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O MONGE E O VENERÁVEL / Christian Jacq
O MONGE E O VENERÁVEL / Christian Jacq

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MONGE E O VENERÁVEL

 

O Monge e o Venerável é um romance, uma obra de ficção em que o imaginário tem uma parte considerável. Mas pareceu-me necessário precisar que este relato se baseia em factos reais de que alguns aspectos podem ser iluminados.

O Monge e o Venerável desenrola-se durante a Segunda Guerra Mundial. A ideologia nazi quis fundar uma nova forma de religião e de cultura. Foi por isso que decidiu suprimir todas as crenças que a precederam arrancando-lhes o que possuíam, a seus olhos, de melhor. Os nazis confiaram a um serviço especial, o Aneherbe, directamente dependente de Himmler, o cuidado de ”se ocupar” das sociedades secretas e dos seus adeptos, considerados como tendo poderes de uma certa amplitude. Esse serviço pouco conhecido e ainda mal estudado levou à detenção de videntes, astrólogos e mágicos afim de lhes extraírem as suas técnicas e verificar se eram eficazes. O Aneherbe considerava, com efeito, que os poderes psíquicos podiam tornar-se armas actuantes contribuindo para consolidar a supremacia do Reich. Encarceraram igualmente sacerdotes e religiosos suspeitos de possuir conhecimentos interessantes. Os infelizes foram deportados para campos que, nalguns casos, possuíam secções especializadas no tratamento desses ”superdotados” de um género muito particular.

Além disso, desde que o regime nazi se implantou na Alemanha, procedeu ao encerramento das lojas maçónicas e à detenção daqueles que as frequentavam. Parece, no entanto, que os maçons tinham favorecido a ascensão de Hitler, brincando aos aprendizes de feiticeiros, rapidamente incapazes de controlar o monstro que tinham contribuído para fazer surgir.

O nazismo criou a sua própria sociedade secreta, a ”Ordem Negra”. Não podia tolerar a existência de nenhuma outra organização esotérica nos territórios do Reich. Himmler ordenou a destruição da Maçonaria, não sem ter recuperado os seus tesouros utilizáveis. Em França, o SD, serviço de contra-espionagem alemão, recebeu a missão de invadir os prédios onde se reuniam os maçons, apoderar-se dos seus arquivos e rituais. Obteve a colaboração de sinistras personagens, como BernardFay, administrador-geral da Biblioteca Nacional, mas não conseguiu mais do que resultados relativamente decepcionantes.

A razão daquele fracasso era a existência de uma corrente secreta mesmo no interior da Maçonaria institucional e completamente independente dela. Por trás da fachada de política de negócios das organizações maçónicas sobreviviam lojas ditas ”selvagens”, herdeiras dos conhecimentos iniciáticos transmitidos de Venerável em Venerável desde a Antiguidade. Uma dessas lojas em especial era depositária da Regra Original dos construtores de templos e do segredo do Número que permite, diz-se, tudo criar e tudo construir. Na nossa história, demos a essa loja, pertencente ao Rito Escocês Antigo e Aceite, o nome de ”Conhecimento”.

Foi dirigida, durante muitos anos, por um Venerável fora do comum que me relatou a aventura excepcional vivida por um maçon e um monge beneditino cujos caminhos se cruzaram na deportação. Tudo os separava, tudo os opunha e, no entanto, tiveram que viver e sobreviver juntos no inferno de um campo de concentração. Um tinha o Grande Arquitecto do Universo como único apoio, o outro o Deus dos cristãos. Aprenderam a conhecer-se mas enfrentaram-se em nome das suas respectivas fés; ver-se-á, no decurso do romance, por que desafio autêntico, concretizado por aquilo que alguns denominaram ”aposta” e outros ”votos”, se submeteram à mais exigente das provas.

Tudo o que aqui é revelado sobre os rituais, os graus e os símbolos maçónicos está de acordo com a verdade. O próprio funcionamento de uma ”loja selvagem”, que nunca foi mencionado que eu tenha conhecimento, é evocado na medida do possível.

O extraordinário encontro do Monge e do Venerável verificou-se realmente num quadro análogo ao descrito neste livro; a loja ”Conhecimento” existiu realmente, com outro nome; o Aneherbe, de triste memória, construiu na verdade o mais horrível serviço de informações da era moderna.

O trabalho do romancista consistiu em reunir os elementos esparsos e juntar os conhecimentos em seu poder para contar a história de dois seres confrontados com a mais implacável das realidades.

Tive o imenso privilégio de conhecer o Monge e o Venerável que serviram de modelo para as minhas personagens. Tanto um como outro desapareceram já. É por isso que o silêncio pode ser quebrado.

 

 

Paris, uma pequena rua do XVIII bairro, uma noite de Março de 1944. A Lua estava oculta pelas nuvens.

 

François Branier, depois de ter verificado que não era seguido, penetrou no portal de um prédio degradado. Aos cinquenta e cinco anos, o médico de cabelos prateados conservara o seu aspecto maciço e sereno que fazia dele uma personagem tranquilizadora, simultaneamente severa e calorosa.

 

Deixou a porta de serviço fechar-se e esperou alguns minutos na obscuridade. Imperativo de segurança. Branier vivia a mais perigosa das aventuras. Pela primeira vez há várias semanas, reunia os Irmãos para fazerem uma reunião de trabalho maçónico, aquilo que os iniciados chamavam ”uma reunião”. Tinham numerosas decisões a tomar, por unanimidade, segundo a Regra.

 

Nos últimos tempos, vários Irmãos da loja ”Conhecimento”, trabalhando no Oriente de Paris, tinham sido presos por subversão ou participação na Resistência. Já só restavam sete para continuar a trabalhar para glória do Grande Arquitecto do Universo, forçados a esconder-se, a mudar de local de encontro a cada ”reunião”. Quando o nazismo triunfara na Alemanha, os maçons tinham pertencido ao número dos primeiros perseguidos. As lojas tinham sido dissolvidas, consideradas perigosas para a segurança do Estado. Numerosos Irmãos alemães foram presos, executados sem julgamento, deportados.

 

A ”Conhecimento” não era uma loja como as outras. Possuía mesmo uma característica única. Era ela que detinha o segredo do Número, o único segredo essencial da Ordem que fora transmitido de geração em geração. Alguns Irmãos, raros, disseminados através do mundo, tinham recebido esse segredo como herança. Muitos haviam morrido desde o início da guerra. François Branier, Venerável Mestre da loja, era talvez o último sobrevivente a conhecer o Número a partir do qual tudo podia ser reconstruído. Era necessário que pudesse, por sua vez, transmiti-lo antes de morrer, levando o seu segredo para o túmulo.

 

O prédio estava silencioso. Branier abandonou o abrigo do pórtico e penetrou num pequeno pátio interior mergulhado na escuridão. À esquerda, uma porta metálica. O médico bateu três pancadas espaçadas. Uma voz disse: entre!

 

Branier soube imediatamente que tinha sido traído. Não fora um Irmão a responder. Ter-se-ia expressado de outra forma. Era necessário escapar sem pensar mais. Branier deslizou para o portal e abriu a porta de serviço.

 

As minhas felicitações, senhor Branier disse um dos polícias alemães, de rosto liso, muito branco, animado por olhos de grande mobilidade. É razoável. A sua reputação é merecida.

 

A luz da lua, que brilhava entre duas nuvens, permitia a Branier encarar o seu interlocutor. Havia uma única pergunta a fazer.

 

Onde estão os meus... os meus amigos?

 

Em segurança, como o senhor. Não se inquiete. Se quiser fazer o favor de entrar para o carro...

 

O polícia, com tom obsequioso, falava um francês sem sotaque.

 

François Branier fazia outra ideia de uma prisão pela Gestapo: algemas, pancadas, ordens imperiosas... Qual a razão daquela delicadeza quase afectada, daquele respeito incompreensível? O que julgava entrever contraía-lhe o ventre de angústia.

 

No momento de subir para o Mercedes preto, o Venerável ergueu a cabeça. No terceiro andar do prédio da frente, uma janela debilmente iluminada. No canto esquerdo, um rosto de homem, por trás da cortina levantada. Surpreendido pelo olhar de François Branier, o espia baixou bruscamente a cortina e apagou a luz.

 

Branier dirigiu-se ao polícia alemão que, como ele, observara a cena. Nada lhe escapava.

 

Foi ele que me entregou?

 

Exacto.

 

Quem é?

 

Não sei mentiu o alemão, quase divertido. Tudo o que lhe posso dizer é que é maçon. Encontrou-o noutra loja. Permitiu-nos redescobrir o seu rasto. Entre.

 

Quando o carro arrancou, o Venerável soube que beberia o cálice até às fezes.

 

Depressa, com raios!

 

O irmão Benoit, da Ordem dos beneditinos, praguejara uma vez mais, sem mesmo dar conta. O tempo não ia para elegâncias de linguagem. Estava demasiado preocupado com a fuga de dois jovens judeus que deviam imperativamente entrar para o camião que transportava troncos de árvore. O irmão Benoit escondera-os há dois dias nos bosques situados perto de Morienval. Há um ano que o religioso recebera o encargo daquela antiga abadia.

 

A população apreciava os dons de Benoit, curandeiro, radiestesista e magnetizador. De acordo com a grande tradição da Ordem, ocupava-se tão activamente das almas como dos corpos. À cabeça de uma rede de passadores, o beneditino permitira que dezenas de pessoas escapassem à polícia alemã.

 

O camião estava a chegar. Abandonara a pequena estrada para penetrar num caminho florestal. Benoit empurrou os dois jovens judeus que treparam para as traseiras e se enfiaram num esconderijo disfarçado sob o chão do veículo. Aqueles dois, com um pouco de sorte, não acabariam num dos centros de ”selecção” da região de Compiègne. As rodas do camião patinaram na lama. Benoit receou que se atolasse, como da última vez. O condutor meteu uma mudança, acelerou brutalmente, arrancando o veículo à pasta de terra mole. O religioso saudou com a mão os que já não o podiam ver. Naquela noite estariam na zona livre e recomeçariam o combate contra o invasor.

 

O irmão Benoit estava vestido com o seu eterno hábito de burel cujo cinto era um rosário com grossas contas. Aquele verdadeiro colosso, de queixo adornado com uma barba um pouco arruivada, não tinha frio. Gostava daquelas madrugadas geladas em que a floresta estava ainda adormecida, em que a solidão era quase absoluta. Faziam-no sentir a presença de Deus. Que alegria avançar sobre o tapete de folhas mortas, contemplar à passagem os rebentos túrgidos de seiva, sentir a Primavera que em breve explodiria. Vamos! Ainda havia esperança; a França havia de conseguir libertar-se, o mundo sairia finalmente do pior dos horrores impostos à humanidade desde a sua origem. E dizer que alguns se atreviam falar de progresso...

 

Benoit avançava rapidamente. Ao meio-dia receberia três novos resistentes perseguidos pelos alemães. Precisava antes de encontrar roupas, um passador, dinheiro. Deus havia de ajudar.

 

O Monge vivia numa velha casa de pedra situada atrás da abadia. Ao entrar, ia a pensar no café fumegante que ia oferecer a si próprio. O seu único luxo.

 

O religioso subiu os três degraus do alpendre de pedra, abriu a porta, percorreu o corredor em três passadas e entrou na cozinha.

 

Três homens esperavam-no, envergando impermeáveis verdes. O religioso, reagiu imediatamente. Apoderou-se de uma cadeira e descarregou-a na cabeça do alemão mais próximo. Dois outros polícias da Gestapo, vindos por trás,! bloquearam-lhe os braços. O colosso quase conseguiu desembaraçar-se deles,! mas as armas apontadas obrigaram-no a interromper o combate. Um homem de Deus não tem o direito de se suicidar.

 

Acalme-se disse um dos polícias, de rosto liso, muito branco, no qual brilhavam uns pequenos olhos muito móveis.

 

Porque me prendem? trovejou Benoit. Não tenho nada a censurar-me.

 

E isto? Sobre a mesa da cozinha, o alemão colocara uma varinha de feiticeiro, um pêndulo de radiestesista, vários formulários dedicados à cura pelas plantas. O irmão Benoit estava boquiaberto. Era por aquilo que o prendiam? Nem sequer se referiam à sua actividade como resistente... Um pesadelo sem pés nem cabeça.

 

Tem estranhos poderes para um religioso sem história... Disseram-nos que era o melhor curandeiro de França, que estava em comunicação com as potências invisíveis. Queremos verificar isso.

 

A alucinação continuava. Benoit não queria acreditar no que os seus ouvidos ouviam. Como podiam os esbirros da sinistra Gestapo interessar-se por tais problemas?

 

Acreditam nesses mexericos? indignou-se o Monge.

 

Acredito no que vejo retorquiu o alemão. Compreendo que não deseje responder às minhas perguntas. Vamos levá-lo connosco. Conduzi-lo-emos a especialistas que saberão torná-lo compreensivo.

 

O irmão Benoit não pronunciou uma palavra. Os brutamontes que tinha à sua frente não estavam dispostos a discutir. Já só pensava em como fugir.

 

Mas antes, queria saber. Saber porque razão o prendiam evocando semelhantes motivos.

 

Quando os habitantes de Morienval viram o irmão Benoit, enquadrado por polícias, entrar para o carro da Gestapo, ficaram convencidos que o religioso tinha sido denunciado por causa das suas actividades de resistente. Nenhum deles suspeitou da verdade.

 

 

François Branier gostava de Compiègne. Em criança viera muitas vezes de férias para casa do tio. Juntos tinham explorado a floresta, pescado nos pequenos riachos, percorrido dezenas de quilómetros de bicicleta pelo prazer de descobrir vales perdidos, paisagens da velha França esquecida dos citadinos. Mas a Compiègne de hoje era a do terror. Era de lá que os comboios de prisioneiros, tratados como gado, partiam para os campos de extermínio nazis. O Venerável não duvidava nem por um segundo que conheceria a sorte abominável daqueles que ousavam desafiar a Alemanha de Hitler.

 

Ficou portanto ainda mais surpreendido quando o Mercedes da Gestapo parou em frente de um gracioso palacetezinho do centro da cidade. Fizeram Branier sair e conduziram-no ao primeiro andar. Os salões burgueses e os quartos tinham sido transformados em gabinetes. Tinham deitado abaixo as divisórias, quebrado as molduras das portas para introduzirem ficheiros. Apesar da hora tardia, havia soldados a escrever à máquina.

 

O Venerável foi introduzido num gabinete luxuoso, com certeza o do antigo senhor da casa. Nas paredes, litografias e águas-fortes representavam monumentos de Compiègne. Soalho brilhante, mobiliário Império. Instalado numa poltrona vermelha de alto espaldar, um graduado de cerca de quarenta anos, com uniforme de SS. Cabelos muito escuros, rosto de traços grosseiros.

 

Sente-se. Senhor Branier. Soube que se mostrou muito razoável. Excelente iniciativa.

 

O Venerável cravou o olhar no do alemão.

 

Onde estão os meus amigos?

 

Já partiram para a sua futura residência, senhor Branier. Um comboio especial, há cerca de um quarto de hora. Condições de conforto medíocres, reconheço. Mas na guerra como na guerra, como vocês dizem.

 

O oficial SS levantou-se e passeou de um lado para outro do gabinete com a tranquila segurança de um domador. O colega, o homem da Gestapo, mantinha-se em pé num canto do compartimento.

 

É médico, senhor Branier?

 

François Branier encaixara-se no seu assento. Com as costas direitas, os antebraços poisados nos braços da cadeira, sentia-se na pele de um condenado à morte sentado numa cadeira eléctrica. O SS brincava com ele como um gato com um rato. Havia cem vezes mais crueldade naquelas palavras em meias-tintas do que na mais atroz tortura. O alemão dispunha de todo o tempo. Procurava os pontos fracos para ferir com o máximo de precisão, aniquilar o seu adversário pela certa. Branier não tinha o direito de baixar a guarda nem por um segundo.

 

Devia responder, senhor Branier. Refugiar-se no silêncio é uma má táctica. Poderia ameaçá-lo com represálias na pessoa dos seus Irmãos. É médico?

 

Sou.

 

Especialista?

 

Não. Generalista.

 

Casado?

 

Viúvo.

 

Filhos?

 

Não.

 

Abandonou o seu consultório e o seu domicílio parisiense desde que foi declarada a guerra. Entrou na Maçonaria com a idade de vinte e cinco anos, na Grande Loja de França. Muito rapidamente surgiu como um elemento excepcional. Recusou todas as honras mas conquistou o respeito das lojas da Europa inteira. Evitando ocupar lugar na hierarquia aparente e oficial, tornou-se o chefe da Maçonaria secreta. Fundou uma loja com o nome de ”Conhecimento” que possui os verdadeiros segredos da Ordem. Estamos na pista dessa loja há muito tempo... Nunca o mesmo lugar de reunião, nenhuma periodicidade, transmissão puramente oral. Não dormiu com frequência duas noites seguidas na mesma cama, senhor Branier. Os efectivos da sua loja nunca ultrapassaram vinte Irmãos. Muitos deles morreram ou desapareceram. Prendemos um, mas suicidou-se durante o interrogatório. Sem a denúncia do eminente maçon que lhe ofereceu o local onde deveria ter-se reunido ontem à noite, nunca teríamos tido a possibilidade de conseguir semelhante pescaria. Um golpe de sorte que foi apreciado no seu justo valor nas altas instâncias. O meu relato dos factos foi exacto, senhor Branier? Pormenores a rectificar?

 

Nenhum.

 

O SS voltou a sentar-se com ar satisfeito.

 

Obrigado pela sua sinceridade. Negar teria sido pueril. Tudo o que afirmei foi verificado com muito cuidado. Mas restam numerosos pontos obscuros. Não falo das suas actividades na Resistência... Banais. Servirão de temas de acusação oficiais.

 

Os nervos do Venerável estavam tensos. Precisava de se libertar daquela tensão. Berrar, bater... O torno fechava-se a cada segundo. Não só sobre ele, o indivíduo François Branier, mas também sobre a sua função de Venerável-Mestre, sobre o segredo de que era o guardião. Tal como um sacerdote, não tinha o direito de se suicidar. Devia tentar tudo para transmitir, para que a tradição iniciática da Ordem continuasse, para que a luz não desaparecesse.

 

Perdemos regularmente a sua pista apesar da apertada vigilância de que era alvo. Não temos qualquer certeza sobre a frequência e a duração das reuniões da sua loja ”Conhecimento”. As precauções que toma são tão extraordinárias como eficazes. Tem realmente muito a ocultar ao governo do Reich.

 

Dez tácticas entrecruzavam-se na cabeça do Venerável. Tinha que soltar lastro sem revelar nada de essencial, sair vivo daquele gabinete sem trair o seu juramento.

 

”Extraordinárias” porquê? O SS sorriu.

 

Não tente fazer-me crer que a ”Conhecimento” é uma loja maçónica vulgar, uma simples assembleia de humanistas com vagos ideais de tolerância e de liberdade. É um revolucionário, senhor Branier, quer mudar o mundo, mudar o homem. Loucura, utopia, talvez... mas talvez não. Com certeza que não quando é conhecida a sua seriedade e a dos seus Irmãos escolhidos a dedo. Nada é mais difícil do que entrar na sua loja. Cinco anos pelo menos de preparação, sete anos de aprendizagem no mínimo, inúmeros anos de companheirismo indeterminado antes de chegar a Mestre... Quanto ao Venerável designado, é obrigatoriamente um ser com poderes absolutamente excepcionais...

 

Falso. Um Irmão como qualquer outro designado por unanimidade.

 

Nada mais.

 

O SS apoderou-se de um corta-papéis cuja lâmina fez rebrilhar sob o candeeiro da secretária.

 

A sua modéstia honra-o, senhor Branier. Mas não me parece credível. A sua loja suscitou muitas invejas entre os próprios maçons. Na sua qualidade de Venerável, recusava sistematicamente os visitantes vindos das outras lojas. Um direito existente, é verdade, mas nunca aplicado. Para assistir às vossas ”reuniões” era necessário obrigatoriamente ser membro da ”Conhecimento” e ter satisfeito provas cuja natureza ignoramos. Nem um único dos maçons detidos nos pôde revelar algo de interessante sobre a vida interna da sua loja. Era o chefe de um Estado dentro do Estado. Porquê tanto mistério se não detiver em seu poder algo de essencial? E tudo o que é essencial diz respeito ao Reich, senhor Branier.

 

O Venerável endireitou-se, retesando os largos ombros, adoptando o tom da mais firme convicção.

 

Somos espiritualistas. Queríamos apenas trabalhar em paz, longe de manobras e de intrigas.

 

Não acredito retorquiu secamente o SS. Espiritualistas... Essas pessoas nada têm a ocultar. São místicos inofensivos. Não é o seu caso nem o dos seus Irmãos. Arranje um argumento mais convincente.

 

Por trás dele, o Venerável ouviu o ruído característico de um impermeável que se desamarrota. O homem da Gestapo tinha-se mexido. Branier forçou-se a permanecer calmo, quase indiferente. O oficial superior SS estava excepcionalmente bem informado. O seu trabalho de formiga revelara-se compensador. Acumulando dossiers, mesmo a partir de retalhos de informação, conseguira obter indicações precisas que a maior parte dos maçons ignorava. Com certeza sabia mesmo ainda mais.

 

Visto que conhece tão bem a minha loja disse o Venerável não ignora que todos os segredos são partilhados entre os Irmãos. Só, não sou nada.

 

Passando o indicador pela lâmina da faca, o SS pareceu preocupado.

 

Finalmente um verdadeiro problema! Há muito que o ponho a mim mesmo. Se está a mentir, sozinho é importante e podemos mandar executar os seus Irmãos. Se diz a verdade, é indispensável que estejam todos reunidos em lugar seguro para que consigamos finalmente conhecer o vosso segredo. Não quero correr riscos. Escolhi a segunda solução. Heinrich Himmler confiou-me esta missão. Não o quero desiludir. Vai portanto juntar-se aos seus Irmãos, senhor Branier. Partida dentro de um quarto de hora.

 

O Venerável contraiu-se sobre si mesmo, aterrado. O SS olhou-o com desprezo. O homem talvez não fosse tão excepcional como pretendiam. A menos que se tratasse de um perfeito comediante.

 

O SS pegou no telefone para confirmar a partida do comboio especial de que faria parte François Branier. Foi o primeiro instante em que afastou os olhos do seu prisioneiro.

 

Branier saltou como uma fera. Torceu o braço do SS, arrancou-lhe o corta-papéis e assentou-lhe a testa sobre a secretária. A ponta da faca improvisada enterrou-se ligeiramente no pescoço, à altura do bolbo raquidiano. Com uma vivacidade surpreendente, Branier contornou a secretária para se colocar atrás do SS. Agora estava em posição de força. O homem da Gestapo não tinha tido tempo de intervir.

 

Ou me deixa sair daqui ou mato-o.

 

Mate-o, Branier. Isso não vai mudar nada. Outro o substituirá. Não sairá daqui a não ser para entrar num comboio.

 

Está a fazer bluff. Ponha um carro à minha disposição.

 

O oficial superior SS respirava com dificuldade, o rosto esmagado de encontro ao mata-borrão da pasta da secretária. Enganara-se profundamente quanto ao Venerável julgando-o vencido, sem recursos.

 

O homem da Gestapo, muito calmo, chamou os soldados da guarda. Com as metralhadoras na anca, três deles penetraram no gabinete.

 

Largue esse corta-papéis, senhor Branier. Caso contrário, dou ordem para dispararem. Serão os dois mortos.

 

Dê.

 

Branier ergueu a cabeça do SS agarrando-o pelos cabelos. Obrigou-o pôr-se em pé torcendo-lhe o braço esquerdo. A ponta do corta-papéis apoiou-se na carótida. O SS não conseguiu evitar um estremecimento. A determinação de Branier era firme. Aquele homem sabia matar.

 

O carro, depressa.

 

E abandona os seus Irmãos? - perguntou o homem da Gestapo.

 

O sangue do Venerável gelou nas veias. Fugir era confessar ser o único detentor do segredo, condenar os Irmãos à morte. Aceitar ir-se juntar a eles, lá para onde os nazis os enviavam, era provar que a comunidade devia estar reunida para que os mistérios fossem revelados.

 

O corta-papéis caiu no soalho com um ruído seco. Branier largou o braço do SS e afastou-se dele. Invocou em silêncio o Grande Arquitecto do Universo e esperou pelas pancadas.

 

 

A noite estava glacial. Na gare de Compiègne, o comboio de deportados, composto por cinco vagões. O homem da Gestapo acompanhou François Branier, enquadrado por dois SS. Não tinham posto algemas ao Venerável.

 

Na gare silenciosa, o comboio surgia como um animal monstruoso, ameaçador. Quando o Venerável ia a passar junto do primeiro vagão, a porta corrediça abriu-se bruscamente. Surgiu um rapaz, nu, que berrou: ”Não quero partir!” e saltou para o cais. O homem da Gestapo afastou o Venerável para o lado, os dois SS fizeram fogo sobre o fugitivo que se enrodilhou no cais durante alguns segundos antes de se imobilizar. Um dos dois SS disparou uma rajada de metralhadora para o interior do vagão. Gritos de dor, corpos que caíam uns sobre os outros. O SS fez deslizar a porta com violência e tornou a colocar o cadeado.

 

Suba - ordenou o homem da Gestapo a Branier, conduzindo-o para o último vagão do comboio, dividido em diversos compartimentos separados por divisórias de madeira.

 

O Venerável ocuparia o compartimento do meio, muito estreito. Tinha a sorte de estar só, enquanto os outros deportados se acumulavam nas piores condições.

 

O Venerável sentou-se no chão coberto de palha húmida. Um odor forte fez-lhe contrair as narinas. A porta fechou-se, mergulhando-o na escuridão. O comboio arrancou. Eram três horas da manhã.

 

Branier constatou que lhe tinham deixado o impermeável, o fato e a gravata como se partisse para uma viagem de recreio. Não tinha medo da morte. Receava o sofrimento, como qualquer pessoa, mas aprendera a dominá-lo.

 

O que temia era trair. Por fraqueza. Por cansaço. Por o seu espírito ter mergulhado demasiado profundamente na noite, por o seu corpo torturado gritar por clemência, por a morte não vir suficientemente depressa para o libertar. Desaparecer sem ter transmitido seria o pior dos suplícios.

 

Na noite em que tinha sido detido, François Branier devia precisamente iniciar o seu sucessor no cargo de Venerável-Mestre e confiar-lhe o segredo do Número.

 

Não tinha sono. Afluíam-lhe recordações à memória. A infância tão feliz numa pequena aldeia da Sabóia, a ”subida” até Paris, os anos de estudos de Medicina, o encontro com aquela que se tornara sua mulher, a paixão da leitura... essa paixão que, depois de dias de consultas arrasantes, lhe fazia devorar volumes sobre os mistérios da Antiguidade, as esculturas da Idade Média, a geometria sagrada; um refúgio, talvez, para escapar a um mundo louco, mas sobretudo a descoberta de leis eternas sem as quais o homem se torna pior do que um animal. François Branier ouvira falar da Maçonaria. Detestava-a por causa das suas maquinações, da sua mentalidade pequeno-burguesa, politiqueira, dos seus falsos segredos. Dez vezes, vinte vezes, tinha sido convidado para se tornar membro de uma das grandes ”obediências”. Recusara secamente esses avanços mesquinhos que só se preocupavam com o montante das cotizações, a ambição social, as relações úteis, os títulos pomposos.

 

Alguns dias depois da morte da mulher, o drama mais terrível da sua existência do qual nunca se refizera verdadeiramente, Branier tratara um velho professor de francês. Já não tinha muito tempo de vida e estava consciente disso.

 

O doente ficara mais de três horas na companhia do médico, que o convidara para jantar. Tinham falado de tudo excepto da Maçonaria. No dia seguinte, Branier solicitara a sua admissão na loja de que o velho professor era o Venerável.

 

Uma assembleia compósita onde se confrontavam múltiplas tendências. Quando o velho passara para o Oriente Eterno, Branier fora elevado ao grau de Mestre. Consagrava à sua loja todos os tempos livres, redescobrindo os ”antigos deveres” praticados antes da Maçonaria se afundar no materialismo e na política de negócios. Chegado o momento, Branier fundou uma nova loja, ”Conhecimento”, no Oriente de Paris, reunindo alguns Irmãos excepcionais.

 

A ”Conhecimento” foi severamente criticada pelas autoridades administrativas da Maçonaria. A loja foi acusada de elitismo, de intelectualismo. Mas temiam-na. Receavam os seus poderes. O Venerável Branier soube que tivera razão para enveredar por aquela via quando, no dia de S. João Evangelista de 1936, um Irmão vindo da Alemanha lhe confiou os arquivos e o segredo do Número. As lojas alemãs eram perseguidas pelo nazismo triunfante. Os raros Irmãos que possuíam os verdadeiros tesouros da Ordem estavam todos ameaçados de morte. A loja de Branier, que se mantinha à parte de debates estéreis, fora considerada digna de receber o depósito mais sagrado da Maçonaria iniciática. Branier recusara inicialmente. Não se sentia preparado. A sua loja era demasiado jovem, demasiado inexperiente. Mas deixara-se convencer pelo seu interlocutor. Não tinha na realidade outra escolha... Um mês mais tarde, o emissário alemão tinha sido executado. Apanhado numa rusga e torturado, não falara.

 

Desde esse dia, o Venerável nunca mais tivera um segundo de repouso. Viajara pela Europa inteira, utilizando redes de resistentes, associações de médicos, relações amigáveis. Mudando constantemente de lugar, organizara inúmeras reuniões para formar Irmãos distribuídos pelas tarefas que os esperavam.

 

Rebentara a guerra. Branier já a esperava. Preparara tudo para uma existência clandestina. A ”Conhecimento” escapara aos nazis até àquela noite de Março de 1944, em que fora vendida por um alto dignitário maçon ciumento de Branier.

 

Gemidos. Branier ouvia lamentos. À sua esquerda, do outro lado da divisória de madeira. Uma voz grave gritou: ”Vai-te lixar!” mas os gemidos continuaram, insistentes. ”Cala a boca ou levas!” continuou a voz grave. Homens choraram. Os nervos cediam. Um corpo foi projectado de encontro à divisória. Começaram a lutar. O confronto foi tão breve quanto violento. Despontava o dia. Por uma fenda aberta entre duas tábuas, Branier viu cerca de cinquenta homens nus amontoados num espaço que não deveria conter mais de uma dezena. Sobre a palha húmida, dois cadáveres.

 

O Venerável sentou-se com a cabeça entre as mãos. Ele ainda tinha uma forma humana. Ele, o privilegiado. Por quanto tempo?

 

François Branier tinha dormitado. O chiado regular das rodas sobre os carris agia como uma droga. A paragem do comboio projectou-o para a frente. A cabeça embateu violentamente na divisória.

 

O Venerável levantou-se lentamente. Olhou para o relógio. Tinha parado. Esquecera-se de lhe dar corda. Apesar do impermeável, estremeceu. Fora, latiam ordens em alemão. Branier deitou-se de barriga para baixo. Por baixo da porta havia uma fresta suficiente para que pudesse ver o que se passava.

 

No cais, os SS auxiliados por cães-lobo faziam alinhar dezenas de homens. Uns nus outros envergando fatos às riscas. Nem um grito de revolta, nem um murmúrio de protesto. Um velho desfaleceu. Choveram coronhadas sobre as cabeças dos atrasados. Menos de dez minutos depois da manobra, o gado humano pôs-se em marcha na direcção de camiões com toldo, de motores a trabalhar. Depois da partida dos veículos reinou o silêncio. Branier não distinguia um único vulto no cais. O tempo parecia ter parado, como se o tivessem esquecido, como se ele não existisse. Invadiu-o uma esperança louca. Afinal, em qualquer exército há negligências administrativas que tornam possíveis as evasões mais inverosímeis. Branier procurou um objecto que pudesse permitir-lhe abrir a porta do vagão. Procurou na palha. Nada. A divisória... não era muito forte. A pontapé, atacou a tábua mais fraca. Ao décimo pontapé, um estalido. Rachara por baixo. Se conseguisse passar para o compartimento do lado, com certeza encontraria uma abertura. Talvez os alemães não tivessem fechado aquela parte do vagão depois de desembarcarem os prisioneiros. A parte de baixo da tábua cedeu. Sem se preocupar com as lascas, Branier puxou para si a parte restante. Os músculos das costas retesaram-se.

 

Estava a suar, arquejante. A madeira gemia, ia cedendo pouco a pouco.

 

Isto vai murmurou.

 

A porta do vagão deslizou bruscamente. O ar glacial bateu no rosto do Venerável. Largou a tábua que caiu, partida, no compartimento do lado.

 

No cais, um SS. Um oficial superior. O que tinha interrogado o Venerável em Compiègne.

 

Desilude-me, senhor Branier. Essa tentativa de evasão é ridícula. Siga-nos.

 

Branier desceu para o cais com infinita lentidão, como se se movesse ao ralenti. Avançou até ao Mercedes preto enquadrado por dois SS de rostos estranhamente semelhantes, rígidos e fechados. Descobriu a paisagem. A minúscula gare parecia perdida no meio de um círculo de altas montanhas cobertas de neve. Áustria, talvez... Branier subiu para a parte de trás do veículo. Os SS entalaram-no no meio do banco. O oficial superior instalou-se à frente. Não pronunciou uma palavra durante o trajecto que demorou cerca de uma hora. O Mercedes ia a pouca velocidade, trepando por uma estrada estreita, íngreme, com numerosas curvas em U. Nos flancos da montanha surgiam, em certas zonas, placas de erva manchando de verde os campos de neve. O princípio da Primavera. O automóvel passou por uma aldeia graciosa, com os seus chalézinhos de madeira de cores vivas. Uma abadia romana, fontes de pedra, ruelas muito limpas. Depois foi um campo com árvores de fruto, algumas das quais floresceriam em breve. A vida que renascia. A felicidade de a contemplar. O desejo de correr, de sair daquele carro tão sinistro como um caixão.

 

O Venerável encheu os olhos com aquela Primavera. Subiu-lhe aos lábios a velha divisa maçónica: ”Não é preciso esperar para fazer nem conseguir para perseverar.” Para onde ele ia não existia esperança. Teria de a inventar, de a recriar. Era preciso que aquela seiva ressuscitada penetrasse nele, que o alimentasse nos piores momentos.

 

O rosto da mulher desaparecida dançou diante dos seus olhos. A Primavera era a estação dela. Juntos passeavam longas horas pela floresta, espreitando o aparecimento dos rebentos, as primeiras folhas, os cantos dos pássaros Ela teria gostado daquela montanha selvagem em que o Inverno recuava passo a passo, onde cada eclosão de vida tinha de ser conquistada com perseverança, com paciência. Teria sorrido perante aquela Primavera em que ele ia morrer. Em que ia finalmente juntar-se a ela.

 

O SS sentado à esquerda de Branier mexeu-se. A montanha, o Sol, as árvores desapareceram. Restavam apenas os uniformes negros, impecáveis.

 

Ao sair de uma última curva, Branier descobriu o Burg. Uma fortaleza medieval de torres com ameias e muralhas grossas perfuradas por seteiras. O portal de entrada, encimado por um posto de guarda, era fechado por uma ponte levadiça. O motorista buzinou várias vezes. A ponte levadiça baixou. As correntes, perfeitamente oleadas, não chiaram. Muito lentamente, o veículo franqueou o portal monumental.

 

O Venerável fechou os olhos. Não porque tivesse medo, mas porque queria gravar dentro de si uma última imagem da liberdade, da natureza, do espaço. Uma última recordação antes de penetrar num inferno de onde ninguém regressava.

 

 

A surpresa de François Branier foi total. Imaginara um campo de deportados, com abarracamentos cinzento-desespero, lama, condenados com correntes nos pés, postos de vigia. Ao abrir os olhos descobriu, no centro da fortaleza, um pesado edifício de pedra branca. Janelas estreitas, uma escadaria conduzindo a uma entrada única. Um telhado direito, cobrindo um caminho de ronda de onde sobressaíam projectores e metralhadoras. Aquela torre, de aspecto quase agradável, bastava para vigiar todo o interior da fortaleza. No vasto quadrilátero estavam dispostos, de acordo com uma simetria rigorosa, pequenos chalés de madeira pintados de verde, vermelho, amarelo. Se não existissem as armas apontadas para eles do alto da torre central e os SS deambulando na luz pálida daquele dia frio, o local teria evocado uma colónia de férias abrigada num velho castelo para aproveitar o bom ar da montanha. Em redor dos chalés, canteiros plantados com flores juntavam uma nota de alegria.

 

O Mercedes avançou sobre o cascalho que cobria a álea que ia dar à torre, contornando-a. Depois desceu a rampa que conduzia a uma garagem subterrânea. Branier, muito atento, reparara em muitos outros pormenores. Gravava-os na memória. Talvez lhe viessem a ser úteis. Primeiro, a impressionante altura do muro que rodeava o recinto, tendo no topo arame farpado provavelmente electrificado. Depois, a presença, por trás da torre, de dois edifícios definitivos de aspecto rebarbativo, portanto uma caserna para os SS.

 

O veículo imobilizou-se ao lado de um camião. A garagem ocupava apenas uma parte da cave, igualmente utilizada como oficina de mecânica. Não se notava quase nenhuma animação no acampamento. Flutuava uma curiosa atmosfera de irrealidade, como se os nazis e a sua fortaleza não passassem de ilusões.

 

Desça! ordenou o oficial superior.

 

A voz estalara como um chicote. O rosto tinha endurecido.

 

Sempre enquadrado pelos seus dois guardas, Branier foi conduzido ao primeiro andar da torre central. Sentia-se preso num movimento infernal. Começavam a fazer dele um fantoche, sem ódio aparente, sem brutalidade. Já não pertencia a si mesmo.

 

Foi ao tropeçar num degrau que o Venerável despertou do seu pesadelo. A dor que se espalhou pelos dedos do pé direito arrancou-o à letargia que o invadia. Lutou. Lutaria. Negaria aquele universo de loucura que iria tentar, segundo a segundo, roubar-lhe a vida.

 

François Branier foi introduzido num vasto compartimento. Soalho encerado, paredes caiadas. Ao fundo, uma longa mesa que servia, de secretária a um SS debruçado sobre livros de registo. Do lado direito, envergando uma espécie de uniforme cinzento-escuro, aqueles que o Venerável não esperava voltar a ver: os seis Irmãos sobreviventes da loja ”Conhecimento”.

 

Dispostos em fila indiana, voltados para a secretária do escriba nazi, ainda não o tinham visto. O Venerável sentiu-se tentado a precipitar-se para eles, abraçá-los, berrar-lhes a sua alegria. Mas permaneceu pregado ao mesmo lugar, como se o mantivesse uma força de inércia. Voltando a cabeça para o lado, compreendeu que o instinto não o enganara. O oficial superior SS observava-o. Esperava a reacção dele. Branier sentiu a sua decepção. O alemão teria ficado muito feliz se o tivesse visto perder o controlo dos nervos.

 

Empurraram Branier e obrigaram-no a ocupar a última posição na fila indiana. O Venerável encontrava-se ao lado dos seus Irmãos, mas eles ignoravam-no. Um silêncio religioso reinava no austero gabinete. Só foi perturbado pelo bater de tacões de botas no soalho. O oficial superior colocou-se ao lado do escriba que abria à sua frente um novo registo, virgem de qualquer inscrição. Ao cimo da página, escreveu Erkenntnisloge, loja ”Conhecimento”, Paris; por baixo, Name derBruder, nomes dos Irmãos.

 

Meus senhores anunciou o oficial superior vamos registá-los. Devem indicar ao schreibef o vosso nome, idade e profissão.

 

Schreiber – secretário

 

A tensão subiu. Os rostos dos Irmãos fecharam-se. Dentro de instantes tornar-se-iam números num registo de extermínio, um livro de trevas. O oficial superior observou a angústia que crispava as feições.

 

O primeiro Irmão apresentou-se em frente do Schreiber.

 

Pierre Laniel, 52 anos, industrial.

 

Laniel era um homem pequeno de cabelos ralos e testa estreita. Sem personalidade aparente. Meticuloso, preciso, nervoso, fazia parte daqueles seres, considerados insignificantes, que são condutores de homens sem terem de recorrer a berros ou a modos autoritários.

 

Que ramo?

 

Metalurgia.

 

Um negócio de família decrépito que Pierre Laniel reerguera à força de pulso.

 

Tenho que exigir uma informação muito mais aprofundada sussurrou o oficial superior com uma voz aguda em que transparecia a excitação. Quais são os seus graus e funções na loja ”Conhecimento”?

 

Não compreendo.

 

O nazi fixou o industrial com severidade.

 

Não tente jogar esse jogo, Laniel. Sabemos tudo. Se tergiversar, isso recairá sobre todos!

 

Fui Mestre maçon, é verdade, mas sabe perfeitamente que a minha loja nunca mais se reuniu depois do começo da guerra.

 

Mentira! irritou-se o alemão.

 

Pierre Laniel permaneceu impenetrável. Revelar que era Mestre não adiantava nada ao nazi que possuía com certeza os nomes, as direcções e os graus da maior parte dos maçons franceses. Os ficheiros tinham sido transmitidos à Gestapo por ”Irmãos” preocupados em garantir a sua segurança. Em contrapartida, a natureza das suas funções iniciáticas fazia parte dos segredos que não estava decidido a revelar a um profano, mesmo que fosse um carrasco. Respondendo assim, Laniel indicava aos outros Irmãos o caminho a seguir.

 

Mentira! repetiu o oficial superior. A ”Conhecimento” nunca deixou de se reunir! Quando os prendemos todos, preparavam-se para realizar uma ”reunião”.

 

De maneira nenhuma retorquiu Laniel. Uma simples reunião de amigos que se tinham perdido de vista. A ”Conhecimento” já não existe. Senão, teríamos enviado as convocatórias obrigatórias ao Secretariado da Grande Loja. Obrigatórias, sejam quais forem as circunstâncias.

 

Branier reteve a respiração. Esperava que o SS ignorasse a posição administrativa da ”Conhecimento”. Muito antes do início da guerra, o Venerável Branier tinha quebrado todos os laços com as diversas instâncias administrativas das obediências para permitir à ”Conhecimento” trabalhar em paz longe das intrigas políticas, da caça às honrarias, das querelas individuais.

 

O argumento técnico utilizado por Laniel não perturbou durante muito tempo o SS.

 

São uma loja selvagem, trabalham na sombra... Não tente enganar-me. Aqui, acabarão por confessar tudo.

 

O Venerável compreendeu até que ponto aquele homem violento, que ocultava mal a sua brutalidade sob uma aparência de delicadeza, podia ser temível. Mandatado por Himmler, tinha conseguido capturar os Irmãos da ”Conhecimento” depois de vários meses de esforços.

 

Um segundo Irmão apresentou-se perante o schreiber, enquanto um soldado obrigava Pierre Laniel a colocar-se de frente para a parede, do outro lado do gabinete.

 

Dieter Eckart, 43 anos, professor de História, Mestre maçon.

 

O Venerável sorriu interiormente. Eckart alinhava a sua atitude pela de Laniel. Responder às perguntas feitas, sem agressividade, sem fraqueza.

 

Alemão... é alemão notou o oficial superior.

 

Mãe alemã, pai francês. O meu passaporte é francês.

 

Dieter Eckart era alto e magro. Tinha um ar aristocrático. Distante, frio, muitas vezes considerado altivo, inspirava mais receio do que afecto. A farta cabeleira branca, o rosto esguio e anguloso, os olhos penetrantes evocavam uma personagem de inquisidor.

 

A sua função na loja? interrogou o SS.

 

A loja deixou de funcionar há muito tempo.

 

O oficial superior nazi não se preocupou mais com Eckart. Dois soldados apoderaram-se dele e colocaram-no ao lado de Pierre Laniel. Furtivamente, os dois Irmãos trocaram um olhar cúmplice.

 

O terceiro Irmão postou-se em frente do schreiber que escrevia as respostas com uma letra regular.

 

Guy Forgeaud, 40 anos, mecânico de automóveis, Mestre maçon. Forgeaud era um rapagão simpático, robusto, descontraído. Criança da Assistência Pública, não tinha muito bem a certeza da sua idade. Vendo-o com a cara vermelhusca, grosseira, o nariz demasiado largo, os lábios carnudos, ninguém poderia suspeitar que fizesse outra coisa do que arranjar motores pensando em raparigas e numa boa comezaina.

 

Forgeaud... recusou o serviço do trabalho obrigatório. Creio que nunca gostou de papeladas oficiais... É impossível saber em que altura aderiu à loja ”Conhecimento”...

 

Guy Forgeaud pareceu aborrecido, atrapalhado.

 

Em que altura... Já não me lembro... Tenho fraca memória. Como sabe, deixei a escola aos dez anos...

 

Com um movimento de cabeça, o oficial superior ordenou aos seus homens que alinhassem Forgeaud de frente para a parede.

 

O schreiber manteve a caneta no ar, esperando a declaração do quarto Irmão que se apresentava à sua frente.

 

André Spinot, 35 anos, fabricante de óculos, Companheiro. Um ligeiro sorriso iluminou o rosto do oficial superior.

 

Companheiro... Ainda não conseguiu tornar-se Mestre?

 

André Spinot era magro, pequeno, atarracado. Tinha o cabelo muito negro e uma calvície incipiente. Dava a impressão de não estar nunca nem perfeitamente limpo nem correctamente barbeado. Os olhos reflectiam uma curiosidade inquieta. Tinha a maior dificuldade em estar quieto. A língua estalou dentro da boca, mas não saiu qualquer palavra.

 

Mais nenhum esclarecimento?

 

Spinot fez ”não” com a cabeça. Foi juntar-se aos Irmãos de frente para a parede enquanto um colosso tomava o seu lugar em frente do schreiber.

 

Raoul Brissac, 25 anos, pedreiro, Companheiro maçon e ”Companheiro do Dever” denominado ”a Boa Estrela”.

 

Brissac respirava saúde. Passara mais dias e noites ao ar livre do que debaixo de um tecto. Era orgulhoso, vivo, seguro da sua força.

 

Julgava que os ”Companheiros do Dever” e os maçons não se entendiam espantou-se o oficial superior.

 

Há imbecis em todo o lado respondeu Brissac.

 

Estabeleceu-se um silêncio tenso. Os SS ficaram hirtos. O schreiber manteve o nariz enfiado nos registos. O Venerável esperava uma explosão de raiva. Uma vez mais, Brissac falara demasiado depressa e batera forte. Não receava Deus nem o Diabo. Sentia-se capaz de enfrentar não importa quem, mesmo um oficial superior das SS no coração de uma prisão nazi. A sua imprudência podia custar caro a toda a loja.

