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...Os ponteiros do relógio deviam estar tão cansados de girar
para o mesmo lado, ano após ano, que, porventura,
decidiram mudar de sentido...
Anoitecia. Lá fora, as iluminações de Natal estavam acesas e uns espessos farrapos de neve pairavam por entre os lampiões. As ruas pululavam de gente.
Entre aquelas pessoas apressadas estavam Joakim e o pai que tinham vindo à cidade na última da hora para comprar um calendário do Advento, porque no dia seguinte era o primeiro de Dezembro. Os calendários esgotaram-se nos quiosques e na livraria do mercado.
Joakim puxou a mão do pai com força e apontou para uma vitrine. Bem em frente de uma pilha de livros estava um calendário de cores vivas.
— Olha, ali! — disse Joakim.
— Ainda bem que conseguimos! — Exclamou o pai.
Quando entraram na pequena livraria, Joakim achou que tudo ali era velho e mal cuidado. As estantes, que cobriam as paredes do chão ao teto, estavam apinhadas de livros todos diferentes, apertados uns contra os outros.
Sobre o balcão havia dois tipos de calendários, empilhados uns sobre os outros: um tinha uma ilustração em que se via o Papai Noel com renas e um trenó, enquanto que o outro reproduzia um pequeno duende num palheiro a comer mingau de uma tigela.
O pai segurou os dois calendários.
— Este tem figuras de chocolate, mas o dentista não vai ficar satisfeito; aquele tem figuras de plástico.
Joakim examinou os dois calendários, sem mostrar preferência especial por um deles.
— Quando eu era pequeno era diferente — continuou o pai.
Joakim olhou para o pai.
— Então, como era?
— Antigamente por trás de cada janela do calendário havia apenas uma figura, uma para cada dia. De manhã estávamos sempre ansiosos para ver que figura era. Então abríamos a janela devagarinho e... Estás a imaginar? Era quase como abrir uma porta para um outro mundo.
Entretanto alguma coisa despertou a atenção de Joakim, porque ele apontou para uma das paredes de livros e disse:
— Olha! Ali também há um calendário do Advento.
Num pulo, Joakim foi buscar o calendário onde se via São José e a Virgem Maria inclinados sobre a manjedoura com o Menino Jesus deitado e mostrou-o ao pai. Os três Reis Magos, vindos do Oriente, estavam ajoelhados, ao fundo. Fora do estábulo encontravam-se os pastores e as ovelhas e um anjo tocava trompa descendo do Céu.
As cores do calendário estavam desvanecidas, como se ele tivesse estado durante todo o Verão ao sol. Joakim quase se comoveu com aquela imagem tão bonita e disse:
— É este mesmo que eu quero!
— Mas este não está à venda, entende? — disse o pai. — Acho que é muito antigo, talvez até da minha idade.
Joakim não se deu por vencido:
— As janelas estão intactas...
— Mas está aqui apenas em exposição.
Sem desviar o olhar daquele calendário antigo, Joakim repetiu:
— É este que eu quero! Quero este porque não há outro igual.
Quando o empregado, de cabelo grisalho, se aproximou, mostrou-se surpreendido ao ver o calendário que Joakim tinha na mão.
— Que bonito! — exclamou. — É, sem dúvida... verdadeiro. Até parece feito em casa.
— O meu filho quer comprá-lo — disse o pai apontando para Joakim. — E eu estou tentando explicar-lhe que não está à venda.
O homem de cabelo branco franziu o cenho:
— Encontraram-no... aqui? Há longos anos que já não via uma coisa do gênero.
— Mas estava à frente dos livros — disse Joakim, assinalando o lugar.
— Deve ser outra brincadeira do velho Johannes.
O pai olhou para o homem:
— Johannes?
— Sim, é um tipo estranho... Vende rosas no mercado, mas ninguém sabe de onde veio. Nas raras vezes que passa por aqui costuma pedir um copo de água. E às vezes, no Verão, quando está calor, entorna as últimas gotas de água sobre a cabeça antes de sair daqui. Por duas vezes até jogou umas gotas sobre a minha cabeça. Para me agradecer a água, às vezes deixa uma ou duas rosas sobre o balcão... ou, então, coloca um livro antigo na estante. Uma vez até deixou na vitrine a fotografia de uma mulher jovem, de um país distante. Quem sabe se ele não teria nascido também nesse país? Na fotografia estava escrito «Elisabet».
O pai olhou fixamente para o livreiro:
— E agora deixou um calendário do Advento?
— Isso é mais que evidente.
— Há qualquer coisa escrita neste calendário — disse Joakim, lendo ao mesmo tempo em voz alta:
— «CALENDÁRIO MÁGICO DO ADVENTO. Preço: setenta e cinco centavos».
— Nesse caso é mesmo antigo! — confirmou o livreiro.
— Então, pode vendê-lo por setenta e cinco centavos? — perguntou Joakim.
O homem de cabelo branco riu-se:
— Ofereço-lhe! Vai ver que o velho Johannes pensou em ti.
— Muitíssimo obrigado. — Respondeu Joakim dirigindo-se apressadamente para a saída.
O pai apertou a mão ao livreiro e saiu imediatamente.
— Vou abri-lo amanhã — balbuciou Joakim, apertando o calendário contra si.
* * *
Joakim acordou várias vezes de noite a pensar no homem de cabelo branco e em Johannes que vendia rosas no mercado. Levantou-se também uma vez para ir beber água da torneira e lembrou-se da água que Johannes costumava entornar sobre a cabeça.
Mas Joakim pensou sobretudo no calendário que devia ter a mesma idade do pai, apesar de ainda estar completamente intacto. Antes de ir para a cama, observou as janelas com os números um a vinte e quatro. A janela número vinte e quatro, quatro vezes maior do que as outras, correspondia à véspera de Natal e abrangia quase totalmente a manjedoura do estábulo.
Onde é que teria estado aquele calendário durante mais de quarenta anos? E o que é que iria acontecer quando ele abrisse a primeira janela?
Os pais penduraram entretanto o calendário sobre a cama. Às sete horas Joakim acordou, pôs-se de pé na cama e tentou abrir a primeira janela. O entusiasmo e o nervosismo eram tais que não conseguiu abri-la logo na primeira. Por fim, abriu-a, levantando um canto lentamente.
A figura mostrava uma loja de brinquedos e, no meio de brinquedos e de pessoas, havia um cordeiro e uma menina. Joakim nem sequer teve tempo para examinar bem o que estava na figura porque caiu qualquer coisa da pequena janela e ele abaixou-se sobre a cama para apanhá-la.
Tratava-se de um pequeno papel dobrado várias vezes. Joakim desdobrou-o e reparou que estava escrito dos dois lados. Então leu o papel:
O CORDEIRO DO CHOCALHO
— Elisabet! — chamou a mãe. — Volta, Elisabet!
Elisabet Hansen observava o montão de ursinhos e bonecos de pelúcia, enquanto a mãe comprava presentes para as primas que viviam em Toten. De repente, um pequeno cordeiro saltou do monte para o chão e olhou ao redor. No pescoço tinha um chocalho que retinia ao ritmo das máquinas registradoras. Elisabet já tinha visto antes um animal de estimação com um sininho no pescoço. Mas como é que um boneco de pelúcia podia ganhar vida assim de um momento para outro? Elisabet, atônita, pôs-se a correr atrás do cordeiro que agora atravessava a loja em direção às escadas rolantes.
— Mééé, mééé, mééé! — chamou Elisabet.
Mas o cordeiro já descia as escadas que davam para o térreo. Apesar das escadas deslizarem depressa, o cordeiro andava ainda mais depressa e Elisabet tinha de ser mais rápida que o cordeiro e as escadas se queria alcançá-lo.
— Vem cá, Elisabet! — repetiu a mãe com um tom zangado. Porém, neste momento Elisabet descia as escadas para o térreo e avistou o cordeiro que corria velozmente pela seção de roupa interior e pela gravataria.
Quando chegou ao fim das escadas, ela continuou a correr atrás do cordeiro que ia agora rua acima. Os flocos de neve pairavam por entre as iluminações de Natal que decoravam as ruas. Elisabet chocou-se numa tenda onde se vendiam luvas e continuou a correr.
O ruído lá fora era tal que Elisabet mal conseguia ouvir o som do chocalho ao fundo da rua onde havia uma igreja. Mas ela não desistia e estava determinada a acariciar o pêlo macio do cordeiro.
— Mééé, mééé, mééé!
O cordeiro atravessou a rua com o sinal vermelho porque deve ter pensado que o homem vermelho do semáforo significava «passe» e o verde «pare». Elisabet tinha ouvido dizer que as ovelhas são daltônicas. De qualquer maneira, o cordeiro não parou e Elisabet também não o fez. Ela precisava alcançá-lo nem que tivesse de correr até o fim do mundo.
Os carros buzinaram e uma bicicleta motorizada teve mesmo de subir na calçada para não colidir contra Elisabet ou contra o cordeirinho. As pessoas que andavam na rua a fazer as compras de Natal estavam surpreendidas. Não era habitual verem uma menina a atravessar a rua com o sinal vermelho e a correr atrás de um cordeiro. E menos usual ainda era vê-la correr atrás de um cordeiro em pleno Inverno.
Enquanto corria, Elisabet ouviu o relógio da igreja bater às três horas. Ela prestou especial atenção a esse fato, porque viera para a cidade no ônibus das cinco horas. Os ponteiros do relógio já deviam estar tão cansados de girar para o mesmo lado, ano após ano, que, porventura, decidiram mudar de sentido. Elisabet pensou que até os relógios poderiam cansar-se de repetir sempre a mesma coisa.
Mas havia algo mais. Quando Elisabet entrara no armazém comercial, estava escurecendo. E agora, muito estranhamente, era pleno dia sem, entretanto, ter havido noite.
Logo que pôde, o cordeiro saiu da cidade, chegando a um bosque onde se enfiou por um caminho entre pinheiros altos. Era uma passagem coberta de neve que tinha caído nos últimos dias, pelo que o cordeiro abrandou a marcha.
Elisabet continuou a caminhar, mas agora era difícil correr. Enquanto ela enterrava duas pernas na neve, o cordeiro enterrava quatro, por isso com esta vantagem, talvez ela viesse a alcançar o animal.
Os gritos da mãe de Elisabet haviam-se dissipado no ruído da rua há muito tempo. Ela própria quase já não ouvia os sons da cidade. No entanto, uma coisa vinha-lhe constantemente ao ouvido:
— «Vamos comprar este ou aquele? O que é que acha, Elisabet? Ou compramos os dois?»
Talvez o cordeiro tivesse ganhado vida e tivesse fugido daquela loja para escapar a conversas deste gênero e ao ruído das máquinas registradoras. E, provavelmente, o mesmo aconteceu a Elisabet que nunca gostou de ir às compras.
* * *
Joakim desviou os olhos do papel fininho que tombara do calendário mágico do Advento. O que lera era tão estranho que Joakim estava espantado.
E ele que sempre adorara segredos! Nessa altura, veio-lhe à idéia o pequeno cofre com chave que a avó lhe tinha comprado na Polônia. Os pais tinham-lhe prometido solenemente que, enquanto ele dormisse ou estivesse na escola, jamais tentariam abrir o cofre e disseram-lhe que, se o fizessem, isso seria um ato tão feio como abrir as cartas de outras pessoas.
Até ali Joakim nunca tivera segredos para guardar no cofre. Mas agora meteu dentro do cofre o bilhetinho, fechou-o e escondeu a chave debaixo do travesseiro. Quando, de manhã, os pais vieram ver o calendário, apenas viram a imagem do cordeiro no armazém comercial.
— Lembra-se? — perguntou a mãe, olhando para o pai. — Era exatamente assim quando éramos pequenos.
— Naquele tempo, podíamos usar a nossa imaginação a partir das figuras — concordou o pai. — Isso era bem melhor do que as figuras de plástico, que acabam por ser engolidas pelo aspirador.
Joakim ria-se interiormente. Mais ninguém além dele sabia do papel mágico que caíra do calendário.
Apontando para a imagem do cordeiro com chocalho, disse:
— O cordeiro decidiu fugir porque já não suportava mais o barulho das máquinas registradoras e as vozes das pessoas no estabelecimento comercial. Uma menina, de nome Elisabet, que estava lá, desatou a correr atrás dele para lhe acariciar o pêlo macio.
— Não foi isso mesmo que eu disse? — perguntou o pai. — O que é que ele faria com uma figura de plástico?
Durante o dia Joakim não parou de pensar se Elisabet conseguiria alcançar o cordeiro e tocar-lhe no pêlo macio. Quem sabe se ele iria ter uma resposta no dia seguinte?
Ou não iria haver outro bilhete?
2 DE DEZEMBRO
...o atalho que eu conheço é precisamente por este caminho...
Como era habitual, Joakim acordou antes dos pais, no dia seguinte. Levantou-se e olhou para o calendário do Advento que estava pendurado sobre a cama.
Foi então que Joakim viu um cordeirinho aos pés de um pastor. Mas que estranho! Ele tinha observado minuciosamente a gravura com os anjos e os sábios, os pastores e as ovelhas, mas só agora é que se apercebeu do pequeno cordeiro.
Talvez só depois de ter lido o bilhete que caiu da primeira janela do calendário, Joakim tivesse examinado melhor a gravura.
Mas tratar-se-ia do mesmo cordeiro de que falava o bilhete? Este cordeiro fugira de uma loja moderna, enquanto que o cordeiro do calendário vivera em Belém em tempos remotos. Nesse tempo, não havia carros nem semáforos. E as lojas, se é que existiam, eram certamente de tamanho mais modesto, sem escadas rolantes, nem máquinas registradoras. Além disso, Elisabet ouvira bater as três horas e, há dois mil anos, ainda não deviam existir sinos. Joakim sabia que Jesus nascera por essa altura.
Joakim procurou a segunda janela e abriu-a cautelosamente. Ao levantar a cartolina da janela, um pequeno bilhete muito bem dobrado saltou para fora. A imagem de um bosque onde havia um anjo com um braço em volta de uma menina tornava-se agora visível.
Joakim baixou-se para apanhar o pequeno bilhete que caíra sobre a cama. Pegou nele, desdobrou-o e vendo que estava escrito dos dois lados, começou a lê-lo:
EFIRIEL
Elisabet Hansen não sabia que distância nem durante quanto tempo correra atrás do cordeiro de chocalho no pescoço, que fugira da seção de brinquedos do grande armazém comercial de tão cansado que estava de ouvir o barulho das máquinas registradoras e da azáfama de Natal. Quando ela atravessou a cidade, nevava bastante. Entretanto parara de nevar e já não havia neve no caminho à sua frente. Entre as árvores havia plantas variadas como anêmonas azuis, unhas-de-cavalo e anêmonas brancas. Tudo isto parecia estranho porque só faltavam alguns dias para o Natal.
Elisabet apanhou uma anêmona azul e examinou as suas pétalas. Apanhar flores agora era tão misterioso como atirar uma bola de neve em pleno Verão.
Elisabet pensou que talvez tivesse percorrido uma distância tão grande que se encontrava agora num país de clima quente. Ou então, tinha porventura corrido durante tanto tempo que até a Primavera já chegara. Nesse caso, ainda devia estar em algum lugar na Noruega. Mas o que acontecera ao Natal?
Enquanto refletia, Elisabet ouviu chocalhar à distância e desatou novamente a correr. Logo depois avistou outra vez o cordeiro a comer erva com um enorme apetite.
Mas isso não era para admirar, pois o pequeno animal estava esfomeado por nada ter comido durante o Inverno e enquanto fora boneco de pelúcia não tinha comido o que quer que fosse.
Elisabet aproximou-se do cordeiro com cautela e, quando estava prestes a tocar-lhe no pêlo macio, ele saltou e fugiu.
— Mééé, mééé, mééé, mééé!
Ela ainda tentou agarrá-lo, mas tropeçou numa raiz e ficou estendida no chão.
O pior de tudo não foi ter-se machucado, mas sim o fato de compreender que, provavelmente, nunca mais o alcançaria. Elisabet estava decidida a ir atrás do cordeiro até ao fim do mundo, se necessário.
Porém, como o mundo é redondo, teria de andar à sua volta para sempre ou, pelo menos, até crescer. Mas o mais provável é que, nessa altura, já não tivesse interesse no cordeiro ou noutras coisas do gênero.
Elisabet levantou o olhar e avistou uma figura luminosa entre as árvores. Olhou, pasmada, e verificou que aquilo nem era um animal, nem um ser humano. De uma roupa tão alva como o pêlo do cordeiro, despontava um par de asas.
Elisabet estava na idade em que começava a conhecer o mundo e tinha aprendido o nome dos animais mais comuns, mas não sabia que diferença havia entre um chapim e um verdelhão. Ela nem sequer sabia distinguir um camelo de um dromedário. No entanto, tinha a certeza de que aquela figura ali só podia ser um anjo. Já tinha visto anjos em livros e em gravuras, mas na vida real era a primeira vez.
— Não tenhas medo! — disse o anjo em voz baixa.
Elisabet levantou-se e, como se machucara ao cair, respondeu mal-humorada:
— Não pense que tenho medo de ti!
O anjo aproximou-se de Elisabet. Dava a impressão que pairava um pouco acima do chão, fazendo lembrar a sua prima Anna quando dançava nas pontas dos pés. O anjo ajoelhou-se junto a ela e, com a extremidade de uma asa, tocou-lhe levemente no pescoço, dizendo:
— Eu só disse «não tenhas medo» para certificar-me. Nós, os anjos, não aparecemos muitas vezes aos seres humanos e, quando isso acontece, é bom jogar pelo seguro. Os seres humanos ficam geralmente apavorados com a visita de um anjo.
Sem mais nem menos, Elisabet começou a chorar, não porque tivesse medo do anjo, nem porque se machucara. Só compreendeu a razão daquele pranto quando começou a pronunciar:
— Eu... eu queria acariciar o cordeiro.
O anjo abanou a cabeça graciosamente:
— Tenho a certeza de que Deus criou os cordeiros com um pêlo macio para serem acariciados.
— O cordeiro é mais veloz do que eu... — soluçou Elisabet novamente, — mas tem quatro patas... Isso não é injusto? Eu não entendo porque é que o cordeiro do chocalho tem tanta pressa.
O anjo ajudou-a a levantar-se e disse-lhe ao ouvido:
— É porque vai para Belém.
— Para Belém? — perguntou Elisabet, parando de chorar.
— Sim, para Belém. Foi lá que Jesus nasceu.
Elisabet ficou surpreendida com aquelas palavras do anjo e, para disfarçar a surpresa, pôs-se a sacudir a terra e a erva das calças. O casaco também tinha umas nódoas feias.
— Eu também quero ir para Belém! — disse ela.
O anjo, que dançava novamente na ponta dos pés pelo atalho afora e a uns milímetros do chão, disse:
— Nisso dá-se um jeito, porque eu vou para lá. Podemos ir os três juntos.
Elisabet sabia que jamais devia acompanhar pessoas desconhecidas e isso incluía anjos e duendes. Então, olhou para o anjo e perguntou:
— Como é que se chama?
Ela não tinha certeza, mas pensou que o anjo era um homem. Então ele fez uma vênia como se fosse bailarino.
— O meu nome é Efiriel — disse o anjo.
— Isso parece uma borboleta. Disseste mesmo Efiriel?
— Sim, apenas Efiriel — respondeu o anjo. — Os anjos não têm pai nem mãe e, por isso mesmo, também não têm sobrenomes.
— Se vamos para Belém não temos muito tempo para conversa — disse Elisabet e soluçou pela última vez. — Não é muito distante?
— Sim, é distante e foi há muito tempo. Mas o atalho que eu conheço é precisamente por este caminho.
Dito isto, o cordeiro retomou a corrida. Elisabet seguiu-o e Efiriel pôs-se a caminho, dançando atrás deles.
Enquanto corriam, Elisabet arrependeu-se de não ter perguntado ao anjo por que razão o Verão tinha chegado subitamente, mas como viu que o cordeiro já ia adiante, não se atreveu a parar:
— Mééé, mééé, mééé!
* * *
Joakim escondeu apressadamente o bilhete no cofre secreto com chave.
Foi o florista Johannes quem colocou o velho calendário na livraria. Mas teria ele conhecimento da existência daqueles pequenos bilhetes? Ou seria Joakim a única pessoa no mundo que conhecia aquele segredo? Na verdade, tinha sido ele o único a abrir o calendário.
Joakim pensou ainda em Elisabet! Não era Elisabet o nome da pessoa da fotografia que Johannes tinha posto na vitrine da livraria?
Joakim tinha certeza de que era esse o nome. Mas seria a mesma Elisabet do calendário mágico? Naquela altura, ela era ainda uma criança, mas como o calendário era antigo, entretanto crescera.
Os pais de Joakim vieram também naquele dia ver a gravura do calendário.
— Um anjo — murmurou a mãe solenemente.
— O anjo está a confortar Elisabet — explicou Joakim. — Enquanto corria atrás do pequeno cordeiro do chocalho, ela caiu e machucou-se.
A mãe piscou o olho e o pai sorriu. Eles pensavam certamente que Joakim estava a inventar histórias sobre as figuras do calendário do Advento. Nem lhes passava pela cabeça que não era invenção dele.
Naquele dia, Joakim começava as aulas cedo e, por isso, não voltou a falar do calendário. Mas, a caminho da escola, não pensava noutra coisa.
Nos últimos dias tinha nevado tanto que se tornava difícil atravessar o enorme campo de esportes. Joakim parou de repente e refletiu. Elisabet ficara enterrada na neve quando perseguia o cordeiro e o Verão apareceu de um momento para o outro. Mas isso seria possível?
Quando saiu da escola, Joakim dirigiu-se para casa. Ele chegava normalmente antes da mãe.
Correu para o quarto e olhou para o calendário mágico do Advento. Continuava pendurado no mesmo lugar. Durante o dia, tinha perguntado a si mesmo se tudo aquilo não teria sido um sonho, porque ele sonhava sempre com as coisas mais estranhas.
Joakim sentia agora muita curiosidade em saber o que estava por baixo do número três e ficou ali parado a olhar para a janela e para o número. Não parava de pensar no que iria se passar com Elisabet e Efiriel.
E se abrisse já a janela número três? Ele podia depois colá-la e fingir que nada tinha acontecido.
Mas isso era trapaça! Fazer trapaça num jogo de cartas é feio, mas fazer isso com o Natal é muito pior. Seria o mesmo que abrir os presentes antes do Natal ou roubar a si mesmo.
Mal chegou do trabalho, a mãe pôs-se a descascar as batatas e cenouras. O pai entrou pouco depois, queixando-se que tinha perdido a carteira de motorista.
— É incrível! Não está no carro, nem no escritório, nem no bolso do sobretudo.
— És um grande distraído — disse Joakim. Eram as mesmas palavras que o pai usava quando Joakim não encontrava o estojo dos lápis ou não arrumava os brinquedos.
Nessa noite, talvez pela primeira vez na sua vida, Joakim pediu para ir cedo para a cama. E foi talvez a primeira vez que pediu para ir dormir.
— Está doente, meu filho? — perguntou a mãe.
— Não, não estou. O que se passa é que eu mal consigo esperar até amanhã para abrir aquele calendário misterioso.
3 DE DEZEMBRO
...como correr com o vento ou cair por uma escada rolante abaixo...
Joakim acordou cedo na manhã de 3 de Dezembro. Olhou para o relógio do Pato Donald que estava sobre a escrivaninha. Era um quarto para as sete. Normalmente, os pais acordavam meia hora mais tarde.
Joakim lembrava-se de ter sonhado com qualquer coisa estranha, mas não sabia exatamente com quê. Era algo relacionado com o anjo Efiriel e o cordeiro...
Então endireitou-se na cama e observou o misterioso calendário que o livreiro de cabelo esbranquiçado lhe oferecera. Na parte de cima da gravura viam-se alguns anjos que desciam das nuvens, vindos do céu. Um deles soprava uma trompa certamente com o intuito de acordar os pastores e as ovelhas.
Joakim achou que Efiriel, que confortara Elisabet quando ela tropeçou na enorme raiz do pinheiro, devia ser o anjo da direita. Pelo menos era assim que Joakim imaginava Efiriel depois de ter lido o pequeno bilhete.
De repente, ele reparou que o anjo lhe sorria e levantava um braço como se estivesse a acenar-lhe. Parecia que o anjo da imagem estava agora mais nítido do que no dia anterior.
Joakim levantou-se da cama e abriu a janela com o número três. Então, surgiu um carro antigo idêntico ao que ele vira no Museu de Tecnologia com o avô.
Não percebeu que relação existia entre um carro antigo e o Natal. Apanhou o bilhetinho que saltou do calendário para o travesseiro. Depois, enfiando-se debaixo do edredom, leu-o.
A SEGUNDA OVELHA
Elisabet e o anjo Efiriel continuaram a correr atrás do cordeiro que fugira do barulho das máquinas registradoras e da confusão de Natal no grande armazém comercial. Pouco depois, o bosque ficou para trás e deu lugar a uma estrada. Uma fumaça espessa subia pelas altas chaminés das fábricas à distância.
— É uma cidade — disse Elisabet.
— É Halden — explicou o anjo. — Já não falta muito para chegarmos à Suécia. O caminho para Belém passa por lá.
Mal acabara de pronunciar estas palavras, ouviu-se um ruído metálico vindo de trás. Elisabet olhou e viu um carro antigo que passava. Naquele momento, um senhor de sobretudo e chapéu ia ao volante. Tinha um bigode espesso que fazia lembrar a fotografia do bisavô de Elisabet, pendurada sobre a lareira. Quando passou por eles, o senhor apitou e fez uma vênia com o chapéu.
— Este carro é antigo! — exclamou Elisabet. — Já deve ter muitos anos.
Efiriel escondeu o rosto com um braço para não rir.
— Eu acho que é novinho em folha!
Elisabet suspirou com desalento.
— Eu julgava que os anjos sabiam mais do que os seres humanos. Mas agora vejo que não entendem nada de carros.
Então, para evitar conflitos com o anjo, acrescentou:
— Mas talvez isso não seja de admirar porque vocês têm asas e lá no Céu não existem carros. Calculo até que Deus tenha proibido qualquer forma de poluição lá em cima.
Efiriel apontou para um montão de toras de madeira e disse:
— Sente-se aqui! — ordenou Efiriel. — Tu mereces um pouco de descanso e, além disso, quero contar-te uma coisa importante sobre a viagem até Belém.
Elisabet sentou-se, olhou para o anjo e perguntou:
— E tu não te cansas também?
— Não — respondeu Efiriel. — Nós, os anjos, não nos cansamos porque não somos de carne e osso. É a sua constituição de carne e osso que causa o cansaço nos seres humanos.
Elisabet ficou um pouco embaraçada porque estava convicta de que os anjos se cansavam também. Mas se assim fosse, eles não conseguiriam descer e subir constantemente entre o Céu e a Terra. Do Céu à Terra deve ser ainda mais distante do que até Belém. De qualquer forma, ela estava certa de que era um carro antigo.
— Mas, minha amiga, lembra-se para onde é que vamos? — perguntou o anjo.
— Vamos para Belém — respondeu Elisabet. Ela estava mesmo a pensar nisso.
— Pois bem. Mas o que é que vamos lá fazer?
— Vamos acariciar o cordeiro.
— Vamos dar boas-vindas ao Menino Jesus — esclareceu Efiriel. — Chamam-Lhe cordeiro de Deus, porque Ele é bom e imaculado como o pêlo macio do cordeiro.
Elisabet estremeceu. Aquele pensamento nunca lhe ocorrera.
— Mas não basta ir a Belém — continuou o anjo. — Temos de recuar dois mil anos, isto é, aproximadamente o mesmo tempo que decorreu desde que a perseguição ao cordeiro começou até ao nascimento de Jesus. Vamos tentar chegar lá quando o grande mistério acontecer.
Elisabet levou a mão à boca e perguntou:
— Mas não é impossível atrasar o tempo?
— Não, de maneira nenhuma — discordou Efiriel. — Nada é impossível para Deus e eu estou aqui como mensageiro de Deus. Já ultrapassamos uma boa parte da longa caminhada. O que está agora a ver ao fundo é Halden e estamos no princípio do século vinte depois de Cristo. Está entendendo?
Elisabet arregalou os olhos e respondeu:
— Acho que sim... Nesse caso, o carro antigo não é ainda muito antigo.
— Pois não. É certamente novo. Reparaste no orgulho com que o homem buzinou? Poucas pessoas possuíam carro naquela altura.
Elisabet Hansen observou aquele vulto branco e Efiriel continuou:
— Se percorrêssemos o caminho até Belém sempre direto levaria muito tempo. Porém, nós deslocamo-nos em diagonal através da História e isso vai encurtar o caminho consideravelmente. É como correr com o vento ou cair por uma escada rolante abaixo.
Elisabet anuiu, mas não estava certa de ter entendido tudo o que o anjo lhe dissera. De qualquer maneira, as coisas que ele dissera faziam sentido.
— Como é que sabe que estamos no início do século vinte?
O anjo levantou um braço e mostrou um relógio de ouro com pérolas brilhantes que tinha no pulso. O mostrador indicava 1916.
— Este é um relógio de anjo — explicou Efiriel. — Por isso, não é tão preciso como os outros relógios, dado que no Céu não damos importância às horas e aos minutos.
— E porque não?
— Porque lá temos a eternidade à nossa frente — respondeu o anjo. — E não dependemos de um determinado ônibus para chegarmos na hora ao trabalho.
Elisabet estava estupefata com as palavras do anjo e só agora compreendeu porque é que o relógio da igreja batera três vezes no momento em que ela saia da loja, quando, na realidade, já eram seis ou sete horas. Nesse momento, compreendeu também porque é que a neve desaparecera e o Verão chegara de repente. É que ela tinha retrocedido no tempo...
— O caminho em diagonal começou com a perseguição ao cordeiro do chocalho — continuou o anjo Efiriel. — A grande viagem no tempo e no espaço iniciou-se aí.
Um carro antigo aproximou-se agora em sentido oposto e levantou uma nuvem de poeira e de areia, que fez Elisabet tossir. Quando a poeira assentou, ela apontou para a estrada:
— O nosso cordeiro está lá na frente com uma ovelha adulta...
Efiriel também viu:
— Tenho quase certeza de que a ovelha vai a caminho de Belém.
Elisabet e o anjo já estavam próximos quando o cordeiro e a ovelha começaram a correr.
— Mééé, mééé, mééé! — chamou Elisabet.
Nem o cordeiro nem a ovelha pararam. A meta era Belém, Belém!
Ainda fizeram uma breve paragem nos arredores de Halden para verem o movimento nas ruas e na praça. As senhoras usavam vestidos de algodão compridos, de cores vivas, e chapéus multicoloridos de abas grandes. Pelas ruas da pequena cidade circulavam vários carros antigos e carroças puxadas por cavalos.
Deixaram a cidade e pouco depois chegaram à fronteira. Aqui havia uma placa que dizia o seguinte: «Fronteira da SUÉCIA».
— Nós podemos entrar na Suécia? — Perguntou Elisabet, parando de repente.
O anjo voou sobre Elisabet como uma borboleta gigante:
— Eles não se atrevem a fazer parar uma peregrinação — respondeu Efiriel. — Além disso, até poucos anos a Noruega e a Suécia tinham o mesmo rei.
— Pode mostrar-me outra vez o relógio?
Efiriel estendeu o braço. O indicador mostrava agora 1905. Quando o cordeiro e a ovelha, Elisabet Hansen e Efiriel passaram apressados pelos guardas da fronteira, estes gritaram:
— Em nome da lei, parem!
Mas os peregrinos já se encontravam em território da Suécia e uns anos mais perto do nascimento de Jesus.
* * *
Joakim ergueu-se na cama. Era por isso que havia agora a imagem de um carro no calendário! Era por isso também que o Verão surgira tão depressa!
Joakim guardou apressadamente o bilhete que falava de Elisabet e de Efiriel, o anjo, no cofre secreto, com receio de que os pais chegassem ao quarto a qualquer momento, e depois sentou-se, refletindo sobre o que lera.
Agora ele já entendia tudo ou pelo menos mais um pouco do que no dia anterior. Elisabet não correra apenas atrás do cordeiro pelo bosque afora. Ela recuara no tempo. Voltara ao ano de 1905 no trajeto para Belém, onde Jesus nascera. Joakim sabia que esse acontecimento fora cerca de dois mil anos antes.
Ele sabia que recuar no tempo era impossível. Porém os pensamentos não têm fronteiras.
Joakim aprendera na escola que um dia para Deus é como mil anos para os seres humanos. E Efiriel dissera a Elisabet que, para Deus, tudo é possível.
Mas teria o tempo realmente retrocedido para Elisabet e para o anjo?
Joakim ouviu a voz da mãe no corredor. Ela abriu a porta do quarto e perguntou:
— Já abriu o calendário?
Ele respondeu-lhe que sim.
— Um carro antigo! — Exclamou a mãe, inclinando-se sobre o calendário.
A voz exprimia surpresa e até um certo desapontamento. Talvez ela desejasse sempre ver imagens de anjos e outros motivos de Natal.
— Elisabet foi para a Suécia com o anjo quando os carros antigos ainda eram novinhos em folha — disse Joakim. — Sabe que eles vão a caminho de Belém?
— Acho que és um pequeno inventor — respondeu a mãe e acariciou-lhe a cabeça antes de ir para o banheiro.
Joakim sentia-se nervoso só em pensar naquilo. Os pais, porém, estavam convencidos de que era pura imaginação. Então, ele decidiu que ia pôr em prática uma idéia genial: ele iria empacotar aqueles bilhetinhos misteriosos e pô-los debaixo da árvore de Natal. O pacote teria a seguinte dedicatória: «Para os melhores pais do mundo.»
Talvez esta não tivesse sido realmente uma boa idéia, porque assim ele ansiava cada vez mais pela chegada do Natal. Nem sempre era positivo ansiar por uma coisa, tendo em consideração que a expectativa chegava mesmo a ser um pouco aborrecida. Mas a alegria podia também provocar-lhe dores de cabeça.
À tarde o pai disse que ainda não conseguira encontrar a carteira de motorista. A mãe, por sua vez, achou que, sem carta, ele não devia dirigir o carro. Ao ouvir isto, ele suspirou como uma máquina a vapor.
4 DE DEZEMBRO
...ele mal chegou a abrir os olhos...
Joakim tinha agora dois segredos. Um deles relacionava-se com aqueles pequenos bilhetes muito bem dobrados que encontrara pela manhã no calendário mágico do Advento, antes dos pais se levantarem. O outro segredo é que ele escondera esses bilhetinhos no pequeno cofre que a avó lhe trouxera da Polônia.
Ele estava a juntar aquilo que devia ser o presente mais engraçado do mundo. E nada mais precisava de fazer senão colocar esses bilhetes no cofre secreto a que só ele tinha acesso. Na véspera de Natal, enquanto a mãe estivesse preparando o jantar, ele iria embrulhá-lo em papel bonito.
A coisa mais curiosa era mesmo o calendário do Advento que o velho Johannes deixara na livraria.
Mas quem seria aquele estranho vendedor de flores? E qual seria a intenção dele ao deixar o calendário mágico à frente dos outros livros?
Johannes conheceu provavelmente uma senhora chamada Elisabet. Pelo menos, deixou uma fotografia dela na vitrine da livraria. Mas quem sabe se esta Elisabet era a mesma dos bilhetinhos que saltavam das janelas do calendário? A menina tinha aproximadamente a mesma idade que Joakim, mas o calendário tinha sido feito muitos anos antes.
Ao acordar no dia 4 de Dezembro, Joakim assegurou-se primeiro de que a casa estava em silêncio absoluto antes de abrir a janela do calendário.
