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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTÉRIO DO BOSQUE DE GIBBET / Alan Bradley
O MISTÉRIO DO BOSQUE DE GIBBET / Alan Bradley

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

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Flavia tem apenas 11 anos, um feitio muito especial e um invulgar talento para fórmulas químicas, em especial no que toca a venenos.
Desengane-se, porém, quem pensa que as suas histórias se destinam apenas ao público juvenil. Dona de uma inteligência invulgar e de uma surpreendente capacidade de investigação,
Flavia nada fica a dever aos famosos Sherlock Holmes ou Hercule Poirot.
Depois de resolver o estranho homicídio que teve lugar no campo de pepinos próximo da sua casa, que partilha com o pai e as suas duas irmãs, Flavia concentra-se agora em resolver o mistério no Bosque de Gibbet.
Quando um grupo de artistas com marionetes estaciona na aldeia de Flavia, nada faz prever que a morte espreita atrás do pequeno palco mas a verdade é que, durante o espectáculo, um dos homens por detrás dos fantoches é assassinado. Atenta e muito perspicaz, Flavia percebe de imediato que há coisas que não batem certo e rapidamente começa a tentar desvendar o mistério.
Pelo meio, tal como no livro anterior, espaço para o humor, a fantasia e o inusitado. E tudo isto na companhia de um conjunto de personagens verdadeiramente apaixonantes: o carismático homem das marionetes, a esposa do vigário, a excêntrica tia e as irmãs malvadas da Flavia, o cozinheiro coscuvilheiro...

 


 


Capítulo 1

Eu jazia, morta, no cemitério da minha aldeia. Há já uma hora que a família enlutada me tinha dito o último adeus.
A partida de Buckshaw fora ao meio-dia, a hora a que normalmente nos sentávamos à mesa para almoçar: o meu caixão de pau-rosa, muito bem envernizado, fora retirado da sala
de estar, lentamente transportado ao longo dos amplos degraus de pedra que iam dar à entrada de nossa casa, e por fim metido, com dilacerante facilidade, pela porta aberta
do carro fúnebre, esmagando com o seu peso um pequeno ramo de flores silvestres ali ternamente depositado por um dos habitantes da aldeia que chorava por mim.
Seguira-se o longo percurso pela alameda dos castanheiros, até chegarmos aos Portões Mulford, cujos exuberantes grifos desviaram os olhos à nossa passagem, nunca saberei se
de tristeza ou de simples apatia.
Dogger, o dedicado faz-tudo do pai, seguia em passo solene ao lado da lenta carreta, a cabeça inclinada, a mão poisada de leve no tejadilho, como que a proteger os meus restos
mortais de qualquer coisa que só ele era capaz de ver. Ao chegarmos aos portões, um dos ajudantes do cangalheiro conseguira finalmente convencê-lo, por meio de gestos, a subir
para um dos carros alugados.
E foi assim que me conduziram para a aldeia de Bishop's Lacey, depois de termos atravessado melancolicamente as mesmas veredas arborizadas, as mesmas sebes salpicadas de poeira
por onde eu passava diariamente de bicicleta quando era viva.
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O adro da Igreja de São Tancredo estava apinhado de gente. Ao chegarmos, retiraram-me com jeito do carro funerário e conduziram-me, a passo de caracol, pelo carreiro que serpenteava
por debaixo das tílias, onde me poisaram por momentos sobre a relva recém-aparada.
Seguira-se a cerimónia diante do sepulcro hiante, altura em que se ouvira uma entoação de dor genuína na voz do vigário, quando proferira as palavras tradicionais.
Era a primeira vez que eu ouvia as orações de exéquias da posição em que me encontrava. No ano anterior, tínhamos assistido, na companhia do pai, ao funeral de um velhote,
o senhor Dean, o merceeiro da aldeia. A bem dizer, a campa dele ficava a pouca distância do ponto onde neste momento eu me encontrava. A terra já tinha cedido, deixando à
vista pouco mais do que uma depressão rectangular na erva, uma depressão que, quando chovia, se enchia regularmente de água estagnada.
Na opinião da minha irmã mais velha, Ophelia, a terra tinha cedido porque o senhor Dean tinha ressuscitado, não estando já ali fisicamente presente; na opinião de Daphne,
a minha irmã do meio, a terra tinha-se afundado sobre uma campa mais antiga que se encontrava por debaixo, e cujo ocupante já se tinha desintegrado.
Pensei na sopa de ossos que tinha por baixo de mim - uma sopa da qual eu própria estava prestes a fazer parte, qual um ingrediente entre outros.
Flavia Sabina de Luce, 1939-1950, mandariam gravar na lápide, uma simples lápide de mármore cinzento, uma lápide elegante mas sem espaço para falsos sentimentos.
Era uma pena. Se eu não tivesse morrido tão depressa, teria deixado instruções para uma pontinha de Wordsworth:
Uma donzela que ninguém teve que a louvasse E muito poucos que a amassem.
Ou então, se eles tivessem recusado esta citação, dava-lhes uma alternativa:
Os corações mais puros por actos cruéis Para o desespero se sentem inclinados.
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A única que seria capaz de reconhecer estes versos, de saber que eram o Third Book of Airs, de Thomas Campion, era Feely, que os tinha cantado e tocado ao piano; mas ela havia
de se sentir de tal maneira consumida pela dor e pela culpa que a ninguém o teria revelado.
Estes pensamentos foram interrompidos pela voz do vigário:
- ... a terra à terra, as cinzas às cinzas, o pó ao pó, na esperança certa da ressurreição para a vida eterna, por Nosso Senhor Jesus Cristo, que há-de transformar o nosso
corpo mortal...
E de repente desapareceram todos, e deixaram-me ali sozinha, à escuta dos vermes.
Pronto, era tudo: era o fim do caminho para a pobre Flavia.
Por esta altura, já a minha família teria regressado a Buckshaw e se teria reunido em volta da comprida mesa das refeições; e, quando a cozinheira, a senhora Mullet, entrasse
com as travessas do jantar, o pai estaria mergulhado no seu habitual silêncio pétreo, Daffy e Feely estariam abraçadas uma à outra, os rostos tensos e manchados de lágrimas.
Lembrei-me de uma coisa que Daffy me tinha dito quando andava a devorar a Odisseia: que, na Grécia antiga, era tradicional servir feijões cozidos nos funerais; ao que eu tinha
respondido que, tendo em consideração os cozinhados da senhora Mullet, as coisas não se tinham alterado assim muito em 2500 anos.
Agora, porém, que estava morta, pensei, talvez não fosse mau começar a ser mais tolerante.
Dogger estaria inconsolável, naturalmente. Pobre Dogger: era o mordomo-motorista-jardineiro-gestor lá de casa; uma pobre alma devastada pelos traumas da guerra, cujas capacidades
mentais iam e vinham como as marés; era o homem que me tinha salvado a vida há pouco tempo, mas se tinha esquecido de tudo na manhã seguinte. Ia ter imensas saudades dele.
E também ia ter saudades do meu laboratório de química. Pensei nas horas maravilhosas que tinha passado naquela ala deserta de Buckshaw, em solitária ventura no meio de balões
e retortas, no meio de tubos e provetas em alegre borbulhar. E pensei que nunca mais voltaria a vê-los. Era quase insuportável.
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Ouvi o vento que se levantava e que murmurava por entre os ramos dos teixos. Começava a ficar frio, ali nas sombras da torre de São Tancredo, e dentro em breve seria noite.
Pobre Flavia! Pobre Flavia com a sua frialdade de pedra!
Por esta altura, Daffy e Feely já teriam começado a ter pena de terem sido tão horrendas com a sua pobre irmãzinha durante os curtos onze anos que esta tivera de vida.
Ao pensar nisso, senti que uma lágrima me descia pelo rosto.
Teria Harriet à minha espera no Céu, para me dar as boas-vindas?
Harriet era a minha mãe, morta um ano depois de eu ter nascido, num acidente que sofrera praticando montanhismo. Reconhecer-me-ia ainda, passados dez anos? Ainda traria vestido
o fato de montanhismo com que tinha morrido, ou já o teria trocado por um vestido branco?
Bem, trouxesse ela o que trouxesse vestido, de uma coisa eu tinha a certeza: havia de ser um conjunto cheio de estilo.
Subitamente, ouvi um bater de asas, um som que se repercutiu com grande intensidade na parede de pedra da igreja, e foi amplificado de forma assustadora pela gigantesca extensão
de vitrais e de pedras tumulares que me rodeavam. Deixei-me ficar muito quieta.
Seria um anjo - ou, melhor ainda, um arcanjo - que tinha vindo buscar a preciosa alma de Flavia para a conduzir ao Paraíso? Se abrisse os olhos um nadinha, era capaz de ver
por entre as pestanas, ainda que visse tudo muito esbatido.
Pouca sorte. Era apenas uma daquelas gralhas maltrapilhas que costumam andar a cirandar à volta da Igreja de São Tancredo. Estas vagabundas fazem ninho na torre desde que,
no século XIII, os pedreiros que a construíram arrumaram as ferramentas e se puseram a andar.
O idiota do pássaro tinha poisado desajeitadamente em cima de um dedo de mármore que apontava para o céu, e olhava-me com enorme descontracção, a cabeça inclinada para um
dos lados, com aqueles olhos brilhantes e ridículos que pareciam botões de camisa.
As gralhas não aprendem mesmo. Por muitas vezes que eu lhes pregasse a mesma partida, acabavam invariavelmente - mais cedo ou mais tarde - por descer do alto da torre com
um bater de asas para virem investigar. Para a inteligência primitiva de uma gralha, um corpo estendido na horizontal num cemitério só podia querer dizer uma coisa: comida.
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Por mim, repeti o gesto que já tinha feito uma dúzia de vezes: levantando-me de um salto, atirei-lhe a pedra que tinha escondida dentro da mão fechada. Falhei - mas a verdade
é que falhava quase sempre.
Soltando um guincho de desprezo, o bicho ergueu-se no ar, afastando-se com um bater de asas para a parte de trás da torre, em direcção ao rio.
Tendo-me levantado, percebi que estava com fome. E tinha mesmo de estar! Não comia nada desde o pequeno-almoço. Por momentos, perguntei vagamente a mim própria se ainda haveria
umas empadas ou uma fatia de bolo na cozinha do salão paroquial. A Associação de Senhoras de São Tancredo tinha-se reunido na véspera à noite, e havia sempre a hipótese de
terem ali deixado alguma coisa.
Ao avançar por entre as ervas - que me chegavam aos joelhos -, ouvi uma estranha fungadela; por momentos, ocorreu-me que a impertinente gralha tivesse voltado para trás, com
vontade de dizer a última palavra.
Parei à escuta.
Nada.
Depois, voltei a ouvir o mesmo ruído.
O facto de ter herdado de Harriet um apurado sentido de audição é, em determinadas circunstâncias, uma bênção, noutras uma maldição; a verdade é que eu consigo ouvir coisas
que, como costumo dizer à Feely, fariam arrepiar qualquer pessoa. Um dos sons para que tenho especial queda é o do choro humano.
O som provinha do canto noroeste do cemitério - da zona perto da qual se encontrava o barracão de madeira onde o coveiro guardava os utensílios que usava para a sua arte.
Fui avançando devagar, em bicos de pés, e o som foi-se tornando mais intenso: estava alguém a dedicar-se a uma choradeira das antigas, a uma choradeira de caixão à cova.
A natureza tem destas coisas: enquanto a maioria dos homens é capaz de passar por uma mulher que esteja a chorar como se não tivesse visto nem ouvido nada, mulher alguma é
capaz de ouvir um som indicativo de sofrimento noutra sem acorrer imediatamente em seu auxílio.
Espreitei por detrás de uma coluna de mármore preto, e vi-a, estendida ao comprido, de cabeça para baixo, sobre a laje de calcário de
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um túmulo, as madeixas de cabelo ruivo espraiadas sobre a inscrição já fanada, mais se assemelhando a riachos de sangue. Se não fosse aquele cigarro metido entre os dedos
numa pose elegante, podia perfeitamente passar por um quadro dos pré-rafaelitas, digamos de Burne-Jones. Fez-me impressão intervir.
- Boa tarde - disse-lhe. - Sente-se bem?
A natureza também tem destas coisas: uma conversa deste género começa sempre com uma pergunta totalmente estúpida. Arrependi-me imediatamente de a ter feito.
- Oh! Claro que me sinto bem - exclamou ela, levantando-se de um salto e limpando os olhos. - Que ideia é essa de andar aí a vigiar-me? Mas afinal quem és tu?
E afastou o cabelo da cara com um gesto de cabeça, ao mesmo tempo que espetava o queixo. Tinha as maçãs do rosto salientes e aquele tipo de cara dramaticamente triangular
que têm as estrelas de cinema mudo; pela maneira como rangeu os dentes, percebi que estava aterrorizada.
- Flavia - respondi. - Chamo-me Flavia de Luce e vivo aqui perto, em Buckshaw.
E apontei com o polegar para o sítio onde ficava a minha casa. Ela continuava a olhar para mim como se estivesse a ter um pesadelo.
- Lamento imenso - prossegui eu. - Não era minha intenção assustá-la.
Ela endireitou-se muito - mas não devia ter muito mais do que um metro e sessenta - e deu um passo em direcção a mim; parecia uma versão mal-humorada de uma Vénus de Boticelli
que eu tinha visto na tampa de uma lata de biscoitos.
Eu não me mexi. Observei-lhe o vestido, de algodão creme com um corpete pregueado e uma saia de roda, coberto de alto a baixo de uma miríade de florinhas vermelhas, amarelas,
azuis e de um cor de laranja-vivo (cor de papoila), e não pude deixar de reparar na mancha de lama quase seca que tinha na bainha.
- O que foi? - perguntou ela, dando uma afectada passa no cigarro. - Nunca viste uma pessoa famosa?
Famosa? Eu não fazia a menor ideia de quem ela era. E estava mesmo com vontade de lhe dizer que, na realidade, já tinha visto uma pessoa famosa, e que essa pessoa era Winston
Churchill. íamos a passar
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de táxi e o pai chamou-me a atenção para ele. Churchill estava à porta do Savoy, com os polegares metidos nos bolsos do colete, a falar com um homem que trazia vestido um
impermeável amarelo.
- Bom velho Winnie - tinha o pai sussurrado, como se estivesse a falar sozinho.
- Oh, pronto, não vale a pena! - declarou a mulher. - Maldito sítio... maldita gente... malditos automóveis! - E recomeçou a chorar.
- Posso fazer alguma coisa por si? - perguntei eu.
- Vai-te mas é embora e deixa-me em paz - replicou ela por entre soluços.
Pois muito bem, pensei eu. Na realidade, não pensei só isso, mas como ando a esforçar-me por me portar melhor...
Deixei-me estar mais uns momentos, e debrucei-me para ver se as lágrimas dela faziam alguma reacção sobre a superfície porosa da pedra de calcário. Sabia perfeitamente que
as lágrimas eram compostas essencialmente por água, cloreto de sódio, manganésio e potássio, e que a principal componente do calcário era a calcite, que é solúvel em cloreto
de sódio - mas apenas a altas temperaturas. De maneira que, a não ser que a temperatura do cemitério de São Tancredo subisse de repente várias dezenas de graus, era pouco
provável que se desse uma reacção química com algum interesse.
Depois voltei-me e comecei a afastar-me.
- Flavia...
Olhei para trás. Ela tinha uma mão estendida na minha direcção.
- Desculpa - pediu. - É que hoje foi um dia realmente horrível. Detive-me - e a seguir voltei para trás, lenta e cautelosamente,
enquanto ela limpava os olhos com as costas da mão.
- Para começar, Rupert estava muito maldisposto; estava maldisposto logo de manhã, ainda antes de partirmos de Stoatmoor. Tínhamos tido uma senhora discussão, a verdade é
essa, e a história da carrinha acabou por ser a última palha. Ele foi ver se encontrava alguém que a reparasse e eu... bem, eu estou aqui.
- Tem um cabelo muito bonito - disse eu. Ela levou imediatamente a mão ao cabelo e sorriu, como eu aliás suspeitava que o fizesse.
- Cabeça de Cenoura, era assim que me chamavam quando eu tinha a tua idade. Cabeça de Cenoura). Imagina!
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- As cenouras têm a cabeça verde - observei eu. - Quem é Rupert?
- Quem é Rupert? - perguntou ela. - Estás a brincar comigo! Apontou com um dedo e eu voltei-me e vi uma carrinha em muito
mau estado estacionada na rua, à esquina do adro da igreja; era uma Austin Eight. No painel lateral, tinha escrito em letras douradas, letras vistosas de circo que, apesar
da camada de lama e de pó, ainda se conseguiam decifrar com facilidade: marionetas de porson.
- É Rupert Porson - explicou-me ela. - Toda a gente conhece Rupert Porson, o do esquilo Snoddy e do Reino da Magia. Nunca viste o programa de televisão?
O esquilo Snoddy? O Reino da Magia?
- Em Buckshaw não há televisão - repliquei eu. - O pai acha que é uma invenção sórdida.
- Esse pai é um homem invulgarmente inteligente - observou ela. - Esse pai é indubitavelmente...
Foi interrompida pelo som metálico de uma corrente de protecção solta, e o vigário dobrou a esquina da igreja. Parou, desmontou e encostou a pobre Raleigh a uma pedra tumular
que estava ali a jeito. Ao vê-lo dirigir-se a nós, ocorreu-me que o cónego Denwyn Richardson não correspondia propriamente à imagem que as pessoas têm do típico vigário de
aldeia. Era um homem alto, rechonchudo e cordial, que facilmente seria confundido com um capitão de um daqueles pobres vapores cobertos de ferrugem que se arrastam fatigadamente
de porto em porto, à torreira do sol, num daqueles horrendo postos avançados que ainda restam do Império Britânico.
Trazia o fato preto de clérigo manchado de poeira cor de giz, como se tivesse dado um trambolhão de bicicleta.
- Bolas! - exclamou quando me viu. - Perdi a mola de apertar as calças e fiz a perna das calças em tiras. Cynthia vai dar cabo de mim acrescentou, sacudindo a poeira da roupa
com as mãos enquanto se encaminhava para nós.
A mulher abriu muito os olhos e lançou-me um rápido olhar de esguelha.
- Ela tem andado a gravar as minhas iniciais nos meus pertences com a ponta de uma agulha - prosseguiu -, mas eu continuo a perder
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tudo. A semana passada foram as folhas de hectógrafo do boletim paroquial, na semana anterior foi a maçaneta de metal da porta da sacristia. É de ficar maluquinho de todo,
a verdade é essa. Olá Flavia - concluiu.
- É sempre um prazer ver-te aqui na igreja.
- Este é o nosso vigário, o cónego Richardson - disse eu à ruiva.
- Talvez ele a possa ajudar em alguma coisa.
- Denwyn - disse o vigário, estendendo a mão à desconhecida.
- As cerimónias acabaram no final da guerra.
A mulher estendeu uns dois ou três dedos para lhe tocar na palma da mão, mas nada disse. Quando ela estendeu a mão, a manga do vestido, que não era muito comprida, recuou,
e eu avistei rapidamente a nódoa negra, já a atirar para um horrível esverdeado, que ela tinha no antebraço. A mulher apressou-se a tapá-la com a mão esquerda, puxando o tecido
de algodão para baixo.
- E o que posso eu fazer por si? - perguntou o vigário, apontando para a carrinha. - Neste recantozinho bucólico, não é todos os dias que temos a oportunidade de pregar a
tão augusta gente do teatro.
Ela sorriu com ar valente.
- A carrinha avariou-se, não anda. É qualquer coisa do carburador. Se fosse do sistema eléctrico, Rupert tinha-a reparado num instante, mas infelizmente o sistema de combustível
está fora das competências dele.
- Oh, que maçada! - respondeu o vigário. - Mas tenho a certeza de que o Bert Archer, o nosso mecânico, vo-la arranja. Se quiser, eu telefono-lhe.
- Oh, não - retorquiu a mulher muito depressa; talvez até depressa de mais. - Não queremos que se incomode. Rupert disse-me que ia descer a rua principal. É muito provável
que já tenha encontrado alguém.
- Se tivesse encontrado alguém, já cá estava outra vez - observou o vigário. - Eu telefono a Bert. Ele costuma ir a casa fazer uma sesta depois do almoço. Já não é propriamente
um rapaz, compreende? Vendo bem, nenhum de nós está a caminhar para novo. Seja como for, uma das minhas máximas é que, quando se trata de mecânicas de motor, mesmo que os
motores sejam mansos, não faz mal nenhum contar com uma bênção da Igreja.
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- Oh não, não. Não se incomode. Nós cá nos arranjamos.
- Que disparate! - replicou o vigário, que se deslocava já a grande velocidade por entre a floresta de pedras tumulares na direcção de sua casa. - Não incomoda nada. Eu volto
já.
- Senhor vigário! - chamou a mulher. - Por favor...
Ele suspendeu a corrida e voltou relutantemente para junto de nós.
- É que nós... compreende, nós...
- Ah! Quer dizer que o problema é o dinheiro - disse o vigário. Ela acenou tristemente com a cabeça, de olhos poisados no chão,
o cabelo ruivo caindo-lhe em cascata sobre o rosto.
- Tenho a certeza de que isso se resolve - prosseguiu o vigário.
- Olhe, aqui vem o seu marido.
Um homenzinho com uma grande cabeça e passo assimétrico avançava pelo adro da igreja; a perna direita era obrigada a fazer um estranho e amplo semicírculo a cada passada que
dava. Quando se aproximou de nós, percebi que tinha a barriga da perna metida numa perneira de metal.
Devia andar pelos quarenta e poucos, mas era difícil ser mais preciso.
Apesar da altura diminuta, o amplo peito e os antebraços musculosos pareciam prestes a rebentar o fato de linho que os continha. Em contrapartida, a perna esquerda metia dó:
pela queda das calças e a falta de volume no interior, percebia-se que pouco mais era do que um pau de fósforo. Com aquela cabeça enorme, o homem parecia mesmo um polvo gigante,
atravessando o adro da igreja apoiado em tentáolos desiguais.
Detendo-se diante de nós, ergueu com deferência um bone de motorista, dando a ver uma guedelha de cabelo louro-claro, que condizia na exactidão com a barbicha de bode à Vandyke.
- Rupert Porson, não é verdade? - perguntou o vigário, dando ao recém-chegado um valente e alegre bacalhau. - O meu nome é Denwyn Richardson, e esta é Flavia de Luce, uma
jovem amiga.
Porson fez-me um aceno de cabeça, lançou um olhar quase invisível, mas carregado, à mulher, e em seguida afivelou a escala completa do seu sorriso de holofote.
- Parece que está com problemas no motor - prosseguiu o vigário.
- Que grande maçada. Bem, mas se é graças a isso temos que entre nós
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o criador do esquilo Snoãdy e do Reino da Magia, fica demonstrado o velho refrão, não é verdade?
Não chegou a dizer a que refrão se referia, e nenhum dos outros teve interesse em lhe perguntar.
- Ia eu dizer à sua querida esposa - continuou o vigário - que era uma grande honra para São Tancredo se quisessem apresentar um pequeno espectáculo aqui no salão paroquial
enquanto lhe reparam a carrinha. Compreendo que tenham muitas solicitações, evidentemente, mas seria negligência da minha parte deixar de lhe fazer este pedido em nome das
crianças, bem, e dos adultos, de Bishop's Lacey. De vez em quando, é boa ideia permitir que as crianças ataquem o mealheiro com vista à promoção de uma causa cultural de mérito,
não lhe parece?
- Bem, senhor vigário - respondeu Porson numa voz açucarada, uma voz que me pareceu cheia de mais, profunda de mais, melíflua de mais para homem tão pequeno -, é verdade que
temos um calendário bastante apertado. Fizemos uma tournée esgotante, compreende, e Londres chama por nós...
- Compreendo - atalhou o vigário.
- Mas - prosseguiu Porson, espetando teatralmente o indicador seria um enorme prazer ganharmos o jantar com umas canções, por assim dizer. Não te parece, Nialla? Seria um
regresso aos bons velhos tempos.
A mulher acenou com a cabeça, mas nada disse. Olhava fixamente para os campos que se estendiam pelo horizonte fora.
- Nesse caso - disse o vigário, esfregando vigorosamente as mãos uma na outra, como se estivesse a fazer fogo -, está combinado. Venham comigo, vou mostrar-vos o salão. Não
é grande coisa, mas tem um palco, e segundo dizem a acústica é excelente.
Dito isto, os dois homens encaminharam-se para as traseiras da igreja.
Por momentos, parecia que não havia nada a dizer. Mas depois a mulher pediu:
- Não tens por acaso um cigarro, pois não? Dava a minha vida por umas passas.
Eu abanei a cabeça num gesto um tanto idiota.
- Humm - insistiu ela. - Tu tens mesmo ar de quem anda com cigarros.
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Pela primeira vez na minha vida, fiquei sem fala.
- Não fumo - consegui balbuciar.
- E por que não fumas? - perguntou ela. - Porque és nova de mais, ou porque és sensata de mais?
- Estava a pensar começar na próxima semana - repliquei eu sem grande graça -, mas ainda não tinha chegado lá.
Ela tirou a cabeça para trás e soltou uma gargalhada cheia de dentes, como fazem as estrelas de cinema.
- Gosto de ti, Flavia de Luce - disse depois. - Mas a verdade é que estou em vantagem. Tu disseste-me como te chamas, mas eu não te disse como me chamo.
- Chama-se Nialla - adiantei eu. - O senhor Porson tratou-a por
Nialla.
Ela estendeu a mão com uma expressão grave.
- Pois foi - respondeu -, ele tratou-me por Nialla. Mas tu podes tratar-me por Mãe Gansa.
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Capítulo 2

Mãe Gansa!
Nunca me agradaram muito as gracinhas, em especial quando são os outros a dizê-las, e ainda menos quando saem da boca de um adulto. Diz-me a experiência que uma piada proferida
por uma pessoa com idade para ter juízo é normalmente uma camuflagem para outra coisa muito, muito pior.
E contudo, apesar de tudo isso, dei por mim a engolir a resposta cortante - e deliciosamente indecente! - que já tinha na ponta da língua, e que consegui substituir por um
sorriso amarelo.
- Mãe Gansa? - repeti em tom de dúvida.
Ela desatou novamente a chorar, e eu fiquei satisfeita por não ter largado a tal resposta cortante. Estava prestes a ser instantaneamente recompensada com uma revelação sumarenta.
Além disso, já tinha começado a perceber que havia, entre esta mulher e eu, uma ligeira mas invisível atracção. Seria pena? Ou seria antes medo? Não percebia bem. Só sabia
que a substância química que assentara arraiais no fundo de cada uma de nós gritava ansiosamente pelo respectivo complemento - ou seria o antídoto? - na outra.
Poisei-lhe a mão no ombro, suavemente, e estendi-lhe um lenço, que ela observou com ar hesitante.
- Não tenha receio - sosseguei-a. - São nódoas de relva.
A informação suscitou nela uma extraordinária contorção. Enterrando a cara no lenço, começou a agitar os ombros com uma violência
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tal que por momentos pensei que ia desfazer-se em pedaços. A fim de lhe dar algum tempo para se recompor - e porque não me sentia nada à vontade com aquela explosão emocional
-, afastei-me um pouco e pus-me a observar a fanada inscrição de uma pedra tumular bastante alta, que assinalava o túmulo de uma tal Lydia Green, morta em 1638 com a idade
de "135 anos".
Foi viva mas agora está morta, prosseguia a inscrição, e poucos são os que a lamentam.
Se não tivesse morrido, pensei eu, esta Lydia teria agora quatrocentos e quarenta e sete anos, e devia valer muito a pena conhecê-la.
- Oh, sou uma idiota tão grande.
Voltei-me e vi a mulher a passar o lenço pelos olhos, ao mesmo tempo que me lançava um sorriso pouco convicto.
- Sou Nialla - declarou, estendendo-me a mão. - Sou a colaboradora de Rupert.
Esmagando a repulsa que sentia, eu correspondi, apertando-lhe as pontas dos dedos durante brevíssimas milésimas de segundo. Tal como eu esperava, ela tinha a mão molhada e
pegajosa. Assim que pude fazê-lo sem dar muito nas vistas, escondi a mão atrás das costas e limpei-a à saia.
- A colaboradora? - A palavra saiu-me da boca antes de eu ter tempo de a engolir.
- Pois, eu percebi que o vigário presumiu que eu era a mulher dele. Mas não sou, nem pensar. Não é nada disso, a sério que não!
Lancei um involuntário olhar de esguelha à carrinha das Marionetas de Porson, um olhar que ela detectou imediatamente.
- Sim, de facto... é verdade que viajamos juntos. Posso dizer que Rupert e eu temos aquilo a que se pode chamar... um grande afecto um pelo outro. Mas não somos marido e mulher.
Mas ela acharia que eu era completamente imbecil? Ainda não há uma semana que Daffy nos tinha andado a ler, a Feely e a mim, umas passagens do Oliver Twist, e eu sabia, tão
certo como chamar-me Flavia, que esta mulher, Nialla, era Nancy do Bill Sikes, que era Rupert Porson. Ela não teria percebido que eu tinha visto aquela nódoa negra horrorosa
que ela tinha no antebraço?
- Se queres saber, é divertidíssimo andar pela Inglaterra fora naquela chocolateira com Rupert. Toda a gente o reconhece, sabes como é?
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Ainda anteontem, por exemplo, estávamos a fazer o espectáculo em Market Selby, e fomos aos correios. De repente, uma mulher gorducha, com um chapéu que parecia um vaso de
flores, começou a guinchar. "É Rupert Porson! Rupert Porson vem pôr cartas no correio como as outras pessoas!"
Nialla deu uma gargalhada.
- E a seguir pediu-lhe um autógrafo. Pedem sempre, sabias? E obrigou-o a escrever: "Muitas felicidades do esquilo Snoddyl" Nessas alturas, ele tira sempre umas avelãs do bolso.
A mulher dizia que o autógrafo era para o sobrinho, mas não era nada. Quando a pessoa anda muito na estrada, ganha uma certa sensibilidade para estas coisas. A pessoa percebe
perfeitamente.
Estava a tagarelar. Se eu não dissesse nada, dentro de um minuto revelava-me que tamanho de cuecas usava.
- Um sujeito da BBC contou a Rupert que 23% das pessoas que vêem o programa dele são donas de casa sem filhos. É muita coisa, não achas? É que O Reino da Magia tem qualquer
coisa que satisfaz o desejo íntimo de fuga que todos temos cá dentro. Foi exactamente isso que ele disse a Rupert: "o desejo íntimo de fuga que todos temos cá dentro". Toda
a gente tem de ter uma via de fuga, não é verdade? Se não for de uma maneira, é de outra.
- Toda a gente menos a Mãe Gansa - comentei eu. Ela riu-se.
- Ouve, não te estava a enganar. É que eu sou mesmo a Mãe Gansa. Pelo menos quando visto o fato. Hás-de ver: tenho um chapéu alto de bruxa, com a aba mole assim caída e uma
fivela de prata, mais uma cabeleira cinzenta com os caracóis soltos, e um grande vestido, muito volumoso, que parece que foi da Ma Shipton. Sabes quem era a Ma Shipton?
Claro que sabia. Sabia que se tratava de uma velhota maluca, que teria vivido no século XVIII e previsto o futuro, antevendo, entre outras coisas, a Grande Peste, o Grande
Incêndio de Londres, os aviões, os navios de guerra, e que o mundo acabaria em 1881; tal como as profecias de Nostradamus, também as da Ma Shipton eram em versos macarrónicos:
"O fogo e a água portentos farão", e por aí fora. E também sabia que, ainda hoje, havia por aí à solta gente que acreditava que ela tinha previsto que os cientistas utilizariam
a água pesada na produção
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da bomba atómica. Por mim, não acreditava em nada daquilo. Tratava-se de uma série de disparates antigos.
- Já ouvi falar dela - respondi.
- Pronto, deixa lá. De qualquer maneira, eu fico parecida com ela quando me atavio toda para o espectáculo.
- Fantástico - observei eu, mas estava a ser hipócrita. Ela percebeu, e ficou um nadinha irritada.
- Mas afinal o que anda uma menina bem-comportada a fazer num sítio destes? - perguntou com um meio sorriso, abrangendo o cemitério com um gesto amplo.
- Venho muitas vezes para aqui pensar.
Ela pareceu achar graça à resposta. Franzindo os lábios, perguntou num tom irritante e teatral:
- E em que pensa Flavia de Luce neste gracioso cemitério da velha igreja da sua terra?
- Em estar sozinha - repliquei em tom cortante, embora não quisesse ser indelicada. Estava, muito simplesmente, a ser sincera.
- Em estar sozinha - repetiu ela com um aceno de cabeça. Percebi que não tinha ficado irritada com o tom da minha resposta. - Estar sozinha tem muito que se lhe diga. Mas
nós as duas sabemos muito bem que estar sozinha e sentir-se sozinha são coisas muito diferentes, não é verdade, Flavia?
Animei-me ligeiramente. Aqui estava uma pessoa que dava pelo menos a impressão de ter reflectido sobre as mesmas coisas do que eu.
- Pois são - admiti.
Seguiu-se um prolongado silêncio.
- Fala-me sobre a tua família - pediu Nialla por fim, em tom convidativo.
- Não há grande coisa a dizer sobre a minha família - respondi eu. - Tenho duas irmãs, Ophelia e Daphne. Feely tem dezassete anos, Daffy tem treze. Feely toca piano e Daffy
lê. O pai é filatelista. Adora os selos dele.
- E a tua mãe?
- Morreu num acidente quando eu tinha um ano.
- Valha-me Deus! - exclamou ela. - Falaram-me de uma família que vivia numa mansão enorme, uma coisa antiga e cheia de recantos,
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aqui nas redondezas. Era um coronel excêntrico com uma série de filhas, e as miúdas andavam à solta como se fossem índios. Tu não és uma dessas miúdas, pois não?
Pela minha expressão, ela percebeu imediatamente que era mesmo.
- Oh, pobre pequena! - lamentou-se. - Desculpa, não queria... Quero eu dizer...
- Não se preocupe - descansei-a. - A bem dizer, é muito pior do que isso, mas eu prefiro não falar no assunto.
Detectei-lhe nos olhos aquela expressão vaga dos adultos que se põem desesperadamente à procura de tema de conversa com uma criança.
- E tu, a que é que te dedicas? - perguntou. - Não tens interesses...
passatempos?
- Gosto muito de química - expliquei-lhe. - E gosto de fazer álbuns com coisas interessantes.
- A sério? - entusiasmou-se ela. - Imagina só! Eu também gostava, quando tinha a tua idade. Maços de tabaco e flores secas: amores-perfeitos, minhonetes, dedaleiras, esporas-bravas;
botões velhos, cartões do Dia dos Namorados, poemas que tirava do Almanaque da Rapariga. Era muito divertido!
Tenho de dizer que os meus álbuns eram em três grossos volumes roxos carregadinhos de recortes retirados do montão de revistas e jornais antigos que tinham extravasado e depois
inundado a biblioteca e a sala de estar de Buckshaw, estendendo-se em seguida para os quartos desocupados e os quartos onde se amontoava a mobília que não se usava, até serem
finalmente transportados para uma cripta da cave, onde jaziam em montes cobertos de humidade e cheiro a bolor. Das páginas destas publicações tinha eu recortado cuidadosamente
tudo quanto havia sobre venenos e envenenadores, e os meus álbuns rebentavam pelas costuras com informações sobre gente como o major Herbert Rowse Armstrong, jardineiro amador
e solicitador, que tinha despachado a mulher com poções de herbicida de arsénio, amorosamente preparadas; Thomas Neill Cream, Hawley Harvey Crippen e George Chapman (não é
espantoso que haja tantos envenenadores cujo nome começa por C?) que, recorrendo respectivamente à estricnina, à hioscina
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e ao antimónio, tinham mandado para a tumba um verdadeiro exército de esposas e outras mulheres; Mary Ann Cotton (outra com C) que, depois de ter feito várias experiências
em porcos, envenenou dezassete pessoas com arsénico; Daisy de Melker, a sul-africana que tinha uma paixão pelo envenenamento de canalizadores: começava por se casar e a seguir
divorciava-se deles com uma dose de estricnina.
- Esses álbuns são o passatempo ideal para uma jovem - estava Nialla a dizer. - São uma actividade distinta... mas educativa. - Era precisamente o que eu achava. - A minha
mãe deitou os meus para o caixote do lixo quando eu fugi de casa - prosseguiu ela, acompanhando a afirmação com uma espécie de pequena gargalhada.
- Fugiu de casa? - perguntei eu.
Aquele facto intrigava-me quase tanto como a dedaleira, uma planta da qual se podia extrair um alcalóide vegetal chamado digitalina (que nós, os químicos, conhecemos como
C25H40O15). Por momentos, recordei com prazer as muitas vezes que, no meu laboratório, tinha esgotado com álcool folhas de dedaleira que trazia da horta, ficando a observar
a cristalização das agulhas esguias e brilhantes, e a maravilhosa solução verde-esmeralda que se formava quando as dissolvia em ácido clorídrico e lhes acrescentava água.
O precipitado de resina podia, evidentemente, recuperar o tom verde original se lhe fosse acrescentado ácido sulfúrico, adquirir um tom vermelho-claro se sujeito a um vapor
de bromo, e recuperar novamente o tom verde-esmeralda com a adição de água. Era uma planta mágica! Mas era também, evidentemente, um veneno letal e, como tal, muito mais fascinante
do que uns botõezinhos sem interesse ou uns poemazitos tirados do Almanaque da Rapariga.
- Mmmm - respondeu ela. - Fartei-me de lavar, passar, varrer e limpar o pó, e de ouvir os vizinhos do lado a vomitar. Fartei-me de passar as noites à espera de ouvir na rua
o bater dos cascos do cavalo do príncipe encantado.
Eu ri-me.
- Fugi com Rupert, evidentemente - explicou-me. - "Vem comigo até à Porta de Diarbekir", disse-me ele. "Vem comigo para o Oriente, e eu farei de ti uma princesa adornada de
sedas líquidas, coberta de diamantes grandes como couves."
- A sério?
- Não. Na verdade, o que ele me disse foi: "A parva da minha colaboradora pôs-se a andar. Vem comigo até Lyme Regis este fim-de-semana e eu pago-te um guinéu, sirvo-te seis
refeições completas, e podes dormir no carro. Ensino-te a arte da manipulação", concluiu, e eu fui tão parva que pensei que ele estava a falar das marionetas.
Antes de eu ter tempo de lhe pedir que me contasse mais pormenores, já ela se tinha levantado de um salto e estava a sacudir o pó da saia.
- Por falar de Rupert - declarou -, era melhor irmos ver se ele e o vigário estão a dar-se bem. Este silêncio que se ouve no salão paroquial não me cheira nada bem. Achas
que eles já se mataram um ao outro?
A saia de flores partiu à minha frente, vergastando graciosamente as pedras tumulares, e eu não tive outro remédio senão seguir obedientemente atrás dela.
Fomos encontrar o vigário no meio do salão paroquial, Rupert em cima do palco, ocupando a boca de cena e de mãos nas ancas, iluminado com um dramatismo tal que parecia estar
a corresponder a uma chamada do público num importante teatro nacional. Como que convocado pelo destino, o Sol brilhou inesperadamente, fazendo incidir os seus raios através
do vitral da janela da parede dos fundos, e colocando o rosto que Rupert voltara para cima bem no centro de um feixe dourado. Ele pôs-se em pose e começou a recitar Shakespeare:
Quando o meu amor jura ser só fidelidade, Eu quero acreditar, contudo sei que mente; Talvez ela me julgue na ingénua mocidade Nos enganos do mundo ainda inexperiente. Assim
pensando em vão que ela me julga jovem, Sabendo como sabe que o melhor tempo foi, De todo as suas falas tão falsas me comovem E a verdade de parte a parte se destrói.
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Como o vigário já tinha dito, aquela sala tinha uma acústica espantosa. Os arquitectos vitorianos tinham-lhe erigido um interior em concha, apainelado a madeira polida, que
fazia de caixa de ressonância a qualquer ruído, por mínimo que fosse; a pessoa tinha a sensação de estar dentro de um Stradivarius. A voz quente e melosa de Rupert ouvia-se
em todos os pontos da sala, envolvendo-nos com a sua profunda ressonância:
Mas por que não diz ela o quão tem sido injusta? Por que não digo eu que a minha idade avança? A idade no amor os anos dizer custa E é costume do amor o simular confiança.
Mente ela pois comigo e eu com ela minto E na culpa a mentira lisonjear-nos sinto (1).
- Ouve-me bem, vigário?
O encanto quebrou-se imediatamente. Era como se Laurence Olivier tivesse começado a dizer: "Atenção! Atenção! Teste de som. Um, dois, três" a meio de "Ser ou não ser".
- Fantástico! - exclamou o vigário.
O que mais me espantou no discurso de Rupert foi ter percebido o que ele estava a dizer. Devido à pausa quase imperceptível que fazia no final de cada verso, e à peculiar
maneira como ilustrava os matizes de sentido com os compridos dedos brancos, eu conseguia compreender perfeitamente as palavras. Todas elas, da primeira à última.
E, como se elas me tivessem entrado pelos poros por osmose, percebi imediatamente que estava a ouvir as palavras amargas dirigidas por um velho a uma mulher muito mais nova
do que ele, por quem estava apaixonado.
Olhei de esguelha para Nialla, que levara a mão ao pescoço.
Seguiu-se um momento de silêncio, um silêncio tal que fazia eco nos painéis de madeira. O vigário não se mexia, tão imóvel como se fosse esculpido em mármore preto e branco.
Tradução de Vasco Graça Moura, in 50 Sonetos de Shakespeare, Lisboa, Editorial Presença, 1987. (M da T.)
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Percebi que estava a assistir a uma cena que só alguns dos presentes compreendiam.
- Bravo! Bravo!
O vigário bateu as palmas, as mãos em concha tocando uma na outra e produzindo uma sequência de trovões.
- Bravo! É o Soneto 138, se não estou em erro. E, se me permite, na minha modesta opinião, nunca como hoje tão belamente declamado.
Rupert ficou todo emproado.
O Sol escondeu-se por detrás de uma nuvem, os raios de luz empalidecendo por instantes, e nós voltámos a ser, muito simplesmente, quatro pessoas normais dentro de uma sala
sombria e cheia de pó.
- Esplêndido! - exclamou Rupert. - O salão é esplêndido! Atravessou o palco a coxear e começou a descer desajeitadamente
os estreitos degraus, uma das mãos espalmada contra a parede, para se apoiar.
- Cuidado! - pediu Nialla, avançando rapidamente em direcção
a ele.
- Põe-te a andar! - replicou ele com uma expressão de pura ferocidade. - Eu sei tratar de mim. - Ela imobilizou-se, como se ele a tivesse esbofeteado. - Nialla acha que eu
sou filho dela - riu-se ele, tentando dar à coisa um ar de brincadeira.
Mas, pelo olhar assassino que a mulher lhe lançou, eu percebi perfeitamente que ela não achava nada daquilo.
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Capítulo 3

- Ora então muito bem! - disse o vigário com ar muito animado, esfregando as mãos como se aquela cena não se tivesse passado. - Então está combinado. Por onde é que começamos?
- E olhou ansiosamente de um para o outro.
- Por descarregar a carrinha, dá-me a impressão - respondeu Rupert. - Presumo que podemos deixar as nossas coisas aqui até à hora do espectáculo, não?
- Oh, claro... claro - retorquiu o vigário. - O salão paroquial é tão seguro como a casa de qualquer pessoa. Se calhar, até é mais seguro do que muitas casas.
- Nesse caso, vai ser preciso alguém que dê uma olhadela à carrinha... e nós vamos ter de arranjar um sítio onde nos alojemos durante uns dias.
- Deixem essa parte ao meu cuidado - disse o vigário. - Acho que consigo arranjar-lhes qualquer coisa. Então vá, vamos arregaçar as mangas e pôr mãos ao trabalho. Anda embora
comigo, Flavia. Há de certeza alguma tarefa que se adapte aos teus talentos tão especiais.
Alguma tarefa que se adapte aos meus talentos tão especiais? Não sei porquê, mas duvidava de que assim fosse - a não ser que se tratasse do meu assunto preferido, crimes com
venenos.
Apesar disso, e porque não estava a apetecer-me voltar já para Buckshaw, lancei ao vigário o meu melhor sorriso de escuteira (já na reforma), e saí atrás dele, na companhia
de Rupert e Nialla, para o adro da igreja.
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Quando Rupert abriu para trás as portas da carrinha, tive o meu primeiro vislumbre do que era a vida de um artista ambulante. No interior pouco iluminado do Austin, via-se
camada após camada de belíssimas gavetas de madeira envernizada, todas confortavelmente aninhadas por cima, por baixo e aos lados umas das outras; faziam lembrar muito as
caixas de sapatos de uma sapataria muito bem organizada, uma vez que todas elas podiam deslizar para fora dos respectivos carretos. No chão da carrinha estavam empilhadas
as caixas maiores - na realidade, eram mais malas de viagem -, com pegas de corda nas extremidades, para facilitar a sua deslocação para os diversos locais para onde eram
transportadas.
- Foi Rupert que fez isto tudo - explicou Nialla com orgulho. -As gavetas, o palco desdobrável, o equipamento eléctrico... Os holofotes foram feitos de latas de tinta, não
foi, Rupert? - Rupert acenou distraidamente com a cabeça, ocupado a tirar do caminho um feixe de tubos de ferro. - E mais! Foi ele que cortou os cabos, que fez os adereços,
que pintou os cenários, que esculpiu as marionetas... foi ele que fez tudo! Excepto aquilo, evidentemente.
E, dizendo isto, apontou para um volumoso estojo preto, com uma pega de metal e uns orifícios de lado.
- O que é aquilo? Algum animal? Nialla soltou uma gargalhada.
- Melhor ainda. Aquilo é o orgulho e a alegria de Rupert: é um gravador magnético. Mandou-o vir da América. Custou-lhe uma pipa de massa, isso te garanto eu. Apesar de tudo,
fica mais barato do que contratar a orquestra da BBC para tocar a música de acompanhamento.
Rupert já tinha começado a empurrar volumes para fora do Austin, resmungando enquanto trabalhava. Os braços dele pareciam andaimes de porto de descarga - erguendo e poisando,
erguendo e poisando; finalmente, os volumes ficaram quase todos empilhados na erva.
- Deixe-me dar-lhe uma ajuda - interveio o vigário, pegando na corda que se encontrava na extremidade de um baú preto em forma de caixão, com as letras "Galliganto" escritas
a branco na superfície, enquanto Rupert pegava na corda que se encontrava na outra extremidade.
Nialla e eu fizemos várias viagens de um lado para o outro, transportando para dentro os volumes mais leves, e meia hora depois o
material estava todo empilhado no interior do salão paroquial, diante do palco.
- Ora excelente! - declarou o vigário, sacudindo o pó das mangas do casaco. - Tudo prontinho! O que lhe parece, sábado era um bom dia? Quero eu dizer, para o espectáculo.
Deixa ver... hoje é quinta-feira... assim ficávamos com mais um dia para organizar tudo, e também lhe dava tempo para reparar a carrinha.
- A mim parece-me bem - respondeu Rupert. Nialla confirmou com um aceno de cabeça, embora ninguém lhe tivesse perguntado nada.
- Nesse caso, fica para sábado. Vou pedir a Cynthia que copie uns folhetos no hectógrafo, e que os distribua pelas lojas amanhã durante o dia... Afixam-se uns quantos em locais
estratégicos. Cynthia tem muito bom feitio para estas coisas.
"Bom feitio" não era propriamente a expressão mais correcta para descrever o temperamento de Cynthia Richardson; "ogresa" talvez fosse uma definição mais adequada.
Pensando bem, tinha sido Cynthia - e as suas feições de roedor - que me tinha certa vez apanhado agachada atrás do altar de São Tancredo, com uma lâmina do pai na mão, a raspar
uma amostra de óxido azul-de-cobalto de um dos vitrais da Idade Média da nossa igreja. O óxido azul-de-cobalto é um arseniato de cobalto, uma base impura preparada por queima
que os artífices medievais utilizavam na pintura sobre vidro, e eu estava mortinha por conseguir analisar aquela substância no meu laboratório, para verificar se os produtores
tinham efectivamente conseguido levar a cabo o passo essencial que consistia na total purificação do ferro nele contido.
Cynthia tinha-me agarrado, tinha-me levantado do chão, e tinha-me dado uma bela tareia ali mesmo, recorrendo - em minha opinião, de forma muito pouco própria - a um exemplar
de Cânticos Antigos eModernos (na Edição Popular) que encontrou ali à mão.
- Aquilo que tu fizeste, Flavia, é digno da maior censura - declarou-me o pai quando lhe relatei a afronta. - Deste cabo de uma lâmina Thiers-lssard que estava em excelente
estado.
Mas eu tinha de reconhecer que Cynthia tinha imenso talento para organizar coisas; a verdade é que talento para organizar coisas o tinham
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igualmente os capatazes que, de chicote em punho, conseguiram que as pirâmides fossem construídas. Se alguém era capaz de cobrir Bishop's Lacey de cima abaixo de folhetos
informativos em três dias, essa pessoa era Cynthia Richardson.
- Um momento! - exclamou o vigário. - Acabo de ter uma ideia esplêndida! Digam-me o que vos parece. E se fizessem dois espectáculos, em vez de um? Não sou, evidentemente,
um especialista na arte do teatro de marionetas, de maneira que não sei o que é e o que não é possível fazer, mas por que não fazem um espectáculo para as crianças no sábado
à tarde, e outro espectáculo no sábado à noite, onde podiam vir principalmente os adultos?
Rupert não respondeu logo; ficou a olhar para ele, ao mesmo tempo que afagava o queixo. Até eu percebia que, com dois espectáculos, as entradas de bilheteira duplicavam.
- Bem... - disse ele por fim. - Acho que sim. Mas tínhamos de apresentar o mesmo espectáculo em ambas as ocasiões...
- Esplêndido! - respondeu o vigário. - Nesse caso, o que vai ser... isto é, qual vai ser o programa?
- Abrimos com uma curta peça de música - explicou Rupert. - É uma peça nova, em que eu tenho andado a trabalhar. Nunca a apresentei em público, de maneira que era uma boa
altura para a estrear. A seguir, apresentamos o João e o Pé de Feijão. O público pede sempre o João e o Pé de Feijão, sejam crianças, sejam adultos. É um clássico. Toda a
gente gosta.
- Fantástico! - disse o vigário. E, tirando do bolso uma folha de papel dobrado e a ponta de um lápis, começou a escrevinhar umas coisas. - Que é que lhes parece? - perguntou
então; e, introduzindo um floreado conclusivo, começou a ler-nos o que tinha escrito, com uma expressão muito satisfeita no rosto.
Directamente de Londres!
- Espero que me perdoem esta pequena mentira, e o ponto de exclamação - sussurrou para Nialla.
As Marionetas de Porson
Manipuladas pelo famoso Rupert Porson. As marionetas da televisão
Programa I. Interlúdio Musical II. João e o Pé de Feijão
(O primeiro será apresentado em estreia absoluta; o segundo é um clássico que toda a gente, velhos e novos, aprecia.)
Sábado, 22 de Julho de 1950, no Salão Paroquial da Igreja de São Tancredo, Bishop's Lacey.
Espectáculos às 14 e às 19 horas em ponto!
- Tem de ser assim, se não as pessoas atrasam-se e o espectáculo nunca mais começa - acrescentou. - Vou pedir a Cynthia que faça um desenho de uma marioneta com fios para
pormos por cima. Ela desenha maravilhosamente, compreendem, é uma artista, embora não tenha tido muitas oportunidades de se expressar; mas desculpem-me, estou para aqui a
algaraviar. É melhor pôr-me ao telefone, a tratar das coisas.
E foi-se embora.
- Que sujeito tão curioso - comentou Rupert.
- É bom tipo - garanti-lhe. - Só que não tem uma vida muito fácil.
- Ah, pois - respondeu. - Percebo. Farta-se de fazer funerais e assim.
- Isso - retorqui. - Farta-se de fazer funerais e assim. Mas estava a pensar mais em Cynthia.
- Para que lado ficam as fontes? - perguntou Rupert subitamente. Por momentos, fiquei espantada com a pergunta. Devo, aliás, ter ficado com uma expressão meio estúpida.
- As fontes - repetiu ele. - A corrente. O painel da electricidade. Ah, bom, não deves saber onde é que fica, pois não?
Na realidade, sabia. Poucas semanas antes tinha sido contratada Para ocupar os bastidores na companhia da senhora Witty, para a ajudar
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a empurrar as gigantescas manivelas do painel de electricidade - que era uma antiguidade - enquanto as alunas do primeiro ano de ballet saltitavam de um lado para o outro
do palco. No recital, intitulado As Maçãs Douradas Pelo Sol, Pomona (Deirdre Skidmore, vestida de insecto) seduzia um relutante Hyas (Gerald Plunkett, envergando - muito corado
- umas calças justas, adaptadas de umas ceroulas pretas), apresentando-lhe um sortido de frutas em papier mâché.
- Por detrás do palco, do lado direito - respondi-lhe. - Atrás das cortinas de protecção de som.
Rupert pestanejou por duas vezes, lançou-me um olhar de poucos amigos e voltou a subir os estreitos degraus que iam dar ao palco. Ficámos a ouvi-lo resmungar sozinho lá atrás
durante algum tempo, os resmungos interrompidos por ruídos de portinholas de metal a serem abertas e fechadas, e de interruptores a serem ligados e desligados.
- Não o leves a sério - sussurrou-me Nialla. - Fica sempre nervosíssimo a partir do momento em que se combina o espectáculo, e só se acalma quando desce o pano, no final.
A seguir, fica bonzinho que nem um cachorro.
Enquanto Rupert andava a mexer na electricidade, Nialla começou a desapertar vários feixes de postes de madeira polidos, ligados uns aos outros com tiras de couro.
- Isto é o palco - explicou-me. - Monta-se com cavilhas e porcas em borboleta. Foi Rupert que o concebeu e o montou todo. Cuidado aí com os dedos. - Eu tinha avançado e fizera
menção de a ajudar a tratar das peças mais compridas. - Eu trato disto sozinha, obrigada - disse ela. - Já o fiz centenas de vezes, e tenho um sistema que resulta na perfeição.
A única coisa que tem de ser içada por duas pessoas é a base.
Ouvi atrás de mim um roçagar de panos e, voltando-me, vi o vigário postado à porta, com uma expressão muito pouco satisfeita.
- Infelizmente, não vos trago boas notícias - disse. - A senhora Archer disse-me que Bert foi a Londres fazer um curso de formação e só volta amanhã; além disso, ninguém me
responde da Quinta de Culverhouse, que era onde eu tinha a esperança de conseguir alojá-los. Bem, o certo é que a senhora I nem sempre atende o telefone quando está sozinha
em casa. Ela vem cá trazer os ovos no sábado, mas nessa altura já é tarde. Eu convidava-vos para ficarem na casa vicarial, claro,
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mas Cynthia acaba de me recordar com grande insistência que andamos justamente a pintar o quarto de hóspedes: temos as camas desmanchadas e empilhadas pelos corredores, os
armários a impedir a passagem no patamar, e por aí fora. É uma grande maçada, se querem que vos diga.
- Não se preocupe, senhor vigário - disse Rupert do alto do palco. Eu apanhei um susto de morte. Já quase me tinha esquecido de que ele ali estava. - Nós acampamos aqui mesmo,
no cemitério. Temos uma tenda óptima na carrinha, temos cobertores de lã, temos uma base de borracha, um fogãozinho Primus e uma lata de feijão para o pequeno-almoço. Ficamos
mais confortáveis do que um par de pulgas numa manta velha.
- Pois - comentou o vigário. - Se dependesse só de mim...
- Ah - interrompeu Rupert, erguendo o dedo indicador -, já sei o que me vai dizer: que não pode autorizar acampamentos no meio das lápides. Que há que ter respeito pelos mortos,
e etc. e tal.
- Pois - correspondeu o vigário. - Talvez haja um grãozinho de verdade no que me diz, mas...
- Se lhe parecer bem, nós instalamo-nos num cantinho que esteja vago. Assim já não profanamos nada. Não seria a primeira vez que dormíamos num cemitério, pois não, Nialla?
Corando intensamente, Nialla dedicou-se a observar com enorme fascínio uma coisa qualquer que havia no chão.
- Bem, nesse caso está combinado - concluiu o vigário. - A bem dizer, não temos assim muitas alternativas, não é verdade? Além disso, é só uma noite. Não se pode dizer que
os prejuízos sejam de monta. Valha-me Deus! - comentou então, olhando para o relógio. - O tempus de facto fugitl. Prometi solenemente a Cynthia que regressava a correr. A
quinta-feira almoçamos sempre mais cedo por causa do ensaio do coro. Até vos convidava para virem partilhar do nosso guisado, se não...
- Nem pensar nisso - interrompeu Rupert. - Já o maçámos que chegue e ainda o dia está a começar, senhor vigário. Além disso, e por muito que lhe custe a crer, Nialla é uma
artista a improvisar ovos com presunto num fogareiro aceso num cemitério. Vamos comer como bandidos corsos e dormir como os mortos.
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Nialla sentou-se com muito jeitinho em cima de um caixote ainda por abrir, e eu percebi que se tinha sentido subitamente exausta. Quais nuvens de tempestade que o vento soprara
para diante da lua, assim se lhe tinham formado dois círculos negros em torno dos olhos.
O vigário afagou o queixo.
- Flavia, minha querida - disse então -, acabo de ter uma ideia esplêndida. E se tu passasses por cá amanhã de manhãzinha cedo para dares uma ajuda? Tenho a certeza de que
as Marionetas de Porson ficariam muito gratas por poder contar com o apoio de uma colaboradora cheia de vigor. Amanhã é o meu dia de visitar os doentes, e depois tenho a formação
dos acólitos - prosseguiu. - De maneira que tu podias fazer as vezes de meu locum tenens, por assim dizer. Abrias as portas da paróquia aos nossos convidados, davas-lhes todas
as indicações e tratavas do que eles precisassem.
- Com todo o gosto - respondi eu, com uma quase imperceptível
vénia.
Nialla foi a única que me recompensou com um sorriso.
Saí para o adro da igreja e fui buscar a Gladys - a minha fiel bicicleta - ao fundo de um mar de ervas altas; momentos mais tarde, voávamos juntas em direcção a casa, percorrendo
as soalheiras veredas que iam dar a Buckshaw.
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Capítulo 4

- Olá a todos - cumprimentei, depois de ter entrado discretamente na sala de estar. Estava a falar para as costas de Feely.
Feely contemplava-se ao espelho e, sem se voltar, olhou de esguelha para o meu reflexo na superfície gasta pelo tempo.
- Desta vez vais mesmo apanhar das valentes - disse-me. - O pai tem andado à tua procura toda a tarde, e acaba de telefonar para a aldeia, para o agente Linnet. Devo dizer
que se mostrou bastante desiludido pelo facto de o polícia não lhe ter comunicado que te tinham pescado o corpinho morto e ensopado do lago dos patos.
- E como é que sabes que não pescaram? - perguntei astuciosamente. - Como é que sabes que eu não sou um fantasma, que vim assombrar-vos e conduzir-vos ao túmulo?
- Porque tens os atacadores desapertados e estás toda ranhosa explicou Daffy, erguendo os olhos do livro que estava a ler, Forever Amber; era a segunda vez que o lia.
- Esse livro é sobre quê? - tinha-lhe eu perguntado da primeira
- É sobre as moscas no mel. - tinha ela respondido com um sorriso Presumido, que me fez decidir pôr a obra na minha lista de leituras, adoro livros sobre a natureza.
- Não querem saber onde é que eu estive? - perguntei. Estava a querer de lhes falar das Marionetas de Porson e por lhes contar tudo que tinha observado sobre Nialla.
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- Não - respondeu Feely, espetando o indicador na extremidade do queixo e aproximando-se mais do espelho para se observar melhor. - Ninguém tem o menor interesse em saber
o que tu andas a fazer. Tu és o cão que ninguém quer.
- Não sou nada - retorqui eu.
- És sim senhora! - replicou ela com uma grande gargalhada. - Se me conseguires dar o nome de uma pessoa, uma só pessoa desta casa, que esteja interessada em ti, eu dou-te
um guinéu. Vá lá, diz-me uma só que seja.
- Harriet! - disse eu. - Harriet estava interessada em mim, se não não me tinha tido.
Feely fez meia volta e cuspiu para o chão. Mas cuspiu mesmo.
- Para tua informação, pinta, Harriet deixou-se afundar num profundo atoleiro de depressão imediatamente depois do teu nascimento.
- Ah! - contrapus eu. - Apanhei-te! Tinhas-me dito que eu fui adoptada.
E tinha mesmo. Na verdade, sempre que queriam exasperar-me até mais não, Daffy e Feely voltavam a dizer o mesmo.
- E foste! - replicou ela. - O pai e Harriet acordaram em te adoptar antes de tu teres nascido. Mas quando chegou o momento, e a tua mãe verdadeira te teve, houve um engano
e tu foste entregue a outras pessoas, a um casal de Kent, se não estou em erro. Infelizmente, eles devolveram-te. Segundo se disse na altura, foi a primeira vez, na bicentenária
história daquele hospício, que alguém devolveu um bebé por não gostar dele. Quando te entregaram a Harriet, ela também não gostou de ti, mas já tinham assinado os papéis todos
e a direcção do hospício recusou-se a ficar segunda vez contigo. Nunca esquecerei o momento em que ouvi Harriet dizer ao pai, estava a pentear-se diante do toucador, que nunca
seria capaz de gostar daquela cara de ratazana que não parava de chorar. Mas agora não podia fazer nada.
"Por isso, aconteceu-lhe o que teria acontecido a qualquer mulher normal em tais circunstâncias: deixou-se afundar num estado de profunda perturbação, do qual, muito provavelmente,
nunca recuperou. Ainda se encontrava mergulhada nesse estado quando caiu, ou talvez tenha saltado, do alto daquela montanha no Tibete. O pai sempre achou que tu eras responsável
por isso; não me digas que nunca percebeste!
A sala estava fria como gelo e, de repente, senti-me entorpecida dos pés à cabeça. Abri a boca para lhe responder, mas percebi que tinha
a língua seca e enrolada, mais parecendo uma tira de couro. Saí da sala a correr, as lágrimas a queimarem-me os olhos.
Havia de fazer ver umas coisas àquela porca da Feely. Havia de a atar de tal maneira, e com nós tão elaborados, que teriam de contratar um marinheiro para os desfazer antes
do funeral da minha irmã.
No Brasil, há uma árvore chamada Carica digitata, a que os nativos chamam chamburu, e que é de tal maneira venenosa que, na opinião deles, basta a pessoa deitar-se a dormir
à sombra dos seus ramos que fica, primeiro, com umas feridas que nunca mais saram, às quais se segue, mais cedo ou mais tarde, uma morte maravilhosamente dolorosa.
Felizmente para Feely, a Carica digitata não se dá em Inglaterra. Felizmente para mim, a pequena cicuta dá-se em Inglaterra. Na verdade, eu sabia de um recanto pantanoso do
Prado de Seaton, a menos de dez minutos de Buckshaw, onde a bela cicuta crescia naquele preciso momento. Dava-me tempo de ir e vir antes do jantar.
Tinha actualizado recentemente os meus conhecimentos de comina, que é o princípio activo da referida cicuta. Tencionava extraí-la destilando-a com a base que encontrasse -
por exemplo, com um bocadito do bicarbonato de sódio que tinha à mão no laboratório, para combater os excessos culinários da senhora Mullet; procederia em seguida à congelação,
a fim de remover, por cristalização, as lascas iridescentes da conidrina, que é um produto menos forte. Obteria assim uma conina quase pura, com um delicioso cheiro a rato,
e bastaria menos de meia gota do belo produto oleoso para selar contas antigas.
Agitação, vómitos, convulsões, espuma na boca, espasmos horrorosos - fui enumerando os sintomas à medida que ia tocando na ponta dos dedos.
Santo cianido Arsénico super-rápido A mistura Numa sopa.
Acendam as lamparinas do luto Mandem fechar os ganchos do caixão Assim aprenderão a não se meter Com Flavia de Luce!
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Aquelas palavras fizeram eco no tecto alto da entrada (era um tecto pintado a fresco) e nas madeiras escuras e polidas dos patamares da escadaria. À parte o facto de não fazer
referência à cicuta, este poemazinho - por mim composto para uma ocasião completamente diferente - era a expressão perfeita dos meus sentimentos naquele momento.
Atravessei a correr os ladrilhos pretos e brancos e a correr subi a elegante curvatura da escada que ia dar à ala leste da casa, a ala "Tar", como lhe chamávamos. O nome desta
parte da casa era uma homenagem a Tarquin de Luce, um dos antepassados de Harriet, um tio que tinha habitado Buckshaw antes de nós. O tio Tar tinha passado a maior parte da
sua vida fechado num magnífico laboratório vitoriano de química, localizado no canto sudeste da casa, investigando "as migalhas do universo", como ele próprio escrevera numa
das muitas cartas que tinha enviado a Sir James Jeans, o autor de The Dynamical Theory of Gases.
Imediatamente abaixo do laboratório, na Galeria Comprida, há um retrato a óleo do tio Tar, debruçado sobre o microscópio mas de cabeça levantada, os lábios apertados e o sobrolho
franzido, como se o pintor lhe tivesse entrado bruscamente pelo laboratório adentro, de cavalete, tela e caixa de tintas debaixo do braço, no preciso momento em que ele se
preparava para descobrir o Lucium.
- Desapareça! - diz ele tão claramente como se o dissesse com palavras. - Desapareça e deixe-me em paz!
De maneira que os outros tinham desaparecido todos - e o tio Tar também tinha acabado por desaparecer.
O laboratório, com tudo o que nele havia, era agora propriedade minha, e era-o há vários anos. Nunca ninguém aqui entrava - e ainda bem.
Quando meti a mão ao bolso para tirar a chave, vi uma coisa branca cair ao chão. Era o lenço que eu tinha emprestado a Nialla no adro da igreja - e que ainda estava vagamente
húmido.
Formou-se-me no espírito a imagem de Nialla tal como a tinha visto pela primeira vez, estendida ao comprido, de cabeça para baixo, sobre uma pedra tumular já fanada, com o
cabelo todo espalhado como um oceano vermelho, as lágrimas quentes a crepitar sobre a poeira.
Todas as peças entraram nos respectivos lugares, qual mecanismo perfeito. Evidentemente!
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A vingança teria de esperar.
Com uma tesoura de unhas que tinha roubado à mesa de vaidades de Feely, recortei quatro discos ao lenço de linho ainda húmido, tendo o cuidado de contornar as nódoas verdes
de erva que eu própria lhe tinha infligido, e cortando apenas das zonas que se encontravam na diagonal oposta às manchas, ou seja, nas zonas que Nialla tinha manchado com
as suas lágrimas.
Com uma pinça, meti os quatro discos dentro de um tubo de ensaio, para dentro do qual injectei uma solução de ácido sulfossalicílico, a fim de precipitar a proteína. Estava
a fazer o chamado teste de Ehrlich.
Enquanto assim fazia, pensei com satisfação nas profundas alterações que o grandioso Alexander Fleming tinha introduzido no mundo por ter espirrado acidentalmente para cima
de uma placa de Petri. Era o género de experiência científica que eu mais apreciava. Vendo bem, qual é o cientista que pode garantir que nunca espirrou para cima de uma cultura?
Pode acontecer a qualquer pessoa. A mim já me aconteceu.
Depois de ter espirrado, Fleming - que era um homem extraordinariamente observador - reparou que as bactérias que se encontravam na placa tinham encolhido, como que receosas
dos salpicos de muco que ele havia largado. Pouco tempo depois, tinha isolado a proteína contida no muco, cuja presença repelia as bactérias com a mesma intensidade com que
a presença de um cão a espumar da boca repele os assaltantes. Chamou-lhe lisozima, e era justamente desta substância que eu andava agora à procura.
Felizmente, seja no Inverno, seja no pico do Verão, as ancestrais salas de Buckshaw estão sempre frias e húmidas como um túmulo. Isto a despeito de haver aquecimento central
numa das alas, a ala oeste, um dispositivo instalado durante um período em que a casa estivera dividida ao meio por dois irmãos que se odiavam. Assim, a temperatura ambiente
na ala leste, onde ficava localizado o meu laboratório, nunca subia acima dos 16 graus, que é precisamente - sorte a minha! - a temperatura a que a lisozima precipita quando
se lhe acrescenta o ácido sulfossalicílico.
Fiquei a observar, fascinada, a lenta formação de um véu de cristais, cujos flocos brancos foram caindo suavemente na miniatura de Inverno que se formou no interior do tubo
de ensaio.
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A seguir, acendi um bico de Bunsen, sobre o qual aqueci cuidadosamente um recipiente com água a 70 graus. Não levou muito tempo. Quando o termómetro assinalou que a temperatura
tinha alcançado o nível desejado, mergulhei a ponta do tubo de ensaio na água morna e agitei suavemente.
Quando o precipitado recém-formado se dissolveu, soltei um grunhido de satisfação.
- Flavia! - A voz longínqua do pai entrou de mansinho pelo laboratório adentro. Tendo percorrido a entrada, subido a elegante curvatura das escadas, entrado pela ala leste
e atravessado penosamente o comprido corredor até à extremidade sul do dito, penetrou finalmente pela porta fechada, já quase completamente gasta e cansada, como se tivesse
percorrido o mundo, desde Ultima Thule até Inglaterra. - Jantar! pareceu-me ouvi-lo dizer.
- Que coisa mais irritante - declarou o pai.
Estávamos todos sentados em volta da comprida mesa de refeições, o pai numa das cabeceiras, Daffy e Feely de cada um dos lados, e eu na outra cabeceira, no Cabo Horn.
- É incrivelmente irritante - repetiu o pai - estar aqui sentado a ouvir a minha própria filha a confessar que me roubou a água-de-colónia para fazer uma porcaria de uma experiência
de química.
Quer eu negasse estes feitos, quer confessasse a minha culpa, o pai dizia sempre que era incrivelmente irritante. Não havia maneira de eu ficar por cima. Tinha portanto aprendido
que a melhor coisa a fazer era não dizer nada.
- Bolas e mais bolas, Flavia, eu tinha acabado de comprar aquela porcaria. Achas bem que me desloque a Londres no pino do Verão a cheirar a perna de porco atolada na lama,
achas?
O pai tornava-se especialmente eloquente quando se irritava. Eu tinha-lhe roubado o frasco de Roger & Gallet para encher um pulverizador com o qual precisara de pulverizar
a casa depois de uma experiência com sulfureto de hidrogénio que tinha corrido muito, mas mesmo muito mal.
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Abanei a cabeça.
- Lamento imenso - respondi, assumindo uma expressão de cãozinho arrependido e passando o guardanapo pelo olho. - Comprava-lhe outro, se tivesse dinheiro.
Feely olhou para mim com silencioso desprezo, como se eu fosse um pato de metal empoleirado numa barraca de tiro de uma feira. Daffy mantinha o nariz firmemente enfiado em
Virginia Woolf.
- Mas se quiser faço-lhe um frasco novo - prossegui, animando-me. - Não custa nada. Basta misturar etanol, óleos de citrinos e ervas silvestres. Posso pedir ao Dogger que
me apanhe rosmaninho e alfazema, e peço à senhora Mullet que me arranje umas laranjas, uns limões e umas limas...
- Não vai fazer nada disso, menina Flavia - largou a senhora Mullet entrando de rompante pela sala adentro: empurrou a porta com a ampla coxa e veio pousar um grande tabuleiro
em cima da mesa.
- Oh, não! - sussurrou Daffy a Feely. - Outra vez o Inconveniente! O Inconveniente, como nós lhe chamávamos, era uma sobremesa
inventada pela senhora Mullet, que consistia - tanto quanto conseguíamos perceber - numa espécie de gelatina verde metida em formas de salsicha, coberta com natas de Devon
batidas, e decorada com rebentos de hortelã pimenta e outras ervas sortidas. Poisado em cima da mesa, o Inconveniente palpitava de forma obscena a intervalos regulares, qual
gigantesca lesma trazida do jardim. Não consegui deixar de estremecer.
- Delicioso - disse o pai. - Delicioso a valer.
Estava a ser irónico, mas as antenas da senhora Mullet não conseguiam captar os tons do sarcasmo.
- Bem me parecia que iam gostar - dizia ela. - Ainda esta manhã estava eu a dizer ao meu Alf: "Há bastante tempo que o coronel e as meninas não provam as minhas belas gelatinas.
Andam sempre a fazer comentários sobre as minhas gelatinas (era a pura verdade) e eu adoro fazer gelatinas para os meus queridos."
Pela maneira como ela falava, dava a impressão de que os empregadores dela eram veados.
Feely emitiu um ruído que parecia o de um passageiro do Queen Mary agarrado à balaustrada do navio, quase desmaiado de enjoo, durante uma travessia do Atlântico feita a meio
de Novembro.
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- Comam tudo, minhas queridas - ordenou a senhora Mullet, imperturbável. - Faz muito bem. - E, virando costas, foi-se embora.
O pai olhou para mim com aquela expressão que ele tem. Embora tivesse trazido para a mesa o mais recente número do London Philatelist, como era seu hábito, nem sequer tinha
chegado a abri-lo. O pai era um veemente - ou antes, um apaixonado - coleccionador de selos, consagrando toda a sua vida à observação, através de uma lupa, de uma provisão
aparentemente interminável de cabecinhas e paisagens coloridas. Nesta altura, porém, não estava a olhar para os selos; estava a olhar para mim. Os presságios não eram favoráveis.
- Onde é que estiveste a tarde toda? - perguntou.
- Na igreja - respondi eu pronta, afectada e (era essa pelo menos a minha esperança) devotamente. E era um ás nesta arte de disfarçar uma conversa potencialmente perigosa.
- Na igreja? - repetiu ele. Parecia bastante admirado. - A fazer o quê?
- Estive a ajudar uma senhora - respondi. - A carrinha dela tinha-se avariado.
- Ah - disse ele, permitindo-se esboçar um sorriso milimétrico.
- E tu ias a passar e ofereceste-te para a ajudar com as tuas competências de mecânica de veículos motorizados.
Daffy riu-se para dentro do livro, e eu percebi que ela escutava a minha humilhação com prazer atento. Sobre Feely posso dizer, porém, que fazia o favor de se manter totalmente
concentrada na actividade de polir as unhas na seda branca da blusa.
- Esta senhora tem um espectáculo ambulante de marionetas expliquei eu. - O vigário pediu-lhes, pediu a Rupert Porson e a Nialla, Nialla é a tal senhora, que montassem um
espectáculo no salão paroquial no próximo sábado, e pediu-me que fosse ajudá-los.
O pai vergou ligeiramente. O vigário era um dos poucos amigos que ele tinha em Bishop's Lacey e era pouco provável que me proibisse de o ajudar.
- Este Rupert aparece na televisão - acrescentei eu. - Na realidade, é bastante famoso.
- Não é pessoa dos meus conhecimentos - comentou o pai, lançando um olhar ao relógio de pulso e empurrando a cadeira para trás.
- Oito horas - declarou. - Quinta-feira.
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Não tinha de explicar mais nada. Sem mais uma palavra, Daffy, Feely e eu levantámo-nos e dirigimo-nos obedientemente à sala de estar em fila indiana, qual escolta.
Quinta-feira à noite era a Noite da Rádio em Buckshaw. O pai tinha decidido recentemente que precisávamos de passar mais tempo em família, de maneira que tinha introduzido
a Noite da Rádio, como complemento da série de palestras obrigatórias que nos fazia às quartas-feiras. Esta semana, tratava-se da fabulosa Quinta Sinfonia de Ludwig van Beethoven
- ou "Larry", como eu lhe chamava quando queria irritar Feely. Lembrava-me de Feely nos ter dito que, na pauta original, o nome próprio de Beethoven aparecia como "Louis".
"Louis Beethoven" parecia-me mais o nome de um dos bandidos que contracenavam com Edward G. Robinson nos filmes negros que este protagonizava. Louis Beethoven seria um sujeito
de faces caídas, a pele cheia de marcas de verrugas, com um tique assustador e uma metralhadora Thompson metida num estojo de violino.
- Tocàquela Senata ò Luar de Louis B - rosnava eu com a voz áspera que afivelo quando quero imitar um gatuno, entrando na sala onde ela estava a fazer exercícios ao teclado.
Momentos depois, punha-me a correr dali para fora, com Feely atrás de mim a grande velocidade e as partituras a voarem pelos ares e a aterrarem na carpete.
Por esta altura, Feely acomodava-se no chesterfield em pose altamente artística, qual estrela de cinema. Daffy deixou-se cair de lado numa cadeira de braços com o recheio
a sair por fora, com as pernas dependuradas de um dos lados.
O pai ligou o rádio e sentou-se numa cadeira simples de madeira, com as costas direitas que nem um pau. Enquanto as válvulas aqueciam, dei um mortal à retaguarda a meio da
sala, voltei para trás em pino e terminei a façanha sentada de pernas cruzadas à laia de Buda, com uma expressão facial que tinha a esperança de que fosse imperscrutável.
O pai lançou-me um olhar fatigado, mas como o programa já estava a começar, decidiu não dizer nada.
Após uma longa e maçadora apresentação por parte do locutor tão longa e maçadora que parecia que ia prolongar-se para o século seguinte -, teve finalmente início a Quinta
Sinfonia. Du-du-du-DÁ.
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Apoiando os cotovelos nos joelhos e o queixo na palma das mãos, entreguei-me à música.
O pai tinha-nos explicado que o gosto pela música era um elemento crucial na formação de uma mulher de bom gosto - as palavras eram dele, e eu tinha chegado à conclusão de
que havia música para meditar, música para escrever e música para descontrair.
De olhos semicerrados, voltei-me para a janela. Do ponto onde me encontrava - mais perto do solo do que os outros -, conseguia ver as duas extremidades do terraço reflectidas
nos vidros das portas-janelas, que estavam encostadas; e, a não ser que os meus olhos estivessem a pregar-me uma partida, tinha havido um movimento no exterior: uma forma
escura tinha passado diante da janela, do lado de fora.
Mas não me atrevi a levantar-me de um salto para ir ver o que era. O pai gostava que ouvíssemos a música com atenção. Um simples toque ritmado com um pé deparava imediatamente
com um olhar assassino e um dedo esticado num gesto de acusação.
Debruçando-me ligeiramente para diante, vi um homem todo vestido de preto sentar-se no banco que ficava ao lado das roseiras. Recostando-se para trás, o homem fechou os olhos,
deixando-se invadir pela música que fluía pela janela encostada. Era Dogger.
Dogger era o Homem do Pai - com H grande: jardineiro, motorista, criado, gestor e faz-tudo. Como já expliquei noutra ocasião, Dogger já se tinha desempenhado de todos os ofícios
e mais alguns.
Tinha sido prisioneiro de guerra, uma experiência que dera cabo de qualquer coisa dentro dele; de tempos a tempos, essa coisa manifestava-se com uma ferocidade inconcebível,
rasgando-lhe os miolos como se fosse um animal selvagem descontrolado e deixando-o desfeito, a tremer dos pés à cabeça.
Esta noite, porém, Dogger estava calmo. Esta noite tinha-se vestido para vir ouvir a sinfonia: fato preto, uma gravata que devia ser a do regimento a que pertencera, sapatos
tão engraxados que brilhavam como espelhos. Estava sentado no banco ao lado das roseiras, perfeitamente imóvel, de olhos fechados e face erguida; parecia um daqueles santos
coptas que eu tinha visto nas páginas de arte da Country Life, as madeixas de cabelos brancos iluminadas por trás por um sublime feixe de luz proveniente do pôr do Sol. Gostei
de saber que ele estava ali.
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Estendi-me, satisfeita, e voltei a concentrar as minhas atenções em Beethoven e na fascinante Quinta.
Embora fosse um extraordinário músico, e um mágico na composição de sinfonias, Beethoven fracassava quase sempre, e fracassava de forma estrondosa, quando se tratava da conclusão
das mesmas. E a Quinta era um exemplo perfeito disso mesmo.
Lembrava-me de que o final desta coisa, o allegro, era um daqueles casos em que Beethoven não tinha conseguido encontrar o interruptor para desligar.
Dum... dum... dum-dum-dum, mandava ele, e a pessoa pensava que era o fim. Mas não era.
Dum, dá, dum, dá, dum, dá, dum, dá, dum, dá, dum - DÁ dum. A pessoa fazia menção de se levantar e se espreguiçar, suspirando de satisfação pela extraordinária obra que acabava
de ouvir, quando de
repente:
DÁ dum. DÁ dum. DÁ dum. E por aí fora. DÁ dum.
Era como ter uma ponta de fita-cola colada ao dedo e não conseguir largá-la. A porcaria da coisa agarrava-se à vida como uma lapa.
Lembrei-me de que era costume dar nomes às sinfonias de Beethoven: Eroica, Pastoral, etc. Esta devia ter-se chamado Vampiro, porque se recusava, pura e simplesmente, a poisar
no chão e morrer.
Contudo, à parte este final que nunca mais acabava, eu adorava a Quinta, e o que mais me agradava nela era o facto de ser, em minha opinião, "música para corrida".
Imaginava-me de braças estendidos, a correr sem destino por Goodger Hill abaixo, o sol a bater-me nas costas, investindo em amplos ziguezagues, os rabichos a dançarem ao vento,
berrando a Quinta a plenos pulmões.
Aquela agradável fantasia foi interrompida pela voz do pai.
- Passamos agora ao segundo andamento, andante con moto dizia ele em voz sonora. O pai costumava dizer os nomes dos andamentos num tom que era mais próprio para um exercício
militar do que para a sala de estar de nossa casa. - Andante con moto quer dizer "a ritmo de passo, com movimento" - acrescentou, voltando a recostar-se na cadeira como um
homem que acaba de cumprir o seu dever.
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A expressão parecia-me redundante: como é que podia haver ritmo de passo sem movimento? Era uma hipótese que punha em causa as leis da física - mas a verdade é que os compositores
são diferentes do comum dos mortais.
Já morreram quase todos, por exemplo.
Ao pensar em mortos, e em cemitérios, lembrei-me de Nialla.
Nialla! Já quase me tinha esquecido de Nialla! O pai tinha-me chamado para o jantar quando eu estava a ponto de concluir o ensaio de química. Evoquei mentalmente uma imagem
de ligeiro enevoamento, os flocos agitando-se no tubo de ensaio, bem como a excitante mensagem que haviam trazido.
A não ser que eu estivesse muito enganada, a Mãe Gansa estava
grávida.
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Capítulo 5