 

Nada aconteceu. O Companheiro Brissac foi ocupar o seu lugar junto à parede. Sucedeu-lhe um sexto Irmão, o último antes do Venerável.

 

Jean Serval, 25 anos, escritor. Aprendiz.

 

Serval estava muito pálido. Alto, cabelos castanhos, testa alta, ombros metidos para dentro, pernas magras, tinha o ar de um adolescente sem jeito, mal alimentado.

 

Escritor,.. Publicou livros?

 

O primeiro devia sair em Novembro de 1939. Mas a guerra...

 

Qual era o tema?

 

Era um romance de amor.

 

Aprendiz... Então entrou recentemente na ”Conhecimento”?

 

Precisamente antes da loja interromper os seus trabalhos, há mais de cinco anos.

 

O SS considerou que o rapaz era o elo mais fraco da cadeia. Emotivo, hipersensível, sem resistência física.

 

Jean Serval tomou o seu lugar no alinhamento. François Branier estava só. O oficial superior fez-lhe sinal para avançar e se apresentar ao schreiber. O Venerável achou-se indecente, com o seu fato e o seu impermeável, quando os Irmãos tinham vestido o uniforme cinzento dos prisioneiros da fortaleza.

 

O seu olhar cruzou-se com o do SS. Leu nele a sua condenação.

 

Já não era de esperança que devia alimentar-se, mas de eternidade. Desde que o Grande Arquitecto lhe desse a força para viver o mais desesperado dos presentes.

 

François Branier, 55 anos, médico, Venerável-Mestre.

 

Todos os Irmãos voltaram a cabeça. Os soldados obrigaram-nos a retomar a posição anterior, de frente para a parede. Mas tinham tido tempo de ver o seu Venerável.

 

O schreiber acabou de escrever, aplicou um mata-borrão sobre a página e fechou o livro de registos.

 

Perfeito, meus senhores concluiu o SS. - Mostraram-se cooperantes. Mas espero melhor de vós. Muito melhor.

 

 

Jean Serval gritou. Uma violenta dor nos rins. Uma coronhada seca, profunda. A primeira manifestação de brutalidade. E uma ordem, em alemão, que o Venerável não compreendeu. Os Irmãos tinham esperado que o Venerável fosse ter com eles, que a loja ficasse de novo reconstituída. Esperança vã. Os SS obrigaram-nos a abandonar o compartimento onde se tinham transformado em números de matrícula. François Branier permanecera imóvel em frente do schreiber do oficial superior.

 

Vão conduzir os seus Irmãos ao bloco deles, senhor Branier. Espero que saberá inculcar-lhes melhor sentido de disciplina. Achei-os arrogantes. O comandante-de-campo não tolerará por muito tempo semelhante atitude.

 

O SS, mãos apertadas atrás das costas, martelando o soalho com pancadas vigorosas de tacão, saiu da sala. Dois soldados obrigaram Branier a segui-lo. Subiram até ao último andar da torre. Seguir, subir, descer, voltar a descer, voltar a subir, seguir... Teria outro destino? O Venerável avançava entre paredes cinzentas. Os degraus da escada de madeira rangiam sob os seus passos. Sempre a mesma angústia difusa que se colava à pele. Não havia suficientes ruídos normais, respirações humanas. Aqueles soldados de uniforme negro tinham perdido a alma. Já não pensavam, não tinham sentimentos, não sabiam amar nem odiar. Obedeciam às ordens porque eram ordens. Porque era a doutrina.

 

No entanto, como perante todo o ser que encontrava, o Venerável colocava a questão: aquele soldado, pronto para o abater, tinha a possibilidade de se tornar consciente, poderia franquear a porta do templo, atingir a iniciação? Em geral, François Branier recebia um eco, mesmo negativo. Mas desta vez sentiu apenas um vazio gelado. Não havia coração nem entranhas sob aqueles uniformes.

 

Robôs com rosto humano. Que diabo os conseguira criar? Que potência maléfica concebera aquela fortaleza onde a mais rica das vidas interiores devia desagregar-se em poucas horas e cair em pó? Como médico, François Branier conhecera o sofrimento sob todas as suas formas. Fora por vezes impotente para o aliviar. Mas era a primeira vez que encontrava o Mal, sem máscara.

 

Ninguém lhe batera. Continuava a envergar o seu fato de homem livre. Mas o Mal estava lá, insidioso, viscoso.

 

No patamar do primeiro andar, uma porta aberta. O oficial superior fez entrar o Venerável num gabinete de grandes dimensões. As paredes estavam cobertas de fotografias com vidro. Retratos de Hitler, de Himmler, de batalhões SS, de multidões saudando o Fúhrer, mas também o interior da fortaleza de todos os ângulos. Os chalés dos prisioneiros, a caserna SS, os duches, o arame farpado, o pátio...

 

Sentado numa poltrona antiga de costas altas, o comandante-de-campo lia um relatório que lhe entregara o seu ajudante-de-campo, um jovem louro, em pé numa atitude hirta. Sobre a pesada tampa de carvalho da secretária, castiçais de prata maciça. O comandante-de-campo gostava de peças raras. Ergueu os olhos para o seu visitante.

 

Senhor Branier... Feliz por acolhê-lo neste castelo do Reich.

 

O pesadelo adocicado continuava. Já não era uma prisão mas um castelo. O chefe do campo tinha o ar de um funcionário modelo, com a sua expressão bonacheirona, a cabeleira cinzenta, o ar bastante caloroso. Branier quase podia ter pensado num encontro de negócios.

 

Queira deixar-nos, Klaus. Eu próprio interrogarei o senhor Branier. O meu ajudante de campo tomará nota das suas respostas.

 

A voz do comandante tornara-se cortante. O oficial superior, cujo nome o Venerável acabava de saber, cumprimentou batendo os tacões e saiu do gabinete. Branier teve a sensação que ele não tinha apreciado a despedida.

 

Fique em pé, senhor Branier. Neste gabinete, sou eu o único a estar sentado. Questão de hierarquia.

 

O simples facto de tomar consciência que estava em pé fez-lhe doer as pernas. Mas o Venerável desviou a atenção para o ajudante-de-campo, pena de pato na mão, que se colocara em frente de uma estante sobre a qual estava poisado um livro de registos preto. ”Desta vez, pensou François Branier, é um mergulho na loucura. Um tirano num ambiente da Idade Média. Um SS que brinca aos monges copistas enquanto o seu chefe se considera um senhor.”

 

Quem lhe permitiu ficar com essa roupa?

 

Ninguém em especial respondeu François Branier.

 

O comandante acendeu um cigarro na chama de uma vela. Fazia tempo. Uma serpente que hipnotizava a sua presa.

 

Procurámo-lo durante muito tempo, senhor Branier... O que tem feito nestes últimos meses?

 

Tratado doentes. Sou médico.

 

O comandante esmagou o cigarro. O ajudante-de-campo não se atreveu a registar a resposta. O Venerável reteve a respiração.

 

Que género de doentes? Soldados alemães, talvez? Soldados que ”tratou” fazendo-os passar para a outra vida’ Creio que está a apreciar mal a sua situação, senhor Branier. O tempo das mentiras terminou. Aqui só admitimos a verdade. Escondem-se porque realizam acções desonestas. O senhor é maçon. Pior, é Venerável-Mestre de uma loja. Pior ainda, de uma loja que julga poder guardar o seu segredo. Não deve haver segredos para os homens da nova era. O Reich não tolera conspiradores.

 

O ajudante de campo anotava febrilmente o discurso do seu senhor. O Venerável sentia-se sufocar. Teria preferido qualquer masmorra àquele gabinete. Aguentar. Não pensar em mais nada.

 

Estou convencido continuou o SS que não compreendeu a grandeza da nova era que nasceu. O nosso Fúhrer não é um homem político decadente e podre como existiam na vossa Europa do vício. É o grande sacerdote de uma verdadeira religião. Os cristãos e os judeus são satânicos. Os maçons também. É preciso exterminá-los. Outros que não eu se encarregam disso. Aqui, senhor Branier, encontra-se num lugar privilegiado. Seleccionei indivíduos de elite. Aqueles que têm poderes e segredos.

 

Lamento desiludi-lo interrompeu o Venerável. Nenhum de nós tem qualquer poder particular. O segredo da minha loja desapareceu quando deixou de se reunir, no princípio da guerra.

 

O chefe do campo descruzou as pernas e bateu com o punho na mesa de carvalho.

 

A guerra! Só têm essa palavra na boca! Já não há guerra. Há a vitória do Reich. Por que continuar a mentir? Acredita que o seu sistema de defesa tem um real valor? Não tenho pressa... Acabará por falar. Por me dizer tudo. Para aliviar a consciência.

 

O comandante voltou-se para o seu ajudante-de-campo.

 

Mande conduzir o Venerável Branier ao seu bloco.

 

Sempre acompanhado por dois SS, o Venerável foi conduzido ao bloco vermelho. Tentou fechar-se ao mundo demoníaco que o rodeava, não deixar entrar dentro de si as paredes cinzentas, os degraus rangentes, o chão do pátio, o arame farpado, não se tornar a sua própria prisão.

 

O bloco vermelho assemelhava-se a um pequeno chalé. De perto, notava-se que tinha sido construído à pressa. Algumas placas de madeira estavam deslocadas, deixando passar o ar gelado. As duas janelas que davam para o pátio estavam mal encaixadas. O tecto tinha buracos em vários pontos. Trabalho amador. Feito à pressa.

 

A porta não tinha puxador. Um dos SS abriu-a com um pontapé. O Venerável entrou. Um grande compartimento nu de cerca de trinta metros quadrados. Chão de betão. Em cima, sete enxergas.

 

Estavam lá todos. Pierre Laniel, o industrial, Dieter Eckart, o professor, Guy Forgeaud, o mecânico, André Spinot, o oculista, Raoul Brissac, o pedreiro, Jean Serval, o escritor. Os que tinham sobrevivido ao nada.

 

A porta bateu atrás do Venerável. Estava finalmente só com os Irmãos. Dieter Eckart, muito comovido, foi o primeiro a levantar-se e a vir colocar-se em frente de François Branier.

 

Estou feliz por voltar a ver-te, Venerável-Mestre.

 

Os dois homens abraçaram-se fraternalmente e beijaram-se três vezes. Os outros Irmãos agiram da mesma maneira. André Spinot chorava. De medo e de alegria. O Venerável sentiu que reencontravam a confiança, que a sua presença lhes devolvia um equilíbrio indispensável, como se ele fosse capaz de trazer uma solução, de lhes abrir um caminho para a liberdade. Mesmo que não existisse. Fossem quais fossem as suas dúvidas e tormentos, o Venerável não devia confessá-los. A carga que pesava sobre os seus ombros pareceu-lhe ainda mais esmagadora.

 

Meus Irmãos pediu o Venerável formemos a cadeia de união. No interior de um bloco de uma fortaleza nazi, perdida em montanhas

 

desconhecidas, sete maçons formaram a cadeia fraternal celebrada, segundo a tradição, desde o começo do mundo. Com os pés a tocarem-se e as mãos unidas, fecharam os olhos para melhor comunicarem, melhor sentirem a potência vital da sua comunidade novamente reunida.

 

Possa o Grande Arquitecto do Universo estar sempre presente entre nós invocou o Venerável-Mestre.

 

François Branier, como os Irmãos, sentia o formidável calor que emanava daquele pequeno grupo de homens apanhados nas garras de um monstro único. A partir daquele momento, a loja ”Conhecimento” existia naquele lugar, naquele Oriente de exílio; exercia ali a sua plena e inteira soberania. Os sete Irmãos prisioneiros estavam de novo livres, aptos a transmitir.

 

Um ruído vindo de fora. Botas sobre o cascalho do pátio. Os Irmãos abandonaram a cadeia. A porta do bloco abriu-se. Surgiu a silhueta do oficial superior SS. Permaneceu no limiar com as pernas ligeiramente afastadas, braços cruzados atrás das costas. Irónico, contemplava os maçons como se estivesse informado do ritual que acabavam de celebrar. A partir de agora, o Venerável devia tomar precauções. Mas como lamentar ter cedido a um impulso que os unira como um único ser?

 

Entreguem imediatamente tudo o que tiverem convosco que seja metálico: relógios, alianças, anéis...

 

O oficial superior deixou passar um SS com um cesto de vime. Um homem barrigudo, mal barbeado, com a testa muito larga desfeada por uma mancha de vinho.

 

O Venerável foi o primeiro a obedecer. Depositou o relógio. Nunca usara aliança. Os Irmãos mostraram-se igualmente dóceis. Em breve o cesto ficou cheio. Pierre Laniel, o industrial, tirou com pena a aliança que usava há vinte e cinco anos. Sentia que nunca mais reveria a esposa. Teria gostado de guardar aquela recordação dela, poder fixar o olhar naquele anel de metal dourado quando chegassem os piores momentos. Entregando-a, ficou como que mutilado.

 

O administrador parou em frente de Raoul Brissac, o pedreiro. Com um gesto rápido, arrancou a argola de metal que lhe pendia da orelha esquerda. O sangue saltou. O SS brandiu o seu despojo ao qual estava pegado um bocado de pele e depois atirou-o para o cesto.

 

Eu tinha dado uma ordem precisou o oficial superior.

 

Brissac, com um esforço indiscritível, conseguiu não berrar de dor. Estava quase a atirar-se sobre o administrador para o esmurrar até à morte. Mas o seu olhar cruzara-se com o do Venerável. O Mestre da loja pedia-lhe que não reagisse. A hierarquia da comunidade, livremente consentida, não se discutia. Com os olhos erguidos para o tecto do bloco, mordendo os lábios até fazer sangue para esquecer a dor que lhe incendiava a cabeça, Raoul Brissac não reagiu. O administrador roubara-lhe o símbolo de Companheiro iniciado. A argola que lhe entregara o seu mestre de talhar pedra quando realizara a sua obra-prima, uma escada de dupla hélice. Precisamente antes de encontrar François Branier e ser admitido na loja ”Conhecimento”.

 

O administrador, visivelmente desiludido pela passividade de Brissac, deu meia volta, seguido de Klaus. A porta do bloco bateu.

 

Os torcionários tinham ido embora. Os maçons permaneceram imóveis durante longos segundos. O Venerável foi o primeiro a arrancar-se àquele torpor. Examinou imediatamente o ferimento de Raoul Brissac que mantinha os olhos fixos. O Companheiro ia aguentar.

 

Não é grave comentou o Venerável, que cobriu a ferida com um lenço limpo, uma das suas últimas riquezas.

 

Brissac tinha uma resistência extraordinária. Mas François Branier receava a sua reacção a frio. O Companheiro não admitia a tolerância dos cobardes nem o perdão das ofensas. Seria necessário convencê-lo, apesar do gesto cruel do administrador, a pensar primeiro na comunidade.

 

Vão tentar separar-nos, Raoul, pôr-nos uns contra os outros. Vão visar sucessivamente cada um de nós. Se te tivesses revoltado, ter-nos-iam espancado a todos. Não podemos responder às suas provocações.

 

Enquanto for possível observou Laniel.

 

Mesmo para além disso retorquiu o Venerável. Aqui estamos no impossível, no impensável. Adaptemo-nos, Pierre. Temos força para tal.

 

Pierre Laniel compreendeu o Venerável por meias palavras. François Branier era detentor do segredo do Número. O essencial era preservar a pessoa do Mestre da loja. Mas este só pensava em salvar a vida dos Irmãos.

 

Estamos lixados declarou André Spinot, o oculista, que se deixou cair num canto do compartimento e agarrou a cabeça entre as mãos.

 

É provável aquiesceu Dieter Eckart. Mas mesmo assim temos de lutar.

 

Como? perguntou Jean Serval, o Aprendiz.

 

Evasão.

 

Nem sonhem objectou Guy Forgeaud, o mecânico. Ninguém sairá daqui escalando os muros.

 

Podiam confiar na opinião de Forgeaud. Era um habilidoso genial.

 

Tens uma ideia? interrogou o Venerável.

 

Ainda não. Preciso conhecer melhor a zona. Não teremos duas oportunidades.

 

Tudo depende do momento em que começarem os verdadeiros interrogatórios fez notar Jean Serval, expressando em voz alta a angústia latente.

 

Sim e não comentou Dieter Eckart, que se colocara no canto de uma janela para observar o que se passava no pátio. A verdadeira questão é o que esperam eles de nós.

 

Todas as cabeças, mesmo a de Raoul Brissac, se voltaram para o Venerável. Se alguém sabia, era ele. Mesmo que não pudesse explicar tudo devido ao seu juramento, devia dar algumas explicações.

 

François Branier fez a sua expressão de urso mal-humorado. Reeleito Venerável da ”Conhecimento em cada S. João Evangelista de há quinze anos para cá, esperara transmitir em breve a sua carga a um dos mestres da loja. A Gestapo decidira de outra forma.

 

A nossa loja não é exactamente como as outras começou o Venerável. É depositária de um mistério. Se morrermos, morrerá connosco.

 

Desde que diriges esta loja observou Dieter Eckart modificámos os métodos de trabalho. Regressámos às fontes. Já não construímos catedrais de pedra, mas os nossos projectos não são menos importantes.

 

Se restar alguém para os realizar precisou Pierre Laniel, amargo Já só somos sete. Os quatro outros Aprendizes, tal como três Companheiros e quatro Mestres, morreram ou desapareceram. E nós.. não estamos muito melhor.

 

Quem nos vendeu? perguntou Raoul Brissac com uma voz inexpressiva.

 

O sangue parara de escorrer mas o rosto do pedreiro estava vincado pela dor.

 

Um maçon respondeu o Venerável. O que nos tinha emprestado a casa.

 

Uma cilada. Tinham caído numa cilada montada por um Irmão. Uma lágrima assomou aos olhos de Dieter Eckart que a enxugou com as costas da mão. Laniel sentiu a sua coragem diluir-se. Forgeaud lamentou não estar já morto. Brissac esqueceu a orelha mutilada. Spinot manteve os olhos fechados. Serval, estupidificado, olhava sem ver.

 

Estamos sós disse o Venerável. Totalmente sós. E sempre estivemos.

 

 

Permaneceram mais de uma hora sem falar. O Venerável deixou-os recuperar. Tinham-se sentado ao longo da parede do bloco, cada um esperando que um dos Irmãos descobrisse uma razão para ter esperança. Branier observou-os. Pierre Laniel... humano, condutor de homens, capaz de tudo suportar,

- por vezes desarmado perante o Mal. Um Mestre confirmado, apto a receber o segredo. Dieter Eckart... uma profunda sensibilidade sob a máscara aristocrática, uma inteligência prodigiosa. Um futuro Venerável. Guy Forgeaud... o mais hábil. Capaz de se desenvencilhar em qualquer situação. O anarquista de génio, profundamente ligado à comunidade. André Spinot... o mais sensível e o mais frágil. Torturado pela vida, mil vezes quebrado, nunca vencido. Longos anos de trabalho para controlar o seu tumulto interior. Raoul Brissac... um autêntico Companheiro do Dever que quisera conhecer também a Maçonaria. Uma transformação difícil, revolta, um carácter impulsivo, um coração de ouro, a mais intensa vontade de viver. Jean Serval... o mais brilhante dos Aprendizes, o novato capaz de ir até ao fim do caminho se não se dispersasse.

 

Não os julgava. Amava-os. É por isso que tinha de ser lúcido. Irmãos, sim, Irmãos em espírito que se tinham livremente escolhido para percorrerem juntos o caminho estreito que conduzia das trevas à luz, Irmãos que se encostavam hoje uns aos outros como animais conduzidos ao matadouro.

 

Aquele sacana, dou cabo dele disse de repente Raoul Brissac, rompendo o silêncio. Um soco na cabeça. Só um. Vai rebentar como um fruto podre.

 

Não tens o direito de falar assim interveio Laniel. Tem que se explicar, mesmo se nos tiver traído. É um Irmão, ele...

Não, cortou André Spinot, que continuava prostrado mas cuja voz ressoou com espantosa nitidez. A Maçonaria morreu. Os Irmãos já não existem. Não têm mais nada a dizer, mais nada a provar. As lojas são conchas vazias. Foram varridas pelo primeiro vento. Nós vamos rebentar para aqui porque somos os últimos a possuir o segredo.

 

Tens razão aprovou Dieter Eckart.

 

O professor nunca lhes parecera tão seguro de si, tão sereno.

 

Raio de campo e raio de alemães observou Guy Forgeaud, quase trocista, como era seu hábito.

 

Porque dizes isso? perguntou Pierre Laniel.

 

Os boches adoram abanar com os seus títulos. São todos Oberstampfúrer ou qualquer coisa do género. Adoram a disciplina, o dedo na costura das calças. Não vale a pena responder-lhes. Aqui, basta ser delicado e ouvi-los falar francês quase sem sotaque.

 

Têm medo disse o Venerável. Contemplaram-no seis pares de olhos espantados.

 

Pensam que temos poderes. São todos-poderosos, mas nunca se sabe...

 

E é verdade? perguntou Serval, o Aprendiz, meio-irónico, meio-sério. Temos poderes?

 

Não os suficientes para nos fazerem sair daqui... Conto mais com a nossa vigilância para aproveitar as mínimas possibilidades de evasão.

 

Não há afirmou Spinot, o oculista.

 

Vai-te lixar! berrou Brissac, levantando-se de um salto e colocando-se à frente de Spinot. Não nos comeces a dar cabo da cabeça!

 

É só a verdade retorquiu Spinot, tenso.

 

Basta! interveio o Venerável. Não devem falar um com o outro nesse tom. Dividirmo-nos seria a pior das baixezas. É o que eles esperam.

 

Não vou passar a vida à espera. Para já, quero mijar. Raoul Brissac abriu a porta do bloco.

 

Ar livre.

 

Um uivo de sirene. Sons de culatras. Uma ordem ladrada pelo alto-falante: ”Alto!” O Companheiro estacou, como se voltasse a si. Vários SS saíram da caserna a correr. Rodearam-no, com as armas apontadas para ele. Uma raiva demente cresceu nas veias de Brissac. Estava pronto para lutar, de mãos nuas, contra aqueles espectros.

 

Não te faças parvo, Raoul! berrou Guy Forgeaud.

Algum problema, Brissac?

 

O oficial superior, trocista, oculto atrás dos seus homens, examinava o Companheiro como um animal apanhado na armadilha.

 

Necessidades naturais.

 

O oficial superior deu uma ordem em alemão a dois dos seus homens. Um deles empurrou Brissac pelas costas, o outro indicou-lhe a direcção do bloco sanitário.

 

A porta do bloco vermelho foi fechada.

 

E se Raoul não voltasse? perguntou Pierre Laniel com a garganta apertada.

 

Unamos os nossos corações em fraternidade recomendou o Venerável, como se essas palavras rituais pudessem conjurar o medo, como se pudessem voar em socorro de um Irmão em desgraça. Via Raoul espancado à coronhada, o rosto ensanguentado, acabando finalmente por berrar...

 

Cinco minutos mais tarde a porta do bloco vermelho abriu-se de novo. Primeiro, um uniforme SS. Depois, Raoul Brissac, intacto.

 

Quando ficaram de novo sós, o Companheiro deixou escapar um longo suspiro. Também ele tinha julgado que não voltaria.

 

É completamente louco! fez notar Guy Forgeaud. Temos direito à higiene. Afinal, talvez seja um chalé de férias... Só falta que nos venham trazer o pequeno-almoço à cama.

 

Conseguiste observar alguma coisa? perguntou o Venerável a Brissac.

 

Consegui... Não é brilhante. Impossível escalar os muros. Demasiado altos. No topo, arame farpado. Com certeza electrificado. A caserna SS fica ao lado do nosso bloco. À direita, os mijadouros. Ao lado, os duches. Talvez um outro edifício numa reentrância. Não vi mais nada.

 

Não notaste outros prisioneiros?

 

Não. Mas talvez estejam fechados em blocos. Irmãos, quem sabe... Talvez aqui seja uma prisão para maçons...

 

O Venerável sentiu que um pânico surdo dominava os Irmãos. Se Raoul Brissac confessava a sua impotência, é porque não tinham qualquer hipótese.

 

Vamos fazer uma reunião de Mestres anunciou. Os outros Irmãos, vigiarão a porta e as janelas.

 

A vida retomava um curso normal. Desde que uma decisão a tomar comprometesse a vida da comunidade, o Venerável tinha o dever de convocar a ”câmara-do-meio”, composta pelos Mestres da loja. Desde sempre, era a única assembleia soberana das confrarias iniciáticas. Uma regra de ouro: a unanimidade.

 

Quatro Mestres da loja tinham escapado à tempestade: o Venerável Branier, Pierre Laniel, Guy Forgeaud, Dieter Eckart. Este último estava encarregado do ensino iniciático proposto aos Companheiros. Guy Forgeaud desempenhava uma tarefa semelhante em relação aos Aprendizes. Laniel velava pela rigorosa aplicação da Regra. Quando a ”câmara-do-meio” se reunia, Companheiros e Aprendizes saíam do templo. Desta vez, no espaço nu do bloco vermelho, contentaram-se em voltar as costas aos três Mestres que formavam uma assembleia secreta num dos cantos da sua prisão.

 

Quando eu bater com o maço disse o Venerável estamos em ”câmara-do-meio”.

 

François Branier bateu com o punho direito na parede. Não havia nem maço, nem avental, nem compasso, nem esquadro, nem espada flamejante, nem altar... Era a ”reunião” mais pobre que alguma vez realizara.

 

Com o seu fato amarrotado, sentia-se quase indecente em relação aos irmãos, enfarpelados com o uniforme cinzento.

 

Meus Irmãos Mestres, temos uma decisão importante a tomar. De acordo com a nossa Regra, devo consultar-vos e submeter as minhas propostas ao ”voto.”

 

Pierre Laniel considerava a atitude espantosa. Ali estavam todos quatro, fantasmas de maçons perdidos no Inferno. Mas fantasmas que celebravam um ritual esquelético... Laniel julgou que estava a enlouquecer. Engoliu a saliva com dificuldade. O quadro habitual de uma ”reunião” maçónica, a magia dos fatos, dos símbolos, faziam-lhe demasiada falta. A frieza frustrante do bloco impedia-o de se concentrar.

 

O Venerável notou a perturbação do Irmão Laniel. Não tinha a certeza que a calma aparente dos dois outros Mestres não ocultasse também uma angústia igualmente profunda. Ele próprio se sentia invadir pouco a pouco por um medo viscoso.

 

Quando fomos presos pela Gestapo recomeçou devíamos proceder à eleição do novo Venerável da loja. De acordo com a Regra, coloco o meu cargo entre as vossas mãos. Somos apenas quatro Mestres, os únicos habilitados a votar. O processo é válido, desde que respeitemos a lei da unanimidade. O lugar em que nos encontramos tornou-se um templo. Nada mais. Mesmo que o ritual de transmissão se reduzir ao mínimo estrito, será realizado na sua plenitude. Peço a um candidato que se declare.

Guy Forgeaud, jovem Mestre, não tinha desempenhado as funções suficientes na loja para se tornar Venerável. Pierre Laniel evitou cruzar o seu olhar com o de François Branier. Nunca teria julgado estar em posição para aceder a esse posto misterioso em que eram fornecidas as chaves supremas da iniciação. A posição de Mestre bastava-lhe perfeitamente. Não considerava ter ainda perscrutado todos os seus segredos. É um facto que era chefe de empresa. Aprendera a dirigir homens, fossem engenheiros ou operários. Soubera fazer-se amar e temer, tornar-se o eixo de um edifício social em que cada um ocupava o seu lugar. Quantos conflitos quotidianos não tinha resolvido mostrando-se ora inflexível, ora diplomata? Houvera crises, passagens difíceis, mas sempre as resolvera da melhor maneira. Laniel acreditava conhecer bastante bem os homens, as suas paixões, os seus defeitos, as suas ambições, a sua grandeza muitas vezes inesperada. Mas dirigir Irmãos, orientá-los, servir de mediador entre eles e o Grande Arquitecto do Universo... disso não se sentia ainda capaz. O único que poderia suceder a François Branier era Dieter Eckart.

 

Com os olhos semicerrados, a cabeça ligeiramente inclinada para a frente, Dieter Eckart parecia meditar. O seu espírito estava longe, muito longe da fortaleza nazi. Dispunha de um tal poder de concentração, de uma tal força de carácter que conseguia abstrair-se das piores situações. Tal como Laniel, também não esquecera o principal objectivo da ”reunião” que a loja devia realizar na noite da prisão. Eckart sabia que os Irmãos da ”Conhecimento” tinham por ele estima e confiança. Sabia também que era o sucessor desejado pelo próprio Branier, mesmo não tendo o Venerável em actividade o direito de o designar como tal. É verdade que tinha imaginado outro lugar para abordar semelhante questão. Mesmo na clandestinidade, a loja soubera sempre arranjar locais decentes para fazer reviver a magia ritual. Mas aqui... Eckart pensou naqueles homens que, desde o nascimento da iniciação, tinham recebido o encargo de dirigir uma comunidade como aquela. Fosse qual fosse a sua raça, civilização, carácter, tinham sido escolhidos para transmitir a luz. Para fazer viver a vida e morrer a morte.

 

Venerável-Mestre disse Dieter Eckart todos sabemos que o Venerável da ”Conhecimento” não é um chefe de loja vulgar. Não se trata apenas de uma transmissão de poderes. Há o segredo do Número, a pedra angular da confraria.

 

Branier aquiesceu com um movimento de cabeça.

 

Apliquemos portanto a Regra propôs Eckart. Votamos com conhecimento de causa.

 

François Branier sentiu-se aliviado. Não estava descontente por ser libertado de um peso imenso.

 

Declaro vago o lugar de Venerável-Mestre. Peço a um dos Mestres confirmados da loja, que tenha assistido e participado em todos os seus trabalhos, que seja reconhecido como tal pelos seus Irmãos em mestria, que tenha dirigido os trabalhos dos Companheiros e dos Aprendizes, que coloque a sua candidatura nas mãos do Grande Arquitecto do Universo.

 

Pierre Laniel tinha renunciado. Preferia permanecer na sombra e secundar o futuro Venerável. Branier, para quem uma página já estava voltada, esperava que Dieter Eckart se manifestasse. Por fim, tomou a palavra.

 

Para o próximo ano de luz, proponho como Venerável-Mestre... François Branier.

 

Dieter Eckart expressara-se com uma alegria calma, contida, num tom que não tinha réplica. Pierre Laniel, a princípio surpreendido, considerou que o Irmão tinha tido uma excelente intuição. Guy Forgeaud não dissimulava a sua alegria. Aprovou com um sorriso.

 

Apoio essa candidatura acrescentou. Meu Irmão François, podes garantir-nos que te sentes com a força espiritual e física para desempenhares as tuas funções?

 

François Branier abatera-se sobre si próprio, com a cabeça enterrada entre os ombros, o olhar irado. Os Irmãos conheciam bem aquela atitude. Significava que o Venerável reflectia sem prazer.

 

E se vos confessasse que já não possuo essa força? Que sou um homem velho, gasto, fatigado, incapaz de dirigir esta loja mais tempo sem fazer um máximo de asneiras?

 

Pierre Laniel ficou abalado. Um Venerável tinha a possibilidade de colocar o seu cargo entre as mãos dos seus Irmãos se se considerava incapaz para o cumprir.

 

Se nos confessasses isso respondeu Dieter Eckart não te acreditaríamos. Nunca estiveste em melhor forma. A idade não tem qualquer influência sobre ti. É impossível renunciares à tua função num momento como este. Não vou evocar a tua sabedoria, a tua experiência, o teu brilho... Não temos o hábito de atirar flores uns aos outros. Nem Pierre nem eu somos capazes de te substituir e todos o sabemos. É a minha vez de te fazer uma confissão: mesmo em circunstâncias normais, teria defendido a tua candidatura e não a minha. Tens ainda muito a fazer para formar o teu sucessor, Venerável-Mestre. Não pares pelo caminho.

 

Está a chover! gritou Jean Serval, o Aprendiz, colocado a uma das janelas do bloco.

 

Não caía nem uma gota de chuva, mas dois SS, precedendo o oficial superior, dirigiam-se para o bloco vermelho. Serval utilizara a fórmula ritual para avisar os Irmãos da vinda de um profano.

 

Quando eu bater com o maço anunciou o Venerável os nossos trabalhos são suspensos.

 

Bateu com o punho direito na parede alguns segundos antes de se abrir a porta do bloco, dando passagem ao oficial superior.

 

Klaus contemplou os prisioneiros e reparou que os Mestres estavam agrupados.

 

Espero que se habituem à vossa nova Vilegiatura disse. Tenho um convite para jantar a transmitir-vos. Da parte do comandante desta fortaleza. Viremos buscar-vos.

 

Nem o mínimo sotaque alemão. Sempre sem o título imponente de que os SS eram tão ciosos. E um ”convite para jantar” ainda para mais... Alguma coisa não batia bem. Como se o horror recuasse para mais se fortalecer, para melhor atacar. O próprio oficial superior bateu com a porta do bloco.

 

Quando eu bater com o maço anunciou o Venerável a loja está aberta ao grau de Aprendiz.

 

Bateu de novo na parede.

 

Todos os olhares se voltaram para ele.

 

Meu Irmão Raoul, desempenharás o cargo de Porteiro.

 

O Companheiro Raoul Brissac, pedreiro, colocou-se junto da janela, decidido a não deixar entrar qualquer elemento impuro no templo.

 

Ocupem os vossos lugares, meus Irmãos.

 

A magia das velhas fórmulas apertou as gargantas. O Venerável mantinha-se em pé, a meio da parede do fundo. À sua esquerda, Pierre Laniel, Guy Forgeaud, André Spinot. À sua direita, Jean Serval e Dietèr Eckart. À frente, Raoul Brissac.

 

O mais urgente, meus Irmãos, é reunir os elementos necessários para vivermos o nosso ritual. É preciso tentar tudo para incarnar aqui a nossa iniciação.

 

Os olhos brilharam de esperança. O Venerável devolvia aos Irmãos o prazer de lutar. De descobrir tesouros inestimáveis como giz ou velas.

 

Pierre Laniel ergueu a mão direita para pedir a palavra.

 

O problema vai ser sair deste bloco. Talvez tenham decidido deixar-nos apodrecer aqui.

 

Não creio objectou o Venerável. Há este jantar. Espero que possamos beber e comer. Façamos a síntese das nossas observações sobre o campo. Uns e outros notámos pormenores diferentes. Que cada um tome a palavra. Guy, tu resumes.

 

Cada Irmão se manifestou. Guy Forgeaud registou mentalmente o essencial das suas intervenções. O mecânico, contrariamente ao que declarara ao oficial superior SS, tinha uma memória prodigiosa. Com a autorização do Venerável, tomou a palavra quando todos os Irmãos já tinham terminado.

 

Por meu lado, nada a acrescentar ao que foi dito... Graças às intervenções de uns e de outros, acrescentando as fotos que o nosso Venerável viu no gabinete do comandante, sabemos que a torre central da fortaleza abriga os serviços administrativos e as salas de interrogatório. No cimo, um caminho de ronda, projectores, metralhadoras pesadas. Uma verdadeira torre de vigia que basta para controlar o campo. Os blocos estão dispostos ao longo dos muros da fortaleza, muito altos e encimados por arame farpado electrificado. Há vários blocos de cores diferentes. O nosso é o único que possui duas janelas. Ao ir ao bloco das casas de banho, situado ao lado do dos duches, Raoul notou que as janelas dos outros chalés estavam fechadas, Não sabemos se há outros prisioneiros no campo. Finalmente, entre os chalés e as instalações sanitárias, há uma caserna de SS. Os graduados devem ficar na torre.

 

André Spinot levantou a mão.

 

Este campo não é normal.

 

Não é normal porquê? interrogou Serval, o Aprendiz, a quem o Venerável concedera excepcionalmente a palavra. Estamos metidos neste barracão, nem sequer nos dão de beber, somos agredidos por aqueles estúpidos de uniforme...

 

Agredidos... Contentam-se com um mínimo, por agora. Não tem nada a ver com o que se sabe das prisões nazis.

 

As palavras de André Spinot tiveram o efeito de uma corrente de ar glacial. Todos os Irmãos tomaram consciência que por trás da aparência, havia os círculos do Inferno. Quando cairiam as máscaras?

 

André Spinot, o oculista, colocava a lucidez na primeira linha das virtudes. Para ele, ocultar a realidade, fosse por medo ou por desespero, era a pior das cobardias.

 

Falta-nos uma informação capital interveio o Venerável.

 

Qual? perguntou Forgeaud.

 

A colocação da enfermaria. Deve haver uma. Sou médico. Tenho que ter acesso a ela. E mesmo que me nomeiem seu responsável.

 

Um sonho. Mas Spinot não encontrou nada a objectar. O Venerável tinha descoberto um novo caminho.

 

 

Foi uma espera até à noite. Todos os Irmãos tinham necessidade de recuperar. Dormiram. Um deles permanecia acordado, de vigia. Cada um por sua vez, tinham ido à casa de banho seguindo um processo imutável. Abrir a porta do bloco. Permanecer no limiar, sem se mexer. Esperar a chegada de dois SS. Deixar-se levar e trazer. Nada de brutalidade. Tinham apenas que apressar-se, não demorar pelo caminho, não voltar a cabeça. Nenhum Irmão detectou outros prisioneiros. A fortaleza estava silenciosa. Mesmo a montanha em redor permanecia muda.

 

Também não consegues dormir? perguntou em voz baixa Laniel, deitado ao lado do Venerável.

 

Não posso.

 

Achas que nos safamos, François?

 

Tem que ser. Não pode ser de outra maneira.

 

Laniel olhava o tecto. Queria acreditar nas palavras de François Branier. Um Venerável-Mestre nunca mente.

 

Que porra, afinal... Deixar-se engaiolar assim, sem poder lutar... Pierre Laniel exprimia-se muitas vezes de maneira rude. Um velho hábito,

 

não usava punhos de renda com os seus operários.

 

Depende, Pierre...

 

Espantado, Laniel ergueu-se no cotovelo esquerdo e olhou Branier, tão imóvel como uma estátua jazente.

 

Depende de quê?

 

A loja foi delapidada desde o começo da guerra. Perdemos doze Irmãos. Hoje estamos todos reunidos. É a nossa força.

 

Pierre Laniel perguntou a si mesmo se o Venerável não começava a perder a razão. No entanto, não era nada o seu género... O industrial julgava conhecer bastante bem os homens, mas François Branier ainda o espantava. Nunca encontrara ninguém tão sereno, tão firme nas provações. Emanava dele um fulgor calmante. Com Branier, era possível crer no impossível. E as coisas andavam.

 

Temos que sair daqui, François. Pirarmo-nos não importa como. Apanhá-los de surpresa. Se fizermos o jogo deles, engolem-nos vivos.

 

Nada de precipitações, Pierre. Antes de mais, celebrar uma ”reunião”.

 

Sacralizar esta prisão. Agir de forma a que o Grande Arquitecto esteja presente entre nós e nos traga a solução.

 

Não acreditas...

 

Não, não acredito. É uma certeza, não uma crença. Pierre Laniel estremeceu. O Venerável não tinha o hábito de se empenhar assim. Aos seus olhos, os que diziam ”eu sei” eram inconscientes ou mal-intencionados. Divertia-se muitas vezes a repetir as palavras do velho filósofo: ”Sei que nada sei e, mesmo disso, não tenho bem a certeza.” Pronunciara no entanto a palavra ”certeza” com uma absoluta convicção, como o caçador que sabe que o seu tiro acertará no alvo antes mesmo de ter disparado.

 

Lembras-te, François, quando fundámos esta sacana desta loja... Ninguém acreditava nela. Ninguém a queria. Os Irmãos... esses! Tudo tentaram para nos fazer ir ao ar! Haviam de ficar contentes por nos verem aqui, hoje...

 

A porta do bloco foi aberta com um pontapé. Klaus, o oficial superior SS, apareceu.

 

Em pé, meus senhores. São esperados para o jantar. O comandante gosta das pessoas pontuais.

 

Os sete Irmãos da loja ”Conhecimento” ergueram-se quase ao mesmo tempo. Saíram do bloco um a um, com o Venerável a fechar a marcha. Caía a noite. As nuvens escureciam o céu. Um vento glacial varria o pátio. A fortaleza fazia lembrar uma fera agachada nas trevas crescentes. Sempre o mesmo silêncio desumano, apenas quebrado pelo ruído das botas. Os sete Irmãos avançaram para a torre central, enquadrados por SS tão impenetráveis como os altos muros.

 

Nenhuma luz se filtrava sob as portas dos outros blocos. Fizeram os Irmãos entrar para a torre, no rés-do-chão. Um amplo compartimento onde podiam caber umas cinquenta pessoas.

 

Branier e os Irmãos descobriram um espectáculo alucinante.

Uma longa mesa coberta com uma toalha branca, imaculada. Pratos de porcelana e talheres de prata dourada. Candelabros de prata de três braços. Um centro de flores roxas. No extremo da mesa, sob uma fotografia de Hitler, o comandante-de-campo estava sentado num trono medieval de costas altas. À sua esquerda, sobre um estrado, uma pequena orquestra dirigida pelo ajudante-de-campo. À entrada dos Irmãos, tocou a ode maçónica para o grau de Mestre, composta pelo maçon Mozart. O lugar de cada Irmão era indicado por um cartão com o seu nome. Instalaram-se, aturdidos, enfeitiçados pela beleza trágica da música que os Mestres da loja conheciam bem por a terem utilizado nos seus rituais. A ode fúnebre demorou um pouco mais de dez minutos, durante os quais, no mais absoluto silêncio, dois SS serviram um soufflé de cogumelos acompanhado por um Cbâteau-Latour.

 

O Venerável-Mestre estava em frente do comandante-de-campo, no outro extremo da mesa. À esquerda, um Mestre, Dieter Eckart, e os dois Companheiros, André Spinot e Raoul Brissac; à direita, dois Mestres, Pierre Laniel e Guy Forgeaud, e o Aprendiz, Jean Serval.

 

Mozart calou-se. O Venerável tinha o coração apertado.

 

Espero que a vossa loja aprecie esta música e o meu convite para jantar começou o comandante-de-campo, fitando François Branier.

 

Ninguém tocara ainda nos alimentos. No entanto, tinham fome. Mas tudo aqui parecia envenenado. O Venerável não respondeu. Esperava que estivesse tudo servido. O oficial superior e outros SS estavam colocados atrás dos convivas, prontos a intervir se um deles tivesse uma reacção deslocada.

 

Gozam de um tratamento de favor continuou mas isso não é injusto. Não são homens como os outros. Possuem uma ciência que deve ser posta ao serviço do Reich. Senão, para que serviria ela? É preferível abordar esse problema em redor de uma boa mesa. Não é da minha opinião, Venerável?

 

François Branier resmungou qualquer coisa que podia passar por um sim. O comandante pegou no garfo. Os Irmãos, esfomeados, começaram a comer muito depressa, com medo de serem interrompidos a qualquer momento.

 

O comandante deixou-os comer. O Venerável e ele não tiravam os olhos um do outro. Concediam-se mutuamente uma trégua. François Branier petiscava. Deixara de ter fome.

 

Haverá uma sobremesa original anunciou o comandante. As suas revelações, Venerável.

 

Não se ouvia um único ruído de garfo. Os Irmãos esperavam a orientação que o Venerável daria àquele interrogatório.

 

Não haverá revelações. A ”Conhecimento” já não existe. A Maçonaria já não existe. Somos prisioneiros como os outros.

 

O Venerável falara com uma voz calma, lenta, como para imprimir uma ideia simples na cabeça de um aluno um pouco atrasado mental. Certamente acendia a última mecha que conduzia inevitavelmente à explosão. Os Irmãos tiveram a sensação que lhes apontavam uma arma à nuca. Um único tiro e estaria tudo terminado. Era provavelmente melhor do que dias intermináveis.

 

Admitamos disse o comandante. São bons e leais franceses. Já não conspiram contra o Reich. Mas a loja ”Conhecimento” existiu? Não sonhei?

 

Pairava-lhe nos lábios um vago sorriso. O Venerável sentiu que se aproximava o ponto de ruptura.

 

Sim, a ”Conhecimento” existiu.

 

Com que rito trabalhava essa loja?

 

Rito Escocês Antigo e Aceite.

 

O mais indisciplinado e o mais misterioso sublinhou o comandante com expressão gulosa.

 

Os ”Escoceses Antigos e Aceites”, de acordo com a expressão arcaica, trabalhavam com os mais antigos rituais da Maçonaria. Muitas vezes críticos, herdeiros dos construtores de catedrais, não tinham um gosto muito acentuado pela administração e o decoro que tinham invadido as lojas maçónicas.

 

O Venerável não traíra um grande segredo. Estava convencido que o comandante estava simplesmente a verificar uma informação que já possuía.

 

Em que grau trabalhava a vossa loja?

 

O Venerável hesitou. Teria sido preferível dissimular um elemento tão essencial, mas era correr um risco enorme. O comandante-de-campo não era um carrasco vulgar. Tinha estudado muito aprofundadamente o dossier das lojas. O Venerável ignorava de que documentos e de que testemunhos dispunha. A sua margem de manobra era muito reduzida. Tinha que largar lastro sem entregar a extremidade do fio de Ariadne que permitiria ao SS subir até à nascente.

 

A ”Conhecimento” trabalhava nos graus de Aprendiz, Companheiro e Mestre.

 

Mestre! repetiu o comandante. Raríssimo. Tinham assim tantos encontros secretos?

 

Simples exigência ritual. Quando os Mestres se reúnem uns com os outros, os Companheiros e os Aprendizes não são admitidos.

 

Com certeza, Venerável... Mas nada obrigava os mestres da ”Conhecimento” a reunirem-se tantas vezes na ”câmara-do-meio”. É esta a expressão consagrada, não é verdade?... Só cumpriam o ritual nessas noites... O que se passava exactamente? O que preparavam na sombra?

 

Com a garganta seca, o Venerável tossiu. Quase no mesmo instante, Jean Serval, o Aprendiz, deslizou da sua cadeira e, como um fantoche desarticulado, caiu no soalho da sala de refeições. Os vizinhos quiseram intervir, mas os SS interpuseram-se. O Venerável levantou-se.

 

Proíbo que se mexam! ordenou o comandante.

 

Sou Venerável e médico replicou François Branier, desafiando o SS. O meu Irmão Serval sentiu-se mal. Faço questão de o tratar pessoalmente. Levem-nos à enfermaria. Retomaremos esta conversa depois. Caso contrário, mande-nos abater imediatamente.

 

O comandante-de-campo avaliou a situação num segundo. O incidente provava-lhe que os Irmãos da ”Conhecimento” não queriam ser separados. Era a sua força. Isolando o Venerável na enfermaria, enfraqueceria a sua capacidade de resistência.

 

O jantar terminou. O Venerável e o doente para o bloco sanitário, os outros para o bloco vermelho.

