Biblio "SEBO"
Xavier Frontenac lançou um olhar tímido à cunhada, que fazia o seu tricô, busto direito, sem se apoiar nas costas da cadeira baixa que tinha aproximado do fogo. Percebeu que estava irritada; tentou então lembrar-se do que lhe teria dito ao jantar, mas tudo lhe pareceu sem qualquer maldade. Xavier suspirou e passou pela cabeça a sua mão franzina.
Olhou para o leito de colunas torcidas no qual oito anos antes o irmão mais velho, Michel Frontenac, tinha sofrido a sua interminável agonia. Via-o ainda: a cabeça virada, o pescoço enorme devorado pela barba jovem, vigorosa, as moscas infatigáveis de Junho que ele não conseguia escorraçar do rosto suado do irmão.
Se fosse hoje tentar-se-ia a trepanação, possivelmente ter-se-ia salvo e Michel estaria ali. Estaria ali... Xavier não podia tirar os olhos daquela cama, daquelas paredes. E no entanto não fora neste quarto que o irmão morrera: oito dias depois do funeral, Blanche Frontenac e os cinco filhos deixavam a casa da Rua Vital-Carlos e refugiavam-se no terceiro andar da moradia da Rua de Cursol, onde morava sua mãe, a Srª Arnaud-Miqueu. Mas eram ainda os mesmos cortinados de fundo azul e flores amarelas que guarneciam as janelas e o leito. E a cómoda e o armário, em frente um do outro, como no quarto antigo. Sobre a chaminé a mesma figura de bronze, de largas vestes, representando a Fé. Só o candeeiro mudara, pois a Srª Frontenac comprara um modelo novo que toda a família admirava: uma coluna de alabastro suportava o reservatório de cristal, no qual a mecha, como uma ténia larga, mergulhava no petróleo.
A chama desdobrava-se em numerosas pétalas incandescentes. O quebra-luz era uma confusão de rendas cor de creme, tendo, pregados, ramos de violetas artificiais. Esta maravilha atraía os pequenos, ávidos de leitura, que, em honra do tio Xavier, só se deitariam às nove e meia... Os dois mais velhos, Jean-Louis e Joseph, sem perder um segundo, pegaram em livros: os dois primeiros volumes dos Camisards, de Alexandre de Lamothe. Deitados no tapete, tapando os ouvidos com os polegares, mergulharam na história - e Xavier Frontenac olhando para eles só lhes via as cabeças redondas, as orelhas como asas de zéfiro, os grossos joelhos feridos ou com cicatrizes, as pernas sujas, as botas ferradas com os atacadores partidos e ligados por meio de nós...
Ao último que nascera, Yves, ninguém daria dez anos. Não lia, mas, sentado no chão, numa almofada, encostado à mãe, esfregando a cara de encontro aos seus joelhos, não largava Blanche, como se o instinto o empurrasse para o corpo do qual saíra... Pensava que entre a lição, no quadro, na manhã seguinte, o curso de Alemão no qual possivelmente o professor, o Sr. Roche, lhe bateria, e o deitar-se, ao fim do dia, uma longa, abençoada noite, iria estender-se: "Talvez eu morra, talvez eu esteja doente...", de propósito, repetira ao jantar todos os pratos.
Atrás do leito, as duas raparigas, Danièle e Marie, estudavam o seu catecismo e ouviam-se-lhes os alegres risos reprimidos. Mesmo em casa viviam isoladas, cheias ainda da atmosfera do Sacré-Coeur, ocupadas apenas das professoras, das colegas, e muitas vezes às onze da noite, nas suas camas iguais, ainda tagarelavam.
Xavier Frontenac contemplava aos seus pés aquelas cabeças redondas e tosquiadas, os filhos de Michel, os últimos Frontenac. Advogado, homem de negócios, tinha um nó na garganta e o coração batia-lhe apressadamente - aquela carne era a de seu irmão. Indiferente em matéria religiosa, não acreditava que o que sentia fosse de ordem mística. Também não contavam para ele as qualidades particulares dos sobrinhos. Se Jean-Louis, em vez de ser um estudante brilhante, inteligente e vivo, fosse, pelo contrário, um pateta, nem por isso o tio gostaria menos dele: o que lhes dava aos seus olhos um inestimável valor não dependia deles.
- Nove e meia - disse Blanche Frontenac. - Para a cama! E não se esqueçam de rezar...
Quando estava o tio Xavier não se fazia a oração em família. - Não levem os livros para o quarto.
- Em que altura vais, Joseph? - perguntou Jean-Louis ao irmão.
- Vou, quando Jean Cavalier... Tu sabes...
As raparigas deram a beijar ao tio as testas húmidas. Yves ficou para trás.
- Vens aconchegar-me a roupa, mãe?
- Se insistes outra vez não vou.
Da porta, o filho mais franzino lançou-lhe um olhar suplicante. As peúgas desapareciam-lhe nos sapatos. A cara magrita tornava maiores os seus olhos.
Depois de os pequenos terem saído, Xavier Frontenac observou outra vez a cunhada. Estava na mesma. Como a teria magoado?
Falara-lhe de mulheres cumpridoras, exemplares, das quais ela era o tipo, e não compreendia como este género de louvores a pudesse ter exasperado... Com pesada insistência exaltara a grandeza do sacrifício, declarando-lhe que não havia nada de mais belo no mundo do que a fidelidade duma viúva ao seu defunto marido, com inteira dedicação aos filhos: aos seus olhos Blanche só existia em função dos pequenos Frontenac.
Xavier nunca pensava na cunhada como numa mulher solitária, nova ainda, capaz de tristeza, de desespero. O seu destino em nada lhe interessava; desde que ela não voltasse a casar e educasse os filhos de Michel, não havia qualquer problema a seu respeito. E era isto que Blanche não lhe perdoava. Não porque tivesse pena: logo que enviuvara tinha medido e aceitado o seu sacrifício e nada a teria feito recuar. Muito piedosa, duma piedade árida e minuciosa, não pensava nunca que sem Deus pudesse ter tido forças para viver assim - porque era uma mulher jovem e um coração ardente. Nessa tarde, se Xavier tivesse olhos para ver, ter-se-ia apiedado, entre os livros deixados no tapete e uma desordem de ninho abandonado, daquela mãe trágica, de olhos de azeviche, daquele rosto bilioso, em que vagos restos de beleza resistiam ainda ao emagrecimento e às rugas. As tranças embranquecidas em desordem davam-lhe o aspecto negligente duma mulher que já nada tem a esperar da vida. O corpete negro, abotoado à frente, moldava-lhe as espáduas magras, o busto reduzido. Toda ela denunciava fadiga, o esgotamento da mãe que vai sendo devorada viva pelos filhos.
Não pedia que a admirassem nem que a louvassem: apenas que a compreendessem. A cegueira indiferente do cunhado punha-a fora de si, fazia-a violenta e injusta. Quando ele se ia embora arrependia-se, penitenciava-se, mas as suas boas resoluções não persistiam quando tornava a ver aquela cara, o homenzinho sem expressão frente ao qual se sentia inexistente e que a considerava um zero.
Ouviu-se uma voz fraquita. Era Yves que chamava: não podia conter-se, e ao mesmo tempo tinha medo que o ouvissem.
- Ah! Esta criança!...
Blanche Frontenac levantou-se, mas foi primeiro ver os mais velhos. Estavam já a dormir, apertando o terço nas mãos sujas.
Arranjou-lhes a roupa, e com o polegar fez-lhes na testa o sinal da cruz. Foi depois ao quarto das raparigas. A luz brilhava através das frinchas da porta, mas assim que a mãe se aproximou desapareceu... A Srª Frontenac acendeu a vela.
Entre as duas camas, sobre a mesinha-de-cabeceira, havia gomos de laranja num pratinho de boneca. Noutro havia chocolate raspado e bocados de biscoito. Mas as pequenas esconderam-se nos lençóis e Blanche só lhes viu as trançazinhas atadas por uma fita desbotada.
- Ficam sem sobremesa e vou anotar no vosso bloco que foram desobedientes.
A Srª Frontenac levou consigo os destroços do "jantarinho", mas mal fechou a porta ouviu, atrás de si, fortes risadas. No quarto ao lado Yves não dormia. Só ele tinha direito a lamparina; a sua sombra recortava-se na parede, e a cabeça parecia enorme, o pescoço mais frágil do que uma haste. Estava lavado em lágrimas, mas para não ouvir a mãe ralhar escondia a cara contra o peito. Blanche teria querido zangar-se, mas sentia as pulsações daquele indomável coração; sentia encostadas contra si, as costelas, as omoplatas. Nesses momentos aterrorizava-se perante tão indefinida possibilidade de sofrimento. Acarinhava-o:
- Pateta, tonto! Quantas vezes te tenho dito que não estás sozinho? Jesus vive no coração das crianças. Quando tens medo deves chamá-lo! Ele te consolará...
- Não. Não, porque eu fiz muitos pecados! Enquanto que contigo, quando estás, tenho a certeza de que tu estás aí. Toco-te. Sinto-te... Fica mais um bocadinho.
A mãe disse-lhe que era preciso dormir, que o tio Xavier a esperava. Assegurou-lhe que ele estava em estado de graça: nada ignorava do que dizia respeito ao filho. Yves sossegou e apenas um soluço de vez em quando o fazia estremecer. Então a Srª Frontenac afastou-se em bicos de pés.
Quando ela voltou para o quarto, Xavier Frontenac sobressaltou-se:
- Parece-me que adormeci... Estes passeios pelas propriedades cansam-me...
- A culpa é só sua - respondeu-lhe Blanche com azedume. - Porque é que há-de viver em Angoulême, longe da família? Depois da morte de Michel bastava-lhe trespassar o escritório. Era perfeitamente natural que voltasse a viver em Bordéus e ocupasse o lugar na casa das madeiras. Bem sei que nós temos a maior parte das acções, mas o sócio de Michel tem agora toda a influência. Dussol é boa pessoa, decerto. Mas isso não obsta a que por sua causa, Xavier, seja mais difícil um dia aos meus filhos terem os seus lugares na casa...
À medida que ia falando, Blanche sentia a profunda injustiça das suas queixas, de tal maneira que se surpreendia até com o silêncio de Xavier: o cunhado não protestava, baixava a cabeça como se Blanche tivesse posto o dedo na ferida, uma ferida oculta. E no entanto ter-lhe-ia bastado uma palavra para se defender: quando o pai Frontenac morrera, pouco depois de Michel, Xavier renunciara à sua parte nas propriedades em favor dos sobrinhos... Blanche pensara primeiro que ele desejara desembaraçar-se duma obrigação maçadora de vigilância. Mas, pelo contrário, oferecera-se para dirigir e orientar essas vinhas que já não lhe pertenciam e para tomar nas suas mãos os interesses dos pequenos... De quinze em quinze dias, à sexta-feira, qualquer que fosse o tempo, partia de Angoulême pelas três horas, tomava em Bordéus o comboio para Langon, onde descia. A charrette ou o trem, conforme o tempo, esperava-o na gare. A dois quilómetros da cidadezinha, na estrada nacional, perto de Preignac, o carro entrava no portão e logo Xavier reconhecia toda a melancolia dos velhos buxos.
Pavilhões construídos pelo bisavô maculavam esta cartuxa do século XVIII na qual várias gerações de Frontenac tinham vivido.
Subia a escada redonda, os passos ressoavam-lhe nas lajes, respirava o cheiro que a humidade do Inverno dá aos reposteiros de cretone já antigos. Apesar de os seus pais pouco sobreviverem ao filho mais velho, a casa não se fechara.
O jardineiro continuava a ocupar um dos alojamentos no jardim.
Um cocheiro, uma cozinheira e uma criada haviam ficado ao serviço da tia Felícia, irmã mais nova do pai Frontenac, tonta de nascença (dizia-se que o médico, por ocasião do parto, se servira do fórceps com violência...); Xavier, em primeiro lugar, procurava a tia, que durante o bom tempo girava sob a marquise dum lado para o outro e no Inverno dormitava à lareira, na cozinha. Não se assustava nem com o olhar angustiado no qual sobressaía o branco estriado entre as pálpebras sanguíneas, nem com a boca à banda, nem mesmo com a pelugem, em torno do queixo, duma estranha barba de adolescente... O monstro chamava-se Felícia Frontenac, e Xavier, por isso, beijava-a na testa respeitosamente. Era uma Frontenac, a própria irmã do pai, a sobrevivente. E quando a sineta tocava para o jantar, Xavier dirigia-se à pobre tonta, dava-lhe o braço, levava-a para a casa de jantar, instalava-a na sua frente e atava-lhe o guardanapo à volta do pescoço.
Veria a comida que se entornava daquela boca horrível? Ouvi-la-ia arrotar? Findo o jantar, levava Felícia com o mesmo cerimonial e entregava-a aos cuidados da velha Joana.
Xavier dirigia-se depois ao seu quarto, no pavilhão, um quarto enorme, onde Michel e ele tinham vivido durante anos e que dava sobre o rio e sobre os vinhedos. Durante o Inverno o fogo ardia ali desde manhã. No Verão as duas janelas ficavam abertas, e Xavier olhava para as vinhas e para os prados. Um rouxinol interrompia o seu canto na árvore, perto, onde sempre houvera rouxinóis...
Adolescente, Michel levantava-se para ouvi-los. Xavier revê aquela longa mancha branca curvada para o jardim. Gritava-lhe, meio adormecido: "Deita-te, Michel. Não é razoável. Vais apanhar um resfriamento..."
Durante poucos dias e poucas noites a vinha, em flor, cheirava bem. Xavier abre um livro de Balzac, quer afastar o fantasma. O livro escorrega-lhe das mãos, pensa em Michel, chora.
Desde as oito da manhã o carro esperava, aquando das suas visitas, que duravam desde manhã até à noite, às propriedades dos sobrinhos. Ia desde Cemés, onde se recolhe o vinho, até perto de Santa Cruz do Monte: aí, sim, triunfava tanto como em Sautemes.
Depois, do lado do Conamères, na estrada de Casteljaloux, aí as vacas só lhe traziam decepções... Em toda a parte era necessário promover inquéritos, estudar os livros das contas, neutralizar as habilidades e manhas dos camponeses que teriam sido os mais fortes sem as cartas anónimas que Xavier Frontenac encontrava todos os dias no seu correio... Tendo assim defendido zelosamente os interesses das crianças, voltava para casa tão cansado que logo depois de jantar rapidamente ia para a cama. Julgava ter sono e o sono não vinha: junto de si o fogo moribundo despertava subitamente, iluminava o sobrado e o acaju dos cadeirões, ou, na Primavera, o mesmo rouxinol que a sombra de Michel escutava... No dia seguinte, domingo, Xavier levantava-se tarde, punha uma camisa engomada, calças de fantasia, um casaco de alpaca ou de fazenda, botins longos e abotoados, chapéu de coco ou de palha, e descia ao cemitério. Assim que via Xavier ao longe, o guarda cumprimentava. Xavier fazia tudo quanto podia pelos seus mortos, assegurando-lhes, com sucessivas gorjetas, os favores do homem. Às vezes os seus botins bicudos enterravam-se na lama. De outras vezes cobriam-se de cinza. As toupeiras faziam estalar o campo santo. O Frontenac vivo descobria-se perante os Frontenac volvidos em pó. Estava ali, sem nada dizer ou fazer, semelhante à maior parte dos seus contemporâneos, dos mais ilustres aos mais obscuros, fechado no seu materialismo, no seu determinismo, prisioneiro dum universo infinitamente mais estreito que o de Aristóteles. E no entanto ficava para ali, o chapéu de coco na mão esquerda, enquanto que com a direita, para se mostrar à vontade junto da morte, cortava os botões das roseiras vivas...
À tarde o rápido das cinco horas levava-o para Bordéus.
Depois de comprar bolos e bombons, chegava a casa da cunhada.
Ouviam-se passos apressados no corredor. As crianças gritavam:
"É o tio Xavier..."
Mãos infantis disputavam o fecho da porta. E atiravam-se-lhe às pernas, arrancavam-lhe os embrulhos.
- Desculpe-me, Xavier - dizia Blanche Frontenac, que se arrependia facilmente. - É preciso perdoar-me. Nem sempre domino os meus nervos... Não há qualquer necessidade de me lembrar que bom tio é para os meus filhos...
Como sempre, Xavier parecia não a ouvir ou, antes, não atribuir a menor importância ao que ela dizia. Ia e vinha dum lado para o outro no quarto, e as mãos cruzadas atrás das costas levantavam as abas da sobrecasaca.
Murmurava apenas, de olhos vagos e ansiosos: "não se faz nada quando não se faz tudo..."
Blanche teve de novo a certeza de que o magoara profundamente. Tentou ainda tranquilizá-lo: não tinha realmente qualquer obrigação de trocar Angoulême por Bordéus nem vender madeiras quando preferia os assuntos judiciais.
Acrescentou:
- Se bem que eu saiba que o seu escritório não o ocupa muito...
Xavier olhou-a de novo, angustiado, como se receasse ver-se subitamente iluminado por um foco - e ela esforçou-se por persuadi-lo, apenas obtendo em resposta uma atenção simulada.
Bem gostaria Blanche que o cunhado se abrisse com ela, mas era impenetrável como uma rocha. Mesmo no passado, ele não fazia nunca confidências ao irmão ou à cunhada. Tinha as suas recordações pessoais, que só lhe pertenciam a ele. À sua guarda, como mãe, estavam confiados os últimos Frontenac. Respeitava-a nessa qualidade, mas não deixava de ver nela a menina Arnaud-Miqueu - uma pessoa completa, é certo; mas vinda de fora. Blanche, irritada novamente, calou-se. Xavier demoraria ainda muito a deitar-se? Tinha-se sentado outra vez e com os cotovelos apoiados nas coxas magras mexia nas achas de madeira e atiçava o fogo, como se estivesse sozinho.
- A propósito - disse de repente. - A Joaninha pede amostras de fazendas, a tia Felícia precisa dum vestido de meia estação...
- A tia Felícia! - exclamou Blanche. E como que impelida por um demónio desconhecido... - Precisamos de ter, a esse respeito uma conversa séria...
Finalmente conseguia chamar-lhe a atenção. Já os seus olhos se fixavam nos dela. Que nova lebre iria levantar aquela mulher sombria, sempre pronta para o ataque? - Confesse que não tem a menor justificação pagar a três criados e a um jardineiro para o serviço duma pobre demente que num recolhimento seria bem mais cuidadosamente tratada e vigiada...
- A tia Felícia num recolhimento?
Blanche, finalmente, conseguira pô-lo fora de si. O seu rosto mudara de cor, do vermelho passara para violeta.
- Enquanto eu for vivo - exaltou-se -, a tia Felícia não terá de deixar a sua casa. Não será contrariada a vontade de meu pai, que não se separou nunca da irmã.
- Pois claro! Saía à segunda-feira de manhã de Preignac para tratar dos seus negócios em Bordéus e só voltava no sábado à noite. E durante toda a semana era a sua pobre mãe, Xavier, quem tinha de ocupar-se da tia Felícia...
- Fazia-o com satisfação, como está, aliás, nos costumes da minha família. Pensando bem no assunto, era a irmã do marido.
- Isso pensa você... A mim, porém, ela fez-me confidências. Falou-me desses anos de solidão frente a frente com uma louca...
Furioso, Xavier gritou:
- Não acredito que ela se tenha queixado, e sobretudo se tenha queixado a si...
- A minha sogra era minha amiga. Não me considerava uma estranha.
- Deixemos os meus pais, sim? - interrompeu Xavier secamente. - Os Frontenac nunca pensam em questões de dinheiro quando se trata dum problema de família. Se acha excessivo pagar metade das despesas da casa de Preignac estou pronto a encarregar-me de tudo... Aliás esquece que a tia Felícia tinha direito a parte da herança do meu avô de que os meus pais não quiseram nunca saber... O meu pai pouco se importava com a lei...
Blanche, picada, não se conteve e replicou-lhe como desejava desde o começo da discussão:
- Apesar de não ser uma Frontenac, penso que os meus filhos devem contribuir pelo seu lado para o sustento da sua tia-avó e mesmo garantir-lhe o nível de vida que ela hoje tem - ridiculamente dispendioso e de que está impossibilitada de beneficiar... Consinto, visto que a sua fantasia o quer. Mas o que não posso aceitar em caso algum - acrescentou em voz mais alta - é que eles sejam vítimas dessa fantasia e que a felicidade deles seja comprometida por sua causa...
Parou de falar, para ver o efeito das suas palavras. Mas Xavier não compreendia onde queria chegar a cunhada.
- E você não receia os comentários que possam fazer sobre essa tontinha, que a julguem completamente louca?
- Ora! Ora! Toda a gente sabe que a pobre mulher teve à nascença o crânio atingido pelos ferros!...
- Toda a gente sabia isso em Preignac entre 1840 e 1860. Mas imagina que as gerações mais novas sabem essas coisas?... Não, meu caro Xavier, precisa de ter coragem e olhar de frente a sua responsabilidade. Deseja que a tia Felícia fique na casa que foi de seus pais, apesar de nunca sair da cozinha, servida por três criados que naturalmente a fazem sofrer, visto que não são vigiados por pessoa alguma. Mas tudo isso prejudicará os filhos de seu irmão quando, na hora de casarem, virem todas as portas fecharem-se-lhes.
Estava vitoriosa, mas assustava-se ante o terror que via na fisionomia de Xavier Frontenac. Blanche não tinha inventado a sua inquietação. Desde há muito tempo pensava no perigo que era a tia Felícia e ameaçava as crianças. Mas esse perigo só podia existir em tempos futuros; tinha exagerado... Com a sua eterna boa fé, Xavier deixava-lhe o campo livre dizendo:
- Nunca pensei em tal - e suspirou. - Minha querida Blanche: nunca penso em coisa alguma quando se trata das crianças.
Andava às voltas no quarto, arrastando os calcanhares e com os joelhos um pouco dobrados.
Toda a cólera de Blanche desapareceu num segundo. Tinha remorsos do seu triunfo. Disse que ainda era tempo e que tudo poderia ser reparado. Em Bordéus ignoravam a existência da tia Felícia, que não podia viver muito tempo e cuja lembrança desapareceria rapidamente.
Como Xavier ficasse apreensivo, acrescentou:
- De resto, muita gente supõe que ela está imbecil; essa opinião generalizou-se. Duvido que tenha passado alguma vez por doida varrida, mas essa mesma ideia poderá vir... Trata-se de evitar um perigo muito possível... Não deve ficar nesse estado de desolação, meu caro amigo! Bem sabe que sou uma exagerada... uma exaltada... A minha maneira de ser é esta.
Ouvia a respiração curta de Xavier. "Tanto o pai como a mãe tinham morrido com ataques cardíacos", pensou. "Podia matá-lo." Xavier tinha ido sentar-se perto do fogão com ar de pessoa oprimida. Blanche concentrou-se e fechou os olhos: duas pálpebras enormes azuladas tornaram menos dura a sua expressão. Xavier sabia que ali, ao seu lado, aquela mulher humilhava-se e sofria por não saber dominar o seu feitio.
Ouviu-se naquele quarto silencioso a voz indecisa duma criança que sonhava. Xavier disse que tinha chegado a hora de deitar-se; que pensaria melhor na conversa daquela noite.
Por sua vez a cunhada disse-lhe que não faltaria tempo para tomarem uma decisão.
- Pelo contrário, devemos proceder o mais depressa possível. Trata-se das crianças...
- Está a preocupar-se exageradamente - respondeu ela sem hesitar. - Apesar das minhas censuras, vejo que não há no mundo dois tios que possam valer mais do que você.
Xavier fez um gesto que podia ser interpretado assim: "Quem sabe?" Sim, efectivamente, aquele homem tinha remorsos de qualquer coisa; Blanche não podia saber de quê.
Alguns minutos depois, ajoelhada para as orações da noite, mal podia repetir as habituais. Na próxima visita que Xavier lhe fizesse procuraria saber alguma coisa mais. Mas havia de ser difícil porque não se abria com pessoa alguma; com ela menos do que com qualquer outra pessoa.
Foi-lhe impossível sossegar, e no entanto eram horas de adormecer. Tinha que levantar-se na manhã seguinte às 6 horas para obrigar Joseph, o seu filho mais novo, a trabalhar. Era sempre e em tudo o último da classe, tal como Jean-Louis era o primeiro. Joseph era tão inteligente como os outros e tinha predicados tão excepcionais que não sabia fingir, não sabia disfarçar; era uma destas crianças que não são atingidas pelas palavras dos outros porque têm o espírito distante. Aparecem às pessoas crescidas com um ar pesado, como se tivessem sido esmagadas pelos livros de estudo e pelos cadernos sujos. Mas o seu espírito voa; parte para muito longe, fixa-se nas ervas crescidas junto dos rios à procura do lagostim. A mãe sabia que durante três quartos de hora esforçar-se-ia em vão por "acordar" e chamar à realidade aquele pequeno sonolento, que não prestava atenção a coisa alguma, com o cérebro tão vazio de inteligência e de vitalidade que mais parecia uma crisálida abandonada.
Depois de as crianças saírem, poderia ela almoçar? Sim, havia de comer. Naquele dia não seria preciso jejuar, visto que a sua atitude para com o cunhado naquela mesma noite não lhe permitia ir logo de manhã receber o Senhor. Devia ir à Sociedade Geral.
Tinha ali marcado um encontro com o arquitecto por causa do prédio da Rua de Santa Catarina e teria que arranjar tempo para a sua visita aos pobres e para mandar alguns géneros de mercearia para certa casa de caridade da sua simpatia... À noite, depois do jantar e depois de os filhos adormecerem, iria visitar a mãe. Encontrar-se-ia na sua casa com a irmã e com o cunhado. Talvez com a tia Adila e o abade Melon - o primeiro-vigário... Mulheres que foram amadas... Ela não teria podido escolher; com tantos filhos só podia alguém casar com ela pelo seu dinheiro... Não, não, estava a gracejar... não devia pensar nestas coisas. Talvez tivesse principiado a pensar... E nada de escrúpulos. Não lhe competia privar os filhos de uma parte de si mesma; não havia nisto mérito algum: era o seu feitio. Esta ideia de que viriam a pagar na sua carne tudo o que ela tivesse feito de mal... Bem sabia que a ideia não tinha fundamento... Estava condenada à perpetuidade nos filhos e sofria: "Estou liquidada, liquidada."
Descansou as mãos nos olhos; depois fê-las escorregar ao longo das faces... "Preciso de ir ao dentista..."
Neste momento ouviu-se novamente a voz débil de uma criança.
Outra vez Yves! Dirigiu-se com passos de lobo até ao seu quarto. O filho dormia agitado; atirava com as roupas para o lado. Uma perna esquelética e escura caía para fora da cama.
Cobriu-o prendendo a roupa ao colchão enquanto ele se voltava para a parede pronunciando frases confusas.
Apalpou-lhe a testa e o pescoço para ver se estaria com febre.
De quinze em quinze dias, aos domingos, o tio Xavier reaparecia sem que a cunhada tivesse podido adiantar alguma coisa na descoberta do segredo. Ele vinha para as crianças como vêm os feriados das primeiras quintas-feiras do mês, como vem a comunhão semanal, como vêm as composições e as notas à sexta-feira. Representava uma constelação desse céu infantil, dessa mecânica tão certinha que nada poderia alterar.
Blanche imaginaria estar sonhando se os silêncios do tio, o ar distraído, os seus passos iguais, o olhar no vácuo e a face enrugada por uma ideia fixa não viessem lembrar-lhe os tempos em que ela mesma sofrera uma crise de escrúpulos. Sim, mulher cristã, encontrava neste indiferente os sinais do mal que o père Nole tinha curado. Era entendida no assunto e quereria sossegá-lo. Mas não encontrava uma oportunidade. Ao menos tinha conseguido por um favor, que ela sentia gratuito, não mais se irritar com ele; evitava todas as discussões.
Perceberia ele o alcance dos seus esforços? Ela, que fora tão ciosa da sua autoridade, pedia-lhe conselho em se tratando das crianças. Acharia bem que comprasse um cavalo com sela para Jean-Louis, visto que era o melhor cavaleiro do seu colégio?
Seria necessário obrigar Yves a seguir o curso de equitação apesar do seu receio? Seriam melhores os resultados nos estudos do Joseph se o pusesse num bom colégio?
Não era agora preciso acender a lareira, nem mesmo o candeeiro. Só havia escuridão no corredor, onde uns minutos antes do jantar Blanche passeava à medida que ia rezando o terço, enquanto Yves, que seguia atrás, segurava com a ponta dos dedos o seu vestido, todo entregue aos sonhos de magnificência que não seriam conhecidos de ninguém.
Havia confusão, devido ao comboio puxado a cavalos do curso da Alsácia.
As sereias do porto aproximavam os barulhos. Blanche dizia que nos dias de calor as crianças ficavam idiotas; que inventavam coisas estúpidas, como essa de ficarem na sala de jantar depois da sobremesa, colocarem os guardanapos em cima da cabeça e finalmente fecharem-se num recanto escuro esfregando os narizes uns contra os outros; chamavam a isto "brincar às comunidades".
Num sábado do mês de Junho, como Blanche deixasse de pensar no segredo do tio Xavier, a revelação fez-se e a claridade veio donde ela nunca esperaria.
Depois de os filhos terem adormecido, dirigiu-se como de costume a casa da mãe. Depois de ter atravessado a sala de jantar, onde a mesa estava ainda posta, abriu a porta da salinha de estar. A Srª Arnaud-Miqueu ocupava todo o fauteu de couro. Puxava a filha para si e abraçava-a à sua maneira, quase gulosamente. Na varanda estavam o cunhado Caussade e a irmã. Viu ali também o vulto importante da tia Adila, cunhada da Srª Arnaud-Miqueu. Riam estrondosamente. Toda a vizinhança os teria ouvido se ali perto outras pessoas não gritassem como possessos. Na rua um grupo de rapazes cantava o estribilho:
"A criança dizia ao soldado: sentinela não faças fogo" (bis).
A tia Adila viu Blanche.
- É Blanche que vem aí; boas tardes, minha querida.
Caussade gritou, para sufocar o barulho do trâmuei:
- Esperava por si... tenho uma grande novidade... adivinhe...
- Vamos, Alfred - interveio a mulher. - Ela não se deita a adivinhar.
- Pois bem, minha querida; ontem, quando advogava em Angoulême, soube que Xavier Frontenac, com o conhecimento de toda a gente, tinha uma amante. Hem? Que pensará de tudo isto?
A mulher interrompeu-o dizendo que assustava Blanche, que iria irritá-la...
- Ah, quanto a isso, não.
- Ele não arruina os sobrinhos; parece que a tal desgraçadinha nem sempre come petiscos...
Blanche interrompeu-o secamente. Estava absolutamente tranquila a tal respeito. De resto, a vida particular de Xavier Frontenac não podia interessar pessoa alguma das que estavam ali.
- Eu bem te dizia: zangou-se.
- Gosta de o atormentar, mas não dá licença aos outros que lhe toquem.
Blanche protestou afirmando que não se zangara. Visto que, por infelicidade sua, Xavier não tinha crenças religiosas, não via o que, humanamente falando, pudesse prendê-lo. Todas as vozes desceram de tom. Alfred Caussade contou, para tranquilizar a cunhada, que Xavier Frontenac era uma figura lendária em Angoulême, que a sua avareza para com a sua "amiguinha" o tornava ridículo; que podia portanto dormir sossegada.
- Deu-lhe uma reles mobília; paga-lhe o quarto. Nada mais.
Todos o escarneciam...
Aqui Alfred parou, desconcertado. Blanche que nunca receara os golpes teatrais, depois de ter dobrado o seu trabalho, acabava de se levantar. Abraçou a Srª Arnaud-Miqueu e despediu-se, sem pronunciar uma só palavra, daquela família reduzida ao silêncio. O espírito dos Frontenac havia tomado conta dela. Estava sobressaltada e quando chegou a sua casa, como tinha a mão a tremer, não encontrava o buraco da fechadura.
Entrara em casa duas horas mais cedo do que o costume, por isso era ainda dia. Encontrou no seu quarto os três rapazes em camisa de noite, aconchegados junto do rebordo da janela e divertindo-se a cuspir sobre a pedra, esfregando-a em seguida com o caroço de um damasco. A finalidade desse jogo era gastar o caroço dos dois lados até que fosse possível furá-lo. Depois desse feito, tirariam a amêndoa com o auxílio de uma agulha. Os mais pacientes faziam assim um assobio que não assobiava e que por fim engoliam.
Foi grande o espanto dos pequenos por tão pouco lhes ter ralhado, e fugiram como se fossem coelhos. Blanche Frontenac pensava em Xavier; mesmo sem querer acreditar, parecia-lhe que ele estava mais humano e mais acessível.
Havia de vê-lo no dia seguinte à noite; era o domingo em que viria. Está a imaginá-lo naquele momento, sozinho, na grande casa silenciosa de Preignac...
Nessa mesma noite Xavier Frontenac sentara-se, ao chegar, perto da marquise. Mas como sentira muito calor junto das videiras receou vir a cair doente. Deu uns passos no vestíbulo e finalmente resolveu subir. Muito mais receia estas noites de Junho do que as noites chuvosas do Inverno, quando a lareira o acompanha convidando à leitura. Noutros tempos Xavier troçava de Michel porque ele tinha a mania de recitar constantemente versos de Hugo.
Xavier detestava todos os versos. Mas agora relembrava alguns, ao mesmo tempo que recordava a voz querida de quem os dizia. Era preciso repeti-los sem omissões, para poder achar as inflexões ou o timbre surdo e monótono da voz do irmão. Por isso, nesta mesma noite, junto duma janela aberta ao lado da ribeira invisível, tal como podia ter encontrado uma nota ou um acorde, Xavier ia recitando versos em tons diferentes:
"Calma natureza, como tu sabes esquecer!"
Os campos eram estridentes, sempre ali houvera estes barulhos, estes latidos, estes risos. E o advogado de Angoulême, encostado à janela, repetia - como se alguém estivesse a ensinar-lhe cada palavra:
"Só um carro, lá ao longe vai deslizando na sombra, ouve... Tudo dorme e descansa e a árvore dos caminhos... sacode ao vento da noite a poeira da tarde."