Quando abriu a janela, apareceu a imagem de um homem de veste azul-clara que mais parecia uma camisola de dormir. Na mão segurava um cajado. Joakim mal tinha observado o que estava lá quando um bilhetinho caiu sobre a cama. Joakim desdobrou-o e leu:
JOSUÉ
Elisabet Hansen e Efiriel correram atrás da ovelha e do cordeiro. Depois de passarem por uma cabana vermelha, chegaram a uma clareira do bosque. De um local elevado, o anjo apontou para um grande lago e disse:
— É o maior lago da Escandinávia. O relógio mostra que já decorreram 1891 anos desde o nascimento de Jesus, mas ainda estamos na Suécia.
Naquele grande lago nascia um rio impetuoso. Sobre o rio havia uma ponte e eles atravessaram para o outro lado.
— Este é o rio Gota — disse Efiriel. — Vamos por aquela vereda ao longo do rio.
— Mééé, mééé, mééé! — chamou Elisabet, mas a ovelha e o cordeiro levavam ainda a dianteira.
Chegavam agora a uma aldeia perto da qual havia uma igreja pintada de vermelho. Para esta igreja dirigiam-se algumas pessoas. A maioria ia a pé, mas outras iam em carroças puxadas por cavalos. Os homens vestiam roupas escuras e usavam chapéu preto. Muitas das mulheres estavam vestidas de negro e algumas levavam um livro de salmos na mão.
— Deve ser domingo — disse Elisabet.
Eles detiveram-se ainda uns instantes a olhar para aquelas pessoas. Subitamente um garotinho reparou neles, mas nem teve tempo de mostrar a sua surpresa porque Efiriel pôs-se de imediato a caminho. Elisabet teve de andar depressa para alcançá-lo. Ainda olhou uma vez para trás, mas as pessoas e as carruagens puxadas por cavalos tinham desaparecido do adro da igreja.
Quando deixaram a aldeia para trás, Elisabet voltou-se para o anjo e comentou:
— Só houve um garotinho que nos viu, mais ninguém.
— Ainda bem! É bom não despertar muita atenção. Mesmo assim, há sempre alguém que nos vê.
Continuaram a correr por bosques e campos. De vez em quando avistaram pessoas a preparar o feno ou a ceifar cereais com uma foice. Nessas alturas, mudavam de trajeto para não assustá-las.
Então, a ovelha e o cordeiro encontraram uma pastagem verdejante e irresistível que era um verdadeiro prazer para os olhos.
— Desta vez é que vamos conseguir — sussurrou Elisabet. — Temos que ir devagarinho.
Quando ela acabou de pronunciar estas palavras, viram um homem de túnica azul. Na mão tinha um cajado com uma curva na parte de cima. O homem aproximou-se deles e disse com um ar solene:
— A paz esteja convosco, vós que caminhais por este estreito caminho ao longo do rio Gota. Sou o pastor Josué.
— Então, és um de nós — disse Efiriel.
Elisabet não compreendeu o que o anjo queria dizer com aquilo.
— Vou para a Terra Santa para estar presente na anunciação do nascimento de Jesus — respondeu o pastor.
Elisabet teve uma idéia genial:
— Se és um verdadeiro pastor, talvez possas trazer aquele cordeiro com chocalho para junto de mim.
O pastor fez uma grande vênia:
— Para um verdadeiro pastor, isso não apresenta qualquer dificuldade.
Com passos decididos, o pastor aproximou-se da ovelha e do cordeiro. Daí a pouco, o cordeiro estava aos pés de Elisabet. Ela ajoelhou-se, acariciou o seu pêlo macio e disse:
— És o animal de pêlo mais rápido do mundo. Mas apanhei-te finalmente!
— Para Belém, para Belém! — ordenou o pastor, batendo vigorosamente com o cajado no chão.
O cordeiro e a ovelha puseram-se em marcha. O pastor, o anjo e Elisabet seguiram logo atrás.
Mais adiante avistaram um agregado de casas vermelhas de madeira e Efiriel disse que era uma cidade chamada Kungälv.
— Esta palavra significa «laje real» e a cidade recebeu este nome porque os reis escandinavos costumavam reunir-se aqui para discutirem assuntos importantes. Um desses reis foi Sigurd Jorsalfar.
O anjo explicou que Jorsalfar significava peregrinação a Jerusalém e esse cognome devia-se ao fato de Sigurd ter ido em peregrinação à Terra Santa onde o Menino Jesus nasceu.
A ovelha e o cordeiro ainda iam à frente. O pastor Josué seguia-os com agilidade. Elisabet e o anjo Efiriel apressaram a marcha.
Chegavam agora a uma grande cidade na foz do rio Gota. Do alto de uma colina, avistaram mulheres com vestidos compridos e homens de chapéu e bengala a passear na cidade. Alguns iam em carruagens imponentes puxadas por dois cavalos.
— Eis Gotemburgo no ano de 1814. Nesta altura a Dinamarca ia entregar a Noruega à Suécia. A Noruega passaria a ter a sua Constituição própria — disse Efiriel.
O pastor Josué virou-se e acenou-lhes:
— Para Belém! — gritou. — Para Belém!
E atravessaram a Suécia apressadamente.
* * *
Joakim mal teve tempo de esconder o bilhete no cofre secreto quando a mãe entrou pelo quarto adentro e perguntou:
— Que imagem temos?
Joakim nem precisava de responder porque a mãe queria sempre ver com os seus próprios olhos.
— Deve ser um dos pastores dos campos! — exclamou a mãe, juntando as mãos.
Joakim elevou o olhar:
— Porque é que dizes «dos campos»?
Então, a mãe explicou que nos calendários antigos, e também nos mais recentes, as figuras de pastores eram muito freqüentes porque os anjos anunciaram o nascimento de Jesus aos pastores dos campos.
— Eles já chegaram a Gotemburgo — disse Joakim.
— A Gotemburgo?
A mãe olhou para ele com um ar inquisitivo:
— Quem são «eles»?
— Refiro-me a Elisabet Hansen, ao anjo Efiriel e ao pastor Josué, que vão a caminho de Belém. De Belém!
A mãe ficou boquiaberta:
— Espero que o velho calendário não esteja a deixar-te confuso. São apenas imagens!
Joakim compreendeu que não devia adiantar mais nada aos pais sobre Elisabet. Ou então, não conseguiria guardar segredo sobre os bilhetes do calendário que ele tencionava oferecer como presente de Natal.
Ele compreendeu também que devia falar com Johannes, porque ele era a única pessoa que sabia de onde viera o calendário. Talvez Johannes soubesse mais coisas sobre Elisabet Hansen. Mas onde é que Joakim podia encontrá-lo? Os pais não autorizavam que se deslocasse à cidade nem ao mercado sozinho.
Nessa mesma tarde, depois de Joakim chegar em casa, alguém tocou à campainha. A mãe não era, certamente, pois ele nunca fechava a porta à chave. Quem seria então?
Joakim dirigiu-se para o vestíbulo e abriu a porta. Era o livreiro de cabelo branco que lhe oferecera o calendário do Advento.
— Ah! És tu mesmo! — exclamou o homem. — Tal como eu pensei.
— O quê? — perguntou Joakim, receando que o livreiro viesse buscar o calendário mágico.
Mas como é que ele sabia onde moravam?
O homem de cabelo branco meteu a mão na algibeira do sobretudo e retirou de lá uma carteira de motorista.
— O teu pai deixou isto sobre o balcão — disse. — Bem me pareceu que era vossa e, como não voltaram, fui procurar o endereço na lista telefônica. Eu moro aqui perto. Moro na rua Klover, número doze.
Essa rua ficava muito perto dali. Um colega de classe de Joakim vivia no número sete.
— E como vão as coisas com o calendário mágico? — perguntou o homem.
Joakim olhou para ele:
— Bem, obrigado. Há uns pequenos bilhetes misteriosos lá dentro.
— É mesmo?
O livreiro fez um grande sorriso e entregou-lhe a carteira de motorista do pai, dizendo:
— Bem, vou andando. Nestas alturas, temos muito trabalho lá na livraria.
Os pais não tardaram a chegar do trabalho e, pouco depois, sentaram-se à mesa para jantar.
Joakim decidira que só quando o pai falasse na carteira de motorista ele lhe diria que a tinha. E, por isso, resolveu conversar sobre um assunto completamente diferente:
— O que é uma peregrinação?
— Um peregrino é uma pessoa que vai visitar um lugar sagrado.
— Como Sigurd Jorsalfar? — acrescentou Joakim. — Por ele ter ido a Jerusalém, chamaram-lhe peregrino.
Os pais entreolharam-se.
— Já falaram de Sigurd Jorsalfar na escola? — indagou a mãe. Joakim respondeu que sim e então resolveu falar da carteira de motorista. Olhou para o pai e perguntou:
— Já encontrou a tua carteira de motorista?
— Ainda não! — respondeu o pai quase irritado.
— Pois eu sim! — disse Joakim.
Depois saiu da cadeira, foi buscá-la no quarto e entregou-a ao pai com um sorriso malandro.
O pai quase que se engasgou. Franziu a testa e disse:
— Onde é que a encontrou, Joakim? Por acaso, não foste tu que...
Joakim interrompeu-o imediatamente para evitar que o pai lhe dissesse alguma coisa de que viesse a arrepender-se mais tarde:
— Deixaste-a na livraria onde compramos o calendário do Advento.
Era como se o pai tivesse sido visitado por um anjo em pleno dia.
E de algum modo foi assim, a única diferença é que o anjo lhe enviara um livreiro de cabelo branco, em vez de vir ele próprio.
— O livreiro esteve aqui pouco antes de vocês chegarem — disse Joakim. — Encontrou o nosso endereço na lista telefônica.
Nessa ocasião é que os pais compreenderam o que se passara.
— Pois é! Mas que livreiro tão gentil! — comentou o pai. Voltando-se depois para a mãe, acrescentou:
— Estás a ver: isto é fora do normal!
— Mas tu também és um distraído fora do normal — disse Joakim.
5 DE DEZEMBRO
...os tempos chegam, passam e a uma geração sucede outra...
Ainda bem que o calendário do Advento não tinha chocolates nem figuras de plástico. E o pai de Joakim não tinha razão alguma quando afirmou que, por trás de cada janela, só havia uma gravura.
O calendário mágico que outrora custara apenas setenta e cinco centavos, contava a história surpreendente de Elisabet que perseguira um cordeiro com chocalho até Belém, onde Jesus nasceu há perto de dois mil anos. A história demorou vinte e quatro dias a ser contada porque só se podia ler um capítulo por dia. E em cada dia que passava, um novo peregrino juntava-se ao grupo.
O dia 5 de Dezembro calhou num sábado e, aos sábados, os pais de Joakim costumavam dormir até mais tarde. Ele acordou, como sempre, por volta das sete horas. Pôs-se de pé na cama e observou a imagem que estava na parte exterior do calendário.
Foi então que Joakim viu o cajado na mão do pastor Josué.
Por que razão ele não tinha visto o cajado anteriormente?
Agora sempre que Joakim olhava para o calendário descobria alguma coisa nova. Mas, além daquilo que já existia, poderia ainda aparecer algo de inédito? Se assim fosse, não seria tudo isto um truque de ilusionismo?
Joakim reteve a respiração e ficou tenso de espanto.
Talvez o mistério do calendário fosse mesmo isso! A gravura exterior nunca estava acabada e desenhava-se a si própria à medida que as janelas eram abertas e os pequenos bilhetes lidos.
Mas como é que era possível fazer um tal desenho?
Joakim sabia que o pão só fica pronto depois de bem amassado no tabuleiro e assado no forno. Ele já tinha ajudado os pais a fazer pão e sabia que era assim. Quando era pequeno, ele estava convencido de que os bebês no ventre da mãe eram como o pão.
Nesse caso, talvez o mundo, que estava em mutação constante, fosse também um desenho mágico que se desenhava a si próprio? E nunca fica completo.
Joakim olhava para o seu calendário do Advento e sentia o corpo cada vez mais tenso: se Deus criou um mundo que pode moldar-se até ao mais ínfimo pormenor, provavelmente conseguia também criar uma imagem que ia aparecendo por si própria a quem olhava para ela.
Ele estava convicto de que o pastor da gravura grande era o mesmo que Elisabet encontrara a caminho de Belém. Mas restava agora saber se o pastor tinha um cajado na mão quando Joakim comprou o calendário na livraria. Talvez ele nunca chegasse a saber, mas a imagem era muito curiosa porque mostrava sempre algo de novo. Isso e outras coisas faziam deste calendário um objeto muito engenhoso.
Joakim olhou para as pequenas imagens no interior do calendário: primeiro Elisabet e o cordeiro no armazém comercial, depois o anjo no bosque, o carro antigo e o pastor com cajado.
Joakim abriu então a janela número cinco e viu um barco a remos com um pastor, um anjo, uma menina e algumas ovelhas. Ele compreendeu imediatamente de quem se tratava. No entanto, o que mais lhe despertou a atenção foi o bilhetinho de papel.
Joakim desdobrou aquele pequeno bilhete e leu o que lá estava escrito:
A TERCEIRA OVELHA
Elisabet, o cordeiro, o anjo, a ovelha e o pastor atravessaram a Suécia apressadamente por caminhos de terra batida, veredas percorridas por carroças carregadas de erva, searas e bosques cerrados até que avistaram uma aldeia junto à costa. O vento forte que soprava do mar fazia com que as ondas batessem contra o cais. A distância passava um veleiro com três altos mastros. Numa parte da cidade, havia um palácio imponente.
— Estamos em Halland — disse Efiriel. — Esta é a cidade de Halmstad e as ondas que aqui rebentam, vêm do Kattegat. O meu relógio indica que passaram 1789 anos desde o nascimento de Jesus.
— E ainda estamos na Suécia? — perguntou Elisabet.
— Mas a Suécia esteve sob o domínio dinamarquês até há pouco tempo — referiu Efiriel.
O pastor Josué recomendou que apressassem a marcha e a paisagem ia-se tornando mais plana à medida que se aproximavam do Sul. Aqui e ali, avistavam-se aldeias com o seu casario e igrejas entre as pastagens e campos.
Ao passarem por um bosque denso, Josué baixou-se junto de um vidoeiro, junto ao qual estava uma ovelha presa numa armadilha.
— A armadilha destinava-se a uma lebre ou raposa — comentou Josué.
— Esta ovelha vai conosco até Belém! — exclamou o pastor, libertando a ovelha.
Efiriel, o anjo, fez um sinal decidido e disse:
— Ela também é dos nossos.
E a ovelha pareceu responder:
— Mé! Mééé.....
O cordeiro e as duas ovelhas, à frente, o pastor, ao meio, e Elisabet Hansen e Efiriel, atrás, retomaram a marcha.
Chegaram entretanto a uma cidade e resolveram fazer uma paragem diante de uma igreja antiga encimada por duas elevadas torres.
O anjo informou que esta era a cidade de Lund, em Skâne, e que a igreja era uma catedral ancestral. E, olhando para o relógio, continuou:
— O relógio indica neste momento o ano de 1745. Esta catedral imponente já existe há muitos séculos. Em honra do Menino Jesus, nascido em Belém, construíram-se igrejas e catedrais por todo o mundo. É como uma semente que se joga na terra e depois se transforma numa campo cultivado. A glória celestial expande-se facilmente.
Elisabet surpreendeu-se com as palavras do anjo e perguntou:
— Podemos entrar?
O anjo respondeu afirmativamente e o pequeno grupo entrou na igreja. As ovelhas iam à frente, seguidas do pastor e de Elisabet Hansen.
Lá dentro, Elisabet ouviu a música mais bela de toda a sua vida. Um enorme órgão emitia uns sons tão agradáveis e poderosos que até a fizeram chorar de emoção.
— Chora, chora, minha filha — disse o anjo. — Esta música maravilhosa foi composta por Johann Sebastian Bach. Nesta época, vive na Alemanha, mas a sua música ouvir-se-á em toda a Europa. E isso não é para admirar porque a música que ele compõe é como uma manifestação da glória celestial.
Somente o balido das ovelhas e o chocalhar do cordeiro causavam alguma perturbação.
Um padre vestido de preto veio da capela-mor e ordenou:
— Ponham-se todos na rua! A catedral de Lund não é nenhum palheiro.
Efiriel apresentou-se ao padre e, batendo as asas, disse:
— O pastor não deve ter medo! E não se deve esquecer que Jesus também nasceu num estábulo e foi chamado «o bom pastor».
O padre parou, subitamente, pois, embora fosse padre numa catedral muito antiga, não estava habituado a visitas de anjos.
— Louvado seja Deus nas Alturas! — exclamou.
O anjo fez-lhes sinal para saírem e deixaram ali o padre.
— Estes momentos não devem prolongar-se — disse o anjo. — Talvez ele escreva um relatório ao bispo. Depois tudo é abafado ou, então, começam a circular boatos de um milagre em Lund. De qualquer forma, o bispo tem o dever de se lembrar que «pastor» significa pura e simplesmente guardador de rebanhos.
Josué bateu o cajado contra a parede da igreja:
— Para Belém! Para Belém!
Depois passaram por um grande parque onde havia muitos pássaros. Dois soldados cavalgaram em direção a eles, e quando viram aquele grupo barulhento, gritaram:
— Parem aí!
Os soldados galoparam em direção a eles, mas, no momento em que desmontavam para capturar o pastor Josué, desapareceram.
Elisabet estava atônita. Eles continuavam precisamente no mesmo lugar onde estavam quando viram os soldados.
— Sumiram-se! — exclamou Elisabet. O anjo deu uma grande gargalhada.
— Poderíamos dizer que foi assim, mas nós é que desaparecemos. Se calhar, com o susto que apanharam ao ver-nos, caíram dos cavalos.
Elisabet estava tão surpreendida como os soldados e Efiriel voltou a explicar a maneira como viajavam:
— Nós estamos a seguir simultaneamente dois caminhos diferentes. Um deles para a cidade de Belém, na Judéia, rumo ao sul. O outro atravessa a história até à cidade de David com destino à época do nascimento de Jesus. Esta é uma forma inusitada de viajar e muita gente diria até que é impossível, porém, para Deus, tudo é possível. Os tempos chegam, passam e uma geração sucede outra, mas o trajeto para Belém, esse não muda.
Elisabet estava de tal modo impressionada com as palavras do anjo, que não mais as esqueceu:
— Assim é melhor para evitar o perigo — observou Josué. — Se não conseguirmos escapar a padres arrebatados ou a soldados encolerizados dando um passo para o lado, então, atrasamos o tempo. Uma meia hora ou mesmo um quarto de hora é suficiente para tal.
Dito isto, recomeçaram a caminhada. Voltaram a passar por grandes latifúndios e aldeias. Agora viam o mar à distância e pouco depois chegaram a uma praia deserta.
— É Oresund. — anunciou Efiriel. — O relógio indica que já decorreram 1703 anos desde o nascimento de Jesus. Temos que chegar à Dinamarca antes de acabar o século XVIII.
— Estão a ver este barco a remos? — perguntou Josué um pouco mais adiante.
As ovelhas saltaram logo para bordo e depois Elisabet e Efiriel entraram também. O pastor Josué empurrou o barco para a água e saltou para dentro à última da hora.
Efiriel remava tão energicamente, que as bolhas de espuma subiam pela proa acima.
Durante a travessia, o barco balançava ao sabor das ondas e o chocalho que o cordeiro tinha ao pescoço não parava de tocar.
Josué ia atrás no barco. De repente, apontou para diante e exclamou:
— Já vejo a Dinamarca!
* * *
«Já vejo a Dinamarca!»
Joakim julgou que também via a Dinamarca.
Era tão esquisito que Elisabet pudesse viajar atrasando o tempo! Mas o mais estranho de tudo é que o nascimento de Jesus tivesse sido há dois mil anos. As histórias sobre Jesus viajaram nesses dois mil anos até chegarem aos ouvidos de Joakim.
Elisabet viajava no sentido contrário. Não era sobretudo difícil compreender como isso é possível?
Os pais acordaram e vieram ver o calendário. Joakim apontou para o barco em que iam Elisabet, Efiriel, Josué, o cordeiro e as ovelhas, mas não referiu o que acontecera no parque. Ele também não queria falar dos bilhetinhos do calendário, que, pouco a pouco, ia escondendo no pequeno cofre que a avó lhe dera, nem da visita à catedral de Lund, evitando assim que os pais lhe perguntassem onde é que ele aprendera o significado de catedral.
Após o café-da-manhã foram todos à cidade comprar presentes de Natal. Era bom fazer as compras antecipadamente.
No primeiro andar do grande armazém comercial ficava a seção de brinquedos e Joakim pensou na Elisabet do calendário.
Mas seria esta a mesma loja de que Elisabet fugira para ir atrás do cordeiro? Aqui também havia umas escadas rolantes muito antigas. Mas não tinha sido já há muito tempo que Elisabet correra atrás do cordeiro que não agüentava o ruído das máquinas registradoras?
Joakim olhou para a mãe:
— Esta loja já deve ter cerca de quarenta anos.
A mãe olhou-o estranhamente.
— Deve ter mais que isso — disse simplesmente.
Joakim soube depois que a mãe tinha razão. Esta era, pois, certamente a loja de onde Elisabet e o cordeiro tinham fugido. Ele compreendia muito bem porquê: ele próprio detestava lojas grandes. O ruído contínuo das máquinas registradoras enervava-o.
Aquele sábado parecia nunca mais ter fim. Joakim pensava só no que iria acontecer quando Elisabet e o anjo Efiriel chegassem à Dinamarca. O pior de tudo era ter que dormir debaixo daquele calendário mágico cheio de surpresas.
Dormir perto de segredos era praticamente a mesma coisa que viver numa fábrica de chocolate e não poder saborear um único bocado.
6 DE DEZEMBRO
...além disso um camelo pode deslocar-se de um lugar para outro como as torres num tabuleiro de xadrez
Quando Joakim acordou no domingo de manhã, sentia-se como se tivesse adormecido naquele preciso momento. Depois recordou-se do sonho e achou que afinal a noite tinha sido até bastante longa.
Ele sonhou que o calendário mágico estava recheado de pequenas figuras de chocolate que se transformavam em animais com vida em cada vez que ele abria uma janela. E para que essas figuras não fugissem, ele escondia-as no pequeno cofre com a intenção de as libertar na véspera de Natal. Então, nesse dia, os vinte e quatro animais de chocolate que provinham do calendário seriam postos em liberdade a caminho de Belém, porque era onde Jesus nascera. Joakim sabia que Jesus gostava de todos os seres humanos, mas no sonho Jesus também gostava muito de chocolate.
Joakim despertou por completo e, quando compreendeu que as figuras de chocolate não passavam de um mero sonho, sentou-se na cama a rir. Lembrou-se então de que fora à cidade no dia anterior e que talvez tivesse localizado o grande armazém de onde Elisabet havia fugido há muito tempo.
Só então é que se pôs de pé na cama e abriu a sexta janela do calendário do Advento. Hoje foi a vez de aparecer uma torre arredondada. Só mais tarde viu outros pormenores. O que lhe interessava agora era ler o pequeno bilhete.
GASPAR
Quando o barco chegou ao lado dinamarquês de Oresund, Elisabet, Efiriel, o anjo, Josué, o pastor, o cordeiro e as duas ovelhas foram recebidos muito atenciosamente por um negro.
Foi Elisabet quem o viu primeiro porque o anjo remava de costas para terra e Josué acalmava as ovelhas.
— Está ali um negro! — disse ela.
— É um dos nossos! — informou o anjo, olhando de relance.
O homem negro que vestia uma capa escura com botões dourados, calças vermelhas de malha e sapatos de pele de carneiro, encaminhou-se para eles e, com um único puxão, trouxe o barco para terra. As ovelhas e o cordeiro saltaram imediatamente e, em breve, estavam todos na praia.
O homem bem vestido inclinou-se e segurou a mão de Elisabet:
— Eu te saúdo, minha filha, e bem-vinda à Zelândia. Sou o rei Gaspar da Núbia.
— Elisabet — apresentou-se delicadamente.
Elisabet estava tão confusa que nem sabia como agir. Talvez fosse mais correto dizer que se chamava Elisabet Hansen e que vinha da Noruega, mas isso já não tinha muito interesse depois de ele ter dito que era o rei da Núbia.
— É um dos três sábios do Oriente — sussurrou Efiriel solenemente.
— Ou um dos três Reis Magos — acrescentou Josué.
Estas informações não adiantaram nada. Se Elisabet abrisse a boca, era para dizer que era princesa de Toten ou outra coisa do gênero. Podia ser que o rei julgasse que Toten era um reino poderoso.
— O prazer é todo do meu lado de Oresund — disse o rei negro ao fazer uma vênia. — Esperei tanto tempo por vós que até me pus a pular amarelinha entre os anos de 1701 e 1699.
Isto parecia tão misterioso que Elisabet teve de esfregar os olhos para ter certeza de que não estava dormindo. Se já era difícil pular amarelinha entre os quadrados desenhados a giz, como é que o sábio podia saltar entre dois anos?
O rei explicou-se melhor:
— Quando cheguei a esta praia no ano de 1701 da era do Senhor, estavam aqui uns pescadores que ficaram tão assustados com a presença dos três Reis Magos que eu tive de recuar um passo. Foi assim que cheguei ao ano de 1700. Sentei-me a observar o outro lado de Oresund, mas pouco tempo depois, apareceram alguns soldados montados a cavalo vindos da fortaleza em Copenhagen. Eles também se assustaram quando viram um rei negro. Eu sou o único rei negro em toda a Dinamarca ou, pelo menos, o único que é Rei Mago. Isso é uma coisa que chama a atenção, meus amigos. É difícil mudar os velhos costumes. As pessoas não se habituam facilmente às coisas diferentes. Por isso voltei ao ano de 1699 e esperei aí. Desde então não encontrei pessoas nem animais e não foi preciso esconder-me do Sol, da Lua e das estrelas do Céu, porque, como estão tão próximos de Deus, não andam a bisbilhotar a vida dos seres humanos na Terra.
Elisabet não tinha certeza se compreendera tudo aquilo, mas pelo menos percebeu que estava falando com um verdadeiro sábio. Ele era tão sábio que Elisabet não sabia onde pousar o olhar.
Foi um alívio para ela quando o pastor bateu com o cajado no chão e disse:
— Para Belém, para Belém!
O pequeno cortejo, composto por um cordeiro, duas ovelhas, Josué, o rei negro, Elisabet e Efiriel pôs-se a caminho.
Palmilharam apressadamente as ruas largas e calçadas de pedras de uma grande cidade que Efiriel disse ser Copenhagen, a cidade do rei. Era ainda madrugada e as ruas estavam quase desertas.
Elisabet achou que era uma benção divina uma cidade do tamanho de Copenhagen não ter carros. Por outro lado não podia dizer o mesmo sobre o estrume que havia nas ruas, porque ela só via isso em Toten quando ia visitar as primas.
— 1648 — anunciou o anjo Efiriel. — Este é o último ano do reinado de Christian IV, que se tornou rei da Dinamarca e da Noruega quando ainda era criança, há muitos anos.
— Da Noruega também? — perguntou Elisabet.
— Sim, também da Noruega. Nesta época a Noruega era uma parte da Dinamarca. Christian IV fundou a cidade de Kristiansand e de Kongsberg e deu o nome de Christiania a Oslo. Ele era, indiscutivelmente, um rei muito querido dos Noruegueses e visitava o país freqüentemente.
Eles encontravam-se agora na baixa da capital dinamarquesa e pararam diante de uma igreja com uma torre redonda.
— É a Torre Redonda que o rei Christian acabou de construir na nova Igreja da Trindade — informou Efiriel. — O rei achou um desperdício ver uma igreja tão bela sem qualquer utilidade. Assim a Torre Redonda passou a ser uma torre de igreja e, ao mesmo tempo, um observatório onde os astrônomos, tranqüilamente, podem estudar as órbitas dos planetas e a posição das estrelas no firmamento. Os primeiros telescópios constroem-se exatamente agora.
— Mas que combinação estranha — comentou Elisabet. Elisabeth achava seu dever intervir com algo de interesse. Porém, a sorte não estava com ela desta vez. O sábio discordou e fez o seguinte reparo:
— As estrelas são também criação de Deus. Estudar as estrelas do firmamento é como efetuar um serviço litúrgico completo. Mas aqui não há deserto nem camelos.
Elisabet olhou confusa para o sábio e ele continuou:
— Na opinião dos sábios, a melhor maneira de estudar as estrelas é no deserto montado num camelo. É quase como estar numa torre, mas com a vantagem de poder deslocar-se de um lugar para outro como as torres num tabuleiro de xadrez. A única dificuldade para um camelo é enfiar-se num buraco de agulha.
Elisabet continuava perplexa e não sabia se devia concordar que o lombo do camelo pudesse ser comparado a uma torre de igreja. Tampouco sabia se o deserto podia ser comparado com um tabuleiro de xadrez.
Gaspar continuou:
— Os observatórios têm a desvantagem de estarem quase sempre num lugar fixo. Eu já vi torres no mesmo lugar há mais de mil anos. Os velhos muros acabam certamente por aborrecer-se por verem sempre a mesma coisa. Mas ao mesmo tempo, permite-lhes saber como as pessoas vêm e vão e isso dá-lhes uma certa perspectiva.
Gaspar apercebeu-se que Elisabet concordara e dando sinais para que ninguém o interrompesse, prosseguiu:
— A sabedoria adquire-se de duas formas: uma delas é viajando pelo mundo e ver tudo o que se pode da obra da Criação divina; a outra é fixar-se num lugar certo e estudar minuciosamente tudo o que se passa em redor. Mas está fora de questão fazer ambas as coisas ao mesmo tempo.
Elisabet continuava impressionada com as palavras ajuizadas do sábio. E, julgando que era uma atitude correta, aplaudiu. O anjo e o pastor imitaram-na e, satisfeito com as suas palavras acertadas, Gaspar aplaudiu também.
Elisabet imaginou como seria divertido ter pensamentos de tal modo inteligentes que até provocavam aplausos.
O sábio pareceu ler os seus pensamentos e disse:
— Os pensamentos inteligentes são quase como um circo. Não me refiro a um circo com palhaços nem com elefantes, mas a um verdadeiro circo de pensamentos. Gostaria, no entanto, de agradecer aos palhaços e aos elefantes toda a atenção dispensada!
— Para Belém! Para Belém! — gritou Josué e bateu com o cajado na calçada.
O cortejo formado pelo cordeiro e as ovelhas, à frente, o pastor, o sábio, o anjo e Elisabet percorria agora as ruas da cidade.
Mas em breve cruzavam campos de cereais que flutuavam ao sabor do vento e florestas que exalavam frescura. Elisabet achou a Dinamarca um país muito plano, mas ela já sabia disso. No entanto, a inexistência de edifícios elevados dava a idéia de ser uma terra ainda mais plana. Uma igreja aqui e ali salientava-se na paisagem. Todas as igrejas tinham sido construídas em honra dum menino que nascera outrora em Belém.
O mar via-se ao longe e o grupo chegou a uma pequena cidade. Efiriel disse que era Korsor e que ficava no Grande Belta, o braço de mar entre a Zelândia e a Fiônia.
Os habitantes daquela cidade ficaram atônitos quando viram aproximar-se aquele desfile estranhíssimo, mas o susto durou pouco, pois, uns momentos depois, o grupo tinha recuado uma ou duas semanas na história da cidade. Então foi a vez de outras pessoas observarem aquele grupo de passagem e começarem a relatar várias histórias sobre anjos.
Josué apontou para um barco a remos que estava junto à costa e disse:
— Vamos ter que usá-lo. Apressem-se! Estamos a 1600 anos do nascimento de Jesus.
E com estas palavras encaminharam o cordeiro e as ovelhas para o barco.
Elisabet perguntou ao anjo se isto não era roubar e Efiriel recordou que Jesus fora para Jerusalém num jumento que encontrara no caminho.
Um pouco mais tarde alcançaram o Grande Belta. Efiriel e Gaspar remavam lado a lado. O sábio esforçava-se por acompanhar o ritmo do anjo.
* * *
Joakim esqueceu-se de que não devia falar no que estava escrito no bilhete quando a mãe veio ver o calendário do Advento. A mãe inclinou-se sobre a gravura:
— Essa é com certeza a Torre da Babilônia.
— De modo nenhum — discordou Joakim. — É a Torre Redonda em Copenhagen.
A mãe olhou para ele surpreendida:
— Quem é que te disse isso?
— Não faço idéia — respondeu Joakim, à semelhança do que a mãe fazia quando não podia responder a uma coisa. — Não é possível jogar xadrez com uma torre que nunca muda de lugar. Por outro lado, torna-se cansativo para uma pessoa ver a paisagem sempre sentada lá no alto, apesar de assim adquirir uma certa perspectiva.
A mãe aplaudiu e Joakim pensou que era por causa daquelas palavras inteligentes. Porém, ela disse apenas:
— Joakim! Onde é que aprendes tudo isso?
7 DE DEZEMBRO
...nós, no Céu, sempre consideramos isso um puro exagero...
Joakim passou a tarde a pensar em Gaspar, o rei negro, que esperara, na Dinamarca, que Elisabet, o anjo Efiriel e o pastor Josué transpusessem Oresund.
Mas como é que ele sabia que eles iam chegar? Talvez Efiriel combinasse este encontro aqui, em 1699, há longa data com o rei da Núbia. Tudo levava a crer que não era um encontro casual. «É um dos nossos» disse o anjo quando viu o homem de tez escura.
Toda esta viagem começara com a fuga do pequeno cordeiro que se separou dos outros bonecos de pelúcia e saiu do armazém comercial por estar farto de ouvir o ruído incessante das máquinas registradoras e da confusão de Natal. Provavelmente Elisabet não estava nos planos, mas não restavam dúvidas de que o anjo sabia da passagem do cordeiro pelo bosque.
Joakim lembrou-se do livreiro de cabelo branco. Ele tinha-lhe dito que o calendário parecia feito em casa e Joakim estava de acordo. Parecia que tinha sido feito com recortes e colagens por alguém numa cozinha. Numa tipografia não tinha sido feito com certeza, porque somente os calendários feitos em casa podem conter bilhetinhos com longas histórias dentro deles.
Se Johannes fez, ele mesmo, o calendário mágico com as suas próprias mãos, deu certamente o nome de Elisabet à menina da história e era assim que se chamava a pessoa da fotografia. Mas porquê? E qual teria sido o propósito de fazer um calendário para depois abandoná-lo numa livraria sem nunca mais saber o seu destino?
Quando Joakim se deitou à noite, fechou de novo as janelas do calendário para poder ver bem a gravura grande. Foi então que reparou noutra alteração. Desta vez, um dos Reis Magos estava ajoelhado atrás da manjedoura onde o Menino Jesus estava deitado. Joakim verificou que o rei era tão escuro como Gaspar! Tinha olhado para o calendário vezes sem conta, mas só nessa ocasião Joakim viu que era um rei negro.
Por que motivo seria assim?
Provavelmente o calendário foi pintado com cores mágicas que mudavam constantemente. Ou, então, era Joakim que não registrava imediatamente todos os pormenores da imagem.
Em cada dia que passava, Joakim ia-se convencendo cada vez mais de que via a gravura com maior nitidez.
Antes de desligar a luz, ainda passou o olhar pelos anjos, os pastores dos campos, José e Maria, os Reis Magos e pelo Menino Jesus e imaginou como devia ser estranho estar em Belém no tempo do nascimento de Jesus.
Poder-se-ia dizer que Joakim ia acompanhando Elisabet na viagem até Belém.
Na manhã seguinte, depois de abrir a janela número sete e ver uma ovelha a pastar diante de uma muralha, ele começou a ler o papel fininho, dobrado várias vezes, que saltara de lá.
A QUARTA OVELHA
Efiriel, o anjo, e Gaspar, o rei negro, remavam no barco que conduzia Elisabet Hansen, o pastor Josué e as três ovelhas ao outro lado do Grande Belta.
— Vamos desembarcar novamente — disse Efiriel. — Esta ilha chama-se Fiônia e estamos agora no ano de 1599 depois do nascimento de Jesus em Belém.
Então, chegaram à costa e alcançaram um grande castelo construído entre taludes e fossos.
