, e a mulher não tinha possibilidade de defesa ante isso. Pitt recordava ainda o tempo em que era ilegal que uma mulher fugisse de sua casa para evitar as agressões de seu marido, que podia fazer com ela o que quisesse salvo lhe causar lesões irreparáveis ou a morte.

—Sei que não posso obrigá-la, senhora Parmenter - respondeu Pitt. —E respeito seu desejo de proteger a sua família e o que você considera seu dever. Mas há só uns dias se produziu uma morte violenta nesta casa. Não se trata já de uma briga pessoal que pode passar-se por alto e esquecer-se. Viu-a um médico?

Vita voltou a levar a mão à face, mas não tocou a pele inflamada.

—Não. Não me parece necessário. Do que serviria? A ferida se curará por si só em seu devido tempo. Aplico-me compressas frias e tomo infusões de tanaceto para a dor de cabeça. O azeite de lavanda também dá um excelente resultado. Não se produziu nenhum dano irreparável.

—Em sua face ou em seu matrimônio? - perguntou Pitt.

—Em minha face - respondeu Vita, sem afastar dele o olhar. —Lhe agradeço o interesse que mostra por meu matrimônio. É um homem amável e bem educado. Mas, em sua qualidade de policial, não tenho nenhuma queixa que lhe apresentar, e portanto o assunto fica fora de suas competências profissionais. - sentou-se com ar cansado em uma das poltronas e ergueu a vista para olhá-lo. —Foi um acidente doméstico, como muitos outros que ocorrem todos os dias na Inglaterra. Deveu-se a um mal-entendido. Tenho certeza de que não voltará a acontecer. Todos vivemos sob uma grande pressão desde a morte de Unity. - Tomou ar e aguardou que Pitt se sentasse frente a ela para continuar. —Como é lógico, meu marido é o mais afetado. Trabalhava em estreita colaboração com ela e... e... - interrompeu-se. O resto da verdade pendia entre eles no abismo do desconhecido e o temido. Vita devia ser tão consciente como ele das conseqüências que se derivavam da violenta agressão de que tinha sido vítima na tarde anterior. Bastava só uma olhada a seu rosto para compreender a magnitude e a selvageria daquele ato. Ramsay não se limitara a esbofeteá-la. Isso poderia ter ocasionado um ligeiro inchaço ou a marca de uns dedos, mas não aquele machucado que lhe desfigurava as feições, nem o corte. Devia tê-la golpeado com o punho, e descarregando-o com toda sua força. O corte causado pelo anel de selo do Ramsay não deixava lugar a dúvidas. Embora ela afirmasse outra coisa, não podia enganar a ninguém. Dissesse o que dissesse, Pitt tinha visto a ferida e só podia chegar a uma conclusão.

—Compreendo, senhora Parmenter - disse Pitt, e esboçou um tenso sorriso, não pelo silêncio dela mas sim pela tragédia que se ocultava atrás. —Agora, se for possível, desejaria falar com o reverendo Parmenter. - Não era uma pergunta, mas uma exigência expressa cortesmente.

Ela interpretou mal suas intenções.

—Não, por favor! - apressou-se a dizer. levantou-se e avançou um passo para ele. Pitt também ficou em pé.

—Não quereria que Ramsay pensasse que o chamei - prosseguiu Vita com tom premente. —Eu não o fiz vir. Proibi a toda a família mencionar o incidente, e possivelmente Ramsay nem sequer saiba que a senhora Pitt estava aqui nesse momento. - Moveu a cabeça em um enérgico gesto de negação. —Eu certamente não o disse. Por favor, delegado, isto é um assunto totalmente privado, e a menos que eu apresente uma queixa, não pode você intervir. - Tinha aumentado o volume de voz e o olhava com os olhos desmesuradamente abertos. —Direi que me golpeei com uma porta. Escorreguei e caí. Tropecei com um móvel. Foi um acidente ridículo. Não havia ninguém presente, assim ninguém pode desmenti-lo. Se a senhora Pitt tiver outra impressão, negá-lo-ei. confundiu-se. Eu estava histérica e não sabia o que dizia. Já vê. Não tem você nada que fazer. - Olhou pra Pitt com expressão desafiante, e inclusive com um vislumbre de sorriso. —Não pode utilizá-lo como prova, porque ninguém viu nada. Se eu o negar, nunca ocorreu.

—Desejo falar com ele a respeito da trajetória acadêmica da senhorita Bellwood -explicou Pitt com delicadeza. —E lhe perguntar se conhece algum dado de sua vida privada. Como você mesma disse, o que ocorreu aqui ontem pela tarde é um assunto pessoal, não público.

—Ah, entendo. - Parecia perplexa e um tanto envergonhada. —Claro. Desculpe. Tirei uma conclusão precipitada. me perdoe, por favor.

—Possivelmente eu não me expliquei bem - respondeu Pitt com sinceridade. —A culpa é minha.

Vita lhe dirigiu um radiante sorriso e imediatamente fez uma careta de dor pela ferida da face. Mas nem sequer o hematoma e o inchaço que se estendiam pela maçã do rosto conseguiram apagar a luz de seu olhar.

—Me acompanhe acima, por favor. Está no gabinete. Imagino que pode lhe facilitar todos os dados que necessite a respeito dela. informou-se bem antes de contratá-la. - Ao chegar ao pé da escada se voltou e murmurou. —Em realidade, acredito que teria sido mais sensato não escolhê-la, senhor Pitt. Estou certa de que era brilhante em sua especialidade, dotada de um grande talento, ou isso ouvi dizer. Mas sua vida privada era... - Deu de ombros. —ia dizer "duvidosa", mas por desgraça nem sequer havia muitas dúvidas a respeito. Em todo caso, Ramsay pode lhe dar os detalhes. Eu os desconheço. Mas ele foi mais tolerante do que, em minha opinião, deveria ter sido. E já vê a tragédia em que terminou.

Vita começou a subir pela escada, deslizando a mão pelo corrimão escuro e lustroso. Apesar pelo que se percebia no ambiente daquela casa, subiu com as costas erguidas, a cabeça alta, e um ligeiro balanço cheio de graça. Nem sequer aquela opressiva sensação podia despojá-la de seu valor ou as qualidades de seu caráter.

Ramsay recebeu ao Pitt com certa surpresa, levantando-se da poltrona depois atrás da escrivaninha coberta de papéis. Vita partiu e fechou a porta, e Pitt aceitou o convite para sentar-se.

—No que posso lhe servir, delegado? - perguntou Ramsay com a fronte enrugada e olhar de inquietação. Dava a impressão de que não pudesse fixar bem a vista no Pitt.

Uma estranha sensação de irrealidade invadiu ao Pitt. Era como se Ramsay tivesse esquecido as lesões de sua esposa. Na aparência, não passou sequer por sua cabeça que Pitt pudesse estar ali por esse motivo, ou que se desse conta. Tão comum era para ele bater em uma mulher, apesar de sua noção de auto-disciplina, que não o violentava que um desconhecido se inteirasse disso?

Foi difícil para Pitt concentrar a atenção no motivo que o tinha levado ali, e que em realidade era seu objetivo secundário.

—Necessito mais informação sobre o passado da senhorita Bellwood, antes de sua chegada a Brunswick Gardens - respondeu. —A senhora Parmenter me disse que fez indagações sobre ela, com respeito tanto a sua aptidão profissional como a sua personalidade. Eu gostaria de saber o que averiguou quanto a este último.

—Ah, isso. - Ramsay pareceu surpreender-se. Dava a impressão de que lhe preocupava outra coisa. —Acredita que servirá de algo? Bom, pode ser que sim. Sim, naturalmente solicitei referências e perguntei a vários conhecidos. Ao fim e ao cabo, não se contrata a alguém à ligeira quando se trata de uma tarefa importante e se espera trabalhar em estreita colaboração. Que deseja saber em particular? - Não contribuiu com dado algum por própria iniciativa, como se não tivesse a menor idéia do que interessava ao Pitt.

—A que se dedicava antes de vir aqui? - disse Pitt.

—Ah.... ajudava ao doutor Marway com sua biblioteca - respondeu Ramsay imediatamente. —É especializado em traduções de obras clássicas, e logicamente tem muitas delas nas versões originais latinas e gregas. O trabalho de Unity consistia em classificar e reorganizar.

—E tinha um bom conceito dela?

Aquela era uma conversa insólita. Ramsay falava de uma mulher com quem parecia ter mantido uma aventura amorosa e a quem depois provavelmente tinha assassinado, e tratava o assunto com despreocupação, como se para ele tivesse só uma importância tangencial, outras questões reclamassem sua atenção, e respondesse às perguntas do Pitt só por um desejo de mostrar-se cortês e cooperar.

—Sim, um excelente conceito. Assegurou que Unity possuía um talento excepcional - respondeu Ramsay com sinceridade. Dizia-o por justificar sua escolha? Obviamente Unity não era de seu agrado como pessoa. Ou acaso pretendia afastar dele as suspeitas?

—E antes disso? - insistiu Pitt.

—Se a memória não me engana, dava aulas de latim às filhas do reverendo Daventry - respondeu Ramsay com expressão carrancuda. —Disse que o nível das meninas tinha melhorado muito, superando com acréscimo suas expectativas. Antes que me pergunte isso, direi-lhe que previamente Unity tinha traduzido uns manuscritos hebreus para o professor Allbright. Não indaguei mais à frente. Não o considerei necessário.

Pitt sorriu mas Ramsay não lhe devolveu o sorriso.

—E quanto a sua vida privada, suas pautas de conduta?

Ramsay desviou o olhar. Obviamente a pergunta o perturbava. Respondeu em voz baixa e aflita, como se, se sentisse culpado.

—Corriam certos comentários sobre seu comportamento; tinha opiniões políticas muito extremas e pouco atraentes. Mas não concedi maior importância a isso. Não desejava julgar algo que não era de minha incumbência. A meu parecer, a Igreja não deveria adotar posturas políticas.... ou não ao menos em um sentido discriminatório. Mas receio que acabei lamentando minha decisão. - Tinha as mãos entrecruzadas e tensas sobre a escrivaninha. —Me dá a impressão de que em meu desejo de ser tolerante, renunciei a defender aquilo no que acredito - prosseguiu, com a vista fixa em suas mãos sem as ver em realidade. —Nunca... nunca tinha conhecido a uma pessoa como a senhorita Bellwood, uma pessoa tão... tão agressiva em seu desejo de mudar a ordem estabelecida, tão possuída pela ira contra o que considerava injusto. Suas opiniões eram certamente muito tendenciosas. Sem dúvida se derivavam de alguma experiência pessoal pouco afortunada. Possivelmente tinha aspirado a algum posto ou emprego para o que não era apta, e o rechaço lhe tinha azedado o caráter. Também poderia ter sido fruto de alguma relação amorosa. Mas não confiou em mim, e naturalmente eu não lhe perguntei. - Ergueu de novo a vista. Tinha o olhar sombrio e tensas as feições, como se internamente se achasse atendido por uma emoção quase incontida.

—Como eram as relações da senhorita Bellwood com as outras pessoas da casa? - perguntou Pitt. Era inútil tratar de fingir despreocupação. Os dois sabiam a finalidade dessa pergunta e as implicações que se desprenderiam de qualquer resposta, por cuidadoso que fora na escolha das palavras.

Ramsay escrutinou o semblante do Pitt. Sopesava todas as opções, as possíveis e evasivas.

—Unity era uma pessoa muito complexa - respondeu lentamente, observando a reação do Pitt. —Às vezes se mostrava encantadora e nos fazia rir a todos com sua viveza de engenho, mas em algumas ocasiões podia chegar a ser extremamente cruel. Levava dentro uma... uma intensa cólera. - Apertou os lábios e começou a brincar com o canivete sobre a escrivaninha. —Tinha opiniões para tudo, geralmente dogmáticas. - Riu tristemente, com uma risada quase inaudível. —E as expressava sem o menor recato. Discutiu uma ou outra vez com meu filho por suas crenças religiosas, assim como comigo... e com o senhor Corde. Temo que formava parte de seu temperamento. Não sei que mais acrescentar. - Olhou ao Pitt com algo parecido ao desespero.

Pitt recordou as palavras da Vespasia. Desejava conhecer com maior detalhe as circunstâncias dessas discussões, mas Ramsay não ia aprofundar mais nisso.

—Eram alguma vez de caráter pessoal, essas discussões, reverendo Parmenter, ou sempre giravam em torno da fé e das opiniões religiosas? - Pitt não esperava uma resposta útil, mas lhe interessava ver que tipo de resposta escolhia Ramsay.

Ambos sabiam Por força que a tinha empurrado um dos homens da casa.

—Ah... - As crispadas mãos do Ramsay se fecharam ao redor do canivete. Começou a tamborilar com ele sobre o mata-borrão, em um movimento rápido e nervoso, quase um tremor. —Eram piores no caso do Mallory. Meu filho toma muito a sério sua vocação, e infelizmente não possui um senso de humor muito desenvolvido. Dominic, o senhor Corde, é um homem de maior idade, e mais habituado ao trato com mulheres. Não caía tão... facilmente nas provocações. - Contemplou ao Pitt sem dissimular sua angústia. —Delegado, está me pedindo declarações que poderiam incriminar a meu filho ou a meu ajudante, um homem que foi meu discípulo e por quem sinto uma grande apreço, e que agora é um hóspede desta casa. Não posso lhe dizer nada. Em realidade, não sei nada. Sou... sou um estudioso das Sagradas Escrituras. Não sou muito observador no que se refere a relações pessoais. Minha esposa... - Mudou de idéia; a retirada a uma atitude defensiva ficou patente em sua expressão. —Minha esposa lhe informará melhor que eu a esse respeito. Eu sou um teólogo.

—E não se apóia a teologia em compreender às pessoas? - inquiriu Pitt.

—Não. Não, absolutamente. Justamente o contrário, sua finalidade é compreender a Deus.

—E do que serve isso se não se compreender também às pessoas?

Ramsay ficou perplexo.

—Como diz?

Pitt escrutinou seu semblante e percebeu nele confusão, não uma superficial incompreensão do que Pitt havia dito, mas a escuridão muito mais profunda da dúvida que o corroía. Ramsay Parmenter vivia atormentado por um vazio de incerteza, o medo de ter esbanjado o tempo e o esforço, os anos perdidos em seguir pelo caminho equivocado. E tudo isso o havia catalizado Unity Bellwood com sua afiada língua e sua mente incisiva, seus questionamentos, suas brincadeiras. Acaso a raiva do Ramsay ante sua própria futilidade tinha estalado em forma de violência física por um terrível instante? A destruição da fé em si mesmo era possivelmente a pior ameaça de todas.

Tinha sido aquele crime uma defesa de sua mais íntima essência como homem? Entretanto quanto mais conhecia o Ramsay Parmenter, mais lhe custava imaginar que tivesse sido amante de Unity. Mas sabia possivelmente quem tinha mantido uma relação sentimental com ela? Mallory ou Dominic? Seu filho ou seu protegido?

—Unity Bellwood estava grávida de três meses - anunciou Pitt.

Ramsay ficou paralisado. No gabinete nada se movia nem produzia o menor som. Fora ladrava um cão, e o vento agitava suavemente os ramos de uma árvore próxima à janela.

—Sinto muito - disse Ramsay por fim. —É um fato muito triste.

Era a última resposta que Pitt teria esperado. Observando o rosto do Ramsay, viu só assombro e aflição; obviamente não refletia vergonha nem culpa.

—De três meses, diz? - perguntou Ramsay. de repente tomou consciência do que isso implicava, e o medo aflorou a seu semblante. A pouca cor que ficava em suas faces desapareceu. —Então.... quer dizer...

—É o mais provável - respondeu Pitt.

Ramsay abaixou a cabeça.

—Meu deus - sussurrou. Parecia respirar com dificuldade. Sua profunda angústia era evidente, e Pitt desejou poder fazer algo para ajudá-lo, se não emocionalmente ao menos em sentido físico. Mas era tão impossível como se, se erguesse entre eles uma grossa parede de vidro. Quanto mais conhecia o Ramsay, menos o compreendia e mais difícil lhe era acreditar sem uma sombra de dúvida em sua culpa em relação à morte do Unity. A única explicação possível era alguma forma de demência, uma divisão em sua mente que permitia a dissociação total entre aquele fato e o homem que parecia ser.

Ramsay ergueu a vista e olhou ao Pitt.

—Pensa, suponho, que o pai era alguém desta casa, ou seja, meu filho ou Dominic Corde.

—Sem dúvida é o mais provável - confirmou Pitt, abstendo-se de acrescentar ao próprio Ramsay à lista.

—Compreendo. - Entrecruzou cuidadosamente as mãos e fixou no Pitt um olhar cheio de consternação. —Não posso ajudá-lo, delegado. Qualquer das duas possibilidades me parece incrível, e acredito que não deveria dizer nada mais para não predispô-lo a favor ou contra ninguém. Não desejo o menor mal a nenhum dos dois. Desculpe-me. Sei que não estou ajudando-o, mas me sinto muito... muito alterado para atuar ou pensar com clareza. Isto é... assustador.

—Poderia me dizer ao menos onde vivia Dominic Corde quando o conheceu?

—O endereço? Sim. Suponho. Embora não sei do que pode lhe servir. Isso faz já vários anos.

—Sei. Mesmo assim, eu gostaria que me facilitasse isso.

—Muito bem.

Ramsay abriu uma gaveta da escrivaninha e extraiu um papel. Copiou o conteúdo deste em outro papel e o deslizou para o Pitt sobre a lustrosa superfície de madeira.

Pitt lhe agradeceu e partiu.

Não retornou à delegacia de polícia a procura de Tellman, que continuava ocupado com os últimos detalhes do caso anterior. Eram tão poucas as pistas sobre a morte de Unity que Pitt não achava nada para encarregar Tellman. Tudo era insubstancial, apoiado em emoções e opiniões. Os únicos dados de que dispunha eram que Unity Bellwood estava grávida de três meses, e o pai da criatura era provavelmente um dos três homens que viviam na casa dos Parmenter, qualquer dos quais veria arruinada sua carreira se o fato chegava a conhecer-se. Tinham-na ouvido discutir com o Ramsay em várias ocasiões, a última imediatamente antes da queda que lhe havia custado a vida. Ramsay assegurava que não tinha saído de seu gabinete. A senhora Parmenter, sua filha Tryphena, a criada e o valete tinham ouvido Unity gritar dirigindo-se ao Ramsay um momento antes de cair pela escada. Outros dados secundários, possivelmente significativos ou possivelmente não, eram que Mallory Parmenter, na hora de produzir-se o homicídio, estava só na estufa, e declarou que não tinha visto Unity, apesar dela ter uma mancha na sola da sapatilha que só podia proceder do chão da estufa. Não se tinha manchado a prega do vestido, mas possivelmente recolhera a saia de maneira instintiva para não sujá-la de terra ou pó. Devia-se a mentira do Mallory à culpa ou simplesmente ao medo?

Tudo isso dava pé a suspeitas, mas certamente nada podia apresentar-se como prova ante um tribunal. Devia apoiar-se nesses dados para continuar com a investigação, e entretanto nem sequer sabia o que procurava, nem somente se existia.

Parou um cabriolé de aluguel e deu ao cocheiro o endereço que Ramsay lhe tinha facilitado.

—Tão longe quer que o leve, chefe? - perguntou o cocheiro, surpreso.

Pitt pôs em ordem suas idéias.

—Não.... não, melhor será que me deixe na estação. Tomarei o trem.

—Muito bem, pois - respondeu o cocheiro com manifesto alívio. —Suba.

Pitt desembarcou do trem na estação do Chislehurst a última hora daquela manhã ensolarada e ventosa e se dirigiu para o cruzamento de caminhos que se achava junto ao campo de criquet. Ali perguntou pela taverna mais próxima, e lhe indicaram que tomasse pelo caminho da direita e pouco mais adiante acharia a igreja de são Nicolás; uma vez ante a igreja, veria sua esquerda o parque de bombeiros e a sua direita a taverna Tiger"s Head.

Ali tomou um soberbo almoço consistente em pão recém feito, queijo tenro de Lancashire, ruibarbo em escabeche e um copo de cidra. informou-se deste modo de como chegar ao Icehouse Wood e concretamente à casa que ainda ocupava o grupo de excêntricas e infelizes pessoas a quem procurava.

Agradeceu ao taberneiro e seguiu seu caminho. Não demorou mais de vinte minutos em encontrar a casa. Achava-se em meio de um bosquezinho de árvores desfolhadas, que em outro tempo devia ter sido um lugar formoso. Os endrinos estavam em flor e incontáveis anêmonas salpicavam a terra, mas a casa oferecia um aspecto ruinoso que delatava anos de miséria e abandono.

Como demônios tinha ido parar ali o elegante e refinado Dominic Corde? E como se cruzou Ramsay Parmenter em seu caminho?

Pitt atravessou a descuidada grama e bateu na porta, parcialmente invadida pela madressilva que cobria a fachada, ainda sem flor. Atendeu-lhe um jovem que vestia uma folgada calça e um colete ao qual faltavam vários botões. O longo cabelo lhe caía sobre a fronte, mas tinha uma expressão cordial.

—Veio a arrumar a bomba da água? - perguntou, olhando esperançado ao Pitt.

—Não, mas posso tentá-lo se tiverem problemas.

—Faria-o? Que amabilidade a sua!

O jovem abriu a porta de par em par e guiou ao Pitt ao longo de corredores sujos e frios até a cozinha, onde havia pratos amontoados sobre um banco de madeira e dentro de uma pia de barro. O jovem não parecia notar sequer toda aquela desordem. Assinalou a bomba de ferro, que obviamente estava entupida. Pelo visto, o jovem não tinha a menor idéia do que fazer com ela.

—Vive só na casa? - perguntou Pitt para entabular conversa enquanto examinava a bomba.

—Não - respondeu o jovem com naturalidade, sentando-se de meio lado na mesa e observando com interesse as manobras do Pitt. —Somos cinco ou seis.

Varia. As pessoas vem e vão, sabe?

—Quanto tempo faz que têm esta bomba?

—Uf, anos! Está aqui mais tempo que eu.

Pitt ergueu a vista e sorriu.

—E quanto tempo é isso?

—Ah, sete ou oito anos, se não recordo mau. Necessitamos de uma nova? Espero que não. Não podemos pagá-la.

Vendo o mal estado geral da casa, Pitt acreditou nele.

—Está muito oxidada - opinou. —Parece que não se limpou a muito tempo. Tem esmeril?

—O que?

—Esmeril - repetiu Pitt. —Uns pós finos de cor negra cinzenta que se usam para polir o metal. Deveria estar guardado em um pano ou um papel.

—Ah, possivelmente Peter tenha. Se for assim, estará nesse armário - disse o jovem, e obedientemente foi olhar e achou um pano, levantando-o em gesto triunfal.

Pitt o pegou e começou a limpar as peças ferrugentas.

—Procuro um amigo.... um parente, em realidade - comentou enquanto esfregava. —Viveu aqui faz quase quatro anos, acredito. chama-se Dominic Corde. Lembra-se dele?

—Claro - respondeu o jovem sem vacilar. —Chegou aqui em um estado pouco habitual. Nunca vi a um homem mais desesperado do mundo e de si mesmo.... exceto Monte, e Monte, o pobre, tirou-se a vida atirando-se ao rio. - Um sorriso se desenhou de repente em seus lábios. —Mas não se preocupe com o Dominic. Estava perfeitamente quando se foi. Um clérigo veio aqui procurando Monte, e ele e Dominic fizeram bons miolos. Levou-lhe um tempo recuperar-se, certamente. Essas coisas vão devagar. Falava pelos cotovelos, aquele clérigo, mas parecia ser o que Dominic necessitava.

Pitt tinha tirado a jaqueta e arregaçado a camisa. Trabalhava com esmero na bomba da água.

—De verdade, é você muito amável - disse o jovem com admiração.

—Por que caiu Dominic nesse estado? - perguntou Pitt com afetada despreocupação.

O jovem deu de ombros.

—Não sei. Algo relacionado com uma mulher, acredito. Não foi por dinheiro, isso me consta, nem pela bebida ou o jogo, porque abandonar esses hábitos é muito mais lento, e aqui não se viu fazer nem o um nem o outro. Antes tinha vivido em Maida Vale com um grupo de pessoas, homens e mulheres. Não falava disso.

—Não sabe onde exatamente?

—Em Hall Road, parece-me. Não saberia lhe dizer em que número. Sinto muito.

—Não importa. Suponho que o acharei.

—É irmão seu? Ou primo?

—Cunhado. Pode me passar esse pano?

—Conseguirá fazê-la funcionar? - perguntou o jovem, referindo-se à bomba. —Seria estupendo.

—Acredito que sim. Segure isto.

Já era tarde quando Pitt voltou para casa, e não contou ao Charlotte nada de sua expedição ao Chislehurst. No dia seguinte, o sexto desde a morte de Unity, fazendo-se acompanhar pelo Tellman, foi em busca da casa da Maida Vale onde tinha vivido Dominic antes de conhecer o Ramsay Parmenter e achar sua vocação religiosa.

—Não sei que espera averiguar - comentou Tellman com acrimonia. —Que importância tem a que se dedicava faz cinco anos, ou com quem se relacionava?

—Não sei - respondeu Pitt com aspereza enquanto se dirigiam a pé para a estação da ferrovia. A rota até a estação do St. John"s Wood era bastante direta, e dali a Hall Road havia pouca distância. —Mas teve que empurrá-la um deles três.

—Foi o reverendo - afirmou Tellman, mantendo o passo com dificuldade. Pitt era meio palmo mais alto que ele, e seu passo grandemente mais longo.

—Simplesmente prefere você que não seja ele pelo revôo que se produzirá. Por certo, achava que Corde era seu cunhado. Não pensará que seu cunhado matou à senhorita Bellwood, não é? - Olhou ao Pitt de soslaio com uma expressão de nervosismo e certa indignação em seu enxuto rosto.

Pitt se sobressaltou. Tomou consciência de até que ponto lhe pareceria aceitável que o culpado fosse Dominic.

—Não, não acredito - replicou. —Mas acaso insinua que não deveria me incomodar em investigá-lo porque é um parente.... um membro de minha família política?

—Isto é, pois, um simples dever, não? - disse Tellman com um claro tom de ceticismo.

Cruzaram a plataforma e subiram ao trem. Tellman fechou a porta ao entrar.

—Não lhe ocorreu pensar que possivelmente me interesse demonstrar sua inocência? - perguntou Pitt quando se sentaram, face a face , em um compartimento vazio.

—Não - respondeu Tellman, olhando-o. —Você não tem nenhuma irmã. Quem é Corde, pois? Um irmão da senhora Pitt?

—O marido de sua irmã mais velha. Morreu. Assassinaram-na faz dez anos.

—Não a assassinaria ele?

—Claro que não! Mas sua conduta naquela época deixava muito a desejar.

—E não acredita que se reformou? Ao fim e ao cabo, agora é pastor. - A voz do Tellman delatava ambivalência. Não sabia bem o que pensar da Igreja. Parte dele a considerava uma facção da classe dirigente. Se por alguma casualidade ia à igreja, preferia a um pregador inconformista. Mas a religião continuava lhe parecendo sagrada, qualquer religião cristã.... possivelmente todas as religiões. Podia desprezar sua pompa e lhe indignar sua autoridade, mas o respeito à religião fazia parte da dignidade do homem.

—Não sei - respondeu Pitt, olhando pela janela enquanto uma nuvem de fumaça turvava o ar e o trem ficava em marcha.

Não acharam a casa de Hall Road até a última hora da manhã. Continuava ocupada por um grupo de artistas e escritores. Era difícil saber quantos viviam ali, e ao que parecia havia também várias crianças. Vestiam todos com ar boêmio, mesclando roupa de diferentes estilos, e inclusive algum objeto oriental, desconcertante naquele bairro tranqüilo e muito inglês.

Uma mulher alta que se apresentou como Morgan tomou a voz cantante e respondeu às perguntas do Pitt.

—Sim, Dominic Corde viveu aqui durante um breve período, mas isso faz já vários anos. Sinto muito, desconheço seu atual paradeiro. Não tornamos a ter notícia dele desde que partiu. - Em seu rosto de olhos grandes e lábios delicados se refletiu um vislumbre de tristeza. Tinha uma cabeleira loira que levava solta, salvo por uma fita que lhe rodeava a cabeça justo por cima da fronte, como um diadema verde.

—Interessa-me o passado, não o presente - explicou Pitt. Viu desaparecer Tellman pelo corredor e supôs que, como tinham combinado previamente, ia falar com algum outro inquilino da casa.

—Por que? - perguntou ela, olhando-o no rosto. Quando Pitt a interrompeu, trabalhava em um quadro, colocado em um enorme cavalete detrás dela. Pelo visto, era um auto-retrato, o rosto aparecendo entre as folhas de uma árvore, o corpo parcialmente oculto por elas. Era enigmático e a sua maneira formoso.

—Porque certos acontecimentos pressentes me obrigam a averiguar o que ocorreu a várias pessoas para que um homem inocente não seja acusado de um crime - respondeu Pitt. Era uma elucidação indireta, e certa só pela metade.

—E quer você acusar ao Dominic desse crime? - conjeturou ela. —Pois não penso lhe ajudar. Não falamos os uns dos outros, e menos com desconhecidos. Nossa forma de vida e nossas tragédias são privadas, e a você não dizem respeito, delegado. Aqui não se cometeu nenhum crime. Enganos, em todo caso, mas nos corresponde retificá-los ou não.

—E se for a Dominic a quem tento absolver? - perguntou Pitt. A mulher o olhou fixamente. Possuía uma beleza agreste, e apesar de contar mais de quarenta anos, algo nela delatava a inacabada rebeldia da juventude. Não se via paz em seu rosto. Pitt se perguntou que tipo de relação a teria unido a Dominic. Pareciam tão diferentes como podem sê-lo duas pessoas, e entretanto ele tinha mudado radicalmente nos últimos anos. Possivelmente durante a época em que viveu ali se complementaram de algum modo. Naquela época, ele padecia um grande desassossego, sua maturação não era completa, e talvez ela pudesse satisfazer suas necessidades.

—De que crime? - inquiriu ela, o olhar firme, quase sem pestanejar.

Pitt teve que recordar-se que era ele quem interrogava, não ela. Meteu as mãos nos bolsos e relaxou um pouco. Com o cabelo longo e alvoroçado, a gravata torcida e os bolsos cheios de volumes, não se via naquela casa tão desconjurada como ao Tellman.

—Mas viveu aqui durante um tempo? - repetiu Pitt com serenidade.

—Sim. Não temos por que negá-lo. Mas não há nada aqui que corresponda à polícia. - Esticou a mandíbula. —Temos vidas muito comuns. O único fora do comum em nós é que compartilhamos uma casa grande, sete adultos e as crianças, e todos somos artistas em uma área ou outra. Tecemos, pintamos, esculpimos e escrevemos.

—Realizava Dominic alguma dessas atividades? - perguntou Pitt com surpresa. Nunca tinha imaginado que Dominic possuísse talento algum.

—Não - respondeu a mulher a contra gosto. —Ainda não me disse que crime está investigando, nem por que devo responder a suas perguntas.

Passos soaram no corredor, detiveram-se por um instante e logo continuaram.

—Não, não o disse - admitiu Pitt. —Aqui ocorreu algo que causou uma profunda comoção no Dominic, tão profunda, de fato, que esteve à beira do desespero. O que foi?

A mulher vacilou. A indecisão se refletia em seu olhar.

Pitt aguardou.

—Uma de nós morreu - disse ela por fim. —Nos afetou muito a todos. Era jovem, e lhe tínhamos muito carinho.

—Estava Dominic apaixonado por ela?

Tampouco esta vez respondeu imediatamente. Pitt sabia que sopesava as palavras, tentando decidir que parte da verdade podia ocultar para não conduzi-lo a outras questões, muito mais secretas.

—Sim - disse ela, ainda olhando-o no rosto. Tinha uns olhos extraordinários, azuis e abrasadoramente claros.

Pitt acreditou, mas estava seguro de que sua resposta encobria algo inexpresado e mais importante.

—Como morreu? - Não sabia se ela responderia a verdade, mas sempre podia perguntar aos vizinhos ou fazer indagações na delegacia de polícia do distrito. Teriam o expediente do caso arquivado. —Como se chamava?

A indignação da mulher ficou patente na tensão de seu rosto e rigidez de seus ombros e costas.

—Para que quer sabê-lo? Que relação pode ter com sua atual investigação? Era uma moça e triste, e não fez mal a ninguém. Deixe-a descansar em paz.

Pitt percebeu em sua voz um tom trágico e defensivo. Se ela não o contasse, é claro que o investigaria. Não seria difícil averiguá-lo; simplesmente requereria tempo.

- Produziu-se outra tragédia, senhorita Morgan - explicou Pitt com gravidade. —morreu outra jovem. - Viu avermelhar sua pele, como se a tivesse golpeado. Parecia incapaz de dar crédito à revelação do Pitt.

—Outra... Como? - A mulher o olhou fixamente. —O que... o que aconteceu? Custa-me acreditar que... - Mas sem dúvida acreditava. Estava muito claro.

—Acredito que é você quem deveria me contar o que ocorreu aqui.

—Já o disse. - Fechou os punhos. —Morreu.

—Qual foi a causa? - insistiu Pitt. —Se não me disser isso, senhorita Morgan, averiguarei-o de todo modo por mediação da polícia do distrito, do médico, da paróquia...

—Morreu de uma overdose de láudano - respondeu a mulher, colérica. —Tomava para dormir, e uma noite tomou muito.

—Que idade tinha?

—Vinte anos. - A mulher o desafiou a achar sentido a isso, mas até enquanto pronunciava essas palavras, era já consciente de sua derrota.

—Por que? - perguntou Pitt. —Por favor, senhorita Morgan, não se faça rogar. Tenho que conhecer a resposta. Essa atitude serve só para alargá-lo, mas o resultado será o mesmo de um modo ou outro. Ela se voltou para o quadro e examinou por um momento as flores e folhas de vivas cores. Quando por fim se decidiu a responder, falou com voz grave e intensa pela emoção.

—Naquela época pensávamos que o amor, para ser real, para manifestar-se em sua forma mais elevada e nobre, devia ser livre, sem limites nem restrições, sem...sem nenhum freio antinatural a sua vontade e autenticidade. Eu ainda acredito.

Pitt aguardou. Foram a sua mente comentários construtivos a respeito, mas ali não tinham lugar.

—Tentamos pôr em prática essa idéia - prosseguiu ela, branca como o trigo cedo, o sol refletindo-se em seu cabelo. —Nem todos possuíamos a fortaleza suficiente. O amor deveria ser como uma mariposa; se a pessoa fechar a mão em torno dela, o prende. Apertou o punho. Tinha umas mãos assombrosamente robustas, os dedos longos, manchados de pintura verde. Abriu de novo a mão com um gesto brusco. —Se, se amar a alguém, terá que estar preparado para deixá-lo partir. - Olhou ao Pitt com atitude desafiante, esperando alguma observação crítica.

—Abandonaria você a seu filho se lhe aborrecesse ou se convertesse em um estorvo para o que queria fazer? - perguntou Pitt.

—Não, claro que não! - respondeu ela com aspereza. —Isso é completamente diferente.

—Não me parece - asseverou Pitt com seriedade. —O prazer consiste em ir e vir um a seu desejo. O amor consiste em fazer o que às vezes é difícil, custoso quanto a tempo e emoção, por outra pessoa, e descobrir que se assim aumentar a felicidade do outro, aumenta também a própria.

—Isso soa muito grandilocuente - disse ela. —Imagino que está casado.

—Desaprova o matrimônio?

—Não o considero necessário.

—Que condescendente!

De repente ela pôs-se a rir, e a risada iluminou todo seu rosto, suavizou as angulosas feições e realçou sua beleza. Com igual rapidez, desapareceu, deixando-a como antes, triste, na defensiva.

—Para falar a verdade, acredito que é necessário para algumas pessoas - admitiu ela a seu pesar. —Para Jenny, por exemplo. Carecia da força que se requer para deixar partir ao ser amado quando chega a hora.

—Tirou-se a vida... - conjeturou Pitt.

A mulher voltou a desviar o olhar.

—Possivelmente. Ninguém sabe com certeza.

—Dominic sabia com certeza, e por isso se sentiu culpado e partiu daqui em um estado de desespero. —Pitt tinha a convicção de que essa era a verdade, ou algo muito aproximado. —Não estava disposto a casar-se com ela?

—Não podia casar-se com as duas! - replicou ela com desdém, voltando-se para ele, iracunda. —Jenny era incapaz de compartilhar. Ficou... - De novo se interrompeu e olhou em outra direção.

—Grávida - acrescentou Pitt, terminando a frase por ela. —Começou a sentir-se vulnerável. Não podia conformar-se com alguém que ia quando lhe tinha vontade e se ia com igual desconsideração e egoísmo. - Pensou por um momento em Charlotte com transbordante ternura. —Começou a compreender que o amor é uma responsabilidade, que devem fazer-se promessas e as cumprir, que terá que estar quando o outro nos necessita, gostemos ou não. Essa moça amadureceu.... e outros

não. Vocês seguiam jogando. Pobre Jenny.

—Isso é injusto! - protestou a mulher, irada. —Você não estava aqui. Não sabe nada a respeito.

—Sei que Jenny está morta, porque acaba de me dizer isso e sei que Dominic viu a magnitude de sua culpa, porque sei aonde foi quando partiu daqui.

—Aonde foi? - perguntou ela. —Está bem?

—Importa-lhe? - respondeu Pitt, arqueando as sobrancelhas.

Ela jogou a mão atrás como se desejasse lhe bater, mas não se atrevesse. Pitt se perguntou se tinha sido ela a outra mulher. Supôs que não.

—Esteve aqui alguma vez Unity Bellwood? - inquiriu.

A julgar pelo rosto inexpressivo da mulher, o nome não lhe era familiar.

—Nunca ouvi falar dela. É a moça que morreu desta vez? - A seu pesar, sua voz denotou dor, e talvez culpa.

—Sim. Só que ela não se tirou a vida, assassinaram-na. Também estava grávida.

A mulher baixou a vista.

—Sinto muito. Apostaria tudo o que tenho que Dominic nunca faria uma coisa assim.

—Possivelmente não o fez ele. Não sei. Obrigado por sua sinceridade.

—Não tive outra opção - respondeu ela entre dentes.

Pitt sorriu. Era um sorriso amplo de humor e vitória.

Era já tarde quando chegou a casa. Tellman lhe tinha contado o pouco que tinha averiguado por sua conta em Hall Road, e tudo coincidia pouco mais ou menos com o que Pitt tinha suposto. Um grupo de pessoas tinha iniciado a busca de uma liberdade em que, conforme achavam com absoluta convicção, proporcionaria-lhes a felicidade. Em troca, só lhes tinha ocasionado confusão e experiências trágicas. Com o tempo, tinham mudado ao menos alguns de seus hábitos, mas resistiam a admitir o engano ou a renunciar a seu sonho. Mal mencionaram a Jenny. Tellman obteve informação sobre ela de uma das crianças, um menino de dez anos com uma atitude muito menos cautelosa que outros e a quem lhe fascinavam as histórias acidentadas do distrito londrino do Whitechapel, tanto que em troca de alguma delas não tinha tido inconveniente em revelar uns quantos dados sobre as pessoas que viviam na casa, para ele em extremo aborrecida.

—Imoral - censurou Tellman. —Deveria saber melhor o que fazem. Não são pobres nem ignorantes. - Sentia grande compaixão pelos anciões e os doentes, pelos muito pobres, mas procurava não exteriorizar isso. Em troca, daqueles que considerava seus superiores, esperava elevados princípios, e quando não davam a talha, inspiravam-lhe um profundo desprezo. —Gente sem respeito, sem decência.

Durante toda a viagem de trem, Pitt se perguntou o que contaria a Charlotte. Ela sem dúvida lhe perguntaria. Demonstraria um intenso interesse por algo relacionado a Dominic. A conduta deste com Jenny tinha roçado ao indesculpável. O fato de que ela se acreditou capaz de compartilhá-lo com outra mulher não o justificava.

Dominic lhe dobrava a idade. Tinha estado casado com Sarah, e sabia de sobra que tal grau de liberdade seria quase com toda certeza inviável. comportou-se com a mesma frivolidade e negligência que quando vivia no Cater Street, saciando seus apetites a menor ocasião e não parando para pensar mais que no presente.

Podiam mudar realmente as pessoas? Certamente era possível. Mas era provável?

Pitt sentiu uma fria amargura em seu interior, porque parte dele desejava acreditar que voltava a achar-se com o Dominic de sempre, o Dominic que tinha conhecido em outro tempo. E Dominic tinha sem dúvida mais probabilidades de ser culpado que Ramsay Parmenter, o seco, ascético, intelectual e atormentado Ramsay, acossado pela dúvida, obcecado alcançando a imortalidade escrevendo uma abstrusa interpretação da teologia.

Tellman mal falou durante o trajeto. Tinha visto uma pequena amostra de um mundo que o alarmava, e precisava meditar sobre isso.

Assim que Pitt cruzou a porta, Charlotte foi perguntar lhe.

—Sim - respondeu.

Pitt tirou o casaco e seguiu Charlotte até o salão. Ela estava tão preocupada que não o tocou, deixando-o que pendurasse ele mesmo o casaco e o cachecol.

—E então? - Charlotte se voltou para ele. —O que se passou? O que averiguou?

—Acabo de chegar de uma longa viajem e gostaria de tomar uma xícara de chá - respondeu ele, aborrecido por sua impaciência. Seu antigo afeto pelo Dominic continuava tão vivo como sempre.

Charlotte pareceu surpreendida.

—Gracie está preparando-o. Trará-o em seguida. Quer também comer algo? Há pão recém feito e cordeiro frio.

—Não. Obrigado. - Pitt estava sendo descortês, e sabia. O que devia dizer a respeito de Dominic? Se mentisse, e Dominic era o culpado, mais tarde lhe reprovaria sua insinceridade. —Encontrei a casa onde viveu Dominic antes de instalar-se no Icehouse Wood.

—Icehouse Wood? - repetiu Charlotte. —Não me tinha falado do Icehouse Wood. Onde é?

—No Chislehurst. Não é um lugar agradável. Poderia sê-lo, mas está muito descuidado - disse Pitt, e se sentou junto ao fogo, estirando as pernas e deixando-a ela de pé.

Charlotte o olhou fixamente.

—Thomas! O que acontece? O que não vai dizer me?

Pitt estava muito atendido pela ira e a indecisão para sorrir pela ilógica pergunta de Charlotte.

—O que averiguou sobre o Dominic? - Sua voz se crispou, e Pitt percebeu temor nela.

Voltou-se para olhá-la. Era o final do dia, e também ela estava cansada. Mal tinha cor no rosto e várias mechas de cabelo se desprenderam das forquilhas. A preocupação não lhe tinha permitido arrumar-se um pouco para receber ao Pitt. A ansiedade ficava patente em seu rosto, nas rugas que nasciam nas comissuras de seus olhos, o olhar sombrio, a boca tensa.

Pitt a amava muito para ser imune a isso. Até enquanto respondia, desprezou uma parte de si.

—Viveu em uma mansão da Maida Vale com várias pessoas mais. Acreditavam no amor sem compromissos, em que cada um atuasse a seu desejo. Dominic tinha duas amantes. Uma delas era uma moça chamada Jenny, que contava vinte anos... - Pitt percebeu uma careta de pesar no semblante de Charlotte, mas a passou por cima. —Deixou-a grávida. Ela se sentiu assustada e sozinha. Já não era capaz de compartilhá-lo com a outra. Dominic não quis escolher entre elas. A moça tomou uma overdose de láudano e se tirou a vida. Dominic compreendeu que ele era o culpado, e fugiu desesperado... ao Icehouse Wood.... que é onde Ramsay o achou, a um passo do suicídio.

—Pobre Dominic - murmurou Charlotte. —Devia sentir-se como se não ficasse nada na vida.

—Bom, para a Jenny e seu filho... não ficava nada! - replicou Pitt imediatamente, incapaz já de conter a raiva. Aquela tragédia horrível e inútil tinha repleto sua paciência. E agora Dominic vestia o colarinho clerical e enganava a anciãs como Alice Cadwaller, convencendo as de que era um pastor para os fracos e os inocentes. Para não falar de Vita Parmenter, que pelo visto o considerava o firme sustento e a consciência da casa, e só Deus sabia o que tinha sentido Unity Bellwood por ele. E agora ante seus próprios olhos Charlotte, nada menos que Charlotte, que o tinha conhecido no passado, que tinha presenciado o dano que tinha feito a sua própria irmã, em lugar de desprezá-lo e compadecer-se de Jenny, dizia: "Pobre Dominic."

—Esse foi um comentário espantoso, Thomas! - disse Charlotte, lívida e trêmula.

Gracie abriu a porta com a bandeja do chá e nenhum deles se deu conta.

—Foi uma ação espantosa. - Pitt já não podia retratar-se. —Não lhe queria dizer isso mas me perguntou isso.

—Sim, sim queria! - acusou Charlotte com voz baixa e doída. —Queria que soubesse que Dominic fez algo tão desprezível que não poderia perdoar-lhe. - Era verdade. Pitt desejava que soubesse. Desejava destruir a idéia falsa e idealizada que formara dele e obrigá-la a vê-lo como ele o via: real, frívolo, egoísta, atormentado pela culpa... mas durante quanto tempo? O tempo necessário para mudar... ou não?

Gracie deixou a bandeja na mesa. Parecia uma menina assustada. Aquele era o único lar que conhecia, e não gostava de presenciar brigas ali.

Charlotte se voltou para ela.

—Obrigada. Melhor será que o sirva você mesma. Por desgraça, recebemos uma desagradável noticia a respeito de meu cunhado, o senhor Dominic Corde. Algo que preferiria que não fosse verdade, mas aparerentemente o é.

—Ah, sinto-o - disse Gracie com um nó na garganta.

Charlotte tentou lhe sorrir mas não o conseguiu.

—Em realidade, não deveria estar tão alterada. Conheço-o a muito tempo, e não deveria me surpreender. - Observou a Gracie servir o chá e, depois de um instante de hesitação, levou uma xícara a Pitt.

—Obrigado - aceitou ele.

Gracie deixou a xícara de Charlotte perto dela e partiu.

—Provavelmente pensa que Dominic era o pai do menino de Unity e que a matou porque ela o chantageava - disse Charlotte sem contemplações.

—Não tem direito a dizer uma coisa assim - respondeu Pitt, doído pelo injusto da recriminação. —Não cheguei a essa conclusão nem a nenhuma que lhe pareça. Não tenho prova alguma que demonstre que um deles matou Unity, nem esperança de achar mais dados úteis sobre o fato em si. Quão único posso fazer é averiguar algo mais sobre cada um deles e confiar em que surja alguma informação que os delate ou exima. O que deveria fazer, em sua opinião? Dar por suposta a inocência do Dominic?

Charlotte desviou o olhar.

