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Planeta Criança



Poesia & Contos Infantis

 

 

 


O MISTERIOSO CASO EM FALMOUTH / Alec Baurer
O MISTERIOSO CASO EM FALMOUTH / Alec Baurer

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

Biblio VT

 

 

 

 

— É ELA! É ELA!

A essa exclamação, Mr. Buildding girou pesadamente a cabeça. Olhou para o neto, a testa franzida.
— Quem?
— Monicque Abernettye!... — apontou Anton.
Mr. Buildding era um homem maduro, muito gordo, com a pele do rosto curtida. Virou-se no banco e lançou um olhar para o campo de golfe.
Viu uma mulher de uns vinte e oito anos, de cabelos ruivos caindo sobre os ombros nus. A pele tinha a cor de ouro-vermelho, tostada pelo sol. Muito ereta, ela caminhava com passos ligeiros, como se estivesse acostumada a andar e correr.
Atrás dela, um caddie magro e atlético a seguia com a fidelidade de um cão pequinês.
Mr. Buildding piscou, desconcertado.
— Abernettye, você disse...
— Vovô, não vai dizer que já esqueceu — admoestou Anton, naquele tom que os jovens usam ao criticar os lapsos de memória dos mais velhos. — Eu falei sobre ela ontem à noite.
— Fale de novo — pediu Mr. Buildding.
— Abernettye... o cara que nasceu na Índia, perto de Benares... um dos homens mais ricos de Istambul. Abernettye... que morreu de septicemia aguda. A filha... Monicque... veio para a Inglaterra. Está se lembrando?
— Ahn... não!
Anton sorriu. Tinha um rosto delgado, longo, no qual se adivinhava a origem eslava.
— Quer que eu repita, não quer? Com o velho morto, ela ficou com toda a grana. É uma história de superação... e de segundas chances. A mesma balela de sempre. O que importa é que ela é linda!
— Linda... Você acha?
— Ah, vá! Está dizendo que ela é feia? O senhor e as suas, vovô.
— O amor torna tudo mais precioso.
— Amor? — espantou-se Anton. — Ei, eu não estou gamado nela, não.
Esbanjando vitalidade, a mulher sobre quem estavam falando acenou nesse instante para eles. Esbelta e ondulante como uma palmeira africana!
— Oi! — gritou, mostrando um magnífico sorriso. — Belíssima manhã, não é, cavalheiros?
Mr. Buildding ficou vendo enquanto ela se afastava. Num certo ar de dúvida, comentou:
— Acho que você está farejando a árvore errada. Pelo jeito, essa moça já é casada!
— Sim, eu sei — suspirou Anton. — Esse mundo é mesmo cheio de injustiças. Dá para entender?

 


 

 

— Olá, querida.

— Oi.

Toby LaRouchelle olhou com vivacidade para a esposa. Ela arfava, e o rosto estava ruborizado. De cansaço? vergonha?

— Onde esteve?

— Por aí.

A resposta habitual. LaRouchelle cismava com aquele por aí. Apertou o nó da gravata.

— Golfe?

— O quê? — perguntou a mulher distraidamente. Foi sentar-se numa poltrona. — O golfe... claro! Fui lá sim.

Monicque Abernettye falava quase que para si mesma. Checou a maquiagem e o batom no espelho.

— Suas amigas foram com você?

— Não, não... Fui sozinha. Elas estavam ocupadas.

— Ocupadas, hmm... No quê?

— Sabe que eu nem sei. Emylia disse que tinha um pato... ou coisa assim... para assar. Yvonne deu outra desculpa qualquer. Você sabe, querido, que elas não regulam bem.

— Não regulam bem...

LaRouchelle odiava admitir, mas não gostava daquelas imprecisões. Talvez fosse só ciúme mas... que diabos! — um homem tem o direito de saber aonde a mulher foi ou não foi!

LaRouchelle era um homem alto e ossudo. De cabelo louro encaracolado e olhos azuis. Ficou imóvel, intrigado com a atitude da mulher.

O seu rosto de traços pronunciados endureceu:

— Aconteceu alguma coisa, Monicque?

— Se aconteceu alguma coisa? Não, não que eu saiba.

— Eu conheço você. Posso ver quando está escondendo algo de mim. Me fala o que é! Me fala...

— Não aconteceu nada, já lhe disse. Está tudo bem. Otimamente bem. Eu diria a você se houvesse algo de errado.

— Diria mesmo?

— É claro que sim. Eu amo você, lembra-se? Sou sua mulher, lembra-se?

— É que você é tão segura; sabe sempre o que faz. Sai e volta na hora que quer. Talvez eu não seja quem você sempre quis que eu fosse... mas sou seu marido, Nicque. Sou seu marido.

Monicque parou de se maquiar para observá-lo com atenção.

— Entendo... Você tomou seu remédio hoje, Toby? Aposto que esqueceu de novo.

— Aquilo tem um gosto horrível. Vou resolver esse assunto no tempo certo e à minha maneira.

— Vai o quê?

— Vou resolver esse assunto à minha maneira.

— Você não precisa fazer isso, querido. Só seja a pessoa que eu penso que você é. Tome o remédio no horário, por Deus. Faça isso... e tudo ficará bem.

— Você acha, Nicque?

— Acho.

— Valorizo muito a sua opinião. Sim... Talvez continuar o tratamento seja a única saída.

— É assim que se fala. Ou há outra coisa que eu deveria saber?

— Não sei...

— Há outra coisa, Toby?

— Mais ou menos... Eu recebi mais um daqueles... e-mails.

Monicque balançou a cabeça. Aqui vamos nós, pensou.

— Mais um e-mail... Posso vê-lo?

— Está aqui. Fiz uma cópia.

Ele tremia quando repassou o xérox. Em parte era medo, mas a emoção predominante era horror.

— A sua esposa não é a pessoa fiel que você acha que é — leu Monicque. — Assinado: X. Quanto mistério! Não há nada que seja inconcebível para certas pessoas.

— O que você propõe?

— O que eu proponho? Primeiro, que queimemos essa bobagem. Depois, que a gente coma fora. Como quando éramos noivos.

— Comer fora?

LaRouchelle preparava-se para argumentar quando ela acrescentou:

— Para mim, esse é um jeito muito bom de se viver. Vamos jantar, Toby. Jantar.


3.

 

A imaginação de LaRouchelle voava à vontade.

Oh, o que não daria para ser como a maioria dos homens! Normal, centrado... sem todos aqueles receios que corroíam a sua alma.

Como a maioria dos homens...

Podia gabar-se de ter tudo o que queria. Uma esposa divinal... Alta, magra... Uma beleza de mulher, cuja presença ofuscava qualquer outra. Não só isso... Morava numa área nobre de Londres. A sua casa... e disso se orgulhava... quase competia com o Palácio de Westminster! Ah, a casa!... A porta emoldurada por uma pérgula... símbolo de séculos de tradição!

Faltava só uma coisa.

Um descendente — um filho... Para perpetuar a linhagem dos LaRouchelle! Toda a sua vida estava condensada naquilo... Um filho a quem pudesse ensinar, com quem pudesse brincar...

Mas quem disse que isso não viria com o tempo?

Claro!... Era preciso esperar. Só tinha que...

Só tinha que ignorar certas coisas! Ahhh...

Ele fechou os olhos e apertou as mãos com força nas têmporas.

— O que foi, Toby? — sentiu o toque de Monicque em sua mão.

LaRouchelle ouviu-se dizendo:

— Nada, nada... Está tudo bem.

Não era bem verdade; nem tudo estava bem. E, a seu ver, só havia uma forma de melhorar a situação.


4.

 

— Eu quero que fale com ele, George. Ele não consegue dormir, mal come. Fale com ele... Por mim.

O Major George Bernwell remexeu-se. Estava sentado ao sol que se estendia na varanda. Olhou para a parede entrelaçada de trepadeiras.

Transferiu o olhar para Monicque.

— Por você?

— Porque ele é seu amigo, se preferir. Nunca imaginei que meu marido fosse tão...

— Complicado?

— Eu ia dizer problemático, mas complicado também serve. Oh, nem sei mais o que fazer.

O Major Bernwell reclinou-se; com cuidado, para não forçar a perna.

— O ferimento?...

— Artrite. Está comprometendo os joelhos e os pés. Mas continue... Dizia que Toby recebeu...

— Recebeu ou forjou, já nem sei no que acreditar. Às vezes acho que é tudo invenção... que ele mesmo escreve essas coisas.

— Escreve e envia para si mesmo? Isso é meio ficcional!...

— Mas é a única coisa que me ocorre. Tem dias em que as crises são piores. Transtorno de ansiedade generalizada... Foi o que disse o psiquiatra. Ou alguém... em algum lugar... está se aproveitando disso e mandando aquelas mensagens. O que houve?

— Hein?

— Você... está tão sério.

— Estava só pensando — o Major tentou disfarçar o rubor. — Você aí, pedindo que eu converse com Toby. É como se... você achasse que eu sou manipulável.

Vagarosamente, Monicque sentou-se ao seu lado. Um sorriso sardônico iluminou seu rosto com expressão perversa.

— Manipulável, George? Não vim aqui fazer uma visita de cortesia, sabia? Veja ali, os pássaros esvoaçando entre as árvores. Basta uma gaiola e zás... estão presos pelo resto da vida. Você é um desses pássaros, George. Você está preso a mim. Não importa aonde eu vá; você sempre virá atrás de mim e fará o que eu quiser. Você está atado em mim. Atado em mim... e nada vai mudar isso.

— É que... — começou ele, o peito arfando, a respiração tensa.

— Eu sei. Você já tentou se libertar, mas não conseguiu. Diga que foi isso. Diga...

— E-eu não consegui...

— Eu li em seus olhos... Você, George, um homem menosprezado, solitário, sem futuro, sem nada. Você fará o que eu lhe pedi, não é? Fará e sempre vai fazer, não é mesmo?

— Sim... sempre...

— Bom menino... Você vai tirar aquela loucura da cabeça de Toby. Você vai, não vai?

— Eu vou...

— Muito bem... É disso que eu gosto. Adeus, querido.

Bernwell tentou pôr-se de pé, mas em vão. Monicque Abernettye, como de costume, já não estava mais ali.


5.

 

Um pub da Regent Street.

— Herr Fëll!

— Dr. Hagissart.

Vencido o espanto, os dois homens se cumprimentaram efusivamente. Efusivamente demais, segundo a opinião de alguns dos fregueses mais conservadores!

— Procurando uma mesa? Não seja por isso, fique comigo.

— Não será incômodo?

— Qual o quê! Sente-se... É de você mesmo que eu preciso.

Edmund Fëll inclinou-se e aceitou a oferta. Um contraste considerável os diferenciava esteticamente.

O Dr. Jules Hagissart tinha ombros largos e a cintura estreita. Era esbelto, com um corpo forte, bem treinado. Via-se que malhava diariamente.

Já Edmund Fëll, espigado, o monóculo enfiado no globo ocular, parecia a caricatura de um provinciano. O cabelo... modelado com mão segura... estava empapado de gel até a raiz.

Ambos possuíam só uma coisa em comum: haviam atuado no caso Marin Nillest, a garota ruiva e sardenta morta em Sheffield.

— Viajando ou a trabalho?

— Um pouco de cada. Onde existe gente, vigora o mal. Sempre há um crime aqui, outro acolá, para investigar.

Fëll fez um gesto afetado de resignação. O Dr. Hagissart riu.

— Bom para você, não?

— Digamos que é uma terapia.

— Terapia... Só você para dizer uma coisa dessas. Algum caso em andamento?

— Imediatamente não.

— Está vindo de onde?

— Belfast...

— E vai?

— Para Bombaim. A menos que surja algum imprevisto.

— Imprevisto... ou seja, um indigente boiando nas águas do Tâmisa.

— Alguém sem identificação e impossível de rastrear? Não, deixo isso para a polícia técnica. Não me dou bem com casos abertos, em que não conheço os prováveis suspeitos. Prefiro uma casa de campo, com família reunida, personagens bem definidos.

— Talvez um iate, um trem...

— Desde que haja tempo para averiguar e colher todas as pistas!

— Você não é nem um pouco exigente!

O garçom veio, e Fëll pediu um bourbon com água.

— Então, doutor — disse Fëll. Tinha o rosto ávido e esperançoso. — O que quer que eu faça por você? Alguma contingência criminal?

— Contingência criminal? É um homem de rara percepção, meu caro.

— Nem tanto... Disse que precisava de mim. Estamos no outono. Será um prazer ajudá-lo... se estiver dentro de minhas possibilidades.

O Dr. Hagissart hesitou.

— Na verdade, não é nada. Tenho até vergonha de tocar no assunto.

— Supere a vergonha, mein Freund. Coragem. Aller Anfang ist schwer.

— Valeu pelo estímulo! Tenho uma propriedade em Dartmoor... Cavalos, árvores, um celeiro... Coisas como essa. Há três dias, meu treinador...

— Foi assassinado?

— Não, felizmente — disse o médico, grave. — Sumiu! É, sumiu...

— Ah!...

O ah! de Fëll soou com uma sonoridade estranha. O desaparecimento de um jóquei?! Era disso que se tratava? Desolador...

Fëll se sentiu um pouco irritado.

— Eu vou explicar como aconteceu. Foi na terça-feira...

O Dr. Hagissart enveredou por uma narrativa cheia de informações desencontradas.

A mente de Fëll começou a vaguear. Reparou nas pessoas no pub. Uma moça falava rispidamente ao celular. Confirmava o ditado... As pessoas que se expressam sob fortes emoções costumam ser sinceras porque não medem as palavras.

Mais ao fundo, um senhor de idade lia. Estatura mediana, obeso, de olhos oblíquos e nariz achatado. Era incrível que conseguisse ler em meio àquela balbúrdia!...

Jovens e velhos... Todos juntos naquele local. Cada um com sua própria história, seus dramas...

O olhar de Fëll foi atraído para uma mesa próxima.

Nela, um casal. Um homem e sua jovem esposa.

Ela, uma moça de cílios longos e sedosos; olhos azuis, ressaltando ainda mais a perfeição dos lábios, ligeiramente pintados.

Fëll analisou o homem. Quinze anos a mais que ela, possivelmente. Usava uma calça de veludo cotelê e uma camisa listrada social.

Pareceu a Fëll que a conversa entre eles não estava muito animada.

— Não minta para mim, Nicque — dizia o homem. — Não minta... Devotei minha vida a você. Independente de quem quer que seja, diga quem é. Quem é ele?

— Não tem nenhum ele. Só tem você. Você!

— Conversa fiada! Não há nada pior do que relações extramaritais, Nicque. Não há nada pior. Diga o nome. Agora!

A mulher dos cílios longos riu:

— Não dramatize. Dou-lhe minha palavra que não há ninguém.

— Eu queria que isso bastasse, mas não dá.

Fëll franziu a testa. Aquele cavalheiro... Sua voz de tenor era mais do que intimidadora. Estava visivelmente carregada de raiva.

— Olha, fale mais baixo!... Estamos num bar.

— Um lugar repleto de fracassados, bah!... Não me venha com essa. Vai me dizer quem é, ou...?

— Ou o quê? Ou o...

Antes que ela terminasse a frase, um tapa.

Com a mão no rosto, que ardia, ela olhou para ele, estupefata.

— O que você fez? O que você fez?

— Isso é pela sua teimosia, Nicque. Pela sua maldita teimosia! Não vou permitir que me troque por outro. Não vou.

Erguendo-se, o homem saiu vertiginosamente do pub. A moça ficou lá sentada, esfregando a face dolorida.

Fëll inclinou a cabeça para enxergar melhor. Estava tão perplexo quanto ela, para dizer o mínimo. Nesse momento, viu que o médico olhava fixamente para ele. Ouviu-o dizendo:

— Se formos lá, quero que isso fique só entre nós. É a única coisa que peço.

— Sicher, sicher — respondeu Fëll.

O Dr. Hagissar foi tomado por uma mistura de gratidão e alívio:

— Então vai me ajudar? Isso é fantástico.

— Vou ajudar, warum nicht? — disse Fëll com pouco entusiasmo. — Temos um treinador para ser salvo. Quando vamos para Dartmoor?


6.

 

Louise Grovenor disse:

— Ando tão distraída! Cheguei à Knightsbridge e vi que havia errado a rua. Fiz uma volta imensa para chegar aqui.

— Oh, Louise — respondeu Monicque. — Só você para me divertir!

— Creio que estou ficando maluca! Às vezes compro sapatos e, quando estou em casa, vejo que os deixei na loja. Mamãe diz que tive epilepsia quando eu era bebê.

— Que coisa grotesca!

— Deve ter sido. Só assim para ser tão esquecida.

Monicque olhou para a amiga, ali na ponta da cama. Alegre, e sempre pronta para mostrar seus dentes bem feitos, Louise vivia de bom humor. Cinturinha fina... os quadris bem marcados... sem nada para se preocupar além das roupas e de suas sessões de cinema!

Monicque deu um suspiro amargo:

— Invejo tanto você, Louise. Invejo, invejo.

— Falando assim, até parece que é verdade!

— É verdade!

— Nessa eu não caio. Madame Abernettye diz que morre de inveja de sua amiga pobretona! Uma frase e tanto. Vá sonhando!

— Oh, Louise, como sou infeliz!

Louise Grovenor arregalou os olhos de surpresa.

— O que foi, menina? Eu aqui falando pelos cotovelos, e você aí, cada vez mais pálida. Não vai dizer que é...

— Por que isso só acontece comigo?

— Quem diria! A exuberante e fotogênica Monicque Abernettye com problemas conjugais. Sempre vi os homens se atirando a seus pés... Minha cara Monicque insatisfeita com o casamento. Nem dá para imaginar!

— Pois imagine... Ninguém sabe o quanto eu já chorei.

— Olha, não sou conselheira nessa área, mas se fosse comigo eu conversaria seriamente com seu marido. “Se quiser que eu fique, cuide de mim. Se não quiser, têm outros que querem!”.

— Se tudo fosse como você diz.

— Quem disse que não é? Você só precisa ter um pouco de atitude. Nós mesmas fizemos a nossa felicidade. Eu jamais ficaria com alguém que não me respeitasse, que não me amasse pelo que eu sou.

— Está dizendo que eu deveria...

— Exatamente, minha ursinha. Estou dizendo que você deveria explicar as coisas para ele. Estou dizendo que ele não pode continuar a maltratá-la.

Monicque perguntou, num tom áspero:

— Quem lhe disse isso?

— Disse o quê?

— Essa coisa sobre maltratar...

— Calma... Se está tentando falar sobre isso, e eu temo que esteja, é melhor falar em voz baixa. A camareira...

— Esqueça a camareira, Louise.

— Está bem, acalme-se... Você me assusta falando desse jeito. Para ser franca, alguém me contou que você e Toby tiveram... como é que eu vou dizer?...

— Alguém contou?

— Você não quer que eu lembre quem foi, não é?

— Uma fonte anônima... E o que mais disse essa pessoa misteriosa?

— Na ordem dos fatos?

— Como queira!...

— A pessoa disse também que Toby se exaltou um pouco e perder a compostura.

— Maravilhoso!

— E que depois...

— Depois?

— Oh, Nicque, não me force a dizer uma coisa tão impensável. Prometi a Leonard que não falaria disso com você.

— Quem é Leonard?

— É meu namorado. Já falei dele, não foi?

— Não creio...

— Pois é, Leonard é um amor! Quero tanto que você o conheça! Ele tem dinheiro, é amável, sorridente — e muito prestativo.

— Por que não o traz aqui?

— Ele mora na Downing Street.

— Não é tão longe, viu?

— Ótima ideia! — resolveu Louise. — Da próxima vez vou trazê-lo comigo. Vamos noivar mês que vem.

— Parabéns! — Nicque voltou-se para LaRouchelle, que acabava de entrar no quarto, e disse: — Louise tem um namorado e pretende noivar no mês que vem.

— Que bom — foi a resposta, vaga e curta.

— Ih, já é tarde — disse Louise, consultando o relógio. Foi para a porta: — Minha carona já deve estar vindo.

E saiu. Tinha visto a expressão ausente de LaRouchelle.

Por muito tempo, ninguém falou. O homem rompeu o silêncio:

— Como ficamos, Nicque?

A moça demorou a responder:

— É uma pergunta curiosa... vinda de você. Talvez devêssemos ir cada um para o seu lado.

O homem gemeu.

— Não seja assim! Já lhe pedi perdão. Podemos voltar a ser o que éramos... Eu a amo. Não há nada que eu possa dizer que vai fazer você acreditar, depois de tudo o que eu fiz. Mas tente...

Nicque respondeu numa voz rouca:

— Você me machucou, Toby... Em Gold Heaven estou em paz... tenho tudo o que idealizei. Vou construir uma adega, você sabia?

— Claro. Vai ficar ótimo. Esplêndido. Como tudo o que você faz, Nicque — disse o homem. Devagar, acrescentou: — Você iria para Snowlodge, não iria? Está sendo reformada, e você poderia dar algumas sugestões!

— Claro... eu iria para Snowlodge.

Nicque arrependeu-se de imediato por ter dito aquilo. Era quase um sacrilégio falar daquela forma.

Na hora, só viu um clarão em meio às lembranças difusas; mas quando LaRouchelle deixou o quarto é que pôde analisar melhor a motivação de seu comentário.

Snowlodge. O que era aquilo? Ela dissera que iria para Snowlodge? A propriedade ficava em Hampshire. E ela gostava do típico interior inglês... as suas colinas, florestas e campinas, além de lindos povoados e pequenas cidades. Já fora a Snowlodge. Mas...

Não, não! Jamais moraria lá. Não abandonaria Gold Heaven. A mansão de Nicque poderia ser menor, ter menos vigas e colunas... O lote poderia não ter caça à lebre; nem ter gansos e ovelhas... nem nada assim. Não importava! Gold era seu mundo. Nela, ela era a Pequena Princesa. Tudo era seu. Os baobás... os vulcões... a rosa que regava todo dia.

— Hoje estou poética — comentou, angustiada.

A voz de Louise voltou a soar em sua mente: “Ele tem dinheiro, é amável, sorridente...”

Que moça ingênua! Tão fútil! Ela, Nicque, já havia pensado em LaRouchelle naqueles termos? Nunca, nem por um segundo. E... sim... jamais pensaria.

Lá embaixo, a campainha do hall tocou.

Nicque balançou a cabeça. A carona de Louise, certamente. Foi até o topo da escada.

No saguão, Louise já tinha aberto a porta. Havia um rapaz parado ao lado da porta aberta, recortado contra a luz em seu elegante casaco sobre a camisa de colarinho branco.

Louise olhou para a amiga e gritou:

— Nicque, este é Leonard. Leonard, aquela ali é Nicque.

Nicque viu um rapaz louro, de olhos claros e vivos...

Deu um aceno. Ele retribuiu, um pouco sem jeito... O tom violeta de seus olhos era hipnotizante. Nicque sentiu um estremecimento de euforia.

Louise devia ter falado dela para o rapaz, pois ele olhava para ela de um jeito estranho.

— Nós já vamos. Tchau.

Nicque mal respondeu. Deu um passo para trás, tomada de uma doce vertigem.

“Que rapaz bonito... tão bonito. Louise é que soube escolher!”

Com olhos estreitos, frenéticos, pensou:

“Tomara que ele venha mais vezes...”


7.

 

— Meus fundos se esgotaram.

Eliza Wigginfort balançou a cabeça:

— Mamãe, a senhora está mentindo!

— Você devia aprender a gastar menos, Eliza. Faria um bem a nós duas.

Eliza parecia atônita.

A sua pele tinha uma cor baça, que acentuava ainda mais a palidez.

— Mamãe, eu preciso do dinheiro! — repetiu ela, persistente.

— Eu sei. Dinheiro é tudo para você. Você é a maior gastadeira do país.

— Que exagero!

Mrs. Wigginfort não gostava de confrontar a filha. Eliza era educada e... era tão bonita! Os cabelos loiros... o perfeito rosto oval... o pescoço comprido e esbelto!

Ah, como minha filha é bonita!, disse Mrs. Wigginfort para si mesma.

— Não, Eliza. Dessa vez — NÃO!

— A senhora não vai mesmo me dar o dinheiro?

— Não, filha. Não vou.

— Nem que seja para uma boa causa?

— Que boa causa? Mais moldes de madeira para a manteiga... ou mais jarros coloridos?

— Não seja cínica, mamãe. Pretendo comprar uma coisa.

— Que coisa?

— Uma coisa, ora. Por que tantas perguntas, eh-eh?

— Tantas perguntas? Por que sou sua mãe, tolinha. Ou vai me dizer que já é independente e que pode fazer o que bem quiser?

Eliza voltou a balançar a cabeça. Por que é que às vezes era tão difícil falar com certas pessoas?

— Então não vai me dar o dinheiro?

— Não.

— De jeito nenhum?

— Sob uma condição.

— Que condição?

— Que você me conte qual é a sua intenção.

Eliza olhou para a mãe. Um olhar esquivo, titubeante. Como se pensasse nas implicações daquilo.

— Está bem. Para a senhora eu conto. Mas que isso fique entre nós. A senhora jura?

— Juro, filha. Claro que juro.

Paciente, Mrs. Wigginfort abaixou o crochê. Sorriu (de triunfo? de alegria?).

À medida que ouvia, porém, o sorriso foi se apagando do rosto de Mrs. Wigginfort.

— Você quer comprar um chapéu?

— Suponho que fui suficientemente clara, mamãe! Um chapéu em palha, oval, lindo... Próprio para casamentos, almoços, festas beneficentes, chás...

Os olhos de Eliza eram espantosamente eloquentes.

— Filha, eu nem uso essas coisas!

— Mas vai usar, mãe. Vai usar. Por favor!

Mrs. Wigginfort sacudiu a cabeça.

— Eliza... Oh, está bem. Compre!... O que eu não faço por você, querida?


8.

 

— Eu dou cinco mil!

Patrice Alisson sentiu-se sufocar. Por três ou quatro segundos, segurou o celular sem saber o que dizer.

Eu dou cinco mil?

Será que havia ouvido direito?

Cinco mil?

Aquela oferta era ultrajante!

Com raiva, Patrice Alisson respondeu:

— O que você disse, Horace? Que dá cinco mil? Acha que eu... que eu...

Não conseguiu continuar.

— Ouça, Pat — veio a voz do outro lado da linha. — Entendi, entendi... Cinco mil é pouco, não é? Dou sete mil... não, melhor dizendo, dou dez! Dez mil, e não se fala mais nisso.

Os olhos de Patrice se orvalharam.

— Não acredito que estou ouvindo isso, Horace! E logo de você! Você! Nunca achei que fosse tão inescrupuloso...

— Inescrupuloso — eu? Escute, darling. Temos que ser práticos. Práticos... Não posso assumir essa responsabilidade. Não agora, com vinte e poucos anos. Tenho projetos, Pat.

— Projetos, Horace? Você tem projetos, Horace? E eu estou inclusa neles? Ou eu também sou um refugo? Um refugo que você pode descartar... que você pode jogar fora!

Horace não gostou do desabafo da moça.

— Espere aí, Pat. Eu fiz a minha proposta. Se não quer aceitar, o problema é seu.

— O problema é meu? — Patrice quase teve um chilique. — O problema é meu, Horace?

— Sim, seu. Olha, Pat, eu tenho clientes aqui. Pense no assunto. Depois a gente se fala. Tchau.

— Horace! Horace!...

A linha estava muda.

Patrice Alisson viu o taxista olhando pelo retrovisor.

— Chegamos, Miss. Trafalgar Square.

Patrice enxugou as lágrimas com as costas da mão.

Maldito Horace!...

Malditos todos os homens do mundo!


Capítulo 2

 

Trechos de uma notícia do Evening Standard:


Mr. Howard “Toby” LaRouchelle foi achado morto em sua residência em Kensington. De origem armênia, nascido e criado na Bélgica, Mr. LaRouchelle era figura constante em eventos beneficentes.

... ferimentos na lateral do cérebro. Um deles, perfurante, provocado por projétil de arma de fogo de grosso calibre e alta velocidade...

... Havia assinado há uma semana o divórcio e...

... hipótese de suicídio não é descartada.


II.

 

Marck Hollder se espreguiçou, fitando a rua. Depois, olhou de relance para a esposa.

Isabelle Hollder usava um chapéu fedora marrom sobre os cabelos na altura dos ombros. Ela tinha pele imaculada, que contrastava com os olhos ligeiramente oblíquos e a leve saliência das maçãs do rosto.

— Você gosta da Leicester Square, Belle?

— Muito. A première de filmes... oh!

— E os atores — completou Marck, malicioso.

Era um rapaz magro e pálido, indicativo de que vivia mais em recintos fechados. O cabelo era castanho, olhos pardos, muito escuros, quase negros.

— No que está pensando, Marck?

Isabelle era uma mulher muito vivaz. As feições esculpidas com cinzel eram só um disfarce para seu olhar atento.

O rapaz hesitou antes de responder.

— Estava pensando no Tâmisa.

— No Tâmisa?

— É. Sua beleza silenciosa. Os longos trechos sem estradas à margem. Já viajou por ele, Belle?

— Dezenas de vezes! — respondeu ela, alegremente. — Antes de casar com você, Marck. Quando as finanças eram melhores.

Marck não conteve um resmungo mal-humorado.

— Não sei por que você gosta tanto de falar nisso! Nós não moramos no Castelo de Grayskull, moramos?

— Ainda não — disse Isabelle, balançando a cabeça. — Mas recebi uma ordem de despejo extrajudicial.

O rosto de Marck se fechou.

— Não consigo estabelecer nenhuma relação.

— Não mesmo? — perguntou ela mansamente.

Marck explodiu.

— Nós vamos ser despejados?

— Se não fizermos o depósito, sim.

— Quanto nós devemos?

— Imagine um valor... e multiplique.

— Sua irmã poderia... digamos...

— Nem pense nisso, Marck. Você sabe que eu reprovo veementemente essas coisas.

A bem dizer, Isabelle reprovava a irmã. Patrice era a pessoa mais inconstante, hostil, imprudente e afastada que existia. Ela jamais acatava nada. Patrice era a ovelha desgarrada da família Alisson. Uma ovelha que já dera o que falar.

Qual tinha sido a última? Pat havia engravidado. Grávida aos dezenove anos! De quem? De Horace Abernettye. Lembranças inundaram a mente de Isabelle. Horace... um rapaz que esmerava-se por parecer educado, mas que por dentro era histérico e mimado.

Horace!...

A moça teve um espasmo. Horace — o irmão caçula de Monicque Abernettye, a mais nova viúva rica de Londres! A viúva do traste do tal LaRouchelle!...

Não só isso... Havia algo mais. Isabelle tentou lembrar-se o que era. Algo que Pat lhe dissera dias antes da morte do milionário. Uma coisa relacionada a uma cláusula... ou carta.

Isso mesmo — uma coisa relacionada a uma carta.

Mas que carta? E sobre o quê?

Isabelle não fazia ideia. Só sabia que parecia ser importante.

— Talvez haja outra forma — disse ela, devagar.

— Outra forma... Para o quê?

A moça fez uma pequena pausa para respirar. Depois prosseguiu:

— Para quitar a nossa dívida.

— É sério? Do que está falando?

— Estou falando de fazer fortuna, Marck. Uma imensa fortuna.

Marck vacilou um momento. Seu riso cessou de súbito, do mesmo modo como tinha começado.

— Estou literalmente abobalhado. O que vamos fazer? Assaltar uma joalheria da Mayfair?

— Não. Estou ciente de uma coisa que vai ser a nossa mina de ouro.

— O quê?

— É uma prova pericial relativa ao assassinato de Mr. LaRouchelle.

— Assassinato? Pelo que sei, o cara se matou.

Isabelle inspirou o ar fresco e revigorante.

— Isso é o que dizem. Mas eu sei que foi assassinato.

— Aquele lá não é Edmund Fëll? — perguntou Marck, enrijecendo na cadeira.

Na calçada, dois homens passaram em frente do bistrô: um deles, alto e de monóculos, e o outro, um tipo de meia-idade.

— Edmund Fell?

— Fëll, querida. Fëll! O detetive que cuidou daquele caso em Dartmoor.

— Puxa vida, é ele mesmo! Eu sempre quis conhecer um detetive de fama internacional.

— Você, Belle? Você odeia histórias de crime e investigação.

— Quem é o outro?

— Sei lá. Mas tem cara de judeu.

O judeu mencionado por Marck chamava-se Cornelios O’Danugheon. Tinha cabelos grisalhos, testa larga e olhos fundos.

Depois de subir a rua, viraram para a esquerda, na direção de Picadilly Circus.

Edmund Fëll estava trajado impecavelmente e espalhava sorrisos para todo lado.

— Londres! — exclamou, deleitado. — Turismo, lojas bem apresentáveis, calor... Isso sim é que é cidade!

Olhou amistosamente para seu companheiro.

— Concorda comigo, mein Freund?

Cornelios respondeu sem nenhum traço de emoção:

— Capitalismo de araque! Veja esses edifícios imperiais... Quanto dinheiro mal aplicado! Tanta gente morrendo na miséria e aqui, luzes de neon!

Grunhiu com ódio.

Fëll sorriu:

— Então me inclui em sua crítica!

— Não... não faça isso! — disse o homem. — Estou falando genericamente. Não leve para o lado pessoal.

— Tudo bem, não me ofendi. Oh, bem; acho que a última semana melhorou o meu humor.

— Pois é, eu li que esteve bastante ocupado. Outro êxito... mais fama!

Fëll discordou, balançando a cabeça.

— Uma fama que nada vale.

— Oh, qual o quê!

Agora foi a vez de Cornelios olhar para o detetive; Fëll fez um gesto aéreo com a mão.

— Fama não prolonga a vida.

— Oh, nisso estou de pleno acordo — declarou Cornelios, empolgado. — A fama é como um vidro espelhado: esconde mas não protege.

— Tudo o que tentei não ser esses anos todos — acrescentou Fëll. — Vamos pela Regent Street?

— Sim.

No mesmo passo, entraram na Regent Street, com suas lojas para todos os gostos e bolsos.

Edmund Fëll conferia tudo, fascinado.

Cornelios endereçou um olhar hostil à sua volta. Disse, sem disfarçar sua aversão:

— Oh, Senhor, tenha piedade!...

Vendia-se de tudo: de marcas caras e luxuosas a coisas mais baratas como roupas, bolsas, relógios e óculos.

— Lá onde eu moro... lá sou feliz! — cantarolou Cornelios.

Observaram as vitrinas por alguns minutos.

— Consumismo... a perdição da humanidade. Querem ter o que não tem, e o que tem querem ter em dobro.

— Anestesia muito bem as frustrações.

Os dois ficaram em silêncio, cada qual entregue aos seus próprios pensamentos. Nisso, Cornelios O’Danugheon inclinou-se para a direita para ver melhor.

— Que coisa! — anunciou, incrédulo. — Quem diria... Parece que Madame Monicque Abernettye veio às compras.

Qualquer coisa tilintou na mente de Fëll ao ouvir aquele nome.

— Abernettye... Quem é?

— Aquela ali... de vestido vermelho.

— Uma jovem muito bonita. O rapaz é o marido?

— Que marido, homem? O marido dela atirou em si mesmo na semana passada. Esse aí é um dos amiguinhos.

— Ah, jawohl, agora me lembro da manchete. Um tiro de rifle... toda a polícia mobilizada...

— Conheça a mais nova fortuna da Inglaterra! Madame Abernettye, a estrela solitária.

Nicque Abernettye acabara de sair de uma loja de roupas. Tinha as pernas envoltas em meias compridas e negras. Os olhos eram pequeninos, cor da ágata. Do chapéu, escapavam uns caracóis de cabelo pintado de preto.

Vinha acompanhada de um jovem magro, com pele fofa em volta do maxilar. Era ele que trazia as sacolas.

Com passos graciosos, Nicque atravessou a multidão como um veleiro singrando as águas do Ártico. Talvez esperasse ser reconhecida, pois usava um par de óculos desproporcional para o tamanho do rosto. Em todo caso, caminhava como se não tivesse que dar explicações a ninguém.

Alguns metros à frente do rapaz, ela virou-se e olhou para ele. Um doce sorriso iluminou o rosto dela, transformando-o inteiramente.

— Vamos, Leonard.

A voz dela... o olhar de ternura... as palavras bondosas e encorajadoras.

Fëll se surpreendeu. Admirou a altura da moça... o suave tom dos lábios entreabertos, através dos quais podia-se entrever dentes brancos e perfeitos.

Uma madeixa de cabelo caiu na testa de Nicque. Ela tentou afastá-la, impaciente.

— Leonard... Que molenga!

O rapaz sacudiu os ombros.

— Com esse peso? — respondeu preguiçosamente. — Falar é fácil.

— Esse cara tem pouca testosterona — murmurou Cornelios em um tom severo.

Fëll continuou contemplando o casal.

Nesse momento, a poucos passos do Nicque, um tumulto. Ela se voltou, a boca aberta.

Terror... medo... espanto... Várias emoções se revezaram em seu rosto.

Fëll se aproximou, atraído pela visão da moça em pé olhando para tudo aquilo. Como se não conseguisse desligar-se daqueles olhos receosos que o atraíam como um imã.

O rapaz parou perto dela.

— O que aconteceu?

— Nada — respondeu Nicque, cautelosa. — Nada... só... um susto.

Fëll estava perplexo. Achou que nunca na vida vira uma pessoa tão apavorada!

Mas apavorada pelo quê? E por quê?

— Que virada da sorte! — comentou Cornelios, quando os jovens se foram. — Ele era só um bartender na faculdade. Agora está aí, brincando de ser riquinho.

— Devem se dar muito bem.

— Ela se apegou a ele, e simplesmente se recusou a largá-lo. Acho que entendo por que LaRouchelle fez o que fez.

Fëll geralmente não ligava para essas coisas, mas percebeu quais eram os sentimentos de seu amigo.

— Isso o irrita, nicht wahr?

Cornelios olhou para o detetive com desconfiança.

— Não sei o que quer dizer.

— O marido morto... a viúva rica e feliz.

— Qualquer pessoa com um pouco de juízo deveria se irritar!

Fëll sorriu:

— Se fôssemos reparar bem, veríamos pouca beleza em tudo o que o bom Deus criou.

Recomeçaram o passeio.

— Diga-me... Acha que ela o matou?

Cornelios contraiu as sobrancelhas.

— Por que me pergunta isso?

— Os defeitos que a gente compartilha são mais fáceis de aturar — disse Fëll.

— Bem... não sei. Talvez ela não tenha apertado o gatilho. Um rifle... é pouco provável que uma mulher... Mas... no plano geral... tudo o que ela aprontou... seu namoro com esse rapaz... É claro que isso pesou na balança.

— Gut, einen Experten zu hören!

Mas Cornelios não prestava atenção. Em vez disso, replicou:

— Deve achar que sou um crápula. Mas detesto essas moças mimadas, essa gente que se afoga no dinheiro. Fazem o que querem... vão aonde querem... e acreditam que podem tudo. É muita pretensão! Gente assim deveria receber uns tapas... ser esfarelada até virar pó!

Fëll pegou-o pelo braço e deu uma sacudida.

— Calma, homem. Não queremos que isso repercuta, não é?

— Não queremos que repercuta! — fungou Cornelios. — Raios me partam se não é o que eu gostaria de fazer.

— Heillige Gott, Mr. O’Danugheon!

Cornelios corou.

— Estou sendo muito veemente?

— Bastante.

— Ora, ora...

— O que vale é que não sou da Scotland Yard.

Pararam na entrada do hotel em que Fëll estava hospedado. Cornelios se despediu:

— Vou atrás de um serviço de sobremesa. Mulheres!... — e balançou a cabeça, desconsolado.

Fëll dirigiu-se para a recepção. Havia uma moça sentada na sala anexa ao hall. Folheava uma revista, ar distraído.

Fëll olhou bem para ela. Pescoço comprido e claro... braços roliços... blusa amarela decotada. Uma moça bonita...

O que não dava para entender era a maquiagem borrada e os cabelos em desalinho.

Fëll franziu a testa. Quem seria ela? A quem estava esperando?

A resposta a essas perguntas não se fez tardar.

Vindos da rua, Nicque e Leonard entraram no vestíbulo. Nicque lambia um sorvete e ria. Atrás dela, o namorado trazia as sacolas de compras.

A moça da blusa amarela deu um pulo e veio correndo para o hall. Improvisou um aceno e sorriu para o casal.

Os dois recém-chegados pararam. Expressando choque, ultraje, medo.

A voz da jovem soou doce, insinuante.

— Olá, Nicque. Ah, você gosta de sorvete! Sabor manjericão? Azeite de oliva? Oi, Leonard. É aqui que você mora?

O rosto de Nicque endureceu; deu um passo para trás.

Leonard se adiantou, sério e ameaçador.

— O que é isso, Louise? Já disse que não quero ninguém atrás de mim! Você em especial devia saber disso.

— Bobinho — respondeu Louise. — Quem disse que estou atrás de você?

Seus olhos fizeram-se pequenos e cruéis.

— Ué, o que aconteceu? Perderam a fala?

As imagens se sucediam como num videoclipe.

Louise fez beicinho:

— O que foi, Leonard? Quer bater em mim? Não custa nada ser educado — disse.

— Eu vou mostrar a você o que é ser educado — vociferou o rapaz.

— Leo... — murmurou Nicque.

Leonard se virou para ela e só então notou a presença de Fëll. Constrangido, deu uma risada.

— Olá, Louise! Oh, por que não me avisou que viria?

— Ah, querido, eu esqueci. Não achei que seria bem-vinda.

— Você sempre é bem-vinda. Desculpe não convidá-la para ficar. Eu... e Nicque...

— Sim, sim... eu vi. Eu volto outra hora, que tal?

— Volte, claro, claro.

Sempre confiante, Louise passou por Fëll e saiu.

Leonard não sabia se sorria ou se chorava. Com diplomacia, Fëll resolveu pedir a chave e subir.

Enquanto ia para o elevador, ainda pôde ouvir Nicque dizendo:

— Isso é inaceitável, Leonard! Precisamos fazer alguma coisa... Se ela não parar, eu mato essa mulher. Juro que mato!


Capítulo 3

 

Passava das 18h30.

A haute cuisine... o bom sommelier... os empregados atenciosos e educados — o ambiente do Five Fields era agradável e acolhedor.

Leonard e Nicque Abernettye escolheram uma mesa longe da porta, seguidos por um homem de olhos cor de biscoito e que vestia um smoking preto e tradicional. Havia um ar pesado entre eles, como se ninguém estivesse muito confortável.

Isabelle Hollder, com a maior cordialidade, ergueu-se e foi até onde os três estavam.

— Olá, Nicque querida. Que bom revê-la. Sou irmã de Patrice, namorada de seu irmão.

— Eu me lembro de você. Seu nome é Isabelle Hollder, não é? Este é meu noivo... Leonard. E aquele é o Signor Rigoletti, representante processual de minha enteada.

Isabelle fez um discreto cumprimento e, olhando para Nicque, continuou:

— Coincidência termos vindo para cá no mesmo dia.

— É mesmo — disse Nicque, sem muita empolgação.

— Oh... não quero atrapalhar vocês. Estou com Marck, meu marido. Diga “oi!” para todos, Marck.

— Oi — obedeceu o rapaz, acenando mais atrás.

Isabelle voltou para lá. Leonard e o Signor Rigoletti atacaram os menus, como dois caramujos que não soubessem onde se enfiar. Nicque começou a descalçar as luvas.

A porta se abriu. Com uma gravata borboleta pendurada ao pescoço, um homem alto e empertigado entrou; imediatamente um dos garçons o levou para uma mesa no reservado.

Isabelle cutucou o marido:

— Veja só, Marck! Parece que aí está meu detetive favorito.

— Quem?

— Edmund Fëll.

Seus lábios tremeram ao passo que dizia aquilo. Marck girou o corpo; os óculos se sustinham com dificuldade sobre o nariz chato.

— Edmund Fëll... aqui? É um bom homem, mas muito cansativo.

— É você que está falando ou é o seu ciúme?

— Ciúme... dele? — perguntou Marck num espasmo. — Vai zombando, Belle, vai.

A mulher limitou-se a sorrir, irônica.

Fëll esteve a ponto de se sentar, mas subitamente ouviu alguém chamá-lo.

— Fique conosco, Herr Fëll. Lembra-se de mim?

— Natürlich, Mrs. Wigginfort! — disse Fëll, inclinando-se e beijando a mão da inglesa. Nariz comprido e aquilino cercado por malares proeminentes!

Mrs. Wigginfort assentiu com veemência:

— Que encontro maravilhoso! Um famoso detetive e a grande soprano do Reino Unido... juntos! — disse, batendo palmas como uma criança.

— Mamãe! — censurou Eliza, muito séria. — A senhora tem uma capacidade inigualável de irritar as pessoas.

A moça parecia ter atingido o limite da resistência, pois calou-se e começou a bufar.

Mrs. Wigginfort reclamou:

— O que dói é que não posso dizer ou fazer nada.

— A senhora gosta de comandar o espetáculo, isso sim.

— Minha filha!...

Fëll reuniu forças e disse, tentando desfazer o mal-estar:

— Tem feito alguma apresentação, Madame?

Ao ouvir a pergunta, os olhos de Mr. Wigginfort faiscaram.

— Eu deveria voltar a me apresentar, não deveria? “Uma ótima intérprete, senhora de raros dotes vocais e interpretativos!” Que linda crítica!... Oh, eles foram tão simpáticos!

— “... mas sem o talento de uma Maria Callas” — acrescentou Eliza, seca. — Termine a frase, mamã.

— Não se pode agradar a todos, não é? — disse a mulher, sem jeito. — A verdade, Herr Fëll, é que me sinto tão exausta! O senhor sabe... Uma vida dedicada ao bel canto. Os fãs... os convites para ir a Milão, Nápoles... Não sou mais a mulher que eu era. Não sou mesmo.

Eliza deu uma desculpa qualquer e foi para o toalete.

— É verdade... chega a hora em que a pessoa precisa parar — continuou Mrs. Wigginfort, no mesmo tom. — Foi o que eu fiz. A voz já não atingia as notas agudas. Ouça!...

E, sem se perturbar, entoou o trecho de uma ária a plenos pulmões. Surpresa. Perplexidade. Em volta, as pessoas se viraram. Fëll corou, mas aguentou heroicamente a provação.

— Schöen! — disse finalmente. — Muito bonito...

— Ah, o senhor só está sendo galante! Houve época em que eu encantava a Europa... em que os fãs me idolatravam... Sim, que época mágica! Agora tudo se foi... O senhor já ouviu minhas gravações, Herr Fëll?

— Acho que não, Madame. As viagens...

Ela fez um gesto zangado:

— Pois não sabe o que está perdendo! Gravei antes de me aposentar. Vou lhe emprestar os CDs. Não, eu vou dar. Sim, dar!... Há neles uma beleza, uma sonoridade...

— Estou lisonjeado, Madame. Ópera é uma de minhas paixões.

Mrs. Wigginfort deu um suspiro:

— Que pena... Se eu os tivesse trazido comigo.

— Não há pressa, Madame. Eu pego outra hora.

— Mesmo assim... Para mim, promessa é dívida — afirmou ela enfaticamente.

— Que cara é essa, mamã? — era Eliza, de volta à mesa.

— Uma tragédia, Lili. Queria tanto dar um presente a Herr Fëll.

— Um presente... Qual deles?

— Como?

— Qual de seus trabalhos? O primeiro... o último...

— Você não saberia distinguir um do outro.

— Acha que não?

E metendo a mão em sua bolsa, Eliza extraiu duas ou três cópias de CD.

— Devia confiar mais em sua filha, mamã. Este aqui foi o início de tudo, Herr Fëll.