— É o castelo de Nyborg, a maior fortaleza do Norte — anunciou o anjo.
Elisabet apontou para um dos taludes:
— Olhem! Está ali uma ovelha!
— Também é um dos nossos! — exclamou o anjo.
Em seguida, as três ovelhas, à frente, Josué, o pastor, e Gaspar, o rei negro, no meio, e Elisabet e Efiriel, atrás, subiram o talude.
Foi então que um soldado saiu do castelo a correr, e levantando uma lança, gritou:
— Seus grandes gatunos de ovelhas!
Três outros soldados, armados com lança e uma espécie de espingarda, precipitaram-se para eles. O anjo Efiriel adiantou-se. Os soldados atiraram-se imediatamente ao chão e cobriram a cabeça com as mãos.
— Não tenham medo! — disse o anjo com voz amigável. — Venho dar-vos uma grande alegria. Esta ovelha vai conosco para a Terra Santa, onde Jesus nasceu.
O soldado que lhes chamara gatunos de ovelhas atreveu-se a levantar o olhar.
— Tem compaixão de nós e leva a ovelha contigo — pediu ele. A ovelha juntou-se às outras como se pertencesse já ao pequeno rebanho. Josué bateu o cajado no chão e disse:
— Para Belém! Para Belém!
A viagem continuou pela ilha verdejante adentro. As quatro ovelhas iam à frente, Josué, Gaspar, Efiriel e Elisabet seguiam logo atrás.
Chegaram, entretanto, a uma cidade construída na margem de um pequeno rio com ruas estreitas e casas baixas. Uma igreja antiga com uma torre quadrada fora edificada próximo dali.
— É a catedral de Odense — disse Efiriel. — Este nome provém do rei Canuto, o Santo, que foi morto aqui em 1086.
Elisabet perguntou a Efiriel em que ano estavam.
— Estamos em 1537. A imprensa é descoberta nesta época e, a partir de agora, a Bíblia passa a ser impressa em todas as línguas do mundo para que toda a gente possa ler a vida de Jesus. Antigamente os livros eram escritos manualmente e, além do clero, mais ninguém sabia ler a Bíblia. Até então quase ninguém aprendera a ler. Mas daqui em diante toda a gente irá para a escola.
Gaspar, o rei negro, ouviu o que o anjo dizia e acrescentou:
— Há uns anos atrás Copérnico, um célebre astrônomo polaco, apresentou a teoria de que o mundo era redondo como uma esfera e girava em torno do Sol. Para os sábios isto não era novidade, mas para a gente comum era inédito e estimulante. Os marinheiros podiam viajar agora à volta do mundo e Colombo chegou à América em 1492. Depois os marinheiros espanhóis atacaram cruelmente os índios. Segundo a opinião dos Reis Magos teria sido melhor se os Espanhóis tivessem ficado pelos navios do deserto. Os camelos são os animais mais pacíficos do mundo e paz é a mensagem de Natal.
Elisabet não compreendeu nem metade daquilo que o sábio lhe disse. Mas antes de ter tempo de refletir naquelas palavras, o pastor já batia com cajado no chão:
— Para Belém! Para Belém!
Passaram por outeiros que lhes ofereciam uma boa vista sobre a Fiônia. E, por uma ou duas vezes, viram um cavalo a puxar um arado ou uma vaca atrelada a uma carroça.
— Esta região já não é tão plana — comentou Elisabet enquanto corria. — Ainda estamos na Dinamarca?
— Sim, estamos — respondeu-lhe o anjo. — Os Dinamarqueses têm muito orgulho nestas elevações. Estamos a um máximo de duzentos metros acima do nível do mar. As encostas acolá à esquerda são os Alpes da Fiônia. A uma outra crista chamam a Montanha Celeste. Nós, no Céu, sempre consideramos isso um puro exagero.
O grupo parou e Gaspar juntou-se à conversa:
— É muito importante contentarmo-nos com o pouco que possuímos. Por muito pouco que seja, é sempre muitíssimo mais do que nada.
Elisabet refletiu bem antes de retorquir:
— Se a Terra fosse redonda e lisa como uma esfera, não haveria uma única montanha em todo o planeta. Se assim fosse, até um montão de pedras, especialmente se fosse o único, teria tanto interesse como se fosse a montanha mais elevada da Noruega.
— Então, já podes ver! — disse Gaspar.
Elisabet encolheu os ombros, sem compreender bem aquilo a que ele se referia.
— Já podes ver como os pensamentos inteligentes facilmente se propagam — continuou o sábio. — Partilhaste da companhia de um sábio durante um instante e já tens uma idéia do que é a sabedoria celeste. Bravo!
Elisabet estava satisfeita por ter acertado desta vez. Entusiasmada como estava, fez nova tentativa:
— Se a Terra fosse pequena como a Lua, ninguém reagiria por ela não ser maior.
Gaspar pousou a mão na cabeça de Elisabet:
— É assim mesmo. Se a Terra fosse do tamanho de uma ervilha, não deixaria por isso de ser um grande mistério. De onde veio a ervilha? Ela pertence à obra de Deus. E uma ervilha é tão difícil de criar como um sistema solar inteiro, ou mesmo ainda mais difícil.
Elisabet achou que ele estava a exagerar. Se a Terra fosse do tamanho de uma ervilha, nem sequer haveria espaço para acomodar Adão e Eva.
O sábio pareceu recear que Elisabet protestasse e, para impedir isso, prosseguiu:
— Se houvesse uma única estrela no Céu, ela não causaria menos admiração do que as estrelas todas em conjunto. Ninguém se queixa por a Terra ter uma única Lua. Antes pelo contrário: uma centena de luas atrapalharia muito. A criação de bilhões de estrelas foi um enorme exagero. Quando as coisas existem em profusão, os seres humanos não lhes dão apreço. Por isso, muitas vezes olhamos para o Céu estrelado e não vemos uma estrela sequer, porque confundimos tudo com poeira cósmica.
Elisabet achou que ele tinha toda a razão. Quantas vezes ela olhou para o Céu estrelado e não conseguiu distinguir nenhuma estrela em particular!
— Os Reis Magos acham que Deus mimou demasiado os seres humanos ao criar muitas coisas de uma única vez — continuou Gaspar.
— O excesso das coisas criadas por Deus fez com que muitos seres humanos deixassem de vê-Lo. Mas, por outro lado, é assim que Ele pode esconder-se e isso seria impossível se houvesse apenas quatro seres humanos, três árvores, duas ovelhas e oito camelos em toda a obra da Criação. Se houvesse um único peixe no mar, os seres humanos compreenderiam a sua perfeição e perguntariam então repetidamente quem o teria criado.
O sábio olhou em redor. Elisabet pensou que ele esperava uma salva de palmas por aquelas palavras ajuizadas e resolveu aplaudir. Os outros imitaram-na.
— Pois, pois. — Disse Gaspar. — Não era caso para aplaudirem.
E acrescentou:
— Mas foi muito mais do que nada.
Depois encaminharam-se todos para uma pequena cidade situada junto de um estreito.
— Este estreito é o Pequeno Belta e a cidade chama-se Middelfart — disse Efiriel. — Estamos no ano de 1504.
Antes de Elisabet ter tempo de perguntar como iam atravessar o estreito, Josué dirigiu-se para um barco que estava amarrado a um pequeno cais. Dentro do barco, um jovem segurava uma linha de pesca e, ao ver o anjo Efiriel, assustou-se de tal modo que perdeu a linha e baixou-se no barco.
— Não te assustes! — disse Efiriel. — Somos peregrinos e vamos à Terra Santa onde Jesus nasceu. Podes levar-nos de barco ao outro lado do Pequeno Belta?
— Ámen — respondeu o barqueiro. — Ámen, Ámen...
Efiriel sabia que aquela palavra significava sim. As ovelhas e todos os outros entraram no barco.
O barqueiro não desviou os olhos de Efiriel enquanto remava para o outro lado do estreito. Era a primeira vez que ele via um anjo de verdade e nem olhou para Gaspar, o rei negro.
Elisabet analisou a situação. Ela achava que se o anjo não estivesse presente, o barqueiro não despregaria os olhos do rei negro e, se este também não viesse no barco, ela, Elisabet, seria o ponto de atração. Ela lamentou que as coisas se passassem assim no mundo.
Quando o barco alcançou o outro lado, as ovelhas saltaram pesadamente para terra e despediram-se todos do barqueiro. Este repetiu o que dissera muitas vezes antes:
— Ámen, ámen...
* * *
Joakim acabara de ler o bilhetinho quando a mãe entrou no quarto. Dobrou-o as pressas, mas a mãe percebeu que ele escondera alguma coisa:
— O que é que tens na mão?
— Nada — respondeu Joakim. — Nada!
— Posso ver?
Os dedos estavam esbranquiçados de tanta força que ele fazia para segurar o bilhetinho. Então disse:
— É um presente de Natal.
A expressão «presente de Natal» soava como se fosse mágica e a mãe sorriu:
— É para mim?
Joakim fez-lhe sinal que sim, o que não era mentira nenhuma.
— Então, não posso ver — disse a mãe. — É sem dúvida um presente minúsculo.
— É muito maior do que nada — respondeu Joakim. A mãe saiu do quarto e dirigiu-se ao baneiro.
Joakim achava estranho que tudo o que tinha a ver com o Natal fosse especial. Este era um dos maiores segredos do mundo.
Mas aquilo que Joakim segurava na mão não era, de maneira alguma, um pequeno presente.
Nisso a mãe enganara-se redondamente.
8 DE DEZEMBRO
...algo da glória celestial que desceu a Terra...
No dia 8 de Dezembro, a mãe veio acordar Joakim. Ele acordava normalmente primeiro, mas hoje a mãe antecipara-se.
— Levante-se Joakim — disse a mãe, abanando-lhe a cabeça. — Hoje a escola começa cedo e já são sete e meia.
Joakim sentou-se na cama. A primeira coisa em que pensou foi no calendário que estava pendurado por cima da cama. A mãe pareceu ter-lhe lido os pensamentos:
— Se quiser, ainda tem tempo de abrir o calendário.
Joakim refletiu instantaneamente. Ele foi tão rápido que considerou várias hipóteses antes da mãe continuar:
— Não o abre agora? Eu também quero ver.
De modo nenhum! pensou Joakim.
Joakim não podia abrir o calendário com a mãe presente. Se ele o abrisse agora, a mãe veria o bilhetinho cair da janela do calendário e isso não podia acontecer. Joakim tinha planejado embrulhá-los e oferecê-los no Natal. Esse seria o presente mais engenhoso do mundo!
— Ainda não está completamente acordado — continuou a mãe. — Posso ser eu a abri-lo hoje?
— Nem pensar! — gritou Joakim tão alto que a mãe até estremeceu.
— Espero até voltar da escola. Nessa altura... terei mais tempo.
Depois saltou da cama com toda a rapidez para ter certeza de que a mãe não tinha oportunidade de abrir o calendário.
— Tu fazes como te apetecer — disse a mãe dirigindo-se para a cozinha. Joakim foi vestir-se.
Quando Joakim regressou da escola, um homem desconhecido aguardava-o diante do portão do jardim. Joakim abriu o portão para entrar e fechou-o logo em seguida, fingindo que não via o homem, mas este aproximou-se do portão e perguntou:
— Tu és o Joakim?
Joakim parou junto à passagem onde o pai removera a neve e voltou-se para o homem. Era idoso e tinha uma aparência de pessoa amável. Apesar de não lhe agradar que um desconhecido soubesse o seu nome, Joakim respondeu:
— Sim. Sou eu.
O homem, que usava um chapéu de feltro verde, aproximou-se ainda mais e inclinou-se sobre o portão.
— Bem me parecia. Não era certamente norueguês porque tinha um sotaque estranho.
— Tens um belo calendário do Advento!
Joakim estremeceu. Como é que ele sabia disso?
— Sim, um calendário mágico do Advento — respondeu Joakim.
— Sim, um calendário mágico de setenta e cinco centavos... — prosseguiu o velho. — Chamo-me Johannes e vendo flores no mercado.
Joakim ficou como que petrificado e não foi capaz de dizer mais nada. Ele sabia que um anjo podia aparecer subitamente a certas pessoas e agora era como se um anjo lhe tivesse aparecido.
Este encontro com o vendedor de flores era tão importante que Joakim teve vontade de dizer-lhe algo de muito sério. Porém, perguntou apenas:
— Como é que sabes onde eu moro?
— Boa pergunta, meu filho — disse Johannes, rindo-se. — Eu passo muitas vezes pela livraria, porque gosto de ir lá e quis saber aonde é que o calendário tinha ido parar.
Joakim ouviu e o velho continuou:
— Ainda bem que o teu pai se esqueceu da carta de motorista. Caso contrário, seria difícil encontrar-te. Creio que já pensou em visitar-me um dia no mercado. Não é verdade?
Joakim respondeu que sim. É verdade que já pensara nisso.
Decorreram uns momentos sem que ninguém falasse. Depois Joakim perguntou:
— Sabe que o calendário tem uns pequenos bilhetes?
O velho sorriu misteriosamente.
— Se há alguém no mundo que sabe disso, sou eu. E, pelo visto, agora tu também.
Joakim levantou o olhar:
— O calendário foi feito em casa?
Johannes riu-se novamente:
— Sim, foi e é muito antigo. Mas a história é também muito antiga. Já abriste o calendário hoje?
— Eu não quero que os meus pais vejam os bilhetinhos — respondeu Joakim. — Só abro quando eles não estão presentes. Vou embrulhar os bilhetes todos e depois coloco-os debaixo da árvore de Natal como presente para os meus pais.
Johannes bateu palmas:
— Mas que boa idéia! Não é verdade que ontem os peregrinos levaram uma ovelha do velho castelo da Fiônia e Efiriel, o anjo, disse «não tenham medo» aos guardas?
Joakim quase sentiu medo por Johannes saber tudo aquilo.
— Foste tu quem fez o calendário mágico?
— Sim e não...
Com medo que o velho se fosse embora a qualquer momento, Joakim apressou-se a perguntar-lhe:
— Aquilo aconteceu de verdade... ou é tudo invenção tua?
Johannes adquiriu um ar sério:
— Ainda bem que perguntou... mas nem sempre é fácil responder.
— Gostaria de saber se a Elisabet do calendário é a mesma da fotografia da livraria — acrescentou Joakim.
Johannes suspirou profundamente:
— Então ele também te falou da velha fotografia! Bem... já estou demasiado velho para ocultar o que quer que seja. Mas o Natal ainda não chegou. Voltaremos a falar de Elisabet noutra ocasião.
Johannes retrocedeu um passo e disse entre dentes:
— Sabet... Tebas...
Joakim não compreendeu o que aquele homem idoso pretendia dizer com aquilo, se calhar até nem tinha sido intenção dele fazer-se ouvir. Johannes disse por fim:
— Tenho de me ir embora. Vemo-nos noutro dia. Esta velha história estabelece ligações entre as pessoas.
Depois afastou-se apressadamente e desapareceu.
Joakim estava aborrecido por não ter feito mais perguntas. Ele deveria ter perguntado também se a gravura grande ia sofrendo alterações depois de lidos os pequenos bilhetes.
Joakim precipitou-se para dentro de casa e abriu a janela número oito do calendário. Hoje um pastor levava um cordeiro às costas. Joakim apanhou o bilhetinho, abriu-o com cuidado e leu:
JACOB
Nos últimos dias do ano de 1499 depois de Cristo, quatro ovelhas, um pastor, um Rei Mago, um anjo e uma menina da Noruega saíram de um barco que fizera a travessia do estreito do Pequeno Belta até à Jutlândia. O barqueiro só tinha pronunciado a palavra «Ámen». Mas, em contrapartida, repetira essa palavra muitas vezes. Antes disso, o pequeno grupo fizera o percurso entre o Grande Belta e Oresund.
— Até que enfim! — exclamou Gaspar ao porem os pés em terra.
— Pois é! Ainda temos de caminhar um bom bocado até à próxima viagem de barco — respondeu Josué.
— Antes de Belém, só temos de efetuar mais uma travessia — confirmou o anjo Efiriel.
Os três estavam de acordo. Elisabet não fazia a mínima idéia do que eles estavam a falar e perguntou.
— Mas Belém não fica muito distante?
— Claro que fica — explicou o anjo. — É distante e fica a vários séculos deste momento. Ainda precisamos de atravessar o mar mais uma vez. Mas é só o mar Negro.
Josué, o pastor, Gaspar, o rei negro, Efiriel, o anjo, e Elisabet Hansen corriam atrás de quatro ovelhas irrequietas e chegaram entretanto a uma cidade situada no interior de um fiorde onde estava edificada uma fortaleza majestosa.
— Esta é a cidade de Kolding, no Sul da Jutlândia — anunciou Efiriel. — É conhecida há vários séculos pelo seu comércio. A fortaleza que ali está chama-se Koldinghus e é uma das residências dos reis dinamarqueses. O relógio indica que estamos no ano de 1488.
Josué bateu com o cajado no chão e disse:
— Para Belém, para Belém!
Do alto de uma colina puderam desfrutar a magnífica paisagem que dali se avistava. A Primavera estava a chegar e já havia flores por todo o lado.
— Vejam como são lindas as flores silvestres! — comentou Elisabet, apontando para os campos.
O anjo explicou com um ar misterioso:
— É algo da glória celestial que desceu à Terra. A glória celestial é imensa e expande-se com facilidade.
Elisabet refletiu nas palavras de Efiriel e guardou-as para si própria. De repente, o pastor parou e apontou para o rebanho:
— Falta o cordeiro!
Todos viram de imediato que se tratava do cordeirinho que fugiu do centro comercial na Noruega por causa do ruído ensurdecedor das máquinas registradoras.
— Onde está ele? — perguntou Elisabet, embora Josué tivesse acabado de dizer que o cordeiro não estava por ali.
— São adoráveis aqueles animaizinhos de pele tão alva — comentou Josué. — Um verdadeiro prazer para os olhos! Mas também são muito traquinas e difíceis de controlar. Por vezes, o chocalho não serve para nada. Enquanto cuido de um, o outro some-se. E quando volto a encontrar o segundo cordeiro, é a vez do primeiro abandonar o rebanho. Ser pastor não é nada fácil. Mas ir com um rebanho até Belém é mesmo difícil. Como é certo e sabido, agora tenho de abandonar estas ovelhas para ir procurar o cordeiro desgarrado.
Elisabet sentiu lágrimas nos olhos. Mas, mal o pastor acabou de falar, viram um homem a descer uma colina. Usava roupas idênticas às de Josué e transportava o cordeirinho às costas.
— Este é um dos nossos — disse Efiriel.
O homem pousou o cordeiro aos pés de Elisabet. Depois estendeu a mão a Josué e disse:
— Sou o pastor Jacob, o segundo guardador de ovelhas. A partir de agora dividirei contigo a responsabilidade de guardar o rebanho que vai a Belém louvar o rei que vai nascer na cidade de David.
Elisabet bateu palmas. Porém, Josué bateu com o cajado no chão, dizendo:
— Para Belém! Para Belém!
Atrás do pequeno rebanho, seguiam os dois pastores, Gaspar, o rei negro, Efiriel, o anjo, e Elisabet.
Ao passarem pela antiga cidade comercial de Flensburg, o anjo disse:
— Estamos agora no ano de 1402. Vamos transpor em breve a fronteira da Alemanha e entraremos em plena Idade Média.
* * *
Joakim ficou a pensar. Efiriel tinha dito que as flores silvestres eram um pedacinho da glória celestial que desceu à Terra. A glória celestial é imensa e expande-se facilmente.
Provavelmente só um vendedor de flores poderia escrever uma coisa assim.
Joakim não contou aos pais que Johannes viera visitá-lo. Se lhes contasse, teria também de lhes falar dos pequenos bilhetes.
Os segredos amontoavam-se cada vez mais, de tal modo que Joakim sentia a cabeça prestes a arrebentar a qualquer momento.
9 DE DEZEMBRO
...as promessas são para se cumprir...
Johannes, o velho florista, ia de vez em quando à livraria pedir um copo de água. No Verão, quando fazia muito calor, também costumava derramar água sobre a sua própria cabeça antes de ir para o mercado vender rosas. Uma vez até entornou água sobre a cabeça do livreiro.
Às vezes, deixava uma ou duas rosas sobre o balcão. Mas um dia colocou na vitrine a fotografia de uma pessoa chamada Elisabet. Quem seria essa mulher? Seria ainda viva?
Mais tarde resolveu esconder um velho calendário do Advento entre os livros. Esse calendário misterioso custava setenta e cinco centavos.
Joakim não teve de pagar nada por aquele calendário mágico, dentro do qual havia uns bilhetinhos muito bem dobrados. Esses bilhetinhos continham o relato de uma peregrinação até Belém.
Entretanto, ele conhecera o velho florista que presumivelmente conhecia o calendário melhor do que queria dar a entender. Prometeu que falaria de Elisabet antes do Natal.
E o que era aquilo que ele tinha murmurado?
Joakim pensou toda a tarde naquelas palavras: «Sabet... Tebas».
O quê ou quem seriam Sabet e Tebas? Teriam estas palavras esquisitas alguma relação com o calendário mágico?
Antes de se deitar, Joakim escreveu as duas palavras num bloco de apontamentos. Então descobriu uma coisa curiosa: SABET era TEBAS se fosse lido do fim para o princípio. E, como é lógico, TEBAS era SABET.
Isto era tão misterioso que ele escreveu as duas palavras usando a seguinte disposição:
Talvez um dia estas palavras pudessem vir a esclarecer alguma coisa sobre o antigo calendário.
Joakim lembrou-se então que o livreiro tinha dito que o velho florista era um pouco doido. Mas essa não era a sua opinião. É evidente que deitar água sobre a cabeça das pessoas não é usual. Mas até ele próprio, Joakim, podia fazer diabruras dessas.
Na manhã de 9 de Dezembro ao acordar, Joakim refletiu sobre o que sucedera na véspera. Finalmente ele encontrara Johannes! Mas resolveu omitir esse pormenor aos pais com receio de ser obrigado a ter de lhes revelar o segredo dos bilhetinhos.
Joakim abriu o calendário apressadamente antes que os pais se levantassem. Desta vez, um homem tocava flauta e, atrás dele caminhavam muitas crianças de diferentes idades.
Observou a imagem com atenção, recostou-se na cama e leu o bilhete.
A QUINTA OVELHA
No ano de 1378 depois de Cristo, três ovelhas sagradas e um cordeiro entraram precipitadamente na cidade de Hamburgo. Atrás daquele pequeno rebanho vinham dois pastores envergando túnicas azul-claras. Um deles trazia um cajado típico dos países meridionais. Mais atrás vinha um rei negro elegantemente vestido e uma menina que corria para poder acompanhá-lo. O anjo flutuava no ar a uns centímetros do chão.
Nesse domingo de madrugada, as poucas pessoas que andavam pelas ruas encaminhavam-se para a antiga Igreja Jacobina. Algumas delas, ao verem os peregrinos, estenderam os braços, outras cobriram a face com a mão. Uma dessas pessoas exclamou:
— Louvado seja Deus!
Algo semelhante tinha acontecido uns anos antes, em 1351, na cidade de Hannover, logo depois da terrível Peste Negra que provocou tanta mortandade na Alemanha e no resto da Europa. Era segunda-feira e as tendas do enorme mercado estavam prestes a abrir. Os camponeses que ali se encontravam vestiam roupas de lã gastas e as vendedoras de saias grosseiras começavam a expor as suas mercadorias.
Toda aquela gente tinha perdido, pelo menos, um familiar por causa da Peste Negra. Um novo dia estava a começar.
Foi então que, inesperadamente, um pequeno rebanho atravessou o mercado. Uma das ovelhas derrubou uma banca com legumes. Surgiu depois um cortejo peculiar composto por dois pastores e um homem de pele negra exoticamente vestido como um africano. Atrás dele vinha uma figura com asas brancas. Por último, apareceu uma menina que tropeçou numa carroça carregada de couves e caiu ali no meio do mercado.
Ao ver Efiriel e os outros distanciarem-se dela, Elisabet pôs-se a chorar. Era a segunda vez nesta longa caminhada que ela caía e se machucava. A primeira vez foi quando perdeu de vista o cordeiro que tinha fugido do grande armazém comercial porque estava farto da correria de Natal e do ruído insuportável das máquinas registradoras. Agora estava ali sozinha, num país estranho e num século diferente, entre pessoas que não conhecia.
As pessoas que estavam no mercado pareciam horrorizadas com o que viam. Fizeram um círculo em redor de Elisabet e um homem deu-lhe um toque com um pé como se tivesse medo de lhe tocar, franziu o nariz e resmungou. Então, uma mulher idosa levantou Elisabet do chão e confortou-a numa língua desconhecida.
— Estou a caminho de Belém — disse Elisabet.
— Hameln? Hameln? — perguntou a mulher.
— Não, não! — soluçou Elisabet — Para Belém, para Belém!
Mal dissera isto, um anjo do Senhor surgiu no mercado, descrevendo um meio círculo no ar.
Elisabet elevou os braços para o anjo e chamou:
— Efiriel! Efiriel!
As pessoas que ali estavam prostraram-se por terra. Efiriel levantou Elisabet no ar, voou sobre a cúpula da Igreja junto ao mercado e desapareceu.
Depois pousou Elisabet numa estrada à saída da cidade onde as ovelhas, os pastores e Gaspar a aguardavam. Os três homem bateram palmas.
— Não foi o que eu disse? — pronunciou Josué entre dentes. — Quando um cordeiro se extravia, o pastor abandona o rebanho para o procurar.
Depois, batendo com o cajado no chão, ordenou:
— Para Belém! Para Belém!
Daí a instantes chegaram a outra cidade situada na margem de um rio.
— Esta é a cidade de Hameln — disse Efiriel. — Ali está o rio Weser e estamos no ano de 1304 após o nascimento de Cristo. Esta cidade foi afetada por uma calamidade há alguns anos... Bem... até certo ponto, os culpados dessa calamidade foram os seus próprios habitantes que não cumpriram uma promessa.
— O que é que aconteceu? — perguntou Elisabet.
— A cidade foi infestada por uma invasão de ratos. Entretanto, um caçador de ratos apareceu por aqui. Ele pôs-se a tocar a sua flauta mágica e os ratos seguiram-no até ao rio e morreram afogados.
— E isso não foi uma boa ação?
— Claro que foi. Porém, os habitantes da cidade prometeram-lhe uma boa recompensa pela ajuda que ele lhes prestou, mas, depois de bem servidos, recusaram a pagar-lhe.
— E o que é que ele fez?
— O caçador voltou a tocar a flauta mágica e as crianças que aqui viviam, seduzidas pela música da flauta, seguiram-no até que entraram numa gruta da montanha e nunca mais foram vistas.
Então Elisabet lembrou-se que provavelmente a mulher em Hannover pensou que ela era uma dessas crianças que desapareceram na montanha por causa do caçador de ratos.
Prepararam-se para continuar a sua corrida desenfreada pela Europa e recuar na história, quando viram uma ovelha descer a estrada apressadamente e juntar-se às outras quatro ovelhas. O rebanho contava agora com cinco ovelhas.
— Para Belém! Para Belém! — gritou Josué, batendo com o cajado no chão.
* * *
Joakim abriu o cofre e colocou o bilhetinho junto aos outros. Um instante depois, a mãe entrou no quarto. Ele olhava para o calendário.
A mãe inclinou-se:
— Olha ali! Um tocador de flauta...
Fixando a mãe, Joakim disse:
— É um caçador de ratos. Não lhe pagaram a recompensa por ter exterminado os ratos e, por isso, ele levou as crianças consigo. Os habitantes da cidade nunca deveriam ter deixado de cumprir a promessa.
— Do que é que está falando? — perguntou o pai ao entrar no quarto.
Joakim compreendeu imediatamente que tinha falado demais. Estava a contar o que lera no bilhetinho.
— Estou a inventar. São coisas que me vêm à cabeça — acrescentou. O pai tomou um ar decidido:
— Não, Joakim. Não é bem assim. Está a falar do conto do caçador de ratos de Hameln. É uma história alemã muito antiga. Quem é que te contou isso?
O que é que ele poderia responder? Precisava de encontrar uma resposta imediatamente.
— Creio que foi a Ingvild — disse, referindo-se à professora. — Ou, talvez, um colega da minha classe.
Era óbvio que Joakim estava a mentir. Mas mentir por causa de um presente de Natal era permitido. Se calhar, esta era a única ocasião do ano em que uma mentira era aceita.
Depois da escola, Joakim foi com a mãe à cidade para comprar um blusão. Ao regressarem, ele pediu que passassem pelo mercado, alegando que queria ver o que havia para comprar.
O mercado tinha mais movimento no Verão. Agora só vendiam grinaldas com velas e pequenos presentes de Natal.
— Mas como é que estas pessoas conseguem estar aqui fora em pleno Inverno? — perguntou a mãe tiritando de frio. — Olha, ali está uma pessoa a vender flores.
Joakim riu-se interiormente e retorquiu:
— É um bocadinho da glória celestial que veio pousar na Terra.
A mãe sacudiu-lhe o braço e perguntou:
— O que está dizendo aí?
— Estou a dizer que o florista vende flores em pleno Inverno porque um bocadinho da glória celestial veio pousar na Terra — insistiu Joakim. — A glória celestial, que é imensa, expande-se com facilidade.
A mãe abanou a cabeça e suspirou demonstrando falta de paciência. Via-se perfeitamente que não gostava que Joakim dissesse aquelas coisas estranhas.
Johannes, que estava junto a uma banca com muitas flores, piscou o olho a Joakim e acenou-lhe discretamente com uma mão.
Quando já estava distante, Joakim voltou-se para trás e viu que Johannes fingia que tocava flauta.
10 DE DEZEMBRO
...mas aquilo que parecia um pássaro, veio ter com o grupo, descrevendo uma espiral no ar...
Mal acordou, Joakim abriu a janela número dez do calendário do Advento. Quando o papel, muito bem dobrado, saltou sobre a cama, ele viu um anjo sentado na parte mais alta de uma igreja. Então, desdobrou o bilhetinho e leu-o:
UMURIEL
Aconteceu em Paderborn nos fins do século XIII. Um rebanho irrequieto, dois pastores, um rei negro e uma menina de blusão vermelho e calças azuis entraram apressadamente numa pequena cidade situada entre Hannover e Colônia.
Era de madrugada e apenas um único guarda-noturno andava pelas ruas. Quando avistou os dois pastores que seguiam atrás do rebanho pela cidade, o homem chamou-os. Depois viu o anjo que pairava no ar, muito perto do chão. Erguendo os braços para o Céu, que começava a clarear, exclamou:
— Aleluia! Aleluia!
Depois contornou uma esquina e deixou o grupo sozinho na rua. A dada altura pararam todos perto de uma igreja que ficava no centro da cidade.
— É a Igreja de São Bartolomeu — disse Efiriel. — Foi construída no século XI e foi-lhe dado o nome de um dos apóstolos de Jesus. Ao que parece, São Bartolomeu foi até à Índia para falar de Jesus aos Indianos.
Elisabet viu uma coisa esquisita no alto da igreja e disse:
— Aquilo ali em cima parece um pássaro branco.
O anjo sorriu.
— Antes fosse assim! — disse o anjo, dando um suspiro.
Mas aquilo que parecia um pássaro veio ter com o grupo descrevendo uma espiral no ar. Ainda antes de pousar, Elisabet compreendeu que era um anjo e não um pássaro. No entanto, era certamente um anjo jovem porque não era mais alto que ela.
O pequeno anjo pousou aos pés de Elisabet.
— Mas que excelente! — exclamou. — Chamo-me Umuriel e vou também convosco para Belém.
Enquanto pairava no ar, observou Gaspar e os dois pastores e olhando depois para Efiriel, pronunciou:
— Estive aqui um quarto de eternidade à vossa espera.
Gaspar refletiu. Depois com um ar decidido, deu a entender que tinha algo para dizer:
— Um quarto de eternidade corresponde a cerca de 66 289 anos... ou, aproximadamente, 156 498 anos... ou melhor 439 milhões 811 mil e 977 anos e 4 segundos... ou talvez ainda mais um pouco... Não é fácil dizer com exatidão qual é a duração de um quarto de eternidade. É preciso determinar primeiro o que é uma eternidade e depois dividi-la por quatro. Porém, calcular com exatidão quanto tempo dura uma eternidade, é extremamente difícil. Se usarmos números para calcular a eternidade, será ainda mais longa. Por isso mesmo, podemos dizer que um quarto de eternidade é precisamente igual a uma eternidade. Mesmo uma milésima parte de eternidade é tão longa como o resto da eternidade. Calcular a totalidade ou a metade de uma eternidade é uma tarefa muito difícil que pertence ao Céu.
Umuriel, o anjo-criança, mostrou uma expressão de desagrado ao Rei Mago que o corrigira e disse:
— Só sei que estive muito tempo sentado ali no alto.
— Acredito que assim fosse — retorquiu Gaspar, — mas isso não quer dizer que tenha decorrido um quarto de eternidade.
Para evitar um conflito, e não apenas um quarto de conflito, entre o Rei Mago e o anjo, o pastor Josué bateu com o cajado na calçada e disse:
— Para Belém! Para Belém!
Tendo deixado a cidade, continuaram a viagem por estradas e veredas de gado. As cinco ovelhas vinham atrás de Umuriel e, desta forma, havia um anjo-da-guarda à frente e outro atrás.
Não pararam em muitas cidades e aldeias por onde passaram, até que chegaram à antiga cidade romana de Colônia, na margem do rio Reno. Efiriel explicou que escolhera esta rota para evitar que fossem vistos por muita gente.
— Estamos agora em 1272 — anunciou Efiriel, apontando para uma imponente catedral em construção. — Como estamos a ver, a construção da Catedral de Colônia começou há pouco, mas a obra será concluída daqui a uns séculos.
— Para Belém! Para Belém! — gritou Josué, batendo com o cajado no chão.
Os peregrinos retomaram a marcha e Umuriel olhava para trás e exclamava com a sua voz de criança:
— Como a natureza é tão bela, não acham? Vamos pelo fantástico vale do Reno com castelos e palácios, encostas escarpadas com vinhas, catedrais góticas, plantas como dente-de-leão e ruibarbo.
Elisabet jamais vira um rio tão grande! O Glomma comparado com este, era apenas um ribeiro.
O vale tornava-se cada vez mais estreito e as montanhas mais altas. Viram pequenas cidades e aldeias nas margens do Reno. Rio abaixo, navegava um ou outro barco de vez em quando.
No meio daquela natureza luxuriante, Elisabet voltou-se para Efiriel e perguntou se já conhecia Umuriel.
O anjo achou graça e riu-se:
— No Céu, os anjos conhecem-se todos bem uns aos outros há muito tempo.
— Mas vocês são muitos?
— Sim, um enorme exército.
— Mas, então como é que se conhecem todos?
— Porque temos a eternidade para nos conhecermos e, como se sabe, a eternidade é bastante longa.
Elisabet refletiu bem e compreendeu o que Efiriel queria dizer. O anjo porém pormenorizou:
— Para uma festa que dura três horas, não se deve convidar mais de cinco ou seis pessoas, ou então não haverá tempo para conversar com todas. Porém, se a festa durar três dias a fio, podem-se convidar perfeitamente umas cinqüenta pessoas.
Elisabet concordou. Sempre que festejava o seu aniversário, discutia isso com a mãe.
— Ah, sim? — comentou. O anjo abriu os braços: — A festa celeste é eterna.
Elisabet julgava ter uma idéia de como a vida se desenrolava no Céu, mas desejava saber ainda mais:
— Os anjos têm também nomes diferentes?
— Claro que têm. Se não fosse assim, não poderíamos chamar uns pelos outros, nem teríamos sido pessoas.
Efiriel começou a enumerar os nomes dos anjos:
— Chamam-se Ariel, Beriel, Curruciel, Daniel, Efiriel, Fabiel, Gabriel, Hamurabiel, Emanuel, Joaquiel, Cacaduriel, Luxuriel, Miguel, Narriel...