Perguntei a mim própria se ela saberia.
Ainda ela estava estendida a chorar sobre a lápide tumular já eu me tinha apercebido de que Nialla não usava aliança. Não é que esse facto tivesse um significado por aí além:
o próprio Oliver Twist era filho de mãe solteira.
Acontece que, a seguir, eu lhe tinha visto as nódoas de lama no vestido. E o certo é que tinha registado essa circunstância no fundo do espírito, e nunca mais tinha voltado
a pensar no assunto - até este momento.
Mas, quando uma pessoa se detinha a ponderar os acontecimentos, tornava-se perfeitamente óbvio que ela tinha estado a fazer chichi no cemitério. Como não estivera a chover,
o facto de ter a bainha do vestido suja de lama queria dizer que fizera o serviço à pressa, no canto noroeste, longe de olhares indiscretos, ou seja, por detrás do montículo
de terra que o coveiro, o senhor Haskins, ali tinha à mão para quando tinha de tratar de enterramentos e desenterramentos.
Devia estar aflita, pensei.
Exacto! Era isso mesmo! Mulher alguma à face da terra optaria por '"cal tão pouco acolhedor ("deploravelmente insalubre" seriam as palavras a que Daffy recorreria para o classificar),
a não ser que se visse sem alternativas. As razões eram múltiplas, mas aquela que me ocorreu imediatamente foi uma das que tinha lido há pouco tempo nas páginas do Australian
Women's Weekly, enquanto aguentava os cavais na sala de
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espera do dentista de Farringdon Street: "Dez anúncios precoces de um feliz evento" era o título do artigo, e a frequente necessidade de urinar vinha quase no topo da lista.
- Quarto andamento. Allegro. Em dó maior - bradou o pai, qual maquinista dos caminhos-de-ferro anunciando a estação seguinte.
Eu acenei vivamente com a cabeça, para mostrar que estava a prestar atenção, e a seguir voltei a mergulhar nas minhas reflexões. Ora bem, onde é que eu ia? Ah, sim - em Oliver
Twist.
Certa vez, numa deslocação que tínhamos feito a Londres, Daffy tinha-nos apontado, da janela do táxi, o ponto exacto de Bloomsbury onde ficava o hospício de Oliver. Sendo
embora uma praça bastante agradável e frondosa, eu não tive grande dificuldade em me imaginar subindo com dificuldade os degraus há muito desaparecidos, mas não obstante cobertos
de neve, erguendo e deixando tombar a maçaneta de metal, e pedindo que ali me acolhessem. Tinha a certeza de que, quando lhes contasse a vida de semi-órfã que levava em Buckshaw,
juntamente com Feely e Daffy, não me fariam mais perguntas, antes me acolheriam de braços abertos.
Londres! Bolas e mais rebolas! Tinha-me esquecido completamente. Era hoje que eu devia ter ido a Londres com o pai, para me porem o aparelho nos dentes. Não era de espantar
que ele estivesse furioso. Enquanto eu andava pelo cemitério, a divertir-me com a morte e a fazer colheres com Nialla e o vigário, o pai andava quase de certeza a espumar
pela casa fora, qual navio de guerra com carga a mais. Tive a impressão de que o incidente ainda não tinha terminado.
Bem, agora era tarde. Beethoven começava - e já não era sem tempo - a orientar-se fatigadamente para casa, como o lavrador de Thomas Gray, abandonando o mundo às trevas e
a mim - bem, e ao pai.
- Flavia, quero dar-te uma palavrinha, se fazes favor - disse ele, desligando o rádio com um ominoso clique.
Feely e Daffy levantaram-se dos respectivos lugares e saíram da sala em silêncio, detendo-se à porta para me lançarem um daqueles olhares "vais mesmo apanhar das valentes!"
em que se tinham especializado.
- Mas que grande maçada, Flavia! - disse o pai quando elas saíram. - Sabias tão bem como eu que tínhamos consulta marcada para tratar dos teus dentes esta tarde.
Para tratar dos meus dentes! Pela maneira como ele falou, dava a impressão de que o Serviço Nacional de Saúde me tinha oferecido uma dentadura completa em gesso!
Mas ele tinha razão: pouco tempo antes, eu tinha destruído um aparelho em excelente estado; tinha endireitado os arames para abrir uma fechadura de modo ilegal. O pai tinha
resmungado, como era de esperar, mas acabara por marcar uma consulta para me fazerem novo aparelho e por me arrastar novamente para Londres com ele, para aquele ferrageiro
situado num terceiro andar de Farringdon Street, onde me amarrariam a uma maca como faziam ao Boris Karloff, enquanto me metiam na boca múltiplas tiras de metal e mas aparafusavam
às gengivas.
- Esqueci-me - disse eu. - Desculpe. O pai devia ter-me lembrado ao pequeno-almoço.
O pai pestanejou. Não estava à espera de uma reacção tão vigorosa - ou tão inteligentemente humilde! Embora tivesse sido oficial de carreira no exército, em termos de manobras
domésticas, pouco mais era do que uma criança pequena.
- E se fôssemos amanhã? - insisti eu em tom enérgico.
Talvez não pareça à primeira vista, mas esta sugestão foi um golpe de mestre. O pai desprezava o telefone com uma paixão absolutamente incrível. Para além de considerar o
aparelho - "o instrumento", como lhe chamava - um abaixamento das estações dos correios, achava igualmente que a sua utilização constituía um ataque, uma traição às tradições
do correio em geral e da utilização de selos em particular. Em conformidade com esta posição, recusava-se, pura e simplesmente, a utilizar o telefone, a não ser em circunstâncias
extremas. Eu sabia que ele levaria semanas, se não mesmo meses, a pegar novamente na coisa. E, mesmo que decidisse escrever ao dentista, as idas e vindas de cartas levariam
o seu tempo. Entretanto, eu estava safa.
- E não te esqueças - disse o pai, seguindo ainda o fio do seu raciocínio - de que a tia Felicity chega amanhã.
O coração afundou-se-me no peito como o batíscafo do professor Picard.
Todos os anos, no Verão, a irmã do pai descia sobre nós, proveniente da casa que habitava em Hampstead. Embora não tivesse filhos
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(talvez porque nunca se tinha casado), nem por isso deixava de ter opiniões muito marcadas sobre a forma como se deviam educar as crianças; opiniões essas que nunca se cansava
de expor em tom sonoro.
- As crianças deven ser açoitadas - dizia -, a não ser que vão para a política ou para a advocacia' caso em além de açoitadas, devem ser afogadas. - Estas afirmações resumiam
bastante bem toda a filosofia da tia Felicity. Não obstante, e a semelhança de qualquer tirano que se preze, também ela possuía umas gotas de sentimentalismo secretamente
armazenadas algures, que vinham a superfície aqui e ali (quase sempre por volta do Natal, e às vezes também no nosso aniversário, neste caso sempre atrasadas), em alturas
em que nos infligia presentes especialmente escolhidos.
A Daffy, que andava a devorar Melmoth the Wanderer ou Nightmare Abbey, oferecia a tia Felicity The Girl's Jumbo Book. A Feely, que em pouco mais pensava do que em cosméticos
e na sua borbulhenta cútis, oferecia um par de galochas em guta-perça, cuidadosamente embrulhadas ("o ideal,para passeios pelo campo").
Ainda assim, certa vez em Outubro tínhamos feito troça da tia Felicity à frente do pai, ele tinha-se imediatamente enfurecido de tal maneira como eu nunca o vira. Rapidamente
recuperara porém o autocontrolo, levando um dedo ao canto do olho para deter o movimento de um nervo teimoso.
- Alguma vez vos passou pela cabeça - perguntou então, num tom horrendamente calmo' que a vossa tia Felicity não é o que parece ser?
- Quer o pai dizer - replicou Feely - que aquela atitude de morcega é uma simples pose
Não pude deixar-me sentir ansiosa perante semelhante ousadia. O pai olhou-a poirnomentos, com toda a ferocidade dos seus frios olhos de azul Luce, e de seguida virou costas
e saiu da sala.
- Tenham dó da tia! - Tinha Daffy exclamado, mas só depois de estar fora do alcance.
Deste modo, os horrendos presentes da tia Felicity continuaram a ser recebidos em silêncio - pelo menos na minha presença.
Antes de eu ter de recordar as múltiplas circunstâncias em que ela cometera violações a minha natureza bondosa, o pai prosseguiu:
- Ela vem no comboio que chega a Doddingsley às dez e cinco, e eu gostava que tu fosses esperá-la.
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- Mas eu...
- Não discutas, Flavia, por favor. Eu tenho de tratar de umas coisas pendentes na aldeia. Ophelia vai fazer um recital qualquer ao Instituto Feminino, e Daphne recusa-se,
pura e simplesmente, a ir.
Valham-me todos os grifos! Eu devia prever que se estava a preparar qualquer coisa deste género.
- Vou pedir a Mundy que traga o carro. Falo com ele esta noite, quando ele vier buscar a senhora Mullet. - Clarence Mundy era o proprietário do único táxi que havia em Bishop's
Lacey.
A senhora Mullet saía hoje mais tarde, porque tinha de terminar a barrela semestral de tachos e panelas, um ritual que enchia a cozinha de gordura e de vapor de água superaquecido
e os habitantes de Buckshaw de náuseas. Nestas ocasiões, o pai insistia sempre em a mandar para casa de táxi. Circulavam em Buckshaw diversas teorias acerca da razão de ser
de tal procedimento.
Era evidente que eu não podia estar simultaneamente a caminho de Doddingsley ou de regresso de Doddingsley com a tia Felicity e a ajudar Rupert e Nialla a montar o espectáculo
de marionetas. Tinha portanto, muito simplesmente, de fazer uma análise da situação e atender primeiro às coisas mais importantes.
Embora se entrevisse um raio de Sol no céu do oriente, ainda o Sol não tinha nascido e já eu pedalava a grande velocidade pela estrada que ia dar a Bishop's Lacey. Os pneus
da Gladys emitiam aquele ruído activo e petulante que denota que ela se sente especialmente satisfeita.
Sobre os campos, de ambos os lados das valas, flutuava uma névoa baixa, e eu fingi que era o fantasma de Cathy Earnshaw, vogando por sobre os terrenos pantanosos de Yorkshire,
para ir juntar-se a Heathcliff (abstraindo-me da bicicleta). De vez em quando, os arbustos de espinheiros estendiam uma mão esquelética que se me agarrava à camisola de lã
encarnada, mas a Gladys e eu éramos velozes de mais para eles conseguirem apanhar-nos.
Quando me detive junto da Igreja de São Tancredo, avistei a Pequena tenda branca de Rupert montada na extensão de erva que
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ficava nas traseiras do cemitério. Ele tinha montado a tenda no campo do oleiro, onde se encontravam as campas dos pobres, de maneira que, embora ali estivessem enterradas
pessoas, não havia pedras tumulares. Presumi que ninguém tivesse informado Rupert e Nialla deste facto, e decidi que também não seria eu a fazê-lo.
Ainda eu não tinha dado dois pares de passos sobre a erva, já tinha os sapatos e as peúgas completamente encharcados.
- Bom dia - chamei. - Está alguém?
Não houve resposta. Nem um som se ouviu. Apanhei um susto quando uma das gralhas curiosas desceu do alto da torre, aterrando, com um movimento aerodinâmico perfeito, no alto
do muro de calcário que já conhecera melhores dias.
- Bom dia - voltei a dizer. - Truz, truz. Está alguém em casa? Ouviu-se um movimento no interior da tenda e Rupert espetou a
cabeça cá para fora, o cabelo de palha a esconder-lhe os olhos, que estavam tão vermelhos que pareciam ser accionados a dínamo.
- Valha-me Deus, Flavia! - disse ele. - És tu?
- Desculpem - respondi eu. - É um bocado cedo.
Ele meteu a cabeça dentro da tenda como se fosse uma tartaruga, e ouvi-o a tentar acordar Nialla. Seguiram-se uns quantos resmungos, combinados com bocejos, após o que começaram
a aparecer inchaços na lona em ângulos estranhos, como se estivesse alguém dentro da tenda com uma vassoura de giesta a varrer vidros partidos.
Minutos depois, Nialla rastejava cá para fora. Trazia o mesmo vestido da véspera e, embora o tecido desse a impressão de estar húmido, pouco confortável, ela trazia um cigarro
na boca, que tinha acendido ainda antes de se endireitar por completo.
- Viva - disse, fazendo-me um aceno com a mão, gesto com que dispersou o fumo do cigarro, que se foi juntar à névoa que flutuava por entre os túmulos.
Nialla tossiu - foi um espasmo, tão repentino como horrendo - e a gralha, inclinando a cabeça, deu uns passinhos de lado sobre o muro, como que indignada.
- Não devias fumar essas coisas - disse-lhe eu.
- É melhor do que fumar arenques - replicou ela, rindo-se da própria piada. - Mas que sabes tu sobre o assunto?
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Eu sabia que o meu falecido tio-avô Tarquin de Luce, cujo laboratório de química eu tinha herdado, fora, nos seus tempos de estudante, apupado e expulso da União de Estudantes
de Oxford, quando defendera o lado afirmativo num debate intitulado: "O tabaco é uma erva perniciosa."
Pouco antes, eu tinha deparado com as anotações do tio Tar, metidas dentro de um diário. As meticulosas investigações químicas que o meu tio levara a cabo pareciam confirmar
uma ligação causal entre o uso do tabaco e aquilo a que se chamava "paralisia geral". Sendo ele uma pessoa naturalmente tímida e introvertida, a "total e abjecta humilhação"
a que fora submetido pelos colegas - e as palavras eram dele - contribuíra fortemente para a vida de reclusão que depois levara.
Envolvendo o tronco com os braços, dei um passo atrás.
- Nada - respondi.
Já tinha falado de mais. Estava frio ali no cemitério, frio e húmido, e tive subitamente a visão da cama quente de onde tinha saltado de manhã para vir ajudá-los.
Nialla lançou para o ar um par de anéis de fumo, que ficou a ver subir, com uma expressão alegadamente descontraída, até se desfazerem.
- Desculpa - disse. - Nunca acordo bem-disposta. Não era minha intenção ser desagradável.
- Não faz mal - respondi eu. Mas fazia.
Ouviu-se o estalar de um ramo partido, um ruído surpreendentemente intenso no silêncio abafado da neblina. A gralha abriu as asas e levantou voo, indo pousar no alto de um
teixo.
- Quem está aí? - perguntou Nialla, correndo para o muro de calcário e espreitando por cima dele. - Os malandros dos miúdos comentou. - Estão a tentar assustar-nos. Ouvi um
deles a rir-se.
Embora eu tenha herdado a notável capacidade auditiva de Harriet, a única coisa que ouvi foi o ramo a estalar. Abstive-me de dizer a Nialla que seria deveras estranho que
alguma das crianças de Bishop's Lacey andasse pelo cemitério àquela hora da manhã.
- Vou dizer a Rupert que trate deles - declarou ela. - Que é para eles aprenderem. Rupert! - chamou em voz mais alta. - O que estás tu a fazer aí dentro? Aposto que o preguiçoso
voltou a meter-se dentro do saco-cama - acrescentou, piscando-me o olho.
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Estendendo o braço, deu um puxão numa das cordas que prendiam a tenda, que se clesmoronou lentamente numa massa de lona, qual pára-quedas esvaziando-se no solo. A tenda tinha
sido montada no terreno solto do campo do oleiro, de maneira que bastou um toquezinho para se desmoronar.
Rupert saiu imediatamente cá para fora e, apertando um dos pulsos de Nialla, torceu-lho por detrás das costas, obrigando-a a largar o cigarro.
- Tu nunca mais... - gritou. - Tu nunca mais...
Nialla fez um movimento de olhos na minha direcção e Rupert largou-a imediatamente.
- Bolas - disse. - Estava a fazer a barba. Podia ter-me cortado no pescoço, raios!
E esticando o pescoço, deu um safanão de lado, como se estivesse a libertá-lo de um colarinho invisível.
Que estranho, pensei eu. Ainda tem a cara coberta de pêlo e não se lhe vê ponta de creme- de barbear em lado nenhum.
- Os dados estão lançados - disse o vigário.
Tinha atravessa do o adro da igreja às voltas como um pião, mostrando ora uma face: branca, ora uma face preta, e esfregando as mãos; ao chegar ao pé de nós, declarou:
- Cynthia concordou em fazer uns anúncios na sacristia e vamos distribuí-los antes do almoço. Muito bem, quanto ao pequeno-almoço...
- Já comemos, obrigado - interrompeu Rupert, apontando com o polegar para trás de si, onde por esta altura a tenda se encontrava quase completamente desmoronada. E era verdade.
Ainda se viam uns restos de fumo a saiir da fogueira que eles já tinham apagado. Rupert tinha ido buscar uma caixa de pedaços de madeira à parte de trás da carrinha e tinha
acendido, com surpreendente rapidez, uma admirável fogueira de acampamento no cemitério. Em seguida, trouxera uma cafeteira com café, um pão e uma série de paus afiados para
sobre eles fazer as torradas. Niialla até tinha conseguido desencantar algures um frasco de compota.
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- Têm a certeza? - insistiu o vigário. - Cynthia disse-me que vos dissesse que se...
- A certeza absoluta - atalhou Rupert. - Estamos bastante habituados...
- ... a remediar - completou Nialla.
- Bem, pronto - retorquiu o vigário. - Nesse caso, que tal se entrássemos?
Conduziu-nos pela erva fora em direcção ao salão paroquial e, enquanto ele tirava do bolso a correia com as chaves, eu voltei-me para olhar para o portão de acesso ao cemitério.
Se tinha realmente ali estado alguém, já se tinha ido embora. Um cemitério coberto pela neblina proporciona um número infinito de esconderijos. Era perfeitamente possível
estar uma pessoa escondida atrás de uma pedra tumular, a menos de cinco metros, e ninguém dar por isso. Lançando um derradeiro e apreensivo olhar ao que restava da neblina,
voltei-me e entrei no salão paroquial.
- Então, Flavia, o que te parece?
Eu estava de boca aberta. Aquilo que ontem fora um palco vazio tinha-se transformado num elegantíssimo teatro de marionetas, um teatro que podia perfeitamente ter sido transportado
de um dia para o outro, por artes de magia, da Salzburgo do século XVIII.
A abertura do proscénio, que eu calculei que tivesse metro e meio a metro e oitenta de largura, estava coberta com uma tapeçaria de veludo vermelho, debruada e guarnecida
com borlas douradas, na qual estavam bordadas as máscaras da Comédia e da Tragédia.
Rupert desapareceu nos bastidores e, diante do meu olhar maravilhado, acendeu-se uma fileira de lamparinas, vermelhas, verdes e brancas, que foram esmorecendo a pouco e pouco,
transformando a parte inferior da cortina num extraordinário arco-íris de veludo.
Ao meu lado, o vigário susteve a respiração enquanto a cortina se abria lentamente, as mãos engalfinhadas num arroubo de encanto.
- O Reino da Magia - sussurrou.
Diante dos nossos olhos, aninhada entre colinas verdejantes, surgiu uma graciosa casinha de tecto de colmo e fachada de troncos de
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madeira, cheia de encantadores pormenores, desde o banco de madeira instalado por debaixo da janela até às minúsculas rosas de papel do jardim.
Por momentos, apeteceu-me viver ali; apeteceu-me ter a capacidade de encolher e de entrar naquele mundo minúsculo e perfeito, em que todos os objectos pareciam brilhar, como
que iluminados a partir de dentro. Depois de me ter instalado naquela casinha, montava um laboratório de química à beira das minúsculas janelas e...
O encanto foi quebrado pelo som de qualquer coisa a cair, seguido de um violento "Diabos!" proveniente do alto do céu pintado a azul.
- Nialla! - chamou a voz de Rupert dos bastidores. - Onde é que está o gancho desta coisa?
- Lamento, Rupert - respondeu ela em voz alta, e reparei que levou algum tempo a responder. - Deve estar na carrinha. Ias mandá-lo soldar, lembras-te? É a coisa que segura
o gigante - explicou ela. - Mas não convém revelar muitos segredos - acrescentou, sorrindo -, se não destrói-se a magia da coisa, não achas?
Antes de eu ter tempo de responder fosse o que fosse, abriu-se a porta das traseiras do salão paroquial, na qual se recortou em silhueta uma figura feminina: era Cynthia,
a mulher do vigário.
Cynthia não fez menção de entrar, antes se deixou ficar onde estava, à espera de que o vigário corresse para ela, coisa que ele fez prontamente. Enquanto aguardava que ele
chegasse junto dela, Cynthia voltou a cara para a luz do exterior e, embora me encontrasse a uma certa distância, distingui-lhe nitidamente o azul-frio dos olhos.
Ela tinha os lábios fechados como se tivessem sido bem cosidos, e o escasso cabelo, de um cinzento-alourado, formava uma banana na extremidade de um pescoço excepcionalmente
comprido; o penteado devia magoá-la. Metida dentro daquela blusa de tafetá bege, daquela saia cor de mogno e com aqueles sapatos rasos nos pés, o que ela parecia mesmo era
um relógio de pé com demasiada corda.
Se pusesse entre parêntesis o grandioso sermão que ela me tinha pregado, eu não saberia dizer exactamente por que era que Cynthia Richardson me desagradava. Toda a gente dizia
que ela era uma santa, uma mulher resoluta, um farol de esperança para os doentes, o consolo dos aflitos. As suas obras de caridade eram lenda em Bishop's Lacey.
E contudo...
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Havia qualquer coisa na atitude dela que soava a falso: uma repugnante indolência, uma espécie de flácida e fatigada derrota, semelhante à que se via na face e no corpo das
vítimas do Blitz nos números do Picture Post dos tempos da guerra. Mas como era possível que a mulher de um vigário ostentasse a mesma expressão...?
Tudo isto me passou a correr pela mente enquanto ela e o marido mantiveram uma conversa sussurrada, após a qual, com um rápido olhar de esguelha para dentro da sala, ela desapareceu.
- Excelente - disse o vigário, abrindo o rosto num sorriso enquanto regressava lentamente para junto de nós. - Parece que os Ingleby me devolveram a chamada.
Os Ingleby, Gordon e Grace eram os proprietários da Quinta de Culverhouse, uma combinação de campos aráveis e um pequeno bosque muito antigo, localizada a norte e oeste da
Igreja de São Tancredo.
- Gordon teve a amabilidade de oferecer a extremidade do Campo do Jubileu, que é um sítio muito simpático, para montarem a tenda. Fica na margem do rio, aqui perto. Pode-se
ir a pé, a bem dizer. Assim, terão à vossa disposição ovos frescos em quantidade, a sombra de uns salgueiros incomparáveis e a companhia dos pica-peixes.
- Que coisa óptima - respondeu Nialla. - É um cantinho do céu.
- Disse-me Cynthia que a senhora Archer também telefonou, mas lamento ter de vos dizer que, por esse lado, as notícias não são tão agradáveis. Bert foi a Cowley, tirar um
curso na fábrica da Morris, e só regressa amanhã à noite. A vossa carrinha anda alguma coisa?
Percebi, pela expressão do vigário, que ele estava preocupado com o facto de ter estacionada no adro da igreja, no domingo de manhã, uma carrinha com "Marionetas de Porson"
escrito em letras garrafais.
- Consegue andar um quilómetro ou dois - respondeu Rupert, aparecendo subitamente na lateral do palco. - Anda melhor, agora que está descarregada, e posso sempre embalar o
carburador.
Passou-me uma sombra pelo espírito, mas não a retive.
- Esplêndido! - disse o vigário. - Flavia, querida, não te importavas de os acompanhar? Podias mostrar-lhes o caminho.
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Capítulo 6

Tivemos de dar uma grande volta, evidentemente.
Se tivéssemos ido a pé, era um curto giro pela sombra, descendo as pedras inclinadas por detrás da igreja, prosseguindo ao longo da margem do rio pelo caminho por onde antigamente
se conduziam as embarcações à sirga e que assinalava os limites da Quinta de Malplaquet, a sul, e passando a vedação que ia dar ao Campo do Jubileu.
Pela estrada - e porque não havia nenhuma ponte nas imediações -, a única maneira de chegar à Quinta de Culverhouse era avançar para oeste na direcção de Hinley, para depois,
a quilómetro e meio a oeste de Bishop's Lacey, virar para o Monte Gibbet e subir o caminho tortuoso da encosta oeste da colina; a estrada era de terra batida, e a poeira erguia-se
agora diante de nós em vagas brancas. Estávamos a meio da subida, contornando o Bosque de Gibbet por uma vereda tão estreita que os ramos baixos arranhavam os lados da pobre
carrinha, que por ali seguia aos solavancos.
- Ai os meus pobres ossos - comentou Nialla com uma gargalhada.
Seguíamos os três no banco da frente, empacotados como iscos na lata de um pescador. Rupert ia ao volante e Nialla e eu íamos praticamente sentadas no colo uma da outra, com
o braço em torno dos ombros.
O Austin reagia ferozmente ao tratamento que Rupert estava a dar-lhe, um tratamento que obedecia a uma fórmula antiga, que só ele
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conhecia, e que consistia em recorrer alternadamente ao carburador e ao regulador.
- E quem são esses Ingleby? - gritou ele, para se fazer ouvir por sobre a incessante cadeia de explosões. - Diz-nos alguma coisa sobre eles.
Os Ingleby eram uns sujeitos taciturnos e metidos consigo. De vez em quando, eu via Gordon Ingleby deixar Grace, a minúscula esposa com cara de boneca, no mercado da aldeia,
onde, sempre vestida de preto e sem grande entusiasmo, ela vendia ovos e manteiga abrigada debaixo de um toldo às riscas. Eu sabia, como toda a população de Bishop's Lacey
sabia, que esta reclusão dos Ingleby tinha começado com a trágica morte de Robin, o único filho de ambos. Antes da tragédia, eles eram pessoas simpáticas e extrovertidas,
mas desde essa altura tinham-se voltado para dentro. Embora já tivessem passado cinco anos, a aldeia continuava a aceitar-lhes aquela dor.
- São agricultores - disse eu.
- Ah! - observou Rupert, como se eu tivesse acabado de lhe narrar a epopeia da família Ingleby, desde os tempos de Guilherme, o Conquistador, e em verso rimado.
A carrinha continuou a cuspir solavancos à medida que prosseguia a subida e Nialla e eu tivemos de nos apoiar com as duas mãos no tablier para não batermos com a cabeça uma
na outra.
- Que lugarzinho tão sinistro - comentou ela, apontando com o queixo para os bosques densos que tínhamos à nossa esquerda. Dava a impressão de que os raros raios de Sol que
conseguiam atravessar a densa folhagem acabavam por ser engolidos por aquele mundo de troncos antigos.
- É o Bosque de Gibbet - informei eu. - Havia aqui perto uma aldeia chamada Wapp's Hill, que existiu até ao século XVIII, acho eu, mas da qual já não resta nada. O cadafalso
ficava num cruzamento de caminhos que há no centro do bosque. Indo por aquela vereda ali, chega-se lá. Ainda se vêem os postes, mas a madeira já está bastante comida.
- Ugh - reagiu Nialla. - Obrigadinha, mas não.
Pareceu-me preferível não lhe contar, pelo menos para já, que tinha sido nesse cruzamento do Bosque de Gibbet que Robin Ingleby tinha sido encontrado. Enforcado.
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- Valha-me Deus! - exclamou Rupert. - O que é aquilo?
Estava a apontar para um objecto suspenso de um ramo de árvore, um objecto que a brisa da manhã fazia mover.
- Meg, a Louca, andou por estas bandas - expliquei eu. - Tem o costume de apanhar latas vazias e lixo dos caminhos e de os pendurar com bocaditos de corda. Gosta das coisas
que brilham. É uma espécie de pega.
Uma travessa de tarte, uma lata de cera enferrujada, uma peça prateada de um radiador e uma colher de sopa toda torta - eram estes os objectos que, qual isco de pescador gótico,
se contorciam lentamente de um lado para o outro ao brilho do Sol.
Rupert abanou a cabeça e voltou a concentrar-se no andamento da carrinha. Quando alcançámos o topo do Monte Gibbet, o motor produziu uma explosão assustadora, acabando por
morrer com um gorgolejar interior. A carrinha parou com um solavanco e Rupert puxou o travão de mão.
Percebi, pelas rugas que se lhe tinham cavado no rosto, que estava quase exausto. Rupert começou aos murros no volante.
- Não digas - recomendou Nialla. - Não estamos sozinhos.
Por momentos, pensei que ela estivesse a falar de mim; mas afinal estava a apontar para a beira do caminho, onde uma cara suja de fuligem nos olhava das profundezas de um
arbusto.
- É Meg, a Louca - disse eu. - Ela vive por aqui, vive algures no bosque.
Meg correu furtivamente para a carrinha e Nialla encolheu-se
toda.
- Não te preocupes, ela é perfeitamente inofensiva.
Meg estava metida dentro de um fato de bombazina preta, já muito velho e muito esfarrapado; parecia um morcego que tivesse sido sugado pelo olho de um tornado e novamente
cuspido pelo mesmo sítio. Trazia na cabeça um chapéu preto de flores, de onde espreitava, suspensa de um arame, uma risonha cereja vermelha de vidro.
- Sou inofensiva - disse Meg em tom de conversa, espreitando para dentro da janela aberta. - Sede pois astutos como as serpentes e inofensivos como as pombas. Olá, Flavia.
- Meg, apresento-te os meus amigos, Rupert e Nialla.
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Tendo em consideração que acabávamos de fazer aquela viagem bem coladinhos uns aos outros dentro do Austin, pareceu-me razoável tratar Rupert pelo nome próprio.
Meg esteve algum tempo a olhar para Nialla. Depois estendeu um dedo nojento para lhe tocar nos lábios, pintados com batom. Nialla encolheu-se ligeiramente, mas disfarçou muito
bem com um ligeiro espirro falsificado.
- É Tangee - explicou com vivacidade. - Vermelho de teatro. Muda de cor quando se aplica. Quer experimentar?
Foi uma actuação notável. Não pude deixar de lhe atribuir a nota máxima pela maneira como disfarçou o medo com aquela atitude aberta e descontraída.
Tive de me afastar ligeiramente para ela conseguir meter a mão no bolso e tirar o batom. Quando Nialla lhe mostrou o tubinho dourado, Meg arrancou-lho da mão e, sem tirar
os olhos do rosto da outra, pintou uma grande faixa em torno dos lábios sujos e gretados, encostando-os depois um ao outro como se estivesse a beber por uma palhinha.
- Lindo! - exclamou Nialla. - Encantador!
Voltou a meter a mão no bolso e tirou lá de dentro uma caixinha de pó-de-arroz, um objecto lindíssimo em cloisonne cor de laranja-flamejante, em forma de borboleta. Abriu
a caixinha com um toque e deu a ver o espelhinho redondo do interior da tampa; depois de se ver rapidamente nele, estendeu a caixinha a Meg.
- Olhe, veja como está.
Meg arrancou-lhe a caixinha da mão e pôs-se a contemplar-se ao espelho, voltando a cabeça para um lado e para o outro, como se fosse um boneco animado. Satisfeita com o resultado,
recompensou-nos com um grande sorriso, revelador dos buracos escuros deixados por vários dentes que lhe faltavam.
- Lindo! - murmurou. - Encantador! - E meteu a borboleta cor de laranja no bolso.
- Dá cá isso! - exclamou Rupert, tentando tirar-lha, mas Meg recuou, espantada, como se tivesse acabado de se aperceber da presença dele. O sorriso desapareceu-lhe do rosto
tão depressa como se tinha nele formado.
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- Eu sei quem tu és - disse em tom soturno, fixando-lhe a barbicha de bode. - És o Demónio, és sim. Ora bem, foi isso que aconteceu, o Demónio regressou ao Bosque de Gibbet.
E, dizendo isto, recuou para trás do arbusto e desapareceu. Rupert desceu da carrinha com a sua habitual dificuldade e bateu com a porta.
- Rupert... - chamou Nialla. Mas, em vez de correr atrás de Meg, como eu supus que ele fosse fazer, Rupert deu uns passos pela estrada acima, olhou em torno de si e regressou
devagar para junto de nós, levantando uma nuvem de poeira com os pés.
- A encosta é pouco inclinada e estamos quase lá em cima - declarou. - Se conseguirmos empurrá-la até junto daquele castanheiro, depois conseguimos descer o outro lado da
colina. Até pode ser que ela pegue. Queres guiar, Flavia?
Embora eu tivesse passado muitas horas sentada ao volante do velho Phantom II de Harriet que estava arrumado na cocheira lá de casa, sempre o fizera com o objectivo quer de
reflectir, quer de fugir à realidade. Nunca tinha tido um veículo motorizado nas mãos. E, se bem que a ideia fosse inicialmente bastante atractiva, rapidamente me apercebi
de que não tinha vontade nenhuma de me ver lançada pela encosta oriental do Monte Gibbet abaixo, perdido o controlo da carrinha, sofrendo um portentoso desastre no meio de
tão bela paisagem.
- Não - respondi eu. - Talvez Nialla...
- Nialla não gosta de guiar - retorquiu ele.
Percebi imediatamente que tinha metido a pata na poça, por assim dizer. Sugerir que Nialla se ocupasse do volante era o mesmo que sugerir que Rupert levantasse o traseiro
do assento e viesse ele empurrar a carrinha - com a perna atrofiada e tudo.
- O que eu queria dizer - emendei eu - é que, muito provavelmente, Rupert é o único que consegue fazer com que ela volte a pegar.
Tinha recorrido ao truque mais estafado de todos: apelar à vaidade masculina do homem; senti-me orgulhosa de mim mesma por ter tido aquela ideia.
- Tens razão - respondeu ele, voltando a montar para o lugar do condutor.
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Nialla saltou para o chão, e eu saltei atrás dela. Quaisquer hesitações que me tivessem ocorrido, como por exemplo a ideia de que talvez não fosse muito sensato uma mulher
no estado em que ela se encontrava andar a empurrar uma carrinha por uma ribanceira acima num dia quente de Verão, foram imediatamente postas de lado. Além disso, não podia
propriamente trazer o assunto à conversa.
Nialla tinha corrido para as traseiras da carrinha, tinha-se encostado às portas de trás do veículo e fincara os pés no chão para começar a fazer força com as pernas, que
tinha musculosas.
- Baixa a porcaria do travão de mão, Rupert! - gritou. Eu tomei posição ao lado dela e, recorrendo a todos os gramas de força que tinha no corpo, finquei também os pés e comecei
a empurrar.
E, maravilha das maravilhas, aquela anormalidade começou a mexer-se. Talvez devido ao facto de a parafernália dos fantoches ter sido descarregada no salão paroquial, tendo
a carrinha ficado muito mais leve, o bicho avançou, guinchando, a passo de caracol mas em marcha inexorável, até ao alto da colina. A partir do momento em que conseguimos
que ele andasse, virámo-nos as duas de frente e começámos a empurrar com as mãos.
A carrinha só parou por completo uma vez, quando Rupert carregou na embraiagem e deu a volta à chave na ignição. O tubo de escape largou uma fumarada gigantesca, muito preta,
e mesmo sem baixar os olhos eu percebi que ia ter de explicar ao pai a destruição de mais um par de peúgas brancas.
- Não carregues já na embraiagem! Espera até chegarmos lá acima! gritou Nialla. - Os homens! - Resmungou depois, mas só para eu ouvir. - Os homens e os seus malditos ruídos
de escape.
Dez minutos depois, estávamos no cume do Monte Gibbet. Ao longe, via-se o Campo do Jubileu, que se estendia em declive em direcção ao rio, qual suave lençol de linho de intensidade
tão eléctrica que Van Gogh teria chorado a olhar para ele.
- Mais um empurrãozito de nada e acabamos com isto - comentou Nialla.
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Gemendo e rugindo, empurrámos as portas de metal já bastante aquecido, até que de repente foi como se a carrinha tivesse perdido por completo o peso, porque começou a mover-se
sozinha. Estávamos a descer a colina.
- Rápido! Salta lá para dentro! - gritou Nialla, e corremos as duas ao longo da carrinha, que estava a ganhar velocidade, descendo aos saltos e aos solavancos o caminho cheio
de buracos.
Saltámos para o degrau de acesso e Nialla abriu a porta. Momentos depois, deixávamo-nos cair no banco do passageiro, abraçadas uma à outra, enquanto Rupert manipulava os comandos
do motor. A meio da descida, como o motor acedeu finalmente a pegar, a carrinha soltou uma fumarada assustadora pelo tubo de escape, após o que sossegou numa tosse muito pouco
saudável. Ao chegarmos à base da colina, Rupert tocou ao de leve no travão e fizemos uma bela curva para a vereda que vai dar à Quinta de Culverhouse.
Sobreaquecido devido ao esforço, o Austin parou no pátio da quinta, tossindo e fumando como uma chaleira velha; à primeira vista - e à segunda -, o pátio parecia completamente
deserto. Pela minha experiência, quando uma pessoa chega a uma quinta, há sempre alguém que sai do celeiro para nos vir cumprimentar, limpando as mãos cheias de óleo a um
trapo velho e pedindo a uma mulher que vai a passar com um cesto de ovos na mão que faça uns scones e ponha água ao lume para o chá. No mínimo dos mínimos, tem de se ouvir
um cão ladrar.
Embora não se vissem porcos em lado nenhum, via-se uma fileira de barracos em mau estado e ao lado uma pocilga que já tinha conhecido melhores dias, e que estava agora coberta
de urtigas. Atrás da pocilga, avistava-se um pombal com ameias. Havia diversas selhas de leite, todas elas bastante ferrugentas, espalhadas pelo pátio, onde uma galinha solitária
debicava as ervas sem grande entusiasmo, ao mesmo tempo que nos observava com um fatigado olho amarelo.
Rupert saltou da carrinha e bateu a porta com força.
- Bom dia! - chamou. - Está cá alguém?
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Ninguém respondeu. Rupert passou por um bloco de rachar lenha já em bastante mau estado e avançou para a porta das traseiras da casa, aonde bateu violentamente com a mão fechada.
- Bom dia! Está alguém em casa?
Depois aproximou-se da janela do que devia ter sido em tempos o armazém da manteiga, que estava sujíssima, e, colocando as mãos em concha diante dos olhos, espreitou lá para
dentro, após o que nos fez sinal para descermos da carrinha.
- Isto é muito estranho - sussurrou. - Está uma pessoa ali no meio daquele armazém. Distingue-se-lhe a silhueta de encontro à janela do outro lado.
E voltou a bater com toda a força à porta.
- Senhor Ingleby - chamei eu -, senhora Ingleby, sou eu, Flavia de Luce. Trouxe-lhes as pessoas que o senhor vigário lhes mandou.
Ouviu-se um prolongado silêncio, seguido de passos de botas pesadas num soalho de madeira. A porta abriu-se para trás com um guincho, dando a ver o interior, que estava às
escuras, e surgiu na soleira um homem alto e louro, franzindo os olhos para os proteger da luz do Sol.
Eu nunca o tinha visto em toda a minha vida.
- Sou Flavia de Luce - expliquei-lhe -, sou de Buckshaw. - E acenei vagamente com a mão na direcção de sudeste. - O senhor vigário pediu-me que viesse mostrar a estes senhores
o caminho para a Quinta de Culverhouse.
O homem louro saiu de casa, inclinando-se substancialmente para conseguir passar sem bater com a cabeça, porque a porta era baixa. Era o tipo de sujeito que Feely teria classificado
como "indecentemente giro": um gigantesco deus nórdico. Quando Siegfried de cabeilo claro se voltou para fechar cuidadosamente a porta, eu vi-lhe um grande círculo encarnado,
já bastante fanado, pintado nas costas do fato-macaco.
O que queria dizer que se tratava de um prisioneiro de guerra.
Recordei-me imediatamente do bloco, de rachar lenha, de onde estava ausente o respectivo machado. Teria o homem cortado os Ingleby aos bocadinhos, armazenando os nacos por
detrás do fogão da cozinha, como se fossem troços de lenha?
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Que ideia tão disparatada. A guerra tinha acabado há cinco anos, e ainda na semana passada eu tinha visto os Ingleby - isto é, tinha visto Grace.
Além disso, eu já sabia que os prisioneiros de guerra não eram especialmente perigosos. Tinha visto os primeiros prisioneiros de guerra da minha vida da primeira vez que tinha
ido ao cinema, ao Palace de Hinley. Quando os cativos de casaco azul foram conduzidos pelos guardas armados para o interior do cinema, e sentados nos respectivos lugares,
Daffy deu-me uma cotovelada, apontando para eles.
- O inimigo! - sussurrou.
Quando as luzes se apagaram e o filme começou, Feely debruçou-se sobre mim e disse:
- Se Daffy e eu sairmos para ir comprar rebuçados... tu ficas sozinha com eles, no escuro, durante duas horas; já imaginaste?
O filme dessa noite era In Which We Serve e, quando o Torrin foi afundado no Mediterrâneo pelos bombardeiros da Luftwaffe, não direi que os prisioneiros aplaudiram abertamente
o feito, mas que se observaram sorrisos em muitos deles, lá isso observaram.
- Os alemães que foram capturados não devem ser tratados de forma desumana - tinha-nos dito o pai quando voltámos para casa, citando uma declaração qualquer que tinha ouvido
na rádio. - Mas convém que lhes manifestemos com clareza que os consideramos a todos, quer aos oficiais, quer aos simples soldados, proscritos da sociedade dos homens rectos.
Embora eu tivesse o maior respeito pelas palavras do pai - pelo menos em princípio -, era claro que o homem com que tínhamos deparado na Quinta de Culverhouse era tudo menos
um proscrito; por muito que a pessoa forçasse a imaginação.
Cinco anos depois de restabelecida a paz, só por orgulho é que ele podia usar ainda aquele fato-macaco.
- Dão-me licença que me apresente? Chamo-me Dieter Schrantz disse ele com um sorriso aberto, apertando-nos a mão sucessivamente, a começar por Nialla. Não tinha dito grande
coisa, mas percebi imediatamente que falava um inglês quase perfeito. Até pronunciava o próprio nome como o pronunciaria qualquer inglês, sem franzir os lábios ao largar as
sílabas. - O senhor vigário informou-nos de que viriam cá ter.
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- A porcaria da carrinha avariou-se pelo caminho - disse Rupert, voltando a cabeça para o Austin com o que me pareceu ser uma certa dose de agressividade. Como se...
- Não se preocupem - interveio Dieter, sempre a sorrir. - Eu ajudo-os a empurrá-la pela colina abaixo, até ao Campo de Jubileu. É aí que vão ficar instalados, sabia, chefe?
Chefe? Era óbvio que Dieter estava bem ambientado à maneira de falar cá da terra.
- A senhora Ingleby está em casa? - perguntei eu. Tinha-me ocorrido que talvez não fosse má ideia dizer a Nialla onde ficavam os sanitários, antes de ela perguntar.
Pela face de Dieter passou a sombra de uma nuvem.
- Gordon anda aí pelos bosques, não sei exactamente onde - respondeu ele, apontando para o Monte Gibbet. - Prefere quase sempre trabalhar sozinho. Deve estar aí a chegar,
para vir ajudar Sally no prado. Havemos de os encontrar quando levarmos o vosso autocarro até ao rio.
Esta Sally era Sally Straw, que era membro do Exército Feminino Terrestre - mais conhecido pelas "Miúdas da Terra" -, e trabalhava na Quinta de Culverhouse desde os tempos
da guerra.
- Está bem - disse eu. - Olha! Vêm ali a Tick e a Tock.
As duas gatas de pele de tartaruga da senhora Ingleby deslocaram-se vagarosamente debaixo de um telheiro, bocejando e espreguiçando-se ao calor do Sol. Ela costumava levá-las
para o mercado, para lhe fazerem companhia, não só a elas mas diversos animais da quinta, nomeadamente a gansa que tinha domesticado, e que se chamava Matilda.
- Esta chama-se Tick - tinha-me explicado certa vez em que eu lhe perguntara pelos nomes das bichanas - porque tem tiques. E esta chama-se Tock porque fala que nem uma pega.
A Tock dirigia-se a mim, já bem embrenhada numa longa conversa de miados. Entretanto, a Tick desviou-se para o pombal, que se erguia com ar sombrio por detrás de uma série
de coelheiras em bastante mau estado.
- Vão andando - disse eu. - Eu já vou ter convosco ao campo. - E, dito isto, peguei na Tock e encostei-a a mim. - Quem é uma linda gati-
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nha, quem é? - arrulhei-lhe ao ouvido, observando os outros três pelo canto do olho, a ver se tinha conseguido convencê-los. Quem eu não tinha conseguido convencer fora a
gata, que começou imediatamente a espremer-se toda.
Mas Rupert e Nialla já tinham voltado a trepar para dentro da carrinha, que continuava a estremecer sozinha no pátio. Dieter deu-lhe um empurrão e trepou para o degrau de
acesso; momentos depois, já eles se despediam com um aceno de mão, saindo do pátio aos solavancos e percorrendo a vereda que ia dar ao declive que conduzia ao Campo do Jubileu
e ao rio. Uma pequena baforada pelo tubo de escape, já a meia distância, confirmou que estavam mesmo a afastar-se.
Mal deixei de os ver, voltei a depositar a Tock no chão do pátio.
- Onde está a Tick? - perguntei. - Vai à procura dela.
A Tock retomou o seu interminável monólogo felino, dirigindo-se sorrateiramente para o pombal.
Nem vale a pena dizer que fui atrás dela.
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Capítulo 7

Aquele pombal era uma obra de arte. Não havia outra expressão que o descrevesse tão bem, e não me espantaria nada que algum departamento de património andasse de olho nele.
Era este notável exemplar arquitectónico que dava o nome à Quinta de Culverhouse - pois era isso mesmo que a palavra queria dizer: pombal. Tratava-se de uma torre alta, redonda,
de tijolos antigos, cada qual no seu tom de cor-de-rosa-desmaiado, todos diferentes uns dos outros. Erigido no tempo da rainha Ana, fora utilizado para a criação de pombos
destinados à mesa do dono da quinta. Nesse tempo, era costume partirem-se as patas aos animais quando eles eram pequenitos, para que não pudessem sair do ninho, e ali permanecessem,
engordando (facto de que tomei conhecimento pela incessante conversa da senhora Mullet na cozinha). Mas os tempos eram outros. Gordon Ingleby era um profundo apreciador de
pombos, e as aves que tinham vivido nesta torre no presente século tinham bastante mais probabilidades de serem amimadas com festas do que com água a ferver. Aos fins-de-semana,
ele mandava-as de comboio para um qualquer ponto longínquo de Inglaterra, onde eram libertados, regressando imediatamente à Quinta de Culverhouse, onde eram recebidos pelas
batidas de relógios imensamente elaborados, acompanhadas de grandes mimos e gabarolices e feitos, e de uma ração redobrada de milho.
Era pelo menos esse o ritual, até Robin Ingleby ter sido encontrado Suspenso pelo pescoço no cadafalso de madeira apodrecida do Bosque
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de Gibbet. Desde então, deixara de haver pombos na Quinta de Culverhouse, à excepção de uns quantos espécimes selvagens.
O pobre Robin tinha morrido com a mesma idade que eu tinha na altura, e custava-me a acreditar que fosse possível uma pessoa tão nova ter realmente morrido. Mas tinha.
Quando se vive numa aldeia, quanto mais abafadas são as coisas, mais se ouve falar delas, e eu lembrava-me perfeitamente dos mexericos que tinham dominado Bishop's Lacey por
altura da morte do miúdo, imbricando-se como as águas se imbricam à roda dos postes de um molhe.
- Dizem que Robin Ingleby se matou.
- Robin Ingleby foi morto pelos próprios pais.
- Ouçam bem o que vos digo, o miúdo foi morto por satanistas.
Tinha sido a senhora Mullet a revelar-me a maior parte destas teorias, que voltaram a ocorrer-me quando me ia aproximando da torre, olhando maravilhada para a miríade de aberturas
que nela havia.
Como os monges chamados leitores faziam nos mosteiros da Idade Média, também Daffy fazia connosco, lendo-nos frequentemente em voz alta às refeições. Recentemente, tínhamos
tido o raro prazer de escutar a descrição que Henry Savage Landor faz, em Across Coveted Lands, das Torres do Silêncio, na Pérsia, no alto das quais os parses colocavam os
cadáveres sentados, com um pau debaixo do queixo para evitar que descaíssem. Quando os corvos vinham atacar o cadáver, se começassem por consumir o olho direito, era uma prova
de que o morto tinha ido para o céu. O consumo do olho esquerdo era menos auspicioso.
Estas informações voltaram-me à memória por esta altura, bem como o relato que o autor faz das torres circulares para pombos que há na Pérsia, torres essas dotadas de um buraco
no centro para a recolha de guano, cuja produção é a única razão de ser da criação destas aves.
Perguntei então a mim própria se haveria alguma estranha relação entre torres, aves, morte e corrupção. E detive-me por momentos, pensando que relação seria essa, quando se
soltou da torre um ruído muito peculiar.
Inicialmente, pareceram-me pombos a arrulhar os seus murmúrios, lá bem no alto do pombal, por cima da minha cabeça. Ou seria o vento?
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Parecia-me um ruído constante de mais para ser qualquer destes, um ruído que subia e descia e que mais parecia um fantasma das sirenes de ataque aéreo, quase no limiar da
audição.
A porta de madeira, que estava solta dos gonzos, estava também meio aberta, e eu percebi que conseguia aceder com facilidade ao centro oco da torre. A Tock passou por mim,
roçando-me os tornozelos, para em seguida desaparecer por entre as sombras, à caça de ratos.
O intenso cheiro fétido atingiu-me como uma bofetada; tratava-se do inconfundível cheiro químico a guano de pomba, que o notável Humphry Davy tinha descoberto que, quando
sujeito a destilação, produzia carbonato de amónia, com um resíduo de carbonato de lima e de sal corrente - uma descoberta que eu própria tinha certa vez confirmado experimentalmente
no laboratório de química de Buckshaw.
Acima da minha cabeça, lá bem no alto, entravam pelos espaços entre os tijolos inúmeros raios de Sol, que salpicavam as paredes de pintas de luz amarela. Tive a sensação de
ter entrado dentro de um coador gigante, utilizado por um monstro para coar as espinhas do caldo.
Cá dentro, os lamentos eram ainda mais intensos, formando um remoinho de som, que era amplificado pelas paredes circulares no centro das quais eu me encontrava. Não podia
chamar - na verdade, não me teria atrevido a fazê-lo.
A meio do compartimento, havia um poste de madeira antiga, ao qual estava preso um andaime móvel, que parecia um daqueles escadotes que se usam nas bibliotecas, e que devia
ter sido usado, noutros tempos, para aceder aos passaritos fechados na cúpula.
Pus-lhe um pé em cima e o aparelho gemeu de forma assustadora.
Subi por ali acima, milímetro a milímetro, muito bem agarrada, cheia de medo de cair, esticando os braços e as pernas muito para além dos seus limites naturais, para conseguir
passar de cada degrau para o seguinte, num percurso ponteado pelos estalidos da madeira. Só olhei para baixo uma vez, e fiquei com a cabeça a andar à roda.
Quanto mais subia, mais intenso era o som de lamentações fúnebres, cujos ecos me chagavam agora num coro de vozes que pareciam congregar-se num intenso e selvático lamento.
Acima de mim, para a esquerda, havia uma abertura abaulada, que dava acesso a um nicho maior do que os outros. Pus-me em bicos de pés e,
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agarrando-me ao parapeito de tijolo com as pontas dos dedos, consegui içar-me a ponto de ficar com os olhos ao nível do chão desta espécie de gruta.
Lá dentro, estava uma mulher ajoelhada, de costas para mim. A mulher estava a cantar, com uma voz fininha que fazia eco nos tijolos, rodopiando depois em torno de mim.
O pisco flutua sobre as águas
E o vento que o agita pra trás e prà frente
Com uma lenta e doce canção de embalar
É para ele doce no ir e no vir
O vento embula-o sobre as águas.
Era a senhora Ingleby!
Tinha diante dela uma caixa voltada para baixo, e sobre a caixa uma vela acesa, cujo odor de fumo se ia juntar ao calor abafado que reinava naquela pequena grutta de tijolo.
À sua direita, uma fotografia a preto e branco de uma criança: era Robin (1), o filho que lhe tinha morrido, e que sorria alegrementte para a máquina fotográfica, o abundante
cabelo louro quase branco por efeito do Sol dos dias de Verão há muito passados. À sua esquerda, (deitado de lado como se tivesse sido içado para a praia para a limpeza.,
estava um barquito à vela de brincar.
Suspendi a respiração. Não podia dar-lhe a conhecer que estava ali. Voltaria a descer a escada, lentamente, e...
Senti as pernas a tremer. Não tinha grande coisa a que me agarrar; tinha calçado uns sapatos de solas de couro, que começavam a escorregar ao contacto com os dejgraus de madeira.
Iniciei a descida e, nesse momento, a senhora Ingleby recomeçou o seu canto fúnebre; desta vez, era outra canção e, estranlhamente, cantou-a com uma voz diferente, uma voz
áspera, um gargarejo de pirata:
É certo que o-> corajoso Robin se foi
Mas o seu coração vive ainda
E nós bebemos à saúde dele, três vezes três.
(1) Para além de ser um nome prcóprio, robin é também um substantivo comum, que significa "pisco". (N. da T.)
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E terminou com uma horrenda gargalhada abafada.
Voltei a içar-me nos bicos dos pés, mesmo a tempo de a ver tirar a rolha a uma garrafa alta, e dela beber um rápido trago. Tive a impressão de que era gim, e era manifesto
que não era o primeiro golo que dela bebia, nem nada que se parecesse.
Soltando um prolongado suspiro - que me arrepiou -, voltou a meter a garrafa por debaixo de uma meda de palha e acendeu uma segunda vela na reduzida chama da que estava a
acabar. Fazendo correr umas gotas de cera derretida, colocou a vela em pé ao lado da companheira finada.
Deu então início a uma terceira canção, desta vez num tom menor, mais carregado; cantava-a mais lentamente, dando-lhe a feição de um hino fúnebre e pronunciando as palavras
com terrível e exagerada nitidez:
Robin Malandro, tal jantar querendo Comerá de manhã de corda e manteiga Convidem-se os amigos para tal refeição Eles que se alegram com tais actos negros.
Corda e manteiga? Actos negros?
De repente, apercebi-me de que estava com os cabelos todos em pé, como quando Feely passava o pente de ebonite preta pela camisola de caxemira, aproximando-mo em seguida da
nuca. Mas, precisamente quando me entretinha a imaginar quando tempo levaria a descer a toda a pressa a escada de madeira, a mulher dirigiu-se-me.
- Anda cá, Flavia - disse. - Vem juntar-te a mim. Vem juntar-te ao meu requiem.
Requiem?, pensei. Estarei realmente interessada em trepar para uma gruta de tijolos, para irjuntar-me a uma mulher que, na melhor das hipóteses, está já bastante embriagada
e na pior é uma maníaca homicida?
Icei-me com esforço.
Quando os meus olhos se adaptaram à luz da vela, percebi que ela envergava uma blusa branca de algodão, de mangas curtas em balão e colarinho baixo, à camponesa. Como tinha
o cabelo de um preto de asa de corvo e vestia uma saia de roda cheia de cores, poderia muito bem passar por uma cigana.
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- Robin morreu.
Quase se me partiu o coração dentro do peito, ao ouvir aquelas palavras. À semelhança dos outros habitantes de Bishop's Lacey, eu sempre julgara que Grace Ingleby vivia metida
dentro de si, em isolamento do resto do universo; que vivia isolada num mundo no qual Robin continuava ainda a brincar no pátio coberto de poeira, correndo atrás das galinhas,
que fugiam assustadas de um lado para o outro, e metendo a cabeça pela porta da cozinha de tempos a tempos para pedir um doce.
Mas não era verdade; tal como eu, também ela estivera diante do pequeno túmulo que havia no cemitério de São Tancredo, lendo a simples inscrição que nele constava: Robin Tennyson
Ingleby, 1939-1945. Adormeceu no Cordeiro.
- Robin morreu - repetiu ela, desta vez num tom que era quase um lamento.
- Pois foi - respondi. - Eu sei.
Os finos raios de Sol que penetravam na obscuridade daquela câmara davam a ver partículas de pó que flutuavam pelos ares como pequenos mundos. Sentei-me em cima do monte de
palha.
- Eu levei-o à praia - continuou Grace, acariciando o barquito, já esquecida do pássaro. - Robin adorou ir à praia, sabias?
Dobrei os joelhos, apoiei neles o queixo e envolvi as pernas com os braços.
- Brincava na areia, construía castelos de areia.
Seguiu-se um longo silêncio, e eu percebi que ela se tinha perdido num sítio qualquer.
- E comiam gelados? - perguntei, como se fosse a coisa mais importante do mundo. Não me ocorreu mais nada.
- Gelados? - repetiu ela e acenou com a cabeça. - Serviam-nos os gelados nuns copinhos de papel... nuns copinhos de papel pontiagudos. Nós pedíamos gelado de baunilha, gostávamos
ambos imenso de baunilha, Robin e eu. Mas era uma coisa engraçada... - E suspirou. - Quando começávamos a comer, vinha-nos o gosto a chocolate, como se não tivessem lavado
bem a colher.
Eu acenei com a cabeça, com ar entendido.
- Às vezes acontece - confirmei.
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Estendeu a mão e voltou a tocar no barquito, passando as pontas dos dedos por sobre o casco muito bem pintado. A seguir, apagou a vela com um sopro.
Deixámo-nos ficar sentadas em silêncio, por entre os salpicos de luz do Sol que entravam na gruta de tijolo vermelho. Um útero deve ser mais ou menos assim, pensei.
Quente. À espera de que aconteça qualquer coisa.
- O que estás tu aqui a fazer? - perguntou ela por fim, e eu apercebi-me de que já não arrastava tanto as palavras.
- O senhor vigário mandou umas pessoas para cá, para acamparem no Campo do Jubileu, e pediu-me que viesse indicar-lhes o caminho.
Ela agarrou-me no braço.
- E Gordon sabe disso? - perguntou em tom premente.
- Acho que sim - respondi eu. - Ele disse ao senhor vigário que não havia problema em eles acamparem ao fundo da vereda.
- Ao fundo da vereda - repetiu ela, soltando um lento e prolongado suspiro. - Sim, aí não há problema, pois não?
- É um espectáculo de marionetas, um espectáculo ambulante expliquei eu. - As Marionetas de Porson. Vão fazer uma representação no sábado. Foi o senhor vigário que lhes pediu.
A carrinha deles avariou-se, compreende, de maneira que... - De repente, tive uma inspiração. - E se viesse assistir? - disse. - Deve lá estar a aldeia toda. Podia sentar-se
ao meu lado, e...
A senhora Ingleby olhou para mim com uma expressão horrorizada.
- Não! - exclamou. - Não era capaz de fazer uma coisa dessas!
- Podia vir com o senhor Ingleby, e... -Não!
Levantou-se de um salto, levantando ao mesmo tempo uma espessa nuvem de palhitas; por momentos, enquanto as palhas se agitavam em nosso redor, deixámo-nos ficar as duas perfeitamente
imóveis, como aquelas figuras dos pisa-papéis que simulam neve.
- É melhor ires-te embora - disse ela então, numa voz enrouquecida. - Vai-te embora, por favor.
Sem dizer uma palavra, eu avancei às apalpadelas para a saída, com os olhos a arder por causa da poeira. Consegui alcançar a vara superior da escada com surpreendente facilidade
e comecei a descer.
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Tenho de confessar que me recordei da história do João e o Pé de Feijão.
O quintal estava deserto. Dieter tinha descido a vereda até ao rio, na companhia de Rupert e de Nialla, e era provável que, por esta altura, já estivessem a montar o acampamento.
Com sorte, podia ser que eu chegasse lá a tempo de beber um chá. Tinha a sensação de ter passado toda a noite acordada.
Mas afinal que horas eram?
Deus me cegasse com um ferro de trinchar! O comboio da tia Felicity chegava às dez e cinco, e eu tinha-me esquecido completamente dela! O pai ia-me estrangular!
Mesmo que a tia Felicity ainda não estivesse a espumar da boca, completamente furiosa, à espera na estação, como é que eu ia conseguir chegar a Doddingsley? Eram uns bons
dez quilómetros desde a Quinta de Culvrhouse até lá e, que eu soubesse, não estava prestes a nascer-me um par de asas.
Desatei a correr pela encosta abaixo, de braços estendidos, como se dessa maneira conseguisse fazer aumentar a velocidade. Felizmente, era sempre a descer, e avistei lá ao
fundo a carrinha de Rupert, estacionada debaixo dos salgueiros.
Diçter tinha aberto a capota do Austin e estava a espreitar-lhe para as entranhas. Nialla estava a pendurar uma camisa sobre os arbustos, a secar. E Gordon Ingleby não estava
à vista em lado nenhum, nem ele nem Sally Straw.
- Estava a ver que nunca mais conseguia apanhar o Raio de Sol comentou Nialla. - Dieter está a dar uma olhadela ao motor. Por que foi que demoraste tanto tempo?
- Que horas são? - perguntei, em tom de súplica.
- Não faço ideia - respondeu ela. - Só Rupert é que anda com relógio, e ele foi não sei para onde.
Como sempre. Não chegou a pronunciar estas palavras, mas era óbvio que era isso que queria dizer; só lhe faltou gritá-las do alto do Big Ben.
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- Dieter? - perguntei.
- Lamento imenso - respondeu ele, abanando a cabeça. - Durante muito tempo, estive proibido de andar de relógio...
- Lamento imenso - interrompi-o -, mas eu tenho de ir esperar uma pessoa ao comboio.
Antes de qualquer deles ter tempo de me responder, desatei a correr a grande velocidade pelo caminho que ia dar à vila. Era um percurso fácil, ao longo do rio, contornando
a extremidade sul do Campo do Jubileu, e foi com surpreendente rapidez que voltei a pisar as pedras do cemitério.
O relógio da igreja da torre indicava vinte para as quatro, mas era impossível que fossem aquelas horas; o estúpido do mecanismo devia ter parado no reinado de Henrique VIII,
e nunca ninguém se tinha incomodado em pô-lo novamente a andar.
A Gladys, a minha fiel BSA, estava exactamente onde eu a tinha deixado, encostada à parede do salão paroquial. Fiz caminho em direcção a Buckshaw.
Ao passar a grande velocidade pela esquina da Viela dos Fusos, o relógio metido na parede do Treze Patos Marrecos revelou-me que era ou meio-dia, ou meia-noite. Tenho de confessar
que me saiu uma expressão muito pouco própria.
Saí da vila nos braços do vento, dirigindo-me para sudoeste - a direcção de Buckshaw -, até que finalmente alcancei os Portões Mulford, onde encontrei Clarence Mundy à espera,
sentado num dos apoios laterais do táxi, a fumar com ar sedento. Pelo manto de beatas que cobriam a estrada, percebi que não se tratava do primeiro cigarro.
- Olá Clarence - disse-lhe. - Que horas são?
- Dez horas - respondeu ele, olhando de relance para o elaborado relógio que tinha no pulso; era um aparelho militar. - É melhor entrar.
Eu assim fiz. Ele meteu a mudança e pusemo-nos a andar que nem um foguete.
Percorremos veredas e caminhos, e Clarence ia manobrando a alavanca das mudanças qual encantador de serpentes a trabalhar com uma cobra voluntariosa, apertando-lhe a cabeça
e empurrando-a para novos pontos cardeais com diferenças de segundos. Lá fora, o campo inglês passava por nós numa mancha de verde sempre mais célere, a ponto de eu ter vontade
de lhe gritar: "Calma!" Mas contive-me.
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Durante a guerra, Clarence tinha sido piloto dos gigantescos hidroaviões Sunderland, que faziam patrulhas permanentes na vastidão do Atlântico, em busca de submarinos alemães;
ao longo daquele percurso - em que fomos praticamente a voar por entre as sebes -, ele deve ter imaginado que voltava a ter nas mãos um desses monstros. Não tarda nada, pensava
eu, ele puxa o volante para cima e levantamos voo. E, enquanto ascendemos ao céu de Verão, talvez tenhamos a sorte de ter um vislumbre da Harriet.
Antes de se ter casado com o pai, também Harriet tinha pilotado um Havilland Gypsy Moth, a que dera o nome de Espírito Jovial, e eu costumo imaginá-la flutuando sozinha ao
sol, saltitando por sobre e por entre os vales macios de cúmulos, sem ninguém a quem dar satisfações à excepção do vento.
Clarence fez uma sonora travagem numa das pontas da estação de comboios de Doddingsley no preciso momento em que o comboio parava na outra extremidade.
- Dez e cinco - declarou, olhando para o relógio. - Em ponto. Tal como eu previra que aconteceria, a tia Felicity foi a primeira a
sair da sua carruagem. Apesar do calor que estava, trazia vestido um casaco comprido de um tom claro, e um grande chapéu de abas largas, que apertava debaixo do queixo com
uma fita azul. Da sua figura, projectavam-se diversos elementos que se estendiam em várias direcções: o alfinete do chapéu, a pega do guarda-chuva, um rolo de revistas e jornais,
um banquinho portátil e por aí fora. A tia Felicity parecia um ninho ambulante - ou melhor, uma meda de feno em movimento.
- Traz-me as malas, Clarence - ordenou a minha tia. - E tem cuidado com o crocodilo.
- Com o crocodilo? - repetiu Clarence, erguendo as sobrancelhas.
- Com a mala - explicou a tia Felicity. - É nova, comprei-a no Harrods, e não a quero estragada por um rústico mabeitoso numa estação de caminho-de-ferro perdida no fim do
mundo. Flavia - prosseguiu, dirigindo-se a mim -, tu podes levar-me o saco de água quente.
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Capítulo 8