— Wunderbar, Miss Wigginfort. Sempre quis completar a minha coleção.

— É mesmo? Quantos o senhor já tem?

— Contando estes? — Fëll fez um esforço de memória. — Cinco.

Eliza olhou aturdida para o detetive, depois rompeu numa gargalhada.

— Cinco... bem, é um começo. Veja, o cartaz do show de mamã em Budapeste.

Fëll apanhou o cartaz. Mostrava uma Hannah Wigginfort trinta anos mais jovem. Ela aparecia em primeiro plano; sapatos pretos sem salto, meias de seda muito finas e uma saia cinza. Tinha a boca escancarada, como se estivesse sofrendo de um ataque de asma. Por cima, a legenda: O ROUXINOL BRITÂNICO. Ao seu lado, um homem baixinho, com a testa muito alta e cara semelhante à de um rato. O empresário...

Fëll arriscou uma análise:

— Como disse, Madame, a época de ouro.

Agora que as coisas haviam se acalmado, Fëll correu os olhos pelo restaurante. Era sexta-feira e as pessoas curtiam a véspera do fim-de-semana.

Então, como as nuvens carregadas que prenunciam a tempestade, a porta mexeu-se lentamente e uma moça entrou. Usava um vestido que ia até a panturrilha e que se colava ao corpo como uma segunda pele. Ela parou por um momento e estudou o local; devagar, foi para uma das mesas de canto.

Apesar de vir para a luz, seu rosto estava pálido, o que destacava os lábios de colorido sangrento. Devia saber o que estava fazendo, pois, assim que se sentou, levantou a cabeça desafiadoramente.

— Viram isso? — cochichou Mrs. Wigginfort com azedume. — Chegou a Rainha Guenivere!... A pressão arterial deve subir ao ver outra mulher mais bem vestida do que ela!

Fëll disse alguma coisa. Estava curioso...

Neste momento, a garota olhava fixamente para Nicque Abernettye. Fëll notou que algo raro passava por sua mente. Algo pouco amigável, se não estava enganado.

De sua parte, a jovem viúva remexeu-se, incomodada com o olhar lançado pela moça. Olhou para todos os que a ladeavam, sem acreditar muito bem no que estava acontecendo.

Leonard esteve em vias de ir e tirar satisfações com a garota, mas Nicque o segurou pela mão.

— Cometi alguns erros no passado; está na hora de consertá-los.

— Não aqui, querido — disse ela, suplicante. — Por favor.

Ele franziu as sobrancelhas:

— Eu sabia que ia dar nisto.

— Amanhã... Amanhã a gente cuida disso.

Fëll admirou a atitude da milionária. Uma verdadeira Abernettye — cautelosa e responsável, não importa as circunstâncias.

Em seu canto, Louise Grovenor tamborilava com as unhas.

— Eu o amo e você é meu — cantarolou em voz baixa. — Você é meu... todo meu.

Fëll congelou ao ouvir aquilo. Sabia que, de alguma forma, aquelas palavras encerravam uma clara ameaça.

“Uma ameaça que normalmente acaba de uma só maneira”, pensou Fëll tristemente.


Capítulo 4

 

— Mr. Detetive!

Edmund Fëll fitava o reflexo sombrio das águas mortas do Tâmisa quando, atrás dele, um carro esporte guinchou no meio-fio. Olhou para trás, para ver quem era. Sem pressa, Nicque Abernettye desceu do cupê e, com passos seguros, caminhou em sua direção. O ruído oco dos sapatos ressoou pela Ponte de Westminster.

Vista assim, ao natural, a beleza da moça parecia duplicada.

— O senhor é o detetive, não é?

Nicque olhou para ele, com ar agressivo e desafiador.

— Sim, Madame.

— Eu sou Monicque Abernettye. Talvez já tenha lido a meu respeito.

— Certamente. O seu nome foi muito citado nessa última semana.

Nicque sorriu, antegozando o efeito do que diria a seguir.

— Muito bem, Mr. Detetive. Preciso falar com o senhor... se puder me dar atenção.

O Big Ben marcava 23h20. Fëll ficou imaginando o que poderia haver de tão urgente para que ela quisesse conversar com ele àquela hora.

— Claro que sim, Madame.

Calmamente, Nicque foi para a amurada. Tinha carnes firmes, boca vermelha e carnuda. Quando falou de novo, sua voz era clara e fluente.

— Também li a seu respeito, se é o que quer saber. Aquele caso de Dartmoor foi incrível. Reconheci o senhor assim que o vi. Falei com Mrs. Wigginfort e ela contou que o senhor havia dito que viria para cá. Como vê, estou de posse de informações precisas e atualizadas. Não há ninguém semelhante ao senhor. Talvez só Sherlock Holmes, mas infelizmente ele só existe na ficção.

— Espero que não me compare a ele, Madame — disse Fëll. — Um robô pode cuidar muito bem das tarefas de casa, e até mesmo limpar o estábulo, mas dificilmente solucionaria um caso de crime real.

— Por isso — acrescentou Nicque, sem dar por si —, quero que resolva uma coisa para mim. Como deve ter lido, sou uma mulher muito rica, agora que meu marido morreu.

Fëll respondeu num tom sereno:

— Aprecio a sua escolha, Madame. Diga-me só uma coisa... O que vai me pedir tem a ver com a morte dele?

— Não, nada a ver. Vai aceitar o encargo, Mister...?

— Fëll.

— Sim — Mr. Fëll. Sou muito generosa com aqueles que trabalham para mim.

Fëll encarou a moça. Não havia hesitação, apenas certeza de que ele faria exatamente o que ela quisesse.

— Se eu aceito o encargo, Madame? Isso depende de uma gama diversificada de variáveis.

— Vou falar de forma mais objetiva. Talvez assim o senhor entenda. Há uma pessoa que está querendo me matar. Me matar! Quero que o senhor a detenha.

— Detê-la?

— Sim. Uma ex-amiga.

— Está se referindo à moça do vestido colado?

— Ela mesma. O senhor a viu no restaurante, não foi? Louise era minha melhor amiga. Tinha um caloroso apego por ela. Teria sacrificado minha vida por ela, se necessário.

O detetive balançou a cabeça, afirmativamente.

— Qual será a minha incumbência?

— Serei inteiramente franca com o senhor — disse Nicque com serenidade. — Antes de conhecê-lo, Leonard e Louise estavam namorando. Namorando no modo de dizer. Na verdade, os dois estavam só juntos. Uma espécie de admiração mútua, coisa de adolescente. Nada sério da parte de Leonard.

— E da parte dela?

— Acho que ela estava mesmo apaixonada. Não, corrigindo... Acho que ela estava gamada por ele. Gamada, essa é a palavra! Evidentemente Louise queria algo mais dele — algo que ele não podia dar.

— Não podia ou não queria?

Nicque deu um sorriso mecânico:

— Percebo que não está acreditando em mim, Mr. Fëll. Supõe que fui uma caçadora de corações. Que me apropriei de Leonard como se ele fosse um troféu que merecesse ser disputado pela mulher mais apta. Não negue, é isso o que está pensando. Mas não foi nada disso, eu garanto.

Os olhos cinzentos de Fëll se iluminaram.

— Então o seu atual noivo tinha uma namorada. O que a atraiu a ele, Madame?

— É uma pergunta sem resposta, e o senhor sabe disso. Como definir o amor? Leonard é impulsivo, irresponsável, ousado. Mesmo assim, eu o amo. Amo de toda a minha alma. É a magia do amor. É a única explicação, Mr. Fëll.

— Não se trata... digamos... de um caso de revanchismo?

— Senhor Onipotente! Que absurdo! Por que eu iria querer fazer isso com Louise?

— Man weiss ja nie! Talvez ela... no passado... tenha ficado com um rapaz que... a seu ver... deveria ter ficado com a senhora.

— Escute aqui, vamos falar de igual para igual. O que eu sinto por Leonard é amor de verdade. Não sou uma raposa solta no galinheiro! Não tenho o direito de exigir nada dele. Se ele me ama é porque nutre o mesmo sentimento que eu nutro por ele. Leonard é como o cálcio nos meus ossos; simplesmente não posso viver sem ele.

Um sorriso dulcificou a expressão de Fëll.

— Creio que já sei o que pretende que eu faça. Quer que eu repare os danos, não é, Madame?

— O senhor é um artesão da verdade. Um trabalhador perito. Quero que fale com Louise. Eu sei que ela está maquinando alguma coisa.

— Ah, eu vou seu porta-voz!

Nicque olhou para o céu, acima, coalhado de estrelas, sem uma nuvem. À meia-voz, disse:

— Se é assim que vê as coisas. Meu desejo é que Louise pare o que está fazendo. Do contrário ela misturará cianeto de potássio à minha bebida. Já perdi meu poder, minha posição e minha reputação. Não quero perder a vida.

— Hum — fez Fëll. — E se ela não me escutar? — perguntou em seguida.

— Vai escutar, vá por mim.

— Quanto a seu falecido marido...

— O que tem ele?

— Ele sabia de seu caso com esse jovem?

— Sabia.

— E aprovava?

— Se formos pensar no que ele fez a si mesmo... — creio que não aprovava muito.

— A senhora não sente remorsos?

— O senhor não conhecia Toby. Toby não me amava. Estava sempre às voltas com a legislação reguladora de seguros. Uma chatice!

— Está enganada, Madame. Eu cheguei a conhecer LaRouchelle, sim. Mesmo que as circunstâncias não tenham sido muito favoráveis. Certo dia, num pub... Eu estava lá, com um amigo. LaRouchelle e a senhora discutiam... e ele...

Nicque empalideceu.

— É surpreendente! Então o senhor viu...

— Como vê, estou dando um cunho oficial a esse particular.

— Toby era um ditador. Morria de ciúmes de mim. Não era compreensivo e nem tolerante. Eu vivia com manchas escuras e azuladas... aqui... e aqui. Até que um dia eu disse: “Chega! Vou ser quem eu quiser.” Eu relutei muito... e por razões óbvias. Daí, falei que queria o divórcio.

— Como ele reagiu?

— “Essa aí não é você”, disse ele. “Não interessa, quero me separar de você”, disse eu. “Assim, do nada?”, perguntou ele. “Sim”, disse eu. “Se é isso o que você quer, vamos logo.”

— Depois disso houve o suicídio?

— Cerca de uma semana depois.

— A senhora viu?

— Não, não vi. Estava fora de casa naquela tarde. Foi Stuart quem encontrou o corpo. Quando cheguei, a polícia já estava na casa.

— Quem é Stuart?

— O mordomo.

— Nenhuma dúvida sobre a causa da morte?

— Nenhuma. — Nicque se virou para o detetive, contrariada: — Mas não é disso que estamos falando aqui, Mr. Fëll. A sua tarefa não é investigar a morte de Toby. Lembre-se de que deve falar com Louise, nada mais. Ela é inteligente; é capaz de enredar um caso até deixar loucos todos os que intervêm nele. Aceita ser o meu defensor ou não?

— Aceito ser seu defensor, Madame — resolveu Fëll, após uma breve pausa.

— Convença-a a parar de vir atrás de nós. Seja como for... de alguma maneira... — é só o que peço.

— Ganz klar.

O sorriso desapareceu dos olhos de Nicque, enquanto dizia em tom altaneiro:

— Muito bem. O senhor vai ser bem recompensado por isso. Amanhã de manhã... Venha a minha casa e vou contar tudo sobre Louise Grovenor.


Capítulo 5

 

— Louise não quer falar com o senhor, Mr. Fëll.

O detetive austríaco inclinou a cabeça. Olhou para o Major George Bernwell, examinando-o de alto a baixo. Um indivíduo baixo, de rosto cansado e pálido, olhos apertados... Incapaz de andar por conta própria, pensou Fëll reparando na bengala ortopédica ao lado do sofá-cama.

Lesão na perna devido a uma bala atirada acidentalmente... Fëll lembrou-se da declaração de Madame Abernettye.

Um pano de veludo cobria o sofá-cama. O Major estava deitado nele, rijo e reto como um pau, as mãos na barriga.

Os olhos do Major se cravaram insistentemente em Fëll.

— Louise não quer falar com o senhor — repetiu, como que se desculpando. — Não a leve a mal por isso.

— Existe uma grande demanda por meus serviços — disse Fëll. — Nem sempre as coisas saem como a gente quer. Está falando como representante dela, Major?

— Sim.

— Quando conversou com Miss Grovenor?

— Pouco antes do meio-dia. Perguntou se eu poderia atender o senhor.

Fëll assentiu.

— É amigo dela, Major?

— Sou. A única coisa que eu quero é o melhor para Louise. É uma boa garota. Não é muito inteligente, nem virtuosa, mas é justamente nisso que reside o seu encanto. Na verdade, Louise já teve problemas com a lei, sabe? Um caso de tentativa de homicídio... ou coisa assim.

— É mesmo?

Bernwell sentiu-se um pouco incomodado com o interesse do detetive.

— Acho que foi um tio... ou um primo. Sei que era alguém da família. Passou mal e... o médico constatou que havia sido envenenado. Revistaram todos na casa... até que chegaram em Louise.

— Encontraram alguma coisa?

— Havia cápsulas de cloreto de amônio... uma substância perigosa... em sua bolsa. Ela foi solta logo... a Justiça alegou insuficiência de provas.

Fëll julgou que havia um tom de franqueza na voz do Major.

— Mal que eu lhe pergunte, mas como o senhor se feriu?

— Como eu me feri?

— Sim... a sua perna...

Bernwell engoliu em seco, pouco à vontade com uma pergunta tão direta. Bernwell disse:

— Ah, tive um azar dos diabos! Um tiro acidental... Há dois anos. Mas não é por isso que não ando. Tenho artrite... A maioria das coisas que as outras pessoas fazem, eu sofro para fazer. Tomar banho... me vestir... me pentear... É terrível!

— Alguma coisa para aliviar a dor?

— Um anti-inflamatório aqui... uma aspirina ali... Não quero o alívio da dor; quero uma cura. Mas não tem... eu sei. Ah, que belo fim para minha promissora carreira militar!... Quando foi que falou com Nicque, Mr. Fëll?

— Ontem à noite. E hoje de manhã, na casa dela.

— Esteve em Gold Heaven?

— Sim.

— Bonito lugar, não?

— Madame Abernettye tem gostos refinados.

Fëll observava o homem que agora sorria cortesmente.

— Refinados até demais! Sabia que nós já fomos noivos?

— Não.

— Nicque não lhe contou nada? Engraçado que ela não fale disso. Pois é... fomos noivos por cinco meses. Todos nós, em algum estágio da vida, nos entregamos a alguém. Não importa qual seja a nossa formação e nacionalidade. Eu me entreguei a Nicque. Eu a amei... sim, amei. Acho que, da forma dela, ela também me amou. Durou até o dia em que... sem querer... minha pistola... Aí ela disse que não queria um homem coxo e manco. Coxo e manco, que piada!...

— Ela disse isso?

— Sem tirar nem pôr.

— Sinto muito.

— Esqueça isso... Na época quase fiquei louco. Pensei em matá-la... em jogá-la no rio... ou fazer qualquer outra coisa. Mas quer saber? Nicque não é má. Volta e meia ela vem aqui... fica uma meia hora... fala comigo... Nicque não é má. Não é... Veja ali... é assim que me lembro dela!

Bernwell apontou uma enorme mesa de mogno escuro. Nela, alguns porta-retratos. Um deles com a foto de Nicque Abernettye. Sapatos de entrada baixa... um aventalzinho verde... um xale de rendas...

Fëll imaginou-se no lugar de Bernwell. Ali travado... um pedaço de gente... mal podendo andar... E, sentada diante dele... — cheia de saúde, exibindo generosamente as pernas — Madame Abernettye!... falando... falando...

Deveria ser uma tortura e tanto para o homem!

Depois daquele desabafo do Major, Fëll voltou ao tema da visita.

— O que achava de LaRouchelle?

— Era um sujeito tremendamente asqueroso. Entende o que eu digo? Asqueroso... que obrigava a gente fazer o que ele quisesse. Existem homens assim. LaRouchelle era um deles. Ele tinha um jeito de fazer o mal para todo mundo.

— Um cara mau, Major?

— Ele era um esnobe... um escalador social.

Fëll decidiu fazer a pergunta que, desde o início, tinha na ponta da língua.

— A morte dele chocou o senhor?

George Bernwell hesitou.

Fëll viu o Major ficar branco.

Fëll insistiu:

— Chocou, Major?

— Eu vou ser franco... Não, não me chocou. Aquele traste! Eu tentei ver o melhor nele, mas... Mas... Não havia como gostar dele. Falei com ele antes... antes de tudo aquilo acontecer. Falei que deveria tratar Nicque melhor... Disse-lhe que as pessoas estavam comentando. Sim, disse-lhe tudo isso. Sabe o que ele fez? Ah, me escorraçou da casa. Stuart... Stuart, o bom homem... ficou com pena de mim e me ajudou a sair. Foi a última vez que vi o canalha vivo. Quando a coisa apertou, ele... — Bernwell interrompeu-se. Como que para si mesmo, disse: — Um projétil expansivo e de ponta macia...

— Foi um tiro certeiro?

— A bala atravessou o osso temporal.

— Aqui entre nós, Major — o timbre de Fëll assumiu um tom metálico. — Acha que foi suicídio, conforme dizem?

— Se foi suicídio? — estranhou Bernwell, subitamente alerta. — Espere... Do que está falando? Acha que pode ter sido assassinato? É quase impensável que isso tenha acontecido.

— Por quê?

— Não sei... Achei que tudo fosse muito claro.

— A clareza, nesses casos, tem uma importância secundária — respondeu Fëll, erguendo-se para sair. Fez um gesto com a mão, dispersando o pensamento: — Então, Major, não há mesmo nenhuma possibilidade de falar com Miss Grovenor?

— Desculpe... Lamento sinceramente. Que fique registrado, porém, que... seja como for... eu fiz a minha parte. Se, por um acaso, o senhor topar com Louise... na rua, ou na feira... — saiba que isso não comprometeria... digamos... o que conversamos aqui.

— Perfeitamente. Tenha um bom-dia, Major.

— Se eu souber de alguma coisa, o senhor será informado imediatamente.

“Espero que sim”, pensou Fëll, indo para a porta.


Capítulo 6

 

Na mesma tarde, enquanto ia para seu hotel, Fëll viu um rapaz esperando na calçada.

— Boa tarde, Mr. Fëll.

— Guten Tag, Monsieur Amay.

— Está disponível por alguns segundos? Gostaria de falar com o senhor.

— Certamente. Poucas palavras bem-escolhidas são sempre bem-vindas.

Convencido de si mesmo e com um cínico sorriso nos lábios finos, Leonard Amay acenou. Os dois homens seguiram em linha reta e caminharam até os bancos públicos, mais adiante. Leonard se sentou e disse:

— Não é da minha conta, mas acho que Nicque encarregou o senhor de uma pequena missão, não foi?

— Foi.

Leonard acenou pela segunda vez. Tinha um tom de lisonja na voz quando acrescentou:

— Não pense que sejam disfarces e mentiras para impressionar a plateia. Para mim, cada um faz o que quer. Mas eu ainda não entendi. O que foi que Nicque pediu exatamente ao senhor?

— A sua namorada, Mr. Amay, pediu que eu falasse com Miss Grovenor.

— Sobre o quê?

— Sobre algumas coisas que vêm acontecendo — disse Fëll.

— Isso me entristece, sabe? Entristece mesmo. De qualquer forma... O senhor teve algum sucesso?

— Relativamente falando, tive pouco sucesso. O que, no entanto, já era de se prever.

— Vai desistir?

Fëll olhou para o rapaz. Vestia roupas discretas e parecia um homem maduro em tudo, o que lhe dava um ar distinto. Ao mesmo tempo, Fëll viu o quanto ele estava aborrecido com toda aquela situação.

— Se vou desistir? Não sei... Está aqui por alguma razão, Mr. Amay. O que sugere que eu faça?

— O que eu sugiro? Quer mesmo que eu diga para o senhor?

— Warum nicht?

— Ótimo — disse Leonard, tomando uma decisão. — O problema de Louise é a falta de bom senso. Ela sente piedade de si mesma porque ninguém a compreende.

— Entendo...

— Quando rompi o namoro, e lhe falei que eu não era o homem certo para ela, sabe o que ela disse? “Não pode fazer isso comigo, Leo! Eu o amo... amo!” O senhor entende a sutileza, não entende? O fato de me amar não quer dizer que eu seja o homem certo para ela. Está vendo o objeto de controvérsia?

— Vejo, Mr. Amay. Vejo muito bem.

Leonard fez uma pausa. Os joelhos e mãos tremiam; seu queixo batia.

— Muita gente acha que descartei Louise quando encontrei coisa melhor. Não é verdade. Eu não a descartei. Jamais pensei em algo assim. Eu acredito que, no amor, a gente deve ser honesto. Não se deve mentir para ninguém... mesmo que contar a verdade corte nosso coração. Foi isso o que eu fiz. Contei a verdade de vez. Ah, não foi fácil... mas foi o melhor... — para todos!

— Até para Miss Grovenor?

— Mas é o que estou dizendo, homem. Ela reagiu à base do orgulho. Manifestou uma atitude rebelde. Deu rédeas soltas a seus desejos. Agora está aí... patinando críticas contra nós. Agora fica aí... dando vazão às emoções. Louise quer acabar com o amor que eu sinto por Nicque. Como quer conseguir isso? Difundindo o seu gás venenoso. Indo aos lugares em que a gente vai. Ah, que mulher maluca! Maluca...

— Uma questão de prestígio, talvez — disse Fëll.

— Qual nada! Louise quer nos infernizar. Infernizar!

— O senhor, em troca, tem um prestigio que gostaria de conservar.

— É o que faz um homem sensato, não é?

— Não pensou nisso quando foi atrás de Madame Abernettye?

— Eu não fui atrás de ninguém! Esse é um conceito que pode ser entendido de diversas maneiras! Também tenho princípios, ou acha que não?

— Princípios nada valem se não são postos em prática — disse Fëll com candura.

— Como eu disse, amei Louise sim. Mas então conheci Nicque. Foi como uma injeção de adrenalina na veia. Fiquei tonto... literalmente tonto... — se é que o senhor sabe o que é isso.

— Julgo saber que ela era casada quando a conheceu.

— E daí?

— Daí que Madame Abernettye... como é que se diz?... era uma fruta no quintal de seu vizinho, Mr. Amay.

— Uma fruta no quintal de meu vizinho? Ha, ha... essa é boa! O senhor ainda é do tempo do fonógrafo; sou um pouco mais moderno.

— Creio que o adultério continue sendo adultério...

— Adultério... que termo ultrapassado! Garanto que já foi apagado do dicionário.

— Os dicionários não advogam as leis que regem o comportamento de um homem, Mr. Amay. São as Sagradas Escrituras que fazem isso. Era sobre isto que queria conversar comigo? Sobre suas deturpadas noções de moral?

Leonard deu de ombros, pouco impressionado.

— Vamos para a Cornualha amanhã, Mr. Fëll. Nicque quer que o senhor vá conosco. Tintagel Castle, Trebah Garden, Eden... Há muitos bons lugares para se ver.

— Ir com vocês? Não sou um cãozinho amestrado, Mr. Amay.

— Venha conosco. Eu me comprometo com o senhor que terá uma boa estadia.

A face de Fëll endureceu.

— Não, não e não.

— É uma pena — disse Leonard, levantando-se. Espreguiçou-se e olhou para o detetive: — Eu poderia lhe contar tudo o que sei sobre a morte de LaRouchelle, Mr. Fëll. Mas se não quer vir... Passe bem!

O rapaz afastou-se, assobiando entre os dentes.

A situação não agradou Fëll.

“Todos têm sua própria versão para os fatos”, pensou Fëll. “Madame Abernettye disse uma coisa... Miss Grovenor, se tivesse falado comigo, com certeza teria dito algo bem diferente. Mr. Amay falou morte, em vez de suicídio. O que será que está acontecendo, afinal?”


Capítulo 7

 

Era perto das oito horas, e o toque do celular despertou Louise Grovenor. Ela praguejou, revirou-se e atendeu:

— Alô! O que foi?

— Os pombinhos saíram para passear — disse a voz do outro lado.

— Para onde?

— Cornwall.

— O quê?!

Ainda praguejando, Louise largou o aparelho e saiu voando da cama. Olhou pela janela. O vento soprara durante toda a noite, mas agora o sol brilhava soberano. Com um alarido de triunfo, a moça começou a preparar freneticamente a sua mala de viagem.

Enquanto isso, em frente do hotel, Fëll embarcava no carro Mercedes que tinha vindo buscá-lo. Por algum motivo, havia resolvido aceitar o convite de Madame Abernettye para ir ao litoral. Ela, muito gentilmente, tinha colocado o próprio irmão à disposição do detetive, a fim de levá-lo pessoalmente ao albergue-alojamento.

Fëll não se lembrava de já ter visto o rapaz. Musculoso, de olhos verdes, pele morena e cabelos negros. Pela forma do queixo e o lábio inferior, sofria de leve prognatismo. A abotoadura da camisa era trabalhada em curo e pedras preciosas. No banco do carona, com cara de poucos amigos, estava o homem que, duas noites antes, estivera no restaurante com Madame Abernettye e o namorado.

Do banco de trás, Fëll olhou bem para o homem. Usava sobrecasaca negra, chapéu de abas largas e copa baixa, colete florido e gravata de laço. O chapéu estava inclinado sobre a orelha direita, e era tão impecável quanto as brancas meias de seda e o resto da roupa. Qual era mesmo a sua profissão? Representante processual da filha de LaRouchelle, ou qualquer coisa do tipo, pensou Fëll.

O homem não falou durante todo o trajeto. Ao contrário do rapaz que, através do retrovisor, manteve um animado diálogo com o detetive. Chegaram a Bath; depois de comprar os tíquetes, os três fizeram uma breve visita aos Banhos Romanos.

— Oh, que grosseria... Ainda não me apresentei — disse o rapaz. — Horace Abernettye.

Antes que Fëll pudesse retribuir a gentileza, Horace replicou:

— Oh, eu sei quem é o senhor. O senhor já adquiriu estatura de mito, Mr. Fëll.

Fëll se inclinou, lisonjeado. Caminharam um pouco, conferindo as estátuas, cubículos e a fonte natural e aquecida. O homem de sobrecasaca ia atrás deles, apático, como se estivesse cumprindo uma formalidade. Tinha uns olhos de um castanho tão frio e penetrante como uma baioneta.

— É o Signor Rigoletti — cochichou Horace para o austríaco.

— Ah...

— Parece que não gostou muito de nós.

Quando saíram do prédio, Fëll percebeu uma moça parada debaixo de uma marquise. Ela vestia um lindo modelo para jardinagem, de aspecto recatado, mas que nem por isso conseguia dissimular sua bela anatomia.

— Miss Wigginfort! — exclamou Fëll, sem esconder o prazer por vê-la.

— Oh, Mr. Fëll! Acho que devo desculpas ao senhor. Fui tão rude naquela noite. Às vezes sou possuída pelas emoções. Espero que não esteja chateado.

— De modo algum, Miss.

— Olá, Horace.

— Oi, Eliza — respondeu o rapaz, com um gesto galante. — Pensei que sua mãe viesse com você.

— Ela veio. Você sabe como ela é... Disse que iria atrás de um souvenir e se mandou.

— Então ela não demora.

— Eu não apostaria um centavo nisso — exclamou a moça. — Eu disse para ela se aquietar. Mas mamãe é assim... nunca escuta nada do que eu lhe digo.

— Seu avô era do King’s Rifle Regiment, não era?

— Meu avô? Não sei... Como você sabe?

— Acho que ouvi por aí — disse Horace, enrubescendo. — Bom, já que vocês se conhecem, fiquem à vontade.

E distanciou-se apressadamente. Fëll seguiu-o com o olhar, depois se voltou para a moça:

— Compreendo que também vão para a costa, Miss.

— Ah, sim. Coisas de Madame Abernettye. Disse que o pai dela havia sido fã do Rouxinol Inglês. Mamãe se sentiu nas nuvens! Ser reconhecida fora dos palcos! E por aquela garota!... O senhor vê, mamãe aceitou na hora.

— Não dá para negar que foi um convite lisonjeiro.

— Lisonjeiro, que nada! — rebateu Eliza. — Correm rumores por aí, Mr. Fëll...

— Rumores? Que rumores?

— Dizem que, na realidade, o marido de Madame Abernettye não se matou. Dizem que ele foi morto. Morto sei lá por quem. Talvez... e é disso que eu tenho medo!...

— Talvez o quê, Miss? — Fëll se surpreendeu com a súbita mudança de voz da moça.

— E se foi ela quem o matou?

— Ela quem?

— Madame Abernettye, ora. Não gosto dela. Há alguma coisa nela que não me agrada. E se foi ela, Mr. Fëll? E se foi ela?

— Calma, Miss — brincou Fëll. — Vou protegê-la, se for o caso. Essa é a minha especialidade.

— Que bom que o senhor vai conosco!

— Então confia em mim, Miss Wigginfort?

— No senhor eu confio. Neles não.

— A sua mãe também não confia?

— Não sei, Mr. Fëll. Mamãe precisa de alguém que cuide dela — respondeu a jovem com uma expressão de tristeza. — Se não fosse por mim!... Eu trato dela como se fosse um botão de magnólia.

— Bravos, Miss. Tem um verdadeiro espírito humanitário!

— Falando nisso... Foi Horace que convidou o senhor para vir a esse passeio?

— Não, foi Madame Abernettye. Ela queria que eu resolvesse uns assuntos para ela. Não deu muito certo. Acho que ela teme que haja consequências.

— Por que está viajando com Horace?

— Eu precisava de uma carona — comentou Fëll. — Não consigo financiar tudo só com meus fundos corporativos.

— Oh, o senhor é engraçado!... Eu vi que há mais alguém com vocês.

— Há sim.

— Ele é italiano, não é? Já vi ele antes — disse Eliza. — É o advogado de Anne LaRouchelle. Parece que ela está querendo uma parte da herança. Muitas pessoas têm duas caras... Ela tem, tipo, dupla personalidade. Esta história não me cheira bem. Oh, tenho tanto medo do que possa acontecer!

— Relaxe, eu cuido de tudo, Miss. Saiba agir ou agirão sobre você, é o que dizem. Nada vai acontecer, está bem?

— O senhor é um homem sem igual, sabia?

— Está mais tranquila?

— Sim.

— Wie gut!

— Chegou numa hora providencial, Mr. Fëll — disse Eliza, contemplando o movimento da rua. — Madame Lemorauex contou muitas coisas sobre o senhor. Coisas incríveis.

— Boas?

— Muito boas. Ela disse que é um excelente detetive.

— Muito bem — disse Fëll, com ar triunfal. — Dito pela senhorita, é um grande elogio!

O Signor Rigoletti voltou neste momento. Sem se deter, foi para onde o carro estava estacionado. Curvando-se, Fëll se despediu de Miss Wigginfort.

— Hora de ir, Miss. Vejo a senhorita em breve.

— Até logo.

Antes do meio-dia, chegaram ao seu destino. Localizado diante da Baía de Falmouth, o BlueMoon Inn era uma tradicional estalagem de Cornwall, com comida caseira e belas vistas para o mar e para o campo. Fëll levou sua bagagem para o quarto. Depois do almoço, o detetive austríaco subiu para o terraço. Além dele, e do Signor Rigoletti (com a sua permanente cara hostil), havia outro homem lá, deitado numa esteira. Um homem magro, com o paletó aberto, a pele queimada de sol e um sorriso simpático. Fëll achou que ele parecia um geneticista especializado em clonagem. Fazia calor; lá embaixo era possível ver os jardins frondosos, que se estendiam até o topo da falésia. Alguns minutos se passaram, e uma jovem mulher apareceu no terraço, caminhando diretamente para o homem do paletó.

Fëll olhou para ela. Era uma mulher alta, esbelta, os cabelos escuros caindo sobre os ombros alvos. A calça tinha um corte perfeito que valorizava sua silhueta esguia. Botas de couro lustroso sumiam debaixo das pernas da calça.

— Nicque já veio? — perguntou o homem, soerguendo a cabeça.

— Não, Marck.

— Achei que ela fosse pontual.

— Essa gente nunca é pontual — retrucou a mulher. — Adivinhe quem eu vi no saguão.

— Aposto que era o canalha do Horace!...

— Psiu... fale baixo.

— O que ele estava fazendo?

— Imagine... Estava esperando por Patrice, claro.

— Quer saber o que eu acho? — perguntou Marck. — Acho que sua irmã, Belle, é uma idiota. Uma garota tão bonita... (não desmerecendo você, querida!) namorando um cara como ele!... É um desperdício!

Fëll notou o suspiro de desalento de Isabelle Hollder.

— Você vem dizer isso para mim? Você sabe muito bem o que eu penso disso tudo. Japão, Hong Kong, Cingapura... Ah, eu adoro o Oriente! Em vez disso, aqui estou eu... Tendo que servir de babá para a desmiolada de minha irmã.

— Desmiolada é apelido — rosnou Marck.

Às duas horas, sem nada para fazer, Fëll desceu para os jardins. Num banco, viu um sujeito troncudo, de sobrancelhas cerradas, assinalando alguma coisa numa cartela.

— Mr. O’Danugheon! O senhor por aqui.

Atrapalhado, Cornelios O’Danugheon olhou para cima.

— Parece que nossos caminhos insistem em se cruzar, Mr. Fëll — disse, enquanto escondia a cartela atrás de si. — Se eu soubesse que viria para cá, poderíamos ter vindo juntos.

— Oh, foi uma ideia de última hora. Pode ter a amabilidade de me dizer o que está fazendo, mein Freund?

— Pouca coisa. Apenas admirando as instalações. Lindas instalações...

O’Danugheon fez um gesto com a mão, mostrando a estalagem atrás deles. Era uma elegante casa de estilo vitoriano e georgiano, onde muitos quartos tinham uma varanda para o mar.

— Nenhuma crítica ao capitalismo selvagem?

O inglês encolheu os ombros, dizendo:

— É claro que há algumas coisas que me irritam.

— Ah, é? O quê?

— Descobri que eles têm banheira de hidromassagem e uma sauna. O que é um exagero!

— Também acho — disse Fëll, estufando o peito. — É mais do que exagero. Poderíamos perfeitamente tomar banho nas calhas.

— Fazer o quê! — disse Cornelios, sem perceber a ironia no comentário do detetive. — A propósito, sabe quem também está aqui?

— Alguém que eu conheço?

— Aquela jovem milionária de que falávamos outro dia.

— Madame Abernettye?

— Ela mesma.

— Eu já sabia. Estou aqui a convite dela.

— A convite dela? — espantou-se Cornelios. — Não gosto de aliterações! Fale claro, por favor.

— Não é uma aliteração. Aconteceu ontem de tarde. Aquele rapaz... que vimos com as compras, lembra-se?... foi mandado para falar comigo. Disse que Madame Abernettye tencionava vir para cá e queria que eu viesse com eles.

— Ora, ora... Simples assim?

— É.

— Agora eu fiquei interessado.

Fëll não pôde deixar de sorrir.

— Interessado em meu caráter ou no meu círculo de amigos?

— Creio que nos dois — murmurou Cornelios O’Danugheon. Contraiu a testa, e disse: — Por falar nisso, ali está ela! Madame Boa-Vida... e Mr. Desocupado!

Nicque tinha acabado de surgir numa das varandas. Os cabelos ondeados, presos atrás num grande coque... alta e felina, com suas curvas generosas e provocantes. Fëll se admirou que ela estivesse tão feliz e confiante.

Ao seu lado, como uma sombra, estava Leonard. A mesma expressão despreocupada, segura e alegre. Um era praticamente a réplica do outro.

Ali debaixo, Fëll ouviu uma gargalhada reprimida de Nicque.

— E aí, está gostando? — perguntou Leonard.

A mulher respondeu à meia-voz:

— Muito, e você?

— Gosto do que você gosta.

— Fico louca com esse timing, querido. Seja sincero, não diga as coisas só para me agradar.

— Ah, bancando a durona! Isso não invalida o que eu disse.

— Seu descarado!

— Não sou, não.

— Ah, como é bom estar viva — disse Nicque, abrindo os braços. — O que pode haver melhor do que isso?

A linha do mar... a estalagem moderna... a tarde ensolarada! Sim, o que poderia haver melhor do que isso?

O que aconteceu a seguir, porém...

Tudo se desenrolou muito devagar, quadro a quadro.

Antes que Leonard pudesse responder, uma risada ecoou alguns metros abaixo do casal. Parada no pátio estava Louise, olhando para eles. Um amplo sorriso distendia os seus lábios estreitos.

— Oi, Nicque! Férias realmente encantadoras, você não concorda?

Nicque sentiu-se nas garras de algo mais forte do que ela. Desorientada, recuou um passo.

— Oh, não... Oh, não...

Tão abalada quanto ela, Leonard cerrou os punhos; olhou furioso para Louise.

— Como... como você soube? — perguntou em voz apenas audível.

— Como eu soube o quê? Que vocês viriam para esse lugar paradisíaco? Ah, eu tenho meus informantes, não é demais? Aproveitem a tarde, meus fofos!

E, inclinando a cabeça para Fëll e O’Danugheon, Louise se dirigiu alegremente para a praia.

— Oh, Leonard! — murmurou Nicque, agarrando-se a ele. — Ela está inteirada de tudo. O que vamos fazer? O que vamos fazer?


Capítulo 8

 

Mrs. Wigginfort usava um elegante traje de noite e um abrigo de peles quando desceu para o refeitório.

— Oh, estou muito atrasada? — perguntou Mrs. Wigginfort quando chegou à mesa.

— É lógico que não, mamãe — respondeu Eliza. — Só meia hora.

— Você já pediu, filha?

— O básico. Costeletas de porco com vitela... torta de limão com cobertura de merengue...

Mrs. Wigginfort reparou que havia mais alguém ali.

— Mr. Fëll! Oh! Perdoe-me...

— Es tut nichts! Sua filha contou que a senhora vai fazer uma apresentação essa noite. Uma glamourosa apresentação.

— Assim o senhor me estraga! — disse a grande diva, ajeitando os cachos volumosos. — Vai ser uma coisa de nada. A pedido de Madame Abernettye.

— Wohltun trägt Zinsen.

— Ela vai custear nossas despesas, o senhor sabia? Disse que seria um presente. Senti-me mais do que na obrigação de fazer alguma coisa por ela. Uma breve ária... Acha que faço bem, Mr. Fëll? O senhor acha?

— Claro que sim, Madame. Claro que sim.

Fëll duvidou muito que Madame Abernettye fosse do tipo de mulher que gostasse de ópera. Pobre Mrs. Wigginfort! Fëll balançou a cabeça, condoído.

— Madame Abernettye foi gentil por convidar a senhora e sua filha — comentou Fëll, colocando com cuidado o guardanapo no colo.

— Oh, não foi bem assim. Não foi ela que nos convidou.

— Eu pensei...

— Na verdade foi Eliza que mencionou que pretendíamos vir para cá. Madame Abernettye ficou tão entusiasmada! Também pudera!... Sendo perseguida daquela forma por aquela moça má e vingativa. Achou que, vindo conosco, ficaria livre dela. Agora veja só isso... De que adiantou?

— Ah, compreendo.

— Não é incrível? — perguntou Eliza, com empolgação. — Mamãe e eu... o senhor... todos aqui por causa dela!

— O senhor também, Mr. Fëll?

— Sim, Madame. Como eu disse para sua filha em Bath, Madame Abernettye quer que eu resolva alguns assuntos para ela. Por tudo o que aconteceu hoje, creio que é cada vez mais urgente.

— Em Bath? — estranhou Mrs. Wigginfort. — Você não me disse nada, Eliza.

— Não preciso contar tudo para a senhora, não é, mamãe? Era só o que faltava!

— Não, mas...

Hannah Wigginfort fez um gesto, zangada.

Edmund Fëll olhou pela sala de jantar. Marck e Isabelle Hollder (o par que ele havia visto no terraço à tarde) estavam na mesa ao lado da pilastra. Conversavam entre si e, volta e meia, olhavam dissimuladamente para Nicque e Leonard, na outra ponta do aposento. “Curioso esses dois!”, pensou Fëll. “Há alguma coisa neles... Alguma coisa que não me agrada.” Horace, por sua vez, estava acompanhado de uma moça de cabelos pretos e eriçados. Olhos tristes, emoldurados por óculos de aros de chifre, e sobrancelhas arqueadas num ar de assombro. O detetive lembrou o nome dela: Patrice. Pela semelhança física, e a maneira como haviam se tratado, Patrice era parente de Isabelle. Prima, sobrinha? Não, certamente as duas eram irmãs. A aparência... os trejeitos — tudo era idêntico. À mesa de O’Danugheon (pobre diabo!) tinha se sentado o Signor Rigoletti, tão mudo e tão sério quanto durante o dia. Era possível discernir vários sentimentos no rosto do italiano: ansiedade, vergonha, desapontamento.

Fazendo uma careta, Fëll continuou sua silenciosa ronda visual. Sem querer, sua atenção foi atraída para um homem sentado nos fundos da sala. A cabeleira formava ao redor da cabeça uma espécie de halo que disfarçava a dureza das feições e a mandíbula de lutador.

Dr. Hagissart!

Desde o caso do sumiço do jóquei, e a repercussão subsequente, era a primeira vez que Fëll revia o médico.

— Entschuldigung, Mrs. Wigginfort — disse Fëll, levantando-se. — Só um minuto...

— Oh!...

A cantora pôs a mão no peito, surpresa. Viu o austríaco se afastar, e sacudiu a cabeça em reprovação.

— Que falta de cavalheirismo! Deixar a mesa de uma diva mundial para se juntar à ralé.

— Ora, mamãe, pare com isso! — ralhou Eliza. — A senhora é que é muito possessiva.

Ofendida, Mrs. Wigginfort tomou um gole de água.

— Dr. Hagissart!

— Meu caro Fëll!

Ambos os homens apertaram a mão.

— Sente-se... Quem diria! Encontrá-lo aqui e nestas circunstâncias.

— Estava me sentindo muito amordaçado na cidade. Algum caso clínico, doutor?

— Não, não... Louvado seja Deus! Já estive por tudo. Nos picos nevados do Fujiama... nos bares de Ginza. Faltava vir a Falmouth. E o senhor?

— Ah, um pouco de cada — disse Fëll.

— Está com o grupo da milionária?

— Andou treinando suas habilidades de detetive, doutor?

— Quem dera! Não tenho inclinação para essas coisas. Mas ouço muito bem.

— Conhece Madame Abernettye?

— Por incrível que pareça, conheço sim. A morte do marido. Estive lá... fui eu que examinei o local.

Fëll ficou subitamente alerta.

— O que disse?

— Imaginei logo que isso atrairia a sua atenção. Eu sabia o que diria mesmo antes de falar! Estou dizendo que estive na casa no dia em que o magnata morreu.

— Qual foi, doutor, seu parecer sobre o que aconteceu?

O Dr. Hagissart deu um risinho.

— Se eu acho se foi ou não suicídio, é isso o que quer saber?

— Incluindo isso.

— A meu ver, pela disposição do corpo... e os demais objetos...

— Cavalheiros... Desculpem interromper.

— Madame Abernettye! — disse Fëll cortesmente. — Permita-me apresentar o Dr. Hagissart. Doutor, Madame Abernettye.

— Acho que o doutor e eu já nos conhecemos — disse Nicque. — Prazer em revê-lo...

Fëll percebeu que ela estava excitada com alguma coisa.

— Tenciona falar comigo, Madame?

Nicque olhou dentro dos olhos do detetive e, falando somente para ele, disse:

— Não quero cobrar resultados, mas creio que o senhor precisa fazer alguma coisa... e logo. Logo, entendeu? Sabe a que me refiro, não é?

— Sim — respondeu Fëll, devolvendo o olhar. — Madame, prometo fazer o melhor que puder pela senhora.

— Posso contar com o senhor?

— Pode.

— Bom. Muito bom — disse Nicque. E, da mesma forma que tinha vindo, voltou para seu lugar.

— A coisa está feia, hein? — observou o Dr. Hagissart, com voz neutra. — Até imagino do que se trata. Vai falar com a outra moça?

— Vou. Não há outro jeito.

— Acha que ela vai escutá-lo?

— Não. Mas não custa tentar...

— Quer que eu termine minha história?

— Amanhã, doutor, se não se importa. Ah, veja... Parece que Mrs. Wigginfort vai cantar agora.

Toda repimpada, Mrs. Wigginfort havia avançado até o microfone. Pouco depois, a sua voz se elevou com vigor. Uma voz sentida e melancólica...


O mio babbino caro,

Mi piace è bello, bello...


— Deus Todo-Poderoso! — exclamou o médico. — Eu gosto do mundo artístico... essas coisas liberais que existem por aí. Mas isto... isto não!

A reação das pessoas presentes foi a mais variada.

Nicque parou de falar, e se virou a fim de olhar para a extraordinária diva. Leonard seguiu seu exemplo, embora a cantoria não fosse nem um pouco de seu agrado. O Signor Rigoletti retirou-se para a sala de jogos, incomodado com aquele ensaio vocal àquela hora da noite. Mr. O’Danugheon continuou rodeando o bufê que ficava no fundo da sala. Louise Grovenor se recostou na cadeira, retocando o batom com austeridade. Patrice e Horace Abernettye estavam agora na mesa de Marck e Isabelle Hollder, e interromperam a conversa ao ouvir os acordes da ária. O mundo se concentrava em torno de Mrs. Wigginfort!

Ao dirigir-se para seu quarto, uma hora depois, Fëll encontrou Louise Grovenor. A garota estava no térreo, tomando uma bebida no moderno e elegante bar do hotel.

— Boa-noite, Miss.

— Boa-noite, Mr. Fëll. — Ela continuou, secamente: — Até que enfim o senhor conseguiu me encurralar.

— Não tive essa pretensão. Só gostaria de lhe dizer uma coisa, Miss Grovenor. Temos um assunto para tratar, e quero que seja do modo mais fácil.

— Penso que o Major já falou com o senhor — respondeu Louise apaticamente.

— Já, Miss. Mas não gosto de largar o osso antes de rosnar.

— É um cavalheiro estranho, Mr. Fëll!

— Estranho? É a primeira vez que alguém me define com esse adjetivo.

— Quer outro? Quer que eu diga que é ousado, audacioso... ou quem sabe... singular?

— Agora sim. Começo a vibrar de entusiasmo.

Louise concedeu um olhar de misericórdia ao detetive.

— Vai falar sobre Nicque e o anjo abençoado dela? Se for isso, é perda de tempo. Eu já me decidi. Ninguém vai me fazer voltar atrás.

— E se eu insistisse?

— Nem assim.

— Então não vai nem ouvir o que tenho a dizer?

— Em vista do que eu sei que vai dizer, não.

— Julguei que poderíamos negociar, Miss.

— Ah, é? O que pretende propor?

— Que desista de sua obsessão por Mr. Amay e vá para casa. Vai reverter em benefício de todos.

— Muito bem... E o que eu obtenho em troca?

— Em troca, posso fechar um olho para o fato de que o seu irmão degolou aquele gondoleiro... (quanto tempo faz?)... ah, sim, dois anos. Onde... onde foi? Ah, é mesmo... foi no Sena!... Isso lhe parece justo, Miss?

Louise piscou. Louise retesou o corpo como uma corda de violino.

— É muita baixeza, mesmo vindo do senhor. É muita pretensão vir aqui para me chantagear, Mr. Fëll! Isso não vai servir para nada. Para nada, ouviu?

— A necessidade cria os meios, Miss Grovenor. Aceita?

— Sou contra o que está fazendo.

— Eu pedi uma resposta, Miss, não a sua aprovação.

