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O MISTÉRIO DO CASO COMPOLIDE / Moita Flore
O MISTÉRIO DO CASO COMPOLIDE / Moita Flore

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

Passou um século. Em Setembro de 1918, o governo de Sidónio Pais criou a Polícia de Investigação Criminal. Ficaria conhecida como PIC. Uma decisão, impulsionada pelo seu ministro Azevedo Neves, que haveria de marcar uma profunda ruptura com os tradicionais métodos policiais para investigar crimes. A partir de então, surgia a primeira Polícia que procurava suportar a prova judiciária em pressupostos científicos, a partir de perícias laboratoriais. Não é aqui o lugar para fazer a história que levou a este momento extraordinário que procurava, antes do mais, acabar com a necessidade da confissão do suspeito e, desta forma, terminar com qualquer acto de tortura ou de violação dos direitos humanos.
A PIC, que mais tarde seria convertida na actual Polícia Judiciária, era o princípio de uma caminhada em direcção ao infinito. Dito de outra forma, ao longo deste século foi crescendo o poder do conhecimento científico para demonstrar, com prova material, a relação entre determinado crime e o seu autor. Limitando a subjectividade do testemunho, circunscrevendo, em círculos cada vez mais apertados, a liberdade discricionária dos julgadores, perseguindo a utopia de encontrarmos uma Justiça cada vez mais justa. Foi grande o caminho andado ao longo deste século e, por outro lado, não se conhece o ponto de chegada. Desde a euforia inicial, com a instrumentalização das impressões digitais, até à verificação dos ADN e à sofisticação cibernética, que hoje vivemos, existe um trabalho imenso em várias domínios da investigação científica ao serviço da investigação criminal.
O Mistério do Caso de Campolide é uma ficção. A acção decorre em 1937, no auge do Estado Novo, tendo como protagonista um Agente da PIC. Ou melhor, dois Agentes. Simão Rosmaninho, arauto dos métodos associados aos novos procedimentos policiais, e o Arengas, herdeiro da velha polícia inquisitorial. Nunca existiram enquanto pessoas. Existem, agora, porque os criei e lhes dei corpo e alma. Feitos de letras e palavras. Investigam homicídios, num tempo que recebemos como testemunho da História.

O jornalista-detective para quem os factos nunca incomodaram a sua verdade.
Fez a melhor reportagem sobre o assassínio de Sidónio Pais, embora não estivesse presente. Entrevistou Mata Hari, que nunca conheceu. Foi amigo do emigrante português, porteiro do Kremlin, onde nunca esteve. Escreveu uma das novelas policiais mais brilhantes da vida da República, em forma de notícias de jornal, que alarmou o povo de Lisboa.

 


 


I ACTO

A FESTA E A TRAGÉDIA

Ninguém que habitasse na mansão da família Penaguião, ali para os lados de Campolide, poderia imaginar que, nessa noite, o fausto banquete, que fora organizado por D. Berta, iria terminar numa terrível tragédia. Nem o chefe de família, seu marido, o engenheiro Álvaro, que naquele momento ajustava o smoking, sonhava que se vestia solenemente para uma festa que terminaria em pranto.

A morte nunca se anuncia. Surge silenciosamente, inesperada, e impõe-se com omnipotência, destruindo qualquer pedacinho de esperança. A vida constrói-se em minutos, horas e dias. Porém, quando ela chega, vem sem dia nem hora marcada.

Corria em paz o ano de 1937. O tumulto republicano estava definitivamente vencido, domesticado pela força orgânica do Estado Novo. Apenas um rugido aqui, um estrebucho acolá, eram débeis sinais de vida do velho Regime a que a Revolução Nacional pusera termo. Apenas restavam estertores de agonia.

Há muito que os marinheiros insurrectos haviam regressado ao convés dos navios, os operários, com greves desfeitas, submetidos à forja e os políticos conspiradores acantonados em prisões. A censura serenava o País, preocupando-se os jornais que restavam com os grandes feitos da Pátria e do seu timoneiro, doutor Oliveira Salazar, e os Penaguião prosperavam.

A família construíra um império na indústria dos sabões e, mais recentemente, na produção de baquelites, produto novo que estava a ajudar na verdadeira revolução que chegara com a multiplicação das telefonias, o alargamento da rede eléctrica, fornecendo casquilhos de alta segurança, modernizando a rede cada vez maior de ligações telefónicas.

Apenas um incómodo perturbava o sossego cemiterial do País. A inquietação colectiva por causa do terrível conflito que assolava o país vizinho. Republicanos e falangistas matavam-se impiedosamente, movidos por ódios tão intensos que causavam espanto e desconfiança as notícias que chegavam sobre a barbárie que arrasara Badajoz. A plaza de toros transformada em açougue, onde se fuzilavam civis a eito, pois que a guerra era civil, sem regras, tresloucada, e não reconhecia afectos. A ira imperava e dizia-se que, pelas valetas das calles de Madrid, escorriam riachos feitos do sangue de pais e filhos varados por balas cruzadas entre gente parida do mesmo ventre.

Os Penaguião não imaginavam ódios assim, maiores do que a ferocidade da morte. Pelo contrário, acreditavam fervorosamente na santidade do amor. Gratos ao Altíssimo por lhes conceder a graça da paz, bem longe dos comunistas e moros que despedaçavam Espanha. Foi o horror dos episódios contados por viajantes que regressavam da Andaluzia e da Extremadura que fizeram Álvaro Penaguião dar o passo decisivo. Numa tarde, na Sociedade de Geografia, onde invariavelmente, antes de jantar, se encontrava com os amigos habituais, acabara de escutar mais uma história narrada pelo Comandante Carapau.

- Guernica ficou desfeita. Olarila! Os calhordas dos republicanos queriam partir dali para a reconquista dos territórios já libertados aos diabos vermelhos. A Legião Condor arrasou. Arrasou! Mataram a canalha bolchevique e acabaram com aquele entreposto revolucionário - soltou uma alegre gargalhada e rematou: - Nem os mais pequenos escaparam. Deixar vivos filhos de rojos é a mesma coisa que deixar sementeira para multiplicar o Mal. Bichos danados. Uns calhordas!

Álvaro Penaguião ainda protestou:

- Matar crianças não é coisa que me agrade. Estou pelo Franco, mas não aceito a crueldade.

- Há alguma guerra que não seja cruel? – questionou Carapau, em tom provocador.

Perdigoto interrompeu:

- A verdade é que entre nós não há guerra, nem matanças. Graças a Sua Excelência, a paz regressou a este País. Pequeno em tamanho, mas de alma que vai até aos confins do Império – e finalizou, enfático: - Com Salazar reina a paz de Portugal a Timor!

- Amén! – respondeu o bojudo Comandante Carapau.

- É uma das razões que me levam a fazer-te um pedido – disse Penaguião dirigindo-se ao deputado. - Gostava de me inscrever na União Nacional. Creio na política do homem que devolveu tranquilidade a este martirizado País.

Perdigoto, velho militante da Liga 28 de Maio e adepto, desde a primeira hora, do Estado Novo, membro da Assembleia Nacional, abriu um largo sorriso e exclamou:

- Um patriota como o meu amigo vai ser recebido de braços abertos. Será uma honra para mim propô-lo para ingressar neste grande movimento de regeneração da Pátria.

O desbragado Comandante Alfredo Carapau aspirou o charuto e aplaudiu:

- Finalmente, pá! Julgava que nunca mais te juntavas aos bons. É preciso acabar de vez com essa corja de comunistas, anarquistas e outros merdas que o Afonso Costa deixou de herança. Só de dizer o nome desse calhordas fico com pele de galinha.

O Comandante falava vernáculo e o vozeirão chegava a todos os cantos do salão. Álvaro Penaguião segurou-lhe o braço:

- Fala baixo.

- É a minha voz, o que é que tu queres? Deus pôs-me a falar forte e grosso. Fica descansado que eu próprio vou tratar da tua inscrição no clube dos bons. Aí o Perdigoto é só para fazer de conta. Considera-te inscrito. - Mudando de tom, quase em rouca surdina: - Preciso de seis carradas de sabão até ao próximo fim-de-semana. Tenho negócio fechado com dinheiro na mão.

Perdigoto não respondeu, amuado com a sobranceria do amigo.

Penaguião entregou-se devotamente às virtudes do novo regime. A harmonia dos afectos, sustentada em Deus, em comunhão com a Pátria, história imorredoira construída por um povo de heróis, e na família, a verdadeira fonte de onde brotava a felicidade entre todos os portugueses. Acreditava piamente que a construção do Estado Novo era a verdadeira emergência do Paraíso neste cantinho europeu, pequenino, é certo, mas sossegado, ventre de um Império tão grande que, fosse qual fosse a hora do dia, alguém que falava português era tocado pelo Sol.

Desde essa tarde até ao dia do terrível jantar, que estava prestes a acontecer, ainda não passara um ano. Embora não tivesse intervenções políticas activas, o seu prestígio como industrial e a simpatia inata chamaram a atenção das chefias da organização onde se inscrevera como militante. Foi o Cinfães, colaborador directo de Botelho Moniz, o poderoso Comandante da Legião Portuguesa e da relação pessoal do Presidente do Conselho, quem o sondou.

- Sua Excelência veria com bons olhos que o senhor engenheiro aceitasse ser deputado nas próximas eleições à Assembleia Nacional.

Que o Estado Novo precisava de pessoas que não queriam saber da política, exaltando as maiores virtudes no trabalho e nos valores da família. Que não se preocupasse com discursos, nem com discussão de leis. Para isso, lá estaria Sua Excelência. Dele, precisavam do exemplo. Mostrar ao País como se constrói um português patriota, que triunfou no negócio dos sabões, que soube inovar investindo em baquelites, à força de muita dedicação.

Penaguião aceitou. Se era tão pouco aquilo que lhe pediam para consolidar a paz que Salazar trouxera, retribuiria com agrado, e com algum orgulho, o pedido que lhe era endereçado.

Cinfães apertou-lhe a mão com satisfação, despedindo-se:

- Vou levar a boa nova a Sua Excelência. Uma grande vitória para o senhor engenheiro e para o País. Uma grande vitória!

Foi um alvoroço quando anunciou à família que iria ser deputado da União Nacional nas eleições do ano seguinte. Quer D. Berta, quer as duas filhas, Marta e Helena, celebraram tal convite efusivamente e a esposa decidiu, categórica:

- Vou organizar um jantar para dar a boa nova aos nossos amigos. O senhor padre Pimentinha vai ficar deslumbrado. O meu marido vai ser deputado? Quase me parece mentira!

D. Berta chamou Gervásio, o mordomo que geria a criadagem e comandava os grandes eventos familiares. Deu-lhe a feliz notícia e ordenou que saltassem as baixelas de prata, que despertasse o melhor serviço da Vista Alegre, que tilintassem os cristais da Marinha Grande, que trouxessem os melhores vinhos da adega, que dos convidados tratava ela. Da comida falaria com a cozinheira.

A grafonola ficou a cargo da Marta. Com a incumbência de não esquecer a Carmen Miranda, nem o Carlos Gardel, nem a orquestra de Glenn Miller, muito apreciada pelo pai, nem o Castro Barbosa e o seu Lig, Lig, Lé, cantiga muito do agrado do doutor Carolino, um dos homens mais poderosos da política e que reorganizava, naquele tempo, os serviços da Polícia Política. Também, a rapariga que estava a dar que falar a cantar o fado, ai, como se chamava ela? Ah, sim! A Hermínia Silva, teria de constar do programa.

Helena, gabada pelo seu bom gosto em arranjos, cuidaria das flores. D. Berta queria a casa adornada de mil cores para festejar a nobre dádiva de Sua Excelência.

Deu conta dos seus feitos ao marido na véspera do grande acontecimento.

- É uma pena que o doutor António Ferro esteja em Paris. Não pode vir jantar connosco. Nem o Comandante Botelho Moniz. Também está fora.

- Que ideia foi essa de convidar o António Ferro? Nem o conhecemos! – quis saber Álvaro Penaguião.

- É a grande estrela do Regime. O intelectual brilhante que toda a gente aprecia. Seria bom tê-lo nas nossas relações.

- Berta, toma atenção. Sou um homem discreto. Lá por ir ser deputado não significa que queira frequentar a alta-roda da política. Não quero mesmo. Nem saberia o que falar com o António Ferro. Esse homem vive no mundo da poesia, da pintura, da música. Quer lá saber de sabões.

Interrompeu a conversa contorcendo-se com uma qualquer dor que sobressaltou D. Berta. O marido estava pálido e escorriam suores frios pela sua testa.

- O que tens, Álvaro? Estás mal? Outra vez a má disposição?

- Agoniado. Uma sensação de enjoo e de vómito que não percebo. Não comi nada de especial.

- Devíamos chamar o doutor Carlos Açafrão. Não é a primeira vez que te queixas.

Álvaro Penaguião levantou-se do sofá, massajando a barriga com a mão.

- Isto é cansaço. Vou para a cama. Se dormir, isto passa.

D. Berta ficou preocupada, pois, nos últimos tempos, estas indisposições de Penaguião – cólicas, vómitos, mal-estar – surgiam cada vez com mais frequência e ele, teimosamente, resistia em falar com um médico. Ainda por cima quando o doutor Carlos Açafrão era quase visita diária. Era um quarentão maduro que se dava com a família desde que se formara na antiga Escola Médico-Cirúrgica de Lisboa, o último curso antes de a República a transformar em faculdade de Medicina, e estava na lista dos convidados do jantar que Berta organizava. Registou para consigo mesma que haveria de lhe falar desta maleita que punha o marido em agonia.

Na soberba mansão dos Penaguião, ao cimo de Campolide, com vista para o Aqueduto das Águas Livres, a grande noite chegara. Pelo portão que dava acesso ao imenso jardim que cercava a residência, entravam os Chrysler, os Cadillac, os Chevrolet, dos convidados que Álvaro e as filhas recebiam à porta de forma efusiva. Dava nas vistas o Fiat 508 Balilla do clínico Carlos Açafrão. O Comandante Carapau, que ainda se encontrava no jardim da mansão, ficou a admirar as linhas do carro desportivo do médico e não resistiu a comentar com visível despeito:

- Não sei onde este calhordas ganha dinheiro para comprar um carro desta categoria. Como médico não é de certeza absoluta. Passa mais tempo a embebedar-se do que a ver doentes. Um calhordas!

Nesse mesmo instante, chegavam o conde de Serpa e a magnífica Luísa Serpa, cabelo cortado como o da célebre actriz Claudette Colbert, vestido negro, justo, que lhe realçava as formas, decote generoso denunciando um peito redondo, burilado por cinzel de escultor.

- Esta Luísa Serpa é tão gostosa que só de olhar fico arrepiado. Veja-me aquele corpo. Só pode ser uma obra do Diabo para nos fazer perder a cabeça – murmurou o Coronel Carolino para o deputado Perdigoto.

- Nem pense. É obra de Deus. A nobreza nacional não morreu com a República e ela é um belo exemplar da melhor aristocracia portuguesa. Filha do barão de Ornelas e, segundo sei, com sangue dos Bragança, mais precisamente de el-rei Dom João Sexto. O marido é que não passa de um bebedolas. O avô aproveitou a venda de títulos, durante o Liberalismo, e é conde. Conde de mercearia! Mal empregada uma fêmea deste calibre nas mãos de um marialva decrépito. Que Deus tenha piedade dela!

O deputado levantou a mão para esconder a boca quando decidiu informar do mais importante escândalo:

- E nem um nem outro apoiam a Causa! Continuam monárquicos e, julgo, com algum desprezo por Sua Excelência, o Senhor Professor.

Enquanto os salões se animavam para o trágico jantar, não era sobre Deus que D. Berta escutava a sogra demente, ajudando-a a embonecar-se para a festa. A loucura da velha tornava-a visionária de mundos misteriosos para além dos caminhos terrenos e da fé cristã.

- Esta noite, o Maldito não me deixou dormir. Disfarçou-se de mulher. Linda por fora, por dentro atulhada de serpentes, muitas serpentes que se escondiam nas pernas, novelos delas na barriga e no peito, sabendo todas as artimanhas que o Maléfico lhes ensinou. Sorriu docemente para mim e quando lhe estendi a mão, enganada pela falsa bondade, soltaram-se as cobras. Jesus, Maria Santíssima! – o rosto de D. Prudência engelhou-se ainda mais, como se revivesse aquele instante, e ganiu o resto do conto: - Saíam pelo nariz, pela boca e pelos ouvidos, apertando-me o pescoço, enquanto outras procuravam sufocar o meu marido. Valeram-me os três padres-nossos que gemi, aflita, e três sinais-da-cruz que as afugentaram quando já clareava o dia. Jesus, Maria Santíssima! – concluiu, ofegante.

Berta soltou uma gargalhada, enquanto lhe compunha os brincos de filigrana.

- Foi um pesadelo. Já passou – comentou, bem-disposta.

- Ou um aviso. A morte tem avisos, minha filha. Sinais negros que se manifestam nos sonhos, nas estrelas. Até no sussurro do vento - pressagiou a velha, ainda mais agoirenta.

Alfredo e Prudência foram acolhidos na imensa residência de Campolide quando a senilidade chegou. A demência do velho levara-o numa viagem feita de silêncios, apenas habitado pelas suas vagas memórias, imagens fugidias de tempos remotos, comandados por reis e rainhas com poderes que chegavam a todas as costas de qualquer mar. Raramente falava. Conversava com os fantasmas que viviam na cabeça doente. Se escutava aquilo que lhe diziam, ninguém sabia ao certo. Deixou que as emoções lhe fugissem do peito. A tristeza e a alegria, o prazer e o sofrimento, ficaram para trás, esquecidos em qualquer trilho do caminho já andado. O velho demente não sabia, mas já se separara para sempre da sua companheira. Do filho. De todos aqueles que amava, pois nem os reconhecia pelos nomes, nem pelos sorrisos.

Por outro lado, Prudência escondeu-se no medo. Perturbada pela loucura senil, vivia, nos últimos tempos, atormentada por desvarios e maus presságios, hesitante entre as provações do Purgatório e as ameaças do Inferno. O padre Pimentinha, que acompanhava a família desde que viera com o cardeal Cerejeira para Lisboa, não lhe ensinara o caminho do céu por amor a Deus. Estimulara-a a olhar o Divino pelo receio das penas infinitas ditadas por Lúcifer.

- Tenho medo deste jantar. Muito medo! – repetia, alucinada.

D. Berta reagiu com vivacidade querendo contrariar a ameaça de tragédia que a sogra profetizava.

- Nada de mal pode acontecer esta noite, Dona Prudência. Hoje vai ouvir grandes notícias que a deixarão muito feliz. Não há Diabo, nem serpentes. O jantar é para dar a notícia aos nossos amigos. O seu filho, e meu marido, aceitou entrar na política a sério. Convidado pelo próprio doutor Salazar.

- Toda a gente fala desse Salazar e nunca o vi. É bom cristão?

- Dos melhores! Portanto, minha querida sogra, boa disposição que os nossos convidados estão a chegar e temos connosco o nosso padre Pimentinha, que vai gostar de vê-la. Vamos embora!

- Esses vossos amigos, minha filha. Ai, esses amigos! Tirando o senhor padre, têm as almas cobertas de breu, nascidas das cinzas do Inferno. Aprenderam todos com o Afonso Costa, que veio ao mundo só para fazer mal à Santa Madre Igreja.

- Esse mata-frades morreu há seis meses. Já não faz mal a ninguém.

- Não morreu nada – ralhou a velha.

- É verdade, minha querida. Com o Afonso Costa não tem de se preocupar. Deus ou o Diabo levou-o no passado mês de Maio. E bem longe de nós, que se finou em França.

- Só pode ser boato. Ainda ontem o vi – teimou, empertigada.

D. Berta nascera para ser mãe. Do rosto redondo, onde brilhavam dois lindos olhos negros, emanava uma natural bondade maternal. Alguém distraído diria que seria uma boa dona de casa, briosa no aprumo, delicada com a criadagem, solícita para com a família. No entanto, quem se aproximasse da sua eterna boa disposição, compreenderia que a dedicação materna que devotava às duas filhas, Marta e Helena, era igual à candura doce com que ajeitava o nó da gravata do marido ou desarmava os tormentos da débil Prudência. Pequenina e redondinha, conhecia-se ao longe pelo ritmo sincopado e apressado dos saltos altos que usava sempre para se sentir um pouco mais crescidinha. Não parava de manhã à noite. Quase no mesmo instante, estava no grande quintal que dava para Monsanto, discutindo com o hortelão que tratava do pequeno pomar, do jardim e dos animais, como já a ouviam a conversar com Gervásio, o mordomo e responsável pelos oito criados da casa, ou a tagarelar na cozinha com a Tomásia, mulher de mil segredos no que respeitava à arte culinária.

O próprio Álvaro Penaguião, habituado a ditar ordens diariamente na condução das suas empresas, não resistia à terna autoridade da esposa. E submetia-se.

- Os meus pais vão estar no jantar? Não estão bem da cabeça, podem incomodar algum dos nossos convidados – quis ele contraditar a decisão de D. Berta quando ela lhe ajeitava o papillon.

- Confio em Deus para que lhes acenda uma luzinha, ainda que seja pequenina, para que sintam orgulho do filho que puseram no mundo.

- Berta, o meu pai não diz coisa com coisa. Quase nem fala. A minha mãe passa os dias a discutir com o raio do Diabo.

- Mas são teus pais! – retorquiu com tal firmeza que desalentou Álvaro Penaguião, e ordenou, dando-lhe um beijo rápido: - Estamos atrasados. São as nossas filhas que estão a receber os convidados. Estás lindo, Álvaro Penaguião! Vai ter com elas.

Foi o último beijo.


II ACTO


SIMÃO ROSMANINHO

 

 


Anoitecia em Lisboa e Simão Rosmaninho estava de piquete. Era o Agente de Investigação de serviço aos homicídios. Durante vinte e quatro horas, se houvesse algum caso de assassínio, estaria de sentinela à espera dos sinais que a cidade levava àquele serviço contínuo da Polícia de Investigação Criminal. O dia correra calmo. Apenas fora chamado a um suicídio no Poço do Borratém. Um jovem destroçado pela amargura que deixara uma carta de despedida à sua amada, amor longínquo na sua terra natal, para lá do Marão. Segundo a decisiva missiva, procurara a capital, haveria mais de cinco anos, trazendo no alforge a esperança de construir uma vida decente que permitisse chamar a companheira para a dignidade do viver. Porém, Lisboa era uma fábula que circulava pelos muitos lugares da fome mais negra. Uma nova Jerusalém Celeste onde escorria ouro pelas ruas, navios que atracavam carregados de pedras preciosas e especiarias. Dizia-se que faltavam braços de trabalho, tal era a velocidade com que crescia a capital do Império, arrecadando fortunas sem fim, vindas do fim do Mundo. No porto, atracavam e partiam vapores de todos os lugares da Terra, dando fartura aos pobres e fortunas aos poderosos.

Esta lenda andarilhava por aldeias e lugares longínquos, transmitida por peregrinos e viajantes, desde os tempos em que do Brasil regressavam naus e galeões a abarrotar de muitas riquezas.

Embora Lisboa continuasse tão faminta como nesses dias antigos, a fama de abundância perdurara pelos tempos fora e dos lugares mais remotos saíam, rumo à lenda, os sonhos por construir nos lugarejos onde a fome e a pobreza reinavam. Chegavam gentes vindas de todos os cantos. Da Galiza, bem para lá das Astúrias, do Minho e de Trás-os-Montes. Acudiam beirões e ribatejanos. Entravam bandos oriundos do Alentejo e dos Algarves, muitos deles assentando arraiais na Aldeia Galega, no outro lado do Tejo. Depois era o fim do conto de fadas. Lisboa mostrava os rendilhados encardidos dos pedintes, dos almocreves esquálidos, dos funcionários públicos humildes, das costureirinhas e serviçais que abandonavam as profissões para se dedicarem ao fado, dos estivadores e caldeireiros com os pulmões rebentados pela tuberculose. Uma legião de desenganados multiplicava-se pelas ilhas, nos pátios, nas vilas operárias, tugúrios infames de doença e miséria.

Aquele jovem transmontano a quem Simão dava atenção, examinando unhas, sinais de luta, pedaços de crime escondidos na confusão da casa, não resistira ao desfazer dos sonhos que pintavam Lisboa vestida de princesa, decorada com pérolas e raios de luz.

Enforcara-se na trave-mestra do quarto. Na carta, queixava-se de isolamento e o local onde decidiu o seu fim dava-lhe razão. A roupa amontoada, a cama desarrumada, a pobreza das coisas abandonadas, significavam a perda de interesse por uma vida vazia, sem um pedaço de esperança que a iluminasse. O despertador avariado revelava que não tinha compromissos matinais, a casa de banho não passava de um esgoto imundo, e a pequena cozinha pejada de restos e de loiça suja, abandonada, cheirava a azedo.

Simão subiu-lhe as calças para observar as pernas. Os livores cadavéricos estavam bem fixados na parte inferior, desde os joelhos, estendendo-se ao longo das massas musculares que protegiam a tíbia e o perónio, e desapareciam por detrás das meias e botins rotos. Também os dedos das mãos se tornaram cor de violeta. O sangue, depois de o coração parar, obedecia à lei da gravidade, depositando-se nas zonas do corpo mais perto do chão. Morrera pendurado. Não lhe restavam dúvidas de que a autópsia iria revelar uma morte por asfixia.

Das instalações da PIC ao Campo Mártires da Pátria era meio passo. Simão pegou no farnel, sentou-se frente à estátua de Sousa Martins, deu uma trincadela no pão com torresmos quando, perto de si, surgiu o doutor Belchior, vindo da morgue.

- Jantas ou lanchas?

- As duas coisas. O doutor já comeu?

- Meia dose de frango guisado, ali na tasca do Oliveira.

- Hoje fez horas extraordinárias. Muitos mortos?

- Não. Fiz três autópsias. E dez relatórios. Foram os papéis que me atrasaram.

Sentou-se ao lado de Simão. Percebia-se o enfisema na respiração ofegante. O patologista andava pelos cinquenta anos, de calvície avançada, papos descaídos sob os olhos. Avantajado de barriga e meão de altura. Nunca abandonava o cachimbo, que exibia entre os dentes como se fosse decisivo para poder falar e respirar.

- Grande homem! – exclamou apontando para a estátua que estava à frente de ambos.

- Quem? – perguntou Simão, distraído.

- Ali. O saudoso Sousa Martins.

- Conheceu-o?

- Não. Era um rapazola quando ele se finou. Mas conheci o Costa Motta, que fez esta obra de arte. Também já se foi, coitado.

- Está enganado, doutor - rectificou Simão, acrescentando: - Ainda não há uma semana que li n’O Século que está a trabalhar para o Buçaco. A fazer trabalhos para a Via Sacra.

- Esse é o sobrinho. Também se chama António Costa Motta. É uma família de artistas. Quem fez esta obra era irmão do pintor Luís da Costa Motta.

- Já aprendi qualquer coisa – concluiu o detective, observando com mais atenção a estátua do célebre médico.

- Belo trabalho, sim senhor! Passo aqui todos os dias e nunca tinha olhado para esta figura com atenção. Um grande homem, um grande mestre e uma grande peça de arte!

Ficaram os dois em silêncio a observar o monumento. Pese a hora tardia, o Sol desaparecia para lá das colinas, ainda era agitado o movimento de gente humilde que acendia velas, implorando graças ao médico que a crença popular transformara em santo.

- A qualquer hora do dia há aqui uma peregrinação de fiéis. Velhos e novos. No rosto de todos há sinais de súplica e desespero. Deve ter sido um indivíduo extraordinário para ser objecto de tão emocionante culto – comentou Simão.

- De uma humanidade invulgar. Começou por se formar em Farmácia. Só mais tarde se doutorou em Medicina e deu cartas. A vida pregou-lhe uma partida. Morreu por causa da doença que tanto perseguiu. A tuberculose levou-o. Refugiou-se em Alhandra, na esperança de uma cura. Não teve sorte. Quando sentiu a morte a chegar, antecipou-se e tomou uma dose de medicamentos que acabou com tudo. Foi também a tuberculose que dele fez santo. Infelizmente a maldita doença continua e ele foi-se embora. Assim como a minha Amália, que Deus tenha em descanso!

A voz de Belchior mirrou. Evocava a companheira de muitos anos que, no Natal anterior, morrera com os pulmões desfeitos. Desde então, tornara-se num solitário, tal como Simão Rosmaninho, de passos perdidos entre o Instituto de Medicina Legal e a sua residência, junto ao elevador do Lavra.

Embora já se conhecessem, o luto aproximara-o do jovem detective pois tinham interesses comuns. A paixão por Verdi, a dedicação a Mozart, o fascínio por Beethoven e pelas coisas das ciências forenses, artes em que ambos acreditavam encontrar um caminho certeiro para enobrecer a Justiça.

- Esta manhã enviei-lhe um enforcado. Um rapaz desesperado com a vida. Deixou uma carta de despedida para a namorada.

- Mais um Romeu – comentou o médico com indiferença, e perguntou: - E a Julieta ficou viva?

- Nem tanto. Julgo que não foi a paixão que o matou. Na carta pede desculpa à namorada – hesitou para escolher as palavras e avançou, evasivo: - Foi um suicídio por ausência de futuro.

Belchior soltou uma gargalhada e o cachimbo desceu e subiu entre os queixos com a rapidez de um catavento em dia de nortada.

- Simão, essa é uma verdade do senhor La Palisse. Para quem se mata, o futuro acaba naquele instante.

- O senhor doutor fala assim porque passa o seu tempo entre a morgue, a tasca do Oliveira e a sua casa. Se andasse pela cidade, percebia aquilo que digo. São multidões de famintos. De gente a pedir esmola por amor de Deus, à procura de trabalho sem que haja uma porta que se abra. Homens e mulheres ressequidos pela fome e pela doença. O senhor nem imagina! Estão vivos, mas não há um pedaço de esperança que lhes rasgue uma luz no horizonte.

Belchior não resistiu à ironia sarcástica:

- É esse o belo país que o teu amigo Salazar diz estar a construir. E quem refilar vai para a cadeia. Agora, abriram mais um campo de concentração, no Tarrafal, para domesticar, ou deixar morrer, aqueles que têm a coragem de protestar. Querem um país sem inteligência. Pobretes mas alegretes. Morrendo de fome, embora ricos de virtudes. Uma tragédia, Simão. Nem grandeza tem na ditadura. Impinge um Estado Novo de pelintras e pelintrice.

- O senhor é mau. Não sei se o doutor Salazar é esse tipo tão mesquinho.

- Coisa que me espanta tu não saberes.

- Perdão?

- Um rapaz que lê tanto, que estuda tanto, inteligente, é incompreensível que não saiba o que esse homem está a fazer a Portugal.

- Nunca me preocupei com a política, mas, se tem muitos defeitos, há uma qualidade que lhe deve reconhecer. Acabou com a balbúrdia em que vivíamos. Nem vale a pena falar disso. Sabe quantos governos teve a República desde o assassínio do Presidente Sidónio Pais? Dei-me ao trabalho de os contar até ao golpe de 28 de Maio. Vinte e nove governos em oito anos. Vinte e nove! Não me fale das virtudes da República enquanto eu me recordar das conspirações, dos assassinatos, das prisões cheias de adversários. O meu pai esteve preso por ser seguidor de Afonso Costa. O meu avô foi preso por se rebelar contra a ditadura do Pimenta de Castro. Quero lá saber da República e do Salazar.

- Essa ausência de interesse faz de ti um salazarista. Isso é exactamente o que ele quer. Tratem lá das vossas vidinhas que a política é comigo. Um atropelo à inteligência. Está a expropriar-nos da decisão de escolhermos o nosso destino.

- A República expropriou-nos de um sonho maior em nome das falsas promessas de amor ao Povo e de Liberdade. Portou-se como o Rei Lear. Não houve um único momento dos dezasseis anos de regime em que não houvesse uma Cordélia escorraçada em nome dos amores exacerbados de Goneril e Regan. Tudo fingido. Tudo carregado de ódio e de ambição. Olhe o que se tem passado em Espanha. Só agora, quando os nacionalistas entraram em guerra contra a República, é que se lembraram de unir esforços para salvar a democracia.

- Estás a ser exagerado. Não foi tanto assim – reagiu Belchior, melancólico.

Simão respondeu com sarcasmo.

- Já pensou que os verdadeiros coveiros da República não foram os militares do golpe de 28 de Maio, mas os próprios republicanos? As lutas fratricidas, a loucura grevista, as paixões pessoais, fizeram dos dezasseis anos de Regime uma verdadeira festa de selvagens. O Gomes da Costa apenas se limitou a pôr a lápide na sepultura e a entregar a gestão do cemitério a Salazar.

- Agora tornaste-te num monárquico saudosista. Já esqueceste a podridão.

- Doutor Belchior, tenho por si demasiado apreço para me tratar com esses argumentos simplistas. Julgo que sou republicano, mas poucochinho.

O médico levantou-se com um suspiro.

- Vou à procura da cama. Hoje estás demasiado pessimista para discutirmos política. Bom resto de piquete. Sem homicídios.

- Espero não lhe enviar mais nenhum cadáver até sair de serviço. Até amanhã, doutor Belchior!

- Até amanhã, Simão. Eu vou esticar os ossos.

Ficou a ver o amigo a afastar-se. Era um bom homem e um profissional meticuloso. Vinha da escola da figura ímpar da medicina legal europeia, o professor Azevedo Neves, de onde brotaram nomes como Asdrúbal d’Aguiar e Rodolfo Xavier da Silva, o homem que em Portugal fez a primeira identificação de um indivíduo através das impressões digitais.

Lembrava-lhe o pai. A bondade melancólica, o cansaço no olhar por tantas coisas vistas com a alma. Os mesmos silêncios, carregados de saudade, dos tempos em que ninguém estava morto, como recordava Pessoa num dos seus poemas. Sentia, em ambos, a estranha sensação de que havia lágrimas nas palavras, magoados e amargurados pelos sonhos destruídos ou pela morte ou por causa da paixão dos homens. Eram dois republicanos vencidos.

De súbito, reparou que um dos contínuos da PIC se dirigia a si em passo apressado. Simão levantou-se com os sentidos em alerta.

- Há algum problema?

- Venha depressa. O chefe pede-lhe que vá a Campolide. Uma morte suspeita e, se percebi bem, de pessoa grada. Muito grada mesmo.


III ACTO


UMA MORTE SURPREENDENTE

 

 


O jantar fora um êxito. D. Berta estava tão contente que, num impulso, levou aos lábios o crucifixo que lhe adornava o peito, agradecendo a Deus, quando regressava da cozinha, onde dera ordens para servirem os digestivos aos convidados no salão dos espelhos. Cruzou-se com Marta e parou, surpreendida. A filha vinha pálida, dir-se-ia que estava para explodir em lágrimas, e questionou-a preocupada:

- Marta, estás bem, minha filha?

- Uma indisposição. Isto já passa.

Evitando mais conversas, a jovem escapou-se ao interrogatório da mãe, em direcção a uma das portas que davam acesso ao jardim. D. Berta ficou inquieta, a observá-la por instantes. Que teria acontecido? Ainda há pouco falava, entusiasmada, sobre as tricas e coscuvilhices na Assembleia Nacional com o deputado Gustavo Peixoto e Carlos Açafrão, e ria-se, divertida, com as histórias que estava a ouvir.

Entrou no salão onde se encontravam os convidados e procurou a outra filha. Não a viu e sentiu uma súbita inquietação. Helena não se encontrava presente e D. Berta dirigiu--se ao mordomo, que dava indicações a duas serviçais para recolherem copos já utilizados.

- Sabes onde está a minha filha Lena? – perguntou a Gervásio.

- A menina acompanhou os avós ao quarto. Estavam cansados e ensonados - respondeu o mordomo.

Suspirou de alívio. Porém, ainda tornou a olhar a porta por onde saíra Marta, preocupada, sem perceber a repentina indisposição da filha. Voltou a interpelar Gervásio.

- Os meus sogros já estão velhos para tanta confusão, coitados. Isto corre bem, não é verdade? – perguntou, num murmúrio, a opinião do empregado.

- Muito bem, minha senhora. Foi um verdadeiro hino de louvor ao senhor engenheiro, que bem o merece – respondeu o homem, com um sorriso e, em surdina, terminou: - Só a senhora dona Albertolina continua como sempre carrancuda. Parece que está zangada com o mundo.

D. Berta soltou uma das suas risadas cristalinas.

- É o feitio. Muito ácido e pouco doce. O meu marido costuma dizer, a brincar, que dará de esmola uma nota de vinte escudos no dia em que ela soltar uma gargalhada. Obrigada, Gervásio. Vou ter com os convidados.

Os convivas tinham-se distribuído por vários grupos em tagarelice excitada e a grafonola aligeirava o ambiente com as vozes de Carmen Miranda e de Carlos Gardel, entrecortadas por sons de Glenn Miller. O padre Pimentinha veio ao seu encontro, sorriso amplo, braços abertos. Parecia uma águia-real, enorme e negra, onde só branqueava o cabeção.

- Berta, tu vais para o Céu. Que magnífico jantar. Um banquete, um verdadeiro banquete! O Álvaro está radiante. Não só por este belo encontro, como pelo lugar para onde agora vai. Teremos um deputado na família. Sim, senhor!

- O senhor padre não sabia? – perguntou, surpreendida.

- Não. Fiquei embasbacado quando ele deu a notícia. É bem escolhido. O Doutor Salazar tem olho. Sempre disse que ele tinha olho, embora não seja pessoa do meu agrado. Escolheu bem. Um empresário de sucesso, uma família cristã, todos bons portugueses, sim senhor. O nosso Salazar tem olho! - com um gesto teatral abarcou a sala e comentou quase em sussurro: - Bem melhor do que este bando de salazaristas que de Estado Novo têm muito pouco.

O olhar de Berta e Pimentinha fixaram-se no deputado Gustavo Perdigoto. Tomado de entusiasmo patriótico dissertava sobre as grandes virtudes da Assembleia Nacional, agora encantado com a atenção que lhe prestavam D. Genoveva, esposa do Comandante Alfredo Carapau, e a proximidade da magnífica Luísa Serpa. Atrevidamente bela. Lábios sensuais, corpo de deusa grega, olhos pretos, fulminantes. Lasciva. Nenhum homem passava por ela sem olhar outra vez. Com excepção do padre Pimentinha, que transpirava e pedia forças ao Senhor para o salvar dos pecados da carne. Se nunca tocara em Luísa, bastavam-lhe duas palavras, na voz enrouquecida da mulher, para pecar por pensamentos.

- É como vos digo, minhas senhoras – proclamava o arrebatado Perdigoto: - O nosso engenheiro vai entrar no Olimpo do Estado Novo. No maior concentrado de inteligência que Portugal possui.

Albertolina, esposa de um dos Directores da Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, cortou-lhe o discurso com uma censura veemente:

- Está a exagerar, senhor deputado. A inteligência que habita em São Bento vale por todos aqueles que se sentam na Assembleia Nacional e na Câmara Corporativa. Salazar é a verdadeira cabeça de Portugal!

O padre Pimentinha aplaudiu:

- Apoiado, dona Albertolina, apoiado! Embora ainda precise de espremer mais. Demasiado brando, mas a verdadeira cabeça de Portugal!

O pequeno Perdigoto percebeu que se excedera no seu entusiasmo parlamentar e rapidamente corrigiu com eloquente retórica:

- Claro, claro. Sua Excelência não é só inteligência. Ele é também a alma da Pátria. Até dizendo melhor: se a Assembleia é o Olimpo, Sua Excelência é Zeus, o patriarca de todos os deuses. É isso mesmo, Zeus!

Luísa soltou uma gargalhada, que fez corar o diminuto deputado, e comentou:

- É pena que nesse mundo celestial, adornado de deuses, não existam mulheres. Somos todas estúpidas de mais.

Perdigoto, aflito, procurou corrigir a verborreia. Aquela mulher, que lhe parecia emanar luz, provocava-lhe tanto desejo que se aplicou a fundo:

- Por amor de Deus, senhora condessa! Vossa Excelência é a deusa mais bela, mais ousada, mais... mais. Sei lá! Nem tenho palavras. Será Afrodite ou Palas Atena, não!... Vénus! Vossa Excelência é... é...

Foi Berta quem o salvou. Gervásio servia licores numa bandeja de prata:

- Quem quer um Licor Beirão? Sei que a dona Albertolina é apreciadora.

Luísa já não prestava atenção. O olhar deambulava, observando os grupos que tagarelavam mais ou menos esfusiantes. Não aguentou o riso quando percebeu o ar de enfado do seu marido, o conde de Serpa, que fora agarrado por Albertolina, a enorme esposa do Director da Polícia Política, conhecida pelo seu leque, sempre a abanar, lutando contra os calores da menopausa, e pela língua ácida.

- Eu sei do que falo, senhor conde. Oh, se sei! O senhor Professor não conhece o Penaguião. Foi o meu marido quem lhe falou dele. Até ralhei quando soube que andara a meter cunhas para esta mosca morta. Sim, porque o engenheiro é um verdadeiro banana nas mãos da mulher e das filhas. O tonto mandou-as estudar. Quem é o homem, com a fortuna que ele tem que em vez de as fazer boas donas de casa, capazes de arranjar um bom partido, as põe a estudar? A namorar, digo eu, que são umas galdérias, para não falar da Berta, sempre atrelada ao padre. Uma vergonha! Eu disse isto ao meu marido: foste convencer o Professor a meter o banana na Assembleia Nacional e espero bem que não te arrependas. Um banana! Ai, que calor que está nesta sala! O senhor conde não tem calor? - agitou o leque com mais energia e, sem deixar o outro responder, continuou a fustigar os presentes, agora apontando para o grupo onde estava o seu marido e o Comandante Alfredo Carapau: - Não sei o que o ordinário do Comandante está a impingir ao meu Carolino. É um trapaceiro e um desbocado, que nunca conheci ordinário igual. Compreende o que lhe estou a dizer, senhor conde? O Penaguião é tão molinho que consegue ter indivíduos como aquele no seu rol de amigos.

O conde sorriu e levantou o dedo. Tinha o copo vazio.

- Com tanto calor, a senhora não estará com sede? Vou arranjar-lhe uma bebida e aproveito para me servir. O uísque é fabuloso.

- Para mim, um Licor Beirão – respondeu, abrindo novamente o leque e agitando-o com energia.

Na verdade, se Albertolina escutasse as palavras que os dois homens trocavam, poderia reforçar o seu cardápio de apóstrofes ao autoritário comandante.

- É como te digo, Carolino. Este cabrão come fortunas ao Penaguião e a outros amigos meus. Não é jornalista, é um paneleiro frustrado. Nem coragem tem para assumir que gosta de homens e faz chantagem com todos nós. De mim, não leva porra nenhuma e estou pronto a fazer-lhe a cama com lençóis de uma casa de putas do Bairro Alto. Fala com a Censura. Este merdas tem de ser parado, custe o que custar.

- Como é que eu faço isso? O jornal apoia o Regime! – protestava o Director da Polícia Política.

- É o mesmo que alimentar um burro a pão-de-ló. Apoia o Regime, como apoiou o Sidónio, como aplaudiu o Afonso Costa. Desde que lhe encham os bolsos, ele aplaude seja quem for. Até os bolcheviques! Eu perco a cabeça, Carolino. Se este merdas continua a marrar comigo, eu mato-o com a faca que tenho para degolar os meus bácoros. Que porra!

O Coronel Carolino aproximou-se mais do amigo:

- Carapau, a verdade é que a minha gente também confirma que há zunzuns dos teus negócios com os rojos. Negócios que vão contra o apoio que o País está a dar aos nacionalistas.

O Comandante rebelou-se:

- Quais rojos, quais quê? Apoio os nacionalistas, c’um carago! Eu era amigo do Sanjurjo. Amigo do peito daquele infeliz. Se não tem morrido no desastre de avião, era ele o futuro da Espanha e não o calhordas do Franco. Um calhordas! Além do mais, o dinheiro não tem partido e os negócios são aquilo que são, c’um carago! Se este calhordas volta a insinuar no jornal coisas sobre a minha vida, tu vais ver. Tu vais ver!

Carapau referia-se ao Egídio, Director d’O Adamastor, jornal quinzenal, que sobrevivera à Censura contra os desmandos republicanos. O apoio que Álvaro Penaguião dava ao hebdomadário era uma herança de seu pai, amigo de sempre do progenitor do jornalista. Um gesto de gratidão com política à mistura.

Ainda estudante, o jovem Penaguião participou na greve insurrecional da Universidade de Coimbra, que, na época, colocou em franja os nervos do ministro João Franco, ao tempo a governar em ditadura com a bênção do rei D. Carlos. O jovem Álvaro seguiu o caminho de outros condiscípulos e, em vez de aulas, coube-lhe como tarefa trabalhar no refeitório da cadeia.

Naquela época, o pai, Alfredo Penaguião, começara a construir o império dos sabões e, na aflição, lembrou-se do pai de Egídio, cocheiro ao serviço do chefe do Governo. Eram quase da mesma idade. Tinham crescido nos campos da Pampilhosa da Serra, ambos foram pastores, sempre amigos, e cansados da falta de horizontes, que as serranias tornavam o mundo mais pequeno, partiram para Lisboa procurando inventar outras formas de viver.

Quando aconteceu a prisão do jovem Álvaro, o seu pai fora a correr falar com o cocheiro. Em nome da antiga amizade. Que lhe salvasse o filho dando uma palavrinha ao patrão. Que a greve fora coisa de estudantes que não pensam a vida e que o seu rapaz, para estar metido naquela pouca-vergonha, só o devia às más companhias.

O outro prometeu que falaria com João Franco, quando fosse chamado para o transportar, porém, aproveitou a aflição de Alfredo para lhe impor uma condição.

- Viemos os dois para a cidade na mesma altura. Tu estás a safar-te com o negócio do sabão. Eu por aqui me gasto, agarrado às rédeas dos cavalos. É um emprego sem futuro, agora que os automóveis começaram a chegar. Se safar o teu rapaz, vais jurar-me por Deus que nunca abandonarás o meu filho. Não quis estudar. Trabalha numa tipografia de republicanos e não sei onde irá parar se a monarquia der o bafo.

Jurou com a sinceridade que existe na alma dos aflitos. Álvaro saiu da prisão e Alfredo cumpriu o que prometera. Quando a idade o venceu e passou o negócio ao filho, também lhe entregou o destino de Egídio. E ali estava, entre os convidados, esquecido dos sonhos republicanos, partilhando com os comensais as virtudes do Estado Novo, o homem contra o qual o Comandante Carapau vociferava ao ouvido de Carolino.

Helena dirigiu-se ao pai, que a envolveu num abraço, beijando-lhe os cabelos, e perguntou:

- Então, minha filha? Os avós já descansam?

- Na paz de Deus – riu ela. Olhando Álvaro com mais atenção, inquiriu, preocupada: - E o meu pai está bem? Acho-o um pouco mal-encarado.

- Um bocado agoniado. Deve ter sido qualquer coisa do jantar que não me caiu bem. Mas estou satisfeito - respondeu, tornando a beijar-lhe os cabelos.

Porém, foram interrompidos pelo Comandante Carapau, que puxava o padre Pimentinha pelo hábito.

- Ó Álvaro, és ou não és da minha opinião? Tenho para mim que todos os tipos que seguiam o Afonso Costa são comunistas. Esses animais são uma espécie de vírus! Canalha do piorio.

O confessor da família Penaguião concordou:

- Verdadeiras ratazanas. Alimentam-se da imundície.

Álvaro não respondeu. A indisposição estava a aumentar e percebeu que transpirava. Sentia, debaixo do smoking, a camisa agarrada às costas. Foi Helena quem reagiu:

- Não sei se são assim todos tão maus. Pouco percebo de política, mas julgo que os homens não se medem apenas pelas suas ideias partidárias. Avaliam-se pelo carácter! – ripostou disfarçando mal o desprezo que nutria pelo Comandante Carapau.

- Alto e pára o baile! Será que temos aqui uma revolucionária? Helena, também tu? – proclamou o Comandante num misto de provocação e brincadeira, ignorando o azedume da jovem.

Nenhum deles percebeu o olhar cruzado entre Álvaro e Luísa de Serpa. Ela, provocadora, ele, cada vez mais aflito, respondeu com um sorriso pálido, pois nesse momento Carlos Açafrão entrou na liça.

- Hoje não é dia para falar de mortos. Unionistas, republicanos, sidonistas, democratas, é tudo gente que já passou à história. Esta noite celebra-se o futuro na pessoa do nosso querido amigo Álvaro – e, levantando a voz e o copo, anunciou: - Proponho um brinde! Ao futuro deputado da Nação, ao ilustre empresário, ao exemplar Chefe de família, ao nosso Álvaro Penaguião. Hip, hip!

- Hurra! – respondeu o coro de comensais.

Beberam. Com excepção do conde de Serpa, que cambaleava de embriaguez, apoiando-se desajeitadamente no braço do canapé. Luísa controlava a irritação ao observar o marido naquele estado e o Comandante repetiu:

- Hip, hip!

- Hurra!

Nesse momento, a palidez de Álvaro já era esverdeada e murmurou:

- Acho que o champanhe não me caiu bem. Com a vossa licença. Eu já volto.

Afastou-se, apressado, na direcção da casa de banho e nem reparou em Carolino que se lhe dirigia.

- Ó Álvaro...

Aquilo que ia dizer já não fazia sentido, pois o futuro deputado desaparecera e Albertolina, percebendo o desencontro, disparou sem piedade:

- É o que eu digo. És o Director da Polícia Política e ninguém te respeita. Vê lá se ele te respondeu. Voltou-te as costas e desapareceu. Vais ser sempre um basbaque.

- Albertolina, por favor, tem tento na língua – retorquiu, num sussurro nervoso.

- Sim, um basbaque! Convidam-nos para mostrar o casarão, as loiças da Vista Alegre, os talheres de prata, os cristais, o exército de criados. Uns cagões! E tu, Director da mais importante Polícia do Estado, Coronel do Exército, não consegues mais do que um andar de três assoalhadas e uma mulher-a-dias. Basbaque!

Carolino, embora fosse Coronel de Infantaria, afastou--se a galope. Quando Albertolina atacava, de língua desembainhada, era aconselhável desertar do campo de batalha.

D. Berta olhou em volta com estranheza. Foi ter com Helena.

- Tu sabes onde a tua irmã se meteu? Há pouco, quando vinha da cozinha, passou por mim a correr para o jardim e ainda não regressou.

- Ainda há pouco estava aqui na conversa. Vou procurá-la – respondeu a rapariga.

Berta estava cansada, mas feliz. Agora, apenas desejava que os convidados se fossem embora e saborear o momento único que desfrutava em cada dia: descalçar-se!

Porém, estava inquieta. Não gostara de ver, naquela noite de sonho, a filha Marta a chorar. Percebera que qualquer coisa a tinha magoado ou aborrecido quando o jantar terminara. Foi, então, que à sua frente surgiu o Egídio, acompanhado de Carlos Açafrão. Vinham afogueados e D. Berta brincou:

- Não me digam que foram fazer uma corrida. Dizem que ajuda à digestão.

Carlos foi pronto na resposta enquanto mostrava a aba do casaco.

- Deixei cair uma nódoa no casaco. O nosso amigo Egídio tinha terebentina no automóvel e ajudou a disfarçar. Não se nota, pois não?

- Absolutamente nada. O senhor doutor está um brinco. Com a vossa licença, vou saber das minhas duas filhas.

Berta dirigiu-se à cozinha onde existia uma porta que dava para as traseiras. De súbito, estacou. No cimo da escadaria, surgia D. Prudência, em camisa de dormir, desgrenhada, a seu lado, Alfredo cambaleava, olhar perdido, agarrado ao braço da demente e ela correu para os sogros.

- Que aconteceu, minha mãe? Levantaram-se porquê?

- Esta casa está possuída pelo Maldito. Até a roupa cheira a enxofre! – gritou, tresloucada.

- Dona Prudência, pela sua rica saúde, não assuste os nossos amigos – ciciou a nora, tentando encaminhá-los para o quarto. No entanto, a velha não desarmava e a voz tornou-se mais estridente:

- Vejo aquilo que não queres ver. Sente-se no ar, vê-se na cara do bando de pecadores que estão à volta do meu filho.

Entretanto, sem se aperceber do drama que se passava no piso superior, o padre Pimentinha aproximou-se, intrigado, mostrando o relógio a Egídio e a Açafrão.

- O nosso futuro deputado estará bem? Será que a indisposição se complicou?

- O quê? – perguntou o médico, sem perceber.

- Já passou quase meia hora desde que pediu licença para se ausentar e, na verdade, estava muito pálido. É estranho, não é?

O mordomo recolhia copos sujos de cima das mesas e o sacerdote ordenou:

- Gervásio, vai à casa de banho saber se o teu patrão está bem. Há mais de vinte minutos que não dá sinal de vida.

- Com certeza, senhor padre! – obediente, largou a bandeja e foi cumprir a ordem.

Foi nesse momento que os convidados deram conta da agitação que se desenrolava no cimo da escadaria. D. Berta, em aflição, procurava arrastar os sogros para a cama e o padre Pimentinha, mais uma vez, tomou a liderança dos acontecimentos:

- Então, amigo Alfredo, que se passa? Está na hora de descansar.

O velhote voltou-se, tremelicante, sem reconhecer quem com ele falava, e respondeu com um formidável berro:

- Viva a República!

O salão estremeceu. As conversas ficaram suspensas no ar. Os cristais pararam de tilintar, um vento gélido fez estremecer os presentes, que, boquiabertos, olharam o psicodrama e o padre Pimentinha persignou-se!

Berta, em desespero, tentava empurrá-los para o quarto, gemendo desculpas aflitas:

- Não façam caso. É a doença.

Alfredo retaliou com um verdadeiro grito de guerra:

- Viva a República! Abaixo Salazar!

Prudência, com a alucinação, ainda mais excitada devido aos gritos do marido, berrou:

- É o Demónio. É o Demónio!

Entretanto, Marta e Helena, que, naquele instante, entravam na sala onde estavam os convivas, aperceberam-se da aflição da mãe e correram escadas acima, procurando ajudá-la. Já duas criadas amparavam o par de anciãos, levando-os para o quarto.

Os presentes não tiveram tempo para recuperar de tão insólita situação. Gervásio surgiu completamente transtornado. Havia perdido a sobriedade formal e, desvairado, gritou ao médico.

- Doutor Carlos, venha depressa. O patrão... no escritório...

Açafrão correu na direcção que o empregado indicara e a assembleia, desorientada com a sucessão de acontecimentos, precipitou-se em passo largo atrás dele. Apenas D. Genoveva foi indiferente à confusão. Com um sorriso de luxúria serviu-se discretamente de duas trouxas-de-ovos, digerindo-as com avidez. Às primeiras garfadas, os gritos multiplicaram-se. Genoveva não se incomodou. As trouxas eram divinais. Nem mesmo quando Albertolina, cambaleando, amparada pelo Comandante Carapau, se deixou cair num sofá.