Dogger veio esperar-nos ao portão principal. Meteu a mão no bolso, tirando lá de dentro uma bolsa de pano com moedas, e olhou para Clarence com ar interrogativo.
- Dois paus - respondeu Clarence. - Ida e volta, incluindo o tempo de espera.
Enquanto Dogger contava o dinheiro, a tia Felicity inclinou-se para trás e passou os olhos pela fachada da casa.
- Que coisa chocante - observou. - Esta casa degrada-se de ano para ano.
Não me pareceu que me competisse a mim fazer-lhe notar que, em termos financeiros, o pai estava prestes a dar as últimas. A casa tinha pertencido a Harriet, que morrera muito
cedo, de forma inesperada, e sem ter tido o cuidado de fazer testamento. Por esta altura, e devido àquilo a que o pai chamava "complicações", estávamos na iminência de ser
postos fora de Buckshaw.
- Leva-me as malas para o quarto, Dogger - disse a tia Felicity, voltando a baixar os olhos -, e cuidado com o crocodilo.
- Sim senhora, menina Felicity - respondeu Dogger, já com um grande cesto de verga debaixo de cada braço e uma mala em cada mão. - É do Harrods, suponho.
- Chegou a tia Felicity - anunciei, entrando na cozinha com ar caído. - De repente, passou-me a fome toda. Acho que só me apetece uma sandes de alface, e vou comê-la para
o quarto.
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- Nem pense nisso - replicou a senhora Mullet. - Tive uma trabalheira a fazer uma bela salada de aspídia, com beterraba e tudo.
Fiz uma careta de horror, mas, como ela me lançasse um repentino olhar de esguelha, lembrei-me da finta de Nialla e transformei-a num bocejo, pondo a mão à frente da boca.
- Desculpe. Levantei-me muito cedo hoje - expliquei.
- Também eu. Mais uma razão.
- Estive na quinta dos Ingleby - expliquei também.
- Já ouvi dizer - replicou ela.
Diabos levassem a mulher! Não haveria nada que lhe escapasse?
- A senhora Richardson contou-me que tinha andado a ajudar aquela gente das marionetas, ela com aquele cabelo de Judas e ele com a perna bamba.
Cynthia Richardson. Era de esperar. Era evidente que a presença dos bonecreiros a tinha feito abrir aqueles lábios finos.
- Ela chama-se Nialla - informei - e ele chama-se Rupert. Ela é muito simpática, se quer saber. Faz álbuns de recortes, ou pelo menos fazia.
- Sim, sim, claro, tudo isso é muito bonito, mas a menina tem de...
- E também estive com a senhora Ingleby - insisti eu. - Por acaso tivemos uma conversa bastante interessante.
A senhora Mullet, que estava a limpar os recipientes da salada, abrandou o ritmo do trabalho, até parar por completo. Tinha mordido o isco.
- Uma conversa? Com ela? Devem estar para chover camelos! comentou. - Pobre pequena! - acrescentou depois muito depressa.
- Esteve a falar-me de Robin, o filho - contei-lhe, e não estava a mentir por completo.
- Ponha-se a andar daqui.
- Disse-me que Robin tinha morrido.
Foi de mais, mesmo para uma pessoa como a senhora Mullet.
- Que ele tinha morrido? Mais morto que a maçaneta de uma porta tem ele estado nos últimos cinco anos ou mais. Morto e enterrado. Ainda me lembro do dia em que o encontraram,
pendurado p'lo pescoço no Bosque de Gibbet. Era segunda-feira de lavandaria, e eu tinha acabado de pendurar uma pilha de roupa branca, quando Tom Batts, o carteiro,
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me chegou ao portão: "Senhora M", disse-me ele, e disse-me "prepare-se para ouvir uma notícia horrível." "Foi o meu Alf!", disse eu, e ele disse "Não, não foi, foi Robin,
o pequeno do Gordon Ingleby" e fuuuuh! Fiquei sem pinga de sangue logo ali. Até pensei que ia...
- Quem foi que o encontrou? - interrompi-a. - A Robin, quero eu dizer.
- Ora, foi Meg, a Louca, quem havia de ser? Ela vive lá em cima, no Bosque Gibbet. Descobriu um brilhozinho por debaixo de uma árvore (é assim que ela chama a qualquer coisita
que encontre: "um brilhozinho") e quando foi para a apanhar, descobriu que era uma daquelas pás de brincar que os miúdos levam para a praia, e também viu um balde de folha
de brincar na areia, ali no meio do bosque.
"A mãe do Robin levou-o à praia", ia eu a dizer, mas contive-me mesmo a tempo, lembrada de que um mexerico atrai mais mexericos, "como moscas ao mel", na expressão que a própria
senhora Mullet usara certa vez a propósito de um assunto completamente diferente.
- E foi então que o viu, pendurado pelo pescoço no velho patíbulo - prosseguiu ela. - Tinha a cara num estado horrível, disse a pequena; parecia um melão preto.
Eu começava a lamentar não ter ido buscar o meu bloco-notas.
- E quem foi que o matou? - perguntei com brusquidão.
- Ah - respondeu ela -, aí é que está o busílis. Ninguém sabe!
- Mas o miúdo foi assassinado?
- Pode ter sido, tendo em conta como a coisa aconteceu. Mas como Te disse, ninguém sabe ao certo. Houve uma coisa daquelas, um inquérito na biblioteca, o meu Alf diz que é
o mesmo que um enterro de um poeta. O doutor Darby foi lá falar e disse qu'o pequeno tinha sido enforcado, e que não podia dizer mais do que isso. Meg, a Louca, dizia que
tinha sido o diabo a levá-lo, mas a menina sabe com'ela é. Mandaram chamar os Ingleby, e aquele alemão que lhes guia o tractor, chama-se Dieter, e também Sally Straw. Todos
mudos como sachos, do primeiro ao último. Incluindo a polícia.
A polícia? Claro!
Claro que a polícia tinha investigado a morte de Robin Ingleby e, ou eu muito me enganava, ou a coisa tinha passado pelas mãos do meu velho amigo, o inspector Hewitt.
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Bem, o inspector não era propriamente um velho amigo, mas ainda não há muito tempo eu tinha-o ajudado a levar a cabo uma investigação em que ele e os colegas se tinham sentido
completamente à nora.
Decidi que, em lugar de confiar nos mexericos que a senhora Mullet tinha ouvido na aldeia, iria investigar os factos em fonte fidedigna. Era só ter oportunidade de pegar na
bicicleta para me dirigir à esquadra de Hinley. Tencionava entrar na esquadra como quem não quer a coisa, digamos à hora do lanche.
Quando passei de bicicleta por São Tancredo, não pude deixar de perguntar a mim própria se Rupert e Nialla estariam bem instalados. Pois olha, pensei, travando e voltando
para trás, não me custa nada ir ver.
Mas a porta do salão paroquial estava fechada à chave. Abanei-a com toda a força, dei-lhe um par de belos socos, mas não apareceu ninguém que ma abrisse. Ainda estariam na
Quinta de Culverhouse?
Conduzindo a Gladys pelo guiador, atravessei o cemitério e avancei para a margem do rio, passando com ela para a outra margem pelo caminho das pedras. Embora o percurso estivesse
coberto de ervas e cravado de sulcos, não tardei a chegar ao Campo do Jubileu.
Nialla estava sentada debaixo de uma árvore, a fumar, com Dieter ao lado dela. Assim que me viu, ele levantou-se a toda a pressa.
- Olha, olha, o que veio aqui parar - comentou ela.
- Pensei que estivessem na igreja.
Nialla encostou a beata ao tronco da árvore e torceu-a furiosamente.
- E devíamos estar, em minha opinião - disse -, mas Rupert deve andar por aí perdido.
Aquilo pareceu-me estranho porque, de acordo com a história deles, Rupert não devia conhecer ninguém, nem em Bishop's Lacey, nem nos arredores. O que - ou quem - estaria a
retê-lo tanto tempo?
- Se calhar foi ver se encontrava quem arranjasse a carrinha sugeri eu, porque me tinha apercebido de que a capota do Austin estava novamente fechada.
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- O mais provável é ter ido amuar para qualquer lado - respondeu Nialla. - De vez em quando faz destas. Precisa de estar sozinho durante algum tempo. Mas desta vez está desaparecido
há horas. Dieter acha que o viu afastar-se para aquele lado - acrescentou, apontando para trás de si.
Voltei-me para o ponto para onde ela apontara e dei por mim a observar o Bosque de Gibbet com interesse renovado. - Flavia - disse Nialla -, deixa-o estar. Mas não era Rupert
que me interessava.
Mantendo-me junto aos contornos do campo, que eram as zonas mais densamente cobertas de erva, pude evitar o linho em crescimento durante a subida. Que para mim não era grande
subida; já para Rupert, com aquela perna metida dentro de um gancho de ferro, devia ter sido um tormento.
O que lhe teria passado pela cabeça para se pôr a trepar outra vez até ao alto do Monte Gibbet? Estaria com ideias de perseguir Meg pelo meio do mato e a obrigar a devolver-lhe
a caixinha de pó-de-arroz de Nialla? Ou estaria realmente amuado? Ter-se-ia sentido ameaçado pelo belo e louro Dieter?
Não me era difícil conceber mais uma dúzia de razões, mas a verdade é que nenhuma delas fazia grande sentido.
Lá no alto, o Bosque de Gibbet coroava o monte qual barrete verde. Ao penetrar por entre as árvores desta floresta antiga, tive a sensação de que estava a entrar num quadro
de Arthur Rackham. Aqui dentro, nestas trevas de um verde esbatido, o ar tinha um cortante cheiro a decadência, a cogumelos e a bolor de folhas mortas, a húmus preto, a estrume
escorregadio, a cascas de árvores roídas pelos besouros até se transformarem em pó. As teias de aranha luziam nos ares, suspensas como pequenas pontes levadiças de luz entre
dois troncos podres. Por debaixo dos velhos carvalhos e das faias brancas cobertas de líquenes, surgiam campainhas de entre as sombras profundas provocadas pelos fetos e lá
ao longe, na outra extremidade da clareira, avistei as folhas serrilhadas do mercurial vivaz, uma planta venenosa que, quando metida
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em água, produzia um veneno de um azul lindíssimo, que eu tinha certa vez transformado no vermelho-vivo do sangue arterial pelo simples dispositivo de lhe acrescentar uma
solução de ácido clorídrico a 2%.
Com um sorriso interior, recordei que o amoníaco e os amidos emitidos pelo húmus profundo do solo da floresta proporcionavam um verdadeiro banquete aos bolores omnívoros,
que os convertiam em azoto, que a seguir armazenavam no protoplasma, onde seria alimentado pelas bactérias. Era um mundo perfeito, um mundo em que a colaboração era um facto
da vida.
Inspirei profundamente, enchendo os pulmões daquele cheiro acre e saboreando o odor químico do apodrecimento.
Mas não era altura para me dedicar a reflexões agradáveis. O dia avançava a grande velocidade, e eu tinha de ir à procura do caminho que me conduziria ao coração do Bosque
de Gibbet.
Quanto mais avançava por entre as árvores, mais o silêncio se intensificava. A partir de certa altura, até os pássaros estavam calados, e esse silêncio era arrepiante. Daffy
tinha-me explicado que este bosque fora uma floresta real, no qual, há muitos séculos, os monarcas ingleses vinham praticar a caça ao javali. Posteriormente, a Peste Negra
tinha levado a maioria dos habitantes da vilória que crescera abaixo dele.
Arrepiei-me quando, lá no alto, os ramos das árvores se agitaram, as folhas mexendo-se com gestos caprichosos; mas não percebi se eram os fantasmas dos reais caçadores ou
os espíritos inquietos das vítimas da peste - que teriam certamente sido sepultadas nas proximidades - que provocavam aqueles movimentos.
Tropecei num pequeno cabeço e estendi os braços para me equilibrar. Entre mim e o esterco havia apenas um resto de tronco coberto de musgo, ao qual me agarrei instintivamente.
Quando recuperei o equilíbrio, reparei que o tronco não era circular, mas quadrangular. Não se tratava de ramo nenhum, nem de um tronco de árvore, mas de um pedaço de madeira
cortado por mão humana, que tinha sido comido por todos os lados, transformando-se em algo que se assemelhava a um coral cinzento. Ou então era um cérebro petrificado.
A minha cabeça reconheceu o cenário antes de mim; eu demorei algum tempo a compreender que me tinha segurado aos restos apodrecidos da velha forca.
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Tinha sido aqui que Robin Ingleby tinha morrido.
Senti que os pelinhos dos antebraços se me eriçavam todos, como se me estivessem a picar a pele com pingentes de gelo.
Larguei o tronco das mãos e recuei um passo.
A excepção da armação e dos degraus, aliás já em muito mau estado, pouco restava da estrutura. O tempo e o clima tinham consumido quase por completo as pranchas da base -
restava apenas uma -, reduzindo a plataforma a uns vagos restos esqueléticos, que se salientavam dos espinheiros como ossos do esqueleto de um gigante morto.
Foi então que comecei a ouvir vozes.
Como já disse, tenho o ouvido muito apurado, de maneira que, quando me endireitei, apercebi-me de que estava alguém a falar, embora o som proviesse de uma certa distância.
Voltando-me ligeiramente sem sair do mesmo sítio, e pondo as mãos em concha atrás das orelhas, percebi rapidamente que as vozes provinham algures da minha esquerda, de maneira
que avancei para lá com passos cautelosos, deslizando silenciosamente de árvore em árvore.
De repente, o bosque começou a rarear, e eu tive de me acautelar mais, para não ser vista. Espreitando de trás de um tronco de freixo, dei por mim no contorno de uma grande
clareira, localizada no coração do Bosque Gibbet.
Nesta clareira havia um jardim, que um homem vestindo roupas de trabalho e com um velho chapéu na cabeça mondava laboriosamente com um sacho, circulando por entre as fileiras
de plantas bem espaçadas.
- Há-os por todo o lado, raios os partam - dizia ele, dirigindo-se a uma pessoa que eu ainda não tinha conseguido ver. - Escondem-se por detrás das cercas e das medas de feno.
Como tirasse o chapéu para limpar o suor da cara e do alto da cabeça com um lenço colorido, verifiquei que era Gordon Ingleby quem assim falava.
Tinha um rosto gasto e os lábios de um impressionante tom de carmesim, próprio daquilo a que o pai chamava um "temperamento sanguíneo". Depois de secar a cara, limpou também
a saliva que lhe tinha saído da boca juntamente com aquelas palavras irritadas.
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- Ah! Os céus mandam-nos espiões - disse a outra pessoa, com uma entoação teatral em que reconheci imediatamente a voz de Rupert; estava deitado ao comprido à sombra de um
arbusto, a fumar um cigarro.
O coração quase parou de me bater no peito. Ele ter-se-ia apercebido da minha presença?
Era melhor não me mexer, pensei. Não mover um músculo que fosse. Se me apanharem, finjo que vinha à procura de Rupert e que me perdi no bosque, como o Capuchinho Vermelho.
As pessoas aceitam sempre as desculpas que têm por base os contos infantis, porque há neles um toque de verdade.
- O senhor Morton andou outra vez aí a semana passada a dizer uma série de disparates a Dieter. Cá p'ra mim, andava mas é a meter o bedelho.
- Tu és mais esperto do que eles todos juntos, Gordon. Eles têm tijolos no lugar do cérebro.
- É possível que sim - replicou Gordon -, mas também é possível que não. Mas, como já te disse, para mim, a coisa acaba aqui. É aqui que Gordon abandona o comboio.
- Então e eu, Gord? Então e nós todos? Nós que nos enforquemos?
- Seu grande filho-da-mãe! - gritou Gordon, erguendo o sacho como se fosse um machado de guerra e dando uma série de passos ameaçadores. Tinha ficado imediatamente lívido.
Rupert levantou-se desajeitadamente, levantando uma mão num gesto defensivo.
- Desculpa, Gord. Não era isso que eu queria dizer. Era uma força de expressão. Saiu-me sem pensar.
- Pois, não pensaste, pois não? Nunca pensas. Não fazes ideia do que é passar pelo que eu passo, dia e noite, do que é viver com uma mulher morta e com o fantasma de um miúdo
pendurado.
Uma mulher morta? Estaria a referir-se à senhora Ingleby?
Bem, fosse como fosse, uma coisa era clara: a conversa que eu estava a ouvir não era uma conversa entre duas pessoas que se tinham conhecido hoje de manhã. Pelo que diziam
um ao outro, Gordon e Rupert conheciam-se há bastante tempo.
Ali se deixaram ficar mais uns momentos, olhando-se intensamente, sem saberem o que dizer.
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- É melhor eu ir andando - disse Rupert por fim. - Se não, Nialla fica preocupada. - E, voltando-se, encaminhou-se para a outra extremidade da clareira, desaparecendo por
entre as árvores.
Depois de ele se ir embora, Gordon voltou a limpar a cara com o lenço e, com as mãos a tremer, tirou do bolso da camisa um saco de tabaco e um pacote de mortalhas. Enrolou
um cigarro muito mal enrolado, deixando cair bocadinhos de tabaco com a pressa, e levou a mão ao bolso das calças, de onde tirou um isqueiro de metal; acendeu o cigarro e
deu uma passa profunda, inalando o fumo, e exalando-o depois com uma lentidão tal, que eu tive a certeza de que estava a sufocar.
Acabou de fumar num instante e, enfiando a beata na terra com o tacão da bota, pôs o sacho ao ombro e foi-se embora.
Eu esperei cerca de dez minutos, para ter a certeza de que ele não voltava, e a seguir avancei rapidamente até ao ponto onde eles tinham estado os dois a conversar. Escavei
ligeiramente sob a marca do tacão da bota e não tive dificuldade em alcançar a beata, que por esta altura estava encharcada. Cortei um par de folhas de uma das plantas, com
que improvisei um invólucro, dentro do qual meti a beata, enrolada em nova folha (com duas voltas), enfiando tudo aquilo no bolso.
Também Rupert tinha deixado diversas beatas por debaixo do arbusto onde estivera recostado, beatas essas a que dei o mesmo tratamento que dera à primeira. Só depois de proceder
a esta recolha é que atravessei novamente o bosque e voltei a descer o Monte Gibbet.
Nialla e Rupert estavam sentados à beira do riacho, com os pés metidos na água corrente, a refrescar-se. Dieter tinha desaparecido.
- Olha, está aqui! - observei eu em tom vivaz. - Andei à sua procura por todo o lado.
Desapertei os sapatos, tirei as peúgas e fui juntar-me a eles. O Sol já tinha percorrido uma boa parte do céu e aproximava-se do poente. Já devia ser tarde de mais para ir
de bicicleta até Hinley. Muito dificilmente chegaria lá antes das cinco, e por essa altura já o inspector Hewitt teria concluído o seu dia de trabalho.
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A minha curiosidade teria de esperar.
Para uma pessoa que fora recentemente ameaçada com a lâmina aguçada de um sacho, Rupert estava espantosamente bem-disposto. Vi-lhe o pé murcho agitar-se como um peixito branco
mesmo abaixo da superfície das águas.
Ele debruçou-se, meteu dois dedos dentro de água e lançou-me umas gotas com ar brincalhão.
- É melhor pores-te a andar para casa, a ver se jantas decentemente e se dormes bem. Amanhã é o grande dia.
- OK - disse eu, levantando-me. - Não quero perdê-lo, por nada deste mundo. Adoro espectáculos de marionetas!
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Capítulo 9

Tínhamos conseguido sobreviver ao jantar, e já tínhamos levantado a mesa. Estávamos ainda sentados à dita, à espera de que alguém se lembrasse de uma desculpa que nos permitisse
dispersar: o pai para junto dos selos, Daffy para a biblioteca, Feely para diante do espelho, a tia Felicity para um dos enormes quartos de hóspedes e eu para o laboratório.
- E que tal está Londres ultimamente, Lissy? - perguntou o pai. Como raramente passava mais de quinze dias sem ir a Londres, a
encontros de coleccionadores de selos, o pai sabia perfeitamente que tal estava a cidade. Contudo, estas viagens eram sempre tratadas como se de missões altamente secretas
se tratasse, porque o pai teria preferido que o assassem a fogo lento a revelar à tia Felicity que fazia negócios na City.
- A vossa tia ainda tem os dentes todos - costumava comentar-nos e sabe dar-lhes bom uso.
Querendo com isto dizer, na opinião de Feely, que gostava de ver as coisas feitas à maneira dela. Já Daffy achava que a tia Felicity era um rano, empapado em sangue de inocentes.
- Londres? - repetiu a tia. - Londres nunca muda: está cheia de fulige'n e de pombos por todo o lado, e de Clement Attlee (1). São privações
(1) Richard Attlee (1883-1967) foi primeiro-ministro do Reino Unido entre 1945 e 1951. (N. da 70
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atrás de lamentáveis privações. Deviam mandar uns homens com redes capturar as crianças que se vêem em Kensington e mandá-las trabalhar nas fábricas de electricidade de Battersea
e Bankside. Se pusessem gente de melhor qualidade a operar os interruptores, talvez a corrente não estivesse constantemente a falhar.
Devido à presença da tia, Daffy não estava autorizada a ler à mesa; como estava sentada mesmo na minha frente, eu via-lhe os globos oculares circular lenta e atrozmente de
um para o outro interlocutor, como se o cérebro dela tivesse acabado de morrer, estando os nervos e os músculos ópticos a dar as últimas. Mas recusei-me a proporcionar-lhe
a satisfação de um sorriso cúmplice.
- Nem quero imaginar para onde vai o mundo - prosseguiu a tia Felicity. - Arrepia-me pensar nas pessoas com quem nos cruzamos hoje em dia. Por exemplo, vinha um sujeito muito
peculiar no comboio; viste-o na estação, Flavia?
Eu abanei a cabeça.
- Eu também não o vi - prosseguiu -, mas estou convencida de que foi ele que se retraiu, com receio de que eu o denunciasse ao guarda. Passou toda a viagem, desde que saímos
de Londres, a meter a cabeça dentro do compartimento, a perguntar se já tínhamos chegado a Doddingsley. Tinha mesmo ar de quem se dedica activamente ao rum. Remendos de cabedal
nos ombros e um lenço colorido à volta do pescoço; parecia um selvagem saído de uma dança de apaches de Paris. Devia ser proibido. Finalmente, tive de o pôr no lugar. "Quando
o comboio parar e o letreiro do lado de fora da janela indicar "Doddingsley", chegámos a Doddingsley. Antes de isso acontecer, não chegámos."
Por esta altura, dava a impressão de que o cérebro de Daffy, para além de ter morrido, tinha começado a coagular. O olho direito rebolou para o canto, enquanto o outro parecia
prestes a explodir e a largar-lhe a cabeça.
Há anos que ela andava a treinar este efeito de protuberar os olhos em direcções diferentes. "Um vestígio da velha exoftalmia", chamara-lhe certa vez, e eu tinha-lhe suplicado
que me ensinasse o truque, que depois treinara diante do espelho até começar a sentir que a cabeça se me cindia em dois; lamentavelmente, nunca consegui mais do que um ligeiro
desvio.
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- Deus age de forma misteriosa, com vista à obtenção das Suas maravilhas - comentara ela quando lhe fui narrar o meu fracasso.
E assim era, de facto. A simples recordação das palavras de Daffy tinha-me dado uma ideia.
- Posso levantar-me? - perguntei, já no acto de empurrar a cadeira para trás. - Esta manhã esqueci-me de rezar e tenho de ir recuperar o tempo perdido.
Daffy endireitou os olhos e deixou cair o queixo - gabo-me de pensar que se tratou de um gesto de admiração.
Abri a porta do laboratório e, ao entrar, o microscópio Leitz que tinha pertencido ao meu tio-avô Tar atirou-me um brilho metálico de boas-víndas. Estando o objecto colocado
ao pé da janela, não me seria difícil ajustar o espelho reflector de modo a fazer incidir um derradeiro raio de luz do Sol na platina, que me permitisse ver o espécime pela
ocular.
Retalhei uma amostra em forma de losango de uma das folhas que tinha trazido daquele recinto a que passara a chamar Jardim Secreto do Bosque Gibbett, e coloquei-a sobre uma
lâmina de microscópio, que fiz deslizar para debaixo da lente.
Quando foquei a lente, com o instrumento a apontar para uma ampliação de cem vezes, detectei quase imediatamente aquilo de que estava à procura: os cistólitos pregueados que
se projectavam com a forma de espinhos da superfície da folha. Virei a folha ao contrário com uma pinça que tinha furtado ao conjunto de madrepérola de Feely. A não ser que
eu me tivesse enganado, a face de baixo da folha daria a ver um número ainda maior destes pelitos que mais pareciam garras, ora focados, ora desfocados por debaixo da embocadura
da lente. E de facto assim foi! Sentei-me uns momentos, a olhar fixamente para aqueles pelitos empedernidos de carbonato de cálcio que, bem me recordava, tinham sido descritos
pela primeira vez pelo grande botânico e viajante que foi Hugh Algernon Wedell.
Mais para minha satisfação pessoal do que outra coisa, meti a folha num tubo de ensaio, para dentro do qual decantei uns quantos gramas
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de ácido clorídrico diluído, após o que o rolhei e agitei vigorosamente. Erguendo-o contra a luz, vi as minúsculas bolhinhas de dióxido de carbono formarem-se e subirem à
superfície, em consequência da reacção do ácido com o carbonato de cálcio dos minúsculos esporos.
O teste não era, contudo, conclusivo, dado que, por vezes, os cistólitos estavam presentes em certas urtigas, por exemplo. Para confirmar a descoberta, teria de dar mais uns
passos.
Estava profundamente grata ao meu tio Tar, que, antes de morrer (em 1928), tinha comprado uma assinatura vitalícia da Chemical Abstracts & Transactions que - talvez pelo facto
de os directores da revista nunca terem sido informados da morte dele - continuava fielmente a aparecer uma vez por mês na mesa da entrada de Buckshaw.
Por esta altura, todos os cantos do meu laboratório estavam ocupados com pilhas de sucessivos números desta sedutora publicação, cuja capa era de um azul exactamente igual
ao do céu de Março; foi entre eles - mais precisamente, num dos números de 1941 - que fui encontrar uma descrição do teste Duquenois-Levine, que por essa altura acabava de
ser descoberto. E preparava-me para levar a cabo uma variação de minha autoria deste procedimento.
Primeiro, precisava de uma pequena quantidade de clorofórmio. Como tinha usado o último frasco em Março, numa tentativa - fracassada - de proceder a um espectáculo de fogo-de-artifício
no relvado sul de Buckshaw para comemorar o aniversário natalício de Joseph Priestley, teria de começar por manufacturá-lo.
Um rápido assalto ao andar de baixo permitiu-me aceder ao armário de produtos de limpeza da senhora Mullet, onde ela guardava a lixívia, bem como à despensa, de onde retirei
um frasco de puro extracto de baunilha.
Tendo regressado ao andar de cima e à segurança do laboratório, fechei a porta à chave e arregacei as mangas.
A embalagem de lixívia era, no fundo, simples hipocloreto de cálcio. Haveria outro nome para a mesma substância, pelo qual tivesse odor mais agradável? Aquecendo-o com acetona
a uma temperatura entre 204 e 260 graus centígrados - ou até ocorrer a reacção haloforma -, consegue-se extrair, por simples destilação, um bastante razoável clorofórmio dos
sais de acetato que daí resultam. Esta parte do processo era, como se costuma dizer, canja.
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- Iupii! - exclamei, deitando o resultado para um frasco castanho e metendo-lhe a rolha.
A seguir, misturei meia colher de extracto de baunilha com umas gotas de acetaldeído (que, por ser volátil e inflamável à temperatura ambiente, o tio Tar tivera o cuidado
de armazenar por debaixo de uma camada de árgon, num frasco selado), e verti esta mistura para dentro de um tubo de ensaio, para onde tinha já medido seis colheres e meia
de etanol, ou seja, do bom e velho C2H5OH. Tinha surripiado o frasco de etanol da mesa de trabalho do pai, onde ele jazia fechado há séculos sem fim; tinha-lhe sido oferecido
por outro filatelista, que o Ministério dos Negócios Estrangeiros colocara na Rússia. Estava o palco pronto para a acção.
Coloquei nova amostra de uma das folhas num tubo de ensaio limpo, juntei-lhe umas gotas do meu preparado de vanilina alcoólica (a que tinha pensado chamar reagente de Duquenois-Levine-Luce)
e, um minuto depois, uma pitadinha de ácido clorídrico concentrado.
Tal como tinha acontecido no teste anterior, também desta vez começaram a formar-se umas bolhinhas no tubo, coincidindo com a formação do dióxido de carbono; só que desta
vez o líquido que se encontrava no tubo de ensaio adquiriu rapidamente um tom azul-arroxeado.
Empolgada, juntei à mistura umas gotas de meu clorofórmio de fabrico caseiro, que - dado que o clorofórmio não é miscível com a água se depositaram imediatamente no fundo.
Depois de o conteúdo do tubo de ensaio ter estratificado em duas camadas distintas (o clorofórmio, mais claro, no fundo; e o reagente de Duquenois, azul-arroxeado, a flutuar
por cima dele), misturei-os vigorosamente com uma vareta de vidro própria para este efeito e, sustendo a respiração, aguardei que voltassem a assentar.
Foi rápido. Desta vez, a camada de clorofórmio tinha tomado a cor da camada superior, e adquirira aquele lilás-clarinho das feridas em processo de cura.
Como já desconfiava de qual seria o resultado, nem me incomodei a exclamar "Eureka!".
Aquilo que Gordon Ingleby cultivava no jardim secreto não eram cheruvias; era cânhamo-da-índia!
*101
A lua cheia evoluía no céu qual gigantesco queijo de prata, e Dogger estava sentado muito direito, com a cara voltada para o alto, como se estivesse a apanhar banhos de luar,
com um guarda-chuva preto aberto sobre a cabeça.
Eu sentei-me de mansinho ao lado dele. Ele não olhou para mim, nem eu para ele, e ali nos deixámos estar durante algum tempo, qual par de graves astrónomos da antiguidade
estudando a Lua.
- Não está a chover, Dogger - disse eu, passado algum tempo. Durante a guerra, Dogger tinha sofrido chuvas torrenciais, chuvas
impiedosas, chuvas das quais não havia abrigo nem fuga possíveis. Pelo menos era o que a senhora Mullet me tinha contado.
- Ele gosta muito do chapéu, querida - tinha-me comentado. - Mesmo que esteja tão seco que se consiga desenhar no pó do chão.
Lentamente, como se fosse uma daquelas figurinhas dos relógios, Dogger estendeu o braço e soltou o fecho da pega do guarda-chuva; as varetas e o tecido à prova de água dobraram-se
como asas de morcego, a ponto de a mão dele ficar coberta de preto.
- Sabes alguma coisa sobre a poliomielite? - perguntei finalmente. Sem desviar os olhos da Lua, Dogger respondeu:
- Paralisia infantil. Doença de Heine-Medin. Paralisia matinal. Repouso absoluto. Pelo menos, foi o que me disseram - acrescentou, olhando finalmente para mim.
- E mais alguma coisa?
- Um horror - informou-me. - Um horror completo.
- Obrigada, Dogger - repliquei eu. - Este ano, as rosas estão lindas. Trabalhaste imenso nelas.
- Obrigado por mo dizer, menina - retorquiu ele. - Mas as rosas estão sempre lindas, com Dogger ou sem Dogger.
- Boa noite - disse eu, levantando-me.
- Boa noite, menina Flavia.
Já ia a meio do relvado quando parei e me voltei para trás. Dogger tinha aberto novamente o guarda-chuva e estava sentado por debaixo dele, de costas tão direitas como Mary
Poppins, sorrindo à Lua de Verão.
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Capítulo 10

- Hoje deixa-te ficar por casa, Flavia, se fazes favor - pediu-me o pai depois do pequeno-almoço, quando me cruzei inesperadamente com ele nas escadas. - A tia Felicity quer
analisar uns documentos da família, e pediu que fosses ajudá-la a transportar os caixotes.
- Não pode ser Daffy a fazer isso? - perguntei. - Ela é que é a especialista em bibliotecas e coisas assim.
Não era completamente verdade, dado que era eu que estava encarregada da magnífica biblioteca vitoriana de química, já para não falar das toneladas de livros do tio Tar.
Acontece que tinha a esperança de não ser obrigada a fazer referência ao espectáculo de marionetas, que começava dentro de poucas horas. Ora, Dever passava por cima da Diversão.
- Daphne e Ophelia foram à aldeia meter umas cartas no correio. Almoçam lá e depois vão ao Forsters ver o pónei da Sheila.
As cadelas! As bruxas!
- Mas eu prometi ao senhor vigário - insisti eu. - Ele está a contar comigo. Estão a tentar arranjar dinheiro para uma coisa qualquer, não sei bem o quê. Mas, se eu não estiver
na igreja às nove, Cynthia, quer dizer, a senhora Richardson, vai ter de me vir buscar no Oxford.
Foi um golpe baixo, mas, tal como eu esperava que acontecesse, o Pai hesitou. Depois franziu o sobrolho, a pesar as alternativas, que na Validade eram poucas: ou ceder amavelmente,
ou arriscar-se a um confronto directo com o Naufrágio do Hésperos.
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- Tu não és de fiar, Flavia - disse. - Não és mesmo nada de fiar. Claro que não! E era uma das coisas que mais me agradava em mim.
Nenhuma criança de onze anos é de fiar. Já passámos a idade em que somos bonecas, a idade em que as pessoas se acocoram diante de nós e nos espetam o dedo na barriga enquanto
proferem ruídos idiotas tipo bof-bof - e, só de pensar nisso, dá-me vontade de comer um grande bife! Mas ainda não chegámos à idade em que as pessoas nos confundem com adultos.
Na realidade, aos onze anos uma criança é invisível, excepto quando decide não ser.
E, neste momento, eu não estava a ser invisível. Estava a ser fixada pelo feroz olhar de tigre do pai. Bati-lhe a pestana duas vezes; era quanto bastava, e assim não estava
a faltar-lhe ao respeito.
Percebi qual foi o momento em que ele cedeu; li-lho nos olhos.
- Pronto, está bem - disse o pai, aceitando a derrota com a sua habitual graciosidade. - Põe-te a andar. E dá cumprimentos meus ao senhor vigário.
Nem queria acreditar! Estava livre! E nem custara assim tanto!
Os pneus da Gladys entoavam um canto de alegria pelo alcatrão
fora.
- Chegou o Verão - chilreava eu. - Cantemos de satisfação! Uma vaca que andava a pastar ergueu a cabeça ao ouvir-me e eu
imobilizei-me, de pés nos pedais, e fiz-lhe uma vénia em equilíbrio.
Quando encostei a bicicleta ao muro do salão paroquial, vinham Rupert e Nialla a atravessar o relvado que fica nas traseiras do cemitério.
- Dormiram bem? - perguntei-lhes, acenando vigorosamente.
- Que nem mortos - respondeu Rupert.
E a resposta descrevia na perfeição o aspecto de Nialla. Trazia o cabelo comprido solto e os círculos escuros que se lhe viam em torno dos olhos recordavam-me algo em que
eu preferia não pensar. Ou tinha passado a noite a circular de campanário em campanário na companhia das bruxas, ou tinha tido uma discussão das valentes com Rupert.
O silêncio dela deu-me a entender que era a segunda hipótese.
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- Bacon fresco... ovos frescos - prosseguiu Rupert, batendo no peito com os punhos fechados, à laia de Tarzan. - Com isto, um homem fica pronto para enfrentar o dia.
Sem sequer me lançar um simples olhar, Nialla passou por mim a grande velocidade e meteu-se no salão paroquial; presumi que fosse à casa de banho.
Fui atrás dela, evidentemente.
Nialla estava de joelhos diante da sanita, a gritar "Roupa" para a peça de porcelana branca; chorava e vomitava ao mesmo tempo. Eu entrei e tranquei a porta.
- Estás grávida, não estás? - perguntei-lhe.
Ela olhou para mim de boca aberta, completamente lívida.
- Como é que sabes? - conseguiu articular.
Apeteceu-me dizer "Elementar!", mas não era altura para me pôr com brincadeiras.
- Fiz um teste de lizosima ao lenço a que tu te assoaste. Nialla levantou-se rapidamente e agarrou-me pelos ombros.
- Flavia, não podes dizer nada a ninguém! Absolutamente nada! Mais ninguém sabe!
- Nem a Rupert? - perguntei-lhe. Custava-me a acreditar.
- Muito menos a Rupert - respondeu ela. - Ele matava-me se soubesse. Promete-me que não dizes nada. Por favor, Flavia... promete!
- Prometo - repliquei eu, erguendo a mão com três dedos espetados e dois encolhidos; era a saudação das Guias. Embora eu tivesse sido expulsa da organização por insubordinação
(entre outras coisas), não me pareceu necessário contar-lhe todos os pormenores, aliás macabros.
- Ainda bem que estávamos acampados no meio de lado nenhum. Deviam ouvir-nos a quilómetros de distância, com a discussão que tivemos. Foi por causa de uma mulher, evidentemente.
É sempre por causa de uma mulher, não é?
Aquilo ultrapassava o meu nível de competência, mas apesar disso tentei fazer um ar atento.
- Rupert nunca demora muito a fazer-se às saias. Tu bem viste. Ainda mal tínhamos chegado ao Campo do Jubileu, já ele se tinha posto a andar para o bosque, atrás daquela rapariga,
Sarah, ou lá como é que ela se chama.
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- Sally - esclareci eu.
Embora fosse uma ideia interessante, a verdade é que eu sabia que Rupert tinha estado a fumar cânhamo-da-índia com Gordon Ingleby no Bosque de Gibbett. Mas não lhe podia dizer.
Nessa altura, Sally Straw não se via em lado nenhum.
- Mas tu não disseste que ele tinha ido tratar da carrinha?
- Oh, Flavia, tu és tão... - Conseguiu engolir a palavra mesmo a tempo. - Claro que disse. Não queria lavar a roupa suja à frente de uma pessoa que tínhamos acabado de conhecer.
Estaria a referir-se a mim... ou a Dieter?
- Rupert lambuza-se de fumo, para esconder o perfume das conquistas. Mas eu cheiro-lho. Mas desta vez fui longe de mais - prosseguiu em tom pesaroso. - Abri a porta da carrinha
e atirei-lhe com a primeira coisa que me apareceu. Não devia ter feito isso. Atirei-lhe com uma marioneta nova, o João, em que ele tem andado a trabalhar há várias semanas.
O antigo João estava a ficar desconjuntado, e costuma dar de si nas piores alturas. Como eu - concluiu, com novo gemido de pesar.
Bem gostaria de me tornar útil, mas era uma daquelas situações em que um espectador nada pode fazer.
- Esteve a noite toda acordado, a tentar arranjar aquilo.
Pelas marcas recentes que ela tinha no pescoço, percebi que Rupert não tinha passado a noite toda apenas a tratar da marioneta.
- Oh, quem me dera morrer - gemeu ela.
Bateram à porta: uma rápida sucessão de batidas curtas.
- Quem está aí? - quis saber uma voz feminina, e eu senti que o coração se me contraía no peito. Era Cynthia Richardson. - Pode haver mais quem queira ir à casa de banho.
Faça o favor de ter em atenção as necessidades dos outros.
- Vamos já, senhora Richardson - respondi eu. - Sou eu, Flavia. Diabos carregassem a mulher! O que eu havia de fazer para fingir
que tinha ficado subitamente maldisposta?
Agarrei na toalha de mãos que estava no toalheiro ao lado do lavatório e esfreguei a cara energicamente, sentindo o sangue a subir-me às faces. Despenteei-me, abri a torneira
e passei um pouco de água pela testa, e deixei escorrer um horrendo fio de baba pelo canto da boca.
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A seguir, puxei o autoclismo e destranquei a porta.
Enquanto esperava que Cynthia a abrisse - como sabia perfeitamente que ela faria -, olhei-me de esguelha ao espelho e compreendi que era a própria imagem da vítima da malária
cujo médico acabava de chamar o cangalheiro.
Quando a maçaneta girou e a porta se abriu para dentro, avancei para o corredor com passo incerto, com as bochechas cheias de ar, como se estivesse prestes a vomitar. Cynthia
recuou e encostou-se à parede oposta.
- Peço desculpa, senhora Richardson - disse eu com a voz abalada. - Senti-me muito maldisposta e tive de vomitar. Devo ter comido qualquer coisa que não me caiu bem. Nialla
foi uma simpatia... mas tenho a impressão de que, apanhando um pouco de ar, me vou sentir melhor.
E passei por ela a passo de trote, com Nialla atrás de mim. Cynthia nem sequer para ela olhou.
- Tu és assustadora! - disse Nialla. - Mas és mesmo. Tens noção
disso?
Estávamos as duas sentadas no cemitério, em cima de uma pedra tumular, eu deixando que o Sol me secasse a pele. Nialla remexia na carleira, à procura de um pente.
- Tenho - respondi eu com toda a naturalidade. Era verdade, não valia a pena negá-lo.
- Ah! - disse uma voz. - Encontrei-vos finalmente! Aproximava-se de nós a grande velocidade um homenzinho todo
janota, de calças largas e casaco, com uma camisa de seda amarela por debaixo. Tinha ao pescoço um lenço lilás, e saía-lhe da boca um cachimbo apagado. Avançava cautelosamente
por entre as sepulturas, tentando não pisar as mais enterradas.
- Oh, meu Deus! - gemeu Nialla sem mexer os lábios. - Olá, Mutt prosseguiu, dirigindo-se ao homem. - É feriado na aldeia dos macacos, é?
- Onde está Rupert? - perguntou ele. - Está lá dentro?
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- É um prazer rever-te, Nialla - replicou ela. - Estás hoje com um ar encantador, Nialla. Deixaste a boa educação em casa, Mutt?
O tal Mutt virou-lhe costas e afastou-se em direcção ao salão paroquial, continuando a evitar pisar as sepulturas.
- Mutt Wilmott - esclareceu-me Nialla. - O produtor de Rupert na BBC. Tiveram uma discussão horrível a semana passada, e Rupert virou-lhe as costas e foi-se embora. Mutt teve
de se haver com a televisão. Mas como terá ele conseguido encontrar-nos? Rupert achava que aqui ninguém vinha incomodar-nos. "Vamos enfiar-nos na toca", disse-me ele.
- Este desembarcou ontem de manhã na estação de comboios de Doddingsley - informei-a eu, dando um salto em termos dedutivos, mas com a certeza de que não me enganava.
- É melhor eu ir lá dentro - suspirou Nialla. - Vamos ter fogo-de-artifício.
Ainda não tínhamos chegado à porta, já a voz furiosa de Rupert fazia eco dentro do salão paroquial.
- Quero lá saber do que disse Tony - berrava ele. - Tony pode ir pintar a cara de cor-de-rosa, e já agora tu podes fazer o mesmo, Mutt. Foi a última vez que tentaram lixar
Rupert Porson, e isto aplica-se a todos.
Quando nós entrámos, ia ele a subir os degraus que vão dar ao palco. Mutt estava parado a meio do salão, com as mãos na cintura. Nenhum deles pareceu aperceber-se da nossa
presença.
- Vá lá, Rupert, deixa-te dessas coisas. Tony tem todo o direito de te mostrar que foste longe de mais. E ouve bem o que eu te digo, Rupert, desta vez foste longe de mais,
foste mesmo muito longe de mais. É muito engraçadinho agitares o ninho das vespas e depois esquivares-te ao confronto e fazeres-te à estrada com o teu teatrinho. É sempre
a mesma coisa. Mas desta vez tens pelo menos de lhe fazer o favor de ouvir o que ele tem para te dizer.
- Não tenho de fazer favor nenhum a Tony.
- Estás muito enganado, meu velho. De quantos sarilhos é que ele já te safou? - Rupert não respondeu e Mutt começou a contar pelos dedos. - Então vejamos: primeiro, foi o
incidente com Marco. Depois foi a história com Sandra Paisley, e deixa-me que te diga que foi uma
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história muito pouco simpática. Depois foi aquela coisa com Sparkman e Blondel, que custou uma pipa de massa à televisão. Já para não falar...
- Cala a boca, Mutt!
Mas Mutt não calou a boca.
- Já para não falar daquela miúda de Beckenham... como é que ela se chamava... Lulu? Lulu, imagine-se!
- Cala-te! Cala-te! Cala-te!
Rupert estava em plena birra! Desceu as escadas com enorme fúria, arrastando a perna rígida, cuja armação fazia um ruído horrível. Eu olhei de esguelha para Nialla, que ficara
de repente pálida e imóvel como uma Madonna, a mão a tapar-lhe a boca.
- Mete-te no teu maldito Jaguar, homenzinho, acelera a fundo e não pares antes de chegares ao inferno! - rosnou Rupert. - Deixa-me em paz!
Mutt não se deixou intimidar. Embora estivessem os dois agora frente a frente, a pouco mais de dois milímetros de distância, ele não recuou um passo que fosse. Pelo contrário,
sacudiu uma poeira imaginária da manga do casaco e fingiu vê-la flutuar até ao chão.
- Não vim de carro, meu velho. Vim de comboio. Sabes tão bem como eu que a televisão está a cortar nas despesas, tem de se guardar para o Festival da Grã-Bretanha do ano que
vem, e etc. e tal.
Ao ver Nialla, os olhos de Rupert abriram-se muito.
- Quem foi que te disse que nós estávamos aqui? - gritou. - Foi
ela?
- Ei, ei, calma aí - respondeu Mutt, e foi a primeira vez que levantou a voz. - Não te ponhas a deitar as culpas para cima de Nialla. Se queres que te diga a verdade, foi
uma senhora qualquer aqui de Bishop s Lacey. O miúdo dela tinha visto a carrinha no adro da igreja e foi a correr para casa ameaçar a mãezinha de suster a respiração e cair
ali mesmo se ela não contratasse as Marionetas de Porson para a festa de anos do gaiato. Acontece que, quando conseguiu arrastá-la atrás dele, já vocês se tinham ido embora.
De maneira que ela telefonou para a televisão e a telefonista passou a chamada à secretária de Tony. Tony mandou-me vir imediatamente buscar-te. E eu vim. E foi assim. Portanto
não te ponhas a deitar as culpas para cima de Nialla.
- Estás muito preocupadinho com Nialla, é? - perguntou Rupert em tom furioso. - Vens cá meter o bedelho para... Mutt apoiou a palma da mão no peito de Rupert.
- E, já que stamos a falar nisto, Rupert, ficas a saber que, se voltas a tocar-lhe, com a ponta de um dedo que seja, eu...
: Rupert afastou-lhe a mão com um gesto brusco.
- - Não me ameaces, sua caracoleta sem préstimo! A não ser que não tenhas amor à vida!
- Meus senhores! Meus senhores! O que se passa aqui? Têm de acabar imediatamente com isto!
Era o vigário. Estava parado à porta, a sua figura negra recortada de encontro à luz do dia.
Nialla passou por ele a correr e eu fui atrás dela.
- Minha querida senhora - dizia o vigário, estendendo uma travessa de metal gravado -, experimente uma sanduíche de pepino e alface. Ouvi dizer que são intensamente calmantes.
Fui eu que as fiz.
Fui eu que as fiz. Queria dizer que tinha sido declarada uma guerra doméstica dentro da casa vicarial?
Estávamos novamente no cemitério, bastante perto do local onde eu tinha visto Nialla pela primeira vez, estendida ao comprido em cima de uma pedra tumular, a chorar. Teria
sido só há dois dias? A mim parecia-: -me uma eternidade.
- Não, obrigada, senhor vigário - respondeu Nialla. - Já me sinto muito melhor. Além disso, tenho que fazer.
O almoço foi uma prova terrível. Como as janelas tinham sido cobertas com panos muito escuros, por causa do espectáculo, estávamos sentados quase às escuras, com o vigário
a oferecer-nos sanduíches e limonada de um jarro que devia ter feito surgir do nada. Nialla e eu estávamos sentadas numa das pontas da primeira fila de assentos, e Mutt ocupava
outra ponta. Rupert tinha desaparecido nos bastidores há algum tempo.
- Daqui a nada, temos de abrir as portas - comentou o vigário, afastando um dos panos que cobriam as janelas e espreitando lá para fora. - O público já começou a fazer fila
e têm os bolsos cheios de moedas do reino. - Olhou para o relógio. - Faltam noventa minutos para a hora - bradou, com as mãos em concha diante da boca. - Faltam noventa minutos.
- Flavia - pediu Nialla -, faz-me um favor, vai aos bastidores e diz a Rupert que baixe a música quando eu começar a falar. Ele enganou-se em Fringford, e eu não quero que
isso volte a acontecer.
Olhei para ela com ar interrogativo.
- Por favor, estou a pedir-te. Tenho de ir tratar do meu fato, e além disso não estou com grande vontade de olhar para ele.
A bem dizer, eu também não estava com grande vontade de olhar para Rupert. Enquanto subia vagarosamente os degraus que iam dar ao palco, veio-me ao espírito a imagem de Sydney
Carton subindo os degraus do patíbulo ao encontro de Madame Guillotine. Descobri a abertura das cortinas pretas que escondiam o palco das marionetas e dei um passo em frente,
entrando noutro mundo.
Viam-se pocinhas de luz por toda a parte, iluminando filas de interruptores e manivelas, com fios e cabos entrelaçados uns nos outros. Atrás do palco, reinava uma escuridão
profunda; as lâmpadas eram pequenitas, de maneira que a luz que delas emanava não permitia ver para além das sombras.
- Sobe cá acima - disse uma voz proveniente da escuridão que ficava por cima da minha cabeça. - Há uma escada ali do outro lado. Sobe com cuidado.
Contornei a parte de trás do palco às apalpadelas e detectei os degraus. Subindo uns quantos, dei por mim numa plataforma de madeira elevada, que atravessava toda a parte
de trás do palco das marionetas.
Havia um robusto corrimão de metal preto, onde Rupert apoiava a cintura quando se debruçava para diante para fazer mover as marionetas. Embora estivessem de costas, de maneira
que eu não conseguia ver-lhes a cara, detectei atrás de mim várias personagens articuladas, suspensas de uma vareta: uma velhota, um homem e um rapaz, pelo menos a avaliar
pela roupa.
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De um lado, ao alcance da mão, estava montado o gravador magnético, as duas bobinas cheias de uma fita castanho-brilhante que, pela cor, me pareceu estar coberta de uma emulsão
de óxido de ferro.
- Nialla pede que não se esqueça de baixar o volume da música quando ela começar a falar - sussurrei eu, como se estivesse a dizer-lhe um segredo.
- Está bem - respondeu ele. - Não precisas de falar baixinho. As cortinas absorvem o som. Ninguém nos ouve cá de cima.
Não posso dizer que aquela informação fosse especialmente reconfortante. Se lhe desse para aí, Rupert podia apertar-me o pescoço com aquelas mãos vigorosas que ele tinha,
estrangulando-me em luxurioso silêncio. E ninguém saberia de nada enquanto não encontrassem o que restasse de mim: um cadáver flácido.
- Bem, é melhor ir andando - disse eu. - Vou ajudar a vender os bilhetes.
- Exacto - respondeu Rupert. - Mas, antes de te ires embora, vem cá ver uma coisa. São poucos os miúdos que têm a possibilidade de vir aos bastidores.
Enquanto dizia isto, estendeu um braço e fez rodar uma grande maçaneta, concentrando as luzes no palco, abaixo de nós. Eu quase perdi o equilíbrio, quando aquele mundo em
miniatura se materializou aos meus pés, como que vindo do nada. De repente, dei por mim contemplando, da perspectiva de Deus, uma paisagem de sonho, de céu pintado de azul
e colinas pintadas de verde. Aninhada num vale, uma casinha de telhado de colmo, com um banquito no pátio e um estábulo a ameaçar ruína.
Fiquei sem respirar.
- Foi tudo feito por si?
Rupert sorriu e estendeu a mão para outra alavanca, que puxou. Fez-se escuro no exterior e acenderam-se umas luzinhas nas janelas da casita.
Embora estivesse a olhar para aquilo de pernas para o ar, por assim dizer, ou seja, de cima para baixo, senti um baque - um estranho e inexplicável baque, como nunca tinha
sentido.
Estava com saudades de casa.
Ansiava agora, ainda mais do que da primeira vez que a tinha visto, por ser transportada para dentro daquela paisagem sossegada, por subir
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aquele carreiro, tirar uma chave do bolso e abrir a porta da casinha, sentar-me à lareira, envolver-me com os braços e ali me deixar ficar quieta para todo o sempre.
Rupert também estava transformado. Percebi-o pela expressão dele. Sobre as suas feições, iluminadas por baixo, caíra uma paz total; tinha as feições descontraídas num sorriso
benévolo e amável.
Debruçando-se por sobre o corrimão de metal, estendeu o braço e puxou um capuz de algodão preto que cobria um objecto volumoso, localizado na ponta do palco.
- Deixa-me apresentar-te o Gigante Galiganto - disse-me. - É a última oportunidade que tens de o conhecer, antes de lhe cair em cima aquilo que está preparado para ele.
A cara era de um monstro, as feições contorcidas numa expressão de ira perpétua, marcadas por furúnculos, o queixo coberto de pêlos pretos e eriçados, que mais pareciam pêlos
de carpete. Soltei um guincho e recuei um passo.
- É de papier mâché - disse Rupert. - Não te assustes, não é tão horrendo como parece. Pobre velho Galiganto, se queres que te diga, gosto bastante dele. Temos passado muito
tempo juntos cá em cima, à espera de que o espectáculo acabe.
- É um ser... maravilhoso - gaguejei. - Mas não tem fios.
- Pois não, porque não é propriamente uma marioneta. Na verdade, tem apenas cabeça e braços. Não tem pernas. Está aparafusado pela zona da cintura, não se vê do palco, e...
mas promete que não contas a ninguém o que te vou dizer; é um segredo da arte.
- Prometo - disse eu.
- No final da peça, quando o João está a destruir o pé de feijão à machadada, basta-me levantar esta manivela... tem aqui uma mola, estás a ver...
Levantou a manivela, fazendo soltar uma pequena haste de metal parecida com os letreiros dos caminhos-de-ferro, e Galliganto caiu para diante, indo esmagar-se em frente da
casinha e enchendo quase por completo a abertura de cena.
- A fila da frente recua sempre, de susto - declarou Rupert. - E a mim dá-me sempre vontade de rir. Mas tenho de ter cuidado, para evitar que ele caia sobre o João e a pobre
da mãezita dele. Não posso permitir que sejam esmagados por um gigante.
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Rupert estendeu o braço e, pegando no Galliganto pelos cabelos, puxou-o para cima e prendeu-o na posição de partida.
No fundo da minha memória, começou a bulir um sermão que o vigário tinha pregado no começo do ano, a partir de um texto do Génesis no qual se dizia: "Naquele tempo, havia
gigantes na terra." O vigário explicou-nos que, no original hebraico, a palavra que tinha sido traduzida como "gigantes" era a palavra nephilim, que na realidade significava
homens violentos e cruéis, tiranos ferozes; ou seja, não se referia a seres de grandes dimensões físicas, mas a entidades sinistras. Não se referia a monstros, mas a seres
humanos cheios de malevolência.
- É melhor eu voltar lá para baixo - disse. - Obrigada por me ter mostrado o Galliganto.
Nialla não estava em parte nenhuma, e eu não tinha tempo para ir à procura dela.
- Oh, minha querida - disse-me o vigário. - Não sei bem o que te hei-de dar que fazer. Acho que o melhor é ires vendo no que podes ajudar.
E eu assim fiz. Ao longo da hora seguinte, fui vendo os bilhetes das pessoas (na sua maioria crianças) e fui-as conduzindo aos seus lugares. Olhei com ar de censura para Bobby
Broxton e fiz-lhe sinal para tirar os pés das costas da cadeira da frente.
- Essa está reservada para mim - sussurrei-lhe em tom ameaçador. Trepei ao balcão da cozinha e descobri o segundo bule de chá, que
alguém tinha empurrado mesmo para o fundo da prateleira de cima, após o que ajudei a senhora Delaney a dispor chávenas e pires num tabuleiro. Até subi a correr a rua principal,
para ir aos correios trocar uma nota de dez libras por moedas.
- Se o senhor vigário está a precisar de moedas - observou a menina Cool, a gerente dos correios -, fazia melhor em abrir as caixas de papel que passa aos domingos, depois
da catequese. Bem sei que esse dinheiro é para as missões, mas pode substituir as moedas que tirou por notas. Assim escusava de vir pedir trocos ao serviço dos correios de
Sua Majestade. Mas a verdade é que os vigários raramente são tão práticos como seria de esperar, não é, minha querida?
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As duas horas, estava completamente esgotada.
Quando finalmente me sentei - na fila da frente, no lugar do centro -, o zumbido ansioso do público atingira o seu clímax. Tínhamos casa cheia.
Algures nos bastidores, o vigário desligou as luzes do salão e durante uns momentos ficámos todos mergulhados na mais completa escuridão.
Recostei-me no assento e a música começou.
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Capítulo 11

Era uma coisinha de Mozart, uma daquelas melodias que a pessoa tem a sensação de já ter ouvido, mesmo que na realidade não tenha.
Imaginei as bobinas do gravador de Rupert girando lentamente nos bastidores, a melodia a ser convocada, como que por magnetismo, ao mundo subatómico do óxido de ferro. Tendo
em consideração que fora há quase duzentos anos que Mozart os ouvira dentro da sua mente, era razoável que os sons da orquestra sinfónica estivessem armazenados em partículas
de ferrugem.
Quando as cortinas se abriram, fui apanhada de surpresa: em vez da casinha e das idílicas colinas de que estava à espera, o palco estava completamente preto. Rupert tinha
coberto o cenário rural com um pano escuro.
Acendeu-se lentamente um holofote, dando a ver um cravo minúsculo no meio do palco, o marfim branco dos dois teclados sobressaindo contra o pano de fundo de um negro intenso.
A música foi diminuindo, ao mesmo tempo que sobre o público ia caindo um silêncio de expectativa. Estávamos todos debruçados para diante, à espera...
Houve um movimento de um dos lados do palco, e uma figura avançou com passos confiantes para o cravo. Era Mozart!
Trazia vestido um fato de seda verde, com rendas junto ao pescoço, meias brancas até ao joelho e sapatos de fivela; parecia mesmo ter saltado por uma janela, do século XVIII
para o nosso. A cabeleira branca,
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arranjada na perfeição, enquadrava uma cara rosada de expressão insolente. Mozart colocou a mão em pala sobre os olhos, olhando o escuro, para ver quem fora a pessoa que tivera
a audácia de se rir.
Em seguida, abanando a cabeça, dirigiu-se ao instrumento, tirou um fósforo do bolso e acendeu as velas, uma em cada extremidade do teclado do cravo.
Foi uma representação extraordinária! O público irrompeu em aplausos. Julgo que todos percebemos que estávamos a assistir a um trabalho de mestre.
O pequeno Mozart sentou-se no banco que se encontrava diante do cravo, ergueu as mãos como que para começar - e fez estalar ruidosamente os nós dos dedos.
O público correspondeu com uma sonora gargalhada. Rupert devia ter gravado, muito ao pé, o som de um quebra-nozes a partir as nozes, pensei; ficava-se com a impressão de que
a marioneta tinha quebrado todos os ossos que tinha nas mãos.
Foi então que começou a tocar, as mãos sobrevoando ao de leve as teclas, quais lançadeiras de um tear. A música era a Marcha Turca, uma melodia cadenciada, ritmada, alegre,
que me fez sorrir.
É francamente difícil descrever a cena; bastará dizer que, desde o banco que subia e descia, até ao duplo teclado cujas teclas pareciam dentes de tubarão, saltitando ao contacto
com os dedos da marioneta, tudo aquilo nos fez, do primeiro ao último segundo, rir à gargalhada.
Quando por fim a pequena figura conseguiu - apesar de todos os pesares - avançar em triunfo para a derradeira e triunfal nota, o cravo ergueu-se, fez uma vénia e dobrou-se
muito bem dobrado, tomando a forma de uma mala. A marioneta pegou nela e retirou-se majestosamente do palco ao som de um estrondoso aplauso. Houve mesmo algumas pessoas, entre
as quais me incluí, que não resistiram a aplaudir de pé.
As luzes voltaram a extinguir-se. Seguiu-se uma pausa, um silêncio.
Depois de o público assentar, começou a chegar-nos aos ouvidos uma fiada musical de uma qualidade diferente da anterior.
Reconheci imediatamente a melodia: era a Manhã, da suite Peer Gynt, de Edward Grieg, e pareceu-me a opção ideal.
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- Bem-vindos ao País dos Contos de Fadas - disse uma voz feminina quando a música começou a baixar, e um projector deu a ver a mais estranha e espantosa das personagens.
Estava sentada à direita do palco - devia ter ocupado aquele lugar durante os momentos de escuridão, pensei para comigo -, envergava uma gola de renda isabelina, um vestido
preto de peregrina com o corpete rendado, sapatos pretos com uma fivela quadrangular prateada e uns óculos minúsculos, precariamente empoleirados na ponta do nariz. O cabelo
era uma abundante massa de caracóis grisalhos, que se lhe espetavam do interior de um chapéu alto e pontiagudo.
- Eu sou a Mãe Gansa. Era Nialla!
Ouviram-se oohs e aahs entre o público, e ela sorriu ao ouvi-los, ficando a aguardar que a excitação terminasse.
- Querem que lhes conte uma história? - perguntou, e o tom de voz não era o de Nialla, mas ao mesmo tempo também não era o de mais ninguém.
- Queremos! - responderam todos, incluindo o vigário.
- Então aqui vai - disse a Mãe Gansa. - Vou começar pelo princípio, e prosseguirei até chegar ao fim. Nessa altura, calo-me.
O silêncio era tal que se teria ouvido cair um alfinete.
- Era uma vez - começou ela -, numa aldeia aqui perto... Enquanto assim falava, as cortinas de borlas douradas começaram
a abrir-se lentamente, dando a ver a aconchegada casinha que eu tinha avistado nos bastidores, mas que agora conseguia observar com muito mais pormenor: as janelas de vidros
hexagonais, as malva-rosas pintadas, o banquinho de ordenhar, com os seus três pés.
- ... uma pobre viúva, que tinha um filho chamado João.
Nesse momento, entrou em cena um rapaz de calções de cabedal, casaco e corpete bordados, acompanhando a música com um assobio muito desafinado.
- Mãe - chamou. - Está em casa? Quero jantar.
Quando se voltou para olhar em volta, pondo a mão em forma de pala diante dos olhos para os proteger do sol pintado na paisagem, o público susteve a respiração.
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A face de madeira de João era uma cara que todos reconhecemos; parecia que Rupert tinha deliberadamente modelado a cabeça da marioneta a partir de uma fotografia de Robin
Ingleby, a criança morta. A semelhança era arrepiante.
O salão paroquial foi varrido por uma onda de sussurros de desconforto, qual vento frio de Novembro soprando pelos bosques.
- Cchh! - disse alguém. Julgo que foi o vigário.
Perguntei a mim mesma como se sentiria ele, ao ver-se assim confrontado com o rosto da criança que tinha enterrado no cemitério.
- O João era um rapazinho muito preguiçoso - prosseguiu a Mãe Gansa. - E, como ele se recusava a trabalhar, as magras poupanças da mãe não tardaram a esgotar-se. Mãe e filho
já não tinham que comer, e não lhes restava um tostão que fosse, com que comprar mais.
Apareceu então a pobre viúva, contornando a casa com uma corda pela mão, e uma vaca na outra ponta da corda. Ambas estavam pouco mais do que pele e osso, mas a vaca tinha
a vantagem de ostentar um enorme par de belos olhos castanhos.
- Vamos ter de vender a vaca ao homem do talho - disse a viúva. Ao ouvir isto, a vaca voltou tristemente os enormes olhos para a
viúva, depois para o João, e finalmente para o público; eram uns olhos que pareciam mesmo estar a dizer: Socorro!
- Oooh - dissemos todos ao mesmo tempo, com uma nota ascendente de pena.
A viúva voltou as costas à pobre criatura e afastou-se, deixando o trabalho sujo a cargo do João. Assim que ela desapareceu, surgiu ao portão um vendedor ambulante.
- Bom dia, meu senhor - disse o homem ao João. - O senhor está-me a parecer um rapaz fino. Se calhar faziam-1'e jeito uns feijões.
- Se calhar faziam - respondeu o João.
- O João achava que tinha jeito para o negócio - interveio a Mãe Gansa. - De maneira que, antes de qualquer de nós ser capaz de dizer "Limpameonarizseumalandrosenaolevasaiaiai",
que é o nome de uma terra aqui perto, já ele tinha trocado a vaca por uma mão-cheia de feijões.
A vaca fincou as patas no chão, recusando-se a andar, mas o vendedor ambulante puxou firmemente por ela, e o João para ali ficou, a olhar atentamente para o molhinho de feijões
que tinha na mão.
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De repente, aparece a mãe.
- Onde é que está a vaca? - perguntou. E o João apontou para a estrada e estendeu a mão.
- Meu grande palerma! - guinchou a viúva. - Meu grandessíssimo palerma!
E deu-lhe um pontapé nas calças.
Todas as crianças deram uma grande gargalhada, e tenho de confessar que até eu me ri. Estou naquela idade em que assisto a estas coisas com uma dupla atitude: uma parte de
mim ri-se destes disparates, enquanto a outra parte nunca vai muito para além de um meio sorriso um tanto esvaído e envergonhado, tipo Monalisa.
Ao receber o pontapé, o João deu um enorme salto e deixou cair os feijões, que se espalharam por toda a parte.
Por esta altura, todo o público se ria à gargalhada.
-Vais dormir no galinheiro - declarou a viúva. - E, se tiveres fome, bem podes debicar o milho. - E, dizendo isto, desapareceu.
- Pobrezinho de mim - disse o João, estirando-se no banco que ficava à entrada da casinha.
O Sol declinou a grande velocidade, e a noite caiu de repente, uma lua cheia brilhando por sobre os campos. As luzes da casinha estavam acesas, e o brilho alaranjado que delas
provinha espalhava-se pelo pátio. O João estremeceu, voltou-se para o outro lado e começou a ressonar.
- Olhem! - exclamou a Mãe Gansa. - Está qualquer coisa a mexer-se ali no jardim.
Por esta altura, a música tinha adquirido uma entoação mística, parecendo uma flauta num bazar do Oriente.
Estava qualquer coisa a mexer-se no jardim. Como que por efeito de magia, uma coisa que pareceu primeiro um fio verde, depois uma corda verde, começou a elevar-se do solo,
retorcendo-se e contorcendo-se como uma serpente a elevar-se de um cesto de faquir, subindo sempre até desaparecer lá no alto.
E, enquanto subia nos ares, com a noite a transformar-se em dia a grande velocidade, o caule foi-se tornando cada vez mais grosso, até se parecer finalmente com uma árvore
de um verde-esmeralda, de dimensões tais que a casinha parecia muito pequena em comparação com ela.
Voltámos a ouvir a Manhã de Peer Gynt.
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O João esticou-se e espreguiçou-se, rolando desajeitadamente sobre si mesmo para se levantar do banco. Pondo as mãos à cintura, debruçou-se para trás muito para além do que
era humanamente possível, tentando descontrair as articulações. Foi então que deu pelo pé de feijão.
Voltou a endireitar-se como se lhe tivessem dado um soco, esforçando-se por recuperar o equilíbrio, os pés meio trôpegos, os braços como pás de um moinho.
- Mãe! - gritou. - Mãe! Mãe! Mãe! Mãe!
A velhota apareceu imediatamente, de vassoura na mão, e o João começou a dançar em volta dela, como um tolinho, apontando para o pé de feijão.
- É que aqueles feijões eram mágicos, compreendem? - interveio a Mãe Gansa. - E o pé de feijão tinha crescido de tal maneira durante a noite que subira para além das nuvens.
Toda a gente sabe a história do João e do pé de feijão, de maneira que não vou perder tempo a repeti-la. Durante a hora que se seguiu, o conto foi narrado uma vez mais, como
já o tinha sido milhares de vezes: o João trepou pelo pé acima, alcançando o castelo nas nuvens, apareceu a mulher do gigante, que escondeu o João no forno, depois veio a
harpa mágica, as bolsas de prata e de ouro - nada foi esquecido, todos os elementos foram trazidos à vida pelo indiscutível génio de Rupert.
Do princípio ao fim da história, Rupert manteve-nos em suspenso, como se ele próprio fosse o gigante e todos nós fôssemos o João. Fez-nos rir e fez-nos chorar, e chegou mesmo
a fazer-nos rir e chorar ao mesmo tempo. Eu nunca tinha visto nada assim.
Tinha a cabeça a zunir de perguntas. Como é que Rupert conseguia operar as luzes, os efeitos sonoros, a música e os elementos do palco, ao mesmo tempo que manipulava diversas
marionetas e fazia as respectivas vozes? Como é que ele tinha conseguido fazer crescer o pé de feijão? Como era possível que o João e o gigante corressem de um lado para o
outro daquela maneira, sem que os fios de ambos se enredassem uns nos outros? Como é que o Sol se erguia no céu? E a Lua?
A Mãe Gansa tinha razão: os feijões eram mágicos, e tinham-nos enfeitiçado a todos.
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Aproximava-se o final do espectáculo. O João descia a grande velocidade do pé de feijão, com as sacas de ouro e de prata à cintura. O gigante vinha atrás dele.
- Pára! - bramia o gigante. - Pára, seu ladrão, pára!
Ainda não tinha posto o pé no solo, já o João chamava pela mãe.
- Mãe! Mãe! Traga o machado! - gritou, tomando-lho da mão mal saltou para o chão e atacando furiosamente o pé de feijão, que nos deu a sensação de ter encolhido, como que
assaltado por uma dor intensa.
A música ascendeu a um clímax, e durante um estranho momento pareceu-nos que o tempo tinha ficado suspenso. Depois, o pé de feijão desmantelou-se e, momentos depois, o gigante
estatelava-se em cima do pátio da casinha, o enorme corpanzil tornando minúsculo o local, os olhos vítreos olhando em frente sem expressão. O gigante tinha morrido.
As crianças soltaram um guincho - e até alguns pais se levantaram, sobressaltados.
Tratava-se, evidentemente, do Galliganto, o monstro articulado que eu tinha visto antes do início do espectáculo, numa altura em que ainda não fazia ideia de quão aterradoras
seriam a queda e a morte do gigante, quando vistas do pé em que agora me encontrava.
O coração batia-me com toda a força dentro do peito. Foi um momento glorioso!
- E foi assim que o Galliganto, o cruel gigante, morreu - dizia a Mãe Gansa. - Algum tempo depois, sentindo-se muito sozinha no alto dos céus, a mulher dele foi à procura
de outro gigante com quem se casasse. O João e a mãe, agora riquíssimos como nunca tinham imaginado que viriam a ser, viveram felizes para sempre, como costuma acontecer à
gente de bem. E nós bem sabemos que o mesmo acontecerá a todos os meninos aqui presentes.
O João sacudiu descontraidamente a poeira das mãos, como se matar um gigante fosse uma tarefa sem grande importância.
As cortinas vermelhas foram lentamente corridas, e nessa altura começou um verdadeiro pandemónio no salão paroquial.
- É o Demónio! - guinchou uma voz ao fundo da sala. - O Demónio levou o rapazito e encolheu-o! Deus nos ajude! É o Demónio!
Voltei-me para trás e vi uma pessoa recortada contra a porta aberta do salão, a correr de um lado para o outro, desorientada. Era Meg,
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a Louca, que apontava para o palco com o dedo muito esticado, e que em seguida ergueu as mãos para cobrir a cara. Nesse momento, as luzes acenderam-se.
O vigário dirigiu-se rapidamente para ela.
- Não! Não! - guinchava Meg. - Não levem a pobre Meg! Deixem-na em paz!
Ele conseguiu pôr-lhe um braço em torno dos ombros e conduzi-la - de forma suave, mas com firmeza - para a cozinha do salão, onde a voz dela, uma voz rouca e lamentosa, continuou
a fazer-se ouvir durante algum tempo: "O Demónio! O Demónio! O Demónio apanhou o pobre Robin!"
Um estranho silêncio caiu sobre o salão e os pais começaram a orientar os filhos em direcção à saída. As crianças obedeciam sem hesitar.
As senhoras da paróquia fingiram limpar umas coisas aqui e ali, após o que todas elas se retiraram a grande velocidade, provavelmente para irem mexericar umas com as outras,
a boca tapada pelas palmas das mãos.
Eu fiquei sozinha.
Nialla parecia ter desaparecido, embora eu não a tivesse visto ir-se embora. Continuei a ouvir um murmúrio de vozes nos bastidores, pelo que presumi que Rupert ainda estivesse
lá em cima, na ponte do palco das marionetas.
Foi nessa altura que me ocorreu pôr em prática as leis da física. Como já expliquei, os arquitectos daquele salão vitoriano tinham transformado o interior num reflector de
som absolutamente perfeito. Os amplos painéis escuros e envernizados do salão captavam o mais ligeiro ruído, realçando-o maravilhosamente. E eu percebi que, se me colocasse
bem no centro, seria capaz de ouvir sem grande dificuldade tudo o que estava a ser dito nos bastidores - recorde-se que eu tenho uma invulgar capacidade auditiva. Assim fiz,
e uma das vozes que ouvi foi a de Rupert.
- Inferno dos infernos! - dizia ele. - Inferno dos infernos, Nialla!
- Nialla não respondeu, embora me parecesse ter ouvido um soluço.
- Vamos ter de pôr fim a isto, não há dúvida nenhuma.
Iam ter de pôr fim a quê? Ela ter-lhe-ia dito que estava grávida? Estaria ele a falar da discussão que tinha tido com Mutt Wilmott? Ou com Gordon Ingleby?
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Antes de eu conseguir ouvir o resto, a porta da cozinha abriu-se e o vigário entrou no salão trazendo Meg, a Louca, pelo braço. Atrás deles vinham Cynthia e duas senhoras
da paróquia.
- Nem pensar nisso - dizia Cynthia -, está completamente fora de questão. A casa fede a tintas. Além disso, não temos...
- Desta vez vou ter de te contrariar, minha querida. Esta pobre mulher precisa de um sítio onde possa descansar, e não podemos propriamente recambiá-la para...
- O casinhoto da floresta? - perguntou Cynthia, um calor vermelho começando a cobrir-lhe as faces.
- Flavia, minha querida - disse o vigário quando se apercebeu da minha presença. - Importas-te de dar uma corrida à casa vicarial? A porta está aberta. Podias fazer o favor
de tirar os livros que estão em cima do sofá do meu escritório? Põe-nos em qualquer sítio, não te preocupes com isso. Nós vamos já.
De repente, Nialla apareceu por detrás das cortinas.
- Só um momento, senhor vigário. Eu vou convosco - declarou. Percebi que estava a tentar controlar-se, mas com grande dificuldade.
O escritório da casa vicarial estava num estado tal que parecia que Charles Kingsley tinha acabado de poisar a caneta e de sair dali. As estantes, que cobriam as paredes de
cima a baixo, estavam carregadinhas de livros, que, a avaliar pelo carácter solene das encadernações, só podiam ser de natureza eclesiástica. Uma secretária coberta de livros
e papéis tapava quase por completo a única janela do compartimento e, sobre uma carpete turca que já conhecera melhores dias, havia um sofá de crina de cavalo colocado num
ângulo bizarro e coberto por um Everest de livros cheios de pó.
Estava eu a acabar de transferir os livros para o chão quando Nialla e o vigário entraram, levando Meg para o sofá com gestos solícitos. Ela parecia desorientada, mal tendo
conseguido proferir uns vagos murmúrios quando Nialla a ajudou a recostar-se, alisando-lhe a roupa nojenta.
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Momentos depois, a imponente figura do doutor Darby enchia o aposento. Alguém devia ter ido a correr ao fundo da rua, chamá-lo ao consultório.
- Humm - atreveu-se ele a comentar, poisando a maleta no chão. Depois abriu-a e olhou para o seu interior com atenção. Tirou lá de dentro um saco de papel, do qual extraiu
um rebuçado de mentol, que meteu na boca.
Resolvido esse pormenor, debruçou-se sobre Meg para a observar com atenção.
- Humm - repetiu, e meteu a mão dentro da mala, de onde tirou uma seringa. Encheu-a num frasquinho de líquido transparente, arregaçou a manga de Meg e enfiou-lhe a agulha
no braço.
Meg não fez ruído algum, olhando para ele com uma expressão de cavalo que acaba de levar uma grande martelada.
De dentro de um armário que se encontrava a um canto, o vigário tirou - como que por artes mágicas - uma almofada e uma manta cheia de cores.
- É para quando faço a sesta - explicou sorrindo, e tapou suavemente Meg, a Louca. Ainda nós não tínhamos saído todos do compartimento, já ela ressonava.
- Senhor vigário - disse Nialla abruptamente. - Vai achar que eu estou a ser horrível, mas a verdade é que tenho um grande favor a pedir-lhe.
- Peça - respondeu o vigário, olhando de esguelha e com ar preocupado para Cynthia, que se encontrava na outra ponta do vestíbulo.
- Ficar-lhe-ia eternamente grata se me deixasse tomar um banho quente. Há tanto tempo que não tomo um banho quente que tenho a sensação de ser um daqueles animaizitos que
vivem por debaixo das pedras.
- Mas com certeza, minha querida - respondeu o vigário. - A casa de banho é lá em cima, ao fundo do corredor. Sirva-se de sabão e de toalhas. E não faça caso do barquito -
acrescentou com um sorriso. - É meu.
Ia Nialla já a subir as escadas quando se ouviu uma sola de borracha a ranger sobre as pranchas enceradas do soalho - era Cynthia que se afastava.
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- Cynthia ofereceu-se para te levar a Buckshaw - disse-me o vigário, e eu percebi imediatamente que se tratava de uma peta. - Presumo que voltes esta noite, com a tua família?
- Sim, claro que sim - asseverei eu. - Eles adoram o João e o Pé de Feijão.
Com a Gladys precariamente amarrada ao tejadilho, descemos lentamente a viela no fatigado e poeirento Oxford. À semelhança de todas as esposas de vigários, também Cynthia
tinha tendência para guiar com o nariz quase colado ao pára-brisas, serpenteando de um lado para o outro a fim de contornar os regos de lama seca da estrada.
Eu ia sentada ao lado dela, no banco da frente, tendo assim uma excelente oportunidade de a examinar bem de perto, e de perfil. Mesmo sem abrir a boca, via-se-lhe uma enorme
quantidade de dentes, e eu dei por mim a repensar seriamente a minha recusa do aparelho.
- Há sempre qualquer coisa, não é? - disse ela de repente, ainda muito corada com a mais recente humilhação que sofrera. - A pessoa é constantemente expulsa de sua casa para
dar lugar aos necessitados. Não é que eu me importe, evidentemente. Primeiro foram os ciganos. Depois, durante a Guerra, foram os evacuados. Depois, no ano passado, voltaram
os ciganos. Denwyn foi ter com eles ao Bosque de Gibbet e convidou-os pessoalmente, a cada um deles, para virem assistir à Sagrada Eucaristia. Nenhum deles pôs lá os pés,
evidentemente, nem um que fosse. Os ciganos são essencialmente selvagens, ou se calhar são católicos. Não é que não tenham alma, que naturalmente que têm, mas a pessoa tem
a sensação de que a alma deles é muito mais vaga do que a nossa.
- Que tal estará Nialla a dar-se no banho? - perguntei eu em tom vivaz, enquanto subíamos a alameda de carvalhos de Buckshaw.
Cynthia olhava fixamente a estrada, as mãos bem apertadas em torno do volante.
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- Que disparate! - declarou a tia Felicity. - Vamos todos juntos, como família.
Estávamos na sala de estar, mantendo entre nós a maior distância que o espaço permitia.
O pai resmoneou qualquer coisa sobre os álbuns de selos, e eu percebi que Daffy já tinha começado a suster a respiração, numa tentativa de fingir que estava com febre.
- Tu e as tuas filhas não podem estar sempre metidos em casa, Haviland. Estão brancos que nem alforrecas. Eu ofereço os bilhetes. Vou pedir a Clarence que traga o carro a
seguir ao jantar.
- Mas... - conseguiu o pai ainda dizer.
- Não aceito mas nenhum, Haviland.
Dogger estava a mondar os canteiros que contornam o terraço. A tia Felicity bateu vigorosamente no vidro da janela, a chamá-lo.
- Sim, menina? - perguntou ele ao chegar à porta-janela, com o chapéu de palha na mão.
- Telefona a Clarence e diz-lhe que vamos precisar de um táxi para sete pessoas, às seis horas.
- Para sete pessoas, menina? - perguntou Dogger, franzindo o sobrolho.
- Naturalmente - respondeu a tia Felicity. - Ele vai ter de ir e vir por duas vezes. Tu e senhora Mullet ficavam amuados se não fossem convidados, não é verdade? Os espectáculos
de marionetas não são só para gente de sangue azul, sabias?
- Obrigado, menina - retorquiu Dogger.
Eu ainda tentei trocar um olhar com ele, mas o faz-tudo do pai pôs-se a andar a grande velocidade.
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Capítulo 12