—Não, claro que não. Não me indigna que tenha descoberto isso, mas sim lhe cause satisfação. Quero que lhe produza a mesma dor e a mesma tristeza que a mim. - Permanecia de pé com as costas rígidas e a cabeça volta para a janela, atrás de cujos vidros se via só a escuridão da noite.

Pitt se sentiu excluído, porque compreendia a Charlotte, e entretanto uma fria e lúgubre vozinha em seu interior continuava desejando que Dominic fosse culpado.

Essa noite dormiu mau e na manhã seguinte despertou já tarde.

Desceu e achou ao Tellman tomando chá na cozinha e conversando com Gracie. Assim que viu aparecer ao Pitt, Tellman ficou em pé, ligeiramente ruborizado.

—Pode acabar-lhe tranqüilamente - disse Pitt com tom cortante. —Não tenho intenção de partir sem tomar o café da manhã. Onde está a senhora Pitt?

—Vamos, senhor - respondeu Gracie, observando-o com atenção. —Ordenando a roupa branca.

—Ah. Obrigado. - sentou-se à mesa da cozinha.

Gracie colocou ante ele uma tigela de flocos de aveia e pôs uma frigideira no fogo para lhe esquentar uns arenques defumados. Pitt desejou pronunciar algumas palavras para reconfortá-la, para lhe dar a entender que aquele mal-estar na casa era só passageiro. Mas não lhe ocorreu nada. E meia hora depois se foi sem fazer comentário algum a respeito, nem subir para falar com o Charlotte.

Encarregou ao Tellman que solicitasse informação sobre o passado de Mallory Parmenter, sua conversão ao catolicismo e seus hábitos e relações pessoais.

Ele se dedicou a se aprofundar no passado do Unity Bellwood, e passou um sábado lamentável interrompendo o descanso de pessoas que a tinham conhecido em um plano mais pessoal. Averiguou seu anterior domicílio por meio de Ramsay Parmenter, uma casa do Bloomsbury situada a menos de quinze minutos da sua. Nesse momento se dirigia para ali com passo rápido e enérgico, cruzando com vizinhos sem reconhecê-los, consumido ainda por sua própria cólera e amargura.

A casa guardava certa semelhança com a da Maida Vale. Havia quadros semelhantes nas paredes e uma grande quantidade de livros dentro e fora de caixas, percebendo um deliberado esforço de mostrar um ar diferente. Recebeu-o sem o menor entusiasmo um homem barbudo de uns cinqüenta anos que admitiu que Unity Bellwood tinha vivido ali até fazia três ou quatro meses e partiu para ocupar um posto de trabalho do qual nada sabia.

—Quanto tempo viveu aqui? - perguntou Pitt. Não estava disposto a intimidar-se pelo simples fato de ser um aborrecimento e estar perturbando a paz de uma tranqüila manhã de sábado, em que a pessoa desejava relaxar e não ser importunada por desconhecidos.

—Dois anos - respondeu o homem. —Se alojava em um quarto do piso de cima. Agora a ocupa um agradável casal do Leicestershire. Unity Bellwood já não tem direito a ele, e não resta nenhum outro livre. - Olhou ao Pitt com expressão hostil. Sua opinião de Unity era evidente.

Pitt insistiu até que o homem perdeu a paciência, e logo procedeu a falar com os outros inquilinos que estavam ali nesse momento, formando uma imagem de Unity

que acrescentava pouco ao que já sabia. Tinha sobressaído no terreno acadêmico, mas sua arrogância e paixão tinham causado veementes reações em outros. Quem a admirava o faziam de maneira incondicional, e consideravam sua morte uma perda tanto pessoal como pública. Tinha demonstrado uma grande coragem na luta contra a opressão de toda índole fruto da intolerância, da estreiteza de miras e das leis injustas, e contra essas limitações do espírito que pretendiam regulamentar as emoções e restringir a verdadeira liberdade de pensamento e idéias. Pitt ouviu nessas colocações o eco das palavras do Morgan sobre a nobreza do amor livre.

Em quem a aborrecia percebeu um vislumbre de inveja e medo. Temiam-na. Unity punha em tecido de julgamento quanto achavam saber e compreender. Representava uma ameaça para sua paz de espírito e um elemento perturbador para seu pensamento.

Detectou também em seus comentários, tanto os daqueles que a admiravam como os de quem a detestava, sólidas concordâncias quanto à tendência à manipulação de Unity, sua atração pelo poder e sua vontade de usá-lo, inclusive em próprio benefício.

Continuou com suas pesquisas até o anoitecer. Doía-lhe as costas, estava cansado, tinha fome, e não tinha descoberto nada que não tivesse podido deduzir da informação que já possuía. Não podia atrasar mais a volta a casa. Percorreu Gower Street, cruzou pelo Francis Street e Torrington Agrada, e seguiu adiante. Faziam-lhe mal os pés. Possivelmente por isso caminhava cada vez mais devagar.

Notava-se um alto indicador de umidade no ambiente e uma tênue bruma apagava a lua nova sobre os ramos desfolhados das árvores. Possivelmente ficassem ainda por ver algumas geadas nessa primavera. O que diria a Charlotte? Essa manhã estava tão furiosa que o tinha evitado para não ter que falar com ele.

Tanto apreciava ao Dominic... inclusive agora? Dominic formava parte de um passado que Pitt nunca compartilharia, porque tinha tido lugar antes de que ele e Charlotte se conhecessem. Esse passado pertencia à forma de vida para a que ela tinha nascido, com folga econômica e lindos vestidos, não gostava muito dos herdados da tia Vespasia ou presenteados por Emily. Era um mundo de festas e bailes, noitadas e estréias teatrais. Um mundo em que todos iam acima e abaixo com carruagem própria, em lugar de ter que tomar um cabriolé de aluguel, como eles, nas raras ocasiões em que saíam de noite. Era alternar nos círculos elegantes sem ver-se obrigada a dar explicações, a ocultar o fato de que seu marido trabalhava para ganhar a vida, de que contava só com uma criada interna. Era a vida das classes ociosas.

Era o mundo da inatividade, onde a pessoa procurava ocupações intrascendentes com que encher seu tempo e ao final do dia ainda se perguntava qual era a causa de sua insatisfação. Inclusive Dominic se cansou disso e decidido, com paixão, dedicar sua vida a algo difícil e absorvente. Isso era o que Charlotte admirava nele, e não seu atraente rosto, seu encanto ou sua posição social. Dominic carecia de posição social.

Charlotte havia dito: "Pobre Dominic." Desejava Pitt lhe ouvir dizer "Pobre Thomas" nesse tom?

Jamais. Ante a idéia lhe revolvia o estômago.

Dobrou a esquina do Keppel Street. Estava já perto de casa. Apertou o passo. Chegou e abriu a porta. Faria como se nada tivesse ocorrido. As luzes estavam acesas. Não ouviu som algum. Não podia ser que Charlotte tivesse saído. Ou sim? Engoliu a saliva. Desejou chamá-la a gritos. Notou crescer o pânico em seu interior. Aquilo era ridículo. Pitt tinha agido mal alegrando-se da desgraça do Dominic, mas não era um pecado tão grave como para...

Ouviu risadas na cozinha, risadas femininas, despreocupadas e alegres. Avançou a grandes passadas pelo corredor, pisando com força o linóleo, e abriu a porta da cozinha. Charlotte estava de pé junto à Cuba da farinha, perto do aparador, e Gracie se achava ao lado da pia, sustentando uma bandeja com massas. Havia leite derramado no chão. Pitt olhou a desordem, depois à Gracie e por último para Charlotte.

—Não pise! - advertiu ela. —Escorregará. Não se preocupe, fica mais leite. Isso é só meio litro. Já sei que parece um desastre, mas não é tão grave.

Gracie deixou a bandeja com as massas e pegou um trapo. Charlotte fez como uma criada e a escorreu. Logo começou a limpar ao mesmo tempo que olhava ao Pitt e espalhava o leite em círculos mais amplos.

—Deve estar cansado. Comeu algo?

—Não.

—Quer uns ovos mexidos? Tenho leite suficiente para isso.... acredito. Possivelmente seria melhor uma omelete. Posso prepará-la com água. E tenho que fazer uma confissão.

Pitt se sentou, procurando não estorvar os movimentos da criada com os pés.

—Uma confissão? - repetiu Pitt, tentando aparentar despreocupação, dissimular seu temor.

Charlotte fixou a vista na criada para guiá-la pelo caminho correto.

—Daniel rasgou um lençol com o pé - informou Charlotte. —Examinei-os um por um. Estão todos muito gastos. comprei quatro pares de lençóis novos, e as correspondentes fronhas de travesseiro. Dois pares para nós, um par para o Daniel e outro par para a Jemima. - Ergueu a vista para ver a reação do Pitt.

Invadiu em Pitt uma imensa sensação de alívio. Não pôde evitar de sorrir, apesar de não ser essa sua intenção.

—Excelente! - Nem sequer lhe importava o que houvessem custado. —Bem feito. São de linho?

Charlotte continuava observando-o com cautela.

—Sim.... isso temo. De linho irlandês. Encontrei-os de oferta.

—Melhor ainda. Sim, quero uma omelete. E há pepinos japoneses?

—Sim, claro. - Charlotte sorriu. —Nunca fico sem pepinos japoneses. Não me atreveria - acrescentou entre dentes.

—Assim tem que ser. - Pitt tratou de falar com seriedade, mas estava muito contente para isso. Quase desejava pôr-se a rir, e só porque o que possuía era de um valor inestimável. A felicidade não estribava em apoderar-se do que um desejava muito, como achava Morgan, mas em ter consciência do valor infinito do que alguém possuía, em ser capaz de contemplá-lo com gratidão e júbilo.

Ao cabo de um instante, reiterou. —Nunca fique sem pepinos japoneses.

Ela o olhou com os olhos entreabertos e sorriu.

Naquele domingo John Cornwallis foi convidado de novo para jantar em casa do bispo Underhill. Não considerou sequer a possibilidade de negar-se a ir. Conhecia o motivo daquele convite. Tinha que ver única e exclusivamente com a morte de Unity Bellwood. O bispo queria saber se, se tinha produzido algum avanço... e insistir com Cornwallis a evitar o escândalo a toda custa.

Cornwallis não desejava propiciar o descrédito da Igreja, nem sequer entre aqueles que, por ignorância ou falta de sinceridade, julgavam a mensagem dos Evangelhos pela incapacidade de um de seus servidores de respeitar não já as elevadas leis de Deus, mas inclusive as leis ordinárias da nação. Mas tampouco ia consentir que se cometesse uma transgressão verdadeira a fim de ocultar outra hipotética. Não tinha nada mais que dizer ao bispo Underhill. Teria enviado uma cortês nota de desculpa se não fosse porque queria ir a esse jantar, ver outra vez à esposa do bispo. Se recusava o convite, Isadora Underhill possivelmente pensasse que ele via o interesse pessoal do bispo como o interesse dela, e que ela participava também da covardia de seu marido. Cornwallis não tinha pensado isso nem por um instante. A vergonha que tinha advertido nos olhos da Isadora o tinha impressionado, sua impotência para desvincular-se da postura do bispo sem incorrer em uma conduta desleal.

Cornwallis se vestiu com supremo esmero. Desejava oferecer o melhor aspecto possível. Disse-se que o fazia porque o bispo era de certo modo o inimigo. Cornwallis lutava por uma causa distinta. Quando se entrava em combate a bordo de um navio, içavam-se no mastro todas as bandeiras, as cores nacionais ondeando ao vento. Não devia ver-se nenhuma só bolinha de pó na sarja negra de sua jaqueta, nem no peitilho ou o pescoço brancos de sua camisa. As abotoaduras deviam reluzir. Nenhuma só mancha devia empanar o brilho de suas botas. Apresentou-se exatamente à hora acordada, nem cinco minutos antes nem cinco minutos depois. Abriu-lhe a porta o lacaio, que o conduziu até o salão principal, onde o aguardava Isadora. Ela exibia um vestido azul muito escuro, suave como a noite no mar. Cornwallis recordava ter visto esse tipo de céu só no Caribe depois do crepúsculo. Isadora pareceu agradada de vê-lo. Sorria.

—Sinto muito, senhor Cornwallis, certo assunto demorou ao bispo, mas não demorará para chegar, meia hora no máximo.

Cornwallis recebeu encantado a notícia. Seu ânimo cobrou asas imediatamente. Mas devia evitar que isso se refletisse em seu semblante. O que devia dizer? O que podia soar sincero e ao mesmo tempo dentro dos limites da cortesia, sem excessivo descaramento? Tinha que dizer algo!

—Estou certo de que pouco importa. - Era isso um comentário estúpido? Por ele, ser o bispo não aparecesse, tanto melhor. —Não... não tenho nada novo que lhe contar. por agora é tudo... pouco sólido.

—Imagino - disse ela. Seu rosto se escureceu. —Acredita que chegarão a achar provas concludentes?

—Não sei. - Cornwallis sabia o que preocupava a Isadora. Ou ao menos achava saber. Uma sombra penderia sempre sobre o Parmenter, sua culpa não provada nem desmentida. Sempre se suspeitaria dele. Era um destino quase pior que uma sentença real de culpa, porque despertaria além disso indignação, a sensação de que tinha conseguido enganar à justiça. Acrescentou, —Mas se alguém pode resolvê-lo, esse é Pitt.

—Você tem um elevado conceito dele, não é? - disse ela com um sorriso em que se percebia um indício de desassossego.

—Sim, com efeito - respondeu Cornwallis com plena convicção.

—Espero que seja possível demonstrar o ocorrido. Nem sempre o é. – Isadora lançou uma olhada para os vidros que davam ao jardim, onde a luz começava a desvanecer-se, projetando escuras sombras debaixo dos emaranhados ramos das árvores, apesar de ainda não ter folhas. —Gostaria de dar um passeio?

—Sim - respondeu Cornwallis sem vacilar. Adorava os jardins no crepúsculo. —Sim, eu gostaria muito.

Isadora o guiou, detendo-se ante a porta para permitir que ele a abrisse, e saindo logo ao agradável ar da noite, que se refrescava rapidamente depois de um dia temperado. Mas se sentiu frio através do fino tecido do vestido, não lhe deu importância.

—Por desgraça, não há muito que ver - comentou Isadora enquanto caminhavam pela erva. —Só começaram a florescer os açafrões da primavera, ali, sob os olmos. - Assinalou para o extremo do jardim, e Cornwallis vislumbrou sobre a terra nua uma imprecisa mancha de cores branca, violeta e dourada. —Acredito que lhe despertei falsas esperanças. Mas pode cheirar os narcisos.

Certamente os cheirava. Uma delicada doçura flutuava no ar, limpo e penetrante como só pode sê-lo o aroma das flores brancas.

—Eu adoro o passar do dia à noite - disse Cornwallis, jogando atrás a cabeça para contemplar o céu. —Tudo entre o pôr-do-sol e a escuridão. Fica tanto lugar para a imaginação. As coisas se vêem muito distintas a como são sob a luz do dia. Percebe-se uma beleza mais deliciosa e se toma consciência de quão fugaz é tudo, o efêmero. Tudo toma um valor imensamente superior, e isso vai acompanhado de uma sensação de pesar, uma compreensão do tempo, e da perda, que realça tudo. - Estava trespassando umas tolices espantosas. Pela manhã, ao lembrar-se, morreria de vergonha. E entretanto era isso o que pensava, e não se deteve. —E ao amanhecer, desde que aparece o primeiro brilho no horizonte até que se estende a luz branca, limpa e fria da manhã, dissipando-as brumas nos campos, revelando o orvalho sobre todas as coisas, experimenta-se uma esperança irracional que não é possível explicar... nem sentir em nenhum outro momento. - de repente se interrompeu. Isadora devia pensar que era um tolo da cabeça aos pés. Não deveria ter aceitado em sair. Deveria ter ficado no salão, falando de trivialidades por pura cortesia até que chegasse o bispo e tentasse coagi-lo a deter o Ramsay Parmenter e conseguir que o declarassem demente.

—Observou que há muitas flores que cheiram melhor ao anoitecer? - perguntou Isadora, caminhando ainda um passo por diante dele, como se tampouco ela desejasse retornar ao quente e bem iluminado salão. —Se pudesse, viveria frente a um lago ou o mar, e todos os dias, ao entardecer, contemplaria a luz refletida em sua superfície. A terra consome a luz; a água a devolve. - voltou-se para ele.

Cornwallis viu o tênue resplendor de sua tez clara. —Deve ser maravilhoso ver amanhecer ou pôr-se o sol em alto mar. É como flutuar em um oceano de luz? Não me diga que não, por favor. Não se sente na metade do caminho do céu, ou parte dele?

Um amplo sorriso apareceu nos lábios do Cornwallis.

—Eu teria sido incapaz de expressá-lo com tão belas palavras, mas sim, essa é exatamente a sensação. A pessoa contempla as aves marinhas e acredita estar fazendo o mesmo que elas, como se as velas fossem asas.

—Sente muito sua falta? - perguntou Isadora. Sua voz surgiu da quase total escuridão, perto dele.

—Sim - respondeu Cornwallis com um sorriso. —E quando estava no mar, sentia falta do aroma da terra molhada, do sussurro das folhas das árvores agitadas pelo vento e das cores do outono. Possivelmente as pessoas possam o ter tudo, mas certamente não ao mesmo tempo.

Isadora deixou escapar uma comedida risada.

—Para isso existem as lembranças.

Agora caminhavam muito perto um do outro. Cornwallis notava a presença da Isadora junto a ele. Teria desejado tocá-la, lhe oferecer o braço, mas teria sido muito claro. Romperia a sutileza do momento. Para o poente a camada de nuvens se fechava cada vez mais. Cornwallis mal via Isadora, mas a percebia ainda com maior clareza.

De repente as luzes da casa resplandeceram sobre a erva. Alguém tinha aberto a janela. A silhueta do bispo se recortou contra a cor quente do salão, voltada para eles.

—Isadora! O que faz aí? Está escuro como boca de lobo.

—O que vai! - contradisse ela. —É o crepúsculo. - Seus olhos haviam se acostumado a crescente escuridão, e não tinha notado a mudança.

—Está escuro como boca de lobo! - repetiu o bispo, mal-humorado. —Não entendo como lhe ocorre levar aí nosso convidado a estas horas. Não há nada que ver. É quase uma falta de consideração de sua parte, querida.

Por alguma razão, a palavra "querida" fazia mais ofensiva a rudeza de suas palavras. Era muito evidente que sua única função era disfarçar a irritação que escondia o comentário. Cornwallis conteve sua irritação unicamente porque aquele homem era um bispo e se achavam em sua casa.... ou seu jardim, para ser mais exato.

—Foi minha culpa - declarou Cornwallis com voz clara. —Estava desfrutando do aroma das flores noturnas. Ainda não me habituei a sentir a terra sob meus pés.

—E onde costuma senti-la? - respondeu o bispo com aspereza.

Isadora afogou uma risada. Cornwallis a ouviu claramente, mas o bispo estava ainda muito longe para identificar com certeza o som.

—Vê-o? - disse a sua esposa com tom desafiante, confundindo a risada por um espirro. —Pegará um resfriado. Um comportamento francamente insensato e, se me permite dizê-lo, também caprichoso. Outros terão que cuidar de você e ocupar-se de suas responsabilidades. Entre imediatamente, por favor.

Cornwallis estava lívido. Alegrou-se de que seu rosto seguisse oculto pela escuridão.

—Costumo sentir a terra a muitas milhas de distância - respondeu quase entre dentes. —Expresso minhas desculpas por me ter aproveitado da bondade da senhora Underhill como anfitriã lhe pedindo que me concedesse o prazer de passear pelo jardim no crepúsculo. Temo que abusei de sua hospitalidade e causado sem querer uma situação perturbadora. Possivelmente deveria partir antes de danificar mais as coisas.

O bispo se viu obrigado a engolir a ira. Esse era o último de seus desejos. Nem sequer tinha abordado ainda o assunto que o tinha induzido a convidar ao Cornwallis, e menos ainda chegado a algum acordo satisfatório.

—Nem pensar nisso - se apressou a dizer, forçando-se a esboçar um enjoativo sorriso. —Estou seguro de que não se produziu prejuízo algum. Provavelmente me preocupo muito pela saúde de minha esposa. Um único espirro não é sintoma de nada. Foi uma estupidez de minha parte mencioná-lo. Esquecia o muito que um homem do mar deve sentir falta de algo como um jardim. Tendo-o sempre aí diante, uma pessoa nem se lembra de que existe. Por favor, entre para esquentar-se.

O bispo se afastou, deixando passar primeiro Isadora e depois Cornwallis, e depois fechou a porta. Inclusive, a seu pesar, fez o sacrifício de ceder ao Cornwallis a poltrona mais próxima ao fogo. Não lhe ocorreu oferecer-lhe a Isadora.

Sua preocupação por sua saúde não chegava até esse ponto.

Não trouxe à baila o assunto do Ramsay Parmenter até que virtualmente tinham terminado o segundo prato, uma excelente empanada de peixe.

—Como vai a seu homem com a tragédia de Brunswick Gardens? conseguiu já excluir a alguém das suspeitas? Cornwallis desejou poder lhe responder com maior convicção.

—Por desgraça não. É um caso no qual é em extremo difícil achar provas. -Tomou outro bocado de empanada. O rosto do bispo se escureceu.

—Qual é sua perita opinião em relação à possibilidade de que obtenha algum resultado antes de que a reputação do reverendo Parmenter fique danificada irreparavelmente? - exigiu saber.

—No momento, ninguém alheio à casa suspeita nada - respondeu Cornwallis com cautela.

—Mas disse que essa lamentável filha do reverendo está disposta a testemunhar contra ele - indicou o bispo. —Não demorará para fazer algum comentário desastroso, e então a notícia correrá como a pólvora. Pense no prejuízo que ocasionarão esses rumores. Como os desmentiremos se não houver provas? - Sua voz destilava medo. —Parecerá que aprovamos sua conduta. Dará a impressão de que tratamos de encobri-lo, de protege-lo das conseqüências de seu delito. Não, capitão Cornwallis, isso é inadmissível. Não pode assumir o risco de tal indecisão. - Estava sentado com as costas muito erguida. —Falo em nome da Igreja. Isto não é uma questão de autoridade; aqui devemos nos deixar reger pelos acontecimentos, não ser donos dos acontecimentos.

Aquele tom fez Isadora sentir vergonha alheia. Abriu a boca, mas não podia acrescentar nada que não piorasse mais ainda as coisas. Olhava alternativamente para Cornwallis e para seu marido.

Cornwallis não desejava encetar-se em uma discussão com o bispo, com nenhum bispo, e menos ainda com o marido de Isadora. Mas se pretendia comportar-se com honra, não ficava alternativa.

—Não atuarei até que conheça a verdade - disse com firmeza. —Se acusar ao Ramsay Parmenter e não posso demonstrar sua culpa ante um tribunal, ficará absolvido, e as suspeitas recairão no Mallory Parmenter ou Dominic Corde, sejam culpados ou não. E se encontro prova da culpa do Ramsay, não posso fazer nada a respeito.

—Não quero que o acuse, pelo amor de Deus! - replicou o bispo, irado, acotovelando-se na mesa. —Use o cérebro, homem! Isso seria catastrófico. Pense nas repercussões que teria sobre a Igreja. Sua obrigação consiste em achar provas morais de sua culpa, não provas físicas. Assim poderemos interná-lo em um manicômio onde não poderá fazer mal a ninguém e o atenderão com discrição e decoro. Sua família não sofrerá, e Corde pode continuar com sua carreira na Igreja, indubitavelmente prometedora, sem o insolúvel obstáculo que suporia sua implicação em semelhante escândalo. Quanto ao futuro do Mallory, não é nosso assunto; optou pela Igreja de Roma.

Revolveu-se o estômago de Cornwallis, e não pôde evitar que a repugnância se refletisse em seu rosto.

—Sou policial, não especialista em enfermidades mentais - declarou com extrema frieza. —Sou incapaz de discernir se um homem está ou não em seu são juízo. Só posso decidir se houver ou não prova suficientes para acusá-lo de determinado ato. E não sei se Ramsay Parmenter empurrou Unity Bellwood pela escada ou se foi outra pessoa. Enquanto não o averigúe, não estou em condições de opinar a respeito. Isso é assim, e você terá que aceitá-lo porque não há alternativa.

Deixou o garfo e a faca como se não fosse comer mais.

—Estou certo - disse o bispo lentamente, olhando-o no rosto —de que quando refletir com atenção sobre o assunto e veja as conseqüências que sua atitude pode conduzir à Igreja a que, conforme acredito, mostra certa lealdade, reconsiderará você a situação. - Fez um sinal ao lacaio que aguardava junto à porta. —Peters, retire os pratos e traga a carne.

Isadora fechou os olhos e respirou fundo. Tremiam-lhe as mãos. Deixou sua taça para não derramar o vinho.

Só em atenção a ela, Cornwallis continuou sentado à mesa até o final do jantar.

 

Na segunda-feira, aproximadamente uma hora depois do café da manhã, Dominic subia pela escada, aborrecido porque não achava seu canivete. Uma e outra vez, esquecia onde deixava as coisas. Devia ser fruto da tensão em que todos viviam. No meio da escada, ouviu uma gritaria procedente do gabinete do Ramsay. Não distinguia as palavras, mas reconheceu as vozes do Ramsay e Mallory, e a discussão era em extremo inflamada. Pelo visto, ambos cruzavam acusações e desmentidos. Quando Dominic chegava quase ao patamar, a porta do gabinete se abriu de par em par e Mallory saiu feito uma fúria. Fechou de uma portada. Estava vermelho de ira e tinha os lábios apertados em uma fina linha.

Dominic tentou passar ao largo, mas obviamente Mallory desejava continuar com a briga, e Dominic era um alvo perfeito.

—Não deveria estar visitando paroquianos ou algo assim? - perguntou. —Seria mais proveitoso que rondar pela casa tratando de consolar a minha mãe. A situação não melhorará pelo que você diga ou faça. - Arqueou exageradamente as sobrancelhas. —A menos, claro está, que se declare culpado da morte de Unity. Isso sim seria útil.

—Só temporariamente - replicou Dominic com tom cortante. Em algumas ocasiões Mallory o exasperava sobremaneira, como por exemplo nesse momento. Mallory se sentia muito superior por pertencer à "única fé verdadeira" e, entretanto, adotava atitudes muito mesquinhas e se deixava levar facilmente pela malícia. —Já que quase com toda segurança a polícia descobrirá a verdade cedo ou tarde. Pitt é muito competente. - Falou com desdém e se viu recompensado com a súbita palidez do Mallory. Pretendia assustá-lo. Uma parte dele achava que Mallory era responsável pela morte de Unity; em realidade, custava-lhe menos acreditar em sua culpa que na do Ramsay.

—Ah, sim! - disse Mallory com todo o sarcasmo que foi capaz de transmitir. —Me esquecia de que está aparentado com um policial. Por sua falecida esposa, não?

Uma estranha família para unir-se por via matrimonial. Não foi uma manobra muito acertada de cara a seu futuro profissional. Surpreende-me, vendo o ambicioso que é, e os esforços que faz para se congraçar com quem lhe convém. Achavam-se no alto da escada. Uma criada passou debaixo deles através do vestíbulo com uma arrumadeira e um balde de água. Dominic viu só sua touca de renda. Voltou-se outra vez para o Mallory.

—Casei-me com Sarah por amor - respondeu com voz equânime. —Isso ocorreu vários anos antes de que sua irmã se casasse com um policial. E sim, essa escolha foi uma raridade de sua parte. Mas Charlotte nunca agiu movida pelo desejo de melhorar sua posição social. Não espero que você seja capaz de entender isso.

—Tratando-se de uma família semelhante, só o amor poderia explicar esse matrimônio - observou Mallory. —Em todo caso, como ajudante que é, mais valeria que fosse fazer algo útil pela paróquia. Não há nada aqui do que eu não possa me ocupar melhor que você.

—Sériamente? - Dominic simulou surpresa. —E então por que não se ocupa de algo? Até o momento só o vi refugiar-se em seu quarto para estudar.

—Nos livros se encontram grandes verdades - respondeu Mallory com altivez.

—Não o duvido. E essas verdades de pouco servem se for nos livros onde permanecem - respondeu Dominic. —Agora sua família necessita consolo, lealdade e palavras tranqüilizadoras, não entrevistas de livros, por sábias ou verazes que sejam.

—Palavras tranqüilizadoras? - repetiu Mallory com aspereza. —Como vou tranqüilizá-los? - Em seus lábios apareceu um esforço de sorriso que não chegou a formar-se plenamente. —Dizendo-lhes que meu pai não matou Unity? Disso não estou seguro. Tomara o estivesse. Mas alguém a matou, e eu não fui. Suponho que foi você.... certamente quero pensar que foi você. - de repente uma nota de autêntico terror vibrou em sua voz. —Unity andava atrás de você com freqüência, sempre discutindo com você, zombando, fazendo comentários impertinentes e cruéis. - Meneou a cabeça em um gesto de assentimento. —mais de uma vez percebi os olhares que lhe dirigia. Sabia algo de você, e queria que se desse por aludido. Eu não sei nada de sua vida antes de que chegasse a esta casa, mas ela sim estava inteirada de algo.

Dominic notou que a cor desaparecia de seu próprio rosto, e que Mallory o via.

Nos olhos deste brilhou uma expressão de vitória.

—É você quem deve temer ao Pitt - acrescentou Mallory com tom triunfal. —Se for tão sagaz como você afirma, sem dúvida descobrirá o que sabia Unity de ti, fosse o que fosse.

—Dá a impressão de que isso te proporcionaria um grande prazer, Mall. - A voz de Clarice se interpôs entre eles da escada, uns degraus mais abaixo. Não a tinham ouvido subir apesar de não haver tapete. —Não é isso muito pouco cristão de sua parte? - Ela abriu muito os olhos, como se a pergunta fosse inocente.

Mallory se ruborizou, mais por indignação que por vergonha.

—Você possivelmente preferiria que fosse eu o culpado? - reprovou Mallory a sua irmã com voz crispada. —Isso lhe pareceria o mais conveniente, não é? Nem seu querido pai, que sempre está disposta a proteger, nem o ajudante que ele tirou Deus sabe de onde. Ao fim e ao cabo, eu só sou seu irmão. É isso o que melhor concorda com sua moralidade?

—Eu não ponho objeção alguma a que cria que o culpado foi Dominic - respondeu Clarice com serenidade. —Pode ser que seja uma opinião sincera, não sei. O que me incomoda é o prazer que isso lhe produz, a sensação de vitória por vê-lo ainda apanhado na escuridão e na tragédia. Não me tinha dado conta de que o odiava tanto.

—Eu... eu não o odeio! - protestou Mallory, mas de repente se sentia encurralado e falava na defensiva. —Essa é uma acusação monstruosa.... errônea... e... e falsa.

—Não, não é falsa - insistiu Clarice, chegando ao patamar. —Se tivesse visto seu rosto faz só um momento, não se incomodaria em desmenti-lo. Teme tanto as repercussões que o assunto possa ter em seu futuro que jogaria a culpa a qualquer um, e além disto lhe dá uma excelente oportunidade de te ressarcir do Dominic pelo fato de que Unity o achava mais atraente que a você.

Mallory soltou uma gargalhada, um som desagradável e entrecortado que não refletia verdadeiro humor, mas só um certo traço por algo que lhe produzia uma grande dor mas não pensava compartilhar com ninguém.

—Que néscia é, Clarice! - exclamou Mallory. —Acha-se muito esperta, e em realidade foi sempre uma néscia. Mantendo-se à margem e observando, acha que o vê tudo.... e não vê nada. Está cega à autêntica personalidade do Dominic. – O volume de sua voz aumentava cada vez mais. —Lhe perguntou alguma vez onde estava antes de vir aqui? Perguntou-lhe por sua esposa e por que decidiu unir-se à Igreja em sua idade, aos quarenta e cinco anos, e não quando correspondia? Alguma vez sentiu curiosidade?

Clarice empalideceu mas não afastou a vista do Mallory.

—Não me agrada tanto como a ti desenterrar a angústia e as fraquezas passadas de outros - respondeu sem pestanejar. —Nem sequer pensei jamais nisso. - Era mentira. Dominic o via em seu olhar, como também via a dor que lhe causava. Até esse momento nunca tinha notado a menor vulnerabilidade em Clarice. Não lhe tinha ocorrido sequer que, atrás das lealdades familiares e o disparatado humor que a caracterizava, escondesse-se uma mulher capaz de tais sentimentos.

—Não acredito em você - disse Mallory com tom terminante. —Tão desesperado é seu desejo de que o culpado seja qualquer menos nosso pai, que por força pensou também no Dominic.

—Pensei em todos - concedeu Clarice com calma. —Mas basicamente pensei em como vamos agüentar quando descobrirmos a verdade. Como trataremos a essa pessoa? Como nos trataremos mutuamente? Como repararemos tudo aquilo que pensamos injustamente, que dissemos e já não podemos retirar nem esquecer? - Enrugou a fronte. —Como viveremos adiante com a consciência do que vimos os uns nos outros ao longo desta semana, atitudes horrendas, interessadas e covardes, que entretanto antes nunca se puseram de manifesto? Agora o conheço melhor do que desejaria conhecê-lo, Mau, e eu não gosto absolutamente.

Mallory estava furioso, mas sobre tudo doído. Procurou algo que dizer para justificar-se, mas não achou nada convincente.

Clarice deve ter percebido a dor de seu irmão.

—Isto ainda não terminou - disse, dando de ombros. —Sempre há a possibilidade de que mude... se lhe propuser-se isso. No mínimo.... a possibilidade existe.

—Eu não desejo que haja um culpado - disse Mallory, tenso e ruborizado. —Mas devo confrontar a verdade. A confissão e o arrependimento são o único caminho. Consta-me que não a matei, assim que o culpado tem que ser Dominic ou nosso pai... ou você. E por que não foi você matá-la?

—Não tinha nenhum motivo para fazê-lo. - Clarice baixou a vista, e a confusão e o medo mudaram seu semblante. —Me deixa passar, por favor? Está no meio, e quero ir ver papai.

—Para que? - perguntou Mallory. —Não pode ajudá-lo. E vale mais que não entre aí para lhe dizer mentiras piedosas. Ao final, servem só para piorar as coisas. de repente Clarice perdeu a paciência e se voltou para o Mallory feita uma fúria.

—Só vou dizer lhe que o quero! É uma lástima que você seja incapaz disso. Se pudesse fazê-lo, seria muito mais útil para todos.

Ao dar meia volta, golpeou o cotovelo com o poste do alto da escada. Alheia a isso, cruzou o patamar e percorreu o corredor até a porta do gabinete. Abriu sem bater e entrou.

—Talvez seja melhor que vá ler outro livro - disse Dominic com acrimonia. - Experimenta com a Bíblia. Busca, por exemplo, a passagem onde Deus anuncia: "Um mandamento novo lhes dou, que se amem os uns aos outros." - E a seguir desceu para o vestíbulo.

Ali achou Vita, que saía do salão da manhã com um vaso de barro de jacintos nas mãos. Vita se deteve frente a ele, lhe dirigindo um olhar firme e escrutinador. Dominic supôs que tinha ouvido parte da discussão, no mínimo ao subir de volume as vozes.

—Estavam murchando-se aí dentro - explicou Vita por dizer algo, sem olhar aos jacintos. —Imagino que se deve ao calor do lugar. pensei em devolvê-las à estufa por uns dias. Possivelmente lhes faça bem a mudança.

—Permite-me que a leve? - ofereceu Dominic.

Vita lhe entregou o vaso de barro, e entraram os dois na estufa. Ela fechou a porta e o guiou até o fundo, onde havia um banco com outros vasos de barro de flores. Dominic deixou ali os jacintos.

—Durante quanto tempo vai prolongar-se esta situação? perguntou ela em um sussurro. Parecia à beira do pranto, como se só um supremo esforço lhe permitisse conter-se. —Isto está dividindo à família, Dominic.

—Sei. - Dominic desejava poder ajudar. Percebia no ar a dor e o medo com igual nitidez que o aroma dos lírios.

—Discutia você com Mallory, não é verdade? - disse Vita com a vista fixa nas flores.

—Sim. Mas não era nada importante. Simplesmente nos deixamos arrastar pelo nervosismo.

Ela se voltou e lhe sorriu, mas em seu semblante se percebia uma expressão reprovadora.

—É você muito considerado, Dominic - disse com delicadeza. —Mas me consta que isso não é verdade. Não tente me proteger. Dou-me perfeita conta do que está nos ocorrendo. Tememos à polícia, tememo-nos uns aos outros.... tememos descobrir algo que mude nosso mundo. - Fechou os olhos e prosseguiu com as pálpebras apertadas e a voz trêmula. —Se iniciou algo que não podemos deter, que não podemos controlar, e nenhum de nós vê ainda o final. Às vezes sinto tal medo que tenho a impressão de que me vai parar o coração de um momento a outro.

O que podia Dominic dizer ou fazer que não piorasse as coisas, nem soasse estúpido ou insensível, nem oferecesse um falso consolo que a nenhum dos dois servia?

—Vita... - Dominic a chamou por seu nome de batismo sem dar-se conta, —só uma coisa pode fazer-se. Viver cada momento tal como se apresente da melhor maneira possível. Comportar-se com honradez e amabilidade, e ficar em mãos de Deus confiando em que ao final sejamos capazes de suportar o desenlace.

Vita o olhou fixamente.

—Seremos, Dominic? Acredito que Ramsay sofre uma espécie de crise nervosa. - Engoliu a saliva. —Às vezes é o homem a quem estamos acostumados, paciente e sereno, e tão razoável que... quase parece aborrecido. - estremeceu.—E de repente perde o controle e se converte em uma pessoa por completo distinta. Dá a impressão de que haja em seu interior uma raiva incontida contra o mundo, contra... não sei... contra Deus.... porque agora não percebe Sua presença quando Ramsay lhe dedicou tantos anos de sua vida, tanto tempo e energia...

—Eu não notei... ira no Ramsay - disse Dominic lentamente, tentando recordar suas últimas conversas com o Ramsay e as emoções que se puseram de manifesto. —Acredito que se sente decepcionado porque as coisas não são como ele esperava. Se estivesse iracundo, seria contra as pessoas, contra quem o tem induzido ao engano. Mas se certas pessoas o induziram a engano, eram elas mesmas quem estavam equivocadas. Isso possivelmente seja motivo de tristeza.... mas não pode culpar as pessoas.

—Você não, porque é honesto - continuou Vita com um sorriso distorcido nos lábios. —Ramsay está muito confuso, muito... não saberia dizer. Acredito que assustado, de certo modo. - Escrutinou o rosto do Dominic para ver se a compreendia. —Sinto tanta lástima por ele... Pareço-lhe arrogante por dizer uma coisa assim? Não é essa minha intenção. Mas às vezes vejo medo no olhar do Ramsay. Está tão só... e também envergonhado, acredito, embora ele nunca o admitisse.

—A dúvida não é razão para envergonhar-se - respondeu Dominic sem elevar a voz. Não queria que algum criado ouvisse suas palavras se passasse perto dali. —Em realidade, requer-se uma grande coragem para seguir comportando-se como se a pessoa conservasse a fé quando já a perdeu. Provavelmente não existe maior solidão no mundo que a que se deriva de perder a fé quando se teve.

—Pobre Ramsay - murmurou Vita, entrelaçando as mãos e contemplando-lhe. —Quando a pessoa tem medo, atua de maneira estranha, faz coisas que nos parecem impróprias deles. Lembro que uma vez meu irmão estava muito assustado...

—Não sabia que tivesse um irmão.

Vita riu com delicadeza.

—Como ia saber? Quase nunca falo dele. Era mais velho que eu, e durante uma época seu comportamento deixou muito a desejar. Meu pai estava muito preocupado e decepcionado. Quando Clive contraiu dívidas de jogo e se viu incapaz de pagá-las, perdeu o juizo por completo e levou a prata da casa para vendê-la. É claro, não recebeu nem a metade do que havia custado, e meu pai teve que desembolsar o dobro para desempenhá-la. Foi espantoso, e impróprio do Clive. Mas o fez movido pelo medo.

Dominic sentiu um grande peso em seu interior.

—Acredita que Ramsay matou ao Unity, não é verdade?

Vita fechou os olhos.

—Temo que... sim. Estou convencida de que você não foi. Disse-o como se afirmasse um fato irrefutável, sem mais. —E não acredito que foi Mallory. Eu.... Dominic, ouvi Unity gritar. - estremeceu-se. —Isso em si mesmo não seria prova suficiente, mas também o vi perder o controle. - Quase inconscientemente levou a mão à face, onde o machucado seguia ainda negro e inflamado. —Estava alienado. Era outra pessoa. Em seu estado normal, não me teria tratado assim. Nunca me tinha levantado a mão em toda nossa vida juntos. Algo ocorre ao Ramsay, Dominic. Algo horrível... como se, se tivesse quebrado algo dentro dele. Não... não sei o que fazer.

—Eu tampouco - admitiu Dominic com tristeza. —Possivelmente deveria tratar de falar com ele outra vez. - Era o último de seus desejos, e só a idéia lhe produzia uma sensação de intrometimento, mas como podia deixar que Vita enfrentasse sozinha com aquela situação? Ramsay era o nome a quem amava, e de repente ele se afundava em um torvelinho emocional que ela não compreendia nem podia rebater. Um torvelinho que o afastava dela, afastava-o de todos. Dominic sabia bem o que era sentir-se miserável e asfixiado pelo desespero. Ele tinha desejado tirar a vida durante as semanas que passou no Icehouse Wood. Só a covardia o tinha impedido, não a esperança nem o amor pela vida. Mas Ramsay não se afastou dele nem se absteve de lhe estender a mão por vergonha.

—Não... - disse Vita com doçura. —Ao menos, ainda não. Ramsay o negará.... e se alterará ainda mais. Sem dúvida já o tentou.... não é assim?

—Sim, mas...

Vita apoiou uma mão no braço do Dominic.

—Nesse caso, querido, o melhor que pode fazer é visitar as pessoas que esperam por Ramsay. Cumpra com as obrigações das quais ele por agora é incapaz de ocupar-se pessoalmente. Conserve a dignidade e o respeito que ele mostrava antes pelas pessoas, e não deixe que ninguém veja no que se converteu. Faça-o também em benefício dos paroquianos. Necessitam o que Ramsay teria podido lhes oferecer se continuasse sendo ele mesmo. Há assuntos que organizar, decisões que tomar, tarefas que excedem sua atual capacidade. Faça-o por ele.... por todos nós.

Dominic vacilou.

—O certo é que não disponho de autoridade...

—Deve assumi-la - afirmou Vita com voz clara e a cabeça alta, sem o menor indício de incerteza.

Dominic desejava fazê-lo, achar uma desculpa honorável para abandonar a casa, distanciar-se dos receios, a ira e o medo que pareciam penetrar em todas partes como o frio nos ossos. Não queria voltar a discutir com o Mallory, nem presenciar a dor de Tryphena, nem procurar uma forma de dirigir-se ao Ramsay sem importuná-lo, sem dar a impressão de que se intrometia ou o acusava, deixando-o depois ainda mais só que antes.

Para sua surpresa, a única pessoa da casa em quem podia pensar com certa sensação de alívio era Clarice. Sua atitude era extravagante. Alguns de seus comentários eram monstruosos. Mas Dominic podia entender por que dizia aquelas coisas e, a seu pesar, achava-as engraçadas. Clarice expressava suas emoções com uma sinceridade que ele respeitava.

—Sim - disse Dominic com firmeza. —Sim, isso será o melhor.

E sem dar tempo a maiores deliberações, despediu-se de Vita e, uma vez reunidos os endereços e informação necessários, pegou o casaco e se foi.

Era um desses dias da primavera em que as nuvens deslizam rapidamente empurradas pelo vento, e tão logo aparece todo banhado pela luz do sol, como se nubla o céu e refresca, para instantes depois ver-se tudo de novo de cores prata e ouro enquanto os raios oblíquos do sol atravessam uma ligeira cortina de chuva. Dominic caminhou com passo enérgico. Tal era sua momentânea sensação de liberdade, que teria posto-se a correr se não tivesse sido ridículo.

Realizou todas as visitas, alongando-as tanto como foi possível. Mesmo assim, às cinco e meia não tinha já motivo algum para permanecer longe de Brunswick Gardens, e chegou ali às seis.

Clarice foi a primeira com quem se encontrou. Estava sozinha no terraço à luz de meia tarde. O terraço se achava ao abrigo do vento e frio, e Clarice desfrutava de uns momentos de solidão. Por um instante Dominic teve a sensação de que a importunava.

—Sinto muito - se desculpou, e fez gesto de dar meia volta para partir.

—Não, por favor! - apressou-se a dizer ela. Levava um vestido de musselina quase branco e um xale verde e branco sobre os ombros.

Dominic contemplou com assombro o muito que a favorecia. Aquele vestido lhe fez evocar as manhãs frescas do verão, quando a luz é clara e ninguém se expôs ainda o que fará durante o dia.

Clarice sorriu.

—Fique, rogo-lhe isso. Como lhe foram as visitas?

—Sem nada digno de destacar - respondeu Dominic com sinceridade. Com Clarice, nem sequer lhe teria ocorrido não ser sincero.

—Mas foi agradável sair um momento - comentou ela com perspicácia. —Tomara eu tivesse algum pretexto para escapar. A espera é o pior, não acha? - Voltou a cabeça e contemplou a grama e os abetos. —Às vezes penso que o inferno não é algo horrendo que ocorre em realidade, mas a espera de algo sem saber com certeza se ocorrerá, de modo que a pessoa passa continuamente da esperança ao desespero. Durante um tempo se está tão exausto que deixa de preocupar-se, e logo tudo volta a começar. O desespero permanente seria quase um alívio. Seria possível agüentá-lo. A esperança, em troca, requer tanta energia...

Dominic guardou silêncio, tentando pensar.

Clarice o olhou.

—Não vai dizer me que logo tudo terminará?

—Não sei se terminará algum dia - respondeu Dominic. E de repente se envergonhou de sua franqueza. Deveria ter tentado lhe oferecer consolo em lugar de procurar desafogo. Estava comportando-se como um menino, e tinha quase vinte anos mais que ela. Clarice merecia algo mais dele. Por que a considerava mais forte?

Se podia proteger a Vita, com maior razão devia tratar de proteger Clarice. —O sinto. Confio em que esta situação não se prolongue muito mais. Pitt descobrirá a verdade.

Clarice lhe sorriu.

—Está-me mentindo.... sem má intenção, claro. Uma mentira piedosa. - Deu de ombros, embrulhando-se no xale. —Não o faça, por favor. Sei que pretende ser amável. Cumpre com sua missão pastoral. Mas se esqueça do colarinho clerical por uns minutos e fala como um homem comum. Pode ser que Pitt averigúe a verdade, ou pode ser que não. Cabe a possibilidade de que tenhamos que viver assim sempre. Sei. - Seus lábios formaram um débil sorriso, como se zombasse de si mesma. —Já decidi o que acreditar ou, melhor dizendo, com o que devo aprender a viver de agora em diante, assim não fico em claro de noite me atormentando, dando voltas e mais voltas ao assunto.