Louise sapateou, furiosa.

— O senhor deveria ser proscrito desse estabelecimento. Odeio isso. Odeio. Odeio. Sim, sim, eu aceito!

— Assim é melhor. Viu? Não doeu nada, doeu?

— Parabéns pela fascinante conspiração criminal, Mr. Fëll. Diga-me só uma coisa... O que eu devo fazer?

— Deve ir embora daqui, Miss.

— Quando?

Fëll olhou para ela. De uns vinte e tantos anos... olhos verdes... os lábios rosáceos e sedutores...

— Quando? — perguntou Fëll. — O mais breve possível. Ainda esta noite, se puder.

— Isso é... Isso é...

Louise parou de falar. Pôs os dedos na têmpora, como se estivesse tonta. Louise disse:

— Oh, desculpe... Acho que já bebi muito. Não pode, pelo menos, deixar que eu vá embora amanhã?

— Amanhã... Sem falta, Miss?

— Bem cedo... Eu prometo.

— Gut — disse Fëll. — Que seja.

A garota acenou e o detetive, se inclinando educadamente, recolheu-se ao seu quarto.

Apanhando o copo, Louise seguiu para o salão dos hóspedes. Lá estava o Signor Rigoletti, numa conversa reservada com Nicque e Leonard. Ele mostrava-se gentil, paternal e mais afável do que nunca. Mais atrás, Mr. O’Danugheon conferia as mensagens em seu celular. Eliza e a mãe estavam de saída, e quase esbarraram em Louise.

— Vão se deitar?

— Sim — disse Eliza, constrangida com a pergunta franca de Louise.

— Boa noite. Ah, já ia esquecendo... Belíssima voz, Madame.

— Humpf! — respondeu Mrs. Wigginfort friamente.

Apressadas, as duas se afastaram rumo ao elevador.

Louise entrou e espraiou um olhar pelo salão.

Horace viu a garota parada na porta; inclinou-se para Patrice.

— Acho que minha querida irmã vai ter dias difíceis — sussurrou.

— Por causa daquela moça? — perguntou Patrice, com curiosidade. — Ela não parece tão má.

— Cuidado com o que vai dizer, Pat!

— Mas é como as coisas são. E digo mais, Horace... Sua irmã já era meio tantã. Ultimamente então!...

— Que disparate! — grunhiu Horace. — É ingenuidade sua pensar assim. Posso não concordar com tudo o que Nicque faz, mas eu não acho que ela seja tantã.

— Não quero desiludi-lo, querido, mas para mim, a sua irmã é uma sonsa. Por mais que seja pouco, digo e repito: Ela é uma sonsa! Sonsa!

— Você nunca soube julgar o caráter de ninguém, Pat. Você... Oh! Que coisa mais embaraçosa.

Patrice olhou candidamente para o namorado.

— É isso o que pensa de mim, Ho. Que não sei julgar as pessoas?

— Ora...

— Vá em frente. Diga...

— Como é que vai saber se eu não disser a você, Pat? É isso mesmo! Eu disse e vou dizer de novo: você nunca soube julgar o caráter de ninguém. Está bom para você?

— Muito bom — os olhos de Patrice se estreitaram. Acrescentou: — Talvez seja por isso que aceitei namorar você, Ho. O que é que você acha?

— Hoje à noite não, Signor Rigoletti — disse Nicque neste instante. — Amanhã eu dou a resposta.

— Mas, Madame!... — protestou o italiano.

— Amanhã, Signor Rigoletti!

— Sì , sì, certo!

Markus Rigoletti ajuntou os papéis à sua frente e meteu-os na pasta. Como uma criança que corre para o abrigo ao ouvir o barulho de um trovão, saiu.

— Você é muito boazinha — disse Leonard para Nicque. — Se fosse comigo, eu dava um jeito nesse cara.

— Você dava?... — ah, essa não!

— O que foi?

— Olhe você mesmo!

— Louise... O que ela está fazendo aqui?

— Não seja tolo, Leonard! É nela que você deveria dar um jeito!

Puxando a estola sobre o ombro, Nicque também saiu. Seguida por Horace e Patrice... O’Danugheon arriscou um olhar e foi atrás do três. Brincando com um baralho, só ficou Marck.

— Olá, Mr. Hollder — disse Louise. — Posso me sentar aqui?

— A cadeira está vaga, não está? Disse meu nome... Sabe quem eu sou, Miss?

Louise se sentou, sempre olhando para Leonard.

— É o marido de Isabelle, Mr. Hollder. Conheço sua mulher... Fomos colegas de trabalho.

— Ah — disse Marck, começando a embaralhar as cartas.

— Isabelle é uma boa menina. Não sou nada em comparação com ela. Como a conheceu?

— É uma história e tanto.

— Conte-me...

— Quer mesmo que eu conte? Certo, mas primeiro um gole — e Marck se serviu de outra dose de gim. — Tudo foi assim... Eu tinha acabado de voltar do Egito. Ah, o Saara!... Bandos de saqueadores, o deserto, animais perigosos. Um dia...

Louise repetia, quase inconscientemente, as declarações de Marck:

— Egito... uma mercearia... “nós nos vimos”...

— Eu disse a ela: “Perdoe-me... eu não posso vê-la!” Imagine o que Belle respondeu! “Por que não? Você é míope?” Míope, por Deus!... Belle era uma piadista! “Deve prevalecer sempre a vontade da maioria, não acha?”, disse eu.

Marck continuou falando... Se não estivesse tão absorto em sua história, talvez tivesse visto que Louise não estava olhando para ele. Ela dizia “aham!” e “Pôxa!”, mas virada para Leonard. Era para Leonard que ela olhava... era em Leonard que estava interessada.

— “Sei costurar, tricotar e bordar”, disse Belle. Uma mulher encantadora! Divina! — declarou Marck. — Não preciso dizer que me apaixonei logo!

— Continue, Mr. Hollder. Continue...

— Oh, é claro! É muito amiga de Isabelle, Miss...?

— Grovenor.

— Ok, Miss Grovenor.

Houve alguns segundos de silêncio. Louise percebeu que havia ficado uma pergunta no ar:

— Se sou amiga de sua esposa? Mais ou menos...

— Ah, então está explicado! — disse Marck, fazendo um leque com o baralho. — É que eu não ouvi Belle mencionando a senhorita, Miss Grovenor.

— Já foi jogador, Mr. Hollder?

— O quê?

— Manuseia muito bem as cartas... Era jogador?

Marck disse que tinha sido croupier etc. Depois falou de seu primeiro encontro com a outrora Miss Isabelle Alisson. (O garçom trouxe caviar e champanhe. O jantar foi soberbo!) Intimamente, ele sabia que a moça não estava escutando. Afinal, por que escutaria? Estava falando sobre a vida dele... sobre os amores dele. Que é que isso importava para Miss Grovenor? Se fosse o contrário, é evidente que ele também não escutaria. Além disso, o sujeito na poltrona era o ex-namorado dela! Era devido a ele que ela havia vindo até ali. (Uma gracinha como ela não se sentaria com um homem casado a menos que tivesse alguma coisa planejada!) E Marck sabia que Miss Grovenor tinha alguma coisa planejada. Tudo era muito óbvio: ela queria Mr. Amay! Sim, queria — fosse como fosse, custasse o que custasse.

— Mais um trago, Miss? — perguntou Marck.

— Sim, obrigada.

— Não estou aborrecendo a senhorita, estou? Todos dizem que tenho o desconcertante e, de certo modo, irritante costume de concluir as frases dos outros.

— Oh, não. Continue falando...

Continue falando! Que expressão mais engraçada. Como aquelas coisas que as pessoas dizem quando não têm assunto. Nem sei o que dizer, Mademoiselle Furnss! — Oh, não seja por isso... Fale o que quiser! Se pelo menos Miss Grovenor participasse um pouco mais na conversa! Por que não dizia nada... ou fazia uma pergunta mais interessante?

Então... sem esperar... Louise olhou para Marck, como se adivinhasse seus pensamentos:

— Posso fazer uma pergunta, Mr. Hollder?

— Creio que sim... O que é?

— Declarou que ama a sua esposa. O que faria se ela o largasse e fugisse com outro?

Marck corou. Na poltrona, Leonard tirou o cachimbo da boca e disse:

— Pare de ser insensata, Lo! Deixe esse homem em paz.

— Responda, Mr. Hollder!

— Bem, eu ficaria muito arrasado e...

— Não ia querer que ela voltasse para casa?

— Acho que não, não sei...

— Ah, o julgamento de Salomão: vamos cortar o bebê pelo meio — caçoou Louise. — O senhor é muito acomodado, Mr. Hollder! Igualzinho a você, não é, Leonard? Um homem conceituado e formidável!

— Já chega, Lo! É tarde... é melhor ir se deitar.

— Não chateia! Sabe o que eu acho de você, Leonard? Sim, você — tão cheio de bravura, esperança e espírito cívico. Você é um derrotado!

— Tudo bem.

Louise arquejava.

— Sabia, Mr. Hollder, que Leonard e eu íamos nos casar?

— Sim... — balbuciou Marck.

— Sabe por que não nos casamos? Aposto que sabe... Ele se encantou por outra e... sem mais aquela... me esqueceu. O que acha disso? Acha que foi justo?

Leonard deu uma baforada, aborrecido:

— Basta, Lo. Já são onze e meia... Venha, vou levá-la para cima.

— O quê? Vai me levar? Eh, quanta lealdade! Não vá se achando! Posso muito bem ir sozinha.

Sorvendo seu drinque de um só trago, Louise se levantou; vacilando nas pernas, foi para a porta. Mesmo lá fora, puderam ouvir sua gargalhada ecoando no saguão.


Capítulo 9

 

Edmund Fëll ouviu o som de passos no corredor e logo alguém esmurrou a porta de seu quarto.

— Ora essa, entre!

— Graças a Deus! — o Dr. Hagissart entrou. — Procurei o senhor por toda a parte. É terrível... simplesmente terrível!

— Que pavor é esse, homem?

— Trata-se de Miss Grovenor. Está morta. Encontraram o cadáver atrás do biombo.

Fëll teve uma espécie de calafrio. Miss Grovenor... morta? Lembrou-se da moça de voz mal-humorada... Ainda podia ouvi-la dizendo: “Eu já me decidi. Ninguém vai me fazer voltar atrás.” Uma jovem tão bonita, com aquela compleição corporal... e, mesmo assim, tão teimosa! A que ponto haviam chegado as coisas!

— Já estive no quarto e dei uma analisada no corpo. Tudo parece apontar para uma coisa: envenenamento. Pode ter sido acidental...

Fëll tinha olhos introspectivos. Moveu a cabeça negativamente:

— Não, doutor, não foi acidental.

— Acha que foi assassinato?

— Dito de maneira simples... Mas, doutor, isso fica entre nós, por enquanto.

— Naturalmente. O senhor é a autoridade nessas questões.

Fëll enxugou a espuma de barbear e vestiu-se rapidamente.

— Vamos lá.

Foram para o corredor.

— Já contataram a polícia?

— Sim.

Havia, na estalagem, três andares, com quartos luminosos e arejados. Miss Grovenor estava hospedada no primeiro andar, num quarto com máquina de café e chá, secador de cabelo e TV.

Um homem baixo, magro, calvo, que aparentava trinta e tantos anos, estava de pé no corredor. Esfregava as mãos, preocupado e, logo que os viu, disse:

— Estou arruinado... Uma morte em meu estabelecimento! É o fim! O fim...

— Calma, Monsieur Suttom — apaziguou o médico. — Vamos dar um jeito nisso, entendeu?

Não havia ninguém no quarto e, com exceção do clima de suspense, nada parecia ter acontecido ali. Fëll contornou a cama e vislumbrou o corpo estendido atrás do biombo.

— Muito bem, doutor. A palavra é sua.

— Aparentemente, foi uma síncope cardíaca. Eu não achei, porém, nenhum elemento para servir de base para essa hipótese. Pelo odor no corpo e em suas roupas, ela se envenenou ou... conforme disse... foi envenenada. Essas manchas... está vendo?... são outro sinal característico.

Fëll assentiu. Com gestos rápidos e mecânicos, Fëll remexeu o corpo. Tocou-a levemente no rosto... “Há algo de diferente nela! Mas o quê?”

— Alguém a matou. Pergunto-me o porquê... — disse Fëll. Talvez aquele fosse o núcleo sensível do caso! — Uma garota que combinava beleza, inteligência e ambição.

— Está usando um negligée de nylon — constatou o Dr. Hagissart. — Morreu, portanto, depois de trocar de roupa.

— O que deve ter feito assim que subiu, ontem à noite. Temos que averiguar que horas eram.

Uma mulher problemática, quase psicopata, com um toque dramático e sentimental, pensou Fëll com tristeza. Morrer dessa forma...

Sacando uma caneta, Fëll desenhou um diagrama detalhado sobre o lugar e a posição do corpo. Louise Grovenor estava deitada de bruços, os dedos encravados no tapete. Tão perfeita! Sensível, perturbada, melancólica...

— Quem a encontrou, doutor?

— Monsieur Suttom... É a sua vez.

O proprietário do hotel, atrás deles, suando muito, disse:

— Fui eu, senhor. Costumo levantar às seis horas. Vi luz debaixo da porta, senhor. Vim ver... Chamei, ninguém respondeu. Tentei o trinco... a porta estava destrancada. Entrei e... oh! senhor, juro que foi só isso o que eu fiz.

— Wundergut, Monsieur Suttom. Agora espere lá fora, jawohl? Vou chamá-lo se precisarmos de sua ajuda.

— Claro, senhor. Aprovado, senhor.

— Pobre diabo! — comentou o Dr. Hagissart assim que o homenzinho saiu. — Teme que vá ficar sem clientela...

— Talvez fique mesmo — disse Fëll friamente. — Um crime desses... e em sua própria casa! Duvido que haja hóspedes que gostem da ideia.

— Nunca se sabe... Tem gente para tudo.

— Não tente me impedir, Monsieur! Eu vou entrar aí...

Com essa imprecação, Leonard Amay irrompeu no quarto. Olhou para os dois homens; antes que conseguisse falar, seus olhos se detiveram no biombo... e no que se via parcialmente por trás.

— O que é isso, cavalheiros? O que está acontecendo aqui?

— Mr. Amay, creio que é melhor...

— Não me diga o que é melhor, Mr. Fëll. Essa aí é... oh, santo Deus! — é Louise! O que significa isso?

O Dr. Hagissart coçou a nuca e repuxou o canto da boca.

— Receio que ela tenha sido assassinada, meu jovem.

— Assassinada?... O que quer dizer com assassinada?

— Obrigado, doutor, não vamos nos precipitar — interveio Fëll, contrafeito com a indiscrição de seu colega. — Pode nos dizer a que horas foi dormir, Mr. Amay?

Leonard olhava ora para a moça caída, sem saber se devia ou não se aproximar, ora para o detetive, que olhava placidamente de volta.

— A que horas eu fui dormir? Ela...

— Sim, está morta. Não se preocupe com ela. Poderia nos informar se Miss Grovenor ainda estava acordada?

— Não sei... Louise esteve no salão... Falou... falou comigo... Permaneceu uns 10... 15 minutos... depois se retirou. Eu... — mas que coisa mais extraordinária! Do que foi que ela morreu?

— Veneno, Mr. Amay.

— Que tipo de veneno?

— Ainda não sabemos.

— É inacreditável...

— Talvez seja, mas foi o que aconteceu. Disse que ela falou com o senhor...

— Sim... Conversamos sobre as coisas de sempre. Sobre nós... sobre o fim de nosso noivado. O senhor mesmo viu o quanto Louise estava inconformada...

— É verdade.

— Pois é. Tudo o que ela dizia girava insistentemente em torno do mesmo tema.

— Não fizeram mais nada? Ela não tomou um drinque... alguma coisa?

O rapaz instalou-se na beira da cama, cabisbaixo.

— Deixe-me ver... Nicque já tinha saído. Ah, sim... Horace e a namorada saíram com ela. Depois foi a vez daquele homem... o homem que parece um diplomata...

— Mr. O’Danugheon...

— Ele mesmo. Ficamos nós três... — eu, Louise e o sujeito de óculos.

— Quem?

— Hollmer... não, Hollder. Marck Hollder. Eu estava à esquerda da sala, perto do arranjo de flores (frésias, acho eu.). Pobre Louise! Posso vê-la entrando... desfilando só para me irritar.

— Ela gostava de correr riscos, essa pequena.

— Não é vantagem correr riscos para atingir uma coisa de valor duvidoso — retrucou Leonard, zangado.

— Então Miss Grovenor veio ao salão... Acho que não respondeu a uma de minhas perguntas, Mr. Amay.

— Sim... Só um segundo, preciso me concentrar. Vejo Louise se sentando com Marck. Ela começa a falar com ele, sempre se referindo indiretamente a mim. Se ela tomou alguma coisa? Sim... acho que Marck encheu o copo dela uma vez. Uma vez... sim, foi isso mesmo.

— De seu lugar, enxergava bem os dois?

— Distintamente bem.

— Não viu se Mr. Hollder pôs algo no copo de Miss Grovenor?

— Como assim — algo? Está dizendo que foi ele que...

— Ninguém está dizendo nada, Mr. Amay. Estamos só tentando interpretar os fatos.

— Entendo — disse Leonard, mais calmo. — Não, não vi... Se ele pôs algo, fez isso no instante em que acendi o cachimbo.

— Fuma, Mr. Amay?

— Só quando estou nervoso.

— É um hábito nocivo, meu rapaz — asseverou Fëll. (Fëll desaprovava, por padrão, o tabagismo e qualquer vício relacionado.) — Admite, portanto, que ficou nervoso?

— Fiquei nervoso, e quem não ficaria? Com Louise lá... andando de lá para cá... Ainda mais, em vista de tudo o que houve entre a gente!...

Passos. A voz lamentosa de Monsieur Suttom. Outra voz. Grossa, autoritária. Um homem esbelto, com cabelos negros e um fino bigode preto sobre o lábio superior, surgiu na porta.

— Quem são os senhores? Quem deu licença para...

— Superintendente MacCormeck! — exclamou Fëll, radiante. Avançou um passo, muito cheio de si.

— Raios me partam! — disse o recém-chegado, reconhecendo a cara sorridente à sua frente. — Mr. Fëll! Ora, quem diria!... O senhor é um cão farejador ou um convidado para jantar?

— Um pouco dos dois... Que prazer em vê-lo! Permita-me apresentar estes cavalheiros. O Dr. Hagissart! E Mr. Amay! Senhores, o Superintendente MacCormeck, chefe de investigações criminais!

MacCormeck esperou até que cessasse a ligeira movimentação que se notou entre os ouvintes.

— Dr. Hagissart? Já ouvi falar no senhor... Amay, é? Quero crer que há uma razão para sua presença aqui, Mr. Amay.

— Superintendente?...

— Há sim — explicou Fëll, ao notar a hesitação do rapaz. — Mr. Amay foi, há algum tempo, namorado da vítima.

— Certamente, certamente — disse MacCormeck, caindo em si. — A vítima... ah, aí está ela! Vamos dar uma olhada nela... Alta, cabelos castanhos, caucasiana... Causa da morte, doutor?

O médico fez um relatório de suas conclusões iniciais. Enquanto isso, o quarto ia sendo invadido por agentes e paramédicos, todos prontos para realizar seu trabalho.

— Expôs as coisas muito bem, doutor — elogiou o Superintendente ao fim da narrativa. — Pelo que sei, Mr. Fëll, o senhor tem especialização nesses assuntos. Só lhe proponho uma pergunta: por que alguém iria querer matá-la?

— Não sabemos... ainda.

— Quem foi a última pessoa que falou com ela a noite passada?

— Acho que fui eu, senhor — disse Leonard.

— É mesmo, Mr. Amay? Estiveram a sós?

— Superintendente... como eu já disse para Mr. Fëll, estávamos eu e ela... e Marck Hollder.

— Havia... por assim dizer... algum ressentimento em aberto entre vocês?

— Senhor, eu... — Leonard engoliu em seco. Com esforço, prosseguiu: — Para ser franco, Louise estava de mal comigo. Estava sempre irritada, incomodada e desrespeitando a todos como se fosse uma criança mimada de oito anos de idade. Mas o que é que eu poderia fazer? Dei tudo de mim enquanto estávamos juntos; depois que acabou, era cada um por si. Eu não tinha mais nenhuma obrigação com ela. Danação! Não sei por que ela perdeu a linha dessa maneira... Mas se está pensando que fui eu, Superintendente, garanto que não tenho nada a ver com isso. Nem por sonho!

MacCormeck disse, com piedade:

— Não é possível abarcar a gama completa dos delitos que se cometem diariamente, Mr. Amay. Nem o número de pessoas que alega inocência. De uma coisa, porém, eu sei. Mais dia menos dia, o culpado sempre dá as caras.

— Que bom...

— Bem, sugiro que deixemos meu pessoal trabalhar. Doutor, e o senhor, Mr. Fëll — por favor, me sigam. Vamos para a sala de jogos... Até mais ver, Mr. Amay.

Os três desceram. A notícia sobre a morte de Miss Grovenor já tinha transpirado. Os hóspedes, em sua maioria, estavam no saguão, abalados e apreensivos com os rumores.

Tomando a esquerda, os três homens evitaram o tumulto e passaram para a sala de jogos.

— Creio que aqui poderemos discutir melhor esse caso — afirmou o Superintendente, abrindo a cortina. Lá fora, o céu se tingia das cores do amanhecer. — A felicidade é um objetivo acessível a todos. Mas só os que se arriscam conseguem conquistá-la. O que acha que aconteceu lá em cima, Mr. Fëll?

— Lá em cima, pouca coisa. O ato principal deve ter tido palco aqui embaixo. Ou na sala de jantar... ou no bar... ou em qualquer outra parte.

— Alguma suspeita?

— Eu já me perguntei isso muitas vezes... Duas, pelo menos.

— Quem?

— O próprio Mr. Amay e Madame Abernettye.

— Descobriu isso no espaço de alguns minutos? Parabéns, Mr. Fëll... O rapaz citou outro nome, se me lembro bem.

— Sim. Mr. Hollder.

— Em quem o senhor aposta?

Fëll estranhou que o assunto fosse abordado daquela forma, mas respondeu:

— Tudo se resume, Superintendente, ao que aconteceu entre o jantar de ontem à noite e a hora em que Miss Grovenor foi se deitar. O veneno pode ter sido colocado na comida ou, o que parece mais lógico acreditar, no drinque.

— Creio que, há pouco, aquele jovem deu a versão dele para os fatos. Pode me dizer qual é?

Fëll contou tudo o que Leonard havia dito. Finalizou contando o que ele mesmo tinha visto e feito.

— O senhor, então, conversou com a moça no bar... — MacCormeck deu um grunhido. — Isso dá substrato para várias teorias, pois sim. A mais provável é que, fora o senhor, alguém mais possa ter estado lá com ela. Alguém que... zás!... fez o serviço sujo.

— Se for isso — disse o Dr. Hagissart, exultante —, basta falar com o atendente do bar.

— Sim, sim, que plano excelente! Posso incumbir o senhor disso, doutor?

— A mim? Quer que eu vá lá e faça isso?

— Justamente, o senhor — confirmou o Superintendente vigorosamente. — O que há de errado nisso? Aposto que irá se sair bem.

— Oh, como queira...

As dúvidas espocavam na mente do médico. Mesmo assim, obedeceu.

— Bom homem — disse MacCormeck assim que o outro saiu. — Acho que vim rápido demais para cá. Um crime vulgar — vai ser resolvido antes do meio-dia.

— Acha, Superintendente?

— Vá por mim, meu caro. Casos assim se estruturam sobre palafitas frágeis de mentiras e verdades escondidas, que se quebram quando olhamos melhor para elas. Uma moça de férias ingere uma substância tóxica... cena número um. Moça se sente mal e se recolhe a seu alojamento... cena número dois. Moça morre... cena final. Quantos suspeitos para o crime? Dois suspeitos. Qual deles será que foi? Se tudo fosse sempre tão simples!...

— Talvez — disse Fëll.

O trinco da porta girou e, sem aviso, uma mulher invadiu repentinamente a sala. Colhidos de surpresa, Fëll e MacCormeck se viraram ao mesmo tempo para ela.

— Madame Abernettye... Tudo bem com a senhora?

— Não, Mr. Fëll — disse Nicque, olhando ora para um ora para outro. Inalou o ar e, ajuntando suas últimas reservas de força, disse: — Vim fazer uma confissão... Fui eu que matei Louise Grovenor!


Capítulo 10

 

Fëll prendeu a respiração.

— A senhora assassinou Miss Grovenor?

— Sim. Fui eu.

Nicque falava com impressionante seriedade. Via-se que tremia um pouco, mas, no geral, conservava um autodomínio quase místico.

— Quem é a senhora? — perguntou MacCormeck que, com a cabeça ligeiramente inclinada, examinava aquela angelical aparição em forma de mulher.

— Essa... Superintendente... é Madame Abernettye — Fëll apressou-se em dizer.

— Oh, é mesmo?

— Queira sentar-se, Madame.

— Estou bem assim, obrigada — disse ela, movendo-se graciosamente até a mesa de bilhar. — Vão formalizar a minha prisão, não vão?

— É isso o que quer?

— Acho que quero isso mais do que qualquer coisa no mundo.

— Diz que é culpada pelo assassinato...

— Sou.

— Nesse caso... — começou MacCormeck.

— Eine Moment, Leitner — disse Fëll, que não parava de coçar o queixo. — Sem querer abusar, considero justo que nos conte a sua história, Madame.

— Que história?

— De como cometeu o assassinato...

— Ora, eu envenenei o drinque de Louise!

— Quando?

— Ontem à noite.

— Sim, disso nós sabemos — respondeu Fëll delicadamente. — Como fez isso?

— Não acha que está sendo um tanto rude? Não pode falar comigo assim, Mr. Fëll!

Ele se encolheu com a reação pouco cortês de Nicque.

— Desculpe se a magoei, Madame. Foi sem querer.

— Eu tinha acabado de falar com o senhor... Passei perto de Louise e ela virou a cara para mim. Foi exatamente o que ela fez... girou o rosto para o outro lado!... Oh, que garota! Louise era tão subversiva, antissocial, revoltada e insatisfeita! Eu estava com o veneno comigo e... pressenti que era a hora de usá-lo. Ela... ela não estava olhando... eu aproveitei a ocasião e... fiz.

— Ela virou a cara, Madame Abernettye?

— Foi o que acabei de dizer...

— Ah...

Uma pequenina ideia maliciosa se infiltrou na mente do detetive austríaco. Deu um leve pigarro:

— Que tipo de veneno era?

— Que tipo?

A mulher pareceu um pouco deslocada. Franziu a testa:

— Que é que importa? Não entenderam nada do que eu disse? Fui eu que matei Louise! Eu! E daí se era brometo de potássio... ou qualquer outra coisa? O que importa é que ela morreu... Morreu como eu queria que morresse.

“Que mulher!”, pensou MacCormeck, ouvindo aquela voz carregada de magia. Mas — o que era aquilo?

MacCormeck olhou para Fëll, em cuja face agora pairava uma expressão de indulgência.

— Vão me prender, não vão? Oh, o que foi que eu fiz? O que foi que eu fiz?...

— Langsam, Madame. As coisas nem sempre são como queremos que sejam.

— Não são? — atalhou MacCormeck, intrigado com o comportamento do companheiro. — Meu caro Fëll, temo que seu conhecimento sobre as leis britânicas esteja um tanto enferrujado. Não fazemos prisões arbitrárias, nem queremos que um inocente pague por algo que não fez!... Mas quando a pessoa vem e confessa, ponto por ponto, que cometeu um crime — ah! Nesse caso não há dúvidas de que agimos com todo o rigor possível.

Fëll amaciou as suas maneiras:

— Das weiss ich, Leitner. Às vezes, porém, existe um vácuo entre o lugar onde estamos e o lugar onde desejaríamos estar. Permita-me fazer uma última pergunta para Madame Abernettye...

— Vá em frente!...

— Danke. Veio até aqui, Madame, e contou que foi a autora mental e fatual do assassinato que aconteceu esta noite. Deve saber o que a espera daqui por diante.

— Sei.

— Por que veio se entregar?

Nicque disse, com determinação:

— Porque hoje de manhã, quando dei por mim... e vi o que tinha feito... levei um choque. Fiquei desapontada comigo mesma... Lo e eu fomos tão amigas... durante tantos anos. Amigas de verdade. Eu não deveria... não deveria... tê-la matado!

— É essa a razão?

— Sim...

— A senhora simplesmente caiu em si e veio até aqui?

— Foi.

Fëll olhou gravemente para ela.

— Está mentindo, Madame. Não sei por que e nem por quem. Talvez por algo que considere uma boa causa. Todos são iguais e devem fazer a parte que lhes cabe. Homens... ou mulheres! Diga a verdade! É só isso que tem a fazer, Madame. Diga a verdade...

— O quê? — Nicque estremeceu. Olhou para MacCormeck: — Sou uma mulher emancipada, se é o que querem saber. Fui eu, Superintendente! Fui eu que matei Louise.

— Não, não foi.

— Por favor... me prendam! Me prendam...

Por um instante, MacCormeck dividiu sua atenção entre os contendores, avaliando ambos os argumentos. Seu bigodinho se agitou. Por todos os diabos! Que embrulhada.

— Pode sair uns minutinhos, Madame? Preciso trocar umas palavras com meu colega. Vamos chamá-la assim que der, está bem?

Nicque hesitou, mas acabou obedecendo.

— Prezado Fëll! — suspirou MacCormeck, fechando a porta. — Aqui entre nós, o que está fazendo?

— O que eu estou fazendo?

— A mulher vem aqui, na maior boa vontade, e diz que cometeu um crime. O senhor, no entanto, parece que não acredita nela.

— Cautela nunca é demais.

— Cautela contra o quê?

— Acreditou nela, Superintendente?

— Não vejo por que não.

— Hm — fez Fëll. — Todos precisam ser estimulados! Que opinião formou sobre ela?

— É um tanto quanto rasa, a meu ver, quase superficial, mas, ainda assim, bonita!

— Não me refiro à aparência, Superintendente — sorriu Fëll. — Acha que ela falou a verdade?

— Eu não faço leituras psíquicas, meu caro. Acho que sim.

— Por quê?

— Porque ela mesma disse!

— Não me compete desvalorizar as suas opiniões, mas isso conta muito pouco, não é? Uma pessoa pode dizer o que lhe convém dizer.

— Não quando está sujeita a ser presa por perjúrio.

O Dr. Hagissart voltou à sala. Vinha satisfeitíssimo, com um extraordinário ar de autoconfiança.

— Creio que levo jeito para investigador — disse.

— Teve algum resultado, doutor?

Hagissart mostrou o caderno de taquigrafia:

— Tive um bom resultado, devo dizer. Quando cismo com uma coisa, acabo conseguindo.

— Wunderschoen.

— Duas pessoas estiveram com Miss Grovenor no bar, segundo o que disse o atendente. A primeira foi uma moça loura e bonita... Ele só lembra que Miss Grovenor a chamou de Lily.

— Lily? — Fëll enrugou a testa. — Talvez seja Eliza Wigginfort.

— Também pensei nela. A outra mulher foi Isabelle Hollder.

— Excelente, doutor, tenho que congratulá-lo — aprovou MacCormeck. — Ainda assim, um trabalho em vão.

— O que quer dizer?

— Quero dizer que já sabemos quem é o assassino.

— É mesmo? — perguntou o médico, desconfiado.

— Sim. Embora nosso companheiro suíço...

— Austríaco...

— ... teime em dizer que a pessoa mentiu para nós.

Fëll não tentou argumentar.

Monsieur Suttom apareceu na porta, o rosto vermelho e agoniado.

— Desculpem por interrompê-los, senhores, mas há um cavalheiro aí fora que deseja falar com Mr. Fëll.

— Quem é, Monsieur?

— Diz que é coronel... ou almirante.

— Major Bernwell... Oh, danke, Monsieur. Eu já estou indo. Superintendente... doutor... bitte.

Um tanto pomposamente, Fëll saiu.

O Major estava no jardim, refestelado no banco. Visto assim, era a própria personificação de um trapo usado e sem serventia.

— Guten Morgen, Major.

Bernwell parecia mergulhado em pensamentos. Voltou a si com o cumprimento do detetive:

— Bom dia — ergueu a cabeça num gesto brusco.

— Salve. Como tem passado?

— Nada bem. Agradeço por vir até aqui, Mr. Fëll. Eu vim assim que soube...

— Táxi?

— Sim. Não ouso dirigir... não nessas condições.

— Quem ligou para o senhor? — perguntou Fëll, tomando assento ao seu lado.

— Não sei... não conhecia a pessoa. Era Eliza qualquer-coisa. Ela disse que tinha acontecido alguma coisa com Louise. Disse que havia sido grave...

— Ja, so sind die Sachen. Triste, Major. Muito triste.

Bernwell pensou por um minuto ou dois antes de perguntar:

— Foi assassinato?

— Sim. Foi assassinato, com certeza.

— Se não for impertinência, posso saber como aconteceu?

— Não, de modo algum.

Sem se perturbar, Fëll fez o seu segundo resumo dos fatos naquela manhã.

— Pobre Lo! — suspirou Bernwell. — Ela impunha a si mesmo critérios que ninguém conseguia alcançar! Eu a aconselhei a esquecer daquele cara. Frisei que a dor era temporária e que logo iria se sentir melhor. “Eu não posso”, foi o que ela disse. “Eu amo ele.” Uma garota tão formal, decente, honesta... Quem o senhor acha que foi?

— Quem foi o quê?

— Que a matou. Parece que não está me escutando, Mr. Fëll.

— Estou sim, Major. É que... como pode ver... estão levando o corpo dela agora.

Bernwell olhou para a entrada da estalagem. Viu a ambulância... uma maca sendo carregada...

Bernwell encolheu-se, sem cor:

— Aquela... aquela é Louise?

— Sim. Por que não vai até lá, Major?

— Eu... ir até lá?! Não, não, Mr. Fëll. Não tenho estômago para essas coisas. Nunca tive... Já tentei, mas não consigo reverter isso. É uma reação em cadeia. A morte me apavora. Ainda mais a morte de uma pessoa tão querida — por quem eu tinha tanto apreço...

Fëll ficou momentaneamente sem reação. Lançou um olhar para as pessoas que assistiam à remoção do cadáver de Miss Grovenor. Dentre elas, Madame Wigginfort e a filha... o casal Hollder... Horace Abernettye e a namorada... Mais acima estava Leonard, no terraço do segundo andar.

“Todos tão contritos” avaliou Fëll com cuidado. “Tão naturais... No entanto, talvez ali... alguém — alguém pode ter sido... Sim, mas quem?...”

Bernwell tossiu.

— Acha que foi ele? (Seu dedo apontava discretamente para cima).

— Mr. Amay? É assim que pensa?

— O senhor não? Esse cara é um arrogante sem caráter. Um lobista. Primeiro seduziu Louise, depois a jogou fora como se ela não valesse nada. Para finalizar a sua grande obra, só faltava matá-la. Agora não falta mais nada.

O pescoço de Bernwell estava túrgido, inflado, de raiva.

— Fique calmo, homem — disse Fëll, dando-lhe um tapinha no ombro. — Se for ele o assassino, logo vamos saber.

— O senhor promete?

Fëll endireitou-se e estufou o peito.

— Deve ser flexível, Major... como aquele salgueiro... vê? É forte e alto... mas se verga ao sabor do vento. Logo vamos saber tudo o que aconteceu. Sim, isso eu posso prometer...


Capítulo 11

 

Fëll estava sentado numa pequena nesga de areia, por trás de uma duna coberta de relva.

— Que paraíso! — exclamou Patrice Alisson, aproximando-se. — Não é mesmo, Mr. Fëll?

— Ja, es ist ein wunderschöner Ort!

— O senhor resumiu tudo! Sem estacionamentos, sem edifícios de condomínio à beira-mar, sem parquímetros! Ah... Mas que um dia será aberto à população em geral.

— Nada é imune à marcha do progresso — disse Fëll. — Fale, Miss.

Patrice vacilou. Tinha a pele nacarada, cabelo como o resplendor do sol, e olhos imensamente azuis.

— Procuro o senhor em busca de ajuda.

— De ajuda, Miss? — Fëll ficou desconcertado.

— Sim.

— Diga tudo... sem reservas.

— Estou tão constrangida!

— Está num casamento polígamo? É estéril? Alguma deformidade?

— Deformidade, Herr Fëll?

— Não vejo como uma moça tão bonita precise de ajuda.

Patrice deu uma risadinha nervosa.

— Em vez de sentir pena de mim, o senhor está se aproveitando de meu ponto fraco.

No tom mais suave, Fëll disse:

— Não faço concessões.

— Por favor, não seja mau comigo.

Patrice tocou no braço dele. Fëll estranhou aquela demonstração de carinho.

— Miss...

— Sim, sim, o senhor quer que eu seja mais direta.

— Es wär gut!

— O assassinato... Essas coisas... Tudo tem sido uma fonte de tormento. Ouvi dizer que, esta manhã, Nicque admitiu o crime. Dizem, no entanto, que o senhor não acreditou no que ela disse.

Toda a angústia de Patrice veio à tona.

Fëll começou a formar uma ideia do que tinha acontecido.

— De fato.

— Posso saber por que não?

— Pelo pouco que percebi, Miss, Nicque Abernettye expôs aquilo porque pretendeu proteger alguém.

— Proteger quem?

— O noivo, provavelmente.

— Não poderia ser... outra pessoa?

Patrice falou como se estivesse temerosa da resposta que poderia obter. Fëll olhou outra vez para ela.

— Outra pessoa? Sugere alguém em especial?

— Talvez eu deva lhe contar uma coisa, Mr. Fëll. Uma coisa que está entalada aqui e que vem sendo um fardo carregar sozinha. Conforme já viu, estou namorando Horace Abernettye, irmão de Nicque. Nós nos conhecemos há quatro anos; ele sempre me tratou bem, e nunca faltou o respeito comigo. Até o dia em que lhe disse que estava grávida. Ter um bebê... oh! Esse era um dos meus sonhos. Mas Horace, quando soube, virou num bicho. Quase avançou em mim; disse que eu havia sido descuidada, que eu tinha feito aquilo de propósito. Só faltou bater em mim! O pior de tudo... sim, o pior veio depois. Horace começou a dizer que não assumiria a paternidade. Um mês atrás, ele chegou ao cúmulo... oh! ao cúmulo de afirmar que não queria que eu tivesse o bebê.

— Como assim?

— Horace quer que eu dê um jeito, o senhor entende? De uma forma ou de outra... Disse que me pagaria dez mil se eu fizesse.

— Dez mil libras?

— Libras, dólares, francos... qual a diferença? Estamos falando de um ser vivo, Mr. Fëll.

Houve uma exclamação de espanto da parte do austríaco.

— Mas isso é odioso, Miss Alisson!

— Pois é, eu também acho. Mas ele está que não se aguenta. Aceitei vir para cá com o firme proposito de me separar de Horace, e é o que vou fazer.

— Já contou isso a ele?

— Não. Vou contar hoje à noite.

— Mm... Era esse o assunto que pretendia tratar comigo?

— Não, há outra coisa.

Ele inclinou-se para frente, atento.

— Andei pensando — continuou a moça. — Horace é capaz de fazer o mal a uma criança que sequer nasceu... Ele esteve lá quando Monsieur LaRouchelle morreu.

— Insinua, Miss...?

— Não sei. Só sei que Horace superprotege Nicque. Ele afirma que é a única irmã que tem, e que, por isso, precisa zelar por ela. Acho que os dois tramam as coisas juntos, sabe?... Essa ideia sobre o bebê não partiu dele. Foi Nicque que plantou a semente no coração de Horace. Ele apenas agiu em conformidade com o que ela pediu a ele.

— Está dizendo que eles orquestraram a morte de LaRouchelle? É uma acusação grave, Miss.

— O interesse econômico se sobrepõe a muita coisa, Mr. Fëll. O senhor faria melhor se me escutasse! Sei onde piso.

— Não duvido, Miss. Não duvido.

— E quanto à morte de Louise? Não acha que Horace possa estar metido nisso?

— Talvez seja preciso tempo antes que cheguemos à verdade. Até agora temos pouca coisa para dizer ou para confirmar. Em tese, qualquer pessoa pode ter vitimado Miss Grovenor. Não sabemos bem o que aconteceu, nem quem está implicado. O que sabemos é que o assassino agiu numa hora em que ninguém estava vendo. Como ele agiu? Falta descobrir.

Os dois se ergueram e começaram o passeio de volta à estalagem. Iam calados, como se qualquer palavra fosse dispensável.

Na esplanada, toparam com o Signor Rigoletti, de pé, olhando a baía. Chegando perto, ele escondeu furtivamente um frasco no bolso da calça.

— Olá, Signor Rigoletti!

— Mm — grunhiu o italiano, os lábios finos curvados numa expressão de ironia.

Quando já estavam suficientemente longe, Patrice cochichou para Fëll:

— Que frasco era aquele?

— Pelo cheiro era hidratante de óleo de amêndoas...

— É sério?

— Estou brincando, Miss — sorriu Fëll. — Só brincando.

— Ah, ainda bem — a moça soltou o ar. — Agora o senhor me assustou!

— Ei, vocês! — chamou uma voz mais adiante. — Estão vindo da orla?

Era Hannah Wigginfort, com uma toalha de banho enrolada na cintura. (Os atributos físicos tinham se dissipado há tempo e o que sobrara era uma carcaça seca e com a textura de um pergaminho.)

— Estamos sim, Mr. Wigginfort — veio a resposta polida de Fëll.

— A água está muito fria? Quero molhar os pés um pouquinho.

— Não testamos a temperatura, mas a água deve estar boa sim.

— Muito obrigada. Tchauzinho.

Ela acenou, muito alegre e satisfeita.

— Só uma pergunta, Madame — aproveitou Fëll. — A sua filha... Onde posso achá-la?

— Eliza? Oh, ela foi para a quadra de tênis. É lá que vão achá-la.

Seguiram em frente. Separando-se de Patrice, Fëll dirigiu-se para a quadra de tênis.

Estavam jogando em duplas: O’Danugheon e Eliza contra Leonard e Marck. Fëll parou à beira do campo, a certa distância de Nicque. A mulher gingava o corpo, e mordia a unha do mindinho com infinita má vontade. Não demorou muito, porém, para reparar no detetive. A má disposição de Nicque desapareceu instantaneamente.

— Apreciando o jogo, Mr. Fëll?

— Minhas paixões são bastante convencionais, Madame. Para ser franco, pretendia falar com Miss Wigginfort. Mas vejo que ela está ocupada.

— Ocupada e vencendo o jogo! Posso chamá-la, se quiser. Está mesmo na hora de substituí-la.

— Faça o favor...

— Eliiiza! — gritou Nicque. — Tem gente querendo falar com você.

— Comigo?

— Venha cá, sua espertinha. Pare de massacrar essa dupla de novatos.

— Novatos, é? — retrucou Leonard, num tom divertido. — Pois jogue contra nós, sabichona. Vai ver já quem é o novato.

— Vai ver mesmo — apoiou Marck.

— É para já — disse Nicque, posicionando-se com a raquete. — Vá lá, Mr. O’Danugheon!

— Certo — disse o inglês. — (BÉC!)

O jogo reiniciou. Enxugando o suor do rosto, Eliza juntou-se a Fëll; ambos se afastaram alguns metros.

— Pratica sempre, Miss?

— Ocasionalmente. Exercícios fazem bem. Além disso, me mantém afastada de Mrs. Vigilância.

— Tem uma boa saúde.

— Sou alérgica a pólen! No mais, tudo bem.

Fëll acenou discretamente. Fëll usou sua introdução-padrão:

— Queria lhe perguntar uma coisa, Miss Wigginfort. Sobre ontem à noite...

— O que é?

— Foi Miss Grovenor que lhe deu o número de telefone do Major Bernwell?

A menção do nome da garota morta comoveu Eliza.

— Por Deus, eu tinha até esquecido de Louise! Devo ser a pessoa mais desalmada do mundo. Ontem ela ainda estava lá, falando comigo... Ela tinha, claro, alguns problemas em contrabalançar o lado bom e o lado mau, mas mesmo assim, era inteligente e estava bem disposta. Eu pessoalmente gostei dela. Cordial, amistosa, boa gente... Mas sei que nem todos pensavam da mesma maneira. Oh, esse é o mal das pessoas. Elas tentam agradar mais a si mesmas que aos outros.

— É mesmo — disse ele, com a devida compunção.

— Eu havia acabado de jantar. Mamãe tinha feito o showzinho dela e eu queria um pouco de privacidade. Encontrei Louise no bar. Ela estava lá, de cabeça baixa. Percebi logo o que se passava. Todos vinham comentando o mal-estar existente entre ela e os Abernettye. Sentei-me ao seu lado, e fiquei ouvindo ela falar. Não gosto de meter o bedelho em assuntos de outros, mas sabe... — eu não podia deixá-la ali, sem mais nem menos. Foi então que... do nada... ela olhou bem em meus olhos e disse: “Você tem que me ajudar, Eliza!” “Eu?”, perguntei. “Se algo me acontecer”, disse Louise, “se alguma coisa acontecer comigo, ligue para este número.” E, com mão tremida, deu-me um bilhetinho.

— Qual foi a impressão que teve, Miss?

— A de uma mulher assustada, apavorada até.

— Algo mais?

— Ela disse: “Caso algo me aconteça, ligue para essa pessoa. Pode fazer isso por mim?” “Posso”, disse eu.

— Acha que ela temia alguma coisa?

— Sim.

— O quê?

Eliza voltou-se para o detetive.

— De que fosse morta, lógico.

Eram aproximadamente cinco horas quando Fëll se reuniu a MacCormeck, que estivera interrogando os funcionários do BlueMoon.

MacCormeck parecia derrotado e exausto.

— Nada. Ninguém viu ou ouviu coisa alguma.

— Vamos resolver o caso até meio-dia, also!

— O mais incrível é que nem sequer podemos confiar no testemunho de Madame Abernettye, essa é boa! Seria de esperar que tivesse um pouco do veneno, que alega ter usado, em seu poder. Reviramos tudo... Nem o menor rastro. Isso está se tornando maçante.

— O quarto de Miss Grovenor está aberto à visitação? — perguntou Fëll, num tom estranhamente neutro.

— Que espécie de visitação? — MacCormeck olhou interrogativamente para ele.

— Da espécie mais desinteressada possível.

— Desinteressada, sei. Acha que meu pessoal não...? Ah, com o senhor é inútil discutir. Venha, tenho a chave.

Galgaram os degraus. Um policial uniformizado mantinha-se a postos diante do quarto a fim de afastar intrusos indesejados.

— É pouco provável que achemos alguma coisa aqui — o Superintendente destrancou a porta. — A moça subiu, trocou de roupa e desfaleceu atrás do biombo. Já conhecemos os detalhes.

Fëll não respondeu. Apanhou o caderninho onde, de manhã, havia feito os desenhos:

— Não custa dar outra olhada...

— Falou e disse.

Depois de resfolegar, concentrado em recriar mentalmente todas as circunstâncias e fatos, Fëll foi para a penteadeira. Verificou os objetos jeitosamente arrumados no console.

— Quanta maquiagem, hein? — comentou o Superintendente. — Veja.... Sombra, base, pó, batom, rímel... É coisa que não acaba mais!

— Os itens do kit básico...

— Básico? Essa é a metáfora mais inusitada que já ouvi. Kit básico, pois sim! Grampos... um lenço de papel manchado de batom...

— Batom rosa — frisou Fëll.

— Batom rosa, que seja.

MacCormeck calou-se ao ver que a porta se abria e o Major Bernwell entrava apoiado em Monsieur Suttom.