— Já basta! — disse Elisabet. — Quanto tempo seria necessário para mencionares todos os nomes?
— Precisava de uma eternidade.
Elisabet fez um sinal de desânimo:
— É fantástico como te lembras de todos os nome de cor.
— Com uma eternidade à disposição, isso não é difícil.
Elisabet sentia-se agora um pouco confusa. Porém, continuou:
— Acho também fantástico como há tantos nomes diferentes terminados em -el.
— À semelhança da estrelas do Céu, a imaginação divina não tem limites — concordou o anjo. — Os anjos são todos diferentes, como aliás, os seres humanos. Podem construir-se mil máquinas idênticas. Até um ser humano consegue construí-las, porque isso não é difícil.
Elisabet prestou especial atenção ao que o anjo lhe disse a seguir:
— Cada ser humano que existe na Terra é uma obra da Criação divina.
* * *
Joakim sorria. Como aquilo era engraçado! De repente, ouviu a mãe no corredor e escondeu o bilhetinho debaixo do travesseiro.
A mãe entrou e inclinou-se sobre a cama para observar o calendário:
— Olha aqui! Há um anjo sobre a torre!
Joakim pensou todo o dia na enorme tolice que cometera. Queria lembrar-se dos nomes esquisitos dos anjos e esquecera-se de que não devia falar do que lera nos bilhetes. Então, disse:
— É Umuriel, o anjo-criança.
A mãe olhou-o fixamente:
— Umuriel?
Joakim confirmou. Aquele nome ficava bem a um anjo tão estranho como Umuriel e repetira-o muitas vezes para si, antes de o dizer à mãe.
— Está sobre a Igreja de São Bartolomeu há um quarto de eternidade, mas brevemente descerá em espiral sobre Elisabet e os outros.
A mãe de Joakim não respondeu e decidiu chamar o pai. Joakim teria que repetir o nome da igreja que estava na imagem.
Mas que aborrecido! Só agora percebera que voltara a falar demais.
— Igreja de São Bartolomeu — disse Joakim. — Bartolomeu foi até à Índia para falar sobre Jesus. Esta igreja fica, se não me engano, em Paderburg, na Alemanha.
Os pais entreolharam-se.
— Vou ver na enciclopédia — disse o pai. — Assim ficarei sabendo ao certo.
Daí a pouco voltou lívido, como se tivesse encontrado um ou dois anjos no corredor.
— Está tudo certo. A cidade chama-se efetivamente Paderborn e existe uma antiga Igreja de São Bartolomeu nesse local.
Olharam depois para Joakim como daquela vez em que ele comeu todos os bolos folhados. Tinha sido na véspera de Natal um ou dois anos atrás.
O pai retirou o calendário da parede, observou-o dos dois lados e voltou a pendurá-lo.
Quente! Quente! pensou Joakim.
— Onde é que ouviu falar da Igreja de São Bartolomeu, meu filho? — perguntou o pai. — E de Paderborn?
— Foi na escola — respondeu Joakim.
— É verdade mesmo?
Era ou não era permitido mentir quando se tratava de um presente de Natal?
— Sim, claro que é — respondeu Joakim baixinho.
Já estavam todos um pouco atrasados e por isso não voltaram a falar da Igreja de São Bartolomeu, nem de Umuriel, nem de Paderborn. Já nem sequer tiveram tempo de preparar a merenda.
Para Joakim foi uma grande vitória ter conseguido esconder o bilhetinho no cofre secreto antes de sair correndo para a escola. Depois escondeu a chave na estante de livros.
Quando Joakim regressou da escola, a mãe já estava em casa e tinha aberto o cofre!
A MÃE TINHA ABERTO O COFRE! E tinha prometido nunca fazê-lo. Tinha quebrado uma promessa solene. Isso era o mesmo que abrir as cartas de outras pessoas.
Os dez bilhetinhos muito bem dobrados que encontrara no calendário estavam espalhados sobre a mesa da sala.
Joakim estava furioso. Estava tão zangado que até sentiu vontade de lhe bater.
— Vocês prometeram que este cofre era meu e só meu e que jamais o abririam. — explodiu. — Seus mentirosos! Seus ladrões!
O pai chegou entretanto. Antes tinha falado com a mãe ao telefone e aconselhara-a a procurar a chave e a abrir o cofre secreto. Eles tinham de saber onde é que Joakim tinha descoberto aqueles nomes que só os adultos conheciam.
Joakim disse-lhes que eles nunca deveriam ter tido filhos, porque quem mente também bate e isso é proibido na Noruega. Podiam, ao menos, ter esperado que ele voltasse da escola e ter-lhe pedido para abrir o cofre. Joakim acrescentou ainda que tinha escondido os bilhetes porque seriam o presente de Natal dele para os pais, depois de embrulhados em papel bonito. Ameaçou jogar o calendário no lixo e depois começou a chorar. Em seguida correu para o quarto e bateu a porta com toda a força.
Nunca os perdoaria! Nunca! Jamais acreditaria neles. Jamais!
A certa altura, sentou-se na cama e olhou para o calendário. Ainda com lágrimas nos olhos, Joakim via as cores todas misturadas e não conseguia distinguir os anjos do rebanho. Estava tudo estragado! De repente, o calendário perdera a magia. Tornara-se um calendário comum!
Daí a instantes, vieram-lhe aos ouvidos uns sons mais ou menos semelhantes a:
SABET-TEBAS-SABET-TEBAS-SABET-TEBAS
Era uma melodia tão misteriosa que, de repente, Joakim compreendeu que não faria qualquer diferença os seus pais saberem da existência dos bilhetinhos que ele retirava do calendário. Talvez houvesse tantos segredos no calendário que até davam para toda a família.
Mas Joakim resolveu omitir o encontro com Johannes. Este seria um segredo só seu!
Bateram à porta do quarto, porém Joakim não respondeu. Então, o pai abriu a porta devagarinho e disse:
— Nós admitimos que fizemos uma grande tolice.
— «Pode perdoar-nos?» — Perguntou a mãe que vinha logo atrás. Joakim baixou o olhar.
— Isso depende...
Ninguém respondeu.
— Tu leste os bilhetes? — perguntou Joakim.
A mãe olhou primeiro para o pai, depois para Joakim e confessou:
— Sim, li-os. Mas devo dizer que não sei qual é o primeiro. Será que pode explicar e lê-los ao teu pai?
— Está bem! — respondeu Joakim depois de refletir um pouco. Mas que alívio ele sentia agora! Daqui em diante não precisava esconder mais nada. Além disso, poderia perguntar aos pais aquilo que não entendesse.
O calendário do Advento passaria a partir de agora a pertencer a toda a família.
11 DE DEZEMBRO
...há muitos seres humanos que se assustam quando vêem um anjo do Senhor...
Passaram o resto da tarde a ler os bilhetes que tinham sido retirados do calendário do Advento. Joakim ordenou os pequenos papéis para facilitar a leitura da história de Elisabet que tinha ido atrás de um cordeiro de chocalho no pescoço, o qual fugira de um grande armazém comercial para não continuar a ouvir o ruído constante das máquinas registradoras.
Enquanto lia, o pai dizia:
— Nunca vi uma coisa como esta... Temos de investigar isto melhor... Quantos calendários como este terão sido produzidos?
— Também nunca vi uma coisa assim... — comentava a mãe. — E logo vocês haviam de trazer este calendário para casa, não é Joakim?
A noite, Joakim quedou-se a olhar para o calendário mágico. E, nessa ocasião, voltou a acontecer a mesma coisa.
VOLTOU A ACONTECER A MESMA COISA! Na gravura maior do calendário muitos anjos desciam do Céu. Isso não era novidade nenhuma para Joakim. Mas agora ele viu também um anjo-criança pela primeira vez.
Ele tinha a certeza absoluta que o anjo Umuriel não tinha estado sempre ali. Aparecera certamente só depois de Joakim ter lido o bilhete que contava que o anjo viera ter com o grupo voando em espiral.
— Mãe! — gritou Joakim. — Pai!
Os dois entraram apressadamente no quarto. Via-se bem que tinham levado um susto e que estavam com medo que tivesse acontecido alguma coisa terrível. O próprio Joakim estava assustado e disse simplesmente:
— Estou vendo agora o anjo Umuriel.
Os pais olharam em redor porque pensaram que o anjo estava ali no quarto. Joakim pediu-lhes que examinassem bem a imagem e depois perguntou:
— Estão vendo alguma coisa de novo?
Ambos se debruçaram sobre a gravura.
O pai argumentou que talvez não tivesse visto bem todos os pormenores antes. No dia em que estiveram na livraria, sentia-se muito cansado e até se esqueceu da carta de motorista sobre o balcão; por isso mesmo, não tinha dado atenção ao cajado que um dos pastores tinha na mão.
— Também é a primeira vez que vejo este anjinho — interveio a mãe.
— Não o viu antes porque só agora é que ele apareceu. Este calendário é mágico — disse Joakim.
— Bem, nada de exageros — replicou o pai. Afinal, o mais ponderado era o pai.
Joakim imaginou que um dos anjos se chamava Joaquiel, praticamente como o seu próprio nome.
A janela número onze só foi aberta na manhã seguinte. Quando o pequeno papel saltou, Joakim viu um cavaleiro montado a cavalo.
Depois, cobrindo-se com o edredom, leu o bilhete. A partir desse dia, era desnecessário ocultar dos pais o que quer que fosse. Os bilhetinhos tinham deixado de ser um segredo.
BALTASAR
Cinco ovelhas, dois pastores, dois anjos, um Rei Mago e uma menina da Noruega desciam apressadamente o vale do Reno no ano de 1199 depois do nascimento de Jesus. Ainda mal se distinguia a torre no outro lado do rio e já Efiriel anunciava que era a catedral de Mainz.
Nessa breve paragem o grupo tomou uma decisão.
— Temos de ir para a outra margem do rio — disse Josué. — Sinto muito, mas vamos ter de assustar o pobre barqueiro. Vamos explicar-lhe que somos peregrinos com destino à Terra Santa.
— Então aproximemo-nos discretamente! — disse Efiriel.
Mas logo Umuriel exclamou como se estivesse com pressa:
— Olhem! Há um barco ali embaixo.
E voou direito ao barco.
O grupo desfilou até à margem do rio onde Umuriel já conversava com o barqueiro:
— Levas-nos ao outro lado? Vamos todos para Belém e já não temos muito tempo até o nascimento de Jesus. Não somos gente comum. Vamos em missão sagrada.
Efiriel foi logo atrás de Umuriel e apresentou desculpas ao barqueiro. Voltou-se depois para Umuriel e disse:
— Quantas vezes preciso de te lembrar que deves sempre começar por dizer: «Não tenhas receio»?
Mas aquele barqueiro que envergava uma capa muito elegante não se tinha deixado intimidar.
Voltando-se para Elisabet, disse:
— O meu nome é Baltasar. Sou o segundo Rei Mago e rei santo de Sabá. Eu também vou para onde vocês vão.
— Então, tu és um dos nossos! — exclamou Efiriel.
De qualquer maneira, Efiriel pregou um sermão a Umuriel:
— Desta vez tiveste sorte. Mas quando falares pela primeira vez com alguém, não te esqueças de dizer «Não tenhas receio». Há muitos seres humanos que se assustam quando vêem um anjo do Senhor, especialmente quando batem as asas.
— Desculpe-me! — disse Umuriel.
— Está bem — respondeu Efiriel.
— Mas não é estranho que tenham medo de um anjo? — replicou Umuriel. — Eu nunca assustei nem sequer um gato. Antes pelo contrário: até já não sei quantas vezes ajudei a tirar gatos das árvores. Eles nunca deveriam subir em árvores altas, mas, quando lhes prestamos ajuda, eles não demonstram qualquer receio. São apenas os seres humanos que se assustam assim...
Os dois Reis Magos abraçaram-se.
— Há muito tempo que não nos víamos — disse um deles.
— Sim, já há muito tempo — respondeu o outro.
— A última vez, foi num lugar bastante distante do vale do Reno — replicou o outro.
— Mas é sempre um imenso prazer voltar a ver-te.
Como permaneceram abraçados, era difícil saber qual deles falava. Entretanto, entraram todos para o barco. Os dois reis, lado a lado, remaram para a outra margem do rio, que era quase tão largo como um braço de mar.
Efiriel apontou para a catedral que ficava na outra margem. Era uma construção de aspecto grosseiro e as torres eram mais baixas que as das outras igrejas mais recentes que tinham visto durante a viagem.
— Estamos agora no ano de 1186. Esta igreja começou a ser construída há uns duzentos anos. Decorreram mais de mil anos para que a semente lançada à terra germinasse por todo o mundo em forma de igrejas e catedrais.
— Por todo o mundo em forma de igrejas e catedrais! — imitou Umuriel. — Tinha graça saber quantos quilos de pedra e de madeira foram utilizados para comemorar o nascimento de Jesus. Sem falar nos bolos, nem nos pacotes que foram embrulhados. O Natal é a maior festa de aniversário do mundo, pois todos os cidadãos do mundo estão convidados para ela. Por isso é que a festa perdura há milhares de anos.
— Para Belém! Para Belém! — gritou Josué, batendo com o cajado no chão.
Os peregrinos desceram o Reno de madrugada para evitar que as poucas pessoas que, durante um ou dois segundos, vissem cinco ovelhas, dois pastores, dois Reis Magos, dois anjos do Senhor e uma menina vestida de forma tão diferente da que se usava na Idade Média se amedrontassem.
No ano de 1162 da era do Senhor, encontraram um homem montado a cavalo na cidade de Worms. Provavelmente, era um soldado que estivera de vigília.
Umuriel voou até ele e, movimentando as asas, disse:
— Não tenhas receio! Não tenhas receio! Não tenhas receio!
Apesar do anjo esvoaçar como uma abelha tonta e repetir várias vezes «Não tenhas receio», o pobre homem assustou-se. Ferrou as esporas no cavalo e galopou em direção ao aglomerado de casas baixas. Nem teve tempo de dizer «Aleluia» ou «Louvado seja Deus». Desanimado, Efiriel repreendeu o anjo:
— Basta dizeres uma só vez de modo suave e celestial. Será também boa idéia baixares as asas porque podem pensar que estás armado.
O sábio Baltasar chamou a atenção para uma catedral de seis torres.
— Em todos os tempos, sempre foi hábito as pessoas estenderem os braços para Deus. As torres das igrejas também apontam sempre para o Céu, mas duram mais que as pessoas.
Os pastores fizeram uma vênia quando ouviram aquelas palavras sábias. Elisabet achou que devia repeti-las para ter a certeza de que tinha percebido bem o seu sentido.
— Para Belém! Para Belém! — gritou Josué.
Na cidade de Basiléia, a sul do Reno, voltaram a parar diante de uma grande catedral.
— O relógio indica que decorreram 1119 anos desde o nascimento de Jesus — anunciou Efiriel. — Esta catedral, que tem cinco naves, acaba de festejar o seu centésimo aniversário. Basiléia tem sido o elo de ligação entre viajantes que atravessam os Alpes da Itália e para a Europa setentrional. Vamos continuar o nosso caminho através da estrada de São Bernardo.
— Para Belém! — ordenou Josué, o pastor, batendo com o cajado no chão. — Para Belém!
E a viagem continuou através das montanhas da Suíça.
* * *
Deitado na cama, Joakim pensava naquela peregrinação peculiar que se dirigia para Belém. Os pais entraram no quarto daí a pouco e leram o bilhetinho.
No dia anterior, os três tinham passado quase toda a tarde a falar sobre o calendário mágico.
— O calendário que trouxemos da livraria é sem dúvida uma pequena maravilha, Joakim. Fazes alguma idéia de como é que ele surgiu? — perguntou o pai.
— Eu acho que foi Johannes quem o fez — disse Joakim.
— Pois deve ter sido. Na verdade, o livreiro falou de um certo Johannes.
Joakim não sabia se lhes devia já contar sobre o encontro com Johannes, mas optou por não dizer. Assim, este pequeno segredo seria só seu. Mas havia ainda outra coisa: sabet... TEBAS... sabet... TEBAS.
Nessa ocasião, o pai comentou:
— Se foi um vendedor de flores que fez isto, ele deve ser muito criativo.
— Realmente, não se pode dizer que lhe falte imaginação — concordou a mãe.
Joakim endireitou-se na cama e disse:
— Vocês disseram que eu tinha muita imaginação quando falei de Elisabet e Efiriel. Mas eu não fiz outra coisa senão repetir o que tinha lido nos bilhetinhos do calendário.
— E agora dizemos que, quem fez o calendário, tem uma imaginação prodigiosa — disse a mãe. — Dá quase no mesmo.
— Se esta história é verdadeira, não se trata de imaginação — discordou Joakim.
O pai riu-se:
— Tu não acreditas que é possível percorrer o caminho até Belém e, ao mesmo tempo, recuar no tempo, não é?
— Para Deus, tudo é possível.
Ninguém protestou. O pai lembrou então que poderiam seguir a rota de Elisabet num mapa. Lá em casa havia um atlas antigo com os nomes dos países e lugares. O pai explicou que era freqüente o mesmo país e a mesma cidade terem nomes diferentes ao longo dos tempos.
De repente, a mãe fez um som que parecia um soluço e levou a mão à boca:
— Um copo de água costuma ajudar — disse Joakim. — Se calhar, a presença de um anjo também poderia ser útil.
Sem lhe responder, a mãe dirigiu-se ao pai:
— Lembra-se daquela história muito antiga? Era acerca de uma menina que desapareceu na época do Natal, enquanto fazia compras com a mãe. Se não me engano, chamava-se Elisabet.
— Sim, parece que foi depois da Guerra — confirmou o pai. — Mas chamava-se realmente Elisabet?
— Parece-me que sim — disse a mãe. — Mas não posso afirmar.
Parecia que os pais de Joakim se tinham esquecido da presença do filho e falavam agora com muito entusiasmo.
— Provavelmente, com base naquela história antiga, Johannes inventou o resto — sugeriu o pai. — Se é que foi mesmo o vendedor de flores quem fez o calendário.
Joakim tentou meter-se na conversa:
— Acham que podem descobrir se a menina se chamava Elisabet?
— Claro que podemos — respondeu o pai. — Mas o nome não faz diferença para o caso.
Antes de começarem a tomar o café-da-manhã, Joakim disse:
— Cá por mim, acho que é muito importante. A senhora da fotografia também se chama Elisabet.
12 DE DEZEMBRO
...de nada serve acreditar que algo está certo se isso não contribui para ajudar uma pessoa em aflição...
Depois do trabalho quando o pai chegou em casa, no dia 11 de Dezembro, voltaram todos a falar no assunto discutido ao café-da-manhã. Mal entrara no vestíbulo, foi de imediato abordado por Joakim e pela mãe:
— Então, descobriu como se chamava? — perguntou Joakim.
Ele referia-se à menina que tinha desaparecido de um grande armazém comercial da cidade sem deixar rastro, enquanto fazia compras com a mãe.
— Deixem-me ao menos entrar primeiro em casa — queixou-se o pai. — Claro que se chamava Elisabet. Elisabet Hansen. Foi em Dezembro de 1948.
O jantar já estava pronto e foram logo para a mesa.
— Passei também pela livraria — continuou o pai. — O livreiro levou-me ao armazém e...
A mãe arregalou os olhos:
— Mas porquê?
— ...e encontrou a fotografia que o vendedor de flores colocou há muito tempo na vitrine como um gesto de reconhecimento pelo copo de água. Tenho a fotografia dentro da pasta...
— Então vai buscá-la — pediu a mãe.
O pai voltou com a fotografia e pousou-a sobre a mesa. Joakim puxou-a para junto de si e a mãe inclinou-se sobre a mesa.
A mulher da fotografia, que tinha cabelo louro comprido, estava encostada a um pequeno carro e tinha ao pescoço uma cruz de prata com uma pedra vermelha. Na parte superior da fotografia, via-se uma grande cúpula de uma igreja e, na parte de baixo, alguém escrevera Elisabet.
— O sobrenome não consta aqui — observou o pai. — Elisabet é um nome comum, mas este nome está escrito à norueguesa. Em outros países, Elisabet escreve-se de outro modo.
A mãe olhou para o pai.
— Acha que ela não é norueguesa?
— Não sei — respondeu o pai. — Repara bem nesta fotografia!
A mãe de Joakim não entendeu aonde o pai queria chegar e, então, ele disse:
— A grande cúpula que se vê ao fundo pertence à Basílica de São Pedro em Roma. Esta fotografia foi tirada na estrada que vai dar à Praça de São Pedro. O carro que aqui vemos, é dos finais dos anos cinqüenta.
— Isto quase me assusta — sussurrou a mãe. — No que é que estamos nos metendo?
O pai pousou os braços sobre a mesa:
— De fato, tudo isto é um mistério. Porém, não há razão para crer que a menina que desapareceu em 1948 seja a mesma pessoa da fotografia.
Olhando para o ar, o pai acrescentou:
— Hoje ele não estava no mercado.
Joakim compreendeu imediatamente a quem o pai se referia.
— Quem? — perguntou a mãe. — Agora está falando por enigmas.
— Refiro-me ao florista... Johannes... o homem do copo de água. Quem me dera poder falar com ele! Tenho certeza que foi ele quem fez este calendário espantoso. Mas sumiu.
O pai não acrescentou mais nada. Joakim não conseguia deixar de pensar em tudo aquilo e, nessa noite, foi cedo para a cama para que a manhã chegasse mais depressa. No dia seguinte, teria mais pormenores sobre Elisabet Hansen e Efiriel.
No dia 12 de Dezembro, os pais de Joakim foram ao quarto do filho antes dele acordar, o que não era nada comum, pois, aos sábados, ele era sempre o primeiro a acordar.
— Abre já o calendário — disse o pai. — Depressa!
O pai dava sinais de querer abri-lo ele próprio.
Então, viram um homem de túnica vermelha com um grande cartaz na mão.
Os pais sentaram-se na cama. Joakim apanhou o papel muito bem dobrado e desdobrou-o para ler o que estava escrito em letras pequenas.
QUIRINO
As cinco ovelhas transpuseram uma colina e corriam agora para uma zona agrícola muito fértil.
Umuriel pairava sobre o pequeno rebanho que se dirigia para Belém juntamente com Jacob, Josué, Gaspar, Baltasar, Efiriel e Elisabet para darem as boas-vindas ao Menino Jesus que acabava de nascer.
Passaram pelo lago Biel e por muitos outros mais. Mas o maior e mais belo de todos os lagos era sem dúvida o lago Genebra. Era a primeira vez que Elisabet via uma água tão límpida como aquela. Era como se um bocado do Céu tivesse caído na Terra. Elisabet elevou o olhar e, não vendo qualquer fratura no Céu, teve a certeza de que o grande lago apenas refletia o firmamento.
Prosseguiram a viagem por um caminho antigo ao longo de um rio que corria por um vale profundo. Efiriel informou que era o rio Ródano cuja água vinha dos Alpes, desembocava no lago Genebra e só depois ia desaguar no Mediterrâneo.
Depois de atravessarem uma ponte antiga, pararam diante do mosteiro de São Maurício, na outra margem, rodeado pelas altíssimas montanhas alpinas cobertas de neve.
— Estamos no ano de 1079 — anunciou Efiriel. — Os monges têm vivido aqui entre estas montanhas imponentes desde o século VII e têm louvado Deus e a Sua Obra da Criação desde então. O mosteiro foi construído à volta do túmulo de São Maurício que, por ter repudiado os deuses romanos, foi morto neste vale no ano de 285.
Efiriel tinha mesmo acabado de falar quando um monge saiu do mosteiro, encaminhou-se para os peregrinos e, cumprimentando-os com um leve gesto de cabeça, disse:
— Gloria Dei.
— Igualmente — respondeu Elisabet, que achou seu dever responder, apesar de não saber o que aquilo significava.
Então, apercebendo-se da presença dos dois anjos, o monge ajoelhou-se e disse:
— Aleluia! Aleluia!
Apesar de viver no alto dos Alpes e ter o Céu como seu vizinho mais próximo, o monge não estava habituado a que os anjos o visitassem.
Umuriel que flutuava agora a cerca de meio metro do chão, foi ter com o monge e, batendo as asas suavemente, disse com uma voz doce:
— Não tenhas medo! Não tenhas receio! Este grupo vai em peregrinação até Belém para dar as boas-vindas ao Menino Jesus.
O rei Gaspar da Núbia aproximou-se e disse:
— A paz esteja contigo e com o teu mosteiro. Como o anjo disse, vamos a caminho de Belém com o propósito de prestarmos homenagem ao Rei dos Reis, em Belém, cidade de David.
Não adiantaram mais nada. Pouco depois estavam em Martigny, um pequeno lugar onde havia um teatro romano.
— Os romanos atravessavam os Alpes por este caminho — explicou o anjo Efiriel. — Séculos mais tarde, Napoleão transpôs os Alpes com as suas tropas seguindo esta mesma rota.
— Para Belém! — gritou Josué, começando a subir as montanhas. Aqui, como o ar era rarefeito e límpido, Elisabet perguntou a si própria se não estariam já a caminho do Céu. De vez em quando, viam uma lebre, uma marmota ou uma cabra alpina. Avistaram também gralhas e abutres no ar e até viram uma lebre que saiu assustada de entre os arbustos.
No cimo de um desfiladeiro, ficava uma enorme casa.
— Estamos no ano de 1045 — avisou Efiriel, o anjo. — A casa que vemos à nossa frente é uma albergaria e acolhe as pessoas que transpõem os Alpes. Foi construída por Bernhard de Menthon. Os monges beneditinos passarão a viver aqui e terão a seu cargo um serviço de salvação de pessoas que se perdem nas serras, mediante a ajuda preciosa de cães São Bernardo.
— Exatamente! — disse Umuriel, o anjo-criança. — Jesus sempre desejou que as pessoas se ajudassem umas às outras nas horas de aflição. Uma vez, Ele contou a história de um homem que deixara Jerusalém rumo a Jericó e que foi atacado por salteadores que o abandonaram inanimado numa estrada, sem hipótese de salvação. Primeiro, passou um padre, depois outro, mas nenhum foi capaz de se baixar para auxiliar aquele pobre homem moribundo. Para isso, mais valia terem esquecido as suas orações piedosas!
Elisabet concordou.
— Entretanto, passou por ali um Samaritano — continuou Umuriel. — Os Samaritanos, que não tinham a mesma religião dos Judeus, eram odiados na Judéia. Mas este Samaritano compadeceu-se e ajudou o pobre homem, salvando-lhe a vida. NEM MAIS NEM MENOS! De nada serve acreditar que algo está certo se isso não contribui para ajudar uma pessoa em aflição.
Elisabet estava plenamente de acordo.
Num lugar onde o caminho se dividia, um homem de túnica encarnada, segurava um grande cartaz na mão. Se não se tivesse mexido, qualquer pessoa ficaria a pensar que se tratava de uma escultura romana. No cartaz, em letras grandes, estava escrito: «Para Belém» e uma seta indicava o caminho a seguir.
— Oh, é um sinal de trânsito com vida! — exclamou Elisabet.
— Devo acrescentar que aquele sinal pertence a um dos nossos — anunciou Efiriel.
Impaciente como estava, Umuriel aproximou-se do homem e disse em voz alta:
— Não tenhas receio! Não tenhas receio! Não tenhas receio!
Mas o homem não teve medo. Deu um passo em frente e estendeu a mão, dizendo:
— Parabéns... não, não é isso que eu quero dizer. Quero dizer que estou à vossa disposição, meus amigos! Tenho de me apresentar primeiro... Também eu tenho a honra de pertencer a este calendário do Advento... O meu nome é Quirino, governador da Síria... tentando travar conhecimento com uma pessoa bem parecida... bem, mas o essencial é conhecer uma pessoa agradável e de bom coração. Dixi!
Elisabet riu-se do modo como ele se exprimia. As suas interrupções davam a impressão de que havia duas pessoas a falar ao mesmo tempo. Depois, Quirino entregou-lhe o cartaz, que certamente segurara durante muito tempo, enquanto a túnica esvoaçava ao vento.
— E esta... — continuou o homem, — prestem atenção, meus amigos... calhou-me a fava do bolo rei... e queria que fosse para ti. Dixi!
Elisabet olhou para Quirino surpreendida:
— Este cartaz é para mim?
— Só deste lado... — respondeu Quirino, — quero dizer, vira... vira completamente, Dixi!
Elisabet não percebia porque é que ele repetia constantemente Dixi, porque não havia nem cães nem gatos por ali à vista. Então Efiriel explicou que dixi era uma palavra latina e significava que ele tinha acabado de falar.
Elisabet voltou então o cartaz e ficou atônita ao ver que o que segurava era um calendário do Advento com vinte e quatro janelas por abrir. Na parte exterior de cada janela, via-se uma jovem loura que se encontrava defronte de uma igreja com uma enorme cúpula.
— As doze primeiras — disse Quirino. — Quero dizer, já podes abrir as doze primeiras janelas... estamos precisamente a meio do percurso. Dixi!
Elisabet sentou-se numa pedra e abriu a primeira janela. Por trás da janela, estava um cordeiro. Nas janelas seguintes havia um anjo, uma ovelha, depois um pastor, mais outra ovelha, um Rei Mago, mais outra ovelha, um pastor, ainda outra ovelha, um anjo-criança e, por fim, um Rei Mago. Elisabet compreendeu que as imagens correspondiam aos peregrinos com quem ela percorria o longo caminho através da Europa.
Mas quem seria aquela senhora?
— Muito obrigada — agradeceu.
— Antes pelo contrário! — contradisse Quirino. — O que acabas de dizer está errado... Tu não deves agradecer... Eu é que devo. Agradeço, a ti e a todos os restantes presentes... por eu, um velho romano... poder acompanhar-vos... até Belém. Foste tu... e não eu quem... em primeiro lugar,... correu atrás do cordeiro abençoado... que não agüentava mais a confusão do armazém comercial. Dixi! Dixi! Dixi!
Elisabet olhou para Efiriel e riu-se.
— Tu ainda não abriste a janela número doze — comentou o anjo. Então, Elisabet viu uma imagem igualzinha à do calendário que tinha na mão: a jovem loura diante da cúpula de uma igreja estava de novo na gravura.
Josué bateu com o cajado num marco e ordenou:
— Para Belém! Para Belém!
* * *
Os três entreolharam-se. Joakim riu-se e comentou:
— Espero que Quirino também vá com eles até Belém.
Os pais de Joakim examinaram o bilhetinho.
— Hoje foi a vez de incluir a jovem que estava diante da Basílica de São Pedro na história da pequena Elisabet — disse o pai.
— E incluiu igualmente um calendário pequeno no calendário grande.
— Ele pretende insinuar alguma coisa com estes dois calendários — continuou o pai.
— Vocês pensam que ainda existe um terceiro calendário dentro do pequeno? — perguntou Joakim.
— Mas quem é que sabe? — perguntou a mãe — Quem?
13 DE DEZEMBRO
...da mesma forma que um raio atravessa o céu e, durante um instante, ilumina o horizonte...
O pai de Joakim soube que a menina que tinha desaparecido, em Dezembro de 1948, num grande armazém comercial, se chamava efetivamente Elisabet Hansen. Elisabet Hansen era também o nome da menina que ia a caminho de Belém e da protagonista do calendário mágico do Advento. Esta viagem desenrolava-se pela Europa e não só: desenrolava-se através da História. Cada janela do calendário correspondia ao recuo de cem anos de História.
Elisabet tinha agora um calendário. Num dos lados estava escrito «Para Belém» e, no outro, via-se a gravura de uma jovem loura.
Mas esta jovem seria a mesma pessoa da fotografia tirada diante da Basílica de São Pedro, em Roma? Ela chamava-se também Elisabet. E seria a mesma Elisabet que fugira da mãe enquanto faziam as compras de Natal?
Provavelmente foi Johannes quem fez o calendário mágico. O pai de Joakim tentou encontrá-lo no mercado, mas Johannes não se encontrava lá.
Quando Joakim acordou no dia 13 de Dezembro, viu logo os pais no seu quarto e compreendeu imediatamente que ambos estavam tão ansiosos como ele.
— Abre já, meu filho — disse o pai.
Joakim ergueu-se e retirou o papel bem dobrado. Hoje havia um arco-íris!
Depois, sentou-se na cama entre os pais. A mãe leu:
A SEXTA OVELHA
Cinco ovelhas desciam as montanhas escarpadas dos Alpes, através da estrada de São Bernardo. Atrás vinham dois pastores, dois Reis Magos, dois anjos, um governador romano e uma menina de casaco encarnado e calças azuis. Nunca se detinham além de um instante em cada lugar. Eles não desciam apenas as encostas íngremes das montanhas até ao vale de Aosta, no Norte de Itália, mas percorriam também a História a grande velocidade. A viagem começara na Noruega rumo a Belém, a cidade de David. O ponto de partida fora no século XX depois de Cristo em direção aos primórdios da era cristã. Só assim era possível encurtar o caminho para Belém. Era como viajar com o vento ou cair por uma escada rolante abaixo.
Num dia de Agosto do ano de 998, uns monges que subiam o vale de Aosta viram os peregrinos por um brevíssismo momento, da mesma forma que um raio atravessa o Céu e, durante um instante, ilumina o horizonte.
— Olha para ali! — exclamou um dos monges.
— Onde? — perguntou outro.
— Parece que vi um desfile inédito de pessoas e animais, a descerem o vale. Atrás, ia uma menina acompanhada por um anjo.
— Eu também os vi. Parecia um exército celeste — concordou um terceiro monge.
Um monge que nada vira fez um sinal desanimado e perguntou:
— Não vos parece que este ar rarefeito faz mal?
O monge não tinha visto o grupo porque estava a admirar um rododendro quando isto aconteceu.
Cerca de quatro anos antes, este mesmo desfile tinha sido observado por uns comerciantes de Milão neste mesmo vale, a uns quilômetros daqui.
O exército sagrado admirou por um momento a paisagem sobre o vale de Aosta. Efiriel apontou para o monte Branco e para o cume do Matterhorn. Mas, nesse instante, Elisabet só pensava no calendário que o governador da Síria lhe oferecera.
Ela carregou com o dedo na janela número doze e viu um calendário idêntico ao que tinha agora na mão. Então, virou-se para Quirino e perguntou:
— Posso abrir também as janelas deste pequeno calendário?
— Infelizmente, não — respondeu Quirino. — Este calendário está fechado a sete chaves. Dixi!
— A sabedoria permite-nos a nós revelar o que está aí dentro — disse Gaspar. — É algo misterioso escrito com letras muito pequenas.
Elisabet levantou os olhos:
— Podes dizer-me o que é?
— Elisabet, na primeira janela — disse Gaspar. — Lisabet, na segunda, Isabet, na terceira. Depois vem Sabet, Abet, Bet e Et. Tudo isto nas sete primeiras janelas.
Elisabet fez um largo sorriso:
— E depois?
Baltasar, o outro sábio, continuou:
— Depois vem Te,Teb,Teba,Tebas,Tebasi,Tebasil e Tebasile. Só faltam agora dez janelas.
Elisabet riu-se:
— O que é que está lá?
— Elisabet, Lisabet, Isabet, Sabet, Abet, Bet e Et — respondeu Gaspar. Elisabet contou com atenção e comentou:
— Mas ainda faltam três janelas!
— Na janela vinte e dois, está escrito Roma, na vinte e três, Amor e na vinte e quatro, ... — continuou Gaspar com um ar solene.
— O que é?
— A palavra Jesus está escrita com letras artísticas de grande beleza. Uma letra é vermelha, outra cor-de-laranja, a terceira amarela, a quarta azul e a quinta lilás como as cores do arco-íris. O próprio Jesus era como um arco-íris.
— Mas porquê?
— Depois de uma forte chuvarada, o sol atravessa as nuvens e o arco-íris aparece no Céu. É como se Jesus aparecesse no ar. Tal como o arco-íris, Jesus também faz a ligação entre o Céu e a Terra.
