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PRIMEIRA PARTE
Capítulo primeiro
O clarão frio do luar projectava-se do céu nocturno e reflectia-se na rebentação, que se convertia em jactos brancos pulverizados onde as ondas isoladas se desfaziam nas rochas da costa. A faixa de praia entre os elevados penhascos da Costa Brava era o campo de execução. Tinha de ser. Que Deus amaldiçoasse este mundo maldito - tinha de ser!
Ele podia vê-Ia, agora. E ouvi-Ia, por entre os sons do mar e da rebentação. Corria loucamente, ao mesmo tempo que gritava com histerismo: " Pro boha zivého! Proc! Co to delás! Prestan! Proc! Proc!@>
Os cabelos louros destacavam-se ao luar e a sua silhueta veloz adquiria substância em virtude do foco de urna potente lanterna eléctrica, cinquenta metros atrás. Ela caiu, o espaço que a separava dos perseguidores reduziu-se e o ar da noite foi cortado abruptamente por uma rajada seca de tiros, enquanto balas explodiam na areia e nas plantas silvestres à sua volta. Estaria morta dentro de poucos segundos.
O amor dele desapareceria.
Encontravam-se no topo da colina sobranceira ao Moldau, enquanto as embarcações sulcavam a água a norte e sul, deixando esteiras Profundas. O fumo espiralado das fábricas em baixo difundia-se no sol brilhante da tarde, obscurecendo as montanhas à distância, e Michael observava o cenário, enquanto se perguntava se os ventos sobre Praga se aproximariam e dissipariam o fumo, para que as montanhas tornassem a ser visíveis. Pousava a cabeça no regaço de Jenna, as longas pernas estendidas em contacto com a cesta de verga em que ela colocara sanduíches e vinho gelado. Jenna sentava-se na relva, as costas apoiadas ao tronco suave de um vidoeiro, ao mesmo tempo que acariciava os cabelos dele e os dedos lhe circundavam o rosto, deslizando-lhe com ternura ao longo dos lábios e malares.
- Estive a pensar, Mikhail querido. Os casacos de tweed e calças escuras que usas e o inglês irrepreensível em que te exprimes e deve provir da tua não menos irrepreensível universidade, nunca removerão o Havlicek do Havelock.
- Não creio que tenham essa finalidade. Uma das coisas é uma espécie de uniforme e a outra aprende-se como autodefesa. -Ele sorriu e tocou a mão dela. -De resto, essa universidade foi há muito tempo.
- Tanta coisa foi há muito tempo, hem? Tudo aquilo.
- Aconteceu.
- Estavas lá, pobre querido.
- A História é assim. Sobrevivi.
- Mas muitos não.
A loura levantou-se, rodopiando na areia, agarrando-se à relva silvestre e desviando-se para a direita, com o que conseguiu esquivar-se ao foco da lanterna por uns segundos. Precipitou-se na direcção da estrada de terra batida sobranceira à praia, conservando-se na escuridão, agachada, enquanto aproveitava a protecção da noite e porções de plantas altas para se encobrir.
"Não lhe servirá de nada", reflectiu o homem alto de camisola preta, no seu posto de observação entre duas árvores perto da estrada, a um nível mais elevado, afastado da terrível violência que se desenrolava lá em baixo e da mulher em pânico que estaria morta dentro de momentos. Conseguira olhá-la uma vez, pouco antes. Nessa altura, não se achava dominada pelo pânico; tinha, ao invés, um aspecto admirável.
Ele desviou a cortina com lentidão e prudência, no gabinete às escuras, as costas coladas à parede. Podia vê-Ia em baixo, cruzando o pátio iluminado, enquanto o batimento rítmico dos saltos altos nos paralelipípedos ecoava marcialmente entre os edifícios em volta. Os guardas postavam-se na sombra, como silhuetas de marionetas taciturnas nos seus umiformes soviéticos. Viravam-se cabeças, que exibiam expressões apreciativas nos olhares dirigidos ao vulto que avançava, com confiança, em direcção ao portão de ferro no centro da vedação metálica que circundava o aglomerado que constituía o núcleo da polícia secreta de Praga. Os pensamentos por detrás dos olhares eram óbvios: não se tratava de uma simples secretária que fazia horas extraordinárias, mas de uma kurva privilegiada que anotava minutas no sofá de um comissário, a altas horas da noite.
No entanto, havia outros que também observavam - de janelas imersas na escuridão. Uma falha no caminhar confiante, um instante de hesitação, e alguém pegaria no telefone, afim de transmitir ordens para a sua detenção à entrada. Deviam evitar-se embaraços, quando havia comissários envolvidos, claro, mas não se se baseavam em suspeitas. Era tudo uma questão de aparência.
Não se registou a mínima falha ou hesitação. Ela desempenhava o seu papel com aprumo. Eles tinham vencido! De súbito, ele experimentou uma sensação de dor no peito e compreendeu a causa. Medo. Medo puro, cru e nauseabundo. Recordava-se - recordações dentro de recordações. Enquanto a observava, o seu espírito retrocedeu para uma cidade em ruínas, aos sons horríveis de execuções maciças. Lidice. E uma criança - unta das muitas - arrastava-se por entre o ondulante fumo cinzento dos destroços ardentes, transportando mensagens e as algibeiras cheias de explosivos de plástico. Uma falha, uma hesitação e. .. História.
Ela alcançou o portão. Um guarda solitário permitiu-se um leve sorriso. Era magnífica. Como ele a amava!
Ela alcançara a berma da estrada, enquanto as pernas e os braços se moviam furiosamente, afundando-se na areia e no cascalho, em luta pela sobrevivência. Sem as plantas silvestres para a dissimular, vê-la-iam; o foco da lanterna localizá-la-ia, e o fim surgiria rapidamente.
Ele não a perdia de vista, suspendendo a emoção e eliminando a dor, um tomassol humano que aceitava as impressões sem comentários. Tinha de reagir assim - profissionalmente. Inteirara-se da verdade, e a faixa de praia na Costa Brava confirmava a culpabilidade dela, provava os seus crimes. A mulher histérica lá em baixo era uma assassina, uma agente da infame Voennaya Kontra Razvedka, ramo selvagem do KGB soviético, que semeava o terrorismo em toda a parte. Era essa a verdade, indiscutível. Ele assistira a tudo e falara com Washington de Madrid. O encontro daquela noite fora determinado por Moscovo, com a finalidade de um agente da VKR, Jenna Karas, entregar uma relação de assassínios a uma facção do Baader-Meinhof, numa praia solitária denominada Montebello, a norte da cidade de Blanes. Era essa a verdade.
Isso não o libertava. Pelo contrário, ligava-o a outra verdade, um dever para com a sua profissão. Quem traía os vivos e negociava com a morte tinha de morrer. Não importava de quem se tratava... Michael Havelock tomara a decisão, que era irrevogável. Ele próprio preparara a fase final da armadilha, para a morte de uma mulher que, por um breve lapso de tempo, lhe proporcionara mais felicidade que qualquer outro ser na Terra. O seu amor era uma assassina, e permitir que continuasse a viver representaria a morte de centenas, porventura milhares de pessoas.
O que Moscovo não sabia era que Langley descobrira a chave dos códigos da VKR. Ele próprio enviara a última transmissão para um barco ao largo da Costa Brava. Confirmação do KGB. Agente contacto comprometido com Serviços Secretos E. U. Relação falsa. Eliminar. Os códigos figuravam entre os mais difíceis de decifrar e garantiriam a eliminação.
Ela começava a endireitar-se. O corpo esbelto destacou-se da berma da estrada. Aconteceria a seguir! A mulher prestes a morrer era o amor dele: haviam-se abraçado e tinham trocado longas confidências sobre uma vida inteira juntos, filhos, paz e conforto inefável, sobre a possibilidade de se tornarem uma única pessoa -juntos. Ele chegara a acreditar na hipótese de tudo aquilo se concretizar, porém o Destino decidira outra coisa.
Estavam na cama, a cabeça dela pousada no peito dele, cabelos louros dispersos sobre o rosto. Ele afastou-se, levantando as madeixas que lhe encobriam os olhos, e sorriu.
- Estás a esconder-te.
- Parece que passamos a vida a esconder-nos - replicou ela, comprimindo os lábios num sorriso de amargura. - Excepto quando queremos ser vistos por pessoas que nos devem ver. Não fazemos nada do que nos apetece. É tudo calculado, Mikhail. Regimentado. Vivemos numa prisão móvel.
- Não há muito tempo que isso acontece e não durará eternamente.
- É possível. Um dia, descobrirão que não precisam de nós, que já não nos querem. Achas que nos deixarão afastar? Ou desapareceremos? .
- Washington não é Praga. Ou Moscovo. Abandonaremos a nossa prisão móvel, eu com um relógio de ouro e tu com uma condecoração silenciosa entre os teus documentos.
- Tens a certeza? Sabemos muita coisa. Talvez em excesso. - A nossa protecção reside precisamente no que sabemos. No que sei. Eles pensarão sempre: @Terá deixado tudo escrito, algures? Convém usar de prudência, vigiá-lo e tratá-lo bem ... " Não é uma situação invulgar. Não nos incomodarão, podes crer.
- Sempre a protecção - murmurou ela, movendo um dedo pelas sobrancelhas dele. -
Nunca conseguimos esquecer. Os primeiros dias, os tempos terríveis.
- História. Já os esqueci.
- Que faremos?
- Viveremos. Amo-te.
- Pensas que teremos filhos? Vê-los-emos partir para a escola, poderemos acarinhá-los, ralhar-lhes, levá-los a desafios de hoqueíbol.
- Futebol ou basebol. Não existe nenhum desporto chamado hoqueíbol. Sim, espero que isso aconteça.
- Que farás, Mikhail?
- Talvez me dedique ao ensino. Num liceu qualquer. Tenho um par de diplomas que garantem a minha qualificação para o efeito. Seremos felizes. Conto com isso.
- Que ensinarás? Ele olhou-a, tocando-lhe no rosto, e em seguida desviou a vista para o tecto do modesto quarto de hotel em que se encontravam,
- História - respondeu por fim, e apertou-a nos braços.
O foco da lanterna varreu as trevas e acabou por se fixar nela - uma ave em fuga, que tentava levantar voo, mas estava imobilizada pela luz que constituía a sua escuridão. As detonações ecoaram imediatamente - tiros de terroristas para uma terrorista. A mulher inclinou-se para trás, quando as primeiras balas lhe penetraram na base da coluna vertebral, os cabelos louros tombando em cascata atrás dela. Seguiram-se três disparos separadamente, de acção, terminantes - a pontaria infalível de um atirador coroando a sua obra -, que lhe atingiram a nuca e o crânio, obrigando-a a cair para a frente num monte de terra e areia, dedos cravados no chão e rosto sulcado de sangue misericordiosamente encoberto. Um derradeiro espasmo, e todo o movimento se extinguiu.
O amor dele morrera - pois uma parte do amor constituía uma fracção do que eles eram.
nic uzera o que aevia, tal como ela. Ambos tinham razão e, ao mesmo tempo, estavam errados, horrivelmente errados. Por fim, fechou os olhos e sentiu os vestígios de lágrimas que não desejava.
" Por que teve de ser assim? Somos loucos. Pior, somos estúpidos. Não falamos, morremos. Os homens de línguas fluidas e mentes simples podem explicar-nos o que está certo ou errado - geopoliticamente, claro -, o que significa que tudo o que disserem está fora da nossa pueril compreensão."
Que farás, Mikhail? Talvez me dedique ao ensino. Num liceu qualquer... Que ensinarás? História... Agora, era tudo História. Recordações de coisas demasiado penosas. Que fosse História fria, como os primeiros tempos. "Já não podem fazer parte de mim. Ela não pode fazer parte de mim, se é que fez alguma vez, mesmo na sua simulação. Apesar de tudo, manterei uma promessa, não a ela mas a mim próprio. Estou arrumado. Desaparecerei noutra vida, numa vida nova. Partirei para algures e leccionarei. Iluminarei as lições de futilidade.
Ele ouviu as vozes e abriu os olhos. Em baixo, os assassinos do Baader-Meinhof encontravam-se junto da condenada, imobilizada pela morte, dedos ainda cravados na terra que constituía o seu campo de execução - geopoliticamente predeterminada. Teria sido na verdade uma mentirosa extraordinária? Sim, fora, porque ele descortinara a verdade. Até
nos seus próprios olhos a vira.
Os dois executores agacharam-se para pegar no cadáver e levá-lo, a fim de lançarem o outrora gracioso corpo a uma fogueira ou ao fundo do mar. Ele não interferiria. A situação tinha de ser sentida, tocada, ponderada mais tarde, quando a armadilha fosse revelada e mais uma lição aprendida. Futilidade - geopoliticamente exigida.
Uma rajada de vento varreu subitamente a praia exposta, e os assassinos empertigaram-se, os pés afundando-se na areia. O homem do lado esquerdo ergueu a mão direita numa tentativa infrutífera para conservar o boné de pescador na cabeça, que rolou pela duna que ladeava a estrada. Acto contínuo, largou o cadáver e correu para o recuperar. Havelock observou-o com curiosidade, à medida que se aproximava. Havia qualquer coisa nele... No rosto? Não, era o cabelo, agora exposto ao luar. Apresentava urna madeixa branca junto da fronte, que contrastava com a tonalidade escura do resto. Ele vira aquela cabeleira, aquele semblante, algures. Mas onde? Havia tantas recordações... Arquivos analisados, fotografias estudadas - contactos, fontes de informação, inimigos. De onde viera aquele homem? Do KGB? Da terrível Voennaya? Uma pequena facção financiada por Moscovo, quando não obtinha fundos suplementares do chefe de uma delegação da CIA em Lisboa?
No fundo, não interessava. As marionetas letais e os peões vulneráveis já não preocupavam Michael Havelock - ou Mikhail Havlicek. Faria seguir um telegrama para Washington através da embaixada em Madrid, na manhã seguinte. Estava liquidado e nada mais tinha para oferecer. Permitiria tudo o que os superiores exigissem no capítulo do sigilo a observar. Até concordaria em ser internado numa clínica. Era-lhe indiferente. No entanto, eles não obteriam nem mais um fragmento da sua vida.
Aquilo era História. Terminara numa praia solitária chamada Montebello, na Costa Brava.
Capítulo segundo
O tempo era o melhor narcótico para a dor. Ou desaparecia após um certo período ou
a pessoa habituava-se a viver com ela. Havelock estava ciente disso, compreendendo que, no momento actual, se podia aplicar um pouco de ambas as alternativas. A dor não se extinguira, mas era menos intensa: havia ocasiões em que as recordações se atenuavam e o tecido da cicatriz só se tomava sensível quando lhe tocava. E as viagens ajudavam - ele esquecera-se do que representava ter de enfrentar as complexidades que assolam o turista.
- Se reparar, verá que está indicado no seu bilhete. "Sujeito a alteração sem aviso prévio. "
- Onde?
- Na parte inferior.
- Não consigo ler.
- Pois, eu, consigo.
- Porque o sabe de cor.
- Estou familiarizado com isto. E as longas filas na secção de imigração. Seguidas das inspecções alfandegárias.
O intolerável precedido do impossível: homens e mulheres que reagiam ao tédio aplicando carimbos com violência e atacando fechos de correr indefesos, cujos fabricantes acreditavam na obsolescência planeada.
Não subsistiam dúvidas; ele estava incapacitado para enfrentar as agruras da vida. A sua existência anterior continha dificuldades e riscos próprios, mas não incluía os perigos que se deparavam a todo o momento ao turista. Na sua vida anterior, por outro lado, aonde quer que se deslocasse, havia a prisão móvel. Não, não era exactamente isso. Havia encontros a cumprir, fontes a contactar e informações que deviam ser pagas. Na maioria dos casos à noite, na sombra, longe de lugares em que podiam ser vistos.
Agora, nada existia daquilo. Pelo menos, nas últimas oito semanas. Ele percorria as ruas em pleno dia, como naquele momento ao longo da Danirak, em Amesterdão, em direcção aos escritórios da American Express. Se tivesse lá um telegrama à sua espera, isso significaria o início de alguma coisa. Um começo concreto. Um emprego.
Um emprego. Era curioso como o imprevisto se achava frequentemente ligado à rotina. Tinham decorrido três meses desde aquela noite na Costa Brava, dois meses e cinco dias desde a sua separação formal do Governo. Da clínica na Virgínia, onde passara doze dias sujeito a terapia, seguira para Washington. (0 que esperavam descobrir não se achava presente, como, aliás, ele próprio lhes podia ter revelado antecipadamente. Por que não compreenderiam que tudo aquilo deixara de lhe interessar?) Emergiu das portas do Departamento de Estado às quatro da tarde, convertido num homem livre - mas também em desempregado, um cidadão sem pensão de reforma, possuidor de recursos longe do valor de urna anuidade. Enquanto permanecia imóvel no passeio, naquela tarde, acudira-lhe ao espírito a convicção de que necessitava de encontrar uma ocupação, num futuro mais ou menos próximo, em que pudesse iluminar as lições de... As lições. Mas não para já. De momento, faria o mínimo exigido para o funcionamento de um ' ser humano.
Viajaria, voltaria a visitar todos aqueles lugares que na verdade nunca visitara - ao sol. Leria - na realidade, releria -, não códigos, horários e processos, mas todos os livros em que não pousara os olhos desde que se formara. Se ia iluminar tudo a todos, precisava de tomar a aprender muita coisa que esquecera.
No entanto, se algo se lhe insinuava no espírito, às quatro horas daquela tarde, era uma boa refeição. Após doze dias de terapia, com vários produtos químicos e uma dieta rigorosa, ansiava por satisfazer o estômago com iguarias suculentas. Preparava-se para regressar ao hotel, a fim de tomar banho e mudar de roupa, quando um táxi surgiu oportunamente na C Street, os raios solares incidindo nas janelas e obscurecendo os ocupantes, e parou junto do passeio, à sua frente, em resposta ao seu sinal, segundo Michael supôs. Ao invés, apeou-se apressadamente um passageiro munido de um attaché case, um indivíduo atrasado para um encontro, que puxou da carteira. A princípio, não se reconheceram: o pensamento de Havelock concentrava-se num restaurante e o do outro em pagar ao motorista.
- Michael? - proferiu o passageiro subitamente, ajeitando os óculos no nariz. -
És tu, Havelock?
- Hany? HarTy Lewis?
- Exacto. Como vai isso, M. H.? Lewis era uma das poucas pessoas que ele via - e raramente o encontrava - que o tratavam pelas iniciais. Tratava-se de um pequeno legado da universidade, onde haviam sido finalistas, em Princeton. Michael ingressara num emprego governamental e Lewis na academia. Na realidade, o dr. Harry Lewis era director do Departamento de Ciências Políticas de uma pequena, porém prestigiosa, universidade da Nova Inglaterra, que se deslocava de vez em quando à capital em missão de consulta, e os dois homens tinham-se encontrado em várias ocasiões, quando se achavam em Washington.
- Bem. Continuas à procura de per diems?
- Muito menos que dantes. Alguém lhes ensinou a ler relatórios de avaliação das nossas faculdades mais esotéricas.
- Fui substituído por um barbudo de jeans azuis, que fuma tabaco suspeito.
- Não me digas! - O professor parecia surpreendido. - Largaste aquilo? Julgava que era uma ocupação para toda a vida!
- Pelo contrário. A vida, para mim, principiou há uns sete minutos, quando inscrevi a minha última assinatura. E, dentro de um par de horas, vão apresentar-me a primeira conta de restaurante que não poderei incluir na relação de despesas.
Que pensas fazer, Michael? Ainda não decidi. Nem quero, nos tempos mais próximos.
O catedrático aceitou o troco do motorista de táxi e replicou apressadamente.
- Ouve, estou atrasado para um encontro, mas passo a noite na cidade. Corno vim com ajudas de custo, deixa-me oferecer-te o jantar. Onde te instalaste? Talvez tenha uma
proposta que te interesse.
Nenhuma verba consagrada a ajudas de custo governamentais poderia custear o jantar daquela noite, há dois meses e cinco dias, todavia Lewis tinha de facto uma proposta em mente. Haviam sido amigos e voltavam a sê-lo, além do que Havelock verificava que era mais fácil conversar com urna pessoa que estava pelo menos vagamente consciente do seu trabalho anterior para o Governo do que com alguém que o ignorasse por completo. Resultava sempre difícil explicar uma coisa que não tinha explicação, e Lewis compreendia. Assim, de um assunto passaram a outro e desembocaram na proposta.
- Alguma vez pensaste na possibilidade de regressar ao ensino?
- "Constantemente" serve-te como resposta? - replicou Michael, com um sorriso.
- Sim, eu sei - volveu Lewis, depreendendo que se tratava de uma tirada sarcástica. - Vocês, "fantasmas" (creio ser este o termo que lhes aplicam), recebem ofertas de toda a espécie das multinacionais, acompanhadas da alusão a quantias tentadoras. Estou ciente disso. Mas tu eras um dos melhores. A tua dissertação foi reproduzida por uma dezena de publicações universitárias. Até realizaste seminários. O teu passado académico, aliado aos anos em que trabalhaste para o Estado (a maioria dos quais decerto não se pode ventilar), toma-te muito atraente para a administração de uma universidade. Estamos sempre a dizer: " Procuremos alguém que passou por lá e não apenas um teórico. " Que diabo, M. H., acho que és a pessoa indicada. Posso assegurar-te que o dinheiro não representa...
- Não me compreendeste, Harry. É verdade. Penso constantemente em voltar.
- Então, tenho outra ideia - declarou Lewis, sorrindo, por sua vez. Uma semana mais tarde, Havelock deslocou-se a Boston de avião, de onde foi conduzido de automóvel ao recinto universitário nos arrabaldes de Concord, Nova Hampshire. Passou aí quatro dias com Harry Lewis e a mulher deste, entretendo-se a percorrer as instalações, a assistir a várias conferências e seminários e a contactar os membros da faculdade e da administração, cujo apoio o amigo considerava potencialmente útil. As opiniões de Michael haviam sido pedidas "casualmente", diante de cafés, bebidas alcoólicas ou refeições, e homens e mulheres, indistintamente, olhavam-no como se o considerassem um candidato prometedor. Lewis realizara a sua acção missionária de forma satisfatória e, no final do quarto dia, anunciou:
- Eles gostam de ti!
- Porque não? - interpôs a esposa. É muito simpático.
- Na verdade, estão muito entusiasmados. É o que eu disse o outro dia, M. H., estiveste lá. Os dezasseis anos no Departamento de Estado tomam-te especial.
- E?...
- Dentro de oito semanas, realiza-se a conferência anual do conselho de administração. É nessa altura que se estudam os quocientes da procura e oferta. Palpita-me que te oferecerão um lugar. Onde posso contactar contigo?
- Devo andar em viagem. Eu telefono-te. Agora, havia dois dias que telefonara a Harry. A conferência ainda não terminara, porém ele esperava ter algo para lhe comunicar a todo o momento.
- Telegrafa para AX, Amesterdão - indicou Michael. - E obrigado, Harry. Viu as portas de vidro dos escritórios da American Express abrirem-se, para dar passagem a um casal, cujo elemento masculino procurava conservar a tiracolo as correias de duas máquinas fotográficas, ao mesmo tempo que contava dinheiro. Havelock deteve-se e perguntou-se se desejava na verdade entrar. Se o telegrama tivesse chegado, conteria a rejeição ou a oferta. Na primeira hipótese, ele continuaria a vaguear, o que envolvia um
certo conforto, pois a passividade flutuante de não ter de traçar planos tomara-se-lhe uma
espécie de valor. Na eventualidade de uma oferta, que faria? Estava preparado para a
aceitar? Achava-se em condições de tomar uma decisão? Não era como as que necessitara de encarar na profissão anterior, em que predominava o instinto para sobreviver, mas para se comprometer. Possuiria capacidade para assumir um compromisso? Onde estavam os do passado?
Por fim, encheu os pulmões de ar, principiou a mover-se com lentidão e aproximou-se das portas de vidro.
LUGAR DISPONíVEL PROFESSOR VISITADOR DO GOVERNO POR PERíODO DOIS ANOS. NOMEAÇÀO DEFINITIVA DEPENDENTE ACORDO MúTUO NO FINAL DESSE LAPSO. SALÁRIO INICIAL VINTE E SETE CINCO. NECESSITO RESPOSTA DENTRO DEZ DIAS. NÃO ME FAÇAS MORRER DE ANSIEDADE. CORDIALMENTE,
HARRY
Michael dobrou o telegrama e guardou-o na algibeira, mas não se aproximou do balcão para enviar a resposta a Harry Lewis, Concord, Nova Hampshire, EUA. Fá-lo-ia mais tarde. Para já, bastava-lhe saber que o admitiriam, que existia uma hipótese de recomeço de vida. Necessitava de vários dias para absorver o conhecimento da sua própria legitimidade e
porventura mais alguns para se familiarizar com ela. Na verdade, a legitimidade arrastava a
possibilidade de compromisso. Não havia um recomeço real sem ele.
Entrou na Damrak, inspirando o ar frio de Amesterdão e notando a humidade proveniente do canal. O Sol aproximava-se do Ocaso - bloqueado momentaneamente por uma nuvem
baixa, não tardou a reaparecer: um globo alaranjado que emitia os seus raios através dos vapores que os interceptavam. A cena recordou a Havelock uma alvorada no oceano, no litoral espanhol - na Costa Brava. Permanecera lá toda a noite, até que o Sol despontara no horizonte e dispersara a neblina sobre a água. Depois, descera a encosta em direcção à estrada de terra batida...
Pára! Não penses nisso. Aconteceu noutra vida. Dois meses e cinco dias antes, por mera casualidade, Harry Lewis descera de um táxi e principiara a modificar o mundo para um velho amigo. Agora, transcorridos dois meses e cinco dias, a modificação estava ao seu alcance. Michael sabia que aceitaria a oferta, mas faltava alguma coisa: a modificação devia ser partilhada e não havia ninguém com quem fazê-lo, ninguém para lhe perguntar: "Que ensinarás?"
O empregado de smoking do Dikker en Thijs afundou o bordo do cálice de brande no receptáculo de prata que continha açúcar, e seguir-se-iam os ingredientes do café Jamique. Tratava-se de um prazer ridículo e provavelmente de um desperdício de bom brande, mas Harry Lewis insistira em que saboreassem a bebida, naquela noite em Washington. Havelock dir-lhe-ia que repetira o ritual de Amesterdão, embora talvez o não fizesse, se adivinhasse a intensidade das chamas e o grau de atenção que concentrariam na sua mesa.
"Obrigado, Harry", agradeceu intimamente, quando o empregado se afastou, erguendo o cálice a uns centímetros da mesa ao seu companheiro invisível. No fundo, era melhor não estar completamente só.
Pressentiu a presença do homem que se aproximava, ao mesmo tempo que via uma sombra alargar-se pelo canto do olho. Um indivíduo de fato escuro com ar conservador encaminhava-se para o "reservado" em que ele se encontrava. Havelock imprimiu um certo ângulo ao cálice e ergueu os olhos para o rosto do outro. Chamava-se George e era o chefe da delegação da CIA em Amesterdão. Haviam trabalhado juntos algumas vezes, nem sempre de forma agradável, mas profissionalmente. - É uma maneira de anunciar a chegada aqui - disse o recém-chegado, com uma olhadela ao carrinho de rodas do empregado, no qual ainda se achava o receptáculo de prata.
- Posso sentar-me?
- Tenho muito prazer nisso. Como está, George?
- Já estive melhor - admitiu o outro, deslizando para o assento em frente.
- Lastimo. Quer uma bebida?
- Depende.
- De quê?
- De me demorar o suficiente.
- Que enigmático - observou Havelock. - Mas provavelmente ainda está de serviço.
- Nunca me apercebi de que as horas de trabalho se medissem com um nónio.
- Claro que não. Sou eu o motivo?
- De momento, talvez. Surpreende-me vê-lo aqui. Constou-me que abandonara a actividade.
- E é verdade.
- Então, que faz aqui?
- Porque não? Ando a viajar e gosto de Amesterdão. Digamos que gasto uma parte substancial dos meus últimos honorários para visitar os lugares que raramente consegui ver durante o dia.
- Pode dizê-lo, mas isso não significa que eu acredite.
- Pode acreditar sem reservas.
- Palavra? - Os olhos do membro da CIA esquadrinharam o rosto do interlocutor. -
Posso averiguar, como sabe.
- Saí, cortei com tudo, estou temporariamente desempregado. Se averiguar, não apurará outra coisa, mas não creio que precise de fazer perder tempo a Langley. Estou certo de que os códigos da centrex foram alterados na parte em que eu intervinha e todas as fontes e os informadores de Amesterdão prevenidos da minha situação. Fiquei fora do vosso raio de acção. Quem contactar comigo arrisca-se a ver o nome riscado da folha de salários e, muito possivelmente, a um obscuro funeral.
- Isso são os factos superficiais.
- São os únicos. Não se preocupe em procurar outra coisa, porque não a encontrará.
- Bem, admitamos que acredito. Entretém-se a viajar e a gastar os últimos honorários que lhe pagaram. - Fez uma pausa e inclinou-se para a frente. - Há-de esgotar-se.
- O quê?
- O dinheiro.
- É inevitável. Nessa altura, espero encontrar uma ocupação remunerada. Por sinal, ainda esta tarde...
- Porque há-de esperar? Posso ajudá-lo.
- Engana-se. Não tenho nada para vender.
- Tem, sim. Experiência. O salário de um consultor é pago pela verba destinada a despesas eventuais. Não há nomes, nem registos. É tudo impossível de detectar, mais tarde.
- Se está a pôr em prática um teste, não se pode dizer que o faz da melhor maneira.
- Não se trata disso. Estou disposto a pagar para melhorar a minha imagem. Se fosse um teste, não lhe confessava isto.
- Talvez o fizesse, mas seria uma imprudência. É uma armadilha de terceira ordem, pouco convincente. Nenhum de nós quer as despesas eventuais examinadas muito profundamente, hem?
- Posso não estar ao seu nível, mas não pertenço às terceiras categorias. Preciso de ajuda. Precisamos de ajuda.
- Isso já é outra coisa. Apele para o seu ego. É muito melhor.
- Que diz, Michael? O KGB anda por todos os lados, na Haia. Não sabemos quem compraram ou até que ponto irão. A OTAN está comprometida.
- Comprometidos estamos nós todos, George, e não posso valer-lhes. Porque não creio que faça a mínima diferença. Chegamos à estaca cinco, empurramo-los para a quatro e eles saltam por cima de nós para a sete. Depois, compramos a maneira de alcançar a oito, eles bloqueiam-nos na nove e ninguém alcança a dez. Todos inclinam as cabeças pensativamente e recomeçam do princípio. Entretanto, lamentamos as nossas baixas e procedemos à contagem dos corpos, nunca admitindo que não faz a mínima diferença.
- Balelas! Não consentiremos que ninguém nos enterre.
- Isso é que consentimos. Todos nós. Por " filhos ainda não nascidos nem concebidos". A menos que sejam mais espertos que nós, o que pode muito bem acontecer. Oxalá que sim.
- De que está para aí a falar?
- Do "purpúreo testamento atómico da guerra sangrenta".
- O quê?!
- História, George. Tomemos uma bebida.
- Não, obrigado. - O agente da CIA começou a levantar-se. - E acho que você já bebeu de mais.
- Ainda não.
- Vá para o diabo, Havelock - resmungou, principiando a afastar-se.
- George.
- O quê?
- Precipitou-se. Eu ia dizer uma coisa acerca desta tarde, mas interrompeu-me.
- E daí?
- Daí, já sabia o que me preparava para dizer. Quando interceptou o telegrama? Por volta do meio-dia?
- Vá para o diabo. Michael acompanhou-o com a vista, enquanto regressava à sua mesa, do outro lado da sala. Estivera a jantar só, porém ele sabia que se encontrava acompanhado. Transcorridos três minutos, a suposição confirmou-se. George assinou a conta - um pequeno deslize e dirigiu-se apressadamente para o vestíbulo. Quarenta e cinco segundos depois, um jovem de uma mesa à direita da sala levantou-se para sair, levando uma mulher surpreendida pelo braço. Escoou-se mais um minuto e os dois ocupantes de um "reservado", à esquerda, ergueram-se quase simultaneamente e seguiram para a saída. Apesar da iluminação difusa, Michael observou que deixavam os pratos cheios. Outro deslize.
Tinham-no seguido, vigiado e empregado o sistema rotativo para não darem nas vistas. Porquê? Porque não o deixariam em paz? * sua estada em Amesterdão terminara.
* sol do meio-dia emitia raios amarelados que se reflectiam no rio Seria, sob a ponte. Havelock alcançou a área intermédia de Pont Royal, com o seu pequeno hotel a poucos quarteirões de distância, na Rue du Bac, seguindo pelo caminho mais lógico desde o Louvie. Sabia ser importante que não se desviasse, para que a pessoa que vinha no seu encalço não se apercebesse de que suspeitava da sua presença. Descortinara o táxi, o mesmo, quando efectuara uma manobra arriscada no trânsito intenso, a fim de não o perder de vista. Quem transmitia instruções ao motorista era perito na matéria. O veículo detivera-se apenas dois ou três segundos numa esquina e partira no sentido oposto. Isso significava que quem o seguia se encontrava agora na concorrida ponte. Se o objectivo era o contacto, a multidão resultava conveniente, e a ponte ainda mais. Com efeito, as pessoas costumavam parar sobre o Sena para contemplar a água distraidamente, em obediência a um hábito de séculos. Podiam, portanto, manter conversas sem despertar a atenção. Se o objectivo era o contacto e não unicamente a vigilância.
Michael deteve-se, encostou-se à parede de pedra que servia de parapeito e acendeu um cigano, conservando o olhar fixo num bateau mouche que deslizava sob a ponte. Se alguém o observasse, suporia que contemplava o barco cheio de turistas, aos quais acenava num gesto natural em semelhantes circunstâncias. No entanto, simulando que protegia os olhos do sol, concentrava-se no indivíduo alto que se aproximava do seu lado direito.
Conseguia distinguir o chapéu cinzento, sobretudo de gola de veludo e sapatos de polimento, o que bastava para sua elucidação. O homem simbolizava o luxo e a elegância parisienses que predominavam por toda a Europa e frequentava os salões dos abastados. Chamava-se Gravet e era considerado o crítico de arte clássica mais competente de Paris
- o que equivalia a dizer do continente -, e apenas um grupo restrito sabia que não era essa a sua única actividade lucrativa. Imobilizou-se junto do parapeito, a cerca de dois metros de Havelock, e, enquanto ajeitava a gola de veludo, proferiu com naturalidade:
- Bem me parecia que era você. Venho a segui-lo desde a Rue Bemard.