- Ele está morto, Santo Deus. Morto!

Foi este trágico acontecimento que levou o contínuo da Polícia de Investigação a correr até à estátua de Sousa Martins, onde o Agente Simão Rosmaninho acabara de jantar, pedindo-lhe que regressasse depressa, pois fora comunicada uma morte suspeita.


IV ACTO


SIMÃO INVESTIGA

 

 


Estremeciam as paredes do edifício da PIC, no Torel, tal era a zaragata. O Chefe Carrascão espumava. Os olhos congestionados. As faces arroxeadas do álcool e da ira. Baixinho e barriga proeminente, onde os suspensórios pareciam rebentar a cada passada irritada em torno da secretária.

De pé, o Agente Simão Rosmaninho escutava a descompostura, cabeça baixa, mãos cruzadas atrás das costas.

O Chefe não o olhava. Insultava-o, falando para as paredes, para o tecto do gabinete, dando murros nos armários onde guardava os processos.

– Não tinhas o direito de pedir a autópsia àquele infeliz. Uma violência contra o morto e contra a família. E que família!

– Foi o seu colega que estava de piquete quem me mandou ir – atreveu-se a responder.

– Seja como for! – berrou ainda mais forte sem parar o corropio em torno da secretária, prosseguindo com a mesma agressividade: – Nós não tratamos de mortes naturais! A nossa vida é descobrir crimes. Se estava presente um médico que diagnosticou um enfarte fulminante, então é porque morreu do coração. És capaz de me dizer desde quando é que um enfarte é crime?

Ao fazer a pergunta, bateu os tacões dos sapatos, perfilando-se em sentido, enfrentando o subordinado pela primeira vez.

– Na verdade, o enfarte é uma causa natural de morte – corroborou Simão.

A resposta aumentou o desvario do Chefe de Brigada. Deu um violento murro na secretária e o rosto arroxeado ganhou tons de azul quando berrou:

– És uma besta! Uma verdadeira besta!

O Agente reagiu com uma serenidade desconcertante:

– Serei o que diz, Chefe. Mas não sou cego.

– És pior do que cego. És um desvairado com os teus livros policiais, com as óperas, com essas coisas esquisitas. Um marginal sem eira nem beira, que julga que esta casa é o recreio onde pode construir as suas fantasias. És intelectual a mais e polícia a menos. Uma besta! Se o médico disse que foi o coração que estoirou, não havia mais nada a fazer e muito menos para inventar.

– Pode não ter sido enfarte. O doutor Carlos Açafrão decretou essa causa de morte como poderia ter dito outra qualquer que implique morrer subitamente.

– Mas é o médico de família, grande palerma. Foste tu quem o escreveu no relatório – protestou Carrascão, agitando os relatórios redigidos por Simão.

– Por isso lhe perguntei se havia algum incidente cardíaco no passado da vítima. Respondeu-me que o homem possuía uma saúde de ferro. Apenas naquela noite tivera conhecimento, pela esposa do engenheiro, de que este andava a sofrer de algumas indisposições que se haviam agravado nos últimos tempos.

O Chefe cortou-lhe a palavra:

– É claro que essas indisposições eram avisos do risco de enfarte. Não havia sinais de luta no escritório, a porta estava fechada, nada foi roubado. Foi o que viste e escreveste. É o bê-à-bá. Não era preciso inventar um crime onde nunca existiu. Sobretudo naquela casa cheia de gente acima de qualquer suspeita. Mal cheguei aqui estava já ao telefone o Coronel Carolino, da PVDE, a dar-me ordens. Ao menos sabes quem é o Coronel Carolino?

Simão encolheu os ombros com indiferença, meneando a cabeça em sinal negativo.

Carrascão roncou:

– Um dos Directores da PVDE, Simão. É um dos Directores da Polícia Política e estava lá.

Subitamente calou-se. Fixou o tampo da mesa, acariciando os ilusórios cabelos da careca. Controlava uma irritação medrosa. Um medo que se notava no tremor das mãos.

– Tenho de ir falar com o senhor Director. Só ele pode dispensar a autópsia depois do disparate que fizeste. E vou já!

Vestia o casaco quando Simão Rosmaninho lhe disse:

– Chefe, o senhor não leu todo o relatório que escrevi.

– Claro que li, parvalhão. É uma invenção! Um disparate sem pés nem cabeça.

– Então não leu o anexo. Recolhi cabelos do cadáver, que enviei para o laboratório.

Com o casaco meio vestido, procurou sofregamente a informação que o Agente lhe indicara. Empalidecia enquanto ia lendo.

– És mais atrevido do que eu pensava. Arrancaste cabelo ao morto?! Ao engenheiro Álvaro Penaguião? Se isto não é profanação de cadáver, eu não me chamo José Carrascão. Desta vez é que vais mesmo para a rua. Ai, vais, vais!

Simão respondeu, indiferente à ameaça:

– Chefe, nem foi preciso arrancar. Ficaram-me na mão quando lhe apalpei a cabeça para perceber se tinha algum sinal de agressão. Pode despedir-me já hoje. Pode mandar parar a autópsia do engenheiro. Faça o que entender, mas está a encobrir um homicídio. Esse homem foi envenenado.

Carrascão sempre embirrara com este seu subordinado. Não o entendia. Na cabeça do rapaz tudo fazia sentido quando ele, assim como os outros colegas, levavam tempo para chegar ao mesmo sítio da verdade. E era capaz de jurar que Simão sabia muito mais coisas do que aquelas que lhe mostrava. Guardava-as para si até as confirmar. Havia sempre um gesto, uma palavra, um sinal, que ele conseguia encaixar num raciocínio mais amplo, o qual depois parecia uma seta disparada contra o coração do crime.

Afastou o relatório, visivelmente preocupado. Se nos exames de toxicologia os cabelos do cadáver revelassem algum veneno, era inevitável a autópsia para melhor compreender o caso. Por fim, quase num murmúrio, rematou:

– Esta é a última vez que me passas a perna. Se a perícia do laboratório não revelar nada de especial, nem voltamos a falar. Nesse mesmo momento, levo à Direcção a proposta do teu despedimento e arrumas as tuas coisinhas e sais desta casa para sempre. E, agora, desaparece. É que nem consigo olhar para ti.

Simão hesitou antes de sair e não conteve a pergunta:

– Tem assim tanto medo, Chefe?

Explodiu um berro transtornado:

– Sai daqui!

Abandonou o gabinete sem um cumprimento. Sentia repugnância por aquele medo servil que se apossava de gente que se instruíra na vassalagem aos superiores hierárquicos, embora compreendesse a exaltação do Abóbora, alcunha com que o seu Chefe fora baptizado pelo pessoal da PIC, graças ao formato redondinho. Respeitava fervorosamente a ordem social e política do Regime, do qual era apoiante intransigente, devoto de Salazar, o homem que trouxera a paz e a ordem ao País esgotado pelas desavenças republicanas.

José Carrascão foi um dos primeiros funcionários a integrar a Polícia de Investigação Criminal, pouco tempo após a sua criação por decreto de Sidónio Pais, em Setembro de 1918. Aprendia os primeiros actos processuais e iniciava-se nas técnicas de investigação criminal quando, dias depois, na Estação do Rossio, o Presidente da República foi assassinado quando ia tomar o comboio para o Porto. A brutalidade do crime deixou-o horrorizado. Como costumava dizer, nessa noite, perdeu a fé na República.

Desde então, o desencantamento foi crescendo, como uma maré, pois não havia mês em que a sua Brigada não fosse chamada ao assassínio de um sindicalista, à degola de um anarquista, ao homicídio de um unionista, à sangrenta morte de um sidonista. Os olhos de Carrascão viam uma República farta de cadáveres, sofrendo de apoplexia nas rixas diárias, de violência desnecessária em greves e insurreições.

Três anos depois, numa noite sangrenta, um grupo de marinheiros, alimentados a ódio e vinho, assassinou o primeiro-ministro António Granjo, o grande herói republicano Machado Santos e outras figuras importantes, e o então Agente José Carrascão ganhou repugnância ao Regime. A República enxovalhava-se a si própria tomada por bandos de abutres sedentos de poder.

Quando a Ditadura Nacional chegou a Lisboa, no cavalo do general Gomes da Costa, aplaudiu freneticamente o cortejo militar que punha termo ao viver democrático e foi sem reservas que, anos mais tarde, aderiu ao Estado Novo. Quando tomou posse como Chefe de Brigada foi já sobre a nova Constituição que jurou fidelidade à Pátria e assinou o compromisso onde repudiava todos aqueles que partilhavam ideais subversivos, contrários à obra benfazeja do Professor Oliveira Salazar.

As ruas apaziguaram, a ordem senhorial assente na crença de que a Revolução Nacional, ordeira e submissa, devolveria a Portugal a glória imperial de outros tempos, e o Chefe Carrascão, tranquilamente conformado, embarcou na nau dos crentes.

Agora, subitamente, o seu Agente Simão Rosmaninho trazia desajeitadamente para cima da sua secretária a morte de um quase deputado da União Nacional, arrastando algum do mais fino escol que sustentava o edifício da sua fé política. Incluindo um Coronel da Polícia Política.

José Carrascão tinha motivos de sobra para estar preocupado. O atentado à bomba contra o carro do Doutor Salazar, ocorrido no Verão anterior, provocara profundas mossas nas relações entre a Polícia de Vigilância e Segurança do Estado e a Polícia de Investigação Criminal. Falava-se mesmo de guerra aberta, que chegava aos ministros da Justiça e do Interior, e o ambiente entre as duas Polícias era de cortar à faca. A Polícia Política, liderada pelo seu próprio Chefe, Agostinho Lourenço, apoiado pelos Capitães Maia Mendes e José Catela, anunciou rapidamente a prisão dos autores da tentativa de homicídio do líder da Pátria, na Avenida Barbosa du Bocage, apresentando-os como «grupo terrorista do Alto do Pina». Um grave ataque dos comunistas contra o Estado Novo, segundo aquelas autoridades. Todos presos e, se dúvidas existissem, ficava claro que todos haviam confessado o crime e o modo como colocaram a bomba no colector junto à casa de José Torcuato, amigo de Salazar, e aonde este se deslocara para a missa dominical.

A publicidade ao grande triunfo da Polícia Política contra o Partido Comunista fora tanta e tão contraditória que levantou desconfianças, quer a elementos da PSP, quer da PIC. Ou, numa versão ainda mais inquietante, o ministro da Justiça, Manuel Rodrigues Júnior, aliado ao juiz Alves Monteiro, o homem forte da Investigação Criminal, haviam decidido conduzir, em paralelo, uma outra investigação ao atentado, para encostar à parede o ministro do Interior.

O resultado da nova investigação conduzida pela PIC tornara-se numa verdadeira humilhação para a PVDE. Afinal, os réus tinham confessado à maneira dos Távora. Sob violenta tortura. Não era o Partido Comunista o organizador do ataque à bomba. Para piorar a humilhação, a PVDE havia levado os verdadeiros autores do crime para os interrogar e libertara-os sem se aperceber de que os tivera na mão. Para desgraçar este quadro negro de desleixo, a PIC prendera o anarquista Emídio Santana, o verdadeiro cabecilha do atentado, assim como todos os comparsas, onde se misturavam republicanos, anarquistas e comunistas. A crispação entre as duas Polícias estendia-se aos agentes e foi com temor que, naquela manhã, Carrascão escutou a voz áspera do Coronel Carolino.

– Ainda não consegui contactar com o senhor doutor Alves Monteiro e por isso pedi que ligassem directamente para ti. Sabes quem eu sou?

– Só de nome, meu Coronel. Mas estou às ordens de Vossa Excelência – respondeu o Chefe de Brigada em posição de sentido.

– Ontem, num jantar em que eu estava, morreu o anfitrião, o senhor engenheiro Álvaro Penaguião. Uma tragédia, pois perdi um grande amigo. Foi lá um dos teus rapazes e complicou o que era fácil. Suspeitou de que se tratava de um crime, contradizendo um médico que estava presente e que declarou um ataque cardíaco como causa do óbito.

– É possível, Excelência – concordou humildemente Carrascão.

– É possível, o quê? – gritou, indignado, o coronel Carolino.

– Que fosse um dos meus agentes. Era um deles que estava de piquete – apressou-se o Chefe a desfazer qualquer mal-entendido.

– Sem respeito por ninguém, nem por mim, nem pelo doutor Carlos Açafrão, que é um clínico de nomeada, nem pela família enlutada, fez com que o corpo do senhor engenheiro fosse para a morgue. – O Director da Polícia Política pigarreou e esclareceu: – Se não tivesse acontecido o que aconteceu recentemente entre as duas corporações por causa do atentado contra o Senhor Professor Oliveira Salazar, outro galo teria cantado e o teu Agente estaria neste momento à minha guarda. Engoli o descaramento dele, mas ficou-me debaixo de olho.

– Fique Vossa Excelência tranquilo que lhe darei o raspanete que merece.

– Não é apenas o descaramento dele. A família não quer que o engenheiro seja autopsiado. E eu também não! – vociferou, enrijando a voz.

Carrascão transpirava. A fúria do outro adivinhava um temporal sobre a sua cabeça e, aflito, adiantou:

– O meu Coronel perdoe a minha conversa. Não passo de um pobre Chefe de Brigada e, como Vossa Excelência sabe, não tenho competência para suspender a autópsia.

– Mas podes adiar a sua execução até eu conseguir encontrar o teu Director. Procura-o também. Não vou largar este telefone enquanto não falar com ele. Onde já se viu um policiazeco contraditar o doutor Carlos Açafrão? Ainda por cima quem seriam os suspeitos do homicídio? Eu? O padre Pimentinha? O Comandante Alfredo Carapau? O conde de Serpa? Era quase um jantar de Estado. De estadão!

– Pode Vossa Excelência estar descansado. Vou cumprir as ordens de Vossa Excelência, que tem toda a razão. Um ataque cardíaco é um ataque cardíaco. Não há autópsia, nem razão para este mal-entendido, pois...

O zumbido que ouviu na linha fê-lo perceber que estava a falar em vão. Carolino já desligara.

Carrascão deixou-se cair na cadeira. Era um náufrago à procura de uma bóia, sentia-se um infeliz que se esfolava para ser um Chefe de Brigada decente, um desgraçado para quem a política era a família e o trabalho, o verdadeiro desafortunado que só queria paz e Deus enviava-lhe as pragas do Apocalipse, através daquele Agente Simão Rosmaninho.

No outro lado do telefone estava um Coronel furioso, temido e destemido, que ameaçava fazer-lhe a vida num inferno. Do outro, um subordinado teimoso, que, no fundo, Carrascão reconhecia ser bem mais inteligente e sagaz do que Carolino, investigando crimes sem olhar a quem incomodava e que ignorava todos os medos do Chefe.

Quase chorava com pena de si próprio quando a porta se abriu e surgiu o Oliveira, o contínuo de serviço ao gabinete do Director da PIC.

– Bom dia, Chefe. O nosso Director pede-lhe que vá ao seu gabinete.

Ergueu-se, vencido. Achou que sentia o mesmo peso e dor idêntica àquela que Cristo sofrera quando caminhava para o Calvário.


V ACTO


NA MORGUE

 

 


Simão seguiu à risca a ordem do seu Chefe de Brigada. Saiu das instalações da PIC, em passo largo. Dirigiu-se à morgue do Instituto de Medicina Legal. Estava tão entusiasmado com aquele caso que rapidamente esqueceu a ameaça de despedimento que pairava sobre a sua cabeça.

Nada havia de mais espantoso para o jovem Rosmaninho do que ser desafiado por um mistério. Avançar através da nebulosa de evidências escondidas em penumbras, pontas soltas de um novelo cuja harmonia interna só se percebe quando os fios de todas as versões se unem numa só roca. Encontrar esse ponto era descobrir o sítio certo onde está a verdade, até aí clandestina para os sentidos do investigador.

Naquele momento, ainda não descortinava respostas para as perguntas que fervilhavam na sua cabeça. Apenas tinha uma certeza, que o laboratório, era quase certo, iria confirmar as suspeitas sólidas que pressentiu no momento em que viu brevemente o cadáver. Alguém, naquela noite, que deveria ser de aclamação e de festa, matara impiedosamente o engenheiro Álvaro Penaguião. Porém, as breves declarações das primeiras testemunhas do trágico episódio eram mais lamentos do que explicações, e apontavam no sentido de dar razão ao médico e, por isso, ao seu Chefe de Brigada.

O padre Pimentinha vira o falecido sair da sala, dizendo que estava maldisposto e ia à casa de banho, não percebendo porque o encontraram morto no escritório. O Comandante Carapau corroborava a versão do sacerdote.

– Abusou do champanhe, é o que eu digo. Foi a mistura de vinhos que lhe estoirou a barriga e o fez dar o peido mestre. É o que eu digo. Misturas, nunca!

Também retivera a sequência de episódios imediatamente anteriores à descoberta do cadáver. Os medos enlouquecidos da velhota, os gritos assustados do pai de Álvaro, a confusão e o espanto gerados pelo alarme dado por Gervásio. Até parecia que no curso normal da festa houvera uma mão transcendente e diabólica que fizera explodir o caos.

Não esquecia a ordem categórica que lhe dera o Coronel Carolino quando se aproximou do cadáver:

– Vê, mas não toca. Um defunto exige respeito. Já não nos pertence. Agora está nas mãos de Deus.

Simão acenou afirmativamente e deu dois passos na direcção do cadáver. Estava caído junto à secretária. Alguns papéis encontravam-se desarrumados, o tinteiro emborcado e a tinta escorrera pelo tampo do móvel. O morto estava deitado sobre o lado esquerdo, a cabeça pousada sobre o braço, olhos esbugalhados de espanto, como se tivesse visto a morte no momento em que ela o possuiu, e um vómito sobre a carpete.

Foi a boca ligeiramente aberta que lhe chamou a atenção. Exalara o último suspiro acompanhado por uma espuma branca, talvez amarelada, abundante, que lhe escorria pelo queixo.

Simão acocorou-se para observar mais de perto, indiferente à vozearia e ao pranto que enxameavam o ambiente. Sabia que estava a ser vigiado pelo Oficial da Polícia Política mas prosseguiu o seu exame com cada vez maior atenção. Aquela espuma que aureolava a boca, cobria o lábio superior e escorria pelo maxilar pusera o Agente em alerta. Depois desviou o olhar para as mãos do cadáver. Estavam bem tratadas, aparentemente não havia sinais de luta, e deixou escapar um sorriso quando notou as unhas estriadas.

O coração do jovem acelerou. Subtilmente, enquanto se levantava, afagou a cabeça do infeliz engenheiro e, sem que o seu vigilante se apercebesse, puxou com dois dedos um tufo de cabelos que, de imediato, se soltaram. Quando se ergueu, discretamente levou a mão à algibeira do casaco e, tacteando, guardou os cabelos na dobra do lenço.

Carlos Açafrão aproximou-se, sem perceber a manobra do detective, e interpelou-o com algum sarcasmo:

– Descobriu sinais de algum crime hediondo?

Simão ignorou o dichote e perguntou:

– Há quanto tempo encontraram o senhor engenheiro morto?

O clínico consultou o relógio de bolso.

– Há cerca de duas horas.

– Ele manifestou alguma queixa?

– Não estava presente, mas disseram-me que se sentira maldisposto ou agoniado e que pedira licença para ir à casa de banho. Todos acreditaram que fosse uma indigestão passageira – rematou, solene: – Os enfartes fulminantes são fatalmente traiçoeiros.

Simão tornou a olhar o cadáver.

– Desculpe a pergunta, senhor doutor. Sei que é médico da família. O engenheiro tinha alguma história clínica de risco de enfarte?

– Nada disso. Respirava saúde. Trabalhava dia e noite. Dirigia pessoalmente as suas três fábricas com mais de dois mil operários, e nunca denunciava um sinal de fadiga – hesitou por momentos e concluiu: – Foi a emoção do convite.

– Do convite? – perguntou Simão, sem perceber.

– Foi escolhido para ser deputado da União Nacional às próximas eleições para a Assembleia Nacional. Aliás, este jantar serviu para anunciar essa candidatura e, afinal, em vez da merecida festa aconteceu esta tragédia.

Simão tornou a observar o cadáver. Agora com alguma tristeza. Estava perante uma daquelas partidas que a vida nos prega como se quisesse brincar com as nossas emoções. No chão, a seus pés, estava o homem que lhe abrira o caminho para entrar na profissão que o levara àquela casa. O engenheiro Penaguião fora a primeira de várias cunhas que conduzira Simão Rosmaninho à carreira da investigação criminal. Era o patrão do seu pai, capataz na fábrica de baquelites, e sabia do respeito, até da amizade, que os dois homens nutriam um pelo outro.

O Coronel Carolino, altaneiro, apontou-lhe o dedo:

– Tenho estado a olhar para ti e acabei de me lembrar de onde te conhecia. Tu és filho do Manuel Rosmaninho, não é verdade?

– É verdade, senhor Coronel.

– Foi por causa do infeliz que está aí no chão que meti a cunha que te abriu as portas da polícia. Lembras-te?

– Claro que me lembro, senhor Coronel. Não o cumprimentei de outra forma devido às circunstâncias trágicas em que estamos envolvidos.

– Como vieste aqui parar? Desde quando a PIC se interessa por mortes naturais?

Havia agressividade na entoação das perguntas do Director da PVDE e, como se não percebesse o interrogatório, Simão respondeu com naturalidade:

– Ligaram para o Torel e eu estou de serviço. O Chefe do piquete mandou-me averiguar.

– Está tudo averiguado – cortou o outro com rispidez. – Diz o doutor Carlos Açafrão que foi um enfarte. Sabe o que diz porque é médico. Portanto, julgo que está na hora de te ires embora e deixares a família e os amigos chorarem o infeliz que partiu.

Assentiu humildemente.

– Com certeza, senhor Coronel. Apenas preciso da lista dos presentes que estiveram no jantar para fazer o relatório.

– Ainda esta noite o meu motorista vai entregar a lista no Torel. Agora vai. E com discrição. Não quero que esta tragédia seja notícia de qualquer maneira. Os meus homens tratarão do resto.

Simão fez um gesto de concordância. A notícia do fatídico evento iria ser censurada, no entanto, isso não o incomodou sobremaneira. Despediu-se com uma ligeira vénia, ainda deu duas ou três passadas na direcção da saída e, de repente, estacou. Voltou atrás e, de cabeça baixa e em surdina, informou o Coronel Carolino Olivares:

– Pode ficar descansado que o meu relatório só será lido pelo meu Chefe de piquete, mas devo informá-lo de que o cadáver vai precisar de ser autopsiado.

O Director da Polícia Política cambaleou de incredulidade.

– Como te atreves a insinuar semelhante blasfémia? Não ouviste o doutor Carlos Açafrão afirmar que foi um enfarte? – perguntou, colérico.

– Claro que ouvi, senhor Coronel – respondeu com serenidade e esclareceu: – Os sinais que existem no cadáver não são compatíveis com essa declaração de óbito.

Açafrão, indignado por sentir a sua autoridade clínica ser posta em causa por um fedelho, argumentou, zangado:

– Um enfarte é uma situação espontânea. A maioria das vezes imprevisível. Uma forte comoção pode provocá-lo, como foi o caso. Não é todos os dias que se é escolhido para deputado.

– É verdade – ripostou Simão, e disparou sem piedade: – Se fosse esse o caso, o engenheiro Penaguião teria vivido essa forte comoção no momento em que lhe deram a notícia e não agora, dias depois, quando já a celebrava com os amigos.

– Não pode ter sido outra coisa! – reclamou o médico, autoritário.

– Pode. Aquela espuma na boca e as unhas completamente estriadas deviam dizer ao senhor doutor mais qualquer coisa para além desse enfarte que adivinhou. Com a vossa licença.

Afastou-se sob os olhares atónitos dos seus interlocutores e sentiu uma forte sensação de desconforto quando, já na rua, a brisa fresca que soprava de Monsanto o despertou para a grande tempestade cujas sementes tinha lançado. Anteviu a confusão que acabara de gerar. O Chefe Carrascão aos gritos, o Carolino a pedir a anulação da autópsia, ainda por cima estribado no juízo do médico Açafrão. Nem o seu Director máximo, o juiz Alves Monteiro, iria embarcar nas suspeitas do jovem investigador. Daí que se tivesse preparado para o raspanete que ouvira ao meter os pés na Brigada e encontrou Carrascão quase apopléctico. Também não tinha dúvidas de que a autópsia ia ser dispensada. O seu amigo Belchior não teria oportunidade de meter o bisturi naquele cadáver.

Por tudo isto, talvez tivesse sido um alívio para Simão ser despedido grosseiramente pelo Chefe depois do chorrilho de ameaças e insultos. Precisava de chegar à morgue com rapidez e, antes que removessem o corpo, realizar alguns exames que na noite anterior fora impedido de fazer.

Pouco importava os mantos de neblina que os vários actores usavam para justificar aquela morte. Um crime é um crime. Matar alguém não é o mesmo que morrer. E quem mata, deve ser julgado. Seja quem for a vítima. Seja quem for o agressor. Se as suas suspeitas se confirmassem, o desconhecido agressor era obrigatoriamente alguém que privava com o engenheiro Álvaro Penaguião. Um carrasco impiedoso, que não o matou numa explosão de paixão. Foi um criminoso implacável que planeou a sua morte e a foi ministrando devagar à sua vítima. Sem piedade. Dia após dia. Com um ódio tão frio que estava para além do que conseguiam ver os olhos de um indivíduo normal. Nem Açafrão vira os sinais de envenenamento e devia ter visto se fosse um médico a olhar o morto e não um amigo. Ou então, interessava ao clínico encobrir a verdadeira causa da tragédia, e Simão não via outro motivo a não ser o interesse pessoal naquele homicídio.

Ao entrar na morgue, deu de caras com o seu colega Arengas, que estava de saída e o informou:

– Não vale a penas vires tão apressado que as autópsias já terminaram. Os médicos saíram e o talho só torna a funcionar amanhã.

– Venho à procura de um morto que ainda não foi à faca. Ajudas-me a encontrá-lo?

– Fugiu? – perguntou o outro com sarcasmo.

O funcionário de serviço protestou:

– Entram ou saem? Esta porta não é para estar aberta ao público.

A sala onde os cadáveres eram despidos para os exames médicos, e tornados a vestir para saírem os funerais, fria e alta, possuía duas pequenas janelas junto ao tecto, por onde circulava o ar, insuficientes para libertar o perpétuo odor a carne podre que impregnava o chão, as paredes, o ambiente. Arengas fez uma cara de repugnância e criticou o funcionário que despia e vestia os mortos.

– Eu não sei como é capaz de trabalhar aqui com este cheiro a merda. Merda, não! Merda aqui é perfume. Não é capaz de atirar uns baldes de água pelo chão e pelas paredes? Ao menos aliviava este fedor a azedo e a podre. Porra! Cada vez que aqui entro sinto as tripas a ganir.

– Não serve de nada. Temos sempre muitos podres. Dizem que vamos entrar em obras. Talvez melhore – respondeu sem deixar de vestir o casaco a um homem que estava a preparar para sair na carreta funerária.

Despejados pelo chão ou em cima de padiolas estava cerca de uma dezena de cadáveres. Simão não conseguia entrar naquele recinto sem que lhe viesse à memória um boneco articulado que a mãe lhe oferecera, quando era miúdo, numa visita à Feira da Luz. Conforme girava o pauzinho que o suportava, assim mexiam os braços e as pernas em movimentos mecânicos e posições sem jeito. Ali, os mortos assemelhavam-se a esse brinquedo. Desconjuntados, braços pendentes em posições não naturais, roupas desalinhadas, troncos torcidos, com colorações diferentes conforme os livores cadavéricos, indiferentes ao fedor que tresandavam.

– Ainda aqui está o engenheiro Álvaro Penaguião ou já foi para a sala de autópsias? – perguntou ao empregado.

Ele encolheu os ombros e resmungou:

– Aqui não há engenheiros, nem doutores. Só mortos. Veja à vontade, está todo o pessoal que entrou durante a noite e a madrugada.

Simão já procurava sem atender às informações do outro. Se quisesse observar melhor o engenheiro, não podia demorar. Pressentia que a qualquer momento chegaria a ordem para dispensar o exame tanatológico.

O Arengas perguntou:

– Quantos anos tem, mais ou menos, esse teu engenheiro?

– Entre os quarenta e tal e os cinquenta. Começa a procurar na outra ponta da sala.

Simão Rosmaninho passou por uma mulher desgrenhada, rosto cor de alabastro, de cujo nariz saía um fio de sangue ressequido. Abriu uma lona e não conseguiu evitar um gesto de repulsa ao ver o monte de vísceras, pedaços de pernas, do tronco de um trucidado por um comboio. Ia dirigir-se ao cadáver seguinte quando Arengas, cigarro na boca, levantando um lençol que cobria um corpo, exclamou:

– Eh, pá! Este tem pinta. Deve ser o teu homem.

Simão reconheceu-o de imediato.

– É esse mesmo! – confirmou, ansioso.

A espuma que lhe envolvia os lábios desaparecera, graças a uma mão piedosa que se encarregara de a limpar. O Agente ajoelhou-se junto ao cadáver e cheirou-lhe a boca. O Agente Arengas recuou, espantado.

– És só porco ou vais mesmo beijar o gajo na boca?

Não lhe respondeu. Já segurava numa das mãos, observando atentamente, as unhas estriadas. Apalpou a algibeira do casaco e retirou uma pequena tesoura e um envelope.

Arengas baixou a voz para que o funcionário de serviço aos cadáveres não o escutasse.

– Que vais fazer, Simão? Se o médico-legista descobre que estás a mexer no cadáver antes da autópsia, esfola-te, e o nosso Chefe rasga-te ao meio.

Tornou a não responder, cortando pedacinhos de unha do finado que vertia para a saqueta de papel.

O outro tornou a sacudi-lo.

– Chega, Simão. Chega.

Guardou o envelope no bolso no mesmo momento em que outro funcionário do Instituto entrava na sala. Saudou os dois polícias de forma amistosa.

– Bom dia, senhores Agentes. Há azar?

– Viva, Mateus! Só a tirar umas dúvidas. Já estamos de saída – retorquiu Simão.

– Não saem sozinhos. Esse que está aí aos vossos pés também vai marchar. Foi dispensada a autópsia – informou o empregado e, começando a acomodar no lençol o cadáver do engenheiro, continuou: – Deve ser tipo importante. Veio um Capitão com uma escolta para o transportar.

– Um Capitão? – perguntou Arengas, atarantado.

– Olarila! Trouxe o ofício e a certidão de óbito. Um enfarte. Os gajos importantes morrem todos de enfarte. A tísica é para os pobres.

E desinteressando-se dos Agentes, pediu ao colega enquanto puxava uma maca.

– Ajuda-me a levar este tipo daqui para fora. Se a magalagem entra, vai vomitar por todo o lado e para porcaria já basta o que basta!

Pegaram nas pegas do catre e dirigiram-se à porta. Mateus voltou a saudá-los com boa disposição.

– Até à próxima. Este já não vos dá problemas. Sai como entrou. Mortinho da Silva, mas todo compostinho, com a graça de Deus! – e, dirigindo-se directamente ao Arengas, brincou, bem-disposto: – Espero vê-lo no jogo do próximo domingo. O seu Carcavelinhos vai levar uma abada do meu Sporting. Este ano ninguém nos pára!

Soltou uma gargalhada, satisfeito com a sua piada, enquanto os dois investigadores saíam directamente pela porta que dava para a rua. Arengas estava irritado. Agarrou no braço de Simão e perguntou-lhe, furioso:

– És capaz de me explicar que merda é esta?

– O quê?

– Como é que sabias que o tipo não ia ser autopsiado? Qual era a tua pressa em recolher pedaços de unhas? Quem é o manganão? Não estou metido em nenhuma caldeirada, pois não? Simão, tu não me metes nas tuas caldeiradas, ouviste?

O outro encolheu os ombros.

– Não te meti em coisa nenhuma. Estavas na morgue quando eu cheguei e ficaste na conversa. Isto tem algum mal?

– Mas não largavas o homem. Até lhe enfiaste as ventas na boca. Ainda por cima, teve morte natural. Mas quem me manda aturar a tua maluquice? Sou um estúpido de merda. Vê tu bem. Um Capitão com escolta! Quem é este gajo, Simão?

– Um tipo muito rico e um delfim do Regime que morreu antes de tempo. Não ligues à história do enfarte. O homem foi assassinado.

– Não acredito nisto. Não acredito. Este tipo mete coisas na cabeça que não lembram a ninguém. Um gajo que é procurado por uma escolta comandada por um Capitão, que se foi num enfarte, assassinado? Tás passado, ó miúdo.

– Esquece. A coisa está confusa, mas não há que ter preocupações. Vai-se compor. Tu verás. Anda daí. Ofereço--te um café.

– Que cacete, pá! Um Capitão a comandar esta merda e tu pedes que me esqueça!? Posso ser muito estúpido, mas de certeza que a Polícia Política está metida nisto. É ou não é?

– Não sei.

– Não sabes? Vens a correr cheirar as trombas de um cadáver e não sabes? Simão, tu não me lixes, pá!

– Aceitas o meu café ou vais ficar a rezingar o resto do tempo? – perguntou, contrariado.


VI ACTO


AS SUSPEITAS DE SIMÃO

 

 


A tasca do Oliveira ficava à entrada da Travessa da Cruz do Torel. A dois passos do Hospital de São José, a três palmos da morgue e a dois minutos da sede da PIC. A atmosfera possuía um odor de vinho envinagrado e de fritos. Era local afamado nas redondezas. Preços escorreitos, caderno para apontar créditos e vinho da Granja, perto da Amareleja, onde há sessenta anos havia nascido o dono do estabelecimento. O Ti Oliveira, como era tratado pelos fregueses mais assíduos, gabava-se de resistir aos galegos que tinham tomado por conta quase todas as adegas, tascas e tabernas de Lisboa. Resistia pela oferta de produtos alternativos. Por todo o lado, havia carapaus de escabeche. Oliveira trocou-os por orelha de porco de coentrada. Os pedaços de bacalhau frito não entravam ali. Em alternativa, apresentava fatias de lombo de porco alentejano saídas a preceito do forno onde fabricava o pão de trigo, que oferecia em cestinhos de verga. N’O Ceifeiro não havia azeitonas do pote. Chegavam retalhadas ou pisadas, em banho misterioso, que metia louro, orégãos e rodelas de laranja. Os coiratos estavam interditos, para dar lugar a queijinhos de cabra curados, miudezas de frango em molho de tomate, linguiças apaladadas e presunto que reluzia em cada lasca que ele cortava. Na ementa principal, pendurada na ardósia mesmo à entrada, resplandecia o seu Alentejo mais rústico, dos pezinhos de porco de coentrada, do galo de cabidela, da sopa de cação e da açorda de coentros. De vez em quando, exibia uma feijoada de lebre. Mais raramente, javali estufado, que se desfazia na boca. Na cozinha, lidava a sua companheira, da qual os clientes, com raras excepções, só conheciam os braços e as mãos quando ela colocava, no orifício de ligação, os petiscos que preparava na cozinha. Também poucos sabiam o seu nome. O Ti Oliveira tinha um chamamento especial.

– Mulher, é meia de frango guisado.

– Mulher, azeitonas, torresmos de rissol e queijinho de ovelha.

– Essas costeletas estão atrasadas, mulher?

E viam-se as mãos rápidas, como abelhinhas a zumbir, servindo os pedidos pela pequena janela.

Era casa frequentada por polícias, médicos e enfermeiros do hospital, gente que chegava de todo o lado para visitar familiares internados em São José.

Simão e Arengas abancaram junto à janela. A manhã já ia alta e Rosmaninho ainda não pregara olho desde o dia anterior. Bebia café. O colega atacava um torresmo de rissol acomodado com um copo de três, tinto. Escutava, boquiaberto, os acontecimentos ocorridos durante a noite.

– Foi envenenado e há uma grande pressão para que não se saiba. O tipo da Polícia Política não me deixou tocar no cadáver, o médico insistia no enfarte com uma convicção mentirosa. O Chefe, logo pela manhã, quando saí de piquete, zurziu-me de alto a baixo porque eu já havia pedido a autópsia. O Coronel Carolino não parava de telefonar. Percebi que ou agia rapidamente ou os poucos indícios que existiam desapareceriam. Aproveitei a fúria do Chefe, que me pôs fora do gabinete, aos gritos, para me pirar até à morgue. Não tinha dúvidas de que iam conseguir a dispensa de autópsia e daí a minha pressa em cortar as unhas do engenheiro. Receava que os cabelos que consegui recolher à socapa não chegassem para um exame rigoroso da Toxicologia. Se foi arsénico, como suspeito, vai ser fácil encontrá-lo.

Arengas mostrava-se surpreendido, embora não fosse assunto suficientemente importante para desprezar os torresmos quentes.

– Como é que soubeste que o homem esticou o pernil com um veneno?

– A espuma na boca, o tom da pele e as unhas estriadas, as chamadas listras de Mees. Ainda por cima, nem foi possível puxar o cabelo da cabeça. Veio como se fosse manteiga. São sinais típicos do envenenamento com arsénico, que migra para tecidos com muita queratina.

– Como é que se arranja isso? Só ouvi falar dessas coisas quando morreram reis envenenados. Nunca tive um homicídio com veneno e nem percebo metade das coisas que para aí disseste. Os torresmos estão no ponto. Que categoria!

Simão sorriu, deliciado.

– Houve quem lhe chamasse o veneno dos reis e, ao mesmo tempo, o rei dos venenos. Bastam cento e cinquenta miligramas para matar um homem. É um metalóide alotrópico que se usa em diversas actividades. Desde o polimento de madeiras ao tratamento de couros e, até, como remédio. Tudo depende das quantidades.

– Não me desorientes, Simão. Quando começas a dis-cutir ciência ou a descrever as árias das óperas, fico com dor de cabeça. O que é que tu queres? Fazes-me tonturas.

– Além de que não gostei da assembleia de convidados – acrescentou como se não tivesse escutado o companheiro.

Arengas acendeu um cigarro e escarneceu:

– Quando um mendigo como tu entra numa casa de gente fina, tudo lhe parece estranho. Não estamos habituados a ver suspeitos de smoking, nem senhoras decoradas com sedas e jóias que até cegam de tanto brilho. Além de que cheira tudo demasiado bem. Não estás habituado, logo desconfias de todos. Agora imagina o que eles pensaram quando te viram entrar com esse sobretudo mal-amanhado, sapatos gastos e camisa com o colarinho debotado, olhos sempre a piscar como se fosses um pirilampo e esse comprimento todo que nem pareces uma pessoa.

– Gente estranha! – murmurou Simão, pensativo, recordando o rosto de cada um dos presentes.

– Seja como for, é bom que não mexas uma palha enquanto não tiveres os resultados da Toxicologia. Não se escarafuncha na vida de gente importante como se estivesses num bairro de barracas. É impossível entrar ao estalo e ao pontapé contra deputados, comandantes e legionários.

– Conheço os teus métodos, mas não os uso contra ninguém – replicou sem censura na entoação da voz.

– Fazes mal. Umas lambadas afinfadas na hora produzem milagres. Foi sempre assim, Simão. Porrada nos gajos até cagarem o que sabem e o que não sabem. Depois, logo se vê. Não há ciência nenhuma. Era assim quando entrei. Continua na mesma. Uns chapadões a preceito resolvem os crimes bem mais depressa e poupam a máquina dos miolos para coisas mais decentes do que pensar no que fazem os bandidos.

– És um velho polícia, Arengas. Mais velho do que imaginas. Ainda confundes tortura com investigação criminal.

– Tortura, não! – reagiu, categórico. – Isso é coisa da Polícia Política, que mata as pessoas à porrada porque pensam desta ou daquela maneira. Nós não perseguimos comunistas nem republicanos. Só criminosos. Ranhosos que roubam, que matam, que destroem as vidas das pessoas de bem. Era assim que antigamente se fazia investigação criminal e foi assim que aprendi com os mais velhos. Isso dos detectives à Sherlock Holmes só faz brilharetes nos romances.

– Concordo contigo. O método não é tudo.

– Tás a ver? Só um Sherlock Holmes pode abordar os Penaguião e os seus amigos da alta-roda. Tipo elegante, inteligente, bem-vestido, bom conversador. O que não é o teu caso. Olha para ti. Pareces um pau de virar tripas, usas roupas da Feira da Luz, para te fazer falar cinco minutos seguidos é preciso um esforço do cacete. Apenas te resta a mioleira. Lá isso, é verdade. És o tipo mais esperto que conheço. Mas comparado com o Sherlock Holmes não há meio litro de detective dentro de ti. És um quartilho. Um punhado. Sei lá, cem gramas de detective. Ainda por cima, és contra ir às trombas dos bandidos. É um aviso de amigo. Estás a querer embirrar com moinantes que são tu cá, tu lá com o Botas, com o António Ferro, com o Botelho Moniz, com o chefão da PVDE, o Agostinho Lourenço. Vai correr-te mal a vida. – Para estancar a sucessão de nomes, Arengas soltou um assobio para terminar com o epílogo mais negro: – Armas-te em atrevido e o pessoal da Polícia do Carolino abarbata--te em menos de um ai. Só de imaginar os tipos a filarem-te pela gola do sobretudo, fiquei seco. ­– Gritou para o Oliveira: – Ó garboso, traz aí mais um de três! – tornando a voltar-se para Simão, aconselhou com desprezo: – És filho da ilha do Grilo, bairro de pobretanas e tuberculosos, estás condenado a ser um teso para o resto da vida. És uma espécie de cordeiro, quero dizer, de cão rafeiro, que no Grilo nem cordeiros existem, a querer morder nas canelas de leões. Ganha juízo, pá! Vai lá com o doutor Belchior ouvir o Verdi e ver o Renoir. Isso não te faz mal. Nem bem. Mas não estragues o pouco que te resta de vidinha.

Simão entrou na Polícia de Investigação Criminal no ano em que foi aprovada a nova Constituição. Ainda não havia cinco anos. No mês de Março, altura em que Adolfo Hitler se tornou Chanceler na Alemanha.

Manuel Rosmaninho, seu pai, era capataz na fábrica de baquelite do engenheiro Penaguião. Pediu-lhe um empenho para o filho junto do Senhor Comandante Carolino, um dos homens que estavam a reorganizar a Polícia de Vigilância e Defesa do Estado, pois que, sendo amigos, talvez se interessasse pelo rapaz. Que fizera muitos sacrifícios para que o filho tivesse alguns estudos. O rapaz ainda concluíra o sexto ano, porém, crescera depressa durante a mocidade, deitando altura de sobra e abundante inteligência, mas tão enfezadinho, tão fraquinho de carnes, que, quem não o conhecesse, julgava-o tísico, com um pé na rua e o outro na sepultura. A magreza extrema e a altura desmedida fechavam-lhe as portas de qualquer emprego e o seu Simão tornara-se num desperdício. De tanto fugirem dele, o filho desistira. Com a morte da mãe, levada pela pneumónica quando ele só tinha doze anos, ainda se tornou mais fechado. Falava pouco. Se não o interpelassem, passava o dia a ler livros esquisitos ou, então, horas a fio especado perante quadros com pinturas ainda mais estranhas. Mas o seu rapaz não era só um montão desconjuntado de defeitos. Até a ele, que era seu pai e viviam na mesma casa, não havia dia que não o espantasse com o seu olho de lince para pormenores e uma cabeça de elefante que não esquecia nada. Recordava coisas que nem o diabo mais velho se lembrava. O defeito maior era mesmo não se dar com ninguém. Tão sisudo como uma pedra. O grande pecado era a falta de alguém que pusesse aquela cabeça a trabalhar, e como a Polícia Política, segundo se dizia, precisava de muitos miolos para defender a Nação de inimigos e traidores, era capaz de ser o sítio certo para ele. Que o senhor engenheiro sabia que poderia contar com a sua lealdade e dedicação até à morte, como sempre contara, como paga desse favorzinho.

– E política? Como é que o teu rapaz se dá com ela? – perguntou.

– Nada. Nem quer saber! – respondeu, peremptório, e acrescentou: – Peça-lhe o nome de um poeta ou de um pintor e ele responde na hora. Em palavras cruzadas não há igual e com versos até mete aflição. Sabe-os de cor. É para o que vive. Uma tristeza, senhor engenheiro. Desprezado por ser alto de mais e magro em demasia. Uma cabeça de ouro!

– Traz o rapaz para uma conversa e, se me tocar, falarei com o Carolino. Como é que se chama o teu filho?

– Simão. Simão Rosmaninho. Fico-lhe agradecido para o resto dos meus dias, senhor engenheiro – acrescentou Manuel, emocionado.

Não demorou um mês desde que decorreu esta conversa. Simão encontrara-se com o engenheiro e a conversa foi curta. Ficou com a ideia de que o rapaz era pouco despachado de língua, pois não dissera mais do que meia dúzia de monossílabos. Porém, Penaguião decidiu ajudá-lo mais por reconhecimento à dedicação do pai, que servia no grupo industrial há mais de trinta anos, do que pelas competências de Simão. Parecera-lhe uma enguia em pé, quase afogada num imenso e desajeitado sobretudo.

Certa manhã, ao entrar na fábrica de baquelite, o engenheiro chamou o capataz enquanto tirava um papel da algibeira.

– Manuel, manda amanhã o teu rapaz ir ao endereço que está neste papel e que procure pelo Coronel Carolino. Vai recebê-lo para ver o que se pode fazer. Ele garantiu-me que vai arranjar qualquer coisa.

Para infortúnio de Simão, não lhe foi reconhecida aptidão para entrar na Polícia de Vigilância e Defesa do Estado. Exigia-se cabeça e músculo aos futuros investigadores e, mais uma vez, foi repudiado pela pobreza de carnes. Porém, Carolino era amigo do seu amigo, razão que o levava a querer agradar a Álvaro Penaguião e, por acaso, até conhecia o pai de Simão.

– Aqui não te vou poder aceitar, mas falo ao Cardoso. Se ele tiver um lugar para ti na Polícia de Investigação Criminal, ficas lá. O ordenado não é a mesma coisa, mas dará para que não morras de fome, nem tenhas de ir comer à Sopa do Sidónio.

Foi assim. Andarilhando de cunha em cunha, Simão fez-se detective. Os quatro anos que haviam passado, desde essa entrevista que lhe abrira uma carreira, não tinham alterado muita coisa no seu feitio introvertido, guloso por livros, apaixonado por música e fascinado pelos pintores impressionistas. É verdade que ganhara reputação graças a vários crimes que resolvera com muita persistência e poucas palavras. O seu contributo para a descoberta dos autores do atentado contra o automóvel do Doutor Salazar garantiram-lhe o prestígio que fez decidir o seu Chefe máximo, o juiz Alves Monteiro.

– O senhor tem vocação para os homicídios. Vou colocá-lo na Brigada do José Carrascão.

O pai tinha razão. Simão era bom em pormenores e a poderosa inteligência organizava-os rapidamente, decifrando soluções com tanta evidência que o seu novo Chefe ficou impressionado ao ver Simão tornar tão simples coisas, soluções que para ele se apresentavam tão misteriosas.

– Pensas com demasiada rapidez. Não és mau rapaz, mas pensas muito rápido. Isso não faz bem à saúde. Um homem sensato, um bom detective, tem de digerir aquilo que vê e depois actuar. O pensamento é como a comida. Ou se faz uma boa digestão ou, então, os parafusos começam a afrouxar e lá se vai a saúde.

Não ligava aos vaticínios do Abóbora. Recolhia-se no silêncio e continuava, passo a passo, o mesmo caminho saboroso, que, entretanto, fora construindo como mais uma das suas paixões discretas: desvendar crimes! Regressar aos percursos de vítimas e agressores e transformar mistérios em verdades tão nuas que não existiria forma de as contradizer.

Ti Oliveira tornou a aproximar-se dos dois Agentes.

– Hoje estão de folga ou não há mais bandidos em Lisboa? – perguntou, galhofeiro.

– Queres que desamparemos a loja, não é verdade? – refilou o Arengas.

– Nem pensar. Está na hora de servir os almoços e é com prazer que vos sirvo. Hoje temos feijoada de búzios. Está no ponto.

Simão levantou-se, deixando cair algumas moedas sobre a mesa.

– Preciso de dormir. Há quase quarenta horas que não sei o que é uma cama. O Arengas trata da feijoada.

Caminhou para a porta e o taberneiro comentou:

– Nunca conheci um tipo tão alto e tão magro como este. Com ele não ia roubar figos. Os mais altos e os melhores eram todos dele.

– É gigantone, lá isso é. Já o medimos. Aquela alma está quase nos dois metros.

– Muito desengonçado – reforçou Oliveira.

– Calça o quarenta e cinco e pesa setenta quilos. É uma espécie de cana de caiar com pernas – terminou o Arengas, com uma gargalhada.

– E no serviço? Ajeita-se?

O detective mudou de semblante. Abandonou a brincadeira e com ar grave exclamou:

– Não há igual. Ainda nós estamos a olhar para a biqueira dos botins e já ele está a quilómetros.

Oliveira olhou-o, curioso.

– Estás a falar a sério? É assim tão bom?

Arengas bateu várias vezes com o indicador na cabeça.

– Para além dos olhos normais como os nossos, tem mais dois pares nos miolos. Acho que até consegue ver com o olho do cu. Não há igual. Segue o meu conselho: não te dediques à ladroagem enquanto o Simão por aqui andar. Topa-te na hora.

– Ladrão, eu? Sou um homem sério – respondeu com azedume.

– Roubas nos preços. É um começo. Um bife com um ovo por cinco tostões? Achas que somos todos ricos? Uma feijoada, quatro tostões? Isto são preços que um homem sério apresente?


VII ACTO


UMA TESTEMUNHA ESPECIAL

 

 


O jovem detective tinha outro motivo para querer ir até casa. Não era sono. Estava demasiado inquieto para conseguir dormir e a única luz que, naquele momento, poderia procurar sobre a misteriosa morte do engenheiro Penaguião encontrava-se paradoxalmente na sua residência: o seu próprio pai.

Manuel Rosmaninho era fonte de informação e tinha a certeza de que desejava tanto como ele que se fizesse justiça ao homem que fora seu patrão durante mais de vinte anos. Ele próprio sentia-se obrigado a um dever de justiça pessoal, íntimo, que não tinha expressão formal num processo-crime. Havia sido a vítima quem lhe abrira as portas para a carreira que, agora, era a sua profissão. E nunca lhe agradecera. Acomodara-se na rebeldia. Mandava a hierarquia de costumes que os humildes não se dirigiam aos poderosos sem para tal terem sido solicitados e, quando acontecia, deveriam permanecer de cabeça baixa e descoberta. Simão sentia repulsa visceral por esses métodos de auto-humilhação, que obrigavam os mais frágeis a assumir a condição de servos. Foi adiando o agradecimento até o tempo ter esfumado essa necessidade. A gratidão é efémera. Não passa de uma brisa ligeira que fugazmente cruza a memória e se dissipa num irreversível esquecimento lento.

Era, agora, um remorso em Simão. A actividade como detective reforçou a insubmissão espiritual que desenvolvera contra os senhores que legitimavam a sua autoridade no tratamento por tu a quem quer que fosse do exército dos humildes. Porém, segundo ouvia do pai, o seu patrão era um homem gentil, bondoso, longe da arrogância da aristocracia lisboeta.

Não tinha dúvidas. Resolver o homicídio era a única maneira de lhe dizer na morte aquilo que não fora capaz de fazer enquanto o seu benfeitor estava vivo. Transformar a justiça num acto supremo de gratidão.

Passou a correr pela PIC para recolher a lista de convidados. Sorrateiramente entrou no laboratório e entregou o pequeno envelope com aparas das unhas de Álvaro Penaguião e desceu o Lavra. Em passo acelerado, cruzou as Portas de Santo Antão e, no Rossio, saltou para o autocarro que o transportaria a Xabregas.

Enquanto decorria a viagem, foi consultando a lista dos convidados. Pouco lhe diziam aqueles títulos e apelidos. Para além do Coronel Carolino, ficara-lhe na cabeça uma pincelada do rosto do Comandante Alfredo Carapau, homem de visível rudeza, e de Carlos Açafrão, o médico que diagnosticara um apressado enfarte. Por certo que o pai conheceria os intervenientes ou, pelo menos, alguns deles, e havia tanta pergunta na sua cabeça que fechou os olhos para reconstituir a noite anterior, quando irrompera pelo salão.

Apesar do cerco a que fora submetido pelo Director da Polícia Política, acolitado pelo médico e pelo Comandante, não lhe passou despercebido o pranto de D. Berta, que um aflito padre Pimentinha procurava consolar, nem as filhas da vítima, cujos rostos não vira porque choravam com as mãos a cobrir as faces e os cabelos pendentes para o rosto. Havia um bêbado que alguém tratou por conde. Deveria ser o conde de Serpa, que constava daquela lista. Recordava-se ainda de uma mulher cinquentona que, indiferente à confusão, comia doces desbragadamente.

O cansaço amoleceu-lhe o corpo e não sabia se sonhara ou se eram metáforas que lhe ecoavam nos ouvidos ao reviver uma noite inesquecível que passara na casa do doutor Belchior:

– Tens de escutar uma coisa que me ofereceram. A Paixão segundo São Mateus, do Bach. É divinal, Simão. Para um rapaz como tu, sempre à espreita do que vai no São Carlos, vais ficar de boca aberta.

– Na grafonola não é a mesma coisa – retorquiu.

– É melhor do que nada. São duas horas e tal que nos levam às lágrimas. E eu, que não achava graça nenhuma ao Bach, estou rendido. É genial! No fim-de-semana vais lá. São quase três horas, mas vais agradecer a Deus que este pobre médico-legista te revele pela música aquilo que nunca encontrou na ponta do bisturi: a dimensão divina de Deus e dos anjos através dos seus apóstolos.

Chegavam-lhe os sons da abertura, com os coros duplos de apóstolos prenunciando a tragédia da Paixão, a inquietação, a angústia, a doçura trágica da música e da oratória, eram o ambiente sonoro que melhor sinalizava as emoções dos doze convivas.

Acordou sobressaltado. O autocarro chegou ao fim da linha e o revisor acordou-o com um toque no ombro. Afastou-se rapidamente do Convento do Grilo e, em passo apressado, galgou a calçada com o mesmo nome.

A «ilha» do Grilo fora arrancada da sua traça inicial em vésperas da República, cortada por travessas e novas ruas, que romperam o enorme favo, fechado sobre si, que albergava famílias vindas de todos os lados do País em demanda de trabalho. Estivadores, operários da construção civil, de indústrias que floresciam ao longo de Xabregas e para além do Beato, aguadeiros, moços de cavalariça, agregavam-se na «ilha» operária como um enxame de abelhas. Foi ali que poisou Manuel Rosmaninho, qual andorinha à procura de lugar para fazer o ninho, depois do longo voo desde a sua aldeia até Lisboa. Foi para a «ilha» do Grilo que veio Maria Carmelo quando casaram, e nasceu Simão. Na mesma casa que, ainda hoje, partilhava com o pai e para onde se dirigia, apressado.