 

O comandante levantou-se por sua vez, rígido, majestoso. O Venerável sentiu um curioso respeito por aquele homem. Não fora escolhido por acaso. Louco mas não tacanho, fanático mas lúcido, seria o pior dos carniceiros. A sua armadilha fechara-se sobre a ”Conhecimento” e não voltaria a abrir-se.

 

Dois SS levantaram Jean Serval e arrastaram-no para a porta da sala de refeições. Os outros Irmãos foram obrigados a alinhar em fila indiana. Guy Forgeaud aproveitou, de passagem, para deitar a mão a um bocado de soufflé.

 

Um instante! Helmut...

 

O ajudante-de-campo trouxe ao comandante um largo cesto com os relógios, anéis, alianças pertencentes aos Irmãos. O comandante mergulhou nele a mão e fê-los entrechocarem-se.

 

Chama-se a isto ”metais” na Maçonaria. Deixam-nos à porta do templo antes de cada ”reunião”. São-vos restituídos no fim... Desta vez, eu é que decidirei. Procurem trabalhar bem, se querem voltar a ser livres...

 

O Venerável e Jean Serval, ainda desmaiado, foram conduzidos ao bloco verde. Situado numa reentrância, ficava encaixado entre a caserna dos SS e os duches. A porta era permanentemente guardada por um soldado. Tudo se passou muito rapidamente, como se os SS se quisessem desembaraçar de uma tarefa durante a qual se arriscavam a ser contaminados em contacto com um doente. Serval foi atirado para um solo de terra batida. Empurraram o Venerável pelas costas. Cambaleou mas manteve o equilíbrio. A porta bateu.

 

A princípio, foi a escuridão, povoada de gemidos, de queixumes. As trevas estavam cheias de seres que sofriam. De repente, uma luz, muito fraca. Uma vela dissimulada numa caixa de cartão.

 

Um gigante de barba ruiva ergueu-se diante do Venerável. Ultrapassava os dois metros. Vestia um hábito de burel, com um rosário à cintura. Um monge.

 

Quem é você? perguntou com voz encolerizada. O que vem aqui fazer?

 

O meu nome é François Branier. Sou médico. Acompanho um doente.

 

Também está doente?

 

Não. Tenciono tratar o meu amigo e encarregar-me da enfermaria do campo.

 

Um riso imenso, incongruente, estoirou na escuridão. A carcassa do gigante era sacudida por uma formidável hilaridade.

 

O Venerável esperou que o riso louco do Monge terminasse.

 

Eu, explicou este, sou o irmão Benoit e encarrego-me desta enfermaria há quinze dias. Felizmente, não havia médico nesta fortaleza, senão, todos os desgraçados aí deitados estariam mortos.

 

Como os trata?

 

Não trato, curo. Plantas e magnetismo. Aqui, adoece-se por causa do frio ou da alimentação. Com as minhas mãos, magnetizo. Com as plantas, dreno e impeço as infecções. Se tem melhor a propor, dou-lhe o meu lugar.

 

Plantas... Como as arranja?

 

Tenho direito a uma saída por semana, sob a vigilância de um batalhão de SS. É impossível evadir-me. Mas a montanha começa a reviver. Ainda não se encontram todas as espécies, mas cá me arranjo. E também tratei um SS que tinha apanhado uma boa diarreia e um princípio de bronquite... Foi bom para a minha reputação. E será útil no futuro, quando encontrar tipos com coragem.

 

Conhece todos os prisioneiros do campo?

 

Não o conheço a si nem ao seu companheiro doente. Chegaram com um grupo?

 

Somos sete respondeu o Venerável.

 

Há mais de trezentos desgraçados nesta prisão precisou o Monge

 

uma vintena dos quais na enfermaria. Antes da minha chegada, segundo alguns sobreviventes que aqui estão há seis meses, houve uma centena de vítimas. Frio, desnutrição...

 

Foi você que criou a enfermaria?

 

Desenvolvi. Era apenas um reduto. Acreditavam que este género de prisioneiros podiam escapar aos problemas de saúde, mesmo nas piores condições.

 

Que género de prisioneiros?

 

O Monge observou o seu interlocutor com um olhar desconfiado.

 

Pessoas que deveriam ter poderes... Magos, astrólogos, videntes... Os SS acreditam na energia psíquica. Estão convencidos que estes pobres tipos possuem segredos fabulosos que se transformarão em armas para ganhar a guerra. Influência à distância, feitiços e outros disparates... Verdadeiros segredos, só há dois: Deus e a Fé.

 

O Aprendiz Jean Serval deixou de fingir-se doente. Abriu os olhos e levantou-se. As palavras pronunciadas pelo Monge tinham-no tranquilizado. Ficou muito surpreendido quando um punho de ferro o levantou do chão como um vulgar embrulho.

 

O que significa isto? trovejou o Monge.

 

Um estratagema para chegar à enfermaria explicou o Venerável. O Monge poisou Serval no chão.

 

Qual é o seu poder?

 

Parece que possuímos um segredo respondeu o Venerável.

 

Qual?

 

Nenhum. Os SS estão enganados. O Monge coçou a barba, incrédulo.

 

Sabe quem comanda o campo?

 

Contactámos com um comandante, o seu ajudante-de-campo e um oficial superior SS que nos acompanha desde Compiègne. Ignoro os seus nomes e graduações exactas. Só sei o primeiro nome do ajudante-de-campo e do oficial, Helmut e Klaus. Falam um francês perfeito, sem sotaque.

 

É normal. Estes SS são de uma espécie um pouco especial informou o Monge. Pertencem ao Aneherbe. Secção especial encarregada de se ocupar dos poderes psíquicos e daqueles que os possuem. Têm a sua própria hierarquia e travam a sua guerra própria. Com que então, senhor Branier, não é cidadão vulgar. Assim como os seus seis camaradas. Aqui é necessário fazer jogo franco ou estamos lixados. Repito: qual é o seu segredo?

 

Trate primeiro do meu amigo Jean Serval. Discutiremos depois. Se os alemães vierem controlar, devem ver um doente.

 

A cólera subiu ao rosto do Monge. Se não fosse um homem de Deus, teria de boa vontade dado uns abanões àquele fulano intratável que não cedia uma polegada de terreno e se atrevia mesmo a hostilizá-lo.

 

Por aqui ordenou o Monge a Jean Serval. Deite-se e espere.

 

Ao fundo da enfermaria havia uma vintena de camas sobrepostas, dispostas em quatro filas. Um único lençol por doente, embora a temperatura não ultrapassasse os dez graus. Jean Serval instalou-se numa cama das de baixo.

 

O Venerável ficou espantado com a limpeza do local. O Monge devia realizar um trabalho de titã para manter aquele hospital improvisado. O colosso conduziu François Branier a um cubículo onde tinha instalado uma enxerga, demasiado curta para poder estender as pernas. Um tecto baixo. Paredes escorrendo humidade. O canto mais desconfortável da enfermaria. O Monge trouxera a vela, deixando os doentes repousar no escuro.

 

Tem medicamentos? perguntou o Venerável.

 

Uma pequena reserva. Aspirina e desinfectantes. Os SS estão melhor equipados. Não desespero de os aliviar discretamente um destes dias. Com as plantas, consegui fazer milagres. Vou continuar. Deus não nos abandonará.

 

Possa Ele ouvi-lo...

 

Como se atreve a duvidar?

 

As sobrancelhas do Monge tinham-se arqueado.

 

Os meus seis Irmãos e eu somos maçons. Ocupo a função de Venerável na loja. Chama-se ”Conhecimento” e trabalha para a glória do Grande Arquitecto do Universo.

 

Um longo silêncio sucedeu a esta declaração. O Monge ficou rígido, em estado de choque. O Venerável, paciente, esperava a sua reacção. Conhecia a hostilidade dos homens da Igreja para com a Maçonaria. Mas era obrigado a dizer a verdade sem a dourar com enfeites. Mais do que nunca, era necessário identificar aliados e adversários.

 

Ao chegar aqui disse por fim o Monge sabia que ia encontrar o diabo. Mas ignorava a forma que ele assumiria.

 

O Monge sentou-se na beira da enxerga. O Venerável imitou-o. Os dois homens ficaram quase lado a lado, olhando na mesma direcção.

 

O diabo... É um bocado forte, não?

 

Deus não gosta de meias-tintas. Vomita os frouxos.

 

Não tem nada a ver com os Irmãos da minha loja.

 

São todos fanáticos?

 

Não. Homens que irão até ao fim pelo seu ideal e a sua verdade.

 

Só há verdade em Deus.

 

Tudo depende da ideia que se tem de Deus disse o Venerável. Há coisas mais urgentes... Lutamos juntos ou separadamente?

 

O Monge entrelaçou os dedos, fazendo estalar as articulações.

 

Não pactuo com o inimigo.

 

Eu, o inimigo! Permita-lhe que lhe diga, irmão, que está a disparatar.

 

Por muito Venerável que seja, acho que lhe vou partir a cara.

 

Era uma pena para os dois. Não tenho intenção de oferecer a outra face.

 

A determinação do Venerável espantou o Monge.

 

Come padres ao pequeno-almoço?

 

Demasiado indigestos, irmão.

 

Mas não é cristão?

 

Não iria tão longe... Está com Deus e eu com o Grande Arquitecto do Universo. Não são obrigados a confrontar-se numa cena de pugilato.

 

Exacto. Deus existe, o Grande Arquitecto não. Não passa de uma imagem.

 

Ainda não me disse se avançamos de mãos dadas.

 

Esquece que é um excomungado?

 

Aqui, sim.

 

O lugar interessa pouco. Pertence a uma seita que conspira contra a Igreja. Vocês caluniaram padres, expulsaram monges que viviam em paz nos seus conventos, insultaram Deus. E quer que lhe aperte a mão?

 

A fé não deve cegar ninguém. Alguns padres caíram em armadilhas. Deram ouvidos a não importa que calúnias e a não importa que propaganda anti-maçónica. Nesse confronto imbecil, falseado, entre a Igreja e a Maçonaria, os adversários dos dois campos rivalizaram em infâmia. Enquanto se digladiavam, o materialismo, o fascismo, a loucura puderam crescer com toda a calma. Tanto um como outro somos responsáveis por esta guerra e pelos seus horrores, irmão. A sua Igreja e a minha Maçonaria traíram a sua missão.

 

Filosofia de feira. A Igreja nunca se desviou do seu caminho.

 

Não está a esquecer alguns genocídios cometidos em nome de Deus?

 

Um ateu como você não pode compreender a História. Os desígnios de Deus realizam-se por nosso intermédio e independentemente de nós.

 

Filosofia fácil. Também a verdade iniciática nunca foi desviada do seu caminho. Pouco importa o que os maçons fazem da iniciação. Ela existe para além das nossas fraquezas. E não ordenou o massacre de ninguém em nome de um dogma.

 

A porta da enfermaria abriu-se, deixando entrar um ar gelado. Klaus, o oficial superior, entrou. Lançou um olhar aos doentes e descobriu o Monge e o Venerável instalados no seu cubículo.

 

O nosso maçon doente está melhor? perguntou, dirigindo-se ao Monge.

 

Três dias de cama e de tisanas resmungou o irmão Benoit.

 

Encontrou um campo de entendimento com o Venerável Branier? Quem dirigirá a enfermaria?

 

O Venerável baixou os olhos, olhando para os sapatos. O Monge falou.

 

Há trabalho para dois aqui. Demasiados doentes. Clima rude e alimentação infecta. Receio uma epidemia que não pouparia ninguém.

 

O Monge não era um aldrabão. Klaus tivera ocasião de verificar a sua eficácia. O comandante-de-campo tinha proibido que o maltratassem antes de ter revelado todos os seus poderes. Uma epidemia... Não havia maior perigo. Nenhum SS tinha formação médica suficiente para avaliar a gravidade da situação. O Aneherbe tinha-os formado noutras disciplinas. Sabiam dissecar os espíritos e torturar os corpos, não tratá-los. Era impossível esperar um médico enviado pela administração nazi.

 

Faça o que for preciso. Relatório quotidiano.

 

O oficial superior saiu da enfermaria em passo rápido, como se fugisse de pestíferos. A porta bateu.

 

Sinto-me feliz com a nossa aliança disse o Venerável.

 

Não tenha ilusões respondeu o Monge. Não tenho a mínima intenção de colaborar consigo. Simplesmente, não o posso deixar ter a última palavra. Aquele imbecil do SS interrompeu a nossa conversa no momento em que estava a afirmar aberrações.

 

Quais?

 

Veremos amanhã. Agora há que dormir. Aqui, é essencial para conseguir aguentar. Como não está doente, não tem direito às camas. Esse enxergão é suficientemente confortável para um Venerável.

 

E o irmão onde dorme?

 

Em frente da porta. Se os SS aparecerem, quero ser o primeiro a saber.

 

O Venerável estendeu-se e renunciou a lutar contra o sono. A fadiga retorcia-lhe os músculos. Como todas as noites, no momento em que mergulhava num nada reparador, pensou nos Irmãos. Viu cada um deles e falou-lhes em silêncio, tentando comunicar-lhes o que lhe restava de esperança.

 

No momento em que fechava os olhos, detectou o pesado vulto do Monge estendido em frente da porta. Teve a certeza que nem mil SS teriam força suficiente para o afastar.

 

 

De pé!

 

Uma mão sacudiu o Venerável. Ao abrir os olhos, esperara descobrir um quarto confortável, inundado de luz, sentir o odor de um café fumegante. Mas havia apenas a enfermaria sinistra da fortaleza nazi e o rosto severo do Monge.

 

É tarde. Acorde.

 

Que horas são?

 

O Sol já nasceu há bocado, segundo os meus cálculos. Há trabalho a fazer. Para as necessidades naturais, há os baldes acolá no canto. Despejamo-los quando os SS nos permitirem.

 

O Venerável espreguiçou-se. O Monge olhava-o como se examinasse um mau aluno.

 

Tem falta de exercício, Venerável. Existência demasiado sedentária. François Branier fixou o Monge a direito nos olhos.

 

Há dois anos que não durmo na mesma cama. Percorri milhares de quilómetros por toda a Europa. Viajei com todos os meios de transporte imagináveis. E chama a isso falta de exercício?

 

Um largo sorriso iluminou o rosto do Monge.

 

Não se zangue, Venerável. É muito susceptível. Continuo a afirmar que um pouco de ginástica lhe faria muito bem. No mosteiro, temos uma técnica simples para não enferrujarmos. Veja.

 

O Monge inspirou e expirou profundamente e depois, com as mãos nas ancas, fez girar rapidamente o busto. Depois tocou uma dezena de vezes os pés com as mãos, mantendo as pernas estendidas.

 

O Venerável encolheu os ombros.

Aconselho-o a fazer o mesmo todos os dias. Venha comigo lá ao fundo. Há um doente que me inquieta.

 

O Venerável esperou que o Monge estivesse fora do seu campo de visão para tentar tocar também nos pés com as mãos. Mas foi obrigado a dobrar os joelhos. Irritado, parou e dirigiu-se à cabeceira de um velho com respiração rouca.

 

Um astrólogo de Nice explicou o Monge. Russo branco. Predissera o início da guerra, mas enganou-se quanto ao seu próprio destino.

 

O Venerável examinou o astrólogo. Já nem sequer tinha força para falar.

 

Só resta deixá-lo dormir em paz concluiu o Venerável em voz baixa, quando o Monge e ele se reencontraram no cubículo, onde o colosso preparou uma infusão de plantas que esmagava numa taça com o auxílio de um pilão.

 

É o seu diagnóstico?

 

Infelizmente...

 

Não estou de acordo. Aquele velho tem a vida presa ao corpo. Está a hibernar. É capaz de se aguentar muito tempo assim.

 

E Serval? Porque continua a dormir? Sacudi-o ao passar e não acordou.

 

É natural respondeu o Monge. Fi-lo beber uma droga vegetal. Basta-me um maçon acordado. Tem que ter um ar doente. Para além do mais, vai descontrair-lhe os nervos.

 

O Venerável não teve tempo de dizer ao Monge o que pensava dos seus métodos. Klaus, o oficial superior, irrompeu na enfermaria.

 

Relatório exigiu. A epidemia?

 

Dois casos suspeitos respondeu o Monge sem parar de preparar a sua infusão. Uma espécie de difteria.

 

A sua opinião, doutor Branier?

 

Hipótese provavelmente correcta.

 

Quero rapidamente uma certeza exigiu Klaus.

 

Preciso de outras ervas retorquiu o Monge.

 

Com certeza aprovou Klaus. Mas agora partilham as tarefas. Saiu há dois dias, irmão Benoit. Agora é e vez do Venerável.

 

O Monge pousou o pilão e voltou-se para o SS.

 

Ele não sabe nada disso. Não me vai trazer as ervas certas.

 

Aprenderá... Um de cada vez, é uma ordem! Sai demais, irmão Benoit. Dir-se-ia que prepara um plano para fugir...

 

O olhar do Monge permaneceu indecifrável.

 

Como quiser. Venerável, apanhe o máximo de ervas no lugar a que eles o vão conduzir. Depois escolhemos.

 

François Branier agradeceu ao beneditino com uma palmada amigável no ombro esquerdo.

 

Com certeza que não me considera um excelente médico, irmão, mas ainda tenho algumas lembranças de herborização... Vigie bem os doentes.

 

Ao sair da enfermaria enquadrado por dois SS, o Venerável olhou na direcção do bloco vermelho. As duas janelas tinham sido tapadas com tábuas. O pátio da fortaleza estava vazio.

 

Precisava de material médico disse o Venerável ao oficial superior.

 

Não é da minha competência.

 

Quem decide?

 

O comandante-de-campo.

 

Então pergunte-lhe.

 

Tenho ordens rigorosas, Venerável. Se quiser conseguir qualquer coisa, tem de ter uma moeda de troca.

 

O ar da manhã estava fresco e o céu azul claro, sem nuvens. No vento, aromas de Primavera. A vida que renascia. O desejo de gritar para dissipar o pesadelo, para afugentar aqueles pássaros da noite de uniformes negros.

 

De acordo. Negoceio.

 

O oficial superior olhou o Venerável com desdém. Abandonou-o no meio do pátio e dirigiu-se para a torre central, onde entrou.

 

Os SS que vigiavam François Branier ignoravam-no. Minerais. O Venerável pensava no comentário do oficial superior: durante as suas expedições para apanhar plantas, o Monge tinha com certeza preparado um projecto de evasão. Porque permitiam por sua vez ao Venerável que saísse da fortaleza? Para o abaterem discretamente, privando a loja do seu chefe?

 

Alguns minutos depois, François Branier encontrou-se em frente do comandante, ladeado pelo seu ajudante-de-campo. No gabinete reinava um calor agradável.

 

Queria ver-me, Venerável?

 

Preciso de sulfamidas, analgésicos...

 

Não trato de questões administrativas interrompeu o comandante. Quero o essencial, Venerável. O resto é-me indiferente.

 

Dispõe dos produtos de que tenho necessidade?

O comandante olhou o ajudante-de-campo, que abanou a cabeça afirmativamente.

 

As suas exigências são exorbitantes, doutor Branier.

 

Concederá ao Venerável o que recusa ao médico? O comandante sorriu.

 

Não, é impossível. É tudo uma questão de contrato. O que me propõe o Venerável?

 

François Branier curvou-se sobre si mesmo.

 

Interessa-lhe o último plano de trabalho da minha loja?

 

As narinas do comandante contraíram-se. Nunca conseguira obter qualquer documento idóneo sobre os assuntos abordados pelos Irmãos da ”Conhecimento”.

 

Será um começo, Venerável...

 

A garganta do Venerável ficou seca. Estava perturbado. Pronunciou algumas palavras inaudíveis. Recompôs-se.

 

Estudámos os direitos do homem, a inserção do indivíduo na sociedade e a...

 

Está a gozar comigo, Venerável.

 

O comandante-de-campo empalidecera. Uma raiva fria.

 

Não! exclamou o Venerável. Deixe-me falar, caramba! François Branier tentara um golpe impossível. Tinha que retomar as rédeas da situação. Daquela vez era obrigado a dar uma verdadeira informação. O comandante estava excessivamente bem informado. Não se deixaria enrolar.

 

O ajudante-de-campo estava tenso. Esperava uma reacção violenta do comandante. Ninguém até agora ousara falar-lhe naquele tom. Mas o SS permaneceu inerte, espiando a sua presa.

 

Ao falar em ”nós” recomeçou François Branier aludia à quase totalidade dos maçons que se ocupavam da moral, do civismo, da instrução e de mil outros temas profanos. A loja ”Conhecimento” foi criada para sair dessa rotina. O seu último tema de estudo foi a Regra.

 

O comandante disfarçou o seu júbilo. A Regra... a mais formidável máquina de guerra concebida para unir os homens, fazer deles um grupo inquebrável, capaz de alcançar todas as vitórias. A Regra, que permitira a alguns iniciados e alguns monges civilizar a Europa, aos templários tornarem-se numa formidável potência financeira... a Regra, à qual a secção especial do Aneherbe consagrara tantas investigações infrutíferas.

Vai ter de me dar pormenores, Venerável...

 

François Branier notou o tom ligeiramente irónico do comandante. O alemão devia ter lido quilómetros de páginas de regulamentos impressos pelas autoridades eclesiásticas, volumes inteiros de arquivos administrativos. Mas o SS penetrara a cortina de fumo. Não se deixara cegar pelo mau teatro oficial dos ”grandes Mestres” e dos ”grandes Oficiais” que, cobertos de condecorações, recitavam uma lição sem interesse.

 

Conservámos um documento intitulado ”a Regra do Mestre”. Datava dos primeiros tempos do cristianismo e utilizava originais do Próximo-Oriente. A parte oficial alimentou os primeiros grandes mosteiros. A parte secreta permaneceu nas lojas iniciáticas de construtores.

 

O ajudante-de-campo tomava notas com uma rapidez quase incrível. A caneta corria sobre o papel a uma velocidade louca. Sabia que o comandante não lhe perdoaria ter omitido uma única das palavras saídas da boca do Venerável. O alemão ia finalmente colher os frutos dos seus esforços. Tinha em seu poder o homem e a loja capazes de lhe revelarem o segredo da Maçonaria, dos seus instrumentos de poder, da sua acção sobre o mundo. Uma alavanca de comando que faria do Reich o maior império jamais criado. Himmler estava convencido que a manipulação das almas era não apenas o meio mais eficaz de ganhar a guerra como também de implantar em seguida um poder duradouro.

 

O comandante-de-campo jogara a sua carreira apostando na Maçonaria. Os outros membros do Aneherbe, o organismo nazi encarregado de utilizar os poderes ocultos como armas de alta precisão, só acreditavam nas tradições nórdicas e na mística tibetana. Tinham enviado mesmo uma missão especial a Lhassa para recolher os segredos dos feiticeiros tibetanos. A Maçonaria era considerada como uma concha vazia, uma associação internacional, é verdade, mas que apenas agrupava intriguistas e filósofos de balcão. O comandante estava persuadido que ela veiculava ainda uma mensagem essencial. Quando o SD, o serviço de contra-espionagem alemão, tinha ocupado o edifício do Grande Oriente de França, numerosos documentos lhe tinham caído nas mãos. Em Junho de 1942, a unificação do ”serviço das sociedades secretas” marcara um passo mais na repressão, alimentada por Bernard Fay, administrador-geral da Biblioteca Nacional. A traição de dignitários maçónicos completara aquela vasta teia de aranha de que o comandante de uma fortaleza perdida na montanha ocupava o centro.

Saboreava hoje aquela imensa vitória. O Venerável da ”Conhecimento” estava à sua frente, condenado a falar.

 

Onde se encontra esse documento, Venerável?

 

Em parte nenhuma. Não está escrito. É um conjunto de recomendações práticas.

 

O comandante sentia a embriaguez daqueles que atingem o seu alvo. Aquelas ”recomendações práticas” deviam ser instrumentos psíquicos aptos para influenciar o comportamento humano, para pôr em marcha um programa político, uma revolução pacientemente preparada.

 

O Venerável começava a revelar o essencial. Já não poderia parar.

 

Suponho que sabe a sua Regra de cor.

 

Cada Irmão possui uma parcela da verdade. Será necessário reunir os pedaços esparsos, agrupá-los, organizá-los... Antes de tudo, quero cumprir os meus deveres de médico. Devem ter-lhe falado de dois casos prováveis de difteria e dos riscos de epidemia. Preciso de medicamentos.

 

Tenho uma grande confiança nos poderes do Monge retorquiu o comandante. É um autêntico curandeiro. Vamos levá-lo a colher plantas. Isso deveria bastar para evitar complicações. Faremos amanhã o ponto. A partir desta tarde, o meu ajudante-de-campo vai preparar-lhe um gabinete para começar o seu trabalho. Ficará rapidamente disponível. Boa colheita, Venerável.

 

Dois SS conduziram François Branier.

 

Hoje é um grande dia confiou o comandante ao seu ajudante-de-campo. Um acontecimento fabuloso, Helmut, uma data na história do Reich... Vou penetrar no segredo da Maçonaria.

 

Passeio sinistro ao flanco da montanha, Primavera congelada. Klaus, o oficial superior, e uma dezena de SS vigiavam o Venerável. Avançaram através dos prados até um campo de flores abrigado por um enorme rochedo que as protegia do vento e do frio. O Venerável ajoelhou-se e começou a colheita. O Monge tinha razão. Havia ali com que tratar um certo número de doenças. Apanhou quelidónia, acónito, serpão, dente-de-leão, calêndula. Quem soubesse preparar decocções e tisanas poderia desinfectar chagas, lutar contra doenças de fígado, resfriados, depressões.

 

A terra estava húmida. O Sol pálido não dava qualquer calor. Rodeado pelos SS como um animal apanhado numa armadilha, o Venerável sentiu vontade de renunciar. Bastar-lhe-ia fugir para o cimo da montanha, correr até ser libertado por uma rajada que o atiraria ao chão. Não existia sem dúvida outro meio para sair daquele inferno. Não existia esperança. O que os homens tinham feito daquela terra não justificava que se permanecesse nela nem mais um segundo. Mas havia a loja... a loja que ignorava os nazis, as prisões, o mal... a loja, com a sua Regra imutável que impedia um Irmão de agir de acordo com a sua fantasia.

 

O Venerável apanhou as plantas, colocou-as num saco de juta previamente examinado por um SS, pôs o saco ao ombro e desceu para a massa sombria da fortaleza silenciosa, inerte.

 

A meia encosta, viu um chalé pintado de verde, à entrada de um caminho de terra que penetrava num bosque de epíceas. Uma única janela. À entrada da porta, limpando a soleira cheia de agulhas de pinheiro trazidas pelo vento, uma rapariga loura envergando um vestido vermelho e branco. Ergueu os olhos para ele durante um instante. Os seus olhares cruzaram-se. Entre eles reinava agora uma cumplicidade de que ninguém podia desconfiar.

 

Uma aliada. Uma aliada do exterior.

 

A caminho da prisão, o Venerável tentou afastar aquela loucura que repousava apenas numa impressão fugaz. Não conseguiu. Gravara-se nele uma esperança.

 

 

Bom dia, irmão. Parece em excelente forma.

 

Excelente respondeu o Monge ao comandante.

 

Este último afastou uma pilha de dossiers que o ajudante de campo se apressou a arrumar.

 

Corre bem a sua colaboração com o doutor Branier?

 

Faltam-nos meios.

 

Ora, irmão! São os rigores da guerra. Todos sofremos com eles. Helmut, traz-me o material.

 

O ajudante-de-campo colocou sobre a secretária cinco cartas de jogar voltadas. Entregou ao comandante uma varinha de aveleira.

 

Passemos às coisas sérias disse o SS, concentrando-se.

 

O comandante apertou as extremidades da varinha entre o polegar e o indicador e depois passeou-a sobre cada carta. A ponta ergueu-se sobre a última.

 

Acho que encontrei o ás de espadas anunciou. O SS voltou a carta.

 

Um valete de copas.

 

Ach resmungou, desiludido.

 

As suas lições ainda não foram suficientes, irmão. É preciso continuar.

 

O Monge evitava ensinar correctamente a radiestesia ao comandante. Dava-lhe tanto bons como maus conselhos. Até agora, a amálgama tinha produzido o resultado previsto. O alemão não avançava uma polegada.

 

Antes da nossa aula, irmão, tenho um trabalho a pedir-lhe. Uma escrita a analisar.

 

O ajudante-de-campo retirou as cartas e substituiu-as por sete assinaturas cuidadosamente recortadas e coladas em folhas de papel branco.

 

Só o seu dom de radiestesista me pode ajudar a resolver este caso, irmão. Eis rubricas de pessoas acusadas de assassínios. Uma delas é um chefe de um bando, um temível criminoso que puxa os cordelinhos. Não o consigo identificar. Não tenho outra hipótese. Ou os mando executar todos ou indica-me o culpado.

 

O comandante estendeu ao Monge a varinha de aveleira. Segurando-a na mão, o irmão Benoit teve uma sensação de liberdade.

 

Tenho pressa, irmão. Despache-se.

 

As suas indicações são demasiado vagas. O comandante acendeu um cigarro.

 

Acrescento que o homem possui um segredo militar e se recusa a falar. Indique-o.

 

O Monge passeou a varinha sobre as assinaturas pensando: ”crime”. Nada aconteceu. Depois programou interiormente ”segredo”. A varinha sobressaltou-se na terceira. O Monge quis continuar, disfarçando aquela reacção, mas o comandante interrompeu-o.

 

Obrigado, irmão. Acaba de escolher o Venerável Branier.

 

Passou um dia inteiro. Considerado como curado, o Aprendiz Jean Serval regressara ao bloco vermelho.

 

O Monge e o Venerável tinham tratado os doentes, revezando-se a dormir, trocando apenas comentários médicos sobre os pacientes. Segundo os cálculos do Monge, deviam ser cerca de oito horas da noite. O momento da rendição. O Venerável dormia no cubículo. O Monge acordou-o e sentou-se ao lado dele.

 

Já não tenho plantas, Venerável.

 

Ia pedir-lhe uma infusão. Uma infecção urinária no doente da primeira fila, segunda cama...

 

Já não tenho com que tratar ninguém. É necessária nova colheita. Ou medicamentos.

 

O Monge esfregou as mãos, como para se aquecer.

 

Que Primavera glacial. Tem-se aguentado bem para um fulano da cidade, Venerável.

 

É uma questão de fé. Calor interior. Conhece isso, no mosteiro?

 

Há com certeza mais fogo interior no pior dos mosteiros do que em todas as lojas maçónicas reunidas.

 

Não me espantaria, irmão. As lojas não são feitas para ser reunidas. De cada vez que uma ordem hierárquica as reúne e submete a uma administração, está tudo estragado. O espírito morre. Cada loja tem o seu génio próprio.

 

Que grande confusão... Entre nós, os beneditinos, há a Regra, a nossa Santa Mãe a Regra. Com ela, civilizámos a Europa.

 

Está tudo para refazer... Mas tem razão. Os maçons iniciados conhecem bem a vossa Regra.

 

Blasfemo!

 

O Monge sentiu o sangue a ferver. As veias do pescoço incharam. Os músculos contraíram-se contra sua vontade.

 

Não há nenhuma blasfémia... O que fizeram vocês dessa famosa Regra? Acha que a Igreja a praticou realmente?

 

A Igreja e a Ordem de S. Bento resmungou o Monge são duas coisas diferentes.

 

A Maçonaria e a minha loja também. A Regra secreta, eis o que quer obter de mim o comandante-de-campo. É para a oferecer ao Reich que ele tenta montar uma cilada à minha loja há meses. Hoje, tem a certeza que poderá deitar a mão a esse tesouro.

 

Aqui disse o Monge cada um sobrevive em função do segredo que possui. Mas é impossível que possua uma verdadeira Regra.

 

Porquê?

 

Porque vocês são ateus, descrentes. Deus não revela a sua lei senão àquele que o acolhe no mais profundo de si mesmo.

 

Descrentes... não será o termo exacto. As nossas crenças individuais não contam, é verdade. Não falamos delas. Não têm qualquer interesse para nós. Há Irmãos que conheço há mais de quinze anos. Ainda não sei em que crêem ou em que votam. O que sei é que trabalhamos todos para a glória do Grande Arquitecto do Universo.

 

Uma imagem, uma quimera, um...

 

Não, irmão. O símbolo do criador. Presente a cada momento. Quando Cristo traça o plano do cosmos com um compasso, realiza a função do Grande Arquitecto. E é por esse nome que é designado nos primeiros textos cristãos.

 

As sobrancelhas do Monge ergueram-se.

 

Leu-os?

 

Todos os textos sagrados nos dizem respeito. Todas as experiências espirituais nos alimentam.

 

Ninguém se deve entender nessa barafunda!

 

Não há barafunda nenhuma disse o Venerável. Há a Regra. Graças a ela, integramos na nossa colheita o que deve ser integrado. E, sobretudo, criamos homens.

 

Só Deus é criador! trovejou o Monge.

 

A iniciação é um segundo nascimento. Foi assim para si quando se tornou Monge, quando se despojou do homem velho para renascer no homem novo, para entrar na sua comunidade.

 

Se acabasse por dar ouvidos às suas heresias, Venerável, quase iria acreditar que nada nos separa.

 

Há no entanto uma diferença... Escolheu retirar-se do mundo, eu não.

 

Retirado do mundo, eu? indignou-se o Monge. Que o Senhor seja testemunha do contrário!

 

Nesse caso insinuou o Venerável já não sou um bom cristão. Tinha a certeza que os monges viviam reclusos nos seus mosteiros.

 

”Os monges”... Isso não quer dizer nada.

 

”Os maçons” também não... Vamos parar de combater moinhos de vento. É Monge da Ordem de S. Bento, eu sou Venerável de uma loja de Rito Escocês Antigo e Aceite. É tudo o que nos resta de essencial aqui. Ou voltamos as costas um ao outro ou lutamos juntos.

 

O Monge reflectiu. O Venerável não quebrou o silêncio. Aquela acalmia fez-lhe bem. O diálogo era denso, o adversário duro, inteligente, combativo. Era a primeira vez que falava assim com um monge. Tivera oportunidade de trocar opiniões com muitos padres, mas não com um beneditino. François Branier pensava no passado, nessa Idade Média em que monges e construtores tinham sabido trabalhar de mãos dadas para cobrir a Europa com um branco manto de catedrais. Naquela enfermaria sórdida, no coração de uma fortaleza nazi, o Monge e o Venerável talvez reatassem a única verdadeira Tradição. Mas havia tantos obstáculos...

 

O que propõe é monstruoso, Venerável reagiu o Monge. Não se pactua com um homem como o senhor. Tudo o que posso aceitar é tentar convertê-lo.

 

Combinado.

 

O estertor de um doente interrompeu-lhes o diálogo. Levantaram-se os dois e trataram do infeliz. Gestos simples, exactos. Uma tisana. Palavras de reconforto. Uma mecânica bem oleada em que os dois homens se completavam.

 

O Monge preparara decocções que atenuavam o sofrimento e mergulhavam os doentes numa semi-sonolência. Voltaram a sentar-se no cubículo.

 

Muitos deles não aguentarão muito mais calculou o Venerável.

 

Há um que já morreu. Primeira fila, embaixo, à direita. Tiramo-lo esta noite, quando os outros estiverem a dormir profundamente.

 

Os SS deixar-nos-ão?

 

É preciso respeitar o protocolo. Empurraremos o cadáver pelos ombros. Os pés aparecerão lá fora. Não nos podemos mostrar. Seríamos abatidos. Há uma metralhadora pesada permanentemente apontada para nós.

 

Duas marmitas cheias de sopa de couves foram colocadas na enfermaria pelos SS. A ementa não era variada, mas era preciso comer para aguentar. Graças às plantas, o Monge evitava as perturbações gástricas e intestinais. Competia-lhe a ele e ao Venerável executar a tarefa dos baldes higiénicos, duas vezes por dia, sobre a apertada vigilância dos SS.

 

Vou ficar com falta de remédios, Venerável. Temos de agir. Tem maneira de convencer o comandante a dar-nos medicamentos.

 

Isso quer dizer o quê?

 

Ele tem perguntas a fazer-lhe... Responda e negoceie.

 

Já não posso inventar mais respostas. O comandante está informado da importância real da minha loja. Não tenho opção. Fugir ou morrer.

 

Suicídio?

 

Com certeza que não.

 

É impossível fugir daqui analisou o Monge. Ninguém se evade desta fortaleza. Morrer combatendo, fomentando uma revolta? Seria um suicídio. Seria preciso roubar armas, ter com que lutar...

 

E se a guerra terminasse amanhã? Se bastasse aguentar? O seu Deus não lhe dá esperança?

 

Nenhum homem, mesmo sendo monge, tem possibilidade de compreender a vontade de Deus. Pode vivê-la, apenas. Peça para ver o comandante, Venerável. Exija um bom jantar e não se esqueça de roubar o máximo de alimentos. Revele alguns pequenos segredos. Volte com os medicamentos necessários para salvar vidas. Será um grande primeiro passo na história da humanidade. Um maçon terá servido para qualquer coisa!

 

No bloco vermelho, a moral dos Irmãos estava em baixo desde o desaparecimento do Venerável.

 

As janelas tinham sido encerradas. Viviam na noite. Tirando lascas da madeira, o Mestre e mecânico Guy Forgeaud conseguira abrir uma fresta que permitia ver o que se passava no grande pátio.

 

Os Irmãos tinham-se organizado. Obrigavam-se a dormir ou simplesmente a repousar. Um permanecia acordado, sentado com as costas na porta. Quando chegavam as rações, não as devoravam. Aplicando a Regra, apesar da ausência do Mestre e da comunidade, partilhavam os alimentos e comiam lentamente.

 

O Aprendiz Jean Serval regressou da enfermaria depois de três dias de tratamento. Dois SS empurraram-no para dentro do bloco vermelho. Em qualquer outro grupo de homens, o recém-chegado teria sido assaltado por perguntas. Mas a loja ”Conhecimento” vivia de maneira diferente. Primeiro, fez-se silêncio. Em seguida, os Irmãos colocaram-se em redor do Aprendiz. Foi um Mestre, Pierre Laniel, que tomou a palavra.

 

Ficamos satisfeitos por te ver, meu Irmão Aprendiz. Se nos quiseres dar o teu testemunho...

 

A voz de Laniel tremia de emoção.

 

O Venerável está vivo disse Serval. Puseram-no ligado à enfermaria em companhia de um monge que usa plantas para tratar dos doentes. Manteve-me drogado durante todo o tempo que lá passei. Dormi. Atiraram-me para fora.

 

Os Irmãos pareceram decepcionados.

 

Pode sair?

 

Uma vez, creio que foi levado para colher plantas... Deu-as ao Monge.

 

Como se entende ele com o Monge? interrogou Dieter Eckart.

 

Tratam juntos dos doentes... Falam em voz baixa. Não ouvi quase nada da conversa deles. O Monge não tem um ar agradável.

 

Amigo ou inimigo?

 

Mais inimigo... Talvez seja um bufo. Mas não voltei de mãos a abanar. Trouxe alguma coisa.

 

Com o sorriso nos lábios, o Aprendiz abriu a mão. Mostrou três velas pequenas. Cada irmão contemplou à vontade aquele tesouro inestimável.

 

Já temos três pilares comentou Dieter Eckart. O resto há-de vir.

 

O que são os chamados três grandes pilares, Venerável?

 

O comandante, sempre com o ajudante-de-campo ao lado, não dava o menor descanso ao Venerável. Desde que este tinha sido introduzido no seu gabinete, as perguntas tinham chovido.

 

São os símbolos da sabedoria, do poder e da harmonia.

 

Exacto, Venerável. Conhece bem o seu rito apreciou o comandante fechando o ”Manual do Aprendiz do Rito Escocês Antigo e Aceite” que tinha à sua frente. O documento era um caderno de algumas páginas dactilografadas presas por grampos. Fora descoberto nos papéis pessoais de um maçon abatido em casa quando tentava fugir.

 

Tem algum pedido a formular, Venerável?

 

Há mais de três dias que nos recusam qualquer saída, ao Monge ou a mim. Já não temos plantas e os medicamentos são muito poucos para tratar dos doentes. Protesto a título profissional. Alguns vão morrer. Há afecções benignas que vão degenerar. Não posso continuar a garantir a higiene do campo.

 

O alemão enrubesceu.

 

Não tem nada que garantir! Sou eu que dirijo este campo e tomo as decisões! Contente-se em responder-me se quer que os seus Irmãos continuem com vida.

 

O Venerável sentiu que tinha marcado um modesto ponto. O comandante perdera as estribeiras. Por instantes deixara de ter o controlo de si mesmo.

 

Os medicamentos são reservados aos soldados alemães.

 

Como quiser. Dentro de menos de uma semana, haverá pelo menos três mortos na enfermaria.

 

Não serão os primeiros, Venerável! O Reich não se sobrecarrega com seres fracos. Desembarace-se com os meios que tem. O Monge fez-me saber que não é muito cooperante.

 

O Venerável empalideceu. Então o Monge era um vendido. O último dos safados. Um fulano que vendera a alma para salvar a pele. A sua missão consistia em pôr o Venerável à vontade e fazê-lo falar.

 

Não está a compreender muito bem a situação, Venerável. É a sobrevivência da sua loja que está em causa. Perde o seu tempo a preocupar-se com seres inferiores. Mais um passo em falso e será o abismo.

 

François Branier mal ouvia as ameaças. No ponto a que tinha chegado, já não o impressionavam. Observava o ajudante-de-campo hierático, silencioso. Por que tinha o comandante necessidade daquela consciência muda?

 

Voltemos à Regra, Venerável... Começo a impacientar-me. Escreva, Helmut.

 

O ajudante-de-campo colocou-se em frente da estante com a caneta de ouro da mão.

 

Quem toma as decisões na sua loja?

 

A ”câmara-do-meio”.

 

Quem a compõe? Mestres.

 

Como se torna alguém Mestre?

 

É preciso ter sido Aprendiz durante pelo menos sete anos e Companheiro durante um período deixado à apreciação dos Mestres.

 

A que provas são submetidos os Companheiros?

 

Devem realizar uma obra-prima.

 

Em que consiste?

 

Não há qualquer proibição.

 

Exemplos?

 

Vão desde um trabalho de miniaturização até à Torre Eiffel. O essencial é aplicar na matéria as leis da harmonia que nos foram reveladas.

 

E... poderia fabricar qualquer coisa? Poderia melhorar a qualidade técnica de um produto?

 

É provável.

 

Essas famosas ”leis da harmonia”... quais são?

 

Nada de teórico respondeu o Venerável. Escrevê-las em fórmulas não adiantaria nada. É uma questão de experiência no terreno...

 

O comandante-de-campo reflectiu. O Venerável mentia com certeza quanto a este último ponto, mas tinha revelado elementos essenciais...

 

Um dos Irmãos da sua loja será transferido para a oficina da fortaleza, onde aplicará os vossos segredos. Veremos se continua a jogar o jogo, Venerável.

 

E os medicamentos?

 

Helmut vai enviar-lhe um estojo de emergência. Amanhã será autorizado a sair para recolher plantas.

 

O comandante continuava a progredir no tabuleiro de xadrez. Considerava agora conhecer quase perfeitamente o seu adversário. Tentar fazer-lhe confessar tudo por atacado teria sido um grave erro. Era preciso desgastá-lo, dar-lhe algumas esperanças, acalmá-lo de tempos a tempos sem deixar de o manter seguro pela garganta, saber esperar, esperar as revelações umas atrás das outras até que o último segredo da loja ”Conhecimento” fosse revelado.

 

Aí está! exclamou Guy Forgeaud, sempre com o olho colado ao interstício.

 

O quê? perguntou Dieter Eckart, aproximando-se.

 

A ocasião que eu esperava. Um jipe carregado de material parado em frente da entrada da garagem. Captura de guerra, com certeza. Preciso de um voluntário para ir mijar. Enquanto os SS se ocuparem dele, corro até ao jipe e trago o material que puder agarrar.

 

É completamente insensato, Guy...

 

Não com a penumbra e na altura da rendição. Em geral, durante alguns minutos, há um abrandamento na vigilância. Compete-me a mim ser rápido.

 

Todos os Irmãos tinham ouvido. Os Mestres perguntavam a si mesmos o que teria proposto o Venerável em semelhante ocasião. Caía a noite.

 

Eu acredito afirmou Guy Forgeaud. Vai correr bem. Havia na sua voz uma tranquila convicção.

 

Já tenho vontade de mijar anunciou o industrial Pierre Laniel. Sou capaz de arrastar os pés.

 

Recolheram-se. Tinham a certeza que o Venerável teria aprovado os dois Mestres que iam arrancá-los à inércia. Guy Forgeaud continuava com o olho colado à minúscula fenda. Mal distinguia a traseira do jipe. Sons de botas. No topo da torre central, a rendição.

 

Vai, Pierre, é o momento certo.

 

Segundo o ritual específico do bloco vermelho, Pierre Laniel abriu a porta e estacou no limiar com os braços ao longo do corpo, o peito aberto. A reacção não demorou. Um SS com a arma assestada, avançou na sua direcção. Laniel fez um gesto eloquente e inclinou a cabeça na direcção do bloco das casas de banho.

 

O alemão hesitou. Olhou para trás, esperando a aprovação do administrador que atravessava o pátio. Pierre Laniel considerou que Guy Forgeaud, como habitualmente, analisara bem a situação. Havia uma hesitação. O SS levou Laniel até junto do administrador.

 

Forgeaud reteve a respiração. Quando o SS voltou as costas, saiu do bloco vermelho agachado e correu para o jipe. Em meias, não fazia qualquer ruído. O cascalho do pátio feria-lhe as plantas dos pés, mas esqueceu a dor para se concentrar no seu objectivo. Em poucas passadas atingiu as traseiras do veículo. Estava demasiado escuro para que conseguisse detectar o material acumulado no jipe. Os dedos agarraram num saco de juta. Quase sem parar, regressou ao bloco vermelho.

 

O incidente verificou-se a meio do percurso. O pé direito de Guy Forgeaud bateu numa pedra. Não perdeu o equilíbrio, mas o fundo do saco bateu no chão. Um ligeiro som metálico espalhou-se pelo ar gelado.

 

Pierre Laniel e os SS iam a chegar ao bloco das casas de banho. O Mestre maçon teve a presciência do perigo. Ouviu o som no instante em que se produziu. A catástrofe. O administrador, que se mantinha à esquerda, ia virar a cabeça. Laniel mergulhou na direcção das suas pernas.

 

Guy Forgeaud esperava pela rajada que lhe ceifaria as costas. Corria, curvado. Ainda acreditava. A porta do bloco vermelho entreabriu-se no momento em que lhe ia tocar. Atirou o saco para dentro e atirou-se ao chão. Os Irmãos levantaram-no imediatamente.