Meia dúzia de estorninhos elevaram o vôo dos ramos das árvores que se erguiam ao fundo do jardim, e suas silhuetas negras, erguendo-se em espiral, recortaram-se contra o céu.

—Embora não seja verdade? - perguntou Dominic, sem confiança.

—Penso que provavelmente é verdade - respondeu Clarice com a vista à frente. —Mas, em qualquer caso, devemos seguir adiante. Não podemos deter tudo e abstraímos de maneira indefinida neste horrendo quebra-cabeças. Um de nós matou Unity. Isso é inelutável. Não podemos escapar a esse fato; vale mais que o aceitemos. Não tem sentido ficar entupidos na idéia de que é um ato espantoso. De noite, acordada em minha cama, pensei muito nisso. O culpado é alguém a quem eu conheço e quero, seja quem for. Não posso deixar de querê-lo pelo que fez. Isso não estaria bem. Se deixássemos de querer a outros porque agem mau, nenhum amor duraria. Ninguém seria amado, porque todos atuamos alguma vez com mesquinharia, estupidez ou malícia. Devemos querer a outros com compreensão, ou inclusive sem ela.

Clarice contemplava a luz decrescente do sol e as sombras cada vez mais longas que se projetavam sobre a erva.

—E o que decidiu? - perguntou Dominic em um sussurro. De repente temeu que Clarice tivesse concentrado nele suas suspeitas. Com assombro, descobriu a profunda dor que só a idéia lhe causava. Desejava de todo coração que ela não o considerasse capaz de ter tido uma aventura amorosa com Unity ali, na casa de seu pai, e tê-la empurrado depois pela escada, embora fosse sem querer, movido pela raiva e pânico. Esse desejo equivalia a deixar que a culpa recaísse no Ramsay. E depois do que Ramsay fizera por ele, isso era inconcebível.

Aguardou a resposta, notando um suor frio em sua pele.

—Decidi que Mallory teve uma aventura com Unity - respondeu em voz baixa. —Não existiu amor entre eles. Para ele foi uma simples tentação. E Unity, por sua parte, desejava-o porque ele tinha feito voto de castidade e acreditava em algo que lhe parecia absurdo. - Os estorninos desceram de novo e desapareceram atrás dos álamos. —Ela queria lhe demonstrar que era incapaz de conter-se e que, em todo caso, não tinha sentido, e o conseguiu. Para ela foi uma espécie de triunfo... não só sobre o próprio Mallory, mas também sobre um mundo eclesiástico dominado pelos homens que a tratavam com condescendência e a excluíam por ser mulher. - Deixou escapar um suspiro. —E o mau é que não posso culpá-la por isso. Foi uma conduta teimosa e destrutiva, mas se uma pessoa se vê rechaçada uma e outra vez, ao final está tão doída que arremete contra algo. E não escolhe necessariamente a quem a tem rechaçado, mas às pessoas mais vulneráveis. Em certo modo, Mallory representa o ponto mais fraco da religião: a vaidade e o apetite humanos. Também pôs a prova a fé de meu pai, mas nesse terreno era mais difícil ver ou medir a vitória.

Dominic a observava em um estranho estado de incredulidade, e entretanto Clarice falava com pleno sentido. O extraordinário era o fato mesmo de que o dissesse.

—Por que ia matá-la Mallory? - perguntou com a voz entrecortada e a boca seca.

—Porque Unity o chantageava, lógicamente - disse Clarice como se a resposta caísse por seu próprio peso. —Estava grávida. Pitt o comunicou a meu pai, e ele me disse . Possivelmente agora já todos sabem. - Uma rajada de vento lhe agitou o cabelo e fez ondear as pontas do xale. —Uma coisa assim lhe arruinaria a vida, não? Não pode iniciar uma ambiciosa carreira no sacerdócio católico deixando atrás uma mulher grávida a quem se seduziu e abandonou. Embora em realidade fora ela quem seduziu a ele.

—Ambiciona uma grande carreira, Mallory? - perguntou Dominic, surpreso. Carecia de importância, mas nunca tinha considerado ambicioso ao Mallory. Mas pensava justamente o contrário, que utilizava a fé católica a modo de tábua de salvação para manter-se a flutuar, para encher o vazio em questões de certeza e autoridade que achava ver na Igreja de seu pai.

—Possivelmente não - aceitou Clarice. —Mas com uma marca assim no passado não poderia aspirar nem a uma carreira medíocre.

—No que se apóia para pensar isso? - perguntou Dominic, sem saber que resposta esperava ouvir dela. Deu-se conta do pouco que a conhecia em alguns aspectos. Aferrava-se a uma esperança ou era por completo realista? Dominic levava meses naquela casa e conhecia o Ramsay desde fazia anos. Obviamente não tinha sabido valorizar Clarice. —Se tiver uma prova... - começou a dizer, sem pensar, aproximando-se dela. Imediatamente caiu na conta de que Mallory era seu irmão. Suas lealdades deviam achar-se em conflito. de repente viu em seu olhar a complexidade do dilema e a dor que lhe produzia.

—O modo em que se comporta -se apressou a responder Clarice. Mudou muito desde a morte de Unity, o que não é muito inteligente de sua parte. Mas não acredito que a inteligência seja o forte do Mallory, ao menos em sua vida cotidiana e o trato com outros. - olhou-se os braços, agasalhados pelo xale. Sem dúvida tinha frio. O sol se pôs atrás dos álamos. —Se dá muito bem com os livros, como meu pai - continuou, falando para si. —Duvido que tanta leitura vá servir lhe de algo como sacerdote. Mas, claro está, há muitas coisas sobre a Igreja que eu não entendo. Estou convencida de que o obrigava a lhe fazer favores. - Obviamente se referia de novo à Unity.

—Divertia-se. Via-o em seu rosto. Quanto menos gostava de Mallory, mais satisfação proporcionava a ela. Compreendo-o. - esforçava-se por ser justa. —Às vezes Mallory é muito pomposo, e tão condescendente que dá vontade de pôr-se a gritar. Provavelmente eu mesma o poria em evidência de vez em quando se soubesse como.

O vento sussurrava entre as árvores, e nenhum dos dois tinha ouvido sair a Tryphena pela porta do salão principal. Vestia-se de negro e estava muito pálida. Sua indignação era evidente.

—Não estranho que deseje pô-lo em evidência - reprovou Tryphena com rancor. —Como não sabe o que fazer com sua vida, sempre foi invejosa. Mallory achou algo que lhe interessa apaixonadamente, algo ao que consagrar-se. Sei que escolheu um caminho ridículo, mas lhe importa. - Avançou para eles. —Também eu o encontrei. Você, em troca, não tem nada. Com todos esses estudos que se empenhou em realizar, e agora não faz mais que ir de um lado a outro criticando e estorvando.

—Pouco partido posso tirar de meus estudos - replicou Clarice, voltando-se para sua irmã. —No que pode trabalhar uma mulher se não ser como preceptora? Assim foi geração após geração, cada uma ensinando a seguinte, e nenhuma mulher aproveita seus conhecimentos, exceto para transmiti-los uma vez mais. Parecemos meninas jogando de nos passar a bola.

—Nesse caso, por que não luta pela liberdade como fazia Unity? – perguntou Tryphena, dando uns passos mais para eles. Pôs-se um vestido de lã pouco de acordo com a suave temperatura. —Porque lhe falta coragem! - acrescentou, respondendo ela mesma à sua pergunta. —Quer que outras lutem por você e lhe dêem isso tudo feito quando a batalha termine. Só porque acha que foi tão boa estudante como Mallory...

—E o era! De fato, era melhor.

—Não, isso não é verdade. Simplesmente foi mais rápida.

—Era melhor que ele. Tinha qualificações mais altas.

—Dá na mesma, porque quando muito pode aspirar a ser a esposa de um clérigo.... se é que há algum clérigo disposto a aceitá-la. Mas para isso não se necessitam conhecimentos. - Fez um gesto de desdém. —Basta um pouco de diplomacia, um sorriso amável e a faculdade de escutar a todo mundo e aparentar interesse por estúpido ou aborrecido que seja o que ouve... e nunca repetir os comentários de outros. E você seria incapaz disso embora lhe fosse nisso a vida. - Tryphena cravou em Clarice um olhar fulminante. —Nenhum clérigo quer a seu lado uma esposa capaz de lhe escrever os sermões. E dificilmente poderá dar aulas de teologia... ao fim e ao cabo, segundo a Igreja, é incapaz de compreendê-la. Se possuísse um mínimo de fortaleza espiritual, lutaria pela igualdade de direitos entre homens e mulheres, em lugar de lançar acusações absurdas contra Mallory. - Voltou a cabeça e contemplou a mortiça luz do entardecer. —Unity jamais se teria rebaixado à mesquinharia de chantagear a alguém. Essa afirmação só demonstra o pouco que a conhecia.

—Demonstra o pouco que algum de nós a conhecia - retificou Clarice com tom mordaz. —Alguém a deixou grávida. Se a conhecia tão bem, suponho que sabe quem era o pai.

O rosto de Tryphena se retesou. Se a luz não tivesse sido já muito tênue para perceber as cores, teria se visto o intenso rubor que tingia suas faces.

—Não falávamos dessas questões. Nossas conversas discorriam a um nível muito mais alto. Não espero que você o entenda.

Clarice pôs-se a rir, deixando entrever um indício de histeria.

—Ou dito de outro modo, não lhe contou que, por mera diversão, tinha seduzido Mallory e depois o tinha chantageado. - Zombou. —Não me surpreende. Não teria correspondido com a imagem que, em sua idolatria, tinha formado dela. Essas não são as gestas pelas que se distinguem as mulheres mártires. Enganar aos de seu próprio bando é um tanto... repugnante. Se nos detivermos pensá-lo...

—Dá-me asco! - disse Tryphena entre dentes. —Está disposta a responsabilizar a qualquer menos a seu adorado pai. Sempre foi sua preferida, e odeia ao Mallory porque, em sua opinião, traiu a papai convertendo-se ao catolicismo. - Soltou uma estridente gargalhada. —Com isso, jogou-lhe na cara todo seu amor. Demonstrou-lhe quão débil era sua fé, tão fraco que nem sequer tinha podido convencer a seu próprio filho, assim não digamos já a todos os paroquianos de sua paróquia. É incapaz de admitir a verdade. Tanto é assim preferiria ver na forca a seu irmão a ter que confrontá-la. Nunca o perdoou porque acredita que ele desfrutou das oportunidades que você merecia e que teria aproveitado melhor. Você nunca teria defraudado a papai. É muito cômodo pensar isso quando não tem que fazer nada para demonstrar.

Clarice mordeu o lábio, e Dominic percebeu que só um esforço supremo lhe permitia manter a compostura, e que possivelmente a inicial comoção a tinha deixado sem fala por um momento. Uma cólera como a da Tryphena equivalia quase a um golpe físico. Inclusive o próprio Dominic tremia, como se também ele fosse alvo do ataque.

Interveio sem parar antes para pensar. Seus argumentos não guardavam relação alguma com a razão ou a moralidade, mas sim surgiam simplesmente da indignação e o desejo de proteger. Voltou-se para a Tryphena.

—A aptidão de cada qual para os estudos não tem nada que ver com a morte de Unity. Alguém a deixou grávida, e obviamente não foi Clarice. Está furiosa porque achava que Unity lhe contava isso tudo, e agora é evidente que não era assim. Como vê, omitiu algo fundamental. - Enquanto falava, era consciente de que entrava em um terreno extremamente perigoso, mas seguiu adiante de todo modo. —Se sente excluída porque não confiou em você o suficiente para lhe dizer uma coisa assim, e você agora tenta se desafogar com todos outros.

Tryphena se voltou para ele com fogo no olhar.

—Não com todos outros! – precisou. —Conhecia-a de sobra para saber que não teria chantageado a ninguém. Não teria caído tão baixo. Nenhum de vocês tinha nada que lhe interessasse. Desprezava-os. Não se teria... sujado desse modo.

—Claro - disse Clarice com tom sarcástico. —O Segundo Advento. Outra Imaculada Concepção? Mas se tivesse lido um pouco mais de teologia, se tivesse sido tão boa estudante como Mall, para não dizer já como eu, saberia que a próxima vez o Senhor descerá dos céus, não voltará a nascer feito homem. Nem sequer do ventre de Unity Bellwood!

—Isso é uma estupidez! - replicou Tryphena. —E uma blasfêmia! Pode ser que estudasse muita teologia, mas não tem a menor noção de ética.

—E você não tem a menor noção do que é o amor! - respondeu Clarice. —Você só entende de histeria, auto compaixão e... e obsessão.

—E a quem amou você? - Tryphena se pôs-se a rir inverificado. —Unity sim sabia o que era o amor, e a paixão e a traição, e o sacrifício. Ela amou mais em sua vida, apesar de ser breve, pelo que você amará na sua. Você está viva só pela metade. Está morta de inveja; dá lástima. Desprezo-a.

—-Despreza a todo mundo - observou Clarice, agarrando o xale para que não o levasse o vento. —Toda sua filosofia se apóia no fato de que te acha melhor que outros. Imagino o horror de Unity por ficar grávida... de um simples mortal. Provavelmente se atirou ela mesma pela escada para perder o filho.

De repente Tryphena, com os olhos desmesuradamente abertos, voltou-se e esbofeteou Clarice com tal força que a desequilibrou e a lançou contra Dominic.

—Mulher perversa! - exclamou Tryphena. —Ser desprezível! Diria algo por proteger a alguém que ama, sem se importar o que tenha feito. Não tem honra, nem sentido da verdade. Perguntou-se alguma vez onde achou papai a seu adorado Dominic? - Assinalou-o com a mão sem olhá-lo. —A que se dedicava? Por que um homem de sua idade tomou de repente o hábito? Que atrocidades pode ter cometido para querer entregar toda sua vida a modo de penitência? Olha-o! - Voltou a indicar ao Dominic. —Olhe bem seu rosto. Acredita que realmente renunciou às mulheres e o prazer? Isso acredita? Já é hora de que veja o mundo tal como é, Clarice, e não como lhe apresentam isso seus estudos teológicos.

Dominic notou que um calafrio percorria seu corpo, um medo gélido crescendo em seu interior. O que tinha contado Unity a Tryphena? O que pensaria Clarice dele? E pior ainda, um perigo mais real e terrível, o que averiguaria Pitt? Não podia já enganar-se por mais tempo pensando que Pitt não descobriria no mínimo uma parte de seu passado que lhe daria a satisfação de acusá-lo do crime. Pitt não tinha conseguido esquecer por completo os sonhos românticos de Charlotte a respeito ao Dominic, apesar de só terem sido sonhos. Desejou defender-se, mas como? Com que armas?

Tryphena, à beira da histeria, pôs-se a rir.

—Por isso é atéia - disse Clarice com serenidade, atalhando a risada de sua irmã. —Você não gosta das pessoas, e não acredita que uma pessoa possa mudar e desprender-se do passado. Em realidade, não acredita na esperança. Não a compreende. Ignoro onde achou papai ao Dominic e a que se dedicava. Tampouco me importa. Só me importa o que é agora. Se sua mudança foi suficiente para papai, é o também para mim. Não preciso saber mais. Não é meu assunto. Alguém deixou grávida ao Unity... nos três últimos meses. Só saía daqui para ir à biblioteca, a sala de concertos ou aquelas horríveis reuniões políticas. E às reuniões sempre a acompanhava você. Assim quase com toda segurança o pai é alguém desta casa. Você conhecia Unity. Quem acha que era o pai?

Tryphena a olhou fixamente, e de repente seus olhos se inundaram em lágrimas. Voltava a sentir-se totalmente sozinha, sem o sustento da ira, imersa na dor da perda. A raiva não conseguia afastar o vazio por muito tempo, e quando a raiva se desvanecia, Tryphena ficava ainda pior que antes.

—Desculpe - sussurrou Clarice, aproximando-se dela. —Disse que foi Mallory porque certo grau de certeza é melhor que atormentar-se com um temor atrás de outro. Em minha opinião, é o mais provável. E se deseja saber o que penso em realidade, diria que foi um acidente. Possivelmente discutiram e a situação lhes escapou das mãos, e agora Mallory está aterrorizado e é incapaz de admiti-lo.

Tryphena fungou. Tinha os olhos avermelhados.

—Mas eu ouvi Unity gritar: "Não, não, reverendo!" - insistiu, e engoliu a saliva.

Dominic lhe ofereceu um lenço, e ela o pegou sem olhá-lo no rosto.

—Pedia auxílio - afirmou Clarice com tom concludente.

Tryphena piscou. Deu de ombros em um gesto de dor mais que de aceitação, e partiu sem dirigir o olhar a Dominic.

—Sinto muito - disse Clarice, voltando-se para Dominic. —Duvido que pense realmente o que disse. Não... não o tenha muito em conta. E agora se não se importar, subirei para ver meu pai. - E sem aguardar a resposta, entrou também no salão.

Dominic desceu do terraço e passeou devagar pela grama na crescente escuridão. A erva estava úmida e lhe empapava os sapatos, e nas franjas exteriores, onde ainda não tinha sido aparada, molhava-lhe também as barras das calças. Mal se dava conta. Não deveria lhe haver surpreso que um arrebatamento de ira removesse velhas feridas. Isso ocorria quando se era presa do medo. Ficavam a descoberto desagradáveis emoções que de outro modo teriam permanecido latentes toda a vida. Trazia a luz rancores que ninguém queria admitir. Induzia a expressar pensamentos que em momentos de maior cordialidade ou sensatez se teriam reprimido e, em todo caso, eram sinceros só em parte, nascidos sobre tudo dos temores e necessidades pessoais.

Havia coisas que era melhor não conhecer.

Até esse instante Dominic não era consciente da imensa dor que Tryphena devia sentir, nem do total isolamento e solidão em que vivia desde a morte de Unity. Clarice sim o tinha notado. Também ela estava assustada, por seu pai e pelo Mallory, mas possuía uma maior bondade. Atacava para defender, não pelo prazer de causar dano. E certamente o tinha defendido a ele. Dominic nunca o teria esperado, e lhe produzia uma profunda satisfação que ela o tivesse feito por própria vontade.

Elevou o olhar no preciso momento em que aparecia um claro entre as nuvens, e uma pálida lua em quarto crescente lhe fez tomar consciência de que já quase tinha escurecido por completo. Mal via a erva a uns passos por detrás dele, e a casa e os ramos das árvores eram meras silhuetas negras recortando-se contra o céu, desprovidas de cor.

Clarice o tinha surpreendido. Mas voltando a vista atrás e escavando em suas lembranças dela desde que a conhecia, compreendeu que raramente tinha sido capaz de predizer suas palavras ou seus atos. Clarice carecia de sentido do ridículo até um limite alarmante. Fazia comentários escandalosos, ria em situações violentas, considerava cômicas coisas as quais ninguém mais via a menor graça. Recordou casos concretos, esboçando uma careta de espanto ante alguns deles, imóvel na quase total escuridão sem dar-se conta de que sorria. Ao pensar em uma ou duas das ocorrências de Clarice, inclusive lhe escapou uma sonora gargalhada. Eram vergonhosas. Absurdas. Mas as rememorando, viu claramente que não tinha conhecido a nenhuma mulher capaz de atrair a atenção daquele modo ou mostrar-se tão superior. Certamente suas saídas nem eram sempre amáveis; se considerava a alguém um hipócrita, punha-o em evidencia sem compaixão. A risada podia ser tão destrutiva como saudável. Meteu as mãos nos bolsos e se encaminhou para a casa. Subiu a seu quarto com o propósito de estudar um momento. Preferia estar só, e essa era a melhor desculpa. Entretanto, depois de fechar a porta e escolher um livro, descobriu que era incapaz de fixar o olhar na página. Pensava no Mallory, e quanto mais analisava a hipótese de Clarice, mais verossímil a achava. Sabia que ele não era o pai do menino de Unity, e lhe custava acreditar que pudesse sê-lo Ramsay.

Não era que imaginasse ao Ramsay muito ascético ou disciplinado para sentir os apetites da carne, ou considerasse que Unity era incapaz de tentá-lo. Mas achava que se Ramsay tivesse sucumbido a essa fraqueza, sentira-se depois de um modo tão diferente que Dominic no mínimo teria notado algo. E para ser sinceros, achava que também Unity se teria comportado de outra maneira. Sua contínua necessidade de obter pequenas vitórias sobre o Ramsay não teria sido tão intensa.

Uma situação assim teria demonstrado a ambos os sobradamente a vulnerabilidade dele. Não teria sido preciso seguir pondo-a a prova em igual medida. E entretanto Dominic recordava claramente a expressão de prazer no rosto de Unity quando - inclusive até um dia antes de sua morte - achava um engano nas traduções do Ramsay. Eram detalhes insignificantes, deslizes que se teriam detectado e corrigido em uma segunda olhada, mas a necessidade de Unity de destacar-lhe era evidente. E isso mesmo ocorria em diversas circunstâncias. Dominic via em sua mente com tal nitidez o rosto de Unity, cada uma de suas expressões, que era difícil aceitar que tivesse morrido. Mostrava sempre tanto aprumo, tanta segurança em tudo o que opinava e achava saber...

O que sentia Dominic agora que ela tinha morrido? É claro, tristeza. Unity havia possuído um intenso desejo de viver. Toda morte era uma perda, um apagamento. A morte em si era uma mudança aterradora, um aviso da fragilidade de todas as coisas, de todas as pessoas a quem se amava, e sobre tudo da gente mesmo. Mas Dominic sentia ao mesmo tempo um inegável alívio. Percebia-o na relaxação dos músculos, que inconscientemente tinha mantido em tensão durante meses. Sentia deste modo certa paz interior, apesar dos temores, como se tivesse passado uma sombra.

Levantou-se e foi para a porta. Não podia ficar de braços cruzados, refugiando-se na esperança de que a vida da família voltasse para a normalidade e Pitt achasse de algum modo a explicação e conseguisse demonstrá-la. Pitt era capaz disso. Era capaz de deixar-se levar por seus receios a respeito de Dominic e, uma vez obtidas as provas - e sem dúvida tinha a sagacidade suficiente para as achar,- convencer-se de sua culpa.

Percorreu o corredor e bateu na porta de Mallory. Fazia isso em parte por si mesmo, mas também se sentia obrigado por sua dívida com o Ramsay a tentar averiguar a verdade, à margem de como a usasse depois.

Voltou a bater. Não houve resposta. Deu meia volta, sem saber se sentia alívio ou decepção. Braithwaite, a criada de Vita, aproximava-se pelo corredor.

Tinha rugas de tensão no rosto, como se mal tivesse podido conciliar o sono nos últimos nove dias. Levava o cabelo muito preso, como se o tivesse penteado com supremo cuidado. Dominic se perguntou se, se arrependia agora de ter revelado o que tinha ouvido.

—O senhor Mallory está na estufa, senhor Corde - informou serviçalmente. —Desceu ali com seus livros.

—Ah. - Isso não lhe deixava já escapatória. —Obrigado.

Dirigiu-se à escada e desceu ao vestíbulo. Sempre que passava por ali pensava em Unity e se assombrava do ocorrido. Depois de um breve instante de indecisão, entrou na estufa. Estava às escuras, mas viu uma luz entre as folhas e soube que provinha do abajur da mesa de ferro situada no fundo, onde devia achar-se Mallory.

Afastou as folhagens das palmeiras e as folhas dos lírios, caminhando com tal sigilo sobre os tijolos ligeiramente úmidos que o escasso ruído de suas passadas ficava abafado pelo gorgolejo do fornecedor do lago.

Mallory ergueu a vista quando Dominic se achava quase junto a ele. Ocupava a mesma cadeira em que devia estar sentado quando Unity morreu, se sua declaração era certa. Mas a marca na sola de Unity demonstrava que tinha mentido no mínimo ao negar que a tivesse visto essa manhã.

—O que quer? - disse Mallory. Não afetou a menor cordialidade. Incomodava-lhe que Dominic gozasse do favor do Ramsay, e que tivesse assumido certo grau de autoridade na casa desde a tragédia. Para Mallory, pouco importava que Dominic fosse mais velho , e que ele mesmo se abstivera de intervir.

Dominic se perguntou se Tryphena teria falado ao Mallory de sua recente discussão no terraço, e das suspeitas de Clarice. Sob a luz amarela do abajur poderia ter adivinhado em apenas olhar seu rosto, mas não pôde. No semblante do Mallory pugnavam já muitas emoções: medo, ira, rancor, o tenso esforço por alcançar uma paz que achava própria de sua condição, e a culpa por não encontrá-la. Sua fé tinha fraquejado ante a prova a que se viu submetido. Dominic o deduziu pelo misal que Mallory tinha aberto nas mãos.

Dominic se sentou na borda do banco de trabalho do jardineiro, indiferente que estivesse úmido ou sujo.

—Pitt o averiguará - declarou com tom grave.

Mallory o olhou fixamente, e Dominic soube imediatamente que ia tentar enganá-lo com uma falsa atitude de aprumo.

—Provavelmente - concordou Mallory. —Mas se espera que o ajude a proteger de algum modo a meu pai, esquece-o. Não é só uma questão de me parecer ou não correto; basicamente duvido que servisse de algo. À longo prazo, não faria mais que piorar as coisas. - Ergueu um pouco mais as costas, mas continuou sentado na cadeira, na defensiva. —Confronta a verdade, Dominic. Sei que admira a meu pai, provavelmente porque lhe estendeu uma mão quando mais a necessitava, e bem sabe Deus que a gratidão é uma virtude que não abunda. Mas não pode substituir à honestidade ou a justiça. Qualquer ajuda a meu pai seria a custa de alguém.

Dominic esteve a ponto de dizer "A custa de você", mas compreendeu que igualmente podia ser a custa dele mesmo e guardou silêncio.

—Temos fés distintas - prosseguiu Mallory. —Mas em sua essência ambas devem possuir elementos comuns. Não pode carregar a outro com seus pecados. Jesus Cristo é o único que pode redimir a outros de seus pecados; nós devemos agüentar cada um os nossos. Isso inclui a você e a mim.... e a meu pai. A lei não é o único problema, e não deveria ser nossa principal preocupação. Concordamos ao menos nisso?

—Sim. - Dominic se inclinou, acotovelando-se nos joelhos. A luz amarela do abajur formava um círculo em torno de ambos, isolando-os entre as plantas. O resto da casa poderia haver-se achado em outro mundo. —Acha que seu pai era amante de Unity?

Mallory vacilou, e a culpa cintilou em seu olhar. Por um instante hesitou, mas sabia que Dominic o tinha notado. Era já muito tarde para voltar atrás.

—Não. - olhou-se as mãos.

Não se ouvia mais som que o tênue barulho do fornecedor e uma uniforme destilação em algum lugar entre as folhas.

—Chantageou-o ela pelo ocorrido? - perguntou Dominic.

Mallory ergueu a vista lentamente. Por uma vez, seu semblante expressava só medo.

—Eu não a matei, Dominic! Juro-o! Nem sequer me achava perto da escada quando caiu. Estava aqui, como já disse. Não sei o que aconteceu, nem conheço a razão. Pensei sinceramente que a tinha empurrado meu pai. Continuo pensando. E se não foi ele, só pôde ser você.

—Não fui eu - respondeu Dominic com calma. —Sabia alguém mais que Unity o chantageava?

—Quem? - Mallory parecia surpreso. —Clarice? Ela é o único outro membro da família, porque me custa imaginar que algum criado pudesse ser culpado da morte de Unity.

—Não a matou ninguém do serviço - confirmou Dominic com pesar. —Sabemos onde estava cada um deles no momento em questão. E não, não acredito que fosse Clarice.

—Para proteger a mim, não, certamente - asseverou Mallory com tom cáustico -. Tryph possivelmente o teria feito, mas Clarice não. Sempre pensou que seria melhor sacerdote que eu. Não nego que é mais inteligente, mas isso é só uma pequena parte das qualidades que se requerem. Tentei fazê-la compreender muitas vezes, mas resiste a aceitá-lo. É uma questão de fé, e mais ainda de obediência. Clarice é incapaz de obedecer.

Não era momento de debater sobre os méritos relativos da obediência e caridade.

—Não poderia ter sido um acidente? - sugeriu Dominic, lhe oferecendo uma possibilidade de admitir um delito menor.

—Possivelmente sim - concordou Mallory. —claro que sim. - de repente deu um pulo. —Por Deus, eu não a matei.... fosse um fato acidental ou intencional! – Sua voz subiu de volume. —Eu não estava ali, Dominic. Embora se tratasse de um acidente, teve que ser meu pai. - Estendeu seus largos dedos e voltou a contrai-los. —Fala você com ele e experimente persuadi-lo para que o admita. Eu não o consegui, e sabe Deus que o tentei. Nem sequer se digna me escutar. É como se isolasse de todos nós. Pelo visto, o único que lhe interessa é seu condenado livro. Passa o dia absorto nessas traduções como se fosse o mais importante de sua vida. Consta-me que quer publicar antes que o doutor Spelling, mas que transcendencia pode isto ter em comparação com um assassinato em sua própria casa, e quando um de nós é o culpado. - Estava profundamente abatido. Por uma vez não pensava em si mesmo, prescindia de toda simulação ou cautela. Quase oferecia um aspecto infantil com a fronte e as imberbes faces sob a luz do abajur, em meio das reluzentes folhas daquela selva artificial. —Dominic, acredito que meu pai padece de algum tipo de transtorno mental. Perdeu o contato com a realidade... Não pôde continuar. Impediu-lhe um grito débil e agudo, bruscamente interrompido.

Os dois ficaram paralisados, aguçando o ouvido em espera de que voltasse a produzir-se.

Mas, salvo pelo som da água, o silêncio era absoluto.

Mallory engoliu em seco e imprecou entre dentes, levantando-se torpemente e atirando o misal ao chão com o cotovelo.

Dominic o seguiu pelo caminho de tijolo para o vestíbulo. Mallory abriu a porta e avançou a grandes passadas pelo mosaico branco e negro em direção ao salão principal, cuja porta estava totalmente aberta. Dominic não se afastou dele.

Dentro se achava Vita, encolhida em uma das poltronas. O sangue empapava o peitilho e a saia de seu vestido cinza. Obscurecia deste modo seus ombros e seus braços, e inclusive tinha as mãos tintas de vermelho.

Tryphena jazia desmaiada no chão, mas ninguém tinha ido auxiliá-la.

Possivelmente tinha gritado ela.

Clarice, ajoelhada ante sua mãe, segurava-lhe os braços. As duas tremiam violentamente. Ao que parecia, Vita tentava falar, mas lhe faltava o fôlego e só podia ofegar e soluçar.

—Meu deus! - Mallory cambaleou como se estivesse a ponto de perder o equilíbrio. —Mamãe! O que aconteceu? Mandou alguém procurar o médico? Necessitamos de ataduras, água.... algo! - voltou-se instintivamente para Dominic. Dominic se inclinou junto à Clarice e a pegou pelos ombros.

—Nos deixe ver, querida - disse com delicadeza. —Para estancar a ferida, primeiro devemos localizá-la.

A seu pesar, ainda trêmula, Clarice permitiu que Mallory a ajudasse a levantar —Sim, e ele se aferrou a ela com força. Ninguém se ocupava ainda da Tryphena. - me deixe ver - ordenou Dominic olhando Vita no rosto, branca como o papel.

—Não estou ferida - resmungou ela, sua voz um ronco gutural. —Ou não muito, ao menos. Algum machucado, possivelmente. Nem sequer sei. Mas... - interrompeu-se e contemplou o sangue que a cobria, quase como se não a tivesse visto até esse momento. Logo ergueu a vista e voltou a olhar ao Dominic.

—Dominic... Dominic... tentou me matar. Hei... tive que... me defender. Eu só queria... - Tratou de engolir a saliva, mas tinha a garganta tão fechada que se engasgou.

Dominic a segurou enquanto tossia, até que finalmente voltou a respirar com regularidade. —Só queria afastá-lo de mim... para escapar. Mas não estava em seu juizo. - Levantou o braço direito, em cujo pulso se via claramente o rastro de uma mão ensangüentada. —Me tinha agarrada. - Parecia incapaz de sair de seu assombro, como se ainda não desse crédito ao ocorrido. —Hei... – Voltou a engolir a saliva. — consegui agarrar um canivete, pensando que se pudesse cravar-lhe em um braço, soltaria-me e conseguiria escapar dele. - Mantinha o olhar fixo no Dominic, os olhos arregalados. —Ele se moveu... moveu-se, Dominic. Eu só queria cravar-lhe no braço.

Dominic se sentiu enjoado.

—O que ocorreu?

—Moveu-se - repetiu Vita. —Aapontei ao braço. Deixava-me presa, com as mãos ao redor de minha garganta... e essa expressão em seu rosto... Não era o homem que eu conheço. Não era Ramsay. Era um ser espantoso, cheio de ódio... e de uma ira infinita...

—O que ocorreu? - repetiu Dominic com maior firmeza.

—Tentei lhe cravar o canivete no braço - disse Vita com voz apagada, —para que me soltasse, e ele se moveu. A folha se afundou em seu pescoço.... sua... garganta, Dominic. Acredito que está morto.

Todos permaneceram imóveis por uns segundos. Na lareira, um tronco se deslocou em meio de uma chuva de faíscas. Clarice voltou a cabeça e a apoiou no ombro de Mallory, pondo-se a chorar. Ele a estreitou entre seus braços, afundando o rosto em seu cabelo.

Tryphena, ainda estendida no chão, tentou levantar-se. Dominic deixou Vita, aproximou-se do cordão da campainha e puxou-o com maior insistência do que pretendia, mas sentia um comichão nas mãos, como se as tivesse adormecidas, e tremia.

—Diga ao Emsley que traga um pouco de conhaque e mande a alguém chamar o médico - indicou ao Mallory. —vou dar uma olhada acima. - Não se incomodou em perguntar a Vita se a resistência se produziu no gabinete. Deu-o como claro. Na última semana Ramsay mal tinha saído dali.

Já no piso superior, avançou pelo corredor e abriu a porta do gabinete.

Ramsay jazia perto da escrivaninha, quase de lado, com apenas parte das costas contra o chão e uma perna dobrada. Apresentava um profundo corte na garganta, e um atoleiro de sangue se estendia pelo tapete junto a ele. Tinha as mãos e os punhos da camisa manchados de sangue, e os olhos abertos, com expressão de surpresa.

Dominic se ajoelhou e notou que uma desesperada tristeza se apoderava dele. Ramsay tinha sido seu amigo, tinha-lhe dado bondade e esperança quando as necessitava. E acabava de afogar-se em um mar que Dominic nem sequer tinha chegado a compreender. Tinha sido testemunha disso sem poder fazer nada para salvá-lo. Ante semelhante perda, invadiu-o uma profunda dor... e a amarga consciência de seu fracasso.

 

Pitt estava sentado junto à lareira no salão, com os pés apoiados no guarda-fogo, quando soou o telefone. Isso ocorria com tão escassa freqüência que nunca permitia Gracie responder.

Charlotte, surpreendida, afastou a vista de seu trabalho e olhou ao Pitt com expressão interrogativa.

Ele deu de ombros e se levantou. O aparelho se achava no vestíbulo, relativamente frio em comparação com o salão, mas Pitt estremeceu até antes de sair. Desprendeu o aparelho.

—Sim? Thomas Pitt à falar.

Mal reconheceu a voz que soava ao outro lado da linha.

—Thomas? É você?

—Sim. Quem é? Dominic?

—Sim. - ouviu-se uma respiração entrecortada e um suspiro de alívio. —Thomas.... estou no gabinete do Ramsay Parmenter. Graças a Deus, há aqui um telefone. Está morto.

A primeira idéia que foi à mente do Pitt foi que se tratava de um suicídio. Ramsay tinha pressentido que a inelutável verdade estava cercando-o e tinha optado pela escapatória que considerava mais honrosa. Possivelmente tinha suposto que desse modo evitava o escândalo à Igreja. Tal desenlace agradaria ao bispo. Ante essa idéia, uma repentina ira deixou ao Pitt quase sem fala.

—Dominic!

—Sim? Thomas.... melhor será que venha... imediatamente. Eu...

—Está bem? - A pergunta não tinha sentido. Pitt não podia fazer nada por remediar a angústia e a comoção que percebia na voz do Dominic. Tinha-o julgado mau. Dominic não tinha sido o culpado... provavelmente de nada. Charlotte se alegraria por ele.

—Sim.... sim, estou bem. - Dominic parecia consternado. —Mas, Thomas.... foi um acidente. Poderia dizer-se, suponho... - Sua voz se desvaneceu.

Ao ouvir a palavra "acidente", Pitt pensou em um primeiro momento que de modo algum se prestaria a oferecer essa interpretação dos fatos. Não mentiria para proteger os interesses do bispo. Seu principal dever era para com a verdade, a lei, e Unity Bellwood. Mas não faria nenhum bem ao Unity trazendo a luz sua tragédia, ou a do Ramsay Parmenter.

—Thomas... ? - disse Dominic com tom indeciso e premente.

—Sim - respondeu Pitt. —Tenho que pensar. Como se matou?

—Matado? - repetiu Dominic, momentaneamente confuso. —Ah.... não, Thomas, não se suicidou. atacou a Vita.... a senhora Parmenter. Ramsay sofreu uma

espécie de... não sei... de arrebatamento de loucura. perdeu o controle e tentou estrangular a sua esposa. Ela se defendeu com um canivete que havia na escrivaninha... estavam no gabinete.... e na resistência cravou-lhe. Infelizmente a ferida foi mortal.

—Como? - Pitt estava atônito. —Quer dizer... Dominic, não posso encobrir uma coisa assim.

—Não lhe peço que o encubra - respondeu Dominic, perplexo. —Só quero que venha antes que tenhamos que avisar à polícia do distrito.... por favor.

—Sim, naturalmente. Vou em seguida. Não se mova daí. As mãos lhe tremiam de tal modo que não acertou pendurar o aparelho na forquilha até a segunda tentativa.

Retornou ao salão.

—O que acontece? - perguntou Charlotte imediatamente com medo na voz, já levantando-se.

—Nada. - Negou com a cabeça. —Não se preocupe. É Parmenter. Era Dominic quem telefonava. Parmenter tratou de matar sua esposa, e na resistência resultou morto ele mesmo. Tenho que ir ali. Pode avisar à delegacia de polícia para que mandem ao Tellman a Brunswick Gardens?

Charlotte o olhou com estupefação.

—A senhora Parmenter o matou quando ele tentava matá-la? - disse quase num grito. É absurdo! Ela é muito miúda. É impossível que o tenha matado.

—Com um canivete - explicou Pitt.

—Dá na mesma com o que. Não poderia lhe haver tirado um canivete se ele se propunha apunhalá-la.

—Não, Ramsay tentava estrangulá-la. Deve ter perdido o juízo por completo, o pobre desgraçado. Graças a Deus, não o conseguiu. - Olhou Charlotte em silencio por um momento. —Ao menos isto demonstra que Dominic não era o culpado.

Charlotte esboçou um débil sorriso.

—Sim, algo é algo – assentiu. —E agora melhor será que vá. Eu farei chegar a mensagem ao Tellman.

Pitt hesitou, como se desejasse acrescentar algo, mas em realidade não havia nada mais que dizer. Deu meia volta e, se detendo no vestíbulo o tempo justo para calçar as botas e desprender seu casaco do cabide, pôs-se em marcha rapidamente.

Quando chegou a Brunswick Gardens, já havia uma carruagem parada junto ao meio-fio. O cocheiro se embrulhava em seu casaco como se levasse já longo tempo aguardando, e a luz da casa se projetava para o exterior por debaixo das persianas parcialmente baixadas como se ninguém se incomodasse em correr as cortinas.

Pitt se apeou, pagou ao cocheiro do cabriolé e lhe disse que não o esperasse.

Emsley saiu para recebê-lo na porta, o cabelo alvoroçado de tanto mexer nele e o rosto tão pálido que parecia cinza em torno dos olhos.

—Entre, senhor - disse com voz rouca. —A senhora subiu a seu quarto para descansar. O senhor Mallory está com ela.... e também o médico, claro. A senhorita Tryphena foi a seu quarto, acredito. A pobre senhorita Clarice tenta ocupar-se de tudo, e o senhor Corde está no gabinete. Pediu-me que o fizesse subir assim que chegasse, se for amável. Não sei como vamos acabar... Faz só uns dias tudo era como de costume... e agora, de repente, isto. - O mordomo parecia à beira do pranto, vendo desmoronar tudo aquilo que lhe era familiar e querido, a vida cotidiana em que se apoiava seu mundo e era sua responsabilidade.

Pitt apoiou uma mão no braço de Emsley e lhe deu um apertão.

—Obrigado. Possivelmente seria melhor que fechasse a porta e corresse as cortinas, e depois veja se pode ajudar à senhorita Clarice a serenar ao resto do serviço. Embora sem dúvida estarão muito alterados, a rotina da casa deve continuar. Terá que preparar refeições, avivar o fogo das lareiras e manter tudo limpo e em ordem. Quanto mais ocupados estiverem todos menos tempo ficará para preocupar-se.

—Ah.... sim. - Emsley meneou a cabeça em um gesto de assentimento. —Sim, senhor. Tem toda a razão. Não nos convém que as pessoas percam o controle e estendam a histeria. Isso não serve para nada. Encarregarei-me disso, senhor. – Dito isto, afastou-se com determinação.

Pitt subiu pela já familiar escada negra e seguiu pelo corredor até o gabinete do Ramsay Parmenter. Abriu a porta e viu Dominic sentado atrás da escrivaninha, pálido, o cabelo escuro veteado de mechas cinzas caindo sobre a fronte. Tinha um aspecto doentio.

—Graças a Deus que chegou - disse. Tremente, levantou-se e, voltando-se de meio lado, obrigou-se a descer a vista e olhar para o chão.

Pitt fechou a porta e rodeou a poltrona. Ramsay Parmenter jazia onde tinha caído, com uma horrível ferida no pescoço e um enorme atoleiro de sangue ao redor. Devia ter sido uma briga violenta. O peitilho da camisa estava rasgado e à jaqueta faltavam dois botões, como se alguém tivesse tentado desesperadamente puxá-lo agarrando o pela roupa. Tinha os olhos fechados, mas não se percebia paz em seu semblante, só uma expressão de perplexidade, como se no último momento tivesse tomado consciência do que fazia e o horror se apropriara dele.

—O... fechei-lhe os olhos - disse Dominic com tom de desculpa.

—Talvez fiz mal, mas não podia deixá-lo aí estendido, com o olhar fixo. Deixava-os abertos. Pode isso ter alguma importância?

—Não acredito. Examinou-o já o médico? Emsley me disse que tinha vindo o médico.

—Não.... ainda não. Está com Vita.... a senhora Parmenter.

—Como se encontra?

—Não sei. Parecia estar bem. Quero dizer que não tinha sofrido nenhuma ferida, ao menos de gravidade. Sinto muito; não falo com muita lucidez. - Olhou ao Pitt com desespero. —Tenho a impressão de ter fracassado completamente. - Contraiu o rosto. —Por que não fui capaz de ajudá-lo antes de chegar a isto? O que aconteceu? Por que não me dava conta de que... de que estava afundando-se? Deveria lhe ter infundido fé suficiente para resistir, lhe oferecer compreensão. Nenhum de nós, e menos eu que aprecio ser um pastor de almas, deveria permitir que alguém se sentisse tão absolutamente só. - Meneou a cabeça em um gesto de desolação.

—O que nos passa? Por Deus, como podemos viver sob o mesmo teto, nos sentar à mesma mesa, e deixar que alguém de nós morra de solidão?

—Assim é como costuma ocorrer - respondeu Pitt com tom realista. —As pessoas se asfixiam em seu próprio isolamento, encerradas na imagem que outros têm delas. Os pastores de cabras e os lenhadores não morrem de solidão, isso só acontece às pessoas das cidades. Ao redor de nós se elevam muros invisíveis que nos impedem de nos tocar. Não se culpe. - Observou ao Dominic. —Sente-se. Melhor será que tome um conhaque. Se te indispuser, de pouca ajuda servirá.

Dominic retrocedeu até a poltrona e se deixou cair nela.

—Pode ocultar os detalhes à imprensa? - perguntou. —Suponho que terei que informar ao bispo.

—Pelo bispo, não se preocupe. O subchefe Cornwallis se encarregará disso. - Pitt seguia de pé junto ao cadáver do Ramsay. —Qual foi a causa da briga? Sabe?

—Não. Não recordo se a senhora Parmenter o disse.

—Alguém ouviu vozes?

—Não. Não, inteiramo-nos quando a senhora Parmenter entrou no salão principal. Ou para ser mais exato... - Contraiu o rosto, esforçando-se por pensar com clareza e falar coerentemente. —Para ser mais exato, eu estava na estufa com Mallory. Falávamos.   Então... ouvimos... ouvimos um grito. Fomos os dois ao salão. Era Tryphena quem tinha gritado, mas nesse momento estava já desacordada.... ao ver o sangue, suponho.

—Referia-me aos criados.

—Ah, não sei. Era mais ou menos a hora que costuma jantar a criadagem. Provavelmente estavam no refeitório. Não me ocorreu lhes perguntar.

—Melhor assim. Partiremos do zero. - Pitt se voltou e olhou a porta. Havia uma chave na fechadura. —Se prefere ir a seu quarto ou ver se pode ajudar em algo abaixo, eu fecharei o gabinete com chave.

—Ah. - Dominic contemplou indeciso o corpo do Ramsay. —Eu... Não poderíamos levá-lo a outro lugar agora que já o viu?

—Não até que o médico o examine.

—Então cobre-o, ao menos - protestou Dominic. —O que pode esclarecer o médico? O que ocorreu é bastante claro, não? - tirou a jaqueta enquanto falava.

Pitt estendeu uma mão para impedi-lo.

—Quando o médico o tenha visto - insistiu. —Depois poderá transladá-lo a seu quarto e dispor o corpo devidamente. Mas ainda não. Agora será melhor que saia daqui. Fez quanto estava em sua mão. É hora de ocupar-se dos vivos.

—Sim, naturalmente - respondeu Dominic. —Clarice deve estar passando muito mal...

—E também Tryphena, imagino. - Pitt abriu a porta para Dominic.

Já no corredor, Dominic se voltou.

—Tryphena não o queria tanto como Clarice.

Antes que Pitt pudesse responder, apareceu Tellman no patamar. Estava sem barbear-se e parecia cansado. Levava já sobre os ombros uma jornada longa e difícil. Pitt indicou a porta do gabinete.

—Aí dentro - informou lacónicamente. —Farei vir o médico em um momento. Pelo visto, foi um acidente. Quando o médico terminar, feche e me dê a chave.

Tellman não respondeu, mas seu semblante revelou ceticismo. Dirigiu um olhar ao Dominic, resmungou algo - possivelmente umas palavras de condolência- e entrou no gabinete.

Dominic indicou ao Pitt qual era o quarto de Vita e depois se encaminhou para a escada. Pitt bateu na porta. Ao cabo de uns segundos, abriu o mesmo médico que Pitt tinha visto ao produzir-se a morte de Unity. O médico tinha o rosto pálido e desconsolado, e seus olhos refletiam uma funda consternação.