- Eu sei. Que pretende?
- A pergunta é antes "Que pretende você?". Que faz em Paris? Comunicaram-nos que abandonara a actividade. Para ser franco, recomendaram-nos que o evitássemos.
- E informassem as esferas superiores se eu estabelecesse contacto, hem?
- Naturalmente.
- Mas você está a inverter o processo. Contactou comigo. Não lhe parece uma imprudência?
- Um pequeno risco, que merece a pena - considerou Gravet, olhando em volta. -
Conhecemo-nos há muito, Michael. Não acredito que viesse a Paris para actualizar a sua cultura.
- Nem eu. Quem disse isso?
- Esteve no Louvre vinte e sete minutos exactos. Lapso de tempo insuficiente para absorver coisa alguma e excessivo para satisfazer uma necessidade fisiológica. Mas bastante para se encontrar com alguém numa sala concorrida e pouco iluminada, como, por exemplo, no terceiro piso.
- Escute, Gravet. '. - começou Havelock, rindo.
- Não olhe para mim, por favor! Conserve a vista voltada para a água.
- Fui admirar a colecção romana, na sobreloja, mas como estava cheia de excursionistas retirei-me.
- Nunca lhe falta uma resposta na ponta da língua. É uma característica que sempre lhe admirei. Confesso que fiquei surpreendido, quando surgiu o alarme: " Abandonou a actividade. Evitem-no. "
- Corresponde à verdade.
- Para que esse seu novo disfarce se revele tão radical, deve estar envolvido com gente muito distinta - prosseguiu Gravet, sacudindo grãos de poeira imaginários da manga. -
Também sou um corretor com uma larga gama de informação. Quanto mais distintos os
meus clientes, mais contente fico.
- Lamento, mas não quero comprar nada. Evite-me.
- Não diga disparates. Ainda não sabe o que tenho para oferecer. Acontecem coisas incríveis em toda aparte. Aliados tomam-se inimigos e vice-versa. O Golfo Pérsico está em chamas e toda a África se move em círculos contraditórios. O bloco de Varsóvia tem lacerações que você desconhece por completo e Washington põe em prática uma dezena de estratégias contraproducentes, que só se podem comparar à estupidez incrível dos soviéticos. Eu podia descrever-lhe minuciosamente as suas loucuras mais recentes. Não me volte as costas, Michael. Pague-me e ainda subirá mais alto.
- Porque havia de subir mais alto, se abandonei a competição?
- Mais um disparate. É relativamente jovem e eles não o deixavam sair.
- Podem vigiar-me, mas não segurar. Limitei-me a prescindir da pensão de reforma.
- Isso é demasiado simplista. Todos vocês possuem contas bancárias em lugares remotos, mas acessíveis. É do conhecimento geral, de resto. Verbas especiais, pagamentos secretos a fontes inexistentes, quantias avultadas para obter documentos repentinamente necessários, etc. Tinha a sua reforma garantida aos trinta e cinco anos...
- Exagera os meus talentos e a minha segurança financeira - afirmou Havelock, com um sorriso.
- Ou porventura um longo documento, com pormenores sobre determinadas maneiras de proceder (soluções é o termo mais apropriado) acerca de acontecimentos e pessoas específicos - continuou o francês, como se não tivesse sido interrompido. - Colocado fora do alcance dos indivíduos mais interessados. - Fez uma pausa, ao mesmo tempo que Havelock parava de sorrir. - Isso não é segurança financeira, claro, mas contribui para uma sensação de bem-estar.
- Perde o seu tempo. Não estou envolvido no mercado. Se possui alguma coisa para vender, obterá o preço que pedir. Sabe com quem deve negociar.
- São insignificantes aterrorizados. Nenhum deles dispõe de acessos directos a, digamos, centros de decisão, como você.
- Já não estão à minha disposição.
- Não acredito. É a única pessoa na Europa que contacta directamente com Anthony Matthias.
- Não se meta com ele. E, para sua informação, há meses que não o vejo nem oiço.
- De súbito, Havelock endireitou-se e virou-se abertamente para o outro. - Procuremos um táxi, para visitarmos a embaixada, onde tenho alguns conhecimentos. Apresento-o a um
adido importante e digo-lhe que você tem material para vender, mas não possuo recursos nem interesse para me envolver. De acordo?
- Sabe perfeitamente que não posso fazer isso! E, por favor... - Gravet não necessitou de completar a frase.
- Está bem. - Michael voltou a encostar-se ao parapeito. - Então, dê-me um número ou local de contacto. Ligarei para lá e você poderá ouvir.
- Porque procede assim? Para quê a charada?
- Porque não se trata de uma charada. Como referiu há momentos, conhecemo-nos há muito tempo. Faço-lhe um favor, que talvez o convença. É possível que você convença outros, se lhe pedirem. Mesmo que não peçam. Que diz?
O francês rodou um pouco a cabeça, sem se desencostar da parede, e fitou o interlocutor.
- Não, obrigado. Prefiro um insignificante que já conheço a um figurão que nunca vi. No fundo, acho que acredito em si. Não revelaria uma fonte como eu, nem a um adido importante. Sou demasiado respeitável e pode vir a necessitar de mim. Sim, acredito.
- Tome-me a vida mais fácil. Não guarde segredo do assunto.
- E os seus homólogos do KGB? Parece-lhe que ficam convencidos?
- Sem dúvida. As suas toupeiras devem ter enviado a informação para a Praça Dzerzhinsky antes de eu assinar os documentos de separação.
- Podem suspeitar de um ardil,
- Mais urna razão para me deixarem em paz. Porque haviam de morder um isco envenenado?
- Possuem produtos químicos. Todos vocês os possuem.
- Não lhes posso revelar nada que não saibam, e o que eu sei já foi alterado. Essa é a parte mais curiosa: os meus inimigos nada têm a recear de mim. Os poucos nomes de que se poderiam inteirar não valem o preço. Haveria represálias.
- Você infligiu-lhes muitos ferimentos. Há o amor-próprio, a vingança... É a condição humana.
- Não se aplica a este caso. Nessas áreas, estamos quites e, mais uma vez, não merece o trabalho porque não existe qualquer resultado prático. Ninguém mata sem motivo. Nenhum de nós quer assumir a responsabilidade do combate final. É uma situação bizarra, não lhe parece? Quase vitoriana. Quando a nossa actividade terminou, ficamos de fora. Talvez nos reunamos todos numa larga sala de estratégia, no inferno, para tomarmos umas bebidas, mas, enquanto permanecermos neste mundo, ficamos de fora. É a ironia, a futilidade da situação. Quando saímos, deixamos de nos preocupar. Desaparece o motivo para odiar. Ou matar.
- Muito bem raciocinado, meu amigo. Vê-se que ponderou longamente tudo isso.
- Dispus de muito tempo livre, ultimamente.
- E há aqueles que estão extremamente interessados nas suas observações recentes, nas suas conclusões... na sua função na vida, por assim dizer. Mas, no fundo, era de esperar. São pessoas maníacas depressivas. Taciturnas ou jubilosas, umas vezes cheias de violência, mansas como cordeiros noutras. E, com frequência, assaz paranóicas, em obediência aos aspectos mais sombrios do classicismo, julgo eu. As diagonais cortantes de Delacroix numa psique nacional multirracial muito ampla e contraditória. Muito suspeita... muito soviética.
- Porque o fez? - inquiriu Havelock, contendo subitamente o alento.
- Não tinha nada de mal. Se me inteirasse do contrário, quem sabe o que lhe diria. Mas como acredito em si, explico por que necessitei de o submeter a um teste.
- Moscovo pensa que continuo no activo?
- Comunicarei que tal não acontece. Não posso é garantir que eles acreditem.
- Porquê? - perguntou, voltando a fixar os olhos no rio.
- Não faço a menor ideia... Terei saudades suas, Michael. Foi sempre civilizado.
Difícil, mas civilizado. No entanto, há que considerar que não é um americano de gema. Na realidade, é europeu.
- Sou americano - afirmou a meia voz. - Realmente.
- Pelo menos, a América deve-lhe favores. Bem, se mudar de ideias... ou o obrigarem a mudar... contacte comigo. Há sempre uma possibilidade de fazermos negócio.
É pouco provável, mas obrigado. Não é uma rejeição terminante. Limito-me a ser delicado. Civilizado. Au revoir, Mikhail... Prefiro o nome com que nasceu. Havelock volveu a cabeça com lentidão e viu Gravet afastar-se em passos bem medidos. Se o francês aceitara um interrogatório cego de pessoas que detestava, decerto fora bem remunerado. Mas para quê?
A CIA encontrava-se em Amesterdão e não acreditava nele. O KGB estava em Paris e pensava do mesmo modo. Porquê?
Terminara a estada em Paris. Durante quanto tempo continuariam a observá-lo ao microscópio?
O Aretinisa Delphi era um daqueles pequenos hotéis peito da Praça Syntagma, em Atenas, que nunca permitiam que o viajante se esquecesse de que se encontrava na Grécia. Os quartos apresentavam uma brancura imaculada e as paredes achavam-se cheias de telas que representavam as antiguidades: templos, ágoras e oráculos romantizados por artistas populares. Cada aposento continha um par de portas estreitas que se abriam para uma pequena varanda, com capacidade para duas cadeiras e uma mesa liliputianas, onde os hóspedes podiam tomar o pequeno-almoço. No átrio e nos elevadores ecoavam permanentemente os acordes rítmicos de música grega, em que se destacavam os instrumentos de corda e os címbalos.
Havelock e a mulher de pele cor de azeitona abandonaram o elevador e, quando a porta deste se fechou, conservaram-se imóveis por um momento, não sem uma ponta de ansiedade. No entanto, a música extinguira-se e eles respiraram fundo.
- Zorba fez um breve intervalo - comentou Michael, gesticulando para a esquerda, na direcção do seu quarto.
- O resto do mundo deve pensar que somos uns farrapos nervosos - disse ela, com uma risada, ajeitando os cabelos com as pontas dos dedos e alisando o longo vestido branco que lhe completava a pele e realçava os seios e o corpo esbelto. Exprimia-se em inglês com forte sotaque, cultivado nas ilhas mediterrânicas, que constituem os pátios de recreio dos ricos daquela região do Globo. Era uma cortesã de preço elevado, cujos favores mereciam a procura dos príncipes do comércio, uma prostituta condescendente, possuidora de algum humorismo e riso fácil, uma mulher que sabia que o seu período proporcionador de prazer na Terra era limitado. - Você salvou-me - acrescentou, apertando o braço de Havelock, enquanto avançavam no corredor.
- Raptei-a.
- Por vezes, são sinónimos - redarguiu, voltando a rir. Na realidade, fora um pouco de ambas as coisas. Michael encontrara na Maratona um homem com o qual trabalhara no sector de Thermaikos, cinco anos atrás. Realizava-se um jantar-festa, num café da Praça Syntagma, naquela noite, e como não tinha nada de melhor para se entreter, Havelock aceitara o convite. A mulher achava-se lá, em companhia de um homem de negócios consideravelvemente mais velho, e a ouzo e oprestissinio greco produziram estragos inevitáveis. Havelock e a mulher haviam ficado instalados ao lado um do outro, com as pernas e as mãos em contacto; trocaram olhares e as comparações foram óbvias. Na primeira oportunidade, ele e a cortesã das ilhas retiraram-se.
- Desconfio de que vou enfrentar um ateniense fulo, amanhã - disse Havelock, abrindo a porta do quarto e desviando-se para que a companheira entrasse.
- Não pense nisso. Não se trata de um cavalheiro, que é coisa que não existe em Epidauro, de onde ele veio. É um camponês a caminho da senilidade que fez fortuna na época dos coronéis. Uma das consequências mais desagradáveis do seu regime.
- Em. Atenas, convém evitar os epidauranos, se é este o termo exacto - sentenciou, encaminhando-se para a mesinha, onde havia urna garrafa de scotch e copos.
- Costuma frequentar a cidade com assiduidade?
- Estive cá várias vezes, de facto.
- Com que finalidade? A que actividade se dedica?
- Compro coisas. Vendo coisas. Quando se voltou, com as bebidas na mão, viu aquilo que lhe interessava, embora não esperasse que acontecesse tão cedo. A mulher pousara a estola de seda numa cadeira e principiava a desabotoar o vestido pela parte de cima, o que tomava os seios mais visíveis e convidativos.
- Você não me comprou - declarou, pegando no copo com a mão livre. - Vim de livre vontade. Eflwristou, Michael Havelock. Pronunciei bem o seu nome?
- Perfeitamente. Os copos tocaram-se e ela pousou as pontas dos dedos nos lábios dele, depois na face e por último na nuca, a fim de lhe aproximar o rosto. Beijaram-se, e a língua da mulher demonstrou que não servia apenas para falar, o que principiou a excitá-lo. Em seguida, os corpos colaram-se e ela puxou a mão esquerda de Havelock para o seio sob o vestido parcialmente desabotoado, após o que se inclinou para trás, respirando profundamente.
- Onde é a casa de banho? Vou vestir uma coisa... menos.
- Aquela porta.
- Porque não faz o mesmo? Vista uma coisa... menos... Encontramo-nos na cama. Estou ansiosíssima. Você é muito, mas mesmo muito atraente e morro de... ânsias.
Ela pegou na estola e moveu-se com lentidão e sensualismo para a porta à direita da cama. Antes de a transpor, voltou-se e os olhos emitiram revelações que provavelmente não correspondiam à verdade, embora resultassem excitantes para uma noite. A prostituta experiente, independentemente das razões que a animavam, actuaria com eficiência, e ele desejava, necessitava dos efeitos daquela actuação.
Michael despiu-se até ficar em cuecas, levou a bebida para a cairia e afastou a colcha e o cobertor. A seguir, enfiou-se entre os lençóis, puxou de um cigarro e virou-se de costas para a parede.
- Dobriy vyehchyer, priyatel. Ao ouvir a voz grave masculina, voltou-se e estendeu instintivamente a mão para a arma.. . que não se encontrava no lugar habitual. Apoiando-se na ombreira da porta da casa de banho achava-se um homem quase calvo, cujo rosto Michael reconheceu de dezenas de fotografias do passado. Era de Moscovo, um dos membros mais poderosos do KGB. Empunhava uma arma - uma Graz-Burya automática - e registou-se o estalido indicativo de que acabava de ser engatilhada.
Capítulo terceiro
- Podes ir-te embora - indicou o russo à mulher oculta atrás dele, que deslizou para a saída, com um leve olhar apreensivo a Havelock.
- Você é Rostov. Pyotr Rostov, director das Estratégias Externas do KGB.
- O seu rosto e o seu nome também são do meu conhecimento. Assim como o seu processo.
- Deu-se a um grande incómodo, priyatel - volveu Michael, empregando o adjectivo que significa "amigo", embora a inflexão ftiacomqueo articulara o desmentisse. Sacuditia cabeça, numa tentativa para dissipar a neblina mental ocasionada pela mistura de ouzo e scotch. - Podia ter-me abordado na rua e convidado para tomar uma bebida. Não ficava a saber mais nem menos, e muito pouco de valioso. A não ser que se trate de uma kazn gariah.
- Não é uma execução, Havlicek.
- Havelock.
- Filho de Haviicek.
- Agradecia que não mo recordasse.
- A arma encontra-se na minha mão e não na sua. - Rostov recolocou o cão da automática na posição de descanso, conquanto a apontasse à cabeça de Michael. - Mas isso situa-se num passado remoto, sem qualquer relação comigo. Por outro lado, as suas recentes actividades dizem-me directamente respeito. Dizem-nos, se prefere.
- Nesse caso, as suas toupeiras não justificam o que lhes pagam.
- Enviam relatórios com frequência irritante, ainda que seja apenas para o justificar. A questão reside em saber se correspondem à realidade.
- Se revelam que passei à inactividade, pode aceitá-los como exactos.
- Inactividade? Um termo veemente, mas algo subjectivo, não concorda? Abandonou urna actividade para enveredar por outra?
- Abandonei todas as actividades que lhe possam interessar.
- Compulsivamente? - Encostou-se à parede junto da porta da casa de banho e a Graz-Burya passou a visar a garganta de Havelock. - Já não trabalha para o seu Governo em nenhuma actividade? É difícil de aceitar. Deve ter sido um forte abalo para o seu caro amigo Anthony Matthias.
- Um francês referiu-se a Matthias, um dia destes. - Michael observou a expressão do soviético e baixou os olhos para a automática. - Vou dizer-lhe o mesmo que a ele, embora não veja porque o deva fazer. Você pagou-lhe para que mencionasse o nome.
- Gravet? Despreza-nos. Só se mostra civilizado connosco quando transpõe as galerias do Kretrilin ou do Eremitério, em Leninegrado. Podia revelar-nos a primeira coisa que lhe viesse à cabeça.
- Nesse caso, porque o utilizaram?
- Porque simpatiza consigo. É mais fácil detectar uma mentira quando o mentiroso se refere a alguém da sua simpatia.
- Portanto, acreditaram.
- Ou você convenceu-o e não tivemos outro remédio. Mas explique-me. Como reagiu o brilhante e carismático secretário de Estado americano à demissão do seu krajan?
- Ignoro-o, mas suponho que compreendeu. Foi exactamente o que disse a Gravet. Há meses que não vejo nem falo com Manhias. Tem muitos problemas e não existe motivo algum para que os de um antigo discípulo o preocupem.
- Você não era um simples discípulo. A família dele conheceu a sua, em Praga. Tomou-se no que é...
Era - corrigiu Havelock. ... graças a Anton Matthias. Tempos que já lá vão. Rostov conservou-se silencioso por um momento e baixou ligeiramente a arma antes de aquiescer.
- Admitamos que já passou muito tempo. E actualmente? Ninguém é insubstituível, mas você pode considerar-se uma pessoa de valor. Experiente, produtivo.
- O valor e a produtividade costumam associar-se ao compromisso, coisa de que me libertei. Ou digamos que o perdi.
- Devo inferir que pode deixar-se tentar? - A arma baixou mais um pouco. - No sentido de outro compromisso?
- Sabe perfeitamente que não. À parte a repulsa pessoal que remonta a um par de décadas, temos uma toupeira ou duas implantadas na Praça Dzerzhinsky. Não me interessa nada ser rotulado de "irrecuperável".
- Uma expressão hipócrita, que implica compaixão por parte dos seus executores.
- Di-lo claramente.
- Não tanto como pensa. - O russo voltou a erguer a automática, fazendo-a avançar com lentidão. - Não temos esses problemas de semântica. Um traidor é um traidor. Eu podia entregá-lo, sabe.
- Com dificuldade. - Michael permanecia imóvel, olhos colados aos de Rostov. -
Há corredores, elevadores, átrios e ruas para percorrer. Você podia ver os projectos frustrados. Sobretudo, porque não tenho nada a perder, à parte uma cela em Lubyanka.
- Uma cela, não. Um quarto. Não somos bárbaros.
- Desculpe. Um quarto. Do mesmo género do que temos reservado na Virgínia para alguém como você... e estamos ambos a perder tempo. Quando pessoas como nós se safam com a cabeça ainda colada aos ombros, tudo se altera. O 4rnytal e o Pentotal não passam de convites para armadilhas.
Restam as toupeiras. Não faço a mínima ideia de quem são, como você também não sabia quando se dedicava a operações de campanha... pelas mesmas razões, por esses mesmos quartos. Nenhum de nós sabe, em qualquer dos lados. Conhecemos apenas os códigos correntes, palavras que nos conduzem aonde temos de ir. As que eu utilizava perderam agora todo o valor.
- Pretende sinceramente convencer-me de que um homem com a sua experiência não nos pode servir para nada?
- Eu não disse isso. Limito-me a sugerir que pondere os riscos. Além de outra coisa, que, francamente, vocês levaram a cabo com razoável êxito, há dois anos. Capturámos um vosso agente que estava liquidado, candidato a uma herdade em Grasnov. Retirámo-lo, através de Riga, para a Finlândia e fizemo-lo seguir de avião para um quarto em Fairfax, Virgínia. Injectámos-lhe de tudo, da escopolamina até ao Amytal triplo, e inteirámo-nos de muitas coisas. Houve estratégias que abortaram, redes reestruturadas por completo e a confusão estava na ordem do dia. Depois, apurámos um pormenor curioso: tudo o que ele nos revelara era mentira. A cabeça achava-se programada como um computador, e homens valiosos tomaram-se inúteis, além de que se perdeu tempo precioso. Supondo que conseguia levar-me para Lubyanka (do que duvido seriamente), quem lhe garante que não sou a nossa réplica à partida que nos pregaram?
- Se fosse esse o caso, você não ventilaria a possibilidade - alegou Rostov, fazendo retroceder a arma, mas sem a baixar.
- Acha? Parece-me uma cortina de fumo muito satisfatória. De qualquer modo, nunca teriam a certeza. Por outro lado, desenvolvemos um soro (acerca do qual nada sei, além de que se injecta na base do crânio) que elimina uma programação. Relaciona-se com a neutralização do lóbulo occipital, embora eu não faça a mínima ideia do que isso significa. Doravante, podemos efectuar uma determinação.
- Uma confissão dessa natureza não deixa de me surpreender.
- Porquê? Talvez esteja a poupar aborrecimentos aos nossos respectivos directores. Pode ser o meu objectivo. Ou talvez seja tudo mentira. Pode não haver soro algum, nem protecção, e tratar-se de mera invenção minha. Também é uma possibilidade.
- Khvatit! - O russo sorriu. - Diverte-nos com uma lógica que pode aplicar-se-lhe.
Está em condições de ingressar na vossa herdade de Grasnov. É o que tenho estado a dizer-lhe. Pensa que mereço o risco? Vamos certificar-nos. De súbito, pegou na automática pelo cano, colocou-a na palma da outra mão e atirou-a a Havelock, que a recolheu e perguntou:
- Que quer que faça com isto?
- Que deseja fazer?
- Nada. Admitindo que as três primeiras cargas são cápsulas de borracha cheias de tinta, só conseguiria manchar-lhe o fato. - Michael premiu uma mola e o carregador pousou na cama. - Aliás, não é um teste muito concludente. Se o percutor funciona e este brinquedo produzisse algum ruído, podiam acudir vinte khruschei e transformar-me num passador.
- O percutor funciona e não há ninguém emboscado no corredor. O Aretinisa Delphi é mais ou menos do estilo da área de Washington. Vigiam-no, e não sou estúpido ao ponto de mandar o meu pessoal desfilar pelas instalações. Creio que está ao corrente disso. E a razão pela qual me encontra aqui.
- Que pretende provar?
- Não sei bem. - Rostov voltou a sorrir, com um leve encolher de ombros. - Talvez um leve clarão elucidativo nos olhos. Quando um homem se vê diante de uma arma hostil, e ela de repente lhe vai parar às mãos, surge o impulso instantâneo para eliminar a ameaça... admitindo que a hostilidade é retribuída. Aparece nos olhos, e nenhuma espécie de autodomínio o pode dissimular... se a inimizade for activa.
- Que leu nos meus?
- Indiferença absoluta. Cansaço, se quiser.
- Não sei se tem razão, mas admiro-lhe a coragem. Lamento não poder dizer o mesmo
a meu respeito. O percutor funciona mesmo?
- Exacto.
- Não há cápsulas?
- Nenhuma. - Abanou a cabeça e deixou transparecer uma expressão levemente divertida. - Nem balas. Ou melhor, não há pólvora nos cartuchos. - Ergueu o braço esquerdo e, com a mão direita, puxou a manga do sobretudo. Preso ao pulso por meio de correias e prolongando-se até ao cotovelo, havia um cano de secção reduzida, cujo meca-
nismo de disparo era aparentemente activado dobrando o braço. - Snotvornoye - esclareceu, pousando os dedos nos arames tensos em forma de espiral. - Aquilo a que vocês chamam dardos narcotizantes. Você dormiria calmamente até amanhã à tarde, enquanto um
médico insistiria em que a sua febre inexplicável fosse estudada num hospital. A seguir, levá-lo-íamos de avião para Salónica e daí, sobre os Dardanelos, para Sebastopol. - Com estas palavras, desprendeu uma fivela acima do pulso e retirou a arma.
- Podia, de facto, ter-me dominado - admitiu Havelock, olhando-o com admiração.
- Antes de efectuar a tentativa, nunca se pode prever o resultado. Talvez errasse o alvo no primeiro disparo e você, mais jovem e forte do que eu, aproveitaria a oportunidade para me atacar. Em todo o caso, as possibilidades inclinavam-se para o meu lado.
- Totalmente, quanto a mim. Porque não o fez?
- Porque você tem razão. Nós não o queremos. Os riscos são demasiado elevados... não aqueles que mencionou, mas outros. Eu precisava de conhecer a verdade e agora considero-me convencido. De facto, já não trabalha para o seu Governo.
- Quais riscos?
- Não os conhecemos, mas existem. Tudo o que não se consegue compreender nestas andanças representa um risco, embora não necessite de lho dizer.
- Explique-me urna coisa. Acabo de ser indultado. Porquê?
- Muito bem. - O russo hesitou e aproximou-se das portas de acesso à varanda, que entreabriu uns centímetros. Em seguida, satisfeito, tomou a fechá-las e virou-se de novo para Havelock. - Devo começar por referir que não me encontro aqui em obediência a ordens da Praça Dzerzhinsky, nem mesmo com a sua bênção. Para ser franco, os meus idosos superiores do KGB julgam-me em Atenas no cumprimento de uma missão diferente. Pode acreditar ou não, como lhe aprouver:
- Forneça-me um motivo para optar por uma das alternativas. Alguém deve estar ao corrente. Vocês, jedratele, não costumam actuar a solo.
- Especificamente, mais dois. Um colega íntimo em Moscovo e um homem dedicado (uma toupeira, sem dúvida) na área de Washington.
- Langley? Meneou a cabeça com lentidão e replicou num murmúrio:
- Na Casa Branca.
- Estou impressionado. Por conseguinte, dois kontrolyorya do KGB e uma toupeira soviética a curta distância do Gabinete Oval decidiram que queriam conversar comigo, mas não lhes interessava levar-me. Podem conduzir-me de avião para Sebastopol e daí para um quarto em Lubyanka, onde o diálogo resultaria muito mais produtivo, do seu ponto de vista, porém não lhes interessa fazê-lo. Em vez disso, o porta-voz do trio (um homem que apenas conheço de fotografias e reputação) explica-me que há riscos associados à minha pessoa que não pode definir, embora saiba existirem, e em virtude deles concede-me a opção de falar ou não... acerca de um assunto que desconheço por completo. Considera isto uma leitura aceitável da situação?
- Tem a propensão eslava de atingir directamente o fulcro de uma questão.
- Não vislumbro qualquer relação ancestral. Não passa de senso comum. Você falou e eu escutei. É o que disse ou se prepara para dizer. Lógica básica e nada mais. _ Receio que seja esse o factor que falta. - Rostov afastou-se das portas da varanda, exibindo uma expressão pensativa. - A lógica.
- Agora, estamos a falar de outra coisa.
- Pois estamos.
- De quê?
- De si. Da Costa Brava.
- Continue. - Os olhos de Havelock exibiram um clarão de cólera, mas conseguiu dominar-se.
- Refiro-me à mulher. Suponho que é a causa da sua aposentação prematura.
- Terminou a conversa - declarou com brusquidão. - Saia.
- Um momento, por favor. - O russo ergueu as mãos, num gesto conciliador, porventura mesmo de súplica. - Penso que me deve escutar.
- Não acho. Não pode dizer coisa alguma capaz de me interessar, ainda que remotamente. A Voennaya merece felicitações. Foi um trabalho executado com brilho. Eles ganharam e ela também. Depois, perdeu. O assunto está encerrado e não quero ouvir nem mais uma palavra.
- Garanto-lhe que não está.
- Pelo menos, para mim.
- Os fulanos da VKR são maníacos - articulou a meia-voz. - Não preciso de lho salientar. Você e eu somos inimigos, e nenhum dos dois pretende afirmar o contrário, mas obedecemos a determinadas regras. Consideramo-nos profissionais e não cães salivantes. Existe um respeito mútuo fundamental, talvez baseado no medo, embora não forçosamente. Reconheça ao menos isto, priyatel.
Os dois homens olharam-se em silêncio por um momento, até que Havelock inclinou a cabeça.
- Conheço-o dos ficheiros como você a mim. Não participou na execução.
- Uma morte inútil não deixa de ser uma morte, uma perda. Desnecessária e provocatória, o que a torna ainda mais perigosa. Pode repercutir-se, com fúria redobrada, no instigador.
- Vá dizer isso à Voennaya. Não houve nada de inútil, pela parte que lhe toca. Apenas necessidade.
- Carniceiros! - vociferou Rostov, em inflexão gutural. - Ninguém lhes pode dizer nada. São descendentes dos antigos matadouros da OGPU, herdeiros do assassino louco Yagoda. Afundam-se até ao pescoço em fantasias paranóicas que remontam a mais de meio século, quando ele abateu os homens mais razoáveis, devido à sua falta de fanatismo, que considerava uma traição à revolução. Conhece a VKR?
- O suficiente para me manter à distância e acalentar a esperança de que vocês consigam dominá-la.
- Gostava de poder responder afirmativamente. É como se um grupo dos vossos alucinados direitistas recebesse poderes oficiais como uma subdivisão da Central Intelligence Agency.
- Nós temos convulsões... às vezes. Se surgisse uma subdivisão desse tipo (e podia acontecer), seria criticada abertamente. Investigar-se-iam as verbas concedidas e os métodos empregados, até que acabaria por ser varrida do poder.
- Vocês tiveram alguns lapsos memoráveis: McCarthys, planos Buston, depurações na Imprensa irresponsável. Além disso, foram destruídas carreiras e degradadas vidas. Sim, lapsos não lhes têm faltado.
- Sempre de curta duração. Não temos gulags ou programas de "reabilitação" numa Lubyanka. E a Imprensa irresponsável consegue tomar-se responsável, de vez em quando. Derrubou um regime de mandões arrogantes, enquanto os mais irredutíveis do Kretrilin conservam de pedra e cal os seus lugares.
- Digamos que houve lapsos em ambos os lados. No entanto, somos muito mais jovens, e a juventude tem o direito de cometer erros.
- E não há nada que se compare à operação paminyatchik da VKR - retorquiu Havelock. - Isso não seria tolerado pelo pior Congresso ou Administração da História.
- Mais uma fantasia de paranóicos! - bradou o oficial do KG13, que acrescentou em tom de desdém: - A paminyatchik! O próprio termo é uma corrupção destituída de significado! Uma estratégia desacreditada montada há décadas! Decerto não acredita que ainda floresce.
- Talvez menos que a Voennaya. Obviamente mais do que você pensa... se não mente.
- Deixe-se disso, Havelock! Garotos russos enviados para os Estados Unidos, a fim de crescerem ao lado de marxistas da velha linha, sem dúvida pateticamente senis, para se converterem em agentes soviéticos ferrenhos? Impensável! Seja razoável. É psicologicamente inconcebível, senão desastroso, para não falar das inevitáveis comparações. Acabaríamos por perder a maior parte deles, em favor dos blue jeans, da música rock e dos automóveis velozes. Faríamos figura de idiotas.
- Agora, não restam dúvidas de que mente. Essa fatina existe. Sabe-o tão bem como eu.
- Nesse caso, trata-se de uma questão de números - concedeu com um encolher de ombros. - E de valor, permita-me que acrescente. Quantos podem restar? Cinquenta, cem, duzentos, quando muito? Criaturas conspiradoras de um amadorismo atroz dispersas por meia dúzia de cidades, reunindo-se em celeiros para trocarem disparates, indecisos quanto aos seus próprios valores, aos motivos por que se encontram aí. Creia que os chamados viajantes merecem pouco crédito.
- Mas não os mandaram recolher à base.
- Onde os colocaríamos? Poucos falam russo e só serviriam para nos embaraçar.
O melhor é não pensar neles.
- Mas a Voennaya pensa.
- Já lhe expliquei que os agentes da VKR perseguem fantasias erradas.
- Duvido que você acredite nisso - proferiu Michael, observando o soviético atentamente. - Nem todas essas famílias eram patéticas e senis ou viajantes amadores.
- Se há actualmente, ou num passado recente, algum movimento coerente por parte dos paminyatchiki, não temos conhecimento - declarou Rostov, com firmeza.
- E se há e não têm conhecimento, pode revestir-se de coerência, não acha?
- A VKR é incrivelmente reservada - murmurou, após uma pausa. - De facto, seria algo de coerente.
- Então, talvez eu lhe tenha fornecido material para reflexão. Chame-lhe uma prenda de despedida de um inimigo aposentado.
- Não procuro prendas desse tipo - asseverou, friamente. - São tão gratuitas como
a sua presença aqui, em Atenas.
- Se não aprova, regresse a Moscovo e combata as suas guerras. As vossas infra-estruturas já não me interessam. E a menos que tenha mais alguma arma de banda desenhada na outra manga, sugiro que se retire.
- É precisamente isso, pyehshkah. Sim, pyehshkah. Peão. Trata-se, como diz, de urna infra-estrutura. Secções separadas, com efeito, mas uma ú nica entidade. Há, em primeiro lugar, o KG13. O resto segue com naturalidade. Um homem (ou uma mulher) pode gravitar em tomo da Voennaya e até exceder~se nas suas operações mais profundas, mas precisa de provir do KG13. Como mínimo, tem de haver uma ficha Dzerzhinsky algures. No caso de recrutas estrangeiros, é, como você diria, um duplo imperativo. Protecção interna, claro.
- Diga o que tem em mente e depressa. - Havelock soergueu-se na cama, a confusão juntando-se à cólera no olhar. - Começa a emitir um certo cheiro, priyatel!
- Desconfio de que todos nós o emitimos, Mikhail Havlicek. As nossas narinas nunca se acostumam, hem? De outro modo, perverso, tornam-se sensíveis a variações desse odor básico. Como nos animais.
- Desembuche, de uma vez.
- Não existe a menor alusão a Jerina Karasova, ou a Karas, à inglesa, nas listas dos diferentes ramos ou divisões do KG13.
Havelock fitou o interlocutor em silêncio, por um momento, e, de súbito, puxou o lençol, ergueu-o, para obscurecer o campo visual do russo, e saltou para a frente, encostando-o violentamente à parede. Em seguida, fê-lo rodar sobre si próprio, puxando-lhe o pulso, e apoiou-lhe transversalmente o braço na garganta.
- Podia matá-lo pelo que acaba de dizer - articulou, ofegante.
- Pois podia - retorquiu Rostov, expriniindo-se com dificuldade. - Mas depois liquidavam-no. Neste quarto ou na rua.
- Julgava que não tinha ninguém no hotel!