Volta as costas para a janela, acende um cigarro e, segundo o seu costume, arrasta os pés por todo o compartimento, com as bainhas das calças entaladas entre o tornozelo e as chinelas.
"Atraiçoava a memória de Michel nos seus filhos", eis o que ia repetindo, insistindo nos seus velhos remorsos.
No ano que terminara a sua formatura em Direito, em Bordéus, tinha conhecido aquela rapariga já com a mocidade a passar, pouco mais nova do que ele, e que o atraíra sem que entendesse porquê.
Teria sido necessário integrar-se no mistério da sua timidez, das suas manias, das suas incapacidades e das suas obsessões.
Boa pessoa, com um espírito maternal, seria esse talvez o segredo do seu prestígio. Mesmo enquanto o irmão vivia, Xavier não encarara levianamente esta situação irregular. Na família Frontenac havia uma tradição de severidade no comportamento.
Essa severidade não vinha das crenças religiosas, mas sim das ideias republicanas e rústicas.
O avô e o pai de Xavier não suportariam qualquer conversa licenciosa, e a situação falsa do tio Péloueyre, celibatário, irmão da Srª Frontenac, cuja família tinha herdado Bourideys - a propriedade na região das dunas -, fora um escândalo para toda a família. Dizia-se que ele recebia na sua casa, em Bourideys, ali, onde vira morrer os pais, a tal mulher e que ela tinha o arrojo de se mostrar às onze horas da manhã nos degraus da porta, com um roupão cor-de-rosa, os pés nus metidos nas pantufas e os cabelos entrançados caídos pelas costas abaixo.
O tio Péloueyre morrera em Bordéus, em casa dela, na ocasião em que fora ali fazer um testamento a seu favor.
Xavier tinha horror em pensar que ia seguindo o mesmo caminho e que, sem ter desejado, chamava a si a tradição do celibatário sem vergonha. Se ao menos a família nada soubesse! Se nada descobrisse! O medo que tinha fê-lo alugar uma casa perto de Bordéus; sempre imaginou que se faria silêncio em Angoulême acerca da sua vida particular.
Quando morreu Michel, a família não lhe deixou tempo para alimentar o seu desgosto. Os pais, que eram ainda vivos, e Blanche arrancavam-no ao seu embrutecimento para lhe dizerem o que a família havia decidido: "Estava indicado que ele devia vender a casa, sair de Angoulême, vir ocupar em Bordéus, na casa da madeira, o lugar deixado por Michel"; Xavier protestava em vão , dizendo que não percebia nada de negócios.
Afirmavam-lhe que teria o auxílio de Arthur Dussol, seu sócio.
Discutia com calor. Renunciar a Josefa? Era mais forte do que ele. Instalá-la em Bordéus? O seu caso seria conhecido de todos em menos de oito dias. Encontrar-se-ia com a cunhada, com as crianças, levando aquela mulher pelo braço. Só isso o fazia empalidecer.
Mais do que nunca, agora, que se tornara o tutor dos sobrinhos, era necessário dissimular; esconder aquela vergonha. Afinal os interesses dos pequenos em coisa alguma pareciam ameaçados com a gerência de Dussol, visto que os Frontenac administravam a parte mais importante. Só uma coisa contava aos olhos de Xavier: que nada transpirasse da sua vida particular.
Teimou, e pela primeira vez resistiu à vontade do pai, já próximo da morte.
Todos os negócios regularizados, nem assim Xavier conseguiu ficar mais tranquilo. Não pôde dedicar-se com sossego ao seu desgosto; tinha o remorso a miná-lo, o mesmo remorso que neste momento o levava a passear naquele quarto da sua infância, entre o seu leito e a cama onde ele via sempre o irmão estendido. "Todo o património devia reverter a favor dos seus filhos; seria um roubo feito aos Frontenac - dizia -, se uma só moeda fosse dali desviada." Ora ele tinha prometido a Josefa pôr em seu nome durante dez anos, no dia 1º de Janeiro, uma quantia de dez mil francos; depois disso estava assente que ela nada esperaria de Xavier - a não ser, enquanto ele vivesse, o aluguer da casa e uma mensalidade de duzentos francos. Privando-se de tudo (a sua avareza divertia Angoulême), Xavier economizava vinte cinco mil francos por ano; mas dessa quantia só quinze mil francos iriam para os sobrinhos.
"Roubava-lhes dez notas - repetia ele -, sem contar o que iria gastando com Josefa." Tinha-lhes dado a sua parte nas propriedades, e toda a gente pode livremente dispor dos seus rendimentos; mas conhecia uma lei secreta, uma lei escura, uma lei Frontenac, que era a que tinha maior importância para ele.
Solteirão depositário do património, administrava-o em benefício dos pequenos seres, filhos de Michel, que tinham dividido entre eles as suas feições; Jean-Louis tinha herdado o seu olhar sombrio; Danièle tinha o mesmo sinal escuro junto da orelha esquerda; Yves tinha as mesmas pálpebras descaídas.
Às vezes adormecia os seus remorsos e durante semanas a fio não pensava neles. Mas a preocupação que nunca o abandonava era a de se esconder. Quereria morrer antes que a família soubesse da sua ligação. Mal suspeitava ele que àquela mesma hora, deitada na grande cama de colunas onde morrera o irmão, Blanche, com os olhos abertos, rodeada pelas sombras escaldantes das noites de Bordéus, estaria pensando nele e forjaria a seu respeito o mais estranho dos deveres: mesmo que as crianças perdessem com isso uma fortuna, havia de levá-lo a casar.
Nada fazer que pudesse desviar Xavier de cumprir o seu dever regularizando uma situação era pouco; seria necessário incitá-lo por todos os modos a que o cumprisse. Sim, era heróico!
Precisamente... Logo no dia seguinte esforçar-se-ia por levar a conversa para esse assunto palpitante. Tomaria a ofensiva.
Mas Xavier não se prestou a nada disso. Durante o jantar, Blanche tinha aproveitado um comentário de Jean-Louis e afirmara que o tio Xavier podia ainda constituir família e ter filhos.
- Espero que não terá renunciado a isso...
Xavier viu naquelas palavras um gracejo, respondeu no mesmo tom, e com certo espírito que às vezes se manifestava descreveu a sua noiva imaginária com grande satisfação dos pequenos.
Quando estes se deitaram, cunhado e cunhada encostados à janela, Blanche com grande esforço disse:
- Estava falando a sério, Xavier, e quero que você o saiba: ficaria feliz, sem qualquer pensamento reservado, no dia em que soubesse que estava resolvido a casar, mesmo que tal resolução fosse tardia.
Xavier respondeu com secura, de modo a pôr ponto na conversa, dizendo que nunca se casaria. Esta reflexão da cunhada não o fez desconfiar, porque a ideia de um casamento com Josefa nunca lhe passaria pela cabeça. Dar o nome de Frontenac a uma mulher que tinha prevaricado, levá-la a casa de seus pais, e muito especialmente apresentá-la à mulher de Michel e aos filhos dele, seria um sacrilégio inconcebível.
Por isso, nem um minuto só imaginou possível que Blanche tivesse tocado no segredo. Afastou-se nervoso da janela, nervoso mas não inquieto, e pediu licença para ir para o seu quarto.
A vida lenta da infância continuava sem deixar lugar ao acaso e aos acidentes. Todas as horas estavam preenchidas pelo trabalho, traziam a merenda, o estudo, o regresso no ónibus, os degraus subidos a quatro e quatro, o aroma do jantar, a mamã, A Ilha Misteriosa, o sono. A própria doença (a escarlatina de Yves, a laringite de Joseph, o sarampo de Danièle) tomava a sua posição metódica, como tudo o mais, comportava mais alegrias do que tristezas, marcava datas, servia de ninho às recordações: "o ano tal, o da escarlatina"...
As férias sucessivas eram passadas sob os pinheiros em Bourideys, na casa desempoeirada do tio Péloueyre.
Seriam as mesmas as cigarras do ano passado? Das propriedades de Respide continuavam a chegar cestos com rainhas-cláudias e pêssegos. Nada havia mudado, a não ser os calções de Jean-Louis e de Joseph, que apareciam agora mais compridos.
Blanche de Frontenac, que tão magra era noutros tempos, principiava a engordar, inquietava-se a pensar na saúde, imaginava que tinha um cancro, e, minada por essa angústia, pensava na sorte dos filhos quando desaparecesse deste mundo.
Ainda pegava em Yves ao colo, mas ele já nem sempre gostava.
Tinha de ingerir muitos remédios, antes e depois das comidas, sem interromper uma vez os cuidados com Danièle e Marie. As pequenas apresentavam já nesse momento pernas gordas e umas ancas largas que ficariam sempre assim.
Naquele ano, as festas da Páscoa vieram tão cedo que logo no fim de Março trouxeram a Bourideys os pequenos Frontenac: A Primavera andava no ar, mas estava invisível.
Sob as folhas do Verão passado, os castanheiros pareciam ameaçados de morte. O canto do cuco espalhava-se para além dos prados. Jean-Louis, com a "calibre 24" sobre o ombro, imaginava caçar os esquilos; procurava assim a Primavera, e a Primavera rondava neste falso dia de Inverno como alguém que sentimos à nossa volta mas que não vemos; supunha que sentia o seu bafo e subitamente nada mais; fazia frio... As claridades das 4 horas acariciavam durante uns minutos os troncos das árvores; a casca dos pinheiros luzia como concha e as suas feridas viscosas atraíam o sol a declinar. Depois, repentinamente, tudo fugia; o vento do oeste trazia nuvens pesadas que encobriam o cimo das árvores e arrancava a toda esta natureza sombria um prolongado queixume.
Quando se aproximou dos prados que La Hure rega, Jean-Louis encontrou finalmente a Primavera: sentiu-a ao longo dos riachos, na erva já maciça, escorrendo dos rebentos viçosos e um pouco soltos dos arbustos. O adolescente debruçou-se sobre o riacho para ver as longas cabeleiras animadas do musgo.
Cabeleiras... os rostos deviam estar escondidos desde o princípio do mundo nas areias enrugadas pela corrente de água doce. O sol voltou. Jean-Louis apoiou-se num arbusto e tirou da algibeira o Discurso do Método numa edição escolar; durante dez minutos não viu o sol, distraiu-se a contemplar uma barreira demolida, um obstáculo que ele tinha feito construir no mês de Agosto para treinar a sua égua Tempestade. Tinha que dizer a Burthe para a reparar. Devia sair a cavalo na manhã seguinte. Iria a Léojats e veria Madeleine Cazavieilh... O vento mudara para leste e trazia os aromas da cidade: terebintina, pão quente, fumo dos lumes que preparavam as refeições humildes. O cheiro da cidade era o cheiro do bom tempo; veio encher de alegria o rapaz. Andava por cima da erva humedecida. As primaveras luziam no talude que limita o prado a oeste. Atravessou o talude, seguiu por uma charneca recentemente tratada e voltou a descer até ao bosque dos cedros que La Hure atravessa antes de chegar ao moinho; subitamente parou e sufocou um ataque de riso: no tronco dum pinheiro, um estranho pequenino monge com o seu capuz estava sentado, rezava a meia voz, tendo na sua mão direita um caderno de estudante. Era Yves, que tinha puxado para cima da cabeça o capuz e se conservava com o busto rígido, misterioso, tendo a convicção de que estava ali sozinho - servido pelos anjos...
Jean-Louis já não tinha vontade de rir porque é sempre desagradável observar alguém que supõe não ser visto por pessoa alguma. Estava cheio de medo como se tivesse surpreendido um mistério grave... O seu primeiro movimento foi sair dali deixando o irmão entregue às suas feitiçarias. Mas a vontade de arreliar, poderosa nessa idade, voltou a inspirar-lhe o desejo de se deixar escorregar até onde estava o inocente, cujo capuz bem enterrado na cabeça tornava surdo.
Escondeu-se atrás de um carvalho a pouca distância do tronco onde Yves se encontrava, mas não podia entender o sentido das suas palavras, levadas como eram pelo vento leste. Com um simples pulo caiu sobre a vítima e antes que o pequeno tivesse gritado, arrancou-lhe o caderno e desatou a correr a toda a velocidade em direcção ao parque.
Nunca avaliamos bem o que fazemos aos outros.
Jean-Louis ficaria apoquentado se tivesse visto a expressão do seu irmãozinho, petrificado no meio da charneca. O desespero deitou-o por terra e encostou a cara na areia para sufocar os gritos.
O que ele escrevia longe dos olhares de toda a gente, e que só a ele pertencia, o que representava um segredo entre Deus e ele ia ser motivo de troças e de risos.
Principiou a correr em direcção ao moinho. Estaria pensando na represa onde em tempo uma criança se afogara? Naturalmente pensaria, como tantas vezes havia sucedido, em seguir na sua frente, para nunca mais entrar em casa de seus pais.
Ia perdendo as forças. Agora só podia andar devagarinho por causa da areia que entrara nos sapatos e porque uma criança piedosa é sempre levada pelos anjos: "porque o Todo-Poderoso disse aos anjos para protegê-la em todas as circunstâncias. Eles hão-de levá-la nos seus braços com receio de que os seus pés batam numa pedra".. De repente teve um pensamento consolador: ninguém no mundo, nem mesmo Jean-Louis, entenderia a sua letra secreta, pior do que a letra que empregava na escola. E aquilo que pudessem ler aparecer-lhes-ia incompreensível. Era uma loucura o seu desespero: o que podiam eles entender dessa linguagem de que ele próprio nem sempre tinha a significação?
O caminho com areia chegava à ponte, à entrada do moinho oculto pelo prado.
A velha engrenagem do moinho palpitava ainda à hora do crepúsculo. Um cavalo, espantado, deitou a cabeça fora da janela da cocheira. As casas humildes e térreas cheias de fumo, o riacho, os prados, constituíam uma clareira de verdura, de água e de vida oculta, cercada por todos os lados pelos velhos pinheiros da comunidade. Yves pensava: "neste momento o mistério do moinho não devia ser violado".
Retrocedeu no caminho. Ouvia-se a primeira campainhada para o jantar. Um grito selvagem do pastor atravessou o bosque. Yves sentiu-se envolvido pelo odor desagradável dos carneiros; ouvia-os mas não os via. O pastor não correspondeu ao seu cumprimento, o que lhe fez pena. Na esquina do arruamento do carvalho maior, Jean-Louis espreitava-o; tinha o caderno na mão. Yves parou indeciso. Deveria zangar-se? O cuco cantou ainda uma vez das bandas de Hourtinat. Estavam imóveis, a dois passos um do outro. Jean-Louis avançou em primeiro lugar e perguntou:
- Estás zangado comigo?
Yves nunca ficara insensível a uma palavra de ternura nem mesmo a uma inflexão de meiguice. O irmão era sempre rude com ele; ralhava muitas vezes dizendo que "era preciso espertá-lo" e sobretudo dizendo o que mais podia irritá-lo: "quando estiveres no regimento"...
Mas naquela noite repetia:
- Responde, não estás zangado?
A criança não pôde responder: pôs um braço à volta do pescoço do seu irmão mais velho, que se desembaraçou dele sem precipitação.
- Pois bem - disse. - Não sei se sabes que é tudo belo.
A criança olhou para ele e perguntou:
- O que é que achas belo?
- O que tu escreveste é mais do que belo - disse entusiasmado.
Andaram lado a lado no arruamento ainda claro, entre os pinheiros escuros.
Yves perguntou:
- Estás a troçar de mim?
Não tinha ouvido o segundo toque da campainha.
A Srª Frontenac desceu alguns degraus na escadaria e chamou:
- Filhos, venham.
- Ouve, Yves, esta noite daremos juntos a volta ao parque; falarei contigo. Toma: aqui tens o teu caderno.
À mesa, Joseph, que se comportava mal e comia à doida - dizia isso a mãe - e que não tinha lavado as mãos, contava o seu passeio através da charneca, com Burthe (o homem de negócios levava a criança a conhecer os limites das propriedades). Joseph não tinha outra ambição que não fosse a de tornar-se "o feitor da família" mas desesperava-se por não saber encontrar os limites. Burthe contava os pinheiros dum alinhamento; afastava os juncos, cavava a terra, e de repente a pedra oculta aparecia, colocada ali desde há muitos séculos pelos antepassados rurais. Sentinelas do direito, estas pedras sepultadas, mas sempre presentes, sem dúvida, inspiravam a Joseph um sentimento religioso vindo das profundezas da sua raça.
Yves esquecia-se de comer, olhava para Jean-Louis como quem não quer a coisa e pensava, por sua vez, nos tais limites misteriosos que se animavam dentro do seu coração e penetravam no mundo secreto que a sua poesia arrancava às trevas.
Tinham tentado sair sem serem vistos, mas a mãe surpreendera-os:
- Chega até aqui a humidade do rio... Têm ao menos os abafos? Sobretudo não fiquem parados.
A Lua ainda não tinha aparecido. Do rio gelado e do prado vinha o hálito do Inverno. Custou-lhes a encontrar o caminho, mas os seus olhos depressa se habituaram à noite. Os ramos dos pinheiros aproximavam as estrelas, que pareciam nadar nestas nesgas do céu, delimitando os cimos negros.
Yves caminhava liberto de qualquer coisa, como se o irmão lhe tivesse arrancado do corpo uma pedra. Este irmão de dezassete anos falava com ele empregando frases embaraçadas. "Receava - dizia - tornar o irmão demasiadamente consciente. Tinha medo de perturbar a nascente..." Mas Yves descansava-o; isso não dependia dele, era como a lava que em princípio não podia dominar. Em seguida trabalhava muito nesta lava arrefecida, tirava sem hesitar os adjectivos, os mínimos entulhos que ali estavam presos. A confiança do pequeno impressionava Jean-Louis. Que idade tinha Yves? Entrara há pouco no décimo quinto ano. O génio sobrevivia à infância?
- Diz-me, Jean-Louis: o que é que mais tens amado? - Era a pergunta de um poeta que acabava de revelar-se.
- Como escolher? Gosto quando os pinheiros te poupam o sofrimento e sangram em teu lugar; e quando podes imaginar à noite que eles enfraquecem e choram, mas esse queixume não vem deles; é a viração do mar entre os cimos apressados. Ah! Sobretudo quando passa...
- Olha - disse Yves -, a Lua...
Não sabiam que numa noite de Março em 67 ou 68 Michel e Xavier Frontenac haviam seguido aquele mesmo caminho. Xavier dissera também "a Lua" e Michel tinha recitado versos:
"Ela sobe, deita um longo raio adormecido"...
O la Hure tinha então o mesmo silêncio. Depois de mais de trinta anos era uma outra água mas o mesmo sussurro; e, sob os pinheiros, um amor diferente - o mesmo amor.
- Será preciso mostrá-los? - perguntava Jean-Louis.
- Pensei no abade Paquignon (o seu professor de Retórica, que admirava e venerava). Até mesmo ele, receio que não entenda: dirá que não são versos e é verdade que não são versos... não se parece com coisa alguma do que tenho lido. Vão-te preocupar, procurarás corrigir-te. Enfim, vou pensar no caso. - Yves abandonava-se a um sentimento de confiança absoluta. O testemunho do irmão bastava-lhe; contava com ele.
E de repente teve vergonha porque só haviam falado dos seus poemas:
- E tu, Jean-Louis? Virás a ser negociante de madeiras? Vais deixar-te influenciar?
- Estou decidido: a Normal... Depois, a licenciatura em Filosóficas... Sim, positivamente Filosóficas... Mas não é a mãe que vem aí?
Blanche receara que Yves tivesse frio e vinha trazer-lhe um casaco. Quando chegou ao pé deles disse:
- Principio a estar pesada - e apoiou-se ao braço dos dois rapazes. - Tens a certeza que não tossiste? Jean-Louis, não o ouviste tossir?
O barulho dos passos nos degraus da entrada acordou as pequenas, no quarto do terraço. As luzes do bilhar maravilharam-nos, esfregaram os olhos. Enquanto se despia, Yves ia olhando para a Lua dominando o cimo dos pinheiros imóveis e recolhidos. Não era o canto do rouxinol que seu pai ouvira com a mesma idade, debruçado sobre o jardim de Preignac. Nesse momento era a voz pura da coruja, numa ramada seca.
Yves não se admirou na manhã seguinte de ver o seu irmão mais velho ter para com ele os modos habituais, um pouco grosseiros, como se entre eles não tivesse havido qualquer segredo. O que lhe parecia estranho era a cena da véspera; porque embora os irmãos estejam unidos pela raiz, como dois rebentos na mesma cepa, não têm por hábito explicar-se: é o menos eloquente dos amores.
No último dia das férias Jean-Louis obrigou Yves a montar a égua Tempestade. Como sempre, logo que ela sentiu sobre as ilhargas as suas pernas tímidas desatou a galopar.
Yves, sem vergonha, agarrou-se ao arção da sela. Jean-Louis cortou atravessando os pinheiros e parou no meio do caminho com os braços estendidos. A égua parou abertamente. Yves saltou sem querer, descrevendo uma curva no ar e encontrou-se no chão sentado na areia enquanto o irmão dizia:
- Nunca passarás de uma lesma. - Mas não foi isso que escandalizou o rapaz; uma coisa houve que o desiludiu sem que ele o confessasse a si próprio: Jean-Louis continuava as suas visitas a Léojats, a casa dos primos Cazavieilh.
Tanto a família como toda a gente da terra sabiam que para ele todos os caminhos de areia levavam a Léojats. Certas partilhas noutros tempos tinham levantado dissidências entre os Cazavieilh e os Frontenac.
Por ocasião da morte da Srª Cazavieilh tinha-se feito a reconciliação, mas, como dizia Blanche "entre eles nunca houvera calor, calor...". Contudo, na primeira quinta-feira do mês tinha levado a passear Madeleine Cazavieilh, que pertencia já às "grandes", do Sacré-Coeur, quando Danièle e Marie estavam ainda nas primeiras classes. A Srª Frontenac ficava dominada pela inquietação e pelo orgulho quando Burthe dizia:
"Jean-Louis frequenta". Sentimentos contrários agitavam-na: o receio de o ver prender-se tão cedo, mas também atracção, pensando no que Madeleine pelo seu casamento viria a ter, e sobretudo Blanche esperava que aquele rapaz cheio de saúde evitaria o mal devido a um sentimento puro e apaixonado.
Quanto a Yves ficou desiludido, no dia seguinte ao da inesquecível noite, quando percebeu, através das palavras do irmão, que ele regressava de Léojats como se a descoberta feita no caderno de Yves devesse mudar-lhe os projectos e tudo devesse parecer-lhe aborrecido ali... Yves fazia uma ideia simples e concreta desse amor: imaginava olhos lânguidos, beijos às escondidas, mãos que se apertavam demoradamente, todo um romance que detestava. Visto que Jean-Louis entrara no seu segredo, visto que penetrara nesse mundo maravilhoso, que necessidade tinha de ir procurar a outro lado?
Sem dúvida Yves sabia que existiam raparigas. Na missa de Bourideys admirava as cantoras de pescoço comprido que usavam uma fita preta a sublinhar a brancura e que formavam grupos à volta do harmónio, e cujas gargantas inchadas pareciam estar cheias de milho...
O seu coração batia mais depressa quando via passar a cavalo a filha de um grande proprietário, a pequena Ibbuch, montada como os rapazes, com os seus caracóis escuros a caírem-lhe sobre os ombros. Ao pé desta sílfide, Madeleine Cazavieilh aparecia gordíssima, com um grande nó de fita arrogante prendendo-lhe os cabelos "arranjados de forma a parecerem um martelo", dizia Yves. Estava quase sempre vestida com um bolero, muito curto, chegando aos sovacos e acentuando o redondo da figura. Usava uma saia muito apertada nas ancas salientes e que alargava para baixo. Quando Madeleine Cazavieilh cruzava as pernas via-se que não tinha artelhos...
Que atractivos encontraria o irmão nesta rapariga pesada, com o rosto flácido onde não se via mexer um único músculo? Na verdade, tanto Yves, como a mãe, como Burthe ficariam surpreendidos se tivessem assistido a estas visitas, onde não se passava coisa alguma: dir-se-ia que Jean-Louis visitava Auguste Cazavieilh em vez de Madeleine. Tinham uma paixão comum: os cavalos, e enquanto o velho estava presente, só nisso falavam. Mas no campo nunca se está sossegado: há sempre caseiros ou fornecedores que desejam falar ao patrão; ninguém pode recusar-se a recebê-los, como na cidade.
Os dois jovens receavam ver chegar o minuto em que ficariam sós. A serenidade de Madeleine enganaria toda a gente menos Jean-Louis. Seria isso talvez que ele mais apreciava nela: essa perturbação invisível para os outros que a punha "fora de si", apesar do seu aspecto imperturbável, logo que estavam sozinhos um ao pé do outro.
Durante a última visita, no fim das férias de Páscoa, deram uns passos sob os velhos plátanos sem folhas diante da casa retocada de novo, com as paredes bojudas, devido à idade.
Jean-Louis falou do que faria quando saísse do colégio.
Madeleine ouvia-o com atenção como se o futuro lhe interessasse tanto como a ele.
- Naturalmente prepararei uma tese... não podes imaginar-me a estudar toda a vida. Quero ser professor numa Faculdade!
Perguntou-lhe quantos meses dedicaria à sua tese.
Respondeu-lhe rapidamente que não se tratava de meses, mas de anos. Citou-lhe o nome de vários filósofos: as suas teses continham o essencial do seu sistema. Ela, indiferente aos nomes que citava, não perguntava aquilo que mais quereria saber: esperaria para casar o final desse trabalho? A preparação duma tese seria compatível com o casamento?
- Se eu pudesse ficar encarregado de um curso em Bordéus... Mas é muito difícil!...
Como ela o interrompesse um pouco levianamente, dizendo-lhe que o pai se interessaria por que ele obtivesse esse lugar, protestou secamente: "que nada pediria a um governo de mações e de judeus".
Mordeu os lábios; filha de um conselheiro, republicano moderado, que só pensava em estar bem com toda a gente, tinha-se habituado desde criança a ver o pai pedinchar para todos: não havia na comuna uma comenda, um lugar de cantoneiro ou de correio que tivesse sido dado sem a sua intervenção...
Madeleine tinha pena de o ter melindrado; não esqueceria, se fosse preciso, de fazer pedidos a seu favor sem ele saber.
Além destes projectos que davam a entender que um dia talvez as suas vidas se unissem, as duas crianças nunca esboçaram um gesto ou pronunciaram uma palavra de ternura.
E contudo muitos anos depois, quando Jean-Louis pensava nestas manhãs em Léojats, lembrava-se duma alegria que não parecia ser deste mundo. Revia no riacho dos lagostins, sob os carvalhos, os redemoinhos do sol...
Seguia Madeleine: as suas pernas iam cortando a erva compacta matizada de botõezinhos dourados e margaridas do tempo pascal.
Andavam sobre os prados como se fosse no mar. Os capricórnios vibravam ao declinar dos dias... Nenhuma carícia poderia ter aumentado a sua alegria. Talvez a tivesse destruído - imagem deformada do seu amor.
Eles não fixavam nas palavras ou nas atitudes o que lhes dava sobressalto sob os carvalhos de Léojats, essa maravilha imensa e sem nome.
Estranho ciúme o de Yves! Não era uma consequência da afeição de Jean-Louis por Madeleine; mas sofria sabendo que uma outra criatura arrancava o irmão à sua vida habitual, sofria por não ser ele o único a guardar o poder de o encantar. Estes movimentos de orgulho não evitavam que tivesse a humildade própria da sua idade.
O amor de Jean-Louis elevava-o à categoria das pessoas mais velhas.
Um rapaz de dezassete anos apaixonado por uma rapariga não tem lugar no país daqueles que ainda não são homens. Aos olhos de Yves os poemas que inventava estavam incluídos no mistério das histórias para crianças.
Muito ao contrário de se imaginar "adiantado para a sua idade" continuava na sua obra, o sonho principiado na infância, "e seria preciso - pensava ele -, ser uma... criança para continuar nesse incompreensível jogo".
Ora no dia do regresso a Bordéus entendeu que tinha feito mal em perder a confiança no seu irmão mais velho.
Isso sucedeu na hora e no local mais inesperados.
Na estação de Langon, a família Frontenac tinha deixado o comboio de Bazas e procurava em vão instalar-se no expresso.
Blanche corria ao longo do comboio, seguida pelos filhos, que seguravam o cesto onde estava o gato, as gaiolas com os pássaros, uma varinha com uma maçã reineta, caixas com lembranças, como, por exemplo, várias pinhas, lascas viscosas de resina, pedras de afiar.
A família encarava com terror "a necessidade de se separarem". O chefe da estação aproximou-se da Srª Frontenac levando a mão à pala do boné e preveniu-a de que ia atrelar um vagão de 2ª classe. Os Frontenac encontraram-se todos no mesmo compartimento, sacudidos, como sempre sucede, na cauda dum comboio, sufocados, felizes, perguntando uns aos outros qual seria a sorte do gato, da maçã reineta e dos chapéus-de-chuva.
Quando saíam da estação de Cadillac, Jean-Louis perguntou a Yves se tinha recopiado os seus poemas, pondo-os a limpo.
Sim, Yves tinha-os recopiado num lindo caderno, mas não podia mudar a sua letra.
- Dá-mos esta noite. Vou encarregar-me eu disso, apesar de não ser um génio. A minha letra é muito inteligível. Dizes que não, meu tolo? Não adivinhas a minha ideia? Espero que não te aborreças... A única probabilidade que temos é que possas ser incluído entre os profissionais; vamos mandar o manuscrito ao Mercure de France.
E como Yves, muito pálido, só podia repetir:
- Seria óptimo - ele suplicava-lhe que não se exaltasse.
- Pensa numa coisa; eles devem receber montes destas coisas todos os dias. Até mesmo talvez deitem muitas no cesto dos papéis sem as lerem. A primeira coisa que é preciso é que te leiam... e depois, que tudo vá parar às mãos dum tipo capaz de entender. Não tenhas muitas esperanças; há uma probabilidade entre mil; é como se deitássemos uma garrafa ao mar. Promete-me que depois de tudo feito não pensarás mais no caso.
Yves repetia:
- Com certeza; com certeza; nem sequer chegarão a ler... - Mas os seus olhos brilhavam cheios de esperança. Inquietava-se: onde encontraria um sobrescrito grande? Como havia de colocar os selos?
Jean-Louis encolheu os ombros. Enviariam o pacote registado; ele se encarregaria de tudo.
Pessoas carregadas de embrulhos subiram em Boutiran. Foi necessário apertarem-se uns contra os outros.
Yves reconheceu um dos seus camaradas, um camponês pensionista e forte em ginástica com o qual não podia competir. Deram os bons-dias. Cada um deles analisava a mãe do outro.
Yves perguntava a si mesmo o que pensaria daquela mulher forte, a transpirar, se fosse seu filho.
Se Jean-Louis tivesse ficado ao pé de Yves durante estas semanas exaustivas até à distribuição dos prémios tê-lo-ia preparado para não esperar loucamente uma resposta.
Mas, logo que reabriram as aulas, Jean-Louis tomou uma resolução que a família admirou e que irritou ao mais alto ponto o irmão. Como tinha resolvido apresentar-se ao mesmo tempo ao exame de Filosofia e de Ciências, pediu para ficar interno a fim de não perder tempo com as idas e vindas. Yves nunca mais o chamou senão Mucius Scoevela. "Tinha horror - dizia - à grandeza da alma." Entregue a si próprio só pensava no seu manuscrito. Todas as noites, à hora do correio, pedia à mãe a chave da caixa e descia os degraus da escada a quatro e quatro. A expectativa do dia seguinte consolava-o de cada decepção.
Explicava-a a si mesmo: os manuscritos não haviam sido apreciados imediatamente; e depois a pessoa que os lesse, mesmo que ficasse entusiasmada, teria que obter o consentimento do Sr. Vallete director do Mercure.
As flores do castanheiro murcharam. Os últimos lilases estavam cheios de besouros. Os Frontenac recebiam de Respide tantos alperches que não sabiam "que destino dar-lhes".
A esperança de Yves ia baixando dia a dia, como o nível das nascentes. Tornava-se azedo. Aborrecia a família por ela não lhe descobrir uma auréola à volta do rosto. Cada pessoa, sem maldade, quebrava-lhe o orgulho dizendo: "Se te espremessem o nariz, deitava leite." Yves imaginava que não tinha mãe: as suas palavras afastavam-no, picadas que as galinhas vão dando aos pintos crescidos, obstinados a seguirem-na.
Mas "Se lhe tivesse explicado tudo - pensava - ela não o entenderia. Se ela tivesse lido os seus poemas, tê-lo-ia chamado louco".
Yves desconhecia que a pobre mulher tinha acerca do seu filho mais novo uma ideia mais acertada do que ele supunha.
Não poderia dizer em quê, mas sabia que era diferente dos outros: como um cão de caça que saísse duma ninhada com marcas de cão de guarda...
Não eram os seus que o desprezavam; era ele próprio quem se sentia miseravelmente inferior. Aborrecia os seus ombros estreitos e os seus braços magros. E no entanto viera-lhe a tentação absurda de saltar uma noite para a mesa do salão da família gritando: "Sou um rei! Sou um rei!"
- É da idade; isto há-de passar... - repetia a Srª Arnaud-Miqueu, a Blanche, que se lamentava. Não se penteava, lavava-se o menos possível. Visto que o Mercure ficava silencioso, que Jean-Louis o abandonara e que ninguém viria a saber que um poeta admirável nascera em Bordéus, contentaria o seu desespero tornando-se mais feio, enterraria o seu génio num corpo descarnado e sujo. Numa manhã do mês de Junho, dentro do ónibus do colégio, relia o seu último poema quando percebeu que o seu vizinho do lado olhava por cima do ombro.
Era um grande filósófo chamado Binaud, rival de Jean-Louis, parecendo muito mais velho do que ele; já fazia a barba, e as faces, ainda infantis, estavam cheias de verrugas e botões.
Yves fingiu que nada via, mas afastou um pouco a mão e só voltou a página quando teve a certeza que o vizinho acabara de decifrar a última linha.
Repentinamente, o indiscreto, sem qualquer acanhamento, perguntou-lhe donde é que tirara aquilo. E como Yves ficasse mudo...
- A sério, de quem é isso?
- Adivinha.
- Rimbaud? Não, é verdade, esse não podes conhecer.