 

Estás ferido?

 

Nada, nada respondeu Guy Forgeaud num sopro. Por pouco não ia desta para melhor.

 

Raoul Brissac, o pedreiro, e André Spinot, o oculista, abriram o saco. Continha chaves inglesas e uma régua metálica.

 

Fabuloso considerou o Companheiro Brissac.

 

Tinham todos os mesmos pensamentos. Em breve teriam o que era preciso para celebrar uma ”reunião”.

 

Desde que o Venerável regressasse...

 

Passou um quarto de hora. O medo e a excitação tinham passado. Jean Serval, o Aprendiz, e os Companheiros Spinot e Brissac tinham escavado um buraco para esconder a sua colheita. Reinava a escuridão no bloco. Nenhum ousava pronunciar a mínima palavra.

 

Pierre Laniel não tinha regressado.

 

 

A noite tinha já caído há muito tempo quando os SS empurraram o Venerável para o interior da enfermaria. O Monge, sentado no cubículo, rezava, passando o rosário que lhe servia de cinto.

 

O Venerável, em pé, imóvel, fitava-o.

 

Levante-se ordenou François Branier.

 

Porquê?

 

Não bato num monge sentado. Mesmo que seja um bufo. O irmão Benoit parou de passar o rosário.

 

O que se passa?

 

Levante-se.

 

Só obedeço a Deus. Se quiser bater, bata. Mas gostava de compreender.

 

O comandante da fortaleza comunicou-me o seu relatório. Gozou bem comigo.

 

Que relatório?

 

Acabou a comédia. Em pé.

 

O Monge levantou-se lentamente, alisando o hábito de burel.

 

Bufo... foi essa a palavra que pronunciou?

 

Foi o papel que desempenhou. A barba do Monge tremia.

 

E foi tão estúpido que acreditou num oficial nazi... É o fulano mais mesquinho que já encontrei. Venerável... Quem poderia venerá-lo?

 

O frente a frente eternizou-se. Cada um esperava que o outro batesse primeiro.

 

Apresento-lhe as minhas desculpas disse François Branier, sem baixar o olhar.

 

O Monge encolheu os ombros e voltou a sentar-se.

 

É normal, para um descrente. O Venerável imitou-o.

 

Tenho uma confiança total nos meus Irmãos. Vivemos a mesma iniciação. As mesmas provações. Nós é que estamos no centro do Inferno, não o senhor. Isso não desculpa o meu erro, mas explica-o.

 

Tem falta de fé. Está habituado a duvidar dos outros e na realidade não vê claro à sua frente. Como o seu Grande Arquitecto, duvida da sua criação. Se me atrevesse...

 

O meu arrependimento não lhe basta?

 

O sorriso interior do Monge espalhou-se-lhe no rosto.

 

O passado não me interessa. Tenho uma aposta a propor-lhe, Venerável. François Branier contemplou o Monge, intrigado.

 

Tem o direito de recusar. Teria sem dúvida conseguido convertê-lo. Tenho a eternidade por minha conta. Mas aqui temos o tempo contado. É por isso que recorro a uma aposta. Na condição de ter a coragem de pôr tudo em jogo.

 

O Venerável interrogava-se intimamente para onde quereria o Monge arrastá-lo. Mas estava decidido a não recuar, fosse qual fosse o risco a correr. Era esse o preço do seu erro.

 

Acredita realmente no seu Grande Arquitecto do Universo?

 

É muito mais do que uma crença. O grande Arquitecto é o princípio de toda a vida.

 

Para mim, é Deus. Acredito nele. Sei que me fará sair vivo daqui. Para provar que a fé tem um sentido. Não é vaidade, Venerável. É um acto de amor. Quando esta tempestade acalmar, quando Deus me tiver permitido recuperar a liberdade, construir-lhe-ei uma capela. E assim saberá que estava enganado. Que o Grande Arquitecto não existe.

 

Aceito a aposta. Se o Grande Arquitecto do Universo me permitir voltar a ver a luz, construir-lhe-ei uma loja. Saberá então que se enganou. Dê-me a sua mão direita com a palma aberta.

 

O Monge obedeceu. O Venerável bateu, à maneira dos antigos, para selar o pacto.

 

Juro respeitar os termos do nosso mútuo empenho.

 

Juro também afirmou o Monge, batendo por sua vez. Quando a minha capela estiver terminada, rezarei por si, esperando que o Senhor se digne abrir-lhe os olhos no além.

 

O seu Deus é muito ameaçador... O Grande Arquitecto não recompensa nem castiga ninguém. Mas está presente entre os que actuam em seu nome. Celebrarei a sua memória quando os meus Irmãos e eu vivermos a nossa primeira ”reunião” na nova loja.

 

O Monge pareceu aborrecido.

 

Lamento que tenhamos chegado a uma solução tão brutal... mas o seu Grande Arquitecto não passa de uma ilusão do espírito. Vai compreendê-lo no momento da sua morte, tenho a certeza. Nesse instante, volte-se para Deus. Talvez o acolha. A sua bondade é infinita.

 

O Venerável pareceu tão entristecido como o Monge.

 

Seria tão simples, com efeito... Um acto de fé e tudo estaria dito. O Grande Arquitecto só se revela aos que seguiram o caminho da iniciação. Há-de compreendê-lo quando a sua fé o abandonar. Mas será talvez tarde demais para solicitar a entrada no templo.

 

Não tem importância retorquiu o Monge. Ao envergar este hábito de burel, entrei no templo do Senhor. Ele será a minha mortalha. Não preciso de mais nada.

 

Optou por deixar o mundo, entrar num mosteiro, rezar, trabalhar no interior da sua comunidade... Isso também me tentou. Mas escolhi outra via. A mais difícil. Estar ao mesmo tempo no interior e no exterior do templo. Transmitir para fora o que me foi transmitido lá dentro.

 

Acredita poder mudar o mundo, Venerável?

 

Porque não? Em todo caso, dar testemunho de que é possível... como João, a testemunha da luz.

 

O Monge não gostou da comparação. Preparava-se para amaldiçoar mais uma vez o Venerável pelas suas blasfémias quando a porta da enfermaria se abriu, deixando entrar uma corrente de ar gelado no cubículo. Vários SS, nervosos, entraram. Obrigaram o Monge e o Venerável a levantarem-se.

 

De pé. Imediatamente.

 

Um calafrio percorreu a espinha dorsal do Venerável. Iam executá-los friamente no escuro da noite. Não voltaria a ver os Irmãos.

 

Levaram-nos até em frente do bloco das casas de banho, onde outros SS formavam círculo. Entre eles, Klaus, o oficial superior.

 

Olhem ordenou.

 

O círculo abriu-se. O Monge e o Venerável viram um homem estendido no chão, de olhos abertos, com um delgado fio de sangue a correr-lhe da têmpora.

 

Pierre...

 

O Venerável murmurara o nome do Irmão. Para si mesmo, para a loja. Antes de se inclinar para ele já sabia que estava morto. Pierre Laniel, Mestre maçon da loja ”Conhecimento” terminara os seus sofrimentos. O Venerável apoiou um joelho em terra, fechou-lhe os olhos e traçou-lhe o sinal do esquadro sobre o coração.

 

O detido agrediu o administrador comentou o oficial superior, irritado. Teve apenas o que merecia.

 

François Branier levantou-se. Chorava intimamente.

 

Reconduziram o Monge e o Venerável à enfermaria. O trajecto pareceu interminável a este último. Quando a porta se fechou, ocultou o rosto entre as mãos, apoiando a testa na parede. O Monge aproximou-se.

 

Não conheço nada mais insuportável do que as condolências, Venerável... Quero apenas que saiba... Abençoei o corpo do seu Irmão.

 

Pierre Laniel comportou-se como um louco criminoso.

 

O comandante-de-campo pronunciara a sua sentença sem interromper a leitura do relatório que tinha debaixo dos olhos. François Branier mantinha-se de pé em frente da sua secretária. Estava ladeado por Klaus, o oficial superior, e por Helmut, o ajudante-de-campo.

 

O Venerável mantinha a imobilidade de uma pedra.

 

A morte de um Irmão... O momento em que o insuportável penetra na pele, no ventre, onde a vida deixa de ter qualquer gosto. Pierre Laniel... o Companheiro de todos os combates, o homem da sombra que abolira qualquer ambição pessoal para servir a loja, o pesquisador obstinado, preciso, aquele que exigia a perfeição em tudo sem nada impor a ninguém.

 

Laniel que, como os outros Irmãos da ”Conhecimento”, prestara um juramento no dia da sua primeira iniciação: ”Prometo verter até à última gota do meu sangue em defesa da comunidade iniciática que me dá a vida.” Um juramento que alguns talvez tivessem considerado como formal e que assumira todo o seu valor naquela noite glacial, isolada da humanidade, longe da luz.

 

O seu Irmão Laniel provocou o meu administrador recomeçou o comandante. Os nervos cederam da maneira mais estúpida. Isso espanta-me da parte de um Mestre da sua loja...

 

O Venerável mal ouvia as palavras de acusação pronunciadas em tom adocicado. Tentava permanecer próximo de Pierre Laniel, não largar aquela mão que tantas vezes apertara na cadeia de união.

 

Faço questão de lhe recordar, Venerável, que o senhor e os seus Irmãos são prisioneiros realmente privilegiados. Não tenho possibilidade de os mandar transferir imediatamente para um campo de reeducação com regime severo. Onde seriam separados, bem entendido. Aqui, permanecem juntos e gozam de um regime de detenção simples. O seu gabinete está pronto, Venerável. Vão conduzi-lo lá. Continue a mostrar-se cooperante. Não há outra forma de salvar a vida dos seus Irmãos. Estamos entendidos?

 

O comandante não conseguiu prender o olhar do Venerável. Perguntou a si mesmo se o chefe da loja ”Conhecimento” não tinha estoirado também, se não estava reduzido a um fantasma de homem. Tão perto do objectivo... Mas talvez não passasse de uma reacção momentânea. Com a ajuda do tempo, François Branier seria forçado a regressar à realidade. Um Venerável não podia ser destruído pela primeira vaga de fundo, mesmo que fosse a morte de um Irmão.

 

O comandante manteve a confiança.

 

Os sobreviventes da loja ”Conhecimento” contemplaram a sua riqueza à luz de um fósforo proveniente de uma caixa roubada pelo Aprendiz Jean Serval na enfermaria. Guy Forgeaud colocara no chão do bloco a totalidade do conteúdo do saco de juta trazido da sua expedição: chaves inglesas, régua metálica e martelo. Um após outro, os Irmãos tocaram no metal frio como se se tratasse do ouro mais puro.

 

Nunca mais reveremos o Venerável afirmou Guy Forgeaud, acariciando uma chave. Vão abater-nos um a um. Com isto, poderemos pelo menos morrer dignamente.

 

Dieter Eckart, que ocupava a posição mais elevada na loja na ausência de François Branier, não interveio. Não encontrava palavras para acalmar a cólera gelada do Irmão. Conhecia bem Forgeaud. Iria até ao fim se nenhum argumento travasse a sua decisão.

 

Se utilizares isso contra os SS adiantou o Companheiro André Spinot, o oculista é necessário pelo menos um plano de evasão. Caso contrário, será um suicídio.

 

Não tenho intenção de me suicidar retorquiu Guy Forgeaud. Mas não posso agir sozinho.

 

Raoul Brissac, o Companheiro pedreiro, avançou. Tal como Guy Forgeaud, estava farto de inacção. Perdido por perdido... mais valia que os torcionários não saíssem indemnes do último combate da ”Conhecimento”.

 

Dieter Eckart permaneceu silencioso.

 

O ajudante-de-campo introduziu o Venerável no ”seu” gabinete, no segundo andar da torre. Um compartimento sem janelas, de tecto baixo. Uma cadeira e uma mesa. Sobre esta, folhas de papel e uma caneta de tinta permanente.

 

Instale-se e escreva ordenou o ajudante-de-campo. Voltarei para o vir buscar daqui a algumas horas.

 

A porta fechou-se. A chave girou na fechadura. O Venerável permaneceu de pé durante um longo momento. Curiosamente, aquele reduto surgiu-lhe como uma enseada de paz e de liberdade. Só consigo mesmo, com o espírito da sua loja, ia poder recuperar um pouco.

 

O lugar fazia-lhe lembrar o local simbólico que os maçons denominam ”gabinete de reflexão” e onde começa uma existência iniciática. Depois de ter sido submetido aos três ”inquéritos” em que os Irmãos da loja o tinham interrogado sobre a sua vida e o seu pensamento, o profano Branier enfrentara a prova com a venda. Sentado numa cadeira, com os olhos vendados, sem saber onde se encontrava, tivera que responder a múltiplas perguntas. Regressara a casa desconhecendo se tinha sido aceite ou recusado. Depois de três dias e três noites em que tivera dificuldade em conciliar o sono, François Branier recebera um telefonema. O processo continuava. Em breve iria receber a primeira iniciação, a do grau de Aprendiz.

 

Chovia nessa noite. Em frente da entrada do edifício do XVII bairro de Paris, esperara no passeio perto de uma hora antes que um homem idoso viesse buscá-lo. Sem dizer uma palavra, conduzira-o a uma cave e encerrara-o num cubículo quadrado. Uma mesa sobre a qual estavam colocados três cadinhos com sal, enxofre e mercúrio. Na parede, um galo, uma inscrição alquímica e um apelo ao despertar do ser interior do homem. Branier redigira um ”testamento filosófico”, examinando o seu passado sem indulgência, tomando consciência que a sua vida de homem não passava de uma obra inacabada, desordenada, incompleta. Esperava da iniciação uma luz, um olhar diferente.

 

Não ficara decepcionado. Com o correr dos anos, muitos véus se haviam rasgado. Tivera tantas pesquisas exaltantes, tantas emoções partilhadas com os Irmãos, tantas responsabilidades a assumir para respeitar e viver a Regra do Grande Arquitecto do Universo. Até àquele momento em que os Mestres lhe tinham confiado o cargo de Venerável.

 

Solidão de um homem cuja função era ser a expressão de uma comunidade... eis o doloroso paradoxo com que se defrontava no presente François Branier. Sem o seu Venerável, a comunidade girava sobre si mesma, não evoluía. Precisava de se reunir com os Irmãos custasse o que custasse para celebrar um ritual, para que se evadissem todos juntos pelo caminho dos símbolos.

 

O Venerável instalou-se à mesa de torturas onde o único instrumento destinado a fazê-lo sofrer era uma caneta de tinta permanente com aparo de ouro.

 

François Branier não gostava de escrever. Redigir uma receita já era uma provação. Agora, pediam-lhe que formulasse a Regra, traísse o seu juramento, oferecesse o mais precioso dos tesouros a um bando de loucos criminosos.

 

O mais insuportável era a separação dos Irmãos da sua loja. Juntos na mesma prisão e no entanto tão longe... O Venerável tinha medo por eles. Como os tratariam? Que sevícias lhes impunham? O que tentara realmente Pierre Laniel? Conhecia demasiado bem os iniciados da ”Conhecimento” para supor por um instante sequer que permanecessem passivos, de braços cruzados, esperando que os executassem como animais dóceis. Estavam com certeza convencidos que nunca mais veriam o seu Venerável, certos de que a loja vivia os seus últimos momentos e que mais valia morrer tentando uma evasão.

 

O Venerável escreveu no alto da folha de papel ”Ano de verdadeira luz

5944” e intitulou o documento ”Testamento da loja Conhecimento ao Oriente de...” Parou. O Oriente era o local geográfico onde uma loja se reunia. Mas era também o lugar mágico onde, trabalhando juntos, os Irmãos faziam renascer a luz. Certamente o Venerável nunca ficaria a saber o oriente geográfico daquela fortaleza nazi. Escreveu: ”Ao Oriente de uma montanha de Primavera”. Depois surgiram as primeiras frases que teria de trocar pela vida dos seus Irmãos:

 

”Esta é sem dúvida a última expressão da Regra sobre a terra do Ocidente, antes que desapareçam os homens que consagraram a sua vida à iniciação. De templo em templo, de estaleiro em estaleiro, de geração em geração, a Regra foi transmitida a fim de que o homem continue a construir-se. Hoje, a noite cobriu o nosso mundo. Devoradora, tudo engole. Tudo, excepto esta Regra que é o único instrumento de criação.”

 

O Venerável escreveu durante muito tempo, rasgou páginas, recomeçou. Tinha longos dias de trabalho em perspectiva para evocar os aspectos da Regra relativos aos Aprendizes, aos Companheiros, aos Mestres, às festas de S. João, aos diferente tipos de ”reuniões” e de encontros, aos trabalhos iniciáticos cuja verdadeira natureza a maior parte das lojas ignorava. E quando tudo aquilo estivesse divulgado, faltaria ainda a pedra fundamental do edifício, aquela que devia dar um sentido a tudo o resto e que nenhum Mestre de loja revelara, nem mesmo por alusão.

 

Quando François Branier chegasse a esse ponto, seria o verdadeiro términos da viagem. E teria que tomar a mais dilacerante decisão: ou calar-se e condenar os Irmãos, ou falar e trair o seu juramento.

 

O Venerável espreguiçou-se. Sentia-se menos esgotado, menos desencorajado. Já não tinha qualquer esperança de escapar à mecânica monstruosa que o esmagava, mas sentia-se conformado com o seu caminho. Dispunha novamente da força necessária para enfrentar a fortaleza.

 

O uivo sinistro de uma sirene encheu a noite.

 

 

O ajudante-de-campo abriu a porta do gabinete. Estava acompanhado por dois SS,

 

Siga-me ordenou ao Venerável.

 

François Branier abandonou contra-vontade aquele local fechado, fora do espaço e do tempo.

 

O que se passa?

 

O ajudante-de-campo sorriu. O Venerável não devia ter colocado aquela questão. Não tinha nada que perguntar. Tinha deixado entender ao alemão que não estava ainda quebrado, que os seus recursos permaneciam quase intactos, que não se considerava um condenado. Um erro grave. François Branier passara uma rasteira a si próprio.

 

Não esteja inquieto, senhor Branier. Um exercício de alerta. Levo-o para a enfermaria para passar a noite.

 

O grande pátio estava deserto. Branier lançou um olhar ao bloco vermelho, onde os Irmãos permaneciam fechados. Diversos SS estavam colocados em frente do aquartelamento com a arma na mão.

 

François Branier entrou na enfermaria. O Monge ergueu-se à sua frente.

 

Tem os medicamentos?

 

O Venerável, passando ao lado do Monge como se ele não existisse, dirigiu-se para o cubículo e sentou-se pesadamente.

 

Há horas que espero, Venerável trovejou o Monge, parado em frente do François Branier.

 

Não pude fazer nada.

 

Como não pôde fazer nada? Não viu o comandante?

 

Vi.

 

E então? Não fez negócio?

 

O Venerável ergueu os olhos para o Monge.

 

Negócio? Acha que se pode negociar alguma coisa aqui? Acha que estamos num patronato onde se trocam bons sentimentos?

 

O Monge passou o rosário sem nervosismo.

 

O que lhe fizeram?

 

Quase nada... Ou revelo tudo, ou executam os meus Irmãos. Fecharam-me num gabinete e comecei a escrever.

 

Cede, então...

 

Não sei confessou François Branier.

 

Está em maus lençóis, Venerável... Espero que o seu Grande Arquitecto não o abandone no pior momento. E quanto aos medicamentos, não há realmente nada a fazer?

 

As feições do Venerável tinham-se cavado. Aquele Monge não lhe deixava qualquer margem de manobra. Teria preferido dormir, mergulhar no nada em vez de ter de responder a perguntas sem fim.

 

Depende... Se o comandante apreciar a minhas primeiras revelações, talvez se mostre generoso.

 

Talvez... Acredita que me vou contentar com isso?

 

Não acredito. Tento.

 

Um queixume interrompeu o diálogo dos dois homens. O Monge precipitou-se para o fundo da enfermaria. O Venerável seguiu-o.

 

O velho astrólogo de Nice tinha aberto os olhos. Gemia, olhando fixamente o tecto. O Monge limpou-lhe a testa, encharcada em suor.

 

Fogo... há fogo por toda a parte balbuciou o moribundo.

 

Com a longa mão poisada sobre o peito do velho, o Monge magnetizou-o. O doente cessou quase imediatamente de suspirar. As pálpebras fecharam-se. O corpo distendeu-se e voltou a mergulhar no torpor.

 

Vai durar o tempo que durar comentou o Monge. Não posso fazer melhor.

 

Amanhã disse o Venerável vou pedir para ver o comandante antes de continuar a escrever.

 

Talvez não seja má ideia resmungou o Monge. Tenho três que estão a enfraquecer a olhos vistos. E parece que vamos receber um novo contingente de doentes...

 

Como soube isso?

 

Tenho os meus pequenos segredos. Agora, ao trabalho. Trate da fila da direita. Eu ocupo-me da da esquerda. Preparei decocções em duas vasilhas. A sua está ao pé da cama.

 

François Branier agarrou no recipiente cheio de um líquido verde, espesso. Só Deus sabia que mistura inventara o Monge. O Venerável provou. Cuspiu imediatamente. Inqualificável.

 

O que pôs aqui?

 

O que temos. Trate dos doentes.

 

Às vezes, aquele Monge merecia uma resposta torta. Mas o Venerável preferiu não responder. Começou a litania dos cuidados mínimos pontuados por palavras de conforto. Era preciso dar e continuar a dar, mesmo o que não havia, àqueles que já não possuíam mais nada, nem sequer a sua própria existência, diluída no desespero.

 

O Venerável tinha um aroma de floresta na boca. Talvez um resto do gosto da diluição do Monge. Era embriagante. A enfermaria, os doentes, a morte rastejante... tudo se esfumava. Havia caminhos verdes, fetos, tapetes de musgo, árvores com as copas trespassadas pelo Sol, ramos entrelaçados curvados até ao chão. François Branier vivia aquela sensação com tal intensidade que se tornava real.

 

Esqueceu um dos doentes interveio o Monge, furibundo. François Branier lançou-lhe um olhar agressivo. Tinha-se quebrado o sonho. De novo o inferno.

 

E se me deixasse em paz?

 

O Monge permaneceu impassível.

 

Tem a cabeça noutro lado, Venerável. Não está presente. Isso é muito mau. Tanto para si como para os doentes.

 

No mosteiro também dava lições o dia inteiro? Nós, na loja, evitamos fazê-lo.

 

É normal. Não sabem nada. Os maçons são uns incapazes.

 

Acha então que a sua bela religião não provocou catástrofes suficientes na terra?

 

Não sou missionário nem padre. Sou monge beneditino.

 

E eu sou Venerável de uma loja iniciática.

 

- Os dois homens desafiaram-se. Nem um nem outro estava decidido a ceder primeiro. A fadiga dominava-os. Mas ceder seria reconhecer a superioridade do outro. Pior ainda, a sua verdade espiritual.

 

Um doente chamou. Um grito quase sufocado.

 

Eu trato dele declarou o Venerável.

 

Veja se desta vez presta atenção...

 

François Branier tinha sono mas não dormia. Não conseguia sequer fechar os olhos. A seu lado, com os pés para a cabeça, o Monge ressonava docemente. O seu Deus protegia-o da insónia. A menos que o beneditino fingisse estar a dormir. O Venerável não sabia o que pensar dos seus ”pequenos segredos”.

 

Teria sido tão simples levantar-se, sair daquela enfermaria, respirar o ar da noite, correr para o bloco vermelho, rever os Irmãos, morrer com eles apagando a História, o tempo, os homens. François Branier considerava-se capaz de o fazer. Mas seria isso que eles esperavam dele? Esperavam do Venerável da loja uma última loucura ou um novo combate? Tinham evidentemente a certeza que ele lutava para os tirar dali. E se, desta vez falhasse? Se ele sofresse o primeiro fracasso da sua vida iniciática? O jogo estava falseado, não conhecia as regras e, no entanto, não tinha o direito de perder. Tudo se decidia numa única partida, sem possibilidade de desforra.

 

Não pode contar uma história qualquer ao comandante? Grave, lenta, baixa, a voz do Monge vinha do além-túmulo.

 

Não tem nada que ditar a minha conduta. O diabo não manda em Deus.

 

Aqui, é caso para perguntar.

 

Quanto mais blasfemar, menos hipóteses terá de sobreviver.

 

Descanse, irmão. Vamos ter necessidade de todas as nossas forças.

 

Preciso de pouco sono. Como o senhor. O Monge aspirou profundamente.

 

Já pensou que o podem fechar definitivamente na torre? Que da próxima vez pode não regressar?

 

O Venerável esperava aquela pergunta. Tinha pensado nesse instante em que, esvaziado de toda a substância, não passaria de um fantoche entre as mãos do comandante, A menos que aquele não se impacientasse e praticasse métodos mais brutais, quebrando o pacto estabelecido com a loja.

 

Pensei nisso. Não interessa.

 

E o seu famoso segredo, Venerável? Vai arriscar-se a bater a bota levando-o consigo?

 

Tem outra solução?

 

A confissão.

 

Interdito, o Venerável observou o Monge estendido de costas, imóvel, com os olhos fechados. Podia-se jurar que dormia.

 

Isso descansaria a sua consciência. E pode ter confiança. O segredo da confissão é inviolável. Não tem qualquer relação com o dos maçons.

 

O Venerável sorriu intimamente.

 

Não interessa, irmão. A confissão parece-me degradante. E pode ter a certeza que o comandante-de-campo apostou nisso. Se nos deixa juntos é para que conversemos, para que eu acabe por me confessar a si. Deve estar convencido que já conhece uma parte do meu segredo. Se eu morrer, se os meus Irmãos morrerem, cairá sobre si. Não é maçon, irmão, mas tornou-se cúmplice da loja.

 

A madrugada nasceu no bloco vermelho por uma fresta minúscula entre duas tábuas. Guy Forgeaud conseguira arrancar um bocado suficientemente grande para poder observar melhor o que se passava no pátio. Depois, colocava-o no mesmo lugar. A camuflagem aguentava. Os cinco Irmãos tinham estabelecido turnos de vigia, de maneira a que pelo menos um deles permanecesse acordado enquanto os outros dormiam. Assim tinham a impressão de combater, de não abdicar. A vigilância era uma arma eficaz. A morte não os apanharia de improviso.

 

O Aprendiz Jean Serval colou o olho à fresta. Fora acordado uns dez minutos antes por Dieter Eckart. Serval não se atrevera a confessar-lhe que lhe doía a barriga. Uma dor que lhe perfurava os intestinos. A fome e o medo. Só existia em função do olhar dos Irmãos. Estava convencido que, se o isolassem, se desmoronaria imediatamente. Serval não estava preparado para semelhante provação. Antes, sempre levara uma existência mimada. A sua entrada para a loja alterara-lhe o destino. Ele, que se preparava para se tornar um escritor mundano, envolto nas mesquinhices do parisianismo, descobrira as exigências da Regra. Perdido no inferno daquela prisão nazi, não lamentava a sua escolha. Nunca seria uma vedeta literária, mas tornara-se um iniciado, mesmo tendo franqueado apenas a porta da aprendizagem. O seu único remorso era não ter trabalhado com suficiente intensidade para atingir o grau de Companheiro.

 

Uniformes. Silhuetas negras na madrugada vermelha. Klaus, o oficial superior SS, acompanhado por quatro soldados. Jean Serval precipitou-se para os Irmãos adormecidos, acordou-os.

 

Em pé! Eles vêm aí! Dieter Eckart, Guy Forgeaud, André Spinot e Raoul Brissac levantaram-se imediatamente. Mal tinham sentido os músculos doridos protestar com o esforço violento, a porta do bloco abriu-se. Uma luz muito branca agrediu-os. O oficial superior, em contraluz, formava uma mancha negra no raio de sol.

 

Ordem do comandante anunciou. Um de vocês deve ser transferido para a oficina da fortaleza.

 

Dieter Eckart, colocado à frente dos Irmãos, pareceu não sentir qualquer emoção. Se tivesse sido escolhido, sentir-se-ia incapaz de cumprir semelhante papel. Teria sido uma condenação disfarçada. O Aprendiz Jean Serval tremia. Os dentes rangiam roçando uns nos outros. Se o isolassem da comunidade, estaria arrumado. André Spinot, o oculista, abrigava-se por trás da massa reconfortante de Brissac. O trabalho manual não o assustava. Mas entregue a si próprio, longe do conforto fraterno, como reagiria? O pedreiro Raoul Brissac esperava ser o voluntário designado. Roubaria as ferramentas. Travaria o seu combate. Havia de fazer pagar aos animais que tinham assassinado Pierre Laniel. Guy Forgeaud, o mecânico, só estava inquieto pelos Irmãos. Não tinha qualquer hipótese de ser escolhido pelos alemães. De acordo com a lógica deles, escolheriam o menos qualificado para o humilhar, o quebrar, o levar a trair.

 

Vamos, Forgeaud.

 

O tom do oficial superior era amável, quase caloroso. Guy demorou alguns segundos a tomar consciência. Como se os alemães não existissem, abraçou fraternalmente cada um dos membros da loja sem se apressar. Talvez fosse a última vez.

 

Até breve, rapazes!

 

A voz era neutra, branca. Acertou o passo pelo dos SS.

 

 

A casa de banho grande, Venerável. Todo o campo por lá passa, bloco por bloco. O pessoal da enfermaria à frente de todos.

 

O Monge e o Venerável tinham sido conduzidos até à frente do bloco de duches de madrugada. Alguns instantes antes, tinham ouvido ruídos estranhos de botas no pátio. François Branier pensara imediatamente num dos Irmãos. Mas era impossível saber o que se passava. Nem ruído de vozes nem detonação. A calma habitual regressara a seguir, como se ninguém vivesse no interior da fortaleza.

 

Klaus, o oficial superior, tinha vindo em pessoa arrancá-los ao mundo fechado da enfermaria. Como era seu hábito, o Monge desafiara-o com o olhar. Não o receava. Klaus apontara na direcção dos duches. O Monge agarrara o Venerável pelo braço, com medo que ele reagisse violentamente imaginando o pior. Branier cedera.

 

Em passo lento, os dois homens tinham atravessado o grande pátio. Os olhos do Venerável estavam perpetuamente atentos, captando tudo o que passava pelo seu campo de visão. Sem mover a cabeça, com andar pesado, absorvia tudo. O Monge avançava de cabeça curvada, olhando por baixo. Poder-se-ia jurar que não se interessava pelo que o rodeava. Na realidade, tomava nota de pontos de referência pela centésima vez. A caserna dos SS, os blocos, a torre central, o muro circundante... e aquele pátio que acabaria por conhecer ao centímetro quadrado. Com um rigor beneditino, classificava, inventariava. O Venerável julgava que o Monge meditava para esquecer o mundo exterior. O Monge achava que o Venerável estava a elaborar utópicos projectos de evasão.

 

O frio era agreste, o céu de um azul muito puro. A porta do bloco dos duches estava entreaberta, deixando ver um chão cimentado. Nenhum ruído chegava do interior.

 

O Monge e o Venerável esperavam há mais de um quarto de hora.

 

Não compreendo disse o Monge. Da última vez, mandaram-me entrar directamente.

 

Talvez não seja para tomarmos duche observou o Venerável.

 

O que quer dizer? O Venerável não respondeu. O Monge sentiu formar-se uma bola na garganta. Não gostava daquilo. Os alemães tinham hábitos imutáveis. Algo se preparava. Um acontecimento de que eles pareciam ser os actores privilegiados.! A alguma distância, SS hieráticos vigiavam-nos. Fosse como fosse, não os iriam alvejar como coelhos...

 

Se corrêssemos para os duches? propôs o Venerável.

 

Não há saída possível objectou o Monge. - Se nos fecharmos lá dentro, estamos feitos.

 

De qualquer forma..

 

Não se faça idiota, Venerável. Não é mais do que um grão de areia na engrenagem. O senhor e eu não temos direito a errar. Esperemos.

 

Esperar... uma bala nas costas?

 

Não vamos morrer assim. Rápido demais. Não agradaria ao comandante. Quem sabe?

 

Conseguiam falar quase sem mover os lábios. As palavras saíam num murmúrio apenas audível que era suficiente para se compreenderem.

 

Não vá, Venerável. É uma cilada.

 

O rosto de François Branier tinha endurecido. Contraía-se para saltar melhor. O Monge detectou-lhe a intenção.

 

Se fizer isso, condena-nos a todos... Aos seus Irmãos, a si mesmo, a mim... François Branier não tinha o costume de hesitar. Quando tomava uma decisão, mantinha-a. Mas havia uma incerteza que não conseguia dissipar.

 

O que propõe, irmão.

 

Nada, Venerável. Tenha confiança em Deus. De momento, basta.

 

Se isso lhe dá prazer...

 

Os nervos do Venerável descontraíram-se. O Monge sentiu-o. Soube que tinha ganho. François Branier censurou a si mesmo o que considerou como uma espécie de cobardia. Sofrera a influência de um profano. Mas aquele beneditino podia ser assim considerado? O Venerável sentiu-se dominado por uma vertigem. Havia os iniciados e os profanos. Entre eles, uma barreira intransponível. Era assim desde a origem dos tempos e sempre assim seria. O que tinha o Monge a ver com aquela ordem eterna? Porque o perturbava, surgindo de um mundo intermédio, nem verdadeiramente iniciático, nem verdadeiramente profano? Possuía uma força e uma tranquilidade de alma que o Venerável apenas encontrara em raros Irmãos. Adquirira-as sem dúvida praticando uma regra, vivendo em nome de um princípio superior a que chamava Deus. Mas devia haver outras explicações. Muitos religiosos seguiam um modo de vida idêntico e não se pareciam com ele.

 

O Monge estava menos seguro de si do que alguma vez tinha estado. Rezava. Não se mexia, não olhava para nada, forçando-se a permanecer dentro de si mesmo para conseguir o máximo de serenidade. Não acreditara conseguir reter o Venerável, uma pessoa indomável, radicado na sua comunidade como num paraíso inviolável. Evitara-lhe um erro fatal? Estava enganado ao afirmar que aquela espera era uma cilada? Único ponto positivo: mantivera as rédeas da situação. O Venerável cedera. Ele, o indivíduo mais extraordinário que encontrara fora do mosteiro. O Monge não tinha a menor dúvida sobre a vocação satânica dos maçons, mas este não se parecia em nada com os seus confrades. Falava da Regra como se fosse monge... a Regra que considerava como seu principal segredo! Havia naquilo um tremendo logro que o Monge jurara a si próprio esclarecer. Obrigando o Venerável a baixar a guarda, cada dia mais, acabaria por decifrá-lo.

 

O dia invadira o pátio. Passavam soldados. Um veículo arrancou, subiu a rampa da garagem e saiu da fortaleza pelo grande portão, rapidamente fechado de novo. Um dia normal.

 

Uma cãibra disse o Venerável.

 

Gire o pé em todos os sentidos recomendou o Monge.

 

Não vou dar espectáculo. Sou obrigado a mexer-me. Não tenho alternativa. Vou correr para os duches. Vem comigo?

 

O Monge censurou-se intimamente pela sua vaidade. Julgava ter dominado o Venerável mas estava enganado. Permanecer ali, sem se mexer, enquanto ele avançava... O Monge não se sentia capaz. Não queria deixar ao Venerável o privilégio de morrer combatendo. Deus não o permitiria.

 

Lamento tê-los feito esperar disse Klaus, o oficial superior, interpondo-se entre os dois homens e a entrada para os duches. Um contratempo técnico. Tínhamos falta de desinfectante.

 

O alemão apresentava uma expressão satisfeita. O Venerável concedeu a si mesmo uma longa expiração. O Monge olhou-lhe para os pés.

 

Um vulto ágil, leve, rápido, vestido de preto entrou no bloco dos duches transportando um pesado bidão. O Venerável reconhecera-a, apesar da indumentária. Era a jovem loura do chalé. A sua aliada. Prendera os cabelos num carrapito e ocultava-os por baixo de um boné cuja pala lhe dissimulava a testa. Devia prestar alguns pequenos serviços em troca da protecção dos SS, a menos que tivesse sido integrada no pessoal militar. Mas o Venerável não podia admitir que ela partilhasse aquela loucura.

 

A desinfecção durou apenas alguns minutos. A rapariga voltou a sair, cumprimentou desajeitadamente o oficial superior e eclipsou-se. Com um gesto, Klaus ordenou ao Monge e ao Venerável que entrassem no interior do bloco.

 

Uma sala de duches para uma dezena de pessoas. Despiram-se. Uma água fria brotou dos chuveiros. Gelou a pele do Venerável que se habituou rapidamente à sua mordedura. Lavar-se, purificar-se... era bom. O Monge escolhera o lugar do fundo. De repente, baixou-se, levantou uma laje. Surgiu uma cavidade. No interior, um saco de pano.

 

A água parou de correr. Ainda molhado, o Monge precipitou-se para a roupa, enfiou-a e dissimulou o saco achatando-o de encontro ao peito. Apertou o rosário que fazia de cinto para o impedir de escorregar. O Venerável vestiu-se.

 

Foi ela que lhe trouxe isso?

 

O Monge ignorou a pergunta. Saiu em primeiro lugar do bloco dos duches, caminhando com passos cautelosos.

 

O conteúdo do saco de pano estava espalhado sobre a cama improvisada, no cubículo da enfermaria. Minúsculas bolas de pão recheadas de queijo.

 

Eis o meu tesouro explicou o Monge. É por isto que ela arrisca a pele de cada vez que vem desinfectar os duches. Os doentes adoram. É ela própria que os coze. Não lhes vai tocar, nem que morra de inveja.

 

O Venerável encolheu os ombros.

 

Não lhe arranja nada mais útil?

 

Nunca falei com ela. Age como muito bem lhe apetece.

 

Como descobriu aquele esconderijo?

 

Ela tinha-o deixado aberto na primeira vez em que tive direito a duche, sozinho.

 

Não receou uma provocação?

 

Receei... mas pensei nos doentes. Seria sempre esse o preço.

 

Podíamos tentar obter medicamentos por intermédio dela...

 

O Monge iniciou a sua distribuição de bolas de pão. Os doentes devoraram-nas com avidez, quase sem mastigar. Um perfume a queijo que tinha um gosto de liberdade e de dias felizes.

 

Deixe a rapariga em paz recomendou o Monge. Já assim está bastante comprometida.

 

O Venerável fez o velho astrólogo de Nice comer uma bola de pão. Continuava a morrer. Os lábios estavam pergaminhados.

 

Vai arder tudo murmurou, mastigando com dificuldade. Tudo... O fogo virá pelo céu, não escapará ninguém... ninguém!

 

O astrólogo endireitou-se, arqueou o busto, repetiu as mesmas frases uma dezena de vezes e depois voltou a deixar-se cair, inerte, com os olhos fixos no tecto da enfermaria.

 

O Monge e o Venerável cumpriram a sua tarefa quotidiana. Limpar os doentes, as camas, administrar alguns cuidados, pronunciar as fórmulas de conforto que já não enganavam ninguém.

 

Porque não o vêm buscar de novo? perguntou o Monge. As suas revelações bastaram-lhes?

 

A porta do bloco abriu-se. Surgiu Klaus, o oficial superior. O Venerável fitou-o de frente.

 

Não é a si que venho buscar. O comandante espera o irmão Benoit.

 

 

O comandante-de-campo estava a almoçar. Salada verde, cabrito assado e queijo de cabra. Um fornecimento especial quotidiano. Uma necessidade para manter o moral de um homem a quem o Reich confiava uma missão decisiva.

 

Todas as noites, no silêncio quase absoluto, o comandante redigia um longo relatório, analisando com minúcia o comportamento do Venerável, dos Irmãos da sua loja e do Monge. Era indispensável apostar naqueles três registos ao mesmo tempo.

 

Os primeiros resultados obtidos tinham sido considerados interessantes. Os objectivos ainda estavam longe, mas a progressão parecia constante.

 

As defesas do Venerável esboroavam-se. Sabia que estava preso na armadilha não via escapatória. A sua fraqueza era a loja. Não abandonaria os Irmãos e nãol tinha o direito de se sacrificar a si próprio. Era portanto obrigado a revelar os diversos aspectos da Regra. É um facto que utilizava a demora, retardando as] últimas revelações, a divulgação dos segredos que conferiam à ”Conhecimento! o seu carácter único e os seus poderes excepcionais. Os Irmãos fechados nos blocos vermelhos viviam horas cada vez mais penosas. Privados do seu chefe,! não sabendo o que lhe acontecia, imaginando o pior, acabariam por perder a] reduzida esperança de que ainda se alimentavam. Na sua situação, seriam incapazes de manter a coesão. A morte de Pierre Laniel abalara-os, mas o comandante queria melhor: dividi-los, opô-los uns aos outros, provar ao Venerável que a sua loja se desmoronava. Seria um golpe decisivo.

 

O comandante estava indeciso sobre as circunstâncias da morte de Pierre] Laniel. Loucura momentânea? Desejo suicidário? Acidente? Não havia explicação satisfatória. Uma maquinação montada pelos Irmãos, mas com que intenções?

 

De que lhes poderia servir a morte de Laniel? Tinham-se desembaraçado do elo mais fraco da corrente? No entanto, Pierre Laniel não dava a impressão de ser frágil. Uma loja como aquela não devia, teoricamente, comportar-se de forma tão brutal para com um dos seus. Mesmo separado dos Irmãos, o Venerável exercia provavelmente influência sobre eles. O desaparecimento de Laniel faria parte de um plano preestabelecido?

 

Aquelas zonas de sombra incomodavam o comandante. Tinha o vago sentimento de passar ao lado de um elemento importante. No entanto, continuava a ser o senhor do jogo. Criava as regras a seu bel-prazer.

 

O cabrito assado desfazia-se na boca. Uma delícia.

 

O seu visitante anunciou o ajudante-de-campo, cingido no uniforme de gala.

 

Manda entrar.

 

O comandante poisou o garfo e afastou o prato. O ajudante-de-campo retirou-o e serviu um copo de Saint-Émihon que o seu superior saboreou com deleite enquanto a pesada silhueta do Monge, enquadrado por dois SS, entrava no gabinete. A barba hirsuta, o hábito de burel num surpreendente estado de limpeza, o rosário-cinto de contas brilhantes... O irmão Benoit enchia o compartimento com a sua presença.

 

Há já muito tempo que não tinha oportunidade de o consultar, irmão. Vai tudo bem?

 

Não. Tenho falta de medicamentos.

 

Mais uma vez esse problema administrativo! O doutor Branier já se referiu a ele... Mas esqueçamos isso. Há assuntos mais importantes. Helmut!

 

O ajudante-de-campo mandou sair os dois SS, fechou a porta do gabinete e colocou-se num canto do compartimento com as mãos cruzadas atrás das costas.

 

O único assunto que me interessa insistiu o Monge é a possibilidade de tratar dos doentes. Recuso-me a falar de outra coisa.

 

Não tem nada que recusar, irmão. Absolutamente nada.

 

O Monge não baixou os olhos. O comandante apreciava aquela reacção de orgulho. Gostava dos seres que tentavam resistir-lhe, mesmo tendo perdido de antemão. Vergar aquele Monge fazia parte da sua tarefa. O homem tinha inúmeros recursos, entre os quais a manha inata dos religiosos. O comandante tinha assinado sem o menor remorso a ordem de execução de grande número deles. Tagarelas com discursos vazios, sem interesse. Os crentes aborreciam-no. Mas aquele beneditino tinha poderes fora do comum. Praticava artes secretas que os técnicos do Reich transformariam em ciências eficazes.

 

Como vai a sua colaboração com o doutor Branier?

 

O Monge não teve qualquer reacção, como se não tivesse ouvido a pergunta.

 

É um excelente médico, creio... Qual é a sua opinião, irmão?

 

Temos deveres a cumprir, tanto ele como eu. Sem medicamentos, falharemos.

 

O comandante voltou a servir-se pessoalmente de um copo de vinho.

 

Tenho a impressão que está a teimar num pormenor, irmão. Compreendo as vossas dificuldades... mas têm obrigação de acatar as leis da fortaleza. O Reich não gosta de doentes. É uma preocupação humanitária que me impele a fazer daquela enfermaria um modelo. Medicamentos... Hei-de consegui-los na condição de se mostrar muito mais cooperante.

 

O Monge franziu as espessas sobrancelhas. De boa vontade afogaria o nazi no copo de vinho e esmagaria de encontro à parede o piolho do seu ajudante-de-campo.

 

O doutor Branier é o mais temível dos terroristas continuou o comandante. Maçon, anti-clerical, resistente, matou e mandou matar dezenas de inocentes. Graças às suas primeiras declarações conseguimos desmantelar numerosos núcleos de sabotadores. Incluíam padres e religiosos iludidos pela propaganda. Branier é um homem corajoso. Mas está decidido a salvar a vida.

 

Em que é que isso me diz respeito?

 

O Monge mostrava uma expressão severa, desaprovadora. O comandante fez estalar a língua de encontro ao palato. O Saint-Émilion estava delicioso.

 

François Branier é Venerável de uma loja maçónica única no seu género. Possui segredos que interessam ao Reich. Não penso que o Branier se confesse, mas poderia levá-lo a certas confidências... se é que já não o fez.

 

O Monge ergueu os olhos para o tecto.

 

Deus é o meu único confidente.

 

Se quer medicamentos, irmão, transmita-me tudo o que o Branier lhe revelar do seu segredo.

 

Queria ver-me a fazer o papel de bufo? A voz do Monge enrouquecera.

 

As palavras não interessam. Espero as suas informações.

 

Branier e eu apenas falamos de assuntos médicos. Não tenho qualquer simpatia por aquele género de indivíduos e não sinto o menor desejo de conversar com ele. É maçon e ateu. Pior do que um pagão. Não é o género de homem cujas confidências me interessem.

 

Vai ter de se esforçar, irmão, se desejar realmente tratar os seus doentes... Retomamos o nosso curso de radiestesia?

 

O comandante abriu uma das gavetas da secretária e tirou de lá uma varinha de feiticeiro em aveleira. Levantou-se e colocou-se ao lado do Monge. Segurando nas extremidades da varinha com o polegar e o indicador, estendeu-a à sua frente.

 

Estou a segurar correctamente? O Monge rectificou a posição.

 

Descontraia-se. Coloque a varinha à altura do peito. Deixe-a vibrar. O comandante respeitou as indicações.

 

Helmut!

 

O ajudante-de-campo avançou para a secretária sobre a qual colocou cinco cartas voltadas para baixo.

 

Estou à procura do ás de espadas declarou o comandante.

 

Passeou a extremidade da varinha sobre cada uma das cinco cartas. Aquela ergueu-se ligeiramente sobre a segunda a partir da esquerda. Com uma mão ligeiramente trémula, voltou-a.

 

Um ás de espadas.

 

Acho que estou a fazer progressos, irmão.