Finalmente, chegou à Travessa do Grilo. Na pequena sala de entrada, no canto direito, havia uma pequena cozinha onde o capataz da fábrica de baquelites, armado de uma colher de pau, mexia o caldo que preparava num fogão a petróleo. Ao centro, estava uma mesa redonda com quatro cadeiras e junto à parede oposta sobrevivia um canapé e uma enorme pilha de livros e cadernos em desordem. Por cima, pendurada na parede, pendia a fotografia da mãe.

Manuel estava com ar taciturno e não escondia a tristeza.

– Sua bênção, meu pai! – saudou Simão.

– Que Deus te abençoe, meu filho. É verdade o que se diz? – perguntou.

Simão iludiu a resposta e foi directo ao assunto:

– Quem poderia querer fazer mal ao seu patrão?

Meneou a cabeça, desalentado.

– Ninguém. Era um homem bom. Ainda não estou em mim. Tens a certeza de que o mataram? Não me entra na cabeça. Não se falava de outra coisa na fábrica, mas não percebo porquê. Ninguém poderia desejar tanto mal a um homem que era de coração aberto para toda a gente. Nunca houve uma greve nas suas fábricas, mesmo no tempo da República, não devia nada a ninguém.

Suspirou pesadamente enquanto passava a mão pela testa e rematou:

– Não entendo nada disto. Ainda ontem esteve a falar comigo todo entusiasmado com uma nova máquina que tinha comprado porque é cada vez maior a procura de baquelite. E assim, de repente...

– Dava-se bem com a mulher?

– Com a Dona Berta? Claro. Quero dizer, acho que sim. É muito boa senhora. Esta tragédia deve estar a dar cabo dela, coitada.

Simão puxou do papel onde estava a lista de convidados e informou:

– Estavam no jantar o Coronel Carolino e a esposa. Uma tal Albertolina.

O pai esboçou um gesto de hesitação.

– Conheço o Coronel de vista. É um dos Directores da Polícia Política. Não sei quem é a mulher.

– O Comandante Alfredo Carapau e a esposa, que se chama Genoveva.

Manuel Rosmaninho fez um gesto de contrariedade.

– É um javardo. O verdadeiro preguiçoso. Nunca fez nada. Vive de negócios fáceis que vai arranjando. Agora tem uma frota de camiões para transportar contrabando para Espanha. Carrega toneladas de sabão numa das nossas fábricas. Diz-se fascista porque agora está na moda.

– Mas não é Comandante? – perguntou, Simão, surpreendido com tanto desprezo.

– Esse vadio bem-vestido tem mais ou menos a minha idade. Diz-se que foi Oficial da Armada, mas foi corrido, ainda no tempo do Sidónio, e não terá sido por causa da política, mas por causa de desfalque no Alfeite. A coisa não foi mais longe porque a confusão era muito grande. Muita gente com a pneumónica, os oficiais em desentendimento, depois assassinaram o Presidente e ele aproveitou a balbúrdia para se pôr ao fresco. Passou uns anos em Espanha, ao que se diz. Quando chegou a República espanhola, o Presidente Alcalá-Zamora terá conhecido o vigarista e enxotou-o para Portugal. Continua, como sempre, na alta-roda da política e dos negócios. Sempre na primeira fila a aplaudir quem tem o poder. Agora é todo fascista e apoiante incondicional de Salazar. Na verdade, não passa de um velhaco. Um gatuno bem-vestido. Só isso. – Mudou de tom quando perguntou ao filho: – Queres almoçar esta sopa que estive a fazer? Com todo este rebuliço passei o dia sem comer.

Simão acenou afirmativamente enquanto terminava os apontamentos que recolhia da conversa. Manuel Rosmaninho colocou-lhe um prato à frente e serviu-o.

– E o conde de Serpa? Conhece-o?

– Outro malandro. É bêbado de mais para ser vigarista. Estoirou a fortuna que o pai lhe deixou e só não rebentou com a da mulher por uma qualquer razão legal que ficou no testamento. – De súbito calou-se, interrompendo o movimento da colher de sopa que levava à boca, e, desconfiado, interpelou o filho: – Vieste ter comigo, porquê? Que raio de interesse podes ter nos amigos do senhor engenheiro? Foi mesmo assassinado, não é verdade?

– Esse é o problema, meu pai. Não sei!

Afastou-se da mesa para melhor fixar o rosto do detective.

– Não sabes?

– O médico diz que foi um enfarte. Mas pode não ter sido. Tenho quase a certeza de que alguém tentou, e conseguiu, envenenar o seu patrão.

O pai Rosmaninho levantou-se rapidamente da mesa, foi fechar a porta da rua e enfrentou o filho:

– Tu não podes ir apoquentar aquelas almas com essas loucuras. Nem a Dona Berta nem as meninas merecem essa desconfiança. Conheço a patroa há vinte e cinco anos e vi aquelas raparigas crescerem. É uma família como deviam ser todas. Unidos, amigos uns dos outros e, ainda por cima, boas pessoas. Peço-te por tudo que não apoquentes aquelas infelizes. É uma grande injustiça e um desgosto ainda maior saberem que a polícia desconfia de que poderiam ter assassinado o marido ou o próprio pai.

A aflição do homem era tão grande que Simão interrompeu-o, docemente.

– É exactamente para não incomodar a família que vim à sua procura. Acalme-se, por amor de Deus! Já agora, quem é que o informou da morte do senhor engenheiro?

– O médico.

– O Carlos Açafrão?

– Foi como se tivesse levado um coice de uma besta, quando atendi o telefone. Que estava a apoiar a família e que fora Dona Berta que dera ordens para que as fábricas fechassem até depois do funeral. Sem conseguir acreditar, ainda perguntei como tinha acontecido e foi quando ele falou de qualquer coisa do coração.

– O pai conhece-o?

– Não. Nunca o vi. Mas ouvi o patrão falar dele. E com boa opinião – acrescentou.

Simão voltou a olhar a lista e tornou a perguntar:

– O que sabe de um tal Gustavo Perdigoto, que é deputado?

Manuel Rosmaninho transfigurou-se e foi com rispidez que respondeu:

– A conversa acaba aqui!

– Pai?!

– Acabou! Esse Perdigoto é um abutre, um tipo sem escrúpulos, um verdadeiro canalha!

A rejeição tão brusca do pai espicaçou a curiosidade do jovem detective.

– Não percebo a razão da sua ira. Este homem estava no jantar e era amigo do seu patrão. – E com alguma ironia questionou: – Como é que um homem tão bondoso, como era o seu amigo engenheiro, podia conviver com um canalha?

Manuel respondeu com rispidez.

– Porque não pensava mal de ninguém. Esse Perdigoto é Comandante da Legião, mais salazarista do que Salazar, e ruim como uma serpente.

– O que é que ele faz para além de ser deputado?

– Nada. Diz-se que vive dos rendimentos. Não te aproximes desse animal, Simão. Leva o meu aviso a sério. Nem fales dele, nem com ele.

Aquela explosão de rancor não era habitual no seu pai. Era reconhecido como um homem de brandas palavras, até sisudo, sobretudo desde que enviuvara, incapaz de altercações ou de alimentar ódios fosse contra quem fosse. Havia naquela cólera qualquer coisa de pessoal, coisa que incentivou a curiosidade de Simão.

Dobrou o papel com a lista de convidados. Estava cansado. Havia quase dois dias que não dormia e as pernas pesavam como se fossem de chumbo. Era desmesuradamente alto e, mesmo sentado, a cabeça do pai ficava-lhe à altura dos ombros. Olhou a calvície já avançada, cruzada por vagos cabelos brancos penteados para trás, e sentiu ternura. Era uma das suas recordações de infância que na altura o impressionara, quando, numa visita à aldeia, conheceu a avó com o cabelo branco, tão branco como a neve da serra, e lhe perguntou:

– Porque é que o teu cabelo é da cor da prata?

– É que a infância é da cor do ouro e a velhice é feita de prata. Como o Sol anuncia o dia que vai começar e a Lua traz a noite e as estrelas.

O pai de Simão entrava na idade da Lua que os olhos tristes minguavam. Num gesto meigo enlaçou-lhe os ombros num abraço e murmurou:

– Desculpe se o irritei. Não falamos mais sobre este assunto.

– Não estou zangado. Trouxeste-me tristes lembranças.

Limpou uma lágrima mais descarada, que queria saltar pelo canto do olho, e começou a falar como se estivesse sozinho, cabeça enfiada entre os ombros.

– Quando há três anos houve uma grande revolta na Marinha Grande, no mês de Janeiro, a Guarda Republicana e a Polícia Política não tiveram piedade dos infelizes. Prenderam gente sem fim porque protestavam contra a fome. Como já se tornou hábito, quem protesta ou refila é comunista e a maioria nem sabe o que isso é. Alguns dos grevistas conseguiram fugir às garras das autoridades enfurecidas, escondendo-se por montes e vilas. Outros chegaram a Lisboa – suspirou profundamente como se lhe doesse um pedaço da alma. – Eu soube desses dias ruins na Marinha Grande, mas desinteressei-me de querer saber mais. É esse o maior perigo que hoje corremos e, por isso, temo por ti. Querer saber mais. Perguntar o porquê das coisas. O tempo que vivemos obriga-nos à verdade oficial, a aceitá-la como se fosse uma prenda e agradecer.

Simão estava em silêncio. Mesmo quando o pai ergueu o rosto e olhou, alheado, através da pequena janela para a outra margem do rio, por onde se estendiam os campos do Seixalinho até ao Samouco. O desabafo que escutava sabia a dor velha, a mágoas revoltadas que o capataz guardara com sofrimento.

Manuel Rosmaninho tornou a baixar a cabeça e continuou o seu monólogo.

– Já ia adiantado o mês de Fevereiro, estávamos com falta de pessoal, quando apareceu o Firmino a bater à porta. Era serralheiro e procurava trabalho. Contratei-o na hora, pois há muita falta de serralheiros. Dei-lhe uma semana à experiência, mas ao fim de três dias de trabalho já sabia o que valia. Um profissional como poucos. Era apurado, perfeito no trabalho. Disse-lhe que ficava com ele e que até, se conhecesse mais alguém que fosse mestre, que o trouxesse, pois estávamos precisados. No dia seguinte, apresentou-me o Américo. Um rapaz ainda mais novo, talvez da tua idade. Aquele par de homens foi do melhor que já vi a trabalhar o ferro. Valiam por três ou quatro, sempre disponíveis, e se fosse preciso fazerem serão não se lhes ouvia uma palavra de desagrado. Passados alguns meses, trouxeram as mulheres e os filhos e vieram para a «ilha» do Grilo, para umas casas velhas quase encostadas ao convento. Eu tornei-me amigo deles. – Voltou a parar a confissão como se precisasse de tomar fôlego.

Simão acertara. Fosse qual fosse o epílogo daquele monólogo magoado, o ressentimento do pai contra o Perdigoto legionário estava crivado de mágoa.

– Não se passaram cinco meses desde que começaram a trabalhar na fábrica. Um dia, o patrão chegou acompanhado desse filho da mãe. Era raro trazer gente que não fossem clientes ou fornecedores e logo tinha de vir com esse Gustavo Perdigoto.

– Qual foi o mal? – perguntou, surpreendido.

Manuel Rosmaninho soltou uma risada que mais parecia um ronco de desespero.

– Esse canalha é da Marinha Grande e reconheceu o Firmino e o Américo. No dia seguinte, a Polícia Política cercou a fábrica, prendeu os dois mestres e levou-os para o Governo Civil. O Perdigoto denunciou-os como fazendo parte dos revoltosos comunistas que a Guarda procurava por todo o lado.

– Eram mesmo revoltosos?

– Não sei. Nunca lhes perguntei. Eram bons profissionais e, acima de tudo, eram boas pessoas.

– O seu patrão, se quisesse, poderia tê-los safado – provocou-o Simão.

– Bem tentou. Eu sei que se esforçou.

– Como é que sabe?

– Porque o ouvi ao telefone a falar com várias pessoas sobre o caso, a pedir por eles. Foi em vão. Quando me vieram prender por ter contratado dois comunistas, o senhor engenheiro armou tal zaragata com os Agentes da PVDE que se foram embora com as mãos a abanar. Sei que chegou a falar com o Chefe dessa corja, um tal Agostinho Lourenço, e posso dizer-te que nunca o vi tão zangado. Para a Polícia Política, qualquer desgraçado que proteste por ter fome ou por não ter emprego é forçosamente comunista. Bolcheviques!, como lhe chama esse tal Perdigoto. Acusou-me de encobrir bolcheviques! – a cólera ruborizou-lhe o rosto e deu um murro na mesa quando soltou um grito surdo. – Eu nem sei o que é um bolchevique.

– Esses seus amigos ainda estão presos?

– Presos e condenados à morte, filho. Mandaram-nos, numa leva de presos, para o novo campo de concentração que o Governo abriu o ano passado no Tarrafal, em Cabo Verde. Nunca mais se soube deles. Nem as famílias tiveram qualquer notícia, e eu vivo com essa mágoa e essa revolta de deixar que levassem dois homens bons por causa da política do Perdigoto.

Simão tornou a abraçar o pai num gesto de consolo e beijou-lhe a testa.

– Vamos acabar com a conversa. Não quero que se martirize mais por causa das minhas perguntas tontas. Vou tratar da braseira, que começa a fazer frio.

Levantou-se para ir buscar o recipiente e o carvão para fazer as brasas e foi acendê-la para a rua.

A conversa que acabara de ter com Manuel Rosmaninho, ainda que não fosse tão esclarecedora quanto desejava, afastara-lhe o sono.

Porém, ouviu coisas que precisavam de respostas e multiplicavam-se perguntas na sua cabeça para encontrar um sentido para a tragédia. Era inquietante o testemunho do pai sobre alguns dos comensais que celebravam a candidatura a deputado de Álvaro Penaguião. Pareciam ser pessoas de carácter duvidoso, que contrastavam com a bondade do anfitrião. Um conde bêbado, um falso Comandante com negócios escuros, um médico que sentenciava causas de morte a olho, um Coronel da Polícia Política que queria impedir a investigação, era muito vício à mesma mesa onde se sentava o simpático Álvaro Penaguião.

Colocou um punhado de papel amarrotado no fundo da braseira e cobriu-o com carvão. Deixou cair algumas gotas de petróleo e puxou fogo ao material. As primeiras labaredas vieram altas e, momentos depois, começaram a mirrar. Com o boné desatou a abanar o carvão para reavivar as brasas. A cabeça fervia.

O exercício que se habituara a fazer traduzia-se num jogo de ficções: pensar aquilo que fora pensado pelo assassino. Descortinar e reviver na sua mente a motivação do matador, as reacções das testemunhas que se encontravam com um crime consumado enquanto conviviam com a vítima, até perceber o encadeamento da história que haveria de reconstruir. De súbito, sentiu um arrepio ao perceber que, mais uma vez, a Polícia Política se intrometia na sua história de vida, tão omnipresente que sentia a desnecessidade de Deus. O doutor Belchior era capaz de ter razão. As suas vidas estavam cercadas por muros altos encimados por sentinelas que guardavam o Regime e as almas dos seus servos. E até os seus amores.


VIII ACTO


VIOLETA, UM AMOR DESENCONTRADO

 

 


Simão vivia em silêncio um amor trágico. Uma paixão que inscrevia culpa e saudade, empurrando-o para a solidão. Violeta era a promessa e o pesadelo. A beleza que o inebriava e dilacerava. Tão perto e sempre tão longe.

Conheceu-a em circunstâncias estranhas. Nesse dia, tinha desafiado o doutor Belchior a ir assistir a uma homenagem aos criadores Amadeu de Sousa-Cardozo, Santa Rita Pintor, Mário de Sá-Carneiro e Fernando Pessoa. A exposição de pintura designava-se por «Artistas Modernos Independentes» e mostrava trabalho de vários pintores. Entre eles, de um jovem casal de quem se falava com insistência. Simão estava ansioso por ver os trabalhos de Vieira da Silva e Árpád Szenes, que integravam a mostra que se realizava na Casa Quintão, ali para os lados do Chiado. Além de Almada Negreiros, o criador que mais perturbava o detective. Escutava as exclamações embevecidas do médico-legista em adoração aos quadros que escorriam sobre as paredes quando, da rua, chegaram gritos de aflição. Depois, um tumulto de pedidos de socorro que preencheu a atmosfera, e correu a espreitar. Ao fundo da Rua Ivens, perante gente que corria desvairada aos gritos: Tem uma arma! Tem uma arma!, um homem agredia violentamente uma mulher. Estugou o passo e, já mais próximo, percebeu que a agressão era à facada. A vítima, sem forças, escorregava encostada à parede, enquanto o assassino não deixava de lhe enterrar a arma no peito e na barriga.

Simão saltou sobre ele, mas já era tarde. Um polícia de giro ajudou-o a dominar o assassino, porém, no chão, jazia ensanguentada, olhos vazios, cabelo desgrenhado, o alvo da fúria. Momentos depois chegava Belchior, ofegante, que se lançou sobre a mulher.

Tomou-lhe o pulso, depois tocou-lhe o pescoço, examinou os olhos vítreos e lentamente soergueu-se:

– Está morta!

Simão já desarmara o assassino e a chegada de mais polícias, vindos do Governo Civil, pôs termo à fúria a toque de cassetete. Foi, então, que de uma porta saiu Violeta em gritos estridentes, desfeita em lágrimas, a correr para o cadáver.

– Mãe! Ó minha mãe!

Agarrou-a antes que ela a abraçasse, procurando serená--la e sussurrou:

– Tenha calma. É preciso muita força para resistir, mas, descanse, apanhámos quem lhe fez mal.

A rapariga olhou-o, espantada, e berrou, transtornada:

– De que me vale? Ele é o meu pai!

O jovem detective não a largou. Pediu aos polícias que levassem o faquista para o Governo Civil e afastou-a carinhosamente do lugar da tragédia. Sentiu que contra si se anichava uma andorinha assustada.

Era linda! Os olhos negros de azeviche, redondos, tinham a cor dos cabelos, que agora se apresentavam numa trança enrodilhada. Estava lavada em lágrimas e soluçava. Os seios redondos, perfeitos, saltitavam a cada soluço, o corpo dorido agitado pelo desgosto.

Simão sentia as emoções baralhadas. A violência da tragédia, que não conseguira suster, atormentava-o. A beleza da rapariga perturbava-o.

– Como se chama? – perguntou.

– Violeta – respondeu num murmúrio, mitigando as lágrimas.

– Pode contar-me o que se passou entre o seu pai e a sua mãe?

Foi uma confissão de prantos. Das ininterruptas bebedeiras do pai, do álcool transformado em violência contra a infeliz, história velha que foi crescendo até ao momento das facadas. A mãe, mulher sofrida, silenciosamente humilhada, que suportava a raiva do vinho que, depois, se transformava em pedidos de perdão e juras de que nunca mais aconteceria, para voltar a acontecer com mais ódio e mais violência. De repente, lágrimas convulsivas tomaram conta da história e Violeta, envergonhada e medrosa, escondeu o rosto nas mãos.

Simão não evitou um afago de conforto. Um calor intenso subiu pelo braço do detective e viu-se forçado a resistir ao abraço que lhe apetecia dar àquela infeliz.

– Estou órfã – balbuciou em sufoco: – Fiquei sem a minha mãe e vou ficar sem o meu pai. Que mal fiz eu a Deus?

Não tinha resposta para tão terrível pergunta. A crença na racionalidade científica afastara-o das intenções do Divino. Mais do que uma presença, Deus era, para ele, uma necessidade. O clamor suplicante daqueles cuja esperança fora esmagada pelo infortúnio. Ou pelo medo.

Quando passava no Chiado procurava encontrar Violeta que, passados os dias de maior dor, se dedicara à costura, seguindo o caminho da mãe. Simão levava-lhe livros, cada vez mais enfeitiçado pela jovem menina com nome de flor. Porém, um estranho sentimento de culpa deixava-o desconfortável quando a conversa entre os dois durava mais tempo e se abriam as portas para confissões mais íntimas. Se tivesse reagido aos primeiros gritos, talvez lhe tivesse salvado a mãe e não se sentiria apenas como o carrasco que lhe enclausurou o pai. Era uma barreira que não conseguia transpor, e ela, embora não o dissesse, precisava de vencer a tristeza inicial com que o cumprimentava, recordando aquele dia trágico que trouxera Simão ao seu encontro.

No dia em que fez vinte e um anos, Simão levou-lhe um vaso com vinte e uma violetas.

Tinha os olhos vermelhos de tanto chorar. Simão ficou inquieto e perguntou:

– A chorar no dia de anos? Devia estar a festejar.

– Com quem? – perguntou a rapariga.

O rapaz ficou sem resposta, embaraçado, percebendo o sentido das lágrimas. Havia uma censura para ele naquele pranto. Naquele mesmo dia, Violeta soubera que o pai tinha sido condenado a vinte e um anos de cadeia. Exactamente a idade que ela comemorava com lágrimas.

Atabalhoado, deixou-lhe o vaso com as flores, despediu-se, atrapalhado, e caminhou, apressado, para o Chiado. Um injustificado sentimento de culpa afastava-o de Violeta. Mandava o bom senso que desistisse de procurar atenção junto dela. Entre ambos havia uma morte e um preso. Coisa ruim de esconder quando se procura o amor.


IX ACTO


UM CHEFE EM AFLIÇÕES

 

 


O Chefe Carrascão estava lívido. Cada vez que olhava para o papel que o contínuo lhe trouxera fugia-lhe a força das pernas e uma dor aguda nos intestinos impelia-o a correr para a casa de banho. Quando Simão Rosmaninho entrou na Brigada, foi quase num lamento surdo que agitou a folha na sua direcção.

– Tu és o culpado deste sarilho. Só tu e mais ninguém.

Aos gemidos do Chefe recuou um passo:

– O que fiz desta vez, Chefe?

– És um abelhudo. Um alcoviteiro! Se não metesses o nariz onde não és chamado, não tínhamos agora este problema entre mãos. Palerma! Às vezes, pareces a pessoa mais inteligente que conheci, outras vezes tenho a certeza de que nunca encontrei um palerma tão grande como tu.

Já recomposto da recepção agressiva, reparou no papel que o Chefe não parava de esgrimir e perguntou com o ar mais natural do mundo:

– É o relatório da Toxicologia. Qual foi o veneno?

– Arsénico. O homem estava intoxicado de arsénico.

– Foi aquilo que pensei – comentou com os olhos a brilharem de entusiasmo.

Subitamente, o Chefe Carrascão rugiu de cólera:

– Pensaste mal. Só um parvalhão como tu entra naquela casa cheia de ricaços e importantões sem a mínima cautela. Em vez de te submeteres à decisão do médico, decidiste acreditar mais naquilo que pareceu teres visto em vez de tomares atenção àquilo que devias ouvir. O homem declarou um enfarte. Sim, senhor, era a porra de um enfarte e acabou-se a conversa. Escrevias o auto a dizer isso mesmo – e mudou de tom para sublinhar a descrição que sugeria: – No local encontrava-se o médico fulano de tal, que declarou o óbito motivado por ataque cardíaco e o assunto estava arrumado, arquivado e ponto final!

– Dessa forma encobríamos um homicídio e deixávamos um assassino à solta – retorquiu com firmeza.

– Não te armes em esperto comigo! – gritou o Chefe.

Ficaram ambos em silêncio. Por fim, Carrascão largou o relatório em cima da secretária. Era visível o seu sofrimento. Foi quase em confissão que se dirigiu ao subalterno.

– É o que eu digo. És intelectual a mais para este ofício. Por isso, vou pedir-te um favor. Pensa devagar. Deixa--me eu perceber como vai correr esta investigação. Mas tem de ser devagar. Não podes pensar e agir com tanta velocidade que nem dou pela tua partida, nem pela tua chegada. A sério, Simão. Sou homem de poucos estudos. A minha vida é isto. Pequenina, mas satisfeita. Não quero mais nada para viver com decência. E sobretudo não quero problemas. A vida ensinou-me que o melhor profissional não é aquele que descobre muitos crimes, mas aquele que não faz ondas.

– Aconselha-me a estar quieto.

– Aconselho-te a não te meteres com gente que pode, manda e dá cabo de ti com um simples telefonema ou uma conversinha ao ouvido de quem ainda pode e manda mais. Não valemos nada, Simão. Nada!

– Somos pagos para investigar crimes.

Carrascão soltou uma gargalhada nervosa.

– Crimes feitos por pelintras, por ranhosos que roubam a roupa de um estendal para trocar por um pedaço de pão, para prender o marido corno que deu meia dúzia de facadas na mulher, para tratar dos rufias que se matam à naifada nas tascas da cidade.

Suspirou profundamente e empurrou o processo para Simão. O Chefe sentenciou:

– Leva isso. O Arengas vai ser teu parceiro e tu vais dar-me conta de todos os passos que vais dar. Todos! Não fazes uma diligência, não tomas declarações, seja a quem for, sem o meu consentimento. Podes saber muito de livros e de música, mas de polícia sei eu. Fiz ao longo da República um curso intensivo de sobrevivência.

O Agente recolheu os papéis, folheou-os, lendo em diagonal. Não havia dúvidas de que fora envenenado com arsénico.

– Não percebo a sua irritação comigo, Chefe. Quem matou o engenheiro Penaguião poderia ter estado naquele jantar. Ou não.

Olhou em sobressalto para o rapaz.

– O que estás para aí a dizer?

– O homem não começou a ser envenenado na noite do jantar. O assassino foi premeditado e manhoso. Deu-lhe o veneno lentamente para não levantar suspeitas. Em pequenas doses, para lhe deixar o organismo fragilizado, e durante o jantar, ou ainda antes da festa, deu-lhe a machadada final.

– Como é que tu sabes isso tudo? – perguntou, perplexo.

– Só assim se explicam as listas de Mees nas unhas e o cabelo tão enfraquecido que se desprendia da cabeça com facilidade. Se tem sido autopsiado, ver-se-iam lesões nos rins, no fígado, no estômago e nos intestinos.

– Queres dizer que não o mataram durante o jantar? – inquiriu com alguma ansiedade.

– Chefe, quem matou o engenheiro Penaguião preparou--lhe a morte com semanas de antecedência. Portanto, quem esteve no jantar e não tinha contacto diário ou quase diário com ele não é suspeito.

– Queres tu dizer que o doutor Carolino não pode ser suspeito – concluiu, esperançado.

– Não sei. O arsénico é um metalóide que podemos ingerir de forma inofensiva desde que em quantidades mínimas. É essencial à vida e usado na indústria farmacêutica para fazer remédios. Só se torna num veneno potente quando é ingerido em doses anormais.

– E o que são doses anormais? Cem gramas, duzentos?

Simão dominou o riso ao escutar tal barbaridade e foi doce a responder.

– Não, Chefe. Para matar um ser humano normal, com saúde mediana e robustez física média, basta ingerir cento e quarenta a cento e cinquenta miligramas. Não chega a um grama. Nem de lá se aproxima. Dissolvido num copo de vinho ou no prato da sopa ou noutro petisco qualquer, nem se dá por ele. Ora quem o matou foi-lhe fragilizando o organismo até o liquidar.

– Quer dizer que só alguém que estivesse com ele regularmente é que pode ser o criminoso – pensou o Chefe Carrascão em voz alta.

– Quase de certeza.

Sucumbia inexoravelmente aos conhecimentos do subordinado. Depois, ficava com uma estranha sensação ambígua de enlevo e acabrunhamento, e, sem conseguir dizê-lo, tinha especial apreço por Simão. Nunca o vira beber, comia pouco, que era bem frugal a sua marmita de almoço, era visível o desconforto nas paródias que os outros colegas organizavam e nunca o vira soltar uma gargalhada. Apenas sorria, recolhido nos seus pensamentos.

– Vais começar pelos criados – disse por fim, acrescentando: – Se alguém tem acesso diário àquilo que o engenheiro bebe e come são as pessoas que trabalham na cozinha e servem à mesa. Quem sabe se não vais encontrar um comunista metido no crime.

– Um comunista? – perguntou, incrédulo.

– Escondem-se em todo o lado. Verdadeiros mascarados. Olha-se para eles e parecem borreguinhos. Esgravata-se e debaixo da pele esconde-se um lobo. Para mim são os principais suspeitos. Um homem com a categoria do engenheiro Penaguião, um cidadão ilustre do Estado Novo e da União Nacional, patrão de mais de dois mil manhosos, é a vítima ideal para esses revolucionários.

Simão não respondeu. A teoria do Chefe era uma hipótese remota. Rapidamente reviu a história da República e do Estado Novo. Incontáveis atentados, golpes militares e assassínios, porém todos construídos com armas e explosivos. Não conhecia um único caso de envenenamento político nos tempos mais recentes.

– Não sei se serão os comunistas aqueles que devemos procurar em primeiro lugar. Desde que o Chefe do partido, o Bento Gonçalves, foi deportado, o ano passado, para o Tarrafal que a organização está praticamente desfeita. Pelo menos é o que se ouve dizer.

Reagiu mal à argumentação do subordinado e retorquiu, irritado:

– Seja como for! Seja como for! Sejam comunistas, anarquistas, socialistas, católicos desencaminhados, são todos vermelhos e inimigos da Pátria. Dessa gente só podemos esperar o pior. São o piorio da raça humana, Simão!

Este meneou a cabeça num trejeito ambíguo e ripostou:

– Podem ser como o Chefe diz. Ruins como serpentes. Mas não há notícia de que todos esses inimigos usem veneno.

– Quem te disse? Pode não haver notícias, mas não significa que não os usem. Eles próprios são veneno. Vais fazer como eu te disse. Começas pelos criados que têm acesso à comida e acabou-se a conversa. Ah!, e mais uma coisa. Se suspeitares de que algum deles é vermelho, mesmo que não tenha nada a ver com o crime, avisas-me logo. Não quero ser acusado de não colaborarmos com a Polícia Política.

Não valia a pena responder. Iludiu os avisos e solicitou em tom brando:

– Farei como manda, mas, se me permite, Chefe, hoje gostaria de ir dar os meus sentimentos à viúva e às filhas do falecido. Era o patrão do meu pai e foram sempre amigos. Eu tenho esse dever para cumprir. Amanhã, então, começaria as diligências que me ordenou.

Olhou-o, desconfiado.

– Vais apresentar condolências ou meter o nariz onde não és chamado?

– Se hoje sou seu subordinado, devo-o a um pedido da vítima depois de o meu pai ter falado com o senhor engenheiro. Tenho essa dívida de gratidão para com ele.

A expressão austera de Simão convenceu-o.

– Estás autorizado, mas o Arengas vai contigo. Não precisa de dar pêsames a ninguém, mas não te vai deixar fazer disparates.

Voltou as costas a Simão, sinal de que a conversa estava terminada. O detective ainda olhou o Chefe. Sentiu compaixão por ele e saiu em silêncio levando consigo o processo--crime.

José Carrascão tornara-se num salazarista devoto. O Presidente do Conselho era o farol que guiava Portugal pelos caminhos da virtude. Um semideus cujas acções eram ditadas pelo amor à Pátria e pelo ressurgimento do País.

Esta fé levara-o às fileiras da Legião Portuguesa, a acrescentar força aos batalhões de patriotas, voluntários para morrerem pelo Estado Novo. Escutava reverencialmente o seu Comandante, Botelho Moniz, que, quando discursava, era Oliveira Salazar que falava pela sua boca. Emocionava-se, arrebatado, quando ele evocava este Portugal pequenino, ventre de um dos maiores impérios do planeta, ungido por Deus em Ourique, pequeno David que, em Aljubarrota, despedaçou Golias, o berço de Camões, o cantador dos Descobrimentos, o maior feito da Humanidade, em que nascera, em terras simples beirãs, o génio que despertava a mais nobre Alma Portuguesa. Esse génio era Salazar, por três vezes Salazar, o arauto de voz doce e firme, pertença das famílias mais humildes, que ensinava o rumo, calando pela força da razão a força bruta de revolucionários e revoltados. Ele era o guardião deste povo valente, guiando-o por mares calmos quando estávamos cercados de tempestades. Bastava olhar para o lado e ver a tragédia que varria a Espanha, da Galiza à Catalunha. As águas dos grandes rios entravam em Portugal turvas de tanto sangue derramado pelas hordas de combatentes enlouquecidos.

O Chefe Carrascão aconchegava-se nesta crença singela. Não perturbar o sistema nervoso do Estado Novo, mantê-lo manso, na paz quieta que só se percebe quando se passeia num cemitério. Sem sofrer qualquer incómodo ou beliscadura e permitindo a Salazar reescrever o destino de Portugal, devolvendo-lhe a glória assassinada por revolucionários rancorosos que haviam transformado o sonho republicano no pior dos pesadelos.

O seu subordinado não tinha consciência da meiguice com que se deveria tratar o Regime. Divagava. Era-lhe indiferente o destino da Pátria. Não sabia venerar os pilares da política, navegando pelas nuvens feitas de amores e entusiasmos fantásticos. Na verdade, era por esses trilhos das coisas de inventar que Simão caminhava naquele momento enquanto esperava pelo seu colega Arengas.

Havia qualquer coisa de shakespeariano naquele homicídio. Quem teria oferecido ao engenheiro Álvaro Penaguião a taça destinada a Hamlet? Haveria em comum com o rei da Dinamarca a mesma paixão pelo poder como móbil do crime? Ou seria outra paixão, bem mais carnal, que atirou o deputado definitivamente adiado para os braços da morte? A cabeça fervilhava de perguntas sem respostas quando Arengas entrou na sala. Vinha maldisposto.

– Já me lixaste com esta história do engenheiro. O Chefe ordenou-me que fosse a tua dama de companhia. Meter-te juízo na cabeça, se entrares em delírio enquanto o caso não estiver resolvido. Porra, pá! Também tenho a minha vida, os meus processos.

– As tuas namoradas – completou Simão, com ironia.

– Qual é o mal? – protestou o colega. – Gosto de gajas, o queé que tu queres? Gosto de bola e de beber uns copos, o que é que tu queres? Não sou como tu, que nasceste para frade. És um erro da Natureza, pá! Hei-de morrer sem descobrir como é que deixaram que um pintas como tu pudesse trabalhar nesta casa.

Não respondeu à provocação.

– Anda daí. Temos de descer o Lavra para apanharmos o autocarro para Campolide. Temos um mordomo à nossa espera.

– O que é isso? – perguntou o Arengas, surpreendido.

– Eu mostro-te quando chegarmos.

– Mas o Chefe disse-me que ias dar os pêsames à família, porque o homem era patrão do teu pai, e agora falas de um mordomo.

– É a mesma coisa, Arengas. Verás com os teus próprios olhos. Acreditas no milagre de Ourique, quando Cristo se revelou a Afonso Henriques e mandou que matasse sarracenos, apesar de o exército cristão ser em muito menor número?

– Claro que acredito. Quinhentos nunca poderiam vencer milhares de mouros sem um empurrão de Deus.

– Ainda bem que acreditas. Fico contente com a tua fé.

– Estás a gozar-me? – perguntou Arengas, desconfiado.

– Claro que não. Vais assistir a um milagre semelhante quando falarmos com o mordomo. Vai fazer-se luz sobre quem assassinou o nosso engenheiro. Anda daí!

E Simão saiu da sala sem mais delongas.


X ACTO


EM CAMPOLIDE

 

 


Gervásio recebeu-os em mangas de camisa, embora o nó da gravata preta fosse perfeito, devidamente centrado na camisa de um branco resplandecente. Sentado num banco de jardim da mansão dos Penaguião, em frente a uma mancha de margaridas e amores-perfeitos, fumava meditabundo, cabeça baixa com o olhar fixo nos sapatos. Algures, por detrás de uma fila de cedros entrecortada por arbustos, ouvia-se o gargalhar de água que brotava de uma fonte.

Esboçou um movimento para se levantar quando viu os dois Agentes a aproximarem-se. No entanto, Simão fez-lhe um sinal de aquietação e sentou-se a seu lado.

– Desculpe entrarmos sem avisar, mas o portão estava aberto e...

– Eu sei – cortou Gervásio explicando a situação: – A senhora e as meninas estão a receber amigos que vêm dar os sentimentos e consolar as pobres criaturas. Tem vindo tanta gente que decidi abrir a casa.

Na verdade, pela alameda principal que dava directamente para a imponente residência cruzavam-se dois casais vestidos de luto, taciturnos, compenetrados do doloroso momento que ali se vivia. Simão reconheceu um dos homens. O engenheiro Duarte Pacheco que, até há pouco tempo, tinha sido ministro das Obras Públicas.

– O senhor como está? – perguntou delicadamente o jovem detective.

– Ainda não acredito. Passei, não sei já quantos anos, aqui. A falar com ele todos os dias. De coisas importantes e de outras sem importância nenhuma. De repente, tudo se esfuma. Ainda por cima, correndo o boato que não foi morte acidental.

Arengas olhou-o, surpreendido, e não resistiu:

– Quem foi a gralha que grasnou essa notícia?

– Foi nos Prazeres que a ouvi pela primeira vez. Durante o funeral. A senhora Dona Albertolina contou à patroa e a infeliz não aguentou a notícia. Foram necessários dois médicos para a acordarem do desmaio.

– As mulheres são umas coscuvilheiras do cacete! Como é que essa Albertolina sabia do boato? Que merda de momento para dar uma notícia tão ruim a uma viúva. No funeral do marido! Ela há cada cabra.

Simão olhou friamente para Arengas impondo silêncio. Não tinha dúvidas de como a indicação chegara aos ouvidos dela. Era a esposa do Coronel Carolino e era capaz de jurar que fora o seu próprio Chefe que telefonara ao Director da Polícia Política dando-lhe conta dos resultados dos exames de Toxicologia.

– Ficou surpreendido com esse boato, como você lhe chamou? – perguntou Simão.

O mordomo aspirou o resto do cigarro e apagou a beata com a biqueira do sapato antes de responder.

– Se o meu patrão, que Deus haja, tinha defeitos, um deles era ser ingénuo. Nem parecia ser um homem de cinquenta anos com tanta responsabilidade sobre os ombros.

– Ingénuo? – perguntou o Arengas, desconfiado. Num gesto que abarcava o jardim e o solar, contradisse: – Um tipo que é dono de um palacete deste tamanho, de certeza que não fez fortuna sendo ingénuo. Não conheço nenhum pintas que seja rico que também não seja um manhoso.

Gervásio esboçou um sorriso triste e comentou enigmático:

– Ao senhor engenheiro Penaguião não se aplicava esse aforismo do «diz-me com quem andas, dir-te-ei quem és». Não havia maldade naquele homem. Sempre disposto a ajudar, sempre dedicado ao trabalho e à família. Preocupava--se com toda a gente e não via defeitos em ninguém. Nem naqueles que eram só defeitos sem uma única virtude.

Gervásio corroborava a opinião que o pai de Simão tinha sobre o patrão de ambos. Ele próprio era testemunha da sua disponibilidade para ajudar quem precisava quando lhe abriu as portas para chegar a investigador da Polícia de Investigação Criminal.

O mordomo deveria ter a mesma idade de Álvaro Penaguião. Magro, cabelos grisalhos, nariz adunco, gestos delicados. Respirava tristeza e era visível o luto na sua expressão cansada.

– Há quantos anos trabalha para esta família? – quis saber o Arengas.

– É uma longa história. Fui Chefe de Sala do vapor Aquitânia, um dos grandes navios que se fez ao mar depois da tragédia do Titanic. Tínhamos uma rota para o Rio de Janeiro que fazia escala em Lisboa. Foi numa dessas viagens que o vi pela primeira vez no salão de jantar da primeira classe. Ficou encantado ao saber que na tripulação havia um português e procurava sempre meter conversa quando eram servidas as refeições.

– Como é que chegou a Chefe de Sala de um navio inglês tão importante como o Aquitânia? – perguntou Simão com visível entusiasmo.

Gervásio encolheu os ombros com indiferença, como se tal estatuto não lhe merecesse consideração.

– O meu pai emigrou para Inglaterra em mil novecentos e dez. Era um monárquico dos quatro costados e a República não lhe calhava. Pegou na família, na minha mãe, na minha irmã e em mim e lá fomos. Na altura, a White Star procurava caldeireiros. Era o seu ofício e arranjou logo emprego. – Fez uma pausa para acender outro cigarro, expeliu o fumo longamente e com gravidade continuou: – Trabalhava no inferno. Os altos-fornos e as temperaturas para derreter metais desfaziam os pulmões daqueles que, como ele, ali trabalhavam. Eu tinha quinze anos e fui servir à mesa num restaurante em Leicester Square. Catorze horas por dia e sem folgas. O infeliz do meu pai sofria por ele e por mim. Aceitava ser escravo para proteger a família, mas era-lhe doloroso ver os seus em sofrimento.

Simão escutava a história de Gervásio sem perder de vista a alameda onde chegavam e partiam homens e mulheres que apresentavam condolências. Procurava decorar rostos, identificar alguém mais conhecido, decifrar os estados de espírito de cada um que passava.

– Quando o navio foi equipado, o meu pai conseguiu, através do engenheiro que era seu chefe, que eu fosse para a primeira tripulação do Aquitânia. Comecei por trabalhar no refeitório da terceira classe. Servíamos milhares de refeições entre almoços e jantares. Era ainda trabalho escravo, mas mais bem pago, e o Oficial que dirigia os restaurantes gostava da minha forma de trabalhar. Foi numa viagem para Nova Iorque que tudo aconteceu. O Chefe de Sala da primeira classe adoeceu gravemente, a tuberculose estava a dar cabo dele, e ficou num hospital quando zarpámos para Londres. Nunca mais voltaria a embarcar pois morreu dias depois. Foi então que o Oficial me chamou à experiência para Chefe de Sala. – Foi com o olhar embaciado de tristeza que rematou: – Desgraçadamente, o meu pobre pai já não soube da minha promoção. O fogo das caldeiras queimara-o todo por dentro e fora sepultado dias antes de atracarmos em Londres. – O olhar ficou pregado ao chão. Quando um homem entra em luto, regressam os lutos de outros tempos. As mágoas reencontram-se, associando memórias de todas as dores. Por fim, explicou: – Pouco tempo depois, deixei o Aquitânia para vir trabalhar com o senhor engenheiro, aceitando um antigo convite. Trouxe a minha mãe para Lisboa, a sua grande saudade, e aqui se finou com tuberculose vai para dois anos.

Simão atalhou o monólogo:

– Senhor Gervásio, foi você que telefonou para o Piquete da Polícia? Viu alguma coisa de estranho?

A pergunta ficou sem resposta. Subitamente, perdeu a postura descontraída, vestindo o casaco à pressa.

– Não posso continuar esta conversa. Tenho que fazer. Com a vossa licença.

Afastou-se rapidamente e Arengas, sem perceber a mudança de comportamento, perguntou:

– Que bicho mordeu no homem? Estava tão bem e, de repente, avariou-se-lhe a mona?

Foi então que Simão reparou na figura arrastada de quem se dirigia à mansão.

– Aquele é que é o padre Pimentinha.

Arengas observou-o com atenção. Anafado, rosto roxo do excesso de bebida, usava óculos que mais pareciam os fundos de garrafas, cara de lua cheia e uma batina que disfarçava a enorme pança.

– O Gervásio tem medo do padre! – sentenciou.

– Ou tem medo que o padre o veja a falar connosco. Fica por aqui que também vou dar os sentimentos à família.

– Tu??? Vais coscuvilhar. O que é que eu digo ao Chefe? – perguntou, maldisposto.

– Dizes a verdade.

Arengas soltou uma gargalhada.

– És mesmo manhoso. Nunca conheci um cabrão tão manhoso como tu. Aproveitas a cena para ires cheirar. Vais cheirar o assassino, não vais? Logo tu preocupado com condolências. E eu fico aqui a fazer o quê? Figura de parvo?

Simão já não o ouviu, dirigindo-se em passo largo para o palacete. Ou fingiu que não ouviu.

O salão para onde eram encaminhados os visitantes estava cheio de gente e o ambiente era pesado. Quase solene. Reparou que todos os homens usavam gravata preta e fechou a gola do sovado sobretudo, escondendo o pescoço. A família recebia os pêsames numa saleta contígua. A maioria das pessoas que falava em surdina tinha acabado de cumprimentar D. Berta e as filhas, pois Simão reparou numa fila que se formava em volta do salão para ir cumprir o dever lutuoso. Procurou lugar no cordão que avançava lentamente e percebeu um estranho sentimento. A morte tinha uma singularidade paradoxal. Juntava mãos cheias de vivos para manifestar afectos, ou respeito, a quem já não os podia sentir nem agradecer. Era evidente para ele que aquela imensa procissão de rostos fechados, exaltando as qualidades do desaparecido, procuravam muito mais exorcizar o medo de cada um para enfrentar o seu dia e a sua hora inscritos na incerteza que o futuro encerra. Talvez fosse a negação dessa certeza tão certa que levava o deputado Gustavo Perdigoto a falar, numa excitação fora do comum para aquele momento, com um indivíduo atarracado e o detective, aparentemente alheado, cabeça baixa, registou cada naco de conversa conforme a fila vagarosamente progredia.

– Eu estava no jantar. Oh, senhor doutor, nunca vi uma coisa assim. Cinco minutos antes a falar, bem-disposto, connosco e, de repente, dá-se o caso. Não sei explicar. Ninguém sabe. Há duas noites que não prego olho. Duas noites!

– Uma perda terrível. Terrível! – lamentava o interlocutor.

– A coisa deu-se em menos de cinco minutos. Não se percebe. Há duas noites que não prego olho. Duas noites! – teimava o deputado.

Três passos à frente, era o enorme e brutal Comandante Carapau que desabafava com dois sujeitos de aspecto distinto, sisudos, que Simão seria capaz de jurar que estavam ligados ao Governo de alguma forma.

– Uma porra, Excelências. Uma grande porra! Não acredito nessa fábula do veneno. A vida do Álvaro é que o envenenou. Trabalho a mais, duas filhas estouvadas, putas como as galinhas, que só lhe davam desgostos. Uma grande porra, Excelências!

Ainda ouviu um dos ouvintes perguntar:

– As filhas do senhor engenheiro são assim tão levianas?

Carapau esbugalhou os olhos inchados de indignação.

– Dançam o charlestone, homem de Deus!!! Vestem aquelas roupas modernas, que usam lá para Paris, onde se vêem as pernas e as mamas, cheias de brilhantes, plumas na cabeça. Isto não é coisa de putedo?

Mais adiante, sentadas num canapé, visivelmente agastadas, D. Genoveva e D. Albertolina, coscuvilhavam a meia--voz.

– Espero bem que não me venham incomodar com essa história do veneno. Deus me livre! Só de pensar nisso toda eu tremo. Já imaginou se o assassino se tem enganado e posto no nosso copo ou no nosso prato aquela mistela? Éramos nós que estávamos estendidas. Uma coisa lhe digo. Nesta casa nunca mais como. Nem um rebuçado. Agora só faltava que me viessem importunar por coisa tão desagradável.

– O meu marido já falou com o Director da Polícia. Nem pense, Genoveva. O meu marido foi claro. Quem fez mal que pague, mas que não persigam os justos em vez dos pecadores.

A esposa do Comandante Carapau baixou a tonalidade da voz que, ainda assim, era perceptível por quem passava perto.

– Terá sido a Berta? Aquela sonsinha, sempre de sorrisinho, faria mal ao infeliz do marido que lhe dá todo este luxo?

Albertolina contrapôs a sua teoria com convicção venenosa.

– Cá para mim, ou foi ela ou foram as filhas. Nem uma nem outra conseguem olhar para um par de calças de homem sem abrirem logo as pernas.

– O meu marido diz que elas só não são matriculadas por serem filhas de quem são. Umas galdérias! – rematou Genoveva enquanto abria o leque e o abanava com energia.

O lento avanço da fila de pêsames estava a revelar-se uma grande fonte de informações para Simão que, agora, se aproximava de Egídio, Director do Adamastor, o qual argumentava com um indivíduo alto, esguio, qual enguia com cabelo, com olhos de pargo.

– Tem alguma dúvida de que isto foi obra de um bolchevique?

– Um comunista nesta casa? Duvido.

– Qual é o lugar onde não os há, senhor Comendador? Escondem-se como ratos, mas estão espalhados por todo o lado, lá isso... – soltou um riso fininho antes de continuar: – São como os percevejos. Uma praga!

– Quanto à praga, estamos de acordo. São uma ameaça constante a qualquer país. Basta olhar para a desgraça que vai mesmo aqui ao pé de nós. Puseram a Espanha a ferro e fogo.

– Foi um dos criados. Vai ver. O mordomo é um tipo esquisito, muito delicado, mas também muito sabido. Não sei se não é por aí que a Polícia chega lá.

Simão aproximava-se, agora, da porta que dava acesso à saleta onde estava a família enlutada.

Cruzou-se com o conde de Serpa e a sua formosa Luísa Serpa, que saíam, crispados, sem a mulher dissimular a indignação:

– Quem se julga a ordinária da garota para se recusar a cumprimentar-me? – perguntava, espumando cólera.

O conde apertou-lhe o braço e murmurou:

– Fala baixo. Não é o momento para armar escândalo.

Luísa sacudiu a mão dele e levantou ainda mais a voz:

– Quem é que te julgas para me falares assim? Tu que não és outra coisa a não ser um escândalo?! Não me faças falar, Manuel.

Não conseguiu ouvir mais. O par afastou-se rapidamente e quem o seguia na fila empurrava-o na direcção da saleta. De súbito, Simão viu-se defronte de D. Berta e das filhas, Marta e Helena, todas vestidas de negro, sentadas num longo sofá.

De pé, no extremo mais distante da sala, o padre Pimentinha e Carlos Açafrão falavam em surdina. O médico ficou surpreendido ao ver Simão e segredou qualquer coisa ao ouvido do sacerdote. O detective fez que não percebeu e dirigiu-se à chorosa viúva.

– Sou filho do Romão Rosmaninho, um dos capatazes da fábrica de baquelites. Venho apresentar-lhes as minhas condolências, minhas senhoras.

Sussurraram um obrigada e apenas D. Berta lhe estendeu a mão com luva preta rendilhada. Quando ele se inclinou para lha beijar, ouviu-a ciciar como se falasse para si própria:

– Preciso de falar consigo. Alguém lhe entregará um bilhetinho com o dia e a hora.

Fez uma vénia discreta e afastou-se para que a fila continuasse a marcha lenta de condolências. Foi então que sentiu um forte apertão no braço. Era Carlos Açafrão que, inquisitorialmente, o puxava com firmeza para junto do padre, interpelando-o com brusquidão:

– Não tem vergonha de vir devassar um momento tão íntimo e doloroso da família com as suas tontas investigações?

– Isto não se faz, senhor Agente. Isto não se faz – corroborava o sacerdote barrigudo meneando a cabeça em jeito de censura.

Simão enfrentou-os serenamente, sacudindo a mão do médico que continuava agarrado a ele.

– Estão enganados. Sou filho de um homem que há muitos anos trabalha nas empresas do defunto e eram amigos. Um era pobre, o outro era rico, mas foram sempre amigos. Eu próprio conheci pessoalmente o senhor engenheiro Álvaro Penaguião.

– Quem é o teu pai? – quis saber o padre Pimentinha, fixando-o com maior atenção por detrás das grossas lentes.

– Manuel Rosmaninho. Agora é capataz na fábrica de baquelite.

O sacerdote mudou de atitude. Sorriu-lhe com bonomia.

– Sei quem é. Bom homem. Nunca mais foi o mesmo desde que a tua mãe morreu.

– É verdade. A pneumónica levou-a sem dar aviso – lamentou Simão.

– Leva-lhe um abraço meu! – retorquiu o padre e, com algum sarcasmo, rematou: – Não entendas mal a crispação do nosso doutor. Ficou com azia desde que um vulgar polícia trocou o enfarte, que ele decretou, por uma dose de veneno.

– Não era minha intenção ofendê-lo. É uma questão de perspectiva. Enquanto os médicos olham as pessoas indagando sinais de vida, nós estamos mais habituados a procurar os sinais de morte – tentou desculpar-se o detective.

– Nem que estivessem cinquenta colegas meus naquela sala, jamais algum deles iria suspeitar de um envenenamento impossível – reagiu o clínico.

– Impossível, porquê? – perguntou.

– Porque não estava presente qualquer pessoa que fosse capaz de tamanha maldade. Só pode ter sido um acidente.

Simão encolheu os ombros com indiferença, sem valorizar o resmungo despeitado de Carlos Açafrão. Fez uma saudação de despedida e informou-os:

– Quando estes dias de luto passarem, precisarei de falar convosco. Ficarei muito grato se me ajudarem a resolver este trágico mistério. Com a vossa licença.

Esgueirou-se por entre a multidão e foi recebido por um Arengas encolerizado, que fumava desesperadamente e disparou assim que o viu:

– Achas que sou ama-seca? Deixas-me pendurado entre esta quadrilha de gente fina, que nem um cumprimento sabe retribuir, e faz de conta que eu não existo? Desejei boa-tarde a três gajos e nenhum me respondeu. Um deles até me olhou de alto a baixo, com ar ofendido, por haver um pelintra que lhe dirigia a palavra. E eu a fazer de parvo, enquanto o menino anda a meter o nariz entre as pernas desses merdas.

– Anima-te, Arengas! Correu melhor do que eu esperava – respondeu-lhe bem-disposto, dando-lhe o braço.

– É o que tens para me dizer? – Arengas não desarmava. Afastando-se dele, continuou a zaragata: – É o que tens para me dizer? Passo mais de uma hora a fazer de conta e pedes que me anime? Que cacete, pá! Não tenho jeito para a alta sociedade. Sabes que não tenho. Sou um homem das barracas e comigo não há salamaleques. Vai a bem ou vai a mal, mais porrada, menos porrada e pouco cheiro a perfume. – De repente, parou e começou a cheirar os braços. – Estou agoniado com o cheiro a perfume. Será que estes merdas não se lavam? Terão medo do sabão azul e branco?

Simão conhecia-lhe o temperamento. Quando estava impaciente ou maldisposto, Arengas procurava o conflito e não parava de embirrar. Resolveu não lhe responder. Não abriu a boca até à paragem do autocarro em frente à Penitenciária.

