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O MONSTRO BRANCO / Bram Stoker
O MONSTRO BRANCO / Bram Stoker

                                                                                                                                                   

                                                                                                                                                  

 

 

Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites

 

 

O MONSTRO BRANCO

 

                   A VINDA DE ADAM SALTON

Deambulando ao acaso, Adam Salton chegou ao Empire Club de Sidney e aí encontrou uma carta de seu tio-avô. Já tivera notícias do velho gentleman, há pou­co menos de um ano, quando Ricardo Salton lhe tinha escrito para lhe comunicar seu parentesco, esclarecen­do que não o fizera antes, dada a dificuldade de encon­trar o endereço de seu sobrinho-neto. Adam ficara en­cantado e tinha respondido cordialmente; ouvira, várias vezes, seu pai falar do ramo mais velho da família, com o qual os seus tinham perdido o contato, há muito tem­po. Uma correspondência interessante a isso se seguira. Adam abriu a carta que acabara de chegar e que con­tinha um cordial convite para que ele se unisse a seu tio-avô, em Lesser Hill, e aí permanecesse pelo maior tempo que lhe fosse possível.

Em verdade, continuava Ricardo Salton, espero que você se decida a fazer aqui sua morada definitiva. Olhe, meu querido rapas, você e eu somos os últimos sobrevi­ventes de nossa linhagem e é de justiça que seja você meu sucessor, quando chegar a ocasião. Neste ano de 1860 vou completar oitenta anos e, embora pertençamos a uma família que vive muito tempo, o tempo de uma vida não pode ir além de razoáveis limites. Eu já o es­timo muito e estou disposto a tornar sua permanência comigo tão feliz como possa desejá-la. Assim, logo que receber esta carta, venha para que tenha oportunidade de lhe apresentar as mais afetuosas boas-vindas, como desejo. Estou lhe mandando, caso isso lhe torne as coi­sas mais fáceis, um cheque de 200 libras. Venha logo, para que possamos os dois ficar juntos alguns dias fe­lizes. Se você pode me dar o prazer de vê-lo, envie-me logo uma carta dizendo quando posso esperá-lo. Em se­guida, quando chegar a Plymouth ou a Southampton, ou em qualquer outro porto, espere a bordo e irei pro­curá-lo imediatamente.

O velho senhor Salton ficou mui contente quando a resposta de Adam chegou e apressadamente mandou um criado a Sir Nataniel de Salis, seu amigo íntimo, para anunciar-lhe que o sobrinho-neto chegaria a Sou­thampton, a 12 do mês de junho.

O senhor Salton deu as instruções para ,que uma viatura estivesse pronta para partir rumo a Stafford, na manhã daquele dia, onde ele tomaria o trem das llh40. À noite estaria junto de seu sobrinho-neto e fi­cariam os dois no navio, o que seria uma experiência nova para ele, ou, então, se seu parente preferisse, dormiriam num hotel. Em ambos os casso, por-se-iam a caminho, no dia seguinte, rumo à casa. Ordenara a seu administrador que fizesse partir para Southampton a viatura com o cocheiro, de aprontá-la para a viagem de volta e de preparar as mudas de cavalos, logo depois. Queria ele que seu sobrinho-neto, que vivera na Austrá­lia, visse um pouco da Inglaterra rural durante essa viagem. Tinha, em abundância, cavalos, fortes, que fa­ziam parte de sua criação e adestramento; e além disso esperava que isso seria um memorável passeio para o jovem. As bagagens seriam transportadas de trem até Stafford, onde uma de suas charretes iria procurá-las. O senhor Salton, durante a viagem para Southampton, imaginou várias vezes, se seu sobrinho estaria tão exci­tado como ele, com a idéia de encontrar, pela primeira vez, um parente; e era, com dificuldade, que refreava sua animação. A perspectiva da visão da estrada de fer­ro, sem fim, e os trilhos móveis de Southampton aumen­taram ainda mais sua ansiedade.

Quando o trem parou diante da plataforma, ele cru­zou as mãos, e eis que a porta do vagão se abriu violen­tamente e um jovem pulou para dentro.

"Como vai o senhor, meu tio? Eu o reconheci, gra­ças à fotografia que o senhor me enviou. Eu queria vê-lo o mais depressa possível mas tudo é para mim tão estranho que não sabia o que fazer. Contudo, eis-me aqui. Estou contente por encontrá-lo, sir. Sonhei com esta felicidade durante mil e mil anos; agora acho que a realidade vale todos os sonhos". Após estas palavras o velho e o jovem, de todo o coração, apertaram-se as mãos., O encontro, começado com tão favoráveis augúrios, continuou vantajosamente. Adam, vendo que o ancião se interessava pelas novidades do navio, sugeriu que passassem a noite a bordo, afirmando-lhe que ele pró­prio estaria disposto a partir a qualquer hora e dirigir-se para onde seu parente quisesse. Esta vontade afetuosa de ficar de acordo com seus próprios projetos, tocou profundamente o coração do velho. Aceitou calorosa­mente o convite. Em seguida, puseram-se a conversar, não como parentes afeiçoados, mas como velhos amigos. O coração do ancião, que ficara vazio tão longo tempo, encontrou novo prazer. Quanto ao moço, o acolhimen­to que recebia, desembarcando nesse velho país, se har­monizava com os sonhos que fizera durante o curso de suas viagens, sempre solitário, e lhe prometia vida nova e agradável.

Pouco tempo depois, já o ancião concordara em chamá-lo familiarmente, por seu nome de batismo. Depois de longa conversa sobre assuntos que lhe inte­ressavam, retiraram-se para as cabines. Ricardo Salton colocou sua mão, com afeto, sobre os ombros do jovem — embora Adam tivesse já vinte e sete anos, ele era e seria sempre, um jovem, um rapaz para seu tio-avô.

"Estou tão feliz por encontrá-lo tal como você é, meu caro rapaz, exatamente como o jovem que sempre sonhei ter como filho, naqueles dias em que nutria ain­da tais esperanças. Entretanto, tudo isso pertence ao passado. Agradeço, porém, a Deus visto que agora come­ça uma vida nova para cada um de nós. Você terá a parte maior, mas há ainda tempo para estarmos juntos um parte dela. Esperei que nos víssemos para então lhe dizer isso; porque pensava que valia mais não ligar sua vida à minha, antes de ter suficiente conhecimento para justificar tal aventura. Agora posso, no que me concerne, falar completamente à vontade, pois, desde o instante em que pus meus olhos sobre você, eu vi meu filho, tal como ele teria sido, se Deus tivesse permitido, se ele tivesse escolhido esse caminho.

Em verdade eu o sou, sir. De todo o meu co­ração!

Obrigado, Adam, por estas palavras.

Os olhos do velho se encheram de lágrimas e sua voz tremia. Em seguida, após longo silêncio, ele pros­seguiu: "Assim que soube que você viria, fiz meu tes­tamento. Era normal, que seus interesses ficassem ga­rantidos desde esse momento. Ei-lo, Adam. Tudo o que me pertence será seu; e se o amor e o desejo de felici­dade ou a lembrança disto podem tornar a vida mais agradável, então você será um homem feliz. Agora, meu querido rapaz, vamos nos deitar. Amanhã devemos le­vantar cedo e teremos longa viagem diante de nós. Es­pero que você goste de viajar em viatura. Mandei vir o velho carro de viagem em que meu avô se dirigia à corte, quando era rei Guilherme IV. Ela está em bom estado — construía-se bem naqueles tempos — e, bem conservada, está pronta a rodar. Penso, outrossim, que fiz o melhor. Os cavalos são de minha criação e as mu­das foram previstas ao longo de todo o caminho. Certa­mente você gosta de cavalos. Durante longo tempo fo­ram eles a atração de minha vida.

Eu os adoro, sir, e fico satisfeito por lhe dizer que eu mesmo tenho vários. Meu pai me fez presente, quando completei dezoito anos, de uma criação desses animais. A ela me dediquei com constância. Antes de minha partida, meu administrador me entregou um ofí­cio afirmando que há mais de mil cavalos em minhas propriedades e quase todos em excelente estado.

Como fico contente, meu jovem. É mais um elo que nos une.

Imagine, senhor, minha satisfação em conhecer, dessa maneira a Inglaterra, e ainda mais em sua com­panhia!

Obrigado mais uma vez. Eu lhe contarei tudo sobre sua futura residência e seus arredores, quando es­tivermos a caminho. Vamos viajar à maneira antiga, já lhe disse. Meu avô conduzia sempre a rédeas soltas e assim faremos nós.

Oh! obrigado, sir, obrigado. Poderei eu de vez em quando guiar também?

Todas as vezes que quiser, Adam. A parelha é sua. Cada cavalo que usarmos hoje será seu.

O senhor é muito generoso, meu tio!

De modo algum. É apenas um prazer egoísta de um velho. Não é todos os dias que um herdeiro está de volta à casa. E... por exemplo... Não, é melhor que durmamos agora; eu lhe contarei o resto amanhã cedo.

 

                    OS CASWALL DE CASTRA REGIS

O senhor Salton fora, toda a vida, madrugador e acordava bem cedo. Mas quando despertou, no dia se­guinte, cedinho — e embora tivesse a escusa de um so­no breve, perturbado pelo ruído constante e pelo ru­mor das máquinas do grande navio — viu logo os olhos de Adam que o fixavam lá da cama. Seu sobrinho-neto lhe dera o sofá e se deitara numa caminha baixa. O ancião, apesar de sua grande energia e de sua atividade normal, ficara um tanto fatigado pela longa viagem da véspera e pela prosa animada e longa que se lhe se­guira. Por isso ficara contente por se estender tran­qüilamente e repousar o corpo, enquanto seu espírito trabalhava ativamente para reter tudo aquilo que po­dia de tão estranho dia. Adam, por seu lado, tinha cos­tumes pastoris, em que fora criado, despertara de ma­drugada e estava pronto a começar as experiências des­se novo dia, logo que seu companheiro mais velho a isso estivesse disposto. Aconteceu então esta coisa bastan­te espantosa: quando cada um descobriu a disposição do outro, saltaram juntos para fora do leito e começa­ram a se vestir. O camareiro, de acordo com as ins­truções do dia anterior, tinha preparado uma refeição matinal e passou-se pouco tempo e já eles desciam a passarela rumo ao cais, à procura de sua carruagem.

Lá, encontraram o administrador do senhor Salton que os procurava e os levou logo ao lugar onde estava viatura. Ricardo Salton mostrou, com orgulho, ao jo­vem companheiro as diversas comodidades do veículo. A este estavam atrelados quatro cavalos, bons, com um cocheiro para cada par.

"Veja, disse o ancião com orgulho, como esta via­tura possui todo o luxo necessário a uma viagem agra­dável: silêncio e isolamento, bem como rapidez. Não há nenhum obstáculo à vista e ninguém pode ouvir o que se diz. Dela me servi durante um quarto de século e ja­mais vi algo de mais cômodo para a viagem. Você vai se certificar daqui a pouco. Vamos atravessar o coração da Inglaterra; e assim que estivermos a caminho dir-lhe-ei o que iria dizer ontem à noite; nosso caminho passará por Salisbury, Bath, Bristol, Cheltenham, Worcester, Stafford; e, por fim, estaremos em casa.

Adam ficou em silêncio durante vários minutos, durante os quais percorreu avidamente, com os olhos, a faixa do horizonte.

— Será que a nossa viagem de hoje tem certa re­lação com aquilo que o senhor queria me dizer na noite de ontem? perguntou ele.

— Indiretamente, sim.

— Não quer o senhor me falar disso agora? Vejo que não podemos ser ouvidos e se alguma coisa o per­turbar enquanto caminhamos, diga-me. Eu compreen­derei.

Então o velho Salton falou:

"Comecemos pelo princípio, Adam. Sua conferên­cia sobre Os Romanos na Bretanha, de que me enviou um resumo, fez-me refletir, mostrando-me ao mesmo tempo sua inclinação. Escrevi-lhe logo, rogando-lhe viesse instalar-se em minha residência. Parecia-me que sendo apaixonado pelas pesquisas históricas, seria este lugar o ideal para você, tendo em vista que esta pro­priedade é a mansão de seus antepassados. Se pôde aprender tantas coisas sobre os Romanos na Bretanha, morando tão longe, nas Novas Gálias do Sul, onde não poderia existir sequer uma tradição sobre eles, que não conseguiria você fazer aqui, nos lugares mesmos do acontecido, com a mesma paixão de estudo? A locali­dade para onde nos dirigimos está situada no coração do antigo reino de Mercia, onde se encontram os vestí­gios das diversas nações que formaram o conglomerado que se transformou depois na Bretanha.

— Eu tinha antes reunido apressadamente fatos que o senhor a mais tempo já tinha definido. Depois, só se pode compreender a história, vivendo-a.

— E isso mesmo, meu rapaz. Eu tinha um motivo que você adivinhou mui sabiamente. Desejava eu que estivesse aqui quando uma fase muito importante de nossa história vai se desenrolar.

— Qual é ele, sir, posso perguntar-lhe, com sua permissão.

— Certamente. O principal dono de terras do nos­so condado está prestes a retornar à sua residência. Será um grande acontecimento cujos detalhes terá o cuidado de observar. O fato é que, há mais de um século, os sucessivos proprietários viveram no exterior, com ex­ceção de curto período.

— Como aconteceu isso?

— A grande casa e as terras, que estão de nosso lado se chamam Castra Regis, é a mansão familiar dos herdeiros dos Caswall. O último proprietário que aqui viveu se chamava Edgar Caswall; era o avô do homem que chegará dentro em pouco e foi ele o único que aqui morou algum tempo. Portanto, o avô desse homem, que se chama também Edgar — eles conservaram a tradi­ção do mesmo nome na família — brigou com os seus e partiu, indo viver no exterior, não tendo mais relação alguma com seus parentes. Esse Edgar, como já lhe disse, abandonou a propriedade familiar e seu filho nas­ceu, viveu e morreu no estrangeiro. Seu neto, o último herdeiro, fez o mesmo até ultrapassar os trinta anos, sua idade atual Era a segunda descendência dos exila­dos. A grande propriedade de Castra Regis não conhe­ceu jamais seus donos durante cinco gerações, ou seja cento e vinte anos. Foi, contudo, bem administrada e nenhum fazendeiro, nenhuma outra pessoa que seja li­gada a esta propriedade fez alguma coisa de que se pu­desse arrepender. Contudo, ver o novo proprietário pro­vocou aqui grande inquietação e ficamos todos excita­dos pelo evento que constitui a sua chegada. Eu mesmo o estou, embora eu possua minhas terras que, apesar de adjacentes, estão completamente fora de Castra Regis. Observe, estamos agora em região nova para você. Veja lá a flecha da catedral de Salisbury e, assim que a ti­vermos atravessado, estaremos próximos do antigo con­dado romano e deve você usar naturalmente de seus olhos. Deveremos falar dentro em pouco da antiga Mércia. Contudo não ficará decepcionado. Meu velho ami­go sir Nataniel de Salis, que, como eu, tem suas terras próximas a Castra Regis — sua propriedade Doom Tower (Torre do julgamento) no circuito do Derbyshire, sobre o Peak — vai hospedar-se em minha casa duran­te as festas que acolherão Edgar Caswall. É, precisa­mente, o gênero de pessoa de que você gostará. Dedi­cou-se à história e é o presidente da Sociedade de Ar­queologia de Mércia. Sobre sua história e seus habi­tantes, sabe mais do que qualquer um nesta parte do condado. Espero que tenha chegado antes de nós e as­sim poderemos ter uma longa conversa depois do jan­tar. É, além disso, o nosso geólogo local e nosso perito em história natural. Vocês dois terão muitos interesses em comum. Entre outras coisa, conhece ele muito bem o Peak, suas cavernas e todas as velhas lendas, vindas até dos tempos pré-históricos".

Passaram a noite em Cheltenham e na manhã se­guinte puseram-se a caminho para Stafford. Os olhos de Adam estavam continuamente ocupados e foi somen­te quando Salton declarou que estava na derradeira etapa da viagem, que ele falou da vinda de sir Nataniel.

Ao cair da noite, chegaram a Lesser Hill, a man­são de sir Ricardo Salton. Já estava bastante escuro para que se pudesse distinguir alguma coisa dos arre­dores. Adam apenas pode observar que a casa estava situada no cimo de uma colina. Sobre outra, uma pou­co mais elevada, erguia-se o castelo, em cuja torre ba­lançava-se um.estandarte. Parecia estar em fogo, tan­tas eram as luzes que aí se agitavam, preparativos, sem dúvida, para os futuros festejos. Adam teve de trans­ferir para o dia seguinte sua curiosidade. Na soleira, seu tio-avô foi recebido por um delicado ancião que o saudou calorosamente.

"Vim rapidamente, como você desejava. Suponho que este rapaz é seu sobrinho-neto. Estou encantado por conhecê-lo, senhor Adam Salton. Sou Nataniel de Salis e seu tio é um dos meus mais velhos amigos.”

Adam teve a sensação, desde o momento que seus olhos se encontraram, que eram já amigos. Este encon­tro foi mais uma prova de boas-vindas que se ajuntou a tantas outras que já recebera.

A cordialidade que sir Nataniel e Adam se de­monstraram tornou fácil a troca de idéias. Sir Nata­niel era um homem do mundo, muito vivido, que fize­ra muitas viagens e tinha estudado seriamente certas ciências. Era um conversador brilhante e antigo diplo­mata, feliz, mesmo em condições menos favoráveis. Fi­cou comovido e, até certo ponto, excitado pela admira­ção evidente do jovem e por sua diligência em se ins­truir. A conversa, que havia começado em termos os mais afetuosos, tornou-se mais animada, quando o an­cião falou a Ricardo Salton sobre o dia seguinte. Sabia ele que seu velho amigo desejava que seu sobrinho-neto conhecesse tudo o que fosse possível sobre o assunto do dia e assim, durante sua viagem do Peak até Lesser Hill, tinha concatenado suas idéias, de tal medo que pudesse expô-las e explicá-las facilmente. Adam só tinha que ou­vir e aprendia tudo o que desejava saber. Quando o jan­tar terminou e os criados se retiraram, deixando bebidas aos três homens, sir Nataniel começou:

"Penso que seu tio... A propósito, presumo que fa­ríamos melhor chamando-os de tio e sobrinho, em vez de lhes dar seu parentesco exato. Com efeito, seu tio é um amigo tão estimado e antigo que, com a permissão de você e dele, eu ponho de lado toda a etiqueta e passo a tratá-lo de Adam, como se você fora meu filho.”

—            Nada me causará mais satisfação!, respondeu o jovem.

Esta resposta acalentou o coração dos dois velhos, mas, com a discrição habitual aos ingleses com respeito aos assuntos que os comovem, retornaram instintiva­mente à questão precedente. Sir Nataniel deu o rumo.

— Percebo, Adam, que seu tio já o pôs a par da história dos Caswall?

— Em parte, sir; ele, porém, me disse que o se­nhor teria a bondade de me contar em seus mínimos de­ talhes.

— Ficarei mui satisfeito em lhe narrar tudo que sei sobre essa história. Bem, o primeiro Caswall que se encontra em nossos arquivos é Edgar, chefe da família e proprietários dessas terras, que caíram em sua posse desde a morte de Jorge III. Tinha ele um filho que já contava uns 24 anos. Entre ambos, surgiu violenta discussão. Ninguém na ocasião soube o motivo; mas, considerando-se as características da família, podemos estar seguros que, apesar da violência e gravidade da rixa, tivera uma causa insignificante.

O resultado desta briga foi que o filho deixou a casa sem se reconciliar e sem dizer ao menos ao pai para onde partia. Nunca mais voltou. Alguns anos mais tarde, morreu, sem ter trocado uma palavra ou uma carta com seu pai. Casou-se no estrangeiro e teve um filho, o qual parece foi criado no desconhecimento de toda esta his­tória. O abismo entre eles tornara-se intransponível; durante esse tempo esse filho também casou. Por sua vez teve um filho; mas nem alegria, nem tristeza re­conciliaram aqueles que estavam separados. Em tais condições, nenhuma aproximação era prevista. Uma in­diferença total, fundada mais sobre a ignorância, subs­tituiu a afeição familiar e o mesmo aconteceu no que concerne à comunidade dos interesses. Deve-se somente à vigilância dos procuradores o conhecimento do nas­cimento desse herdeiro. É ele que vai permanecer alguns meses na mansão familiar.

Assim, os interesses familiares ficaram simplesmen­te para os herdeiros da propriedade. Como nenhuma outra criança nasceu, nos últimos anos, nas novas ge­rações, todas as esperanças do espólio se concentraram no neto daquele personagem.

Agora seria interessante para você conhecer as ca­racterísticas dominantes nessa família. Mantiveram-se elas e conservaram-se inalteráveis; todos, até o último, são sempre os mesmos: frios, egoístas, dominadores, des­preocupados das conseqüências na procura de suas sa­tisfações. Não é que tenham perdido a fé — embora is­so pouco os perturbe — mas nota-se que tomam cuidado de calcular adiantadamente o que devem fazer para conseguir seus objetivos. Se tiverem, por acaso, cometi­do um erro, seria outro qualquer que suportaria as con­seqüências. Tudo isso acontece tão regularmente que isso parece fazer parte de uma política já firmada.

Não se deve, pois, espantar-se pelo fato de que, qualquer que tenha sido a alteração, eles ficarem sem­pre senhores de todos os seus bens. São completamente frios e duros por natureza. Nenhum dentre eles, tão longe quanto possamos saber, jamais teve um sentimento de ternura, para se afastar de seus desígnios ou para sustar a mão, obedecendo antes às ordens do coração. Os retratos e estátuas, que os representam, mostram to­dos certa semelhança ao tipo romano antigo. Seus olhos são largos, sua cabeleira, negra como um corvo, cresce espessa e encaracolada.

Essa basta cabeleira negra, caindo pelo pescoço, tes­temunha a grande força física deles e sua resistência. Mas o que há de mais notável neles são os olhos. Ne­gros, penetrantes, quase insuportáveis, parecem reter neles uma indestrutível força de vontade que não admi­te contradição alguma. É um poder, parte racial e par­te individual: um poder impregnado de uma proprie­dade misteriosa, em parte hipnótica, em parte mesmérica, que parecem arrebatar aos olhos que os encontram todo o poder de resistência.

Ante tais olhos, cravados num rosto dominador, se­ria necessário ser realmente forte para pensar em resis­tir a essa vontade inflexível que se lhe está por trás.

Você, Adam, deve julgar que tudo isso não passa de mera imaginação da minha parte, sobretudo porque eu não vi nenhum deles pessoalmente. Assim é, mas a imaginação está fundada sobre estudos profundos. Ser­vi-me de tudo o que conhecia ou podia supor fosse lógi­co no que diz respeito a essa estranha descendência. Com tão misteriosas qualidades não é de se estranhar que corresse o boato de que uma possessão demoníaca paira sobre essa família, corroborada por crença mais firme ainda de que no passado alguns dentre eles se venderam ao Diabo.

Julgo, porém, que o melhor que podemos fazer ago­ra é ir dormir. Continuaremos amanhã, pois desejo que você tenha o espírito claro e a sensibilidade descansada. Além disso, quero que venha comigo para um passeio matinal, durante o qual poderemos observar — enquanto o assunto está novo em seu espírito — a disposição particular desta localidade, não só os terrenos de seu tio, mas toda <a região ao redor. Há vários fenômenos que devemos rebuscar e cujo esclarecimento, talvez, en­contrar. Quanto mais nós conhecemos os elementos agora, mais elas se explicarão mais tarde, por eles mesmos.

 

                   O BOSQUE DE DIANA

A curiosidade fez com que Adam saltasse, logo ce­do, do leito. Mas, após vestir-se e descer, constatou que, por mais madrugador que fosse, sir Nataniel o era mais que ele. O velho gentleman já estava pronto para longa caminhada e partiram imediatamente.

Sir Nataniel, sem falar, tomou o caminho de leste, no sopé da colina. Desceram depois, tornaram a subir e se encontraram na vertente este de uma colina escarpada. Era ela um pouco menos elevada do que aquela em que se erguia o castelo, mas estava de tal maneira colocada que dominava as diversas colinas que coroa­vam a crista. Ao longo desta, surgiam da terra os ro­chedos, nus e frios, mas fendidos como uma dentalha grosseira e natural. A forma da crista era um con­junto de círculos, cujas pontas mais elevadas se situa­vam a oeste. No centro, no lugar mais alto, destacava-se o castelo. Entre os diversos amontoados de rochas, havia grupos de árvores, de forma e tamanho diferentes e entre algumas delas, distinguia-se algo, que, à luz ma­tutina, se assemelhava a ruínas. Estas — fossem o que fossem — eram feitas de pedra cinzenta e maciça.; pro­vavelmente de pedra calcária rudimentarmente talhada, salvo se tivessem naturalmente tomado aquela forma. Era forte, ao longo da crista, a inclinação do terreno, tão forte que, aqui e ali, árvores, rochedos e edifícios pareciam suspensos por sobre a longínqua planície, pe­las quais corriam numerosos riachos.

Sir Nataniel parou e olhou ao redor como se qui­sesse nada perder do efeito. O sol surgia no céu, a leste, e tornava visíveis todos os detalhes. Com o braço es­tendido fez um largo movimento para mostrar a Adam toda a extensão da perspectiva. Depois, refez o gesto, como que convidando-o para observar a paisagem nas minúcias. Adam era um aluno atento e de boa vontade e acompanhou esses movimentos com exatidão, pro­curando nada deixar passar do que se lhe oferecia.

— Trouxe-o aqui, Adam, porque me parece que é este o ponto onde começar nossas pesquisas. Diante de você está quase a totalidade do antigo reino de Mércia. Com efeito, nós o vemos em seu conjunto, exceção feita da parte mais distante que está delineada pelas frontei­ras do País de Gales e aquelas que estão ocultas por essa colina, logo a oeste. Teoricamente podemos ver to­dos os limites do reino, que se estendia ao sul, desde o Humber até Wash. Quero que você tenha presente ao espírito a direção do terreno, porque um dia, mais cedo ou mais tarde, teremos necessidade de o representar visualmente, quando considerarmos as velhas tradições e superstições e procurarmos encontrar-lhes a análise ra­cional. Cada lenda, cada superstição que recolhermos nos ajudará a compreender e elucidar as outras. E como todas têm um fundamento local, estaremos próximos da ver­dade ou sua probabilidade, conhecendo as condições lo­cais como iremos fazer. Isso nos auxiliará a ter em nosso socorro esta ou aquela realidade geológica. Por exemplo, os materiais de construção utilizados em di­versos períodos podem dar sua lição a olhos preveni­dos. A altura, formas e matéria destas colinas e, mais ainda, as da vasta planície que se alonga entre nós e o mar contém assuntos de estudos que nos esclarece­riam muito.

Por exemplo, sir? perguntou Adam, arriscando uma pergunta.

Bem, olhe estas colinas que rodeiam aquela so­bre a qual, sabiamente, foi escolhido o lugar da cons­trução do castelo. Depois, observe as outras. Há alguma coisa de visível em cada uma delas, e provavelmente alguma de invisível e de não provado, mas que se pode imaginar.

Por exemplo, continuou Adam.

Tomemos, por exemplo, aquelas elevações. Aquela a este, onde se encontram as árvores, mais abai­xo, era outrora o lugar da construção de um templo ro­mano, edificado, talvez, sobre um templo druídico que existira em outros tempos. Seu nome implica a primei­ra suposição e o bosque de velhos carvalhos sugere o se­gundo.

Pode o senhor explicar?

O nome antigo (Diana's Grove), uma vez tradu­zido, quer dizer "o bosquezinho de Diana". Note em se­guida o terreno um pouco mais elevado, mas que se en­contra ao lado; ele se chama Mercy (misericórdia), e, conforme toda a probabilidade, é corrupção ou familiarização da palavra Mercia, com a inclusão aí de um tro­cadilho romano. Era, com efeito, um convento de frei­ras, fundado pela rainha Berte, mas que foi destruído pelo rei Penda, o qual fomentou o retorno ao paganismo depois de Santo Agostinho. Cheguemos agora à casa de seu tio, Lesser Hill. Embora muito próxima do castelo, dele não faz parte. É uma propriedade livre, e, pelo que sabemos, data do mesmo século. Ela sempre per­tenceu à sua família.

Há ainda o castelo!

Está certo; mas sua história abrange as histó­rias de todas as outras — na verdade, toda a história da velha Inglaterra.

Sir Nataniel, vendo a atenção do rosto de Adam, continuou:

"A história do castelo não tem começo, pelo que sa­bemos. Os arquivos, as suposições, as inferências mais afastadas o assinalam como já existente em tempos re­motos. Algumas dessas suposições — chamemo-las as­sim — levam a conjeturar que uma construção se er­guia já lá quando vieram os romanos; por conseguinte devia ser um lugar importante na época dos Druidas, se, evidentemente, sua história começar aí. Natural­mente os romanos o ocuparam, como costumavam fazer com toda a coisa que era ou podia ser útil. A troca é indicada ou inferida por seu nome: Castra. Era o sítio protegido, mais elevado, e, sem dúvida, se tornou o mais importante de seus acampamentos. Um estudo do ma­pa lhe mostrará que isso se tornou um ponto estratégico de grande interesse. Protegia ao mesmo tempo os pos­tos avançados ao norte e assegurava o domínio da cos­ta marítima. Protegia as fronteiras a oeste, para além do qual se estendia o selvagem País de Gales e o perigo. Favorecia o projeto de penetrar na Saverna, que con­tornava as grandes estradas romanas que se acabavam de construir e tornava possível o grande caminho, por água, até o coração da Inglaterra, apesar da Saverna e seus vassalos. Reunia o leste e o oeste pelas estradas mais rápidas e mais seguras da época. E, por fim, ofe­recia o meio de se dirigir a Londres e a todo o território da região banhada pelo Tâmisa.

Tal centro, já conhecido e fortificado, tornou-se, co­mo o podemos averiguar, uma posse ambicionada, a ca­da vaga de invasões, cujo apoio cada um almejava. Nos primeiros tempos foi apenas uma posição vantajosa. Mas depois que os romanos aí construíram fortificações pesadas e maciças, inexpugnáveis para as armas da época, transformaram-se numa posição única, quer pelo seu equipamento, quer por suas fortalezas. Em seguida aconteceu que o campo fortificado dos Césares se transformou no castelo do rei. Como ainda desconhe­cemos os nomes dos primeiros reis de Mércia, nenhum historiador conjeturou sequer qual dentre eles fez desse local sua última proteção; e, penso eu, jamais o sabe­remos. Com o correr dos tempos, tendo se desenvolvido a arte da guerra, ele cresceu em poder e tamanho; e embora os detalhes extraídos sejam imperfeitos, a his­tória está escrita não somente nas pedras da constru­ção, mas também esculpida está nos diferentes estilos. Em seguida, as confusões que se seguiram às conquis­tas romanas apagaram os menores vestígios desse sítio. Hoje, devemos aceitar o fato de que este castelo é um dos mais velhos da conquista e data, certamente, da época de Henrique I. Romanos e normandos foram am­bos os povos assaz espertos para ter observado o inte­resse prático de certos pontos estratégicos. E essas al­turas circundantes que já tinham dado provas disso fo­ram conservadas. Na verdade tais características dão hoje lições sobre os acontecimentos que se passaram aqui há bastante tempo.

Sabemos muitas coisas sobre esses cimos fortifica­dos; mas as cavernas têm também sua própria história. Como o tempo passa! É preciso regressar, depressa, à casa, senão seu tio vai perguntar o que nos aconteceu".

E ele se encaminhou a largos passos para Lesser Hill e Adam foi logo obrigado quase a correr, sem o de­monstrar, para ficar a seu lado.

 

                   LADY ARABELLA MARCH.

"Não estamos apressados, mas assim que estiverem prontos, os dois, partiremos", tinha dito o senhor Salton no início do café da manhã. Quero levá-los, primei­ramente, para ver um notável vestígio de Mércia. E para isso iremos a Liverpool, através do que se chama "o grande vale do Cheshire". Ficarão desapontados, mas tomem cuidado — e isto de modo especial para Adam — em esperar alguma coisa de prodigioso ou de heróico. Não pensarão, de modo algum, que esse lugar seja um vale, a não ser que o acreditem de antemão e tenham confiança na veracidade do narrador. Em seguida iremos ao cais para encontrar o "West African" e receber o senhor Caswall assim que desembarcar. Nós lhe renderemos nossas homenagens e, além disso, fica­remos conhecendo-o, o que será mais agradável, antes de tomarmos parte nas festas no castelo.

A carruagem estava pronta, a mesma que servira na véspera, mas já com outros cavalos: árdegos e mag­níficos animais. O café terminou logo e eles subiram à viatura. Os cocheiros já tinham recebido suas ordens e se puseram logo a caminho, em boa velocidade.

Um pouco mais tarde, obedecendo a um sinal do senhor Salton, a carruagem parou, na beira da estrada, ao lado de um monte de pedras.

"Aqui, Adam, disse ele, se encontra alguma coisa que você não pode de forma alguma desconhecer. Este montoado de pedras nos leva à aurora do reino inglês. Foi iniciado, há mais de mil anos, para comemorar um assassinato; Wulfere, rei de Mércia, sobrinho de Pen­da, foi morto aqui, por seus dois filhos, porque abra­çara a fé cristã. Como era costume naqueles tempos, cada transeunte lançava aqui uma pedra, aumentan­do assim o monumento comemorativo. Penda represen­tou a reação paga depois das missões de Santo Agosti­nho. Sir Nataniel poderá lhe contar essa história tan­tas vezes quantas quiser e lhe dirá, se assim você de­sejar, tudo o que sabe sobre ela.”

Enquanto eles observavam o amontoado de pedras, viram outra viatura parar a seu lado e um único pas­sageiro contemplá-lo curiosamente. A carruagem era um veículo pesado, ornado com suntuoso brasão. Os homens tiraram o chapéu, quando a ocupante — era uma mulher — se dirigiu a eles.

"Como está passando, sir Nataniel? E o senhor Sal­ton como vai? Espero que nada tenha acontecido de grave. Mas vejam aqui!”

Falando, ela apontava com o dedo uma das pesa­das molas que se tinha quebrado, cujo metal danificado brilhava. Adam retrucou logo:

Oh! Isso pode ser logo consertado.

Logo? Mas não há ninguém aqui que o possa consertar.

Eu posso.

O senhor! — E ela olhava incrédula o jovem e atencioso gentleman que tinha falado. O senhor! Mas como? Isso é trabalho de operário.

Muito bem, eu sou um operário — embora não seja o único gênero de trabalho que eu faça. Sou aus­traliano e, sendo obrigados a nos movimentar rápida e freqüentemente estamos habituados a essa espécie de trabalho. Estou às suas ordens.

Não sei como agradecer-lhe a bondade, que acei­to. Não sei o que poderia fazer, porque desejo encon­trar-me com o senhor Caswall de Castra Regis, que che­ga hoje da África. É um regresso famoso; e toda a re­gião deseja prestar-lhe homenagem".

Ela olhou para o velho e adivinhou logo a identi­dade do estrangeiro. "O senhor deve ser Adam Salton de Lesser Hill. Eu sou Lady Arabella March de Diana's Grove".

Enquanto falava, voltou-se ligeiramente para o se­nhor Salton que, entendendo a alusão, fez logo as de­vidas apresentações.

Logo depois, Adam pegou algumas ferramentas da viatura de seu tio e se pôs a consertar a mola quebrada. Era um hábil operário e o dano foi logo reparado. Adam recolheu as ferramentas de que se servira e que, con­forme o costume de todo o operário, estavam espalha­das aqui e ali. Percebeu, então, que várias serpentes negras se tinham deslizado para fora do amontoado de pedras e estavam ao seu redor. Preocupado com o que via, em nada mais pensava, quando viu Lady Arabella, que, abrindo a porta da carruagem, saia com um movi­mento rápido e insinuante. Já estava ela perto das ser­pentes, quando ele gritou para preveni-la. Mas, parecia que esse aviso era inútil, pois que as serpentes fizeram meia volta e retornaram às pedras, desusando o mais rapidamente possível. Ele riu consigo mesmo e murmu­rou entre os dentes: Inútil temê-las. Elas parecem ter mais medo da moça do que a moça delas." Contudo, pôs-se a bater no chão com um pedaço de pau que se encontrava a seu lado, com a intenção de usá-lo contra os répteis. Num instante, ficou sozinho diante do mon­te de pedras, ao lado de lady Arabella, que não se mos­trara nada interessada no acontecido. Então ele a fitou longamente. Suas vestes, só elas, já eram suficientes para atrair a atenção; ela usava um vestido feito de um tecido de um branco imaculado, que se ajustava estreitamente a seu corpo e cada movimento revelava suas formas sinuosas. Na cabeça uma touca de fino pano, de um branco brilhante. Ao redor do pescoço, um largo colar de esmeraldas, cuja riqueza de cores cintilava aos reflexos do sol. Sua voz era singular, muito profunda e doce, tão suave que a nota predominante era apenas um sussurro. Suas mãos, também, eram atraen­tes, longas, flexíveis, brancas, com movimentos estra­nhos, como uma doce ondulação.

Ela parecia estar completamente à vontade e, de­pois de ter agradecido a Adam, disse que se alguém do grupo de seu tio ia a Liverpool, ficaria muito contente em se unir a eles.

"Durante sua permanência aqui, senhor Salton, po­de considerar as terras de Diana's Grove como suas. Poder andar nelas à vontade, como faz em Lesser Hill. Há numerosa coisas belas para se ver e inúmeras curio­sidades naturais que lhe serão, certamente, de interesse se o senhor estuda história natural; sobretudo aquelas de uma época mais antiga, quando o mundo era mais jovem.”

A solicitude de suas palavras e o calor com que as pronunciou em contradição com sua maneira fria e dis­tante o tornaram desconfiado. No intervalo, seu tio e sir Nataniel tinham agradecido a ela, pelo convite, que, diziam eles, não poderiam aceitar de modo algum. Adam suspeitou que, embora ela dissesse ficar pesarosa por isso, na realidade sentira-se até aliviada. Subiram nova­mente ao veículo, ele e os dois velhos e Adam não fi­cou surpreso quando sir Nataniel lhes disse:

"Tenho a sensação que ela estava satisfeita por se livrar de nós. Ela pode fazer melhor seu jogo, com­pletamente sozinha!”

Que jogo? perguntou Adam, sem refletir.

Todo o condado sabe, meu rapaz, Caswall é um homem muito rico. O marido dela era também rico quando se casou ou, pelo menos, parecia ser. Quando ele se suicidou verificou-se que nada deixara e que a propriedade estava quase totalmente hipotecada. Sua única esperança está, portanto, num casamento vanta­joso. Penso que não preciso tirar conclusão: você o pode fazer muito bem.”

Adam ficou silencioso durante todo o tempo que durou a travessia do chamado "vale de Cheshire". Re­fletiu bastante durante a viagem e chegou a várias con­clusões, embora seus lábios permanecem fechados. Uma delas foi que devia se prevenir ao mostrar qualquer atenção a Lady Arabela. Ele era também um homem rico, tão rico que seu tio não tinha a menor idéia e fi­caria até surpreso quando o soubesse.

O resto da viagem foi monótona e, chegados a Liverpool, subiram a bordo do West African, que acabava justamente de atracar. Lá, seu tio se apresentou ao se­nhor Caswall, depois apresentou sir Nataniel e Adam. O recém-vindo recebeu-os com cordialidade e lhe esternou o prazer que sentia por retornar a seu país, depois de tão longa ausência de sua família, da velha man­são. Adam ficou encantado com o calor da recepção; mas não pôde recalcar certa sensação de repugnância diante da figura desse homem. Procurou disfarçá-la, quando a atenção foi desviada com a aproximação de lady Arabela. Ela foi bem acolhida, pois os dois Salton e sir Nataniel mal podiam ocultar o choque sofrido ao contemplar o rosto tão duro, tão cruel, tão egoísta e tão dominador de Caswall. "Deus proteja aquele que esti­ver sob o poder de tal homem!", pensaram eles.