Clarence chegou à porta do cemitério faltavam vinte minutos para as sete. Saiu do táxi, contornou o carro e foi abrir a porta à tia Felicity, que tinha insistido em ir à frente,
ao lado dele, "não fosse aparecer-nos por diante algum porco-bravo" - as palavras eram dela.
A tia Felicity tinha vestido uma espécie de capa de ópera bufa, por cima de um volumoso fato de seda vermelha que bem podia ter sido roubado a um harém persa. O chapéu era
um saco preto amarrotado, com uma pena de pavão ondeando por detrás; fazia lembrar a chaminé de um comboio. E calçava uns sapatinhos medievais amarelo-mostarda, com as pontas
voltadas para cima, que pareciam sacos de pasteleiro. O pai e Feely desceram do outro lado do táxi.
- Agora vai num instante buscar os outros, Clarence - ordenou a tia Felicity -, e não vás a mandriar.
Clarence levou o dedo indicador à pala do boné e pôs-se a caminho com um impertinente ranger de pneus.
Ao entrarmos no salão paroquial, descobrimos que a fila da frente tinha sido toda reservada para nós. Realmente, a tia Felicity não tinha sido sovina com os bilhetes. Ela
e o pai ficavam sentados ao centro, com Feely e Daffy à esquerda. Eu ficava à direita do pai, com Dogger e a senhora Mullet (quando chegassem) a seguir.
Estava tudo pronto. As luzes já tinham sido reduzidas para um nível de deliciosa expectativa. De trás do palco provinha uma agradável
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música ambiente, e de vez em quando a cortina de veludo encarnado do palco de marionetas estremecia, para animar o público.
Dava a impressão de que a população de Bishop's Lacey tinha acorrido em massa. Mutt Wilmott estava sentado no lugar da ponta de uma das últimas filas. A menina Cool estava
sentada atrás dele, a conversar com Cynthia Richardson, e atrás dela estava sentada a menina Mountjoy, a sobrinha do falecido doutor Twining, que tinha sido o professor primário
do pai. À direita da menina Mountjoy, sentados lado a lado, estavam Dieter Schrantz e Sally Straw - a Miúda da Terra -, vindos da Quinta de Culverhouse. Acenei-lhes discretamente
e eles corresponderam com um sorriso.
- Boa noite, mon vieux, Flavia.
Era Maximilian Wright, o nosso vizinho, um homem de estatura diminuta que, depois de ter feito várias tournées mundiais como pianista, todas elas retumbantes sucessos, tinha
vindo finalmente instalar-se na nossa aldeia, onde dava aulas de piano. Feely tinha sido aluna dele, mas tinha pedido para acabar com as lições a partir do momento em que
Max começara a fazer-lhe perguntas demasiado indiscretas sobre os "namorados".
Max acenou-me com uma luva branca e eu correspondi ao gesto.
Continuei a observar as filas de caras, até que os meus olhos se detiveram numa mulher de cabelo escuro, que envergava um conjunto de malha verde-garrafa. Nunca tinha visto
tal pessoa; não devia ser de Bishop's Lacey, pensei. Talvez fosse parente de alguém de cá, e tivesse vindo fazer uma visita.
O homem que estava ao lado dela detectou o meu olhar fixo e lançou-me um sorriso agradável; era o inspector Hewitt. Ainda recentemente eu o tinha ajudado a prender um assassino.
Fui a correr postar-me ao lado deles, mas ao chegar hesitei, apercebendo-me de que estava, muito provavelmente, a ser indiscreta.
- Olha quem aqui está! - comentou o inspector. Não seria um comentário especialmente original, mas permitiu ultrapassar aquele que, de outra maneira, seria um momento difícil.
- Antígona - prosseguiu, dirigindo-se à mulher de cabelo escuro -, deixa-me apresentar-te Flavia de Luce.
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Eu percebi logo que ela ia dizer: "Ah, o meu marido tem-me falado imenso de ti", e que o diria com aquele sorrisinho pretensioso que revela imediatamente a conversa divertida
que tinham tido os dois.
- É um prazer conhecer-te, Flavia - disse ela, estendendo-me uma mão tão bonita que outra como ela não havia em todo o mundo, e apertando a minha com vigor -, e verificar
que, tal como eu, também adoras marionetas.
Se ela me tivesse dito "Busca!", eu teria obedecido sem hesitar.
- Tem um nome adorável - consegui balbuciar.
- Gostas? O meu pai era grego e a minha mãe italiana. Ela dava aulas de ballet e ele vendia peixe, de maneira que eu cresci a dançar nas ruas de Billingsgate.
Aquele cabelo escuro e aqueles olhos verde-mar faziam dela a imagem viva da Flora de Botticelli, cujas feições adornam a parte de trás de um espelho de mão que há em Buckshaw,
um espelho que o pai tinha oferecido a Harriet.
Tive vontade de lhe perguntar: "Em que ilha distante fica o vosso santuário, para que eu possa ir lá prestar-vos culto?", mas contentei-me em arrastar os pés e murmurar:
- Foi um prazer conhecê-la, senhora Hewitt. Espero que gostem ambos do espectáculo.
Estava eu a regressar ao meu lugar quando o vigário se dirigiu em passos largos para a parte da frente da sala, tomando posição diante do palco. Com um sorriso indulgente,
esperou que Daffy, a senhora Mullet e Dogger se sentassem.
- Minhas senhoras e meu senhores, minhas meninas e meus meninos, paroquianos de São Tancredo e outros, obrigado por terem vindo. Temos hoje a honra de receber entre nós o
espectáculo de marionetas do famoso bonecreiro (se me é permitido usar tão ilustre nomenclatura) Rupert Porson. (Aplausos)
- Embora o senhor Porson, ou Rupert, se me é permitido, seja actualmente mais conhecido pelo programa que tem na televisão, O Reino da Magia, que, como todos certamente sabem,
é o reino do esquilo Snoddy...
(Aplausos)
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- ... houve uma autoridade no assunto que me informou que ele tem viajado muito, apresentando os seus espectáculos de marionetas em diversas formas, e tendo-se mesmo apresentado,
em pelo menos uma ocasião, a uma das famílias reais europeias.
(Aplausos)
- Antes, porém, de o João vender a vaca da mãe por uma mão-cheia de feijões...
- Chh! Não conte a história, senhor vigário!
(Tully Stoker, proprietário do Treze Patos Marrecos); comentário recebido com enormes gargalhadas, incluindo do próprio)
- ... enquanto o maestro prepara os fios de encantar, as senhoras da paróquia de São Tancredo têm o gosto de lhes apresentar um concerto das irmãs Puddock, Lavinia e Aurélia.
Oh, meu Deus! Poupai-nos! Deus do céu, por favor, poupai-nos! A bem dizer, as duas irmãs só não se tinham apresentado no espectáculo da tarde porque estavam muito atarefadas
no Salão de Chá de São Nicolau, de que eram proprietárias, o que as tinha impedido de se deslocarem ao salão paroquial.
Estas duas irmãs tinham um controlo absoluto sobre os eventos que tinham lugar no salão paroquial de São Tancredo. Quer se tratasse de um lanche organizado pelas senhoras
da paróquia, de uma tarde de jogo organizada pelo Grupo do Altar, de uma venda promovida pelas Auxiliares das Damas ou de uma exposição de flores da autoria do Conselho Paroquial,
as duas irmãs tinham de se apresentar, fosse Verão ou Inverno, estivesse a chover ou a fazer sol.
A menina Lavinia sentava-se ao piano vertical, remexia na mala de corda, da qual retirava finalmente uma pauta já muito gasta de A Última Carga de Napoleão.
Seguia-se uma espera interminável, durante a qual a menina Lavinia inclinava a cara muito para diante, até ficar com o nariz quase colado ao papel de música, após a qual se
endireitava, as costas lisas como um atiçador de lume, erguia as mãos sobre o teclado, deixava-as cair, voltava a lançar um olhar vesgo à pauta de música e em seguida dilacerava
as notas como o urso pardo dilacera o salmão nos documentários do cinema.
Terminada esta primeira parte, era a vez de sua irmã, a menina Aurélia, encostada ao piano e sacudindo ociosamente uns grãozitos de
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poeira com as pontas dos dedos enluvados de branco, trinar (não há outra palavra para descrever o acto) "A Corrente de Bandemeer".
No final, o apresentador anunciava que o Conselho Paroquial tinha decidido por unanimidade atribuir honorários às duas irmãs; chamava-lhes uma "bolsa de estima".
E assim terminava a apresentação!
Com os olhos fixos na pauta de música, a menina Lavinia preparava-se para iniciar A Última Carga de Napoleão, e eu percebi, pela primeira vez, que ela mexia os lábios enquanto
lia a música. Não pude deixar de perguntar a mim mesma o que estaria ela a dizer. A peça não tinha letra, eram apenas notas; estaria a recitar os acordes? Estaria a rezar?
Felizmente, o galope desta noite foi um pouco mais rápido do que o habitual, e a coisa acabou num instante - por assim dizer. Olhando para Feely, percebi que os músculos do
maxilar se lhe contorciam; e Max estava com ar de quem quer dar uma tareia num aldrabão.
Foi então a vez da menina Aurélia. A menina Lavinia tocou vigorosamente as primeiras notas, antes de a irmã começar:
Há um canteiro de rosas na Corrente de Bandemeer E o rouxinol passa o dia a cantar em seu redor. Na minha infância parecia um doce sonho
(A avaliar pela sua aparência, a infância da menina Aurélia deve ter sido durante o reinado de Jorge III.)
Sentar-me junto às rosas ouvindo o canto das avezinhas.
Terminada a canção, ouviram-se uns aplausos dispersos de boa educação, e a menina Aurélia baixou a cabeça por momentos, sacudindo o pó do piano com a ponta dos dedos, à espera
que lhe pedissem um encore. Mas o público sabia perfeitamente que não devia encorajá-la, de maneira que se deixou ficar sentado em silêncio; alguns dos presentes - eu, por
exemplo - chegaram mesmo a cruzar os braços.
Quando as luzes do salão baixaram, voltei-me para trás, lançando um derradeiro olhar à assistência. Estava a chegar um casal, que tomou lugar na coxia. Para meu horror, apercebi-me
de que se tratava de Gordon e de
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Grace Ingleby - ela envergando o já habitual, e medonho, vestido preto, ele de chapéu de coco na cabeça, valha-me Deus! E nenhum deles parecia propriamente feliz.
A princípio, senti-me profundamente irritada com aquilo. Como era possível que ninguém os tivesse avisado? Como era possível que ninguém se tivesse incomodado em impedir que
eles aparecessem? Como era possível que eu o não tivesse feito? Não me perguntem porquê, mas aquilo que me ocorreu naquele momento foi uma coisa que Daffy me tinha explicado:
que um dos deveres do monarca constitucional é advertir e aconselhar.
Se Sua Real Majestade o Rei Jorge VI estivesse ali connosco, estaria obrigado a tomá-los à parte e a explicar-lhes que uma das marionetas tinha a cara do filho que lhes tinha
morrido. Mas o rei Jorge VI não estava ali connosco.
Além disso, era tarde de mais. O salão estava mergulhado na mais completa escuridão. E pareceu-me que, para além de mim, mais ninguém tinha reparado na presença dos Ingleby.
O espectáculo começou. Presumo que, devido à interminável actuação das irmãs Puddock, Rupert tinha decidido eliminar a parte de Mozart e avançar imediatamente para o conto.
Abriram-se as cortinas de veludo vermelho, como tinha acontecido na sessão da tarde, dando a ver a casinha da viúva. O holofote iluminou Nialla, que envergava o seu fato de
Mãe Gansa. A Manhã de Grieg flutuou nos ares, pintando em todas as mentes imagens fantasmagóricas de florestas negras e fiordes gelados.
- Era uma vez, numa aldeia aqui perto, uma pobre viúva que tinha um filho chamado João - começou Nialla.
Nessa altura, entrou o João: o João com a cara de Robin Ingleby. Voltou a ouvir-se a onda de sussurros de desconforto, pois alguns elementos do público reconheceram as feições
do miúdo morto. Nem sei como foi que me atrevi a olhar para trás, mas a verdade é que, fingindo que tinha ficado com a saia presa nos parafusos da cadeira, consegui voltar-me
o suficiente para lançar um rápido olhar aos Ingleby Grace fitava o espaço em frente dela, de olhos muito abertos, mas não se manifestou; dava a impressão de estar completamente
imobilizada. Gordon apertava-lhe a mão, mas ela não estava a reparar nisso.
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No palco, a marioneta gritou:
- Mãe, está em casa? Quero jantar.
- O João era um rapazinho muito preguiçoso - interveio a Mãe Gansa. - E, como ele se recusava a trabalhar, as magras poupanças da mãe não tardaram a esgotar-se. Mãe e filho
já não tinham que comer, e não lhes restava um tostão que fosse, com que comprar mais.
Os murmúrios desvaneceram-se e o espectáculo prosseguiu. Rupert estava em excelente forma, as marionetas faziam gestos de tal maneira convincentes, com as vozes tão bem apanhadas,
que o público se deixou rapidamente levar por aquele encantamento - tal como o vigário tinha previsto que aconteceria.
Iluminadas pelas lâmpadas de cores do palco, as caras dos que me rodeavam pareciam saídas de um quadro de Toulouse-Lautrec: estavam vermelhas, aquecidas e ferozmente concentradas
nos pequenos actores de madeira. A tia Felicity mastigava vivamente um rebuçado digestivo, e até o pai estava com uma expressão quase divertida - embora eu não tivesse conseguido
perceber exactamente o que o divertia, se era a irmã, se eram as marionetas.
A passagem da vaca e dos feijões, e o subsequente pontapé nas calças, foi recebida com gargalhadas ainda mais veementes do que as que se tinham ouvido na sessão da tarde.
Todos (incluindo a própria Daffy) abriram a boca de espanto quando viram o pé de feijão crescer enquanto o João dormia, e os presentes começaram a acotovelar-se mutuamente,
deliciados. Quando o João trepou pelo caule acima para alcançar os domínios do gigante, Rupert tinha domado por completo a população de Bishop's Lacey.
Perguntei a mim mesma como estaria Mutt Wilmott a reagir a semelhante êxito. De facto, Rupert estava em grande neste espectáculo ao vivo (por assim dizer), sem o aparato da
televisão - por maravilhoso que este fosse - a separá-lo do público. Voltei-me para trás, para lhe observar a reacção, mas Mutt tinha desaparecido; era o vigário quem estava
sentado no lugar que ele ocupara.
O mais estranho é que Gordon Ingleby também se tinha ausentado. O lugar dele estava vazio, embora Grace continuasse sentada, imóvel, no lugar ao lado, com os olhos sem expressão
fixados no palco, onde
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a mulher do gigante acabava de esconder o João no enorme forno de pedra de sua casa.
- Fi! Fu! Fá! Fé! - trovejou o gigante ao entrar na cozinha. - Cheira-me a sangue de humanos pequenos!
- O João saltou do forno... - comentou a Mãe Gansa.
- Mestre! Mestre! - gritou a encantadora marioneta, repuxando os próprios fios, muito agitada. Era a minha parte preferida.
- ... agarrou na harpa de ouro e desatou a correr, com o gigante atrás dele!
E o João desceu o pé de feijão, as folhas verdes ondeando à sua passagem. Quando, finalmente, a vegetação começou a escassear, a cena mudou e estávamos novamente na casinha
da viúva. O efeito era maravilhoso e, por mais que me esforçasse, eu não conseguia perceber como é que Rupert fazia aquilo. Teria de lhe perguntar.
- Mãe! Mãe! Traga o machado! - guinchou o João, e a velhota veio a coxear de trás do jardim, com uma lentidão exasperante, de machado em punho.
O João atirou-se ao pé de feijão com toda a força que tinha, o machado abatendo-se com furiosa rapidez sobre a planta, o pé de feijão recuando uma vez e outra, como que agonizando
sob a força da reluzente e perversa lâmina.
Nessa altura, e como tinha acontecido de manhã, o pé de feijão caiu, afundando-se no chão do palco.
Parecia que o João estava a olhar para cima no momento em que, com um ruído semelhante a um trovão, o gigante se desmoronou do céu abaixo.
O monstro passou uns momentos a contorcer-se horrivelmente, com um fiozinho de sangue muito vermelho a correr-lhe do canto da boca, a horrenda cabeça e os ombros enchendo
o palco de faíscas, pequenas chamas e fios de fumo acre saindo-lhe dos cabelos e da barbicha. Mas os olhos que se fixaram nos meus sem os verem não eram os olhos de Galliganto,
o gigante articulado; eram os olhos vidrados e agonizantes de Rupert Porson.
Nessa altura, os fusíveis rebentaram.
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Capítulo 13

Subitamente mergulhado na escuridão, o público susteve colectivamente a respiração, após o que deitou o ar fora em uníssono.
Alguém que estava na cozinha teve a presença de espírito de acender uma lanterna, trazendo-a depois para o centro do salão paroquial, em gestos que faziam lembrar setas de
fogo-fátuo.
Reagindo com rapidez aos acontecimentos, o vigário lembrou-se de correr a cortina. Pelo menos era isso que ele estava a tentar fazer quando uma voz sonora e autoritária lhe
berrou:
- Não! Não! Não se aproxime! Não toque em nada. Era Dogger, que se tinha levantado de um salto e obstruíra a passagem ao vigário, postando-se diante dele de braços abertos,
com ar de quem estava tão surpreendido como nós com semelhante ousadia. Nialla, que se tinha levantado e dado um único passo na direcção do proscénio, imobilizou-se abruptamente.
Tudo isto se passou à luz móvel da lanterna, que conferia à cena um aspecto de drama sinistro, representado durante um ataque aéreo e iluminado por uma lamparina fedorenta.
Ao fundo da sala, mergulhada na escuridão, fez-se ouvir uma segunda voz: era o inspector Hewitt.
- Ninguém se mexa. Por favor, não saiam dos vossos lugares. Não se mexam enquanto eu não disser.
Avançou rapidamente para a frente do auditório e desapareceu nos bastidores, enquanto alguém que se encontrava ao pé da porta manejava
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em vão uns interruptores; mas as lâmpadas incandescentes protegidas nos esconsos de vidro fosco não se acenderam.
Ouviram-se uns quantos resmungos de protesto, até que o agente Linnet - que, naturalmente, viera assistir ao espectáculo à paisana avançou também para a frente das cadeiras
e ergueu um braço a pedir a atenção de todos. Tinha na mão uma segunda lanterna, com que iluminou a própria face de baixo para cima, um gesto que lhe deu uma aparência cadavérica
e assustadora.
- Por favor, obedeçam ao senhor inspector - disse ao público. - Neste momento, é ele que comanda as operações.
Reparei que o doutor Darby já tinha começado a abrir caminho por entre as pessoas que enchiam a coxia lateral, a fim de conseguir alcançar o palco.
Olhei para Nialla, que parecia estar pregada ao chão; não tinha mexido um músculo que fosse. Tinha o chapéu alto de Mãe Gansa posto de esguelha e, se a situação não fosse
aquela, é muito provável que eu me tivesse rido do aspecto da Mãe Gansa.
A minha primeira reacção foi, evidentemente, aproximar-me dela, mas percebi que estava impedida de o fazer por uma das mãos do pai, que me apertava um braço.
Quando o corpo de Rupert embatera no palco, tanto Daffy como Feely se tinham levantado de um salto. O pai continuava a mandá-las sentar com gestos enérgicos, mas elas estavam
demasiado excitadas para conseguirem prestar-lhe atenção.
O inspector voltou a aparecer na porta que ficava à esquerda do palco. Havia duas portas, uma de cada lado do palco, cada uma das quais ia dar a uma saída e a um curto lanço
de escadas, pelo qual se chegava ao palco. Era nestes galinheiros que os anjinhos costumavam reunir-se, muito excitados, no auto de Natal que todos os anos se representava
em São Tancredo.
- Agente Linnet, quer emprestar-me a sua lanterna, por favor?
O agente Linnet estendeu-lhe a dita, que parecia ser aquele género de lanternas com que, nos filmes, os heróis iluminam os pântanos, à procura de qualquer coisa. Devia tê-la
trazido para alumiar o caminho de regresso a casa pelas veredas, não lhe tendo ocorrido que acabaria por lhe dar tanto jeito.
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- Queiram prestar-me atenção, por favor - disse o inspector Hewitt. - Estamos a fazer todos os possíveis por restabelecer a energia eléctrica, mas é natural que ainda levemos
algum tempo a resolver este assunto. Por razões de segurança, poderá ser necessário ligar e desligar a corrente várias vezes. Peço-lhes que voltem a sentar-se e que se deixem
estar sentados até ser possível dar-lhes outras instruções. Não há motivo absolutamente nenhum para alarme, de maneira que lhes peço que estejam calmos.
A seguir, dirigiu-se ao agente Linnet, a quem disse baixinho:
- Tape o palco. O estandarte ali do varandim serve perfeitamente para o efeito. - E apontou para uma comprida tira de lona que estava suspensa sobre a parte da frente do varandim,
por cima da porta principal. No estandarte lia-se: "Instituto Feminino de São Tancredo", ao lado de uma cruz de São Jorge, encarnada e branca. "Cem anos de serviço 1850-1950".
- A seguir - prosseguiu o inspector -, vá telefonar a Graves e a Woolmer. Dê-lhes cumprimentos meus e peça-lhes que venham até cá assim que puderem.
- O sábado é o dia em que eles vão jogar críquete, senhor inspector - lembrou o agente Linnet.
- Pois é. Nesse caso, dê-lhes cumprimentos e pêsames da minha parte. O senhor vigário não se importa que o agente faça umas chamadas, pois não?
- Oh, meu Deus! - respondeu o vigário, olhando em torno do salão paroquial com ar espantado. - Nós temos telefone, claro que sim... é usado pelas senhoras da Paróquia e pelas
do Instituto Feminino... Mas a verdade é que o temos fechado à chave num armário da cozinha... não imagina a quantidade de pessoas que quer fazer chamadas para os amigos de
Devon; até houve uma pessoa que quis telefonar para a Escócia!
- E onde tem a chave? - perguntou o inspector Hewitt.
- Entreguei-a a um cavalheiro de Londres, mesmo antes de começar o espectáculo. Ele disse que era da BBC e que precisava de fazer uma chamada urgente. E disse-me que me reembolsava
do valor assim que a operadora central lhe dissesse quanto era. Que coisa estranha, o sujeito desapareceu. Seja como for, pode sempre usar o telefone da casa vicarial - acrescentou.
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O meu primeiro impulso foi oferecer-me para abrir a fechadura com um gancho; mas, antes que eu tivesse oportunidade de dizer fosse o que fosse, o inspector Hewitt abanou a
cabeça.
- Havemos de conseguir retirar as dobradiças sem estragar o armário.
Com um gesto, chamou George Carew, o carpinteiro da aldeia, que se levantou de um pulo.
À excepção de uma ou outra visão pouco nítida da luz da lanterna nos bastidores, estivemos todos sentados no escuro durante o que nos pareceu uma eternidade.
Foi então que, subitamente, as luzes voltaram a acender-se, fazendo-nos pestanejar; depois esfregámos os olhos e observámo-nos uns aos outros com uma certa cara de parvos.
Olhámos para o palco, ao centro do qual Rupert continuava caído, o rosto morto imobilizado numa expressão de surpresa. O corpo seria, dentro de muito pouco tempo, coberto
com o estandarte, de maneira que, se eu quisesse recordar-me da cena para mais tarde pensar nela, tinha de me apressar a tirar uma sequência de fotografias mentais indeléveis.
Já não me restava muito tempo.
Clique!
Os olhos: as pupilas estavam enormemente dilatadas, tanto que tenho a certeza de que, se conseguisse aproximar-me um pouco mais, conseguiria ver-me reflectida na superfície
convexa das mesmas com a mesma nitidez com que Jan van Eyck se encontrava reflectido no espelho do quarto no quadro que fizera da boda dos Arnolfini.
Mas não seria assim por muito mais tempo. As córneas já tinham começado a ficar cobertas com uma película e o branco dos olhos a perder o lustro.
Clique!
O corpo tinha deixado de estremecer. A pele tomara um tom leitoso e azulado. Dava a impressão de ter deixado de sangrar do canto da boca, e o resto de sangue que ainda era
visível parecia ser ligeiramente mais escuro e mais espesso, embora fosse possível que a minha visão da cor estivesse a ser afectada pelas lâmpadas vermelhas, verdes e cor
de âmbar das luzes da ribalta.
Clique!
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Na testa, imediatamente abaixo do cabelo, via-se uma descoloração escura com o tamanho e a forma de uma moeda de cobre. Embora o cabelo ainda estivesse a fumegar, enchendo
a sala daquele odor acre que acompanha a queima da queratina, um aminoácido rico em enxofre, não era isso que justificava o fumo que ainda pairava em redor das lâmpadas. Percebi
que as cortinas e o cenário estavam intactos, pelo que devia ser outra coisa qualquer que continuava a arder nos bastidores. A avaliar pelo cheiro a erva queimada, calculei
que se tratasse de linho; provavelmente de linho indiano.
Clique!
Quando Rupert caíra por ali abaixo, Nialla levantara-se de um salto e avançara para o palco, mas logo a seguir tinha-se detido, suspendendo o percurso. Estranhamente, ninguém
- nem eu - se tinha dirigido a ela, e nesta altura, tantos minutos passados, ela encaminhava-se lentamente para a cozinha, com a cara enterrada nas mãos. Tratar-se-ia de uma
reacção tardia? Ou seria outra coisa qualquer?
O agente Linnet avançou a passos largos para a dianteira do auditório, com o estandarte enrolado debaixo do braço e o enorme punhal com que tinha cortado as cordas que o prendiam
ainda na mão. Ele e o vigário trataram de estender rapidamente a lona entre dois postes, bloqueando-nos assim a visão do morto.
Bem, eu presumi que Rupert estivesse morto. O inspector Hewitt teria com certeza verificado se havia ainda sinais de vida quando se dirigira aos bastidores, e não tinha chamado
uma ambulância. Tanto quanto me parecia, ninguém tinha ainda tentado proceder a uma ressurreição. A bem dizer, nenhum dos presentes se mostrava particularmente interessado
em tocar no corpo. O próprio doutor Darby não tinha propriamente avançado a galope para o salvar.
Tudo isto se passou em muito menos tempo do que leva a contá-lo, evidentemente; na realidade, não deve ter demorado mais do que cinco minutos.
Em seguida, e tal como o inspector salientara que podia acontecer, voltou a faltar a luz.
Inicialmente, tivemos a sensação de mergulhar naquilo que Dafíy descreveria como uma "escuridão estígica" e a senhora Mullet como "uma noite de cegos". Já agora, a senhora
Mullet encontrava-se exactamente
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na mesma posição em que estivera desde o início do espectáculo: parecia uma figura de cera, com um meio sorriso no rosto. Calculei que tivesse continuado a sorrir com aquela
expressão simplória na escuridão.
Tratava-se daquele género de escuro em que temos inicialmente a sensação de que os nossos sentidos ficam paralisados.
Mas depois compreendemos que as coisas não são afinal tão negras como parecem, nem tão silenciosas. Por exemplo, as cortinas pretas, já muito puídas, que tinham sido usadas
para tapar as janelas durante a guerra, deixavam entrar pequenos pontos de luz; e, embora o dia estivesse a declinar rapidamente, tal bastava para gerar uma vaga impressão
dos contornos amplos do salão.
De trás das cortinas, chegou até nós o som de passos, e o estandarte, que tinha sido afixado diante do palco das marionetas, foi subitamente iluminado por trás por um rasgo
de luz amarela proveniente de uma forte lanterna.
E assim se iniciou um sinistro teatro de sombras. Vimos a silhueta do doutor Darby debruçar-se sobre o corpo para lhe tocar, certamente à procura de sinais de vida. Eu podia
ter-lhe poupado a maçada.
A sombra abanou a cabeça, e o público soltou um enorme suspiro. Pareceu-me evidente que, declarada a morte de Rupert, o inspector Hewitt não havia de querer que se tocasse
fosse no que fosse enquanto o sargento Woolmer não chegasse de Hinley com a máquina fotográfica.
Entretanto, a tia Felicity mexia na carteira, à procura de mais rebuçados, e eu ouvi-a a respirar sonoramente pelo nariz. À minha esquerda, Daffy sussurrava qualquer coisa
a Feely, mas como o pai estava sentado entre elas e eu e pigarreava a intervalos regulares - como é seu costume quando se sente nervoso ou incomodado -, não consegui perceber
o que ela estava a dizer.
Após o que nos pareceu outra eternidade, as luzes voltaram a acender-se de repente, ficando nós todos novamente a pestanejar.
A senhora Mullet limpava os olhos com um lencinho; tremiam-lhe os ombros, e eu percebi que estava a chorar em silêncio. Dogger também reparou nisso e ofereceu-lhe um braço,
que ela tomou sem levantar os olhos, deixando-se conduzir para a cozinha.
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Menos de um minuto depois, já ele estava novamente ao pé de nós.
- Ela sente-se mais à vontade no meio dos tachos e das panelas sussurrou-me quando voltou a tomar o seu lugar.
Um enorme clarão varreu a parede do salão, despindo-o por completo de cor durante breves instantes; todos nos voltámos, apercebendo-nos de que o sargento Woolmer tinha chegado.
O sargento montara o tripé na varanda, poisando sobre ele a volumosa máquina fotográfica, e acabava de nos tirar uma fotografia a todos. Quando surgiu um segundo clarão, ocorreu-me
que, nesta segunda fotografia, só ficaria gravado um mar de caras voltadas para cima. Talvez fosse precisamente isso que ele queria.
- Por favor, tenho uma coisa para lhes dizer.
O inspector Hewitt tinha aparecido de trás das cortinas pretas e estava neste momento de pé a meio do palco.
- Lamento muito ter de lhes comunicar que ocorreu um lamentável incidente e que o senhor Porson morreu.
Embora o facto fosse já evidente para todos os presentes, a respectiva confirmação suscitou entre o público uma onda de sussurros excitados, gritinhos e exclamações abafadas.
O inspector aguardou pacientemente que as vozes se calassem.
- Lamento imenso, mas vou ter de lhes pedir que se deixem estar no vosso lugar mais algum tempo, para recolhermos o nome e a morada de todos, para além de um breve depoimento.
Será um processo algo demorado, razão pela qual tenho de lhes pedir desculpas. Depois de terem sido entrevistados, podem ir-se embora, mas é natural que, posteriormente, queiramos
voltar a falar com algumas pessoas. Obrigado pela vossa atenção.
Fez um sinal a uma pessoa que se encontrava atrás de mim, e eu percebi que se tratava do sargento Graves. Perguntei a mim própria se ele se recordaria de mim. Tinha-o conhecido
em Buckshaw, durante a investigação que se seguira à morte de Horace Bonepenny, um antigo colega de escola do pai. Não tirei os olhos dele enquanto descia o corredor central
do salão, e finalmente fui recompensada com um ligeiríssimo, mas inconfundível, sorriso.
- Miúdos! - exclamou a tia Felicity. - A polícia anda a recrutar nos berçários de Inglaterra!
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- Mas ele tem imensa experiência - sussurrei eu. - Já é sargento. É detective!
- Disparates! - replicou ela, metendo a mão na carteira à procura de mais um rebuçado.
Dado que o cadáver nos tinha sido ocultado, não me restava senão observar as pessoas que me rodeavam.
Dieter olhava atentamente para Feely. Embora estivesse sentado ao lado de Sally Straw - cujo rosto era a imagem viva de uma petulante nuvem de trovoada -, olhava para o perfil
da minha irmã como se o cabelo dela fosse um altar de ouro martelado.
Daffy também tinha reparado nisso. Ao ver o meu olhar de espanto, debruçou-se sobre mim, passando pela frente do pai, e murmurou:
- A expressão de que tu estás à procura é: fascínio reverente. Depois voltou a endireitar-se, mantendo-se fiel à sua decisão de
não falar comigo.
O pai não nos prestava atenção. Já se tinha refugiado no seu mundo, o mundo das tintas de cor e das perfurações por polegada; o mundo dos álbuns e da goma-arábica; o mundo
em que Sua Majestade, o Rei Jorge VI, se encontrava firmemente instalado, quer no trono da Grã-Bretanha, quer nos selos postais da mesma Grã-Bretanha; um mundo em que nem
a tristeza, nem a realidade, tinham lugar.
Finalmente, as entrevistas começaram. O inspector Hewitt e o sargento Woolmer instalaram-se num dos lados da sala; o sargento Graves e o agente Linnet ocuparam o outro lado.
Era um processo lento e cansativo, mas inevitável. O tempo pesava-nos nas mãos - ou, para ser mais precisa, no traseiro. Até a tia Felicity se remexia, inquieta, no seu amplíssimo
assento.
- Podem levantar-se para esticar as pernas - disse o inspector Hewitt a determinada altura -, mas por favor não se afastem do vosso lugar.
Deve ter sido aproximadamente uma hora depois que chegou a nossa vez, mas a mim pareceu-me muito mais do que isso. O pai foi o primeiro a dirigir-se ao canto da sala onde
tinha sido colocada uma mesa simples de madeira com duas cadeiras. Não consegui ouvir o que o inspector lhe perguntou, como também não consegui ouvir as respostas que
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ele deu - que me pareceram consistir essencialmente em abanar a cabeça, a dizer que não.
Ainda recentemente o inspector Hewitt tinha acusado o pai de assassinar Horace Bonnepenny e, embora nunca o tivesse dito, a verdade é que o pai ainda sentia alguma frieza
para com este agente da autoridade. Voltou rapidamente para junto de nós, e eu esperei pacientemente que a tia Felicity, depois Feely, depois Daffy, fossem conversar discretamente
com o inspector.
A medida que cada uma delas ia regressando ao lugar, eu tentava captar-lhes o olhar, ter alguma ideia daquilo que lhes tinham perguntado e daquilo que elas tinham respondido,
mas não tive sorte nenhuma. Tanto Feely como Daffy ostentavam a expressão beata que afivelam depois da Sagrada Comunhão, os olhos baixos e as mãos sobrepostas diante da cintura,
numa atitude de humildade fingida. Também o pai e a tia Felicity se mostraram imperscrutáveis.
O mesmo se não passou com Dogger.
Embora se tivesse portado à altura durante o questionário do inspector, reparei que voltava para o lugar como quem anda sobre uma corda esticada por cima de um abismo. Tinha-lhe
aparecido uma contracção ao canto de um dos olhos, e estava com aquela expressão tensa, embora vaga, que invariavelmente anunciava um dos seus ataques. O que quer que lhe
tivesse acontecido durante a guerra, o certo é que Dogger se tornara incapaz de se confrontar directamente com interrogatórios ou outros contactos do mesmo género com as autoridades.
Queria lá saber das consequências! Levantei-me e ajoelhei-me diante dele. E, embora tivesse olhado de relance para nós, o inspector Hewitt nada fez para me deter.
- Dogger - sussurrei -, viste o mesmo que eu?
Levantei-me e sentei-me de mansinho na cadeira ao lado da dele, que a senhora Mullet deixara vaga; ele olhou para mim como se nunca me tivesse visto, e em seguida, qual pescador
de pérolas que se esforça por voltar à superfície, regressando lentamente das profundezas, entrou de novo no mundo real e acenou lentamente com a cabeça.
- Vi, menina Flavia. Um assassínio. Tenho cá a impressão de que assistimos a um assassínio.
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À medida que se aproximava a minha vez de me dirigir à mesa, fui tomando consciência de que o coração me batia com toda a força no peito. Quem me dera ser um lama tibetano
e ter capacidade de lhe controlar as válvulas.
Porém, antes que eu tivesse tempo para pensar mais no assunto, o inspector Hewitt chamou-me. Aproximei-me da mesa, e ele continuou a arrumar uma pilha de papéis e de impressos
enquanto eu me sentava. Houve um instante de pausa, durante o qual perguntei a mim mesma, ociosamente, de onde teriam vindo os impressos. Deviam ter sido trazidos por Woolmer
e Graves, decidi. O inspector não devia andar com uma maleta de impressos atrás de si para onde quer que fosse
Voltei-me para trás para olhar para Antígona, a mulher dele. Sim, ali estava ela, sentada em silêncio entre os habitantes da terra, radiante apesar da situação.
- É uma mulher muito bonita - sussurrei.
- Obrigado - respondeu ele, sem levantar os olhos dos papéis. Mas eu percebi, pelo ligeiríssimo revirar dos cantos da boca, que tinha ficado satisfeito com o comentário. -
Muito bem, nome e morada.
Nome e morada? O homem estaria a brincar comigo?
- Isso já o senhor inspector sabe - respondi eu.
- Com certeza que sei - replicou ele com um sorriso. - Mas a informação só se torna oficial quando é dita por ti.
- Flavia de Luce. Buckshaw - retorqui com alguma frieza, e ele anotou as informações.
- Obrigado - disse então. - Muito bem, Flavia, a que horas aqui chegaste esta noite?
- Às seis e quarenta - informei eu. - Em ponto. Vim de táxi, com a minha família. Viemos no táxi de Clarence Mundy.
- E não saíste do salão toda a noite?
- Claro que não. Até fui falar consigo, não se lembra?
- Lembro-me. Responde à pergunta, por favor.
- Não.
Tenho de confessar que estava a ficar um bocado irritada com aquela atitude do inspector. Tinha tido a esperança de poder colaborar
com ele, fazendo-lhe uma descrição pormenorizada, minuto a minuto, do horror que tinha tido lugar esta noite - praticamente ao meu colo. Percebi então que ele tencionava tratar-me
como se eu fosse apenas um espectador como os outros, um espectador que, como os outros, tinha ficado de boca aberta perante os acontecimentos.
- Estiveste com o senhor Porson, ou falaste com ele antes do espectáculo?
O que queria ele dizer com aquilo? Eu tinha estado com o senhor Porson e tinha falado com ele em diversas ocasiões no decorrer dos últimos três dias. Tinha conduzido o senhor
Porson à Quinta de Culverhouse e tinha ouvido a discussão que ele tivera com Gordon Ingleby no Bosque de Gibbet. E a tal não se resumia aquilo que eu sabia sobre Rupert Porson;
nem pensar nisso.
- Não - respondi.
Se ele queria brincar, eu estava disposta a brincar com ele.
- Estou a ver - retorquiu ele. - Pronto, obrigado. É tudo. Tinha-me dado xeque-mate.
- Podes ir-te embora - prosseguiu ele, olhando de relance para o relógio. - Já devias ter ido para a cama há muito tempo, calculo eu.
O descaramento do sujeito! Já devia ter ido para a cama há muito tempo! Com quem é que ele julgava que estava a falar?
- Posso fazer uma pergunta?
- Podes - assentiu ele -, embora eu não te garanta que possa responder-lhe.
- Rupert, quer dizer, o senhor Porson, foi electrocutado?
Ele olhou para mim de esguelha, e eu percebi que estava a meditar cuidadosamente na resposta que havia de me dar.
- É possível que sim. Boa noite, Flavia.
O sujeito estava a mandar-me embora. Rupert tinha sido frito que nem um sável, e o inspector sabia tão bem como eu que assim fora.
Continuavam a ver-se clarões nos bastidores quando voltei para junto do pai, que permanecia sentado na primeira fila. Nem Feely nem Daffy se viam em parte nenhuma.
- Mundy já foi levá-las a casa - informou-me ele.
- Eu volto já - declarei, dirigindo-me à casa de banho. Nunca ninguém, em lugar algum do mundo, ou em qualquer momento da
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história, tentou deter uma mulher que se dirigisse à casa de banho.
No derradeiro momento, mudei de direcção e meti-me na cozinha, onde fui encontrar a senhora Mullet a comandar as operações. Tinha feito um enorme bule de chá e colocado uma
chávena fumegante diante de Nialla e outra diante do sargento Woolmer, que estavam sentados a uma mesinha.
Nialla detectou a minha presença antes do sargento e pelos olhos dela passou, muito brevemente, um clarão de animal assustado. Depois fez-me um aceno de cabeça quase imperceptível,
mas cujo sentido era evidente.
Contactos femininos. Eu passei a mão pelo nariz, como quem não quer a coisa, dando-lhe a entender que tinha percebido.
- Obrigado, menina Gilfoyle - dizia o sargento. - Foi-nos muito
útil.
Gilfoyle? Nialla chamava-se Gilfoyle? Era a primeira vez que eu ouvia tal coisa.
O sargento Woolmer engoliu a chávena de um trago, e aparentemente o calor não lhe fez mal nenhum.
- Excelente chá, senhora Mullet - comentou, fechando o bloco-notas. Reuniu os papéis e, lançando-me um simpático aceno de cabeça, voltou para o auditório.
O estômago deste sujeito deve ser uma caldeira de navio, pensei.
- Muito bem, minha querida - disse a senhora Mullet -, como eu estava a dizer, não tem jeito nenhum voltar agora para a Quinta de Culverhouse. Está a chover a cântaros, e
há uma hora que chove assim; o rio há-de estar cheio que nem uma corrente, e é um perigo atravessá-lo. Além disso, não pode agora ir dormir dentro de uma tenda, em cima da
terra encharcada, depois de tudo o que se passou, se bem m'entende. O meu Alf trouxe um guarda-chuva que chega prá gente os três, e a nossa casa é mesmo ali ao fundo da rua.
Ninguém dorme no quarto da nossa Agnes desde que ela saiu de casa para ir aprender estenografia, vai fazer seis anos no próximo dia 13 de Novembro. Alf e eu quisemos que fosse
uma espécie de santuário, compreende? Tem um fogão no quarto e um edredão de penas. E não se ponha a dizer que não, que não estou a ouvir nada.
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De repente os olhos de Nialla encheram-se de lágrimas e eu tenho de confessar que não percebi se eram lágrimas de tristesa.
Daria metade da minha mesada para saber sobre que foi que o pai e Dogger conversaram quando seguiam no banco de trás do automóvel. Tenho de confessar que adormeci. Com o aquecimento
no máximo a contrariar o fluxo da noite de chuva, e o canto suave dos limpa pára brisas na escuridão, não resisti à tentação e adormeci mesmo. Diga-se em em abono da verdade
que nem uma coruja teria conseguido manter os olhos abertos.
Quando o pai me acordou, à porta de Buckshaw, avancei aos tropeços para dentro de casa e foi ao mesmo ritmo que subi as escadas para me ir deitar; estava tão cansada que nem
me incomodei a despir-me.
Devo ter adormecido com os olhos abertos.
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Capítulo 14

O sol entrava-me esplendorosamente pela janela adentro; os passaritos, poisados nos ramos dos carvalhos, cantavam a plenos pulmões. A primeira coisa que me ocorreu foi a cara
de Rupert, os lábios ligeiramente recuados e os dentes à mostra, numa posição obscena.
Voltei-me de costas e fiquei a olhar para o tecto. Não há como um cenário de brancura total para a pessoa esclarecer os pensamentos; ajuda muito a concentrar.
Decidi então que, na morte, Rupert se tinha parecido muito com um cão morto em que eu quase tinha tropeçado certa vez nas traseiras do Treze Patos Marrecos; os olhos fixos
e cheios de névoa, os dentes amarelados à vista numa careta imobilizada, eram os mesmos num e noutro (ainda que, à volta de Rupert, não se vissem moscas a esvoaçar e os dentes
dele fossem, na verdade, bastante apresentáveis).
O cão fazia-me lembrar qualquer coisa - mas o que seria?
Claro! Mutt Wilmott! O Treze Patos Marrecos! Mutt Wilmott devia estar alojado no Treze Patos Marrecos!
A acreditar nas palavras da senhora Mullet, tinha começado a chover logo após o início do espectáculo da noite. Mutt tinha estado no salão paroquial por volta, digamos, das
seis e quarenta, seis e quarenta e cinco - eu própria o tinha visto. Dificilmente teria regressado a Londres debaixo de semelhante chuvada. Não, se ele tencionasse ir-se embora,
teria partido antes de começar o espectáculo. Parecia-me óbvio que ainda tinha algumas coisas a resolver com Rupert.
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Ergo, estaria neste preciso instante a comer ovos com bacon no Treze Patos Marrecos, que era o único local de Bishop's Lacey onde um forasteiro podia tomar alojamento.
Felizmente, eu estava vestida.
A casa permanecia mergulhada num silêncio de cripta quando desci cuidadosamente a escadaria leste. A excitação da noite passada tinha esgotado as energias de toda a gente,
e eu presumi que ainda estivessem a ressonar nos respectivos quartos, qual bando de vampiros convalescentes.
Quando, porém, me preparava para sair de casa pela porta da cozinha, detive-me subitamente. No banquito de madeira que havia ao lado da porta, metido entre duas garrafas cheias
de leite que nos tinham deixado à porta ao amanhecer, estava um embrulho.
Era um embrulho de um lilás repugnante, com dois rebordos salientes, um em cima, outro em baixo. Estava metido dentro de um celofane transparente, que o protegera da chuva
da noite anterior. Na tampa, em letras douradas, tinha as seguintes palavras: Chocolates Milady - Sortido Rico - lkg selecção Duquesa. Uma fita de um cor-de-rosa-pálido cobria
a caixa no sentido do comprimento. Ainda tinha a etiqueta colada, da mesma maneira que o Chapeleiro Louco nunca perdia o chapéu: 10/6.
Eu já tinha visto esta caixa de chocolates. Na verdade, tinha visto esta caixa dois dias antes, na montra da loja da menina Cool, que era simultaneamente posto dos correios
e confeitaria. A loja ficava na rua principal, e a montra estava cheia de marcas de mosca; e esta caixa de chocolates jazia na referida montra desde tempos imemoriais - talvez
desde a guerra, ou mesmo desde antes da guerra. E percebi imediatamente como tinha ido parar a Buckshaw: pela mão de Ned Cropper.
Ned ganhava sete libras por semana como moço de recados do Tully Stoker, o proprietário do Treze Patos Marrecos, e era um dos jovens das redondezas que estava apaixonado pela
minha irmã Ophelia. Embora tivesse convidado Mary, a filha de Tully, para ir com ele ao espectáculo da noite anterior, tal compromisso não o impedira de ir deixar aquele penhor
nocturno do seu amor à porta de nossa casa, como um gato larga um rato aos pés do dono que adora.
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Os chocolates eram tão velhos que deviam estar cheios a abarrotar de todo o género de bolores interessantes; infelizmente, eu não tinha tempo para proceder a essa investigação.
Voltei a entrar na cozinha com relutância e meti a caixa de chocolates no compartimento superior da geleira. Trataria de Feely noutra ocasião.
Ned!
Atirei-lhe com um sorriso e um daqueles acenos de mão com os dedos generosamente abertos, como fazem os membros da família real. Ned estava empoleirado no alto do telhado
do Treze Patos Marrecos
- e o telhado era bastante íngreme -, de mangas arregaçadas; o cabelo, coberto de brilhantina, parecia uma meda de feno molhada. Apertava entre os pés uma panela de lareira
cheia de pez quente, da qual tirava grandes quantidades com um pincel, passando-o depois sobre as telhas, que tinham aspecto de estar ali desde que Alfredo, o Grande, tinha
deixado queimar os bolos (1).
- Vem cá abaixo! - gritei.
- Não posso, Flavia. Temos um buraco na cozinha. Tully quer isto terminado antes de o inspector aparecer por aí. E já me disse que ele deve aparecer bem cedinho. Pelo menos
ele está a contar que seja bem cedo - acrescentou.
- Tenho de falar contigo - insisti eu, naquele sussurro fingido que os actores usam no palco, porque têm de se fazer ouvir pelo público.
- E não é coisa que me ponha a berrar para o alto de um telhado.
- Nesse caso, sobe cá acima - retorquiu ele, apontando para uma escada de mão que estava encostada ao muro. - Mas tem cuidado.
A escada era tão velha como a estalagem, ou pelo menos foi o que me pareceu, e estremeceu e oscilou horrivelmente quando subi por ela.
(1) De acordo com uma lenda de origem medieval, Alfredo, o Grande (849-899), rei dos Saxões, ter-se-á a certa altura refugiado em casa de uma camponesa que, ignorando quem
era aquele homem, o encarregou de vigiar uns bolos que pusera no forno. Ocupado com os problemas do reino, Alfredo deixou queimar os bolos, pelo que a camponesa lhe pregou
um raspanete. (N. da T.)
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Tive a impressão de que a subida nunca mais acabava, e tentei não olhar nunca para o chão.
- Queres dizer-me alguma coisa sobre a noite passada, não queres? - perguntou Ned quando me aproximei dele.
Bolas e rebolas! Se eu era tão transparente, que até um sujeito como Ned percebia perfeitamente ao que eu andava, o melhor era deixar o assunto nas mãos da polícia.
- Não - repliquei. - Para dizer a verdade, não é nada disso, senhor Espertalhão. Houve uma pessoa que me pediu que te agradecesse o simpático presente que deixaste à porta
de nossa casa.
- A sério? - perguntou ele e as feições abriram-se-lhe num clássico sorriso de idiota de aldeia. Se a Associação de Folclore o visse, punha-o diante de uma máquina de filmar
antes de qualquer de nós conseguir dar três voltas ao contrário e cuspir contra o vento.
- Ela fazia tenções de vir agradecer-te pessoalmente, mas tem um pai malvado, que a prendeu numa torre e a alimenta a pedaços de cotão e restos da mesa de onde ele come.
- Humm - resmungou ele. - Ontem à noite não me pareceu assim tão faminta.
Uma sombra cobriu-lhe as feições, como se tivesse acabado de se recordar do que se tinha passado.
- Que coisa tão triste, o que aconteceu ao bonecreiro - comentou. - Tive imensa pena dele.
- Ainda bem que tiveste, Ned, porque ele não tinha assim muitos amigos, sabias? Fazias bem em dar os pêsames ao senhor Wilmott. Disseram-me que ele está alojado aqui no Três
Patos Marrecos.
Era mentira, mas era uma mentira bem-intencionada.
- Ai está? Não faço ideia. A única coisa que eu sei é "Telhado! Telhado! Telhado!". Parece o som de um pato a nadar num charco, não parece? "Telhado! Telhado! Telhado!"
Abanei a cabeça e comecei a descer aquele dispositivo instável a que ele tinha chamado escada de mão.
- Olha para ti! - exclamou Ned. - Estás toda coberta de alcatrão!
- Pareço um telhado - repliquei eu, baixando os olhos para o vestido e para as mãos, que estavam ambos nojentos. Ned soltou uma grande gargalhada, e eu consegui corresponder-lhe
com um risinho patético.
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A minha vontade era dá-lo a comer aos porcos. - Isso não sai, sabias? Hás-de ser velhinha e andar com isso colado ao corpo.
Perguntei a mim própria onde teria ele ido buscar aquela rústica informação popular; devia ter sido Tully a dizer-lho. É que eu sabia que, na década de 1820, Michael Faraday
tinha sintetizado tetracloroeteno, aquecendo hexacloroetano e libertando o cloro à medida que este se ia decompondo. O solvente daqui resultante tiraria alcatrão de um tecido
sem dificuldades de maior. Infelizmente - e por muito que me agradasse fazê-lo -, eu não tinha tempo para repetir a descoberta de Faraday. Teria, pois, de recorrer à tradicional
maionese, o produto recomendado num vademecum para donas de casa e mordomos que eu tinha descoberto em certo dia de chuva em que tinha andado a espiolhar o conteúdo da despensa
de Buckshaw.
- Talvez Mary saiba. Ela anda por aí?
Não me atrevia a entrar pela casa dentro para perguntar a Tully se o homem estava lá hospedado. Para dizer a verdade e toda a verdade, tinha medo de Tully, embora não seja
capaz de dizer exactamente porquê.
- Mary? Mary foi levar a roupa da semana à lavandaria, e depois o mais provável é ter-se posto a andar para a igreja.
A igreja! Barrada com manteiga dos pés à cabeça, era o que eu merecia ser! Tinha-me esquecido por completo de que era domingo. O pai devia estar a ficar verde!
- Obrigada, Ned - gritei cá de baixo, puxando a Gladys do apoio de bicicletas. - Até um dia destes.
- Se não for antes - respondeu ele com uma gargalhada, e recomeçou a trabalhar. Parecia um Pai Natal!
Tal como eu receara, o pai estava à porta de nossa casa, e olhou ostensivamente para o relógio quando eu travei a Gladys diante dele com uma curva suave.
- Desculpe! - pedi-lhe. Ele nem sequer se incomodou a perguntar de onde é que eu vinha.
157
Entrei em casa e atravessei o átrio a ritmo de voo. Daffy estava sentada a meio da escadaria ocidental, com um livro aberto no colo. Feely ainda não tinha descido.
Ataquei a escadaria oriental em direcção ao meu quarto, vesti o vestido dos domingos qual actriz que muda de roupa entre duas cenas, esfreguei a cara com um pano e dois minutos
depois - a contar pelo relógio e à excepção de uns vestígios de alcatrão na ponta dos rabichos estava pronta para ir para a igreja.
Foi então que me lembrei dos chocolates. Era melhor ir buscá-los antes de a senhora Mullet começar a cozinhar os horrendos gelados que ela fazia ao domingo. Caso contrário,
teria de responder a um batalhão de perguntas indiscretas.
Desci as escadas das traseiras em bicos de pés e, antes de entrar na cozinha, espreitei cuidadosamente lá para dentro. Estava uma mistela qualquer a começar a ferver em cima
do fogão, mas não se via ninguém.
Fui buscar os chocolates à geleira e regressei ao meu quarto num abrir e fechar de olhos.
Ao abrir a porta do laboratório, os meus olhos foram poisar num vidro que brilhava intensamente, reflectindo um caprichoso raio de Sol que entrava pela janela. O vidro era
uma encantadora maquineta, chamada aparelho de Kipp, e constituía uma das esplêndidas peças de vidro de laboratório vitoriano do tio Tar.
"Uma coisa bela é uma alegria eterna", tinha escrito o poeta Keats; pelo menos fora assim que Daffy mo citara. E não havia dúvida absolutamente nenhuma de que Keats tinha
escrito esse verso a contemplar um aparelho de Kipp, que era um dispositivo destinado a extrair o gás resultante de uma reacção química.
O aparelho era essencialmente constituído por duas bolas de vidro transparente, montadas uma por cima da outra, com um tubo de vidro em U, rolhado, projectado do globo superior,
e um tubo de escape com uma torneira de passagem em vidro a sair do globo inferior.
Concebi o plano em menos de dois segundos - e esta rapidez era um sinal seguro de inspiração divina. Mas tinha apenas dois minutos para o levar à prática, antes de o pai me
entrar violentamente pelo laboratório adentro e me arrastar pelas escadas abaixo.
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Primeiro, tirei de uma gaveta uma lâmina antiga do pai, que lhe tinha surripiado por ocasião de uma experiência anterior. Cortei cuidadosamente a fita já muito gasta que envolvia
a caixa de chocolates, virei-a ao contrário e fiz uma cuidadosa e precisa incisão no celofane, por debaixo do local onde poisava a fita. Bastou-me depois um cortezinho no
fundo e em cada um dos lados para conseguir que o celofane se abrisse qual concha de ostra. Voltar a pô-lo no sítio seria uma brincadeira de crianças.
Em seguida, abri cuidadosamente a tampa da caixa e espreitei lá para dentro.
Excelente! Os chocolates pareciam estar em óptimas condições. Eu tinha desconfiado de que a idade tivesse cobrado o seu preço, e de que a abertura da caixa me viesse a proporcionar
uma visão semelhante à que tivera certa vez no cemitério, quando o coveiro, o senhor Haskins, ao abrir uma cova, tinha ido embater noutra cova, já ocupada.
Ocorreu-me então que, tendo estado hermeticamente fechados - e já para não falar dos conservantes que, muito provavelmente, lhes teriam sido acrescentados -, os chocolates
haviam de parecer frescos a olho nu. Estava cheia de sorte.
O método que escolhi era o ideal porque funcionava à temperatura ambiente. Embora houvesse outros procedimentos que poderiam ter tido o mesmo resultado, por mim escolhi o
seguinte: despejei uma certa quantidade de sulfureto de ferro no balão inferior do aparelho de Kipp, após o que verti cuidadosamente ácido sulfúrico diluído no balão superior,
recorrendo a uma vareta de vidro para conduzir o líquido para o vaso desejado.
Fiquei a ver a reacção ocorrer no recipiente de baixo: aquele gorgolejar magnífico que tem invariavelmente lugar quando alguma coisa que tenha enxofre - por exemplo, o corpo
humano - entra em decomposição. Quando me pareceu que a reacção estava completa, abri a válvula de baixo e deixei sair o gás para um balão com uma tampa de borracha.
Seguia-se a parte de que eu mais gostava: fui à gaveta da secretária do tio Tar buscar uma grande seringa de vidro forrada a metal (muitas vezes me perguntara se, tal como
Sherlock Holmes, também ele usaria esta seringa para se injectar com uma solução de cocaína a 7%), meti a agulha pela tampa de borracha, carreguei no êmbolo e voltei a puxá-lo
para cima.
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Tinha em meu poder uma agulha cheia de sulfureto de hidrogénio em estado gasoso. Só me faltava um passo para concluir a tarefa.
Metendo a agulha pela tampa de borracha de um tubo de ensaio, empurrei o êmbolo com os dois polegares, e com quanta força tinha. Bastavam 14 unidades de pressão atmosférica
para precipitar o gás e transformá-lo em líquido, e resultou à primeira - eu sabia que resultava.
Tinha agora em meu poder um tubo de ensaio com sulfureto de hidrogénio puro em estado líquido. Restava-me fazer recuar novamente o êmbolo, e vê-lo subir uma vez mais no vidro
da seringa.
Injectei cuidadosamente em cada chocolate uma ou duas gotas daquele produto, tocando no ponto de injecção com a vareta de vidro (ligeiramente aquecida no bico de Bunsen),
para alisar o orifício.
O procedimento tinha sido realizado com tal limpeza que só me chegava às narinas um vaguíssimo cheiro a ovos podres. Bem aconchegado no centro cremoso dos chocolates, o sulfureto
de hidrogénio ali permaneceria discreto, invisível, insuspeito, até Feely...
- Flavia!
Era o pai, a gritar de lá de baixo da entrada.
- Vou já! - respondi eu no mesmo tom. - Desço imediatamente. Voltei a pôr a tampa na caixa, depois o invólucro de celofane,
dando-lhe duas rápidas pinceladas de goma na base para fixar a zona da incisão, aliás quase invisível. Em seguida, apliquei a fita.
Desci calmamente a escadaria em curva, tentando desesperadamente mostrar-me composta e reservada, e fui encontrar toda a família reunida na entrada, à minha espera.
- Calculo que sejam para ti - disse, estendo a caixa a Feely. - Deixaram-nos à porta de casa hoje de manhã.
Ela corou ligeiramente.
- Tenho de confessar uma coisa - prossegui, e todos os olhos se voltaram imediatamente para mim: os do pai, os da tia Felicity, os de Feely, os de Daffy, até os do próprio
Dogger. - Tive a tentação de ficar com eles - revelei, baixando os olhos -, mas é domingo e eu ando realmente a tentar portar-me melhor.
Duas mãos ansiosas estenderam-se na minha direcção: Feely mordeu o isco como um tubarão faminto morde o pé de um nadador.
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Capítulo 15