Eram os únicos à espera do transporte. O jovem detective estava absorto, revivendo todas as falas e expressões que pudera apreciar, e não conseguiu evitar um sorriso quando recordou o ressabiado Carlos Açafrão. Era óbvio que procurava cair nas boas graças de uma das filhas do falecido engenheiro Penaguião. Percebera isso, logo no primeiro encontro, quando entrara no local do crime. A preocupação em estar junto ao padre, mentor espiritual da família, os telefonemas que fizera no dia anterior anunciando a morte do patriarca, o denodo com que se bateu para defender um enfarte, dando legitimidade a um acidente incontrolável e, sobretudo, o olhar felino, que os olhos verdes empolavam, como se protegesse as suas presas, faziam dele uma figura de respeito. Também Luísa Serpa e o conde de Serpa eram fonte de curiosidade que precisava urgentemente de resolver. Suspeitava dos motivos que levaram ao espectáculo de indignação que testemunhara e que tiveram como sustentação o facto de uma das filhas se recusar a cumprimentá-la.

Arengas interrompeu-lhe os pensamentos, enquanto apreciava a Penitenciária.

– Não percebo como fizeram um palácio tão bacano para encafuar manhosos. Vivem aqui dentro como lordes.

– Desconfio que não gostarias de viver como estes lordes, como tu lhes chamas. Sabes que até à chegada da República os tipos que estavam aí presos eram obrigados a usar capuz e não podiam falar com ninguém?

– A sério? Não falavam mesmo?

– Fazia parte da fardamenta do preso. Desde que foi inaugurada, em mil oitocentos e oitenta e cinco até ao fim da Monarquia, era do Regulamento da Penitenciária. Fosse qual fosse o crime.

– Porra! Se eu tivesse sido engomado nesse tempo, morria. Gosto de falar. É uma coisa que me está na massa do sangue.

– É por isso que embirras comigo?

– Não chames embirrar aos meus protestos. És um picuinhas, pá! Depois é isto. Até sabes que os presos tinham capuzes para não falarem uns com os outros. Sabes tudo, e contas-me alguma coisa? Fechas-te! Na verdade, não passas de um bengaleiro com pernas.

– O que foi agora, Arengas? Acabei de te contar uma história sobre a Penitenciária.

A exaltação do outro cresceu:

– Quero lá saber dessas patranhas! A tua cultura é isso. És sabichão de patranhas. Até sabes a data em que a prisão foi inaugurada. O que interessa? Sim, diz-me o que interessa isso? A verdade é que não te abres. Vá, diz lá: chegaste a contar-me alguma coisa sobre o que viste ou ouviste ali no casarão do morto?

– Tu não deixas. Não paras de dar à língua – protestou Simão.

Arengas ia ripostar quando, de súbito, a expressão do rosto mudou e sussurrou ao companheiro:

– Bico calado. Os tipos que estão a chegar são da PVDE. Ou muito me engano ou vêm atrás de nós. Eu conheço um deles de vista.

O jovem olhou de soslaio e reparou em dois homens, fechados sob os sobretudos, chapéus descaídos para o rosto, que se chegavam à paragem do autocarro. Não trocaram palavra. Simão sorriu. Lembrou-se de Belchior, o médico-legista. Se um fotógrafo retratasse aquele momento, dois homens da PIC e outros dois da PVDE com a Penitenciária em fundo seria, para o velho republicano, a mais ilustrativa metáfora contra Salazar e a Revolução Nacional. Polícias e muros altos celebrando o silêncio.

Não disseram palavra. Porém, a presença da Polícia Política teve o condão de calar o seu companheiro de trabalho. Soube-lhe bem a viagem mergulhado nos seus pensamentos, organizando perguntas, que lhe chegavam conforme revivia os momentos que passou na casa dos Penaguião. Nem deu pela saída dos dois homens. Arengas tocou-lhe no braço e, embora ausentes, a medo murmurou como se fossem omnipresentes.

– Saíram e não disseram nada. Um deles não tirava os olhos da gente mas saíram sem dizer um ai. Estarão a vigiar-nos? A morte do Penaguião é complicada, sim senhor. Pode ser que ainda me lixem por causa disto. Quem me manda meter com pessoas poderosas do Regime? Que mal fiz a Deus para ter um palerma como este agarrado às minhas calças? Não é justo. Passei a vida a não querer meter-me na política e, de repente, cai-me isto no colo. Por tua culpa. Por causa das tuas patranhas. O meu companheiro é o Sherlock Holmes. Não há dúvidas. Ele faz de grande detective e, quando rebentar a bernarda, quem leva com os calcantes somos os dois.

– Leste algum livro do Sherlock Holmes? – interrompeu-o inesperadamente Simão quando o autocarro embelgava em direcção a Picoas.

A pergunta apanhou-o desprevenido.

– Eu? Quer dizer, eu não li.

– Então porque falas dele?

– Falo porque na bófia toda a gente fala, olha o caraças! Um marmanjo faz um brilharete ao descobrir um crime e surgem logo meia dúzia de comentários a dizer que parece o Sherlock Holmes. Caraças, pá! Esse gajo deve ter sido um mago ou um adivinho. Um detective que não dá lambadas nos suspeitos e resolve tudo com os miolos não é deste mundo.

– Se tivesses lido o nosso grande mestre Edmond Locard, perceberias melhor tudo aquilo de que estás a chasquear. Sherlock Holmes não é deste mundo porque é uma personagem e não uma pessoa de carne e osso. Foi graças a ele que muitos Polícias começaram a perceber a diferença entre o senso comum e o conhecimento analítico – ripostou Simão.

– Sei lá quem é esse Locard. Meu mestre não foi de certeza.

– É uma pena. Se tivesses lido o ensaio Polices de Roman et de Laboratoire conhecerias melhor um e outro.

– Não tenho cabeça para ler. Fico com nervos. Depois, ninguém me paga para ler. O ordenado de merda que recebo é para prender ranhosos e não para me armar em Sherlock de meia-tigela.

Quando entraram nas instalações da Polícia, o Arengas ainda ralhava. Quando estava maldisposto era sempre assim. Procurava o conflito como um escape para a irritação.

O detective brigão era filho da Madragoa. Criado entre a Ribeira e a Lapa, roubara fruta por todos os quintais da Bica e namoriscava a eito as criadas de servir que, aos domingos, iam passear à Estrela. Era menino quando chegou a República e terminara a escola primária quando a pneumónica, a mais terrível das pestes que Lisboa conheceu, lhe levou os pais para a vala comum dos Prazeres. Arengas, nesse tempo chamava-se Carlos, ficou sem norte, vadio perdido pelas ruas da cidade, vendendo copo de água a tostão e a dois tostões a barrigada. Às escondidas das autoridades, conheceu o sexo pela primeira vez na Rua da Rosa, num primeiro andar afamado frequentado por marinheiros e fadistas de cabelo escorrido a brilhantina.

Foi seu padrinho o Caga Brinholas, que um exército desatento promoveu a Sargento da Manutenção Militar, com três garinas por conta e de súcia com a velha Alzirinha, a quem não faltava com valentes pedaços de carne, sacos de batatas e até presuntos com que desfalcava as despensas militares.

– A governanta é minha amiga. Vai-te arranjar coisa fina sem esquentamento, nem sifilítica. Vai por mim. Hoje, para comer uma rata sem ficar a pingar pus, é preciso ser quase doutor. A tia Alzirinha sabe o que escolhe.

Recebeu-os com um sorriso com dentes podres, resguardada num xaile roxo, que apenas lhe cobria os fartos ombros, e a mulher, de rosto inchado e também roxo, não andava. Os enormes pés inchados arrastavam-se com a lentidão de lesma quando os conduziu por um corredor escurecido, apenas iluminado pela vela que segura numa palmatória. Ao chegarem a uma cozinha mal iluminada, Caga Brinholas passou ao negócio, revelando o que trazia no saco.

– Trago-lhe uma dúzia de bananas que eram para um jantar de oficiais de Infantaria, duas garrafas de vinho e duas de aguardente, estes espinhaços de porco salgados. Para a semana sou capaz de lhe trazer um presunto – concluiu apoteótico.

– E este, quem é? – quis saber a velha. O hálito era azedo e a voz rouca.

– É um amigo meu. Quando estou de serviço trata do meu galinheiro e faz recados às minhas raparigas. É uma estreia, tia Alzirinha. Arranje-lhe coisa limpa que é bom rapaz.

– Não tenho nada fresco. Mas vais com a Leocádia. Está matriculada e ainda a semana passada foi à vistoria.

Estendeu-lhe uma pequena toalha e ordenou:

– Lava as partes no bidé antes de lhe tocares. – De seguida, gritou roufenha: – Leocádia!

O Caga Brinholas piscou-lhe o olho com um sorriso cúmplice e segredou:

– Não vais mal, não vais mal!

Surgiu Leocádia e o rapaz estremeceu. Deveria ter o dobro da sua idade. Saia rodada e blusa de chita. Morena. Seios que se aconchegavam nas mãos. Sorriu-lhe atrevida.

– Leva o rapaz para uma visita por conta da casa. É amigo do patrão.

Só mais tarde o jovem Carlos meditou sobre esta frase da velha. Afinal, o Caga Brinholas não era apenas um ilustre Sargento com miúdas por conta. Era proprietário de casas e de mulheres.

Nunca mais esqueceu o quarto forrado com fotografias de estrelas de cinema e foi com algum pudor que virou as costas a Chaplin, que o observava com ironia, pendurado na parede de frente para o bidé de esmalte.

Leocádia foi doce. Ofereceu-lhe a nudez, coisa rara numa visita à borla, e o aguadeiro ambulante desmaiou de prazer ainda mal a festa começara.

Desde então, Carlos não parou. Dedicou-se ao fado. Diziam-lhe que tinha jeito e cantava pelas casas de Lisboa e pelas quintas em seu redor. Quando a vida militar o chamou já era experimentado caçador de criadas de servir e costureiras. Muitas encontraram a perdição nos seus braços e foi no exército que ganhou a alcunha que nunca mais o abandonaria – o Arengas.

Simão Rosmaninho foi buscar o guarda-chuva e arrecadou alguns papéis que estavam sobre a secretária. O dia fora longo e queria falar com o pai antes de dormir sobre o que vira e ouvira naquela tarde de condolências. Arengas continuava a barafustar, enquanto enrolava um cigarro e descansava as pernas esticadas sobre o parapeito da janela:

– Vais-te embora e não me dizes nada? Em vez de me contares o que soubeste na casa dos Penaguião, embrulhas a conversa em tretas e ficas-te nas encolhas?

– Não paras de dar à língua e eu não tenho jeito para discussões – respondeu Simão.

Arengas contestou zangado:

– Não sou eu que falo muito. Tu é que não falas nada. És uma mula. Não sais daqui sem me explicares o que o teu olhar de Sherlock Holmes viu naquela casa.

Simão encostou-se à parede. Cansava-o aquela ventarola de palavras, sempre a zumbir, a zumbir, sem um minuto de pausa.

– Eu não sou o Sherlock Holmes e nem é herói pelo qual tenha grande apreço. Portanto, não me trates como se eu fosse um tonto. Nós estamos a investigar um homicídio a sério e não um crime irreal para fazer brilhar um herói inventado – respondeu com algum azedume e continuou: – Não fiz nada de especial e tu sabes. Apenas fui dar as condolências como te disse. Estou cansado, Arengas. A tua voz é como um martelo na minha cabeça. Até amanhã!

Saiu na direcção do elevador, passo apressado, ao encontro do pai e do jantar. O dia fora proveitoso, dizia para os seus botões, e a solidão ajudava-o a pensar. Ainda se cruzou com o doutor Belchior e trocaram dois dedos de conversa.

– Vais com pressa ou vais com frio? – perguntou o médico-legista.

– Com as duas coisas. E o senhor doutor? Esteve a estripar cadáveres até agora?

Belchior sorriu:

– Hoje despachei-me cedo. Vou ao São Carlos. Vou ver a Aida.

– Não estivesse tão cansado, ia consigo. Tenho uma paixão especial pelo Verdi. Bom espectáculo, doutor.

Desceu o Lavra e fez-se às Portas de Santo Antão com a cabeça a fervilhar em cogitações turbulentas. Revia os movimentos e as conversas de cada uma das criaturas e pressentia que alguns deles não eram compatíveis com os papéis que representavam, dissimulando-se em imagens atrás das quais escondiam as reais determinações.

Passou pelo Pátio do Tronco, onde Luís de Camões estivera preso, e não evitou um sorriso triste. A sua obra era, acima de tudo, um testemunho de paixão, trabalhada a cinzel com palavras precisas. Deixou uma obra imortal e mendigou e arrastou-se pelos tugúrios mais negros da cidade. Um génio mendigo. Ao contrário do alarve Comandante Carapau, que representava o lado mais negro da natureza humana, o afortunado mercador que convivia com os Penaguião. O anel denunciava as suas afeições e negócios mais misteriosos com as forças nacionalistas espanholas. Enorme, de ouro maciço, tinha incrustado o emblema da Falange espanhola e também o fato de fino recorte revelava dinheiro farto. O colar de pérolas naturais da sua Genoveva reforçava a fortuna ostentatória recolhida da frota de camiões que atravessavam a fronteira, a caminho de Salamanca, abastecendo de sabão e botins as tropas do General Moya. Compreendia, agora, os resmungos do pai, para quem Carapau era um homem sem escrúpulos.

– Capaz de tudo para ganhar dinheiro. Até de matar! – rematara das duas vezes que se falara sobre o Comandante.

Começou a chuviscar quando entrou no Rossio e Simão estugou o passo em direcção à paragem do autocarro. A praça parecia um quadro impressionista, cruzada por sombras fugidias, lampejando aos raios de luz dos candeeiros mortiços, protegidas por guarda-chuvas, apressadas, a caminho dos seus destinos.

Simão ficou a pensar que a pobreza aproximava Carlos Açafrão à onda de gente que corria sob a chuva daquele anoitecer. Usava a mesma roupa desde a noite do assassínio do engenheiro Penaguião. Um fato de lã coçado, botins descarnados, encarquilhados da velhice, e a camisa revelava sujidade junto ao pescoço. Apenas mudara de gravata. E as mãos tremelicavam, coisa estranha para quem se apresentava como médico-cirurgião. O relógio de bolso que guardava na algibeira do colete, preso por uma corrente de prata polida pelo uso, era antigo e os olhos raiados a vermelho denunciavam excessos onde o álcool ocuparia lugar central. Parecia-lhe evidente que a redobrada atenção de Açafrão para com a família tinha engatilhado um disparo ao coração de uma das filhas da vítima.

Tentou dormitar quando se sentou no autocarro que o levaria à Ilha do Grilo. Ainda reparou em dois ardinas abraçados a maços de jornais, abrigados da chuva às portas do Nicola, desiludidos. A chuva espantara os clientes dos vespertinos. Fechou os olhos, porém, as imagens da noite do assassínio cruzavam-se numa balbúrdia de expressões e conversas que espantavam o sono. Agora vinha-lhe à memória o Egídio, jornalista que vivia sob a asa protectora do engenheiro Penaguião. O fascínio libidinoso com que observava os homens escondia o seu maior segredo. Abria-se lânguido às conversas, embora os lábios finos denunciassem crueldade, e o olhar sempre orvalhado, resguardado por detrás de óculos com aro de metal, media cada homem da braguilha aos ombros. Simão sentia-o como um dos principais suspeitos do crime de Campolide. Embora não tivessem trocado palavra, pressentia um predador imprevisível.

Não conseguiu evitar um sorriso quando rememorou o deputado Peixoto. Escondia na exaltação política um temperamento servil, adulador, desvanecido por pertencer ao círculo mais próximo de amigos de Álvaro Penaguião. Havia qualquer coisa de infantil por detrás da verborreia nacionalista, capaz de se submeter a qualquer humilhação para não perder o estatuto social, que alcançara percorrendo caminhos que Simão desconhecia. Tinha o perfil do informador da Polícia Política que o seu pai lhe contara. Peixoto era uma verdadeira personagem de opereta e a persistente exaltação de Salazar, que o detective recordava de algumas colunas de opinião, assinadas pelo febril deputado no Novidades ou no Adamastor, eram de tal modo excessivas que deveriam incomodar o próprio Presidente do Conselho. Lembrava-se particularmente de uma crónica onde comparava o arquitecto do Estado Novo ao Arcanjo São Gabriel, líder dos exércitos de Deus, esmagando as forças do Mal, comandadas pelo Diabo, ou seja, a praga comunista, escrevia o fervoroso Peixoto.

Lembrou-se de Gervásio. O mordomo magoado que temia o padre Pimentinha. Não tinha dúvidas de que não contara tudo aquilo que poderia dizer. A agressividade de Arengas deixara-o timorato. Alguma coisa que viu, ou ouviu, o impelira a telefonar para o Piquete da PIC. Anotou-o mentalmente como uma das prioridades para descobrir caminhos seguros para abordar o crime.


XI ACTO


A FORÇA SEM RAZÃO

 

 


Quando Simão entrou na sala do Chefe, não lhe escapou a precipitação dele ao esconder entre os papéis um dossier com o timbre da PVDE.

Recebeu Simão com rudeza, deixando-o de mão estendida quando o ia cumprimentar e proclamou autoritário:

– Temos informações exactas, que nem merecem dúvidas, de que foi o mordomo quem envenenou o engenheiro.

– Informações exactas? O Gervásio? – perguntou Simão sem ser capaz de esconder a indignação.

– É comunista. Foi da marinha mercante e correu mundo. Antes disso, esteve envolvido em duas greves e foi identificado pela Polícia inglesa. É filho de um monárquico que fugiu do País quando foi o 5 de Outubro e foi trabalhar num estaleiro perto de Londres, como caldeireiro, e tornou-se anarquista. Também esteve envolvido em várias greves, mas já morreu. Um rufia! É sempre assim. Como diz o ditado, filho de peixe sabe nadar.

– Será escusado perguntar como obteve essa informação – comentou com algum sarcasmo e olhando para o sítio onde escondera o dossier da Polícia Política.

– Fosse quem fosse. É esse Gervásio e mais ninguém – ripostou com rispidez.

– Não faz sentido, Chefe. A Polícia Política poderá saber muito de comunistas, anarquistas, maçons, mas não sabe investigar crimes. Veja a vergonha por que passou com o esclarecimento do atentado contra o automóvel do Doutor Oliveira Salazar. São cegos. Foi o mordomo quem telefonou para o Piquete a dar conta da tragédia. Qual seria o motivo que levaria o assassino a chamar a PIC? Por ter participado numa ou duas greves em Londres, há mais de vinte anos, é forçosamente comunista? Faz sentido acusá-lo de homicídio por ser filho, segundo os seus amigos da PVDE, de um hipotético anarquista que fugiu para Londres por causa das convicções monárquicas e ter medo da República? Onde está o bom senso deste juízo? – Carrascão começava a ficar incomodado com as perguntas e Simão atacou a fundo: – Digo-lhe que, se vamos por esse caminho sem cuidar de outros aspectos, corremos o risco de ser gozados e, pior que tudo, prepare-se para as consequências desse disparate inventado pelo Coronel Carolino ou pelos seus apaniguados. Se esquecer a política e pensar como um Polícia, acha normal esta acusação?

Reagiu enervado.

– Lá estás tu a fazer perguntas parvas. É sempre a mesma merda. Não sabes que o objectivo da central comunista internacional é matar todos os patrões? Quem é que te garante que ele não recebeu ordens de cima, dos chefes vermelhos, para despachar o Penaguião?

– Envenenando-o aos poucos? Pela sua rica saúde...

– Acabou a conversa! Mandei o Arengas e o João António ir buscá-lo. Vais ver se não vai confessar.

– Vão dar-lhe uma tareia para confessar aquilo que o homem não fez. Que brutalidade tão injustificada, Chefe.

– Põe-te na alheta! – gritou Carrascão ressabiado com os comentários, acabando por rematar com raiva: – Isto é uma Polícia, não é uma igreja. Ou fala a bem ou fala a mal.

Simão abandonou a sua habitual fleuma e respondeu agressivo:

– Se fosse uma igreja ainda haveria compaixão para os torturados. Aqui, com essas atitudes, a Polícia envergonha-se a si própria e vai parindo injustiça. Como pode o senhor, tão zeloso das normas e da moralidade, submeter-se a esta vilania?

– Alheta! – berrou, já desvairado.

Simão, dominando a cólera, saiu do gabinete no mesmo momento em que Arengas e João António entravam. Entre eles, vinha um Gervásio perplexo. Já escorria sangue do nariz e da boca e Simão adivinhou o que acontecera no caminho para o Torel. Mal entraram na Sala dos Agentes, o festim continuou, atingindo o mordomo com uma saraivada de murros e pontapés. Caído no chão, o homem contorcia-se com dores, encolhido, tentando proteger-se.

Desesperado de indignação, Simão puxou Arengas pelo braço.

– Já viste o que estás a fazer? Não sentes vergonha?

– Estou a abrir um fatela, porquê? – respondeu ofegante e com sarcasmo retorquiu: – Incomoda-te? Gostas assim tanto dos vermelhos?

Simão iludiu a provocação, espetando o dedo no peito do amigo.

– Estás a espancar um inocente!

Enquanto decorria esta conversa irritada, João António continuava a pontapear Gervásio e gritava:

– Falas ou não falas, meu cabrão? Quanto mais tempo estiveres calado, mais porrada levas nessas trombas. Fala, filho da puta!

Era de mais. Impotente perante a bestialidade, saiu sem esconder a indignação. Não era a primeira vez que assistia a estes momentos de alarvidade, confissões arrancadas a murro e a pontapé, que, mais tarde, conduziam a absolvições ou à condenação de inocentes. Sabia qual era a intenção do Coronel Carolino ao manipular de forma primária o Chefe Carrascão. Pouco importava à Polícia Política que fosse preso qualquer inocente para manter intocáveis aqueles que ele queria proteger.

Deu por si a entrar n’O Ceifeiro ainda tremendo de indignação e em revolta contra o festim da barbárie. Encontrou o doutor Belchior que tomava o mata-bicho. Pediu um café e o médico, olhando-o de soslaio, diagnosticou:

– Vens irritado.

Suspirou profundamente quando se sentou na mesa do amigo. Passou a mão pelos cabelos que lhe caíam para a testa e tornou a soltar um novo suspiro. Belchior observava em silêncio, esperando que o frenesim do rapaz apaziguasse.

Só após bebericar o primeiro gole de café conseguiu abrir a boca para se lamentar:

– Sessenta anos depois, Antero de Quental continua a estar tão actual como nos tempos das Conferências do Casino. Continuamos a ser o mesmo País atrasado, deprimido, ignorante, que a História desprezou. Estamos condenados à escuridão do espírito.

O médico-legista tentou ironizar:

– Há alguma razão especial para citares o poeta filósofo a esta hora da manhã ou foi apenas um pretensioso ataque de erudição?

– Antes fosse.

Estava visivelmente magoado. O médico deixou-o tomar o resto da bebida sem mais conversa. Gostava de Simão. Desde que ele lhe surgira, pela primeira vez, na morgue, observando a autópsia que estava a fazer e ele se desfazia em perguntas. Uma espécie de fome de saber como se precisasse de saciar a memória. Chamou-lhe a atenção esta inquietação intelectual do jovem detective e, para sua surpresa, veio a descobrir que estava perante uma inteligência aguda, bem distante do grupo de pessoas com quem o médico se relacionava.

– Tenho o homicídio do engenheiro Penaguião entre mãos. É um verdadeiro mistério que envolve gente com influência política e económica. Não existem, até agora, suspeitas sérias contra ninguém. Surgem-me algumas ideias, mas nenhuma delas com grande fundamento.

Hesitou antes de prosseguir, no entanto, estava tão irritado que decidiu desabafar:

– Não devia falar sobre o caso, mas acho inacreditável aquilo que hoje se passou. Um dos directores da PVDE convenceu o meu Chefe de que o autor do crime é um infeliz que não tem nada a ver com o caso e, possivelmente, a única testemunha importante que temos.

– Há alguma razão especial para a desconfiança?

– Que será comunista. É o argumento mais fácil, mais cómodo, para encobrir o autêntico assassino. Prenderam-no! O homem está preso neste momento, a levar uma tareia mestra, acusado nem se sabe do quê. Ou, pelo menos, eu não sei. – Endireitou-se na cadeira revoltado. – Não tem lógica. O crime ocorreu no final de um jantar onde estavam cerca de uma dezena de pessoas. Este era o mordomo. O único que decidiu chamar a Polícia, enquanto o auditório se conformava com uma declaração de enfarte do miocárdio emitida por um colega seu completamente bêbado.

Belchior deixou escapar uma gargalhada.

– Os médicos também se embebedam.

– O senhor acha graça? – perguntou, desconfiado.

– És um ingénuo, meu caro Simão. Um ingénuo! – proclamou depois de emborcar o que restava no copo do mata--bicho. Agitou o copo na direcção de Oliveira pedindo mais vinho. – Vou contar-te uma história que se passou com um dos meus tios, já velhote, que precisa de trabalhar. É calceteiro. – O médico acendeu o cachimbo, puxou duas baforadas de fumo e continuou: – Há três meses, foi para a praça de trabalho, em Alcácer do Sal, à espera de capataz, feitor ou patrão que o contratasse. Enquanto por ali andava, pediu tabaco a um outro companheiro de infortúnio. Não tinha e o meu tio desabafou: que raio de terra será esta que um pobre não consegue arranjar uns vinténs para comprar uma onça de tabaco? Foi o suficiente. Não reparou que andava por perto um bufo da Polícia Política. – Tornou à cachimbada e concluiu: – Meia hora depois, a Guarda Republicana estava a prendê-lo e mandaram-no para o Aljube. Ainda lá está. Sabes qual é a acusação? O meu tio é comunista.

– Está a falar a sério? – perguntou Simão, duvidoso. A expressão grave do tanatologista desfez-lhe as dúvidas.

– Todas as semanas vou lá vê-lo e levar-lhe tabaco. Pelo menos, não mendiga para fazer um cigarro e não terá mais desabafos como aquele que o levou à prisão.

Por momentos não conseguiram trocar palavra, ensimesmados nos seus pensamentos. Simão levantou-se, deixando uma moeda sobre a mesa, e lamentou-se amargurado:

– Raio de País!

– Raio de política! – emendou Belchior.

Quando chegou à Brigada, sentiu um choque tal foi a surpresa.

Diante do Chefe Carrascão estava D. Berta, acompanhada de um indivíduo que supôs ser um advogado, que zurzia sem piedade. O Abóbora, já de gravata e colarinho aberto, transpirava, aflito, sem conseguir arranjar resposta conveniente ao ataque que estava a sofrer.

– Com o devido respeito a Vossa Excelência, foi um vosso amigo, quer dizer, soubemos e tivemos informações, isto é...

Berta interrompeu-o ainda mais exaltada.

– Não me venha falar dos amigos do meu defunto marido! Conheço-os como o senhor não conhece e sei a massa com que foi feito cada um. A começar pelo Carolino, que vê fantasmas e tem alucinações. Portanto, acabou-se a conversa e fica a saber o seguinte: ou levo daqui o meu mordomo a bem ou o senhor, o Carolino e companhia vão prestar contas ao Presidente da Relação de Lisboa, que, por acaso, também é nosso amigo. O senhor escolhe e é já!

Carrascão transpirava e a cordata senhora transformara--se numa autêntica fera. Ainda tentou esboçar um último argumento.

– Ele tem ligações perigosas e...

Ela não lhe deu tréguas.

– Aquilo que sei sobre o Gervásio é bem diferente das suas invenções ou informações, seja lá o que for, que o tonto do Carolino lhe passa. Há anos que o infeliz que prenderam vive com a nossa família, ajudou a criar as nossas filhas, foi sempre de uma dedicação incomparável, de uma educação invulgar, bem maior do que aquela que vejo nesta casa.

– Pois, mas o senhor Coronel Carolino...

– O senhor acredita nas patranhas desse pateta? – gritou ela, furiosa.

– Minha senhora, estamos a falar de um alto funcionário da...

– Está a falar de um pateta, que inventa inimigos porque não tem mais nada para fazer, e fica por demonstrar qual a razão por que devo acreditar que não existem altos funcionários do Estado que não são estúpidos.

– Oh, minha senhora! Oh, minha senhora!... – Murmurou visivelmente abatido deixando-se escorregar pela cadeira.

Ela reagiu com mais bravura:

– Chega! Diga-me de uma vez se o meu mordomo vai ou não vai comigo. Não tenho cabeça para esta conversa.

Foi Simão quem acorreu ao desfeito Carrascão.

– Bom dia, minha senhora. Permita que entre na conversa. Só lhe peço o favor de esperar cinco minutos para se resolver este mal-entendido. O seu advogado acompanha-a. Já vou ter consigo ao jardim.

Reconheceu o Agente e amansou. Desafiadora, abriu as mãos mostrando os dedos.

– Cinco minutos! – e escapou-se em passo decidido com o advogado atrás.

Mal a viúva desapareceu, sentiu a mão firme de Arengas a agarrar-lhe o braço.

– Tu não vais levar o pintas à patroa. Está com a fronha desfeita e a camisa cheia de sangue.

Simão puxou o braço com firmeza.

– Eu trato do desgraçado. Vou lavar-lhe a cara e empresto-lhe uma camisa que guardo sempre na secretária. É a última vez, Arengas. Não voltas a fazer isto.

– Oh, pá! Eu só cumpri ordens. Quem pode, manda, quem não pode obedece – tentou desculpar-se.

– Essa é a desculpa de todos os cobardes sem dignidade. Não te desculpes e faz um jeito a ti próprio, pensando pela tua cabeça. Vai tratar do Chefe, se faz favor.

– Do Chefe? Eu? – perguntou sem perceber.

– Cheira mal que tresanda no seu gabinete.

– Está cagado?

– Tu verás. Vocês são gémeos nas desculpas. Ambos cumprem ordens – atirou irritado.


XII ACTO


SIMÃO INVESTIGA

 

 


Ao contrário do que julgavam os seus colegas, Sherlock Holmes não era o ídolo de Simão. Os raciocínios espectaculares fundamentavam-se na lógica, num empirismo dedutivo, em artifícios. Falava de ciência e, no entanto, desprezava-a. Não se interessava pelas impressões digitais, as suas célebres aventuras revelavam uma grande sobranceria no que respeitava à medicina legal. O cadáver, para ele, não era um objecto científico. Não passava de um simples olhar. Demonstrava por palavras, indiferente à prova testada pela ciência. Esta era a verdadeira crença de Simão Rosmaninho. Reconstruir o passado como se fosse uma estrada sinalizada, demonstrar a relação entre crime e criminoso pela palavra e pela perícia decisiva do laboratório.

Entregou a D. Berta um mordomo visivelmente alquebrado.

– O que poderei fazer para, de alguma forma, reparar este desastrado acontecimento? – perguntou em jeito de desculpa.

– Descubra quem matou o meu marido. Foi o que pedi no bilhete que lhe entreguei – respondeu a viúva com firmeza.

– Vou descobrir.

Entregou-lhe a lista das pessoas presentes no jantar.

– Agradecia-lhe que fizesse um desenho com a disposição dos seus familiares e convidados – pediu Simão.

Observou o papel. A seguir fixou-o com atenção e perguntou:

– Acha que o assassino estava sentado à nossa mesa?

Gervásio, ao escutar a pergunta, ficou atento às palavras que o detective ia proferir. Não passou despercebido a Simão, que abanou a cabeça num gesto vago.

– Peço-lhe desculpa, mas não lhe posso responder. Não uso os métodos que magoaram o seu mordomo, no entanto, tenho algum desprezo sobre as minhas próprias suspeitas. A verdade precisa de prova. Não é um simples enunciado.

A mulher não respondeu. Fez sinal ao motorista de um Buick, que estava estacionado um pouco atrás. O automóvel aproximou-se e o advogado encaminhou o infeliz Gervásio para os bancos traseiros. D. Berta sentou-se no banco dianteiro e o carro partiu. Ficou a observá-lo até desaparecer no Campo de Santana e deu consigo a pensar que, afinal, Berta Penaguião era uma mulher de fibra. Não era qualquer pessoa que enfrentava com tanta firmeza um Chefe de Brigada, arrasando-o ao ponto de lhe provocar um ataque de pânico. Lembrou-se de Belchior e das suas profecias. O poder dominante estava a enclausurar as pessoas em territórios de medo, deixando-as desconfiadas, pressentindo os passos vigiados, atentas ao rumor de uma autoridade omnipresente que se revelaria, a qualquer momento, nos guardas pretorianos da Polícia Política ou na voz de mando, como agora acontecera com Berta Penaguião, levando o Chefe ao descontrolo, desejoso de mostrar quanto era submisso.

Os pensamentos de Simão foram interrompidos por Arengas que se aproximava, de riso aberto, conciliatório.

– O Abóbora teve de ir a casa mudar de roupa.

– É preferível mudar de roupa do que espancar um inocente. Deverias também ir a casa para lavar a alma.

O sorriso mirrou.

– Aquilo é trabalho, não é tortura – respondeu maldisposto.

– Dizes sempre a mesma coisa. Aquilo, como tu lhe chamas, é uma vergonha – censurou Simão.

A irritação de Arengas caminhava para uma discussão acesa.

– Não me lixes, Simão! – retorquiu, exaltado, e explicou: – O Chefe disse: vão buscar este caramelo porque matou o engenheiro e façam-no confessar. Fui com o João António. A primeira coisa que nos disse é que era inocente, portanto, começou logo a levar nas trombas.

– Apenas porque reclamou inocência?!

– Já ouviste algum manhoso dizer outra coisa quando é engomado? Como diz o João António, são todos inocentes quando nós sabemos que são todos culpados até prova em contrário. É necessária muita lambada até confessarem. É dos livros. Soltou outra gargalhada bem-disposta antes de rematar: – Só o Abóbora não precisa de porrada para se cagar de medo. Ainda por cima de uma mulher. Não achas graça?

– Não. Não acho – respondeu Simão com frieza.

Arengas deixou-se cair no banco de jardim, visivelmente amuado. Começou a enrolar um cigarro e disparou:

– É por estas e por outras que ninguém quer trabalhar contigo. Ninguém suporta esse teu ar de lombriga presunçosa, um esticadinho que nem uma gaja consegue arranjar, um galho de videira que não acha graça a nada.

Decidiu que não lhe respondia. Não haveria palavras suficientes para mudar o pensar, nem o agir de Arengas, formado na velha tradição inquisitorial que a PIC herdara de todas as práticas ancestrais, incapaz de perceber a nova idade que aceleradamente estava a chegar.

– Vou trabalhar – respondeu, lacónio, virou costas e afastou-se. Ainda ouviu Arengas a refilar contra o seu mau feitio, mas fez-se de surdo. Precisava de ir à Sociedade de Geografia.

Desceu o labirinto de escadas, entrou na tasca do Galego para comprar uma onça de tabaco e meteu-se à rua. Uma mula atrelada ao carro de um leiteiro inquietou-se quando Simão passou por ela, obrigando o dono, que vendia quartilhos de leite de porta em porta, a acudir para amansar o animal assustado.

Pelo outro lado da rua, em sentido contrário, caminhava uma varina que lhe gritou:

– Oh, freguês, olhe para estas pescadinhas lindas!

Disse não com um sorriso e desviou-se de um grupo de homens que jogava à malha na rampa do Coliseu.

A solenidade do salão de entrada fê-lo, num impulso, levar a mão à cabeça para alinhar o cabelo e depois endireitar o nó da gravata. Um homem de aspecto distinto, cabelo alisado a brilhantina, gestos delicados, vestido de smoking, aproximou-se em passo silencioso.

– Não leve a mal, mas esta casa é para sócios – começou por dizer ao mesmo tempo que o porteiro se aproximava com ar de poucos amigos.

– Eu sei, eu sei. Peço desculpa pelo incómodo. Sou da Polícia. Apenas desejava fazer umas perguntas sobre um dos vossos associados que foi assassinado há poucos dias.

O seu interlocutor observou-o com surpresa. Ficara impressionado com aquela figura tão alta e de tão grande magreza.

– Disse que era da Polícia? – perguntou, desconfiado.

– Da PIC. Estou encarregado da investigação. Quem me poderá ajudar a esclarecer algumas dúvidas?

O homem do smoking franziu a testa, num compasso de espera, e, por fim, respondeu:

– Espere aqui um momento. Vou chamar o senhor doutor.

Afastou-se tão silenciosamente quanto chegara. Deslizava como um nenúfar sobre a corrente de um rio em direcção à escadaria que conduzia ao piso superior. Simão olhou então à sua volta, com o porteiro em vigia atenta.

A Sociedade era de uma grandeza majestática! Era uma herança que honrava Lisboa, saída dos esforços de homens ilustres, tais como Pinheiro Chagas, Sousa Martins, Leite de Vasconcelos, Teófilo Braga, erigida com o objectivo de ser o altar da Ciência. O porteiro interrompeu-lhe a observação, procurando conversa cúmplice.

– Tenho um primo na Guarda Republicana. Ainda me quis desencaminhar para ir com ele. Ná! Quando fui tropa, fartei-me de limpar cavalariças. Quando assentei praça, perguntaram-me o que fazia. Respondi que lidava com animais. Então vais para Cavalaria. Fui convencido de que me iam dar um cavalo. Deram-me uma pá e uma vassoura. Puseram-me na limpeza dos animais. Depois veio o meu primo com aquela conversa. Ná! Lá me enfiavam outra vez com as ventas numa cavalariça qualquer armado de pá e vassoura...

Calou-se subitamente. Ao cimo das escadas surgia o homem de smoking acompanhado de um outro indivíduo de sorriso largo, que se dirigiu a Simão afectuosamente.

– Meu caro senhor, tenho pena de recebê-lo nesta ilustre casa devido a tão infausto acontecimento, pois imagino estar aqui por causa do nosso infeliz amigo Álvaro Penaguião. Era um velho amigo desta Sociedade. Ambrósio Teixeira, muito prazer!

Enquanto falava, sacudia a mão do detective num cumprimento excessivamente caloroso.

– Simão Rosmaninho. Muito obrigado por me receber.

– Sabe que ainda me parece mentira. Ainda a semana passada estivemos aqui juntos várias vezes. Mas venha. Sente-se aqui comigo. Quer tomar alguma coisa?

– Água. Apenas um copo de água, se faz favor.

Ambrósio encaminhou-o para duas poltronas junto à janela. Mais adiante, dois indivíduos, com alguma idade, dedicavam-se à leitura d’O Século e do Novidades. Voltou--se para o homem de smoking e ordenou.

– Traz água e a minha garrafa. – Ambrósio tinha dois dentes de ouro e cabelo negro alisado com brilhantina. Dentes e cabelos refulgiam quando sorria ou agitava a cabeça e, como falava como se a boca fosse uma cascata turbulenta de palavras, todo ele rebrilhava. – Sabe? Quando era mais novo ainda pensei em dedicar-me às coisas do crime. Queria ser juiz. Depois cresci e, quando chegou a hora, decidi-me pela medicina. Estou satisfeito, mas ainda hoje gosto de mistérios. – Não interrompeu o monólogo quando o homem do smoking colocou sobre a mesa a garrafa de conhaque e o copo com água. – Há um ano, aceitei entrar para a direcção da Sociedade. Para além da medicina, ganhei o vício da arqueologia.

O sorriso descobriu os dentes de ouro e, outra vez, saíram chispas de luz. Simão aproveitou o momento e atirou:

– Era habitual o senhor engenheiro frequentar a Sociedade de Geografia ao final do dia, não é verdade?

Engoliu o conhaque e respondeu:

– Pelo menos duas ou três vezes por semana, não falhava. Bom homem, não desfazendo. Passava os olhos pelos jornais, dava dois dedos de conversa aos amigos e lá ia à sua vida. Nunca se perdia nos copos nem por conversa e havia uma coisa nele que me encantava: estava sempre a sorrir. Palavra de honra! Era de uma simpatia contagiante.

– Os companheiros de conversa eram sempre os mesmos?

O director Ambrósio abriu os braços ao soltar a exclamação:

– Era amigo de toda a gente!

– O Comandante Carapau era um deles?

– Sim, claro. Assim como o senhor Coronel Carolino, o senhor conde de Serpa. Convivia com toda a gente. Eu próprio tinha a honra de o considerar meu amigo.

Depois hesitou. Olhou em volta, baixou a voz e segredou cúmplice:

– O engenheiro era muito rico. O senhor Agente sabe como é. Quando cheira a dinheiro, os amigos abundam. E até falsos amigos!

Simão compreendeu o tom crítico e perguntou:

– Está a referir-se a alguém em especial?

A pergunta perturbou o doutor Ambrósio. Passou a mão pelo rosto, tornou a encher o cálice e, por fim, ciciou com algum desprezo:

– Um tal Carlos Açafrão que se diz médico.

Simão olhou-o, surpreendido.

– E não é?

– Foi. Agora é alcoólico.

– Não exerce?

– Quase nada. Depois do escândalo, só faz consultório. E pouco.

Simão reparou que o falador Ambrósio mudara bruscamente, escolhendo cautelosamente as palavras.

– Escândalo de saias? – sugeriu.

– Não. Bem mais grave. Foi em São José.

– No hospital?

Era evidente que Ambrósio tentava segurar as palavras como se, de repente, os dentes de ouro fossem um travão àquilo que hesitava em contar.

– Matou algum doente, aposto – incentivou Simão.

Destravou a língua ao sentir-se espicaçado.

– Um, não. Três em dois dias. Salvou-se porque foi na sala de operações. Apenas foi despedido e as famílias engoliram a desculpa habitual. O doente não resistiu à cirurgia. A verdade é que morreram todos por causa das bebedeiras do Açafrão. Era raro o dia em que não entrava ao serviço com um grão na asa. Um desgraçado!

– Conhece-o bem? – perguntou Simão, impressionado com a conversa.

– Conheço-o desde que fez medicina. Foi sempre muito vaidoso e gabarolas. Nós não lidávamos de perto. Eu tenho quarenta e sete e ele deve andar nos quarenta e poucos. Casou novo e teve pouca sorte. Não chegou a estar um ano casado. O tifo levou-lhe a mulher. Depois começou a beber. Perdeu a mão, mas quem o ouve falar, não o leva preso.

A história era bizarra.

– Como é que um homem com esse passado pode ser médico da família Penaguião? Pelos vistos, o falecido engenheiro tinha dinheiro para contratar os melhores entre os melhores.

A resposta de Ambrósio foi rápida.

– Sabe o que é uma lapa? Agarra-se à rocha e é um sarilho para dali a arrancar. É o caso. O engenheiro Álvaro tinha uma data de lapas agarradas a ele. O Açafrão era uma delas. Aturava-o, mas não confiava nele. Eu sou testemunha. Quando a esposa andou aflita com enxaquecas, pediu-me que a tratasse. Uma das filhas adoeceu com uma apendicite e o engenheiro aconselhou-se comigo sobre o cirurgião que haveria de resolver o problema da miúda. Uma lapa, garanto--lhe eu.

Não susteve uma risada quando entrou no sarcasmo:

– Agora não é só alcoólico. É um bêbado católico. Atrelou-se ao padre Pimentinha e correm rumores sobre fé tão repentina.

– Rumores?

– O Pimentinha tem grande influência na família e há por ali duas miúdas casadoiras. Não percebe? Diz-se que a fé dele não é em Deus. Tem uma fezada que há-de tornara casar rico!

Não controlou a gargalhada, divertido com a sua tirada.

– O doutor Açafrão é sócio da Sociedade de Geografia? – quis saber o detective, aproveitando a boa disposição do seu interlocutor.

Esboçou um gesto de repulsa.

– Não e, enquanto eu cá estiver, nem pensar! Só o vi por aqui uma vez. Veio com o falecido.

– Uma vez? Foi há muito tempo?

– Há mais ou menos um ano – respondeu e, desconfiado, perguntou: – Porque é que perguntou?

– Por nada de especial. Calhou.

Simão mordeu o lábio. Pensativo. Se fosse certeira uma das hipóteses que explorava, o seu principal suspeito estava fora do caminho. Estabelecia como uma possibilidade o engenheiro Penaguião ter sido envenenado a partir da Sociedade de Geografia. O início da conversa com Ambrósio reforçara essa possibilidade ao ver o homem do smoking colocar a garrafa sobre a mesa em vez de servir o cálice do Director. Bastava que, com regularidade, um dos amigos de fim de tarde fosse ministrando o veneno disfarçadamente enquanto davam à língua. Esta possibilidade não podia contar com o médico, pois implicava regularidade e presença recente na tertúlia de fim de tarde na Sociedade de Geografia.

Um dos velhotes que lia o jornal levantou-se fazendo um aceno de despedida a Ambrósio, que retribuiu, informando Simão:

– É o doutor Azevedo. Foi um grande mineralogista, mas a idade não perdoa. Vai ali uma grande figura desta casa.

O detective observou o passo lento do ancião rumo à saída e o homem do smoking correu a abrir-lhe a porta.

– O senhor deputado Gustavo Peixoto costumava juntar--se ao grupo dos fins de tarde?

O sorriso tornou a iluminar-se com lampejos de ouro.

– É um pobre diabo! Eu conheço-o, mas também não é sócio. Não tem categoria. Por causa da dedicação ao Professor Salazar fizeram dele deputado, mas desconfio que a própria União Nacional deve andar com o Peixoto pelos cabelos.

– Porquê? É demasiado salazarista? – troçou Simão.

– Se eu fosse da União Nacional já tinha corrido com ele. É de mais! Já leu algumas das suas crónicas n’ A Voz ou no Adamastor? Numa delas compara Salazar a São Pedro! Riu generosamente, citando-o de cor: – Salazar, sobre este País construirás a minha casa na Terra!

Simão deixou-se contagiar com a boa disposição de Ambrósio, sorrindo à tirada quase bíblica do excessivo deputado:

– É um bocado exagerado, na verdade. É caso para dizer, aproveitando o trocadilho, nem tanto ao céu, nem tanto à terra.

– Exige-se algum pudor, não é verdade? Um pobre diabo! – Ambrósio puxou de um lenço para limpar as lágrimas de tanto rir.

Simão aproveitou a deixa sobre as patéticas crónicas de Peixoto para deixar cair outra pergunta:

– O director do Adamastor não costuma aparecer por cá? Um tal Egídio.

Recuperou a seriedade, procurando encontrar o sujeito em qualquer lado da memória e, por fim, meneou a cabeça.

– Não. Não conheço.

– É um dos grandes amigos do engenheiro Penaguião.

– Pois, pode ser. Nunca aqui veio. Eu recordar-me-ia de certeza. Ainda por cima sendo um director de jornal, por mais miserável que seja como é o caso desse pasquim.

Naquele momento, entrou o conde de Serpa no salão. Viu os dois homens e cumprimentou-os com uma ligeira vénia a que, Ambrósio e Simão, corresponderam.

– Senhor conde... – saudou o Director, voltando-se a seguir para o detective, murmurando: – Acaba de entrar quem é boa pessoa. Mais um que se perdeu no álcool e também por razões políticas.

– É salazarista?

– Não, senhor. É monárquico e uma pessoa sem maldade. A sua fortuna é o título.

– Ser conde? – estranhou Simão.

– Não tem mais nada. Viveu uma juventude demasiado protegida pelos pais, que emigraram para o Brasil quando a República estilhaçou a Casa de Bragança. Ele ainda era de colo. A mãe morreu por lá. Quando foi o vinte e oito de Maio, o pai regressou e trouxe-o com ele. Haviam deixado em Portugal umas propriedades e o velho conde ainda fez uns negócios, mas já era outro tempo. Não deu para restaurar nada. Ainda o conseguiu casar com a filha dos Albuquerque e finou-se. – Encolheu os ombros num trejeito de pena e rematou: – Com a morte do pai, aquilo que restava da fortuna também morreu e o nosso conde ficou pendurado no património da esposa, gemendo saudades dos tempos da monarquia e perdendo-se nos copos. Vem aqui todos os dias. É um viciado em cartografia, geografia e disciplinas afins.

– E companheiro de tertúlia do engenheiro Penaguião ao fim da tarde? – questionou Simão.

Ambrósio sorriu, velhaco. Era um verdadeiro quadrilheiro, conhecedor de boatos, intrigas, perito no diz que disse, uma fonte preciosa para qualquer polícia precisando, apenas, de ser filtrada.

– Companheiro de tertúlia e de cama – confessou mordaz.

– Perdão?

Aproximou-se do ouvido de Simão e sussurrou:

– É um dos pecadilhos do falecido engenheiro Penaguião. Não sei se me entende.

– Tem a certeza? – perguntou deveras surpreendido.

– Tão certo como um relógio. Nas tardes em que não vinha aqui, à Sociedade de Geografia, o conde ficava até mais tarde, era certo. O nosso inditoso engenheiro desviava-se do caminho e marchava até à Lapa, ao palacete dos condes. Não sou capaz de o censurar. Ter nos braços um pedaço de mulher daquelas deve ser uma coisa do outro mundo.

Ficaram os dois em silêncio. Ambrósio aproveitou para acender um charuto. Parecia ufano por poder partilhar tantos segredos com o responsável pelo homicídio de Penaguião. Na verdade, um arqueólogo gosta de decifrar enigmas, reconstituir vidas e culturas antigas, que se escondem no silêncio milenar de pedras, restos de ossadas e de artefactos que se revelam numa escavação. A arqueologia, tal como a investigação criminal, interpela os sentidos, transforma a intuição num bisturi afiado e a dedução em arma poderosa, ferramentas essenciais para trabalhar sobre os mistérios que se procuram desvendar.

Voltou-se para Simão e perguntou:

– Quer almoçar connosco?

– Muito obrigado, mas não posso. Só tenho mais uma pergunta para lhe fazer. Reparei que o empregado lhe trouxe uma garrafa e um cálice. Essa prática é um hábito ou os sócios pedem uma bebida e levam à mesa apenas o copo já servido?

– É conforme. Não há regra. No caso do Álvaro, vinha a garrafa, o balde de gelo e as flûtes. Bebia sempre champanhe. A roda de amigos servia-se à vontade. – Ambrósio olhou-o curioso: – Porque é que me pergunta isso?

Simão desvalorizou.

– Nada de especial.

Despediu-se do médico-arqueólogo e saiu em tumulto da Sociedade de Geografia. Ao passar pelo porteiro, estava tão eufórico, que gracejou:

– Quando voltar a vê-lo, pois passo aqui quase todos os dias a caminho de casa, vai contar-me a sua história ao serviço da arma de cavalaria.

Ambrósio, em linguajar bisbilhoteiro, dera mais cor ao quadro que Simão recebera a preto e branco. Os personagens ganhavam cores com as pinceladas de palavra do Director. Parecia escapar-lhe Carlos Açafrão, mas surgia o conde. A traição como arma para pôr termo à infidelidade de Luísa e à pesporrência de Penaguião.

Simão não tinha dúvidas. Ou alguém do interior da residência fora, aos poucos, ministrando o discreto veneno ou de entre os convidados encontrava-se a mão assassina, que, de forma regular, foi misturando arsénico na flûte de champanhe do engenheiro Penaguião.

Ambrósio revelava novos suspeitos. D. Berta, a incensada esposa, a mãe exemplar, entrava na lista de suspeitos de Simão, ressabiada com a paixão adúltera do seu marido. Ou Luísa Serpa, ao ver o homem que a fazia vibrar no seio de uma vida familiar confortável. Ou o conde de Serpa, que, num acesso de amor-próprio, decidira pôr fim ao homem que o desonrou.

Embrenhado nesta tempestade de interpelações, deu por si junto ao Teatro D. Maria, sem saber que rumo haveria de tomar. Não lhe apetecia regressar à Brigada para escutar as piadas grosseiras do Arengas sobre as debilidades intestinais do Chefe. Não o deixava pensar. Impedia-o de reencontrar serenidade para recomeçar a seguir os destinos de cada um dos seus alvos.

Não duvidava de que Gervásio sabia muito mais do que aquilo que deixava transparecer. Não fosse o disparate da manhã, sob a égide servil de Carrascão, e era depois de falar com ele que iria fazer escolhas. Tentara no dia do funeral e o colega fora agressivo, fazendo o mordomo recuar. Naquele dia, a desastrada prisão da criatura tornara impossível qualquer conversa. Decidiu esperar. Olhou o Rossio, onde se cruzavam carroças e automóveis, eléctricos e autocarros num ambiente rasgado pelos pregões dos ardinas. Sentiu vontade de ver Violeta. Estava ali tão perto! Bastava subir ao Chiado e eram dois passos até ela. Deixou passar um grupo de homens bem-vestidos, que haviam saído do Palácio da Independência, e admitiu que estariam a sair de uma cerimónia solene. Foi, então, que escutou o seu nome e a voz fê-lo estremecer.

– Senhor Agente Simão.

Voltou-se. Era Violeta!

– Não é possível! Estava neste preciso momento a pensar em si. Que bom vê-la!

Cumprimentou-a com satisfação. Duas rosas ruborizaram as faces da jovem, tornando mais intenso o olhar negro, e sorriu envergonhada.

– Hoje é dia de visita ao Aljube e vim acender uma vela a São Domingos.

– Vai ver o seu pai.

Acenou afirmativamente.

– Já almoçou?

– Comi qualquer coisa.

Desde aquele dia em que desabara o mundo em cima de Violeta, tendo Simão como testemunha, que havia um fosso invisível entre os dois, cheio de tristeza e mágoa, e nem um, nem outro conseguiam ultrapassá-lo. E nem um, nem outro conseguiam afastar-se daquele estranho sentimento de satisfação ao encontrarem-se. A morte da mãe e a prisão do pai de Violeta estavam sempre ali, esfriando o calor, ferindo o prazer.

– Gosta de castanhas? – perguntou Simão, procurando romper o embaraço e sem esperar a resposta dela disse: – Vou comprar um pacote para os dois e acompanho-a um bocado.

– Está de folga?

– Estou cansado.

Atravessaram o largo em direcção a um vendedor ambulante, de carreta estacada à entrada da Praça da Figueira. Violeta não lhe chegava ao ombro, obrigando Simão a curvar--se para falar com ela.

– Tenho dormido pouco nos últimos dias e este ar de maresia que vem do rio desperta-me. Como vai a sua costura?

– Estamos a fazer um enxoval para um casamento.

– Isso deve dar muito trabalho.

– Só tiro a tarde do dia em que vou ver o meu pai.

Parecia uma andorinha a esvoaçar ao lado de um falcão. Simão pediu as castanhas e não reparou que a rapariga o olhava com enlevo. Ele estendeu-lhe o pacote. Cruzaram a Praça da Figueira comendo os frutos assados e fizeram levantar voo um bando de pombos que debicavam restos de fruta e de vegetais que ficaram do mercado. Porém, rapidamente voltaram a poisar para continuar o banquete.

Simão e Violeta caminhavam fugindo às sombras lançadas pelos prédios sobre o terreiro, fintando o frio, à procura dos raios de sol que confortavam a cidade.

Por fim, o jovem deixou cair a pergunta.

– Perdoou-lhe, não é verdade?

Violeta não compreendeu e questionou:

– Quem?

– O seu pai.

Tornou a ruborizar, baixando a cabeça envergonhada e Simão arrependeu-se. Tocara por falta de atenção na corda mais frágil das dores de Violeta. Apressou-se a corrigir o disparate.