Josué levantou o cajado e deu uma pancada tão violenta numa pedra que o eco fez-se ouvir pelas serranias. Então, disse:
— Para Belém! Para Belém.
As montanhas em redor pareciam responder:
— Lém, lém, lém...
Daí a pouco, estavam na planície do Pó. Esta planície é muito fértil e é banhada pelo grande rio Pó que corre desde os Alpes italianos, a ocidente, até desaguar no mar Adriático, a oriente. Efiriel informou o grupo que iam seguir ao longo do rio.
Continuaram ainda através de campos de cultivo muito produtivos, chegando finalmente ao local onde o rio Pó encontra o grande rio Ticino, junto à cidade de Pavia. Efiriel anunciou que estavam agora no ano de 904 d. C. e, nessa altura, a universidade de Pavia já era célebre em toda a Europa.
Josué deu a entender que queria falar e Elisabet também tinha uma coisa na ponta da língua, mas Jacob antecipou-se. Apontou para uma jangada, que estava junto à margem e disse:
— Vamos levá-la conosco.
E o grupo subiu para a jangada.
Começavam a distanciar-se da margem quando um homem surgiu com uma ovelha nos braços e gritou:
— Aceitem esta minha oferta!
Com mais esta ovelha, o rebanho tinha agora seis animais e era preciso acomodar todos na pequena jangada.
Durante a travessia, Quirino disse a Elisabet que já podia abrir a janela número treze. Ela abriu a janela e apareceu um homem com uma ovelha às costas.
* * *
Quando a mãe acabou de ler, os três permaneceram no quarto em silêncio durante uns instantes.
— Lém, lém, lém! — disse a mãe por fim como se estivesse a cantar.
E Joakim acrescentou:
— Sabet... Tebas.
Ele estava surpreendido. Lá estavam estas palavras de novo! Johannes não fizera outra coisa senão pronunciar metade do nome Elisabet, repetindo-a do fim para o princípio. Mas porque não pensou Joakim nisso antes?
Mas porque é que Johannes teria feito isso?
— Se ao menos eu conseguisse encontrar esse florista — interveio o pai, — talvez soubesse como foi elaborado este calendário. Ou, pelo menos, porquê. Tenho imensa curiosidade em saber o que é que motiva um homem adulto a recortar, colar e brincar desta forma.
— Talvez ele deseje espalhar a glória celestial — opinou Joakim. — O calendário mágico pode ser um bocadinho da glória celestial que caiu sobre a Terra. O Céu está cheio de coisas magníficas e essas coisas espalham-se com facilidade.
Os pais tinham achado graça àquilo e só compreenderam porque é que Joakim aprendera todas aquelas coisas estranhas que dizia nos últimos dias depois de lerem os bilhetinhos do calendário do Advento.
— Estou a pensar nos três monges do vale de Aosta — disse a mãe. Joakim e o pai voltaram-se para a mãe, que continuou:
— Estamos em situação idêntica à dos monges. Temos uma coisa nas nossas mãos, mas não sabemos se devemos acreditar nela ou não.
Para Joakim tudo aquilo era ao mesmo tempo estranho e fascinante. Era difícil continuar a ocultar que tinha visto Johannes. Este último segredo fazia com que a sua cabeça latejasse constantemente. Como seria bom revelá-lo!
— Há dias, quando cheguei da escola — disse Joakim, — Johannes estava ali, diante do portão. Foi o livreiro que lhe deu o nosso nome e endereço.
O pai saltou da cama e deu um soco num armário.
— Porque é que não nos contou isso antes?
— Eu não pensei que isso fosse importante... ele apenas queria conhecer-me.
O pai mostrava-se impaciente:
— Sim, sim. Mas o que é que ele disse? Ele deve ter falado no calendário, ou não falou?
— Ele só disse que falaria sobre Elisabet noutra ocasião mais próxima do Natal.
Então o pai tomou uma decisão:
— Hoje mesmo vou ao mercado. Quero encontrar esse Johannes... nem que o traga a reboque.
Mas quando regressou, o pai estendeu os braços e disse:
— Sumiu! Parece que sumiu pela terra dentro.
Durante toda a tarde Joakim só pensou em dois nomes: Elisabet... Tebasile... Elisabet.
Um nome parecia a imagem refletida do outro. Quando Joakim se via ao espelho, a sua imagem também era invertida.
Mas isto poderia significar que as duas Elisabetes eram uma pessoa única? Tebasile, por exemplo, soava também como um nome próprio.
E haveria alguém que se chamasse Tebasile?
Nessa noite, Joakim fixou o olhar durante muito tempo no teto até conseguir descontrair-se. A certa altura, levantou-se e escreveu no livro de apontamentos o seguinte:
14 DE DEZEMBRO
...antes mesmo de a criança ter tempo para apontar...
No dia 30 de Novembro, Joakim foi à cidade na companhia do pai para comprar um calendário do Advento, pois os calendários estavam esgotados em quase toda a parte. Encontraram por fim um calendário de cores esvaídas numa pequena livraria. Nele estava escrito: «Calendário mágico do Advento. Preço: 75 centavos».
Possivelmente foi o velho Johannes quem fez este calendário. O pai de Joakim procurou por Johannes no mercado, mas não o encontrou.
O calendário tem uns pequenos bilhetes muito bem dobrados que saltam a cada vez que se abre uma janela. Esses bilhetes falam de uma certa Elisabet Hansen que foi atrás de um cordeiro com um chocalho no pescoço, o qual tinha abandonado a cidade porque estava farto da confusão de Natal. O cordeiro, e o grupo que se formou, foram para Belém.
Em 1948, desapareceu uma menina chamada Elisabet Hansen enquanto fazia as compras de Natal com a mãe. Se ela ainda for viva, já deve ter passado dos cinqüenta anos. Mas esta Elisabet será a mesma da fotografia tirada diante da Basílica de São Pedro, em Roma? A fotografia foi tirada por volta de 1960 e mostrava uma jovem de aproximadamente vinte anos, cabelos louros, com uma cruz de prata ao pescoço.
Joakim estava convencido de que Johannes pretendia insinuar que as duas Elisabetes eram a mesma pessoa. Mas por que razão teria ele escrito Elisabet de trás para diante?
No dia 14 de Dezembro, Joakim foi o primeiro a acordar e sentou-se logo na cama. Faltavam dez dias para o Natal!
Mas que seria feito de Elisabet, Efiriel e do grupo que ia a caminho de Belém?
Ainda não tinha aberto o calendário, quando os pais entraram no quarto.
— Mãos à obra! — disse o pai, trazendo com ele dois enormes atlas. Joakim abriu a janela número catorze e, quando o bilhete saltou sobre a cama, Joakim viu uma jangada com pessoas, animais e anjos.
— A jangada! — disse a mãe. Sentaram-se na cama e Joakim começou a ler.
ISAAC
Nos finais do século IX uma estranha jangada descia o rio Pó rumo ao mar Adriático, a oriente. O grupo passava agora pela Lombardia. A bordo ia um pequeno rebanho que não parava de balir porque não podia beber água do rio. A menor das ovelhas dava um passo ora para a frente ora para trás, fazendo tocar incessantemente o chocalho em volta do seu pescoço felpudo.
Dois pastores tentavam manter as ovelhas sossegadas na jangada. Dois Reis Magos apontavam para a bela paisagem por onde passavam, emitindo alguns comentários acertados. Um dos reis é negro, o outro é branco. Falavam sobre o fato de Deus ter criado as laranjas e as tâmaras, chegando à conclusão que, em seis dias, não podia fazer melhor.
Na retaguarda, um homem com uma túnica romana dirigia a jangada com um longo remo. A roupa que ele usava já não se usava há muito tempo. Falava com uma menina que tinha uma folha de cartão na mão. Um dos lados do cartão estava escrito: «PARA BELÉM». No outro lado mostrava uma jovem mulher de cabelo louro comprido.
Mas o que sobretudo chamava a atenção eram os dois anjos que iam na proa da jangada, os quais batiam as asas para que a embarcação não encalhasse na margem. Este episódio passou-se, obviamente, muito antes dos barcos terem hélice.
Por vezes, Umuriel, o anjo-criança, olhava para trás e louvava a natureza magnífica que os rodeava.
— Mas que extraordinário! — gritava. — Por todo o lado há esplendor e alegria. É mais ou menos como quando, no quinto dia, Deus contemplou a Sua Obra. E como se pode ver, ultrapassou as expectativas!
Da terra foram avistados por uma ou outra pessoa. Mas a jangada só era vista durante uns breves segundos, porque, além de navegar ao longo do rio Pó, navegava também pela História. Atravessava as marés dos tempos. Quando uma criança, numa das margens, chamou a atenção dos pais para a jangada, ela já tinha passado, antes mesmo da criança ter tempo de apontar para ela.
Seria apenas um reflexo?
Passaram por pontes, obras em construção, teatros, templos e aquedutos romanos antigos. Efiriel apontava para tudo que era igreja.
— Estive aqui quando ainda era jovem — disse Quirino enquanto olhava para o remo mergulhado na água. — Mas isso foi há muito tempo... ou talvez seja o oposto... acho que ainda falta um bom bocado para isso. Dixi!
Elisabet compreendeu que ele se referia à época em que os Romanos andavam por todo o mundo e perguntou:
— Então como era isto aqui nesse tempo?
— Os teatros romanos de então ainda estão por aqui; as laranjeiras e as papoulas encarnadas ainda crescem na margem dos rios. Porém, nesse tempo ninguém tinha ouvido falar de Jesus. As igrejas e os conventos, os padres e os monges aqui são ainda recentes. Dixi! Dixi!
Josué apontou para a margem do rio e anunciou:
— Vamos sair ali.
Quirino orientou a jangada para terra com a ajuda dos dois anjos que batiam energicamente as asas. Josué puxou a jangada com a ajuda do cajado para junto de uma árvore, enquanto Efiriel fazia recomendações a Umuriel, o anjo-criança:
— Se encontrarmos alguém pelo caminho, deves dizer «não tenhas receio» com uma voz angelical, caso contrário podes provocar um susto. Somos visitantes e é importante que nos portemos bem.
Os peregrinos, de duas pernas, os de quatro patas e os de asas nas costas, deixaram a jangada. Continuaram a caminhada, depois de visitarem a igreja que ali existia.
Efiriel informou que a cidade que passariam a seguir era uma das maiores, embora na realidade não fosse muito grande. Era a cidade de Pádua.
Junto às portas da cidade estava um homem de túnica azul, sentado numa pedra com a cabeça apoiada nas mãos. Dava a impressão de estar ali há muito tempo.
Umuriel dirigiu-se a ele e, voando à sua volta, disse:
— Não tenhas receio! Não te assustes! Chamo-me Umuriel e sou um anjo de Deus em missão sagrada.
As palavras do anjo devem ter funcionado, porque o homem permaneceu na mesma posição em que se encontrava e não escondeu a cabeça entre as mãos. Não disse «Aleluia», nem «Gloria Dei». Levantou-se simplesmente e veio ter com o grupo:
— É um de nós — disse Efiriel.
O homem estendeu a mão a Elisabet:
— Sou o pastor Isaac e sigo exatamente o vosso trajeto.
Agora era ainda mais fácil conduzir todas as ovelhas através de Pádua. Atrás delas iam três pastores, dois Reis Magos, dois anjos, um governador romano e uma menina da Noruega. Eram quinze peregrinos ao todo.
Na velocidade que iam, as poucas pessoas com quem cruzavam nem reparavam neles. E eles mal viram os habitantes da cidade. Quando avistavam algum madrugador, ele imediatamente desaparecia para dar lugar a uma pessoa diferente.
Elisabet pensava que tinha estado em Pádua apenas meio minuto, mas na realidade permaneceu lá sete ou oito anos. Meio minuto são trinta segundos e os trinta segundos foram distribuídos por esses sete ou oito anos.
Os contos antigos dizem-nos que nos anos mágicos de 804 a 811 toda a gente falava em anjos. Por vezes, alguém julgava ter visto algo estranho nas ruas. Seria um anjo de passagem?
Pararam diante de um pequeno convento já fora da cidade:
— Mas que estranho voltar a ver uma cidade romana! — comentou Quirino. — Quem será o imperador atual?
Efiriel olhou para o seu relógio:
— Estamos no ano de 800. Carlos Magno será coroado imperador de Roma, a 26 de Dezembro deste ano.
— Um novo século vai começar — disse Josué, o pastor. E, batendo com o cajado na parede do convento, exclamou:
— Para Belém! Para Belém!
* * *
O pai de Joakim abriu o atlas, indicou o rio Pó e apontou para Pádua. Depois folheou o livro para trás e para a frente e tentou traçar o percurso percorrido pelos peregrinos.
— Halden fica aqui — explicou o pai. — Vejamos... dirigiram-se primeiro para um grande lago na Suécia... deve ter sido o lago Vänern. Depois para Kungälv, Gotemburgo, Halmstad e Lund. Chegaram à Zelândia pelo mar e visitaram Copenhagen. Está tudo aqui. Chegaram à Fiônia e daí partiram para Odense. Entre Middelfart e a Jutlândia, usaram o barco para atravessar o braço de mar Pequeno Belta. Estiveram ainda em Kolding e Flensburg...
— Recuaram, portanto, na História — disse a mãe.
O pai continuou a assinalar pelo mapa o caminho que os peregrinos tinham seguido:
— Cá está Hamburgo. Em Hannover, Elisabet estatelou-se no meio do mercado... Foi aqui em Hameln que não cumpriram a promessa feita ao caçador de ratos.
— Vocês também quebraram uma promessa quando abriram o meu cofre... — interrompeu Joakim.
— Paderborn fica no Sul da Alemanha — continuou o pai. — Aqui Umuriel saiu da torre da igreja voando em espiral. A partir de Colônia, continuaram pelo vale do Reno. Umuriel tinha razão: este vale é magnífico!
— Isso foi no século XIII — disse a mãe.
— Espera um pouco — disse o pai. Eu quero seguir a rota até ao fim. Em Mainz, encontraram Baltasar... depois foi a vez de Worms e Basiléia. Basiléia fica na Suíça...
— Mas Elisabet esteve lá no século XII — repetiu a mãe. O pai continuava a procurar com o dedo:
— Vejamos... aqui mesmo estão os lagos Biel e Genebra. Martigny, apesar de ser uma localidade tão pequena, está aqui... este mapa é bom! A estrada de São Bernardo tem agora túneis por todo o lado. Cá está o vale de Aosta... a Lombardia e a planície do Pó.
— Bravo! — exclamou a mãe. — além disso, viajaram também através da História. Acho ainda mais estranho pensar nisso.
O pai levantou agora os olhos do mapa:
— Isso é tudo invenção dele!
— Eu estou absolutamente convencido de que é isso mesmo — disse Joakim.
— Mas quem sabe? — acrescentou a mãe.
— Por onde seguirão eles agora?
— Meu Deus! Já são oito horas! — exclamou a mãe.
Ficaram um pouco perturbados com o atraso. Para Joakim não havia nada pior que os atrasos. A caminho da escola, lembrou-se de nomes de lugares que entretanto vira no mapa.
O ensaio da peça de teatro que iam representar no Natal já tinha começado quando Joakim chegou ao ginásio da escola. Coubera-lhe o papel de segundo pastor.
15 DE DEZEMBRO
...não tenhas receio — disse Umuriel suavemente...
Pelo mapa, o pai de Joakim acompanhava o itinerário de Elisabet até Belém. O grupo chegara entretanto ao Norte de Itália. O pai estava ansioso por saber qual seria o caminho que eles iriam agora escolher.
A mãe achava que esta longa caminhada era sobretudo uma viagem através da História. Já estavam no ano de 800 d. C.
Joakim estava, por seu lado, mais interessado em saber se a Elisabet do calendário era a mesma menina que fugira do grande armazém comercial na Noruega para ir atrás do cordeiro de chocalho que já não agüentava mais o ruído das máquinas registradoras e, mais tarde, que aparecera em Roma.
Na manhã do dia 15 de Dezembro restavam dez janelas por abrir. Quando os pais de Joakim entraram no quarto, ele ainda estava na cama.
Joakim já não estava aborrecido com os pais por eles terem aberto o seu cofre secreto. Já lhes tinha perdoado. Seria estúpido continuar zangado toda a vida! Agora até era mais engraçado acompanhar os caminhantes com os pais. Era como se estivessem celebrando uma festa de aniversário todos os dias até o Natal.
— Mãos à obra! — disse o pai.
Os três sentiam o mesmo entusiasmo por aquele calendário mágico do Advento.
Joakim saiu da cama e, para não rasgar o calendário, retirou com cuidado o bilhetinho da janela número quinze. Surgiu então uma gravura com casinhas banhadas pelo sol, construídas sobre ilhas e recifes.
Foi o pai quem leu o bilhetinho nesse dia. Antes de ler afinou a voz duas vezes:
A SÉTIMA OVELHA
Seis ovelhas, três pastores, dois Reis Magos, dois anjos, um governador romano e uma menina da Noruega chegaram à laguna veneziana que ficava junto ao mar Adriático.
Do alto de uma colina com vista sobre a laguna, Efiriel apontou para pequenas ilhas ali em volta, todas próximas umas das outras. Em algumas delas tinham construído casas e igrejas. Várias ilhas estavam ligadas entre si por pontes. Por toda a parte avistavam-se pequenos barcos.
— Estamos no ano de 797 — anunciou Efiriel. — As cento e dezoito ilhas que daqui avistamos chamar-se-ão um dia Veneza. Os Venezianos vieram viver aqui para se protegerem dos ataques dos piratas e dos bárbaros que assolavam esta região. Faz agora cem anos que ela foi unificada por um chefe designado Doge.
— Não vejo uma única gôndola — comentou Elisabet. — E pensei que devia haver mais pontes.
Efiriel riu-se:
— O que está vendo neste momento não pertence ao século vinte. Como já disse anteriormente, estamos no ano de 797 e só vivem pessoas aqui há cem anos. Desde então, a densidade populacional de Veneza tem vindo a aumentar consideravelmente, de forma idêntica, em todas as ilhas.
Enquanto admiravam aquela paisagem, viram passar um barco. Transportava sal num dos lados. No outro, iam algumas ovelhas que baliam ao nascer do Sol.
Quando viu os peregrinos, o barqueiro assustou-se. Depois, tapou os olhos e, ao retroceder um passo, desequilibrou-se e caiu na água. Elisabet viu-o vir à superfície e depois afundar-se de novo
— O homem está se afogando! — gritou. — Vamos salvá-lo!
Mas Efiriel já estava a caminho. Antes de agarrar o homem vigorosamente e trazê-lo para terra, pairou no ar sobre aquela água brilhante. A água escorria pelo corpo do barqueiro enquanto Efiriel puxava o barco para terra.
O homem continuava assustado e, deitado no chão, tossia convulsivamente. Passados uns momentos, respirou fundo e disse:
— Gratie, gratie...
Elisabet tranqüilizou-o dizendo que iam para Belém dar as boas-vindas ao Menino Jesus.
Umuriel que sobrevoava por perto, disse suavemente:
— Não tenhas receio! Não tenhas receio! Como não sabes nadar, nunca devias vir sozinho para o mar. Não julgues que terás sempre um anjo por perto! Nós só aparecemos muito raramente às pessoas.
O homem não pareceu reconfortado com aqueles conselhos. Então Umuriel sentou-se ao seu lado e acariciou-lhe o rosto, dizendo: «Não tenhas receio.» A sétima ou oitava vez, o homem ergueu-se e dirigiu-se para o barco. Quando voltou, trazia um cordeirinho nos braços e disse:
— Agnus Dei.
Agnus Dei significa «cordeiro de Deus». O cordeirinho juntou-se ao rebanho sem protestos. Nessa altura, Josué bateu com o cajado no chão e exclamou:
— Para Belém! Para Belém!
Continuaram a viagem. Umuriel, o anjo-criança, ia à frente. Logo atrás, iam as sete ovelhas, os três pastores, os dois Reis Magos, Quirino, Elisabet e o anjo Efiriel.
Sem se deter, Efiriel chamou a atenção para um mosteiro na antiga cidade romana de Aquiláia, situada no golfo de Veneza:
— Estamos no ano de 718. As comunidades cristãs estabeleceram-se aqui em tempos antigos.
Os peregrinos passaram também pela cidade de Trieste antes de enveredarem para o sul, em direção à Croácia.
* * *
O pai folheou um dos atlas e pousou o bilhetinho sobre a secretária de Joakim:
— Aqui está Veneza! Trieste fica junto da fronteira da Iugoslávia. Mas Aquiléia não encontro.
— Talvez essa cidade já não exista — comentou a mãe. — Vê no atlas histórico.
Então o pai foi buscar um livro que continha muitos mapas da Europa e em que os nomes dos países e cidades variavam de um mapa para o outro.
— Vê se encontra essa localidade num mapa referente ao século VIII — sugeriu a mãe.
Ele folheou o livro de um lado para outro.
— Aqui está Aquiléia! Esta cidade ficava entre Veneza e Trieste. Mas que fantástico!
— Que queres tu dizer com isso? — perguntou Joakim.
— Johannes consultou com certeza mapas como estes porque o mundo está em constante mutação. A história é como um montão de panquecas, em que cada panqueca corresponde a um novo mapa-múndi.
Joakim olhou para o pai:
— Panquecas?
O pai anuiu:
— Nunca é demais perguntar onde uma coisa vai acontecer. Tampouco é demasiado perguntar quando vai acontecer. O fundamental é perguntar ao mesmo tempo quando e onde.
Envolvendo as mãos de Joakim nas suas, continuou:
— Imagina tu que tens vinte panquecas empilhadas umas em cima das outras! Para descobrires um pontinho negro numa delas, terás que descobrir simultaneamente a panqueca exata e o lugar onde o ponto se encontra. É provável também que tenhamos de examinar todas as panquecas.
Joakim concordou. O pai disse:
— Nesta viagem para Belém trata-se de transpor as vinte panquecas. Elisabet passou por todas elas e não apenas por aquela que está em cima.
Até essa ocasião, Joakim não tinha compreendido o raciocínio do pai.
— A viagem iniciou-se no século mais avançado em direção ao mais recuado — concluiu o pai. — Estes mapas mostram como o mundo foi ao longo dos séculos. Acho que Johannes consultou um livro de panquecas como este.
O pai e Joakim não conseguiam evitar o riso a cada vez que era referido o «livro de panquecas».
A mãe, que era a perita das panquecas, olhava para o ar enquanto os dois conversavam. No momento em que o pai deu estalinhos com os dedos, ela disse:
— O que importa agora saber é se um anjo salvou realmente um homem, em Veneza, no ano de 797. Acha que conseguiremos descobrir isso?
O pai riu-se novamente.
— Tu não estás pensando que esta história é toda verídica, não é? — perguntou.
— Não, claro que não. — respondeu a mãe com um ar inseguro. Ela olhou primeiro para Joakim e depois para o pai:
— Mas se isso realmente aconteceu, o homem deve ter contado a alguém. Provavelmente contou a um padre! Talvez até se tenha escrito sobre isso num livro. Que tal se procurássemos na biblioteca?
O pai não quis ouvir mais nada e disse:
— Hoje comemos pizza na cidade e passamos pelo mercado. Lembra-se ainda de Johannes, Joakim?
— Claro que me lembro dele! — respondeu Joakim. — Reconhecê-lo-ei imediatamente. Ele tem um sotaque esquisito porque não é cem por cento norueguês.
Nesse dia, a mãe foi buscar Joakim na escola e tomaram o ônibus para a cidade para se encontrarem com o pai. Da pizzaria viam o mercado que ficava em frente da catedral.
Enquanto comiam, o pai perguntava constantemente:
— Está vendo-o, Joakim?
Ou então:
— Não está vendo, não é?
Joakim respondia sempre negativamente. Johannes já não vendia flores no mercado.
Depois do jantar, compraram velas e alguns presentes de Natal no mercado. No regresso para casa, passaram pela livraria onde Joakim tinha comprado o calendário mágico do Advento.
O livreiro reconheceu imediatamente Joakim e o pai e cumprimentou a mãe.
— Cá estamos de novo — começou o pai por dizer. — Gostaríamos de saber se tem visto o florista por aqui ultimamente.
— Há uns bons dias que ele não passa por aqui — respondeu o livreiro. — Normalmente, entre cada visita não costuma decorrer muito tempo. Mas, nesta altura do ano, ele isola-se.
— Aquele calendário do Advento é um pequeno mistério — explicou a mãe. — Gostaríamos de agradecer a amabilidade dele, convidando-o para nossa casa.
Ficou combinado que o livreiro pediria a Johannes que lhes telefonasse. Ele já sabia qual era o endereço e agora ficava também com o número do telefone.
— Só mais uma coisa — perguntou o pai à saída,— sabe de que terra é Johannes?
— Se não me engano — respondeu o livreiro, — ele nasceu em Damasco.
Os dedos do pai tamborilavam no volante, à medida que o carro avançava. A certa altura, virou-se para a mãe e disse:
— Oxalá consigamos encontrar esse indivíduo!
— Agora já sabemos de onde ele veio. — Respondeu a mãe. — Damasco é a capital da Síria, não é?
16 DE DEZEMBRO
...como se tivesse tido um ataque de soluços angelicais...
À noite, falaram de Elisabet, Johannes e do calendário mágico. Todos sabiam o que cada um pensava, mesmo quando nada diziam.
Ao levantar a mesa, o pai deixou cair um garfo ao chão e comentou:
— Que pena não termos encontrado Johannes! Ele é tão difícil de apanhar como uma raposa matreira.
A mãe pousou o jornal nos joelhos e, erguendo o olhar, disse:
— É um verdadeiro mistério a menina nunca ter aparecido.
Joakim tinha colocado a fotografia da Elisabet adulta sobre a lareira.
De repente, desviando os olhos da televisão, sugeriu:
— Se calhar, ela era a namorada de Johannes.
Os pais prestaram atenção ao que ele disse. O pai pousou a xícara de café na mesa e exclamou:
— Talvez até tivesse sido!
— Dentro do calendário grande que Quirino deu a Elisabet — continuou a mãe, — havia um outro bem menor onde estavam escritos os nomes Elisabet e Tabesile, Roma e Amor.
Joakim desligou a televisão e perguntou:
— E o que é que isso significa?
— É como eu disse — adiantou a mãe. — Amor é um palavra antiga.
— Se lermos Amor de trás para frente obtemos a palavra Roma — continuou Joakim. — Tebasile também pode ter outro significado importante.
Na manhã do dia 16 de Dezembro, ainda bem cedo, os pais vieram acordar Joakim.
— Vê se acorda, Joakim! — disse a mãe. — Ainda são sete horas, mas temos de preparar as coisas com tempo.
Joakim sobressaltou-se. Era como se festejasse o seu aniversário todos os dias. Que bom seria se tivesse um calendário destes para o ano inteiro!
Lembrou-se de que sonhara com uma menina que descera do alto de umas panquecas onde estava sentada para procurar uma coisa que caíra. Acabou por encontrar um bonequinho envolvido em panos na panqueca do fundo. No sonho, o boneco ganhara vida!
Joakim esfregou os olhos e voltou-se para o calendário do Advento:
— Abre já! — disse o pai quase irritado. — Depressa, anda!
Joakim puxou o cantinho e abriu a janela do calendário. O pai apanhou imediatamente o bilhetinho que caiu sobre a cama. No interior da janela viram um castelo antigo.
— Hoje leio eu — disse a mãe.
DANIEL
Nos tempos em que o Império Romano estava dividido em dois, chegou à parte oriental um grupo estranho vindo do Ocidente. O cristianismo já estava bem enraizado em ambas as partes. No entanto, o mundo cristão continuava a ser assolado por povos pagãos que impediam a construção de igrejas, pilhavam o ouro e a prata e destruíam as cidades.
Em Roma, o Papa ordenou que os bens do clero fossem protegidos dos bárbaros que nunca tinham ouvido falar de Jesus. Nessa época, um grupo estranho transpôs o tempo e o espaço, em sentido retrógrado, rumo a Belém, a cidade de David.
À frente do grupo, ia um rebanho composto por cinco ovelhas e dois cordeiros. Um anjo-criança pairava no ar e dizia repetidamente: «Não tenhas receio, não tenhas receio.» Era como se tivesse tido um ataque de soluços angelicais.
Mais atrás, iam três pastores, dois Reis Magos, dois anjos, um governador romano da Síria e uma menina da Noruega.
Mal chegaram a Salona, na Dalmácia, detiveram-se diante das antigas ruínas do palácio de um imperador romano. Transpuseram a porta e descobriram uma multidão imensa que fazia lembrar uma concentração de insetos num velho tronco acabado de ser descascado. No meio do palácio imperial fora edificada uma pequena cidade. Ao ver aquela multidão, Efiriel disse:
— Estamos no ano de 688. As muralhas que vemos à nossa volta pertencem ao palácio de Diocleciano, que nasceu nesta região por volta do ano de 250. Lutou contra os ataques de povos nômades e reconstruiu o velho império romano. Este imperador mandou encerrar igrejas e perseguiu os cristãos. Os seus restos mortais jazem aqui. Poucos anos após a sua morte, todo o império se converteu ao cristianismo. Mais tarde, construíram esta cidade dentro do palácio e deram-lhe o nome de Split.
Um rapazinho quase nu avistou o grupo enquanto Efiriel falava. Levantando um dedo, gritou:
— Angelos! Angelos!
Elisabet voltou-se para Efiriel e perguntou:
— O que é que ele quer dizer com aquilo?
— Diz que somos anjos. Não me parece que tenha visto muitos antes.
As pessoas que ali estavam viram também os peregrinos. As crianças olharam para o grupo com surpresa, mas os adultos prostraram-se por terra e repetiram as palavras «glória», «ámen» ou «aleluia».
Umuriel zumbia agora sobre as cabeças daquelas pessoas e dizia:
— Não tenhais o menor receio. Fazeis idéia de que há 688 anos nasceu o Salvador em Belém, a cidade de David? Nós vamos aclamá-lo e vimos das mais diversas partes do mundo.
Um homem vestido de escuro encaminhou-se para o grupo:
— O padre — murmurou Efiriel.
Ele disse qualquer coisa que Elisabet não entendeu. O anjo explicou depois que aquele homem lhes pedira que saudassem o Menino Jesus em nome da gente daquela cidade.
Josué bateu com o cajado na velha muralha e gritou:
— Para Belém! Para Belém!
Atravessaram a Dalmácia com pressa. Do alto de uma colina, desfrutaram a vista esplendorosa sobre o mar Adriático. Efiriel apontou para uma pequena cidade piscatória:
— Estamos no ano de 659. Aquela é a cidade de Ragusa que acaba de ser fundada pelos gregos do Peloponeso. Um dia esta cidade se tornará numa importante cidade comercial e marítima e terá o nome de Dubrovnik.
No alto de outra colina, encontraram mais um pastor que se protegia do sol escaldante, sentado debaixo de um pinheiro. Usava uma túnica azul-clara, idêntica à de Josué, Jacob e Isaac. Levantou-se e veio ter com os peregrinos:
— Louvado seja Deus nas Alturas! O meu nome é Daniel e tenho estado aqui à vossa espera há vários anos. Sabia que iam passar pela Dalmácia durante o século XVII. Também vos acompanharei até Belém para receber os anjos que vão anunciar o nascimento de um Messias na cidade de David.
— Sim, sim! — disse Umuriel, o anjo-criança. — Tu és também um dos nossos.
Josué bateu de novo com o cajado num pinheiro.
— Para Belém! — ordenou. — Para Belém!
Os peregrinos chegaram entretanto a um grande lago. A distância, avistaram uma grande cidade:
— A cidade que vemos à nossa frente é Scodra e este lago tem o mesmo nome — disse Efiriel. — Daqui a muitos séculos este país se chamará Albânia. Acabamos de pisar a zona bizantina.
Elisabet estava confusa com todos aqueles nomes estranhos. O anjo explicou:
— Desde o nascimento de Jesus até agora, decorreram 602 anos. A Igreja católica teve duas capitais desde este momento até à Idade Média. Uma delas foi Roma e a outra Bizâncio, à entrada do mar Negro.
— E ambas acreditavam no mesmo?
— Em termos gerais, sim. A sua forma de exprimi-lo é que divergia. Os seres humanos vêm e vão, o mesmo acontece com os costumes eclesiásticos e as cerimônias litúrgicas. Mas não podemos nos esquecer que tudo isso começou numa noite de Natal em Belém, a cidade de David.
Umuriel bateu as asas e disse:
— Precisamente! A princípio, só havia uma Maria e um Menino Jesus. Mais tarde, as pessoas pintaram e esculpiram muitos milhões de Marias e de Meninos Jesus, todos diferentes uns dos outros. Apesar de dizerem respeito ao mesmo Menino Jesus, a imaginação divergia de pessoa para pessoa.
Elisabet ponderou naquelas palavras. Umuriel aproximou-se dela pelo ar:
— Deus criou um Adão e uma Eva. Quando eram crianças, brincavam de esconder e trepavam nas árvores do Jardim do Paraíso. Não faria qualquer sentido criar um amplo jardim, se as crianças não pudessem brincar nele. Não faria sentido criar um paraíso sem crianças que pudessem pular. Mas, depois, eles comeram frutos da árvore da Sabedoria e começaram a crescer. Foi assim que a brincadeira desapareceu do mundo por um curto espaço de tempo. Pouco tempo depois, já adultos, Adão e Eva tiveram filhos e tornaram-se um dia avós. Deus destinou assim para que não parasse de nascer crianças. Nem tampouco faz sentido criar um mundo se não houver crianças que o descubram. É assim que Deus vai criando o mundo, repetidamente. O mundo nunca estará acabado. Haverá sempre crianças que virão descobri-lo. Nem mais nem menos!
Os dois sábios entreolharam-se.
— Bem, bem! — disse Baltasar.
— Talvez esta explicação deixe algumas dúvidas — acrescentou Gaspar. — Mas todas as boas histórias podem ser interpretadas, no mínimo, de duas ou três maneiras diferentes, e só uma história pode ser contada de cada vez.
— Apesar de terem vindo ao mundo muitos bilhões de crianças, não há duas rigorosamente iguais — disse Umuriel. — Não há duas palhas iguais em toda a obra da Criação. A imaginação divina é tão rica que, quando transborda, vem pousar sobre a Terra. No sétimo dia da Criação, Deus disse: «Que as águas sejam povoadas de inúmeros seres vivos, e que na Terra voem aves sob o firmamento. Que a Terra produza seres vivos segundo a sua espécie, animais domésticos, répteis e animais ferozes segundo as suas espécies.»
Umuriel disse:
— Eu sei tudo isso de cor.
Elisabet que tinha sempre dificuldade em saber histórias e versos de cor, aplaudiu entusiasmada.
Josué bateu com o cajado no chão e anunciou:
— Para Belém! Para Belém!
A peregrinação continuou pelo planalto da Macedônia.
* * *
A mãe sorriu quando acabou de ler.
— Não se pode propriamente dizer que este florista tenha falta de imaginação! — comentou o pai.
E continuou a folhear o atlas.
— Os peregrinos transpuseram a Iugoslávia apenas num dia. Mas que grande caminhada!
— Tu deves querer dizer cem anos — argumentou Joakim. — Como sabe, um dia corresponde a um século.
— Para nós, é que é assim — afirmou a mãe. — Elisabet e os seus acompanhantes de viagem andavam a velocidades vertiginosas. Era como correr com o vento ou descer a toda velocidade por uma escada rolante.
O pai concordou com certa relutância.
— Agora já não se chama Iugoslávia — continuou a mãe. — No século XVII, chamava-se também outra coisa. Era Croácia ou Dalmácia.
O pai estudou o mapa e mostrou a Joakim o trajeto que os peregrinos tinham seguido. Depois, apontou para as cidades de Split e Dubrovnik.
Ao chegar em casa, o pai disse:
— Hoje fui à polícia.
A mãe mostrou-se surpreendida:
— Já sabe do paradeiro de Johannes?