Com o pai e a tia Felicity na dianteira e Dogger à retaguarda, de chapéu de coco preto na cabeça, avançámos, como de costume, pelos campos fora, qual família de patos dirigindo-se
a um lago. Os campos verdes por onde seguíamos - clássicos e veneráveis à luz da manhã pareciam uma tela de Constable e eu não teria ficado minimamente admirada se viesse
a descobrir que, na realidade, nós éramos umas figurinhas minúsculas que ocupavam o pano de fundo de um dos quadros dele, como A carroça de feno ou Deãham Vale.
O dia estava lindo. Prismas luminosos de orvalho luziam como diamantes sobre as ervas, embora eu soubesse que, com o passar do dia, seriam vaporizados pelo sol.
Vaporizados pelo sol! E não era isso que o universo tinha reservado para todos nós? Chegaria o momento em que o Sol explodiria como um balão, e em que todos os habitantes
da terra ficariam reduzidos a carbono em segundos. Era justamente isso que o Génesis dizia: "Pois tu és pó e ao pó voltarás", uma afirmação que era muito mais do que teologia
básica, pois tratava-se de uma observação científica de enorme precisão! O carbono era o Grande Nivelador - o Sinistro Ceifeiro.
Os diamantes mais não eram do que carbono, mas o carbono é uma grade de cristal, o que faz com que seja o mais duro de todos os minerais da natureza. E era esse o destino
de todos nós. Disso tinha eu a certeza. Estávamos todos destinados a transformar-nos em diamantes!
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Era realmente fascinante pensar que, muito depois de o mundo ter acabado, o que restasse dos nossos corpos estaria transformado numa deslumbrante chuva de poeira de diamantes.
Para Rupert Porson esse processo já tinha começado.
- Haviland, duvido muito de que haja actividades de culto esta manhã - dizia a tia Felicity. - Não seria nada apropriado, tendo em consideração o que se passou.
- Lissy, tal como o tempo e as marés, também a Igreja de Inglaterra não espera por ninguém - respondeu o pai. - Além disso, o sujeito morreu no salão paroquial, não morreu
propriamente na igreja, por assim dizer.
- Pois, talvez tenhas razão - replicou ela, fungando. - Apesar disso, vou ficar muito aborrecida se tivermos feito esta caminhada em vão.
Mas o pai tinha razão. Quando seguíamos em paralelo ao muro de pedra que contorna o cemitério qual cinto de protecção, avistei a capota do Vauxhall azul do inspector Hewitt
espreitando discretamente no final da viela. O inspector não se via em lado nenhum. A família avançou para o adro e entrou na igreja.
A cerimónia do domingo na nossa igreja tinha a solenidade de uma missa de Requiem. Posso dizê-lo porque nós, os Luce, somos católicos - a bem dizer, somos membros honorários
desse clube -, de maneira que conhecemos bem o cerimonial das vénias e das genuflexões. Mas frequentamos São Tancredo devido à proximidade com a nossa casa, e ao facto de
o vigário ser um dos maiores amigos do pai.
- Além disso - costuma o pai dizer -, é nosso dever relacionarmo-nos com os locais.
Neste dia, a igreja estava cheia até não poder mais. Até a varanda que ficava por debaixo da torre sineira estava a abarrotar de gente da aldeia, que queria estar o mais perto
possível da cena do crime - sem contudo parecer indecorosa.
Nialla não se via em parte nenhuma. Reparei imediatamente nesse pormenor. Como também reparei nas ausências da senhora Mullet e de Alf, o marido dela. Conhecendo eu como conhecia
a nossa governanta, a esta hora devia ela estar a bombardear Nialla com salsichas e perguntas. "Seduzir e interrogar", como lhe chamava Daffy.
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Cynthia já estava ajoelhada à frente, bem ao centro, a rezar aos deuses que queria subornar antes de começar a cerimónia. Era sempre a primeira a ajoelhar-se e a primeira
a levantar-se. A meu ver, era uma espécie de timoneiro espiritual de São Tancredo.
Desta vez, coisa rara, eu estava com uma certa vontade de ouvir o sermão, que seria acerca de uma pessoa que eu conhecera pessoalmente. Calculei que o vigário se preparasse
para pregar sobre o falecimento de Rupert; faria certamente um sermão instrutivo, mas de bom gosto, por exemplo subordinado ao tema "Em plena vida, estamos a caminho da morte",
ou coisa parecida.
Quando, porém, subiu finalmente ao púlpito, o vigário ia estranhamente abatido, um abatimento que não se devia exclusivamente ao facto de Cynthia estar a passar um dedo enluvado
de branco pelo cavalete de madeira onde se viam ainda uns exemplares dos livros de cânticos e dos livros de orações. Na verdade, o vigário não fez qualquer referência ao caso,
a não ser no final do sermão.
- Tendo em consideração as trágicas circunstâncias de ontem à noite - disse em tom solene e sussurrado -, a polícia solicitou-me que o salão paroquial ficasse à disposição
deles até estar concluída a investigação. Consequentemente, os momentos de convívio que habitualmente se seguem terão hoje lugar, excepcionalmente, na casa vicarial. Aqueles
que quiserem estão cordialmente convidados a vir tomar qualquer coisa depois da cerimónia. E agora, que Deus Pai, Deus Filho e Deus Espírito Santo...
E foi tudo! Não houve pensamento algum para "o desconhecido que temos entre nós", como tinha havido quando Horace Bonnepenny fora assassinado em Buckshaw. Não houve meditação
sobre a imortalidade da alma - nada de nada!
Para dizer a verdade, senti-me ludibriada.
Nunca se consegue, pelo menos em São Tancredo, sair da igreja para a luz do Sol como a rolha sai de uma garrafa. A pessoa tem sempre de parar à porta a cumprimentar o vigário,
fazendo o obrigatório comentário sobre o sermão, sobre o tempo ou sobre as colheitas.
O pai optou pelo sermão, Daffy e Feely optaram ambas pelo tempo - as porcas! -, tendo Daffy comentado que estava um dia incrivelmente limpo e Feely que estava bastante calor.
Assim sendo, eu fiquei sem
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grandes alternativas e, com o vigário já a apertar-me a mão, tive de me desenvencilhar.
- Como está Meg a dar-se? - perguntei. Para dizer a verdade, tinha-me esquecido completamente de Meg até àquele preciso momento, em que a pergunta me ocorreu de repente.
O vigário terá empalidecido ligeiramente, ou foi impressão minha?
Vi-o olhar rapidamente para a direita e para a esquerda. Cynthia andava a cirandar no meio das pedras tumulares, já a meio caminho da vereda que ia dar à casa vicarial.
- Infelizmente, não te sei dizer - respondeu. - É que ela...
- Senhor vigário! Tenho uma coisa muito séria a conversar consigo! Era Bunny Spirling. Bunny era um dos Spirling de Nautilus Old
Hall que, dizia o pai, tinha chegado a conde por via de um ducado.
Tendo Bunny a forma de um D maiúsculo, obstruía completamente a passagem, de maneira que o vigário estava neste momento firmemente entalado entre a pronunciada barriga de
Bunny e a armação da porta gótica da igreja. Calculei que a tia Felicity e Dogger ainda estivessem retidos no interior do vestíbulo, na fila dos cumprimentos, quais marinheiros
de um submarino em processo de afundamento que esperam a sua vez na escotilha de fuga.
Enquanto Bunny se entretinha a conversar com o vigário sobre o tal assunto muito sério (que tinha a ver com os dízimos e o escandaloso estado de degradação em que se encontravam
os forros dos genuflexórios), eu percebi que podia pôr-me a andar.
- Que coisa - disse ao pai. - Tenho a impressão de que o senhor vigário não vai conseguir sair dali tão cedo. Eu vou andando para a casa vicarial, para ver se as senhoras
precisam de ajuda a preparar o chá.
Não há pai nenhum neste mundo que tenha coragem de impedir uma filha tão prestável de ir fazer o que tem em mente, de maneira que eu desatei a correr que nem uma lebre.
-'dia! - gritei a Cynthia quando passei por ela a grande velocidade.
Dei um saltinho por cima da zona mais baixa da vedação e contornei a casa vicarial até à porta da frente. A porta estava aberta, e ouviam-se vozes na cozinha, que ficava na
parte de trás da casa. Deviam ser as senhoras do Instituto Feminino, que deviam ter saído da igreja mais cedo para virem pôr a cafeteira ao lume para o chá.
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Detive-me no corredor, à escuta. Tinha muito pouco tempo, mas não podia de maneira nenhuma ser apanhada a bisbilhotar. Lançando um derradeiro olhar ao corredor de linóleo
castanho polido, avancei para o escritório do vigário, entrei e fechei a porta.
Meg tinha desaparecido há que tempos, evidentemente, mas a manta de cores com que o vigário a tinha tapado ontem estava ainda em cima do sofá de crina de cavalo, toda amarrotada,
como se ela tivesse acabado de se levantar e de se ir embora, deixando atrás de si - chamemos-lhe assim - um cheiro a bosque: um odor a folhas húmidas, a terra escura e a
uma higiene pessoal que estava longe de ser imaculada.
Antes, porém, que eu tivesse tempo de me organizar mentalmente, a porta abriu-se para trás.
- O que estás tu aqui a fazer?
Era Cynthia, como não podia deixar de ser, que entrou e fechou cuidadosamente a porta.
- Oh, como está, senhora Richardson? - respondi eu. - Vinha só ver se Meg ainda cá estava. Não era de esperar que estivesse, claro, mas sabe o que é, eu preocupo-me com ela,
e...
Quando a pessoa não sabe o que há-de dizer, a solução é fazer; era um lema e um plano de evasão com que eu sempre me tinha saído bem, de maneira que recorri a ele, na esperança
de, também desta vez, ser bem-sucedida.
Agarrei na manta e comecei a dobrá-la. Ao fazê-lo, senti qualquer coisa cair na carpete, com um ruído que mal se ouviu.
- Achei que podia vir ajudar a arrumar o escritório, e a seguir ir à cozinha ver se me davam alguma coisa que fazer. Diabos! - acrescentei, deixando escapar um canto da manta.
- Oh, desculpe senhora Richardson, sou mesmo maljeitosa com estas coisas. é que lá em Buckshaw não nos deixam fazer nada, compreende, somos mesmo mimadas.
Estendi a manta no chão e, acocorando-me diante dela, comecei novamente a dobrá-la. A coberto dos coloridos quadrados da dita - e ocultando esses gestos com o corpo, para
que Cynthia os não visse -, passei os dedos pela carpete.
E senti imediatamente o objecto, uma coisa lisa, de metal frio, que encostei ao interior da palma da mão, segurando-a com o polegar.
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Enquanto tivesse as mãos em movimento, tudo correria bem. Era assim que trabalhavam os mágicos. Mais tarde, meteria a coisa no bolso.
- Dá-me cá isso - ordenou Cynthia.
Entrei em pânico. Afinal, ela tinha-me apanhado! Vendo-a avançar em direcção a mim, dei início a uma dança frenética, esperneando e esticando os cotovelos como se fossem chuços.
- Oh! - gemi. - Estou a ficar com comichões no corpo todo por causa da manta. Tenho uma alergia horrível à lã.
E comecei a coçar-me furiosamente: braços, costas das mãos, tornozelos... o corpo todo. O importante era não ficar quieta com as mãos.
Quando cheguei ao pescoço, meti a mão por dentro do vestido e larguei o objecto, sentindo-o cair de encontro ao corpo e parar na cintura.
- Dá-me cá isso - repetiu ela, arrancando-me a manta das mãos. Soltei um suspiro de alívio, percebendo que ela não tinha visto o
que eu apanhara do chão. O que ela queria era a manta, que eu lhe entreguei com todo o gosto, continuando a coçar-me durante mais algum tempo, por razões de segurança.
-Vou dar uma ajuda à cozinha - declarei, avançando para a porta.
- Flavia... - começou Cynthia, colocando-se entre mim e a porta e apertando-me o pulso com um gesto rápido.
Eu fitei-lhe aqueles olhos de um azul-pálido, e ela não vacilou. Contudo, nesse preciso momento começaram a ouvir-se gargalhadas no corredor; estavam a chegar os primeiros
paroquianos.
- Há uma coisa que nós, as Luce, sabemos fazer bem - declarei-lhe, rindo-me na cara dela e soltando-me do aperto daquela mão. - Somos excelentes a fazer chá - completei, já
fora da porta.
Fazia tantas tenções de ir fazer chá como de me candidatar a burro de minas.
Mas nem por isso deixei de percorrer o corredor na diagonal, dirigindo-me à cozinha.
- Bom dia, senhora Roberts! Bom dia, menina Roper! Vinha só ver se não lhes faltam chávenas de chá nem colheres.
- Temos que cheguem, obrigada, Flavia - respondeu a senhora Roberts, que se dedicava a estas actividades desde o alvor da humanidade.
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- Mas podes meter os ovos na última prateleira do frigorífico quando fores a sair - acrescentou a senhora Roper. - A senhora dos ovos deve tê-los deixado aqui em cima da bancada
ontem à tarde. Com este tempo, estraga-se tudo, as coisas já não têm a qualidade que tinham noutros tempos. E já agora, querida, podias encher esse jarro de limonada. O senhor
Sterling gosta de beber um belo copo de limonada ao sair da igreja, e é sempre tão generoso quando passa o saco das ofertas que a gente não quer que ele perca o bom humor,
não achas?
Eu pus-me a andar da cozinha sem lhes dar hipótese de me atribuírem novas tarefas. Mais tarde, quando tivessem oportunidade - possivelmente quando estivessem a lavar a louça
-, a senhora Roberts e a senhora Roper haviam de comentar uma com a outra que eu era uma miúda muito querida, muito diferente das minhas irmãs.
O pai estava ainda no adro da igreja, de pé, a ouvir pacientemente Bunny Spirling, que estava a contar-lhe, palavra a palavra, a conversa que tinha tido com o vigário. O pai
acenava ocasionalmente com a cabeça, provavelmente para não se deixar adormecer.
Desviei-me da vereda e avancei para a zona de ervas, onde fingi observar a inscrição de uma pedra tumular já bastante gasta, que parecia um dente amarelo espetado de uma gengiva
verde {Hezekiah Huff 1672-1746. Descanse em paz no Paraíso). Voltando as costas aos conversadores que se encontravam no adro, retirei de dentro do vestido o objecto metálico
que lá tinha deixado cair; tratava-se da bela caixinha de pó-de-arroz em cloisonné, em forma de borboleta, que pertencia a Nialla - o que não foi surpresa nenhuma. Tinha-a
agora na palma da mão, e o metal luzia ao de leve à luz quente do Sol. Meg devia tê-la deixado cair enquanto dormia no sofá do escritório do vigário.
Hei-de devolvê-la a Nialla assim que tiver oportunidade, pensei. Ela há-de gostar de a reaver.
Quando voltei para junto da minha família, vi Daffy empoleirada no muro de pedra do cemitério, com a cabeça enterrada numa obra de Robert Burton, Anatomy of Melancholy, o
seu mais recente entusiasmo. Como é que ela teria conseguido entrar e sair da igreja com aquele volume tão grosso debaixo do braço? Fiquei a matutar na pergunta até ao momento
em que me cheguei suficientemente perto para avistar a cruz
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em folha, muito bem feitinha, que ela tinha colado à capa preta do livro. Mas que grande aldrabona! Excelente ideia, Daffy!
Feely estava debaixo de um carvalho, a rir-se, o cabelo quase a tapar-lhe as feições no seu mais recente penteado, estilo Veronica Lake. Ao lado dela, a bronzear-se de atenções,
estava um deus nórdico alto e louro, que envergava um fato de lã azul. Levei um momento a reconhecer Dieter Schrantz e a perceber que - para minha grande desilusão ele tinha
sido completamente apanhado por Feely, e estava suspenso de cada uma das suas palavrinhas como uma bola de um elástico, acenando com a cabeça como um pica-pau demente, com
um sorriso de imbecil afivelado no rosto.
Nem um nem outro se aperceberam do meu olhar repugnado.
A tia Felicity estava a conversar com uma senhora idosa, que usava uma corneta na orelha, para conseguir ouvir. Pela conversa, dava a impressão de serem velhas amigas.
- Mas não se pode encolher os ombros e cuspir para o chão! - dizia a velhota, encurvando os dedos de unhas encarnadas, de modo que a mão dela mais parecia uma garra. E riram-se
as duas, soltando um cacarejo obsceno.
Entretanto, Dogger estava pacientemente sentado debaixo de um teixo, de olhos fechados, com um leve sorriso nos lábios, o rosto voltado para cima, a receber o sol de Verão.
Parecia mesmo uma daquelas esculturas modernas em bronze, a que chamam Domingo.
Ninguém estava a prestar-me a menor atenção. Eu estava por minha conta.
Diante da porta dupla do alpendre do salão paroquial havia uma corda, da qual estava pendurado um aviso: Não atravessar - Polícia.
E eu obedeci. Mas dirigi-me às traseiras do edifício e entrei por uma das saídas.
Lá dentro estava escuríssimo. Eu sabia que, na extremidade do corredor, ficava a porta que ia dar ao auditório. À minha direita, tinha vários degraus que conduziam ao palco.
Ouvi o ruído surdo de vozes masculinas, mas, embora me esforçasse ao máximo, não consegui perceber o que estavam a dizer. As cortinas pretas de veludo que rodeavam o palco
deviam absorver-lhes as pala-
vras.
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Incapaz de compreender o teor dos murmúrios, e porque não queria arriscar-me a ser apanhada à escuta, subi as escadas batendo de propósito com os pés.
- Bom dia! - gritei. - Alguém quer uma chávena de chá?
O inspector Hewitt estava postado numa poça de luz, a conversar com os sargentos Woolmer e Graves. Quando me viu, avançou imediatamente na minha direcção a grandes passadas,
contornando o teatro de marionetas.
- Tu não podes estar aqui! Não viste os avisos?
- Desculpe - respondi, evitando a pergunta. - Entrei pelas traseiras.
- Não pôs avisos nas traseiras, sargento? - perguntou o inspector
a Graves.
- Peço desculpa, senhor inspector - respondeu o sargento com um sorriso acanhado. - Vou já tratar disso.
- Agora é tarde - replicou o inspector. - Já está o mal feito. O sargento Graves engoliu o sorriso e franziu o sobrolho.
- Lamento muito, senhor inspector - disse. - A culpa é toda minha.
- Bem - retorquiu o inspector -, como estamos quase a acabar, o desastre não foi completo. Mas para a próxima não se esqueça.
- Muito bem, senhor inspector.
- Ora bem - prosseguiu o inspector, voltando-se para mim -, o que estás tu aqui a fazer? E não me venhas com disparates sobre chávenas de chá.
Eu já tinha aprendido que o melhor era ser sincera com o inspector, pelo menos quando se tratava de responder a perguntas directas. A pessoa podia sempre tornar-se útil sem
ter de revelar tudo o que lhe ia na alma, pensei.
- Estava a tirar umas notas sobre alguns aspectos.
Na realidade, não tinha tirado notas nenhumas, mas agora que pensava no assunto, percebi que era boa ideia. Trataria disso esta noite.
- Notas? Mas por que hás-de tu pôr-te a tirar notas?
Não me tendo ocorrido resposta nenhuma a semelhante pergunta, nada respondi. Não podia propriamente dizer-lhe que Dogger achava que tinha sido um assassínio.
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- E agora lamento imenso, mas vou ter de te pedir que te vás embora, Flavia.
Enquanto ele falava, eu olhei em volta, à procura de alguma coisa - fosse o que fosse - a que me agarrar.
E, de repente, vi o que podia ser. E por pouco não gritei de satisfação. O coração encheu-se-me de alegria e só com grande dificuldade deixei de me rir enquanto dizia:
- Edgar Allan Poe! A Carta Roubada).
O inspector olhou para mim como se eu tivesse enlouquecido.
- O senhor inspector conhece a história? - perguntei-lhe. Daffy tinha-no-la lido na noite de consoada.
- Toda a gente conhece - replicou o inspector. - E agora, se me fazes o favor...
- Nesse caso, há-de lembrar-se do local onde a carta estava escondida. Era na prateleira do fogão de sala, mesmo à vista de todos, suspensa de uma fita azul muito suja.
- Evidentemente - confirmou ele, com um breve mas indulgente sorriso.
Eu apontei para o corrimão de madeira do palco do teatro de marionetas, que estava a uns meros 30 centímetros da cabeça dele.
- Desligaram a corrente? - perguntei.
- Nós não somos idiotas, Flavia.
- Nesse caso - indiquei eu, estendendo o braço e quase tocando no objecto -, se calhar podem ir dizer ao senhor vigário que encontraram a mola que ele usa nas calças quando
anda de bicicleta, porque ele tinha-a perdido.
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Capítulo 16

Inicialmente, não era fácil vê-lo, porque o metal pintado de preto era quase invisível contra o pano de fundo da madeira pintada de preto. Se não fosse o borrifo de carbono,
eu tinha-o deixado passar por completo.
Preto sobre preto sobre preto. Estava orgulhosa de mim própria.
A mola da bicicleta estava enfiada numa escora de madeira, como se a escora fosse um tornozelo. Por debaixo dela passava um fio eléctrico, que ligava uma sequência de interruptores
de cavilha instalados no alto do palco aos holofotes de cores da ribalta. Do ponto onde me encontrava, conseguia ver o brilho do fio de cobre, que se tornara visível na secção
de fio eléctrico cujo isolamento tinha sido retirado.
- Valha -me Deus! - exclamou o inspector. - Como é que tu sabes que aquilo é do senhor vigário?
- Por várias razões - respondi-lhe eu, e fui esticando os dedos da mão direita à medida que as enumerava. - Primeiro, porque o ouvi dizer, na quinta-feira à tarde, que tinha
perdido a mola que usa para andar de bicicleta. Segundo, porque sei que a mola não estava ali ontem à tarde antes do espectáculo. Rupert andou a mostrar-me uma série de coisas
antes da sessão da tarde. E, por fim, porque a mola tem as iniciais do senhor vigário gravadas; se se agachar ligeiramente e olhar de esguelha, verá que consegue lê-las: D.
R., Denwyn Richardson. Foi Cynthia que lhas gravou com a ponta de um alfinete, porque ele anda sempre a perder tudo.
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- E tens a certeza de que a mola não estava ali no sábado à tarde?
- Tenho a certeza absoluta. Foi exactamente àquele ponto do corrimão que eu me agarrei quando Rupert me levou lá acima, para me mostrar como funcionava o Galliganto.
- Como? - O inspector olhava para mim com uma expressão de profundo espanto.
- O Galliganto. É o nome do gigante do João e o Pé de Feijão. Venha cá, eu mostro-lhe. Posso trepar lá acima? - perguntei, apontando para a ponte.
- Não devia deixar-te, mas anda lá.
Subi a correr a escada que ia dar ao passadiço situado por detrás do teatro de marionetas, com o inspector mesmo atrás de mim. O Galliganto continuava no seu lugar, aguentando
firme.
- No terceiro acto, quando o João está a derrubar o pé de feijão à machadada, Rupert puxa esta alavanca de ferro e solta o Galliganto. A alavanca tem uma mola, está a ver
aqui?
Seguiu-se um prolongadíssimo silêncio. Depois, o inspector tirou o bloco-notas do bolso e a tampa da esferográfica.
- Muito bem, Flavia - pediu, com um suspiro. - Continua a falar.
- Quando o João está a derrubar o pé de feijão, o gigante desce do céu atrás dele. Mas desta vez não foi o gigante que desceu, claro... Foi Rupert.
- O que significa que Rupert não chegou a manobrar a alavanca. É isso que estás a querer dizer?
- Exactamente! Se ele tivesse manobrado a alavanca, tinha soltado o Galliganto. Mas não manobrou, porque a mola da bicicleta do vigário estava metida na extremidade da alavanca.
Preto sobre preto. Rupert não deve ter reparado nela.
- Valha-me Deus! - exclamou o inspector, apercebendo-se do alcance do que eu estava a dizer. - Mas nesse caso não se tratou...
- ... de um trágico acidente? Não, inspector, não me parece nada que tenha sido um acidente.
Ele assobiou baixinho.
- Está a ver isto aqui? O isolamento deste cabo foi cortado - prossegui eu -, para deixar o fio à mostra; depois, meteram a mola da bicicleta por cima, para tapar. A outra
extremidade da mola da bicicleta está presa à extremidade da alavanca do Galliganto.
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- Fechando o circuito - concluiu o inspector. - É um curto-circuito propositado.
- Exactamente - corroborei eu. - Olhe, vê-se aqui o depósito de carbono, no ponto onde fazia o arco. Está a ver a madeira por baixo? Está ligeiramente chamuscada.
O inspector Hewitt inclinou-se para ver melhor, mas não fez qualquer comentário.
- Dá-me a impressão - prossegui - de que a mola da bicicleta só foi ali posta a seguir ao primeiro espectáculo. De outra maneira, o Galliganto não tinha caído.
- Flavia - ordenou o inspector -, tens de me prometer que não falas sobre este assunto com ninguém. Nem uma palavra. Compreendeste bem?
Fiquei a olhar para ele por momentos, como se me sentisse ofendida com a simples ideia de fazer outra coisa.
- Rupert foi electrocutado, não foi? - perguntei. O inspector acenou com a cabeça.
- O doutor Darby acha que é o mais provável. Dá-nos os resultados da autópsia ao fim do dia.
Dá-nos? Queria dizer que o inspector estava a incluir-me na equipa? Que eu fazia parte do seu grupo de investigadores? Tinha de pensar muito bem no que ia dizer.
- Não direi absolutamente nada - declarei. - Juro por Deus e...
- Obrigado, Flavia - interrompeu ele com firmeza. - Basta que mo prometas. Agora põe-te a andar e deixa-me trabalhar.
Pôr-me a andar? A incrível desfaçatez! O inenarrável descaramento!
Tenho de confessar que saí dali emitindo um ruído muito pouco conveniente.
Tal como eu suspeitava, Feely continuava a namoriscar com Dieter à sombra dos carvalhos.
O pai estava à porta da igreja, com aquela expressão perplexa de uma pessoa que não sabe se há-de correr em socorro de alguém que
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avança involuntariamente para a jaula de um tigre, nem consegue decidir qual dos dois ocupantes da jaula está mais precisado de ser salvo do outro.
- Feely - chamou finalmente -, temos a senhora Mullet à nossa espera.
Senti imediatamente que se me coalhava o estômago. Hoje era domingo, e o domingo era aquele dia em que nós éramos obrigados a engolir, quais gansos de Estrasburgo, uma das
experiências culinárias da senhora Mullet, que eram sempre um fracasso, como fígado de porca recheado, que vinha para a mesa meio cru e era apresentado com o pomposo nome
de Lombo Doce.
- Pai - disse Feely, pegando no touro pelos cornos -, quero apresentar-lhe Dieter Schrantz.
À semelhança dos restantes habitantes de Bishop's Lacey, também o pai sabia, evidentemente, que havia prisioneiros de guerra alemães a trabalhar nas redondezas. Até àquele
momento, nunca tinha estado em situação de ter de conversar com o tipo de pessoas a quem se referia sempre, em conversa na sala de estar de Buckshaw, como O Inimigo.
O pai estendeu a mão a Dieter.
- Muito prazer em conhecê-lo - disse Dieter, e eu percebi que o pai tinha ficado surpreendido com a perfeição do inglês que ele falava. Antes, porém, de ter oportunidade de
reagir, Feely disparou a rajada seguinte.
- Convidei Dieter para vir lanchar connosco - declarou -, e ele aceitou.
- Desde que o senhor ache bem, evidentemente - acrescentou Dieter.
O pai ficou perturbado e, tirando os óculos do bolso do colete, começou a limpar as lentes com um lenço. Felizmente, a tia Felicity aproximou-se a tempo de responder.
- Com certeza que acha bem! - disse. - Haviland nunca foi pessoa de guardar rancores, pois não, Hawie?
O pai olhou em torno de si como se estivesse a sonhar e comentou para a geral:
- Está um tempo interessante.
Eu tirei imediatamente partido desta confusão momentânea.
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- Vão andando que eu já lá vou ter - pedi. - Vou só ali ver se Nialla está bem e sigo imediatamente para casa.
E ninguém ergueu um dedo que fosse para me impedir.
A casinha da senhora Mullet ficava aninhada na extremidade da Rua dos Sapateiros, uma viela rústica e poeirenta que corria a sul da rua principal e que terminava numa vedação
baixa. Era uma casinha amorosa, com malva-rosas e um gato ruivo a dormitar ao sol. O marido, Alf, estava sentado num banco, no pátio, a fazer um assobio de uma vara de salgueiro.
- Ora viva! - disse ele quando me viu ao portão. - E a que se deve o excelente prazer da sua visita?
- Bom dia, senhor Mullet - respondi eu, recorrendo sem esforço à minha pronúncia de classe alta. - Espero que se encontre bem.
- Assim-assim... Uma indigestão que não me larga - retorquiu ele. - Umas vezes, dá-me uns pontapés de canguru, noutras, arde-me como Roma em fogo.
- Lamento imenso que assim seja - repliquei eu, e estava a falar muito a sério. Nós, os Luce, não éramos as únicas vítimas da criatividade culinária da senhora Mullet.
- Tome - disse-me ele, estendendo-me o assobio. - Sopre-1'e aí. Veja se consegue chamar algum duende.
Eu peguei na peçazinha de madeira e levei-a aos lábios.
- Talvez seja melhor não - disse antes de soprar. - Ainda acordo Nialla.
- Ah! - descansou-me ele. - Disso não tenha a menina receio. Ela foi-se embora antes de nascer o Sol.
- Foi-se embora? - Eu estava espantada. Como é que ela podia ter-se ido embora? - Para onde?
- Sabe Deus! - comentou ele, encolhendo os ombros. - Se calhar voltou para a Quinta de Culverhouse; ou se calhar não. Mais do quisso não sei. Agora dê aí um assobio.
Eu fiz-lhe a vontade, produzindo um gemido agudo, estridente e penetrante.
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- Que som fantástico - elogiei, devolvendo-lhe o assobio.
- Fique com ele - ofereceu Alf. - Foi para si que o fiz. Calculei que aparecesse por aí mais cedo ou mais tarde.
- Foi uma grande ideia - disse eu, porque sabia que era isso que ele queria ouvir.
Enquanto regressava a Buckshaw, fui considerando as semelhanças entre a minha vida e a dos múltiplos clérigos dos romances de Anthony Trollope que dão a impressão de gastar
os seus dias a circular do claustro para a casa vicarial e da aldeia para o palácio do bispo, quais escaravelhos pretos correndo apressadamente de um lado para o outro no
interior de um labirinto verde. Eu tinha mergulhado em The Warden durante um dos períodos de leitura obrigatória a que éramos submetidas ao domingo à tarde; semanas mais tarde,
tinham-se-lhe seguido uns fragmentos de Barchester Towers.
Tenho de confessar que, não havendo gente da minha idade nos romances dele, Trollope não me interessava por aí além. E grande parte daqueles clérigos fossilizados do que me
dava vontade era, muito francamente, de vomitar o pequeno-almoço. A personagem com quem me identificava mais era a da senhora Proudie, a tirânica esposa do tímido bispo, que
sabia bem o que queria e que sabia também, quase sempre, o que fazer para o alcançar. Se a senhora Proudie apreciasse venenos, é muito possível que fosse eleita a minha personagem
preferida de toda a história da literatura.
Embora Trollope não referisse especificamente esse pormenor, eu não tinha dúvida nenhuma de que a senhora Proudie tinha crescido numa família com duas irmãs mais velhas, que
a tratavam como se fosse lixo.
Por que era que Ophelia e Daphne tinham tanto desprezo por mim? Seria pelo facto de, segundo elas afirmavam, Harriet me odiar? Teria Harriet saltado para o vazio do alto de
uma montanha do Tibete em estado de "depressão pós-parto"?
Em suma, a questão era a seguinte: teria sido eu a matá-la?
Acharia o pai que eu era responsável pela morte dela?
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O certo é que, com tais pensamentos, o dia se tornou menos luminoso e o meu passeio pelos campos menos animado. Nem a recordação do assassínio de Rupert e respectivas consequências
conseguiu animar-me.
Soprei duas outras vezes no apito de salgueiro, mas o som que dele saía parecia o de um cuco bebé que tinha caído do ninho e chamava tristemente pela mãe. Meti o apito no
bolso e segui caminho.
Precisava de estar sozinha - precisava de tempo para pensar.
Vista dos Portões Mulford, Buckshaw tinha sempre um ar um pouco triste e abandonado, como se lhe faltasse a essência vital. Desta vez, porém, caminhando pela vereda de castanheiros,
tive uma sensação diferente. E percebi imediatamente o que a justificava. Estavam diversas pessoas na zona de cascalho do pátio da frente, uma das quais era o pai, que apontava
para o telhado. Desatei a correr, atravessando o relvado com a velocidade de um atleta em fim de corrida, peito para fora, punhos fechados ao longo do corpo, quais pistões.
Não precisava de me ter incomodado. Quando me aproximei, percebi que era apenas a tia Felicity e Daffy, a um dos lados do pai, com Feely do outro lado.
À direita dela, estava Dieter. E eu não podia acreditar no que os meus olhos viam!
Os olhos de Feely cintilavam, o cabelo brilhava ao sol de Verão, e o sorriso dela era de tal maneira perfeito que até doía. De saia cinzenta e conjunto de casaco e blusa amarelo-canário,
com um dos colares de pérolas de cultura de Harriet em torno do pescoço, estava mais do que vibrante... estava linda! E eu estava capaz de a estrangular.
- Ruskin achava as goteiras de secção quadrada abomináveis - dizia o pai -, mas na verdade estava a brincar. As nossas melhores grés britânicas são uma simples brincadeira,
em comparação com os mármores finos que se vêem na Grécia.
- É bem verdade - concordou Dieter. - Mas não era o vosso Charles Dickens que dizia que a única razão por que os gregos usavam o mármore era pelo facto de absorver a tinta
e a cor? Não obstante, o estilo e o material perdem o significado quando o ornamento é
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colocado debaixo de um pórtico. Pelo menos é o que os arquitectos costumam dizer, na brincadeira.
O pai ficou a pensar naquilo por momentos, esfregando as mãos atrás das costas enquanto observava a fachada da casa.
- Com os diabos! - declarou por fim. - Você é bem capaz de ter razão!
- Ah, Flavia! - disse a tia Felicity, detectando a minha presença. - Por falar em diabos. Gostava de ir pintar, e tu vais ajudar-me. Aprecio imenso o trabalho dos pincéis,
mas detesto as bisnagas, que ficam logo pegajosas, e os farrapos sujos de tinta.
Daffy revirou os olhos e começou a afastar-se lentamente da tia louca, receando, julgo eu, ser chamada a colaborar no empreendimento. Eu cedi o suficiente para lhe fazer uma
pergunta. Há momentos em que a curiosidade supera o próprio orgulho.
- O que está ele aqui a fazer? - perguntei, inclinando ligeiramente a cabeça na direcção de Dieter.
Eu já sabia, evidentemente, mas era uma oportunidade única de ter uma conversa de irmã para irmã, sem rancores.
- Foi a tia Felicity que insistiu. Quis que ele nos acompanhasse a casa e que viesse cá lanchar. Tenho a impressão de que está interessada nele - acrescentou com um relincho
rouco.
Embora eu esteja habituada aos excessos de Daffy, tenho de confessar que, desta vez, me senti chocada.
- Para Feely - esclareceu ela.
Claro! Não era de espantar que o pai estivesse a exercitar o seu charme enferrujado! Uma filha a menos significava uma redução de um terço no número de bocas que ele tinha
de alimentar. Não é que Feely comesse grande coisa - que não comia -, mas, a par de uma redução paralela na dose de insolências diárias que ele tinha de aturar, pô-la nas
mãos de Dieter valia bem o esforço.
Nesse caso, pensei, seria igualmente o fim das fortunas constantemente dispendidas no polimento dos espelhos de Buckshaw. Feely era uma fera no que dizia respeito aos espelhos.
- E o seu pai... - dizia o pai a Dieter. Eu sabia! O pai tinha começado a olear os rolamentos! - ... não me disse que ele trabalhava em livros?
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- O meu pai tem uma editora - respondeu Dieter. - É o Schrantz da Schrantz e Markel. Não sei se ouviu falar deles, mas publicam em alemão, edições de...
- Claro que ouvi! As Luxus Ausgaben da Schrantz e Markel. A edição de Plínio com gravuras de Diirer é notável.
- Anda embora, Flavia - ordenou a tia Felicity. - Bem sabes que é um cansaço pintar tijolos quando o sol deixa de bater neles.
Vista à distância, eu devia parecer um galeão a afundar-se quando atravessei a pé descalço as águas rasas do lago artificial em direcção à ilha com a fantasia ornamental;
levava o cavalete da tia Felicity ao ombro, uma tela debaixo de cada braço e uma caixa de tintas e de pincéis em cada mão. A tia Felicity vinha atrás, trazendo na mão um banquinho
de três pés. Vinha de fato de tweed, chapéu de feltro e bata, fazendo-me lembrar uma das fotografias de Winston Churchill que eu vira publicadas na Country Life, em que o
primeiro-ministro se entretinha com as tintas em Chartwell. Só lhe faltava o charuto.
- Há que tempos que tenho vontade de pintar a fachada sul como ela era no tempo do tio Tar - gritou ela, como se eu estivesse do outro lado do mundo. - Ora muito bem, minha
querida - declarou, quando eu consegui finalmente montar o aparato a seu gosto -, nós as duas temos de ter uma conversinha. Pelo menos aqui ninguém nos ouve, descontando as
abelhas e as ratazanas.
Olhei para ela espantada.
- Presumo que julgues que eu ignoro o género de vida que tu levas. Eu tinha aprendido a reagir com excepcional cautela a este tipo de
afirmações, cujas implicações eram sempre imensas; de maneira que, enquanto não percebesse exactamente para que lado iam soprar os ventos da conversa, o melhor era não abrir
o bico.
- Pelo contrário - prosseguiu ela -, sei perfeitamente como deves sentir-te: a solidão, o isolamento, as irmãs mais velhas, o teu pai sempre muito preocupado...
Preparava-me para afirmar que ela estava enganada quando percebi de repente que podia retirar algumas vantagens desta conversa.
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- Tem razão - repliquei, olhando fixamente para a água e pestanejando, como se estivesse a tentar conter as lágrimas -, há momentos em que as coisas são realmente difíceis.
- Era precisamente isso que a tua mãe dizia acerca da vida em Buckshaw. Lembro-me de ela vir cá passar o Verão quando era pequena, como eu própria tinha vindo antes dela.
Não era fácil imaginar a tia Felicity em pequena.
- Não precisas de fazer esse ar de espanto, Flavia. Quando eu era miúda, andava por aqui a brincar, fingindo que era uma princesa índia. Chamava-me "Mu-nu-tonova". Surripiava
umas pontas de bife na despensa e fingia que assava carne de cão em cima de uma fogueira, que acendia com pauzinhos e pavios de vela.
- Anos mais tarde, e embora houvesse uma grande diferença de idades entre nós, Harriet e eu fomos sempre muito amigas. Éramos as "Miseráveis Proscritas", e vínhamos conversar
aqui para a ilha. Certa vez em que tínhamos estado imenso tempo sem nos vermos, passámos a noite dentro da fantasia, embrulhadas em cobertores, a pairar até ao nascer do Sol.
O tio Tar mandou Pierrepoint, que era o velho mordomo, trazer-nos biscoitos Plasmon e gelatina de mão de vaca. Tinha-nos visto da janela do laboratório, percebes, e...
- Como é que ela era? - interrompi eu. - Harriet.
A tia Felicity deu uma pincelada de cor escura na tela, que devia representar o tronco de um dos castanheiros da entrada.
- Era exactamente como tu - respondeu. - Como bem sabes. Engoli em seco.
- A sério?
- Claro que sim! Como é que podias não saber?
Podia ter-lhe enchido os ouvidos com as histórias horrendas que Feely e Daffy me contavam, mas preferi não o fazer.
Uma boca selada pode salvar muitas vidas, tinha-me dito Dogger certa vez quando eu lhe fizera uma pergunta um tanto pessoal sobre o pai. "Uma boca selada pode salvar muitas
vidas", respondera ele, seguindo caminho, e eu não tivera coragem para lhe perguntar qual das vidas pretendia ele salvar com aquele silêncio.
Nessa altura, tinha resmoneado qualquer coisa, e agora dei por mim a fazer o mesmo.
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- Deus do céu, pequena! Se queres saber como era a tua mãe, basta-te olhar para o espelho. E, se queres saber como ela era por dentro, basta-te olhar para dentro de ti. És
tão parecida com ela que me dás arrepios.
Pois então.
- O tio Tar convidava-nos a vir passar o Verão a Buckshaw - prosseguiu ela, sem reparar que eu tinha corado profundamente, ou tendo decidido não reparar nisso. - Achava ele
que, por estranhas razões de natureza química, a presença de raparigas nesta casa a mantinha viva. Era uma coisa qualquer relativa a ligações e a um insuspeito género dual
da molécula do carbono. Era louco como uma lebre de Março, o nosso velho Tar de Luce, mas não deixava de ser um verdadeiro cavalheiro.
- Harriet era a favorita dele, evidentemente; talvez porque nunca se fartava de estar sentada num banco alto, naquele laboratório fedorento, a anotar as coisas que ele lhe
ditava. "A minha colaboradora de mãos-de-fada", chamava-lhe ele. Era uma piada entre os dois. Harriet contou-me certa vez que se tratava de uma referência a uma experiência
espectacular que tinha corrido mal e que podia ter varrido Buckshaw do mapa, já para não falar de Bishop's Lacey e de outros pontos das redondezas. Mas obrigou-me a jurar
que não contava a ninguém. Nem sei por que estou a contar-te isto.
- Ele andava a investigar a decomposição de primeira ordem do anidrido azótico - expliquei-lhe eu. - Foi por essa via que acabaram por chegar à bomba atómica. Há umas cartas
que lhe foram enviadas pelo professor Arrhenius, de Estocolmo, pelas quais se percebe muito claramente o que eles andavam a fazer.
- E tu estás encarregada de passar o testemunho, por assim dizer.
- Como?
- Tu estás encarregada de passar o glorioso nome dos Luce - esclareceu ela. - Leve-te ele aonde te levar.
Era uma ideia interessante; nunca me tinha ocorrido que o nome da pessoa podia ser uma espécie de bússola.
- E aonde é que ele me levará? - perguntei, com uma ponta de manha.
- Tens de ouvir as tuas próprias inspirações. Tens de deixar que a tua visão interior funcione como uma estrela polar.
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- Eu tento deixar - respondi. A tia Felicity devia achar que eu era o idiota da aldeia.
- Bem sei que tentas, minha querida. Tenho ouvido alguns relatos das tuas façanhas. Soube, por exemplo, daquele assunto horroroso de Bunpenny, ou lá como era que o homem se
chamava.
- Bonepenny - corrigi eu. - Horace. Morreu ali adiante.
E apontei para a extremidade do lago, para o muro da horta. A tia Felicity continuou a trabalhar, impávida.
- Não podes permitir que as coisas desagradáveis te desviem do bom caminho. Lembra-te sempre disso. Ainda que não seja claro para aqueles que te rodeiam, o teu dever terá
para ti a clareza de uma linha branca pintada ao centro de uma estrada de alcatrão preto. E tu tens de seguir essa linha, Flavia.
- Mesmo que ela conduza a um assassínio? - perguntei, com súbita ousadia.
Com o pincel na ponta do braço bem esticado, ela pintou a sombra escura de uma árvore.
- Mesmo que ela conduza a um assassínio.
Deixámo-nos ficar em silêncio durante uns momentos, a tia Felicity a pincelar a tela sem resultados especialmente interessantes. Depois voltou a falar.
- Se não te lembrares de mais nada, lembra-te pelo menos disto: a inspiração que nos vem do exterior é como o calor de um forno. Permite fazer uns bolinhos aceitáveis. Mas
a inspiração que nos vem do interior é como um vulcão: muda a face da terra.
Tive vontade de lançar as mãos ao pescoço deste morcego velho e tonto, com o seu fato à George Bernard Shaw, e de a abraçar até a sufocar. Mas não o fiz. Não podia fazê-lo.
Eu sou uma Luce.
- Obrigada, tia Felicity - disse, levantando-me. - A tia é um verdadeiro farol.
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Capítulo 17

Estávamos a lanchar na biblioteca. A senhora Mullet tinha entrado e saído várias vezes, deixando atrás de si um gigantesco tabuleiro com um bolo e scones de groselha. À pergunta
sobre Nialla que eu lhe tinha feito num sussurro, tinha ela respondido com um encolher de ombros, após o que franzira a testa para me recordar que estava a trabalhar.
Feely estava ao piano. Não tinham sido precisos mais do que três minutos para Dieter perguntar qual de nós tocava e Feely lhe responder corando. Por esta altura, depois de
múltiplas súplicas e insistências, dava início ao segundo andamento da Patética, a sonata de Beethoven.
Era uma peça linda e, ouvindo a música quase desaparecer, para em seguida voltar a brotar com veemência, lembrei-me de que era esta a peça que Laurie Laurence tocava em Mulherzinhas
vendo Jo afastar-se, depois de se ter recusado a casar-se com ele; e perguntei a mim própria se teria sido o subconsciente de Feely a escolhê-la.
Com ar sonhador, o pai batia o ritmo com a ponta do dedo no pires, que tinha em maravilhoso equilíbrio nas duas mãos. Havia momentos em que, sem razão aparente, eu sentia
uma gigantesca onda de amor - ou pelo menos de respeito - por ele; este foi um desses momentos.
Ao fundo da sala estava Daffy, enrolada como um gato num cadeirão, ainda amarrada a The Anatomy of Melancholy. A tia Felicity estava sentada ao pé da janela, com ar satisfeito,
a fazer uma coisa qualquer com um par de agulhas e um novelo de lã amarelo-enxofre.
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De repente, observei que Dieter mordia o lábio inferior, e vi-lhe um brilho no canto dos olhos. Estava quase a chorar, e esforçava-se por não mostrar.
Tinha sido cruel da parte de Feely optar por uma peça tão triste e evocativa; nenhuma melodia de Beethoven poderia deixar de servir de amargo recordatório ao nosso convidado
alemão da pátria que ele tinha abandonado.
Nesse momento, porém, Feely interrompeu-se abruptamente e, erguendo as mãos do teclado, voltou-se para nós:
- Oh! - começou, sem fôlego. - Lamento imenso! Não era minha intenção...
E percebi que, provavelmente pela primeira vez na sua vida, estava genuinamente incomodada. Correu para junto de Dieter, a quem estendeu um lenço - que ele, para seu eterno
louvor, aceitou.
- Não. Eu é que devia pedir desculpa - respondeu, limpando olhos. - É que...
- Dieter - dei por mim a balbuciar de repente -, conta-nos como foi que te tornaste prisioneiro de guerra. Tenho andado ansiosa por perguntar. É que eu gosto imenso de história,
compreendes?
Ter-se-ia ouvido cair um alfinete na Antárctida.
- Flavia! - conseguiu o pai finalmente dizer; mas já era tarde para a exclamação ter o efeito por ele pretendido.
Dieter, contudo, sorria já, pareceu-me que aliviado por se libertar da humidade.
- Conto, com certeza! - declarou. - Há cinco anos que espero que alguém mo pergunte, mas nunca ninguém o fez. Vocês, os ingleses, são realmente uns cavalheiros; até as senhoras!
A tia Felicity lançou-lhe um olhar de profunda aprovação.
- Tenho, porém, de os avisar - prosseguiu Dieter - de que se trata de uma história comprida. Têm a certeza de que querem ouvi-la?
Daffy fechou o livro e poisou-o sobre o cadeirão.
- Por mim, adoro histórias compridas - declarou. - Na verdade, quanto mais compridas, melhor.
Dieter levantou-se e foi tomar posição no tapete que ficava em frente da lareira, de cotovelo apoiado na prateleira. Não era difícil imaginá-lo num pavilhão de caça da Floresta
Negra.
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- Pois bem - começou ele -, acho que não é excessivo dizer que fui abatido nos céus de Inglaterra por causa das irmãs Brontè.
Abatido? Aquilo era novidade. Eu estava ansiosa por ouvir mais. Os olhos de Daffy transformaram-se imediatamente em maçanetas de porcelana e até o pai endireitou as costas.
- Fui uma criança muito mimada - prosseguiu Dieter - tenho de o confessar. Era filho único, cresci numa família abastada, onde fui educado por uma Kinderpflegerin, uma governanta.
Como já lhes disse, o meu pai era editor, e a minha mãe era arqueóloga. E, embora eu presuma que gostassem muito de mim, estavam ambos de tal maneira concentrados nos respectivos
mundos que tudo aquilo que tinha a ver com "o rapaz" era deixado ao cargo de Drusilla. Drusilla era a governanta.
- Drusilla era uma grande leitora de romances ingleses, e consumia livros ao mesmo ritmo que uma baleia consome peixe. Andava sempre com um livro na mão; na verdade, ensinou-me
a ler ainda eu chuchava no dedo.
- Drusilla tinha, evidentemente, lido todos os livros das irmãs Brontè: O Monte dos Vendavais, Jane Eyre, Shirley, O Hóspede de Wildfell Hall, e sabia-os todos quase de cor.
Eu estava meio apaixonado por ela, e achava que conseguiria que ela me correspondesse se me pusesse a ler em voz alta os romances que ela preferia.
- E foi assim que me tornei anglófilo. A partir dessa altura, nada me agradava tanto como ler romances ingleses; li Dickens, evidentemente, e Conan Doyle; Jane Austen e Thomas
Hardy. Dois ou três anos mais tarde, Drusilla começou a oferecer-me no Natal assinaturas do The Boys' Own Annual e do Chums. Por essa altura, tinha eu doze anos, era mais
britânico do que qualquer miúdo de Brixton!
- Chegou então a rádio. A partir de alguns artigos do Chums, e com a ajuda de um amigo que era meu vizinho, chamado Wolfgang Zander, consegui montar um receptor de rádio de
uma válvula, que nos permitia sintonizar as emissões da BBC. Éramos loucos por coisas eléctricas, Wolfgang e eu. A primeira coisa que montámos foi uma campainha da rua a pilhas;
seguiu-se um telefone entre o meu quarto e o dele, com o fio a passar pelos telhados, e por entre as árvores. Depois de os nossos pais adormecerem, o fio forrado a algodão
e oculto entre os ramos mais altos fervilhava noite fora, com as nossas especulações febris. Falávamos toda a noite fora, sobre o rádio, evidentemente, mas também sobre livros
ingleses, porque Wolfgang, como compreendem, também tinha sido mordido pelo bicho da literatura inglesa, em particular das Brontè.
- A imaginação de um adolescente é uma força muito poderosa, e nós, Wolfgang e eu, imaginávamos que éramos dois Cavaleiros da Távola Redonda, que um dia partiríamos do nosso
reduto teutónico para ir libertar as irmãs Bronté, aquelas três donzelas pálidas e belas, cujos nomes próprios as identificam como filhas do deus do trovão, note-se, e que
um monstro prendera numa fria torre de pedra nos domínios do norte.
- Além disso - comentou - há qualquer coisa nas jovens donzelas desamparadas que vivem em climas húmidos que faz com que um adolescente tenha vontade de ir salvá-las, para
depois se casar com elas.
Fez uma pausa, para permitir que estas palavras tivessem o efeito desejado, olhando-nos sucessivamente com intensidade; e, naquele momento, eu percebi, chocada, que Dieter
achava ter encontrado em Feely, em Daffy e em mim as suas Brontè; e em Buckshaw a sua torre de pedra fria. Para ele, nós éramos Charlotte, Emily e Anne!
E ali estávamos nós, sentadas as três, de boca aberta como cães.
Quando Dieter prosseguiu, eu sentia a cabeça a andar à roda.
- Mas não tardámos a crescer - comentou com um suspiro. - Não tardámos a assumir as alegrias, mas também as penas, do mundo dos adultos.
- Há sempre uma idade em que os rapazes descobrem os aviões, e no meu caso foi bastante cedo. Os meus pais alistaram-me na NFSK, a aviação nacional-socialista, e, aos catorze
anos, eu dei subitamente por mim sozinho perante o sistema de controlos de navegação de um Schulgleiter, sobrevoando como um falcão as alturas de Wasserkuppe, nas colinas
do Rhõn de Hesse. Vistas do ar, e embora tenham uma constituição geológica muito diferentes, estas montanhas têm, em certos passos, uma notável semelhança com os terrenos
pantanosos do Yorkshire do Norte.
- Como é que sabes? - interrompeu Daffy.
- Daphne! - disse o pai, e o olhar que lhe lançou queria dizer: "Porta-te bem!"
186
- Foi por teres bombardeado Sheffield?
A pergunta foi seguida por um silêncio chocado. A minha irmã do meio era francamente atrevida! Nem eu teria interrogado Dieter acerca das suas actividades aéreas sobre Inglaterra,
embora tenha de admitir que, poucos momentos antes, aquela questão me ocorrera.
- É que - prosseguiu Daffy - se bombardeaste, tens de nos dizer.
- Já lá chego - respondeu Dieter calmamente. E prosseguiu sem pestanejar.
- Chegada a guerra, fui transferido para a Luftwaffe, mas andava sempre com um exemplar das edições de bolso de Jane Eyre e de O Monte dos Vendavais, cuidadosamente embrulhado
num lenço de seda branco, no fundo da mochila, lado a lado com Lorde Byron e com Shelley. Tinha decidido que, quando a guerra acabasse, me inscreveria numa universidade, em
Oxford, por exemplo, uma vez que falava inglês, para tirar um curso de literatura inglesa. Começaria por fazer um bacharelato, arranjava um lugar de professor numa escola
secundária e acabaria os meus dias como docente de uma instituição respeitável, muito à semelhança do vosso Mr. Chips. "Adeus, Herr Schrantz", dizia eu. Mas não era isso que
o destino me tinha preparado. Recebi ordens para avançar imediatamente para França.
- Aparentemente, o meu pai tinha encontrado por acaso um velho amigo em Berlim, uma pessoa que ocupava um lugar de destaque no ministério e que conseguia obter quase tudo
aquilo que queria. O meu pai queria ter um filho que pilotasse um caça, um filho cujo nome aparecesse nos títulos dos jornais; não lhe interessava nada um filho que passasse
os dias com o nariz enfiado num livro, ainda por cima um livro em inglês!
- Antes de ter oportunidade de protestar, dei por mim nomeado para um grupo de reconhecimento, a Luftflotte III, sedeada em França, perto de Lille. Os nossos aviões eram os
Messerschmitt Bf-110, uma máquina bimotor a que nós demos a alcunha de Zerstõrer.
- Os Destroyers - interveio Daffy em tom azedo. De vez em quando, ela sabia ser francamente intratável.
- Exactamente - confirmou Dieter -, os Destroyers. Mas estes tinham sido especialmente modificados para procederem a actividades de reconhecimento. Nós não andávamos com bombas.
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- De espionagem - especificou Daffy, que estava ligeiramente corada, embora eu não chegasse a perceber se era de irritação ou de excitação.
- Sim, de espionagem, se preferires - concordou Dieter. - Durante a guerra, houve actividades de reconhecimento de ambos os lados.
- Ele tem razão, Daphne - interveio o pai.
- Como eu ia dizendo - prosseguiu Dieter, com um olhar de esguelha a Daffy -, o Zerstõrer era um bimotor com uma tripulação de duas pessoas: o piloto e um segundo membro,
que podia ser o operador do telégrafo, o co-piloto ou o operador do armamento, conforme a missão.
- No meu primeiro dia de serviço, quando ia a dirigir-me à barraca onde fazíamos as reuniões de distribuição de serviço, um Oberfeldwebel, um sargento de voo, de botas de
aviador calçadas, bateu os calcanhares e dirigiu-me um sonoro cumprimento: "Herr Hauptmann! Heathcliffí" Como já adivinharam, era o meu velho amigo Wolfgang Zender.
- Olhei rapidamente em volta, para ver se alguém o tinha ouvido, porque estava proibido aquele género de familiaridade entre postos. Mas não vi ninguém por perto. Apertámos
as mãos muito satisfeitos. "Eu sou o teu co-piloto, Wolfgang", disse-me ele com uma gargalhada. "Ninguém te disse? Tantos co-pilotos que há neste país e logo fui eu o escolhido
para ser elevado aos céus no teu dragão de lata!"
- Embora fosse maravilhoso voltar a vê-lo, tínhamos de ser discretos. A situação era complicada, por isso, inventámos uma série de estratagemas; parecíamos dois amantes da
literatura clássica inglesa. Dirigíamo-nos ao avião, apontando para um lado e para o outro e mergulhando por debaixo da fuselagem, como se estivéssemos a conversar sobre a
tensão dos cabos, mas a nossa conversa era, evidentemente, quase toda sobre romances ingleses. Se alguém se aproximava, passávamos rapidamente de Hardy a Hitler.
- Foi durante uma dessas inspecções que concebemos o grande plano. Já não me lembro se a ideia foi de Wolfgang ou se foi minha. Andávamos nós a circular em torno da cauda
do Kathi, que era o nome que estava disfarçadamente pintado no nariz do nosso avião, quando de repente um de nós... tenho a impressão de que foi Wolfgang... ou se
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calhar fui eu... um de nós disse: "Achas que a urze estará em flor em Haworth Moor?" Foi tão simples como isso. E naquele momento os dados foram lançados, como teria observado
Júlio César.
- Foi então que, como se tivesse andado a ouvir as nossas conversas à socapa, o Destino voltou a entrar em cena. Dois dias mais tarde, encarregaram-nos de uma missão no Yorkshire
do Sul; tratava-se de uma estação de caminho-de-ferro e de uma fábrica de bicicletas que os nossos suspeitavam que estava a produzir motores Rolls-Royce. Era só para tirar
fotografias. "Era canja", como diziam os sujeitos da RAF. E era a oportunidade ideal para entregarmos pessoalmente o nosso presente.
- A travessia aérea do Canal decorreu sem problemas, e daquela vez não fomos atacados por Spitfires, o que foi uma notável excepção. O tempo estava maravilhoso e os motores
do Kathi ronronavam pelo céu fora como um par de gigantescos gatos satisfeitos. Sobrevoámos o alvo no tempo previsto e tirámos as fotografias. Traz! Traz! Traz! E pronto.
Missão cumprida! O quarto de hora seguinte estava por nossa conta.
- A casa vicarial de Haworth estava a menos de dez milhas para noroeste e, à velocidade a que nós circulávamos, que era de trezentas milhas por hora, a menos de dois minutos
de distância. O problema era a altitude, que era excessiva. Embora tivéssemos descido para uma altitude de setecentos pés para tirar as fotografias, para a missão que tínhamos
pessoalmente em vista tínhamos de perder rapidamente altitude. Um Messerchmitt com cruzes pretas nas asas a picar que nem um falcão sobre uma pacífica aldeiazinha de Inglaterra
dificilmente passaria despercebido.
- Carreguei na coluna das mudanças e começámos a descer numa espiral gigantesca, com os ouvidos a saltar como rolhas de champanhe. Por debaixo de nós, a urze da pradaria era
um mar de ondas roxas. Ao chegarmos aos mil pés, comecei a puxar a manivela e parámos quase por cima da cerca.
""Prepara-te!", gritei a Wolfgang.
- Avançávamos de leste e de repente vimo-la, no alto da colina: a aldeia de Haworth! Seguimos em frente, afagando os campos, por pouco não tocando nas chaminés da quinta.
- Quando começámos a sobrevoar a estrada de Haworth, eu tive o primeiro vislumbre da igreja, que ficava situada no alto da rua principal, uma rua íngreme; cem metros depois,
por detrás do cemitério, a casa vicarial das Bronté, cuja forma eu tão bem conhecia. Era exactamente como eu sempre a tinha imaginado: as pedras escuras, manchadas, as janelas
vazias.
- "Agora!", gritei e Wolfgang atirou o nosso presente pela portinhola fora. Embora não conseguisse vê-la, consegui imaginar a grinalda que tínhamos tecido a descer lentamente,
girando sobre si própria uma vez e outra, e outra, com a fita lilás esticada pelo vento. Alguém haveria de a descobrir por entre as antigas pedras tumulares situadas junto
à porta da casa vicarial, e leria a mensagem, escrita em letras douradas, da cor do tojo, sobre uma tira de seda cor de urze; a mensagem era a seguinte: "Todo o mundo vos
ama - Repousem em Paz."
- Era excessivamente arriscado voltar a subir para a altitude de cruzeiro. Tínhamos de regressar à base pulando de cerca em cerca, por assim dizer, sem nos aproximarmos das
zonas urbanas. A voar dessa maneira gastávamos mais combustível, evidentemente, mas éramos ambos jovens e disparatados e tínhamos cumprido a nossa missão. Bem sabíamos que,
assim que fôssemos detectados, os cães do Inferno, os Hurricanes e os Spitfires, viriam atrás de nós como loucos.
- Mas era Agosto e estava um dia lindíssimo. Com um pouco de sorte e o vento por detrás, estava eu a dizer a Wolfgang, até pode ser que consigamos sobrevoar a casa de Thomas
Hardy no caminho de volta, sem nenhuma despesa adicional para o Reich.
- Foi nesse momento que no resguardo de protecção que eu tinha diante de mim explodiu uma chuva de balas. Tínhamos sido atingidos!
- "Spitfirel", gritou Wolfgang. Mas era tarde. Passou por nós, a grande velocidade, uma sombra negra, que em seguida fez meia volta e voltou para trás, os discos vermelhos,
brancos e azuis mais parecendo os olhos de um louco ao sol de Verão.
- "Cuidado!", gritei eu. "Ele vai disparar outra vez!"
- Foi então que reparei que o ponteiro da temperatura do motor de bombordo estava no máximo. O motor estava a sobreaquecer. Olhei para o lado e, para meu horror, vi fumo negro
e chamas cor de laranja a saírem de baixo da coberta. Carreguei na manivela e desliguei o motor.
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- Por esta altura, tínhamos o Spitfire outra vez na nossa retaguarda. Por aquilo que restava do espelho retrovisor, vi a imagem fragmentada da máquina balanceando suavemente
de um lado para o outro, seguindo na nossa peugada, connosco na mira. Mas não disparava. Era uma situação muito enervante. Anda lá, pensei eu. Acaba lá com isto. Ele estava
a brincar connosco como um cão de caça brinca com uma ratazana. Não sei quanto tempo é que aquilo durou; quando a pessoa está prestes a morrer, perde a noção do tempo.
- "Por que não dispara ele?", perguntei a Wolfgang, aos gritos, mas ele não me respondeu. Eu tinha a protecção de ombros posta, de maneira que não conseguia voltar-me o suficiente
para o ver.
- Contudo, mesmo só com um motor, o Kathi não tinha grande dificuldade em se manter no ar, de maneira que o cão britânico perseguiu a lebre alemã por sobre os prados verdes
durante aquilo que a mim me pareceu uma eternidade. Com o pára-brisas em estilhaços, a minha visão era praticamente nula; tinha de mudar constantemente de posição para conseguir
perceber o que tinha diante. Era uma situação muito arriscada.
- Foi então que o outro motor parou. Puu! Assim, sem mais nem menos. Tive de tomar uma decisão em poucos segundos, porque tinha por debaixo das asas do avião as árvores de
um bosque, situado na encosta de uma colina. A seguir ao bosque, havia um terreno em declive e foi aí que aterrei. Mas estava sem rodas, de maneira que optei por aterrar de
barriga e tentar parar assim que possível.
- O som do choque foi tão forte como eu nunca tinha imaginado. O avião guinou de um lado para o outro, com a terra a rasgar-lhe o bojo, batendo e martelando pelo caminho,
aos saltos e aos solavancos. Parecia que estava dentro de um moinho. Seguiu-se um silêncio fantasmagórico. Levei algum tempo a aperceber-me de que estava finalmente imobilizado.
Soltei a protecção dos ombros, empurrei o resguardo da cabina e saltei para cima da asa; depois voltei para trás, para chamar Wolfgang.
- "Sai daí!" gritei-lhe. "Depressa! Sai daí!" Mas ele não me respondeu. Wolfgang estava sentado no interior da cabina, afundado num mar de sangue, com um sorriso feliz na
face. Os olhos dele, olhos de morto, contemplavam com persistência quase febril os campos verdes de Inglaterra. Saltei da asa para o solo e vomitei sobre a erva.
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- Tínhamos parado na extremidade do campo. No alto da colina, dois homens, um mais alto e outro baixote, emergiram então de trás das árvores e começaram a descer a encosta
com passos cautelosos, em direcção a mim. Um deles trazia uma espingarda, o outro um forcado.
- Eu deixei-me ficar onde estava, sem me mexer. Quando eles se aproximaram, levantei um braço e, com o outro, tirei lentamente a pistola do coldre, de modo que eles vissem
o que eu estava a fazer, e atirei-a para longe. Depois levantei o outro braço.
- "Você é alemão", gritou o homem mais alto, quando se aproximaram o suficiente para eu conseguir ouvi-los. "Sou", respondi no mesmo tom. "Mas falo inglês." Ele pareceu ficar
um pouco surpreendido. "Talvez seja melhor chamarem a polícia", sugeri eu, apontando para o Messerschmitt com um gesto de cabeça. "Tenho um amigo lá dentro, e está morto."
- O homem mais alto avançou cautelosamente para o avião e espreitou lá para dentro. O outro deteve-se a uma certa distância, olhando para mim como se eu fosse um extra-terrestre.
Depois ergueu o forcado e colocou-o em posição de ataque, como se fizesse tenções de mo espetar no estômago. "Deixa-o estar, Rupert", ordenou o homem que trazia a espingarda.
"O homem teve um desastre de primeira."
- Antes de o outro homem ter tempo de responder, ouviu-se um grito agudo no céu e o Spitfire passou por nós a grande velocidade, tomando altura na extremidade do campo e fazendo
uma pirueta de vitória. Eu fiquei a vê-lo trepar para o céu azul e depois disse:
Ergue-se e começa a rodar Abandonando a corrente prateada do som.
- Os dois homens olharam para mim como se eu tivesse tido subitamente um ataque epiléptico; a verdade é que eu estava em estado de choque. Só muito mais tarde tomei realmente
consciência de que o pobre Wolfgang tinha morrido.
- "George Meredith", expliquei-lhes. The Lark Ascending.
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- Horas depois, já eu estava na esquadra da polícia da aldeia, o piloto do Spitfire veio fazer-me uma visita. Pertencia a um esquadrão que tinha a sede em Catterick e tinha
levantado voo para ir verificar uns comandos a que os mecânicos tinham feito uns ajustes. Não tinha a menor intenção de se meter em aventura nenhuma nesse dia, segundo me
disse, mas de repente Wolfgang e eu aparecemos-lhe diante da mira das armas, sobrevoando Haworth. Ele não podia ter outra reacção!
- "Mas que grande partida. Teve azar, camarada", disse-me. "Lamento muitíssimo pelo seu amigo."
- Tudo isto se passou há seis anos - concluiu Dieter com um suspiro. - Mais tarde, vim a saber que o homem alto que desceu da colina com a espingarda era Gordon Ingleby. O
outro homem, o que trazia o forcado, era, como talvez já tenham adivinhado, Rupert Porson.
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Capítulo 18