- Quem é Rimbaud?
- Dir-te-ei se me responderes: de onde copiaste esse poema?
Enfim, um outro iria substituir Jean-Louis. Um outro seria testemunha da sua glória e do seu génio. Com a cara em fogo disse:
- É obra minha.
O outro respondeu:
- Estás a brincar?
Evidentemente não acreditou. Quando ficou convencido, envergonhou-se por ter tomado por um texto interessante um trabalho daquele garoto. Visto que era obra dele não podia ter valor. Disse, sem entusiasmo:
- É preciso que me mostres o que tens feito.
Como Yves abrisse a sua pasta, o outro segurou-lhe no braço e disse:
- Não, tenho muito trabalho estes dias próximos; no domingo que vem, se passares na Rua Saint-Genês, bate no número 182...
Yves não percebeu que só lhe pediam para entregar o seu caderno.
Ler os seus poemas em voz alta diante de alguém... Que sonho!
Jean-Louis nunca lhe pedira isso. A este desconhecido iria lê-los apesar da sua timidez; aquele rapaz havia de ouvi-lo com respeito e até talvez com encanto à medida que a leitura continuasse.
Binaud nunca mais ficou ao lado de Yves no ónibus. Mas o rapazote não se formalizava porque os exames estavam à porta e os candidatos, logo que tinham um minuto, abriam os livros.
Yves deixou passar dois domingos, e por fim resolveu-se a fazer a visita.
O mês de Julho ia secando tristemente Bordéus. A água já não escorria ao longo dos passeios. Os cavalos dos trens de praça usavam chapéus de palha com dois buracos para as orelhas. Os primeiros trãmueis eléctricos rebocavam carros cheios de gente sem colarinho, com o peito à vista. Os coletes desapertados davam às costas das mulheres um ar corcunda... A cabeça amolecida dos ciclistas tocava no guiador. Yves voltou-se para ver passar o automóvel da Srª Escarreguel, que se aproximava com um ruído estranho.
O nº 182 da Rua Saint-Genês era um prédio sem andares, a que Yves dava o nome de "loja". Quando tocou à campainha tinha o seu espírito distante, muito longe de Binaud.
O barulho do toque chamou-o à realidade. Era já tarde para se afastar. Ouviu o ranger duma porta e falarem a meia voz. Por fim, uma mulher de roupão apareceu; era de tez amarela, magra e tinha olhar de desconfiança. Os cabelos abundantes, de que devia ser vaidosa, pareciam devorar a substância. Só eles tinham vida e luxúria naquele corpo devastado, com certeza roído no interior por qualquer fibroma.
Yves perguntou se Jacques Binaud estava em casa.
O boné do colégio que tinha na mão tranquilizou a mulher, visto que o introduziu no corredor e abriu uma porta, à direita. Era o salão, mas transformado em casa de costura; amostras de papel estavam espalhadas sobre a mesa e havia uma máquina de coser sem a cobertura ao pé da janela.
Yves veio incomodar a pessoa que cosia.
Uma terracota austríaca de muitas cores - Salomé - enfeitava a chaminé.
Um pierrô de gesso fazendo equilíbrios num quarto crescente da Lua mandava "beijinhos" com a mão.
Yves ouvia o remexer de vida doméstica no quarto ao lado, uma voz irritada, que seria com certeza a de Binaud.
Sem o saber tinha entrado em casa de um destes funcionários qualificados de pessoas modestas, mas que, em boa verdade, são orgulhosas como poucas, que guardam as aparências, mas não autorizam os desconhecidos a entrar nos bastidores da sua vida de trabalho.
Evidentemente Binaud convidara-o a entregar o manuscrito - nada mais.
E foram as suas primeiras palavras quando finalmente apareceu, sem casaco, com a camisa desabotoada. Tinha um pescoço altíssimo e a nuca salpicada de pequenos funínculos.
Yves trazia-lhe os versos? Foi pena que se tivesse incomodado.
- A quinze dias dos exames... não tenho um minuto de meu, como calculas...
- Mas tu disseste me... creio eu...
- Imaginei que me trarias o teu caderno no domingo seguinte... Enfim, como apareceste, dá-mo...
- Não - disse Yves. - Não. Não quero maçar-te. - Só tinha um desejo: abandonar aquela casa, todo aquele cheiro, aquele rapaz horrível.
Este, e com certeza por causa do seu camarada Jean-Louis, retrocedia e queria agora que Yves se demorasse; mas ele já estava na rua e abalava a correr, apesar do enorme calor, cheio de raiva e de desespero.
Mas tinha apenas quinze anos, e quando chegou ao Curso da Intendência entrou na Pastelaria Launanou, onde um gelado de morango o consolou. Só à saída o seu desgosto voltaria.
Cada ser humano sofre à sua maneira e as leis tomam feitio fixando-se desde a adolescência. Era tal a tristeza de Yves naquela noite que supunha nunca mais lhe passar; não sabia que chegara o momento de viver horas radiosas, semanas cheias de luz e de alegria, e que a esperança se estenderia sobre a sua vida, tão falsamente inalterável - ai dele! - como o céu das férias grandes.
Nessa época Xavier Frontenac conheceu os dias mais sossegados da sua vida. Os seus escrúpulos tinham diminuído:
Josefa acabara de receber os seus cem mil francos e nada impediria Xavier de "pôr de lado" para os sobrinhos. Em contrapartida, ficava sempre com o receio de que a família descobrisse a existência de Josefa. A sua angústia aumentava à medida que os pequenos Frontenac cresciam e atingiam a idade em que os pequenos mais facilmente se escandalizariam ou seriam influenciados pelo seu triste exemplo.
Mas, precisamente porque se tornavam homens, e poderiam brevemente ocupar-se das propriedades, Xavier decidiu que na melhor oportunidade venderia a sua casa, indo viver para Paris.
Explicava a Josefa que a capital seria para eles o melhor refúgio.
Os primeiros automóveis principiavam a tornar curtas as distâncias, e Angoulême parecia-lhe estar muito mais perto de Bordéus do que noutros tempos.
Em Paris sairiam juntos, iriam aos teatros, sem receio de que alguém os reconhecese. Xavier já tinha recebido propostas para a compra da casa e, embora só a largasse daí a dois anos, acabava de receber o sinal, que ia muito além do que podia esperar.
O seu contentamento foi tal que resolveu cumprir uma promessa feita em tempos a Josefa: uma viagem turística à Suíça.
Quando fez alusão ao caso, Josefa teve tão pouco entusiasmo que a sua decepção foi grande. A verdade é que tudo aquilo parecia tão delicioso que a pobre mulher não acreditou no que ouvia. Se se tratasse de ir a Luchon por oito dias, como sucedera em 96... mas atravessar Paris, visitar a Suíça...
Encolheu os ombros e continuou a coser. Mas quando viu Xavier consultar os roteiros e traçar itinerários, aquela felicidade inacreditável pareceu-lhe próxima. Já não podia duvidar de que a decisão de Xavier fosse uma realidade.
Uma noite chegou com os bilhetes circulatórios. Até ali não falara da viagem a pessoa alguma. Decidiu-se finalmente a escrever à sua filha casada, que vivia em Niort.
"Não sei se estou a sonhar ou se estou acordada, mas os bilhetes estão ali, no armário dos espelhos. Têm o nome de Sr. Xavier Frontenac e senhora; são bilhetes de família. Minha querida, isto pode não ser verdade, mas faz-me doer o coração. Sr. e Srª Frontenac! Perguntei-lhe se tencionava empregar aqueles termos no hotel; respondeu-me que não podia mesmo fazer outra coisa. Mas ficou de mau humor. Bem sabes como ele é... Disse-me que tinha visitado a Suíça três vezes e que tudo havia visto menos as montanhas porque as nuvens as escondem e porque chove sempre. Não ousei responder-lhe que isso me seria indiferente pois que o que me daria prazer maior seria andar de hotel em hotel passando pela mulher de Xavier e poder tocar logo de manhã a pedir o pequeno-almoço..."
"Sr. e Srª Frontenac." Nos bilhetes, estas palavras não tinham impressionado Xavier, mas ele não previra que tudo isso sucederia nos hotéis. Josefa teria andado melhor se não lhe tivesse falado no assunto; agora todo o seu prazer tinha diminuído. Lamentava-se por ter preparado por suas mãos tantos aborrecimentos; as canseiras, as despesas e Josefa a representar de sua mulher (sem falar que os jornais da terra publicariam talvez com a rubrica "Entre os hóspedes": Sr. e Srª Xavier Frontenac). Enfim os bilhetes estavam comprados, o mal estava feito.
Ora, na tarde do dia 2 de Agosto, na antevéspera da partida, precisamente na hora em que Josefa dava os últimos retoques num vestido de noite destinado a deslumbrar os hotéis suíços, a Srª Arnaud-Miqueu, num passeio em Vichy, teve uma daquelas vertigens a que dava o nome de tonturas. Esta foi violenta e súbita; não pôde amparar-se ao braço da sua filha Caussade e a cabeça veio bater contra o passeio. Trouxeram-na para o hotel já com o estertor.
No dia seguinte de manhã, em Bourideys, Blanche Frontenac dava uma última volta no parque; ser-lhe-ia preciso fechar-se em casa; já se respirava mal, as cigarras estavam alegres.
Viu Danièle correr ao seu encontro mostrando-lhe um telegrama:
"Mãe, notícias tristes..."
No fim do dia um distribuidor de telegramas de Angoulême tocou à porta de Xavier Frontenac. Josefa, que raras vezes vinha a sua casa, ajudava-o naquele dia a fazer a mala, e, sem o prevenir, já lá tinha metido três vestidos. Quando viu o telegrama nas mãos de Xavier compreendeu que não partiriam.
- Ah! Diabo... Diabo...
O tom de Xavier era, sem dar por isso, quase alegre porque através do texto de Blanche "Sou chamada a Vichy ao pé da mãe, muito mal; peço venha no primeiro comboio a Bourideys por causa das crianças", via que em nenhum hotel da Suíça ficaria escrito: Sr. Frontenac e senhora e que economizaria muitos francos. Deu o telegrama a Josefa, que logo viu que tudo estava perdido, habituada havia quinze anos a ser uma vítima no altar da divindade Frontenac. Disse, por descargo de consciência:
- É tarde, os bilhetes estão tomados, estamos a caminho, telegrafas da fronteira dizendo que tens pena... Os pequenos já não são pequenos (à força de ouvir falar neles conhecia-os bem)... Jean-Louis tem quase dezoito anos e Joseph...
Xavier interrompeu-a, furioso:
- Não, o que foi que te passou pela cabeça? Estarás maluca? Imaginas-me capaz de não responder ao chamamento de minha cunhada? Primeiro eles, já to disse muitas vezes. Vamos, querida, será apenas um adiamento, fica para outra vez. Põe a tua gola; está a refrescar o tempo...
Com um gesto obediente pôs a sua gola castanha guarnecida com sutache. Aquela gola à Médicis emoldurava bizarramente o seu perfil débil, com o nariz à vista, um nariz brejeiro, que podia trazer à lembrança o seu passado.
Não tinha queixo. O chapéu, colocado no cocuruto duma trança forte e amarelada, era um amontoado de flores bem imitadas.
Dir-se-ia à primeira vista que os cabelos chegavam aos rins.
Partia todos os pentes: "Semeias ganchos por toda a parte".
Por muito submissa que fosse, à medida que abotoava a gola, a pobre mulher ia resmungando: "que talvez acabe por achar que é demais."
Xavier, com uma voz dura, pediu-lhe que repetisse o que acabava de dizer. E ela repetiu, com uma voz menos segura.
Xavier Frontenac, delicado até ao escrúpulo com os seus e escrupuloso até à mania, e que o era também nos negócios, mostrava-se voluntariosamente brutal com Josefa.
- Agora, que disseste o que querias, podes ir-te embora - disse ele. - Mas és tão idiota que tudo vais perder... Terás que vender os móveis - acrescentou com maldade -, a não ser que... é preciso não esquecer que os recibos estão em meu nome, o aluguer também...
- Não são meus, os móveis?
Tinha tocado no seu ponto fraco porque Josefa adorava a sua grande cama, comprada em Bordéus, na Casa Laveilleg; a madeira era trabalhada com filetes de ouro. Um candelabro e um estojo com setas forravam o pano do fundo.
Durante muito tempo Josefa imaginou ver no candelabro uma corneta de onde saem cabelos e no estojo uma outra corneta contendo penas de pato. Estes símbolos estranhos nada a surpreenderam nem inquietaram. A mesa-de-cabeceira parecendo um relicário, "era demasiado bela - dizia - para a utilidade que tinha".
Mas, acima de tudo, gostava do armário de espelho. O frontão tinha as mesmas cornetas atadas com a mesma fita e com rosas à mistura; Josefa dizia que seria possível contar as pétalas. O espelho tinha como moldura duas colunas trabalhadas a meia altura e com torcidos na parte de baixo. Na parte interior a madeira era mais clara e fazia sobressair os montes de calças enfeitadas com rendas "da largura de uma mão"; as saias de baixo, as camisolas com ricos bordados, os delicados corpetes que eram todo o orgulho de Josefa: tinha a paixão das "roupas de baixo".
- Não são meus os móveis?
Soluçou. Ele abraçou-a:
- Com certeza que são teus, minha tonta.
- Afinal - disse ela, assoando-se -, sou tola por ter chorado. Nunca acreditei que partiríamos. Pensei que viria um tremor de terra...
- Bem vês, bastou que a velha Arnaud-Miqueu passasse desta para melhor...
Falava com um ar despreocupado, entregue à sua alegria de ir para junto dos filhos do irmão.
- A pobre senhora Michel vai ficar muito só... - Josefa pensava constantemente e com devoção nesse ser que se habituara a colocar num plano superior ao de todos.
Depois de um silêncio Xavier disse:
- Se a mãe morrer, ficará riquíssima. E não há razão para que guarde um cêntimo do lado Frontenac.
Andou à volta da mesa, esfregando as mãos.
- Levarás os bilhetes à agência. Vou escrever umas palavras; não levantarão dificuldades; são meus clientes. Ficarás com o dinheiro que te derem. É justamente a quanto montam os teus meses em atraso - acrescentou, contente.
No dia de partida de Blanche para Vichy (devia tomar o comboio das três horas), a família almoçava em grande silêncio, isto é, não falava; a falta de conversa tornava mais ensurdecedor o barulho dos talheres e o da louça. O apetite dos filhos escandalizava a mãe. Quando ela morresse repetiriam assim os pratos?... Mas, afinal, não tinha ela própria perguntado quem ficaria com o palácio da Rua de Coursol?
Nuvens de tempestade escondiam o sol e foi preciso abrir as tabuinhas. A compoteira do doce de pêssegos atraía as moscas.
O cão ladrou e Danièle disse: "É o correio." Todas as cabeças se voltaram para a janela, para o homem que aparecia, vindo da tapada, e trazia pendurada ao pescoço uma caixa aberta.
Não existe nas famílias mais unidas uma pessoa que não espere qualquer carta que seja segredo para os outros. A Srª Frontenac reconheceu num sobrescrito a letra de sua mãe, já morta, ou quase, àquela hora. Devia tê-la escrito na própria manhã do acidente. Hesitou em abri-la, mas decidiu-se finalmente e desatou a chorar. As crianças olhavam espantadas para a mãe, lavada em lágrimas. Levantou-se. As duas filhas saíram com ela.
Ninguém, a não ser Jean-Louis, tinha prestado atenção ao grande sobrescrito que o criado pusera diante de Yves: Mercure de France... Mercure de France... Yves não conseguia abri-lo; impressos? Não passaria de impressos? Reconheceu uma frase: era sua... Os seus poemas... tinham estropiado o seu nome:
Yves Frontenou. Havia uma carta: "Senhor e caro poeta. - A rara beleza dos seus poemas leva-nos a publicá-los todos. Ficaríamos reconhecidos se nos reenviasse as provas, depois de corrigidas e na volta do correio. Colocamos a poesia tão alto que toda e qualquer remuneração nos parece indigna do seu valor. Acredite, caro poeta, nos nossos sentimentos de admiração. - Paulo Morisse.
Três ou quatro gotas espaçadas caíram, até que veio a chuva tempestuosa. No peito de Yves havia frescura.
Feliz como as folhas das árvores... A nuvem tinha caído sobre ele. Passou o sobrescrito a Jean-Louis, que, depois de lhe ter lançado um olhar, o meteu na algibeira. As pequenas voltaram; a mãe havia serenado um pouco; desceria antes de partir. A carta da avó dizia assim: "As minhas tonturas têm-me apoquentado com mais força do que nunca..."
Yves esforçou-se por sair daquela alegria que o envolvia todo; não podia livrar-se daquele incêndio.
Esforçou-se também por seguir com o pensamento a viagem de sua mãe: três comboios até Bordéus; depois, o expresso de Lyon; teria transbordo em Gannat... Não saberia corrigir as provas; mandá-las na volta do correio? A carta viera reenviada de Bordéus... Havia já o atraso de um dia." Blanche apareceu com o rosto escondido num véu espesso. Uma das crianças gritou: "A carruagem chegou". Burthe segurava com dificuldade o cavalo, por causa das moscas. As crianças tinham o costume de se disputarem os lugares na vitória quando acompanhavam a mãe até à estação, para voltarem depois, sentadas nas almofadas macias. Desta vez Jean-Louis e Yves deixaram que Joseph subisse com as pequenas. Acenaram com a mão e disseram:
"Contamos com um telegrama amanhã de manhã". Enfim, estavam senhores da casa e do parque. O sol brilhava através das gotas da chuva.
Aquela quadra do ano, traiçoeira, estava agora amenizada. O vento nos ramos cheios de água renovava pequenos aguaceiros.
Os dois rapazes não puderam sentar-se porque os bancos estavam encharcados. Por isso leram as provas, enquanto davam a volta ao parque, com as cabeças a tocarem-se. Yves dizia que os seus poemas impressos pareciam mais curtos. Havia poucos erros, que foram corrigindo com simplicidade como teriam feito nos seus cadernos escolares. Quando chegaram perto do grande carvalho,
Jean-Louis repentinamente perguntou:
- Porque não quiseste mostrar-me os teus últimos poemas?
- Não mos pediste.
Como Jean-Louis lhe afirmasse que na véspera do exame não os teria apreciado, Yves disse-lhe que iria buscá-los:
- Espera-me aqui.
Correu até chegar a casa. Estava ébrio de alegria e seguia de cabeça descoberta atirada para trás.
Propositadamente ia atravessando pelo meio dos ramos altos e das folhas baixas que lhe molhavam a cara. O vento naquela correria parecia-lhe quase frio. Jean-Louis viu o irmão voltar, aos pulos. Este seu irmão mais novo, tão mal arranjado, com um aspecto tão miserável, vinha agora para ele com a ligeireza e a graça de um anjo.
- Jean-Louis, deixa-me que os leia; teria tanto gosto lendo-os em voz alta... Mas, espera, deixa que eu respire em sossego.
Estavam de pé, encostados ao carvalho, e a criança ouvia o seu próprio coração sobrecarregado bater contra aquele tronco vivo que abraçava nos dias em que partia. Principiou. Lia com originalidade, de um modo que Jean-Louis principiou por achar ridículo; depois pensou que era aquele o único tom que podia convir. Estes novos poemas, achá-los-ia inferiores aos primeiros? Hesitava... Seria preciso relê-los. Quanta amargura! Quanta tristeza agora!
Yves, que há pouco ainda pulava como uma corça, lia com uma voz áspera e dura. E no entanto sentia-se profundamente feliz; nada experimentava naquele instante relacionado com a dor que os seus versos traduziam. Ficava intacta a grande alegria de a ter fixado em palavras que ele julgou haviam de ser eternas.
- É preciso mandá-los ao Mercure no princípio de Outubro - disse Jean-Louis. - Não nos apressemos muito.
- Preferes estes aos outros? Responde-me.
Jean-Louis hesitou.
- Parece-me que foste mais longe...
Como se aproximassem de casa viram Joseph e as pequenas que voltavam da estação com cara de caso. Marie disse que fora horrível ter visto a mãe soluçar - "pobre mamã!" - quando o comboio partiu.
Yves voltou a cabeça com medo que alguém descobrisse a sua alegria.
Jean-Louis procurava encontrar uma desculpa: afinal a sua avó não tinha morrido, talvez tivessem exagerado; ela já recebera por três vezes a extrema-unção... Além disso, o tio Alfred tinha predilecção pelas catástrofes.
Yves interrompeu-o sem pensar:
- Faz do seu desejo uma realidade.
- Oh, Yves! Como podes tu dizer...
As crianças escandalizaram-se; mas Yves partiu novamente como se fosse um frango doido, passando por cima dos obstáculos, apertando contra o seu coração as provas que iria ler pela terceira vez dentro dum verdadeiro ninho de javali, rodeado de juncos, e a que chamava "a sua casa". Ali roeria o osso.
Joseph via-o correr.
- Que tipo único! Fica amuado quando tudo está normal, mas quando anda desgraça no ar, ei-lo contente...
Chamou Stop e desceu até ao la Hure para ali retocar os poemas, com o espírito livre, contente, como se a sua avó não estivesse a morrer.
Para entusiasmar o irmão bastaram os primeiros raios da Glória; mas a Joseph bastava-lhe ser um rapaz de dezassete anos, nos primeiros dias das férias grandes, e que conhecia no La Hure os buracos onde se escondem as enguias.
O jantar sem a presença da mãe foi mais ruidoso do que do costume. Sozinhas, as meninas, discípulas do Sacré-Coeur, e escrupulosamente arranjadas, achavam que era feio gracejar à noite; mas escangalhavam-se a rir quando Yves e Joseph troçavam das cantoras, na igreja, à volta do órgão, vendo-as com a boca a fazer beicinho:
"Nada me satisfaz neste vasto universo".
O sensato Jean-Louis, arranjando desculpas para ele e para os irmãos, dizia que o nervoso era o causador do riso; mas que isso não os impedia de estarem tristes.
Saíram todos depois do jantar, noite escura, para irem esperar o tio Xavier ao comboio das nove horas. Por muito atrasado que alguém estivesse, aquele comboio de Bourideys estava sempre um pouco mais. Pilhas apertadas de madeira fresca a deitarem ainda resina cercavam a estação. As crianças introduziam-se em toda a parte; batiam umas nas outras, perdiam-se na confusão das ruas daquela terra perfumada. Os pés enterravam-se fundamente nas cascas das pinhas esmagadas que não viam; mas sabiam que à luz do dia este tapete de cascas tem o colorido do sangue coalhado. Yves afirmava que todas aquelas tábuas eram membros esfacelados das árvores, recortados, pelados em vida, perfumando o corpo sagrado dos mártires. Joseph ralhou:
- És parvo! Que analogia encontras nisso? Viram brilhar a lanterna da estação.
As mulheres gritavam e riam; as suas vozes eram agudas, animalizadas.
Atravessaram a sala de espera e depois os carris. Ouviram naquele silêncio de madeiras o barulho longínquo do pequeno comboio cujos solavancos rítmicos lhes eram familiares e que imitavam às vezes, no Inverno, em Bord.
Mas, para recordarem a felicidade das férias, ouvia-se um grande apito; o fumo saía ruidosamente da máquina e o majestoso "brinquedo" apareceu vindo das trevas. Havia uma pessoa na carruagem da 2ª, Só podia ser o tio Xavier.
Não esperava encontrar os sobrinhos tão bem dispostos. Todos queriam pegar-lhe na mala, penduravam-se no seu braço, perguntavam até de que qualidade eram os bombons que lhes trazia. Deixava-se conduzir por eles como se fosse um cego, atravessando as pilhas de madeira e respirando com o prazer de sempre o aroma nocturno do velho país dos Péloueyre. Sabia que ao voltar a esquina as crianças gritariam: "Cuidado com o cão do senhor Dupart." Depois, ao deixarem para trás a última casa, encontraria na aglomeração escura do arvoredo um intervalo, um caminho branco, um arruamento no qual os passos dos sobrinhos fariam um barulho familiar. Lá mais em baixo o candeeiro da cozinha alumiaria como uma grande estrela à superfície dos caminhos. O tio sabia que lhe serviriam uma refeição esplêndida, mas os sobrinhos, que já tinham jantado, não o deixavam comer sossegado. Depois de uma frase que ele ousou pronunciar sobre o estado da avó, responderam, todos ao mesmo tempo, que era preciso aguardar notícias mais seguras, que a tia Caussade exagerava tudo. Depois de ter comido, Xavier teve que ir dar uma volta ao parque apesar da escuridão, obedecendo a um costume que os pequenos não permitiam a pessoa alguma que sofismasse.
- Tio Xavier, cheira bem aqui?
Respondeu tranquilamente:
- Cheira a humidade e receio constipar-me!...
- Repare nas estrelas...
- Prefiro reparar no sítio onde ponho os pés.
Uma das pequenas pediu-lhe que recitasse O Maldoso falcão e o Gentil Pombo.
Quando eram mais pequenas divertia-as com aquelas histórias e com bagatelas que elas escutavam com o mesmo prazer e com as mesmas gargalhadas.
- Com a vossa idade? Não têm vergonha? Já não são crianças...
Quantas vezes durante esses dias de alegria e de claridade o tio Xavier deveria repetir-lhes: "Já não são crianças..." Mas o milagre era precisamente esse: mergulhar em plena infância apesar de já não serem crianças; tinham perdão: tinham uma licença especial...
No dia seguinte de manhã, Jean-Louis em pessoa pedia-lhe:
- Tio Xavier: Faça-nos uns barcos com faróis.
O tio protestava, mas "por honra da firma" apanhava uma casca de pinheiro e com o auxílio dum canivete dava-lhe o aspecto dum barco onde punha um fósforo bem aceso. A corrente do La Hure levava a chama e cada um dos Frontenac sentia a mesma comoção doutros tempos, quando pensava na sorte daquela casca de pinheiro de Bourideys: o La Hure levá-la-ia até o Ciron. O Ciron juntava-se ao Garonne não longe de Preignac... e finalmente, o oceano receberia a pequena casca daquele parque onde haviam crescido os Frontenac. Nenhum deles admitia que ela pudesse ficar retida pelos arbustos, nem apodrecer antes mesmo que a corrente do La Hure ultrapassasse a vila.
Era preciso acreditar - artigo de fé - que do mais pequeno rio da charneca o "navio faroleiro" passaria ao oceano Atlântico: "com o seu carregamento de mistério dos Frontenac"... dizia Yves. E aqueles rapazes crescidos corriam, como noutros tempos, ao longo do rio, para impedirem que o barco desse à costa. O sol, já então perigoso, embriagava as cigarras, e as moscas atiravam-se a toda a espécie de carne viva. Burthe trouxe um telegrama, que os pequenos abriram com angústia: "Pequena melhoria"... Que bom! Podiam ser felizes e rir à sua vontade. Mas nos dias seguintes sucedeu que o tio Xavier leu em voz alta o que estava no telegrama: "Avó o pior possível"; e as crianças, consternadas, não sabiam o que haviam de fazer à sua alegria.
A avó Arnaud-Miqueu agonizava num quarto dum hotel em Vichy.
Mas aqui o parque guardava a ardência dos longos dias escaldantes. No país das florestas não se dá conta do anúncio das tempestades, que ficam muitas vezes dissimuladas pelos pinheiros. Só o seu hálito as atraiçoa: aparecem como ladrões.
Às vezes o tom de cobre via-se ao longe do lado sul, mas a violência da tempestade não rebentava. O vento mais fresco fazia com que as crianças dissessem que havia chuva noutros pontos. Mesmo nos dias em que as notícias de Vichy vinham más, o silêncio e o reconhecimento não duravam. Danièle e Marie estavam sossegadas porque faziam uma novena pela sua avó, acompanhadas pelas carmelitas de Bordéus e do convento da Misericórdia.
Joseph dizia: "Qualquer coisa me anuncia que ela vai melhorar".
Era preciso que o tio Xavier interrompesse à noite o coro de Mendelssohn cantado a três vozes no terraço:
- "Todo o Universo está cheio da magnificência! Adoremos este Deus..." "Quanto mais não seja por causa dos criados..." dizia o tio Xavier. Yves protestava dizendo que a música não impedia alguém de estar triste ou inquieto. Esperava a ocasião em que não visse a ponta do cigarro do tio no arruamento para cantar com a sua voz irritada pela mudança de idade:
"Noite radiosa e silenciosa"... Dirigia-se à noite como a uma pessoa, como a um ser cuja pele fresca e quente sentisse junto à sua.
"Noite profunda, noite silenciosa..."
Jean-Louis e Joseph, sentados no banco do terraço com a cabeça atirada para trás, espreitavam se havia estrelas-cadentes. As meninas gritavam dizendo que os morcegos tinham entrado no seu quarto.
À meia-noite Yves acendia a vela, pegava no seu caderno de versos e no lápis.
Já os galos da vizinhança respondiam aos seus irmãos das propriedades humildes. Descalço e em camisa, Yves encostava-se à janela a ver dormir as árvores. Ninguém viria a saber, a não ser o seu anjo-da-guarda, como ele se parecia com o pai quando tinha a sua idade. Uma manhã o telegrama "Estado estacionário" foi interpretado favoravelmente. Manhã de beleza refrescada pelas tempestades que haviam rebentado ao longe. As meninas trouxeram ao tio Xavier ramos de certa árvore para que lhes fizesse assobios. Mas exigiam que o tio não renunciasse a todos os ritos da operação; para descolar a casca desse ramo não bastaria bater-lhe com o cabo do canivete. Seria preciso igualmente pronunciar certas frases em calão.
As crianças repetiam em coro as tais palavras tolas e consagradas. O tio Xavier interrompia-as: - "Não têm vergonha de com essa idade me obrigarem a fazer este papel?"
Todos tinham obscuramente consciência que por um favor especial o tempo parara, que tinham podido apear-se dum comboio que nada faz parar. Adolescentes ficavam nessa quadra da infância e ali se demoravam quando afinal a infância fugira deles para sempre.
As notícias da Srª Arnaud-Miqueu eram melhores. Tudo inesperado. Brevemente a mãe voltaria e diante dela não poderiam ser tão crianças. Acabavam-se os risos entre os Frontenac.
A Srª Arnaud-Miqueu estava livre de perigo. Foram esperar a mãe ao comboio das nove horas, por uma noite de luar. A claridade atravessava as tábuas.
Não fora preciso trazer lanterna. No regresso da estação viram a mãe comer.
Tinha emagrecido; estava mudada. Contou que uma noite a avó estivera tão mal que já tinham preparado o lençol para a envolverem (nos hotéis retiram imediatamente os mortos dos quartos durante a noite). Reparou que a escutavam mal, que havia entre os filhos e o tio uma cumplicidade; gracinhas disfarçadas, palavras com duplo sentido, todo um mistério onde ela não entrava. Calou-se, ficou pensativa.
Não tinha contra o cunhado os mesmos ressentimentos de outrora. Já valha, não podia ter as mesmas exigências. Mas sofria por ver a ternura com que os filhos o tratavam e detestava que todas as manifestações do seu reconhecimento fossem para ele.
O regresso de Blanche fez quebrar todo o encanto. Jean-Louis passava a vida em Léojats e Yves voltou a estar de mau humor e desconfiado. A chegada do Mercure com os seus poemas no sumário não lhe desenrugou a fronte. Não ousou mostrá-los à mãe nem ao tio Xavier e quando se decidiu a fazê-lo os seus receios foram ultrapassados. O tio achava que tudo aquilo não tinha pés nem cabeça e citava Boileau: "O que é bem pensado expõe-se com clareza." A mãe não pôde evitar um movimento de orgulho, mas dissimulou-o recomendando a Yves que não deixasse por ali aquela revista "com páginas imundas de um certo Rémy de Gourmont".
Joseph recitava - troçando - as passagens que ele supunha "mais divertidas".
Yves, cheio de raiva, perseguia-o e levava pancada.
Em compensação recebia muitas cartas de admiradores desconhecidos, e continuou a recebê-las, sem compreender a importância dessas manifestações.
Nestes primeiros dias de Setembro carregados de tempestades os Frontenac ofendiam-se mutuamente; zangavam-se, as altercações vinham a propósito de nada. Yves saía da mesa, atirava o guardanapo para longe, ou então a Srª Frontenac ia para o seu quarto e só reaparecia, com os olhos inchados e a cara em fogo, depois de muitos pedidos dos filhos consternados.
A tempestade que andava no ar rebentou na festa de Nossa Senhora de Setembro. Depois do almoço os Frontenac, o tio Xavier e Jean-Louis reuniram-se na sala de estar com as persianas fechadas. A porta que deitava para a sala do bilhar estava aberta de par em par e nessa sala Yves, estendido, procurava adormecer.
As moscas incomodavam Yves; uma enorme varejeira estava agarrada ao tecto. Apesar do calor, as duas meninas, passando em bicicleta, andavam à volta da casa em sentido contrário e gritavam logo que uma delas cruzava com a outra.
- É preciso marcar o dia desse almoço antes que o tio Xavier se vá embora - dizia a Srª Frontenac. - Jean-Louis, procurarás Dussol. Visto que terás de viver com ele...
Yves rejubilou quando ouviu Jean-Louis protestar vivamente:
- Mas não, mamã... já te disse e repito... Nunca quiseste ouvir-me; não tenho tenção alguma de me dedicar a negócios.
- É uma criancice... Nunca fiz caso disso. Bem sabes que mais tarde ou mais cedo terás que decidir-te a tomar o teu lugar nesta casa. Quanto mais cedo isso for melhor.
- É bem certo - disse o tio Xavier -, que Dussol é uma excelente pessoa e merece-nos toda a confiança; isso não impede que haja sempre tempo e muito tempo para que um Frontenac se meta em negócios.
Yves levantara-se na cadeira e prestava atenção.
- O comércio não me interessa.
- O que te interessa então?
Jean-Louis hesitou um minuto, fez-se vermelho, e por fim disse corajosamente:
- A filosofia!
- Estás doido? O que tu foste buscar! Farás o que fez teu pai e teu avô. A filosofia não é uma profissão.
- Depois de estar licenciado, deverei preparar a minha tese. Não tenho pressa. Serei nomeado para uma Faculdade...