—Um lamentável assunto - sussurrou. —Não imaginava que o estado do reverendo fosse tão grave. Eu o via simplesmente um tanto... alterado, deprimido por ter mudado a percepção geral da religião desde que as teorias do Darwin sobre a evolução se difundiram entre o público leitor... e logo depois de boca em boca, tergiversadas, entre toda a população. - Sua voz delatava sua própria opinião a respeito. —Não tinha a menor idéia de que o tivesse transtornado tanto. Sinto-me culpado. Não tinha notado nada. Estava como sempre, sem nenhum sintoma anormal.... só um pouco abatido. - Deixou escapar um suspiro. —Por experiência, sei que muitos clérigos atravessam etapas de dúvida e confusão. A sua é uma vocação difícil. As pessoas podem pôr boa cara e subir ao púlpito para pronunciar um sermão todo domingo, e isso não significa que não possa perder-se em um deserto desta espécie... durante um tempo. - Seu semblante refletia uma grande tristeza. —Estou muito penalizado.

—Ninguém previa uma coisa assim - disse Pitt para tranqüilizá-lo, compartilhando sua culpa. —Onde está a senhora Parmenter? sofreu alguma ferida considerável?

O médico o olhou fixamente.

—Só alguns machucados. Estará dolorida, e desfigurada, durante uns dias, mas não é nada irreparável. Tinha o ombro esquerdo quase deslocado, mas melhorará. - Ainda parecia surpreso e confuso. —Felizmente é uma mulher ágil, de boa saúde, e considerável coragem. Deve ter lutado com unhas e dentes para salvar a vida. - Apertou os lábios. —Quanto a seu estado emocional, é já outro assunto. A esse respeito, não posso oferecer um juízo. Deixei-lhe um sedativo, que se negou a tomar até que fale com você, sabendo que teria que interrogá-la sobre a tragédia. Mas, por favor, seja o mais breve possível. Proceda com toda a compaixão e discrição que seu dever lhe permitam.

—Terei-o em conta - prometeu Pitt. Agora lhe agradeceria que examinasse o cadáver do reverendo Parmenter e me ponha à corrente de quanto averigúe sobre as circunstâncias da morte. Meu sargento está no gabinete. Deixará-o entrar e fechará com chave quando se for.

—Duvido que possa lhe proporcionar informação útil, mas o examinarei, naturalmente. Realizará-se uma autópsia, suponho.

—Sim, claro, mas dê uma olhada de qualquer modo se não se importar.

Pitt se afastou para deixar sair o médico. Depois entrou e fechou a porta.

Era um aposento amplo, deliciosamente mobiliado, feminino e menos exótico que as áreas comuns da casa. Não obstante, percebiam-se detalhes do gosto original e atrevido de Vita, pinceladas de cor oriental: azul elétrico, vermelho vivo. Vita Parmenter estava na cama, reclinada sobre vários travesseiros. O primeiro que chamou a atenção do Pitt foi o sangue, que impregnava o peitilho do vestido e salpicava a pele clara de sua garganta. Pelo contraste, ressaltava mais ainda a lividez quase cinzenta de seu rosto. Sua criada, a senhorita Braithwaite, achava-se de pé a uns passos dela com um copo na mão. Estava exausta.

—Desculpe minha intromissão, senhora Parmenter - disse Pitt. —Teria preferido não importuná-la neste momento, mas não resta outra alternativa.

—Compreendo-o - respondeu ela em um sussurro. —Você só cumpre com seu dever. Em qualquer caso, provavelmente seja mais fácil falar disso agora que não voltar a revivê-lo toda manhã. Por alguma razão, explicar esta espécie de coisas a alguém, alguém externo à família, proporciona certo desafogo. Parece-lhe isso... egoísta? - Olhou ao Pitt com expressão grave.

—Não. - Pitt se sentou na cadeira da penteadeira sem esperar que lhe oferecesse assento. —É natural. Por favor, me conte o ocorrido tão exatamente como lhe é possível.

—Por onde começo?

—Por onde quiser.

Vita refletiu por uns instantes e depois tomou ar.

—Não sei bem que hora era. - clareou a garganta com visível esforço. —Acabava de me trocar para o jantar. Braithwaite tinha descido ao refeitório um momento antes. Era a hora do jantar do serviço. Os criados comem antes que nós, mas suponho que isso já sabe. Sim, claro que sabe. - Piscou. —Perdoe, estou indo pelos ramos. Custa-me pôr em ordem minhas idéias. - Abria e fechava as mãos sobre as mantas da cama. —decidi ir ver como estava Ramsay, com a esperança de poder falar com ele. Estava uns dias muito... só. Raramente saía do gabinete. Pensei que possivelmente poderia convencê-lo para que, ao menos, descesse para jantar conosco. - Olhou para o rosto de Pitt. —Se me perguntar por que, em realidade não estou muito certa. Nesse momento me pareceu o mais normal, uma boa idéia. - Teve um ataque de tosse, e a senhorita Braithwaite se aproximou para lhe oferecer o copo. —Obrigada - murmurou Vita, e tomou um gole.

Pitt aguardou.

Vita voltou a clarear a garganta e continuou com um débil sorriso de agradecimento.

—Bati na porta do gabinete e esperei que Ramsay respondesse para entrar. Estava sentado em sua poltrona, com muitos papéis estendidos sobre a escrivaninha. Perguntei-lhe como ia o trabalho. Pareceu-me um comentário inofensivo... e muito natural. - Olhou ao Pitt como se suplicasse sua aprovação.

—Muito natural, sem dúvida - concordou ele.

—Me... aproximei-me da escrivaninha e peguei um de seus papéis. - Sua voz se apagou de repente. —Era uma carta de amor, delegado. Muito... apaixonada e muito... muito gráfica. Em minha vida nunca tinha lido algo semelhante. Ignorava que as pessoas.... as mulheres.... empregassem essa linguagem, e inclusive que pensassem nesses termos. - Deixou escapar uma risada nervosa. Era claro que se sentia perturbada. —Fiquei de pedara, admito-o. Suponho que o assombro se via em meu rosto. Era inevitável.

—Era uma carta de uma mulher a um homem? - perguntou Pitt.

—Sim, sim. O... conteúdo deixava muito claro. Como disse, senhor Pitt, era muito... explícita.

—Entendo.

Vita baixou a vista e voltou a erguê-la imediatamente, fixando-a em Pitt.

—Era a letra de Unity Bellwood. Conheço-a bem. Vi muitas vezes escritos seus pela casa. Ao fim e ao cabo, para isso a contratou.

—Entendo -repetiu Pitt. —Continue.

—Logo percebi que meu marido tinha mais cartas na mão. Também eram cartas de amor, mas muito mais... moderadas. Mais espirituais, se quiser.... muito mais... - Voltou a rir. Era uma risada entrecortada, fruto da dor. —Muito mais de acordo com o estilo do Ramsay.... com circunlóquios, dando a entender o mesmo mas sem chegar a expressá-lo claramente. Ramsay sempre preferiu ser... metafórico, ocultar o físico e emocional atrás de alguma paráfrase espiritual. Mas, eufemismos à parte, deviam dizer o mesmo.

Pitt não deveria ter se surpreendido. Uma vez conhecida a morte do Ramsay, deveria ter estado preparado para algo assim. Uma paixão contida, uma necessidade reprimida e negada durante muito tempo, quando se desata, aflora à superfície de maneira desenfreada, escapa a qualquer forma de controle, e pode destruir não só as pautas de uma vida produtiva e segura mas também a moralidade e convenções anteriores, e inclusive as normas do bom gosto. E entretanto Pitt não saía de seu assombro. Não tinha percebido em Ramsay mais que um clérigo de meia idade afligido pelas dúvidas espirituais, envelhecido prematuramente porque no futuro via só um deserto da alma. Como podia Pitt haver-se equivocado de um modo tão estrepitoso?

—Lamento-o - sussurrou.

Vita lhe sorriu.

—Obrigado. É muito considerado, delegado; muito mais do que seu dever exige. - estremeceu e afundou os ombros, encurvando-se um pouco entre os travesseiros. —Ramsay deve ter notado minha expressão. Não dissimulei meus sentimentos.... minha estupefação... e minha... repugnâcia. Talvez se tivesse... -Baixou a vista e por um momento pareceu incapaz de prosseguir.

A senhorita Braithwaite permanecia impotente junto a ela, se aproximando e retirando o copo, sem saber o que fazer. Seu semblante refletia vividamente sua angústia.

Vita recuperou o domínio de si mesma com manifesto esforço. —Sinto-o - murmurou. —Não recordo o que lhe disse. Possivelmente me faltou tato... ou prudência. Encetamo-nos em uma discussão espantosa. Ele parecia ter perdido o juízo por completo. Começou a comportar-se como um louco. - aferrou-se à sianinha bordada do lençol. —Jogou-se sobre mim, me dizendo que não tinha direito a violar sua intimidade lendo suas cartas pessoais. - Baixou ainda mais a voz. —Me chamou de tudo.... insultos espantosos: ladra, filistéia, intrusa. Acusou-me de lhe arruinar a vida, de consumir sua paixão e sua inspiração. Disse-me que era uma sanguessuga, uma sangria para seu espírito, uma mulher indigna dele. - interrompeu-se súbitamente. Ao cabo de uns segundos reuniu novas forças para continuar. —Estava tão furioso que suas palavras eram quase incoerentes. Parecia ter perdido totalmente o controle de seus atos. Jogou-se sobre mim, com as mãos estendidas, e me pegou o pescoço. - levou os dedos à garganta, mas não a tocou. Tinha a pele avermelhada e começava a escurecer-se por causa do incipiente hematoma.

—Continue - insistiu Pitt com delicadeza. Vita desceu lentamente as mãos e olhou Pitt no rosto. —Não podia fazê-lo entrar em razão, não podia sequer falar. Tentei apartá-lo, mas ele era muito mais forte que eu. -Tinha a respiração ofegante. Pitt via agitar-se seu peito. —lutamos. Sentia crescer a pressão de suas mãos ao redor do pescoço. Mal podia respirar. Temia que queria me matar. Então... vi o canivete na escrivaninha. Agarrei-o e o cravei. Minha intenção era feri-lo no braço, para que a dor o obrigasse a me soltar, e assim poder escapar. – Moveu a cabeça em um gesto de negação, os olhos arregalados —Não podia gritar. Não podia emitir som algum. - Voltou a interromper-se.

—Compreendo-o - disse Pitt.

—Então... apontei para o braço, para o ombro, onde não pudesse falhar. Temia que se tentasse feri-lo mais abaixo, transpassasse só a manga. - Respirou fundo e expulsou o ar em silêncio. —Descarreguei o golpe com toda minha força, a ponto já de me desmaiar por falta de ar. Ele deve ter se movido. - Empalideceu mais ainda. —Afundei-lhe o canivete no pescoço. - Sua voz era quase inaudível, como se umas mãos lhe oprimissem ainda a garganta. —Foi horrível, o pior momento de minha vida. Ele caiu de costas.... me olhando como se não pudesse acreditar. Por um instante tornou a ser ele, o Ramsay de sempre, cordato, sensato, cheio de ternura. Havia... sangue... por toda parte. - Lhe empanaram os olhos. —Não sei o que fiz depois Estava tão aterrorizada... Acredito que me ajoelhei junto a ele. Não sei. Tudo se tornou impreciso, distorcido pelo terror, pela dor... O tempo se deteve. - Engoliu a saliva com dificuldade. Devia lhe doer a garganta. —Depois desci para   pedir auxílio.

—Obrigado, senhora Parmenter - disse Pitt com gravidade. Enquanto ela falava, Pitt tinha observado discretamente seu rosto, suas mãos, as manchas de sangue do vestido. Tudo concordava com sua versão do ocorrido e com o que ele mesmo tinha visto no gabinete. Não havia razão alguma para duvidar que a tragédia se desenvolvera tal como ela contava. —Certamente agora desejará banhar-se e trocar de roupa, e possivelmente tomar o sedativo que lhe deixou o médico. Não a incomodarei mais por esta noite.

—Sim. Sim, isso farei - respondeu Vita. estremeceu-se e puxou o lençol para cobrir-se até o pescoço, mas não acrescentou nada mais.

Pitt a deixou e voltou para o gabinete. Devia falar com o médico e com as duas filhas, e ele ou Tellman teriam que interrogar à criadagem. Talvez alguém tivesse ouvido algo. Em realidade pouco importava se tinham ouvido ou não algo; o resultado seria o mesmo. Era uma simples comprovação.

Eram quase doze da noite quando Pitt se apresentou na casa do Cornwallis e o criado o deixou entrar. Este se tinha retirado já para descansar e o tinha despertado a campainha. pôs-se precipitadamente uma calça, mas em cima levava ainda a camisa de dormir e tinha o cabelo arrepiado no alto da cabeça, onde não tinha chegado o pente.

—Sim, senhor? - disse com certa frieza.

Pitt se desculpou.

—Imagino que o senhor Cornwallis se deitou já, mas preciso vê-lo urgentemente. Sinto muito.

—Sim, senhor, deitou-se já. Posso lhe transmitir alguma mensagem, senhor?

—Sim - assentiu Pitt. —Diga-lhe que está aqui o delegado Pitt para lhe comunicar uma notícia que não pode esperar o manhã.

O criado fez uma careta de desagrado, mas não discutiu. Ao passar junto ao telefone pendurado na parede, lançou-lhe um eloqüente olhar, mas se absteve de recomendar ao Pitt sua utilização em futuras ocasiões. Deixou ao Pitt no salão, uma cômoda estadia em extremo masculina, com poltronas de couro, livros, e lembranças tais como uma vistosa concha gigante das Índias, um lustroso canhão de bronze em miniatura, uma comamusa de madeira, dois ou três fragmentos de âmbar cinza e um prato de porcelana cheio de balas de mosquete. Adornavam as paredes várias marinhas. Os livros eram de gêneros e temas diversos: novelas e poesia, biografias, volumes de ciências e história. Pitt sorriu ao ver ali Emma de Jane Austen, Silas Marner do George Eliot e os três tomos da Divina Comedia de Dante.

Cornwallis apareceu em menos de dez minutos, totalmente vestido e com duas taças de conhaque.

—O que ocorre? - perguntou, fechando a porta ao entrar e entregando a Pitt uma das taças. —Algo espantoso, a julgar por sua expressão e pela hora de sua visita.

—Infelizmente Parmenter perdeu por completo o juizo e atacou sua esposa. Ela se defendeu e o matou na resistência.

Cornwallis ficou atônito.

—Sim, já sei - concedeu Pitt. —Parece absurdo, mas ele tentou estrangulá-la, e ela, ao notar que lhe faltava o ar, pegou um canivete da escrivaninha com o propósito de cravar-lhe em um braço. Segundo a senhora Parmenter, ele se moveu no último momento e ela descarregou o canivete com toda sua força apontando ao ombro, mas errando e por desgraça acertou no pescoço. - Tomou um gole de conhaque. A consternação do Cornwallis era evidente. Tinha o rosto contraído em um vislubre de pesar e o corpo tenso, como em gesto de parar um golpe. Permaneceu imóvel durante um momento. Pitt se perguntou se pensava acaso no bispo e sua reação, e em que depois de tudo seria possível manter a máxima reserva e resolver o assunto tal como ele desejava.

—Maldita seja! - exclamou por fim Cornwallis. —Não imaginava que esse homem estivesse tão... que seu estado mental fosse tão precário. E você?

—Não - admitiu Pitt. —Tampouco seu médico. Avisaram-no para atender à senhora Parmenter, e o interroguei. Naturalmente, examinou também o cadáver, mas não descobriu nada que pudesse nos ser de utilidade.

—Sente-se - ofereceu Cornwallis, assinalando as poltronas. Pitt aceitou agradecido. Até esse momento não se dera conta de quão esgotado estava. —Não existe a menor duvida sobre o ocorrido, suponho? - perguntou, olhando ao Pitt com curiosidade. —Não poderia tratar-se de um suicídio, e que a esposa tentasse encobri-lo?

—Um suicídio? - repetiu Pitt com perplexidade. —Não.

—Bom, é uma possibilidade - insistiu Cornwallis. —Ao fim e ao cabo, não demonstramos que ele matasse a essa mulher, Unity Bellwood. O suicídio, por outra parte, é um pecado aos olhos da Igreja.

—Sim, mas tentar assassinar à própria esposa tampouco está muito bem visto - replicou Pitt.

Embora no olhar de Cornwallis aparecesse um brilho de humor, seu rosto continuava tenso.

—Mas não o conseguiu. Pode ser que se propôs matá-la, mas não é possível castigá-lo por isso... quando em todo caso está morto.

—Tampouco se pode castigar a uma pessoa por suicidar-se - replicou Pitt com tom irônico.

—Sim, sim pode se contradisse Cornwallis. —Pode-se enterrá-la em terra não consagrada. E a família sofre.

—Em todo caso, não foi um suicídio.

—-Tem certeza?

—Sim. O canivete tinha que estar forçosamente na mão dela, não na dele.

—Lado esquerdo da garganta ou lado direito? - perguntou Cornwallis.

—Esquerdo.... correspondendo, pois, com a mão direita da senhora Parmenter.

Segundo sua descrição do incidente, achavam-se cara a cara.

—O canivete poderia, portanto, ter estado na mão dele?

—Não acredito, não nesse ângulo - respondeu Pitt. Cornwallis apertou os lábios.

Afundou os punhos nos bolsos e olhou aflito ao Pitt.

—Está convencido, pois, de que Parmenter matou ao Unity Bellwood?

Pitt esteve a ponto de assentir, mas se deu conta de que, para ser sincero, preocupavam-lhe ainda certas incoerências do caso.

—Não me ocorre outra resposta melhor, mas pressinto que algo importante me passou inadvertido - admitiu. —Possivelmente nunca saberemos. Ou possivelmente as cartas contribuam com alguma explicação.

—Que cartas? - inquiriu Cornwallis.

—Essa foi a causa da briga, uma coleção de cartas de amor entre o Unity e Parmenter, muito explícitas por parte de Unity, segundo a senhora Parmenter. Quando ele se sentiu descoberto, perdeu completamente o controle.

—Cartas de amor? - Cornwallis estava confuso. —por que se escreviam cartas? Viviam na mesma casa. Trabalhavam juntos todos os dias. Quer isso dizer que se conheciam antes de que ele a contratasse?

Esse ponto com efeito parecia requerer uma explicação. Pitt deveria ter pensado antes nisso mas, surpreso pelo caráter das cartas, não tinha parado a considerar isso.

—Não sei. Não perguntei à senhora Parmenter se as cartas levavam data.... nem por que estavam todas juntas, seja dito de passagem. O lógico seria que ela tivesse as dele, e ele as dela.

—Assim, o pai do menino era Parmenter - deduziu Cornwallis com manifesta decepção. Possivelmente em um jovem lhe teria sido mais fácil compreender e perdoar aquela fraqueza, embora a idade não fizesse às pessoas imunes à paixão, as necessidades, a vulnerabilidade ou a confusão do amor, ou dos arrebatamentos de apetite físico, mesmo que depois deixassem um rastro de dor e vergonha. Estava Cornwallis tão à margem da vida em terra firme, pelo que correspondia tanto a homens como a mulheres, que não se deu conta disso?

—Isso parece - concedeu Pitt. —Embora nunca teremos a total segurança, posto que os dois morreram.

—Que desastre! - disse Cornwallis com semblante pesaroso, como se de repente tivesse percebido claramente a futilidade daquilo. —É tudo tão... desnecessário. O que tiraram com isso? Umas quantas horas de abandono A... a que? - deu de ombros. —Não ao amor. Desprezavam-se mutuamente. Não concordavam em nada. E já vá a que preço! - Olhou ao Pitt no rosto. —Como é possível que um homem se desequilibre até o ponto de jogar por terra o esforço e a fé de toda uma vida... por algo que sabia que duraria só umas semanas e ao final careceria de valor? Por que? Padecia alguma forma de loucura que pudesse reconhecer um médico? Ou tinha sido sua vida até agora uma mentira?

—Não sei - respondeu Pitt com sinceridade. —Me desconcerta tanto como a você. Essa atitude parece imprópria do homem com quem eu falei. É como se houvesse uma espécie de desdobramento em sua mente, como se coexistissem dois homens nele.

—Mas está convencido de que foi ele quem empurrou ao Unity, com intenção de matá-la ou não? Quer dizer, isto vem demonstrá-lo, não?

Pitt o olhou. Vendo a expressão do Cornwallis, não estava certo se lhe pedia uma resposta tranqüilizadora, para poder esquecer-se já do assunto, ou se expunha uma pergunta aberta à possibilidade de uma resposta negativa. Sabia que o irritava ter que dar a razão ao bispo, e por conseguinte também ao Smithers, mas teria permitido que isso incidisse em sua decisão.

—Não responde - disse Cornwallis.

—Porque suponho que não tenho a total certeza - admitiu Pitt. —Pressinto que algo não encaixa, porque não consigo compreendê-lo. Mas tudo induz a pensar que foi isso o que ocorreu.

Cornwallis encurvou os ombros.

—Obrigado por ter vindo dizer me pois irei informar ao bispo amanhã a primeira hora.

Em sua juventude, Reginald Underhill madrugava e atacava suas obrigações com uma diligência de acordo com sua considerável ambição. Agora que gozava de uma posição segura, considerava que podia ficar na cama até muito mais tarde e pedir que lhe subissem o café da manhã e inclusive os jornais. assim, não lhe agradou que seu valete entrasse no quarto às oito com a notícia de que o senhor Cornwallis estava abaixo e desejava vê-lo.

—O que? Agora? - disse, mal-humorado.

—Sim, sua senhoria, isso temo - respondeu o valete, também consciente de quão inoportuna era a visita.

O bispo não se vestira nem tinha lavado nem se barbeado, e não gostava das pressas. Só havia uma coisa pior que a pressa: que o surpreendessem a com o cabelo alvoroçado e aspecto desalinhado. Isso o despojava de toda dignidade. Era difícil manter às pessoas em seu lugar se a pessoa levava ainda a camisa de dormir, e o cabelo cinza da barba aparecia nas faces e queixo.

—Por Deus, o que quer? - perguntou o bispo com aspereza. —Não pode voltar a uma hora menos inoportuna?

—Deseja sua senhoria que o pergunte?

O bispo se embrulhou um pouco mais entre os mornos lençóis de sua cama.

—Sim, boa idéia. Disse o que queria?

—Sim, sua senhoria, é por algo relacionado com o reverendo Parmenter. Acredito que se produziu um giro dramático no caso. O senhor Cornwallis pensou que devia sabê-lo imediatamente. - Um sorriso apareceu fugazmente no semblante do criado. —Antes de que ele empreenda alguma ação que sua senhoria julgue desacertada.

O bispo apertou os dentes e se absteve de proferir uma palavra que não desejava empregar em presença do valete. Afastou as mantas e saiu da cama de muito mau gênio, unido ao temor que começava a invadi-lo.

Isadora se tinha levantado cedo. Em geral, essas horas em que Reginald continuava deitado eram sua parte do dia preferida. À medida que avançava o ano, amanhecia mais cedo cada semana. Aquela manhã em particular era ensolarada, e a intensa luz caía em cegadores raios oblíquos sobre o chão da sala de jantar. Gostava de tomar o café da manhã sozinha. Sentia uma paz extraordinária.

Quando a criada lhe anunciou que o senhor Cornwallis estava no vestíbulo, assombrou-se, mas a seu pesar, e até sabendo que se os visitava aquela hora devia trazer más notícias, experimentou uma súbita agitação.

—Pergunte-lhe se quer reunir-se comigo - se apressou a dizer, com menor dignidade do que pretendia. —Ou melhor dizendo, lhe pergunte se quer tomar uma xícara de chá.

—Sim, senhora - respondeu a criada, obediente.

Ao cabo de um momento, entrou Cornwallis. Isadora advertiu imediatamente a amargura que escurecia seu rosto. Não era a simples dor de uma tragédia, mas o complexo mal-estar resultado da indecisão e vergonha.

—Bom dia, senhor Cornwallis. Sinto-o muito, o bispo ainda não desceu - disse sem necessidade. —Por favor, tome o café da manhã comigo se o desejar.

—Bom dia, senhora Underhill. Obrigado - aceitou, sentando-se frente a ela, evitando ocupar a cadeira da cabeceira da mesa.

Depois de lhe encher a xícara com o enorme bule de prata, Isadora lhe ofereceu leite e açúcar.

—Deseja também alguma torrada? Temos mel, geléia de laranja e geléia de damasco.

Cornwallis aceitou de novo, pegando timidamente uma torrada e passando manteiga. Escolheu a geléia de damasco.

—Lamento importuná-los a esta hora da manhã - se desculpou ao cabo de um momento. —Possivelmente deveria ter vindo mais tarde, mas não desejava que o bispo se inteirasse por outro meio.

De repente Cornwallis ergueu a vista e a dirigiu para a Isadora. Tinha os olhos de cor avelã claro e o olhar franco. Ela imaginou as mais diversas expressões naqueles olhos, mas nenhuma evasiva ou enganosa. Imediatamente se reprovou essa espécie de pensamentos. Assim que concluir-se aquele desventurado assunto do pobre Parmenter, provavelmente não voltaria a ver Cornwallis. De repente a assaltou uma terrível sensação de isolamento, como se, se tivesse posto o sol, apesar de que seus raios seguiam iluminando a mesa. Mas agora a luz era dura, solitária, revelava um vazio. Isadora desceu o olhar e o fixou em seu prato. Já não desejava terminar a torrada que uns segundos antes lhe parecia tão deliciosa.

—Suponho que se produziu algum acontecimento importante - disse, envergonhando-se de que sua voz soasse tão empanada.

—Isso temo - respondeu ele. —Sinto muito ter irrompido assim, antes inclusive de que tenham iniciado seus trabalhos diários. Foi uma estupidez de minha parte...

Cornwallis se sentia desconfortável. Isadora o percebia em sua voz, quase o apalpava. Obrigou-se a erguer a vista e sorrir.

—Não se preocupe. Se tiver uma notícia que nos comunicar, esta é tão boa hora como qualquer outra. Melhor inclusive, posto que nos dará tempo para pensar e tomar as decisões pertinentes. Pode me dizer o que aconteceu?

Cornwallis notou que sua tensão se desvanecia, apesar do fato de que se dispunha a falar da questão que o tinha levado ali. Tomou um gole de chá e olhou a Isadora nos olhos. Com toda a delicadeza possível, contou o ocorrido.

Isadora ficou horrorizada.

—Santo Deus! Está muito ferido?

—Por desgraça, morreu. - Cornwallis a observou com expressão de ansiedade. —Sinto muito. Talvez não deveria tê-lo dito até que o bispo se achasse presente. - Invadiu-o uma profunda consternação. Fez gesto de levantar-se, temendo que ela fosse perder a consciência e necessitasse ajuda. —Sinto muito...

—Por favor, senhor Cornwallis, sente-se apressou a dizer Isadora, embora em realidade se sentia um pouco enjoada. Era uma reação absurda. —Lhe asseguro que me encontro perfeitamente. De verdade.

—Sim? - Brilhavam os olhos de Cornwallis, e rugas de inquietação sulcavam seu rosto. ficou de pé, sem saber o que fazer.

—É claro. Possivelmente não imagina quantas vezes tem que confrontar o anúncio de uma morte a esposa de um bispo. Isso faz uma parte de minha vida muito maior do que eu desejaria, mas se as pessoas não podem ir à Igreja em situações extremas e momentos de grande dor, o que fica?

Cornwallis voltou a sentar-se.

—Não me tinha parado para pensar nisso. Mesmo assim, deveria ter sido mais considerado.

—Pobre Ramsay - se lamentou Isadora. —Achava conhecê-lo, mas é claro que não o conhecia absolutamente. Devia estar forjando-se em seu interior uma escura tempestade que ninguém percebeu. Que amarga solidão devia sentir, levando essa carga sobre os ombros!

Cornwallis a contemplava com uma ternura quase diáfana. Isadora o viu em seu semblante, e em seu interior começou a brotar um quente afeto, até que inconscientemente lhe sorriu.

Abriu-se a porta do comilão e entrou o bispo, fechando-a outra vez com brutalidade.

—Melhor será que nos deixe, Isadora - disse sem mais preâmbulos, dando uma olhada ao prato e a xícara de chá meio vazia de sua esposa. Ocupou seu lugar à cabeceira da mesa. —O senhor Cornwallis traz alguma notícia, deduzo.

—Já estou inteirada - respondeu ela sem mover-se. —Quer um chá, Reginald?

—Quero o café da manhã! - respondeu o bispo com tom mordaz. —Mas suponho que não fica mais remédio que ouvir antes o que traz por aqui o senhor Cornwallis a estas horas da manhã.

Cornwallis tinha uma expressão sombria e a pele tensa sobre as maçãs do rosto.

—Ontem de noite Ramsay Parmenter tentou estrangular a sua esposa, e ela, em defesa própria, matou-o - explicou cruamente.

—Meu deus! - exclamou o bispo, aniquilado. Olhou ao Cornwallis como se acabasse de agredi-lo fisicamente. —Como...? -Tomou uma baforada de ar. —Como...? - repetiu, e voltou a interromper-se. —Santo céu!

Isadora o observou, tratando de interpretar sua expressão, de ver em seu semblante o reflexo da tristeza e a sensação de fracasso que assolavam a ela. Reginald parecia ausente, como se pensasse em lugar de sentir. Uma vez mais Isadora teve consciência do abismo que os afastava e que ela não sabia como salvar, e pior ainda, nem sequer estava segura de querer salvá-lo.

—Santo céu! - repetiu o bispo, voltando-se ligeiramente para o Cornwallis. —Que trágico desenlace para este desafortunado assunto! Obrigado por vir me avisar com tal urgência. Foi muito considerado de sua parte. Muito gentil. Não o esquecerei. - Esboçou um leve sorriso, sua anterior irritação dissipada ante o repentino alívio. E era sem dúvida um alívio. Isadora o percebeu claramente, não em seu olhar ou no gesto de sua boca -Reginald era muito cauteloso para isso-, mas na relaxação de seus ombros e no modo em que movia as mãos sobre a toalha, sem crispação nos dedos. Uma sensação de repugnância e ira se apoderou dela. Olhou ao Cornwallis, que tinha os lábios apertados e as costas erguidas, como se, se abatesse sobre ele uma ameaça da qual devia proteger-se. Em uma súbita revelação, acreditou saber o que sentia ele: a mesma confusão que ela, uma raiva e uma aversão que não desejava, que o violentavam mas das que não podia escapar.

—Tome outro chá - ofereceu o bispo, erguendo o bule depois de servir-se ele mesmo.

—Não, obrigado - recusou Cornwallis sem pensar sequer.

Uma criada entrou em silêncio e colocou um prato quente de bacon, ovos, batatas e salsichas frente ao bispo. Este aceitou com um gesto de assentimento, e a criada se retirou.

—Obviamente era o que temíamos - prosseguiu o bispo, pegando o garfo e a faca. —Pobre Parmenter. Padecia de uma demência galopante. Um fato trágico. Graças a Deus, não conseguiu matar a sua esposa, a pobre mulher. - de repente ergueu a vista, mantendo o garfo em alto com partes de salsicha e batata. —Ela não ficou ferida com gravidade, suponho? - A possibilidade acabava de ocorrer-lhe de passagem.

—Acredito que não - respondeu Cornwallis laconicamente.

—Visitarei-a ao seu devido tempo. - O bispo levou o garfo à boca.

—Deve estar destroçada - disse Isadora, voltando-se para o Cornwallis. —É difícil imaginar algo pior. Pergunto-me se ela suspeitava que seu marido estava tão... doente.

—Isso já pouco importa, querida - atalhou o bispo com a boca cheia. —Já tudo terminou e não convém que nos atormentemos com perguntas que não podemos responder. - Engoliu a comida. —Agora nossa missão é protegê-la de uma dor e uma angústia ainda maiores evitando que outros se entremetam em sua perda e as causas que a provocaram. Não haverá mais investigação policial. A tragédia se explicou por si só. Não é preciso exigir justiça, porque já se cumpriu conforme à perfeita economia do Todo-poderoso.

Cornwallis fez uma careta de repulsão.

—O Todo-poderoso! - estalou Isadora sem prestar atenção ao rosto de assombro do Cornwallis nem a sibilante inalação do bispo. —Isto não é obra de Deus. Ramsay Parmenter devia estar consumindo-se no desespero e a loucura desde há meses, provavelmente anos, e nenhum de nós notou nada. Nenhum de nós tinha a menor idéia. - inclinou-se sobre a mesa, olhando-os aos dois alternativamente. —Contratou a uma jovem e teve uma aventura com ela. Deixou-a grávida e a matou, querendo ou não. E agora atacou a sua esposa, tentou estrangulá-la, perdendo ele mesmo a vida. E você se senta aí tranqüilamente e diz que tudo terminou... conforme à economia de Deus. - Sua indignação era entristecedora. —Isto não tem nada que ver com Deus. É só uma questão de fracasso e sofrimento humanos. E com duas pessoas mortas e um menino que não chegou a nascer... não vejo a economia por nenhuma parte.

—Por favor, Isadora, controle - disse o bispo entre dentes. —Entendo sua consternação, mas devemos conservar a calma. A histeria não arruma nada. - Falava atropeladamente. —Só queria dizer que o assunto chegou a uma conclusão natural e não serve de nada seguir pinçando nele. E que Deus mesmo será o juiz do ocorrido.

—Não é isso o que queria dizer - respondeu Isadora com raiva. —Queria dizer que agora tudo ficará resolvido sem que seja necessário fazer o menor esforço por evitar o escândalo. O verdadeiro escândalo é que isto era o que queríamos, e que, conhecendo o Ramsay Parmenter desde há tantos anos, não nos déssemos conta de sua desgraça.

O bispo dirigiu um sorriso de desculpa ao Cornwallis.

—Sinto muito. Minha esposa está muito afetada por este imprevisto desenlace. Por favor, perdoe seu arrebatamento em um momento de debilidade. - voltou-se para a Isadora com os lábios apertados. —Possivelmente deveria ir deitar te um momento, querida. Tente se serenar. Logo se achará melhor. Diga ao Collard que lhe prepare uma infusão. Isadora estava lívida. Seu marido a tratava como se tivesse alteradas suas faculdades mentais.

—Não estou doente! Estou refletindo sobre nossa responsabilidade na morte violenta de um de nossos clérigos, e tentando examinar minha consciência para saber se poderíamos e deveríamos ter feito algo mais por lhe ajudar quando ainda estávamos a tempo.

—Francamente... - começou a dizer o bispo, avermelhado.

—Todos deveríamos ter feito algo mais - o interrompeu Cornwallis. —Nós sabíamos que alguém da casa matou Unity Bellwood. Deveríamos ter encontrado a forma de evitar uma segunda tragédia.

O bispo lhe lançou um olhar colérico.

—Considerando que o pobre desventurado padecia de uma loucura incurável, não é uma tragédia que tenha morrido... graças a Deus, não por sua própria mão - corrigiu. —Dadas as já irreparáveis conseqüências, este é o desenlace menos prejudicial que cabia esperar. Acredito, senhor Cornwallis, que já lhe agradeci a gentileza de vir me informar. Parece-me que não temos nenhum outro assunto que tratar, e este felizmente fica resolvido.

Cornwallis ficou em pé, sua expressão uma mescla de confusão e embaraço, como se, se debatesse por reconciliar emoções encontradas, todas elas dolorosas por igual.

Isadora sabia como se sentia Cornwallis. Lhe atormentava o mesmo conflito entre cólera e vergonha.

Cornwallis se voltou para ela.

—Obrigado por sua hospitalidade, senhora Underhill. Bom dia, bispo. - E sem lhe estender a mão, deu meia volta e saiu da sala.

—Acredito que deveria se retirar um momento até que se acalme - disse o bispo a Isadora. —Sua conduta neste assunto não esteve à altura do que esperava de você.

Isadora o olhou fixamente, com uma indiferença da qual nunca se acreditou capaz. Agora que tinha chegado o momento, sentia em seu interior calma e firmeza.

—Diria que os dois nos defraudamos mutuamente, Reginald - respondeu. —Você esperava de mim discrição, e eu não pude ser discreta ante uma coisa assim. Eu esperava de você compaixão e honestidade, e um pequeno exame de consciência para saber se poderíamos e deveríamos ter feito algo mais por compreender a situação antes de chegar a este extremo. E pelo que se vê tampouco você possui a piedade nem a humildade para fazê-lo. Possivelmente tenha direito a se surpreender de minha atitude. Até agora não dei apenas sinais do que sentia. Eu não tenho direito a me surpreender da sua. Sempre foi assim. Simplesmente me negava a vê-lo. - Foi até a porta e a abriu. Ouviu-lhe afogar uma exclamação e começar a falar quando ela saía ao vestíbulo. Não prestou atenção a suas palavras. Cruzou a porta do serviço e se dirigiu às cozinhas, onde sabia que ele não a alcançaria.

Pitt retornou a Brunswick Gardens para esclarecer os últimos detalhes da morte do Ramsay Parmenter. Fazia isso por pura necessidade, não porque esperasse descobrir algo novo.

Deixou-o entrar Emsley, que tinha os olhos avermelhados e aspecto cansado.

—Não é preciso incomodar à senhora Parmenter - disse Pitt enquanto atravessava o vestíbulo. —Não acredito que tenha nada mais que lhe perguntar.

—Bem, senhor - respondeu Emsley com sua habitual diligencia. Pareceu vacilar. Inclusive se diria que manifestou certo nervosismo, se é que tão circunspeto e infeliz personagem era capaz disso.

—O que ocorre? - perguntou Pitt com delicadeza.

—Já sei que não é meu assunto, senhor - disse Emsley, aflito, —mas é necessário que as pessoas da imprensa se inteirem disto, senhor? Quero dizer... quero dizer se não poderia declarar simplesmente que o senhor Parmenter morreu de maneira acidental? Era... - Tomou ar com uma trêmula aspiração e procurou controlar-se. —Era um cavalheiro tão tranqüilo, senhor Pitt... Nunca tratou mal a ninguém desde que eu o conhecia, e servi nesta casa mais de vinte anos. Um homem de uma amabilidade extraordinária, senhor. Sempre tinha tempo... e paciência. Quão pior poderia dizer-se dele é que parecia um pouco distante... como distraído. Esquecia coisas. Mas isso não é um pecado. A maioria de nós somos esquecidos. Estava muito preocupado ultimamente. - Emsley engoliu a saliva e fungou. —Por toda essa questão do Darwin e os macacos. Tinha-o afetado muito. - Contraiu o rosto. —Às vezes desejaria lhe dizer que isso não eram mais que tolices, mas eu não sou alguém para dizer essas coisas.... ao menos a pessoas como o senhor, sendo ele um clérigo.

—Em minha opinião, não importa quem o diga se for verdade - respondeu Pitt. —E certamente não facilitarei a ninguém informação desnecessária. Tampouco acredito que a senhora Parmenter o faça. Por certo, como se encontra ela esta manhã?

—Não a vi pessoalmente, senhor, mas diz Braithwaite que está muito alterada, como é lógico, e que sente agora o pleno efeito da comoção. Mas é uma mulher valente. Precisa ver alguém, senhor? Posso avisar o senhor Mallory de que está aqui, ou ao senhor Corde.

—Poderia dizer à senhora Parmenter que vim, a modo de cortesia - respondeu Pitt. —Mas de momento não tenho que falar com ninguém, obrigado. Tenho que voltar para o gabinete.

—Sim, senhor. Está fechado. A chave a tem você, suponho?

—-Sim, tenho-a eu, obrigado.

—Muito bem, senhor. Desejará alguma coisa? Uma 'xícara de chá, talvez?

—Dentro de uma hora mais ou menos, obrigado - aceitou Pitt, e logo se desculpou, subiu pela escada negra, percorreu o corredor até o gabinete e abriu a porta.

Tudo continuava tal como o tinha deixado. Havia ainda manchas de sangue no tapete. O canivete estava em um canto, onde tinha caído. Não existia dúvida alguma de que era a arma, nem a suspeita de que o houvesse tocado alguém mais. Era uma prova, mas não havia nada que questionar.

Ficou de pé observando-o, tentando representar o ocorrido. Em um sentido estritamente físico, era fácil imaginar a cena, mas o que tinha ocorrido entre Ramsay e Vita nos anos que tinham desembocado naquilo? Ou mais corretamente, o que tinha ocorrido a ele? Como tinham podido suas dúvidas deformar seu pensamento e seus sentimentos até o ponto de passar de ser um afetuoso marido dedicado a guiar as almas de outras pessoas a ser um homem cuja própria debilidade o tinha induzido a fazer amor com uma mulher que desprezava, em sua própria casa, e a tinha matado depois ao ver-se chantageado por ela... e depois tinha tentado assassinar sua esposa? Possivelmente a demência era a única resposta, assim clara e incompreensível.

Aproximou-se da escrivaninha e começou a examinar os papéis ali empilhados. Se Ramsay e Vita brigaram pelas cartas de amor, estas deviam achar-se muito à vista. Ramsay estava no gabinete quando entrou sua esposa, assim ela não as tinha procurado, mas tinha as descoberto por acaso. E depois Vita não tinha tido oportunidade de trocá-las de lugar.

Havia um texto sobre são Paulo. Outra folha, dobrada, continha o rascunho de um sermão sobre a Epístola de são Tiago intitulado: "Se um homem carecer de sabedoria, que pergunte a Deus, que dá generosamente e não repreende." Debaixo havia duas cartas breves de missões no estrangeiro, uma na África e outra na China. Empilhou-as de novo e percorreu com o olhar a superfície da escrivaninha. Viu um exemplar encadernado em couro das Meditações de Marco Aurelio. Um filósofo estóico, além de imperador romano, era uma peculiar leitura para um pastor da Igreja anglicana, mas não talvez para o homem que Pitt tinha conhecido.

Ramsay devia achar o eco de sua própria filosofia na sabedoria mordaz, atrevida e bastante incômoda presente nas páginas daquele livro. Ao lado deste, Pitt achou meia dúzia de folhas escritas com caligrafias claramente distintas. Pegou a primeira.

Era uma letra bonita e precisa, com a "E" aberta, semelhante a épsilon grega. Era a letra do Ramsay, como Pitt pôde comprovar contrastando-a com outros papéis da escrivaninha. Começou a lê-la.

A ti que tão querida é para mim, como posso te expressar a sensação de solidão que me invade quando nos separamos? A distância entre nós é incomensurável, e entretanto os pensamentos a salvam e posso chegar a você em minha mente em tão curto espaço de tempo como o que se requer para achar um rincão solitário onde poder te evocar em meu coração. Então o tempo se desvanece e uma vez mais passeamos e conversamos como antes. Compartilho com você meus sonhos, as explorações da verdade que é sem dúvida nosso maior tesouro. Não sou já um vagabundo entre desconhecidos, mas sim a seu lado sinto-me em casa. Respiramos o mesmo ar, nossos entendimentos não são mais que duas metades de um mesmo todo...

Continuou lendo até o final da folha. Era tudo no mesmo tom, sobre a solidão e a separação, sobre a união do pensamento e dos corações, simbolizada na união entre as pessoas.

A segunda carta era também do Ramsay, e embora abordasse um tema diferente, apresentava idêntico caráter. De novo a solidão era o fio condutor, o desejo de estar juntos, de afastar todas as dificuldades e barreiras que os separavam. A emoção subjacente era sem dúvida profunda, mas expressa mediante metáforas, soterrada sob uma verbosidade extrema. Enquanto lia, Pitt achava estar ouvindo simultaneamente a voz cuidada e um tanto monótona do Ramsay Parmenter. A terceira estava escrita com letra diferente, rápida, exuberante, segura. Aqui o sentido se manifestava sem disfarces. Era apaixonada desde o mesmo começo.

Adorado meu, minhas ânsias de ti não podem expressar-se com palavras. Quando estamos separados, afogo-me em um vazio de solidão, envolta de noite mais fechada. E entretanto me basta pensar em ti, e nem o céu nem o inferno poderiam interpor-se em meu caminho. O vazio desaparece e você está comigo.

Toco-te, abraço-te. Somos um só no coração e na carne. Afogo-me em ti. Toda dor fica esquecida como um sonho.

O prazer de momentos passados volta com todos os ecos da paixão, as esperanças e os terrores compartilhados. Escalamos juntos os estrelados topos da verdade e de ali nos precipitamos nas ignotas profundidades da fé, o maior dom desta vida, a glória máxima da eternidade. Toda minha dor passa a formar parte do passado, afastando-se de mim como as sombras ante o sol nascente. Fundimo-nos o um no outro em um êxtase eterno...

Havia outras três cartas escritas com essa elegante letra. Não era estranho que Vita Parmenter se assombrara e exigira uma explicação a seu marido. O que podia dizer ele?

Pitt voltou a deixá-las onde as tinha encontrado. Sentia-se confuso, superado pela sensação de não estar à altura da missão que lhe tinha encomendado. Não tinha compreendido Ramsay quando ainda vivia, e por isso não tinha sido capaz de evitar sua morte. E não conseguia afastar de seu pensamento a idéia de que Ramsay poderia ter assassinado a Vita. Em tal caso, Pitt seria também responsável por isso.

Agora sua incompreensão era ainda maior. Tinha lido as cartas de amor, e qualquer um entenderia que pudessem provocar uma briga. Era inevitável desde o momento mesmo em que Vita as vira.... como o teria sido de fato se as tivesse descoberto outro membro da família, ou inclusive Dominic. Mas por que as tinha deixado Ramsay sobre a escrivaninha, à vista? Por que tinha tanto as dele como as dela? Cabia supor que as tinha recuperado de entre os pertences de Unity depois da morte desta.

Se tivesse agido com um mínimo de sensatez, teria destruído-as imediatamente. Acaso a amava ainda, ou estava tão obcecado com ela que tinha sido incapaz de fazê-lo, apesar do risco que representavam? Tinha abandonado toda esperança de evitar as conseqüências de seu crime? limitava-se a esperar o inevitável?

E entretanto, até percebendo a desenfreada paixão que subjazia naquelas cartas, Pitt não conseguia ver nelas nem Ramsay nem Unity. A forma de expressar-se coincidia com o que tinha visto dele e ouvido dela. Mas não assim as emoções.

Continuava sem poder imaginá-los apaixonados um pelo outro, e menos ainda com aquele ardor. O que era uma prova evidente da magnitude de seu próprio fracasso naquela investigação.

Suspirou e começou a revistar as gavetas da escrivaninha. Continham a habitual contabilidade pessoal e cartas corriqueiras relacionadas com o trabalho pastoral do Ramsay. Leu-as por simples rigor profissional. Eram ainda mais áridas do que esperava, as mesmas frases pedantes repetidas em todas elas. Possivelmente suas palavras eram sinceras, mas custava acreditar nelas por causa de sua extrema frieza.