— Cavalheiros... Me dão licença?

— Senhor, não pode... — o guarda tentou detê-lo.

— Tudo bem, Kyd — disse MacCormeck, com surpreendente condescendência. — Eu me responsabilizo por ele. Entre, Major.

— Obrigado, Superintendente. O senhor também, Monsieur Suttom. Daqui eu me viro.

Tendo-se livrado do hoteleiro, Bernwell voltou-se para Fëll e o Superintendente.

— Com a permissão de vocês, vou-me sentar. Essa maldita dor muscular está me matando.

— À vontade...

— Vi quando subiram. Já apuraram alguma coisa?

— Pouca coisa, Major — disse Fëll. — Praticamente não há ponta solta, nada que favoreça a nossa investigação.

— O que estão olhando aí?

— Estávamos examinando os objetos pessoais de Miss Grovenor.

Bernwell falou de novo.

— A maioria dessas coisas foi dada por Leonard. Ele gosta de cumular as mulheres com presentinhos e agrados.

Fëll pegou uma caixinha de lápis de olho ao acaso. Abriu. Dentro, uma inscrição dizia:

Para Lo — meu eterno amor.

— Eterno, mas com data de validade...

— Foi uma relação instável — disse Bernwell. — Nessa época os dois estavam apaixonados; eram loucos um pelo outro. Davam-se muito bem. Durou até o belo dia em que Leonard conheceu Nicque. Foi paixão à primeira vista. Ela, com seus olhos expressivos... fotogênica... Uma mulher bonita e interessante, sob todos os pontos de vista.

— E Mr. Amay?

— Não era um estudante aplicado e sua maior preocupação era arranjar um emprego. Deu no que deu. Felicidade de uns, sofrimento de outros. Louise ficou fula. Em vez de ouvi-la, o que Leonard fez? Ficou racionalizando, dando desculpas, justificando suas ações, fugindo do problema e, pior, tentando jogar a culpa nela. Foi uma grande canalhice, isso é o que foi.

— Aqui há mais... — Fëll leu: — “Para minha princesa”... “De Leo para Lo”! Um começo promissor que terminou de maneira trágica.

MacCormeck fez uma cara feia:

— É o que o amor gera nas pessoas. Ciúme, rivalidade, ódio...

— Às vezes, Superintendente — disse Fëll. — Às vezes... Acho, cavalheiros, que podemos encerrar por aqui. Vimos tudo o que havia para ver.

— Alguma coisa que interessa?

A voz de Fëll assumiu um timbre metálico:

— É fácil formular uma teoria quando se trata de algo que se pode ver. Se você está ferido, você aplica um pouco de iodo no ferimento e ata um lenço de seda sobre a região onde os cortes são mais profundos. Pronto, você sabe que agora é só uma questão de tempo até tudo estar bem. Não é o nosso caso... Nós vemos a ferida, mas não sabemos o que a causou. Um ferro cortante, a mordida de um cachorro, uma punhalada... Não, nós não sabemos. Temos que ajustar e padronizar alguns detalhes. Ajustar e padronizar... Depois disso veremos se há alguma coisa que nos interessa.


Capítulo 12

 

Manhã seguinte. Isabelle Hollder contemplava o oceano Atlântico do alto de um rochedo. Ventava, o que dava certo ar de perigo nas trilhas que ladeavam fendas e abismos.

— Essas vistas sobre a Baía de Falmouth recordam o Mediterrâneo... Não é fascinante, Marck?

— Não sei como você diz essas coisas — reclamou Marck. — Parece até que viemos fazer turismo!

— Não diga isso! Olhe... Estamos a 20 minutos a pé da estação ferroviária de Falmouth Town... e quase ao lado do histórico Castelo de Pendennis.

— Que se dane!

— Ah, ‘tadinho de meu marido! Tão chateado...

— Já disse para não falar comigo assim, Belle.

— Eu achei que você fosse meu anjo da guarda, querido. Não essa pessoa birrenta que você é.

— Birrento, eu?

— Birrento sim. Sabe qual é seu defeito? Você deixa os sentimentos suplantar o discernimento.

— Não diga!

— E mais, Marck... Você é como um dedo destroncado: não quer voltar para o seu lugar. Tem que ser mais paciente.

— Que papo é esse? Se quiser estrangular um frango, Belle, você não pode vacilar. Sua mãe não ensinou isso?

— Mas nós não vamos estrangular um frango.

— Não, é? É quase como se fosse.

Isabelle olhou para o quebra-mar coalhado de barcos de pesca.

— Agora que já me descascou, o que quer que eu faça?

— Quero que faça o que viemos fazer. Foi você que nos trouxe aqui. Essa sua decisão faz sentido e tem base, ou foi tomada sem pensar?

— Não precisa abordar o assunto desse modo, Marck!

Ele segurou-a pelo ombro.

— Acha mesmo? Pode ser que não seja nada, mas podemos perder a chance se não agirmos logo.

— Está bem — respondeu ela friamente. — Vou ver o que posso fazer.

— Não se zangue comigo, Belle — a voz de Marck se suavizou. — Só quero o melhor para você.

— Não, Marck. Você só quer o melhor para si mesmo. Há uma grande diferença aí.

Soltando-se bruscamente do marido, a mulher começou a voltar para o BlueMoon.

— Belle... Belle... Eu não pretendia...

Ela ia chegar ao vestíbulo quando Marck a alcançou.

— Se faço mal a alguém, faço mal a mim mesmo — disse ele. — Desculpe-me pelo que eu falei, querida.

Fazendo-se de durona, Isabelle entrou. No saguão, Mrs. Wigginfort discutia com Monsieur Suttom.

— Oh, onde está ele? Tem que estar em algum lugar.

— Madame, eu lamento...

— Isso é uma vergonha, Monsieur. Meu chapéu sumiu. Também a minha pena de faisão. Estava com eles no salão ontem à noite.

— Sim, Madame... Naturalmente, Madame... Foi lá que os viu pela última vez?

O dono do hotel não cabia em si de preocupação. Ao seu lado, Eliza batia o pé, inconformada:

— Mamãe, isso já é demais! A senhora está me estressando.

— Não me censure, filha.

— Estou pouco ligando!

— Seja boazinha e ajude a procurar, sim?

— Procurar onde? Não sei o que a senhora fez, mas isso passou da conta.

— O que houve? — perguntou Fëll, que passava casualmente por ali.

— Mamãe perdeu sua linda pena de faisão!...

— Aqui embaixo?

— Sim, no salão — disse Mrs. Wigginfort.

— Não está mais lá?

— Não.

Todos se empenharam nas buscas. Monsieur Suttom bufava como um búfalo. Tudo em vão. O chapéu com a pena de faisão de Mrs. Wigginfort não apareceu.

Depois do almoço, a vasta maioria dos hóspedes tomou cada qual sua própria direção. Fazia calor, e Fëll sentou-se com Patrice debaixo de um guarda-sol do terraço. A moça estava abatida e triste, e volta e meia passava o lenço no canto do olho.

— Confesso que estou tão confusa — choramingou ela. — Será que fiz a coisa certa, Mr. Fëll? Ainda amo Horace. Eu gosto quando ele sorri. Gosto das coisas que ele diz.

— Calma, Miss Alisson. Do jeito que fala, parece que está para morrer. Vai levar algum tempo para engolir a amarga realidade, mas vai superar, eu garanto. Moças como a senhorita sempre superam.

— Tomara que sim.

Fëll deu uma palmadinha paternal em sua mão.

— Como ele reagiu?

— Disse que vai lutar por mim. Oh, Horace... tão querido!

Precedida por um grito, Nicque irrompeu pela porta, gesticulando muito e falando nervosamente.

— Não quero ela perto de mim, escutou? Não quero, de jeito nenhum. E você vai cuidar disso para mim, escutou? Você vai...

— Mas, Nicque!...

Atrás dela, Horace estacou em seco quando viu Patrice. Olhou alternadamente para ela e Fëll, desorientado. Inclinou a cabeça num aceno e foi atrás da irmã.

Fëll bocejou.

— Ich entschuldige mich, Fräulein, mas acho que vou tirar um cochilo.

— Deixe-me acompanhá-lo.

Enquanto saíam ainda puderam ouvir as palavras indignadas de Nicque. No corredor, esbarraram em Leonard que, ao passo de lesma, vinha com o Major Bernwell.

— Opa!

— Viram minha noiva?

— Está no terraço, Mr. Amay.

— Que bom... — Leonard sorriu malicioso: — Propus virmos correndo, mas o Major recusou.

— Fica para a volta — corou Bernwell. Baixou a cabeça, constrangido e envergonhado.

— É assim que se fala! — disse Leonard alegremente. Fez um aceno para Fëll e seguiram em frente.

— Pobre Major! — comentou Patrice, apertando o botão do elevador. — Era um militar tão ativo...

Leonard e Bernwell saíram pela porta giratória. Nicque estava tomando sol na esteira e Horace contemplava a baía, perto da balaustrada.

— Bem, Major, chegamos — disse Leonard. — E aí, querida!

— Já aqui, Leo? — resmungou ela. — Não disse que ia nadar?

— Não fui.

Leonard reparou que Nicque estava zangada.

— O que foi? Seu narizinho encantador está tão pálido!

— Desde quando se interessa pelo meu estado de saúde, Leo?

— Ei, o que houve?

Leonard olhou para Horace.

— Tem algo a ver com isso, Horace?

— Eu? Que é isso! Não sou eu que aborreço minha irmã.

— Menos mal.

De repente, a expressão do rosto de Horace tornou-se mais séria.

— Olhe só quem fala!

Arrastando os pés, o Major se sentou numa das cadeiras de praia. (Aliás, parecia que nenhum dos presentes prestava qualquer atenção nele.) Leonard beijou a testa de Nicque. Horace deu as costas para a amurada.

— Vocês vão mesmo ficar nisso?

Leonard levantou os olhos:

— Do que está falando?

— Disso aí... É beijo para cá, é carícia para lá. Por que não casam de uma vez?

— Acha que devíamos?

— Ah, vá! Não vai dizer que não anseia por isso?

Leonard não se deu por vencido e retrucou, com malícia:

— Ouvi dizer que você e Pat romperam.

Horace encolheu os ombros, num gesto de indiferença.

— E daí?

— Nada.

Os dois homens estudaram-se, em silêncio. Um detestava o outro, mas, no momento, Leonard levava uma nítida vantagem. Finalmente, Horace respondeu, com voz dura:

— Creio que não entendi bem.

— Não entendeu? É muito conveniente para você, hein?

— Alto lá! — berrou Horace, lançando um olhar de advertência para o outro. — Quer saber? Eu já me cansei de você! Eu já me cansei de suas insinuações! Não permito que meta o bedelho em meus problemas, fui claro? Talvez eu devesse dizer que Nicque se sairia muito melhor sem você. Você... um caipira do campo, que mal consegue ler o nome de um restaurante na fachada!

— Ouviu essa, Major? Eu sou um caipira... Não imagina quantas vezes já me disseram isso. Recolha as garras, Horace! Não sou seu inimigo.

— Recolher minhas garras? Seu fanfarrão impertinente!

— Pensei que certas palavras tivessem sido banidas de seu vocabulário. É essa a educação que deram a você? Parabéns.

— Não deram — disse Horace. — Comprei num free shop.

— Meninos, parem já com isso! — disse Nicque. — Que feio!

— Foi ele que começou — disparou Leonard.

— Foi ele que começou! Assim por cima, você é bem corajoso!

Leonard deu de ombros.

— Céus, além de ter ficado sem mulher, é louco!

Horace rangeu os dentes e, com surpreendente rapidez... BAF! O punho de Horace acertou o queixo de Leonard.

— Horace! — gemeu Nicque (Foi um gemido estranho, gutural e distorcido.) — Que está fazendo?

— Estou ensinando bons modos a esse cara. É isso o que estou fazendo!

Sangue pingava do lábio de Leonard. A sua pele estava da cor de mogno polido, e os olhos vermelhos e vidrados.

O Major endireitou-se na cadeira. Quis ficar de pé, mas inutilmente.

— Senhores! — protestou com voz débil. — Pensem no falatório... no escândalo...

— Você está bem? — perguntou Nicque, ajoelhando-se ao lado do noivo. — O que você fez, Horace? Quer ser preso por assassinato?

— Não se preocupe, irmãzinha. Vaso ruim não quebra.

— Seu bruto!

Nicque percebeu que atrás de si alguém abafava uma exclamação de espanto. Era Eliza, que tinha vindo para buscar seu material de crochê.

— Oh! Meu Deus...

— Ai — disse Leonard, a mão no queixo. — Essa pegou em cheio.

— Rápido, menina! — gritou Nicque para Eliza. — Vá chamar o médico!

— Não é necessário...

— Cale essa boca, Leo! Vá, Miss Wigginfort, vá...

— Eu... sim, claro, o médico — disse Eliza, dando meia-volta. Parecia impressionada, o rosto entorpecido de terror.

Miss Wigginfort saiu correndo, intimidada com a ordem de Miss Abernettie. Desceu tropeçando até o segundo andar e bateu freneticamente à porta do Dr. Hagissart.

— Doutor Hagissart... Dr. Hagissart...

— O que aconteceu? — veio a voz lá de dentro.

— Leonard... Ele está machucado. Horace bateu nele. Está lá em cima. O senhor tem que vir e rápido.

O Dr. Hagissart espiou para fora. Parecia um coelho gigante em sua toca. Pestanejou:

— O quê?

— Sangue... pelo rosto todo... Oh, é horrível!

— O que está dizendo, Miss Wigginfort?

— Oh, depressa!... Acho que foi uma briga...

— Sim, sim, eu já vou — acedeu o médico, aturdido.

“Que explicação desconexa!”, pensou.

Agarrando as luvas de borracha, fechou bruscamente a porta e seguiu a moça.

Encontraram Leonard deitado numa esteira. Tinha a mandíbula roxa e inchada. O médico se agachou.

— E aí? Ferido, Mr. Amay?

— Não, não... Só uma luxação.

— Não foi o que ouvi dizer. Deixe-me ver...

Os dois homens trocaram um olhar de compreensão. O médico examinou sua boca e o maxilar.

— Hm... Nenhuma fratura.

— É grave, doutor? — perguntou Nicque.

— Vai sobreviver. Mr. Abernettye, precisamos levá-lo para meu quarto. Pode me ajudar?

Os joelhos de Horace tremeram. Tentou falar e não conseguiu.

— Mr. Abernettye! — disse o Dr. Hagissart. — Não é hora para essas picuinhas. Eu sei o que aconteceu. Resolva suas diferenças com este cavalheiro mais tarde.

Horace hesitou, e então disse rapidamente:

— Está bem.

— Ótimo. Pegue aqui... Segure firme. Isso... assim...

— Ande logo, Horace — incentivou Nicque. — Faça alguma coisa de útil.

— E você?

— Eu fico aqui. Quando Leo estiver melhor, me chame. Pretendo ir à praia com ele.

Enquanto conduziam o rapaz semi-nocauteado, o Major levantou-se:

— Eu também vou.

— Ah, não se incomode com isso, George. Fique se quiser.

— Não, obrigado... eu tenho mesmo que ir.

Com visível sofrimento, Bernwell saiu.

Nicque fez um gesto efusivo e declarou:

— Homens!

Ela disse “Homens” com pouco caso, como se todo o episódio tivesse tido pouca importância.

Parada de lado, Eliza fez que sim com a cabeça.

— Homens — repetiu condescendente.

— Não sei como os tolero! Basta um ver o outro para começar a rosnar. Puro ciúme!... Zangam-se por qualquer coisinha. Oh! Eu devia me jogar daqui de cima... Um pulo e — seria o fim de tudo!...

— Madame, não diga uma coisa dessas! — exclamou Eliza, horrorizada. — Não pode...

Ela parou de falar, com falta de ar, apavorada, com o coração aos saltos.

— Esqueça, estou sendo melodramática — disse Nicque. Com os olhos fixos no chão, parecia não ver ninguém. — Acho que puxei meu marido. Ele gostava de dramatizar em tudo. Ele se matou, você sabia?

Eliza escutava. Quis falar... Não lhe ocorreu nada espirituoso.

— Sim, eu sei — acabou por dizer.

— Agradeço pelo que fez, Miss Wigginfort — Nicque voltou a deitar-se na esteira. Deu um sorriso encantador: — Assustou-se com o que eu disse, vejo... É um mal que eu tenho — às vezes falo demais. Pode ir... não vou me jogar agora. Vamos deixar para depois.

Disfarçando ao máximo seus sentimentos, Eliza começou a recolher suas coisas.

Em voz baixa e excitada, murmurou para si mesma:

— Vamos deixar para depois! Essa mulher tem um parafuso a menos. Fala como se quisesse mesmo morrer... Ela não merece a vida que tem. Não merece...


Capítulo 13

 

Às 14h30, o celular de Fëll tocou.

— Alô, was ist?

— Mr. Fëll?

— Al er selbst.

— Aqui é o Superintendente MacCormeck. O mundo ruindo e o senhor tirando uma soneca.

— Mundo ruindo? — Fëll retesou-se na cama. — O que quer dizer?

— Quero dizer que aconteceu outro maldito assassinato. E, de novo, bem nas suas barbas.

— Quem? Como?

— Madame Abernettye... Enfiaram uma coisa na nuca dela. Morreu de asfixia e sangramento.

Edmund Fëll sentiu o quarto se inverter de ponta cabeça. Como se, de alguma forma, seus piores temores se confirmassem. Monicque Abernettye... Uma mulher firme... forte... profunda. Charmosa. E, no entanto, tão ingênua. O que teria acontecido? Uma coisa enfiada na nuca?

— Onde está, Superintendente? — murmurou Fëll, sem conseguir conter o enjoo.

— No terraço, lógico. Se quiser, venha logo.

— Also... Vou já para aí.

Vestindo-se às pressas, Fëll deliberou sobre o que poderia ter acontecido com a mulher. Será que, desta vez, haveria alguma pista sobre o assassino? Duvidava muito. Em vista das circunstâncias, era de se supor que não houvesse nada. Igual ao caso de Miss Grovenor. O assassino era sagaz... psicologicamente astuto.

Fëll deixou o quarto e, em dois minutos, chegou ao seu destino. O lugar era alvo do interesse geral, mas MacCormeck já havia delimitado a área. Ninguém passa a linha! — seu anúncio tinha sido rigoroso.

Havia um sentimento de apreensão, tensão e expectativa no ar.

— Pode vir — disse o Superintendente, fazendo um sinal para Fëll.

Contornando os guarda-sóis, Fëll aproximou-se do lugar onde estava o cadáver.

— O que aconteceu?

— Ninguém sabe ao certo. Pelo que apurei, Madame Abernettye estava sozinha aqui em cima. Alguém veio e a assassinou.

— É, bem nas minhas barbas — refletiu Fëll. — É mesmo muita ousadia.

— E ponha ousadia nisso! Veja...

A mulher, trajando um maiô lilás, estava de bruços na esteira. Sobre o dorso, uma toalha de banho. Um pouco acima, do lado esquerdo, alguma coisa sobressaía da nuca de Nicque Abernettye. Alguma coisa que tremulava, em cores vivas.

— O que é isto?

— Uma pena de pavão? — arriscou MacCormeck.

— Faisão.

— O quê?

— Pena de faisão... Mas... ora, deve ser a pena que Madame Wigginfort procurava hoje de manhã.

— Conte-me...

Fëll fez um resumo do que Madame Wigginfort tinha dito naquela manhã.

— Acha que é a mesma pena?

— Acho. E mais: pelo rombo que causou, deve ter uma guarnição de metal. Quem o avisou, Superintendente?

— Ninguém me avisou. Eu havia acabado de vir para investigar o homicídio de Miss Grovenor. Mal entrei no saguão, porém, Monsieur Suttom veio correndo, exclamando que tinha havido outro crime. Branco como uma vela. Estava tão perplexo e atarantado que não entendi a metade do que disse. “Ela-morta-é horrível demais!” e toda aquela coisa. “Monsieur Suttom, fale devagar!”, pedi. Aí ele contou... Contou sobre Mrs. Hollder...

— Isabelle Hollder?

— Sim.

— O que tem ela?

— Foi ela que encontrou o corpo. Mas me parece que não foi só isso. Quando chegou aqui, alguém a imobilizou e... Verdade seja dita, é uma história confusa. Depois vemos isso.

— Certo.

Fëll se inclinou e apontou uma coisa perto da cabeça da vítima.

— Um caroço...

— É, também reparei nisso.

— Parece uma pepita de ouro. Gostaria de saber o que significa.

— Por quê? — perguntou MacCormeck. Estava surpreso com o interesse do austríaco em tal banalidade. — Acha que tem um significado?

— Não sei, mas é curioso.

Fëll grunhiu. Endireitou-se e recuou um pouco.

— Nosso assassino teve sorte... ou foi esperto? Vejamos... Madame Abernettye está aqui, sozinha. Ele vem... sorrateiro... por trás e dá o golpe. Para impedir que ela grite... ou reaja, seja como for... é preciso dominá-la. Ele a domina. Ela estrebucha e morre. E então? Qual a próxima ação dele? O assassino saca uma pepita de ouro e a deixa ali... Ali! Qual a sua intenção? A grande pergunta é: como ele sabia que sua vítima estava aqui e, mais importante, como ele sabia qual a melhor hora para cometer o assassinato?

— Aí é que está!

— O Dr. Hagissart já esteve aqui?

— Já. Está medicando a outra mulher.

— Que mulher?

— Acabei de lhe dizer: Mrs. Hollder.

— Ah, natürlich; esqueci-me dela.

No chão havia uma poça de um líquido espesso e rubro. Fëll se agachou; inclinou levemente a cabeça e disse:

— Não sou especialista, mas, pela textura do sangue, a morte ocorreu há uma meia hora.

— Provavelmente.

— Antes de mais nada... Also, o que é isto?!

Fëll olhou para baixo. Três imensas rugas apareceram em sua testa.

— Ora essa!...

Com um lenço na mão, apanhou do chão qualquer coisa que o Superintendente não conseguiu enxergar.

— O que foi?

Era um tipo de espada curta, de perfuração, com duplo corte. Aparentava ter uns 10 cm de comprimento.

— Uma adaga — disse Fëll. — De quem será? E por que está aqui?

— Sei lá, mas seja o que for, só aumenta o mistério — murmurou MacCormeck.

— É mesmo.

O Dr. Hagissart apareceu dali a cinco minutos.

— Que tarde agitada! — comentou abruptamente. — Primeiro uma briga... depois o homicídio... e, como se não bastasse, mais a tentativa de homicídio!... Em nossa sociedade consumista, competitiva e nada cooperativa, indiferente e egoísta, parece que o crime virou coisa comum.

Fëll fez um gesto verdadeiramente petulante:

— Mrs. Hollder está bem?

— Oh, sim. Totalmente fora de perigo.

— O que houve com ela?

O médico acocorou-se perto do corpo.

— A coisa mais incrível que já ouvi. Diz ela que estava procurando o marido. Assim que passou por aquela porta... diz ela... alguém, por trás, passou o braço em torno do pescoço dela. Não reagiu nem nada. Diz que ficou imóvel, muda e estupefata. Ela diz que o braço foi apertando, apertando... até que não conseguiu mais respirar. Ela lembra que foi colocada no chão e que, então, perdeu os sentidos. Quando voltou a si, não havia ninguém... Viu o corpo e saiu correndo para dar o alarma.

— Julga que ela diz a verdade, doutor?

— Sim.

— Mrs. Hollder não é propensa a fantasias?

— Não creio.

— Prossiga, prossiga...

— Eu acabei esbarrando nela no corredor. Foi meio que por acaso, sabem? Viemos para cá, mas logo vi que não havia nada a fazer. Incumbi Monsieur Suttom de chamar a polícia e levei a mulher para baixo.

— Ela lhe contou a sequência de acontecimentos?

— Sim... meio aos trambolhões, mas foi.

Fëll acenou. Gostava da objetividade do médico, a sua forma concisa de falar e explanar as coisas.

— A morte ocorreu entre trinta e quarenta minutos atrás. Quer dizer, entre uma e meia e duas da tarde. A causa foi obviamente essa pena de avestruz. Pelo aspecto geral, ela também sofreu sufocamento.

— Por que sufocamento?

— Em casos de trauma subcutâneo, o sangue muitas vezes obstrui a garganta da pessoa. Incapaz de respirar, a pessoa morre.

— É possível.

— Possível e plausível — afirmou o Dr. Hagissart. — Está vendo isto? Gengivas pálidas. Hemorragia nos olhos. Confirma as minhas declarações iniciais.

Fëll fez uma pausa e consultou as suas notas.

— Expôs tudo muito bem, doutor — elogiou. — Deixe-me fazer uma pergunta... Disse que houve uma briga. Entre quem?

— Ah, foi entre Horace e Leonard. Uma tolice de gente jovem. Acho que se agrediram e Leonard acabou levando a pior.

— Saiu machucado?

— Queixo roxo, nada mais. Pus uma bolsa de gelo e mandei que ficasse de repouso.

— Fale-nos exatamente o que aconteceu...

— Claro... Foi assim... — e o inglês narrou sucintamente os fatos relativos ao caso. Ao fim, disse: — Corrijam-me se carreguei demais nas tintas.

— De modo algum — disse MacCormeck. — O que disse só aumenta a minha aversão contra esse rapaz — Mr. Abernettye. Logo que o vi, ontem de manhã, não gostei da cara dele. Um típico canalha que não se compromete emocionalmente com ninguém. É isso o que ele é.

Fëll perguntou, sabendo inflexionar bem:

— Também acha isso, doutor? Acha que Horace Abernettye é o assassino?

— Não vejo por quê. Que razões ele teria?

— Concordo. Apesar de sua aversão por ele, Superintendente, faltam razões.

— Razões! — disse MacCormeck com desdém. — Ultimamente o que menos há são razões. Qualquer um mata, quer haja ou não haja motivos.

Fëll esbugalhou os olhos.

— Tenho que discordar. Nein, nein! Isso não confere. Na maioria das vezes existe um motivo. Talvez a pessoa diga: “Oh, eu matei nem sei por quê!”, ou: “Matei por matar”! Mas esses pretextos, como bem sabemos, são pífios. No fundo, como atesta minha experiência no assunto, a verdade é outra. Geralmente um ato violento é motivado, ou estimulado, por alguma coisa. Raramente um crime dessa natureza é cometido num impulso cego. Nein, Herr Leitner... É um erro supor que a morte de Madame Abernettye tenha sido casual, que não tenha tido uma larga premeditação.

— Está bem, eu me retrato — respondeu MacCormeck. — Me expressei mal, reconheço. Deve haver um motivo — pronto, que isso fique registrado nos autos! Partindo dessa premissa, o que sugere que façamos? Se fosse um caso só, seria passável. Mas dois?!... É imperativo agirmos logo.

— Eu sugiro que, em primeiro lugar, falemos com Mrs. Hollder. Mas só se o senhor nos autorizar, doutor.

— Desde que ajam com moderação... Lembrem-se que ela acabou de se recuperar de um forte abalo emocional.

— Perfeitamente.

Encarregando um dos agentes de trazer Mrs. Hollder para baixo, Fëll e MacCormeck desceram para o térreo.

Lá encontraram Monsieur Suttom, escorado no balcão de recepções. Acanhado, ele deu alguns passos e parou diante do Superintendente.

— Ouvi dizer que o senhor vai tomar a dianteira nas investigações. No que depender de mim, pode contar comigo e com meus funcionários. Já dei ordens para que cooperem naquilo que for preciso. Só lhe peço uma coisa, senhor.

— O quê?

— Que descubra o quanto antes quem está fazendo isso. Não quero que esses acontecimentos repercutam mal sobre meus negócios. Odeio a publicidade e não quero que este caso seja julgado pela imprensa.

— Estou confiante, Monsieur Suttom, que tudo vai dar certo — disse MacCormeck. — Pode nos fazer um favor? Queremos fazer nossos interrogatórios em seu escritório. Pode nos emprestar a chave de lá?

— Pois não.

— Mais uma coisa! Interdite essa área para ser usada exclusivamente por mim e por Mr. Fëll.

— Será feito.

— Obrigado. Quanto ao assassino, nós vamos apanhá-lo... e logo!

Profundamente grato, o gerente se retirou.

— Estou confiante que tudo vai dar certo — sorriu Fëll. — Espero que estejamos à altura de seu otimismo.

Entraram no escritório. Limpo e mobiliado com antiguidades em estilo diretório — um local adequado para o que se propunham.

Isabelle Hollder não demorou a vir. Fëll estendeu o braço, convidando-a a sentar-se. Ela soltou o cabelo que ia até os ombros, espalhando-o no encosto do sofá. Com calma, ergueu vagarosamente a perna fina e perfeita e apoiou o pé no rebordo da lareira.

— Muito bem, cavalheiros. A que devo a honra desse gentil convite?

Fëll sentou-se também. Abriu a boca, hesitou, cruzou as pernas e franziu a testa.

— Ouvimos o doutor dizer que a senhora estava bastante abalada com o que lhe aconteceu há pouco. Parece, no entanto, que ele exagerou sensivelmente a gravidade de seu estado!

— Oh, não foi nada. Apenas uma chave-de-braço bem aplicada. Perdi os sentidos...

— Conte-nos como foi.

Isabelle repetiu, grosso modo, a história que o médico já tinha relatado a eles.

— Eu estava na praia, dando um e outro mergulho. Marck havia dito que tomaria uma ducha e que logo estaria lá comigo. Esperei uns vinte minutos... e nada de Marck aparecer. Meu marido tem essa mania incômoda de sumir nas horas mais impróprias! Voltei para o hotel... Procurei por ele na esplanada, na maioria dos quartos, e nada. Ninguém tinha visto Marck, nem sabia onde ele estava. Decidi subir para o terraço, na esperança de que estivesse lá. Assim que passei pela porta, senti... senti um braço se fechar em volta de meu pescoço, como um torniquete. Não sei o que aconteceu depois; só sei que, antes de desmaiar, vi uma série de letras... lá... dançando diante de mim.

— Uma série de letras... Onde?

— Estavam bordadas... aqui... no roupão da pessoa.

— Consegue se lembrar das letras?

— G-A-L-E — soletrou Isabelle com uma ligeira satisfação na voz.

— Gale¹ — disse MacCormeck. Em seu íntimo, sentia-se perplexo.

— Sim. Quando dei por mim, estava lá no chão, a cabeça explodindo de dor. Levantei-me e vi — vi Nicque e aquela coisa espetada nela. Quanto ao resto, interroguem o Dr. Hagissart; foi ele que me socorreu... já que cai literalmente em seus braços.

— E o que mais?

— Nada. Foi só isso.

Isabelle encolheu-se na cadeira, depois inclinou a cabeça para trás e respirou fundo.

Fëll levantou-se com ar decidido, tirou o monóculo; passou um lenço na lente; pigarreou e disse:

— Permita-me entender o caso, Mrs. Hollder. A senhora está dizendo que quase morreu esganada, que esteve com a vida por um triz. Ficou desacordada por não-sei-quanto-tempo, etc. e a única coisa que diz é que foi só isso? Tem certeza que é só isto?

— Estou viva, não estou? Se quiser ver as marcas da selvageria!...

Com um repelão, ela desnudou o pescoço; nele, um vergão aparentemente denunciava a carne magoada.

Com grande paciência, Fëll continuou o interrogatório da mulher.

— Qual era seu relacionamento com a vítima?

— Nenhum.

— Algum grau de parentesco?

— Também não.

— É interessante...

— O que é interessante?

— Vou ser franco, Mrs. Hollder. A bem dizer, esta tarde Madame Abernettye disse uma coisa... uma coisa curiosa...

— O que foi que ela disse?

Havia agora uma visível hostilidade na voz de Isabelle.

— Aconteceu depois do almoço... Ela declarou que havia tido um desentendimento com alguém. Por eliminação, é difícil dizer com quem foi. Teria sido, por acaso, com a senhora?

Isabelle não respondeu. Olhou para o detetive. Os dois estudaram-se mutuamente, cada um deles à espera que o outro dissesse ou fizesse alguma coisa.

Por fim, ela resolveu-se a falar:

— Talvez... Satisfeito?

— Contanto que a senhora diga o que aconteceu. O que houve entre vocês duas?

— Assuntos pessoais, cavalheiros. Assuntos sobre os quais prefiro não falar.

É espantoso! Para não dizer abominável! pensou MacCormeck. Nunca vi ninguém mentir tão mal.

— Há mais alguma coisa que queiram saber, cavalheiros? — perguntou Isabelle. — Se não precisam mais de mim, posso sair?

Era um tipo de franco apelo.

— Pode, claro — acedeu Fëll. — Só uma última pergunta... O que achava de Madame Abernettye?

— Uma mulher hedonista, personagem de uma sociedade mergulhada em compras e paixões. Não fará muita falta.

— Belle! Belle! Meu Deus... Você está bem?

Como um bólido, Marck entrou no escritório. Estava aflito e preocupado, em parte devido ao cansaço e em parte devido ao constrangimento. Foi direto para a esposa, paternal e protetor.

— Senhores, meu marido! — ironizou Isabelle. — Louco para salvar a donzela... mas outra vez atrasado.

Na voz mais estimulante possível, Fëll disse:

— Wilkommen, Mr. Hollder. Era com o senhor mesmo que queríamos falar. Tem um minuto para nós?


¹Gale: (ing.) vento forte, temporal.


Capítulo 14

 

Em meio ao silêncio, Marck ajeitou os óculos. A sua hesitação durou pouco.

— Querem falar comigo? Sobre o quê?

— Uma variedade de coisas — respondeu Edmund Fëll. — A começar, a respeito de onde esteve até agora.

— É sério? — Marck estava atônito. — Fui à praia. Fiquei lá, na orla. Andando na areia... escutando o marulhar das ondas...

— Não diga! — exclamou Isabelle, zangada. — E eu procurando por você como uma estúpida. Passar bem, Mr. Hollder!

— Belle... Belle... me ouça!

O protesto veio tarde. A mulher já havia ido.

— Acho que ficamos a sós, meu rapaz — disse Fëll. — Pode dispensar alguns instantes de sua atenção?

— Parabéns, cavalheiros; vocês venceram — suspirou Marck, resignado. — Do que se trata?

— Sabe muito bem do que se trata. O assassinato de Madame Abernettye...

— Um fato lamentável, é a única coisa que ouso dizer. Sim, lamentável. Mas fazer o quê? A vida é assim: num dia estamos bem, no outro nem tanto.

— Palavras duras, Mr. Hollder.

— Fui campeão de dardos duas vezes seguido. Tento ser realista, senhores. Essa mulher tinha o destino traçado desde a hora em que pisou nesta estalagem. Pensem no que ela vinha fazendo com o Signor Rigoletti, o infeliz! Usou e abusou do coitado, instigando nele a falsa ilusão de que faria um acordo. Acordo uma ova! Ela estava se divertindo à custa dele, isso sim. Só mesmo um italiano idiota para não perceber algo tão evidente.

— Então ela colheu o que semeou!...

Marck sacudiu os ombros.

— Exato. Não é o que acontece na maioria das vezes? Eu tinha um tio ricaço que fazia a mesma coisa. Agia como se fosse o governante do mundo, mandando e desmandando conforme lhe convinha. Tripudiava de todo mundo — funcionários, amigos de alta patente... Deu no que deu. Foi morto em um solar próximo do East River.

— É assim que vê as coisas?

— Vocês não?

— Ainda estamos formulando uma teoria. Em todo caso, podemos incorporar o que disse à nossa investigação. Enquanto isso, pode nos contar, em pormenores, tudo o que fez esta tarde?

— Creio que já lhes disse que estive na praia.

— Como eu disse — em pormenores...

— Percebo — murmurou Marck. — Às doze e meia, Belle e eu fomos para nosso quarto. Fiz duas ou três ligações para meu contador. Cerca de uma hora, Belle resolveu passear por aí e saiu.

— Passear por onde?

— Como eu disse por aí — replicou o rapaz. — Quanto a mim, fui tomar uma ducha. Fiquei uns quinze minutos, depois desci também... e o resto vocês já sabem.

— Alguém o viu na praia?

— Alguém que me forneça um álibi? Creio que não. Ah, não, minto. Aquele senhor gordo... eu o vi por lá. Estava lá, falando ao celular.

— Pode descrevê-lo?

— Bastante corpulento, mediano de idade. Cabelos brancos.

— O’Danugheon — disse Fëll. — Ele viu o senhor?

— Talvez... não sei.

— Ou seja, não tem nenhum álibi, Mr. Hollder.

— Receio que não.

— Vamos falar um pouco de sua esposa. Ela tinha uma desavença com Monicque Abernettye?

— Por certo que não! Até esta semana, sequer havíamos tido contato com essa senhora.

— Tem certeza?

— Absoluta.

— Isso é meio suspeito, não acha?

— Não vejo como.

— Senão vejamos — o detetive juntou a ponta dos dedos. — A sua esposa é irmã de Patrice Alisson, não é?

— E daí?

— Daí que Miss Alisson, até ontem, namorava Horace, justamente o irmão de Madame Abernettye.

— Isto não significa nada. Belle e Patrice não se dão há anos. Praticamente não se falam, não ligam, não escrevem...

— Alguma razão para isso?

— Diferenças inconciliáveis, ou coisa do gênero. Existem famílias assim... não têm apego, nenhuma intimidade. Além do mais, Patrice sempre quis ser independente, alegando que faria sua própria sorte. Explicado?

— Danke, Mr. Hollder. É só. Mandaremos chamá-lo se precisarmos de mais esclarecimentos.

Marck espantou-se por ser dispensado dessa forma. Abriu a boca mas fechou-a em seguida. Disse:

— Às ordens — e saiu.

— Este sujeito devia integrar o corpo diplomático — comentou MacCormeck. Voltou-se para Fëll: — Achei que me deixaria conduzir o inquérito! — reclamou. — Achei que essa função especial e indesejável fosse minha.

— Entschuldigung... Às vezes eu me empolgo.

O austríaco contraiu a testa, visivelmente envergonhado. Foi algo tão cômico e inesperado que o Superintendente, mesmo sem querer, chegou a sorrir.

— Está bem — silvou, soltando o ar entre os dentes. — Esqueça, não vamos discutir por tão pouco. A propósito, tem uma coisa que me intriga.

— Was?

— O senhor ainda não perguntou que veneno matou Miss Grovenor! Custo a acreditar nisso.

— Já tem o resultado?

— Sim. Quer dar uma olhada?

Fëll examinou o relatório da toxicologia.

— Envenenada por ácido oxálico — leu. — Sintomas: dor abdominal, choques, tremores, queda da pressão arterial, pulso fraco, etc. etc.

— Um método requintado para matar alguém, não?

Bateram na porta e Horace entrou, bufando e encarando furiosamente os dois homens.

— Superintendente MacCormeck! Eu exijo uma ação imediata... Isso já foi longe demais!

Alto, espadaúdo, de quadris estreitos e nariz aquilino, todo ele tremia, o semblante pálido e sombrio.

— Ah, Mr. Abernettye... — disse Fëll, indo ao encontro do rapaz. — Entre, bitte. Nós...

Horace ergueu a mão, num gesto de autodefesa.

— Não toque em mim, pelo-amor-de-deus! Nicque foi assassinada. Vocês tem que prender aquele cara. E já!...

— Prender... que cara?

— Ora, que pergunta estúpida! Leonard, é óbvio!...

Fëll pareceu perturbado e olhou atentamente para Horace.

— Nem tudo o que é óbvio é verdadeiro. Ou vice-versa. Há fatos que, por escapar à compreensão das pessoas comuns, assumem proporções gigantescas. Proporções tais que, é bom dizer, mais assustam do que esclarecem. Se Mr. Amay for culpado, temos que provar e puni-lo. Mas se não for...

O lábio do rapaz tremeu. Parecia completamente indefeso. Ele inclinou-se de modo a ficar a algumas polegadas do rosto de Fëll.

— O senhor está me gozando? — perguntou sem mexer os maxilares. — Maldição! Acha que não sei o que estou dizendo?

— Como sabe que foi ele?

— Como eu sei? Não sou ruim em interpretar expressões. Agora ouçam, e façam exatamente o que eu digo. Vão lá e deem um jeito nisso. Que diabos há com vocês? Vamos, mexam-se!...

— Não é assim que a coisa funciona — tornou a dizer Fëll, impaciente. — São necessárias algumas formalidades que não podem ser burladas. Por que não se acalma e nos diz onde esteve entre uma e meia e duas horas?

Horace respirou fundo e esfregou as têmporas.

— Glória a Deus nas alturas! Aqui estamos nós negociando a liberdade de um criminoso. Ótimo! Já vi que a justiça foi para o beleléu.

— Nada foi para o beleléu — interferiu MacCormeck, contrariado. — É pouco provável que essa exaltação resolva alguma coisa, meu jovem. Em vez disso, responda à pergunta que foi feita.

— Que pergunta?

— Mister!...

— Está bem, relaxem. Eu estive em Falmouth. Adoro tudo nessa cidade: ruas pavimentadas, o porto, o Museu Marítimo Nacional... e tudo a poucos passos daqui. Foi bom andar um pouco depois da briga medonha que tive com aquele cretino.

— Por que agrediu Mr. Amay?

— É um tratamento que eu inventei.

— Ah, um tratamento novo?

— É.

— Vem de longe?

— Ha! Ha! Ha!

— Tem um ingrediente secreto?

— Nenhum.

— Usa uma força que só o senhor conhece?

— Tem graça! Não sabia que era comediante, Mr. Fëll.

— Não sou. Só quero que seja honesto conosco.

— O que acontece é que esse sujeito é invejoso de minha prosperidade. Sabiam que ele já foi processado? Coisa mais feia! Apropriação indébita. Desfalque. A maior roubada! Prometeu cem por cento dos lucros aos acionistas e foi todo mundo à falência. Aquele sujeito não é flor que se cheire... não é mesmo! Ultimamente estava aí, enrolando Nicque. Fingindo ser bonzinho... Nicque, Nicque! Que bobona... Ela se agarrou a ele como se fosse a última tábua do Titanic.

— Acha que ele não gostava dela?

— Não, não, nada disso. Acho que ele queria recomeçar do zero. E viu nela a chance perfeita de conseguir isso. Agora que Nicque não servia mais ao seu propósito — o crime! Um plano astucioso, não é?

— Astucioso e sem motivo — disse Fëll.

— Sem motivo, não. Ele vai herdar uma bolada.

— Quanto?

— Uma cifra com cinco dígitos.

Fëll, inclinado para frente, continuava olhando para ele.

— Dinheiro sempre é um motivo.

— Ainda mais com essa crise financeira. Percebem os efeitos que essa notícia produzirá na opinião pública?

— Estamos em águas turvas, Mr. Abernettye. Muito turvas. E quanto ao Signor Rigoletti?

— Aquele italiano ensebado? Parece um sapo inchado de tão gordo! Por muito mal que estivesse ele não chegaria a esse extremo.

— Está certo disso?

— Estou.

— Sua irmã, Mr. Abernettye, foi brutalmente morta. Perto do corpo encontramos uma adaga de origem oriental. Já teve uma dessas alguma vez?

— Nunca.

— Tem alguma ideia de quem seja?

— Nenhuma.

— Por que acha que ela foi morta com uma pena de faisão em vez da adaga?

— Isso lá tem importância?

— Nunca despreze o trivial, por mais indigno que seja.

— Escutem... Nicque morreu. Parte de mim morreu com ela. O senhor já deu provas, Mr. Fëll, de ter a inteligência e a astúcia necessárias para cuidar de casos desse calibre. Pelo menos foi o que eu li. Descubra o assassino, é só o que peço!

— Para descobrir o assassino, temos que interrogar todos os hóspedes. Por que não começamos pelo senhor?

— A sua escolha revela uma certa dose de oportunismo, não é? E se eu quisesse sair?

— Se o senhor quisesse sair, eu não poderia impedi-lo.

— Já que não há remédio... — disse Horace com voz sonora e imponente. — Então, o que querem de mim?

— Primeiro, o nome completo.

— Horace Damian Abernettye.

— Endereço?

— Downing Street, 34B.

— Algum hobby?

— Jogo lacrosse... golfe... carteado.

— Não quero que pense que estou sendo inconveniente, mas qual era sua relação com sua irmã?

— Vou falar francamente... Para mim Nicque era uma grande boboca. De certo modo, não admira que tenha sido morta.

— Quero trazer à sua atenção a gravidade do que acabou de dizer.

— Azar! Não sou uma máquina para despir minhas falhas e virtudes. Digo o que tem que ser dito. Nisso saí a meu avô.

— Quem era seu avô?

— Um biólogo russo, naturalizado norte-americano. Falava o que tinha que falar.

Bah! Conversa de doidos! suspirou MacCormeck. Minha pele está começando a pinicar!

— Se não se incomodam, posso interrompê-los um minutinho? — perguntou MacCormeck. Afundou na poltrona, os cotovelos apoiados nos joelhos. — Excluindo Mr. Amay, que outra pessoa o senhor acha que pode ser o assassino?

— Em ordem alfabética? A mulher de Marck, com certeza. Ela e Nicque discutiram por volta do meio-dia.

— Por quê?

— Ignoro. Só sei que Nicque frisou terminantemente que não queria mais falar com Isabelle. Perguntem ao Major Bernwell; ele estava lá, ouviu tudo. Mas também pode ter sido Pat. Pat tem uma natureza criminosa em potencial.

— Sua ex-namorada?

— Sim.

— É meio difícil de acreditar...

— Não entendo por que.

— Porque isso cheira a retaliação. Uma tentativa barata e pouco convincente de jogar a culpa numa moça que preteriu o senhor.

— O que quer que esteja imaginando, ou o que quer que tenham dito ao senhor, não é verdade — disse Horace. — Estou só respondendo a sua pergunta.

— Sei... Lembra-se de mais alguém?

— Mrs. Wigginfort.

— A diva?

— Ela mesma. Os cirurgiões plásticos proliferam e tornam-se prósperos graças a mulheres como ela. Sempre tive meu gosto por automóveis de luxo, obras de arte, pratos finos e viagens ao exterior. Mas essa mulher é campeã em cortar e preencher a cara de Botox.

— Isso não faz dela uma assassina!

— Mas a inveja sim. Se olhar matasse, Nicque teria morrido já na primeira vez que conversou com essa mulher! Essa mulher é invejosa. Não vale um níquel furado. Pensem no contraste... Nicque, tão jovem, cheia de vida e saúde. Enquanto que ela...

— Está bem, Mr. Abernettye. Vamos tomar nota do que disse. Mrs. Hollder, Miss Alisson e Mrs. Wigginfort... É essa a sua lista?

— Não esqueceu ninguém, Superintendente?

— Claro... E Mr. Amay. Pode ir.

Horace apoiou a testa na palma das mãos, cerrou os dentes com força, os olhos cheio de lágrimas.

— Eu só quero que o assassino pague pelo que fez, senhores. Só isso.

— E aí, o que achou disso? — MacCormeck voltou-se para Fëll assim que ficaram sós. — Vir aqui, acusar alguém sem provas. Acha que é orgulho desse sujeito?

Fëll respondeu com a mesma suavidade:

— Orgulho. Devaneio. Cobiça. Mesquinhez. Ilusão. Deve ser tudo junto... Creio que ele quis dar uma finta em nós.

— Essa finta não vai valer de nada.

— Talvez não — disse Fëll, subitamente exausto. — Eliminar pistas falsas é um processo laborioso. Mas ainda é a melhor saída. Que tal falarmos com Leonard Amay?


Capítulo 15

 

— Céus, nem pensar! Os senhores devem estar brincando. Por que eu mataria Nicque? Não fui eu. Eu seria incapaz de uma coisa dessas.