- Então é esse o teu ideal? - perguntou Blanche. - Um funcionário! Pode lá ser! Ouviu, Xavier? Um funcionário! Isto tendo à sua disposição a primeira casa da praça!
Neste momento Yves entrou na sala com os cabelos em desalinho, olhar de irritação. Atravessou o nevoeiro provocado pelo fumo do eterno cigarro do tio Xavier, que envolvia também os móveis e as pessoas.
- Como é que pode alguém comparar - disse ele em voz aguda - a profissão de negociante de madeiras com a ocupação de um homem que dedica a sua vida às coisas do espírito? Chega a ser imoral...
As pessoas crescidas, atrapalhadas, olhavam para este "demonico" sem casaco, com a camisa aberta e os cabelos caídos para os olhos. O tio perguntou-lhe com a voz trémula que lhe importava isso, e a mãe deu-lhe ordem para sair dali. Mas ele, sem os ouvir, dizia, gritando, que naturalmente, naquela terra de idiotas, todos imaginavam que um negociante de qualquer coisa tinha mais valor do que um professor de Letras. Um corretor de vinhos pretendia ter mais valor do que um Pierre Duhem professor na Faculdade de Ciências, cujo nome nem sequer era conhecido, a não ser nas horas difíceis, quando se tratava de aprovar um imbecil para a sua formatura. (Teriam atrapalhado Yves se lhe pedissem uma opinião sobre os trabalhos de Duhem.)
- E esta! Está a fazer um autêntico discurso!
- Não passas de um ranhoso! Se te apertassem o nariz...
Yves não se dava conta destas interrupções. Não era só nesta terra de estúpidos que tinham desprezo pelas coisas do espírito. Em todo o país tratavam mal os professores e os intelectuais... Em França o seu nome é uma injúria, na Alemanha o título de professor é um título de nobreza...
- Não admira. É um grande povo!
Com uma voz que se tornara esganiçada, disse mal do seu país e dos seus compatriotas. Jean-Louis procurava em vão fazê-lo parar. O tio Xavier, fora de si, não conseguia que o ouvissem.
- Não sou suspeito... Todos sabem para que lado me volto... Acreditei sempre na inocência de Dreyfus... mas não posso aceitar que um ranhoso...
Então Yves permitiu-se dizer uma insolência acerca dos "vencidos de 70". Tal insolência admirou-o a ele próprio.
- Insulta o seu tio desta vez! Sai daqui. Não quero ver-te mais!
Atravessou a sala do bilhar, desceu a escadaria. O ar abafadiço tomava conta dele. Meteu-se pelo parque dentro.
Nuvens de moscas zumbiam; os moscardos colavam-se à camisa.
Não sentia remorsos, mas estava humilhado por ter perdido a cabeça; por ter "quebrado lanças" ao acaso. Teria sido necessário ficar indiferente sem se interessar pelo assunto.
Tinham razão; não era mais do que uma criança. O que dissera ao tio fora horrível. Ele nunca lhe perdoaria. Como havia de reconquistar as suas boas graças?
O mais estranho era que a seus olhos nem a mãe nem o tio saíam "diminuídos" depois das discussões. Apesar de ser ainda muito novo e não poder colocar-se no seu lugar nem entender as suas razões, Yves não os julgava: a mãe e o tio Xavier eram sagrados aos seus olhos; faziam parte da sua infância, integrados numa poesia da qual não podiam libertar-se. "Fosse o que fosse que fizessem ou dissessem" - pensava Yves -, "nada podia separá-los do mistério da sua própria vida." Ambos blasfemavam contra o espírito, mas o espírito estava neles; iluminava-os sem eles saberem.
Yves voltou, retrocedeu; a tempestade escurecia o céu, mas não fazia barulho; as cigarras deixaram de cantar. Só os prados vibravam intensamente.
Seguia, mexendo com a cabeça, como os pintos, sob as investidas das moscas que se deixavam esmagar contra o pescoço e contra a cara. "Vencido de 1870"... Não teria querido ser mau; as crianças tinham muitas vezes gracejado diante do tio Xavier porque sabiam que nem ele nem Burthe - alistados voluntariamente - tinham visto um único prussiano. Mas desta vez o gracejo tivera um sentido diferente. Atravessou a escadaria devagar e parou na entrada. Ninguém saíra ainda da sala de estar. O tio Xavier falava: "... na véspera de ir reunir-me ao meu regimento quis abraçar mais uma vez meu irmão Michel, saltei o muro do quartel e parti uma perna. No hospital fiquei ao pé dos bexigosos. Podia ter deixado ali a pele... Teu pobre pai, que não conhecia ninguém em Limoges, empregou tantos esforços que conseguiu tirar-me dali. Pobre Michel! Em vão tentou alistar-se (foi no ano em que teve a sua pleurisia)...
Ficou meses e meses nesse horror de Limoges, onde só podia ver-me uma hora cada dia..." O tio Xavier interrompeu-se:
Yves aparecera na porta; viu o rosto bilioso da mãe voltar-se para o seu lado. E os olhos inquietos de Jean-Louis; quanto ao tio Xavier, não olhava sequer para ele.
Perdia a esperança de pronunciar uma palavra; mas o lado infantil, que era ainda o seu, veio em seu auxílio: com um movimento brusco, deitou-se ao pescoço do tio sem falar e abraçou-o chorando; depois veio para junto da mãe, sentou-se nos seus joelhos, escondeu o rosto, como noutros tempos, entre o seu pescoço e o ombro:
- Sim, meu filho, tens grandes remorsos, mas é preciso que te domines; que tenhas mão em ti...
Jean-Louis levantara-se e aproximara-se da janela aberta para que não vissem os seus olhos cheios de lágrimas.
Estendeu a mão fora da janela e disse que sentira uma gota de chuva.
Nada disto dera resultado.
Deixara de chover. Jean-Louis e Yves seguiam pela alameda até chegarem junto do velho carvalho.
- Não darás parte de fraco, Jean-Louis?
Este não respondeu. Com as mãos nas algibeiras e a cabeça descaída ia afastando com o pé uma pinha. Como o irmão insistisse, respondeu com voz fraca:
- Afirmam que é um dever para com vocês todos. Segundo o que dizem só o Joseph não saberia desempenhar o seu lugar em casa. Quando eu estiver a dirigir tudo ele poderá entrar também... E pensam que tu próprio ficarás contente se puderes um dia acompanhar-me... Não te zangues... Não compreendem o teu valor... Acreditarás que até imaginam possível que Danièle e Marie casem com pessoas de posição?!...
- Ah! Eles vêem as coisas ao longe! - exclamou Yves, furioso por suporem que ele seria capaz de vir a ser também um joguete nas mãos da rotina comum: Não deixam coisa alguma entregue ao acaso! Organizam a seu modo a felicidade dos outros. Não compreendem que alguém queira ser feliz doutra maneira...
- Não se trata de ver os outros felizes - disse Jean-Louis -, mas de proceder com fins de um bem comum e a pensar nos interesses da família. Não; não se trata de felicidade. Já reparaste? É uma palavra que jamais pronunciaram.
A felicidade... Vi sempre a nossa mãe com uma expressão atormentada, cheia de angústia... Se o pai vivesse, penso que lhe sucederia o mesmo... Não, nada de felicidade; mas o dever... uma certa modalidade de dever diante da qual não hesitam. O que se me afigura terrível é que os entendo!
Haviam chegado próximo do velho carvalho antes que chovesse.
Sentiam o aguaceiro a passar entre as folhas. Mas aquela árvore secular cobria-os com as suas frondes mais compactas do que penas. Yves, com certa ênfase, falava de um único dever: aquele que temos para com a nossa obra. Essa palavra, esse segredo que Deus nos confiou e que é preciso tornar conhecido... - a mensagem de que nos encarregaram...
- Porque dizes "nós"? Fala por ti, irmão. Sim, penso que trazes uma mensagem, que tens contigo um segredo... Mas como haviam a nossa mãe e o tio Xavier de sabê-lo? Pela parte que me toca, receio que tenham razão... Como professor, não faria mais do que explicar o pensamento alheio... Já é alguma coisa; é obra que nos diz "vale a pena viver, mas..."
Stop saiu de um silvado a correr para eles com a língua pendente. Joseph não devia estar longe... Yves falava ao cão cheio de lama como faria a um homem.
- Vens da horta, hem? Meu velho!
Joseph saiu, por sua vez, do silvado. Mostrava, rindo, a sua bolsa vazia. Tinha andado à caça toda a manhã em Téchoueyre, mas nada trouxera. Só havia pássaros... Vira cair duas aves aquáticas mas não conseguira encontrá-las.
Não tinha feito a barba de manhã. Uns pêlos duros e fortes escureciam a sua fisionomia infantil.
- Parece que há um javali lá para os lados de Bivurge.
Durante a noite a chuva parou. Muito tempo depois do jantar, sob a claridade de uma Lua atrasada, Yves viu que Jean-Louis saía e entrava acompanhado pela mãe e pelo tio. Observou as três sombras que se metiam pelo caminho asfaltado.
Depois, aquele grupo escuro era visto entre os pinheiros à luz do luar. A voz dominante de Blanche era cortada, às vezes, pelo timbre, mais agudo e desagradável, da de Xavier.
Jean-Louis ficava mudo; Yves percebeu que estava perdido; tinha ficado preso naquele torno, sem defesa... "A mim não agarram eles..." Contudo, ao mesmo tempo que se punha contra os seus, Yves sabia que só ele, ele só, estava ligado apaixonadamente à infância.
O rei dos juncos não o atraía para um país desconhecido. Ah, muito conhecido até era esse reino! Os juncos, de onde partem as vozes perigosamente suaves, chamam-se "varas" no país dos Frontenac e os seus ramos acariciam um rio cujo nome só eles conhecem. O rei dos juncos não arranca as crianças à sua infância, mas impede-as de saírem dela; guarda-as na sua existência morta; cobre-as com recordações e com folhas apodrecidas.
- Deixo-te ao pé do tio - disse Blanche a Jean-Louis.
Passou ao lado de Yves sem o ver, mas ele observava-a. A lua alumiava o rosto atormentado da mãe, que se imaginava só e que levou uma das mãos ao peito. Inquietava-se com aquela glândula. De nada servia dizerem-lhe que não tinha importância... Apalpava-a. Era preciso que antes da sua morte Jean-Louis ficasse sendo o chefe da casa, o senhor da fortuna, o protector dos irmãos. Rezava pela sua ninhada; com os olhos voltados para o Céu via Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, cuja lâmpada tinha sempre acesa na catedral, a estender o seu manto protector sobre os pequenos Frontenac.
- Ouve, meu filho - dizia o tio Xavier a Jean-Louis. - Falo-te como a um homem: não cumpri o meu dever para com vocês. Devia ter ocupado nesta casa o lugar que o vosso pai deixou vazio. Deves reparar a minha falta... Não, não protestes... dizes que eu não tinha obrigação? Tens a noção do que é o espírito de família e compreenderás que desertei... Vais reatar o que ficou interrompido por minha culpa. Não deve ser aborrecido dirigir uma casa rica onde os teus irmãos encontrarão um ninho e talvez os maridos das tuas irmãs e, mais tarde, os vossos filhos. Desinteressaremos pouco a pouco Dussol... Nada disto impede que andes ao corrente do que aparece. A tua cultura vai ser-te útil. Justamente, li um artigo no Temps, onde ficou provado que o grego e o latim, enfim as humanidades, preparam os chefes da indústria...
Jean-Louis nada ouvira. Sabia que fora vencido. Teria acabado por depor as armas, mas conhecia o argumento que em princípio o convencera, uma palavra da mãe, há pouco dita: "ao mesmo tempo que Dussol podemos convidar os Cazavieilh...". E logo a seguir dissera: "Quando acabares o serviço militar nada te impedirá de casares, se te apetecer"...
O tio Xavier seguia ao seu lado envolvendo-o no fumo do cigarro.
Devia de ser com uma rapariga um bocadinho forte... Podia antecipar o serviço militar e casar aos vinte e um anos. Mais do que dois anos de espera. Depois, uma noite, segundo o rito, daria a volta ao parque de Bourideys, nas trevas, com Madeleine. Subitamente aquela lembrança e toda a alegria do noivado fizeram com que estremecesse dos pés à cabeça. Tinha a respiração ofegante, tomava as pulsações ao vento que passara sobre os carvalhos de Léojats, envolvera a casa cheia de luar e tinha feito oscilar os cortinados de chita dum quarto onde naturalmente Madeleine não dormia.
- É uma carruagem, Fouillaron... Vim em três horas de Bordéus; setenta quilómetros... nem um contratempo.
Os convidados da Srª Frontenac rodeavam Arthur Dussol, ainda com a sua gabardina cinzenta. Tirou os óculos de chauffeur. Sorria com os olhos semiabertos: Cazavieilh, inclinado fora da carruagem com um ar desconfiado e respeitoso, procurava dizer alguma coisa.
- Tem rodas que são elásticas... - dizia Dussol. E Cazavieilh:
- O melhor e o mais perfeito que existe!
- Exactamente, e o mais moderno!
- Mas você sabe -, e Dussol ria discretamente. - Nunca fui um retardatário.
- Basta ver os seus meios de transporte... E quais são as características desta nova carruagem?
- Há pouco tempo ainda - disse Dussol -, a transmissão fazia-se às rodas por meio de correntes. Agora há somente duas rodas que são maleáveis...
- Admirável - disse Cazavieilh. - Nada mais do que duas?
- E, naturalmente, a sua ligação: a correia. Imaginai dois cones sem articulação...
Madeleine Cazavieilh levou Jean-Louis. Joseph, apaixonado pelo assunto, interrogou Dussol acerca das velocidades.
- Podemos variar o andamento tanto quanto quisermos por meio de uma simples alavanca - e Dussol, com a cabeça atirada para trás e com uma expressão de seriedade quase religiosa, parecia disposto a revolucionar o mundo. - Como nas máquinas a vapor - acrescentou.
Dussol e Cazavieilh afastaram-se lentamente e Yves acompanhou-os, atraído pelo seu ar importante, pela satisfação que via sair daquele corpo. Às vezes paravam diante de um pinheiro, mediam-no com o olhar e avaliavam qual seria a sua altura, querendo adivinhar o seu diâmetro.
- Vejamos, Cazavieilh, quanto imagina que vale?
Cazavieilh dizia uma cifra. O riso de Dussol fazia estremecer-lhe o ventre, que parecia ajustado à sua pessoa, a qual tinha um ar de hipocrisia.
- Vais muito longe!...
Tirou um metro da algibeira e mediu o tronco. Depois triunfante:
- Ora veja, não me enganei muito...
- Sabe o que podemos tirar em madeira duma árvore com este tamanho?
Dussol, pensativo, contemplava o pinheiro. Cazavieilh ficava mudo, numa atitude de respeito. Esperava a resposta do adivinho. Dussol puxou do seu livro de apontamentos e principiou a fazer cálculos. Finalmente disse uma cifra.
- Nunca podia acreditar! - exclamou Cazavieilh - É admirável!...
- O meu golpe de vista auxilia-me nas compras...
Yves voltou para casa. Um aroma singular a trufas e a molhos enchia esta linda manhã de Setembro. Andou à volta das cozinhas e atravessou a sala de jantar. A pequena Dubuch ficaria entre ele e Joseph. Saiu novamente, dirigiu-se para o sítio onde Dussol, com o metro na mão, agachado, media o intervalo entre as rodas duma carruagem descoberta.
- Que lhe dizia eu? Ainda falta muito para a sua carruagem ter as medidas convenientes. Vi isso desde a primeira hora... Não me acredita? Então tire você próprio as medidas. - Por sua vez Cazavieilh abaixou-se ao pé de Dussol, enquanto Yves olhava estupefacto para eles. Levantaram-se muito vermelhos:
- É bem verdade. Dussol! Você é uma pessoa extraordinária!
Um pequeno riso forçado abanou a figura de Dussol. Estava radiante e complacente. Não se viam agora os seus olhos. Sabia o bastante para que lhe fosse possível avaliar os lucros que tiraria das pessoas e das coisas.
Os dois homens subiram em direcção à casa. Às vezes paravam. Olhavam um para o outro como se precisassem de resolver algum problema constante, em seguida punham-se a caminho. E de repente Yves, imóvel no meio do caminho, sentira-se invadido por um desejo que era simultaneamente horrível e estonteante: atirar sobre eles, como um traidor e pelas costas. Pan!, e devia ser na nuca... haviam de cair prostrados. Um duplo tiro: pan!, pan! Porque não seria ele imperador ou rei dos pretos?
- Sou um monstro - disse em voz alta.
O chefe dos criados, lá do alto da escadaria, gritou: "O jantar está na mesa"...
- Mas sim, comiam com os dedos...
Devoraram os lagostins. As conchas estalavam. Tudo era saboreado a preceito, com o desejo de aproveitarem o melhor possível e de mostrarem maneiras finas. Yves reparava, de muito perto, no braço franzino e escuro da pequena Dubuch, um braço de criança ligado a um ombro redondo, e portanto imaterial.
Furtivamente olhava para aquele rosto onde os olhos ocupavam exagerado lugar. Só pela boca, que era grossa e pouco vermelha, aquele anjo estava ligado à humanidade. Diziam que era pena que tivesse tão pouco cabelo, mas o seu penteado (uma risca ao meio e dois torcidos sobre as orelhas) revelava esta beldade, que o mundo tinha levado tempo a descobrir: a base de uma cabeça bem feita, o desenho de uma nuca...
Yves lembrava-se da sua História Antiga e das reproduções dos baixos-relevos egípcios. E tinha tanto gosto em olhar para ela que não procurava sequer dirigir-lhe a palavra. Ao principiar o jantar dissera-lhe que no campo devia arranjar tempo para ler; mas ela só com dificuldade lhe respondera e agora só falava de caçadas e de cavalos com Joseph. Yves, que sempre vira o irmão mal penteado, mal arranjado, "criança dos bosques", como ele lhe chamava, viu pela primeira vez a sua cabeleira cheia de cosmético; as suas faces afogueadas por causa da navalha da barba, os seus dentes duma brancura estonteante. Acima de tudo reparou que ele conversava. Em família não tinha nada para dizer. Divertia agora a sua vizinha na mesa, que se animava dizendo-lhe:
- Como és parvo! Imaginas ter espírito!
Joseph não a perdia de vista e tinha uma expressão tão séria que Yves não via nela um desejo. Contudo lembrava-se do que a mãe dizia muitas vezes. Joseph precisa de ser vigiado, há-de dar-me que fazer!
Ia para todas as feiras e para todas as festas da terra.
Yves achava que ele era um tonto por se divertir tanto com as lotarias e com os cavalos de pau. Mas na última festa tinha descoberto que o irmão troçava do carrossel e que dançava com as raparigas do campo.
De repente Yves sentiu-se triste: com certeza a pequena Dubuch, que tinha dezassete anos, não ligava importância alguma a Joseph.
Do mesmo modo, porém, consentia em divertir-se com ele.
Havia entre eles um bom entendimento, que não vinha só das palavras, um entendimento para além da sua vontade, um acordo do sangue.
Yves imaginou ter inveja e sentiu vergonha. Na verdade sentiu-se isolado, à margem. Não dizia a si próprio "Eu também, um dia... brevemente talvez...".
Na outra extremidade da mesa, Jean-Louis e Madeleine Cazavieilh tinham a expressão que viriam a ter no jantar de noivado. Yves, que esvaziava todos os seus copos, via em estado de bruma, na extremidade daquelas filas de faces congestionadas, o seu irmão mais velho dentro dum fosso de onde nunca mais sairia. E, ao seu lado, a bela fêmea que servia de chamariz, descansando depois de ter cumprido a sua missão.
Mas não era tão gorda como Yves a via. Tinha renunciado a usar boleros. Um vestido de musselina branca realçava a pureza dos braços e do pescoço.
Alegre e ao mesmo tempo ingénua, tinha um ar tranquilo, esperava. De vez em quando trocavam umas palavras que Yves gostaria de ouvir e cuja insignificância o admiraria muito.
"Temos toda a vida diante de nós - pensava Jean-Louis - para nos explicarmos..." Falavam das amoras que lhes serviam e que tinham tido dificuldade em arranjar, das caçadas e dos laços que seria preciso arranjar visto que os pombos bravos não tardariam a aparecer.
- Toda a vida para explicar a Madeleine...
- Explicar o quê?
Jean-Louis não sabia que os anos passariam, que teria de viver muitos dramas, que teria filhos, que viria a perder dois, que ganharia uma fortuna, que no fim da vida ela desapareceria, mas que, através de tudo, os dois esposos continuariam a trocar expressões tão simples como estas que lhes bastavam no alvorecer do seu amor, durante esta refeição interminável com as compoteiras cercadas de moscas e os gelados a perderem a sua consistência e a cor rosada.
Yves observava com desprezo e inveja aquele pobre amor de Jean-Louis e de Madeleine. Nem uma só vez a pequena Dubuch se voltara para ele.
Joseph, o grande comilão da família, esquecia-se de repetir os pratos, mas, exactamente como sucedia a Yves, esvaziava todos os copos. Pérolas de suor apareciam-lhe na cara. Eram tão eloquentes os olhos da pequena Dubuch que quando os pousava num indiferente ele logo imaginava que brilhavam por sua causa. Assim Joseph, enfeitiçado, decidiu intimamente que iria passear mais tarde com ela.
- Há-de vir admirar o meu pombal antes de se ir embora.
- O de Marian? Enlouqueceu? Teríamos mais de meia hora de caminho...
- Estaríamos à vontade para conversar...
- Oh!, já basta, você disse bastantes tolices...
E bruscamente voltou para Yves os seus olhos brilhantes:
- É demorado este almoço.
Yves, deslumbrado, quereria esconder o rosto com as mãos.
Agitado, procurava as palavras para responder. Tinham servido os bolinhos da sobremesa. Olhou para a mãe, que se esquecia de levantar-se, com uma dessas distracções a que estava sujeita.
Com o olhar distante tinha metido dois dedos no corpo do vestido, e, enquanto o vigário lhe contava as suas dissidências com o administrador, ia pensando na agonia, na morte, no julgamento de Deus e na divisão das suas propriedades.
Debaixo dos carvalhos o café e os licores atraíam os homens, já bem alimentados. Dussol tinha chamado à porta o tio Xavier, e Blanche Frontenac seguira-os com um olhar inquieto. Receava que o cunhado se deixasse iludir.
Yves contornou a casa e seguiu por um caminho isolado que ia dar ao velho carvalho. Não foi preciso afastar-se muito para deixar de ouvir as vozes e os risos e para não sentir o cheiro dos cigarros. A natureza selvagem começava ali mesmo. As árvores já tinham esquecido que houvera visitas ao almoço...
Yves saltou por cima de uma cova. Estava embriagado (não tanto como supunha, visto que não bebera muito). O seu covil, a sua toca esperava. Os juncos marinhos, os fetos, altos como um corpo humano, rodeavam-no e protegiam-no. Era o lugar das lágrimas, das leituras proibidas, das palavras loucas e das inspirações. Era dali que falava com Deus, que lhe rezava e que por vezes blasfemava. Muitos dias haviam passado desde a sua última visita. Na areia lisa as lagartas tinham aberto buracos.
Yves pegou numa formiga e atirou-a para um deles. A formiga quis trepar mas as paredes movediças desfaziam-se sobre ela e já no fundo do buraco o monstro deitava areia.
Logo que a formiga, extenuada, chegou à beira do abismo, ei-la que escorregou novamente, e de súbito viu-se presa por uma perna. Debateu-se, mas o monstro levava-a lentamente para debaixo da terra. Enorme suplício! Em redor, os grilos cantavam naquele dia de calma. As borboletas hesitavam em pousar; as urzes cor-de-rosa e ruivas, cheias de abelhas, cheiravam a mel.
Yves não via mais nada do que a cabeça da formiga, agitada ao de cima da areia, e o desespero de duas pernas. Criança de dezassete anos, inclinada sobre o mistério minúsculo, interrogava-se sobre o problema da maldade. A larva que cria esta armadilha e que tem a necessidade para viver e para se transformar em borboleta de infligir às formigas uma atroz agonia; a subida do insecto para fora do buraco, as recaídas e o monstro que o prende... Esta preocupação fazia parte do sistema...
Yves pegou numa agulha de pinheiro, desenterrou a lagarta, pequena larva mole e impotente. A formiga, já livre, retomou o seu caminho com a mesma ligeireza das suas companheiras sem dar mostras de recordar o que tinha sofrido - possivelmente porque tudo obedecia à natureza... Mas Yves estava ali, com o seu coração e o seu sofrimento, dentro de um ninho de juncos.
Se fosse ele o único ser humano a respirar na superfície da Terra, ele bastaria para destruir a necessidade cega de acabar com essa cadeia sem fim de monstros que ora devoram ora são devorados; podia quebrar a cadeia, o menor movimento de amor a quebraria. Na ordem destramelhada do mundo, o amor introduzia as suas adoráveis alterações. É o mistério de Cristo e daqueles que O imitam.
"És escolhido por isto... Escolhi-te para tudo transformares..."
A criança diz em voz alta:
"Sou eu mesmo quem fala..." (e apoiou as duas mãos no seu rosto, a transpirar). "Somos sempre nós quem fala a nós mesmos..." E esforçou-se por não mais pensar. Muito alto, no firmamento, ao sul, um bando de pombos bravos apareceu.
Seguiu-os com a vista até que desapareceram.
"Sabes bem quem sou - dizia a voz interior. - Fui eu quem te escolheu."
Yves, de cócoras, firmado nos sapatos, pegou num punhado de areia e atirou-o para o vácuo.
Repetia, com expressão alucinada:
"Não! Não! Não!" "Escolhi-te, coloquei-te longe dos outros; marquei-te com o meu sinal." Yves cerrou os punhos: "era o delírio", dizia ele; de resto estava animado pelo vinho.
Que o deixassem sossegado. Nada pedia. Queria ser um rapaz da sua idade igual a todos os rapazes da sua idade. Saberia bem fugir ao isolamento.
"Hei-de sempre criá-lo à tua volta."
- Não sou eu livre? Sou livre - gritou.
Deixou-se ficar de pé; a sua sombra movia-se sob as árvores.
"És livre de arrastar pelo mundo, um coração que não criei para o mundo, livre de procurares na terra um alimento que não te destinei, livre de quereres matar uma fome que nada poderá contentar; as criaturas todas juntas não a mitigariam e tu correrás atrás duma e doutra...
"Falo comigo mesmo - dizia ele -, sou como os outros e pareço-me com os outros."
Sentia assobios nos ouvidos; o desejo de dormir levou-o a estender-se na areia. Apoiou a cabeça no seu braço curvado; o movimento de um moscardo afastou-se, perdeu-se no céu. O vento leste trazia o aroma dos fornos de pão e das serrações. Fechou os olhos. As moscas agarravam-se-lhe à cara, que tinha um gosto a sal.
Com um gesto de pessoa adormecida afastava-as. Um adolescente deitado no chão não incomodava os grilos da noite... Um esquilo desceu do pinheiro mais próximo e foi beber ao rio que passava perto desse corpo de homem. Uma formiga, possivelmente a mesma que ele libertara, subiu pela sua perna acima... outras a imitaram. Quanto tempo seria preciso ficar imóvel para que elas se afoitassem a dar cabo dele?
A frescura do rio acordou-o. Saiu da toca. A resina sujara-lhe o casaco. Tirou dos cabelos as agulhas de pinheiro.
O nevoeiro dos prados invadia pouco a pouco o bosque, e esse nevoeiro assemelhava-se ao bafo duma boca viva quando havia frio. Numa volta do caminho Yves encontrou a mãe, que rezava o terço. Tinha posto um xaile cor de violeta sobre o seu vestido de recepção. Um enfeite de renda "muito belo" - como ela costumava dizer - guarnecia o corpo do vestido. Uma grande corrente de ouro e pedras finas estava segura por um broche, que tinha grandes iniciais entrelaçadas: um B e um F.
- De onde vens? Andaram à tua procura... Não foste amável.
Tomou o braço da mãe, encostou-se a ela e disse:
- Tenho medo das pessoas.
- Medo de Dussol? De Cazavieilh? Estás maluco, meu pobre original.
- Mamã, são todos uns gigantes comilões...
- A verdade - disse ela com um ar romântico - é que não deixaram restos...
- Imaginas que daqui a dez anos alguma coisa existe de Jean-Louis? Dussol vai devorá-lo pouco a pouco.
- Tanta asneira!
Mas o tom de Blanche Frontenac era de ternura:
- Compreende-me, querido... Tenho pressa de ver Jean-Louis estabelecido. O seu lar será o vosso lar; quando ele estiver arrumado partirei tranquila.
- Não, mamã!
- Vês? Sou obrigada a sentar-me.
Sentou-se no banco sob o velho carvalho. Yves viu-a levar a mão ao peito.
- Sabes bem que não é coisa grave; Armozan já to disse cem vezes...
- Diz-se isso... De resto, existe este reumatismo no coração... não sabes o que sinto. Habitua-te à ideia, meu filho, tens de habituar-te. Mais cedo ou mais tarde...
Novamente se aconchegou junto da mãe e agarrou com ambas as mãos aquele rosto envelhecido.
- Estás aqui - disse ele -, estarás sempre aqui.
Viu-o tremer junto de si e perguntou-lhe se tinha frio.
Cobriu-o com o seu xaile de violeta - Estavam ambos cobertos com essa lã antiga.
- Mamã, este xaile... já o tinhas no dia da minha primeira comunhão; tem sempre o mesmo cheiro.
- A tua avó trouxe-o de Salies.
Uma última vez talvez, e como o faria um bebé, Yves agarrou-se à sua mãe viva, que podia desaparecer de um momento para o outro.
O La Hure continuaria a correr durante séculos e séculos.
Até ao dia de juízo, a nuvem daquele prado subiria para essa primeira estrela.
- Quereria saber, querido Yves, tu que conheces tanta coisa... No Céu pensa-se ainda naqueles que ficaram na Terra? Oh, sim, acredito... Acredito! - repetiu ela com força. - Não aceito nenhum pensamento contra a Fé... Mas como imaginar um mundo no qual deixarias de ser tudo para mim, meu querido?
Então Yves afirmou-lhe que todo o amor se completava no único amor, que toda a ternura seria aliviada e purificada daquilo que lhe pesa e de tudo o que a suja... Admirava-se das palavras que pronunciava. A mãe suspirou a meia voz:
- Que nenhum de nós se perca!
Levantaram-se. Yves cheio de confusão, enquanto a mãe, sossegada, se encostava ao seu braço.
- Eu digo sempre: vocês não conhecem o meu pequeno Yves; faz-se mau, mas de todos os meus filhos é o que está mais perto de Deus.
- Não, mamã, não digas isso! Não! Não!
Bruscamente, afastou-se dela.
- O que tens? Mas o que tem ele?
Seguiu adiante dela com as mãos nas algibeiras, os ombros arqueados; mal podia acompanhá-lo, tal era a rapidez da sua marcha.
Depois de jantar, a Srª Frontenac, cansada, subiu para o seu quarto. Como a noite estivesse clara, os outros membros da família passeavam no parque, mas não em conjunto; a vida principiava a separar o grupo, tão unido, dos rapazes.
Jean-Louis cruzou-se com Yves numa volta da alameda; não pararam. O mais velho preferia estar só para pensar na sua felicidade; não tinha o sentimento da diminuição da queda; certos comentários de Dussol com respeito aos trabalhadores acordaram nele preocupações mal definidas ainda; faria o bem, apesar de ter um sócio; ajudaria a promover a ordem social cristã. Não pouparia as palavras; procederia concretamente.
Apesar de tudo o que Joe imaginava, isto importava mais do que todas as especulações. O movimento da caridade é de natureza infinitamente superior... Jean-Louis não podia ser feliz se obrigasse os desgraçados a trabalharem... "Ajudá-los-ei a construírem um lar parecido com o meu..."
Viu luzir o cigárro do tio Xavier. Andaram algum tempo lado a lado.
- Estás contente, meu rapaz? Então? Que te dizia eu?
Jean-Louis não tentava explicar ao tio os projectos que o enchiam de entusiasmo; e o tio não podia dizer-lhe da sua alegria por voltar a Angoulême... Compensaria Josefa sem dificuldade... Talvez lhe pagasse a mesada a dobrar... Dir-lhe-ia: "Vês? Se tivéssemos feito a viagem, tudo teria já acabado..."
"Primeiro - pensava Jean-Louis - antes de qualquer apostolado há as reformas essenciais: a participação dos benefícios."
Orientaria as suas leituras nesse sentido. À luz do luar viram Joseph atravessar a alameda de lado a lado; sentiram o barulho de ramos partidos.
Para onde correria aquela criança Frontenac, aquela raposa matreira cujas pisadas poderiam seguir? Era levado pelo instinto e àquela hora nocturna esse macho sem fêmea sabia não poder encontrar em parte alguma aquela que procurava. Apesar disso, ia pisando as folhas secas, arranhava as mãos nos silvados, até chegar à propriedade de Bourideys, que confina com o parque.
Um cão ladrou sob as latadas; a janela da cozinha estava aberta. Viu a família reunida à volta duma mesa, alumiada por uma lâmpada Pigeon.
Joseph via de perfil a rapariga casada, aquela que tinha, sobre um pescoço respeitável, uma cabeça pequenina. Não a perdia de vista: mastigava uma folha de hortelã.
Entretanto Yves fazia a terceira volta ao parque. Ainda não sentia a canseira que mais tarde o levaria a cair prostrado sobre o travesseiro. Durante o jantar esvaziara o fundo das garrafas e o seu espírito, maravilhosamente lúcido, ia fazendo o balanço daquele dia e arquitectava uma doutrina que Jean-Louis já não era digno de entender.
A semiembriaguez dava-lhe a sensação de ser um génio: não escolheria, nada podia obrigá-lo a escolher; andara mal em ter dito "não" àquela voz exigente que seria talvez a voz de Deus.
Não recusaria coisa alguma a ninguém. Seria esse o seu drama do qual nasceria a sua obra, expressão da sua angústia. Nada recusar, não se recusar a coisa alguma. Todas as dores, todas as paixões dão volume às obras; fazem "inchar" os poemas. E porque o poeta está amargurado, será também perdoado:
"Eu sei que reservas um lugar aos poetas nas filas bem-aventuradas das santas legiões." A sua voz monótona teria feito estremecer o tio Xavier à força de se parecer com a de Michel Frontenac.