– Eu compreendo. O Aljube é castigo suficiente para quem fez tamanha maldade e, por outro lado, é um grande desafio à sua coragem e à sua capacidade de amar e perdoar.

Violeta empalideceu, as mãos tremeram e deixou-se cair no último banco de jardim, antes de entrar na Rua da Prata. Sentou-se ao lado dela, aflito e irritado por ter conduzido a conversa para aquele assunto.

– Desculpe. Não queria magoá-la.

Ela procurava controlar a emoção, rodando com nervosismo a castanha entre os dedos, rosto grave fixado no chão.

– Vivo um grande conflito – acabou por confessar.

Simão procurou a todo o custo afastar aquela sombra, sempre a mesma sombra, que se interpunha entre eles.

– Não consigo perdoar-lhe aquilo que fez à minha mãe. Essa mágoa não me abandona. Está em quase todas as minhas noites em forma de pesadelos. Acordo a chorar, aflita, como se estivesse a afogar-me ou abraçada a ela, defendendo-a e sem conseguir salvá-la. É uma culpa constante. Não fiz tudo para que não morresse, tinha medo dele, e, às tantas, já não sabia se era medo ou desprezo. Ver o nosso pai espancar a nossa mãe é dor tão aguda! E depois é uma dor tão grande de saudade que não sei para onde me virar. – Limpou o nariz com um lencinho bordado e encarou Simão: – Eu devia odiar o meu pai. Desprezá-lo. Ignorar que ele existe. É indigno qualquer ser humano matar a pessoa a quem jurou amor eterno. Que fez do vinho o seu vício e da minha mãe o bode expiatório das suas fraquezas. Eu devia odiá-lo! – Violeta abriu os braços num gesto de vencida e suspirou: – Mas não sou capaz.

Simão acariciou-lhe o ombro com ternura.

– Eu percebo. O luto cria verdadeiras tempestades dentro de nós.

– Não sei se consegue entender – gemeu Violeta e continuou: – É como se tivesse ficado órfã absoluta desde aquele maldito dia. A casa tornou-se maior. O silêncio enche todos os lugares da casa. Depois, sinto-os presentes. Oiço os passos da minha mãe, a voz dela falando de coisas banais. Escuto as palavras do meu pai. Quando não se embriagava, era um homem diferente que dizia coisas que fazia rir as duas. Parece que os fantasmas deles me visitam e ainda fico mais magoada e, de repente, desaparecem e o silêncio transforma-se em negra solidão. Tudo quieto. Tudo tão grandiosamente sossegado que julgo que a morte deve ser coisa igual.

Ficaram em silêncio. Simão com o olhar preso no Castelo de São Jorge, que emergia, imponente, acima do casario. Violeta fixada na castanha que continuava a rolar entre os dedos. Esfarelou-a e jogou-a fora, e, quase no mesmo instante, chegaram os pombos para debicar avidamente. Nem o som estridente da gaita de um amolador de facas, chamando os clientes, os assustou.

Violeta não sabia, mas Simão entendia tanto aquele silêncio. Ainda hoje, quase vinte anos depois de ter perdido a mãe, entrava na residência e escutava os sons dos antigos passos, a voz pausada sussurrando: Simão, deixa a brincadeira e vem almoçar!, os beijos repenicados com que se despedia à hora de dormir. A morte é, afinal de contas, um jogo dissimulado entre a memória e a saudade. O som das palavras que nunca parte, o calor do abraço que parece presente, quando é ausência definitiva. A estranha necessidade de um beijo que se sabe que nunca mais chegará. Procura-se pela casa e em cada sinal, na fotografia de família, na jarra onde dantes nunca faltavam flores, no Santo António de barro, comprado junto da Sé, à saudade que não se extingue, testemunhos presentes de uma irreversível ausência.

Para forçar o afastamento daquele estado de espírito, Simão deu um toque no braço de Violeta.

– Quando terminar o enxoval dessa tal noiva, convido-a para ir comigo visitar o castelo. Já lá foi?

Violeta levantou os olhos para a fortaleza, que parecia assente no altar da cidade, lá bem no alto, e esboçou um sorriso envergonhado.

– Não.

– Fica combinado. Contemplaremos uma das mais belas vistas sobre o Tejo e sobre Lisboa. Agora, vamos! Acompanho-a até terminarmos as castanhas.

Entraram na Rua da Prata em passo lento. O par gozava a companhia um do outro com vontade de segurar o tempo, trocando banalidades, parando ao descasque de cada castanha para saborear o momento em que se olhavam e depois retomavam a marcha, passo a passo, retardando o momento da despedida.

Foi então que Simão os viu. Um pouco mais adiante, no cruzamento com a Rua da Assunção, o Comandante Carapau discutia furiosamente com Egídio, o director do Adamastor, dedo espetado no peito do outro e a voz tão alterada que chamava a atenção dos transeuntes. O jornalista reagia com um sorriso cínico à violência do brutamontes.

Ansioso, Simão aproximou-se para escutar aquilo que diziam, mas foi em vão. Egídio, ao vê-lo aproximar, afastou--se pela transversal quase a correr. Só ouviu os gritos ameaçadores de Carapau.

– Não é por fugires que me escapas. Corto-tos rentes! Calhordas. Calhordas!

Violeta não percebeu a súbita alteração de comportamento do companheiro de passeio e perguntou:

– O que foi? Disse alguma coisa de mal?

Simão parou e sorriu, afagando-lhe o braço.

– Desculpe. Conheço aqueles dois tipos que estavam a discutir, naquela esquina, e a curiosidade foi mais forte.

– São seus amigos?

– Não. Apenas pessoas que conheço.

Espreitou o pacote feito de papel de jornal e informou jovialmente:

– Restam duas castanhas. Uma para cada um, para terminarmos o banquete.

Embora lhe soubesse a mel a companhia de Violeta, a algazarra que acabara de testemunhar fê-lo regressar ao mistério que lhe assoberbava dias e noites.

Não conseguiu evitar o beijo na testa que lhe deu à entrada da Rua da Conceição. Desculpou-se desajeitadamente ao reparar na vermelhidão que invadiu o rosto da rapariga.

– Desculpe. Foi mais forte do que eu. É tão bom estar consigo.

Violeta sorriu e respondeu timidamente.

– Não faz mal. Soube-me bem.

O coração de Simão acelerou. Agarrou-a pelos ombros e curvou-se para a olhar nos olhos. Parecia um pinheiro curvado sobre uma papoila.

– Nunca me esqueço de si, Violeta! – declarou solene.

Retirou as mãos bruscamente, envergonhado, por ter vencido a timidez e a rapariga balbuciou um soluço de alegria ou de choro, que Simão não conseguiu entender, e afastou-se apressada. Ficou a vê-la caminhar na direcção do Largo da Madalena, torneada, formosa, passo decidido, e ele, só de a ver, encantado, suplicando que Violeta se lhe dirigisse para dizer mais um adeus.

Quase a desaparecer, no final da rua, Violeta voltou-se e acenou-lhe. O sorriso era luminoso e iluminou Simão que correspondeu. E foi cada um para seu lado.

A redacção do Adamastor ficava a uma centena de metros mais abaixo, na Rua dos Sapateiros. Já dominado pelas suas inquietações profissionais, estugou o passo ao encontro de Egídio. O homem de gestos lânguidos e uma expressão fria que escondia rancores. Calvo, barba aparada, lábios finos. A voz era guinchada, como a de um macaco em aflição, e ficou em guarda quando viu Simão, que entrara sem se fazer anunciar.

Das cinco secretárias distribuídas pela sala antiga e mal iluminada, apenas uma se encontrava ocupada por um indivíduo, inchado pelo álcool, que fazia recortes de jornais.

– Há algum problema? – perguntou o director, desconfiado.

– Podemos falar? – retribuiu Simão.

Suspirou contrariado. Abriu uma porta velha que chiou nos gonzos e estendeu a mão:

– No meu gabinete.

Entraram. Era um espaço atulhado de jornais e dossiers empilhados, cobertos por uma camada fina de pó, e no centro havia uma antiga secretária com rebordos trabalhados com uma cadeira de cada lado. Sentaram-se. Cheirava a mofo e na parede, em frente a Simão, uma moldura mostrava a fotografia de Salazar.

– Não sei nada sobre a morte do engenheiro Penaguião – antecipou Egídio.

Simão ignorou a entrada imprevista do director e interpelou-o.

– Por que carga de água é que o Comandante Carapau embirra consigo?

Ficou pálido. Os dedos tamborilaram sobre a secretária e olhou de esguelha para o detective. Desconfiado.

– A Polícia anda a vigiar-me?

– Não respondeu à minha pergunta.

– Sou uma pessoa pacata. Não compreendo qual a razão para andarem atrás de mim.

– Continua sem responder.

– São coisas pessoais. Julga que o meu jornal o persegue porque fizemos duas ou três notícias sobre os seus negócios. Ninguém está acima de qualquer escrutínio neste regime – justificou com arrogância.

– A Censura deixa-o publicar aquilo que entende?

– Claro. Sei bem o que deve e não deve ser notícia.

Simão não conseguiu evitar um sorriso bem-disposto.

– Isso é uma contradição de se lhe tirar o chapéu. Afirma que ninguém está acima do olhar vigilante da imprensa e depois admite que não dá à estampa aquilo que não agrada à Censura.

– A liberdade não é um bem absoluto. Tem regras. A Polícia não me pode perseguir por obedecer às regras do Estado Novo – respondeu com um sorriso cínico.

Simão iludiu a provocação e continuou a insistir:

– Está a dizer-me que o Comandante Carapau o persegue por o seu jornal obedecer às regras.

– E por desmascarar quem não as cumpre. Na verdade, esse senhor não passa de um criminoso de guerra. Os negócios com os nacionalistas de Franco são uma cortina de fumo. É, também, um dos principais fornecedores de bens aos republicanos espanhóis.

O detective tornou a observar a sala da redacção através do vidro da porta do gabinete bafiento. Era uma espelunca. Os raios de sol que rasgavam a penumbra faziam brilhar partículas de poeira que dançavam no ar.

– Quantos exemplares vende o seu jornal? – perguntou Simão, agora folheando com displicência um número antigo que se encontrava sobre a secretária.

– Uns milhares. A publicidade paga-o – respondeu vagamente.

– Tem repórteres em Espanha?

Soltou uma risada metálica.

– O Adamastor não se pode dar a esses luxos. Escuto o Rádio Clube Português e escrevo o noticiário em conformidade.

– Foi pelo Rádio Clube que soube das actividades subversivas do Comandante Carapau ao serviço do exército republicano? – perguntou, incisivo.

– Também tenho informação privilegiada. Já que anda à procura do assassino do meu amigo Álvaro, sei bem o que ele pensava desse traste.

– Do Comandante?

– Comandante de nada! – cortou ríspido e continuou: – Foi expulso da tropa por ser ladrão. Tem uma fortuna enorme por ter passado a vida a roubar.

– O que tinha o engenheiro Penaguião a ver com essa vida que o senhor diz ser de ladrão?

– Nada. Apenas descobriu que ele desobedecia às ordens do Professor Salazar e informou-o de que não lhe venderia mais carregamentos de sabão para o vigarista vender aos comunistas espanhóis. Procura um assassino? Tem este à mão e com bom motivo. O dinheiro é o único amigo que esse Carapau reconhece.

– Sabe quando é que o engenheiro o informou que não lhe forneceria mais sabão das suas fábricas?

– Na noite do jantar. Ainda não nos tínhamos sentado à mesa e estavam no jardim. Eu ouvi por acaso.

Simão ficou em silêncio por momentos. Se fosse verdade, surgia um novo suspeito com um motivo para pôr fim à vida de Penaguião. O dono e director do Adamastor tinha alguma razão. Carapau era um indivíduo emotivo para quem o dinheiro era o único deus que adorava. Era bem capaz de esfolar qualquer um por dez tostões.

De súbito, Simão fez a pergunta que foi um verdadeiro coice de cavalo no peito de Egídio.

– O senhor estava apaixonado pelo seu amigo Penaguião há quanto tempo?

A surpresa foi tal que não conseguiu articular palavra e na calvície brotaram centenas de gotas de suor.

– O que disse? – conseguiu finalmente gaguejar.

– Perguntei-lhe há quanto tempo estava apaixonado pela vítima – repetiu com a maior naturalidade.

– O senhor está louco! – regurgitou, inflamado.

Simão continuou a dissertar como se não reparasse na indignação do homem.

– Não me espantaria que essa paixão não correspondida pudesse levar o senhor a um acto de loucura. Ainda por cima, quando lhe chegavam sinais de distanciação. O engenheiro já não lhe financiava o jornal com a atenção de outros tempos. É por de mais a decadência que se vê à nossa volta.

Egídio era, agora, o verdadeiro Adamastor. Furioso, mas ofegante, procurando rugir, porém, em grande estremecimento nervoso.

– Veio à minha empresa para me insultar? Apaixonado pelo Álvaro? Eu? Olhe para a minha barba. Olhe a minha roupa. Está a falar com um homem e não com uma mulher!

Simão encarou-o com firmeza.

– Não brinque comigo. Pouco me importa que nesse corpo de macho lusitano habite uma fêmea. Não tenho nada a ver com os seus apetites sexuais.

– É falso! – berrou histérico.

– Não, não é. Foi apanhado pela Brigada de Costumes, pelo menos três vezes, engatando estivadores no Cais do Sodré. A sua ficha na Polícia não deixa dúvidas. Uma das vezes foi detido em flagrante delito fazendo um, como é que diz na ficha? É isso!, sexo oral a um marujo, junto ao Cais das Colunas. Custou-lhe dez dias do Governo Civil. Valeu-lhe o movimento do vinte e oito de Maio e a confusão entre as Polícias e militares para o seu caso não ter ido mais longe. Mas não quero saber. Apenas que não me minta. A sua vida íntima não é da minha conta. Comigo não vale a pena fazer essa fita do machão ofendido. Procuro um assassino! O veneno é uma arma de mulheres e naquele jantar havia uma mulher a mais. Você!

O director parecia ter mirrado por detrás da secretária. Para respirar melhor, abrira a camisa deixando cair o laço. Arfava. Cobriu o rosto com as mãos e começou a chorar de mansinho.

– Eu não faria mal ao Álvaro. Nunca lhe faria mal. Era como se fosse meu pai – soluçou.

– Era frequente ir à casa dele?

– Uma ou duas vezes por ano. Convidava-me sempre pelo Natal – gemeu.

– É sócio da Sociedade de Geografia?

– Não. Nunca lá entrei.

Egídio não sabia, mas confirmava o depoimento de Ambrósio que assumiu que não o conhecia. Simão levantou-se. Empurrou a cadeira na direcção da secretária e avisou-o:

– Voltaremos a falar. Mas nunca mais me minta!

Aterrado, o director procurou segurá-lo por um braço.

– Espera. Espere.

– Para quê? Vai confessar o crime? – perguntou com desprezo.

Tornou a debulhar-se em lágrimas.

– Não posso confessar aquilo que não fiz. Mas espere. Mais alguém vai saber da minha fraqueza? Peço-lhe por tudo. O regime não tolera pessoas com a minha fraqueza. Se alguém souber vai ser o meu fim. O fim da minha vida! – e suplicava de joelhos e mãos postas em oração, completamente transtornado.

Simão empurrou-o.

– Os crápulas costumam considerar os outros tão crápulas quanto eles para não se sentirem mal com a sua consciência. Claro que não vou partilhar a vida íntima de quem investigo com ninguém. A não ser que haja razões criminais. O que desprezo em si não é a sua opção sexual. É o seu cinismo.

– Meu Deus! Meu Deus! O que vai ser de mim? Como posso ajudá-lo? Eu faço tudo o que precisar.

– Quero saber quem matou o engenheiro. Se me quer ajudar, procure pensar se alguma coisa de anormal lhe chamou a atenção e diga-me.

Voltou-lhe as costas bruscamente e saiu da redacção do jornal.

Entardecia.

Já não havia sol na Rua dos Sapateiros e hesitou entre ir ao Terreiro do Paço apanhar o autocarro para casa ou, ainda, regressar ao Torel.

Simão estava satisfeito. Embora o dia tivesse começado mal, com o espancamento do mordomo a mando do Director da Polícia Política e a cumplicidade do seu Chefe, a visita à Sociedade de Geografia, o encontro com Violeta e, finalmente, o embate contra o dono do Adamastor, abrira-lhe portas por onde entrava mais claridade, iluminando, aos poucos, o mistério da morte de Álvaro Penaguião.

Violeta chegou à sua lembrança, acenando-lhe o adeus de despedida, e um estranho conforto feito de emoção pô-lo a sorrir. Estava empolgado. De um lado, um crime complexo que lhe excitava a razão, do outro, surgia Violeta a entrar nas portas do coração. Remexeu nas algibeiras do sobretudo e apanhou restos de castanhas, que atirou a um cão vagabundo. Decidiu-se. Ainda passaria pela Brigada. Acelerou o passo e, daí a pouco, galgava a escadaria do Torel como se tivesse asas nos pés.


XIII ACTO


AFINAL, NÃO FOI O MORDOMO!

 

 


Simão não chegou a entrar na sede da PIC. Arengas estava na rua a fumar desesperadamente e, ao vê-lo, acenou--lhe em grande excitação. Parou, desconfiado, ao ver a exuberância do colega. Arengas, irritado, correu ao seu encontro.

– Onde é que te meteste, pá? O Abóbora anda histérico à tua procura e, ou muito me engano, ou vai dar-te um tiro. Onde é que te meteste, pá? É do cacete!

– Aconteceu alguma coisa? – perguntou Simão sem ligar aos transtornos do outro. Arengas fazia de tudo um espectáculo de palavrões e indignações.

– Claro que aconteceu. Chinaram o tipo que trouxemos para aqui esta manhã.

– O Gervásio? Mataram-no? – perguntou, estupefacto.

– Esse mesmo. O mordomo! Deram-lhe um tiro na mona. Tu nem entres na bófia. Corres o risco de o Chefe fazer-te o mesmo. ‘Bora! Já devíamos estar em Campolide. É do cacete, pá! Temos carro e motorista à espera e há um raio de um padre que não pára de telefonar. Tchiii, pá! Como é que ainda esta manhã eu estava a aviar esse desgraçado e, agora, está de pernil esticado. Estou cheio de remorsos. Vamos depressa. O padre já não deve ter chegado a tempo da extrema-unção.

– O padre Pimentinha?

– Sei lá se é Pimentinha ou Pimentão. É padre! Vamos depressa!

Arengas estava em choque. A notícia tão inesperada deixou Simão sem palavras, o coração a pulsar em vertigem. Não fazia sentido. Álvaro Penaguião fora envenenado. Gervásio teria sido atingido por um disparo na cabeça. Seriam dois casos distintos? A morte dos dois homens não estaria relacionada? E, se estava, teria sido o mesmo assassino usando métodos diferentes ou seriam dois assassinos em vez de um só?

Ansiava por chegar ao local do crime para pôr ordem nas perguntas que lhe surgiam em turbilhão. Por fim, desabafou, como se falasse sozinho:

– Nem o Repórter X inventou coisa tão sem sentido. Quem será o nosso Olhos Tortos desta história?

– O que estás para aí a dizer? – perguntou Arengas.

– Foi uma história publicada n’ O Século há uns anos.

– Um crime?

– Não. Uma invenção.

– Mas foi publicado como crime ou como invenção? – teimou o Arengas, começando a irritar-se outra vez.

– O Reinaldo Ferreira, também conhecido por Repórter X, escreveu uma ficção chamada O Mistério da Rua Saraiva de Carvalho, que contava um crime extraordinário que nunca existiu – respondeu com enfado.

– Esse nome não me é estranho. De onde é que eu conheço esse tipo? – Arengas franzia a testa, esforçando-se para recordar. De repente, bateu no joelho.

– Já sei! Esse jornalista foi amigo do português, que era porteiro do Kremlin, e do artista que embalsamou o cadáver daquele revolucionário russo... não me lembro o nome do gajo...

– Lenine – ajudou-o Simão.

– Esse mesmo!

– Também é invenção. O Reinaldo Ferreira foi jornalista, mas, sobretudo, brilhou a grande altura com as suas ficções de repórter.

– Mas foi amigo do porteiro do Kremlin. Tenho a certeza de que li isso quando esse Ferreira morreu, há mais ou menos dois anos – protestou.

– Arengas, escuta-me. Acreditas mesmo que o palácio do governo da União Soviética tem à porta um emigrante português? Não terá Militares ou Polícias como nós temos no Palácio de Belém?

Ficou em silêncio e Simão aliviado. A vozearia do amigo preenchia todos os tempos, impossibilitando alinhar duas ideias coerentes.

Não podia haver outra explicação. Numa cidade com tão poucos homicídios cometidos por desconhecidos, duas mortes na mesma residência, com poucos dias de diferença, era um caso extraordinário. Era claro, para Simão, que havia uma ligação íntima entre aqueles crimes.

O Sol caminhava para o ocaso quando o automóvel parou no jardim do palacete. À entrada um Polícia fardado fez continência quando se identificaram. Ao dirigir-se para a porta de entrada, Arengas agarrou Simão pelo braço e sussurrou:

– Tenho uma ideia.

– Qual?

– O emigrante português poderia ser Militar soviético à porta do Kremlin.

– Arenga, tu cansas o mais paciente dos mortais.

– Mas o Repórter X disse que...

Não concluiu a frase. Por detrás de uma cortina de arbustos do esplêndido jardim surgiu D. Berta, passinho rápido, olhos vermelhos do choro e o cabelo, excepcionalmente, em desalinho. Dirigiu-se ostensivamente a Simão.

– Venha por aqui. A minha casa está amaldiçoada. Não pode ser outra coisa. Foi maldição que nos lançaram. Não sei o que hei-de fazer à minha vida. Juro que não sei. Sinto a vida a desmoronar-se à minha volta sem que perceba o motivo.

Berta, visivelmente perturbada, aflita, sem orientação, perante os sucessivos casos violentos que jamais teria imaginado que viveria. Simão viu atrás dos vidros das janelas do palacete os rostos de algumas empregadas a espreitar o grupo com curiosidade emocionada.

Berta conduziu-os pelo lado esquerdo do edifício principal. Nas traseiras, o jardim dava lugar a um pomar de árvores de fruto, onde predominavam laranjeiras e, numa clareira entre o arvoredo, havia um enorme tanque de água onde se deleitavam meia dúzia de patos e um par de gansos reais. Um imponente pilriteiro sombreava grande parte daquele espaço e nas ramagens chilreavam dezenas de pardais.

Seguindo pelo pomar por uma vereda de terra arenosa, via-se, ao longe, encostado ao muro que rodeava a propriedade, um galinheiro. Em volta debicavam galinhas.

– Está ali – indicou D. Berta, levando a mão à boca para conter um soluço.

Simão e Arengas aproximaram-se com cautela. Quando ultrapassaram a última laranjeira, viram o cadáver caído no chão, perto da rede de arame que cercava o galinheiro. Gervásio estava estendido, em posição ventral, e era visível a causa da morte ao observar a cabeça.

Simão agachou-se perante o morto, observando o ferimento com mais minúcia e disse:

– Tem o cabelo queimado pelo disparo, significa que foi morto à queima-roupa, com a arma quase encostada à cabeça.

De um balde, tombado junto à mão direita do cadáver, saltaram duas galinhas assustadas. Espreitou o interior do recipiente. Ainda havia restos de comida que a vítima levara para alimentar as aves. Observou as mãos cuidadas do mordomo. Não havia qualquer vestígio de luta e a rigidez cadavérica começava a consolidar-se.

Por momentos, desinteressou-se do morto e, com muita cautela, começou a examinar o chão em seu redor.

Arengas perguntou:

– Queres que faça alguma coisa?

– Não te mexas! – respondeu sem deixar de examinar a terra. Viu uma marca de bota. Era um pé direito bem marcado, devido à humidade do terreno, na direcção do muro. Gritou para o colega:

– Pergunta à Dona Berta se tem gesso e um balde com água que nos possa emprestar.

– Gesso? – perguntou para confirmar tão estranho pedido.

– Para fazer um molde. Despacha-te para aproveitarmos a luz do dia.

Mais adiante encontrou nova pegada. Esta era do pé esquerdo. Simão partiu um pequeno ramo de laranjeira, tornou a quebrá-lo ao meio e espetou os ramos, assinalando os dois vestígios. A sua atenção centrou-se na parede do muro. Descobriu que tinha uma medida de protecção acrescida. Na parte superior, ao longo de toda a vedação, estavam incrustados pedaços de vidro, apontados ao céu, lâminas ameaçadoras que atemorizariam qualquer intruso.

Numa das lascas de vidro encontrava-se um farrapo castanho. Parecia ser de um casaco ou de calças. Ao retirá-lo, viu restos de sangue no vidro e o trapo possuía um botão, usualmente utilizado no fecho das mangas de um casaco. O intruso rasgara a roupa ao entrar, ou ao sair, ferindo-se no pulso.

– Tens aqui o balde e o gesso – alertou-o Arengas enquanto se aproximava com os utensílios nas mãos.

Guardou meticulosamente o pedaço de tecido, manipulou o vidro até conseguir libertá-lo do muro, guardando-o no lenço. Agitou o gesso na água do balde e, a seguir, espalhou-o pelas pegadas.

Só depois voltou a interessar-se pelo cadáver, pedindo ao colega:

– Procura em volta, para ver se descobres a arma, embora não tenha fé que o criminoso a jogasse fora.

– Se não tens fé, porque me pedes para procurar? – resmungou Arengas.

– Porque a fé nunca é uma certeza.

Examinou cada milímetro do couro cabeludo da cabeça de Gervásio e ficou satisfeito com o resultado.

– Não há orifício de saída. O projéctil ficou alojado no interior da caixa craniana.

Depois voltou-se para a roupa que o mordomo vestia. Não existia qualquer sinal de sujidade, de contacto ou de agressão. Gervásio morreu como viveu. Imaculadamente vestido.

D. Berta aproximou-se, ainda receosa, observando as manobras de Simão.

– Quem pode ter feito isto, senhor Agente?

O detective respondeu com outra pergunta:

– Tem algum empregado que seja forte, use botas com cardas e que coxeie ligeiramente do pé esquerdo e use um casaco castanho?

– Não. O senhor Alberto é o nosso hortelão, que trata do pomar e da horta, mas é baixinho e magrinho. Vem trabalhar ao nascer do Sol, faz a rega e sai antes do almoço. Não usa casaco, nem coxeia. É um pobre diabo que anda sempre descalço.

Simão revisitou as informações que retirara dos vestígios.

– O assassino é um homem alto, forte, tem uma ligeira deficiência no calcanhar, pois não é regular a impressão da bota, o que explica o desnível na intensidade do apoio contra o chão, e é forte, pois as marcas das botas são fundas. Não deverá ter mais de quarenta, quarenta e cinco anos.

Levantou cuidadosamente os moldes quando o gesso secou.

– Gostaria de falar com a senhora e com as suas filhas.

D. Berta teve uma reacção inesperada.

– O senhor Agente é bem-vindo a minha casa, mas o seu colega não entra! – informou, zangada, e, voltando-se para Arengas, apostrofou-o: – O senhor e mais outro alarve vieram de manhã buscar este infeliz para o encherem de pancada. Não são Polícias. São esbirros sem alma.

Perante a estupefacção do Agente, que não percebia aquela ira, interveio rapidamente Simão:

– O meu colega tem outras coisas para fazer. Tem de tratar da remoção do cadáver do senhor Gervásio para a morgue. Não pode deixar de ser autopsiado. Precisamos de recolher a bala que tem na cabeça. Não te importas, pois não, Arengas?

– Eu faço isso – respondeu, amuado.

Simão e D. Berta dirigiram-se ao palacete. A mulher continuava perplexa.

– Não entendo. Era a pessoa em que o meu marido mais confiava. Contratou-o num navio onde era Chefe de Sala e era o nosso funcionário mais bem pago. O Álvaro confiava--lhe a vida. Chegou a dizer-me: se algum dia me acontecer alguma coisa estranha, o Gervásio sabe onde tenho guardada toda a papelada de conservatórias, de notários, escrituras, tudo! Até as acções, as contas bancárias. Passavam horas a falar. O Álvaro confiava nele como se fosse um irmão. Acompanhou as nossas filhas desde pequeninas, levava-as à escola, comprava-lhes prendinhas para elas se divertirem. E sempre de uma delicadeza, de um cuidado que é raro encontrar. Os empregados adoravam-no. Nunca o ouvi levantar a voz, mesmo quando precisava de dar uma reprimenda. Não entendo. Juro que não entendo que maldição recaiu sobre esta casa.

De súbito, parou e perguntou, assustada:

– Acha que as minhas filhas correm perigo?

Simão não respondeu de imediato. Estavam a chegar à entrada. Por fim, respondeu:

– Não sei, Dona Berta. Neste momento, é tudo tão confuso que não lhe sei responder. Se nos próximos dias as conseguisse afastar de Lisboa, para lugar seguro, seria um gesto prudente.

– Vou mandá-las para a casa da minha irmã em Pampilhosa da Serra. Mas tenho de as convencer. Já não são miúdas – comentou visivelmente preocupada.

– Se conseguir alguma informação que vos traga alguma paz, eu aviso-a. Vamos?

Foi recebido por um grupo de mulheres chorosas e assustadas. Apenas faltavam os sogros.

Ninguém deu por nada. A cozinheira, a D. Tomásia, garantiu que quem fizera tão grande maldade não poderia ter entrado pelos portões da frente. Apoquentada com a invasão da Polícia que, logo pela manhã, levara o Gervásio, ela própria tinha fechado os portões, que só se abriram quando D. Berta o foi buscar com o motorista. Depois voltou a encerrá-los. Por outro lado, foi a última pessoa a falar com o Gervásio, já ele tinha o balde com a comida para os pavões e para as galinhas, e que não viu nada que lhe chamasse a atenção, para além de o sentir ofendido por ter sido maltratado pela Polícia sem qualquer razão. Que até chorara de mágoa. Depois, saiu para o galinheiro e ninguém mais o viu.

Simão escutou em silêncio, retirando alguns apontamentos para o seu bloco de notas. Tornou a observar atentamente o grupo das serviçais e perguntou:

– Qual de vocês encontrou o corpo do senhor Gervásio?

Uma jovem farta de carnes, bochechas rosadas, tez morena que contrastava com o avental branco, levantou timidamente o dedo.

– Como se chama? – perguntou ele.

– Rita, meu senhor.

– Então, conte-me o que viu.

– Ouvi um barulho estranho ao fundo do pomar. Estranhei ver as galinhas à solta. Quando se lhes dá a comida, são encerradas no galinheiro. Fui até lá para saber se estava tudo bem com o senhor Gervásio. Nem cheguei perto. Quando o vi no chão a deitar sangue da cabeça, vim logo a correr para casa pedir ajuda. Nem me quero lembrar.

Levou as mãos ao rosto chorando de mansinho. Simão olhou-a com atenção e voltou a interpelá-la.

– Veja se consegue lembrar-se. Quando viu o senhor Gervásio, escorria sangue da cabeça ou já estava coalhado?

– Escorria devagarinho, como se fosse um repuxo pequenino.

– E não ouviu mais nenhum barulho estranho?

– Do lado de fora do quintal.

– O que foi?

– Não sei bem. Pareceu-me um motor de um automóvel muito acelerado a ir pela estrada fora.

D. Berta esclareceu:

– Junto ao muro da nossa casa passa uma estrada, que desce até às hortas de Palhavã.

Por momentos, reinou o silêncio, entrecortado pelo choro de algumas das empregadas, todas a observar o detective, que mergulhara no seu bloco de notas, registando apontamentos. Por fim, informou:

– Muito bem. Vou espreitar essa estrada antes que anoiteça completamente. Com a vossa licença.

Voltou-se para a anfitriã.

– Sei que não estão a ser momentos fáceis para a senhora, mas não posso sair sem falar com as suas filhas.

Acenou afirmativamente e Simão afastou-se, apressado. Quando cruzou o jardim, dois maqueiros transportavam o cadáver numa padiola, coberto com um lençol, e, atrás, seguia um Arengas carrancudo. Quando o avistou, dirigiu-se--lhe maldisposto:

– Vou de boleia na ramona dos mortos. Não estou nem mais um minuto nesta casa onde aquela cabra me ofendeu.

– Ofendeu?

– Não quero mais conversa. Se esse merdas que aí vai estendido se tivesse aberto na bófia, não tínhamos mais trabalho em cima do lombo e o gajo não esticaria o pernil. Sabia tudo. Ou foi ele quem matou o engenheiro ou foi alguém que o pintas conhecia e quis encobrir. Seja como for, era um filho da puta e não me arrependo de nenhuma das cacetadas que lhe enfiei. Só se perderam as que caíram no chão.

Ainda mais rancoroso, terminou, apontando com o queixo para o palacete:

– A madame foi buscá-lo à bófia para o pintas não se abrir, digo-te eu. Se calhar andava a comê-la. Puta que os pariu!

Simão decidiu não responder ao azedume do colega e, quase a correr, dirigiu-se à estrada. Era velha e cheia de buracos. Estava resumida a dois riscos de pó fino, através do matagal rasteiro, por onde se moviam os rodados dos carros que por ali passavam. Foi perscrutando o traçado com a pouca luz que a penumbra do anoitecer lhe oferecia. Ora olhava a estrada, ora observava o muro que rodeava o palacete. Imaginou o comprimento do pomar, que estava do outro lado, e não teve dúvidas de que se encontrava perto do galinheiro e do local do homicídio. Procurou descortinar sinais de pés a trepar pelas paredes brancas e foi, então, que tropeçou numa corda caída no chão e que tinha um gancho de ferro atado a uma das pontas.

Não conteve um sorriso de satisfação. O assassino esquecera-se de recolher uma prova importante e Simão viu claramente como tudo acontecera. Trepara pela parede com a ajuda da corda. Escondera-se junto à laranjeira mais próxima do galinheiro e esperara. Quando Gervásio se aproximou, com o balde, bastara-lhe dar um passo e disparar contra a cabeça do infeliz. O mordomo não soube como morreu, nem quem o matou. Fora uma execução perfeita.

Rabiscou um croqui apressado no seu bloco e regressou apressado ao palacete. D. Berta esperava-o na companhia de Marta e de Helena.

– Esclareça-me uma coisa. Era habitual o seu mordomo levar a comida aos galinheiros?

– Só há alguns meses. Não deveria ser ele, mas agora fazia questão. Há mais ou menos esse tempo, pediu ao meu marido para trazer um casal de pavões. Tinha uma paixão especial pelas duas aves. Falava deles com um orgulho desmedido e o meu Álvaro ficava encantado a ouvi-lo a dissertar sobre a vida dos pássaros. Julgo que era paixão que trouxera desde menino e dos seus tempos em Inglaterra.

– Costumava ir sempre à mesma hora? – insistiu Simão.

– Sim. Nesta altura do ano ia mais cedo porque os dias são mais curtos. – Mordeu os lábios, visivelmente irritada. – Por causa do que aconteceu esta manhã no Torel. Estava dorido e muito em baixo. Disse-lhe que mandava uma das empregadas tratar do balde. Insistiu em ir, que, ao menos, se distraía. Afinal, foi ao encontro da morte.

– O Gervásio não lhe fez nenhuma confidência sobre quem poderia ter feito mal ao seu marido? Alguma coisa estranha que tivesse visto na noite do jantar. Alguém com acesso aos copos onde serviam as bebidas.

Fez um gesto de impaciência, irritada.

– Qualquer um podia tê-lo feito e a culpada sou eu. Mandei colocar uma mesa só com as bebidas e os copos para se servirem à vontade. No outro lado do salão, estava outra mesa com doces, fruta e pratos. O Gervásio e as empregadas só tinham a obrigação de recolher copos e pratos que estivessem sujos. Achei que assim seria mais eficaz. Afinal de contas...

Não terminou a frase. Era visível a forte emoção que a dominava. Simão decidiu suspender a conversa. Marcou com Marta e Helena uma conversa para o dia seguinte. Nenhuma das mulheres estava em condições de discernir minudências, excessivamente perturbadas com os acontecimentos dos últimos dias.

– Diga-me só uma coisa. Não lhe terá feito o Gervásio alguma confidência, em dado momento, sobre as suas suspeitas em torno daquilo que se passou no jantar?

Limpou as lágrimas e ficou por instantes cabisbaixa.

– Só há uma coisa – titubeou Berta.

Simão olhou-a, expectante.

– Foi esta manhã, quando regressávamos do Torel. Estava muito queixoso do peito por causa da tareia que os seus colegas lhe deram e disse aquilo mais como um desabafo do que uma confidência.

– Disse o quê?

– Mais ou menos isto: «É uma tristeza viver num país onde os pobres são tratados como bandidos e os poderosos da política fazem o que lhes dá na gana. Até matar. São sempre protegidos.» – Suspendeu a narrativa, por momentos, e, por fim, rematou: – Foi mais ou menos isto. Na altura, senti que era mais um desabafo por ter sido maltratado. Mas a conversa não me saía da cabeça e decidi confrontá-lo quando estivesse mais recomposto. Desgraçadamente já não foi possível termos essa conversa.

– Ele dormia na residência ou morava fora daqui? – perguntou o jovem.

Quando fizemos obras nesta casa, criámos uma nova ala no rés-do-chão para os criados internos. São oito quartos. O dele é ao fundo do corredor.

– Posso espreitar os aposentos dele?

Acenou afirmativamente e começou a andar.

– Venha comigo.

O corredor abria à direita do salão onde o patriarca fora envenenado e os quartos tinham portas frente a frente.D. Berta dirigiu-se à última do lado direito e abriu-a, dando entrada a Simão.

– Foi o Gervásio quem o escolheu. Fazia questão de ser o primeiro a levantar-se e a acordar os restantes empregados. Só a Tomásia não vive aqui. Mora junto ao Arco do Carvalhão.

A primeira coisa que chamou a atenção do detective foi a quantidade de livros empilhados sobre uma cadeira e sobre uma pequena estante que abarrotava. Contou por alto e admitiu que estariam ali mais de cem livros, e muitos deles em inglês. Numa leitura corrida sobre capas e lombadas, descobriu Eça, Padre António Vieira, Lorde Byron, Shakespeare, Charles Dickens, Camilo, Antero de Quental, Mark Twain, entre outros.

Simão ficou pasmado. Numa cidade onde a maioria dos patrões, que empregavam serviçais, mal sabia ler ou não ia para além do consumo do jornal diário, surgir-lhe um empregado doméstico com gostos tão sofisticados era qualquer coisa de extraordinário. Também a roupa lhe chamou a atenção. No guarda-fatos e na cómoda, que estava em frente da cama, desfilavam fatos, calças, camisas, que exalavam um discreto perfume, arrumados com disciplina militar. Reparou em várias fotografias de navios e numa, já envelhecida, reconhecia-se o mordomo, ainda criança, de mãos dadas a um casal que, admitiu Simão, eram os seus pais.

D. Berta pigarreou, chamando-lhe a atenção.

– Já é noite. Preciso de ir tratar dos meus sogros.

Simão sobressaltou-se ao despertar do fascínio que aquelas descobertas lhe provocaram.

– Desculpe. Não lhe roubo mais tempo. Apenas lhe pedia o favor de trancar a porta até eu poder fazer um exame mais minucioso deste local.

– Acha que está no quarto a solução destas tragédias? – perguntou, desconfiada.

– Confesso que não sei. Uma porta que se abre, em investigação criminal, raramente leva à descoberta da verdade. Revela vestígios, muitas vezes indícios, mas é muito raro dizer tudo sobre aquilo que desejamos saber.

A matriarca fechou a porta à chave e, já no corredor, Simão perguntou-lhe:

– O Gervásio conhecia um homem alto, forte e que coxeasse um pouco? Ele recebia visitas?

– Quando a mãe era viva, todas as semanas tirava a tarde e a noite de domingo para estar com ela. Trouxe-a uma vez cá a casa para que a conhecêssemos. Ninguém mais veio aqui. Era um solitário. Os tempos livres passava-os com os livros, no quarto ou no jardim, lia com grande entusiasmo. Estava sempre a sugerir leituras às minhas filhas e depois discutia com elas o enredo.

E nunca viu o seu marido com um homem como aquele que lhe descrevi?

– Alto e forte, só o senhor Comandante Carapau.

– Esse não é coxo – ripostou Simão.

Aproximaram-se da porta sem trocar mais palavras. Porém, ao despedir-se, Simão não se conteve.

– Não leve a mal a pergunta que lhe vou fazer. Acho que rebento se não se fizer luz sobre esta questão que me intriga.

– Se eu souber responder.

– Do pouco que conheço sobre a vossa família e sobre os vossos amigos presentes no jantar, fico com a estranha ideia de que morreram duas pessoas extraordinárias, rodeadas de um grupo de amigos com poucos escrúpulos. Como é que isto se explica?

Berta foi rápida na resposta.

– Julgo que está a exagerar. O senhor Coronel, por exemplo, é um alto dirigente da Polícia Política. Um homem acima de qualquer suspeita...

A evocação de Carolino desfez-lhe a delicadeza e decidiu enterrar o punhal sem piedade:

– Esse senhor acima de toda a suspeita foi o homem que convenceu o meu Chefe, e a Polícia a que pertenço, de que o assassino do seu marido foi o Gervásio porque, segundo ele, era um perigoso comunista.

Berta cambaleou.

– Está a falar a sério?

– Eu não minto, minha senhora.

– Não é possível! O senhor Coronel? Nem quero acreditar. Não pode ser.

– Foi ele! – reagiu peremptório, para logo esclarecer: – Desde a primeira hora que aqui cheguei, na noite do jantar, fez tudo para que o passamento do senhor engenheiro não fosse investigado. Nem me deixou pesquisar o corpo do falecido. Como não conseguiu evitar a investigação, inventou a patranha dos comunistas. Gervásio seria um perigoso vermelho que decidiu matar o patrão!

– Mas isso é ridículo! – gritou, indignada.

– Concordo com a senhora. Mas foi esta a história que esse Coronel acima de qualquer suspeita pôs a correr e entregou na PIC. Os meus colegas foram meros instrumentos quando o vieram buscar de manhã.

Encostou-se à porta para não se perceber que cambaleava e, visivelmente transtornada, pediu:

– Vá-se embora, por favor. Não consigo continuar a falar sobres estes assuntos. Estou desfeita!

Desatou a chorar convulsivamente e Simão deu um passo na sua direcção.

– Peço-lhe mil desculpas, minha senhora. Eu não queria...

Fez-lhe sinal para que saísse, recusando continuar a ouvi-lo.

Simão fez uma vénia e retirou-se. Transportou para o carro da Polícia, que ainda o esperava, a corda, o pequeno embrulho onde guardara o pedaço de roupa que ficara preso no vidro, os moldes de gesso. Pediu ao motorista que deixasse tudo em cima da sua secretária e recusou entrar no carro.

Precisava de caminhar, sentir o frio da noite no rosto para lhe arrefecer os pensamentos em agitação. E demandou ao Parque Eduardo VII.


XIV ACTO


A FÉ DE LUÍSA SERPA

 

 

 

Simão olhou para o relógio de bolso. Alguém lhe dera a indicação de que Luísa Serpa ia todos os dias, por volta das dez horas da manhã, rezar à Basílica da Estrela. Já passava da hora. Reflectira sobre o local onde poderia falar com ela para a confrontar com as verdades que registara no seu bloco de notas. Era uma conversa delicada e demasiado íntima para não ser cuidadoso no local e no tempo certo para a confrontar, longe do conde de Serpa.

Vigiava a porta monumental da igreja, a partir do Jardim da Estrela, discreto, procurando clareiras na vegetação para melhor observar quem entrava e saía sem ser visto.

Novembro estava a terminar e nem houvera verão de São Martinho. Viera frio, deixando geadas nos recantos mais sombrios da cidade. O jardim estava quase deserto àquela hora do dia. Apenas um ou outro visitante, que escolhera um banco exposto ao Sol, lia o jornal. Apenas os patos nadavam com animação, indiferentes ao gelo que vinha na brisa soprada de norte e que parecia cortar a pele.

Bateu os pés com força contra o chão, forçando a circulação sanguínea para se desembaraçar do gelo que o atormentava. As botas não eram protecção suficiente contra aquela geada que calcorreava há quase uma hora.

Revisitou as horas, já sem grande esperança, preparando a partida. Precisava de passar pela morgue antes que o doutor Belchior terminasse a autópsia de Gervásio e o tempo escoava-se rapidamente. Começou a admitir que a procuraria no dia seguinte quando, de repente, viu Luísa a subir a escadaria, abrigada no casaco bege.

Decidido, em largas passadas dirigiu-se à saída do jardim. Queria apanhá-la no interior do templo e aproveitar a atmosfera de silêncio e recolhimento para desencadear a conversa.

Quando entrou, não a viu de imediato. O contraste entre a luminosidade do Sol baixo e a penumbra do espaço, obrigou-o a pestanejar várias vezes para distinguir as pessoas que lhe surgiam em forma de silhueta. Havia meia dúzia de crentes que por ali ficara depois da missa. Alguns, aqui e ali, ainda rezavam. Viu mais duas criaturas que acendiam velas junto ao altar e o silêncio era transcendente.

Era uma obra formidável que causava profunda impressão a Simão de cada vez que ali entrava. Os arquitectos da Escola de Mafra tinham conseguido o trabalho de excelência, que a fé da rainha D. Maria I esperava, e que o requinte do mármore cinzento engrandecia com sobriedade. Simão sabia que fora um convento franciscano, embora não fosse o desejo de salvação que o levou a descobrir o local. Os dois poderosos órgãos que ali habitavam, associados à acústica ambiental, emprestavam uma expressão divina à música sacra. Foi por causa daquela basílica que conheceu, e se perdeu de amores, pela obra de Sebastian Bach. Foi ali, naquele espaço, que gozou, libidinoso, a magia das flautas, do cravo, do órgão que o mestre trabalhava incensado pelo seu Deus. Não podia ser de outra forma. Não existe mortal que consiga chegar àquele patamar do céu.

Caminhou silencioso pela coxia central até que a viu sentada à direita. Desfiava o terço, sentada, e deveras concentrada. Na verdade, Luísa Serpa era uma mulher lindíssima. Reconheciam-se os caracóis negros de azeviche por debaixo do véu e o corpo perfeito, esguio, exalava distinção.

Simão ajoelhou-se na fila por detrás da condessa, a distância suficiente para não a importunar e relativamente perto para que, caso ela olhasse, reparasse nele.

Não demorou muito tempo. Ao vê-lo, fez um gesto de contrariedade, agarrou o terço com ambas as mãos e sussurrou com frieza:

– O que faz aqui? Anda a seguir-me?

Dominou o sorriso. Era sempre assim quando apanhava de surpresa alguma testemunha ou suspeito. Anda a seguir--me?, era a pergunta mais comum. Em vez de responder de imediato, aproximou-se dela, arrastando os joelhos, até ficar bem próximo, de mãos juntas, como se rezasse.

– Não a segui. Apenas estava à sua espera. Não existe melhor lugar – murmurou.

– Fico espantada em saber que é um homem de fé. Julgava-o um herético republicano.

Simão ignorou o comentário e prosseguiu:

– Foi por respeito à privacidade da senhora que escolhi este local. Aqui, pouco importa aquilo que falamos sobre o passado porque Deus é omnipresente. Foi sempre testemunha do passado, do presente e, quem sabe?, do futuro.

– Não veio discutir Deus? – ironizou.

– Não. Vim apenas dar-lhe o conforto da minha discrição. Perante Deus! Ele é a testemunha eterna dos nossos passos. E dos nossos actos!

Luísa Serpa ficou inquieta, começando a remexer febrilmente nas contas do terço. Perguntou a medo:

– O que quer de mim?

– Que me diga se, em algum momento mais íntimo, o engenheiro Penaguião lhe terá falado de alguém que lhe quisesse mal.

Voltou o rosto, encarando-o com rudeza. Simão estava à espera daquela primeira reacção e não se incomodou. Agora que lhe via o rosto bem desenhado, parecia-lhe uma princesa de conto de fadas.

– O que está a insinuar? Que eu tinha conversas menos próprias com o Álvaro?

– Compreenda-me, senhora condessa. Os seus segredos são os seus segredos. Não lhe perguntarei por nenhum, pois quero protegê-la dos estragos públicos que a investigação de um crime pode arrastar. Procurei-a sem que me vissem, num local onde toda a gente se vê.

A firmeza escondida nas palavras que ele lhe dirigia deixou-a ainda mais perturbada. Pressentia a ameaça e repetiu:

– O que quer de mim?

– Aquilo que lhe perguntei. O engenheiro Penaguião, em algum momento de maior intimidade, lhe falou de alguém que lhe quisesse fazer mal?

Mordeu os lábios. Era evidente o esforço para conter as lágrimas e, devagar, o medo foi-se apoderando do seu belo corpo e estremeceu.

– Sabe que a resposta pode destruir a minha honra.

– Esta conversa vai morrendo conforme avançamos. Quando terminar não haverá qualquer rasto. Quero saber pouco, embora compreenda que é muito para si.

Luísa sofria. O medo tornara-a ofegante e Simão temeu que entrasse em pânico e fugisse dali.

– Este não é o lugar certo para esta conversa. É a casa de Deus! – tornou a dizer.

– Exactamente! O local onde qualquer palavra pode ser dita com compaixão porque seja aqui, ou noutro local, Ele sabe tudo. Para Ele não existem segredos. Mesmo os mais íntimos e sobre os quais eu nada quero saber.

O cinismo de Simão atemorizava-a. Voltou a baixar a cabeça e soluçou novamente, procurando segurar uma lágrima com o lenço de renda.

– Eu pequei.

– É uma questão que terá de ver com o seu confessor. Não tenho competência nessa matéria – avisou Simão.

– Pequei de várias maneiras. Oh, meu Deus! Perdoa-me, meu Deus! – olhou-o agressiva e perguntou com rispidez: – Como é que descobriu a minha relação com o Álvaro?

Simão sorriu com bonomia.

– Peço-lhe perdão, senhora condessa. Os sacerdotes estão obrigados ao segredo da confissão. Eu estou obrigado ao segredo de justiça. De certa forma, sou um padre sem sotaina, nem cabeção.

– Comenta-se por aí? Fala-se do meu nome? – ripostou ainda mais inquieta.

– Nem lhe passe tal coisa pela cabeça. Não está no segredo de justiça que todos são obrigados a cumprir, sejam juízes, procuradores, Polícias ou regedores. É o meu segredo e só meu. Sossegue, minha senhora. – Foi a resposta evasiva que encontrou e quase num murmúrio perguntou: – O senhor conde sabe?

Luísa borregou. Havia nela uma humildade de penitente.

– O senhor conde é a pessoa mais bondosa, mais compreensiva, que existe à face da Terra. Sempre soube. – Não falava. Apenas gemia de dor.

Simão ficou calado, tal foi a surpreendente revelação.

– Se julga que o meu marido faria mal ao Álvaro, por ciúmes ou por vingança, está muito enganado – afirmou peremptória.

– Porque estaria eu assim tão enganado, minha senhora?

– Como disse há pouco, existem segredos que se guardam até à morte e o senhor está a tocar num que é só meu e do Manuel. Por isso, volto a repetir-lhe. O meu marido jamais faria mal a um dos nossos amigos, ainda por cima ao homem que eu amei. O único que conhecia as fragilidades de outro homem impossibilitado de cumprir os seus deveres conjugais. Nada aconteceu às escondidas do senhor conde. Bem pelo contrário! É da nobreza por direito e é nobre de carácter.

Simão não conseguia digerir tão extraordinária informação e num impulso rejeitou aquela confissão tão estranha ao seu mundo de experiências.

– Será que Deus acredita naquilo que me está a contar?

– Deus sabe que é verdade. – Voltou-se para o altar e murmurou como se estivesse a rezar: – Ainda não tínhamos casado. Manuel tinha, de vez em quando, crises de borbulhagem nas mãos, nos pés. Umas vezes parecia sarampo, outras vezes rubéola. Não são doenças vulgares quando se tem vinte e quatro anos. Já não faltava um mês para o nosso casamento quando o médico lhe confirmou a terrível notícia. Era sifilítico! Recebera a doença como herança. A mãe morrera ainda jovem com sífilis. O pai, ainda que mais velho, também faleceu com a mesma doença. Era um fatalismo do qual escaparia. Sofria de sífilis congénita. Veio ter comigo em choque. Queria que o nosso casamento não se realizasse. A sua nobreza de carácter revelou-se nesse dia. Poucos são os homens que teriam a coragem de admitir à futura mulher que, por causa do amor, a podem matar com uma doença humilhante. Se gostava dele, a partir daquele momento amei-o com veneração. Recusei a proposta. Preferia viver ao lado de alguém que me respeitasse do que escolher outro que, sendo saudável, me trataria sem consideração. E casámos.

Agora era Simão quem estremecia de vergonha porque a história que preconcebera ao desenhar o caso era bem mais vulgar. Reconhecia que, na verdade, existem segredos que vão bem para longe de uma imaginação normal.

– Dormimos sempre em camas separadas embora várias vezes o tivesse tentado. Ele recusava o meu corpo chorando de mágoa. Chorava por ele e por mim, e afligia-me a dor que o devorava. Que não conseguia fazer de mim uma mulher feliz, que entre nós haveria sempre uma permanente mágoa sexual por sua culpa. Que não permitiria que eu não cumprisse a minha vida de mulher normal. Que era um sacrifício excessivo sofrer tão brutal inibição por sua culpa. – Limpou o nariz com o lenço sem nunca deixar de fixar o altar. – O Manuel percebeu que a minha relação com o Álvaro era de forte atracção. Ele fascinava-me pela contínua boa disposição, pelo jeito em tornar simples aquilo que parecia complicado, em meter uma pitada de humor nas conversas mais cinzentas que os amigos adoravam. Não deixava de me falar dele. Da admiração e amizade que havia entre os dois. Da bondade do Álvaro. Enfim, o senhor percebe... – Calou--se por momentos. Quando retomou a conversa passara a hostilidade e foi de forma pacífica que concluiu: – Não tenho dúvidas de que ele sempre soube. Começou a dormir melhor, deixou de ter crises de choro. De certa forma, domesticou ou apaziguou o sentimento de culpa e nunca deixámos de ser felizes. Não acredita que uma mulher possa amar dois homens? A universalidade do amor vai para além de qualquer formalidade. Podemos amar tudo e todas as coisas sem que haja dentro de nós, homens e mulheres, um limite. Um inventário preciso sobre esta centelha de humanidade que se alberga em nós. E acredite, meu jovem, e não tenha dúvidas de que existem na Terra almas bem mais santas do que muitas que se prometem no Céu. É o caso do Manuel. Exagera na bebida, é verdade. Não o censuro. A penitência que carrega não é para qualquer mortal.

Simão percebeu que a confissão chegara ao fim. No entanto, estava de tal maneira atónito que respondeu:

– Pois.