- Menti. Há três homens: dois disfarçados de empregados, ao fundo do corredor, junto dos elevadores, e outro na escada. Não conte com qualquer espécie de protecção, em Atenas. Há também gente lá fora, de guarda a todas as saídas. As minhas instruções são claras: devo surgir de uma porta determinada a uma hora prevista. Qualquer desvio do que foi planeado redundará na sua morte. O quarto será invadido, além de que o cordão lá fora é intransponível. Não sou um imbecil.
- Talvez, mas é, como admitiu, um animal! - Havelock soltou-o e impeliu-o brutalmente para o outro lado do quarto. - Volte para Moscovo e diga aos seus superiores que o engodo é demasiado óbvio e o fedor pestilento. Não o mordo, priyatel. Saia!
- Não há engodo nenhum - protestou Rostov, recuperando o equilíbrio e levando a mão à garganta. - Que poderia realmente revelar-nos merecedor dos riscos ou porventura das represálias? Ou das incertezas? Está arrumado . Sem programação, podia conduzir-nos a uma centena de armadilhas... teoria que nos cruzou os espíritos, diga-se de passagem. Você fala livremente e nós actuamos em conformidade com o que diz, mas o que profere já não é operativo. Por seu intermédio, perseguimos estratégias (não apenas códigos e cifras, mas aparentemente estratégias vitais a longo prazo) que Washington pôs de parte sem o informar. E, de caminho, expomos o nosso pessoal. Decerto está ao corrente disto. Fala de lógica? Meça as suas palavras.
Havelock cravava os olhos no interlocutor, respirando pesadamente, enquanto a cólera e o assombro dominavam a tensão emocional. A própria sombra da possibilidade de um erro cometido na Costa Brava era algo que se encontrava acima do que se lhe afigurava capaz de suportar. Mas não houvera erro algum. Um desertor do Baader-Meinhof desencadeara a série de acontecimentos reveladores. As provas tinham sido enviadas para Madrid e ele examinara-as, em busca de um minúsculo fragmento que as desmentisse . Mas não havia nada, havia tudo. Anthony Matthias - Anton Matthias, amigo, mentor, pai substituto -
exigira uma verificação profunda, e a resposta surgira sem margem para dúvidas: positiva.
- Não! A prova era irrefutável! Ela estava lá! Assisti a tudo! Insisti em me certificar pessoalmente e eles concordaram.
- "Eles@>? Quem?
- Sabe-o tão bem como eu! Homens como você! A concha interior: estrategos! Não investigaram o suficiente?! Estão errados?!
- Não nego que a possibilidade existe (como referi, a VKR é incrivelmente reservada, sobretudo em Moscovo), mas pode considerar-se remota. - O russo movia a cabeça com lentidão, em círculos, enquanto aplicava massagens na garganta com os dedos. - Ficámos surpresos. Uma agente invulgarmente produtiva é conduzida a uma armadilha de terroristas pelos seus próprios companheiros, que em seguida responsabilizam o KGB pela sua morte, alegando que pertencia às nossas fileiras. O resultado da manipulação consiste na neutralização do companheiro constante da mulher, seu amante, um agente multilingue de talento excepcional. A desilusão e o desgosto acabrunham-no e abandona a actividade. Surpresos, esquadrinhamos os ficheiros, incluindo os mais inacessíveis, e o nome dela não figura em nenhum. Jemia Karas nunca pertenceu aos nossos quadros. - Fez uma pausa, consciente do perigo que o espreitava: Michael Havelock era um tigre perigosamente provocado, que podia atacar a todo o momento. - Estamos gratos, pois lucrámos com o seu afastamento, embora não possamos deixar de nos interrogar sobre o motivo. Por que procederam assim? Tratar-se-á de um ardil? Nesse caso, com que finalidade? Quem lucra? À primeira vista, nós. No entanto, toma a surgir a interrogação: porquê? Como?
- Perguntem à VKR! - rugiu Michael, em tom desdenhoso. - Não o planearam assim, mas foi como aconteceu. Sou o bónus. Perguntem-lhes!
- Já o fizemos. Um director da secção, mais sensato que a maioria dos colegas, está assustadíssimo. Revelou-nos que não se achava pessoalmente familiarizado com Jenna Karas ou os pormenores da Costa Brava, mas como o pessoal do serviço exterior não fez perguntas, depreendeu que não convinha remexer no assunto. Como ele próprio salientou, os resultados foram favoráveis: dois condores abatidos, ambos talentosos, um dos quais excepcional. Assim, a Voennaya aceitou os louros com satisfação.
- Não admira. Eu ficava afastado de vez e o desaparecimento dela podia ser justificado. Um sacrifício não muda de nome, qualquer que seja o aspecto de que se reveste. Ele disse-o e reconheceu-o.
- Não o reconheceu e disse uma coisa muito diferente. Estava assustado, como referi, e só a minha patente superior conseguiu obrigá-lo a revelar tanto.
- Palpita-me que está a fantasiar.
- Limitei-me a escutar, como você me escutou, há pouco. Garantiu-nos que não fazia a mais remota ideia do que acontecera ou porquê.
- Não sabia, pessoalmente! - contrapôs Havelock, irritado. - Mas o pessoal exterior estava ao corrente. Ela sabia!
Uma racionalização ténue . O seu departamento é responsável por todas as actividades no sector do Sudoeste do Mediterrâneo, território que inclui a Costa Brava. Um encontro de emergência, sobretudo se envolvesse o Baader-Meinhof, necessitaria da sua aprovação. -
Rostov calou-se por uns instantes e acrescentou apressadamente: - Em circunstâncias normais.
- Isso é uma racionalização menos ténue?
- Admito apenas uma reduzidíssima margem de erro. Uma possibilidade extremamente remota.
- É a única que aceito! - exclamou Michael, subitamente perturbado com a sua própria explosão.
- Quer aceitá-la. Talvez seja forçado a isso.
- É frequente a VKR receber ordens directamente dos gabinetes do Kremlin. Não é segredo, de resto. Portanto, se você não mente, passaram-lhe por cima.
- Decerto, e a ideia aterroriza-me mais do que possa supor. Mas por muito que reconheça a sua experiência e os seus cometimentos profissionais, priyatel, não creio que os gabinetes do Kretrilin se preocupem com personagens como eu ou você. Concentram-se em assuntos de âmbito mais geral. E, de qualquer modo, não possuem prática do campo em que nos movemos.
- Isso não se aplica ao Baader-Meinhof? E à OLP e às Brigadas Vermelhas e a duas dezenas de "exéreitos vermelhos" que provocam focos de violência por todo o mundo! &o é política!
- Só para maníacos.
- Que é precisamente do que estamos a falar! Maníacos! - Fez uma pausa, assolado por aquilo que se lhe apresentava como óbvio. - Decifrámos os códigos da VKR. Eram autênticos. Vi demasiadas variações para que subsistissem dúvidas. Fui eu que preparei o contacto. Ela respondeu. Enviei a transmissão final aos homens que se encontravam no barco ao largo. Também responderam! Explique isto!
- Não posso.
- Nesse caso, saia.
- Tenho de ir, de qualquer maneira - disse Rostov, consultando o relógio. - Está na hora.
- Então, desapareça.
- Chegámos a um beco sem saída.
- Eu, não.
- Pois não, e isso constitui um risco a seu respeito. Você sabe o que sabe e eu sei o que sei. Um beco sem saída, agrade-lhe ou não.
- Não se esqueça de que está na hora.
- Não esqueci. Estou pouco interessado em ser apanhado no meio de fogo cruzado. Saio já. - Aproximou-se da porta e, com a mão pousada no puxador, virou-se para trás. - Há momentos, você afirmou que o engodo era demasiado óbvio e cheirava mal, ou algo do género. Diga isso a Washington, priyatel.
- Saia!
O russo desapareceu e Havelock conservou-se imóvel durante cerca de um minuto, recordando a expressão do olhar do outro. De facto, continha uma elevada percentagem de verdade. Ao longo dos anos, aprendera a discerni-la, especialmente nos inimigos. Rostov não mentira: dissera a verdade como a supunha. O que significava que o poderoso estratego do KGB era manipulado pelos seus próprios colegas de Moscovo. Pyotr Rostov era unia sonda cega - um oficial dos serviços secretos influente enviado com informações que julgava não se acharem na posse dos superiores, a fim de estabelecer contacto com o adversário e recrutar um agente americano para as fileiras dos soviéticos. Quanto mais elevada a patente do oficial, mais credível a sua versão - desde que dissesse a verdade como a concebia e era encarada como tal pelo inimigo.
Michael acercou-se da mesa-de-cabeceira, onde deixara o copo de uísqui, meia hora antes, levou-o aos lábios e fixou o olhar na cama com ar pensativo. Esboçou um sorriso ao ponderar as cambiantes que o serão sofrera nos últimos trinta minutos. A prostituta actuara, embora não da maneira que ele previra. A cortesã sensual fornecedora de prazeres aos ricos não passara de um engodo . Quando terminariam os engodos? Amesterdão, Paris, Atenas...
Talvez nunca terminassem, enquanto ele existisse. Era possível que, enquanto se achasse em movimento, o acompanhassem, vigiando-o, na expectativa de que cometesse os crimes de que, no seu fértil imaginário, o julgavam capaz. Era no movimento em si que encontravam a ominosa substância para as suas suspeitas. Nenhum homem vagueava sem rumo
definido, após uma vida inteira de deambulações em obediência a ordens. Se o fazia, significava que obedecia a outras ordens, de contrário criaria raízes num lugar. Algures.
Talvez tivesse chegado o momento de parar. Talvez a sua odisseia de recuperação houvesse atingido o fim: existia um telegrama para enviar, um compromisso a assumir. Um começo. Um amigo quase esquecido voltara a tomar-se um amigo actual e oferecera-lhe uma vida nova, onde a antiga poderia ser sepultada, onde havia raízes para cultivar, relações para criar, coisas para ensinar.
Que ensinarás Mikhail? Deixa-me em paz! Não fazes parte de mim... nunca fizeste! De manhã, enviaria o telegrama a Hatry Lewis, após o que alugaria um carro e seguiria para noroeste, em direcção aoferryboat destinado ao porto de Kérkira, no Adriático, onde tomaria o barco para Brindisi, Itália. Fizera-o antes, só Deus sabia com que nome ou com que finalidade, e fá-lo-ia agora como Michael Havelock, professor visitador do Governo. Em Brindisi, embarcaria no comboio para Roma, cidade que lhe agradava sobremaneira e onde permaneceria cerca de duas semanas. Constituiria o derradeiro ponto de escala da sua odisseia, o lugar em que deixaria repousar para sempre todos os pensamentos de uma vida que terminara.
Havia assuntos a tratar em Concord, Nova Hampshire, E. U. A. Assumiria as funções de professor visitador dentro de menos de três meses, mas entretanto necessitava de se concentrar em pormenores práticos: preparação de prelecções sob a orientação de colegas experientes e currículos para estudar e avaliar, a fim de determinar o melhor rumo da sua actuação futura. Talvez uma breve visita a Matthias, o qual decerto teria elementos para lhe fornecer. Por muito ocupado que estivesse, o amigo encontraria sempre algum tempo para lhe consagrar, pois, de entre todos, seria ele quem se sentiria mais contente com a situação: o seu antigo aluno regressara à universidade. Fora aí que tudo principiara.
Na verdade, havia muitas coisas para fazer. Necessitava de um lugar para viver: uma casa, mobília, panelas, caçarolas, livros, urna poltrona para repousar, uma cama para dormir. Escolhas. Anteriormente, nunca pensara nisso, e agora, ao fazê-lo, sentia a excitação íntima acentuar-se.
Dirigiu-se à mesinha, desrolhou a garrafa e verteu um pouco mais de scotch no copo. "Príteli", murmurou para consigo, sem qualquer motivo especial, ao contemplar o rosto no espelho. De repente, reparou nos seus próprios olhos e, aterrorizado, pousou o copo tão bruscamente que o fragmentou, ao mesmo tempo que lhe brotava sangue dos dedos. Os olhos não o deixavam libertar-se por completo! E compreendia porquê. Teriam visto a verdade, naquela noite na Costa Brava?
Para com isso! - balbuciou, inconscientemente. - Terminou tudo!
O dr. Harry Lewis sentava-se à secretária no gabinete rodeado de livros, com o telegrama na mão, aguardando que a voz da esposa lhe chegasse aos ouvidos, como não tardou a acontecer.
- Até logo, querido! - despediu-se ela do vestíbulo. Em seguida, a porta de entrada foi aberta e fechada. Ela partira.
Uwis levantou o auscultador e marcou o código da área 202. Washington, D. C. Os sete dígitos que se seguiram achavam-se gravados na memória e nunca haviam sido escritos Nem figurariam na conta, pois evitariam o computador electronicamente.
- Estou - proferiu a voz masculina, do outro lado do fio.
- Vidoeiro.
- Siga, Vidoeiro. O gravador está ligado.
- Ele aceitou. Chegou o telegrama de Atenas.
- Há alguma alteração na data?
- Não. Chega um mês antes do início do trimestre.
- Diz para onde vai, de Atenas?
- Não.
- Vigiaremos os aeroportos. Obrigado, Vidoeiro.
A Roma que Havelock viera visitar não correspondia àquela em que lhe interessava ficar. Greves sucessivas, o caos intensificado pelos voláteis temperamentos italianos que irrompiam em todas as esquinas, nas manifestações, nos parques e em volta das fontes. A correspondência fora dispersa pelas sarjetas e juntara-se ao lixo por recolher, os táxis escasseavam, praticamente inexistentes, e a maior parte dos restaurantes encerrara as portas por falta de géneros. Os poliziotti, depois de longa distribuição indiscriminada de bastonadas, efectuavam uma pausa para recompor as energias e contribuíam para avolumar a anarquia do tráfego citadino, e como os telefones pertenciam ao serviço postal do Governo, funcionavam a um nível inferior ao normal, o que tomava a sua utilização virtualmente impossível. A cidade encontrava-se dominada por uma espécie de histeria, agravada por mais uma severa determinação papal - de um estrangeiro, um polacco! -, que desafiava todas as aberturas progressistas desde o Vaticano 11. Giovanni Ventitreesimo! Dove sei!
Era a sua segunda noite em Roma e Michael, que saíra dapensione, na Via Due Macelli, cerca de duas horas atrás, percorria agora os dois quilómetros até à Via Flaminia Vecchía, esperançado em descobrir um restaurante aberto. Tal não acontecia, porém, e por mais paciência de que se revestisse, não surgia um táxi para o reconduzir à Praça de Espanha.
Depois de alcançar a extremidade norte da Via Veneto, encaminhava-se para a rua transversal que eliminaria a multidão da ruidosa feira em funcionamento naquela artéria, quando avistou um cartaz na montra iluminada de uma agência de viagens que enaltecia as glórias de Veneza.
Porque não? Sim, por que não aceitar a sugestão? A passividade flutuante da ausência de planeamento incluía a alteração súbita de projectos. Consultou o relógio: eram cerca de oito e meia, provavelmente demasiado tarde para se dirigir ao aeroporto e conseguir lugar num avião, mas, se a memória não o atraiçoava, continuavam a partir comboios da capital até à meia-noite. Por que não aquele meio de transporte? Podia fazer a sua única mala em poucos minutos e chegar à estação, a pé, em vinte. O dinheiro que estava na disposição de pagar decerto lhe proporcionaria um lugar, de contrário regressaria à Via Due Macellí, onde deixara depósito suficiente para uma semana de permanência.
Quarenta e cinco minutos mais tarde, Havelock transpunha a vasta arcada da imponente estação de Ostia, mandada construir por Mussolini, nos dias agitados de trombetas e tambores, botas pesadas nas ruas e comboios que circulavam à tabela.
Embora o italiano não fosse o idioma que dominava melhor, lia-o sem dificuldade: Biglietto per Venezia. Prima classe, A bicha era pequena e a sorte não lhe voltou as costas.
O famoso Freccia della Laguna partia dentro de oito minutos, e se o signore desejasse pagar a taxa adicional, disporia das melhores acomodações do comboio. Michael respondeu afirmativamente e o empregado, enquanto carimbava a passagem, revelou-lhe que o Freccia partia do binario trentasei, com plataforma dupla a algumas, longas, dezenas de metros da bilheteira.
- Fate presto, signore! Non perdete tempo! Fate in fretta! Ele avançou apressadamente por entre a massa de seres humanos, fazendo, tanto quanto possível, pontaria à Linha 36. Como sempre, e à semelhança do que as recordações do passado lhe asseguravam, o local achava-se superlotado. Exclamações de despedida e
gritos de boas-vindas cortavam a atmosfera em contraponto, enquanto epítetos contundentes se sobrepunham ocasionalmente à confusão, porque os moços também se achavam em greve. Havelock necessitou de cerca de cinco cansativos minutos para desembocar na platafórma de embarque, onde, se possível, o caos era ainda mais completo que nos outros lugares. Um comboio apinhado acabava de chegar do Norte, quando o Freccia se preparava para partir, e as colisões de passageiros ocorriam a um ritmo indescritível. Era uma cena digna de um círculo inferior de Dante, um pandemónio tumultuoso.
De repente, do outro lado da platafórma, por entre a multidão excitada, descortinou as costas de uma mulher, cujo chapéu dissimulava o rosto . Acabava de descer do comboio que chegara do Norte e voltara-se para falar com um revisor. O facto registara-se mais de uma vez, no passado: a mesma cor ou corte do cabelo, a configuração do pescoço. Um lenço, chapéu ou impermeável como os que ela usara. Sim, acontecera mais de uma vez. Com demasiada frequência.
Por fim, a mulher virou-se, e uma dor aguda flagelou os olhos e têmporas de Havelock, prolongando-se para baixo, como punhais que se lhe cravavam no peito. O rosto do outro lado da plataforma, vislumbrado esporadicamente por entre a multidão agitada, não constituía uma ilusão. Era ela.
Os seus olhares cruzaram-se. Os olhos dela arregalaram-se de medo e as faces assumiram uma rigidez granítica. Em seguida, desviou a vista e imergiu na multidão.
Michael comprimiu as pálpebras e tomou a descerrá-las, tentando libertar-se da dor, do choque e do tremor irresistível que o paralisavam. Largou a mala, decidindo que necessitava de se mover, correr atrás daquele cadáver vivo da Costa Brava! Ela estava viva! A mulher que amara, aquela aparição, que traíra o seu amor e morrera por ele, estava viva!
Como um animal enlouquecido, afastou os corpos no seu caminho, ao mesmo tempo que gritava o seu nome, ordenando-lhe que parasse e intimando a multidão a detê-la. Precipitou-se para a frente, indiferente aos protestos que provocava e a alguns socos dispersos que o atingiam de passagem.
No entanto, não conseguiu localizá-la. Que acontecera, em nome de Deus? Jenna Karas estava viva!
Capítulo quarto
Com o impacto aterrorizador de um relâmpago, a visão de Jerma Karas fizera-o regressar àquele mundo de sombras que julgava ter deixado para trás. Ela estava viva! Ele tinha de continuar em movimento, precisava de a encontrar. Corria cegamente por entre a multidão, separando braços, mãos gesticuladoras e ombros protestantes. Primeiro em direcção a uma saída, depois a outra, e a uma terceira e uma quarta. Detinha-se ocasionalmente para interrogar os poucos polícias que via, recorrendo às palavras dispersas que se recordava de ter lido num vocabulário italiano. Gritava a descrição dela e concluía cada frase distorcida com "Aiuto!", para obter como resposta apenas um encolher de ombros ou expressões de incompreensão.
Continuou a correr. Uma escada, uma porta, um elevador. Depositou duas mil liras na
mão de uma mulher que se encaminhava para o lavabo das senhoras e cinco mil na de um moço. Suplicou a três revisores que abandonavam a estação de pasta na mão, o que indicava que seguiam para casa.
Nada. Ela não se encontrava em parte alguma. Havelock encostou-se a um receptáculo do lixo, enquanto a transpiração lhe deslizava pelas faces e o pescoço. Por um momento, receou vomitar, uma vez transposto o limiar da histeria. Tinha de se recompor, dominar. E a única maneira de o conseguir consistia em prosseguir em movimento, embora com lentidão, para que o forte palpitar no peito se desacelerasse e recuperasse parte do espírito para reflectir. Lembrou-se vagamente da mala. A possibilidade de continuar onde a deixara era remota, porém a busca entretê-lo-ia. Retrocedeu progredindo através da multidão, remotamente consciente das pessoas que se moviam em volta, como se não passassem de sombras. Não fazia a mínima ideia do tempo que tardou a regressar à plataforma, agora quase deserta. O Freccia partira e as brigadas de limpeza invadiam as carruagens do comboio que chegara do Norte... em que Jerina Karas viajara.
Afinal, a mala continuava onde a largara, e intacta, entalada num pequeno espaço entre a periferia da plataforma e uma das carruagens. Estendeu a mão para a pega e puxou. Deparou-se-lhe maior resistência do que previra e, de súbito, conseguiu desalejá-la, mas desequilibrou-se e caiu de costas. Um homem de fato-macaco acudiu, solícito, porém Michael levantou-se com prontidão, apercebendo-se, pela expressão do outro, de que o julgava embriagado.
Verificou que um dos lados da pega se soltara, pelo que colocou a mala debaixo do braço e principiou a afastar-se, consciente de que a forma incerta como se movia serviria para confirmar as suspeitas do homem.
Por fim, achou-se na rua e afastou-se lentamente da estação, apercebendo-se de que as pessoas o olhavam, não só em virtude da forma como levava a mala, mas também dos vários rasgões no fato, resultantes da prolongada refrega, nos dois sentidos, com a multidão. Impunha-se que recuperasse a sensatez e a serenidade de espírito, concentrando-se nos pequenos pormenores: lavaria o rosto, mudaria de roupa, fumaria um cigarro e trataria de comprar uma mala nova.
F. MARTINELLI - Valigeria. O letreiro de néon destacava-se acima da ampla montra cheia de acessórios de viagem. Era um daqueles estabelecimentos perto da estação de Ostia que contam entre a sua clientela estrangeiros endinheirados e italianos caprichosos. A mercadoria exposta compunha-se de réplicas dispendiosas de objectos vulgares, convertidos em artigos de luxo por meio da aplicação de metais prateados e bem polidos.
Havelock hesitou por um momento, respirando pesadamente e segurando a mala com ambos os braços, como se fosse a única tábua de salvação num mar encapelado. Por último, entrou e verificou com alívio que eram quase horas de encerrar e não havia um único cliente visível.
O empregado emergiu do pequeno balcão com uma expressão alarmada, fez uma pausa e retrocedeu um passo, como se pretendesse retirar-se. Todavia, Havelock apressou-se a explicar, em italiano razoável:
- Fui arrastado por uma multidão alucinada, na plataforma da estação, e caí. Preciso de comprar algumas coisas... várias, mesmo. Esperam-me no HassIer, dentro de poucos minutos.
À alusão ao hotel mais requintado de Roma, o homem mudou imediatamente de ideias e exibiu um sorriso de simpatia, quase de condescendência.
- Animali! - exclamou, gesticulando na direcção do seu Deus. - Que maçada para si, signore! Estou às suas ordens.
- Queria uma mala de bom cabedal, macio e...
- Naturalmente.
- Desculpe o incómodo, mas tem algum sítio onde me possa lavar? Não me agradava nada ter de aparecer à condessa nesta figura.
- Queira seguir-me, signore! Peço-lhe mil desculpas, em nome de toda a cidade! Enquanto se lavava e mudava de roupa nas traseiras da loja, Michael focava os pensamentos, à medida que lhe acudiam, nas breves visitas que ele e Jerina haviam efectuado a
Roma. Tinham sido duas. Na primeira, a permanência não fora além de uma noite, todavia a segunda prolongara-se por tês ou quatro dias e revestira-se de carácter oficial. Aguardavam ordens de Washington, depois de atravessarem os países dos Balcãs como um casal jugoslavo, a fim de obterem elementos acerca da súbita expansão das defesas nas fronteiras.
Havia um homem, membro dos serviços secretos do Exército, e agente de ligação de Havelock, de quem se lembrava perfeitamente, por ser o ú nico adido negro de nível elevado na embaixada.
O seu primeiro encontro não fora destituído de certo humor - humor negro. Michael e Jerina deviam procurá-lo num restaurante perto do Palatino. Quando chegaram, decidiram esperar no concorrido bar, preferindo que o "contacto" escolhesse a mesa, quando se
apresentasse, sem no entanto repararem no militar negro de estatura elevada que tomava um martini de vodka, à sua direita. Transcorridos alguns minutos, este último sorriu e anunciou:
- Sou apenas Rastus na catasta di legna, patrão Havelock. Não acha boa ideia irmos para uma mesa?
Chamava-se Lawrence Brown, tenente-coronel Lawrence B. Brown, e a inicial intermédia representava o seu verdadeiro nome, Baylor.
- Os rapazes do G-dois consideraram que haveria mais "associação concreta" (foi como lhe chamaram) se me chamasse Brown, neste género de trabalhos - explicou, quando tomavam bebidas, após o jantar. - Enfim, sempre é preferível a adido Cara de Café.
Havelock estava convencido de que poderia conversar com ele... se concordasse em recebê-lo? E onde? Não podia ser nas proximidades da embaixada. O Governo dos Estados Unidos tinha várias coisas terríveis a explicar a um agente aposentado.
Necessitou de despender vinte minutos ao telefone da loja, enquanto o empregado transferia o conteúdo da mala dilacerada para outra de preço elevado, para poder estabelecer ligação com o P13X da embaixada. O adido Brown encontrava-se de momento em reunião, numa sala do primeiro andar.
- Diga-lhe que é urgente - insistiu Michael... - Chamo-me... Baylor. Lawrence Baylor revelou-se relutante ao ponto de se mostrar indisponível para lhe falar. Tudo o que um agente secreto aposentado tivesse para dizer devia ser dito entre as paredes da embaixada. Por variadíssimas razões.
- E se lhe disser que acabo de regressar à actividade? Posso não figurar na vossa folha de salários, nem na de ninguém, mas estou resolvido a reaparecer. Sugiro que não me corte as voltas, coronel.
- Há um café na Via Pancrazzio, La Ruota del Pavone. Conhece-o?
- Não, mas hei-de descobri-lo.
- Quarenta e cinco minutos.
- Lá estarei. À espera.
Havelock observava, de uma mesa no canto mais escuro da sala, o oficial do Exército que acabava de pedir uma garrafa de vinho no balcão e principiava a aproximar-se. O rosto cor de ébano de Baylor apresentava-se tenso, grave. Era óbvio que experimentava certo desconforto, e quando alcançou a mesa não estendeu a mão. Ao invés, sentou-se diante de Michael, encheu os pulmões de ar e ensaiou um sorriso.
- Folgo em voltar a vê-lo - declarou com escassa convicção.
- Obrigado.
- E a menos que tenha para me dizer alguma coisa que nos interesse ouvir, coloca-me numa situação difícil, amigo. Espero que se compenetre desse facto.
- Tenho uma coisa que os fará dar pulos. - Inconscientemente, Havelock passou a exprimir-se num murmúrio. O tremor reaparecera, pelo que rodeou o pulso com os dedos da outra mão, para o dominar. - Eu, pelo menos, fiquei estarrecido.
- Vejo que está sob forte tensão - disse o outro, depois de o olhar em silêncio por um momento. - De que se trata?
- Ela está viva. Eu vi-a! Não replicou imediatamente, enquanto os olhos esquadrinhavam as faces do interlocutor.
- Refere-se à Costa Brava? - perguntou por fim.
- Sabe perfeitamente que sim! - retorquiu Michael, irritado. - A minha abrupta aposentação e as circunstâncias que a motivaram foram transmitidas a todas as estações e postos que possuímos. É por isso que fala assim. "Cautela com o talento transviado", adverte Washington. "Pode revelar e fazer tudo, porque tem contas a ajustar."
- Tem acontecido.
- Mas não a mim. Não tenho de me preocupar em saldar contas, porque não estou interessado nesse género de actividades. Sou racional. Sei o que vi. E ela reconheceu-me! Fugiu de mim!
- A tensão emocional é prima direita da histeria - sentenciou o coronel, pausadamente. - Nessa condição, uma pessoa pode ver muitas coisas inexistentes. E você sofreu um sobressalto.
- Tinha-me retirado. Aceitara os factos e os motivos...
- Então, amigo! Não se deitam para trás das costas dezasseis anos de envolvimento.
- Eu fi-lo.
- Esteve em Roma com ela. As recordações activam-se, distorcem-se. Como disse há momentos, tem acontecido.
- Não se trata disso. Não houve nada activado nem distorcido. Eu vi...
- Até me telefonou - atalhou, com brusquidão. - Passámos um serão juntos, os três. Algumas bebidas, algumas gargalhadas... Por associação de ideias, contactou comigo.
- Não havia mais ninguém. O meu disfarce do passado não me permitia proceder de outro modo. Você era o meu único contacto aqui, em Roma! Agora, posso entrar na embaixada, ao contrário do que então sucedia.
- Então, vamos para lá.
- Nem pensar! De resto, não é essa a questão. A questão é você. Transmitiu-me ordens de Washington, há sete meses, e agora vai enviar uma mensagem de emergência às mesmas pessoas. Comunique-lhes o que referi, o que vi. Não tem alternativa.
- Mas tenho opinião. Vou enviar o que um antigo talento disse num estado de extrema ansiedade.
- Nesse caso, experimentemos outra coisa. Há cinco dias, em Atenas, quase matei um homem que ambos conhecemos dos ficheiros da Praça Dzerzhinsky, por ele me garantir que o assunto da Costa Brava não se deveu aos soviéticos. Que ele não pertencia ao KGB e ainda menos à VKR. Não o liquidei por supor que se tratava de um balão de ensaio, uma sonda cega. O homem dizia a verdade como a conhecia. Enviei uma mensagem de resposta a Moscovo. O engodo era demasiado evidente e o fedor insuportável.
- Acho que foi uma atitude caridosa da sua parte, atendendo ao passado.
- Não, a caridade principiou por ele. Podia ter-me eliminado. Arrisquei-me a dar por mim em Sebastopol, em trânsito para a Praça Dzerzhinsky, sem reparar que saíra de Atenas.
- Ele é assim tão eficiente? Está bem relacionado?
- A tal ponto que consegue passar despercebido. Mas não me levou consigo. Eu não lhe interessava.
- Porquê?
- Por estar convencido de que o engodo era eu. Uma ironia curiosa, não lhe parece? Não havia lugar para mim em Lubyanka. Fui rejeitado. Em vez disso, confiou-me uma mensagem para Washington: " Os de Dzerzhinsky não me querem tocar. " - Havelock fez
uma pausa. - E agora isto.
O coronel semicerrou as pálpebras pensativamente e fez girar o copo entre as mãos.
- Não possuo a sua experiência, mas garanta-me que viu o que afirma.
- Vi. Aceite o facto.
- Admitamos a possibilidade, embora não esteja disposto a fazer concessões. Mesmo assim, pode tratar-se de um engodo. Eles conservam-no sob o microscópio, estão ao corrente dos seus planos, conhecem o seu itinerário. Os seus computadores seleccionam uma mulher de aspecto razoavelmente similar e, com um pouco de cirurgia cosmética, arranjam uma sósia satisfatória para curtas distâncias. " Cautela com o talento transviado. "
Nunca se sabe quando tem "contas a aJustar@>. Em especial, se dispôs de algum tempo para entrar em efervescência.
- O que vi encontrava-se nos olhos dela! Mas ainda que não aceite isso, há outra coisa, que esvazia a estratégia e pode ser comprovada. Duas horas atrás, eu não fazia a mínima ideia de que entraria na estação. Dez minutos antes de a ver, não sabia que me encontraria naquela plataforma, e o mesmo se aplica a qualquer outra pessoa. Cheguei a Roma ontem e instalei-me numa pensione da Via Due Macelli, com a ideia de aí permanecer uma semana, que paguei logo. Às oito e meia desta noite, vi um cartaz turístico e decidi visitar Veneza, no que não falei a ninguém. - Michael introduziu a mão na algibeira, puxou do bilhete para o Freccia della Laguna e pousou-o na mesa diante de Lawrence Baylor. - O comboio partia às nove e trinta e cinco. A hora da aquisição está carimbada na parte superior.
- Nove e vinte e sete - leu o coronel. - Oito minutos antes de o comboio partir.
- É tudo verificável. Agora, olhe para mim e diga se minto. De caminho, explique como podiam montar tudo isso, atendendo ao factor tempo e ao pormenor de que ela viajava no comboio que acabava de chegar!
- Não consigo. Se ela...
- Trocou algumas palavras com um revisor segundos antes de me reconhecer. Tenho a certeza de que o posso localizar.
Baylor tomou a imergir em silêncio, até que declarou com suavidade:
- Não merece a pena. Enviarei a mensagem. - Pareceu reflectir e acrescentou: Juntamente com um apoio qualificado. Seja o que for que viu, não está a mentir. Onde posso contactar consigo?
- Prefiro ser eu a telefonar-lhe.
- Eles quererão conversar, provavelmente com urgência.
- Irei dando notícias.
- Para quê essa reserva?
- Lembrei-me de uma coisa que Rostov me disse em Atenas.
- Rostov? Pyotr Rostov? - Arregalou os olhos. - É das personagens mais proeminentes da Praça Dzerzhinsky.
- Há outras mais elevadas.
- Que disse ele?
- Que as nossas narinas nunca se adaptam ao mau cheiro. Em vez disso, criam uma espécie de sensibilidade... às variações do fedor putrefacto básico. Como os animais.
- Esperava uma coisa menos abstracta - admitiu contrariado.
- Sim? Do meu posto de observação, parece concreta como o diabo. A armadilha da Costa Brava foi engendrada em Washington e as supostas provas compiladas pela concha interna de um daqueles gabinetes brancos estéreis do último piso do Departamento de Estado.
- Supunha que a operação tinha corrido a seu cargo.
- A última fase. Insisti nisso.
- Nesse caso...
- Actuei baseado em tudo o que me forneceram. E agora quero saber a razão por que mo forneceram. Porque vi aquilo esta noite.
-Se viu. - Ela está viva. Quero saber porquê. Como!
- Continuo a não compreender.
- A operação da Costa Brava foi concebida em minha intenção. Alguém me desejava fora da circulação. Não morto, mas afastado do caminho. Confortavelmente removido das tentações que com frequência assolam os homens como eu.
- Contas a ajustar? - inquiriu o coronel. - A síndroma Agee? O complexo de Snepp? Não sabia que você estava infectado.
- Tive o meu quinhão de abalos e a minha parte de dúvidas. Alguém queria essas dúvidas sepultadas e ela concordou. Porquê?