Blanche imaginara que adormeceria logo que apagasse a vela, tão cansada se sentia. Mas ouvia, nos degraus da escadaria, os passos dos filhos. Era preciso mandar dinheiro ao homem de negócios de Respide. Era preciso pedir o saldo da sua conta ao Crédit Lyonnais. Estava quase a findar o prazo do Outono.
Felizmente que havia as rendas dos prédios.
Mas, Santo Deus! Que importância tinha tudo isso? E tocava na glândula apalpando o coração.
Nenhum dos Frontenac teve naquela noite o pressentimento de que, ao mesmo tempo com o fim das férias grandes, terminaria para eles uma época. Que essas férias reflectiam ainda a influência do passado e que ao desaparecerem levavam consigo para sempre os prazeres ingénuos e puros e as alegrias que não maculam o coração.
Só Yves tinha consciência duma mudança que lhe servia para alimentar ilusões maiores do que as dos outros. Via-se no alvorecer duma vida ardente de inspiração e de experiências perigosas. agora ele entrava, sem perceber, numa quadra sombria: durante quatro anos as preocupações com os exames tomariam conta dele. Deixar-se-ia levar pelas companhias medíocres. A perturbação da idade, as curiosidades, tornavam-no igual aos seus camaradas e o seu cúmplice. Não tardaria que chegasse a hora em que o grande problema a resolver seria obter da mãe que lhe desse a chave da porta da entrada e o direito de ficar fora de casa até depois da meia-noite!
Não seria infeliz. Às vezes, de longe em longe, como se partisse de um ser amortalhado, um gemido brotaria do mais íntimo das suas entranhas. Veria os companheiros afastarem-se, e, sozinho numa mesa do Café de Bordéus, entre os de "má qualidade" e as mulheres apaixonadas pelos mosaicos dum moderníssimo estilo, escreveria de um jacto no papel que recebia a sua inspiração e sem levar tempo a juntar as letras com medo que se perdesse alguma daquelas frases que só uma vez na vida lhe seriam inspiradas. Teria que cuidar da vida dum outro "ele mesmo" que, em Paris, já alguns dos iniciados exaltavam. Um pequeno número, na verdade, e tanto assim que Yves levaria anos a compreender como era grande o seu valor e a medir o grau dos seus triunfos. Provinciano, respeitador das leis estabelecidas, desconheceria durante muito tempo ainda, que existe um outro género de glória: a que nasce na obscuridade e abre o seu caminho como a toupeira; a que só vem à luz do dia depois de longas caminhadas no subsolo.
Mas uma angústia o esperaria. E como foi que Yves Frontenac pressentiu todo o seu horror na janela do seu quarto naquela noite de Setembro, húmida e suave?
Quanto mais a sua poesia aproximasse os corações, mais e mais havia de sentir-se diminuído; pessoas viriam beber aquela água cuja nascente só ele veria secar-se.
Seria a razão de desconfiar de si próprio; de fugir ao chamamento; de Paris, da grande resistência que opunha ao director da revista mais importante da vanguarda; e, finalmente, da sua hesitação em reunir os seus poemas num volume.
Na sua janela Yves dizia a oração da noite frente aos cumes esbatidos de Bourideys, diante da Lua, que passava. Esperava tudo; chamava por tudo, até pelo sofrimento, mas não chamaria pela vergonha de sobreviver durante anos à sua inspiração, de dar pasto por meio de subterfúgios à sua glória. E não previa que teria de exprimir tal drama, dia a dia, num "Diário", que seria publicado depois de uma grande guerra; resignar-se-ia, pois havia muitos anos nada mais escrevera. Essas páginas atrozes salvariam tudo: fariam mais para a sua glória do que os seus poemas, encantariam e impressionariam, felizmente, uma geração de desesperados.
Assim, nesta noite de Setembro talvez que Deus visse sair deste rapazinho que sonhava diante dos pinheiros adormecidos, um estranho encadeamento de consequências - e o adolescente que se imaginava orgulhoso estava longe de avaliar a extensão do seu poder e não supunha que o destino de muita gente seria diferente, sobre a Terra e no Céu, se Yves Frontenac não tivesse nascido.
Como os pássaros e as nascentes ficam longe!
Isto deve ser o fim do mundo avançando.
Rimbaud
- Cinco mil francos de dívidas em três meses! Víamos isto no nosso tempo, Dussol?
- Não, Caussade. Respeitávamos o dinheiro. Bem sabíamos quanto os nossos pais haviam trabalhado. Tínhamos sido educados no culto da economia. "Ordem, trabalho, economia" era a divisa do meu pai, uma divisa exemplar.
Blanche Frontenac interrompeu-os.
- Não se trata de si, mas de Joseph.
Lamentava agora as confidências feitas a Dussol e ao cunhado.
Quando Jean-Louis descobriu o segredo dos negócios teve que dizer a Dussol o que se passava, visto que Joseph se servira do crédito da casa. Dussol exigiu que se reunisse o conselho de família. A Srª Frontenac e Jean-Louis opuseram-se a que o tio Xavier fosse prevenido; sofria do coração e esse golpe podia ser-lhe fatal.
- Mas - dizia Blanche -, por que motivo teriam metido no assunto Alfred Caussade?
Jean-Louis lamentava isso igualmente.
O rapaz estava sentado diante de sua mãe, um pouco abatido pela vida de escritório, com a cara já envelhecida apesar de ter apenas vinte e três anos.
- É preciso ser-se muito estúpido - dizia Alfred Caussade. - Todos os outros, ao que parece, conheceram essa mesma rapariga e não gostaram... Você conhece-a, Dussol?
- Sim, uma noite... Oh, não foi para me divertir! Minha mulher queria ir, ao menos uma vez na vida, ao Apolo, para ver como aquilo era. Pensei que não deveria recusar-lhe. Alugámos uma frisa. Ninguém podia ver-nos. Essa Stéphane Paros dançou duma maneira, as pernas inteiramente nuas...
Tio Alfredo, com o olhar brilhante, inclinou-se para ele:
- Parece que em determinadas noites... - Não podia ouvir-se o que seguia. Dussol tirou o seu monóculo inclinou a cabeça e disse:
- É preciso ser justo. Trazia um maillot pequenino na verdade, mas sempre o tinha e sempre usou maillot. Eu tinha-me informado. Imagina que teria sujeitado a senhora Dussol? Oh! Nunca! Já bastava que houvesse pernas nuas...
- E os pés também - disse Alfred Caussade.
- Ora! os pés... (Dussol mostrou uma expressão cheia de indulgência.)
- Pois bem, eu - declarou Alfred com entusiasmo de atrapalhação - é precisamente o que acho mais nojento...
Blanche, irritada, interrompeu-o:
- Você, Alfred, é que me parece nojento!
Protestou e alisou a barba:
- Esta Blanche!
- Acabemos com isto. Qual é a sua opinião, Dussol?
- Afastá-lo, querida amiga. Que ele parta o mais depressa possível e para bem longe. Quereria lembrar Winnipeg... Mas não aceitareis... Temos necessidade de alguém na Noruega... Terá os seus vencimentos, modestos na verdade, mas é precisamente o que está indicado para que ele entenda bem qual é o valor do dinheiro... Estamos de acordo, Jean-Louis?
Este respondeu, sem olhar para o sócio, que na verdade tinha a opinião de que era preciso afastar Joseph de Bordéus.
Blanche olhou para o seu filho mais velho.
- Pensa que Yves já partiu...
- Oh, quanto a esse! - exclamou Dussol. - Precisamente, querida amiga, teria sido bom conservá-lo ao pé de si. Lamento que não me consultasse. Não tinha nada que fazer em Paris. Não vai com certeza falar-me do seu trabalho. Conheço a sua opinião, o amor maternal não a cega; tem muito bom senso. Não vos tirarei as ilusões dizendo que o seu futuro literário... Se falo nisso é porque estou ao facto; procurei saber... Li mesmo várias coisas à senhora Dussol, que, devo dizê-lo, pediu misericórdia. Poderá dizer-me talvez que Yves recebeu estímulos... De que banda vieram eles? Sim de que lado vieram? Quem é esse senhor Gide, cuja carta Jean-Louis me obrigou a ler? Existe um economista com esse nome, um espírito esclarecido, mas não se trata desse, infelizmente...
Apesar de Jean-Louis saber há muito tempo que a mãe não tinha qualquer embaraço quando caía numa contradição, e que não tinha lógica alguma, nem por isso deixou de se admirar quando a viu opor a Dussol argumentos de que ele mesmo se servira contra ela na véspera à noite:
- Andaria melhor se não falasse de coisas que não pode entender; de coisas que não foram escritas para si. Só aprecia as obras já conhecidas e muito lidas. As novidades escandalizam-no e sempre escandalizaram as pessoas da sua qualidade. Não é verdade, Jean-Louis? Dizias-me que o próprio Racine desconcertara os seus contemporâneos...
- Falar de Racine a propósito dos trabalhos desse fedelho!
- Meu caro, ocupe-se das suas madeiras e deixe a poesia em paz. Não é negócio que o interesse; nem a mim - acrescentou Blanche para o acalmar, visto que parecia um peru inchado e tinha a nuca vermelha.
- A senhora Dussol e eu andamos a par de tudo o que aparece... Sou o mais antigo assinante do Panbillion. Tenho mesmo assinaturas especiais de revistas. Também, por esse lado, andamos ao corrente.
- "O que torna a conversa da senhora Dussol tão interessante - dizia-me uma noite destas um dos meus confrades do Tribunal do Comércio -, é tanto ter lido, e, como tem uma memória excelente, lembra-se de tudo e conta-nos o enredo dum romance ou de uma peça que tenha visto há anos. Isto como se tivesse sido ontem." Serviu-se ainda deste termo: "É uma biblioteca animada..."
- Tem muita sorte a sua mulher - disse Blanche. - O meu espírito é como uma peneira: nada fica. - Diminuía-se assim para desarmar Dussol. - Ouf! - disse ela, quando viu que eles se iam embora.
Aproximou-se dos radiadores apesar de estarem ao rubro; mas desde que estava naquela casa não se habituara ao aquecimento central. Precisava de ver o fogo para não sentir frio; quase tinha de queimar as pernas. Lamentava-se. Teria que ver Joseph partir! E no ano seguinte deveria alistar-se em Marrocos...
Não devia ter deixado Yves ir-se embora; não queria dar o braço a torcer diante de Dussol, mas era bem certo que ele podia ter continuado a escrever ali, em Bordéus. Nada estava a fazer em Paris, tinha a certeza disso.
- Foste tu, Jean-Louis, que o fizeste ter essas ideias. Por sua conta nunca teria partido.
- Sê justa, mamã, depois do casamento das nossas irmãs e que te instalaste nesta casa com elas só vives para o seu caso, para os teus netos; e tudo é natural. Yves no meio desta nursery sentia-se abandonado.
- Abandonado! Eu, que nunca mais saí de ao pé dele quando teve a congestão pulmonar!
- Sim; dizia que estava contente por ter adoecido visto que fora a maneira de te ter encontrado...
- Um ingrato, eis tudo - e como Jean-Louis não respondia: - Aqui, entre nós, o que imaginas tu que ele fará em Paris?
- Ocupa-se do seu livro; vê outros escritores; fala daquilo que lhe interessa... Toma contacto com as revistas, com os meios literários... Sei lá que mais!...
A Srª Frontenac sacudia a cabeça. Tudo aquilo não significava coisa alguma.
Como era a sua vida? Tinha esquecido os seus princípios...
- E no entanto a sua poesia é profundamente mística - Jean-Louis fez-se escarlate -. Thibaudet escrevia outro dia que ela faz parte de uma metafísica...
- Tudo isso são histórias... - interrompeu a Srª Frontenac. - O que significa essa metafísica se ele não cumprir o perceito pascal? Um místico! Sem se aproximar dos sacramentos!
- Ora! Ora!
Como Jean-Louis não respondesse, continuou:
- Mas, enfim, quando tu passas por Paris, o que te diz ele. Fala-te das pessoas com quem se dá? Entre irmãos...
- Os irmãos - disse Jean-Louis - podem entender-se até certo ponto, mas não se abrem uns com os outros.
- Que me dizes? Vocês são muito complicados!
Blanche, com os cotovelos nos joelhos, arranjou o radiador.
- E Joseph, mamã?
- Ah, os rapazes! Ao menos tu... - Olhou para Jean-Louis: seria ele feliz? Tinha sobre os ombros uma grande carga e muitas responsabilidades; nem sempre se entendia com Dussol, e Blanche reconhecia que por vezes não tinha prudência, para não dizer bom senso.
- É muito bonito ser um patrão com ideias sociais, mas, como diz Dussol, no momento do balanço sabemos quanto isso custa... Fora obrigada a dar razão a Dussol quando ele se opôs às assembleias de operários, quando Jean-Louis queria reunir os seus representantes com os da direcção. Dussol não tinha querido ouvir falar de "comissões de igualdade" apesar das explicações dadas sem sucesso algum sobre aquele mecanismo.
Mas Dussol cedera num ponto, que era, na verdade, aquele a que o seu jovem associado ligava mais importância.
- Deixemo-lo fazer uma experiência - dizia Dussol -, isso custará o que custar; é preciso deixar que o sarampo acabe...
A grande ideia de Jean-Louis era a de interessar o pessoal no desenvolvimento dos negócios. Com o consentimento de Dussol, reuniu os trabalhadores e fê-los conhecer os seus projectos: repartir com eles as acções, que seriam atribuídas na proporção dos anos de trabalho naquela casa.
O bom senso de Dussol triunfou: os trabalhadores acharam aquele gesto cómico e sem esperarem um mês venderam as acções.
- Eu bem lhe disse - repetia Dussol. - Foi preciso que se rendesse à evidência. Não tenho pena de quanto tudo aquilo custou. Agora conhece o seu mundo; não pode ter ilusões. Mas o engraçado é que admiram a minha perspicácia; sabem que não me intrujam; além disso, sei falar com eles, são-me dedicados; ao passo que ele, com as suas ideias socialistas... Supõem que é orgulhoso e altivo; é sempre comigo que se entendem.
- No fundo - dizia Jean-Louis -, se queres que Joseph fique em Bordéus não há inconveniente nisso: aquela Paros mandou-me dizer por um procurador que não tinha ideias nele; que só lhe aceitara ramos de flores; que não tinha culpa se Joseph lhe pagava sempre o restaurante. Passava por ser muito rico... Imagino até que será melhor para ele mudar de ares até chegar a hora do serviço militar... Alguém lhe abriria os olhos... Não tenho a opinião de Dussol de que será bom deixá-lo sem dinheiro...
A Srª Frontenac encolheu os ombros:
- Escusado seria dizê-lo. Há bocado, enquanto falavam, não protestei para não levantar questões, mas tu calculas!
- Então posso ir buscá-lo? Está à espera no seu quarto...
- Sim, acende as luzes.
Um lustre alumiou tristemente aquele quarto, estilo império, forrado com um papel desbotado. Jean-Louis foi buscar Joseph.
- Pronto, meu velho, eis o que ficou decidido...
O acusado ficava de pé na sombra com a cara um pouco voltada para baixo. Parecia mais gorducho do que os irmãos; pernas curtas e ombros largos.
Blanche encontrava nele aquele ar distraído de estudante a quem ouvia repetir as lições nas madrugadas tristes de outros tempos, e que nada queria ouvir, opondo a todas as súplicas e a todas as ameaças um extraordinário alheamento; e que vivia a sonhar com as férias em Bourideys, que mais tarde só vivia para os prazeres duma vida de boémio, muito capaz de passar as noites de Inverno dentro de uma barrica a espreitar os patos bravos, e depois fixando as suas atenções e os seus desejos numa criatura vulgar muito vivida, que imitava vagamente Frégoli nos cafés-concertos de província (a dançarina de Sevilha à "Huri"! "A dançarina do Camboja")! Um amigo tinha-lha apresentado depois do teatro; tinham ido em grupo para um cabaré.
Joseph agradara-lhe naquela noite - nessa única noite. Fora obstinado em amá-la. Nada mais existira para ele, só aparecia no escritório, onde Jean-Louis trabalhava para ele. A sua tímida e teimosa ciumeira irritava a mulher... E agora estava ali de pé, entre a mãe e o irmão, impenetrável, sem se manifestar.
- É grave ter dívidas - dizia-lhe a mãe. - Mas entende-me bem: não é pelo dinheiro... A vida desordenada a que te entregas, eis o que tem maior importância aos meus olhos. Tive sempre confiança nos meus filhos. Supunha que eles saberiam evitar todos os gestos menos dignos. Mas o meu filho Joseph...
Estaria ele comovido: Foi sentar-se na poltrona.
As luzes incidiam-lhe no rosto.
Tinha emagrecido; até as fontes pareciam encovadas.
Perguntou com uma voz inexpressiva quando se iria embora, e como a mãe lhe respondesse "em Janeiro, depois das festas", respondeu:
- Preferia ir o mais cedo possível.
"Aceitara tudo bem e tudo se passou pelo melhor", dizia Blanche.
E no entanto não estava sossegada; mas procurava tranquilizar-se.
Não lhe escapara que Jean-Louis tinha observado também muito o seu irmão mais novo. Outros que fossem estariam contentes com esta serenidade nas atitudes. Mas tanto a mãe como o irmão estavam prevenidos, compartilhavam daquele sofrimento, tomavam parte fisicamente naquele desespero de criança - o pior de todos - o menos decifrável, o que não conhece obstáculos de razão, de interesse, de ambições...
O irmão mais velho não perdia de vista o filho pródigo, e a mãe levantara-se. Dirigiu-se a Joseph, agarrou-lhe na cara com as duas mãos como pretendendo acordá-lo, como para tirá-lo dum sono hipnótico.
- Joseph, olha para mim.
Falava como se desse uma ordem; ele, com um movimento de criança, abanava a cabeça, fechava os olhos, procurava desembaraçar-se dela.
Aquilo que Blanche nunca conhecera - um sofrimento de amor -, adivinhava agora na expressão sombria do filho.
Havia de curar-se, com certeza não podia durar muito aquela dor, mas seria preciso que ele chegasse à outra margem sem morrer na travessia. Joseph sempre lhe metera medo enquanto criança. Blanche nunca previra como ele iria reagir. Se tivesse falado ter-se-ia queixado... Mas não; ficava ali, com a boca apertada, apresentando à mãe um rosto escurecido de cigano (talvez alguma sua antepassada tivesse sido seduzida por um desses homens que fazem contrabando). Os seus olhos deitavam lume mas nada confessavam.
Então Jean-Louis, aproximando-se por sua vez, agarrou-lhe nos ombros e sacudiu-o brandamente.
Repetiu por várias vezes:
- Meu pobre Joseph, meu rapaz... - e conseguiu o que a mãe não teria conseguido: fazê-lo chorar.
À ternura da mãe Joseph estava habituado e não reagia. Mas nunca acontecera que Jean-Louis fosse meigo com ele. Foi tão inesperado que sucumbiu à surpresa. E as lágrimas caíram; agarrou-se ao irmão como um náufrago.
Com o seu instinto, a Srª Frontenac tinha voltado a cabeça para o lado e foi colocar-se junto do fogão. Ouviu frases balbuciadas e soluços.
Debruçada sobre o fogão, tinha levado as mãos até junto da boca.
Os dois rapazes aproximaram-se.
- Ele vai ter juízo, mamã. Prometeu-mo.
Chamou-o para si, abraçando-o, àquele filho infeliz.
- Meu querido, nunca mais terás uma expressão destas?
Essa expressão terrível tê-la-ia ele novamente alguns anos mais tarde, no declinar de um lindo dia transparente de calor no mês de Agosto de 1915, em Marne, entre dois acampamentos.
Ninguém a veria nem mesmo o camarada que procurava sossegá-lo:
"Parece que teremos uma preparação de artilharia fulminante, tudo será destruído; mais não teremos que fazer do que pôr as armas em bandoleira, com as mãos nos bolsos..."
Joseph Frontenac responder-lhe-ia com essa mesma expressão vazia de qualquer esperança, mas que nesse dia não meteria medo a ninguém.
Jean-Louis apressou-se a regressar a casa, aí, a dois passos de distância, Rua de Lafauterie de Montbadou.
Estava impaciente; queria contar tudo a Madeleine antes do jantar.
Yves tinha-lhe dito mal da casa, que fora arranjada com tanto gosto.
"Tu não és um dentista principiante, nem um médico que começa a sua carreira - dissera-lhe ele - para assim teres em cima dos móveis, nas paredes e até sobre as colunas os presentes horríveis que te ofereceram.
Jean-Louis protestara, mas convenceu-se logo e só via através dos olhos de Yves aquele universo de "amoares" de louça, os bronzes artísticos e as terracotas austríacas.
- A pequenita tem febre - disse Madeleine. Estava sentada perto do berço.
Rapariga do campo, que viera transplantada para a cidade, tinha engordado. Com os ombros quadrados e o pescoço largo, havia perdido o aspecto da juventude. Talvez estivesse grávida... Na base do peito tinha uma veia grossa que inchava.
- Qual é a temperatura?
- 37,5. Vomitou o biberão das quatro horas.
- Temperatura rectal? Isso não é febre, sobretudo à noite.
- É febre sim, o doutor Chalard disse-o.
- Que ideia! Ele referia-se à temperatura tirada debaixo do braço...
- Pois eu digo-te que é febre; pouca, já se vê; mas enfim, é febre.
Fez um gesto de aborrecimento, debruçou-se sobre o berço, que cheirava a linhaça e ao leite vomitado. De tanto a beijar fez gritar a filha.
- Estás a magoá-la com a barba.
- Está sem febre - disse ele.
Andou no quarto de um lado para o outro, esperando que ela lhe fizesse perguntas acerca de Joseph.
Mas nunca lhe fazia espontaneamente as perguntas que ele esperava. Já devia estar habituado; mas cada vez ficava mais surpreendido.
Ela disse:
- Terás de ir para a mesa sem mim!
- Por causa da pequena?
- Sim, quero esperar que adormeça.
Ficou contrariado. De mais a mais, havia soufflé de queijo, que deve ser comido logo que sai do forno. Madeleine ter-se-ia lembrado disso - pessoa habituada a ter respeito pelas refeições em família, e dum modo geral pela comida -, porque, mesmo antes que Jean-Louis tivesse desdobrado o guardanapo, já lá estava.
"Não, não me fará perguntas - pensava Jean-Louis -, é inútil esperar mais tempo."
- Então, minha querida, nada queres saber?
Levantou para ele os olhos ensonados e um pouco inchados.
- De que se trata?
- De Joseph - respondeu ele. - Foi um caso sério. Dussol e o tio Alfred não quiseram insistir na sua ida para Winnipeg... Vai então para a Noruega.
- Não se trata de um castigo. Poderá ir à caça dos patos bravos... Nada mais ambiciona.
- Imaginas isso? Se o tivesses visto! Ele amava-a - disse ainda Jean-Louis, e ficou muito encarnado.
- O quê? Àquela mulher?
- Não há razão para troças... - E repetiu: - Se o tivesses visto!
Madeleine sorriu com malícia; encolheu os ombros e voltou a servir-se. Não era uma Frontenac. Para que insistir? Nada entenderia. Jean-Louis procurava lembrar-se da expressão que vira ao irmão, das palavras que lhe ouvira.
- A paixão desconhecida...
- Danièle veio amavelmente tomar chá comigo. Trouxe-me esta camisolinha; sabes de que se trata, é o modelo de que te falei.
Jean-Louis, com o seu espírito prático, achou tudo aquilo uma loucura. Cheio de aborrecimento pela sua pessoa, olhou para a mulher, que fazia bolinhas de pão.
- Como? - perguntou ele.
- Não é nada; não é nada. Para que falar? Não ouves o que te digo, não respondes...
- Dizias que Danièle esteve aqui?
- Mas não repitas o que vou dizer-te, fica entre nós, já se vê. Parece-me que o marido está farto de viver com a tua mãe. Como vai ser aumentado, pensa em mudar de casa.
- Não farão isso. A mãe comprou a casa um pouco por causa deles, porque não pagam o aluguer.
- É isso que os prende. Mas a tua mãe é tão difícil de aturar... Tu próprio o reconheces. Já mo tens dito cem vezes...
- Eu disse isso? Sim, sou muito capaz de o ter dito.
- De resto, Marie ficará... Tem um marido mais paciente, e sobretudo que pensa mais nos seus interesses. Nunca renunciará às vantagens de estar ali.
Jean-Louis via a mãe com o aspecto envelhecido duma proprietária que os filhos empurram de um lado para o outro.
Madeleine insistia.
- Gosto muito dela, que me adora. Mas sei que, pelo meu lado, não podia viver com ela. Ah, não!...
- Em compensação, minha mãe saberia muito bem viver contigo!
Madeleine, inquieta, observou o marido.
- Estás zangado? Nada disso me impede de ser sua amiga. É uma questão de feitios.
Levantou-se e abraçou a mulher para lhe pedir desculpa de tudo o que pensara.
Quando se levantaram da mesa o criado trouxe-lhe duas cartas.
Jean-Louis reconheceu num sobrescrito a letra de Yves; guardou-a na algibeira. Pediu a Madeleine licença para abrir a outra.
"Senhor e querido benfeitor. - Esta carta destina-se a participar-lhe que a nossa pequenina vai fazer a sua primeira comunhão de hoje a quinze dias. Sabe todas as orações, e tanto o pai como eu, quando a vemos rezar de manhã e à noite, ficamos comovidos; mas também ficamos atrapalhados porque sabemos que as festas trazem muitas despesas, mesmo quando são dedicadas a Deus, sobretudo porque temos algumas dívidas em vários sítios...
Mas eu disse ao meu marido: Não será o nosso benfeitor que nos deixará abandonados, visto que guardaste as acções em vez de as venderes para ires beber, como fizeram todos os outros, e alguns dentro de um mês depois da distribuição das acções.
Foi uma vergonha e aqueles que tiveram a compreensão da vossa generosidade são considerados como pertencendo a uma outra raça e como pertencendo a tudo o que as leis e o meu respeito por si proíbem que eu escreva neste papel.
Mas - como diz meu marido - quando se tem um patrão destes é preciso merecê-lo, pela compreensão das suas iniciativas a favor do operário."
Jean-Louis rasgou a carta e passou várias vezes a mão pelo nariz e pela cara.
- Não perdes o hábito... - disse Madeleine. E acrescentou: - Estou a cair de sono. Valha-me Deus! São apenas nove horas! Não te deitarás muito tarde? E despes-te no quarto do lado?
Jean-Louis gostava da sua biblioteca; uma vez ali, as críticas de Yves não o atingiam. Por toda a parte livros, a própria chaminé estava coberta. Fechou com cuidado a porta, sentou-se diante da mesa, tomou o peso à carta do irmão e ficou contente ao ver que era mais pesada do que as outras.
Abriu-a com cuidado, sem estragar o sobrescrito.
Como bom Frontenac que era, Yves falava em primeiro lugar do tio Xavier, com o qual almoçava todas as quintas-feiras. O tio, que ficara alarmado com o facto de ver um sobrinho instalado em Paris, tinha feito o possível para Yves mudar de ideias. Os Frontenac fingiam não ter entendido as razões de uma tal resistência: "Ele acalmou - dizia Yves -, sabe hoje que Paris é tão grande que um sobrinho pode viver ali sem se encontrar cara a cara com um tio que siga bem acompanhado... Sim, encontrei-os há dias, nos boulevards e cheguei a segui-los a distância. Trata-se de uma mulher forte com o cabelo amarelado que deve ter sido interessante há vinte anos! Acreditarás se te disser que entraram num restaurante barato? Com certeza tinha comprado um cigarro de três sous. A mim leva-me sempre a Prunier e dá-me, à sobremesa, um Bock ou um Henri Clay. Sim, porque eu sou um Frontenac... Fica sabendo que vi Barrès..."
Falava dando pormenores sobre essa visita. Na véspera um camarada falara-lhe neste dito ao mestre:
- "Tenho de ter cuidado... Será preciso dar ao jovem Frontenac uma ideia da minha pessoa que agrade ao seu temperamento...", o que escandalizou um pouco Yves.
"Não me senti intimidado com o homem, mas pouco faltou. Saímos juntos. Uma vez na rua, o grande conhecedor de almas ficou mais comunicativo. Disse-me... queria contar exactamente o que ele me disse; disse-me..."
Decididamente não eram as palavras de Barrés que interessavam Jean-Louis. Lia rapidamente a carta para chegar finalmente ao ponto em que Yves lhe falaria da sua vida em Paris, das suas ocupações, das suas esperanças, das pessoas com quem se dava. Jean-Louis voltou a página e não pôde evitar uma exclamação: Yves tinha apagado todas as linhas e o mesmo fizera no verso e na página seguinte. Não lhe bastara apagar, mas ainda as palavras que existiam não podiam ser lidas, de tal modo estavam metidas entre garatujas, qual delas a mais emaranhada.
"Talvez que sob aqueles horríveis traços estivessem os segredos do irmão. Devia haver um processo para adivinhar - pensava Jean-Louis -, certamente que existiam especialistas do género..." Não, impossível; seria entregar uma carta de Yves a um estranho. Jean-Louis lembrou-se então de uma lente que estava há muito na sua secretária (ainda um presente de casamento!) e principiou a estudar cada palavra raspada, e com tal paixão como se dali pudesse depender a sorte do país.
A lente só foi útil para descobrir os meios de que Yves se servira para prevenir este exame: não apenas tinha juntado as palavras com letras ao acaso, mas ainda por cima tinha riscos em toda a parte.
Depois de uma hora de esforços só obtivera resultados insignificantes; ao menos podia avaliar a importância destas páginas em relação ao trabalho que Yves tivera para torná-las enigmáticas. Jean-Louis descansou as mãos sobre a mesa e ouviu no silêncio da noite, na rua, dois homens que discutiam.
Passou o último trãmuei da carreira Balguerie. Jean-Louis fixava, com os seus olhos cansados, a carta misteriosa. Porque não se meteria ele no carro? Andaria toda a noite e chegaria antes do meio-dia a casa do irmão. Só podia viajar sozinho quando se tratava de negócios, e não havia esse pretexto naquela ocasião. Acontecia-lhe ir a Paris três vezes em quinze dias por causa de uns milhões de francos.
Mas para salvar o irmão ninguém o entenderia. Salvá-lo? De quê?
Nada havia, nas confidências "apagadas", que não trouxesse talvez uma decepção a Jean-Louis.
Era mais por discrição que por vergonha que Yves apagara.
Pensara: "Em que pode isto interessá-lo? E depois, nada entenderia..." Nesta opinião final não entrava desprezo algum.
Yves tinha da família uma ideia de simplicidade e de honestidade. As pessoas com as quais convivia em Paris pareciam-lhe de uma raça diferente com a qual a sua natureza rústica não podia ter contacto.
"Não chegarias a entendê-los - tinha Yves escrito (sem se lembrar que riscaria tudo aquilo antes de ter acabado a carta) - de tal modo eles falam depressa e sempre com alusões a pessoas das quais devemos conhecer os apelidos e os hábitos sexuais... Ao pé deles ando sempre atrasado e só depois de cinco minutos de ver os outros rirem é que eu próprio principio a rir. Mas como está estabelecido que sou pessoa de talento, esta demora em segui-los faz parte da minha personalidade e é lançada a meu crédito. De resto a maioria deles nunca me lê, mas finge que sim. Querido Jean-Louis, em Bordéus não suporíamos que isto de termos vinte anos pudesse aparecer aos outros como uma maravilha! Ali não sabemos que possuímos um tesouro... A mocidade não tem saída nesses meios; é a idade ingrata, a idade do mau-humor dos furúnculos, dos pontos negros, das mãos húmidas, das coisas feias e sujas. Aqui tem-se uma ideia mais lisonjeira. Aqui não há furúnculos que se vejam... Às vezes, uma senhora que se diz apaixonada pelos teus poemas deseja ouvi-los pela tua boca, e verás a sua garganta inchar e desinchar com tal rapidez que bastaria para avivar o lume numa forja... Este ano todas as portas se abrem diante da minha mocidade radiosa, até mesmo as portas dos palácios menos acessíveis. Aí também a literatura não passa de um pretexto. Ninguém afinal gosta do que escrevo. Não entendem coisa alguma. Não é isso que apreciam. Apreciam a pessoa que escreve... São muito importantes, mas já não têm dentes... Estão reduzidos a comerem-nos com os olhos, ignoram donde é que venho, não querem saber se tenho mãe. Bastaria isso para que os odiasse todos; e, quanto mais não fosse, porque nenhum deles me perguntou ainda se eu recebia notícias da minha mãe. Não sabem o que significa ser um Frontenac, mesmo sem preposição... Não avaliam a nobreza do mistério dos Frontenac.
Podia ser o filho dum condenado, ter saído da prisão, isso pouco lhes importaria. Até talvez lhes desse prazer.
Basta que eu tenha vinte anos, que lave as mãos... e o resto, e que tenha aquilo a que se chama uma situação literária para que fique justificada a minha presença no meio dos embaixadores e dos membros do Instituto, na sua mesa de fausto... Sim, faustosa, mas onde os vinhos são geralmente mal servidos, muito frios, em copos muito pequenos. E, como diria a nossa mãe, só temos o tempo de rir e de engolir..."
Foi neste ponto da carta que Yves interrompeu e que depois de ter reflectido apagou todas as letras, sem imaginar que seria a forma de arreliar o seu irmão mais velho. Este fixava a vista naqueles hieroglifos todos, e aproveitando o facto de estar sozinho ia passando a mão pelo nariz, pela barba e pelo queixo...
Depois de ter metido a carta de Yves na carteira, consultou o relógio e viu que era tarde. Madeleine devia estar em cuidado. Concedeu a si próprio mais uns dez minutos de silêncio e de solidão; pegou num livro. Abriu-o, tornou a fechá-lo. Fingiria assim que estava apreciando os versos?
Nunca tinha vontade de ler. De resto, dia a dia ia lendo menos. Yves tinha-lhe dito: "Tens toda a razão, não dês trabalho ao cérebro, temos que esquecer tudo com que tolamente o sobrecarregámos..." Ora!, o que Yves dizia... Desde que estava em Paris ninguém podia saber se falava a sério. Talvez que ele próprio não o soubesse...