— Seu nome foi sugerido... Mas da maneira que as coisas andam, isso não nos surpreende. Agora temos dois assassinatos... uma infinidade de hipóteses... e nenhum culpado.

— Mas não fui eu! — repetiu Leonard, asperamente. — Quero o assassino atrás das grades tanto quanto vocês.

— Ninguém está dizendo o contrário — asseverou MacCormeck. — É nosso dever esgotar todas as possibilidades.

Estavam no quarto de Leonard. Leonard estava no sofá, reclinado, o queixo inchado e vermelho. Parecia consternado, pasmo e abatido com a morte brutal da noiva.

— Possibilidades! Primeiro foi Louise, aquela moça que nunca deveu nada a ninguém. Agora Nicque! Quem será o próximo?

— Não haverá próximo — garantiu Fëll. — Desde que nos conte tudo o que sabe.

— Eu lá sei de alguma coisa! Estive o tempo todo aqui. Por recomendação médica... Não é sempre que a gente vai a nocaute com um uppercut no queixo!

— Gostaria que usasse o máximo de franqueza conosco, Mr. Amay. Por que foi agredido?

— Horace é um completo desequilibrado, um louco com um caráter autoritário e vingativo. Acha que pode com tudo e com todos. Morria de ciúmes só de ver Nicque ao lado de outro homem! Não admira que LaRouchelle tenha morrido do jeito que morreu.

LaRouchelle! O nome exerceu um efeito magnético sobre Fëll.

Fëll sacudiu a cabeça:

— Já que mencionou, lembro-me que o senhor prometeu fazer uma revelação sobre esse caso.

— Prometi?

— Sim. Creio que é hora de falar. LaRouchelle se matou ou não?

— Quanto a isso, não restam dúvidas. O que ninguém sabe é o que levou a isso.

— Uma suposta infidelidade?

— Nada disso — Leonard ficou chocado com a ideia. — A maioria das pessoas diria precisamente isso. Nicque tinha seus problemas e suas extravagâncias. Mas ressalto que ela nunca foi infiel. Isso eu lhes garanto de primeira mão!

— O que então motivou o suicídio?

— Fizeram a cabeça dele.

— Como?

— Vocês sabem... o método tradicional. LaRouchelle era neurótico, extremamente sugestionável. Imaginem alguém fazendo insinuações, dizendo uma coisa aqui, outra coisa ali.

— Que coisas?

— Do tipo: “Ah, se eu fosse você, faria ela sofrer. Matá-la? Não! Tem que ser algo pior do que isso. É... pior! Acabe com a sua vida! Sua!... Isso sim a fará sofrer. Sofrer... É isso o que você quer, não é?” Imaginem alguém dizendo essas coisas dia após dia... o efeito disso... a mente dele sendo minada... sempre mais... sempre mais... mais... até que...

— Uma espécie da lavagem cerebral...

— Exato.

Fëll semicerrou os olhos e franziu a testa. Mudou de assunto:

— Há o que vê e ouve, mas não sabe explicar o que viu ou ouviu. Há o que não viu nem ouviu direito e sai descrevendo de maneira errada o que pensou ter visto e ouvido. E há, por fim, o que viu e ouviu, mas prudentemente só fala quando é interrogado. É a essa classe de pessoas que pertence, Mr. Amay?

Leonard mordeu o lábio, respirando rápida e ruidosamente.

— É... acho que sim.

— Então diga-nos: o que o senhor viu?

— Eu não vi nada! Eu lhes diria se tivesse visto. Se ao menos houvesse alguma lógica nessa loucura! Mas não há. Não sei quem é o assassino... Seria um grande conforto se eu soubesse!

— Nenhum palpite de quem ele seja?

— Palpite? Ora... O italiano que vivia atrás de Nicque... Toda aquela papelada... aquela fala suave... Tem um ar não sei de quê. Talvez ele seja o assassino.

— O Signor Rigoletti... É engraçado! Pensei que ia mencionar Mr. Abernettye.

— Horace é um paspalho, mas tenho certeza de que não mataria Nicque. Aquela valentia dele é só pose. No fundo ele tem sangue de barata.

O celular de MacCormeck tocou. Era a unidade de perícia que documentava a cena do crime. Ele levantou-se.

— Com licença, eu já volto.

MacCormeck saiu.

Fëll olhou para Leonard. Sentou-se a seu lado; num tom paternal, disse:

— Ganz gut, Mr. Amay. Temo que as coisas não estejam nada bem para o senhor. Sem álibi, sem nada a dizer em sua defesa.

— Eu não assassinei Nicque! Quantas vezes tenho que repetir?

— Será fácil encontrar as provas, Mr. Amay. Não importa quem seja o assassino.

— Vão me vigiar e ficar me seguindo?

— Ah, não.

— O senhor é que sabe.

— Diga-me... O que aconteceu no terraço?

— Isto eu posso responder. Tivemos um arranca-rabo acalorado.

— Disso já sabemos.

— Quando eu e o Major chegamos lá, Nicque estava falando alto, reclamando de Isabelle ou coisa parecida. Cometi a asneira de perguntar se estava tudo bem. Para quê? Horace é o cara mais mal educado que existe; foi criado solto, nunca deu satisfações a ninguém. Vagabundeou por vários empregos, fazendo o que bem quis. Só sei que em pouco tempo estávamos trocando insultos. Dizem que a prevenção é a melhor arma. Pois é, hoje eu dormi no ponto. A próxima coisa de que lembro é dele avançando e aplicando um cruzado de direita bem aqui. Caí que nem um saco de cebolas. Daí apareceu Miss Wigginfort, toda alvoroçada, olhando para nós como se estivéssemos num ringue. Nicque gritou com ela... Miss Wigginfort saiu correndo... Depois veio o Dr. Hagissart... ele me ajudou a ficar de pé... daí me trouxeram para cá.

— Trouxeram... no plural?

— Horace deu uma mão... que ironia, não?

— Quem permaneceu lá?

— Nicque, o Major... Não, espere — o Major saiu atrás de nós... se arrastando, mas saiu. Miss Wigginfort... sim, ela permaneceu.

— Que horas eram?

— Uma e pouco.

— A morte ocorreu depois de uma e meia. Acha que Miss Wigginfort...?

Leonard ergueu e encolheu os ombros.

— Se ela tivesse uma forte razão!

Leonard disse aquilo e se calou. Fëll o observou por três ou quatro segundos. Seguiu por outro caminho:

— Ouça bem, Mr. Amay. A pessoa que mais odiava Madame Abernettye era Miss Grovenor. Pelo menos aparentemente. Deve ser duro para o senhor falar nisso, visto que tem uma parcela de culpa nessa história toda!

— Por ter largado Louise e ter ficado com Nicque?

— Indiretamente o senhor é sim responsável pelo aconteceu. Tanto ódio acumulado e represado não poderia servir a um bom propósito.

— O que o senhor queria que eu fizesse? — Horace empalideceu e olhou rapidamente para Fëll. — Que tivesse optado por Louise, que tivesse casado com ela, mesmo sem amá-la? Que tivéssemos tido filhos e, juntos, ter envelhecido num lar sem amor e sem respeito? Não posso crer nisso!

— O amor não é uma equação matemática, Mr. Amay. Ele é construído com o tempo, tijolo por tijolo, um pouco por vez.

— Olhe só quem fala!

Fëll enrubesceu.

— Also, não vamos fugir do assunto. Um crime revela muita coisa. Principalmente o que o assassino pensa a respeito da vítima. Sabe se mais alguém odiava Madame Abernettye?

— Há uma porção de gente louca solta por aí. Nicque era uma mulher forte, sólida. É claro que muita gente odiava Nicque. As pessoas adoram odiar o que não conhecem. E elas definitivamente não conheciam Nicque. Não como ela era na vida real. Não como eu a conhecia... Ela tinha lá suas limitações. Não ligo para o que pensam, entende? Não matei ninguém, é isso o que interessa.

Ao sair do quarto Fëll esbarrou no Dr. Hagissart. Este apertou-lhe mão com firmeza.

— Mr. Fëll!

— Doutor...

— E aí? As coisas estão começando a dar frutos?

— Que bom se fosse! Um detetive tem que explorar em conjunto os motivos e a mente do assassino. Uma parte não subsiste sem a outra. Até agora não temos nada.

— Não me diga! Deve haver um engano. O nobre Edmund Fëll admitindo uma coisa dessas! Não é todo dia, hein?

Fëll respirou fundo e respondeu lentamente:

— Ora...

— Ânimo, meu caro. Tem uma pessoa que deseja falar com o senhor. Lá embaixo no salão dos hóspedes.

— Quem é?

Hannah Wigginfort tinha a pele pálida, com algumas sardas em volta do nariz pequeno e pontiagudo. Quando a porta se abriu, ela levantou-se imediatamente com o coração batendo apressado.

— Oh, Mr. Fëll! — exclamou a diva. — É verdade?

Fëll parou e a observou atentamente. Não havia um jeito sutil de responder aquela pergunta.

— Sim, Madame — disse Fëll. — É.

Ao ouvir isso, Mrs. Wigginfort caiu no choro e soluçou incontrolavelmente.

— Foi um assassinato a sangue-frio, premeditado, cuidadosamente planejado.

— Com a pena... de meu... chapéu?

— Suponho que sim, Madame.

Mrs. Wigginfort soluçava e se sacudia violentamente, o rosto enterrado nas mãos.

— Eu sabia! — disse ela, enxugando as lágrimas com um lenço de papel. — Desde o início... eu sabia...

— Sente-se, Madame...

— Obrigada... O senhor viu?

— Vi.

— Oh! Isso é horrível...

— É sim, Madame.

Mrs. Wigginfort mordeu o lábio inferior e olhou para ele.

— Vão devolvê-la?

— Devolvê-la?

— A pena...

— Não agora... quando tudo acabar, talvez.

— O senhor não poderia... interceder... por mim?

— Acho que não. Lamento.

— Oh!... A polícia... Eles vão me interrogar?

— Creio que sim. Todos vão ser submetidos a um interrogatório mais detalhado. Não é minha decisão. São as regras.

— Vão me acusar, não vão?

Fëll fez uma pausa. Se alguém quisesse se livrar de suspeitas, aquele era o jeito mais improvável de conseguir isso.

— A julgar pelo que está dizendo, a senhora não cometeu esse crime — sorriu Fëll.

— Eu?! Por Deus não. Aquela moça tão delicada... Além do mais ela era tão boazinha comigo.

— Então não há o que temer, Madame.

— É que... o senhor vê... não quero que Eliza fique com vergonha de mim.

— Por que ela ficaria com vergonha?

— Fui sempre muito rígida com ela. Tudo o que tinha eu dei para os espetáculos, mesmo depois que não faziam mais o sucesso de antes. Às vezes ela não teve alimentação e nem cuidados adequados. Sei que foi errado... Eliza sofreu um pequeno derrame, seguido de embolia, causada por hipertensão, e que a deixou hospitalizada. Foi um período muito difícil para ela... e para mim.

— Sua filha culpa a senhora por isso?

— Sim. Até certo ponto...

— Percebo... — disse Fëll.

— O senhor precisa falar com Eliza, por favor! Diga-lhe que eu não tive nada a ver com... tudo. Só diga a ela. O senhor é a pessoa mais indicada para resolver esse assunto.

— Se é o que quer, vou dizer.

Mrs. Wigginfort pareceu aliviada. Como se um grande peso tivesse sido tirado de cima dela.

— Muito obrigada!

Fëll levantou as pernas devagar, uma de cada vez, e pôs os pés no chão. Sorriu de novo:

— Só para terminar... Onde a senhora esteve entre uma e duas horas?

— Na sala de bilhar. Entrei e... acabei adormecendo na poltrona.

— Sala de bilhar...

— Sim.

— Danke, Madame.

Fëll ia saindo quando viu alguém no saguão. Era MacCormeck, que veio logo ao seu encontro.

— Superintendente...

— O que ela queria? — perguntou MacCormeck à queima-roupa.

— Wer?

— A mulher... Não faça essa cara, homem! Falei com o médico. Ele disse que o senhor veio conversar com Mrs. Wigginfort.

— Jawohl...

— E?

— Ela quer que devolvamos a pena.

— Que pena?

— Com que Madame Abernettye foi assassinada.

MacCormeck achou graça.

— Essa é nova! O que ela acha que nós somos? Marionetes?

— Talvez — disse Fëll na dúvida.

— Deixe de ser debochado. Seja como for, andei pensando... Deveríamos ter um dedo de prosa com o Major Bernwell. Tem ideia de onde ele se enfiou?

— Deve estar nalgum lugar lá fora...

— Quer vir comigo?

— Depois do senhor, Superintendente.

Os dois homens saíram da estalagem.


Capítulo 16

 

Bernwell costumava não levar as coisas muito a sério. Mas ali, sentado na orla da baía, o rosto tenso e a boca apertada, ele mostrava claramente uma expressão carrancuda e zangada. Não podia acreditar que aquilo estivesse realmente acontecendo.

— Eu jamais teria imaginado... A pequena Nicque! O que ela fez para merecer uma morte dessas? Estou com medo. Perdido. Descompassado.

— Isso vai acabar logo — disse Fëll. — Ninguém precisa ter medo. Só queremos que nos conte se viu alguma coisa, Major.

Bernwell suspirou profundamente, procurando pensar em outra coisa. Ergueu a cabeça, os olhos enormes e assustados.

— Mas eu lhes garanto, dou minha palavra de honra, de que não vi nada. Eu estava no jardim. Fiquei lá o tempo todo. Por que estão me olhando desse jeito? — perguntou ele. — Eu não vi nada. Eu não sei de nada. Não sei!...

Bernwell tremia, embora o queixo permanecesse erguido, desafiador.

— Major, eu já disse e volto a dizer. Estamos só investigando. Não estamos acusando o senhor... Aliás, não estamos acusando quem quer que seja! Entendeu?

— Sim, sim...

— Está disposto a falar conosco?

— Aham... Sentem-se. Desculpem por não me levantar. Sinto minhas pernas entravadas desde ontem. É simplesmente constrangedor...

Com cuidado, Fëll estendeu um lenço na areia e sentou-se ao lado do Major. Teria que acalmá-lo, antes de ir direto ao assunto.

— É bom desabafar o que temos no coração, dizer como nos sentimos e do que precisamos. Esse crime deve ter afetado muito o senhor, não é mesmo?

— E pensar que eu estava ali... tão perto de tudo! Se eu tivesse olhado para cima, talvez pudesse ter visto o assassino se esgueirando até onde a pobrezinha estava. Não é justo! Lembro-me dela quando tinha dezoito anos... Era tão bonita! Lembro-me da primeira vez que a vi: os cabelos brilhantes e sedosos, os olhos grandes e expressivos. Usava um jeans azul e um suéter de lã... E hoje?! Por que isso teve que acontecer com ela? Por quê?

— Quem acha que fez isso?

— Como é que eu vou saber? Só um louco, alguém com um trauma cerebral, para fazer uma coisa dessas. Eu não digo nada, mas os senhores deveriam dar uma chacoalhada naquele noivo dela! Não é novidade para ninguém que ele não é lá grande coisa. Já foi acusado não sei do quê. Um homem benevolente e piedoso? Não mesmo! Ele é a eminência parda dessa história. Falem com ele! Façam com que ele confesse...

— Já falamos com Mr. Amay — disse MacCormeck, que tinha preferido ficar em pé.

— E?

— E nada. Ele alega que, na hora do crime, estava no quarto.

— Acreditaram nisso?

— Deveria saber, Major, que na fase atual das investigações a questão não é acreditar ou não no que se diz.

George Bernwell hesitou, mordendo o lábio inferior.

— Tem razão, Superintendente. Não estou pensando direito! Eu peço desculpas... Eu só quero que desta vez não deixem as coisas passar em branco.

— Não vamos, não se preocupe. Além de Mr. Amay, suspeita de mais alguém?

— Daquele italiano. Signor Righetti...

— Rigoletti.

— Ele mesmo. Pelo que vi, ele ficou a manhã toda ciscando em volta de Nicque, como se quisesse resolver a todo custo um assunto pendente entre eles. Achei um certo abuso, entendem? Ele pode ser o que quiser, pode ter o quanto quiser... Nada dá a ele o direito de ficar no pé de uma pessoa, ainda mais uma pessoa como Nicque!

— Não dá mesmo — disse Fëll fazendo uma anotação. — O senhor acha que pode ter sido Mr. Amay e o Signor Rigoletti. Mais alguém, Major?

— Horace.

— Por quê?

— Dinheiro, suponho. Horace sempre viveu endividado, esbanjando com garotas e bebida. Era capaz de passar por cima de qualquer pessoa para atingir seus objetivos. Nunca soube o que era poupar ou dar valor ao dinheiro que tinha. Toda semana estava tomando empréstimos do velho Abernettye. Com o pai morto, e os bens de família sob o controle de Nicque, talvez tenha restado a ele só uma alternativa: o assassinato. Ultimamente sou um ermitão e saio pouco. Mas eu conheço Gold Heaven. Todo o luxo... o piso de mármore branco... os tapetes persas... Aquilo acaba virando a cabeça de qualquer um!

— É possível...

— É sim.

O Major surpreendeu-se ao notar que o detetive continuava atento, parecendo realmente interessado.

— Mais alguma coisa? Vamos, vão em frente, perguntem!

— Dizem que o senhor esteve no terraço hoje à tarde.

— Estive.

— Também dizem que presenciou a briga.

— Foi a coisa mais infantil que já vi. Dois marmanjos daquele tamanho... sem mais nem menos, começaram a se insultar e se atacar que nem dois colegiais.

— Sendo que Mr. Amay levou a pior!

— Isso mesmo.

— Não quero aborrecê-lo, Major, mas gostaríamos que nos dissesse o que aconteceu depois.

— Primeiro ficamos todos preocupados, uma vez que Leonard não estava se sentindo bem. Daí chegou o médico... Daí eles o levaram para baixo, para o quarto.

— Quem precisamente estava lá?

— Eu, Nicque, os dois valentões e o médico. Quatro... Ah, claro, e Miss Wigginfort. Cinco.

— Prossiga...

— Quando iam saindo, Nicque pediu que fosse avisada tão logo Leonard estivesse melhor.

— Por quê?

— Queria ir à praia com ele, ou algo assim. Aí eu saí, peguei o elevador e desci.

— Miss Wigginfort ficou sozinha com Madame Abernettye?

— Foi.

— Viu se ela tinha alguma coisa na mão?

— Onde o senhor quer chegar?

— Alguma coisa... uma bolsa ou um pano dobrado?

— Não.

— Não o quê?

— Eu não vi... mas acho que ela não tinha nada na mão.

— Crê que a moça possa ter matado Madame Abernettye?

— Miss Wigginfort? Francamente, cavalheiros... Essa ideia é um tanto fantasiosa!

— Fantasiosa ou não — disse Fëll —, temos que tomá-la em consideração. O princípio básico é tomar tudo em consideração. Se quisermos saber de que direção foi atirada a pedra, por assim dizer, temos que analisar todas as hipóteses.

— Cl-claro — gaguejou Bernwell.

— Parece que essa conversa não levou a lugar nenhum — reclamou MacCormeck enquanto voltavam para o hotel. — Essa doença do Major deve estar começando a afetar mais do que as pernas dele! “Acreditaram nele?” Isso lá é pergunta que se faça?

— Esqueça isso, Superintendente — sorriu Fëll. — Veja só este lugar! A grama verde e aparada, as rosas vermelhas e brancas exalando seu perfume... Não é maravilhoso?

MacCormeck parou por um momento, depois continuou a resmungar.

— Maravilhoso? Não vejo nada de maravilhoso!

— Relaxe, às vezes temos que olhar com muita atenção para ver o valor de certas coisas. Além disso, até certo ponto está tudo indo bem. As motivações por trás do crime são um pouco mais profundas do que eu imaginei a princípio. Mas nada que não dê para superar. Não está pensando em desistir, está?

— Não, só estou um pouco cético.

— Bleiben Sie ruhig, mein Freund! Vamos falar com outra pessoa que é peça-chave nesse caso.

— Que pessoa?

— Eu não fiz nada! — disse Eliza Wigginfort. Olhou de um para o outro, os olhos brilhando, atentos. — Eu fui a última a vê-la com vida? E vocês acham que fui eu? Oh...

MacCormeck abanou a cabeça.

— Não estamos dizendo isso, Miss.

Mas Eliza não quis ouvir. Eliza sentia o rosto em brasa e o sangue fluindo mais rápido em suas veias.

— Estou cheia de ser repreendida, de ser acusada, de ser forçada a fazer o que não quero. Já basta mamãe... Acho que sou realmente a moça mais azarada do mundo! “Não faça isso, querida. Não faça aquilo. Vá de casaco. Você está gripada — onde estão suas pantufas?”... Odeio ser tratada como uma menininha de cinco anos! Tenho vinte e dois. Vinte e dois! Mereço ter a minha independência. Quero sair... me divertir... como qualquer garota faz. Acha que é pedir muito, Mr. Fëll?

— Não — disse o detetive, sem ver a relação entre os assuntos. Sem saber o que dizer, fez um gesto vago com a mão: — Talvez sua mãe só queira o seu bem, Miss.

— Proibindo-me de tudo, me afastando das pessoas? Sempre dizendo: “Você não vai a essa festa, Eliza! Não lhe dou a permissão, ouviu?”... Oh, como eu queria morrer. Morrer. Morrer.

Ela falava descontrolada, com a voz muito acima do tom normal. Os dois homens trocaram um olhar significativo, mas não fizeram nenhum comentário.

Eliza parou de falar subitamente e fez uma careta.

— Esqueçam o que eu disse, está bem? Sou uma tonta desastrada!... Às vezes falo pelos cotovelos.

— Melhor agora, Miss?

— Sim.

Eliza olhou para MacCormeck de modo estranho, penetrante, e arqueou as sobrancelhas:

— Disse que fui a última pessoa a ver Madame Abernettye viva, Superintendente?

— Foi o que apuramos.

— Mas não é verdade. Fiquei só alguns minutos com ela. Estava tão alegre e feliz, a coitadinha! Ela disse: “Viu só, Miss, como os homens brigam por mim? Dois ciumentos de marca maior, isso é o que eles são.” “São mesmo”, disse eu. “Tão valentões, uh!”, disse ela. “Se estivessem armados, teriam se matado. Um desperdício, não acha?” Eu concordei, pensando com inveja na sorte que ela tinha por ser tão bonita! Bonita até demais... Aí ela mostrou o estojinho. Era um estojinho de ouro, com as iniciais M. A. escritas com safiras na tampa. “Quer ver uma coisa que ganhei?” ela olhou brejeiramente para mim. Antes que eu pudesse responder, ela abriu a tampa e tirou de lá... Oh, como era lindo!

— O quê?

— Um diamante em forma de coração.

— Um diamante?

— Quase do tamanho de um ovo... Ah, foi a coisa mais incrível e emocionante!

Fëll olhou para Eliza e encarou-a, calado, por alguns segundos.

— Esse estojinho... Lembra onde é que estava?

— Na mesa, acho.

— Ao lado da esteira?

— Sim.

— Prossiga...

— Suspendendo o diamante, ela fez uma pose e brincou: “Que tal, Miss? Cai bem em mim?” “Muito”, respondi fascinada. Tão elegante... magra... e ainda por cima dona daquela joia! Algumas pessoas não sabem a sorte que têm! Aí eu lembrei que mamãe ainda não tinha tomado os comprimidos... De modo que apanhei minhas coisas de crochê e fui para a porta. Aí esbarrei naquele homem... — ih, como é o nome?

— Qual é o aspecto dele?

— Baixo, um pouco acima do peso, pele branca, meio descorada...

— O’Danugheon.

— Eu o cumprimentei com um gesto de cabeça e ele retribuiu, com um sorriso amarelo e sem graça. Aí vim para o térreo. Uma vez que mamãe estava dormindo no salão de jogos, fui para a sala da frente.

— Que horas eram?

— Uma e quinze, uma e vinte.

— A janela estava aberta?

— Sim.

— Viu se havia alguém no jardim?

— Não recordo.

— Tente, Miss.

— Bem, fiquei folheando as revistas e não prestei muita atenção. Mas acho que havia sim alguém no jardim?

— Quem?

— Creio que era o Major.

— Conseguiu vê-lo?

— Vi. Ele estava no banco... na área central... Por quê? Falei algo errado?

— De forma alguma — apressou-se Fëll em dizer. — Estamos só tentando ter uma visão tridimensional do cenário e dos atores. É como dizem: ‘Ninguém sabe de onde o vento vem nem para onde vai’. Uns dizem que, na hora do crime, estavam na praia; outros, que tinham ido à Falmouth, e por aí vai. O Major há pouco disse que estava no jardim, fato que a senhorita acaba de confirmar.

— Ah...

— Só para constar... Pode nos dar seu nome todo?

— Eliza Lucy Wigginfort.

— Wunderschoen. Agradecemos por ter vindo.

Eliza levantou-se e saiu do escritório, fechando a porta atrás de si.


Capítulo 17

 

— Essa história está ficando com nuances cada vez mais impressionantes — praguejou MacCormeck, coçando a nuca.

— A verdade pode tardar, mas por fim aparece — sentenciou Fëll calmamente. — Langsam und immer.

— Pois eu gosto de trabalhar com variáveis que conheço. Algo que menos temos até agora.

— Achei que tivesse gostado do detalhe do diamante.

— Pois é, mais uma coisa para embaralhar nossa mente. Estive lá pessoalmente, e segui todos os indícios fornecidos pelas testemunhas e pelas evidências físicas. Recolhemos todas as provas possíveis, etiquetando-as, registrando-as e embalando-as. Não havia nem diamante nem estojo por lá.

— Não havia e por uma razão muito simples.

— Vai dizer que é porque o assassino os tirou de lá.

— Justamente.

— Não chega a ser uma grande dedução — disse MacCormeck, em tom mordaz. — Por que é que ele faria isso? Ou acha que foi essa a intenção do crime: o roubo?

— Não dá para excluir essa hipótese. Mas o mais provável é que não. O assassinato de Madame Abernettye pelo visto foi planejado da maneira mais organizada possível. O sumiço do diamante deve ter outra explicação.

— Também acho.

— Vamos fracionar o que sabemos até aqui? Partes menores são mais fáceis para manusear.

— Tudo bem.

— O que nós sabemos é o seguinte: Nicque Abernettye era uma mulher venerada pelos homens e invejada pelas mulheres. Uma mulher envolvente, encantadora, tocante, sensível e frágil.

— Quantos adjetivos!

— Pode ser que...

O som de uma batida na porta interrompeu Fëll.

— Estou atrapalhando alguma coisa? — perguntou O’Danugheon, espiando para dentro.

— Mr. O’Danugheon! Não, não... entre.

— Ouvi dizer que estão investigando o novo assassinato...

— Quer dar a sua declaração, meu caro?

— É por isso mesmo que vim.

A voz do inglês soou calma e controlada. Adiantou-se todo solícito, fingindo um sorriso gentil.

Fëll hesitou por alguns instantes e, então, disse muito delicadamente:

— Bitte, sente-se. Não é sempre que as pessoas vêm até nós. Geralmente somos nós que vamos até elas, e mesmo assim sem muito sucesso. Não é o seu caso, pelo jeito.

— Sou a favor da lei e da ordem. Meu pai tocava uma empresa a muito custo. Era um homem muito cricri, odiava quando as coisas não saíam de acordo com o que ele queria. Aprendi que, para ter bons resultados, é preciso que todos deem o melhor de si.

— Ótimo — disse Fëll. Fez um gesto para MacCormeck: — Quer começar, Superintendente?

— Posso? — perguntou este, com uma ponta de maliciosa incerteza.

— Oh, sim.

— Certo.

MacCormeck era cheio de energia e arrojado. Virou-se para O’Danugheon:

— Antes de qualquer coisa, poderia se identificar, por favor.

— Eu?

— É. O senhor.

— Achei que soubesse quem eu sou, Superintendente.

— Eu sei. Mas não custa repetir.

— Cornelios O’Danugheon.

— Endereço?

— Moro perto do Whitehall.

— Algum parentesco ou grau de amizade com a vítima?

— Nenhum.

— Segundo o relatório preliminar, o crime ocorreu após uma e meia da tarde.

— Perfeito.

— Perfeito?

— É uma forma de falar...

— Ah, uma forma de falar, sei. Alguém nos disse que o senhor esteve com Madame Abernettye um pouco antes disso.

— Disse, é?

— Sim.

— Não estão pensando que fui eu, estão?

— Limite-se a responder a pergunta.

— Estive com ela, admito. Mas foi uma coisa puramente casual. Não costumo dormir depois do almoço. Subi até o terraço e esbarrei nela, e só. Ela nem mesmo me viu... Estava lá tomando sol... de maiô... — O’Danugheon enrubesceu.

— É casado?

— Divorciado.

— Por quê?

— Isso tem alguma relevância?

— Pensei que tinha dito que queria cooperar conosco, Mr. O’Danugheon.

O inglês torceu sutilmente o canto da boca. Levou alguns segundos para reagir e voltar a si.

— Minha mulher arrumou... outro. Crise da meia-idade.

Fëll examinou o rosto de O’Danugheon imaginando se, por trás daquelas palavras, não estava escondida alguma coisa.

— Depois de ver Madame Abernettye, para onde foi?

— Desci para nadar um pouco.

— Nadar?

— Sim. Algo errado?

— É um horário um pouco estranho para isso, não?

— Sou um nadador entusiasta. O fato, porém, é que acabei não entrando na água. Recebi uma ligação e tive que adiar meu exercício.

— Havia mais gente na praia?

— Acho que havia uma senhora com um vidro de bronzear... Parecia ter problemas em abrir a tampa. Estava uns cinquenta metros à minha direita. Na direção oposta... deixem-me lembrar... não, não havia ninguém.

— Até quando ficou lá?

— Até a hora em que, atrás de mim, ouvi gritos no hotel. De início não dei muita atenção. Muita gente tem essa mania incômoda de gritar à toa! A mulher nesse momento estava no mar, nadando com braçadas longas e ritmadas. Uma vez que mais gente começou a se aglomerar, falando e gesticulando, decidi voltar e ver o que estava acontecendo. Lá fora topei com o Major. “E aí, o que houve?” perguntei. “Alguma coisa lá em cima” disse ele. Vi que estava visivelmente preocupado. Passei por ele e entrei no saguão. Mrs. Wigginfort estava sentada num lado, tremendamente abatida, o olhar fixo, os ombros caídos. Do lado dela, a filha... Monsieur Suttom andava de um lado para outro com as mãos enterradas nos bolsos, os olhos brilhando de indignação. Repeti a pergunta... Ninguém respondeu. “Acabou tudo! Acabou tudo!” dizia o gerente com uma voz rouca e um tanto abafada. “O que aconteceu?” perguntei pela terceira vez. “Outra morte” conseguiu dizer Miss Wigginfort. “Quem?” “Madame Abernettye...” Parou de falar e engoliu em seco. “Onde?” “No terraço” disse ela. “Eu vou lá!” decidi e fui para o elevador. As duas logo vieram atrás de mim...

— Mandaremos chamá-lo se precisarmos outra vez do senhor — disse MacCormeck, despedindo o inglês com um gesto.

— Zufrieden, Herr Leitner? — perguntou Fëll, assim que O’Danugheon saiu.

MacCormeck inclinou a cabeça para o lado e cerrou os dentes.

— Nem um pouco satisfeito. Fico desconfiado quando as pessoas vêm e se apresentam tão espontaneamente.

— Acha que foi uma oferenda de paz?

— A menos que esteja pensando em outra coisa.

— Talvez tenha razão.

— Tive a impressão de que ele estava interessado na estante. Interessado até demais.

— Também reparei nisso — concordou Fëll. Levantou-se pesadamente da cadeira e examinou a estante: — Por que será? Fotos sobre turfe... medalhas... certificados... alvará de funcionamento... Que coisa espantosa!

O olhar de Fëll foi substituído pelo espanto e a incredulidade. Fëll respirou fundo, estremecendo quase que imperceptivelmente.

— Outro mistério hein?

MacCormeck tocou uma campainha e logo apareceu um oficial.

— Traga o Signor Rigoletti.


Capítulo 18

 

Com todas as suas forças, Markus Rigoletti tentava disfarçar a tensão que sentia.

— Não levem à mal, mas os senhores estão fazendo uma leitura equivocada da situação.

— Estamos?

— Ma sì!

— Quer dizer que o senhor não é representante processual de Anne LaRouchelle?

— Não, não sou.

— Mas foi assim que o senhor se apresentou a mim — disse Fëll.

— Isso não é totalmente verdade. Eu fui apresentado assim ao senhor.

— Por Madame Abernettye...

— Sì. Não tenho a intenção de enganá-los, cavalheiros. Aquele era meu disfarce, um ardil para me aproximar dela e conseguir que a justiça fosse feita.

— Ah, uma identidade falsa!

— Não falsa. Eu sou Markus L. Rigoletti. A única coisa é que não tenho a formação acadêmica que disse ter.

Os olhos fundos de MacCormeck quase não piscavam.

— Quem então é o senhor?

— Sou tio de Anne, que é filha de minha irmã Dóris. Dóris foi a primeira mulher de LaRouchelle. Eles foram casados por quinze anos. Dóris morreu em decorrência de complicações neurológicas. Daí LaRouchelle casou com Miss Abernettie. Nessa época ele já sofria de depressão, por isso, para protegê-la de alguma eventualidade, LaRouchelle passou a guarda temporária da menina para mim e minha esposa. Quando soubemos de sua morte, ficamos ansiosos quanto ao futuro de Anne — e se continuaríamos como tutores dela. Infelizmente o próprio testamento não trouxe nenhuma resposta às nossas dúvidas. Pelo jeito, tudo o que ele possuía (imóveis, bens, dinheiro...) tinha ido parar nas mãos da nova mulher. Emma e eu fomos atrás e nos informamos sobre a validade disso e se estava tudo em conformidade com a lei. Para nosso desapontamento, parecia que sim. Ficou muito evidente que teríamos que lutar pelos direitos da pobre criança. Hoje Anne tem quinze anos; é uma moça meiga, carinhosa e generosa. Nunca deixaríamos que nada faltasse a ela do ponto de vista financeiro. Uma vez que a Signora Monicque não me conhecia, pensamos em usar isso a nosso favor e falar pessoalmente com ela. Talvez assim conseguíssemos convencê-la a repartir a herança com a nossa garotinha. Daí surgiu uma ideia... E se eu fingisse ser uma pessoa importante — digamos, o porta-voz legal de sua enteada? Seria arriscado, mas o mais provável é que apressaria bastante a solução do nosso caso.

— Coisa que, pelo visto, não correu muito bem.

— Infatti...

— Desconfiaram do senhor?

— De modo geral, Madame Abernettye aceitou fazer um acordo. Creio que, no fundo, ela sabia que seria injusto continuar como única beneficiária de toda a fortuna. O único senão é que, em vez de dar uma resposta pronta e definitiva, ela ficou de decidir sobre a questão de prazos e valores.

— Então a negociação ia bem?

— Nem bem nem mal. Mas esperem um pouco... O que tudo isso tem a ver com o assassinato?

— Talvez nada — respondeu Fëll. — Mas, como se costuma dizer, é melhor analisar todos os fatos... direta ou indiretamente relacionados com o crime. Onde o senhor esteve nas primeiras horas desta tarde?

O italiano arregalou os olhos. Tinha que acabar com aquilo, custasse o que custasse!

— Primeiro estive com o Dr. Hagissart...

— Conversaram sobre o quê?

— Trivialidades. Sobre a guerra na Cisjordânia, a instabilidade política na França, essas coisas.

— Depois?

— Depois fui para St. Ives.

— Para onde?

— St. Ives. É aqui perto. Fui ver as galerias.

— A que horas foi isso?

— Aproximadamente uma e quinze.

— Quando voltou?

— Umas três e pouco.

O rosto de Fëll se transformou subitamente e seus olhos ficaram alerta.

— Ou seja, o senhor passou fora a maior parte do tempo!

— Esattamente.

— O que parece muito apropriado, não é, Signor Rigoletti?

— Não entendo por quê.

— Porque coloca o senhor convenientemente longe do local do homicídio.

— Pois pesquisem e vejam.

— Faremos isso.

Rigoletti se encolheu numa reação involuntária.

— Não gosto do seu jeito de pensar. Aliás, não gosto de nada do que é seu. Tem gente que se acha inteligente demais na profissão que tem — rosnou, irritado.

— Devo encarar isso como uma crítica?

— Encare como quiser, càspita. Tem muita gente boa que faria qualquer coisa para eliminar certos esnobes da face da terra.

— O senhor parece que apoia a matança de inocentes!

— Olhando de perto, ninguém é inocente.

— Nem mesmo o senhor?

— Nem mesmo eu. Não em tudo o que faço. Nalgumas ocasiões, para vencer, é preciso dispor de todos os meios.

— Meios como o assassinato?

— Nunca matei ninguém! — respondeu Rigoletti com certa arrogância.

— Sempre há uma primeira vez.

— O que quer dizer com isso? — perguntou Rigoletti, empalidecendo.

— Sabe muito bem o que eu quero dizer.

— Não sei do que o senhor está falando! Não quero perder mais tempo com essa conversa inútil. Vou fazer uma queixa sobre isso, Superintendente.

MacCormeck sentiu uma onda de calor subir pela espinha, que atingiu o rosto, deixando-o vermelho. Ele fechou a boca e engoliu em seco, antes de perguntar:

— Vai fazer uma queixa?

— Vou.

— A quem?

— A seus superiores.

— Quando?

— Logo que eu sair daqui.

— O que vai alegar?

— Abuso de autoridade.

Fëll ignorou os protestos e continuou suavemente:

— Fique tranquilo, homem. Nós...

— Nada de nós. Recuso-me a responder a mais perguntas. Enfim... Essa entrevista não está proporcionando nada de bom. Não sou a pessoa certa para ajudar. Permesso!...

Surpreso com a própria agressividade, Rigoletti respirou fundo e em seguida soltou todo o ar, bufando alto. Fez uma careta e saiu, seus passos ecoando pelo saguão.

— Que figura! — gemeu MacCormeck, pesaroso. — Está vendo o que foi arrumar?

— Acredita que o que ele disse é verdade?

— Não deveria?

— Estamos navegando águas pantanosas, Superintendente. Depois de um crime, as pessoas contam as coisas mais absurdas. Coisas em que nem mesmo elas acreditam. E eu não digo isso de maneira pejorativa; é uma constatação. Pelo menos agora temos alguns elementos com que trabalhar.

— Elementos é o que não faltam.

— Temos que costurar todos esses elementos, e dar um sentido a eles.

— Mas tudo é muito disperso e frágil, não acha?

— Acho que, de certa forma, sim.

— O que quer dizer? — perguntou MacCormeck, cauteloso.

— Quero dizer que precisamos juntar tudo numa lista. Mas antes disso, temos que ouvir um último depoente.

Fëll girou nos calcanhares e andou em direção à porta de saída.

— Ué, aonde está indo?

— Chamar o Dr. Hagissart.


Capítulo 19

 

Nesse momento o Dr. Hagissart estava torcendo os lábios, contrafeito. Delicadamente, olhou para a mulher parada à sua frente; pela quinta vez, disse:

— Não há motivo para preocupações, Madame! Ela só teve um mal-estar passageiro. Foi só um susto. Dei um analgésico e a febre baixou, ouviu?

Hannah Wigginfort fez que sim com a cabeça, incapaz de dizer uma palavra. Aflita, olhou para a porta do quarto da filha.

— Eu posso vê-la?

— Melhor não, Madame. Vamos deixá-la descansar, sim? Vai ser bom para ela. Prudência nunca é demais.

— Eliza... Eliza...

— Daqui a pouco a senhora vai poder entrar. Em uma hora... Está bom assim?

Num esforço para organizar os pensamentos, Mrs. Wigginfort tentou falar com voz firme e convincente:

— Sim, está.

— Ótimo. Então, que tal descer comigo? Podemos tomar um chazinho enquanto isso.

— O senhor jura que está tudo bem com Eliza?

— É claro! Sou médico, não sou?

A mulher ficou boquiaberta, não tanto de surpresa, mas de constrangimento.

— Oh, desculpe-me... Estou sendo tão desagradável!

— Ao contrário, Madame. A senhora gosta muito de sua filha. É natural.

— Ai, ai... Todo o estresse... essas coisas que estão acontecendo... Oh, estou tão confusa!

Mais do que confusa! pensou ele, desconsolado.

— Eliza nunca me ouve. Quando falo, ela dá a entender que está entediada ou constrangida, ou se finge de surda. Ela acha que sou muito opressora, que dou pouca liberdade.

Mais uma vez, o Dr. Hagissart suspirou. Sabia onde aquela conversa ia dar! Olhou em volta...

Como uma miragem cintilante, viu Fëll vindo pelo corredor.

Deus do céu, na hora!

— Dr. Hagissart... Mrs. Wigginfort! — cumprimentou o detetive, com um sorriso franco e afetuoso.

— Oh, Mr. Fëll! — começou Mrs. Wigginfort. — Que bom que é o senhor!

— O que foi? Aconteceu alguma coisa?

— É minha filha... Ela está tão mal, coitadinha!

Os olhos dela encheram-se de lágrimas e ela fechou os punhos com força.

— Não é nada — atalhou o médico, antes que a situação se agravasse. — Miss Wigginfort teve uma ligeira indisposição. Já cuidei de tudo. A senhora pode ir, Madame.

— Mas o senhor...

O Dr. Hagissart deu um olhar intenso para Fëll, que correspondeu na mesma hora:

— Eu lamento, Madame, mas precisamos falar com o doutor. Normas da polícia — disse, adotando um tom confidencial.

— Ah...

A diva olhou os dois, desconfiada, mas acabou cedendo aos argumentos:

— Se o senhor diz...

— Digo sim, Madame.

— Está bem, eu vou. Mas não esqueça, doutor: procure-me, caso haja alguma coisa.

— Naturalmente.

Quando a mulher já estava suficientemente longe:

— Mulheres! — exclamou o médico. — Primeiro sufocam os filhos, e depois se escabelam por toda e qualquer dorzinha que eles têm. O que houve? O assunto é mesmo comigo?

— Jawohl. Se não se importa...

— De modo algum. Estou disponível para isso.

Como antes, Fëll permitiu que MacCormeck fizesse o interrogatório.

— Por que veio a este balneário, doutor?

— Lazer.

— Estive averiguando... Parece que meu colega aqui resolveu um caso para o senhor, recentemente.

— Foi. Resolveu magnificamente bem, devo dizer.

— Ora... — disse Fëll com uma modéstia um pouco duvidosa.

— Sobre hoje à tarde... Pode nos dizer o que fez?

— Vou ser o mais exato que puder. Às 12h30 eu estava em meu quarto, escrevendo minha monografia sobre problemas cardíacos. Se você mistura calmante com estimulantes, o batimento cardíaco e outras funções do corpo começarão a oscilar — essas coisas... Terminei às 12h50... Daí a pouco veio Miss Wigginfort dizendo que precisavam de mim. Lá fui eu... Encontrei Leonard ferido e toda aquela coisa que vocês já sabem! Ajudei a levá-lo para o quarto... Aí desci e fui para a área arborizada atrás do hotel. Eu mal sentei, apareceu Rigoletti...

— A respeito do que falaram?

— Geopolítica, na maior parte. É um tipo meio mole, esponjoso, mas é boa pessoa.

— Ficaram juntos muito tempo?

— Até cerca de 1h20. Aí ele se foi.

— Para onde?

— Não sei. Eu não perguntei.

— Prossiga...

— Não há muita coisa a acrescentar. Fiquei lá... e sei que acabei cochilando. Acabei sonhando que o mundo estava prestes a acabar. Era um barulho de corre-corre, gente gritando!... Aí acordei e entrei.

— Pela porta da frente?

— Não. Porta dos fundos.

— Ouça, ainda referente à Rigoletti. Ele estava inquieto, agitado, algo assim?

Numa voz ponderada e racional, o Dr. Hagissart disse:

— Não.

MacCormeck balançou a cabeça e praguejou mentalmente.

— É isso que me enfurece. Já não temos muitos suspeitos, e os suspeitos que temos parecem ser todos santos em potencial. Como se não bastasse, há essa escassa quantidade de pistas.

As linhas do rosto anguloso de Fëll endureceram.

— Não, Superintendente. Existem pistas... e várias.

— Ah, é?

— Es ist offensichtlich!

— Quais são as pistas?

— Cinco coisas que, em conjunto, são muito significativas: 1. O papel-toalha manchado de batom no quarto de Miss Grovenor; 2. A pena de faisão usada no assassinato de Madame Abernettye; 3. A adaga achada, sem serventia, no local; 4. A pepita de ouro; e 5. O diamante que sumiu.

MacCormeck encarou Fëll com uma ruga na testa; o homenzinho à sua frente estava a par de muita coisa — talvez de tudo!

— Isso é sério?

— Por que não seria?

— Alguma resposta aceitável?

— Prefiro não antecipar nada.

— Que péssimo hábito, hein!

— Não ligue, Superintendente — disse o médico. — É sempre assim. Essa gente doentiamente organizada e meticulosa gosta de segredos.

— Mas isso não favorece ninguém! Trata-se de ajudar as pessoas que você puder, onde quer que precisem de você.

— Pretendo só expor a mente criminosa por trás desses atentados — limitou-se Fëll a dizer, como se isso explicasse tudo.

— Com segredinhos? Duvido muito.

— Não são segredinhos. Tem coisas que nunca devem ser ditas antes do tempo. Há um tempo para ficar calado...

— Essa eu não engulo.

— Precisa elevar o seu nível de confiança em mim, Superintendente. Para compreender certas coisas é preciso refletir sobre o que aconteceu.

— Bem, talvez eu não seja a pessoa mais indicada para julgá-lo. Que história é essa de papel-toalha?

— Hum, essa é uma particularidade sumamente importante. Sobre ela, por enquanto, só possuo suspeitas e nenhuma prova concreta. Vou tentar simplificar... Fato 1: O laudo toxicológico apontou que Miss Grovenor morreu envenenada, não é mesmo?

— Sim.

— Sendo que o veneno pode ter sido ministrado de várias formas. Fato 2: Sabemos onde a moça esteve naquela noite. Ela bebeu um drinque no barzinho e outro drinque no salão de hóspedes. Depois ela vai para o quarto, passa mal e morre instantes após.

— Não vejo a relação...

— Que relação?

— Com o papel-toalha, ora.

— Mas, Superintendente, é tudo tão lógico!

MacCormeck olhou-o com uma expressão de censura no rosto:

— Lógica uma ova! Acho que Deus se esqueceu de me conceder onisciência...

— Não existe relação com o papel-toalha.

— Não?

— A relação são as manchas de batom.

Fëll notou que nenhum dos dois tinha entendido nada. Fëll sorriu com simpatia:

— O veneno que matou Miss Grovenor estava no batom.


Capítulo 20

 

MacCormeck e o Dr. Hagissart se entreolharam.

— No batom?

— Sim.

— Por que diz isso?

— É a única explicação que se adequa.

— A única explicação... Não estou vendo um palmo à frente do nariz!

— Claro que ainda há testes finais a efetuar antes de ter certeza — reconheceu Fëll. — Mas lembro de tudo... Miss Grovenor sozinha numa mesa. Olhos verdes... profundos como o mar. Lembro que ela pegou o estojo de pó compacto da bolsa... passou a esponjinha no rosto — e um pouco de batom nos lábios. Posso estar errado... Pelo menos, já é um primeiro passo, não concordam?

— Para todos os efeitos...

MacCormeck percebeu que estava sendo contraditório, mas era tarde demais para voltar atrás.

— Sim, e agora?