- Duas suposições que não estou disposto a conceder que são factos. E se tenciona suportar alguns abalos fora do interesse nacional, imagino (e falo hipoteticamente num caso extremo, claro) que existam outros métodos para os... sepultar.
- Despachar? Considerar-me morto?
- Eu não disse que o mataríamos. Não vivemos num país desses. - Fez uma pausa e acrescentou: - Por outro lado, quem sabe?
- Não o fariam pelas mesmas razões por que os outros não sofreram acidentes e que patologistas advertidos chamariam outra coisa. A autoprotecção faz parte integrante da nossa profissão, irmão. É outra síndroma, chamada de Nuremberga. Esses abalos, em vez de sepultados, podiam acudir à superfície. Depoimentos selados para serem abertos por advogados especiais de et ceteras duvidosos.
- Safa! Você disse isso? Foi tão longe?
- Por estranho que lhe pareça, nunca o fiz. Pelo menos, a sério. Limitei-me a ficar fulo.
O resto foi inferido.
- Em que espécie de mundo vivem vocês?
- É igual ao seu, com a diferença de que nós possuímos mais experiência, o aprofundámos mais. Aí tem o motivo pelo qual não lhe digo onde pode contactar comigo. As minhas narinas captaram um odor nauseabundo dos lados do Potomac. - Havelock inclinou-se para a frente e, baixando a voz, prosseguiu com aspereza: - Conheço aquela rapariga. Para que procedesse assim, tiveram de lhe fazer alguma coisa. Alguma coisa obscena. Quero saber o que foi e porquê.
- Admitindo... - começou BayIor, com lentidão - ... Admitindo que tem razão, e de modo algum reconheço que é o caso, porque pensa que eles o elucidarão?
- Foi tudo muito repentino. - Michael reclinou-se na cadeira e assumiu uma posição rígida, enquanto a voz parecia flutuar na atmosfera, como num sono penoso. - Era urna terça-feira e estávamos em Barcelona. Havia uma semana que nos encontrávamos lá, pois Washington comunicara-nos simplesmente que ia acontecer alguma coisa no sector. A informação chegou de Madrid: uma mensagem Quatro Zero foi enviada por mensageiro especial, com o conteúdo limitado à embaixada, Apenas Olhos. Apenas os meus. Como não existe centro de comunicações na capital espanhola, ninguém lhe pôde dar seguimento, pelo que fui lá na quarta-feira de manhã, assinei o recibo correspondente ao pequeno contentor de aço e abri-o numa sala guardada por três fuzileiros. Estava tudo pormenorizado: o que ela fizera, as informações que divulgara e só podia ter obtido de mim. A armadilha achava-se preparada com eficiência. Regressei a Barcelona na sexta-feira, no
domingo terminara tudo--- e eu estava convencido. Em apenas cinco dias, as muralhas ruíram. Sem trombetas: somente lanternas eléctricas, gritos e sons hediondos que se sobrepunham à rebentação. Cinco dias... tudo muito repentino, muito rápido, num crescendo irresistível. Era a única maneira de resolver o assunto.
- Não respondeu à minha pergunta - volveu BayIor. - Se tem razão, porque pensa que eles o suicidarão?
- Porque têm medo - redarguiu Havelock, olhando-o com intensidade. - Tudo se resume ao porquê. As dúvidas, os abalos... o que foi.
- A que se refere?
- A decisão para me afastar não foi tomada gradualmente, coronel. Alguma coisa a activou. Eles não correm com um homem da maneira que utilizaram comigo em virtude de divergências acumuladas. O talento é dispendioso e difícil de substituir, em particular o dos agentes externos. Podem tomar-se providências, apresentar-se explicações, chegar-se a acordos. Tudo isso é tentado antes de o talento se afastar. Mas ninguém o tentou comigo.
- Pode ser mais explícito? - sugeriu BayIor, aparentemente enfastiado.
- Quem me dera... E qualquer coisa que sei ou eles pensam que sei. Alguma coisa que eu podia ter escrito. E trata-se de uma bomba.
- É verdade? - perguntou friamente, profissionalmente. - Possui essa informação?
- Hei-de averiguá-la - afirmou Havelock, impelindo a cadeira subitamente para trás.
- Diga-lhes isto. E que a encontrarei. Não será fácil, porque ela já não pertence aos seus quadros. Fugiu, ocultou-se. Também o compreendi na expressão do seu olhar. De qualquer modo, hei-de descobri-Ia.
- É possível... - Foi a vez de BayIor se inclinar para a frente. - _é possível que, se tudo o que acaba de dizer se provar, eles estejam dispostos a ajudá-lo.
- Oxalá que sim. - Michael levantou-se e baixou os olhos para o interlocutor. Precisarei de todo o auxílio disponível. Entretanto, insisto numa explicação pormenorizada, de contrário começo a badalar por aí. Quando e de onde, nenhum de vocês saberá, mas as palavras vibrarão, fortes e claras. E, algures no meio delas, estará a tal bomba.
- Não cometa nenhuma estupidez!
- Garanto-lhe que não é minha intenção. No entanto, o que lhe fizeram... a mim... a nós, não foi justo. Regressei à actividade. A solo. Irei dando notícias.
Rodou nos calcanhares e emergiu do café para a Via Pancrazzio.
Havelock alcançou a Via Galvani no regresso à estação, onde deixara a mala acabada de adquirir num dos cacifos que funcionavam por meio de moedas. De súbito, apercebeu-se da penosa ironia da situação. Fora uma mala depositada num compartimento similar do aeroporto de Barcelona que condenara Jerma Karas. O desertor do Baader-Meinhof - em troca do cancelamento discreto de uma condenação à morte pronunciada à revelia -
conduzira-os até lá. O terrorista alemão revelara a Madrid que das Fraulein Karas conservava registos secretos permanentemente ao seu alcance. Tratava-se de um hábito da Voennaya, ditado pelo estranho relacionamento que o violento e clandestino ramo dos serviços secretos russos mantinha com o resto do KG13. Alguns agentes externos empenhados em operações de longo alcance tinham acesso aos seus próprios ficheiros, na eventualidade de os seus superiores de Moscovo não se acharem imediatamente disponíveis, numa emergência. A autoprotecção por vezes assumia formas estranhas, pelo que ninguém estranhara o facto.
Ninguém estranhara. Nem ele próprio. Alguém estabelece contacto com ela e passa-lhe uma chave, indicando um local. Um quarto, um cacifo particular ou até um banco. O material encontra-se lá, incluindo novos objectivos à medida que se apresentam.
Dois dias antes de Michael partir para Madrid, um homem abordara-a. Num café do Paseo Isabel. Um bêbado. Apertara-lhe a mão e depois beijara-lha. Quatro dias mais tarde, Havelock descobrira uma chave na carteira de Jetina. No domingo, transcorridos mais dois dias, ela estava morta.
Houvera de facto uma chave, mas a quem pertencia? Ele vira fotocópias, verificadas por Langley, de cada artigo contido na mala. Todavia, a quem pertencia esta? Se não era de Jetina, como se explicava a existência de três impressões digitais suas no interior?
Que lhe haviam feito? Que tinham feito a uma mulher loura na Costa Brava que gritava palavras em checo e cuja coluna vertebral, nuca e cabeça tinham sido perfuradas por balas? Que espécie de gente era aquela, que podia suspender seres humanos por cordéis e fazê-los desaparecer como marionetas num espectáculo de terror? Aquela mulher morrera. Não podia subsistir a mínima dúvida a esse respeito. Não havia a menor charada envolvida, como o elegante Gravet diria.
Não obstante, era tudo uma charada gigantesca. E todos eles marionetas. Mas em que palco e em beneficio de quem participavam no espectáculo?
Michael estugou o passo na Via Galvaní e não tardou a avistar a Via della Mamorata. Encontrava-se a poucos quarteirões da estação de Ostia e principiaria a investigar aí. Pelo menos tinha uma ideia, embora só na meia hora imediata pudesse comprovar se se revestia de sensatez.
Passou diante de um quiosque, onde as primeiras páginas de jornais diários competiam com revistas coloridas. Sorrisos deslumbrantes e seios atraentes lutavam para captar a atenção, ao lado de corpos mutilados e descrições tenebrosas de violações e homicídios. De repente, ele descortinou o rosto famoso na capa da edição internacional da Time. Os olhos claros por detrás dos óculos de aros de tartaruga brilhavam como sempre, irradiando inteligência - frios à primeira vista, mas temos à medida que o observador os contemplava. Encimavam malares salientes, nariz aquilino e lábios generosos, dos quais costumavam brotar palavras extraordinárias.
" Um homem para todas as estações do ano e para toda a gente", afirmava a legenda sob a fotografia. Não havia qualquer nome ou título, nem eram necessários. O mundo conhecia o secretário de Estado americano, escutava-lhe a voz ponderada e sensata e compreendia-o. Era de facto um homem para toda a gente - transcendia fronteiras, idiomas e agitações nacionais. Havia quem acreditasse - e Michael figurava nesse número - que ou o mundo prestava atenção às palavras de Anthony Manhias ou acabaria por se desintegrar numa nuvem em forma de cogumelo.
Anton Matthias. Amigo, mentor e pai substituto. No tocante ao caso da Costa Brava, também fora uma marioneta. Quem se atrevera a tanto?
Enquanto entregava algumas liras ao vendedor e pegava na revista, Havelock recordava-se perfeitamente da mensagem manuscrita que Anton insistira que os estrategos de Washington incluíssem no processo Quatro Zero enviado a Madrid. Através das escassas e rápidas trocas de impressões em Georgetown, Matthias, apercebera-se da intensidade dos seus sentimentos pela mulher com a qual trabalhara nos últimos oito meses. Pelo menos, talvez estivesse disposto a abandonar a actividade e a procurar a paz que se lhe esquivara ao longo de todos aqueles anos. O estadista zombara moderadamente da situação: quando um checo como ele, com mais de quarenta anos e a profissão de Michael, decidia concentrar-se numa mulher, a tradição eslava e a ficção contemporânea sofriam abalos irreparáveis.
Contudo, a mensagem de Matthias não revelava a mínima leviandade:
Muj mily synu
O material que junto magoa-me o coração, como decerto magoará o teu. Tu, que tanto sofreste nos primeiros tempos e te dedicaste tão brilhante e desinteressadamente ao nosso país adoptivo nos últimos tempos, tens de conhecer a dor mais uma vez. Pedi e
recebi uma verificação completa destes elementos. Se desejares afastar-te do palco, podes fazê-lo, evidentemente. Não te sintas vinculado às recomendações apensas. Já concedeste com honra tudo o que uma nação pode exigir. É possível que os rancores de que falámos há anos, as fúrias que te impeliram para esta terrível vida, se tenham atenuado e te permitam regressar a outro mundo carecido da colaboração da tua mente. Espero que tal aconteça.
Tvuj
Anton M.
Havelock esforçou-se por afastar tudo aquilo do espírito, pois só servia para agravar o que de momento se lhe afigurava incompreensível. Verificação: Positiva. Abriu a revista para ler o artigo sobre Matthias. Não continha nada de novo. Apenas uma recapitulação dos seus êxitos mais recentes no campo das negociações sobre o armamento e terminava com a observação de que o secretário de Estado partia para umas merecidas férias em local não mencionado. Michael não pôde evitar um sorriso, pois sabia onde se situava: uma cabina isolada no vale Shenandoah. Havia fortes possibilidades de, antes de a noite terminar, recorrer a uma dezena de códigos para o contactar. Mas não sem averiguar o que acontecera, pois Anton Matthias também fora afectado.
A multidão no interior da enorme estação era menos compacta, e ele retirou a m41a do cacifo e olhou em volta à procura de um sinal, que não podia deixar de existir. Podia não passar de mera perda de tempo, mas não lhe parecia. Pelo menos, constituía um ponto de partida. Lembrava-se de dizer a Baylor que a vira trocar algumas palavras com um revisor, que esperava conseguir localizar.
Reflectiu que uma pessoa em fuga não se detinha a conversar com um funcionário dos caminhos-de-ferro por simples necessidade de convívio. E em todas as cidades havia as secções onde homens e mulheres que pretendiam desaparecer da circulação o podiam fazer, onde o dinheiro representava a única linguagem entendida, as bocas guardavam segredo e os registos dos hotéis raramente reproduziam identidades exactas. Jerina Karas podia saber os nomes de bairros ou mesmo de ruas, todavia não se achava familiarizada com Roma. Uma cidade em greve quase geral poderia convencer uma pessoa em fuga da urgência em
fazer uma pergunta ou solicitar a indicação de um endereço a alguém capaz de a fornecer.
AMMINISTRATORE DELLA STAZIONE indicava a tabuleta na parede, acompanhada de uma seta.
Trinta minutos mais tarde, depois de persuadir o funcionário de que era imperioso para o seu interesse e o do revisor a localização deste último, obtinha o endereço do homem escalado para as carruagens tre, quattro ecinque do comboio que entrara na agulha trentasei às oito e trinta e cinco daquela noite. A fotografia apensa à folha de serviço correspondia às feições do indivíduo que Michael vira conversar com Jerina Karas, e, entre as suas habilitações, figurava a de conhecimentos razoáveis da língua inglesa.
Havelock transpôs os degraus de pedra de acesso ao prédio de apartamentos, consultou as portas do quarto andar e bateu à que exibia o nome " Mascolo". O revisor de rosto avermelhado vestia calças folgadas, com suspensórios por cima da camisola interior, e o hálito a álcool explicava o brilho no olhar. Michael puxou de uma nota de dez mil liras e, instantes depois, encontravam-se sentados à mesa da cozinha.
- Quem se pode lembrar de uma passageira entre milhares? - argumentou o homem.
- Tenho a certeza de que você pode - replicou Havelock, exibindo nova nota. -
Pense. Deve ter sido uma das últimas pessoas com as quais falou nesse comboio. Elegante, de estatura mediana, chapéu de abas largas...
- Si! Naturalmente. Una bella ragazza! Já me recordo! - O revisor recolheu o dinheiro e bebeu um pouco de vinho, após o que arrotou, antes de acrescentar: -
Perguntou se sabia como podia conseguir ligação para Civitavecchia.
- Não é uma vila ao norte de Roma?
- Exacto. Um porto no Tirreno.
- Informou-a?
- Há poucos comboios entre Roma e Civitavecchia durante o dia e nenhum à noite. De resto, passam por lá de preferência as composições de mercadorias.
- Que lhe aconselhou?
- Depois de lhe explicar isso mesmo e vendo que vestia com elegância, o que denunciava uma posição desafogada, sugeri que procurasse um táxi, embora isso não fosse fácil, porque Roma está transformada num manicómio.
Michael inclinou a cabeça em sinal de agradecimento, pousou mais uma nota na mesa e retirou-se. Consultou o relógio, que indicava 1.20. Civitavecchia. Um porto no Tirreno. Os navios que o abandonavam decerto escolhiam os primeiros clarões do dia para o fazer. A alvorada.
Dispunha, portanto, de cerca de três horas para lá chegar, percorrer os cais, descobrir o navio, entre vários outros... que transportava uma passageira cujo nome não figurava na lista oficial, se porventura esta existisse.
Capítulo quinto
Michael irrompeu do átrio de mármore do hotel no Círculo Bemini e atravessou cegamente as ruas tortuosas até alcançar a Via Veneto. O recepcionista não o pudera elucidar, apesar dos esforços desenvolvidos. Sob o impulso de atraentes maços de liras, ligara ao bar e vociferara números à sonolenta telefonista do PBX. No entanto, o seu raio de acção era limitado e não conseguira obter um carro de aluguer.
Havelock deteve-se para recobrar o alento e contemplou as luzes de diversas cores ao longo da Via Veneto. Apesar de demasiado tarde para estarem todos os letreiros iluminados, havia diversos cafés abertos e o Hotel Excelsior. Alguém tinha de o ajudar. Precisava de se dirigir a Civitavecchia com urgência. necessitava de a encontrar. Não apodia perder. Jamais! Tinha de a localizar, apertá-la nos braços e explicar-lhe a maquinação montada contra eles, repetir-lhe tudo até que ela vislumbrasse a verdade nos seus olhos e a reconhecesse na sua voz. E compreendesse o amor que sentia tão profundamente, a par da sensação de culpa que nunca o abandonava... pois ele matara esse amor.
Recomeçou a correr, primeiro para entrar no Excelsior, onde nenhuma quantia oferecida pareceu interessar ao arrogante recepcionista. - Tem de me ajudar!
- Nem sequer é cliente do hotel, signore - articulou o homem, lançando uma olha- dela à sua esquerda. Michael inclinou a cabeça com lentidão e avistou dois polícias que observavam a cena e trocavam impressões. Era óbvio que as actividades nocturnas do hotel mereciam a curiosidade das autoridades. Traficantes de cápsulas e pílulas, pó branco e seringas actuavam no bulevar mundialmente famoso. Um dos polícias principiou a aproximar-se e Havelock tratou de abandonar o átrio, para recomeçar a correr na rua quase deserta, em direcção à profusão de luz seguinte.
O fatigado chefe de mesa do Café de Paris disse-lhe que era um capo zuccone. Quem disporia de um automóvel para alugar a um desconhecido, àquela hora? Por seu turno, o gerente americano de uma versão de segunda ordem de um bar da Terceira Avenida mandou-o "peneirar areia".
De novo as ruas tortuosas e a transpiração abundante ao longo do rosto e do pescoço.
O Hassler... a Villa Medici! Mencionara o nome do requintado hotel na loja junto da estação de Ostia onde comprara a mala...
O porteiro da noite do Hassler estava habituado aos caprichos dos clientes abastados do hotel mais dispendioso de Roma. Assim, foram tomadas as providências necessárias para que Michael alugasse um Fiat pertencente a um funcionário do estabelecimento. O preço era exorbitante, mas acompanhava-o um mapa de Roma e arredores, com a estrada mais directa para Civitavecchia assinalada a vermelho.
Havelock chegou à vila portuária às três e um quarto e, meia hora mais tarde, percorrera os cais nos dois sentidos, a fim de os inspeccionar, até que decidiu arrumar o carro e iniciar as pesquisas para encontrar Jenna Karas.
Era uma zona comum à maioria dos portos, onde os projectores iluminavam os cais durante toda a noite e as actividades nunca se interrompiam. Grupos de estivadores e marinheiros confundiam-se com autómatos, enquanto as gruas permaneciam em movimento constante e os navios prestes a partir criavam a pressão necessária nas caldeiras. Havia uma extensa fiada de cafés e bares, onde se servia o uísqui mais áspero e a comida mais glutinosa.
Ela encontrava-se algures nas imediações. Escondida, sem dúvida, para permanecer invisível àqueles que a não deviam ver: controllori dos cais, pagos pelo Estado e pelas companhias de navegação, a fim de conservarem os olhos bem abertos, para evitar o contrabando material e humano. Decerto a mantinham oculta, até ao momento oportuno para embarcar, depois de um capo operário ter inspeccionado um porão e assinado os documentos que asseveravam que o navio em causa podia partir, liberto da mácula de transgressão das leis de terra e do mar. Ela poderia então abandonar as sombras e, aproveitando a ausência dos controllori e operai, atravessar um cais e subir para um navio.
Mas qual cais? Qual navio? Onde estás, Jenna? Havia três cargueiros de média tonelagem, acostados a curta distância entre si, em três dos quatro molhes de maiores dimensões. O quarto molhe alojava dois barcos de menor envergadura, também de carga. Michael calculou que ela seria conduzida para bordo de um dos primeiros, e a diligência imediata consistia em averiguar a hora de partida de cada um.
Arrumou o Fiat numa rua lateral que interceptava o viale fronteiro aos quatro molhes, apeou-se e avançou, por entre várias furgonetas e camiões, até ao primeiro da esquerda, em cujo portão se via um guarda uniformizado, um funcionário civil de civilidade discutível. Assumiu uma atitude desagradável, e o aborrecimento por ter de interpretar o deficiente italiano de Havelock não contribuiu para lhe melhorar o estado de espírito.
- Por que quer saber ? - inquiriu com animosidade. - Que tem com isso?
- Tento encontrar alguém que pode ter adquirido passagem - esclareceu Michael, esperançado em que as palavras que empregava não se afastassem muito do significado que pretendia.
- Passaggio? Biglietto? Quem compra bilhetes para um cargueiro português? Vislumbrando a abertura no aspecto tenebroso da situação, aproximou-se do homem e olhou em volta enquanto falava.
- Então, é este. Desculpe a imperfeição do meu italiano, signore controllore. É imperdoável, realmente. Pertenço à embaixada de Portugal em Roma. De certo modo, sou um inspector, como o senhor. Revelaram-nos a possibilidade de se registarem certas irregularidades relacionadas com este navio, e a cooperação que prestar será devidamente mencionada aos seus superiores.
O ego humano, quando ligado à oportunidade, nunca é afectado pelo nível inferior de um serviço público. Assim, o guarda hostil tomou-se subitamente afável e desviou-se para admitir o straniero importante.
- Scusatemi, signore! Não me tinha apercebido. Nós, vigilantes destes antros de corrupção, temos de colaborar uns com os outros. E, na verdade, uma palavrinha a meu respeito aos serviços centrais de Roma não calhava nada mal.
- Sem dúvida. Antes a esses que aos daqui.
- Os daqui estão nas mãos de funcionários obtusos. Mas entre, entre. Deve ter frio, aí fora.
Uma vez no interior da guarita, Michael inteirou-se de que o Miguel Cristóvão devia largar às cinco da manhã e que o comandante dava pelo nome de Aliandro, lugar que ocupava há doze anos, familiarizado com todas as ilhotas e baixios do Mediterrâneo Ocidental, segundo constava.
Os dois outros cargueiros eram detentores de matrículas italianas, e os guardas dos respectivos molhes mostraram-se moderadamente atenciosos e comunicativos perante o
estrangeiro cujo vocabulário italiano parecia assaz limitado. O que pretendia saber encontrá-lo-ia na secção intitulada Mvi Informazione-Civitavecchia de qualquer jornal, cujas páginas costumavam ser arrancadas e afixadas nas paredes dos vários cafés da área e
serviam de auxílio aos tripulantes que se embriagavam e esqueciam os horários.
O Isola d'Elba partia às cinco e meia e o Santa Teresa vinte minutos mais tarde. Havelock principiou a afastar-se do terceiro portão e verificou que eram 4.08. Dispunha de muito pouco tempo.
Jenna! Onde estás? Ouviu uma campainha atrás dele. Um som repentino, agressivo, que ecoava nas suas próprias vibrações, destinado a ser detectado acima do ruído da vozearia e maquinaria nos diversos cais. Alarmado, voltou-se com brusquidão. O guarda entrara no cubículo de vidro que constituía a sua guarita e atendia o telefone. A abundância de "Sis " indicava que o seu interlocutor transmitia ordens que deviam ser entendidas sem margem para dúvidas.
Os telefones e guardas nos postos de controlo constituíam fontes de apreensão para Michael, que, por um momento, hesitou entre afastar-se rapidamente ou permanecer onde estava. A decisão foi-lhe, por assim dizer, tirada das mãos no momento imediato. O guarda pousou o auscultador e assomou à porta.
- Uma vez que está tão interessado nesta banheira, aí vai mais uma informação.
O Teresa já não parte à hora prevista. Tem de esperar que cheguem de Turim três camiões, o que só deve acontecer dentro de umas oito horas. Os sindicatos hão-de aplicar sanções a esses bastardos, garanto-lhe! Depois, multarão os tripulantes por se embebedarem. São todos uns bastardos!
Por conseguinte, o Teresa ficava fora do campo de possibilidades. Pelo menos, para já. Se tencionavam conduzir Jenna para bordo desse cargueiro, Havelock dispunha de largas horas para agir, mas não se se tratasse de um dos outros dois. Nesta última eventualidade, restava-lhe pouco mais de urna hora, que devia aproveitar o melhor possível. Não havia tempo par& as subtilezas de acção e contra-acção, contornar o terreno da investigação e escolher alvos meticulosamente, consciente de que o podiam observar. A única hipótese viável consistia no dinheiro... se encontrasse quem o aceitasse. E na força... se essas mesmas pessoas tropeçassem em mentiras reveladoras de que conheciam a verdade.
Apressou-se a retroceder para o segundo portão, correspondente ao molhe a que o Isola d'Elba se achava acostado, e alterou a sua versão ligeiramente. Desejava falar com alguns dos tripulantes, aqueles que estivessem em terra à espera de serem chamados. Porventura o cooperativo funcionário civil, em cuja mão acabavam de ser depositados alguns milhares de liras, sabia que cafés das proximidades costumavam frequentar?
- Andam sempre juntos, como é natural. Quando rebenta uma rixa, querem ter ao pé quem os apoie, mesmo aqueles que detestam a bordo. Experimente espreitar em 11 Pinguino. Ou então em Lá Carrozza di Mare. O uísqui é barato no primeiro, mas a comida provoca vómitos ao estômago mais empedernido. Aconselho-o a começar por Lá Carrozza.
O anteriormente hostil, e agora solícito, guarda do molhe do Cristóvão também não hesitou em se mostrar comunicativo.
- Há um café na Via Maggio onde, dizem, coisas mudam de mãos.
- Acha que os homens do Cristóvão estarão lá? - Pelo menos, alguns. Os portugueses não convivem muito. Ninguém confia neles.
- E o nome?
- 11 Tritone. Bastaram dez minutos para desqualificar Il Tritone. Michael transpôs a pesada porta de vaivém sob o grosseiro baixo-relevo de uma criatura que representava um homem e um peixe, em partes iguais, e imergiu na atmosfera enevoada e mal-cheirosa de um bar ribeirinho típico. Havia homens aos gritos de umas mesas para as outras e vários com a cabeça pousada nos braços dobrados, afuridados em sono resultante do excesso de álcool.
Havelock optou pelo indivíduo idoso atrás do balcão e aproximou-se para perguntar:
- Estão cá tripulantes do Cristóvão?
- Portoghese?
- si.
- Alguns... acolá, salvo erro. Virou-se para o lugar indicado e, por entre a nuvem de fumo, descortinou quatro homens.
- E do Isola d'Elba? - inquiriu, voltando-se de novo para o bartender.
- Porci! Porcos! Corro com todos os que aparecem! São uma escumalha! Se quer encontrar algum, vá a 11 Pinguino. Aí, estão-se nas tintas para quem admitem.
- Fala português? - insistiu, puxando de uma nota de dez mil liras e pousando-a diante do homem. - O suficiente para que o entendam?
- Aqui, quem quiser ganhar a vida tem de se fazer compreender em meia dúzia de línguas. - O dinheiro desapareceu prontamente atrás do balcão. - Eles são capazes de falar italiano, talvez melhor do que o senhor. Portanto, passemos ao inglês. Que pretende de mim?
- Vejo além uma mesa livre - disse Havelock, aliviado por se poder exprimir no seu idioma e ao mesmo tempo que gesticulava na direcção do fundo da sala. - Vou sentar-me e, entretanto, procure aqueles homens e explique-lhes que quero falar com eles: um de cada vez. Se lhe parecer que me não compreenderão, acompanhe-os para servir de intérprete.
- Bene. Um a um, os quatro marinheiros portugueses apresentaram-se na mesa, intrigados dois proficientes em italiano, um em inglês e o quarto necessitado dos préstimos do intérprete -, a cada um dos quais Michael dirigiu as mesmas palavras:
- Procuro uma mulher. Trata-se de um assunto sem importância: chamemos-lhe um caso de coração. É impetuosa, como quase todas elas, mas desta vez pisou o risco. Constou-me que tem um amigo a bordo do Cristóvão. Até talvez aparecesse no cais, para fazer perguntas, à procura de transporte. Pode considerar-se atraente, de estatura mediana, cabelos louros e provavelmente usa impermeável e chapéu de abas largas. Viu alguém que corresponda a esta descrição? Em caso afirmativo, as suas finanças podem ser reforçadas.
E revelou a cada um uma explicação do seu interesse, que o marinheiro podia transmitir aos seus companheiros, a que juntou cinco mil liras.
- O que me disser ficará entre nós. Mais para minha conveniência que sua. Quando voltar para a sua mesa, pode dizer o mesmo que comunico a todos. Quero rebolar-me na cama com alguém que pretende abandonar Civitavecchia, mas não estou disposto a arrebatá-la a um filho da mãe que não entrega os seus documentos na recepção de um hotel. Entendido?
Somente em relação ao terceiro o bariender, que insistiu em assistir às entrevistas, advertiu Havelock com firmeza.
- Este deixará os documentos numa recepção.
- Então, não é o meu tipo.
- Bene!
- Grazie.
- Prego.
Nada. Nenhuma mulher que correspondesse aos sinais divulgados fora vista ou mencionada no molhe do Cristóvão, e os quatro marinheiros portugueses reataram a libação.
Havelock agradeceu ao perplexo bartender e introduziu-lhe mais uma nota de banco na algibeira do avental.
- Onde fica 11 Pinguino?
- Quer procurar os tripulantes do Elba?
- Exacto.
- Nesse caso acompanho-o - anunciou o homem, tirando o avental.
- Porquê?
- Parece uma pessoa decente. E estúpida. Se entra em 11 Pinguino e começa a oferecer dinheiro a toda a gente, basta um marinheiro hábil no manejo da navalha para...
- Sei cuidar de mim...
- Afinal, não é estúpido, mas muito estúpido. Como dono de E Tritone, respeitam-me em 11 Pinguino. Comigo, estará seguro. Gosta de se livrar do dinheiro com demasiada facilidade.
- Tenho pressa.
- Presto! Vamos. Esta noite não é famosa, aqui. Nos velhos tempos, a clientela era outra... e o consumo também. Vieni!
O café a curta distância de 11 Tritone suscitou recordações a Havelock, imagens de uma vida que supunha extinta e durante a qual visitara numerosos lugares como aquele. Com efeito, a fauna que frequentava 11 Pinguino de modo algum se podia considerar scelta. A atmosfera era muito mais densa, os gritos mais violentos e a violência latente, quase palpável. Frequentavam-no homens que se divertiam a expor dos outros os pontos fracos, ou simulacro disso, que consideravam uma ausência de virilidade, e em seguida atacavam-nos.
Não tinham outra coisa com que se ocupar. Desafiavam as sombras dos seus mais profundos temores.
O proprietário de 11 Tritone foi saudado pelo seu horriólogo, segundos depois de entrar, ao lado de Havelock . O dono de 11 Pinguino não destoava do ambiente: restavam-lhe poucos dentes e os braços pendiam como presuntos peludos. Embora menos corpulento que o colega, emanava uma sensação de violência que fazia pensar num javali fácil de enfurecer.
As fórmulas de saudação entre ambos foram proferidas rápida e secamente, mas revestiam-se de respeito, como o dono de 11 Tritone afirmara, e os preparativos desenrolaram-se com prontidão e o mínimo de explicações.
- O americano procura uma mulher. Trata-se de um malinteso, que não nos diz respeito
- informou o dono de Il Tritone. - Pode dar-se o caso de ela partir no Elba e um destes rufias tê-la visto. Ele está disposto a pagar.
- Então, temos de nos apressar - retrucou o javali. - Os maquinistas retiraram-se há uma hora e o imediato não tarda aí para recolher o resto da tripulação.
- Quantos são?
- Oito, dez, não faço a mínima ideia. Costumo contar as liras e não as cabeças.
- Mande um dos seus homens indagar discretamente, para nos indicar. Entretanto, arranje uma mesa para o meu companheiro. Eu levarei cada um deles para lá.
- Vomita ordens como se 11 Pinguino fosse 11 Tritone.
- Porque o trataria com a mesma cortesia, se aparecesse por lá. Nunca sabemos de quem precisaremos, amanhã... Cada porco do Elba vale dez mil liras para si.
- Bene. - O proprietário de B Pinguino encaminhou-se para o balcão.
- Não dê a estes homens o mínimo pretexto para lhe falarem, como aconteceu em 11 Tritone - advertiu o companheiro de Michael. - Com eles, não havia inconvenientes, mas aqui o caso é diferente. A bebedeira podia levá-los a interpretar a situação erradamente. As garrafas partem-se com facilidade, nesta espelunca.
- Então, que digo? Tenho de os separar, apresentar a cada um deles um motivo para lhes falar separadamente. Não posso receber todos ao mesmo tempo. Um deles pode saber alguma coisa, mas não ma revelará diante dos outros.
- De acordo. Diga a cada um que só confia nele e o preveniram de que os outros não merecem confiança. Falou-lhes somente para salvar as aparências, porque o assunto que lhe. interessa diz respeito ao Elba. Isto basta.
- Sou um estranho. Quem me fará uma revelação dessas?
- Um homem que conhece a sua clientela. Aquele a quem pagou: o dono de 11 Pinguino. - O homem arreganhou os dentes num sorriso. - Quando eles voltarem a fundear aqui, não o deixarão sossegado e precisará dos carabinieri todas as noites.
Separadamente, desconfiados, em diferentes fases de aturdimento alcoólico, os tripulantes do Elba sentaram-se à mesa e escutaram o crescentemente fluente italiano de Havelock, enquanto repetia a mesma pergunta. Ao mesmo tempo, estudava o rosto e os olhos do interpelado, em busca de uma reacção, um vislumbre de reconhecimento, um breve estremecimento que denunciasse uma mentira. Quando surgiu o sexto homem, julgou ter detectado o que procurava - um impulso repentino para se espreguiçar sem qualquer relação com o amolecimento provocado pelo uísqui. Não subsistiam dúvidas. Sabia alguma coisa.
- Viu-a, não é verdade? - disparou Michael, descontrolando-se e falando em inglês.
- Awolta - interpôs o dono de B Tritone. - In italiano, signore.
- Tem razão. - Em italiano, Havelock repetiu a pergunta, que na realidade mais parecia uma acusação.
O marinheiro respondeu com um encolher de ombros, mudou de posição na cadeira e fez menção de se levantar, todavia Michael estendeu a mão rapidamente e segurou-lhe o braço com firmeza. A reacção foi pouco tranquilizadora. O homem semicerrou os olhos congestionados, afastou os lábios como um cão enfurecido e deixou transparecer que o ataque se achava iminente.
- Lascialo - ordenou o dono de E Tritone. Virando-se para Havelock, proferiu apressadamente em inglês: - Mostre-lhe o dinheiro, de contrário este suíno lança-se-lhe ao pescoço e os outros caem-nos em cima. Tem razão. Ele viu-a.
Michael soltou o braço do marinheiro, levou a mão à algibeira e puxou o volumoso maço de liras, destacando duas, que colocou diante dele: totalizavam quarenta mil, o salário diário a bordo.
- Como vê, há mais - declarou em italiano. - Não mo pode arrancar, mas estou em condições de lho dar. Por outro lado, pode afastar-se sem me revelar nada. - Fez uma pausa e reclinou-se na cadeira, com uma expressão hostil. - Também o posso fazer passar um mau bocado. E não hesitarei, se houver motivo para tal.