 

O Monge sentiu uma vaga de pessimismo invadi-lo.

 

Guy Forgeaud não se tinha apercebido do passar das horas do dia. Na oficina do subsolo da torre, tinham-lhe confiado a reparação de um motor de jipe e de uma torre blindada de auto-metralhadora em lamentável estado. Os alemães tinham falta de técnicos. Forgeaud propôs utilizar a soldadura. O SS encarregado do material não opôs qualquer objecção. Desta forma, o maçon dedicou-se a sabotar conscienciosamente as soldaduras que, apesar do seu belo aspecto, se quebrariam ao primeiro choque. Forgeaud era mestre naquele tipo de trabalho. Trabalhou com extrema lentidão e muito cuidado.

 

Único ponto negro: era difícil roubar o que quer que fosse, por causa de uma revista minuciosa à entrada e à saída do atelier. Se permitissem a Forgeaud trabalhar ali regularmente, havia de arranjar uma maneira de o conseguir.

 

O atelier estava demasiado limpo. Poucas ferramentas. Forgeaud julgava sonhar. Movimentar-se na sua paisagem favorita no coração de uma prisão... A surpresa foi ainda maior quando o deixaram só. Não hesitou em explorar todos os recantos. Ao procurar parafusos num estreito corredor de arrumação, descobriu uma inscrição a giz sobre uma pequena porta baixa: Waffenschmiedsladen, Armaria. Um simples cadeado vedava o acesso. Forgeaud não se deteve no local. Quando regressou à oficina, trazendo os parafusos na mão, ia a entrar o oficial superior.

 

Satisfeito com as suas novas funções, Forgeaud?

 

Vou fazer o melhor que puder... A metralhadora está podre. Vai-me dar pelo menos um mês de trabalho. É preciso substituir todos os parafusos e refazer todas as soldaduras.

 

Muito bem, muito bem aquiesceu o oficial superior. Havemos de lhe arranjar o que for necessário. Trabalhará aqui dez horas por dia, sem interrupção.

 

Sentado à mesa de trabalho, com a cabeça entre as mãos, o Venerável não se decidia a escrever. Tinham vindo buscá-lo à enfermaria antes do Monge regressar. Mais valia não encarar qualquer hipótese. Mas uma angústia surda impedia François Branier de se concentrar, de encontrar as palavras que não traíssem e dessem no entanto ao comandante a sensação de obter finalmente a Regra secreta da Maçonaria.

 

A Aprendizagem. A entrada do iniciado na comunidade. Os primeiros passos. A caneta do Venerável começou a correr sobre o papel. Estava quase feliz por ter tempo para se consagrar a uma meditação, deter a louca corrida do tempo, regressar às fontes da sua aventura espiritual.

 

Tinha sido um Aprendiz revoltado, contestatário. Não aceitava as ordens que lhe pareciam privadas de consciência. Exigia muito daqueles que se diziam ”Mestres” e não respondiam às suas perguntas. François Branier tinha desesperado durante a iniciação, pensando mesmo em abandonar a loja onde o velho professor, seu padrinho, lhe recomendara que entrasse. Verificara-se uma conversão na entrevista com o Segundo Vigilante, encarregado de lidar com os Aprendizes. Censurara-lhe ser demasiado ele próprio. Demasiado ele próprio... Mas o que restava daquela comunidade com que tinha sonhado? Um profano desiludido sob o hábito de um iniciado, que acusava os Irmãos de não lhe proporcionarem o que exigia. Um monstro de vaidade e de egoísmo que se esquecia de se auto-criticar. François Branier compreendera que era o seu principal adversário, o maior obstáculo no caminho da iniciação. Consagrara-se então ao essencial: os símbolos e os rituais que lhe tinham sido revelados. Rasgara-se um véu. Começara a Aprendizagem.

 

O primeiro segredo era o controlo dos elementos: a terra, a água, o ar e o fogo. Símbolos para designar as forças vitais do universo que o iniciado aprendia a conhecer. Quantas noites, quantas horas até despertar para aquelas noções complexas, vivê-las, decifrá-las. Jean Serval, o escritor, era o último sobrevivente de uma geração de Aprendizes que tinham recebido uma formação rigorosa a ponto de os Mestres das outras lojas se sentirem pouco à vontade diante dele, de tal maneira os ultrapassava pela profundidade da sua visão e o seu conhecimento da Regra.

 

O Venerável escreveu longas páginas referentes aos rituais que iniciavam o Aprendiz no conhecimento dos elementos. Releu-as, hesitou, pronto para rasgar, achou-as suficientemente ambíguas. Estranho regresso para trás... O período da Aprendizagem tinha sido tão doloroso como exaltante. A descoberta de um mundo, o da loja, mas também do sentimento de se perder em caminhos sem fim, em paisagens desconhecidas. A Aprendizagem, o tempo do silêncio, do distanciamento em relação à imagem que fazia de si mesmo.

 

O rosto da jovem alemã impôs-se ao Venerável. Porque corria ela riscos tão grandes se não fosse por ser hostil aos nazis? Incarnava a porta estreita da libertação. Tinha de a contactar. Mas as suas relações com o Monge eram obscuras.

 

A porta do gabinete abriu-se. O oficial superior dirigiu-se a grandes passos para a mesa de trabalho e apoderou-se das páginas preenchidas com a escrita do Venerável.

 

O comandante espera-o.

 

O Venerável permaneceu de pé cerca de meia hora em frente da secretária do comandante. Este, sem erguer a cabeça um segundo, lia atentamente o documento que Klaus lhe entregara.

 

É um homem meticuloso apreciou finalmente. Meticuloso mas obscuro. Estas páginas são de um filósofo, não de um homem de acção.

 

O comandante levantou-se e pôs-se a passear entre a secretária e uma janela que dava para o grande pátio. Impassível e silencioso, de pé num canto do compartimento, o ajudante de campo observava.

 

A sua dissertação interessou-me, Venerável. Mas creio que nos compreendemos mal. Exijo de si o segredo daquilo a que chamam a vossa ”Regra”. Do vosso modo de acção no mundo. Não discursos esotéricos.

 

Foi o senhor que me compreendeu mal.

 

O comandante estacou em frente da janela, de costas para o seu interlocutor.

 

Porquê?

 

Porque o nosso modo de acção no mundo começa por discursos esotéricos. É o primeiro dos segredos. Em primeiro lugar, formar o iniciado para as suas futuras tarefas, longe da aparência. Como se preparássemos um atleta para bater um recorde sem o mínimo treino físico. Tudo se apoia na atitude interior.

 

O Venerável desejava ser convincente. O comandante voltou-se bruscamente, agarrou no maço de papéis e brandiu-o em frente do nariz de François Branier.

 

Pretende que esta algaraviada contém o segredo da sua loja? O Venerável aguentou o olhar furioso do comandante.

 

É a verdade. Sou incapaz de formular a Regra de outra maneira. O alemão tornou a sentar-se.

 

Porque não, afinal... Quero acreditar em si. Mas tenho que ser prudente. Foi por isso que enviei o seu Irmão Guy Forgeaud para a oficina de mecânica. Um Mestre maçon tem poderes. Vai dar-nos a prova disso mesmo sem querer.

 

O Venerável empalideceu. Que mais tinha inventado aquele demónio? Isolando Forgeaud, reduzia a comunidade, roubava-lhe força. Decidira sem dúvida quebrar os maçons um a um, espalhá-los pelo campo semana após semana...

 

Guy Forgeaud era capaz de resistir. Manteria o sangue-frio. Sabia utilizar as circunstâncias.

 

O seu Irmão Forgeaud é um excelente mecânico continuou o comandante. Propusemos-lhe que reparasse uma auto-metralhadora para verificar a sua boa vontade. Espero que não cometa a imprudência de a sabotar.

 

Guy Forgeaud não tinha qualquer maneira de saber as horas a não ser pela fadiga dos seus músculos. Tinha provavelmente trabalhado meio dia sem parar. À sua frente, a torre blindada da auto-metralhadora que tinha desmontado. Saberia tornar invisível a sabotagem, mesmo aos olhos de um perito. Algumas soldaduras malfeitas seriam rapidamente detectadas. Era impossível admitir que não houvesse um mecânico competente na guarnição SS.

 

O que pretendiam obter dele? Preparar-lhe uma cilada, identificando-o como sabotador? Forgeaud não era homem para deixar correr a imaginação. Talvez a realidade fosse muito simples... a necessidade de um mecânico de profissão para reparar um material deficiente. A verdadeira preocupação era a loja. Precisava de se apoderar do material necessário para fazer uma ”reunião” e entrar na eternidade do símbolo no coração de uma fortaleza nazi. Fez o inventário do material posto à sua disposição. Uma verdadeira mina. Mas faltava giz... pormenor idiota. Haveria um único pau de giz naquela oficina? Procurou. Nada. Havia de conseguir arranjar um. Queria conseguir. A loja precisava disso.

 

Em toda a parte onde se encontrasse, Guy Forgeaud tinha necessidade de identificar as aberturas que davam para o exterior. Ver o que se passava lá fora era já liberdade. Raspou as paredes em busca de um respiradouro disfarçado, de uma janela tapada. Saiu-lhe a sorte grande. Próximo do tecto, por cima de um andaime enferrujado, uma grelha obstruída por trapos sujos, sem dúvida para lutar contra o frio. Antes de lhes tocar, Guy Forgeaud contemplou-os longamente. Gravou na memória a sua exacta localização. Quando os tirou, um vento gelado bateu-lhe no rosto. Caía a noite. Ninguém no pátio.

 

Um SS controlava o trabalho de Forgeaud de hora a hora. Este habituou-se rapidamente a isso, sentindo instintivamente a chegada do nazi. Restava-lhe esperar que os alemães não alterassem os seus hábitos. Se um dia o surpreendessem no topo do andaime, olhando para o pátio...

 

O Monge e o Venerável tinham-se instalado lado a lado no cubículo.

 

Tratei sozinho dos doentes. O comandante reteve-o muito tempo. Havia suspeita na voz do Monge. Como se o Venerável passasse o tempo a esconder-se.

 

Acha que isso me diverte? Irritado, o Monge brincou com as contas do rosário.

 

O que é que ele queria?

 

Sempre a mesma coisa. O segredo da loja. Não gostou das minhas últimas páginas de escrita.

 

Vai fazer com que o engulam inteiro declarou o Monge, ácido, Faz mal em brincar ao gato e ao rato com aquele fulano. É ele que manda no jogo, não o senhor. Sabe pelo menos se os seus Irmãos ainda estão vivos?

 

Quanto ao Forgeaud, sim. Quanto aos outros, não. Mas o senhor deve saber.

 

O Monge fez-se vermelho. Voltou-se para o Venerável, que olhava em frente.

 

O que é que isso quer dizer? Continua a chamar-me traidor?

 

Porque tem esses pensamentos, irmão? Queria dizer que poderia sabê-lo facilmente.

 

Como?

 

Perguntando à rapariga loura.

 

Acha que tenho oportunidade de conversar com ela?

 

Conversar... talvez não. Mas bastaria fazer-lhe perguntas utilizando o esconderijo dos duches. Ela circula livremente pelo campo. Não me admiraria que tivesse elaborado outras pequenas manigâncias com ela. Por causa dos medicamentos...

 

Deixe-me em paz com esses medicamentos! trovejou o Monge. Surpreendido, o Venerável olhou-o de lado.

 

Já não os quer?

 

O preço a pagar é demasiado elevado.

 

O que quer dizer?

 

Não tem nada com isso.

 

O Monge ficou carrancudo, perguntando a si mesmo porque razão tinha decidido não trair aquele maçon que desprezava Deus e troçava dos crentes. O mais miserável dos seus doentes valia dez vezes mais do que ele e tinha tanta necessidade de medicamentos... Mas não se tornaria um sacana, conquistando a confiança do Venerável para dar informações ao comandante-de-campo. Conquistar a confiança do Venerável... seria possível? Aquele homem maciço, forte, de testa larga e um pouco calva, de ombros quadrados e andar sereno parecia não ser dominado por nenhuma paixão, nenhuma emoção. Não perdera um grama do seu equilíbrio. Por um breve instante, o irmão Benoit pensou que François Branier teria podido tornar-se um bom monge. Considerou aquela ideia absurda.

 

Quem é aquela mulher? perguntou o Venerável,

 

Não faço a mínima ideia. Nunca ouvi o som da sua voz. Veio aqui uma vez, como uma sombra.

 

O Monge revelava um dos seus ”pequenos segredos”. O Venerável apreciou o gesto. Inquietou-se também. Quantas outras informações daquela importância guardaria o beneditino para si? O que havia de mais normal que não sentisse a menor confiança no seu ”aliado” maçon? Mas não maquinaria algum plano tortuoso, não indicaria falsas pistas que conduzissem a um vespeiro? O Monge, como qualquer outro prisioneiro da fortaleza, pensava primeiro em salvar a pele. E em fazer triunfar o seu Deus. Se oferecesse ao comandante o segredo do Venerável, teria as melhores probabilidades de se salvar incólume. Um colaboracionista por direito divino, de certa forma.

 

O Venerável censurou-se intimamente pela baixeza das suas suspeitas. Gostava de confiar. Os malefícios da fortaleza começavam a atingi-lo. Mas era-lhe proibido ser crédulo. Não era o seu próprio destino que estava em causa mas o da loja. Naquele inferno, cada um tentaria puxar os cordelinhos do jogo, tanto o Monge como os outros. Mais profundamente, não teria interesse em ver morrer a última loja iniciática? Contribuir para a sua destruição seria mesmo um título de glória para ele. O Monge era o pior adversário da loja, mais temível ainda do que o comandante SS.

 

Veio há mais de um mês continuou o Monge. Os SS estavam a almoçar. A vigilância abrandara. Trazia o uniforme. Ao entrar, pôs um dedo nos lábios. Deixou uma pequena caixa cheia de medicamentos e foi-se embora. Um sopro. Uma aparição. Hoje a minha reserva está esgotada. Ela não voltou. Talvez por causa da sua presença.

 

Quer que eu me sacrifique? perguntou o Venerável.

 

A decisão é sua. E ainda era preciso que esse sacrifício fosse útil.

 

Tem alguma ideia?

 

Não o quero influenciar.

 

Obrigado pela sua humanidade, irmão. Não esperava tanto. Ainda tenho algum resto de sopa fria?

 

O Venerável tinha fome. Renascia nele uma energia formidável porque a situação lhe parecia finalmente clara. Tinha identificado o seu principal inimigo, o mais perigoso. O Monge era o Senhor dos Infernos.

 

 

O Venerável esperava. Klaus, o oficial superior, viera buscá-lo de manhã cedo para o conduzir ao gabinete da torre onde devia relatar os segredos da loja ”Conhecimento”. Mas não havia papel em cima da mesa de trabalho. A caneta de tinta permanente com aparo de ouro tinha desaparecido. Nem um simples lápis.

 

Brincadeira sádica? Esquecimento? Nova prova concebida por um cérebro doente? O Venerável parou de se interrogar em vão. Continuar a esperar. Única solução. Suportar o isolamento, aceitar a presença do mal, convencer-se que voltaria a reunir-se aos Irmãos para realizar uma ”reunião” à glória do Grande Arquitecto do Universo.

 

O Venerável sentou-se na única cadeira do compartimento nu, em frente da mesa de trabalho. O vazio. François Branier tinha o corpo imbuído de paciência. O tempo não o assustava. Deixava-o correr através de si sem opor qualquer resistência. A vida iniciática ensinara-lhe que o tempo não existia realmente. Havia o dia e a noite, as estações, o envelhecimento, os ciclos... mas era sempre a primeira manhã do mundo, o primeiro instante em que os destinos dos seres eram apenas um, em que a vida não se degradava. Como qualquer iniciado, François Branier tinha em si uma juventude que ressuscitava por si própria. Os seus mortos estavam nele. A mulher, o velho professor de Francês, Pierre Laniel... Encorajavam-no a aguentar, a domesticar as trevas.

 

Antes de celebrarem os mistérios, os Irmãos da ”Conhecimento” tinham diversas vezes evocado a eventualidade de uma detenção e mesmo da destruição da sua obra pela barbárie. O Venerável nada respondera às angústias manifestadas. Não reconfortava. Não mascarava a realidade. Com uma profunda alegria, constatara que os Irmãos estavam preparados. A provação assustava-os, mas não entravam em pânico. O Mal fazia parte da ordem das coisas. O chão da loja tinha como nome ”pavimento mosaico”, composto por quadrados pretos e brancos. Oculta no branco, uma parcela de preto. Oculta no preto, uma partícula de branco. A fortaleza nazi queria ser o Mal absoluto, mas havia uma centelha de luz naquela escuridão. Competia ao Venerável detectá-la e utilizá-la. Afinal, era a sua função.

 

O mais insuportável era a ausência das ”reuniões”. Viver em comunhão com os Irmãos, celebrar os rituais, trabalhar para a glória do Grande Arquitecto, formar a Cadeia de União, avançar passo a passo pelo caminho do conhecimento com a Regra como guia... Aqueles momentos inebriavam-no. Nenhum paraíso poderia ser-lhes preferido. O Venerável compreendia os antigos que ritmavam o ano pelos rituais, passando dias, mesmo semanas inteiras para recriar o sagrado, pôr-se em harmonia com as leis do Universo. O Venerável vivera no mais secreto da loja aquela realidade, de que tão poucos homens conheciam a existência. Os iniciados não trabalhavam para eles próprios. Tal como os monges da Idade Média, trabalhavam no silêncio de uma comunidade que brilhava sem ostentação, mantendo um certo equilíbrio do mundo. Como os monges... Aquele pensamento irritou François Branier.

 

A chave girou na fechadura. Klaus, o oficial superior, abriu a porta.

 

O Venerável conteve uma exclamação de despeito. Ao lado do oficial estava uma rapariga loura, de uniforme SS. Ela tinha-o traído. Vendera-o aos nazis por um olhar. Fazia o jogo do Monge. O maçon era sacrificado. Ferido no mais profundo do seu ser, o Venerável manteve uma expressão impassível.

 

Algum problema, senhor Branier?

 

O Venerável desviou-se, indo encostar-se à mesa de trabalho.

 

Sinto falta de um pouco de exercício. Se há ervas a apanhar, ofereço-me como voluntário.

 

Esperava uma reacção imediata da parte da mulher. Esta permanecia calada, mantendo-se atrás do oficial.

 

Os passeios sanitários não são da minha competência, senhor Branier. Mais algum desejo?

 

O Venerável abanou a cabeça negativamente. Klaus divertia-se como um gato que se prepara para desferir o golpe com a garra. Com uma testemunha directa como apoio, acusaria o Venerável de tentativa de evasão ou de qualquer outra coisa.

 

Vá.

 

A ordem estalou. A mulher dirigiu-se para François Branier. Ele não a olhava, para lhe facilitar a tarefa. Denunciar alguém perturba pelo menos durante um instante o pior dos traidores. Queria guardar dela apenas uma recordação luminosa, um sorriso numa floresta inundada de sol.

 

Ela estendeu o braço para a mesa de trabalho e afastou-se nervosa, voltando para o seu lugar atrás do oficial superior.

 

Trabalhe bem, senhor Branier disse Klaus ao sair, acompanhado pela acólita.

 

Sobre a mesa, esta colocara folhas de papel e um frasco de tinta preta.

 

Temos de saber onde está encerrado o Venerável exigiu o Aprendiz Jean Serval.

 

Não vejo como confessou Dieter Eckart.

 

Vou ficar à espreita o máximo de tempo possível. Hei-de acabar por vê-lo no pátio declarou Guy Forgeaud.

 

Os SS tinham trazido Forgeaud de volta ao bloco já a noite ia avançada. Durante cerca de uma hora antes de adormecer com um sono pesado, o mecânico descrevera o seu primeiro dia de trabalhos forçados. Os Irmãos tinham concordado unanimemente: a porta de acesso à armaria ocultava uma armadilha. Mas Forgeaud não desesperava de ir lá ver sem que o prendessem. Estava satisfeito com as suas primeiras experiências de soldadura na auto-metralhadora. A sabotagem era invisível. Restava esperar que fosse eficaz.

 

Se Guy conseguir trazer-nos armas disse Raoul Brissac, o Companheiro passamos à ofensiva.

 

Ele é revistado à saída da oficina objectou Dieter Eckart. Seria uma loucura correr semelhante risco. Já perdemos um dos Irmãos.

 

Vão dar cabo de todos nós se permanecermos passivos, como animais no matadouro! inflamou-se Brissac.

 

Não me parece que um Companheiro possa utilizar esse tom diante de um Mestre disse Eckart, muito friamente.

 

Instalou-se um silêncio doloroso no bloco vermelho. O Aprendiz Serval e o Companheiro Spinot evitaram olhar o Irmão Brissac. Este voltou-se.

 

Não quis ser agressivo explicou, tenso. Tenho a certeza que a nossa sobrevivência passa pela acção. Começando por fazer pagar a esse cretino a morte de Pierre.

 

Não tens nenhuma decisão a tomar, meu Irmão.

 

Esta intervenção pôs ponto final no debate. Mas Dieter Eckart não se iludia. A ausência do Venerável seria em breve um handicap inultrapassável. Não tardariam a dilacerar-se uns aos outros.

 

Como preciso deles, confessou intimamente o Venerável, incapaz de escrever. Só os rostos dos Irmãos da sua loja lhe permitiam escapar ao precipício para o qual se sentia arrastado. Como preciso deles, porque existem verdadeiramente, porque nasceram para a consciência, para a verdadeira vida.

 

Como todas as noites, o Venerável rememorou o rosto de cada um dos Irmãos, um a seguir ao outro. Examinava as suas possibilidades ocultas, as suas limitações, os progressos que tinham realizado no seus percursos, a razão dos seus êxitos e dos seus fracassos. Os seus êxitos, apenas os deviam a si próprios e aos seus esforços. Os seus fracassos, era dele a responsabilidade. Não tinha sabido compreendê-los no momento certo, indicar-lhes a direcção, a forma como teriam podido agir. Passava com frequência longos minutos a meditar sobre o sua loja, esquecendo o sono, esquecendo-se de si mesmo.

 

Passou a mão direita pelos cabelos. Como era pesado de suportar aquele fardo de Venerável que os Mestres da sua loja tinham transmitido de geração em geração. Nenhum rei, nenhum imperador, nenhum presidente de qualquer República podia imaginar o que repousava sobre os ombros de um Venerável de uma loja iniciática. De acordo com a Regra, este não partilhava o seu fardo com ninguém. No limite da vida comunitária em que cada Irmão encontrava o apoio de que precisava fosse em que circunstâncias fosse, havia aquela imensa solidão, aquele deserto ardente onde era necessário criar os alimentos, aquele país desconhecido cujas estradas eram virgens. Como era maravilhoso o tempo em que ainda não era Venerável, em que pedia conselho aos Mestres, aos Vigilantes, ao Mestre da loja. Hoje, não havia qualquer intermediário entre ele e o Grande Arquitecto do Universo. ”O Venerável é o mediador entre o céu e a terra”, afirmava a Regra. O que restava do indivíduo François Branier, dos seus gostos, dos seus fantasmas, das suas ambições? Existiam ainda, sem dúvida, mas longe dele, numa esfera exterior à sua pessoa. A função de Venerável impusera-se-lhe. Não se sentia orgulhoso nem triste por causa disso. Fazia parte dos riscos e necessidades da sua posição. Um Venerável deixava de pertencer a si próprio. Estava ao serviço da sua comunidade.

 

Servir significava dar tudo. François Branier não era um místico nem um romântico. Não tinha escolha e era nessa ausência de escolha que residia a sua liberdade. Consigo próprio, deixara de preocupar-se. Ligara-se a um destino, sem fatalismo. O futuro da loja dependia, em grande parte, da rota seguida pelo barco de que era o piloto.

 

Por vezes, teria gostado de deixar o leme, entregá-lo a um Irmão mais experiente, mais competente. Amaldiçoava as suas insuficiências, a sua vaidade, a sua mediocridade perante a tarefa imensa que lhe competia. Mas a Obra continuava, a loja evoluía, não lhe deixando tempo para se deter sobre as suas angústias. Ali, naquela fortaleza em que o tempo humano desaparecera, elas ressurgiam, sombras deslocadas. Que valor tinha um Venerável privado da sua comunidade? Nenhuma, sem dúvida. Como descobrir o caminho da luz? Diminuindo-se aos seus próprios olhos, diminuía a loja. Mas não tinha o direito de se iludir, de se considerar um super-homem, de inventar razões para ter esperança. Apenas o ritual fazia dele um Venerável.

 

Mais do que nunca, a loja exigia-lhe que fosse o Venerável, quando ele não tinha a possibilidade de o ser.

 

O Monge tinha terminado as suas ”visitas” da manhã. Tinha lavado os doentes incapacitados, limpo as camas, distribuído cuidados. Alguns verdadeiros cuidados. Porque a mulher loura de uniforme nazi tinha regressado, antes da madrugada, para trazer medicamentos. O Monge vira apenas um vulto. Agarrara com ternura o pequeno embrulho colocado no chão da enfermaria. Coisas para aguentar mais alguns dias suplementares, conseguir algumas vitórias sobre o sofrimento.

 

Há quanto tempo não saía o Monge para colher plantas? Já não sabia. Tinha-se esquecido de tomar nota. Mau sinal. Mais algumas negligências como aquelas e mergulharia na resignação, a pior das demissões.

 

O irmão Benoit tinha o hábito de fazer face às suas responsabilidades. No último mosteiro onde tinha estado, o de Saint-Wandrille, na Normandia, falavam dele como o próximo abade, função que exercia já de forma oficiosa devido à avançada idade do titular. Aquela recordação não lhe interessava. Revivia os seus passeios no imenso parque, as horas passadas a meditar na floresta, a presença divina, as alegrias do trabalho manual, o prazer da leitura. O que mais lhe faltava era o refeitório. Uma sala romana do século xi, de proporções tão perfeitas que santificava quem nela penetrava. As mesas estavam dispostas em T. Ao fundo, o Abade. Os talheres estavam sempre postos, como se seres invisíveis celebrassem um banquete enquanto os monges de carne e sangue andavam nos seus trabalhos quotidianos. Desde que Benoit poisava o pé no chão do refeitório, sentia-se transportado para um outro mundo, longe de mesquinharias e baixezas. Entre aquelas paredes de eternidade havia muito mais do que felicidade: havia harmonia. Quando cada monge se sentava no seu lugar sentia uma beatitude que apagava a fadiga, as preocupações, as dúvidas. Comer em conjunto, beber em conjunto, pensar em conjunto proporcionava à comunidade uma luz que permanecia durante muito tempo no coração e na solidão das celas.

 

O Monge estava convencido que apenas os beneditinos conheciam aquele segredo até ao instante em que conhecera o Venerável. Sem acreditar que uma loja maçónica tivesse o mínimo ponto comum com uma comunidade monacal, Benoit tinha ficado espantado pela exigência espiritual que animava aquele homem, pelo seu respeito de uma Regra que parecia considerar como o seu mais precioso bem.

 

Um ataque de tosse sacudiu o amplo peito do Monge. Falta de ar, com certeza.

 

 

Venerável, não estou nada satisfeito com o seu trabalho.

 

As narinas contraídas, os lábios exangues, os olhos inquisidores, o comandante-de-campo olhava François Branier como um professor que a má cópia de um aluno enfureceu. Segurava nas mãos as páginas redigidas naquele dia pelo Venerável com uma escrita fina, densa, regular.

 

O que acaba de ler é perfeitamente exacto. Dou-lhe a minha palavra.

 

Acredito-o de boa vontade, Venerável. Para a revelação de pormenores sem importância, é imbatível.

 

Sem importância o quadro da loja do Aprendiz? O significado simbólico do maço e do cinzel, do pavimento de mosaico? Referi-lhe elementos essenciais da nossa vida iniciática.

 

O comandante estendeu os papéis ao seu ajudante-de-campo que os arrumou cuidadosamente num dossier.

 

Só fala de iniciação, de simbólico, de pesquisa... inutilizável. Não é isso o que lhe peço.

 

Não sei fazer outra coisa.

 

De pé em frente da secretária do Comandante, François Branier ostentava uma calma perfeita. O SS mentia. Era inevitável que se interessasse pelo esoterismo e pela pesquisa iniciática. Sabia que aquilo fazia parte da Regra. Tinha sido mandatado para investigar aqueles temas. Irritava-se porque esbarrava com um obstáculo imprevisto: o tempo. O seu trunfo principal voltava-se contra ele. Actualmente, parecia apressado em atingir o essencial, o segredo da loja, as suas aplicações práticas.

 

Porquê aquela urgência? Porque se tornava o tempo adversário daquele que acreditava ser o seu dono? Os alemães receavam de repente perder a guerra? Aproximavam-se libertadores da fortaleza? Uma nova esperança. Se a hipótese fosse correcta, o Venerável podia pensar em ganhar a partida. A menos que, pelo contrário, a perdesse muito rapidamente... Se o comandante estivesse com a corda na garganta, recorreria a métodos mais bárbaros para atingir os seus fins.

 

A Regra! Só tem essa palavra na boca! Uma máscara para esconder o seu verdadeiro segredo. Os seus símbolos aborrecem-me, Venerável. São cortinas de fumo.

 

Bem sabe que não.

 

A voz de François Branier, autoritária, ressoara como durante uma ”reunião”, para rectificar ou inflectir uma intervenção errada. O comandante teve um ligeiro sobressalto.

 

O Venerável tinha-o provocado nitidamente para tentar verificar o correcto fundamento da sua hipótese. Os olhos do alemão flamejaram, mas a sua reacção ficou-se por aí. Tirou um cigarro de uma caixa deínácar. O ajudante-de-campo acendeu-lho.

 

Falaremos de esoterismo e de símbolos mais tarde, muito mais tarde, quando eu tiver obtido resultados. Será a sobremesa, Venerável. O prato de resistência é a organização secreta da sua loja e a rede que teceu por toda a Europa. Vamos retomar o dossier. E se evocássemos as suas viagens?

 

O Venerável julgou detectar um clarão divertido no olhar geralmente tão apagado de Helmut, o ajudante-de-campo.

 

Desloquei-me muito, com efeito, no âmbito das minhas actividades profissionais. Desde o início da guerra foi criada uma internacional de médicos combatentes e...

 

Deixe isso cortou o comandante. Não é credível. Utilizou essa rede para uma missão secreta. É ela que vamos reconstituir juntos, começando por Berlim, logo a seguir à declaração de guerra. Viajava com o nome de Hans Brunner, cardiologista. É o senhor nesta fotografia, não é verdade?

 

O ajudante-de-campo apresentou ao Venerável uma fotografia ampliada. O interior de um restaurante cheio de fumo, com numerosos oficiais nazis e alguns civis. Numa mesa, François Branier e dois homens de idade com cabelos brancos.

 

Por que hei-de negar a evidência?

 

Excelente resposta, Venerável. Quem são estes dois homens, qual a razão da sua falsa identidade, porquê em Berlim nesta data?

 

Dois colegas que eu queria ajudar a sair da Alemanha.

 

Porque não? troçou o comandante. Mas esses colegas, efectivamente médicos, eram também membros de duas lojas berlinenses que tinham sido desmanteladas alguns meses antes. Esses dois maçons, antigos Veneráveis, tinham conseguido passar entre as malhas da rede, ousando mesmo permanecer nos quadros do partido! Prendemo-los algumas semanas depois da sua visita. Morreram sem nada revelar além de bagatelas. Qual foi o tema das suas conversas com eles, senhor Branier?

 

O Venerável tinha sido informado da morte dos dois Irmãos. Faziam parte daqueles que conheciam o ”Número”, a Regra secreta da maçonaria. Naquela ocasião, à hora em que o nazismo se preparava para invadir a Europa, tinham-lhe indicado o itinerário a percorrer para reconstituir os elementos esparsos destinados a preservar a existência de pelo menos uma loja capaz de transmitir integralmente a iniciação. Branier correra todos os riscos para se encontrar com aqueles Irmãos alemães que se recusavam a deixar o seu país e abandonar aqueles a quem podiam ainda ser úteis.

 

Fizemos o ponto das lojas francesas e alemães pertencentes ao Rito Escocês Antigo e Aceite. Os maçons tomavam finalmente consciência da gravidade da situação. Pretendíamos...

 

Pare de troçar de mim! berrou o comandante batendo com o punho na mesa. Esses dois homens eram revolucionários. Lutaram contra o Reich, negaram a verdade ensinada pelo Fúhrer. Confiaram-lhe a missão de combater o pensamento nazi, de utilizar a Maçonaria como uma rede de sabotagem e de subversão! Esta é a realidade. É o chefe oculto do mais poderoso movimento de resistência à nova ordem. Utiliza armas e homens que precisamos destruir. A sua loja é o último reduto do obscurantismo.

 

O comandante esmagou o cigarro na borda do cinzeiro. O Venerável verificou que estava nervoso, inquieto. Recorria a uma retórica pomposa, como se precisasse de se tranquilizar a si próprio e de se galvanizar.

 

Como poderia uma pequena loja como a ”Conhecimento” ser assim tão poderosa? interrogou o Venerável. Os últimos Irmãos são seus prisioneiros. O pouco poder de que dispúnhamos está nas suas mãos.

 

Análise superficial. Há Irmãos iniciados por si ainda em liberdade em diversos países. Deixou implantados núcleos de Resistência. Quero limpar tudo. Hoje em dia, não subsiste uma única loja na Alemanha. Nunca mais haverá. O mesmo deve acontecer por todo o lado.

 

O comandante acalmou-se. Pegou de novo no dossier.

 

Depois de Berlim, foi a Roma e a Bolonha. Ali, apresentava-se como o doutor Renato Sciuzzi, membro influente do movimento fascista. Contactou em Roma com um engenheiro, durante uma cerimónia de entrega de condecorações, e em Bolonha com um ebanista, durante as festividades da Páscoa. Sempre o mesmo método: ocultar-se no meio da multidão, em manifestações oficiais, ousar mostrar-se em público com agentes de subversão... Soberba táctica, senhor Branier. Um único defeito: a fotografia. Deixou traços. De tal forma visíveis na imprensa que ninguém reparou neles. Excepto eu, há menos de um ano. Fiz cotejos. Encontrei com demasiada frequência o seu rosto ao lado daqueles agentes de subversão. O que fazia em Itália, senhor Branier?

 

O Venerável recordava-se dos momentos dramáticos passados numa Itália ensolarada, quente, radiosa. Roma a apaixonada, Bolonha a secreta, um país à deriva, dominado por uma embriaguez de violência. Uma etapa mais do que decepcionante no périplo de François Branier. Os maçons tremiam mas não acreditavam no pior. Consideravam que o reinado do Duce permitiria a uma certa Maçonaria sobreviver e não tinham tomado quaisquer precauções particulares para proteger os arquivos a não ser transferi-los para a província, precisamente para Bolonha, onde François Branier tinha consultado documentos referentes à Regra. Pouco tempo depois da sua passagem, tinham sido destruídos depois dos maçons considerados ”perigosos” serem sumariamente executados.

 

Revi Irmãos que tinha conhecido em Paris. Tentei fazer-lhes ver o drama que os esperava. Pura perda de tempo. Foram apenas conversas sem importância.

 

Roma, admitamos... Mas porquê Bolonha, a não ser para se encontrar com uma célula clandestina?

 

O ajudante-de-campo tomava nota com uma regularidade mecânica das palavras pronunciadas pelos dois interlocutores. O comandante releria tudo à noite para descobrir uma falha na argumentação do Venerável, uma indicação que tivesse deixado escapar sem querer.

 

Não há células entre os maçons iniciados. Apenas lojas. Não temos qualquer ponto comum com os comunistas. Em Bolonha já nem sequer havia loja. Apenas o maior historiador italiano da nossa confraria.

 

O comandante-de-campo retirou uma foto do dossier colocado sobre a sua secretária.

 

Este homem?

 

Um belo rosto de sexagenário com cabelos prateados, grossos óculos de aros de tartaruga, um fino bigode branco.

 

Exactamente respondeu o Venerável.

 

Morreu dois dias depois da sua visita e algumas horas antes da nossa investigação. Curiosa coincidência. Encontrámos em sua casa aventais rituais, medalhas, emblemas... mas nem um único documento sobre a vossa organização subversiva. Não o terá eliminado o senhor mesmo porque ele não o queria seguir e podia vir a traí-lo?

 

O Venerável não perdeu a calma. Embora estivesse de pé, não sentia qualquer fadiga.

 

Conhece bem os nossos rituais. Qualquer maçon que violar o seu juramento tem a garganta cortada. Condena-se a si próprio. Não é preciso executá-lo.

 

Quer dizer que se suicidou?

 

Não quero dizer nada. Morreu.

 

Pretende que a sua visita a Bolonha foi inútil?

 

De maneira nenhuma. Tomei conhecimento de um muito antigo ritual de iniciação no grau de Companheiro baseado em poliedros, corpos platónicos e pitagorismo. Graças a ele, a loja ”Conhecimento” pretende restituir esse grau à sua pureza original.

 

Cansado, o comandante acendeu outro cigarro.

 

Nenhum contacto com os comandos antifascistas?

 

Durante uma estadia tão breve, teria sido difícil... e eu nunca pertenci à Maçonaria política. Os meus piores inimigos podem confirmar-lhe isso.

 

O alemão voltou mais uma página do dossier.

 

Durante os anos 40-41 perdemos muitas vezes o seu rasto. Não tenho qualquer prova formal de uma viagem ao estrangeiro. Não saiu de França?

 

Fui a quase quinhentas cidades. Mudava de cama todas as noites. O comandante descontraiu-se. Aspirou longamente o cigarro.

 

Ora aí está... Preparava a sua rede terrorista a partir das lojas maçónicas de que se tornara o chefe oculto.

 

O Venerável não conseguiu impedir-se de sorrir, de tal forma as suas recordações eram diferentes.

 

Não exactamente... Pretendia contactar os Irmãos desejosos de salvaguardar a iniciação apesar da tempestade. Esperava encontrar pelo menos uma centena em toda a França. Fui rejeitado por toda a parte como um pestífero. Os ditos Irmãos metiam-se na toca. Receavam as denúncias. Tomavam-me por um provocador. Sobretudo o termo ”iniciação” e a sua vocação maçónica não tinham qualquer sentido para eles. A guerra fizera voar em estilhaços o seu humanismo de pacotilha. Compreendi que a Maçonaria estava morta. Apenas algumas lojas mereciam ser salvas. A vida iniciática renasceria delas.

 

O Venerável quase dissera ”uma única loja”. Teria sido confessar que a ”Conhecimento” tinha sido escolhida como depositária do segredo. Ora nada era mais urgente do que lançar a confusão no espírito do comandante. A verdade era tão simples, tão desarmante... Nunca o SS poderia acreditar.

 

Realizou esse périplo demente em pura perda? Afirma que a sua finalidade era estritamente de ordem iniciática?

 

Não podia resumir melhor.

 

Faz mal em subestimar-me, Venerável. Era um agente de ligação ideal para a Resistência. As suas passagens por cidades de França correspondem a atentados, sabotagens, assassinatos de oficiais alemães... Acaso, talvez?

 

Com certeza. Sou incapaz de manipular um explosivo sem ir eu próprio pelos ares.

 

O comandante riu.

 

É normal... Anima, dirige, não executa. Os resistentes divertem-me. Destruímos as suas organizações infiltrando nelas elementos extremistas. E depois, os franceses têm um tal gosto pela delação! Só a rede das suas lojas falta no palmares. Preciso dela.

 

Só lhe posso oferecer a minha loja.

 

Não tem mais nada a revelar sobre a actividade subversiva da Maçonaria?

 

Não tem nada a recear por esse lado.

 

O comandante permaneceu silencioso um longo minuto, indiferente. Voltou uma nova página do dossier.

 

De Janeiro a Março de 1942, a Inglaterra... e não foi só. A seu lado, Dieter Eckart. Sempre por motivos... espirituais?

 

Com a ponta do corta-papéis, que segurava como um punhal, o comandante desenhava figuras num mata-borrão.

 

Com certeza. Tínhamos conferido a nós próprios a missão de contactar a Grande Loja de Inglaterra para lhe dar conta da situação. Em França, ficara desiludido com a cobardia dos maçons. Em Inglaterra, tive uma crise de desespero perante a sua insondável imbecilidade. Um amontoado de decorações, medalhas, notáveis espartilhados nos seus regulamentos do século xix, isolados das fontes. Múmias. Clubes de múmias. Dieter Eckart estava consternado. Tivemos mais de dez entrevistas com aqueles que pretendiam dirigir a Maçonaria e que tinham feito dela uma concha vazia.

 

O comandante ficou perturbado. Perguntou a si mesmo se o Venerável não estaria a dizer a verdade, por mais espantosa que ela fosse. Em vez de ser o chefe oculto de uma rede de homens dotados de poderes temíveis, não seria antes uma espécie de dinossauro, um dos últimos iniciados? Ardil supremo. Fazer-se passar por menos do que nada. Reduzir-se à posição de um bom e leal espiritualista, apolítico, desinteressado dos problemas da sua época. A atitude do Venerável, a sua bonomia matizada de autoridade, a sua serenidade tornavam a personagem de tal forma plausível! Excepto para um dos altos responsáveis do Aneherbe, encarregado de detectar os poderes ocultos das sociedades secretas e de os utilizar para a vitória do Reich. O comandante quase esquecera o tempo que tinha passado a conduzir a sua interminável investigação para atingir o centro da teia, esse François Branier, tão perigoso por si só.

 

A sua estadia britânica ter-se-ia então saldado por um novo fracasso? Não organizou a menor base terrorista?

 

Nenhuma.

 

Teve melhor sorte na Escócia, onde foi na Primavera de 1942 e de onde só saiu no fim do Verão?

 

Nem por isso respondeu o Venerável. Já não tinha ilusões. Mas desejava ir a Kilwinning. Ali nascera a forma medieval do Rito Escocês Antigo e Aceite. Uma espécie de peregrinação. Uma forma de recuperar as forças.

 

François Branier omitia dizer que a quase-totalidade dos Irmãos da ”Conhecimento” se tinham dirigido a Kilwinning para ali viverem uma ”reunião” excepcional, para se regenerarem na fonte do seu rito.

 

O comandante-de-campo voltou maquinalmente as outras páginas do dossier, uma trintena de folhas nas quais estavam presas fotografias e recortes de jornal.

 

É inútil, suponho, evocar as suas viagens posteriores a Espanha, Grécia, Bélgica, Países-Baixos, Noruega... A resposta será sempre a mesma! Nenhuma actividade revolucionária, nada de intrigas subversivas, nenhuma rede terrorista! Apenas uma missão iniciática para reagrupar os Irmãos dispersos!

 

É exactamente isso aprovou o Venerável. Só a palavra ”missão” não é conveniente. Não procuro converter ninguém. Os iniciados são construtores e testemunhas, nem mais nem menos.

 

O comandante tornou-se glacial.

 

Senhor Branier... não espera convencer-me? Não tem a ingenuidade de acreditar que vou engolir esse conto de fadas? O alibi médico? Só encontrou médicos durante as suas viagens. Estudei de muito perto os locais onde esteve e as personalidades com quem se encontrou. Muitos físicos, industriais, especialistas das tecnologias de ponta. Em cada país, visitou pelo menos uma fábrica e um laboratório de pesquisas. Compreendo porquê desde que conheço os membros da sua loja.

 

O Venerável fez apelo à sua força de concentração para não ceder sob o ataque decisivo que o comandante se preparava para iniciar.

 

Pierre Laniel explicou o SS era industrial, grande conhecedor dos problemas da metalurgia. O professor Eckart é um dos primeiros especialistas mundiais da história das técnicas. Firmas francesas e alemãs desejavam contar com ele como consultor. André Spinot não fabrica só óculos. O seu passatempo é o estudo dos sistemas de propulsão. Registou inúmeras patentes, algumas das quais foram aproveitadas por organismos oficiais. Raoul Brissac tem um campo de predilecção: a resistência dos materiais. A sua experiência de Companheiro ensinou-lhe ”truques” da profissão que nenhum engenheiro conhece. Jean Serval é filho de um dos maiores físicos franceses. Ele próprio tem uma formação científica muito aprofundada. A sua tese de doutoramento incidia sobre a propagação das ondas. A literatura não passa de um alibi. Quanto a Guy Forgeaud, o seu mecânico, assume a aparência de um bom trabalhador manual sem competência particular. Camuflagem, certamente. No total, uma equipa coerente de que o senhor é o animador. Uma equipa que recebeu ordem para conceber e fabricar uma arma ultramoderna para vencer a Alemanha. Qual, senhor Branier?

 

O comandante pensava ter abalado as últimas defesas do Venerável. Mas este permaneceu inerte, ausente.

 

Não estou a ver a que quer referir-se... Para além da medicina, tenho uma cultura científica muito limitada.

 

O tom do SS tornou-se ameaçador.

 

Espero que me tenha ouvido bem! A sua suprema astúcia é surgir na primeira linha não sendo um técnico nem um cientista. Serve-se da Maçonaria para dissimular uma equipa de sabotadores. Julgou que ninguém desmascararia a sua manobra. Esqueceu-se que o Fúhrer deu ordem para destruir as sociedades secretas. Só podem abrigar o Mal.

 

O Venerável deu um passo na direcção da secretária. O comandante reteve a respiração. O ajudante-de-campo agarrou no revólver com um gesto nervoso e apontou-o a François Branier.

 

Raramente ouvi um tal amontoado de inépcias disse o Venerável, dominado por uma cólera fria.

 

Há-de falar. O senhor e os seus cúmplices.

 

Só existe a loja, a Regra e a iniciação. Nada mais.

 

A sua posição em breve será insustentável, senhor Branier. Como a do seu Irmão Forgeaud.

 

O que lhe fez?

 

O Venerável mostrava-se ameaçador, como se pudesse exercer qualquer poder. O comandante sorriu.

 

Coloquei-o no seu meio natural. Uma oficina de mecânica. Em breve saberemos realmente se é apenas um modesto operário

 

 

Com o devido respeito, Venerável, parece-me que está um bocado a nadar na sopa.

 

O Monge contemplava o Venerável, prostrado. Não pronunciara uma palavra desde que os SS o tinham trazido de volta à enfermaria. O Monge tinha-o deixado naquele estado um bom bocado, não lhe pedindo mesmo para se ir ocupar dos doentes. Mas aquilo não podia durar eternamente. O Monge detestava os depressivos.

 

Gostaria de saber porquê... A voz do Monge era insistente. O Venerável ergueu os olhos para ele.

 

Vão-me arrumar um Irmão.

 

O quê?

 

Guy Forgeaud, o mecânico. O comandante mandou-o para a oficina.

 

Com que intenção?

 

Preparar-lhe uma armadilha. Ignoro qual. Ajude-me.

 

Atrapalhado, o Monge alisou os pêlos da barba.