Na seguinte gaveta havia mais cartas. Eram de distintas pessoas: colegas, paroquianos, amigos. Deu-lhes uma olhada superficial. Em sua maioria datavam de vários anos atrás, conservadas aparentemente por seu valor sentimental. Entre elas achou uma do Dominic. Lê-la era uma violação de sua intimidade, mas, até consciente disso, não pôde evitar.

 

Querido Ramsay:

Sei que em nossas conversas lhe disse já muitas vezes, e mesmo assim, desejo expressar por escrito minha gratidão pela infinita paciência que demonstrou comigo. Às vezes o tratei com aspereza. Recordo com culpa e vergonha as horas que dedicou a me fazer entrar em razão, e eu repetia uma e outra vez as mesmas objeções egoístas. Entretanto sua bondade para mim nunca decaiu, nem tive jamais motivos para pensar que valorizava mais seu tempo que a mim. Possivelmente, mais que suas palavras, foi seu exemplo o que me serviu para entender o que é velar pelos necessitados. Se fosse capaz de seguir seus passos de maneira que algum dia alguém, graças a minhas ações, sentisse o júbilo que eu sinto agora, minha vida inteira alcançaria uma plenitude a que de momento só posso aspirar.

A melhor forma de lhe agradecer isso e a que sei que mais valorizará, é tentar ser como você.

Minha gratidão nunca se debilitará.

Seu leal amigo, DOMINIC CORDE.

 

Pitt voltou a pregar a folha com uma entristecedora sensação de tristeza. Por um momento conseguiu ficar no lugar de Dominic de um modo que jamais teria acreditado possível. Compreendeu de repente sua dor, a oportunidade perdida que nunca voltaria a apresentar-se. Sempre o reprovaria. E a carta devia possuir um grande valor para o Ramsay, porque a tinha guardado entre outras poucas amostras de amizade recebidas ao longo dos anos. Algumas levavam data de sua época universitária.

Não havia nenhuma de Vita. Possivelmente não tinham mantido correspondência, ou se o tinham feito, talvez a guardasse em outro lugar, possivelmente seu quarto. Pouco importava.

Olhou na gaveta inferior. Continha unicamente mais cartas referentes a seu trabalho. Várias delas guardavam relação com o livro que estava escrevendo. Pitt lhes deu uma rápida olhada. Eram todas breves e secas. Encontrou uma de Unity.

Reconheceu a letra imediatamente. Estava datada a finais de 1890, quer dizer, pouco mais de três meses atrás. Era sua solicitude do posto que finalmente tinha obtido.

 

Estimado reverendo Parmenter:

Tenho lido suas obras anteriores com supremo interesse, e sinto um profundo respeito por sua erudição e suas lúcidas e reveladoras explicações a respeito de alguns pontos que antes eu não compreendia plenamente, ou para lhe ser justa, nem eu nem outros mais doutos que eu a quem tinha exposto minhas dúvidas.

Soube que se dispõe a escrever outro livro que exigirá a investigação e tradução de cartas e documentos originais em línguas clássicas. Eu sou especialista em aramaico e grego e tenho conhecimentos básicos de hebreu. Anexo meu curriculum acadêmico, assim como referências de meus anteriores empregos, com os nomes e gestos de quem pode corroborar minhas aptidões.

Humildemente, mas com todo o encarecimento que a discrição permite, rogo-lhe que me tenha em conta para o posto de ajudante nessa importante empresa. Acredito possuir os méritos acadêmicos necessários, e não achará a outra pessoa com mais fé em seu trabalho, nem mais admiração por você como o único homem capaz de levá-la a cabo dignamente.

Escrevo-lhe com as maiores esperanças, e aproveito a ocasião para saudá-lo atentamente.

UNITY BELLWOOD.

 

Pitt dobrou a folha e a deixou com as cartas de amor. Era outro elemento que vinha a somar-se a sua confusão. Unity tinha escrito a carta como uma desconhecida, e entretanto isso tinha sido só seis ou oito semanas antes de ficar grávida. Era um prazo muito curto para que tivesse nascido entre eles uma paixão tão tórrida.

Nessa gaveta havia algo mais. Ramsay guardava ali uma grosa caderneta encadernada em couro marrom. Folheando-a, Pitt percebeu que não era um diário pessoal, mas uma série de reflexões e idéias diversas. Tentou ler um par de páginas, encontrando as de difícil compreensão. Parte das notas estavam aparentemente em latim, e algumas outras escritas em uma espécie de taquigrafia concebida pelo próprio Ramsay. Levaria ela também e a examinaria junto com a última carta mais tarde, quando dispusesse de um momento livre.

Não tinha nada mais que fazer ali. Falaria com Vita, e possivelmente com Dominic, e depois pediria um informe ao Tellman de suas averiguações e se ocuparia dos formalismos. Os casos de Unity Bellwood e Ramsay Parmenter estavam fechados, não de maneira satisfatória mas fechados de todo modo.

 

Pitt voltou para casa cedo. Agradava-lhe poder passar um momento com sua família. O informe legista sobre o falecimento do Ramsay Parmenter coincidia com suas previsões. Em um momento de alienação mental, tinha atacado a sua esposa, e ela tinha agido em defesa própria. Conclusão: morte acidental.

Uma vez em casa, obrigou-se a deixar de pensar no assunto e vestiu roupa velha para trabalhar um momento no jardim. Não havia muito que fazer. A época de crescimento mal tinha começado. A erva daninha ainda não tinha começado a estender-se, mas sempre havia algo que limpar ou arrumar. E possivelmente as temperaturas permitiam já plantar as primeiras sementes.

Daniel e Jemima o ajudaram. Cada um deles tinha uma porção atribuída de jardim onde podia cultivar o que quisesse. Daniel tinha decorado a suas basicamente com pedras, que desde há um tempo tinha por costume colecionar, mas continha também um arbusto de fúcsia, nesse momento com um aspecto lamentável.

—Está morta! - exclamou Daniel com tom trágico, e se dispôs a arrancá-la pela raiz.

Jemima o observava imóvel, com os pés juntos e expressão compassiva.

—Provavelmente não - retificou Pitt, detendo o Daniel com uma mão e inclinando-se para examinar a planta em litígio. —ficam assim no inverno. É como se se aninhassem. Quando chegar o calor, despertará e jogará mais folhas.

—Sim? - disse Daniel com ceticismo. —Me parece que está morta. Onde achará folhas novas?

—Crescerão-lhe. Se a cuidarmos, alimentará-se da terra.

— Regá-la? -perguntou Daniel, esperançado.

—Não, acredito que bastará a chuva - respondeu Pitt quando Daniel não tinha dado ainda nem dois passos.

—Bom, e então o que faço? - protestou Daniel.

Pitt pensou por um momento.

—Ponha um pouco de abono ao redor das raízes. Assim estará mais abrigada e terá algo que comer - sugeriu.

—Sim? -disse Daniel, por fim iludido.

Trabalharam alegremente até quase as sete, e depois Daniel e Jemima foram tomar um banho quente -nesse momento muito necessário- e para jantar, e Pitt se trocou de roupa e foi ao salão. Comeu uma menestra de batata, couve e cebola que tinha demasiado do dia anterior, requentada até que a verdura ficara torrada e rangente, junto com um pouco de cordeiro frio, ruibarbo em conserva, e de sobremesa um pedaço de bolo de maçã folhado, acompanhado de creme.

Por volta das nove menos quarto Charlotte ergueu a última carta de Emily para ler-lhe.

—Você a lê? - propôs.

A letra de Emily não se distinguia por seu esmero, e se tornava mais idiossincrásica quanto maior era o entusiasmo com que escrevia.

Pitt sorriu, reclinando-se um pouco mais em sua poltrona e preparando-se para deixar-se entreter, se não pelas viagens de Emily, ao menos por seus comentários a respeito.

"Queridos Charlotte e Thomas." - começou Charlotte. "Suponho que deveria começar dizendo que sinto muito a falta de todos. Em certo sentido assim é. Uma dúzia de vezes ao dia penso no muito que eu gostaria de compartilhar com vocês as maravilhas que vejo e a grande diversidade de pessoas que encontro. Os italianos são pessoas magníficas, transbordante de amor pela vida e a beleza, e muito mais hospitaleiros com os estrangeiros do que eu esperava. Ao menos na aparência. Às vezes acredito perceber algo mais, um cruzamento de olhares entre dois deles, com esses extraordinários olhos escuros, que me leva a me perguntar se não nos considerarem, em segredo, pouco sofisticados e um tanto aborrecidos.”

“Espero não ser assim. Procuro me comportar com dignidade, e não como se esta fosse a primeira vez que vejo tais prodígios: a luz sobre a paisagem, os edifícios antigos, a sensação de história.”

“Ao fim e ao cabo, o que poderia haver mais formoso que a Inglaterra na primavera? Ou no verão? Ou especialmente no outono?”

"Ontem fomos fazer excursão ao Fiesole. Tomara tivéssemos tempo de voltar ali. Que vistas! Ao retornar, demos um rodeio para passar pelo Settignano, e havia um ponto do caminho de onde se via Florênça... um espetáculo assustador. Lembrei-me do velho senhor Lawrence e suas histórias sobre lhe Dêem na ponte. Naquele momento nada parecia impossível, nem sequer improvável.”

"Mas amanhã partimos para Roma. "OH, Roma! Minha pátria! Cidade da alma!", como diz lorde Byron. Morro de impaciência por chegar. Se for como eu espero, como eu a sonhei, um dia, sem importar quem tenha sido assassinado ou como ou por que, também vocês devem fazer as malas e nos acompanhar. Do que serve o dinheiro se a pessoa não pode gastá-lo contemplando as glórias do mundo? Tenho lido muito Byron... se é que isso é possível. Tem sentido algo do que escrevo?”

"Voltarão a receber minhas notícias dali. Com todo meu carinho, Emily”

“P.S.: Jack também lhes manda lembranças, naturalmente."

 

Charlotte sorriu para Pitt por cima das folhas.

—Uma carta muito própria de Emily - comentou ele com profunda satisfação.

—Tenho que lhe escrever. - Charlotte dobrou as folhas e voltou colocá-las no envelope. —Embora não tenho nada tão exótico que lhe contar. Posso lhe falar do lamentável caso que investigou? Porei-a ao corrente com respeito a Dominic, certamente. Isso não é um segredo.

—Sim, lhe fale do pobre Ramsay Parmenter se quer - assentiu Pitt. Não via inconveniente algum. E em todo caso, se fosse necessário, Emily podia mantê-lo em segredo.

—o mencionar ao Ramsay Parmenter, recordou sua caderneta. As notas que continha careciam na aparência de sentido, e entretanto deviam o ter, ao menos para o próprio Ramsay. Mas já não importava. O caso estava fechado. Mesmo assim, não ficaria tranqüilo até ter feito todo o possível por compreender seu fracasso. Como, se não, podia extrair alguma aprendizagem para atuar com mais acerto da próxima vez? Pegou a caderneta e a abriu pelo princípio. A primeira entrada não levava data. Parecia referir-se a um peixe e uma afortunada expedição, ou visita de prazer, a um lugar descrito como "região do verão". As duas páginas seguintes tratavam do mesmo tema. Depois havia uma série de apontamentos, aparentemente idéia para um sermão ou um artigo sobre a vida e a decepção. Não era muito prometedor.

Meia dúzia de páginas mais adiante achou uma alusão ao "senhor" e a "campanária", e um comentário entre signos de admiração, "Que carrilhão deve ser aquele!", seguido da pergunta: "Mas quando?". Depois se lia: "Um repique de sinos, mas a que hora? Um toque de finados, um enterro de outras coisas, provinha daí a chamada à oração?, pergunto-me." E na página seguinte: "Pobre homem!" e "Mas quem é o cadáver andante?".

Charlotte ergueu a vista com expressão de curiosidade.

—Manda minhas lembranças à Emily - disse Pitt.

—Farei-o. O que é isso?

—Uma caderneta de notas do Ramsay Parmenter.

—O que diz? Explica algo?

—-Nada absolutamente. Nem sequer lhe vejo o sentido. São só palavras e frases desconexas.

—Por exemplo?

—Menciona muito ao "senhor" e a "campanária", e alude também a diferentes toques de sinos, e a um cadáver andante. Suponho que tudo é metafórico. Charlotte sorriu.

—Bom, literal não é, certamente, ou isso espero.

—Não, é claro.

—Possivelmente seja metafórico - disse Charlotte. —Embora os toques de sinos parecem uma referência bastante óbvia. Possivelmente são notas sobre ofícios e sermões. Imagino que deverá ir reunindo idéias com muita antecipação para pronunciar um sermão aceitável todas as semanas. Não pode deixar-se para o último momento.

—É possível. Umas páginas antes havia uns comentários sobre a vida e a decepção.

—Um tema deprimente. Possivelmente pretendia explicar algo sobre os verdadeiros valores ou a fé - sugeriu Charlotte, a pena ainda em alto.

—Sobre a fé ainda não encontrei nada. Lerei um pouco mais. Não deixe que a interrompa enquanto escreve a carta para Emily.

Charlotte lhe dirigiu um radiante sorriso.

—Quererá dizer que eu não interrompa mais a você. Captei a sutileza.

Pitt a olhou com afetada inocência e reatou a leitura. Mais adiante voltava a aparecer o pescador. Pelo visto, Ramsay não sentia a menor apreço por ele e o considerava em algum sentido um ladrão, mas não especificava o objeto roubado. Logo se referia de novo ao senhor e a campanária. A letra era ali mais descuidada, como se Ramsay o tivesse escrito sob uma grande pressão emocional:

"A campanária! Onde começou tudo? Isso foi! Que maldição! Outra vez a mesma canção... é isso? OH, senhor, senhor, o que fez? Meu deus, por que?"

Pitt fixou o olhar na página. Refletia uma intensa paixão. Não podia ser uma alusão aos toques de sino de uma igreja. Ninguém demonstraria tal veemência por uma coisa assim. E que sentido tinha escrever sobre isso? Quem era o senhor? Não parecia tratar-se de uma referência religiosa.

Ou era um trocadilho com o sobrenome Bellwood?Uma maneira vagamente indireta de referir-se ao Unity Bellwood? E o senhor? As notas incluíam alguma que outra frase em latim. Senhor... dominus...

—Dominic!

Não se deu conta de que tinha pronunciado o nome pessoalmente até que Charlotte levantou a vista e o olhou com os olhos muito abertos e a fronte enrugada em uma expressão de alarme.

—O que?

—Acabo de entender o significado de uma destas referências - explicou Pitt.

—O que diz aí? - perguntou Charlotte, esquecendo-se por completo da carta.

—Ainda não sei. Só comecei a decifrá-lo.

Em realidade, Ramsay não tinha utilizado chaves muito sutis. Aquelas notas não eram dirigidas a ninguém, e certamente a intenção não era enganar ao Mallory nem ao Dominic nem a Unity.

De repente o texto adquiriu um significado muito diferente. Tudo tinha sentido.... um sentido que lhe causou estupor e uma sensação de frio que cresceu até parecer quase uma presença física no quente salão. Não diria nada a Charlotte ainda. Continuou lendo. Já não podia ficar indiferente ante a transcendencia daquela revelação. Ramsay achava que Dominic tinha conhecido a Unity no passado. As referências a essa tragédia eram evidentes, embora não descrevia fatos concretos, mas sim se limitava a dizer que tinha sido de caráter pessoal e inspirado uma profunda culpa em um deles ou em ambos. Ramsay chegou à conclusão de que Unity tinha sido abandonada pelo Dominic fazia tempo, anos possivelmente, e ao descobrir seu paradeiro, tinha pedido o emprego em Brunswick Gardens com a única finalidade de segui-lo. Recordando o extremo interesse que mostrava em sua carta de solicitude, não era difícil acreditar que com efeito fossem esses seus motivos. Nas notas, Pitt achou deste modo uma clara menção a uma chantagem cujo objetivo era obrigar ao Dominic a reiniciar a antiga relação que tinha existido entre eles, embora não fosse esse seu desejo, como cabia supor considerando que na vez anterior ele tinha escapado.

Havia comentários breves e entrecortados, escritos com uma letra cada vez mais irregular, menos controlada, como se ao Ramsay tremesse a mão e pegasse a pena com força excessiva. De vez em quando se percebia um borrão ou um risco involuntário. O temor do Ramsay ficava manifesto não só no conteúdo do texto mas também nos crispados traços da caligrafia. Ramsay pensava que Dominic tinha matado a Unity para impedir que ela arruinasse sua nova vida, uma vida que lhe proporcionava respeitabilidade e a esperança de uma maior dignidade e um gradual progresso para a aceitação e a melhoria de posição.

Cada vez era mais claro que Ramsay não queria dar aquilo a ler a nenhuma outra pessoa. A julgar pelos diferentes tons de tinta, e inclusive em algumas partes distintas cores, cabia supor que estava escrito ao longo de certo período de tempo. Não havia razão para duvidar que as notas e os acontecimentos referidos eram contemporâneos. Pitt não podia subtrair-se à convicção de que Ramsay acreditava sinceramente que Dominic era culpado da morte de Unity, e essa suspeita lhe tinha provocado aflição e um profundo sentimento de fracasso. Se tinha contemplado sua própria morte em um futuro próximo, não tinha sido por culpa com respeito à Unity, mas sim por desespero ao ver sua vida privada de metas ou utilidade alguma.

Todos seus esforços tinham ficado reduzidos a cinzas. A ação do Dominic era o último golpe, e o pior. Em suas palavras se percebia um inegável desejo de escapar, de achar um final. Pitt não podia passá-lo por alto.

Fechou a caderneta desolado por aquela sensação de frio em seu interior.

O confortável ambiente do salão se chocava com seu fundo mal-estar anímico, aumentando sua consciência do abismo que afastava o mundo físico da realidade da mente e do coração. As chamas oscilavam suavemente na lareira, iluminando com luz trêmula a saia, os braços e as faces de Charlotte. Dava uma coloração quase acobreada a seu cabelo e escurecia seu pescoço sob o queixo. Enquanto escrevia a carta, sua mão se movia ritmicamente. Só se ouviam o tic tac do relógio no aparador da lareira, o crepitar do fogo, o suave sussurro do abajur de gás e o ranger de sua pena sobre o papel. Tudo era tão familiar, tão confortável, ligeiramente gasto pelo uso. Alguns dos móveis eram de segunda mão, parte da vida de outras pessoas antes que da sua, mas tão apreciados como o resto. Pitt nem sequer concebia a vida sem a segurança que tudo aquilo lhe proporcionava. Sempre tinha sido feliz naquela casa. Não havia escuridões, nem pesar. Como se percebesse sua imobilidade, Charlotte ergueu a vista.

—O que ocorre? - perguntou. —O que descobriu agora?

—Não estou totalmente certo- mentiu Pitt.

Charlotte não ia dar-se por vencida tão cedo.

—-Bom, e o que pensa?

—Penso que provavelmente Ramsay não empurrou a Unity do alto da escada- respondeu com lentidão, observando o rosto do Charlotte.

Ela compreendeu imediatamente.

—Quem foi, pois? - disse com tom vacilante, olhando-o nos olhos.

—É só uma possibilidade.

Charlotte não ia conformar se com evasivas.

—Por que? O que escreveu Ramsay nessa caderneta? - exigiu saber Charlotte.

—Utiliza uma espécie de chave, não muito inacessível se, se advertir que mescla um latim híbrido, jogos de palavras, etcétera...

—Thomas! - exclamou Charlotte, agora com voz crispada. —Está me assustando. Tão grave é que não pode me falar com franqueza?

—Sim- sussurrou Pitt.

Ela empalideceu, olhando ao Pitt com preocupação.

—Dominic?

—Sim- respondeu Pitt. Tinha pensado que demonstrar a culpa do Dominic lhe produziria certa satisfação, mas agora que não só lhe apresentava a oportunidade mas também além disso não podia evitá-la, sentia unicamente tristeza, e não só por Charlotte mas também pelo fato em si. Tinha acreditado ver sinceridade na carta de agradecimento guardada na escrivaninha de Ramsay, e lhe tinha surpreso gratamente.

—O que diz? - insistiu Charlotte. —O que leu nessa caderneta para pensar que foi Dominic? Não podia estar Ramsay equivocado? Ou tentar passar a outro a culpa?- Nem em sua voz nem em seu olhar se percebia acusação alguma.

Sabia que desta vez Pitt não achava prazer algum naquilo. Com suas perguntas, simplesmente procurava uma solução alternativa.

Pitt abriu a caderneta e lhe leu o primeiro parágrafo significativo. Charlotte recordava ainda bastante bem o latim aprendido de menina e não lhe custou compreender aquelas frases.

—Segue - pediu com voz rouca.

Pitt obedeceu, lendo o segundo e o terceiro parágrafo, e continuando até o final.

—Significa isso por força que suas suspeitas eram certas? - perguntou ela.

—Não. Mas significa que não pôde fazê-lo o próprio Ramsay.

Charlotte não mencionou ao Mallory, mas a possibilidade ficou no ar entre eles, embora fosse só uma vaga esperança, muito débil para aferrar-se a ela.

—O que vai fazer? - perguntou Charlotte.

—Não tenho certeza.

Charlotte permaneceu em silencio por um momento. O carvão se reacomodou na lareira e o fogo ardeu com maior viveza por uns instantes. Pitt pegou as tenazes e jogou cinco ou seis partes mais.

—Não pode passar isso por alto - disse Charlotte por fim. —À margem de se necessitarmos ou não saber a verdade, não pode permitir que Ramsay Parmenter carregue com um crime que não cometeu.

—Está morto - indicou Pitt.

—Mas sua família não. Clarice não o está. E em todo caso, não é seu dever averiguá-lo? Se não sair de dúvida, sempre suspeitarei que o culpado é Dominic. E existe uma possibilidade, embora remota, de que não o seja. Não é melhor a verdade, seja qual for?

—Nem sempre.

Charlotte deixou a pena e o tinteiro, apesar de não ter terminado a carta. Levantou as pernas e as encolheu sob o corpo. Era a postura que adotava quando tinha frio ou estava assustada ou profundamente abatida.

—Mesmo assim, acredito que vale mais que averigúe tudo o que possa. Pode tentar, não?

—Sim. Na caderneta do Ramsay há informação suficiente para começar.

—Amanhã?

—Suponho.

Charlotte não disse nada mais, mas se estremeceu e rodeou o corpo com os braços.

Pitt saiu de casa com a caderneta do Ramsay no bolso do casaco, cujo lado direito ficou torcido por causa do peso e o considerável volume, mas o trazia sem cuidado. Pôs-se em caminho com passo enérgico. Uma vez resolvido a fazê-lo, era de mais qualquer vacilação. Chovia intensamente, apesar de que, ao oeste, sobre os telhados se viam resplandecentes retalhos de azul no céu.... "suficientes para fazer umas calças a um marinheiro", como dizia sua mãe.

Parou um cabriolé e voltou para a Maida Vale, à casa de Hall Road.

—Eu não sei nada disso - disse Morgan com ferocidade. Levava um vestido verde e branco, e trazia na cabeça uma coroa de folhas de árvore que, apesar de sua extravagância, conferia-lhe um aspecto curiosamente régio. Atuava com total naturalidade, alheia ao absurdo desse detalhe. Como na vez anterior, achavam-se em seu estúdio, mas nesta ocasião a luz era cinza e subtraía viveza às cores, e a chuva açoitava os vidros das janelas. Estava pintando quando Pitt chegou, mas em sua paleta, que tinha deixado em um tamborete a um passo dela, havia só verdes e amarelos. —Nunca ouvi falar do Unity Bellwood. E aqui não se produziu nenhuma tragédia, exceto a morte do Jenny, da que já está você ao corrente. -Seu rosto se escureceu. —Não era necessário que enviasse seu ajudante para surrupiar informação ao menino a minhas costas. Isso foi uma artimanha intolerável.

Pitt sorriu ante sua ingênua indignação; era a única reação sensata.

—Por que ri de mim? - protestou, mas Pitt viu em seu olhar que ela conhecia já a resposta. —Não falo dos assuntos de outras pessoas, e menos com a polícia - prosseguiu. —Não há nada de mau em proteger às pessoas da curiosidade dos desconhecidos, nada de mau. Entre outras coisas, a amizade consiste em não delatar, sobre tudo quando se trata de algo que alguém crie ou teme que pode ser uma debilidade. - Seus claros olhos azuis não refletiam falsidade alguma. À margem do que soubesse ou suspeitasse, esse sentimento era genuíno.

—Antepor o interesse de seus amigos ao de outras pessoas? - perguntou Pitt, apoiando-se contra o aparador da lareira.

—Naturalmente - respondeu ela, olhando-o com fixidez.

—Sempre?

Morgan não respondeu.

—Sem importar-se quem tem mais que perder, se seu amigo ou a outra pessoa? Dá sempre a razão a seu amigo, seja qual for o assunto em questão ou o preço?

—Bom.... não...

—A vergonha do Dominic frente à vida do Ramsay Parmenter? E o que me diz de sua própria moralidade? Tem também fé em si mesmo?

Morgan esticou os músculos do pescoço.

—Claro que sim. É a vida do Ramsay Parmenter o que está em jogo?

—Não. Era só uma pergunta, para ver sua reação.

—E por que, pois, escolheu precisamente ao Ramsay Parmenter? -inquiriu ela, deixando patente com sua expressão que não acreditava nele.

—Sua vida não está em jogo. Já morreu.

Morgan se sobressaltou e a cor abandonou suas faces.

—Se já morreu, para que precisa sabê-lo?

—Não imagina? - respondeu Pitt.

—Insinúa que o matou Dominic? - Agora sua palidez era extrema. —Isso não acredito! - Mas o nervosismo de sua voz revelava que em seu interior não era capaz de descartar essa possibilidade de maneira tão terminante como queria aparentar.

—Onde vivia Dominic antes de instalar-se aqui? - insistiu Pitt-. Você deve saber. Não caiu do céu. Tinha roupa, equipamento pessoais, cartas, conhecidos. Sempre vestiu-se bem. Sabe quem era seu alfaiate? De onde procedia seu dinheiro? Ou acaso o mantinha você?

Morgan se ruborizou.

—Não, não o mantinha eu. Não sei nada disso. Não o perguntei. Não nos fazíamos perguntas. Isso faz parte da amizade... e da confiança.

—Deixou algo aqui ao partir ao Icehouse Wood?

—Não sei. Mas se deixou algo, duvido que continue aqui depois de tanto tempo, e em qualquer caso, não lhe serviria de nada.

—E quanto à roupa? Comprou alguma nova durante sua estadia nesta casa?

Morgan pensou por um momento.

—Um casaco, um casaco marrom.

—Não tinha casaco ao chegar aqui?

Morgan sorriu.

—Sim, claro que sim. Não pode um homem ter dois casacos? De todo modo, não conservou o velho. O deu ao Peter Wesley, o vizinho da casa do lado.

Ele não tinha nenhum.

—Vive aí ainda Peter Wesley?

—Não, mudou-se.

—Aonde?

—Isso o que importa? -Fez um gesto de indiferença. —Não sei.

Pitt seguiu pressionando-a um momento mais, sem averiguar nada salvo que Dominic mantinha uma atitude muito reservada a respeito de seu passado imediato, e ela tinha extraído a conclusão, nunca corroborada, de que o buscava alguma pessoa, e ele preferia que não o encontrasse.

—Recebeu alguma carta? - perguntou Pitt.

—Que eu recorde, não, nunca. - Ela rebuscou em sua memória por um momento. —Não, estou certa de que não. E devia pagar suas compras à vista, porque tampouco chegaram faturas, nem sequer do alfaiate, do sapateiro ou do camiseiro. Esse dado completava o quadro de um homem açoitado trabalhando em excesso para ocultar todo rastro. Por que? Quem ia atrás dele e qual era a razão?

Pitt agradeceu à Morgan e foi em busca do casaco velho do Dominic, que no mínimo lhe proporcionaria o nome de um alfaiate.

Mas na casa contigüa ninguém conhecia o atual paradeiro do Peter Wesley. Pitt ficou ante a porta contemplando aquela rua, nesse momento muito transitada, que não podia já contribuir com dado algum a respeito do anterior endereço de Dominic, nem do motivo que o tinha impulsionado a partir dali.

Passou uma carruagem descoberta. Em seu interior, um grupo de raparigas fazia frente ao cortante vento para exibir seus elegantes chapéus e seus bonitos rostos.

Tremiam de frio mas sorriam alegremente. Pitt não pôde evitar sorrir também, em parte pelo prazer de ver sua beleza, em parte porque lhe divertia seu otimismo e vaidade juvenis.

Passou uma carreta carregada de carvão, os cavalos inclinados em seus arnês para arrastar o enorme peso. Um vendedor de jornais gritava as manchetes, em sua maior parte de caráter político. Chegavam inquietantes notícias da África, algo sobre o Cecil Rhodes e as minas de diamantes do Mashonaland, e sobre os colonos da África do Sul holandesa. A ninguém interessava a morte de um clérigo, mas bem cinza, a causa, pelo que o público sabia, de um acidente doméstico.

Junto à calçada, passou um camelô empurrando um carrinho de mão, os ombros tensos sob o casaco, que lhe era pequeno mas era de boa qualidade tanto pelo corte como pelo tecido. Ao vê-lo, Pitt se lembrou novamente do casaco do Dominic.

Um alfaiate teria sido um excelente ponto de partida. Um homem raramente trocava de alfaiate, nem sequer se, se mudasse. E se essa norma se cumpria também no caso do Dominic, possivelmente quatro ou cinco anos atrás tinha ainda o mesmo alfaiate que quando vivia no Cater Street. Pitt ignorava seu alfaiate de então, e provavelmente Charlotte tampouco sabia. Mas possivelmente Caroline o recordasse.

Aproximou-se rapidamente ao cruzamento de ruas mais próximo e parou um cabriolé. Quando se dispunha já a sentar-se, caiu na conta de que muito possivelmente Caroline não estava em casa. Nos últimos tempos, sempre que Joshua saía de gira com uma obra, ela o acompanhava. Podia achar-se em qualquer lugar da Inglaterra.

Durante todo o trajeto até o Cater Street, moveu-se inquieto no assento do cabriolé, perguntando-se qual seria seu seguinte passo se não achasse Caroline, ou se ela não tinha a mais remota idéia de quem era o alfaiate do Dominic por aquela data. É claro, a pessoa mais indicada para lhe facilitar essa classe de informação era o valete, mas Caroline tinha prescindido dele ao morrer Edward. Joshua devia ter levado para casa seu próprio criado. Mas talvez soubesse Maddock, o mordomo. Dificilmente se conservaria ainda a contabilidade doméstica de uma década atrás, e em todo caso as faturas de um alfaiate entravam nos gastos pessoais de cada um.

Avançava por ruas tranqüilas entre carroças de distribuição, carruagens particulares e outros cabriolés; em suma, o trânsito costumeiro de um bairro residencial. Em Londres viviam três milhões de habitantes. Era a cidade maior e buliçosa do mundo, o coração de um império que se estendia por vários continentes -Índia, África e Ásia-, o Pacífico e as vastas planícies e altas montanhas do Canadá de costa a costa, e possuía inumeráveis ilhas em todos os mares conhecidos. Como podia seguir o rastro de um determinado indivíduo que desejava passar inadvertido cinco anos atrás?

Salvo que o homem é um animal de costumes. Alguém se aferra a sua identidade. Em meio da agitação e do desconcerto que acompanham a uma tragédia ou à culpa, os objetos familiares são possivelmente o único consolo. Se perdermos os lugares e as pessoas, as posses se tornam mais valiosas.

Estavam já no Cater Street. O cabriolé se deteve, e ao cabo de um instante Pitt se achava ante a porta esperando que alguém lhe atendesse. A espera se fez interminável. Inclusive se Joshua e Caroline se achavam ausentes, tinha que haver alguém na casa.

Por fim Maddock apareceu na soleira, um pouco mais grisalho e envelhecido. Ao vê-lo, Pitt tomou consciência do longo tempo transcorrido desde sua última visita. Caroline, em troca, ia vê-los freqüentemente em Keppel Street, e embora Charlotte tivesse estado ali recentemente, Pitt não a tinha acompanhado por razões de trabalho.

—Bom dia, senhor Pitt - saudou Maddock, dissimulando sua surpresa. —Vai tudo bem, senhor?

—Muito bem, Maddock, obrigado - respondeu Pitt-. Está em casa a senhora Fielding?

—Sim, senhor. Se quer entrar, informarei-a que está aqui.

Maddock se afastou, e Pitt entrou no familiar vestíbulo. Imediatamente, transportou-o dez anos atrás, a sua primeira visita quando investigava os estrangulamentos do Cater Street. Ali conheceu Charlotte quando era a filha do meio, para os membros de sua própria classe social uma jovem rebelde e distinta, e para o Pitt exatamente o que ele esperava de uma rapariga de boa família. Sorriu ao recordá-lo. Então Dominic Corde estava casado com Sarah, antes de que morresse assassinada pela mesma mão que o resto das vítimas. O que saberia dele Caroline? Estava esperando só uns minutos no salão da manhã quando ela entrou. Tinha mudado muito desde que deixou de ser a respeitável viúva do Edward e, em meio de um grande escândalo, converteu-se em esposa do encantador e extremamente inapropriado Joshua, um ator dezessete anos mais jovem que ela. Estava radiante. Sempre tinha sido uma mulher atraente, não tanto como Charlotte -ao menos em opinião do Pitt-, mas muito formosa em todo caso. Pitt admirou a quente cor de seu cabelo e sua preciosa e curvilínea figura. Exibia um vestido de manhã com estampado de rosas, um objeto que em vida do Edward ela mesma teria considerado em excesso chamativo e indecoroso.

—Bom dia, Thomas - saudou Caroline, franzindo ligeiramente o sobrecenho. —Me disse Maddock que tudo vai bem, é assim? Não estará Charlotte doente ou desgostada por algo?

—Não, absolutamente - assegurou Pitt, —exceto pelo fato de que se produziu uma desagradável situação na casa onde vive agora Dominic, e pode afetar diretamente a ele. Isso é tudo. As crianças se encontram muito bem.

—E você? - perguntou Caroline, ainda com um resto de seriedade.

Pitt sorriu.

—Eu enfrento a uma dificuldade que possivelmente você possa me ajudar a resolver – respondeu com sinceridade.

Caroline se sentou no sofá, estendendo a ampla saia em torno de suas pernas.

Pitt notou que se comportava com menos circunspeção e mais graça que antes de conhecer Joshua. Possivelmente seria exagerado dizer que sua atitude era "teatral", mas certamente agora era uma mulher de gestos mais exuberantes, longe já os anos de conduta digna e recatada.

—Eu? -disse, surpreendida. —O que posso fazer por você? Qual é essa dificuldade?

—Sabe aonde foi Dominic quando partiu daqui?

Ela o olhou fixamente, com expressão sombria.

—Diz que essa desagradável situação pode afetar a ele. Você não perde o tempo com pequenos furtos sem importância, Thomas. Deve ser certamente desagradável para requerer sua atenção. Em que medida afeta ao Dominic? E, por favor, não tente me reconfortar com uma mentira piedosa.

—Ignoro em que medida o afeta - respondeu Pitt, sustentando o olhar de Caroline sem a menor afetação. —Espero de todo coração que não lhe afete sequer. Pelo visto, sua vida mudou de maneira radical, e dista muito da do jovem encantador e superficial que antes era.

—Mas...

—Mas se trata de um assassinato - esclareceu Pitt, lamentando ter que explicar - Viu-lhe tensão em seu rosto e desassossego em seu olhar.

—Não acreditará que ele...

—Espero que não. - O próprio Pitt se surpreendeu da profunda sinceridade de sua resposta. Realmente desejava demonstrar que Dominic não era o culpado.

—E como posso lhe ajudar? - perguntou Caroline com gravidade. —Não sei aonde se mudou ao deixar Burton Street, e duvido que estivesse ali muito tempo.

—Burton Street? - repetiu Pitt.

—Instalou-se ali quando partiu daqui. Não se sentiu capaz de ficar nesta casa depois de... a morte de Sarah. - A dor se refletiu por um instante em seu olhar, a angústia da lembrança, a consternação e o pesar que em realidade nunca tinham desaparecido. Logo se obrigou a concentrar-se de novo no presente. Sarah já não necessitava de ajuda. Dominic, em troca, continuava presente, e era vulnerável ao sofrimento e o medo. —por que quer sabê-lo? Sem dúvida sabe onde vive agora.

—Sim, em Brunswick Gardens - respondeu Pitt. —Mas preciso conhecer o passado, entre o Cater Street e Maida Vale.

—Maida Vale? Não sabia que tivesse vivido ali. - Parecia surpreendida.

—Durante um tempo. Sabe em que número do Burton Street exatamente? Possivelmente ali encontre a alguém que possa me ajudar.

—Não o recordo, mas tenho certeza de que o tenho cotado em algum lugar.

Naquela época lhe enviava a correspondência que lhe chegava aqui. É de supor que não acreditou no que ele lhe disse.

Pitt sorriu timidamente. Em realidade, não tinha perguntado a Dominic. Possivelmente Dominic lhe teria contado a verdade, mas Pitt tinha suas dúvidas. No caso de Dominic e Unity Bellwood com efeito terem vivido uma experiência pessoal tão trágica para que Ramsay a considerasse causa possível do assassinato, Dominic o teria admitido desde o começo -se verdadeiramente tivesse intenção de fazê-lo-, em lugar de permitir que Ramsay se convertesse em principal suspeito e padecesse o temor e o isolamento que na aparência tinham provocado sua crise final. Essa era uma idéia sinistra, e até aquele momento Pitt não a tinha exposto nesses precisos termos. Era dolorosa.

Caroline o olhava com atenção, e percebeu seu renovado e ainda mais intenso pesar.

—Preciso averiguar por mim mesmo - respondeu Pitt, usando uma evasiva. —

Que espécei de cartas recebia? - Viu que ela arqueava as sobrancelhas. —Quero dizer se eram faturas ou cartas pessoais.

Ela se relaxou um pouco.

—Faturas em sua maior parte, acredito. De fato, chegaram muito poucas.

—Alguma de um alfaiate, talvez?

—Por que o pergunta? - inquiriu Caroline. —Tem sua roupa algo que ver com esse... crime?

—Nada absolutamente. Mas se encontrasse ao alfaiate, talvez ele saberia aonde se mudou Dominic depois. Freqüentemente um homem conserva o mesmo alfaiate durante anos se estiver satisfeito de seus serviços.

Embora não pretendia nem remotamente ofender ao Pitt, Caroline não pôde reprimir um sorriso. Conhecia-o desde há uma década, e em todos esses anos nenhuma só vez o tinha visto vestir roupas sequer de seu manequim, e menos ainda feitas a medida por um alfaiate.

Pitt lhe adivinhou o pensamento e pôs-se a rir.

—Perdoe. - Caroline se ruborizou. —Não queria ferir seus sentimentos.

—Sei.

—De verdade?

—Sim. Talvez algum dia encomende um casaco a medida, mas no momento há coisas muito mais importantes. E voltando para outro assunto, sabe quem era o alfaiate do Dominic?

—Não o recordo, mas comprava as camisas no Gieves, perto de Piccadilly. Serve-lhe isso de algo?

—Pode ser. Obrigado, muito obrigado. - Pitt fez gesto de levantar-se.

—Thomas!

—Sim?

—Por favor, mantenha-me informada. Se... se Dominic for culpado, Charlotte ficará muito afetada. Sejam quais forem as faltas de Dominic, foi parte desta família... durante muitos anos. Eu sentia um grande afeto por ele. Em realidade, não tomei consciência de quanto o apreciava até que partiu. A morte de Sarah o afligiu muito, mais do que ele mesmo acreditava num primeiro momento. Acredito que tinha a sensação de que poderia ter feito algo para impedi-lo. – Meneou a cabeça em um gesto de negação. —Sei que é uma estupidez, e inclusive uma amostra de presunção, imaginar que alguém pode evitar o destino.... mas quando um fato é difícil de agüentar, procuramos escapatórias pensando que não teria por que ter ocorrido. Precisamos acreditar que possivelmente possamos evitar que volte a acontecer uma coisa assim... e se nos convencemos de que é possível evitá-lo no futuro, deduzimos que também poderíamos tê-lo impedido a primeira vez.

—Sei - respondeu Pitt com delicadeza. —Terei você ao corrente, e é claro procurarei que Charlotte sofra o menos possível.

—Obrigado, Thomas.

Caroline se levantou também. Deu a impressão de que queria acrescentar algo e depois compreendeu que já estava tudo dito.

Pitt lhe contou algumas anedotas divertidas sobre as crianças, e se despediram na porta. Caminhou até a esquina, parou um cabriolé e pediu que o levasse ao centro. No Piccadilly, achou a camisaria, e detrás identificar-se e explicar a gravidade do caso, perguntou se efetivamente tinham tido ao Dominic por cliente no passado. Demoraram só uns minutos em lhe facilitar o endereço onde residia Dominic a última vez que lhes fez uma encomenda, uns seis anos atrás. Possivelmente depois tinham diminuído seus ganhos, e se havia seu ressentido gosto pelas camisas de alta qualidade.

Eram uns sinais do Prince of Wales Road, no Haverstock Hill, uma considerável viagem para o noroeste. Encontrou a casa no meio da tarde. Era grande e apresentava certos indícios de abandono, a espécie de residência que originalmente se construira para albergar uma ampla família e depois se subdividiu em apartamentos individuais para pessoas sem ninguém a seu cargo.

Ao bater na porta, reparou em quantos descascados havia nas borda dos painéis de madeira e nos pontos de ferrugem da própria aldrava.

Abriu um homem de meia idade com uma barba desgrenhada e a roupa descolorida por efeito do sol e excessivas lavagens. Olhou ao Pitt com surpresa.

—Sim? Perdoe, mas nos conhecemos?

—Não. Meu nome é Thomas Pitt. Levo a cabo uma investigação sobre o senhor Dominic Corde, que viveu aqui faz uns anos. - Sua voz não expressou a menor duvida, não deu lugar a negativas. O rosto do homem se escureceu, mas tão ligeiramente que se não tivesse estado com o rosto na luz, Pitt nem sequer o teria notado.

—Sinto muito, mas se foi daqui faz muito tempo, e desconheço seu paradeiro atual. Ao ir-se, não deixou nenhum endereço - declarou o homem, tentando eliminar qualquer possibilidade de continuar falando do assunto.

—Sei - replicou Pitt com firmeza. —Conheço seu atual paradeiro. É o passado que me interessa.

As primeiras gotas de chuva salpicaram o caminho.

O homem permaneceu inexpressivo.

—Sinto muito, não posso ajudá-lo. Bom dia. - Fez gesto de fechar a porta. Tudo em seu corpo, os ombros cansados, a pesadesz de sua postura, revelavam esgotamento e tristeza mais que irritação. Observando-o, Pitt sentiu frio, apesar da tarde ser temperada. Sem dúvida a tragédia, fosse qual fosse, tinha ocorrido ali.

—Desculpe, cavalheiro - disse Pitt com seriedade, —mas não posso dar o assunto por resolvido. Sou o policial, responsável pela delegacia de polícia do Bow Street, e o subchefe de polícia pessoalmente me ordenou que investigue um caso de assassinato. - Viu que o homem empalidecia e abria desmesuradamente seus olhos azuis. Refletia surpresa mas não incredulidade.

Pitt notou crescer a sensação de frio em seu interior. Imaginava já a expressão de Charlotte quando tivesse que contar-lhe. Aquilo poria fim ao último sonho de sua juventude, e ao mesmo tempo a certa inocência, e Pitt teria dado algo por não passar por aquilo. Inclusive vacilou antes de seguir adiante.

—Consta-me que algo aconteceu nesta casa quando o senhor Corde vivia aqui - disse ao cabo de um momento. —Preciso saber o que foi.

O homem o olhou fixamente. Era claro que sopesava o que devia dizer, quanto podia negar sem perder credibilidade.

Pitt segurou seu olhar.

O homem afundou os ombros.

—Melhor será que entre - disse por fim, e deu meia volta. —Embora não sei bem o que posso lhe contar.

Pitt o seguiu, fechando a porta ao entrar. O último protesto tinha sido um mero gesto, e Pitt sabia, mas o passou por cima.

O homem o guiou até um aposento desordenado mas acolhedor. Havia livros e papéis espalhados sobre mesas e cadeiras, e até no chão. Nas paredes pendiam excelentes quadros, em sua maioria torcidos. Sobre um aparador, Pitt viu um taco de madeira meio esculpido, sendo já claramente visíveis em sua superfície os contornos de uma rã, tão polida que a cor marrom adquiria um aspecto quase úmido. Até inacabada, era uma formosa talha. Contemplando-a, Pitt pensou que possivelmente possuía mais força expressiva em seu presente estado.

Completá-la até o último detalhe a converteria em uma obra muito mais comum, algo que qualquer um poderia ter concebido. Assinalando-a, Pitt perguntou:

—Pensa continuá-la?

—Preferiria-a acabada? - respondeu o homem com tom quase desafiante.

—Não - se apressou a responder Pitt sem vacilar. —Não, nada disso. Está bem assim.

O homem sorriu.

—Desculpe, cavalheiro. Tinha-o tomado por um ignorante, e vejo que me equivocei. Faça um espaço e sente-se. —Assinalou-lhe uma das encaixotadas poltronas. Jazia nela um gato branco muito velho. —Não se preocupe com ele. - Lewis, saia daí!

O gato abriu um olho e continuou onde estava.

—Lewis! - repetiu o homem, dando uma sonora palmada.

O gato voltou a dormir.

Pitt o pegou, sentou-se, e o colocou de novo na mesma posição sobre seu regaço.

—Dominic Corde - disse com determinação.

O homem respirou fundo e iniciou sua história.

Pitt chegou a casa pouco antes de meia-noite. Tudo estava em silêncio e embaixo só ficavam acesas as luzes da entrada. Subiu em silêncio pela escada, fazendo uma careta cada vez que subia um degrau. Horrorizava-lhe pensar no que devia dizer, mas não tinha alternativa nem escapatória. Ao menos poderia deixá-lo até a manhã seguinte, embora dificilmente conciliaria o sono sabendo o que o esperava e como se sentiria Charlotte. Ele mesmo estava consternado, e para ela o golpe seria ainda pior.

Mas quando chegou ao alto da escada, viu um raio de luz sob a porta. Charlotte continuava acordada. Não poderia postergá-lo. A tarefa quase lhe produziu alívio. Não teria que deitar às escuras e em silêncio, aguardando aflito, sem pregar olho, a que ela despertasse para contar-lhe.

Abriu a porta.

Charlotte, com os olhos fechados, estava reclinada contra os travesseiros, o cabelo solto em torno da cabeça. Pitt fechou a porta sem passar o fecho e cruzou nas pontas dos pés o quarto.

Charlotte abriu os olhos.

—Thomas! Onde esteve? O que averiguou? - Viu o semblante de Pitt e ficou paralisada, seus olhos muito abertos e escuros à luz do abajur.

—Sinto muito... - sussurrou.

—O que? - Falava com voz entrecortada. —Do que se inteirou?