– Portanto, senhor Agente, espero que seja feita justiça à morte do Álvaro, mas não procure o suspeito entre o mais inocente dos inocentes. O Manuel não é assassino.

– Não descansarei enquanto não resolver este mistério.

– Quer uma ajuda? Eu dou-lha. Procure descobrir quem sabia a hora em que o mordomo ia dar comida aos pavões. Não duvido de que encontrará quem assassinou o Álvaro e o seu empregado.

– Como sabe dessa história? – perguntou, intrigado.

– Ao ter conhecimento da morte do infeliz, o meu marido recordou que o nosso amigo teria contado, por graça, a paixão de Gervásio por essas aves numa mesa onde estavam o Comandante Carapau, o doutor Ambrósio e o Manuel.

– E o que concluiu o senhor conde?

– Nada. Eu é que pensei, ou faz parte do grupo que acredita que só os homens sabem pensar? Quem matou o primeiro, terá percebido que havia uma testemunha do veneno e matou-o a seguir. É necessário ser Polícia para chegar a esta conclusão? – perguntou, altaneira.

Benzeu-se, pegou na mala, preparando-se para sair.

– Só mais uma pergunta – apressou-se Simão.

– Sim?

– A Dona Berta também sabia ou era só a filha que se recusou a cumprimentá-la na cerimónia de apresentação de condolências?

Sorriu com tristeza.

– Esse é capaz de ser o meu maior pecado por que me desculpo. Não sinto remorsos nem arrependimento.

– Posso saber porquê?

– A Berta há muito tempo que desistira. O padre Pimentinha converteu-a. Fez com que uma boa católica se transformasse na mais indiferente das beatas. Quanto à Marta, talvez não soubesse, mas desconfiava. Fizera perguntas estranhas ao pai e começara a tratar-me com frieza.

Levantou-se e olhou de cima para baixo, interpelando o investigador que continuava de joelhos:

– Esta conversa acabou aqui?

– Acabou, senhora condessa.

– Não incomoda o meu marido?

– Deus é minha testemunha – respondeu, evasivo.

Luísa afastou-se e ele, vergado ao peso de tão inusitado testemunho, ficou na mesma posição. Uma única ideia o confortou. Ter evitado que Arengas o acompanhasse. Inventara a piedosa mentira, escrita num papel, que passaria a manhã em conservatórias e notários. Fora prudente. Se o colega escutasse um terço daquela conversa eclesial, Luísa seria o bombo da festa em todas as brigadas da PIC.

O mistério continuava de pé e Simão sentia-se a andar em ziguezague. Sobre um traçado sinuoso de pistas que se contradiziam e, por mais que tentasse, não conseguia encontrar uma motivação sustentada para seguir um caminho seguro.

Luísa não era apenas uma bela mulher. Respirava inteligência e arrumara por completo a vingança da honra. Ainda que por razões diferentes, nem o conde nem D. Berta davam importância ao valor sentimental da sexualidade. Uma circunstância invulgar num País onde a grande parte dos homicídios correntes estava associada a suspeições de adultério. Ela tinha razão. Ou quase. Fazia a ligação entre os dois crimes. Simão não tinha dúvidas. Apenas estava convicto de que não havia apenas uma mão criminosa.

Quando entrou na Brigada, encontrou um Arengas em brasa.

– Tu não tens emenda, pá! Andas sempre fugido sem ninguém conseguir pôr-te a vista em cima. És do cacete, pá!

– Deixei um papel escrito na mesa do Chefe. Fui tratar de umas coisas à Conservatória e ao Notário que fazem falta para o processo.

– Por tua causa levei um arraso do Chefe que só não lhe fui ao trombil porque preciso do pastel que aqui ganho para viver. Uma porrada do cacete, pá!

– Mas porquê? – quis saber Simão.

– Porque o processo do engenheiro está mal investigado. Que mataram o Gervásio porque tu não dás uma para a caixa e não prendes a gaja. Sim, a gaja! Que o veneno é arma de mulheres e tu andas a cheirar as calças de tipos importantes porque gostas de embirrar com gente importante. Que te vai tirar o processo. Que o culpado de não termos a assassina presa é toda minha, pois sou o Agente mais antigo e deveria meter-te nos eixos e parar a tua loucura. É do cacete, pá! Partiu-me a cabeça todinha. Só não me deu mais na tola porque acabei o relatório de um homicídio que tinha para aí a apanhar sol na secretária, e amansou. Foi do cacete, pá!

– Não ligues. Não passa de um pobre diabo. Medroso e incompetente. Onde é que ele está?

– Deve ter ido entregar o meu processo ao Inspector. Já não posso aturar o homem. – Começou a enrolar um cigarro e comentou mais sereno: – Há uma coisa em que ele tem razão. Venenos são coisa de mulherio. Até para se cuidarem lá está a porcaria do pó para as ajudar a dar o peido mestre. A verdade é que não te vejo atrás delas. A Berta pode tê-lo despachado. Ou as filhas. Ou qualquer uma das empregadas. E se ele andava a comer uma das criadas? Farta--se, caga na tipa e ela começa a dar-lhe pirolitos de arsénico.

– O engenheiro não tem esse perfil. Jamais se meteria com uma criada numa casa altamente vigiada por mulheres, duas das quais são suas filhas.

– Olha que temos vários casos de tipos que emprenharam serviçais e as mandaram dar uma curva. Elas abortam e morrem. É um prato normal. Eu já tratei de três casos desses.

– É vulgar quando se trata de uma residência com uma ou duas criadas ingénuas, chegadas da província, deslumbradas com o conforto que encontram numa casa, ainda que modesta. Vêm dos lugares da miséria. Os alarves aproveitam--se do deslumbre e da ingenuidade. Mas ali há uma multidão de mulheres dirigidas por um mordomo experiente. Nem penses! Aliás, falaste com elas. O que é que te disseram?

Aproximou-se da janela saboreando o cigarro e concordou:

– Lá isso é verdade. Muito respeitador, muito delicado. Decente!

– Como vês.

A entrada do Chefe Carrascão interrompeu a conversa. De mãos atrás das costas, queixo levantado, interpelou Simão.

– Não há horas para entrar? Chegas à Brigada quase à hora do almoço e nem um ai, nem um ui?

– Bom dia, Chefe. Não viu o papel que lhe deixei na secretária informando-o do que ia fazer? Não o leu? Fui à Conservatória e ao Notário e, depois, fui falar com pessoas que, de alguma forma, estão ligadas às empregadas do engenheiro. O veneno, como o Chefe sabe melhor do que ninguém, é uma arma de mulheres.

Carrascão olhou, desconfiado, para Arengas que continuou imperturbável a fumar o cigarro. Altaneiro, comentou:

– Era por aí que deverias ter começado. É entre essas tipas que está o segredo. – E tornou a censurar o atraso do Agente: – Não vi qualquer recado teu na minha secretária.

Simão não respondeu. Dirigiu-se à sala do Chefe e foi directo ao caixote do lixo. Sabia que ele só queria embirrar e nem se deu ao trabalho de procurar noutro lado. Regressou com o único papel amarrotado que ali estava. Pô-lo direito e entregou-lho.

– Aqui está. Deve ter havido alguém que entrou no seu gabinete e o atirou para o lixo.

Aceitou o papel olhando o subordinado com desprezo.

– Tenho-te debaixo de olho. Debaixo de olho!

Arengas não conseguiu evitar uma gargalhada quando Carrascão saiu.

– Dás cabo da cabeça do Abóbora. O homem não te grama e tu tens prazer em o pôr mais raivoso. É do cacete!

Simão encolheu os ombros.

– Queres vir almoçar? Eu ofereço. Vou passar a tarde a fazer relatórios antes que venha outra vez embirrar comigo.

Apagou rapidamente o cigarro e agarrou no sobretudo.

– Excelente ideia. Nunca resisto a borlas. É da minha natureza!


XV ACTO


O BAILE DOS GOLFINHOS

 

 


Simão não dormiu naquela noite. Quem, pela madrugada, passasse junto ao Tejo, defronte à ilha do Grilo, ficaria surpreendido ao ver a silhueta de um homem esguio, desmesuradamente alto, que o Sol nascente recortava a negro, enfiado num sobretudo cujas abas eram agitadas pela brisa fria que descia o rio.

Enganava-se quem julgasse aquela figura solitária, feita estátua, como alguém que esperava o surgimento do novo dia. Olhava as águas, ainda embaraçadas em azuis-escuros e negros, traços do manto da noite que se recolhia vagarosamente. A sua cabeça era, na verdade, um novelo de perguntas estranhas, de raciocínios perturbados, imagens fugidias de homens e mulheres que procurava compreender, cadáveres à espera de justiça.

Chegara a hora! Enlevado, viu chegar o enorme grupo de golfinhos que passava ali todos os dias ao nascer do Sol, avançando harmoniosamente, mariposas discretas à cata de comida ou de lugar para descansar. Simão olhava-os, fascinado, um sorriso terno nos lábios, e sentia que o rio se enchia de música à passagem daquele bailado. Era capaz de jurar que foram golfinhos que inspiraram Strauss quando compôs o Danúbio Azul. Eles dançavam! Os dorsos surgiam, desapareciam e tornavam a emergir, comandados pela poderosa orquestra, serenos, elegantes, transformando aquele pedaço de Tejo na mais espantosa sala de baile do mundo.

Acompanhou-os, deslumbrado, até se tornarem pontinhos negros iluminados pelo Sol, agora com o rio liberto das neblinas da noite, lá longe, bem longe!, a dançarem no mar da Palha.

Desejava ser como um daqueles golfinhos. Pegar o trilho dos crimes que tinha entre mãos, e caminhar como se dançasse, no rumo certo, sem hesitações, sem qualquer recuo, ritmo doce e seguro, sem passos em falso, até que a valsa se esgotasse na identificação dos criminosos. Subitamente, esmoreceu. Descobrir criminosos nunca teria a beleza da dança. Era um jogo de escondidas, do gato e do rato, feito de saltos em frente e de recuos, posições bizarras, movimentos bruscos.

Ainda tentou lobrigar os golfinhos na lonjura, mas já haviam desaparecido. Encontrá-los-ia numa outra madrugada, que o Tejo era morada segura para tão belos dançarinos.

Àquela hora, Violeta ainda dormia. A Bela Adormecida a descansar, no seu desengonçado castelo de tábuas, na Rua Ivens, e imaginou-se o bravo cavaleiro que lhe daria o beijo do despertar, e que marcaria o amor para sempre, como nos contos de fadas que a mãe lhe contava. Sorriu à lembrança de tal magia. Teria poderes mágicos para ir mais longe. Mergulhariam ambos num sonho fantástico onde os dois apaixonados se transformariam em golfinhos, eternamente lado a lado, rompendo em movimentos de valsa pelas sendas dos mares do mundo inteiro.

Um navio de grande calado aproximou-se de Xabregas. Abriu as goelas e soltou dois portentosos roucos roufenhos que afugentaram os delírios de Rosmaninho.

A cidade despertava para um novo dia de labuta. O pai já teria saído para a fábrica de baquelite e, como sempre, deveria ter deixado pão quente e leite para a primeira refeição do filho. Pobre pai que albergava um vadio! Sem horários, sem cuidar do sono, perdido nas horas, habitando um tempo, que umas vezes era veloz como a luz, outras vezes tão lento e preguiçoso que se desencontrava dos encontros que a vida lhe oferecia.

Consultou o relógio. Não era tarde para passar por casa e tomar o pequeno-almoço que a generosidade do pai lhe oferecia, ainda era cedo para rumar até à cidade. De repente, lembrou-se de que o doutor começava a autopsiar às sete horas da manhã e, então, o tempo manso e o tempo curto transformaram-se no tempo certo. Saltou para o autocarro. Ainda não enchera que, pela madrugada, abarrotava até Lisboa e sentou-se com a cabeça encostada ao vidro, olhando o rio. Tinha esperança naquela autópsia. O projéctil que matara Gervásio ia dizer-lhe quais os caminhos que não deveria seguir, embora não lhe mostrasse a rota firme. Era essa fé que o conduzia à morgue.

Quando entrou na sala de autópsias, percebeu que o doutor Belchior terminara o exame ao cadáver do Gervásio. O corpo, desnudado sobre a pedra, mostrava as grosseiras suturas em forma de Y que assinalavam o fim da perícia. Agora, depois de lavado a agulheta, era visível o orifício negro da entrada da bala que o matou.

O médico ocupava-se de um enforcado, cabeça e tronco abertos, as vísceras entre as pernas e o cérebro cortado em fatias, ao lado da cabeça. Um jovem auxiliar assistia-o na dissecação.

– Ainda bem que vieste. Tenho boas notícias para ti.

O doutor Belchior dirigiu-se ao cadáver do mordomo.

– Este infeliz morreu com um disparo à queima-roupa contra o parietal esquerdo. A auréola de pólvora encontrava-se nos rebordos do orifício de entrada. O tipo que o mandou desta para melhor disparou mesmo junto à cabeça e não a mais de cinco centímetros. Foi uma verdadeira execução. Porém, a morte tem alguns caprichos que a torna engraçada.

Simão não se mostrou surpreendido. Conhecia bem o médico para não relevar o seu divertimento com os caprichos da morte.

– Quais caprichos? – quis saber.

– O disparo é ligeiramente de frente para trás. O projéctil, que eu recuperei, é de chumbo, e deve ter-se amassado ao partir o parietal e, em vez de penetrar no cérebro, desatou a girar junto à caixa craniana, rasgando as membranas. Estás a perceber? Portou-se como uma ventarola descontrolada, rodopiando sem direcção em volta da cabeça. Provocou uma forte hemorragia subdural, magoou o tronco cerebral e alojou-se no cerebelo. Atendendo à extensão das hemorragias interna e externa, este infeliz ainda demorou alguns minutos a morrer.

– Uma bala de chumbo? – perguntou Simão.

– Olarila. Está um pouco destruída, mas é possível fazer--lhe uma perícia balística. Cheira-me a um calibre trinta e dois.

– Não existe mais nenhuma lesão?

– Está limpinho. Quem o matou não queria discussão. Só tinha uma preocupação: matá-lo sem jogos preliminares.

Regressou à bancada de autópsia para examinar as vísceras do jovem enforcado. Pegou na caneta, registou algumas indicações e ordenou ao ajudante:

– Podes fechar o tipo. Não há dúvida de que a morte foi por asfixia.

De seguida voltou-se para Simão.

– Queres levar o projéctil para a Balística para a coisa andar mais depressa? Assino o ofício e fica à tua guarda.

O detective assentiu. Pegou no frasco, sem dizer palavra, e tornou a observar o cadáver de Gervásio.

Ouviu a voz do médico.

– Este tipo era empregado daquele engenheiro importantão que morreu há uns dias, não é verdade?

– Exactamente!

– Na mesma casa?

– É verdade.

O doutor Belchior voltou a mirar o cadáver de alto a baixo e declarou com gravidade:

– É complicado. Um morre empanturrado de arsénico e o outro com um tiro na cabeça. Na mesma residência. Tens um bico de obra para resolver. Como é que vão as coisas?

– Muito confusas. Não encontro o fio da meada. – Mudou de assunto enquanto o tanatologista lavava as mãos: – A sífilis mata?

– Mata que se farta. É doença ruim.

– Não há mesmo cura para um sifilítico?

– Só esperanças.

– Não entendo o que quer dizer – comentou Simão.

– Há meia dúzia de anos, um escocês, médico no Hospital de Saint-Mary, deu conta de quem encontrara um fungo do género Penicilium que produzia um bolor que matava bactérias. Julgo que ainda foi na década anterior. Coisa para mil novecentos e vinte sete ou mil novecentos e vinte oito. Não me lembro. Recordo-me de que na altura se falou muito desse fungo milagroso, mas a coisa não singrou.

– Como se chama esse médico? – quis saber Simão.

– Fleming. Vou confessar-te uma coisa. A medicina tem dado grandes saltos, mas é derrotada por seres tão minúsculos que só conseguimos vê-los ao microscópio. Não passamos de uns charlatões quando enfrentamos bactérias. Comem-nos vivos. Olha a tuberculose. O Koch identificou o bacilo há mais de meio século e, ainda hoje, a doença devora as sociedades. Tal como a sífilis.

– Pois – disse Simão, pensativo, e tornou a perguntar: – Como se propaga a sífilis?

– A forma mais comum é por contacto sexual. Durante muito tempo, julgou-se que era doença de prostitutas, de gente com práticas sexuais anormais, coisas de marginais e delinquentes. Ao menos agora sabemos um pouco mais. É uma doença que atravessa toda a sociedade. Do rico ao pobre, do vagabundo ao cuidadoso funcionário público. O célebre Donizetti, o compositor da ópera O Pigmaleão, que vimos juntos, morreu sifilítico. O Van Gogh também. – Olhou para Simão, desconfiado. – Que raio de conversa é esta? Agora andas preocupado com a sífilis?

O investigador sorriu.

– Não, doutor Belchior. Não estou doente. Tem a ver com estes casos que tenho entre mãos. Deixe-me fazer-lhe uma última pergunta. O que pensaria de um homem, ainda jovem, que decidisse tornar-se num abstinente sexual por descobrir que era sifilítico?

– Era uma decisão acertada e revelando grandeza de carácter.

– E se esse jovem abstinente, compreendendo que a esposa, também jovem, é um ser humano com direito a desfrutar os prazeres do sexo, soubesse e não se importasse que ela tivesse uma relação com outro homem?

Não respondeu. Cruzou os braços, franzindo a testa, olhando alternadamente para o tecto da sala de autópsias e para o chão.

– Bom, isso ultrapassa a grandeza de carácter e tudo cai com estrondo. Na gíria popular é um boi manso. Se fosse coerente, marimbava-se no estigma que os teus amigos salazaristas, e beatos correlativos, têm lançado contra o divórcio e libertava a mulher para reencontrar uma vida normal.

– O problema é que ele está arruinado e ela é muito rica.

O doutor Belchior encolheu os ombros com desprezo.

– Sendo assim, não passa de um boi manso rico.

Deu uma palmada nas costas de Simão e comentou à laia de despedida:

– Sabes o que te digo? Cheira-me que não tens em mãos dois homicídios. Tens é uma grande dor de cabeça. Vai com calma, sem pressas. Como tu sabes, os mortos têm toda a paciência do mundo até que se descubra quem os despachou desta para melhor.

Saiu da morgue em direcção ao Torel. Ainda não eram nove horas e decidiu passar pelo Ti Oliveira para tomar um café. O conflito com o Chefe afastava-o da Brigada. Não se passava um dia em que não houvesse discussões sobre hipóteses tão disparatadas que a paciência tornava-se o maior imperativo para a sua sobrevivência.

Arengas e João António discutiam aos berros com o proprietário d’O Ceifeiro. O riso sarcástico de taberneiro atalhava as maiores convicções dos seus colegas, que de cabeça perdida gritavam argumentos, esquecendo os copos de abafado que tinham à sua frente. Nem deram pela entrada de Simão.

– O Carcavelinhos, senhor Agente?! Fale lá de futebol a sério. Vá lá!

– És um parvalhão, Oliveira. Sabes o que percebes de futebol? Nada, digo-te aqui cara a cara, nada! – bufava Arengas fora de si.

Oliveira, sportinguista por devoção, gozava ao vê-los tão irritados.

– O Pedro Pireza põe-vos os olhos em bico, meus caros senhores. Em bico! E este ano vai entrar um miúdo, que eu já vi jogar, que é uma fera. O Peyroteo vai dar para todos.

João António gritou mais alto.

– Tu queres comparar o Pireza com o Rogério ou com o Espírito Santo? Nem com estes nem com nenhum. Até te digo mais: nem chega aos calcanhares do Pinga, aquele tipo do Futebol Clube do Porto.

– Não sabes o que dizes!

– Ai, eu é que não sei o que digo?! Vai-te lixar.

– Vai tu!

Oliveira gozava o prato e punha achas na fogueira.

– Vocês discutem bola como se estivessem a jogar. A diferença é que dão as caneladas com a língua – rematou o taberneiro, reparando, finalmente, em Simão.

– O que tomas? Os teus colegas são malucos. Querem comparar o Carcavelinhos e o Benfica ao Sporting. Há gente mesmo sem miolo. O que tomas?

– Quero um café. Não percebo nada de futebol.

– Espantava-me se percebesses – atirou Arengas, amofinado.

O João António reforçou o ataque.

– Tu não tens vida, pá! Um homem que não tem garina e não gosta de futebol, não tem vida.

Oliveira serviu-lhe o café e questionou:

– Como é que um rapaz, afinadinho como tu, tem paciência para aturar estes dois pardais?

Simão sorriu.

– Não são os piores – disse.

A resposta cortês de Simão mudou o rumo da conversa. João António avisou-o.

– Hoje o Chefe quer esfolar-te.

– Quer todos os dias. – Simão encolheu os ombros e continuou a bebericar o café.

– Fui à Brigada deixar as minhas coisas antes de vir ao abafadinho e cruzei-me com ele. Nem os bons-dias me deu. Hoje vem fardado de legionário. Apenas me perguntou com um berro: O intelectual a mais ainda não chegou?, e apontava para a tua secretária. Respondi que ainda não eram horas de entrar e ameaçou-me: Não me falhes também, João António. Tu não me falhes.

– O Abóbora anda sempre com os azeites e, se hoje traz a farda da Legião, é sinal de que depois do serviço a coisa mete política. É o orgasmo do homem. Todas as semanas vai a uma coisa legionária, solta uns gritos por Salazar, e pronto!, é a vida sexual dele.

Os prognósticos dos seus dois colegas falharam. Quando abriu a porta do gabinete, Carrascão sorria, armado dos seus modos mais gentis.

– Bom-dia, meu caro Simão.

Nem foi capaz de responder perante tão civilizado cumprimento e o Chefe adiantou com uma vénia:

– Tens aqui uma visita ilustre.

Só então viu o padre Pimentinha que a porta escondera. Cumprimentou-o.

– Bom-dia, senhor padre. Por aqui?

– Bom-dia, meu filho. Quando vivemos grandes aflições temos de ir aonde nunca imaginámos. Enfim! É a vontade de Deus.

O Chefe informou:

– O senhor padre quer falar contigo sobre o caso de Campolide. Fazes favor de explicar as coisas como são. Tranquiliza o senhor padre. Quer que eu acompanhe a conversa, senhor padre?

Era só mesuras e Simão começou a sentir-se agoniado.

– Não vale a pena, Chefe. Este jovem, que já conheço, vai ajudar-me. Muito obrigado pela sua simpatia, Chefe Carrascão.

– Sou um criado às suas ordens, senhor padre – respondeu com um grande salamaleque.

Simão conduziu o sacerdote para o seu gabinete.

– Por aqui, se faz favor.

– Deste ao teu pai o abraço que lhe enviei? – perguntou Pimentinha acomodando o enorme e bojudo corpo na cadeira.

– Dei – mentiu Simão.

– Vejo as Penaguião tão desorientadas que falei com o senhor Coronel Carolino. Foi ele quem telefonou ao teu Chefe para que eu pudesse vir aqui. Nunca entrei numas instalações da Polícia. Meu filho, aquela gente está destroçada, e eu próprio já não sei como hei-de ajudar no meio de tanta desgraça.

Simão procurou dominar a irritação. Não havia um sinal de Carrascão, acerca deste processo, que não viesse com a assinatura do Coronel da Polícia Política. Era uma omnipresença visível ou invisível. Agora mandavam um padre, e não tinha dúvidas de que o objectivo era saber aquilo que Simão escondia por precaução.

– Compreendo a vossa preocupação – comentou secamente. Esperava que Pimentinha confessasse as suas mágoas.

– Acompanho aquela família desde o tempo em que os pais do engenheiro Álvaro ainda eram sãos de cabeça. Vi-o casar. Baptizei-lhe as filhas. Dei-lhes alento quando os ventos de loucura da República destruíram o País. Assisti a tudo na noite da tragédia e continuo tão atordoado como se ainda estivesse a ver o meu Álvaro emborcado no chão do escritório. Não consigo imaginar quem pudesse odiar tanto aquele infeliz ao ponto de lhe roubar a vida. O homem mais generoso que Deus pôs na Terra!

– Se Deus entra nesta história, é caso para Lhe perguntar por que o levou tão cedo. Assim como ao Gervásio.

O padre Pimentinha olhou-o desconfiado e empertigou--se:

– O que estás a querer insinuar?

– Desconfio que estes dois crimes não se explicam por intervenção divina. É coisa terrena, feita por pessoas ruins.

– Sim, pois claro – condescendeu mais sossegado.

– O senhor padre talvez nos possa ajudar em algumas coisas que continuamos sem perceber.

– Para dar paz àquelas almas, farei tudo aquilo que estiver ao meu alcance.

– É o confessor da família, não é verdade?

– Sou, mas sobre essas matérias não posso falar.

– Nem eu lhe perguntaria, senhor padre. A questão é outra. Quem é o médico da família Penaguião? O Carlos Açafrão não é de certeza absoluta.

Respondeu com um ataque de tosse que lhe fez estremecer o corpo flácido de tal modo que a proeminente barriga batia na secretária, desviando-a do lugar. Estava da cor de um tomate maduro. Simão deu-lhe três ou quatro palmadas nas costas para o ajudar a respirar.

– Então, senhor padre? Quer um copo de água?

Recusou em voz sumida.

– Isto já passa. São nervos. Só um momento que já passa.

Observava-o, agora, com atenção, esperando que se recompusesse. Pimentinha transpirava. Simão quis aproveitar a fragilidade momentânea do homem para, impiedoso, ir mais a fundo na interpelação.

– Sente-se melhor?

– Sim. Mais calmo. Isto são os nervos.

– Sendo assim, vamos esquecer, por agora, o doutor Açafrão. Senhor padre Pimentinha, existe algum motivo especial para o senhor Coronel Carolino considerar o infeliz do Gervásio como um perigoso comunista, com um motivo revolucionário para matar o engenheiro Penaguião?

Ainda gaguejou, com o olhar alvo e o rosto congestionado.

– O Gervásio?... O quê?

– Eu sei que estas congeminações sobre amigos e inimigos do Regime são a conversa preferida do Coronel. Ele deu-lhe alguma explicação?

Um novo e mais violento ataque de tosse interrompeu a resposta. Parecia apopléctico e, desta vez, Simão correu a buscar água.

Cruzou-se com Arengas que lhe perguntou:

– O abade abre-se?

– Não. O abade tosse.

Bebericar a água acalmou-o, embora continuasse a passar o dedo pelo interior do cabeção, como se procurasse alívio para respirar. Optou por baixar a pressão sobre o homem. Era visível o desconforto. Por fim, conseguiu soltar uma risadinha.

– Desculpa esta situação ridícula. Vim ter convosco para falarmos e não faço outra coisa a não ser tossir.

– Está a sentir-se melhor?

– Isto são os nervos. Um colega meu, que é pároco em Almada, costuma dizer que os nervos são pedaços do Demónio que ficaram dentro de nós desde o pecado original, depois de termos sido feitos à imagem e semelhança de Deus.

Simão forçou um sorriso e esclareceu:

– Como não quero que esses pedaços do Diabo o atormentem mais, não lhe faço mais perguntas. Deixo ao critério do senhor padre o que quer que seja esta conversa.

Pigarreou para aclarar a voz.

– Não existem pessoas perfeitas. Recordando os ensinamentos de Cristo, quem estiver sem pecado que atire a primeira pedra.

– Concordo.

– Nem tenho dormido. Aquelas meninas mimadas, sem qualquer pudor, os dois velhotes loucos, agora a Dona Berta sozinha. Não sei o que vai ser daquela gente.

Cruzou as mãos sobre a barriga e acentuou a solenidade do testemunho.

– Fui eu quem levou o doutor Carlos Açafrão para o seio dos Penaguião. Poderia ter sido um grande cirurgião, mas a vida deu-lhe uma quantidade enorme de pontapés. – Suspirou profundamente e rematou: – Os copos deram cabo do resto. Ainda julguei que pudesse emparelhar com uma das filhas e tirá-la da vida de pecado. A Marta ou a Isabel, tanto fazia. Seria bom para o Carlos, para voltar a sentir responsabilidades familiares, e para qualquer delas, que perdidas já estão e ainda poderia haver emenda.

Simão assinalou, desde logo, esta animosidade contra Marta e Helena. Era bizarro que o conselheiro espiritual da família Penaguião tivesse uma embirração especial pelas jovens filhas do casal. Simão carregou no acelerador.

– As miúdas são assim tão estouvadas? Pelo que sei, são universitárias e com boas notas.

– Sabes o que é a moda? – perguntou indignado.

– Mais ou menos.

– É tudo aquilo que nos afasta de Deus. É uma poção mortal que envenena a alma e que se importa de qualquer parte do mundo. Vai matando devagarinho a nossa juventude, para além de destruir o respeito por Deus.

A ira de Pimentinha crescia conforme dissertava sobre moda e Simão temeu uma nova crise de tosse.

– O cinema, a música, estão a estragar a nossa sociedade, que sempre foi pobrezinha mas moralmente aconchegada. O que é que mostram os filmes? Mulheres aos beijos na boca com homens, mulheres de pernas ao léu, mulheres de boquilha e cigarros a toda a hora, mulheres em danças malucas, em que já se perdeu a solenidade do baile. A Marta e a Helena deliram com essa maldita doença! A moda está a corromper os nossos costumes, as antigas boas maneiras, o respeito pela essência do temor a Deus. Vê-me as roupas que usam! As pernas nuas, os seios quase à vista, uma vergonha! Já falei disto ao nosso amado Cardeal Cerejeira e sei que está preocupado, mas Salazar só o escuta quando lhe dá jeito. Ainda não percebi porque é que o Senhor Presidente do Conselho criou uma Comissão de Censura e deixa passar todas estas poucas-vergonhas. Não há casa que não tenha uma grafonola, não há música, por mais imoral que seja, que não se oiça e se dance. Ainda por cima, com o aplauso dos pais. Mais do Álvaro do que da Berta. Cansei-me de lhe dizer: «Álvaro, as tuas filhas dançam o can can, mostrando as pernas até às cuecas.» Até às cuecas, minha Nossa Senhora! Parecem aquelas mulheres perdidas dos quadros daquele pintor francês debochado, de que não me lembro o nome.

– Toulouse Lautrec.

– Esse ordinário. Filho, digo-te do fundo do coração: a República devassou os nossos costumes, ultrajou a Santa Madre Igreja, e o Estado Novo em vez de emendar a coisa, fica satisfeito com paninhos quentes. – Já foi vermelho de indignação que desabafou o último dos pecados: – Até conduzem o automóvel do pai! Eu vi, com estes que a terra há-de comer. As doidas a guiar um automóvel do Álvaro! Eu vi.

Calou-se, carrancudo, a braços com os pecados femininos que estavam a destruir o seu modelo cristão.

Simão esboçou um leve sorriso ao imaginar uma discussão entre o doutor Belchior e o padre Pimentinha. Eram quase da mesma idade e, por mais estranho que parecesse, viviam em mundos diferentes. O médico já sentado no futuro. O padre adormecido no passado.

– Pois! – disse o detective, apenas para quebrar o silêncio sepulcral que invadira a sala.

– Uma vergonha. Vão acabar as duas no Inferno – vociferou o cura limpando o suor da larga testa.

– O Céu e o Inferno é mister do senhor padre. Salvar a alma. O meu é bem mais profano e terreno. Descobrir assassinos e metê-los na cadeia.

– Tens um triste fado, por acaso – lamentou mais calmo.

– Essa sua desconfiança para com a Marta e a Helena tem escondida uma suspeita sobre quem praticou os crimes. Alguma delas tem namorado?

Fez uma careta de repugnância.

– Namorado? Namorados, queres tu dizer. Só me faz lembrar uma casa de matriculadas. Com excepção do dia da missa, em que aparecem decentezinhas ao lado do pai e da mãe, quem quer vê-las é com grupos de rapazes e de outras doidas iguais a elas. – E esclareceu com sarcasmo: – Agora não se chamam namorados. São amigos.

– Pois – repetiu Simão e resolveu testar o ultramontanismo de Pimentinha com a voz mais seráfica: – O mal de tudo isso foi permitirem que as mulheres estudassem. – Acendeu-se uma luz no seu peito e trovejou:

– É o que eu digo. É o que eu digo. Quando lhes abriram as portas da universidade, abriram-se as portas do Inferno. Abandonaram a sua verdadeira função, cuidar do marido, tratar dos filhos, serem donas da casa para que a família seja o verdadeiro pólo de afecto e de fé. Mas a vida transformou vadios e bolcheviques nos grandes heróis destes novos tempos. Almada Negreiros? Raul Proença? Aquilino Ribeiro, esse vadio beirão que não tem respeito por ninguém? Aquelas raparigas têm uma paixão deslumbrada pelo pecado. Já ouviste falar da Seara Nova? Uma coisa de escritores. Dizem eles que são escritores. Não há lá um que a tal se assemelhe. Um bando de facínoras. Só de me lembrar do Jaime Cortesão ou desse comunista António Sérgio sinto que pequei. – Benzeu-se três vezes, esconjurando todos os diabos que recitava, e apostrofou rancorosamente as duas irmãs: – Elas têm o atrevimento de ler essas coisas obscenas à frente de toda a gente e o Álvaro estimulava-as. Infelizmente, estimulou-as a arranjar um vadio qualquer, entre os seus amigos, para o matar.

– O senhor acha?

Inclinou-se o mais que conseguiu para a secretária e declarou solene:

– Acho.

– Viu alguma coisa estranha? Algum desses rapazes terá roubado lá em casa? Ou odiaria o pai da Marta e da Helena ao ponto de lhe querer fazer tanto mal?

– Acho! – teimou e concluiu: – Não sei que te diga mais. Ou o nosso Salazar abre os olhos e põe os Antónios Ferros na ordem ou isto nunca mais se endireita.

Simão agradeceu-lhe estendendo a mão.

– Obrigado por ter vindo, senhor padre. Foi uma preciosa ajuda.

– Eu é que te agradeço. Fiquei muito aliviado por saber como pensas. És dos nossos! O teu pai, apesar de viúvo, soube educar-te. Também gostava de me despedir do teu Chefe que me pareceu um homem com tino.

Simão concordou sem pestanejar.

– Muito bom homem, sim senhor. E uma grande Polícia. Eu acompanho-o, senhor padre.

Mal o sacerdote deu costas, surgiu Carrascão.

– Como é que correu? Talvez não saibas, mas este Pimentinha é unha com carne com o Cerejeira. Figura de peso! Disse alguma coisa que possa ajudar a esclarecer o que se passou?

– Sobre os crimes não sabe nada, mas deu uma grande lição sobre moral e bons costumes. Acho que o Chefe teria gostado.

– Deve ser um grande padre – elogiou.

– Apenas não gostei de duas coisas – rematou com disfarçado prazer por antever a reacção que iria provocar no legionário.

– O que foi?

– Acha que Salazar é um banana, brando de mais, e desconfia que as filhas do engenheiro são duas almas perdidas. Imagine que dançam can can. Quanto ao resto, gostei de ouvir. Se fosse o Chefe, daria uma palavrinha ao senhor Coronel Carolino. Não é que o padre seja comunista. É mais um velho inquisidor, mas mesmo assim, nunca fiando.

– Ele disse isso sobre Salazar? – perguntou, perturbado.

– E em voz alta! Agora, se me dá licença, tenho de ir levar as provas que recolhi junto ao galinheiro, no local onde mataram o mordomo. Com a sua licença.

Carrascão ficou sem perceber se Simão o gozava ou se falava a sério. Apenas comentou:

– Afinal, o Gervásio não era o assassino.

– Não era, Chefe. Nem nunca poderia ter sido. Aquilo que a Polícia Política fez, convencendo o senhor de que o homem era o autor do crime, é próprio de gente mentalmente perturbada. Assim como não foi bonita a sessão de pancadaria com que foi mimoseado pelo Arengas e pelo João António com o seu ámen.

– Tu não falas comigo assim – o verniz acabara de estalar e o clássico Abóbora regressou em força.

– Eu não falo mais, Chefe.

Saiu levando as provas do crime consigo. A conversa com o padre Pimentinha deixara-o deprimido. Aquela ideia de que em cada mulher vivia a culpa de Eva, a tresloucada sedutora de Adão, confrontava Simão com a dimensão mais obscura da velha Igreja, que durante séculos impusera a sua ditadura moral e que a República julgava ter destruído. Pimentinha era a voz dos antigos medos que nunca deixaram de estar presentes, por maiores e mais radicais que tivessem sido as revoluções que os quiseram destruir.

 

Arengas esperava por Simão no corredor. Fez-lhe um sinal de silêncio assim que o viu aproximar-se e murmurou:

– Anda tomar um copo comigo.

– Tens algum segredo que não pode ser falado aqui? Desconfias da Polícia? – perguntou bem-disposto.

– Anda comigo – teimou Arengas.

Quando saíram, em vez de se dirigir ao local habitual, O Ceifeiro, o eterno poiso da má-língua, puxou Simão para o Campo dos Mártires da Pátria.

– Vamos para o jardim que as paredes têm ouvidos – murmurou, receoso.

Era tanto o secretismo que Simão começou a interessar--se pela atitude conspirativa do colega. Deixou-se conduzir até junto de um enorme carvalho, afastado do aglomerado de pessoas que cirandava em volta da estátua de Sousa Martins.

Arengas olhou com cautela para confirmar que não estavam a ser seguidos, puxou da onça de tabaco e do livro de mortalhas, começou a fazer o cigarro e só então falou:

– Já era para ter falado contigo, mas não deu. Não quero que o Abóbora saiba desta nossa conversa. É um bode! Não me larga por causa dos processos que tenho atrasados, que só penso em bola e em gajas, e vai-se a ver tenho apenas três à espera de respostas do Registo Civil. É um bode. Não faz a ponta de um cacete e só sabe embirrar. É só pose. Deve julgar-se um General.

– Foi para te queixares do Chefe que me trouxeste aqui? – perguntou Simão.

– Não. É outra coisa. – Entalou o cigarro entre os lábios e acendeu-o. – Ontem à noite resolvi espairecer e fui dar uma volta pelo Bairro Alto.

Aspirou o fumo com prazer e Simão atalhou:

– Queres tu dizer que foste dar um giro pelo mulherio.

– Fui encontrar-me com uma miúda algarvia que fica babada de cada vez que me vê.

– Já percebi. És um derrete corações.

– Não interessa. A moça estava com uma amiga, que se chama Irene, e costuma atacar no Cais do Sodré.

– E tu estás apaixonado pelas duas! – ironizou Simão.

Arengas reagiu, agressivo.

– Não estou apaixonado por ninguém, pá! Já te disse que o assunto é sério, por isso pára de brincar, c’um cacete!

– Pronto! A minha boca é um túmulo.

– Essa Irene tem uma tia que vive na Mouraria e é evidente.

– Evidente?!

– Sim, evidente. Vê coisas, evidências.

– Já percebi. É vidente.

– Isso mesmo.

– É bruxa.

– Porra, Simão! Ou escutas a história toda ou vou-me embora.

– Desculpa.

– Então essa tia evidente ou vidente, bruxa ou a puta que a pariu, contou à Irene que sabe quem matou o engenheiro Penaguião.

– Arengas...

– Espera. Disse mais: que era a primeira de três mortes que viera do pó, a segunda envolvia uma pistola e a última seria com uma faca. Fiquei parvo, pá! Como é que a tia da Irene sabia que o Gervásio ia levar um tiro na mona, antes de ter acontecido?

– Tu não lhe contaste que estamos a tratar desse crime?

– Estás doido? Nem uma palavra. Quero lá saber do raio dos mortos quando estou com uma miúda. Nem uma palavra! Estou parvo, pá. Sabia do arsénico que despachou o engenheiro, da pistola que fez o Gervásio dar o peido mestre e garante que vai marchar outro à facada.

– Ela falou em arsénico?

– Não. Que a primeira morte viera do pó, a segunda de uma pistola e a terceira seria à facada. Isto desorienta-me, pá!

– Pode ter lido nos jornais.

– Julgas-te tão inteligente e agora estás armado em burricalho? Como é que o jornal poderia dar a notícia de uma morte que ainda não acontecera? Isto é sério, Simão. Abre os olhos que isto é muito sério. A mulher tem que ver.

– Ver o quê?

– C’um cacete, pá! Ver o futuro. Ver coisas que vão acontecer. Ver evidências daquelas que já aconteceram. É evidente que vê.

Hesitou e tornou a perguntar a Simão:

– Já estou todo trocado. Diz-se vidente ou evidente?

– Vidente. É uma bruxa mais moderna.

– Pois, se é mais moderna ou mais antiga não sei. Foi a sobrinha que me contou.

Simão teve vontade de reagir com rispidez. Conteve-se. Para ele, a vidente da Mouraria era uma velha persistência do mesmo universo fantástico medieval, carregado de crenças e preconceitos que, ainda há pouco, ouvira o padre Pimentinha defender. Limitou-se a adiantar dúvidas:

– Ela falou em pó e não em arsénico. Garantiu que o segundo crime seria cometido com uma pistola e foi com um revólver. Quanto à possibilidade de um homicídio à facada, não espanta. Até acertas e não és vidente. É uma das armas mais usadas em agressões que terminam em homicídio.

Arengas não gostou de ser contrariado e protestou:

– Não vais querer que uma vidente saiba a diferença entre uma pistola e um revólver e que seja especialista em venenos, olha que cacete!

– Vulgarmente são os pormenores que lixam as bruxas – respondeu Simão.

– Ao menos devíamos falar com a mulher. Combino com a Irene e fazemos-lhe uma visita. Isto não é normal. Sei que há tipos como tu que não acreditam em bruxas. Basta entrar num cemitério para se perceber que isto não vai lá com a discussão sobre quem acredita ou não acredita.

– Num cemitério? – perguntou Simão sem compreender.

– Nunca viste? Fazem lá trabalhos para lixar tipos. Um homem abana só de ver os restos que deixam nas sepulturas e nos jazigos. Bonecos de pano com alfinetes espetados no coração e na carola, fotografias de infelizes enfiadas em batatas, velas queimadas com crucifixos ao contrário e já está! Uma marmelada do cacete!

– Já está o quê, Arengas?

– Abre os olhos, pá! Achas que, se essas encomendas não fizessem efeito, a clientela continuaria a aumentar? Só aumenta porque a bruxaria resulta, olha que caraças! Eu tenho muito respeito por essas coisas.

Apagou o cigarro, esmagando-o com o pé, e ficou à espera da reacção do colega.

Simão decidiu não continuar a questiúncula sobre as bruxas e as videntes. Não acreditava que uma infeliz que vivia na Mouraria pudesse ver ou antecipar crimes. Por outro lado, poderia haver alguma ligação indirecta com a família de Álvaro Penaguião, através de alguma empregada ou com qualquer dos convidados daquela noite. Era forçoso confrontar a tia de Irene com os factos e sugeriu:

– Fala com essa tal Irene e organiza um encontro com a tia.

– Acho que estás a pensar bem – declarou Arengas, satisfeito, e garantiu: – Vou tratar da coisa, mas tu é que falas.

– Eu? Tu é que conheces as pessoas.

– Pois. Videntes, bruxas e coisas meio esquisitas não são comigo. Nem conversas, nem olhares, nem nada!

Simão não conseguiu deixar de sorrir bem-disposto.

– Arengas, tu tens medo?

– E se tiver? Qual é o problema? Tudo o que é matéria é comigo. Ando à porrada com um matulão qualquer, se for preciso pegar um touro, eu estou lá, rebenta a guerra, e eu digo presente, disposto a morrer e a matar. Mas almas penadas, espíritos malignos, coisas que existem mas uma pessoa não vê, deixa-me nervoso. O que é que queres, com essa cara de gozo? Cada um é para o que nasce, olha que cacete!

Simão estava deliciado com os medos do Arengas.

– És o meu ídolo. – Foi o único comentário que conseguiu fazer.

– Ao menos revelas bom gosto – contrapôs, ufano.

– Tenho de regressar à Brigada. As filhas do engenheiro já devem estar à minha espera.

– Isso é material do bom e não tem nada de bruxaria. Diz-lhes que tens um colega jeitoso, que trata delas como deve ser. – Arengas não resistiu à sua fanfarronada e desatou a rir.

Despediram-se.

Eis que chegavam as bruxas e o poder de adivinhação como caminho a ter em conta. Este regresso aos tempos de Torquemada e da perseguição aos heréticos mostrava-lhe os difíceis caminhos que estavam por romper à luz do conhecimento científico. Na verdade, a Polícia de Investigação Criminal, criada por Sidónio Pais ainda não havia vinte anos, era parto difícil cujas consequências ainda eram desconhecidas. Por outro lado, caminhar por um processo-crime era ele no baile dos golfinhos. Os indícios surgiam e desapareciam em mergulhos sincopados que, num momento, apontavam para um suspeito, e num outro afloramento mostravam que, afinal, o criminoso poderia ser outro, perguntas com respostas, perguntas sem respostas, a verdade que se mostra e que se esconde, a evidência que salta na espuma dos dias para logo se esvair na imensidão das coisas por saber. Os golfinhos dançavam e Simão imaginava-se nesse estranho bailado que ora o fazia ir ao fundo dos tempos, atulhados em superstições, lendas, crenças e velhas verdades para, de repente, subir às alturas da lógica e aos píncaros da ciência.

 

Marta levou as mãos à cabeça, num gesto de desespero.

– Não me fale do padre Pimentinha. É o nosso pesadelo! Já sonhei com ele e acordei assustada. Até transpirava. Corria atrás de mim, armado de uma forquilha, para me atirar para as chamas do Inferno. – E rematou com aspereza: – Não é padre. É um polícia do Céu que foi enviado para Lisboa.

Simão dominou o sorriso. Agora que conhecia o bojudo sacerdote, compreendia melhor as queixas das duas irmãs. Decidiu provocá-las.

– Segundo o vosso confessor, foi um dos vossos namorados que decidiu fazer mal ao vosso pai.

– Qual namorado? – quis saber Helena, indignada.

– Nós não temos namorados – reagiu Marta.

– Não há um grupo de rapazes que vai ter convosco à vossa casa? – insistiu Simão.

As duas entreolharam-se, atónitas.

– Vão. Por acaso são três colegas meus. O Luís, o Nuno e o Henrique.

– Às vezes, também lá vai o Francisco – lembrou Helena.

Marta, vermelha de irritação, perguntou desabrida:

– São esses nossos amigos de quem o pateta do Pimentinha suspeita? Senhor Agente, são meus colegas de faculdade e a maior parte das vezes que estiveram em nossa casa foi por convite do nosso pai, que adorava jogar bilhar. É verdade que estudámos juntos, uma ou outra vez, mas a maioria das visitas devia-se ao meu pai. Gostava de jogar com eles, embora eu desconfiasse que o bilhar era o pretexto para conhecer melhor os amigos das filhas. Temos uma mesa no salão de jogos e o meu falecido pai era um entusiasta. Posso dizer um palavrão?

– Pode. Está na casa dos palavrões.

– Esse Pimentinha é um cabrão! Vê pecado em todo o lado.

– Um cínico! – ajuizou Helena e esclareceu: – Comigo embirrava por causa da roupa. Admoestava a minha mãe por permitir que gostássemos de vestidos da moda e depois entrava o nosso pai, e com aquela cara de queijo redondo, comentava com ar de santo: «As tuas filhas estão cada vez mais bonitas!» É um cínico. Para ele, tudo aquilo que seja diferente ou mais colorido é pecado.

– Vocês tinham uma relação especial com o vosso pai? – indagou Simão.

Ficaram ambas emocionadas. Helena balbuciou:

– Tenho tantas saudades dele.

Marta recompôs-se e confessou:

– Era um homem fora do seu tempo. Sobretudo numa sociedade tacanha e preconceituosa como a nossa. Foi ele quem nos levou a estudar. Foi ele quem nos abriu os caminhos da música. Era por causa dele que tínhamos aulas de ballet. – Limpou o nariz com um lenço bordado e uma lágrima que corria pelo rosto com as costas da mão e continuou: – Nunca ligou às perfídias do padre, nem às conversas rascas do Comandante Carapau ou ao veneno destilado pela Dona Albertolina. Éramos o seu encantamento. E defendia--nos quando a minha mãe se deixava levar pelo azedume do Pimentinha. Repetia sempre o mesmo: «Deixa as raparigas estudar. Deixa-as divertir-se. É esta a idade para aproveitarem os prazeres da vida.»

– E qual era o papel do doutor Carlos Açafrão? – quis saber o detective.

Marta fez um gesto de repulsa.

– Não me fale desse homem. É bêbado e ordinário. Não o suporto.

– É um dos protegidos do padre Pimentinha. Foi ele que o levou lá para casa e não há fim-de-semana em que não apareça. Tem a mania de se meter connosco. Deve achar-se um príncipe encantado – disse Helena.

– Mete-se convosco? Como?

Marta era a mais faladora e respondeu:

– Conversas ordinárias. Na noite do jantar, aproximou-se de mim, com aquele sorriso a cheirar a vinho, e disse-me: «Chupava-te essas maminhas.» Respondi atirando-lhe para cima o que restava de um copo de groselha que tinha na mão. Sujei-lhe o casaco e o ordinário insultou-me em voz baixa. Fartei-me de chorar. Depois sei que saiu com o seu amigo Egídio e foram ao carro limpar a nódoa. São dois porcos.

– O Egídio e o Açafrão?

– Não reparou? Mete-se pelos olhos dentro – respondeu Marta.

– Desculpe. Não estou a perceber.

Foi Helena quem interveio:

– A gente nunca viu. A Dona Albertolina é que está sempre a dizer.

– A dizer o quê? – insistiu Simão.

– Que o senhor Coronel lhe contou que o Açafrão, quando estava sem dinheiro, aceitava fazer coisas porcas com o Egídio a troco de pagamento.

Simão levantou o olhar surpreendido.

– A sério?

– Toda a gente conhece os gostos do Egídio. É como é. Não interessa. O Açafrão é que é um porco. Ele, sim, um verdadeiro prostituto.

Tornou a olhar as duas raparigas. Os vestidos de luto realçavam a beleza dos rostos. Marta era elegante, morena, os olhos negros cintilavam, e à memória de Simão veio Violeta. Tinha uns olhos belos como aqueles. Helena era mais baixa, os gestos mais comedidos, o corpo bem talhado e os fascinantes olhos verdes pareciam feitos de mar. Não admirava que a moral dominante, cinzenta e parda, sentisse tanta beleza como o pecado em potência. Ainda para mais sendo irrequietas, educadas para a rebelião, saltando ao eixo sobre a regra que impunha a louvaminha e o unanimismo. Tudo isto movido por inteligências acima da média. Simão tinha de reconhecer. Marta e Helena eram a negação de tudo aquilo que o padre Pimentinha esperava dos seus fiéis.

– Têm alguma ideia de quem pudesse querer tanto mal ao vosso pai?

Marta avançou:

– Já pensámos muito nisso, mas a única pessoa que não gostava dos procedimentos do meu pai era o senhor padre.

Simão cumprimentou-as com um sorriso.

– Foi um gosto falar convosco. Lamento muito a vossa perda.

– É só isto? – perguntou Helena, surpreendida.

– Sim, só isto – respondeu, fechando o processo-crime que tinha à sua frente.

– Julgava que era um interrogatório policial com gritos, ameaças, como se vê nos filmes. Com alguns murros à mistura como fizeram ao pobre do Gervásio.

O investigador iludiu a crítica da rapariga e retorquiu:

– Convosco essas perguntas terríveis são desnecessárias depois daquilo que ouvi. A cumplicidade que mantinham com o vosso pai era tal que, caso soubessem alguma coisa da tragédia, tê-lo-iam dito sem reservas. Ele era o vosso porto de abrigo, o farol que vos impulsionava para a vida. Sei o que isso é. O meu pai mantém comigo essa cumplicidade que nos faz ter vontade de agarrar o tempo e vivê-lo com sofreguidão. Tenho pena de vocês. Perderam o pai e as asas protectoras de um anjo que sonhava a vossa felicidade.

Nem Marta, nem Helena responderam. Ambas choravam em silêncio, magoadas de tanta saudade.


XVI ACTO


UM MORDOMO INGLÊS

 

 


Não estranhou ser uma empregada a conduzi-lo ao quarto de Gervásio. A viúva ficara assustada, medrosa com as perguntas de Simão. De cada vez que falaram, estilhaçara um bocado do mundo perfeito que ela inventara com a ajuda do padre Pimentinha. Talvez vivesse inquieta com a rebeldia das filhas. Porém, era o marido o principal incentivador à extroversão e D. Berta aceitava. Sabia que, antes de tudo, a obediência ao marido era um dever para com Deus. Nem o seu confessor tinha artes de resolver esse conflito. A família assentava na autoridade paterna que, por sua vez, se subordinava aos interesses da Pátria e às virtudes emanadas do poder divino. Tal como rubricara Salazar num importante discurso, era desta forma, tendo Deus, a Pátria e a Família como pináculos da vida, que se construiria a verdadeira e eterna felicidade dos portugueses.

Simão não ligava aos temores de D. Berta. Apenas lhe interessava o quarto do mordomo para melhor compreender a alma do morto e entrou como se fosse recomeçar o eterno baile dos golfinhos.

Percebeu que nada fora mexido. Deixara sinais para detectar algum intruso da primeira vez que ali estivera. Um livro caído no chão, que seria pisado por quem quisesse entrar, a primeira gaveta da mesinha-de-cabeceira entreaberta e as portadas do guarda-fatos fechadas ao contrário de forma a ter o trinco liberto.

Voltou-se para a empregada:

– Agradecia que ficasse aqui. Preciso que testemunhe os meus passos e, caso eu apreenda alguma coisa, necessito que assine o auto que terei de levantar.

– Tenho de falar com a Dona Tomásia. Ela é, agora, a nossa chefe.

– A senhora não está?

– Foi à missa e as meninas estão na universidade.

– Então vá num pé e venha no outro.

A rapariga afastou-se e Simão tornou a observar com atenção a biblioteca de Gervásio. Pegou no Frei Luís de Sousa e folheou-o enquanto aguardava. Já não o surpreendeu ver anotações nas páginas. Quem tanto gosta de livros, não lhe basta a leitura superficial e corrida. Precisa de digerir até ao tutano das palavras. O mordomo anotava momentos críticos do psicodrama. Sorriu ao ler o comentário junto à fala de Telmo a descrever a doença de Maria: Tuberculose? Já seria conhecida no século xvii?

Era um leitor atento e as escolhas bibliográficas denunciavam que a sua contratação, por Álvaro Penaguião, não fora um mero capricho. Não tinha dúvida de que o recrutara para que organizasse o enorme palacete e, sobretudo, com a função de ajudar na educação das filhas. Numa prateleira da estante estavam arrumados os antigos manuais escolares das meninas. Era claro que, para Álvaro, os estribilhos tridentinos de Pimentinha não eram suficientes para a formação das filhas. Se o sacerdote impunha uma regra ameaçadora, carregada de todos os castigos divinos, Gervásio entregava-lhes armas para varrerem preconceitos e medos: os livros!