 

Eu? Como?

 

O Venerável fixou o Monge com uma intensidade que quase fez estremecer este último.

 

A loura... Estou convencido que ela e o senhor organizaram uma rede no interior do campo. Corra o risco de o utilizar para prevenir Forgeaud. Ele que se mantenha sossegado e faça de mecânico tacanho.

 

O Monge tossiu várias vezes.

 

Apanhou frio.

 

Não. É uma velha bronquite que dá sinal de si. Não compreendo.

 

Porque razão Forgeaud deve fazer o possível por se mostrar incompetente?

 

É um mecânico de génio. É capaz de arranjar qualquer coisa, mesmo o que não conhece. O comandante está convencido que se trata na realidade de um engenheiro de alto nível.

 

E é falso?

 

Evidentemente.

 

E a si, toma-o por quem?

 

Pelo coordenador de uma equipa de terroristas que se dissimula por trás da cortina da Maçonaria.

 

Não era assim tão má ideia considerou o Monge.

 

O Venerável tinha achado conveniente dizer a verdade. Se o Monge estivesse feito com os alemães, seria forçado a reconhecer que Branier tinha sido sincero. O Venerável tinha hesitado. Mas só havia uma solução para prevenir Forgeaud: servir-se do Monge dando-lhe o mínimo de informações. Tentar despertar a sua curiosidade, obrigá-lo a transmitir uma mensagem para intrigar Forgeaud. Manobra miserável e arriscada. Uma hipótese muito reduzida de êxito. Que outra coisa podia fazer?

 

Tem estatura para montar um golpe desses comentou o Monge. A sua Maçonaria é fachada. É um trompe-loeil. O senhor e a sua equipa, pelo contrário... Gostaria bem de fazer parte de um comando de elite como aquele que dirige.

 

Não há nenhum comando de elite! rugiu o Venerável. Há uma loja que caiu nas mãos de loucos criminosos!

 

O Monge coçou a face com ar penalizado.

 

Não tem confiança em mim, Venerável. Talvez acredite realmente que assinei um pacto moral com os nazis.

 

François Branier permaneceu silencioso. O Monge que tirasse as conclusões que quisesse. Enquanto a dúvida subsistisse, não saberia como agir.

 

Que mensagem deseja fazer chegar a Forgeaud?

 

Que não toque em nada respondeu o Venerável.

 

Guy Forgeaud ia-se habituando ao cerimonial. Os SS vinham buscá-lo todas as manhãs, de madrugada, para o levarem à oficina. Todas as manhãs, como se eles não existissem, se despedia com um abraço dos Irmãos.

 

Quando a porta da oficina foi fechada por fora, Guy Forgeaud não prestou atenção. O seu olhar foi atraído pelo objecto cinzento-aço colocado sobre cavaletes. Um cilindro metálico, uma espécie de turbina miniaturizada, dotada de pseudo-asas, evocando um foguetão futurista. A curiosidade do mecânico foi imediatamente aguçada. Julgava ter visto os mais extravagantes motores e propulsores, mas aquele... Girou em volta do engenho com respeito, notando que estava amolgado em vários pontos. Um furioso desejo de o desmontar apoderou-se dele. Ver o que aquele monstro tinha no interior tornava-se uma necessidade imperiosa. Forgeaud poisou a palma da mão direita sobre o metal gelado, como se o quisesse acariciar.

 

Recuou. E se aquilo estivesse armadilhado? Se lhe rebentasse na cara? Os nazis talvez tivessem decidido oferecer-lhe uma bela morte mecânica para se divertirem.

 

Dominou o medo. E o desejo regressou. Desmontar peça por peça, compreender. Se rebentasse, rebentava. Antes de começar, Forgeaud subiu ao seu posto de observação para ver o que se passava no pátio. Uma lufada de evasão. Um pouco de liberdade roubada. Deteve-se em cima do andaime.

 

Um ”clíc” muito fraco, quase inaudível. A porta da oficina abriu-se. Tetanisado, Forgeaud não teve tempo de descer do seu poleiro. Apanhado. O primeiro uniforme nazi entrou. O Mestre maçon bater-se-ia. Saltou para o chão e deu de caras com um rosto de mulher.

 

Não toque nesse engenho articulou ela num francês aproximativo.

 

Voltou-lhe as costas e saiu da oficina. A porta fechou-se atrás dela. Foi novamente fechada por fora.

 

O Monge dormia a sono solto, esgotado pelo dia de trabalho. Duas mortes. Colocara os cadáveres à entrada da porta da enfermaria, com os pés para a frente. Os SS tinham-nos levado ao cair da noite.

 

O Venerável passara o dia no pequeno compartimento da torre que lhe servia de escritório. Não lhe haviam dado de beber nem de comer. Tinham retirado a caneta e o papel. As suas confissões já não pareciam interessar o comandante. François Branier dormira como um gato, perpetuamente à escuta, despertando ao menor estalido. Um falso sono, um falso repouso. A sensação da solidão absoluta, dolorosa. Fez o vácuo na mente, reduzindo-se a uma vida vegetativa, a um estado primitivo em que eram abolidos recordações e desejos.

 

Quando os SS o empurraram para dentro da enfermaria, o Sol já se pusera há muito tempo. Ao passar pelo pátio, o Venerável captara um perfume de flores primaveris. Em redor da fortaleza, o Inverno recuava. No interior do bloco, o seu olfacto foi imediatamente agredido pela morte, a doença, o sofrimento. Teve o cuidado de não despertar o Monge. Ia deitar-se quando chegou até ele um apelo vindo do fundo da enfermaria. Era a voz desarticulada do velho astrólogo de Nice.

 

Soerguera-se, com o busto bem direito. Agarrava o lençol com raiva, como se fosse o seu último elo de ligação com a vida. François Branier segurou-o pelos pulsos. Surpreendido, o velho ficou de boca aberta.

 

Quem está aí? murmurou, em pânico.

 

O doutor Branier. Vou tratar de si. Acalme-se.

 

O astrólogo tentou levantar-se. O Venerável não o deixou. Quero ir-me embora. Quero regressar a Nice.

 

Quando estiver curado. Está demasiado fraco para viajar.

 

O doente levantou os olhos para o tecto da enfermaria, como se tivesse ouvido uma voz vinda do céu.

 

Nice é bonito. Há Sol, muito Sol... flores também... sabe como as flores amam? Esperam que o Sol trespasse a noite, depois abrem-se, pétala a pétala, para não perderem uma gota de luz. O zodíaco é uma flor. Abre-se quando o olhamos à luz. Eu vi o futuro. É fogo. Morreremos todos. Seremos queimados, calcinados como velha madeira roída pelos bichos. Conheço a data e a hora. Só eu.

 

Havia tal paixão, tal emoção na voz do velho que o Venerável se deixou contagiar.

 

Porquê o senhor só?

 

O astrólogo sorriu. Até que enfim que lhe faziam a pergunta correcta.

 

Porque sou o único a ter previsto o início desta guerra... e também o seu fim. Mas não haverá mais ninguém para ver. Apenas fogo, um bola de fogo no céu.

 

François Branier agarrou o astrólogo pelos ombros e obrigou-o a voltar-se para ele.

 

Quando? Quando acabará este pesadelo? O astrólogo susteve a respiração.

 

Um fogo, um braseiro, em breve... Este mundo está perdido.

 

Em breve? O que significa esse em breve?

 

Com os astros não se pode ter a certeza de um mês... Eles não vivem no mesmo tempo que nós.

 

Um louco. Um pobre louco. Por instantes, o Venerável tinha acreditado que o velho era um vidente, que pressentira um acontecimento futuro. Mas apenas divagava, seguia caminhos sem saída na paisagem da sua demência.

 

De repente, colocou as duas mãos trémulas em torno do pescoço de François Branier e apertou. O Venerável não se debateu.

 

Não tem o direito! Não tem o direito de destruir este mundo, mesmo estando podre... Jure-me que não vai também cuspir fogo!

 

Acalme-se recomendou o Venerável, sentindo as unhas enterrarem-se-lhe na carne.

 

Então... é o senhor o incendiário? É o senhor que vai deitar fogo ao mundo?

 

O que restava de vida naquele corpo descarnado e doente concentrou-se na extremidade dos dedos. François Branier compreendeu que o velho decidira matá-lo. Para eliminar o perigo. Para se convencer que suprimia a desgraça anunciada. O Venerável não conseguia respirar. As mãos do estrangulador inteiriçavam-se num último esforço.

 

Com o punho, o Venerável bateu no peito do astrólogo. Este não largou a sua presa. Pelo contrário, a pancada com pouca força estimulou-o. O sangue brotou no pescoço de François Branier. Com a mão esquerda, afastou violentamente o velho.

 

O astrólogo caiu sobre a enxerga. Teve um breve estertor. Depois fechou os olhos. O Venerável apoiou a orelha direita sobre o peito do velho. Já não detectava qualquer bater do coração.

 

Quando o Venerável acordou, o Sol brilhava alto no céu. Um raio passava por baixo da porta da enfermaria.

 

Deixei-o dormir disse o Monge. O campo parece morto esta manhã. Passa-se qualquer coisa de anormal. Nem sequer levaram o cadáver que coloquei lá fora.

 

O astrólogo de Nice?

 

Não. Um mais novo. Um vidente.

 

O astrólogo também morreu. O Monge pareceu espantado.

 

Dei-lhe de comer há menos de uma hora.

 

O Venerável levantou-se e dirigiu-se ao fundo do bloco. Na sua enxerga, o velho tinha um estertor quase inaudível. François Branier ficou a escutar durante alguns minutos a respiração de além-túmulo que parecia ir interromper-se a qualquer instante e que continuava, incansável.

 

Voltou para o cubículo onde o Monge preparava medicamentos.

 

Ontem à noite o coração já não batia.

 

Há milagres, Venerável. Mesmo aqui. Como vão as coisas com o comandante?

 

Uma calma podre. As minhas revelações já não lhe interessam.

 

Não se deixe enganar. É uma táctica como qualquer outra. Ele tenta todas. Quer o seu segredo. É a sua razão de viver. Tem quase todos os trunfos na mão.

 

Porquê ”quase”?

 

Porque está enganado... Só há um único segredo. O conhecimento de Deus.

 

Demasiado místico, irmão. Não esqueça que eu dirijo uma célula de terroristas encarregados de preparar uma nova arma que aniquilará a Alemanha.

 

O irmão Benoit encolheu os ombros.

 

Quem dera que isso fosse verdade. Mas seria bom demais os maçons terem tido uma ideia tão genial. É um verdadeiro maçon. Acredita na sua iniciação. Receio que a sua loja seja uma miscelânea de boas pessoas perdidas por maus caminhos.

 

O Venerável enterrou a cabeça nos ombros e olhou para o chão. Tinha ouvido aquele discurso mil vezes. O Monge era demasiado subtil para o utilizar sem segunda intenção. Apregoava o falso para saber o verdadeiro. Impelia-o para a falta como um jogador de xadrez cometendo um erro aparente.

 

Onde está o bom caminho? perguntou o Venerável.

 

O seu Grande Arquitecto abandona-o. É normal. O bom caminho é Deus. É a porta, a verdade e a vida. Tudo o que não passar por ele está condenado a morrer.

 

Está muito intolerante, irmão. Ou converte ou excomunga. Apenas quero ser testemunha. Testemunha da luz.

 

O que pode conhecer da luz divina?

 

Pelo menos a mesma coisa que o senhor e com certeza um pouco mais, visto que não é iniciado respondeu o Venerável. Enveredou por um mau caminho e não tem coragem para mudar.

 

O Monge ficou vermelho. Uma imensa cólera encheu-lhe o peito. Conseguiu conter-se. O Venerável tinha-o feito perder as estribeiras durante um instante.

 

Fizemos uma aposta, Venerável.

 

Que se mantém, irmão. Só tenho uma palavra.

 

Fazia melhor em renunciar. Deus perdoar-lhe-ia.

 

O Grande Arquitecto não aprecia os que renunciam.

 

Lá fora, ruído de botas. O som de um cadáver puxado pelos pés, em frente da enfermaria. Ordens em alemão.

 

A vida recomeça observou o Monge.

 

 

As minhas felicitações, senhor Branier disse o comandante, sentencioso.

 

O Venerável tinha sido conduzido ao seu gabinete pouco depois do cair do dia. Não tinha saído da enfermaria desde a véspera à noite. Um trabalho arrasador, novos doentes. Astrólogos e videntes checos, a maior parte deles num estado miserável. Aqueles homens tinham sido torturados. Nenhum sobreviveria durante muito tempo. O Monge tinha-lhes dado a extrema-unção.

 

É um excelente condutor de homens continuou o comandante. Mesmo separados de si, os Irmãos obedecem-lhe. Estou convencido que tem contactos... telepáticos.

 

Os olhos do SS brilhavam. Os dedos passavam e tornavam a passar sobre uma bola de metal que lhe servia de pisa-papéis. O ajudante-de-campo, Helmut, tomava notas num grande caderno poisado sobre a estante.

 

Não tenho nenhum dom nesse campo retorquiu o Venerável.

 

De verdade?

 

De verdade.

 

Como explica que o seu Irmão Guy Forgeaud tenha ignorado a magnífica turbina que eu lhe tinha oferecido como isca? Um modelo ultra-secreto sobre o qual um técnico como ele deveria precipitar-se!

 

François Branier sorriu, sem insolência, como um animal selvagem divertido com a provocação de um mais fraco.

 

É a prova de que Guy Forgeaud é um simples mecânico sem competências particulares.

 

Esqueça esse argumento estúpido, senhor Branier. Diga antes que a minha estratégia era grosseira, que a minha armadilha era ingénua!

 

Não sei.

 

Um silêncio tenso seguiu-se às palavras do Venerável. O ajudante-de-campo parou de escrever, esperando a reacção do comandante. Este poisou a bola de metal, acendeu um cigarro e começou a andar de um lado para outro em frente da janela do gabinete. Andava como um boneco mecânico bem regulado.

 

Há outra explicação, Venerável. Sem necessidade de telepatia nem de ingenuidade. Existe uma rede de informações no interior da fortaleza. A experiência prova que as piores masmorras não impedem os prisioneiros de se corresponderem entre si. Não será muito difícil identificar os culpados. O que pensa disto?

 

O Venerável sentia-se preso num torno. O comandante jogava para ganhar. Se Forgeaud tivesse cometido a imprudência de sabotar a turbina, teria revelado as suas competências. Não lhe tocando, revelada a existência de uma organização de resistentes mesmo no coração da fortaleza. Mas o comandante ignorá-la-ia realmente? Não deixava o Monge, a jovem alemã e mais alguns actuarem para melhor os controlar? A menos que o Monge fosse o pior dos traidores, trabalhando em colaboração com o comandante. Nesse caso, a jovem alemã era sua cúmplice. E como ter a certeza que Forgeaud não tinha caído na cilada? A informação provinha do comandante, fonte no mínimo duvidosa.

 

Uma vez mais era necessário deter o turbilhão, encontrar um ponto de referência, um ancoradouro. Na véspera da sua iniciação, o padrinho de François Branier dissera-lhe: ”Um dia, não terás mais nenhuma certeza, nenhuma esperança, nenhum desejo. Estarás perdido numa noite negra, sem poder apelar a ninguém pois serás o Mestre da loja. Os Irmãos esperarão tudo de ti. Serás o homem mais só que jamais existiu sobre a terra. Nesse instante, ou estoirarás ou começarás a entender o que é a iniciação.”

 

Tinha chegado o momento anunciado pelo velho sábio.

 

O que sabe dessa rede, senhor Branier?

 

Estou ao corrente de tudo respondeu o Venerável.

 

O comandante teve um instante de hesitação e depois retomou o andamento mecânico.

 

Estou a ouvi-lo.

 

A decisão impusera-se ao Venerável como uma revelação. Varrera os argumentos razoáveis. Pouco importava se se trataria ou não de um erro. Se fosse esse o caso, seria definitiva. François Branier não tinha qualquer pausa de reflexão à sua disposição. O simples facto de adiar a sua resposta teria constituído um indício. O comandante não deixava nada ao acaso. Era um conceito estranho ao seu pensamento. A mínima palavra, o mais anódino dos seus gestos eram calculados. O Venerável conhecia bem aquele método por ele próprio o ter utilizado. Mas aqui, naquelas condições, não seria capaz. A sua única arma era a espontaneidade. A visão instantânea, com um risco máximo. Como dizia muitas vezes Pierre Laniel, ou vai ou racha.

 

Essa rede não existe.

 

Tenha cuidado, senhor Branier. Não admitirei...

 

É muito mais simples do que imagina. Nenhum dos Irmãos da minha loja age sem uma ordem formal minha. Tanto Forgeaud como os outros. Quando surge uma dificuldade, esperam.

 

É um verdadeiro ditador observou o comandante, céptico.

 

A loja funciona de acordo com uma hierarquia que não se discute. Compreende isso facilmente, não?

 

O SS continuou o seu vaivém.

 

Como transmite essas ordens formais?

 

Por sinais.

 

Quais?

 

O Venerável poisou a mão direita sobre o ombro esquerdo, próximo do pescoço.

 

O ajudante-de-campo fez imediatamente um croquis no grande caderno.

 

Não é um sinal maçónico. Faz uma coisa qualquer.

 

Com efeito, não é um sinal habitual. É especial da minha loja. Sábia medida de segurança.

 

Não há mensagens codificadas para comunicarem uns com os outros?

 

Claro. Desde que as possamos fazer chegar.

 

Que código utiliza?

 

Cruzes e pontos sobre uma grelha. O mais clássico, com algumas variações. Era usado nas lojas alemãs. Com certeza que possui alguns exemplares. Mas não voltei a ver Forgeaud e não lhe pude dirigir a mínima mensagem. Permanecerá passivo, como os outros, enquanto não tiver recebido instruções vindas de mim e só de mim.

 

O comandante sentou-se à secretária e abriu o dossier.

 

Helmut, mande reconduzir o Venerável à enfermaria.

 

O que eles lhe fizeram constatou Raoul Brissac contemplando o Irmão Forgeaud, cujo rosto estava coberto de equimoses.

 

O mecânico acabava de despertar, depois de ter passado uma noite agitada. Tinha marcas de pancadas no peito.

 

Porque não o mandaram para a enfermaria? perguntou o Aprendiz Serval.

 

Com certeza para não encontrar o Venerável calculou Dieter Eckart. Guy Forgeaud, com um olho negro, o lábio superior rebentado, as maçãs

 

do rosto roxas, esboçou um sorriso.

 

Meus Irmãos, fiz um grande disparate.

 

Os sobreviventes da loja ”Conhecimento” rodearam o Irmão estendido no chão do bloco vermelho.

 

Primeiro, o pequeno-almoço exigiu André Spinot.

 

Não tinham tocado na sua última ração de couve cozida de forma a reservar um festim para Forgeaud. Ajudaram-no a soerguer o busto e a comer. Mastigou cada dentada com o prazer de ainda estar vivo.

 

Famoso apreciou. A sua dicção deixava muito a desejar, mas os Irmãos não perderam uma única das suas explicações.

 

Não toquei no sacana do engenho deles. Uma espécie de bomba voadora dotada de asas metálicas. No entanto, tinha vontade de desmontar aquela geringonça. Mas teria com certeza deixado vestígios. Apresentar-me aquele engenho como um bolo de aniversário foi um pouco demais. E depois houve uma rapariga vestida de SS que apareceu na paisagem. Recomendou-me que não tocasse em nada e desapareceu. O problema era a inacção. Tinha terminado a minha tarefa de sabotagem. Só tinha a armaria. Aí, não consegui resistir. Abri-a. Não havia armas, apenas garrafas de vinho branco. Não tive tempo de saborear uma. Os SS caíram-me em cima. Bateram duro. Mergulhei no vazio. Acordei aqui. Ao ver as vossas caras, julguei que tinha chegado ao paraíso dos maçons!

 

Pela quinta vez naquele dia, o Monge recitou a oração dos mortos. Evocava o reino celeste que, no seu espírito, assumia o aspecto dos edifícios da abadia de Saint-Wandrille, do refeitório onde os monges celebravam o banquete ritual, da biblioteca onde decifravam as escrituras, do claustro onde concentravam os pensamentos caminhando com passo eterno, das células onde viviam face-a-face com a Presença. Sobrepondo-se a essas imagens, a do cemitério oculto num bosque, na colina que dominava a abadia. Ali estavam enterrados os Irmãos, repousando ao ritmo das estações, no silêncio dos dias e das noites animadas pelas orações rituais. O cemitério onde o Monge quereria também repousar.

 

Perto, um pequeno oratório, oculto nos carvalhos. Alguns irmãos vinham para ali meditar durante longas horas, deixando o olhar perder-se ao longe no vale. Ele, Benoit, o mais robusto da comunidade, o mais trabalhador, o mais enérgico, era também o mais contemplativo. Acontecia-lhe esquecer as santas horas em que os irmãos faziam oração. Mandavam o mais novo buscá-lo.

 

O Monge não tornaria a sentir a perfeita felicidade dessa solidão luminosa. Censurava-se aquela falta de fé, aquela recusa do milagre sempre possível. Deus cumpria a Sua vontade, não a de um indivíduo. Se este mundo devia ser destruído, porquê revoltar-se? Talvez tivesse soado a hora do fim dos tempos. Ser testemunha de semelhante acontecimento, do regresso do criado ao Criador, não devia provocar desespero. Mas teria a humanidade tocado o fundo do horror? Tratar-se-ia do fim ou do começo de atrozes convulsões que fariam desaparecer os últimos vestígios de harmonia? Benoit pensava na primeira comunidade de monges que tinham civilizado um Ocidente dominado pelas piores barbáries. Cruel tinha sido o dia em que, demasiado numerosos, os irmãos tinham sido obrigados a dividir-se em duas comunidades. Que dilema no coração do abade, ter que designar os irmãos que teriam de partir para longe para fundar um novo mosteiro. O Monge sentia-se no exílio, numa terra desconhecida, num mundo de trevas onde tinha ordem para detectar uma parcela de luz. Investido de uma missão? Não sentia nisso qualquer vaidade. O facto em nada alterava a realidade. Mas Deus não praticava jogos de azar. Se tinha colocado um Monge naquele inferno era com certeza para provar que o Mal não era absoluto.

 

Sofrimento, esperança, vida, morte, luz, trevas... Tudo estava correctamente colocado na grande roda do destino. Com excepção de uma incógnita: a presença daquele Venerável. O Monge tinha de admitir que imaginara de outra forma o pior dos sequazes de Satã. O Venerável talvez também cumprisse uma missão, mas qual? Que peso teria o Grande Arquitecto face a Deus Todo Poderoso! Certo de ganhar a sua aposta, o Monge aclarou a garganta, enervado, desencadeando um novo ataque de tosse.

 

Confundiu-se com o ulular sinistro das sirenes da fortaleza.

 

 

Raoul Brissac, o pedreiro, mantinha o olho colado à frincha feita na parte de baixo da parede do bloco vermelho que dava para o grande pátio. Esperava, incansável. Teria esperado durante séculos. A ferida na orelha ainda lhe provocava dores agudas, mas não se preocupava com isso. O malvado que lhe tinha roubado a argola de Companheiro e morto Pierre Laniel havia de pagar com a vida. De momento, o intendente parecia intocável. Um carniceiro de olhar inerte cujo rosto obcecava Raoul Brissac. Não podia continuar a viver enquanto aquele fulano existisse. Não se deixa impune a morte de um Irmão.

 

Era impossível agir só. Estava fora de questão colocar outros Irmãos em perigo. Raoul Brissac exercitava a sua paciência, observava horas a fio. Esperava a ocasião favorável. Havia de chegar. Desejava-a com tanta força que acabaria por criar magicamente as condições. Aquando da iniciação no grau de Companheiro, revelavam na loja ”Conhecimento” a utilização da força pessoal, a forma de manipular as energias interiores. Uma capacidade para modificar o curso das coisas de forma infinitesimal, é verdade, mas de o modificar apesar de tudo projectando a sua vontade na direcção do objectivo a alcançar. O Venerável talvez tivesse censurado a Brissac a utilização de um poder, o desvio de uma força espiritual para o campo material. O Companheiro recusava de antemão essa crítica. A salvaguarda da loja passava pelo combate. Era preciso atacar, quebrar a mecânica do adversário, provar-lhe que o seu sistema não era infalível. E, antes de mais nada, vingar Laniel.

 

Os acontecimentos desenrolaram-se com tal rapidez que Raoul Brissac não pôde reflectir. Deixou-se arrastar pelo seu instinto. Primeiro, viu sair da torre central um homem cambaleante, com a roupa a arder. Já nem tinha força para gritar. Atrás dele, dois SS, com os uniformes igualmente em fogo, carregando uma enorme marmita de óleo de onde saíam chamas e fumo. Um deles, um colosso, conseguiu percorrer alguns metros com um esforço tremendo. As mãos ficaram coladas ao metal ardente. Desmoronou-se de encontro à parede de um bloco que de imediato se incendiou.

 

As sirenes da fortaleza começaram a soar no momento em que os primeiros deportados saíram do bloco para evitar serem queimados vivos. Os SS saltaram da sua caserna com as armas na mão. Dispararam sobre os detidos que, loucos de esperança, tentavam escalar os muros da fortaleza. Outros iniciaram a evacuação dos blocos e obrigaram os prisioneiros a reunir-se em frente da torre, para o lado das casas de banho. Os maçons foram os últimos a sair.

 

Durante alguns minutos, a confusão foi total. O fogo que avançava, os queimados que gritavam, os socorros que se organizaram muito lentamente,! os insensatos que tentavam fugir não interessa para onde, a boca de incêndiol que não funcionava bem, os baldes que ninguém encontrava, os SS que disparavam para o ar para não atingirem os seus camaradas, os instigadores que tinham o cuidado de abandonar as fileiras quando se formavam.

 

Raoul Brissac tinha localizado o intendente. Na mão direita, o Companheiro segurava uma haste de metal tirada do pequeno arsenal que a loja acumulara. Com passos rápidos, um pouco curvado, Brissac avançou, invisível, por entre os clarões sombrios do incêndio.

 

Um bloco completamente destruído, outro meio calcinado, cadáveres rapidamente retirados da fortaleza: assim surgia o único balanço que os Irmãos da ”Conhecimento” podiam fazer. Passado o momento de pânico, as filas de prisioneiros tinham-se finalmente formado no grande pátio sob o controlo dos SS. Klaus, o oficial superior, restabelecera a ordem em menos de um quarto de hora. O incêndio estava controlado.

 

Os maçons tinham voltado para o seu bloco sob a vigilância de uma dezena de SS de nervos tensos. Todos os Irmãos sentiam um estranho mal-estar.

 

O incidente parecia no entanto encerrado, mas a angústia pairava, como se o incêndio fosse apenas o prelúdio de uma desgraça. A ração da noite não lhes foi distribuída.

 

Ninguém viu o Venerável? perguntou Dieter Eckart.

 

Serval e Spinot abanaram a cabeça negativamente. Tinham ajudado Guy Forgeaud a deslocar-se, enquanto Dieter Eckart observava o que se passava em seu redor para os prevenir do perigo.

 

E tu, Raoul?

 

O Companheiro Brissac estava tão concentrado como no dia em que tinha passado pelo primeiro ”inquérito” que decidira o seu futuro iniciático. De cabeça baixa, os olhos próximos, fechava-se em si mesmo.

 

Raoul... Fiz-te uma pergunta insistiu Dieter Eckart, espantado com o mutismo do Irmão.

 

Não. Não vi o Venerável.

 

Esvaía-se a última esperança. Pela primeira vez, os Irmãos da ”Conhecimento” tinham visto os seus camaradas de infortúnio, os outros deportados. Pelo menos uns trezentos. Muitos homens de idade.

 

Santo Deus, mas onde estará ele? explodiu Guy Forgeaud, a quem os ferimentos pareciam não ter afectado a energia.

 

Não acham que... perguntou André Spinot com voz ansiosa.

 

Também não vi o Monge observou o Aprendiz Jean Serval.

 

Talvez tenham liquidado os dois disse Brissac, sombrio.

 

A enfermaria não ardeu objectou Dieter Eckart. Não evacuaram os doentes.

 

Incêndio disse o Monge.

 

Parece que há pânico.

 

O Monge e o Venerável ouviram gritos, ordens em alemão, bater de botas, tiros em rajada.

 

Tenho a impressão que nos vão deixar assar aqui, com os doentes.

 

São bem capazes disso considerou o Monge. Vou dar a bênção aos nossos protegidos.

 

O pesado vulto do beneditino precipitou-se na direcção das camas. Voltou-se para o Venerável.

 

Na sua loja não se preparam para a morte?

 

Vivemo-la simbolicamente durante a iniciação para o grau de Mestre. É a única forma de a conhecer por dentro. Quando um Irmão morre, celebramos uma ”reunião” fúnebre. Não é o indivíduo que honramos mas sim o seu avental de iniciado. Para nós, ele não morre. Passa ao Oriente eterno. O seu ser transforma-se em luz. É uma estrela que guia os seus Irmãos que ficaram na terra.

 

O Monge adoptou a atitude severa que tinham conhecido bem alguns noviços de cuja formação se tinha encarregado.

 

Isso é poesia, a sua história, paganismo...

 

Porquê, irmão? Não foi uma estrela que guiou os magos até Cristo? O Monge resmungou uma resposta inaudível.

 

Despreza a humanidade, Venerável. Considera que só os seus Irmãos interessam.

 

François Branier cruzou os braços numa atitude bem conhecida dos jovens Irmãos que orientara para os mistérios.

 

Admite toda a gente no seu cemitério, irmão? Apenas aí reúne irmãos! do mosteiro, creio eu... Também vocês formam uma elite. Sempre vos invejei! essa forma de viver o repouso eterno. Visitei alguns cemitérios beneditinos perdidos nos bosques, isolados nos flancos de uma colina, imersos em silêncio.! Todos os que viveram, trabalharam e rezaram em conjunto estão ali reunidos, ligados para a eternidade. Quando um Irmão vem meditar perto deles, revê os seus rostos. Chora intimamente mas prolonga-os. Continua-os.

 

Tratemos dos doentes interrompeu o irmão Benoit.

 

Klaus e quatro SS irromperam na enfermaria. Empurraram para fora o Monge e o Venerável, obrigaram os doentes a levantar-se e fizeram-nos avançar com coronhadas nos rins. Três deles, incapazes de se mexerem, foram executados com uma bala na têmpora.

 

Em frente do bloco das casas de banho, os SS tinham amontoado indiscriminadamente os cadáveres dos queimados e os restos de madeira calcinados, ainda fumegantes. Os olhares do Monge e do Venerável foram atraídos pelo estrado sobre o qual tinham colocado o corpo de um SS. Ao lado, o comandante da fortaleza, hirto no seu uniforme impecável, de pernas ligeiramente afastadas, mãos atrás das costas. Perto, o ajudante de campo.

 

Em longas filas resignadas, os prisioneiros saíram dos seus blocos e foram dispostos numa vintena de fileiras, em frente do estrado. O Monge e o Venerável estavam no extremo esquerdo da primeira fileira. François Branier em vão virava a cabeça para o lado, tentando ver os Irmãos. Estes, colocados atrás, não viram o Venerável. Os SS obrigaram-nos a respeitar um alinhamento impecável e depois eles próprios se dispuseram em quadrado em torno dos deportados.

 

Ergueu-se um lamento musical. A abertura do Navio Fantasma de Wagner. Dois prisioneiros falaram e mexeram-se. Foram imediatamente apontados pelo oficial superior, retirados das fileiras e espancados. O comandante permaneceu imóvel até ao fim da Abertura. O Monge rezou. O Venerável invocou o Grande Arquitecto do Universo. Nem um nem outro pediram uma graça determinada, procurando apenas intensificar uma presença.

 

Extinguiu-se a música. As pernas de alguns começavam a ficar pesadas. Desmaiaram alguns doentes. O comandante esperou que o silêncio fosse perfeito. Tomou a palavra.

 

Foi cometido um crime inqualificável. Um soldado do Reich foi cobardemente assassinado, apunhalado pelas costas. Que o culpado se acuse imediatamente. Caso contrário, mando executar dois prisioneiros de minuto a minuto. Klaus, comece a contagem decrescente.

 

O oficial superior olhou o relógio. O Monge perguntou a si mesmo quem tinha sido suficientemente louco para realizar um acto daqueles. O comandante não se contentaria com certeza apenas com uma vítima expiatória. Talvez fechasse a enfermaria, suprimisse as rações, instituísse um regime de trabalhos forçados, multiplicasse as sevícias. Tinha sido sem dúvida um pequeno grupo que aproveitara a confusão para se vingar de um guarda, julgando agir com heroicidade. O Monge apenas viu uma solução. Acusar-se antes do fim da contagem decrescente. E mostrar-se convincente para explicar como tinha procedido. Era pena perder assim uma aposta ganha de antemão. Mas era necessário salvar vidas.

 

Tinham passado trinta segundos. O Venerável tinha a certeza que os Irmãos da ”Conhecimento” eram responsáveis por aquele atentado. Com certeza tratava-se do prelúdio de uma tentativa de evasão abortada. Tinham-no julgado morto e não tinham querido morrer como cães. Não haveria segunda oportunidade. O Venerável era forçado a acusar-se do assassínio do SS.

 

Esperava salvar assim os Irmãos. O Mestre do estaleiro tinha o dever de intervir quando os operários estavam ameaçados. Perderia a sua aposta e o segredo do Número desapareceria nas trevas.

 

Mais vinte segundos. O oficial superior começou a contá-los em voz alta. Dezanove, dezoito, dezassete... O comandante sabia que o/ou os culpados se acusariam. Reacção de insensatos? Golpe de força? Dentro de menos de quinze segundos, estaria definido. Imaginava o assassino morto de medo, hesitando em entreabrir os lábios. Seria provavelmente necessário executar alguns detidos para o convencer.

 

O Monge tomara a sua decisão. Acusar-se-ia cinco segundos antes do fim do termo. Mas havia uma hipótese que lhe martelava o espírito: não se trataria de uma encenação? O comandante não teria ordenado aquela morte para colocar os maçons numa situação inextricável?

 

Treze segundos, doze, onze...

 

Fui eu!

 

Uma voz potente cobriu a do oficial. Raoul Brissac, partindo da última fila, rasgara as filas de detidos, empurrando os que não se afastavam suficientemente depressa. O efeito de surpresa funcionou na perfeição. Os SS, esperando uma ordem que não chegava, não dispararam. Brissac estacou de chofre a um metro do comandante, que não modificara a sua posição.

 

Fui eu que liquidei esse assassino.

 

Como? interrogou o comandante.

 

Raoul Brissac contemplava o cadáver, deitado de barriga para baixo. Na base do pescoço, uma haste de metal profundamente cravada.

 

Assim! berrou o Companheiro atirando-se sobre os restos mortais do SS que tinha morto Pierre Laniel e lhe roubara a argola.

 

Arrancou a haste de metal e espetou-a por diversas vezes no cadáver. Enquanto atacava, o seu olhar cruzou-se com o do Venerável. Foi a sua última visão. Os SS lançaram-se sobre ele.

 

Execução imediata ordenou o comandante.

 

Raoul Brissac não tinha hesitado. Havia nos seus olhos o orgulho indomável que François Branier detectara no seu futuro Irmão desde o primeiro encontro. Brissac era um homem de honra. Um termo ridículo, caído em desuso. Mas o Companheiro Brissac desdenhava das modas. A honra da loja e dos seus membros passava à frente de qualquer outra consideração. Excessivamente independente, não suportara ser agredido na sua alma e na sua carne. Uma vez mais, cometera o erro que ainda lhe barrava a via para o Mestrado: agir só, por sua própria iniciativa, sem consultar a comunidade.

 

Porque fez ele aquilo? perguntou o Monge.

 

Todos os detidos tinham sido de novo reenviados para os respectivos blocos. A enfermaria estava meia vazia. François Branier parecia estar num estado fora de normal. Era a primeira pergunta que o Monge se atrevia a fazer-lhe nas últimas duas horas.

 

Achava que era o seu dever.

 

Veja onde isso o levou...

 

O Venerável olhou o Monge com uma severidade que lhe provocou frio nas costas. Uma presença... eis no que lhe fazia pensar aquele maçon. Uma imensa presença, comparável à do primeiro abade que tinha encontrado.

 

Isso conduziu-o ao Oriente eterno, irmão. Aí brilhará para nos ajudar a viver.

 

Brissac indomado, Brissac indomável... Saíra do espaço e do tempo para se fundir na luz.

 

Agradeço-lhe o que pretendeu fazer disse o Venerável. O Monge foi apanhado desprevenido.

 

De que está a falar?

 

Da decisão que tinha tomado. Li-a no seu rosto. Ter-se-ia acusado para evitar um massacre. Tem coragem, irmão.

 

O Monge tossiu.

 

Não encarou também a mesma solução?

 

Ter-se-ia sacrificado por um maçon...

 

Ignorava que tinha sido uma façanha de um dos seus Irmãos. Caso contrário...

 

Caso contrário?

 

O peito do Monge foi abalado por um novo ataque de tosse.

 

Devia tratar de si, irmão. Se quer um diagnóstico...

 

Não é necessário. Nunca consultei um médico. Não vejo porque havia de começar agora a fazê-lo. Hei-de tratar-me só. Fazíamos melhor se dormíssemos.

 

O religioso deitou-se de lado, inquieto. A morte de Raoul Brissac tinha-o impressionado profundamente. Também ele captara o último olhar do Companheiro que, sozinho, desafiara a potência nazi. De certa forma, conseguira. Era a ele que devia ser atribuída a primeira brecha na fortaleza. O comandante tinha consciência do perigo, por mínimo que fosse. Como iria reagir? O Monge teria gostado de prever os golpes, mas o seu espírito não se afastava da pessoa de Raoul Brissac, aquele maçon que escolhera o seu destino com uma determinação inquebrantável.

 

A Maçonaria era uma força perniciosa. Não se tratava de mudar de opinião. Mas os maçons daquela loja... em que categoria os poderia colocar? Como não admitir que se comportavam como verdadeiros Irmãos? O espírito de comando talvez bastasse para explicar tudo. No entanto, nos olhos de Raoul Brissac o Monge detectara aquela luz que apenas alguns monges excepcionais tinham sabido fazer brotar em si mesmos.

 

O Venerável ficou prostrado toda a noite. Pierre Laniel, Raoul Brissac... Dois Irmãos, um Mestre, um Companheiro. Um homem maduro, um jovem. Conheciam-se pouco, não tinham criado laços de amizade. O Companheiro apreciava no Mestre o espírito de decisão, o empenhamento tão discreto como eficaz, o espírito de síntese. O Mestre gostava do sentido de dignidade, da exigência, da força de trabalho do Companheiro. Dois Irmãos insubstituíveis. François Branier nunca mais tornaria a dormir como antes. A alguns passos dele baloiçava no vento nocturno o cadáver de Raoul Brissac, pendurado num cadafalso instalado em frente da enfermaria.

 

 

Durante três dias apenas tiveram direito a um copo de água. Nada de alimento. Morreram três doentes. O Monge e o Venerável tinham menos trabalho mas o stockde medicamentos ia-se esgotando. Entre os casos graves, uma crise de uremia, uma hemiplegia, um tumor.

 

O velho astrólogo de Nice ainda respirava. Os alemães tinham-no esquecido na sua cama. Pronunciava várias vezes por dia uma ladainha de palavras incompreensíveis e depois voltava a cair num torpor. Porque o teriam poupado os SS? Um desejo de o conservar com vida por causa dos dons que lhe eram atribuídos? Uma simples negligência?

 

O Monge e o Venerável tinham limpo a enfermaria com os meios de que dispunham; aquela sensação de limpeza reconfortava-os. Tinham-se habituado àquele reduto, àquele horizonte fechado.

 

Este jejum está a fazer-me muito bem declarou o Monge, bebendo o resto do seu copo de água. Tinha gordura a perder.

 

Os beneditinos passam por serem bons apreciadores da vida.

 

Não andamos em patuscadas como os maçons!

 

Termo incorrecto, irmão. Celebramos banquetes rituais que fazem parte integrante das nossas ”reuniões” de trabalho. Alimento espiritual e alimento material são indissociáveis um do outro. Também comunga com o corpo e o sangue de Cristo, não é verdade?

 

Não comece a misturar tudo! Os vossos pretensos banquetes rituais não passam de ocasiões para esvaziar garrafas e cantar disparates.

 

O Venerável coçou o queixo.

 

Na maior parte das vezes, é verdade. Não no que diz respeito à minha loja. Um maçon bêbado é um palerma. Cada um deve beber à sua medida.

 

Compete-lhe conhecê-la. Não se faça de virtuoso, irmão. Os seus irmãos nunca desdenharam nenhum dos prazeres deste baixo mundo.

 

Está a blasfemar. Não faz a mínima ideia da ascese que impomos a nós próprios.

 

O Monge tinha-se inflamado de novo. O Venerável possuía o dom de encontrar fórmulas irritantes.

 

Apesar das aparências, não deve ser muito diferente da nossa. Tudo se baseia na Regra. Se ainda estamos vivos é por causa dela.

 

O Monge observou o Venerável com atenção.

 

De onde vem a vossa famosa Regra? Não será de nós?

 

Os olhos do Monge brilhavam com um fulgor quase malicioso.

 

Quer fazer-me dizer que o maior segredo da Maçonaria é de origem cristã? Sabe perfeitamente que somos os últimos pagãos irredutíveis. Se conhecesse a nossa festa de S. João Evangelista, depois da instalação do Venerável e dos seus oficiais... São servidos no banquete as melhores iguarias, os melhores vinhos. Passamos toda a noite em volta da mesa.

 

O Monge fez uma careta dubitativa.

 

Unicamente entre maçons?

 

A festa de S. João Evangelista é a celebração secreta da loja.

 

Por outras palavras, Venerável, a comezaina tem um carácter sagrado? Não escolhem o que há de mais perfeito para honrar o vosso Grande Arquitecto? Não passam essa noite mais em meditação comunitária do que a cantar canções de casa da guarda?

 

O Venerável baixou a cabeça de maneira a que o Monge não visse os seus olhos enevoados. O ataque do beneditino surpreendera-o. Esperava críticas, sarcasmos, não uma intuição da verdade.

 

A recordação da última celebração de S. João Evangelista explodia nele como uma vaga de sol. Estavam todos reunidos, os vinte Irmãos da ”Conhecimento”, no seu templo da periferia parisiense, desconhecido das autoridades administrativas da Maçonaria. Uma moradia imensa, especialmente preparada por um dos Irmãos a quem o Companheiro Raoul Brissac tinha dado as indicações técnicas necessárias. Depois da sua nova instalação como Venerável, François Branier fizera entrar no templo Companheiros e Aprendizes para lhes anunciar a composição do colégio dos ”oficiais” em que os Irmãos eram chamados a desempenhar uma função iniciática. Depois, por ordem hierárquica, a comunidade dirigira-se para a mesa do banquete, posta pelos aprendizes. Foiegras, salmão, carne assada, queijo Roquefort, sorvetes, Château-Latoure champanhe... O Mestre dos banquetes tinha esvaziado as caixas do Irmão tesoureiro para essa noite que todos sentiam como excepcional, antes do desencadear do apocalipse. Aquela festa exigia que fossem apresentadas as mais sumptuosas iguarias. François Branier celebrara o ritual dos ”trabalhos de mesa”, terminando com a tripla homenagem ao Grande Arquitecto, à loja e à iniciação. Os Irmãos da ”Conhecimento” tinham-se em seguido manifestado, um a seguir ao outro, sobre a forma como viviam a sua experiência. Tinham a percepção aguda do drama que se preparava à escala mundial mas nenhum medo, nenhuma angústia desfigurava os seus testemunhos. O Venerável não lhes escondera que, na sua opinião, a loja se reunia intacta pela última vez. Em breve começaria a luta subterrânea pela sobrevivência. As notícias vindas da Alemanha eram claras: a Maçonaria seria destruída por toda a parte e os seus membros executados sem julgamento. Quantos de entre eles estariam ainda presentes em redor daquela mesma mesa quando a tempestade acabasse? Se é que acabaria um dia...

 

Não me quer responder, Venerável? François Branier arrancou-se às suas recordações.

 

Talvez tenha razão, irmão.

 

O Monge ficou com um ar aborrecido.

 

Por momentos, quase me é simpático. Tinham boas intenções, o senhor e os seus Irmãos, mas cometeram o erro de se afastarem de Deus para o substituírem por uma imagem sem significado. Não estão muito longe da verdade. Porque não dar esse passo?

 

Pare de pregar cortou secamente o Venerável. Fizemos uma aposta. Esperemos o resultado. Diga-me antes...

 

Dois SS entraram na enfermaria. O Venerável contraiu-se, preparado para se levantar. Mas os soldados ignoraram-no e empurraram o Monge para fora.

 

Os prisioneiros do bloco vermelho estavam deprimidos. O Aprendiz Serval ocupara o posto de observação de Raoul Brissac e daí observara o cadáver, suspenso durante um dia inteiro antes de ser retirado e queimado. André Spinot, o oculista, fechara-se num mutismo quase absoluto, mal se alimentando. Brissac era simultaneamente Irmão e amigo. Fora ele que despertara o seu desejo iniciático, revelando-o à sua verdadeira natureza. Tinha-o ajudado, empurrado, orientado. Brissac só admirava o trabalho bem feito. André Spinot aprendera, em contacto com ele, a mostrar-se exigente consigo próprio. Desaparecidos o Venerável e Guy Forgeaud, faltavam-lhe pontos de apoio.

 

Nenhum de vocês viu o Venerável? perguntou Dieter Eckart pela décima vez.

 

Pareceu-me vê-lo respondeu Guy Forgeaud, que recuperava com dificuldade. Estava no meio de um nevoeiro... Não sei se sonhei ou não.

 

Ninguém refutou a intervenção do Irmão Forgeaud. Eckart, Spinot e Serval lembravam-se do estado lastimoso em que o tinham arrastado para fora do bloco vermelho. Forgeaud, semi-inconsciente, estava incapaz de se aguentar nas pernas. Os olhos fechavam-se-lhe contra vontade. Os Irmãos sabiam perfeitamente que ele tentava dar um pouco de esperança à loja contra toda a realidade.

 

Se tentássemos apesar de tudo celebrar uma ”reunião”? perguntou Serval. Caso contrário, vamos morrer como ratos!

 

Não faremos nada enquanto eu não tiver a prova formal da morte do Venerável respondeu Dieter Eckart.

 

André Spinot abriu a boca. Não saiu qualquer som. De que valia gritar que nunca mais veriam François Branier?

 

Serei eu próprio disse Guy Forgeaud a ir buscar o Venerável.