Jean-Louis viu por debaixo da porta a luz da cabeceira, o que significava uma repreensão. Aquela luz queria dizer:
"Por tua causa não durmo; prefiro esperar do que ser acordada no meio do meu primeiro sono". Despiu-se fazendo o menor barulho possível e entrou no quarto. Era um quarto grande, e apesar das troças de Yves, Jean-Louis nunca ali entrava sem se sentir comovido. À noite os objectos e todas as bugigangas, bronzes e porcelanas, assim como os móveis, pareciam fundir-se uns nos outros. Muito junto à cama enorme, o berço parecia uma barca em suspensão, como se a respiração da criança bastasse para fazer mover os cortinados alvíssimos.
Madeleine não quis que Jean-Louis se desculpasse.
- Não estive maçada - disse ela. - Passei o tempo a pensar...
- Em quê?
- Pensei em Joseph - disse.
Jean-Louis comoveu-se. Agora que já não esperava vinha ela própria falar-lhe no assunto que mais podia interessá-lo.
- Querido, tive uma ideia para ele... Pensa bem antes de dizeres que não... Cecília... sim, Cecília Filhot... É rica, foi educada no campo e viu sempre os homens levantarem-se antes de o Sol nascer para irem à caça e deitarem-se às oito horas. Sabe que um caçador nunca está presente; o marido seria feliz. Ele disse um dia diante de mim que Cecília parecia muito bem. "Gosto das mulheres fortes..." Deveras, disse realmente isto.
- Não a quererá nunca. Além disso, os seus três anos de serviço no ano próximo... Sonha com Marrocos ou com a parte sul da Argélia.
- Pois sim, mas estaria noivo; ora isso havia de prendê-lo... E depois é possível que meu pai pudesse reformá-lo no fim dum ano, como fez ao filho...
- Madeleine! Peço-te! - Mordeu os beiços... A criança gritou; Madeleine estendeu os braços e o berço fez qualquer movimento que parecia um moinho. Jean-Louis pensava no desejo que Joseph tinha de se alistar para Marrocos (desde que lera um livro de Psichari...) Ele devia retê-lo ou aconselhá-lo a que seguisse?
Repentinamente Jean-Louis disse:
- Casá-lo... não seria má ideia. - Pensava em Joseph mas pensava também em Yves. Aquele quarto morno a cheirar a leite, com as suas tapeçarias e as suas cadeiras estofadas, aqueles vagidos de criança, aquela mulher pesada e fecunda, assim havia de ser o refúgio dos Frontenac uma vez fora do seu ninho, aqueles mesmos que os pinheiros das férias grandes não sabiam guardar livrando-os da vida ao abrigo de um parque escaldante. Expulsos do paraíso da infância, exilados, longe dos seus prados e das suas árvores e das nascentes, era preciso que os rodeassem de tapeçarias e de berços onde cada um deles arranjaria o seu poiso...
Este Jean-Louis, que tanto queria proteger os irmãos e pô-los em lugar seguro, era o mesmo que, prevendo uma guerra já esperada, fazia todas as manhãs exercícios para desenvolver os músculos, ansioso, como estava, por saber se poderia passar, voluntário, na inspecção para o serviço militar.
Ninguém vivia com mais simplicidade do que ele a sua vida.
Tudo se passava nos Frontenac como se tivesse havido comunicação entre o amor dos irmãos e o amor da mãe ou como se esses dois amores tivessem tido uma só nascente.
Jean-Louis experimentava, em relação aos irmãos mais novos e mesmo em relação a Joseph, atraído pela África, a solicitude inquieta e quase angustiosa que a mãe podia ter.
Naquela noite, sobretudo, o desespero sem alarido de Joseph, esse silêncio antes da tempestade, comoveram-no; mas menos talvez do que as páginas de Yves, indecifráveis; ao mesmo tempo, a carta da mulher do operário, parecida com tantas outras que recebia, tinha-o impressionado vivamente, tinha vindo agravar uma ferida.
Ainda não se resignara a considerar os homens aquilo que são. As suas ingénuas baixezas irritavam-no, e sobretudo o seu desajeitamento ao quererem fingir sentimentos religiosos faziam-no sofrer. Lembrava-se daquele rapaz de dezoito anos que lhe pedira para ser baptizado, que ele instruíra com dedicação... Pois bem, descobrira poucos dias depois que esse seu afilhado já tinha sido baptizado por caridade de uma obra protestante à qual roubara um cofre. Bem sabia Jean-Louis que se tratava de um caso especial e que não faltam almas boas pelo mundo. A sua pouca sorte (mais propriamente falando: defeito de psicologia, certa impossibilidade para julgar as pessoas) proporcionaram-lhe sempre surpresas destas. A sua timidez, que parecia às vezes orgulho, afastava os simples, mas não assustava os lisonjeadores e os hipócritas.
Estendido ao comprido e de costas, ia olhando com serenidade para o tecto, que um candeeiro alumiava brandamente, e via a sua incapacidade para mudar o destino dos outros. Os seus dois irmãos fariam neste mundo aquilo para que estavam destinados e todas as voltas que dessem haviam de levá-los infalivelmente ao ponto que os esperava; onde Alguém estaria a espreitá-los...
- Madeleine - disse ele de repente a meia voz -, imaginas que é possível fazer alguma coisa pelos outros?
Voltando a cara semi-sonolenta para o seu lado e afastando os cabelos, perguntou:
- Como?
- Pergunto: imaginas que depois de muitos esforços será possível transformar, mesmo pouco que seja, o destino dum homem?
- Oh, Não pensas noutra coisa! Transformar os outros, levá-los para outro sítio, incutir-lhes ideias diferentes daquelas que tem...
"Talvez - falava consigo próprio - não faça mais do que reforçar as suas tendências. Quando imagino segurá-los, concentram as suas forças para se precipitarem na sua direcção, ao contrário daquilo que eu teria querido..."
Madeleine disfarçou um bocejo.
- Mas que importa isso, querido?
- Depois da ceia, as palavras tristes e meigas do Salvador a Judas, dir-se-ia que o empurram para a porta, que o obrigam a sair mais depressa.
- Sabes que horas são? Já passa da meia-noite. Amanhã de manhã não poderás levantar-te.
Apagou a luz. Jean-Louis ficou deitado nas trevas, como se estivesse no fundo do mar, cujo peso enorme sentisse em cima dele.
Cedia à vertigem da solidão e da angústia. E subitamente lembrou-se de que se esquecera de rezar. Então fez exactamente o que teria feito aos dez anos; levantou-se sem fazer barulho e ajoelhou-se aos pés da cama com a cabeça encostada aos lençóis. O silêncio não era quebrado por qualquer sopro. Coisa alguma anunciava que havia naquele quarto uma mulher e uma criança adormecidas. A atmosfera era pesada e carregada de aromas vários, visto que Madeleine, como toda a gente do campo, receava o ar que vinha de fora.
O marido viu-se obrigado a nunca mais abrir as janelas de noite. Principiou por invocar o Espírito:
- "Veni Sanctae Spiritus, repletuorum corda fidelium ed amoris ni eis ignem accende..." Mas enquanto os seus lábios pronunciavam a fórmula admirável só reparava naquela paz que ele conhecia bem e que sentia em toda a parte. Sim, era uma paz activa que tudo invadia, que tudo conquistava. E sabia, por experiência, que não devia tentar qualquer reflexão, nem ceder à falsa humildade que obrigaria a dizer: "Isto,... não significa nada; é uma comoção à flor da pele, Não, nada dizer, nem aceitar. Nenhuma angústia subsistia... Que loucura ter imaginado que o resultado aparente dos nossos esforços conta para alguma coisa - pouco que seja. O que conta é o esforço em si para manter de pé a barra para a reerguer, sobretudo para a reerguer. E os resultados desconhecidos, imprevistos dos nossos actos, hão-de revelar-se um dia banhados pelas claridades, esses "frutos rebotalho", apanhados da terra e que a ninguém ousaríamos oferecer.
Fez um pequeno exame de consciência. No dia seguinte de manhã poderia comungar. Entregou-se aos seus pensamentos.
Sabia onde estava e continuava a ser sensível à atmosfera do quarto. Tinha uma ideia obcecante: sabia que naquele momento obedecia ao orgulho - procurava um prazer...
"Mas para o caso que fôsseis Vós, meu Deus..."
A terra estava inundada de silêncio campestre. Jean-Louis ficava atento ao tiquetaque do relógio; distinguia na sombra o ombro arquejante de Madeleine. Tudo via distintamente e coisa alguma o distraía do essencial. Algumas interrogações atravessavam o domínio da sua consciência mas logo que tinham resposta desapareciam.
Por exemplo, em relação a Madeleine via num relâmpago que as mulheres trazem em si um mundo de sentimentos mais rico do que o nosso, mas que lhes falta o dom de interpretá-los e de exprimi-los: inferioridade aparente. Assim acontece com o povo. A pobreza do seu vocabulário...
Jean-Louis sentia que fugia do mar largo para junto da terra, que já não perdia pé, que tocava no fundo, que andava sobre a praia, que se afastava do seu amor...
Benzeu-se, meteu-se na cama e fechou os olhos.
Quase não ouvia o apito do barco no rio. E os carros dos primeiros vendedores não o acordaram.
O rapaz que guiava em correria louca voltou-se e perguntou:
- Paramos em Bordéus só o tempo de almoçarmos?
Do fundo da carruagem o inglês, encoberto pelas duas raparigas, perguntou:
- Vamos ao Chapon Fin, não é verdade?
O homem que guiava olhou para ele sombriamente.
Yves Frontenac, sentado a seu lado, suplicava-lhe:
- Geo, olha para a frente... Cuidado com a criança...
(É loucura ter partido com estes desconhecidos!) Três dias antes jantava em Paris em casa desta senhora americana cujo nome nunca fixara e que não seria capaz de dizer correctamente.
Tinha "brilhado" como nunca (achava-se muito desigual, podia ser o conviva mais sinistro). "Teve sorte", dizia Geo, que admirava Yves e o tinha levado a casa daquela senhora. O Pommery tinha criado assim entre pessoas que mal se conheciam uma atmosfera de simpatia. A senhora partia na manhã seguinte para Guéthary. Três dias apenas. Propôs-lhe levá-los todos; era muito doloroso separarem-se; deveriam viver todos juntos.
A noite do mês de Junho era uma noite quente. Por felicidade nenhum homem estava de smoking. Não era preciso mais do que fazer mover o carro e partir. Geo seria o volante. Tomariam banho à chegada.
Em Bordéus, Yves tinha visto a mãe, depois do almoço, sozinha. Empalideceu quando viu o filho, que não esperava.
Yves beijava o seu rosto cor de cinza. A janela do salão Império estava aberta e deitava para a rua cheia de movimento, de aromas fortes.
Não tinha mais do que um quarto de hora, dizia ele, para lhe dedicar, os amigos tinham pressa de chegar a Guéthary. Não parariam em Bordéus no regresso, mas isso pouco importava, visto que em menos de três semanas deveria juntar-se à mãe e passar ao pé dela um mês inteiro. (O jovem casal tinha alugado uma villa nas margens do Bassin, mas não havia quarto para a Srª Frontenac.) Tinha resolvido esperar por Yves, não nas charnecas abrasadoras de Bourideys, mas em Respide, sobre as colinas do Garonne.
"Há sempre fresco em Respide", diziam, como artigo de fé, os Frontenac. Falou de Joseph: estava em Rabat e assegurava-lhe que não corria qualquer risco; apesar disso ela tinha medo.
Essa angústia fazia-a estar acordada durante a noite...
No fim de um quarto de hora Yves abraçava-a. Ela acompanhou-o até à entrada:
- Serão prudentes, ao menos?! Não seguem à louca? Não gosto de te saber atravessando caminhos. Telegrafa ainda esta noite... - Desceu a escada a quatro e quatro; mas por instinto levantou a cabeça. Blanche Frontenac estava debruçada no corrimão. Viu aquele rosto de sofrimento lá em cima e gritou:
- Dentro de três semanas...
- Sim, sejam prudentes...
Hoje volta a passar por Bordéus. Deveria rever a mãe. Mas no seu país impossível seria não receber esta gente do Chapon Fin. Eles diziam que fugia... E para mais Geo queria chegar naquela noite a Paris fosse como fosse... Este estava enraivecido porque o jovem inglês continuava sentado muito perto da senhora e não podia ouvir o que diziam; mas via no pára-brisas as suas cabeças muito juntas. Dizia a Yves coisas pouco tranquilizadoras: "Bem me importava a mim partir a cabeça desde que a deles também não ficasse inteira..."
Yves respondia: "Atenção à passagem de nível..."
Julgou que poderia sair quando terminasse o almoço, mas seria preciso esperar a conta.
Geo bebia, não falava, olhava para o seu relógio:
- Estaremos em Paris antes das sete horas...
Até lá não vivia; o seu suplício só teria fim em Paris, quando tivesse a senhora metida entre quatro paredes, fazendo-a jurar que não tornaria a ver o outro rapaz, e não a pouparia...
Não esperou que Yves regularizasse as suas coisas e pôs-se ao volante... Yves teria podido dizer: "Peço-lhe um quarto de hora... - ou então - Parta sem mim, tomarei o comboio..." Não pensou mesmo em fazê-lo.
Só pensava em lutar contra esta força interior que o levava a correr para abraçar a mãe. Repetia a si mesmo:
"É inútil transtornar os programas para ter uma entrevista de cinco minutos, visto que em menos de três semanas estaremos reunidos. Eu só teria o tempo de abraçá-la" (aquilo que então desprezava jamais se consolaria de ter perdido: os segundos que teria para pousar os lábios naquele rosto ainda vivo, e uma parte oculta do seu ser bem sabia tudo, pois que sempre somos avisados).
Ouvia Geo dizer-lhe, enquanto as senhoras estavam no vestíbulo:
- Yves, suplico-te: desce à terra; terei o inglês ao pé de mim e estarei sossegado.
Yves respondeu que por sua vez ficaria também mais tranquilo. O auto seguia. Yves estava sentado como em sanduíche entre as duas senhoras. Uma delas perguntava à outra: "O quê? Você não leu Paludes? É muito divertido... Sim, é de Gide."
- Não achei nada interessante; lembro-me agora de que já li... Por que razão acha aquilo engraçado?
- Pela minha parte acho divertido...
- Repito, porque é que acha divertido?
- Frontenac, você é que poderá explicar-lhe.
Yves respondeu corajosamente:
- Não li.
- Não leu Paludes - exclamou a senhora, estupefacta.
- Não, não li Paludes.
Pensava na escada que descera três dias antes. Tinha levantado a cabeça e vira a mãe debruçada sobre o corrimão.
"Hei-de vê-la dentro de dias", repetia. Ela não viria a saber o pecado que ele cometera de atravessar Bordéus sem ir abraçá-la. Naquele momento compreendeu o amor que lhe tinha...: Como nunca lhe sucedera desde a sua infância, quando soluçava nos dias de regresso à escola por ter de ficar separado dela até à noite. Ao pé dele as senhoras conversavam - mas não sabia o que diziam.
- Ele suplicou-me que pedisse um convite à Marie Constance... Respondi-lhe que não a conhecia bem. Insistiu para que arranjasse o convite por intermédio da Rose de Caudale. Disse-lhe que não queria sujeitar-me a uma recusa. Depois disto acredite-me, querida, ou não me acredite, desatou a chorar gritando que o seu futuro, a sua reputação e a sua vida dependiam desse convite; que se não o vissem naquele baile, só lhe restava desaparecer. Tive a imprudência de lhe lembrar que se tratava de uma casa muito fechada. "Muito fechada? - resmungou -, uma casa onde você é recebida?" Compreende, tudo isto é trágico... Deu a entender a toda a gente que tinha sido convidado. Há dias perguntei-lhe, para me divertir, em casa da Ernesta, e para ver a cara que ele fazia, como seria o seu fato de máscara. Respondeu-me: "traficante de escravos". É arrojo! E três dias depois, como tínhamos combinado fazermos a mesma pergunta, respondeu-nos que não tinha a certeza de assistir ao baile, pois que festas daquelas não o divertiam... É demais! Dizer-me isto a mim, que o vi soluçar! Ouça ainda esta: ele acha que presentemente Marie Constance recebe seja quem for... Posso mesmo dizer-lhe mais, em vista daquilo que você me contou: falou no seu nome.
- Afinal, é uma pessoa perigosa...
- Pode arranjar "partidos". Um homem, por muito desacreditado que esteja, se almoça, lancha e janta em sociedade todos os dias é forçosamente um homem que devemos temer: vai pôr os seus ovos no melhor sítio... E quando chega o momento, quando a pequena víbora se torce em cima da toalha, ninguém percebe que o mal veio dali...
- Afinal se telefonasse esta noite à Marie Constance? Aluguei-lhe uma frisa por mil francos...
- O que fará ele por si no caso de lhe arranjar um convite?
- Oh, nada lhe peço.
- E mesmo que lhe pedisse...
- Está sendo embirrenta, minha querida... Imagina então...
- Não tenho a certeza. Isto afinal é o que se chama um palpite...
- Como ela é original! Ouviu as suas palavras, Frontenac?
O que fora que a mãe lhe dissera durante os cinco minutos?
Dissera: "Em Respide teremos fartura de fruta." Tinha-se criado por cima da sua cabeça, entre as duas bocas pintadas daquelas mulheres, uma corrente forte de porcarias que Yves teria podido avolumar facilmente, mas aquela sujidade que ele queria deitar para fora de si ficara na superfície da sua pessoa, e não nas regiões mais íntimas, onde, naquele momento, ouvia a mãe dizer: "Este ano vamos ter abundância de fruta..." e onde via a sua figura debruçada a olhá-lo a descer a escada e seguindo-o com o olhar o mais tempo possível.
Aquela figura abatida!... Pensou: "É uma palidez cardíaca"... Então, houve como que um relâmpago; antes porém que ele o avistasse o pressentimento desaparecera.
- Tudo o que quiser... mas que idiota! Quando uma pessoa é tão maçadora não se agarra tanto! Se ela imaginasse que podia explorar outro, não se apresentaria como vítima. É espantoso como Albert conseguiu aturá-la dois anos. Mesmo enganando-a a toda a hora, pergunto: como foi que ele teve tanta paciência?... Sabe que ela é muito menos rica do que queria parecer?
- Quando fala na morte, afirmo-lhe que é deveras impressionante. Penso que tudo acabará mal.
- Não se apoquente. Verá que há-de fazer tantas que tornará o marido odioso. Em resumo, havemos de tê-la sempre sobre nós, verá. Porque, apesar de tudo, teremos que convidá-la e sabemos antecipadamente que nunca estará comprometida!
Yves ia pensando nos escrúpulos da mãe em relação à falta de caridade... "Tenho que me confessar", dizia ela de cada vez que se punha de mau humor por causa de Burthe. A bondade de Jean-Louis... a sua falta de compreensão em face do mal. Como Yves o tornava infeliz quando troçava de Dussol! A sociedade, essa "é sociedade com a qual presentemente o último Frontenac se incompatibilizava de todo o coração!... A bondade de Jean-Louis contrabalançava aos olhos de Yves a ferocidade do mundo.
Acreditava na bondade do mundo. Acreditava na bondade por causa da mãe e de Jean-Louis - "Mando-os como cordeirinhos no meio dos lobos"...
Via agora aparecerem em toda a parte multidões de vultos sombrios onde palpitavam véus e toucados brancos... Também ele havia sido criado para essa tranquilidade.
Iria a Respide sózinho com a mãe... Três semanas o separavam desse Verão escaldante onde haveria "fruta em abundância".
Teria o maior cuidado em não a escandalizar, evitaria molestá-la. Desta vez conseguiria não ficar irritado. Desde o primeiro dia havia de lhe pedir para rezarem juntos as orações da noite; ela nem acreditaria no que ouvisse; antegozava a alegria que ia dar-lhe. Havia de fazer-lhe as suas confidências... Por exemplo: contaria o que lhe acontecera no mês de Maio, numa boite.
Mas era preciso dizer-lhe que frequentava esses lugares.
"Bebi algum champanhe, adormeci. Era tarde; uma mulher, de pé numa mesa, cantava uma coisa que ouvi distraído e que a assistência repetia; porque era uma canção de soldados, e todos a conheciam. Na última quadra, porém, o nome de Cristo foi pronunciado de mistura com palavras obscenas.
Nesse momento (Yves via a mãe escutando com uma expressão de amargura) tive uma dor a que chamarei física, como se a blasfémia me atingisse em pleno peito..." Ela havia de levantar-se, abraçá-lo-ia e diria qualquer coisa deste género:
"Vês, meu querido, a Graça que recebeste..."
Imaginava como seria a noite, aquele céu de Agosto cheio de estrelas, o cheiro de madeira queimada que ninguém via...
Nos dias que se seguiram tranquilizou-se. Nada se passava. A sua vida foi de mais dissipação do que tinha sido até ali. Era a época em que, antes da abalada do Verão, as pessoas que se divertem fazem tudo a dobrar"; a época em que todos os que sabem dedicar-se sofrem com as separações inevitáveis, em que os que são amados respiram melhor. A época em que os castanheiros enfraquecidos de Paris assistem de madrugada às despedidas, feitas junto dos automóveis, de homens encasacados e de mulheres cheias de frio... Despedidas que não têm fim.
Sucedeu que uma noite dessas Yves não saiu de casa. Seria doença, cansaço, desgosto de amor? Fosse o que fosse, ficou sozinho no seu escritório sofrendo do mal do isolamento como se sofre naquela idade, como se se tratasse de um mal intolerável ao qual é preciso fugir custe o que custar.
A sua vida estava organizada de maneira a que todas as noites ficassem preenchidas; mas desta vez o mecanismo falhara.
Nós dispomos dos outros como se fossem peões, de modo a que nenhuma casa fique vazia, mas eles, por sua vez, fazem em segredo o seu jogo, empurram-nos com o dedo, afastam-nos, podem mesmo pôr-nos de lado. A voz que à última hora diz pelo telefone "Desculpe-me, estou impossibilitada..." pertence sempre à pessoa que, dos dois, tudo pode dizer. Se o isolamento de Yves naquela noite não fosse devido à ausência de determinada mulher, ele teria podido vestir-se, sair, encontrar-se com outras pessoas. Visto que ficava imóvel sem acender a luz, era fora de dúvida porque tinha recebido um choque e porque a ferida sangrava na escuridão...
O telefone tocou; não era o timbre do costume... eram toques sucessivos, rápidos. Ouviu muitas vozes e depois: "Falam de Bordéus." Pensou logo na mãe, numa desgraça, mas não teve tempo para sofrer, pois que era precisamente a voz da mãe, quase imperceptível, que parecia vir do outro mundo. Pertencia a uma geração que não sabia telefonar:
- És tu, Yves? É a tua mãe quem fala...
- Estou a ouvir-te mal.
Compreendeu que ela tivera uma crise aguda de reumatismo, que a mandavam para Dax, que a sua chegada a Respide ficaria retardada de dez dias.
- Mas poderias vir ter comigo a Dax... para não perdermos um dia daqueles em que devemos estar juntos.
Era mesmo por isso que telefonara, para obter essa certeza.
Respondeu-lhe que iria ter com ela logo que ela quisesse.
A mãe não ouvia. Ele insistia impaciente.
- Sim, mamã, irei a Dax.
Lá muito longe, uma pobre voz teimava:
- Vens a Dax?
E depois tudo acabou. Yves, irritado, ainda esperou uns instantes, mas nada mais ouviu.
Ficou sentado no mesmo lugar. Sofria.
No dia seguinte não pensou mais no caso. Continuou na vida de sempre. Divertia-se, ou antes, continuava até de madrugada a seguir os passos de uma mulher que, essa, sim, divertia-se.
Como chegava a casa de dia claro, dormia até muito tarde. Um dia a campainha da porta acordou-o. Imaginou que era o carteiro com alguma carta registada. Entreabriu a porta e viu Jean-Louis. Fê-lo entrar no quarto e abriu as persianas: uma camada de pó de enxofre cobria os telhados.
Perguntou a Jean-Louis, sem olhar para ele, se vinha a Paris tratar de negócios. A resposta foi, pouco mais ou menos, aquela que esperava: que a mãe não passara muito bem nestes últimos dias; viera buscar Yves para decidi-lo a partir mais cedo. Yves olhou para Jean-Louis: trazia um fato cinzento e uma gravata preta com pintas brancas. Yves perguntou porque não lhe haviam telefonado ou telegrafado.
- Tive medo que um telegrama te assustasse. Ao telefone ninguém se entende.
- Sem dúvida, mas não terias sido obrigado a sair de ao pé da nossa mãe. Admiro-me que a tivesses deixado mesmo só por vinte e quatro horas. Porque vieste? Se vieste...
Jean-louis olhava para ele fixamente. Yves, um pouco pálido, sem levantar a voz perguntou:
- Morreu?
Jean-Louis pegou-lhe na mão sem desviar a vista.
Yves balbuciou:
- Já o sabia.
- Como podias sabê-lo?
- Já o sabia. - Yves repetiu enquanto o irmão ia dando à pressa todos os informes que Yves não pensara ainda em pedir-lhe.
- Foi na segunda-feira à noite; não, foi na terça... que pela primeira vez se queixou...
Enquanto falava ia estranhando que Yves ficasse impassível; estava decepcionado e pensava que podia ter evitado a viagem ficando junto do corpo da mãe, aproveitar enquanto não o levassem... Não podia imaginar que um simples escrúpulo fixasse o desgosto de Yves como sucede aos abcessos que o médico provoca.
Teria a mãe sabido que ele atravessara outra vez Bordéus e que não a procurara para abraçá-la? Teria sofrido muito? Seria ele um monstro por ter faltado? Se tivesse feito essa paragem no regresso de Guéthary nada mais teria acontecido certamente do que sucedera na ida: algumas recomendações, avisos de precaução, abraços, tê-lo-ia seguido até à escada, ter-se-ia inclinado sobre o corrimão, tê-lo-ia visto descer, o mais tempo que pudesse.
Enfim, apesar de não a ter visto, ao menos tinha-a ouvido através do telefone. Compreendeu tudo, mas ela, coitada, ouvia mal...
Perguntou a Jean-Louis se ela tivera tempo de falar nele.
- Não; como pensava que iria ver o seu "Parisiense" tinha-se ocupado mais de Joseph, que estava em Marrocos. - As lágrimas de Yves caíram finalmente e Jean-Louis ficou aliviado.
Yves continuava calmo, entregue à sua dor. Olhava para aquele quarto onde tudo denunciava a desordem da véspera, onde o gosto dos anos volvidos estava patente na cor do divã e das almofadas... Mas aquele que o habitava não devia ter-se divertido mais do que alguns dias; via-se que andava alheado dessas coisas. Jean-Louis atraiçoava a memória da mãe morta para só pensar naquele seu irmão vivo... todo ocupado a observar o que havia à sua volta, procurando vestígios, sinais...
Uma única fotografia: a de Nijinski no Espectro du Rosa.
Jean-Louis olhou para Yves, de pé junto do fogão da sala; delicado no seu pijama azul, com os cabelos em desalinho, e que fazia o possível por chorar com o mesmo esgar de quando era pequeno. O irmão disse-lhe com ternura que fosse arranjar-se, e uma vez sozinho continuou a interrogar com a vista aquelas paredes, a mesa suja com cinza e o pano que a cobria, todo queimado.
Tudo o que na paróquia havia de padres e meninos do coro, precedia o carro fúnebre. Yves, entre os seus dois irmãos, e o tio Xavier, sentindo profundamente todo o ridículo dos seus rostos desfeitos, vistos à claridade brutal do dia, dos seus casacos, dos chapéus (Joseph tinha o uniforme da infantaria colonial), observava a expressão dos que seguiam no passeio, os olhares ávidos de mulheres. Não sofria, não sentia coisa alguma. Ouvia, de vez em quando, atrás dele as impressões trocadas entre o tio Alfred e Dussol. (Tinham dito a este último: "Você é da família, virá no cortejo, logo atrás de nós...")
- Era uma mulher com cabeça - dizia Dussol. - Não conheço melhor elogio. Podia ainda dizer: era uma mulher de negócios. Pelo menos, teria sido isso mesmo se tivesse tido um marido que a orientasse.
- Em negócios - dizia Caussade - uma mulher pode empreender muitas coisas que nos são proibidas.
- Diga-me, Caussade, lembra-se dela quando foi do caso Métairie, sim, Métairie, você há-de saber, aquele notário que fugiu? Tudo por causa de sessenta mil francos. À meia-noite veio buscar-me "pedindo-me que a acompanhasse a casa da senhora Métairie. Blanche obrigou-a a assinar uma declaração de dívida... Não foi nada divertido, e foi precisa coragem. Levantaram-lhe um processo que durou dez anos, mas por fim pagaram-lhe integralmente, e antes de pagarem aos outros credores. Bonito, hem?
- Sim, mas repetiu-nos muitas vezes que se não se tratasse do dinheiro dos filhos, e que ela administrava, nunca teria tido coragem "para tanto".
- Talvez porque numa determinada época teve a doença do escrúpulo: era o seu ponto fraco...
O tio Alfred protestou com ar cínico:
- Era o que ela tinha de mais admirável.
Dussol fez um movimento de ombros:
- Ora, deixe-me rir. Sou um homem de bem; quando falam de uma casa honesta citam a nossa... Mas bem sabemos o que são negócios. Blanche procederia assim em qualquer caso... Gostava de dinheiro e não se envergonhava.
- Preferia a terra.
- Não amava a terra por ela própria. Aos seus olhos a terra representava dinheiro, como as notas do banco; mas supunha-a mais segura. Afirmou-me que, fosse bom ou fosse mau o ano, com ganhos e perdas, se fizesse um cálculo sobre dez anos, as suas propriedades davam-lhe quatro e meio até cinco.
Yves ressuscitava a mãe... Via-a à noite na escadaria cercada pelos pinheiros de Bourideys.
Via-a chegar, e aproximar-se dele, no caminho à volta do parque, com as contas de rezar na mão - ou via-a em Respide a falar-lhe de Deus na presença das colinas adormecidas.
Procurava na memória as palavras que lhe tivesse ouvido testemunhando o seu amor pela terra... E elas chegavam em tropel.
De resto, Jean-Louis contava que um pouco antes de morrer tinha avistado o céu de Junho pela janela meia aberta e as árvores cheias de passarinhos... Dissera: "É disto que tenho pena..."
- Parece - dizia Dussol - que a sua última frase, mostrando as videiras e suspirando, terá sido esta: "Como tenho pena de não ver a colheita!"
- Não, a mim disseram-me que ela falou de um modo geral do campo, de toda a natureza...
- São os filhos quem o diz.
Dussol falava agora baixo:
- Cada um entendeu à sua maneira; você conhece... Pobre Jean-Louis! Na minha opinião o resto era mais belo; a colheita a que não assistiria, aquela vinha que ela renovara toda, era o seu bem que ela chorava...
- Ninguém me tira isso da cabeça. Conhecia-a há quarenta anos. Imagina possível que num dia em que se queixava dos filhos, eu lhe tivesse dito que ela era uma galinha que tinha gerado patos? O que ela riu...
- Não, Dussol, não é verdade; orgulhava-se dos filhos que tinha e com razão.
- Não digo o contrário. Mas Jean-Louis faz-me rir quando afirma que ela apreciava os discursos de Yves. Esta mulher personificava o equilíbrio e o bom senso. Ninguém venha contar-me, a mim, umas certas histórias. Em todas as minhas dificuldades com Jean-Louis no que tocava à participação nos benefícios, no que tocava aos conselhos de fábrica e em todas as historietas que me faziam adormecer em pé compreendia bem que ela era por mim. "Tinha medo dos devaneios dos filhos", como ela dizia. Pedia-me que não o julgasse levianamente. "Dê-lhe tempo - dizia-me ela -, há-de ver que é um rapaz sério..." "Dê-lhe tempo - dizia-me ela - há-de ver que é um rapaz sério..."
Yves já não pensava no seu fato ridículo nem nos sapatos envernizados. Já não analisava a expressão dos que via passarem no passeio. Preso numa cadeia, entre o carro fúnebre e Dussol (cujas palavras apanhadas por ele vinham ajudá-lo a adivinhar as péssimas intenções), caminhava com a cabeça descaída.
"Amava os pobres - pensava ele. - Quando éramos pequenos fazia-nos subir degraus horríveis; amparava as raparigas arrependidas. Tudo o que diz respeito à minha infância nos meus poemas não podia ler sem chorar..."
A voz de Dussol não parava...
- Os intermediários eram simpáticos com ela. Tratava-se de uma pessoa que sabia "limar" as negociações e sempre sem descontos ou recompensas.
- Ora diga-me, Dussol: viu-a alguma vez recebendo os seus inquilinos? Não sei como ela procedia para conseguir que eles pagassem todas as reparações...
Yves sabia por Jean-Louis que não era verdade.
Os alicerces tinham sido renovados apesar do bom senso e sem se importar com o valor dos bens imóveis; em vista disto não podia aceitar esta caricatura que Dussol fazia de sua mãe tal como os outros a viam, já despojada do mistério dos Frontenac...
A morte não nos entrega apenas aos vermes mas também aos homens, que roem uma memória e a decompõem; Yves já não reconhecia a imagem da mãe, que era a presa de Dussol e cujo rosto físico durava ainda assim mais tempo.
Essa memória seria necessário reconstruí-la nele próprio, apagar-lhe as nódoas... Seria preciso que Blanche Frontenac aparecesse igual ao que tinha sido. Era preciso isso para que ele pudesse viver e sobreviver-lhe. Como é comprida, até ao cemitério, esta Rua de Arès, que, através de um bairro de quintas, a família vai seguindo com fatos de cerimónia e com sapatos de verniz, numa pompa grotesca e selvagem - e os textos sublimes da Igreja são resmungados pelos padres que parecem habituados, terrivelmente habituados! Dussol, que tinha baixado a voz, novamente a elevou um tom acima e Yves não pôde resistir a prestar ouvidos.