Pouco depois, seu criado africano se aproximou dele e logo seus pensamentos se transformaram numa tole­rância maior. Caswall parecia em verdade um selva­gem, mas um selvagem civilizado. Havia nele traços de uma mitigante civilização, nascida através dos séculos, aqueles dos mais altos instintos revelados pela educação o homem, mesmo que fossem bastante rudimentares. Mas o rosto de Oolonga, assim o chamara seu patrão, era o de um homem selvagem que não se poderia suavizar nem trocar. Havia nele as terrificantes possibilidades de um filho da floresta e dos pântanos, perdido e pos­suído pelo diabo. Lady Arabella e Oolonga chegaram quase ao mesmo tempo. E Adam ficou surpreendido ao observar o efeito que o aparecimento de um fez sobre o outro. A mulher fez um ar de não querer — ou de não poder — transigir em mostrar algum interesse ou importância a tal criatura. De outro lado a atitude do Negro justificou em si mesmo o orgulho. Ele agia não só como um escravo para com seu senhor, mas co­mo um adorador perante sua divindade. Ajoelhou-se diante dela, estendendo as mãos e tocando com a testa a poeira do solo. Durante o longo tempo em que ela permaneceu imóvel, assim ele ficou. Somente quando ela se dirigiu a Caswaall, abandonou ele a posição de adoração e se conservou, respeitosamente atrás.

Adam encaminhou-se para seu próprio servo, Davenport, que chegava com o administrador de Lesser Hill, o qual seguira, a cavalo, a carruagem do senhor Salton. Adam, em lhe falando, apontou para um ca­mareiro do navio e imediatamente os dois homens entabularam conversa.

"Julgo, disso o senhor Salton a Adam, julgo que é mister que partamos. Tenho vários assuntos a regula­rizar em Liverpool e estou certo que o senhor Caswall, bem como lady Arabela desejam por-se a caminho para Castra Regis.”

— Eu também, senhor, tenho algo a fazer, retru­cou Adam. Gostaria de encontrar Ross, o vendedor de animais. Desejo levar para a casa um animalzinho, se isso não lhe causa incômodo. É um pequeno animal e não lhe dará aborrecimento algum.

Está certo, meu rapaz. Que espécie de animal você quer?

Uma mangusta.

Uma mangusta. Mas para que?

Para matar as serpentes.

Está bem.

O velho lembrou-se do monte de pedras. Não era mais necessária explicação alguma.

Quando Ross ouviu o que ele desejava lhe pergun­tou:

O senhor quer algo de especial ou simplesmen­te uma mangusta comum?

Bem, eu queria uma boa. Mas não vejo utilidade em algo de especial. Quero apenas para o uso comum.

Vou-lhe mostrar um bando de mangustas co­muns. Perguntei-lhe isso, porque tenho em meu estabe­lecimento uma mangusta muito especial que mandei buscar no Nepal. Ela tem um recorde em seu ativo, pois matou uma cobra real, uma naja, nos jardins de um marajá. Mas julgo que aqui não há serpentes dessa espécie, neste clima frio. Vou-lhe enviar uma, comum, que fará muito bem o serviço.

Quando Adam retornou à viatura, carregando com precaução a caixa da mangusta, sir Nataniel pergun­tou:

Olá! Que traz você?

— Uma mangusta.

Para que?

Para matar serpentes!

Sir Nataniel pôs-se a rir.

— Ouvi o convite que lady Arabella lhe fez de vi­sitar Diana's Grove.

Mas que relação há entre uma e outra coisa?

Nenhuma, diretamente pelo que eu sei. Mas ve­remos.

Adam esperava e o velho continuou:

Por acaso já ouviu o outro nome que durante longo tempo teve esse lugar?

Não, sir.

Chamava-se... Mas esse assunto requer longa conversa. Aguardemos antes ficar sozinhos e ter muito tempo diante de nós.

Está bem, sir.

Adam estava cheio de curiosidade, mas pensou ser melhor ter paciência. Tudo viria a seu tempo. Em se­guida, os três retornaram à casa, deixando o senhor Caswall que devia passar a noite em Liverpool.

No dia seguinte, os habitantes de Lesser Hill se en­caminharam para Castra Regis e, por algum tempo, Adam não pensou mais em Diana's Grave nem nos mis­térios que esse lugar tinha ou podia ter.

Os convidados se apressavam, em bandos, e lugares especiais tinham sido reservados para os mais impor­tantes. Adam, vendo tantas pessoas de condições dife­rentes, procurava, com o olhar, lady Arabella, mas não a viu em lugar algum. Foi somente ao ver aproximar-se a viatura antiga e ouvir os gritos alegres que aco­lhiam a carruagem que percebeu que Edgar Caswall acabava de chegar. Então, virando os olhos para essa direção, viu lady Arabela, vestida como na véspera, sen­tada ao lado de Caswall. Quando a carruagem parou diante da grande escadaria, o hospedeiro saltou em ter­ra e lhe deu a mão.

Para todos tornou-se evidente que ela era a convi­dada de honra. Pouco tempo depois, as cadeiras no es­trado foram ocupadas, e os fazendeiros e os convidados de menor importância se postaram nos cantos e outros postos que não tinham sido reservados. O desenrolar das homenagens tinha sido preparado com cuidado por uma comissão. Houve alguns discursos, felizmente nem longos, nem cansativos: depois as festividades foram suspensas até a hora do banquete. Enquanto esperava, Caswall passeava entre seus convivas, falando a cada um com amizade e apresentando-lhes as boas-vindas. Outros convidados desceram do estrado e seguiram seu exemplo e assim o encontro tornou-se sem cerimônias e transformou-se em saudações e conversas simples e fa­miliares.

Adam Salton, naturalmente, seguia com os olhos tu­do o que se desenrolava diante dele e tomava nota de tudo o que lhe parecesse digno de especial interesse. Era jovem, era homem e estrangeiro, vindo de muito longe: e por todas essas razões olhava de preferência as mulheres e especialmente as que eram moças e atra­entes. Havia belas jovens na multidão e Adam, que era moço, formoso e bem proporcionado, recebeu uma boa parte de olhares admirativos. Isso não lhe fez mossa e permaneceu imóvel até o momento da chegada de um grupo de três pessoas que, por suas roupas e sua aparência, deviam ser fazendeiros. A primeira pessoa era um robusto velho; as outras duas eram jovens, for­mosas; uma com um pouco mais de vinte anos, outra de menos idade. Assim que os olhos de Adam se en­contraram com os da mais jovem, que se conservava não longe dele, uma espécie de eletricidade se produ­ziu. Essa centelha divina que começa pelo simples co­nhecimento e termina pela submissão e a que os ho­mens chamam de "Amor".

Seus dois companheiros notaram como Adam fica­ra fascinado pela jovem e lhes prestaram informações pelas quais ele lhes ficou muito reconhecido.

"Observou você o grupo que acaba de passar? O velho é Michel Watford, um dos meeiros do senhor Cas­wall. Ele trabalha em Mercy Farm, que sir Nataniel lhe mostrou hoje. As moças são suas netas. A mais ve­lha, Lilla, é a filha, única, de seu filho mais velho que morreu quando ela tinha menos de um ano. Sua mãe faleceu no mesmo dia. É uma boa moça, tão boa quanto bela. A outra é sua prima, a filha do segundo filho de Watford. Ele partiu para o exército quando tinha apenas 20 anos e foi mandado para as colônias. Escre­via pouco, embora fosse bom filho. Poucas cartas che­garam e depois seu pai soube pelo coronel de seu regi­mento que fora morto pelos Dacoits, na Birmânia. Na mesma fonte, soube que seu filho se casara com uma birmanesa e ela tivera uma filha a qual estava com um ano somente nessa ocasião. Watford mandou buscar a criança e a criou com Lilla. A única coisa que se sabia é que ela se chamava Mimi. As duas crianças, criadas juntas, se adoram... Estranho é como são diferentes! Lilla toda loura, como a velha estirpe donde proveio; Mimi refletindo ligeiramente a raça de sua mãe. Lilla é tão suave com a pomba, mas os olhos negros de Mimi podem inflamar-se quando está perturbada. Mas um único acontecimento pode perturbá-la: qualquer coisa que possa fazer mal ou importunar Lilla. Então os olhos dela brilham como os de um pássaro cujos filhotes es­tejam sendo ameaçados".  

 

                   O VERME BRANCO

O senhor Salton apresentou Adam ao senhor Watford e a suas netas, depois puseram-se a caminhar jun­tos. Os vizinhos, como Watford, já sabiam tudo a res­peito de Adam Salton, seu parentesco, sua situação e suas intenções. Assim seria estranho que as duas mo­ças não tivessem formado seus projetos a respeito de futuro casamento. Na Inglaterra agrícola, os homens que ocupavam a posição de R. Salton não tinham a pretenção que se poderia deduzir de tal situação e assim um homem como Adam era particularmente procurado porque não fazia parte duma classe em que as barreiras de casta são fortes. Quando se observou que ele cami­nhava ao lado de Mimi Watford e parecia procurar sua companhia, todos os amigos se esforçaram por ajudá-lo nessa promissora tentativa. Quando o gongo soou para o banquete, ele se aproximou juntamente com ela do toldo onde seu avô tinha tomado lugar. O senhor Sal­ton e sir Nataniel notaram que o jovem não tinha ocupado o lugar que lhe tinha sido reservado na mesa do estrado; mas eles compreenderam e não lhe fizeram nenhuma observação, ou, em verdade, procederam co­mo se não tivessem sequer notado sua ausência.

Lady Arabela estava sentada, como antes, à direita de Edgar Caswall. Era sem dúvida uma mulher notá­vel e pouco comum e ela se sentia digna quer por sua ascendência, quer por suas qualidades, de se tornar a companheira escolhida pelo herdeiro em seu primeiro aparecimento. Na verdade, nada de tudo isso era dito abertamente por aqueles que estavam presentes; mas as palavras não são necessárias quando tantas coisas po­dem ser expressas por sinais de cabeça ou por sorrisos. Que ela seria a dona de Castra Regis e que já o era, parecia fato evidente. Contudo, certas pessoas, embora reconhecendo seu encanto e sua beleza, a colocavam em segundo lugar, logo depois de Lilla Watford. Elas tinham caracteres bastante diferentes e belezas bas­tante pessoais, para motivar justos comentários: lady Arabela representava o tipo aristocrático e Lilla aquele do povo.

Quando o crepúsculo começou a cair, Salton e sr. Nataniel retornaram à casa, a pé, visto que a carrua­gem partira logo, de dia. Deixaram que Adam escolhes­se a hora de seu regresso. Voltou ele mais cedo do que tinham imaginado e parecia estar perturbado por algu­ma coisa. Mas os dois anciões não lhe fizeram pergun­ta alguma. Acenderam seus cigarros e, como se apro­ximasse a hora do jantar, subiram para os quartos a fim de se preparar.

Adam evidentemente tinha refletido bastante du­rante o intervalo. Juntou-se aos outros no salão, muito agitado e nervoso — fato que seus companheiros ob­servaram pela primeira vez. Mas, com a paciência ou a experiência da idade, confiaram ao tempo o cuidado de desvendar e explicar os fatos. Não esperaram, con­tudo, muito tempo. Depois de se ter sentado e ficado imóvel um momento, Adam explodiu de repente:

"Esse indivíduo pensa que é dono do mundo intei­ro! Não pode deixar as pessoas tranqüilas! Acredita que basta somente atirar seu lenço para uma mulher e esta será sua escrava!”

Esse desabafo parecia suficientemente explicativo. Somente um amor contrariado de alguma maneira po­deria provocar esse sentimento no amável jovem. Sir Nataniel, apesar de velho diplomata, compreendeu co­mo se houvera previsto a simples realidade das coisas e perguntou sem pensar, com voz aparentemente indi­ferente:

Ele estava ao lado de Lilla?

Sim e o convencido não a deixava por momen­to algum com outro. Isso desde o instante em que se encontraram ou quase, ele começou a lhe fazer corte e dizer quanto ela era formosa. E, veja só, antes de se despedir, ele mesmo se convidou para o chá, amanhã, em Mercy Farm. Estúpido animal! Ele devia perceber que essa moça não é de sua classe. Jamais vi coisa se­melhante. Dir-se-ia um gavião diante de uma pomba.

Ouvindo assim falar, sir Nataniel virou-se para o senhor Salton e o olhou com olhar penetrante que pe­dia compreensão total.

Conte-nos tudo, Adam. Há ainda alguns minutos antes do jantar e teremos mais apetite se chegar­ mos a uma conclusão sobre isso.

Nada há a dizer, sir; o pior não poderia acon­tecer. Sou obrigado a reconhecer que não houve pala­vra alguma digna de crítica; ele foi sempre polido e muito convincente, como um proprietário deve ser para a filha de um meeiro... Contudo, contudo, e bem, não sei o que era... tudo isso me fazia ferver o sangue.

Por que falar de gavião e de pomba?

A voz de sir Nataniel era suave e reconfortante, sem nenhuma oposição ou curiosidade exagerada, em tom apropriado para trazer de novo a confiança.

—            Dificilmente posso explicar. Posso apenas redizer que ele parecia um gavião e ela uma pomba e, ago­ra, que penso nisso novamente, era com isso que se pareciam: é uma semelhança natural.

—            E é assim, retrucou a voz doce de sir Nataniel.

Adam prosseguiu:

—            Pode ser que seu olhar romano me fez pensar assim. Mas quero protegê-la; ela me parece em perigo.

Ela parece em perigo para todos vocês, jovens. Eu mesmo não pude deixar de notar a maneira como você a contemplava, como se quisesse devorá-la!

Espero que vocês dois, moços, conservem a ca­beça fria, interveio o senhor Salton. Você sabe, Adam, que julgo que você não deve procurar questões, principalmente desde o início de sua chegada à casa e sua vinda aqui. Você deve pensar nos sentimentos e na fe­licidade de nossos vizinhos. Não pensa assim?

Assim espero, senhor. E lhe asseguro que aconte­ça o que acontecer, sempre obedecerei ao seu desejo, não só nisto como em outros assuntos.

Silêncio, murmurou sir Nataniel, que ouvira os criados chegando com o jantar.

Depois do jantar, comendo nozes e bebendo vinho, sir Nataniel voltou a falar das lendas locais.

Muito bem, sir, respondeu Adam, de bom grado. Afirmo-lhe que pode contar comigo para qualquer as­sunto. Poderia até falar sobre o senhor Caswall. Na verdade devo encontrá-lo amanhã. Ele irá, como já lhes disse, a Mercy Farm às três horas, mas eu tenho a vi­sita marcada para as duas.

Noto, diz o senhor Salton, que você não per­deu tempo.

Os dois velhos se entreolharam mais uma vez, de maneira estudada. Em seguida, temendo que o humor de seu ouvinte mudasse, sir Nataniel começou logo:

"Não quero contar-lhe todas as lendas que dizem respeito a Mércia ou mesmo escolher algumas dentre elas. Penso que seria mais útil para nossos desígnios re­memorar alguns fatos, conhecidos ou relatados, a res­peito dos arredores. E julgo que será preferível come­çar por Diana's Grove. Ele tem raízes em diferentes épocas de nossa história e cada um contem sua colheita particular de lendas. Os Druidas e os romanos longe estão de nos fornecer detalhes, mas me parecem que os saxões e os ingleses estejam suficientemente perto para nos fornecer os materiais das "lores", das lendas. Constatamos que este lugar particular teve outro nome além de Diana's Grove. Este é claramente de origem ro­mana, ou grega, retomado pelos romanos. A outra de­signação é mais fecunda em aventuras e em romantis­mo. No idioma de Mércia era "o covil do verme bran­co". Isto necessita uma palavra de explicação, antes de começar.

"No início da língua, a palavra "worm" verme tinha um significado um pouco diferente daquele que possui hoje. Era uma adaptação do anglo-saxão "wyrmi” que significava dragão ou serpente; ou então do gótico "waurms", serpente; ou do islandês "ormur" ou do ale­mão "wurm". Deduzimos que esse termo trazia, no princípio, idéia de grandeza ou de poder, ao contrário do significado da palavra atual onde houve enfraqueci­mento de todas essas idéias. Nisso, as histórias das len­das nos ajudam. Temos aquela bem conhecida do "Worm Well" (O poço do verme ou da serpente), de Lambton Castle e aquela do "Laidly Worm of Spindleston Heugh", não longe de Bamborough. Nessas duas len­das, o "verme" era um monstro de grande tamanho, muito poderoso, um verdadeiro dragão ou serpente, co­mo, em geral, a lenda revive nos pântanos ou lodaçais imensos em que havia espaço para seu desenvolvimen­to. Um lance de olhos no mapa geológico mostra que, real ou não, a existência desses monstros nos períodos geológicos mais antigos, esses lugares poderiam tê-los acolhido. Na Inglaterra, aqui, se encontravam imensas planícies, que tinham mais que alhures, abundantes reservas de água. Os cursos de água eram lentos e pro­fundos e neles existiam cavernas abismais que podiam servir de refúgio aos monstros antediluvianos, de qual­quer espécie ou tamanho. Nesses sítios, que podemos ver de nossa janela, havia buracos de lama com mais de cem pés de profundidade. Quem nos poderia dizer em que momento teve fim a era desses monstros, que se desenvolviam no lodaçal? Devia haver aqui lugares e con­dições que faziam aumentar mais do que de hábito a longevidade, o tamanho e a força dessas espécies. Nes­sas camadas geológicas se afundaram no solo, até es­tes últimos séculos. Além do mais, será que até agora a maioria dos homens não julga possível a existência de criaturas de tal tamanho? Contudo, em nossos dias, acham-se vestígios de animais, talvez até os próprios animais, de tamanho terrificante: verdadeiros sobreviventes das idades pré-históricas, conservados no seu "habitat" por alguma condição particular. Lembro-me de ter encontrado um notável homem, nas índias, que tinha a reputação de ser um grande "shikaree". Con­tou-me ele que a maior tentação que tinha tido em sua vida fora a de abater uma serpente gigantesca que en­contrara no Terai, nas índias Altas. Participava de uma caça de tigres, e, então, quando atravessava um "nullah" (leito de um rio), seu elefante começou a sol­tar agudos barridos. Olhou para baixo e viu que o ele­fante havia parado diante do corpo de uma serpente que penetrou na floresta. Pelo que pude ver, disse-me ele, devia ela ter uns 80 ou 100 pés de comprimento, quase quarenta ou cinqüenta pés de cada lado da senda e seu diâmetro devia ser o do corpo de um homem. Suponho que você sabe que quando se caça o tigre, existe uma regra de honra que consiste em não atirar em nenhum outro animal, salvo para se defender a própria vida. Poderia ter morto facilmente aquele ani­mal, mas senti que não tinha tal direito. Desse modo, com pesar deixei-o ir.”

Imagine um pouco tal monstro em qualquer parte dessa região e, imediatamente, poderemos fazer idéia desses "vermes" que viveram nos pauis enormes que recobriam a foz de numerosos rios da Europa.

— Não tenho a menor dúvida que tais monstros tenham existido, sir. Contudo, como o senhor presume a existência deles num período bem mais tardio, do que usualmente, respondeu Adam, e julga que, se exis­tissem, este lugar seria perfeito para eles, procurarei refletir nisso, principalmente depois que o senhor me fez observar a configuração do terreno. Mas me pa­rece que há um hiato em qualquer parte. Não seriam as dificuldades mecânicas?

Em que sentido?

Bem... nosso monstro devia ser muito pesado. As distâncias que eles tinham que percorrer eram lon­gas e os caminhos difíceis. De onde estamos até lá embaixo, ao nível das cavernas de lama, a distância é de várias centenas de pés. Deixo de lado as considerações que digam respeito unicamente ao diâmetro. É possí­vel que tenha havido um caminho pelo qual o mons­tro pudesse subir e descer e que não se tenha desco­berto ainda esse caminho? Certamente nós temos as lendas; mas não há uma prova mais exata na investi­gação científica?

Meu caro Adam, tudo o que você diz é perfeita­ mente justo e para tal investigação, nada podemos fa­zer de melhor que seguir seu raciocínio. Porém, meu querido rapaz, você deve se recordar que isso tudo se passou a milhares de anos. Além disso são falhos to­dos os testemunhos capazes de nos ajudar. Mais ain­da, os lugares referidos eram nessas épocas remotas, inabitáveis. Na vasta desolação de tal lugar, acomodando-se às condições necessárias deve ter-se produzido tal profusão de crescimentos naturais que eles pareceriam como um entrave ao progresso de homens como nós. O covil de um tal monstro certamente, nesses milhares de anos, nunca foi perturbado. Essas criaturas, outrossim, deveriam ocupar lugares completamente inacessí­veis ao homem. Uma serpente que quisesse estar em segurança em um pântano, de uma centena de pés de profundidade, desejaria se proteger, nas margens, por lodaçais, tão grandes que nem podemos pensar. Longe de mim duvidar da existência de tais lugares. Essas condições pertencem à idade geológica. Na época do grande nascimento e da explosão do mundo, as forças naturais se desencadearam e a luta pela vida era tão selvagem que ser algum que não tivesse formas gigan­tescas poderia sobreviver. Que tal momento tenha existido não há dúvidas, e temos intuição disso na geo­logia, mas nada mais. Não podemos esperar encontrar provas tais como pede o nosso século. Podemos apenas imaginar ou supor tais coisas, de tais condições e de tais forças, quando elas se fizeram necessárias.

 

                   O GAVIÃO E A POMBA

Na manhã seguinte, sir Nataniel e o senhor Salton estavam sentados, para a primeira refeição da ma­nhã, quando Adam entrou apressadamente no cômodo.

— Alguma coisa de novo? perguntou maquinal-mente seu tio.

Quatro.

Quatro o que? perguntou sir Nataniel.

Quatro serpentes, respondeu Adam, servindo-se de rins grelhados.

Quatro serpentes. Eu não entendo.

A mangusta, disse Adam, acrescentando logo, co­mo explicação: — Eu estava fora com a mangusta, precisamente depois das três horas da manhã.

Quatro serpentes numa madrugada! Ignorava eu que houvesse tantas no Brow — era esse o nome lo­cal da falésia a oeste — mas espero que nossa conversa de ontem à noite não tenha sido a causa

Sim, sir, mas indiretamente.

Mas, por Deus, você não esperava encontrar uma serpente como a de Lambton, não é verdade? Nossa! Uma mangusta para atacar um tal monstro deveria ser do tamanho de um boi.

Eram cobras comuns, mas grandes como uma bengala.

—            Muito bem; foi agradável ter-se visto livre delas, pequenas ou grandes. É uma boa mangusta, estou cer­to disso. Ela poderá limpar tudo aqui desses répteis to­dos, disse o senhor Salton.

Adam continuou placidamente sua refeição. Matar algumas serpentes, de manhã, não era experiência nova para ele. Deixou a sala assim que terminou e dirigiu-se ao gabinete de trabalho que seu tio lhe tinha mandado arrumar. Sir Nataniel e o senhor Salton compreende­ram que ele desejava ficar sozinho e, assim, evitaram de lhe fazer perguntas ou lhe falar sobre a visita que tinha ele feito depois do meio-dia. Não o viram mais durante o dia. Adam reapareceu meia hora antes do jantar e entrou tranqüilamente na sala de fumar onde o se­nhor Salton e sir Nataniel estavam já sentados, pron­tos para o jantar.

—            "Suponho que é inútil esperar. Faríamos melhor chegando logo aos fatos, disse Adam.

Seu tio, julgando tornar as coisas mais fáceis, lhe perguntou: "Chegar onde?”

Adam se mostrou tímido e hesitante diante dessa pergunta. Começou por gaguejar um pouco, depois sua voz, pouco a pouco, retomou um tom firme.

"Minha visita a Mercy Farm".

O senhor Salton esperava com impaciência. O ve­lho diplomata sorria, simplesmente.

"Suponho que os dois sabem que eu estava muito interessado ontem nos Watford?”

Nada havia a opor ou a responder a essa pergunta. Os dois velhos sorriram em sinal de aprovação. Adam continuou: "Eu tinha a intenção de lhes dizer, a am­bos. Ao senhor, meu tio, por ser meu tio e meu pa­rente mais próximo e porque o senhor não poderia ter sido mais acolhedor e tão bondoso como se fora meu próprio pai". O sr. Salton nada disse. Apenas lhe es­tendeu a mão que Adam pegou e apertou durante al­guns segundos.

"E ao senhor, sir, porque me testemunhou uma afei­ção que, em meus sonhos mais loucos, jamais poderia es­perar". E ele parou um momento, profundamente emocionado.

Sir Nataniel respondeu docemente, pondo sua mão sobre os ombros do jovem.

"Você tem razão, meu rapaz. Completamente. É a justa maneira de ver isso. E eu posso dizer que nós, homens já idosos, que não temos filhos, sentimos nossos corações se aquecer ouvindo essas palavras.”

Adam, então, falando com vivacidade, continuou a narração, como se desejasse chegar logo ao ponto cru­cial.

"O senhor Watford não estava lá, mas Lilla e Mi-mi estavam em casa e me fizeram ótimo acolhimento. Todas as duas têm grande consideração por meu tio. Fiquei mui contente com tudo isso, pois gosto muito de ambas. Tomávamos chá, quando o senhor Caswall che­gou acompanhado do Negro. A própria Lilla abriu a porta. A janela da sala de jantar da fazenda é grande e através dela pode-se ver qualquer pessoa que se apro­xime. O senhor Caswall disse que se arriscara a vir, porque desejava travar conhecimento com todos os seus meeiros de maneira menos formalista e mais individual; o que fora impossível na véspera. As moças também o acolheram muito bem. São bem agradáveis essas jo­vens, sir, quem se unir a uma ou a outra será muito feliz".

Esse homem poderia ser você, Adam, disse cor­dialmente o senhor Salton.

Uma nuvem como que passou pelos olhos do jovem e o fogo que seu tio aí vira desapareceu. O timbre de sua voz, abaixando-se, tornou-a nostálgica.

"Isso poderia completar a felicidade de minha vida. Mas tal felicidade, receio, não é para mim ou não será sem dificuldades, prejuízos e aflições.

Ora, ora, interrompeu sir Nataniel, do fundo do coração. Ora, são os primeiros dias ainda...

O jovem voltou para eles os olhos melancólicos.

"Ontem ou hoje, algumas horas antes, essa obser­vação me teria dado novas esperanças; mas agora, aprendi muitas coisas".

O ancião, que conhecia o coração humano, não ten­tou discutir.

"É muito cedo para abandonar tudo, meu rapaz...

Não sou da espécie que abandona, retrucou o jo­vem. Mas, depois de tudo, é prudente procurar a ver­dade. E quando um homem, embora jovem, sofre co­mo eu sofri desde ontem, depois que contemplei pela primeira vez os olhos de Mimi, seu coração se sobres­ salta. Não tem mais necessidade de aprender isso. Ele o sabe".

O silêncio reinou na sala, enquanto o crepúsculo começava a cair, imperceptivelmente. Foi Adam que o rompeu de novo.

Sabe o senhor, meu tio, se possuímos o dom da intuição em nossa família?

Não que eu saiba. Por que?

Porque, respondeu o jovem lentamente, eu te­nho a convicção que parece corresponder a todas as con­dições da intuição, de quase adivinhação.

E então? perguntou o velho, já perturbado...

E então o inevitável habitual. Isso que nas Hébridas e em outros lugares onde a premonição é um cul­to, uma crença, é chamado de "o julgamento" esse tri­bunal onde nenhuma apelação é possível. Tenho ouvi­do falar da intuição porque existem muitos escoceses na Austrália; mas somente percebi seu profundo sentido, num instante, esta tarde, bem melhor que outrora, du­rante toda a minha vida. É um muro de granito que se ergue para as alturas celestes, tão alto e tão som­brio que nem mesmo o olho de Deus pode atravessá-lo.

Bem, se o julgamento deve vir, ele virá. É tudo.”

A voz de sir Nataniel ergueu-se uníssona, doce e grave:

Não se pode lutar contra isso? Pode-se contudo fazer outras coisas.

Para a maioria das coisas, sim; mas para o Des­tino, não. O que um homem pode fazer, eu farei. Ha­verá, deve haver para isso um combate. Quando, onde e como, eu ignoro, mas uma luta se realizará. Mas que será um homem em tal situação?

Adam, nós somos três.

Assim dizendo, o senhor Salton olhou seu velho ami­go e os olhos deste brilharam.

—            "Sim, somos três" disse e sua voz ressoou mais forte.

Houve um minuto de silêncio, depois sir Nataniel procurou regressar a terreno menos emocional e mais neutro.

Conte-nos o resto desse encontro. Lembre-se que todos nós estamos empenhados nisso. É uma luta, sem tréguas e não podemos desperdiçar ou negligenciar oportunidade alguma.

Não esbanjaremos ou esqueceremos nada do que será possível. Lutaremos para vencer e o prêmio é uma vida. Talvez, mais de uma. Veremos.

Em seguida, Adam continuou num tom de conver­sa, como tinha começado, narrando a chegada de Edgard Caswall à fazenda:

"Quando Caswall se aproximou, o Negro o seguia, mantendo-se à alguma distância. Isso me fez compreen­der que ele esperava que o chamasse e que se conserva­va à vista d'olhos e ao alcance da voz. Então, Mimi pegou outra chávena e fez um novo chá e continuamos todos juntos.

—            Que há de extraordinário; não estavam vocês reunidos amigavelmente? perguntou tranqüilamente sir Nataniel.

Como amigos. Nada notei fora do comum exceto (e continuou com leve e rude alteração na voz), exceto que ele contemplava Lilla, de uma maneira absoluta­mente intolerável para qualquer homem por quem ela fosse estimada.

Como ele a olhava? perguntou sir Nataniel.

Nada havia de ofensivo em seu olhar, em si mes­mo, mas ninguém poderia deixar de notá-lo.

Você o notou. Miss Walford, que era a vítima e o senhor Caswall que era o ofensor, não podem servir de testemunha. Ninguém mais o observou?

Sim, Mimi. Seu rosto se acendeu em cólera quando ela percebeu tais olhares.

Que espécie de olhar era? Muito ardente ou muito admirativo ou o que? Era o olhar de um enamo­rado ou de um homem que se tornasse voluntarioso?

Você entendeu?

Sim, sir, compreendi perfeitamente. Nada notei dessa espécie, certamente. Talvez seja pelo fato de eu ter-me preparado para conservar meu sangue frio, de que sou responsável.

Se não era um olho enamorado, era então amea­çador? Onde estava a ofensa?

Adam, com bondade, sorriu para o ancião.

—            Não era um olhar enamorado. Se o fosse, como poderia eu incomodar-me com isso? Seria eu o último homem sobre a terra a me opor a isso, visto que eu, mesmo, era culpado de tal olhar. Além disso, não so­mente me ensinaram a lutar lealmente, mas, por natu­reza, creio que sou justo. Seria também tolerante e li­beral para com um rival que eu desejaria o fosse tam­bém comigo. Não, o olhar de que eu quero falar não era nada disso. Ele era tão prolongado que parecia dele não se ter consciência. Não deveria da minha parte condescender em observar isso. Os senhores já observa­ram o olhar de um cão.

Em repouso.

Não, quando ele segue seus instintos! Ou mais exatamente, os olhos de uma ave de rapina quando se­gue seus instintos. Não quando ela se lança sobre a ví­tima, mas sim quando a vigia.

Não, disse sir Nataniel, penso que jamais fiz isso.

Eis, pois, como era seu olhar. Não era, certa­ mente, amoroso ou algo de semelhante. Era, e foi isso que me chocou, mais perigoso, ou antes tão mortal co­mo uma verdadeira ameaça.

De novo reinou na sala um silêncio, que sir Nata­niel quebrou em se levantando:

Penso que seria melhor que cada um de nós re­fletisse lá em cima. Depois poderíamos falar de novo sobre isso.

 

                   OOLONGA

O senhor Salton tinha encontro marcado para as seis horas em Liverpool. Assim que ele partiu, sir Nata­niel tomou Adam pelo braço.

Posso ir com você à sua sala de trabalho, por uns momentos? Gostaria de falar em particular, sem que o seu tio saiba o assunto, nem dele tenha conheci­mento. Você nada tem em contrário, não é? Não se trata de ociosa curiosidade. Não, não. Mas do assunto de que todos nós nos preocupamos.

É preciso deixar meu tio em completa ignorân­cia? Ele poderia ficar ofendido com isso.

Não é necessário, mas prudente. E isso lhe peço para sua segurança. Meu amigo é um homem velho e isso poderia perturbá-lo ou alarmá-lo profundamente.

Eu lhe asseguro que, com nosso silêncio, nada há que lhe possa causar inquietação e que de modo algum lhe possa ofender.

Então, está bem, retrucou Adam.

Olhe, seu tio, como já disse, é um homem ve­lho. Eu o conheço desde nossa infância. Viveu quase sempre uma vida calma e retirada, de tal modo que o menor dos fatos que acontecem neste momento pode­ ria atormentá-lo por sua real anormalidade. Com efeito, toda a novidade é uma prova para as pessoas idosas.Eles têm suas próprias preocupações e suas ansiedades e nenhuma dessas coisas é boa para vidas que devem permanecer sossegadas. Seu tio é homem robusto, na­turalmente feliz e calmo. Dê-lhe saúde e condições or­dinárias de vida e ele poderá chegar facilmente aos cem anos. Desse modo, você e eu, que dele tanto gostamos, deveremos trabalhar para protegê-lo de qualquer in­fluência que o possa perturbar. Estou certo que está de acordo comigo que um sofrimento ou aborrecimento, em sua idade, iria fatigá-lo muito. Muito bem, meu rapaz! Leio em seus olhos a resposta; assim nada mais temos a acrescentar. E agora (e aqui alterou-se sua voz) diga-me tudo o que se passou durante a visita. Há entre nós coisas estranhas, de tal modo estranhas que não podemos sequer adivinhá-las no momento. Sem dú­vida, algumas delas estão escondidas agora, mas, coisa difícil de se entender, se revelarão com o tempo. Então as compreenderemos. Enquanto esperamos, o que po­demos fazer é trabalhar pacientemente, com arrojo, e de maneira desinteressada, para um objetivo que se nos parece justo. Você tinha chegado ao ponto em que Lilla abria a porta ao senhor Caswall e ao Negro. Você tinha observado que Mimi ficara chocada pelo modo com que o senhor Caswall fitava sua prima.

Isso mesmo. Contudo "chocada" é um termo um pouco fraco para exprimir sua contrariedade.

Pode você lembrar-se bem da cena para descre­ver os olhos do senhor Caswall, para dizer como estava Lilla, o que Mimi falou ou fez, bem como Oolanga, o criado africano de Caswall?

Vou fazer o possível, sir. Durante todo o tempo em que Caswall a fitava, ele conservou os olhos imó­veis, mas não como se estivesse em transe. Sua fronte estava enrugada, como quando se quer enxergar atra­vés de alguma coisa e dentro dela. Na maior parte do tempo seu rosto não exprimia doçura, mas quando ele se concentrava assim, tinha uma expressão quase diabó­lica. Isso amedrontava tanto a pobre Lilla, que ela tremia toda e se tornou tão pálida que pensei fosse desmaiar. Contudo, ela reagiu e procurava fitá-lo por sua vez, mas fracamente. Então, Mimi se aproximou dela e tomou-lhe a mão. Esse gesto a confortou e, con­tudo, sem deixar de fitá-lo, retomou as cores e pareceu até reviver.

Continuava ele a olhá-la?

Mais que nunca. Mais Lilla se enfraquecia, mais ele se tornava forte, exatamente como se se alimentasse de sua energia. De repente, ela virou-se, levantou as mãos para o céu e caiu por terra, desfalecida. Não pude ver o que aconteceu depois disso, porque Mimi tinha se ajoelhado ao lado dela e me escondia a visão. Então, como que houve uma apavorante sombra entre nós; era o Negro, parecendo mais que nunca a um demônio mal­fazejo. Em geral não sou mui paciente e o aparecimen­to desse vilão teria feito ferver o sangue de qualquer um.Assim que viu meu rosto, pareceu que ele adivinhou o perigo, um perigo iminente e deslizou para fora da sala, tão silenciosamente como se o houvesse soprado para fora. Fiquei sabendo de uma coisa: ele é um inimigo, se...

O que agora nos torna três contra dois, inter­veio sir Nataniel.

Então, Caswall escapuliu para fora, mais ou me­nos como o Negro. Assim que ele partiu, Lilla voltou a si, imediatamente.

Agora, disse sir Nataniel, desejoso de restabele­cer a calma, descobriu você alguma coisa sobre o Negro.Gostaria de saber tudo a respeito dele. Receio que te­nhamos ou venhamos a ter aborrecimentos por causa dele.

Sim, sir, fiquei sabendo muita coisa a respeito. Certamente não é oficial, mas as fofocas devem nos aju­dar nisso. O senhor conhece meu empregado Davenport, secretário particular, homem de negócios, em resu­mo um factotum. Ele me é absolutamente dedicado e de toda a minha confiança. Eu lhe pedi que ficasse a — bordo do West África e para ficar de olhos bem abertos para saber tudo que se dissesse a respeito do senhor Caswall. Naturalmente ele ficou impressionado pelo selvagem. Interrogou um dos camareiros que tinha fei­to viagens regulares à África do Sul. Este conhecia Oolonga e o tinha observado. É um homem que se dá bem com os pretos e estes lhe abrem o coração. Parece que Oolonga é uma pessoa importante em seu país de origem. Possui duas coisas que os homens de sua cor respeitam: podia aterrorizá-los e gastava prodigamente. Não sei de onde vinha o dinheiro, mas isso não tem im­portância. Eles estavam sempre prontos a louvar sua grandeza. Grandeza maléfica, contudo, mas isso tam­bém não tinha importância. Em resumo, eis aqui sua história. A princípio era um feiticeiro. A feitiçaria é uma ocupação vil, tal como ela existe entre os selva­gens. Depois ele penetrou no mundo civilizado e se tor­nou um "Obi-Man", isto é, um criado, um servidor, o que lhe deu ocasião de se enriquecer, pela chantagem. Finalmente, chegou ele à mais subida honra, servindo ao inferno. Tornou-se um servidor do Vodu, que pare­ce ser o exercício da extrema abjeção e crueldade. Eu presenciei alguns de seus atos de crueldade, que são simplesmente repugnantes e que me fizeram imaginar o meio pelo qual os enviaria de novo ao inferno. Seria suficiente vê-lo para se julgar até que ponto chega sua baixeza: mas isso seria vã esperança. Monstros como ele pertencem a um grau de barbárie muito antigo e mui­to primitivo. É nesse aspecto muito astuto, mas não me­nos perigoso e detestável. Os marinheiros me disseram que era um colecionador. Alguns dentre eles viram suas coleções. Que coleções! Tudo o que simboliza as for­ças do mal, sob a forma de ave, animal ou peixe. Ele a junta bicos que podem quebrar, rasgar e lacerar. To­das as aves representadas aí eram aves de rapina. Até os peixes eram aqueles que nasceram para destruir, fe­rir e torturar. Essa coleção, eu lhe asseguro, era uma horrível lição de malignidade humana. A perversidade inscrita no rosto desse indivíduo é suficiente para ame­drontar até um homem corajoso. Não é de espantar, portanto, que sua presença tenha feito desmaiar aquela pobre moça!”

Nada mais tendo a conversar naquele momento, eles se separaram.

Aproveitando a manhã, Adam deu um grande pas­seio para o lado do Brow. Como passasse diante de Dia­na Grove, lançou rápido olhar na curta avenida de árvores e viu as serpentes mortas na manhã anterior pela mangusta. Estendidas em linha reta pareciam ter sido postas lá por mão humana. Sua pele parecia úmi­da e viscosa e estavam recobertas de formigas e outros insetos. Estavam tão repugnantes, que, olhando-as ra­pidamente, prosseguiu seu caminho.

Pouco depois, seus passos, naturalmente, o levaram à entrada de Merci Farm e ele viu passar, não muito dis­tante, o Negro que corria velozmente à sombra das ár­vores. Penduradas num de seus braços, estendido, co­mo se fossem toalhas sujas, carregava ele as horríveis serpentes. Pareceu não ter visto Adam, que, por sua vez, também não encontrou os donos de Mercy, a não ser al­guns trabalhadores no terreiro da fazenda. Depois de ter esperado inutilmente com a esperança de ver Mimi, começou a regressar lentamente para a casa.