— Não, não — respondeu o pai. — Mas eu tentei saber mais pormenores sobre a menina que desapareceu em 1948. Tinha menos de sete anos nessa altura e nunca foi encontrada. A polícia andou à sua procura durante vários meses e nunca a encontrou. Encontraram apenas um gorro num bosque, à saída da cidade. Aquela criança teve uma vida curta.
— Como é que podes afirmar uma coisa dessas? — perguntou a mãe, piscando o olho a Joakim.
— Tentei contactar a sua família — continuou o pai. — Após várias tentativas, falei com a mãe, uma senhora de mais de setenta anos.
Joakim e a mãe estavam embasbacados e perguntaram:
— O que é que ela disse?
— Conhecia Johannes?
— Uma pergunta de cada vez, por favor — disse o pai. — A velha senhora não me adiantou mais nada além do que a polícia já me tinha informado. Porém mencionou que, há muitos anos, tinha falado com Johannes, um homem sírio. O pai da menina já faleceu mas, em vida, visitou a Síria e viajou pelo mundo. No entanto...
O pai reteve a respiração:
— A senhora nunca ouviu falar da fotografia que foi tirada em Roma dez a quinze anos após o desaparecimento de Elisabet. Prometi que lhe enviaria uma cópia.
Depois dos pais terem ido para o quarto deles, Joakim ficou sentado à escrivaninha por uns instantes.
Quem seria a jovem da fotografia que Johannes tirara em Roma? Chamar-se-ia de fato Elisabet ou teria outro nome completamente diferente?
«Sabet»... «Tebas... » Porque teria Johannes dito isto? Soava a uma palavra mágica.
Joakim abriu o livro de apontamentos e viu como tinha escrito anteriormente aqueles dois nomes. Agora escreveu assim:
Isto seria uma janela ou uma cruz?
Era provavelmente um calendário do Advento.
17 DE DEZEMBRO
...em nome de Jesus, aconteceram muitas coisas que o Céu não apreciava...
Johannes, o florista, conheceu uma mulher jovem em Roma e tirou-lhe uma fotografia diante da grandiosa Basílica de São Pedro. Isso devia ter acontecido há muitos anos porque o carro que se via na fotografia era antigo. O nome Elisabet estava escrito na parte inferior da fotografia.
Seria de fato Elisabet o nome daquela jovem ou teria alguém escrito esse nome ao acaso?
A história do calendário do Advento que Joakim andava a ler com os pais falava de uma menina chamada Elisabet. Além disso, há muito tempo atrás tinha desaparecido uma Elisabet enquanto fazia compras de Natal. O pai de Joakim acabara de falar ao telefone com a mãe desta última Elisabet.
Os pais de Joakim queriam encontrar o velho florista para tentarem esclarecer umas dúvidas, mas ele sumiu-se e não deixou qualquer pista. Joakim deixou o seu número de telefone na livraria onde Johannes costumava tomar um copo de água.
Oxalá Johannes não tivesse regressado de vez a Damasco!
No dia 17 de Dezembro, Joakim acordou e abriu a janela do calendário antes de os pais se levantarem. Os peregrinos desciam agora uma encosta íngreme.
Joakim estava prestes a desdobrar o bilhetinho quando o pai entrou no quarto.
— Ainda não abriu o calendário, não é? — perguntou o pai.
Joakim estremeceu.
— Sim, já abri. Mas ainda não li o bilhetinho.
— Podia muito bem ter esperado por nós — disse o pai aborrecido.
E foi chamar a mãe no quarto. Ela nem sequer teve tempo de ir primeiro ao banheiro; sentaram-se na cama e desdobraram o papel. Nesse dia, quem leu foi o pai.
SERAFIEL
Nos finais do século VI, um longo grupo de peregrinos desfilava pela cordilheira da Macedônia.
Lá embaixo, na margem do rio Axios, estava um pastor que olhava para as montanhas. Primeiro, ele viu sete ovelhas que rolavam pela encosta abaixo, como se fossem pérolas de um colar. Um pássaro alvo como um cordeiro e grande como uma águia, pairava por cima do grupo. Atrás vinham quatro homens e um deles tinha um cajado na mão. Os outros peregrinos caminhavam mais atrás.
Esta visão extraordinária teve a duração de um abrir e fechar de olhos. O pastor grego esfregou os olhos e lembrou-se de seu pai contar um dia que tinha presenciado um episódio semelhante muitos anos antes, mais abaixo, neste mesmo vale. Desta vez, havia uns pastores que corriam atrás de um rebanho e, atrás deles, vinham dois senhores muito bem vestidos, um dos quais era negro. Mais atrás ainda, uma menina vestida de cores vivas tentava alcançar os outros. Mas o que mais chamava a atenção, eram os dois anjos que acompanhavam o grupo.
Depois de todos terem passado, o pastor compreendeu que vira anjos do Senhor e não pássaros.
A peregrinação contornou o rio até o golfo de Thermaikos, no mar Egeu. Era a primeira vez que Elisabet via uma água tão azul.
Apontando para uma montanha muito distante, Efiriel disse:
— Lá longe está o monte Olimpo. Antigamente, os Gregos acreditavam que os seus deuses viviam no alto daquela montanha. Eles chamavam-se Zeus, Apolo, Atenas e Afrodite. Neste momento em que nos encontramos, no ano de 569, ninguém mais acredita nos Deuses gregos.
— E acreditam em Jesus? — perguntou Elisabet.
O anjo respondeu-lhe que sim e acrescentou:
— A antiga escola de filosofia em Atenas existiu durante cerca de mil anos e foi fundada por Platão, mas encerrou há poucos anos.
— Porque é que a encerraram?
— Em nome de Jesus, aconteceram muitas coisas que o Céu não apreciava — respondeu Efiriel. — Jesus dirigia-se a toda a gente. Nunca lhes dizia que se calassem. Entretanto, Paulo chegou a Atenas há poucos anos e foi o primeiro grande missionário do cristianismo que desejou dialogar com os filósofos gregos. Pediu que escutassem a palavra de Deus e esperou pelos seus comentários.
O anjo nada mais adiantou porque Josué bateu com o cajado no chão e ordenou:
— Para Belém! Para Belém!
Chegaram momentos depois a uma grande cidade situada junto de um golfo. Era Tessalônica, que fora escolhida pelos Gregos para capital da Macedônia. Era agora o ano de 551.
— Cinqüenta anos depois do nascimento de Jesus — disse Efiriel,— Paulo fundou uma comunidade cristã nesta localidade. Falta ainda uma grande distância para alcançarmos a Terra Santa. Paulo escreveu duas epístolas aos cristãos dessa cidade que, ainda hoje, podemos ler na Bíblia.
Elisabet refletiu nas palavras do anjo. Ela nunca imaginara que as epístolas pudessem durar tanto tempo.
Atravessaram, entretanto, o portão da cidade. Era de madrugada e as ruas ainda estavam desertas. Efiriel explicou que muitas igrejas que ali existiam, datavam de vários séculos. Detendo-se depois em frente de uma igreja disse:
— A Igreja de São Jorge permanecerá aqui nos próximos mil e quinhentos anos.
Prosseguiram a marcha para leste até chegarem a outra cidade.
— Aqui em Filipos, Paulo discursou pela primeira vez em terras européias e fundou a primeira congregação cristã na Europa. A Bíblia fala de uma epístola, dirigida aos filisteus, escrita por Paulo quando foi encarcerado por defender a fé cristã.
Efiriel chamou a atenção para uma igreja octogonal. De repente, abriu-se uma porta e Umuriel apressou-se a dizer «Não tenhas receio». Um novo anjo saiu da igreja e dirigiu-se a Elisabet, dizendo:
— Saúdo-te, minha filha! Sou Serafiel e vou convosco para Belém. Do alto das nuvens celestiais, aclamarei a chegada do Menino Jesus ao mundo.
Josué bateu com o cajado na parede da igreja e disse:
— Para Belém! Para Belém!
Continuaram depois pela velha estrada entre o mar Jônico e Constantinopla, chamada Via Egnatia.
A frente, seguia o cordeirinho que tinha fugido de um armazém comercial na Noruega, porque o ruído das máquinas registradoras o perturbava. Depois, iam os quatro pastores, o governador romano, Quirino, dois Reis Magos, uma menina da Noruega e, atrás, Efiriel e Serafiel. Umuriel, o anjo-criança, esvoaçava, ora aqui, ora ali.
Durante aquela caminhada apressada Efiriel anunciou:
— Estamos agora no ano de 511. Antes do ano de 500, chegaremos a Constantinopla.
* * *
O pai acompanhou a rota dos peregrinos através do atlas:
— Vejamos: Aqui fica a cadeia montanhosa da Macedônia! Desceram o rio Axios antes de chegarem ao golfo de Thermaikos. Daí avistaram o monte Olimpo, à direita. Deixa-me ver. Está certo! Foi assim mesmo.
Depois, abriu um segundo livro que mostrava os países europeus no século VI.
— Esta é com certeza a Via Egnatia — continuou. — Tessalônica e Filipos figuram aqui.
— Não há nenhum mapa que descreva as viagens do apóstolo Paulo? — perguntou a mãe.
O pai folheou. Para Joakim, aquele livro também era mágico. Mostrava o mundo nas diferentes épocas, não omitindo as cidades que, ao longo dos tempos, foram soterradas pela lama e pela areia.
— Olhem para isto! — Exclamou o pai quando viu o mapa com as viagens do apóstolo Paulo.
— Paulo esteve em Filipos e em Tessalônica na sua segunda viagem.
Quando Joakim chegou em casa, o telefone estava tocando. Deviam ser os pais para lhe comunicar que estavam atrasados e recomendarem o que ele deveria comer. Joakim não gostava nada que eles fizessem isso.
Levantou o auscultador:
— Alô!
— Sou o Johannes — respondeu uma voz.
O que poderia ele, Joakim, responder? Depois de refletir bem, repetiu a frase que a mãe lhe dizia quando vinha tarde da casa de algum amigo.
— Por onde tem andado?
— Estou num lugar isolado — respondeu Johannes. — Um dia destes passarei por tua casa. Agora só queria saber como vai o calendário do Advento.
— Bastante bem, obrigado — respondeu Joakim. — Até parece que festejo o meu aniversário todos os dias! Sabe que os meus pais começaram a ler os bilhetinhos comigo?
— Não me diga! Ainda consegues lê-los?
Joakim não compreendeu o que Johannes pretendia dizer com aquilo.
— Todos os dias os lemos.
— Muito bem! Até onde já chegou a peregrinação?
— Creio que está em Filipos — respondeu Joakim. — Essa terra está no mapa.
— Ainda bem! A intenção era essa mesmo.
— Ah, sim!?
— Joakim?
— Sim?
— O que acha que o pastor grego pensou quando viu o grupo descer para o vale Axios?
— Assustou-se certamente — respondeu Joakim.
— Sem dúvida! Claro que se assustou.
— Os meus pais gostariam de lhe perguntar umas coisas — continuou Joakim. — Não quer vir tomar café conosco?
Johannes riu-se e retorquiu:
— Mas o Natal ainda não chegou!
— Isso não impede que venha tomar café e comer um bolinho conosco. Já temos muitos bolos preparados para o Natal.
Receando que Johannes desligasse, Joakim apressou-se a perguntar:
— Tem certeza que a pessoa da fotografia se chamava Elisabet?
— Estou quase certo... ou será Tebasile? — respondeu Johannes passados uns instantes.
Joakim refletiu. Quirino entregara um calendário do Advento a Elisabet. As palavras que Johannes lhe dissera naquela dia junto ao portão de sua casa, ainda lhe soavam nos ouvidos. Perguntou:
— Não usará ela os dois nomes juntos? Talvez se chame Elisabet Tebasile.
Johannes não respondeu logo:
— Sim, é possível. Talvez seja isso mesmo!
— E ela não era norueguesa?
Johannes suspirou fundo:
— Sim e não. Elisabet veio de uma pequena cidade na Palestina que fica situada perto de Belém. Contou-me que era uma refugiada palestiniana, mas que nascera na Noruega. Tudo isto é muito estranho!
— E ela foi atrás de Efiriel e do cordeiro de chocalho até Belém? — perguntou Joakim ofegante.
— Tu não paras de fazer perguntas — disse Johannes. — Agora tenho de desligar. É preciso esperar, Joakim. Sabes que «Advento» significa «vinda»?
E em seguida, Johannes desligou o telefone.
Joakim começou a andar de um lado para outro. Quando os pais chegaram, contou-lhes repetidamente o que Johannes lhe dissera, sem omitir nada.
— Elisabet Tebasile! — murmurou o pai. — Não há ninguém que se chame assim.
Joakim sabia que um refugiado era uma pessoa que fora obrigada a abandonar o seu país por causa da guerra e da pobreza. Porém, ele não sabia que alguém tinha sido forçado a fugir de Belém.
O pai voltou a folhear o atlas. Explicou que muita gente fugira das aldeias nas redondezas de Belém por causa da guerra. Alguns perderam tudo o que possuíam e acabaram num campo de refugiados.
— Precisavam de um bom Samaritano que os ajudasse — disse Joakim. — Jesus queria que as pessoas se entreajudassem quando alguém se encontrava em aflição. Só assim poderá haver um dia paz na Terra. Afinal a paz é a mensagem de Natal.
18 DE DEZEMBRO
...o Reino de Deus está sempre aberto, mesmo para aqueles que viajam sem bilhete...
Johannes encontrava-se em algum lugar isolado. Não aceitou o convite para tomar café, alegando que ainda não era Natal. Disse ainda a Joakim que ele tinha de saber esperar.
Os pais de Joakim sabiam que Johannes elaborara o calendário mágico do Advento. Para o pai, Johannes era uma raposa astuta e, para a mãe, um mistério. No entanto, apenas Joakim sabia que a Elisabet que ia venerar o Menino Jesus a Belém era a mesma jovem que tinha vivido em Roma.
Elisabet Hansen fugira da mãe, em 1948. Nesse tempo, tinha sete anos. Em 1960, já era adulta.
Mas por que razão Johannes dizia que não sabia se a pessoa da fotografia era Elisabet ou Tebasile? Talvez Elisabet tivesse decidido usar o nome de trás para a frente quando chegou a Belém por ser mais parecido com os nomes palestinianos.
O pai não gostava que Joakim abrisse a janela do calendário antes de estarem todos presentes. No dia 18 de Dezembro, ele acordou Joakim e disse que faltava agora apenas uma semana para o Natal. Estava desejoso de abrir o calendário antes de sair para o trabalho.
Nesse dia, surgiu uma gravura mostrando um bastão com uma extremidade esférica.
— É um cetro! — exclamou a mãe. — É o que os reis e os imperadores usam como símbolo de dignidade. A parte esférica representa o Sol.
Joakim desdobrou o bilhetinho e leu-o em voz alta para os pais, que estavam sentados, um de cada lado, na cama.
O IMPERADOR AUGUSTO
Sete ovelhas sagradas, quatro pastores, dois Reis Magos, três anjos do Senhor e uma menina da Noruega passavam pela Trácia, em direção a Constantinopla, que fica situada entre o mar da Mármara e o mar Negro. Iam para Belém. Tinham entretanto decorrido quinhentos anos desde que Jesus nascera, num estábulo em Belém porque não havia espaço para eles na hospedaria. Maria e José envolveram o Menino nuns panos e deitaram-No numa manjedoura. A história é sobejamente conhecida em quase todo o mundo.
Entretanto, o grupo deteve-se diante das portas da cidade. Os soldados que estavam de guarda, desembainharam as espadas e levantaram as lanças. O anjo Serafiel elevou-se no ar e colocou-se entre os animais e os soldados.
— Não vos assusteis! — recomendou o anjo. — Vamos todos para Belém louvar o Menino Jesus. Deixem-nos passar.
Os soldados largaram as armas e prostraram-se por terra. Um deles fez sinal para que os peregrinos entrassem na cidade rodeada de muralhas.
Era de madrugada e a cidade ainda dormia. De um ponto elevado, avistaram o estreito de Bósforo que separava a Europa da Ásia. Do lado de cá, podia ver-se nitidamente o outro lado da estreita passagem. Mais adiante, viram uma igreja em construção.
— Estamos no ano de 495 — anunciou Efiriel. — Esta cidade chamou-se originariamente Bizâncio. No ano de 330, o Imperador Constantino consagrou-a capital do Império Romano. Denominou-a primeiro Nova Roma, mas mais tarde chamou-lhe Constantinopla. Anos depois, readquiriu o nome de Bizâncio. E, mil anos mais tarde, com a conquista turca, passou a chamar-se Istambul.
— Os soldados ouviram falar em Jesus? — perguntou Elisabet com curiosidade.
— Acho que sim. Já no tempo do imperador Constantino, em 313, o cristianismo era aceito neste Império. O próprio Imperador recebeu o batismo antes da sua morte. E, em 380, tornou-se a religião oficial do Império Romano.
As palavras do anjo intrigavam Elisabet que perguntou:
— Como é que se lembra de todas essas datas?
— Basta olhar para o meu relógio de anjo — respondeu Efiriel. — Como tu sabes, nós não precisamos de pensar nos segundos, minutos, horas e dias. O essencial para nós são os anos. O ano de 395, há cem anos desta parte, é outra data importante. Foi o ano da cisão do Império e foi nessa altura que Constantinopla se tornou a capital do Império Romano do Oriente.
O anjo Serafiel aproximou-se e, indicando uma igreja um pouco mais abaixo, falou:
— Aquela basílica foi mandada construir por Constantino em honra da sabedoria de Deus. Daqui a uns anos será destruída por um incêndio, mas, no mesmo local, será construída a bela igreja de Santa Sofia que se tornará um marco por muitos séculos.
Quirino interrompeu-o e disse:
— Passemos ao outro lado do Bósforo! A Síria já não fica muito longe. Dixi!
Josué bateu com o cajado no chão:
— Para Belém! Para Belém!
Pouco depois chegaram ao cabo Dourado e aí encontraram um homem de ar poderoso, trajando cores vivas, e segurando um cetro numa mão e um livro na outra.
Umuriel disse prontamente: «Não tenhas receio». Mas o homem nem deu pela sua presença e caminhou em direção ao grupo:
— Sou o imperador Augusto. Vou acompanhá-los ao outro lado do estreito de Bósforo. Gostaria que aceitassem este meu gesto sem quaisquer protestos.
Mostrou-lhes um barco à vela que estava mais abaixo. As ovelhas já subiam para bordo.
— Tu és um dos nossos — disse Efiriel. Elisabet virou-se para o anjo e comentou:
— Não sabia que o imperador Augusto era cristão.
Efiriel fez um sorriso enigmático:
— Sabes que, há muitos séculos, o velho imperador romano foi incluído na oração de Natal como se fosse um passageiro clandestino? O reino de Deus está sempre aberto, mesmo para aqueles que viajam sem bilhete.
As palavras do anjo tornavam o Céu ainda mais imenso do que Elisabet tinha imaginado. Por isso, guardou-as no seu coração.
Chegados ao outro lado do Bósforo, os peregrinos saltaram para terra. Então, Elisabet quis saber que livro o imperador romano levava debaixo do braço. Esperava que ele lhe dissesse que era uma Bíblia ou um livro de salmos, pois o Céu podia exigir isso a um velho imperador que ia em peregrinação a Belém. Mas, em vez disso, o imperador respondeu:
— Este é o livro do recenseamento celeste.
E não adiantou mais nada. Devia ser muito presunçoso e, como ostentava um ar majestoso, Augusto não devia querer falar muito, especialmente se se tratasse de crianças. Mas que atitude estranha! — pensou Elisabet. Não era todos os dias que um imperador romano cumprimentava uma menina que fugira de um armazém comercial na Noruega para seguir até Belém atrás de um cordeiro que não suportava o ruído das máquinas registradoras.
O pastor Josué bateu com o cajado no chão e lembrou qual era o propósito da viagem. Do lugar onde pararam a seguir, avistaram a Calcedônia.
A cidade estava cheia de padres. Parecia um formigueiro. Elisabet olhou para aquela multidão, verdadeiramente surpreendida.
— Não te assustes — disse Serafiel. — Neste ano de 451, foi convocado o maior Concílio de todos os tempos da história do cristianismo. Aqui, nessa altura afluíram padres e bispos de todo o mundo cristão.
— Do que está falando? — perguntou Elisabet. O anjo riu-se.
— Eles reuniram-se aqui para tentar chegar a um acordo sobre o cristianismo.
— E conseguiram?
— Após discussões intermináveis, concluíram que Jesus era Deus e homem ao mesmo tempo. Mas debateram também outros assuntos. Alguns empenharam-se tanto em discussões sobre o que é a verdadeira fé que se esqueceram da questão fundamental.
Elisabet arregalou os olhos:
— E o que era?
— Deus veio ao mundo para ensinar os homens a serem bons uns para os outros. É uma missão difícil, mas é a mais importante de todas. Saber quantos anjos existem no Céu ou se Deus tem uma farpa no dedo mindinho é que não são questões importantes.
— E tem mesmo uma farpa no dedo?
— Já te disse que isso não é importante para o caso. O que importa, é que vejas o que está diante do teu nariz.
Elisabet não compreendeu o que Serafiel queria dizer com aquilo. Mesmo assim, refletiu nas palavras do anjo e guardou-as no seu coração. Um dia talvez as compreendesse.
Os dois sábios não pareciam satisfeitos com as palavras do anjo e Gaspar disse pausadamente:
— Não é absolutamente necessário acreditar em anjos. Muitas pessoas são de opinião que conceitos desta natureza nada têm a ver com o que Jesus nos ensinou.
Efiriel fitou o sábio nos olhos. Então Baltasar falou:
— Os anjos provavelmente só nos contam histórias. Contudo, concordo que Jesus nos ensinou a sermos bons uns para os outros. Isso não é uma história.
— Nós, os anjos, não temos por hábito utilizar palavras que choquem — replicou Efiriel. — Mas esta é a primeira vez que ouço tantas tolices ao mesmo tempo, pelo menos nesta peregrinação. Vós devieis ter vergonha! Para dizerem tantas asneiras, mais valia que tivésseis ficado no Oriente.
— Exatamente! — continuou Umuriel. — Tende vergonha! Ofenderam-me!
Vexado, Umuriel fez uma coisa que Elisabet nunca julgara possível num anjo: levou a mão ao rosto e fez caretas aos Magos do Oriente!
— É para que vejam! — disse o anjo-criança. — Assim mesmo!
Reinava agora um certo nervosismo entre os peregrinos. O anjo Serafiel tossiu duas vezes, arregaçou as mangas para provar que não tinha nenhuma arma e acrescentou:
— Quando os mais próximos duvidam, quem vai acreditar? Mas apesar de termos as nossas divergências, não vamos discutir. Esqueçamos o que foi dito ou insinuado!
Josué, o pastor, concordou e, batendo com o cajado no chão, ordenou:
— Para Belém! Para Belém!
A peregrinação avançou então pela Frígia.
* * *
Joakim suspirou fundo e deixou o bilhetinho cair sobre a sua perna.
— Mas que figura triste fazem os adultos quando discutem! — disse. — Pior ainda é quando os anjos do Céu se metem também nas discussões.
— Essas questões são sempre delicadas — concordou o pai. — Não é a primeira vez que as pessoas entram em conflito quando falam sobre anjos.
— E, afinal, até nem discordavam muito. Tanto os anjos como os Reis Magos concordavam que a mensagem fundamental de Deus é que as pessoas sejam boas para o próximo. É mais difícil praticar uma virtude do que acreditar em anjos.
O pai mostrou Constantinopla no atlas, que atualmente se chama Istambul. Mostrou também o estreito de Bósforo para onde o imperador Augusto levou os peregrinos de barco.
No suposto livro de panquecas, o pai encontrou a velha cidade de Calcedônia, onde o clero se reuniu em Concílio e debateu assuntos prementes sobre o cristianismo. Os peregrinos chegaram entretanto à Ásia.
Quando chegou em casa, a mãe trazia um envelope com recortes de jornais. Estivera na biblioteca e conseguira arranjar cópias dos artigos publicados nos jornais em 1948, ano em que Elisabet desapareceu.
Sentaram-se os três à mesa a ler os recortes. Observaram com atenção a fotografia de Elisabet Hansen. Depois, a mãe foi buscar a fotografia de Elisabet que estava por cima da lareira e comparou-as.
Pertenceriam estas duas fotografias à mesma Elisabet?
— Ambas são louras — disse a mãe. — E ambas têm um nariz afilado, não têm?
— É difícil dizer — comentou o pai.
Nessa ocasião, ele estava mais interessado nos recortes. Enquanto os lia, ia dizendo:
— A mãe era professora... e o pai um conhecido jornalista... meses depois, quando a neve derreteu, encontraram o gorro... num bosque. A polícia não teve mais pistas...
— Ninguém encontrou mais nada porque nunca leram este calendário mágico do Advento — interrompeu Joakim.
O pai riu-se:
— Mesmo que tivessem, como é que iriam prender um anjo? Nessa noite, depois de se ter despedido dos pais, Joakim acendeu de novo a luz. Lembrou-se que passaram vários dias sem ter olhado para a gravura grande no exterior do calendário. Isso aconteceu porque já tinham sido abertas quase todas as janelas, por isso fechou-as de novo.
ENTÃO VOLTOU A ACONTECER A MESMA COISA!
José e Maria estavam inclinados sobre a manjedoura onde o Menino Jesus estava deitado. Mais ao fundo, estavam os Magos e os anjos, descendo do Céu, anunciavam aos pastores que Jesus tinha nascido.
À esquerda, de costas, estavam dois homens ricamente vestidos.
Joakim já os tinha visto antes. Eram Quirino e o imperador Augusto. Mas só agora notou que o imperador segurava um cetro cintilante!
Teria o imperador o cetro na mão desde o primeiro dia em que Joakim trouxe o calendário para casa?
Ou ter-se-ia ele desenhado a si próprio?
19 DE DEZEMBRO
...achava muita graça atirar presentes pelas janelas das casas...
A mãe encontrou na biblioteca recortes de jornais antigos sobre a menina que desaparecera no Natal de 1948. Chamava-se Elisabet Hansen e tinha o mesmo nome que a menina do calendário mágico do Advento que Joakim comprara. Mas existia ainda uma outra Elisabet. Essa Elisabet tinha posado para uma fotografia em frente da Basílica de São Pedro, em Roma, no início dos anos sessenta. Chamar-se-ia ela Tebasile? De qualquer forma, Tebasile é Elisabet, quando escrito de trás para frente.
Existiriam então três ou apenas uma Elisabet?
O pai achava que eram três e que Johannes inventara a história da pequena Elisabeth que desapareceu.
Para a mãe de Joakim, a jovem de Roma era a mesma Elisabet que desaparecera na Noruega 15 anos antes da fotografia ter sido tirada. Porém, não acreditava que tivesse percorrido toda aquela caminhada até Belém. Estava convencida de que existiam duas Elisabetes: a verdadeira e a do calendário mágico.
Para Joakim, existia apenas uma Elisabet. Essa percorreu todo o caminho até Belém na companhia do anjo Efiriel. Uns anos mais tarde, veio a Roma, de barco ou de avião. Ele achava que ela começou a usar o nome de trás para diante naquela cidade.
Podia andar fugida de alguém e, por isso, mudou de nome.
Johannes era a única pessoa que podia esclarecer isto. Pelo menos, ele tinha encontrado uma Elisabet. Mas Johannes sumira-se. Estava incomunicável.
Quando abriram a janela do dia 19 de Dezembro, surgiu um Papai Noel de cabelo e barba brancos, trajando uma capa vermelha. Trazia um chapéu pontiagudo vermelho na cabeça e uma grande cruz de prata com uma pedra vermelha ao pescoço.
A mãe leu o bilhetinho.
MELCHIOR
Nos finais do século IV, um grupo de peregrinos deslocava-se apressadamente através da Ásia Menor.
Umuriel, o anjo-criança, voava à frente de sete ovelhas sagradas. Mais atrás, vinham os pastores Josué, Jacob, Isaac e Daniel e os sábios Gaspar e Baltasar. Um pouco mais atrás ainda, caminhavam dois homens: Quirino, o governador romano, e o imperador Augusto. O imperador levava o livro de recenseamento debaixo do braço e na mão tinha um cetro que resplandecia à luz do Sol. A meio centímetro do chão, voavam Efiriel e Serafiel. Elisabet que fugira da Noruega no período mais movimentado de Natal para ir atrás de um cordeirinho, esforçava-se por alcançar os outros. No trajeto para Belém, levava consigo a fotografia de uma jovem loura.
Passaram os planaltos da Frígia e por lagos salgados onde as aves podiam saltitar. Avistaram ursos, lobos e chacais. Se um lobo ou urso os atacava, conseguiam sempre desviar-se uma ou duas semanas para os evitar.
Subiram por uma vereda da cordilheira da Panfília, que se estende do Oriente ao Ocidente da costa mediterrânica. A uns dois mil metros acima do nível do mar, observaram um vulto vestido de verde. Era um homem de grande estatura, sentado como se fosse um marco com vida, junto à linha divisória das águas, onde a estrada começa a descer para o Mediterrâneo.
Gaspar e Baltasar acenaram-lhe e fizeram uma tentativa para ultrapassar as ovelhas.
— Quem é? — perguntou Elisabet.
— É com certeza um dos nossos — disse o anjo Efiriel.
O estranho abraçou Gaspar e Baltasar e disse com um ar cerimonioso:
— Agora o círculo já está completo.
Elisabet não compreendeu o sentido daquelas palavras. O estranho veio cumprimentá-la com delicadeza:
— Bem-vinda à Panfília. Sou Melchior, o terceiro Mago e rei de Egriskulla.
Agora que os três reis do Oriente estavam reunidos, Elisabet compreendeu que o círculo estava concluído.
— Mas que nomes esquisitos vocês têm — disse ela. — Usam nomes como sábios, Reis Magos, Reis do Oriente, Gaspar, Baltasar e Melchior.
Melchior esboçou um grande sorriso:
— E ainda temos outros nomes. Em grego, chamam-nos Galgalat, Magalat e Sakarin. Não importa que nomes nos dão. Participamos nesta história em representação de todos aqueles que não vêm da Terra Santa.
Efiriel concordou.
— Pois claro! Então eu ia mentir? — continuou Melchior. — Poderia um Mago do Oriente ser mentiroso? Se assim fosse, não poderia ser ajuizado, seria antes um imbecil.
Elisabet não conseguiu evitar o riso com aquela maneira de falar. Melchior prosseguiu:
— Eu não seria Melchior se não gostasse de mel. Tampouco me chamariam Sakarin, se não gostasse de cana-de-açúcar. Resumindo e concluindo: apetece-me cantar e dançar! Na véspera de Natal estou sempre contente, porque Jesus nasceu.
— Basta! — disse o pastor Josué batendo com o cajado numa pedra:
— Para Belém! Para Belém!
Mas Melchior ainda falou:
— Vamos ali embaixo cumprimentar o Papai Noel!
Quando desciam aquela íngreme vertente para o Mediterrâneo, Elisabet perguntou:
— É verdade que vamos visitar o Papai Noel?
No sopé da montanha havia uma cidade e já se divisava o mar Mediterrâneo à distância.
— Estamos no ano de 322. Paulo, o apóstolo, visitou esta cidade quando ia para Roma pregar a doutrina de Jesus na capital do Império Romano. Também aqui em Mira criou uma congregação cristã.
— Não percebo que relação isso tem com o Papai Noel.
— Duzentos anos depois da passagem de Paulo por Mira — explicou o anjo, — nasceu um indivíduo do sexo masculino a quem deram o nome de Nicolau. Os seus pais eram cristãos e Nicolau veio a tornar-se bispo desta cidade. Nesses tempos vivia aqui uma moça muito pobre que não podia casar porque não tinha dote. O seu pai tinha perdido tudo. Nicolau queria ajudar a família, mas sabia que os pais da moça eram demasiado orgulhosos e não aceitariam dádivas.
— Não poderia o bispo depositar o dinheiro na conta deles? — sugeriu Elisabet.
— Isto passou-se muito antes de existirem bancos e instituições de crédito. Mas Nicolau fez uma coisa parecida. Uma noite, quando todos dormiam, atirou um saco com moedas de ouro por uma janela que estava aberta. Foi assim que a menina se casou.
— Mas que bondoso ele era!
— E essa não foi a única vez. Continuou a atirar dinheiro pelas janelas. Depois da sua morte, circularam muitos rumores a seu respeito. Mais tarde, chamaram-lhe São Nicolau. Em inglês é Santa Claus. Em português, Papai Noel. Os nomes Nils e Klaus, usados nos países escandinavos e germânicos, surgiram a partir do nome Nicolau.
— É verdade que também usava um traje e touca vermelhas e tinha barbas brancas?
— Já chegaremos lá! — disse Efiriel, o anjo.
Ainda não tinha amanhecido quando pararam diante de uma igreja em Mira.
A porta da igreja abriu-se imediatamente. De dentro, saiu um homem suntuosamente vestido, trajando uma capa encarnada, com barbas brancas e um chapéu na cabeça. Ao pescoço trazia um colar com uma pedra vermelha. Parecia um Papai Noel. Efiriel murmurou ao ouvido de Elisabet que estavam no ano de 325, depois do nascimento de Jesus, e era assim que os bispos se vestiam na época. Anos mais tarde, passaram a vestir-se de outra maneira.
— É o bispo Nicolau de Mira — sussurrou o anjo. Elisabet refletiu e perguntou:
— O nome Mira tem alguma coisa a ver com mirra?
— É possível — esboçou o anjo um sorriso. — Mirra foi uma das três ofertas ao Menino Jesus. A tradição de oferecer presentes no Natal começou com as ofertas que os Magos do Oriente fizeram a Jesus e com a generosidade do bispo Nicolau.
Nicolau segurava nas mãos três cofres diferentes. Dirigiu-se primeiro para os três sábios e, fazendo uma vênia, entregou um cofre a cada um deles: o cofre de Gaspar tinha moedas de ouro; o de Baltasar incenso e o de Melchior mirra.
— Vamos todos para Belém — disse Gaspar. O bispo Nicolau riu-se:
— Ah, ah! Então, é preciso levar umas ofertas para o Menino. É mesmo indispensável, não acham? Ah, ah!
Como este Papai Noel era verdadeiro, Elisabet correu em sua direção e tocou-lhe no traje vermelho. O Papai Noel agachou-se e sentou-a no seu braço. Ela puxou-lhe pelas barbas para ver se eram verdadeiras, e eram mesmo.
— Porque é tão bom? — perguntou.
— Ah, ah — riu-se Nicolau de novo. — Quanto mais damos, mais ricos nos tornamos. Por outro lado, quanto mais acumulamos para nós próprios, mais pobres ficamos. Este é pura e simplesmente o mistério da generosidade. Mas é também o mistério da pobreza.
— Bem dito, bispo! — aplaudiu Umuriel.
— Quem acumula fortunas na Terra, tornar-se-á um dia muito pobre — continuou o bispo Nicolau. — Por outro lado, quem partilha os seus bens terrenos, nunca será pobre e sentirá uma enorme alegria. Ah, ah! Não há alegria maior no mundo do que ser generoso.
— É possível que assim seja — disse Elisabet. — Mas não podemos dar uma coisa se não a possuímos.
O bispo riu-se com vontade e Elisabet, ainda sentada no braço dele, sentiu-se um pouco incomodada.
— Não, nem por isso — disse Nicolau. — Para sentir a alegria de dar, não precisa possuir o que quer que seja. Basta um sorriso ou que ofereça qualquer coisa que tu própria fizeste.
Em seguida, pousou Elisabet no piso de mosaicos do adro da igreja. Josué bateu com o cajado no chão:
— Para Belém! — gritou. — Para Belém!
O bispo riu mais uma vez quando os peregrinos se distanciavam:
— Ah, ah! Ah, ah! Ah, ah!
* * *
Desviando os olhos do papel, a mãe também riu. Joakim e o pai não se contiveram. Todos riram juntos. Depois a mãe comentou:
— O riso é como as flores silvestres.