 

Uma vez tratados os doentes, o Venerável sentara-se no cubículo. Mais um dia ou dois e acabar-se-iam os medicamentos. Há já muitas horas que o Monge estava ausente. Os SS nunca o tinham retido tanto tempo fora da enfermaria. Uma longa lição de radiestesia para o comandante? Um relatório pormenorizado sobre as palavras e os actos do Venerável da ”Conhecimento”? Um interrogatório cerrado sobre o seu verdadeiro papel durante o incêndio? François Branier não julgava ter cometido qualquer erro de vulto, mas o beneditino tinha percepções fora do vulgar. O seu verdadeiro papel continuava mal definido. O Monge permanecia enigmático, incompreensível. Reconhecer o valor da iniciação maçónica era, para ele, sabotar os alicerces sobre os quais o seu universo estava construído. O Venerável só podia surgir-lhe como um mercenário de espírito ou mesmo um terrorista. Havia sobretudo essa aposta em que Deus, de certa maneira, jogava a sua reputação. O Monge não aceitaria perder.

 

François Branier sobressaltou-se. Um vulto penetrava na enfermaria. Uma sombra rápida, deslocando-se sem ruído. Não era o hábito dos SS. Levantou-se e dirigiu-se para a entrada do bloco.

 

Ela. Ela, de uniforme nazi, colocando uma caixa fechada no chão. Agachada, estacou. Deixou-o aproximar-se. Ele tirou a tampa. Medicamentos.

 

Quem é você? Porque faz isto?

 

Ela ergueu-se, desafiadora. Ele agarrou-a pelo pulso.

 

Precisamos de si. Ajude-nos a sair daqui.

 

Ela libertou-se, recuou com vivacidade e fugiu. François Branier pôs imediatamente em segurança o tesouro que a jovem trouxera. Serviria para prolongar algumas vidas.

 

O ar carrancudo do Monge não pressagiava nada de bom. A entrevista com o comandante da fortaleza devia ter sido dura. O Venerável, sentado, colocara à sua frente uma lâmina de serra e um cinzel.

 

Onde foi arranjar essa quinquilharia?

 

Na caixa de medicamentos que lhe era destinada, irmão. Pergunto a mim mesmo onde terá escondido os fornecimentos anteriores. Não tive tempo de revistar a enfermaria a fundo.

 

O Monge fez rolar algumas contas do rosário entre os dedos.

 

Creio que Deus me aprovaria se lhe partisse a cara.

 

O seu lado militante... A Igreja gosta de suprimir os que a incomodam.

 

É pena que se tenha esquecido de exterminar todos os maçons.

 

O Monge fervia, apertando os punhos. O Venerável estava preparado para aparar os golpes.

 

Não vejo por que razão a minha descoberta o enraivece. Montou uma rede com aquela rapariga e prepara uma evasão.

 

Está a delirar. Esse material servir-nos-á para tratar dos doentes. O Venerável manifestou a sua decepção.

 

Quer evadir-se só, irmão... Que falta de caridade cristã.

 

Não fale do que não sabe. Não quero nada para mim mesmo. Quer acredite ou não, é assim.

 

Não tenho o poder de confessar e não o quereria. Mas como Venerável, recebo os segredos dos meus Irmãos. Tento aliviar as cargas demasiado pesadas.

 

O Monge ficou sem fôlego. Um pagão anti-clerical propunha-lhe aliviar a consciência desabafando com ele!

 

A quem está a dirigir-se, Venerável?

 

A quem quiser ouvir, irmão. Está convencido que o segredo da minha loja é perigoso para a nossa sobrevivência. Tem razão. Como trabalhamos juntos, está implicado mesmo sem querer. O comandante utiliza-o. Como? Esse é o seu segredo. Deve ser asfixiante. Se assim não fosse, contar-me-ia a sua entrevista com o nazi. Prefere sem dúvida evitar mentir.

 

O Monge passou lentamente algumas contas do rosário. Uma boa técnica para manter o sangue-frio. O Venerável tinha a calma de um lutador em repouso, detentor de uma força que apenas utiliza no momento por ele escolhido.

 

Não tenho qualquer confidência a fazer-lhe, Venerável. O que o comandante espera de mim não lhe diz respeito.

 

Reduz a nossa colaboração ao mínimo, irmão, tem que admitir que a sua resposta é ambígua.

 

O Monge começou a separar os medicamentos trazidos pela rapariga.

 

Faz mal em ser tão desconfiado, Venerável. Eu também poderia ser. As suas longas horas passadas na companhia do comandante, as pseudo-revelações... E se estivesse a preparar-se para negociar com ele? Se trocasse a sua pele pela dos outros prisioneiros?

 

François Branier empalideceu.

 

Morreram dois dos meus Irmãos. É capaz de imaginar talvez que vou vender os que restam para me salvar?

 

O Monge voltou as costas ao Venerável. A voz tornou-se surda, pastosa.

 

Estive a dizer asneiras. Mas espicaçou-me. O Venerável levantou-se.

 

Tem razão, irmão. Apagamos tudo. As asneiras ficam meio por meio. Confiemos um no outro. Que o Grande Arquitecto do Universo nos permita lutar juntos.

 

Que Deus nos inspire um pouco melhor desejou o Monge. Os dois homens apertaram a mão longamente.

 

O frio da madrugada mordia a carne do Venerável. Os SS tinham-no arrancado da enfermaria aos primeiros raios do sol para o conduzirem à encosta coberta de ervas onde realizara a primeira recolha de plantas. O serpão, a celidónia e o acónito estavam húmidos de orvalho. Os dedos enregelados de François Branier trabalhavam mal, esmigalhando os caules. Não lhe deram mais de um quarto de hora antes de o trazerem de regresso ao campo.

 

Foi então que compreendeu a razão daquela colheita precipitada. O chalé onde vivia a rapariga já não existia. Dele restava apenas um pequeno montão de tábuas calcinadas em frente das quais estava um SS de guarda, com certeza para impedir um fantasma de testemunhar o crime que ali se tinha verificado. Então ela acabara por ser apanhada. Desaparecera a aliada externa.

 

Há um ferido anunciou Klaus, o oficial superior. Incapaz de ser transportado.

 

Acompanhado por dois soldados, o SS anunciara a notícia sem a mínima emoção. Quando os alemães tinham entrado na enfermaria, o Monge e o Venerável davam quinino a dois doentes. Com um mesmo gesto imediato, dissimularam as cápsulas na roupa dos pacientes.

 

Eu vou disse François Branier. O oficial cortou-lhe a passagem.

 

Não. Você não. O Monge.

 

O Venerável farejou o perigo. O SS não escolhia ao acaso. O Monge agarrou o material para pensos. Também ele estava inquieto. Em geral, traziam os doentes e os feridos para a enfermaria. E por que razão afastar o doutor Branier de forma tão taxativa?

 

O grande pátio estava inundado de Sol. Varria-o um vento glacial. O Inverno ainda não se decidira a partir. Enquadrado pelos SS, o Monge dirigiu-se para a torre central. Fizeram-no descer à oficina de mecânica. Em frente da bancada, Guy Forgeaud, agachado, gemia, com a mão esquerda apoiada no peito coberto de sangue.

 

O que lhe aconteceu?

 

Um acidente...

 

O maçon mostrou a mão esquerda. O dedo mínimo, desfeito, não passava de uma chaga. O ferimento era horrível. O Monge pegou numa caixa e obrigou Forgeaud a sentar-se com as costas apoiadas na bancada.

 

Devia ser levado à enfermaria disse o Monge ao oficial superior.

 

É inútil respondeu o alemão, muito seco.

 

Crueldade gratuita? Klaus não era desprovido dela. Mas o Monge pressentia outra razão.

 

Então deixo-o morrer aqui. Não tenho comigo nada para o tratar correctamente.

 

O alemão pareceu contrariado.

 

Diga-me do que precisa. Vão-lhe buscar. Arranje maneira de Forgeaud retomar o trabalho o mais rapidamente possível.

 

O Monge exigiu compressas, desinfectante, analgésico... Klaus retransmitiu o pedido em alemão a um SS que se apressou a ir buscar as coisas à enfermaria da caserna. O oficial superior continuou ali, perto de Forgeaud, enquanto o Monge tratava do ferimento. Como o religioso supusera, era impossível trocar a mínima palavra com o maçon.

 

O Monge tinha compreendido. Guy Forgeaud mutilara-se voluntariamente para ser conduzido à enfermaria, onde teria visto o Venerável. Ou teria sabido que estava morto. O sofrimento do maçon devia ser horrível. Cerrava os dentes quase a parti-los.

 

Afaste-se disse o Monge ao oficial superior. Incomoda-me. Klaus hesitou um instante, surpreendido pela arrogância do prisioneiro.

 

Mas o Monge começara a fazer o penso e ia pisá-lo se não se afastasse. Muito hirto, o oficial superior deu um passo para o lado.

 

Guy Forgeaud aproveitou para erguer os olhos para o Monge. No seu olhar lia-se uma pergunta: ”O Venerável está vivo?” Mas Klaus retomara a posição anterior. Observava os dois com uma acuidade que fazia gelar o sangue. O Monge não tinha possibilidade de cometer a menor indiscrição. Arriscava-se com isso a condenar o ferido.

 

Terminou o penso, sentindo o desespero do maçon que imaginava ter sofrido para nada.

 

Pronto, meu caro. Ainda não está morto.

 

 

O Venerável está vivo anunciou Guy Forgeaud aos Irmãos.

 

Os olhos do Mestre maçon estavam brilhantes de febre. O dedo desfeito era um vulcão. Se os Irmãos não estivessem à sua volta, se não fosse obrigado a manter o seu posto de Mestre, ter-se-ia atirado de encontro a uma parede para se matar.

 

Porque dizes isso? perguntou André Spinot, tentando dissimular a esperança por trás de um tom ácido.

 

Por causa do Monge. Depois de me tratar pronunciou uma frase... ”Ainda não está morto.”

 

A decepção vincou o rosto de Dieter Eckart, de André Spinot e de Jean Serval. Esperavam um facto concreto.

 

Não me acreditam? espantou-se Guy Forgeaud.

 

Sim, sim... respondeu Eckart. Mas bem vês, essa frase... só se refere a ti.

 

Guy Forgeaud mordeu os lábios até fazer sangue para não gritar.

 

Não... Não falava de mim... Não precisava de se exprimir assim... Li no seu olhar que me transmitia uma mensagem referente ao Venerável. Está vivo. Juro-vos que hei-de ir buscá-lo. Não... não façam nada... enquanto esperam.

 

Guy Forgeaud caiu de lado, desmaiado.

 

O bloco vermelho estava mergulhado em trevas. André Spinot velava por Guy Forgeaud que dormia com um sono agitado. O Companheiro nem sequer sentia vontade de passar pelo sono. Tinha a certeza de poder permanecer acordado durante séculos. Por causa do medo. Não queria morrer sem ver a cara do seu assassino e não sabia nem o dia nem a hora. Sabia apenas que se aproximava o momento.

 

Jean Serval, o Aprendiz, aproximou-se de Dieter Eckart, sentado num canto do bloco.

 

Gostava de falar contigo, Dieter disse Serval com voz trémula.

 

Diz.

 

Serval hesitou. Felizmente, estava escuro. Eckart não lhe via o rosto.

 

Quero morrer, Dieter. Não aguento mais.

 

Estamos todos no mesmo barco, meu Irmão. Jean Serval tiritava.

 

Quero morrer já. Não tenho mais forças para aguentar.

 

Isso não tem importância nenhuma respondeu Dieter Eckart. O Aprendiz sentiu-se ridicularizado, quase insultado.

 

Como podes dizer isso...

 

O que pensas e o que sentes, Irmão Aprendiz, não tem qualquer interesse. O teu dever é obedecer e calar-te. Fazer calar em ti os teus excessos e desarmonias.

 

Jean Serval, furioso, apertou os punhos.

 

Isso são discursos. Não percebes nada. Não vês onde estamos, não sabes...

 

Vejo e sei cortou secamente Dieter Eckart. A tua revolta é inútil. Faz-te perder uma energia preciosa. Enfraquece-nos a todos. Queres matar-te? Mata. Não fales disso. E tem bem consciência que amputarás a loja de um dos seus elementos essenciais. Se deixares esta vida como qualquer profano desesperado, ter-nos-ás traído. Ter-te-ás traído a ti próprio.

 

Jean Serval tomou a cabeça entre as mãos e chorou.

 

O Monge e o Venerável comiam com lentidão uma tigela de sopa de couves. Há dois dias que estavam confinados na enfermaria, como se o comandante-de-campo tivesse deixado de se interessar por eles. Cinco checos tinham morrido em consequência das torturas sofridas, aqui ou noutro lugar qualquer.

 

O Monge tinha passado uma boa hora a limpar o hábito de burel. O Venerável imitara-o escovando o fato cinzento que lhe fazia lembrar a liberdade de outrora. O Monge e o Venerável eram os únicos prisioneiros da fortaleza a usar os seus fatos originais, como se o comandante tivesse querido isolá-los ainda mais, singularizá-los.

 

O Venerável esfregou o tecido entre o polegar e o indicador. Já não era um fato apresentável de tal forma estava manchado de suor e poeira, mas ainda se aguentava.

 

Os dois homens encararam-se como se nunca se tivessem visto.

 

Porque se tornou Monge? perguntou François Branier.

 

O beneditino passou as contas do rosário que lhe servia de cinto.

 

Por vontade de Deus e por conhecimento dos homens.

 

Desiludido?

 

Nem isso. Constatei os seus limites. Conheci fulanos extraordinários, mas só pensavam neles mesmos. Nenhum sabia dar.

 

Ser padre não lhe bastava?

 

O Monge baixou a cabeça como se fosse apanhado em falta.

 

Conheci muitos padres... Procurava outra coisa. Uma existência mais comunitária, mais fraterna. Terminava o meu curso de medicina quando encontrei um velho monge, por acaso, numa livraria do Quartier Latin. Dirigiu-se a mim, tomando-me por um vendedor. Pediu-me um livro sobre ervas medicinais. Primeiro julguei que era um velho caquéctico. Mostrei-me mais do que desagradável. Insistiu. Discutimos. Jantámos juntos, falámos uma noite inteira. De madrugada, regressou ao mosteiro. Segui-o. Ele, com mais de setenta anos, estava numa forma física impecável. No entanto, comera e bebera por quatro. A fadiga não queria nada com ele. Eu estava estoirado. Aquele velho fascinava-me. Foi por causa dele que segui a via monástica, começando por Saint-Wandrille. Só voltei a ver o meu interlocutor depois de um longo retiro. Soube que desempenhava a função de abade. Ensinou-me tudo.

 

François Branier estava perturbado com o relato do Monge. Tinha o sentimento de redescobrir a sua própria existência.

 

Ainda é vivo?

 

Morreu há cinco anos respondeu o irmão Benoit. Vagueei de mosteiro em mosteiro, incapaz de suportar a sua ausência. Depois, considerei que era uma cobardia. Pedi autorização para regressar a Saint-Wandrille. Concederam-ma. Lá, tentei preencher o vazio. Tornar-me um homem e um Monge, nada mais. Servi os meus irmãos. Desempenhei as funções que me pediram que desempenhasse. Quando o decano me deu a entender que seria o próximo abade, julguei que troçava de mim. No entanto, não era o seu género. Foi declarada a guerra. Os monges foram dispersos. Recebi o encargo de Morienval, uma abadia romana do Oise. Foi lá que os SS me prenderam. Não por causa da minha fé, mas porque me acusavam de utilizar poderes sobrenaturais! Está a ver... magnetismo e radiestesia! Como se isso fosse sobrenatural! Os beneditinos praticam essa medicina há séculos. Também o senhor, Venerável, tem poderes...

 

François Branier sobressaltou-se. Enfeitiçado pelas palavras do Monge, tinha perdido a noção da sua própria realidade.

 

Desejo-lhe que seja abade um dia e, ao mesmo tempo, não lho desejo.

 

Mas porquê?

 

Dirigir uma comunidade é a mais desumana das tarefas. Nenhuma experiência, nenhuma competência é suficiente. Ninguém quer realmente saber se o Irmão designado para guiar os outros Irmãos tem capacidade para tal. Aceitar essa função é correr o maior risco que um ser humano pode correr. Considero-o capaz disso, irmão.

 

Desconfiado, o Monge olhou o Venerável de viés. Perguntou a si mesmo se ele não estaria a troçar. A entoação do maçon parecia autêntica. A sua emoção era perceptível.

 

Confiei-me a Deus, Venerável. Não sinto angústia. Não sou como o senhor.

 

De que tenho eu medo, na sua opinião?

 

Receia não suportar o choque. Não se mostrar à altura da sua função. Porque não tem confiança nenhuma no seu Grande Arquitecto.

 

Lamento desiludi-lo, irmão. Não suportar o choque? É possível. A minha resistência tem limites, tal como a sua. Não ser um bom Venerável? Não me compete a mim avaliar. Os meus Irmãos decidirão isso. Reelegeram-me até à próxima celebração de S. João Evangelista. Não tenho opção. Devo dirigir a loja. O Grande Arquitecto do Universo? Está para além da fé. Que importância tem ter ou não confiança nele? Cria o mundo a cada momento. Compete-nos a nós saber decifrá-lo.

 

Uma criação bem teórica.

 

Não, irmão. Não consigo fazer com que a sinta, mas juro-lhe que é a alegria. A única verdadeira alegria.

 

O beneditino foi percorrido por um arrepio que, curiosamente, o aqueceu. Mantinha-se na defensiva, mas tinha consciência de viver um momento inesquecível. Fechado naquele bloco, respirava ar puro. Conhecia a alegria evocada pelo Venerável por a ter vivido no mosteiro, entre os seus Irmãos. Como podia um maçon ter acesso a esses mistérios?

 

Um longo ataque de tosse obrigou-o a curvar-se ligeiramente.

 

É quase médico observou o Venerável. Não acha que era tempo de tratar essa... bronquite?

 

Cada um com a sua cruz. Cá me arranjo com a minha.

 

Um raio de sol penetrou na enfermaria, iluminando o rosto dos dois homens. Klaus, o oficial superior SS, empurrara a porta sem ruído, contrariamente aos seus hábitos. Avançou alguns passos e colocou-se na frente do Venerável.

 

Siga-me ordenou a François Branier. Tenho uma surpresa para si.

 

 

O Venerável esperava sofrer, uma vez mais, um interrogatório. Um sol deslumbrante, brilhando alto no céu, aquecia a atmosfera. Seguindo Klaus, dirigiu-se para a torre central. François Branier ergueu os olhos para o topo, de onde sobressaíam os canhões de metralhadoras pesadas. O oficial superior parecia nervoso. Empurrou um dos dois SS que guardavam a entrada da torre e subiu ao segundo andar, seguido pelo seu prisioneiro. Deteve-se em frente de uma porta que não era a do gabinete do comandante e bateu. Helmut, o ajudante-de-carnpo, abriu. Fez entrar François Branier e fechou a porta, deixando o oficial superior do lado de fora.

 

O Venerável descobriu um compartimento inteiramente forrado de veludo vermelho e fracamente iluminado por velas. Ao fundo, uma cama baixa sobre a qual estava estendido o comandante.

 

Sentiu-se mal explicou o ajudante-de-campo. Mandei-o transportar para o quarto. Examine-o.

 

Instintivamente, François Branier debruçou-se para o doente. Sentia-se de repente mergulhado na atmosfera tépida das visitas a domicílio, onde era preciso fazer de confidente. Mas aquele domicílio era uma prisão e o doente um carrasco.

 

Chame um médico nazi.

 

O comandante era o único médico alemão deste campo, senhor Branier. Um colega... O Venerável interrogou-se intimamente se Helmut mentia, se o comandante não tinha organizado uma macabra encenação.

 

Não tem o direito de recusar os seus cuidados insistiu o ajudante-de-campo.

 

Era precisamente a questão que a si mesmo colocava o doutor Branier. O comandante tinha os olhos no vácuo, a pele muito pálida, os lábios contraídos. Com certeza um problema cardíaco.

 

Tem medicamentos?

 

O ajudante-de-campo abriu a porta de um armário cujas prateleiras estavam cheias de remédios. Havia com que tratar os mais graves problemas de saúde. Deixar morrer o comandante, desembaraçar-se do ajudante-de-campo, levar para a enfermaria o conteúdo daquele armário, tratar, curar... Um sonho insensato. O Venerável seria abatido pelos SS mesmo antes de sair da torre.

 

Decida-se, senhor Branier, senão chamo o Monge.

 

O beneditino saberia mostrar-se caritativo, com certeza. Tomaria o lugar do Venerável se este se recusasse a examinar o comandante. François Branier abriu a gola do uniforme do doente e observou o fundo do seu olho.

 

Saia daqui exigiu, voltando-se para Helmut. Não gosto de vigilantes quando trabalho.

 

Mas...

 

É assim ou cruzo os braços.

 

O ajudante-de-campo hesitou. Mandar buscar o Monge era a última solução. Mas não tinha nenhuma confiança nos poderes do religioso.

 

Dou-lhe cinco minutos.

 

O SS bateu com a porta.

 

O Monge rezava. Mas a oração não lhe dava tanta serenidade como era habitual. A angústia apertava-lhe o coração. Talvez porque o velho astrólogo de Nice acabava de morrer, predizendo uma vez mais a vinda iminente do fogo destruidor. Talvez também porque o seu instinto lhe anunciava uma provação tão terrível que não teria forças para a enfrentar.

 

De ataque de tosse em ataque de tosse, o Monge ia enfraquecendo. Não só fisicamente. Sentia demasiado a falta do mosteiro, dos irmãos, das horas rituais, da vida comunitária. Até agora, tinha-se aguentado na tempestade. As defesas iam-se desmoronando. Bastaria o Venerável para tratar dos doentes. Quanto ao resto, de que servia lutar? Esquecer-se de si em Deus, perder-se nele, deixar-se absorver pela sua imensidade... não seria o melhor caminho? De qualquer forma, o mais rápido para alcançar a sua verdadeira pátria.

 

O Monge afastou a tentação. Pior: a demissão. Má saúde... o alibi. Começava a procurar desculpas, a mentir a si próprio. A verdade é que Deus lhe fugia. Porquê? Porque razão já não respondia às suas orações? Por causa do diálogo iniciado com aquele maçon? Ou simplesmente porque o seu desejo de combater o diminuía, condenando-o a tornar-se um deportado como os outros?

 

Não estamos assim tão longe do nosso objectivo como isso afirmou Guy Forgeaud. Temos quase o mínimo para celebrar uma ”reunião”. Se encontrássemos essa porcaria de giz, poderíamos...

 

A capacidade de resistência do mecânico espantava os Irmãos. Nem as feridas nem as pancadas o tinham abatido. Recuperava muito rapidamente, como se fosse um convalescente rodeado de cuidados.

 

Desde que o Venerável esteja connosco lembrou Dieter Eckart.

 

O Companheiro André Spinot assegurava o seu turno de vigilância, com o olho pegado à fresta na parede do bloco. Esquecia a fortaleza, o medo, a morte ameaçadora. Via.

 

Serval, o Aprendiz, trabalhava. Os dois Mestres tinham-lhe pedido que meditasse sobre uma passagem essencial da iniciação ao primeiro grau, a purificação pelo fogo, em relação com o instante em que o Venerável criava o novo iniciado com o malho e a espada chamejante.

 

Eu sei, Dieter respondeu Forgeaud. Só há três soluções: ou o Venerável está na enfermaria, ou fechado na torre central, ou... morto.

 

Não...

 

Forgeaud poisou a mão no ombro do seu Irmão Mestre.

 

Não te apoquentes, Dieter. Ninguém se desembaraça facilmente de um Venerável como ele.

 

Gostava tanto de acreditar em ti, Guy... Gostava tanto.

 

Se te desmoronares, caímos todos. És o nosso polo de equilíbrio na ausência de François. Todos sabemos que os acontecimentos não te afectam. Vais ser obrigado a dirigir essa ”reunião”.

 

Não tenho o direito, Guy. Nem mesmo aqui. Nem mesmo nestas circunstâncias.

 

Forgeaud baixou a cabeça. Dieter Eckart tinha razão.

 

Bem sabes, Guy, que François Branier não é um Venerável como os outros. Conheci dezenas, bons, maus, indecisos, fanáticos. Nenhum se parecia com ele. O nosso Venerável é um mestre espiritual, meu caro. Um fulano da envergadura dos velhos abades que construíram o Ocidente. Só ele sabe onde nos conduz. Segui-lo-ei até ao fim. Como todos nós. Porque ele nos obriga a ultrapassarmo-nos. A tornarmo-nos o que ainda não éramos.

 

Guy Forgeaud respirava as palavras de Dieter Eckart como um ar vivificante. Tomava consciência da verdadeira estatura do Venerável, como se ouvisse falar de um ser distante, quase inacessível e no entanto muito próximo.

 

É ele! gritou André Spinot. É ele!

 

O Companheiro abandonou o seu posto de observação e lançou-se nos braços de Guy Forgeaud.

 

No pátio soluçou Spinot com a voz rasgada pela emoção. O Venerável... com o oficial superior... O Venerável está vivo! Vivo!

 

François Branier abriu a porta do quarto do comandante. O ajudante-de-campo esperava no corredor, andando de um lado para outro. Olhou o relógio. Tinham passado cinco minutos.

 

Está salvo anunciou. Repouso absoluto durante vários dias e cuidados intensivos.

 

Obrigado, doutor Branier. É muito grave?

 

Bastante. Eram necessários exames aprofundados.

 

Helmut parecia embaraçado. Um ruído de botas ressoou no corredor. Klaus falou em alemão, dirigindo-se ao ajudante-de-campo.

 

Fiquei a saber que o comandante está doente.

 

François Branier olhou para outro lado. Não era suposto compreender aquela língua.

 

É verdade respondeu o ajudante-de-campo.

 

Encontra-se em estado de desempenhar as suas funções?

 

Precisa de repouso e...

 

Nesse caso considerou o oficial superior SS vejo-me na obrigação de assumir o comando-de-campo até nova ordem. Helmut, exijo um boletim de saúde de seis em seis horas. Vou ocupar o gabinete do comandante. Espero-o lá para um relatório imediato sobre a situação.

 

O ajudante-de-campo bateu os calcanhares e fez a saudação SS. O Venerável esperava, sem revelar impaciência.

 

Fique próximo, doutor Branier indicou o oficial superior, falando de novo francês. Considero-o o único responsável pela saúde dele.

 

Ninguém pode o impossível. Talvez seja necessária uma operação.

 

Pedirei o envio de especialistas. Por agora, a vida do comandante está entre as suas mãos.

 

No interior do bloco vermelho, os Irmãos da loja ”Conhecimento” estavam atordoados. Contemplavam o Companheiro André Spinot cujos olhos riam e choravam ao mesmo tempo. Não ousavam acreditá-lo.

 

Tens a certeza, André? interrogou Jean Serval. Era bem o Venerável?

 

Sem dúvida nenhuma! Não me posso enganar, juro-te! Estão a ver? O Venerável está vivo!

 

O oculista não tinha o costume de se mostrar tão expansivo. O Aprendiz Jean Serval vibrava no mesmo comprimento de onda. Dieter Eckart nada deixava transparecer dos seus sentimentos.

 

Isso não é tudo disse Guy Forgeaud. Vamos ter de o tirar de lá. Os SS levaram-no para a torre?

 

Levaram respondeu Spinot, febril. Não tiro mais os olhos dela. Forgeaud estava pensativo.

 

Se pelo menos pudéssemos ter uma verdadeira arma...

 

Não sonhemos, Guy. Só podemos esperar e observar. Serval colocou-se em frente de Dieter Eckart.

 

E se eu tentasse sair esta noite? Bastava aumentar a frincha. Podia introduzir-me na torre e...

 

O Mestre interrompeu o Aprendiz.

 

Nada de suicídios no nosso caminho, Irmão. Sejamos vigilantes e apelemos para a presença do Venerável unindo-nos mais. Isso há-de fazê-lo voltar.

 

Excelente, irmão observou o oficial superior, inspeccionando a enfermaria. Um modelo de limpeza.

 

Os doentes encolhiam-se nos seus colchões, assustados. Receavam ser expulsos daquele inferno para cair noutro, mais sombrio ainda. O Monge, sentado, passava o rosário. Klaus imobilizou-se à frente dele.

 

Porque acredita nessas superstições?

 

Cada um tem o seu método para não esquecer Deus... O do senhor é possivelmente usar uniforme.

 

O rosto do SS contraiu-se.

 

Evite isso, irmão. Vai pagar a sua arrogância, pode crer. Ninguém tem o direito de insultar o comandante deste campo.

 

O Monge não se dignou levantar a cabeça.

 

O seu antecessor morreu?

 

Um leve sorriso animou os lábios frios do alemão.

 

Mostraram-se muito tolerantes consigo. Tem mentido desde que aqui chegou.

 

Impassível, o Monge começou a dar lustro às mangas de burel do seu hábito esfregando-as uma na outra. Um pouco de saliva facilitou a operação.

 

Eu, mentir? É-me proibido pela minha religião. Seria um pecado e não teria ninguém a quem me confessar.

 

Klaus esperava um erro da parte do Monge. Acabava de o cometer.

 

Mas claro que sim, irmão... O senhor e o Venerável Branier são confessores um do outro. Estou convencido que disseram tudo e que ele lhe confiou o seu segredo.

 

O silêncio na enfermaria era quase absoluto. O Monge levantou-se, ajeitou o hábito de burel, colocou melhor o rosário-cinto e encarou o oficial superior.

 

Só um homem de Deus pode confessar um homem de Deus. Fique a saber que o Venerável e eu não temos rigorosamente nada a dizer um ao outro. Considero-o um pagão votado às chamas do Inferno.

 

Klaus deu um passo para o lado.

 

Aqui, Deus não tem lugar. A sua presença é interdita. Com certeza que encontrou um terreno de entendimento com o Venerável. Fizeram um pacto. Conheço bem a reacção dos presos. Só pensam em revoltar-se, em evadir-se, em gizar qualquer plano para terem a ilusão de serem ainda homens livres. Os piores inimigos acabam por aliar-se.

 

O Monge sentia aproximar-se o momento que tanto receava.

 

Engana-se. O Venerável e eu somos muito mais do que inimigos. Não há qualquer espécie de comunicação possível entre nós.

 

Klaus dirigiu-se para a porta da enfermaria.

 

Irmão disse, voltando as costas ao Monge concedo-lhe uma última oportunidade. Revele-me imediatamente o segredo da loja.

 

A voz do beneditino não tremeu.

 

Não há nenhum segredo. Ele não me confiou nada. A porta bateu. O Monge ajoelhou-se e rezou.

 

 

O comandante morreu.

 

François Branier, interdito, contemplou o ajudante-de-campo.

 

Quando?

 

Há uma hora, doutor Branier. O oficial superior Klaus assumiu o comando da fortaleza. Siga-me.

 

O Venerável saiu do pequeno compartimento onde o tinham fechado há dois dias sem lhe darem de comer. Um cubículo onde tinha passado a maior parte do tempo a dormir.

 

Porque o tinham isolado assim? Porque o tinham impedido de tratar do doente, de voltar a examiná-lo?

 

Enquadrado pelos SS, o Venerável desceu a escada da torre e desembocou no grande pátio. Estava cheio de presos com uniforme riscado, divididos em dois grupos que deixavam entre si um espaço estreito. No meio do primeiro grupo, os Irmãos da loja ”Conhecimento”: Dieter Eckart, Guy Forgeaud, André Spinot, Jean Serval. Dois Mestres, um Companheiro, um Aprendiz. Os sobreviventes.

 

Viram-no. Não manifestaram qualquer sinal de alegria. Os SS vigiavam-nos com as espingardas apontadas. Uma atmosfera de fim do mundo. Ninguém se mexia. Os prisioneiros e os guardas pareciam imobilizados para sempre.

 

A porta da enfermaria abriu-se. Dois SS trouxeram o Monge até ao espaço deixado entre os dois grupos. O tempo estava bom, quase tépido.

 

A voz do oficial superior elevou-se atrás do Venerável.

 

Vá para junto do Monge.

 

O Venerável avançou, seguido por centenas de olhares. Contornou pela esquerda o grupo que lhe ficava mais próximo, avançando a passos lentos. Aquele ritmo recordou-lhe as procissões de S. João quando, precedido pelo Mestre-de-Cerimónias, avançava à cabeça do Colégio dos Oficiais em direcção à mesa do banquete ritual. Onde ia, desta vez? Em que labirinto se perdera?

 

O Venerável chegou ao centro do pátio e parou em frente do Monge. Já não via os outros detidos, reduzidos a uma massa acastanhada, distante. O Monge estava grave. François Branier teve medo. Pela primeira vez, sentia-se reduzido ao estado de insecto.

 

Este campo deve ser remodelado anunciou Klaus. Serão todos colocados em trabalhos de manutenção. É necessária mais ordem. A enfermaria vai ser limpa. É uma verdadeira pocilga. Dois médicos! Há um a mais...

 

O Monge e o Venerável voltaram lentamente a cabeça para o oficial superior que se colocara em frente da torre central para ser ouvido por todos.

 

Klaus deu uma ordem em alemão. Os SS trouxeram-lhe o Monge e o Venerável.

 

Ordeno-lhes que se batam. O vencedor manterá o cargo da enfermaria. O vencido será executado. A menos que tenha sido morto durante o combate.

 

O Monge reagiu com vivacidade.

 

Não vou bater-me com ninguém. Mate-me, se quiser. Estou preparado. O beneditino tinha a altivez de um abade erguendo-se, sozinho, no caminho das hordas bárbaras.

 

Muito bem, irmão. Com a condição de me revelar imediatamente o segredo da loja ”Conhecimento” que o Venerável lhe confiou.

 

Um maçon nunca se confiou a um beato como aquele protestou François Branier.

 

Esse maçon é a pior das escórias retorquiu o Monge. Como pode imaginar que o tenha escutado um instante sequer?

 

O olhar de Klaus ia do Monge para o Venerável. Já que se detestam tanto, batam-se!

 

Não baterei num religioso. É fácil demais. Trémulo de cólera, o SS conseguiu conter-se.

 

Perfeito, meus senhores. Jura pelo seu Deus, irmão, que ignora o segredo da ”Conhecimento”?

 

O beneditino ergueu os olhos ao céu.

 

Juro.

 

Mente! berrou o SS. São cúmplices!

 

O Monge e o Venerável permaneceram impassíveis. ”Aguentar, pensava o beneditino. Aguentar até fazê-lo fartar-se, até fazê-lo abandonar o seu projecto”. ”Negar, continuar a negar, considerava o Venerável, até negar aos seus próprios olhos.”

 

Sei que se confiou ao Monge continuou o SS, dirigindo-se ao Venerável. Apoiam-se um ao outro com os vossos poderes. Agora acabou-se. Um dos dois vai desaparecer. O outro ficará só e acabará por falar.

 

Qual dos dois morreria? O Monge pensou na aposta. Deus decidiria. Estava habituado. Escolheria a solução de acordo com o seu Amor. O beneditino não receava nada. Se era o fim da viagem sobre a terra, seria também o regresso à pátria celeste. No entanto, o irmão Benoit considerava-se ainda rico de actos a executar, de mil e uma orações para fazer viver o divino. Mas não se revoltava. Também não se entregava. Aceitava a vontade do Mestre de todas as coisas porque o seu olhar alcançava mais longe do que o dele.

 

Ele ou o Monge? O Venerável lembrou-se da aposta. O Grande Arquitecto do Universo agiria de acordo com a Regra. Não havia acaso nem compromisso. Apenas uma gigantesca planta à escala do cosmos em que cada elemento da construção se situava no lugar certo, mesmo se o homem não compreendesse. Já que o Venerável devia cruzar-se com a sua morte no momento certo, competia-lhe mostrar-se digno. Não se preparava para isso desde o primeiro instante da sua iniciação, desde aquela longa meditação na ”câmara de reflexão” onde, em frente de uma caveira, abolira o seu destino profano?

 

O oficial superior exibia um ligeiro sorriso, plenamente satisfeito com o seu plano.

 

Cada um de vocês será responsável por metade dos detidos explicou. É por isso que foram divididos em duas ”equipas”. Coloquei os católicos na sua, irmão, e os membros da loja ”Conhecimento” na sua, Venerável, com os astrólogos. O vencido condenará a sua equipa à morte. Não era assim, na antiguidade? Isso deveria dar-vos desejo de se baterem... para salvar vidas!

 

O Monge fechou os olhos. Primeiro, para apagar o horror, em seguida para se centrar. O Venerável repetiu intimamente as palavras que acabava de ouvir a fim de admitir a atroz realidade.

 

Já que temos de passar por isso, irmão disse François Branier, com a garganta seca massacremo-nos.

 

O Monge distinguiu um curioso brilho no olhar do Venerável. Este tentava transmitir-lhe uma intenção. O Monge não a decifrou, mas decidiu confiar.

 

Está pronto, irmão? insistiu Klaus, impaciente. A menos que um de vocês decida falar...

 

Esse segredo só existe na sua imaginação afirmou François Branier.

 

O Venerável não me confiou nada disse o Monge. Renuncie a esta loucura. Não o levará a nada.

 

Klaus recuou alguns passos. Subiu a um pequeno estrado e dirigiu-se aos detidos, em alemão, em checo e em francês, explicando-lhes o prémio do combate. Houve algumas exclamações, rapidamente sufocadas à coronhada. Centenas de olhares febris poisaram no Monge e no Venerável.

 

Os dedos dos Irmãos da ”Conhecimento” tocaram-se, esboçando uma cadeia de união. André Spinot olhou para os pés. Jean Serval imitou-o. Dieter Eckart agarrou com força no pulso de Guy Forgeaud, que sentia prestes a lançar-se para o campo fechado onde se desenrolaria o monstruoso duelo.

 

Coloque-os a postos! ordenou Klaus.

 

Os SS agarraram no Monge e no Venerável. Uns rasgaram a parte de cima do hábito de burel, outros arrancaram casaco e camisa. De torso nu, braços pendentes, os futuros adversários sentiram o sopro de um vento suave. Tinham a mesma musculatura forte, o mesmo torso pesado, tranquilizador.

 

Batam-se! berrou o oficial superior. Caso contrário, faço executar dez detidos de cada lado de dez em dez segundos.

 

Murmúrios de angústia percorreram as fileiras dos deportados. Brotou um grito.

 

Vá, padre! Arruma com ele!

 

Todos esperavam que fosse executado o homem que gritara. Os SS não se mexeram. O agitador recomeçou, rapidamente imitado pelos vizinhos.

 

Anda, maçon! ripostou um membro da equipa de François Branier, inaugurando uma série de encorajamentos.

 

Durante mais de um minuto desencadeou-se uma batalha vocal. Estalou um tiro. Na primeira fila de cada um dos lados, caiu um homem com a cabeça desfeita. Espalhou-se um silêncio aterrorizado.

 

Não quero qualquer ruído durante o combate indicou o oficial superior. Vamos, meus senhores. Até que a morte sobrevenha.

 

O Venerável deu um passo na direcção do Monge, estendeu bruscamente o braço direito e bateu-lhe com o punho no meio do peito. O Monge sentiu apenas uma ligeira dor. O Venerável tinha travado a pancada.

 

Bate, Monge. Bate como eu!

 

François Branier assumira uma expressão feroz, como se quisesse massacrar o inimigo. Tocou-lhe no fígado. Entrando no jogo, o beneditino dobrou-se a meio e depois deu uma pancada com o cotovelo que abalou o Venerável, fazendo-o recuar, vacilante.

 

Vais-te arrepender da tua impiedade preveniu o Monge, juntando os punhos em martelo e brandindo-os por sobre a cabeça do Venerável.

 

Este tentou esquivar-se. Tarde demais. Foi apanhado no ombro esquerdo e deu um grito de dor. Com um pontapé no joelho do Monge, libertou-se. Preparava-se para um novo ataque quando Klaus interveio.

 

Basta! Estão a fingir! Lutem, depressa!

 

Os SS prepararam-se para disparar sobre as primeiras filas das duas ”equipas”. A testa do Monge encheu-se de rugas. O Venerável respirava com dificuldade.

 

Desta vez, irmão, vai ser Deus ou o Grande Arquitecto. Lamento, mas tenho que tentar salvar os meus Irmãos.

 

O Monge de boa vontade teria estendido a face, mas não podia aceitar deixar que abatessem dezenas de pobres desgraçados que eram obrigados e colocar nele as suas esperanças de sobrevivência. Nem Cristo nem Bento se tinham comportado como animais de matadouro. Um viera trazer o fogo ao mundo, o outro lutara contra os bárbaros. Ele, um Monge, devia vencer um Venerável para salvar cristãos. Mesmo não tendo o menor desejo de bater em François Branier.

 

O Venerável sentiu pesar sobre si a esperança dos Irmãos. Não os via. Estavam abafados nas fileiras da sua ”equipa”. Mas sentia a sua presença atenta. Tinha que se bater por eles, ferir, matar um homem pelo qual sentia admiração. Qualquer morte teria sido preferível àquele duelo monstruoso.

 

Os dois adversários avançaram um para o outro. Cada um deles queria dar uma pancada, uma só, para que o suplício terminasse depressa. Sabiam já que nunca esqueceriam. Olharam-se longamente, falando um com o outro em silêncio, implorando o respectivo perdão. Não eram eles próprios que iam tornar-se bestas sanguinárias. Apagavam-se por trás de uma função, transformando-se em furacão, tempestade, raio que mata sem intenção de matar.

 

De cabeça para a frente, o Monge embateu no Venerável que caiu, sem poder respirar. Conseguiu levantar-se, apesar de sentir uma dor intolerável no peito. Enraivecido, bateu. A arcada superciliar esquerda do Monge rebentou.

 

O sangue corria. Com a cabeça em fogo, o beneditino carregou de novo. Os dois homens engalfinharam-se.

 

O Monge atacou, libertando-se do corpo-a-corpo. O Venerável oscilava no mesmo lugar. Um véu negro dançou em frente dos seus olhos, impedindo-o de distinguir o Monge. Soube que tinha acabado. Tinha perdido. Os seus Irmãos iam morrer também. Não serviria de espectáculo cambaleando como um fantoche. Bastava-lhe esperar, de pé, o golpe fatal.

 

O Monge tossia, dobrado em dois. Endireitou-se, sem forças. Apenas distinguia a forma vaga do seu adversário, uma forma que era preciso destruir. Com os punhos unidos, carregados com a força de um lenhador que abate o seu machado, preparou-se para matar o Venerável.

 

Um grito agudo fê-lo estacar. A voz de André Spinot.

 

Sou judeu! berrou o maçon. Sou judeu e estou-me a cagar para os boches! Os SS hão-de rebentar todos, vão perder a guerra!

 

Durante alguns segundos, os alemães foram incapazes de reagir. André Spinot abriu caminho entre as fileiras de deportados, passou a correr em frente do Monge e do Venerável e precipitou-se para o oficial superior.

 

Sentindo-se ameaçado, Klaus saiu finalmente da sua letargia. Deteve Spinot com um pontapé dado com a bota no ventre.

 

Mais de cinquenta detidos, loucos de pavor, correram para os muros da fortaleza, derrubando o Venerável, espezinhando o Monge. Outros, em pânico, estenderam-se no chão. Alguns atacaram os SS.

 

O oficial superior deu ordem para disparar.

 

 

A morte tinha um gosto de noite. François Branier saboreava-a com prazer, deixando-se arrastar pelos ruídos de vozes que quebravam o silêncio. Desenhavam-se rostos na bruma. Estavam lá Raoul Brissac, Dieter Eckart, Jean Serval. O Venerável estendeu a mão para os Irmãos para tocar no vazio. Foi o milagre. Brissac sorriu, Eckart agarrou-lhe na mão. Serval chorou.

 

A loja... vocês, a loja?

 

O véu rasgou-se. Os Irmãos ainda estavam incapazes de falar. Deram ao Venerável tempo para estabelecer de novo ligação com a vida.

 

Onde estamos?

 

No nosso bloco respondeu Dieter Eckart. Desmaiaste no momento em que o Monge te ia massacrar.

 

François Branier ergueu-se, inquieto.

 

André? Onde está André?

 

Morto. Denunciou-se como judeu e provocou uma amotinação. Foi um massacre. Dispararam. Queimaram o corpo de André no centro do pátio.

 

A voz de Dieter Eckart não tinha tremido. Dizia a verdade, tal como a tinha visto. Não tinha o costume de a amenizar, por muito insuportável que fosse.

 

O Irmão André... O Venerável e os Mestres da loja tinham tido mil dificuldades em arrancá-lo ao seu narcisismo e abrir-lhe o caminho que conduzia à luz. André tinha dificuldade em descontrair-se, em acalmar os seus receios, em encontrar o equilíbrio que lhe teria permitido avançar mais depressa. Demasiado sensível, tivera que se violentar para passar da afectividade à fraternidade. Demonstrara, ao longo da sua procura, uma formidável coragem, criando em si qualidades que não possuía. Denunciando-se como judeu, oferecera o seu sangue ao corpo sagrado da loja, tal como se comprometera por juramento na sua iniciação ao grau de Aprendiz.

 

André Spinot salvara a comunidade apostando na sua eternidade, na sua incessante metamorfose regida pelo Grande Arquitecto.

 

Partido ele para o Oriente eterno, apenas restavam quatro Irmãos.

 

Eckart não hesitou em rasgar a alma de François Branier.

 

Nem tu nem eu temos tempo para chorar, Venerável-Mestre. Temos coisas a fazer.

 

Dieter Eckart exprimira-se com a autoridade habitual. Com a sua atitude, arrastava os Irmãos para longe da fortaleza nazi. Lembrava-lhes as caves abobadadas onde tinham celebrado tantas ”reuniões”, as pedras ancestrais, os edifícios sem falhas onde o homem se sentia um pouco menos mortal.

 

O Monge? interrogou François Branier.

 

Sem responder, Eckart e Forgeaud ajudaram o Venerável a erguer-se. Este sentia dores difusas por todo o corpo, mas conseguiu manter-se de pé. Era sobretudo o peito que lhe doía. Mas era suportável.

 

Podem largar-me... Devo aguentar-me.

 

O Venerável viu o Monge. Deitado no chão do bloco, inanimado. Os Irmãos da ”Conhecimento” tinham-lhe reajustado a sotaina.

 

Está...

 

Não respondeu Dieter Eckart. Respira. Foi espezinhado.

 

Porque o trouxeram para aqui?

 

Não faço a mínima ideia.

 

O Venerável julgava compreender. O Monge tinha sido abandonado como morto. Agora, o oficial superior considerava-o um colaborador dos maçons. Partilhava o seu destino, a menos que os traísse. O beneditino um traidor? François Branier deixava-se novamente invadir pela dúvida. Se o Monge tinha desempenhado um papel de bufo, era junto do comandante. Este tinha desaparecido, talvez assassinado por Klaus. O oficial superior não possuía a delicadeza do comandante. Impaciente, violento, não tinha paciência para opor por mais tempo o Monge ao Venerável e nada mais esperava de um conflito que os teria despedaçado. Preferia arrumá-los no mesmo campo.