- In che modo?
O homem estava tão enfurecido como intrigado e os olhos moviam-se do rosto de Havelock para o dinheiro e para o dono de 11 Tritone, que se conservava impassível, a posição rígida indicativa de que se achava consciente do perigo que a táctica de Michael envolvia.
- Como? - proferiu este último, inclinando-se para a frente para puxar as liras, como se recolhesse duas cartas vitais numa partida de bacará. - Indo ao Elba e falando com o seu comandante. Garanto-lhe que não gostará do que lhe disser a seu respeito.
- Che cosa? Que lhe pode dizer in riguardo a me que ele decida credere? -
O emprego de termos ingleses por parte do marinheiro era inesperado e, voltando-se para o
dono de Il Tritone, acrescentou: - Talvez este suíno se atire ao seu pescoço, velhote. Não preciso de ajuda dos outros. Para si ou para este ricco anwricano, chego bem.
Puxou o fecho do blusão de lã e o cabo de uma faca sobressaiu de uma bainha presa ao cinto.
Michael tomou a reclinar-se na cadeira com brusquidão e soltou uma breve risada. Tratava-se de urna manifestação de hilaridade genuína, sem hostilidade nem provocação, que contribuiu para intrigar o marinheiro ainda mais.
- Bene - articulou subitamente, voltando a mover-se para a frente e extraindo mais duas notas de cinco mil liras do maço. - Quis averiguar se os tinha no seu lugar e acaba de me clucidar. óptimo. Um homem sem testículos não sabe o que vê. Inventa coisas, por medo ou por ter dinheiro diante de si. - Apertou o pulso do outro entre os dedos e obrigou-o a abrir a mão, numa revelação de vigor que o interlocutor se viu forçado a reconhecer. - Aqui tem! Cinquenta mil liras. Não há mal-entendidos entre nós. Onde a viu?
As alterações abruptas de temperamento achavam-se fora da capacidade de entendimento do homem. Sentia relutância em ignorar o desafio, porém a combinação do dinheiro, da pressão no pulso e do riso contagioso forçou-o a reconsiderar.
- Tenciona procurar... o meu comandante? - inquiriu em inglês, com uma expressão apreensiva.
- Para quê? Como disse há momentos, por outras palavras, o assunto não lhe interessa. Por que havemos de envolver esse farabutto? Onde a viu?
- Na rua. Ragazza bionda. Bella. Capello a larga tesa.
- Loura, bonita... chapéu grande! Onde? Com quem estava? Um contramestre, um
oficial? Un ufficiale?
- Não era do Elba. No barco a seguir. Nave mercantile.
- Só há dois. O Cristóvão e o Teresa. Qual deles?
O marinheiro olhou em volta, a cabeça oscilando como um pêndulo e os olhos abertos com dificuldade.
- A destra - murmurou, levando a mão aos lábios húmidos.
- O da direita? - traduziu Michael, apressadamente. - O Santa Teresa?
O interpelado passou os dedos pelo queixo e pestanejou. Algo o atemorizava, e focou subitamente os olhos num ponto à esquerda da mesa. Por fim, encolheu os ombros, amarfanhou as notas na mão direita e impeliu a cadeira para trás.
- Non so niente. Una puttana del capitano.
- Mercantile italiano? - insistiu Havelock. - O cargueiro italiano? O Santa Teresa?
- Si... No! Destra... sinistra! - Os olhos do marinheiro, que se pusera de pé, fixavam-se agora algures no outro extremo da sala e, virando a cabeça com lentidão, Michael avistou três homens numa mesa junto da parede, que o observavam. - Il capitano. Un nwrinaio superiore! Il migliore! - bradou o marinheiro, em voz rouca. - Não sei mais nada, signore! - E afastou-se em direcção à porta que dava para uma rua transversal.
- Faz jogo perigoso - comentou o dono de B Tritone. - A coisa podia ter dado para o torto.
- Com uma mula, bêbada ou sóbria, não há nada que substitua a cenoura e o chicote - retrucou Havelock, que conservava a cabeça ligeiramente voltada para o lado, concentrado nos três homens da outra mesa.
- Podia ficar com o estÔmago cheio de sangue, sem averiguar nada.
- Mas averiguei alguma coisa.
- Pouco. O cargueiro da direita, da esquerda. Qual deles?
- Primeiro, referiu-se ao da direita.
- Indo para o cais ou vindo?
- Do seu ponto de vista imediato: indo. Destra. O Santa Teresa. Ela será conduzida para bordo desse, o que significa que disponho de tempo para a localizar antes que a mandem avançar. Encontra-se algures à vista do cais.
- Não sei... - murmurou o dono de E Tritone, meneando a cabeça. - A nossa mula foi explícita. O comandante era un marinaio superiore. Migliore. Dos melhores, um grande marinheiro. Ora, o comandante do Teresa é um oficial da marinha mercante curvado ao peso dos anos. Nunca navega para além de Marselha.
- Quem são os ocupantes daquela mesa? - perguntou Michael, num tom quase inaudível, em virtude da vozearia em redor. - Não volte a cabeça. Limite-se a mover os olhos.
- Não os conheço de nome.
- Que quer dizer com isso?
- Italiano.
- O Santa Teresa. - Destacou várias notas do maço e guardou este na algibeira. - Foi-me muito útil. Pague ao proprietário. O resto é para si.
- Grazie.
- Prego.
- Acompanho-o até ao cais. Continuo a não gostar disto. Não sabemos se esses homens são do Teresa. Há qualquer coisa que não está in equilíbrio.
- As probabilidades afirmam o contrário. É o Teresa. Vamos. Na rua para onde dava o ruidoso café imperava o silêncio, comparativamente. Lâmpadas dispersas brilhavam com fraca intensidade, envoltas na neblina, e o empedrado com séculos de existência abafava os passos. Ao fundo da estreita artéria avistava-se a ampla avenida, mais iluminada, porém até lá tomava-se necessário avançar com precaução.
- Ecco! - murmurou o italiano, que não desviava o olhar do percurso à sua frente. Está alguém emboscado naquela porta, à esquerda. Trouxe alguma arma?
- Não tive tempo de...
- Nesse caso, depressa! Começou subitamente a correr e passou diante da porta no momento em que um vulto emergia: um homem corpulento, de braços erguidos e mãos preparadas para a intercepção. No entanto, não empunhava qualquer arma.
Havelock moveu-se rapidamente na sua direcção e, de súbito, saltou para as sombras do lado oposto. No instante em que o homem se precipitou para ele, rodou bruscamente nos calcanhares e, segurando-o pelo casaco, ergueu a perna direita e mergulhou-lhe o joelho na cintura. Rodopiou outra vez, agora arrastando-o consigo, e encostou-o à parede com violência, conservando-o dominado com o joelho apoiado ao tronco.
- Basta, por favor! Se Deus quiser!' - balbuciou o assaltante, levando as mãos à cintura, ao mesmo tempo que a saliva lhe deslizava dos cantos dos lábios.
Exprimia-se em português e tratava-se do primeiro marinheiro do Cristóvão que Michael interrogara, tendo até pronunciado algumas palavras em inglês.
- Se resolveu dedicar-se ao assalto e ao roubo, começa mal, amigo!
- Não, senhor! Queria só falar, mas sem que nos vissem. Se me pagar, digo-lhe coisas.
- Fale.
- Primeiro, pague! Michael fixou o pescoço do homem contra a parede com o antebraço, levou a outra mão à algibeira e puxou do dinheiro. Em seguida, pousou-lhe o joelho no peito e, libertando a outra mão, destacou duas notas do maço.
- Vinte mil liras! Agora, fale.
- O que tenho para dizer vale mais. Muito mais, senhor! Verá.
Em português no original. (N. do T.)
- Posso recuperar o dinheiro, se não for verdade. Trinta mil, mas é o máximo.
- A mulher vai para bordo do Cristóvão, sete minutos antes da partida. Está tudo combinado. Vem do armazém a nascente do cais. De momento, está vigiada e ninguém a pode abordar. Mas tem de percorrer quarenta metros até à prancha de embarque.
Michael libertou o marinheiro e juntou mais uma nota às que ele tinha na mão.
- Ponha-se a andar. Nunca o vi.
- Tem de jurar, senhor - suplicou o homem, endireitando-se.
- Está bem, juro. Desapareça. De súbito, soaram vozes ao fundo da rua e surgiram dois homens a correr.
- Americano! Americano! Era o dono de B Tritone, que reaparecia com reforços e se apressou a impedir que o português se afastasse.
- Largue-o! - indicou Havelock. - Não há novidade. Pode deixá-lo ir. - Sessenta segundos depois, explicava: - Afinal, é o Cristóvão e não o Teresa.
- Claro! - exclamou o italiano, dando uma palmada na fronte. - O capitano experiente, o grande navegador. Estava tudo na minha frente e não me apercebi. João Aliandro, o melhor comandante do Mediterrâneo! Podia meter o seu navio por qualquer zona perigosa e largar a carga onde quisesse, sem que os observadores de terra dessem por nada. Encontrou a sua mulher, signore.
Havelock agachava-se à sombra de uma grua estacionária e esquadrinhava as imediações pelos intervalos do suporte metálico. A carga já se achava toda a bordo e os estivadores haviam dispersado em direcção aos cafés das vielas próximas, encontrando-se apenas presentes os quatro homens que participariam na manobra da largada.
Uma centena de metros atrás dele situava-se o portão de acesso ao molhe, com o guarda refugiado na guarita de vidro, a fim de se proteger do nevoeiro, que se intensificara à medida que a alvorada se acercava. Em diagonal, à esquerda, na parte da frente da grua, a uns trinta metros, achava-se a prancha que se prolongava até à coberta do Cristóvão. Era a derradeira ligação do cargueiro com terra e seria içada para bordo antes de as amarras serem retiradas dos pilares maciços do cais.
À direita, a vinte metros da grua, encontrava-se a porta do armazém, fechada à chave. Atrás dela, estava Jenna Karas, uma fugitiva da sua própria traição e de outros - o amor dele, que traíra esse afecto por razões que só ela poderia revelar. Dentro de momentos, a porta abrir-se-ia e Jenna teria de transpor a distância que a separava do molhe. Uma vez a bordo, estaria livre. Mas, enquanto as amarras não fossem recolhidas e a prancha de embarque levantada, o perigo de ser capturada persistiria. No interior do armazém, sentir-se-ia protegida, e qualquer intruso que se aventurasse a entrar poderia ser abatido sem interrogatório prévio. Contudo, a distância que a separava do Cristóvão constituía uma espécie de terra de ninguém, onde tudo podia acontecer. Em seguida, desapareceria. Novamente. Agora, não tragada pela morte, mas por um enigma.
Michael consultou o relógio. Eram quatro horas e cinquenta e dois. Faltavam, pois, apenas oito minutos para a partida. Na coberta do cargueiro moviam-se alguns homens, localizados pelos pontos luminosos produzidos pelos cigarros. O ruído surdo das turbinas nas entranhas do navio ecoava nitidamente cá fora, indicando que tudo se achava a postos para a largada.
A porta do armazém, abriu-se, e Havelock experimentou um estremecimento de emoção no instante em que a loura surgiu da escuridão para a área menos obscura do nevoeiro e das sombras. O cadáver vivo da Costa Brava penetrou no túnel sem paredes que a conduziria a bordo do Cristóvão, com destino a um país desconhecido e à fuga. Dele. Porquê?
O palpitar no peito de Michael era intolerável e o ardor nos olhos excruciante, mas tinha
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de suportar ambos por mais uns segundos. Quando Jerma alcançasse um ponto intermédio entre o armazém e o cais, interceptá-la-ia. Nem um instante antes.
Por fim, ela chegou lá! Agora. Abandonou o esconderijo atrás da grua e principiou a correr, sem se preocupar com o ruído dos passos, apenas preocupado em chegar junto dela.
- Jenna! Por amor de Deus, Jenna! Segurou-a pelos ombros e ela voltou-se, aterrada. A respiração dele explodiu-lhe da garganta. O rosto na sua frente era de uma velha, hediondo, o semblante marcado pela varíola de uma prostituta das docas. Os olhos que o fitavam lembravam os de um roedor, rodeados por pesada maquilhagem, os lábios artificialmente avermelhados e dentes irregulares e escuros.
- Quem é você? - O grito de Havelock lembrava o de um louco. - Mentirosa! Mentirosa! Porque mente? Porque está aqui? Porque não está aqui? Mentirosa!
Uma neblina densa, que nada tinha de comum com a que avançava do mar, toldava-lhe o raciocínio. Perdera o domínio da razão, apenas consciente de que as suas mãos se haviam convertido em garras e depois em punhos cerrados, agressivos. Mata a roedora, mata a impostora! Mata, mata!
Outros gritos, ordens e contra-ordens encheram-lhe as cavernas tumultuosas do consciente. Não havia princípio nem fim, apenas um núcleo furioso de frenesi.
De súbito, sentiu pancadas no corpo, mas nenhuma dor. Havia homens à sua volta e depois em cima. Punhos e botas pesadas atingiram-no com brutalidade. Repetidamente. Por toda a parte.
Por fim, surgiu a escuridão. E o silêncio.
Num ponto sobranceiro ao cais, no primeiro andar do armazém, um vulto encontrava-se atrás da janela do pequeno escritório e contemplava a cena de violência em baixo. Respirava pesadamente, dedos pousados nos lábios e olhos castanhos inundados de lágrimas. Distraidamente, Jerma Karas retirou a mão do rosto e levou-a à têmpora esquerda, sob o chapéu de abas largas.
- Porque o fizeste, Mikhail? - articulou num murmúrio. - Porque quiseste matar-me?
Capítulo sexto
Michael abriu os olhos, consciente do odor intenso de uísqui barato, apercebendo-se da humidade no peito e na garganta: a camisa, o casaco e as calças tinham sido encharcados. Na sua frente, havia gradações de escuridão, sombras cinzentas e negras interrompidas por minúsculos pontos luminosos que se moviam nas trevas mais distantes. Predominava a dor em todo o corpo, centrada no estômago e propagando-se, através do pescoço, até à cabeça, que ele sentia inchada e aturdida. Fora brutalmente espancado e arrastado para a extremidade do cais - no lado direito, para além do armazém, se o seu abalado sentido de orientação merecia alguma confiança: e abandonado, para que recuperasse o conhecimento ou, mais provavelmente, rolasse para a água.
Mas o facto de não o terem morto revelava-lhe algo. Moveu a mão direita com lentidão para o pulso esquerdo e verificou que continuava possuidor do relógio. Estendeu as pernas e explorou a algibeira: o dinheiro também permanecia intacto. Não fora roubado, o que lhe indicava outra coisa.
Falara com demasiados homens e muitos outros o haviam visto imerso em diálogos misteriosos. Tinham constituído a sua protecção. O homicídio era sempre algo de indesejável e merecedor de uma investigação profunda, assim como o assalto e roubo, quando se tratava de um estrangeiro aparentemente abastado. Ninguém estava interessado em que se formulassem perguntas excessivas nas docas. Cabeças frias tinham determinado que o deixassem assim, o que significava que haviam sido pagas para executar ordens superiores, de contrário roubar-lhe-iam alguma coisa: o relógio ou um punhado de liras.
Um estrangeiro endinheirado perdera a cabeça e atacara uma loura nas docas, o que motivara a intervenção de alguns homens para a defender. Não havia necessidade de proceder a investigações, uma vez que o rico americano maledetto conservava a sua propriedade intacta, se bem que não a integridade física.
Uma maquinação. Uma armadilha posta em prática por profissionais. Todos os acontecimentos daquela noite obedeciam a um plano meticulosamente elaborado. Havelock rolou sobre o lado esquerdo e verificou que o oceano, a sueste, era uma linha de fogo sobre o horizonte. Surgira a alvorada e o Cristóvão resumia-se a uma das dezenas de pequenas silhuetas na água, formas obscuras definidas difusamente por luzes cintilantes.
Apoiou-se nos joelhos com lentidão, fez uma pausa e endireitou-se. Uma vez de pé olhou em volta e moveu os braços e as pernas com prudência, para se certificar de que não havia qualquer fractura. Não obstante, a maquinaria achava-se fortemente abalada e não reagia às ordens urgentes, pelo que acalentou a esperança de não necessitar transmitir nenhuma do género.
O guarda. O funcionário civil possuidor de civilidade faria parte do conluio? Ter-lhe-iam ordenado que principiasse por enfrentar o estrangeiro com hostilidade, para depois se mostrar atencioso, a fim de lhe dissipar qualquer suspeita? Tratava-se de uma estratégia eficiente que não devia ter passado despercebida a Havelock. Nenhum dos outros dois guardas se mostrara difícil e até manifestara boa vontade em o elucidar, e o do molhe ao qual se encontrava acostado o Teresa levara a amabilidade ao ponto de o informar do atraso verificado na partida daquele cargueiro.
O proprietário de 11 Tritone? O tripulante do Cristóvão emboscado à saída do café? Também estariam integrados na maquinação? A coincidência do progresso lógico das suas diligências conduzira-o porventura àqueles homens da área das docas, que o esperavam? No entanto, como poderiam estar à espera? Quatro horas atrás, Civitavecchia não passava de um nome vagamente recordado num mapa, sem significado especial para ele. Não existia qualquer razão para a visitar, nenhum meio de telegrafar uma mensagem desconhecida. Apesar disso, fora o que acontecera, e ele devia aceitá-lo, ainda que sem saber como ou porquê. Havia muitas coisas para além da sua compreensão, um mosaico enlouquecedor a que faltavam demasiadas peças.
Tudo o que não se compreende nesta profissão representa um risco, mas não preciso de lho dizer. Não fora algo do género que Rostov afirmara em Atenas?
Um engodo - uma prostituta loura, com faces marcadas pela varíola - fora lançada no nevoeiro que precedia a alvorada, para o obrigar a actuar. Mas porquê? Que esperavam que fizesse? Aliás, Michael deixara transparecer as suas intenções com clareza. Portanto, que fora averiguado, clarificado? Qual a finalidade daquilo? Pretenderia ela matá-lo? Fora esse o verdadeiro objectivo do episódio na Costa Brava?
Porque fazes isto, Jenna? Que te aconteceu? Que nos aconteceu? Principiou a caminhar em passos incertos, detendo-se para pousar melhor as pernas, quando o equilíbrio se tomava difícil. Ao alcançar a periferia do armazém, deslizou ao longo da parede e das janelas às escuras, até à outra extremidade. A seguir, havia o cais deserto e luzes dispersas obscurecidas pelo nevoeiro. Semicerrou as pálpebras para observar o cubículo de vidro da guarita do guarda. Como anteriormente, o vulto no interior era quase invisível, mas não subsistiam dúvidas da sua presença. Michael descortinou com clareza o ponto luminoso de um cigarro mais ou menos a meio de uma das vidraças.
O clarão moveu-se para a direita, indicando que o homem se levantara do banco e abria a porta. Um segundo vulto atravessava o nevoeiro, proveniente da larga avenida de acesso às docas. Era um homem de estatura mediana, envolto num pesado sobretudo, a aba do chapéu puxada para os olhos, como qualquer transeunte da Via Veneto. A indumentária não era própria daquele ambiente. Pertencia às ruas da cidade. O desconhecido aproximou-se da guarita, deteve-se à entrada e dirigiu algumas palavras ao guarda, após o que se voltaram na direcção do armazém. O guarda gesticulou, e Michael compreendeu que falavam dele.
O recém-chegado inclinou a cabeça, virou-se, ergueu o braço e não tardaram a acudir outros dois homens, corpulentos, trajados mais em conformidade com o lugar.
Havelock apoiou a cabeça na parede, num gesto de frustração e dor. A exaustão quase não o deixava permanecer de pé. Não estava em condições de enfrentar aqueles homens, pois mal conseguia levantar os braços ou as pernas, e como não dispunha de outras armas, equivalia a achar-se desarmado.
Onde estaria Jenna? Teria seguido para bordo do Cristóvão, depois de o engodo cumprir a sua missão? Era uma inferência lógica... Não! A cena de violência que se seguira teria despeitado demasiada atenção sobre o cargueiro, com o perigo de poder atrair entidades não envolvidas na maquinação. O próprio navio constituíra um engodo e a prostituta loura o foco principal. Jetina embarcara num dos outros dois!
Afastou-se do armazém em direcção à extremidade do cais, ao mesmo tempo que esfregava os dedos, numa tentativa para enxergar melhor através do nevoeiro. Soltou uma exclamação involuntária, tal a intensidade da sensação no estômago. O Elba partira! Fora atraído ao molhe errado, arrastado para uma situação incontrolável, enquanto Jetina embarcava no Elba. Seria o comandante deste, à semelhança do do Cristóvão, um navegador excepcional? Conseguiria manobrar o seu volumoso navio suficientemente perto de uma área da costa não patrulhada, para uma pequena embarcação transferir o seu contrabando para terra?
Havia um homem que conhecia a resposta a esta interrogação. O de sobretudo espesso e chapéu puxado para os olhos, que frequentava as docas, não para colaborar em cargas e descargas, mas no intuito de comprar e vender. Esse homem devia saber o que se passara, pois negociara a passagem de Jenna.
Havelock voltou para junto da esquina do armazém, consciente de que necessitava de abordar o indivíduo e esquivar-se aos dois que o vinham buscar. Se possuísse uma arma, uma arma de qualquer espécie... Olhou em redor, mas não descortinou nada de aproveitável nesse sentido. Nem sequer um pau ou uma tábua desprendida de um caixote.
A água. A altura era apreciável, todavia achava-se ao seu alcance. Se conseguisse chegar à extremidade mais distante do cais antes que o vissem, concluiriam que mergulhara no mar, enquanto permanecia inconsciente. De quantos segundos disporia? Aproximou o rosto da esquina e espreitou, preparado para correr.
Mas não correu, porque os dois homens já não se moviam na sua direcção. Tinham-se detido e conservavam-se imóveis, do outro lado do portão do molhe. Porquê? Porque razão o deixavam onde se encontrava, sem ulterior interferência?
De súbito, de entre o nevoeiro impenetrável, brotou o som intenso da buzina de um navio. Verificou-se outro quase imediatamente, seguido de um acorde baixo e prolongado que vibrou por todo o porto. Era o Santa Teresa! Surgira a resposta à dúvida de Michael. Os dois homens não tinham sido chamados para reatar a agressão, mas com a finalidade de o impedir de se aproximar do primeiro molhe. Não estava previsto qualquer atraso na partida do Teresa. Isso também fazia parte da maquinação. Largava à hora inicialmente estabelecida, com Jeima a bordo. À medida que o momento se aproximava, o negociador só tinha uma coisa a fazer: impedir a intervenção do caçador incapacitado.
Enfurecido, Hevelock decidiu que necessitava de alcançar o molhe e evitar que o cargueiro se afastasse, pois a partir do momento em que as amarras fossem retiradas, nada poderia fazer para contactar Jeima. Desapareceria num de vários países, numa de centenas de cidades, sem que ele se pudesse opor, deixando-o totalmente desamparado. Sem ela, não lhe interessava continuar a viver!
Lamentava não conhecer o significado dos sinais acabados de emitir, saber de quanto tempo dispunha. Só podia entregar-se a uma estimativa. Houvera duas explosões de som
procedentes do Cristóvão e, no momento imediato, a loura emergira do armazém. Sete minutos. Não houvera, contudo, qualquer acorde grave na sequência daqueles dois. A sua
ausência significaria menos tempo ou mais? Esquadrinhou a memória, recapitulando as
missões que o haviam conduzido a áreas portuárias de diferentes países.
De repente, recordou-se, ou melhor, julgou recordar-se, no instante em que uma imagem ténue se destacou. Os sons agudos destinavam-se aos navios à distância e o grave aos mais próximos - um método prático de proceder destinado ao largo e às docas. E enquanto o
espancavam, as vibrações periféricas de um som grave tinham-se confundido com os seus
gritos de protesto e fúria. Este último seguira de perto os primeiros, como prelúdio da partida iminente. Sete minutos - menos um, mais provavelmente dois ou mesmo três.
Michael dispunha apenas de minutos. Seis, cinco, quatro, quando muito. O molhe do Teresa situava-se a várias centenas de metros do ponto em que se encontrava e, em virtude da sua condição, ele necessitaria de um mínimo de dois minutos para lá chegar, o que só aconteceria se lograsse esquivar-se aos dois homens que haviam sido chamados para o
deter. Um máximo de quatro minutos, e dois na pior das hipóteses! Como? Tomou a olhar em volta, tentando dominar o pânico, consciente de que cada segundo que passava lhe reduzia as possibilidades.
Um objecto volumoso, negro, destacava-se vagamente entre dois montes de caixotes, a uns dez metros, e não o notara antes porque constituía uma parte estacionária das docas. Observou-o com atenção e verificou que se tratava de um bidão vulgar, indubitavelmente furado entre as operações de carga ou descarga e agora utilizado como receptáculo de lixo. Correu para lá, inclinou-o e fê-lo rolar para junto da parede do armazém. Entretanto, o tempo escoava-se: trinta, porventura quarenta segundos. Restavam, pois, três minutos, na hipótese mais optimista. A táctica que lhe acudira podia considerar-se desesperada, mas era
a única possível. Não podia ultrapassar aqueles homens, a menos que o fossem buscar, a
menos que o nevoeiro e a escuridão cada vez menos densa actuassem a seu favor e contra eles. Não havia tempo para pensar no guarda e no homem de sobretudo.
Havelock agachou-se na escuridão, encostado à parede, com ambas as mãos pousadas nas extremidades do bidão. Em seguida, encheu os pulmões de ar e gritou o mais alto que conseguiu, persuadido de que o som ecoaria ao longo do cais deserto.
- Aiuto! Presto! Sanguino! Muoio! - Fez uma pausa e distinguiu vozes à distância: perguntas e depois ordens. - Aiuto! - repetiu, no mesmo tom.
Silêncio. De súbito, passos apressados. Próximos, cada vez mais próximos. Agora! - Impeliu o bidão com todas as energias que conseguiu reunir e viu-o rolar rapidamente, através do nevoeiro, em direcção à extremidade do cais.
Os dois homens surgiram na esquina do armazém no momento em que o bidão alcançava o ponto previsto e colidia com uma coluna. Em seguida, rodopiou e mergulhou na água, com um som intenso e característico. Os dois homens gritaram algo um para o outro e precipitaram-se para lá.
Agora! Michael endireitou-se e correu de braços preparados para actuar. Avançava com certa dificuldade, mas tinha a certeza do terreno que pisava. Por fim, estabeleceu contacto. Primeiro, atingiu o homem da direita, com a mão colocada na vertical, como um gume. Acto contínuo, concentrou-se no da esquerda, e o impacto do ombro com a nuca produziu os efeitos previstos.
Um som ensurdecedor das chaminés do Teresa abafou os gritos dos dois italianos antes de se precipitarem na água. Michael desviou-se para a esquerda e retrocedeu para a esquina do armazém, disposto a cruzar o cais deserto e a enfrentar o guarda e o homem de sobretudo. Entretanto, o tempo continuava a escoar-se, inexorável: mais um minuto. Restavam menos de três, quando muito.
Correu através da área sulcada de montes de carga e gruas imóveis e, imprimindo à voz
uma inflexão aguda, quase de histeria, bradou em italiano hesitante:
- Acudam-me! Acudam-lhes! É um horror! Estou ferido. Os dois homens que vinham ajudar-me foram alvejados a tiro! Do molhe vizinho. Quase não ouvi os disparos por causa do apito do cargueiro, mas tenho a certeza disso! Tiros! Acudam depressa, que eles estão feridos. Penso mesmo que um já morreu! Depressa, por favor!
A troca de palavras entre os dois homens constituiu um verdadeiro caos verbal. À medida que se acercava do portão em passos incertos, Havelock viu que o guarda puxara da automática, mas não era o mesmo. Agora, tratava-se de um indivíduo mais baixo e atarracado, além do que exibia uma expressão agressiva, ao contrário da do colega, que exprimia solicitude. Por seu turno, o homem de sobretudo indicava-lhe que investigasse o que se passava, porém o outro replicava que não abandonaria o seu posto nem que lhe oferecessem vinte mil liras. O capo regime podia explorar o seu próprio lixo; ele não era um bambino aterrorizado das docas. O capo talvez adquirisse algumas horas do seu tempo,
* seu desaparecimento, mas nada mais.
Uma maquinação. Uma charada desde o início.
- Andate voi stessi! - bradou o guarda. Praguejando, o homem de sobretudo correu em direcção ao armazém, todavia abrandou
* passo à medida que se aproximava do seu destino.
Entretanto, o guarda postara-se à entrada da guarita e apontava a arma a Havelock.
- Venha para o pé da vedação - ordenou em italiano. - Levante as mãos e segure
* arame o mais alto que puder. Não se vire! Se o fizer, abro-lhe um furo na cabeça!
Faltavam dois minutos, no máximo. Se o estratagema funcionasse, seria agora.
- Meu Deus! - gritou Michael, levando as mãos ao peito e caindo.
O guarda adiantou-se, enquanto ele permanecia imóvel, numa posição fetal, um peso morto na superfície dura e húmida.
- Levante-se! - rugiu o italiano. - Ponha-se de pé! E inclinou-se para sacudir o ombro de Havelock. Era o movimento que este aguardava com ansiedade. Ergueu-se como que impelido por uma mola, segurou a automática sobre a cabeça, puxou o homem para si e atingiu-lhe a garganta com o joelho, ao mesmo tempo que lhe torcia o pulso. Para descargo de consciência, utilizou a coronha da arma na base do crânio. Em seguida, arrastou o corpo inerte para o interior da guarita e transpôs o portão apressadamente.
Registou-se um som prolongado à distância, seguido de três outros, histericamente agudos. O Teresa preparava-se para largar! Michael sentia-se invadido por uma vaga crescente de frustração, enquanto corria ao longo do amplo espaço deserto. Quando alcançou o molhe do Teresa, o guarda - o mesmo - encontrava-se na guarita de vidro, de novo ao telefone, inclinando a cabeça, ante novas mentiras que lhe transmitiam.
Havia agora urna corrente atravessada no portão aberto - um simples impedimento oficial e não uma proibição. Havelock destacou do gancho uma das extremidades e afastou-a com brusquidão, fazendo-a encurvar-se como uma serpente.
- Che cosa? Fermati! Recomeçou a correr, ignorando as dores excruciantes nas pernas, na direcção do cargueiro, cujos contornos se destacavam entre o nevoeiro. A perna direita cedeu ao peso do corpo e as mãos atenuaram a queda, porém não o impacto, enquanto o ombro direito
deslizava na superfície molhada. Endireitou-se com dificuldade e fez uma pausa, a fim de recuperar as energias suficientes para prosseguir.
Por fim, respirando com dificuldade, atingiu a extremidade do molhe e verificou a futilidade dos seus esforços. O Santa Teresa achava-se já a uns dez metros da muralha e as gigantescas âncoras eram içadas por homens que o observavam por entre a penumbra.
- Jenna - bradou. - Jenna! Jenna! Deixou-se cair no chão, exausto e vencido, com a sensação de que um peso inconcebível lhe oprimia o peito e um machado persistia em fragmentar-lhe a cabeça. Perdera-a... Uma pequena embarcação poderia deixá-la. em qualquer dos milhares de lugares sem vigilância da costa mediterrânica. A única pessoa que estimava no mundo partira para sempre. Nada era dele e ele não era nada.
Ouviu gritos atrás de si, seguidos de passos rápidos. Ao mesmo tempo, recordou-se de outros sons, outros passos... outro molhe. Aquele de onde o Cristóvão partira!
Havia um homem de sobretudo, que ordenara a outros que o seguissem. Se conseguisse encontrá-lo... Se o descobrisse, arrancar-lhe-ia a pele do rosto, milímetro a milímetro, até que lhe revelasse a verdade.
Havelock levantou-se e coxeou em direcção ao guarda, que corria para ele de arma em punho.
- Fermati! Alza le mani!
- Un errore! - replicou Michael, numa inflexão mista de desculpa e agressividade, reflectindo que devia evitar que o homem o detivesse. Puxou de algumas notas de banco da algibeira e segurou-as na sua frente, para que as pudesse ver. - Que lhe posso dizer? -
continuou em italiano. - Cometi um erro... com que você lucrou. Falámos antes, lembra-se? - Colocou o dinheiro na mão do guarda, ao mesmo tempo que lhe dava uma palmada nas costas. - Guarde esse brinquedo, vá. Sou seu amigo, recorda-se? Ninguém foi prejudicado. Fiquei um pouco mais pobre e você um pouco mais rico. Além disso, bebi de mais.
- Bem me pareceu que o conhecia! - articulou o homem com uma relutância que não se tomava extensiva às liras, as quais embolsou com prontidão, ao mesmo tempo que olhava em volta como medida de precaução. - Deve estar louco! Podia tê-lo alvejado. E para quê?
- Disse-me que o Teresa só largava daqui a várias horas.
- Foi o que me comunicaram! São todos uns bastardos. E loucos, também! Não sabem o que fazem.
- Pelo contrário, sabem muito bem - proferiu Michael, a meia-voz. - Bem, vou andando. Obrigado pela ajuda.
E, antes que o outro pudesse replicar, afastou-se rapidamente, estremecendo de dor enquanto tentava dominar o latejar das pernas e a sensação pungente no peito.
Alcançou a vedação que circundava o molhe do Cristóvão com a mão afundada na algibeira, congratulando-se pela posse da automática. O guarda inconsciente continuava estendido no chão, atrás da guarita de vidro. Não se movera nem fora movido durante os cinco minutos, porventura seis, que haviam transcorrido desde que tombara sem sentidos.
O homem de sobretudo ainda se encontraria nas imediações? As probabilidades inclinavam-se para a afirmativa. Em obediência à lógica, teria procurado o guarda ausente do seu posto, a fim de o interrogar. Nessa eventualidade, a posição do corpo inerte teria sofrido alguma alteração, o que não se verificava.
Mas que motivo obrigaria o capo regime a manter-se no molhe durante tanto tempo? A resposta surgiu do mar, através do nevoeiro e do vento. Gritos, perguntas, seguidos de ordens e novas interrogações. O homem de sobretudo continuava na área e os seus gorilas vociferavam da água, em baixo.
Michael cerrou os dentes, esforçando-se por eliminar a dor da mente, e deslizou ao longo da parede do armazém, para além da porta da qual emergira a falsa Jenria, em direcção à esquina. A claridade do dia aumentava gradualmente, ao mesmo tempo que o nevoeiro se atenuava e a ausência do cargueiro permitia que os primeiros raios solares incidissem no molhe. À distância, na água, outro navio avançava com lentidão para o porto de Civitavecchia, possivelmente para ocupar o espaço deixado vago pelo Cristóvão. Se tal acontecesse, o pessoal de terra não tardaria a comparecer para colaborar na acostagem e fixação das amarras. Havelock necessitava agir com rapidez e eficiência, e acalentava certas dúvidas quanto à possibilidade de recorrer a semelhantes ingredientes.