— Agora temos que esmiuçar as provas, até chegarmos ao essencial, até que, finalmente, todas as peças se encaixem.

— A começar... — Pousou a mão na maçaneta, antes de continuar: — O papel-toalha! Vou ver se ainda está lá!

— Eu já fui lá.

— E?

— Eu o trouxe para o senhor — disse Fëll, entregando uma coisa cuidadosamente dobrada.

MacCormeck chegou a abrir a boca, como se quisesse fazer uma pergunta, mas voltou a fechá-la, sem dizer nada. Apenas franziu a testa.

— Obrigado...

Fëll acenou com a cabeça; voltou-se para o Dr. Hagissart:

— Acho que há um assunto em aberto entre nós, doutor.

— Sim. Sobre LaRouchelle...

— Sabe se ele usava algum tranquilizante?

— Valium.

— Regularmente?

— Há quinze anos.

— O senhor disse que viu o cadáver...

— Sim.

— Bitte, diga-me o que concluiu?

— A morte ocorreu devido ao ferimento causado por uma bala de chumbo macio. Ela entrou no crânio por cima do olho direito, atravessou o cerebelo e saiu na nuca.

— De que distância foi disparada?

— Alguns centímetros.

— O que sustenta a tese de suicídio!

— Totalmente.

— Prestou-nos um grande auxílio, doutor. LaRouchelle se matou. A questão é: por quê?

Fëll indicou que a entrevista tinha terminado. O médico saiu.

— Esse homem é um bom camarada — disse MacCormeck.

— É mesmo. Devo dizer que tenho em grande conta o testemunho de uma pessoa tão distinta como ele.

— É pena que a versão dele só confirme o que outros já disseram.

— De certo modo. Ele disse, porém, uma coisa em que eu ainda não tinha pensado.

— Que coisa?

— Deixe como está — respondeu Fëll, pensativo. — Antes de revelar o que é, preciso me certificar de algo.

— Essa não! — exclamou MacCormeck. — Mais mistérios! Aqui estou eu outra vez, oscilando para lá e para cá como um pêndulo.

Fëll olhou o relógio.

— Sabe o que eu acho que devíamos fazer? Já encerrou o seu expediente, meu caro. Proponho que avisemos aos hóspedes que um diamante desapareceu e que todos devem permanecer no térreo enquanto nós revistamos o hotel.

O Superintendente encolheu os ombros:

— Bem, como quiser...

— Mas antes disso, vou alistar o que já sabemos. É sempre bom fazer um registro dos fatos que estão sendo averiguados.

Fëll sentou-se à escrivaninha e, durante alguns minutos, ficou escrevendo, entretido. Depois de revisar o texto, e consertar um trecho aqui e outro ali, abaixou a caneta.

— Gut — anunciou. — Acho que, em resumo, isto é tudo.

— Posso ler?

— Faço questão, meu caro. Poderia só fazer uma gentileza? Chame o seu assistente e passe a ele as instruções para que possamos dar as buscas sem sermos incomodados.

— Certo.

Outro toque de campainha.

Em vez do oficial, foi uma moça que apareceu na porta.

— Não vim aqui para reclamar — disse Patrice Alisson — mas acho que os senhores se esqueceram de mim.

Fëll olhou para ela. Patrice vestia uma blusa cor de creme e uma saia marrom. Tinha uma beleza latina e um porte altivo.

“Que graça!” pensou MacCormeck.

— Entre, Miss Alisson.

— Ouvi dizer que estão querendo saber quem matou Nicque.

Fëll balançou a cabeça, afirmativamente.

— Temos esperanças de que tudo se esclareça logo, Miss.

— É mesmo? Fico feliz...

— Veio para nos dar alguma informação?

— Com todo prazer.

— Sabe quem pode ter assassinado Madame Abernettye?

— Não.

— Faz ideia de algum motivo pelo qual quisessem matá-la?

— Não faço a menor ideia, e duvido que tivesse algum inimigo.

— Pareceu-lhe inquieta ou perturbada na última vez em que a viu?

— Parecia normal.

— A propósito, pelo que me lembro, ninguém parece tê-la visto esta tarde, Miss.

— Ah, e nem poderia. Eu estive nas cavernas.

— Cavernas?

— Sim. De cima é muito difícil distinguir a entrada. Seguindo a praia, a uns quinhentos metros daqui... É um lugar fascinante, com lagos de água cristalina e tudo. O senhor ainda não foi?

— Não — disse Fëll, encabulado.

— Pois devia ir — ajuntou MacCormeck.

Fëll franziu a testa e, com uma expressão grave no olhar, disse:

— Acho que devíamos deixar as excursões de lado neste momento. Voltando à questão do assassinato... Pelo jeito, a senhorita está querendo dizer que, não tendo estado aqui, a senhorita não viu nada!

— Sim, infelizmente.

— Mas a senhorita tinha motivos para querer vê-la morta!

Patrice se empertigou.

— Eu jamais tiraria a vida de ninguém! Jamais...

— Nem mesmo a vida da mulher que envenenou o coração de seu namorado?

— O que quer dizer?

— Para chegarmos a um lugar, precisamos ter o quadro completo de tudo o que aconteceu. O que quero dizer é que a senhorita mencionou que Horace Abernettye, cujo filho está esperando, ofereceu rios de dinheiro para que o bebê não nascesse. Vamos supor, porém, que tenha sido outra pessoa que sugeriu isso a ele — uma pessoa, digamos, como a própria irmã! Nesse caso, talvez, a senhorita tenha achado justificável fazer alguma coisa a respeito. Alguma coisa... definitiva!

— Horace se achava no direito de determinar o que eu devia fazer e onde podia ir! Nunca respeitou minhas preferências. Era ridículo...

— Ele tem uma fonte de renda?

— Ele ganha razoavelmente bem; não tem nada do que se queixar. Não sou uma mulher qualquer, Mr. Fëll. Posso me virar sem ele.

— O que acha de sua irmã, Miss?

— Isabelle sofreu muitas decepções, mas nunca a vi se lamentando. Ela é independente, responsável. Estável.

— Quando foi a última vez que viu Madame Abernettye?

Patrice fungou. O nariz levemente arrebitado dava-lhe um ar cheio de charme.

— Há um tom de hostilidade em sua pergunta, Mr. Fëll?

— Não.

— Está mentindo. Por que estão olhando assim? Acham que eu matei Nicque?

Fëll abriu a boca para explicar, mas ela não lhe deu tempo.

— Acham que eu matei Nicque?

— Situações sempre surgem, Miss.

— Sim, e daí?

— Uma vez que a coisa ficou fácil, a senhorita fez.

Completamente atordoada, Patrice não conseguia responder.

— Eu fiz? O senhor está doido!

— Eu sou doido, Miss? — perguntou Fëll secamente.

— É sim — foi a resposta, em tom igualmente seco. — Eu nem mesmo cheguei perto dessa mulher. Não fiz nada não senhor! Eu contesto isso. O senhor está abusando de minha boa vontade. Achei que, vindo aqui, estaria prestando um serviço de utilidade pública. Você é uma burra, Pat! Uma burra...

Os olhos de Patrice faiscaram de ódio e ela perguntou:

— Acabou o ensaio, crianças. Se não há mais nada, posso ir?

— Bem, suponho que é tudo. Pode ir, Miss.

Patrice levantou-se, um pouco dolorida, a testa latejando. Gratidão e ressentimento se misturavam, deixando-a engasgada.

— Lamento por tê-los feito perder seu tempo.

Virou-se e saiu, batendo a porta atrás de si.

O silêncio tomou conta da atmosfera pesada. Fëll disse:

— Não imaginei que ela fosse assim.

— Foi uma autêntica bordoada, isso é que foi — disse MacCormeck.

— Acha que exagerei?

— Sim, e não foi muito agradável. Nada a criticar ferozmente, mas muito menos a elogiar. Posso ler o seu relatório?

— À vontade...

O título em destaque dizia:


Assassinato de Madame Abernettye


A última pessoa que falou com ela antes de ser morta: Eliza Wigginfort.

Local e hora: terraço; entre uma e meia e duas horas.


O crime foi cometido com uma pena de faisão que pertencia à Mrs. Wigginfort. Isso é espantoso, uma vez que uma adaga foi encontrada no local.


Acontecimento: Leonard Amay e Horace Abernettye estavam lá algum tempo antes de ocorrer o assassinato.


As versões apresentadas: Marck Hollder e a esposa, após o almoço, foram para o quarto; ele foi para o banho e Isabelle desceu para nadar. O’Danugheon estava na praia (versão confirmada por Marck que, posteriormente, o viu por lá). Mrs. Wigginfort tirou um cochilo no sofá da sala de bilhar. Eliza Wigginfort permaneceu na sala da frente, lendo. Major Bernwell afirma que se sentou no jardim (fato confirmado por Eliza). Horace diz que deu um passeio por Falmouth (ninguém pôde confirmar). Dr. Hagissart tirou um cochilo nalgum lugar atrás do hotel. Lá, conversou com Rigoletti que, a seguir, foi para St. Ives.


Uma das grandes interrogações é: era intenção do assassino matá-la ali ou será que o crime foi cometido de improviso?


Quem teria motivos:

Markus Rigoletti: que alegadamente estava reivindicando interesses de sua sobrinha, Anne LaRouchelle. Não sabemos em que pé estava a negociação, nem se Nicque Abernettye estava disposta a aceder à proposta em questão.

Ponto a favor de Rigoletti: nada indica que foi avistado (nas proximidades! ou indo para lá) na hora do crime.

Isabelle Hollder: há relatos de que, antes do meio-dia, teve uma discussão acirrada com a vítima. Teria sido algo tão sério a ponto de justificar um assassinato? Fato incriminador: alega que, ao encontrar o corpo, foi atacada por alguém que estava deixando o local. Antes de perder a consciência, ela leu a palavra GALE estampada no robe de seu agressor. Podemos confiar em seu depoimento? Se sim, que assassino é esse que anda em pleno dia trajado com um robe? E qual será o significado das letras? Pelo que sabemos, não há vínculo entre Isabelle, Miss Grovenor e Nicque Abernettye.


Excluindo estes dois, quem mais teria motivos?

O irmão.......... Horace? (Herança)

O noivo........ Leonard? (Ambição)

Marck?

Pessoas improváveis:


Dr. Hagissart

Madame Wigginfort e filha

Major Bernwell (pela própria incapacidade motora)

O’Danugheon (já que não existem motivos evidentes)


— Muito bom mesmo — disse MacCormeck.

— Fiz o melhor que pude.

— Faltaram só algumas coisas.

— A caracterização dos personagens?

— Faltaram os elementos periciais. Alguns estão aí, mas foram explorados de forma muito superficial. Além disso, agora que ouvimos Miss Alisson, acho que há um ponto a ser acrescentado. Posso?

— Faça o favor...

Empunhando a caneta, MacCormeck escreveu: Patrice Alisson diz que estava explorando as cavernas.

— Concorda?

— Excelente — aprovou Fëll. — Quanto mais pormenores, melhor.

— Bem, isso está feito. Alguma sugestão para o que vem agora?

Fëll se pôs em pé, cuidadosamente, muito devagar, cambaleando um pouco.

— Chegou a hora de desentorpecer as pernas. Vamos às buscas. Oriente seu oficial para que avise os hóspedes.


Capítulo 21

 

— Vamos ver se localizamos o bendito diamante. Temos que fazer as coisas por arranjo, e com todos os ajustes que for preciso, se quisermos que isso dê certo.

Subiram pela escada estreita e em espiral que levava ao segundo e terceiro piso. No quarto de Rigoletti encontraram uma diversificada linha de roupas caras: um terno de poliéster, camisas de algodão, um colete de camurça. A fragrância da loção pós-barba pairava no ar. Também havia dois ou três compêndios jurídicos e uma pasta com papéis que aparentemente exigiam algum tipo de assinatura.

— Êh sujeitinho estudioso. Dá para duvidar que seja só o defensor das causas de uma sobrinha desafortunada!

Foram para o quarto do Dr. Hagissart. O sol do final da tarde batia na janela e projetava imagens disformes contra a cortina. Uma expressão que parecia um misto de tensão e curiosidade surgiu no rosto de Fëll.

— O que foi?

— É que me incomoda mexer nas coisas de um amigo.

MacCormeck contraiu os lábios num sorriso cínico, ao mesmo tempo em que arqueava as sobrancelhas:

— Tudo bem... Espere-me lá fora.

Em seguida, foram para o quarto de O’Danugheon. Fëll caminhou em direção à cômoda. Numa gaveta encontraram algumas tabuletas com escrita cuneiforme e, num saquinho, várias moedas de origem desconhecida.

— Veja só o que eu achei!

MacCormeck puxou de trás da cama alguma coisa jeitosamente embrulhada num pano. Entreabriu o pano, para ver o que havia dentro, e acenou vigorosamente com a cabeça.

— Exatamente o que eu imaginei!

— Algo ilegal?

— Muitíssimo ilegal!

— Está certo disso?

— Bem, quase certo. Ficamos sabendo que uma pessoa, que normalmente se hospeda neste hotel, está contrabandeando obras de arte de vários lugares do mundo para Londres nos últimos anos. Incluindo quadros de pintores antigos vindos de Milão. Pela lei, obras do século dezoito não podem deixar a Itália. Havia relatos de que existia um intermediário em solo inglês; alguém que viabiliza o transporte e que, segundo grampos telefônicos, estaria esta semana aqui no BlueMoon.

— Ou seja, O’Danugheon.

— Ele mesmo!

— Deixe-me ver...

Com cuidado, Fëll apanhou o embrulho e desdobrou o pano. Foi a sua vez de sorrir. Parecia muito confiante.

— Eu louvo a sua ambição, Superintendente, mas o que foi que o senhor disse? Não me parece ser uma obra do século dezoito!

E não era. Mostrava três damas sendo escoltadas por três cavalheiros de smoking. MacCormeck enfrentou o olhar de Fëll com um embaraço indisfarçável.

Havia um abajur sobre uma mesinha de madeira escura. Ao lado do abajur, Fëll viu uma peça de porcelana chinesa.

— O que será que é isto?

— É uma cortesã.

— Estou falando disto aqui!

Fëll mostrou um diário, que abriu e começou a folhear sem a menor consideração. Numa das páginas estava anotado o seguinte: Fiz uma transação com ele... Em caráter experimental.

— ‘Uma transação em caráter experimental’... Que palavreado interessante.

No quarto seguinte, uma surpresa... Reclinada sobre a chaise-longue estofada estava Isabelle Hollder. Usava uma blusa de seda cor de ameixa e, ali deitada, parecia a inocência personificada.

— Olá, senhores...

— O que está fazendo aqui, Madame? — Fëll estalou a língua em sinal de desaprovação. — A ordem era...

— Sim, sim, eu sei. Eu devia estar com os outros...

— Also?

— Acontece que tenho uma coisa para contar.

— Que coisa?

— Uma coisa que eu vi.

O rosto de Fëll brilhou de satisfação.

— Ah, sim, claro.

— Senhores — acrescentou Isabelle. — Eu sei quem é assassina de Madame Abernettye.

— O quê?

MacCormeck olhou de cara feia para ela.

— Mrs. Hollder, se estiver brincando conosco, previno-a de que é crime acusar as pessoas sem fundamento!

— Acusar sem... Ora, eu sei o que vi! Sei perfeitamente bem.

— A senhora disse a assassina — interveio Fëll em tom suave. — Está querendo dizer que uma mulher matou Nicque Abernettye?

— Foi uma mulher, sim senhor.

Isabelle lançou-lhes um olhar venenoso.

— Aber das ist großartig! Se for verdade, a senhora tem a resposta a todas as nossas indagações!

— Talvez.

— Talvez? Quer dizer que a senhora não tem certeza.

— Está me provocando, Mr. Fëll? Acha que sou dessas pessoas que falam, falam, sem ter certeza do que dizem?

— A senhora é? — perguntou MacCormeck, desconfiado.

Isabelle bateu o pé, zangada.

— Chega! Querem me ouvir, sim ou não?

Fëll fez um sinal com a cabeça, como se compreendesse o que ela queria dizer.

— Queremos. Conte-nos o que sabe, jawohl? Quem é a assassina?

Fëll fez a pergunta de maneira casual, sondando sutilmente, informando-se sem dar a impressão de que estivesse bisbilhotando.

A mulher respirou com vontade o ar puro. Resolveu apresentar um relato minucioso.

— Hoje de manhã eu e Marck fomos ver as falésias. Marck se cansou logo e ficou lá, do meu lado, reclamando. “Estou morrendo de fome” disse ele. “Você não quer comer alguma coisa?” Aquilo começou a me dar nos nervos! Voltamos não eram nem 10h. O céu tinha poucas nuvens, o sol estava agradável... Decidi pegar meu protetor solar e nadar um pouco. Quando entramos no saguão foi que eu a vi! Na hora não dei muita atenção ao que ela estava fazendo. Mas há pouco... pensando em tudo... eu me dei conta...

Isabelle fez uma pausa. Fechou os olhos, na tentativa de encontrar as palavras certas.

— Vim para cá e quando desci não havia mais ninguém, a não ser o Major Bernwell. Ele também estava saindo, ajudado por Miss Wigginfort. Pobre homem! Ter que andar por aí, com passos hesitantes, como se o chão estivesse se partindo e cedendo sob os seus pés... Qualquer outro, em seu lugar, não aguentaria o sofrimento! Eu... Acho que me desviei do assunto, não foi?

— Desviou um pouco, Madame.

“Um pouco!” resmungou MacCormeck. “Quilômetros...”

— Se eu tivesse sabido que ela pretendia fazer algo tão monstruoso! Poderia ter prevenido Nicque, ter falado com ela e tê-la alertado do perigo que corria. Mas a gente nunca sabe quando alguma coisa vai acontecer, ou se uma pessoa está bem ou mal-intencionada. Isto é tão emocionante, não é mesmo?

Fëll concordou com a cabeça.

— Mrs. Hollder... Estamos com pressa. Se puder nos dizer quem matou Madame Abernettye...

Isabelle o olhou como se ele tivesse falado em hebraico. Estava esclarecendo tudo tão bem! Era um absurdo exigir que ela se apressasse, querendo que despejasse as coisas logo de uma vez! Que falta de bons modos! MacCormeck olhou para ela com a expressão de Jó diante de seus falsos consoladores.

Com o olhar distante, ela não respondeu logo. Quando finalmente falou, parecia pensativa.

— Na hora não consegui encaixar as coisas. Até poucos minutos atrás... Marck começou a explicar de que forma Nicque havia sido morta. Aí caí em mim... Foi aí que eu soube que a camareira era a responsável pelo crime.

Fëll levantou a cabeça, sem entender o que ela queria dizer.

— Quem?

— A camareira... Aquela mulher de meia-idade, de cabelos impecavelmente arrumados em mechas.

— Ela é a responsável pelo crime?

— Sim.

— Por quê?

— Foi ela que eu vi hoje de manhã. Ela esteve com o chapéu e a pena com que Nicque foi morta.

— É tudo, Mrs. Hollder?

— Não... sim... Acho que sim.

— Obrigado. A camareira, hein? Prometo que vamos interrogá-la assim que possível.

Os lábios de Isabelle se moveram, fechando e abrindo vagarosamente, numa espécie de espasmo. Por fim, quando conseguiu organizar os pensamentos, deixou o quarto.

— A camareira é a culpada! — resmungou MacCormeck. — Só faltava essa! Ce pauvre argumentation! É o que eu digo...

A surpresa de Fëll deu lugar à compaixão.

— É melhor continuarmos as buscas... Depois apuramos a veracidade dessa declaração. Não dá para fazer muitas conjeturas, tendo um entendimento tão rudimentar do que aconteceu.

— Quanto a isso, estamos de acordo.

Fëll abriu o armário e observou com toda a atenção o cabide: um vestido vermelho, um cinto com fivela dourada. Brincos e uma pulseira de ouro complementavam o vestuário elegante e impecável.

— Alice no País das Liquidações — sugeriu MacCormeck.

Fëll o escutava, sem realmente ouvi-lo.

O quarto a seguir pertencia a Mrs. Wigginfort. Fëll olhou ao redor: um tapete colorido, peças de porcelana sobre duas mesinhas junto a parede e um relógio da época vitoriana. No criado-mudo, a foto de uma Mrs. Wigginfort trinta anos mais nova. Olhos de um azul desbotado, cabelos de fogo e lábios sensuais, eram suas mais importantes características fisionômicas. Ao seu lado, um homem corpulento, de barba hirsuta e amarelada.

— Quem é este?

— O segundo marido — respondeu Fëll. — Um cara pretensioso, metido à intelectual. Morreu degolado.

— Conheceu?

— Não. Mas ouvi falar.

Logo em seguida ficava o quarto de Eliza Wigginfort. Antes de entrar, Fëll deu uma pancadinha na porta e esperou.

— Para certificar de que não há ninguém.

— Se quiser, chamo uma horda de investigadores!

Silêncio.

Entraram. Um clima de expectativa pairava no ar. O carpete verde-garrafa combinava com a cortina de veludo que cobria a janela. Primer, sombras, lápis, rimeis e delineadores — a penteadeira mais parecia a seção de beleza de uma farmácia.

— É isso o que o que não compreendo — disse MacCormeck sem rodeios. — Uma moça tão limpinha e asseada... solteira!

— É...

— Alguma coisa errada?

— Estou aqui pensando... Todos esses cosméticos...

— Está pensando no suposto batom envenenado? Quero lembrar que ainda não fizemos os testes. Em todo caso, se der positivo...

Juntos, foram para o quarto de Leonard Amay. Sobre a pia do banheiro, o pincel, a espuma e o aparelho de barbear.

— Não há nada por aqui — disse MacCormeck. — E não é de estranhar... Acho difícil que o rapaz esteja implicado no roubo.

— Talvez não seja um roubo. Se o assassino for o ladrão, pode ser que ele tenha levado o diamante só por farra. Ou ainda, pode ser que o ladrão seja uma pessoa que não tenha nada a ver com o assassinato.

Fëll e MacCormeck hesitaram em frente do quarto anteriormente ocupado por Miss Grovenor. Desde o crime, a porta permanecia trancada, com a chave à disposição da polícia.

— Já fizemos mil e uma buscas aqui. Quer tentar mais uma?

— Não seria má ideia. Só para confirmar que fuçamos tudo o que havia para fuçar.

Fëll tinha sua própria cópia da chave. Dentro, tudo estava exatamente igual à hora em que ele tinha vindo buscar o papel-toalha. Apesar de toda a diligência e zelo, não encontraram o menor vestígio do diamante.

Seguiram adiante. Chegaram ao quarto do Major Bernwell. Começando pelo colchão, passando pelo carpete, até parar na mala e nas gavetas — tudo foi minuciosamente tateado e revirado do avesso. Na mesinha de cabeceira, alguns frascos e cartelas com comprimidos. Fëll apanhou um deles. Era um vidrinho com ansiolíticos, de tonalidade variável, cheio até em cima. Colocou-o no lugar e pegou o outro frasco: marrom, quase vazio, continha drogas anti-inflamatórias. Os dois tinham data recente de compra.

— Remédios com venda controlada...

— Remédios! — replicou o Superintendente. — Não é a artrite que está consumindo o Major. São essas drogas! Por que ele não tenta a acupuntura? Daria a mesma medida de alívio para a dor e de modo muito mais seguro.

Horace Abernettye estava hospedado no quarto seguinte. Sungas de lycra, bermudas e camisas polo — as peças de roupa estavam ajeitadas com cuidado no closet. Horace era o modelo perfeito para qualquer coisa que se relacionasse com etiqueta e comportamento social, pensou Fëll.

O quarto ao lado era de Patrice Alisson. Mal transpôs a soleira da porta, Fëll viu um bilhete caído ao pé da cama. Nele, leu o seguinte: “Encontre-me na ponta do rochedo às 5h. Assinado: H” Fëll acenou lentamente com a cabeça, mas não disse nada.

De comum acordo, os dois companheiros encerraram as buscas. Atingido pelo baque da realidade, MacCormeck suspirou.

— Mais essa! Tanto esforço para nada.

Fëll franziu a testa, tentando filtrar tudo o que tinham visto.

— Penso que achará os resultados muito, até bastante, surpreendentes.

— Não me diga que já resolveu tudo?

— Não tudo. Entretanto, as coisas caminham num sentido claro. É impossível não ver o fio condutor que soluciona o caso.

— Se não for pedir demais, pode me dizer o que está pensando?

— Não. Vou falar apenas quando tudo estiver encerrado.

— Obrigado pela bondade!

Desceram para o térreo. A voz de todos podia ser ouvida a distância. MacCormeck esfregou os olhos doloridos.

— Acho que vou indo. É que eu olhei para o relógio e notei que horas são.

Mal apontaram no saguão, Monsieur Suttom veio na direção deles.

— Pois não, Monsieur? O que é? — perguntou MacCormeck.

O administrador, que se orgulhava em servir, em bem atender, em bem receber, respondeu um tanto confuso:

— Temos um pequeno problema, senhores. — Ele pigarreou e anunciou sombriamente: — Horace Abernettye sumiu...


Capítulo 22

 


Naquela manhã, a sala de jantar estava estranhamente menor e abafada. Dava para notar o desassossego no rosto dos hóspedes, que foram entrando com os olhos inchados de sono, os cabelos emaranhados. Desde a véspera, ninguém tinha informações sobre Horace.

Marck apoiou as mãos na mesa e entrelaçou os dedos. Esticou as pernas e bateu nos pés da esposa.

— Esse sujeito é que foi esperto. Fez o que nós vamos fazer: deu o fora daqui.

Com o dedo, Isabelle girava a xícara de café sobre a mesa.

— Está se comportando como um carneirinho perdido, Marck. Não fui eu que matei Nicque.

— Nem eu, mas e daí? Querendo ou não, você e eu somos suspeitos. Contou o número de policiais que esteve aqui ontem?

— Eles estão atrás do assassino... não de nós.

— Você está sendo orgulhosa, Belle. Temos que sair daqui... o quanto antes.

— Não sou orgulhosa, apenas prática — defendeu-se ela. — Por que fugir por um crime que eu não cometi?

— Sim, foi um crime cometido por uma pessoa desconhecida. Sim, não fomos nós. Quem se importa com isso? Vamos embora, Belle! Já preparei tudo.

A face da mulher parecia esculpida em granito.

— Eu não vou embora. Não quero ser motivo de chacota, ser humilhada, ser rejeitada. E você também não vai.

— Eu não vou? Ouça, querida, é loucura. Não podemos ficar. Isso fará de nós um alvo fácil.

— A única coisa que quero é ser sua mulher, Marck. Vamos esperar e ver o que acontece.

Sentado ali, Marck sentiu gotas de suor se formar em sua testa.

— Pare de falar essas coisas. Há um assassino solto por aí. Quer ser a próxima vítima?

— Está enxergando mais do que existe, querido. Quem é que iria querer nos matar? Por que alguém ia querer fazer isso?

— Amo você, Belle. Você. E só você. Recomponha-se e venha comigo.

— Eu vou me recompor. Mas ir com você? Não.

— Não sabe o quanto isso me magoa.

— Posso viver com isso.

Marck sentiu o sangue subir à cabeça.

— O que deu em você? Por que está agindo assim? Não sei se está louca ou...

Isabelle examinou as unhas.

— Não estou louca. Só temos que manter o foco. Se queremos continuar motivados, não podemos ficar pensando nos perigos que nos rodeiam.

Juntando os dedos, ele fingiu formar uma câmera e focalizou nela.

— Sabe que eu faria qualquer coisa por você, não sabe?

— Claro que sim, Marck. E eu por você. Ninguém vai nos acusar desses crimes, acredite.

— Como invejo essa gente que sabe mentir com convicção! Pois eu acho que vão nos investigar.

— Deixe que investiguem! Vai ser meu guardião, não vai?

— Está me designando para ser seu guardião? Pobre de mim!... Não sou versado em artes marciais.

— Não vai aceitar? Posso falar com Mr. Fëll.

Marck fez um ar carrancudo.

— Ó Deus — murmurou. — Ah, não... Estou farto do ar de superioridade desse pavão! Dá para falar de outra coisa?

Isabelle deu um peteleco no nariz dele.

— Ciumento!

— Ciumento não. Prevenido.

Fëll sentou-se na outra mesa e despejou o café na xícara de porcelana. Marck virou-se para o detetive:

— Encontraram o diamante?

— Não.

— O quê? Talvez seja hora de nos explicar o que, afinal, está acontecendo. É verdade que ninguém pode sair do hotel?

— Todos devem permanecer aqui até concluirmos as investigações.

Prepotente, Marck levantou a sobrancelha esquerda.

— E se não concluírem?

— Concluiremos, Mr. Hollder. Concluiremos.

— Se significa tanto para o senhor... Alguma novidade sobre Horace?

— Nenhuma.

— Acha que ele ainda está por aí?

— Tem uma teoria melhor?

Os lábios de Marck se distenderam num sorriso forçado.

— Acho que ele se foi.

— Por qual motivo?

— Provavelmente porque tem alguma culpa no cartório.

— Culpa nos crimes?

— Culpa nos crimes.

— Por que ele mataria a própria irmã?

— Desprezo... controle... excitação... A violência é subproduto de muitas coisas.

Fëll pôs manteiga no pão de aveia.

— Então, a seu ver, Mr. Amay é o assassino?

— Bem, isso explicaria muita coisa... especialmente seu sumiço.

— Talvez haja outra explicação... mais trágica.

— Qual?

Fëll não respondeu, mas a sua atitude falava mais do que as próprias palavras. MacCormeck entrou no refeitório e juntou-se a ele.

— Bom dia!

— Guten Morgen, Herr Leitner! Tudo bem?

— Um cão na sarjeta teria sorte melhor do que eu. Que caso desconcertante!

— Ânimo! Vai dar tudo certo.

— Falar é fácil. Esta farsa já durou tempo demais. A imprensa gosta de discussões e de polêmica... A opinião pública quer respostas. Os jornais estão cheios de especulações. Treinamento constante... instruções detalhadas... e mesmo assim, aqui estou eu, patinando no mesmo lugar.

— Temos que trabalhar juntos, cooperando um com o outro. Fazendo isso, a solução do caso torna-se inevitável.

— Gostaria de ter a sua confiança. Pelo visto, o senhor já intuiu os motivos do desaparecimento de Mr. Amay.

— Sim. A primeira alternativa é que ele é o assassino. Nesse caso, podemos supor que Mr. Amay possa ter tido um ataque de pânico ou de remorso; mas na minha experiência com criminosos, isso é raro. Assim, resta só mais uma alternativa, grotesca e improvável, mas mesmo assim concebível.

Os olhos de MacCormeck se arregalaram.

— Acha que aconteceu alguma coisa?

— A bagagem ficou no hotel. Tenho medo... Tenho muito medo.

MacCormeck baixou o tom da voz:

— Ah, e quanto à camareira? Falou com ela?

Fëll pegou o guardanapo no colo, amassou-o e colocou-o em cima da mesa.

— Vou delegar isso ao senhor, Superintendente. Comunique-me se ela disser algo de novo. Eu... eu preciso resolver outra coisa.

MacCormeck limitou-se a acenar com a cabeça e os dois deixaram o refeitório.

Mergulhada em pensamentos, Patrice se sobressaltou quando a porta se abriu. Fëll entrou na sala e sentou-se ao lado dela no sofá.

— O que é que o senhor quer? — perguntou ela.

— Vim me desculpar, Miss.

Patrice franziu a testa, intrigada.

— Estou muito magoada com o senhor.

— E tem toda razão, Miss. Eu não devia ter sido tão rude.

— Que gesto magnânimo! Finalmente aconteceu uma coisa que julgo ser totalmente inesperada. Não tinha o direito de falar comigo como falou. Francamente, que horror!

— Lamento se eu a magoei. Foi um grande disparate. Bitte, esqueça. Precisamos nos unir se quisermos descobrir algum rastro de seu ex-namorado. Tem alguma ideia de onde ele esteja?

— Eu não sei onde Horace está. Não o vi e nem conversei com ele desde ontem.

— Isso pode não ser verdade, Miss. Fizemos buscas ontem à tarde; li o bilhete que ele lhe escreveu: “Encontre-me na ponta do rochedo às 5h. Assinado: H”.

Patrice ficou vermelha.

— Pois está enganado se pensa que falei com ele. E não me pergunte mais, porque eu não saberia dizer. Lembro-me de um policial ordenando que permanecêssemos no salão; permaneci lá, junto com os outros.

— Mas isso foi às cinco e meia — disse Fëll de pronto.

— O que o senhor quer dizer? Que aceitei o convite de Horace, que fui lá e o matei? Até parece!

— Nein, Miss, não foi isso o que eu quis dizer. Só achei que, tendo falado com a senhorita, ele tivesse dito alguma coisa... Ó! Que estupidez!

Fëll sentiu como se tivesse levado um soco no estômago. De repente, a realidade descortinou-se diante de Fëll como uma cena lenta e sutil.

— Mas é isso mesmo! Por que não pensei nisso antes?! Não há dúvida quanto à sequência dos acontecimentos.

— Como é? — perguntou Patrice em tom de espanto.

— Miss, com licença!

Quase correndo, Fëll saiu vertiginosamente. A cara da moça exprimia a mais pura perplexidade.

— Ué, o que deu nele?

Atravessando o hall, o detetive rumou urgentemente para a porta.

— Ah, o ilustre Edmund Fëll em ação! — disse uma voz às suas costas.

Fëll viu O’Danugheon vindo em sua direção. E agora? Estava diante da possibilidade de falar a verdade ou inventar uma desculpa qualquer.

— Seguindo uma pista? — continuou O’Danugheon.

— Er... sim.

— Que bom.

O inglês tinha a mão estendida, meio mole, em uma tentativa pouco convincente de cumprimentá-lo. Fëll fitou a porta aberta e enxugou o suor que lhe corria pela testa.

— Diga-me uma coisa, Mr. O’Danugheon... Por que veio para este hotel?

— Pela minha saúde. Fico aborrecido pelo que as pessoas pensam de mim. Trabalhei duro para ter tudo o que tenho. Nada veio de graça.

— Para ser franco, acho que as pessoas estão interessadas nas mesmas coisas, aonde quer que a gente vá — retorquiu Fëll.

— Pena que tenha havido esses assassinatos. Tanta coisa que acontece! Lembra-se da tarde em que o senhor e eu vimos Madame Abernettye carregando as compras? Lá estava ela, feliz, rindo à toa. Com o noivo do lado. Estava claro que aquilo não ia acabar bem. Primeiro ele conquistou a mulher — e depois deu um jeito nela.

— Por que ele daria um jeito nela?

— Oh, o senhor não percebeu? Mr. Amay é o típico indivíduo que gosta do bom e do melhor. Um malandro que engana e trapaceia mulheres com posses. Avalie a pequena fortuna que ele vai receber. Após gratificações para a criadagem e uma pensão anual para Horace, a casa e a propriedade serão vendidas e o dinheiro será dividido em partes iguais para os demais beneficiários. Era o que constava em todas as versões anteriores do testamento dela. Por pouco que seja, é quase uma aposentadoria.

Fëll rosnou impaciente. Seus olhos adquiriram uma estranha rigidez e pareceram dirigir-se para longe.

— Entschuldigung, Mr. O’Danugheon, mas tenho que ir.

— Calma. Eu vou com o senhor.

Tomando a dianteira, Fëll caminhou apressadamente em direção à esplanada. Havia um aroma de folhas úmidas no ar. Mais atrás, como se não tivesse a mínima pressa, O’Danugheon o seguia vagarosamente.

— O que está acontecendo, posso saber?

Sem dizer nada e tentando demonstrar naturalidade, Fëll chegou ao despenhadeiro.

Depois de olhar em volta, agachou-se, e verificou o solo com a máxima atenção. Ele empalideceu, sem conseguir se controlar.

— Oh, não! Oh não...

— O que foi?

— Manchas! — Depois de ligeira pausa acrescentou: — Manchas de sangue...

— Sangue?! De quem?

À medida que Fëll tentava se recuperar, desfilavam por sua memória as lembranças de tudo o que tinha acontecido até ali.

Fëll olhou os rochedos, embaixo, açoitados pelo mar. Lá, quase sem querer, ele viu!

Uma leve onda de náusea sacudiu seu estômago. Os olhos arderam, mas não ele conseguiu fechá-los.

— Mr. O’Danugheon...

— Sim?

— Pode fazer um favor?

— Naturalmente.

Fëll começou a transpirar, mas prosseguiu obstinadamente:

— Vá chamar o Superintendente. Acho que acabamos de encontrar Horace Abernettye.


Capítulo 23

 

— Este caso passa de normal; é extraordinariamente fantástico!

MacCormeck estava lá sentado, rangendo os dentes, tamborilando os dedos no braço da cadeira. Fëll concordou com um gesto de cabeça:

— Há um elemento de verdade nisso, Superintendente. É mesmo fantástico. De qualquer modo, sinto-me um pouco culpado pelo que aconteceu. Meus temores eram mais do que justificados, pelo que vejo.

— Só o senhor? Acho que, quanto a isso, teremos que negociar uma anistia. Todos nós dispomos da mesma parcela de culpa.

Estabeleceu-se entre eles uma espécie de comunicação silenciosa. MacCormeck esmurrou a mesa com força:

— Não era deste jeito que deveria terminar. Eu queria que pudéssemos fazer tudo de novo. Tenho uma pergunta para lhe fazer, se não se importa.

— Quanto a isso, nenhuma objeção.

— Por que foi procurar por aqueles lados?

— Quer que eu responda agora ou depois?

— Estou cheio de curiosidade. Preferia ouvir agora.

— Por causa do bilhete, lembra-se? Endereçado à Miss Alisson. Nele, Mr. Abernettye dizia que queria falar com ela perto do penhasco. Quando conversei com ela, porém, Miss Alisson assegurou que não tinha ido. Foi aí que me ocorreu... E se existisse ali alguma indicação sobre onde o rapaz pudesse estar? As perspectivas não eram cem por cento favoráveis, mas era melhor do que nada. Logo que cheguei, vi os respingos de sangue na relva. E pior: a poucos centímetros do precipício! Olhei para baixo e — para minha surpresa — vi o corpo, embaixo, entre as rochas.

MacCormeck examinou as anotações iniciais sobre o crime.

— Avaliando o estado do corpo, a morte pode ter ocorrido pela queda. Mas só estes sinais não são suficientes para indicar a causa do óbito. O fato é que, antes de cair, Mr. Abernettye foi atingido por um tiro. A conclusão é que ele estava lá de pé e caiu com o próprio tranco da bala.

— O disparo foi feito de perto?

— De média a longa distância.

Fëll deu um grunhido revelador.

— Um verdadeiro golpe de sorte.

— O que me apavora é que ninguém tenha visto nada. Uma pessoa é baleada em plena tarde de sol, à vista de todos, e não há sequer uma testemunha disto! Todos contam a mesma coisa... com poucas variações.

MacCormeck lembrou-se do cadáver. A pele clara, mas suave e uniforme. Os malares pronunciados... as maçãs carnudas do rosto... as múltiplas fraturas e, na altura do rim, o orifício da bala...

— A meu ver, uma arma pequena com silenciador. Mandei encaminhar a bala para o nosso laboratório de balística. Vão analisar as estrias... ver se há algum registro.

— Acha que o tiro foi dado do hotel?

— Talvez de uma janela... Ou do bosque, que fica à esquerda. Dá uns cinquenta metros até o local onde estava o rapaz.

— Pela estimativa, o assassinato aconteceu enquanto fazíamos os interrogatórios. A questão é: o assassino agiu segundo as contingências da oportunidade? Ou ele sabia que a vítima estaria lá?

— Ah, está se referindo a Miss Alisson?

— Tudo leva a crer que sim.

— Primeiro, Miss Grovenor; depois, Madame Abernettye; e agora, Horace Abernettye. Tudo parece tão pueril!

— Quanto à camareira... O que ela disse?

O Superintendente ficou perplexo com a mudança repentina de assunto.

— Mrs. Topsey afirma que encontrou o chapéu de Mrs. Wigginfort no salão dos hóspedes. Não sabendo de quem era, colocou-o nos degraus da escada de serviço.

— Que, por sinal, fica perto da porta dos fundos.

— Isso sugere algo?

— Muita coisa. Sabia, Herr Leitner, que recentemente um vaso com um arbusto foi colocado do lado de fora da porta dos fundos? Vi as marcas... Um vaso que devia estar alguns metros mais à direta.

— Não estou entendendo...

— Congreguei várias fórmulas para chegar a uma resposta — disse Fëll. — Se não fosse o arbusto, daria para ver o banco onde o Dr. Hagissart esteve, ontem à tarde, a partir das 13h. E mais atrás, a quadra de tênis.

MacCormeck manifestou seu desagrado.

— Se esta for outra de suas charadas, vou acabar tendo um ataque — disse em tom sombrio.

Houve uma explosão de vozes lá fora, e alguns risos altos e ligeiramente histéricos. De repente, Patrice irrompeu pela porta.

— Superintendente — disse ela dramaticamente. — Ainda bem que está aqui!

O rosto estava camuflado pelos cabelos escorridos, e as formas graciosas do corpo disfarçadas sob uma roupa feia e larga.

MacCormeck lançou-lhe um olhar quase afetuoso.

— Sente-se, por favor, e diga-me em que podemos ajudar.

— É verdade que Horace... está morto?

— Sim.

O coração de Patrice batia descompassado.

— Oh! Isso é horrível.

— Não viu quando corpo foi resgatado?

— Eu estava em meu quarto. Vi a movimentação de policiais na praia... Pensei que era uma ocorrência com algum banhista. Isabelle... Isabelle me disse que se tratava de Horace.

— Estava em seu quarto, Miss? — perguntou Fëll em tom indiferente.

— Sim.

— Creio que, ao sair, eu deixei a senhorita no térreo, não foi? O que foi fazer no quarto?

Ela o interrompeu, custando a acreditar no que ouvia.

— O senhor... está... me sondando?

— Sabe muito bem o que eu quis dizer, Miss. Estou tentando ajudá-la; lamento que não veja assim.

— Como o senhor se atreve? Como se atreve?

— Sinto pelas coisas terem tomado esse rumo, Miss Alisson. A senhorita não gostava de Horace Abernettye, não é?

— Claro que sim! — retrucou ela, amarga e irônica. — Nicque era totalmente imoral. Ela ia a qualquer lugar com qualquer um. Era uma desclassificada. Mas Horace não! Horace era um homem direito, um das pessoas mais populares que já conheci.

— Tão popular quanto Leonard Amay?

Tomada por uma súbita onda de raiva, Patrice deu um passo atrás. Leonard definitivamente não estava no rol de seus afetos!

— Leonard é um completo idiota, provavelmente desde o nascimento.

Seus olhos se iluminaram.

— Ah, agora entendi. Os senhores acham... que... fui eu!

Fëll confirmou com um gesto.

— Vamos espremer este caso como se espreme uvas no lagar, Miss.

— Nunca vão provar que fui eu.

— Compete ao júri tomar essa decisão.

— Nunca faria nada disso. Isto tudo é uma mentira perversa!

Não havia a menor dúvida de que ela estava dizendo a verdade. Fëll aproximou-se e colocou a mão sobre seu ombro.

— Tranquilize-se, Miss. Vamos virar a página, está bem? Eu já disse antes e volto a dizer: temos que nos unir se quisermos apanhar o assassino.

— Como vai apanhá-lo? Emitindo um decreto?

— Não. Usando o cérebro.

— Aham... O senhor é um pobre iludido!

— Sou guiado pela imparcialidade, Miss. Só isso. O nosso trabalho consiste em definir os fatos deste caso.

— Com toda sinceridade, fico muito contente com isso. Descubram quem matou Horace — por favor!

— Vamos descobrir, Miss.

Patrice fez uma careta e saiu.

— Que desempenho virtuoso! — comentou MacCormeck. — Sou capaz de jurar que esta garota sofre de anemia aguda. O estado dela inspira cuidados.

Fëll anuiu.

— Será que podemos dar uma volta? Já estou com as costas doloridas.

Quando saíam da sala de bilhar foram chamados por Mrs. Wigginfort.

— Madame! — disse Fëll.

— Quando vão nos deixar ir para casa?

— Assim que der, Madame.

— Não há nada que possam fazer por mim?

— Só se for uma emergência.

— Minha sobrinha teve fibrose cística e precisou de um transplante de pulmão. Eliza é simplesmente louca pela prima e quer ir vê-la no hospital. Eu queria ver se nós duas poderíamos... por acaso...

— Infelizmente não dá — disse MacCormeck. — A regra é para todos.

Mrs. Wigginfort balançou a cabeça tristonha.

— Foi o que eu pensei... — Fez uma pausa; subitamente, empertigou-se: — Estou profundamente preocupada com Miss Alisson. Ela está muito nervosa. Acho que isso pode acabar afetando sua gravidez. Talvez o Dr. Hagissart devesse receitar um sedativo, alguma coisa.

— Vamos dar um jeito nisso. Obrigado pelo aviso.

— Pobre menina! Parece que ela amava aquele rapaz, apesar de tudo. Um jovem tão encantador! Estava arruinado sim — vergonhosa e irremediavelmente arruinado. Mas era tão bem-educado e inteligente!

Fëll balançou a cabeça.

— Sou forçado a concordar, Madame.

— Os senhores têm alguma perspectiva de resolver este mistério?

— Estamos próximos, Madame. Muito próximos.

— Me perdoem, estou sendo tão cansativa! Seja como for, os senhores estão apenas cumprindo seu dever.

Mrs. Wigginfort voltou para a sala da frente. Fëll e MacCormeck seguiram adiante.

Isabelle estava parada no saguão com um ar hostil. Ela se virou olhando para eles.

— O que eu não entendo é como Horace caiu lá no fundo e ninguém viu coisa alguma.

— Não foi uma simples queda, Mrs. Hollder — disse Fëll. — Constatamos que há algo mais envolvido no acidente.

Marck retrucou:

— Algo mais?

— Duas coisas, em separado, são muito sugestivas; juntas são quase conclusivas. Que Mr. Abernettye, antes de cair, foi atingido por um tiro; e que ele caiu porque perdeu o equilíbrio.

Marck tentou conter a exclamação de contrariedade que brotou da garganta, mas em vão.

— Horace... foi... baleado?

— Ontem à tarde.

— Devem desculpar meu marido — disse Isabelle. — Ele é lento para entender certas coisas. É claro que só pode ter sido isso. Horace não era o tipo de pessoa que se jogaria de um precipício.

— A senhora tem discernimento — elogiou Fëll.

— Um tiro — disse Marck. — Espantoso!

— Ele ficou lá por dez, doze horas? — perguntou Isabelle.

— Segundo as estimativas, sim.

— Pobre Patrice! Já falaram com ela? Como ela reagiu?

— Reagiu como eu esperava, mas vai superar.

— Ela ansiava tanto ser amada e ter um pouco de carinho...

— Se Horace foi baleado — disse Marck — deve ter sido alguém que tem uma arma. Os senhores revistaram nossos quartos...

— Revistamos as coisas, não as pessoas. Além disso, um revólver pode ser guardado em qualquer parte.

— Então descubram quem sabe atirar, ora.

— É essa a sua opinião, Mr. Hollder? Que descubramos quem saiba atirar?

— Não vejo nada mais fácil.

— E como faríamos isso? Colocando um alvo por aí e pedindo que todos mirem nele?

— Mais ou menos isso — disse Marck.

A voz irritada, estridente e mal-humorada de Markus Rigoletti quebrou o silêncio:

— Não me digam que estão falando desse cara! Acho que tem coisas mais importantes que deveríamos discutir.

— Para o senhor parece fazer pouca diferença que Mr. Abernettye esteja vivo ou morto, hein?