Uma vez mais, alguém o alcançou na estrada. Des­ta vez foi lady Arabela que caminhava depressa e tão cheia de cólera que não o reconheceu quando a cum­primentou.

Quando chegou a Lesser Hill, Adam dirigiu-se ao compartimento onde tinha deixado a caixa da mangus­ta. Pegou-a com a intenção de terminar a destruição começada na manhã precedente, no monte de pedras. Achou que as cobras se deixavam pegar mais facilmen­te que na véspera. Não menos de seis foram mortas na primeira meia-hora. Como não aparecessem mais, Adam deu por terminado o trabalho da manhã e reentrou em casa. Durante esse tempo, a mangusta se acos­tumara a ele e queria ficar em liberdade. Adam a er­gueu, colocou-a sobre os ombros e se pôs a caminho. Lo­go viu uma mulher aparecer diante dele e reconheceu lady Arabela.

Até então a mangusta se tinha comportado calma­mente, como um gato folgazão e afeiçoado, mas, quan­do se aproximaram da mulher, Adam ficou horroriza­do ao ver o animal, com o pelo eriçado, num furor dos mais selvagens, saltar de seus ombros e correr contra lady Arabela. Parecia tão enraivecido e disposto a sal­tar que ele lançou um grito de aviso:

"Atenção, cuidado, cuidado! O animal está raivoso e vai atacar".

Lady Arabela pareceu mais altiva que nunca e con­tinuou o seu caminho. A mangusta deu um salto para atacá-la. Adam correu com sua bengala, única arma que possuía. Mas exatamente quando se aproximava lady Arabela puxando um revólver, atirou sobre o animal, quebrando-lhe a espinha dorsal. Não satisfeita, conti­nuou a atirar contra a mangusta até acabar a carga da arma. Não havia nela nem indiferença, nem arro­gância nesse instante. Seu rosto estava desfigurado pe­la raiva e parecia mais furiosa e mais determinada a matar que o animal que ela tinha acabado de executar. Adam, não sabendo exatamente o que fazer, saudou-a com o chapéu, para se desculpar, e em seguida tomou o rumo de Lesser Hill.

 

                   SOBREVIVÊNCIA

Durante o jantar, sir Nataniel notou que Adam estava preocupado com alguma coisa, mas nada lhe disse. A lição do silêncio é mais bem conservada pela velhice do que pela juventude. Quando foram para a sala de trabalho, para onde sir Nataniel o acompanha­ra, Adam começou a narrar-lhe o que tinha aconteci­do. Sir Nataniel se mostrava cada vez mais sério à medida que Adam falava e quando este se calou, fi­cou silencioso por vários minutos antes de pronunciar estas palavras:

"O que você me diz é grave, muito grave. Não te­nho ainda opinião formada; mas, à primeira vista, pa­rece-me que seja pior do que tudo o que eu esperava.”

—            Por que? interveio Adam. Será que a morte de uma mangusta, que em si mesmo não tem importân­cia alguma, é coisa tão grave?

Seu companheiro continuou fumando tranqüila­mente durante alguns minutos antes de prosseguir.

—            Quando eu tiver refletido realmente, talvez pos­sa mudar de opinião, mas, enquanto espero, parece-me que há qualquer coisa de terrível atrás de tudo isso, qualquer coisa que pode até modificar nossa vida, quiçá pode significar a vida ou a morte para cada um de nós.

Adam levantou-se precipitadamente.

—            Diga-me, sir, no que o senhor pensa, se isso, cer­tamente não tenha objeção ou se prefere ficar calado.

Não tenho objeção, Adam. E se tivesse uma, procuraria afastá-la. Creio que não podemos guardar esses pensamentos só para nós.

Na verdade, sir, isso me parece muitíssimo sério.

Adam, receio muito que o momento seja che­gado para nós, para você e para mim, de falar fran­camente um ao outro. Não há nisso tudo algo de mis­terioso? De muito misterioso?

Faz já algum tempo que tenho o mesmo modo de pensar. A única dificuldade está naquilo que se deva pensar e por onde começar.

Comecemos por isso que você acaba de me con­tar. Examinemos primeiramente o comportamento da mangusta. Ela estava calma, amistosa até, e afeiçoada a você. Ela só ataca as serpentes, o que, além disso, é sua tarefa nesta vida.

Exatamente!

Então, devemos achar o motivo pelo qual ata­cou lady Arabela.

Talvez uma mangusta tenha simplesmente o ins­tinto de atacar, não lhe tendo a natureza dado a suti­leza de um raciocínio que lhe permita discernir quem ela ataca.

Certamente poderia ser assim. Mas de outro la­do não deveríamos nos esforçar para saber porque ela queria atacar? Se desde séculos, esse animal particular­mente se tornou conhecido por atacar somente uma es­pécie de animal, não teríamos o direito de presumir que, tendo um deles atacado um ser que não fazia par­te daquela espécie, não terá ele percebido neste uma propriedade comum ao seu inimigo hereditário?

É um bom raciocínio, sir, continuou Adam, mas perigoso. Poderia até nos fazer acreditar que lady Ara­bela é uma serpente.

Devemos nos assegurar, antes de chegar a tal conclusão, que não omitimos nenhum ponto importante para esclarecer esse mistério que nos perturba.

De que maneira?

Bem, suponhamos que os instintos repousem em base física. O cheiro, por exemplo. Se for assim e se a atacada tivesse transportado esse cheiro, em últi­mo caso, isso nos forneceria o motivo que falta.

Sem dúvida nenhuma, assentiu Adam, com con­vicção.

Agora, conforme você me disse, o Negro vinha justamente de Diana's Grove, carregando as serpentes mortas que a mangusta tinha estraçalhado na manhã precedente. Será que o odor não teria podido ser trans­portado dessa maneira?

Sem dúvida podia e foi isso que aconteceu. Eu não tinha pensado nisso. É possível saber aproximada­mente por quanto tempo persiste um cheiro? Veja o senhor, é um cheiro natural e que poderia ter vindo do lugar onde ele esteve desde milhares de anos atrás. En­tão, existe um odor característico transportado de qual­ quer maneira, sob uma forma qualquer ou uma quali­dade diferente, bom ou mau? Eu lhe pergunto visto que a casa onde vive lady Arabela, que foi atacada pela mangusta, tinha outrora o nome de "o covil do verme branco". Se há alguma coisa desse gênero, então nos­sas dificuldades se multiplicam ao infinito. Tudo isso pode mudar de natureza. Poderíamos nos encontrar diante de complicações morais e, antes de perceber, tor­nar-nos centro da luta entre o bem e o mal.

Sir Nataniel sorriu gravemente, e respondeu:

—            Quanto à primeira questão, pelo que sei, não há duração fixa para que se conserve um cheiro. Penso que essa duração não pode ser de milhares de anos. No que concerne à mudança moral que acompanha a transformação física, posso apenas dizer que não tenho prova cabal disso. Além disso, devemos lembrar que "bem" e "mal" são termos tão amplos que necessitamos considerá-los dentro do esquema da criação e que tudo isso se implica na sua presença, na sua interação e suas reações. De maneira geral, desejaria dizer que no es­quema da "Causa Primeira" tudo é possível.

—            Há outra questão sobre a qual quero ter sua opi­nião. Suponhamos que haja forças permanentes, per­tencentes ao passado, que poderíamos chamar de "so­bre vivências", seriam elas tanto do bem como do mal? Por exemplo, se o cheiro de um monstro primitivo pode impregnar na proporção de seu poder original, poderia da mesma maneira agir no sentido do bem?

Sir Nataniel refletiu uns instantes antes de res­ponder:

—            Devemos prestar atenção para não confundir o físico com o moral. Percebo que você já se inclinou in­teiramente para o aspecto moral, assim será melhor dis­correr sobre ele em primeiro lugar. Desse ponto de vis­ta moral, achamos a justificação certa, pela fé, nas pa­lavras da religião revelada. Por exemplo, "a prece fer­vorosa de um justo tem a virtude da eficácia", está inteiramente voltada para o bem. Não temos nada de semelhante quanto ao mal. Mas se aceitamos essa pa­lavra, não temos necessidade de temer os "mistérios": eles são apenas meros obstáculos.

Repentinamente Adam aflorou outro aspecto do as­sunto:

—            E agora, sir, posso voltar-me, durante alguns mi­nutos, para coisas puramente práticas ou antes em fa­tos baseados na realidade histórica?

Sir Nataniel concordou, balançando a cabeça.

Já falamos da história, no que é ela conhecida, de alguns lugares que nos rodeiam, como "Castra Regis", "Diana's Grove" e "o covil do verme branco". Eu queria lhe perguntar se não existe um ou mais de um necessariamente voltados para o Mal?

Quais? perguntou sir Nataniel com malícia.

Ora, ora, por exemplo, esta casa ou Farm Mercy.

Nesse ponto, disse sir Nataniel, nós nos volta­ mos para o aspecto luminoso das coisas. Comecemos por Farm Mercy. Quando Santo Agostinho foi manda­ do pelo papa Gregório para evangelizar a Inglaterra, no tempo dos romanos, foi ele recebido e protegido por Etelbert, rei de Kent, cuja esposa, filha de Ceribert, rei de Paris, era cristã. Ela fundou um convento de mulheres da Pomba que se chamou Sedes Misericordiae, a casa da misericórdia e como a região estava sob o idioma merciano, os dois nomes se misturaram. Columba significa em latim pomba e a pomba tornou-se o símbolo do convento. Esse simbolismo foi conservado e o convento destruído e reconstruído. Construiu-se aí uma pomba, de um gênero recente, parecendo-se a um pombo-correio, mas cujas penas, da cabeça e do pescoço, tinham a forma de um capuz de freira. O convento floresceu durante mais de um século, depois, no tempo de Penda, que encarnou o retorno ao mundo pagão, caiu em declínio. Durante esse intervalo, as pombas, prote­gidas pelo sentimento religioso, se tinham multiplica­do e eram conhecidas por toda a comunidade católica. Quando o rei Offa reinou sobre Mércia, quase cen­to e cinqüenta anos mais tarde, restabeleceu ele o Cristianismo e sob a sua proteção, o convento de Santa Columba foi restaurado e suas pombas au­mentaram de novo. No correr dos tempos, de novo a casa religiosa caiu no olvido. Mas antes de desaparecer tinha adquirido especial renome por suas boas ações e principalmente pela piedade de seus membros. Se os atos, as preces e as esperanças, como os fervorosos pen­samentos, puderam engendrar algo de uma ação mo­ral, então Mercy Farm e seus arredores devem certa­mente ter o direito de serem olhados como lugar santo.

— Muito agradecido, sir, disse, sério, Adam e se calou.

Depois do jantar nesse dia, Adam fortuitamente so­licitou a sir Nataniel que saísse a dar um passeio com ele. O velho diplomata, espírito atilado, adivinhou logo que deveria haver nessa sugestão motivo especial e con­cordou imediatamente.

Tenho receio de que tudo isso não ultrapasse as lendas, como muitos o imaginam. Estava eu, fora, esta manhã e à orla de um bosquezinho, quando percebi o corpo de uma criança que estava prostrado à beira da estrada. Pensei a princípio que estivesse morta e en­quanto o examinava, notei em seu pescoço sinais que se assemelhavam aos produzidos por dentes.

Um cão selvagem, talvez? interveio sir Nataniel.

Talvez, sir, embora eu assim não pense. Mas escute o resto. Olhei pelos arredores e pouco a pouco, ela voltou a si, mas com grande desapontamento meu, não se recordava de nada, exceto que alguma coisa se tinha deslizado atrás dele e o tinha agarrado pelo pes­coço. Depois, ao que se lembra, desmaiou.

Agarrado pelo pescoço! Então não poderia ter sido um cão.

Não, sir. E nisso é que está a dificuldade e o que explica tê-lo trazido aqui onde ninguém nos escuta. O senhor percebeu já, certamente, a maneira sinuosa com que se movimenta Lady Arabela. Ora, estou certo de que a forma branca que observei no bosque era a dona de Diana's Grove!

Por Deus, meu rapaz, cuidado com o que você afirma.

Sem dúvida, sir, estou plenamente consciente da gravidade de minha acusação, mas tenho firme convic­ção de que as marcas no pescoço da criança eram hu­manas e feitas por mulher.

O companheiro de Adam conservou-se silencioso du­rante algum tempo, mergulhado em suas reflexões.

—            Adam, meu rapaz, disse por fim, esse aconte­cimento me parece muito mais grave do que eu pensava. Isso me força a não compartilhar sua confidencia com ele, com seu tio, mas, na intenção de prepará-lo para isso, pretendo agir deste modo. Faz já algum tempo que fatos acontecidos neste distrito o perturbam terri­velmente. Várias pessoas desapareceram sem deixar tra­ços; o cadáver duma criança foi encontrado na beira da estrada, sem que se pudesse averiguar a causa apa­rente da morte; carneiros e outros animais foram acha­dos nos campos, sangrando com feridas abertas. Houve outras coisas, algumas aparentemente insignificantes por si mesmas. Pairava sobre tudo nefasta influência e admito que suspeito de Lady Arabela. Por isso foi que lhe fiz tantas perguntas sobre a mangusta e seu curioso ata­que. Deve-lhe parecer esquisito que eu tenha suspeitado da dona de Diana's Grove, bela mulher de aristocrático nascimento. Deixe-me explicar. Sua mansão está perto da minha, Doom Tower (A torre do julgamento) e, tem­pos atrás, eu conheci bem sua família. Quando Lady Arabela era ainda mocinha foi dar um passeio num bos­quezinho próximo de sua residência e não retornou. Procuraram-na e a encontraram inconsciente e ardendo em febre. O médico declarou que ela recebera uma mor­dida venenosa e a jovem, estando na idade crítica e de­licada, poderia sofrer graves conseqüências e dificil­mente se recuperaria. Veio de Londres um afamado mé­dico, que nada pôde fazer. Na verdade, este afirmou que a moça não passaria daquela noite. Todas as espe­ranças estavam perdidas, quando, com surpresa de to­dos, Lady Arabela sarou, de repente e de maneira es­pantosa. Mas para assombro de todos, ela passou a de­monstrar terrível crueldade, ferindo e estraçalhando animaizinhos, chegando até a matá-los. Atribuiu-se isso a uma perturbação nervosa, devido a sua idade, e espe­rava-se que seu casamento com o capitão March con­sertaria tudo. Mas não foi um matrimônio feliz e, cer­to dia, encontrou-se seu esposo com uma bala na cabe­ça. Eu sempre pensei em suicídio, se bem que não se tenha encontrado revólver algum perto de seu corpo. Talvez tivesse ele descoberto alguma coisa. Deus o sa­be. Ou quiçá Lady Arabela o tenha matado. Juntando várias circunstâncias e fatos vindos ao meu conheci­mento, cheguei à conclusão de que o repugnante "Verme Branco" se tenha apoderado de seu corpo, jus­tamente quando sua alma tinha deixado a terra, o que explicava seu repentino retorno à vida, sua atração pa­ra as mutilações e à morte, bem como outros fatos com os quais não quero perturbá-lo agora. Como eu lhe dis­se, só Deus sabe o que o capitão March descobriu. Sem dúvida deve ter sido algo de tão espantoso para um ser humano, isto é, se minha teoria está certa, de que o corpo, outrora tão atraente de Lady Arabela estava sob o controle do nojento Verme Branco".

Adam balançou a cabeça.

Mas que podemos fazer, senhor? Isso se me pa­rece problema dos mais difíceis.

De momento nada podemos fazer, meu rapaz. Seria imprudente tentar qualquer coisa. O que pode­ mos fazer é vigiar cuidadosamente, observar especial­mente tudo o que disser respeito a lady Arabela e de estar prontos para agir, de maneira decisiva, quando a ocasião se apresentar.

Adam concordou e os dois homens retornaram a Lesser Hill.

 

                   O ODOR DA MORTE

Adam Salton falava pouco, mas não perdia tempo nos seus empreendimentos. Tinha combinado com sir Nataniel que nada tinha a fazer no que dizia respeito ao terror de lady Arabela para com a mangusta; contu­do, prosseguia ele em suas buscas de maneira racional, preparando-se para agir, quando a oportunidade se apresentasse. Em seus espírito ia concatenando infor­mações ou conclusões que pudessem levá-lo a uma linha de combate. Desconcertado pela morte da mangusta, buscava outra pista. Estava fascinado pela idéia que existia um liame misterioso entre a mulher e o animal, mas se preparava para outra versão. Sua nova idéia era servir-se dos dotes de Oolonga, na medida do possível, para suas averiguações. Seu primeiro ato foi mandar Davenport a Liverpool para falar com o camareiro do West African, que observara Oolonga, a fim de obter novas informações e tentar persuadir o Negro, pela cor­rupção ou por outro meio qualquer, a vir até Brow. Logo que pudesse conversar, pessoalmente com o ho­mem do Vodu, poderia até aprender alguma coisa. Da­venport saiu-se perfeitamente de suas missões. Primei­ramente tinha ido comprar outra mangusta. Em segui­da, mostrou-se orgulhoso em poder anunciar a Adam que tinha visto o camareiro e soubera muito daquilo que ele desejava saber. Enfim, conseguira que Oolonga vies­se a Lesser Hill, no dia seguinte. Quanto a isso, Adam percebeu o caminho que devia seguir para por Davenport, até certo ponto, a par dos acontecimentos. Tinha chegado à conclusão de que seu empregado se desempe­nharia melhor nesses negócios e ele mesmo não apare­ceria diretamente no assunto. Davenport poderia as­sim orientar-se melhor. Quando o caso estivesse mais adiantado, ele, Adam, interviria, tendo então parte mais ativa.

Se o que o Negro dizia fosse verdade, o homem pos­suía um raro dom que se tornaria útil para as suas bus­cas. Ele podia sentir o cheiro da morte, lá onde ela se encontrasse. Se alguém estivesse morto, recentemente ou a tempo, ou se algum lugar estivesse ligado à morte, ele podia ter conhecimento disso por certa intuição. Adam decidiu pô-lo em prova, em diversos lugares, pa­ra uma primeira experiência. Naturalmente estava im­paciente e parecia-lhe que o tempo não andava. Seu único consolo foi a chegada, no dia seguinte, de um caixão, vindo da firma Ross, solidamente amarrado e fe­chado com uma chave cuja guarda foi confiada a Da­venport. No caixão, havia duas pequenas caixas tam­bém fechadas a chave. A primeira continha uma mangusta que substituiria aquela morta por lady Arabela; a outra, a mangusta especial que tinha morto a cobra real (naja) do Nepal. Depois que os dois animais fo­ram presos e postos em segurança, Adam respirou mais sossegado. Ninguém, na casa, sabia disso; apenas ele e Davenport. Ele combinou que Davenport levaria Oolonga para um passeio nos arredores e parariam em lugares previamente determinados. Eles deambularam por toda a extensão de Brow e regressaram pelo mesmo caminho. No ponto mais afastado encontraram Adam que, como por acaso, por lá perambulava e Davenport obteve do Negro que repetisse tudo o que dissera e fizera durante o passeio.

Os acidentes do dia confirmaram bastante as hipó­teses de Adam. Em Mercy Farm, em Diana's Grove, em Castra Regis e em alguns outros pontos, o Negro parou e abrindo as largas narinas, como que para respirar mais fortemente, disse que sentia o cheiro da morte. Mas não procedia sempre da mesma forma. Em Mercy Farm afirmou que havia várias mortes, mas sem impor­tância. Em Diana's Grove seu comportamento foi di­ferente. Demonstrou claramente uma sensação de pra­zer e, especialmente, quando falou de numerosas mor­tes importantes. Aí também resfolegou de maneira es­tranha, como um sabujo na tocaia, e pareceu atrapa­lhado. Não pronunciou nenhuma palavra de louvor ou de reprovação, mas no centro do Grove (bosque), onde, escondido no meio de antigos troncos de carvalhos, se elevava um bloco de granito, ligeiramente chanfrado no toco, ele se inclinou por terra e tocou o solo com a tes­ta. Foi o único lugar em que demonstrou especial res­peito. No castelo, embora falasse de muitas mortes, não mostrou sinal respeitoso algum.

Havia evidentemente alguma coisa ao redor de Diana's Grove que o preocupava e o desconcertava ao mesmo tempo. Antes de ir-se, percorreu o lugar em to­dos os sentidos, insatisfeito, e num ponto, à margem do Brow, onde havia profunda caverna, pareceu aterrori­zado. Depois de ter retornado a esse lugar, várias ve­zes, de repente deu-lhe as costas e se pôs a correr com ar espantado para um terreno mais alto passando pelos rochedos que por aí se erguiam. Lá pareceu respirar mais livremente e reencontrou um pouco da pretensiosa impudência.

Tudo isso correspondeu à expectativa de Adam, que retornou a Lesser Hill com serena calma e satis­feito. Sir Nataniel o acompanhou à sua sala de tra­balho.

— Ora, ora, esqueci-me de lhe pedir minúcias so­bre uma coisa. Quando aquela extraordinária cena do olhar aconteceu, como a suportou Lila? Como ela pro­cedeu?

Ela pareceu aterrorizada e tremia, exatamente como uma pomba diante de um gavião ou um pássaro ante uma serpente.

Obrigado. É exatamente o que eu esperava. Hou­ve acontecimentos na família Caswall que me levam a pensar que eles têm, há longo tempo, uma espécie de poder incomum, mesmérico ou hipnótico. Na verdade, uma pessoa experimentada poderia ler tantas coisas em sua fisionomia. Sua comparação de gavião e pom­ba, ou por instinto, ou por intuição, é completamente adequada. Penso que devemos considerar esse fato, du­rante todas as nossas pesquisas.

Assim que o crepúsculo caiu, Adam pegou a nova mangusta, não a do Nepal, e levando a caixa sobre os ombros partiu a rondar por Diana's Grove. Perto do portão de entrada, encontrou lady Arabela, trajada co­mo sempre, com seu vestido branco, que realçava sua elegância.

Com grande surpresa sua, a mangusta deixou-se acariciar por ela, embalar-se em seus braços e ser mi­mada. Como ela ia na mesma direção, encaminha­ram-se juntos.

Ao longo da estrada entre as entradas de Diana's Grove e de Lesser Hill, muitas árvores tinham escassa folhagem, salvo nas cimas. Na penumbra, esse lugar es­tava meio-escuro e a visão, embaraçada pelos troncos agrupados. Na luz trêmula, incerta, que caia através as copas, era difícil distinguir alguma coisa. Final­mente aconteceu que Adam se desgarrou de lady Ara­bela e a perdeu completamente de vista. Fez meia-volta e procurou reencontrá-la. Alcançou|-a logo, dian­te do portão de sua própria casa. Ela estava inclinada por cima da paliçada de troncos de carvalho, cortados, que delimitava a avenida. Não vendo a mangusta per­guntou para onde ela fora.

"Ela escapou de meus braços, enquanto a acari­ciava, respondeu a moça, e desapareceu por entre a sebe".

Eles a descobriram num ponto em que a avenida se alargava, de maneira a permitir que passassem dois veículos. O animalzinho parecia completamente muda­do. Antes era ativa, esperta; agora estava lânguida e parada, como que oprimida. Deixou-se pegar pelos dois, mas quando lady Arabela deixou de carregá-la, olhou ao redor de maneira estranha, como se procurasse escapar de novo. Assim que chegaram à estrada, Adam a pe­gou, apertou-a contra o peito e saudando com o chapéu sua companheira, partiu a rápidos passos para Lesser Hill. Perderam-se logo de vista na obscuridade que au­mentava.

Quando Adam regressou à casa, colocou a mangus­ta na caixa e fechou a porta à chave. A outra man­gusta, aquela do Nepal, estava em segurança, na pró­pria caixa e se mantinha tranqüila, sem provocar de­sordem. Dirigiu-se depois à sua sala de trabalho e sir Nataniel o acompanhou, fechando a porta depois de si.

— Venho, disse, enquanto estamos sós, contar-lhe algo a respeito da família dos Caswall que, julgo, lhe in­teressa. Há nesta região uma crença de que a família dos Caswall sempre teve o estranho poder de subjugar a vontade de outras pessoas à sua própria. Encontram-se numerosas alusões a este respeito nas memórias e em outros trabalhos menos importantes, mas eu li, en­tre eles, um onde se fala muito exatamente disso. Tra­ta-se de Mercia and its Worthies (Mércia e seus homens ilustres), escrito por Ezra Toms, há mais de cem anos. O autor entra no assunto discorrendo sobre estreita colaboração havida entre o Edgard Caswall de então e Mesmer, em Paris. Cita Caswall como discípulo e com­panheiro de trabalho de Mesmer e emite até a opinião de que quando este último deixou Paris carregou con­sigo grande quantidade de instrumentos filosóficos e elétricos de que nunca mais se serviu. Comunicou certa feita a outro amigo que os dera a seu velho aluno. A palavra que usou era esquisita, porque tinha "legado", mas tal herança de Mesmer jamais tinha-se tornado co­nhecida. De qualquer modo, os instrumentos não esta­vam mais lá e não reapareceram jamais.

Um criado apareceu para dizer a Adam que havia inusitado barulho no quarto fechado à chave, onde en­trara depois de seu regresso. Ele e sir Nataniel se pre­cipitaram para lá. Tendo fechado a porta depois de si, Adam abriu o caixão onde se encontravam as duas caixas das mangustas, também fechadas à chave. Uma dentre elas estava silenciosa, enquanto de outra vinha o rumor de estranha agitação. Tendo aberto as duas caixas, ele viu que o ruído vinha do animalzinho do Ne­pal, que, contudo, se acalmou logo. Na outra caixa, a nova mangusta jazia prostrada, morta. Tinha sido, ao que parecia, estrangulada.

 

                   O PAPAGAIO DE PAPEL

No dia seguinte, um pouco antes das quatro, Adam saiu de Mercy.

Retornou à casa, justamente quando o relógio soa­va as 6 horas. Estava pálido e perturbado, mas nada tinha perdido de sua força ou de sua vivacidade. O ve­lho amigo resumiu sua aparência e suas maneiras as­sim: "Fortificado para a batalha".

— "Então", disse sir Nataniel e sentou-se para ou­vir, contemplando Adam, seriamente, com a intenção de nada deixar escapar: nem sequer a inflexão de uma pa­lavra.

"Encontrei Lilla e Mimi em casa, pois Watford ti­nha sido retido por seu trabalho no campo. A senhorita Watford me recebeu gentilmente no outro dia. Mimi, também, me pareceu contente de me ver. O senhor Caswall chegou, logo depois de mim, como se, ele ou ou­tro qualquer estivesse me espiando. Era acompanhado, de perto, pelo Negro, que fungava ruidosamente, como se tivesse corrido; assim, provavelmente fora ele que fi­cara de atalaia. Caswall parecia muito frio e calmo, mas seu olhar de ferro estava ainda mais acentuado que de costume, o que me inquietou. Contudo, tudo transcorreu bem. Ele discorria alegremente sobre vá­rios assuntos. Depois de ter esperado um pouco, o Negro desapareceu na primeira oportunidade. Os olhos de Caswall, como de costume, permaneciam fixos em Lilla. Realmente profundos e ardentes, não refletiam, contu­do, nada de ofensivo. Não fosse o traço das sobrance­lhas descaídas e o aspecto severo do rosto, coisa algu­ma se notaria, a princípio. Depois, a pouco e pouco, seu olhar se intensificou. Pude ver Lila começar a se perturbar, como na primeira vez; mas logo ela reagiu corajosamente. Contudo, mais ela se tornava nervosa, mais o olhar de Caswall se tornava forte. Pareceu-me que evidentemente ele viera para travar uma espécie de combate mesmérico ou hipnótico. Após alguns mi­nutos, começou a lançar olhares ao seu redor, depois agitou a mão sem que Lilla ou Mimi percebessem seu gesto. Esse sinal certamente era destinado ao Negro, porque este chegou furtivamente conforme seu hábito e entrou tranqüilamente, pela porta da entrada que es­tava aberta. Então os esforços de hipnotização de Cas­wall aumentaram e intensificou-se o nervosismo da po­bre Lilla. Mimi, vendo a aflição de sua prima, se apro­ximou dela para encorajá-la com sua presença. Essa intervenção criou, naturalmente, dificuldades para Cas­wall, visto que seus esforços, sem diminuir, pareciam menos eficazes. A situação ficou, ainda por momentos, a favor de Lilla e Mimi. Então produziu-se uma inter­venção. A porta se abriu e lady Arabela entrou no cô­modo. Eu a havia visto chegar, através da grande ja­nela envidraçada. Adiantou-se ela sem dizer palavras e colocou-se ao lado de Caswall. Isso parecia realmente uma luta de gênero particular: mais ela durava, mais cruel e terrível se tornava. Essa associação de forças do senhor ou dono, da mulher branca e do homem de cor, lhes teria provavelmente custado a vida, nos países da América do Sul. Para nós, era inteiramente horrível, como o senhor pode compreender. Desta vez, usando uma expressão esportiva, percebia-se que para todos era um combate até a derrota final; e que aquele grupo não cederia, relaxando seus esforços. Para Lilla, a tensão começava a ser desastrosa. Tornava-se cada vez mais pálida, de uma palidez não uniforme que deixava per­ceber que seus nervos estavam perturbados. Estava agi­tada, como folha ao vento, e embora lutasse bravamen­te, eu notava que suas pernas fraquejavam. Uma deze­na de vezes quase chegou a desfalecer, mas cada vez, sustentada pelo olhar de Mimi, retornava à luta, mais animada e se refazia.

Nesse momento, o rosto de Caswall tinha perdido seu aspecto passivo. Seus olhos brilhavam com ardente reflexo. A rigidez de sua face dava-lhe a aparência de um antigo romano, mas havia nela também uma como que raiva bélica. Seus cúmplices pareciam tomar parte em seus sentimentos. Lady Arabela mostrava-se inu­mana, sem alma nem piedade, a menos que se revives­sem as velhas lendas em que os seres humanos se trans­formam e perdem sua humanidade por uma alteração ou pela ressurreição de uma natureza selvagem Quan­to ao negro, ora, posso somente dizer que, só o san­gue frio, que o senhor descobriu em mim, me impediu de fazê-lo desaparecer de onde estava, sem aviso nem complacência. Lilla presa de mortal terror ficara si­lenciosa em sua desesperada concentração. Decidida e despreocupada consigo mesma, Mimi estava unicamente concentrada nessa luta de espíritos, em que se engajara sabendo que nela não haveria lugar para outros pensa­mentos. Quanto a mim, minha vontade parecia retida por barras de aço que aniquilavam todas as minhas fa­culdades, menos a vista e a audição. Estávamos todos num impasse. Entretanto imprevisível acontecimento devia se dar. Como que num sonho, via a mão de Mimi se movimentar, como se apalpasse alguma coisa. Inci­dentemente, ela tocou a mão da prima e, nesse instan­te, Lilla se transformou. Foi como se uma juventude e um vigor novos penetrassem no interior de algo insensibilizado e aniquilado. Levada por uma inspiração, ela pegou a outra mão com força tal que embranqueceu suas articulações. Seu rosto se animou de repente e uma luz divina como que brilhou nele. Sua aparência se reergueu, tomando uma atitude majestosa. Levan­tando a mão direita, avançou para Caswall e, com ges­to decidido, pareceu lançar contra ele estranhas forças. A cada vez que esse gesto se repetia, o homem era pro­jetado para trás, mais e mais. Refugiou-se ele na porta. Ela o seguiu. Repentinamente ouvimos um ruído com­parável ao lamentoso arrulhar das pombas, que foi cres­cendo e intensificando a cada segundo. Esse rumor, de origem invisível acrescia-se sem parar, enquanto que o homem batia em retirada. Por fim o som explodiu triunfalmente, enquanto que com um movimento de seu braço Mimi como que lançou violentamente algu­ma coisa contra Caswall, que protegeu, com seus bra­ços, seu rosto desfigurado e foi impelido para fora, em­purrado para a luz do sol.

Readquiri imediatamente todas as minhas faculda­des. Podia ver e ouvir todas as coisas e estava conscien­te de tudo que tinha acontecido. As imagens do sinis­tro grupo me reapareciam, embora ensombreadas, co­mo se um véu de sombras as cobrissem. Vi Lilla desfalecer e tombar por terra e Mimi erguer os braços para o ar, numa expressão de triunfo. Pela janela pude ver o sol que, depois de ter estado oculto como que por miríades de pássaros, inundava de novo a paisagem com sua luz.”

Na manhã seguinte, a luz do dia revelou o perigo atuante e ameaçador. De todos os lados do condado de este, receberam-se notícias a respeito dessa intensa mi­gração de aves. Encarregaram-se especialistas, por pró­pria conta, ou em nome de sociedade científicas, de au­toridades governamentais, da localidade ou do império, de fazer relatórios sobre esse acontecimento e de pro­por os meios para combatê-los.

Os relatórios locais eram ainda mais perturbadores. Durante todo o dia, nuvens de pássaros chegavam de todos os lugares. Sem dúvida muitos partiram como tinham vindo, mas o número de aves parecia não diminuir. Cada ave, como que produzia um som, um grito cheio de pavor, de angústia ou de interrogação e o ruído das asas não cessava nem diminuía. O ar es­tava cheio de surda palpitação. Nenhuma janela, ne­nhum obstáculo podia sufocar esse estridor, até que os ouvidos, irritados por esse incessante vozerio, se tor­nassem surdos. Ele era tão monótono, tão triste, tão desencorajador e tão melancólico, que se almejava uma mudança qualquer ainda que fosse para algo mais ter­rível.

Na segunda manhã, os relatórios vindos dos distri­tos vizinhos foram mais alarmantes que nunca. Os fa­zendeiros começaram a temer a vinda do inverno, quando viram suas colheitas destruídas. E isso era ape­nas o anúncio do mal, não sua realização; o selo se mostrava desnudo cada vez que um ruído inabitual es­pantava por instante os pássaros e os fazia voar.

Edgard Caswall torturou seu cérebro por longo tem­po, em vão, a fim de livrar-se ele e seus vizinhos, do que se revelava ser a peste dos pássaros. Finalmente lembrou-se de um fato que podia trazer solução para suas dificuldades, isso tinha acontecido na China, há alguns anos, no interior do país, perto da nascente das águas do Iang-Tse-Kiang cujos afluentes, pequenos, provocam uma espécie de irrigação natural, conforme as necessidades dos campos ressequidos. Quando o ar­roz está maduro, bandos e bandos de aves, vindos de­vorar a colheita, se tornam uma praga ameaçadora, não só para a província, mas para todo o país. Os fa­zendeiros, que tinham, mais ou menos, os mesmos ini­migos a cada estação, encontraram o meio de resolvê-lo. Construíram um imenso papagaio de papel, com o fito de sobrevoar o ponto central de incursão. Esse papa­gaio tinha a forma de enorme gavião; e, assim que ele se erguia no ar, os pássaros procuravam esconder-se, achar um refúgio, depois desapareciam. Durante todo o tempo que esse papagaio estivesse no céu, as aves fi­cavam ocultas e a colheita estava salva. Assim Caswall mandou que seus servos construíssem um enorme pa­pagaio. Depois empinou-o com uma cordinha de bom comprimento. Repetia-se a experiência chinesa. Assim que o papagaio foi erguido, os pássaros se ocultaram ou buscaram refúgio. Na manhã seguinte, o papagaio pla­nava sempre no ar e não se via um pássaro, a perder de vista, desde Castra Regis . Mas o que se seguiu foi pior. Todas as aves estavam ocultas e não gritavam mais. Não se ouvia um canto, um pipilar. Não era tudo, po­rém, visto que o silêncio, depois de ter substituído a cantilena das aves, se estendera a todos os animais.

O medo e o constrangimento, que se espalharam entre todas as pessoas, começaram a prejudicar toda a vida. Não só as aves cessaram seus cantos e seu grazinar, mas o mugido do gado se interrompeu nos campos, bem como os diversos ruídos de uma vida comum. Um silêncio melancólico os substituiu, muito mais terrível, muito mais desencorajante e mais espantoso que um conjunto de sons, embora estes significassem terror e maldição. Pessoas piedosas se puseram a rezar arden­temente para se verem livres dessa solidão. Depois de algum tempo começou-se a notar sinais de depressão em toda a região. Os rostos de homens e mulheres pa­reciam, sem exceção, privados de vida, de interesse de pensamentos e, sobretudo, de esperança. Os homens ti­nham perdido a capacidade de expressar suas idéias. O ar, falto dos sons, produzia o mesmo efeito que as tre­vas universais que faziam bater os dentes aos homens aterrorizados.

A essa angústia, gerada pelo silêncio, não existia libertação. Tudo estava a ela sujeito; a melancolia era a nota dominante. A alegria, criadora da vida, fora-se embora e seu impulso gerador não tinha retomado seu lugar. Essa forma gigante era nas alturas dos céus um flagelo a essa maldita influência. Dir-se-ia que a nova desgraça se abatera sobre os seres humanos, trazendo consigo a negação de toda a esperança.

Depois de alguns dias de desespero, os homens se puseram a protestar; suas palavras como seus sentidos pareciam sufocados. Edgard Caswall torturou de novo espírito para achar um remédio ou um paliativo a esse mal, pior que o precedente. Ele teria destruído com pra­zer o papagaio ou cortado seu vôo; mas no momento em que baixasse ao solo, as aves teriam de novo voado, mais numerosas ainda. E todos aqueles que dependiam de uma maneira ou outra do trabalho dos campos, en­viariam lamentosos protestos a Castra Regis.

Estranha, na verdade, era a influência que esse papagaio de papel, encantado, parecia exercer. Todos os seres humanos pareciam afetados por sua presença, co­mo se estivessem em reais relações entre si. Para as pessoas de Mercy Farm, ele tinha o gosto da morte. Lilla o sentia, num quase paroxismo. Se ela tinha sido realmente uma pomba e um gavião fora suspenso sobre ela, forçosamente teria que sentir-se mais ameaçada e mais presa do terror.

Outros, sem dúvida, já arrastados no turbilhão, observavam as reações individuais e as comparavam entre si. Contudo, estranhamente, como muitos nota­ram, só o Negro era o menos atingido por esse silêncio. Por natureza ele não era pessoa sensível ou preocupada com suas sensações. Por natureza ele não era pessoa sensível ou preocupada com suas sensações. Alguns pro­curavam descobrir a causa real dessa aparente e so­litária indiferença. Adam chegou rapidamente à con­clusão que ele achava uma compensação pessoal, que os outros não tinham e compreendeu logo que essa com­pensação advinha do prazer que sentia diante do sofri­mento dos outros. O Negro tinha nisso inesgotável fon­te de distração.

A natureza gélida de lady Arabela a imunizava con­tra qualquer sofrimento ou aborrecimento no que dizia a respeito a outrem. Edgar Caswall era muito orgu­lhoso de sua pessoa e muito duro por natureza para se sentir comovido com as pessoas sem recursos e, menos, ainda, com os animais. O senhor Watford, Salton e sir Nataniel sentiam-se confrangidos pelos acontecimentos; em parte pela generosidade de seus corações, pois não podiam alguns dentre eles ver o sofrimento, até de aves prejudiciais, sem se comover, e em parte por causa de suas terras, que, sem proteção, lhes trariam a ruína, dentro em pouco tempo.

Lilla sofria horrivelmente. A medida que o tempo passava, sua figura se tornava mais delgada e seus olhos perdiam o brilho, por causa da insônia e do pranto. Mimi padecia também, vendo os penares de sua prima. Mas, como nada podia fazer, esforçou-se por se domi­nar e suportar tudo com paciência. As freqüentes vi­sitas de Adam a reconfortavam.

 

                   O COFRE DE MESMER

Ao fim de duas semanas, o papagaio de papel pa­recia dar a Edgard Caswall novo gosto de viver. Não se cansava de contemplar suas evoluções. Tinha colocado na torre confortável poltrona, na qual ficava sentado, às vezes durante o dia todo, olhando-o como uma criança faz com um brinquedo novo. Não parecia ter perdido seu interesse por Lilla, visto que fez ainda uma fortuita visita a Mercy Farm.