Rupert Porson? Mas como é que o homem do forcado podia ser Rupert?
A minha cabeça andava à roda como a tampa de uma lata de tinta.
Nunca me passara pela cabeça que a história que Dieter estava a contar-nos fosse acabar no Campo do Jubileu da quinta dos Ingleby. Mas havia agora uma coisa que era perfeitamente
clara: se Rupert tinha efectivamente estado na Quinta de Culverhouse seis anos antes, durante a guerra, isso permitia explicar, pelo menos em parte, que tivesse esculpido
a cara de madeira do João, o boneco da peça, à imagem de Robin Ingleby.
O pai soltou um suspiro.
- Lembro-me muito bem desse dia - comentou. - A sua máquina caiu no Campo do Jubileu, mesmo abaixo do Bosque de Gibbet.
Dieter confirmou com um aceno de cabeça.
- Mandaram-me durante algum tempo para um campo de prisioneiros de guerra, com mais trinta ou quarenta oficiais e homens da Luftwaffe, onde passávamos o tempo a cavar e a
construir sebes. Era um trabalho manual duro, mas pelo menos não me tinham mandado embora de Inglaterra. Os pilotos alemães que eram capturados costumavam ser mandados para
campos de prisioneiros no Canadá, onde as esperanças de fuga eram reduzidíssimas. Quando me propuseram que fosse viver e trabalhar numa quinta, aceitei imediatamente; embora
não
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fosse obrigatório, muitos dos pilotos aceitavam. Aqueles que se recusavam a aceitar chamavam-nos traidores, entre outras coisas.
- Mas a guerra estava a aproximar-se do fim, e muitos de nós sabíamos que assim era. Era preferível começar a trabalhar na estrada que me conduziria a Oxford, pensei, do que
entregar o meu futuro ao acaso. Foi uma surpresa total verificar que a quinta a que me tinham destinado era a dos Ingleby. Era divertido pensar que Gordon, que ainda pouco
tempos antes me tinha apontado uma espingarda ao peito, ajudava agora Grace a fritar-me o salmão na cozinha da quinta.
- Disseste que isso tinha sido há seis anos? Em 1944? - perguntei eu.
- Exactamente - respondeu ele. - Em Setembro.
Não me consegui conter. Antes de ter oportunidade de suster as palavras, dei por mim a balbuciar:
- Nesse caso, devias estar na Quinta de Culverhouse quando encontraram Robin enforcado no Bosque de Gibbet.
- Flavia! - interveio o pai, poisando a chávena e o pires com estrondo. - Não admito mexericos sobre a dor das outras pessoas.
O rosto de Dieter cobriu-se subitamente de sombras e acendeu-se-lhe nos olhos uma chama, que talvez fosse um fogo de ira.
- Fui eu - especificou - que o encontrei.
Foste tu que o encontraste?, pensei eu. Mas isso é impossível! A senhora Mullet tinha-me afirmado peremptoriamente que tinha sido Meg, a Louca, que tinha descoberto o corpo
de Robin.
Seguiu-se um silêncio impressionante e prolongado, após o que Feely se levantou de um pulo para servir mais chá a Dieter.
- Não leves a minha irmã mais nova a sério - pediu, com uma gargalhada de insegurança. - Ela tem um fascínio muito pouco saudável pela morte.
Perfeito, Feely, pensei eu. Mas, embora tivesse acertado em cheio, a verdade é que não sabia da missa a metade.
E a tarde ficou praticamente por ali. O pai tentou - nobremente, confesso - mudar de conversa e falar sobre o tempo e a colheita de linho, enquanto Daffy, tendo percebido
que dali não viria mais nada que fosse digno da sua atenção, voltou a embrenhar-se no livro que estava a ler.
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Um por um, todos fomos pedindo licença para nos retirarmos: o pai para junto dos selos; a tia Felicity para ir fazer uma sesta antes do jantar; Daffy para a biblioteca. Algum
tempo depois, fartei-me de ouvir Feely tagarelar com Dieter sobre diversos bailes e jantares no campo e pus-me a andar para o meu laboratório.
Trinquei a ponta do lápis durante algum tempo e a seguir anotei:
Domingo, 23 de Julho de 1950
Onde andam todos? É essa a pergunta capital. Onde está Nialla? Depois de ter passado a noite em casa da senhora Mullet, desapareceu, pura e simplesmente. (O inspector Hewitt
saberá onde ela anda?)
Onde está Meg, a Louca? Depois de ter irrompido pelo espectáculo da tarde do João e o Pé de Feijão, foi levada para casa do vigário, onde ficou a descansar no sofá. Depois
desapareceu.
Onde está Mutt Wilmott? Dá a impressão de se ter posto a andar durante o espectáculo fatal.
O que estava Rupert a fazer na Quinta de Culverhouse há seis anos? Por que motivo, tendo-se encontrado com Dieter na sexta-feira passada, nenhum deles reconheceu que já se
conheciam?
E, principalmente, por que motivo diz Dieter que foi ele que descobriu o corpo de Robin Ingleby enforcado no Bosque de Gibbet? A senhora Mullet afirma que foi Meg, a Louca,
e a senhora M. raramente se engana quando se trata dos mexericos da aldeia. Por outro lado, por que haveria Dieter de mentir sobre uma coisa destas?
Por onde havia de começar? Se se tratasse de uma experiência de química, o procedimento era óbvio: começaria pelos materiais que tinha mais à mão.
A senhora Mullet! Com sorte, por esta altura ainda ela estaria a fingir que punha ordem na cozinha, antes de proceder ao ataque à despensa, para arrecadar os troféus que todos
os dias levava ao seu Alf. Corri até ao alto das escadas e espreitei por entre as balaustradas. Não estava ninguém no vestíbulo.
Deslizei pelo corrimão abaixo e entrei na cozinha.
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Dogger estava diante da mesa a descascar um par de pepinos com precisão clínica e ergueu os olhos quando me sentiu chegar.
- Já se foi embora - informou, antes de eu ter tempo de perguntar. - Há uma boa meia hora. - É um demónio, este Dogger! Não consigo perceber como é que ele faz aquilo. - E
disse alguma coisa antes de se ir embora? Alguma coisa com interesse, quero eu dizer.
Com Dogger na cozinha como ouvinte, a senhora M. não teria certamente resistido à tentação de se gabar de ter levado Nialla para sua casa (pobre pequena!), de a ter metido
numa cama quentinha, com um saco de água quente e um copo de sherry diluído com água na mesa-de-cabeceira, e por aí fora, relatando em pormenor a noite ali passada, o que
tinham comido ao pequeno-almoço e aquilo que Nialla tinha deixado ficar no prato.
- Não. - Dogger pegou numa faca de serrilha e aplicou-lhe o gume a um pão. - Só disse que a paparoca está no forno a aquecer e a tarte de maçã e as natas estão na despensa.
Bolas!
Bem, nesse caso só me restava começar tudo de novo na manhã seguinte. Poria o despertador para o nascer do Sol e partiria a grande velocidade para a Quinta de Culverhouse
e o Bosque de Gibbet. Era pouco provável que, passados tantos anos, ainda houvesse pistas espalhadas, mas Rupert e Nialla tinham acampado na base do Campo do Jubileu na sexta-feira
à noite. Se executasse o plano previsto com cuidado, era capaz de ir e voltar ao Campo antes de darem pela minha ausência em Buckshaw.
Dogger cortou um quadrado perfeito de papel vegetal e embrulhou as sanduíches de pepino, fechando muito bem os cantos.
- Achei melhor fazer-lhe estas sanduíches - declarou, estendendo-me o pacote. - Calculei que amanhã de manhã quisesse sair bem cedinho.
Os campos estavam cobertos por uma camada de névoa húmida. O ar matinal era fresco e húmido, e eu inspirei profundamente, tentando acordar por completo, enchendo as narinas
e os pulmões do aroma perfumado a terra molhada e a erva empastada.
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Quando entrei de bicicleta no cemitério de São Tancredo, observei que o Vawchall do inspector tinha desaparecido, o que queria dizer que o mesmo tinha acontecido ao corpo
de Rupert. É claro que eles não o tinham deixado a apodrecer em cima do palco das marionetas desde sábado à noite até segunda-feira de manhã; mas tomei consciência de que
o cadáver já não se encontrava no salão paroquial, com os olhos protuberantes e o fio de saliva, que por esta altura formaria uma estalactite de cuspo...
Se achasse que o corpo ainda lá estava, ter-me-ia sentido tentada a ir dar-lhe outra vista de olhos.
Ao chegar às traseiras da igreja, descalcei os sapatos e as meias e avancei, conduzindo a Gladys à mão, pela zona de águas mais profundas que ficava ao lado das pedras submersas.
A chuva de sábado à noite tinha feito aumentar o nível das águas, que lhe passavam agora pelos raios e os pneus das rodas, limpando a terra e a lama que aí se tinha acumulado
no percurso até Bishop's Lacey. Ao chegar ao outro lado, a Gladys tinha os arreios mais limpinhos do que a carruagem recém-pintada de uma dama da alta.
Sentei-me num degrau de pedra, passei os pés bem por água e voltei a calçar-me.
Ao longo do rio, a visibilidade era ainda pior do que tinha sido na estrada. Avancei por sobre as ervas da margem, as árvores e as cercas agigantando-se quais sombras sem
luz, envolvidas numa névoa espessa e cinzenta que roubava por completo a cor e o som ao mundo. À excepção do murmúrio abafado das águas, tudo era silêncio.
A carrinha de Rupert encontrava-se ao fundo do Campo do Jubileu, abandonada por debaixo dos salgueiros, e a colorida inscrição - marionetas de porson - parecia violentamente
deslocada, quer em relação ao local, quer em relação às circunstâncias. Não se via vivalma.
Poisei a Gladys cuidadosamente sobre as ervas e aproximei-me da carrinha em bicos de pés, percorrendo-lhe a lateral. Era possível que Nialla tivesse para cá voltado e estivesse
a dormir lá dentro, e eu não tinha vontade de a assustar. Mas a ausência de condensação no pára-brisas deu-me a conhecer aquilo que eu já tinha começado a pressentir: que
ninguém respirava no interior do frio Austin.
Espreitei pelas janelas, mas não vi nada de estranho. Recuei para as traseiras e dei a volta à maçaneta. Estava trancada.
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Fui percorrendo a erva em torno do veículo, em círculos cada vez mais alargados, em busca de vestígios de uma fogueira, mas não vi nada. O acampamento estava exactamente como
eu o tinha deixado no sábado anterior.
Ao chegar ao fundo da vereda da quinta, detive-me diante de uma corda que atravessava a estrada, e da qual estava suspenso um aviso. Meti-me por debaixo da corda, para ler
o que estava lá escrito.
Investigação Policial - Proibida a Passagem - Polícia de Hinton
O inspector Hewitt e os polícias dele tinham ali estado. Mas, quando tinham colocado este aviso, não tinham obviamente tido em conta uma pessoa que viesse do outro lado do
rio. Apesar da promessa que tinha feito ao inspector, o sargento Graves ainda não tinha aprendido a lição e continuava a permitir a entrada sorrateira de pessoas pela porta
das traseiras.
Pois muito bem. Como, de qualquer maneira, não havia aqui nada que ver, passaria ao meu objectivo seguinte. Embora não conseguisse avistá-lo, por causa do nevoeiro, sabia
que o Bosque de Gibbet ficava ali perto, no alto do Monte Gibbet. O terreno entre as árvores devia estar húmido e pastoso, mas eu estava disposta a apostar que a polícia ainda
não tinha lá estado.
Passei a Gladys por debaixo da barricada e empurrei-a lentamente pela encosta acima; era íngreme de mais para eu conseguir subi-la a pedal. Encostei-a por detrás de uma vedação
de espinheiro e prossegui a subida, rodeada por todos os lados de vislumbres nevoentos de linho azul.
Foi então que, de repente, as árvores escuras do bosque apareceram mesmo à minha frente, no meio da bruma. Tinha chegado ao meu destino sem me aperceber de que já lá estava.
Havia uma tabuleta de madeira pregada a uma árvore, com umas letras pintadas a vermelho: proibido entrar. - O resto da tabuleta tinha sido destruído a tiros de caçadores furtivos.
O bosque estava todo molhado, tal como eu tinha previsto. Estremeci ao sentir aquele frio de concha e, preparando-me para o que estava para vir, avancei pelo meio da vegetação.
Ainda não tinha dado meia
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dúzia de passos por entre os fetos, pequenos e grandes, e já estava completamente ensopada até aos joelhos.
Qualquer coisa estalou por debaixo de uns arbustos. Parei muito quieta e vi uma forma escura descer em voo picado à minha frente, de asas silenciosas: devia ser um mocho,
que tinha confundido o nevoeiro do começo do dia com a luz do crepúsculo, a hora a que costumava caçar. Embora inicialmente me tivesse assustado, aquela simples presença acabava
por ser reconfortante, porque significava que não havia mais ninguém naquele bosque.
Segui em frente, tentando detectar umas vagas veredas, pois todas elas haveriam de me conduzir à clareira que havia no centro do bosque.
No meio de duas árvores de troncos cobertos de nós erguia-se uma barreira de musgo que impedia a passagem; a madeira cinzenta dava a impressão de estar toda retorcida, de
tão podre. Trepei à barreira e já ia a meio caminho quando me apercebi de que estava outra vez nos degraus do antigo patíbulo. Quantas almas condenadas teriam subido estes
mesmos degraus antes de serem conduzidas à plataforma seguinte? Engoli em seco, olhando para o que restava da estrutura, agora totalmente ao ar livre e sem qualquer protecção.
Senti uma mão de pele de couro a apertar-me o pulso, como se me tivessem posto uma algema de ferro quente.
- O qu'andas tu aqui a fazer? O qu'andas tu a espreitar por aqui? Era Meg, a Louca, que aproximou de tal maneira a cara coberta de
fuligem da minha que eu lhe distingui com clareza os pêlos cor de areia da ponta do queixo. A bruxa do bosque, pensei por momentos, e quase entrei em pânico; mas logo a seguir
recuperei a compostura.
- Oh, olá, Meg - respondi, com toda a calma de que fui capaz, tentando controlar o coração, que me batia com toda a força no peito. - Ainda bem que te encontro. Assustaste-me
a valer. - Mas dísse-o com uma voz mais trémula do que teria gostado.
- Sustos são quem vive no Bosque de Gibbet - replicou ela em tom carregado. - Sustos são quem vive aqui e não vive noutros lados.
- Exactamente - concordei, embora não fizesse a mais pequena ideia do que ela queria dizer. - Ainda bem que estás aqui comigo. Assim já não tenho medo.
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- Já não há Demónio - disse Meg, esfregando as mãos. - O Demónio morreu e ainda bem.
Lembrei-me de que ela tinha ficado assustadíssima com o João e o Pé de Feijão. Para Meg, Rupert era o Demónio, que tinha matado Robin Ingleby, o tinha feito encolher para
o tamanho de uma marioneta de madeira e o tinha posto em cima do palco. Era preferível avançar para o assunto de través.
- Gostaste de estar a descansar na casa vicarial, Meg? - perguntei-lhe. Ela cuspiu para cima do tronco de um carvalho como se estivesse a cuspir no olho de uma bruxa sua rival.
- Ela mandou-m'embora - respondeu. - Arrancou a pulseira da q'rida Meg e deitou-a fora. Foi sim. "Porca, porca!"
- A senhora Richardson? - perguntei-lhe. - A mulher do vigário? Foi ela que te mandou embora?
Meg lançou-me um sorriso horrendo e desatou a fugir a um quase galope pelo meio das árvores. Eu fui atrás dela, por entre os arbustos e os fetos, as folhas mortas e os espinheiros.
Cinco minutos depois, já sem fôlego, tínhamos regressado ao ponto de partida, aos pés da forca apodrecida.
- 'Tás a ver aquilo? - perguntou ela, apontando. - Foi ali qu'ele o levou.
- Levou quem, Meg? - Robin Ingleby. Era de certeza a ele que a Meg se referia. - Foi aqui que o Demónio levou Robin? - insisti.
- Transformou-o em madeira, iss'é que foi - confidenciou-me, olhando por cima do ombro. - A madeira à madeira.
- Mas tu viste-o? Viste o Demónio?
Era uma coisa que nunca me tinha ocorrido. Haveria alguma hipótese de Meg ter visto alguém no bosque com Robin? Vendo bem, ela vivia num barraco no meio das árvores, e era
pouco provável que se passassem muitas coisas no Bosque de Gibbet de que ela não tivesse conhecimento.
- Meg viu - disse ela com ar de quem sabe do que está a falar.
- E como é que ele era?
- Meg viu. A velha Meg vê muita coisa.
- Fazes-me um desenho? - pedi-lhe; fora uma súbita inspiração. Tirei o bloco-notas da algibeira e estendi-lhe o coto de um lápis. - Toma
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- insisti, folheando o bloco até chegar a uma folha em branco -, desenha-me o Demónio. Desenha-me o Demónio no Bosque de Gibbet. Desenha-mo a levar Robin.
Meg olhou para mim e lançou-me uma gargalhada silenciosa. Depois sentou-se no chão, de pernas cruzadas, alisou o bloco-notas de encontro ao joelho e começou a desenhar.
Acho que estava à espera de um desenho infantil, de umas figuras mal amanhadas, muito direitas. Acontece que o lápis ganhou vida nos dedos cobertos de fuligem de Meg e a clareira
do Bosque de Gibbet foi, a pouco e pouco, aparecendo na folha: uma árvore, e outra, em seguida a madeira podre da forca, imediatamente reconhecível. Tinha começado pelas margens
e avançava agora para o centro da página.
De vez em quando, soltava um cacarejo, virava o lápis ao contrário e apagava um traço. Era bastante boa, tenho de admitir. Eu dificilmente teria feito um desenho tão bem feito
como aquele.
Foi então que desenhou Robin.
Eu observava-a por cima do ombro dela, mal me atrevendo a respirar. A pouco e pouco, o rapazito morto foi tomando forma diante dos meus olhos.
Pacificamente suspenso dos ares, com o pescoço voltado de lado e uma expressão de contentamento levemente surpreendido na face, como se tivesse entrado, súbita e inesperadamente,
numa sala cheia de anjos. Apesar da luz fraca do bosque, o cabelo muito bem penteado do miúdo parecia emitir um brilho de saúde, que se tornava enervante. Vestia uma camisola
às riscas e calças escuras, as pernas das calças descuidadamente metidas num par de botas de borracha. Devia ter morrido depressa, pensei.
Só depois de ter desenhado o rapaz é que ela desenhou o laço que lhe apertara o pescoço, uma corda escura, entrelaçada, suspensa do alto da forca; e sombreou a corda com traços
irados.
Eu inspirei profundamente e ela olhou para mim com ar triunfante, em busca de elogios.
- Agora o Demónio, Meg - sussurrei. - Desenha o Demónio, Meg. Ela olhou-me de frente, delirante com a atenção de que estava a ser
objecto, um sorriso astuto ao canto da boca.
- Por favor, Meg, desenha-me o Demónio.
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Sem desviar os olhos dos meus, ela lambeu o polegar e o indicador e virou elaboradamente a página, começando novamente a desenhar numa página nova. O Bosque de Gibbet voltou
a ganhar forma na ponta dos dedos dela; este segundo desenho foi ficando mais escuro do que o primeiro, porque Meg espalhava o carvão com a ponta dos dedos, tentando dar a
ideia da meia luz da clareira. Depois passou ao patíbulo, que desenhou de um ângulo ligeiramente diferente.
Que estranho que ela não tenha começado pelo Demónio, pensei. Parecia-me que seria essa a tentação da maior parte das pessoas. Mas só depois de ter montado o palco, dispondo
as árvores e os arbustos, é que ela avançou para a figura que seria o ponto fulcral daquela obra.
Numa quase oval que tinha deixado em branco até àquele momento, começou a emergir o esboço de uma figura: primeiro os braços e os ombros, depois os joelhos, as pernas, as
mãos e os pés. A figura envergava um casaco preto e estava apoiada numa perna só, como se tivesse sido surpreendida no meio de uma dança frenética. As calças estavam presas
pelo cinto a um ramo baixo.
Meg ocultou o papel com a mão esquerda, enquanto lhe desenhava as feições. Terminada a tarefa, estendeu-me o papel a grande velocidade, como se estivesse contaminado.
Não reconheci imediatamente o retrato; não reconheci imediatamente que a figura desenhada na clareira - o Demónio - era o vigário, Denwyn Richardson.
O vigário? Mas era completamente ridículo! Ou não seria?
Ainda minutos antes Meg me tinha dito que o Demónio estava morto, e agora estava a desenhar-me o vigário. O que estaria a passar-se naquela pobre mente doente?
- Tens a certeza absoluta, Meg? - perguntei-lhe, dando uma palmadinha no bloco-notas. - Este é o Demónio?
- Ccchhh! - respondeu ela, inclinando a cabeça e levando um dedo aos lábios. - Vem aí gente!
Olhei em torno da clareira e, apesar de ter um ouvido muito apurado, não consegui ouvir ruído algum. Quando voltei a olhar em frente, vi o bloco-notas e o lápis caídos aos
meus pés, mas Meg tinha desaparecido por entre as árvores. E percebi perfeitamente que não valia a pena chamá-la.
Deixei-me ficar imóvel uns momentos, à escuta, à espera de qualquer coisa, embora não soubesse bem de quê.
Os bosques são mundos sempre em mutação, onde as sombras se alteram de minuto a minuto e a vegetação se desloca hora a hora com o movimento do Sol. Os insectos abrem túneis
debaixo do solo, içando-o, construindo pequenas tocas, que depois alargam para tocas maiores. As folhas crescem e caem ao ritmo dos meses, as árvores ao ritmo dos anos. Daffy
tinha-me explicado que não se pode entrar duas vezes no mesmo rio, e o mesmo se passa com as florestas. Cinco invernos tinham chegado e passado desde que Robin Ingleby havia
morrido neste local, e já não restava nada que se pudesse ver.
Passei lentamente pela forca quase desmoronada e mergulhei no interior do bosque. Minutos mais tarde, encontrava-me a céu aberto, no alto do Campo do Jubileu.
A pouco mais de vinte metros de distância, quase invisível devido ao nevoeiro, estava um tractor Ferguson cinzento parado no meio de um campo, com uma pessoa de fato-macaco
verde e botas de borracha debruçada sobre o motor. Devia ter sido aquilo que Meg tinha ouvido.
- Bom dia! - gritei. É sempre preferível a pessoa anunciar alegremente a sua presença quando se encontra em propriedade alheia. Embora a tivesse inventado naquele preciso
momento, pareceu-me uma boa regra.)
Quando a figura se endireitou e se voltou, percebi que se tratava de Sally Straw, a rapariga do Exército Feminino Terrestre.
- Bom dia! - correspondeu ela, limpando as mãos sujas de óleo a um trapo. - Tu és Flavia de Luce, não és?
- Sou - respondi eu, estendendo-lhe a mão. - E tu és Sally. Tenho-te visto no mercado. Sempre te admirei as sardas e o cabelo ruivo.
Para ser realmente eficaz, a lisonja deve ser aplicada em abundância.
Ela recompensou-me com um sorriso amplo e honesto e deu-me um aperto de mão que por pouco me não partiu os ossos das falanges.
- Podes tratar-me por Sal - disse. - É assim que os meus amigos me tratam.
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Fazia-me lembrar a actriz Joyce Grenfell: movia-se de maneira levemente masculina mas, à parte isso, era decididamente feminina.
- O meu Fergie resolveu pôr umas férias - comentou ela, apontando para o tractor. - É capaz de ser a bobina da ignição. Às vezes acontece; aquecem de mais e entram em circuito
aberto. Quando isso acontece, não há nada a fazer senão esperar que a peça arrefeça. - Dado que os motores não são o meu forte, acenei com a cabeça com ar entendido, mas não
disse nada. - O que andas tu a fazer por aqui?
- Vim dar uma volta - respondi. - De vez em quando, gosto de vadiar um bocado, de ver como as coisas andam.
- Que sorte - retorquiu ela. - Eu nunca vou a lado nenhum. Bem, quase nunca. Dieter levou-me a tomar uma cerveja ao Treze Patos Marrecos um par de vezes, mas depois houve
um sururu horrível por causa disso. É que os prisioneiros de guerra não podem andar pelos bares a beber cervejas, compreendes? Ou pelo menos não podiam, durante a guerra.
Dieter contou-me que a tua irmã Ophelia o convidou para lanchar ontem - prosseguiu com alguma cautela; percebi que estava a tentar arrancar-me informações.
- Pois foi - repliquei eu, pontapeando descuidadamente um montículo de lama e fixando o olhar ao longe, como se aquele assunto não me interessasse absolutamente nada. Amigas,
amigas, mas se ela queria extrair-me algum mexerico, ia ter de me dar alguma coisa em troca. - Vi-te no espectáculo de marionetas - prossegui. - No sábado à noite, no salão
paroquial. Foi um final e peras, não foi? O que aconteceu ao senhor Porson, quero eu dizer.
- Foi horrendo - comentou ela.
- Tu conhecia-lo?
Não era propriamente jogo limpo, além de que lhe disparei a pergunta de repente, sem aviso prévio. Ela ficou imediatamente alerta, e hesitou antes de responder.
- Já... já o tinha visto - respondeu. Estava obviamente a mentir.
- Na televisão, não? - insisti eu, em tom talvez excessivamente inocente. - O Reino da Magia? O esquilo Snoády?
Assim que disse aquilo, percebi que tinha ido longe de mais.
- Muito bem - declarou ela. - Onde é que tu queres chegar? Vá lá, conta-me tudo imediatamente.
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E, pondo as mãos à cintura, fixou em mim um olhar decidido.
- Onde é que eu quero chegar como? - perguntei.
- Oh, deixa-te disso. Não me venhas com coisas. Por estas redondezas, toda a gente sabe que Flavia de Luce não anda a passear pelos bosques para ganhar boas cores. - Seria
verdade? Por estas redondezas? A resposta surpreendeu-me. Pensei que a minha fama chegava a Londres. - Gordon dava-te cabo do couro se te apanhasse naquele bosque prosseguiu
ela, apontando para a tabuleta. - Eu afivelei a minha expressão mais estúpida, mas nada disse. - O que sabes tu sobre isto? - insistiu ela, erguendo a mão num amplo semicírculo,
com que abrangeu toda a quinta. Era impossível deixar de perceber o significado daquelas palavras.
Eu soltei um profundo suspiro. Ia ter de confiar nela.
- Sei que Rupert vinha cá, desde há bastante tempo, abastecer-se de cannabis. Sei que Gordon tem um canteiro de cannabis no Bosque de Gibbet, bastante perto do local onde
encontraram Robin enforcado.
- E achas que Dieter e eu temos alguma coisa a ver com isso?
- Não sei - respondi. - Espero que não.
- Também eu - comentou ela. - Também eu.
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Capítulo 19

- Rupert era um mulherengo - disse Sally lentamente, como se estivesse com relutância em dar voz aos pensamentos. - Mas isso é coisa que, por esta altura, tu já deves ter
descoberto.
Acenei com a cabeça, evitando interrompê-la. Tinha aprendido, por observação aos métodos de trabalho do inspector Hewitt, que o silêncio é o melhor promotor de uma conversa.
- Fez frequentes visitas à Quinta de Culverhouse durante anos, desde muito antes da guerra. E Rupert não é o único. Gordon dispõe de um pequeno exército de gente como ele,
a quem fornece uma coisa que os ajuda a suportar a dor.
- Erva - interrompi eu, sem conseguir conter-me. - Gunjah... Cânhamo-da-índia... cannabis.
Ela fixou-me, estreitando os olhos, e depois prosseguiu:
- Alguns deles, como Rupert, por terem tido paralisia infantil, ou pólio, como agora lhe chamam. E outros sabe Deus por quê. Sabes, Gordon acha que é uma espécie de ervanário,
uma pessoa que ajuda a combater os sofrimentos que os médicos não conseguem, ou não querem combater. É uma pessoa muito discreta, mas também outra coisa não seria de esperar,
não é verdade? Para além de ti, não me parece que algum habitante de Bishop's Lacey se tinha apercebido de que os viajantes ocasionais que se detêm na Quinta de Culverhouse
não andam propriamente perdidos, nem são vendedores ambulantes de produtos agrícolas. Eu vivo cá há oito anos - prosseguiu Sally - e nem precisas de me
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perguntar, que a resposta é não. Eu não fumo aquilo que Gordon tem à venda.
- Também não me pareceu que fumasses - comentei eu, passando-lhe a mão pelo pêlo. E resultou.
- A minha família é muito sã - insistiu, agora mais intensamente. - Os meus pais eram aquilo a que os romances de bolso chamavam "pobres, mas honestos". A minha mãe estava
sempre doente, mas nunca nos explicou o que tinha. Nem o meu pai sabia. Entretanto, eu saí-me bem na escola, segui em frente mais uns anos e depois veio a guerra.
- Claro que eu tinha vontade de ajudar a pagar as contas do médico, de maneira que me alistei no EFT. Não parece grande história de vida, pois não? E não é. Mas foi assim
mesmo. Eu sou uma miúda de Kent, que tinha vontade de lutar contra Adolf Hitler e de ajudar a mãe.
- Instalaram-me, a mim e a mais umas quarenta raparigas, numa casa do Exército Terrestre que ficava situada perto de Hinley, e foi aí que conheci Rupert. Aquele homem era
como o mel para as abelhas, não duvides. Andava pelas estradas rurais, de um lado para o outro, com o espectáculo de marionetas atrás, dizia que andava a regressar às raízes,
e de cada vez que eu o via tinha uma nova colaboradora. E as mulheres eram sempre lindíssimas, percebes?
- Pouco depois de eu ter vindo trabalhar para a Quinta de Culverhouse, Rupert apareceu aí; vinha abastecer-se de material. Reconheci-o imediatamente: era o homenzito coxo
que se punha a conversar connosco no bar ao fim-de-semana.
- Tinha jurado a mim própria, logo de princípio, não me envolver com ele. As outras miúdas que lhe dessem umas abébias, se quisessem. Foi então que...
E o olhar dela refugiou-se em tempos passados.
Quer dizer que Nialla tinha razão! Que Rupert tinha mesmo ido à procura de Sally no dia em que eles tinham chegado. As várias peças do quebra-cabeças começavam a ocupar os
respectivos lugares.
Embora o nevoeiro tivesse começado a levantar, ainda estava bastante denso, envolvendo-nos às duas num casulo nebuloso onde reinava um silêncio estranhamente reconfortante.
A não ser que alguém tropeçasse em nós por acaso, ninguém poderia saber que estávamos ali as duas, no alto do Campo do Jubileu. E ninguém teria conseguido ouvir-nos, a não
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ser que atravessasse o campo todo até lá acima, ou descesse à socapa lá do alto do bosque.
- Oh, Rupert era um encanto, não duvides - prosseguiu Sally. - Era capaz de encantar um... não, isto não é coisa que se diga diante de gente bem-educada. Era capaz de encantar
um pinto, e em especial uma galinha. Começava por recitar Shakespeare, depois avançava para histórias que tinha ouvido em teatros; se Romeu e Julieta não resultassem, tentava
outras récitas mais subidas. E safava-se bem, pelo menos a maioria das vezes. Até que decidiu tentar a sua sorte com a mulher de Gordon.
Com Grace Ingleby? Quase sem querer, soltei um assobio sussurrado.
- Isso deve ter sido há muito tempo - comentei. E sei que o comentário terá parecido insensível, embora a minha intenção não fosse essa.
- Foi há vários anos - elucidou-me Sally. - Antes de Robin ter morrido. Antes de ela ter ficado daquela maneira. Embora não pareça, olhando para o que está agora, a verdade
é que ela era uma brasa.
- Parece uma pessoa muito triste - disse eu.
- Triste? Não é triste que ela está, Flavia. É mais vencida. Aquele miúdo era o mundo dela, e no dia em que ele morreu o Sol apagou-se.
- Quer dizer que estavas cá nessa altura? - perguntei suavemente. - Também deve ter sido muito difícil para ti.
Ela prosseguiu como se não me tivesse ouvido.
- Gordon e Grace costumavam contar a Robin a idílica lua-de-mel que tinham passado à beira-mar, e foi uma coisa que ele sempre quis: a areia, as conchas, o balde, a pá, os
castelos de areia, os gelados, os duches na praia. O miúdo sonhava com aquilo. "Sonhei que a maré estava a encher, Sally!", disse-me certa vez. "E que eu saltitava no mar
como se fosse um balão cor-de-rosa!" Pobre pequenito!
E limpou uma lágrima à manga suja do fato-macaco.
- Meu Deus! Mas por que estou a contar-te isto tudo? Devo estar doida.
- Não te preocupes - respondi eu. - Prometo-te que não conto a ninguém. Estou muito habituada a guardar segredos.
E, como prova de boa vontade, cruzei os dois indicadores em frente da boca, alternando o direito em cima e o esquerdo em baixo com o
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direito em baixo e o esquerdo em cima, e beijando o cruzamento, como quem faz uma jura solene. Mas não cheguei a pronunciar as palavras correspondentes. Lançando-me um rápido
olhar, com uma expressão estranhamente envergonhada, Sally prosseguiu:
- Nem sei como, eles conseguiram poupar uns tostões para os anos de Robin. Como estava a chegar a época da colheita, Gordon não podia sair daqui, mas decidiram que Grace fosse
passar uns dias à beira-mar com Robin. Era a primeira vez que mãe e filho iam a algum sítio sem Gordon, e a primeira vez que Grace tirava umas férias, desde miúda.
- Estava bastante calor, mesmo tendo em conta que era Agosto. Grace alugou uma cadeira de praia e comprou uma revista. E ficou a ver Robin, a brincar na areia à beira-mar,
com o balde e a pá. Sabia perfeitamente que ele não corria grandes riscos, porque tinha-o avisado de que a maré era perigosa, e Robin era um rapazito muito obediente. De maneira
que se deixou levar pelo sono e dormiu que tempos. Só quando acordou e viu o que o Sol tinha andado é que se apercebeu do cansaço que tinha acumulado no corpo. A maré tinha
voltado a descer e Robin não se via em parte nenhuma. Teria desobedecido às ordens dela e sido arrastado pelo mar? Nesse caso, alguém o teria visto, alguém a teria acordado.
- Foi Grace que te contou isto tudo? - perguntei eu.
- Valha-me Deus, não! Isto foi o que se soube no inquérito. Tiveram de lho arrancar à força, com frases minúsculas. Os nervos dela estavam num estado que metia dó.
- Tinha perdido demasiado tempo, afirmou, a correr pela praia fora, a chamar por Robin. Corria pela beira-mar, de um lado para o outro, na esperança de lhe avistar o fato
de banho encarnado, na esperança de ver a cara dele entre as crianças que brincavam à beira da água. Depois voltou a percorrer a praia de uma ponta à outra, perguntando aos
banhistas se tinham visto um rapazito louro. Foi tudo inútil, evidentemente. Devia haver dezenas de crianças louras naquela praia.
- Foi então que, meio encadeada pelo sol, viu um grupo de pessoas reunidas à sombra do passadiço. Desatou a chorar e começou a caminhar naquela direcção, convencida de que
lhe iam dizer que Robin se
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tinha afogado, e que aquela gente toda se tinha ajuntado para assistir à tragédia. Já tinha começado a odiá-las.
- Quando, porém, estava a aproximar-se, ouviu gargalhadas, e abriu caminho à força até ao centro do grupo, sem se importar com o que pensassem dela. Era um espectáculo de
marionetas. Sentado no chão, com lágrimas de riso a correrem-lhe pela face, estava Robin. Ela aproximou-se e apertou-o contra si, incapaz de dizer uma palavra que fosse. É
que a culpa tinha sido dela: ela tinha adormecido, e Robin, como outra criança, tinha-se sentido atraído pelo espectáculo de marionetas.
- Grace levou-o consigo pela praia fora, e comprou-lhe um gelado, e outro. Depois voltou com ele para a casinhota das marionetas, para assistir ao espectáculo seguinte, rindo-se
à gargalhada com ele e com ele gritando "Não! Não!" quando uma das marionetas pegou no cacete do polícia para bater com ele na cabeça da outra marioneta. E riram-se em coro
com o resto dos presentes quando uma das marionetas enganou o carrasco e este meteu a própria cabeça na forca, em vez de meter a do condenado.
Eu também tinha visto estes espectáculos tradicionais de marionetas, que passavam quase todos os anos na festa do colégio, de maneira que conhecia bem os diversos enredos.
- "Não sei como é que a pessoa se enforca" - disse, citando as famosas palavras de uma das peças. - "Tens de me mostrar como é, para eu depois poder imitar-te." - "Não sei
como é que a pessoa se enforca" repetiu Sally. - "Tens de me mostrar como é." Foi isso que Grace contou ao júri, no inquérito à morte de Robin, e é bem possível que tenham
sido as últimas palavras de sanidade que ela disse na vida.
- Pior do que isso foi o facto de, durante o inquérito, ter dito essas palavras no mesmo tom que com que os bonecreiros as dizem, com aquela voz horrível, estrangulada, de
pato-marreco: Não sei como é que a pessoa se enforca. Tens de me mostrar como é. Foi horrendo. O juiz pediu que lhe trouxessem um copo de água, e um dos membros do júri descontrolou-se
e soltou uma gargalhada. Para Grace foi o fim. O médico exigiu que não voltassem a interrogá-la.
- Foi preciso reconstruir o resto do que se passou naquele dia terrível de praia, e posteriormente na quinta; cada um de nós sabia uma parte. Eu tinha visto Robin arrastando
atrás de si um grande bocado de
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corda, que tinha encontrado no barraco das máquinas. A seguir, Gordon tinha-o visto brincar aos cowboys ao fundo do Campo do Jubileu. E foi Dieter que o foi encontrar enforcado
no Bosque de Gibbet.
- Dieter? Pensava que tinha sido Meg, a Louca. - Aquilo saiu-me antes de eu conseguir controlar-me.
Sally desviou imediatamente os olhos, e eu percebi que era um daqueles momentos em que tinha mesmo de estar caladinha, aguardando os acontecimentos. De repente, ela pareceu
tomar uma decisão.
- Não te esqueças de que a guerra tinha acabado há muito pouco tempo - observou. - Se em Bishop's Lacey se soubesse que o corpo de Robin tinha sido encontrado por um prisioneiro
de guerra alemão... pensa bem no que seria.
- Podia ter sido uma repetição daquela cena de Frankenstein, em que os aldeões furiosos pegam em tochas acesas, e por aí fora.
- Exactamente - confirmou ela. - Além disso, a polícia convenceu-se de que Meg tinha efectivamente lá estado antes de Dieter, embora não tivesse dito nada a ninguém.
- Como é que sabes? - perguntei. - Como é que sabes qual era a opinião da polícia?
Sem se aperceber disso, Sally começou subitamente a arranjar o cabelo.
- Porque havia um certo agente da polícia - respondeu -, cujo nome não posso revelar, que de vez em quando me levava a ver o nascer da Lua sobre a Colina de Goodger.
- Estou a ver - repliquei. E estava. - Eles não queriam chamar Meg a depor.
- É estranho, não é? - retorquiu ela. - Que as autoridades sejam sensíveis a estas coisas. Não, ela tinha sido vista na aldeia na altura em que Robin desapareceu, de maneira
que não estava propriamente na lista dos suspeitos. E por causa da... porque ela era... bem, tu percebes o que eu quero dizer, decidiram que era preferível não envolver Meg
nestas coisas, e assim se fez.
- Quer dizer que foi mesmo Dieter que encontrou o corpo.
- Pois foi. E falou-me nisso logo nessa noite. Ainda estava em estado de choque, e o que ele dizia não fazia grande sentido: que tinha vindo a correr desde o Bosque de Gibbet,
a berrar até ficar rouco...
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saltando por cima das vedações, escorregando na lama... ao chegar ao pátio, olhou para as janelas vazias. Pareciam olhos de mortos, dizia ele, pareciam olhos de mortos, pareciam
as janelas da casa vicarial das Brontè. Mas a verdade é que o pobre Dieter estava em estado de choque. Não sabia o que estava a dizer.
Senti uma volta no estômago, mas atribuí-a à sobremesa que a senhora Mullet nos tinha servido na véspera ao jantar.
- E, por essa altura, onde é que Rupert andava?
- É curioso perguntares isso, porque ninguém se lembra dele. Rupert ia e vinha, muitas vezes à noite. À medida que o tempo ia passando, dava a impressão de estar cada vez
mais viciado naquilo que Gordon lhe fornecia, e as visitas tornavam-se cada vez mais frequentes. Se cá não estava quando Robin morreu, também não estava longe.
- Aposto que havia polícias por todo o lado.
- Claro que sim! Inicialmente, eles não sabiam se tinha sido um acidente ou se Robin tinha sido assassinado.
- Assassinado? - Aquela hipótese nunca me tinha passado pela cabeça. - Mas quem é que havia de querer assassinar um miúdo?
- Já tem acontecido - replicou Sally em voz triste. - Sempre se mataram crianças por razões absurdas.
- E Robin?
- Acabaram por decidir que não havia provas que sustentassem essa hipótese. Para além de Gordon, de Dieter e de mim, e de Meg, a Louca, claro, mais ninguém tinha estado no
Bosque de Gibbet. Pelas pegadas de Robin, que iam desde o Campo do Jubileu e contornavam o antigo patíbulo, percebia-se claramente que ele tinha para ali ido sozinho.
- E tinha representado a cena do teatro de marionetas - completei eu. - Tomando o lugar do carrasco.
- Exactamente. Foi o que eles acharam.
- Ainda assim - insisti -, a polícia deve ter andado bastante atarefada a meter o nariz no bosque.
- Só faltou desenraizar as árvores todas - confirmou ela. - Fitas de medição, moldes de plasticina, fotografias, saquinhos disto e daquilo.
- E não achas estranho que não tenham encontrado o canteiro de cannabis? Não acredito que o inspector Hewitt não tenha dado por ele.
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- Acho que o inspector Hewitt ainda cá não estava - respondeu Sally. - Se bem me lembro, foi o inspector Gully que tomou conta da investigação.
Ah! Então tinha sido ele a tomar a decisão de não levar Meg a tribunal. Não seria grande investigador, mas pelo menos tinha os rudimentos de um coração dentro do peito.
- E qual foi a conclusão? Do inquérito, quero eu dizer.
Sabia perfeitamente que podia descobrir aquilo sozinha, procurando nos jornais da época, que estavam arquivados na biblioteca. Mas para já queria saber o que tinha Sally a
dizer sobre o assunto. Vendo bem, ela tinha assistido aos acontecimentos.
- O juiz disse aos membros do júri que tinham de optar por um de três veredictos: morte por assassínio, morte por acidente ou veredicto inconclusivo.
- E eles?
- Optaram por morte por acidente, embora tivessem levado que tempos a chegar a acordo.
De repente, apercebi-me de que a névoa estava a levantar; Sally apercebeu-se do mesmo. As árvores do bosque estavam ainda cobertas por uma ligeira neblina, mas o rio e toda
a extensão do Campo do Jubileu eram agora banhados pelos raios de um Sol pouco intenso, que lhes conferia o aspecto de uma fotografia aérea retocada à mão.
Por esta altura, quem olhasse da casa da quinta ver-nos-ia com toda a nitidez.
Sem mais uma palavra, Sally trepou para trás do volante do tractor e puxou o arrancador. O motor pegou imediatamente, resmungou ao de leve e a seguir estabilizou num suave
ronronar.
- Já falei de mais - disse-me ela. - Não sei o que me passou pela cabeça. Espero que cumpras a tua promessa, Flavia. - Fitou-me nos olhos e eu vi neles uma espécie de súplica.
- Corro o risco de me meter em sarilhos, compreendes?
Eu acenei com a cabeça, mas não cheguei propriamente a dizer que sim. Com sorte, talvez ainda conseguisse que ela me respondesse a uma última pergunta.
- O que achas tu que aconteceu a Robin e a Rupert?
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Sally voltou a cabeça, cerrou os maxilares, meteu a mudança e avançou pelo campo fora, os pneus do tractor erguendo nos ares nuvens de lama preta, que voltavam a cair no solo
como pássaros feridos de morte.
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Capítulo 20

Fui buscar a Gladys atrás da vedação onde a tinha poisado, tirei as sanduíches de pepino do cesto e sentei-me na margem do rio, em cima da erva molhada, a comer e a pensar
nos mortos.
Tirei o bloco-notas do bolso e abri-o na página do desenho de Meg, onde observei Robin, suspenso pelo pescoço das tábuas apodrecidas do velho cadafalso, com uma expressão
de criança pacificamente adormecida e um ligeiro sorriso ao canto da boca.
Fez-se um dique na minha cabeça, e eu percebi que não podia adiar o assunto mais tempo. Tinha de ir fazer uma visita à biblioteca da terra - ou pelo menos à Secção do Poço,
o edifício exterior onde estavam arquivados os números antigos dos jornais.
A Secção do Poço era uma garagem de automóveis há muito defunta, situada na Vereda das Vacas - um caminho curto e mal cuidado que levava da rua principal até ao rio - e rodeada
de ervas daninhas. De repente, lembrei-me de que, ainda recentemente, tinha sido encarcerada naquele mausoléu cheirando a mofo, e senti um arrepio no fundo da espinha.
Uma parte de mim (a parte calma) dizia: "Desiste disto. Não te metas no assunto. Volta para casa, para o pé da tua família." Mas a outra Parte de mim repetia insistentemente,
num sussurro: "A biblioteca está fechada, só volta a abrir na quinta-feira. Ninguém te vê."
- E a fechadura? - perguntei em voz alta. - Aquilo está fechado à chave.
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- E desde quando é que uma fechadura te impediu de entrares onde querias? - replicou a voz.
Como eu já disse, para quem vinha do rio era fácil aceder à Secção do Poço. Voltei a atravessar a corrente, passei por detrás da igreja (continuava a não haver sinal de carros
da polícia) e segui o antigo caminho à beira-rio que me permitiu chegar rapidamente, e sem correr o risco de ser vista, à Vereda das Vacas.
Não se via ninguém, e eu tentei subir descontraidamente a vereda até à entrada.
Abanei vigorosamente a porta, mas, como eu já estava à espera, estava trancada. Na verdade, tinha sido ali recentemente instalada uma fechadura nova - uma fechadura Yale -
e estava um aviso escrito à mão colado na janela: "Estritamente proibida a entrada, a não ser na companhia da bibliotecária." Quer o aviso, quer a fechadura, deviam ter sido
ali colocados em consequências das minhas mais recentes aventuras.
Embora Dogger me tivesse dado algumas lições sobre a arte de abrir fechaduras sem a correspondente chave, as Yale eram fechaduras intrincadas, exigindo ferramentas que eu
não tinha em meu poder.
As dobradiças da porta ficavam do lado de dentro, pelo que não havia maneira de desapertar os parafusos. E, mesmo que tal fosse possível, seria um absurdo tentar fazê-lo à
vista de qualquer pessoa que circulasse pela rua principal, que ficava ao fundo da vereda.
De maneira que contornei o edifício até às traseiras. No meio das ervas, que iam bem altas, mesmo por debaixo de uma janela, via-se uma peça de metal enferrujado, que dava
a impressão de já ter conhecido melhores dias quando era um motor de um Daimler. Trepei para cima dela e espreitei pelo vidro, que estava quase opaco, de tão sujo.
Os jornais estavam empilhados nas prateleiras de madeira - estavam há que séculos no mesmo sítio e pela mesma ordem - e o interior tinha sido limpo dos destroços provocados
pela minha última visita ao local.
Estava eu em bicos de pés quando um deles me escorregou e só por pouco não meti a cabeça pela janela adentro. Quando me agarrei ao
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parapeito para me equilibrar, senti qualquer coisa desmoronar-se por entre os dedos, após o que uma chuva de grãozinhos caiu ao chão.
Madeira podre, pensei. Mas espera aí! Espera aí um bocadinho - a madeira podre não é cinzenta! Isto é massa de vidraceiro podre!
Saltei para o chão e, segundos depois, voltava a postar-me diante da janela com uma chave de parafusos do estojo de ferramentas da Gladys na mão. Fiz uma certa força nos contornos
do vidro e começaram a soltar-se, com surpreendente facilidade, grandes bocados de massa de vidraceiro. Foi quase fácil de mais!
Escavei com cuidado a toda a volta da janela e em seguida encostei a boca ao vidro e inspirei com força, a fim de tentar criar vácuo. Depois desencostei lentamente a cabeça.
E resultou! A janela soltou-se da armação e deixou-se cair em direcção a mim. Eu agarrei cuidadosamente o vidro pelas arestas e poisei-o no chão com mil cautelas. Em menos
tempo do que leva a contá-lo, saltei pela armação e aterrei no interior.
Embora os vidros partidos na minha anterior aventura tivessem sido limpos, aquele sítio continuava a arrepiar-me. Dirigi-me rapidamente aos números de The Hinley Chronicle
que datavam dos últimos meses de 1945.
É certo que as datas do nascimento e da morte de Robin não tinham sido gravadas na pedra tumular, mas a história que Sally me contara indicava que ele teria morrido algures
depois da colheita desse ano. The Hinley Chronicle era - e continuava a ser - publicada à sexta-feira; consequentemente, não eram assim muitos os números que abrangiam o período
que ia desde o final de Junho até ao fim desse ano. E eu sabia que era mais provável que a notícia tivesse saído num número publicado mais perto do Verão do que num número
publicado mais para o final do ano. E assim tinha sido: sexta-feira, 7 de Setembro de 1945.
Terá hoje lugar, na Esmolaria de Bishop's Lacey, um inquérito à morte de Robin Ingleby, de cinco anos, cujo corpo foi encontrado, na segunda-feira passada, no Bosque de Gibbet,
perto da aldeia. O inspector Josiah Gully, da esquadra de Hinley, recusou-se a fazer quaisquer comentários, mas apela veementemente a qualquer pessoa que tenha alguma informação
sobre a morte da criança que entre imediatamente em contacto com as autoridades policiais de Hinley.
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Imediatamente abaixo tinha sido publicada a seguinte notícia:
Informam-se todos os interessados de que o posto dos correios e confeitaria da rua principal de Bishop's Lacey fechará hoje (sexta-feira, 7) ao meio-dia, voltando a abrir,
como de costume, no sábado de manhã. Todos os clientes serão bem-vindos. Letitia Cool, a proprietária.
A menina Cool era a funcionária dos correios e a fornecedora de doces da aldeia, e só me ocorria uma razão para explicar que tivesse fechado a loja a uma sexta-feira.
Passei ansiosamente ao número da semana seguinte, saído a 14 de Setembro.
O inquérito convocado para investigar as circunstâncias da morte de Robin Ingleby, de cinco anos, morador na Quinta de Culverhouse, perto de Bishop's Lacey, foi encerrado
na sexta-feira às 15.15, após quarenta minutos de deliberação. O juiz acolheu o veredicto de morte por acidente, expressando os seus pêsames aos pais enlutados.
E era tudo. Era manifesto que a aldeia tinha querido poupar aos pais de Robin a dor de verem impressos os pormenores horrendos do caso.
Uma rápida vista de olhos pelos restantes jornais apenas revelou a breve notícia do funeral, que referia que o caixão tinha sido transportado por Gordon Ingleby, Bartram Tennyson
(o avô de Robin, que tinha vindo de Londres), Dieter Schrantz e Clarence Mundy, o proprietário do táxi. Não se falava de Rupert.
Voltei a meter os jornais na prateleira e, sem mais danos pessoais do que um joelho arranhado, pulei novamente pela janela, desta vez para o exterior.
Bolas! Tinha começado a chover. Uma nuvem de cauda quase negra postara-se em frente ao sol, produzindo um súbito arrefecimento do ar.
Atravessei a correr o campo de ervas que ia dar ao rio, onde as gotas de chuva perfuravam já as águas, formando pequenas crateras
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absolutamente perfeitas. Agachei-me na margem e apanhei uma mão-cheia de lama, que estava bastante pegajosa.
Voltei a correr para a Secção do Poço e depositei a lama, num montículo, no parapeito da janela. Tendo o cuidado de não me sujar com uma ponta que fosse, fui-a passando entre
os dedos, até constituir uma família numerosa de cobras compridas. Em seguida, voltei a trepar para cima do motor ferrugento, peguei na janela pelos contornos e coloquei-a
no sítio com todo o cuidado. Usando o dedo como espátula improvisada, apliquei a lama a toda a volta; ficou com um ar sólido e resistente.
Tanto podia durar muito tempo como pouco. Se a chuva a não fizesse escorrer, até podia ser que durasse para sempre. Mas não seria preciso, pensei. Assim que tivesse oportunidade,
havia de substituir a lama por massa de vidraceiro a sério, aplicada com uma espátula a sério, trazida de Buckshaw, onde Dogger andava permanentemente a reparar as janelas
soltas da estufa em decadência.
"A Doida da Espátula voltou a atacar!", haviam de sussurrar os habitantes da aldeia.
Após nova corrida até ao rio, para limpar a lama que me tinha secado nas mãos, fiquei quase apresentável - não fosse o facto de estar ensopada até aos ossos.
Levantei a Gladys do chão e avancei pela Vereda das Vacas fora, com ar descontraído, como quem não quer a coisa, até à rua principal.
A confeitaria da menina Cool, que incorporava o posto dos correios da aldeia, era uma relíquia georgiana muito estreita, aninhada entre uma casa de chá e uma agência funerária,
para leste, e uma loja de peixe, para oeste. As montras, infestadas de moscas, estavam esparsamente decoradas com caixas de chocolates já muito desmaiadas, cujas tampas ostentavam
damas gorduchas de plumas e meias às riscas, rindo-se descaradamente, sentadas de lado em enormes triciclos muito incómodos.
Era aqui que Ned tinha comprado os chocolates que deixara à porta de nossa casa. E eu tinha a certeza disso, porque avistei à esquerda a
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marca do local onde a caixa havia repousado desde os tempos em que a rua principal era percorrida por carruagens puxadas por cavalos.
Por instantes, perguntei a mim própria se Feely já teria provado os frutos do meu trabalho, mas afastei imediatamente o pensamento do espírito. Tais prazeres teriam de ser
reservados para outra altura.
A campainha do alto da porta ressoou, a anunciar a minha entrada na loja, e a menina Cool ergueu os olhos de trás do balcão dos correios.
- Flavia, minha querida! - disse. - Que surpresa tão agradável! Olha, estás toda molhada! Ainda há dez minutos estava a pensar em ti, e de repente tu apareces. Na verdade,
em quem eu estava a pensar era no teu pai, mas é a mesma coisa, não é verdade? Tenho aqui uma sequência de selos que talvez lhe interesse: quatro Jorges com uma perfuração
a mais, que passa mesmo diante da face. É uma coisa estranha, não achas? A mim parece-me uma grande falta de respeito. Foi a menina Reynolds, de Glebe House, que os comprou
na sexta-feira passada, e no sábado veio devolvê-los.
- "Têm demasiados orifícios!", declarou. "Recuso-me a utilizá-los nas cartas que escrevo a Hannah" - é a sobrinha que ela tem em Shropshire -, "ainda me prendem por infracção
da Lei Postal."
E estendeu-me um sobrescrito de papel bíblia.
- Obrigada, menina Cool - respondi eu. - Com certeza que o pai vai gostar de os ter na sua colecção, e sei que há-de gostar que eu lhe agradeça ter-se lembrado dele.
- És uma menina tão simpática, Flavia - replicou ela, corando. - Ele deve sentir-se muito orgulhoso de ti.
- E sente - retorqui eu. - Muito mesmo.
Na verdade, era uma ideia que nunca me tinha ocorrido.
- Não podes andar por aí toda molhada, querida. Vai ali à salinha das traseiras despir-te, que eu penduro essas coisas na cozinha, para secarem. Tenho uma manta ao fundo da
minha cama; embrulha-te nela para conversarmos as duas um bocadinho.
Cinco minutos mais tarde, estávamos novamente na loja, eu embrulhada numa gigantesca manta e a menina Cool olhando o mundo detrás dos seus oculinhos, parecendo mesmo o feitor
de um dos postos comerciais das nossas companhias ultramarinas. Ela já tinha
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começado a atravessar a loja em direcção ao enorme frasco dos paus de marroio-branco.
- Quantos queres hoje, querida?
- Não quero nenhum, obrigada. Esta manhã saí de casa um bocado à pressa e não trouxe o porta-moedas comigo.
- Tira um na mesma - replicou ela, estendendo-me o frasco. - Eu também vou tirar um. Os paus de marroio-branco são para ser partilhados com os amigos, não achas?
Nisso estava ela completamente enganada; os paus de marroio-branco eram para ser engolidos em gula solitária, de preferência num quarto fechado à chave, mas não me atrevi
a dizer-lho. Estava concentrada na armadilha que queria preparar-lhe.
Deixámo-nos estar sentadas num silêncio cúmplice durante uns minutos, a chupar cada uma o seu doce. Pela janela, entrava uma luz cinzenta e aquosa que enchia a loja, iluminando
a partir de dentro as filas de frascos de vidro de múltiplos doces e emprestando-lhes um brilho pálido e doentio. Quem nos visse ali, havia de achar que éramos um par de alquimistas,
planeando o nosso próximo ataque aos elementos.
- Robin Ingleby gostava de paus de marroio-branco, menina Cool?
- Mas que pergunta tão estranha! Como foi que te lembraste de tal coisa?
- Não sei bem - respondi eu com ar descomprometido, passando o dedo pela aresta de uma caixa de exposição. - Acho que foi por ver a cara de Robin naquele boneco do espectáculo
de marionetas. Foi um choque tão grande. Não tenho conseguido deixar de pensar nele.
E era verdade.
- Oh, pobrezinha! - replicou ela. - Acho que nenhum de nós consegue deixar de pensar nele, mas ninguém queria falar no assunto. Foi quase... como é que se diz? Obsceno. E
o pobre sujeito! Não tenho conseguido pregar olho depois do que se passou. Mas calculo que todos nós ficámos muito abalados, não foi?
- Fez parte do júri do inquérito de Robin, não fez?
Eu estava a ficar bastante boa nisto. Ela perdeu imediatamente o brilho.
- Bem... pois, sim, fiz de facto. Mas como é que tu sabes?
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- Tenho a impressão de que o pai falou nisso numa altura qualquer. Ele tem muito respeito por si, menina Cool. Mas calculo que já saiba.
- É um respeito totalmente recíproco, posso garantir-te - asseverou ela. - Sim, de facto fui membro do júri. Mas por que perguntas?
- Bem, se quer que lhe diga a verdade, a minha irmã Ophelia e eu tivemos uma discussão sobre isso. Ela afirmava que, a certa altura, houve quem pensasse que Robin talvez tivesse
sido morto. Eu não concordei com ela. Foi um acidente, não foi?
- Julgo que nos disseram que não podíamos falar sobre isso começou ela. - Mas a verdade é que já passaram tantos anos, não foi, querida? Acho que te posso dizer, só aqui entre
amigas, nota bem, que de facto a polícia considerou essa hipótese. Mas não havia nada por esse lado. Nem uma migalha de indício. O rapazito foi para o bosque sozinho e enforcou-se
sozinho. Foi um acidente. Foi isso que ficou estabelecido no nosso veredicto.
- Mas como é que perceberam que ele estava sozinho? Foram realmente muito inteligentes, para chegarem a essa conclusão.
- Ora, foi por causa das pegadas, querida! Foi por causa das pegadas! Não havia mais pegadas nenhumas em torno do cadafalso. Ele foi sozinho para o bosque.
O meu olhar desviou-se para a montra da loja. A chuva tinha começado a abrandar.
- Tinha chovido? - perguntei, com súbita inspiração. - Antes de o terem encontrado?
- Na verdade, tinha - respondeu ela. - Tinha chovido a potes.
- Ah - prossegui eu, como quem não quer a coisa. - Veio cá algum senhor Mutt Wilmott buscar o correio? Deve ser posta-restante.
Percebi imediatamente que tinha ido longe de mais.
- Lamento imenso, querida - replicou a menina Cool, erguendo o queixo num gesto quase imperceptível -, mas nós não podemos dar esse género de informações.
- É um produtor da BBC - prossegui eu, com ar de jovem quase apaixonada pela estrela. - E é bastante famoso. É ele que está, ou pelo menos estava, encarregado do programa
de televisão do senhor Porson, O Reino da Magia. Estava com esperanças de conseguir que ele me desse um autógrafo.
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- Se ele aí vier, eu digo-lhe que tu perguntaste por ele - prometeu a menina Cool em tom mais suave. - Julgo que ainda não tive o prazer de conhecer o cavalheiro.
- Oh, obrigada, menina Cool - balbuciei. - Tenho imensa vontade de acrescentar umas personalidades da BBC à minha colecção. - Às vezes, tinha um profundo desprezo por mim
própria. Mas era um sentimento que não durava muito. - Olha, parece que parou de chover prossegui. - Tenho mesmo de ir andando. A minha roupa já deve estar seca que chegue
para me dar até casa, e não quero que o pai se preocupe com a minha ausência. Ultimamente tem tido tanto em que pensar.
Eu sabia perfeitamente que todos os habitantes de Bishop's Lacey estavam a par das dificuldades financeiras do pai. Numa aldeia, ter contas por pagar era equivalente a lançar
um foguete luminoso durante a noite. Já agora, podia conquistar alguns pontos por bom comportamento.
- És uma menina tão atenta aos outros, Flavia - comentou ela. - Come mais um pau de marroio-branco.
Minutos depois, estava eu vestida e à porta da loja. Lá fora, o Sol tinha saído de detrás das nuvens e o céu estava ornamentado com um arco-íris perfeito.
- Obrigada por esta conversa tão simpática, menina Cool, e pelos paus de marroio-branco. Para a próxima serei eu a convidá-la, faço questão!
- Regressa bem a casa, querida - disse-me ela. - Cuidado com as poças de água. E sê discreta; refiro-me aos selos. Em princípio, não estamos autorizados a permitir a circulação
dos defeituosos.
Eu pisquei-lhe o olho com uma expressão horrendamente conspirativa, ao mesmo tempo que espetava o polegar para trás.
Ela não me tinha informado se Robin Ingleby gostava de paus de marroio-branco, mas isso também pouco importava, não é verdade?
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Capítulo 21

Dei um belo abanão à Gladys, fazendo-lhe voar gotas de chuva da armação como voa a água de um cão molhado. Preparava-me para me pôr a andar para casa quando vi qualquer coisa
na montra da agência funerária que me chamou a atenção; a bem dizer, foi apenas um ligeiro movimento.
Embora se dedicasse ao mesmo ramo, no mesmo local, desde os tempos de Jorge III, a agência de Sowbell & Sons tinha na rua principal uma atitude tão discreta e distanciada
como se estivesse simplesmente à espera de um autocarro. Na realidade, era bastante raro ver-se alguém entrar ou sair do local.
Aproximei-me para ver melhor, fingindo-me interessada nos cartões de contorno preto com comunicação de óbitos que estavam em exposição na montra. Embora não tivesse reconhecido
o nome de nenhum dos mortos (Dennison Chatfield, Arthur Bronson-Willowes, Margaret Beatrice Peddle), debrucei-me intensamente sobre eles, correspondendo à leitura de cada
um dos nomes com um sentido aceno de cabeça.
Movendo os olhos da esquerda para a direita, como se estivesse a ler as letras inscritas nos cartões, mas na realidade concentrando o olhar no que se passava no interior sombrio
do estabelecimento, vi uma pessoa agitar as mãos enquanto falava. O que me tinha chamado a atenção tinha sido a camisa de seda amarela e o lenço lilás: era Mutt Wilmott!
Antes de a razão ter tempo de me travar, já eu tinha entrado de supetão na agência funerária.
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- Bom dia, senhor Sowbell - disse. - Espero não vir interromper. Queria só dizer-lhe que a nossa experiência de química acabou por resultar na perfeição.
Tenho de confessar que estava a dourar ligeiramente a pílula. Na verdade, eu tinha-o apanhado no adro de São Tancredo num domingo a seguir às cerimónias da manhã para lhe
perguntar - como especialista em métodos de conservação, por assim dizer - se ele achava que era possível obter um fluido de embalsamamento que fizesse efeito colhendo, macerando,
fervendo e destilando ácido fórmico de um grande número de formigas encarnadas (Formica rufa).
Ele tinha passado os dedos pelo queixo - aliás comprido -, tinha coçado a cabeça e ficara a olhar fixamente para os ramos dos teixos durante algum tempo, antes de me responder
que nunca tinha pensado nisso.
- Tenho de ir à procura, menina Flavia - declarou.
Mas eu sabia que ele nunca iria à procura coisa nenhuma, e tinha toda a razão. A partir de certa idade, um artesão torna-se muito reticente em discutir os truques da sua arte.
Nesta altura, ele encontrava-se numa zona sombria do compartimento, ao lado de uma porta de painéis escuros, que ia certamente dar a uma sala horrenda das traseiras, uma sala
que eu estaria disposta a pagar caro para ver.
- Flavia - disse ele, com um aceno de cabeça que me pareceu um tanto fatigado. - Tenho de te pedir desculpa - prosseguiu -, mas nós estávamos aqui a ter uma...
- Ora, ora - interveio Mutt Wilmott -, creio bem que esta menina é a jovem e ubíqua protegida de Rupert, a menina ...
- Luce - completei eu.
- Pois, exactamente, Luce. - E sorriu com ar condescendente, como se não precisasse que eu lhe lembrasse do nome, como se estivesse apenas a tentar arreliar-me com a falta
de memória.
Tenho de confessar que, tal como Rupert, também ele tinha uma voz profissional absolutamente maravilhosa, um fluxo de palavras cheio e melífluo, que lhe saía como se, no lugar
da laringe, tivesse um tubo de madeira de um órgão. A BBC devia criar gente desta num viveiro secreto.
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- Na qualidade de uma das jovens protegidas de Rupert, por assim dizer - prosseguiu Mutt -, gostarás de saber que a tia, como nós chamamos à British Broadcasting Corporation,
está a organizar o género de funeral que reserva às suas estrelas mais brilhantes. Não será propriamente um funeral na Abadia de Westminster, como compreenderás, mas é o outro
logo a seguir. Assim que aqui o senhor Sowbell enviar os... restos mortais para Londres, poderá começar o luto público: a câmara ardente, os tributos florais, a mãe de dez
filhos de Weston-super-Mare ajoelhando-se diante do corpo juntamente com as dez crianças afogadas em lágrimas, e tudo isto sob o olhar das câmaras de televisão. O próprio
director-geral, nada menos, sugeriu que seria um gesto pungente colocar o esquilo Snoâdy ao fundo do caixão, montado numa luva vazia.
- Ele está cá? - perguntei, apontando para a sala das traseiras. - Rupert ainda cá está?
- E está bem entregue - confirmou Mutt Wilmott com um aceno de cabeça, a que o senhor Sowbell correspondeu com um sorriso de confirmação e uma ligeira vénia em jeito modesto.
Eu nunca tinha querido nada na minha vida com tanta intensidade como naquele momento queria perguntar se podia dar uma vista de olhos ao cadáver; daquela vez, porém, a minha
imaginação, normalmente tão ágil, revelou-se um verdadeiro fracasso. Não me ocorreu uma única razão plausível para ir dar uma vista de olhos aos "restos mortais" de Rupert
- como lhes tinha chamado Mutt Wilmott; nem sequer uma razão implausível me passou pela cabeça naquele momento.
- Como é que Nialla está a reagir? - perguntei. Era um tiro a bsolutamente no escuro.
Mutt franziu o sobrolho.
- Nialla? Nialla pôs-se a andar não sei para onde - respondeu. - Ninguém sabe dela.
- Se calhar instalou-se no Treze Patos Marrecos - sugeri eu. - É possível que estivesse a precisar de um banho quente.
Tinha a esperança de que Mutt mordesse o isco, e de facto assim aconteceu.
- No Treze Patos Marrecos não está ela - replicou. - É onde eu tenho estado acampado desde que cheguei.
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Ou seja! Tal como eu tinha suspeitado, Mutt Wilmott tinha estado nas proximidades de São Tancredo antes, durante e possivelmente depois de Rupert ter sido assassinado.
- Bem - declarei -, lamento imenso tê-los incomodado.
Ainda eu não tinha chegado à porta já eles estavam novamente a conferenciar.
Como tantas vezes acontece no Verão, o céu limpou rapidamente. As nuvens escuras deslocaram-se para leste e as avezinhas recomeçaram a cantar a plenos pulmões. Embora fosse
ainda bastante cedo, e apesar do ar fresco e do calor do Sol, dei por mim a bocejar que nem um gato enquanto atravessava os campos de regresso a Buckshaw. Talvez devido ao
facto de me ter levantado antes do amanhecer; ou devido ao facto de me ter deitado muito tarde na véspera.
Fosse como fosse, senti-me de repente absolutamente esgotada. Daffy tinha certa vez observado que o famoso diarista Samuel Pepys andava sempre a meter-se na cama, e o pai
gabava constantemente o extraordinário poder reparador de uma pequena sesta. Desta vez - uma vez sem exemplo - percebi um e outro.
Mas como é que eu havia de entrar em casa sem ninguém me ver? A senhora Mullet guardava a porta da cozinha como os cães guardam os túmulos dos imperadores chineses; se entrasse
pela porta da frente, corria o risco de ser vista pela tia Felicity, que imediatamente me encarregaria de uma série de tarefas que haviam de me ocupar o resto do dia.
A cocheira era o único local de Buckshaw onde uma pessoa podia entrar e sair à vontade, sem ser vista nem ouvida.
Estacionei a Gladys de encontro a um dos carvalhos que ornamentam a alameda de acesso à nossa casa e contornei sorrateiramente a mansão. Numa das extremidades da cocheira
havia uma porta que dava para aquilo que fora em tempos o recinto de espera dos cavalos. Pulei a cerca, ergui o ferrolho de ferro forjado e esgueirei-me silenciosamente para
o interior.
Embora estivesse ligeiramente encandeada devido à luz intensa do exterior, consegui ainda assim detectar os contornos indistintos do
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Rolls-Royce Vintage de Harriet, um Phantom II, cujo radiador de níquel luzia melancolicamente na meia luz. Pelas janelas, que eram pequenitas e estavam cobertas de pó, entrava
apenas uma luz difusa e enfraquecida, e eu sabia perfeitamente que tinha de ver com cuidado onde punha os pés.
De vez em quando, vinha para aqui pensar na vida. Trepava para dentro deste palácio sobre rodas e, no conforto do respectivo interior, sentada no couro cor de marfim, fingia
ser Harriet e estar a preparar-me para meter as mudanças e pôr-me a andar em busca de uma vida melhor.
Peguei na maçaneta da porta e fi-la rodar de mansinho, ciente de que, se Dogger por ali andasse, seria alertado pelo menor ruído e viria a correr ver quem era o ladrão que
tinha entrado na cocheira. Deus abençoasse o bom e velho navio que era este Rolls-Royce, e todos quantos nele se fizessem ao mar, pensei, enquanto a porta se abria em completo
silêncio e eu me içava para o lugar do condutor.
Inalei o odor da pelúcia de automóvel, como Harriet teria certamente feito, e preparei-me para me enrolar numa bola. Com sorte, naquela quase escuridão, estaria a dormir em
menos de um minuto. Mais tarde, teria tempo de sobra para pensar em assassínios.
Quando me espreguicei luxuriosamente, os meus dedos roçaram em algo que, ao toque, me pareceu a pele de uma perna humana. Antes de eu conseguir gritar, taparam-me firmemente
a boca com uma mão.
- Não te mexas! - sussurraram-me ao ouvido.
Revirei os olhos, qual cavalo num matadouro. A luz era fraca, mas permitiu-me ver a cara da pessoa que estava a impedir-me de respirar. Era Nialla.
O meu primeiro instinto foi morder-lhe um dos dedos: horroriza-me ser fisicamente agarrada, e em certos momentos os meus reflexos são mais velozes do que a minha razão.
- Não digas nada! - continuou ela a sussurrar-me, ao mesmo tempo que me dava um abanão. - Preciso da tua ajuda!
Bolas! Ela tinha proferido a palavra de passe das mulheres, tinha enunciado aquelas palavrinhas que remontam à névoa dos tempos, a um compromisso estabelecido num pântano
primordial. Mal as ouvi, perdi imediatamente toda e qualquer capacidade de reacção, limitando-me a acenar com a cabeça. Ela baixou a mão com que me tapava a boca.
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- A polícia anda à minha procura? - perguntou.
- Eu... acho que não. Não sei - respondi. - Não sou propriamente o género de pessoa a quem eles fazem confidências.
Ainda estava ligeiramente aborrecida com o facto de ela me ter agarrado e abanado.
- Vá lá, Flavia, deixa-te dessas coisas - pediu ela. - Não te ponhas com cerimónias! Eu tenho de saber se eles andam à minha procura.
- Não vejo ninguém da polícia desde sábado à noite - retorqui eu -, desde que Rupert foi... depois de Rupert ter sido...
Apesar de eu própria não ter problemas nenhuns com aquela palavra, não consegui dizê-la na cara de Nialla.
- Assassinado - completou ela, recostando-se. - Nem eu. Aquele inspector não parava de me fazer perguntas. Foi horrível.
- Assassinado? - A palavra saiu-me da boca como se eu nunca tivesse pensado naquela hipótese. - Por que achas que Rupert foi assassinado?
- Toda a gente acha isso: a polícia, e agora tu. Acabaste de dizer "depois de Rupert ter sido...". É uma construção que implica um certo verbo, não é? Assassinado... morto,
tanto faz. O que tu ias dizer não era "depois de Rupert ter morrido", e não finjas que era. Eu não sou estúpida, Flavia, por favor, não continues a tratar-me como se fosse.
- Talvez tenha sido um acidente - disse eu, atrasando a conversa para pôr ordem nos meus pensamentos.
- E achas que os polícias passavam metade da noite a grelhar o público se achassem que tinha sido um acidente? - Ela tinha razão. - O pior de tudo - prosseguiu - é que eles
estão convencidos de que fui eu.
- E eu percebo porquê - declarei eu.
- O quê? Mas afinal tu estás do lado de quem? Eu digo-te que preciso de ajuda e de repente tu acusas-me de ser uma assassina?
- Não estou a acusar-te de seres uma assassina - retorqui eu. - Estou apenas a fazer notar o óbvio.
- A saber?
Ela estava cada vez mais irritada.
- A saber - comecei eu, respirando fundo -, que tu tens andado escondida, que Rupert te batia, que ele te enganava com outra e que tu estás grávida.
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Estas águas eram muito mais profundas do que aquelas em que eu habitualmente nadava, mas eu tinha decidido que havia de sobreviver, como um cão lançado à água sobrevive agitando
as patas. Apesar disso, as minhas palavras tiveram um efeito notável sobre Nialla. Por momentos, receei que ela me esbofeteasse.
- É assim tão óbvio? - perguntou por fim, e tremia-lhe o lábio.
- Para mim é - respondi eu. - Pelos outros não posso responder.
- E achas que fui eu? Que fui eu que matei Rupert?
- Não sei - retorqui. - Cá para mim, tu não serias capaz de semelhante coisa. Mas a verdade é que eu não sou nenhum Spilsbury.
Embora Sir Bernard Spilsbury, o famoso médico patologista, tivesse sido um ás a detectar assassinos - tendo descoberto, nomeadamente, o doutor Crippen e o major Armstrong,
dois envenenadores de monta -, tinha acabado, estranhamente, por se suicidar com gás no próprio laboratório. Ainda assim, parecia-me que, se fosse vivo, Spilsbury teria sido
o primeiro a salientar que Nialla tinha tido meios, motivo e oportunidade de cometer este crime.
- Pára lá de papaguear dessa maneira. Tu achas que eu assassinei Rupert?
- Assassinaste? - contra-ataquei eu.
- Não posso responder a isso - declarou ela. - É melhor não me perguntares.
Eu conhecia bem este género de argumentação tipicamente feminina. Vivia há onze anos debaixo do mesmo tecto que Feely e Daffy, o que me tinha tornado perfeitamente imune a
estas tentativas de escapar a uma conversa directa.
- Muito bem - prossegui. - Se não foste tu, então quem foi?
Por esta altura já me tinha habituado à falta de luz da cocheira, e percebi que os olhos de Nialla aumentavam de tamanho, mais se assemelhando a duas luas gémeas, iluminadas
por dentro.
Se guiu-se um silêncio, bastante prolongado e muito pouco agradável.
- Se não foste tu - insisti eu por fim -, o que estás a fazer aqui escondida?
- Não estou escondida! Precisava de sossego. Já te disse! A polícia, os Mullet...
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- Compreendo que os Mullet sejam maçadores - garanti-lhe. - Por mim, preferia passar uma manhã na cadeira de um dentista do que passar uma hora a ouvir a senhora Mullet a
tagarelar.
- Não digas essas coisas - atalhou Nialla. - Eles foram os dois muito simpáticos, em especial Alf. É um cavalheiro da velha cepa, um homem encantador, que me fez lembrar o
meu avô. Mas eu precisava de me esconder em qualquer lado a pensar, a recompor-me. Não imaginas o que é a pessoa sentir que está a desfazer-se toda pelas costuras.
- Imagino sim - garanti-lhe eu. - Imagino mais do que tu pensas. Venho muitas vezes fechar-me aqui quando preciso de estar sozinha.
- Então deve ter sido isso. Eu pensei logo em Buckshaw. Nunca lhes passará pela cabeça, a nenhum deles, virem procurar-me aqui. A bem dizer, não foi assim muito difícil cá
chegar.
- O melhor é voltares a dar sinal de ti - aconselhei-a - antes de eles se aperceberem de que tu desapareceste. O inspector não estava na igreja quando eu passei por lá. Calculo
que se tenham deitado bastante tarde. Uma vez que ele já te interrogou, é natural que tivesses ido dar uma grande volta pelos campos, não é verdade?
- Pois é... - respondeu ela tentativamente.
- Além disso - acrescentei no meu tom habitualmente animado -, eu sou a única pessoa que sabe que tu aqui estiveste.
Nialla meteu a mão na bolsa da porta do Rolls-Royce e tirou de lá qualquer coisa, que se soltou de uma tira de papel vegetal. Ela poisou o objecto no colo, e eu não pude deixar
de reconhecer a precisão da embalagem, mesmo depois de aberta.
- Tu e outra pessoa - confirmou, estendendo-me uma sanduíche de pepino. - Toma, come qualquer coisa. Deves estar esfomeada.
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Capítulo 22