Rigoletti olhou para MacCormeck com ironia:

— Não posso dizer que a coisa me desagrada — respondeu ele, a boca levemente torcida. — Esse rapaz era antipático, arrogante, agressivo, fanfarrão. Ele não queria uma mulher para casar. Saía com muitas, e as jogava fora depois de sair uma ou duas vezes. Se fosse uma moça de família, Miss Alisson nunca teria se envolvido com ele. Uma ocasião como esta deveria ser festejada!

— Conhecia bem os Abernettye, Signor Rigoletti?

— Oh! Sim. Conheci o velho muito bem: jogávamos polo juntos, íamos a Monte Carlo juntos — fazíamos tudo juntos! — Rigoletti corou de indignação: — Que impertinência, Superintendente! É claro que eu não conhecia os Abernettye.

— Mas já tinha ouvido falar neles.

— Sim, e daí? Não é meu feitio me relacionar com essa laia de gente inescrupulosa e imprestável. Para mim, a pessoa precisa mais do que possuir dinheiro, ter prestígio e colocação social! Assim como o pai, esse jovem não tinha sensibilidade nem respeitava os sentimentos de ninguém. Há um preço ligado a tudo, senhores. Se ele morreu, morreu e fim.

— O senhor está bem, Signor Rigoletti?

Rigoletti parou e enxugou a testa. Fez um humpf! ofendido e se afastou.

— Que homem insuportável! — cochichou Isabelle.

Fëll e MacCormeck deram meia-volta e saíram do hotel.

— O pior disso tudo — disse MacCormeck — é que as pessoas enrolam, enrolam, e quem acaba prejudicado somos nós. Sempre fico pasmo com a capacidade humana de julgar os outros.

— Eu também — disse Fëll.

Leonard Amay estava parado perto dos portões de ferro, observando o voo das gaivotas. Os dois homens se aproximaram.

— Bom dia, Mr. Amay.

Leonard não esboçou qualquer reação. Permaneceu concentrado nas aves e murmurou alegremente:

— Bela forma de começar a manhã, hein?

— É um belo cenário! O mar azul cintilante... o colorido das cidades históricas...

— Também acho — disse Leonard. — Gosto dos portos, das vilas de pescadores... Tudo muito charmoso e curioso de se ver, principalmente pelo contraste das cores. É pena que o dia tenha começado de maneira tão desagradável!

— Das ist wahr — disse Fëll.

Leonard apontou para a escarpa, alguns metros à frente.

— Queria saber o que deu em Horace para parar justamente aí! Ora, o que eu estou fazendo? Desculpem pela grosseria... O que querem de mim?

— Para começar, Mr. Amay, queremos saber se ouviu alguma coisa, ontem à tarde? — perguntou Fëll.

— Que tipo de coisa?

— Mais especificamente, um tiro.

— Um tiro? Não, não. Eu me lembraria. Sinto muito.

— Pelo visto, já sabe como ele foi morto!

— Com uma bala, não é? Gostaria de ter tempo para ser mais delicado, mas os senhores precisam saber de certas coisas. Então vou ser direto. Eu estava presente quando O’Danugheon chegou dizendo que o senhor havia encontrado alguma coisa. Fui um dos primeiros a chegar aqui. Acompanhei tudo desde o início. A vinda da polícia, o resgate... Vi quando vistoriaram o corpo à procura de sinais de violência. Correu um rumor — um rumor sobre o que poderia ter matado Horace.

— É um jovem muito vivo, Mr. Amay!

— “Não arrisque a sorte”, é o que papai sempre dizia. Queria ser eu mesmo a esclarecê-los sobre isso.

Fëll olhou para o rapaz.

— Vejo que não está muito sentido com a morte de Mr. Abernettye!

— A tristeza não é produtiva. Além do mais, eu vou casar, senhores.

Fëll e MacCormeck se entreolharam.

— Vai casar... Com quem?

— Com Eliza Wigginfort.


Capítulo 24

 

Fëll ficou momentaneamente sem fala.

— Eliza Wigginfort?

— Oh, ainda não é oficial — disse Leonard.

— Ela corresponde aos seus sentimentos?

— Sim.

— Parece ter muita certeza disso.

— Plenamente.

— Honestamente, espera que acreditemos em tudo isso? Sua noiva sequer foi enterrada e o senhor já está flertando com outra mulher. No mínimo, há algo de errado.

— Não há nada de errado! Conheço Eliza há anos. Jovem, bonita, desejável, maliciosa... Ou um homem vive a vida que tem ou começa a definhar e morre. Quem quer ser feliz, tem que se livrar de seus medos.

— É o bom Deus que estabelece o que é bom e o que é mau, Mr. Amay — retrucou Fëll. — O que está querendo fazer é inequivocamente mau.

— Mas não ilegal.

— É uma questão de bom senso, não de legalidade.

— Simplesmente caí em mim. Nada mais.

— Fácil assim? Muitos homens consideram as mulheres apenas objetos de diversão para serem usados e descartados. Também é o seu caso?

— Amo Eliza! O meu coração está acorrentado a ela. Como primogênito, eu deveria herdar o negócio do meu pai. Fui excluído do testamento, mas isso não importa. Eu dou um jeito, seja como for. Vou tornar Eliza uma mulher respeitável. Sabiam que o pai dela perdeu tudo por causa do pai de Nicque? O velho Wigginfort era um homem muito bem sucedido. Negociava com títulos, ações, essas coisas. Restaurantes, eventos beneficentes, avant-premières, coquetéis e festas de gala. Ele estava em todos os lugares. Depois veio a crise, e os investimentos em muitos setores caíram à zero. Pobre Wigginfort! Uma provação que, no prazo que durou, amargurou sua alma e destruiu sua autoconfiança. Da falência até o túmulo foi um passo. É o que eu digo: um homem deve ser honesto... mas não demais. Os grandes objetivos não podem ser atingidos exclusivamente por meio de atos que à primeira vista parecem ser elogiáveis. Para vencer na vida, às vezes é preciso passar por cima dos que estão abaixo de nós.

Fëll ficou estático. Wigginfort — falido... morto!... As implicações dessa declaração tinham que ser investigadas.

Leonard olhou curiosamente para Fëll.

— O que há? Alguma coisa que eu disse?

— Eu só estava... pensando. Bem — suspirou Fëll olhando para MacCormeck. — Não há por que insistir numa causa perdida. Se este rapaz está inclinado a fazer aquilo que fala, não podemos interferir.

— Calma lá, nem tudo está ganho — disse Leonard. — Ainda tenho que falar com a velha.

— Que pode obstar o seu pedido...

— Impossível!

— Por que não tiramos a prova? — interveio MacCormeck. — Veja, Mrs. Wigginfort está vindo aí. Vá lá, meu jovem... fale com ela.

— Acha que não tenho coragem, Superintendente? Pois eu vou mostrar...

Leonard estufou o peito e passou os dedos pelo cabelo.

Mrs. Wigginfort vinha chegando pela alameda. Apertando os lábios, Leonard adiantou-se. Atrás dele, Fëll e MacCormeck se viraram e, para não dar na vista, fingiram estar conversando.

— Bom dia, Mrs. Wigginfort.

Ela lançou um olhar de incredulidade para Leonard, mas não demonstrou qualquer comoção ou interesse.

— Bom dia.

— A senhora tem um minuto para mim? Vou falar, sem omitir nem ponto nem vírgula. Tenho um pedido importante para fazer: quero me casar com sua filha.

O bom humor desapareceu do rosto de Mrs. Wigginfort; a sua postura tornou-se rígida.

— Quer... casar... com minha... filha?

— É o que eu gostaria.

— Está caçoando de mim, não está?

— Nunca falei tão sério.

— Será que o senhor ficou louco?

— De forma alguma, Madame. Levo uma vida boa, gosto de arquitetura clássica, tenho sangue aristocrático...

— Sangue aristocrático, Mr. Amay? Não atribuo muito valor a essas coisas. Para dizer a verdade, o senhor é muito infantil.

— Não há nada de errado nisso, há?

— Bobagem. Há sim.

Leonard sacudiu vivamente a cabeça.

— Posso fazer qualquer coisa no mundo, Madame.

— Menos casar com Eliza!

— Espere um minuto! Sei que estou sempre dizendo o que não devo, mas...

— Não. Espere o senhor! Eu ainda não terminei. O senhor não está interessado na personalidade, na inteligência e nos sentimentos de Eliza. O senhor só vê o corpo de Eliza — é só isso o que conta. É um homem acostumado a ter o que quer, na hora que quer. Não desta vez!

— Nisso a senhora está sendo injusta.

— Acho que é um assassino, Mr. Amay.

— Qual é! Não pode dizer uma coisa dessas. A menos que tenha visto algo fora do comum.

— E se eu tiver visto?

— Pois que fale! Dou-lhe toda a minha atenção.

— Recuso-me a responder. Não há nada para falar. Algo mais que eu posso fazer pelo senhor?

As últimas palavras foram ditas com certo desprezo.

— Já sei! A senhora não gosta de mim, é isso.

— Se gosto do senhor? Ainda não tomei as medidas.

— Mas deve haver uma razão para me rejeitar.

— Não há razão nenhuma, Mr. Amay. Minha opinião está formada, é o que basta.

Eliza veio neste instante. De repente, quando viu seu pretendente falando com a mãe, os olhos dela ficaram apreensivos.

Leonard olhou para ela amavelmente.

— Venha, querida! Conte tudo à sua mãe.

— O... que você... está fazendo? — gaguejou Eliza.

— Eliza! — bufou Mrs. Wigginfort. — É verdade o que esse cavalheiro está dizendo?

— Não... sim! Ah, mamãe!...

— Foi o que eu pensei! Francamente, minha filha.

Leonard não se conteve e instou com o mesmo tom de voz:

— Diga a ela, Lili! Diga a ela que nós nos amamos. Enquanto eu tiver você, enquanto nós tivermos um ao outro, nós seremos felizes — disse ele, sem se dar conta das implicações de sua resposta.

Eliza enxugou uma lágrima com gesto irritado. Quando falou novamente, Eliza estava um pouco exasperada:

— Eu não posso... Você disse que não seria agora.

— Por que não? Nós nos conhecemos desde os 13? 14 anos? Não vê o que aconteceu comigo esta semana? Duas mulheres que eu amava morreram! Eu lutarei por você, andarei na corda bamba por você, sim, eu morrerei por você — só para protegê-la. Eu prometo, Lili!

— Nunca imaginei que você me apunhalaria dessa forma, minha filha!

— Mamãe!

— Não vai reconsiderar, Madame?

— Não, não vou.

— A senhora sabe que não é o passado de uma pessoa que define o que ela é ou o que vai ser.

Mrs. Wigginfort deu as costas e, como uma pantera ferida, saiu andando. Incapaz de suportar a tensão, Eliza fechou os olhos e foi atrás dela.

Leonard voltou para junto de sua discreta plateia.

— Parabéns, Mr. Amay! — disse MacCormeck. — Foi a coisa mais atrevida que eu já vi.

— Para que não digam que não sou homem de manter minha palavra! Essa mulher é barra pesada. Mas não me dou por vencido. Não sou de deixar as coisas pela metade, cavalheiros.

Fëll e MacCormeck se encaminharam para a quadra de tênis. O detetive austríaco ia distraído e, por trás do monóculo, seus olhos castanhos espelhavam um objetivo inabalável.

— No que está pensando?

— No que disse o rapaz.

— Referente a quê?

— Que ele não deixa nada pela metade.

— O que tem isso?

— Tem que as coisas estão começando a se ajustar. Veja ali... o Major.

O Major Bernwell estava refestelado numa cadeira de praia, as mãos tão trêmulas que pareciam não obedecer às ordens de seu dono. Ficou exultante com a chegada da dupla:

— E aí, senhores... Tudo bem?

— Sim, bastante bem.

— Folgo em saber. Algum suspeito em vista?

— Falta acertar alguns detalhes. Os meios são todos conhecidos; falta delinear os motivos. Três mortes... três modos de agir. Com base nas provas, cada um formula a sua hipótese.

— Não pode adiantar nada?

— Seria absurdo negar que o caso é obscuro e complexo, Major — disse Fëll. — O crime mais difícil de desvendar é o que não tem um propósito.

— Já tem ideia de quem fez isso? Pela descrição feita pelo senhor, deve ser um gênio do crime.

— Quase isso. Este caso é sem dúvida um dos mais complicados que já investiguei. Esse assassino é pior do que escorpião. Ferroa e se esconde para não ser descoberto.

Bernwell se recostou na almofada; sorriu:

— Não há nada de que o senhor goste mais do que investigar casos assim, não?

— De certo modo.

— Vi que falaram com Mr. Amay.

— Sim.

— Sabiam que o pai dele foi minerador? Vivia em Leytonstone, a leste de Londres. O velho enriqueceu escavando e peneirando minério. Muitos homens nasceram para a sarjeta. Ele não. Até hoje cada filho traz consigo uma pedrinha de ouro. Como que uma lembrança da vida de suor e sofrimento que já tiveram. Em breve, Leonard Amay será um sujeito rico, senhores — muito rico.

— Não foi bem isso o que ouvimos dele — interrompeu MacCormeck.

— Ah, não caiam nessa! Leonard Amay é dado a inventar histórias e dizer essas coisas. Ele vive sem nada porque optou por isso. E mesmo uma deserção pode ser só temporária, se é que me entendem!

— Como sabe tanto sobre ele? — perguntou Fëll.

— Por meio de Louise. Os dois namoraram quase nove meses. Dá para saber muita coisa de uma pessoa nesse meio tempo! Primeiro ele deu de tudo a ela: roupas, cosméticos, o sol, a lua... Tratou-a como um objeto raro que poderia quebrar se fosse maltratado. Depois, quando já não tinha serventia, jogou-a fora! Vão por mim: um cara que cumula uma mulher de presentinhos não presta! Talvez seja estupidez minha, mas é assim que eu penso.

Fëll pareceu ter ficado atordoado. Refletiu por alguns segundos e sacudiu a cabeça.

— Já dizia alguém: “Os raios solares não queimam até que sejam colocados em foco”. Muito obrigado pela sua contribuição, Major. Vem comigo, Superintendente?

— Para onde?

— É meio-dia. Primeiro temos que almoçar.

— E depois?

Fëll cerrou os olhos, acenou novamente com a cabeça e respondeu:

— Depois será a vez de dissecar nosso caso.


Capítulo 25

 

Do refeitório passaram para a sala de estar.

— Bem, Fëll, são treze horas. Que passo pretende dar agora?

Fëll sentou-se.

— Mandei chamar os Hollder para falar conosco.

— Os Hollder? — perguntou MacCormeck, surpreso. — Vejo que já chegou a um resultado satisfatório!

— Muito satisfatório!

— É gratificante ouvi-lo dizer isso.

— Bastou aplicar um pouco de graxa no maquinário e... voilá! — a locomotiva começou a se mover!

A cabeça de MacCormeck rodopiava.

— Vai dizer o que descobriu? Por uma questão de argumento, acha que as mortes estão interligadas?

— Uma das nossas tarefas consistiu justamente em verificar este ponto — disse Fëll. — Um pouco de paciência, Herr Leitner!

— Para mim chega! — exclamou MacCormeck, contrariado. — Paciência, paciência!... Nós militamos no mesmo lado, não percebe?

— Eu sei, eu sei. Ouça... devem ser eles!

De rosto ameninado, Marck apareceu acompanhado da esposa. Erguendo uma das mãos, Fëll fez um sinal de boas-vindas.

— Agradeço por atenderem meu pedido — disse Fëll. — Especialmente a senhora, Mrs. Hollder.

Isabelle Hollder cruzou as pernas. Seus olhos eram expressivos, penetrantes, como se pudessem enxergar através da matéria.

— Oh, acharam que eu não viria? O senhor já povoa meu panteão de celebridades, Mr. Fëll.

— Queremos só conversar um pouco.

— Claro — disse Marck em tom indiferente, embora em sua voz houvesse um tremor quase imperceptível.

— Faz parte do padrão, não é isso? — sorriu Isabelle.

— Exatamente, Madame. Muitas coisas na sociedade obedecem a um padrão predeterminado. Ontem, porém, nós nos confrontamos com uma coisa que não se enquadrou nos padrões convencionais. Foi quando encontramos a senhora em seu quarto numa hora em que não deveria estar lá. Friamente falando, várias razões podem tê-la compelido a desobedecer as nossas instruções. Restrinjo-me a uma delas: talvez houvesse algo lá... algo que a senhora quisesse reaver antes que caísse em mãos erradas. No caso, antes que caísse em nossas mãos. Foi essa uma de minhas linhas de raciocínio. Que se tornou mais sólida quando o senhor, Mr. Hollder, mencionou a falta de escrúpulos do Signor Rigoletti. Calculo que, indiretamente, o senhor não estivesse se referindo só a ele. Alinhei tudo e cheguei ao dia em que Nicque Abernettye ficou furiosa com a senhora — a ponto de dizer que não queria voltar a vê-la nunca mais. Com isso em mente, talvez seja possível pensar num motivo que poderia gerar essa raiva tão súbita e encarniçada. Um motivo tal como... uma chantagem!

Isabelle soltou uma estrondosa gargalhada:

— O senhor deve ter enlouquecido!

— Não, não enlouqueci.

— Para dizer uma coisa dessas!

— Não, Belle — disse Marck. — Ele está certo.

— Marck!

— Não, Belle. Vamos ser honestos, é melhor. Agora é a minha vez de falar. Não sei quem é seu informante, mas o senhor tem toda razão. Não vou minimizar o que fizemos, nem fazer parecer o que não somos. Afinal, um homem não pode ter medo de enfrentar as consequências de seus atos. No auge do desespero, uma pessoa muitas vezes faz coisas que, antes disso, nem sequer suspeitava ser capaz de fazer. Acontece que, desde novembro, as nossas finanças estão indo de mal a pior. Tínhamos feito de tudo para liquidar pelo menos as dívidas maiores, mas sem resultado. Os senhores sabem como são os credores — eles querem o que é deles, e com todo o direito! Qual não foi a nossa surpresa quando surgiu uma oportunidade — uma oportunidade não só de nos livrar do que devíamos, mas também de embolsar algum para nós! Isabelle ouviu falar de uma carta endereçada a Nicque Abernettye, aparentemente de um admirador francês, dias antes do falecimento repentino de LaRouchelle. Ora, uma especulação leva a outra. E se aquela correspondência houvesse tido um papel ativo na série de eventos trágicos ocorridos em Kensigton? E se essa correspondência fosse a causa primária do suicídio de LaRouchelle? E se... E se... Essa carta, de algum modo, tinha sido interceptada e estava agora em poder de minha cunhada Patrice. Não se desperdiça a chance quando ela cai aos nossos pés! Provavelmente ali estava a solução para contentar os cobradores que, a toda hora, batiam em nossa porta! Obtida a carta, que continha os indícios de que tinha havido um envolvimento amoroso entre Nicque e o remetente, Isabelle foi falar com ela. Mas, em vez de se mostrar razoável — como achávamos que aconteceria —, Nicque perdeu completamente o controle. Ficou com tanta raiva que parecia pronta para explodir. E o pior: começou a destratar Isabelle, batendo o pé e falando com ela aos gritos. Se não fosse por mim, acho que Nicque teria se atirado ao pescoço de Isabelle. Bem, talvez eu devesse lutar. Dizer que somos inocentes. Enfim... Não posso mais. Perdemos. Assumo aqui que o erro foi nosso! Isso encerra o que nós mesmos começamos — arrematou Marck.

Isabelle enrijeceu. Isabelle olhou para Marck com um horror mudo estampado nos olhos.

— Essa é a pior coisa que você já fez, Marck. A pior!

Apesar do tom de ironia, a voz parecia insegura e abalada, quase entrecortada.

— Não, não é, Belle. Chega de mentir. Nós vamos dar um jeito, você vai ver. Vou comprar um barco de pesca comercial. Viverei em alto-mar, se for preciso. Farei qualquer coisa, mas dentro da lei.

— O senhor se dá bem com sua esposa, Mr. Hollder?

— Muito bem. Nunca levantei a voz para ela.

— Há uma maneira de remediar o que vocês fizeram.

— Farei tudo o que quiser.

— Em primeiro lugar, traga-nos a carta, Mr. Hollder. Pode fazer isso por nós?

Marck fez um gesto afirmativo e saiu da sala.

— Com que homem eu me casei! Comporta-se como um verdadeiro lorde inglês. Meu adorável Marck! Sem nenhum capital especulativo, mas honesto. Cessem o fogo, está bem? Eu sou a única culpada.

— A senhora idealizou tudo isso?

— Todos erram, não é mesmo? Acho que devo ter uma espécie de superego feminino malévolo. Não dizem que nem todo mundo deixa um modelo digno de ser imitado?

— A senhora teve, digamos assim, uma psicose hormonal — disse Fëll, baixinho.

— S-sim...

— Há outro assunto que gostaria de discutir com a senhora, se me permite. O ataque que alegou ter sofrido na tarde em que Mrs. Abernettye foi morta.

Um calafrio percorreu Isabelle de alto a baixo.

— Não... eu não... como assim?

— Não vamos perder tempo com bobagens; vou direto ao ponto. Acho que a senhora não foi fiel quando deu a sua versão dos fatos para o doutor. E nem foi fiel quando, mais tarde, falou conosco sobre aquilo. Estou piamente convicto, Mrs. Hollder, de que tudo o que disse não passa de uma enorme e deslavada mentira.

Isabelle jogou os cabelos para trás.

— Neste hotel tivemos três assassinatos consecutivos. O segundo deles cometido com todos os requintes — um plano muito engenhoso e muito bem concebido. Estamos diante de duas hipóteses: ou a senhora contou as coisas pela metade ou está escondendo deliberadamente o que sabe. Pelo bem dos outros, e principalmente para seu próprio bem, eu a exorto a dizer exatamente o que viu naquela tarde.

Isabelle Hollder fez uma ligeira pausa.

— Estou vendo que o senhor não economiza nos argumentos, Mr. Fëll — disse Isabelle. — Se tivesse se formado em direito, seria o terror dos magistrados! Lamento apenas não ter nenhuma informação que lhes seja útil.

— Pense positivo, Madame! Só narre o que aconteceu; deixe a avaliação por nossa conta. Faça-nos um relato pormenorizado, sim?

— A partir de que trecho?

— Da ida ao terraço em diante. Parece-me que há alguma coisa de verdade nisso. Menos o trecho em que a senhora diz ter sido imobilizada e, em seguida, perdeu a consciência. Isso obviamente foi inventado.

Isabelle permaneceu mais alguns instantes em silêncio. Depois resolveu falar. Sem reservas.

— Sim, acho que podemos pular essa parte. Conforme eu disse, subi ao terraço porque estava procurando meu marido. Lembro-me que, assim que cheguei, vi um vulto desaparecer pela porta da escada de serviço. Não vi quem era; só sei que vestia um robe, com a palavra que já citei — aqui — na lateral. No momento, não pensei em nada. Continuei em frente e... foi aí que vi. “Santo Deus, o que será isto?” pensei. Foi ali, olhando para aquilo, que pela primeira vez me dei conta do horror de toda situação! Andei mais um pouco e... mais de perto... reconheci que era Nicque. Senti as mãos geladas e uma estranha inquietação me invadiu. Vários pensamentos assustadores cruzaram a minha mente. Não havia ninguém comigo... Ninguém que pudesse falar a meu favor. Ninguém que pudesse depor a meu favor! Lembrei-me da briga que Nicque e eu tivéramos horas antes. E se alguém tivesse ouvido os nossos insultos, a nossa gritaria? Comecei a andar de um lado para outro. Confusa. Fora de mim. Parecia que todos os meus receios desabavam sobre mim de uma vez. Minutos se passaram... Admito que não fui atacada, nem nada assim. (Como podem ver, estas manchas são de nascença...) O negócio é que eu não podia ficar ali, com um cadáver aos meus pés, sem fazer nada. Por isso saí correndo. Nem sei como, mas dei de cara com o Dr. Hagissart! Lembro-me que, quando dei por mim, ele estava lá, segurando-me para não cair. “O que houve?” perguntou ele, olhando para mim. “Oh, graças a Deus!” consegui dizer. Ele esticou o braço e perguntou outra vez: “O que aconteceu?” Contei tudo a ele... tudo o que eu tinha visto. “Vamos lá” disse o doutor, por fim. “Ah, não...” protestei. “Eu não consigo evitar... não há nada que eu queira mais, mas para lá eu não volto!” Ele olhou novamente para mim e disse: “Tenha calma, Madame. Leve-me até lá... Será um prazer se puder ter o privilégio da sua companhia. Deixe o resto comigo.”

MacCormeck levantou-se indignado.

— O quê? Quer dizer que o médico acobertou a senhora?

— Sim.

— Vejam só... Aquele patife! Será que ele não sabe que o perjúrio e a ocultação de fatos são faltas gravíssimas no Reino Unido?

Fëll gesticulou com impaciência.

— Bitte, nada de exaltações. Depois falaremos com o doutor sobre isso. Finalize, Madame.

— Bem, voltamos lá para cima — prosseguiu Isabelle. — O Dr. Hagissart pressionou o pulso de Nicque com a ponta do dedo para sentir a pulsação. Claro que ela estava morta! Nós...

Mas o tempo tinha se esgotado. De volta de sua delicada missão, Marck entrou e estendeu um envelope para Fëll.

— Está aí a carta.

— Gut — disse o detetive. Com um entusiasmo quase infantil, tocou a sineta: — Já que estamos todos aqui, vamos convidar Miss Alisson também.

O oficial Kyd recebeu o recado e saiu.

Da forma como surgiu, Patrice Alisson deu a impressão de não se importar com mais nada no mundo. Parecia uma moça insegura e sem determinação. Quando viu Isabelle, o rubor de sua timidez se transformou em constrangimento e por fim em indignação.

— O que você está fazendo aqui?

— Relaxe, Miss Alisson. Não há nada com que se preocupar. Deixe-me explicar como estão as coisas neste exato momento.

Patrice sentou-se e retesou-se um pouco.

— Sou toda ouvidos.

— Queríamos perguntar se sabe de alguma coisa que possa ajudar a nossa investigação — disse Fëll.

— Eu? Fizeram uma péssima escolha, cavalheiros!

— Somos forçados a escolher quando não podemos conciliar todas as opções disponíveis.

— Mas isso é uma pouca-vergonha! O que é que eu tenho a ver com isso? Não vão dizer que eu assassinei Horace, vão? Aí já é demais!

— Não é disso que se trata, Miss. É disto aqui!

Patrice empalideceu ao ver o envelope.

— Você está bem, Pat? — perguntou Isabelle.

— Se eu estou bem? Estou magnificamente bem! Aliás, nunca estive melhor.

Fëll ficou calado por um instante.

— Quer que eu suavize os pontos de inflexão, Miss Alisson? As pessoas evitam ao máximo fazer algo que exija esforço. Mas a senhorita não se insere muito bem nessa categoria. Não estamos aqui para julgá-la ou condená-la. Só queremos que conte o seu lado da história.

— Oh, o senhor é tão bonzinho! Gosto tanto de ser gentil com quem me trata com gentileza! O que querem saber?

— A senhorita não parece ser uma ladra, e nem mesmo tinha muita intimidade com Nicque Abernettye, o que lhe franquearia livre acesso a casa e, por sua vez, justificaria ter conseguido se apoderar de qualquer coisa de lá. Não, sabemos que suas relações não eram tão amistosas. Assim eu pergunto: de que maneira obteve esta carta?

— Não tenha medo, Pat — disse Isabelle. — Diga o que você fez.

O tom cortês da irmã emprestou coragem à moça.

— Mrs. Layfeld era a governanta de Monsieur LaRouchelle. Estava com ele há mais de dez anos. Há tempos ela desconfiava que Nicque vinha tendo um caso. Um dia, ao supervisionar a limpeza do quarto, deparou sem querer com uma carta. Apanhou-a e a entregou ao patrão que, depois de lê-la, ficou muito transtornado. Tão transtornado que simplesmente a devolveu, dizendo: “Vá, ponha de volta!” Mrs. Layfeld pegou o bule e apressou-se, caminhando em direção à cozinha, sem compreender o motivo de sua reação. Corroído de ciúme, LaRouchelle não queria saber mais nada que dissesse respeito à infidelidade de Nicque. Assim, de Mrs. Layfeld a carta chegou a Horace. Certa tarde, quando estávamos juntos, Horace riu: “Quer ouvir uma coisa?” perguntou. “O que quer que seja, pode esperar” disse eu. “Dizer não adianta, tenho que mostrar!” Dizendo isso, ele subiu as escadas e foi para o quarto, fechando a porta. Quando voltou, disse: “Providenciei uma coisa para você ver.” “Por que eu?” perguntei. “Não me lembrei de mais ninguém” disse ele. Deu-me um papel, com verso e reverso cobertos de uma letra firme e elegante. Quando terminei de ler, meus dedos estavam formigando. “O que você vai fazer com isto?” perguntei. “Nem sei” disse ele. “Devia queimá-la!” disse eu. Horace olhou para mim, surpreso: “Acha isso?” “Claro” disse eu. Ele fingiu escavar a memória. “Sim, acho que tem razão... queime-a!” disse então. Estávamos na sala e, na janela, as cortinas de renda tremulavam suavemente com a brisa. Fiz menção de jogar a carta no fogo. Aí o celular de Horace tocou. Ele foi atender e eu fiquei sozinha. Aí nasceu a ideia! Por que queimar algo que ainda poderia ser útil? Com cuidado, escondi a carta e a levei comigo. Lembro-me que, mais tarde, mencionei o fato para Isabelle. Foi ela que, dias depois, veio com a proposição maluca de chantagear Nicque. Eu jamais teria ingressado nisso — se Horace não tivesse sido canalha a ponto de sugerir que eu matasse meu bebê. Ah, como eu estava com raiva! O sangue fervia em minhas veias... Isso só podia ser coisa daquela vadia. Agora sim é que ela provaria um pouco de seu próprio fel venenoso! Ei! Esperem um pouco... Eu não acredito nisso! — exclamou Patrice.

— O que foi, Miss?

— Ah, não!

Por mais que tentasse, Fëll não entendeu aonde a moça pretendia chegar, por isso esperou que ela prosseguisse:

— Eu não vou ser indiciada, vou?

— Relaxe! Eu disse que não há nada com que se preocupar, não disse? Oportunamente poderemos conversar sobre a necessidade de certas medidas, desde que concorde, Superintendente!

— Ah, claro que sim! — atalhou MacCormeck com ironia. — Por que indiciar por tão pouco? Ameaçar os outros com o objetivo de obter alguma vantagem está muito em voga ultimamente! Além de ser absolutamente ético e legal!...

— Não digo que é ético nem legal — disse Fëll —, mas em vista das circunstâncias...

— De qualquer forma, a nossa tentativa de extorsão falhou — disse Marck. — Precisa ser compassivo, Superintendente!

— Compassivo! — resmungou MacCormeck.

— Então?

— Vão, vão, saiam daqui.

Marck, Isabelle e Patrice se entreolharam e, um por um, se retiraram.

— Bem — disse Fëll. — A estratégia funcionou, nicht wahr?


Capítulo 26

 

Quando Fëll acabou de falar, MacCormeck explodiu furioso:

— A estratégia tipo: “Agite a grama e assustará a cobra”? Nunca ouvi um caso semelhante, tratado com tanta complacência. Admiro o seu cinismo, a sua persuasão, a sua sagacidade. Mas hoje... Você me deve uma explicação sobre outro assunto. E quanto aos assassinatos?

— Quanto aos assassinatos, temos que repassar meticulosamente os eventos se havemos de chegar a algum lugar.

— Ainda estamos abaixo da linha d’água... E isso me irrita.

— Isso o irrita? Acredite, Herr Leitner, em tantos anos de carreira, nunca me senti tão entusiasmado!

— Dá para notar.

Fëll soltou um longo suspiro.

— Tenho uma proposta para desbloquear a situação. Vamos falar com Mrs. Wigginfort.

MacCormeck hesitou.

— Mrs. Wigginfort? Onde pretende chegar com isso?

Hannah Wigginfort entrou como um barco de velas enfunadas. Havia em seus olhos um brilho frio, que recomendava cautela.

— Querem falar comigo?

Fëll acenou lentamente com a cabeça.

— Willkommen, Madame. Muitas vezes temos que executar tarefas que não são de nosso agrado. Gostaríamos de fazer algumas perguntas. Sente-se, por gentileza.

— Obrigada — disse a mulher, sentando-se e pondo as mãos no colo.

— Antes disso, uma pergunta de ordem pessoal: a senhora tem um robe, Madame?

— Tenho.

— Está com ele?

— Está em meu guarda-roupa.

A resposta deixou Fëll extremamente satisfeito. Olhou para MacCormeck que, sem entender nada, coçou a nuca, aturdido.

— Quando revi a senhora no Five Fields, fiquei muito encantado com a sua personalidade e carisma, Madame — prosseguiu Fëll. — Uma mulher independente e responsável pelos seus atos. Não só isso... Também simpatizei muito com sua filha, uma moça inteligente e vivaz, que foi uma companhia realmente estimulante. Não queremos aqui ofendê-la, mas só apurar os fatos. A senhora compreende minha posição?

— Se for capaz de responder, é algo que eu farei.

— Wunderbar, Madame. Eu sabia que poderíamos contar com a sua compreensão. Agora vamos ao que interessa.

— Certo. Do que se trata?

— Em primeiro lugar, pode dizer a sua idade?

Mrs. Wigginfort baixou o braço e inclinou a cabeça para escutar melhor.

— Minha idade?

— É só para os registros, Madame.

— Oh, os registros! Tenho 57.

— Viele danke. Pelas informações que colhemos, o seu marido era um experiente homem de negócios.

— Meu marido... — disse ela, arqueando as sobrancelhas, incrédula. — Como assim?

Fëll percebeu que tinha atingido um ponto delicado.

— De acordo com o que foi dito, ele perdeu toda a fortuna de uma hora para outra. Tudo ruiu... vshhh!... como um castelo de cartas.

— Por que está falando nisso, Mr. Fëll?

— Estou falando porque é necessário. Cremos, Madame, que há uma razão muito forte por trás dos assassinatos. É como se, de alguma forma, o assassino estivesse desafogando as mágoas por algo que aconteceu. Algo que, até aqui, desconhecemos. Alguma coisa que o feriu e que, na mente dele, precisa ser corrigida.

Mrs. Wigginfort estava pasma.

— Há coisas que jamais direi a ninguém.

— Abra uma exceção, Madame.

— Mas o que Eustace tem a ver com isso?

— Tem a ver o seguinte: como eu disse, seu marido estava no auge, bem-sucedido profissionalmente, mas subitamente perdeu tudo o que tinha. Hoje soubemos que um dos responsáveis por tal fracasso foi o velho Abernettye, pai de dois dos jovens assassinados neste hotel.

— Foi uma coisa torpe. Egoísta. Eustace era competente em tantas coisas! As decisões que havia tomado quando jovem tinham resultado numa vida boa e farta. As pessoas adoravam sua amabilidade e moderação. “Tome uma decisão e execute-a com vigor”, dizia ele sempre. Mas daí veio a política de ajustes, a recessão... Todo o patrimônio de Eustace — incluindo a empresa — sofreu embargos judiciais. Tivemos que hipotecar nossa casa para obter dinheiro. Oh, isso doeu tanto nele! Todo aquele desgosto se tornou uma sombra entre nós... nos separando e distanciando. “Pare de roer as unhas”, dizia eu para animá-lo. “Nós vamos dar um jeito nisso!” “Oh, eu deixei você triste!” dizia ele. “Eu machuquei você. Lili — o que Lili vai pensar de mim?” Querido Eustace! Um homem otimista, religioso, pai de família e com todo um futuro pela frente. E, mesmo destruído por dentro, preocupado com a opinião de Eliza. E tudo por quê? Porque um bando de abutres, sedentos por dinheiro, tinha ficado com todo o capital, deixando Eustace na miséria. Um sindicato do mal, com seus negócios sujos e fraudulentos. Eustace nunca mais foi o mesmo. Geralmente uma diva tem sua própria dama de companhia! Eu, pelo contrário, fui forçada a dispensar toda minha criadagem. Copeira, camareira, Frank... Frank, que estivera conosco por vinte anos! Sim, não vou mentir... Tudo isso passou pela minha cabeça quando vi a bela e milionária Madame Abernettye naquele restaurante. Toda a sua ostentação, toda a sua beleza, se deviam em partes ao suor de meu marido! Mas — como é que eu poderia culpá-la pelas falcatruas do pai dela? Ela — que foi tão boazinha convidando-nos para vir para cá, disposta até a pagar a nossa estadia! Não, eu não a matei. Eu estava dormindo na sala de bilhar, lembram-se? Fui informada sobre o crime muito tempo mais tarde. Lamento muito pelo que houve — comentou Mrs. Wigginfort num tom modulado. Murmurou: — Posso perguntar se já têm alguma suspeita?

— Há um ponto de convergência em todos os relatos que ouvimos — respondeu Fëll. — Temos sim nossas suspeitas. Eu diria até que o caso está por um triz de ser solucionado.

— Então sabem quem é o assassino?

— Sim, Madame — disse Fëll em tom enfático. — Sabemos.

— Quem?

— As mulheres são profundamente sensíveis e intuitivas. A senhora quer dar um palpite?

— Prefiro não.

— A minha experiência me diz que as pessoas normalmente sabem, mas por vezes, estão relutantes em admitir. Veja o nosso caso... Estes assassinatos foram cuidadosamente planejados durante dias, semanas até. O plano preparado de antemão começou a ser posto em prática quando todos estavam no hotel, e foi seguido à risca. Acho que, de alguma forma, alguém sabe de alguma coisa.

— Parece muito confiante disso.

— Não tenho qualquer dúvida, Madame.

— E se essa pessoa não falar?

— Aí teremos que estimulá-la a isso. Tenho plena certeza de que alguém viu uma coisa que, na verdade, não poderia ter visto. Uma coisa que, quando for contada corretamente, influirá diretamente na correta interpretação dos fatos.

— Quem é essa pessoa?

— A sua filha, Madame.

— Minha filha?

Ao que parecia, Mrs. Wigginfort não estava muito convencida do que acabara de ouvir:

— Isso não passa de especulação!

— Uma especulação suportada por uma série de evidências — disse Fëll. — Por falar nisso, como está ela? Ainda desejosa de casar com Mr. Amay?

Mrs. Wigginfort ficou pálida, e Fëll se deu conta de que, pela primeira vez, aquela mulher não sabia o que dizer.

Fëll notou o brilho nos olhos de Mrs. Wigginfort, e sua agitação. Ela está com ciúmes, pensou ele. Está com ciúmes porque se sente infeliz com a vida que leva, e não pode suportar a ideia de que alguém esteja prestes a tirar-lhe a filha.

— Ele pode ser um assassino! Isso é inaceitável!

— Por enquanto nada está provado — advertiu Fëll, para evitar conclusões precipitadas.

— Não vou entregar Lili a esse gigolô. Para que ele faça o que fez com as outras? Não é justo, e não vou fazer isso. Minha filhinha — que eu criei e cerquei com tanto amor e dedicação! Oh, foi um enorme erro vir a este hotel! Eustace vivia dizendo: “O mar pode estar morno para nadar, mas sempre cuide com a ressaca.” Todos aqui querem se aproveitar de mim, querem tirar alguma coisa de mim. Por que não me deixam em paz? Antes as pessoas vinham para pedir meu autógrafo; hoje vêm para me bajular e, quando podem, roubar o pouco que possuo. Eliza! Eliza — minha querida, minha querida! Abri mão de minha vida para ficar com ela. Não deixarei que ninguém a tire de mim!...

Possuído de uma gravidade quase ministerial, Fëll apertou o braço da diva:

— Não tema, Mrs. Wigginfort. Ninguém vai usurpar nada da senhora. Não enquanto estiver conosco. Medidas vão ser tomadas para que nada aconteça à sua filha. Kein Grund zur Sorge!

Ela pareceu criar coragem e perguntou:

— Não vão contar nada a ela, vão?

— Se a senhora não quiser...

— Obrigada de novo, Mr. Fëll. Posso ir?

— Pode. Foi muita bondade atender o nosso pedido, Mrs. Wigginfort.

— Avisem-me se precisarem de mim.

— Oportunamente avisaremos — prometeu Fëll e levantou-se.

MacCormeck observou a saída da rainha. Reprimindo o riso, fitou o detetive da cabeça aos pés. Ainda estava curioso para saber o motivo de tamanho espalhafato.

— Como soube que ela tinha um robe?

— Pelo que disse Mrs. Hollder. Ela jura ter lido uma palavra bordada, não foi?

— Sim. G-a-l-e.

— Exato. Lembre-se que hoje falamos com Mr. Amay. Ele disse que não deixa nada pela metade.

— É a segunda vez que fala nisso. Continuo não vendo a relação.

Depois de refletir um pouco, Fëll disse:

— Talvez devesse encarar as coisas sob outro ângulo, Superintendente. Qual é famoso apelido de Mrs. Wigginfort?

— Rouxinol.

— Pois aí está. A palavra estampada no robe era NIGHTINGALE. Mrs. Hollder viu só uma parte dela. Entende agora?

MacCormeck manteve-se imóvel e aguçou o ouvido.

— Não sei se foi bem assim...

— Não sou de falar à toa, meu caro.

— É uma teoria louca demais para ter uma base real.

— Mas não deixa de ser a verdade — disse Fëll.

— Por que não mencionou isso antes? Poderia ter-me poupado dessa última hora de suspense. Bem, se você diz, está dito. Você é um representante mais do que autorizado para essas coisas. Mais alguém para ser ouvido?

Com uma ruga na testa, Fëll disse:

— A bem dizer, só uma pequena visita amigável.


Capítulo 27

 

— A que devo essa visita?

Cornelios O’Danugheon olhou com ar de interrogação para os dois investigadores.

— São apenas os requisitos de nosso inquérito — disse MacCormeck.

— Os requisitos... sei. Para progredir é preciso agir! Quero crer que, depois disso, poderemos ir para casa.

— Provavelmente. Depois que a cortina subir e revelar o que há por trás dela.

— E quando será isso?

— Daqui a meia hora — disse Fëll.

O’Danugheon não pareceu perturbado. Exclamou com prazer:

— Levem o caso como julgarem melhor. Contam com meu apoio total. Tenho alguns compromissos em Londres; alegra-me saber que não vou precisar adiá-los.

— O senhor não é de lá, ou é? — perguntou Fëll.

— Não. Sou de Tadminster. Terra de meu pai. Além de médico, meu pai foi correspondente de guerra, desportista e conferencista. Era um homem e tanto!

— Ele não era francês?

— Minha mãe é que era. — O’Danugheon tentava assimilar tudo aquilo. — Por quê? Alguma coisa intrigante nisto?

— Muita coisa — disse o detetive, polindo a lente. — A sua mãe tem a mesma nacionalidade de Monsieur Suttom. É uma coisa sem valor intrínseco, mas de grande importância.

— Temo não entendê-lo.

— Mas vai, Mr. O’Danugheon! Assim que explicar a razão de sua vinda para cá, o senhor vai entender.

— A razão de minha vinda para cá?

— Jawohl.

— O senhor já me conhece, Mr. Fëll. Se for a respeito desses crimes, o senhor sabe que não fui eu!

— Essa é a frase que todos dizem: “Não fui eu! Eu não poderia... Deve ter sido fulano... Deve ter ciclano!” Isso faz supor logicamente que alguém deve estar mentindo, não é? Ora, assassinatos não acontecem do nada. Precisa haver um executor. Mas — Fëll fez um voluteio com a mão — não é sobre os crimes que queremos falar com o senhor.

— Ah, não? Desculpem, eu não queria...

— É algo particularmente diferente, mas tão bem arquitetado quanto eles. Desde quando é amigo de Monsieur Suttom?

— É a segunda vez que me hospedo aqui — murmurou O’Danugheon, como se tivesse que avaliar o assunto antes de responder.

Fëll olhou para ele por três ou quatro segundos.

— Andei pensando em certas coisas, e quero pô-lo a par do resultado de minhas reflexões. É meu hábito acompanhar o noticiário internacional. Li dias atrás que, nos últimos anos, muitos dos sítios arqueológicos mais férteis do mundo estão sendo destruídos. Nimrud, Nineveh, Hatra... Com a destruição, uma enorme quantidade de artigos supostamente vindos desses lugares vem aparecendo no mercado negro ocidental. Entre os itens mais procurados estão tabuletas, selos cilíndricos, vasos, moedas e, acima de tudo, mosaicos — que podem ser desmanchados, transportados e depois remontados. Quanto menor e mais fácil de ser escondido e levado, mais valioso o objeto. Existem inúmeros relatos de antiguidades vindas da Síria e do Iraque entrando e circulando livremente pela Europa. Ontem à tarde, quando demos as buscas, meu amigo, o Superintendente MacCormeck, chamou minha atenção para um quadro que estava entre suas coisas, Mr. O’Danugheon.

A tensão que se estabeleceu foi quase palpável.

— Não é bem assim! Eu tenho o recibo de compra... se quiserem vê-lo!

— Deixe-me continuar. O quadro pode até ser legítimo, mas outras coisas não são. Não há uma maneira educada de dizer isto, por isso serei direto — disse Fëll. — Por exemplo, no gabinete de Monsieur Suttom nós encontramos alguns objetos difíceis de ver por aí. Moedas antiquíssimas, tabuinhas com uma escrita estranha... Objetos parecidos aos que estão em seu quarto! Foi isso que me fez sentar e refletir. Seria só uma coincidência — ou será que estava acontecendo alguma coisa mais exótica? Por que aquilo estava aí? Provavelmente por uma única razão: o senhor, Mr. O’Danugheon, devia ser um colecionador interessado em relíquias e Monsieur Suttom, o intermediário.

O’Danugheon soltou um grito ligeiro e agudo. A expressão dos olhos passou do espanto ao pânico.

— É um discurso ousado! — balbuciou em seguida, tentando caçoar da sugestão. — Não quer que alguém acredite nisso, quer?

— Por que não? Conforme as pessoas dizem, o senhor se veste como um burguês, age como um burguês e, de certa forma, tem grana para gastar no que bem quiser. O único porém é que aqueles artefatos são obras de arte roubadas. O senhor, sem querer, está ajudando a financiar operações de organizações extremistas! O senhor e o seu dinheiro, querendo ou não, estão motivando essas organizações a continuar dilapidando um patrimônio histórico de valor incalculável. O Superintendente e eu vimos os artefatos — a polícia só precisará averiguar de onde vêm. Mas existe outra prova de sua culpa, Mr. O’Danugheon. A frase que o senhor escreveu em sua agenda: Fiz uma transação com ele... Em caráter experimental. A que poderia se referir esse termo: experimental? Quem sabe a uma negociata feita entre o senhor e o atravessador de alguma mercadoria de procedência duvidosa? Uma mercadoria, digamos, que o senhor tivesse vindo buscar esta semana. Acabou de dizer que é a segunda vez que vem para o hotel. A primeira vez, portanto, foi para estabelecer um contato, sondar as possibilidades. A segunda vinda, sim, essa foi para realizar a compra propriamente dita.

Apesar do susto, O’Danugheon controlou-se com uma rapidez extraordinária.

— Venceu! — exclamou resignado. — É inútil dizer que não. Todo dia recebo ofertas de pessoas que, por essa ou aquela circunstância, querem se desfazer de seus bens. Às vezes simplesmente por precisarem do dinheiro. Tenho minhas rendas. Compro o que vier — legalmente ou não. Sem distinções. Não dizem que é um ato cristão ajudar os necessitados?

Fëll aprovou a franqueza do inglês.

— É um gosto que se adquire.

— Não sou um bandido. Podem achar que fiz algo condenável, mas não é assim que eu vejo. O que vão fazer comigo? Vou ser penalizado? Preso?