Uma faixa do litoral não patrulhada. O homem que se encontrava a poucos metros dele saberia de qual se tratava? Impunha-se que o averiguasse.
Contornou a esquina do armazém, conservando a automática junto do corpo. Sabia que não a podia utilizar, de contrário limitar-se-ia a eliminar a possível fonte de informação e a atrair a atenção. Não obstante, a ameaça devia ser apresentada como genuína e precisava de simular uma cólera desesperada, do que se sentia perfeitamente capaz.
O homem de sobretudo encontrava-se na extremidade do molhe e, excitado, transmitia instruções em voz baixa, sem dúvida também empenhado em não dar nas vistas. O efeito conseguido era cómico. Segundo Havelock conseguia depreender, um dos homens em baixo manifestava relutância em largar uma das colunas que emergiam da água, porque não sabia nadar, e o negociador ordenava ao companheiro que o ajudasse. Aparentemente este último negava-se, por admitir a possibilidade de o colega em apuros, dominado pelo pânico, o arrastar para o fundo.
- Basta de palavreado! - proferiu Michael, com brusquidão, em italiano.
O homem de sobretudo voltou-se rapidamente, perplexo, e a mão direita moveu-se para a algibeira interior.
- Se puxa de uma arma, morre e mergulha na água antes de a poder apontar - acrescentou Michael, aproximando-se. - Afaste-se daí. Mova-se para este lado. Agora, para a esquerda. Em direcção à parede. Não pare!
- Eu podia tê-lo liquidado, signore - grunhiu o outro. - Mas não o fiz. Isso não vale nada para si?
- Claro que vale. Os meus agradecimentos.
- E não lhe roubaram nada, como deve ter verificado. Dei ordens bem explícitas nesse sentido,
- Sem dúvida que verifiquei. Agora, diga lá porquê. A respeito de ambos os casos.
- Não sou assassino nem ladrão, signore.
- Essa explicação não basta. Levante as mãos, pouse-as na parede e abra as pernas!
- A prontidão com que o italiano obedeceu indicava que não era a primeira vez que recebia semelhantes ordens. Havelock acercou-se por detrás e confiscou-lhe a pistola, ficando impressionado ao examiná-la. Tratava-se de uma automática Llama, de fabrico espanhol e calibre 38, altamente eficiente numa emergência. - Fale-me da rapariga - indicou, guardando-a na algibeira. - Depressa!
- Pagaram-me. Que mais posso dizer?
- Muita coisa. Estendeu a mão e pegou na esquerda do homem, que era flácida. O negociador não estava habituado à violência, e a expressão capo regime, empregada pelo guarda, carecia de justificação. O italiano não pertencia à Mafia, pois um mafioso daquela idade achar-se-ia acostumado à brutalidade, o que se traduziria na aparência das mãos.
Irrompeu do porto uma súbita cacofónia de buzinas de navios, acompanhada dos gritos de pânico do homem agarrado à coluna, junto da água. Valendo-se dos sons, Michael desferiu uma pancada nos rins do homem com o cano da pistola, obrigando-o a soltar uma exclamação de dor, e repetiu a operação, agora visando a região temporal, o que originou uma série de gemidos.
- Signore... signore! É americano... falemos americano! Não me faça isso! Salvei-lhe a vida... palavra de honra!
- Já conversamos sobre o assunto. Para já, a rapariga! Fale-me dela. Depressa!
- Faço favores nas docas. Toda a gente o sabe! Ela necessitava de um favor. E pagou!
- Queria sair de Itália?
- Claro!
- Pagou para muito mais que isso! A quantos pagou você? Pela armadilha.
- Che cosa vuo1 dire? Armadilha?
- O espectáculo que montou! O suíno que surgiu daquela porta! - Havelock pousou a mão no ombro do italiano e forçou-o a rodar nos calcanhares, após o que o impeliu brutalmente contra a parede. - Junto daquela esquina - continuou, apontando. - Para que foi isso? Também estava incluído no que ela pagou?
- Como diz, signore, ela pagou. Spiegazioni... não eram necessárias.
- Não estou satisfeito. - Afundou o cano da automática no estômago do outro. Fale!
- Ela disse que tinha de saber - balbuciou o homem.
- Saber o quê? - Havelock arrancou-lhe o chapéu e, segurando os cabelos, fez a cabeça contactar violentamente com a parede. - Saber o quê?
- O que faria, signore!
- Como sabia que eu a seguiria até aqui?
- Não sabia!
- Então?...
- Disse que talvez o fizesse. Considerava-o... ingegnoso... um homem de recursos. Perseguiu outras pessoas, tem meios à sua disposição. Contactos, fontes...
- Isso é muito vago! - Começou a puxar os cabelos, como se pretendesse arrancá-los. - Como?
- Signore... Ela disse que abordou três motoristas de táxi na plattaforma antes de encontrar um que quisesse trazê-la a Civitavecchia. Estava com medo!
A explicação revestia-se de sensatez. Michael reconheceu que não lhe ocorrera procurar uma paragem de táxis na estação de Ostia. Na realidade, não raciocinara, apenas concentrado em se mover.
- Perfavore! Aiuto! Mio Dio! - Os gritos provinham da água, junto do molhe. Os navios do porto começavam a encher a atmosfera de sons retumbantes e de vapor. Restava muito pouco tempo: os estivadores não tardariam a aparecer e a maquinaria em volta entraria em actividade. Havelock precisava de se inteirar com exactidão do que o negociador vendera, pelo que lhe rodeou a garganta com a mão esquerda.
- Ela está a bordo do Teresa, hem?
- si.
- Como a vão fazer sair do navio? - inquiriu, recordando-se de que o dono de
11 Tritone afirmara que o cargueiro se dirigia a Marselha. Como não obtivesse resposta, afundou os dedos um pouco mais na garganta e acrescentou: - Veja se compreende bem. Se não me elucida, mato-o imediatamente. E se mentir e me cruzar com ela em Marselha, volto para lhe tratar da saúde. É verdade o que lhe disse. Sou um homem de recursos e persegui muitas pessoas com êxito. Portanto, não pense que me escapa.
O italiano foi acometido de um acesso de tosse a que a pressão dos dedos não era estranha, e Havelock reduziu-a um pouco.
- Vou explicar-lhe tudo. No fundo, não me diz respeito. Não quero afflizione com homens da sua espécie, signore! Devia ter pensado duas vezes, antes de me meter nisto.
- Adiante.
- Ela não se dirige a Marselha, mas a San Remo, onde o Teresa faz escala. Em que ponto e como a vão desembarcar, não me passa sequer pela cabeça... palavra de honra! Pretende
alcançar Paris e deve atravessar a fronteira em Col des Moulinets, mas também não sei quando... palavra de honra! Daí, segue directamente para Paris. Juro pelo sangue de Cristo!
O juramento final era desnecessário, pois a expressão aterrorizada no olhar bastava para assegurar da veracidade do que dizia. Exprimia-se com sinceridade em virtude do medo que o dominava. Que lhe dissera Jenna? Porque não ordenara o homem a morte de Michael? Corno se explicava que não lhe tivessem roubado nada?
Por fim, retirou a mão da garganta do italiano e articulou pausadamente:
- Disse que me podia ter morto e não o fez. Chegou o momento de explicar porquê.
- Não, signore, não o direi - sussurrou o outro. - Juro por Deus que não me tomará a ver! Não digo nada, não sei nada!
- As minhas palavras não bastam para o fazer mudar de ideias? - inquiriu Havelock, erguendo a pistola com lentidão e pousando-lhe o cano na vista esquerda.
- Signore, exploro um pequeno e, modéstia à parte, lucrativo negócio nesta área e nunca me envolvi em actividades políticas ou algo que se lhe relacione remotamente. Juro pelas lágrimas da Madonna! Pensei que ela mentia! Não acreditei numa única das suas palavras!
- Mas não me mataram, nem roubaram nada. - Fez uma pausa e, de súbito, exercendo pressão no olho do italiano, gritou: - Porquê?!
- Ela disse que se tratava de um americano que trabalhava para os comunisti! - O homem começou a falar apressadamente, cada vez mais aterrorizado. - Para os soviéticos. Não acreditei. Não percebo nada dessas coisas! Mas tive de agir com prudência. Em Civitavecchia, estamos fora dessas guerras. São demasiado... internazionali para pessoas como nós, que ganhamos urnas liras nas docas. Esses problemas não nos interessam... palavra de honra! Não queremos complicações com vocês! Tente compreender, signore. Atacou uma mulher (uma puttana, sem dúvida, mas uma mulher) no cais e os homens intervieram, indignados. Mas quando me apercebi, ordenei-lhes que parassem, pois precisamos ser prudentes e...
Continuou a perorar, todavia Havelock não o escutava. O que acabava de ouvir surpreendia-o para além do que supusera possível. Um americano que trabalhava para os soviéticos. Jerina dissera isso? Não fazia sentido!
Teria, porventura, tentado aliciar o interesse do homem com uma mentira, para que perdurasse uma parcela de medo no seu espírito, após a consumação da armadilha?
O italiano não fizera confusão. Repetira a versão dela, ante o espectro de maus tratos iminentes. Não mentira.
Ela estaria convencida disso? Fora essa a convicção que Michael lhe notara no olhar, na plataforma da estação de Ostia? Teria acreditado... tal como ele se persuadira de que ela trabalhava para a Voennaya?
Santo Deus! Cada um deles voltado contra o outro com a mesma manobra! As provas contra ele seriam tão convincentes e irrefutáveis como as que lhe tinham apresentado contra Jenna? Não podia haver outra explicação, pois isso também se lhe achava espelhado no olhar. Medo, mágoa... dor. Agora, ela não dispunha de ninguém merecedor de confiança. Restava-lhe apenas fugir, passar toda a vida em fuga permanente... como ele fizera nos últimos tempos. Mas que tinham eles feito?
Porquê? Jenna dirigia-se para Paris, e havia de a localizar. Ou voaria para San Remo ou Col des Moulinets, a fim de a interceptar. Michael desfrutava da vantagem de transportes mais rápidos, enquanto ela se deslocava num velho cargueiro. Portanto, dispunha de tempo para recuperar o terreno perdido.
E administrá~lo-ia bem. Havia um funcionário dos serviços secretos na embaixada de Roma que não duvidaria da intensidade da sua cólera. O tenente-coronel Lawrence Baylor Brown fornecer-lhe-ia explicações satisfatórias, ou a descrição das actividades clandestinas de Washington pareceria meras receitas de culinária em comparação com o que Michael estava disposto a revelar: as incompetências, as ilegalidades, os cálculos errados e as imprudências que custavam a vida a milhares de pessoas dispersas pelo mundo, todos os anos.
Principiaria por um diplomata de cor colocado em Roma, que transmitia ordens secretas a
agentes americanos em toda a Itália e Mediterrâneo ocidental.
- Capisce? Compreende, signore? - O italiano exibia uma expressão de súplica, tentando ganhar tempo, enquanto olhava furtivamente para a sua direita. No segundo molhe, três homens encaminhavam-se para a extremidade mais distante, e duas buzinadelas de um navio explicaram o motivo. O cargueiro que entrava no porto acostaria no espaço deixado pelo Elba, e não tardariam a aparecer outros estivadores. - Somos prudentes... naturalmente, mas não entendemos (nem queremos) nada dessas coisas! Somos homens das docas e nada mais.
- Sim, compreendo. - Havelock fê-lo voltar-se. - Aproxime-se da borda.
- Por favor, signore! Imploro-lhe!
- Faça o que lhe indiquei. Já!
- Juro pelo santo padroeiro da misericórdia divina! - A emoção devia ser a responsável pelo aspecto vago da invocação, confirmada pelas lágrimas que lhe deslizavam pelas faces. - Pelo sangue de Cristo ou o Sagrado Coração! Não passo de um insignificante homem de negócios! Um zero! Uma nulidade!
Alcançaram por fim a extremidade do molhe e Havelock ordenou:
- Salte! - E impeliu-o com a pistola.
- Mio Dio! Aiuto! - uivou o homem agarrado à coluna, quando viu o chefe compartilhar da sua situação crítica.
Michael rodou nos calcanhares e voltou para junto da esquina do armazém. Aquela área continuava deserta, porém o guarda começava a mover-se, abanando a cabeça e tentando levantar-se. Havelock abriu a câmara da automática e sacudiu as balas para o chão. Em seguida, aproximou-se apressadamente do portão e atirou a arma para o interior da guarita, após o que correu com todas as energias disponíveis em direcção ao carro alugado.
Roma. Haveria explicações, em Roma.
Capítulo sétimo
Os quatro homens em torno da mesa, na sala de paredes brancas do segundo piso do edifício do Departamento de Estado, eram jovens para os cargos elevados que ocupavam em
Washington. As suas idades variavam entre os trinta e cinco anos e os cinquenta, porém as expressões compenetradas faziam-nos parecer mais velhos. O trabalho a que se dedicavam envolvia noites em claro e prolongados períodos de ansiedade, agravados pela vida insular que necessitavam observar. Com efeito, achavam-se impossibilitados de discutir o que enfrentavam naquela sala com quem não pertencesse ao grupo restrito. Eram os estrategos de operações clandestinas, e "condores" empenhados em missões arriscadas podiam ser abatidos ao seu menor erro de cálculo. Outros acima deles podiam exigir objectivos gerais e
outros abaixo conceber as operações específicas, mas só aqueles quatro estavam ao corrente de todos os pormenores e consequências inerentes a cada caso. Eram, por assim dizer, o
departamento de autoridade. Cada membro era um especialista, um dirigente. Somente eles podiam transmitir a aprovação final para que um " condor" levantasse voo.
Apesar disso, não dispunham de grelhas de radar ou antenas parabólicas para os auxiliar
- apenas as projecções do comportamento para se orientarem. Tinham de examinar acções e reacções, e não simplesmente as do inimigo, mas também as do seu próprio pessoal em actividade. A avaliação constituía uma luta sem fim, raramente decidida com satisfação geral. As probabilidades "e se? ... " eram ponderadas geometricamente com cada nova alteração dos acontecimentos, cada reacção humana perante circunstâncias modificadas com brusquidão. Eram psicanalistas num labirinto de anormalidade interminável e os seus pacientes produtos dessa desordem. Tratava-se de especialistas numa forma de vida macabra, onde a verdade consistia normalmente numa mentira e esta com frequência o único meio de sobrevivência. A tensão representava o factor que mais temiam, porque, em face do seu excesso ou 'prolongamento, o inimigo e o próprio pessoal viam e faziam coisas a que se não entregariam em circunstâncias normais. A totalidade imprevisível aliada ao anormal formava um território perigoso.
Era esta a conclusão a que os quatro homens haviam chegado quanto à crise, naquela noite. O tenente-coronel Lawrence Baylor Brown, de Roma, enviara um telegrama em código prioritário, e o seu conteúdo exigira a abertura de um processo secreto, para que cada estratego pudesse estudar os factos.
Estes não ofereciam a mínima contestação. Os eventos ocorridos naquela praia isolada da Costa Brava tinham sido verificados por meio de duas confirmações locais - uma do agente externo Havelock e a outra de um homem que ele não conhecia chamado Steven MacKenzie, um dos operadores mais competentes do sector europeu da Central Intelligence Agency, o qual arriscara a vida para regressar com provas palpáveis: fragmentos de vestuário manchados de sangue. Fora tudo examinado ao microscópio, com resultado positivo: Jenna Karas. A razão de uma confirmação suplementar não fora explicada, nem havia necessidade disso. A relação entre Havelock e Jerina era do conhecimento daqueles que deviam saber. Um homem sob tensão máxima podia descontrolar-se, tomar-se incapaz de executar a missão em vista. Portanto, Washington precisava de se certificar. O agente MacKenzie postara-se duzentos metros ao norte de Havelock, num ponto que lhe permitia clara visibilidade e recolha de todos os pormenores. Jerina Karas fora morta naquela noite. A circunstância de Steven MacKenzie ter sucumbido a um ataque cardíaco, após o regresso de Barcelona, quando cruzava a baía Chesapeake no seu pequeno veleiro, em nada reduzira a sua contribuição. O médico chamado pela patrulha da Guarda Costeira, um profissional competente de nome Randolph, asseverara que se tratava de morte natural.
Para além do episódio da Costa Brava, as provas contra Jetina Karas haviam sido submetidas ao exame mais rigoroso. O secretário de Estado, Anthony Matthias, insistira nisso, e os estrategos conheciam o motivo. Havia outra relação a tomar em linha de conta, existente entre ele e Michael Havelock, que durava há cerca de vinte anos, quando o aluno conhecera o professor no programa de formatura da Universidade de Princeton. Ambos checos de nascimento, um estabelecera-se como porventura a mente geopolítica mais brilhante do mundo académico, enquanto o outro, um jovem e incerto exilado, procurava desesperadamente a sua própria identidade. As diferenças eram consideráveis, porém a amizade sólida.
Anton Manhias chegara à América havia mais de quarenta anos, filho de um cirurgião proeminente de Praga que abandonara a Checoslováquia com a família, perante a ameaça nazi, e fora bem acolhido pela comunidade médica. Por outro lado, a imigração de Havelock desenrolara-se em sigilo, numa operação conjunta dos serviços secretos americanos e britânicos, e as suas origens tinham permanecido na penumbra inicialmente, para segurança da criança. E enquanto a ascensão meteórica de Matthias no Governo se caracterizava por uma sucessão de figuras políticas influentes que procuravam abertamente o seu parecer e enalteciam as suas qualidades em público, o emigrante mais jovem de Praga estabelecera o seu valor através de acções clandestinas que nunca veriam a luz do dia. Contudo, apesar das dissimilaridades de idade e reputação, intelecto e temperamento, existia um laço entre eles, mantido firme pelo mais velho e nunca aproveitado para vantagem pessoal pelo mais jovem.
Aqueles que confirmaram as provas contra Jenna Karas compreendiam que não havia espaço para tal erro, tal como os estrategos reconheciam agora que o telefonema de Roma exigia um exame atento e tratamento delicado. Para já, e acima de tudo, devia ser oculto a Anthony Matthias, pois embora os órgãos da Informação tivessem anunciado que o secretário de Estado desfrutava de um breve período de férias, na realidade a verdade era outra. Matthias encontrava-se enfermo - alguns murmúrios afirmavam mesmo que padecia de uma doença grave - e, conquanto permanecesse em contacto constante com o seu departamento, através dos colaboradores mais íntimos, havia cerca de cinco semanas que não aparecia em Washington.
Ora, o caso de Roma não podia ser convertido num peso adicional para Anthony Matthias.
- Começa a sofrer de alucinações, sem dúvida - declarou um homem de cabeça quase calva, pousando a sua cópia do telegrama na mesa em frente. Tratava-se de Paul Miller, médico-psiquiatra, uma autoridade no diagnóstico de comportamento inconstante.
- Existe alguma coisa no seu processo susceptível de nos alertar nesse sentido? perguntou um indivíduo atarracado, de cabelos ruivos, fato amarrotado e colarinho de camisa desabotoado, chamado Ogilvie, antigo agente externo.
- Nada de âmbito geral - replicou Daniel Stem, o estratego sentado à esquerda de Miller, director das Operações Consulares, que era um eufemismo atribuído ao chefe de secção das actividades clandestinas do Estado.
- Porquê? - quis saber o quarto estratego, trajado de forma conservadora, com aspecto de homem de negócios, instalado ao lado de Ogilvie. Chamava-se Dawson e era advogado e especialista em direito internacional. - Pretende dizer que houve... há omissões?
- Exacto. Um apêndice de segurança de há uns anos. Ninguém se interessou em aprofundá-lo, pelo que ficou incompleto. No entanto, a resposta à pergunta de Ogilvie pode encontrar-se aí. Na advertência que descurámos.
- Como assim? - volveu Miller, espreitando por cima dos óculos.
- Ele pode ter estoirado.
- Que quer dizer? - acudiu Ogilvie, inclinando-se para a frente, com uma expressão desagradável. - A avaliação depende de todos os dados disponíveis, que diabo!
- Creio que ninguém o considerou necessário. Possui uma folha de serviço superior. À parte uma ou duas explosões, tem-se mostrado extremamente produtivo e razoável em condições muito adversas.
- Simplesmente, agora vê pessoas mortas nas estações de caminho-de-ferro - comentou Dawson. - Porquê?
- Conhece Havelock? - inquiriu Stem.
- Só através de uma entrevista de rotina - redarguiu o advogado. - Foi há oito ou nove meses. Pareceu-me eficiente.
- E era - admitiu o director das Operações Consulares. - Eficiente, produtivo, razoável: muito rijo, frio e lúcido. Mas há que ter em conta que foi treinado muito jovem e em circunstâncias extraordinárias. Talvez fosse isso que devíamos ter aprofundado. - Fez uma pausa, pegou num largo sobrescrito e extraiu uma pasta de cartolina, que abriu. -
Tenho aqui os seus antecedentes completos. O que possuíamos antes era básico e aceitável. Estudou na Universidade de Princeton e especializou-se em História da Europa e línguas eslavas. Residência: Greenwich, Connecticut. órfão de guerra proveniente de Inglaterra e adoptado por um casal de nome Webster, devidamente investigado. O que procurávamos, evidentemente, era a recomendação de Matthias, alguém de peso, já nessa altura. E o que os recrutadores do Departamento de Estado viram, há dezasseis anos, era mais ou menos claro. Um universitário de Princeton de inteligência brilhante, disposto a trabalhar em troca de uma remuneração corrente, aperfeiçoar os conhecimentos linguísticos e dedicar-se a actividades secretas. No entanto, a parte linguística não foi necessária, pois conhecia o
checo a fundo. É isto que figura aqui. Trata-se do resto da história e pode explicar a depressão a que agora assistimos.
- É um salto para trás apreciável - observou Ogilvie. - Pode elucidar-nos melhor? Não gosto de surpresas e acho que passamos bem sem aposentados paranóicos.
- Dá a impressão de que enfrentamos um - disse Miller, pegando no telegrama. Se o parecer de Baylor se reveste de algum significado...
- Acho que sim - atalhou Stem. - É um dos nossos melhores funcionários na Europa.
- Apesar disso, pertence ao Pentágono - salientou Dawsõn. - O discernimento não é o ponto forte daqueles cavalheiros.
- No caso dele, penso que é - discordou o director das Operações Consulares. Trata-se de um negro, pelo que deve possuir qualificações especiais, para que o admitissem.
- Como dizia há pouco - tornou Miller -, BayIor inclui uma recomendação veemente para que encaremos Havelock a sério. O que viu corresponde à verdade.
- Então, viu uma impossibilidade - retrucou Ogilvie. - Portanto, estamos a contas com um chanfrado. Que mais diz aí, Dan?
- Um princípio de vida pouco agradável - informou Stem, voltando várias páginas da pasta de cartolina. - Sabíamos que era checo, mas nada mais. Havia vários milhares de refugiados da Checoslováquia em Inglaterra durante a guerra, e foi essa a explicação invocada para a sua presença naquele país. Mas não correspondia à verdade. Existiam duas versões: uma real, e a outra, uma "cobertura@> . Não esteve em Inglaterra durante a guerra, e os pais tão-pouco. Passou esses anos em Praga e proximidades. Foi um longo pesadelo e
muito real para ele. Principiou quando teve idade suficiente para se aperceber. Infelizmente, não podemos penetrar-lhe na cabeça, o que talvez resultasse vital, agora. - Virou-se para Miller. - Tem de nos aconselhar, Paul. Ele pode tomar-se extremamente perigoso.
- Então, é melhor esclarecer a situação - replicou o médico. - Até onde retrocedemos? E porquê?
- Comecemos pela segunda pergunta. - Stem destacou várias folhas da pasta. -
Vive com o espectro da traição desde criança. Houve um período, durante a adolescência e primeira fase da idade adulta (os anos do liceu e universidade), em que as pressões estiveram ausentes, mas as recordações deviam ser horríveis. Depois, nos dezasseis anos seguintes (estes últimos dezasseis), regressou ao mesmo tipo de mundo. Talvez visse demasiados fantasmas.
- Seja mais explícito, Daniel - persistiu o psiquiatra.
- Para isso - prosseguiu o interpelado, consultando a primeira das folhas que tinha na
mão -, precisamos de remontar a Junho de mil novecentos e quarenta e dois, à guerra na
Checoslováquia. O seu nome verdadeiro é Mikhail HavIicek e nasceu em Praga, em meados dos anos trinta. Desconhece-se a data exacta, porque a Gestapo destruiu todos os registos.
- A Gestapo? - ecoou Dawson, inclinando-se para a frente. - Junho de mil novecentos e quarenta e dois... figurou nos julgamentos de Nuremberga.
- Constitui uni tópico de relevo - concordou Stem. - A vinte e sete de Maio, Reinhard Heydrich, mais conhecido por der Henker, o carrasco de Praga, foi assassinado por resistentes checos, chefiados por um professor que fora expulso da Universidade Karlova e trabalhava para os serviços secretos britânicos. Chamava-se HavIicek e vivia com a mulher e o filho numa aldeia a cerca de doze quilómetros de Praga, onde organizava as
células da Resistência. A povoação chamava-se Lidice.
- Diabo... - murmurou Miller, largando o telegrama de Roma que tinha entre os dedos.
- Não dava muito nas vistas - continuou Stem, folheando as páginas do dossier. -
No entanto, receando que o tivessem notado nas proximidades do local da morte de Heydrich, Havlicek conservou-se ausente de casa durante perto de duas semanas, vivendo nas caves da universidade. Na realidade, não fora visto, mas tinham detectado outro habitante de Lidice. Entretanto, foi estabelecido o preço da morte do carrasco de Praga: execução de todos indivíduos do sexo masculino adultos e trabalhos forçados para as
mulheres... depois de separadas as mais atraentes, para frequentarem as instalações dos oficiais alemães. Quanto às crianças, "desapareciam" simplesmente. Jugendmoglichkeiten. As adaptáveis seriam adoptadas e as outras liquidadas em câmaras de gás.
- Não se pode dizer que não fossem uns bastardos eficientes - comentou Ogilvie.
- As ordens procedentes de Berlim foram conservadas secretas até à manhã de dez de Junho, dia das execuções maciças. Foi igualmente a data que Havlicek escolheu para regressar a casa. Quando a notícia se difundiu (as proclamações foram afixadas a postes do telefone e transmitidas pela rádio), os companheiros impediram-no. Encerraram-no num quarto e administraram-lhe sedativos, pois sabiam que nada poderia fazer para evitar a
chacina, além do que era muito valioso para a causa da Resistência. Finalmente, revelaram-lhe a verdade. A mulher fora enviada para junto dos oficiais (soube-se mais tarde que pôs termo à vida na primeira noite, depois de matar um tenente da Wehrinacht) e o filho desaparecera.
- Mas, evidentemente, não fora levado com as outras crianças - observou Dawson.
- Pois não. Estivera a caçar coelhos e regressara a tempo de assistir às execuções e ao
lançamento dos corpos nas valas. Transtornado pelo que vira, refugiou-se no bosque e
viveu durante algum tempo como um animal, começando a circular rumores pela região: uns viam uma criança correr entre as árvores, outros descobriam pegadas peito de celeiros que regressavam ao bosque, etc. Havlicek inteirou-se e compreendeu o que se passava, pois recomendara ao filho que, se os alemães o procurassem, se ocultasse no bosque. Tardou mais de um mês, mas acabou por localizá-lo. Escondera-se em grutas e árvores, demasiado aterrorizado para se expor, comendo o que conseguia roubar e escavar da terra, sempre obcecado pelo pesadelo da carnificina.
- Uma infância encantadora - grunhiu o psiquiatra, anotando algo num bloco.
- E foi apenas o princípio. - O director das Operações Consulares pegou noutra folha. - Havlicek e o filho conservaram-se no sector Praga-Bolesvav e a acção dos resistentes acelerou-se, com ele na chefia. Alguns meses depois, o rapaz tomou-se um dos recrutas mais jovens da Detská Brigáda, Brigada Infantil, cujos membros eram utilizados como mensageiros, e, em muitos casos, as mensagens consistiam em nitroglicerina e
explosivos de plástico. Um passo em falso ou intercepção para serem revistados, e era o fim.
- O pai não se opôs? - estranhou Miller.
- Não o podia impedir. O garoto descobriu o que tinham feito à mãe. Portanto, durante três anos viveu essa infância encantadora. Era uma situação sinistra, macabra. Nas noites em que o pai estava presente, estudava como qualquer outra criança em idade escolar. Durante o dia, no bosque e nos campos, havia quem lhe ensinasse a fugir, a esconder-se e a mentir. E a matar.
- Era a esse treino que você se referia? - perguntou Ogilvie, a meia-voz.
- Exacto. Aprendeu o que era matar e ser morto antes dos dez anos. Simplesmente tétrico.
- Indelével - acrescentou o psiquiatra. - Explosivos colocados há quase quarenta anos.
- Poderia o episódio da Costa Brava tê-los activado agora? - aventurou o advogado, volvendo o olhar para o médico.
- Sem dúvida. Há um par de dezenas de imagens sangrentas pendentes, alguns símbolos bem tenebrosos. Preciso de saber muito mais antes de me pronunciar definitivamente.
- Miller voltou-se para Stem, o lápis pousado no bloco-notas. - Que aconteceu depois ao rapaz?
- A todos eles. Surgiu finalmente a paz, ou melhor, o termo da guerra formal, pois a agitação persistiu em Praga. Os soviéticos tinham os seus planos e eclodiu outro tipo de loucura. Havlicek ansiava por manter a liberdade que ele e os seus homens haviam conquistado e viu-se envolvido noutra guerra, tão clandestina como a anterior e não menos brutal. Com os russos. - Stem voltou nova página. - Para ele, terminou a dez de Março de mil novecentos e quarenta e oito, com o assassínio de Jan Masaryk e o colapso dos sociais-democratas.
- Em que sentido?
- Desapareceu. Enviaram-no para um gulag na Sibéria ou para a sepultura mais próxima. No entanto, os seus amigos políticos não perderam tempo. Os checos partilham de um provérbio com os russos: " A cria de hoje é o lobo de amanhã. " Ocultaram o pequeno Havlicek e contactaram o M. 1. 6 britânico, graças a cuja ajuda conseguiram transferi-lo para Inglaterra.
- O provérbio confirmou-se, suponho? - observou Ogilvie.
- De uma maneira que os soviéticos não previam.
- Como surgiram os Webster em cena? - quis saber Miller. - Recolheram-no nos Estados Unidos, como sabemos, mas o rapaz encontrava-se em Inglaterra.
- Na realidade, deveu-se a uma casualidade. Webster fora coronel da reserva durante a guerra, colocado no Comando Central Supremo, e, em mil novecentos e quarenta e oito, visitou Londres com a mulher, onde, num jantar com amigos daquela época, ouviu mencionar o jovem checo retirado de Praga, que vivia num orfanato em Kent. Ora, os Webster não tinham filhos e resolveram aproveitar a oportunidade para adoptar um rapaz, para o que o foram entrevistar. É o termo que figura aqui: "entrevistar". Frio, não acham?
- Mas eles estavam mesmo decididos a adoptá-lo?
- Decerto. Webster tratou de toda a papelada, pois havia diversas formalidades a cumprir, e regressaram aos Estados Unidos com o rapaz, munido de uma nova identidade. No fundo, teve muita sorte. Passou de um orfanato inglês para o lar confortável de uma família americana que vivia desafogadamente e frequentou uma das melhores escolas preparatórias e a Universidade de Princeton.
- E deixou de se chamar Havlicek - interpolou Dawson.
- Como foi considerado necessário e prudente encobrir-lhe a verdadeira origem, o coronel e a mulher inglesaram-lhe o nome em Greenwich.
- Por que não lhe deram o deles?
- O rapaz negou-se a ir tão longe na mudança de identidade. Como referi há pouco, as recordações conservaram-se-lhe bem gravadas na memória. Indeléveis, para usar a expressão de Paul.
- Os Webster ainda vivem?
- Não, de contrário teriam quase cem anos. Morreram no princípio da década de sessenta, quando Havelock se encontrava em Princeton.
- Onde conheceu Matthias? - indagou Ogilvie.
- Sim - confirmou o director das Operações Consulares. - Isso suavizou o impacto. Matthias; interessou-se por ele, não só por causa do seu trabalho, mas sobretudo porque a sua família conhecera os Havlicek, em Praga. Faziam parte da comunidade intelectual até que os alemães a desintegraram, e os russos, para todos os efeitos, sepultaram os sobreviventes. - Matthias estava ao corrente de toda a história?
- Absolutamente.
- Aquela carta incluída no processo da Costa Brava começa a tomar-se mais compreensível - declarou o advogado. - A mensagem que Matthias enviou a Havelock.
- Insistiu em que fosse incluída para que não houvesse qualquer mal-entendido da nossa parte - explicou Stem. - Se Havelock optasse pela retirada imediata, não nos
devíamos opor.
- Eu sei, mas supunha que a alusão de Matthias ao sofrimento dele nos "primeiros tempos", creio que foi a expressão empregada, se referia apenas à perda dos pais durante a guerra - disse Dawson. - Nunca me ocorreu nada disto.
- Agora ficou a saber. Ficámos todos a saber. - Stem dirigiu-se, mais uma vez, ao psiquiatra. - Alguma sugestão, Paul?
- A única óbvia. Mandem-no vir. Prometam-lhe tudo, mas chamem-no. E não nos podemos permitir qualquer acidente. Tragam-no vivo.
- Concordo que é a decisão óptima - acudiu o ruivo Ogilvie -, mas não vejo como
elimina todas as outras opções.
- Então, faça um esforço - replicou o psiquiatra. - Você mesmo apresentou uma hipótese. Paranóico. Chanfrado. O episódio da Costa Brava foi intensamente pessoal para ele. Podia muito bem activar os tais explosivos de trinta anos atrás. Uma parte da sua
personalidade regressa ao passado para se proteger, construir uma teia de defesa contra a perseguição, contra o ataque. Corre através do bosque, depois de assistir às execuções de Lidice. Volta a pertencer à Brigada Infantil, com cartas de nitroglicerina nos bolsos.
- É o que BayIor menciona no telegrama - lembrou Dawson, pegando no rectângulo de papel. - Cá está: "declarações seladas", "histórias dos tempos escolares". Nesse estado de espírito, Havelock era capaz de tudo. - Sem dúvida - assentiu o psiquiatra. - Não existem regras de comportamento. Uma vez alucinado, pode deslocar-se para trás e para a frente, entre a fantasia e a realidade, em que cada fase serve o objectivo duplo de se convencer da perseguição e, ao mesmo tempo, livrar-se dela.