A empregada regressou e colocou-se à entrada do quarto. Simão Rosmaninho sentiu que chegara a hora de avançar. Passou uma a uma as cartas de um maço de correspondência que estava sobre a cómoda. Eram cartas das irmãs que viviam em Inglaterra. Conversas banais e saudades. Uma delas previa regressar a Lisboa, numas curtas férias, para se encontrarem e visitar a campa da mãe. Desinteressou-se.

Sentou-se na cama e abriu as gavetas da mesinha-de- -cabeceira. Foi com surpresa que reparou que na última, junto ao chão, estava um livro sem título com uma fita azul em volta. Simão resolveu abri-lo.

Era um diário! Gervásio registava factos que vivera. Assentava obrigações profissionais. Indicações sobre os seus passeios pela cidade.

De súbito, desinteressou-se da leitura cuidadosa e, com avidez, procurou as últimas páginas escritas. Despertava uma secreta e ténue esperança de que o homem pudesse ter registado algo sobre o que se passara na noite do crime.

A última entrada fora escrita no dia da apresentação de condolências e falava de Simão e de Arengas. O coração deu um pulo.

Estiveram aqui dois Agentes da PIC. Queriam falar comigo, mas não confio neles. Quem me garante que não estão ligados ao C.C.? Não posso dar qualquer passo em falso.

Agora tinha a certeza. Gervásio vira mais do que aquilo que contara e o levara a pedir a ajuda telefónica à PIC e as iniciais só poderiam significar Coronel Carolino.

A penúltima nota fora escrita na noite do crime. Era anormalmente extensa em relações aos restantes registos quase telegráficos e a letra era diferente. Não tinha dúvidas de que o empregado escrevera dominado por forte emoção. Leu com crescente atenção. Devagar. Quando chegou ao final, procurou precipitadamente um lápis nos bolsos do sobretudo e tornou a reler. Sublinhou algumas frases. Quando chegou ao fim, ficou imóvel, sentado na cama, com o olhar fixo na parede.

Gervásio entregava-lhe a chave do mistério. Era um testemunho póstumo que obrigava a trabalho delicado para chegar ao assassino. A primeira regra que impôs a si próprio foi reforçar o habitual silêncio. Simão padecia dos mesmos receios do mordomo. Não sabia em quem confiar.

Retirou um papel do bolso interior do casaco, registou a apreensão e chamou a empregada:

– Por favor, assine aqui. Levo comigo este livro.

Evitou a palavra diário. Sabia que, mais cedo ou mais tarde, chegaria aos ouvidos de todos aquilo que era objecto da sua atenção. Julgá-lo-iam tonto por levar um livro consigo, mas não levantaria suspeitas sobre o tesouro que tinha debaixo do braço.

A rapariga corou e respondeu envergonhada:

– Não sei assinar.

– Há alguma das empregadas da casa que saiba ler e assinar este documento?

– Vou perguntar.

Afastou-se a correr. Simão foi atrás dela, em passo lento. Agora compreendia tudo e à memória vinham-lhe os protestos do doutor Belchior: Os salazaristas são piores do que Salazar. Uma cáfila de incompetentes, de criaturas ressabiadas, capazes das maiores injúrias à Humanidade.

Em tempos, afrontara-o recusando esta ideia tão absoluta sobre as grandes individualidades do Estado Novo. Naquele momento, sentia-se impelido a aplaudir o tanatologista.

A rapariga regressou acompanhada de uma outra moçoila.

– Só a Adelaide sabe assinar, embora não saiba ler. Mais ninguém sabe ler nem escrever.

Simão apresentou o papel e ela desenhou vagarosamente o nome perante a impaciência contida do detective. Voltou a exibir o livro.

– Não se esqueçam. Levo um livro comigo.

Saiu apressado do palacete. Ainda havia muito caminho para andar até chegar ao sórdido criminoso. Como repetia, nas grandes discussões com Arengas sobre Sherlock Holmes, não bastava saber. Era necessário provar.

Olhou o céu num singelo agradecimento a Gervásio e saltou para o autocarro que, naquele instante, chegava à paragem. Queria chegar rapidamente à Sociedade de Geografia e cumprir uma promessa adiada que, da última vez que ali estivera, fizera ao porteiro. Não seria apenas de cavalos e de cavalaria que iriam falar.


XVII ACTO


UM ENCONTRO INESPERADO

 

 


Simão sentia um doce conforto naquele final de domingo. Cumprira a promessa que fizera a Violeta de irem visitar o Castelo de S. Jorge. Uma viagem que o encantara ainda mais e ia, agora, a caminho de casa, apenas com ela no coração, recordando as conversas e as primeiras gargalhadas que lhe ouvira, e, num primeiro momento, não percebeu o chamamento que vinha do interior do Nicola. Só ao segundo grito parou surpreendido.

– Oh, senhor Polícia! Ao menos fale aos amigos. Não quer tomar um copo?

Voltou-se e viu o Comandante Carapau, um sorriso largo, sob o longo bigode retorcido. Acenou outra vez.

– Venha. Acompanhe com gente de bem, homem de Deus. A vida não é só bandidos.

Curioso, dirigiu-se à porta do café e vislumbrou, de imediato, a súcia que se encontrava na primeira mesa.

O conde de Serpa, o deputado Peixoto e um outro indivíduo que ele não conhecia, cumprimentaram-no cerimoniosamente. O desconhecido levantou-se e sugeriu a Simão:

– Sente-se aqui. Apesar de ser domingo, tenho uma quantidade de assuntos a tratar até à hora de jantar.

Carapau despediu-se do homem com uma pergunta:

– Posso ficar descansado. Tratas deste assunto?

– Fica tranquilo. As omeletes fazem-se com os ovos que temos à mão – gracejou e saiu.

O Comandante voltou-se para Simão:

– O que lhe apetece? Vinho? Um conhaque? Peça o que quiser que hoje é por minha conta.

– Obrigado. Apenas um copo de água.

– Água? – perguntou indignado para comentar com aspereza: – Isso não é bebida de autoridade.

Simão sorriu, apaziguador.

– Sou abstémio e de fraca autoridade.

– Estávamos no paleio com o doutor Geraldes. Vem aqui todas as tardes. Foi quando o vi passar e pensei: «Aqui está quem nos pode contar as últimas sobre a tragédia que assentou arraiais em Campolide.»

Mudando o tom brejeiro, perguntou:

– Você não sabe quem saiu daqui e lhe estendeu a mão?

– Não. Acho que nunca o vi.

Carapau olhou-o, espantado.

– Oh, homem, você não lê jornais? A fotografia dele está lá quase sempre. E na primeira página! O Geraldes é um dos principais chefões da União Nacional. Entre ele e Salazar existe apenas a maçaneta de uma porta. Não precisa de se anunciar nem de marcar reunião. É tu cá, tu lá. Como é que não conhece o Geraldes?

O conde e o Peixoto não mostravam qualquer interesse na conversa do amigo, que, em tom de comando, ordenou a um empregado:

– Oh, calhordas! Um copo de água para esta mesa.

Foi o deputado quem interrompeu o monólogo.

– Então, senhor Agente. O que nos diz destas desgraças? Depois do terrível caso do senhor engenheiro, fazem uma maldade horrível contra o pobre Gervásio? Pobre homem. Isto parece irreal.

– Li no jornal. – Concordou o conde sem grande emoção, bebericando o conhaque.

– O senhor já podia ter prendido o ordinário que fez estas patifarias. Olhe que não é difícil de descobrir – rugiu o Comandante.

– Não é difícil? Não percebo como... – Simão reagia cauteloso, no entanto o brutal Carapau não estava virado para hesitações.

– O paneleirão que chula esta gente toda. Toda, salvo seja. De mim, nunca levou um avo. O Penaguião lixou-se porque lhe abriu as mãos em demasia. Quando fechou a torneira, o canalha vingou-se limpando-lhe o sarampo. Aqui o Peixoto e o nosso conde que contem como é que ele os esmifra. Vá digam aqui ao detective o que todos nós sabemos.

Era visível o incómodo dos dois personagens perante tão brutal exortação.

– A mim, nunca me roubou nada nem extorquiu dinheiro. Pede emprestado, apenas – esclareceu Peixoto, apaziguador.

– Alguma vez te pagou aquilo que te vai pedindo emprestado? Peixoto, não te faças de tanso. Pagou? Devolveu algum dinheiro?

– Não. Isso não.

– Ora aí está!

Voltando-se para Simão, explicou:

– Aqui o nosso deputado escreve uma ou duas colunas no pasquim do paneleirote. De quinze em quinze dias, vai entregar o escrito à redacção, na Rua dos Sapateiros, e é cravado com dez ou vinte paus. Escreve e paga. E ai do Peixoto se não se chegar à frente.

– Não é bem assim – contemporizou.

– Aqui o nosso conde está obrigado a pagar publicidade a uma empresa de vinhos que acabou quando o seu excelentíssimo pai faleceu. Quarenta paus de quinze em quinze dias. Nem lhe pergunta nada. Escarrapacha o anúncio e manda a factura com o maior descaramento do mundo. É ou não é verdade, Manuel? – perguntou, altaneiro.

– É mais ou menos isso – respondeu, evasivo.

O Comandante não desarmava em demonstrar a falta de escrúpulos do Director d’ O Adamastor.

– O Álvaro já o tinha avisado que lhe ia acabar com a mama. Esse infeliz entrou com contos de réis por causa de uma promessa que o pai dele fez ao pai do rabeta. Contos de réis!

Simão perguntou com curiosidade.

– Qual é o motivo que leva tanta gente a pagar e a calar--se?

Foi o conde quem respondeu:

– Ele já desgraçou várias pessoas.

– Mas como? – insistiu.

– Fazendo o que já me fez. Não pagas e a primeira página do pasquim vem cheia de notícias sobre ti. Sejam verdade ou mentira, pouco importa. Uma pessoa vê o seu bom nome enxovalhado por aquele assassino.

O Comandante Carapau transpirava indignação e Simão sintetizou:

– O senhor não lhe deu publicidade e ele usou o jornal para o achincalhar.

– Esse calhordas de merda teve a ousadia de escrever que eu tinha negócios com os rojos. Que a minha parceria com o General Mola e com os Nacionalistas era apenas um disfarce para negociar com as duas partes. Eu?! Que fui amigo do saudoso General Sanjurjo, que fui recebido na casa de Primo de Rivera, ia fazer negócio com os políticos que mais odeio? Com bolcheviques e anarquistas?

Carapau regurgitava espuma pelos cantos da boca e rematou com um furioso murro na mesa.

– Mas não paguei ao paneleirão!

Algumas pessoas, que se encontravam sentadas noutras mesas, olharam com curiosidade ao troar do vozeirão enraivecido do Comandante e a conversa baixou de tom. Simão perguntou quase num sussurro:

– Como é que tem a certeza de que o senhor engenheiro Álvaro ia pôr fim a essa pensão ao Egídio?

– Porque nos disse. A mim e aqui ao Manel, um dia em que a conversa veio à baila na Sociedade de Geografia. Não te lembras? – perguntou.

– Sim. Claro – concordou o conde.

– Eu não estava presente. Nem sou sócio – acrescentou o deputado Peixoto.

– E sei que acabou mesmo. Foi uma das coisas que o Álvaro falou comigo naquele jantar fatídico. – Relembrou a frase: – Já falei com o Egídio. Acabou a bondade. Só o convidei esta noite para ele perceber que a estima que tenho por ele não tem nada a ver com negócios. – Parou por instantes e confirmou: – Foi isto mais ou menos.

Simão voltou à carga.

– Há alguns dias, ia a passar na Rua da Prata e vi-o a discutir com o Director d’O Adamastor.

– É possível. Trato-o a pontapé onde quer que o encontre. Nessa conversa que o senhor viu, ficou avisado. Mais uma palavra sobre mim e açudo-lhe os cães. Vai ver como elas mordem.

O investigador acreditou na promessa. Carapau transpirava violência e obscenidade. Simão não tinha qualquer dúvida de que seria capaz de matar por uma futilidade que lhe disparasse a fúria. Se não tinha a frieza para matar devagar, com um veneno, num acesso de cólera poderia ter disparado contra a cabeça do mordomo. Decidiu mudar o rumo da conversa e perguntou:

– Era frequente encontrarem-se na Sociedade de Geografia?

Foi o conde de Serpa quem respondeu.

– Não tínhamos qualquer compromisso, mas era frequente, entre as cinco e meia, seis horas da tarde, quer o senhor Comandante, quer o senhor engenheiro apareciam por lá. Eu estava sempre.

– Sempre? – perguntou Simão e o conde respondeu com um sorriso quase a pedir desculpa.

– Passo lá grande parte das tardes. Sou um apaixonado por cartografia e a Sociedade tem história nesta matéria. Acho que herdei esse vício de Sua Majestade, o senhor D. Carlos.

– E o senhor deputado? Também é frequentador?

O pequeno homem meneou negativamente a cabeça.

– Pouco. Não sou sócio. Só entrei quando estava na companhia de algum membro daquela prestimosa associação.

Carapau tornou a reivindicar, rancoroso.

– Prenda o paneleirão. Toda a gente sabe que ninguém, naquele jantar, tinha qualquer motivo para fazer mal ao Penaguião. Nem a chata da minha mulher, que diz mal de toda a gente, mas é só da boca para fora, acredita que há outro suspeito. Esse calhordas era o único com motivos para o matar. Já mo disse. E olhe que tem a língua bem afiada. Só se cala quando vê bolos. Então, a minha Genoveva transforma-se numa santa.

– A esposa do Coronel Carolino também gosta de doces – adiantou Simão.

O Comandante soltou uma gargalhada.

– A Albertolina? É uma santa! A única pessoa com quem embirra é com o Carolino. É um homem com muito poder na PVDE, mas é um trapo na língua dela.

Evitou perguntas sobre Luísa Serpa. Não queria que o desbocado Carapau a usasse como pretexto para humilhar o marido. Era um homem distinto, bem diferente do boçal que monopolizava a conversa. Elegante na pose, suave nos gestos, e através das palavras percebia-se que recebera uma educação esmerada. Apenas os olhos raiados de sangue e uma ligeira tremura nas mãos denunciavam o vício. No mindinho estava a marca aristocrática. Um anel brasonado. Simão era capaz de jurar que mãos tão bem tratadas nunca tinham sentido o peso do trabalho, e o corpo bem constituído não deixava dúvidas de que fizera muita actividade física. Embora estivesse a caminho dos cinquenta, quem observasse o conde de Serpa não lhe daria mais de quarenta anos.

Já o deputado Peixoto, pequenino, fato e colete cinzentos, gravata escura, calvo, com mechas de cabelo esbranquiçadas a ladearem a cabeça, pernas juntinhas, sobre as quais tinha uma pasta a que se abraçava com carinho, mais parecia um humilde funcionário público ou de balcão, do que um activo deputado da Nação.

– Desculpe a minha pergunta, senhor deputado. Se o Director d’O Adamastor lhe pedia dinheiro de cada vez que lhe entregava um artigo de opinião, porque não desistiu de escrever naquele jornal?

A resposta deixou Simão embasbacado.

– Temos de servir a Pátria em todas as trincheiras desta guerra terrível que travamos. – A voz do homem contrastava com a sua aparência de lingrinhas. Firme e bem colocada.

– Guerra? Nós? – perguntou sem perceber o alcance de declaração tão solene.

– Contra o comunismo!

– Apoiado! – reagiu Carapau batendo com a mão na mesa. Tal exclamação despertou a paixão do homenzinho, que se dirigia a Simão como se o censurasse por tamanha ignorância.

– Aqui ao nosso lado, os nossos irmãos espanhóis foram obrigados a pegar em armas para enfrentar o monstro. Morrem nas ruas, quais novos cruzados, defendendo a civilização e a cristandade. Neste momento, salva-nos de tão terrível carnificina, Sua Excelência, o verdadeiro, o autêntico pai da Pátria. Ergue o Estado Novo! O mais sólido bastião contra a selvajaria vermelha e nós, enquanto soldados ao serviço da glória de Portugal, temos de ajudar, servindo. Servir Salazar, é servir Portugal! E seja nas ruas, seja em campos de batalha, seja num jornal ou numa rádio, este combate não pode ser perdido por patriotas. Por isso, escrevo, pago e não me queixo. Pagaria com a própria vida, se Deus achasse que era necessário.

– Apoiado! – repetiu Carapau sem grande entusiasmo.

– Muito bem. O nosso deputado é um orador de excelência – cumprimentou-o o conde de Serpa.

– Pois – balbuciou Simão, atarantado com a solene declaração.

– Duvida? – perguntou Peixoto, desconfiado.

– Não, não – apressou-se a responder o Polícia e, para amaciar os ânimos, justificou sorridente: – Na minha trincheira combate-se contra assassinos.

– Ora nem mais! Nobre ofício, sim senhor. Prenda-me o calhordas do paneleirão, pela sua rica saúde – rematou o Comandante.

Era tarde. Simão combinara jantar com o pai, e foi a desculpa que avançou para se despedir.

Carapau cumprimentou-o, contrariado.

– Acho que o senhor fez de nós um bando de calhordas.

– Eu? Por quem é? – protestou.

– Chamei-o para vir ter connosco para nos contar como ia a descoberta do mistério de Campolide e, afinal, ficámos em branco. Saiu-me cá uma prenda! – resmungou.

– Por quem é, senhor Comandante. Não passo de um pobre Polícia que ao pé de pessoas com a vossa grandeza só aprende. Não há nada para contar. É a minha triste sina. – Terminou com uma brincadeira: – O mistério continua misterioso. Com a vossa licença.

O autocarro ia quase vazio. Ao domingo, àquela hora, era uma linha pouco procurada. Simão ia satisfeito. Percebia, cada vez melhor, as motivações dos personagens daquele enredo que tinha entre mãos.

Olhou para o Castelo a ser envolvido pelas sombras do anoitecer. Naquela torre, virada ao Tejo, estivera com Violeta, horas antes, os corpos a tocarem-se nos ombros, observando os barquinhos e os grandes vapores que demandavam Lisboa. Dali não se conseguiam ver os golfinhos e Simão estava encantado com o encantamento dela, tão feliz, a olhar Lisboa. Ele apontava e descrevia aquilo que lhe mostrava:

– Olhe o Terreiro do Paço. Olhe como são lindas as fiadas de ruas certinhas, cruzando-se em harmonia. Durante mais de dois séculos, viveram naquela praça reis e rainhas, príncipes e princesas. Residiam num palácio enorme, como nos contos de fadas. Era o Paço da Ribeira e, no terreiro, cirandava uma multidão de mercadores, criados da corte, marujos e monges, tanoeiros e ferradores. Quando olho o Tejo daqui, vejo caravelas e naus que chegavam nesses tempos, velas gigantes, debruadas de gaivotas e guiadas pelas tágides que Camões descobriu. – Calou-se por momentos e murmurou: – Depois, veio o terramoto e tudo desapareceu! Apenas restaram as gaivotas.

Simão sentiu que Violeta se chegara mais a si, como se procurasse abrigo no seu corpo.

– Desde criança que oiço falar desse desastre – sussurrou.

– Está a ver, ali, mesmo à nossa frente, aquelas ruínas gigantes? É o Convento do Carmo e o testemunho desse dia terrível em que todos os diabos dos infernos quiseram matar Lisboa. Até o doce Tejo enfureceu, galgou as margens, varrendo a cidade. Vê aquele edifício bonito, ao lado, da Igreja de São Domingos? O Teatro Dona Maria. Ainda não existia, mas águas vieram por aí acima, ultrapassaram aquele ponto e, depois, foi o próprio Inferno que explodiu, incendiando Lisboa.

– Meu Deus, deve ter sido terrível!

Por momentos ficaram em silêncio. Escutavam os gritos de aflição, os prantos, viam as crianças a tiritar de medo, perdidas, vagueando pelos escombros das ruas, mães de cabeça perdida chamando pelos filhos e pelas encostas das colinas uivavam os cães com medo da morte. Quando o rio regressou ao leito, levava no ventre centenas de mortos para os sepulcros na imensidão do oceano.

Reparou que ela tremia.

– Tem frio? Quer o meu sobretudo?

Ela olhou-o com um sorriso. Era tão bonita que Simão não se conteve sem lhe fazer uma carícia.

– Quero ficar assim contra o seu corpo – sussurrou.

Passou-lhe o braço pelos ombros e aconchegou-a com ternura.

– É tão linda que Lisboa deve ter inveja de si – murmurou-lhe ao ouvido e Violeta estremeceu. Era uma frágil flor no alto do Castelo.

– Conte, conte como é que a cidade ressuscitou desse dia de tanto luto. O rei salvou-se?

– Dom José tinha ido para a Ajuda de manhã cedinho e o terramoto foi entre as nove e as dez da manhã. Era Dia de Todos os Santos e muita gente foi apanhada enquanto escutava a missa nas igrejas. Terão morrido mais de dez mil pessoas.

– Santo Deus! – exclamou, assustada.

– Houve um padre, da Congregação do Oratório, que era ali na Rua Nova do Almada, que foi engolido pelos destroços dos desmoronamentos. Conseguiu sobreviver e escreveu um livro arrepiante onde descreve a destruição, rua a rua. Depois, valeu-nos o Marquês de Pombal.

– Aquele que mandou matar os Távora.

– Um homem de génio. É um dos meus heróis – confessou Simão.

Violeta olhou-o, surpreendida.

– A sério?

– Terá cometido muitos erros, com certeza que fez muitas injustiças, todavia, foi graças a ele que o velho Portugal começou a despertar, dando origem a um País moderno. A reconstrução de Lisboa é um exemplo da sua visão de Estadista. Quando entregou a Eugénio dos Santos o desafio de desenhar a nossa capital do Império, que vê agora aos nossos pés, inteira e limpa, começou a construir-se o futuro. E surgiu esta jóia.

– Foi esse Eugénio dos Santos quem fez a estátua do rei a cavalo?

– Não. Foi construída vinte anos depois por Joaquim Machado de Castro, um dos maiores escultores portugueses de sempre.

Violeta tremeu de frio. Uma aragem fresca começava a subir do rio, anúncio de que a visita estava a chegar ao fim e, de repente, surgiram duas gaivotas de asas abertas quase a tocar o par.

– Você sabe tanta coisa! – exclamou a rapariga ainda com os olhos pregados no rio.

Simão curvou-se como se estivesse envergonhado com o cumprimento.

– Sei tão pouco, Violeta. Nem sei o que procuro.

A rapariga olhou-o sem perceber e ele adiantou:

– Tenho dois crimes para descobrir. Sei quem é um dos assassinos e não conheço prova para o prender. O outro suspeito quem seja e duvido de que o consiga prender, mesmo encontrando provas contra ele.

Violeta afastou-se perturbada e Simão sentiu que lhe tocara numa ferida que ainda não sarara. Apressou-se a pedir desculpa.

– Eu sei que tem ainda muito presente a morte da sua mãe. Sei como é doloroso perdermos alguém que tanto amamos. Também perdi a minha. Era bem mais novo do que você quando a pneumónica a levou. A dor e a revolta destruíram--me de tal forma que de tudo tenho feito para não tornar a sofrer tanto com a perda de alguém que amo. Nunca fui a um baile. Nunca frequentei lugares onde houvesse circunstância para alguém se aproximar de mim ou de ser confrontado com a possibilidade de encontrar um amor pelo qual iria temer. A morte da minha mãe foi um apocalipse afectivo. Mergulhei nos livros para entender o verdadeiro sentido da existência. Procurei descobrir os mistérios da música com um médico meu amigo, acreditando que a universalidade do belo me traria a ideia de eternidade. É verdade! Apaixonei-me pelo intangível. Por aquilo que interpela a nossa imortalidade. Escuto Mozart e sei de cor as mil cores da Natureza. Oiço Beethoven e tenho a certeza de que a música é a única vencedora da morte. Li o Eça e aprendi a ironia que existe nos nossos pensamentos mais grotescos. Antero e Pessoa põem-me em turbulência e obrigam-me a pensar para além do instante. Com Renoir aprendi a doçura, com Rubens os limites do trágico. Amo toda esta gente, Violeta. Amo-os tanto que julguei que já não haveria mais espaço dentro de mim para o amor. Só que são paixões etéreas. Não existem corpos. Não existe o toque de mãos, o calor de um abraço, os deslumbres de um beijo.

O encanto da visita terminara. Agora, estavam sentados nas pedras da muralha, de costas voltadas à cidade, e Simão regressava à sua timidez habitual.

– Não acredito em Deus! – tossiu e explicou-se: – Não acredito nessa entidade suprema, infinitamente justa, misericordiosa e bondosa.

– Está a dizer uma heresia – censurou Violeta.

Simão revoltou-se.

– É uma criação dos nossos próprios medos e da nossa fome de justiça. Que raio de bondade é essa que me roubou a minha mãe? Onde está a misericórdia quando Ele deveria saber que amo o infinito, a única centelha divina que nos empurra para o viver, e não lhe toco, não apalpo, não o sinto entre as minhas mãos secas de não tocar o calor e o infinito que existe nas mãos de todos nós? Onde mora essa justiça divina que se revela através de ti, a moça cuja mãe morreu nas minhas mãos e a quem prendi o pai? Como posso amar, com esta paixão que me desperta e aquece os meus dias, sabendo que sempre me olhará como o criador da sua própria orfandade?

Violeta não respondeu. Procurava estancar as lágrimas, rosto voltado ao vento.

Simão, visivelmente abatido, olhou sem atenção três crianças que saltavam ao eixo no terreiro do Castelo. Tinha a voz rouca de emoção, quando, revoltado, tornou a perguntar:

– Onde está Deus que não O encontro?

Apoiou a cabeça numa das mãos e nem reparou que Violeta se levantava, encarando-o de frente.

– Simão – murmurou.

Ergueu a cabeça e pareceu-lhe ver um anjo. Agora, com o sol a iluminá-la de frente, a rapariga irradiava luz.

Ela suplicou:

– Abraça-me!

Ergueu-se devagar, fascinado com a beleza radiante de luz que a recortava no céu de Lisboa. Envolveu-a com os enormes braços até que Violeta se sumiu dentro de si.

A partir desse dia, nunca mais se trataram por você.


XVIII ACTO


SIMÃO EM ALERTA

 

 


O acaso só existe como oportunidade para quem está intelectualmente preparado para o interpretar e torná-lo num acontecimento. Simão não se recordava de onde lera esta frase que, naquele dia, evocou instintivamente ao sentir um baque perante aquilo que os seus olhos viam. Segurou o braço de Arengas, fazendo-o parar.

– Olha!

– Olho, o quê? – perguntou o outro, atarantado.

– Ali. O Chefe com dois tipos.

– Já vi. Deve ir almoçar. É razão para tanto espanto? Tás mesmo passado dos carretos.

A atenção de Simão não diminuía com os dislates do amigo.

– Conheces algum dos homens que vai com ele?

– De vista. São da Polícia Política e amigos do Abóbora. Devem ir almoçar ao Oliveira. Qual é o problema? Picou-te alguma mosca?

Simão continuava hirto a observar o grupo de homens que avançava em amena cavaqueira para O Ceifeiro. Calculou a distância que faltava até ao restaurante e pediu em súplica a Arengas.

– Preciso de um grande favor teu.

– Lá voltaram os favores. Vais lixar-me a hora de almoço! – resmungou, desalentado.

– Não. Apenas te peço que empates o Chefe. Dá-lhe conversa. Inventa qualquer pretexto. Preciso de chegar ao Oliveira antes de eles entrarem. Peço-te por tudo!

Arengas olhou-o, intrigado.

– Mas o que é que te deu, assim tão de repente?

– Cinco minutos. Apenas cinco minutos!

Arengas reagiu, ríspido.

– Desta vez não faço a ponta de um cacete se não me explicares o que se está a passar. Acabaram-se os segredinhos. Que merda é esta, Simão? Ou contas ou daqui não saio.

Dizendo isto, estacou, de braços cruzados, desafiando Simão. Não estava em condições de se escapar perante a teimosia do outro.

– O teu problema é que olhas e não vês. Se não desses à língua, fosses mais perspicaz, não passávamos por estas birras. Repara no mais alto. Coxeia e tem um pulso ligado. Isto não te recorda nada? Cinco minutos de treta. Vai.

Simão desatou a correr para a tasca. Aquele grupo de homens poderia ser a solução do caso que mais lhe escaldava as mãos e que, agora, lhe transformava os pés em asas. Apostava a vida no talento de Arengas para a conversa de cordel. Bastaria o Oliveira estar disponível para o ajudar e talvez tudo estivesse a chegar ao fim.

Irrompeu, arquejante, pelo restaurante no momento em que o proprietário acabava de terminar a composição das mesas para o almoço e, ao ver entrada tão desabrida, perguntou com presunção:

– Vens assim com tanta fome?

– Preciso de te pedir um favor, mas tens de ser mais rápido do que um cowboy americano atrás dos índios.

Com fingido entusiasmo, o outro respondeu:

– Oh, homem, empresta-me a tua pistola e arranja-me um cavalo e só precisas de me dizer onde estão os índios. Despacho-os todos. Pum!Pum!Pum!

– Despacha serradura pelo chão. Sobretudo debaixo das mesas. Depressa!

– Simão, também estás maluco como o Arengas? Serradura a esta hora do dia?

– Pela tua rica saúde. O meu Chefe vem para aqui com dois indivíduos. Espalha debaixo das mesas deles e um pouco por toda a sala para não desconfiarem.

– Tu estás a falar a sério? Para quê? – agora já não brincava. Estava impressionado com a aflição

– Depois digo-te. Pela tua rica saúde. Por todos os santos em que acreditas. Não há tempo. Juro que explico tudo, mas faz. E faz depressa. É assunto de vida ou de morte!

Finalmente, Oliveira deixou-se contagiar e correu a buscar o balde de serradura.

– Já não consigo sair daqui sem que me vejam. Onde é que me escondo? – perguntou Simão ainda mais tenso.

– Abre a porta da cozinha. Depois há uma outra que dá para as traseiras – informou enquanto espalhava os minúsculos detritos de madeiras pelo chão.

Simão desapareceu. Era tal a excitação que nem cumprimentou a mulher do Oliveira, afanosamente controlando os cozinhados do dia, e esgueirou-se pela porta que dava para o quintal. Deu por si rodeado de couves, tomateiros e alfaces. Um pequeno portão abria para a rua. Levou a mão ao trinco mas susteve-se. Os três homens poderiam vê-lo a sair pelas traseiras da tasca, caso o Arengas não tivesse inspiração para o seu talento palrador. Resolveu aguardar cinco minutos e reparou, então, que estava encharcado em suor. Talvez tivesse um golpe de sorte. Se a serradura funcionasse, teria condições para fazer um molde que poderia comparar com a pegada que recolhera junto ao galinheiro, no palacete de Campolide, e desta forma resolver o mistério que não o deixava descansar. Nem voltar a abraçar Violeta.

Por fim, decidiu sair cautelosamente. Avistou Arengas ao longe, sentado num banco de jardim, enrolando calmamente um cigarro e nem sinal do grupo liderado por Carrascão. Já estavam n’O Ceifeiro. Dirigiu-se apressado ao colega. Arengas, ao vê-lo aproximar-se, desatou-se a rir.

– As tuas maluquices inspiram-me. Eu sei que sou mentiroso, mas hoje abusei. Ficaram tão entusiasmados com o garruço que lhes enfiei, que até me convidaram para almoçar. Só por causa das trombas que o Chefe me fez é que desisti de ir morfar à pala destes tipos importantes.

– Obrigado, Arengas. Foste um amigão. Como conseguiste?

– Lembrei-me do tal Repórter X que entrevistou um emigrante português que era porteiro do Kremlin. E dei comigo a pensar. Se o pessoal acreditou nessa galga, porque não hão-de estes papalvos acreditar que estão dois espanhóis republicanos às portas do Palácio de Belém, dispostos a limpar o canastro ao Carmona? Engatei-os com a força toda. Vão reforçar a vigilância ao Presidente da República e pôr a guarnição em alerta máximo. Lá lixei a vida da magalagem que estava a preparar-se para ir de folga de fim-de-semana. E agora? Contas-me o que foste fazer enquanto me pagas o almoço?

– Pagarei amanhã. Hoje não posso. Vou buscar gesso.

Arengas agarrou-lhe o braço. Estava indignado.

– Faço este papelão todo para te ajudar e vais buscar gesso sem me contares o que vai dentro dessa carola?

Simão encolheu os ombros.

– Não sei o que vai acontecer.

– É do cacete, pá! Desconfias de mim ou apenas não me gramas? – perguntou, exaltado.

– Estou a falar a sério, Arengas, pode ser ou pode não ser. Não reparaste nos companheiros do Chefe? Um deles coxeia e tem um pulso atado com uma ligadura.

– Reparei tanto que até lhe estive a enfiar milongas enquanto corrias que nem um doido para a tasca do Oliveira.

– Era o mais alto e forte. Isso não... – Deixou a frase a meio, estupefacto com aquilo que estava a pensar. Arregalou os olhos para Simão.

– Tu achas que aquele tipo...

– Não sei. Preciso do molde do botim. Foi por isto que corri a pedir ao Oliveira que espalhasse serradura pelo chão e, agora, preciso de gesso para fazer o molde quando eles saírem.

Afastou-se apressado, deixando o colega boquiaberto. Arengas hesitava. Simão era um génio ou um transtornado que via fantasmas em todo o lado. Encolheu os ombros com indiferença. Não podia passar de uma simples coincidência. Lisboa está cheia de tipos que coxeiam e não conseguia acreditar que a Polícia Política fosse tão descarada ao ponto de transformar um Chefe da PIC num dos seu bufos. Ainda por cima, o seu Chefe. Foi almoçar e não se lembrou mais das tontices do colega.

Entretanto, Simão regressava com um saco de gesso e escapou-se na direcção do Lavra. Dali vigiava a porta d’O Ceifeiro sem que o pudessem ver. Estava ansioso. Se os moldes coincidissem ficaria a um passo de poder estabelecer todas as ligações do estranho mistério que há semanas o absorvia.

Mal viu o Chefe e os companheiros de almoço sair do estabelecimento, encaminhou-se rapidamente para o local. Oliveira estava pálido. Dirigiu-lhe palavras de censura quando entrou.

– Não voltes a meter-me nestas coisas. Tenho as pernas a tremer.

– Onde é que se sentou o tipo que coxeava?

O taberneiro apontou para uma cadeira.

– Ali. Estava em frente ao teu Chefe.

– Empresta-me um alguidar com água para eu poder desfazer o gesso.

– Dás cabo de mim. Tenho os nervos em franja. Como é que me meti numa alhada tão grande? Como?

Simão tentou acalmá-lo.

– Deixa-te de lamúrias, que não fizeste nada fora do normal e ninguém vai perceber o que se passou aqui. Prometo-te que durante um mês venho almoçar todos os dias. Vais ganhar uma fortuna!

– Uma fortuna, diz ele – repetiu desalentado enquanto lhe passava o alguidar com água.

Simão colocou-se de gatas debaixo da mesa. Alguns clientes observavam-no com curiosidade a recolher o molde. Simão sentiu que era o gato do Oliveira a roçar-se por debaixo das mesas. Felizmente a serradura permitira marcas precisas. Quando terminou o trabalho, partiu apressado a caminho do laboratório e não saiu até as perícias estarem todas concluídas.

Já passava das quatro da tarde quando se dirigiu ao Nicola. Segundo os seus cálculos iria chegar a tempo. Quase correu pela Rua de S. José, não abrandou a passada até chegar ao Rossio e cruzou-o com o coração em sobressalto. Ao entrar no café suspirou de alívio. O doutor Geraldes lanchava sentado a uma mesa ao fundo da sala. Ficou surpreendido ao ver Simão de mão estendida para o cumprimentar.

– Senhor Agente, como está? Quer lanchar?

– Obrigado, senhor doutor. Preciso de si para uma conversa que, julgo, não lhe roubará muito tempo.


XIX ACTO


PREPARAR UMA ARMADILHA

 

 


Simão não dormiu naquela noite. Sabia que não iam ser fáceis as tarefas que faltavam para levar à Justiça os matadores de Álvaro Perdigão e de Gervásio. Naquele preciso dia, que agora começava, passara um mês exacto sobre a semana fatídica. Reunira as provas que encaixavam na perfeição na construção do discurso lógico que punha a claro a perversão do caso. Não seria fácil. Como costumava profetizar o doutor Belchior, não lhe restavam dúvidas de que as resistências que encontrara ao longo da investigação se transformariam numa vaga de ordens de interdição. Adivinhava o Chefe a insultá-lo. As ameaças de despedimento, o impulso do poder do Estado Novo a funcionar para evitar escândalos e, no final, a sua impotência ser motivo de chacota de muitos.

Antes de se deitar, dissera ao pai:

– Sei quem matou o seu patrão e quem executou o senhor Gervásio.

Manuel levantou os olhos para ele. A colher de sopa ficou a meio caminho.

– Podes dizer-me quem são?

– É melhor o pai ficar longe disto. Depois saberá.

– Gente importante?

Simão encolheu os ombros.

– Aprendi consigo que somos todos importantes.

Manuel Rosmaninho retomou a sopa com um aceno de concordância.

– Tens razão. No entanto, vivemos um tempo onde habitam senhores que dão a si próprios uma importância que o regime político protege. O resto é escória humana.

Passou o guardanapo pela boca e concluiu:

– Nós fazemos parte dessa multidão de insignificantes.

– Eu sei. Estes casos servem de lição.

– Faz o que a tua consciência e o teu dever te mandam fazer, mas com astúcia. Por mais que te custe, há quem esteja acima da lei. E muitos estão abaixo de qualquer lei. São deserdados como nós.

Costumava ser assim. Quando chegava a insónia, a cama magoava-lhe o corpo. Por mais voltas que desse, nunca encontrava a posição ideal para adormecer. Experimentou todos os truques. Concentrar-se no gorjeio de dois rouxinóis que habitavam no enorme loureiro ao fundo da rua. Contar os comboios que passavam ao longe. Todavia, a noite não lhe trazia tranquilidade.

Com os olhos abertos, cegos da escuridão, Simão recapitulava possíveis falhas no caso. Contava a si próprio a história que fizera renascer e, de súbito, era interrompido pelos gritos de Carrascão: «És uma besta! Estás despedido.» E não encontrava a solução final para sair do calvário e a cama magoava-o cada vez mais, os minutos da vigília eram preguiçosos e as horas tardavam.

Sabia que não podia partilhar com qualquer um as conclusões a que chegara. Uma palavra em falso e deitaria tudo a perder. Pensou em expor o caso ao Inspector e só de imaginar a frieza do seu Chefe, a distância e desinteresse, antecipava a resposta que receberia: «Vá falar com o seu Chefe. Ele que fale comigo. Aqui respeitam-se as hierarquias.»

Guardar os dois processos eternamente na gaveta da secretária, até que fosse esquecido, era ideia que, por si só, o enxovalhava. Se o fizesse, esta insónia que o atormentava prolongar-se-ia pelo resto dos seus dias. Por outro lado, a PIC não esquecia os mortos nem as suas famílias. Ouvira isto num discurso de um director qualquer e soara-lhe bem ao ouvido. Era um bom encosto para expor os seus casos, embora precisasse de interlocutor que aceitava tão melindroso desafio. Veio-lhe à cabeça o aviso que o pai lhe deixara à hora de jantar e, talvez fosse necessário refazer o discurso que, na altura, achara interessante: a PIC não esquece os seus mortos, nem as suas famílias. Desde que os assassinos pertençam à escória humana.

Sem cuidar das horas, Simão levantou-se. Desistiu de lutar contra o colchão que estava apostado em roer-lhe os ossos. Criou a ilusão de que não faltaria muito tempo para que os golfinhos chegassem no seu mágico bailado e decidiu ir até ao rio. Acendeu uma vela e, para não acordar o pai, vestiu-se cautelosamente. Embrulhou-se no velho sobretudo e saiu pé ante pé.

O céu brilhava com tanta estrela e a lua cheia, bolachuda e sorridente, aspergia luz e vestia o Tejo de prata.

Resistiu a consultar o relógio de bolso. Só lhe aumentaria a impaciência e caminhou devagar pelas ruas desertas, silencioso, qual foragido do Inferno.

Já prendera mais de duas dúzias de assassinos e, quando chegava o momento da captura, não retirava disso qualquer prazer. Pelo contrário. Tinha compreendido como é constrangedor retirar a liberdade a alguém. Não havia alegria e muito menos glória. O verdadeiro fascínio era a caminhada até ao homicida. Entrar no local do crime e perguntar ao Polícia de vigia:

– Alguém viu ou ouviu alguma coisa?

E receber a resposta:

– Não há nada. É um tipo desconhecido. Foi um fulano que ia para o trabalho e deu com o cadáver.

Essa resposta assinalava o momento zero do percurso que iria encetar. Descobrir vestígios, saber quem era a vítima, identificar sinais e traços que o laboratório descodificava cientificamente, conhecer o passado daquela vida abruptamente interrompida, entrar-lhe nos segredos mais íntimos, reconstruir afectos e relações, construindo com paciência de artífice o fio sinuoso que uniria aquele ponto zero ao criminoso.

No caso concreto do engenheiro Penaguião e do mordomo Gervásio, os actos de captura entregavam uma sensação estranha de prazer que nunca sentira. Talvez porque fosse quase uma impossibilidade ou por pressentir o perigo de executar com sucesso aquelas acções. Na verdade, sentia algum pudor em reconhecer a essência daquele imenso conforto quando antevia as capturas. De certa forma, ia prender a arrogância e a mesquinhez. O cinismo sórdido. O autoritarismo vazio. Ignorante. Boçal. Tinha de reconhecer. Era uma sensação quase orgástica meter na cadeia todo esse monstro de hipocrisia que lhe causava repulsa.

Subitamente estacou. Uma luz intensa iluminou-lhe a cabeça e viu com clareza onde se encontrava o único caminho que poderia levar os dois casos a bom porto. O coração acelerou. Simão desviou-se do caminho que estava a percorrer, tomando a direcção da cidade. Primeiro em passo rápido, depois a correr e quanto mais pensava na solução assim encontrada, mais certeza tinha de que ia conseguir terminar em paz a longa caminhada desde o ponto zero, a noite em que entrara pela primeira vez no palacete, e vira o engenheiro estendido no soalho do seu escritório.

Quando chegou a Santa Apolónia, transpirava abundantemente. Correu para um dos carros de praça que esperavam o primeiro comboio da linha do Norte que chegaria nessa madrugada.

Deu as indicações ao motorista e, antes de alargar o nó da gravata, pediu suplicante:

– Depressa!

Finalmente consultou o relógio. Ainda não eram cinco da manhã. O automóvel avançou veloz pelas ruas desertas da cidade. Simão pressentiu que o motorista ainda queria regressar a tempo de recolher viajantes que chegariam do Porto.

Antes que surgisse a cabeça do Arengas, apareceu um revólver apontado à cabeça de Simão quando a porta se entreabriu.

– Baixa a arma. Sou eu.

– Tu? Sabes que horas são? Apanhei um cagaço do cacete! – desabafou Arengas.

– Preciso de falar contigo com muita urgência.

Desgrenhado, em cuecas, com a arma na mão, os olhos inchados de sono, coçou a barriga e tornou a perguntar:

– Tu sabes que horas são? Deitei-me tarde, estou estoirado e, de repente, aparece-me este besouro que não basta ter de o aturar durante o dia. Bate-me à porta a altas horas da madrugada e vem embirrar comigo quando procuro descansar. É do cacete!

– Arengas, é demasiado importante para estares amuado. Escuta-me pela tua rica saúde!

– Não me lixes, pá! Não há questões importantes às cinco da manhã. Toda a gente dorme. Ainda nem as putas nem os homens do lixo se levantaram.

– Sei quem matou o engenheiro Penaguião e o Gervásio.

– O quê? – perguntou, despertando imediatamente.

– Ouve-me com atenção porque para isto terminar como deve ser preciso de ti. És o grande pilar desta aventura que se aproxima do fim.

– Não me levas com graxa. Estou com frio. Vou vestir qualquer coisa e já falamos, embora não acredite que seja pilar de qualquer coisa. Nem tenho jeito para herói quando entro nas tuas histórias. Nunca têm gajas.

Momentos depois, Arengas surgia enfarpelado, enrolando um cigarro. Acendeu o fogão a petróleo e encheu uma cafeteira com água, que pôs ao lume.

– Sei que estás impaciente, mas se não beber café não te consigo ouvir sem me deixar dormir. Queres?

– Aceito. Obrigado.

Arengas comentou enquanto preparava a bebida:

– Estás com olho de charroco. Esta noite nem fechaste a pestana. Quando apareces com esse cara deslavada, com a barba rala por fazer, ainda és mais feio. Um pau de marmeleiro com olhos de charroco!

Acendeu o cigarro e sentou-se à frente de Simão.

– A água ainda leva tempo para ferver. Conta-me lá a história onde faço papel de Clark Gable. Mas devagarinho que ainda tenho os pistões dos miolos a aquecer.

Simão começou pausadamente. Relatou as conversas, os testemunhos que recolhera, as diligências que fizera, as informações do laboratório, a impossibilidade de serem outros os criminosos. Pediu que se recordasse de pormenores que juntos testemunharam, trouxe à baila as conversas do Chefe, sublinhou as comparações da pegadas e como descobrira o frasco com arsénico.

Quando terminou o relato, era evidente que Arengas não precisaria do café para despertar. Observava Simão, boquiaberto, incapaz de articular qualquer som. Foi este quem lhe chamou a atenção.

– Olha o café. A água está a ferver há mais de dez minutos.

Despertou do transe e correu para o fogão. Pegou no pacote de café e preparou a beberagem. Simão observava-o com atenção. Por fim, quando lhe entregava um dos copos de alumínio, comentou:

– Não disseste nada.

– Estou sem palavras. Talvez a bebida me ajude a digerir o prato forte que me serviste.

Simão inspirou com prazer o odor que exalava do copo e ao primeiro gole sentiu um conforto inesperado. Vigiava Arengas pelo canto do olho. Não se sentara. Percorria a pequena sala em rápidas passadas, bebericando em pequenos goles, reconstituindo as palavras que acabara de escutar.

Por fim, parou e enfrentou Simão:

– Onde é que eu entro nesta história? Ou dito de outra maneira: tu vais lixar-te todo. Vão desfazer-te. Explica lá, como é que vão dar cabo de mim.

Simão resolveu levantar-se e encarou-o com solenidade.

– Ninguém te fará mal. Apenas quero que me indiques onde mora o juiz Alves Monteiro.

Perplexo, o outro deu dois passos atrás.

– O nosso Maior? Tu queres incomodar o Chefe dos Chefes, passando por cima do Abóbora, dos Inspectores, de uma mão-cheia de Directores? Estás doido, Simão. O teu destino está traçado. Vais acabar em rilhafoles ou em sítio bem pior.

Fez de conta que não o ouviu e continuou a falar.

– Sei que andaste com ele quando foi o atentado contra o carro de Salazar, na Barbosa du Bocage. Substituíste por uns tempos o motorista dele. Estive nessa investigação e vi-te várias vezes com ele. Com certeza que o conduziste a casa várias vezes. Preciso de falar com ele fora da bófia sem orelhas à escuta. O único momento em que o posso apanhar é quando estiver a sair de casa para ir para a bófia.

Arengas, nervoso, tentava embrulhar um novo cigarro, mas não acertava com a mortalha, deixando cair tabaco pelo chão.

– Isto é uma merda, Simão. Uma merda!

Foi então que o jovem se transfigurou. Agarrou Arengas por um braço e, perante a estupefacção do outro, encostou-o à parede, desfiando um discurso que ninguém imaginaria que pudesse sair daquela delicada boca.

– Ouve-me, meu cabrão! Sei que és putanheiro, um baldas, que te estás cagando para os processos, que me gozas quando estás com os outros, que te embebedas durante o serviço. Sei que és um fala-barato ignorante, que distribuis pancada a eito a suspeitos e a inocentes como se fosses um dos energúmenos da Polícia Política. És um merdas. Tens todos os defeitos que me repugnam. – Largou-lhe o braço, deu um passo atrás e continuou mais complacente: – Mas ninguém é a preto e branco. Nenhum ser humano é absolutamente mau, nem absolutamente bondoso. Não és corrupto. Não te borras de medo como o nosso Chefe quando ouve falar da PVDE. És corajoso e no meio da confusão das palavras onde vives, falando pelos cotovelos, nunca deixaste de ser bom colega. Até chegas a ser generoso e sei que queres tanto como eu, que não haja assassinos impunes, escondidos atrás de qualquer cortina ou protecção policial. Há dentro de ti honra em abundância para não permitires que canalhas matem sem escrúpulos pessoas de bem. Portanto, chega de tretas, Arengas. Levas-me ou não à casa do juiz? Não precisas de aparecer. Basta indicares: «É ali!» e eu fico sozinho à espera dele.

Arengas deixou-se cair numa cadeira. Suspirou profundamente e começou a enrolar outro cigarro. Finalmente, respondeu:

– Vou levar-te e entro contigo. A esposa dele conhece--me e abre-me a porta. Não precisamos de ser vistos pelo motorista que o vai buscar.

Simão abraçou-o com emoção.

– Sabia que podia contar contigo.

– Chega para lá. Abraços são só para gajas boas e putedo. Como vamos para lá? O homem mora em Arroios.

– De carro de praça. Eu pago.

– És o único maluco que conheço que paga para trabalhar. Vou buscar a gabardina.

Arengas regressou ao quarto. Simão abotoou o sobretudo e cerrou os lábios com determinação. Estava determinado. Talvez estivesse a viver um delírio, porém, naquele momento, era capaz de jurar que o plano era certeiro.

Quando Arengas regressou do quarto, já preparado para sair, apontou judiciosamente o dedo a Simão.

– Afinal de contas, também és um ordinário do cacete. Quem te ouvisse falar há pouco comigo, não conheceria o tipo sisudo e delicadinho que aturo todos os dias. És bem ordinário, graças a Deus.

Encolheu os ombros com um sorriso benevolente e retorquiu:

– Foste o meu grande professor. És o maior sábio do palavrão e de calão que existe em Lisboa.

Saíram.

Não foi necessário baterem à porta. No momento em que saíam do carro de aluguer, uma criada de servir acabava de sair com um saco de lixo. Arengas meteu conversa e a mulher reconheceu-o.

– Bom-dia, menina Elvira.

– Bom-dia, senhor Carlos. Como está?

– Tudo bem. Sabe dizer-me se o senhor doutor juiz já se levantou?

– Está a tomar o pequeno-almoço. Vou dizer-lhe que o senhor está aqui.

– Muito obrigado.

Quando ela entrou, sussurrou para Simão.

– Não mintas, não inventes, não sejas intelectual a mais, como te chama o Abóbora. Este homem é um águia. Factos. Dá-lhe apenas factos. Nada de romances policiais.

Mal terminara o recado, surgiu o juiz ainda em mangas de camisa.

– Ora viva, Carlos! Por aqui?

– Peço-lhe desculpa, senhor doutor juiz. Há um assunto demasiado sério que precisa de saber longe da nossa casa. Este é o meu colega Simão Rosmaninho.

Rapidamente inspeccionou a rua com o olhar e disse:

– Entrem!

Conduziu-os a um gabinete confortável com enormes estantes cheias de livros e indicou dois cadeirões.

– Sentem-se. Vou buscar o meu cachimbo. Tomam alguma coisa? Um café?

Ambos recusaram e ele saiu. Era um cinquentão elegante, cabelo precocemente branco, puxado para trás, e, nas primeiras impressões, pareceu a Simão tratar-se de um homem gentil.

Regressou com o cachimbo na boca, aspirando repetidamente o fumo, sentou-se à frente dos dois Agentes, cruzou as pernas e perguntou:

– A que devo a honra desta visita tão matinal? Há ladrões no meu prédio? – perguntou bem-disposto e só então reparou com atenção em Rosmaninho. Apontou-lhe o cachimbo: – Eu conheço-o. Esteve naquele caso do atentado, não foi?

– Reforcei a equipa, senhor doutor juiz. Estamos os dois na mesma Brigada de Homicídios.

– Então a conversa é grave. Do que se trata?

Arengas adiantou-se.

– O meu colega explica-lhe. Vá lá. Conta ao senhor doutor juiz.

Simão não se fez rogado. Pausadamente, controlando a emoção, foi desbobinando a investigação dos dois casos e não teve dúvidas de que o Chefe dos Chefes, como lhe chamava o colega, conhecia a superfície das histórias. Conforme o testemunho acrescentava novos dados, no rosto de Alves Monteiro esmorecia o sorriso e surgiam sombras que lhe endureciam a expressão, atento à voz do Agente.

Abandonou o cachimbo e com os cotovelos apoiados nos joelhos, lábios encostados às mãos cruzadas no queixo, foi ganhando solenidade. Quando Simão terminou, ficou em silêncio por alguns segundos. Finalmente perguntou:

– Tudo aquilo que me contou está nos processos?

– Tudo, senhor doutor juiz.

– E onde é que estão escondidos? Espero que não tenha deixado toda essa informação em cima da secretária à disposição de qualquer pessoa.

– Só eu sei onde se encontram.

– Muito bem. Escondeu-os na PIC?

– Sim.

– Então vamos fazer assim. – Tornou a pegar no cachimbo e levantou-se. – O meu motorista já deve estar à minha espera. Ficam aqui para que não vos veja. Quando partirmos, os senhores saem. Compreendido? A minha empregada vai servir-vos um café que não é preciso ser muito arguto para se perceber que estou perante dois homens muito cansados. Vão para a PIC. Tenho uma reunião de direcção às nove horas. Deve demorar hora e meia. Quando terminar, peço ao seu Chefe que me leve os processos. Não desconfio de si, mas sou juiz. Herdeiro do apóstolo São Tomé. Ver para crer. Estamos entendidos?

Vestiu o casaco que se encontrava nas costas da cadeira da secretária. Antes de sair, avisou-os:

– Se confirmar nos autos aquilo que acabam de me contar, fizeram um brilhante trabalho e, acreditem, ninguém ficará impune. Não saiam da Polícia enquanto não tiverem recebido notícias minhas e, para que conste, nunca estiveram em minha casa. Entendidos?

– Com certeza, senhor doutor juiz.

Ao sair, gritou para a cozinha:

– Traz dois cafés para o escritório e avisa a senhora que não venho almoçar.

Ouviram a porta bater e entreolharam-se com evidente satisfação. Arengas não escondia o entusiasmo.

– Eu não te disse que é um homem do cacete?! Uma águia!

Simão sentia-se tão confortado que não resistiu à ironia.

– Carlos?! Desde quando é que te chamas Carlos?

– Desde que nasci, olha que porra! – respondeu, azedo.

– Não é nome que te assente. Tens mais cara de Arengas.

Encolheu os ombros com desprezo.

– Sabes o que te digo? Aturando as tuas loucuras como eu aturo, sou mais do que teu pai. Sou tua mãe!