Na realidade, seus sentimentos para com ela, quais­quer tivessem sido no início, tinham de tal modo se mo­dificado que tomaram um aspecto diferente, puramente animal. Tudo acontecia como se esse homem se tives­se corrompido e que todas suas propensões, as mais baixas, as mais egoístas e as mais indiferentes, se tives­sem tornado mais visíveis. Havia menos rudeza apa­rente em sua natureza, porque ele se continha menos. A determinação provinha da indiferença.

A visível transformação de Edgar nascia do fato de que se, agravava sua morbidez, sua tristeza e sua soli­dão. Pensavam os vizinhos que ele enlouquecera. Com­pletamente atraído pelo papagaio, contemplava-o, não só durante o dia, mas muitas vezes, durante toda a noite. Isso se tornara obsessão para ele.

Caswall tomou a peito, pessoalmente, a proteção do grande papagaio que estava nos ares. Tinha um gran­de rolo de cordinha preparado para isso, que se enrolava numa bobina fixa no parapeito da torre. Uma manivela permitia enrolar e desenrolar. O controle da cordinha era regulado por uma tranqueta. Uma pessoa es­tava encarregada de vigiá-la, dia e noite, na torre. A tal altura, o vento soprava tão forte que o papagaio su­bia a grandes alturas prodigiosas e percorria lateral­mente grandes distâncias. Com efeito, com o tempo, tornou-se uma das curiosidades de Castra Regis e arre­dores. Edgard começou a lhe atribuir, em seu espírito, todas as qualidades humanas. Transformou-se para ele numa entidade distinta, com um espírito e alma pró­pria. Ficando desocupado o dia inteiro, dedicou todo seu tempo ao que considerava como a serviço do pa­pagaio, descobrindo novo prazer e novo objetivo de sua vida, no velho jogo de escolares que consiste em enviar mensagens, bilhetes, ao papagaio. A maneira de o fa­zer é pegar um pedaço de papel, em geral em forma re­donda com um buraco no meio e pô-lo na cordinha. Com a movimentação do vento e com auxílio de pu­xões corre o papel ao longo da corda e chega, assim, até junto do papagaio.

Nos primeiros dias, Edgard Caswall passou horas nesse divertimento. Centenas de papeizinhos flutuaram na cordinha, até que ele começou a escrever no papel mensagens para transmitir ao papagaio suas idéias. Isso fez com que se reforçasse no seu espírito a ilusão de que seu brinquedo tinha sua existência e suas idéias próprias. Daí passou a falar diretamente com ele, sem contudo deixar de lhe enviar recados. Sem dúvida, a altura da torre, situada no cima de uma colina, a força impetuosa do vento incessante, o efeito hipnótico da alta altitude do ponto que ele olhava fixamente no céu e o envio dos recados ao longo da cordinha que se per­dia de vista, tudo contribuiu para perturbar mais seu cérebro. Além disso, sobre a pressão das crenças e de circunstâncias estimulantes, deu ele livre curso à sua imaginação, que tomou posse de seu espírito e o absor­veu completamente.

Sua queda intelectual continuou mais ainda quan­do aplicou sua grande idéia de vida consciente do pa­pagaio a toda a espécie de objetos a que concedeu vida própria. Possuía ele em Castra Regis uma importante coleção de objetos raros e curiosos, reunidos por seus antepassados que tinham gosto semelhante ao seu. To­das as espécies de estranhos espécimens antropológicos, antigos e recentes, tinham sido trazidos de numerosas viagens a distantes regiões: restos de túmulos e múmias do antigo Egito, curiosidades vindas da Austrália, da Nova Zelândia e dos mares do Sul, ídolos e imagens, desde as ícones tártaras até objetos de culto dos egíp­cios, dos persas e dos hindus; instrumentos de morte e de tortura dos índios da América; e, sobretudo, uma imensa coleção de armas mortais de todas as espécies e de todos os países: os "high pinders" chineses, facas de dois gumes, cimitarras afgãs de dois gumes para cortar um corpo em duas partes, pesados e enormes punhais vindos de todas as regiões do Oriente, as ada­gas dos terríveis Gurkkas e outras castas da índia, os alfanjes enfeitiçados do Tibet, as armas dos mafiosos da Itália e da Espanha e até adagas dos viajantes es­lavos que tinham chegado à região do Mississipi. Mor­tandade e sofrimento de toda a sorte estavam repre­sentados, inteiramente, nessa macabra coleção.

Oolonga, que a contemplara em segredo, sentia-se fascinado por ela. Não se cansava de visitar esse mu­seu da torre e passava horas intermináveis a examinar os objetos expostos, a tal ponto que cada um de seus detalhes se lhe tornara familiar. Pedira, por fim, li­cença para limpá-las, poli-las e para afiá-las, permis­são que lhe foi logo dada. Além desses instrumentos, outras coisas havia capazes de provocar, por sua na­tureza, o terror humano. Serpentes empalhadas em posições repelentes e horríveis; insetos gigantes dos Trópicos, horripilantes em seus aspectos; peixes e crus­táceos de sinistros aguilhões, polvos secos, de enorme tamanho.

Outrossim, havia outras coisas que embora apa­rentemente inofensivas, não eram menos mortais.

Tais como cogumelos secos; armadilhas para aves, animais selvagens, peixes, répteis e insetos; instrumen­tos que podiam causar o sofrimento sob todas as for­mas e graus e cujo único ato de misericórdia era de poder também provocar rápida morte.

Caswall que outrora não tinha visto nenhum des­ses objetos, exceto os que ele, mesmo, trouxera, encon­trava neles grande satisfação e se interessava em co­nhecer seu uso, seu mecanismo e, quando possível, sua proveniência. Acabou por conseguir real e amplo co­nhecimento de tudo o que lhes dizia respeito. Muitos tinham seus mecanismos secretos e complicados, mas ele não os abandonava jamais, antes de lhes achar a explicação. Seu interesse, por esses estranhos objetos e a maneira de se servir deles levou a explorar os diver­sos lugares propícios a semelhantes achados. Informou-se junto à criadagem da casa e dos arredores onde po­deriam estar ocultos objetos parecidos. Vários de seus servidores lhe falaram do velho Simão Chester, que co­nhecia todos os segredos da mansão. Tinha quase no­venta anos e estava muito fraco. Nascido no castelo, ti­nha servido a diferentes patrões que se tinham sucedi­do, presentes ou ausentes. Quando Edgar começou a fazer-lhe perguntas sobre o assunto que o preocupava, o velho Simão se perturbou. Com efeito, tinha o ar tão assustado que seu patrão, percebendo muito bem que tentava dissimular alguma coisa, ordenou-lhe peremptoriamente que confessasse logo o que sabia, e que lhe apontasse o lugar onde estava escondido. Vendo que fora inútil sua tentativa, o ancião, em lamentoso es­tado de abatimento, lhe narrou muito mais do que ele esperava.

Realmente, sir, tudo se encontra nesta torre, como foi arrumado em minha juventude, menos, menos... (aqui ele começou a gaguejar e a tremer) menos o cofre que o senhor Edgar, o senhor Edgar de então, quando iniciei o meu serviço aqui, trouxe da França, depois de sua estada junto ao Doutor Mesmer. Por segurança, pôs-se o cofre no meu quarto, mas vou trazê-lo agora para aqui.

Que há no seu interior? perguntou Edgar em tom ríspido.

Eu o ignoro. Além disso é um cofre singular, que, aparentemente, não tem abertura alguma.

Não está fechado?

Suponho que sim, mas nada sei. Ele não tem buraco de fechadura.

Traga-o para cá e volte você também.

O pesado cofre, cercado de barras de aço, mas sem fechadura ou buraco correspondente, foi trazido por dois homens. Pouco tempo depois, o velho Simon re­tornou para junto do patrão. Assim que ele entrou no quarto, Caswall foi, ele mesmo, fechar a porta. Depois perguntou:

Como se abre este cofre?

Eu não sei, senhor.

Quer dizer que jamais você o abriu?

Isso mesmo, eu lhe juro. Como faria eu isso? Ele me foi confiado pelo meu patrão, do mesmo modo que os outros objetos. Se o tivesse aberto, teria falta­do com minha palavra.

Em tom de chacota, Caswall retrucou:

—            Parece mentira! Mas deixemos isso. Alguém já lhe falou, já lhe disse alguma coisa sobre este cofre?

O pobre Simon tornou-se pálido e apertou suas trêmulas mãos.

Oh! Patrão, sir, eu lhe suplico que não o toque. Contém ele provavelmente segredos que o doutor Mesmer confiou para meu patrão, infelizmente para a sua ruína!

O que você quer dizer com isso? De que ruína você está falando?

Sir, alguns dizem que ele vendeu sua alma ao Maligno; pensava que esse tempo e a desgraça de en­tão já tivessem terminados.

Isso é suficiente. Pode ir embora; mas fique em seu quarto ou permaneça ao alcance de meu chamado. Poderei ter necessidade de você.

O ancião inclinou-se gravemente e saiu, tremendo, mas sem uma única palavra.

 

                   O COFRE ABERTO

Ficando sozinho na sala da pequena torre, Edgard Caswall fechou cuidadosamente a porta e pôs um lenço no buraco da fechadura. Depois inspecionou as jane­las e se assegurou que nada podia ser visto pelo lado de fora, desde a construção principal. Examinou então, com todo o cuidado, o cofre, perscrutando-o com uma lupa. Ele estava intacto: as barras de ferro estavam sem defeito e os planos completamente unidos. Sentou-se diante do objeto e assim ficou durante algum tempo. Quando as sombras da tarde começaram a se fundir nas trevas, renunciou a seus esforços e retornou ao quarto de dormir, depois de ter fechado a porta do cômodo e tirado a chave.

Despertou logo pela manhãzinha e retomou sua pa­ciente mas infrutuosa pesquisa na caixa de metal.

Continuou seus esforços durante todo o dia. Um de­sapontamento humilhante cansava seus nervos e lhe cau­sava dor de cabeça. O resultado dessa longa tensão apare­ceu no fim da tarde, quando ainda se encontrava en­cerrado na sala da torrinha, distraído, inatento, e, con­tudo, agitado e abismado em profunda melancolia dian­te desse desconcertante cofre. Como caísse o crepúsculo, pediu a seu mordomo que levasse, o cofre para seu quarto. Lá ficou de pé a noite toda, sem repousar, nem se alimentar. Sua razão se perdia num turbilhão de uma febre de excitação.

Tarde da noite, seu cérebro se povoou de fantasias bizarras e parecia que ia perder a razão. Estendido no leito, no escuro, meditava sempre no mistério do cofre fechado.

A pouco e pouco, cedeu às influências do silêncio e da escuridão. Depois de ter repousado tranqüilamente, por algum tempo, seu espírito se pôs de novo em ativi­dade. Mas desta feita não havia com que desvirtuar: seu cérebro estava ativo para trabalhar livremente e utilizar-se de suas recordações. Incidentes esquecidos ou meio desconhecidos, fragmentos de conversas ou de antigas teorias se agruparam na sua memória. Julgava escutar de novo ao redor de si as legiões de asas vi­brantes às quais se habituara tão recentemente. Em si mesmo sabia que esse esforço de imaginação era basea­do sobre lembrança imperfeita. Mas estava contente por sua imaginação trabalhar, porque disso poderia sur­gir solução ao mistério que o atormentava. E nessa dis­posição de espírito, o sono dele se apoderou aos poucos. Dessa vez, dormiu tranqüilamente, repousando ao mes­mo tempo seu corpo fatigado e seu cérebro estafado.

Em seu sono, ele se ergueu e, parecendo obedecer a uma influência superior, mais poderosa que ele mes­mo, ergueu o pesado cofre e o colocou numa sólida mesa que estava a um canto depois de tê-la desemba­raçado duma quantidade de livros. Essa ação lhe havia exigido soma tal de energia que era, bem o sabia, su­perior à sua capacidade normal. Contudo, isso aconte­cera e lhe parecera bastante fácil: cada coisa se subme­tia à sua vontade antes mesmo que a tocasse. Então notou que, não sabia como, o cofre estava aberto. Abriu então a porta que estava fechada à chave e carregando o cofre sobre os ombros, o transportou para a sala da torrinha cuja porta, também fechada à chave, abriu. Até nesse momento, sua própria força o espantou e fi­cou maravilhado com o que acontecia. Seu espírito, perdido em suas conjeturas, tinha partido para mui longe, não podendo realizar coisas imediatas. Sabia que o cofre era muito pesado e, numa espécie de visão que dissipou a escuridão a seu redor pensou ver dois ro­bustos criados cambeteando sob seu peso. Inspecionou de novo a sala da torrinha e viu sobre uma mesa o co­fre aberto. Na escuridão começou a esvaziá-lo, colocan­do sobre outra mesa seu conteúdo, composto de grandes peças de formas estranhas, feitas, principalmente, de metal ou de vidro. Estava ele consciente de permane­cer dormindo e de obedecer a uma ordem invisível e desconhecida e não a um plano razoável cujos resulta­dos pudesse entender. Quando terminou, montou as di­ferentes partes dos grandes instrumentos, feitos, na maioria de vidro. Seus dedos pareciam ter ganho des­treza nova e delicada e possuir vontade própria. Depois um cansaço apoderou-se de seu cérebro, sua cabeça se inclinou pesadamente sobre seu peito e pouco a pouco tudo se obscureceu.

De madrugada despertou, no seu quarto de dor­mir, com o espírito claro e olhou, espantado ao redor de si. Sobre a pesada mesa, se quedava o cofre, cercado de ferro, sem chave nem fechadura. Levantou-se rapida­mente e se dirigiu à sala da torrinha. Lá, nada se mo­dificara desde a véspera. Olhou, pela janela, para o al­to dos céus, onde, como de costume, voava o gigantesco papagaio. Abriu a gradezinha da escada e subiu para o teto. A seu lado se achava o grande rolo de cordinha, enrolado na bobina. A corda como que murmurava na brisa da manhã e quando a tocou, sentiu um frêmito na mão e no braço. Não observou, porém, mudança al­guma que se tivesse produzido à noite.

Completamente aturdido, regressou ao quarto para refletir. Agora, pela primeira vez, ele percebeu que dor­mira e dormira muito. Acordara faminto e tomou copiosa refeição. Quando chegou a noite, fechou-se de no­vo à chave e pôs-se a dormir. Quando acordou, estava na escuridão e teve a impressão que se encontrava no mar. Começou por apalpar, no quarto sombrio, e se re­cordou do lugar em que estava quando quebrou uma grande peça de vidro. Obtendo luz, descobriu que era um disco de vidro que devia ter tirado de dentro do co­fre durante seu sonho. Tinha-o aberto novamente, dor­mindo, mas não guardava lembrança disso.

Caswall concluiu que seu espírito fora afetado por uma dualidade de ação que o levaria a uma catástrofe ou então à descoberta de oculto desígnio. Decidiu, por­tanto, a renunciar, por algum tempo, o anseio para des­cobrir o mistério do cofre. Por isso, entregou-se à in­vestigação dos outros tesouros e objetos raros que fa­ziam parte da coleção. Deambulava entre eles, com indolente e preguiçosa tranqüilidade, tendo como obje­tivo descobrir entre eles algo para utilizar em sua ex­periência com o papagaio. Tinha decidido experimen­tar novas mensagens. A idéia lhe viera quando notou a força que havia na cordinha. Seu primeiro en­saio com objetos de peso reduzido foi satisfatório. As­sim foi aumentando o peso deles, até descobrir que a capacidade de ação do papagaio era notável. Então de­cidiu atingir nova etapa e enviar ao papagaio alguns objetos que tinha achado dentro do cofre. Na última vez que o tinha aberto durante o sono, este não ficara fechado, pois ele tinha inserido um calço de modo que o pudesse usar à vontade. Examinou o conteúdo mas chegou à conclusão de que os objetos de vidro eram pouco apropriados, muito leves para experiência e tam­bém mui frágeis para enviados a tal altura.

Assim procurava ele outra coisa mais sólida para usar. Seus olhos pousaram num objeto que logo o atraiu. Era uma pequena representação do deus Bes, an­tiga divindade do Egito que encarnava o poder destrui­dor da natureza. Seu aspecto grotesco e misterioso agra­dou a seu louco capricho. Tirando-o de sua estante, es­pantou-se com o seu grande peso em relação a seu ta­manho. Examinando-o atentamente com o auxílio de alguns instrumentos, chegou à conclusão de que fora esculpido num bloco de pedra-ímã. Recordou-se então que lera algures que um antigo deus do Egito tinha sido talhado em substância semelhante. Refletindo ainda, julgou que o tinha lido nos "Populars Errors" de Thomas Brown, livro que datava do século XVII. Foi bus­car o livro na biblioteca e releu a passagem:

"... Eis aqui um exemplo importante, tirado da ob­servação feita por nosso sábio amigo, sr. Grave, a res­peito de um ídolo egípcio, esculpido em pedra-ímã e achado entre as múmias: Embora fosse extraído da terra, há mais de 2.000 anos, conservava ainda seu po­der de atração".

A esquisitice da forma e sua aparência, tão próxi­ma de sua própria natureza, acabaram de convencer Caswall. Numa taboazinha, bem fina, fixou a estatueta do deus e o mandou, como mensagem, ao papagaio, atra­vés da cordinha vibrante.

 

                   OS ERROS DE OOLONGA.

Durante os últimos dias lady Arabela tinha se tor­nado extremamente impaciente. Suas dívidas, sempre prementes, tinham aumentado de maneira inquietante. Sua única esperança de alívio era fazer um bom casa­mento. Mas aquele com o qual contava, não se desen­volvia suficientemente rápido. Na verdade, não parecia encaminhar-se em boa direção. Edgard Caswall não era pretendente fogoso. Desde o princípio se mostrara di­fícil e, desde seu combate com Mimi Watford, não dei­xara o castelo. Nessa ocasião, lady Arabela lhe revelara, de maneira tal que não poderia haver dúvida, todo o seu sentimento. Na verdade, ela lhe patenteara isso, com tal franqueza que o orgulho não teria sabido ima­ginar, isto é, seu desejo de o ajudar e de o reconfortar. No momento em que tinha entrado no cômodo e se co­locara ao lado dele, no decorrer da luta mesmérica, ti­nha traçado o real limite de sua empresa. Ela sentia to­da a amargura de não o ver procurá-la, mas depois de ter avançado tanto, nova retirada de sua parte equivaleria, para uma mulher de sua classe, um candente in­sulto. Não se postara ela ao lado do criado dele, esse intratável selvagem? Não lhe manifestara sua preferên­cia por ocasião de sua chegada? Não tinha ela... Lady Arabela era pessoa de sangue frio e estava disposta a suportar, se preciso fosse, a indiferença, ou até o insul­to, para tornar-se castelã de Castra Regis. Esperando, não se devia mostrar apressada. Era mister saber esperar e, de maneira não ostensiva, procurá-lo novamen­te. Agora conhecia-o melhor e podia ter justa idéia de seus desejos para com Lilla Watford. Dona desse se­gredo, ela podia fazer pressão sobre Caswall que não a poderia evitar facilmente. A grande dificuldade era aproximar-se dele, que continuava fechado em seu cas­telo, sendo assim protegido pelas convenções sociais que ela não poderia ultrapassar sem arriscar a própria repu­tação. Refletiu longamente sobre isso. Por fim decidiu que o único meio era ir fazer, abertamente, uma visita a Castra Regis. Sua classe e sua posição tornavam pos­sível tal ato, contanto que agisse cautelosamente. De­pois, poderia dar suas razões, se isso se tornasse neces­sário. Desde que estivessem sós, ela usaria de seu ar­tifícios e de sua experiência para que ele mesmo se com­prometesse. Além disso era apenas um homem, e ela ti­nha confiança suficiente em sua qualidade de mulher para vencer todas as dificuldades que aparecessem dian­te dela.

Em Diana's Grove, ouvia ela, todos os dias, soar o gongo para o jantar em Castra Regis e conhecia assim a hora em que os criados estariam do outro lado da mansão. Penetraria no interior da casa e, alegando que ninguém, a não ser ele, poderia atendê-la, pedir-lhe-ia que a conduzisse à própria sala. A torre, ela sabia, fi­cava afastada dos costumeiros ruídos da casa, e, além disso, sabia que os criados tinham ordens estritas de não perturbar Caswall quando ele estivesse no quarto da torrinha. Percebera também, graças a um binóculo, e em parte aos boatos correntes, que, recentemente, pe­sado cofre tinha sido levado para seu quarto e aí per­manecera a noite toda. Estava certa que importante trabalho o mantinha ocupado por largo tempo.

Mas, esperando também, outro membro de Castra Regis fomentava planos de que pensava tirar proveito. Um indivíduo, na posição de criado, tem grande opor­tunidade de observar seus patrões e deles formar uma opinião. Oolonga era, à sua maneira, hábil espertalhão e sem escrúpulo, e percebia que tudo o que se passava ao redor dele, na grande casa, lhe poderia servir um dia para suas ambições. Não tendo moral alguma, dis­simulado e selvagem, ele acalentava sinistros planos. Vendo claramente que lady Arabela tinha projetos bem arraigados sobre seu patrão, ficou atento ao menor si­nal suscetível de sobrepujá-la. Como os outros criados da casa, tinha ele tido conhecimento das diversas mu­danças do cofre e conjeturara logo que as precauções tomadas indicavam que ele encerrava grandes tesouros. Rodeava mais que nunca o quarto da torrinha, esperan­do fazer alguma descoberta interessante. Mas era tão prudente quanto furtivo e tomava cuidado para não ser visto por pessoa alguma.

Assim foi que o Negro percebeu a presença de lady Arabela, dentro da casa, quando ela pensava não ter sido vista. Tomou maiores precauções para não ser no­tado por ela, conservando ouvidos e olhos bem abertos. Vendo lady Arabela deslizar pela escada que levava ao quarto de seu patrão, concluiu que ela planejava algo de mau, e redobrou sua vigilância atenta e prudente.

Oolonga ficou desapontado, mas não ousou trair seu sentimento, com medo de se revelar. Ocultando-se em baixo da escada, esperou momento mais favorável para seus projetos. Pensava que a pesada mala estava cheia de riquezas e que lady Arabela viera para tentar roubá-la. Sua intenção de combinar essas duas idéias e disso tirar proveito só lhe veio mais tarde, durante o dia. Oolonga a acompanhou ocultamente no seu re­gresso. Perito nisso, conseguiu facilmente não ser vis­to. Viu quando ela penetrou na casa de Diana's Grove. Depois a alcançou, por fim, num bosquezinho, na parte mais densa, onde ninguém os perceberia.

Lady Arabela ficou surpresa. Fazia vários dias que não via o Negro e quase se esquecera de sua existência. Oolonga ficaria espantado se soubesse e fosse capaz de compreender a real importância que se atribuía à be­leza dessa mulher e à sua posição em comparação com o fictício valor que ele mesmo se dava. Indubitavelmen­te Oolonga tinha seus sonhos como os outros homens. Em tais caso, ele se julgava semelhante a um jovem deus^do Sol, de beleza tão grande que os olhos de uma mulher, branca ou negra, jamais poderiam pousar so­bre ele. Pensava estar adornado de todas as qualidades nobres e cativantes, ou que fossem julgadas tais na sua África natal. As mulheres o teriam amado e falariam com ele de maneira aberta e atrevida como era costu­me nesse negócio, nas profundezas espessas da floresta da Costa do Ouro.

Oolonga se aproximou, pois, de lady Arabela. Com voz sussurrante, apropriada à importância de seu desíg­nio, compenetrado pelo respeito que sentia diante dela e diante de sua posição, começou a lhe confessar o amor que sentia. Lady Arabela não era, de costume, pessoa brincalhona, mas nenhum homem ou mulher de raça branca teria podido reprimir o riso que bailou es­pontaneamente em seus lábios. As circunstâncias eram muito grotescas, o contraste muito violento, para poder reprimir seu desejo de rir. O homem, um espécime avil­tado e primitivo; a mulher de posição elevada, formosa­mente infernal. Fora-lhe suficiente um instante de re­flexão para julgar esse ultraje — isso lhe parecia ser tal a seus olhos —. Mas cada instante que passava lan­çava novas luzes sobre essa afronta. Sua indignação era muito grande para que sentisse raiva; somente a iro­nia ou desprezo poderia fazer face à situação. Sua na­tureza fria, cruel a guiava e não hesitou a submeter es­se selvagem estúpido ao sarcasmo candente e impiedoso de seu desprezo.

Oolonga sentia vagamente que se zombava dele. Sua ignorância não lhe proibia a cólera. Deixou-se ar­rastar por esta com o teria feito um animal selvagem que se torturasse. Rilhou os dentes, bateu os pés e fez juramentos de vingança, em bárbaras palavras. Lady Arabela sentiu-se contente por estar sua casa ao al­cance de sua voz,, pois ele poderia ter usado de sua for­ça brutal e até matá-la.

"Devo entender que você me oferece seu amor, res­pondeu ela, glacialmente, em atitude mais própria a fe­rir que a demonstrar ira violenta; que você me oferece seu amor? seu amor?”

Para responder ele inclinou a cabeça. O desprezo que perpassava nessa voz, uma espécie de silvo sinistro, o golpeou como'uma terrível chicotada.

"Você! que ousadia! Você, um selvagem, um cria­do, quase escravo, nojento verme! Tome cuidado! Não dou importância mínima à sua vida. Vale para mim menos que a de um rato ou de uma aranha! Nunca mais me mostre seu horrendo rosto ou livrarei a terra de sua presença!

Dizendo estas palavras, ela tirou o revólver e lhe apontou. Diante dessa ameaça de morte, sua impudência o abandonou e procurou tolamente justificar-se. Suas palavras foram breves, rápidas. Para Lady Ara­bela, soaram como meros balbucios, mas no idioma do Negro significavam amor, casamento, mulher. Pela en­tonação, ela adivinhou, com a viva intuição das mulhe­res, seu significado. Ela renunciou completamente a seu jogo, quando, tornando-se mais premente, ele insistiu, numa mistura de paixão animal e grotesca e ameaças ridículas. Avisou-a de que estava a par de suas inten­ções de roubar o tesouro do patrão e que se aproveita­ria disso. Mas se ela quisesse entregar-se a ele, ele, Oolonga, dividiria com ela o tesouro e viveria luxuosa­mente nas florestas africanas. Se ela recusasse, denun­ciaria tudo ao patrão que a chicotearia e a torturaria e depois a entregaria à polícia que a executaria.

 

                   NOVA BATALHA

As conseqüências desse encontro na penumbra de Diana's Grove foram vivas e tiveram repercussão sobre outras pessoas que não os protagonistas. No que diz res­peito a Oolonga, não importa o que se pudesse prever, era conhecido seu caráter. Dele só se poderia esperar duas paixões, inesgotáveis e insaciáveis: a vaidade e o que se costumou chamar de amor. Oolonga abandonou Diana's Grove cheio de ódio. Seu desejo e sua cobiça es­tavam excitados, ao passo que sua vaidade fora atingi­da no mais fundo de si mesma. A natureza fria de lady Arabela ficara mais calma, se bem que fervesse em có­lera. Mais do que nunca estava resolvida a pôr Edgard Caswall a seus pés. Os obstáculos que tinha encontrado e os insultos que acabara de receber serviram apenas para alimentar mais ainda o desejo de vingança que a consumia.

Retornando a seu quarto em Diana s Grove, refle­tiu muito tempo sobre todos os pontos do problema e o rosto de Lilla lhe aparecia sempre como a chave para a solução de seus aborrecimentos — a solução capaz de orientar os poderes de Caswall e sua real existência, pa­ra servir a seus desígnios.

Em seu escritório pôs-se a escrever uma carta, mas com tanta precaução que a destruía e reescreveu vá­rias vezes, a ponto de encher a cesta de papel. Quando, enfim, se deu por satisfeita, copiou-a, pela última vez, e depois queimou cuidadosamente todos os rascunhos feitos. Colocou essa carta em um envelope, adornado com brasão, e o endereçou a Edgar Caswall, em Castra Regis. Em seguida enviou-a por um de seus criados. A carta estava assim redigida:

 

         Caro Senhor Caswall

Gostaria de ter uma conversa com o senhor á respeito de assunto, que, assim penso, lhe interes­sa. Poderia o senhor ter a bondade de vir procurar-me, qualquer dia destes, depois do almoço. Diga­mos às três ou quatro horas e poderíamos passear juntos, não longe de Mercy Farm, onde desejo ver Lilla e Mimi Watford. Poderíamos tomar uma chávena de chá na mansão da fazenda. Mas não traga seu criado africano, pois receio que a pre­sença dele assuste as moças. Na realidade, ele não é nada bonito, não é? Tenho uma idéia que lhe causará prazer, quando dessa visita.

                   Sinceramente sua, Arabela March

 

No dia seguinte, pelas duas horas, Edgard Caswall se encaminhou para Diana's Grove. Lady Arabela trans­pôs a grade de sua propriedade e foi a seu encontro, na estrada. Queria estar o mais distante possível dos cria­dos, em suas confidencias. Quando o alcançou, cami­nhou a seu lado, em direção a Mercy Farm, passo a pas­so. Nas proximidades de Mercy, virou para trás e olhou pelos arredores, esperando ver Oolanga ou sinal apenas de sua presença. Mas ele permaneceu invisível. Tinha recebido ordens do patrão para se conservar afastado, ordens que o africano tomou como nova ofensa. Acha­ram Lilla e Mimi em casa e aparentemente contentes por vê-los. Contudo as duas estavam surpresas com essa visita, tão próxima da última.

O que se passou foi a repetição da luta de espíri­tos, como na visita precedente. Agora, Edgard Caswall devia contentar-se com apenas a presença de Lady Ara­bela para sustentá-lo, visto que Oolonga estava ausente. Mas, de seu lado, Mimi estava privada do auxílio de Adam Salton que lhe prestara grande ajuda. Desta feita a luta pela supremacia da vontade foi mais longa e mais intensa. Caswall percebia que se não pudesse vencê-la, nesse instante, seria melhor renunciar à idéia. Por isso empregou todo o seu orgulho perante Mimi. Antes de entrar, lady Arabela, confiando num ataque rápido, lhe dissera em voz baixa, mas suficientemente convincente:

"Desta vez, você deve vencer. Mimi não passa de uma mulher. Não lhe mostre misericórdia, pois isso se­rá sinal de fraqueza. Combata-a, castigue-a, esma­gue-a, dê-lhe até a morte se preciso for. Ela está em seu caminho, por isso odeio-a. Não desvie nunca os olhos. Não se esqueça de Lilla, que tem medo de você. Você já a domina. Mimi fará tudo para que você olhe para sua prima. Isso será sua derrota. Não deixe sua atenção se afastar de Mimi e será o vencedor. Se ela começar a sobrepujá-lo, aperte a minha mão enquanto fixá-la fortemente com os olhos. Se ela for muito forte para você, eu interferirei. Provocarei uma diversão e você aproveitará para retirar-se sem ser vencido, em­bora não seja vencedor. Silêncio! Elas vêm vindo.”

As duas moças vieram, juntas, abrir a porta. Bizar­ros ruídos se erguiam do oeste, para lá do Brow, pro­duzidos pelo zunzunar e farfalhar dos caniços secos e dos juncos das terras baixas. A estação fora excepcio­nalmente seca. O forte vento do este trazia consigo inú­meros bandos de aves, na maioria pombos de capucho branco. Ouvia-se não só o estrépito de suas asas mas também seu surdo ronronar. Provindo de tal multidão de aves, o conjunto dos ruídos, insignificante indivi­dualmente, tornava-se, no todo, semelhante ao ruído de uma tempestade. Surpresos por esse afluxo de pássa­ros, a que não estavam habituados a muito tempo, olha­ram eles para Castra Regis, para o alto da torre onde o falso gavião planava como de costume. Mas de re­pente a corda se rompeu e o grande papagaio caiu, em rápidos mergulhos. Seu próprio peso e a força contrá­ria dos ventos, que o fazia voar, unidos, tinham sido muito violentos para a longa cordinha que o susten­tava.

De certa maneira, a desgraça acontecida ao papa­gaio de papel deu nova esperança a Mimi. O aconteci­mento lhe pareceu favorável e a luta se lhe tornou mais fácil Teve uma sensação, no seu espírito, que o acordo religioso se fizera. A volta dos pássaros lhe tra­zia nova coragem e uma crença fortificada de feliz tér­mino. Do suplício desse silêncio, com o qual tanto ti­nham sofrido, nascia uma nova modalidade de pensa­mento e de vitória. Como continuasse o vôo das aves e o ruído de suas asas a bater contra os juncos, lady Arabela empalideceu e como que desmaiou.

"Que é isso, que é isso?" perguntou ela tremendo.

Para Mimi, nascida e criada no Sião, a música pa­recia-se estranhamente, aumentada, à que toca o en­cantador de serpentes.

Edgard Caswall foi o primeiro a retornar a si, de­pois da mudança causada pela queda do papagaio. Em poucos minutos, recobrou completamente seu sangue frio e esteve até prestes a retornar a seus desígnios. Mi­mi se reergueu também rapidamente, mas por razão di­ferente. Ela tinha a convicção, profundamente religio­sa, de que a luta que se desenrolava era a do Bem con­tra o Mal e que o Bem sempre haveria de triunfar. O aparecimento até das aves de neve, com os capuchos de Santa Colombo, confirmava essa crença. Fortalecida com essa convicção prosseguiu no estranho combate com redobrada força. Conseguiu dominar Caswall e fa­zê-lo retroceder para o lugar donde provinha. Uma vez mais seus passes vigorosos o projetaram porta afora. Ia ele sair, quando a mão de lady Arabela o segurou e ten­tou retê-lo. Contudo ela fracassou e, apertando-lhe ain­da a mão, ambos saíram juntos da casa.

Repentinamente a esquisita música que tanto alar­mara lady Arabela cessou. Instintivamente, eles olha­ram para Castra Regis e viram que o criado tinha amarrado de novo o papagaio que se elevava novamente lá nos céus.

Enquanto eles o contemplavam, abriu-se a porta e Miguel Watford penetrou na sala. Nesse instante to­dos já se tinham retemperado e nada de extraordinário poderia chamar-lhe a atenção. Entrando, ele notou seus olhares interrogativos e disse:

"Esta nova chegada de pássaros é apenas a mi­gração anual dos pombos africanos. Penso que termina­rá logo".

A segunda vitória de Mimi entristeceu Caswall mais que nunca. Ensimesmou-se de vez, mas confiando obstinadamente na vitória de seus poderes mesméricos, começou a planejar meios para a desforra. O principal objeto de sua animosidade era, claro está, Mimi que o derrotara, mas também tudo aquilo que se opusesse a seu objetivo. Lilla vinha depois de Mimi. Ele odiava essa jovem inofensiva, de terno coração, suave por na­tureza, tão cheia de amor para todas essas coisas que não lhe comoviam, como as simples paixões da vida co­mum. Lilla cuja natureza se assemelhava à das pom­bas de Santa Colomba, pela cor que tinha e por sua aparência. Adam Salton vinha por último, visto que Caswall não tinha animosidade direta contra ele. Con­siderava-o apenas como um obstáculo, uma dificuldade a ultrapassar ou a destruir. O jovem australiano tinha sido tão circunspecto que o único erro que se lhe podia atribuir era ter sido testemunha de suas experiências. Além disso, Caswall não o entendia bem e para uma natureza como a sua, a ignorância era causa de alar­me, de medo.

Caswall retomou o costume de olhar o grande pa­pagaio na extremidade da corda, ocupando-se ainda em examinar mais atentamente os misteriosos tesouros que sua casa continha, em particular o cofre de Mesmer. Permanecia longo tempo no alto da torre, ruminando sua paixão contrariada. A grande extensão de suas terras, que podia ver daquela altura, teria podido, tal­vez, lhe proporcionar um pouco de alegria. Mas, ao contrário, a visão de suas propriedades, eternamente alongadas diante dele, lhe dava o sentimento de ser vítima de uma injustiça. Como, pensava ele, sendo do­no de tanta coisa e causando até inveja a todos, não podia satisfazer o anseio mais caro a seu coração?

Nesse estado de depravação intelectual e moral, en­controu consolação no retorno a suas experiências so­bre os poderes mecânicos do papagaio de papel. Du­rante duas semanas, não viu lady Arabela, que estava sempre à espreita de uma ocasião para reencontrá-lo, nem as netas de Watford, que tinham o cuidado de evi­tá-lo. Adam Salton deixava simplesmente passar o tem­po, conservando-se sempre pronto a agir contra tudo que pudesse prejudicar seus amigos. Fez uma visita à fazenda e Mimi lhe contou o último combate espiritual. Sua única reação foi mandar vir de Ross várias outras mangustas entre as quais uma segunda matadora de cobra real, que levava, quase sempre, em uma caixa, por todos os lugares em que costumava passear.

As experiências de Caswall com o papagaio conti­nuavam com êxito. Cada dia, experimentava enviar ob­jetos mais pesados e a máquina parecia fortalecida por uma sensibilidade que aumentava com os obstáculos que se lhe apresentavam. O papagaio erguia no céu enorme peso e como o vento vinha regularmente do norte, ele se projetava na direção do sul. Durante o dia, as "mensagens" cujo peso crescia regularmente, eram enviadas para o céu. Algumas eram feitas de pa­pel ou de papelão fino, outras de couro e de material simples. O peso que o papagaio suportava formava na corda uma grande curva côncava, de tal sorte que as "mensagens", zumbindo, iam provocando ruído surdo. Se se colocasse o dedo sobre a corda, um zunido forte, intermitente, respondia aos choques das mensagens. Edgard Caswall inteiramente obsedado pelo papagaio, achou grande semelhança entre esse zumbido intermi­tente e a música de encantador de serpentes, que os pombos tinham produzido, voando entre os caniços secos.

Um dia, fez uma descoberta no cofre de Mesmer e pensou logo em utilizá-la para as "mensagens". Era um fio metálico "fino como cabelo humano", muito com­prido, enrolado num disco finamente trabalhado e que se desenrolava espontaneamente, livremente, a prodi­giosa distância. Caswall o experimentava com "men­sagens" e achou que funcionou às maravilhas. Fosse a mensagem simples ou transportasse algo de mais pe­sado, o fio se comportava muito bem. Além disso, era suficientemente sólido e leve para suportar as mensa­gens sem exagerada tensão. Experimentou-o bom nú­mero de vezes, mas tendo caído o crepúsculo, não distinguia bem os recados. Para ver melhor, procurou um objeto mais pesado, encontrou a estátua egípcia de Bess, colocou-a no fio, fixando-a num pedaço de madei­ra que servia de mensagem. Em seguida, aumentando as trevas, abandonou o teto da torre e se esqueceu disso.

Essa noite, sentiu estranha impressão de mal-estar, mas não de insônia, porque tinha consciência de ter dor­mido. Levantou-se de manhã e como de costume olhou logo para o papagaio de papel. Não o vendo em seu lu­gar de costume, no céu, procurou-o de outro lado. Fi­cou espantado, quando descobriu o papagaio, puxando-o como de hábito pela corda que o retinha. Mas ele, ago­ra, se achava de outro lado da torre e plainava e puxava contra o vento, na direção norte. Achou isso tão esqui­sito que decidiu examinar o fenômeno e não fazer co­mentário sobre tal fato.

Em suas numerosas viagens, Edgard Caswall tinha aprendido a usar o sextante e era agora perito em seu manejo. Com o auxílio dele e de outros instrumentos, pôde estabelecer a posição do papagaio, o ponto exato sobre o qual voava. Ficou admirado ao descobrir que ele pairava precisamente sobre Diana's Grove. Seu primei­ro ímpeto foi de comunicar a lady Arabela a descoberta, mas depois julgou fosse melhor nada dizer. Por uma razão que não soube explicar, ficou contente com seu silêncio, pois que, na manhã seguinte, olhando para fo­ra, viu que o ponto sobrevoado pelo papagaio era Mercy Farm. Depois que verificou esse fato, com seus ins­trumentos, sentou-se ele à janela da torre, olhando pa­ra fora e refletindo. A nova posição da pandorga es­tava mais a seu gosto, mas achar uma explicação para isso o perturbava mais ainda. Durante o dia não se afastou da sala da torrinha. Ele lhe pareceu atraído por forças incontidas e incontroláveis, para direções in­compreensíveis e estranhas à sua própria vontade. Em sua incapacidade real de explicar, sem recursos, esse fe­nômeno, de maneira satisfatória, chamou um criado e lhe ordenou fosse procurar Oolonga e o mandasse ime­diatamente à torre. O criado lhe respondeu que o afri­cano estava desaparecido desde o dia anterior.