Pitt se sentou na beira da cama. Estava cansado e tinha frio, e seu maior desejo era despir-se, embrulhar-se entre os lençóis e notar contra sua pele a tibieza da camisola felpuda dela. Mas não era essa a melhor maneira de dizer o que tinha que dizer. Isso devia fazer-se cara a cara.

—Descobri onde vivia Dominic antes de mudar para Maida Vale. fui ver sua mãe ao Cater Street. Graças a ela, conheci o nome de seu camiseiro...

—Gieves - o interrompeu Charlotte com voz rouca. —Isso lhe poderia ter dito eu mesma. Do que lhe serviu?

—Em sua agenda de clientes, tinha um endereço de Dominic...

—Ah, e onde era?

Pitt atrasava como podia o momento de revelar o verdadeiramente importante, o doloroso.

—No Haverstock Hill.

—Não sabia.

—Claro que não. Por que então se havia já afastado da família.

—A que se dedicava ali? - perguntou Charlotte.

—Devia responder a pergunta conforme ao sentido que tinha? Qual era a ocupação do Dominic naquelas datas? Podia lhe falar de suas atividades econômicas, suas especulações, seu trabalho como assessor bancário. Nada disso tinha a menor transcendencia, e tanto o frio e o cansaço como a avançada hora da noite dissuadiram Pitt de estendê-lo mais do que o necessário.

—Tinha uma aventura amorosa com Unity Bellwood, que vivia no Hampstead e trabalhava para um cliente de Dominic.

Charlotte empalideceu.

—OH! - Respirou fundo e expulsou o ar lentamente. —Suponho que é importante, ou do contrário não me diria isso. -Escrutinou o olhar do Pitt. Baixando a voz, acrescentou: —E não teria essa expressão. Do que se trata, Thomas? A...matou-a Dominic? - Parecia aguardar um golpe físico.

—Não sei. -Pitt apoiou a mão no ombro dela, deslizou-a suavemente por seu braço, e a estreitou contra si. —Mas mentiu por omissão, assim como em suas insinuações, e pelo visto tinha motivos para fazê-lo. Ela tomou muito a sério o idílio. Ficou grávida e, pela razão que fosse, abortou.

Charlotte contraiu o rosto em um vislumbre de dor e confusão, e seus olhos se inundaram em lágrimas. Apoiou a cabeça no ombro do Pitt, e ele a rodeou com os dois braços. Já não tinha sentido deter-se. Era preferível contar-lhe tudo a deixá-lo para outro momento e ter que começar de novo desde o começo.

—Dominic fugiu, abandonou-a. - No silêncio, sua voz era um oco murmúrio. —Pelo visto, venceu-lhe o pânico. O incidente o afetou muito. Ninguém sabe se a causa de seu mal-estar era a própria gravidez, e foi ele quem exigiu a Unity que abortasse, ou se ela abortou por própria vontade, e ele escapou porque não pôde confrontar o fato. Em qualquer caso, uma noite partiu sem prévio aviso e sem deixar rastro. Não sei aonde foi. Mas ao cabo de uns meses apareceu na Maida Vale só com o posto, e ali não lhe enviaram a correspondência que continuou lhe chegando em Haverstock Hill.

Charlotte se afastou do Pitt, mas tinha os olhos fechados e o queixo tenso. O notava a tensão em todo seu corpo.

—E então teve um namorico com essa outra moça, Jenny, e também ela ficou grávida... e se tirou a vida - concluiu Charlotte, sua voz quase inaudível e empanada pela aflição. —Depois escapou para Icehouse Wood, onde o achou Ramsay Parmenter.

—Sim.

—E depois a terrível coincidência de que Unity fosse contratada pelo Ramsay...

—Não foi uma coincidência - precisou Pitt-. Ela viu o anúncio em uma publicação acadêmica, e nele se mencionava o nome do Dominic. Unity sabia que ele vivia ali, e por isso mostrou tanto interesse no emprego.

—Para voltar a estar junto ao Dominic? - Charlotte estremeceu. —Como deve ter se sentido ao vê-la chegar! - interrompeu-se de repente, enrugando a fronte. —E por isso ele...? Está certo de que a matou, Thomas? Totalmente certo?

—Não. Mas ela estava outra vez em estado... e não lhe custa acreditar que o pai fosse Ramsay Parmenter? Você também o conheceu. Parece-lhe possível que ele fizesse amor com Unity apenas uns dias depois de chegar ela à casa? E ainda diria mais, acha que ela faria o amor com ele achando-se ali Dominic?

—Não... - Charlotte desceu a vista, evitando o olhar do Pitt. —Não.

Ali sentados, abraçados em silêncio, deixaram passar os minutos.

—O que vai fazer? - perguntou Charlotte por fim.

—Expor-lhe diretamente - respondeu Pitt. —Se o filho de Unity não era do Ramsay, este não tinha motivo algum para matá-la, e não posso aceitar sem mais que fosse ele o culpado.

—Por que, pois, tentou matar a Vita?

—Deus sabe. Possivelmente a essas alturas Ramsay tinha enlouquecido realmente. Não o compreendo. Parece absurdo. Possivelmente tinha a sensação de que a rede se estreitava em torno dele e se suicidou, e Vita mentiu para protegê-lo. Provavelmente ela acredita que era o culpado, não deve saber nada da relação entre Dominic e Unity.

Charlotte o olhou com o sobrecenho franzido.

—Não pensará que Vita o matou porque o achava culpado?

—Não, claro que não! Vita achou as cartas de amor entre seu marido e Unity... - Pitt se tinha esquecido momentaneamente das cartas.

Charlotte o olhou com os olhos muito abertos.

—Mas eram autênticas! Você mesmo disse que tinha reconhecido a letra dele e dela. Thomas, isso não tem o menor sentido. Estava Unity grávida do Dominic e se apaixonou então por Ramsay? É possível? Haveria alguém capaz disso? E Dominic a matou por ciúmes... OH, Thomas! Quando ela gritou antes de cair, pedia auxílio ao Ramsay! - Fechou os olhos e ocultou o rosto no ombro do Pitt. Estendeu uma mão por cima dos lençóis e achou a dele, apertando-lhe com tal força que doeram os dedos de Pitt.

—Não posso deixar as coisas assim - disse Pitt, inclinando a cabeça para roçar o cabelo de Charlotte com a face.

—Sei - respondeu ela. —Sei.

 

Uma estranha paz envolvia a casa de Brunswick Gardens. Era a espécie de alívio que chega com a morte depois de uma longa e penosa enfermidade: a dor da perda está presente, a sensação de solidão, mas se adormece momentaneamente por causa do próprio esgotamento. Durante um tempo só se sente que por fim pode dormir sem medo, ou sem a lacerante ansiedade que antes o invadia inclusive nos estranhos instantes em que conseguia relaxar e esquecer-se de permanecer alerta.

Na noite em que Pitt escutava o relato do homem do Haverstock Hill, Clarice e Tryphena se retiraram cedo a seus quartos, Tryphena porque ainda preferia chorar a Unity em solidão, consciente de que ninguém compartilhava de seus sentimentos, e Clarice porque a afligia a dor pela morte de seu pai. Mallory optou por estudar. Era sua maneira de evadir-se do mundo real, que no presente lhe era muito opressivo, e onde sentia que mal havia lugar para ele.

Vita decidiu não retirar-se. Vestia-se de negro e tinha agido todo o dia com solenidade, mas se percebia nela certo relaxamento, como se por fim se liberasse da apreensão que a atendia desde a morte de Unity. Suas faces tinham recuperado a cor. estava vulnerável sentada no enorme sofá, e extraordinariamente jovem a tênue luz do abajur de gás.

—Prefere ficar a sós? - perguntou Dominic, preocupado. —Entenderia perfeitamente se...

—Não! - respondeu ela sem lhe deixar terminar a frase, olhando-o com seus assombrosos olhos desmesuradamente abertos. —Não, por favor. Ao contrário, prefiro não estar sozinha. Nada desejo menos que isso. —Esboçou um irônico sorriso, como se zombasse de si mesma. —Por um momento quero agir como se nada disto tivesse ocorrido. Desejaria falar de outras coisas, temas cotidianos, como se fôssemos dois amigos a quem não afeta tragédia alguma. Soa isso muito egoísta de minha parte?

Dominic ficou perplexo, sem saber o que responder. Não queria dar a impressão de que tomava à ligeira a dor de Vita, nem a sua própria, para falar a verdade.

Pensava ela em si mesma, como parecia, ou falava movida por sua generosidade, conhecendo a sensação de fracasso do Dominic, próxima ao desespero, porque tinha presenciado impotente como se consumia Ramsay em sua

angústia?

—Dominic? - disse Vita com delicadeza, estendendo uma mão e lhe roçando o braço com as pontas dos dedos. Foi um contato tão ligeiro que ele, mais que notá-lo, viu-o.

Dominic a olhou, e lhe sorriu com extraordinário afeto.

—Lamente a perda de Ramsay, querido, mas não se sinta culpado. Você e eu nos encontramos na mesma posição, só que minha responsabilidade nisto é maior que a sua. Ambos devemos pensar que poderíamos ter feito algo para impedi-lo, como não vamos pensar isso? O fracasso é um sentimento amargo. - Ergueu a mão em um breve gesto de negação. —Poucas coisas doem de maneira tão permanente, eclipsam de igual modo nossos demais esforços, condicionam até tal ponto nossos outros esforços, que ao final duvidamos de nós mesmos e inclusive chegamos a nos odiar. Por favor, não permita que isso nos aconteça. É o último que Ramsay, o verdadeiro Ramsay, teria desejado.

Dominic não respondeu, abstraindo-se no que Vita acabava de dizer. Era uma grande verdade. Tinha razão, e ele queria e precisava acreditar nela. E entretanto não era toda a verdade. Dominic não podia desprender-se da lembrança do Ramsay estendido no chão do gabinete, em meio de seu próprio sangue. Isso revelaria uma insensibilidade imperdoável. O decoro exigia algo mais que isso, e não só o decoro mas também a amizade... e a gratidão.

—Dominic! - repetiu Vita com ternura. Agora se achava de pé, perto dele. Só se ouvia o crepitar do fogo. Dominic percebia o aroma de sua pele e seu cabelo, e o de alguma fragrância de flores que ela levava. —Dominic, o melhor que pode fazer pelo Ramsay é recordá-lo tal como era, em sua plenitude, cheio de sabedoria e bondade, quando possuía total domínio de si mesmo e era o homem que queria ser... antes de adoecer.

Dominic sorriu com escassa convicção.

—Querido - prosseguiu Vita, —se ocorresse a você algo parecido, se, se transtornassem suas faculdades mentais, desejaria que seus seres queridos o recordassem nesse estado, no apogeu de seu transtorno, ou como era antes, em seus melhores momentos?

—Como era em meus melhores momentos - respondeu Dominic sem vacilar, olhando a por fim no rosto.

As rugas de inquietação desapareceram da testa de Vita e seu corpo se relaxou. Entretanto, não afastou a mão do braço de Dominic.

—Naturalmente. Isso mesmo desejaria eu. - Vita falava com um tom peremptório, carregado de uma emoção tão intensa que Dominic estava absorto em suas palavras. —Ele desejaria de maneira fervorosa. Seria o melhor que qualquer um poderia fazer por mim, e o que eu mais desejaria daqueles cuja opinião mais valorizo. E Ramsay sentia um grande apreço por você. Pensava que se converteria em um excelente pastor para os paroquianos, e mais importante ainda, em um líder espiritual. - O afeto iluminava seu olhar e um suave rubor tingia suas faces.

—Necessitamos da liderança desesperadamente, Dominic. Você deve sabê-lo. Os interesses mundanos invadem tudo. Há pessoas muito diversas mais que dispostas a consagrar-se à política, as explorações, a arte ou as idéias, mas já ninguém possui a convicção necessária para nos guiar na religião. É como se a paixão se extinguisse em todos... - Inconscientemente, fechou os punhos, e seu corpo se retesou pela veemência de seus sentimentos e a frustração de não poder ostentar ela mesma essa liderança. —Onde estão as vozes da paixão e a certeza que tanta falta nos fazem, Dominic? Onde estão os homens que não cambaleiam ante as novas teorias, os homens que não perdem a confiança em si mesmos por causa do saber mundano, os homens com o valor necessário para confrontar a dúvida e nos guiar? - Abafou uma exclamação. —Quase todo dia, ou ao menos toda semana, surgem novos descobrimentos científicos. Porque somos já capazes de conseguir tantas coisas que acreditam poder conseguir tudo. E não é assim. Nunca o será. Isso era verdade. Dominic compreendia exatamente o que queria dizer. Existia um generalizado sentimento não só de euforia -isso não teria sido objetável- mas também de arrogância, a ilusão óptica de que o homem era um ser superior e todos os problemas admitiam uma solução puramente humana. Existia um voraz desejo de aprender mas escassa capacidade de ensinar.

—Necessitará você de todo seu arrojo - dizia Vita com ardor, lhe apertando o braço. —Haverá momentos em que enfrentará dificuldades extremas, com tantas pessoas contra você, e tão convencida de estar em posse da verdade, que sua fé, Dominic, terá que ser como uma rocha exposta a mais severa intempérie, às tempestades mais violentas. Mas tenho certeza de que será capaz de resistir. Tem uma fortaleza da qual Ramsay carecia. - Um sorriso de certeza se desenhou em seus lábios. —Sua fé nasce da bondade, do conhecimento e da compreensão. Sabe o que é sofrer, cometer enganos e achar a coragem e a confiança em Deus suficientes para superar tudo e seguir adiante. O Senhor lhe outorgou a faculdade de perdoar a outros e a si mesmo. - Fincava os dedos no braço do Dominic com uma força quase dolorosa. —Pode cumprir todas as expectativas que Ramsay tinha postas em você. Pode ocupar o lugar que lhe era inacessível. Não seria esse o melhor presente que poderia você lhe fazer? Não lhe confere isso pleno valor à vida?

Dominic sentiu mitigar-se seu frio interior, dissolver-se parte de sua aflição. Possivelmente depois de tudo ainda podia resgatar-se algo?

—Sim.... sim, seria - respondeu com imensa gratidão. —Seria a melhor maneira de lhe demonstrar meu reconhecimento póstumo, a única maneira com verdadeiro sentido.

—Então venha sentar-se comigo - propôs Vita, lhe soltando o braço e guiando-o para os sofás dispostos junto à lareira.

Ardia um fogo vivo que inundava o salão de uma luz suave e amarela, cujo reflexo na mesinha contigüa ao sofá conferia à madeira um matiz ainda mais delicioso. Vita se sentou com elegância, acomodando a saia com a mão em um gesto tão natural que pareceu quase inconsciente. O quente resplendor das chamas iluminou sua face, esfumando as rugas de cansaço e pesar. Dava a impressão de que, conforme ao desejo expresso ao princípio da conversa, com efeito tivesse afastado de sua mente por um momento a lembrança da tragédia.

Dominic se sentou frente a ela, por fim relaxado. No salão se ouviam só o fogo, o relógio do aparador da lareira com suas laterais esmaltadas e querubins pintados, o leve rumor do vento e o tamborilar de um ramo contra o vidro de uma janela. Tal era o silêncio no resto da casa que parecia não existir.

Vita, sorrindo, reclinou-se um pouco mais atrás no assento.

—Falamos de algo intrascendente?

—Que assunto sugere? - perguntou Dominic, entrando na situação.

—Bom... - Vita pensou por um momento. —Já sei! Se pudesse ir-se de férias e não tivesse que reparar em gastos, que lugar escolheria? - Imóvel, observou-o atentamente com olhar feliz e sereno.

Dominic se abandonou a seus sonhos.

—Persia - respondeu ao cabo de um instante. —eu adoraria ver cidades ntigas

como Persépolis ou Isfahan, e ouvir as campainhas dos camelos na noite, e cheirar o vento do deserto.

Vita sorriu abertamente.

—Me conte algo mais.

Dominic se espraiou, descrevendo o pouco que conhecia e tudo o que imaginava. De vez em quando intercalava uma entrevista dos versos do Omar Khayyam na tradução de Fitzgerald. Perdeu o sentido do tempo. Suas tribulações e receios se desvaneceram. Quando por fim se despediram frente à habitação de Vita à uma menos quarto da madrugada, Dominic estava rendido de sono, e entretanto não sentia o cansaço anímico que o tinha debilitado desde a morte de Unity, ou em realidade desde muito antes, possivelmente desde a chegada de Unity a Brunswick Gardens e o inicial terror de voltar a vê-la.

Dormiu profundamente até a manhã, e quando despertou, o sol banhava o quarto. Era já tarde, mais das oito, e demorou uns instantes em recordar o que o tinha ajudado a conciliar o sono. Sim, claro! Tinha passado horas conversando com Vita. Tinha sido um momento extremamente agradável. Vita era uma companhia excelente. Concedia uma atenção plena, como muito poucas pessoas faziam. Falando com Vita, a pessoa tinha a sensação de que durante esse espaço de tempo não existia ninguém mais para ela. Era em extremo adulador.

Levantou-se, lavou, barbeou-se e vestiu-se. Quando desceu à sala do café da manhã , Mallory já tinha estado ali e voltado para seus estudos. Tryphena tomava o café da manhã em seu quarto. Clarice e Vita se achavam sentadas à mesa.

—Bom dia - disse Clarice, olhando-o com tristeza e certa hostilidade.

Dominic lhe devolveu a saudação e se voltou para Vita. Ainda se vestia de negro, naturalmente, mas lhe assentava maravilhosamente.

—Bom dia, Dominic - disse ela com um doce sorriso e um olhar muito direto. Um repentino acanhamento assaltou ao Dominic. Resmungou a resposta e se serviu do café da manhã, enchendo o prato mais do que em realidade desejava. Sentou-se e começou a comer.

—Parece que não tenha adormecido mal - disse Clarice com clara intenção.

—Ficamos acordados até tarde - se apressou a explicar Vita, seu sorriso um pouco mais largo. Estava serena, com pleno domínio de si mesma. Dominic admirou seu ânimo. Essa atitude devia representar uma inestimável ajuda para sua família. A dor de todos eles teria sido muito maior se além disso tivessem tido que oferecer apoio a ela.

Saltava à vista que Clarice tinha chorado. Estava pálida e tinha os olhos debruados.

Perguntou-nos com aspereza, olhando-os alternativamente. —Só estivemos conversando, querida - respondeu Vita, oferecendo a manteiga à Clarice apesar dela não a ter pedido. - Receio que nos esquecemos do tarde que era.

—Ainda há algo do que falar? - disse Clarice com tristeza, afastando a manteiga. —Já está tudo dito, e de pouco serviu. Caberia pensar que a estas alturas o mais recomendável seria um pouco de silêncio. Já dissemos muitas coisas que deveríamos ter calado.

—Não falamos do ocorrido aqui - tratou de esclarecer Vita. —Falamos de esperanças e sonhos, de idéias, de coisas belas que podíamos compartilhar.

Clarice a olhou com assombro e severidade.

—Como?

A explicação de Vita tinha sido muito atrevida, muito insensível. Não era assim como Dominic via a conversa da noite anterior, nem o que tinha pretendido ser.

—Sua mãe quer dizer que falamos de viagens e de outros países e culturas - corrigiu. —Escapamos da presente tragédia por um par de horas.

Clarice apenas lhe dirigiu o olhar. Esquecendo do café da manhã, voltou-se de novo para Vita e esperou.

Vita sorriu recordando a noite.

—Simplesmente nos sentamos junto ao fogo e sonhamos em voz alta com os lugares que nós gostaríamos de visitar se fôssemos livres de poder fazê-lo.

—O que quer dizer "livres"? - insistiu Clarice. —Livres em que sentido? - Arqueou as sobrancelhas em uma expressão de temor e ira. —De que espécie de liberdade fala?

—Não se refere a nada em particular - atravessou Dominic, possivelmente com excessiva urgência. Um inocente serão estava confundindo-se com algo muito diferente. Só de pensar nisso, arderam-lhe as faces. E lhe surpreendeu o doloroso que lhe era que fosse precisamente Clarice quem interpretava mal o acontecido. —Eram só fantasias. Ao fim e ao cabo, as pessoas não podem abandonar todas suas responsabilidades e partir de repente para a Pérsia ou Cachemira ou a em qualquer lugar que seja. Seria muito caro e provavelmente perigoso... Olhando para o rosto de Clarice, sua voz se desvaneceu.

—E passaram toda a noite falando disso? - disse com manifesta incompreensão.

—Disso e de outros temas semelhantes - assentiu Vita. —Querida, não tem por que se inquietar. Que motivo há para isso? Foi só um momento de felicidade em meio de tantas tribulações. Devemos permanecer tão unidos como é possível. Nem sequer encontro palavras para agradecer ao Dominic a compreensão, a coragem e a integridade que demonstrou durante este pesadelo. Por uns dias foi a companhia perfeita. Tão estranho é que desfrute por um momento compartilhando idéias formosas com ele?

Clarice engoliu a saliva. Pareceu necessitar de um supremo esforço para falar.

—Não...

—Claro que não. - Vita alargou um braço e lhe deu uma palmada na mão. Era um gesto natural, amável, reconfortante, e ao mesmo tempo, entretanto, extranhamente condescendente, como se Clarice fosse uma menina, à margem da realidade.

Dominic se sentiu de repente muito desconfortável. A conversa tinha escapado a seu controle, mas era impossível retificar a falsa impressão criada sem mostrar descortesia. Dizer que não tinha sido nada pessoal teria sido absurdo. Equivaleria a desmentir algo que só Clarice tinha pensado. Morreria de embaraço Vita, e isso seria imperdoável. Não podia haver algo mais afastado de suas intenções.

Clarice afastou seu prato, deixando pela metade uma torrada.

—Tenho coisas que fazer, cartas que escrever - disse, e sem mais desculpas partiu, fechando bruscamente a porta ao sair.

—Vá Por Deus! - exclamou Vita, e exalou um suspiro. dando de ombros. —fui indiscreta?

Dominic estava desconcertado. Não eram essas as palavras que esperava dela, e por um momento não lhe ocorreu o que responder. Vita o observou com uma expressão vagamente divertida e tolerante.

—Receio que Clarice está um pouco ciumenta, querido. Suponho que era inevitável, mas lamento muito que tenha ocorrido agora.

—Ciumenta? - repetiu Dominic, perplexo. A reação de Dominic a divertiu sem dúvida. A expressão de Vita era inequívoca.

—É muito modesto. Essa é uma de suas virtudes, sei, mas é possível que não se deu conta? Clarice tem a você muito... afeto. Forçosamente tem que sentir-se... excluída. Dominic não sabia o que dizer. Aquilo era ridículo. Ocorrido na noite anterior distava muito de ser uma noite romântica. Como ia ser? Vita era a esposa do Ramsay. Ou melhor dizendo, sua viúva... desde há só alguns dias. Clarice não podia ser tão insensata para pensar uma coisa semelhante. Em uma ocasião disse que Dominic estava apaixonado por Vita, mas isso foi uma tentativa desesperada e frívola de evitar que todas as suspeitas pela morte do Unity recaíssem em seu pai. Ninguém podia considerar isso mais que uma brincadeira de mau gosto. Era só isso. Ou não?

—Bom, estou certo... - Dominic se interrompeu, dando-se conta de que não estava tão seguro. Fez gesto de levantar-se. —Devo ir explicar à Clarice...

—Vita estendeu um braço sobre a mesa e lhe tocou a mão.

—Não, por favor.

—Mas...

—Não, querido - insistiu ela com delicadeza. —É melhor assim, me acredite. As coisas são como são, e não pode mudá-las. A sinceridade é o mais correto. Deixe-a chorar a morte de seu pai como corresponde. Com o tempo, Clarice o compreenderá. Todos o compreenderão. Limite-se a ser fiel a si mesmo; isso nunca o esqueça, nunca fraqueje.

Dominic estava confuso. Em algum ponto tinha cometido um engano, e não sabia onde; mas começava a suspeitar com crescente temor que tinha sido algo grave.

—Se você o diz... - aceitou, retirando a mão. —Vale mais que comece a me ocupar dos preparativos do funeral. Pediu-me isso o bispo. Tomara pudesse sentir mais simpatia por esse homem. - E antes que ela pudesse lhe reprovar a falta de caridade de seu último comentário, escapou da sala.

Mas uma vez em seu quarto foi impossível concentrar-se no funeral do Ramsay. O que podia dizer dele? Onde terminavam a compaixão e a gratidão e começava a hipocrisia? Se excluísse o que aparentemente tinha sido a verdadeira causa de sua morte, não reduziria a uma mera farsa todo o ocorrido? O que devia ter em conta, e a quem? Ao próprio Ramsay? A seus filhos, especialmente Clarice? Clarice ocupava um lugar cada vez maior em seu pensamento. O que Vita havia dito dela era absurdo. Clarice sentia simpatia por ele, mas não amor, certamente. Era uma idéia desatinada. Clarice não era essa espécie de mulheres. Se amasse alguém, faria o com total generosidade. Seria franca, muito franca.

Sorrindo, voltou a sentar-se na poltrona e se esqueceu por um momento de seus papéis. Como podia continuar contemplando a possibilidade de casar-se com Clarice Parmenter um homem com ambições na Igreja? Sua franqueza era devastadora, e seu humor, letal. Clarice era uma mulher... muito pouco convencional. Tinha uns olhos lindos e, prestando-lhe a devida atenção, podia tirar muito partido de seu cabelo, abundante e brilhante. E Dominic gostava do cabelo escuro. Possuía além disso uma boca encantadora. Mas Vita estava equivocada.

A informação de Vita o incomodava sobremaneira. Tinha visto algo em seu semblante, em seu olhar, que o alarmava. Parecia ter entendido mal a relação que existia entre eles, interpretando-a como... não sabia bem o que. Como algo que podia suscitar o ciúmes de Clarice.

Continuava dando voltas a isso, cada vez mais confuso, mais imerso em uma sensação quase claustrofóbica de encurralamento, quando bateram a sua porta.

—Adiante - disse, sua voz quase um nervoso grito por medo de que fosse Vita.

Mas na soleira apareceu Emsley. Dominic sentiu um intenso alívio, acompanhado do comichão do suor escorregando por sua pele.

—Sim? - perguntou.

Emsley adotou uma atitude de desculpa.

—Perdoe, senhor Corde, mas voltou o delegado Pitt, e diz que deseja vê-lo.

—Ah, muito bem.

Levantou-se e seguiu ao Emsley sem mau pressentimento algum. Supôs que se trataria de esclarecer os últimos detalhes. Não desejava falar da tragédia. Atormentava-o ainda vivamente a dor da perda. Da morte do Ramsay, Dominic era ainda mais consciente do muito que o tinha apreciado. Sem dúvida Ramsay tinha sido um tanto seco e tinha vivido obcecado com suas dúvidas e seu sentimento de debilidade. Mas também tinha sido um homem amável, muito paciente e tolerante com os defeitos alheios, revelando às vezes um senso de humor surpreendente, muito mais ágil do que Dominic teria esperado, e irreverente. Clarice se parecia com ele, salvo pelo fato de que possuía uma vontade de viver mais forte, e menos duvida sobre si mesma. E pelo visto tinha uma fé mais emocional, menos intelectual. Assim e tudo, podia falar de teologia com qualquer um. Dominic sabia por própria experiência. Os conhecimentos de Clarice eram mais amplos e mais profundos que os dele.

Pitt se achava no salão principal, a sós e de pé frente ao fogo, que nessa manhã tinham aceso cedo. Seu aspecto delatava uma profunda tristeza. Para falar a verdade, Dominic não recordava havê-lo visto tão abatido nunca antes, ou ao menos desde a morte de Sarah. Estava pálido e tenso.

Dominic fechou a porta com uma sensação de desânimo tão entristecedora que o chão pareceu tremer sob seus pés.

—O que ocorre? - perguntou com voz rouca. Não imaginava sequer que notícias trazia Pitt. Era algo relacionado com Charlotte? produziu-se algum fatídico acidente? Aproximando-se dele rapidamente, acrescentou: —O que aconteceu?

—Melhor será que se sente. - Pitt indicou uma poltrona.

—Por que? - Dominic permaneceu de pé. —O que ocorre? - Percebeu temor em sua própria voz, mas não pôde controlá-lo.

Pitt contraiu o rosto.

—Estive no Haverstock Hill - anunciou.

Dominic notou um nó no estômago, e por um momento acreditou que ia vomitar. O suor começou a brotar copiosamente de seus poros. Entretanto, até atendido pelo medo, uma parte de sua mente lhe dizia que aquela reação era absurda. por que se aterrorizava? Ele não tinha matado Unity. Nem sequer era o pai da criatura que ela levava em suas entranhas.... Desta vez não. A lembrança de sua passada relação com ela lhe doía ainda como uma ferida em carne viva. Pensava que com o tempo tinha cicatrizado. Ao fim e ao cabo, ele tinha descoberto novas esperanças, novos interesses pelos quais preocupar-se e trabalhar. Tinha recuperado inclusive a capacidade de rir. Possivelmente algum dia voltaria a amar a uma mulher, mais talvez do que tinha amado Sarah. Sem dúvida mais do que tinha amado Unity... se em realidade a tinha amado. Era o menino que ela tinha decidido perder o que o atormentava, o que tinha deixado um horrendo vazio em seu interior. Esse era seu trabalho mais difícil: perdoar Unity por aquilo. Ainda não o tinha conseguido.

Pitt o olhava fixamente. Em seus olhos se percebia aflição e desprezo. Dominic desejou encolerizar-se. Como ousava Pitt sentir tal superioridade? Ele desconhecia as tentações contra as que Dominic tinha tido que lutar. Ele se sentava tranqüilamente em sua casa, acompanhado de uma esposa afetuosa e feliz. Não tinha encontrado autênticos obstáculos em seu caminho. Para quem não conhece a tentação é muito fácil evitar o pecado. Mas Dominic sabia que tudo isso eram falsas justificações que não enganariam ao Pitt. Nem sequer ele mesmo se enganava com elas. comportou-se mesquinhamente com Jenny. Mais por estupidez que por maldade, mas isso não desculpava sua conduta. Se um paroquiano se defendesse com semelhantes desculpas, jogaria-lhe na cara sua desonestidade. Por que lhe feria tanto ver aquele desprezo no semblante do Pitt? Que importância tinha o que pudesse pensar dele o filho de um guarda-florestal convertido em policial?

Uma grande importância. Em realidade, preocupava-lhe muito o que Pitt pensasse dele. Dominic sentia simpatia por Pitt, até sabendo que não era um sentimento mútuo. E compreendia as razões de sua antipatia por ele. No lugar do Pitt, Dominic teria sentido o mesmo.

—Suponho, pois, que averiguou que conheci Unity Bellwood no passado - disse, travando-se a língua mais do que teria desejado. Teria querido falar com fria circunspeção, e não balbuciar com a boca seca.

—Sim - confirmou Pitt. —E de maneira íntima, pelo visto.

Era absurdo pretender negá-lo. Não serviria mais que acrescentar a covardia a todo o resto.

—Naquela época, sim... mas não depois. Não espero que me acredite, mas é a verdade. - Dominic ergueu os ombros e apertou os punhos aos flancos para não tremer. Devia revelar ao Pitt que Mallory era o pai do menino que esperava Unity? Como ia dar crédito a suas palavras, sabendo o que sabia de seu passado? Nem Pitt em ninguém acreditaria. Interpretaria-se como uma acusação covarde e interessada. E não tinha provas, mas só a confissão do Mallory, de que facilmente podia retratar-se. E com toda probabilidade o faria assim que conhecesse a antiga relação entre Unity e Dominic. Unity poderia haver-se deitado com qualquer deles, ou com os dois. Unity teria sido capaz, como ficaria patente imediatamente se alguém se incomodasse em indagar sua vida amorosa.

—Quem a matou, Dominic? - perguntou Pitt com severidade.

Esse momento tinha que chegar. Por um instante, a voz lhe afogou na garganta. Só na segunda tentativa conseguiu falar.

—Não sei. Achava que tinha sido Ramsay.

—Por que? vai dizer-me que o pai da criatura era ele? - disse Pitt com um tom apenas sarcástico. Ainda parecia mais doído que colérico.

—Não. - Dominic engoliu em seco. por que tinha ainda tão seca a boca. —Não, pensava que o tinha feito pela contínua erosão da fé a que ela o tinha submetido. Unity escavava a todas as horas sua confiança em si mesma. Era uma dessas pessoas obstinadas em demonstrar a outros seus equívocos e pô-los em evidencia a menor ocasião. Nunca deixava passar um engano. - Tinha as mãos suarentas e as abria e fechava sem cessar. —Pensava... pensava que ao final Ramsay perdera o controle e a empurrara, sem intenção sequer de lhe causar o menor dano, e menos ainda matá-la. Pensava que depois Ramsay, horrorizado, negara-se a acreditar no que tinha feito. Depois a culpa nutriu sua mente e o impulsionou ao final ao suicídio.

—Suicídio? - Pitt arqueou as sobrancelhas. —Não é isso o que declarou a senhora Parmenter.

—Sei. - Dominic deslocou o peso do corpo de um a outro pé, e não porque mentisse, mas sim porque tinha duros os músculos das pernas por causa da tensão. —Acredito que ela inventou essa historia para encobrir o fato. Aos olhos da Igreja, o suicídio é um crime.

—Também o assassinato.

—Já sei, mas não se demonstrou que fosse culpada de um assassinato. Poderíamos ainda dizer que foi um acidente.

—Sua morte... ou a de Unity? Ou as duas? - pressionou Pitt.

Dominic voltou a deslocar o peso do corpo.

—As duas, suponho. Sei que ninguém acreditaria.... mas quem ia dizer o contrário? Não... não é uma boa solução ao caso, mas não me ocorre nada melhor.

—Gaguejava, e era ridículo, porque dizia a verdade. —É o único com um mínimo sentido - prosseguiu desesperadamente. —Compreendo que a senhora Parmenter tentasse defendê-lo da única maneira que tinha a seu alcance, e sei que foi só um gesto de impotência de sua parte.

—Não acredito que Ramsay matasse a Unity, nem acidental nem intencionalmente - respondeu Pitt. A diferença do Dominic, ele parecia capaz de permanecer de pé sem mover-se. Seu rosto era implacável. Por mais que aquilo lhe desagradasse, não ia evitar seu dever, nem a render-se até o final. —Em minha opinião, foram Mallory ou você.

Zumbia o sangue nos ouvidos de Dominic. Só podia negá-lo.

—Eu não fui - disse com voz quase inaudível.

—Ramsay pensava que fosse você o culpado.

—Por que? - perguntou Dominic. Aquele era um golpe tão duro que cambaleou.

Ramsay suspeitava dele? Achava que tinha matado ao Unity, que tinha sido um acidente ou acaso um crime compreensível? Bem sabia Deus que Unity provocava às pessoas até o limite de sua paciência. Era quase um milagre, se uma pessoa parava a pensar nisso, que ninguém a tivesse agredido fisicamente antes. Mas Dominic nunca tinha admitido, nem sequer como possibilidade extrema, que Ramsay pudesse considerá-lo culpado. Que desolação devia haver sentido! Tinha posto tantas esperanças no Dominic... Era seu único êxito autêntico, o lucro pessoal que ninguém podia lhe arrebatar, que ninguém questionaria. Ramsay já não era capaz de acreditar em Deus. Sua frágil fé não tinha resistido ante a inexorável lógica de Darwin. A evolução tinha varrido os fundamentos de sua fé, sem deixar nada a sua passagem. Se Deus não existia, como era possível amá-lo? Ramsay tinha ficado só em um universo escuro. Entretanto amava às pessoas, não a todas mas a muitas. Amava sinceramente a muitas pessoas, entre elas Dominic. Esse último fracasso devia tê-lo superado. Clarice era a única que nunca lhe tinha falhado, e ao final não lhe bastou isso.

—Eu não fui - repetiu, impotente. —Não posso dizer que não tivesse motivos, se é que podem existir motivos para matar a outra pessoa. Unity tentou me manipular para reiniciar uma velha relação, mas me neguei. Não podia fazer nada além de converter-se em uma permanente perturbação, e o fez. - Sorriu com amargura. —Os dois tínhamos igual poder um sobre o outro.

—Estava apaixonada pelo Ramsay? - disse Pitt.

—Como? - Só a dúvida era inconcebível. Pitt não devia ter entendido absolutamente Unity se perguntava uma coisa assim. Ou acaso recorria a um tortuoso jogo? No extremo oposto do salão, a luz do sol perdeu intensidade e a chuva começou a açoitar as janelas. Pitt se aproximou da carregada poltrona situada junto à lareira e se sentou por fim.

—Poderia ter estado apaixonada pelo Ramsay? - repetiu Pitt, escrutinando o rosto de Dominic em busca de alguma mínima mudança de expressão.

Dominic se teria posto a rir, mas estava quase à beira de perder o controle.

—Não - respondeu com maior serenidade da qual se achava capaz de reunir. Sentou-se também, com movimentos um tanto entrecortados, como se as pernas não lhe obedecessem por completo. —Se pensar isso, quer dizer que não compreendeu nem remotamente a personalidade de Unity. Ramsay possuía qualidades pelas quais uma mulher podia amá-lo, mas para Unity não interessava essa espécie de integridade. - Dominic não gostava de ter que falar assim, mas era a verdade, e Pitt tinha que saber. —Considerava-o um homem aborrecido, porque não chegou a ver suas emoções. Ramsay não sentia a menor simpatia por ela, e portanto nunca lhe mostrou seu humor, sua imaginação ou seu afeto. Ela sempre o criticava. - Infinidade de exemplos foram a sua mente. Via ainda o desdém no semblante de Unity, o triunfo em seu olhar. —Sua mera presença bastava para que Ramsay ocultasse o melhor de si mesmo. Duvido que ela se desse conta, mas isso não importa. Aos olhos de Unity, Ramsay não representava sequer um desafio.

—Um desafio? - Pitt arqueou as sobrancelhas. —Com fins destrutivos?

—Sim.... suponho. Unity se aborrecia do mundo acadêmico, totalmente dominado pelos homens, até o ponto de excluir às mulheres por bom que fosse seu curriculum.... e o dela era excelente. - Isso também era certo, e ao reconhecê-lo, Dominic pôde recordar o melhor dela. —Em sua especialidade, era brilhante, superior à maioria dos homens. Não... não poderia lhe reprovar que os detestasse. Tratavam-na com um paternalismo insuportável. Elogiavam sua inteligência e seu talento para depois lhe negar oportunidades reais. Os apetites da carne eram a única vulnerabilidade desses homens, o terreno no qual ela podia vencê-los, feri-los, inclusive aniquilá-los.

—Incluído Ramsay Parmenter?

—Não acredito. Duvido que Unity pudesse competir com Vita, até se o tivesse proposto. - Dominic era resistente a dizer aquilo, mas não ficava alternativa. —Não. Nesta casa, Mallory supunha o único desafio para ela. Era muito mais vulnerável, e a vitória tinha mais valor. Proporcionaria-lhe uma maior satisfação e causaria uma ferida mais profunda no próprio Ramsay e na Igreja. Ao fim e ao cabo, Mallory não só fez voto de castidade, mas também de celibato.

Pitt guardou silêncio, mas Dominic adivinhou em seu olhar que ao menos acreditava nele.

Dominic engoliu a saliva. A língua pegava aos dentes.

—Eu não a matei - repetiu. Notou que o pânico crescia em seu interior, levando-o à beira da histeria. Devia controlar-se. Devia conservar o domínio de si mesmo. A pressão passaria. Tinha que haver alguma escapatória.

Quase sem dar-se conta do que fazia, ficou em pé. A chuva tinha aumentado, formando uma repentina tormenta de primavera.

Não, não havia escapatória. O cerco se estreitava. O pânico voltava a atendê-lo, lhe fechando a garganta. O coração lhe pulsava depressa. Estava empapado em suor. Pitt não acreditava nele. por que ia acreditar nele? Ninguém acreditaria nele. Tampouco o juiz nem o jurado. Condenariam-no à forca. Quanto tempo transcorria do julgamento até o patíbulo? Três semanas, três breves semanas. Chegaria o último dia, a última hora... e logo a dor... e nada mais.

—Dominic! - exclamou Pitt com voz penetrante.

—Sim... - disse Dominic. Pitt devia ter percebido seu terror. Era capaz de vê-lo, e inclusive de cheirá-lo. Acreditaria possível que um homem inocente experimentasse um medo tão intenso?

—Melhor será que se sente. Tem muito mau aspecto.

—Não.... não. Encontro-me bem. - por que havia dito isso? Não se achava bem absolutamente. —Já terminou?

Pitt o observava ainda com atenção.

—De momento sim. Mas não acredito que Ramsay a matasse, e tenho o firme propósito de descobrir o culpado.

—Sim.... claro. - Dominic se voltou para partir.

—Ah, por certo...

Dominic se deteve.

—O que?

—Encontrei umas cartas de amor entre Ramsay e Unity, muito apaixonadas, muito explícitas - informou Pitt. —Sabe algo disso?

—Cartas de amor? - Dominic ficou atônito. Em outras circunstâncias teria pensado que se tratava de uma brincadeira de mau gosto, mas escrutinou o rosto do Pitt e não detectou nele o menor indício de humor, mas só pesar e decepção. —Tem certeza?

—Estavam no gabinete, sobre a mesa, escritas de punho e letra deles - respondeu Pitt. —São reflexo uma de outra. Sem dúvida são carta e resposta. A senhora Parmenter as viu quando entrou para falar com ele. Foi isso o que precipitou a discussão e o ataque dele. Obviamente despertavam sentimentos intensos. Dominic não encontrou palavras. Era incrível. Se aquilo era verdade, tinha errado em todas suas percepções, tudo o que achava saber era falso. Tinha a mesma sensação que se houvesse tocado neve e o tivesse queimado.

—Vejo que não sabe nada a respeito - observou Pitt. —Tomara pudesse dizer que isso o deixa livre de suspeita, mas infelizmente não é assim. - ficou em pé. —O fato de que se escrevessem cartas de amor induz a pensar que tinha motivos para estar ciumento, tanto se a amava como se não. E se o pai do menino era Mallory... Desta vez.... esse seria também um possível motivo. Unity era uma mulher estúpida e destrutiva. Possivelmente estava fadada a uma tragédia cedo ou tarde. Não parta de Brunswick Gardens, Dominic. - E depois de um triste e apagado gesto de despedida, Pitt se voltou e se dirigiu para a porta.

Quando Pitt saiu, Dominic permaneceu só no salão durante longo tempo, sem noção do tempo. Não se deu conta de que o fogo se desmoronava em uma chuva de faíscas, e só tomou consciência dos minutos transcorridos quando o relógio do aparador da lareira deu a hora, perguntando-se de uma vez por que ninguém tinha embainhado o carrilhão. Devia dizer a Emsley. Surpreendeu-o que não o tivesse feito já Clarice. Tinha-o esquecido Vita porque sabia que a morte do Ramsay tinha sido um suicídio, e parte dela não podia deixar de vê-lo como um pecado? Dominic resistiu a pensar nessa possibilidade. Levava implícita muita dor, uma dor cujos tentáculos pareciam tocar tudo. de repente se pôs em movimento. Saiu do salão com passo enérgico e quase tropeçou com o Emsley no vestíbulo.

—Onde está Mallory? - perguntou a queima-roupa.

Emsley o olhou desconcertado. Tinha o cabelo arrepiado no alto da cabeça, e estava pálido e à beira do esgotamento.

—Sinto muito - se apressou a dizer Dominic. —Não pretendia falar com tanta brutalidade.

Emsley abriu desmesuradamente os olhos. Não estava acostumado a que se desculpassem com ele. As pessoas não se desculpavam com os criados. Não soube o que dizer.

—Sabe onde posso achar ao senhor Mallory? - perguntou Dominic. Era-lhe impossível dizer "senhor Parmenter". Para ele, esse continuava sendo Ramsay. —A propósito, o carrilhão do salão principal não se embainhou. Poderia ocupar-se disso, por favor?

—Sim, senhor. Lamento-o, senhor. Me tinha esquecido. O... lamento-o profundamente.

—Imagino que teve que atender outras muitas questões, assuntos mais importantes, como procurar que outros criados conservem a calma. - Olhou com atenção ao mordomo. —Estão todos tranqüilos?

—Sim, senhor - respondeu Emsley, e Dominic notou que mentia.

—Sinto muito - voltou a desculpar-se. —Nem sequer me aproximei para vê-los. Estou muito... muito afetado. Em todo caso, foi uma atitude egoísta de minha parte. Irei quando tiver falado com Mallory.

—Possivelmente se o senhor tivesse a gentileza de vir antes do jantar, seria melhor momento - sugeriu Emsley. —Ao final da jornada, seria mais oportuno. Agora alguma das criadas poderia.... enfim, deixar-se levar pela emoção. Não sei se me explico.

—Sim, de acordo.

Dominic tomou nota mentalmente, decidido a ir acontecesse o que acontecesse com o passar do dia. Os membros do serviço deviam estar comocionados depois de produzir-se duas mortes em tão curto prazo, e confusos pelo ambiente de culpa e receio que se respirava na casa, pela suspeita de que uma das pessoas a quem serviam e provavelmente respeitavam era culpada de um assassinato, e pela recente morte do cabeça de família, para eles inexplicável. Deviam perguntar-se, se tinha sido um acidente, um assassinato ou um suicídio. A ordem em que viviam, a segurança que os rodeava e cobria todas suas necessidades físicas, desmoronara-se. Deviam perguntar-se inclusive se no futuro continuariam tendo um teto sob o que cobrir-se. depois da morte do Ramsay, a família se desagregaria, e era muito provável que os criados ficassem sem lar. Vita não poderia já permanecer em uma propriedade da Igreja. A casa passaria automaticamente ao seguinte titular do benefício eclesiástico. Esse era um aspecto que nem sequer lhe tinha passado antes pela cabeça. Suas próprias emoções se apropriaram por completo de sua mente e excluíram todo o resto.

—O senhor Mallory está na biblioteca - disse Emsley. —Senhor Corde... Dominic esperou, meio voltado já para encaminhar-se para a biblioteca. —Obrigado...

Depois de dirigir um forçado sorriso ao mordomo, Dominic atravessou rapidamente o vestíbulo, surpreendendo-se pelo ruído de seus passos sobre o mosaico. Nunca se acostumaria a esse som. Abriu de par em par a porta da biblioteca sem incomodar-se em bater e voltou a fechar assim que entrou.

Mallory se achava de joelhos junto à prateleira inferior. Elevou a vista, aborrecido pela intrusão, e mostrou estranheza ao ver quem era. ergueu-se lentamente, de costas às cortinas marrons de veludo e aos vidros das janelas, salpicados de chuva e resplandecentes agora que o sol penetrava por eles.

—O que acontece? - Em sua voz se advertiu um ligeiro rancor. Agora o senhor da casa era ele. quanto antes o compreendesse Dominic, tanto melhor. As coisas não continuariam como até esse momento. —Me buscava?

—Pitt acaba de estar aqui - disse Dominic com tom peremptório. —Isto não pode continuar assim. Não o consentirei.

—Então lhe diga que não volte - replicou Mallory com manifesta impaciência. —Se você não for capaz de fazê-lo, me encarregarei eu. - ficou em movimento como se, se dispusesse a sair em busca do Pitt nesse mesmo instante.