- Vá lá! Vá lá! - gorgolejava Dogger, e tremiam-lhe as mãos como tremem as folhas no final do Outono. Eu estava postada à porta da estufa, mas ele não me via.
Tinha uma das lâminas do canivete saída em ângulo recto e tentava, mas com muita falta de jeito, afiá-la numa pedra de amolar. A lâmina escorregava de um lado para o outro,
fugindo-lhe das mãos e fazendo uns ruídos arrepiantes contra a superfície negra da pedra.
Pobre Dogger. Estes episódios visitavam-no sem aviso prévio, e podiam ser despoletados praticamente por qualquer coisa: uma palavra, um cheiro, um fragmento de uma melodia.
Ele vivia à mercê daquela memória devastada.
Recuei lentamente até me encontrar do outro lado do muro do jardim, altura em que comecei a assobiar baixinho, aumentando lentamente o volume. Queria dar a impressão de que
acabava de atravessar o relvado e me dirigia à horta. A meio caminho da estufa, transformei o assobio numa cançoneta que tinha aprendido antes de ter sido excomungada das
Guias:
Certo malanárete acampou à beira-rio
À sombra de um eucalipto
E enquanto esperava que o chá fervesse
Ia cantando este dito:
"Quem quer dançar comigo esta noite?"
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Contornei a esquina e fui dar à estufa.
- Bom dia, amigo! - cumprimentei, com um sorriso de orelha a orelha.
- McCorquedale? És tu? - perguntou Dogger, e falava tão baixinho que a voz dele parecia uma brisa agitando as cordas de uma harpa velha. - Bennet veio contigo? Conseguiram
recuperar a língua?
Tinha a cabeça inclinada para um dos lados, como que à escuta, a mão em pala tapando-lhe os olhos, que voltara para cima, olhando como olham os cegos para a luz que incidia
nas janelas da estufa.
Tive a sensação de ter entrado de rompante num santuário, e senti um arrepio percorrer-me a espinha de alto a baixo.
- Sou eu, Dogger, a Flavia - consegui finalmente dizer.
Ele voltou-se para mim com uma expressão de total espanto, de sobrolho franzido.
- Flavia?
E o meu nome saiu-lhe do peito como sai um sussurro de um poço abandonado.
Percebi que já tinha começado a regressar, com grande dificuldade, daquilo que tinha tomado conta dele, que a luz lhe subia fatigadamente aos olhos, vinda das profundezas,
quais peixinhos dourados num lago ornamental.
- A menina Flavia?
- Desculpa-me - pedi-lhe, tirando-lhe o canivete das mãos, que continuavam a tremer. - Dei cabo dele? Precisei dele ontem para cortar um bocado de corda, e se calhar dei cabo
da lâmina. Mas eu compro-te outro.
Esta conversa era pura e simples fantasia, porque eu não tinha tocado sequer no canivete dele, mas eu já tinha aprendido que, em determinadas circunstâncias, não é apenas
aceitável contar uma peta, pode mesmo ser um acto de graça. Tirei-lhe o canivete das mãos, abri a lâmina por completo e comecei a esfregá-la, em círculos, na superfície da
pedra.
- Não, afinal está óptima - observei. - Bolas! Estava metida num grande sarilho se te tivesse estragado o teu melhor canivete, não estava?
Fechei a lâmina e devolvi-lhe o canivete. Dogger aceitou-o e, por esta altura, já tinha os dedos bastante mais firmes.
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Voltei ao contrário um balde vazio, sentei-me em cima dele e ali ficámos os dois em silêncio.
- Foi simpático da tua parte teres-te lembrado de levar de comer a Nialla - disse eu por fim.
- Ela precisa de que a tratem bem, porque está...
- Grávida - larguei eu.
- Exacto.
- Mas como é que tu sabias? Não foi com certeza ela que te disse.
- Excesso de salivação - esclareceu-me ele. - E telangiectasia. -Telan... quê?
- Telangiectasia - repetiu ele num tom mecânico, como se estivesse a ler a palavra num livro invisível. - Uma rede de veias fininhas em torno da boca, do nariz e do queixo.
Não é vulgar, mas às vezes acontece no princípio da gravidez.
- Tu espantas-me, Dogger - declarei eu. - Como é que tu sabes estas coisas?
- São coisas que me circulam no espírito como rolhas no vasto mar - explicou-me ele. - Devo ter lido em qualquer lado. Houve um período em que tinha muito tempo livre.
- Ah! - respondi eu. Há que séculos que ele não falava deste assunto. Mas o cativeiro de Dogger não era assunto sobre o qual se falasse
abertamente, e eu sabia que era melhor mudar de conversa.
- Achas que foi ela? - perguntei. - Que foi ela que matou Rupert? Dogger passou cuidadosamente os dedos pelas sobrancelhas,
como se pensar fosse um enorme esforço para ele.
- A polícia deve achar que sim - respondeu, acenando lentamente com a cabeça. - Sim, a polícia vai achar que sim. E eles não tardam aí.
Ora acontece que ele estava cheio de razão.
- É um facto perfeitamente sabido - proclamava a tia Felicity - que a Peste Negra foi trazida para Inglaterra pelos advogados. Shakespeare dizia que devíamos enforcá-los a
todos, do primeiro ao último, e à luz da reforma sanitária da modernidade, sabemos agora que ele tinha razão. Isto não pode ser, Haviland.
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Meteu uma mão-cheia de papéis dentro de uma caixa de chapéus coberta de pó e fechou a tampa.
- É absolutamente inacreditável a maneira como foste deixando andar as coisas. A não ser que aconteça alguma coisa, em breve te verás obrigado a vender Buckshaw e a instalar-te
num apartamento de Battersea. Sem água quente.
- Bom dia a todos - cumprimentei eu entrando na biblioteca, e fingindo, pela segunda vez em menos de meia hora, que não sabia o que se estava ali a passar,
- Ah, Flavia - correspondeu o pai. - Tenho a impressão de que a senhora Mullet está a precisar de ajuda na cozinha.
- Com certeza - acedi eu. - E a seguir tenho autorização para ir ao baile?
O pai olhou para mim com ar espantado. Não tinha percebido a minha espirituosa réplica.
- Flavia! - interveio a tia Felicity. - Isso não é maneira de uma filha se dirigir ao pai. Esperava que já te tivesses deixado dessas graçolas sem graça. Não percebo como
é que tu não tens mão nestas pequenas, Haviland.
O pai dirigiu-se à janela e pôs-se a contemplar o lago artificial e a fantasia ornamental que o decorava. Estava a reagir como tantas vezes reagia, permitindo que pelo menos
os olhos lhe escapassem a uma situação desagradável.
Subitamente, deu meia volta e encarou a irmã.
- Bolas, Lissy - protestou, num tom de tal maneira intenso, que me parece que até ele ficou admirado. - As coisas nem sempre são fáceis para elas. Não... as coisas nem sempre
são fáceis para elas.
Acho que fiquei de boca aberta.
Querido paizinho! Tive vontade de o abraçar ali mesmo, e, se qualquer de nós fosse uma pessoa diferente, tinha-o abraçado mesmo. A tia Felicity regressou à tarefa de remexer
nos papéis.
- Legados estatutários... bens pessoais - enunciou com uma fungadela. - Quando é que isto irá acabar?
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- Flavia - disse Feely quando eu passei diante da porta da sala de estar -, tens um momento?
Disse-o com uma expressão tão delicada que eu fiquei logo desconfiada. Ela estava a preparar alguma.
Depois de eu entrar na sala, Daffy, que estava ao pé da porta, fechou-a suavemente.
- Temos estado à tua espera - disse Feely. - Senta-te, por favor.
- Prefiro ficar de pé - respondi. Elas estavam ambas de pé e, em caso de fuga súbita, eu ficaria em desvantagem.
- Como preferires - retorquiu Feely, sentando-se ao lado de uma mesinha e pondo os óculos. Daffy continuou de pé, encostada à porta. - Lamento muito, mas temos uma notícia
não muito agradável a comunicar-te prosseguiu Feely, brincando com os óculos qual juiz de um tribunal central.
Eu nada disse.
- Enquanto tu andavas a vadiar por aí, nós tivemos uma reunião e decidimos que tens de te ir embora.
- Em suma, votámos por te expulsar da família - interveio Daffy. - O voto foi unânime.
- Unânime? - repeti eu. - Isto deve ser mais uma das vossas estúpidas...
- Dogger advogou que fôssemos indulgentes, como seria de esperar, mas foi vencido pela tia Felicity, que tem maior peso nestas matérias. Ele queria que te autorizássemos a
ficar até ao final da semana, mas infelizmente não podemos permitir tal coisa. Está decidido que terás de partir ao pôr do Sol.
- Mas...
- O pai encarregou o senhor Pringle, o advogado, de redigir um Acordo de Devolução para te devolver ao Lar de Mães Solteiras; e elas serão obrigadas a receber-te.
-Por causa do Acordo, compreendes? - interveio" Daffy. - Está nos estatutos. Não podem dizer que não. Não podem recusar-se.
Cerrei os punhos com força, porque comecei a sentir as lágrimas a subirem-me aos olhos. Não valia a pena estar à espera de uma reacção racional.
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Aproximei-me da porta e dei um valente empurrão a Daffy, para a tirar da frente.
- Já comeste os teus chocolates? - perguntei a Feely.
Ela ficou nitidamente espantada com a violência do meu tom.
- Bem, ainda não... - disse.
- É melhor não comeres - larguei eu. - Podem estar envenenados. Logo que as palavras me saíram da boca, percebi que tinha cometido um erro crasso.
Maldição! Tinha-me entregado. Que desperdício! Tanto trabalho no laboratório para nada!
Flavia, pensei, de vez em quando tens umas ideias que só ocorreriam a uma lagartixa.
Irritada comigo própria pelo facto de estar zangada, saí imponente da sala e nenhuma delas tentou deter-me.
Inspirei fundo, deixei descontrair os ombros e abri a porta da cozinha.
- Flavia - pediu a senhora Mullet -, querida, chega-me um copo de sherry da despensa, por favor? Sinto-me a modos que esquisita. Mas não encha muito, se não ainda fico tonta.
A senhora M estava estendida ao comprido numa cadeira ao pé da janela, de pés no chão, a abanar-se com uma frigideira pequena. Fiz o que me tinha pedido e ela engoliu a bebida
de um trago.
- O que foi, senhora M? - perguntei. - O que se passa?
- Foi a polícia, queridinha. Deram-me cá uma volta ao estômago, da maneira como apareceram aí para virem buscar a rapariga.
- Qual rapariga? Está a falar de Nialla?
Ela acenou com a cabeça com ar carregado, estendendo-me o copo vazio. Eu voltei a encher-lho.
- É uma pequena tão querida! Nunca fez mal a ninguém. Veio bater à porta da cozinha para me agradecer, e a Alf, é claro, por a ter acolhido durante a noite. Disse que tencionava
ir-se embora, mas não queria que nós pensássemos qu'ela era uma ingrata. Ainda ela não tinha acabado de dizer estas palavras quando aquele inspector, como'é qu ele...
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- Hewitt - esclareci eu.
- Hewitt. É isso mesmo, foi mesmo ele... aparece à porta da cozinha, por detrás dela. Tinha-a visto sair da cocheira, foi o que foi.
- E depois?
- Perguntou-1'e se l'e podia dar uma palavrinha lá fora. Mal dou por mim, já a pobre rapariga tinha sido metida no carro co'ele. Tive de dar uma corridinha até à frente para
ver bem. Ia dando cabo de mim, foi o que foi. - Voltei a encher-lhe o corpo. - Não devia beber mais, queridinha - prosseguiu ela. - Mas este coração está muito fraco e não
aguenta tanta 'citação.
- Já está com melhor aspecto, senhora M - garanti-lhe. - Quer que a ajude em alguma coisa?
- Ia agora mesmo meter as coisas no forno - explicou-me ela, apontando para uma série de recipientes de massa que estavam em cima da bancada e começando a levantar-se. - Pode
abrir-me a porta do forno. Isso mesmo, linda menina.
Grande parte da minha vida era passada a segurar a porta do forno, enquanto a senhora M lhe enchia as entranhas com pilhas de comida para assar. A comparar com as minhas canseiras,
o Inferno que Milton descrevia no seu Paraíso Perdido era muito pouca coisa.
- Já não tínhamos comida nenhuma em casa - prosseguiu ela. - Quando chega às iguarias, aquele rapaz da menina Ophelia dá a impressão de não ver o fim ao estômago.
Aquele rapaz da menina Ophelia? Mas as coisas já tinham chegado a esse ponto? Eu teria perdido alguma cena sensacional de namoro pelo facto de andar a passear pelos campos?
- Dieter? - perguntei.
- Mesmo sendo alemão - comentou ela com um aceno de cabeça é muito mais refinado qu'aquele galaró que pass'a vida a deixar presentinhos sem gosto nenhum aqui à porta.
Pobre Ned!, pensei eu. Até a senhora Mullet estava contra ele.
- Por acaso ouvi um bocado da conversa dele quando estava a limpar o pó no vestíbulo; sobre Heathcliff e isso tudo. Lembrou-me daquela altura em que eu e a minha amiga, a
senhora Walker, apanhámos a carreira que vai para Hinley para o irmos ver ao cinema. Chamava-se Noite dos Vendavais e era mesmo isso que era. E esse tal Heathcliff tinh'a
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mulher fechada no sótão como s'ela fosse um traste velho! Não espanta que ela ficasse balhelhas. Eu cá também ficava! Mas do qué que
a menina se 'tá a rir?
- Estou a imaginar Dieter a correr pelo Campo do Jubileu tora, debaixo de uma chuva de tempestade, levando consigo a Bela Ophelia respondi eu.
- Até pode ser quaconteça - comentou ela -, mas não ha-de ser sem Sally Straw espernear o seu bocado. E até há quem diga qua velha
senhora também.
- A velha senhora? Grace Ingleby? Não está a falar a sério!
De repente, a senhora Mullet ficou mais vermelha do que uma panela de beterrabas cozidas.
- Já falei de mais - declarou, incomodada. - Foi do sherry, está a ver. O meu Alf está sempre a dizer-me quo sherry adormece o guarda que me vigia a língua. Pois bem, nem
mais uma palavra. Vá-sembora, queridinha. E tenha cuidado! Olhe queu não disse nada!
Ora bem!, pensei eu. Ora bem, ora bem, ora bem!
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Capítulo 23

Brincar com venenos ajuda a limpar o espírito. Quando a pessoa está a realizar uma tarefa em que o mais pequeno deslize pode ser fatal, é obrigada a concentrar-se na experiência
como uma lupa, e é frequente, em tais ocasiões, respostas a perguntas semiformuladas acorrerem ao espírito com a mesma prontidão com que as abelhas acorrem ao mel.
Com uma bela quantidade de ácido sulfúrico já decantada num tubo de ensaio acabado de lavar e ligeiramente aquecido, juntei-lhe cuidadosamente uma pitada de cristalina e,
maravilhada, fiquei a vê-la dissolver-se lentamente, estremecendo e contorcendo-se no banho de ácido, mais parecendo uma lula translúcida.
Tinha-o extraído, com água e álcool, das raízes de um jasmim-da-carolina (Gelsemium sempervirens) que tinha descoberto, para minha enorme satisfação, em descontraída flor
no canto da estufa; as flores pareciam pequenos trompetes, esculpidos em manteiga fresca.
A planta era originária das Américas, tinha-me explicado Dogger, tendo sido trazida para as estufas inglesas por viajantes; este espécime em concreto tinha sido trazido pela
minha mãe, Harriet.
Eu tinha-lhe pedido um pé para o laboratório, e Dogger tinha acedido sem hesitações.
A raiz continha um encantador alcalóide chamado gelsemina, que Permanecera discretamente oculto no interior da planta desde o tempo da Criação, até que, em 1870, foi descoberto
por um cavalheiro de Filadélfia que dava pelo nome de Wormley, que administrou o veneno a um
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coelho; o animal deu um salto mortal para trás e morreu em vinte minutos.
A gelsemina era um assassino cuja companhia eu muito apreciava. E era agora que se dava o efeito mágico!
Introduzi no líquido, com a ponta de uma faca, uma pequena dose de K2Cr207, ou seja, de dicromato de potássio, cujos sais vermelhos, iluminados por um fortuito raio de Sol
que entrou pela janela, deram à mistura o suave tom vermelho-cereja que tem o sangue de uma vítima de monóxido de carbono.
Mas isto era apenas o começo! Seguia-se o resto. O fulgor do vermelho-cereja começava já a esbater-se, e a solução tomava a impressionante cor violeta de uma ferida antiga.
Sustive a respiração e - boa! - cá estava ela, a derradeira fase, amarelo-esverdeada.
A gelsemina era um dos camaleões da química, que mudava de cor com delicioso abandono, largando por completo todo e qualquer vestígio da tonalidade anterior.
As pessoas também eram assim. Nialla, por exemplo.
Por um lado, era cativa de um bonecreiro ambulante; era uma jovem que, à excepção da criança que trazia no ventre, não tinha família que se visse; era uma jovem que se permitia
ser espancada por um amante semi-inválido; uma jovem que, por esta altura, estava sem dinheiro nenhum e aparentemente sem forma de se sustentar. E contudo, por razões um tanto
complexas que eu não conseguia compreender na sua totalidade, Nialla era uma pessoa a quem eu não era capaz de aderir por completo.
Seria por ter fugido, por assim dizer, do local do crime e se ter ido esconder na cocheira de Buckshaw? Eu percebia que ela quisesse estar sozinha, mas não se pode dizer que
tivesse escolhido a melhor altura para isso.
E onde estaria ela agora?, perguntei a mim própria. O inspector- Hewitt tê-la-ia prendido e arrastado para dentro de uma cela da esquadra de Henley?
Escrevi Nialla num bocadito de papel.
E Mutt Wilmott, essa personagem gritante, que parecia mesmo saída de um filme de Orson Welles? Não querendo ser excessivamente
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delicada, a verdade é que Mutt chegara e Rupert morrera; Mutt tinha desaparecido depois de ter uma discussão com Rupert e, quando voltara a aparecer, estava a tratar de enviar
o corpo em questão para Londres, onde lhe seria proporcionado um funeral de estadão.
Seria Mutt um assassino, contratado para o efeito pela BBC? Teria a desavença de Rupert com o misterioso "Tony" feito com que a BBC - na pessoa do respectivo director-geral
- fosse longe de mais? Teria o lamentável final que Rupert conhecera no palco de um rústico teatro de marionetas sido apenas, no fundo, a conclusão de uma amarga disputa contratual?
E Grace Ingleby? Para dizer a verdade, aquela mulherzinha, sempre vestida de preto, causava-me arrepios. O santuário que tinha construído ao filho morto num pombal abandonado
chegava para assombrar qualquer um; e agora a senhora Mullet tinha sugerido que a mulher era mais do que uma simples senhoria para Dieter.
E Dieter? Mau grado aquela nórdica aparência divinal e aquela paixão pela literatura inglesa, dava a impressão de que ele tinha conspirado com os captores no cultivo e no
fornecimento de cannabis àquilo a que Sally Straw chamara "um pequeno exército". E quem seriam eles?
Rupert tinha sido o principal, naturalmente, visitando a quinta dos Ingleby com a regularidade de um comboio suburbano durante muitos anos. E Rupert era um mulherengo, sobre
isso não havia dúvida nenhuma (a fonte era novamente Sally). De quem andaria ele a tentar escapar-se? Quem o quereria ver morto, e o quereria de tal maneira que decidira tratar
do assunto?
Quanto a Sally, tanto Rupert como Dieter tinham sentido alguma inclinação por ela. Teria Rupert sido remetido para a eternidade por um rival amoroso?
Parecia-me que Sally era uma personagem central do caso: vivia há anos na quinta dos Ingleby. Era manifesto que tinha uma paixoneta por Dieter, embora não fosse óbvio até
que ponto essa paixão era efectivamente correspondida.
E havia ainda Gordon Ingleby, o santo de pau carunchoso que acudia aos que sofriam como nenhum médico estava disposto a acudir; Gordon, o jardineiro que vendia produtos para
fora; Gordon, o pai da criança que tinha morrido no bosque.
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Já para não falar de Meg, a Louca, que estivera no Bosque de Gibbet na altura em que Robin tinha morrido, ou pelo menos pouco tempo depois.
E Cynthia, a minha querida Cynthia Richardson, a esposa do vigário, cuja única paixão era o ódio que tinha ao pecado. O súbito aparecimento de um par de bonecreiros promíscuos,
que se propunham montar um espectáculo no salão paroquial do marido, deverá ter-lhe secado a alma como o lago de fogo do Apocalipse.
A despeito de tudo isso, a alma de Cynthia não era propriamente um canteiro onde florescesse a delicada flor da caridade cristã. O que Meg tinha dito quando eu lhe perguntara
se tinha dormido bem na casa vicarial? Que Cynthia lhe tirara a pulseira e a mandara embora porque ela cheirava mal. Meg devia estar a referir-se ao estojo de pó-de-arroz
de Nialla; mas, se assim era, por que motivo o tinha eu encontrado ainda no escritório, metido entre as dobras da manta? Ter-lhe-ia Cynthia tirado o estojo para a seguir,
apanhada por uma das dezenas de paroquianas que passavam diariamente pela casa vicarial, o esconder novamente, na esperança de o recuperar mais tarde?
Não me parecia provável; se havia pecado de que Cynthia Richardson não podia ser acusada era o pecado da vaidade. Bastava olhar para ela para perceber que nenhum vestígio
de maquilhagem tinha jamais sujado aquela pálida face de furão; que jóia alguma tinha jamais andado suspensa daquele pescoço ou ornamentado aqueles punhos magros que nem espetos.
Para dizer a coisa de maneira simpática, a mulher era tão interessante como um pudim.
Afiei o lápis e juntei seis nomes à minha lista: Mutt Wilmott, Grace Ingleby, Dieter Schrantz, Sally Straw, Meg, a Louca (Daffy tinha-me dito certa vez que o apelido de Meg
era Grosvenor, mas eu não acreditava)... e Cynthia Richardson.
Fiz um traço e escrevi por baixo, em maiúsculas: caso amoroso ver o que É.
Embora tivesse uma vaga ideia do que se passava entre duas pessoas que tinham um caso amoroso, não conhecia com precisão os pormenores da mecânica da coisa. Certa vez em que
o pai tinha estado uns dias ausente, a participar numa exposição de selos em Glasgow, Daffy tinha insistido em nos ler Madame Bovary a todas as refeições, de |
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manhã, ao meio-dia, à tarde e à noite, concluindo a leitura no terceiro dia, no momento em que o pai nos entrava pela porta de casa.
Nessa altura eu quase tinha morrido de tédio, embora o livro se tenha depois tornado uma das minhas obras preferidas, dado que inclui, nos últimos capítulos, aquela que é
certamente a mais precisa e mais fabulosa descrição de morte com arsénico de toda a literatura. Fascinara-me em especial a forma como Emma, depois de ser envenenada, se tinha
"erguido como um cadáver galvanizado". Percebia agora, contudo, que me tinha deixado tomar de tal maneira pela excitação do suicídio de Madame Bovary que não absorvera os
pormenores dos diversos casos amorosos em que ela se tinha envolvido. A única coisa de que me lembrava era de que a certa altura, sozinha com Rodolphe à beira do lago de lírios,
rodeada de ervas e de sapos, Emma Bovary ocultara o rosto coberto de lágrimas e, com um profundo suspiro, "se entregara a ele".
Mas não fazia ideia do que isso queria dizer. Tinha de perguntar a
Dogger.
- Dogger - comecei, quando finalmente consegui encontrá-lo, metido no meio das ervas da horta, com um sacho de cabo comprido na mão -, leste a Madame Bovary?
Dogger fez uma pausa e tirou um lenço do bolso do peito do fato-macaco. Antes de responder, limpou bem a cara com o lenço.
- Isso é um romance francês, não é? - perguntou.
- De Flaubert.
- Ah - disse ele, e meteu o lenço outra vez no bolso. - Aquele em que uma pessoa muito infeliz acaba por se envenenar com arsénico.
- Com arsénico tirado de um frasco azul! - completei eu, saltitando de um para outro pé, com a excitação.
- Exacto - confirmou Dogger -, de um frasco azul. E o frasco não era azul por qualquer receio de decomposição ou de oxidação do conteúdo, mas...
- ... para evitar que fosse confundido com um frasco que continha uma substância inofensiva.
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- Com efeito - disse ele.
- Emma Bovary engole aquilo devido a uma série de casos amorosos infelizes - prossegui eu. Com um gesto estudado, Dogger sacudiu um bocado de lama da sola do sapato com a
ponta do sacho. - Tinha tido um caso com um homem chamado Rodolphe, e depois com outro, chamado Leon. Não em simultâneo, evidentemente.
- Evidentemente - confirmou Dogger, e calou-se.
- O que é exactamente um caso amoroso? - perguntei eu, na esperança de que, formulada desta maneira, a pergunta desse a entender, ainda que ao de leve, que eu já sabia a resposta.
Por momentos, pensei que seria capaz de esperar que ele tomasse a iniciativa de me responder, embora soubesse, lá bem no fundo, que deixar a iniciativa a Dogger era um jogo
condenado à derrota.
- O que Flaubert queria dizer - perguntei finalmente - ao afirmar que Madame Bovary se entregou a Rodolphe?
- Queria dizer - respondeu Dogger - que eles se tornaram muito amigos. Muito, muito amigos.
- Ah - repliquei eu. - Era justamente o que eu pensava.
- Dogger! Vem cá imediatamente, antes que eu me magoe muito a sério!
Era a voz da tia Felicity, que saía de uma janela do primeiro andar com a sonoridade de uma trombeta.
- Vou já, menina Felicity - respondeu ele, dirigindo-se-me depois num aparte, para me explicar a situação. - A menina Felicity está a precisar de ajuda para transportar a
bagagem.
- A bagagem? - perguntei eu. - Ela vai-se embora?
Ele acenou com a cabeça, mas com uma expressão reservada.
- Alto! - exclamei eu. Era uma secreta oração de acção de graças, cujo significado só Deus e eu conhecíamos.
A tia Felicity já vinha a meio da escadaria ocidental, envergando um fato de lona que fazia lembrar mais África do que os verdes campos de Hampstead. O táxi de Clarence Mundy
estava à porta, e Dogger estava a ajudar Bert a meter a bagagem da tia Felicity dentro do carro.
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- Vamos ter saudades suas, tia Fee - disse Feely.
Tia Fee? Fiquei com a impressão de que, na minha ausência, Feely tinha andado a tentar cair nas boas graças da irmã do pai, provavelmente na esperança de herdar as jóias da
família Luce, aquela horrenda colecção de objectos decorativos que o meu avô Luce (pelo lado do pai e da tia Felicity) tinha oferecido à minha avó; ao receber os tais objectos,
esta fora-lhes pegando com o indicador e o polegar e fora-os depositando um a um numa caixa de cartão, com a mesma descontracção com que a pessoa deixa cair uma lagartixa,
para não mais voltar a olhar para eles.
Feely tinha passado uma tarde inteira a babar-se diante daquelas porcarias da última vez que tínhamos ido todas a Hampstead, a um dos lanches obrigatórios da tia Felicity.
- Que coisa tão romântica! - tinha ela sussurrado quando a tia Felicity lhe emprestara, pareceu-me que ligeiramente contrariada, um pendente de vidro cor-de-rosa que não teria
ficado nada mal no úbere de uma vaca. - Vou usá-lo no debute da Rosalind Norton, e todos os olhos estarão concentrados nesta vossa amiga. Pobre Rosalind, ela esforça-se tanto!
- Lamento que as coisas tenham tido este desfecho, Haviland - bradou a tia Felicity do patamar -, mas tu estragaste tudo, não há dúvida nenhuma. Nem os cavalos do rei, nem
os homens do rei, trabalhando em conjunto e afincadamente, seriam capazes de pôr ordem nas tuas contas. Teria todo o gosto em te salvar dos excessos que cometeste, evidentemente,
se não tivesse investido quase tudo o que tenho em títulos da dívida pública. Agora, a única solução é vender esses ridículos selos de correio.
O pai estava no vestíbulo, mas aparecera tão silenciosamente que só naquela altura é que eu me apercebi da presença dele. E ali estava ele, segurando um dos braços de Daffy
com uma mão, de olhos baixos, como se estivesse a analisar intensamente os ladrilhos pretos e brancos.
- Obrigado por teres vindo, Felicity - respondeu, sem erguer os olhos. - Foi muito simpático da tua parte.
Por mim, tive vontade de encher a cara daquela mulher de estaladas.
Na verdade, cheguei mesmo a avançar meio passo, quando senti uma mão decidida poisar-me no ombro e impedir-me de prosseguir. Era Dogger.
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- Falta alguma coisa, menina Felicity? - perguntou ele.
- Não, obrigada, Dogger - respondeu ela, remexendo na malinha de malha, de cujas profundezas retirou com dois dedos compridos, qual cegonha puxando com o bico um peixe de
um lago, o que me pareceu ser uma moeda das mais pequenas, que lhe estendeu com um suspiro.
- Obrigado, menina - retorquiu ele, metendo o insulto no bolso com toda a facilidade, e sem sequer olhar para ele, como se fosse o género de coisa que fazia todos os dias.
E com isso se foi a tia Felicity. Momentos depois, já o pai se tinha afundado nas sombras do enorme vestíbulo, com Daffy e Feely no encalço, e Dogger tinha desaparecido, sem
uma palavra, no corredorzinho que fica atrás das escadas, e que é sua propriedade exclusiva.
Foi um daqueles momentos impressionantes que antecedem o final de uma peça num grande espectáculo; um daqueles momentos em que todas as personagens secundárias desapareceram
nos bastidores, deixando o palco todo entregue à heroína, que está encarregada de proferir a derradeira deixa perante uma casa cheia, que aguarda as suas palavras com o coração
aos pulos.
- Maldição! - declarei eu, e avancei para o pátio, no intuito de respirar ar puro.
O nosso problema, decidi, é que nós, os Luce, estamos infestados de história como outras pessoas estão infestadas de piolhos. Os Luce vivem em Buckshaw desde que o rei Harold
deteve uma seta com o olho na Batalha de Hastings, e quase todos foram infelizes, de uma maneira ou de outra, mas sempre com tremendas complicações. Dá a impressão de que
nascemos todos com feixes de glória e de tragédia nas veias, nunca conseguindo perceber exactamente, em determinado momento, por qual das tendências estamos a ser movidos.
Eu sabia que, por um lado, nunca seria como a tia Felicity; mas, por outro, viria alguma vez a ser como Harriet? Oito anos depois de ter morrido, Harriet era ainda uma parte
de mim, tão própria como as minhas unhas dos pés - ainda que esta expressão talvez não seja das mais felizes.
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Eu lia os livros que tinham sido dela, andava na bicicleta que lhe tinha pertencido, sentava-me no Rolls-Royce que fora dela, e em certo momento de distracção o pai chegara
mesmo a tratar-me pelo nome dela. Até a tia Felicity tinha suspendido as suas maneiras de górgona o tempo necessário para me informar de que eu era a cara chapada de Harriet.
Mas essa informação seria um elogio ou uma advertência?
Eu sentia-me frequentemente uma impostora; um desafio; um saco de serapilheira e cinzas no lugar de uma jovem maravilhosa a quem o Destino tinha apanhado numa volta, tomando
conta dela na encosta de uma longínqua montanha. Dava a impressão de que toda a gente se sentiria muito mais feliz se Harriet regressasse à vida e eu me pusesse a andar.
Estes e outros pensamentos circularam-me pelo espírito como as folhas do Outono circulam no remoinho de um rio, enquanto percorria a estrada de terra batida que ia dar à aldeia.
Sem sequer me aperceber disso, passara pelos grifos que decoram os Portões Mulford, pelos quais se entra para Buckshaw, e estava a muito pouca distância de Bishop's Lacey.
Segui caminho com passo arrastado, sentindo-me bastante abatida (está bem, confesso que estava furiosa com a tia Felicity por ela tratar Dogger daquela maneira vergonhosa).
Meti as mãos nos bolsos, até bem lá ao fundo, e num deles os meus dedos entraram em contacto com um objecto redondo de metal, um objecto que ali não estava - uma moeda.
- Olá! - disse. - O que é isto?
Tirei o objecto do bolso e olhei para ele. Logo que o vi, percebi do que se tratava e como tinha ido parar ao meu bolso. Voltei-o ao contrário e analisei-lhe o verso com detida
atenção.
Sim, não havia dúvida sobre isso - não havia mesmo dúvida nenhuma.
253
Capítulo 24

Visto do outro lado da rua principal, o Salão de Chá de São Nicolau era uma verdadeira reprodução de um postal da Velha Inglaterra. Nas salas do andar de cima, com as janelas
em arco de vidros pequeninos, tinham vivido os avós do actual senhor Sowbell, nos tempos em que viviam por cima da fábrica de caixões e mobiliário que era sua pertença.
As mesas, os aparadores e os toucadores Sowbell, outrora famosos em todo o país pela intensidade feroz do seu verniz escuro, e o brilho dos delicados puxadores em prata, tinham
deixado de ser apreciados, e apareciam frequentemente em vendas de recheios, permanecendo amuadas num corredor até que, ao final do dia, alguém acabava por os evar para casa
a troco de pouco mais do que uma ou duas libras.
- São comprados por vigaristas sem escrúpulos, que usam a madeira para transformar cómodas baratas em antiguidades - tinha-me Daffy confidenciado certa vez.
A agência funerária tinha, por esta altura, um relógio de cartão Preso à montra, suspenso de uma corda preta que formava um V ao ontrário. O ponteiro dos minutos apontava
para as doze, mas não avia ponteiro das horas. Era óbvio que o senhor Sowbell tinha ido ao Patos Marrecos tomar uma caneca de cerveja.
Atravessei a rua e empurrei a porta do salão de chá. À minha direita tinha uma escadaria de madeira íngreme, da qual estava suspensa uma mão pintada de azul que apontava para
cima, com a legenda: Salão
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de Chá em cima. Ao lado das escadas, um corredor estreito e mal iluminado desaparecia na quase escuridão das traseiras do edifício. Na parede, outra mão pintada com informações
úteis; esta era vermelha e apontava discretamente para o local onde ficavam, de acordo com a legenda, os lavabos das senhoras e dos cavalheiros.
Eu sabia que a casa de banho do salão de chá e da agência funerária era a mesma. Em certa tarde de Outono, Feely tinha insistido em nos arrastar até ali, e eu tinha apanhado
uma das maiores surpresas da minha vida ao ver três mulheres de vestido e véu preto a conversar alegremente à porta da casa de banho, como se estivessem num congresso de gralhas
de dentes salientes; em seguida, retomando as feições carregadas, voltaram as três para as instalações do senhor Sowbell. A porta por onde elas tinham desaparecido dava directamente
para a agência funerária.
Exactamente! Uma discreta inscrição, com as palavras Sowbell & Filhos a letras douradas sobre o verniz escuro, destinava-se provavelmente a impedir que os familiares e amigos
enlutados se metessem pelo corredor do salão de chá depois de terem "ensaboado as mãos", como dizia a senhora Mullet.
A porta de madeira preta abriu-se para trás em silêncio.
Dei por mim numa sala vitoriana quase às escuras, com um papel de parede aveludado, preto e amarelado. Três das paredes da sala estavam ocupadas com cadeiras de madeira de
costas altas e uma pequena mesa redonda com um ramo de florinhas artificiais. A sala cheirava a pó, com uma base química subjacente.
A última parede, a que ficava na extremidade da sala, estava vazia, à excepção de uma reprodução emoldurada a preto do Angelus de Millet, em que um homem e uma mulher, obviamente
camponeses flamengos, se encontram sozinhos num campo, ao pôr do Sol. A mulher tem as enormes mãos, obviamente mãos de camponesa, apertadas ao peito num gesto de oração. O
homem tirou o chapéu, que aperta nas mãos, algo constrangido, diante de si, a forquilha espetada na terra solta, a seu lado. Com os corvos voando em círculos como abutres,
o casal permanece de olhos baixo. Poisado no chão, entre os dois, vê-se um cesto de vime.
Max Wight tinha-me explicado certa vez que, quando o original do quadro de Millet fora exposto na América, a venda de reproduções
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fora escassa, até que alguém se lembrou de alterar o nome do quadro, de Angelus para O enterro do filho.
Presumi que fosse por debaixo desta reprodução que normalmente se colocassem os caixões. Dado que não havia ali nenhum, tornava-se manifesto que o corpo de Rupert - se ainda
não tivesse sido mandado para Londres - estava noutra sala.
À minha direita, ficava uma divisória em L. Tinha de haver outra porta para além dela.
Espreitei por detrás da meia-parede e dei por mim a olhar para um compartimento que era quase irmão gémeo do primeiro. A única diferença era que o papel de parede aveludado
era preto e rosado, e a reprodução era de A Luz do Mundo de Holman Hunt, em que Jesus bate à porta com uma lanterna na mão, qual Diógenes à procura de um homem de bem.
Por debaixo da moldura preta do quadro, depositado sobre um cavalete, estava um caixão.
Avancei em direcção a ele em bicos de pés, atenta ao mais pequeno ruído.
Passei os dedos pela madeira polida como os artistas acariciam a tampa do piano antes de a erguerem e olharem para as teclas. Depois meti os polegares por debaixo da junta
e percebi que conseguia erguê-la ao de leve.
Que grande sorte! A tampa não estava aparafusada. Levantei-a por completo e olhei para dentro do caixão. E ali estava ele, Rupert, qual boneca metida numa caixa. Em vida,
tinha uma personalidade que o fazia parecer maior, de maneira que eu me tinha esquecido de que ele era, na realidade, muito pequeno.
Estava arrepiada até aos cabelos? Tenho de confessar que não. Desde o dia em que tinha encontrado um cadáver na horta de Buckshaw nascera em mim um fascínio pela morte, com
particular ênfase nos aspectos químicos da putrefacção.
Na verdade, já tinha começado a recolher informação para uma obra que faria história, e a que tencionava dar o título de Tratado da Decomposição de Luce, e em que delinearia,
passo a passo, o processo de decomposição cadavérica do ser humano.
Era realmente fascinante reflectir na circunstância de, poucos minutos após a morte, os órgãos do corpo começarem a degradar-se
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por falta de oxigénio! Os níveis de amoníaco começam a aumentar e, com o auxílio da acção bacteriana, começa a produzir-se metano (mais conhecido como gás dos pântanos), juntamente
com gás sulfídrico, dióxido de carbono e mercaptano, um fascinante álcool de enxofre em cuja estrutura o enxofre substitui o oxigénio, razão pela qual cheira a podre.
Era realmente curioso que os seres humanos tivessem levado milhões de anos a ascender dos pântanos e, poucos minutos depois da morte, se encontrassem de novo a caminhar a
passos larguíssimos pela encosta abaixo.
O meu apurado sentido do olfacto permitiu-me perceber que o senhor Sowbell tinha aplicado a Rupert um fluido em embalsamamento com base em formalina (pelo cheiro, o mais provável
era que tivesse sido uma solução a 2% de formaldeído, com um ligeiro bouquet de outra coisa: clorofórmio, a avaliar pelo cheiro); pela leve coloração verde na ponta do nariz
de Rupert, percebi também que o cangalheiro tinha poupado nos ingredientes. Esperava-se que o velório organizado pela BBC fosse de caixão fechado.
Mas era melhor despachar-me, porque o senhor Sowbell podia voltar a qualquer momento.
Rupert tinha as mãos dobradas sobre o abdómen, com a direita por cima. Peguei-lhe num dos dedos (parecia que estava a tirar salsichas da geleira) e puxei-o para cima. Para
meu grande espanto, a mão esquerda veio atrás, e percebi imediatamente que estavam discretamente cosidas uma à outra. Voltando-lhe as mãos para cima, e debruçando-me para
ver melhor por debaixo delas, distingui aquilo de que estava à procura: um canal escurecido que ia da base do polegar esquerdo até às extremidades do primeiro e do segundo
dedos.
A despeito dos esforços do senhor Sowbell, Rupert ainda exalava um muito razoável cheiro a queimado. E não havia dúvida nenhuma de que a queimadura que tinha na palma da mão
esquerda era exactamente da largura da alavanca que fazia descer o Galliganto.
Senti estalar uma prancha do chão.
Estava eu a fechar a tampa do caixão quando a porta se abriu e o senhor Sowbell entrou na sala. Eu não o tinha ouvido chegar.
Estando ainda meio inclinada, devido à posição em que me colocara a observar os dedos de Rupert, consegui levantar-me lentamente.
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- Amen - disse, benzendo-me ostensivamente.
- Mas o que ...? - começou a dizer o senhor Sowbell.
- Oh, como está, senhor Sowbell - respondi eu em voz baixa, adequada ao local. - Vim só prestar homenagem ao morto. Como não estava cá ninguém, achei que não ficava mal rezar
um pouco em silêncio. O senhor Porson não tinha amigos em Bishop's Lacey, como sebe prossegui, tirando um lenço do bolso e limpando uma lágrima imaginária. - É uma situação
tão triste que eu achei que não fazia mal vir... Lamento imenso ter...
- Pronto, pronto - disse ele. - A morte atinge-nos a todos, sabes, a velhos e a novos... - Estaria a ameaçar-me, ou seria a minha imaginação que já se encontrava fora de controlo?
- E, embora estejamos sempre à espera dela, a verdade é que, quando chega, acaba por ser um choque.
Para Rupert tinha indubitavelmente sido um choque; estaria o sujeito a tentar fazer humor com o caso? Era evidente que não, porque a expressão dele manteve a habitual contenção
profissional.
- E agora, se me dás licença, tenho de ir prepará-lo para a derradeira viagem.
A derradeira viagem? Onde é que eles iriam buscar estas expressões ridículas? Haveria um livro de frases para uso dos cangalheiros?
Lançando-lhe o meu melhor sorriso de miúda-de-dez-ancs-a-caminho-dos-onze, pus-me a andar, fingindo-me ainda muito contrita.
A campainha da porta do Salão de Chá de São Nicolau tilintou alegremente quando eu entrei. O estabelecimento, que ficava no alto de umas escadas bastante íngremes, era propriedade
nada menos que das manas Puddock, a menina Lavinia e a menina Aurélia, as mesmas duas relíquias que nos tinham proporcionado o prelúdio musical à espectacular saída de cena
de Rupert.
A menina Lavinia, metida num recesso ao fundo da sala, parecia travar um combate mortal com um enorme samovar de prata. Mau grado a simplicidade da tarefa que lhe competia,
e que consistia em ferver a água, este aparelho era uma lula bolbosa de tubos, válvulas e
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escalas, que cuspia água quente enquanto gargarejava e soprava qual dragão encurralado.
- Tenho a impressão de que hoje não vamos ter chá - disse ela por cima do ombro, ainda antes de ter conseguido ver quem tinha entrado na loja.
- Quer uma ajuda, menina Puddock? - perguntei eu alegremente. Ela soltou um guincho, porque as mãos lhe tinham escorregado
inadvertidamente para diante de um jacto de ar quente, e a chávena de porcelana que tinha na mão foi estatelar-se no chão, desfazendo-se em mil pedacinhos.
- Oh, é a pequena Luce - disse ela, voltando-se. - Valha-me Deus! Assustaste-me a valer. Não estava à espera de ouvir a tua voz.
Percebendo que ela tinha escaldado a mão, controlei-me e procedi à resolução das tarefas mais urgentes, antes de avançar para o que realmente me inten'ssava-
- Quer uma ajuda? - repeti.
- Mas que coisa - replicou ela, corando incrivelmente. - Pedro decide sempre fazer das suas quando Aurélia cá não está. Ela lida com ele muito melhor do que eu.
- Pedro? - perguntei eu.
- É o samovar - esclareceu ela, limpando as mãos, que estavam agora muito vermelhas, a uma toalha de chá. - Pedro, o Grande.
- Deixe cá ver - insisti eu.
E, sem mais uma palavra, peguei numa taça de rodelas de limão que estava em cima de uma das mesas redondas do salão e espremi-as para dentro de Um jarro de água fria. Depois,
meti um guardanapo branco dentro do jarro, deixei-o ensopar bem, escorri-o e enrolei nele a mão da menina puddock. Ela começou por se encolher quando eu lhe toquei, mas a
seguir descontraiu-se.
- Dá-me licença? - perguntei, tirando-lhe da lapela o alfinete oval e apertando com ele as pontas da ligadura improvisada.
- Oh, já me estou a sentir melhor - comentou ela, com um sorriso de dor. - Mas onde é que aprendeste esta habilidade?
- Nas Guias - menti.
A experiência tinha-me ensinado que, muitas vezes, é preferível dar uma resposta inesperada a dizer a verdade. Na realidade, eu tinha
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andado à procura deste remédio nos manuais domésticos da senhora Mullet certa vez em que um tubo de ensaio excessivamente quente por pouco não me tinha arrancado a carne dos
dedos da mão.
- A menina Cool faz-te sempre imensos elogios - prosseguiu ela. - Hei-de dizer-lhe que ela acertou em cheio, como diziam aqueles simpáticos pilotos da RAF.
Eu correspondi com o meu mais modesto sorriso.
- Não foi nada, menina Puddock. Foi uma grande sorte eu ter entrado nesta altura. Estava ali ao lado, na agência do senhor Sowbell, diante do caixão do senhor Porson, a rezar
pela alma dele. Acha que faz mal? Não, pois não?
Não estava, evidentemente, a ser de uma delicadeza a toda a prova, mas acontece que tinha mesmo de tratar da minha vida.
- Não, querida, claro que não! - retorquiu ela. - Acho que o senhor Porson havia de se sentir muito tocado com esse gesto.
Nem ela sabia da missa a metade.
- Fiquei tão triste - prossegui, baixando a voz para um sussurro conspirativo e apertando-lhe o braço que não estava magoado. - Mas tenho de lhe dizer, menina Puddock, que,
apesar da tragédia de sábado à noite, a minha família apreciou muito A Última Carga de Napoleão e A Corrente de Bandemeer. Comentou o pai que, hoje em dia, é raro ouvir-se
música daquela.
- Obrigada, minha querida - murmurou ela docemente. - É muito simpático da tua parte dizeres-me isso. Naturalmente, nós não chegámos a ver o que aconteceu ao senhor Porson,
porque estávamos a tratar das coisas na cozinha. Como somos proprietárias do salão de chá de Bishop's Lacey, as pessoas esperam que sejamos nós a servir o chá nas circunstâncias
sociais, compreendes? Não é que nós lamentemos...
- Não, claro que não - garanti-lhe eu. - Mas de certeza que há imensa gente que se oferece para dar uma ajuda.
Ela emitiu um pequeno ladrido.
- Para dar uma ajuda? A maior parte das pessoas nem sabe o que isso quer dizer. Não, Aurélia e eu estivemos sozinhas na cozinha do princípio ao fim. Servimos duzentas e sessenta
e três chávenas de chá, contando com as que servimos depois de a polícia ter tomado conta dos acontecimentos, claro.
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- E ninguém se ofereceu para lhes dar uma ajuda? - insisti eu, afivelando uma expressão de incredulidade.
- Ninguém. Como te disse, Aurélia e eu estivemos todo o tempo sozinhas na cozinha. E eu fiquei completamente sozinha quando Aurélia foi levar uma chávena de chá ao bonecreiro.
As minhas orelhas espetaram-se como as de um perdigueiro que sente a caça.
- Ela foi levar uma chávena de chá a Rupert?
- Bem, ela tentou, minha querida, mas a porta estava trancada.
- A porta do palco? A porta que fica em frente da cozinha?
- Não, não... ela não quis usar essa porta para não ter de passar pela Mãe Gansa, a mulher que estava a contar a história. Não, Aurélia foi dar a volta pelas traseiras do
salão e tentou entrar pela outra porta.
- A porta da passagem que fica do outro lado.
- Pois, essa. Não há mais nenhuma porta, pois não, querida? Mas, como te disse, essa porta estava trancada.
- Durante o espectáculo?
- Pois, durante o espectáculo. É estranho, não é? Antes de começar, o senhor Porson tinha-nos perguntado se lhe podíamos levar um chazinho durante o espectáculo. "Podem deixá-lo
na mesinha que fica por detrás do palco", disse ele. "Eu vou lá buscá-lo. Trabalhar com marionetas faz sede, compreendem?", e piscou-nos o olho. Por isso não percebemos o
que lhe deu para trancar a porta.
Ouvindo-a falar, comecei a ter a sensação de que os factos encaixavam uns nos outros dentro da minha cabeça.
- Foi exactamente o que Aurélia disse, quando voltou a dar a volta, com a chávena de chá ainda na mão - prosseguiu a menina Puddock. - O que lhe terá dado para trancar a porta?"
- Se calhar não foi ele - sugeri eu. Foi uma inspiração súbita. - Se calhar foi outra pessoa qualquer. Quem é que tem a chave daquela porta, sabe?
- Há duas chaves das portas que dão para o palco, querida. Ambas abrem as duas portas. O vigário anda com uma delas no porta-chaves e tem o duplicado pendurado num prego,
no escritório da casa vicarial. Isto foi por causa daquela vez em que ele foi a Brighton, a um desafio de críquete entre Vigários e Acólitos, e levou Tom Stoddart com ele.
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Como Tom é o serralheiro, e estavam os dois ausentes, foi preciso um escadote para subir e descer do palco. Foi um enorme sarilho para a encenação do Rei Lear do grupo de
teatro, isso posso eu garantir-te.
- E não passou por lá mais ninguém?
- Mais ninguém, querida. Aurélia e eu estivemos sempre na cozinha. Tínhamos a porta meio fechada para impedir que a luz da cozinha prejudicasse o escuro da sala.
- E não estava ninguém no corredor?
- Não, claro que não. Quem passasse pelo corredor seria inevitavelmente iluminado pelo raio de luz que provinha da porta da cozinha, que estava mesmo em frente do meu nariz,
por assim dizer. Depois de termos posto a água ao lume, a ferver, Aurélia e eu sentámo-nos à porta, para podermos pelo menos ouvir o espectáculo. "Fi! Fu! Fá! Fé!" Oh, até
tive um arrepio só de pensar nisso!
Eu deixei-me ficar muito quieta, de respiração suspensa, sem mover um músculo que fosse, deixando que o silêncio se arrastasse.
- Na verdade... - disse ela por fim, o olhar perdido no infinito. - Pareceu-me...
-Sim?
- Pareceu-me ter ouvido passos no salão. Tinha acabado de olhar para o relógio de parede, e estava ligeiramente encandeada com a luz do fogão. Olhando lá para fora, vi...
- Lembra-se de que horas eram?
- Eram sete e vinte e cinco. Tínhamos de ter o chá pronto às oito, e aqueles caixões eléctricos levam algum tempo a levantar fervura. É estranho que me tenhas perguntado isso.
Aquele polícia simpático, o mais jovem, como é que ele se chama? Aquele sujeito louro, de sardas, que tem um sorriso encantador?
- O sargento Graves - respondi eu.
- Exacto, esse mesmo, o sargento Graves. É engraçado, porque ele fez-me a mesma pergunta, e eu dei-lhe a mesma resposta que te vou
dar a ti.
- E que é?
- A mulher do senhor vigário, Cynthia Richardson.
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Capítulo 25

Cynthia, a vingadora de cara de roedor! Eu devia ter adivinhado! Cynthia, que se dedicava às obras de caridade na paróquia de São Tancredo com um coração de Herodes. Não me
custava nada imaginá-la a assumir pessoalmente a tarefa de castigar Rupert, o famoso mulherengo. O salão paroquial fazia parte do reino dela; a chave sobressalente das portas
que davam para o palco ficava pendurada num prego, no escritório do marido dela.
Continuava sem saber como se teria ela apoderado da mola da bicicleta que o vigário tinha perdido, mas não era impossível que a referida mola nunca tivesse chegado a sair
da casa vicarial.
O próprio vigário tinha confessado que a sua distracção estava a tornar-se problemática. Daí a gravação das iniciais. Era possível que, na quinta-feira anterior, ele tivesse
saído de casa sem a mola e que, precisamente por isso, tivesse dado cabo das calças.
Os pormenores não interessavam. De uma coisa eu tinha a certeza: aconteciam na casa vicarial muito mais coisas do que parecia à primeira vista, e, fosse o que fosse (por exemplo,
o marido a dançar nu pelos bosques, e por aí fora), dava a impressão de que Cynthia estava no centro dos acontecimentos.
- Em que estás tu a pensar, querida? - A voz da menina Puddock interrompeu-me os pensamentos. - De repente ficaste tão calada!
Precisava de tempo para ir ao fundo das coisas, e já. Era pouco provável que tivesse outra oportunidade de mergulhar nas profundezas dos conhecimentos da menina Puddock sobre
as gentes da aldeia.
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- Eu... estou a sentir-me um bocado maldisposta - respondi, agarrando-me à beira de uma mesa e deixando-me cair numa das cadeiras de assento de palhinha. - Se calhar foi de
ver essa sua mão escaldada, menina Puddock. Deve ser uma reacção tardia, uma espécie de choque retardado.
Há momentos da minha vida em que tenho um profundo desprezo por mim própria por recorrer a este género de petas, mas este não foi um deles. Vendo bem as coisas, era o Destino
que me metia nestes assados, e teria de ser o Destino a levar com as culpas todas.
- Oh, coitadinha! - disse a menina Puddock. - Deixa-te estar aí quietinha, que eu vou-te buscar um chazinho e um scone. Gostas de scones, não gostas?
- Ad-doro scones - respondi, lembrando-me subitamente de que, de um modo geral, as vítimas de um choque tremiam muito. Quando ela voltou para junto de mim com o scone, tremiam-me
os dentes como berlindes dentro de um frasco de vidro.
Ela tirou uma jarra de lírios-de-maio (Convallaria majalis) de cima de uma das mesas, pegou na toalha de linho - impecavelmente engomada - e enrolou-ma à volta dos ombros.
Quando o doce odor das flores me chegou às narinas, recordei com prazer que esta planta continha uma combinação de glicosídeos cardioactivos, nomeadamente a convalotoxina
e o glucoconvalósido, de tal maneira que até a água onde elas se encontravam mergulhadas era venenosa. Os nossos antepassados tinham-lhe chamado - e com razão! - Lágrimas
de Nossa Senhora, ou Escada do Céu.
- Não quero que apanhes uma constipação - cacarejava solicitamente a menina Puddock, enquanto me servia uma chávena de chá do desajeitado samovar.
- Parece que Pedro, o Grande, resolveu portar-se bem - comentei eu com um tremor calculado e um aceno de cabeça ao aparelho, que emitia um brilho metálico.
- Ele às vezes porta-se mesmo muito mal - replicou ela com um sorriso. - Calculo que seja por ser russo.
- Mas é mesmo russo? - perguntei eu, a preparar terreno.
- Desde o alto destas distintas cabeças - respondeu ela, apontando para a águia preta de duas cabeças que funcionava como torneira de
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água quente - até ao fundo do real e redondo traseiro. Foi produzido na fábrica dos Irmãos Martiniuk, famosos ourives de Odessa, e há quem diga que chegou a fazer chá nada
menos que para o czar Nicolau e suas tristes pequenas. Quando veio a Revolução e a cidade foi ocupada pelos Vermelhos, Vladimir, que era o mais novo dos Martiniuk e na altura
tinha apenas dezasseis anos, embrulhou Pedro numa pele de lobo, meteu-o num carrinho de mão e fugiu com ele a pé, a pé, imagina!, para a Holanda. Abriu uma loja numa viela
de Amesterdão e mudou de nome, passando a chamar-se Maarten.
- A única coisa que ele tinha era Pedro - prosseguiu, dando uma palmadinha afectuosa ao samovar -, além do carrinho de mão, claro. Tencionava enriquecer fazendo inúmeras cópias
e vendendo-as aos aristocratas holandeses que, segundo se dizia, eram loucos por chá russo.
- E eram mesmo?
- Não sei - retorquiu ela - e o Vladimir também nunca soube, porque apanhou a gripe na grande epidemia de 1918 e morreu, deixando a loja e tudo quanto ela continha à senhoria,
Margaret Van Rijn. Margaret casou-se com um camponês de Bishop's Lacey, Arthur Elkins, que tinha combatido na Flandres, e ele trouxe-a consigo para Inglaterra pouco depois
de terminada a grande guerra.
"Arthur morreu em 1924, quando a chaminé da fábrica onde trabalhava ruiu e se abateu sobre ele, e Margaret morreu com o choque, quando lhe levaram a notícia. Depois da morte
dela, a minha irmã e eu descobrimos que nos tinha deixado Pedro, o Grande, em testamento, e não tivemos outro remédio senão abrir o Salão de Chá de São Nicolau. Foi há vinte
e cinco anos e, como podes ver, ainda aqui estamos.
"Pedro é um samovar muito temperamental, sabes? - prosseguiu, fazendo menção de lhe acariciar a superfície de prata, mas acabando por mudar de ideias. - Claro, é uma fraude
enorme. Cospe a água fervida, de vez em quando faz rebentar os fusíveis, mas lá no fundo tem um coração de ouro... ou pelo menos de prata.
- É realmente magnífico! - comentei eu.
- E ele sabe! Ora, ora, e eu a falar dele como se fosse um gato. Quando Grace cá trabalhava, chamava-lhe o Tirano, imagina! "O Tirano está a pedir para ser areado", dizia
ela. "O Tirano está a pedir que lhe limpem os contactos eléctricos."
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- Grace? - perguntei eu.
- Grace Tennyson, ou melhor, Ingleby, que é como ela agora se chama.
- Grace Ingleby trabalhou aqui?
- Sim senhora! Foi a nossa principal empregada, até se casar com Gordon e se ir embora. Até parece mentira, olhando para ela agora, mas a verdade é que a rapariga era forte
como um touro. É raro uma coisa tão pequenina ter tanta força. E não se deixava intimidar minimamente pelos amuos de Pedro. Ele podia grasnar e cuspir o que muito bem lhe
apetecesse que ela não tinha receio nenhum de arregaçar as mangas e lhe dar uma boa esfregadela às entranhas.
- Devia ser muito esperta - observei eu.
- E era mesmo - riu-se a menina Puddock. - Era esperta e muito mais do que esperta. E não é de espantar! Um dos nossos clientes, acho que era chefe de um esquadrão da RAF,
disse-nos, confidencialmente, é claro, que Grace Ingleby tinha o QI mais alto que ele já tinha visto "no belo sexo", como ele dizia. Que, se os das Operações Especiais não
a tivessem caçado para os serviços secretos, ela podia muito bem ter passado o resto da guerra a instalar aparelhos de rádio em Spitfires.
- Para os serviços secretos? - Eu ia-me engasgando. Pensar em Grace Ingleby a fazer outra coisa que não fosse estar aninhada no alto daquele pombal, qual donzela prisioneira
aguardando que Sir Lancelot a fosse salvar, quase me dava vontade de rir.
- Naturalmente, ela nunca diria nada sobre isso. - E a menina Puddock baixou ligeiramente a voz, como as pessoas costumam fazer quando falam sobre a guerra. - Eles não estão
autorizados a dizer nada, como sabes. Seja como for, hoje em dia quase não a vemos. Desde que se deu aquela tragédia com o rapazinho...
- Robin - especifiquei eu.
- Exacto. Desde essa altura, ela deixou de se dar com as amigas. Deixou de ser aquela pequena risonha que punha Pedro, o Grande, no seu lugar.
- E Gordon também era membro das Operações Especiais? - perguntei eu.
- Gordon? - repetiu ela com uma gargalhada. - Valha-me Deus, não. Gordon nasceu camponês e camponês há-de morrer, como dizia
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Shakespeare... ou talvez tenha sido Harry Lauder, ou George Fomrby, ou um sujeito qualquer desse género. Tenho a memória num completo novelo, e tu também hás-de ter, quando
lá chegares.
Não soube o que responder àquilo, e percebi imediatamente que ela julgou que me tinha ofendido.
- Mas ainda faltam muitos anos, querida. Não, tenho a certeza de que a tua memória há-de estar ainda muito fresca quando nós já estivermos todos na cova, com cimento por cima
para fazer o chão de um palácio de bowling.
- Tem visto a senhora Ingleby ultimamente? - perguntei então.
- A última vez que a vi foi no sábado à noite, no salão paroquial. Claro, não tive oportunidade para conversar com ela porque estava concentrada no nosso pequeno número musical.
O resto da noite foi um pesadelo, não foi? O pobre homem morreu, a marioneta tinha a cara de Robin. Não sei o que terá passado pela cabeça de Gordon para levar Grace àquele
espectáculo, estando ela ainda tão frágil. Mas também ele não tinha maneira de saber, pois não?
- Pois não - respondi. - Acho que ele não tinha mesmo maneira de saber.
Quando me pus de novo a caminho de Buckshaw, já passava muito da hora do almoço. Felizmente, a menina Puddock tinha-me embrulhado um par de scones cheios de manteiga e tinha
insistido em mos meter no bolso. Fui-os mordiscando, distraída, enquanto pedalava pela estrada fora, perdida nos meus pensamentos.
Ao fundo da rua principal o caminho faz um ângulo suave para sudoeste, contornando o perímetro do cemitério de São Tancredo pelo lado sul.
Se não tivesse olhado de relance para a direita, talvez não tivesse reparado na carrinha Austin, com as letras "Marionetas de Porson" pintadas a dourado nas laterais, estacionada
à beira do salão paroquial. Os pneus da Gladys deslizaram no pó quando eu lhe apliquei o travão de mão, guinando depois em direcção ao cemitério.
Quando parei ao lado da carrinha, estava Nialla a acondicionar coisas no interior.
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- Conseguiste pô-la a funcionar! - exclamei. Ela olhou para mim como uma pessoa olha para um cocó de cão que encontrou na sopa, e continuou a arrumar as coisas. - Sou eu,
Flavia! - insisti. - Já te esqueceste de mim?
- Desaparece-me da vista, sua traidora - largou ela. - Deixa-me em paz.
Por instantes, pensei que estava em Buckshaw, a conversar com Feely. Era o género de coisa que eu já tinha ouvido milhares de vezes, e à qual tinha sobrevivido. Decidi, pois,
aguentar firme.
- Porquê? O que foi que eu te fiz?
- Deixa-te disso, Flavia! Sabes tão bem como eu. Foste dizer à polícia que eu estava em Buckshaw. Eles achavam que eu estava escondida, ou que tinha fugido, ou seja lá o que
for.
- Não fui nada dizer à polícia! - protestei. - Não voltei a ver polícia nenhum desde que te deixei na cocheira.
- Mas tu eras a única pessoa que sabia que eu ali estava.
Como me acontecia sempre que ficava furiosa, a mente ardia-me com uma clareza cristalina.
- Eu sabia que tu ali estavas, Dogger sabia que tu ali estavas, e a senhora Mullet sabia que tu ali estavas, e já vamos em três pessoas.
- Não acredito que Dogger me denunciasse.
- Nem a senhora Mullet! - afirmei eu. Valha-me Deus, estava a defender a nossa cozinheira! - Ela pode ser uma coscuvilheira de meia-noite, mas não é uma pessoa mesquinha -
prossegui. - Nunca te roeria a corda. O inspector Hewitt foi a Buckshaw provavelmente para me fazer mais umas perguntas sobre o que se passou no sábado à noite, e por acaso
viu-te a passar da cocheira para a cozinha. Foi isso e mais nada, posso garantir-te.
Percebi que Nialla estava a pensar nesta explicação. Aquilo que realmente me apetecia era agarrá-la pelos ombros e abaná-la bem, mas não me podia esquecer de que ela tinha
as emoções todas avariadas por uma tempestade de hormonas: ferozes nuvens de hidrogénio, azoto, oxigénio, carbono e enxofre, que se combinavam e recombinavam na eterna dança
da vida.
Quase me deu para lhe desculpar.
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- Toma - disse-lhe, tirando dramaticamente o estojo de pó-de-arroz em forma de borboleta do bolso e estendendo-lho. - Segundo creio, isto é teu.
Inchei por dentro, na expectativa de uma onda de gratidão e de elogios. Mas não foi isso que recebi.
- Obrigada - disse ela, e meteu o estojo no bolso.
Obrigada? Obrigada, sem mais nada? Que descaramento! Eu já lhe mostrava. Fingiria que ela não me tinha magoado. Fingiria que não me importava.
- Não pude deixar de reparar - observei-lhe com ar descontraído que estavas a empacotar as coisas na carrinha, o que significa que Bert Archer já ta arranjou e que tu te preparas
para te pores a andar. Dado que o inspector Hewitt não se vê em lado nenhum, isso deve querer dizer que estás livre, não?
- Livre? - repetiu ela e cuspiu no pó. - Livre? O vigário entregou-me quatro libras e mais umas moedas, que foi quanto rendeu o espectáculo. A conta de Bert Archer são sete
libras e tal. E foi só porque o vigário interveio que ele me permitiu ir até Overton empenhar tudo o que puder. Se achas que isso é estar livre, de facto eu estou livre. A
menina Nababa, que vive numa casa de campo do tamanho do Palácio de Buckingham, pode dedicar o seu tempo a fazer deduções. Pensa o que quiseres, mas não venhas com paternalismos
para cima de mim.
- Está bem - respondi eu. - Também não era minha intenção. Toma, fica com isto, por favor.
Voltei a meter a mão no bolso e tirei lá do fundo a moeda que a tia Felicity tinha dado a Dogger convencida de que era muito dinheiro, e que Dogger, por sua vez, me tinha
plantado no bolso, pensando talvez que em breve seria gasta em paus de marroio-branco da loja da menina Cool.
Estendi-a a Nialla, que olhou para ela como quem não acredita no que está a ver.
- Uma moeda preta! - declarou. - Para que é que eu quero uma moeda preta?
E atirou-a para o meio das pedras tumulares, com as lágrimas a correrem-lhe pela cara abaixo em abundantes correntes.
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- Pois é uma moeda preta, de facto - confirmei eu. - Mas é uma moeda especial, das que são produzidas pela Casa da Moeda para serem usadas exclusivamente pelo Soberano...
- Quero lá saber do Soberano! - gritou ela. - Quero lá saber da Casa da Moeda!
- ... que as distribui pelos pobres na Quinta-Feira Santa. São umas moedas bastante raras. Se bem me lembro, Bret Archer faz colecção destas moedas, e parece-me que essa moeda
preta vai dar-te e sobrar-te para pagares a reparação da carrinha.
E, com toda a dignidade ofendida de que fui capaz de dar provas, agarrei na Gladys pelo guiador e segui caminho para casa. Quando ia a chegar à esquina da igreja, olhei para
trás e vi Nialla de gatas, à procura da moeda por entre as ervas do cemitério; só não percebi se as lágrimas que continuavam a correr-lhe pela cara abaixo eram agora de raiva
ou de felicidade.
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Capítulo 26

- Muito bem, Dogger - disse-lhe. - Vai começar a brincadeira. Tinha ido encontrá-lo dentro da despensa do mordomo, a engraxar os sapatos do pai.
Os encargos de Dogger em Buckshaw variavam na proporção directa das suas capacidades, e a sua participação na nossa vida ia subindo e descendo, um pouco à maneira daquelas
bolas coloridas do termómetro de Galileu que flutuam a diferentes níveis dentro de um tubo de vidro, de acordo com as variações de temperatura. O facto de ele estar a tratar
dos sapatos era bom sinal, pois era uma indicação clara de que tinha novamente progredido de jardineiro a mordomo.
- Ai vai? - perguntou ele, erguendo os olhos.
- Concentra os teus pensamentos, por favor, na noite de sábado passado, no salão paroquial. Estás sentado ao meu lado, a ver o João e o Pé de Feijão, quando de repente acontece
qualquer coisa nos bastidores. Rupert precipita-se dali abaixo e cai morto no palco e, minutos depois, tu dizes-me que receias que tenhamos assistido a um assassínio. Como
é que sabias? Como é que percebeste que não tinha sido um acidente?
A pergunta tinha andado a roer-me o subconsciente como uma ratazana rói uma corda, mas só naquele momento me apercebi realmente dela.
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Antes de responder, Dogger embaciou a parte da frente de uma das botas de cano baixo do pai, dando depois à superfície preta, já muito brilhante, uma massagem final com a
manga da camisa.
- As circunstâncias indicavam que não teria sido - explicou. - O senhor Porson era um perfeccionista. Era ele que produzia todo o equipamento que utilizava. Um bonecreiro
trabalha no escuro. É uma profissão em que não há espaço para erros. Estava fora de questão tratar-se de um fio eléctrico esfiapado.
- Não estava esfiapado - informei-o. - Eu vi o fio quando subi aos bastidores com o inspector Hewitt. A protecção de isolamento tinha sido tirada.
- Ter-me-ia surpreendido que não tivesse sido isso - observou ele.
- Parabéns pela brilhante dedução - cumprimentei eu. - Não posso dizer que me tenha ocorrido.
E não tinha mesmo, porque a mente das mulheres não funciona assim.
Vista do ar, a mente dos homens assemelha-se aos canais da Europa, com ideias metendo por caminhos já muito percorridos por cascos de cavalos. Nunca se duvida de que, segundo
uma sucessão de linhas em rede, elas hão-de alcançar, apesar do vento e das marés, o destino que tinham marcado.
Já a mente das mulheres assemelha-se mais - digo-o apesar da minha parca experiência - a um vasto pântano extremamente povoado, mas um pântano que tem imediatamente a percepção
de que algum desconhecido - mesmo que se encontre a milhas de distância - nele meteu nem que seja apenas a pontinha do dedo do pé. As pessoas que se referem a este fenómeno,
a maioria das quais não sabe aliás nada sobre ele, designam-no por "intuição feminina".
Embora eu tivesse chegado à mesma conclusão que Dogger, tinha-o feito por uma via diferente.
Em primeiro lugar, embora fosse óbvio que Rupert tinha sido assassinado por aquilo que fizera a uma mulher, julgo ter percebido, praticamente desde o momento da sua morte,
que não era Nialla a assassina.
- No preciso momento em que ele caiu morto no palco - observei -, Nialla levantou-se de um pulo e correu para ele. O primeiro impulso dela, nitidamente automático, foi ir
socorrê-lo.
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Dogger afagou o queixo e acenou com a cabeça.
- Mas obrigou-se a parar - prossegui - assim que viu o fumo e as faíscas. Apercebeu-se rapidamente de que, se lhe tocasse, podia morrer imediatamente. Ela... e o filho.
- Exacto - respondeu Dogger. - Também reparei nisso.
- Portanto, não foi Nialla que o assassinou.
- A meu ver, ela pode ser retirada da lista de suspeitos sem grande problema.
Só quando já ia a meio do caminho para a Quinta de Culverhouse é que me apercebi de que estava cansadíssima. Tinha-me levantado antes do nascer do Sol e ainda não tinha parado.
Mas o factor tempo era essencial: se não chegasse ao local antes do inspector Hewitt, só saberia os pormenores mais sumarentos quando lesse o jornal.
Desta feita, em vez de atravessar o rio por detrás da igreja, tinha decidido dar a volta pela estrada de Hinley e chegar à quinta vinda do poente. Teria assim a vantagem da
altura, que me permitiria inspeccionar o território, estando por outro lado protegida pelo Bosque de Gibbet. Agora que o laço começava a apertar-se, por assim dizer, não me
dava jeito nenhum sofrer uma emboscada de um assassino sem escrúpulos.
Quando cheguei a meio caminho da estrada de terra batida do Monte Gibbet, tive a sensação de que tinha lama a correr-me nas veias em vez de sangue, e de que os meus sapatos
eram de ferro. Noutras circunstâncias, talvez me tivesse aconchegado num maciço de ervas a dormir uma sesta, mas desta vez não podia ser. O tempo começava a escassear e, como
o pai costumava dizer, "o cansaço é a desculpa dos malandros".
Ao ouvir o vento a gemer e a sussurrar no alto das árvores do Bosque de Gibbet, dei por mim com a vaga esperança de que Meg, a Louca, me aparecesse ao caminho e me desviasse
da missão que me preparava para cumprir. Mas não seria assim: à excepção de um pica-pau amarelo que avistei na outra ponta do bosque, a picar a madeira que nem um sapateiro
cheio de trabalho, não vi mais nenhum sinal de vida.
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Quando cheguei ao alto da colina, o Campo do Jubileu estendeu-se diante de mim, em plano inclinado, em direcção ao rio, qual cobertor de um azul-eléctrico. No começo da guerra,
Gordon recebera ordens do governo de Sua Majestade para cultivar linho (pelo menos era o que a senhora Mullet me tinha dito), porque o país precisava deste produto para fazer
pára-quedas. Mas a Batalha de Inglaterra já tinha sido há uns anos, e actualmente não havia em lado nenhum necessidade da mesma quantidade de linho.
Apesar disso, operando sob a capa das necessidades de guerra, Gordon tinha conseguido manter, entre as árvores do Bosque de Gibbet, uma cultura secreta de cannabis cuja existência
era conhecida apenas de uma mão-cheia de pessoas.
Qual dessas pessoas - se é que tinha sido uma delas -, para além de o odiar com suficiente paixão para querer matar, possuiria ainda conhecimentos suficientes de electricidade
para dar um choque daqueles a Rupert Porson?
Avistei ao longe um clarão, um reflexo proveniente da beira da estrada. Percebi imediatamente que se tratava de um dos ornamentos que Meg, a Louca, punha à beira dos caminhos,
suspensos de um fio preso aos espinheiros. Era uma simples apara cromada, que se teria soltado do radiador de um carro devido à má qualidade da estrada. Por debaixo dela,
revirando-se ociosamente ao sol (e tinha sido isto que me chamara a atenção), via-se um pequeno disco de prata, serrilhado em todo o contorno da aresta, que, a avaliar pelas
manchas de encarnado, tinha sido, noutros tempos, a tampa de uma lata de tinta.
Estranhamente, aquilo fez-me lembrar uma experiência que eu tinha tido no ano anterior, quando o pai nos tinha levado, a Ophelia, a Daphne e a mim, à missa da meia-noite no
Oratório de Brompton, em Londres. No momento da elevação, o sacerdote tinha mantido a hóstia (que, para os católicos, é o Corpo de Cristo) no ar durante muito tempo, e por
momentos a hóstia captara a luz das velas e os reflexos coloridos da capela-mor, luzindo com um brilho sobrenatural, um brilho iridescente que não era sólido nem vaporoso.
Nessa altura, aquilo tinha-me parecido um sinal de que estava para se dar um acontecimento muito importante.
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Agora, ao chegar ao Bosque de Gibbet, os dentes oleados de uma certa roldana mental tomaram o seu lugar na minha cabeça, com uma sucessão de estalidos quase audíveis.
Igreja. Clique! Vigário. Clique! Círculo suspenso. Clique! Mola de bicicleta. Clique! Tampa de lata de tinta. Clique! Meg. Clique!
E vi as coisas com uma intensidade que quase me cegou: o vigário tinha vindo à Quinta de Culverhouse na quinta-feira anterior. Fora aqui que ele tinha ficado com a perna das
calças presa na corrente da bicicleta e que perdera a mola. Afinal, ele sempre tinha saído de casa com ela! E tinha sido aqui, nesta estrada de terra batida, que tinha dado
um trambolhão; era daqui que vinha o pó que, naquele dia, lhe cobria o fato preto de clérigo.
Meg, a Louca, a eterna gralha, tinha encontrado a mola - como encontrava qualquer objecto metálico, qualquer objecto brilhante que fosse largado nas proximidades do Bosque
de Gibbet -, tinha-a apanhado e tinha-a levado com ela para a casa vicarial.
"Ela mandou-m'embora. Arrancou a pulseira da q'rida Meg e deitou-a fora. Foi sim. "Porca, porca!"" Estas palavras de Meg ecoaram-me na memória; ela estava a falar da mulher
do vigário. Tinha sido Cynthia Richardson quem tinha tirado a mola da bicicleta a Meg - a mola a que ela chamara "a pulseira" - e a tinha mandado embora da casa vicarial.
Da casa vicarial até ao salão paroquial (onde a mola voltou a aparecer nos bastidores do teatro de marionetas de Rupert, e onde foi a arma do crime) era um saltinho.
Era isto que devia ter acontecido. Era de certeza, tão certo como eu me chamar Flavia de Luce. E estava ansiosa por contar tudo ao inspector Hewitt!
Muito ao longe e abaixo do ponto onde me encontrava, na outra margem do mar de linho azul, um tractor Ferguson cinzento avançava lentamente a par de um muro de pedra, deixando
atrás de si um rasto plano. O brilho de um cabelo loiro ao sol deu-me a conhecer que a pessoa que se encontrava ao pé, a descarregar pedras para arranjar o muro, devia ser
Dieter; e não havia dúvidas de que a pessoa que se encontrava ao volante do tractor, de fato-macaco, era Sally. Mesmo que estivessem a prestar atenção - e não estavam -, encontravam-se
ambos longe
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de mais para conseguirem ver-me a descer discretamente a encosta, em direcção à casa da quinta.
Quando avancei cautelosamente pelo pátio adentro, a casa pareceu-me estar mergulhada em sombras, não ser mais do que um conjunto de pedras mortas empilhadas umas sobre as
outras, com janelas vazias (como dizia Sally) a olharem como cegos para coisa nenhuma. Qual destes vidros indiferentes seria o do quarto de Robin?, perguntei a mim própria.
Qual destas janelas vazias teria enquadrado a carita solitária da criança antes daquela manhã impensável de Setembro de 1945, em que a curta vida do pequeno terminara abruptamente
na extremidade de uma corda?
Bati à porta, uma vez só, e esperei respeitosamente durante trinta segundos. Depois rodei a maçaneta e entrei.
- Senhora Ingleby? - chamei. - Senhor Ingleby? Sou eu, a Flavia. Vim ver se tinham uns ovos de tamanho grande.
Não estava à espera de que me respondessem, e não responderam mesmo. Gordon Ingleby era um homem de trabalho, não era provável que estivesse em casa enquanto houvesse uma
réstia de sol; e Grace bem, Grace devia estar ou na torre do pombal, ou a vaguear pelos campos. A senhora Mullet, a perguntadora, tinha certa vez querido saber se eu costumava
encontrá-la nas minhas vadiagens de um lado para o outro.
- Ela é bem estranha, essa Grace Ingleby - tinha comentado na altura. - A minha amiga Edith, Edith Crowley, que era Edith Fisher antes de se casar com Jack, ia a caminho do
ensaio de coro, em Nether Stowell, ia a pé porque tinha perdido a carreira, compreende, e viu Grace Ingleby a sair de um matagal que fica ao fundo da Vereda de Biddy, que
passa por cima da colina e não vai dar a lado nenhum.
- "Grace!", chamou ela. "Eh lá, Grace Ingleby!", mas Grace esgueirou-se por uns degraus, foi assim mesmo quela disse, "esgueirou-se por uns degraus", e quando ela lá chegou
já tinha desaparecido. "Desapareceu como a respiração de um cão em Dezembro", disse-m'ela.
Em termos de mexericos da aldeia, a senhora M é tão infalível como o papa Pio IX.
Avancei lentamente pelo corredor, bastante fiada de que estava sozinha dentro daquela casa. Ao fundo do corredor, ao lado de uma
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janela redonda, um relógio de pé alto entretinha-se sozinho com o seu tiquetaque, que era o único som que se ouvia em redor.
Meti rapidamente a cabeça em todos os compartimentos: na sala de estar, na cozinha, na despensa...
Ao lado do relógio havia dois degraus que iam dar a um pequeno patamar quadrado; espreitei por detrás da esquina e vi uma escada estreita, que seguia para o andar de cima.
Metido por debaixo das escadas, um armário de portas com embutidos, ostentando uma esplêndida maçaneta de porcelana verde e branca, que devia ser porcelana de Wedgwood. Mais
tarde, haveria de cá vir olhar melhor para ela.
Fui subindo a escada, cada um de cujos degraus emitia um gemido peculiar, diferente dos restantes; parecia uma sequência de tampas de caixão a serem sucessivamente abertas,
pensei com um arrepio de prazer.
Calminha aí, Flavia, amiga. Não vale a pena embandeirares em arco. No alto das escadas havia um segundo patamar, do qual saíam mais três degraus, em ângulo recto com os anteriores,
que iam dar ao corredor do andar de cima.
Pareceu-me evidente que os compartimentos cá de cima eram todos quartos de cama, e eram mesmo: dei uma vista de olhos aos dois primeiros e vi uns aposentos frios e espartanos,
com uma cama individual, um lavatório de pé, um guarda-fatos e mais nada.
O quarto grande que ficava na parte da frente da casa era o do casal, disso não havia dúvida nenhuma. Mas, para além de ter uma cómoda com duas gavetas e uma cama de casal
com um edredão um bocado usado, este quarto era tão frio e estéril como os restantes.
Abri rapidamente as gavetas da cómoda: na dele, peúgas, cuecas, um relógio sem a correia e um baralho de cartas muito gorduroso e com ar de ter sido muitas vezes manuseado;
na dela, cuecas, meias, um frasco de comprimidos para dormir (o meu velho amigo hidrato de cloral, C2H3C1302, um hipnótico de grande efeito a que os bandidos americanos chamavam
Mickey Finn quando era misturado com álcool; em Inglaterra, era prescrito a donas de casa altamente abaladas pelos médicos da respectiva terra, que lhe chamavam "umas pílulas
para a ajudar a dormir").
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Não consegui conter um sorriso ao pensar na altura em que, recorrendo exclusivamente a álcool, ao produto de limpeza da casa de banho e à lixívia, tinha sintetizado uma quantidade
deste produto, que tinha depois servido, dentro de uma maçã, a Phoebe Snow, uma porca de concurso que pertencia ao nosso vizinho, Max Wight. A porca tinha levado cinco dias
e dezassete horas a recuperar da dose e, durante uns tempos, A Espantosa Porca Adormecida tinha sido a oitava maravilha do mundo agrícola britânico. Max tivera a generosidade
de a emprestar à paróquia durante as festas da mesma, onde se vendiam bilhetes para a ver dormir no atrelado de um tractor com os dizeres "Bela Adormecida". A atracção tinha
rendido quase cinco libras, destinadas ao fundo das sobrepelizes do coro.
Voltei ao trabalho com um suspiro.
Ao fundo de uma das gavetas de Grace, escondida por debaixo de um lenço de linho sujo, encontrava-se uma Bíblia bastante manuseada. Abri-a e li o que estava escrito na badana:
"Devolver à igreja paroquial de São Tancredo, em Bishop's Lacey, por favor."
Estava a pôr a Bíblia no mesmo sítio de onde a tinha tirado quando saiu lá de dentro uma tira de papel, que flutuou até ao chão. Peguei nela com as unhas, tendo o cuidado
de não deixar as marcas das manápulas no papel.
"Grace - Por favor, venha falar comigo se achar que posso consolá-la." Estas palavras, escritas a tinta roxa, estavam assinadas: "Denwyn."
Denwyn Richardson, o nosso vigário. Que Meg, a Louca, tinha visto a dançar, nu, ali perto, no Bosque de Gibbet.
Meti a tira de papel no bolso. Era uma prova.
Faltava-me apenas o quartinho situado na parte de trás da casa. O quarto de dormir de Robin. Tinha de ser. Atravessei o silencioso corredor e parei diante da porta, que estava
fechada. Só então comecei a sentir-me ligeiramente apreensiva. E se Gordon ou Grace voltassem subitamente a casa e subissem as escadas? Que justificação poderia eu dar para
esta invasão dos quartos da família?
Encostei o ouvido ao painel escuro da porta, à escuta. Não se ouvia nada.
Rodei a maçaneta e entrei.
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Tal como eu tinha suspeitado, tratava-se efectivamente do quarto de Robin, mas era um quarto de um rapazinho que tinha morrido há cinco anos: uma cama pateticamente pequena,
os cobertores dobrados, um guarda-fatos vazio, o chão forrado a linóleo. Não era um santuário, não tinha velas nem retratos da criança morta montada num cavalo de pau ou sentada
num ramo de macieira. Que grande desilusão!
Era um quarto despido e muito simples, parecido com o Quarto de Aries de Van Gogh, mas sem o correspondente calor; era um compartimento tão impessoal como a lua de Inverno.
Olhei em volta uma vez mais, percebi que não havia mais nada que ver e saí do quarto, fechando respeitosamente - quase com ternura - a porta.
Foi então que ouvi passos no andar de baixo.
O que havia eu de fazer? Passaram-me pela cabeça diversas possibilidades: podia descer precipitadamente as escadas lavada em lágrimas, fingindo que tinha tido um ataque de
sonambulismo, durante o qual me perdera; podia declarar que estava com um esgotamento nervoso e que não sabia onde me encontrava; ou que tinha chegado ao pátio e visto uma
cara numa das janelas do primeiro andar, uma cara e um dedo apontando para mim e chamando-me, e que pensara tratar-se de Grace Ingleby.
Mas, por muito interessantes que fossem, todas estas hipóteses teriam consequências; e se havia coisa que não me estava nada a calhar era introduzir complicações na minha
vida. Não, pensei, desceria as escadas de mansinho, na esperança de não ser apanhada.
Mas a ideia morreu quase à nascença. Mal pus um pé no degrau de cima, a madeira soltou um arrepiante gemido.
Ouvi um ruído ao fundo das escadas, uma espécie de bater de asas, como se houvesse um pássaro enorme aprisionado dentro de casa. Desci o resto das escadas, lenta mas decididamente,
e, ao chegar ao fundo, meti a cabeça por detrás da esquina e o sangue gelou-me nas veias.
Um raio de Sol iluminou a extremidade do corredor e eu vi um rapazito de botas de borracha e fato de marinheiro a desaparecer pela porta fora.
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Capítulo 27