Caswall se tornara tão irritadiço que até esse pe­queno fato o perturbou. Como estivesse desnorteado e desejasse falar com alguém, mandou chamar Simon Chester, que chegou imediatamente, resfolegando pela pressa, e perturbado por esse chamado, não esperado. Caswall mandou que sentasse e depois que ele se acal­mou, perguntou-lhe de novo se nunca soubera o que o cofre de Mesmer continha ou se, ao menos, não ouvira falar disso. Chester confessou que, uma vez, no tempo "do outro senhor Edgard" tinha visto o cofre aberto e que, conhecendo um pouco de sua história e adivinhando-a, mais ainda, ficara tão conturbado que desfalecera. Quando recobrou o sentido, o cofre já tinha sido fecha­do. Desde esse dia, o "senhor Edgard" de então nunca mais tocara nesse assunto, em sua presença.

Quando Caswall lhe ordenou que descrevesse o que tinha visto no cofre, ficou muito agitado e, apesar de to­dos os esforços para se conservar calmo, perdeu o sen­tido e caiu por terra. Caswall chamou os criados que lhe aplicaram os remédios habituais. Mas o ancião não voltava a si. Depois de largo tempo, o médico, que ti­nham mandado buscar, apareceu. Um simples olhar foi suficiente. Tranqüilamente ajoelhou-se perto do velho criado e o examinou com atenção. Depois levantou-se e disse com voz sufocada:

"Sinto dizer-lhe, sir, que este homem está morto.”

 

                   A PISTA

Aqueles que tinham se aproximado de Edgard Caswall depois de sua vinda e tinham já avaliado a na­tureza cheia de sangue frio ficaram surpresos por vê-lo tão abatido com a morte do velho Chester. Na verdade, pessoa alguma tinha apreciado corretamente seu cará­ter. Pensavam, sem dúvida com razão, que o pesar que ele sentia era o de um patrão para com um velho e fiel empregado da família. Mas ninguém supôs que era simplesmente a expressão egoísta de seu desapontamen­to diante da perda do último sobrevivente desse período interessante da história de sua família, época essa ago­ra e para sempre condenada ao mistério. Caswall sabia bastante sobre a vida de seu antepassado, em Paris, mas desejava conhecer mais ainda e ter maiores deta­lhes. O tempo em que seu ancestral passara em Paris era-lhe o que mais lhe aguçava a curiosidade.

Lady Arabela, que espreitava a oportunidade, viu nessa circunstância, como amiga compassiva, a ocasião de promover uma série de encontros com o homem que desejava conquistar. Pôs-se em ação no dia seguinte à morte do velho Chester, ou melhor, assim que a notícia penetrou pela porta de trás de Diana's Grove. Durante esse encontro, desempenhou tão bem o papel que, apesar de sua fria natureza, Caswall ficou impressionado.

Oolonga foi a única pessoa que não se sentiu iludi­do pelos sentimentos expressos por lady Arabela. Para todas as emoções, bem como para todas as outras coi­sas, Oolonga era unicamente prático. Incapaz de sen­tir o menor sentimento de compaixão, salvo para o pró­prio sofrimento, ou para perda de seu dinheiro, jul­gava que outrem só poderia simular tal sensação, ape­nas com o intuito de enganar. Daí concluiu que ela vie­ra a Castra Regis, novamente, com a intenção de rou­bar alguma coisa e decidiu, nessa ocasião, não deixar es­capar essa oportunidade de aprofundar sua influência sobre ela. Deveria vigiar, com especial atenção, tudo o que acontecesse. Depois de ter concluído que lady Ara­bela tentaria furtar o cofre cheio de tesouros, ficou sus­peitando que todo o mundo teria a mesma intenção e passou a velar todas as pessoas e todos os lugares. Co­mo Adam, por sua parte, fizesse suas próprias pesqui­sas a respeito de lady Arabela, natural era que a pista de ambos se cruzasse. Foi o que aconteceu.

Adam tinha vindo, como sempre, observar o lugar que lhe interessava, trazendo consigo a caixa da mangusta. Ele chegou diante das grades de Diana's Grove justamente quando lady Arabela se preparava para ir a Castra Regis desempenhar o que julgava uma missão de conforto. Vendo de sua janela Adam esgueirar por entre as árvores, perto da grade, ela julgou que ele es­taria empenhado em ação semelhante à sua. Assim, terminando rapidamente sua toalete, deixou tranqüila­mente a casa e com a ajuda de sombras ou árvores que pudessem ocultá-la, ela o seguiu em seu passeio.

Oolonga, rastejador perito, estava atrás dela, mas conseguia ocultar-se melhor que ela. Viu que Adam le­vava nos ombros uma caixa misteriosa e julgou que ela continha alguma coisa de precioso. A visão de lady Ara­bela, que perseguia discretamente Adam, o reforçou nessa idéia. Com o espírito inteiramente empolgado pela vontade de roubar, conjeturou que chegara o mo­mento.

Em sua deambulação, Adam entrara nas terras de Castra Regis e Oolonga notou que a mulher continua­va a segui-lo. Teve receio de se achegar mais perto, por­que nessa ocasião tinha os dois lados adversários que o poderiam descobrir. Quando observou que lady Arabela se dirigia para o castelo, decidiu segui-la. Por isso não percebeu que Adam mudara de direção e voltara para o caminho principal.

Nessa noite, Edgar Caswall tinha dormido mal. O trágico acontecimento do dia, sempre presente a seu es­pírito, o conservara acordado. Depois do café da ma­nhã instalou-se diante da janela aberta, pensando em várias coisas, observando o papagaio. De sua sala podia ver todos os arredores, mas os dois lugares que mais o preocupavam eram Mercy Farm e Diana's Grove. As atividades dessas duas propriedades eram as de sempre: trabalhos domésticos e agrícolas, portas e janelas a abrirem, ruídos de vassouras e escovas, e, em geral, o desenrolar repetido de ordem habitual.

De sua janela, cuja altura o tornava invisível aos olhos de outros, via as três pessoas que se espreitavam mutuamente e depois se separaram: Adam Salton indo de um lado e lady Arabela, seguida pelo Negro, para ou­tro. Em seguida Oolonga desapareceu entre as árvores; mas Caswall podia vê-lo imóvel, a espiar. Lady Ara­bela, depois de ter observado ao redor de si, deslizou pela porta aberta e escapou de sua vista.

Pouco depois, ouviu uma ligeira batida em sua por­ta que se abriu vagarosamente e pôde ver o vestido branco de lady Arabela na soleira.

 

                     VISITA DE SIMPATIA

Caswall ficou realmente surpreso quando percebeu lady Arabela, embora não houvesse motivo para tal, da­do o que já acontecera entre ambos. A expressão de seu rosto era mais intensa do que lady Arabela previra e apesar de estar preparada para a reação, ela demons­trou também verdadeiro espanto. Com seu habitual sangue frio e sua habilidade de se salvar de situações imprevistas, não tardou a se recompor. Para isso come­çou logo a falar, sem ter, entretanto, a mínima idéia do que iria dizer-lhe.

Vim para lhe apresentar condolências pelo des­gosto que o senhor acaba de sofrer.

Que desgosto? Receio estar enganado, mas, na verdade, não entendo.

Sentindo-se desarmada, ela hesitou antes de responder:

—            Eu me referia ao velho que morreu tão repenti­namente, ao seu velho criado...

O rosto de Caswall perdeu um pouco de sua per­plexidade.

Oh! Era apenas um criado; e já tinha mais de setenta anos, quase oitenta. Ou antes devia ter seus noventa anos!

Contudo era um velho criado que...

As palavras de Caswall não eram tão frias como sua inflexão.

—            "Jamais eu me imiscui com meus empregados. Esse velho ficou aqui porque fazia muito tempo que trabalhava. Suponho que meu administrador temia fi­car impopular se o mandasse embora.”

Com os diabos, como poderia ela continuar o papel que se arrogara, se isso continuasse assim? Tentou ela, portanto, outro caminho, desta feita pessoal.

"Estou desolada por perturbá-lo. Respeito as con­venções, mas não sou escrava delas. Contudo há limi­tes... É bastante deselegante apresentar-me desta ma­neira e não sei o que o senhor poderá dizer ou pensar do momento escolhido para esta intromissão".

Caswall, apesar de tudo, era um gentleman por há­bito e tradição, e como tal se portou nessa ocasião.

"Eu somente lhe posso dizer, lady Arabela, que a senhora será sempre benvinda, qualquer que seja a oca­sião que escolher para honrar esta casa com sua pre­sença.”

Ela lhe sorriu agradecida.

"Muito, muito obrigada. O senhor sabe deixar qual­quer um à vontade. Estou mais feliz que aborrecida com minha infração às convenções. Sinto que posso fa­lar-lhe abertamente sobre um assunto que me preo­cupa. “

Imediatamente ela se pôs a falar de Oolonga e de suas estranhas suspeitas quanto à sua honestidade. Cas­wall se pôs a rir e pediu que lhe contasse tudo, em de­talhes. Seu comentário final foi revelador.

"Só lhe posso dar um conselho se a senhora tiver a menor coisa a reprovar, sobre ele, esse negro infernal, acabe com ele imediatamente. Um negro tem a cabeça dura e quando fica obsedado por algo, torna-se a pior coisa do mundo. Assim o melhor é despachá-lo para o outro mundo, depressa e limpamente.

Mas... e a lei, senhor Caswall?

A lei, ora a lei... A lei não se preocupa com a morte de negros. Um a mais ou a menos, não tem a mínima importância. Pessoalmente falando, sua morte me agradaria até!

O senhor me causa medo", foi o único comentá­rio de lady Arabela, pronunciado com voz suave e doce sorriso.

Muito bem, fiquemos nisso. De qualquer modo, nos livraríamos de um entre eles.

Eu também não gosto, como o senhor, dos ne­gros, respondeu ela, e suponho que não se teria difi­culdade em livrar-nos dele.

Depois, mudando de voz e de atitude lhe disse ale­gremente: — "E agora, diga-me, estou perdoada?”

—            Como não, minha querida lady, se é que há algo a perdoar.

Vendo que ela se aprontava para partir, ele veio com ela até a porta e da maneira mais natural a acom­panhou até a saída. Atravessou o saguão e desceu até a avenida. Quando ele regressou para a casa, ela pen­sou consigo mesma: Bem, tudo foi perfeito. Creio que não perdi a manhã.

E encaminhou-se vagarosamente para Diana's Grove.

Adam Salton tinha seguido o curso do Brow, recordando-se do que sabia sobre esses diversos lugares. Re­tornou a Leser Hill, exatamente quando sir Nataniel co­meçava a .almoçar. Tendo o senhor Salton ido a um en­contro matinal, ele estava sozinho. Terminada a refei­ção, vendo no rosto de Adam que este tinha alguma coisa a lhe contar, acompanhou-o à sala de trabalho e fechou a porta.

Assim que ambos acenderam os cachimbos, sir Na­taniel começou:

—            Lembrei-me de um fato interessante a respeito de Diana's Grove. Trata-se, e eu o soube há bastante tempo, de estranho mistério concernente a essa casa. Nessa confusão tão entranhada que procuramos escla­recer, ele pode se revelar importante ou insignificante.

Diga-me se assim lhe apraz tudo o que o senhor sabe ou suspeita. Para começar, de que natureza é es­se mistério — físico, moral, mental, histórico, científi­co, oculto? Qualquer que seja ele pode ser-me de au­xílio.

Muito bem. Vou tentar dizer-lhe o que penso. Mas, não pude encontrar um seguimento lógico em mi­nhas idéias, assim você me perdoará a desordem possí­vel em minha narrativa. Suponho que já tenha visto a casa de Diana's Grove.

Somente o exterior, mas a conservo bem na me­mória e posso me recordar de tudo o que o senhor mencionar.

A casa é muito antiga. Foi, provavelmente, a primeira ou uma das primeiras aqui construída no tem­po dos romanos. Foi, certamente, restaurada várias ve­zes, em épocas mais recentes. O prédio lá se erguia quando Mércia era um reino. Não penso que seus ali­cerces sejam posteriores à conquista normanda. Há al­guns anos quando eu era presidente da sociedade ar­queológica de Mercia, eu a visitei inteiramente, com muita atenção. O capitão March acabara de comprá-la. A casa fora arranjada, de acordo com a recém-casada. Os fundamentos eram mui sólidos, tão sólidos e tão pesados como os de uma fortaleza. Havia lá uma série de cômodos subterrâneos. Uma delas particularmente me chamou a atenção. Suas dimensões eram considerá­veis e sua alvenaria maciça. No meio da peça, encontra­va-se um poço, construído ao rés-do-chão, que se apro­fundava muito no solo. Nada restava de seu passado, nem sarilho, nem vestígio, nem corda. Atualmente sa­bemos que os romanos construíam poços de grande pro­fundeza. A água era tirada com a "velha corda de pe­daços de pano"; aquela de Woodhur media quase mil pés. Aqui, portanto, nós tínhamos somente o buraco de um poço, enorme, profundo. A porta do cômodo era grossa e fechava com ajuda de um ferrolho de quase um pé quadrado. Era evidentemente destinado a pro­teger de alguma pessoa ou coisa; mas ninguém até es­se dia soubera que alguém tivesse sido autorizado a en­trar no cômodo. Tudo isso vem a propósito de uma ins­piração que me ocorreu de que o buraco do poço podia ser o caminho pelo qual o Verme Branco ia e vinha. Nessa ocasião quis fazer pesquisas, escavações, se isso fosse necessário, às minhas custas até, mas todas as minhas sugestões encontraram veto rápido e categórico. Não pude, pois, nada mais descobrir sobre isso, que acabou por cair no esquecimento de todos, até no meu mesmo.

O senhor se recorda, sir, indagou Adam, da apa­rência do compartimento onde se achava o buraco do poço? Havia móveis ou algum objeto nesse cômodo?

A única coisa de que me lembro era uma espé­cie de luz verde, muito brumosa, muito fraca que pro­vinha do poço. Não uma luz fixa, mas intermitente e irregular, sem nenhuma relação com tudo o que tinha visto.

Lembra-se como o senhor chegou ao cômodo do poço? Ingressava-se nele por uma porta visível de fora, por uma sala interior ou por uma passagem?

Penso que devia haver um cômodo com um ca­minho por onde se ia. Recordo-me de ter subido alguns degraus escarpados; eles deviam ter sido usados e fi­cado polidos e escorregadios por uso freqüente a tal ponto que, com dificuldade, conseguia firmar os pés. Dei até um passo em falso e caí não longe do buraco do poço.

Havia algo de extraordinário nesse lugar — um cheiro particular, por exemplo?

Cheiro particular? Sim! Parecido com o da sentina de um navio ou de um pútrido pantanal. Era tão nauseabundo que, quando saí, pensei que ia ficar doente. Vou tentar meditar de novo sobre essa minha vi­sita e ver se posso lembrar de novo detalhe sobre o que vi ou senti.

Então, sir, talvez mais tarde, durante o dia, o senhor me dirá alguma coisa do que tenha recordado.

Ficarei encantado, Adam. Se seu tio não tiver voltado até então, eu procurarei você em seu escritório e poderemos recomeçar esta interessante conversa.

 

                   O MISTÉRIO DE «GROVE”

À tarde, Adam resolveu fazer uma pequena explo­ração. Quando atravessa o bosque que fazia face às gra­des de Diana's Grove, percebeu, por instantes, a silhue­ta do Africano. Embrenhou-se mais no matagal e se­guiu uma senda paralela à avenida que conduzia à casa. Ficou contente por não haver trabalhadores ou criados nos arredores, porque não queria que essas pessoas o vissem a passear nas terras de lady Arabela. Aprovei­tando a espessura das árvores, aproximou-se da resi­dência e a rodeou. Foi recompensado por seu trabalho, porque, ao lado da casa, perto do lugar onde se erguia, a pique, a frontaria da falésia de pedras, viu Oolonga escondido atrás de um tronco irregular de um grande carvalho. O Negro, muito atento a observar alguma coi­sa ou alguém, não podia perceber que ele próprio era observado. Isso ajudava a Adam que podia assim exa­minar, à vontade, os lugares.

O bosque cerrado lançava espessa sombra, embora a maioria das árvores fosse fina e a inclinação escarpa­da, sob a qual se escondia o Africano estivesse quase em escuridão. Adam se achegou o mais que pôde e ficou espantado ao notar uma fonte luminosa nesse lugar. Quando ele constatou o que era isso, mais que nunca se empenhou na sua pesquisa. O Negro dirigia a luz de uma lanterna opaca para a base da ladeira escarpada. A luz revelou uma série de degraus de pedra terminan­do na maciça porta de ferro, situada em baixo, ao lado da casa. Todas as estranhas coisas que lhe tinha nar­rado, e todas aquelas, pequenas ou grandes que ele mes­mo observara, acorreram em chusma e caoticamente a seu espírito. Instintivamente se refugiou por detrás de um grosso tronco de carvalho para vigiar o que iria acontecer.

Ao fim de certo tempo, tornou-se evidente que o J Africano tentava descobrir o que havia atrás da pesada porta. Não havia meio algum de olhar o interior, por­que a porta era bem ajustada aos batentes de pedra. A única possibilidade era a de fazer passar luz através de um buraquinho que se achava entre as grandes pe­dras por cima da porta. Mas o buraco estava muito al­to para que, ficando em terra, se conseguisse ver o in­terior. Oolonga erguendo-se nas pontas do pé e proje­tando a luz da lanterna o mais alto que pôde tentou ver se existia algum outro buraco no metal. Nada tendo en­contrado, trouxe do bosquezinho um tronco que apoiou contra o topo da porta, subindo por ele com grande agi­lidade. Mas assim mesmo não se alçou mui perto do buraco para que pudesse contemplar o interior do cô­modo. Então, desceu e recolocou o tronco onde o en­contrara. Depois ocultou-se ao lado da porta de ferro e esperou, com a manifesta intenção de lá permanecer até que alguém chegasse. Pouco depois, lady Arabela, andando mui silenciosamente, aproximou-se da porta. Quando a viu, tão perto, quase ao alcance das mãos, Oolonga deu um passo para a frente de seu esconderijo e falou num sussurro que, na escuridão mais se parecia a um silvo.

Eu queria vê-la, senhora, imediatamente e em segredo.

Que quer você?

A senhora sabe, já lhe disse.

Ela fixou nele os olhos chame jantes cuja cor verde os tornava brilhantes como esmeraldas.

Vamos, nada disso. Ao contrário, se você deseja dizer-me alguma coisa de sensato, poderá me encontrar aqui onde estamos, às sete horas.

Ele não retrucou. Mas, juntando as palmas das mãos, inclinou-se tanto que sua fronte tocou a terra. Depois reergueu-se e partiu lentamente.

Adam Salton de seu esconderijo observara tudo e ficara espantado. Minutos depois deixou também seu posto e regressou a Lesser Hill, decidido a estar no mes­mo esconderijo, atrás de Diana's Grove, às sete horas.

Pouco antes do encontro, Adam saiu, furtivamente, de sua casa e refez o caminho para as escarpas de Diana's Grove. O lugar parecia deserto e silencioso e ele aproveitou para esconder-se perto do lugar onde ti­nha visto Oolonga, procurando saber o que havia no in­terior atrás da porta. Esperou, sem fazer o menor ruí­do, e logo depois percebeu algo de branco que avançava por entre o arvoredo. Não ficou assustado em reconhe­cer o vestido branco de lady Arabela. Ela se achegou e ficou à espera, com o rosto voltado para a porta de ferro. Oolonga apareceu, subitamente, e se aproximou dela. Adam notou, com surpresa, que ele carregava nos ombros a caixa em que estava a sua mangusta. Natu­ralmente o Negro não sabia que era vigiado e que seu espia era justamente o homem de quem roubara a caixa.

Embora ele se aproximasse sub-repticiamente, lady Arabela o ouvira e se virou para ele. Era difícil distin­gui-lo nas trevas, por que como de costume estava ves­tido de preto, todo, menos o colarinho e os punhos cuja brancura se podia ver. Lady Arabela iniciou a conversa, perguntando:

Que quer você? Matar-me ou roubar-me?

Não, amar você.

Esta resposta causou-lhe um frêmito, mas ela experimentou mudar o tom.

—            O que você está trazendo aí é um caixão? Se for, você me faz perder tempo. Ele não me abalaria em nada.

Quando um negro suspeita que se zomba dele, toda a ferocidade de sua natureza ressurge à superfície; e esse homem era da pior espécie.

Não é um caixão para gente. Esta caixa é para você. Alguma coisa que você gosta. Eu dar a você!

Preocupada em afastá-lo do assunto desse amor que o tornava louco,, lady Arabela fez novo esforço para que ele pensasse em outra coisa.

É esse o motivo pelo qual você queria me ver?

Ele fez sinal afirmativo com a cabeça.

Então dê a volta por outra porta. Mas seja pru­dente; não tenho nenhuma vontade de ser vista tão perto de minha casa em conversa com um... um negro como tu.

Ela tinha escolhido, de propósito, essas palavras. Queria combater sua paixão de modo diferente e julga­va, dessa maneira, conservá-lo tranqüilo. Naquela es­curidão ela não podia ver a raiva que cobria o rosto do Negro que rilhava os dentes e girava os olhos, furibundos, sinal que teria podido adivinhar, apesar das tre­vas. Rodeou ela a casa, pela direita. Oolonga a seguia, quando ela o deteve, erguendo a mão.

Não, por esta porta, não; ela não é para negros. A outra entrada é muito boa para você.

Lady Arabela pegou uma chavezinha que estava pendurada a sua corrente do relógio, e abriu uma portazinha, baixa, situada a um canto da casa, um pouco abaixo do Brow. Oolonga obedeceu a seu gesto, retor­nou em direção à porta. Adam olhou, com cuidado, a caixa da mangusta que o Africano levava e ficou con­tente por ver que ela estava intacta. Ao mesmo tempo, apalpou inconscientemente a chave que estava no bolso de seu colete. Quando Oolonga desapareceu de vista, Adam correu atrás de lady Arabela.

 

                   A MORTE DE OOLONGA.

A mulher virou-se rapidamente quando Adam a to­cou no ombro.

"Enquanto estamos sozinhos, permita-me dizer-lhe que é melhor não confiar nesse Negro", sussurrou ele.

Sua resposta foi seca e concisa:

Não confio nele.

Estar prevenido é estar armado. Diga-me, por favor, porque a senhora desconfia dele?

Meu amigo, o senhor não tem idéia da audácia desse homem. Imagine que ele quer casar comigo!

Não! exclamou Adam, incrédulo, mas ao mes­mo tempo zombeteiro.

Sim! E com esse objetivo ele quer seduzir-me, fazendo-me compartilhar com ele de um cofre de tesou­ros, roubado em casa do senhor Caswall. O senhor, por que desconfia dele?

Reparou a senhora na caixa que ele carregava ao ombro? Ela me pertence. Tinha-a colocado na sala de armas, quando fui jantar. Sem dúvida ele conseguiu penetrar lá e roubá-la. Sem dúvida ele pensa que este­ja cheia de riquezas.

Ele tem certeza!

Co' os diabos, como a senhora afirma isso? per­guntou Adam.

—            Ele me ofereceu como presente, se eu aceitar sua proposta. Que horror! Estou até envergonhada de lhe contar tal coisa. Que animal!

Enquanto falavam, ela tinha aberto uma porta es­treita, de ferro, bem assentada, porque ela a abriu sem dificuldades e a fechou sem ruído, rapidamente. O in­terior jazia em meias-trevas; a mulher, porém, adian­tou-se resolutamente, sem nenhum temor, nem empecilho, como se andasse à plena luz. Uma luz verde, de origem desconhecida, permitiu a Adam ver larga escada de pedras maciças que levava ao alto. Lady Arabela trancou a porta atrás de si, com rapidez, sem ruído, depois subiu os degraus, correndo suave e ligeiramente. Durante um minuto, tudo ficou escuro, depois a fraca luz apareceu de novo, e Adam pôde contemplar o con­torno das coisas. Outra porta de ferro, estreita e alta como a primeira, conduzia a um grande cômodo, cujos muros, de pesadas pedras, tão unidas que apresentavam somente lisa superfície. Polida há anos. Do lado oposto, brunida como as paredes, via-se outra porta de ferro, larga, mas menos alta. Lá, a luz era mais forte, graças a uma abertura, situada acima da porta e dando para o ar livre.

Lady Arabela pegou de seu cinto outra chavezinha que inseriu no meio de enorme fechadura. O grande ferrolho devia funcionar maravilhosamente, porque, num instante, a pequena chave girou, os grandes fechos rodaram silenciosamente e as portas de ferro se abri­ram. Fora, sobre os degraus de pedra, estava Oolonga, ainda com a caixa da mangusta ao ombro. Lady Ara­bela se conservou ligeiramente de lado e o Africano, tomando isso como convite, entrou de maneira servil. Assim que penetrou no interior, olhou rapidamente ao redor de si, dizendo:

— "Muitos mortos aqui! Grande destruição! Nume­rosos mortos... Deus, Deus!

Ele cheirava ao redor, parecendo sentir enorme prazer com as emanações. O tom e o conteúdo de suas palavras eram tão inquietantes que Adam levou a mão ao revólver e o dedo ao gatilho, preparando-se para o que desse e viesse.

O prazer demonstrado pelo Negro tinha evidente razão: o buraco escancarado do poço, situado quase sob suas narinas, exalava tal cheiro que Adam se sentiu mal. Ao contrário, lady Arabela parecia não senti-lo de modo algum. Adam jamais encontrara odor semelhan­te. Ele o comparou com todas as experiências pernicio­sas que sofrerá: o esgoto dos hospitais de guerra, os ma­tadouros, as escórias das câmaras de dissecação. Ne­nhum desses cheiros se assemelhava àquele. Contudo, podia reconhecer um pouco de cada um deles, acrescido, além disso, com a acidez de produtos químicos e com exalações envenenadas das sentinas de um navio onde sobrenadasse uma multidão de ratos afogados.

De repente, o Negro percebeu a presença de Adam Salton. Puxou, então de um revólver e atirou contra ele, errando felizmente. Adam era exímio e rápido ati­rador, mas nessa circunstância, seu espírito, um tanto distraído, o tinha impedido de se prevenir. Contudo, reagiu prontamente, pois não era covarde. Os dois ho­mens entraram em luta. Ao lado deles abria-se o tene­broso buraco do poço com horríveis eflúvios que subiam de suas misteriosas profundezas.

Adam e Oolonga estavam ambos armados de re­vólveres. Lady Arabela tinha certamente grande von­tade de atirar, mas como não estivesse armada, ten­tou interferir de outra maneira. Desusando para adian­te, tentou atacar o Africano; mas ele escapou de seu abraço e quase se precipitou no misterioso buraco. Co­mo recuasse para retomar pé, ele apontou a arma con­tra ela e atirou. Instintivamente Adam se lançou sobre ele. Enlaçando-se um ao outro, foram cambaleando até a beira do poço.

A cólera de lady Arabela, agora totalmente desen­cadeada, dirigia-se, inteiramente, contra Oolonga. Es­tendendo as mãos, conseguiu prendê-lo, mas, nesse ins­tante a tranqueta que fechava a caixa, abriu-se, por um movimento interior. O matador da cobra real (naja) atirou-se contra a mulher, num furor indescritível. Co­mo a mangusta lhe atacasse a garganta, lady Arabela a pegou e, com raiva superior, a rasgou em duas par­tes, como se o animal fosse uma folha de papel. Isso lhe exigiu uma força terrível. Em um instante, a man­gusta foi atirada ao buraco do poço. Em seguida, lady Arabela pegou Oolonga e aos empuxões, apertando-o com seus braços brancos, o arrastou para a beira da hiante abertura.

Adam viu uma mistura de luzes verdes e vermelhas flamejar no círculo turbilhante que descia no poço. Dois olhos de um verde deslumbrante se fizeram visí­veis por instantes, depois se aprofundaram mais e mais, com pavorosa velocidade. Ao desaparecer, projetaram para o alto, potente luz esverdeada. Quando a luz desa­pareceu, por sua vez, nas pútridas profundidades, ou­viu-se um grito percuciente que gelou o sangue de Adam. Era o clamor de uma agonia cujo sofrimento e terror espantosos pareciam não ter fim.

Adam Salton sentiu que jamais esqueceria esses ter­ríveis momentos. As trevas que rodeavam esse poço-catacumba, horrorosa, que parecia penetrar nas mais profundas entranhas da terra, lhe faziam imaginar a visão e os ruídos das regiões infernais. O destino espan­toso do Africano, descendo para seu terrível julgamen­to, seu rosto negro, tornado cinza pelo terror, os olhos ressaltados e sanguinolentos rolando a um terror extre­mo, à quase loucura, a misteriosa luz, ela, mesma fonte de pavor, e, sobretudo, o horrísono brado saído do poço sem fundo, cujas bordas estavam inundadas de sangue fresco, eram reais imagens do inferno. Comparando com isso tudo, a morte do pequeno e intrépido matador de serpentes, contudo tão horripilante, provocada por uma ferocidade que não pertencia a nenhuma força viva da terra, não passava de banal acidente. Adam estava em tal estado de perturbação que só pensou em fugir de tal espetáculo. A sinistra luz verde que se alçava do tenebroso poço parecia buscar sua origem no mais pro­fundo do lodaçal primitivo. As trevas se expandiram sobre ele, com desconcertante densidade — essas trevas, nesse lugar, e com todas as medonhas recordações que provocavam...

Ele se arrojou, como louco, para a frente, escorre­gou na escada, sobre uma massa viscosa, de cheiro acre, e, titubeante, achou o caminho para a sala in­terior.

Então, esfregou os olhos, num pávido estupor. No alto dos degraus de pedra, diante da porta estreita por onde entrara, se esboçou a forma branca de lady Ara­bela. Somente as marcas de sangue em sua face, suas mãos e sua garganta visíveis nessa brancura lembra­vam o que havia acontecido. Ela estava calma e tran­qüila como no momento em que se pusera de lado para que ele pudesse entrar.

 

                   UM INIMIGO NA NOITE

Adam Salton perambulou um pouco antes de re­tornar a Lesser Hill; percebia que isso era o melhor, não só para tranqüilizar seus nervos despedaçados pela hor­rível cena, mas também para pôr em ordem suas idéias antes de falar com sir Nataniel. Estava um tanto em­baraçado para contar essa aventura a seu tio, porque as coisas tinham se desenvolvido, desde a primeira en­trevista, de tal maneira que não podia prever as rea­ções do velho gentleman ao ouvir narrar, pela primeira vez, esses estranhos acontecimentos. O senhor Salton ficaria certamente descontente por ter sido afastado dessa história, de que grande parte tinha relações com pessoas de sua casa. Imenso alívio sentiu quando sou­be que seu tio tinha telegrafado ao administrador para lhe comunicar que os negócios o retinham em Walsall e que aí permaneceria à noite e só regressaria na ma­nhã seguinte para o almoço.

Adam encontrou sir Nataniel que se preparava pa­ra ir dormir. Nada lhe contou do que sucedera, mas re­solveu deixar para o dia seguinte essas confidencias que demandariam cuidadosa atenção.

Ao contrário do que pensava, dormiu bem e des­pertou de madrugada, com o espírito calmo e os nervos repousados, fortalecidos. A criada trouxe, com a taça de café, um bilhete que tinha sido colocado na caixa de correspondência. Era de lady Arabela e se destinava certamente a se precatar, depois do que ele tinha vis­to. Leu-o várias vezes com atenção para estar seguro de não ter deixado passar nenhum detalhe importante.

 

           Caro senhor Salton.

Não pude deitar-me antes de lhe escrever. Assim, peço-lhe que me excuse, se o perturbo em momento ino­portuno. Na verdade, o senhor me deve perdoar, se, tentando fazer o que é justo, eu me engane em lhe di­zendo muito ou demasiadamente pouco. O fato é que estou completamente atarantada e enervada por tudo o que se passou nessa terrível noite. Tenho dificuldade até em escrever, minhas mãos treinem de tal modo que não as posso controlar e estremeço ainda ao lembrar-me dos horrores que aconteceram aos nossos olhos. Eu estou profundamente aflita por ter sido, embora invo­luntariamente, uma das causas desse pavor que o atin­giu. Perdoe-me, se é possível, e não pense mal de mim. Rogo-lhe isso com confiança. Depois que compartilha­mos dos mesmos perigos e do mesmo pesadelo real da morte, eu sinto que seremos um para o outro mais que simples amigos, que posso me apoiar no senhor e no senhor depositar minha confiança, segura de que sua simpatia e piedade estarão comigo. Permita-me agra­decer-lhe a amizade, a ajuda, a proteção e socorro ver­dadeiros que demonstrou para comigo naqueles instan­tes de ameaças e angústias mortais. Esse homem te­mível, eu vou vê-lo para todo o sempre em meus sonhos. Seu rosto negro e perverso vai expulsar qualquer lem­brança de luz e de bondade. Eternamente verei seus olhos maléficos quando ele se lançou ao buraco do po­ço, num vão esforço para escapar às conseqüências de seu próprio crime. Quanto mais penso nisso, mais me convenço de que tinha premeditado tudo, menos, é claro, seu horrível fim.

O senhor, talvez, tenha notado esse colar de peliças que, às vezes, eu trazia ao pescoço. É um dos tesouros mais estimados que tenho: um colar de arminho enfeitado com esmeraldas. Muitas vezes vi os olhos do Negro brilharem cobiçosamente à sua' vista. Eu o usa­va, para minha desgraça. Isso, quiçá, foi a causa do crime do infeliz e o arrastou para a desdita. À beira do poço, ele arrancou o colar de meu pescoço e esse foi o derradeiro gesto que vi. Quando ele caiu no poço, corri para a porta de ferro que havia atrás de mim. E, ouvindo o hurro pungente que assinalou seu desapare­cimento no vazio, senti-me feliz, mais que eu possa ex­pressar, por meus olhos terem sido poupados e não ter visto o sofrimento e horror que meus ouvidos tiveram que suportar.

Quando me libertei do abraço do Negro e depois que ele tombou no poço, compreendi o que significa liberdade. Liberdade! Não somente daquela horrível prisão, que ficará em minha lembrança, mas também do abraço horroroso desse monstro odiento. Durante todo o tempo em que eu viver, ser-lhe-ei grata pela minha li­berdade. Uma mulher deve expressar, às ve&es, sua gra­tidão; do contrário isso se torna difícil de suportar. Não sou mulher sentimental, que simplesmente gostaria de agradecer a um homem; sou mulher que conhece per­feitamente o mal e o bem que a vida pode trazer. Sei o que é amar e perder seu amor. O senhor, porém, não deve permitir que uma desgraça qualquer penetre em sua existência. Devo continuar a viver como tenho vi­vido, solitária, e, além disso, suportar, com outros pesares, a recordação desse último insulto e dessa tétrica cena. Vou, por hora, deixar Diana's Grove o mais rápi­do possível. Nesta manhã, partirei para Londres, onde ficarei uma semana. Não posso ficar por mais tempo, pois meus negócios exigem minha presença aqui. Julgo contudo, que uma semana na agitação de Londres, ro­deada de uma multidão de pessoas comuns, me ajudará a suavizar — não posso esperar o esquecimento com­pleto — as pavorosas imagens da, última noite. Quando eu conseguir dormir tranqüilamente — o que aconte­cerá, espero, dentro de um ou dois dias — estarei apta a retornar à minha casa e a reassumir os encargos que, serão sempre os meus.

Ficarei mui feliz, em meu regresso, de vê-lo ou, tal­vez, se a sorte me favorecer, o senhor tiver que ir a Lon­dres, poderemos nos encontrar mais rapidamente. Fi­carei hospedado no "Mayfair Hotel". Nessa cidade agi­tada, poderíamos esquecer os perigos e horrores que acabamos de sofrer juntos. Adeus e mais uma vez mil e mil agradecimentos por sua cordialidade e conside­ração.

                           Arabela March

 

Adam ficou surpreso com essa carta em que ela tanto se expandia, mas decidiu nada revelar a sir Nataniel antes de ter convenientemente refletido. Quan­do Adam encontrou sir Nataniel, durante o almoço, fi­cou contente por ter meditado bem nesse assunto. Não somente, agora, os fatos lhe eram familiares sob todos os seus aspectos, mas podia observá-los, como se estivera longe, e classificá-los, em seu espírito de acordo com sua importância. O almoço correu quase em silên­cio e não perturbou a marcha de suas idéias.

Assim que a porta se fechou, sir Nataniel começou a falar:

Percebo, Adam, que algum fato novo aconteceu e que você tem inúmeras coisas a contar.

Exatamente, sir. Suponho que é melhor contar-lhe tudo o que sei e tudo o que se passou comigo, desde que o deixei, ontem.

Adam, em seguida, lhe deu os detalhes da aventu­ra da noite precedente. Narrou, contudo, sucintamen­te as circunstâncias, tomando cuidado para não colorir os acontecimentos com comentários pessoais ou com jul­gamento sobre o significado de fatos que não tivesse entendido. A princípio, parecia que sir Nataniel iria fazer perguntas, mas absteve-se quando percebeu que a narrativa era concisa e eloqüente. Então contentou-se com olhares perplexos, fáceis de se interpretar, ou em certos casos, com expressivos gestos das mãos para aquiescer ou demonstrar que apreciava a exatidão de alguma conclusão. Até que Adam não tivesse acabado de falar e houvesse terminado o relato de sua história, o ancião não fez o menor comentário. Mesmo quando Adam tirou do bolso a carta de lady Arabela, com a ma­nifesta intenção de lê-la, sir Nataniel nada disse. Por fim quando Adam dobrou a carta e a colocou no en­velope, depois no bolso, dando a entender que havia acabado completamente a narração, o velho diplomata arrumou algumas notas em sua carteira, com especial cuidado.

Sua narrativa, caro Adam, está mui bem feita. Penso que nossa familiaridade com os atuais fatos deu aso e possibilidade a que transformemos nossa conversa numa troca de idéias. Coloquemos os assuntos, como eles se apresentam, e estou seguro de que chegaremos a conclusões significativas.

Quer ter a bondade, sir, de começar a expô-las? Estou certo de que sua longa experiência será capaz de dissipar o nevoeiro que envolve alguns fatos que temos a considerar.

Assim o espero, querido rapaz. Portanto, para começar, quero dizer-lhe que a carta de lady Arabela explica certas coisas que ela deseja e outras que não al­meja. Mas antes de começar a tirar conclusões, desejo fazer algumas perguntas. Adam, está você enamorado, muito enamorado de lady Arabela?

Seu companheiro respondeu logo, fitando direta­mente em seus olhos:

Lady Arabela é uma mulher atraente e eu de­ veria considerar como privilégio encontrá-la, falar com ela e até, visto que estou num confessionário, corte­já-la. Mas como o senhor quer saber se minhas ten­dências estão comprometidas, posso responder-lhe fir­memente: "Não!" e o senhor entenderá imediatamente, quando souber a razão, além do lado repulsivo de que falamos faz dias.

Pode você e quer apresentar-me agora seu mo­tivo? Isso nos ajudará a compreender certas dificulda­des que se levantam diante de nós.

Sem dúvida, senhor. A razão sobre a qual me apoio, é que eu amo outra mulher.

Isso é um argumento. Posso apresentar-lhe meus cumprimentos e, assim espero, minhas felicita­ções?

Estou orgulhoso de seus cumprimentos e lhe agradeço. Mas ainda é muito cedo para as felicitações. A jovem não sabe ainda de minhas esperanças. Na rea­lidade, até agora, não estou completamente certo de meus sentimentos.

Tenho certeza, então, que no momento oportu­no serei informado sobre quem é a moça?

Adam sorriu, com doçura que se assemelhava às ba­tidas serenas de um coração feliz.

Não há necessidade de esperar uma hora ou um minuto sequer. Ficarei contente por partilhar com o senhor o meu segredo. A jovem a quem amo e de quem almejo a felicidade, vivendo a seu lado, durante toda a minha vida, é Mimi Watford.