Dominic permaneceu de costas à porta.

—Pitt é polícial. Virá sempre que quiser até que o caso fique resolvido a sua inteira satisfação...

—Já está resolvido. - Mallory se deteve um par de passos do Dominic. —Não sei que mais podemos dizer. É uma tragédia que a todos convém esquecer na medida do possível. Se só veio a isso, rogo-lhe que me deixe continuar com meus estudos. Isso ao menos tem alguma utilidade.

—Não está resolvido. Seu pai não matou ao Unity...

Mallory o olhou com rosto tenso e sombrio.

—Sim, sim a matou. Por Deus, Dominic, esta situação é já bastante dura para a família até sem revolver o ocorrido e procurar a maneira de evitar a verdade. Não há escapatória! Tenha a valentia e a honra de aceitá-lo, e a fé se é que essa palavra pode aplicar-se a você.

—Isso é o que tento. - Dominic percebeu a cólera de sua própria voz, e também o desprezo que sentia tanto por si mesmo como pelo Mallory, com sua atitude ressentida e desafiante. —Uma das verdades que devemos admitir é que Ramsay pensava que a matei eu.

Mallory adotou uma expressão de assombro.

—Isso é uma confissão? Não chega um pouco tarde? Meu pai morreu. Não pode fazê-lo voltar. Já não serve de muito a sinceridade, nem a compaixão...

—Não, não é uma confissão! - respondeu Dominic. —Simplesmente assinalo que se Ramsay pensava que eu a matei, cabe deduzir que ele não o fez. E eu não a matei, assim só fica você, e tinha razões de sobra para desejar sua morte.

Mallory empalideceu.

—Eu não a matei! - Endireitou os ombros, retesando todo seu corpo. —Não fui eu! -Mas em sua voz se percebeu o inconfundível nervosismo provocado pelo medo.

—Não lhe faltavam motivos - insistiu Dominic. —O menino era seu. Que conseqüências teria uma coisa assim em sua carreira, em suas ambições...?

—O sacerdócio não é uma ambição - prorrompeu Mallory, vermelho de ira. Estava de pé ante a ampla escrivaninha, entre as figuras geométricas projetadas pelo sol no chão de carvalho. Parecia ainda mais jovem do que era. Com tom crítico, acrescentou. —É uma vocação, um serviço a Deus, uma forma de vida. Pode ser que para você seja uma maneira de ganhar dinheiro, reconhecimento, ou inclusive fama, não sei. Mas eu consagrei-me a isto porque me consta que é a verdade.

—Não seja infantil - respondeu Dominic irado, voltando a cabeça em outra direção. —Todos tomamos o hábito por muitas razões. Um dia pode dever-se a razões puras, e outro dever-se à arrogância, a covardia, ou a qualquer estupidez. Essa não é a questão. - Olhou de novo ao Mallory. —Unity levava seu filho em suas entranhas. Se não o chantageava, no mínimo exercia pressão para obrigá-lo a satisfazer seus desejos, e desfrutava do poder que tinha sobre você. Ameaçou-o contar a seu bispo? - Meneou a cabeça em um gesto de negação. —Não, não se incomode em responder. Nem sequer era necessário. Embora Unity não o dissesse às claras, você foi muito consciente dessa possibilidade.

Mallory suava copiosamente.

—Eu não a matei! - repetiu. —Unity não tinha intenção de arruinar minha vida. Simplesmente... gostava da sensação de poder. Considerava-o divertido. ria porque sabia... - Fechou os olhos, dando-se conta do que acabava de dizer e em que medida se condenara. —Não a matei!

—Por que mentiu, pois, quando lhe perguntaram se a tinha visto essa manhã? - inquiriu Dominic com tom desafiante.

—Não menti. Eu estava na estufa.... estudando. Não a vi. - Embora Mallory falasse com genuína indignação, o medo que se escondia atrás dele se apalpava no ar. Se Ramsay não a tinha matado, só ele podia ser o culpado. Dominic sabia que disso ao menos era inocente. Era culpado de ter deixado grávida a Unity no passado, era sem dúvida culpado da tragédia de Jenny, e era culpado também de haver falhado ao Ramsay, de havê-lo deixado morrer de tristeza, solidão e desespero.... mas não era culpado da morte de Unity.

—Se Unity não entrara na estufa, como manchou a sola da sapatilha? - perguntou Dominic com frieza. Compreendia o terror que induzia ao Mallory a mentir inclusive nesse momento, quando já era inútil, mas ao mesmo tempo lhe parecia uma atitude detestável. Despojava-o até do último vislumbre de dignidade. Prolongava a dor daquela situação além do necessário. E além disso não podia perdoá-lo por ter permitido que Ramsay carregasse a culpa. O medo era uma coisa, ou inclusive a covardia, mas permanecer impassível enquanto outro sofria pelo pecado que a pessoa mesmo tinha cometido era algo muito diferente.

—Não sei - Mallory tremia. —Não tem sentido. Não encontro explicação. Eu só sei que não saí da estufa e ela não entrou.

—Devia estar ali - insistiu Dominic com aborrecimento. —Não podia manchar a sola com essa substância em nenhuma outra parte. Por força a pisou ao sair da estufa.

—Então por que eu não a pisei? - replicou Mallory com um súbito tom de esperança, e ergueu o braço como se de algum modo esse movimento o liberasse —Por que não havia nenhuma mancha em meus sapatos?

—Você não manchou as solas? - Dominic arqueou as sobrancelhas. Disso não estou muito certo.

—Pois vê e comprova-o! - exclamou Mallory, assinalando a porta com o queixo. —Vá olhar meus sapatos. Não achará essa mancha em nenhum.

—Por que não? Acaso a limpou? Ou se desfez dos sapatos?

—Não, maldito seja! Eu não saí da estufa.

Dominic guardou silêncio. Podia ser isso verdade? Como era possível? Se Mallory não era o culpado, devia sê-lo Ramsay depois de tudo. Estava realmente louco, tanto que se apagou por completo de sua mente a lembrança daquela ação e se acreditava inocente?

—Vá olhar! - repetiu Mallory. —Pergunte a Stander. Ele confirmará que não atirei nenhum par de sapatos nos últimos dias.

—Também era possível limpar a mancha, suponho - disse Dominic, resistindo a abandonar. Render-se equivalia a admitir a culpa do Ramsay, e depois da informação que Pitt lhe tinha dado, era difícil voltar atrás, aceitando agora não só que Ramsay era culpado mas também, além disso, que tinha atuado em um estado de total demência. Havia algo aterrador na loucura, algo inexeqüível, algo que escapava a toda compreensão.

—Não sei! - respondeu Dominic com voz estridente. Se nesse momento passasse algum criado pelo vestíbulo, sem dúvida ouvia seus gritos. —Não o tentei. Nem sequer vi mancha alguma. Mas provavelmente não poderia limpar-se. teria se filtrado no couro. Não é possível tirar manchas de substâncias químicas. Segundo Stander, inclusive as manchas comuns são já muito difíceis de eliminar. A única alternativa era comprová-lo. Não tinha sentido continuar na biblioteca discutindo com Mallory.

—Irei olhar. - Expos como um desafio. Deu meia volta, saiu e subiu ao piso superior. Levantando a voz, começou a chamar o valete. —Stander! Stander! Stander não se achava ali, o que não era estranho dadas as circunstâncias. Em seu lugar, apareceu a senhorita Braithwaite.

—Posso lhe ajudar em algo, senhor?

Estava cansada e temerosa. Levava anos ao serviço da família, desde sua juventude. Tinha tido alguém em conta os sentimentos dos criados, sua dor e confusão, seu medo ao que o futuro lhes proporcionasse?

—Preciso dar uma olhada aos sapatos do senhor Mallory.... com a permissão dele, claro. É importante.

—A todos seus sapatos? - perguntou ela, desconcertada.

—Sim. Poderia ir avisar ao Stander? Imediatamente.

Ela acessou não sem certo receio, e Dominic teve que esperar quase dez minutos Stander, que chegou com um aspecto de profundo abatimento. Pelo visto, tinha se consultado antes com Mallory, já que, sem pôr objeções, foi direto ao quarto de vestir de Mallory e abriu os dois armários para lhe mostrar as ordenadas fileiras de sapatos.

—Sabe quais calçava no dia que morreu a senhorita Bellwood? - perguntou Dominic.

—Não estou certo, senhor. Possivelmente estes. - Assinalou umas botas negras de pele muito usadas. —Ou estes - acrescentou, indicando um par de sapatos quase novos.

Obrigado.

Dominic pegou as botas e as levou junto à janela para examiná-las à luz.

As solas estavam gastas, mas não havia uma só mancha, nem marcas que induzissem a pensar que o couro tinha sido raspado para eliminar uma substância química. Deixou-as e pegou os sapatos que Stander tinha falado. Examinou as solas de igual modo. Também estavam limpas.

—Não tinha algum outro par que pudesse ter levado aquele dia?

—Não, senhor, acredito que não. - Stander se achava imerso na maior confusão.

—Em qualquer caso, darei uma olhada em todos - anunciou Dominic com tom taxativo. Não estava pedindo permissão. Não ia retroceder em seu empenho de descobrir a verdade, nem a deixar-se enganar por um par de sapatos que possivelmente não eram os que Mallory tinha usado. Agarrou-os um por um até comprovar toda a coleção, que não era muito numerosa. Mallory distava muito de ser um esbanjador. Sete pares em total, incluídas umas velhas botas de montar. Nenhum apresentava manchas de substâncias químicas.

—Achou o que procurava, senhor? - perguntou Stander com inquietação.

—Não. Mas acredito que preferia não encontrar. - Não explicou o sentido de suas palavras. Nem sequer estava muito certo de que fosse verdade.

—Isto é tudo?

Quero dizer se falta algum par, se desapareceu algum nas últimas duas semanas.

Stander, perplexo e pesaroso, contraiu o rosto. - Não, senhor. Que eu saiba, aí está todo o calçado que tem o senhor Mallory desde que voltou para casa, além dos sapatos que leva postos, naturalmente.

—Ah, sim. Esquecia-me de esses. Obrigado - disse Dominic, e fechou os armários.

Ficavam duas coisas por fazer: examinar os sapatos que Mallory calçava nesse momento e interrogar ao ajudante do jardineiro para averiguar o que era exatamente aquela substância química e quanto tempo demorava para secar.

—Não sei como se chama esse produto, senhor - respondeu o ajudante do jardineiro. —Para isso, melhor será que pergunte ao senhor Bostwick. Mas demora menos de uma hora para secar. Eu mesmo a pisei ao cabo de um momento e não me deixou marca nas solas.

—Tem certeza? - insistiu Dominic.

—Achavam-se de pé no lajeamento que circundava o exterior da estufa. Um sol radiante penetrava por uma brecha cada vez maior entre as nuvens, mas as folhas tremiam pelo peso das gotas de chuva recém caídas.

—Sim, senhor, totalmente certo - respondeu o moço.

—Recorda a que hora derramou?

—Não.... a verdade é que não...

—Embora seja aproximadamente. Quanto tempo antes do acidente? Recorda que essa manhã a senhorita Bellwood caiu pela escada, não? - Dominic permanecia imóvel sobre as lajes úmidas, alheio à beleza que o rodeava, pensando só em manchas e horas.

—Sim, senhor, claro! - O moço se assombrou de que alguém pudesse pensar que tinha esquecido um fato semelhante.

—Pensa no que estava fazendo e o que fez depois até que se inteirou de... a morte – insistiu Dominic.

O moço refletiu por um momento.

—Bom, estava limpando os vasos de barro onde plantarão as samambaias. Para isso usei aquele produto - explicou com expressão séria. —Tem que se levar muito cuidado com as térmites e as pequenas aranhas. Comem as folhas que é uma barbaridade. - Seu semblante expressou a opinião que lhe mereciam tais pragas. —É quase impossível livrar-se delas. Depois reguei os narcisos e os jacintos. Cheiram maravilhosamente. Esses que têm o centro alaranjado são meus preferidos.... refiro aos narcisos. O senhor Mallory tinha vindo estudar, assim não pude varrer a parte onde ele estava. Não gosta que o interrompam. - absteve-se de fazer comentário algum sobre os aborrecimentos que isso ocasionava, mas a expressão de seu rosto foi eloqüente. Os estudos teológicos lhe pareciam muito bem no lugar devido, mas o lugar devido não era a estufa, onde os jardineiros tinham que cuidar das plantas.

—Varreu o resto da estufa? - insistiu Dominic.

—Sim, senhor.

—Saiu o senhor Mallory em algum momento?

—Não sei. Vendo que não podia acabar dentro, fui trabalhar um momento no jardim. Suponho que derramei esse líquido uma meia hora antes de que a senhorita Bellwood caísse pela escada, ou pouco mais.

—Não uma hora?

—Não, senhor - respondeu o moço com segurança. —O senhor Bostwick me comeria cru se demorasse uma hora para fazer isso.

—Assim, a mancha ainda devia estar úmida quando a senhorita Bellwood caiu pela escada.

—Sim, senhor, certamente.

—Obrigado.

Só ficava uma coisa por fazer, embora Dominic estivesse convencido de que não contribuiria com nada de novo. E assim foi. Os sapatos que Mallory levava postos nesse momento tinham as solas tão limpas como os de seus armários.

—Obrigado - disse Dominic ao Mallory com tom lúgubre, e sem dar mais explicações voltou para seu quarto imerso no maior desânimo.

Mallory não era culpado. Dominic se via obrigado a acreditar nele. Não sabia se alegrava-se ou não. Isso significava que tinha sido Ramsay, o que lhe produzia uma funda dor. Mas ao menos Ramsay já não era sujeito aos sofrimentos, no mínimo aos sofrimentos terrenos. O que ocorresse na outra vida era algo que nem sequer ousava imaginar. Entretanto Pitt achava que Ramsay era inocente, e isso significava que para ele só Dominic podia ser o culpado.

Dominic passeou uma e outra vez da janela a estante, e o inverso. O sol banhava o aposento, mas ele não se dava conta.

Pitt o suportaria mau. Embora fosse por Charlotte, doeria-lhe ver-se obrigado a deter o Dominic. Mas o faria. Parte dele inclusive acharia certa satisfação nisso. Confirmaria a opinião que formara de Dominic muitos anos atrás no Cater Street. Charlotte ficaria consternada. Alegrara-se muito ao inteirar-se de que Dominic tinha encontrado uma vocação. Alegrara-se sem reservas. Agora, aquele novo giro a desolaria. Mas não conceberia sequer a possibilidade de que Pitt se equivocara. Possivelmente não podia permitir-lhe E mesmo que Charlotte mantivesse uma mínima confiança em Dominic, a ele de pouco lhe serviria. Não faria mais que criar a ela um conflito de emoções.

Mas sobre tudo lhe preocupava o que pudesse pensar Clarice. Ela queria a seu pai e acreditava em Dominic. Quando se inteirasse, desprezá-lo-ia. Só a idéia de que isso chegasse a ocorrer o sobressaltou. Dominic não se dera conta até esse momento do muito que significava para ele a opinião de Clarice. Não existia nenhuma razão para isso. Deveria lhe haver importado mais a de Vita. Era Vita a esposa do Ramsay. Era ela quem tinha acudido ao Dominic em seus momentos de maior angustia e dor. Era ela quem tinha confiado nele, visto nele a um bom homem, transbordante de fortaleza e coragem, de honra e de fé. Vita considerava inclusive que seria um grande líder espiritual para a Igreja, uma luz que guiaria a outros.

Clarice nunca tinha manifestado essa fé nas possibilidades futuras do Dominic. Seriam os sonhos de Vita os que se vissem defraudados, sua decepção a que se somaria à dor pela perda de seu marido, afundando-a definitivamente. Não ficaria mais remédio que admitir que Dominic tinha matado a Unity. Sem dúvida Pitt lhe contaria o motivo. Ou melhor dizendo, o que achava que era o motivo: uma antiga aventura amorosa entre eles... se algo naquela relação podia qualificar-se de "amoroso".

Tinha-o amado Unity? Ou tinha sido só um amor, essa devoradora atração por outra pessoa que podia incluir ternura, generosidade, paciência e sincera entrega, mas podia ser também algo muito diferente, uma simples mescla de encantamento e paixão, uma maneira de manter a solidão à distância temporariamente.

Tinha-o amado Unity?

Tinha-a amado ele?

Tentou rememorar o passado com a maior sinceridade possível. Era lhe doloroso por muitas razões, mas sobre tudo porque se envergonhava de si mesmo. Não, não a tinha amado. Tinha sentido fascinação, entusiasmo, desafio. Quando ela respondeu favoravelmente a suas propostas, Dominic experimentou uma excitação única. Unity era diferente, estava mais intensamente viva que qualquer outra das mulheres que tinha conhecido antes, e sem dúvida possuía maior inteligência. E era muito apaixonada.

Também era possessiva, e às vezes cruel. Recordava sobre tudo sua crueldade com outras pessoas. Dominic não tinha visto nela a menor bondade, nem o tipo de compaixão que teria satisfeito suas necessidades presentes. Com a implacável sinceridade que permite o passar do tempo, reconheceu que seus sentimentos por ela tinham sido em essência egoístas.

De pé ante a janela, contemplou o remexer das folhas nas árvores.

Tinha amado realmente a alguma mulher?

Havia sentido um grande afeto por Sarah. Nessa relação tinha existido mais ternura que em qualquer outra, mais sensação de vida compartilhada. Mas Dominic também se aborrecera dela, porque lhe preocupavam basicamente seus próprios apetites, seu desejo de excitação, de mudança, de adulação, a sensação de poder que lhe produziam as novas conquistas.

Que atitude tão infantil a sua!

Agora podia reparar parte do dano indo contar ao Pitt que Mallory era inocente. Possivelmente Pitt decidisse por própria iniciativa fazer indagações sobre a mancha no chão da estufa. Ou talvez não. Mallory lhe diria o mesmo que havia dito a ele. Acreditaria nele?

A sombra da corda pendia já sobre Dominic, e logo cobraria forma real e tangível. Era inocente. Ramsay se tinha declarado também inocente.

Mallory era inocente.

A que conclusão chegaria Pitt? A única outra pessoa da casa sem álibi era Clarice. No momento de produzir-se a fatal queda de Unity, Vita e Tryphena estavam juntas no piso inferior. Era fisicamente impossível que fossem culpadas. Todos os criados estavam à vista de alguém ou ocupados em alguma tarefa que não podiam abandonar sem que se notasse sua ausência.

A possibilidade de que Clarice fosse culpada lhe era inconcebível. Por que ia ela matar Unity? Não existia motivo algum.

Exceto o desejo de salvar Mallory se tinha conhecimento da gravidez de Unity e o poder que isso lhe dava sobre ele. Ou se tinha lido as cartas de amor mencionadas pelo Pitt -que não tinham explicação, e se deixou levar pelo pânico. Era possível que a própria Unity lhe tivesse falado disso, ameaçando arruinar a carreira do Ramsay? Dominic não podia acreditar nisso. Possivelmente Clarice, como todo mundo, tinha momentos de raiva, dor ou medo, nos quais era incapaz de dominar-se, de pensar com clareza mais à frente do horrendo e cansativo presente.

Não obstante, Clarice nunca teria permitido que Ramsay carregasse com a culpa. Teria admitido a verdade sem deter-se para considerar as conseqüências que isso pudesse lhe conduzir. Disso, Dominic estava certo. Até esse momento não se dera conta da grande estima em que tinha Clarice, mas já não albergava a menor duvida a respeito. De repente esse sentimento inundou seu espírito. Incluía certa dor, mas sobre tudo uma espécie de júbilo que transcendia do mero reconhecimento de uma verdade.

Ainda não tinha saído de seu assombro por tal descobrimento quando, pouco depois, bateram a sua porta. Abriu, e na soleira apareceu a própria Clarice, pálida. Gaguejando. Dominic perguntou:

—O que... o que acontece? O que... ocorreu...?

—Não - se apressou a responder ela, tentando sorrir. —Todos continuamos sãos e salvos.... ou isso acredito. Não se ouviu nenhum grito na última meia hora.

—Clarice, Por Deus! - exclamou Dominic de maneira impulsiva.

—Não... —Sei. - Clarice entrou no aposento e fechou a porta, mas manteve ambas as mãos no trinco, apoiando-se nele. —Se não for capaz de falar a sério, mais valeria que ficasse calada como um morto... perdão, queria dizer... como uma tumba... - Fechou os olhos e sussurrou: —meu Deus, sou incapaz de arrumá-lo, não?

Dominic não pôde reprimir um sorriso.

—Não - disse com doçura. —Parece que não. Quer tentar outra vez?

—Obrigado. - Abriu os olhos, cinzas, de olhar cristalino. —Está bem? Sei que tornou a lhe visitar esse policial. É seu cunhado, mas...

Dominic se propunha manter a maior discrição com ela, não afligi-la com as decisões que só a ele mesmo correspondia tomar, com as incertezas que o atendiam, com o preço que deveria pagar.

—Não está bem, verdade? - aventurou Clarice com delicadeza. Matou-a Mallory?

Dominic não podia mentir. Levava horas lutando com a dúvida do que fazer, o que dizer a Pitt, com o medo que se avizinhava, o peso que ficaria em sua consciência se não fizesse nada. De repente a decisão lhe veio dada.

—Não, não foi ele - respondeu. —Não pôde ser ele.

—Não pôde? - repetiu ela, vacilante. Sabia que isso não era necessariamente uma boa notícia. Seu olhar não refletiu alívio, mas apreensão. Dominic não desviou a vista.

—Não. A substância química derramada no chão da estufa ainda não estava seca à hora em que morreu Unity. Ela tinha as solas manchadas, mas ele não. —Falei com o ajudante do jardineiro e com o Stander para sair de dúvidas. Examinei todos os sapatos do Mallory. Insiste em que ela não entrou para falar com ele. Não sei por que. A estas alturas já não tem sentido seguir mentindo. Mas o fato é que não saiu da estufa, e portanto não pôde empurrá-la do alto da escada.

—Então foi meu pai... - deduziu Clarice, consternada. Era uma possibilidade para a qual ela não estava preparada.

Dominic respondeu instintivamente, lhe agarrando as mãos.

—Seu pai achava que a matei eu - disse, temendo sua reação, o momento em que retirasse as mãos em um gesto de repugnância. Mas não estava disposto a permitir que uma mentira se erguesse entre eles. —Pitt achou uma caderneta de seu pai e decifrou suas notas. Realmente achava que eu matei Unity...

Clarice parecia atônita.

—Por que? Porque você a conhecia já antes de que viesse a esta casa? Dominic ficou gelado.

—Sabia? - perguntou com voz rouca.

—Ela mesma me contou isso. - Um sorriso apareceu nos lábios de Clarice. —Achava que eu estava apaixonada por você, e desejava me dissuadir de tentar qualquer aproximação. Pensava que assim despertaria minha indignação e anularia qualquer afeto que pudesse sentir por você. - Deixou escapar uma risada nervosa. —Me disse que tinham sido amantes e você a tinha abandonado. - interrompeu-se e aguardou a resposta de Dominic. Naquele instante ele teria dado quanto possuía por poder desmentir isso, dizer que isso não era mais que maquinações de uma mulher ciumenta. Mas uma mentira levava sempre a outra, e desse modo destruiria a única relação de sua vida caracterizada pela pureza, por uma generosidade isenta de mesquinhos apetites, falsas ilusões e enganos. Se aquela nascente relação se fazia em pedacinhos, ao menos se deveria ao passado, não ao presente. Dominic não estava disposto a pôr em perigo o futuro por uns quantos dias, ou horas, o tempo que Pitt demorasse para revelar suas suspeitas.

—Sim, abandonei-a - admitiu. —Unity decidiu abortar o filho que tínhamos concebido, e horrorizado, aflito, escapei dela. Compreendi que não nos amávamos um ao outro, mas só a nós mesmos, a nossos mais baixos desejos. Isso não justifica minha atitude de então, nem as coisas que fiz depois. Não era minha intenção me comportar de maneira desonesta, mas o fiz. Tive outras amantes, ingenuamente achei que uma mulher podia compartilhar um homem com outra mulher. E mais tarde, quando ela estava... em um momento de máxima vulnerabilidade.... descobri que em realidade não podia. - Ainda era incapaz de expressar-se com toda clareza a esse respeito. —Eu deveria tê-lo previsto. Se tivesse podido, se fosse sincero comigo mesmo. Tinha já idade e experiência suficientes para saber que era mentira. Aceitei a situação por pura conveniência.

Clarice o olhava sem pestanejar.

Dominic teria desejado calar, mas teria tido que contar-lhe mais tarde, voltar a começar desde o começo. Era melhor terminar o iniciado, por penoso que fosse.

Soltou as mãos de Clarice. Preferia não sentir seu rechaço.

—Não queria confrontar o compromisso de um único amor, a responsabilidade de compartilhar tanto os maus momentos como os bons - declarou, e sua voz lhe pareceu insensível e prosaica em comparação com a magnitude de suas palavras. —Foi seu pai quem me ajudou a vencer o desespero quando Jenny se tirou a vida e eu soube que toda a culpa era minha. Ensinou-me a achar valor e perdão dentro de mim. Ensinou-me que não era possível voltar atrás, que seguir adiante era a única alternativa. Se queria extrair algum proveito de minha vida, de mim mesmo, devia me esforçar por sair do abismo em que eu mesmo me tinha metido. - Engoliu a saliva. —E agora que ele me necessitava, fui incapaz de ajudá-lo. Contemplei impotente como se afundava.

—Todos fizemos o mesmo - sussurrou ela, sua voz empanada pelo pranto. —Também eu. Não tinha a menor idéia do que ocorria, nem por que. Eu acredito em Deus, e não sabia como ajudá-lo a superar sua falta de fé. Queria-o, e fui incapaz de perceber seus sentimentos por Unity. Ainda não o compreendo. Amava-a, ou simplesmente necessitava algo que ela podia lhe dar?

—Não sei. Tampouco eu o entendo. - Sem pensar, Dominic voltou a lhe pegar as mãos e as estreitou entre as suas. —Mas devo dizer ao Pitt que não a matou Mallory, e ele não acredita que fosse seu pai. Isso me converte no único suspeito, e não posso demonstrar minha inocência. Possivelmente me deterá.

Clarice respirou fundo e pareceu a ponto de dizer algo, mas finalmente guardou

silêncio. O que ficava por dizer?, perguntou-se Dominic. Várias coisas foram a sua mente.

Devia desculpar-se por toda a dor que lhe tinha causado, por sua atitude superficial e, em último extremo, interessada e absurda, por todas as promessas que implicitamente tinha feito e descumprido, e pelo que ainda estava por vir. Desejava lhe expressar o muito que lhe importava, o muito que lhe preocupava sua opinião e seus sentimentos. Mas isso seria injusto. Não serviria mais que aumentar a carga, já entristecedora, que pesava sobre seus ombros.

—Sinto-o - disse Dominic, baixando a vista. —Queria ser muito melhor do que fui. Suponho que comecei a tentá-lo muito tarde.

—Você não matou Unity, não é verdade? - Era mais uma afirmação que uma pergunta, e sua voz não tremia, nem procurava ajuda mas uma simples constatação.

—Não.

—Então farei algo por defender sua inocência - asseverou com veemência. —Lutarei contra quem for.

Dominic a olhou.

Lentamente, uma sombra de rubor se estendeu pelo rosto de Clarice. Seus olhos a delatavam, e ela sabia. Evitou por um instante o olhar de Dominic, mas teve que render-se, consciente de que não servia de nada.

—Quero-o - admitiu Clarice. —Não é necessário que diga nada, e pelo que mais queira, não me agradeça. Não resistiria.

Dominic se pôs-se a rir, porque nada havia mais longe dos temores de Clarice que o que ele sentia nesse momento. Gratidão sem dúvida, uma entristecedora e jubilosa gratidão, embora fosse já muito tarde e não tivessem por diante mais que dor e sacrifícios. Saber que ela o queria era para ele o maior tesouro, e à margem do que Pitt dissesse ou fizesse, à margem do que acreditasse, isso não podia arrebatar-lhe.

—Por que te ri? - perguntou ela, indignada.

Dominic lhe reteve as mãos apesar dela tentar retirá-las.

—Porque isso que acaba de dizer é a única coisa que podia me fazer feliz nestas circunstâncias - respondeu. —É o único bom e puro e grato em meio desta tragédia. Não me tinha dado conta até uns minutos antes que entrasse, e só agora que já é muito tarde vejo que é o bem mais precioso que possuo, mas eu também a quero.

—De verdade? - disse ela, surpreendida.

—Sim, de verdade.

—Sério? - insistiu Clarice, escrutinando seus olhos, sua boca, todo seu rosto. Quando compreendeu que era verdade, ficou nas pontas dos pés e lhe beijou os lábios com delicadeza.

Dominic vacilou, mas ao cabo de um instante a estreitou entre seus braços e a beijou uma e outra vez. Iria falar com Pitt... ,mas mais tarde. Possivelmente só restava uma hora para estar juntos; devia fazê-la durar todo o possível para recordá-la sempre.

 

Pitt jazia na cama, incapaz de conciliar o sono pela sensação de surpresa que o dia lhe tinha deixado. Dominic tinha ido vê-lo essa tarde para lhe contar que Mallory não era culpado, que de modo algum podia sê-lo. Pitt conhecia já os fatos e seu significado; Tellman os tinha investigado por sua ordem uns dias atrás. Seu assombro se devia, pois, a que Dominic tivesse encontrado por sua conta as provas e, voluntariamente, tivesse ido lhe informar, até conhecendo as conseqüências que isso teria em sua própria posição. E entretanto o tinha feito, com olhar sincero e sem subterfúgios. Tinha-lhe representado um notável esforço, isso se via claramente em seu rosto. Parecia temer que Pitt o detivesse ali mesmo, naquele instante. Embora trêmula, tinha mantido a cabeça alta. Tinha escrutinado o olhar do Pitt esperando ver desprezo... e não o tinha encontrado. Curiosamente, seu gesto tinha suscitado no Pitt só respeito. Pela primeira vez desde que se conheciam, Pitt havia sentido de repente uma profunda e genuína admiração por ele.

Dominic o tinha notado, e um ligeiro rubor de satisfação tinha tingido suas faces; rubor que a consciência de sua presente situação tinha apagado imediatamente.

Pitt o tinha escutado sem lhe revelar que já sabia. Depois lhe tinha agradecido e o tinha deixado partir, lhe dizendo só que continuaria investigando o assunto.

Nesse momento, a ponto já de dormir, Pitt continuava tão confuso como a princípio. O caso não estava resolvido. Mallory não podia tê-la matado. Pitt não achava que o culpado fosse Dominic, apesar de ter motivos de sobra e tinha disposto da oportunidade. Quanto à culpa de Ramsay, existiam muitas contradições para aceitá-la sem mais. Mas realmente podia ter sido Clarice? Era a única solução, e entretanto tampouco parecia a correta. Quando Pitt a sugeriu a Charlotte, ela a desprezou no ato, qualificando a de ridícula. A opinião de Charlotte não era é claro um argumento para descartar essa possibilidade, mas sim para considerá-la improvável.

Pitt entrou em uma rude sonolência, interrompido com freqüência, até que pouco antes das cinco da madrugada despertou por completo e voltou a concentrar-se nas cartas de amor entre Ramsay e Unity Bellwood. Não lhes encontrava explicação. Não concordavam absolutamente com a imagem que ele formara de um e outra. Permaneceu na cama às escuras durante meia hora, procurando algo que lhes desse sentido, tentando imaginar as circunstâncias em que tinham sido escritas.

Quais podiam ser os sentimentos do Ramsay para arriscar-se a levar no papel tais palavras? Devia sentir uma intensa paixão para incorrer em tal temeridade. E por que lhe escrevia se ela vivia na mesma casa e ele sabia que no máximo demoraria umas horas em voltar a vê-la? Era a conduta de um homem que tinha perdido totalmente o sentido da proporção, um homem à beira da loucura.

Os raciocínios do Pitt desembocavam uma e outra vez nesse mesmo ponto: a loucura.

Não estava Ramsay em seu são juizo? Era a solução assim simples e trágica? Levantou-se da cama, estremecendo ao tocar com os pés descalços o frio chão. Tinha que examinar de novo essas cartas. Possivelmente lhe proporcionassem alguma explicação se as estudasse a fundo.

Pegou sua roupa para ir vestir-se à cozinha e não despertar Charlotte. Era muito cedo para incomodá-la. Cruzou o quarto nas pontas dos pés e abriu a porta. As dobradiças produziram um leve chiado, mas Pitt, depois de sair, conseguiu fechá-la quase em silêncio.

Embaixo fazia frio. O temperado ambiente da noite anterior se dissipara, e só junto ao fogão da cozinha se notava ainda um pouco de calor. Felizmente Gracie tinha deixado cheio o balde do carvão para economizar-se esse trabalho pela manhã.

Primeiro acendeu o abajur e se vestiu. Depois retirou a cinza que cobria as brasas do fogão e não demorou para avivar o fogo. Acrescentou partes de carvão com cuidado.

Se uma pessoa se precipitava ao jogá-lo, só conseguia apagá-lo por completo. Sem dúvida era uma arte.

Quando começava a arder, encheu de água a chaleira e tirou do armário o bule e a caixa do chá. Agarrou a xícara de café da manhã maior, pendurada num gancho sobre o aparador, e o pires correspondente. O fogo ardia já bem. Adicionou outras duas partes de carvão e fechou a tampa. Momentos depois o fogão começou a esquentar o ambiente. Pitt colocou em cima a chaleira e foi procurar as cartas e a caderneta do Ramsay no salão.

De volta a cozinha, sentou-se à mesa e começou a ler.

Quando tinha terminado de lê-las e iniciava já uma segunda leitura, o zumbido da chaleira penetrou em seus pensamentos. Deixou as cartas e jogou as folhas de chá e a água fervendo no bule. Tinha esquecido o leite, assim se aproximou da despensa, tirou uma jarra e retirou o pequeno círculo de musselina orlado de contas que a cobria. Serviu-se de uma xícara e tomou um gole com cuidado. Estava muito quente.

As cartas continuavam sem encaixar no esquema geral da situação. Sentou-se com as folhas estendidas ante ele e se concentrou na leitura, tomando algum ou outro gole de chá e soprando de vez em quando para esfriá-lo. Não estava chegando a nenhuma conclusão, e era consciente disso.

Não sabia quanto tempo estava ali sentado, mas tinha a xícara quase vazia quando ouviu entrar Charlotte. Ergueu a vista. Ela estava ainda de camisola, e tinha posto em cima um groso roupão. Pitt o tinha comprado quando as crianças eram muito pequenas e ela devia levantar-se várias vezes todas as noites, mas conservava ainda um aspecto sedoso e lhe assentava muito bem. Só tinha um par de remendos e uma zona um pouco descolorida em um ombro, onde Jemima lhe tinha vomitado uma vez, mas se via só sob uma luz intensa.

—Essas são as cartas de amor? - perguntou Charlotte.

—Sim. Quer uma xícara de chá? Ainda está quente.

—Sim, por favor - aceitou Charlotte, e se sentou enquanto ele se levantava por outra xícara e a enchia. Começou a ler a carta mais próxima, franzindo o sobrecenho. Pitt deixou o chá junto à Charlotte, mas ela, absorta na leitura, não se deu conta.

Pegou uma segunda carta, e uma terceira, e uma quarta, e uma quinta. Pitt observou seu rosto e viu aparecer uma expressão de incredulidade e assombro à medida que ela lia cada vez mais depressa.

—Te esfria o chá - avisou Pitt.

—Mmm... - respondeu ela, ensimesmada.

—Extraordinárias, não?

—Mmm...

—O que deve ter empurrado Ramsay a escrever coisas assim? - disse Pitt.

—Como? - Charlotte ergueu a vista pela primeira vez. Pegou distraidamente a xícara e a levou aos lábios. Fez uma careta de asco. —Está frio!

—Já lhe adverti isso.

—O que?

—Disse-lhe que estava esfriando - recordou Pitt.

—Ah, sim?

Pacientemente, Pitt se levantou, pegou a xícara de Charlotte e verteu o chá morno na pia. A seguir voltou a encher o bule de água quente, deixou-o repousar um momento e lhe serviu outra xícara.

—Obrigado - sussurrou ela, e a aceitou com um sorriso.

—Serviço completo - resmungou Pitt, sentando-se de novo e enchendo também a xícara.

—Thomas... - disse Charlotte, pensativa. Nem sequer tinha ouvido o comentário do Pitt. Estava emparelhando as cartas sobre a mesa.

—Carta e resposta? - perguntou Pitt-. Parecem ir de dois em dois, não?

—Não... - respondeu ela com crescente intensidade na voz. —Não, não são cartas e suas correspondentes respostas. Note. Observe-as atentamente. Olhe como começa esta. - Começou a ler em voz alta: —"A ti que tão querida é para mim, como posso te expressar a sensação de solidão que me invade quando nos separamos? A distância entre nós é incomensurável, e entretanto os pensamentos a salvam e posso chegar a ti em minha mente...".

—Já sei o que põe - a interrompeu Pitt. —Uma fileira de tolices. A distância entre eles era nula, quartos diferentes na mesma casa quando mais.

Charlotte moveu a cabeça em um impaciente gesto de negação.

—E agora escuta isto: "Adorado meu, minhas ânsias de ti não podem expressar-se com palavras. Quando estamos separados, afogo-me em um vazio de solidão, envolta de noite mais fechada. E entretanto me basta pensar em ti, e nem o céu nem o inferno poderiam interpor-se em meu caminho. O vazio desaparece e você está comigo." - deteve-se e olhou fixamente ao Pitt. —Não dá conta?

—Não - admitiu ele. —Continua sendo absurdo, mas expresso com mais veemência. Todas as cartas de Unity são mais intensas que as do Ramsay, e mais explícitas. Já lhe havia isso dito.

—Não! - replicou Charlotte com tom peremptório, inclinando-se sobre a mesa. —Me refiro a que é quase o mesmo pensamento, só que exposto com um tom mais apaixonado. Todas estão emparelhadas, Thomas. Cada par expressa a mesma, idéia

por idéia, inclusive em idêntica ordem.

Pitt deixou a xícara.

—O que quer dizer?

—Não acredito que sejam cartas de amor... ou para ser mais exato, não no sentido de que eles as escrevessem o um ao outro - explicou Charlotte com total seriedade. —Os dois estudavam a literatura clássica: ele só textos teológicos, mas ela de todo tipo. Acredito que estamos ante traduções distintas dos mesmos originais.

—Como?

—As que mostram um tom mais seco são dele, escritas de seu punho e letra. - Charlotte as indicou. —As mais explícitas, mais apaixonadas, são dela. Unity percebeu conotações sexuais, ou as acrescentou de sua própria colheita; ele era muito mais metafórico ou espiritual. Você diga o que quiser, se procurarmos na casa, provavelmente no gabinete, acharemos o original latino, grego, hebreu, ou o que seja, destas cartas. - Voltou às indicar em conjunto com um amplo gesto do braço, roçando sua xícara com a manga da bata. —Provavelmente a escreveu algum dos primeiros Santos que se descarnou ou foi tentado por alguma mulher depravada, apresentada já para sempre como uma pecadora por sua habilidade para afastar momentaneamente ao santo em questão do caminho da santidade. Mas quem quer que fosse, acharemos os originais em que se apóia cada par de cartas. - Deslizou-as sobre a mesa para o Pitt com um resplendor de certeza no rosto.

Pitt as pegou lentamente e as colocou por pares, comparando os parágrafos tal como ela tinha indicado. Charlotte tinha razão. Do principio ao fim se tratava em essência das mesmas idéias expressas de maneira distinta, ou peneiradas por duas personalidades que diferiam em todas suas percepções, suas emoções, seu sentido da linguagem, e em suma em sua visão do mundo exterior e anímico.

—Sim... - admitiu Pitt, também ele cada vez mais convencido. —Sim.... é verdade! Ramsay e Unity não estavam apaixonados. Estes textos são só um elemento mais de suas discrepâncias. Ele os considerava declarações de amor divino; ela os interpretava como manifestações de um apaixonado amor entre um homem e uma mulher. Guardava Ramsay todas as cartas porque formavam parte do trabalho que estava desenvolvendo.

Charlotte lhe sorriu.

—Exato. Agora tudo tem muito mais sentido. A idéia de que Ramsay fosse o pai do menino pode descartar-se por completo. - Sulcou o ar com a mão e esteve a ponto de atirar ao chão a jarra de leite.

Pitt a colocou em lugar mais seguro.

—E isso nos leva a pensar no Mallory - prosseguiu Charlotte com expressão carrancuda. —E ele assegura que não saiu da estufa, nem viu Unity. E sabemos que Unity entrou ali pela mancha na sola de sua sapatilha.

—E não saiu da estufa durante esse tempo - acrescentou Pitt, —porque não tinha os sapatos manchados.

—Comprovou-o?

—Claro que sim. Tellman se ocupou disso.

—Assim, Unity entrou... e Mallory não saiu.... assim mentiu. Por que? Se podia demonstrar que não abandonou a estufa em nenhum momento, que importância podia ter se ela tinha entrado e falado com ele ou não?

—Nenhuma - concordou Pitt. Bebeu o chá. Começava a ter fome. Levantando-se, disse: —Porei para torrar umas fatias de pão.

—Queimará-as - advertiu ela, ficando também em pé. —E se preparar já o café da manhã? Quer uns ovos?

—Sim, por favor - respondeu Pitt, sorridente, e se apressou a sentar-se. Lançando-lhe um olhar, Charlotte deixou claro que tinha percebido sua manobra; obviamente Pitt se ofereceu para preparar as torradas para que fosse ela quem terminasse fazendo-o. Mesmo assim, Charlotte não importou-se em cozinhar, mas antes ordenou ao Pitt que avivasse outra vez o fogo.

Uma meia hora depois, quando se deleitavam já com o bacon, os ovos, torradas, geléia e o chá recém feito, Charlotte voltou a abordar o assunto.

—Até o momento nada tem muito sentido - disse com a boca cheia. —Mas se encontrássemos os originais dessas cartas, no mínimo estaríamos seguros de que Ramsay e Unity não mantiveram uma aventura. Deixando de lado o fato de que assim nos aproximaríamos da verdade, não acha honestamente que deveríamos fazê-lo? Sua família está destroçada. A senhora Parmenter se sente sem dúvida enganada. Eu não suportaria a idéia de que pudesse escrever cartas como essas a outra mulher.

Pitt engoliu quase sem mastigar a parte de bacon que tinha na boca.

Charlotte se pôs-se a rir.

—De acordo, não são muito de seu estilo - concedeu Charlotte. —Não muito...

Pitt tomou ar com dificuldade.

—Mas deveríamos ir comprovar isso – insistiu Charlotte enquanto pegava o bule.

—Sim, amanhã mesmo enviarei ao Tellman.

—Tellman! Não distinguiria uma carta de amor religioso embora a tivesse ante os olhos.

—Não, não é muito provável - admitiu Pitt com tom sarcástico. —Acredito que devemos ir nós. Hoje é bom dia.

—Hoje é domingo! - protestou Pitt.

—Já sei. Provavelmente não haverá ninguém na casa.

—Estarão todos em casa!

—Não, não estarão. São uma família crente. Terão ido ao ofício dominical. Certamente se celebrarão as honras fúnebres pelo Ramsay. Por força têm que assistir.

Pitt vacilou. Queria passar o dia tranqüilamente com sua esposa e filhos. Por outra parte, se achavam as cartas, ficaria demonstrado que Ramsay era inocente ao menos disso. Embora em realidade não serviria de grande ajuda.

Mas quanto mais pensava nisso, maior era seu desejo de averiguar a verdade imediatamente. Podia deixá-lo para o dia seguinte quando toda a família estivesse em casa. Mas com isso só conseguiria aumentar seu mal-estar. E ele mesmo não desfrutaria do domingo, porque não poderia afastar ao Ramsay Parmenter de sua mente até sair das dúvidas.

—Sim.... suponho - concordou, terminando o bacon e pegando uma torrada e a geléia. —é melhor fazê-lo agora que esperar a amanhã.

Charlotte não contemplou sequer a possibilidade de ficar no Keppel Street enquanto Pitt ia a Brunswick Gardens. Sem sua ajuda, ele não podia levar a cabo satisfatoriamente a busca dos originais, assim a questão nem sequer se expôs.

Às onze menos quarto se achavam ante a porta da casa, uma hora ideal, já que estariam todos na igreja ou a caminho. Emsley os deixou entrar, revelando só uma leve surpresa ao ver Charlotte.

—Bom dia, Emsley - saudou Pitt com um fugaz sorriso. —Esta manhã, durante o café da manhã, percebi que certas cartas que pareciam delatar uma conduta indigna por parte do senhor Parmenter poderiam ter uma explicação muito distinta, e de fato inocente.

—De verdade, senhor? - O semblante do Emsley se iluminou.

—Sim. Foi minha esposa quem sugeriu a idéia. Trata-se de algo com o que ela está familiarizada, e por isso me acompanhou, para identificar com maior segurança os textos originais em que se apóiam essas cartas. Se posso entrar no gabinete do senhor Parmenter, procurarei os originais entre seus papéis. Desse modo terei a prova que necessito.

—Sim, sim, senhor, não faltaria mais! - respondeu Emsley, na expectativa.

—Infelizmente toda a família está na igreja, senhor Pitt. Hoje se celebra um ofício de finados pela alma do senhor Parmenter, e imagino que se prolongará o bastante. Sinto muito, senhor. Deseja tomar algo o senhor? - voltou-se para o Charlotte. —Senhora?

Charlotte lhe dirigiu um encantador sorriso.

—Não, obrigado. Mas acho que deveríamos nos pôr mãos à obra imediatamente. Se terminarmos antes que volte a família, seria a notícia mais alentadora que poderíamos lhes dar.

—Sem dúvida, senhora. Tomara que assim seja. - Até enquanto falava, Emsley retrocedeu para a escada, impaciente por retirar-se para que eles atacassem sua tarefa, e se desculpou com uma ligeira inclinação de cabeça.

Pitt começou a subir e Charlotte o seguiu, dando uma olhada ao extraordinário vestíbulo com seu mosaico no chão, vistosos azulejos em uma parede, e as colunas corintias que seguravam o patamar. Em comparação, a enorme palmeira alinhada verticalmente com o pilar de chegada do corrimão quase parecia normal e comum. Achava-se justo debaixo do lugar onde devia estar Unity quando a empurraram. Charlotte, indecisa, deteve-se ali enquanto Pitt cruzava o patamar com determinação a caminho do gabinete. Iria reunir se com ele em um momento.

Voltou-se e contemplou o vestíbulo. Era lindo, mas lhe custava imaginá-lo como parte de um lar. Que devoradora paixão devia haver-se desencadeado naquela casa para provocar tão violenta erupção e duas mortes! Que amor... e que ódio!