- E quanto a Rostov, em Atenas? - perguntou Stem.
- Nada nos garante que houve um Rostov - tomou Miller. - Pode tratar-se de uma parte da fantasia, lembrando-se retroactivamente de um homem da rua parecido com ele. Sabemos, sim, que Jerina Karas pertencia ao KGB. Por que havia um indivíduo como Rostov de aparecer repentinamente para o negar?
- BayIor diz que Havelock lhe chamou uma sonda cega - articulou Ogilvie, inclinando-se para a frente. - Rostov podia tê-lo levado da Grécia.
- Então, por que não o fez? Ora, você trabalhou no exterior durante dez anos. No lugar do russo, não levaria Havelock, nas circunstâncias descritas no telegrama?
- Com certeza - admitiu, após uma pausa. - Porque o podia largar, se quisesse, antes de alguém se inteirar de que o levara.
- Nem mais. A situação parece inconsistente. Rostov esteve em Atenas ou em qualquer outro lugar, ou não passa de uma fantasia do nosso paciente, que destrói uma protecção pessoal e subsequentes defesas?
- A avaliar pelo que BayIor afirma, mostrou-se muito convincente - recordou Dawson, o advogado.
- Um esquizofrénico alucinado, se porventura é do que sofre, pode revelar-se extraordinariamente convincente, porque acredita em absoluto no que diz.
- Mas não está seguro disso - insistiu Daniel Stem.
- Pois não. No entanto, estamo-lo de urna coisa... de duas, melhor dizendo. Jerina pertencia ao KGB e foi abatida naquela praia da Costa Brava. As provas quanto ao primeiro caso são irrefutáveis, e dispomos de duas confirmações de testemunhas oculares, incluindo a do próprio Havelock,, a respeito do segundo. - O psiquiatra olhou os três homens alternadamente. - Só posso basear o diagnóstico nisso e na nova informação sobre
Mikhail Havlicek. Não estou em condições de fazer nada mais. Vocês pediram uma sugestão para se orientarem e não um parecer absoluto.
- "Prometam-lhe tudo ... " - repetiu Ogilvie. - Faz lembrar aquele anúncio da televisão.
- Mas chamem-no - completou Miller. - E o mais depressa possível. Internem-no numa clínica, sob terapia, mas descubram o que fez e onde deixou os seus mecanismos de defesa. As "declarações seladas" e as "histórias dos tempos escolares".
- Julgo desnecessário recordar que Havelock sabe muitas coisas susceptíveis de provocarem estragos profundos, se divulgadas - interpolou Dawson. - Seriam tão demolidoras para a nossa credibilidade (aqui e no estrangeiro) como para a solidez da posição de que desfrutamos, uma vez na posse dos soviéticos. Os códigos, fontes de informação, etc., podem alterar-se, mas não há possibilidade de modificar determinados incidentes do passado em que se violaram tratados e várias outras pragmáticas internacionais.
- Para não falar das restrições domésticas que nos afectariam - acrescentou Stem. -
Bem sei que você incluía esse aspecto da questão, mas julgo conveniente salientá-lo. Havelock está ao corrente de tudo isso, pois negociou numerosas informações valiosas em resultado de actividades dessa natureza.
- Tudo o que fizemos tinha justificação - asseverou Ogilvie, secamente. - Se alguém exigir provas, podemos mostrar-lhe duas centenas de processos com a descrição minuciosa do que conseguimos.
- E alguns milhares com o que não conseguimos - objectou o advogado. - Além disso, há que contar com a Constituição. Falo do ponto de vista dos nossos adversários, claro.
- Tretas! - retorquiu Ogilvie. - Quando conseguirmos a documentação oficial, um pobre diabo residente aqui tem a mulher ou o pai expedido para um gulag, enquanto alguém como Havelock podia estabelecer um acordo. Se conseguíssemos efectuar uma escuta telefónica a tempo, proceder a vigilância apertada e apurar o que se passava.
- É uma área muito vasta - esclareceu Dawson, com um gesto de compreensão. -
Quando se justifica o homicídio, justifica realmente? Por outro lado, não faltaria quem afirmasse que os nossos êxitos não contrabalançam os desaires.
- A transferência de um homem para o nosso lado parece-me justificação suficiente. -
Os olhos de Ogilvie assumiram uma expressão glacial. - Uma família retirada de um campo em Magya-Orszag, Cracóvia, Dannenwalde ou Liberec. Porque é aí que se encontram e não deviam, doutor. Quem fica afectado, realmente afectado? Um punhado de imbecis histéricos munidos de machados políticos e egos descomunais, que não merecem nenhum sacrifício.
- A lei afirma o contrário. A Constituição manifesta uma opinião diferente.
- Nesse caso, mandemos a lei bugiar e abramos alguns furos na Constituição. Estou farto de ver oportunistas valerem-se dela para defender os seus interesses e atar-nos as mãos. Eu vi esses campos de reabilitação, senhor advogado. Estive lá.
- Razão pela qual é útil aqui - interveio Stem, ansioso por lançar água na fervura. -
Cada um de nós tem o seu valor, mesmo quando emite opiniões que preferiria guardar para si. Creio que Dawson pretende referir que o momento não é oportuno para um inquérito do Senado ou de urna comissão de congressistas de vistas curtas. Podiam atar-nos as mãos mais eficientemente que qualquer multidão de fanáticos.
- Ou representantes de meia dúzia de governos empenhados em convencer as nossas embaixadas de que devem pôr termo às suas operações - disse Dawson, igualmente conciliador. - Você também lá esteve e não acredito que deseje isso.
- O nosso paciente pode contribuir para que tal aconteça - interpôs Miller. - E é muito capaz de o fazer, se não interviermos depressa. Quanto mais tempo permitirmos que as suas alucinações continuem sem assistência médica, mais se afundará na fantasia, com o grau de aceleração redobrado. As perseguições hão-de multiplicar-se até se lhe tomarem insuportáveis e decidir passar à violência. Os seus ataques representam os mecanismos de defesa que empregará.
- Que forma podem assumir, Paul? - inquiriu o director das Operações Consulares.
- Várias - explicou o psiquiatra. - Entre as mais extremas, figura o estabelecimento de contacto com homens que conheceu (ou de que ouviu falar) em serviços secretos estrangeiros e oferecer-se para fornecer informações confidenciais. Poderia residir aí a base da fantasia do "encontro" com Rostov. Ou dedicar-se a escrever cartas (das quais nos enviaria cópias) ou a expedir telegramas (facilmente interceptáveis da nossa parte) com alusões veladas a actividades passadas que não nos podemos permitir aprofundar. Qualquer que seja o seu movimento, há-de mostrar-se extremamente prudente, e a realidade da sua experiência protegerá as manipulações fantasistas. Na verdade, constitui um perigo potencial.
- "Oferecer-se para fornecer" - repetiu o advogado. - Não fornecerá imediatamente?
- A princípio, não. Tentará obrigar-nos a dizer (através da chantagem) o que pretende ouvir. Que Jerina Karas está viva e houve conspiração para o afastar da actividade.
- E não podemos satisfazer-lhe o desejo, porque não existe o mínimo elemento comprovativo para lhe apresentar - murmurou Ogilvie, pensativamente. - Nada que esteja disposto a aceitar. É um agente externo. Passará a pente fino tudo o que lhe revelarmos. Por conseguinte, que lhe diremos?
- Não lhe diremos nada - propôs Miller. - Prometeremos dizer-lhe. Alegaremos qualquer pretexto plausível. A informação é demasiado confidencial para enviar por mensageiro, demasiado perigosa para que saia de entre estas quatro paredes. Lembremo-nos de que, acima de tudo, ele deseja ver confirmada a sua alucinação fundamental. Viu matar uma mulher e tem de acreditar nisso. Ora, a confirmação encontra-se aqui, o que se lhe pode tomar irresistível.
- Lamento contradizê-lo, mas duvido de que ele se convença dessa maneira - declarou o ruivo, erguendo as mãos, com as palmas para fora. - A sua faceta realista rejeitaria uma situação dessas. Pretenderá uma coisa mais convincente.
- Matthias? - sugeriu Dawson, quase num murmúrio.
- Por que não? - admitiu o psiquiatra.
- Ainda é cedo - acudiu Stem. - Só quando não tivermos qualquer alternativa. Segundo parece, ele está ciente da deterioração da sua saúde e reserva as energias para o SALT Três. Não podemos depositar-lhe uma bomba destas nas mãos.
- Talvez tenhamos de o fazer - insistiu Dawson.
- Talvez sim e talvez não. - O director das Operações Consulares virou-se para Ogilvie. - Porque tem Havelock de adquirir uma coisa concreta?
- Para nos aproximarmos o suficiente para o apanhar.
- Não se poderia conceber uma sequência (digamos, uma série de informações de importância secundária crescente) para conseguir o mesmo efeito? Não lhe forneceríamos o elemento final sem que se apresentasse pessoalmente.
- Uma espécie de caça ao tesouro? - proferiu Ogilvie, com uma gargalhada
- É o que ele está a fazer - salientou Nfiller.
- Não concordo. - O ruivo pousou os cotovelos na mesa e prosseguiu: - Uma operação que envolva uma sequência depende da credulidade, tanto mais firme quanto maior for o talento do agente. Além disso, representa um exercício muito delicado. O visado, se for alguém como Havelock, recorrerá a ardis, a intermediários fictícios. Inverterá o processo programando-os com informações da sua autoria, e seremos nós os atraídos. Não desejará respostas perfeitas, e ficará extremamente desconfiado se tal acontecer, preferindo aquilo a que costumávamos chamar "consenso do estômago". Não se trata de coisa alguma
que se possa escrever no papel e analisar, mas uma sensação de credibilidade nas entranhas. Não existem muitos homens capazes de o ludibriar. Bastaria um passo em falso, para que Havelock encerrasse o processo e desaparecesse de vez.
- E activasse as explosões - observou Miller.
- Estou a compreender - admitiu Stem.
E era óbvio que todos os homens em redor da mesa compreendiam. Verificava-se um daqueles momentos em que o irascível Ogilvie confirmava o seu valor, como sucedia com frequência. Trabalhara no labirinto também denominado "campo", e as suas considerações revestiam-se de uma eloquência e sagacidade peculiares.
- Em todo o caso, existe um meio - persistiu o antigo agente. - Duvido mesmo que haja outro.
- De que se trata? - quis saber o director das Operações Consulares.
- A minha pessoa.
- Nem pensar.
- Não nos precipitemos - volveu, apressadamente. - Sou a credibilidade. Ele conhece-me e, mais importante que tudo, sabe que me sento a esta mesa. Na sua óptica, sou um deles, um estratego irreflectido que pode não fazer uma ideia concreta do que pede, mas sabe perfeitamente porquê. E, no meu caso, há uma diferença: alguns deles podem contar com isso. Visitei todos aqueles lugares, o que não se aplica a nenhum outro dos presentes. À parte Matthias, sou a única pessoa que Havelock escutará.
- Mesmo que concordasse consigo, não posso autorizar. Conhece bem as regras. Quem faz parte deste grupo, não volta a actuar no "campo" .
- É uma determinação que foi estabelecida neste gabinete. Não se trata de um Mandamento.
- Estabeleceu-se por um motivo de peso - recordou o advogado. - O mesmo pelo qual temos as residências vigiadas permanentemente, os carros seguidos e as conversas telefónicas escutadas com o nosso conhecimento. Se algum de nós fosse capturado por facções adversas (de Moscovo a Pequim, passando pelo Golfo Pérsico), as consequências seriam imprevisíveis.
- Salvo o devido respeito, doutor, essas precauções foram concebidas para pessoas como o senhor e o chefe, aqui presente. Ou mesmo para Daniel. Eu sou um pouco diferente. Eles não tentariam apoderar-se de mim por saberem que não lucrariam nada.
- Ninguém duvida da sua competência - asseverou Dawson. - No entanto, penso...
- Não tem nada a ver com a competência - atalhou Ogilvie, levantando a gola do coçado casaco de tweed, para expor uma pequena protuberância. - Repare nisto, doutor.
- Cianeto? - inquiriu este último, enrugando a fronte.
- Exacto.
- Às vezes, custa-me compreendê-lo.
- Não faça confusão. Não quero utilizar isto... ou os outros meios que coloquei em lugares apropriados. Espero que não me tomem por um herói potencial empenhado em impressioná-los. Apetece-me tanto pôr as mãos no fogo para demonstrar a minha bravura como matar alguém. Faço-me acompanhar destas cápsulas porque sou um cobarde. Diz que nos vigiam permanentemente. É horrível, de facto, mas julgo que exagera a sua reacção em face de uma coisa inexistente. Não acredito que haja um processo com o seu nome na Praça Dzerzhinsky e o mesmo se aplica ao nosso colega psiquiatra. Não posso dizer o mesmo quanto a Stem, porém a sua captura pelo inimigo é tão pouco provável como nós apoderarmo-nos de Rostov ou outro como ele. São coisas que não acontecem. Em contrapartida, existe um processo com o meu e não abandonei a actividade. O que sei ainda se pode considerar muito operativo, sobretudo a partir do momento em que abandonar este gabinete. É por essa razão que tenho de neutralizar aqueles bastardos. Por estranho que pareça,
as cápsulas de cianeto são a minha protecção. Eles sabem que as possuo e utilizarei, em caso de necessidade. Porque sou um cobarde. _ Acaba de expor os motivos por que não pode regressar ao "campo" - declarou o director das Operações Consulares.
- Parece-lhe? Nesse caso, ou não prestou atenção às minhas palavras ou deviam correr consigo por incompetência. Por não tomar em consideração aquilo que eu não disse. Que pretende? Um atestado médico proibindo-me de toda a actividade?
Os estrategos entreolharam-se com desconforto, antes de Stem articular:
- Isso não vem nada a propósito, homem.
- Vem sim, Dan. É o que se deve considerar ao tomar uma decisão. Todos o sabemos. Simplesmente, nunca o mencionamos, e talvez se trate de mais um ponto a considerar. De quanto tempo disponho? Três meses, quatro na melhor das hipóteses? É a razão pela qual me encontro aqui, e isso foi uma decisão inteligente.
- Mas não a única - contrapôs Dawsori, com brandura.
- Se não influiu pesadamente a meu favor, devia ter influído, doutor. Convém sempre ir buscar alguém do "campo" de longevidade conhecida. - Ogilvie voltou-se para Miller. - O nosso médico sabe, não é verdade, Paul?
- Não sou o seu médico - argumentou o psiquiatra.
- Nem é preciso. Basta ter lido os relatórios, como fez. Dentro de umas cinco semanas, as dores aumentarão até um ponto excruciante. Nessa altura, não me aperceberei, claro, porque me internarão no hospital, para me injectarem sedativos e proporcionarem palavras reconfortantes no sentido de que não tardarei a restabelecer-me. Até que deixe de ver ou ouvir, e já não precisem de dizer algo. - Ogilvie reclinou-se na cadeira e fitou Stem com uma expressão grave. - Achamo-nos perante aquilo a que o nosso preclaro causídico chamaria uma confluência de prerrogativas benéficas. Existem possibilidades de os soviéticos não me tocarem, mas, se o fizerem, nada estará perdido, pela parte que me toca. E sou o único capaz de arrancar Havelock da sombra o suficiente para nos ocuparmos dele.
- É persuasivo - reconheceu o advogado, sustentando o olhar do homem que tinha os
dias contados.
- E tenho a razão do meu lado. - De súbito, Ogilvie impeliu a cadeira para trás e levantou- se. - E a tal ponto, que vou já para casa, a fim de fazer as malas e seguir de táxi para o aeródromo de Andrews. Viajarei para a Itália num transporte militar. Não convém divulgar a minha deslocação num avião comercial. Os fulanos do KGB conhecem todos os
passaportes e disfarces que utilizei e não há tempo para explorar o meu espírito inventivo. Pousarei na base de Palombara, com escala em Bruxelas. Telegrafem a BayIor, para que me espere. Chamem-me Apache.
- Apache? - ecoou Dawson.
- Eles têm uns sistemas de escuta muito sensíveis.
- Admitindo que Havelock acode à sua chamada, que tenciona dizer-lhe? - inquiriu o psiquiatra.
- Pouca coisa. Uma vez ao meu alcance, já não me escapa.
- Ele tem muita experiência - observou Stem, olhando o interlocutor com intensidade. - Pode achar-se em baixo de forma, mas dureza não lhe faltará.
- Disponho do equipamento necessário. - Ogilvie começou a dirigir-se para a porta.
- E também possuo experiência, razão pela qual sou cobarde. Não me aproximo de nada de que me seja impossível safar. Na maioria dos casos. - E saiu em passos firmes.
- Não o tomaremos a ver - profetizou Miller.
- Eu sei - concordou Stem. - E ele também.
- Pensam que conseguirá estabelecer contacto com Havelock? - perguntou Dawson.
- Sem dúvida - afirmou o director das Operações Consulares. - Apanha-o, entrega-o a BayIor e a dois médicos que temos em Roma e desaparece. Das suas palavras, podemos
depreender que não está disposto a terminar os seus dias num hospital, inundado de sedativos e palavras de consolação. Partirá à sua maneira.
- Acho que lhe assiste esse direito - murmurou o psiquiatra.
- Decerto - concordou o advogado, sem convicção. Voltando-se para Stem, continuou: - Lamento não possuirmos uma informação concreta a respeito de Havelock. Tem de ser imobilizado. Se fala, arriscamo-nos a servir de combustível a acções de fanáticos de todo o mundo. Embaixadas incendiadas, redes de segurança pulverizadas, perda de tempo valioso, prisão de reféns e, não nos iludamos, numerosas mortes. Tudo porque um homem perdeu o equilíbrio. Assistimos a situações do género com provocação inferior à que ele pode fomentar.
- É por isso que estou certo de que Ogilvie o apanhará. Apesar de não possuir conhecimentos de psiquiatria, creio que sei o que pensa. Está profundamente ofendido. Viu amigos tombar no "campo", de África a Istambul, impossibilitado de intervir em virtude do seu disfarce. A mulher e três filhos abandonaram-no devido à profissão que exercia, e há mais de cinco anos que não lhes põe a vista em cima. Agora, tem de viver com o que lhe resta... morrer do que lhe resta... Ponderando tudo, se ele resistiu a tantas contrariedades, com que direito invoca Havelock o privilégio de pôr termo à actividade e baladar a seu bel-prazer?
O nosso Apache iniciou a sua derradeira caçada e vai preparar a armadilha para que seja bem sucedida. Obterá êxito, porque está furioso.
- Isso é outra coisa - lembrou o psiquiatra. - Nada mais lhe resta. É a sua justificação final.
- De quê? - indagou o advogado.
- Da dor - explicou Miller. - Sua e de Havelock. É que, outrora, respeitou-a, facto que não pode esquecer.
Capítulo oitavo
O "jacto" sem qualquer marca ou distintivo desceu dos céus, sessenta quilómetros ao norte do aeroporto de Palombara Sabina. Procedia de Bruxelas e evitara todas as rotas comerciais e militares, deslocando-se sobre os Alpes, a leste do sector de Lepontina, a uma altitude tão elevada e com uma descida tão rápida que as probabilidades de ser observado se podiam considerar praticamente inexistentes. O seu blip nos quadrantes do radar fora previamente estabelecido: surgiria e desapareceria sem comentários nem investigações. E, quando pousasse em Palombara, largaria um homem que fora admitido a bordo secretamente, às três da madrugada, hora de Bruxelas. Um homem sem um nome convencional, mencionado apenas por Apache, o qual, à semelhança de muitos outros como ele, não se podia expor às formalidades de identificação por parte das autoridades da imigração. O aspecto podia ser alterado e a identidade falseada, no entanto havia quem vigiasse esses lugares, consciente do que devia procurar, possuidor de memória treinada para reagir como um banco de computador. Para o Apache, e outros como ele, a actual forma de viajar constituía mais a regra que a excepção.
Os motores foram desligados, enquanto o piloto, treinado em aterragens de aparelhos pesados, orientava o avião, por sobre a floresta, em direcção à pista com cerca de dois quilómetros de extensão, aberta entre o arvoredo, com hangares de manutenção e torres de controlo devidamente camuflados. Por fim, o <Jacto" contactou o solo, e o jovem piloto voltou-se no banco, enquanto as turbinas da propulsão de retrocesso ecoavam na pequena cabina.
Chegámos, índio - anunciou ao homem de meia-idade e cabelos ruivos, atrás dele.
- Pode pegar no arco e nas flechas.
- Não me faça morrer a rir. - Ogilvie desprendeu o cinto de segurança e consultou o relógio. - Que horas são? Continuo com a cebola a reger-se pela de Washington.
- Cinco e cinquenta e sete. Perdeu seis horas. Tem o organismo na meia-noite, mas vão dar as seis da manhã. Se o esperam para trabalhar, desejo que conseguisse dormir pelo caminho.
- O suficiente. Há transporte previsto?
- Até à tenda do grande chefe, na Via Vittorio.
- Muito espirituoso... É a embaixada?
- Exacto. Parece que o consideram uma encomenda especial. Garantia de entrega desde Bruxelas.
- Isso está errado. O meu destino não é a embaixada.
- São as ordens que nos transmitiram.
- Mas eu transmito outras.
Ogilvie entrou na pequena sala reservada a pessoas como ele no edifício da manutenção do aeródromo que não figurava no mapa, desprovida de janela, havendo apenas o mobiliário básico e dois telefones, ligados permanentemente a sistemas electrónicos que impossibilitavam qualquer interferência indesejável. O corredor de acesso era guardado por três homens de fatos-macacos que dissimulavam eficientes armas de fogo, para a eventualidade, praticamente improvável, de um intruso escapar à vigilância exterior. Aquelas instalações constituíam o resultado de conferências extraordinárias entre indivíduos anónimos dos dois governos, cujas preocupações transcendiam os limites de cooperação secreta estipulados. Eram, muito simplesmente, necessárias.
Governos de toda a parte eram ameaçados do exterior e interior por fanáticos de esquerda e de direita, empenhados unicamente na destruição do status quo. O fanatismo alimentava-se de si próprio, do sensacionalismo, da interrupção espectacular da actividade normal, pelo que se tomava indispensável permitir o acesso àqueles que combatiam os extremistas sob todas as suas formas. Presumia-se que quem fazia escala em Palombara pertencia ao número desses combatentes, e o actual passageiro sabia, sem margem para a mínima dúvida, que se achava incluído nessa categoria. A menos que regressasse com um agente transviado, um paranóico perigoso cuja mente continha as histórias secretas de milhares de operações confidenciais dos últimos dezasseis anos, esse homem poderia destruir alianças e redes de cooperação em toda a Europa. Michael Havelock tinha de ser localizado e capturado, pois nenhum terrorista conseguira provocar estragos mais demolidores.
Ogilvie sentou-se à secretária e pegou no telefone à sua esquerda, que era preto, o que significava que se destinava a uso doméstico. Mareou o número que decorara e, transcorridos doze segundos, a voz ensonada do tenente-coronel Lawrence Baylor surgia no outro lado do fio.
- Brown. Que há?
- Baylor Brown?
- Apache?
- O próprio. Estou em Palombara. Alguma novidade?
- Não. Mandei proceder a diligências em toda a cidade, mas até agora nada.
- Mandou proceder a quê?
- Diligências. Todas as fontes a que podemos pagar ou nos devem favores...
- Suspenda-as imediatamente! Que ideia se lhe meteu na cabeça?
- Calma, amigo. Palpita-me que não nos vamos dar como Deus com os anjos.
- Estou-me nas tintas para as nossas relações pessoais! Não se trata de um insignificante problema de palavras cruzadas. Estamos perante uma serpente, amigo. Se ele descobre que pretendemos apanhá-lo, fica tudo comprometido. Julga que nunca foi procurado?
- E você julga que não conheço os meus investigadores? - retorquiu Baylor, irritado, na defensiva.
- Acho conveniente termos uma conversa.
- Então, passe por cá.
- A embaixada está fora de causa.
- Porquê?
- Entre outras coisas, porque pode haver uma janela virada para a rua.
- E daí?
- Ele sabe que eu nunca apareceria em instalações oficiais. De resto, as máquinas fotográficas do KGB funcionam permanentemente, apontadas a todas as entradas.
- Nem sequer sabe que você vem - protestou. - Ou quem é.
- Fica a saber, quando você lhe disser.
- Um nome, por favor.
- Apache basta, de momento.
- Significa alguma coisa, para ele?
- Exacto.
- Pois, para mim, não.
- Nem é preciso.
- Decididamente, não nos vamos entender.
- Lamento, mas não posso fazer nada.
- Uma vez que não quer vir, onde nos encontramos?
- Na Borghese. Nos jardins. Eu vou ter consigo.
- Sempre é mais fácil do que eu dar consigo.
- Engana-se, Baylor.
- Acerca disto?
- Não. Penso que nos entenderemos. - Ogilvie fez uma breve pausa. - Dentro de duas horas. Até lá, é possível que o nosso alvo tente falar-lhe.
- Duas horas.
- Outra coisa, Baylor.
- Sim?
- Mande os investigadores recolher à base, amigo.
O mês de Março não se mostrava clemente para com a Villa Borghese. O frio do Inverno romano, apesar de pouco intenso, persistia, impedindo o desabrochar das flores e a plena explosão que, na Primavera e no Verão, constituíam um cenário de cores deslumbrantes. Os numerosos caminhos que conduziam dos pinheiros altaneiros ao grandioso museu pareciam menos asseados do que habitualmente. Uma película transparente de poeira descera sobre o
parque e só desapareceria com as chuvas de Abril, quando a atmosfera sombria de Março se dissipasse.
Ogilvie encontrava-se junto de um espesso pinheiro da periferia dos jardins nas traseiras do museu. A hora matutina fazia com que apenas houvesse alguns estudantes e turistas dispersos pelas imediações, os quais aguardavam que os guardas abrissem as portas do edifício, a fim de poderem admirar pela primeira, ou mais uma vez, os tesouros que continham. O antigo agente secreto, de novo em acção, consultou o relógio e exibiu uma expressão de contrariedade. Eram 8.40, e o oficial da embaixada estava mais de meia hora atrasado. Na realidade, a sua irritação abarcava tanto ele próprio como Baylor. Na precipitação motivada pelo veto às instalações oficiais para ponto de encontro e o desejo de vincar que as ordens relacionadas com a operação deviam partir dele, escolhera um local pouco recomendável, como agora reconhecia sem reservas. E o coronel decerto também se dera conta do facto, o que talvez representasse o principal motivo do atraso. A Villa Borghese, àquela hora, achava-se demasiado solitária, demasiado remota, com excessivos recantos
imersos na sombra, que constituíam excelentes postos de observação. Ogilvie amaldiçoou-se intimamente, reflectindo que não era a maneira mais convincente de iniciar a sua autoridade. A prudência do adido provavelmente fizera-o enveredar por um percurso largo, com mudanças de veículo intermédias, na esperança de detectar e, portanto, despistar uma presumível vigilância. Havia de facto máquinas do KGB apontadas permanentemente à embaixada, e o coronel via-se colocado numa situação difícil graças a um agressivo enviado de Washington que usava a enigmática designação de Apache. Uma identidade inspirada numa embalagem de flocos de aveia.
O enigma existia, mas não a insensatez, a embalagem de flocos. Sete anos atrás, em Istambul, dois agentes, cujos nomes de código eram Apache e Navajo, quase haviam perdido a vida quando tentavam evitar um assassínio perpetrado pelo KG13, na Mesrutiyet. A tentativa malograra-se, e Navajo vira-se cercado na deserta Ataturk, às quatro horas da madrugada, com carrascos do KG13 postados nas duas entradas. A situação pareceu desesperada até ao momento em que Apache atravessou a ponte velozmente num carro roubado, travou com brusquidão junto do beco dos peões e gritou ao companheiro que escolhesse entre subir sem demora ou ficar com o corpo cheio de buracos. Em seguida, Ogilvie conduziu o veículo a uma velocidade alucinada por entre viva fuzilaria, recebendo um ferimento na região temporal e duas balas na mão direita, enquanto perfurava a barricada.
O homem chamado Navajo há sete anos, não o esqueceria com facilidade. Sem ele, Michael Havelock teria morrido em Istambul. Agora, Ogilvie confiava na boa memória do antigo colega.
Registou-se um som seco atrás dele. Voltou-se e viu uma mão negra erguida na sua frente, o rosto escuro, a seguir, imóvel, de olhos arregalados. Baylor abanou a cabeça duas vezes e levou o indicador aos lábios, após o que, acercando-se e puxando Ogilvie para detrás de um tronco de árvore e alguma folhagem, gesticulou na direcção da ala sul do jardim, onde se situava a entrada das traseiras do museu. A uns quarenta metros, um homem de fato preto olhava em volta, com uma expressão indecisa, enquanto se movia primeiro num sentido e depois noutro, incapaz de optar por um rumo. Soaram, à distância, três sons rápidos de uma buzina de automóvel, seguidos do roncar de um motor. Surpreendido, o homem deteve-se e, de súbito, principiou a correr naquela direcção, acabando por desaparecer atrás da parede leste do museu.
- Escolheu um local levado da breca - murmurou o coronel, consultando o relógio.
- A buzina era sua?
- Deixei o carro estacionado junto do portão da Via Veneto, suficientemente perto para que se ouvisse.
- Desculpe. - Ogilvie exalou um suspiro de resignação. - Tenho falta de prática, pois não costumo cometer erros destes. Isto encontrava-se sempre cheio de gente.
- Não tem importância. E não sei bem se foi um erro.
- Guarde o alfinete. Não me despeje baldes de comiseração em cima.
- Não está a entender. Os seus sentimentos não me preocupam. Nunca tinha sido vigiado pelo KG13... pelo menos, que eu saiba. Porquê agora?
- Desfaça-se dos seus investigadores. - Sorriu, reconhecendo que continuava senhor da situação. - Creio que lhe falei nisso.
Baylor não replicou imediatamente, os olhos negros exibindo uma expressão de contrariedade.
- Então, fico arrumado em Roma.
- Talvez.
- De certeza. Foi por isso que me atrasei.
- Ele contactou consigo. - O agente de cabelos ruivos fez a afirmação em voz baixa.
- Com toda a artilharia, e eu serei o primeiro alvejado. Descobriu a pista de Jerma Karas e seguiu-a ao porto de Civitavecchia, onde ela se lhe escapou. O nosso homem não quis
dizer em que navio. Foi uma armadilha, mas ele desmantelou-a e abordou o responsável, um traficante das docas pouco importante. Interrogou-o, e o que averiguou (ou julga ter averiguado) transformou-o num barril de nitroglicerina.
- De que se trata?
- Programação dupla. A mesma táctica que empregaram supostamente com ele. Fornos nós que a acirrámos.
- Como?
- Por intermédio de alguém que a convenceu de que Havelock se passara para os soviéticos e pretendia matá-la.
- Isso não tem pés nem cabeça.
- Limito-me a repetir o que ele disse e lhe revelaram. Pensando bem, tem a sua lógica e explicaria muita coisa. O KGB dispõe de alguns actores exímios, que podiam interpretar uma peça convincente diante dela. É uma estratégia que produz resultados. Havelock abandonou a actividade e ela anda em fuga. Uma equipa produtiva neutralizada.
- O que não tem pés nem cabeça é a operação global - volveu Ogilvie. - Jenna Karas não existe: morreu numa praia da Costa Brava chamada Montebello. E trabalhava para o KGB ou, mais concretamente, para a VKR. Não se cometeu qualquer erro, mas nem isso interessa agora. O fundamental é que a executaram.
- Havelock não acredita, e você talvez também não, quando falar com ele. Eu próprio tenho dúvidas.
- Ele acredita no que lhe convém, no que tem de acreditar. Ouvi a expressão médica apropriada, que, reduzida à nossa linguagem, significa que está chanfrado. Transpõe esporadicamente o limite da realidade e fantasia nos dois sentidos, mas conserva-se de preferência do lado de lá.
- Pois exprime-se de modo muito convincente.
- Porque não mente. Faz parte da sua condição. Sabe o que viu.
- Ele disse isso mesmo.
- Mas não podia ter visto. A sua visão está distorcida. Quando se passa para o outro lado, não vê com os olhos, mas apenas com o cérebro, que está afectado.
- Você também é convincente.
- Porque não minto e não tenho o cérebro afectado. - Puxou do maço de tabaco e acendeu um cigarro com um Zippo, comprado há meio século. - São estes os factos, coronel. Pode preencher os espaços em branco, mas a base é firme. Havelock tem de ser neutralizado.
- Não vai ser fácil. Talvez ande às voltas nos seus túneis enevoados, mas não é um amador. Pode não saber para onde vai, sem que isso invalide a verdade irrefutável: sobreviveu no "campo" ao longo de dezasseis anos. É esperto, defensivo.
- Estamos conscientes disso. É a parte da realidade. Disse-lhe que eu viera, suponho?
- Só lhe disse que estava cá um homem chamado Apache.
- E então?
- Não se mostrou contente. Porquê você?
- Porque não?
- Não sei. Talvez não simpatize consigo.
- Deve-me favores.
- Pode residir aí a explicação.
- É psicólogo ou advogado?
- Um pouco de ambos - admitiu BayIor. - Constantemente. Você não?
- De momento, sou apenas um homem irritado. Onde diabo pretende chegar?
- A reacção de Havelock ao ouvir mencioná-lo foi muito rápida, muito vocal. "Com que então, enviaram o Atirador!", comentou. É o seu apelido?
Coisas de rapazes. Um gracejo sensaborão.
- Não parecia divertido. Vai telefonar ao meio-dia, com instruções para si.
- Para a embaixada?
- Não. Tenho de ocupar um quarto no Excelsior. Você estará comigo, para atender a chamada.
- Filho da mãe! - proferiu Ogilvie, entre dentes.
- Há algum problema nisso?
- Ele saberá onde estou, sem que eu conheça o seu paradeiro. Pode observar-me e eu
não o posso ver.
- Que interessa? Tudo indica que está disposto a encontrar-se consigo. Para o levar, tem de o enfrentar pessoalmente.
- Sem pretender ofendê-lo, coronel, é um novato nestas andanças. Ele obriga-me a proceder em conformidade com as suas conveniências.
- Como assim?
- Vou precisar de dois homens, de preferência italianos e tão obscuros quanto possível, para me seguirem, quando abandonar o hotel.
- Com que finalidade?
- De contrário, podia tentar dominar-me - explicou, com uma expressão pensativa.