Então, meu caro Adam, não me é mister esperar para lhe dar os parabéns. É, na verdade, jovem encan­tadora. Julgo que até agora não tive conhecimento de moça que unisse, em tal perfeição, as qualidades de força de caráter e de doçura de temperamento. De todo o meu coração, eu o felicito. Portanto, considero que você já respondeu à minha pergunta?

Sim. E agora, sir, posso eu, por minha vez, in­quirir o motivo dessa pergunta?

Certamente! Eu a fiz porque me parece que chegamos a um ponto em que minhas inquirições pode­ riam ser penosas para você.

Não é somente porque eu amo a Mimi, que eu tenha razões para considerar lady Arabela como sua ini­miga, continuou Adam.

Sua inimiga?

Sim. Uma inimiga feroz e sem escrúpulos, que está resolvida a destruí-la.

Sir Nataniel foi em direção à porta, olhou para fora, depois retornou, após tê-la fechado, à chave, cuidado­samente.

 

                   METABOLISMO

Tenho eu um ar preocupado? perguntou sir Na­taniel, inconseqüentemente, depois que retornou a seu lugar.

Assim me parece, sir.

No começo, não pensávamos que seríamos leva­ dos, um dia, por tal turbilhão. Agora estamos envolvi­ dos numa tormenta e quiçá, em uma morte. Mas esse negócio de terrível mistério, que não tem princípio nem fim, onde surgem forças de espécie, a mais longínqua, cuja origem se perde numa época em que a terra era diferente daquela que conhecemos, é milhares de vezes pior do que todos os crimes do mundo. Nós regressamos às origens da superstição, a uma época em que os dra­gões se entredevoravam em seu pauis. Não devemos rejeitar nenhuma conclusão, por mais improvável ou impossível ela pareça. Nada. De nosso julgamento de­ pendem não somente nossa vida e nossa morte, mas também as daqueles que amamos. Lembre-se, eu conto com você, como espero,você conta comigo.

Sem dúvida nenhuma e com toda a confiança.

Então, disse sir Nataniel, deixemos que nossos pensamentos divaguem, leal e audaciosamente, por mais terrificantes eles possam parecer. Suponho que eu pos­so considerar como exatamente justa em seus mínimos detalhes, a sua narrativa de todas as estranhas coisas que aconteceram durante sua permanência em Diana's Grove?

Pelo que sei, sim. Posso, certamente, enganar-me em me recordando de um detalhe ou de outro, mas estou certo de que no conjunto, tudo o que lhe disse está correto.

Está seguro que viu lady Arabella pegar o Negro pelo pescoço e arrastá-lo até o poço?

Absolutamente certo, senhor. Caso contrário, eu teria corrido em socorro.

Temos, portanto, uma narração do que aconte­ceu, tendo por testemunha pessoa em que confiamos. O seu. Mas possuímos outro, vindo e escrito pela mão da própria lady Arabela. As duas narrativas não concor­dam entre si. Portanto devemos considerar que uma delas é mentira.

Aparentemente, sir.

E que lady Arabela é uma mentirosa!

Mais ou menos, pois eu não menti.

Devemos, portanto, buscar a causa de sua men­tira. Ela nada mais tem a temer de Oolonga, pois que ele morreu. A única razão para isso, que a impeliu é a de convencer alguém de sua inocência. Esse "alguém", não é você, que assistiu à cena, com os próprios olhos. Não havia outra testemunha; trata-se, pois, de pessoa ausente.

Não posso contradizê-lo nesse ponto, sir.

Vejo somente uma pessoa a quem ela deseja que conserve boa opinião sobre si; Edgar Caswall. Ele é o único que pode lhe saldar os débitos. Ela mentiu sobre outras coisas, e especialmente sobre a morte do Afri­cano. Evidentemente, ela deseja que a queda do negro no poço seja considerada como provocada por ele mes­mo. Não posso supor que ela tenta convencê-lo, a você, testemunha ocular. Mas, se quiser mais tarde, espalhar essa versão, ela deve tentar, de início, obter a sua apro­vação.

Sobre isso não tenho dúvidas.

Em seguida, vejo outros pontos falsos. Aquele, por exemplo, do colar de peliça, bordado de esmeraldas. Se uma justificação for dada sobre esse ponto, é para explicar a presença de luzes verdes, que foram vistas no cômodo e mais particularmente no poço. Uma pes­soa, sem preconceitos, poderia crer que as luzes verdes fossem os olhos dessa grande serpente que a tradição diz estar viva nos poços. Em resumo, lady Arabela quer afirmar a crença de que não há serpente no poço de Diana's Grove. Por minha parte, não creio numa men­tira parcial. Essa arte de mentir não para em meio caminho. Um mentiroso mente do princípio ao fim, em suas histórias. A vaidade pode compelir a fazer algumas declarações falsas; mas se alguém se demonstrar mentiroso, nada do que disser poderá, jamais, ser acre­ditado. Isso nos leva a esta conclusão: já que lady Ara­bela declara ou infere que não há serpente, devemos procurar uma e esperar encontrá-la.

Agora, permita-me fazer uma digressão. Vivo e vi­vi, há já numerosos anos, no Derbyshire, condado cé­lebre por seus subterrâneos, mais do que qualquer outro na Inglaterra. Eu os visitei todos; cada um de seus meandros me é familiar e o mesmo acontece para as grandes cavernas do Kentucky, da França, da Alema­nha e de outros lugares. Em vários dentre eles, eu vi cavernas de profundidade imensa de estreita abertura. Vários dos intrépidos exploradores abismais que desce­ram por essas estreitas aberturas não regressaram nun­ca mais. Nas cavernas do Peak, tenho a certeza de que algumas dessas estreitas passagens, em tempos primi­tivos, foram os covis dessas grandes serpentes das len­das e das tradições. Tais cavernas se formaram confor­me o processo geológico habitual e os borbulhões e as rachaduras da crosta terrestre serviram, mais tarde, aos monstros do período no mundo nascente. Na ori­gem, alguns dentre eles foram submergidos pelas águas, porém, em certas épocas, elas serviram para a vida dos monstros.

Isso nos leva a admitir um ponto, muito difícil de aceitar ou de entender, porque repousa sobre opinião, que, em geral não é acolhida, nem sequer preconce­bida: a de que tais crescimentos anormais tenham po­dido alterar-se em sua própria natureza. Um dia, o es­tudo do metabolismo terá progredido de tal maneira que nos permitirá aceitar a idéia da transformação de estruturas, engendrada por fundamento intelectual ou moral. Podemos crer que a força desse enorme animal poderia servir de base sólida a toda a espécie de muta­ções. Se assim for, existe um ser mais apropriado que aquele desses monstros primitivos, cuja força fosse ex­traordinária ao ponto de permitir uma sobrevivência de milhares de anos? Não sabemos ainda se o cérebro po­de crescer e se desenvolver independentemente das ou­tras partes dessa estrutura vivente.

Além de tudo, a crença medieval da pedra filosofal que podia transmutar os metais, tem sua contrapartida na teoria reconhecida do metabolismo que transforma os tecidos vivos. Num século de pesquisas como o nosso, quando colocamos a ciência na base das maravilhas, quase milagres, refutar a aceitação desses fatos porque parecem inverossímeis, seria prova de preguiça e inércia.

Imaginemos um monstro dos primeiros dias do mundo, um dragão do começo dos tempos, de idade in­calculável que se escoa através de milhares de anos, a quem se teria transmitido, de qualquer maneira, um cé­rebro que começa precisamente a se desenvolver. Supo­nhamos, depois, que esse monstro seja de tamanho e de energia tais, completamente anormais, uma verdadeira encarnação da força animal. Suponhamos que tenha fi­cado em lugar preservado de todos os perigos que pos­sam interromper seu desenvolvimento: não poderia, não deveria acontecer que, no desenrolar dos séculos, do tempo, essa criatura tenha desenvolvido sua inteligên­cia rudimentar? Não há impossibilidade nisso. É sim­plesmente o curso normal da evolução. No começo, os instintos dos animais eram unicamente consagrados à alimentação, à proteção de si mesmo e à proliferação da espécie. Depois, com o passar dos tempos, as ne­cessidades da vida se tornaram mais complexas, a po­tência sucedeu à necessidade. Há longo tempo, fica­mos habituados a considerar que o crescimento se apli­cava unicamente ao tamanho sob suas diferentes for­mas. Mas a Natureza não tem idéias doutrinárias, po­de também permitir a uma energia que se concentre. Uma coisa prestes a se desenvolver pode se desabrochar sobre qualquer maneira ou sobre qualquer forma. Atual­mente, uma lei científica afirma que o crescimento im­plica vantagens ou perdas de diferentes sortes; isso que uma ganha numa direção, pode perder em outra. Não poderia acontecer que a Mãe Natureza possa deliberadamente encorajar a diminuição bem como o aumento? Poderia isso provocar o axioma de que o que se ganhou em concentração, se perde em volume? Veja, por exem­plo, os monstros que a tradição reconheceu e localizou, tais como a Serpente de Lambton ou aquela de Spindleston Heugh. Se tal criatura chegou, por evolução de seu próprio metabolismo, a trocar uma grande parte de seu volume por crescimento intelectual. Poderíamos, então, encontrar-nos diante de nova espécie de criatu­ra, mais perigosa, talvez, do que tudo o que o mundo conheceu; teríamos uma força pensante, sem alma, nem moral, e por conseguinte, totalmente irresponsá­vel. A serpente, por causa de seu sangue frio, que, afas­tando-a das tentações que enfraqueceram, freqüente­mente, ou diminuíram os seres de sangue quente, repre­senta perfeitamente esse monstro. . Suponhamos que, por exemplo, a Serpente de Lambton — se é que ela existiu — tivesse sido impelida a seus próprios objeti­vos por uma inteligência organizada e suscetível de se desenvolver. Qual forma de criatura poderíamos ima­ginar que pudesse igualá-la na sua potencialidade para o mal? Tal ente poderia devastar uma região inteira. Mas, todas essas coisas exigem sérias reflexões. Devemos aplicar esses conhecimentos utilmente e sermos também bastante exatos. Não seria melhor voltarmos a esse as­sunto, mais tarde, durante o dia?

—            Inteiramente de acordo, sir. Sinto que minha cabeça como que gira. Pretendo seguir com toda a atenção o que o senhor está dizendo e tentar assimilar tudo.

Depois dessa entrevista, os dois homens sentiram-se mais vigorosos e mais em forma. E, quando se re­encontraram, depois do meio-dia, cada um deles tinha alguma coisa a acrescentar ao estoque geral de informa­ções. Adam, por natureza de temperamento, mais ativo que seu velho amigo, ficou contente por ver que a discussão tomava logo direção mais prática. Sir Nataniel o reconheceu e, como antigo diplomata, a encami­nhou para a utilidade imediata.

Diga-me, Adam, que conclusão seu espírito ti­rou de nossa conversa anterior?

Que todas as dificuldades se revestem já de for­ ma prática, mas com os perigos que não posso ainda de­duzir.

Qual é a forma prática e quais são os perigos? Não procuro discutir, mas tento apenas esclarecer mi­nhas próprias idéias, considerando as suas.

Então, Adam expôs:

—            No passado, nos primeiros dias do mundo houve monstros que eram tão enormes que puderam sobrevi­ver por milhares de anos. Alguns dentre eles puderam sobreexistir até a época cristã e se desenvolver intelec­tualmente com o correr do tempo. Se progrediram as­ sim, de qualquer maneira, ou até se adquiriram a for­ma de inteligência, por mais rudimentar que seja, eles seriam monstros, os mais perigosos, que jamais tenham existido no mundo. A tradição afirma que um dentre eles, que vivia no Pantanal de Este, se refugiou em uma caverna de Diana's Grove, chamada desde então o Covil da Serpente Branca. Tais criaturas puderam crescer secretamente, mas também abertamente. Elas puderam se desenvolver no interior, por exemplo, de seres huma­nos. Lady Arabela tem uma natureza de serpente. De acordo com o que sabemos, ela cometeu crimes. Guar­dou ela alguma coisa da enorme força de seu ser pri­mitivo e pode ver no escuro; tem olhos de serpente. Ela se serviu do negro para aprofundá-lo no buraco da ser­pente, lá em baixo, no lodaçal. Esta mulher, presa ao mal, odeia alguém que nós amamos. Resultado...

Sim. Resultado?

Primeiramente, Mimi Watford deve ser levada para longe daqui, o mais breve possível; em seguida...

Sim?

O monstro deve ser destruído.

Bravo! É uma conclusão sincera e corajosa. A qualquer preço que seja, deve ser executada.

Imediatamente?

Sem dúvida e de qualquer maneira. A existên­cia dessa criatura é um perigo e sua presença nos arre­dores torna o perigo iminente.

Enquanto falava a boca de sir Nataniel se contraiu e suas sobrancelhas se abaixaram até quase se tocarem. Não havia dúvidas de seu consentimento a essa decisão, nem de sua boa vontade para ajudar a sua realização. Mas esse velho tinha grande experiência e sólido co­nhecimento da lei e da diplomacia. Impedir que algu­ma coisa de irrevogável acontecesse, antes que seu pro­jeto se concretizasse, lhe parecia necessário e duro de­ver. Todas as espécies de problemas de legalidade de­viam ser examinados; não somente os que concerniam à destruição de um ser, mesmo uma monstruosidade em forma humana, mas também os que diziam res­peito a seus bens. Lady Arabela, fosse ela mulher, ser­pente ou demônio, era proprietária das terras, onde ela deambulava, aos olhos da lei inglesa, e a lei é descon­fiada e pronta a punir as faltas de que se apercebe. To­das essas dificuldades deviam e podiam ser evitadas, para a salvaguarda do senhor Salton, do próprio Adam e sobretudo de Mimi Watford.

Antes de falar de novo, sir Nataniel tinha decidido consigo mesmo tentar a diferir uma ação decisiva, espe­rando que as circunstâncias problemáticas de que eles dependiam, fossem postas à prova, de uma maneira ou de outra, de modo satisfatório. Quando começou a fa­lar, Adam julgou que seu amigo estava hesitante ou temia sua responsabilidade. Contudo, seu respeito para com sir Nataniel era tão grande que não quis agir ou mesmo chegar a uma conclusão sobre ponto tão vital, sem ter sua cabal aprovação.

Aproximou-se dele e sussurrou-lhe aos ouvidos:

"Arquitetaremos nossos planos para combater e destruir essa horrível ameaça, quando tivermos esclare­cido os pontos mais desconcertantes. No intervalo, es­peraremos a noite. Ouço os passos de meu tio que res­soam no saguão de entrada.

Sir Nataniel aprovou com a cabeça.

 

                   LUZ VERDE

Quando o velho Salton se retirou para o quarto, Adam e sir Nataniel retornaram à sala de trabalhos. As coisas se desenvolviam, com grande regularidade, em Lesser Hill, assim estavam eles seguros de que não se­riam perturbados em suas confabulações.

Depois que acenderam os cigarros, sir Nataniel começou:

Espero, Adam, que não me julgue fraco ou titubeante em meus propósitos. Quero continuar este ne­gócio até seu amargo fim, qualquer que ele seja. Meu primeiro cuidado é e deve ser a proteção a. Mimi Watford. Disso me encarrego eu. Meu caro rapaz, estamos todos interessados nesse assunto, encontramo-nos todos no mesmo perigo. Esse monstro meio-humano, fugido do poço, nos odeia e só pensa em nos destruir: você e eu e seu tio também, sem dúvidas. Eu queria falar-lhe particularmente esta noite, porque não posso deixar de pensar que está prestes a chegar a ocasião, se é que já não chegou, de comunicar a seu tio as nossas sus­peitas. Outra coisa seria se os males que nos ameaçam fossem imaginários. Agora, ele está também, provavel­mente, em perigo de morte e normal é que ele saiba tudo.

Penso da mesma maneira. As coisas mudaram depois que nos acordamos em conservá-lo fora desses tormentos. Agora não nos arrisquemos mais a isso; Considerações por seus sentimentos poderiam custar-lhe a vida. É um dever, nem fácil, nem agradável. Es­tou certo de que ele não terá dúvida alguma a se jun­tar a nós, neste negócio. Mas lembre-se que somos seus convidados: seu nome e sua honra devem nos preocu­par tanto quanto sua saúde.

Tudo será como você almeja, Adam. Agora o que iremos fazer? Não podemos, de pleno direito matar lady Arabela. Para isso, deveríamos, antes de praticar tal ato, achar o meio de não ser acusados de tal crime.

Parece-me, sir, jogamos um jogo excessivamente fechado. Nossa primeira dificuldade é saber por onde começar. Jamais pensei que combater um monstro antediluviano fosse trabalho tão complicado. Este é uma mulher, possuindo toda a habilidade de seu sexo combinado com a insensibilidade de uma cortesã. Ela tem a força e invencibilidade de um diplodoco. Podemos es­tar seguros de que no combate que nos espera não ha­verá nenhuma parecença de "fair-play". E, também, que nosso adversário sem escrúpulo não se deixará trair.

Assim é. Mas sendo mulher, ela quererá prova­velmente ultrapassar-se a si mesma e, agora, Adam, é preciso que, devendo nos proteger, a nós mesmos, e a outras pessoas, contra sua natureza feminina, nosso mais hábil jogo é de lançar nossa masculinidade contra sua feminilidade. Talvez seja melhor que vamos dormir, tendo em mente estas palavras. Esta mulher é uma criatura da noite; e a noite nos poderá dar idéias.

Ambos se despediram.

Adam bateu à porta de sir Nataniel, na manhã cin­zenta, e, a seu convite, penetrou no quarto. Sir Nata­niel, sentado no leito, recebeu o jovem que levava na mão várias cartas.

Ora, bem...

Eu gostaria de ler algumas cartas, porém só as enviarei se o senhor concordar. Com efeito — ele sor­riu e enrubesceu — nada farei e serei reservado em mi­nhas palavras, até que obtenha seu consenso.

Comece logo, disse o velho, delicadamente. Di­ga-me tudo e conte sempre, completamente, com minha simpatia, minha aprovação e minha ajuda se ela for necessária.

Por conseguinte, Adam principiou:

Quando lhe informei as minhas conclusões, às quais tinha chegado, coloquei em primeiro plano o fato de que Mimi devia ser afastada, para sua própria segu­rança, e que o monstro, que tem contribuído para todos esses maus acontecimentos, devia ser destruído.

Sim, é exato.

Para conseguir isso, sir, uma preliminar é neces­sária para que não tenhamos que enfrentar um mal de outro gênero. Mimi deveria ter um protetor que seria reconhecido por todos. E a única forma admitida pelas convenções sociais é o casamento.

Sir Nataniel sorriu de maneira paternal.

Para se casar, mister é um marido. E esse ma­rido seria você.

Sim, sim.

E o casamento poderia se realizar logo e secre­tamente ou, ao menos, não se tornar conhecido a não ser de nós. Será que a jovem Mimi se acomodaria a esse procedimento?

Não lhe posso responder, sir.

Então suponho que nós ou um dentre nós deve­ ria perguntar-lhe.

Isso é uma idéia repentina, Adam, uma resolu­ção súbita?

Resolução súbita, sir, mas não idéia repentina. Se ela aceitar, tudo está bom e belo. A conseqüência é evidente.

— É nós devemos guardar esse segredo entre nós?

Disso não faço mistério algum, sir, salvo se for para o bem de Mimi. Quanto a mim, gostaria de pro­clamá-lo para todo o mundo! Devemos, contudo, ser discretos. Contá-lo a nosso inimigo, inoportunamente poderia causar mal irreparável.

E que sugere você, para conservar e preparar essa questão tão importante, em segredo?

Embaraçado, Adam ruborizou-se e se agitou.

Alguém deveria perguntar a ela, desde que fos­se possível!

Alguém?

Penso que poderia ser o senhor, caso queira fazer-me esse favor.

Que Deus bendiga minha alma! Eis uma nova espécie de obrigação, de dever! E na minha idade! Es­pero, Adam, que você saiba que pode contar comigo pa­ra tudo, tudo o que for possível e necessário.

Eu já contava com o senhor, quando me arris­quei a fazer tal sugestão. Posso somente lhe solicitar, sir, acrescentou ele, que seja mais generoso para comi­go e para com ela, olhando esta difícil obrigação como ação voluntária, nascida de sua bondade e afeição.

Obrigação difícil!?

Sim, retrucou Adam, difícil para o senhor, mas feliz e alegre para mim.

É trabalho estranho para uma manhã tão bo­nita. Ora bem, quanto mais vivemos, mais aprendemos. Suponho que quanto mais depressa eu for, melhor será. Você deve escrever algumas palavras que levarei comi­go. Porque, veja você, é uma transação embaraçante para a jovem e para mim também. Assim deveríamos ter uma espécie de certificado, um documento escrito que mostre que somos respeitosos para com ela e para com seus sentimentos. Isso não deve apresentar seu consentimento como garantia, mesmo que seja verdade que agimos para seu bem.

— Sir Nataniel, o senhor é amigo verdadeiro. Es­tou certo que Mimi e eu lhe seremos reconhecidos por toda a vida, por mais longa que ela seja.

Desse modo, os dois discorreram sobre o assunto e se puseram de acordo sobre os pontos que o embaixa­dor devia conservar na mente. Dez horas soavam quan­do sir Nataniel deixou a casa. Adam o viu afastar-se tranqüilamente.

Quando o jovem o acompanhava com os olhos cui­dadosos, quase invejosos do privilégio que seu ato benfazejo ia lhe trazer, ele sentiu seu próprio coração ba­ter no peito de seu amigo.

A lembrança dessa manhã parecia um sonho a res­peito do que lhe dizia respeito. Sir Nataniel conservou uma recordação confusa das minúcias e de seu desen­volvimento, bem que os fatos principais ficassem exa­tos e claros em sua memória. As reminiscências de Adam Salton foram aquelas de uma espera interminá­vel, cheia de ansiedade, de esperança e de desespero; tudo isso dominado pelo sentimento do vagaroso desen­rolar do tempo e acompanhado de vagos temores. Du­rante longo tempo, Mimi nada pôde resolver, lembrando-se somente que Adam a salvava de terrível ameaça. Quando teve, mais tarde, tempo para nisso pensar, ela se espantou de ter ignorado o fato que Adam a amava e que por sua vez ela o amava também, de todo o co­ração. Cada recordação, por pequena que fosse, cada sentimento, parecia estar disposto no seio desses fatos elementares, como se tivessem sido moldados juntos. An­tes de tudo, Mimi se recordava do momento em que ela tinha dito adeus a sir Nataniel, em lhe confiando mensagens de amor, nascidas do fundo de seu coração, para com Adam Salton, e também de sua conduta, quando, com impulso que não pudera reprimir, pusera seus lábios sobre as cartas que ele mandara e as tinha beijado. Mais tarde, quando ficou sozinha e teve tempo de refletir, sentiu ligeiro desprazer porque nada pode­ria contar, pelo menos no momento, a Lilla sobre o feliz término dessa estranha missão.

Ela concordara em guardar o segredo até que Adam a autorizasse a divulgá-lo.

Os conselhos e a assistência de sir Nataniel foram de grande valia para Adam na realização de seus pro­jetos. Ele o acompanhou a Londres e, graças à sua in­fluência, o jovem obteve permissão do Arcebispo de Cantuária de matrimoniar-se secretamente. Sir Nataniel persuadiu ao senhor Salton que deixasse seu sobrinho passar algumas semanas em Doom Tower e foi lá que Mimi se tornou a mulher de Adam. Mas isso era ape­nas a primeira parte de seus planos. Contudo, antes de continuar, Adam levou sua esposa para a ilha de Man. Desejava ele colocar uma extensão marítima entre sua Mimi e a Serpente Branca, enquanto amadureciam as coisas,. A seu regresso, sir Nataniel os acompanhou e os levou logo a Doom, tomando cuidado para que ninguém tivesse conhecimento dessa viagem.

Sir Nataniel tinha cuidadosamente fechado e aferrolhado as portas e as janelas, com exceção da porta por onde deveriam entrar. Os postigos tinham sido cer­rados e as persianas abaixadas. Além disso pesadas cor­tinas tinham sido postas diante das janelas. Quando Adam se espantou com tantas precauções, sir Nataniel, num murmúrio, lhe disse:

"Espere até que estejamos sozinhos e lhe direi porque tudo isso. No intervalo, não diga nada e não faça um gesto. Você me aprovará quando souber.”

Não falaram mais sobre esse assunto. Depois do jantar, trancaram-se no escritório de sir Nataniel que estava no andar superior. Doom Tower era uma bela construção, situada numa eminência, bem alta, acima do Peak. A altura dominava larga perspectiva, no ali­nhamento das colinas, acima do Ribble, próximo da margem do Brow que assinala o limite norte da anti­ga Mércia. A construção datava do antigo período normando, mas era mais nova um século que Castra Regis. As janelas do escritório estavam fechadas por bar­ras de ferro e pesadas cortinas as recobriam. Assim nenhum sinal de luz do interior da torre poderia ser visto do lado de fora.

Quando ficaram sozinhos, sir Nataniel explicou que já tinha posto seu velho amigo, senhor Salton, a par de tudo e, doravante, trabalhariam todos juntos.

É importante que você seja extremamente pre­cavido e prudente. Embora seu casamento e sua au­sência temporária tenham sido cuidadosamente conser­vados em segredo, os dois fatos são conhecidos.

Como? e por quem?

Como, eu ignoro; mas já começo a ter uma idéia.

— Por ela? inquiriu Adam, consternado.

Sir Nataniel estremeceu, sensivelmente.

A Serpente Branca, sim!

Adam observou que a partir desse instante, seu amigo só chamava dessa maneira a lady Arabela, a não ser quando desejava afastar a suspeita de ou­tras pessoas.

Sir Nataniel apagou a luz elétrica e, quando o quarto ficou escuro como breu, encaminhou-se para Adam, tomou-lhe as mãos e o levou para uma cadeira colocada diante da janela do sul. Então ergueu o pano da cortina e fez sinal para seu companheiro olhar para fora.

Adam assim o fez e imediatamente recuou como se seus olhos tivessem pousado em algo terrificante e pe­rigoso. Seu companheiro o sossegou dizendo em voz baixa:

"Tudo vai bem. Você pode falar, mas em voz baixa. Não há nenhum perigo, no momento.”


Adam inclinou-se para a frente, tendo cuidado, con­tudo, de não apoiar o rosto na vidraça. O que via, não teria causado, em circunstâncias normais, nenhuma perturbação em ninguém. Mas, para ele, que sabia, era pasmoso — embora a noite fosse tão negra que a coisa era, na realidade, quase que invisível.

No lado oeste da torre, erguia-se um bosquezinho de árvores antigas, da dimensão de pequena floresta. Não estavam estreitamente agrupadas, mas separadas e dispostas em largo alinhamento. Por sobre suas cimas, podia-se ver uma luz verde, que se assemelhava a um sinal de alarme de um cruzamento de estrada de ferro. Adam pensou, a princípio que ela estava completamen­te imóvel. Mas quando seus olhos se habituaram à sua presença, pôde ver que se agitava, se mexia, como se es­tivesse tremendo. Essa visão lhe recordou a luz trêmula que tinha visto por sobre o poço, nas trevas do quarto interior de Diana's Grove, o grito terrível de Oolonga e sua odiosa figura negra tornada cinzenta de terror, de­saparecendo na obscuridade impenetrável do misterioso orifício. Instintivamente, pôs a mão no revólver e se aprestou para proteger sua esposa. Depois, vendo que nada aparecia e a luz e os arredores da torre perma­neciam sem alteração, abaixou lentamente a cortina sobre a janela.

Sir Nataniel acendeu a luz. E nessa claridade confortadora, os dois homens começaram a falar livre­mente.

 

                   APROXIMAÇÃO

"Ela possui finura diabólica, disse sir Nataniel. Depois que você partiu ela perambulou ao longo do Brow e nos lugares onde você costumava andar. Não sei como tomou conhecimento de seus passeios e não sou capaz de descobrir dados que me permitam emitir opinião sobre isso. Mas, parece, soube ela, ao mesmo tempo, seu casamento e sua ausência. Concluí, por de­dução, que ela não está informada, atualmente, onde você está nem mesmo de seu regresso. Desde que cai o crepúsculo ela sai a fazer sua ronda e, antes da aurora, percorre toda a região ao redor do Brow e, mais longe, no coração do Peak. A Serpente Branca, sob sua ver­dadeira forma, pode, seguramente, facilitar o trabalho com o qual está, de momento, preocupada. Ela pode ver através de janelas comuns. Felizmente, esta casa está fora de seu alcance, se ela deseja, como é o caso, não ser reconhecida. Mas nesta altura da situação, pru­dente é que não se mostre luz alguma, com receio de que possa descobrir sua presença. Não seria útil, sir, que um de nós possa ver es­se monstro, sob sua forma real e se aproxime dele? Es­tou pronto a correr o risco. Sei que o perigo não é pe­queno, mas julgo que ninguém de nosso tempo o viu de perto e tenha vivido, em seguida, para contar o que contemplou.

Sir Nataniel ergueu a mão em sinal de reprimenda.

Senhor misericordioso! Que você está propondo, meu rapaz! Pense em sua esposa e em tudo o que lhe diz respeito.

É justamente em Mimi que eu penso. É por ela que eu quero arriscar tudo o que for possível.

A jovem esposa mostrou-se orgulhosa de seu ma­rido, mas tornou-se pálida ao pensar na terrível Ser­pente Branca. Adam percebeu, e animou-a com pala­vras corajosas.

—            Enquanto aquela lady não souber onde estou, devo aproveitar o pouco de segurança que nos resta. Lembre-se, minha querida, que não podemos ser muito prudentes.

Sir Nataniel compreendeu que Adam tinha razão. A Serpente Branca, que não tinha poderes sobrenatu­rais, não saberia prejudicar antes de descobri-los, em seu esconderijo. Ficou combinado que os dois homens sairiam juntos.

Depois que desusaram pela porta de trás da casa, foram avançando com precaução ao longo da avenida que se dirigia para o oeste. Estava tão escuro que, às vezes, só achavam o caminho por causa do alinhamento das árvores. Contudo, podiam ver diante deles, alta e distante, a sinistra luz, que a esta altitude e a esta dis­tância, parecia incerta linha. Tendo chegado ao nível do terreno, a claridade pareceu muito mais elevada do que do alto da torre. À esta visão, o coração de Adam bateu. Deu-se conta de todo o perigo que representava essa empresa desesperada. Mas esse sentimento foi segui­do logo de outro que o reconfortou. Ele sentia aversão profunda e desejo violento de matar jamais experimen­tados antes.

Aproximaram-se a alguma distância do largo cami­nho plano de onde a luz verde era bem visível. Lá, sir Nataniel falou em baixo tom colocando seus lábios bem perto do ouvido de Adam, para maior segurança:

"Ignoramos a potência da audição e do olfato des­sa criatura, embora eu suponha que devem ser muito desenvolvidos. Quanto à sua visão devemos supor ao contrário. De qualquer modo, é necessário tentar ficar escondidos atrás dos troncos das árvores. O menor erro nos poderia ser fatal.”

Adam fez um sinal com a cabeça, para o caso em que o monstro tivesse tido ocasião de ver seus movi­mentos.

Depois de um momento que lhe pareceu interminá­vel, ele surgiu do bosque ao redor. Era como se a cla­ridade do dia sobreviesse em comparação à escuridão que os rodeava. Essa luminosidade era suficiente para se enxergar, mas não para distinguir as coisas a longa distância. Adam, com auxílio de pequeno binóculo, con­templou a luz verde no céu. Ela estava sempre, mais ou menos no mesmo lugar, mas o que ela sobrepujava era mais visível. Percebia agora a ponta de uma espé­cie de mastro, longo e branco, do qual pendiam duas massas esbranquiçadas, parecidas a mãos ou nadadeiras rudimentares. A luz verde, bastante estranha, não pa­recia estar diminuída pelo brilho das estrelas. Antes, ao contrário, brilhava ainda mais e sua cor se tornava acentuada. Enquanto os dois homens a contemplavam, com prudência, suas narinas foram atingidas por hor­rível fedor, semelhante àquele que se emanava do poço de Diana's Grove.

Pouco a pouco, seus olhos se habituaram à distân­cia e distinguiram uma massa enorme, muito erguida, delgada e branca como neve. A parte inferior estava es­condida pelas árvores, mas eles podiam acompanhar a forma branca, alta, e as duas luzes verdes que a sobre­punham. Enquanto a contemplavam, a forma fez um movimento, parecendo inclinar-se, e a linha de luz ver­de desceu entre as árvores. Puderam ver a luz verde cintilar quando se movimentava entre os ramos que lhe formavam obstáculos.

Tendo percebido onde se achava a cabeça do mons­tro, os dois homens, arriscando-se, avançaram mais um pouco. Observaram que a base dissimulada da forma era uma massa formada por dobras do corpo de uma grande serpente. Enquanto eles a contemplavam, a parte inferior se movimentou, as dobras brilharam ao clarão da lua e puderam ver que o monstro descia para o chão. Ele se encaminhou na direção em que estavam, em rápido andamento. Então, deram meia-volta e cor­reram, tomando cuidado para não fazer o menor ruído, evitando tropeçar e fazer agitar-se a ramagem que os cercava. Não pararam nem descansaram enquanto não viram surgir diante deles a alta torre de Doom.

 

                   NA CASA DO INIMIGO

Após o café matinal, na manhã seguinte, sir Nataniel se encontrava na biblioteca, quando Adam foi ter com ele, tendo uma carta na mão.

Sua senhoria, a lady não perde tempo. Já se pôs ela em ação.

Sir Nataniel que escrevia, sentado a uma mesa per­to da janela, levantou a cabeça.

                Que é isso? perguntou ele.

Adam abriu a carta que lhe tinham entregue e que estava em um envelope adornado com um brasão.

Ah! exclamou sir Nataniel, uma mensagem da Serpente Branca! Eu já esperava alguma coisa desse estilo.

Mas, disse Adam, como pôde ela saber que está­ vamos aqui? Ontem à noite, ainda desconhecia isso!?

Julgo que isto não nos deve perturbar, Adam. Há coisas que não compreendemos. É apenas um mis­tério a mais. Que ela o saiba, talvez seja melhor e mais seguro para nós.

Mas como pode ser isso? inquiriu Adam, com olhar intrigado.

É a conseqüência lógica de um raciocínio, meu rapaz, e a experiência de alguns anos passados no mun­do diplomático. Essa criatura é um monstro sem cora­ção e sem nenhuma consideração por alguém ou por alguma coisa. Ela está longe de ser tão perigosa à luz do dia quanto nas trevas que a protegem. Além disso, sabemos, por seus próprios atos, com nossa experiência, que ela tem razão para evitar qualquer publicidade. Apesar de seu enorme tamanho e de sua desmedida for­ça, não pode atacar abertamente. Apesar de tudo, é ela uma serpente e a natureza da serpente é de ficar imó­vel, de subir e de agir às ocultas e astutamente. Não atacará jamais se puder fugir, embora perceba que fu­gir lhe seria provavelmente fatal. Que diz essa carta?

A voz de sir Nataniel estava calma e senhora de si mesma. Quando se empenhava numa luta que exigisse finura, tornava-se inteiramente diplomata.

—            Ela nos convida, a mim e a Mimi, a ir tomar chá, esta tarde, em Diana's Grove e espera que o se­nhor também lhe outorgue esse favor.

Sir Nataniel sorriu.

Rogo-lhe que peça ao senhor Salton para acei­tar em nome de nós todos.

Ela planeja algum golpe mortal. Não seria mais seguro recusar?

Existe velha astúcia que aprendemos logo em diplomacia. É melhor combater em terreno de própria escolha. Verdade é que, nesta oportunidade, ela suge­riu o lugar, mas, em o aceitando, tomamos posse dele. Além disso, ela não poderá compreender nossa razão pa­ra agir assim, e sua própria má consciência — se ela tem uma, boa ou má — seus próprios receios e suas dúvidas farão jogo a nosso favor. Não, meu querido ra­ paz, aceitamos, de qualquer maneira.

Adam nada retrucou, mas, em silêncio, estendeu a mão a seu companheiro que a apertou. Nenhuma pa­lavra a mais seria necessária.

Quando chegou a hora do chá, Mimi perguntou a sir Nataniel de que modo eles iriam.

—            Nós devemos marcar um lugar, indo para aí, com grande alarde. Colocaremos nisso a maior publici­dade possível.”

Mimi o olhou, interrogativamente.

Assim deve ser, minha filha; nas circunstâncias presentes, a publicidade é um meio de segurança. Não fique surpresa, se, durante nossa caminhada para Dia­ na Grove, fortuitas mensagens cheguem até nós todos ou pelo menos para um dentre nós.

Vejo, disse a jovem, que o senhor não corre risco algum.

Nenhum, minha querida. Tudo o que aprendi nas cortes estrangeiras e entre os povos, civilizados ou não, vai ser utilizado nas duas horas que se seguirão.

A voz de sir Nataniel era muito séria e Mimi ficou convencida da gravidade solene do momento.

Para percorrer o caminho, usaram uma carruagem tirada por dois possantes cavalos, que rapidamente co­briram as poucas milhas do percurso. Antes de trans­porem a grade, sir Nataniel voltou-se para Mimi:

—            Combinei com Adam certos sinais que poderiam ser necessários se alguma coisa acontecer. Isso nada tem a ver com você diretamente. Mas preste atenção: se eu pedir a você ou a Adam que façam alguma coisa, vocês a devem fazer sem perder um minuto. Devemos tentar, durante algum tempo, aparentar atitude descuidosa. Conforme todas as probabilidades, nada se produ­zirá e essas precauções serão inúteis. A Serpente Branca não desejará empregar a força, embora ela a tenha em reserva. Hoje, tudo o que ela poderá fazer de prejudi­cial contra um de nós, será feito de maneira disfarçada. De outra vez, empregará a força, mas se posso prejulgar, não será hoje. Os mensageiros que perguntarão por um de nós, serão não apenas testemunhas, mas aju­darão também a enfrentar o perigo.

Lendo uma pergunta, nos olhos de Mimi, ele con­tinuou:

— Sob qual forma se apresentará o perigo, não sei nem posso imaginar. Esconder-se-á, sem dúvida, sob o as­pecto de circunstância comum, mas não menos danosa por isso. Agora, seja prudente em todas as ocasiões, mes­mo se insignificantes. Conserve o sangue frio, isso já é ganhar meia batalha.

Havia vários criados, em libré, no saguão de entra­da, quando chegaram. As portas estavam abertas e lady Arabela se adiantou em direção a eles e lhes apre­sentou cordiais boas-vindas. Em seguida, levou-os a ou­tro cômodo onde o chá estava servido.

Adam se conservava precavido e desconfiado de tudo. Notou no muro, diante dele, uma porta de ferro, com painéis da mesma cor e parecidos com a porta ex­terior daquele onde se encontrava o poço, no qual Oolonga havia desaparecido. À sua descoberta, alarmou-se, mas conseguiu aproximar-se tranqüilamente da por­ta. Não se deixou trair por movimento algum, mas per­cebeu que sir Nataniel o olhava fixamente e interpre­tou esse olhar, como aprovação.

Todos se sentaram à mesa preparada para o chá. Adam estava bem perto da porta. Depois de se ter aba­nado com um leque, lady Arabela, queixando-se do ca­lor, ordenou a um dos lacaios que abrisse todas as portas exteriores.

Transcorria o tempo, calmo, quando, de repente, Mimi se levantou com um olhar assustado. Ao mesmo tempo, os homens perceberam que espessa fumaça co­meçava a se espalhar pelo cômodo, uma fumaça que tornava difícil a respiração e sufocava todos os que a respirassem. Os criados, em libré, se encaminhavam, com dificuldade, para a porta interior. A fumarada tor­nava-se cada vez mais densa e mais picante ao respirar. Mimi, para a qual a corrente da porta aberta levava mais fumaça, começou a se asfixiar e correu para a porta interior que abriu completamente. Uma cortina de seda, leve, estava fixada nos batentes. A corrente de ar impeliu o tecido em sua direção e ela, em seu terror, puxou a cortina que caindo a envolveu dos pés à ca­beça. Em seguida, correu para o cômodo contíguo, sem se incomodar pela fato de não poder ver para onde ia. Adam, seguido por sir Nataniel, se precipitou para fren­te, alcançou-a e pegou-a fortemente pelo braço. Ficou contente por ter agido assim, pois, justamente diante dela, se abria o negro orifício do poço, que ela não ti­nha podido ver, tendo ainda a cortina enrolada na ca­beça. O chão estava extremamente escorregadio. Uma espécie de óleo escuro tinha sido derramado lá por on­de ela passara. De repente, faltou-lhe o pé, e ela deu um passo em falso para a tenebrosa abertura.