Nem Joakim nem o pai compreenderam o significado daquelas palavras e ela apressou-se a acrescentar:
— Ambos são um bocadinho da glória celestial que caiu sobre a Terra. Ambos se expandem facilmente.
O pai foi buscar o Atlas de História antes da mãe ter acabado de ler o bilhetinho. Esse atlas apresentava a Europa, século a século. Mostrava os países da Europa no decurso da viagem que os peregrinos estavam a empreender ao longo de dois mil anos. Os mapas de história, empilhados todos em cima uns dos outros, fariam um monte de panquecas, todas diferentes umas das outras.
O pai desviou o olhar do atlas:
— Os nomes estão corretos. O apóstolo Paulo passou efetivamente por Mira quando viajava de Jerusalém para Roma.
— A Elisabet da fotografia deve ter seguido a mesma rota de Paulo — disse Joakim. — Ela também esteve em Roma.
— E tinha ao pescoço uma grande cruz de prata com uma pedra vermelha. — concluiu a mãe.
O pai riu-se. Levantou-se e, pouco depois, regressou à sala com uma enciclopédia na mão. Começou a ler:
— Este bispo que viveu em Mira foi o primeiro Papai Noel.
— Esta história tem muitas coincidências estranhas! — disse a mãe.
20 DE DEZEMBRO
...de repente, algo caiu do céu...
No domingo, dia 20 de Dezembro, Joakim acordou quando o despertador tocou no quarto do pais. Raramente os pais punham o despertador no domingo. Mas hoje queriam certamente estar presentes quando Joakim abrisse o calendário mágico. E, com efeito, apareceram logo no quarto.
— Vamos com isso! — disse o pai.
Joakim abriu a janela número vinte. Surgiu então um homem caído por terra a olhar para uma luz intensa que vinha do Céu.
— É uma gravura estranha, não é? — perguntou a mãe. Mas o pai estava impaciente:
— Vamos já ler o bilhete!
Sentaram-se. Nesse dia, o pai desdobrou e leu em voz alta aquele bilhetinho escrito com letras muito pequenas.
QUERUBÍEL
Um grupo de peregrinos atravessava a Ásia Menor. No século três, sete ovelhas, quatro pastores, três Reis Magos, três anjos do Senhor e Elisabet Hansen da Noruega atravessaram a Panfilia e a Cilícia, no Sul da cordilheira do Tauro. Atravessaram rios, pomares e planaltos. Ora subiam encostas escarpadas com antigos túmulos, ora caminhavam pela areia junto às praias. Por vezes, passavam a correr por cidades romanas como Atália, Seleucia e Tarso. Em Tarso, detiveram-se alguns segundos. Efiriel informou que esta era a cidade natal do apóstolo Paulo.
Durante o percurso visitaram vários teatros romanos, estádios de esportes, portos, arcos de triunfo e templos. Uma vez ou outra viram algumas construções que faziam lembrar igrejas.
Escolhiam sempre uma rota que lhes permitisse não serem vistos. Passaram aquele século ao ar livre e escolhiam sempre as horas em que as pessoas dormiam. Mesmo assim, assustaram alguns vigilantes noturnos e um ou outro pescador madrugador. Quase nunca paravam e os pobres pescadores ou vigilantes ficavam tão surpreendidos que até esfregavam os olhos para verem melhor. Umuriel dizia-lhes então que não tivessem receio.
Os anjos do Senhor nunca eram vistos por mais de um segundo ou dois. Assim era fácil crer que tinha sido uma visão, especialmente se fosse um vigilante noturno que não dormia durante toda a noite.
O grupo misterioso chegara entretanto ao golfo de Alexandria, no interior do Mediterrâneo. Dali até Belém, seguiriam ao longo da costa oriental do Mediterrâneo. Pararam à entrada da cidade síria de Antioquia:
— Estamos no ano de 228 da era do Senhor — anunciou Efiriel. — Aqui nesta cidade, fez Paulo o seu primeiro sermão. Também aqui, em Antioquia, foi usada a palavra «cristãos» pela primeira vez.
— Mas os cristãos não eram os discípulos de Jesus? — indagou Elisabet.
— Sim e não — respondeu Efiriel. — Os cristãos não se chamaram «cristãos» durante muito tempo. Foi aqui nesta cidade que isso aconteceu pela primeira vez. Antes disso, consideravam-se judeus. Paulo, que era judeu, descobriu durante as suas viagens que tanto os Romanos como os Gregos acreditavam em Jesus. Não achava fundamental ser judeu para acreditar em Jesus. Tampouco achava fundamental seguir as velhas regras das leis de Moisés. Jesus não se dirigia em especial aos Judeus, mas a todos os seres humanos.
Os sábios aproximaram-se de Efiriel.
— Somos os Magos do Oriente — disse Gaspar. — Mas somos também reis de Núbia, Sabá e Egriskulla. Não nos corre nas veias uma única gota de sangue judeu. Não obstante, seremos os primeiros a dar as boas-vindas ao Menino Jesus pela sua chegada ao mundo.
Josué bateu com o cajado na muralha da cidade.
— Para Belém! — gritou. — Para Belém!
Os peregrinos puseram-se em marcha. Efiriel anunciou que iam agora para Damasco, a capital da Síria.
Neste momento, passavam por uma zona deserta da estrada que atravessa a Síria e que fora construída pelos Romanos. Então Efiriel disse-lhes que parassem:
— Aqui está! — disse o anjo apontando para uma papoula encarnada no canto da estrada.
— Este é o lugar certo — anuiu Serafiel.
Elisabet não compreendeu nada, mas Efiriel prosseguiu:
— Estamos agora no ano de 235 após o nascimento de Jesus. Há duzentos anos deu-se um milagre, aqui neste local onde estamos agora, o qual teve grande significado para a História da Humanidade.
Os três sábios, um a um, mostraram-se de acordo. O imperador Augusto, que também não discordava, pousou o cetro no local assinalado por Efiriel.
Os quatro pastores rodearam o cetro que brilhava como um sol. Quirino, que tinha sido governador daquele país, chamou a atenção do grupo para a paisagem à volta e exclamou:
— Como é bom voltar para casa! Há apenas duzentos anos, ainda governava a Síria!
— Desculpe-me por ser tão direta — disse Elisabet, — mas eu não compreendo o que estão dizendo. Foi aqui que Jesus nasceu?
Efiriel riu-se e explicou:
— No ano 35 da era do Senhor, um judeu natural de Tarso, na Ásia Menor, ia a caminho de Damasco. Em romano, o seu nome era Paulo, e em judeu, Saulo. Quando era jovem, ele estudou as escrituras judaicas em Jerusalém. Nessa altura, conheceu Jesus e ouviu a Sua palavra. Mas Paulo era fariseu e os fariseus acreditavam que era possível agradar a Deus seguindo as leis e normas dos Livros de Moisés. Perseguiu os cristãos, mandou-os para a prisão e até aprovou a morte de Estevão.
— Mas que cretino! — exclamou Elisabet.
Todos os outros pensaram o mesmo. Efiriel tomou a palavra:
— Em Damasco, enquanto os cristãos eram perseguidos, passou-se uma coisa misteriosa. Paulo viu-se subitamente envolvido por uma luz intensa vinda do Céu. Então uma voz disse-lhe: «Saulo, Saulo, porque Me persegues?» Paulo perguntou quem era e a voz respondeu: «Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Ergue-te, entra na cidade e dir-te-ão o que tens a fazer.» Paulo e os seus companheiros ficaram espantados, sem poder falar. Todos eles ouviram aquela voz, mas não viam ninguém.
— Foi assim que se passou. A voz nem sequer disse: «não tenhais receio» — disse Umuriel.
— Assim Paulo entrou em Damasco, juntou-se à congregação e tornou-se o grande missionário cristão. Paulo era um cidadão romano, falava grego e aramaico, a língua de Jesus. Além disso, sabia ler as antigas escrituras em hebreu. Nas suas quatro viagens à Grécia, Roma, Síria e Ásia Menor pregou sobre Jesus.
Enquanto Efiriel falava, algo caiu do céu. Elisabet nem teve tempo de saltar. Antes de ver que era um outro anjo, pensou que era um pássaro que caíra por se ter esquecido de bater as asas.
— Não tenhais receio — disse o anjo. — Sou Querubiel e acompanhar-vos-ei durante o resto do percurso até Belém.
O imperador Augusto apanhou o cetro do lugar onde Paulo ouvira a voz vinda do Céu. Os pastores, por sua vez, empurraram levemente as ovelhas e Josué exclamou:
— Para Belém! Para Belém!
* * *
O pai deixou o bilhetinho pousar sobre a cama e disse:
— Mas que incrível!
Depois abriu o atlas e mostrou o trajeto percorrido pelos peregrinos no século três depois de Cristo. Com o dedo, apontou para o atlas e foi repetindo os nomes das cidades e dos países:
— Panfília, Cilícia, Atália, Seleucia, Tarso, Antioquia.
Era domingo e por isso tinham muito tempo. Os preparativos para o Natal iam avançando: a lavagem de roupa, a limpeza do chão, a confecção dos bolos e doces de massapão de cores diversas. Nesse dia, os pais não fizeram outra coisa a não ser ler o atlas e a enciclopédia. Queriam saber tudo acerca dos locais por onde os peregrinos tinham passado.
— Parece que voltei de novo à escola — disse a mãe rindo.
O pai folheou a Bíblia e leu uns excertos do livro de Atos dos Apóstolos. Dizia que, ao ouvir a voz vinda do Céu, Paulo caíra por terra na estrada para Damasco. Mais tarde, viajou pelos países mediterrânicos e proclamou a doutrina de Jesus.
Sentado na cadeira verde de balanço, o pai de Joakim lia a Bíblia, coisa que era rara.
A certa altura, pousou aquele livro espesso sobre as pernas:
— Para vos dizer a verdade — disse, — este livro é tão espantoso como o calendário mágico do Advento.
Em seguida leu mais umas passagens da Bíblia em voz alta:
— «Estava já próximo de Damasco, quando se viu subitamente envolvido por uma intensa luz vinda do Céu. Caindo por terra, ouviu uma voz que lhe dizia: “Saulo, Saulo, porque Me persegues?” Paulo perguntou: “Quem és Tu, Senhor?” E a voz respondeu: “Eu sou Jesus, a quem tu persegues. Ergue-te, entra na cidade e dir-te-ão o que tens a fazer.” Os seus companheiros de viagem pararam, emudecidos, ouvindo a voz, mas não vendo ninguém. Saulo ergueu-se do chão, mas, embora tivesse os olhos abertos, não via nada. Foi necessário levá-lo pela mão e, assim, entrou em Damasco, onde passou três dias sem ver, sem comer nem beber.»
Enquanto Joakim jantava, o telefone tocou. A mãe atendeu e passou o auscultador ao pai.
— Sim, sou eu — disse o pai. — Foi há muitos anos... Não, compreendo... Sim, a fotografia está muito nítida... ao fundo está a Basílica de São Pedro... Eu também não estava à espera... não, não queria... mas temos este calendário estranho... Sumiu-se... não, eu nunca o encontrei... Cá em casa, dizem o mesmo... sim, nariz afilado... Não, claro que não acredito em anjos... É possível que fosse raptada... não, por alguém... Para dizer a verdade, não sei... pode estar viva... Talvez já não se lembre de nada... tinha então sete anos... ou talvez nem isso... a única pista é o homem... creio que sim... Imediatamente, com certeza... fica assim combinado! Obrigado.
Depois, pousou o auscultador.
— Era Johannes? — perguntou Joakim.
— Não, era a senhora Hansen, a mãe de Elisabet — respondeu o pai. — Enviei-lhe uma cópia daquela fotografia antiga. Ela pensa que pode ser a fotografia da filha que desapareceu há mais de quarenta anos quando tinha entre seis e sete anos. A senhora Hansen teve ainda uma outra filha que se chama Anna. Ela...
O pai refletia.
— Diz lá o que tens a dizer! — disse a mãe.
— Esta outra filha é parecida com a jovem da fotografia que foi tirada diante da Basílica de São Pedro...
Antes de se despedir nessa noite, o pai foi à janela e olhou para a escuridão lá fora. Voltado de costas para Joakim, perguntou:
— Onde se teria metido Johannes?
— Em qualquer lugar — respondeu Joakim. — Mas o Natal ainda não chegou!
21 DE DEZEMBRO
...era como uma travessa de porcelana azul com bordas douradas...
Faltavam agora apenas quatro dias para o Natal e Johannes ainda não voltara ao mercado. O pai estava convencido de que tinha sido Johannes quem elaborara o calendário mágico do Advento, colocando dentro dele bilhetinhos muito bem dobrados que contavam a longa viagem dos peregrinos até Belém.
Johannes nascera em Damasco. O que o teria trazido à Noruega? Não seria melhor vender flores na sua própria terra?
Johannes conhecera uma mulher jovem chamada Elisabet. Talvez se tivessem encontrado em Roma, onde a fotografia fora tirada. Mas por que razão não saberia ele se essa mulher se chama Elisabet ou Tebasile?
A jovem teria dito que fugira de uma pequena aldeia palestiniana perto de Belém. Mas também dissera que tinha nascido na Noruega.
Um dia, Johannes visitou a mãe da menina que desaparecera em Dezembro de 1948. Provavelmente encontrara nessa ocasião Anna, a irmã mais nova da menina.
Teria ele achado que Anna era parecida com a jovem da fotografia tirada diante da Basílica de São Pedro?
Mas que motivos teriam levado esse misterioso homem da Síria a fazer investigações sobre um desaparecimento que se dera muito antes da sua chegada à Noruega?
Na segunda-feira, dia 21 de Dezembro, o pai acordou Joakim muito cedo:
— Vamos abrir o calendário agora mesmo! Hoje preciso chegar cedo ao trabalho. Mas isto também é importante! Talvez até mais importante que o meu trabalho.
Joakim abriu o calendário. Agora que o Natal se aproximava, sentia-se excitado, porque o calendário mágico do Advento iria chegar brevemente ao fim.
Nesse dia, a ilustração mostrava uma aldeia situada junto de um lago cintilante. A aldeia e as montanhas pouco elevadas, que rodeavam o lago, pareciam banhadas em ouro.
Joakim desdobrou o bilhetinho que saltou ao abrir a janela do calendário e leu-o em voz alta.
EVANGELIEL
Numa madrugada, no final do século II, os peregrinos entraram precipitadamente em Damasco vindos da margem do rio Barada. O grupo era composto por sete ovelhas, quatro pastores, três Reis Magos, quatro anjos do Senhor, o governador Quirino, o imperador Augusto e Elisabet.
Depois de se cruzarem com dois soldados que vigiavam a entrada ocidental da cidade, continuaram pela rua em frente, a qual atravessava Damasco de ponta a ponta.
Os soldados entreolharam-se estupefatos:
— O que foi isto?
— Foi uma rajada de vento do noroeste.
— Mas isto não foi apenas uma deslocação de ar e areia. Parece-me ter visto também umas pessoas.
Os soldados recordaram-se de uma história passada alguns anos antes. Nessa ocasião, um grupo de soldados fora derrubado por uma procissão que vinha da rua principal da cidade e se precipitava para a saída oriental. Eram pessoas, animais e, talvez, anjos.
Quando Elisabet, Efiriel e os outros acompanhantes saíram da cidade pela parte oriental tinham efetivamente tropeçado nuns soldados romanos. Estes, ainda atordoados, levantaram-se e viram o grupo que, entretanto, já se distanciava.
Um dia, ao fim da tarde, em meados do século II, atingiram o lago de Genesaré, na Galiléia. Pararam em frente de uma aldeia e admiraram a água brilhante do lago.
As colinas ao redor do lago pareciam formar uma coroa e, agora que o sol cintilava sobre elas, Elisabet imaginou que era uma travessa de porcelana azul com bordas douradas.
As casas da aldeia eram baixas, avistando-se num extremo um cercado para animais domésticos. Por entre as casas da aldeia, passavam jumentos guiados por homens que usavam túnica e capa. As mulheres usavam roupa larga e traziam bilhas à cabeça.
— É Cafarnaum. Por aqui passa a antiga estrada usada pelas caravanas que vão de Damasco ao Egito — anunciou Efiriel. — Foi aqui que Jesus recebeu os seus primeiros discípulos. Um deles foi Mateus, que era oficial de alfândega. Cafarnaum foi um importante entreposto alfandegário. Outros foram os irmãos Simão Pedro e André, que eram pescadores. «Vinde após Mim — disse-lhes Jesus, — e Eu farei de vós pescadores de homens.»
— Mas Ele também lhes ensinou a pescar peixe — acrescentou Umuriel.
Efiriel concordou:
— Um dia, estava Jesus a falar à multidão, quando viu duas barcas paradas à beira do lago. Uma dessas barcas pertencia a Simão Pedro. Jesus entrou nela e afastou-se um pouco da terra. Então, sentado na barca, falou à multidão. Esta foi uma excelente idéia porque permitiu que toda a gente O visse falar. Quando acabou de falar, disse a Simão Pedro que lançasse a rede para a pesca. Simão respondeu: «Mestre, trabalhamos durante toda a noite e nada apanhamos, mas porque Tu o dizes, lançarei as redes.» Assim o fizeram e apanharam uma quantidade tão grande de peixe que as redes quase se rompiam.
— Outra vez, estavam no alto mar e Jesus dormia — contou Umuriel. — Entretanto, levantou-se uma tempestade tão violenta que os discípulos tiveram medo de morrer. Então Jesus falou aos ventos e veio a bonança.
— Com isto Jesus quis mostrar a pouca fé dos discípulos — explicou Efiriel.
— Exatamente! — disse Umuriel. — Outra vez, em que os discípulos estavam sozinhos pescando, Jesus foi caminhando sobre o mar. Ao verem-No caminhar sobre o mar, os discípulos assustaram-se e disseram: «É um fantasma!» Simão Pedro compreendeu depois que era Jesus que estava ali e quis mostrar-se valente. Descendo da barca, caminhou sobre as águas para ir ter com Jesus. A princípio, tudo correu bem, mas sentindo a violência do vento e começando a afundar, gritou para que o Senhor o salvasse.
Josué bateu com o cajado num montão de pedras.
— Para Belém! — gritou — Para Belém!
Mal tinham começado a andar ao longo do lago Genesaré quando Efiriel os mandou parar. Apontando para um monte, disse:
— Foi ali que Jesus fez o famoso Sermão da Montanha. As coisas mais importantes que Ele transmitiu aos homens, foram proferidas ali.
— E o que é que Ele disse? — perguntou Elisabet.
Umuriel, o anjo-criança, abanou as asas e, voando a uns cinqüenta centímetros do chão, repetiu as palavras de Jesus:
— Pai Nosso que estais no Céu, santificado seja o Vosso nome! Venha a nós o Vosso reino. Seja feita a Vossa vontade aqui na Terra como no Céu...
Efiriel interrompeu-o:
— Jesus ensinou-os a orar. Mas Ele quis sobretudo que os seres humanos amassem o próximo. Pretendia mostrar que, aos olhos de Deus, ninguém é perfeito.
— Bem-aventurados sejam os misericordiosos... — disse Umuriel. — Se alguém te bater na face direita, oferece-lhe também a outra... Amai os vossos inimigos e orai por aqueles que vos perseguem... Não façais aos outros o que não quereis que vos façam a vós...
— Basta, obrigado — interrompeu Efiriel. — Todos nós já sabemos que tu sabes isso tudo. Era o que faltava se um anjo do Senhor não soubesse!
Os três sábios também queriam dizer qualquer coisa. Gaspar e Baltasar fizeram um sinal a Melchior e este tomou a palavra:
— Não basta decorar regras. O essencial é que as sigamos. Acima de tudo é importante ajudar os aflitos, os doentes, os pobres e os refugiados. Essa é que é a mensagem de Natal.
— Para Belém! — ordenou Josué de novo. — Para Belém!
Retomaram a marcha, mas logo Efiriel se dirigiu a Elisabet, explicando que naquele lugar Jesus saciara a fome de cinco mil pessoas com apenas alguns peixes e uns pães.
— Nem mais nem menos! — exclamou Umuriel. — Jesus quis mostrar com isto que é preciso partilhar o que possuímos. Se as pessoas partilhassem o que têm, não haveria fome nem pobreza no mundo. Tampouco haveria ricos. Mais valia que não houvesse pobres nem pessoas com fome, do que haver apenas meia dúzia de possuidores de grandes riquezas.
Já perto da aldeia de Tiberias, afastaram-se do lago Genesaré e continuaram por um caminho inclinado. Mais adiante, avistaram outra aldeia perto de um vale com palmeiras e árvores de fruto. Efiriel disse-lhes que parassem:
— Estamos presentemente no ano de 107 depois do nascimento de Jesus. Esta é a cidade de Nazaré onde cresceu Jesus, o filho de José, o carpinteiro. Foi aqui que um anjo do Senhor anunciou a Maria que ela ia ter um filho.
Efiriel foi interrompido por algo que pareceu ter caído do Céu. De repente, surgiu ainda outro anjo. Este tinha uma trompa na mão. O anjo tocou umas notas e depois disse:
— Chamo-me Evangeliel e tenho o prazer de vos anunciar que o nascimento de Jesus está para breve.
Umuriel que sobrevoava perto de Elisabet, anunciou:
— Ele é também um dos nossos. Vai acompanhar-nos na última etapa até Belém.
Então, Elisabet recordou-se de uma canção de Natal norueguesa e pôs-se a cantá-la o melhor que podia.
Quando acabou, os três Magos aplaudiram e Elisabet ficou um pouco atrapalhada. Para evitar que olhassem para ela, comentou:
— Com tantos anjos à nossa volta, estaremos em breve em Belém!
Josué bateu levemente numa ovelha e ordenou:
— Para Belém! Para Belém!
Faltavam cem anos para chegarem à cidade de David.
* * *
Enquanto Joakim lia, o pai olhava para o ar.
— Agora começa tudo a ter sentido — comentou o pai. Surpreendida, a mãe virou-se e perguntou:
— Já chegaram à Terra Santa?
— Ainda não — respondeu o pai. — Ontem, quando se aproximavam de Damasco, Quirino disse: «Como é bom voltar para casa!» É provável que ele tenha vivido em Damasco quando foi governador da Síria. Até parece que ouço Johannes dizer: «Como é bom voltar para casa!»
— Quer dizer que o Johannes do calendário mágico do Advento também nasceu em Damasco? — perguntou a mãe.
— Afinal quem é Quirino nesta história? — interrogou-se o pai. — Quirino ofereceu um calendário com a gravura de uma menina loura a Elisabet. E depois incluiu a sua história e a da jovem que encontrou em Roma. Quirino e o calendário do Advento apareceram no meio da história, mais precisamente nos capítulos doze e treze. Além disso, no fim de uma frase Quirino dizia sempre «dixi». Isto significa «falei». Parece mesmo que estou a ouvir Johannes! Aproveitou-se do calendário do Advento para se exprimir.
— Também me parece — disse a mãe.
— Hoje obtive uma informação de interesse — prosseguiu o pai.
— O que foi? — perguntaram a mãe e Joakim ao mesmo tempo.
— O velho florista descreveu várias cidades e locais por onde os peregrinos passaram a caminho de Belém. Mas hoje, pela primeira vez, ouvimos uma descrição detalhada da «rua em frente, a qual atravessava Damasco de ponta a ponta». Só uma pessoa que conhecesse bem a cidade poderia fazer uma tal descrição.
— É provável — disse a mãe. — Mas não teria Johannes ouvido a história dos soldados que foram derrubados pelos anjos?
— Mas que tolice! — disse o pai. E logo a seguir acrescentou:
— Tudo é possível. Mas como seria bom descobrir esse Johannes!
Joakim estava pensando noutra coisa. Olhou para o bilhetinho e assinalou uma frase:
— O Mago disse que é importante ajudar os refugiados. O que é que vocês concluem com isto?
O pai contorceu-se levemente:
— Pensou certamente nos refugiados que foram obrigados a deixar o seu país.
— Exatamente! — Disse Joakim. — Era precisamente aí que eu queria chegar.
O pai e a mãe entreolharam-se.
— A que se refere? — perguntou a mãe.
— Julgo que isso tem ligação com a mulher da fotografia. Ela também era uma fugitiva. Era a namorada dele.
O pai levantou-se da cama e, batendo as mãos, exclamou:
— Vamos! Tenho de sair dentro de dez minutos.
Nessa noite, antes de adormecer, Joakim fez um jogo de palavras. Pensou em Johannes que encontrara Elisabet em Roma. A palavra Roma correspondia à palavra «Amor» quando lida de trás para frente.
E acabou por escrever no pequeno livro de anotaçõess as seguintes palavras mágicas:
A disposição desta gravura fazia lembrar uma porta. Ou seria uma porta dentro de outra porta? O que é que se esconderia lá dentro?
22 DE DEZEMBRO
...ele comia gafanhotos e mel silvestre...
Joakim acordou muito cedo na manhã de 22 de Dezembro. O Natal seria dalí a três dias e faltavam apenas três janelas para acabar o calendário mágico do Advento.
Viria Johannes à cidade antes da véspera de Natal? Ele tinha prometido a Joakim que viria. Mas que quereria dizer com um lugar ermo?
De repente, Joakim teve uma idéia genial. O livreiro tinha dito que ninguém fazia idéia do lugar onde Johannes colhia as flores que vendia no mercado. Seriam apanhadas nos campos?
Em pleno Inverno, as flores não cresciam nos campos. Mas isso só era possível num país onde o Verão durava todo o ano. Johannes veio de um país quente, não veio?
Lembrou-se depois que Elisabet fizera a transição do Inverno para o Verão num abrir e fechar de olhos. Colhera também flores em pleno Inverno.
Joakim estava ansioso por saber que surpresas as últimas janelas do calendário mágico ainda lhe reservavam, mas não se atreveu a abrir o calendário antes dos pais chegarem. Faltavam agora somente três janelas por abrir.
Os pais chegaram. O pai denotava um certo nervosismo:
— Vamos... Comecemos!
Surgiu então a gravura de um homem andrajoso que estava num rio com água até à cintura.
A mãe desdobrou o bilhetinho e leu:
O DONO DA HOSPEDARIA
Os peregrinos atravessaram a Samaria numa correria desenfreada. O século I depois do nascimento de Jesus estava terminando. Do grupo faziam parte Umuriel, o anjo-criança, sete ovelhas sagradas e os pastores Josué, Jacob, Isaac e Daniel. Depois vinham os Reis Magos Gaspar, Baltasar e Melchior. Atrás, vinham o governador Quirino e o imperador Augusto. O Imperador trazia ainda o livro do recenseamento sagrado debaixo do braço e erguia um cetro brilhante para o céu azul. Mais atrás ainda, vinham Elisabet, os anjos Efiriel, Serafiel, Querubiel e Evangeliel. Iam todos para Belém, para Belém!
Numa madrugada do ano de 91, detiveram-se na margem do lago Genesaré de onde o rio Jordão corre para o Mar Morto.
— É aqui! — gritou Efiriel. Serafiel prosseguiu:
— Foi aqui no deserto que João, vestindo uma capa de pele de camelo e um cinto de couro em volta da cintura, batizou Jesus. João alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre.
— Eu sei — disse Umuriel. — João disse ainda: «Aquele que vem depois de mim, é mais poderoso do que eu e eu não sou digno de Lhe tirar as sandálias. Eu batizei-o com água e Ele batizar-vos-á com o fogo do Espírito Santo.» Então Jesus veio ter com João para ser batizado por ele no rio Jordão. Eu assisti a essa cena sentado numa nuvem e bati palmas. Foi um momento grandioso.
— E nesse momento não desceu uma pomba dos céus? — Elisabet lembrava-se de ter ouvido algo a esse respeito.
Umuriel bateu as asas e disse:
— Exatamente!
— Para Belém! — ordenou Josué — Para Belém!
A seguir passaram por uma grande cidade.
Sem abrandar a marcha, Efiriel informou que tinham chegado a Jericó, uma das cidades mais antigas do mundo.
Entre Jericó e Jerusalém apressaram o passo. Percorriam agora o local onde outrora o Bom Samaritano ajudara um pobre homem que tinha sido assaltado por ladrões.
Os peregrinos dirigiam-se a Jerusalém a uma velocidade vertiginosa. Do alto do Monte das Oliveiras, avistaram Getsémani onde Jesus foi preso pelos judeus e os apóstolos adormeceram quando deviam estar orando por Ele. Entretanto, Elisabet avistou a cidade de Jerusalém onde havia apenas ruínas e edifícios destruídos.
Poderia esta cidade ter sido de fato a capital dos Judeus?
Então Efiriel contou:
— Estamos no ano de 71. Há pouco menos de um ano, os romanos invadiram Jerusalém e saqueram a cidade, porque o povo judeu se opôs ao poder colonial dos Romanos. Hoje a Cidade Eterna parece um autêntico monte de cacos.
— Foi o imperador Tito quem mandou destruir a cidade! — disse Umuriel. — Como se pode ver, o Imperador utilizou um exército de milhares de soldados.
— Nem o templo escapou à destruição — continuou Efiriel. — Só ficou de pé o muro ocidental, que um dia se chamará Muro das Lamentações. A partir de agora, os Judeus dispersar-se-ão por todo o mundo.
— Às vezes, até me dá vontade de chorar — lamentou-se Umuriel. — Diz-se: «A Paz esteja convosco» e «Paz na Terra». No entanto, os homens nunca aprendem a viver em paz, apesar das palavras de Jesus ao ser preso: «Todos quantos se servirem da espada, à espada morrerão.»
— Quem festeja o Natal devia lembrar-se que a paz é a mensagem de Natal — referiu Efiriel.
— Nos cânticos de Natal faz-se alusão a isso — continuou agora Umuriel. — Cantamos «Louvado seja Deus nas alturas e paz na Terra!». Mas os seres humanos continuam a ignorar isso. Assim, acho que não vou cantar mais esses cânticos.
Josué bateu com o cajado no chão do Monte das Oliveiras:
— Para Belém! — gritou. — Para Belém!
Puseram-se a caminho, mas ainda tiveram tempo de ver algumas pessoas entre as ruínas. Uma mulher procurava qualquer coisa entre os edifícios destruídos.
Os peregrinos abandonaram Jerusalém pela entrada ocidental da cidade, tomando agora a direção para Belém. A cidade de David ficava a poucos quilômetros dali.
De repente, avistaram um homem montado num jumento. O homem olhou para o grupo e acenou com ambos os braços.
— Não tenhas receio! — Gritou Umuriel à distância. — Não tenhas receio!
Mas o homem não se assustou.
— É um dos nossos — disse Efiriel.
O homem encaminhou-se para os peregrinos e estendeu a mão a Elisabet:
— Sou o dono da hospedaria. Sou aquele que vai dizer a José e Maria que não há lugar na minha hospedaria. Mas vou oferecer-lhes o estábulo para passarem a noite.
Então o homem pegou em Elisabet e montou-a no jumento, dizendo:
— Deves estar cansada depois desta longa viagem.
— Não foi apenas uma viagem pela Europa — respondeu Elisabet. — Foi também uma viagem através da História. Foi tudo tão rápido como descer uma escada rolante correndo.
O homem não pareceu compreender.
— Disse «escada rolante»? — perguntou. Elisabet confirmou.
— Escada rolante? — repetiu o homem. — Mas que expressão engraçada! Escada rolante.
Josué bateu com o cajado no chão.
— Para Belém! — gritou. — Para Belém!
* * *
A mãe pôs o bilhetinho de lado e olhou para os outros com uma expressão solene.
— «Então Jesus foi ter com João no deserto para ser batizado por ele» — disse o pai.
— Eu sei — apressou-se a dizer Joakim imitando Umuriel. E continuou, com excitação:
— Johannes, o florista, também anda por lugares desertos. E entorna água sobre a sua própria cabeça e sobre a cabeça do livreiro. Claro!
— Isso não é uma coincidência! — disse o pai. — Como é possível que nunca tivéssemos pensado no nome Johannes?
— A água é indispensável para os seres humanos e para as flores — continuou Joakim. — As flores dos campos são um bocadinho da glória celestial que caiu sobre a Terra. O rio Jordão transbordava de glória celestial.
O pai não prestou atenção ao que Joakim disse e levantou-se da cadeira. Voltou depois com a Bíblia que tinha estado a ler durante todo o domingo. Desta vez leu em voz alta:
Uma voz clama no deserto:
preparai o caminho do Senhor,
tornai as suas veredas diretas.
Que todo o vale seja aplanado,
toda a colina e toda a montanha sejam rebaixadas,
todos os cumes aplainados
e que todos os terrenos escarpados sejam nivelados!
Então a glória de Deus manifestar-se-á
e todas as criaturas a verão.
— Mas que poético! — comentou a mãe.
— Esta é a mensagem do calendário mágico do Advento — continuou o pai. — Os peregrinos subiram vales, colinas e montanhas. No trajeto para Belém tiveram ocasião de verificar que a fama de Jesus se estendia por todo o mundo.
— Talvez — disse a mãe. — Mas não descanso até saber quem é a Elisabet número um, dois e três!
Chegara a hora dos pais irem para o trabalho e Joakim para a escola. Nesse, dia a turma de Joakim representaria uma peça de Natal para toda a escola. Coubera-lhe o papel de pastor.
No regresso para casa, Joakim chegou à conclusão que ele e os companheiros que representaram a peça de teatro tinham também até certo ponto empreendido uma viagem idêntica à do calendário mágico do Advento.
Quando entrou, viu uma carta no chão que alguém pusera por baixo da porta. «Para Joakim» — dizia o sobrescrito.
Abriu a carta apressadamente e leu. O bilhete dizia:
Prezado Joakim:
Tomo a liberdade de me convidar para lanchar na antevéspera de Natal, pelas 19 horas. Espero que a tua família esteja presente.
Cumprimentos,
Johannes.
A mãe chegou em casa. Joakim decidiu falar na carta de Johannes só quando estivessem todos presentes. Então escolheu a hora do jantar, exatamente como fizera com a carteira de motorista que o livreiro viera entregar em casa.
— Recebi hoje uma carta.
E esboçou um sorriso.
— Ah, sim? — respondeu o pai desinteressado.
— É uma carta de Johannes.
— O quê?
O pai quase se engasgou. Levantou-se da cadeira e, com a mão estendida, pediu:
— Posso ver?
Ele voltara a esquecer-se que não devia ler as cartas dos outros. Joakim foi buscar a carta no quarto. O pai leu em voz alta:
Prezado Joakim:
Tomo a liberdade de me convidar para lanchar na antevéspera de Natal, pelas 19 horas. Espero que a tua família esteja presente.
Cumprimentos,
Johannes.
A mãe estava boquiaberta:
— É amanhã, às sete horas. Claro que estaremos aqui!
— Johannes passará por aqui amanhã para tomar café conosco — sorria o pai satisfeito. — Vamos servir um pouco de tudo aquilo que temos para o Natal. E não podemos esquecer do bolo-rei, porque o Natal está chegando!
23 DE DEZEMBRO
...como se repetissem uma coisa que já sabiam de cor...
O Natal está chegando! — pensou Joakim quando acordou na antevéspera de Natal. Estava impaciente por abrir a penúltima janela, mas só o faria quando os pais acordassem e fossem ao seu quarto. E eles já estavam ali! O pai não ia trabalhar nesse dia.
Quando abriu a janela do calendário, Joakim viu uma mulher vestida de vermelho montada num jumento. A seu lado caminhava um homem. De dentro saltou um bilhetinho muito bem dobrado. O pai abriu-o e a sua mão tremia quando começou a ler:
JOSÉ E MARIA
Os peregrinos dirigiam-se para Belém. Vinham dos países mais diversos: um vinha de um país frio, estreito e extenso que fica situado abaixo do Pólo Norte e outro da Judéia, um país quente, que liga a Europa, Ásia e a África. Partiram todos de um futuro distante recuando em direção ao início da nossa era.