XX ACTO


UM JUIZ INCORRUPTÍVEL

 

 


O Chefe Carrascão entrou sorridente na sala onde trabalhavam os dois investigadores. Transpirava boa disposição. Dirigiu-se a Simão Rosmaninho.

– Os teus dias chegaram ao fim nesta casa de gente patriota.

– O que foi desta vez, Chefe? – perguntou com ingenuidade.

– Aquilo que tens feito todos os dias de todos os meses dos últimos anos. Não respeitas ninguém. Não passas cartucho aos teus superiores. Não prestas contas. Ainda por cima, nos últimos tempos, decidiste embirrar com pessoas que são intocáveis, gente leal ao Estado Novo. Gente perante quem nos devemos curvar em sinal de respeito. Não reconheces o lugar minúsculo que ocupas nas fileiras do Estado. Enfim, ultrapassaste todos os limites e o pelotão de fuzilamento está à tua espera.

Arengas protestou:

– Oh, Chefe, tenha lá paciência. É capaz de ter razão em tudo aquilo que diz, mas pelotão de fuzilamento é demais.

Simão não se acomodou.

– O Chefe sabe que não tem razão. Não se passa uma semana que não me ameace de que me põe na rua, mas também nunca me deixou mostrar-lhe o meu trabalho. Está aqui à minha frente, mas não vale a pena. Inventará sempre um pretexto para embirrar comigo.

Mudou de tom. Perdeu o sarcasmo, assumiu a habitual pose autoritária e ordenou com severidade.

– Entrega-me os processos do senhor engenheiro Álvaro Penaguião e do Gervásio.

Pegou nos dois grossos volumes e empurrou-os para ele, disparando ironicamente:

– Aqui estão os casos do senhor engenheiro Álvaro Penaguião e do Gervásio Alves. Sabe qual é a maior democracia que existe? É a morte. Todos temos nome e todos somos senhores mortos. Posso perguntar para que quer os processos sem eu lhe explicar o que aí está?

Voltou ao sarcasmo quase nos limites do ódio.

– Não os quero para nada. É Sua Excelência quem os pede. Quer saber que patranhas tens andado a inventar. Vai ser ele quem te vai pôr na alheta.

Voltou-lhe as costas com desprezo. Arengas sussurrou:

– Vai cair que nem um patinho. Este Abóbora só tem ruindade dentro dele, c’um cacete! Forte com os fracos e fraco de mais para com os fortes. Quando isto chegar ao fim, vai andar a cagar fininho durante um mês. Tu vais ver. O juiz come-o vivo.

– Não o leves a sério. Não passa de um pobre sobrevivente.

Arengas levantou-se da secretária e espreguiçou-se guinchando de prazer.

– Dói-me tudo. Por tua causa, não dormi mais do que duas horas e não tenho paciência para estar aqui a aturar o Abóbora. Vou até ao Oliveira tomar um copo. Queres vir?

– Não. Vou esperar.

– Fazes bem. Aturar a besta do Chefe dá saúde e faz crescer.

Um ligeiro nervosismo apoderara-se do estômago de Simão. O juiz Alves Monteiro era conhecido pelo rigor e temia que ele, ao consultar os processos, descobrisse lacunas que descuidara. Mais do que ler os seus processos, sabia que estava a ser submetido a um verdadeiro exame que, ou lhe garantiria aprovação, ou deixaria o caminho aberto para o Chefe definitivamente o despachar para o desemprego. Por outro lado, estava satisfeito com esta inquirição maior ao seu trabalho feita por um juiz. Sem magistrados não haveria decência na investigação criminal.

A insónia começava a fazer estragos. As pernas pesavam--lhe como se fossem de chumbo e apeteceu-lhe ver Violeta. Deitar a cabeça no seu colo e adormecer saboreando-lhe o belo rosto. Estava na hora de falar com o pai. Dizer-lhe da sua paixão, contar-lhe que namorava uma andorinha com nome de flor e explicar-lhe como era um prazer infinito sentir a presença dela ao seu lado.

O Chefe entrou a assobiar, bem-disposto, dirigiu-se ao seu gabinete sem olhar para a sala onde Simão trabalhava. O plano estava a correr bem. Para assobiar tão satisfeito era sinal de que o juiz seguia à risca aquilo que haviam combinado.

A PIC nunca foi uma organização que a PVDE apreciasse. Era a Polícia de elite do Estado Novo e não considerava quem, trabalhando com informações, apenas se limitava a prender criminosos de delito comum, sem importância para a história do País ou para o engrandecimento do Estado.

Era a verdadeira Polícia rainha, tendo na corte como melhores vassalos a Polícia de Segurança Pública e a Guarda Nacional Republicana, seus braços armados. Este imenso poderio policial dominava o País em comunhão de acções de íntima colaboração. A Polícia de Investigação Criminal era o parente pobre marginalizado por esta formidável força que defendia os superiores interesses do Estado Novo.

Porém, nos territórios mais sombrios da cidade, onde giravam prostitutas e quadrilhas, carteiristas e falsificadores, ladrões e burlões, também passavam perseguidos políticos, militantes clandestinos, e a PVDE sabia que a informação, que todos os dias chegava ao Torel, era preciosa para as suas tarefas. Ainda por cima, os Agentes tinham melhores salários. Daí que se transformasse num sonho de promoção para muitos elementos da PIC. Qualquer colega de Simão, que se dispusesse a ser informador da Polícia Política, poderia em qualquer altura, com a cunha certa, ingressar nos quadros dos mais fiéis servidores de Salazar, recebendo mais oitenta escudos por mês.

Arengas entrou.

– Já há novidades? – perguntou carregado de curiosidade.

– Está a correr bem. O Chefe não tem parado de assobiar o fado da Severa.

– C’um cacete! Quando ele assobia alguém vai ficar de luto. – Soltou um riso velhaco e rematou: – Talvez hoje seja ele a cantarolar no seu próprio funeral.

A conversa não prosseguiu porque, nesse momento, Carrascão irrompeu pela sala, quase eufórico. Esfregava as mãos de júbilo quando se dirigiu a Arengas.

– Eu avisei-te várias vezes. Nunca devias ter dado tanta corda àquele intelectual a mais. Mas deste! Poderias ter feito uma carreira sem problemas, mansinha, continuares a ser bom Polícia. Linguarudo, mas obediente. Não quiseste saber. Agora também vais levar guia de marcha.

– O que me está a querer dizer, Chefe?

– O contínuo de Sua Excelência veio dizer-me que Sua Excelência quer ver os dois imediatamente. Já entendeste? Os dois! Está a ler as vossas manhosices e não vai só para a rua o principal responsável por esta desconsideração a quem manda. O parceiro vai com ele.

– É capaz de não ser tanto assim – condescendeu o Arengas.

– Ai, não que não é. Nunca entraram subalternos no gabinete de Sua Excelência que não regressassem para arrumar a tralha e dar de frosques. Vão já. E fiquem em pé, sem as mãos nos bolsos quando Sua Excelência falar convosco.

Retomou o assobio. Simão percebeu que, agora, era uma cantiga da Carmen Miranda. Saíram.

Não esperaram. O contínuo deu-lhes logo entrada e Alves Monteiro ordenou-lhe:

– Fecha a porta e informa quem vier que não atendo ninguém, e não quero que me passem chamadas enquanto durar esta reunião.

O funcionário fechou a porta apenas com uma ligeira vénia e o Director-Geral indicou-lhes uma mesa de reuniões junto à janela.

– Sentemo-nos aqui. Há mais luz.

O coração de Simão palpitava e a ansiedade deixara-o a transpirar das mãos. Não foi por muito tempo, pois o juiz deu uma palmada nos dois volumes e exclamou:

– Excelente! Dou-vos os parabéns.

Voltou-se para Simão.

– Sabe que faz hoje um mês que morreu o engenheiro Penaguião? Tenho um irmão que era seu cliente. Disse-me que ia à missa do trigésimo dia e queria saber se havia alguma novidade porque a viúva andava desesperada sem notícias.

– Tem razão. Lembrei-me esta manhã de que fazia um mês.

Alves Monteiro continuou:

– Agora a grande novidade. Segundo o meu irmão, que faltou ao jantar na noite do crime por estar fora de Lisboa, Dona Berta pediu que, todos os que tinham estado presentes nessa noite, se juntassem a ela durante a tarde para lancharem e rezarem um terço pela alma do finado sob a direcção do padre que consta no processo.

– Pimentinha – informou Simão.

– Esse mesmo.

Pigarreou, foi buscar o cachimbo à secretária e declarou:

– Meus senhores. É o momento oportuno para explicar à viúva como tudo aconteceu e quem lhe matou o marido. Fazemos as duas prisões em simultâneo. Vocês vão comigo a casa do engenheiro Penaguião. Quero estar presente para supervisionar essa captura. Vou escolher dois homens da minha total confiança para, mais ou menos à mesma hora, prenderem o outro assassino. Silêncio absoluto. Sei bem o que esta casa gasta. Vão almoçar e esperem por mim junto ao Hospital dos Capuchos daqui por duas horas.

– Desculpe, senhor doutor juiz, mas o nosso Chefe vai estranhar não aparecermos – informou o Arengas

– Do vosso Chefe tratarei mais tarde. Vão.

Quando saíram, Arengas estava tão excitado que repetia até à exaustão:

– Isto vai ser do cacete! Do cacete! O padre vai borrar-se todo quando vir a bófia a interromper-lhe a reza. Isto vai ser do cacete! Ai, vai, vai. Do cacetão!

O automóvel do juiz parou no local indicado à hora marcada. Alves Monteiro vinha ao lado do motorista e os dois Agentes entraram para o banco traseiro. Entrou na Rua de Santo António dos Capuchos, cruzou a Rua das Pretas e o Polícia sinaleiro reconheceu a viatura e abriu-lhe passagem para subir a Avenida da Liberdade.

O entusiasmo de Arengas era de tal modo exuberante que não resistiu a um comentário jocoso.

– Se em vez de andarmos de autocarro a fazer diligências, tivéssemos um carro assim, os processos até voavam.

– Não há dinheiro, Carlos. Somos uma Polícia sem dinheiro. – Numa clara alusão à Polícia Política, lamentou-se:

– Existem Polícias com automóveis a mais e miolos a menos. Na PIC, graças a homens como vocês, é exactamente ao contrário.

Galgaram o Parque Eduardo VII e, momentos depois, entraram nos jardins do palacete dos Penaguião.

O juiz pediu ao motorista que estacionasse perto da porta de entrada e, a seguir, ordenou a Simão.

– Não poupe nas palavras. Esta infeliz precisa de conhecer a tropa de que está rodeada.

Depois virou-se para o Arengas:

– Procure estar perto do criminoso. Se inventar qualquer desculpa para sair da sala, o senhor segue-o. Sabe que tem cúmplices aqui dentro. Não o deixe fugir.

Bateu com força à aldraba da porta. Momentos depois surgiu uma criada, fardada de preto com avental branco, que os olhou surpreendida.

O Director informou:

– Somos da Polícia. A senhora Dona Berta Penaguião está?

– A senhora, agora, não pode atender – respondeu, aflita.

– Pode. Claro que pode!

O juiz entrou seguido pelos dois funcionários.

– Devem estar no salão. É por aqui – segredou Simão, deixando que o seu Director liderasse o cortejo que terminava com a empregada estarrecida, incapaz de articular uma única palavra.

O padre Pimentinha colocara uma estola sobre o pescoço e dirigia o grupo, lançando a oração.


Avé Maria, cheia de Graça

O Senhor é convosco

Bendito o......


A voz desmaiou ao ver os Polícias. O grupo que estava à sua frente voltou-se para ver qual o motivo da surpresa do sacerdote e proclamou indignações em surdina. A excepção foi o Comandante Carapau, que apostrofou os recém-chegados.

– Mas que porra vem a ser esta?

Apenas D. Berta se manteve impassível. O irmão do juiz avisara-a da visita, pedindo-lhe que a mantivesse em segredo. Retirou o véu, largou o terço e dirigiu-se a Alves Monteiro.

– É uma honra receber Vossa Excelência na minha casa.

Carolino deu um salto ao perceber a cumplicidade e barafustou, encolerizado.

– O que vem a ser isto? Armaram-nos uma cilada? Com que propósito, doutor Monteiro?

Genoveva soltou uma risada histérica.

– Vão prender-nos. Vão levar-nos para o Governo Civil.

– O que aconteceu, senhora Dona Berta? – quis saber o conde de Serpa.

Alves Monteiro levantou a voz por cima da confusão de vozes:

– Posso explicar?

O ruído amainou e foi então que irrompeu um padre furioso:

– Nada justifica a profanação de um momento dedicado ao sagrado. Não existe desculpa para perturbar a comunhão desta boa gente com Deus. Não estamos na Espanha dos vermelhos, meu caro senhor. Isto é um acto herético, bárbaro que...

O discurso foi interrompido pelo esticão vigoroso que Arengas lhe deu na batina. O sacerdote voltou-se surpreendido e ouviu um ameaçador:

– Esteja calado!

Ficou em choque, atacado por uma das habituais crises de tosse que resolveu com um copo de água que tinha perto de si. Berta Penaguião informou:

– O irmão do senhor doutor Alves Monteiro é um dos grandes clientes das nossas empresas e era um grande amigo do meu marido. Um amigo desta família. É o Gaspar Monteiro que a maioria de vós conhece.

Carapau acenou afirmativamente.

– Sei muito bem quem é. Somos concorrentes nos negócios, mas amigos de longa data.

– Hoje teve a gentileza de participar na missa e deu-me conta de que conversara com o irmão, aqui presente, que lhe dera conta de que os crimes estavam resolvidos. Como todos vós, aqui presentes, estarão tão interessados quanto eu em saber a verdade, tomei a liberdade de o convidar a reunir-se a nós esta tarde.

Dirigindo-se ao juiz, tornou a cumprimentar cerimoniosamente:

– Obrigada por ter aceitado o meu convite.

– Foi um prazer, minha senhora.

A viúva dirigiu-se aos convidados:

– Retomaremos o terço depois. Sentem-se, meus amigos. Sentem-se e oiçamos o que a Polícia tem para nos contar.

Marta e Helena estavam visivelmente nervosas e sentaram-se aconchegadas à mãe. Uma agarrou-lhe o braço e a outra deu-lhe a mão. Egídio hesitou:

– Não sei se deva assistir. É uma coisa muito reservada...

Simão fulminou-o:

– Como é que o Director de um jornal se dispõe a rezar o terço e se recusa a receber, em primeira mão, uma notícia que será primeira página em qualquer periódico? – gozou o efeito da pergunta e rematou mordaz: – Ou será que a Polícia ou a Dona Berta têm de lhe pagar para o senhor a publicar?

Egídio engoliu em seco e sentou-se rapidamente numa cadeira mais afastada. Arengas mediu mentalmente a distância e deu dois passos para cobrir todo o grupo.

Alves Monteiro começou a falar:

– Efectivamente os crimes estão resolvidos, graças ao talento e ao trabalho destes dois funcionários. Foram incansáveis na procura de pistas, na consolidação de provas que vão permitir que os actos hediondos, que aqui nos trazem, não fiquem impunes – pigarreou. Aproximou-se do grupo e olhando-os um a um, continuou: – O Agente Simão Rosmaninho vai contar aquilo que descobrimos. Quero também informá-los de que, neste momento, está a ser detido o facínora que executou o vosso mordomo Gervásio.

O Coronel Carolino tornou a saltar, espumando indignação:

– Isto é infame. Vossa Excelência está a sequestrar pessoas de bem e criou esta armadilha para inventar um criminoso. – Dirigiu-se à assembleia e gritou: – Não aceitem esta chantagem. É um ultraje! Eu vou-me embora. Albertolina, anda daí.

A mulher respondeu, rija, enquanto retirava o leque da mala.

– Não saio daqui enquanto não souber quem fez mal ao Álvaro, e tu deixa-te de espectáculos. Lá na tua Polícia é que podes ter grandes ataques patrióticos. Senta-te e cala-te!

– Albertolina?! – berrou, desorientado.

– Senta-te e cala-te. Não faças mais fitas.

Caiu vencido pelo desprezo ácido da esposa e Arengas voltou-se para a parede para não o verem rir.

Regressou a acalmia e o Comandante Carapau, de braços cruzados, em pose triunfal, com um sorriso de vitória, murmurou um estímulo a Simão:

– Hoje é que o calhordas do paneleirote vai dentro. Dê--lhe com força que eu vou gozar o prato.

Rosmaninho olhou para o juiz, como se pedisse autorização. Com um gesto de cabeça, ele indicou-lhe que podia começar a exposição.

– Foram dois casos estranhos. Quanto melhor conhecia cada um dos presentes, maior era a convicção de que o engenheiro Álvaro Penaguião era uma vítima impossível. Não se lhe conheciam inimigos. Era respeitado por milhares de operários das suas empresas, sempre disponível para os ajudar, preocupado com aqueles que estavam doentes ou em aflição. Sei da sua generosidade pelo que ajudou o meu pai, que é um dos seus empregados, quando a minha mãe adoeceu para, infelizmente, morrer. Provam ainda esta grandeza, as dádivas que fazia ao Socorro Mútuo, para as associações de bombeiros, entre outras. Uma preocupação social muito rara de encontrar em Portugal. Construiu duas escolas para os filhos dos operários, pagava os almoços das crianças nas cantinas escolares, e até um campo de futebol mandou construir. Não é por acaso que nunca houve qualquer greve nas suas fábricas, nem mesmo no tempo da República. Ajudava quem padecia – acrescentou num tom mais mordaz: – E até quem não merecia.

Arengas olhou de soslaio para o Director d’ O Adamastor, que continuou imperturbável sem acusar o remoque.

Simão continuou:

– Por outro lado, não tinha uma vida social activa. Vivia distante da política. Uma bebida ao fim da tarde com amigos, na Sociedade de Geografia, almoços de negócios e, de vez em quando, um passeio pela Lapa e pelo Jardim da Estrela, antes de regressar a casa para jantar. – Luísa Serpa ruborizou-se. Simão sentiu que ela estava em pânico e procurava disfarçar a aflição. Porém, não se esquecera do que prometera. A confissão ficara enterrada na Basílica e desviou a conversa: – Não se lhe conheciam inimigos e era tal a excelência do seu carácter que não passou despercebido ao Senhor Professor Oliveira Salazar. Era natural que fosse membro da Câmara Corporativa. O seu exemplo motivaria, por certo, patrões e corporações. Mas não! Convidou-o para a Assembleia Nacional, para ser deputado da Nação na próxima legislatura, dando visibilidade política ao seu sucesso como administrador e proprietário. Era um dos símbolos perfeitos do Estado Novo. Não pensava mal. Se havia um cidadão que poderia ser o rosto empresarial do Portugal moderno, o engenheiro Penaguião era esse cidadão.

– Muito bem! – exclamou Genoveva.

– Apoiado! – celebrou o deputado Peixoto.

Albertolina voltou-se para Carolino e disparou crítica:

– Este, sim. Era um homem a sério e não um palerma como tu.

Simão dominou o riso. A mulher do Director da Polícia Política era uma verdadeira padeira de Aljubarrota que tinha o marido sempre na mira da pá.

– Quem teria motivo para querer matar este homem superior? Quem? Os comunistas!, decidiram as mentes mais rudes, mas não tinham resposta para a pergunta que esta afirmação implicava. Porque desejaria o partido Comunista pôr fim à vida do patrão, talvez o único que se preocupava tão intensamente com os seus trabalhadores? Os comunistas poderão comer criancinhas, poderão amaldiçoar Deus e odiar os altares onde é incensado. Podem até, como se ouve na propaganda, ser os principais inimigos da nossa civilização e do Estado Novo, mas não serão tão estúpidos. Só uma obsessão demencial imagina os comunistas a envenenar o engenheiro Penaguião.

O Coronel Carolino aguentava em silêncio, vermelho de cólera, timorato da mulher, mordendo os lábios. O juiz sorria, encantado com a inteligência fulgurante de Simão Rosmaninho, e Arengas não tirava os olhos de Egídio e da restante assistência.

Simão tornou à fala:

– Todavia, naquele jantar, nesta mesma sala, havia gente com motivos para matar alguns dos presentes.

Voltou-se para Carlos Açafrão:

– O senhor doutor foi o meu primeiro suspeito.

– Eu? – o médico deu um salto na cadeira.

– Sim, o primeiro. Não conheço médico nem cirurgião que, de imediato, sem um único exame, sem observar os sinais da morte, sem conhecer o passado clínico da vítima, declarasse solenemente um enfarte do miocárdio. Eram tão evidentes os sinais do envenenamento. Não era possível que não percebesse que o senhor engenheiro estava a ser envenenado. Este método obedeceu a um programa estabelecido com incrível frieza, faseando as doses para o matar devagarinho, discretamente, sem levantar suspeitas. Na noite do crime, apenas lhe foi ministrada a última mistela mortal. Julgo, até, que o criminoso pensou em si. No seu desleixo profissional para rapidamente passar a certidão de óbito para sepultar o infeliz sem quaisquer perguntas incómodas. As minhas suspeitas reforçaram-se quando insinuou que era o médico da família. Hoje sei que não é verdade. É apenas um médico desvalido, alcoólico, que o senhor padre Pimentinha tomou a seu cargo e introduziu no seio desta família.

Carlos Açafrão reagiu abruptamente.

– Eu não lhe admito faltas de respeito, ouviu? Não admito.

– Não está em posição de admitir ou deixar de admitir. Violou a lei, violou preceitos médicos, fez um diagnóstico à medida e falsificou descaradamente uma certidão de óbito. – Simão reagiu com firmeza e disparou: – Para não falar de outros crimes que cometeu nessa noite.

– Crimes? Eu? – Açafrão desatou a rir com desprezo

– Vive em que mundo, doutor Carlos? Quer que lhe recorde o modo humilhante como tratou as filhas do homem que lhe oferecia protecção? Da falta de respeito que teve para com a Marta, e depois com a Helena, ao ponto de esta lhe atirar com groselha para cima, ofendida com a sua ordinarice? Teve de pedir ao seu amigo e amante Egídio para desfazer as nódoas com terebentina.

Arengas olhou para o director d’ O Adamastor, que baixou os olhos, sem qualquer reacção.

O médico levantou-se. Tremia de indignação:

– É de mais. Não vou continuar a escutar blasfémias.

O juiz não fez qualquer gesto. Apenas ordenou sibilino.

– Sente-se!

Parecia um cão amestrado. Sentou-se, de imediato, cruzando as pernas e assumindo uma pose de amuado.

Marta e Helena procuravam suster as lágrimas e Dona Berta, atónita, puxou-as para si. Simão voltou-se para a viúva:

– Lamento ter de lhe dizer isto, minha senhora. Não é agradável para si, nem para as suas filhas. Mas o senhor padre Pimentinha não é apenas responsável por ter trazido o doutor Açafrão até vós. Odiava o seu marido e considerava-o responsável pelo descaminho de Marta e de Helena para os caminhos do pecado e da luxúria. Era ódio antigo. Noutras circunstâncias teria sido capaz de provocar fortes danos à sua família.

Por cada juízo que formulava, estoirava uma confusão de vozes indignadas com excepção do Comandante Carapau, visivelmente divertido.

– Grande prato, sim senhor. Não perdia este circo por nada neste mundo. Nem o calhordas do padre se safa.

Pimentinha ficou mudo. A abundante transpiração alastrava grandes manchas pela batina a partir dos sovacos.

Quando a tempestade amainou, Simão olhou de soslaio para Carolino e o sorriso frio do Coronel perturbou-o. Porém, prosseguiu:

– O padre Pimentinha é parte da herança que recebemos da antiga Igreja e da Inquisição, das fogueiras, das maldições contra as mulheres. Historicamente, vive vários séculos afastado do tempo que é de Marta e de Helena. Aos seus olhos, são duas Madalenas sem oportunidade de redimir pecados tão transcendentes como gostar de dançar foxtrot ou can can. O Demónio está presente quando decidem ir ao cinema, consegue possui-las quando vestem indumentárias modernas. É a líbido diabólica que as faz estudar, viver com prazer as visitas de rapazes e raparigas, colegas de universidade, irreverentes e alegres. Para este padre, o riso continua a ser uma manifestação do Diabo. E por detrás desta afronta ao seu Deus vingador estava Álvaro Penaguião. O pai que estimulava a alegria, que aplaudia a fome de vida das filhas e as empurrava para os livros, para a música, para o saber. O engenheiro Penaguião era, por de mais evidente aos olhos deste sacerdote, a mão sinistra de Lúcifer, que contraditava e esmagava os preceitos morais com que, pelo medo, desejava manter o seu rebanho temente aos martírios do Purgatório e às chamas do Inferno. Ele e Gervásio, o mordomo que ele contratara para alimentar nas filhas a fome de conhecimento, a inquietação intelectual, tudo aquilo que feria a paz podre, milenar, que o senhor padre idealizava como paraíso celestial. Já era em aflição, que julgava piedosa, que começou a trazer o doutor Açafrão a esta casa. Talvez conseguisse organizar a vida do médico, e salvar pelo menos uma das pecadoras, que com ele se juntasse. Era o desespero do ódio. Rezou muitas orações nesta casa. Nunca lhe trouxe um pedaço de amor. Só preconceitos. – Voltando-se para Carolino, desafiou-o com descarado cinismo: – Senhor Coronel, o senhor padre Pimentinha culpa o Senhor Professor Oliveira Salazar de ser responsável pela dissolução dos costumes. Culpa-o dos jovens que saltam, pulam, dançam, riem, produzem pecados atrás de pecados. Deixa que eles se libertem das sombras do mundo antigo e queiram descobrir o futuro. Sobretudo as raparigas. Em resumo: Sua Excelência, o Senhor Presidente do Conselho, é um dissoluto na boca do senhor padre Pimentinha. Os interesses superiores do Estado Novo esperam que a sua tropa o vigie como vigia os outros inimigos do Regime.

Pimentinha teve o habitual ataque de tosse apopléctico. D. Genoveva correu a dar-lhe água e Simão reparou que D. Berta nem se mexeu do lugar. Olhava o padre com frieza.

O Comandante Carapau desafiou-o com um sorriso de escárnio:

– Oh, senhor Simão. Também suspeitou de mim?

O Agente atingiu-o com firmeza:

– O senhor faz parte da pandilha que criou as condições para que as duas tragédias acontecessem, mas será incapaz de matar. Tem perfil de vigarista.

Carapau, surpreendido com a afirmação, balbuciou incrédulo:

– Então? Então?

– Usa indevidamente o título de Comandante. Foi expulso do Alfeite quando era um modesto cabo a prestar serviço no economato da Armada. Enriqueceu a roubar o Estado republicano. Furtou tudo aquilo que havia para furtar na gigantesca despensa da Marinha. Quando correram consigo ainda era um sidonista dos quatro costados e estava rico. A balbúrdia que se seguiu ao assassínio do Presidente da República e a escolha de amigos de ocasião fizeram o resto. Anos depois, dizia-se Guarda-Marinha, depois promoveu-se a Capitão-de-Fragata, e, quando se deu o 28 de Maio, já decidira que merecia ser tratado por Comandante. Capitão--de-Mar-e-Guerra!

A reforma da organização militar, feita pelo Professor Oliveira Salazar e Santos Costa, atirou os antigos arquivos para o esquecimento e o Cabo Carapau podia viver pomposamente Comandante, convertido à Revolução Nacional. Ninguém se interessaria por um Comandante reformado, abastado, que vivia de negócios.

Fui dar volta a esses velhos papéis e encontrei-o. Primeiro, no arquivo do Alfeite, depois nos ficheiros do Governo Civil. Encontrei-o como Capitão-de-Fragata quando apresentaram queixa contra si por causa de uma burla na compra de mil presuntos. O senhor ficou com os presuntos e com o dinheiro. Mais tarde, quando começaram a multiplicar-se as telefonias, outra burla gigantesca na venda de aparelhos. Desta vez, foi uma verdadeira fortuna, de muitos contos de réis, que surripiou a um desgraçado, confiante na honra dos Comandantes da Armada. Nem imaginava que estava nas mãos de um vigarista sem escrúpulos.

– Isso é mentira! Nada foi provado, nada! – berrou, exaltado.

– Cale-se! – cortou Simão e ripostou:

– Sabe bem porque não se provou. Passados tempos, os dois queixosos acabaram por ser presos, considerados suspeitos de atentarem contra o Estado Novo. Um deles apodrece em Angra do Heroísmo e o outro foi degredado para São Tomé. – Não conseguiu conter um sorriso de troça quando o questionou: – O senhor Cabo Carapau é capaz de adivinhar quem assinou essas ordens de detenção? Exactamente! O seu amigo e prestigiado dirigente da PVDE, aqui presente, o senhor Coronel Carolino. Repetia-se a história. Escolheu os amigos certos e, mais uma vez, a fortuna lhe sorriu.

Ao escutar as últimas palavras, Albertolina perdeu a cabeça. Ergueu-se para o marido, de véu apontado à cabeça dele:

– És o que eu sempre disse. Um banana! Razão tinha a minha falecida mãe por não gostar de ti. Não passas de um banana armado em pavão e depois não há vigarista nenhum que não te passe a perna. Banana!

Carolino estava demasiado embaraçado e apenas suplicou:

– Pára, Albertolina. Pela tua rica saúde, pára.

Genoveva acenava para Carapau, que estava prostrado, sem forças para ripostar.

– Eu bem te avisei. Tantas vezes o cântaro vai à fonte...

Simão não permitiu mais conversas, atalhando.

– Chegámos ao ponto onde começou a desenhar-se a tragédia. A pergunta que explica os acontecimentos futuros está relacionada com estas duas prisões políticas. O que leva um Oficial do Exército, em comissão de serviço na PVDE, a decidir um acto discricionário contra duas vítimas das vigarices do Cabo Carapau? Apenas ajudar um amigo a proteger fortunas recolhidas de forma ilegítima? Não haveria qualquer outro interesse? Corri Conservatórias e Notários à procura de uma resposta até que encontrei e percebi que Dona Albertolina não tem razão. Não está casada com um banana, mas com um sócio discreto do Cabo Carapau. Possuem um negócio florescente devido à Guerra Civil que decorre em Espanha.

Albertolina mudava de cores, tal era o espanto, e repetia:

– E onde está esse dinheiro? Onde é que guardas o dinheiro dos negócios, Carolino?

– Terá de perguntar ao senhor Coronel quando estiverem sozinhos. Não é crime e pouco importa onde ele guarda os lucros que recebe para este caso. Por outro lado, a União Nacional não é uma tropa organizada, disciplinada, apenas preocupada com a salvação do País das garras do comunismo. Por detrás desse pano, agita-se um frenesim de interesses particulares, interesses de grupos ávidos de poder. São raros aqueles que estão na Assembleia Nacional por exclusivo e dedicado amor à Pátria. Salva-se meia dúzia. Um deles está aqui presente, o senhor deputado Peixoto. São dotados de um entusiasmo febril, vivem atormentados com os inimigos do Estado Novo, são servos fiéis, devotos incansáveis, desdobram-se em discursos, escrevem nos jornais, saltitam de comício em comício, apelando à Revolução Nacional, assim como à fidelidade ao Doutor Oliveira Salazar. Os outros são criaturas que procuram negócios, querem consolidar o poder e influência no aparelho de Estado.

O senhor Cabo e o senhor Coronel fazem parte de um dos grupos que se digladia nas entranhas da União Nacional. Honra seja feita ao senhor deputado Peixoto! Sendo um homem de mão dos dois sócios, a política era a sua verdadeira paixão. Apenas os servia como contabilista. Quando quiser saber do dinheiro do seu marido, Dona Albertolina, fale com o senhor deputado Peixoto.

– Eu não falo com ninguém. Quando sair daqui, vou matá-los. Matá-los! – gritou transtornada enquanto denunciava o marido: – Pedi-lhe que contratasse uma criada de servir interna. Disse-me que não. Que o dinheiro não chega para tudo e basta a mulher-a-dias. Não compro roupa porque não há dinheiro. Não viajamos porque não há dinheiro e venho a saber que este estafermo tem uma fortuna escondida!? Eu mato-o!

O Coronel explodiu:

– Isso é falso! É tudo mentira. Não sabes com quem te estás a meter. Vou dar cabo de ti!

– Eu sei que pode dar cabo de mim –, comentou serenamente Simão e advertiu-o: – Falei com o doutor António Geraldes, o homem que trata das listas de deputados, e, visto tratar-se de um homicídio, está disponível para testemunhar em Tribunal. Aliás, foram os senhores quem me apresentaram esse ilustre cidadão no Café Nicola. Foi num domingo, por sinal.

O conde de Serpa comentou.

– Recordo-me desse encontro. Aqui o senhor Comandante insistia para que prendesse o Egídio.

Simão acenou afirmativamente, olhando para o director d’ O Adamastor, que continuava cabisbaixo, sem qualquer rasto de emoção no rosto.

– Talvez um dia seja preso por extorsão. Haja quem tenha coragem para participar dele e os meus colegas encarregar-se-ão de o meter na cadeia durante uma mão-cheia de anos. Porém, o senhor Egídio não matou o engenheiro Penaguião.

O conde voltou a provocá-lo delicadamente:

– Sendo assim, resto eu como suspeito ou esta conversa foi apenas um brilhante exercício de retórica sem qualquer efeito?

– Vai ter efeitos práticos e o senhor conde será uma das testemunhas principais deste caso.

– Eu? – perguntou, surpreendido.

– Já lá vamos. Apesar dos muitos abraços e saudações, a entrada para deputado do engenheiro Álvaro Penaguião poderia transformar-se numa ameaça aos interesses de muita gente. A entrada dele na Assembleia Nacional significava que alguém tinha de sair e bem poderia ser um dos homens que estavam no grupo de influência do Cabo Carapau e do Coronel Carolino. O novo deputado não era submisso, jamais toleraria ser servente de influência de medíocres sem escrúpulos, era demasiado livre para aceitar negócios escuros. Não era a melhor escolha. Para cumprir objectivos sórdidos, é sempre preferível um servo a um homem de carácter.

Simão dirigiu-se ao deputado Peixoto:

– Avisaram-no várias vezes de que era um orador excessivo. Que utilizava termos e expressões que embaraçavam o próprio Presidente do Conselho. Prometeu que ia moderar a oratória, no entanto, a paixão pelo Estado Novo falava mais forte. Continuava a comparar o Professor Oliveira Salazar a Jesus Cristo e a proclamar que a Virgem Maria aparecera aos pastorinhos em Fátima para lhes anunciar a chegada do Estado Novo. Até que não deixou margem de manobra aos seus chefes. Informaram-no de que o iam substituir pelo engenheiro Álvaro Penaguião.

– É verdade, mas isso é segredo do Partido. Não estou autorizado a falar sobre tal matéria – declarou com solenidade.

– Imagino o seu sofrimento. Um homem que deu a alma pela causa. Que abandonara a obscura profissão de contabilista para se tornar uma estrela cintilante do Estado Novo. Um crente tão absoluto que pagava para escrever no jornal do Egídio, em defesa da sua fé, uma tença ao usurário. Alguém que já não tinha outro interesse na vida. Apenas queria servir, dia e noite, a grande Revolução Nacional. O acérrimo inimigo do comunismo, o fervoroso cruzado em combate pela civilização era, de súbito, afastado com desprezo, acusado por amar de mais a sua Pátria, e, injustiça das injustiças, ver o seu lugar entregue a um homem a quem não faltava prestígio, riqueza, reconhecimento. Imagino o seu sofrimento, senhor deputado, assim como o ódio que começou a germinar dentro de si contra o Penaguião. Era crueldade em demasia. Dor em excesso. Traição política. Não admira que, doente por tanta crueldade, tenha concluído: «A única maneira de continuar no meu posto de combate é fazer desaparecer quem me vem render.»

Esboçou um sorriso desmaiado e respondeu com frieza:

– O senhor é que está demente. Isso é um disparate.

Simão fez que não o ouviu:

– Pôs, então, em marcha o seu plano diabólico. Sabia que o engenheiro frequentava a Sociedade de Geografia. Ao fim da tarde, rondava por ali até se encontrar com ele ou com algum dos seus amigos. Sabia que o convidariam a entrar. Quando não conseguia companhia, e sabia que a sua vítima estava no interior, pedia ao porteiro para falar com o senhor conde, frequentador diário da instituição por amor à cartografia. Depois era fácil. Sentava-se na mesa. Tomava a iniciativa de pegar na garrafa de champanhe e servir os convivas. Deixava cair no copo da vítima a quantidade mínima de arsénico, que escondia na mão. Bastava-lhe abrir os dedos da mão que empunhava a garrafa e o arsénico diluía-se no vinho. Foram várias semanas. O engenheiro começou a perder as forças, queixava-se do estômago e das más digestões, doía-lhe a cabeça, surgira-lhe uma inesperada queda de cabelo, sintomas que se esvaíam à medida que o veneno era absorvido e tudo recomeçava. Até que surgiu o jantar. Ninguém tinha dúvidas de que o engenheiro andava adoentado. Chegara o momento da dose letal. No dia da festa em que celebrava a sua próxima entrada na Assembleia Nacional, o senhor expropriava-lhe a vida. A presença de Carlos Açafrão, já bêbado, quando ofereceu ao engenheiro o copo mortal, era o seu melhor seguro. Iria passar a certidão de óbito sem pestanejar, invocando a necessidade de respeitar o desgosto da família. Passados alguns momentos, o odioso rival morria sozinho, no seu gabinete. E tudo se cumpria. Deve ter escutado sinos a tocar aleluias na sua cabeça quando Carlos Açafrão sentenciou «Foi um enfarte!», e pronto, estava salvo o seu lugar de deputado, o grande amor da sua vida.

Peixoto nem pestanejou. Foi com imperturbável serenidade que comentou:

– Um bom conto de horror e tragédia. Vem na sequência da literatura de cordel fantástica que abunda pelas ruas da Baixa. Já li algumas obras. Metem fantasmas, almas do outro mundo, animais transfigurados. É a primeira vez que oiço um desses contos ridículos tendo como protagonista um deputado da Nação.

– Não é ficção. É investigação.

– Ao contrário, meu caro senhor. É ficção com humor negro, perversamente delirante, que atenta contra o meu bom-nome – respondeu com rispidez.

– A ficção constrói crimes que não existem. A investigação criminal existe para descobrir assassinos concretos, que mataram pessoas reais e não de folhetim de cordel – reagiu Simão.

Entusiasmado, sorriu divertido e desafiou-o:

– Estamos de acordo, meu caro senhor. A ficção inventa como você inventou esta história miserável. Como você diz, a investigação real dedica-se a mortos concretos e, acima de tudo, precisa de provas concretas.

– Exactamente por isso que acaba de dizer, estamos aqui para o prender.

Peixoto soltou uma gargalhada e informou com desprezo:

– Sou deputado, meu caro senhor, tenho imunidade parlamentar, meu caro senhor.

O detective foi lesto na resposta.

– Tinha. Já não tem. Foi-lhe retirada esta tarde pela Assembleia Nacional. Ontem, ao fim da tarde, na companhia do senhor doutor Geraldes, depois de lhe dar parte do crime que o senhor cometeu, fizemos uma busca na sua secretária de serviço. Encontrámos o frasco com os restos de arsénico.

Empalideceu e balbuciou:

– Isso não é possível.

Simão abanou a cabeça em sinal de comiseração.

– Pobre Peixoto. A tragédia que provocou sofreu um imprevisto. Um erro fatal que levou à morte de outro infeliz. O senhor percebeu que o Gervásio o viu deitar o veneno no copo. Infelizmente, o mordomo só tomou consciência daquilo que vira quando encontrou o seu patrão inanimado no escritório. Desorientado, correu à cozinha para telefonar à Polícia, suplicando ajuda. Calhou estar eu de serviço. Vim aqui nessa noite, e estraguei o seu plano perfeito ao não acreditar na falsificação de Carlos Açafrão. Infelizmente, o engenheiro já estava morto e nada o poderia salvar da sua perfídia.

– É quase herético invocar um morto para testemunhar tamanha falsidade – gritou revoltado.

– Felizmente o Gervásio depôs antes de morrer. Sem constrangimento. Na noite do crime, quando recolheu ao quarto, registou no seu diário a manobra que tinha visto. É o mais terrível dos testemunhos contra si. O Gervásio vai fazer Justiça a partir de qualquer cantinho do Céu onde se encontre. Nós temos o diário dele. Por outro lado, o porteiro da Sociedade confirmou as suas súplicas para chamar o senhor conde, que não me desmentirá, e o doutor Ambrósio, director daquela augusta instituição, confirmará as suas visitas e a preocupação em se sentar ao lado do engenheiro Penaguião. O veneno, na verdade, serve-se a frio e com a frieza dos homens maus. E aqui está. Provas concretas para resolver um crime concreto! Chegou a sua vez de abandonar esse papel de ficção que construiu e voltar a pôr os pés no chão.

D. Berta teve um pequeno desmaio. Marta e Helena choravam convulsivamente. A restante assistência estava embasbacada. Até Egídio levantou a cabeça de espanto.

O magistrado avançou para Peixoto.

– O senhor está preso. Tem direito a um advogado...

O berro de Peixoto, calou-o.

– Acha justo? Depois de ter dado a minha vida pela mais nobre das causas, roubam-me a alma, a dignidade, para entregar o que era meu, por direito, a um estafermo que nasceu num berço de oiro? Que me ia roubar o lugar como outros me roubaram a vida? Só Deus sabe quanto o odiei! Era-lhe entregue de mão beijada aquilo por que tanto lutei e sofri para conquistar. É verdade! Matei-o com prazer. Gozei ao vê-lo espumar as entranhas. O miserável jamais seria deputado! Jamais seria qualquer coisa porque estava morto.

A histérica confissão fez rebentar o desalinho entre a assistência. Entre gritos, choros, exclamações de espanto, ergueu-se um burburinho tal que despertou o velho demente Alfredo, pai de Álvaro. Surgiu no cimo das escadas, em pijama, alterado com a confusão e gritou:

– Viva a República!

Marta e Helena correram na sua direcção para encaminharem o velho louco para o quarto e Alves Monteiro fez um sinal a Arengas.

Colocou as algemas em Peixoto e rosnou em surdina:

– Anda daí, meu cabraozão.

O destituído deputado gritou, medroso, enquanto era arrastado para fora da sala.

– Carapau! Carolino! Contem comigo. Conto com vocês.

Os gritos do preso voltaram a gelar a audiência. As emoções sucediam-se, e há muito que o padre Pimentinha havia esquecido a obrigação de rezarem o terço.

Foi novamente o conde de Serpa que assumiu as perguntas quando se estabeleceu algum silêncio.

– O Peixoto terá assassinado o Álvaro. Então, quem matou o mordomo?

Fez-se silêncio no salão. Simão olhou para o juiz que aquiesceu com um sinal de cabeça.

– Não sei se algum dia se saberá toda a verdade – começou por dizer Simão.

Helena suplicou aflita:

– O Gervásio era o maior amigo do meu pai e o nosso melhor companheiro. Não pode ficar sem Justiça!

– O Gervásio foi executado – declarou Simão com gravidade e esclareceu: – Não temos dúvidas de que foi abatido para evitar o seu testemunho sobre o crime de homicídio. Seja como for, sabemos quem disparou e é o assassino material. Aquilo que está provado é que o Agente Edgar Moleiro, da Polícia Política, trepou o muro do vosso quintal, escondeu-se entre as árvores de fruto e esperou pela hora em que surgisse Gervásio para dar comida aos pavões e às galinhas. Executou-o com um tiro na cabeça à queima-roupa.

Carolino interrompeu-o, desafiador:

– Tenha cautela com aquilo que afirma. Muita cautela! O Agente Edgar é um funcionário exemplar e da minha total confiança.

– Que neste momento já está preso à minha guarda! – atalhou Alves Monteiro e retribuiu a ameaça: – O senhor Coronel é que precisa de ter cuidado com as palavras que o auto-incriminam. Nem se atreva a ameaçar o meu funcionário. O Agente Simão Rosmaninho acabou de mostrar o que significa ser um investigador exemplar, que honra o Estado e a Justiça. Não se atreva a lançar-lhe os seus cães. É melhor ficarmos por aqui. – E rematou com um enigmático: – Por enquanto.


XXI ACTO


UM FINAL QUASE FELIZ

 

 


Passara uma semana sobre a prisão do deputado Peixoto e do Agente Edgar. O Chefe dos Chefes, para além de os louvar, oferecera a Simão e a Arengas uma semana de férias como prémio suplementar.

Arrumavam as secretárias antes de partir quando Arengas parou, pensativo, fazendo trejeitos estranhos com a cabeça.

Simão reparou num ofício do laboratório que chegara nesse mesmo dia.

– Confirma-se. A bala encontrada na cabeça do Gervásio foi disparada pela arma que fora entregue ao Edgar.

– És do cacete! – acabou por sentenciar o outro, sem prestar atenção ao que Simão dissera.

– Eu?

– Tenho muitos anos de fábrica, mas nunca presenciei um espectáculo como aquele a que assisti esta tarde. É impressionante a forma como trabalhas. Não tens grandes gestos, nem muitas palavras. Pareces mais uma formiguinha à procura de pedacinhos espalhados pelo chão. Juntas tudo. Um pouco de sal, um refogado apuradinho, mexes com a colher de pau até estar no ponto, e já está!, da panela sai um assassino sem buraco por onde se escapar, prontinho a servir em Tribunal. Como é que te lembras de tantos pormenores? Como é que juntas bocadinhos que parecem nada ter a ver uns com os outros e fazes da mistela um verdadeiro monumento? Eu não tenho cabeça para agarrar tanta coisa pequenina. Nem as vejo. Devo ser míope.

Simão encolheu os ombros.

– É apenas uma nova forma de pensar as coisas. A nossa Polícia ainda não tem vinte anos de vida. Ainda não se libertou de antigas heranças inquisitoriais. Haverá um dia em que todos os investigadores farão como eu faço. Até melhor porque a Ciência vai evoluir e ajudar-nos ainda mais.

Arengas, não o ouviu. Ainda rememorava os acontecimentos daquela tarde.

– E a forma como demonstraste tudo aquilo! Estavam de boca aberta. Até o nosso patrão.

– Apenas relatei o que está no processo – justificou Simão enquanto terminava a limpeza da secretária.

Arengas irritou-se.

– C’um cacete, pá! Está aqui um gajo a admirar o teu trabalho, orgulhoso por ter um colega com a tua carola, e respondes-me como se estivéssemos a discutir qual é o jogador do Carcavelinhos que vai marcar contra o Sporting. Não me ligas puto, pá!

– Queres saber como me sinto? Angustiado. Existem pontas soltas que não consigo atar, embora não tenha dúvidas de que foi o Carolino que mandou matar o mordomo. Era capaz de jurar que ele sabia que o Peixoto envenenou o engenheiro.

Arengas começou a enrolar um cigarro e adiantou:

– Com o clima que criaste esta tarde podias ter prendido o Carolino e o resto dos camones. Até o padre marchava.

– O problema é que não foi ao Chefe da Polícia Política que o Álvaro Penaguião falou dos pavões. Na mesa estavam o Ambrósio, o conde e o Carapau.

– E o que é que os pavões têm a ver com esta marmelada?

– Só pode ter sido o Carapau que contou ao Carolino. Precisavam de salvar o contabilista e esconder os seus negócios. Só pode ter sido assim – insistia, atormentado.

– Continuo sem perceber. Julgava que o caso estava fechado.

Simão dissertava como se o outro não estivesse ali.

– Só quem soubesse que era habitual o Gervásio levar comida aos pavões, àquela hora do dia, poderia montar a emboscada. Foi o Carolino quem deu as instruções ao Edgar e foi o Carapau, sabendo que era preciso encobrir o Peixoto, que ajudou no plano. Mas como se prova isto? – depois provocou o Arengas. – Estás a ver como o Sherlock Holmes não vale um avo quando falamos de provas? Como se prova isto?

– É fácil – retorquiu o colega enquanto acendia o cigarro e esclarecia: – Ferro um enxerto de porrada no Carapau, que faço dele uma cavala. Tem mesmo cara para levar uns estalos a preceito. Ou, então, trato do Peixoto. Dou-lhe um tareão que o ponho a cagar fininho.

– Assim não dá. É um risco que pode deitar tudo a perder. Não se consegue entalar um Oficial superior da PVDE com uma confissão a murro e pontapé. Isso é a especialidade da casa das virtudes, como tu lhes chamas. Até o patrão dele, o Agostinho Lourenço, cairia em cima de nós. A Polícia Política manda! Tem poder de sobra. Até para inventar comunistas e executar inocentes. À pancada, não dá.

Arengas hesitou.

– Não poderia ser outro chefão da casa das virtudes?

– Foi o Carolino quem deu a ordem para matar. Tenho a certeza. Ele e o Carapau estavam interessados em proteger o Peixoto. É o homem que trata da contabilidade e sabe os segredos dos negócios. Lembras-te do que gritou quando foi preso? O nome deles. Quis dizer-lhes que não falava.

– Simão, ouve o que te digo. O Peixotinho pode jurar aos seus patrões que não fala, mas fala! Deixa-me ir buscá--lo à cela e dá-me cinco minutos. Não preciso de mais. Vais tomar um copo no Oliveira e, quando regressares, ele está mais aberto do que uma couve-flor.

– É o teu pior erro, Arengas. A tua obrigação não é espancar. É pensar.

– Se quisesse pensar muito, ia para professor. Ou melhor, ia para um pensadouro, não estava na bófia. Então, quer dizer que ficamos assim. O finório do Carolino safa-se disto?

– Não sei. Talvez o Peixoto, um dia, conte aquilo que sabe. É o único que o pode meter na cadeia.

A conversa foi interrompida porque entrou o Chefe. Olhou as secretárias limpas e comentou triunfante:

– Afinal, eu tinha razão. Foram os dois corridos.

Arengas não aguentou a troça.

– Tem toda a razão, Chefe. O senhor é um adivinho do cacete. Acho que até devia abrir um escritório de evidente ou vidente, ou lá o que seja, e deitar-se a adivinhar os futuros da maralha. Estamos prontos para dar ao solante. O senhor ganhou. Não volta a ver estes dois moinantes. Pelo menos durante uma semana.

– Uma semana?! – perguntou surpreendido e repetiu: – Uma semana? Foi só um castigo? Não foram expulsos?

– Deus é misericordioso. Perdoa todos os nossos pecados, com excepção do Chefe que não os tem, pois é puro, santo, sério, honrado e virgem. Vamos de férias, Chefinho, por termos brilhado a grande altura. Sobretudo o Simão, que é um profissional do cacete.

– Que história é esta? Vocês estão a gozar comigo? – perguntou, colérico.

– Eu estou calado – apressou-se a dizer Simão.

No entanto, Arengas estava descontrolado e atirou sem piedade:

– E desconfio de que o Chefe também vai ter prémio. Sua Excelência, como o senhor chama ao nosso Director-Geral, deve estar a pensar no que lhe vai oferecer.

De súbito, estacou. Olhou-os, desconfiado.

– Foram vocês que prenderam o Edgar da Polícia Política?

– Não. O seu amiguinho Edgar foi preso por malta que Sua Excelência escolheu. Nós somos mais finos. Não prendemos bezerros da casa das virtudes. Demos a cana a um deputado. Um deputado, Chefe! É quase meu colega. Ele é deputado e eu sou do putedo. Foi uma paródia do cacete. Ainda por cima, com Sua Excelência a assistir. Espere! Não fique tão branco, homem de Deus, que ainda desmaia e a gente tem de o deixar cair com as trombas no chão. Desconfio que o patrão-mor não tenha gostado nada de saber que quem manda em si e lhe dá ordens não é o nosso Inspector, mas os meliantes da casa das virtudes. Desde o Carolino, essa Excelência de merda, até ao ordinário do Edgar. Prepare-se para receber o prémio. Desconfio que ele lhe vai oferecer umas férias prolongadas numa subcave onde se arquivam processos, cheia de ratos e a cheirar mal. Mas o Chefe vai gostar de certeza absoluta. Não se dá mal na imundície. Até para a semana, Chefe. Vão ser oito dias de arromba com as minhas garinas.

– Até à próxima, Chefe – despediu-se Simão e saíram os dois da sede da PIC.

– Deste-lhe grande baile – comentou Simão enquanto cumprimentava o colega.

– Há muito tempo que aquele bufo estava a pedi-las. Vende a alma para lamber botas. É do cacete!

Simão aproximava-se do Lavra quando teve uma sensação de desmaio. Cambaleou e teve de se segurar à parede. Foi então que tomou consciência de que não dormia há mais de quarenta horas. Uma onda avassaladora de cansaço começou a invadi-lo e não teve dúvidas de que a grande vitória do dia seria chegar a casa, deitar-se e passar o primeiro dia de férias a sonhar com Violeta.

Quando se arrastou para o interior do autocarro para cumprir a última etapa até chegar à cama, estava decidido. Quando acordasse, fosse qual fosse o dia e a hora, vestiria o melhor fato, passaria pela Praça da Figueira para comprar flores, subiria até à Rua Ivens, despido de todos os medos, apresentar-se-ia à rapariga e a sua boca só se abriria para um sorriso e uma pergunta:

– Minha querida Violeta. Queres casar comigo?


Concluam-se os autos.

 

Aos sete dias do mês de Julho de 1938, foram encerrados os presentes autos onde constam, após juntada, os processos 997/17 e 1001/17. Deles constam os autos de corpo de delito, exames periciais e prova testemunhal sobre os homicídios de Álvaro Penaguião e Gervásio da Silva.

Balanceando os autos, salvo melhor opinião, vimos propor a V. Exa. o arquivamento dos mesmos por não existirem réus para serem submetidos a juízo.

No que respeita ao primeiro homicídio, foi provada a autoria do crime, sendo detido o cidadão José Peixoto para aguardar os ulteriores termos do processo em prisão preventiva.

Dois dias após a detenção, ter-se-á suicidado na cela com a ajuda de um lençol, sendo as suas últimas palavras: «Viva o Estado Novo», «Viva Salazar».

Quanto ao segundo processo, foi identificado Edgar Mariano como autor material do crime. O réu é Agente da Polícia de Defesa e Vigilância do Estado. Ao fim de quinze dias de prisão preventiva, foi recebido o ofício em anexo, dando conta da necessidade urgente da passagem da sua custódia para a referida Polícia, em virtude de estar a ser desencadeada em Angola uma operação contra terroristas, por tempo indeterminado, cujo responsável operacional é o réu.

O referido ofício, assinado pelo Coronel Carolino, director da PVDE, homologado pela Presidência do Conselho e deferido pelo tribunal onde correm estes autos, informa da impossibilidade de revelar conteúdos da referida operação por se encontrar protegida pelo Segredo de Estado.

Eis o que levo ao conhecimento de V. Exa para que ordene o que tiver por mais conveniente.

Simão Rosmaninho, Agente

 

 

                                                                  Francisco Moita Flores

 

 

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