Quando Adam percebeu que Mimi escorregara, lan­çou-se para trás, segurando-a firmemente. Nesse impul­so, os dois caíram por terra, mas já fora da zona es­corregadia. Num instante, ele a levantou e, juntos, se jogaram para fora, pela porta aberta, para a luz do dia. Sir Nataniel se conservava ao lado de ambos. O casal estava muito pálido, enquanto o velho diplomata os olhava calmamente. Adam e sua esposa se sentiram reconfortados e retomaram ânimo, vendo-o tão senhor de si mesmo. Seguiram então o exemplo dele, com espan­to dos criados que viam essas pessoas, escapas, a custo, de terrível perigo, caminharem juntas, alegremente. Sob a pressão da mão de sir Nataniel que os guiava, deram meia volta e entraram na casa.

Lady Arabela, cujo rosto se tornara de palidez mor­tal, retomou seu papel de hospedeira, diante da mesa, como se nada de inabitual tivesse acontecido. As tijelinhas com água para a limpeza dos dedos estavam cheias de papel pardo, meio queimado, sobre o qual se tinha derramado chá.

Sir Nataniel tinha observado atentamente sua an­fitriã e aproveitou a primeira oportunidade para sussurrar a Adam:

— "Sua calma significa que o verdadeiro ataque ainda vai acontecer. Quando eu der a mão à sua es­posa para levá-la para fora, venha conosco e faça apressar-se. Não perca um segundo, mesmo se tiver que provocar uma cena. Chut!”

Retomaram seus lugares à mesa e os criados, obe­decendo a uma ordem de lady Arabela, trouxeram chá fresco.

Desde então, essa reunião, ao redor da mesa de chá, assemelhou-se para Adam, cujos sentidos estavam total­mente exacerbados, a temível pesadelo. Quanto à deli­cada Mimi, estava ela tão esgotada pelo medo e pelo horror do perigo ao qual acabara de escapar, que suas faculdades estavam embotadas. Contudo, reagiu e re­cobrou forças, sentindo-se, pouco a pouco, resolvida a enfrentar nova prova. Sir Nataniel parecia, como de costume, suave, digno, atento e perfeitamente senhor de si mesmo.

Para Adam, era evidente que Mimi ainda estava in­disposta. Sua maneira de mexer a cabeça para olhar em torno, as rápidas mudanças de cor do seu rosto, sua respiração precipitada, suas alternativas de calma e temor, se lhe afiguravam como prova de perturbação mental. A atitude de lady Arabela para com ela era cheia de amável doçura e consideração. Era difícil ima­ginar delicadeza maior, mais terna e mais prestativa para com um hóspede de que se honrava.

Quando terminou o chá e os criados tiraram as ta­ças, lady Arabela, passando seu braço ao redor da cin­tura de Mimi, encaminhou-se até uma sala vizinha, onde havia uma coleção de fotografias espalhadas, aqui e lá. Sentando-se ao lado de sua convidada, ela come­çou a mostrá-las. Durante esse tempo, os fâmulos fe­charam todas as portas da seqüência de salas, bem como aquela do poço, a qual se abria para a avenida. De repente, sem motivo aparente, a luz começou a enfra­quecer. Sir Nataniel, que estava sentado ao lado de Mi­mi, levantou-se rapidamente e gritando "Depressa!" pe­gou-lhe da mão e pôs-se a arrastá-la para fora. Por seu lado, Adam tomou-lhe a outra mão e, puxando-a assim entre os dois, atravessaram a porta que dava para fora e que os criados começavam a fechar. Tiveram sorte de achar logo o caminho, tão grande era a escuridão. Po­rém, com grande alívio, quando Adão assobiou, de ma­neira especial, o cocheiro trouxe a carruagem que esta­va no pátio. Adam e sir Nataniel alçaram e jogaram, quase, Mimi para dentro da viatura. O cocheiro, a gol­pes de chicote e espora, manobrou o veículo, que, aos trancos, partiu a toda a velocidade, passou rapidamen­te pelo portão e se pôs a devorar a estrada. Atrás deles, produziu-se um pandemônio. Os criados corriam de cá para lá, portas se fechavam e, em algum lugar, aparen­temente muito longe, no interior da mansão, podia ou­vir-se estranha gritaria. Cada músculo dos cavalos es­tava estendido, enquanto galopavam fogosamente. Os dois homens conservavam Mimi entre eles, cada um com o braço ao seu redor, como para protegê-la com mais afinco. Resfolegando bem alto, os cavalos se pre­cipitaram, à louca velocidade, na subida e não diminuí­ram de modo algum a corrida, no outro lado da colina. Seu ímpeto os projetou mais rapidamente ao longo da descida.

Seria insensato pretender que Adam ou Mimi não estivessem medrosos ao voltar para Doom Tower. A an­gústia de Mimi era mais viva que a de seu esposo, que tinha nervos mais sólidos e estava mais habituado ao perigo. Contudo, ela se dominou corajosamente e, co­mo de hábito, o esforço lhe foi salutar. Quando ela en­trou em seu escritório, no alto da torrinha, esqueceu quase completamente os terrores que a ameaçavam fo­ra, na noite. Não quis, contudo, olhar pela janela.

Adam o fez, mas nada viu. O clarão da lua iluminava toda a região ao redor, mas não se percebia nada de luz verde que piscava.

A noite, calma, produziu efeito positivo sobre todos. Invisível, o perigo parecia ter desaparecido; às vezes, era difícil de conceber que ele tivesse existido. Voltada sua coragem, Adam se levantou bem cedo e foi passear ao longo do Brow, não vendo sinal algum de vida em Castra Regis, o que era fora do comum. Para seu es­panto, contudo, e sua inquietação, voltando para casa, percebeu lady Arabela, em seu vestido branco, estreito, com o colar de pelúcia, mas sem as esmeraldas; saía do portão de Diana's Grove e se encaminhava, direta­mente, para o Castelo. Pôs-se a refletir, procurando achar o significado disso, enquanto não se uniu a Mimi e a sir Nataniel no café da manhã. Começaram, em silêncio, o café. O que tinha passado tinha passado e era sabido de todos. Além do mais, não era um assunto de agradar ninguém.

A discussão começou quando Adam narrou que ti­nha visto lady Arabela, indo para Castra Regis. Cada um tinha suas suspeitas e seus palpites a respeito do que tinha ela ido fazer junto a Edgar Caswall. Mimi fa­lou dela, com amargura, sem omitir nenhuma de suas queixas. Ela não esquecera, nem tinha querido ou po­dido olvidar o instante em que essa mulher, para pre­judicar Lilla se tinha unido ao Negro. Do ponto de vis­ta social ficara chocada por ver que a lady perseguia o rico proprietário, lançando-se "descaradamente ao seu pescoço". Estava curiosa por saber se o papagaio de papel continuava a sobrevoar a torre de Caswall. Mas não ousou ir além desses assuntos. O único comentário, que expressou, em tom escandalizado, foi o de qualifi­car de "audácia" a atitude da pretensa lady que igno­rava seus atos criminosos e, com sem vergonhice, os olhava como aceitos por aqueles que deles tinham sido testemunhas.

 

                   PROPOSTA ESPANTOSA

Mais Mimi refletia sobre os últimos acontecimen­tos, menos ela sabia o que pensar acerca de seu signifi­cado. Não haveria algum erro ocorrido em algum lu­gar? perguntava-se ela. Seria possível que um dentre eles — ou todos — se tivessem enganado e não tivessem visto realmente a Serpente Branca? Nos dois casos, ha­via uma crença impossível de se conceber. Não acredi­tar no que parecia evidente, era destruir os fundamen­tos reais de toda a crença...; contudo, nos dias de antanho, houvera monstros na terra e, certamente, o povo havia crido neles e nessas misteriosas mutações de iden­tidade. Era verdadeiramente esquisito. Imagine como uma pessoa, estranha a tudo isso — digamos um médi­co — a contemplaria, se ela lhe contasse que fora convidada por um monstro antediluviano a tomar chá e que criados, à moderna, o tivessem servido.

Adam regressara refortalecido por seu passeio, e mais decidido do que estivera, nos últimos tempos. Do mesmo modo que Mimi, atravessara um período de dú­vida e impotência em crer na realidade das coisas, em­bora isso não o houvesse afetado da mesma maneira. A idéia, contudo, que sua esposa sofria os maus efeitos dessa terrível prova, o robusteceu. Ficou com ela por alguns instantes, depois partiu à procura de sir Nata­niel, com a intenção de lhe falar novamente sobre tudo. Sabia que o tranqüilo bom senso do ancião e sua confiança em si mesmo, bem como sua experiência, seriam salutares a todos.

Sir Nataniel chegou à conclusão que, por razão que não compreendia, lady Arabela tinha trocado seus pla­nos e queria, por momentos, e de todas as maneiras, mostrar-se pacífica. Podia-se atribuir seu novo modo de agir ao fato de que sua influência sobre Edgard Caswall aumentava, dando-lhe esperança que logo o submeteria a seus encantos.

Na verdade, ela tinha visto Caswall na manhã em que estivera em Castra Regis e tinha tido longa conver­sa, durante a qual a eventualidade de sua união tinha sido discutida. Caswall, sem se mostrar entusiasmado a esse respeito fora cortês e cheio de mesuras, Quando retornou a Diana's Grove ela se congratulava pelo no­vo arranjo que dera em sua vida Uma carta que escre­veu durante o dia a Adam Salton e que lhe enviou logo, prova que essa idéia estava bem fixa em seu espírito. Era deste teor:

 

               Caro senhor Salton.

Eu lhe solicito, se for possível, que, cortesmente, me aconselhe e, talvez, me ajude em assunto de negócios. Tenho tentado, faz anos, a acostumar meu pensamento com a idéia de vender Diana's Grove. Fui protelando, sem cessar, essa transação, até o dia de hoje. O ter­reno é de minha propriedade pessoal; e ninguém está ciente de minhas intenções. Foi comprado por meu fa­lecido esposo, o capitão Adolfo Ranger March, que pos­suía outra residência, "The Crest", em Appleby. Ele ad­quiriu todos os direitos, entre os quais os de exploração de minas e de caça. Quando morreu, legou-me toda a propriedade. Desejava eu deixar este lugar, que se tor­nou precioso, para mim, por causa de numerosas lem­branças e sentimentos: os dias longos e felizes de vida de jovem desposada e a visão do homem que eu amava e que me adorava, nele imprimiram seu vestígio. Am­bicionava vender esta propriedade, a preço justo — na medida, sem dúvida, em que o comprador fosse alguém que eu estimasse e aprovasse. Posso revelar-lhe que o senhor seria a pessoa ideal? Mas não ouso esperar tan­to. Ocorreu-me, contudo, a idéia de que entre seus ami­gos australianos poderia encontrar-se um que desejasse estabelecer-se no "Velho País" e quisesse instalar-se numa das regiões mais prenhes da história da Inglater­ra, cheia de romances e de lendas e de incomensurável interesse histórico. As terras, embora pequenas, são de condição perfeita, oferecem possibilidades ilimitadas de desenvolvimento e interesses numerosos e seguros que existiam antes dos romanos ou até dos Celtas que fo­ram seus primeiros proprietários. Além disso a casa está montada de acordo com a última moda. Uma ocupação imediata poderia ser feita. Meus procuradores poderão fornecer-lhe todas as informações e até minúcias histó­ricas de que tiver o senhor necessidade. Uma palavra sua, de aprovação ou de recusa, é tudo o que é preciso e o senhor poderá debater o assunto com seus agentes. Perdoe-me, por favor, por incomodá-lo com este assun­to e creia-me sua mui sincera amiga

                           Arabella March.

 

Adam leu e releu, várias vezes, esta carta e, de­pois, tomando uma resolução, foi procurar Mimi e lhe perguntou se ela faria objeção a essa compra. Com um arrepio, respondeu ela que nesse negócio, como em to­das coisas, apenas queria o que ele desejasse.

"Meu querido, almejo somente o que você julgar melhor para nós. Fique completamente livre lá onde seu dever ou sua inclinação o conduza. Estamos nas mãos de Deus. Ele nos guiou até o presente e o fará con­forme Seu próprio desígnio.”

Do quarto de sua esposa, Adam dirigiu-se ao escri­tório na torre, onde sabia devia estar, a essa hora, sir Nataniel. O ancião estava sozinho. Quando Adam obe­deceu ao "entre", que respondeu à sua pergunta, fechou a porta e sentou-se a seu lado.

Julga, senhor, que faria eu bem comprando Dia­na Grove?

Deus me ajude!, retrucou o velho, alarmado, — porque você quer fazer isso?

Ora... jurei destruir a Serpente Branca e, sen­do eu dono do covil, tornam-se as coisas mais fáceis e com menos complicações.

Sir Nataniel hesitou mais tempo que de costume, antes de falar. Refletia profundamente.

Sim, Adam, há bastante bom senso em sua su­gestão, embora ela me sobressaltasse a princípio. Pen­so que, por todos esses motivos, seria melhor você com­prar a propriedade e efetuar imediatamente a transa­ção. Se tiver necessidade de mais dinheiro do que dis­põe atualmente, diga-me para que eu possa empres­tar-lhe.

Muito agradecido, do fundo do coração. Tenho à minha disposição mais dinheiro do que é preciso. Fi­co contente por estar o senhor de acordo.

A propriedade é histórica e, com o tempo, terá mais valor. Além do mais, posso dizer-lhe alguma coisa, que, em verdade, não passa de mera suposição, mas que, se eu tiver razão, dará importância suplementar ao lugar.

Adam, em silêncio, escutava.

Será que nunca lhe chamou a atenção e você não perguntou jamais porque o antigo nome de "Covil da Serpente Branca" lhe foi dado? Sabemos que há aqui uma serpente a que chamaram de verme em tem­ pos muito antigos; mas porque branco?

Ignoro-o realmente, sir. Não tinha pensado nis­so. Admitia-o simplesmente sem nada inquirir.

Fiz o mesmo, no início — há muito tempo. Po­rém, mais tarde uma idéia intrigou meu espírito.

Qual, senhor?

Simplesmente e unicamente o fato que a ser­pente ou o verme tivesse sido branco. Estamos próximos do condado de Stafford, onde nasceu e se desenvolveu a grande indústria de porcelana. Stafford deve muito de suas riquezas aos imensos depósitos de argila para por­celana, lá descobertos, de tempos em tempos. Com o correr dos anos, esgotaram-se seriamente esses depósi­tos, mas, durante séculos, os aventureiros de Stafford, procuraram a argila especial, como os pioneiros e fa­zendeiros de Ohio e Pennsylvania buscaram o petróleo. Qualquer um que possuísse propriedades nas quais se descobrisse argila para porcelana tinha diante de si uma mina de ouro.

Bem, e então?... O jovem parecia intrigado.

O "verme" assim chamado a princípio e que deu o nome ao lugar, achara um caminho direto sob a ter­ra para pantanais e os buracos de lodo. Atualmente, a argila é facilmente penetrável e o túnel original passa­va provavelmente através de uma camada de argila es­pecial. Uma vez encontrada essa via, tornou-se ela uma espécie de grande estrada para o "verme". Mas co­mo fizesse numerosos movimentos para subir à tal al­tura, um pouco de argila ia colando à sua pele rugosa. O caminho em baixo devia ser difícil, mas a subida era diferente e quando o monstro chegava à superfície, de­via estar ainda manchado por seu contato com a argila branca. Daí seu nome, que não tem nenhuma significa­ção secreta, mas que é somente um fato. Agora, se esta suposição é verdadeira — e não sei porque não seria — deve haver aqui, a grande profundidade, um depósito de argila, de grande valor.

—            Sinto no meu íntimo, sir, que o senhor expla­nou ou melhor reconstituiu uma grande verdade.

O comentário de Adam agradou ao velho gentleman que alegremente continuou:

—            Quando o mundo do comércio atinar com o va­lor de sua descoberta, será conveniente que o seu título de propriedade esteja bem assegurado. Se alguém ja­mais mereceu tal ganho, sem dúvida será você.

Com a ajuda de seu amigo, Adam adquiriu a pro­priedade, sem perda de tempo. Depois foi ver seu tio e lhe contou toda a história. O senhor Salton ficou encantado por ver seu jovem parente já proprietário, por puro acaso, e de tal título que lhe dava importante situação no meio ambiente. Fez inúmeras perguntas a respeito de Mimi e das ameaças do Verme Branco, mas Adam o tranqüilizou.

Na manhã seguinte, como Adam encontrasse seu hospedeiro no salão de fumar, sir Nataniel lhe pergun­tou com iria proceder para cumprir seu juramento.

É uma obrigação difícil a que você se empe­nhou. Destruir tal monstro é equivalente a um dos tra­balhos de Hércules, porque este possui não só seu ta­manho, seu peso e a capacidade de se servir disso por meios pouco conhecidos, mas também por seu aspecto oculto, ele sozinho, já é dificuldade intransponível. A Serpente é já senhora de todos os elementos, menos do fogo. Mas não vejo como usar do fogo para atacá-la. Ser-lhe-ia suficiente aprofundar-se na terra, conforme sua maneira habitual e você não poderia atingi-la, em­bora recorresse a maior mina de carvão do mundo. Acho que você já tem algum plano em mente Tenho sim. Certamente, porém, só poderá ser experimentado de maneira prática.

Posso saber alguns detalhes?

Como não. Eis minha idéia. Na época das per­turbações constitucionalistas, espalhou-se o rumor, nos círculos financeiros, de que um ataque se preparava contra o Banco da Inglaterra. Imediatamente os direto­res desse estabelecimento consultaram várias pessoas que se julgavam capazes de tomar as disposições pre­cisas e foi finalmente decidido que a melhor proteção contra o fogo, perigo então a temer, seria a areia, não a água. Para pôr em prática essa idéia, imensas reser­vas de areia fina do mar — da espécie que se encontra por aqui e que serve para encher os areeiros — foram dispostas ao redor do edifício, especialmente nos pontos mais expostos a um ataque, para serem utilizados em caso de necessidade.

Farei levar para Diana's Grove, desde que seja mi­nha propriedade, enorme quantidade de areia e apro­veitarei a primeira ocasião para derramá-la no poço, o que, certamente, o entupirá. Assim, lady Arabela, sob sua aparência de Verme (Serpente) Branco ficará pri­vada de seu refúgio. O buraco é estreito e profundo al­gumas centenas de pés. O volume de areia que pode conter não seria, em si mesmo, suficiente para o obs­truir: mas a fricção de um corpo trabalhando contra ele será enorme.

Um momento. Como poderá a areia servir para a destruição?

Ela não intervém diretamente. Mas poderá aprisionar o corpo, prestes a lutar, até que a continua­ção de meu plano se realize.

Qual será o seguimento?

Uma vez derramada a areia no buraco, pacotes de dinamite poderão também ser lançados dentro.

Muito bem. Como, porém, explodirá a dinamite? Porque é isso o que você quer. Não é preciso uma espé­cie de fio ou espoleta para cada pacote de dinamite?

Adam sorriu.

—            Atualmente, não, sir. Isso foi provado em No­va Iorque. Mil libras de dinamite, em tubos de estanho fechados, foram levadas para certo trabalho. Por últi­mo, pôs-se fogo numa carga de pólvora e a percussão fez explodir toda a dinamite. Foi esplêndido o resul­tado. Os que não eram peritos na matéria temiam que todas as vidraças de Nova Iorque se quebrassem. Mas, na realidade, os explosivos não causaram dano algum fora da área prevista, embora 300 hectares de pedras te­nham sido minados.

Sir Nataniel sacudiu a cabeça.

Esse plano parece bom. Excelente até. Mas se a destruição do subsolo atinge a tantos pés de profun­didade, pode também aniquilar os arredores.

E os livrar para sempre de um monstro, acres­centou Adam deixando o cômodo para ir ao encontro de sua esposa.

 

                   A ÚLTIMA BATALHA

Lady Arabela havia dado suas ordens, suas instru­ções para que se apressasse a redação do ato de cessão de Diana's Grove e, assim, sem perda de tempo, Adam Salton tornou-se possuidor formal da propriedade. Após sua conversa com sir Nataniel, fizera diligências para começar a por seu plano em execução. Para poder ar­mazenar o volume de areia que lhe era necessário, or­denara a seus criados que erguessem no terreno um sis­tema apropriado de andaimes. Uma grande amontoa­do de areia, trazida das enseadas costeiras do país de Gales, começou a erguer-se atrás de Grove. Ninguém poderia suspeitar que seu desígnio era bem diferente do pretexto que havia dado para esse trabalho.

Somente lady Arabela poderia adivinhá-lo, mas ela, no momento estava tão absorvida na sua perseguição matrimonial a Edgar Caswall que não tinha nem tem­po nem prazer para tudo o que lhe fosse estranho a esse assunto. Ela não tinha abandonado a casa, embora ti­vesse cedido formalmente a propriedade.

Adam fizera construir um telheiro rudimentar de telhas onduladas atrás de Grove e aí guardou os explo­sivos. Só lhe restava esperar e, para passar o tempo, interessou-se por outras coisas, até no grande papagaio de papel, que adejava tranqüilamente por sobre a alta torre de Castra Regis.

Os montões de areia haviam atingido a tais pro­porções que os administradores e fazendeiros dos arredores do Brow ficaram curiosos. A hora do cataclisma final se aproximava. Adam esperava, em vão, na oca­sião, aparentemente natural, para fazer uma visita a Caswall, na torre de Castra Regis. Por fim, numa ma­nhã, encontrou lady Arabela que se encaminhava para o castelo. Enchendo-se de coragem, pediu-lhe permis­são para acompanhá-la. Ela ficou, segundo suas pró­prias palavras, muito contente, por lhe satisfazer esse desejo. Assim foram juntos e chegaram aos cômodos da torrinha. Caswall ficou surpreso por ver Adam advir a sua casa, mas cedeu a obrigação de se mostrar con­tente. Desempenhou-se tão bem de seu papel de anfi­trião que enganou até a Adam. Os três se encaminha­ram para o teto da torrinha onde Caswall explicou a seus convidados o sistema que permitia fazer subir ou descer o papagaio, aproveitando-se da ocasião para tes­tar as reações dos bandos de aves que respondiam qua­se instantaneamente aos movimentos do papagaio.

De volta de Castra Regis, quando entrava em casa, lady Arabela interrogou a Adam se poderia fazer-lhe um pedido. Dada a permissão, explicou ela que, antes de deixar Diana's Grove, onde vivera tão longo tempo, de­sejava conhecer a profundeza do poço. Adam ficou real­mente contente por aceder a seu desejo, não em razão de um sentimento qualquer, mas porque assim teria ra­zão válida e ostensiva para examinar a entrada da Ser­pente sem que sua presença nesses lugares despertasse a menor suspeita. Mandou vir de Londres uma sonda Kelvin, com cordame suficiente para testar a provável profundeza. A corda se desenrolava facilmente ao re­dor de um cabrestante e, quando este foi fincado por cima do buraco, Adam se sentiu satisfeito por ter espe­rado o momento preciso para sua experiência final.

No intervalo, os negócios se tinham transcorrido calmamente em Mercy Farm. Certamente Lilla se sen­tia sozinha na ausência de sua prima, mas o curso da vida passava sem anormalidade para ela como para os outros. Superado o primeiro choque da separação, o quotidiano retomou sua rotina habitual; somente com uma exceção que marcou contudo clara diferença. Por longo tempo, as condições da casa se haviam mantido inalteradas e Lilla estava contente por afastar dela toda a ambição e de se ater à vida que era a sua, desde mui­tos anos. Mas o casamento de Mimi levou-a a reflexões. Naturalmente chegou à conclusão que ela também po­deria casar. Para ela, contudo, não haveria muita esco­lha. Poucos pretendentes se arriscariam a se apresen­tar na fazenda. Ela não apreciava a pessoa de Edgard Caswall e sua luta com Mimi a tinha aterrorizado; mas ele era, contudo, um excelente partido, superior até àquilo que poderia esperar. Essa consideração tinha bastante peso para uma jovem e, mais ainda, para uma jovem de sua classe. Em suma, deixou ela as coisas se­guirem seu curso e se contentou em esperar o resul­tado.

Com o correr do tempo, teve razões para crer que a situação não se anunciava muito favorável à sua fe­licidade. Não podia fechar os olhos a certos fatos per­turbadores, entre os quais, a existência de lady Arabela e sua crescente intimidade com Edgard Caswall. Tanto a natureza dessa mulher era fria e altiva, quanto a pai­xão era a base dos sonhos de felicidade da jovem. Co­mo se modificariam seus sentimentos, se ela, a lady, casasse com Edgard? Esse pensamento a assustava. Considerando bem, o futuro não se lhe apresentava fe­liz e ela acalentava o desejo secreto que alguma coisa acontecesse e agitasse a atual ordem das coisas.

Quando Lilla recebeu uma carta de Edgard Caswall em que este lhe perguntava se poderia ir tomar chá com ela, seu coração ficou oprimido. Se se tratasse ape­nas da segurança de seu pai, não devia recusar, nem demonstrar qualquer repugnância que seria interpre­tada como indelicadeza. Sentia necessidade de Mimi, mais do que poderia pensar. Até então, sempre recorrera à simpatia, à compreensão e ao auxílio leal de sua prima. Agora ela e todas essas coisas e milhares de ou­tras, tinham partido. Em seu lugar ficara o horrível e doloroso vazio.

Durante toda a tarde, a noite e a manhã seguinte, a solidão da pobre Lilla aumentara a ponto de se trans­formar numa agonia certa. Pela primeira vez começou a entender o sentido de seus males, como se todos os seus sofrimentos anteriores tivessem sido apenas uma preparação. Cada coisa que considerava, de que ela se lembrava e em que refletia, se tornava pungente recor­dação. Então, tentando se dominar, teve novo temor. O sentimento de segurança que a cercara, a vida toda, se defendia mal da apreensão que a oprimia. Julgou até que chegara a um ponto além do que podia suportar. Tudo isso a envolvia em tal pavor que uma idéia dela se apossou: preferia morrer a viver. Contudo, quais­quer que fossem seus sentimentos, devia cumprir seu dever e tendo sido educada nesse sentido, reagiu e resol­veu enfrentar da melhor maneira possível, seu destino.

Todavia essa luta severa e prolongada para se ani­mar, teve seus efeitos sobre Lilla. Parecia e estava, re­almente, enferma. Estava em total aniquilamento e prostração. Olheiras negras rodeavam seus olhos, seus lábios se tornaram pálidos e ela era sacudida por ins­tintiva tremura que era absolutamente incapaz de re­primir. Era, para ela, má sorte que Mimi tivesse se ausentado; por seu amor lhe faria ver claro nas coisas negras e teria trazido luz às causas de seu mal-estar. Lilla sentia-se incapaz de tentar alguma coisa para es­capar à prova que a esperava; mas sua prima, com a experiência dos combates anteriores com Caswall e das condições nas quais estes a tinham deixado, teria toma­do disposições, até peremptórias, se isso fosse mister, para evitar que eles se repetissem agora.

Edgard chegou, pontual, na hora que ela mesma ti­nha marcado. Quando Lilla o viu aproximar-se da casa, através da grande janela, seu estado de perturbação era lastimável. Fez, contudo, um esforço e preparou-se pa­ra atravessar a fase preliminar desse encontro sem tor­nar essa mutação perceptível, em sua aparência e sua conduta. Teria sido para ela terror suplementar se visse a sombra negra de Oolonga, que temia, seguir de perto seu patrão. Ficou um tanto aliviada quando não o viu aproximar se, em sua maneira furtiva habitual. Regozijou-se também, embora menos, porque lady Arabela não estava presente para inquietá-la como da ou­tra vez.

Ela cuidara em se apresentar como mulher de con­dição inferior e tinha preparado o chá de maneira a marcar, sutilmente, a diferença social que existia entre ela e seu convidado. Tinha escolhido o serviço de chá do mesmo modo que o acompanhamento, na mesa, da qualidade mais inferior. Em lugar de usar o bule de chá de prata e as xícaras de porcelana, tinha se utili­zado de um bule de louça, como se usa nas cozinhas das fazendas. A mesma humildade se via nas xícaras e nos pires de faiança ordinária e na manteigueira da mesma qualidade. O pão era feito de farinha comum e cozido em casa. A manteiga era boa pois ela mesma a fizera, enquanto que as geléias e o mel eram da fazen­da. Seu rosto se iluminou de satisfação quando viu seu convidado olhar esses preparativos com ar desdenhoso. A pobre moça, contudo, sofria um pouco, pois gostava de oferecer a um conviva as pequenas delica­dezas que lhe seriam possíveis. Mas era preciso saber sacrificar às outras necessidades.

O rosto de Caswall era mais imóvel e mais severo que nunca, seus olhos perscrutantes pareciam, desde o início, atravessá-la. Seu coração enfraqueceu, quando sentiu o que ia acontecer; o que seria o fim, quando o que acontecia era apenas o princípio. Como prote­ção, embora ingênua e sentimental, trouxera de seu quarto as fotografias de Mimi, de seu avô e de Adam Salton, que habituara a considerar como irmão e em quem podia confiar. Tinha colocado os retratos perto de seu coração sobre o qual punha naturalmente sua mão quando seus sentimentos de oposição, de descon­fiança ou de pavor se tornavam tão angustiantes que para achar a calma, ela sentia necessidade disso para transpor essa prova.

No começo, Edgard Caswall foi cortês, polido, aten­cioso até. Mas, pouco depois, quando percebeu que a resistência de Lilla aumentava, abandonou toda a for­ma de comedimento e apareceu tão dominador como o fora outrora. Todavia, Lilla estava preparada para isso, tanto por sua experiência anterior como por seu natu­ral instinto de defesa. Os minutos passavam. Penetra­dos por suas vontades, os dois aumentavam os seus poderes e conservavam a igualdade, com que haviam se iniciado.

Sem demora, a luta psíquica entre essas duas per­sonalidades tornou-se bela... Desta vez as circunstân­cias positivas e negativas estavam a favor do homem. A mulher se achava em más disposições e sem apoio. Ti­nha como auxílio apenas a lembrança de dois combates vitoriosos. Ao passo que o homem, privado embora da ajuda de lady Arabela e de Oolonga, estava cheio de forças, bem repousado e em disposições favoráveis. Não havia nada de anormal que seu caráter dominador por natureza encontrasse oportunidade completa. Lançou seus primeiros olhares com o sentimento consciente de poder e, como parecesse ter efeito imediato sobre a mo­ça, teve sempre segurança crescente de vitória defi­nitiva.

A pouco e pouco, a firmeza de Lilla começou a fra­quejar. Percebeu que a luta era desigual e que não es­tava em condições de desdobrar-se em melhores esforços. Como não era pessoa egoísta, não sabia combater tão bem por ela mesma, como por pessoa a quem amasse e se de­dicasse. Edgard observou o relaxamento dos músculos de seu rosto e de sua testa e o enfraquecimento quase total de suas pupilas, pesadas, que se fechavam como que sonolentas. Lilla fez vãos esforços para retomar suas forças cambaleantes, mas isso, infelizmente, por breve tempo. Uma interrupção lhe pareceu dar motivo estimulante. Mas através da larga janela, ela viu lady Arabela chegar perto da porta da fazenda e adiantar-se para o vestíbulo. Vestia-se como sempre de branco, bem apertado, o que fazia acentuar-se sua figura delgada e sinuosa.

Sua visão aniquilou, em Lilla, todo o esforço de vontade. Seus olhos se arregalaram e, num instante, sentiu como que nova vida se desenvolver em si. A en­trada de lady Arabela, indiferente como de hábito, al­tiva e desdenhosa, aumentou o efeito, de tal maneira que quando seus dois inimigos se colocaram um perto do outro, Lilla percebeu que ela viera se juntar ao com­bate. O senhor Caswall sentiu então nova coragem pe­netrá-lo e toda a sua potência e suas forças retornaram. Seus olhares, intensificados, tiveram efeito mais eviden­te do que até então. Lilla pareceu cair sob seu domí­nio. Sua visagem tornou-se alternativa e rapidamente, rubra e pálida. Sua força como que desapareceu. Seus joelhos se enfraqueceram e ela ia tombar por terra, quando, para sua surpresa e alegria, Mimi entrou ines­peradamente, ofegante, na sala.

Lilla se lançou para ela e as duas apertaram-se as mãos. Então, novo sentimento de poder, maior do que Lilla vira até agora, pareceu animar sua prima. Sua mão ergueu-se no ar, diante de Caswall, empurrando-o para trás, mais e mais, a cada um de seus movi­mentos, até que ele foi jogado pela porta que ficara aberta e caiu, de comprido, no caminho feito de pedregulho.

Então Lilla deslizou lentamente e, sem ruído, prostrou-se em terra.

 

                     FACE A FACE

Mimi ficou muito aflita quando viu sua prima es­tendida por terra. Já vira várias vezes Lilla quase desfalecida, mas nunca fora dos sentidos, como naquele mo­mento. Por isso ela também ficou assustada. Ajoelhou-se perto dela e tentou reanimá-la esfregando-lhe suas mãos e fronte e empregando os meios usuais. Todos os seus esforços, porém, foram ineficazes. Lilla perma­neceu estendida, branca e sem sentidos. Na realidade, a cada instante parecia pior; seu peito, que palpitava pela tensão, tornou-se quase imóvel e a palidez de seu rosto se assemelhava ao mármore.

Diante dessa situação, aumentou-se o pavor de Mi­mi, até se apoderar completamente dela. Controlou-se até que pôde, evitando contudo os gritos de alarme.

LadyArabela havia acompanhado Caswall quando este pôde voltar a seus sentimentos, erguer-se e reti­rar-se cambaleando em direção a Castra Regis. Quando Mimi ficou sozinha com Lilla e a necessidade de esforço cessou, ela se sentiu fraca e trêmula. Em seu espírito atribuiu esse estado à rápida mudança do tempo — que deixava prever iminente tempestade.

Ela ergueu a cabeça de Lilla e a colocou sobre seu peito jovem e cálido. Esse gesto, contudo, foi em vão. A frialdade dos traços lívidos a penetrava e ela abateu-se completamente quando começou a perceber que Lilla estava morta.

O crepúsculo aumentava a pouco e pouco. As som­bras da noite se tornavam mais densa. Mimi, porém, não parecia notá-las nem lhes prestar atenção. Ficara por terra, rodeando, com seus braços, o corpo da jovem que ela tanto amava. O céu mais sombrio ficara mais negro à medida que, unindo suas forças, a tormenta se aproximava e a noite caía. Imóvel, permanecia ela, sentada, sozinha, sem lágrimas, incapaz de formular um pensamento. Jamais soube Mimi quanto tempo ela jazeu assim. Embora lhe parecesse séculos tivessem es­coado, não tinha transcorrido mais de meia hora. Re­pentinamente, recobrou as forças e ficou assustada em vendo que seu avô ainda não regressara. Durante um instante ficou assim, pensando no passado imediato. A mão de Lilla, inerte na sua, estava, com grande surpresa sua, ainda quente. Esse sentimento a fez retomar a consciência e a ajudou a se erguer, sem particular esforço de vontade. Acendeu uma luz e contemplou a prima. A morte de Lilla lhe pareceu certa, mas, quan­do a luz da lâmpada alumiou seus olhos, pareceu-lhe que ela a contemplava com intenção cheia de signifi­cado. Em seu estado de sombrio isolamento, nova idéia lhe surgiu ao espírito e foi crescendo mais e mais até se tornar firme resolução. Ela iria procurar Caswall e lhe daria conta do assassínio de Lila: foi assim que ela designou esse acontecimento. Tomaria também me­didas — quais, nem como, não sabia — para tirar vin­gança da parte tomada por lady Arabela nesse crime.

Nessa disposição de ânimo, acendeu todas as luzes do cômodo, foi buscar água, lençóis e roupas em seu quarto e preparou de maneira decente o corpo de Lilla. Isso lhe tomou algum tempo, mas quando terminou, apanhou seu chapéu, seu casaco, apagou as luzes e par­tiu resolutamente em direção a Castra Regis.

Achegando-se ao castelo, Mimi não percebeu luz alguma, menos aquela do quarto da torre. Essas luzes provavam que Caswall estava em casa. Penetrou no saguão, estando como de costume a porta aberta e en­controu seu caminho, na escuridão, em direção a esca­da que subia até o vestíbulo do quarto. A porta estava entreaberta e a lâmpada brilhava fortemente, no inte­rior. A jovem pôde ver que Edgard Caswall ia e vinha, sem parar, no quarto, com as mãos atrás das costas, Empurrou a porta, sem bater e adentrou a sala. Ven­do-a, ele parou de andar e a contemplou com estupor. Ela não fez comentário algum, mas conservou seu olhar fixo sobre ele.

Durante um momento, o silêncio reinou e os dois se contemplaram fixamente, um ao outro. Mimi foi a primeira a falar.

O senhor é um assassino. Lilla morreu.

Santo Deus! Meu Deus! quando ela morreu?

Morreu esta tarde, logo depois que o senhor a deixou.

—            Está certa disso?

Sim e o senhor também já deveria saber. O se­nhor a matou.

Preste atenção e cuidado com o que diz!

Isso é tão verdade como Deus nos vê neste mo­mento e o senhor o sabe, pois foi a Mercy Farm coma intenção de subjugá-la, com seu poder. E a cúmplice de seu crime, lady Arabella, foi também com o mesmo intuito.

Cuidado! jovem, disse ele com ardor; não em­ pregue jamais tais palavras e pagará por isso, sofrendo muito.

Por isso sofro, tenho sofrido e sofrerei ainda. Não por dizer a verdade, como fiz, mas porque vocês dois, com o auxílio do demônio, levaram a minha que­rida prima à morte. É o senhor e sua cúmplice que de­vem temer o castigo, não eu.

Tome cuidado! disse ele novamente.

Oh! não tenho medo do senhor, nem de sua comparsa, retrucou ela ardorosamente. Estou contente por sustentar cada uma das palavras que pronunciei, cada gesto que fiz. Mais ainda, creio na justiça de Deus. Não temo ser esmagada por sua máquina. Se for necessário, eu mesmo porei as rodas em movimen­to. O senhor não teme a Deus ou não crê nele. Seu Deus é o grande papagaio de papel que causa medo a todos os pássaros da região. Mas fique certo que a mão de Deus, quando se ergue, tomba no momento desejado. Pode ser que o nome do senhor esteja sendo pronun­ciado neste momento na Grande Corte. Arrependa-se enquanto ainda há tempo. Impetre que lhe seja dado penetrar na grande mansão divina, em companhia dos anjos de alma pura, cuja voz só tem que sussurrar uma palavra de justiça, para que o senhor desapareça para sempre nos eternos tormentos.

A súbita morte de Lilla causou consternação entre os amigos de Mimi e os que a estimavam. Enquanto Adam e sir Nataniel esperavam que a vingança da Serpente Branca atingisse eles mesmos, e tal tragédia era totalmente inesperada.

Adam, deixando sua esposa seguir sua própria von­tade, em tudo que dizia respeito a Lilla e a seu avô, re­solveu dedicar-se à tarefa de encher o buraco do poço com a areia fina preparada para isso, tomando cuidado em colocar a espaço fixo tubos de dinamite, prontos pa­ra a explosão final. Tinha, sob sua imediata vigilância, um grupo de trabalhadores e era auxiliado por sir Na­taniel, que interviera nesse seu desígnio e todos se achavam agora em Lesser Hill.

O senhor Salton, também, demonstrava bastante interesse nesse trabalho e constantemente ia e vinha, não deixando nada escapar de sua observação.

Depois de seu casamento com Adam e sua perma­nência em Doom Tower, Mimi se contivera pelo temor do horrível monstro de Diana's Grover. Mas agora ela não mais o temia, e aceitava o fato de que ele pudes­se tomar, à vontade, a aparência de lady Arabella. Ela a acusava e lhe exprobava sempre a parte que desem­penhara na desgraça, que atingira Lilla e sua partici­pação no último ato que lhe causara a morte da prima.