Não tinha dúvidas nenhumas.
Ele estivera escondido no armário por debaixo das escadas. E eu ali fiquei, absolutamente imóvel diante da porta aberta, confrontada com um dilema. O que havia de fazer? Tinha
a certeza de que, depois de sair desta casa, era muito pouco provável que nela voltasse a entrar. Era preferível dar já uma vista de olhos ao interior do armário, antes de
me pôr a andar atrás da aparição de fato de marinheiro.
Entrei no armário, que estava às escuras; havia um fio suspenso de uma lâmpada, ao qual dei um puxão, iluminando ao de leve o espaço interior, que estava completamente vazio.
Quer dizer, à excepção de um par de botas de borracha de criança, muito parecidas com as da figura que eu tinha acabado de ver sair pela porta principal.
A principal diferença entre umas e outras era que este par estava todo sujo de lama, ainda molhada em consequência da chuva desta manhã.
Ou da campa.
Saí a correr para a rua, e ainda tive um vislumbre do fato azul de marinheiro, que acabava de desaparecer por detrás do telheiro das máquinas. Eu sabia que, por detrás daquelas
paredes galvanizadas e ferrugentas, havia uma quantidade de acrescentos, um labirinto de telheiros em mau estado, e qualquer dos quais proporcionava facilmente uma dúzia de
esconderijos.
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Fui a correr atrás dele, qual cão de caça ao cheiro da presa. Nem me passou pela cabeça ter medo.
Mas de repente parei. Por detrás do telheiro das máquinas havia um carreiro estreito que virava para a direita. Teria o fugitivo avançado por ele para me despistar? Entrei
na estreita passagem, tendo o cuidado de não tocar nos muros quase decrépitos que a ladeavam. Qualquer arranhão de uma das muitas tiras de metal que deles se salientavam,
aguçadas como lâminas, daria quase de certeza direito a um tétano, e eu terminaria os meus dias amarrada à cama de um hospital, a espumar da boca, tomada de espasmos devastadores.
Nessa altura é que Daffy e Feely haviam de se sentir satisfeitas!
- Sempre lhe disse que ela não ia acabar bem - diria Daffy ao pai. - O pai nunca devia ter permitido que ela andasse à solta como andava.
Pensando nisso, fui avançando a passo de caranguejo pela estreita passagem. Quando finalmente cheguei ao fim, percebi que não podia passar: à esquerda, tinha uma pilha de
bidões de petróleo vazios; e à direita, a rede de uma pocilga.
Voltava para trás pela Passagem da Morte - que, à volta, me pareceu ainda mais estreita do que à ida - quando a certa altura me detive à escuta; contudo, à excepção do ruído
longínquo das galinhas a cacarejar, a única coisa que conseguia ouvir era a minha própria respiração.
Avancei de mansinho, pé ante pé, por entre os telheiros meio destruídos, prestando muita atenção à visão periférica, ciente de que, a qualquer momento, me podia cair em cima
qualquer coisa proveniente de uma das entradas.
Só então me apercebi de uma pista no solo: uma sequência de minúsculas pegadas, que só podiam ter sido deixadas pelas solas de umas botas de borracha de criança.
Com todos os sentidos em alerta extremo, segui as pegadas.
Passei pelo telheiro das máquinas e por um velho tractor coberto de ferrugem que, preguiçosamente apoiado num dos lados por lhe faltar uma roda de trás, parecia mesmo estar
meio afundado nas areias do deserto, qual mecanismo de antanho trazido pelas marés.
Outra guinada para a esquerda, e dei por mim à entrada do pombal, que se ergueu diante de mim como um castelo de um conto de fadas, os tijolos malhados quase dourados pelo
sol do fim do dia.
Embora já aqui tivesse estado, tinha vindo por um caminho diferente, de maneira que contornei lentamente a decrépita porta de madeira, o intenso odor da caca dos pombos já
a encher-me as narinas.
Se calhar estava enganada, pensei por momentos; se calhar o miúdo do fato de marinheiro passou pela torre e seguiu caminho, encontrando-se por esta altura no meio dos campos.
Mas as pegadas que havia no solo eram uma prova do contrário, pois iam dar direitinhas à porta do pombal.
Senti qualquer coisa a roçar-me nas pernas e o meu coração quase parou de bater.
- Ueeeau! - ouvi.
Era a Tock, a mais conversadora das gatas dos Ingleby.
Levei um dedo aos lábios, indicando-lhe que se calasse, e só depois é que me lembrei de que os gatos não percebem a linguagem gestual. Ou se calhar percebem, porque ela agachou-se
no chão em silêncio e avançou para as sombras do interior do pombal.
Depois de uma breve hesitação, eu fui atrás dela.
O interior era tal qual eu me lembrava: a miríade de luzes que entrava pelas frestas das paredes de tijolo; a atmosfera claustrofóbica, saturada de pó. Desta vez, porém, não
se ouviam ruídos fantasmagóricos no andar de cima. Reinava no pombal o mesmo silêncio que reina na cripta que fica por debaixo do castelo da Morte.
Pus um pé no andaime e espreitei para cima, vendo-o desaparecer lá no alto, numa quase obscuridade. A madeira era velha e soltou um gemido terrível, de maneira que eu fiz
uma pausa. Quem quer que estivesse lá em cima já devia estar ciente de que eu o tinha encurralado.
- Boa tarde! - chamei, diria que principalmente para me animar. - Boa tarde! Sou eu, Flavia. Está alguém aí em cima?
O único som que vinha lá de cima era o zumbido das abelhas que esvoaçavam em torno das janelas superiores do pombal, um som grotescamente amplificado pela estrutura da torre.
- Não te assustes - pedi. - Vou subir.
A pouco e pouco, um degrau de cada vez, comecei a precária ascensão. Voltei a ter a sensação de que era o João, desta vez trepando o pé de feijão, arrastando-me por ali acima,
centímetro a centímetro, ao encontro de um qualquer horror desconhecido. A madeira velha
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estalava horrivelmente, e eu tive a noção de que podia desfazer-se a qualquer momento, precipitando-me numa morte certa no lajedo do solo, tal como o gigante - e Rupert -
se tinham precipitado no palco do teatro de marionetas.
A subida parecia nunca mais acabar. Parei à escuta: continuava a não se ouvir nada, à excepção dos zumbidos.
Continuei a subir, transferindo cuidadosamente os pés de um degrau para o degrau seguinte, agarrando-me firmemente aos de cima; começava a sentir os dedos dormentes.
Quando por fim os meus olhos se colocaram ao nível da abertura em arco, consegui ver o interior da câmara, e avistei uma figura agachada no santuário a Robin Ingleby; era
a mesma figura que tinha fugido da casa.
Estava de joelhos, de costas voltadas para mim, e envergava um fato de marinheiro azul e branco, de gola larga, com calções; as solas das botas de borracha quase me chegavam
à cara. Se estendesse a mão, conseguia tocar-lhes.
Os joelhos começaram-me a tremer violentamente, ameaçando ceder e lançar-me no abismo de pedra.
- Ajuda-me! - pedi, sentindo que a palavra me saía de forma súbita, inexplicável e surpreendente de uma zona arcaica e reptiliana do cérebro.
Uma mão estendeu-se na minha direcção, cinco dedos brancos agarraram os meus e, com força surpreendente, içaram-me para lugar seguro. Momentos depois, dei por mim agachada,
já segura mas ainda a tremer, diante do espectro.
Embora o fato de marinheiro, com a gola larga, e as botas de borracha, fossem do rapazinho morto, Robin Ingleby, a cara tensa e perturbada que olhava para mim por debaixo
do boné redondo com as letras HMS Hood era a da mãe do rapazinho, a pequena Grace Ingleby.
- Então era a senhora! - exclamei eu, incapaz de me conter.
O rosto de Grace tinha uma expressão triste, e de repente fez-se muito, muito velho. Custava a acreditar que houvesse nesta mulher um único átomo da expansiva e feliz Grace
Tennyson que havia conquistado alegremente as entranhas de Pedro, o Grande, o samovar de prata do Salão de Chá de São Nicolau.
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- Robin desapareceu - disse ela, tossindo. - Foi o Demónio que o levou.
Foi o Demónio que o levou! Era quase exactamente aquilo que Meg, a Louca, me tinha dito no Bosque de Gibbet.
- E quem era o Demónio, senhora Ingleby? A certa altura, pensei que era Rupert, mas não era. Era a senhora, não era?
- Rupert morreu - declarou ela, levando os dedos às têmporas como se estivesse com vertigens.
- Pois foi - respondi eu. - Rupert morreu. Aquele teatro de marionetas que viram na praia era dele, não era? A senhora tinha combinado encontrar-se com ele, e Robin viu-os
aos dois juntos, não foi? E a senhora teve receio de que ele fosse contar a Gordon.
Ela sorriu-me com uma expressão cautelosa.
- Na praia? - repetiu com uma gargalhada que era mais uma tosse. - Não, não, não foi na praia. Foi aqui, no pombal.
Há algum tempo que eu desconfiava de que as pegadas que tinham sido encontradas cinco anos antes, e que iam do Campo do Jubileu para o Bosque de Gibbet, não eram de Robin,
mas de Grace Ingleby, levando Robin, já morto, nos braços. A fim de deixar apenas as pegadas do filho, ela tivera de calçar as botas de borracha dele; é que Robin calçava
o mesmo número que a mãe. A prova disso era o facto de ela as ter neste momento calçadas.
Cinco anos após a morte de Robin, ainda ela vestia as roupas do filho, tentando desesperadamente esconjurá-lo de entre os mortos. Ou tentando compensar aquilo que tinha feito.
- A senhora levou-o para o bosque e meteu-o na forca. Mas Robin morreu aqui, não foi? Foi por isso que a senhora lhe fez um santuário neste pombal, e não no quarto dele.
Parecia uma conversa normal, mas era uma conversa de pesadelo, que eu estava a ter com uma louca. Percebi que, se conseguisse regressar a Buckshaw, ia precisar de um longo
banho de água bem quente.
- Eu disse-lhe que não viesse cá acima - declarou ela, de forma algo petulante. - "Vai para casa, Robin", disse-lhe eu. "Não podes vir cá acima." Mas ele desobedeceu-me. Os
miúdos às vezes são assim, desobedientes.
Voltou a tossir, e abanou a cabeça com ar triste.
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- "Eu sei fazer um truque com a corda!", gritou ele lá de baixo. Tinha andado todo o dia a brincar aos cowboys, com uma corda que tinha encontrado num dos telheiros.
Tal como Sally me tinha contado. Grace devia estar a dizer a verdade.
- Trepou cá acima e eu não consegui impedi-lo. Rupert ficou furioso. Agarrou-se a Robin para lhe dar um abanão, mas o aparelho escorregou-lhe nos tijolos. E Robin...
As lágrimas começaram a correr-lhe pela cara abaixo.
- ... caiu - disse eu. Não valia a pena elaborar.
- Caiu - repetiu ela, arrastando a palavra, que fez eco nos tijolos, pairando de forma grotesca naquela câmara circular; nunca me esquecerei deste som.
E com ele surgiu-me uma ideia.
- Foi Rupert que se lembrou da história das marionetas da praia? Que Robin tinha andado a brincar com a corda, a fazer de carrasco?
- Quem é que te disse isso? - exigiu ela saber, subitamente lúcida e muito atenta. Lembrei-me do sorriso que Meg, a Louca, me tinha lançado no Bosque de Gibbet; estas duas
mulheres tinham muitas coisas em comum.
- Foi o que a senhora contou ao júri no inquérito - respondi eu. - Toda a gente sabe.
Não me pareceu necessário acrescentar que tinha sido Sally a contar-me.
- Ele obrigou-me a contar essa história - declarou ela, limpando os olhos à manga do fato de marujo, e de repente eu percebi que ela era parecidíssima com Robin. Quando a
pessoa se apercebia dela, a semelhança tornava-se arrepiante. - Rupert explicou-me que nunca ninguém saberia. Robin tinha partido o pescoço na queda e se nós... se eu...
Um súbito arrepio percorreu-lhe o corpo todo.
- ... se eu não fizesse o que ele queria, ele contava a Gordon o que se tinha passado entre nós. E seria eu a pagar as culpas. Gordon tem uns punhos pesados, sabes.
Tal como Rupert. Eu tinha visto as nódoas negras que ele deixara nos braços de Nialla. Dois homens com mau génio que, em vez de
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darem uns murros um ao outro, preferiam fazer das respectivas mulheres sacos de boxe.
- E não podia falar com ninguém? Com o senhor vigário, por exemplo?
A sugestão pareceu incomodá-la de tal maneira que lhe deu um violento ataque de tosse. Eu fiquei à espera que passasse.
- O senhor vigário - disse ela por fim, tentando recuperar o fôlego - foi a única pessoa graças a quem os últimos cinco anos foram suportáveis.
- Ele sabia o que tinha acontecido a Robin? - Não podia acreditar em tal coisa.
- Um clérigo não pode contar nada do que lhe dizem - explicou-me ela. - Ele nunca disse nada. Tentava vir à Quinta de Culverhouse uma vez por semana, só para eu ter com quem
falar. Aquele homem é um santo. Mas a mulher pensou que ele estava...
- ... apaixonado por si.
Ela acenou com a cabeça, fechando os olhos com muita força, como se estivesse a sofrer horrores.
- Sente-se bem? - perguntei eu.
- Espera uns minutos - respondeu ela. - Daqui a nada já estou melhor. O corpo dela cedeu na minha frente, inclinando-se para a entrada
do poço.
Eu agarrei-lhe num braço e, nesse momento, um frasco de vidro que ela tinha na mão caiu ao chão, fez ricochete nos tijolos e rebolou para um canto com um tinido de vidros,
assustando um pombo que abriu as asas e levantou voo na direcção da abertura. Eu puxei Grace para o centro da câmara e corri atrás do frasco, que tinha sido detido por uma
pilha de guano muito velho.
O rótulo deu-me a conhecer tudo o que eu precisava de saber: "Cianeto de cálcio. Veneno."
Veneno para ratos! Era um produto muito usado nas propriedades rurais, em especial naquelas que tinham galinheiros, porque os galinheiros atraem as ratazanas. Ainda havia
uma barra branca no fundo do frasco. Eu abri-o e cheirei-o. Nada.
Por esta altura estava Grace caída no chão, o corpo em contracções e convulsões.
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Ajoelhei-me diante dela e cheirei-lhe os lábios. Cheiravam a amêndoa amarga.
Eu sabia que, assim que lhe tocassem a humidade da boca, da garganta e do estômago, as barras brancas de cianeto de cálcio começariam a produzir cianeto de hidrogénio, um
gás tóxico que matava em cinco minutos.
Não tinha tempo a perder. Tinha a vida dela nas mãos. Ao pensar nisso, por pouco não entrei em pânico - mas não cheguei a entrar.
Olhei em volta com cuidado, registando todos os pormenores. Para além da vela, da fotografia de Robin e do barquinho de brincar do miúdo, a única coisa que ali havia era entulho.
Bem, havia mais algumas coisas. Numa das paredes, havia um antigo bebedouro para os pássaros, constituído por um bolbo e um tubo de vidro voltado ao contrário, cujo peso de
gravidade mantinha cheio um prato onde as aves vinham mergulhar o bico. A água estava limpa, pelo que dava a impressão de que Grace a teria mudado há pouco tempo.
O bebedouro tinha ainda uma espécie de torneira de vidro em forma de galo, que permitia suspender o fluxo da água. Desliguei a torneira e, com todo o cuidado, tirei o prato
das molas que o sustentavam.
Deitada no chão, Grace gemia horrivelmente, parecendo ter perdido a consciência da minha presença.
Avançando com todo o cuidado, dirigi-me para o local de onde o pássaro tinha levantado voo e apalpei delicadamente a palha com as pontas dos dedos. Fui rapidamente recompensada
com um ovo - não, com dois ovos pequenitos!
Poisei-os ao lado do prato com gestos delicados e peguei no barquito de brincar. No fundo da quilha de metal do brinquedo havia um peso de chumbo. Bolas!
Prendi o brinquedo numa racha entre dois tijolos do peitoril da janela e puxei com quanta força tinha; depois voltei a puxar. À terceira vez, o peso soltou-se.
Transformando o fundo aguçado da quilha em espátula, inclinei-me para a abertura da ampla plataforma que, durante séculos, tinha servido de poleiro.
Lá ao fundo, o pátio da quinta estava vazio. Não valia a pena perder tempo a gritar por socorro.
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Passei o fundo da quilha pela saliência até conseguir juntar o que queria, que depois transferi, com um dedo relutante, para dentro do prato de água.
Faltava uma coisa.
Embora fossem de tamanho muito reduzido, o que dificultava as coisas, parti os ovos, um de cada vez, como a senhora Mullet me tinha ensinado: dei-lhes um golpe seco a meio
e em seguida, usando as duas metades como se fossem conchas, fui passando a gema de uma para a outra, até derramar as claras por completo no prato de água.
Fui buscar o frasco do veneno e usei-o como mão de almofariz, esmagando e remexendo até obter cerca de meia chávena de uma lama cinzenta coagulada, com uma pontinha de amarelo.
Para impedir que qualquer de nós a deitasse ao chão - Grace já estava na fase de dar uns pontapés mais ligeiros e começava a ficar cor-de-rosa devido à falta de oxigénio -,
sentei-me ao lado dela e puxei-lhe a cabeça para o meu colo, com a cara voltada para cima. Ela não teve forças para resistir.
A seguir, apertando-lhe o nariz com o polegar e o indicador, abri-lhe a boca, esperando que, apesar dos espasmos, ela não me mordesse.
Mas ela fechou imediatamente a boca. Afinal, não ia ser tarefa fácil.
Apertei-lhe um pouco mais o nariz. Se quisesse respirar, ela tinha mesmo de abrir a boca. Eu tinha consciência de que estava a fazer-lhe uma coisa horrível.
Ela debateu-se, incharam-lhe os olhos - e a seguir abriu a boca, inspirou rapidamente e voltou a fechá-la.
Com todo o cuidado de que fui capaz, debrucei-me, peguei no prato, que estava cheio até às bordas, e fiquei à espera do momento oportuno.
Foi mais cedo do que eu esperava. Ela abriu a boca e, enquanto voltava a inspirar, eu atirei-lhe lá para dentro o conteúdo do prato e fechei-lhe a boca com toda a força, colocando-lhe
a palma da mão debaixo do queixo. O prato, já vazio, caiu sonoramente no chão.
Mas Grace não estava nada decidida a permitir que eu a salvasse. Havia uma parte dela que estava com uma tal vontade de morrer que mantinha a papa na boca, recusando-se a
engoli-la.
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Eu comecei a massajar-lhe a garganta, de cima para baixo, com o dedo mindinho. Parecia uma ave marinha a escavar na areia.
Quem nos visse, havia de pensar que éramos dois pugilistas gregos: ela com a cabeça bem presa debaixo do meu braço, eu debruçada sobre ela, a tremer com o esforço físico de
evitar que ela cuspisse aquela mistela nauseabunda.
Foi então que, imediatamente antes de ela perder as forças, a ouvi engolir. Tinha deixado de resistir. Abri-lhe cuidadosamente a boca que, à excepção de um brilho repugnante
de uma matéria estranha, estava vazia.
Corri então para a janela, debruçando-me o mais que podia. O coração caiu-me aos pés. Continuava a não se ver ninguém no pátio.
De repente, comecei a ouvir o som de uma máquina no caminho de acesso e, momentos mais tarde, entrava o Fergie com grande fanfarra, com Sally ao volante, aos solavancos, e
Dieter sentado atrás, as compridas pernas suspensas da grade do reboque.
- Sally! Dieter! - chamei.
A princípio, não percebendo de onde vinha a minha voz, eles olhavam em torno do pátio, perplexos.
- Olhem para cima! Para o pombal!
Meti a mão no bolso, tirei o apito que me tinha dado Alf e assoprei nele como um polícia alucinado.
Por fim, deram por mim e Sally acenou-me.
- Grace engoliu veneno! - berrei a plenos pulmões. - Telefonem ao doutor Darby e digam-lhe para vir imediatamente!
Dieter já ia a correr a grande velocidade para casa, como devia ter corrido uns anos antes, a fugir do Messerschmidt.
- E diz-lhe que traga na mala nitrito de amilo e tiossulfato de sódio! - gritei ainda, apesar de ter umas lágrimas perdidas a correr-me pela face. - Porque vai precisar deles!
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Capítulo 28

- Caca de pombo? - perguntou o inspector Hewitt, talvez pela terceira vez. - Estás a dizer-me que fizeste um antídoto com caca de pombo?
Estávamos os dois sentados no escritório da casa vicarial, a avaliar-nos um ao outro.
- Fiz - respondi eu. - Não tinha alternativa. Quando seca ao sol, o guano de pombo torna-se imensamente rico em N03, nitrato de sódio, e foi por isso que tive de raspar o
que havia no poleiro exterior, em vez de usar o mais antigo, que se tinha acumulado no interior da câmara. O nitrato de sódio é um antídoto contra o envenenamento por cianeto.
Usei as claras dos ovos dos pombos para produzir a suspensão. Espero que ela esteja bem.
- Está óptima - esclareceu o inspector. - Nós é que andamos a recolher opiniões, para ver se devemos ou não acusar-te de praticares medicina sem as devidas licenças.
Estudei-lhe a expressão, para ver se estaria a brincar comigo, mas pareceu-me que não.
- Mas o doutor Darby afirmou que ele não teria feito melhor! protestei.
- O que não se pode dizer que seja grande coisa - comentou o inspector, desviando os olhos e fixando a janela.
Percebi que o tinha derrotado.
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O inspector Hewitt tinha-me apanhado quando eu regressava a Buckshaw, exigindo-me que lhe explicasse o que andava a fazer na Quinta de Culverhouse.
Fabriquei à pressa uma história, segundo a qual a senhora Mullet me tinha mandado buscar uns ovos para fazer uns papos-de-anjo, e aparentemente ele acreditou. Pelo menos de
momento estava safa.
O inspector tinha-me garantido que Grace Ingleby não morrera, e que tinha sido levada para o hospital de Hinley.
Mas não afirmou que o meu antídoto lhe tinha salvado a vida. Isso só o tempo o diria.
Tendo emprestado a secretária e a cadeira ao inspector, o vigário estava de pé a um canto, qual cegonha toda preta, a limpar os óculos com um lenço de linho.
O sargento Woolmer estava postado diante de uma das janelas, a fingir que polia uma lente anastigmática da sua querida máquina fotográfica; já o sargento Graves ergueu rapidamente
os olhos do bloco-notas e lançou-me um luminoso sorriso. Tenho mesmo a impressão de que o quase imperceptível aceno de cabeça que acompanhou o sorriso foi um gesto de admiração.
Embora eles nem sequer tenham consciência da existência um do outro, ocorre-me por vezes que o sargento Graves venha a casar-se com a minha irmã Ophelia, e a leve a viver
numa casinha sombreada de vinhedos, suficientemente perto de Buckshaw para eu poder ir lá fazer-lhes uma visita sempre que me apeteça e conversar com ele sobre assassínios.
Agora, porém, tinha de ter Dieter em consideração. A vida estava a tornar-se complicada.
- Vamos então começar pelo princípio - pediu o inspector Hewitt, parecendo acordar de um ligeiro sonho. - Quero ter a certeza de que não nos escapou nada.
Haveria uma ligeira nota de sarcasmo na voz dele? Eu esperava que não, porque gostava realmente do sujeito, ainda que ele fosse por vezes bastante lento.
- A senhora Ingleby, Grace, teve um caso com Rupert Porson. Rupert frequentava a Quinta de Culverhouse há vários anos, porque... Gordon lhe fornecia marijuana; ajuda a aliviar
a dor, compreende?
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Ele devia ter-se apercebido da minha hesitação.
- Não te preocupes com o facto de estares a atraiçoá-lo - descansou-me. - O senhor Ingleby foi muito franco connosco. O que eu quero agora é ouvir a tua versão.
- Rupert e Grace tinham combinado encontrar-se na praia, há uns anos - prossegui eu. - E Robin viu-os juntos, e depois voltou a vê-los já cá, no pombal. Rupert quis agarrá-lo,
ou qualquer coisa parecida, e Robin caiu lá de cima e partiu o pescoço. Foi um acidente, mas a verdade é que Robin estava morto. Rupert teve a ideia de ordenar a Grace que
levasse o corpo do filho para o Bosque de Gibbet, depois de escurecer, e o enforcasse. Várias pessoas o tinham visto a brincar com uma corda.
"Também foi Rupert que inventou a história de que Robin estivera a representar a cena do teatro de marionetas a que tinha assistido na praia. A história é mais que sabida
por qualquer miúdo, e ninguém se lembraria de pôr em causa que Robin se tivesse enforcado por acidente. Era tão bizarro que só podia ser verdade. Rupert era um bonecreiro
famoso, de maneira que não podia permitir-se que o seu nome estivesse ligado, fosse de que maneira fosse, à morte de uma criança. Tinha de apagar a sua presença da cena da
morte de Robin. Grace era a única pessoa que sabia que ele tinha estado na quinta naquele dia.
"Foi por isso que ele a ameaçou, dizendo-lhe que, se ela não fizesse o que ele estava a mandar-lhe, abria o jogo com Gordon, ou seja, informava o marido dela de que andava
a ter um caso com a mulher dele. Deste modo, Grace perdia o filho e o marido de uma só penada. Ela já devia sentir-se meio enlouquecida de dor e de medo, de maneira que não
deve ter sido muito difícil manipulá-la.
"Como é muito pequenina, calçou as botas de borracha de Robin quando foi levar o corpo ao Bosque de Gibbet. E, apesar de ser muito pequena, é uma mulher muito forte. Percebi
isso quando me puxou para o alto da torre do pombal. Depois de ter enforcado o corpo já morto de Robin, calçou-lhe as botas e regressou a casa descalça, indo dar a volta pelo
outro lado.
O inspector Hewitt acenou com a cabeça e escrevinhou um apontamento na sua letrinha microscópica.
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- Meg, a Louca, foi encontrar o corpo ali suspenso, e achou que se tratava de uma obra do Demónio. Já lhe entreguei a página do meu bloco-notas, de maneira que o senhor inspector
conhece o desenho que ela fez. A bem dizer, ela desenha muito bem, não acha?
- Humm - respondeu o inspector. Era um vício que ele tinha adquirido com a convivência com o doutor Darby.
- Foi por isso que teve receio de lhe tocar e de dizer fosse a quem fosse. O corpo de Robin esteve enforcado no Bosque de Gibbet até Dieter o encontrar.
- No sábado passado, no salão paroquial, quando viu a cara de Robin no boneco, Meg pensou que o Demónio tinha ressuscitado o rapazinho, o tinha feito encolher e o tinha posto
a trabalhar ali no palco. Meg não tem grande noção do tempo, baralha muito as coisas. Percebe-se pelo desenho: o de Robin enforcado é de uma coisa que ela viu há cinco anos;
o do vigário a despir-se no bosque é de uma coisa que viu na quinta-feira passada.
O vigário corou intensamente, passando o indicador por dentro do colarinho de clérigo.
- Pois, bem... sabem, é que...
- Oh, eu percebi que o senhor vigário tinha dado uma grande queda - atalhei eu. - Percebi isso assim que o vi chegar ao cemitério; foi no dia em que conheceu Nialla e Rupert,
lembra-se? Trazia a perna da calça toda rasgada e estava coberto de pó, de um pó branco como o da estrada que vai dar à Quinta de Culverhouse, e tinha perdido a mola da bicicleta.
- Pois tinha - confirmou o vigário. - Fiquei com as calças presas na corrente e fui catapultado para o charco.
- Razão pela qual se meteu pelo meio das árvores do Bosque de Gibbet, onde se despiu, para tentar limpar a roupa. O senhor vigário estava com receio do que diria Cynthia...
desculpe, a senhora Richardson. Disse-nos isso mesmo ao chegar ao cemitério. Comentou que Cynthia ia dar cabo de si, ou coisa parecida.
O vigário não replicou, e tenho a impressão de que eu nunca o admirei tanto como nesse momento.
- Porque o senhor vigário tem ido à Quinta de Culverhouse pelo menos uma vez por semana nos últimos cinco anos, desde que Robin
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morreu. E Cynthia... desculpe, a senhora Richardson, meteu na cabeça que aqueles seus encontros com Grace Ingleby eram suspeitos. É por isso que, ultimamente, os tem feito
às escondidas.
- Não posso falar sobre isso - declarou o vigário. - Quando uma pessoa usa esta coleira, deixa de poder entregar-se a mexericos, por muito que isso lhe agradasse. Mas não
posso deixar de afirmar, em defesa da minha mulher, que Cynthia é extremamente leal. E que a vida dela nem sempre é fácil.
- A de Grace Ingleby também não - salientei eu.
- Pois não, a de Grace Ingleby também não.
- Seja como for - prossegui -, Meg vive num barraco, algures nas profundezas do Bosque de Gibbet. De maneira que não perde grande coisa do que ali se passa.
Nem do que se passa na aldeia, tive vontade de acrescentar. Tinha-me ocorrido que fora quase de certeza Meg que Rupert e Nialla tinham ouvido circular em redor da tenda, quando
tinham acampado no cemitério.
- Ela viu-o tirar as calças ao pé do velho patíbulo, no mesmo sítio onde Robin tinha estado enforcado. E foi por isso que o incluiu no desenho.
- Estou a ver - disse o vigário. - Pelo menos acho que estou a ver.
- Meg apanhou a mola da bicicleta que o senhor vigário tinha deixado caída na estrada, com a intenção de a usar numa daquelas esculturas suspensas que ela faz. Mas percebeu
que era sua e...
- A mola tem as minhas iniciais gravadas - interrompeu o vigário. - Foi Cynthia que as gravou.
- Meg não sabe ler - voltei eu à carga -, mas é muito observadora. Repare no pormenor dos desenhos que ela fez. Até se lembrava desse alfinete que o senhor vigário traz na
lapela, com as iniciais da Igreja de Inglaterra.
- Valha -me Deus! - exclamou o vigário, aproximando-se para espreitar por cima do ombro do inspector. - E lembrava-se mesmo.
- Veio cá a casa no sábado à tarde, para devolver a mola da bicicleta, e enquanto andava à sua procura, foi ter ao salão paroquial, estava Rupert a fazer o espectáculo dele.
Ao ver no palco Robin encolhido, perdeu a tramontana. O senhor vigário e Nialla trouxeram-na para a casa
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vicarial e deitaram-na aqui no sofá do escritório. Foi nessa altura que a mola, e o estojo de pó-de-arroz de Nialla, lhe caíram do bolso. No dia seguinte, eu encontrei o estojo
no chão, atrás do sofá. Mas não encontrei a mola da bicicleta, porque Grace Ingleby já a tinha apanhado na véspera.
- Espera aí - interveio o inspector. - Não ouvi ninguém dizer que a senhora Ingleby tivesse andado nas proximidades da casa vicarial, ou do salão paroquial, no sábado à tarde.
- E ninguém disse, de facto - confirmei eu. - Disseram apenas que a senhora dos ovos tinha por cá passado.
Se o inspector Hewitt fosse o género de homem com tendência para abrir a boca de espanto, tê-la-ia aberto nesta altura, e teria ficado a olhar que nem uma gárgula.
- Valha-me Deus - disse numa voz sem expressão. - Quem é que te contou isso?
- A senhora Roberts e a menina Roper - respondi eu. - Estavam as duas aqui, na cozinha da casa vicarial, ontem depois da cerimónia na igreja. Presumi que o senhor inspector
as tivesse interrogado.
- E acho que interrogámos, de facto - retorquiu o inspector, erguendo uma sobrancelha na direcção do sargento Graves, que começou a folhear as páginas do bloco-notas.
- Confirmo, senhor inspector - disse o sargento Graves. - Ambas prestaram depoimentos, mas ninguém falou na senhora dos ovos.
- A senhora dos ovos era Grace Ingleby, naturalmente - prossegui eu, tentando esclarecê-los. - Passou por cá no sábado à tarde, veio trazer os ovos da casa vicarial. Não estava
cá ninguém. Por qualquer motivo, ela passou pelo escritório do senhor vigário. Talvez tenha ouvido Meg a ressonar, não sei. O certo é que viu a mola da bicicleta no chão,
apanhou-a e meteu-a no bolso.
- Tens a certeza do que estás a dizer? - perguntou o inspector Hewitt.
- Não, não tenho a certeza - respondi eu. - Mas tenho a certeza, porque ele me disse, de que o senhor vigário perdeu a mola da bicicleta na quinta-feira passada... - O vigário
confirmou com um aceno de cabeça. - ... na estrada do Monte Gibbet... e de que o senhor inspector e eu a encontrámos, no domingo de manhã, enfiada no corrimão do teatro de
marionetas. Limitei-me a adivinhar o resto.
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O inspector coçou o nariz, tirou mais uma nota e ergueu os olhos para mim como se se sentisse defraudado.
- O que nos conduz novamente a Rupert Porson - comentou.
- Exactamente - concordei eu. - O que nos conduz novamente a Rupert Porson.
- Acerca de quem te preparavas para nos esclarecer. Ignorei esta provocação e prossegui.
- Grace conhecia Rupert há imensos anos. É provável que o tivesse conhecido antes de conhecer Gordon. É mesmo possível que, a certa altura, tivesse andado a viajar como colaboradora
dele.
Pelo olhar subitamente fechado do inspector Hewitt, percebi que tinha acertado em cheio. Bravo, Flavia!, pensei. Vais passar para a frente da classe! Havia alturas em que
até eu ficava surpreendida comigo.
- E mesmo que não tivesse - acrescentei -, terá com certeza assistido a algum dos espectáculos que ele apresentava por essas terras fora. Terá prestado especial atenção à
parte eléctrica. Dado que era ele que produzia todo o equipamento que utilizava, não me parece provável que não tenha aproveitado a oportunidade para se gabar dos pormenores
a uma pessoa que percebia tanto de electricidade como ele. Era um homem bastante vaidoso das suas competências, como sabe.
"Presumo que Grace tenha pegado na chave que estava pendurada na casa vicarial e tenha atravessado o adro da igreja e entrado no salão paroquial. Por esta altura, o espectáculo
da tarde já tinha acabado, o público tinha saído e Rupert também ali não estava. Era fácil passar despercebida. E, mesmo que alguém a tivesse visto, não lhe teriam prestado
propriamente grande atenção, não é verdade? Ela entrou no salão e, usando o corredor da esquerda, trancou a porta e subiu o curto lance de escadas que vai dar ao palco.
"Subiu à ponte e ao palco do teatro de marionetas, raspou o isolamento de plástico dos fios com a mola da bicicleta. Depois, meteu a mola por cima da armação de madeira do
palco, a tocar nos fios despidos de um dos lados e na alavanca de metal que soltava o Galliganto do outro. E já está! Não era preciso fazer mais nada. Se observaram a mola
com atenção, é provável que tenham encontrado uma pequena marca abrasiva ao centro, na parte de dentro, e talvez também uns vestígios de cobre.
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- É verdade! - deixou escapar o sargento Woolmer, e o inspector Hewitt mandou-o calar com um olhar severo.
- Ao contrário da maioria dos restantes suspeitos, à excepção de Dieter, evidentemente, que montava rádios quando era miúdo, Grace Ingleby tinha as necessárias competências
em electricidade. Antes da guerra, antes de se ter casado com Gordon, trabalhou numa fábrica onde instalava rádios nos Spitfires. Segundo me disseram, tem um QI quase igual
ao número dos Salmos.
- Maldição! - gritou o inspector Hewitt, pondo-se em pé de um pulo. - Desculpe, senhor vigário. Mas por que foi que nós não descobrimos estas coisas, sargento?
E olhava para um e outro dos seus homens com ar exasperado.
- Com todo o respeito, senhor inspector - sugeriu o sargento Woolmer -, talvez por não sermos a menina de Luce.
Foi uma afirmação ousada e temerária. Se aquilo que eu tinha visto nos filmes era verdade, tal afirmação podia fazer com que, ainda antes de cair a noite, o sargento andasse
a remendar estradas.
Seguiu-se um silêncio de dar cabo dos nervos a qualquer um.
- Tem razão, evidentemente, sargento - disse finalmente o inspector. - Não temos a mesma capacidade de penetração nos lares de Bishop's Lacey, pois não? É uma área em que
temos de melhorar. Tome nota disso.
Não era de espantar que os subordinados o adorassem!
- Muito bem, senhor inspector - anuiu o sargento Graves, escrevinhando qualquer coisa no bloco-notas.
- Tendo montado a armadilha - prossegui eu -, Grace saiu pela porta do corredor que fica à direita do palco, tendo-a fechado à chave, provavelmente para evitar que alguém
fosse aos bastidores e descobrisse o que ela tinha feito. Não era provável que tal acontecesse, evidentemente, mas ela devia estar num estado de grande tensão. Há muito tempo
que andava a planear vingar-se de Rupert, mas só quando viu a mola da bicicleta do vigário no chão é que percebeu exactamente como. Como já referi, estamos perante uma mulher
muito inteligente.
- Mas então - perguntou o inspector Hewitt -, se as duas portas estavam fechadas, como é que Porson subiu ao palco? Não podia estar fechado por dentro, porque não tinha a
chave.
- Subiu pelas escadinhas da parte da frente do palco - respondi eu.
- Não são tão íngremes como as duas laterais e é só um lance. Rupert tinha mais dificuldade em subir escadas estreitas, por causa do aparelho da perna, de maneira que foi
por um atalho. Fez o mesmo na quinta-feira passada, quando andou a ensaiar a acústica da sala.
- Essa teoria é muito engenhosa - observou o inspector Hewitt.
- Mas deixa algumas coisas por explicar. Por exemplo, como é que a alegada assassina sabia que aquele bocadito de metal resultaria na morte de Porson?
- Porque Rupert se apoiava num corrimão de ferro quando manuseava os fantoches. O equipamento eléctrico que ele tinha nos bastidores era tal que o corrimão tinha de estar
ligado aos fusíveis. Assim que Rupert tocasse na alavanca do Galliganto, com a parte inferior do corpo encostada ao corrimão e a perna direita metida num aparelho de ferro,
a corrente subia-lhe imediatamente pelo braço e passava-lhe...
- ... pelo coração - completou o inspector. - Sim, estou a ver.
- Como aconteceu a São Lourenço - observei eu -, que, como sabem, foi morto numa grelha.
- Obrigado, Flavia - disse o inspector Hewitt. - Acho que já percebemos onde queres chegar.
- Sim, eu também acho - respondi com uma certa sobranceria.
- Nesse caso, é tudo?
O sargento Graves ria-se debruçado sobre o bloco-notas, como Scrooge se ria a olhar para os livros de contas.
O inspector Hewitt franziu o sobrolho com uma expressão que eu já conhecia; uma expressão de curiosidade exasperada, firmemente controlada por anos de treino e por um rigoroso
sentido do dever.
- Parece-me que sim, que é tudo. Só faltam um ou dois pormenores.
Eu lancei-lhe um grande sorriso, um sorriso de superioridade, cheio de dentes e de lábios finos. Quase me odiei por isso.
- Diga, senhor inspector?
Ele dirigiu-se à janela com as mãos atrás das costas, como eu já o vira fazer noutras ocasiões. Finalmente, voltou-se para dentro.
- Se calhar, eu não sou assim muito esperto - comentou. Se estava à espera de que eu o contradissesse, podia esperar até as vacas voltarem
300
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para casa de pijama roxo vestido. - As tuas observações relativas à morte de Rupert Porson foram muito esclarecedoras. Mas, por muito que me esforce, não consigo seguir o
fio do teu raciocínio no que à morte de Robin Ingleby diz respeito.
- As botas, sim... talvez - prosseguiu. - Admito que seja uma hipótese, mas está longe de ser seguro. Como prova a apresentar em tribunal, é fraco, isto se o caso for reaberto.
Mas vamos precisar de muito mais do que um par de botas para nos apresentarmos aos senhores juízes.
Falava num tom quase suplicante. Eu já tinha decidido que certas observações permaneceriam para sempre fechadas na minha mente: pequenos elementos dedutivos, que reservava
para meu deleite pessoal. Vendo bem, a polícia tinha muito mais recursos ao seu dispor do que eu.
Mas depois lembrei-me de Antígona, a bela mulher do inspector Hewitt. O que pensaria ela de mim, se descobrisse que eu tinha enganado o marido? Uma coisa era certa: desisti
imediatamente da ideia de reservar qualquer informação para consumo próprio.
- Muito bem - declarei com relutância. - Há mais alguns dados. O primeiro é o seguinte: quando Dieter regressou a correr à quinta, depois de ter descoberto o corpo de Robin
enforcado no Bosque de Gibbet, as janelas da casa estavam vazias. Ninguém estava à espera dele, como seria de supor que estivessem. É natural que a mãe de uma criança desaparecida
aguarde, frenética, por qualquer notícia que lhe venham dar. Mas Grace Ingleby não estava à janela, à espera. E porquê? Muito simplesmente porque já sabia que Robin estava
morto.
Atrás de mim, o vigário susteve a respiração.
- Estou a ver - comentou o inspector. - É uma teoria engenhosa... muito engenhosa. Mas ainda não me parece que chegue para montar um caso.
- Também não me parece - acedi eu. - Mas há mais.
Olhei para cada um deles sucessivamente: para o vigário, para o inspector Hewitt, para o sargento Graves, cujos rostos ansiosos, espetados para diante, estavam suspensos das
minhas palavras. Até o volumoso sargento Woolmer abrandou o polimento da intrincada lente.
- Robin Ingleby andava sempre com o cabelo que parecia uma meda de palha - disse eu. - "Desgrenhado" talvez seja a expressão mais
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adequada. Vê-se nas fotografias. E contudo, quando foi encontrado suspenso da forca do velho patíbulo, estava muito bem penteado, como se tivesse acabado de sair do barbeiro.
Foi assim que Meg o desenhou vêem aqui? '
Todos se inclinaram avidamente para a página do meu bloco-notas.
- É o género de coisa que só uma mãe faz - observei eu. - Ela não conseguiu resistir. Grace Ingleby queria que o filho estivesse apresentável quando o descobrissem, enforcado,
no Bosque de Gibbet.
- Valha-me Deus! - exclamou o inspector Hewitt.
303
Capítulo 29

- Valha-me Deus! - exclamou o pai. - Aquilo é a Central Emissora! Eles instalaram câmaras em Portland Place!
E, levantando-se pela enésima vez, atravessou a sala de estar a passos largos para ir mexer nos comandos do aparelho de televisão.
- Está calado, por favor, Haviland - pediu a tia Felicity. - Se a BBC estivesse interessada nos teus comentários, tinha-te contratado.
Mal tinha ainda chegado a Hampstead, a tia Felicity regressara a correr a Buckshaw logo que tivera esta ideia. Tinha mandado instalar a televisão para esta ocasião ("foi uma
despesa monstruosa", apressara-se a salientar) e, graças a esse facto, usufruía agora de um poder ditatorial imensamente acrescido.
Na véspera de manhã muito cedo, os operários tinham começado a erigir uma torre de recepção nas alturas de Buckshaw.
- A torre tem de ser suficientemente alta para captar o sinal da nova torre de transmissão de Sutton Coldfield - tinha dito a tia Felicity, num tom que dava a entender que
tinha sido ela a inventar a televisão. - Eu teria preferido que fôssemos todos a Londres às exéquias de Person, mas quando Lady Burwash me revelou que os Sitwell tinham mandado
instalar a televisão em casa... Não, não, não protestes, Haviland. Isto é educativo. É para bem das pequenas que o faço.
Vários operários musculosos, de fato-macaco, tinham deslocado a câmara do interior de uma carrinha e tinham-na instalado na sala de
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estar, onde neste momento se encontrava, com o olho verde fixado em nós, os que ali nos encontrávamos reunidos diante do seu brilho maligno de Ciclope bruxuleante.
Daffy e Feely estavam recostadas num chesterfield, fingindo-se muito entediadas. O pai tinha convidado o vigário e tinha-lhes dito que tivessem cuidado com a língua.
A senhora Mullet estava entronizada numa confortável cadeira de costas altas e Dogger, que preferia não se sentar na presença do pai, estava silenciosamente de pé atrás dela.
- Terão televisão em Portland Place? - perguntou Feely com ar ocioso. - Ou estarão a assistir da janela?
Tratava-se evidentemente de uma tentativa de ridicularizar o pai, cujo desprezo pela televisão era lendário.
- A televisão é uma bugiganga - respondia ele, sempre que lhe pedíamos para mandar instalar um aparelho. - Se Deus tivesse querido que as imagens nos fossem enviadas pelos
ares, não nos teria dado o cinema. Nem os museus de arte - acrescentava com ar soturno.
Neste caso, porém, tinha sido desautorizado.
- Mas isto é história, Havilland - tinha argumentado a tia Felicity em voz sonora. - Terias negado às tuas filhas a oportunidade de assistirem ao discurso que Henrique V fez
aos seus homens no Dia de São Crispim?
E, tomando posição a meio da sala, começara a recitar.
Esta história ensiná-la-á o pai a seu filho, e Crispim e Crispiniano são nomes que jamais se pronunciarão, a partir de hoje até ao fim do mundo, sem que se lhes ligue a nossa
recordação. Nós somos poucos, mas felizes, um punhado de irmãos...
- Que disparate! - tinha interrompido o pai, mas a tia Felicity prosseguira, indomável, como Henrique V também havia feito.
... pois aquele que hoje derramar o seu sangue comigo ficará sendo meu irmão. Por mais vil que seja a sua condição, este dia o enobrecerá. Os fidalgos que ficaram em Inglaterra,
e que dormem nesta hora, julgar-se-ão malditos por não terem estado onde nós estamos, e darão ao barato a sua nobreza ao ouvirem a narrativa dos que tiverem combatido connosco
no Dia de São Crispim (1)!
- Tudo isso é muito bonito, mas a verdade é que, em 1415, não havia televisão - tinha o pai resmungado, sem querer alcançar o argumento da tia Felicity.
Fora então que, ontem mesmo, se passara uma coisa notável. Um dos mecânicos, que tinha estado na sala de estar com o olhar fixo no receptor, tinha começado a berrar instruções
a um colega que estava postado no relvado, que por sua vez as retransmitia, em tom de treino militar, ao homem que estava no telhado.
- Aguenta aí, Harry! Para trás... para trás... para trás. Não... deixaste-o fugir. Volta pelo outro lado...
Nesse preciso momento, o pai tinha entrado na sala, presumo que com a intenção de derramar o seu desprezo sobre tudo aquilo, quando a sua atenção foi retida por qualquer coisa
que estava a passar no ecrã coberto de flocos de neve.
- Pare aí! - exclamou, e esta ordem foi sucessivamente transmitida pelos mecânicos, com ecos cada vez mais ténues, da janela para fora e até ao alto da casa. - Mas que coisa
extraordinária! - prosseguiu ele. - Aquilo é o Guiana Britânica de 1856. Recue ligeiramente - gritou em seguida, acenando com as mãos para ilustrar o movimento. Esta instrução
voltou a ser comunicada às alturas pela brigada das transmissões, e a imagem tornou-se um pouco mais clara. - Tal como eu pensava concluiu. - Conhecia-o onde quer que o visse.
Vai ser leiloado. Aumente o som.
Quisera o Destino que a BBC estivesse naquele momento a transmitir um programa sobre o coleccionismo de selos e, momentos depois, o pai tinha puxado uma cadeira, instalado
os óculos de aros de metal na ponta do nariz, recusando-se a sair dali.
- Silêncio, Felicity! - bradou, quando ela tentou intervir. - Isto é um assunto da maior importância.
(1) Tradução de Henrique Braga, in O Rei Henrique V. Tragédia histórica em cinco actos, Porto, Lello & Irmãos Editores, s/d. (N. da T.)
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E fora assim que o pai tinha permitido que a Besta Uniocular lhe ocupasse a sala de estar. Pelo menos para já.
Por esta altura, em que se aproximava a hora da inumação de Rupert (e Daffy tinha ostentado a palavra, para esclarecimento da senhora Mullet), Dogger dirigiu-se ao vestíbulo
para receber o vigário, que, embora não estivesse a dirigir o funeral, sentira apesar de tudo necessidade de nos apertar as mãos a todos ao entrar na sala.
- Valha-me Deus, valha-me Deus! - dizia ele. - E pensar que o pobre sujeito expirou aqui mesmo, em Bishop's Lacey.
Ainda ele não tinha acabado de se sentar no sofá quando a campainha voltou a tocar e, momentos depois, Dogger regressava com uma visita inesperada.
- O senhor Dieter Schrantz - anunciou à porta, assumindo sem esforço algum o seu papel de mordomo.
Feely levantou-se de um salto e atravessou a sala em passo flutuante para ir cumprimentar Dieter; ia de mãos estendidas, as palmas voltadas para baixo, como se fosse sonâmbula.
Estava radiante, a megera!
Eu rezei para que ela tropeçasse no tapete.
- Corre as cortinas, por favor, Dogger - pediu o pai. Ele obedeceu e a luz desapareceu da sala, deixando-nos a todos mergulhados numa quase obscuridade.
E, como já disse, começámos então a ver o pavimento molhado de Portland Place e a fachada da Central Emissora, ao mesmo tempo que a voz contida e solene do locutor da BBC
narrava os acontecimentos (talvez fosse Richard Dimbledy, ou então era outro sujeito qualquer que tinha uma voz parecida com a dele):
- E agora, de todos os recantos deste reino, vêm as crianças, aqui trazidas pelos pais e as mães, pelas amas e as governantas, e algumas mesmo pelos avós.
- Têm estado aqui à espera em Portland Place, horas a fio, à chuva, novos e velhos, aguardando pacientemente a sua vez de dizerem um derradeiro adeus ao homem que lhes conquistou
o coração; de prestarem a sua homenagem a Rupert Porson, o génio que todas as tardes as
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raptava durante uma hora e, qual Flautista de Hamelin, as conduzia para o Reino da Magia.
Génio? Bem, génio talvez fosse um certo exagero. Rupert era brilhante, disso não havia dúvida nenhuma. Mas um génio? O homem era um malandrim, um mulherengo bruto e agressivo.
E era por causa desses defeitos que não era um génio? Pois, talvez não seja uma boa razão. O cérebro é uma coisa, a moral é outra. Eu, por exemplo, sou considerada por muitos
espantosamente inteligente, e no entanto o meu cérebro anda, a maior parte das vezes, entretido a congeminar maneiras novas e interessantes de impor aos meus inimigos uma
morte súbita e terrivelmente dolorosa.
Defendo firmemente a tese de que a primeira razão pela qual os venenos foram criados foi para serem descobertos - e devidamente aplicados - por aquelas pessoas que, como eu,
têm inteligência mas não dispõem propriamente da força física necessária ao...
O veneno! Tinha-me esquecido completamente de que tinha envenenado os chocolates!
Feely tê-los-ia comido? Não me parecia provável; com efeito, se os tivesse comido, não estava ali sentada com aquela calma de doidos, permitindo que Dieter - qual criador
de cavalos admirando a sua mais recente poldra por sobre a vedação do hipódromo - lhe contemplasse com ar de apreciador as facetas mais valiosas.
De qualquer maneira, a quantidade de sulfureto de hidrogénio que eu tinha injectado nos chocolates não era suficiente para matar. Uma vez dentro do corpo - e supondo que alguém
cometia a estupidez de o engolir - oxidava, transformando-se em sulfato de hidrogénio, podendo sob esta forma acabar por ser eliminado na urina.
Seria um crime assim tão grave aquilo que eu tinha feito? O dimetilsulfureto era usado às toneladas nos doces enriquecidos com aromas artificiais e, que eu soubesse, nunca
ninguém tinha sido enforcado por causa disso.
Quando os meus olhos se habituaram à obscuridade da sala, pude olhar em torno de mim para as caras iluminadas pelo brilho da televisão. A senhora Mullet? Não. Feely não desperdiçaria
os seus preciosos chocolates oferecendo-os à senhora Mullet. O pai e Dogger também estavam fora de questão, o mesmo se aplicando ao vigário.
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Havia a possibilidade remota de a tia Felicity ter engolido um ou dois, mas, se isso tivesse acontecido, teria protestado com vigor e veemência tais que até o elefante de
Sabu teria corrido a refugiar-se nas colinas.
Portanto, os chocolates ainda deviam estar no quarto de Feely. Se eu conseguisse esgueirar-me nesta semi-obscuridade, sem ninguém dar por mim...
- Flavia - disse o pai, apontando vagamente para o pequeno ecrã -, calculo que isto seja particularmente difícil para ti. Se preferires não assistir, podes ir-te embora.
Salva! Grande corrida para os chocolates envenenados!
Mas espera aí! Se eu me ponho a andar neste momento, o que pensará Dieter de mim? Os outros pouco me importam... bem, o vigário talvez me importe um bocadinho. Mas ser considerada
uma fraca pelo homem que foi abatido e fez aterrar um avião em chamas...
- Obrigada, pai - respondi. - Acho que consigo aguentar-me. Sabia perfeitamente que era o tipo de resposta estóica de que ele
estava à espera, e era de facto. Tendo correspondido com os resmungos próprios da ocasião, voltou a afundar-se no cadeirão com o que me pareceu um suspiro.
Das profundezas da cadeira do canto proveio um riso meio abafado, e eu percebi imediatamente que tinha sido Daffy.
As câmaras de televisão estavam agora a entrar no edifício da Central Emissora, encaminhando-se para um enorme estúdio cheio de flores até ao tecto, e ali estava Rupert -
ou pelo menos o caixão dele, um objecto ornamentado, cuja superfície altamente polida reflectia as luzes da televisão e os presentes mais próximos, e cujas pegas laminadas
a prata luziam que nem faróis no escuro.
Por esta altura, uma segunda câmara deixava ver uma pequenita, que se aproximou do caixão... hesitantemente... tentativamente empurrada com insistência por uma mãe tímida.
A criança limpou uma lágrima, e a seguir depositou uma grinalda de flores silvestres no corrimão que isolava o caixão.
A cena mudou para um grande plano de uma mulher adulta a chorar.
A seguir avançou um homem vestido de preto, que arrancou três rosas do muro de tributos florais e as entregou delicadamente, uma à
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criança, outra à mãe da criança e a terceira à mulher que chorava. Depois tirou do bolso um grande lenço branco e, voltando as costas à câmara, assoou-se com energia dorida.
Era Mutt Wilmott! Era ele que estava a dirigir aquilo tudo, tal como ele próprio tinha garantido que faria! Mutt Wilmott: aos olhos do mundo, era um homem devastado pela dor.
Neste momento de luto nacional, Mutt encontrava-se diante dos holofotes, proporcionando ao público momentos memoráveis, as inesquecíveis imagens que a morte exigia. Por pouco
não me levantei para aplaudir. Tinha perfeita noção de que as pessoas que assistissem a estas expressões simples de devoção, fosse ao vivo, fosse através da televisão, continuariam
a falar delas até ao momento em que se encontrassem, já sem dentes e a aguardar que o coração lhes parasse de bater, sentadas num banco sombreado de uma acolhedora casinha.
- Mutt Wilmott - dizia a voz de Dimbledy -, o produtor de O Reino da Magia, de Rupert Porson. Disseram-nos que ficou desfeito quando soube da morte do bonecreiro, e que tiveram
de o levar para o hospital porque estava com palpitações. Porém, apesar disso, e desobedecendo às ordens do médico, insistiu em vir hoje aqui prestar homenagem ao colega falecido...
embora nos tenham dito que está uma ambulância parada à porta, para o caso de ser necessária.
Começaram então a aparecer imagens de uma câmara que ainda não tínhamos visto. Inicialmente filmada do alto, a perspectiva ia baixando cada vez mais em direcção ao estúdio,
como se fosse a perspectiva de um anjo a descer sobre o mundo, aproximando-se cada vez mais do caixão, até finalmente se deter aos pés deste, diante de uma figura notável
que não podia ser senão o esquilo Snoddy.
Talvez montado numa viga de madeira, a marioneta - de orelhitas de couro, dentes protuberantes e a espessa cauda em forma de ponto de interrogação - tinha sido cuidadosamente
disposta de maneira a ficar a olhar com uma expressão triste para o caixão do seu criador, as patitas reverentemente sobrepostas em cruz, a cabecita curvada numa atitude de
humilde oração.
Havia momentos - e este foi um deles - em que, como que por súbita iluminação de um flash de fotógrafo, eu percebia tudo: a Morte não passava de um simples baile de máscaras,
aliás como a Vida, ambas
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cuidadosamente dispostas por algo distinto, por um celeste Mutt Wilmott que se encontrava nos bastidores.
Nós éramos marionetas, todos nós, manejados sobre o palco por Deus - ou pelo Destino - ou pela Química, chame-se o que se lhe chamar, metidos nas mãos como luvas e manipulados
pelos Rupert Porson e pelos Matt Wilmott deste mundo. Ou pelas Ophelias e as Daphnes de Luce.
Tive vontade de soltar um gemido!
Quem me dera que Nialla ali estivesse, para eu poder contar-lhe todas as descobertas que tinha feito! A bem dizer, ninguém mais do que ela merecia conhecer os factos. Por
esta altura, contudo, e tanto quanto eu sabia, devia ela andar a conduzir a decrépita carrinha Austin pelas montanhas do País de Gales, ou teria chegado a alguma aldeia galesa
onde, com o auxílio de uma discreta Mãe Gansa, descarregaria a bagagem num qualquer Salão Paroquial de São David e, ao final da noite, abriria a cortina de cena diante dos
aldeões que assistiriam, de boca aberta, a uma versão do João e o Pé de Feijão da autoria da própria Nialla.
Tendo Rupert desaparecido, qual de nós duas seria agora o Galliganto? Qual de nós duas seria o monstro que se precipitaria inesperadamente do céu aos trambolhões sobre a vida
dos outros?
- Continuam a chegar tributos sentidos de todos os pontos do país, mesmo os mais remotos - dizia o locutor -, bem como do estrangeiro. - E, fazendo uma pausa, soltou um pequeno
suspiro, como se tivesse sido vencido pela emoção do momento.
- Aqui em Londres, e apesar da chuva, as filas continuam a crescer, prolongando-se a toda a volta do quarteirão e ainda para além. Do alto da porta da Central Emissora, as
estátuas de Próspero e Ariel observam atentas a multidão enlutada, como se também elas sentissem a dor que os une.
- Imediatamente após as cerimónias de hoje na Central Emissora - prosseguiu corajosamente -, o caixão de Rupert Porson será conduzido à estação de Waterloo, para ser transportado
para o Cemitério de Brookwood, no Surrey, onde ficará sepultado.
Por esta altura, até Feely achou que já chegava.
- Já chega deste lixo sentimental! - anunciou ela, atravessando a sala e desligando o aparelho. A imagem da televisão ficou reduzida a um pontinho de luz, e a seguir desapareceu.
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- Abre-me essas cortinas, Daffy! - ordenou, e Daffy saltou para cumprir a ordem recebida. - Que coisa tão entediante, tudo aquilo. Deixemos entrar a luz, para variar.
O que ela realmente queria era, evidentemente, poder ver melhor Dieter. Vaidosa de mais para usar óculos, é muito provável que o máximo que Feely tivesse visto do funeral
de Rupert tivesse sido uma vaga névoa. E convenhamos que é absurdo ser admirado ao perto por um cisne ansioso quando não se consegue ver o fascínio que se provoca no referido
cisne.
Não pude deixar de notar que o pai pareceu ignorar a forma abrupta como a nossa primeira tarde de televisão fora concluída, tendo já começado a deslizar para dentro do seu
próprio mundo.
Dogger e a senhora Mullet saíram discretamente para as suas tarefas, e a única a protestar, e mesmo assim sem grande convicção, foi a tia Felicity.
- Francamente, Ophelia - bufou ela -, és mesmo ingrata. Eu queria ver melhor as pegas do caixão. O filho da minha mulher-a-dias, Arnold, é aderecista da BBC, e parece que
foi ele que tratou dessa parte. Deram-lhe carta branca para arranjar uns adereços fotogénicos.
- Desculpe, tia Felicity - pediu Feely vagamente -, mas os funerais arrepiam-me horrivelmente, mesmo que seja na televisão. Não suporto assistir a funerais.
Por momentos pairou no ar um silêncio quase frio, indicativo de que a tia Felicity não se tinha deixado convencer assim com tanta facilidade.
- Já sei! - acrescentou Feely, animadamente. - Deixem-me oferecer-lhes um chocolate.
E dirigiu-se para as gavetas da mesinha de canto.
Ocorreram-me imediatamente visões do Inferno vitoriano: as cavernas, as chamas, os poços em fogo, as filas de almas condenadas - muito semelhantes às filas que acabávamos
de ver diante da Central Emissora - à espera de serem lançadas pelo anjo vingador ao fogo e ao enxofre derretido.
E coincidia, porque tinha sido com dióxido de enxofre (cujo símbolo químico que eu tinha recheado os chocolates. E estes seriam trincados, e o resultado - bem, era melhor
nem pensar no resultado.
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Feely já estava a dirigir-se ao vigário, ao mesmo tempo que rasgava o celofane da caixa de chocolates antigos que Ned tinha deixado à porta de nossa casa; da caixa que eu
tinha tão maravilhosamente adulterado.
- Senhor vigário? Tia Felicity? - disse ela, abrindo a caixa e estendendo o braço. - Não querem um chocolate? Os de recheio de amêndoa são especialmente interessantes.
Não podia deixar que isto acontecesse, mas o que havia eu de fazer? Era óbvio que Feely tinha achado que a advertência que me saíra pela boca fora era um simples bluff.
O vigário estava já a estender as mãos para os doces, os dedos pairando sobre a caixa de chocolates, como se aguardasse que um espírito invisível o orientasse para o mais
gostoso.
- Os de recheio de amêndoa são para mim! - gritei. - Tu prometeste, Feely!
E, com um súbito mergulho, arranquei o chocolate da mão do vigário, ao mesmo tempo que arranjava maneira de tropeçar na ponta da carpete e de arrancar a caixa às mãos de Feely.
- Sua idiota! - gritou ela. - Sua grandessíssima idiota! Tínhamos regressado aos velhos tempos.
Antes de ela conseguir recuperar o domínio de si, já eu me tinha apoderado da caixa e, numa tentativa desajeitada - mas espantosamente coreografada - de recuperar o equilíbrio,
tinha conseguido despejar aquela porcaria pegajosa em cima da carpete Axminster.
Reparei que Dieter sorria abertamente, como se tudo aquilo fosse muito divertido. Feely também reparou no mesmo, e ficou sem saber se havia de continuar a fazer o papel de
duquesa ou encher-me a cara de estalos.
Entretanto, as emanações do sulfureto de hidrogénio, libertadas pelos meus malabarismos com os chocolates, começaram a produzir o seu mortal efeito. De repente, a sala ficou
a cheirar horrivelmente a ovos podres - que fedor! Dava a sensação de que um brontossauro maldisposto se tinha descuidado ali dentro, e lembro-me de ter pensado por instantes
se a sala de estar voltaria jamais a ser o que fora.
Tudo isto aconteceu em menos tempo do que leva a contar, e os meus reflexos, até então rápidos que nem uma chama, abandonaram-me ao ouvir a voz do pai.
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- Flavia - disse ele naquele tom contido e inexpressivo com que dá voz à fúria -, vai imediatamente para o teu quarto. - E apontava para a porta com o dedo a tremer.
Não valia a pena argumentar. Dirigi-me à porta de ombros caídos, como se estivesse a caminhar sobre uma espessa camada de neve.
À excepção do pai, todas as pessoas que se encontravam na sala estavam a comportar-se como se nada fosse. Dieter endireitava o colarinho, Feely compunha a saia, depois de
se ter empoleirado no sofá ao lado dele, e Daffy já tinha estendido a mão para um exemplar bastante estafado de As Minas do Rei Salomão. Até a tia Felicity olhava com feroz
atenção para um fio solto que tinha na manga do casaco de tweed, e o vigário, que se aproximara da porta-janela, olhava com interesse fingido para o lago artificial e a fantasia
arquitectónica que se erguia no meio dele.
Ia eu a dirigir-me para a porta quando parei e voltei para trás. Quase me tinha esquecido de uma coisa. Metendo a mão no bolso, pesquei o sobrescrito de selos com uma perfuração
a mais que a menina Cool me tinha dado e entreguei-os ao pai.
- São para si. Espero que goste - disse. O pai pegou no sobrescrito sem olhar para ele, ainda com o dedo erguido a apontar para a porta. Eu voltei a atravessar a sala em passo
arrastado.
Ao chegar à porta, detive-me... e voltei-me.
- Se alguém perguntar por mim - declarei -, estou lá em cima no meu quarto, metida no guarda-fatos, a chorar.
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Agradecimentos
Não há lugar mais próprio para uma confissão do que o final de um romance policial. Portanto, passo imediatamente a confessar que trabalho com a colaboração de vários cúmplices
no crime.
Primeiro que tudo e antes de mais nada, tenho como conspiradores os meus editores: Bill Massey, da Orion Books, Kate Miciak, do Bantham Dell Publishing Group, e Kristin Cochrane,
da Doubleday do Canadá, a quem estou eternamente grato pela indefectível confiança que tiveram, desde o princípio, na Flavia. O Bill, a Kate e a Kristin já fazem parte da
família.
Também o doutor John e a Janet Harland, meus queridos amigos, deram um contributo extraordinário à produção da obra, desde ideias brilhantes até discussões animadas à mesa,
nunca deixando de ser grandes amigos e pacientes.
Natalie Braine, Helen Richardson e Juliet Ewers, da Orion Books de Londres, são verdadeiras maravilhas de eficácia e amizade. A revisão - firme, mas cooperante - de Jane Shelley
foi quase um mestrado.
A minha agente literária, Denise Bukowski, trabalhou com enorme diligência para dar Flavia a conhecer ao mundo. Jericho Buendia, David Whiteside e Susan Morris, também da
Agência Bukowski, pouparam-me a preocupações relativas a milhares de pormenores.
A minha maior dívida de gratidão vai para Nicole, da Apple, cuja varinha mágica transformou aquilo que poderia ter sido uma tragédia num perfeito triunfo de apoio online.
Muito obrigado, Nicole!

 

 

                                                    Alan Bradley         

 

 

 

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