Na última etapa antes de alcançarem a cidade de David, eram agora sete ovelhas, quatro pastores, três Reis Magos, cinco anjos do Senhor, o imperador Augusto, o governador Quirino, o dono da hospedaria e Elisabet que ia montada num jumento.
Mantinham um ritmo moderado como se caminhassem normalmente. Efiriel anunciou que estavam no ano zero. Então apontou para um ponto à distância e informou que aquilo era a cidade de Belém.
De repente, o imperador Augusto colocou o seu cetro atrás de uma oliveira. Endireitando-se, abriu o livro que tinha debaixo do braço.
— Chegou finalmente o momento esperado! — disse com ar austero.
Os peregrinos não reagiram e o Imperador continuou de modo mais formal:
— Ordeno que vos inscreveis no recenseamento!
Em seguida, passou um bocado de carvão aos presentes. Até os anjos escreveram o seu nome no grande livro. As ovelhas, provavelmente porque eram analfabetas, ficaram isentas.
Elisabet leu os nomes que ali estavam escritos, antes de se inscrever e assinar:
1° pastor — Josué
2° pastor — Jacob
3° pastor — Isaac
4° pastor — Daniel
1° Rei Mago — Gaspar
2° Rei Mago — Baltasar
3° Rei Mago — Melchior
1° anjo — Efiriel
2° anjo — Umuriel
3°anjo — Serafiel
4° anjo — Querubiel
5° anjo — Evangeliel
Quirino, governador da Síria
Augusto, imperador do Império Romano
O dono da hospedaria
Elisabet registrou o seu nome da seguinte maneira:
1° peregrino: Elisabet
Nessa ocasião, ocorreu-lhe uma idéia. Ainda que não tivessem nome, nem soubessem escrever, Elisabet registrou as ovelhas no Recenseamento da seguinte forma:
1ª ovelha
2ª ovelha
3ª ovelha
4ª ovelha
5ª ovelha
6ª ovelha
7ª ovelha.
Elisabet ergueu o olhar para o imperador Augusto. Estava com medo que ele se zangasse por ela ter rabiscado o livro do recenseamento. Porém, o imperador fechou o livro e não disse nada.
Com Elisabet e as sete ovelhas, o recenseamento dava conta de vinte e três peregrinos.
Depois de recenseados, os peregrinos passaram a comportar-se com maior formalismo que em Skâne, Hameln,Veneza, Constantinopla, Mira ou em Damasco.
Então Efiriel anunciou:
— «Ao deixar a cidade de Nazaré, na Galiléia, José dirigiu-se à Judéia, à cidade de David, chamada Belém, porque ele pertencia à casa e linhagem de David, a fim de recensear-se com Maria, sua mulher, que se encontrava à espera de um filho.»
Apesar de os peregrinos se deslocarem agora lentamente, Efiriel disse-lhes que parassem para lhes mostrar um homem que caminhava ao lado de uma mulher vestida de vermelho, montada num jumento. Belém, ao fundo, parecia construída sobre terraços. Nas encostas não havia erva, certamente porque muitos rebanhos tinham pastado por ali.
— Ali vão José e Maria — disse Efiriel. — Está chegando o momento! O fruto está maduro!
O dono da hospedaria, que parecia apressado, exclamou:
— Tenho que chegar antes deles!
Enquanto corria pelas colinas, ia dizendo:
— Lamento, mas não tenho lugar na hospedaria. Se quiserem, podem ficar no estábulo...
Entre os peregrinos reinava agora um certo nervosismo. Era como se repetissem uma coisa que já sabiam de cor...
Umuriel voava a uns metros do chão e, batendo as asas, dizia:
— «Não temais, trago-vos uma grande alegria, que também o será para todos os homens. Hoje, na cidade de David, nasceu um Salvador, o Messias. E isto servir-vos-á de sinal para O identificardes: Encontrareis um Menino envolto em panos e deitado numa manjedoura.»
Efiriel concordou.
— Mas que fantástico! — exclamou Umuriel.
Evangeliel, o anjo, tocava trompa e outros cinco anjos diziam em coro:
— «Glória a Deus nas alturas e paz na Terra aos homens de boa vontade.»
As ovelhas baliram, como se recitassem algo que já sabiam.
Josué, o pastor, voltou-se então para os restantes pastores e disse:
— «Vamos a Belém e vejamos o que aconteceu e o que o Senhor nos deu a conhecer.»
Os Reis-Magos retomaram a palavra:
— «Onde está o Rei dos Judeus que acaba de nascer? Vimos a Sua estrela no Oriente e viemos adorá-Lo.»
Em seguida, prostraram-se e abriram os cofres dos presentes: ouro, incenso e mirra.
Evangeliel, o anjo, estava satisfeito.
— Agora já está bom!
Josué pousou o cajado sobre uma ovelha.
— Para Belém! — disse, — Para Belém!
* * *
Ninguém dizia nada e o pai de Joakim mantinha o bilhetinho sobre o joelho.
À medida que os peregrinos se aproximavam de Belém, gerara-se um certo nervosismo entre eles. Ali, no pequeno quarto de Joakim, acontecia exatamente o mesmo.
— Este calendário deve ser o único que existe no mundo! — adiantou o pai. — E foi chegar justo a nós!
— A verdadeira noite de Natal aconteceu só uma vez, mas essa noite deu início ao Natal em todo o mundo.
— A glória celestial expande-se tão facilmente. É quase contagiosa!
Havia ainda muito que fazer até ao Natal. A árvore de Natal era habitualmente decorada quando Joakim já estava na cama. Mas este ano seria decorada pelos três juntos antes de Johannes chegar. Assim tudo ficaria pronto para o Natal.
A tarde chegou. A mãe pôs a mesa com as guloseimas habituais da época natalícia sem esquecer o bolo-rei.
Às sete horas alguém bateu à porta.
— Abre tu, Joakim — disse a mãe. — O calendário é teu. Johannes vem aqui por tua causa.
Joakim correu para a porta. Ali estava o velho florista! Sorria satisfeito e trazia um grande ramo de rosas na mão.
— Entre, por favor — convidou Joakim.
Os pais de Joakim aproximaram-se. Johannes ofereceu o ramo de flores à dona da casa.
— Muito obrigada — agradeceu a mãe de Joakim. — Estou muito grata por aquele extraordinário calendário do Advento.
Johannes pousou a mão na cabeça de Joakim e disse humildemente:
— Sou eu quem tem de agradecer.
Dirigiram-se para a sala e sentaram-se. Depois de provar o café, Johannes contou:
— Eu nasci em Damasco. A minha família é cristã e, ao que parece, descende das primeiras comunidades cristãs.
— Sério? — perguntou o pai.
— Uma vez, quando eu era pequeno — prosseguiu Johannes, — encontrei uns pergaminhos pouco legíveis dentro de uma jarra. Os meus pais tiveram o cuidado de entregar os pergaminhos e a jarra a um museu, onde imediatamente concluíram que se tratava de coisas muito antigas.
O pai de Joakim estava impaciente:
— Que pergaminhos eram esses?
— Eram relatos dos legionários romanos. Falavam de um episódio ocorrido em Damasco no final do século II. No ano de 175, um grupo desconhecido teria saído precipitadamente da cidade pelo lado oriental. Uns anos mais tarde, um grupo idêntico entrou pelo lado ocidental. Em ambos os casos, o grupo ia acompanhado de anjos.
Os pais de Joakim lembravam-se de ter lido aquela descrição no calendário mágico do Advento.
— Antigamente, havia muitos contos e lendas deste gênero — continuou Johannes. — Mas o que me deixou perplexo, foi o fato de o grupo ter saído antes de ter entrado na cidade. Isso só poderia acontecer se o tempo andasse em sentido retrógrado e isso é impossível.
— Claro que é impossível! — concordou o pai.
— Nessa ocasião, comecei a interessar-me por contos e lendas. Li muitos livros antigos, especialmente de pessoas que afirmavam ter visto anjos. Colecionei muitas histórias do meu país e de vários países europeus. Mais tarde, fui a Roma para ter a oportunidade de examinar as bibliotecas de valor incalculável que lá existem.
— Foi nesse tempo que encontrou Elisabet? — perguntou Joakim. Johannes disse que sim:
— Mas um momento! Eu interessei-me especialmente por aquelas histórias que se pareciam umas com as outras. Essas histórias circulavam nos mais diversos lugares: em Hannover, em Copenhagen, em Basiléia, em Veneza, no vale de Aosta, no Norte de Itália, e no vale de Axios, na Macedônia. E em épocas diferentes. A história mais antiga foi contada em Cafarnaum, na Galiléia, e a mais recente, no ano de 1916, em Halden, na Noruega.
— O carro antigo! — exclamou Joakim.
— Muito poucas pessoas acreditam agora nessas histórias. As histórias que eu juntei, falavam todas de uma menina e de um anjo que apareciam no máximo por dois segundos. Comparei as descrições de Halden, Hannover e Hameln com as de Aosta, Axios e de Cafarnaum. Eram todas muito estranhas.
O velho florista calou-se uns instantes, entregue aos seus pensamentos.
— Qualquer coisa misteriosa que dura um segundo, extingue-se no momento seguinte como uma lamparina. Quando viramos a cabeça, outra nova luz se acende no lugar de onde desviamos a vista. Não se apanham as coisas divinas da mesma forma que se apanha uma pedra do chão para a guardarmos depois no bolso. Os anjos descem discretamente dos céus. Jamais pousam no meio do mercado.
— O que é que se passou com a jovem da fotografia?
Johannes respirou fundo. Depois suspirou. Tinha uma lágrima no canto do olho. Levando a mão ao rosto, disse:
— Em tempos que já se vão, conheci uma jovem mulher em Roma. Encontramo-nos durante algumas semanas e eu me apaixonei por ela.
— Continue, por favor! — pediu o pai. — Continue!
— Essa mulher era muito reservada e chamava-se Tebasile. Contou-me que nascera na Noruega, mas crescera entre pastores e lavradores na Palestina. Acredito que é verdade, porque ela falava o árabe fluentemente. O nome Tebasile soa a árabe... mas também podia ser italiano.
— Mas Tebasile é Elisabet se for lido de trás para a frente! — exclamou Joakim.
— Pois é! — concordou Johannes — Mas que espertalhão que tu és! Não é nada comum inverter um nome.
— Continue! — voltou a pedir o pai de Joakim.
— Tebasile podia ser norueguesa, porque era loura, tinha uns olhos azuis cintilantes e uma pele muito alva. Quando lhe perguntei porque fora para a Palestina, fitou-me intensamente e respondeu: «Fui raptada...». Depois eu quis saber quem a raptara e ela respondeu: «Um anjo que desejava a minha presença em Belém... há muito tempo... era eu ainda criança...»
Para evitar um grito de surpresa, a mãe de Joakim tapou a boca. O pai batia com a caixa de fósforos na mesa e indagou:
— E depois?
— As pessoas achavam graça da maneira como Elisabet se exprimia. No entanto, eu que conhecia as histórias de anjos, disse que acreditava nela... Ao que parece, isso assustou-a.
— E o que aconteceu depois?
— Depois disto, só a vi mais uma vez na Via da Reconciliação em frente à Praça de São Pedro. Nesse dia, ela informou-me que iria deixar Roma. Isto passou-se em 1961, no ano em que lhe tirei a fotografia.
— E como é que o senhor veio parar na Noruega? — perguntou o pai de novo.
Johannes serviu-se de uma fatia de bolo-rei.
— Vim até aqui para ver se encontrava aquela mulher misteriosa — respondeu. — Como nunca a encontrei, fiquei por aqui. Só hoje soube do seu paradeiro. Falaremos nisso mais tarde...
Johannes levou o bolo à boca.
— Pouco tempo após a minha chegada à Noruega, ouvi falar de um desaparecimento ocorrido em 1948. Então pensei que a pobre menina podia ser Tebasile que fora raptada quando pequena por um anjo. Eu não sabia que idade ela tinha quando a conheci, mas calculei que tinha nascido por volta de 1940.
Passados uns instantes, Johannes acrescentou:
— Só recentemente me dei conta de que os dois nomes são semelhantes! É verdade que muitas vezes repetimos mentalmente o nome de uma pessoa em quem pensamos, até que, um dia, o lemos de trás para a frente. O nome Tebasile não me saía do pensamento quando cheguei à Noruega. De repente, surgiu diante de mim aquilo que sempre procurei, como um raio que cai do Céu em pleno dia de sol. Ao ler Tebasile de trás para diante obtive Elisabet! Nesse instante, convenci-me de que a Elisabet desaparecida e a Elisabet que eu encontrara em Roma eram a mesma pessoa. Foi nessa altura que comecei a fazer o calendário mágico.
— E sem dúvida uma coincidência incrível — disse o pai.
— Durante muito tempo não deixei de me perguntar se as duas Elisabetes seriam uma única pessoa — sublinhou Johannes. — É espantoso como um nome é igual ao outro, invertendo o sentido em que se lê. Isso deve ter acontecido quando conheci a Anna, a irmã mais nova de Elisabet. O nome Anna é sempre igual, quer lido de um lado quer do outro. Foi isso que me fez ler o nome Elisabet ao contrário. Além disso, achei Anna parecida com Elisabet...
A mãe de Joakim olhou para Johannes:
— Porque é que, em vez do calendário do Advento, não escreveu um livro?
Johannes riu-se:
— A senhora acha que alguém acreditaria naquilo que eu escrevesse? E quem me publicaria o livro?
A mãe de Joakim concordou.
— Eu achei melhor que pelo menos uma pessoa lesse a história de Elisabet e do calendário mágico — continuou Johannes. — Talvez assim o mistério se desvendasse um dia. Além disso, eu não sei quanto tempo tenho de vida. Agora sei que algumas pessoas conhecem esta história incrível.
— E um dia deixou a fotografia de Elisabet na vitrine da livraria — acrescentou a mãe.
— Deixei a fotografia na livraria para ver se alguém a reconhecia — disse o velho florista.
— E porque é que se isolou depois? — perguntou Joakim. Então ele contou:
— Todos os anos, pelo Advento, eu passeio através dos bosques e colinas. Confesso que faço isto para encontrar a paz interior antes de o Natal chegar e para ver se descubro alguns vestígios do cordeiro do chocalho, de Elisabet e de Efiriel, que partiram para Belém, em 1948. Penso também nos nomes Elisabet... Tebasile... Elisabet.
— Nunca pensou voltar para Damasco? — perguntou o pai.
— Nunca — respondeu Johannes. — Esta agora é a minha pátria. Vendendo flores no mercado, também ajudo a espalhar a glória celestial que existe à nossa volta. A glória celestial expande-se facilmente. Elisabet poderá um dia vir à Noruega. A história ainda não acabou...
Neste momento, quase que se podia ouvir a poeira pousar na sala tal era o silêncio. Então Johannes olhou para Joakim e disse:
— Tentei encontrar Elisabet, porque julguei que conhecia o seu sobrenome. Mas encontrar uma Elisabet ou uma Tebasile em Roma ou na Palestina era como apanhar um pássaro em pleno vôo. Nas embaixadas e nos cartórios de registo civil por esse mundo afora escarneceram de mim. Foi Joakim quem...
O silêncio voltou novamente à sala.
— Penso que Joakim me ajudou a encontrá-la. Estou-lhe grato por isso.
Joakim não compreendia aquilo a que Johannes se referia e olhou para os pais.
— Pode explicar-se melhor? — pediu a mãe.
— Joakim deu-me a idéia de usar os dois nomes ao mesmo tempo, um como nome próprio e o outro como sobrenome. É estranho, mas as pessoas deixam de ter imaginação quando pensam sempre na mesma coisa, ano após ano!
Joakim ficou excitadíssimo com isto:
— Elisabet Tebasile! É esse realmente o seu nome?
O velho homem ficou com lágrimas nos olhos:
— Na lista telefônica de Roma há alguém com esse nome. O Natal ainda não chegou! A última janela do calendário só será aberta amanhã.
— Posso ver o calendário do Advento antes de me despedir? — Pediu Johannes ao sair.
Joakim foi ao quarto e trouxe o calendário. O velho florista olhou atentamente para o calendário.
— Pode abrir todas as janelas que eu já abri.
Johannes abriu as janelas:
— Estão todos aqui: Quirino, o imperador Augusto, os anjos, os pastores, os Reis Magos, Maria, José e o Menino Jesus.
— Mas ainda falta Elisabet — comentou Joakim.
— É verdade! Elisabet não está aqui. Dirigindo-se para a porta, Johannes adiantou:
— Veremos o que este Natal nos traz.
— Vamos ver! — respondeu o pai, como se já estivesse satisfeito com a história que Johannes acabara de contar.
— Não vão abrir a última janela antes das cinco horas de amanhã, não é? — perguntou ainda Johannes.
— E porque não? — perguntou a mãe.
— É melhor esperar até ao último minuto! — decidiu o pai.
Já do lado de lá da porta, Johannes disse finalmente:
— Amanhã, talvez passe por aqui de novo!
Joakim estava feliz e excitadíssimo. Johannes viria no dia seguinte! Aquelas explicações não o tinham deixado satisfeito. Parecia que ainda faltava qualquer coisa.
24 DE DEZEMBRO
...era também uma faísca da grande fogueira que ardia por trás das tênues lanternas do firmamento...
O Natal começou como sempre. Na última hora faltava sempre fazer qualquer coisa e alguns presentes ainda estavam por embrulhar. Mesmo assim, os pais de Joakim foram espiar o calendário no quarto. A última janela seria aberta nesse dia ao fim da tarde.
O jantar de Natal começou a ser cozido durante a tarde. Toda a casa cheirava a comida. Finalmente bateram as cinco horas! O pai de Joakim abriu uma das janelas da casa e olhou lá para fora. Nesse momento, ouviram-se os sinos da igreja.
Então, em silêncio, dirigiram-se para o quarto de Joakim. Este abriu a última janela do calendário do Advento. Era maior que todas as outras e mostrava a manjedoura onde o Menino Jesus estava deitado. Por trás, via-se uma gruta na montanha.
Pela última vez, sentaram-se na beira da cama. Joakim abriu o bilhetinho e leu em voz alta.
O MENINO JESUS
Ficava situado no meio do mundo, entre a Europa, a Ásia e a África. Ficava também no meio da história, onde começava a nossa era. Anoitecia.
Um grupo silencioso passava discretamente por entre as casas em Belém. Dele faziam parte sete ovelhas, quatro pastores, cinco anjos do Senhor, três Reis Magos, um imperador romano, o governador da Síria e Elisabet, uma menina que vinha de um país extenso e estreito situado ao sul do Pólo Norte.
A luz esmorecida das lamparinas iluminava algumas das casas. Quase todo mundo dormia.
Um dos Reis Magos apontou para o Céu. As estrelas no firmamento pareciam faíscas de uma fogueira muito distante.
Uma estrela, que parecia estar mais baixa, distinguia-se das outras.
Umuriel, o anjo-criança, virou-se para os outros, fez sinal para que não falassem e sussurrou:
— Silêncio... Silêncio...
Os peregrinos aproximaram-se, pé ante pé, de uma hospedaria da cidade. O dono apareceu à janela e, ao ver aquele grupo, apontou para a gruta na rocha.
Efriel disse qualquer coisa que fazia lembrar uma antiga história para crianças:
— E enquanto eles ali se encontravam, chegou o dia de ela dar à luz, o seu filho primogênito, e ela envolveu-o em panos e deitou-o numa manjedoura, porque não havia lugar para eles na hospedaria.
Cautelosamente, os peregrinos atravessaram o quintal e pararam diante da gruta. Pelo cheiro típico que dali emanava, viram logo que era um estábulo.
De repente, o choro de uma criança interrompeu o silêncio.
Chegou o momento! Aconteceu num estábulo em Belém!
Uma estrela cintilava no céu, por cima do estábulo. O Menino Jesus foi envolto em panos e deitado numa manjedoura.
Ligou-se o Céu à Terra! O Menino, que ali estava, era também uma faísca da grande fogueira que ardia por trás das tênues lanternas do firmamento.
Um milagre! Quando uma criança vem ao mundo, dá-se sempre um milagre. Isso acontece aqui na Terra quando surge uma nova vida.
Uma mulher respirava ofegante e chorava. Porém, não era um choro amargurado. Maria chorava em silêncio porque transbordava de felicidade. O Menino Jesus tinha nascido. Tinha nascido num estábulo em Belém. Acabava de chegar a este triste mundo.
Efiriel virou-se para os outros peregrinos e disse solenemente:
— Hoje, aqui na cidade de David, nasceu um Salvador.
O imperador Augusto acenou com a cabeça:
— E agora chegou a nossa vez. Cada um de nós tem de ocupar o seu lugar, não se pode esquecer do seu papel. Ensaiamos isto durante quase dois mil anos.
A um sinal do imperador, Quirino falou:
— Pastores! Apascentai os vossos rebanhos e sede sempre bons pastores. Reis Magos! Conduzi os vossos camelos para o deserto e lembrai-vos sempre de olhar para as estrelas no Céu. Anjos! Voai mais alto que as nuvens! Aparecei só muito excepcionalmente aos seres humanos e jamais vos esqueçais de dizer «Não tenhais receio». Jesus acaba de nascer!
Depois, os pastores, as ovelhas, os anjos e os Magos desapareceram. Elisabet estava agora só com Quirino e o imperador Augusto.
— Tenho de regressar imediatamente a Damasco — disse Quirino. — Uma tarefa importante espera por mim.
— A minha presença também é imprescindível em Roma onde me foi confiada uma missão especial — acrescentou Augusto.
Quirino e Augusto estavam para partir. Elisabet apontou para o estábulo e perguntou:
— Posso entrar ali dentro?
O imperador sorriu e respondeu:
— Claro que pode. É ali que vais desempenhar o teu papel.
— Pensas que fizemos toda esta caminhada até aqui para que ficasses aí embasbacada? — disse Quirino com determinação.
Com estas palavras, os dois romanos regressaram imediatamente aos seus postos pelo mesmo caminho por onde tinham vindo.
Elisabet elevou os olhos para o céu e, reclinando a cabeça, olhou fixamente para a grande estrela cintilante lá no alto. O Menino chorou de novo. Então, Elisabet entrou no estábulo.
* * *
O pai ergueu-se da cama e, tocando no ombro de Joakim, disse:
— Mas que calendário fenomenal chegou a nós este ano!
O pai pensava que a história acabara ali.
* * *
Joakim porém continuava insatisfeito. Onde estaria Elisabet? A mãe, que até ali se mantivera pensativa, levantou-se.
— O jantar está quase pronto — anunciou. — É melhor por agora os presentes debaixo da árvore de Natal. Este ano também tenho umas pequenas surpresas.
Mal ela dissera isto, alguém bateu à porta. Joakim foi abrir. Era Johannes. Nesse dia, parecia ainda mais feliz do que na véspera.
— Passo por aqui só para agradecer — disse Johannes.
Os pais aproximaram-se e convidaram-no a entrar. Na mesa havia bolo-rei e Joakim foi buscar xícaras e pires para servir café.
Johannes olhou para as três pessoas ali presentes que estavam sentadas em volta da mesa. No seu rosto transparecia um ar misterioso:
— A semelhança da obra de Criação Divina fui desenhando no calendário do Advento gravuras que fazem surgir sempre algo de novo. Quanto mais sabemos, melhor vemos as coisas que nos rodeiam. Por outro lado, quanto melhor vemos as coisas, melhor as compreendemos. Se mantivermos os olhos e os ouvidos bem abertos para o mundo notável em que vivemos, descobriremos sempre alguma coisa pela primeira vez.
O pai abanou a cabeça.
— Eu não sabia que o velho mistério da menina desaparecida há mais de cinqüenta anos ia ter um desfecho hoje — continuou Johannes.
A mesma expressão misteriosa apareceu novamente no rosto de Johannes.
Joakim olhou-o fixamente e perguntou:
— Teve mais notícias de Elisabet?
Alguém bateu à porta nesse instante. Johannes não teve oportunidade de responder.
Os pais entreolharam-se.
— Abre tu, Joakim! — disse Johannes. — Já que abriste as janelas do calendário, agora é a tua vez de abrires a porta. Mas, desta vez, abre-a pela parte de dentro.
Joakim reparou que os pais estavam de mãos dadas quando se dirigiu para a porta. Estariam eles a pensar que era Efiriel? Em todo o caso, não pareciam muito confiantes.
Quando abriu a porta, viu uma mulher dos seus cinqüenta anos. Vestia um casaco vermelho e o seu cabelo, que fora louro, começava a ficar branco. A mulher estrangeira, sorridente, estendeu a mão a Joakim:
— És o Joakim, right? — perguntou.
Embora confuso, Joakim sabia quem ela era. Estendeu-lhe a mão e disse:
— Elisabet Hansen! Entre, por favor!
Os pais ainda estavam de mãos dadas. O velho florista desatou a rir. Agora fazia lembrar o bispo Nicolau do calendário mágico de Advento.
Elisabet despiu o casaco e segurou-o no braço. Ao pescoço tinha uma grande cruz de prata com uma pedra vermelha.
Johannes acabou de rir e ergueu-se da cadeira, dizendo:
— Gostaria de lhes apresentar Elisabet Tebasile Hansen, uma única e a mesma pessoa. Eu cheguei alguns minutos antes, mas aqui está ela!
Joakim colocou-se em frente dos pais que pareciam também estar confusos. Então Joakim, abanando os braços, disse:
— «Não tenhais receio!» «Não tenhais receio!».. «Não tenhais receio!» Os pais levantaram-se da cadeira e cumprimentaram Elisabet. A mãe foi guardar o casaco e ofereceu uma cadeira a Elisabet. O pai foi à cozinha buscar outra xícara de café e, quando voltou à sala, embora Elisabet não falasse norueguês, disse:
— Acho que preciso de uma explicação. Acho mesmo que mereço uma explicação.
— Vou falar norueguês para que Joakim compreenda — anunciou Johannes. — Este encontro nunca se teria dado se não fosse ele.
A mulher parecia estar a compreender o que diziam e sorriu para Joakim.
— Não pare! — solicitou o pai.
— Quando estive aqui ontem, já sabia que Elisabet vinha a caminho da Noruega — continuou o velho florista.
A mãe arregalou os olhos.
— E porque é que não nos disse nada?
— Aqui só abrimos os presentes na véspera de Natal — explicou Johannes. — Ontem, ainda não sabia se Elisabet viria ou não. Tampouco sabia quem viria.
— Não estou entendendo nada — queixava-se o pai que não conseguia ficar quieto.
Então Johannes contou:
— Começou tudo há alguns dias quando falei com Joakim ao telefone. Durante muitos anos, procurei uma pessoa chamada Elisabet ou Tebasile porque estava convencido de que era a mesma pessoa. Entretanto, Joakim deu-me a idéia de que Elisabet talvez usasse Tebasile como sobrenome. O serviço informativo da Companhia dos Telefones de Roma disse-me que havia um assinante com esse nome naquela cidade. Quando liguei o número que me deram, encontrei-a em casa. Elisabet ainda se lembrava do nosso encontro em 1961.
Elisabet tentou dizer qualquer coisa, mas Johannes continuou:
— Pelo telefone, disse-lhe que, em 1948, uma criança se perdera da mãe, para que Elisabet compreendesse quem era. Chegou ontem à noite. É a primeira vez que volta à Noruega depois do seu desaparecimento, no mês de Dezembro, há quarenta e cinco anos.
O pai dirigiu-se para o telefone:
— O que é? — perguntou a mãe.
— Prometi telefonar à senhora Hansen logo que tivesse notícias.
— Elisabet dormiu em casa da mãe — riu-se Johannes. — Conversaram toda a noite e agora tudo parece esclarecido.
— Então também tenho de telefonar à polícia para que arquivem o caso — lembrou-se o pai.
— Mas isso também já foi tratado — respondeu Johannes. — Você não leu o jornal de hoje nem ouviu a rádio. Foram boas notícias para toda a gente.
O pai deixou-se cair no sofá. Estava tudo tratado. Agora apenas restava a explicação de Johannes.
— Posso fazer-lhe uma pergunta? — inquiriu o pai.
— Claro que pode! — respondeu Johannes.
— Que se passou realmente naquele Dezembro de 1948? Por favor, não me venha dizer que Elisabet foi atrás de um cordeiro de chocalho no pescoço que fugira de um armazém comercial porque estava cansado da barulheira de Natal e do ruído das máquinas registradoras! Também não me venha dizer que ela encontrou o anjo Efiriel pelo caminho.
O pai de Joakim voltou-se para Elisabet e repetiu a pergunta. Para evitar dar uma gargalhada, ela levou a mão à boca.
— Ela ri-se sempre que falamos desse caso — afirmou Johannes. — Nunca chegamos a um acordo sobre isto. Comecemos pela explicação de Elisabet. Pessoalmente, eu não acho que a polícia tivesse feito um bom trabalho. Vamos começar pela outra ponta!
— Comece pela ponta que lhe apetecer, contanto que cheguemos a uma conclusão! — pediu o pai.
Enquanto falava, Johannes andava de um lado para o outro na sala. Por vezes, punha a mão sobre o ombro de Elisabet.
— Elisabet cresceu numa aldeia perto de Belém. Ali as pessoas sempre viveram do que aquela terra pobre dava, até que um dia foi desapropriada. Quando encontrei Elisabet em Roma, ela já tinha passado por vários campos de refugiados: primeiro na Jordânia e, depois, no Líbano. Estava em Roma na qualidade de porta-voz dos refugiados do Líbano. Abordarei esta questão um pouco mais tarde. Elisabet chegou efetivamente a Belém em 1948 e passou a viver com pessoas pobres e perseguidas que necessitavam da ajuda de Deus. Era a isto que ela se referia quando dizia que um anjo a raptara. Ela queria assim dizer que gostava de ajudar as pessoas dos subúrbios de Belém. Tornou-se pastora quando era pequena e acariciou o pêlo macio dos cordeiros, exatamente como fizera a Elisabet Hansen do calendário mágico de Advento.
O pai de Joakim interrompeu Johannes:
— E, um dia, ela também desapareceu em Roma. Porque é que Elisabet não quis voltar a vê-lo em Roma?
— Mas que boa pergunta! Isso eu também quis saber durante muito tempo. Julgo que era muito cautelosa com quem falava. Provavelmente por isso mudou de sobrenome. Não nos podemos esquecer que o seu país estava em plena guerra. Contou-me que tinha medo de voltar a ser raptada.
— Continue! — disse o pai dando estalinhos com os dedos.
— Quando eu lhe disse que acreditava na história do anjo que ela me contou, Elisabet começou a suspeitar de mim. Suponho que pensou que eu podia tornar-me uma ameaça para si própria e para o povo palestiniano.
— Mas ela não era norueguesa? — perguntou a mãe.
— Sim, claro que era norueguesa. Elisabet pensa que foi raptada por pessoas descontentes que não olhavam os meios para chamar a atenção para o sofrimento do povo palestiniano.
— Mas raptar uma criança é ir demasiadamente longe — opinou a mãe.
— Concordo plenamente consigo — disse Johannes. — Elisabet é de opinião que eles haviam de trazê-la de volta à Noruega. Os raptores pretendiam que o pai de Elisabet publicasse nos jornais o que tinha sucedido para chamar a atenção das pessoas para os problemas do povo palestiniano, que fora expulso do seu próprio país e levado para campos de refugiados no estrangeiro.
— Então, porque não vieram trazê-la à Noruega? — interrompeu o pai.
— Elisabet passou a viver com uma numerosa família perto de Belém e não se lembra da sua vida anterior.
A mãe de Joakim não desviava o olhar de Johannes. Perguntou:
— E qual é a sua opinião?
Johannes alisou o cabelo:
— Já conhecem a minha opinião.
Joakim sentou-se no canto do sofá:
— É então de opinião que Elisabet perseguiu o cordeiro do chocalho e encontrou Efiriel no bosque, não é verdade? — perguntou.
— Sim, essa continua a ser a minha teoria — confirmou Johannes.
Nesse momento, Elisabet fez um movimento brusco:
— No! — disse ela.
— Yes! — respondeu Johannes.
— No! — riu-se Elisabet. Os outros riram-se também.
— Não discutam agora — disse Joakim. — Não entendo por que hão de discutir um com o outro.
— Eu sou a favor da história de Elisabet — disse o pai.
— E qual é a vossa opinião? — perguntou Johannes olhando para Joakim e para a mãe.
— Eu aposto as vinte e quatro janelas na história de Johannes — retorquiu Joakim.
— Nesse caso, eu aposto doze janelas em Johannes e as outras doze em Elisabet — decidiu a mãe, — porque eu acho que este ano estiveram alguns anjos em Belém. Esses mesmos anjos vieram agora até aqui para nos visitar.
Johannes retomou a palavra:
— Joakim e eu pensamos que é desnecessário discutir pelo fato de termos opiniões diversas. A paz é a mensagem de Natal e é absolutamente verdade que a glória celestial se expande facilmente, sobretudo com a nossa contribuição. Quando dobrei aqueles bilhetinhos que tinha escrito e os meti no calendário do Advento, eu já tinha algumas referências. Tinha conhecimento do desaparecimento de Elisabet Hansen e já tinha encontrado Tebasile em Roma. Também conhecia várias histórias de anjos. O resto partiu de mim.
Ficaram todos em silêncio.
— Conseguiu tudo isso com muito talento! — disse a mãe. Johannes ficou ligeiramente embaraçado.
— A poesia é uma parte da glória celestial que caiu sobre a Terra. A glória celestial expande-se facilmente.
— Como tudo isto é fantástico! Abrimos a última janela do calendário do Advento e agora deparamo-nos com Elisabet que entra no estábulo em Belém para aclamar o Menino Jesus.
Johannes fez um sinal afirmativo.
— Logo a seguir, essa mesma Elisabet bate-nos à porta — continuou a mãe. — Até parece que a nossa casa é o estábulo onde Jesus nasceu.
Levantando-se da cadeira, a mãe dirigiu-se a Elisabet e abraçou-a:
— Seja bem-vinda à Noruega, minha filha!
Mas que estranho soava «minha filha»! A mãe de Joakim tinha vinte anos a menos que Elisabet!
— Obrigada! — respondeu Elisabet em norueguês.
O telefone tocou e o pai atendeu. Joakim percebeu logo quem estava do outro lado da linha:
— Nós também estamos impressionados... Este foi o nosso presente de Natal, senhora Hansen... agora até eu já acredito em anjos... Ela já atende... Bom Natal para si... um Feliz Natal para toda a sua família...
O pai passou o telefone a Elisabet e ela falou em inglês. Joakim não compreendeu o que ela dizia ao telefone. Também era estranho que ela tivesse de usar uma língua estrangeira para falar com a sua própria mãe!
Elisabet e Johannes estavam prestes a sair. Antes, porém, combinaram que se encontrariam todos, no dia 26 de Dezembro, na casa da família de Elisabet.
Joakim e os pais acompanharam as visitas até à porta. A neve caía lá fora.
O pai perguntou a Elisabet se ela ainda se lembrava de algumas palavras em norueguês.
A neve pousava sobre o casaco vermelho de Elisabet. De repente, ela baixou-se sob o lampião e tentou apanhar os farrapos de neve que dançavam pelo ar ao cair:
— Méé, Méé, Méé!
Em seguida, mordeu os lábios como se tivesse ficado assustada. Desatou a correr. Daí a pouco, Elisabet e Johannes desapareciam.
* * *
Nessa noite, Joakim deitou-se tarde. Antes de adormecer, esteve muito tempo à janela a contemplar a noite de Natal. Lá fora estava tudo coberto de neve, mas o céu estava estrelado.
Subitamente, Joakim apercebeu-se de vultos ao fundo da rua. À luz tênue dos candeeiros da rua não conseguiu discernir o que era, porque aquela visão durou um segundo ou dois apenas.
Joakim quase podia afirmar que era o anjo Efiriel e os outros peregrinos que tinham acompanhado Elisabet até Belém.
Nessa noite, eles tinham vindo trazê-la para casa.
Jostein Gardeen
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