Uma noite em que Mimi entrara no quarto, foi até a janela e ficou a olhar atentamente a perspectiva que se abria diante dela. Uma vista d'olhos a persuadiu que a Serpente Branca, in própria persona, não estava visí­vel. Então, pegou uma cadeira e sentou-se diante da ja­nela e ficou a apreciar o panorama de que fora priva­da por largo tempo. A jovem criada que cuidava dela lhe dissera que o senhor Salton não regressara ainda à casa e Mimi se sentiu livre para usufruir do luxo dessa tranqüilidade.

Olhando pela janela, viu alguma coisa fina e bran­ca desusar ao longo da avenida. Reconheceu a figura de lady Arabela e instintivamente se acolheu por trás da cortina. Quando ficou certa de que a jovem senhora não a tinha visto, olhou com mais atenção. E então, quase por instinto, seu ódio se reacendeu. Lady Arabela se deslocava rápida e furtivamente, olhando para trás e ao redor, como se temesse ser seguida. Mimi percebeu que ela estava prestes a fazer algo de mal e resolveu aproveitar a ocasião para observá-la mais de perto.

Pondo depressa seu manto negro e seu chapéu, desceu a escada e saiu para a avenida. Lady Arabela tinha se afastado, mas o brilho de sua veste branca era sempre visível, entre os carvalhos que rodeavam a en­trada. Procurando a sombra, Mimi a seguiu, tomando o cuidado de não se aproximar muito dela, para não despertar suspeita. Assim, vigiou sua presa que cami­nhava ao longo da estrada, em direção a Castra Regis.

Pôde acompanhá-la regularmente através da es­curidão, graças ao reflexo do vestido branco que lhe servia de guia. Mas o bosque começava a diminuir e à medida que a estrada se alargava e as árvores fica­vam para trás, Mimi perdeu o vestido, de vista. Nas condições presentes, nada mais poderia fazer. Depois de ter ficado uns momentos imóvel na sombra, espe­rando ver de novo o reflexo da veste branca, decidiu encaminhar-se lentamente para Castra Regis, confian­do à sorte encontrar o caminho. Continuou sua mar­cha, servindo-se de cada obstáculo, de cada sombra para se ocultar. Por fim, penetrou em terras do castelo, em um lugar de onde as janelas da torrinha eram fraca­mente visíveis. Lady Arabela não tinha reaparecido. Na realidade, na maior parte do tempo em que Mimi Salton tinha se movimentado com precaução, na es­curidão, ela tinha sido seguida por lady Arabela que a tinha visto sair de casa e não a tinha perdido de vista. Era a situação do caçador caçado. Durante um mo­mento, as sinuosidades do percurso feito por Mimi con­tornavam obstáculos naturais que se apresentavam constantemente e causaram a lady Arabela algum em­baraço. Mas quando Mimi chegou perto de Castra Re­gis, sem possibilidade de se esconder, a estranha e du­pla perseguição continuou rapidamente. Quando lady Arabela viu Mimi perto da porta de entrada de Castra Regis pronta para subir os degraus, acompanhou-a. Quando Mimi entrou no escuro saguão e achou seu ca­minho para a escada, crendo sempre seguir lady Arabela correu atrás dela. Quando alcançou o vestíbulo da câmara da torrinha, Mimi julgou que o objeto de sua perseguição estivesse lá.

Edgard Caswall estava sentado na grande sala, ilu­minada de tempo em tempo pelas nuvens que se amon­toavam e deixavam escoar uma fraca luz do céu, var­rido pela tempestade. Nada, porém, o interessava na­quele momento. Depois que soubera da morte de Lilla, as trevas de seu remorso, acentuado pelas reprimendas de Mimi, tinham desesperado sua natureza cruel, egoísta e taciturna. Não escutava ruído algum, porque suas faculdades normais estavam como que embotadas.

Mimi, chegando diante da porta entreaberta, deu ligeira batida, tão de leve que não foi percebida pelos ouvidos de Caswall. Então tomando coragem, empurrou, corajosamente, a porta e entrou. Depois de ter feito esse movimento, sentiu o coração desfalecer. Agora, es­tava ela face a face a uma dificuldade que seu estado de tensão mental lhe vedara perceber.

 

                   NO TETO DA TORRINHA

A tempestade que ia desabar se manifestava já, não somente por sobre a vasta extensão dos campos, mas nos corações e na natureza dos seres humanos. As faíscas elétricas atravessavam o céu e o ar, repercutin­do sobre os animais de todas as espécies e em parti­cular sobre a espécie mais elevada, a mais receptiva, a mais elétrica. Assim era com respeito a Edgard Cas­wall, apesar de sua natureza egoísta e da frieza de seu temperamento. Assim era também para com Mimi Salton, apesar de sua devoção altruísta, imutável, para com aqueles a quem ela amava. Assim era também pa­ra com lady Arabela que, sob seus instintos de serpen­te primitiva, revolvia os desejos sempre variáveis e ines­perados de seu estado de mulher, que são um eterno devenir.

Edgard, depois de ter voltado os olhos para Mimi, retomou sua posição indolente e seu silêncio melancó­lico. Mimi, calmamente, pegou uma cadeira, um pouco afastada, de onde ela podia ver o avanço da tormenta que se formava e observar seu aparecimento em toda a extensão visível dos arredores. Sentia-se ela numa dis­posição de espírito mais viva e mais ativa que aquela dos dias precedentes: Lady Arabela tentou esconder-se atrás da porta entreaberta.

Fora, as nuvens se tornavam mais densas e mais negras, à medida que a tempestade se achegava. Até o presente, as forças centrais de onde saltavam os relâmpagos haviam ficado distantes... Mas, nesse instante, o silêncio da natureza anunciava a calma que precede ao furacão. Caswall sentia os efeitos da força elétrica, assim acumulada. Uma espécie de alegria selvagem se apossava de seu ser, semelhante àquela que havia senti­do, às vezes, quando se aproximava um tornado tropi­cal. Tornando-se consciente, levantou a cabeça e lançou um olhar para Mimi. Sentia-se preso por emoção que o ultrapassava em tal disposição que nele se agitava uma necessidade de praticar uma ação desesperada qualquer. Estava completamente apático e como Mimi se associa­ra nele à lembrança que o impelia, pensou em arras­tá-la nesse empreendimento. Desconhecia a presença de lady Arabela e julgou que estava longe de tudo o que conhecia, longe dos interesses que tinha enfrenta­do, com fúria, sozinha com os elementos selvagens, de­pois com essa mulher que o combatera e o tinha venci­do e a quem, agora, queria demonstrar a plena me­dida de seu ódio.

O fato era que Edgard Caswall estava, senão lou­co, ao menos à beira da loucura. A demência em seu primeiro estágio é a perda da noção dos valores reais. Por mais tempo seja ela geral, nem sempre é perceptí­vel, porque o simples espectador carece de meios necessários para comparação. Na monomania, porém, as fa­culdades em divagação se mostram de maneira indes­trutível. Elas põem de lado todas as idéias para se dedicar somente a uma. A forma habitual da mono­mania tem começo igual àquele sofrido por Edgard Cas­wall. — uma idéia, muito grande, de sua própria im­portância. Os alienistas que estudaram esse caso, co­nhecem, provavelmente, mais a respeito de vaidade hu­mana e seus efeitos do que o sabe um homem comum. A perturbação mental de Caswall não era difícil de identificar. Os hospícios estão cheios de casos seme­lhantes — homens e mulheres, por natureza egoístas e presunçosos, que se atribuem tal importância a si, que qualquer situação exterior se lhe torna subordinada. A enfermidade fornece, em si mesmo, a magnificência material de si próprio. Quando a decadência se apossa de uma natureza, por essência, altiva, egoísta, orgulho­sa, e, falando às vezes, a aptidão e o hábito da con­tenção, o desenvolvimento da doença é mais rápido e chega aos limites mais extremos. Alguns se imbuem até da idéia que possuem os atributos do Todo Poderoso ou melhor ainda, que eles são a própria Divindade.

Mimi suspeitou ou teve a intuição da verdadeira si­tuação das coisa quando ouviu Caswall falar e notou a vermelhidão anormal de seu rosto e seus olhos que rolavam em suas órbitas. Havia certa ausência de cons­tância nos seus propósitos, de que ela não tinha toma­do ciência antes — um desgaste rápido, espasmódico, que pertencia mais à loucura do que ao equilíbrio inte­lectual normal. Ela estava um tanto assustada, não tanto por seus pensamentos, como por sua maneira agitada de os expor.

Caswall se encaminhou para a porta que leva à es­cada da torrinha e declarou de maneira peremptória, cujo tom a tornou mais desconfiada:

—            "Venha! Eu tenho necessidade da senhora!"

Instintivamente, ela recuou; não estava acostuma­ da a tais palavras, e, menos ainda, em tal entonação. Sua resposta desencadeou novo conflito:

—            Por que devo ir? Qual a razão?

Ele não retrucou logo, esmagado por seu egoísmo. Ela repetiu as perguntas. Esta repetição o obrigou a reagir e pronunciou, sem querer, as palavras que esta­vam em seu coração:

"Tenho necessidade da senhora. Faça o favor de me acompanhar ao teto da torrinha. Queria eu fazer nova experiência com o papagaio. Ela poderia ser para a senhora, senão um prazer, ao menos uma curiosidade. A senhora veria alguma coisa que não se vê facil­mente.

— "Eu vou", respondeu ela simplesmente.

Edgar se dirigiu para a escada e ela o seguiu de perto.

Ela não desejava ficar sozinha em tal altura, na escuridão com a tempestade próxima a desabar. Não tinha medo dele; tudo o que se passara, parecia ter si­do a tanto tempo... quando de suas duas vitórias na batalha dos espíritos. Além disso, sua apreensão mais recente, sobre sua possível loucura, também desapare­cera. Na conversa dos últimos minutos, ele parecia tão consciente, tão duro, tão inofensivo que ela não viu mais razão para desconfiar. Estava tão confiante que quando ele lhe estendeu a mão para guiá-la na escada estreita e escarpada, pegou-a sem hesitação, de manei­ra a mais natural.

Lady Arabela, escondida no vestíbulo, atrás da por­ta, ouvia cada palavra que era dita e podia sobre isso formar opinião. Parecia-lhe evidente que certa apro­ximação se estabelecia entre essas duas criaturas, a tão pouco tempo hostis uma a outra. Esse pensamento pro­vocou-lhe terrível cólera. Mimi se interpunha aos seus planos. Estava crente de que se apoderaria de Edgard Caswall e não podia tolerar que, o que ela julgava co­mo a mais insignificante e a mais miserável fantasia, pudesse afastá-la do objetivo que criara. Quando per­cebeu que ele desejava que Mimi fosse ao teto, em sua companhia, e ela aquiesceu, sua raiva tocou o extremo dos limites. Esqueceu o perigo que representava sua presença nesse lugar tão exposto, em tal hora e por ou­tras considerações, e decidiu opor-lhes obstáculo. Deslizou furtivamente e em silêncio pela abertura, subiu os degraus e desembocou no teto. Fazia um frio cruel. As violentas rajadas da tormenta varriam a torrinha e se engolfavam em cada caminho que não apresentasse oposição, silvando nos cantos da torre e gemendo ao re­dor do mastro que balançava. A cordinha do papagaio e o fio metálico que controlavam as mensagens produziam grande número de sons estranhos que formavam de certa maneira — talvez por causa da violência circunstante que, agindo sobre ele, provocavam certa vi­bração — acompanhamento apropriado à tragédia que estava prestes a começar.

O coração de Mimi batia fortemente. Justamente antes de deixar a sala da torrinha, tivera um choque de que não conseguia se refazer. As luzes do cômodo lhe haviam momentaneamente revelado, quando saiam, o rosto de Edgard, concentrado como de hábito quando tinha intenção de usar de seus poderes mesméricos. Agora, suas sobrancelhas negras formavam espessa li­nha em seu rosto, sob as quais seus olhos brilhavam e cintilavam de maneira singular. Mimi reconheceu o pe­rigo e se pôs em guarda, visto que isso lhe fora útil já duas vezes. Tinha receio de que as circunstâncias e o lugar lhe fossem contrários e queria se prevenir.

O céu estava agora um pouco mais claro. Ao longe, os reflexos de certos coriscos eram levados pelas nuvens turbulentas e as forças concentradas, embora ainda não se tivessem desencadeado, produziam nascente lume. A atmosfera parecia afetar, ao mesmo tempo, o homem e a mulher. Edgar estava sob essa influência. Seus sentimentos eram violentos, seu espírito exaltado. Es­tava agora no último grau: mais louco do que nunca.

Mimi, tentando manter-se o mais longe dele que lhe era possível, encaminhou-se pelo solo de pedra do terraço e encontrou um nicho onde se escondeu. Não estava muito longe do lugar em que se ocultara lady Arabela. Edgard, sozinho no centro do terraço, sentia-se in­teiramente senhor de si e essa sensação lhe aumentava a loucura. Sem a ver, sentia que Mimi estava ao al­cance de sua mão. Falou forte e. o som de sua voz, embora fosse ela levada para longe pelo vento impe­tuoso com a mesma força que as palavras pronuncia­das, como que o exaltou ainda mais. Até o furor dos elementos túrbidos, ao redor dele, parecia acrescer-lhe sua exaltação. Para ele, essas manifestações obede­ciam, no seu pensar, à sua própria vontade. Tinha atin­gido o ápice da demência: pensava agora ser realmente o Todo Poderoso e que tudo o que acontecia era a expressão formal de suas próprias vontades. Como não po­dia ver Mimi, nem mesmo adivinhar onde se encontra­va, bradou em voz tonitroante:

"Venha aqui, perto de mim! Você deve contemplar, agora, o que desprezou, o que combateu. Tudo o que você vê me pertence: as trevas bem como a luz. Digo-lhe que eu sou maior que Aquele que é, que foi ou que será. Quando o Senhor do Mal levou o Cristo a um lugar elevado e lhe mostrou todos os reinos da terra,, ele acreditava que o que ele fazia ninguém mais pode­ria fazer. Ele se enganava. Ele se olvidou de mim. Eu. Eu vou mostrar, uma luz que vai subir ao mais alto do céu. Uma luz tão potente que dissipará essas nuvens negras que se precipitam e se acumulam ao redor de nós. Veja! Veja! Ao simples contato de minha mão, essa luz salta à vida e pulsa e se eleva para o alto — mais alto — sempre mais alto!”

Enquanto falava, ele se dirigia para o canto da torre, onde se erguia o papagaio e de onde partiam as mensagens. Mimi olhava, apavorada, não ousando fa­lar, com medo de provocar um desastre. No interior do nicho, agachava-se lady Arabela, no paroxismo do furor.

Edgar pegou de uma caixa de madeira, de onde se desenrolava o fio metálico das mensagens. Seu gesto pôs em marcha algum mecanismo e um som se ergueu, como vago sussurro. De um dos lados da caixa escapou e ficou flutuando o que parecia um pedaço de lâmina rígida, que estalava ou crepitava, ao sabor do vento. Durante algum tempo Mimi viu a lâmina correr, ao lon­go da corda curvada, em direção ao papagaio. Quando dele se aproximou, houve uma forte descarga e luz súbita apareceu em cada uma das aberturas da caixa. En­tão um clarão rápido jorrou ao longo da lâmina, que se pôs a brilhar de maneira intensa — uma luz tão forte que os arredores se destacaram no fundo dos nimbos es­curos que corriam nos céus. A luz durou alguns ins­tantes, depois, repentinamente desapareceu nas trevas arredores. Era uma simples luz de magnésio, que se tinha acendido pelo mecanismo contido na caixa e er­guido até o papagaio. Edgard estava em estado de tu­multuosa exaltação, berrando, urrando quase, e pinoteando como um louco.

Isso era mais do que a estranha dualidade de lady Arabela poderia suportar. O elemento vampiresco que havia nela a sobrepujou e ela abandonou qualquer idéia de casamento com Edgard Caswall, contemplando-o com. maus olhos, e pensando em próxima vindita.

Ela deveria lhe armar uma armadilha, atraindo-o ao buraco da Serpente Branca. Mas, como? Olhou ao redor de si e decidiu-se, sem demora. Todos os pensa­mentos do homem estavam absorvidos pelo magnífico papagaio, de que fazia exibição, com o fito de fascinar sua imaginária rival, Mimi.

Subitamente, infiltrou-se pelas trevas, até o apa­relho ao redor do qual a corda do papagaio estava enro­lada. Com dedos ágeis, apoderou-se do cabrestante e carregou consigo. Desenrolando a cordinha, como que­ria, em um sentido, conservou o controle do papagaio. Então, encaminhou-se depressa para a portinhola por onde passou, fechando a porta à chave, ao partir.

Em baixo da escada da torrinha, correu rapidamen­te, deixando correr o fio da bobina que levava, com cui­dado; depois, saindo pela porta principal, precipitou-se para o fim da avenida, a toda velocidade. Alcançou lo­go sua própria cerca, correu ao longo da alameda e com sua própria chave abriu a porta de ferro que dava para o buraco do poço. Sentiu-se satisfeita consigo mesma. Todos os seus planes amadureciam ou já estavam maduros. O dono de Castra Regis estava sob seu controle. A mulher cuja intervenção temia, Lilla Walford, estava morta. Na realidade tudo ia bem e ela percebia que devia dar-se um tempo de descanso e dormir. Arrancou violenta­mente suas vestes, com dedos febris e, gozando de sua li­berdade natural, esticou sua figura delgada em prazer animal. Em seguida estirou-se num sofá, esperando sua vítima! Dentro de minutos, pensava ela, o sangue quen­te de Edgar Caswall faria mais que satisfazê-la.

 

                     O DESABAR DA TEMPESTADE

Quando lady Arabela partiu, conforme sua maneira habitual, silenciosamente, os outros dois ficaram um mo­mento em seu lugar, no terraço: Caswall porque nada tinha a dizer; Mimi porque tinha muito a falar e deseja­va pôr em ordem suas idéias. Durante um instante que pareceu interminável, o silêncio reinou entre eles. De­pois Mimi começou, tendo, enfim, tomado uma decisão:

"Senhor Caswall", chamou ela, com voz forte, para ficar segura de que ele a ouviria através de tumultuar do vento e das contínuas descargas elétricas.

Caswall respondeu, mas suas palavras foram le­vadas pela ventania. Contudo, um de seus objetivos tinha sido alcançado; sabia agora exatamente em que lugar do terraço se encontrava ele. Assim, dele se aproximou ela, antes de falar novamente, erguendo a voz, quase gritando.

"A portinhola está trancada. Abra-a, por favor. Não posso sair daqui". Falando, ela tirou um revólver que Adam lhe tinha dado para caso de perigo e que agora conservava diante do peito. Sentia-se presa como um rato na armadilha, mas conservava a calma e julgava que a situação se voltaria a seu favor. Caswall também se sentia numa armadilha e a fera que nele dormia acor­dou e se revelou. Com voz rouca e violenta, semelhante àquela que se ouve quando uma mulher é açoitada pelo marido, ele falou quase num sibilo. As sílabas das pa­lavras se destacavam no rugido da tempestade.

"A senhora veio por sua espontânea vontade, sem permissão, sem nada me pedir. Agora, pode ficar ou partir, como lhe agradar. Mas deve agir sozinha. Isso não me diz respeito, em nada.”

A resposta continha uma perigosa delicadeza.

"Eu vou-me embora. Censure o senhor mesmo, se não aprova este momento, esta situação. Estou certa de que Adam, meu esposo, terá uma palavra a lhe di­zer sobre tudo isto.”

Deixe-o dizer e seja ele condenado como a se­nhora também. Vou dar-lhe um esclarecimento. Você não pode dizer que não vê o que faz.

Em assim falando, acendeu outro pedaço de plaqueta de magnésio. Uma luz ofuscante tornou visível , cada coisa, nos mínimos detalhes. Mimi aproveitou pa­ra observar a portinhola, com cuidado, em sua posição, bem como a fechadura, antes que a claridade se apa­gasse. Fez mira, com o revólver, e atirou contra a fe­chadura que logo arrebentou. Os pedaços voaram em todas as direções sem, felizmente, causar mal a ninguém Então abriu ela o postigo, impelindo-o e desceu pulan­do, os degraus da escada. Depois, encaminhou-se para a porta da entrada, descerrou-a e correu pela avenida afora, sem parar, a não ser quando chegou diante do portão de Lesser Hill, que se abriu quando ela bateu fortemente.

O senhor Salton está aí? perguntou ela.

Acaba de chegar, há alguns minutos. Subiu a seu escritório, respondeu o criado.

Ela subiu, correndo, os largos degraus da escada e o alcançou. Adam ficou aliviado quando a viu, mas exa­minando seu rosto, compreendeu que tinha saído de uma tormenta. Fê-la acomodar-se num sofá diante da janela e sentou-se a seu lado.

"Agora, minha querida, conte-me tudo o que se passou.”

Ofegante, ela lhe narrou todas as minúcias de sua aventura no terraço da torrinha. Adam ouvia-a aten­tamente, ajudando-a, como pôde, e não a perturbando com pergunta alguma. Seu silêncio atento lhe foi de grande auxílio, pois lhe permitiu, a ela, resumir e coordenar as idéias.

Irei ver o senhor Caswall, para interrogá-lo, amanhã, sobre esse assunto.

Porém, meu querido, não quero que discuta com o senhor Caswall por minha causa. Já tive muitas an­gústias e penas ultimamente para se possa acrescentar essa ansiedade a respeito de você.

Não se preocupe, querida, farei tudo para evitá-lo, com a ajuda de Deus, retrucou ele, solenemente, abraçando-a.

Então, com a intenção de distraí-la e de lhe fazer esquecer os terrores e apreensões que a tinha pertur­bado, começou a falar-lhe dos detalhes de sua aventura, fazendo comentários oportunos que a sossegaram den­tro em pouco, divertindo-a até.

Entre outras coisas, lhe disse:

É um jogo, um brinquedo perigoso esse de Cas­wall. Parece-me que esse jovem, sem o perceber, corre risco de vida.

Como, meu querido? Não entendo!

O papagaio no ar, em semelhante noite, em lu­gar como a torre de Castra Regis é, pelo menos, perigo­so. É como que cortejar a morte, provocar um aciden­te com o raio e também atraí-lo para todos os lugares onde ele estiver. Cada nuvem que vá arrebatar aqui — e todas elas parecem o vão fazer violentamente — está apta a descarregar um corisco. Estando o papagaio no ar, irá atrair os raios. Sua corda conduzirá essas des­cargas até a terra. Quando chegar, atingirá o alto da torre. Sua força, um centena de vezes mais forte que uma bateria de artilharia, reduzirá Castra Regis a cin­zas. Para onde irá ele? Ninguém pode dizê-lo. Se en­contrar metal condutível, este não só lhe mostrará o caminho, mas será o próprio caminho.

Seria perigoso, estar fora, em pleno ar, quando tal coisa acontecer? perguntou ela.

Não, mulherzinha. Esse será o lugar mais se­guro contanto que ninguém esteja na linha, na direção da descarga elétrica.

Então, vamos para fora. Eu não quero correr risco algum, inútil. E lhe rogo que faça o mesmo. Cer­tamente, se for mais seguro, ficar fora, nós assim o fa­remos.

Sem ajuntar mais palavras, ela recolocou o casaco que tinha tirado e um chapéuzinho, estreito e fechado. Adam pôs também um boné e depois de ter verificado se seu revólver estava carregado, pegou na mão dela e ambos abandonaram a mansão, juntos.

Julgo que a melhor coisa a fazer é dirigir-nos aos lugares que estão encadeados a esta história.

Muito bem, minha querida. Estou pronto. Não pense, contudo, que não devamos primeiro ir a Mercy Farm. Estou ansioso por saber de seu avô e poderíamos assim certificar-nos que, até o presente, nada de mal lhe tenha acontecido.

Seguiram logo o elevado caminho que costeava a crista do Brow. O vento soprava com desmesurada for­ça e provocava estranho mugido retumbante, varrendo o céu, o cimo das grandes árvores que se erguiam ao longo da rota. Ouvia-se o estalar e o despedaçar da ma­deira quando ele soprava através dos ramos. Mimi ape­nas conseguia manter-se de pé. Não tinha, todavia, me­do. Mas a força contra a qual lutava, dava-lhe bom motivo para apertar fortemente o braço de seu esposo.

Em Mercy, não havia ninguém — pelo menos, todas as luzes estavam apagadas. Para Mimi, que conhecia os hábitos noturnos da casa, essa escuridão significava que tudo ia bem. Mimi, contudo, não pôde olhar nem sequer pensar na''quartinho do primeiro andar cujas persianas estavam abaixadas. Adam entendeu seu so­frimento porque partilhava de sua dor pela pobre Lilla. Inclinou-se e beijou-a, depois pegou-lhe a mão e a aper­tou fortemente. Em seguida, continuaram juntos o ca­minho, retornando para a grande estrada, em direção a Castra Regis.

Na porta de Castra Regis, fora "extremamente pru­dentes. Ao se aproximar, Adam tropeçou no fio que lady Arabela desenrolara no chão.

Ele retomou a respiração e disse, num murmúrio fraco, mas grave, Não quero assustá-la, Mimi querida, mas por onde passa este fio, há perigo.

Perigo!? Como?

Este fio é o caminho pelo qual passará o raio. A qualquer momento, agora até, enquanto falamos e pro­curamos, uma força espantosa pode abater-se sobre nós. Corramos, querida minha. Você conhece o caminho que pela avenida chega à larga estrada. Se vir o fio, afaste-se dele, pelo amor de Deus. Eu me encontrarei com vo­cê no portão da entrada.

Você vai acompanhar esse fio, sozinho?

Sim, minha querida. Uma pessoa é suficiente para esse trabalho. Não perderei um momento até que esteja junto de você.

Adam, quando deixamos juntos Lesser Hill, meu desejo primordial era que estivéssemos juntos, aconte­cesse o que acontecesse. Você, agora, não quer recusar-me esse direito, não é verdade, querido?

Não, minha cara, não, nem esse, nem nenhum outro. Agradeço a Deus que minha mulher tenha tal desejo. Venha; iremos juntos. Estamos na mão de Deus.

Se Ele o desejar, jamais ficaremos separados, até o fim, quando e qualquer que ele seja.

Continuaram, pois, a seguir o fio sobre os degraus e o acompanharam pela avenida, descendo-a e tomando cuidado para não tocá-lo com seus pés. Era isso fácil, visto que se ele não era brilhante, ao menos era colori­do e se via distintamente. Acompanharam-no do portão da entrada até a avenida de Diana's Grove.

Aí, Adam se achou diante de um problema novo e difícil. Embora Mimi não entendesse bem a causa dessa preocupação, era bem fácil de explicar. Adam estava a par dos trabalho que se faziam lá e da presença de explosivos, mas o fato tinha sido conservado em segredo no que dizia respeito a sua esposa. Como estivessem próximos da casa, Adam pediu a Mimi que retornasse à estrada, pretextando que ela devia acompanhar o cur­so do fio, para encontrar um entroncamento, que, pro­vavelmente conduziria a outro lugar qualquer. Devia observar as touceiras de mato e se o encontrasse, avisá-lo com o "co, eê", grito de origem australiana.

Antes que se separassem, um relâmpago ofuscante iluminou durante vários segundos a superfície do céu e da terra. Essa primeira nota do prelúdio celeste foi seguida de rápida sucessão de raios tão numerosos que o trovejar parecia um som contínuo e rimbombante.

Adam, espantado, puxou sua esposa e a conservou apertada contra si. Na medida que pôde calcular pelo intervalo entre o relâmpago e o trovão,o centro da tem­pestade estava a alguma distância e sua segurança não estava ainda ameaçada. Contudo, era evidente que a tormenta progredia e avançava rapidamente na direção deles. Os clarões se tornavam mais freqüentes e propínquos. O rouquejar dos trovões, quase contínuo, não cessava momento algum e um novo estrondo começava nem bem outro terminava. Adam olhou na direção do papagaio que era arrastado de cá para lá e lutava contra a corda que o prendia; mas a densa escuridão da noite o impedia de vê-lo claramente.

Por fim houve um corisco tão horroroso e tão gi­gantesco que, sob sua claridade, a natureza pareceu se inteiriçar. Durou tão longo tempo que puderam distin­guir sua figuração. Assemelhava-se a uma grande árvo­re, virada, pendurada nos céus. Toda a região, a per­der de vista, ficou iluminada a tal ponto que parecia pegar fogo. Então, uma larga faixa de fogo como que desceu sobre a torre, justamente quando retumbou o trovão. Àquele clarão, Adam pôde ver a torre, abalada, tremer, depois, aos poucos, esfacelar como um castelo de cartas. Depois da passagem do raio, o céu se tornou negro, mas uma chama azul caiu por de baixo da torre. Com rapidez incrível, ela correu ao rés-do-chão, em di­reção a Diana's Grove e atingiu a sombria casa, silen­ciosa, que, num instante, se incendiou, em diversos pon­tos.

No mesmo instante, ergueu-se da mansão um ruído de desabamento e o rumor de madeirame partido e lan­çado por todas as partes, de mistura com um grito tão dilacerante e tão espantoso que Adam, apesar de sua coragem, sentiu gelar o sangue nas veias. Instintiva­mente, em que pese o perigo e a consciência que dele tinham, marido e mulher se deram as mãos e escuta­ram, juntos. Alguma coisa se achegava a eles, misterio­sa, terrível, mortal! Os gritos continuaram, embora menos agudos como que abafados. Ao mais forte desses brados, houve terrificante explosão, que parecia provir do mais profundo da terra.

As chamas, vindas de Castra Regis e de Diana's Grove, aclaravam as vizinhanças como se fora dia. Os clarões, agora, já não os cegavam e ele podiam observar o conjunto e os detalhes. A calor resultante do incêndio fez retorcerem-se as pontas de ferro que se fenderam e abriram-se revelando o interior da casa. Os Saltons pu­deram assim ver, nesse instante, o cômodo de trás e o buraco do poço que se escancarava, enorme, como um abismo circular, estreito, mas imenso. Dali é que se elevavam os gritos de agonia que se tornavam mais ter­ríveis a medida que os segundos se escoavam.

Mas não era somente o som pungente que paralisava quase, de terror, a pobre Mimi. O que ela via, era suficiente para povoar de pesadelos os restos de seus dias...

Alguns desses fragmentos estavam recobertos de uma pele escamosa, como a de lagarto ou serpente gigan­tesca. Certa feita, durante uma espécie de calmaria ou de repouso, o conteúdo borbulhante do poço subiu à su­perfície, depois de uma golfada, e Adam viu uma parte da delgada figura de lady Arabela alçada ao ar, no meio de uma massa de lodo, assemelhando-se a um monstro desfeito em tiras. Em vários impulsos, massas de volume enorme foram projetadas para fora do poço com violência inconcebível e repentinamente recaiam e se espalhavam por todos os arredores. Esses pedaços se revelaram pertencentes à Serpente Branca que Adam e sir Nataniel tinham visto através das árvores, com seus enormes olhos verde-esmeralda cintilantes como lâmpa­das na tempestade.

Por fim, o poder da explosão, que ainda não se es­gotara, chegou ao principal depósito de dinamite que tinha sido lançada no buraco do poço. O resultado foi terrificante. O chão tremeu, ao longe e nos arredores e se abriram nele longas e profundas rachas cujas beiras se aluíram uma sobre a outra e desabaram, projetando ao ar nuvens de areias que retombavam, silvando em meio à água borbulhante. A imponente construção da casa abalou-se até os alicerces. Grandes pedras se pro­jetaram, como de vulcão. Algumas delas, grandes mas­sas de pedras duras, ajustadas e talhadas por instru­mentos usados pelas mãos humanas, saltaram para o céu e se estilhaçavam, como que tocadas por infernal potência. Do buraco, erguiam-se também nuvens de poeira e de fumaça, misturadas com areia fina que exa­lavam fedentina tal que oprimia o coração dos especta­dores. As árvores perto da casa eram rachadas e atira-dar ao ar com violência. As chamas, naquele momento, começaram a devorar violentamente o conjunto das ruínas, tão perigosamente que Adam tomando sua espo­sa nos braços, levou-a correndo para bem longe.

Depois, o cataclisma, tão rapidamente como tinha surgido, cessou, embora um rugido, muito profundo, continuasse, por intermitência, durante certo tempo. Então, o silêncio recobriu todas as coisas; um silêncio que se assemelhava a trevas incarnadas e que provoca­va no coração de cada um deles os mesmos sentimentos. Ao jovem casal que havia sofrido o longo terror dessa noite trazia a liberdade — a libertação da presença ou do pavor de tudo aquilo que os havia oprimido. Ela pa­recia completa quando os raios vermelhos do sol levan­te se mostraram a este, por cima do longínquo mar, tra­zendo a promessa de nova ordem das coisas para o dia que se preparava.

Adam não foi deitar-se nesse resto de noite. Ele e Mimi, de mãos dadas, deambularam, à luz da aurora nascente, ao redor do Brow, até Castra Regis, depois até Lesser Hill. Fizeram-no deliberadamente, tentando olvidar, o mais possível, os terríveis acontecimentos da noite. A manhã estava clara e alegre, como, às vezes, acontece depois da tempestade. As nuvens, numerosas, não traziam, contudo, nenhuma nota de melancolia. To­da a natureza estava radiante e risonha contrastando violentamente com as cenas de ruínas e de devastações, com as cinzas e escombros que ainda restavam pelos ar­redores.

Da construção, outrora orgulhosa, de Castra Regis, nada mais restava senão um amontoado informe de ar­quitetura quebrada, apenas visível. A leve brisa transportava para longe as nuvens de fumaça acre que mar­cavam o alojamento do antigo castelo senhorial. Em Diana's Grove também, inutilmente se buscaria um vestígio do que outrora lá se alevantava. Alguns carva­lhos, únicos sobreviventes do Grove, emergiam dentro a neblina de fumaça, com os grandes e sólidos troncos erguidos, altaneiros, como sempre. Mas vendo seus lar­gos ramos fendidos, partidos ou torcidos, sua casca ar­rancada ou deteriorada, seus troncos fendidos, podia adivinhar-se a força destruidora do tornado.

Da casa, os jovens nada encontraram, mesmo che­gando bem perto. Adam virou as costas resolutamen­te a essa devastação e se retirou. Mimi não estava so­mente conturbada e chocada, de todas as maneiras, mas estava também fisicamente "morta de cansaço e dormia de pé". Adam a reconduziu a seu quarto, desvestiu-a e a colocou no leito, tomando cuidado para que o cômodo ficasse iluminado não só pela luz do sol como por lâmpadas. Uma cortina de seda, baixada diante da janela, era o único obstáculo que velava o clarão da luz. Sentando-se ao lado dela, pegou-lhe a mão, sabendo bem que o conforto de sua presença era-lhe o melhor reconfortante. Para deixá-la, esperou que o sono vencesse o corpo fatigado. Então saiu nova­mente. Encontrou seu tio e sir Nataniel tomando a chávena de chá matinal, que, nas outras vezes, era acompanhada de colação mais substancial. Adam ex­plicou que não dissera à esposa que ia voltar àqueles lugares horríveis, para não assustá-la, pois que o re­pouso e o sono, na sua insciência, a ajudariam e lhe seriam como que o oásis de tranqüilidade entre esses horrores.

Sir Nataniel aprovou.

— Sabemos, caro rapaz, disse ele, que a infortunada lady Arabela morreu e que a carcaça fétida da serpente se decompôs em pedaços. Roguemos a Deus que sua alma perversa não possa jamais escapar do in­ferno, o mais profundo.”

Foram, primeiramente, visitar Diana's Grove, não só porque essa propriedade estava mais próxima, mas também porque era o lugar cuja descrição era necessá­ria e porque Adam poderia contar-lhe a história nesses mesmos lugares. A destruição total do edifício e de cada uma de suas partes, era, à luz do dia, quase in­concebível. Para sir Nataniel, era a representação de uma história de horror, inteira e completa. Mas Adam sabia que esse espetáculo se aproximava apenas da rea­lidade. Sabia o que se poderia ver ainda, além do que seus amigos tinham observado. Porque, eles só tinham revistado o exterior da casa — ou melhor o lugar on­de esse exterior estava situado outrora — o grande hor­ror se encontrava lá dentro. Contudo a velhice — e a experiência de velhice, — o imaginava.

Uma estranha mudança, quase elementar, no as­pecto das coisas, se havia efetuado durante o tempo que transcorrera desde a aurora. A própria natureza parecia ter tentado apagar os sinais da perversidade passada. As ruínas exteriores da casa eram certamen­te mais manifestas à luz penetrante do dia, mas a des­truição mais espantosa que se encontrava lá dentro, não era visível. A construção se mostrava mais parti­da, quebrada e deslocada que antes. Os alicerces ergui­dos, os fragmentos dos muros amontoados, as rachaduras na terra entreaberta, constituíam um quadro mais desolador ainda. O buraco da Serpente aparecia ainda, orifício circular que levava ao mais profundo das en­tranhas da terra. Porém, toda a massa horrível do lo­do e os restos repugnantes da morte violenta haviam desaparecido. Seja que uma das últimas explosões te­nha projetado grande quantidade de água que, embo­ra fétidas e corrompidas, tinha tido poder de purifica­ção, seja que a massa que se havia retorcido e agitado, nas profundezas, tenha descido de novo com força e apagado os traços da tragédia. Uma poeira cinzenta, formada em parte de areia fina, em parte pelo pó das ruínas desabadas, recobria tudo, e embora fosse lúgubre em si mesmo, ajudava a recobrir algo de pior.

Depois de terem contemplado durante alguns mi­nutos, ficou evidente aos três homens que o rugido nas funduras não havia ainda cessado. A curtos interva­los regulares, os borbulhões infernais do buraco retor­navam. Subiam ao ar, depois retombavam de novo, mostrando sob forma nova, recente, fresca, os nume­rosos detalhes nauseabundos que tinham sido visíveis pouco antes. Os pedaços mais horrorosos eram os gran­des nacos de carne da monstruosa Serpente, em seu aspecto vermelho e repugnante. Esses fragmentos já espantosos antes, eram agora infinitamente piores. A corrupção se apoderara com rapidez espantosa dessas coisas cuja destruição tinha sido causada inteiramente ou em parte pelo raio. A massa toda parecia se ter decomposto em um momento. A superfície dos pedações, outrora vivos, estavam cobertos de vermes e vérmina de toda a sorte. A visão já era horrível, mas o horripilante cheiro que se exalava era mais insuportá­vel ainda. O buraco da Serpente parecia expelir a mor­te sob suas formas as mais repugnantes. Os amigos, num impulso único, se encaminharam para o alto do Brow onde soprava a brisa fresca que vinha do mar.

Do alto do Brow, por baixo deles, tendo eles abai­xado o olhar, viram uma neblina branca e brilhante, cuja presença lhe pareceu insólita, no meio da destrui­ção que acabavam de contemplar. Essa brancura era tão estranha, que Adam sugeriu buscassem um cami­nho para baixo a fim de contemplá-la mais de perto.

— Não temos precisão de descer, disse sir Nataniel, sei o que é aquilo. As explosões da última noite fizeram saltar o exterior das falésias. O que vemos é o vasto leito de argila para porcelana, através do qual a Serpente, no princípio, achou o caminho que a conduzia ao seu covil. Posso perceber a água luzente dos profundos charcos que se encontram lá ao longe, bem em baixo. Ora bem, a ilustre lady não merecia nem tais funerais, nem tal monumento.

 

Os horrores das derradeiras horas tinham posto à rude prova os nervos de Mimi, de tal modo que uma troca de ambiente se impunha, a fim de evitar grave depressão nervosa.

— Penso, disse o velho senhor Salton, que chegou o momento, para vocês, minha jovem e meu querido sobrinho, partirem para uma viagem de lua-de-mel!

E em pronunciando essas palavras, piscou os olhos para sir Nataniel.

O olhar doce e tímido que Mimi lançou a seu va­lente marido, era uma resposta suficiente, mais que suficiente.

 

                                                                                Bram Stoker  

 

                      

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