 

Aquela atitude não pressagiava nada de bom. O comandante era um monstro frio, calculista. Klaus era uma besta embriagada pelo seu novo poder.

 

Foi realmente o Monge que me derrubou? perguntou o Venerável.

 

Uma força bruta! apreciou Guy Forgeaud. Caíste primeiro, mas não tenho a certeza se ele teria tido força para acabar contigo. Também estava arrumado.

 

Se André não tivesse intervindo, ter-me-ia morto.

 

O Venerável inclinou-se para o Monge. O beneditino mantivera um rosto sereno.

 

A enfermaria?

 

Destruída informou Dieter Eckart. Os últimos amotinados refugiaram-se lá. Os SS incendiaram-na. Abateram os que tentavam sair. Na minha opinião, mais de metade dos deportados foi exterminada.

 

Quanto tempo permaneci inconsciente?

 

Algumas horas.

 

Os SS deixaram-vos em paz?

 

Não vimos ninguém disse Guy Forgeaud. O pátio está vazio. Nem um som.

 

Os quatro Irmãos sentaram-se.

 

Arranjámos algum material disse Forgeaud. Seria pena deixá-lo estragar-se.

 

Tens um plano?

 

Não, Venerável-Mestre. Esperávamos-te para elaborar um.

 

Venerável-Mestre interveio Eckart. Acho que era altura...

 

Eu sei, Dieter. Vamos celebrar essa ”reunião”. Depois, poderemos morrer tranquilos.

 

Jean Serval afligiu-se.

 

Morrer... Mas acha que...

 

Rapidamente exigiu o Venerável. Esta noite mesmo. Klaus suprimiu o comandante com certeza. Talvez não tenha muito tempo para se impor aos olhos dos superiores. O seu melhor trunfo seria arrancar-nos o nosso segredo utilizando métodos radicais.

 

A tortura murmurou Serval.

 

Não percamos nem mais um minuto disse Forgeaud. Temos velas, uma caixa de fósforos, com que representar régua, esquadro e compasso.

 

Falta o quadro e o giz observou Dieter Eckart. Sem o traçado no quadro, não há ”reunião” possível.

 

Saio esta noite para procurar tudo isso propôs Forgeaud.

 

Nem pensar cortou o Venerável. Arranjaremos outra solução.

 

O Monge subiu aos cumes de Saint-Wandrílle. Avançava pelo meio do bosque iluminado pela fresca luz da Primavera. Sentia-se aéreo, quase imaterial. Apenas as árvores tinham uma forma distinta; para além dos seus troncos centenários desdobravam-se lençóis de bruma. Irritado, o Monge saiu do caminho, decidido a penetrar naquele nevoeiro. De repente, faltou-lhe o chão sob os pés. Tentou em vão agarrar-se a um galho e caiu para trás. Uma queda interminável, durante a qual ficou deslumbrado por um sol que, pouco a pouco, se transformou em rosto.

 

O do Venerável.

 

Sinto-me feliz por revê-lo, irmão.

 

O Monge tinha aberto os olhos. Sentiu imediatamente uma dor fulgurante na virilha. Deu um grito e agarrou-se ao pulso direito do Venerável que o ajudou a erguer o busto.

 

Estou tão amachucado como o irmão. Tanto um como outro tivemos

 

a mão pesada.

 

Então não o consegui suprimir...

 

A carcaça é forte.

 

François Branier contou ao beneditino o que se tinha passado, Eckart e Forgeaud mantiveram-se de parte, num canto do bloco; consideravam o religioso um intruso. Jean Serval estava no seu posto de observação. Passavam SS no pátio. A caserna parecia dominada por grande agitação.

 

Preciso do seu auxílio, irmão. O Monge suspirou.

 

Os seus sofrimentos fazem-no finalmente regressar a Deus?

 

Tomámos a decisão de celebrar uma ”reunião” ritual aqui mesmo. Sacralizando este lugar, faremos renascer a luz, o nosso verdadeiro alimento. Depois, nada mais terá importância.

 

Tanto melhor para vocês. Mas não estou a ver...

 

Precisava do seu rosário.

 

Com as feições devastadas pelas guinadas que lhe rasgavam a carne, o Monge mergulhou na indignação com uma nova força.

 

Ninguém lhe tocará.

 

Não temos intenção de lho tirar à força. Peço-lho a título amigável. É claro que lhe será restituído.

 

Os olhos do Monge lançaram faíscas. Talvez lamentasse não ter dado o golpe decisivo que teria enviado o Venerável para o outro mundo. Forgeaud perguntava a si mesmo por que razão o Mestre da loja se mostrava tão paciente.

 

Tenciona utilizar o meu rosário para práticas satânicas? O Venerável sorriu.

 

Não continue com essa cantiga já gasta, irmão. Celebramos rituais, tal como o senhor. Satã não é admitido entre nós. Nem é livre nem tem boas maneiras.

 

O argumento não demoveu o Monge.

 

Este rosário foi consagrado pelo último abade de Saint-Wandrille. É o que de mais precioso possuo.

 

O Venerável abanou a cabeça.

 

Compreendo-o. Para mim, era o avental transmitido de Mestre de loja em Mestre de loja. Mas possuir qualquer coisa, aqui... será conforme com a vontade de Deus?

 

Meta-se no que lhe diz respeito! explodiu o Monge. François Branier baixou a voz, falando apenas para o Monge.

 

Queria confessar-lhe, irmão... Bati-me mal por que não tinha vontade de me bater. Tentei odiá-lo, ver no seu lugar o dogma, a Inquisição, o fanatismo religioso. Em vão. Havia o senhor e mais ninguém. Quando o seu rosto se esfumou, era tarde demais. Sentia-me vazio. Incapaz de me defender. O seu Deus tinha ganho.

 

Ainda não protestou o Monge. Estamos aqui, um e outro. A nossa aposta continua. Ainda tenho intenção de ganhar.

 

O Venerável fitou o Monge, procurando tocar-lhe a alma.

 

Ainda teria força para bater? Para matar?

 

O que lhe interessa? Desafiaram-se silenciosos.

 

Se o seu rosário é uma relíquia sagrada, irmão, não se arrisca a nada. O rosto do Monge ensombrou-se.

 

Este rosário não sairá da minha cintura. Terá de o arrancar ao meu cadáver.

 

Não insisto. Tanto pior para nós.

 

As pálpebras do Monge cederam. Estava exausto, em busca de um pouco de sono.

 

Eu trago o material necessário afirmou Forgeaud.

 

Não! protestou Jean Serval. Sou Aprendiz. Compete-me a mim correr riscos.

 

Guy Forgeaud tinha a testa em fogo. O ferimento afligia-o. Agarrou o Irmão pelos ombros. Ultrapassava-o uma cabeça.

 

Ouve-me bem, Irmão Aprendiz. Aqui ou em qualquer outro lado, vi-i vemos de acordo com a Regra. Tu és Aprendiz e eu sou Segundo Vigilante. Estás colocado sob a minha autoridade directa. Tu ficas aqui e eu saio. Não há mais nada a dizer.

 

Jean Serval voltou os olhos para o Venerável. Mas este não tinha nada a acrescentar.

 

Acabava de cair a noite, muito mais suave do que o habitual. A Primavera fazia-se bonita. Jean Serval tinha o olho colado à frincha, observando o pátio intensamente. Os SS rendiam regularmente a guarda em frente da caserna. Mais nenhum movimento. No chão do bloco, uma lima que Forgeaud retirara do seu esconderijo. O Monge dormia. Dieter Eckart tinha adormecido também, depois de dois dias de vigília ininterrupta.

 

Isso basta-te como arma?

 

Tem que bastar, Venerável-Mestre respondeu Guy Forgeaud.

 

A oficina?

 

Cá me arranjarei para a abrir. Hei-de deitar a mão a um novelo de fio. Contentar-nos-emos com isso. Quanto ao giz, vou tentar dar o golpe.

 

Não preferes ficar?

 

Guy Forgeaud tinha medo. Não tinha uma hipótese em mil de conseguir.

 

Prefiro, é verdade. Seria razoável. Mas nós não somos pessoas razoáveis. Queremos viver a nossa iniciação no coração do Inferno. Queremos encarnar o quadro da loja. Uma figuração mental não nos basta. Somos construtores. Por isso, lutaremos até rebentar. E eu serei o primeiro. Com o devido respeito, Venerável-Mestre. E assim é que está bem.

 

O Venerável e o Mestre Guy Forgeaud abraçaram-se fraternalmente.

 

A via está livre disse Serval.

 

Nem um único SS no pátio. Projectores apagados.

 

Guy Forgeaud avançou para a porta do bloco. Rastejaria até à oficina. No momento em que se agachava para se deitar de barriga para baixo, uma mão poisou no seu ombro esquerdo.

 

 

O potente pulso do Monge imobilizou Guy Forgeaud.

 

O meu rosário é-vos realmente indispensável? perguntou o beneditino ao Venerável. Este abanou a cabeça afirmativamente.

 

O que é que vão fazer?

 

Colocá-lo no chão deste bloco e utilizá-lo como símbolo.

 

Com muito cuidado, como se manipulasse um material frágil, o Monge tirou o rosário que lhe servia de cinto. No momento de o estender ao Venerável, hesitou. Separar-se dele equivalia a separar-se de si mesmo, quase a renegar a sua fé.

 

Censurou-se aquela reacção fetichista. Não passava de um objecto. Só tinha valor pelo uso que dele fazia. Sentiu-se grato ao Venerável por lhe ter arrancado aquela parte profana do seu ser.

 

Quando viu o seu rosário nas mãos do Venerável, o Monge teve a estranha sensação de mergulhar num outro mundo. Transmitia uma oração a um ateu. Sob quantos dedos tinham rolado as contas de madeira de ébano, elevando os pensamentos para Deus pela simples repetição de um gesto? O rosário tinha sido testemunha atenta de inúmeras horas de solidão nas celas austeras iluminadas pela presença divina. Por vezes, o Monge perguntara intimamente a que irmão seria entregue depois da sua morte. E ei-lo na posse de um Venerável.

 

Porque acedia a ajudá-lo? Se Guy Forgeaud tivesse tentado sair, teria sido morto. A loja não teria conseguido celebrar uma ”reunião” de acordo com a Regra. A Igreja não teria perdido nada com isso. Mas a que igreja pertencia um monge beneditino? Não estaria ligado, de forma intemporal, a essas primeiras comunidades em que a mão e o espírito ainda não estavam separados? Não procurava construir o homem como um Mestre-de-Obra, com materiais que se chamavam fé, oração e trabalho? O Venerável parecia embaraçado.

 

Ainda precisam de outra coisa? perguntou o Monge, irritado. Talvez o meu hábito de burel?

 

É de si mesmo que preciso, irmão. Para participar na nossa ”reunião”. O Monge julgou ter ouvido mal.

 

Enlouqueceu...

 

Deixe-me explicar. Todos os Irmãos aqui presentes desejam viver esta ”reunião”. Dieter Eckart e Guy Forgeaud são Mestres. Desempenharão simbolicamente, por si sós, os ofícios da loja. Jean Serval é Aprendiz. Quando sairmos daqui, preparará um trabalho para passar ao grau de Companheiro.

 

O Monge e o Aprendiz trocaram um olhar furtivo. Serval, louco de alegria, acabara de saber que tinha a possibilidade de aceder a novos mistérios. Nada o podia satisfazer mais. Sentia-se animado de uma nova energia. Sim, haviam de sair dali. O Monge pensava nos dez ofícios monásticos que regiam a vida quotidiana da sua comunidade, na paz da oficina divina. Os maçons tinham-nos copiado ou a mesma organização hierárquica tinha sido transmitida e conservada devido às suas virtudes insubstituíveis?

 

Os seus segredos não me dizem respeito, Venerável. Não preciso de nenhuma explicação.

 

As nossas ”reuniões” devem decorrer de forma oculta continuou François Branier, passando adiante. Num local como este, precisamos de um Porteiro exterior. Um oficial encarregado de velar pela segurança dos nossos trabalhos. Permanece fora da loja e avisa os Irmãos quando detecta um perigo. Peço-lhe que cumpra esse papel, irmão. Não assistirá aos nossos mistérios, mas permitirá que se desenrolem com toda a serenidade.

 

Sufocado, o Monge esqueceu os seus sofrimentos. Sabia desde o primeiro segundo que o Venerável era uma personagem temível, mas daí a propor-lhe que se tornasse maçon...

 

Acho que já fiz o máximo respondeu o beneditino. Exige demais.

 

Não acho insistiu o Venerável. Esta ”reunião” é vital para nós. O Grande Arquitecto agradecer-lhe-á.

 

O Monge resmungou. O Venerável abusava dele. Aproveitava-se do seu esgotamento, não lhe deixando tempo para retomar fôlego.

 

Afirmo-lhe, irmão, que a nossa ”reunião- não contém nada que possa ofender o seu Deus.

 

Os Irmãos esperavam a resposta do Monge. Se um deles fosse obrigado a funcionar como Porteiro exterior, não assistiria aos trabalhos. Seria o mais insuportável dos sacrifícios. Uma cadeia de união só estaria completa se o Monge aceitasse a proposta do Venerável.

 

O beneditino sentou-se. Tinha a cabeça à roda. Tinha fome, mas a fadiga ia desaparecendo. As pancadas não tinham afectado a sua força vital. E se, do outro lado da porta daquele bloco sinistro, estivesse o parque da abadia, de Saint-Wandrille, com as suas árvores e cantos de pássaros? Se bastasse franquear aquela fronteira para entrar de novo no paraíso terrestre?

 

Saint-Wandrille estava vazia. Já não havia monges. Também lá a guerra tinha atacado. Os altos muros apenas abrigavam a ausência. O último dos paraísos era aquele bloco cheio de maçons que acreditavam ainda no sagrado. Mesmo que estivessem enganados, mesmo que celebrassem rituais pagãos, aniquilavam o horror. Mantinham a esperança.

 

O que terei de fazer? perguntou o Monge, olhando o vácuo. Os Irmãos da ”Conhecimento” rodearam o Venerável.

 

Nada mais do que olhar para fora pela fresta que fizemos e prevenir-nos se os SS se dirigirem para o nosso bloco. O seu auxílio é inestimável, irmão.

 

Despachem-se pediu o Monge, indo instalar-se no seu posto.

 

O Porteiro exterior estava em funções. O Venerável e os três outros sobreviventes da loja reencontraram os gestos necessários para construir o templo. O Venerável instalou-se a oriente, Dieter Eckart à sua direita, Guy Forgeaud à sua esquerda. Jean Serval ficou na coluna do norte.

 

Guy Forgeaud abriu o seu esconderijo. Tirou de lá um martelo que entregou ao Venerável. Este bateu uma pancada na parede do fundo.

 

Ocupem os vossos lugares, meus Irmãos.

 

Com esta simples frase, o mundo era colocado no seu lugar. Cada irmão aceitava o seu devido lugar num universo sem mácula.

 

Meus Irmãos continuou o Venerável a nossa Regra pede-nos que não aprendamos os rituais de cor. Temos de os recriar permanentemente. Para sacralizar este lugar e abrir a loja, peço-vos que se juntem a mim para invocar o Grande Arquitecto do Universo. Punhamo-nos em ordem, meus Irmãos.

 

O Venerável colocou o malho improvisado sobre o coração. Eckart e Forgeaud imitaram-no. O Aprendiz colocou a mão direita à altura da garganta.

 

O Monge apenas via a noite. O pátio estava quase mergulhado na escuridão. No interior do bloco, os Irmãos mal se distinguiam. O beneditino estava furioso. Furioso contra o Venerável, porque este se esquecera de o avisar que, mesmo que não visse nada, ouviria tudo. Furioso contra si mesmo por não ter compreendido a tempo.

 

Irmão Primeiro Vigilante perguntou o Venerável o que é preciso para que uma loja seja justa?

 

Que seja iluminada respondeu Dieter Eckart.

 

Que assim seja.

 

Guy Forgeaud colocou três velas no chão.

 

Que a Sabedoria crie disse o Venerável que se exprima e que realize.

 

Guy Forgeaud raspou um fósforo e depois acendeu os pavios das velas. Três estrelas brilhavam agora no firmamento do bloco vermelho transformado em templo.

 

Que as três grandes luzes sejam reveladas ordenou o Venerável.

 

Dieter Eckart utilizou os utensílios trazidos por Guy Forgeaud. Sobre a régua metálica poisou o compasso e o esquadro, representados pelas chaves de fendas.

 

Que o Irmão Aprendiz trace o quadro da loja.

 

Jean Serval avançou para se colocar no meio do triângulo formado pelo Venerável e os dois Mestres. Simbolicamente, apenas o Venerável podia executar o acto da criação que consistia em revelar os símbolos. Por delegação, esta tarefa podia competir a um Aprendiz. Assim, a energia circulava do Mestre da loja até ao mais humilde dos seus membros.

 

Jean Serval empalideceu. Com que iria efectuar aquele traçado? Pensou que, no seu orgulhoso desejo de viver o seu ritual, os Irmãos se tinham esquecido daquele pormenor. O Venerável percebeu a perturbação do Irmão. Estendeu o rosário do Monge a Dieter Eckart que o passou ao Aprendiz. Serval dispôs o objecto no solo, formando um rectângulo. Estava assim representada a corda de agrimensor com os seus nós de força. Delimitava o espaço sagrado no interior do qual se desenvolviam as figuras mágicas.

 

O Venerável inclinou a cabeça, indicando ao Aprendiz que o seu trabalho era correcto e que podia regressar ao seu lugar. O rosário do Monge serviria, por si só, de quadro da loja.

 

Jean Serval fez um movimento irreprimível. Era preciso fazer melhor para tornar aquela ”reunião” excepcional. Com um gesto vivo, apoderou-se da lima que Guy Forgeaud tinha abandonado. Arranhou até fazer sangue a pele do antebraço esquerdo. No entanto, receava a dor física. Por pouco não desmaiou, mas conseguiu molhar o indicador da mão direita no seu próprio sangue, ajoelhou e traçou os símbolos nas gastas tábuas de madeira.

 

Começou pelo triângulo, a primeira forma geométrica possível. A norte, desenhou um sol com um ponto no centro; a sul, uma lua crescente. A seguir, as três janelas, o pavimento de mosaico aos quadrados pretos e brancos, o malho e o cinzel, o prumo, o nível, as duas colunas, a pedra bruta e a pedra cúbica, a porta do templo.

 

O Aprendiz levantou-se. O chão já bebera o seu sangue.

 

Para glória do Grande Arquitecto do Universo disse o Venerável declaro abertos os trabalhos da loja. Meus Irmãos, formemos a cadeia de união.

 

Os três Mestres e o Aprendiz uniram as mãos, reconstituindo o Homem na sua unidade. Quando saboreavam a plenitude daquele momento, a porta do bloco abriu-se bruscamente.

 

Helmut, o ajudante-de-campo do defunto comandante, estava no limiar.

 

 

O Monge tinha-os traído. Ao ver o SS dirigir-se para o bloco, não os tinha alertado. Talvez tivesse feito um sinal desde o início da ”reunião” para que os maçons fossem surpreendidos em plena actividade.

 

Abandonemos a cadeia, meus Irmãos ordenou o Venerável.

 

As mãos soltaram-se mas não os espíritos. O quadro da loja ainda estava visível. O Monge voltou-se, abandonando o seu posto de observação. O rosto estava cor de giz. Nos seus olhos, o Venerável leu sofrimento e remorso.

 

O SS entrou, fechando a porta do bloco. François Branier sentia-se humilhado. Para ele, o Monge tinha-se tornado quase um Irmão. Entregara-lhe a sua confiança e enganara-se. A loja ia pagar caro o seu equívoco.

 

Acabrunhado, não compreendeu o gesto do Monge. Erguendo-se com vivacidade, o beneditino, apesar dos ferimentos, atirou-se ao SS e apertou-lhe o pescoço até quase o quebrar.

 

Não! gritou o ajudante-de-campo. Sou um dos vossos! Sou vosso Irmão!

 

O Monge parou de apertar, hesitante. Eckart, Forgeaud e Serval, siderados, esperavam a decisão do Venerável. Continuavam em ”reunião”. Ninguém podia tomar a palavra por sua própria iniciativa.

 

Se és um Irmão disse François Branier em alemão dá-me a palavra de passe do Aprendiz.

 

O ajudante-de-campo fitou o Venerável. O seus lábios mal se moveram. Não pronunciou a mínima palavra.

 

Furioso por ter cumprido mal a sua missão, o Monge não queria deixar a ninguém a tarefa de mandar o SS para o inferno. Como não conhecia a palavra de passe, estava condenado.

 

Largue-o, irmão exigiu o Venerável.

 

Espantado, o Monge obedeceu. O SS avançou um passo em ângulo recto, deteve-se com os olhos sobre o quadro da loja traçado com o sangue do Aprendiz. Deu mais dois passos e desenhou com a mão direita o sinal da ordem.

 

Venerável-Mestre declarou sou o último sobrevivente de uma loja de Berlim da qual todos os membros foram executados ou deportados. Tal como eles, acreditei em Hitler. Fiz parte do círculo Thulé onde havia outros maçons. Foi o que me salvou. Mas acabarão por identificar-me. Todos os dias espero ser preso.

 

Dieter Eckart acreditava ainda numa provocação. Mas o ajudante-de-campo viera realmente sozinho, correndo todos os riscos. Guy Forgeaud sentia calor no coração. No mais sombrio inferno havia então um Irmão desconhecido. Jean Serval revivia a emoção da sua iniciação. Sentia-se perdido, deslumbrado. A vida já não parava à porta da sua prisão.

 

A Alemanha vai em breve perder a guerra declarou Helmut. Amanhã, depois de amanhã, no próximo mês... mas perderá.

 

Vais mais longe, meu Irmão? interrogou o Venerável, colocando uma pergunta ritual para ficar a conhecer o grau iniciático do alemão.

 

Os mistérios da estrela são-me familiares.

 

Vais mais longe?

 

Não, Venerável-Mestre. Sou Companheiro e ignoro o segredo dos Mestres.

 

Os três graus da iniciação estão presentes nesta loja concluiu o Venerável. Podemos trabalhar em sabedoria, em força e em harmonia.

 

O coração de cada um dos Irmãos encheu-se de uma alegria indizível. Tinham conseguido evadir-se da fortaleza, da guerra, da infelicidade.

 

Irmão disse o Venerável poderia retomar as suas funções de Porteiro?

 

O Monge nunca mais sentira o sangue subir-lhe às faces desde o dia longínquo em que a avó o surpreendera prestes a roubar chocolate. Deixando-se envolver no jogo, assistira àquela ”reunião” maçónica, esquecendo o hábito que usava. Quase se deixara seduzir pela magia das atitudes rituais. Envergonhado, voltou as costas aos maçons para observar de novo o que se passava no pátio. Infelizmente, não podia tapar os ouvidos.

 

Um Irmão pede a palavra no interesse da loja? O ajudante-de-campo levantou a mão.

 

Tens a palavra disse François Branier.

 

O oficial superior Klaus está em reunião há mais de duas horas com os seus principais subordinados. Conseguiu convencê-los. Decidiram exterminar a totalidade dos deportados e abandonar a fortaleza. A guarnição não é suficientemente numerosa para resistir a um ataque. Sabem que é iminente. O último problema a resolver é a loja ”Conhecimento”. Para arrancar o vosso segredo não lhes resta mais do que a mais brutal tortura. Numa última cartada, Klaus e as suas feras vão chegar de um momento para outro. Queria prevenir-vos e morrer convosco.

 

Cada um encaixou o choque. Contavam com aquilo, mas esperavam ver o espectro afastar-se, continuarem a ser prisioneiros de excepção. Até agora tinham-nos isolado enquanto o Venerável lutava pela sua sobrevivência. O castelo de cartas desabava. Quando a porta do bloco se abrisse pela última vez, deixaria precipitar-se o cortejo do nada.

 

O Porteiro prevenir-nos-á de qualquer risco de intrusão disse o Venerável. Esse perigo faz parte da nossa iniciação. Meus Irmãos, convido-vos a porem-se ao trabalho. Irmão Dieter, está tudo de acordo com a Regra?

 

Dieter Eckart contemplou o quadro da loja.

 

Está tudo certo e perfeito, Venerável-Mestre. Cada um dos Irmãos se despojou das suas imperfeições e cumpre a sua função.

 

As palavras rituais espalhavam-se como fogo no corpo de Jean Serval. Queimavam-lhe a alma. Como Aprendiz, permanecia silencioso durante a ”reunião” solene. Quando se tornasse Companheiro, se passasse a prova, receberia o dom da palavra. Restituiria a energia que tinha recebido.

 

Actualmente, Jean Serval tinha a certeza. A porta do bloco vermelho não se abriria para a noite. Aquela ”reunião” duraria eternamente. O rosto do Venerável estava demasiado sereno para que pudesse ser de outra forma.

 

De onde vimos, meu Irmão Segundo Vigilante?

 

De uma loja de João, Venerável-Mestre.

 

Em que trabalham os iniciados?

 

Em desbastar a pedra bruta praticando a Regra.

 

Os Aprendizes estão satisfeitos?

 

A Harmonia está neles, Venerável-Mestre.

 

Meu Irmão Primeiro Vigilante, os Companheiros descobriram a pedra bruta?

 

A força habita-os, Venerável-Mestre.

 

Compete aos Mestres transmitir a Sabedoria que lhes foi transmitida. Assim nascerá a luz. Ocupem o lugar, meus Irmãos.

 

Cada um, instintivamente, procurou o banco de pedra ou de madeira no qual era costume sentarem-se. Contentaram-se em sentar-se com as pernas cruzadas no chão do bloco.

 

Meus Irmãos recomeçou o Venerável os nossos últimos trabalhos incidiram sobre os deveres do iniciado face ao Grande Arquitecto do Universo e mais particularmente sobre o segredo do Número de que a nossa loja é depositária.

 

Então, pensou o Monge, os SS não se tinham enganado.

 

Contrariamente a tudo o que é costume continuou François Branier tomei a decisão de vos transmitir este último segredo da iniciação. Nenhum de vós é Venerável, mas é ao Venerável em vós que me vou dirigir. Esta noite tornar-se-ão, como eu, guardiães do Número que torna a nossa confraria imortal.

 

Dieter Eckart pediu a palavra.

 

Venerável-Mestre, essa proposta não parece estar de acordo com a Regra. Nenhum de nós está habilitado a receber esse segredo e ainda menos a transmiti-lo. Morremos desempenhando a nossa função, não pedimos mais. Temos a imensa alegria de celebrar esta última ”reunião”. Se o nosso sistema deve desaparecer connosco, é porque o Grande Arquitecto assim quis. E lembro-te que há um profano... quase entre nós.

 

O Monge não era ingénuo ao ponto de acreditar que o Venerável tinha esquecido a sua presença. Preparou-se para se voltar, cumprimentar e deixar aquele bloco. Não tinha intenção de ouvir mais nada.

 

O nosso Porteiro exterior desempenha perfeitamente a sua tarefa afirmou François Branier. Ouve o que se diz no interior do templo mas, como nós, está obrigado ao segredo.

 

O Monge voltou a cabeça. O seu olhar cruzou-se com o do Venerável que leu nele um assentimento. Desta vez, o Monge sentiu que o Venerável depositava uma total confiança nele. Armava-lhe uma cilada. Obrigava-o a ficar, a guardar consigo um segredo que ele não queria partilhar.

 

O meu Irmão Dieter não está errado sublinhou Guy Forgeaud depois de ter obtido a palavra. Não podes transmitir o último segredo senão ao teu sucessor, Venerável-Mestre. Não é essa a finalidade desta ”reunião”.

 

Embora fossem da mesma opinião do Mestre, o Companheiro e o Aprendiz permaneceram silenciosos.

 

O Venerável nunca tinha estado em desacordo com a sua ”câmara-do-meio”, composta pelos Mestres da loja. A Regra da unanimidade era facilmente respeitada, na medida em que os Irmãos viviam em harmonia.

 

Talvez um de nós sobreviva insistiu François Branier. Tão próximo da aniquilação da nossa loja, torna-se necessário que sejamos todos informados do essencial. Tenho consciência de fazer uma proposta excepcional, em contradição com a Regra. Mas devemos conceder-nos todas as hipóteses de sobrevivência.

 

Dieter Eckart pediu de novo a palavra.

 

Devemos recusar tudo o que for contrário à Regra. Quantas vezes nos repetiste que todas as respostas às nossas perguntas aí se encontravam? Porque havia de ser de outra forma hoje?

 

Porque hoje é o nosso último dia, meu Irmão. Guy Forgeaud levantou a mão.

 

Não tem importância, Venerável-Mestre. A iniciação não pode desaparecer mesmo se nós morrermos. Se este mundo está podre a ponto de assassinar um Venerável, só serve para estoirar. Não devemos violar a nossa Regra sob nenhum pretexto.

 

O Monge compreendia a tentativa do Venerável. Antes de tudo, transmitir, mesmo nas piores condições. Não ter de perguntar se um Irmão é digno ou indigno, considerar que é apenas um Irmão e que aquela simples qualidade lhe permite transmitir os mais inacessíveis segredos.

 

O Venerável tinha fracassado. Era impossível ignorar a opinião de dois Mestres. A hierarquia não seria quebrada, a Regra não seria transgredida, mas o segredo repousaria apenas nos seus ombros.

 

Considero portanto que a minha proposta é rejeitada declarou o Venerável. Vamos...

 

As palavras de François Branier perderam-se num assobio agudo que se amplificou a uma velocidade extraordinária até se tornar ensurdecedor. Instintivamente, os Irmãos taparam as orelhas.

 

Depois, explodiu tudo.

 

 

Uma bomba. O fogo do céu tantas vezes anunciado pelo velho astrólogo de Nice.

 

Estavam a atacar a fortaleza nazi.

 

Mil pensamentos se tinham entrechocado no espírito do Venerável durante aqueles décimos de segundo que tinham separado o fim do assobio da explosão da bomba. Caíra precisamente em frente da porta do bloco vermelho. Depois outro assobio, dois outros, dez outros...

 

O bloco vermelho voara em estilhaços. François Branier fora empurrado para trás. O seu único reflexo tinha sido colocar os antebraços em frente dos olhos. Algumas tábuas bateram-lhe em cheio, ferindo-o nas costas. A poeira cegou-o. Conseguiu levantar-se.

 

Um montão de ruínas. O Monge, com o rosto em sangue mas em pé.

 

O Aprendiz Jean Serval, com o braço esquerdo inerte, libertou Guy Forgeaud, entalado debaixo das tábuas. Perto dele, Dieter Eckart, com a cabeça esfacelada. O seu cadáver jazia atravessado sobre o de Helmut, o ajudante-de-campo SS, o Irmão surgido no coração do inferno.

 

O Monge parecia incapaz de avançar. Vacilava como uma estátua prestes a cair do seu pedestal. O Venerável agarrou-o por um braço. Serval levantou Forgeaud.

 

Estou cego disse o Mestre.

 

O ritmo das explosões acelerava-se.

 

Vamo-nos daqui! exigiu Guy Forgeaud. Temos uma chance de nos evadirmos.

 

François Branier não tinha vontade de dar um passo. Desejava ficar ali, ao lado de Dieter Eckart.

 

Venha disse-lhe o Monge. O seu Irmão tem razão. Temos de tentar.

 

Com um a puxar pelo outro, avançaram saltando por cima dos estilhaços. O Venerável quis parar, falar com Dieter Eckart. O Monge puxou-o para a frente.

 

Isso não servirá para nada murmurou o beneditino.

 

Jean Serval e Guy Forgeaud estavam já no pátio. O Aprendiz, apesar do braço partido, guiava o Mestre cego, coberto de sangue e de poeira.

 

As explosões tornavam-se mais espaçadas. O ataque diminuía de intensidade. A fortaleza agonizava. Nem um único bloco de pé. A caserna SS em fogo. A torre central destruída. Buracos e fendas no muro da cerca. Deportados que corriam, outros que se batiam com os SS sobreviventes, tentando arrancar-lhes as armas. Havia gente que disparava. Que gritava. Que morria. As chamas iluminavam a noite.

 

O Venerável caminhava com dificuldade. Cada esforço o fazia sofrer mais. O ferimento nas costas devia ser sério. O Monge recuperava. O gosto da liberdade devolvia-lhe as forças.

 

Se me deixassem, irmão... Começo a tornar-me um peso.

 

Um Porteiro não abandona o seu Venerável. Deixe de dizer coisas absurdas. Avance.

 

Uma bomba explodiu não longe deles, atirando-os ao chão. Um fumo espesso isolou-os. Perderam de vista Serval e Forgeaud que se dirigiram para uma das brechas do muro da cerca.

 

Pronto! berrou Serval. Já está!

 

O Aprendiz distinguia a colina coberta de erva. Era preciso passar por cima dos pedregulhos, penetrar no vazio, depois correr, correr... Serval puxou violentamente Forgeaud que sobrevivia graças a uma força de vontade terrível. Estava a morrer de pé. Mas não morreria naquela prisão.

 

Alto! ordenou a voz de Klaus, o oficial superior SS.

 

Klaus não parara de disparar desde o início do ataque. Já esvaziara diversos carregadores, abatendo fugitivos, executando SS que desertavam. O cano da sua pistola metralhadora estava ao rubro, mas Klaus continuava a ser o senhor da fortaleza. Ninguém se evadiria.

 

Jean Serval não quis dar ouvidos à ordem do SS. A liberdade estava demasiado próxima.

 

Deita-te! ordenou Guy Forgeaud.

 

Em pânico, com os olhos lacrimejantes, o Aprendiz voltou-se para o Mestre. Um ardor rasgou-lhe o lado, obrigando-o a curvar-se. Levou a mão ao ferimento e retirou-a pegajosa de sangue. Avançou para o SS que continuava a disparar.

 

Não, agora não, vou ser Companheiro, vou...

 

Klaus ria com um riso demente. Os maçons não lhe escapariam. Já morto, Serval continuava a avançar. O carregador da pistola metralhadora estava vazio, mas o SS apontava ainda a arma aos dois Irmãos. Guy Forgeaud deu um passo mais e desabou sobre o SS. As mãos de Guy Forgeaud encontraram um pescoço e apertaram. Mas não tinha força para matar.

 

Antes de mergulhar no abismo, recuperou a vista. Por um instante. Apenas para ver que o SS tinha sido quase decapitado por um estilhaço.

 

O Monge e o Venerável andavam às voltas, sem saber onde se encontravam. Um lado inteiro da cerca desmoronou-se, esmagando uma dezena de deportados que o escalavam. Irritado pelo fumo, o Monge tossia ininterruptamente. Vira o confronto entre Klaus e os dois Irmãos, mas o Venerável não, porque se deslocava numa bruma avermelhada, distinguindo apenas sombras. Por trás deles, um ruído de motor. A auto-metralhadora avançava na direcção deles. Iam morrer esmagados. O Venerável teve a certeza que não voltaria a ver nenhum dos seus Irmãos e que perdera a aposta.

 

Não era ele que ia desaparecer, mas o segredo de que era depositário. Um segredo que os seus predecessores tinham considerado vital para a humanidade. Dera origem às pirâmides, aos templos, às catedrais, esses faróis, essas ilhas de beleza e de harmonia que influenciavam só por si o mais bárbaro dos homens. François Branier compreendeu naquele instante que era o último dos gigantes. Deixava um mundo onde já não tinha lugar. A iniciação ia desaparecer porque a humanidade escolhera a luz fria do nada. Já não havia um único Irmão a quem dar a mão. No entanto, viviam todos nele. Estavam presentes em cada uma das suas células, em cada gota do seu sangue. Restava apenas o Monge, que tentava em vão puxá-lo para a frente, arrancá-lo ao monstro de metal que se preparava para os triturar.

 

Agora François Branier vivia a função de Venerável. Era habitado pela comunidade dos Irmãos que tinham passado para o Oriente eterno, constituía o elo que os ligava simultaneamente ao Grande Arquitecto e ao mundo. Talvez alguns sábios não tivessem necessidade de ninguém para descobrir a verdade. Ele tinha necessidade do mais humilde dos iniciados. Eram todos insubstituíveis.

 

François Branier preenchia-se com a vida dos seus Irmãos. Desta vez, sentia-se capaz de transmitir, de recriar uma loja onde nada do que tinham vivido seria traído. Tornava-se Venerável.

 

Mas era demasiado tarde. Fogo por todo o lado. A fortaleza desabava. François Branier, último Venerável da loja ”Conhecimento”, deixou a cabeça ir para trás e fechou os olhos.

 

 

Naquele fim de Verão de 1947 o Sol era doce como uma carícia. A Ile-de-France tivera um calor excepcional desde o meio da Primavera. As macieiras e as pereiras estavam carregadas de frutos pesados que amadureciam no decurso dos dias luminosos.

 

A aldeia vivia ao ritmo lento das tradições, longe da agitação da cidade; às sete horas da tarde, campos e pomares estavam desertos. As pessoas tomavam o aperitivo, falavam das colheitas ou preparavam-se para o Outono. Nenhum ruído quebrava o ar leve de Setembro; nenhum ruído, a não ser o canto do malho e do cinzel de um talhador de pedra, empoleirado no topo de um andaime.

 

O Monge interrompeu-se, poisou as ferramentas e limpou a testa. Começava o fresco. Apesar da sua robusta constituição, receava-o um pouco. As sequelas da congestão pulmonar que quase o matara ainda não estavam apagadas.

 

O Monge trabalhava desde a madrugada. A capela avançava. Mais uma semana e seria a inauguração. Seguira o plano da igreja alta da abadia de Saint-Wandrille. Um estilo românico muito puro, austero, despojado de qualquer discurso inútil.

 

Quando o Monge abrira o estaleiro, num terreno que a comuna lhe oferecera, os aldeões tinham-lhe oferecido os seus braços. Recusando esse auxílio, o beneditino explicara que se tratava de uma promessa. Tinha de construir sozinho. A sua capela seria colocada sob a protecção de S. Francisco. Uma vez terminada, seria oferecida à aldeia na condição de ser mantida em perfeito estado. Uma vez por ano, seria celebrada uma missa para glorificar a fraternidade dos justos. Ninguém conseguira saber mais nada. Tinham-se habituado à presença muda daquele estranho beneditino. Quando partisse para regressar ao seu mosteiro, iriam sentir-lhe a falta.

 

O Monge passou a mão sobre um bloco de granito que acabava de colocar no seu lugar. Aquela pedra tinha uma alma. Vibrava. Era oração. De boa vontade viveria o resto da sua existência dentro da capela. Mas a comunidade chamava-o. Elevado à dignidade de abade, não podia continuar a oferecer a si próprio o luxo da solidão. Mil tarefas, da mais material à mais espiritual, exigiam a sua presença e atenção. Assim exigia a Regra. Não era possível qualquer adiamento.

 

O Monge desceu do andaime, limpou as ferramentas, arrumou-as numa caixa que colocou no interior do edifício, onde em breve ficaria o altar, uma pedra de fundação do tempo das catedrais, que Saint-Wandrille oferecia à capela.

 

O terreno era vasto, rodeado de carvalhos e faias. A ocidente, uma fila de choupos de folhagem prateada. Nem uma casa à vista. O Monge montou numa bicicleta e pedalou tranquilamente até à aldeia, seguindo por um atalho que corria através dos campos. O Sol deitava-se nos campos de trigo. Os corvos conquistavam a floresta, crocitando. As andorinhas dançavam no céu, algumas mergulhando na direcção do Monge, saudando-o à passagem com um bater de asas.

 

O beneditino tinha uma predilecção especial por aquela hora em que Deus lhe parecia tão próximo que um diálogo mudo se instalava por si mesmo. O Monge já não se pertencia. Os pensamentos espraiavam-se ao Sol poente. Eram absorvidos pelas claridades fugazes em que se aliavam o dia moribundo e a noite nascente. Não precisava de escolher mais nada, de decidir; a vida tecia-se por ela própria.

 

Na praça da aldeia, dois camponeses discutiam debaixo de um plátano. Cumprimentaram o Monge quando ele encostou a bicicleta à parede da Câmara Municipal, um belo edifício dos finais do século xviii ao qual se acedia por uma escadaria. O Monge subiu lentamente os degraus. Desde a sua saída do inferno, desde que Deus lhe permitira ganhar a sua aposta, o beneditino apreciava todos os segundos que vivia.

 

Penetrou na Câmara. O átrio de entrada cheirava bem a cera e madeira antiga. Com o auxílio do corrimão, trepou a escada de degraus que rangiam. O gabinete do presidente ficava no segundo andar. A porta estava entreaberta. O Monge empurrou-a.

 

Boa tarde, senhor presidente.

 

Foi bom o dia, irmão?

 

Excelente.

 

Um copo de cerveja fresca?

 

O Monge não se fez rogado. Tinha sede. Pelas janelas do gabinete via as copas das grandes tílias que davam sombra à praça.

 

Vamos, irmão?

 

O Monge levantou-se. Esperava aquele momento há muito tempo. O presidente precedeu o beneditino. Saíram da Câmara pelas traseiras do edifício, atravessaram um relvado e entraram numa propriedade rodeada por altos muros. Ao fundo, uma moradia tradicional de três andares. Num canto do terreno, um jazigo de pedra cujo acesso era vedado por uma pesada porta metálica. O presidente tirou uma chave do bolso.

 

Então foi aqui, Venerável, que construiu a sua loja.

 

É verdade, irmão. Já que o Grande Arquitecto me permitiu ganhar a aposta, mantive a minha palavra. Construi tudo com as minhas mãos. Como o senhor.

 

Suponho que as visitas são proibidas aos profanos, não? Pode ver a minha capela, mas eu não verei a sua loja. Deus não tem medo de se mostrar, mas o seu Grande Arquitecto esconde-se.

 

François Branier fez girar a chave na fechadura e abriu a porta.

 

Tenho a sensação, irmão, que o seu Deus não é tão aparente como pretende. Entre. Já não é um profano, visto que foi Porteiro. Deverei lembrar-lhe que os Porteiros são antigos Veneráveis? Aqui está em sua casa. Com direito a desforra. Terei grande prazer em ser recebido por um abade.

 

Admitamos resmungou o Monge, descendo a escada que conduzia à loja.

 

Uma dezena de degraus, um cotovelo em ângulo recto, uma antecâmara com um pequeno compartimento.

 

É aqui que meditam os futuros iniciados antes da sua primeira morte explicou o Venerável.

 

Abriu outra porta que dava acesso à loja propriamente dita. Uma abóbada de vigas, coberta de estrelas. Um chão de ladrilhos brancos e pretos. Ao fundo, três degraus que conduziam a uma espécie de estrado sobre o qual se encontravam três pequenas secretárias. Em cima da do meio, um Delta. O Monge avançou, descobrindo, de um lado e de outro da porta, duas colunas encimadas por romãs. No centro do templo, outras três colunas enquadrando um quadro branco. A superfície sobre a qual eram inscritos, em cada ”reunião”, os símbolos criadores, os que o Monge vira misturar-se com o sangue de um Irmão no chão do bloco.

 

Encontrou um sucessor?

 

Ainda não respondeu o Venerável. Consegui reunir alguns Irmãos para recriar uma loja iniciática. Mantêm-me como Venerável para o próximo ano. Depois, espero que me permitirão partir para a reforma. De boa vontade a irei passar consigo, irmão...

 

As pessoas como nós não têm direito à reforma, Venerável. E não tolerarei a presença de um herético entre as minhas paredes. Será mais útil aqui. Há muito a fazer para devolver a alguns o sentido da vida. Quando o tiverem encontrado, salvarão os outros.

 

O Monge e o Venerável sentaram-se num dos bancos de madeira em que, durante as ”reuniões”, se instalavam os Irmãos. A serenidade da pedra nua, a sua tranquila eternidade penetravam-lhes pouco a pouco na alma.

 

Num pequeno altar, perto do Monge, um cesto de vime contendo ”metais”. Entre eles, a argola do Companheiro Raoul Brissac que ele próprio encontrara nos restos calcinados da fortaleza.

 

Teve notícias da nossa jovem alemã?

 

Em breve será professora universitária respondeu o Venerável. À jovem loura conseguira fugir e prevenir os aliados.

 

Se Guy Forgeaud não tivesse sabotado a auto-metralhadora lembrou o Monge não estaríamos aqui. Julguei que iríamos morrer esmagados. Deteve-se bruscamente. Uma bomba desintegrou-a. O senhor não viu nada. Estava desmaiado.

 

Guy Forgeaud, Dieter Eckart, Pierre Laniel, André Spinot, Raoul Brissac, Jean Serval, Mestres, Companheiros e Aprendiz, todos desfeitos pelo inferno.

 

O mistério de um Venerável, pensava François Branier, é a sua solidão. Quando deu tudo, quando se consagra totalmente à sua loja, quando a sua vida formou as vidas dos seus Irmãos, o que lhe resta? O abandono daquilo que julgava ser ele mesmo, a estranha luz de um mundo de onde desapareceram perguntas e respostas, onde o Grande Arquitecto é uma presença que se basta a si própria... Um Venerável não tem confidente nem amigo. Está só porque o seu destino pessoal deixa de contar, mesmo a seus olhos. Talvez tenha medo de uma tarefa que o ultrapassa, talvez duvide de tudo. Não tem importância.

 

Essas emoções não devem ser partilhadas. Os Irmãos esperam do Venerável que dirija a sua loja, ilumine o seu caminho, proporcione a energia necessária.

 

Porque ganhámos os dois? interrogou o Monge.

 

Porque não podíamos mesmo perder respondeu o Venerável.

 

Lá fora, a noite caía. Um dos crepúsculos doces da íle-de-France, com o seu cortejo de nuvens laranja, iluminadas pelos últimos fulgores do Sol.

 

O Monge e o Venerável abandonaram a loja e avançaram lado a lado, com as mãos cruzadas atrás das costas, pelo caminho de terra que se ia perder no campo, longe das casas.

 

Os monges de Saint-Wandrille têm muita sorte por o terem como abade, irmão.

 

Pare de se preocupar com as nossas coisas retorquiu o Monge, carrancudo. Pense antes em formar Mestres e transmitir o seu famoso segredo. Não acredito nem um segundo no seu valor, mas mais vale utilizar tudo para transformar a podridão em pureza.

 

Por uma vez, irmão, sou da sua opinião.

 

Nem o Monge nem o Venerável tinham vontade de deixar aquela noite. Do alto dos céus, as andorinhas viram as suas duas silhuetas, estranhamente semelhantes, aventurarem-se nas trevas.

 

Lê Norois, Festa de S.João Evangelista, 1984.

 

                                                                                Christian Jacq  

 

                      

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