Entre o Pitt e Dominic, tinham-lhe devotado um retrato bastante completo de Unity, e estava quase certa de que aquela mulher não lhe teria inspirado muita simpatia. Mas Charlotte admirava certos aspectos da personalidade de Unity, e compreendia em parte sua frustração, e a hostilidade que tinha gerado nela a arrogância e condescendência dos homens. A injustiça era intolerável.

Mas Unity tinha decidido abortar o filho concebido na relação com o Dominic. Isso Charlotte era incapaz de entender, sabia que Dominic estava disposto a casar-se com ela. Não o tinha feito por medo, desespero, ou a sensação de ter sido traída.

E o menino que levava em seu ventre ao morrer? Também se propunha abortá-lo? Estava grávida de três meses. Sem dúvida conhecia já seu estado. Charlotte recordou suas próprias Gravidezes, primeiro a da Jemima, depois a do Daniel. Tinha vomitado só algumas vezes, mas o enjôo e as náuseas eram muito acusados para passar inadvertidas ou deixar lugar a dúvidas. A princípio, mal tinha aumentado de peso, mas por volta do terceiro mês notava já claramente um maior volume em torno da cintura, assim como outras alterações de caráter mais íntimo.

Pitt saiu do gabinete, procurando-a. Charlotte subiu o último degrau e cruzou o patamar.

—Perdoe - desculpou-se, entrando atrás dele e fechando a porta.

Pitt a observou.

—Encontra-se bem?

—Sim. Sim, só pensava... em Unity, em como devia sentir-se.

Pitt a tocou com ternura, pegando-a pelo braço por um momento, olhando-a nos olhos, e depois voltou junto à estante, onde já tinha começado a procurar os originais das cartas.

Charlotte começou pelas prateleiras inferiores, folheando um livro atrás de outro e deixando-os a um lado à medida que os descartava.

—Vou olhar na biblioteca - disse ao cabo de quinze minutos. —Se Unity trabalhava ali, poderia ser que desceu os textos.

—Boa idéia - concordou Pitt. —Eu terminarei de revisar estes e os que estão atrás da escrivaninha.

Mas quando Charlotte saiu do gabinete, lhe ocorreu outra idéia e, dando uma olhada ao redor para certificar-se de que não havia ninguém perto, seguiu sigilosamente pelo corredor para os quartos . Experimentou no primeiro, e supôs que era o da Tryphena pelo livro da Mary Wollstonecraft que havia na mesinha de noite. Na decoração preponderavam os tons rosados, em harmonia com a tez e o cabelo claros da Tryphena.

O quarto seguinte era mais amplo e muito feminino, apesar de ser as cores mais atrevidas e apresentar um ar exótico e muito moderno, afim ao do vestíbulo. Aquele era o gosto de Vita: detalhe árabes e turcos, e inclusive uma caixa da China laqueada junto à janela.

Charlotte entrou e fechou a porta, o coração lhe pulsando com força no peito. Se a surpreendiam ali, não havia desculpa possível. Rogou a Deus que todas as criadas tivessem assistido ao ofício de finados.

Caminhando nas pontas dos pés, aproximou-se da penteadeira e lançou uma olhada aos frascos de lavanda e água de rosas, às escovas e pentes. A seguir abriu a primeira gaveta. Continha várias caixas de pastilhas, algumas douradas e esmaltadas, um de esteatita lavrada, outra de marfim. Abriu uma delas. Meia dúzia de pílulas. Podia ser algo. Desentupiu outra. Um par de abotoaduras de ouro com umas iniciais gravadas: D.C. Dominic Corde!

Voltou a enroscar o plugue com mãos trêmulas. Seguiu procurando. Encontrou um lenço com um "D" bordado em um canto. Havia também uma abotoadura nacarada de gola de camisa, um pequeno canivete, uma luva, umas notas para um sermão escritas ao dorso de uma carta de restaurante. Era a letra do Dominic.

Charlotte a havia visto muitas vezes no Cater Street. Não tinha mudado. Fechou a gaveta, e agora as mãos lhe tremiam de tal modo que teve que sentar-se e respirar fundo durante uns minutos para serenar-se e poder cruzar o quarto até a porta. As lembranças se amontoaram em sua mente, e notou que lhe ardiam as faces. Dez anos atrás ela estava obcecada com o Dominic, tão apaixonada por ele que podia repetir palavra por palavra tudo o que lhe dizia inclusive vários dias depois. Quando se encontraram em um mesmo lugar, ela ficava quase muda de emoção.

Conhecia todos seus gestos, seus olhares, suas expressões. Passava por onde ele tinha passado, tocava as coisas que ele havia tocado como se pensasse que de algum modo ele continuava presente nelas. Colecionava pequenos objetos que ele tinha perdido ou atirado: um lenço, uma moeda, uma pena velha Charlotte não necessitou dedução alguma para saber com toda certeza o que tinha feito Vita, e por que.

Abriu lentamente a porta e deu uma olhada. Não havia ninguém. Saiu com cautela, fechou a porta e voltou para o patamar. Além da Tryphena, Vita era a única que não podia ter empurrado Unity. Tinha Dominic a menor idéia do que Vita sentia por ele?

Qualquer um teria pensado que por força devia haver-se dado conta. Mas Charlotte sabia que, dez anos atrás, ele não suspeitava nem remotamente os sentimentos que ela albergava. Ainda recordava com toda clareza o horror e incredulidade do Dominic quando se inteirou.

Uma vez era possível... mas podia repetir-se duas vezes esse mesmo grau de ignorância? Acaso sabia e se sentia...? O que? Adulado, assustado, envergonhado? Ou foi Unity quem o notou e ameaçou revelar, contando ao Ramsay?

Deteve-se novamente no alto da escada e olhou para baixo. A casa estava em silêncio. Emsley não devia haver-se ido muito longe se por acaso Pitt o chamasse, provavelmente esperava no lugar onde soavam as campainhas, que costumava ser no refeitório e na despensa. Possivelmente havia também alguma criada na cozinha, preparando um almoço frio. Ao que parecia, não havia ninguém mais, exceto Pitt no gabinete.

Unity tinha discutido com o Ramsay, como tantas outras vezes antes. Ela tinha saído furiosa do gabinete, percorrido o corredor e cruzado o patamar para descer. Tinha chegado até o alto da escada, onde Charlotte se achava nesse momento.

Possivelmente se tinha detido um instante para dizer algo mais ao Ramsay, levantando a voz para que ele a ouvisse do gabinete, e depois se voltou disposta a continuar escada abaixo. Possivelmente se tinha segurado ao corrimão. E tinha tropeçado?

Mas ali não havia nada com o que tropeçar ou escorregar.

E se lhe tinha quebrado um salto?

Mas não era assim. Suas sapatilhas se achavam em perfeito estado, salvo pela mancha de uma substância química que tinha pisado na estufa.

Podia ter se enjoado? Estava grávida de três meses. Podia ter sofrido um enjôo o bastante intenso para cair pela escada?

Não era provável.

Charlotte se inclinou sobre o corrimão e olhou para baixo. A palmeira se erguia justo debaixo dela. Como elemento decorativo, era-lhe pouco acertada. Não gostava das palmeiras dentro das casas. Sempre ofereciam um aspecto um tanto poeirento, e naquela em particular se sobressaíam numerosas pontas onde se podaram as folhagens velhas. Provavelmente estava infestada de aranhas e moscas mortas. Repugnante! Mas como podia se limpar uma coisa assim?

De repente viu algo apanhado nela. Algo de cor clara e uns cinco centímetros de longitude. Sabia Deus o que podia ser. Charlotte desceu alguns degraus, outra vez nas pontas dos pés sem saber por que. Esquadrinhou a palmeira de uma posição mais próxima. O objeto estava encaixado entre o tronco e uma das pontas podadas. Era de forma quase cúbica.

Deslocou-se um pouco para vê-lo de outro ângulo. A parte superior parecia de madeira sem polir. O lado em troca, como pôde comprovar quando se agachou para olhar entre os balaústres, refletia a luz como o cetim. O que podia ser?

Desceu até o pé da escada, meteu-se no estreito espaço que ficava atrás da enorme tina negra e, apertando os dentes ao recordar a possível presença de aranhas, introduziu a mão entre as folhagens. Teve que procurar provas por um momento para localizar o objeto com as pontas dos dedos e tirá-lo. Era um salto de um sapato de mulher.

Quanto tempo estaria ali?

Desde que quebrou Unity ao cair? Possivelmente estava um pouco enjoada, voltou-se bruscamente, lhe quebrou o salto e, vendo que perdia o equilíbrio ou inclusive precipitando-se já escada abaixo, pediu auxílio instintivamente, aterrorizada. Mas quando a acharam, não tinha quebrada nenhuma sapatilha.

E de repente deu com uma resposta que esclarecia tudo. Com o salto na mão, correu escada acima e entrou no gabinete.

—Já o tenho! - exclamou Pitt antes de que ela pudesse falar. Com expressão triunfal, segurava no alto um fino livro. —Aqui estão.

Charlotte abriu a mão e lhe mostrou o salto.

—Encontrei-o na palmeira do vestíbulo - disse, olhando-o no rosto. —E isso não é tudo. Eu... entrei no quarto de Vita. Já sei que não deveria tê-lo feito, Thomas, não é necessário que me diga isso. Thomas... Thomas, tem escondidas na penteadeira várias coisas do Dominic, objetos pessoais. - Notou que lhe ardiam as faces. Teria preferido não lhe dizer aquilo, mas não ficava alternativa. —Thomas.... está apaixonada por ele. Obsessivamente apaixonada.

—Está...? - disse Pitt lentamente. —Está apaixonada?

Charlotte assentiu com a cabeça e lhe estendeu o salto.

Pitt o pegou e o examinou atentamente.

—Na palmeira do vestíbulo? - perguntou.

—Sim.

—Justo debaixo do pilar de chegada do corrimão?

—Sim.

—Quer dizer que Unity caiu pela escada porque lhe rompeu um salto?

—É muito possível. Nessa etapa da gravidez poderia ter-se enjoado.

Pitt a olhou fixamente.

—Sugere, pois, que quando Vita a achou ali estendida, ocultou esse fato trocando suas sapatilhas pelos sapatos dela. Foi Vita quem entrou na estufa e pisou na substância química. Mallory disse a verdade. Unity morreu acidentalmente, e Vita fez que parecesse um assassinato para que se acusasse ao Ramsay.

—E Unity lhe deu em parte a idéia ao chamar o Ramsay... pedindo auxílio - acrescentou Charlotte.

—Possivelmente. Mas me inclino a pensar que foi a própria Vita quem gritou ao ver Unity ao pé da escada - corrigiu Pitt.

—OH! - exclamou Charlotte, horrorizada ante tal premeditação, tão intencional crueldade. Que sangue-frio se necessitava para atuar com tal oportunismo, para aproveitar as circunstâncias sem necessidade de parar para pensar! Se Vita tivesse vacilado mínimamente, teria perdido a ocasião. Olhou ao Pitt sentindo que um gélido abismo se abria ante ela, atemorizada por tão profundo egoísmo.

Pitt deve ter notado também; em seu olhar se refletiu o horror dela.

—Realmente acredita que Vita fez uma coisa assim? - sussurrou Charlotte. —Queria que se acusasse ao Ramsay. Mas como se explicam as agressões dele contra ela? Acha que Ramsay conhecia as intenções de sua esposa? Nesse caso, por que não disse nada? Porque não podia demonstrar e pensava que ninguém acreditaria nele? Pobre Ramsay.... perdeu o juizo e arremeteu contra ela. Mas nunca saberemos o que lhe disse ela, como o provocou... - Sua voz se desvaneceu.

—Possivelmente... - disse Pitt lentamente com expressão pensativa. —Ou possivelmente sim. Reconstruamos a cena.

—Que cena? A morte do Ramsay?

—Sim. Você faz o papel de Vita, e eu farei o do Ramsay. Até o momento não tinha duvidado da versão de Vita porque não tinha motivos para isso. Sentarei-me atrás da escrivaninha. - Pitt ficou em movimento enquanto falava e indicou a porta. —Você entra por aí.

—E o canivete? - perguntou Charlotte.

—Está na delegacia de polícia. - Deu uma olhada à escrivaninha e pegou uma pena. —Usa isto. De momento improvisa. Logo perguntaremos à criada que faz a limpeza se recorda onde costumava estar exatamente.

Charlotte, obediente, retrocedeu até a porta, ficando junto a ela como se acabasse de entrar. Devia pensar em algo que dizer. O que haveria dito Vita ao entrar? Qualquer coisa servia. Tinha sido uma conversa normal até que viu as cartas.

—Acho que deveria tomar o café da manhã conosco - começou.

Pitt a olhou surpreso, mas em seguida compreendeu.

—Ah. Não, acho que não será possível. Estarei ocupado. O livro está me dando muito trabalho.

—O que faz agora? - Charlotte se aproximou da escrivaninha.

—Traduzir umas cartas - respondeu Pitt, observando-a. —Naturalmente, a conversa pôde prolongar-se muito mais.

—Sei. - Charlotte pegou uma folha e a leu. Era só uma nota a respeito de uma reunião com o conselho paroquial. Fingiu assombro e indignação. —O que é isto, Ramsay?

Pitt franziu o sobrecenho.

—É a tradução de uma carta escrita por um dos primeiros Santos - respondeu.

—Nisso estamos trabalhando agora. O que achava que era?

Charlotte procurou uma resposta que fizesse subir de tom a discussão.

—É uma carta de amor. Os Santos não escreviam cartas como esta.

—É metafórica - respondeu Pitt. —Por Deus, não tem que interpretar-se de um ponto de vista romântico.

—E isto? - Charlotte pegou outra folha e a agitou com fúria. Era uma notificação do bispo referente a uma mudança de hora no ofício de vésperas. —Outra carta espiritual, suponho? - Acrescentou um marcado tom de sarcasmo.

—É a tradução que fez Unity da mesma carta - explicou Pitt com atitude razoável. —Discrepo profundamente dela. Como pode ver-se por minha tradução, Unity interpretou mal o sentido.

—Isto não funciona - disse Charlotte, dando de ombros. —Não posso discutir por uma coisa assim. Nem eu nem ninguém. Seria ridículo. O motivo deve ser outro.

Pitt ficou em pé.

—Bom, suponhamos que houve outro motivo, possivelmente muito pessoal para nos contar e ela escolheu as cartas como alternativa.

—Custa-me acreditar nisso - respondeu Charlotte.

—Eu também, mas em qualquer caso, reconstruamos a briga. Melhor será que se coloque perto da escrivaninha para poder agarrar o canivete.

—Tampouco acredito que funcione - objetou ela. —Você é mais alto que Ramsay.

—Uns oito centímetros, diria - concordou Pitt. —E você é uns oito centímetros mais alta que Vita. As proporções são virtualmente as mesmas. - Estendeu os braços e lhe rodeou o pescoço com as mãos, delicadamente mas obrigando-a a retroceder até ficar reclinada contra a escrivaninha.

Charlotte tratou de empurrá-lo, mas foi inútil dadas as diferenças de estatura, peso e força. E Pitt nem sequer lhe oprimia o pescoço.

—Agarra o canivete - indicou ele.

Charlotte jogou atrás a mão e procurou sobre a escrivaninha. Não conseguiu achar a pena, mas isso era simples questão de azar.

Pitt a pegou por ela e a entregou.

—Obrigado - disse Charlotte ironicamente.

Pitt a empurrou ainda um pouco mais contra a escrivaninha.

Charlotte ergueu a pena e a manteve em alto por um momento a modo de advertência para que ele tivesse tempo de mover-se, como tinha feito Ramsay segundo a versão de Vita, e logo golpeou com força, mas segurando a pena quase por seu extremo inferior para que fosse em sua realidade mão o que entrasse em contato com o corpo do Pitt. Alcançou-lhe na face, e ele fez uma careta de dor, mas poderia ter sido na garganta. Charlotte o tentou de novo, e desta vez o golpe foi dar no pescoço, por debaixo da orelha.

Pitt retrocedeu e se esfregou com a mão a zona onde lhe tinha golpeado, possivelmente com mais força do que pretendia.

—É possível - disse Pitt com tristeza. —Mas a discussão não. Isso não tem sentido. Acha que Ramsay realmente tentou matá-la? Que razão haveria para isso? Não há nada comprometedor nas cartas, uma vez que se sabe o que são, e tendo os originais é bastante fácil dar-se conta. Inclusive se deixarmos estes de lado, existem outros exemplares. De certo sentido é algo de domínio público. Qualquer especialista em literatura clássica os acharia. Ramsay sabia que tinha a defesa assegurada.

—Pôde haver outro motivo? - perguntou Charlotte, olhando-o nos olhos.

—Possivelmente não - respondeu Pitt. —Possivelmente ela entrou com intenção de matá-lo. Tanto nessa agressão como na anterior, não existe mais prova que a palavra de Vita. - Estendeu o braço para o cordão da campainha e puxou-o.

—O que vai fazer? - perguntou Charlotte, surpreendida.

—Averiguar onde estava o canivete - respondeu Pitt. —A julgar por onde caiu Ramsay, o canivete tinha que estar por aqui. - Assinalou um extremo da escrivaninha.

—Quer dizer, à esquerda do Ramsay desde sua posição de trabalho. Ramsay era destro. Assim o lado esquerdo não é o lugar natural para deixá-lo. É incômodo. Se ele se achava de pé frente a ela, como teve que ser para cair onde caiu, ela estava inclinada para trás tal como estava você. Era necessário que o canivete estivesse à mão, porque obviamente não teve ocasião de voltar-se para buscá-lo. Isso é impossível quando alguém lhe tem agarrado pelo pescoço e tenta matar você, ou faz algo que te induz a pensar, erroneamente ou não, que tenta matar você. Assim o canivete só podia estar perto da beira dianteira da mesa, o lado mais afastado do Ramsay quando estava sentado em sua poltrona.

—E em definitivo onde estava? - perguntou Charlotte.

—Não sei, mas não estava, acredito, onde ela disse.

Abriu-se a porta e Emsley apareceu com expressão interrogativa.

—Sim, senhor?

—Emsley, você deve entrar aqui com freqüência, não?

—Sim, senhor, várias vezes ao dia... quando ainda vivia o senhor Parmenter. –A dor escureceu seu semblante.

—Onde costumava estar exatamente o canivete? indique-me isso se for amável.

—Qual, senhor?

—Como?

—Qual, senhor? - repetiu Emsley. —Há um no vestíbulo, outro na biblioteca e um terceiro aqui.

—O daqui - precisou Pitt com um indício de impaciência.

—Na escrivaninha, senhor.

—Em que parte da escrivaninha? - insistiu Pitt.

—Aí, senhor. - Emsley indicou o ângulo direito. —Era muito bonito, uma réplica supostamente de Excalibur, a espada do rei Artur.

—Me deu a impressão de que se parecia mais a um sabre francês.

—Um sabre francês, senhor? Ah, não, perdoe o senhor que o contradiga mas é sem dúvida uma espada inglesa antiga, reta e com um punho celta. A espada de um cavalheiro. Não tem nada de francês. - Estava indignado, e duas manchas vermelhas tinham aparecido em suas pálidas faces.

—Algum outro canivete representa também uma espada?

—Sim, senhor. o da biblioteca se ajusta mais ao que descreveu .

—Está certo? Totalmente certo?

—Sim, senhor. De jovem, eu era muito aficionado à leitura, senhor. Li várias vezes A morte de Artur. - Inconscientemente, endireitou os ombros. —Sei distinguir um sabre francês da espada de um cavalheiro.

—Mas tem certeza de que o sabre estava sempre na biblioteca e a espada aqui? Não poderiam haver-se trocado de lugar em algum momento?

—Poderiam, senhor, mas não trocaram de lugar. Lembro que vi a espada do rei Artur na escrivaninha naquele mesmo dia. De fato, o senhor Parmenter e eu mantivemos uma breve conversa sobre essa espada.

—Tem certeza de que foi naquele mesmo dia? - insistiu Pitt.

—Sim, senhor. Foi no dia em que morreu o senhor Parmenter. Isso nunca esquecerei. Por que o pergunta? Tem alguma importância?

—Sim, Emsley, tem. Obrigado. A senhora Pitt e eu partimos já. Agradeço-lhe sua ajuda.

—Obrigado, senhor. Senhora.

Já na rua, à luz do sol, Charlotte se voltou para o Pitt.

—Vita levava consigo o canivete, não? Tinha planejado matá-lo. Não houve discussão. Escolheu o momento em que os criados jantavam e a família estava na estufa ou no salão principal. Inclusive se tivesse havido gritos, ninguém os teria ouvido.

Pitt se colocou a seu lado, e juntos se encaminharam para a igreja.

—Sim, isso parece. Acredito que desde o instante em que viu Unity estendida ao pé da escada, inclusive antes de saber com certeza que tinha morrido, planejou carregar ao Ramsay com a culpa. Preparou tudo para que desse a impressão de que ele estava perdendo o controle de si mesmo, até que ao final enlouqueceu por completo e tentou matá-la. Desse modo ela podia matá-lo a ele, em defesa própria, e aparecer logo como a viúva aflita e inocente. Pensava que em seu devido tempo poderia casar-se com o Dominic, e que tudo sairia segundo seus desejos.

—Mas Dominic não a ama! - objetou Charlotte, apertando o passo para não atrasar-se.

—Talvez ela acredite no contrário. - Lançou um olhar fugaz a Charlotte.

—Quando alguém está apaixonado, apaixonada obsessivamente, vê o que quer ver. - absteve-se de lhe recordar seus próprios sentimentos no passado.

Charlotte manteve a vista à frente, ligeiramente ruborizada.

—Isso não é amor - murmurou. —Possivelmente Vita se enganava com a idéia de que agia pensando no bem-estar do Dominic, mas não era assim. Não lhe informou de seus planos, nem lhe deu a oportunidade de dizer o que queria ele e que não queria. Fez tudo única e exclusivamente por si mesma. A isso se chama obsessão.

—Sei.

Continuaram em silencio até as portas da igreja.

—Não posso entrar com este chapéu - disse Charlotte, alarmada. —Não levamos a indumentária apropriada para a igreja. Não vamos de negro, e é um ofício de finados.

—Agora já é muito tarde para isso.

Pitt subiu a passadas a escadaria, e Charlotte correu atrás dele.

Um ajudante da paróquia lhes saiu à passagem, olhando-os com franca desaprovação ao perceber o desalinhado aspecto do Pitt e o chapéu azul com penas de Charlotte.

—Delegado Pitt e senhora - anunciou Pitt com tom imperioso. —Estou aqui por um assunto policial, e da máxima urgência, ou do contrário não teria vindo.

—Ah.... ah, entendo - respondeu o homem, embora era evidente que não entendia nada. Não obstante, afastou-se para deixá-los passar.

A igreja não estava cheia. Pelo visto, muitas pessoas tinham hesitado sobre a conveniência de assistir ao ofício, e afinal boa parte tinha decidido não ir.

Lógicamente, tinham se difundido rumores e especulações quanto ao ocorrido, e mais ainda quanto às causas. Pitt percebeu, entretanto, que vários dos paroquianos que ele tinha visitado estavam ali, destacando entre eles a senhorita Cadwaller, sentada em um dos últimos bancos com as costas muito erguidas, vestida com casaco e chapéu negros, o rosto coberto por um véu. Também se achava presente o senhor Landells, o rosto trêmulo como se mal pudesse conter as lágrimas. Possivelmente recordava outra morte com muita clareza.

O bispo Underhill ocupava o pulpito, exibindo magníficas vestimentas cerimoniais, quase resplandecente. Se alguma dúvida tinha albergado sobre como tratar as exéquias do Ramsay - bem com todas as honras clericais, ou como uma desonra que era preferível manter em segredo, obviamente se tinha decidido pela pompa e grandilocuencia. Não dizia nada de caráter pessoal, nada sobre as qualidades individuais do Ramsay Parmenter, mas sua sonora voz retumbava sobre as cabeças dos tensos paroquianos e o eco parecia encher as abóbadas.

Isadora estava sentada na primeira fila, a simples vista circunspeta e serena. Levava um formoso vestido e um chapéu negro de aba longa e voltado para cima em um lado, adornado com penas negras. Mas observando-a mais atentamente se percebia desassossego em seu semblante. Tinha os ombros tensos e parecia conter-se, como se uma dor anímica ameaçasse explodir em qualquer momento. Mantinha o olhar fixo no rosto do bispo, sem pestanejar sequer, não como se lhe interessasse o que dizia, mas sim como se não se atrevesse a olhar a outra parte.

Do outro lado do corredor central, a luz oblíqua que penetrava pelas altas vidraças projetava um prisma de cores sobre a cabeça de Cornwallis. Também ele olhava para frente.

Charlotte procurou o cabelo escuro do Dominic, caso estivesse nas primeiras filas. De repente recordou com um sobressalto que ele pertencia ao clero, não à paróquia. Certamente desempenhava algum encargo próprio de seu cargo. Ao fim e ao cabo, até que designassem ao substituto do Ramsay, aquela era sua igreja. Por fim o viu. Levava as vestimentas cerimoniais , percebeu Charlotte, surpreendida. Mostrava tal naturalidade que pareciam mais seu traje de diário que roupas que vestia só aos domingos. Charlotte tomou plena consciência nesse momento da profunda mudança que se operara nele. Não era o Dominic que ela tinha conhecido em outro tempo, era outra pessoa, tão mudada internamente que se convertera quase em um desconhecido. Invadiu-a um sentimento de admiração por ele, assim como uma viva esperança.

Clarice também o olhava. Charlotte via seu rosto de perfil, e naturalmente levava véu, mas era muito tênue e o transpassava a luz, refletindo-se nas lágrimas que escorriam por suas faces. No ângulo de sua cabeça, percebia-se uma atitude desafiante, e uma considerável coragem.

Tryphena oferecia um aspecto mais áspero, sua pele clara em marcado contraste com o negro do vestido e o véu de renda. Parecia olhar para o bispo, que continuava falando.

Mas era Vita quem se sobressaía entre todos. Assim como suas filhas, ia de negro, mas seu vestido era de um corte delicioso, ajustando-se à perfeição a sua esbelta figura, e ela o exibia com um estilo e uma elegância únicos. A aba longa de seu chapéu formava um ângulo impecável. Sem ser ostentoso, transmitia singularidade, graça e distinção. Seu véu era tão diáfano que obscurecia o rosto sem chegar a ocultá-lo. Como Clarice, contemplava Dominic, não o bispo.

O bispo concluiu por fim. Limitou-se a alinhavar lugares comuns e generalidades. Só tinha pronunciado o nome do Ramsay uma vez. Além dessa alusão inicial, poderia ter estado falando de qualquer um, a fragilidade do homem, a fé na ressurreição uma vida em Deus. Por seu rosto quase inexpressivo era impossível saber quais eram seus próprios sentimentos, ou nem sequer acreditava em algo do que dizia.

Charlotte sentiu uma intensa antipatia por ele. Sua mensagem deveria ter sido gloriosa, e entretanto tinha sido extranhamente vazia. Não proporcionava o menor consolo, e menos ainda júbilo.

Quando se sentou, Dominic se levantou para falar. Subiu ao pulpito, erguido, a cabeça e alta, meio sorriso nos lábios.

—Não tenho muito que acrescentar ao que já se há dito - começou, falando com voz vibrante e segura. —Ramsay Parmenter era meu amigo. Estendeu-me a mão do amor quando mais o necessitava. Era um amor verdadeiro, um amor isento de egoísmo e impaciência, um amor que via com compreensão o fracasso e não procurava satisfação no castigo. Julgou minhas fraquezas com a única intenção de me ajudar à superá-las, mas não me julgou , salvo para me considerar digno de salvação e de amor.

Na igreja não se ouvia nem um murmúrio, nem sequer o roçar do tecido dos vestidos.

Charlotte nunca se havia sentido tão orgulhosa de ninguém em sua vida, e notou nos olhos a ardência das lágrimas contidas.

Dominic desceu um pouco a voz, mas continuava chegando com toda clareza inclusive até o último banco.

—Ramsay merece de nós idêntico amor, e se formos rogar esse amor a Deus para nós mesmos, como ao final todos faremos, não podemos acaso, pelo bem de nossas almas, oferecer-lhe também ao próximo? Meus amigos, possivelmente não tenham recebido do Ramsay a mesma bênção que eu, mas lhes peço que rezem comigo por seu descanso e seu gozo eterno no céu, onde conheceremos Deus como Ele nos conheceu sempre e veremos tudo com clareza. - Fez uma pausa e depois iniciou a oração, a que se uniram todos os fiéis.

Depois de entoar os hinos finais e pronunciar a bênção, os assistentes ficaram   em pé.

—O que vai fazer? - perguntou Charlotte ao Pitt em um sussurro. —Não pode detê-la aqui?

—Não é essa minha intenção - murmurou ele. —Esperarei e a seguirei até a casa. Mas não a perderei de vista, se por acaso tenta falar com alguém, persuadir ao Emsley para que troque sua declaração sobre o canivete, ou inclusive destruir os originais das cartas... ou desfazer-se dos objetos do Dominic que guarda em seu toucador. Não posso...

—Sei.

Vita se aproximava deles pelo corredor central, magnífica em seu traje de viúva, e entretanto desfilando mais como uma noiva, com a cabeça alta e os ombros retos. Caminhava com uma graça extraordinária, sem procurar apoio no braço de Mallory nem prestar a menor atenção a suas filhas, que a seguiam para a saída. Deteve-se na porta e começou a aceitar as condolências dos paroquianos enquanto abandonavam a igreja.

Charlotte e Pitt estavam perto e ouviam os breves diálogos. Foi uma interpretação soberba.

—Acompanho-a no sentimento, senhora Parmenter - disse uma anciã, visivelmente desconfortável, sem saber o que acrescentar. —Quanto deve estar sofrendo... não consigo nem imaginar...

—É muito amável - respondeu Vita com um sorriso. —Foi muito doloroso, naturalmente, mas todos atravessamos alguma vez momentos difíceis, cada qual a seu modo, e devemos nos resignar. Felizmente, conto com o amor e o apoio de minha família. E nenhuma mulher poderia aspirar a melhores amigos. - Lançou um olhar para Dominic, que também se aproximava. —De amigos mais fortes, devotos e leais que os que eu tenho.

A anciã pareceu um tanto desconcertada, mas ao mesmo tempo contente de livrar-se de uma situação que normalmente teria sido muito mais perturbadora.

—Me alegro muito por você - sussurrou, sem perceber a expressão de incredulidade da Tryphena. —Me alegro muito, querida - acrescentou, e se apressou

a partir.

Ocupou seu lugar o senhor Landells. Tinha recuperado a calma e falou com correção.

—Meus mais sentidos pêsames, senhora Parmenter. Sei o que é perder um companheiro muito querido. Nada pode compensar isso, mas estou certo de que, com integridade e consolo que chega com o passar do tempo, achará de novo a paz de espírito.

Vita necessitou uns instantes para formular uma resposta a isso. Olhou ao bispo, que se dirigia para ela pelo corredor, e depois se voltou outra vez para Landells.

—Certamente - disse, levantando um pouco o queixo. —Todos devemos confiar no futuro, por mais penalidades que nos proporcione. Mas sem dúvida Deus proverá não só a nossas necessidades, mas também àquilo que melhor se ajuste a seus intuitos.

O senhor Landells a olhou com expressão de surpresa.

—Não posso expressar com palavras minha admiração, senhora Parmenter. É um exemplo de fortaleza e fé para todos nós.

Vita lhe sorriu agradecida. Tryphena se achava agora junto a ela, de costas às grandes portas, e Clarice estava ao outro lado. Mallory se movia incômodo a certa distância, sentindo-se culpado por ter assistido a um ofício protestante. Não desejava prolongar mais do que o necessário esse ato de indisciplina. Se a cerimônia lhe tivesse sido totalmente alheia, lhe teria sido mais passível, mas por desgraça lhe era muito familiar, e carregada de lembranças de indecisão, de uma fé incompleta, rituais sem paixão, algumas afirmações equívocas e carentes de certeza. Charlotte acreditou perceber também em seus lábios apertados certo ressentimento, como se, apesar de desejar não estar ali, indignasse-lhe que Dominic tivesse oficiado, embora só em parte, em um ato em que o protagonismo teria correspondido a ele. Ainda tinha que amadurecer muito para compreender o tipo de amor a que se referiu Dominic. Charlotte se perguntou que feridas teria sofrido sua fé em sua juventude para que fosse ainda tão vulnerável. Quantas vezes devia haver-se sentido abandonado?

Outra meia dúzia de pessoas passou ante Vita, balbuciando suas condolências e partindo apressadamente. Aproximou-se outra anciã, que primeiro sorriu e saudou com um gesto Dominic.

—Duvidava que alguém pudesse hoje apaziguar meu espírito, senhor Corde, mas o fez você perfeitamente. Recordarei suas palavras na próxima vez que sofra e me sinta confusa pelas ações de alguém. Me alegro muito de que estivesse você aqui para falar em favor do pobre reverendo Parmenter.

—Obrigado - respondeu Dominic com um sorriso. —Sua aprovação significa muito para mim, senhora Gardiner. Consta-me que o reverendo Parmenter a tinha em muito alta estima.

A anciã pareceu agradada, e se voltou para Clarice e Tryphena. Mallory permaneceu atrás delas, como se não desejasse ver-se incluído.

O bispo não fazia parte do grupo. Mesmo assim, inclinou a cabeça em um enjoativo gesto e disse:

-Foi muito amável vindo, senhora.... a isto...

—Não vim por amabilidade - respondeu a anciã com aspereza. —Vim para apresentar meus respeitos por última vez a um homem que admirei muito por sua bondade. A forma em que tenha morrido me é indiferente. Enquanto vivia, demonstrou-me uma grande generosidade. Dedicou-me tempo e apoio. - Dito isto, desentendeu-se do bispo, que se ruborizou. Não viu iluminar-se os olhos de Isadora, nem o cruzamento de olhares entre ela e Cornwallis. —Lamento muito sua perda, senhora Parmenter - prosseguiu a senhora Gardiner, olhando fixamente a Vita. —Estou segura de que sente uma profunda dor, e desejaria poder ajudá-la, mas receio que seria uma intromissão de minha parte. Só posso lhe garantir que também nós, a nossa maneira, sentiremos falta dele, e pensaremos em você com a melhor boa vontade.

—Obrigada - respondeu Vita em um sussurro quase inaudível. —É muito amável. Como já disse a outros, meu único consolo agora é que conto com o apoio de amigos extraordinários. - Em seus lábios se desenhou um sorriso terno e ausente, mas nesta ocasião não olhou para Dominic. —O tempo todo o cura. Devemos seguir atendendo nossas obrigações e ao final nos refaremos da perda. Estou plenamente convencida disso. - Assentiu com a cabeça. —Devemos seguir adiante, sempre adiante. O passado não pode mudar, mas podemos aprender dele. E não tenho a menor duvida de que outros líderes aparecerão no seio da Igreja, líderes espirituais cujas palavras inspirarão a todos reafirmando nossa fé. Virá um homem cujo ardor e paixão dissipará todas nossas dúvidas e nos ensinará de novo o que significa pertencer à Igreja.

—Isso é muito certo - disse a senhora Gardiner com sinceridade. —Espero que tudo isso se una para seu bem.

Vita sorriu.

—Tenho uma fé absoluta em que assim será, senhora Gardiner - respondeu, erguendo a voz com tal convicção que quantos se achavam ao redor voltaram a cabeça para ela.

O bispo parecia desconcertado. De fato, deu a impressão de que estava a ponto de discrepar dela abertamente, mas Isadora o olhou com tal ferocidade que o bispo voltou a fechar a boca, nem tanto em sinal de obediência como de preocupação se por acaso ela tivesse observado algo que lhe tinha passado inadvertido.

Cornwallis olhou de soslaio a Isadora, e por um instante Charlotte viu em seu rosto uma ternura, não velada pela discrição, que lhe cortou o fôlego, dando-se conta de que a só uns passos dela existia uma intensa emoção da qual ninguém mais na igreja era consciente.

Os paroquianos continuavam desfilando ante Vita para lhe dar o pêsames, murmurando palavras educadas, procurando torpemente algo que dizer, algo, para depois escapar.

Quando todos partiram, Vita se voltou para o Dominic com expressão radiante.

—Agora, querido, acredito que podemos retornar a casa considerando esta tragédia bem encaminhada, e esta primeira etapa já resolvida.

—Sim.... sim, suponho - disse Dominic, com certo mal-estar pelo modo em que ela se expressou.

Estendeu a mão para pegar seu braço, e ele se mostrou algo remisso a oferecer-lhe.

Dominic lançou um olhar ao Pitt e Charlotte. Advertia-se medo em seus olhos, mas não se arredou.

—Tem que ser aqui? - perguntou com voz rouca. Instintivamente, tinha procurado a mão de Clarice.

Ela se aproximou do Dominic e entrelaçou seu braço com o dele, ficando a seu lado, olhando para Pitt não com uma franca expressão de desafio, mas sim com um veemente afã de amparo que não deixava lugar a dúvidas.

Vita os olhou com o sobrecenho franzido.

—Clarice, querida, seu comportamento é em extremo inapropriado. Faça o favor de se controlar.

Clarice dirigiu um olhar iracundo a sua mãe.

—Vieram deter Dominic - disse entre dentes. —O que consideraria apropriado? A mim não me ocorre nada. Todo meu mundo chegou a seu fim. Acaso deveria cravar outra cruz no cemitério, gravar nela o epitáfio "Aqui jazem meus sonhos", e ir logo deitar? Não sei muito bem como deve comportar-se quando cai em desgraça, mas suponho que há algum manual sobre questões de etiqueta para raparigas com o que posso me informar.

—Não diga estupidez! - replicou Vita. —Está se pondo em ridículo. O delegado Pitt veio apresentar seus respeitos a seu pai, não para deter ninguém. Todos sabemos quem foi o culpado, mas me parece deplorável, mais ainda, quase indesculpável, que escolha este ofício de finados passar trazer o assunto à tona.

Voltou-se para Pitt. —Obrigado por vir, delegado. Foi muito gentil de sua parte. E agora, se me perdoa, desejaria retornar a casa. Isto foi uma dura experiência. Dominic?

Dominic cravou no Pitt um olhar de assombro e esperança. Clarice, ainda segura a seu braço, não fez gesto de desprender-se.

—Não vim detê-lo - disse Pitt. —Sei que você não matou Unity Bellwood. Os olhos de Clarice se alagaram em lágrimas de gratidão e, por incrível que parecesse, de júbilo. Sem parar sequer para pensar no inapropriado do gesto, nem na opinião de quem pudesse vê-la, abraçou ao Dominic com toda sua força e apoiou a cabeça em seu ombro, torcendo o chapéu.

—Clarice! - exclamou Vita, colérica. Perdeu a razão? Abandona essa atitude no ato. - Avançou para sua filha em gesto de lhe bater.

Pitt a pegou firmemente pelo braço.

—Senhora Parmenter?

Por um instante Vita ficou paralisada. Depois se voltou com raiva para Pitt, apesar de ser claro que mantinha toda sua atenção posta no Dominic e Clarice.

—Me solte, senhor Pitt - ordenou.

—Não, senhora Parmenter. Sentindo muito, não posso soltá-la - disse Pitt com tom grave. —Verá, sei que seu marido não matou Unity Bellwood. Em realidade, não a matou ninguém. Sua morte foi acidental, mas você viu nela a oportunidade de culpar do suposto assassinato a um marido que a tinha defraudado e a quem já não amava.

Vita empalideceu.

—Foi você quem gritou, "Não, não, reverendo!", e não Unity - prosseguiu Pitt. -. Quebrou-se o salto do sapato de Unity no alto da escada. O salto caiu na palmeira do vestíbulo, onde o encontrei esta manhã.

—Isso é absurdo - interveio de repente Tryphena, aproximando-se de sua mãe. —As sapatilhas de Unity estavam perfeitas. Eu mesma as vi. Não havia nada quebrado.

—Não o havia quando você viu o cadáver de Unity - corrigiu Pitt. —A senhora Parmenter trocou os sapatos de Unity pelas sapatilhas que ela levava nesse momento, por isso a sola estava manchada com a substância química derramada na estufa. - Olhou ao Mallory. —Você declarou que Unity não entrou essa manhã na estufa. Mas sua mãe esteve ali, não é verdade?

Mallory umedeceu os lábios com a língua.

—Sim...

—E as cartas de amor? - perguntou Tryphena com a voz crispada. —Meu pai tampouco estava apaixonado por Unity, suponho? O que eram, pois, essas cartas? E se eram algo inocente, o que parece improvável, por que ele tentou matar a minha mãe?

—Eram traduções de cartas de amor extraídas de um texto clássico – explicou Pitt. —Ramsay e Unity tinham traduzido as mesmas cartas, cada um com seu peculiar estilo e interpretação.

—Tolices! - disse Mallory, já com pouca convicção. Estava branco como o papel. —Se isso fosse verdade, que motivo tinha para atacar a minha mãe?

—Nenhum. - Pitt negou com a cabeça. Continuava segurando Vita pelo braço e notava sua rígida imobilidade. —Esse foi o verdadeiro assassinato. Desde o começo a senhora Parmenter planejava matar a seu marido se eu não o detivesse e o enviava à forca pela morte de Unity. Detalhe a detalhe, ela criou a imagem do Ramsay como um homem violento e desequilibrado. As cartas eram uma excelente desculpa, desde que não descobríssemos o que eram realmente, e tanto Ramsay como Unity estavam mortos e não podiam explicar isso.

—Mas... mas ele a atacou - objetou Mallory.

—Não, não a atacou - contradisse Pitt. —A senhora Parmenter entrou no gabinete armada já do canivete, e de fato foi ela quem atacou ao Ramsay.

Dominic estava atônito. Contemplou a Vita como se acabasse de transformar-se ante seus próprios olhos em algo inimaginável.

—Fiz-o por nós! - afirmou com veemência, esquecendo-se do Pitt, sem tentar sequer escapar dele. —Não o entende, querido? Para que pudéssemos estar juntos, como era nosso destino.

Mallory afogou uma exclamação.

Tryphena cambaleou, indo tropeçar com o bispo.

—Você... você e eu? - perguntou Dominic, horrorizado, quebrando-se a voz-. —OH, não... eu...! - aproximou-se mais ainda de Clarice. —Eu não...

—Não finja - insistiu Vita, esboçando um sorriso de cumplicidade. —Já não é necessário, querido. Tudo terminou. Agora podemos falar com sinceridade. Podemos revelar ao mundo inteiro. - Falava com voz doce e serena. —Pode você ocupar o lugar do Ramsay. Pode triunfar onde ele fracassou. Está você destinado à liderança, e eu permanecerei a seu lado até o final. Sou quem lhe abriu o caminho.

Dominic fechou os olhos como se lhe vê-la fosse insuportável. Todo seu corpo se contraiu.

O bispo cambaleou.

—Meu deus! - resmungou, necessitado. —Meu Deus!

—Não o fez por mim - respondeu Dominic a Vita, consternado. —Eu nunca... nunca lhe pedi...

—Claro que me pediu isso - o interrompeu Vita com tom tranqüilizador, como se tratasse de convencer a um menino. —Sei que me ama tanto como eu o amo a você.

—Deu de ombros-. Me disse isso de cem maneiras distintas. Sempre pensava em mim, interessava-se por mim, proporcionava-me consolo e felicidade com pequenos detalhes. Deu-me muito. Guardo em meu quarto todas suas lembranças, onde ninguém possa vê-las. Pego-os toda noite e os tenho em minhas mãos, para me sentir perto de você...

O bispo entrechocava os dentes em uma expressão de asco.

Isadora lhe pisou nos dedos do pé com o salto. O bispo deixou escapar um ligeiro grito, mas ninguém lhe prestava atenção.

—Dominic, diga a este homem que se vá - apressou Vita, assinalando ao Pitt com o cotovelo. —Dominic, você pode conseguir tudo; tem poder. vai ser o maior líder da Igreja neste século. - Um brilho de desejo e orgulho apareceu em seu olhar. —Vai devolver à Igreja o lugar que lhe corresponde, para que todos mostrem ao clero o respeito que merece. A Igreja voltará a ser a cabeça e o coração de todas as comunidades. Você se encarregará de que assim seja, doutrinará às pessoas. Lhe diga a este polícial estúpido que parta. Explique-lhe o motivo do ocorrido. Não é um crime. Simplesmente era necessário.

—Não era necessário, Vita - respondeu Dominic, abrindo os olhos e obrigando-se a olhá-la no rosto. —Era um grave engano. Eu a amo do mesmo modo que amo a todo mundo, nem mais nem menos. Vou casar me com Clarice... se ela me aceitar.

Vita o olhou com assombro.

—Clarice? - repetiu como se a palavra carecesse de sentido para ela. —Não pode casar-se com ela. Não há necessidade. Já não temos por que fingir. Além disso, não estaria bem. Não poderia lhe fazer a ela uma coisa assim quando é a mim que ama. Sempre me amou, desde o momento em que nos conhecemos. - Recuperava gradualmente o aprumo. —Recordo como me olhou no dia que chegou a nossa casa. Inclusive então sabia você que Ramsay era um nome fraco, que tinha perdido a fé e não servia já para guiar a outros. Já então percebi sua fortaleza.... e soube que eu acreditava em você. Compreendemo-nos mutuamente. Nos...

—Não! - atalhou Dominic com firmeza. —Eu sentia simpatia por você. Isso é algo muito diferente. Você era a esposa do Ramsay, e para mim sempre o será. Não estou apaixonado por você. Nunca o estive. Estou apaixonado por Clarice.

O semblante de Vita se mudou lentamente. O terno sorriso se desvaneceu. Seus grandes olhos se entreabriram, adquirindo uma expressão dura e hostil. Seus lábios se contraíram em uma careta de ódio.

—Covarde! - exclamou. —Covarde fraco e indigno! Eu matei por você! Corri com todo o perigo, suportei toda a pantomima, esse sem-fim de absurdas perguntas e respostas, para que você pudesse realizar seu destino, para que pudéssemos estar juntos. Concebi esse brilhante plano e o levei a cabo. Pensei em tudo. E agora já vê qual é sua reação. Assusta-lhe a responsabilidade. Dá-me pena! - Sua expressão se suavizou de novo, fundindo-se em um sorriso. —Mas lhe perdoaria se...

Dominic se deu meia volta, incapaz de resistir aquela cena por mais tempo.

Clarice o rodeou com os braços, e muito juntos se afastaram entre os bancos para o fundo da igreja.

Pitt olhou ao Cornwallis, que assentiu com a cabeça, profundamente aflito.

Pitt segurou Vita com mais força.

—Me acompanhe, senhora Parmenter - disse com voz equânime. —Não há nada mais que dizer. Tudo terminou.

Vita olhou ao Pitt como se acabasse de recordar que estava ali.

—Vamos - repetiu Pitt. —Já não tem nada que fazer aqui.

Puxando-a, desceu pela escadaria para a rua. Cornwallis se adiantou para ir em busca da carruagem.

Charlotte contemplou por um momento a soleira da porta pela qual Dominic e Clarice tinham desaparecido. Depois, sorrindo, invadida de repente por uma peculiar sensação de paz, seguiu ao Pitt. 

 

                                                                                                    Anne Perry

 

 

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