- Não, Caussade, nesse ponto não posso segui-lo. É precisamente aí que encontro senões nessa mulher admirável. Não era uma educadora. Note que não deixo de ter a minha religião; estes senhores da freguesia encontram-me sempre quando precisam de mim, eles bem o sabem e tiram partido. Mas se tivesse tido filhos, desde que fizessem a sua primeira comunhão, ter-lhes-ia dito que se ocupassem de coisas sérias. Blanche nunca pensou no atavismo que pesava sobre os seus. Isto não é para dizer mal do pobre Michel Frontenac... - E como Caussade protestava dizendo que durante toda a vida Michel tinha feito profissão de anticlericalismo, Dussol insistiu:
- Sei o que digo: era em qualquer caso um sonhador, um homem que, mesmo ocupando-se de um negócio, escondia sempre um livro no fundo das algibeiras. Isto seria o bastante para julgá-lo. Se lhe disser que o vi levar um livro de versos para o escritório das negociações! Lembro-me de que me arrancou o livro das mãos com um ar embaraçado...
- Embaraçado? Talvez fosse uma obra licenciosa...
- Não; não era o seu género. Sim, talvez tenha razão. Lembro-me agora de que era uma compilação de Baudelaire... La Charogne, conhece? Michel seria um espírito delicado se quiser, mas nunca um homem de negócios; estive nas primeiras filas para julgar do seu valor. Felizmente para a casa e para os rapazes Frontenac, eu existia. A exaltação religiosa de Blanche desenvolveu com certeza neles estas tendências; aqui entre nós, de que serviu tudo aquilo?
Voltou a baixar o tom da voz.
Yves repetia a si mesmo: "De que serviu tudo aquilo? Seria ele um homem? Sim, mas não era o que Dussol chama um homem. O que será um homem no sentido que compreende Dussol? E o que podia Blanche Frontenac ter feito para que os filhos tivessem sido diferentes do que são? Jean-Louis tinha fundado um lar como eles dizem. Conduzia bem os negócios, tinha neles maior influência do que Dussol e a sua fama de patrão social chegava a todos os lados.
Joseph arriscava a pele em Marrocos (não, ainda não deixara Rabat); ele bem via que os jornais falavam dele...
"Em que seriam eles diferentes dos outros, os rapazes Frontenac?" Yves não saberia dizê-lo, mas este Dussol, cuja figura enorme via mover-se nas suas costas, não perdia o direito de inquietá-lo e de humilhá-lo até à angústia.
À beira do túmulo aberto, naquele redemoinho dos verdadeiros amigos (Acompanhei-a até ao fim...), Yves, com os olhos cheios de lágrimas e que nada podia ouvir, ouviu ainda assim - dominando o barulho do caixão raspando de encontro à pedra e o arquejar dos coveiros com cabeça de assassinos - a voz implacável, a voz insatisfeita de Dussol:
- Era uma mulher às direitas!
Naquele dia, em sinal de luto, o trabalho parou tanto em Bourideys como em Respide. Os bois ficaram no estábulo, julgavam que era domingo. Os homens foram beber na estalagem.
Como uma tempestade estava próxima, Burthe pensou que o feno podia estragar-se, que a pobre senhora teria tido desgosto se, por sua causa, não o pusessem em lugar seguro. O La Hure corria sob as árvores.
Perto do velho carvalho, no sítio em que a passagem tinha sido demolida, a Lua fazia luzir, sobre a erva, aquele velho medalhão que Blanche perdera três anos antes, durante as férias da Páscoa, e que os filhos haviam procurado em vão durante tanto tempo.
Durante o Inverno seguinte e durante os primeiros meses de 1913, Yves parecia mais triste do que nunca fora; a cara sem barba, as faces encovadas, os olhos escaldando sob o arqueado mais saliente das sobrancelhas. Estava escandalizado consigo próprio ao ver a sua fácil resignação e porque a morta não lhe fazia falta; como havia muito tempo não vivia ao pé dela nada havia mudado na sua vida habitual e passava semanas a fio sem ter consciência daquele desaparecimento. Mas exigia mais daqueles que estimava. Essa exigência, que o amor maternal não enganara nunca, transferia-a agora para os objectos que até então podiam tê-lo ocupado, inquietá-lo, e até fazê-lo sofrer um pouco, sem no entanto o abalarem na sua vida. Tinha-se habituado a penetrar no amor da mãe como penetrava no parque de Bourideys, no qual sabia que podia andar durante dias e noites até chegar ao oceano. E no entanto entrava em qualquer amor com aquela curiosidade fatal de chegar ao limite e sempre com a esperança obscura de nunca o atingir. Ai dele! Era desde os primeiros passos que atingia esse limite - e tanto mais seguramente que a sua mania tornava-o fatigante e insuportável. Só ficava satisfeito quando fazia ver às amigas que não acreditava nelas. Pertencia ao número dos rapazes tristes que dizem "Tu não me amas" para obterem uma certeza em sentido contrário, mas a sua palavra tem uma força persuasiva que lhes escapa, e àquela que protestava sem entusiasmo, Yves fornecia provas que acabavam por convencê-la de que na verdade não o amava, nem o amara nunca...
Nessa Primavera de 1913 tinha chegado a considerar o seu mal como essas dores físicas das quais espreitamos o fim, hora a hora, com o terror de não suportar o golpe.
E mesmo em locais públicos, desde que o objecto do seu amor ali se encontrasse, não podia esconder a chaga; sofria sem disfarce, deixava em toda a parte vestígios de sangue.
Yves não duvidava de que era um obcecado. E como arranjava traições imaginárias, nunca tinha a certeza de não ser vítima de uma alucinação.
Quando uma rapariga lhe dizia jurando que não era ela quem estava no automóvel junto do rapaz com quem dançara na véspera, deixava-se convencer, embora com a certeza de a ter reconhecido.
"Enlouqueci", dizia ele, e preferia acreditar que estava realmente louco. Primeiro para ter tempo de respirar, por muito breve que fosse essa interrupção no sofrimento, e depois porque lia nos olhos da bem-amada um susto que não era fingido.
"É preciso que me acredites...", dizia ela com um desejo ardente de consolá-lo, de tranquilizá-lo. Não resistia a esse magnetismo: "Olha bem para os meus olhos; acreditas-me agora?"
Não porque aquela fosse melhor do que qualquer outra; mas Yves só muito mais tarde viria a saber que podia provocar uma paciência feita de ternura em certas mulheres que, aliás, o torturavam, como se, ao pé dele, ficassem integradas, sem darem por isso, no amor maternal que o havia aquecido durante anos e anos.
No mês de Agosto, muito antes de anoitecer, a terra, saturada de sol, ainda está quente. Assim também o amor da sua mãe morta brilhava à sua volta e tocava os mais endurecidos corações.
Era isso talvez o que o ajudava a não sucumbir aos golpes que recebia. Nenhum outro apoio lhe ficava, nenhum socorro vinha da sua família. Tudo o que subsistia do mistério dos Frontenac só lhe chega como restos dum irreparável naufrágio... A primeira vez que veio a Bourideys depois da morte da mãe teve a impressão de que entrava como num sonho no passado materializado.
Sonhava com os pinheiros em vez de os ver. Lembrava-se daquela água fugidia correndo sob as árvores hoje cortadas e cujos ramos novos já se tocavam; mas substituía-os pelos troncos cobertos de hera que o La Hure reflectia nas férias doutros tempos. O cheiro do prado húmido irritava-o porque a hortelã-pimenta dominava-o menos do que a lembrança que dela tinha.
Aquela casa, o parque, tornavam-se um estorvo tal como sucedia com as velhas sombrinhas da mãe e com os chapéus das idas ao jardim, que não ousavam oferecer a ninguém e que não podiam deitar fora (havia um, muito antigo, com andorinhas).
Uma parte imensa do mistério dos Frontenac tinha ficado naquele buraco, naquela cova onde haviam estendido a mãe de Jean-Louis, de Joseph, de Yves, de Marie e de Danièle Frontenac.
E quando ás vezes um rosto aparecia pertencendo àquele mundo destruído nas suas três partes, Yves sentia uma angústia que era também um pesadelo. Assim, em 1913, por uma bela manhã de Verão, apareceu-lhe no limiar da porta uma mulher gorda que logo reconheceu, embora só a tivesse visto uma única vez na rua, essa Josefa que desempenhava o primeiro papel nos gracejos da família Frontenac.
Admirou-se por se ver reconhecida. "O quê! O senhor Yves sabia da sua existência? Desde sempre aqueles senhores sabiam que o tio não vivia só? Pobrezinho, que tantos trabalhos tivera para que eles nada descobrissem! Teria ficado desesperadíssimo... Por outro lado tudo era melhor assim."
Tinha acabado de ter na sua casa duas crises muito graves de angina de peito (era preciso que o caso fosse muito grave para que ela se resolvesse a ir ver o Sr. Yves). O médico proibira o doente de voltar a casa...
Lamentava-se dia e noite, o pobre, com a ideia de morrer sem abraçar os sobrinhos. Mas desde que eles sabiam daquela ligação já não seria necessário esconder-se. Seria preciso prepará-lo, isso sim, pois que estava longe de imaginar que sabiam a verdade... Iria dizer-lhe que a família soubera tudo há pouco tempo, que lhe tinha perdoado... Como Yves declarasse secamente que os irmãos Frontenac nada tinham que perdoar a um homem que veneravam mais do que a um outro qualquer, a mulher gorda insistia:
- De resto senhor Yves, posso dizer-lhe, visto que já tem idade para saber, nada existe entre nós há muitos anos... pode imaginar! A mocidade vai longe. E depois, naquele estado, não queria que ele se cansasse, que adoecesse mais. Não seria eu quem o mataria. Para mim é como uma criança, uma verdadeira criança. Não sou talvez a pessoa que o senhor imagina... Sim, seria bem natural... Pode informar-se a meu respeito na minha freguesia; ali todos me conhecem bem.
Fazia trejeitos, parecia-se exactamente com o retrato que sempre dela tinham feito os rapazes Frontenac. Trazia um abafo, género Scheherazade, com as mangas estreitas em baixo, abotoado pela altura do ventre com um único botão.
Os olhos ainda eram bonitos debaixo do chapéu cloche que não escondia nem o nariz grosseiro e retorcido nem a boca vulgar nem o queixo escavado. Contemplava comovida "o Sr. Yves".
Apesar de nunca os ter visto, conhecia os meninos Frontenac desde o dia do seu nascimento; acompanhara-os passo a passo; tinha-se interessado pelas suas mais insignificantes doenças.
Nada do que se passava naquele "império Frontenac" era aos seus olhos indiferente.
Muito ao de cima dela agitavam-se aqueles semideuses, dos quais, por uma sorte extraordinária, podia seguir todos os mínimos debates vistos do fundo do seu abismo. E apesar de, nas histórias maravilhosas que a embalaram, ela ter imaginado como seriam o seu casamento com Xavier e as cenas comoventes de família em que Blanche a chamaria "minha irmã" e os pequenos "tia Josefa", jamais acreditaria que o encontro daquela manhã pertencesse ao número das coisas possíveis, nem que pudesse um dia ver tão de perto um dos filhos Frontenac e falar tão intimamente com ele. Contudo tinha a impressão tão viva de ter conhecido Yves desde sempre que, diante daquele rapaz magro com o rosto lívido, que ela via pela primeira vez, pensou: "Como ele emagreceu!"
- E o senhor Joseph? Sempre contente em Marrocos? O seu tio anda cheio de cuidado; ao que parece as coisas ali estão complicadas e os jornais não dizem tudo. Felizmente que a sua pobre mãe já não existe para ter ralações destas; ficaria consumida...
Yves tinha-a convidado a sentar-se e ficara de pé. Fazia um esforço enorme para regressar à superfície do seu amor, para fingir que a ouvia e que se interessava. Dizia a si mesmo: "o tio Xavier está mal, vai morrer, com ele desaparecerão os velhos da família Frontenac...".
Mas em vão ele se espicaçava. Era-lhe impossível sentir outra coisa que não fosse o terror daquilo que se aproximava: o final do Verão, estas semanas e estes meses de separação carregados de tempestade, atravessados por chuvas violentas, queimados por um sol mortal. Toda a Criação, com os seus astros e os seus flagelos, erguer-se-ia diante dele e do seu amor. Quando ele o encontrasse outra vez seria o Outono. Antes disso teria que transpor sozinho um mar de fogo.
Devia passar as férias ao pé de Jean-Louis naquele lar em que a mãe tanto desejara que ele encontrasse um refúgio quando ela desaparecesse. Talvez ali ele se resignasse se a dor da separação fosse partilhada, mas "ela" estava num iate para onde fora convidada para ir num cruzeiro e vivia dominada pela febre das provas de vestidos; a sua alegria era exteriorizada sem que ela pensasse em dominar-se.
Não se tratava de suspeitas imaginárias, de receios que ora despertavam, ora seriam apaziguados; tratava-se de uma alegria brutal, pior que uma traição, e que uma mulher sentia ao separar-se dele; estava embriagada com aquilo que o matava.
Pacientemente fingira ternura, fidelidade; e eis que se desmascarava duma assentada. sem perfídia, é certo, porque não quereria causar-lhe desgosto.
Supunha que tudo se arranjaria repetindo-lhe:
"É uma felicidade para ti, faço-te sofrer... Em Outubro estarás curado."
"Mas tu disseste-me uma vez que não querias ver-me curado..."
"Quando te disse isso? Não me recordo."
"Ora, vejamos, foi em Janeiro, uma terça-feira, saíamos do Fischer; passávamos em frente de Ganhe-Petits, tu olhaste para o espelho..."
Sacudiu a cabeça com ar enfastiado. Essa palavra que tinha dado a Yves tamanha felicidade e a pensar nela tinha vivido durante várias semanas - que repetia ainda quando todo o encanto tinha há muito fugido, negava naquele momento que a tivesse alguma vez pronunciado...
A culpa era sua: alargava até ao infinito as mínimas expressões daquela mulher, dava-lhes um valor fixo, uma significação imutável, quando afinal só exprimiam um estado de alma momentâneo...
"Tens a certeza de que te disse isso? É possível, mas não me lembro..."
Na véspera, Yves tinha ouvido aquela palavra horrível naquele mesmo quarto onde naquele momento uma pessoa está sentada, uma mulher gorda e loura que tem calor, muito calor, ali num quarto tão pequeno apesar de a janela estar aberta.
Josefa instalara-se e devorava Yves com os olhos.
- E o senhor Jean-Louis, que bem parecido é! E a senhora dele bem se vê que é pessoa distinta. A fotografia deles, feita no Contenceau, está sobre a secretária do seu tio, com o bebé entre eles. Que amor de pequenina! Tem todo o tipo dos Frontenac! Digo muitas vezes au seu tio: "é uma Frontenac pintada". Ele gosta de crianças, mesmo pequeninas. Quando a minha filha, que está casada em Niort com um rapaz muito sério, empregado numa casa de vendas (é ele desde já quem dirige tudo, visto que o patrão tem reumatismo articular), quando a minha filha aparece com o bebé, o seu tio pega nele, põe-no em cima dos joelhos e a minha filha diz que bem se vê como ele está habituado a balouçá-los...
Interrompeu-se, bruscamente intimidada: o Sr. Yves continuava gelado. Naturalmente tomava-a por uma intriguista...
- Eu queria que soubesse, senhor Yves... Ele deu-me um pequeno capital, duma vez só, e móveis..., mas encontrará tudo como deve calcular. Se existe alguém incapaz de causar transtornos à família... - Ela dizia "a família " como se existisse uma só no mundo, e Yves, consternado, via duas lágrimas volumosas como lentilhas escorregarem pelo nariz da senhora. Afirmou-lhe que os Frontenac jamais tinham imaginado que ela fosse capaz de uma indelicadeza e que até lhe estavam reconhecidos pelos cuidados que dispensara ao tio; imprudente, fora além do fim desejado; ela comoveu-se e rebentou o dilúvio.
- Amo-o tanto! Tanto - murmurava -, e a vocês também. Sabia que não era digna de me aproximar, mas amava-os a todos, sim, a todos!, e, posso dizê-lo, a minha filha de Niort repreendia-me às vezes; dizia que me interessava por vocês mais do que por ela... Era verdade!
Procurou outro lenço no saco que trazia; estava encharcado pelas lágrimas. Naquele momento o telefone tocou.
- Ah!, é você? Sim... Esta noite, jantar? Espere que eu consulte a minha agenda.
Yves afastou um instante o auscultador do ouvido. Josefa, que, choramingando, o observava, espantou-se ao ver que ele não consultava livro algum e que olhava na sua frente com uma expressão de felicidade.
- Sim, poderei ficar livre. É amável que possa ainda dedicar-me uma noite. Onde? No Pré-Catalan? Que não vá buscá-la? Sim, visto que o prefere... Mas ser-me-ia fácil passar por sua casa... Porque não? Como? Insisto sempre? Mas o que quer que faça?... Era para não ficar sozinha no restaurante no caso de chegar mais cedo do que eu... Quero dizer: era para que não esperasse sozinha... Como? Não estaremos sós? Quem? Geo? Mas nenhum inconveniente... Como, de modo algum! Não estou nada contrariado. O quê? Evidentemente, não será bem a mesma coisa. Eu disse: evidentemente, não será a mesma coisa. O quê? Vou ficar de mau humor?...
Josefa devorava-o ainda com o olhar, velha jumenta reformada que uma música de circo acorda. Yves tinha colocado o auscultador no seu lugar e voltava para ela um rosto contraído. Não compreendia que ele hesitava em pô-la fora, mas viu que chegara o momento de despedir-se. Yves preveniu-a de que escreveria a Jean-Louis falando-lhe no tio. Logo que tivesse uma resposta transmiti-la-ia a Josefa, que remexeu tudo à procura dum cartão para lhe deixar a morada; finalmente saiu.
O tio Xavier estava seriamente doente, o tio Xavier agonizava.
Yves repetia isto tudo à vontade, levava para ali o seu pensamento de anémico; chamava em socorro a lembrança do tio: via-o numa cadeira de braços do quarto cinzento, na Rua de Coursol, à sombra do grande leito maternal... Yves dava-lhe a cara a beijar quando ia dormir e o tio interrompia a leitura "Boa noite, passarinho..."
O tio, de pé em traje de cidade nos prados das margens do La Hure, cortando uma côdea de pão e dando-lhe o feitio de um barco...
"Sabe, sabe, Calumet, te pourtere un pan naouet...". Yves deitava em vão a rede; em vão a retirava cheia de recordações que formilhavam: escorregavam todas, desapareciam. Nada contava a não ser a sua dor - e, sobre as imagens antigas, figuras enormes, recentes, estendiam-se, encobrindo-as. Aquela mulher horrível e Geo. O que vinha Geo fazer na sua história?
Porquê Geo, precisamente naquela última noite? Porque teria ido buscá-lo, em vez de tantos outros, àquele de quem era amigo?... A sua voz estava falsamente admirada ao telefone.
Não queria dar a entender que lhe escondia o facto de estarem íntimos. Geo devia viajar durante este Verão... Yves não conseguira saber aonde iria; Geo ficava no vago, fazia mudar de conversa. Ora! Faria parte do cruzeiro!
Geo e ela, durante semanas, naquele convés; naquelas cabinas.
Ela e Geo...
Estendeu-se de bruços no divã, mordeu com força uma das mãos. Era demais! Saberia vingar-se daquela mulher e fazer-lhe mal. Mas como enxovalhá-la sem se enxovalhar a si próprio? Havia de sujá-la... um livro, por exemplo. Seria preciso que todos a reconhecessem. Nada esconderia; havia de cobri-la de lama. Apareceria naquelas páginas grotesca e ao mesmo tempo imunda. Todos os seus hábitos, os mais secretos... Tudo contaria, mesmo o seu físico...
Só ele conhecia coisas horríveis a seu respeito... Mas era preciso tempo para escrever o livro... Ao passo que matá-la, isso podia suceder naquela mesma noite, imediatamente... Sim, matá-la; que ela perceba a ameaça; que tenha tempo de ter medo... Era tão cobarde! Que se sinta morrer, que não morra logo; que se veja desfigurada... Pouco a pouco ia vazando todo o seu ódio, espremeu a última gota. Então pronunciou a meia voz, devagarinho, o pronome querido. Repetia-o articulando bem cada sílaba; tudo o que podia ter dela: esse pronome que ninguém podia proibir-lhe que repetisse gritando. Mas havia vizinhos no andar de cima que tudo ouviam. Em Bourideys Yves teria tido o refúgio da sua toca. As tocas hoje deviam cobrir a estreita arena onde, por um belo dia de Outono, tudo lhe fora anunciado com antecipação; supôs que aquele imperceptível ponto do mundo estaria cheio de vespas naquela manhã de calor; as pálidas urzes haviam de cheirar a mel e talvez que um vento leve arrancasse dos pinheiros uma nuvem imensa de pólen. Via, com todos os desvios, o caminho que seguia para voltar para casa, sempre abrigado pelo parque, e aquele ponto em que encontrava a mãe. Tinha colocado por cima do seu vestido de cerimónia o xaile violeta trazido de Salies. Tinha abafado Yves com esse xaile porque o vira tremer.
- Mamã - gemeu ele. - Mamã...
Soluçava; era o primeiro rapaz Frontenac que chamava pela mãe morta, falando-lhe como se estivesse viva. Dezoito meses mais tarde caberia a vez a Joseph, com o ventre aberto durante uma interminável noite de Setembro, entre duas trincheiras.
Na rua, Josefa lembrou-se do seu doente. Estava só e uma crise podia vir a cada instante. Lamentou ter-se demorado junto de Yves, repreendeu-se a si mesma; mas Xavier ensinara-a tão bem que nem sequer pensou em tomar um táxi. Precipitou-se para a Rua de Sèvres, onde esperaria o trâmuei Saint-Sulpice-Auteuil; andava, como era seu costume, com o ventre espetado, o nariz no ar, e falava sozinha, divertindo os que passavam:
- Hé bé!... - com um ar de pessoa zangada e escandalizada.
Pensava em Yves, mas com azedume, agora que a presença do rapaz já não a deslumbrava.
Como ele se mostrara indiferente sabendo da doença do tio!
Enquanto ele acabava a vida com o pavor de não poder abraçar uma última vez os sobrinhos aquele telefonava a uma qualquer condessa (Josefa vira cartões entalados no espelho de Yves: "barão e baronesa de..." "marquesa de...: "Embaixador de Inglaterra e Lady...").
Esta noite jantaria com música na companhia de uma dessas senhoras finas... Não há gente mais reles do que elas... O folhetim de Charles Mérouvel... Aí está um que as conhece bem...
Estes sentimentos de hostilidade encobriam um fundo desgosto.
Josefa conhecia pela primeira vez a simplicidade daquele pobre tio que tudo sacrificara à quimera de se salvar diante dos sobrinhos; tivera vergonha da sua vida, da sua inocente vida! Ah! Tinha sido uma famosa libertinagem! Ambos se sacrificaram por causa de sobrinhos que nunca o saberiam ou que troçariam deles. Subiu para o pequeno trâmuei, passou um lenço pela cara vermelha. Ainda tinha afrontamentos, mas menos do que no ano passado. Contanto que nada tivesse sucedido a Xavier! Era muito cómodo ter uma paragem à porta. Subiu afogueada os quatro andares: Xavier estava sentado na sala de jantar, perto da janela aberta. Arquejava um pouco, não se mexia. Disse que pouco sofria; que já era um milagre não sofrer. Bastava ficar imóvel.
Tinha algum apetite mas preferia privar-se da comida do que arriscar-se a ter uma crise. A ponte do metro passava quase à altura da sua janela e havia por isso muito barulho de instante a instante. Nem Xavier nem Josefa se incomodavam com isso. Viviam ali esmagados pelos móveis de Angoulême, muito grandes para aqueles compartimentos minúsculos. O candelabro do amor tinha-se partido na mudança: Alguns ornamentos do armário tinham ficado descolados.
Josefa molhava as fatias de pão no ovo e pedia ao velho que comesse; falava-lhe como a uma criança:
- Vamos, minha avezinha, meu cãozinho...
Não mexia um único membro, semelhante aos insectos cuja imobilidade fica sendo a sua última defesa...
Perto da noite, entre dois metros, ouviu os pássaros cantar como outrora no jardim de Preignac. Disse repentinamente:
- Nunca mais verei os rapazes.
- Não estás assim tão mal... Mas se isso pode tranquilizar-te, basta que lhes mandes um telegrama.
- Sim, quando o médico disser que posso voltar para casa...
- Que importância tem que venham aqui? Podes dizer que mudaste de casa, que sou a tua governanta.
Xavier pareceu hesitar uns minutos, depois abanou a cabeça:
- Veriam bem que não são os meus móveis... Mesmo que nada descobrissem, não podem vir aqui. Mesmo que nada venham a saber, não devem aqui vir por consideração com a família.
- Não tenho a peste! - Empinava-se toda. O protesto que nunca dirigira a Xavier cheio de saúde dirigia-o agora ao moribundo.
Ele não estremeceu sequer, com receio de qualquer movimento.
- És uma boa pessoa... Mas em memória de Michel, não devem os rapazes Frontenac... Tu não tens culpa. É uma questão de princípios. E depois seria triste que, tendo conseguido ocultar deles durante toda a minha vida...
- Ora vamos! Imaginas que eles não descobriram tudo há muito tempo?
Lastimou ter proferido estas palavras vendo-o agitar-se na cadeira e respirar mais depressa.
- Não - disse ela. - Eles ignoram, mas se tudo soubessem não te quereriam mal...
- Oh, sim, são muito bons rapazes e não fariam comentários, mas...
Josefa afastou-se de ao pé da cadeira e debruçou-se na janela...
Bons rapazes! Via Yves naquela manhã ao telefone, fingindo consultar uma agenda com uma expressão de desvairo e de alegria.
Via-o com uma pécora qualquer naquele restaurante de luxo; havia uma luz cor-de-rosa sobre cada mesa. Os metros cheios de pessoas; empregados que voltavam do trabalho roncavam na ponte de ferro. Xavier parecia um pouco mais ofegante do que estivera de manhã. Fez um sinal dizendo que não queria falar, nem queria que lhe dirigisse a palavra, nem queria comer.
Punha-se na situação de morto para não morrer. A noite chegou, quente, abafada, e a janela ficou aberta, apesar da ordem do médico, que dissera para a terem fechada, visto que durante as crises o doente não tinha mão em si. A miséria deste mundo!...
Josefa ficava sentada entre a janela e a cadeira enterrada no amontoado dos móveis que tanto orgulho lhe deram e que, sem saber porquê, lhe apareciam naquele momento detestáveis. Já não passavam os trabalhadores; os metros iam quase vazios para a Étoile...
Josefa tinha descido ali com Xavier, apertada na multidão hirta dos tristes domingos... Quanto havia de custar o que se come nos grandes restaurantes? As lagostas, os pêssegos em conserva, aqueles limões de qualidade rara. Nunca chegaria a sabê-lo. Sempre fora obrigada a escolher entre o caldo Boulant, ou Duval, ou Scossa... 3,50 francos, entrando tudo.
Olhava para o lado oeste, imaginava ver Yves Frontenac com uma senhora e com aquele outro rapaz...
O jantar estava a terminar. Levantara-se e desaparecia por entre as mesas, dizendo que ia embelezar-se. Yves fez um sinal ao despenseiro para que lhe servisse o champanhe. Tinha um aspecto calmo, repousante. Durante toda a noite Geo dera àquela mulher as informações que ela lhe pedira sobre uma mala de viagem, um estojo (conhecia a direcção de um negociante que vendia pelo preço de revenda). Estava claramente demonstrado que não partiriam juntos, os seus mais insignificantes comentários provavam antes que iam ficar separados durante muitos meses e que não sentiam com isso desgosto algum.
- Outra vez esta maçada de há dois anos - disse Geo. E acompanhava a orquestra cantando: "Não, tu jamais poderás saber..."
- Quê, Geo; não acredito naquilo que imaginei...
Yves, com os olhos brilhantes, olhava fixamente para o rosto amigável do rapaz, que pegava no copo com a mão um pouco trémula.
- Imaginava que partirias com ela e que faziam segredo.
Geo encolheu os ombros, e com um gesto habitual mexeu na gravata. Depois abriu um estojo de esmalte preto e escolheu um cigarro. Não perdia Yves de vista.
- Quando penso que tu, Yves... tu... com o que tens aqui... (pousou levemente o índex queimado pela nicotina na testa do amigo), tu, por amor desta... Não queria magoar-te...
- Oh, não me dá cuidado que me tomes por idiota... Mas afinal não podes, por tua vez, repreender-me...
- Eu - disse Geo -, não valho nada... - Inclinou o seu rosto simpático, um pouco gasto, levantou-o e sorriu a Yves com ar de admiração e de ternura. - Além disso eu, antes que tudo volte... - Chamou o despenseiro, esvaziou o copo e encomendou com o olhar espantado: - Dois conhaques... - Eu - continuou -, vês todas aquelas "pêssegas"? Podia oferecê-las todas, trocando-as por... adivinha por quem?
Aproximou de Yves os seus olhos expressivos, e com uma voz simultaneamente apaixonada e tímida disse:
- Pela criada que lava os pratos.
Riram a bom rir. De repente Yves foi invadido por um mundo de tristeza. Olhou para Geo, que, por sua vez, ficou amachucado: conheceria ele o mesmo sentimento de traição, aquela infinita zombaria?
A uma distância incalculável Yves imaginou ouvir o murmúrio abafado dos pinheiros.
- O tio Xavier... - balbuciou ele.
- O que dizes?
E Geo, pousando o copo, fez um sinal ao despenseiro, com dois dedos levantados, para que lhe trouxesse outro licor.
Numa manhã do mês de Outubro próximo, no vestíbulo do Hotel d'Orsay, os rapazes Frontenac (menos Joseph, que estava sempre em Marrocos) rodeavam Josefa. O tio parecia ter melhorado durante o Verão, mas uma crise mais violenta veio abatê-lo, e o médico não supunha que ele pudesse resistir. O telegrama de Josefa chegara a Respide, onde Yves vigiava as vindimas e pensava já no regresso. Nada lhe dava pressa, visto que "ela" só chegaria a Paris no fim do mês. De resto estava habituado às ausências e agora, que via a saída do túnel, demorar-se-ia mais tempo com prazer...
Intimidada com a presença dos Frontenac, Josefa recebera-os primeiro com um ar imponente de dignidade; mas a comoção tinha sido mais forte do que as atitudes. Além disso, Jean-Louis, desde as primeiras frases, tinha-lhe tocado no coração. O seu culto pelos Frontenac fizera-a encontrar finalmente um motivo para não ficar desiludida. A ele se dirigia como chefe da família. As duas jovens, um pouco formalizadas, ficavam a distância, não por orgulho, como Josefa supunha, mas porque hesitavam sobre a atitude que deviam tomar. (Josefa nunca imaginara que elas fossem tão gordas; tinham chamado a si toda a obesidade da família.) Yves, a quem as viagens nocturnas abalavam, enterrava-se numa cadeira de braços.
- Repeti-lhe que me faria passar aos vossos olhos por sua governanta. Como ele de todo não fala (é ele quem assim quer, tem medo que o falar provoque nova crise), não posso saber se consentiu ou não. Tem muitos esquecimentos. Ninguém percebe o que ele quer... No fundo só pensa no seu mal, que pode repetir-se de um minuto para outro, parece que é horrível... é como se tivesse uma montanha sobre o peito... Não desejo que assistais a uma crise...
- Que provação para si, minha senhora...
Balbuciou chorando:
- O senhor Jean-Louis é bondoso.
- Teve, na sua desgraça, o socorro da sua dedicação e da sua amizade...
Estas palavras simples representavam carícias aos olhos de Josefa.
Fazendo-se da família, chorava devagarinho com a mão apoiada no braço de Jean-Louis. Marie disse ao ouvido de Danièle:
- Ele faz mal em tornar-se tão amável. Não poderemos nunca mais livrar-nos dela.
Ficou combinado que Josefa prepararia o tio para a notícia da sua vinda. E deviam chegar pelas dez horas, esperando na entrada. Foi nesse sórdido patamar, onde os rapazes Frontenac ficaram a escutar, enquanto os locatários, avisados pela porteira, se inclinavam sobre o corrimão, sentado num degrau imundo, com as costas encostadas no mármore fingido e cheio de rachas, que Yves sentiu todo o horror do que se passava por detrás daquela porta.
Josefa, de tempos a tempos, entreabria-a, mostrava a carranca entumecida pelas lágrimas, pedia-lhes que esperassem ainda um pouco mais. Com o dedo na boca empurrava o batente.
O tio Xavier, aquele que todos os quinze dias entrava no quarto cinzento da Rua de Coursol, em Bordéus, depois de ter dado uma volta pelas propriedades, que fazia assobios com um bocado de cana verde, agonizava naquele pardieiro, em casa daquela mulher, frente à ponte do metro, perto da estação La Motte-Picquet-Grennette. Pobre homem amarrado aos preconceitos, incapaz de discutir uma opinião recebida para todo o sempre dos seus parentes, respeitando o que está convencionado e ao mesmo tempo afastado da vida simples e normal... A atmosfera do Outono espalhava-se por aquela escada e lembrava a Yves as emanações do vestíbulo da Rua de Coursol nos dias de regresso. Cheiro a mofo, a ruas húmidas, a oleados.
Danièle e Marie falavam em surdina. Jean-Louis não se movia, tinha os olhos fechados, a cabeça encostada à parede. Yves não lhe dirigia a palavra. Compreendia que o irmão rezava.
"É a si, senhor Jean-Louis, que cabe a missão de lhe falar de Deus - tinha dito Josefa. - Comigo ele ralharia, pode bem imaginar."
Yves teria querido acompanhar Jean-Louis, mas nada entendera daquelas falas. Tinha-se afastado terrivelmente da época em que também lhe bastava fechar os olhos, juntar as mãos e rezar.
Como os minutos custavam a passar! Conhecia agora os desenhos daquelas manchas no degrau onde tinha quase adormecido.
Josefa entreabriu novamente a porta e fez-lhes sinal de que podiam entrar. Dirigiu-os para a casa de jantar e desapareceu.
Os Frontenac evitavam respirar, e até deslocar-se, porque os sapatos de Jean-Louis rangiam ao menor movimento. A janela devia estar fechada desde a véspera; havia cheiros de comida velha e de gás: acumulados naquelas paredes forradas com papel vermelho. Aqueles dois quadros litografados representando pêssegos e framboesas eram iguais aos que havia na casa de jantar de Preignac.