— É muita coisa para digerir de uma só vez — disse MacCormeck, mal-humorado. — E, em vista do que disse, não posso prometer nada. A Scotland Yard há tempos está investigando casos relacionados a antiguidades — mas, sem recursos financeiros, não dá para desmantelar toda a rede criminosa. Ainda é cedo para dar uma resposta, mas é claro que haverá consequências, e o senhor vai ter que arcar com isso.

As rugas na testa de O’Danugheon se desfizeram.

— E Monsieur Suttom?

— Em primeiro lugar, vamos ter que ver se as teorias de Mr. Fëll são mesmo verdadeiras.

— São sim — disse Fëll com convicção.

— Se forem — completou MacCormeck —, o francês também terá sua cota de problemas. Uma estalagem usada como fachada para o comércio de relíquias! É por isso, naturalmente, que ele estava tão preocupado em abafar qualquer escândalo relacionado aos assassinatos!

O’Danugheon bateu nos joelhos e se levantou. Estava aliviado por se desviar da linha de fogo.

— Se for só isso, podem me dar alguns minutos de licença? Prometo que não vou escapar...

— Sim, pode ir. Ah, a propósito — disse Fëll. — Há dois policiais em seu quarto. Vão fazer a apreensão de tudo o que for ilícito. Se puder, esteja no salão matinal daqui a quinze minutos.

— Sim, senhor. Cumprirei suas determinações.

O’Danugheon saiu. O suor pingava do queixo e das sobrancelhas. Atravessou o saguão e, com olhos flamejantes, escancarou abruptamente a porta do escritório.

Atrás da escrivaninha, Monsieur Suttom empalideceu à vista do inglês.

— Seu desgraçado! — gritou O’Danugheon. Tinha a língua pesada e a fala arrastada. — Que papelão, seu salafrário!

— Ei, ei, devagar! Qu’est-il arrivé?

Gingando o corpo obeso, O’Danugheon foi em direção de Monsieur Suttom. Brandia o punho, fora de si.

— Você ainda pergunta? Fomos descobertos... tudo foi descoberto... Foi isso o que aconteceu! Agora tenho toda a Interpol na minha gola! E tudo por sua causa! Sim, sua causa... Você jurou que era seguro. Jurou que não haveria dificuldades. Veja no que deu!

Tomado pelo terror, o gerente gelou em sua cadeira.

— Mas Monsieur... Eu não... Eles fuçaram por tudo... Não pude fazer nada!

O’Danugheon avançou contra o francês, como para reforçar seus argumentos.

— Venha cá, seu... verme!

— S’il vous plaît, Monsieur! S’il vous plaît!

Monsieur Suttom se encolheu, gemendo de agonia.

Subitamente, O’Danugheon pareceu perder o embalo. Entrelaçou os dedos, girou os polegares e pigarreou visivelmente abalado.

O que é isso? O que eu estou fazendo? Isso é ridículo! Ora essa... Agir dessa forma! Eu sou um cavalheiro. Um cavalheiro...

Ajeitando o colarinho, O’Danugheon retrocedeu lentamente e deixou o gabinete. Monsieur Suttom engoliu em seco e, por fim, suspirou:

— Je suis désolé! ... Totalement désolée!


Capítulo 28

 

Quando a porta se fechou, MacCormeck balançou a cabeça, zangado.

— Dois policiais... apreensão de tudo o que é ilícito... Quem fez esse arranjo?

— Eu fiz — disse Fëll, pensativo. — É importante que o contrabando seja confiscado. Não queremos que isso se prolongue, queremos?

— Formidável! Pelo jeito, fez um trabalho eficaz e discreto. A grandeza e o esplendor de sua majestade!

— Gostou?

— Foi brilhante! — disse MacCormeck com a voz rouca e numa calma forçada. — Poderia ter me consultado, não?

— Desculpe ter passado por cima de você. Vou me redimir, prometo. Eu estava amolecido pelo tédio e pelo ócio. Acho que me afobei um pouco.

— Mr. Fëll — disse alguém, num tom baixo e formal.

— Dr. Hagissart! — exclamou Fëll. — Entre, entre... É com o senhor mesmo que queríamos falar.

O Dr. Hagissart se adiantou desajeitadamente. Deu um sorriso de cumplicidade.

— Ou seja, vim ao lugar certo na hora certa!

— Eu não estaria muito contente, se fosse o senhor! — retrucou MacCormeck. — As coisas não estão nada bem para o seu lado.

— É algo que eu possa esclarecer?

— É justamente disso que precisamos. Esclarecimentos. De uma coisa mal feita podem emanar muitas outras coisas mal feitas.

Fëll fez um gesto de calma.

— Esperem, senhores! Vamos por partes.

— Não, tudo bem — disse o Dr. Hagissart. — O Superintendente tem razão. Há certas coisas que precisam ser explicadas. Até imagino o que seja.

— Bom, nesse caso...

— O fato de eu mentir sobre Mrs. Hollder.

— Justamente — disse MacCormeck.

— Eu posso me justificar, não posso?

— Acho bom! Se estiver escondendo mais alguma coisa...

— Creia, Superintendente... O que eu menos quero é esconder qualquer coisa — disse o Dr. Hagissart. — Pode ser loucura, mas eu realmente tive pena daquela mulher. Ela se parece muito a uma sobrinha minha que, anos atrás, foi acusada de matar o marido. Estava em todos os jornais. “Homem húngaro encontrado morto com overdose de drogas.” Pelo testamento, Punny recebeu mais de 80 mil libras. Investimentos, em sua maioria, fáceis de capitalizar. Punny foi condenada porque a acusação disse que ela estava mentindo, e o júri acreditou. Quando consegui uma audiência com Punny era tarde; a sentença já tinha sido proferida. Vi que ela era inocente. Vi dentro dos olhos de Punny! Quantas pessoas fazem testamentos beneficiando seu cônjuge e não saem por aí se matando! Não queria que Mrs. Hollder tivesse o mesmo destino. Já ouvi falar que a polícia planta evidências para garantir a condenação das pessoas sem álibi. Os bons muitas vezes pagam pelos maus. Eu não podia permitir que a mesma coisa acontecesse aqui. Fui eu que pedi a Mrs. Hollder que mantivesse a boca fechada sobre o que tinha acontecido. “Não fale nada, seja lá o que for. Eu não direi nada!” Fui eu que inventei e sustentei todo o resto. Fui eu que a orientei a mentir! Assumo toda e qualquer responsabilidade.

O Dr. Hagissart se calou. O choro estava se avolumando no peito.

— Deve ter sido duro para o senhor, do jeito que tudo aconteceu — comentou Fëll, baixinho. Abriu largamente os braços. — Por que não nos falou de uma vez?

— Era um pouco vergonhoso...

— Ah, sim!... Viu só, Superintendente? O doutor não falou nada sobre isso antes porque era vergonhoso. Agora que ele abriu o coração, viva La Espanha! — está tudo de volta aos trilhos.

— Gostaria que explicasse o que quer dizer com isso — MacCormeck olhou desconfiado para o detetive.

— Quero dizer que a explicação dada pelo Dr. Hagissart, aqui presente, concorda com tudo o que sei sobre esse caso. Quero dizer que posso apresentar provas extensas e evidentes de que ele não é o perverso autor do múltiplo assassinato que aconteceu nesta estalagem!

— Tem como comprovar?

— Comprovo tudo o que quiser!

MacCormeck balançou a cabeça em sinal de ceticismo.

— Alto lá! Lamento, mas não aprovo essa manobra. Tudo isso é muito bonito, mas não me convence em nada. Tem de haver uma investigação!

— E haverá — disse Fëll. — Mas não envolvendo o nome do Dr. Hagissart.

— Se não foi ele, quem foi?

— Ah, quer que eu diga?

— Essa é boa! Há horas que estou esperando.

— Então lá vai. Eu vou dizer quem foi.

Alguém bateu à porta. MacCormeck mordeu o lábio inferior, enquanto Eliza entrava.

— Olá, Dr. Hagissart! — disse Eliza. — Mamãe contou que o senhor esteve com ela, mas se negou a passar uma receita.

— Lamento, Miss, mas não tenho capacidade para auxiliar neste assunto. Estou convencido de que sua mãe é uma mulher atormentada. Como não sei o que ela tem, prefiro não arriscar. É claro que também pode não ser nada. Toda mulher, quando envelhece, fica aterrorizada com a ideia de perder seus atrativos femininos. Eu sugiro que ela tenha ajuda intensiva.

— Que tipo de ajuda? — perguntou Eliza, chocada.

— Calma, Miss — riu o Dr. Hagissart. — Assistência médica contínua, só por prevenção.

— Oh, é algo grave?

— Não, acho que não. Mas é sempre bom ficar alerta.

— Foi o que eu aprendi em meu curso. Que ninguém nunca sabe quando pode surgir uma emergência.

— Que curso?

— Enfermagem. Tenho diploma de enfermeira, sabia? Minha tia... Ela pagou meus estudos.

— Boa menina — disse o médico, paternal. — A senhorita tem élan de sobra.

Eliza esticou o pescoço, atenta.

— Élan?

— É a capacidade que nós temos de superar uma fase difícil em nossas vidas, Miss. Nisso a senhorita é craque.

— Oh, assim o senhor me constrange! Já foi ver o Signor Rigoletti, doutor?

— Sim. Acabei de vir de lá.

— O Signor Rigoletti? — perguntou Fëll. — O que houve com ele?

— O homem quase teve um choque anafilático. Álcool com calmantes. Uma das piores combinações possíveis.

— E mais essa! — praguejou MacCormeck. — Ele vai ficar bem?

— Vai. Para ser exato, quando o atendi, o Signor Rigoletti fez de conta que não tinha acontecido nada. Mas era evidente que estava com cólicas terríveis. Logo vi o que era... Estava perturbado, tinha perdido o apetite, quis desafogar na bebida e quase se deu mal.

— O Signor Rigoletti... alcoólatra? — perguntou Fëll. — Então foi por isso... Sei que, outro dia, Miss Alisson e eu estávamos voltando da praia. Vi quando ele tentou ocultar uma garrafa no bolso. É pena... Nem todo mundo aprende a lidar com as frustrações da maneira correta.

Eliza virou-se para o detetive:

— Eu também estou frustrada, Mr. Fëll. O senhor foi muito rude com mamãe! Dizer aquelas coisas sobre papai — onde já se viu? Há anos que ela está em tratamento por causa da morte dele. Papai... coitado... cortou a própria garganta... Mamãe é muito emotiva, e não pode ficar relembrando essas coisas que a estressam.

— Como todos os artistas, Miss.

— Mesmo assim, foi horrível. O senhor não devia se orgulhar do que fez.

— Não, não... — disse Fëll. — Não me orgulho. E tem razão, foi horrível. O fato é que tínhamos que fazer uma triagem dos fatos; estávamos no meio de um processo.

— Peço que releve o excesso de zelo de meu colega, Miss — disse MacCormeck. — Muitas vezes ele superdimensiona as coisas... Peço desculpas pelo inconveniente.

— Não é para tanto — disse Fëll, contrariado. — Para mim, toda pergunta exige uma resposta. Por que um arbusto não está no lugar em que deveria estar? Por que o assassino mata a sua vítima com uma pena de cauda de ave quando tem uma faca à sua disposição? Por que para algumas pessoas matar é tão fácil? Tantas dúvidas. Tantos porquês. Quer que eu faça uma descrição patológica minuciosa, ou assim está bom?

— Está ótimo — respondeu o Superintendente. — Parece que voltamos ao início, não?

— Pode até ser. Mas é aí que entra Miss Wigginfort! É exatamente ela que precisa se justificar por uma coisa que nos disse. Uma coisa que não condiz com o que nós apuramos.

Eliza olhou para Fëll e MacCormeck.

— Eu?!

— Sim, a senhorita. Além de se envolver romanticamente com um homem que, em tese, deveria estar de luto. Acho que é chegada a hora de tirar a carapaça e expor o assassino.

— O senhor não está dizendo que eu...

— É o que já vamos ver, Miss.

A ponto de chorar, Eliza se sentou perto do Dr. Hagissart. O relógio de pêndulo sobre o consolo se movia ritmicamente.

Dali a alguns segundos, Fëll sacudiu a cabeça.

— Quando estou meditando, não sobra espaço para distrações externas e nem mesmo internas — nem para a fome nem para o sono. Sim, geralmente eu me coloco no lugar do criminoso e imagino seu próximo passo. É como se toda minha energia fosse voltada apenas para a execução de uma determinada coisa e nada mais pudesse atrapalhar. Fico tão absorto que nem me dou conta das pessoas que circulam ao meu redor.

Fëll colocou o cálice vazio sobre a mesinha de centro.

— Três crimes aconteceram aqui esta semana. Primeiro o envenenamento de Miss Grovenor; depois a morte violenta de Madame Abernettye e, ontem, o assassinato de Horace Abernettye. Não há tempo para contar tudo de novo. Vou tentar resumir...


Capítulo 29

 

— As pessoas se movem à nossa volta, e nós achamos que as conhecemos — acrescentou Fëll. — Mas não! Nós não conhecemos ninguém... pelo menos não tanto quanto deveríamos. Cada faceta desses crimes tem seu próprio brilho, sua própria cor e uma beleza toda particular. E mais... Os crimes são trabalho de alguém que se movia entre nós. Alguém que não conseguíamos identificar... por mais que quiséssemos. Tive, portanto, que encontrar uma falha. Uma rachadura no vidro, por assim dizer. Alguma coisa que me aproximasse o máximo possível da verdade. Vou fazer um apanhado dos fatos que investiguei a fim de retratar toda a complexidade dos três assassinatos.

“Tudo começou com o assassinato de Miss Grovenor. Antes que eu me esqueça... Já tem os resultados da análise do batom, Superintendente?”

MacCormeck remexeu-se:

— Sim. Deram positivo.

— Ora, se é assim, a verdadeira questão é: o assassino estipulou a data da morte de Miss Grovenor ou a morte dela, exatamente na primeira noite de sua permanência aqui, foi uma feliz coincidência? Quem introduziu o batom em sua bolsa e, sobretudo, quando? Esses dois fatores estão intrinsecamente relacionados: precisamos saber quando para chegar a quem. Nessa ordem. Pelo que sabemos, Miss Grovenor andou o dia todo de um lado para o outro; qualquer um, em tese, poderia ter mexido em sua bolsa. Ou mesmo, mais tarde, ao jantar. A senhorita, Miss Wigginfort, esteve com ela no barzinho; as duas até mesmo tiveram uma breve conversa. Uma bolsa sem fecho e sem zíper; um encontro fortuito entre duas moças: a oportunidade e o momento perfeitos! Exceto por dois pormenores... 1°) a senhorita, ao que parecia, não tinha motivos para matar Miss Grovenor; e, 2°) mais pessoas tiveram contato com ela naquela noite.

“Este segundo ponto, porém, não contava. Senão vejam... Uma vez que Miss Grovenor foi vista retocando a maquiagem antes da lamentável confusão com Mr. Amay, àquela altura o ácido oxálico já estava agindo em seu organismo. De manhã, Miss Grovenor está morta, e Madame Abernettye, supostamente para proteger o noivo, vem para se auto-acusar falsamente pelo crime. Havia, claro, um clima ruim entre Leonard Amay e a vítima, algo que, de certa forma, justificava os receios de Madame Abernettye. Mas logo que fica evidente que o rapaz não é nosso maior suspeito, como que num passe de mágica, tudo muda de figura. Madame Abernettye desarma acampamento, bate a poeira, e as coisas ficaram por isso mesmo.

“Agora vamos ao ponto nevrálgico do nosso caso: o segundo assassinato. Uma mulher tomando sol, um assassino determinado... e estava armado o cenário para um crime engenhoso e absolutamente ousado! Um crime que parecia ter sido produzido para uma telenovela. Sabemos que Madame Abernettye não era uma mulher forte fisicamente; além disso, ela estava deitada de bruços, o que facilitou, e muito, as coisas para o assassino. Encontramos vários elementos estranhos em cena: uma pepita de ouro, uma adaga, etc. Menos um elemento: o diamante que Miss Wigginfort dizia ter visto com Madame Abernettye. O diamante que procuramos por duas horas, ontem à tarde, e cuja existência ainda não ficou comprovada!”

Eliza se remexeu.

— O que quer dizer, Mr. Fëll?

— Quero dizer, Miss, que talvez não haja diamante algum; que talvez ele só exista no plano da ficção! Quero dizer que se quisesse a senhorita poderia perfeitamente ter cometido aquele crime. Afinal, quem melhor para se apossar do robe e do chapéu de uma mãe do que sua própria filha?

— Eu não... Nunca...

— Jura mesmo que não, Miss? Vou ser honesto... Há nisso tudo uma coisa que advoga a seu favor, Miss Wigginfort. Reflitam comigo: se a senhorita já estava com Madame Abernettye, e poderia tê-la matado ali mesmo, por que desceria até o térreo para, em seguida, voltar a subir, e só então executar o crime? Nein, nein — isso parecia mirabolante demais, colorido demais.

“Nessas horas, um detetive que se preza deve analisar as outras hipóteses, quaisquer que sejam. Se não fora Miss Wigginfort, quem estava creditado como segundo suspeito? Primeiro de todos, Horace Abernettye. Qual era o álibi dele? Que tinha ido passear em Falmouth. Um álibi fraco. Mas, depois de umas horas, Horace Abernettye também é assassinado, o que abre margem para um capítulo à parte. Um capítulo que vamos deixar de lado, por enquanto.

“Dói admitir, mas minhas suspeitas oscilavam de um lado para o outro, incluindo o Dr. Hagissart. As pessoas se odeiam, se mordem e se matam. É isso o que elas fazem. O doutor era humano, tão sujeito às emoções mundanas como qualquer um. Seria ele o assassino? Talvez fosse. Havia só uma dificuldade: por que o Dr. Hagissart mataria aquela gente toda? Segundo eu me lembrava, o doutor tinha estado em Kensington no dia da morte de LaRouchelle. Teria ele visto ou ouvido algo lá — algo que o indispusesse contra os Abernettye? Nesse caso, porém, por que matar Miss Grovenor? Pontos contra o doutor: seus conhecimentos médicos, especialmente na área toxicológica, e o fato de ter sido encontrado por Mrs. Hollder perto do local do assassinato de Madame Abernettye. Fora isso, pouca coisa. Ainda faltava um indício — um só — para que tudo se encaixasse. Finalmente, ele apareceu...”

Fëll voltou-se para o MacCormeck:

— Lembra-se, mein Freund, do que disse o Major esta manhã? Tomei nota da declaração. Ele disse: “Sabiam que o pai de Leonard Amay foi minerador? O velho enriqueceu escavando e peneirando minério. Até hoje cada filho traz consigo uma pedrinha de ouro.” Daí, acrescentou: “Leonard e Louise namoraram quase nove meses. Primeiro ele deu de tudo a ela: roupas, cosméticos, o sol, a lua... Vão por mim: um cara que cumula uma mulher de presentinhos não presta!” Pois bem, o que o Major quis dizer com isso?

MacCormeck refletiu por um longo tempo; fungou:

— Não faço ideia.

— Vamos, Superintendente. Precisa se esforçar um pouco. Vou reformular a pergunta: por que ele disse isso para nós?

— Porque nós estávamos lá!

— Não, ele disse isso pela mesma razão que disse que tinha estado no jardim na hora do segundo crime. Por uma razão absurdamente simples. Esses assassinatos são obra de alguém com uma mente admirável. Alguém que queria que a responsabilidade pelos assassinatos recaísse sobre Leonard Amay. Isso cobriria também o responsável de toda a maquinação... em três palavras, o próprio Major Bernwell!

O Dr. Hagissart sorriu e disse com voz melosa:

— O Major? Impossível... Ele tem graves distúrbios nos nervos motores; mal consegue... caminhar.

— Sim, já estava pensando quando iria falar sobre isso, doutor. Eu sei a lição de cor e salteado! É sabido que alguns que têm artrite sofrem períodos em que os sintomas são piores (crises), seguidos de períodos de remissão em que se sentem melhor. Também é sabido que drogas anti-inflamatórias e aspirina são largamente usadas para aliviar a dor. São também prescritas para reduzir a inchação e a inflamação. Lembra-se, MacCormeck, dos dois frascos que encontramos no quarto do Major Bernwell? Comparei os dois; vi que tinham sido comprados na mesma data, mas que o frasco marrom estava quase vazio. Fiquei conjeturando de uma maneira meio à toa por que alguém consumiria tantos comprimidos em tão pouco tempo. A resposta? Porque foi a essa droga que o Major Bernwell recorreu: uma droga para anestesiar temporariamente sua dor. Há uma coisa, porém, que explica melhor a proeza dele: o Major, nesses últimos tempos, era um ermitão assumido, que raramente saía de casa. Por causa de sua artrite? Ou talvez pela falta dela?...

— O senhor se superestima, Mr. Fëll. Não espera que acreditemos nessa história, não é?

— Eu sou imparcial, doutor. É isso o que me mantém vivo. É isso o que mantém vivos os outros ao meu redor. Acaz foi um dos piores reis de Judá. Mas o filho, Ezequias, foi um dos melhores reis. Todos nós podemos fazer o que é bom ou fazer o que é mau. Todos nós temos uma escolha. O Major Bernwell fez a escolha dele. Compensação por uma existência sem futuro? Talvez. Mesmo assim, a escolha errada. A senhorita, Miss Wigginfort, atrapalhou a nossa investigação ao corroborar a versão dele. Foi a senhorita que nos levou a crer que o álibi do Major Bernwell era mais sólido que um couraçado!

— Mas eu vi o Major Bernwell no jardim — teimou Eliza, nervosa. — Eu vi.

— Não, Miss Wigginfort, a senhorita pode até tê-lo visto... mas não por todo o tempo em que esteve na sala da frente. E isso faz a gente pensar, não é?

— Mas como ele assassinou Madame Abernettye? — perguntou MacCormeck, incrédulo.

— Ah, aí é que está! Eu vou remontar os fatos, e vocês verão como tudo foi feito. Por volta da uma hora, o Major e Leonard Amay vão para o terraço. Enquanto o rapaz vai falar com a noiva, o Major Bernwell senta-se ali perto. Ninguém sabe, mas o plano para o assassinato já havia sido formulado. Agora era preciso só uma coisa: a ocasião. De seu lugar, o Major vê todos os acontecimentos posteriores: a briga entre os rapazes, a vinda do Dr. Hagissart, etc. etc. Ele saca do bolso e põe na mesa o estojo com as iniciais M. A.; alegando qualquer coisa, ele sai. Nicque Abernettye vê o estojo e, rindo, extrai o diamante, que mostra para Eliza Wigginfort. Aquela era a mesma joia que, anos antes, o Major dera a ela, no tempo em que os dois tinham sido noivos. Com o fim do namoro, a joia havia voltado ao seu legítimo dono. Madame Abernettye acha graça — ali estava o mesmo presente, dado pela segunda vez pela mesma pessoa!

“Enquanto isso, o Major vai para seu quarto. Depois de apanhar a adaga, desce até o térreo. Mal sai do elevador, vai para a porta da escada de serviço. Ele pretende subir, mas dessa vez sem que ninguém o veja. Nos degraus, ele acha o robe e o chapéu deixados por Mrs. Topsey. Por puro reflexo, Bernwell os leva consigo. Talvez aquilo ainda sirva para alguma coisa! Sem fazer barulho, ele chega à porta que dá para o terraço. Cuidadosamente, espia para fora. É provável que, nessa hora, O’Danugheon já não estivesse mais lá. Tudo limpo. O Major se aproxima de Madame Abernettye, que está deitada de costas para ele, completamente à sua mercê. Ele caminha ereto, já que tomou uma dose extra de remédios; depois ergue a adaga. Aqui entro no campo da conjeturas... Será que, antes de matá-la, ele ainda falou com ela? Será que Madame Abernettye teve tempo para responder? Não sabemos. O que sabemos é que ela estava lá — tão segura, tão autoconfiante! Devagar, o Major põe o joelho sobre ela enquanto tapa sua boca com a mão esquerda. Ali está ele — em seu momento de glória! Madame Abernettye se debate. Brusca e inesperadamente. Surpreso, ele luta para mantê-la imóvel. Com a agitação, tudo voa pelos ares... Desespero. Ele se abaixa, mas vê que a adaga caiu fora do alcance da mão. Mais que ligeiro, o Major Bernwell pega a pena de faisão e a crava nas costas da mulher. Ela resfolega, quase sem ar, e faz de tudo para se desvencilhar. Inutilmente. O Major a segura com unhas e dentes. Ele coloca a pepita de ouro perto do corpo — justamente para incriminar Mr. Amay — e trata de dar o fora. Escapando por um triz de ser visto por Isabelle Hollder, ele volta a descer a escada. Depois de se desfazer de seu tosco disfarce, vira à esquerda e sai pela porta dos fundos.”

— Ei, calma aí! — exclamou o Dr. Hagissart. — Eu estava lá e não vi ninguém contornar o hotel.

— Acho que sei por que — disse MacCormeck. — Tem a ver com o arbusto, não é?

— Parabéns, Superintendente! — elogiou Fëll. — Essa é a resposta. Ninguém tiraria uma planta ornamental de lugar... a menos que tivesse algo em mente.

— Ou seja, foi o Major quem mexeu no vaso!

— Com certeza já na manhã daquele dia. Ele calculou todos os riscos. Um dos riscos era que alguém o visse saindo pelos fundos do hotel. Aquela planta serviu como ponto cego ideal.

— Sujeitinho vivo! — murmurou MacCormeck. — E quanto à morte de Horace Abernettye?

— Creio que, quanto a isso, não existe muita coisa a dizer. De alguma forma, o Major percebeu o rapaz atravessando a esplanada. Não posso precisar de onde, nem como, o tiro foi disparado. Para um militar como ele, a distância não representava obstáculo. O que eu sei é que Mr. Abernettye estava na lista negra e, portanto, o Major Bernwell não hesitou um instante sequer em liquidá-lo. Foi pura sorte o corpo ter caído embaixo nas rochas.

— Acha que a arma está por aí?

— Dificilmente. O mais certo é que ele deve tê-la jogado fora.

— Deixe-me entender — volveu MacCormeck. — Disse que um indício o ajudou a fechar o caso. Que indício?

— Amigo vou lhe dizer. Lembra-se de como as coisas estavam hoje de manhã? Todo mundo respondendo às nossas perguntas com cautela, procurando omitir o máximo de detalhes. Depois, para piorar, tive o desprazer de encontrar Horace Abernettye, morto já desde ontem. Tudo ia mal; parecia até que teríamos que nos render diante das adversidades insuperáveis. Mas então, às onze e meia, o milagre! Vamos à quadra de tênis, e lá está o Major Bernwell. Conversa vai, e o Major faz uns comentários sobre o velho Amay, a mineração, etc. Quando ouvi aquilo, um alerta soou dentro de mim. Eu pensei: “Opa, por que ele está dizendo isso?” E não ficou só nisso. O Major continuou, como se dissesse: “Sabem de onde pode ter vindo o tal batom que matou Miss Grovenor? O ex-namorado... Ele vivia dando de tudo para ela. Roupas, cosméticos...” Estão percebendo qual a sutil má intenção do Major? Influenciar-nos a voltar toda a nossa atenção sobre Leonard Amay. Como se estivesse nos incitando a correr atrás de uma lebre apetitosa! Havia algo de anormal naquilo. Tão anormal que logo relacionei as coisas. O Major só diria aquilo para nós se: 1) ele mesmo tivesse espalhado aquelas pistas por aí, e se: 2) por alguma razão, quisesse incriminar Mr. Amay nos assassinatos.

— Ainda há uma coisa que eu não entendo. Por que cargas d’água ele matou tanta gente?

Fëll uniu a ponta dos dedos:

— Ah, os motivos! Eu diria que podemos condensar os motivos num termo muito em voga atualmente: coração partido. Uma espécie de fúria incontrolável, um desejo de causar mal a todo mundo, principalmente à mulher que tinha dado o fora nele. Mas, para saber mais, é claro que teremos que falar diretamente com ele.

— É o que eu vou fazer.

Com uma nota profissional, Fëll concluiu:

— Bem, Superintendente, o trabalho policial está feito, agora falta o júri. Os legisladores de Roma tinham um lema: Fiat justitia, ruat coelum. “Faça-se justiça, ainda que os céus desabem.” Tudo quanto afirmei não é fruto de minha imaginação. É a realidade! Debaixo de sua capa de despreocupação, o Major é um homem motivado. Resta ver até que ponto.

Ninguém disse nada. Concluía-se que todos concordavam tacitamente com o que Fëll acabara de afirmar.

— Que sequência formidável de acontecimentos! — considerou MacCormeck, sem conseguir conter a admiração. — É melhor colocarmos tudo isso no papel.

— A ocasião pede um drinque especial — disse o doutor. — Alguém aceita?

Num arroubo, Fëll olhou as horas:

— Não, danke. Ainda tenho um compromisso no salão matinal. E, pelo jeito, estou atrasado.


Capítulo 30

 

Uma hora mais tarde o caso estava encerrado.

Depois de atravessar o corredor, Fëll parou diante da porta de um quartos. Fez um aceno para os dois policiais que montavam guarda e entrou.

— Com licença.

George Bernwell mexeu-se na cama. Sentou-se, os punhos cerrados. Olhou para o detetive.

— Folgo muito em vê-lo, Mr. Fëll.

— Está em condições de conversar?

— Meu caro, estou radiante por vê-lo. Deus o abençoe por destruir a minha honra! Por destruir tudo o que sou. Foi muito gentil de sua parte.

— Não precisava ser assim — comentou Fëll. Olhou em volta: — Pronto para partir, Major?

— Quase. Estou com uma ligeira enxaqueca e este quarto é deliciosamente fresco e tranquilizador.

Com medo de falar, o Major Bernwell observava Fëll, esperando que ele tomasse a iniciativa.

— Muito bem, Major, acabou.

O Major Bernwell sentiu um frio no estômago. Ergueu-se, mas voltou a desabar sobre a cama, repentinamente muito fraco.

— Dane-se!

— Matar três pessoas... Quanto ódio para um homem só!

— Eu não preciso de um totem de paz — vociferou o Major Bernwell. — Saia daqui. Saia!

— O senhor pode revidar. É um direito que lhe assiste. Uma coisa, porém, peço ao senhor: não diga que está dilacerado de dor! Não, isso não. Essa é uma farsa da qual não participo mais. Falência gradual dos membros... Nein, nein! Esse tempo passou. Agora é a hora da verdade, de toda a verdade.

O Major deu de ombros.

— De que serve falar agora? Ninguém vai me humanizar... ou vai? O senhor não disse que acabou? Contar... Contar o quê? O senhor é um hipócrita, Mr. Fëll.

Fëll ficou vermelho como um carvão aceso.

— Não sou um hipócrita! — gesticulou indignado. — Ao contrário do senhor, Mr. Bernwell. O senhor — que me contou uma história sobre cápsulas de amônio, e alegou que Miss Grovenor não queria falar comigo. O senhor — que mandou e-mails para LaRouchelle, acusando a esposa de ser infiel; que chegou ao cúmulo de escrever esta carta, em que fingia ser um apaixonado amante francês...

— Como... como conseguiu essa carta?

— Ainda não terminei... O senhor — que esteve com LaRouchelle dias antes de sua morte; que contou por aí que tentou arrazoar com ele! Mas, na realidade, o que o senhor fez foi envenenar a mente dele com insinuações e mais insinuações sobre uma suposta infidelidade da esposa, esperando que ele mesmo, num acesso de ciúme, investisse contra ela e a matasse. Mas o que aconteceu foi que LaRouchelle, em vez de tirar a vida da esposa, optou por uma saída melhor, vamos dizer assim. Sim, porque é disso que se trata: de uma revanche por tudo o que o senhor sofreu às mãos de Nicque Abernettye.

“Não satisfeito com isso, o senhor começou a manipular Miss Grovenor. Cochichou coisas em seu ouvido... coisas que a corromperam lentamente, que a fizeram odiar Mr. Amay. Que malícia! Que torpeza moral! Tão tocante... tão eloquente... Um homem como o senhor arrastando uma pobre criança para a própria morte!”

A voz de Bernwell falhou:

— Criança? Criança uma ova! Parece que vivemos em mundos diferentes, Mr. Fëll!

— Não só ela. Também manipulou Nicque Abernettye. Quando as coisas vão bem para nós, ficamos confiantes quanto ao futuro. Nós pensamos que tudo vai melhorar e que todos os nossos problemas anteriores finalmente ficarão para trás. Era assim que Madame Abernettye se sentia. Mas em vez de colher a felicidade pela qual tanto ansiava, ela colheu a morte. Uma morte cruel, quase profana, que a tirou do palco da vida no primor da juventude.

“O senhor aproveitou o próprio vazio interno... a decepção de um sonho jamais realizado... como força motivadora — disse Fëll. — O senhor, com sua paixão e seu desejo, fez tudo isso.”

O Major rilhou os dentes, em silêncio.

— Acha que não sofro por ela? Sofro, e muito. Nicque foi a primeira pessoa com quem senti que poderia ser feliz. Ela era tão meiga, tão sensível! Cada vez que olhava para ela, ficava atordoado. Nicque precisava de alguém que se importasse e cuidasse dela. Eu teria feito de tudo para ficar com ela. Teria trabalhado no que quer que fosse... num frigorífico, numa mina de carvão! Para mim Nicque era a mulher mais virtuosa e perfeita do mundo. Ela trouxe um novo sopro à minha falta de vitalidade... Mas logo descobri que estava enganado; todo aquele amor era só uma cortina de fumaça. Certo dia, sem mais nem menos, Nicque veio dizendo que não iria mais casar comigo. Dizendo que não queria me magoar e que, um dia, eu entenderia. Tive um ataque e antes de chegar em casa estava à beira da loucura. Por que Nicque fizera isso comigo? A partir daí, as coisas foram só piorando. Ninguém nunca foi tão caluniado, difamado, injuriado e atacado como eu! Em qualquer lugar, a qualquer hora, onde quer que eu fosse, acontecia a mesma coisa. Todos me olhavam como se eu fosse um bicho. Havia até os que me marginalizavam... “Não pode andar...” “Coitado!”.

“Agora isso parece meio absurdo. Não havia realmente base para pensar assim, mas, quando saí de meu delírio, matar Nicque já tinha se tornado uma necessidade. Era como que uma crise psicológica. Sim, eu iria matá-la!”

Bernwell deslizou a língua pelo lábio superior.

— Havia uma coisa, no entanto, que tirava meu sono. Cometer o assassinato não era o problema. O problema era não ser pego. Daí surgiu uma ideia. E se eu fizesse as coisas de tal modo, de tal maneira, que os crimes fossem atribuídos a Leonard Amay? Nicque gostava de viajar. E se... numa dessas viagens... — aos poucos, tudo foi se delineando em minha mente. O cenário estava pronto: agora era preciso arranjar os atores. Primeiro atraí Louise. Depois de ser chutada por Leonard, ela estava triste e amargurada. Eu disse a ela que faríamos Leonard se ajoelhar e rastejar por ela. Tanto fiz e disse que, em pouco tempo, Louise embarcou na aventura. A partir dali, eu sabia que ela faria qualquer coisa que eu quisesse.

“Quando eu soube que Nicque e sua turma viriam para Falmouth, coloquei mãos à obra. Eu precisava fazer Louise vir para cá antes de mim. Louise veio e, seguindo à risca as minhas instruções, confrontou Leonard naquela mesma noite. Mas não sem antes passar o batom que, por meio de um processo químico, eu tinha impregnado com uma substância tóxica. Tudo correu bem — Louise amanheceu morta, Leonard era o suspeito e eu, eu tinha meu álibi.

“Agora era chegada a vez de Nicque. Assim, ontem de manhã, falei com ela. Chorei, e fingi que ainda estava interessado nela. Ela, como sempre, riu. Eu disse: “Amo você, Nicque. Amo e vou provar. Hoje... depois do almoço... no terraço! Vou dar a você uma coisa... Uma coisa que você sempre quis de volta!” Não sei se foi pelo que eu disse, ou por outra razão, mas ela aceitou o convite. Quando cheguei e a vi lá, lembro de ter sentido um nó na garganta. Dei um jeito de deixar o estojo, e saí de fininho. Minutos depois eu estava de volta, dessa vez pela escada. Abri a porta e ouvi. Tudo quieto. Senti-me maravilhosamente bem. Pé ante pé, fui até Nicque. Sem se virar, ela perguntou: “Quem é? Quem está aí?” “Sou eu”, respondi. “Viu o que dei para você? Viu, querida?” Ela riu: “George! George! Meu tolinho!” Eu já tinha ouvido o riso dela muitas vezes. Mas nunca com aquele ar de deboche. Como se me considerasse um palerma... um ninguém.

“Foi a gota d’água. Agarrei Nicque como se agarrasse um bicho qualquer. No momento, não vi mais nada. Só me lembro de estar sobre ela... de Nicque se debatendo... de pegar qualquer coisa que estava à mão e... depois... o olhar vazio de Nicque... os braços moles... e eu... olhando para ela. Tudo o que consegui pensar era como sair dali. Qualquer pessoa poderia aparecer de repente! Eu tinha preparado minha rota de fuga, mas na hora tudo se desvaneceu... tudo... tudo... Virei-me, quase em pânico! Tinha que sair dali. Parecia que não era eu. Como se meu cérebro tivesse parado. Não me abaixei para pegar a adaga... não, nada. O parapeito... O parapeito era tão baixo! E se alguém... lá embaixo... qualquer pessoa... Corri como um louco para a porta. Saí. Mal lembrei de tirar o chapéu... o robe... Cheguei no jardim e joguei-me no banco. Oh, Deus, como eu estava assustado!”

Bernwell sacudiu a cabeça. Depois, com voz exausta, disse:

— O senhor estragou tudo! Eu lhe peço, Mr. Fëll — despreze a ética profissional... Deixe-me sair daqui.

— É uma impossibilidade, Major. Eu já dei meu depoimento.

— Não haverá uma próxima vez. Eu juro ao senhor. Eu juro.

— Como disse, é uma impossibilidade — repetiu Fëll.

George Bernwell olhou para o detetive austríaco. O medo inicial tinha sido substituído por uma ironia devastadora.

— Bravos! — balbuciou, encolerizado. — Aí está o grande Edmund Fëll! Com o seu misto de habilidade e audácia, conseguiu desvendar outro caso. Ouviram como ele fala, com grandes rasgos, da religião e da moral? Ei, mas o que é isso? Tranquem a porta, por favor. O grande Edmund Fëll vive alheio a tudo! Ele ficou sozinho, num quarto minúsculo, com um assassino! Tudo estava funcionando na mais perfeita normalidade. Nenhum atentado, nenhum segredo militar tinha sido violado. O cérebro do assassino possui a agudeza de um florete. Seu olhar é penetrante. Conseguirá o detetive sair vivo dessa?

Fëll encarou-o bem nos olhos.

— Não sei o que há de engraçado nisso, Major.

— O senhor não sabe? Dê mais ênfase no melodramático, homem! Oh, como eu gostaria de estar agora no deserto. Sem prédio. Sem teatro. Sem nada. Uma terra inóspita. Queria que só o senhor estivesse comigo. Para enfiá-lo na areia e... apertar... até...

— Este não é o comportamento de um homem civilizado, Major.

— O senhor e sua maldita ambivalência! Acha que sou um pervertido? Ou quem sabe um justiceiro? Ha! Ha! Vamos experimentar? Tudo por uma boa causa! Que tal uma verdadeira caçada humana? Eu serei o caçador! Sim, o caçador... O que me diz? Hein, o que me diz?

O Major agora estava de pé. Como se exercesse uma profissão ativa, ao ar livre.

— Vá, Mr. Fëll. Fuja! Fuja antes que seja tarde.

Ria. Um riso louco, refinado, sádico...

Por um instante Fëll ficou mudo de espanto. Depois, visivelmente alarmado, bateu em retirada. Ouviu a gargalhada por um bom tempo, antes de ser engolida pelo som das polias do elevador.


Capítulo 31

 

Eram seis horas quando os hóspedes receberam permissão para deixar o BlueMoon. As ondas ribombavam como punhos contra a base das rochas.

— Steter Tropfen höhlt den Stein — disse Fëll.

— Uma coisa muito bem expressa! — murmurou McCormeck. — De gota em gota chegamos ao fim do caso. Já solicitei a prisão preventiva de Monsieur Suttom. Forjou referências... serviu de intermediário para uma rede criminosa... Tivemos que usar luvas de pelica, mas ele confessou tudo. Pior para O’Danugheon — acrescentou McCormeck. — E o crédito é todo seu, meu amigo.

— Estou triste por ele — disse Fëll. — Eu gostava de O’Danugheon. É incrível como o dinheiro tem esse poder de despertar a cobiça das pessoas.

— Os ricos não regateiam sobre preços — disse MacCormeck. — Receptação de objetos roubados é crime. Além do prejuízo material, vai ser acusado de apoio ao terrorismo. Um traço muito forte da personalidade dessa gente é o individualismo elevado ao extremo.

— Vão transferir o Major Bernwell ainda hoje?

— Sim. Por mim ele seria julgado amanhã! Canalha... Matar toda essa gente só para lustrar o ego.

— Vai passar horas escrevendo o relatório — disse Fëll.

— Toda a noite, se for preciso.

Isabelle e Patrice apareceram, abraçadas e felizes.

— Que bom vê-las juntas — elogiou Fëll. — Resolveram fazer as pazes?

— É o jeito — disse Isabelle e seus olhos brilharam encantadoramente. — Por mais louca que seja, Pat é minha irmã. Agora que temos uma novidade a caminho, mais do que nunca temos que ficar unidas.

Patrice espalmou a mão sobre a barriga:

— Uma novidade de dez mil libras...

— Viemos só agradecer a vocês.

— Pelo quê? — perguntou Fëll.

— Pelo modo como nos trataram. Às vezes parece que foi tudo um sonho.

— E seu marido, Madame?

— Marck está lá em cima, se despedindo do Major Bernwell. Marck é assim mesmo: se preocupa com todo mundo. Estou tão cansada!

— Um bom descanso cura todos os males, Madame.

— Queira que sim — disse Isabelle.

— Adeus e boa sorte. Faço votos de que dê tudo certo, Miss.

A seguir, apareceu Mrs. Wigginfort, acompanhada pela filha.

— Gostar desse mauricinho! — resmungava a diva, em tom furioso. — Não percebe a forma como ele olha para você?

— Ele não é um mauricinho. Nós nos amamos e é isso que importa, não é?

— Acreditou nele?

— Na hora não. Mas agora... A senhora sempre terá uma amiga em mim, mamãe!

— Oh, ele vai desgraçar a sua vida, Lili! Você sabe que tudo que eu faço, eu faço por você.

— Não é isso o que está em julgamento, mamã. Eu amo Leonard. Nós fomos feitos um para o outro e seria um erro fingir o contrário. Não podemos permitir que um homicídio cruel estrague nosso futuro!

Eliza abriu os olhos marejados e suspirou:

— O senhor não acha que estou sendo sensata, Mr. Fëll?

— Não sei. Lembre-se que ele foi noivo de uma mulher, depois gostou de outra, e por aí vai.

— Eu sei.

— Vai tentar mesmo assim?

— Vou.

— Então não há nada que possamos fazer.

— Nem tentem — disse Eliza, fingindo ralhar. Ela sacudiu a cabeça: — Tchau, Mr. Fëll. Tchau, Superintendente!

Leonard Amay vinha se aproximando neste instante.

— Senhores, foi um prazer.

— Foi mesmo, Mr. Amay?

— Até certo ponto. Perdi minha noiva, concordo. Fazer o quê? Rei morto, rei posto. Não podemos desanimar. Enquanto houver vida, há sonhos.

— Pelo jeito, o seu sonho é aquele lá — rosnou MacCormeck, indicando Eliza.

— Acertou em cheio, meu chapa. Ela não é uma gracinha? Vejam só... É justo que ela viva assim, como se fosse um caracol?

— Caracol?

— Não parece? Tão encolhida... tão complexada! Mas deixe comigo... Eu vou tirá-la de sua concha.

— São palavras pomposas, meu jovem.

— Ih, que cara é essa? Acha que estou falando só da boca para fora, Superintendente? O senhor vai ver... O amor faz maravilhas.

— Mesmo com a oposição da mãe?

— A mãe! — Leonard deu de ombros. — Nada dura para sempre. Um dia, a velha cansa.

Leonard foi para junto de Eliza; Eliza piscou os olhos, encabulada. Ele pegou a valise dela e, de mãos dadas, ambos afastaram-se juntos.

— É o que eu não entendo — comentou MacCormeck. — Por que será que as mulheres preferem sempre os cafajestes?

— Isso confirma mais uma vez que os seres humanos não são muito práticos em se tratando de amor — respondeu Fëll.

Uma multidão de repórteres, fotógrafos, curiosos e turistas suecos se espremia atrás do cordão de isolamento. Dois táxis estavam estacionados no pátio. Um dos policiais cooperava com o embarque dos passageiros.

Depois de um certo tempo, foi a vez de Markus Rigoletti trazer sua bagagem. Ousado e arrogante, dirigiu-se ao austríaco.

— Trabalhou bem, Mr. Fëll.

— Estou habituado a lidar com essas coisas, tendo em conta a minha profissão.

— Modesto até o fim, hein?

— Aposto que os seus talentos são muito mais recompensadores, Signor Rigoletti.

— Entenda como quiser — resmungou o italiano.

Em seguida, apareceu Marck, tão pálido e espantado que nem de longe parecia ser a mesma pessoa. Estava exausto e balbuciava alguma coisa, como se tivesse acabado de ver um fantasma.

— E aí, Mr. Hollder... Que cara é essa?

— Acho que tivemos uma fatalidade, cavalheiros. Mais uma fatalidade... para complementar as outras.

— O quê? — perguntou MacCormeck. — De que raios está falando?

— Eu entrei no quarto do Major Bernwell. Ele estava na cama, envolto em cobertores. Chamei, mas ele continuou imóvel. Toquei nele... e senti a pele toda gelada. Ui, fico arrepiado só de pensar.

— Que droga. Será que ele...?

— Poupe o fôlego, Superintendente — disse Marck. — Não adianta. O Dr. Hagissart já foi para lá. Pelo jeito, porém, não há nada que possa ser feito.

Os olhos de Fëll se estreitaram.

— Notou algum ferimento?

— Não, senhor. Só vi um vidrinho sem a tampa no criado-mudo.

— Exatamente o que meus instintos diziam. Eram dois frascos de comprimidos. O mais cheio contendo ansiolíticos. Homens como o Major, mergulhados num lamaçal de amargura, autopiedade e orgulho ferido, dificilmente suportam a ideia de se sentar numa cadeira de réu — sobretudo num caso de triplo assassinato. Todo o bafafá, o veredito do júri... Nessas horas, essa gente prefere uma saída mais fácil e menos dolorosa.

— Que reviravolta — resmungou MacCormeck. — Este fato justifica plenamente a suspensão das investigações que estamos realizando.

— Uma conclusão dramática para uma semana movimentada — Fëll meneou a cabeça.

— Mais uma pergunta... O que aconteceu ao diamante?

— Ontem alguém nos disse algo sobre o Titanic, Superintendente. Lembra-se onde foi parar o colar Le Coeur de La Mer, no final do filme?

— Lembro.

— Pois é... Acho que o diamante teve o mesmo destino — respondeu Fëll, olhando para o oceano.

Desta vez não houve resposta.

Dali a meia hora, Monsieur Suttom foi retirado sob escolta policial do BlueMoon; seguido pelo cadáver de George Bernwell, o frágil e elegante major britânico.

 

 

                                                                  Alec Baurer

 

 

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