Compreenderam mais tarde que não deviam ter aparecido todos juntos. Se tivesse visto de começo Jean-Louis, o tio ter-se-ia talvez habituado à sua presença; mas, tudo feito à louca, entraram em grupo.
- Vê, senhor Xavier, eles vieram... - repetia Josefa representando com afectação o seu papel de governanta. - Queria vê-los? Ei-los todos, menos o senhor Joseph...
Ele não se mexia, não saía daquela imobilidade de insecto.
Só os olhos tinham movimento naquele rosto desagradável à vista; iam de um lado para o outro, como se tivessem recebido qualquer ameaça. As duas mãos agarravam o casaco e comprimiam o peito arquejante. E Josefa, de repente, esquecendo o seu papel:
- Não falas com medo que te faça mal? Então não fales. Estás vendo os rapazes? Estás contente? Olha para eles em silêncio. Se não te sentires bem, faz-me saber por sinais ou se tiveres qualquer dor maior. Queres a injecção? Vou preparar a ampola.
Falava parvamente, naquele tom em que se fala às crianças pequeninas.
O moribundo, enfeixado em si mesmo, conservava o mesmo aspecto assustado.
Os quatro Frontenac, muito juntos uns aos outros, cheios de angústia, mal sabiam que se assemelhavam aos membros dum júri quando vão prestar juramento.
Enfim, Jean-Louis saiu do grupo, deitou um braço à volta do pescoço do tio:
- Vês, só Joseph faltou ao chamamento. Recebemos boas notícias dele...
Os lábios de Xavier Frontenac mexeram. Primeiro não entenderam o que ele dizia, debruçados em cima da sua cadeira.
- Quem vos mandou vir?
- A senhora... A tua governanta.
- Não é minha governanta... Digo-vos: não é uma governanta. Bem ouviste que me tratava por tu...
Yves pôs-se de joelhos, encostado às pernas esqueléticas.
- Mas que importância pode isso ter, tio Xavier? Nenhuma; nada temos com isso. És o nosso tio querido, o irmão do nosso pai...
O doente afastou-o sem olhar para ele.
- Vocês souberam... vocês souberam - repetia ele com uma expressão de susto. - Sou como o tio Péloueyre. Lembro-me, vivia isolado em Bourideys com aquela mulher... Não queria ver ninguém da família... Tinham-lhe mandado um delegado, o vosso pai, que era ainda muito novo... Lembro-me: Michel partiu a cavalo para Bourideys levando consigo uma perna de carneiro porque o tio apreciava a carne de Preignac... Contava a vossa pobre mãe que ele tinha batido à porta durante muito tempo... O tio Péloueyre entreabrira a porta... Examinou Michel, tirou-lhe a peça de carne das mãos, tornou a fechar a porta e aferrolhou-a... Lembro-me dessa história toda... É curiosa, mas estou a falar demais... É na verdade curiosa... - E ria, com um riso que parecia simultaneamente contido mas espontâneo, e que lhe fazia mal, que não podia acabar. Teve um ataque de tosse. Josefa deu-lhe a injecção. Fechou os olhos.
Meia hora passou. Os metros sacudiam o prédio. Depois de eles passarem só se ouvia aquele respirar ofegante. De repente mexeu-se na cadeira, reabriu os olhos.
- Marie e Danièle estão aí? Então vieram a casa da minha amante. Fi-las entrar na casa da mulher que eu sustento. Se Blanche e Michel pudessem sabê-lo amaldiçoavam-me. Introduzi na casa da minha amante os filhos de Michel!
Não disse mais nada. O nariz ficou bicudo. A cara cor de violeta; soltava gemidos roucos e tinha aquele farfalhar que anuncia o fim... Josefa, soluçando, agarrou nele, enquanto os Frontenac, aterrorizados, recuavam até à porta.
- Não deves envergonhar-te, querido, são muito bons rapazes; compreendem as coisas, sabem... De que precisas? O que queres, meu querido?
Cheia de desgosto, interrogava os rapazes.
- Que diz ele? Não percebo o que é que ele quer...
Mas os rapazes viam cláramente toda a razão daquele movimento do braço que ia do lado esquerdo para o lado direito. Queria dizer: "Sai da minha vista!" Deus não quis que ela entendesse que expulsava a sua velha companheira, a sua única amiga, a sua criada, a sua mulher.
Durante a noite o último metro abafou os gemidos de Josefa, que se entregava à sua dor sem procurar dominá-la. Pensava que teria de gritar...
A porteira e a mulher a dias seguravam-na pelos braços; esfregavam-lhe as fontes com vinagre.
Os Frontenac tinham ajoelhado.
- O que é que nos está a preparar de muito bom? - Dussol, fazendo esta pergunta, queria mostrar-se amável, mas não deixava de sorrir ironicamente. Yves, enterrado no cadeirão de Jean-Louis, fingia não ter ouvido coisa alguma. Devia ir no comboio, e naquela mesma noite, para Paris. Era quase ao fim da tarde no dia seguinte ao do funeral de Xavier, em Preignac.
Dussol, que não tinha podido assistir (tolhido com reumatismo, só podia andar, havia já dois anos, apoiado em duas bengalas), viera cumprir o seu dever para com a família.
- Então - disse ele. - Tem coisas novas entre mãos?
Como o quarto estava sem luz, só muito mal podia distinguir a expressão de Yves, que se conservava silencioso.
- Que misterioso! Vamos, diga; verso ou prosa?
Yves, inesperadamente, decidiu-se:
- Estou a escrever "Caracteres". Sim, faço o meu estudo do natural; não tenho mérito algum, como vê: não invento, reproduzo exactamente a maior parte dos tipos que tive oportunidade de estudar.
- E chamar-se-á a tudo isto caracteres?
- Não. "Goelas" (1).
Nota 1 - "Gueules", no francês, expressão intraduzível, com o significado em calão de "aparência exterior", carrancas, máscaras. Também tem, por vezes, equivalência, no calão português, a "garganta".
Houve um minuto de silêncio.
Madeleine, com uma voz estrangulada, perguntou a Dussol:
- Quer mais chá?
Jean-Louis fez uma pergunta acerca duma tirada de cortiça muito importante, na região de Bourideys, que a casa Frontenac-Dussol estava em vésperas de negociar.
- Não foi culpa sua - disse Dussol. - Mas é triste que a morte do seu tio tenha atrasado a conclusão do negócio. Bem sabe que Lacagne está na pista...
- Tenho um encontro depois de amanhã de manhã cedo por causa disso...
Jean-Louis falava distraidamente todo entretido a observar Yves, do qual só distinguia o rosto e as mãos. Levantou-se para acender a luz. Yves voltou um pouco a cabeça e o irmão pôde ver o seu cabelo acastanhado, um rosto abatido cor de cera e a linha frágil do pescoço.
- Quase me apetece acompanhar Yves a Paris - disse Jean-Louis com um movimento espontâneo. - Tenho que falar com Labat...
- Não regressará a horas para o encontro de depois de amanhã - disse Dussol. - Não é de Labat que se trata. Esta tirada vale cem mil francos.
Jean-Louis passava a mão por cima do nariz e da boca. O que teria ele? Não queria perder de vista Yves nem por um minuto.
Depois da saída de Dussol foi para o seu quarto. Madeleine acompanhou-o.
- É por causa de Yves? - Perguntou ela. Aprendera a conhecer o marido, que de hora a hora percebia que era descoberto.
- Confesso que Yves me assusta.
Madeleine protestou:
- Aquilo não tem importância. Yves sofreu muito a morte do tio Xavier, sofrerá ainda durante alguns dias, mas a vida de Paris dissipará o desgosto. Todos sabem a vida que ele leva... Reserva para a família aquela expressão de funeral que te põe a cabeça às voltas. Mas em Paris, segundo o que me contou Dussol, não cultiva a melancolia. Não podes arriscar-te a perder cem mil francos por causa duma obsessão que tomou conta de ti.
Instintivamente encontrou o argumento que faria Jean-Louis ceder: não era só o seu dinheiro que estava em jogo, mas o de toda a família. Durante o resto da noite até à partida de Yves procurou conversar com o irmão, que respondia às suas perguntas sem elevar o tom da voz e parecia calmo. Nada justificava aquela angústia de Jean-Louis. Esteve quase a não descer do vagão onde instalara Yves antes que fechassem as portas.
Os túneis de Lormont haviam passado e Yves respirava agora melhor. Ia vê-la. Cada volta das rodas levava-o para ela.
Deviam encontrar-se no dia seguinte de manhã, às onze horas, no café daquela cave à entrada duma avenida, perto de l'Etoile. Desta vez, como ele esperava o pior, não teria decepções; diga ela o que disser, faça o que fizer, voltará a vê-la. Apesar de tudo poderia ainda viver tendo esperança naquele encontro. Simplesmente faria o possível para que os intervalos fossem menos longos do que no ano passado.
Dir-lhe-ia: "Perco mais depressa a paciência, não contes que eu possa ficar muito tempo fora de água. Respiro e movo-me por tua causa." Vê-la-ia sorrir. Sabia que Yves não apreciava as descrições de viagens. Não a deixaria contar histórias sobre o cruzeiro. Dir-lhe-ia que só a geografia humana podia interessar-me: não a paisagem, mas os seres que ela viu. Todos aqueles que durante três meses lhe tocaram (menos numerosos do que ele pensava). Tem-me dito que nada há na sua vida tão importante como eu; adoro-a... Com quem vivia ela o ano passado? Às apalpadelas, conseguiu relembrar todo o sofrimento do ano findo. O leproso esfolava-se, irritava-se, fazia sangrar as feridas mais antigas.
Dirigia-se para uma cidade que não tinha nada de comum com Paris, Paris, onde, oito dias antes, Xavier Frontenac tivera uma morte horrível.
- Não olhes para o teu relógio, querida. Há cinco minutos que estamos juntos e já perguntas as horas. Vives sempre aquele momento em que eu não estou presente.
- Repreensões... Achas que estou queimada?
Yves pensou que devia elogiar o vestido de passeio, a raposa. Ela gostou desse louvor. Deixou-a falar imenso tempo acerca das Baleares. Mas havia feito com que ela repetisse três vezes que não tinha encontrado pessoa alguma interessante..., a não ser seu ex-marido, em Marselha. Tinham merendado juntos como bons camaradas: cada vez mais vicioso.
Foi obrigado a deixá-la para ir fumar; não podia mais.
- E tu, Yves?
Enquanto o ouvia falar foi pondo rouge e pó. Como lhe relatasse a morte do tio Xavier, perguntou-lhe distraidamente se ele era o seu herdeiro.
- Dera-nos quase tudo em vida.
- Então a sua morte deixou de ter interesse.
Disse isto sem maldade. Era preciso explicar-lhe... Introduzi-la num mundo diferente, num mistério...
Uma mulher veio para junto dum rapaz na mesa da frente; abraçaram-se. Dois ou três homens, sentados no bar, ficaram impassíveis. Os autobus na avenida faziam ruído. A electricidade estava acesa; ninguém percebera que era já manhã.
Ela comia, uma a uma, frituras frias.
- Tenho fome - disse.
- Almocemos juntos... Impossível? Então até quando? Amanhã?
- Espera... Amanhã? Às quatro horas tenho uma prova... às... seis... Não, amanhã não. Queres que marquemos quinta-feira?
Perguntou:
- Dentro de três dias?
A sua voz agora parecia indiferente. Três dias e três noites em que não saberia nada desta mulher, que seriam preenchidos por muita coisa, por muitos acontecimentos... Julgou que estava preparado, que não teria surpresas; mas o sofrimento é imprevisto. Durante meses tinha-se cansado a persegui-la.
Depois de três meses de ausência essa perseguição ia continuar, mas as condições eram diferentes: estava rendido, extenuado, não favoreceria a caminhada. Ela compreendeu que Yves sofria. Pegou-lhe na mão. Não a retirou. Perguntou-lhe em que pensava; respondeu:
- Estava a pensar em Respide. Outro dia, depois do funeral do tio, fui lá sozinho, ido de Preignac... Meu irmão partiu directamente para Bordéus com minhas irmãs. Mandei abrir a casa. Entrei no salão cheio de salitre, com cheiro a madeiras apodrecidas. As persianas estavam fechadas; estendi-me ao comprido no canapé forrado de chintz e às escuras. Sentia a parede fria junto à minha cara e ao meu corpo. Com os olhos fechados persuadi-me de que estava deitado entre minha mãe e meu tio...
- Yves, és terrível...
- Nunca tinha conseguido tão completamente vestir-me com a pele da morte. Aquelas paredes grossas, aquele salão, que parece uma cave no meio duma propriedade abandonada; à noite... A vida era um infinito. Era o descanso. O descanso, minha querida... Pensa bem! Nunca mais perceber que se ama... Porque foi que nos ensinaram a duvidar do mundo?... O irremediável será acreditar, apesar de tudo e contra tudo, na vida da eternidade. Será ter perdido o refúgio do nada.
Não reparou que ela olhava furtivamente para o seu bracelete. Disse-lhe:
- Yves, tenho de ir-me embora: é melhor não sairmos juntos. Até quinta-feira... Queres que assentemos nisso? Na minha casa, às sete horas... Não, às sete e meia... Não, marquemos antes às oito menos um quarto...
- Não - responde-lhe Yves rindo. - Às oito horas.
Ives continuava a rir enquanto descia os Campos Elísios, não com um riso amargo e forçado, mas com um riso franco, que obrigava os transeuntes a voltarem-se. Tinha soado o meio-dia... Era madrugada quando subira os degraus da estação de Orsay. Estas poucas horas tinham bastado para esgotar toda a alegria dum encontro que era esperado há três meses e para que se visse como um judeu errante nas ruas. Era um riso exagerado o seu. A sua alegria conservava-o naquele banco do Rond-Point onde ele se deixara cair com as pernas mais doridas do que se tivesse vindo a pé da charneca até ali. Não tinha mais do que um esgotamento: nunca o objecto do seu amor lhe aparecera tão ridículo, tão fora da sua vida, tão reles, tão sujo, tão findo! E no entanto o seu amor subsistia: como uma mó que tivesse virado no vazio... girado... girado...
Terminara o riso. Yves concentrava-se nesta estranha tortura do vácuo. Vivia esses momentos que todo o homem que tenha amado conhece, com os braços sempre apertados de encontro ao peito, como se não tivesse desaparecido aquilo que abraçava, apertando efectivamente, e sem exagero de expressão, o mundo.
Naquele meio-dia de um Outubro morno, sentado num banco do Rond-Point dos Campos Elísios, o último dos Frontenac não conhecia outra direcção na vida do que a dos Cavalos de Marly... Uma vez ali não sabia se iria para a direita se para a esquerda ou se até às Tulherias entrando na ratoeira do Louvre.
À sua volta os seres e os autos confundiam-se, dividiam-se nesta encruzilhada onde ele se via tão só como noutros tempos no centro da arena estreita cercada de fetos e de arbustos onde ele vivera como criança selvagem. O barulho uniforme da rua parecia-se com o sussurro brando da natureza, e os que passavam eram-lhe tão estranhos como os pinheiros de Bourideys, cujos cimos, noutros tempos, velavam por este pequeno Frontenac aconchegado a seus pés na parte mais densa do pinhal.
Hoje, homens e mulheres zumbiam como as moscas da charneca, hesitavam como os insectos, e um deles pousava mesmo perto de Yves junto às suas mangas sem o ver... Depois fugia.
Mas quão abafada e longínqua se tornara a voz que perseguia o rebento Frontenac até ao fundo da sua toca e que ele ouvia ainda naquele instante. Ele via todos os caminhos vedados, como lhe haviam anunciado, e todas as paixões sem saída, assim dizia a voz. Voltar atrás... Voltar atrás...
Voltar atrás quando as forças estão no fim? Refazer todo o caminho? Que ladeira tão íngreme! E para realizar o quê? Yves errava pelo mundo liberto de qualquer trabalho humano. Nenhuma tarefa lhe exigiam, visto que acabara antecipadamente o seu dever, visto que adiara a sua cópia para ir brincar. Não tinha outra ocupação que não fosse anotar dia a dia as reacções de um espírito totalmente inocupado...
E nada mais poderia fazer e o mundo nada mais lhe pedia.
Entre as mil ocupações que obrigavam todas aquelas formigas humanas a correrem à volta do seu banco, qual delas podia escravizá-lo? Ah! Antes morrer de fome!...
"E no entanto tu sabes - insistia a voz -, foste criado para um trabalho esgotante a que te submeterias de corpo e alma porque não te desviaria duma vida de amor intensa... o único trabalho do mundo que não te afastaria do amor que se manifestaria a cada passo, esse amor que te uniria a todos os homens pela caridade".
Yves abanou a cabeça e disse:
"Deixai-me, meu Deus!" Levantou-se, deu uns passos à entrada do metro perto do Grand Palais e apoiou-se à balaustrada. Era a hora em que os ateliers se enchiam novamente e em que o metro absorvia e vomitava formigueiros humanos. Yves seguiu durante muito tempo, com o olhar alucinado, esta absorção e este descongestionamento da multidão. Um dia - tinha disso a certeza e chamava por esse dia do fundo do seu desespero e da sua fadiga - seria necessário que todos os homens se vissem obrigados a obedecer ao movimento da maré: todos, sem excepção de um só! Aquilo que Jean-Louis chamava "questão social" não se apresentaria às almas da sua espécie.
Yves pensava: "É preciso que eu veja esse dia em que as cataratas se abrirão e fecharão a horas certas sobre o vaivém da humanidade. Nenhuma fortuna adquirida permitirá ao mais ínfimo dos Frontenac que viva à parte, sob o pretexto de reflectir, de desesperar, de escrever o seu "diário", de rezar, de pensar na sua salvação. A gente das cavernas triunfará dos seres humanos, sim, a pessoa humana será destruída e simultâneamente hão-de desaparecer o nosso tormento e as nossas delícias: o amor. Não haverá mais dementes que ponham o infinito no finito, a alegria de pensar que esse tempo talvez se aproxime. À falta de ar respirável todos os Frontenac desaparecerão da Terra, onde nenhuma criatura poderá imaginar o que sinto neste momento encostado à balaustrada do metro, este doentio sentimentalismo, este ruminar das coisas que a bem-amada me terá dito desde que nos conhecemos e que poderia fazer-me acreditar que, apesar de tudo, ainda pensa em mim - tal como o doente destaca de entre as palavras que o médico lhe tenha dito aquelas que um dia o encheram de esperança e que sabe de cor (mas já não têm nenhum poder sobre ele, embora não renuncie a repeti-las...)."
Para lá dos Cavalos de Marly... Nada mais podia fazer do que deitar-se e dormir. Morrer não tinha sentido para ele, pobre imortal. Estava cercado desse lado. Um Frontenac sabe que não há saída sobre o nada e que a porta do túmulo está guardada.
No mundo que ele imaginava e que ele via, que sentia chegar, a tentação da morte não atormentaria mais qualquer homem, visto que essa humanidade atarefada e sobrecarregada teria o aspecto da vida mas estaria já morta.
É preciso ser uma pessoa, um homem diferente de todos os homens, ter a própria existência entre as mãos, medi-la, julgá-la com lucidez, sob o olhar de Deus, para poder escolher entre a morte e a vida.
Era divertido pensar nestas coisas... Yves prometia a si mesmo contar a Jean-Louis a história que acabava de imaginar, diante da entrada do metro. Encantava-o a ideia de o ver admirado quando lhe descrevesse a revolução futura que existiria no mais íntimo de cada homem, a sua própria natureza seria desagregada até ficar parecida com a das abelhas e das formigas... Nenhum parque secular estenderia as suas braçadas sobre uma só família. Os pinheiros das velhas propriedades não mais veriam crescer de ano para ano as mesmas crianças.
E nesses rostos magros e puros erguidos para cima não reconheceriam os traços dos pais e dos avós na mesma idade...
"É a canseira - dizia Yves - que me leva a divagar." Como seria bom dormir! Chamou um táxi e procurou no fundo dos bolsos um frasco minúsculo. Aproximou-o dos olhos e divertiu-se a decifrar na etiqueta a fórmula mágica:
Altylis opropyl barbiturates de phenyldimethyl dimethylamino-pyrazolon Grs.16.
Por este mesmo tempo, Jean-Louis, sentado à mesa defronte de Madeleine, depois de pé e bebendo à pressa uma chávena de café, depois ao volante do seu carro, e finalmente no seu escritório, com os olhos fixos no empregado Janin, que lhe apresentava um relatório, repetia a si próprio: "Yves não corre risco algum; a minha inquietação não tem razão de ser. Ontem estava mais calmo quando entrou no vagão; há muito tempo não o via assim... Pois sim, mas precisamente essa calma!..."
Ouvia na estação o ruído de uma locomotiva. Aquele negócio que o impede de partir... porque não havia de explicar a Janin, que está ali, que tem iniciativa, o seu desejo enorme de seguir? o olhar brilhante do empregado procurava adivinhar o pensamento de Jean-Louis; ir ao encontro dele... Subitamente Jean-Louis sabe que partirá naquela noite para Paris, aonde chegará na manhã seguinte. E a paz chegava como se a força desconhecida que desde a véspera lhe apertava a garganta o pusesse à vontade e soubesse que ia ser obedecida.
Do fundo do abismo, Yves ouvia a uma distância infinita uma campainha e teve a ideia confusa de que era uma chamada telefónica anunciando-lhe de Bordéus a doença da mãe (apesar de saber que tinha morrido há mais de um ano). Mas havia pouco ela estava naquele quarto, onde só entrara uma vez na vida (tinha vindo de Bordéus visitar o appartement de Yves "para poder acompanhá-lo com o pensamento", tinha ela dito). Nunca mais ali aparecera, a não ser naquela noite - e Yves ainda podia vê-la na cadeira, junto à cabeceira da cama sem ter na mão qualquer trabalho, pois que estava morta. Os mortos não fazem tricô e não conversam. Mas os seus lábios mexiam. Queria dizer uma palavra urgente, mas em vão. Entrara como fazia em Bourideys, quando tinha uma apoquentação, sem bater a porta, apoiando levemente o dedo no batente e empurrando a porta com o corpo, toda entregue às preocupações, sem reparar que vinha interromper uma página, um livro, um sono, uma crise de lágrimas...
Estava ali, e no entanto telefonavam-lhe de Bordéus dizendo-lhe que morrera, e Yves olhava-a com angústia, queria apanhar dos seus lábios a palavra que não conseguia dizer. O toque da campainha redobrava. O que responderia? A porta da entrada gemeu. Ouviu a voz da mulher a dias:
- Felizmente tenho a chave... - e Jean-Louis respondia - mas ele está em Bordéus... Tem um aspecto sereno... dorme tranquilamente... não, o frasco está quase cheio; tomou muito pouco...
Jean-Louis está no quarto. Em Bordéus, e portanto neste quadro. Yves sorria para o tranquilizar.
- Então, meu velho? Vieste a Paris?
- Com certeza, tinha que fazer aqui... - A vida infiltra-se em Yves vinda de toda a parte à medida que o sono foge.
Corre-lhe nas veias, enche-o... Recorda-se: que cobardia!
Três comprimidos... Jean-Louis pergunta-lhe o que é que o mortifica. Yves não procura dissimular. Não poderia fazê-lo estando sem forças, sem vontade própria, sem sangue. Cada acontecimento era colocado no seu lugar: anteontem estava em Bordéus; ontem de manhã no pequeno bar; e depois, este dia de loucura... E agora Jean-Louis está ali.
- Mas como apareceste aqui?
- Era o dia do célebre negócio...
Jean-Louis abanou a cabeça: um doente não pode ocupar-se destas coisas. E Yves:
- Não, não tenho febre... Simplesmente extenuado...
Jean-Louis tinha-lhe tomado o pulso, e olhando para o relógio contava as pulsações como fazia a mãe nas doenças da sua infância. Depois, com um gesto que vinha também da mãe deles, o mais velho tirou-lhe de cima da testa os cabelos para se certificar de que a cabeça não ardia; talvez um pouco para observar as feições em plena luz e, em resumo, por ternura.
- Não te agites - disse Jean-Louis. - Não fales.
- Fica.
- Certamente, fico.
- Senta-te... não, em cima da cama não. Aproxima a cadeira.
Não se moveram mais. Os barulhos confusos de uma manhã de Outono não vinham perturbar aquela paz.
Yves de vez em quando entreabria os olhos, reparava naquele rosto puro e grave que as fadigas da noite tinham marcado.
Jean-Louis, liberto do susto que o consumia desde a antevéspera, abandonava-se agora a um descanso verdadeiro, na beira da cama onde o irmão estava vivo. Ao meio-dia tomou uma ligeira refeição sem sair do quarto. O dia corria como a areia. E, de repente, o toque do telefone...
O doente agitou-se e Jean-Louis pôs-lhe um dedo na boca e passou ao quarto ao lado.
Yves sentia com prazer que já nada podia dizer-lhe respeito; os outros que se arranjassem; Jean-Louis tudo decidiria...
- De Bordéus? Sim... Dussol?... Sim, sou eu... Sim, ouço-o bem. Nada posso fazer... Sem dúvida foi uma viagem inadiável... Mas não. Janin pode substituir-me. Sim, visto que tem as minhas instruções. Paciência, tanto pior... Compreendi... mais de cem mil francos... Sim... Eu disse tanto pior...
- Desligou - disse Jean-Louis quando voltou para o quarto.
Sentou-se outra vez ao pé da cama. Yves indagava:
- O negócio de que falava Dussol não falharia por sua causa?
O irmão tranquilizou-o. Tinha dado todas as instruções antes de partir. Era bom sinal que ele se preocupasse com estas coisas e que quisesse saber se Josefa recebera bem o cheque que eles haviam resolvido oferecer-lhe.
- Meu velho, imagina tu que o devolveu...
- Eu tinha-te dito que era insignificante...
- Pelo contrário, diz que é demasiado. O tio Xavier dera-lhe em mão própria cem mil francos. Escreve-me dizendo que ele teve remorsos por causa desse dinheiro, que supunha roubar-nos; não quer ir contra o seu desejo. Só me pede, a pobre, licença para nos mandar as boas-festas no primeiro dia do ano e espera que lhe dê notícias de todos e que lhe mande conselhos sobre a aplicação do capital.
- Que papéis lhe teria comprado o tio Xavier?
- Lombards Anciens e Noblesse Russe 3 1/2 por cento. Com isso está sossegada.
- Vive em Niort com a filha?
- Vive; imagina tu que desejaria igualmente ter retratos nossos. Mas promete não os pôr à vista; guardá-los-á no armário dos espelhos... Que pensas de tudo isto?
Jean-Louis pensava que a humilde Josefa entrara no mistério dos Frontenac, que fazia parte desse mistério, que nada podia separá-la dele. Com certeza tinha direito às fotografias e aos cumprimentos do princípio do ano.
- Jean-Louis, quando Joseph regressar do serviço militar, devíamos viver todos juntos, apertar-nos bem uns contra os outros, como se fôssemos cãezinhos dentro de um cesto... (mas ele sabia que isso não seria possível).
- Como no tempo em que púnhamos os guardanapos em cima da cabeça e quando brincávamos às comunidades no nosso quarto, lembras-te?
- Pensar que esse quarto existe!
- Mas as vidas apagam as vidas...
- Bourideys ao menos não mudou.
- Paciência! - disse Jean-Louis. - Fazem muitas demolições nos tempos que vão correndo... Tu sabias que do lado de Lassus tudo vai abaixo? E também à beira da estrada...
Podes imaginar o que será o moinho rodeado de charnecas.
- Ficarão sempre os pinheiros do parque...
- Estão cada vez mais espaçados. Todos os anos morrem alguns...
Yves suspirou.
- Roídos como os homens, os pinheiros Frontenac!
- Yves, queres que partamos juntos para Bourideys?
Sem responder, Yves pôs-se a imaginar como seria Bourideys àquela hora: no céu, o vento deste crepúsculo devia unir, separar e depois novamente confundir a parte superior dos pinheiros, como se estes prisioneiros tivessem tido um segredo a transmitir-se e a espalhar pela terra. Depois dessa chuvada um imenso canal invadia a floresta.
Mas se Bourideys ainda existia, aos olhos de Yves era como há pouco sua mãe, naquele sonho - viva, e contudo sabia que estava morta. Assim também no Bourideys de hoje nada subsistia a não ser a crisálida abandonada do que foi a sua infância e o seu amor.
Como havia de exprimir estas coisas mesmo a um irmão muito querido? Respondeu que seria difícil viverem juntos muito tempo.
- Não poderias mesmo esperar que eu estivesse curado...
Jean-Louis não lhe perguntou: curado de quê? (Sabia que deveria perguntar: curado de quem?) E admirava-se que pudessem existir tantos seres encantadores e novos, como Yves, que só conhecem o amor através do sofrimento. Para esses, o amor é uma torturante imaginação. A Jean-Louis aparecia como a coisa mais simples e mais fácil... Ah! Se não tivesse preferido Deus! Estimava muito Madeleine, comungava todos os domingos, mas apesar disso duas vezes já, primeiro com uma empregada do escritório, depois com uma amiga da mulher, tivera a certeza de um acordo estabelecido: vira um sinal ao qual estivera quase a responder. Fora necessário rezar muito... E não teve a certeza de não ter pecado pelo desejo. Como distinguir entre a tentação e o desejo? Segurando a mão do irmão, à luz de um candeeiro de cabeceira, contemplava com admiração e tristeza aquela cabeça extenuada, aquela boca cerrada, todos os indícios do cansaço e dos estragos.
Talvez Yves tivesse gostado que o irmão lhe fizesse perguntas - mas o pudor que os separava foi mais forte.
Jean-Louis teria querido dizer-lhe: "a tua obra"... Mas correria o risco de magoá-lo. Percebia, aliás, confusamente que essa obra, se desabrochasse, não seria mais do que a expressão de um desespero.
Conhecia de cor aquele poema em que Yves, quase bebé, contava que para arrancá-lo ao silêncio seria preciso, como aos pinheiros de Bourideys, o assalto do vento do oeste - um tormento sem fim.
Jean-Louis quereria ainda dizer-lhe: "um lar... uma esposa... mais crianças Frontenac..." Quereria, acima de tudo, falar-lhe de Deus.
Não pôde. Um pouco mais tarde - era já noite - inclinou-se sobre Yves, que tinha os olhos fechados e surpreendeu-se por vê-lo sorrir e por ouvi-lo dizer que não dormia... Rejubilou por ver aquela expressão calma e meiga no olhar com que o fitava. Gostaria de conhecer o pensamento de Yves naquele momento: não duvidava de que o seu irmão mais novo pensava na felicidade de não morrer sozinho. Não morreria só, fosse onde fosse que a morte o surpreendesse; acreditava que o seu irmão mais velho estaria ali, segurando-lhe na mão, acompanhando até o mais longe possível, ao último extremo da sombra.
E longe, no país dos Frontenac e dos Péloueyre, para lá do bairro perdido onde os caminhos acabam, a Lua brilhava sobre as charnecas inundadas de água; brilhava sobretudo naqueles cinco ou seis carvalhos muito antigos, enormes, entrelaçados filhos da terra e que deixam aos pinheiros rasgados as aspirações para o Céu. Os chocalhos dos carneiros tocavam lentamente no Parque do Homem, no qual um pastor dos Frontenac passaria esta noite de Outubro. Fora um soluço nocturno ou uma carroça desconjuntada nada vinha interromper os queixumes que, desde o oceano, os pinheiros transmitem uns aos outros nos seus ramos unidos.
No fundo da cabana, abandonados até de madrugada pelos caçadores, os pombos bravos de olhos encovados, e que servem de chamariz, agitavam-se, tinham fome e sede.
A Téchouyère, maré inacessível, apanhava no seu mistério de juncos, de turbas e de água os casais de patos cujas asas assobiam. O velho Frontenac ou o velho Péloueyre que tivesse acordado dentre os mortos neste recanto do mundo não teria descoberto transformações na superfície da terra. E aquelas árvores alimentadas desde o penúltimo século pelos sucos mais secretos da charneca, ei-las que viviam naquele instante uma segunda vida muito efémera no pensamento deste rapaz estendido no fundo de um quarto de Paris, vigiado com ternura pelo irmão. "Devia ser na sombra dessas árvores - pensava Yves -, que se devia ter aberto uma cova funda para ali amontoar e apertar, uns contra os outros, os corpos dos casais, irmãos, tios e filhos Frontenac. Desse modo, a família, toda ela, podia, por uma graça especial, abraçar-se com um só movimento, confundindo-se para sempre nesta terra adorada, no vazio."
Em redor, inclinados para o mesmo lado por influência do vento que vinha do mar e voltando para oeste a pele enegrecida pela chuva, os pinheiros continuariam a desejar atingir o céu, esticados, feridos - ferida diferente de todas as outras, pois só cada um de nós sabe o que lhe dói... Quanto a ele, Yves Frontenac, ferido e martirizado como eles, mas criatura livre e que teria podido, se quisesse, sair do mundo, escolheu gemer em vão, confundido com o resto da floresta humana, e portanto nenhum dos seus gestos deixou de ser o indício de uma súplica, nem um só dos seus gritos deixou de ser dedicado a alguém.
Lembrava-se do rosto abatido da mãe no fim de um lindo dia de Setembro, em Bourideys, daqueles olhos que procuravam Deus para lá das mais altas ramadas:
"Quereria saber, meu Yves, tu que conheces tantas coisas... No Céu pensa-se ainda naqueles que deixámos na Terra?..." Como ela não podia imaginar um mundo onde os filhos não continuassem a ser o coração do seu próprio coração, Yves prometera-lhe que todo o amor se completaria no único amor.
Esta noite, depois de tanto tempo, as mesmas palavras que dissera à mãe para consolá-la vieram-lhe à memória. A lamparina alumiava o rosto admirável de Jean-Louis adormecido.
Filiação divina! Semelhança com Deus! O mistério dos Frontenac escapava à destruição, pois era um raio do eterno amor perpetuado através de uma raça. A impossível união dos casados, dos filhos e dos irmãos seria consumida antes de muito tempo, e os últimos pinheiros de Bourideys veriam passar, não aos seus pés, no caminho que leva ao enorme carvalho, mas, muito alto e muito distante, o grupo, eternamente unido, da mãe e dos seus cinco filhos.
François Mauriac
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