- Pelas costas. Em qualquer rua movimentada. Não há truque que não conheça... Um homem sofre um colapso na via pública e um amigo ajuda-o a entrar para um carro próximo. São ambos americanos, não há nada de suspeito.
- Isso implica que não estarei presente. No entanto, como intermediário, posso insistir.
- Decididamente, um novato. Ele batia asas para o Cairo. Sem...
- ... ofensa. Muito bem, arranjarei a protecção. - Baylor fez uma pausa e acrescentou: - Mas talvez seja preferível um casal a dois homens.
Boa ideia. Afinal, tem algumas possibilidades, coronel. E tenho também de o prevenir de que negarei tudo, se me atribuírem a mínima intervenção oficial no assunto. Sou responsável por um largo território nesta área de operações. O trabalho que executo para o Pentágono e o Departamento de Estado reveste-se de muitas ramificações, é inevitável. Posso precisar de um favor ou haver alguém que me aborde para o mesmo efeito, pelo que o círculo vai aumentando, ainda que nunca nos encontremos.
- Detesto repetir-me, mas onde diabo pretende chegar?
- Tenho muitos amigos. Homens e mulheres que confiam em mim, no meu departamento. Se tiver de partir, gostava de deixar tudo intacto, claro, mas existe um pormenor básico. Não quero que esses amigos (conhecidos ou desconhecidos) se magoem, e Havelock pode fazê-lo. Trabalhou em Itália, no Adriático, na Ligúria, de Trieste, através das fronteiras, ao longo da costa norte, até Gibraltar. Podia provocar represálias, e não creio que um agente na inactividade e chanfrado, segundo a sua expressão, o justifique.
- Nem eu. - Então, tire-o disto definitivamente.
- Podia ter ouvido essas palavras dos meus lábios.
- Oiço-as agora?
O homem de Washington conservou-se silencioso por um momento e acabou por responder:
- Não.
- Porquê?
- Porque podia provocar as consequências que você não deseja.
- Improvável. Ele não dispôs de tempo.
- Não o sabemos. Se isto se desenrola desde o episódio da Costa Brava, torna-se impossível determinar que depósitos fez e onde. Pode ter deixado documentos em meia dúzia de países com instruções específicas para os divulgar, se os contactos previstos falharem. Nos últimos seis meses, esteve em Londres, Amesterdão, Paris, Atenas e Roma. Porquê? Por que razão esses lugares? Com todo o mundo para escolher e as algibeiras cheias, regressa às cidades onde trabalhou activamente em operações secretas.
- Pode tratar-se de mera coincidência. Conhecia-as. Aposentou-se e sentia-se seguro.
- Talvez, mas há motivo para duvidar.
- Não estou a acompanhar a lógica. Se se limitar a levá-lo, ele não estabelece esses contactos .
- Há maneiras...
- Suponho que se refere a clínicas. Laboratórios onde médicos injectam soros que soltam línguas e cérebros.
- Mais ou menos.
- Deconflo que se engana. Não sei se ele viu ou não Jerma Karas, mas o que quer que acontecesse foi durante as últimas vinte e quatro horas. Ainda não teve tempo de fazer absolutamente nada. Pode afirmar o contrário, sem que isso corresponda à verdade.
- Isso é uma opinião ou possui características de clarividente?
- Nem uma coisa nem outra. Escutei um homem em estado de choque. Um homem que acabava de atravessar uma experiência excruciante. Não se tratava do resultado de uma simples aberração mental. Aconteceu apenas. Quando você se refere ao que ele podia ter feito, aos depósitos que talvez efectuasse, emprega as palavras que lhe forneci, porque são as que lhe ouvi. Havelock especulava com o que poderia fazer e não com o que fez. Há uma grande diferença, senhor Estratego.
- E, por causa disso, interessa-lhe que morra?
- Interessa-me que muitas outras pessoas continuem a viver.
- A nós também. É por isso que estou aqui.
- Para o levar vivo - observou Bulor, com um sorriso sardónico. - Como o célebre caçador, Frank Buck.
- Isso bastará.
- Não concordo. Suponha que não consegue o seu objectivo? Imagine que ele se lhe escapa?
- Não acontecerá.
- É uma opinião ou clarividência?
- Um facto.
- Nem pensar. É uma conjectura, um factor de probabilidade com que não quero contar.
- Não tem alternativa, soldado. Os altos comandos fizeram-se ouvir.
- Nesse caso, deixe-me fazer-lhe urna recomendação, civil. Não me fale de altos comandos. Esfolei o meu negro rabo neste exército de brancos (de brancos e de pretos nas baixas camadas), até que se viram obrigados a tomar-me numa engrenagem vital da enorme roda branca. Agora, você aparece armado em agente secreto, com nome de código e tudo...
- Inspirado numa embalagem de flocos de aveia? - interrompeu Ogilvie.
- Exacto. Numa embalagem de flocos de aveia. Nenhum nome concreto para me permitir uma identificação com a qual possa negociar para me livrar de apuros. Apenas um balão de banda desenhada. E se os seus planos falharem e Havelock bater asas, fico na linha de fogo, como alvo principal. O escarumba. deitou tudo a perder. Corram com ele da enorme roda branca.
- Seu bastardo hipócrita - grunhiu enojado. - A única coisa que lhe interessa é salvar a pele.
- Por várias razões demasiado benignas para você compreender. Haverá mais como eu e não menos. Aonde quer que se dirija nesta cidade, não estarei muito longe. Apanhe-o à sua maneira, que não me preocupa. Conduzi-los-ei a Palombara e eu próprio lhes apertarei os cintos de segurança no "jacto", com uma carta de recomendações escrita em latim clássico. Mas se não o conseguir apanhar, os problemas caem-nos todos em cima.
- Não fala como quem acreditou na versão dele e até defendeu a sua posição.
- Não lhe defendi a posição. Limitei-me a transmiti-la. E não interessa absolutamente nada se acredito ou não. Havelock representa uma ameaça activa, perigosa para mim e as minhas funções aqui, em Roma, para não falar de uma larga parte da rede que cultivei, em obediência a ordens do meu Governo e à custa do contribuinte americano. Basta-me saber isto para puxar o gatilho.
- Com essas ideias, pode ir longe.
- É a minha intenção. Ogilvie afastou-se da árvore e esquadrinhou as imediações com a vista, antes de proferir em voz neutra:
- Eu podia livrar-me de si, se quisesse. Matá-lo, se fosse necessário.
- Não duvido. Por conseguinte, esquecerei o assunto do Excelsior. Reserve um quarto em meu nome e, quando Havelock telefonar, deixe-o convencer-se de que sou eu que atendo. Ele espera que me encontre lá, para confirmar a sua presença. Sabe que estou interessado no assunto. A propósito: quando se fizer passar por mim, não empregue uma linguagem muito rudimentar. Sou um intelectual de Rhodes. Oxford, mil novecentos e setenta e um.
- Não é só isso - retorquiu o agente. - Posso acusá-lo de infracções suficientemente graves para justificarem um tribunal marcial. Desobediência directa a um superior no "campo".
- Durante uma conversa que nunca se realizou? Ou talvez se realizasse e eu procedi a uma análise da situação in loco. Considerei o "contacto" inaceitável e pretendi outro homem em Roma. Que pensa disto, Atirador?
Transcorreu cerca de um minuto sem que se pronunciasse. Por último, atirou o cigarro ao chão, esmagou-o com o calcanhar e declarou:
- É um homem de talento, coronel. Preciso de si.
- Deseja mesmo apanhá-lo, hem?
- Decerto.
- Calculava isso mesmo. Notava-se na sua voz, pelo telefone, mas desejei essa confirmação, senhor Estratego. Encare-me como uma simples apólice de seguro que não pretende levar consigo, mas o seu contabilista manifesta opinião contrária. Se for obrigado a pagar, não se perde nada. Posso justificá-lo melhor do que ninguém em tomo de urna mesa de reuniões em Washington. Sou o único que falou com ele. Sei o que fez e não fez.
- Pode não tardar a demonstrar-se que labora num erro.
- Correrei o risco, tal a certeza que tenho da minha posição.
- Não será necessário. Não terá de pagar, porque não falharei e ele não baterá asas, como diz.
- Alegra-me ouvi-lo. Além do casal que se lhe reunirá quando abandonar o hotel, de que mais precisa?
- Nada. Trouxe o equipamento apropriado.
- Que tenciona dizer-lhe?
- O que ele quiser ouvir.
- Que utilizará?
- Experiência. Tratou da reserva do quarto?
- Há quarenta e cinco minutos - informou Baylor. - Só que não é um quarto, mas uma suite. Assim, há dois telefones. Para o caso de você se lembrar de me indicar um local de encontro errado, escutarei tudo o que ele disser.
- Coloca-me entre a espada e a parede, rapaz.
- Não se preocupe muito com isso. Quando o dia terminar, regressará a Washington, com ou sem ele, mas liberto de problemas. Se o acompanhar, muito bem, de contrário as culpas caem-me em cima. No entanto, gozo de certo prestígio no Pentágono e, em face das circunstâncias, a solução será o "último extremo" e aceitável.
- Conhece bem o regulamento, hem?
- Até às suas numerosas contradições. Volte para a boa vida, senhor Estratego. Esteja confortável e feliz no circuito de Georgetown. Entregue-se às deduções de longe e deixe o "campo" por nossa conta. Assim, viverá melhor.
Ogilvie dominou a contracção de dor que ameaçava aflorar-lhe ao rosto. Sentia milhares de alfinetes que pareciam querer perfurar-lhe a caixa torácica e irromper pela garganta. Desta vez, a impressão excruciante era mais prolongada-que as anteriores, sinal da irreversibilidade do mal que o minava.
- Obrigado pelo conselho - terminou por dizer a meia-voz.
Capítulo nono
O Palatino, urna das sete colinas de Roma, ergue-se a seguir ao Arco de Constantino, com as encostas suaves repletas de ruínas de alabastro da Antiguidade. Era o local do encontro.
Uns quinhentos metros a noroeste da Porta de Gregório, havia um velho caramanchel, com um busto do imperador Dorniciano num pedestal estriado, no final de um caminho empedrado ladeado pelo que restava de paredes de mármore, de onde haviam brotado numerosas plantas que as dissimulavam parcialmente. No final do caminho, atrás da expressão severa de Domiciano, encontravam-se vestígios de uma fonte construída na colina. O caramanchel terminava abruptamente, sem qualquer saída.
O cenário pacífico suscitava imagens do passado: estadistas envoltos em túnicas movendo-se por entre um ambiente austero, imersos nos problemas de Roma e das lutas pelo poder, porventura perguntando-se quando se registaria o princípio do fim.
Era naquele fragmento de ligação com outros tempos que se devia realizar a entrevista. Lapso de tempo previsto: trinta minutos -entre as três e as quatro e meia, quando o Sol se achava num ponto intermédio do céu ocidental. Encontrar-se-iam aí dois homens, animados de objectivos distintos, plenamente conscientes de que as divergências poderiam causar a morte de um deles, embora não desejassem semelhante desenlace. Desconfiança era a palavra de ordem daquela tarde.
Faltavam vinte minutos para as três, início do lapso de tempo. Havelock postara-se atrás de um grupo de arbustos da colina seguinte sobranceira ao caramanchel, algumas dezenas de metros acima do busto de Domiciano. Sentia-se preocupado, irritado, enquanto os seus olhos esquadrinhavam o caminho de pedra e terreno circundante. Meia hora antes, de um café no passeio fronteiro ao Excelsior, na Via Veneto, vira aquilo que mais temia. Segundos depois de o ruivo Ogilvie emergir do hotel, tinham-se-lhe reunido um homem e uma mulher que haviam surgido casualmente (uma casualidade demasiado forçada para ser natural) de uma joalharia possuidora de um amplo escaparate, através do qual quem se encontrasse dentro podia observar o que se passava nas cercanias. O homem de Washington desviara-se ligeiramente para a direita e detivera-se, antes de se incorporar na fila compacta de transeuntes que se encaminhavam para a esquerda. Ogilvie previra a possibilidade de o surpreenderem antes de alcançar o Palatino e não queria perder o domínio da situação. Pelo telefone, mostrara-se reservado, como era de prever. Possuía elementos altamente confidenciais para entregar, nos quais Havelock encontraria as explicações que procurava.
Não te preocupes, Navaio. Conversaremos.
Mas se o Apache tinha explicações razoáveis para fornecer, não necessitava de protecção. E por que razão aceitara tão prontamente aquele local afastado para se encontrarem? Por que não sugeria simplesmente que o fizessem na rua ou num café? Um homem confiante do valor da informação que possuía não estabelecia meios defensivos, como o estratego fazia.
Dar-se-ia o caso de, em vez de explicações, Washington enviar nova mensagem? Despachar-me? Considerar-me morto? Eu não disse que o mataríamos. Não vivemos num país desses... E porque não? Estas palavras, ou outras com o mesmo sentido, tinham sido pronunciadas pelo tenente-coronel Lawrence Baylor Brown, membro dos serviços secretos do Pentágono, na embaixada americana em Roma.
Se Washington chegara a essa conclusão, os estrategos tinham enviado um assassino competente. Havelock respeitava os talentos de Ogilvie, mas não o admirava pessoalmente.
O antigo agente de "campo" era um daqueles indivíduos que justificam a sua violência com desprendimento, através de fragmentos de filosofia que implicam repulsa pela prática de actos brutais, ainda que necessários. No entanto, os colegas conheciam outra realidade. Tratava-se de um assassino, dominado por um impulso íntimo para se vingar das suas fúrias pessoais, que ocultava de todos, excepto daqueles que trabalhavam a seu lado, nos momentos de tensão. E os que o conheciam esforçavam-se por não voltar a participar na sua equipa.
Depois de Istambul, Michael fizera algo de que nunca se supusera capaz. Contactara Anthony Matthias e aconselhara-o a retirar o ruivo do " campo", por o considerar perigoso. Oferecera-se mesmo para depor num inquérito confidencial promovido pelos estrategos, mas, como sempre, o secretário de Estado optara por um método mais moderado. Ogilvie era um perito, e poucos homens podiam apresentar uma folha de serviço como a dele em actividades secretas. Assim, Matthias fizera-o subir alguns degraus da escada e nomeara-o estratego.
Todavia, Anton achava-se ausente de Washington, o que não constituía uma circunstância reconfortante, pois tomavam-se decisões drásticas pelo simples facto de se revestirem de urgência e não haver possibilidade de o contactar num lapso de tempo exíguo.
Havelock descortinou ao longe, na encosta, a seguir às ruínas da parede do lado direito, um vulto no qual reconheceu o homem que acompanhava a mulher à saída da joalharia perto do Excelsior. Volveu o olhar para a esquerda e avistou a companheira. Encontrava-se junto dos degraus de um antigo lago, com um bloco para desenhar na mão esquerda. Mas não havia lápis algum na direita, que conservava sob a lapela do impermeável. Michael tomou a concentrar-se no homem, que entretanto se sentara no chão, pernas estendidas à sua frente, com um livro sobre os joelhos, como um romano vulgar empenhado em ler tranquilamente, longe do bulício da cidade. E, coincidência curiosa, também mantinha a mão direita pousada descuidadamente na parte superior do casaco de tweed. O casal achava-se em comunicação, e Havelock conhecia o idioma: italiano.
Italianos. Portanto, não eram subordinados da embaixada. Não havia carrascos da CIA, Baylor ou qualquer outro americano nas imediações. Quando chegasse, Ogilvie seria o único. A situação revestia-se de lógica: remover todo o pessoal dos Estados Unidos, todas as possibilidades de relacionar as ocorrências que se seguissem com os norte-americanos. Utilizar apenas pessoas sacrificáveis, homens ou mulheres dispensáveis, que não deixassem rasto comprometedor. Numa palavra: despachar.
Porquê? Por que razão o consideravam uma crise? Que fizera ou sabia justificativo do empenho de Washington em o eliminar? Primeiro, queriam-no fora da actividade por causa de Jenna Karas. Agora, morto. De que se trataria?
Haveria outros, além do casal? Semicerrou as pálpebras em virtude do sol e percorreu as cercanias minuciosamente, separando o terreno em blocos, como um puzzle gigantesco.
O caramanchel de Domiciano não constituía um local proeminente no Palatino, pois resumia-se a um pequeno fragmento de antiguidade em ruínas. A temperatura pouco convidativa daquele mês de Março ainda reduzira mais o número de visitantes. Ao longe, numa colina a leste, um grupo de crianças brincava sob os olhares protectores de dois adultos. Provavelmente, professores. Mais abaixo, a sul, havia uma área relvada com colunas de mármore da época imperial, que se destacavam como cadáveres de alturas largamente distintas. Diversos turistas munidos de equipamento fotográfico apontavam as objectivas aos pontos que lhes pareciam mais interessantes. No entanto, à parte o casal que cobria os dois lados do acesso ao caramanchel, não se encontrava ninguém nas proximidades imediatas do refúgio de Domiciano. De resto, se eram atiradores competentes, não havia necessidade de outros. Existia apenas uma entrada, e um homem que trepasse a uma parede seria um alvo fácil, o que também se adaptava aos métodos empregados para despachar. Utilizar o mínimo possível de colaboradores locais, tendo sempre em mente que, mais tarde, podem causar problemas com tentativas de extorsão.
A ironia da situação desenhou-se gradualmente. Michael percorrera o Palatino, de manhã, a fim de escolher o local que apresentasse as vantagens agora utilizáveis contra ele. Consultou o relógio, que indicava 14.45. Precisava agir com rapidez, mas só depois de avistar Ogilvie. O Apache era astuto e sabia que as probabilidades de êxito o favoreciam se permanecesse oculto até ao último momento, para concentrar a atenção do adversário na sua chegada. Havelock achava-se consciente do facto, pelo que se debruçava sobre as suas opções: a mulher, com o bloco para desenhar na mão, e o homem reclinado na relva.
De súbito, descortinou-o. Às três menos um minuto, o agente ruivo tomou-se visível, primeiro a cabeça e os ombros, enquanto escalava o caminho proveniente da Porta de Gregório, passando diante do homem reclinado sem lhe prestar aparentemente a menor atenção. Ao mesmo tempo, Michael notou-lhe algo de estranho. Talvez fosse o vestuário, amarfanhado e largo, como sempre. Mas, não se tratava disso. Na realidade, dir-se-ia experimentar dificuldade em transpor a encosta relativamente suave. Não restavam dúvidas de que o Apache mudara desde Istambul. Os últimos sete anos não tinham sido condescendentes.
Por fim, alcançou as ruínas da arcada de mármore que constituía a entrada do caramanchel, para aguardar no interior. Eram três horas exactas. O lapso de tempo principiara.
Havelock abandonou o esconderijo atrás dos arbustos e avançou rapidamente através do declive de vegetação elevada, conservando-se agachado e descrevendo um arco amplo até que atingiu a base da colina. Tomou a consultar o relógio e verificou que consumira dois minutos.
A mulher encontrava-se agora num ponto acima dele, a cerca de cem metros, no centro do campo e à direita do caramanchel de Domiciano. Ele não a podia ver, mas sabia que não se movera. Escolhera a posição com meticulosidade, em obediência a um hábito característico dos carrascos. Michael iniciou a escalada, apoiado nos joelhos e nas mãos, separando a vegetação à sua frente e apurando os ouvidos, para a eventualidade de se registarem vozes inesperadas, mas o silêncio era absoluto.
Quando chegou ao topo, certificou-se de que a mulher estava directamente adiante, a um máximo de vinte metros, de pé no primeiro degrau da escada de acesso ao lago de mármore. Conservava o bloco na sua frente, porém os olhos não o fixavam. Concentravam-se na entrada do caramanchel, com o corpo tenso pronto para entrar em acção instantaneamente. Em seguida, ele avistou aquilo que esperava: a mão dela deixara de pousar na lapela e desaparecera no interior do impermeável, sem dúvida para empunhar uma automática de que poderia puxar com prontidão e disparar sem a perda de tempo que envolveria a introdução da mão na algibeira. Havelock receava a arma, mas ainda mais um transmissor de rádio. Em determinadas circunstâncias, podia constituir um aliado, todavia naquele momento era seu inimigo, tão perigoso como uma pistola.
Consultou o relógio mais uma vez, contrariado com a rapidez com que o ponteiro dos segundos parecia mover-se. Impunha-se que actuasse sem demora. E fê-lo, conservando-se abaixo do topo do campo e deslocando-se em volta, em direcção à abertura na parede de mármore que conduzia ao lago. A elevada vegetação que brotava de todos os lados protegia-o com eficiência e conferia-lhe o aspecto de um insecto gigantesco. Decorrido cerca de um minuto, emergiu dos arbustos e encontrou-se nas ruínas do lago circular que, séculos atrás, contivera os corpos perfumados de imperadores e cortesãs. Dois metros e meio acima dele - a oito decrépitos degraus de distância- achava-se a mulher cuja função consistia em o abater, na eventualidade de o chefe se ver impossibilitado de o fazer. Estava de costas, as pernas robustas fincadas no chão como as de um sargento de artilharia comandando um pelotão de atiradores.
Michael contemplou a escada em ruínas: era frágil, protegida por uma vedação de ferro no segundo degrau, a fim de impedir os visitantes de se aventurarem mais abaixo. O peso de um corpo num dos degraus poderia bastar para que a pedra estalasse, com a produção de um
ruído indesejável. E se o som fosse acompanhado do impacto de uma violenta pancada física? Ele sabia que necessitava decidir e agir com rapidez. Cada minuto que passava incrementava o alarme do assassino postado no caramanchel de Dorniciano.
Moveu as mãos em silêncio, entre a vegetação, e os dedos contactaram um objecto de arestas agudas: um fragmento de máiTnore, decerto desprendido de um dos degraus. Segurou-o com firmeza e, com a outra mão, retirou da cintura a automática Llania que confiscara ao mafioso de Civitavecchia. Outrora, aprendera a utilizar uma arma de fogo com a esquerda, como precaução básica para uma emergência, circunstância que lhe seria útil agora. Se a táctica que concebera se malograsse, mataria a assassina contratada para o impedir de sair vivo do Palatino. No entanto, não passava de urna medida de prudência, uma mera opção para se certificar de que continuaria a viver, pois interessava-lhe comparecer ao encontro com Ogilvie.
Flectiu as pernas e, em seguida, preparou-se para saltar. A mulher encontrava-se agora a pouco mais de um metro. Michael ergueu o braço direito em cuja mão tinha o fragmento de mármore e atirou o pequeno míssil na direcção de um ponto intermédio entre as omoplatas dela.
O somaccionouo instinto. A mulher começou a mover-se, mas não pôde esquivar-se à colisão na base do crânio, a que se seguiu imediato derramamento de sangue. Havelock transpôs os degraus que os separavam, agarrou-a pela cintura e arrastou-a para o fundo do lago de mármore, ao mesmo tempo que lhe cobria a boca com a mão. Por fim, pousou-lhe o joelho no peito e aproximou o cano da Llania do rosto alarmado.
- Preste muita atenção! - murmurou com aspereza, sabendo que tanto a embaixada como Ogilvie não recorreriam a colaboradores que não dominassem bem a língua inglesa, para conjurar o perigo de uma interpretação errada das ordens. - Utilize o transmissor para chamar o seu amigo. Diga-lhe que surgiu uma emergência. Que venha pelos arbustos do lado da arcada, para que o americano não o veja.
- Cosa dici?
- Ouviu e compreendeu perfeitamente! Faça o que lhe indiquei! Diga que pensa que foram traídos. Prudente! Ioparlo italiano! Capisci? - acrescentou, exercendo pressão com o joelho e o cano da automática. - Presto!
A mulher contraiu as faces num esgar de contrariedade, abafando uma imprecação através dos dentes cerrados, o corpo tenso como o de uma serpente surpreendida numa armadilha. Em seguida, quando Michael removeu o joelho, levou a mão direita à lapela, que afastou, para revelar um n-úcrofone transistorizado com a forma de um botão, preso ao tecido, em cujo centro se via um minúsculo interruptor destinado a activar o transmissor, no qual actuou. Registou-se um breve zumbido, enquanto o sinal transpunha os cem metros que o separavam do receptor, na encosta oeste do Palatino.
- Trifoglio, trifoglio - proferiu ela apressadamente, para se identificar. - Ascolta! C'è un' emergenza!...
Em obediência às ordens de Michael, exprimia-se com ansiedade, sem dúvida reforçada pela pressão da Llania nas costas. A resposta surgiu através de uma voz metálica:
- Che avete?
- Sbrigatevi!
- Arrivo! Havelock obrigou a mulher a ajoelhar e rasgou-lhe o impermeável ao meio. Preso à cintura por um largo cinturão, havia um coldre alongado do qual brotava a coronha de uma poderosa automática munida de silenciador. Não subsistiam dúvidas de que se tratava de uma profissional. Sem um segundo de hesitação, ele transferiu a arma para o seu cinto, indicou à mulher que se levantasse e impeliu-a com brusquidão para o primeiro degrau, de onde ambos podiam ver sem dificuldade quem se aproximasse. Colocou-se atrás, imobilizando-a com a pressão do seu pró prio corpo, a Llama apontada à têmpora direita e o braço esquerdo em tomo do pescoço. Transcorridos escassos segundos, avistou o homem, que avançava rapidamente, agachado entre a vegetação. Não necessitou de mais nada. Sem aviso prévio, intensificou a pressão em tomo do pescoço da mulher até que a sentiu ficar inerte. Perdera o conhecimento e não o recuperaria antes de anoitecer. Michael não pretendia matá-la, pois queria que revelasse a sua história aos patriotas que a haviam contratado. A seguir, moveu-se para o lado e o corpo deslizou para a vegetação que cobria o fundo do lago.
O homem surgiu cautelosamente na encosta, a mão oculta atrás do casaco de tweed, enquanto o tempo se escoava com rapidez. Mais alguns minutos, e o assassino enviado por Washington começaria a alarmar-se, e se abandonasse o caramanchel verificaria que os seus guardas não se encontravam nos seus postos e perdera o domínio da situação, o que o levaria a escapar-se. Impunha-se que tal não acontecesse! As explicações que Havelock desejava conhecer achavam-se a uma distância de cinquenta metros, no interior de ruínas da Antiguidade. Se o comando das operações sofresse uma inversão - e só nesse caso -, teria possibilidade de se inteirar. "Avança, subordinado", reflectiu, à medida que o italiano
se acercava.
- Trifoglio, trifoglio! - acrescentou num murmúrio urgente, ao mesmo tempo que pegava em pequenas pedras e as atirava para o lado oposto dos degraus.
O outro principiou a correr na direcção do som da voz e Havelock deslocou-se para a esquerda e agachou-se no terceiro degrau.
Quando surgiu e o viu, o italiano soltou uma exclamação de assombro e o pânico imobilizou-o por uns instantes, facto que Michael aproveitou para lhe saltar em cima e aplicar com o cano da Llama no rosto, fracturando ossos e dentes. O homem começou a perder o equilíbrio e ele arrastou-o para o tanque, onde o largou sobre a mulher. Ambos teriam histórias curiosas para contar, e era importante que os estrategos de Washington se inteirassem, pois se as explicações não surgissem dentro de minutos, o episódio no Palatino não passaria do início de uma longa série.
Havelock guardou a Llanw na algibeira interior do casaco e sentiu a pressão desconfortável da enorme automática com silenciador na cintura. Decidiu conservar ambas: a primeira tinha dimensões reduzidas e podia ocultá-la sem dificuldade, enquanto a outra resultaria vantajosa numa situação em que a ausência de ruído constituísse ingrediente de primeira necessidade. De súbito, assolou-o uma aragem glacial de depressão. Vinte e quatro horas antes, estava convencido de que não voltaria a empunhar uma arma de fogo em toda a vida
- em toda a sua nova vida. Na realidade, detestava-as e impressionavam-no, principal razão pela qual aprendera a manejá-las com eficiência e cuidado, para abafarem outras - as annas da sua infância. Aqueles dias terríveis haviam representado o começo, ainda que de natureza distinta, de uma violência que prosseguiria na fase de adulto, obedecendo ao
desejo de contribuir para eliminar os opressores e impedir que casos como o de Lidice se repetissem. Por fim, renunciara àquela vida, apesar de o inimigo não se achar totalmente -
longe disso - erradicado da Terra, em virtude de uma ocorrência que o forçara a rever a sua posição. E agora, reatava-a. Abotoou o casaco e encaminhou-se para a entrada do caramanchel, a fim de enfrentar o homem que viera de longe para o matar.
Enquanto se aproximava da arcada em ruínas, esquadrinhava as imediações instintivamente, preocupando-se em evitar que os seus pés pisassem ramos secos prenunciadores da sua presença. Por último, desviou com as mãos a vegetação e espreitou para dentro. Ogilvie encontrava-se na extremidade mais afastada, junto do pedestal que suportava o busto de Domiciano. Fumava um cigarro e contemplava a colina sobranceira à sua direita, a mesma onde Michael estivera oculto, dezanove minutos antes. O Apache estudara minuciosamente a situação e parecia satisfeito com o resultado.
A temperatura descera um pouco e Havelock notou que o casaco amarfanhado e largo do outro estava abotoado. Todavia, apercebeu-se igualmente de que isso não o impediria de puxar de uma arma com facilidade. Em seguida, concentrou-se no rosto e verificou que apresentava urna alteração surpreendente, mais pálido do que a memória lhe permitia recordar, enquanto os sulcos, outrora apenas esboçados, exibiam agora uma nitidez que a
idade não explicava. Não era necessário possuir formatura em medicina para adivinhar que Ogilvie estava enfermo com gravidade. Se lhe restavam as energias de outros tempos, estavam tão bem dissimuladas como as armas que o acompanhavam.
Por último, Michael entrou, prestando atenção ao mínimo movimento do antigo colega, e proferiu:
- Olá, ruivo. Este volveu a cabeça com lentidão, deixando transparecer que o observara pelo canto do olho antes de lhe ouvir a voz.
- Tenho muito gosto em voltar a ver-te, Navajo. -Podes omitir o Navajo. Não estamos em Istambul.
- Pois não, mas salvei-te a pele, nessa ocasião, hem.
- Sim, depois de quase me causares a morte. Fartei-me de te prevenir de que a ponte era uma armadilha, mas tu, como suposto superior (categoria que exageraste, diga-se de passagem), não fizeste caso. Voltaste para me levar, porque fiz a afirmação na presença do nosso "contacto" na Mesrutiyet, que não deixaria de mencionar o facto no seu relatório.
- De qualquer modo, voltei atrás - persistiu Ogilvie, irritado, as faces pálidas dominadas por um pouco de cor. Em seguida, encolheu os ombros e serenou. - Que importa isso, agora?
- Tens razão. Penso que eras capaz de correr o risco de ires pelos ares, juntamente com todos os teus filhos, para te justificares. No entanto, como dizes, voltaste atrás. Obrigado por isso. Foi mais rápido, embora não forçosamente mais seguro, do que um mergulho no Bósforo.
- Nunca conseguirias safar-te.
- É uma dúvida que ficará por esclarecer.
- Os meus filhos não, Havelock. - Ogilvie atirou o cigarro ao chão, apagou-o com o salto do sapato e avançou um passo. - Eu sim, podia arriscar-me, mas a família. nunca.
- Está bem, não se fala mais nisso. - Michael sentiu-se momentaneamente embaraçado pela alusão irreflectida que pronunciara. Recordava-se de que o antigo colega se vira separado dos filhos e ficará só num mundo de sombras, com as suas fúrias pessoais. -
Creio que me precipitei.
- Conversemos - propôs o homem de Washington, encaminhando-se para um banco de mármore. - Senta-te... Michael . Ou preferes que te tratem por Mike? Confesso que já não me lembro.
- Como preferires. Estou bem de pé.
- Então, sento-me eu. Não vejo inconveniente em admitir que me sinto um pouco em baixo. Washington fica muito longe e fiz uma viagem interminável. Além disso, nunca dormi bem nos aviões.
- De facto, pareces cansado.
- Diz-me urna coisa, Michael. Nunca sentiste cansaço?
- Sim, da existência fictícia. De tudo o que aconteceu. A ela. A mim. A todos vocês nos gabinetes esterilizados, com as vossas mentes imundas. Quando penso que fiz parte de tudo isso... Que ideia se lhes meteu na cabeça? Porque fizeram aquilo?
- É um requisitório de peso, Navajo.
- Já te disse que pusesses de parte esse nome detestável.
- Como se fosse extraído de uma embalagem de flocos de aveia, hem?
- Pior. Para tua informação, os índios Navajos estavam relacionados com os Apaches, mas, ao contrário destes, eram uma tribo essencialmente pacífica, defensiva. O nome não tinha cabimento em Istambul e agora ainda menos.
- Muito interessante. Confesso que não sabia. Em todo o caso, suponho que é uma
daquelas coisas que uma pessoa não nascida num país (trazido após uma infância difícil algures) manifesta inclinação para averiguar. Quero eu dizer que o estudo desse tipo de História representa uma maneira de dizer "Obrigado pela hospitalidade".
- Não compreendo ao que te referes.
- Compreendes, sim. Um miúdo vive no meio de uma carnificina, vê amigos e vizinhos dizimados por metralhadoras e lançados em valas e a mãe enviada para destino desconhecido, consciente de que não a voltará a ver. Esse miúdo oculta-se nos bosques e alimenta-se do que consegue roubar ou escavar da terra, até que é encontrado e passa os anos seguintes percorrendo as ruas com explosivos nas algibeiras, por entre o inimigo ocupante do país. Tudo isto antes de completar dez anos e, aos doze, os soviéticos matam-lhe o pai. - Ogilvie meneou a cabeça. - Um rapaz desses, quando finalmente se encontra em lugar seguro, tem o maior interesse em aprofundar a História do povo que o acolheu. Trata-se da sua maneira de dizer "Obrigado pela hospitalidade". Não concordas... Havlicek?
Por conseguinte, o inviolável não era impenetrável para os estrategos. Ele devia calcular que se inteirariam de tudo. Os seus últimos actos haviam-no originado. A única garantia que lhe tinham dado resumia-se a que o seu processo secreto só seria divulgado aos mais altos níveis. Os outros apenas teriam acesso aos elementos fornecidos pelo M. 1. 6 britânico: um eslovaco ótjüo, cujos pais tinham perecido num bombardeamento a Brighton, autorizado a ser adoptado e a imigrar. Era unicamente isto que eles deviam saber. Anteriormente. Agora, não.
- Não tem importância.
- Talvez tenha - observou Ogilvie, mudando de posição no banco e levando a mão, com lentidão e naturalidade, à algibeira do casaco.
- Não faças isso.
- O quê?
- Conserva a mão cá fora.
- Ah, desculpa... Como dizia, todo esse material do passado pode revestir-se de importância. Um homem atinge o ponto de saturação, ao longo dos anos. Sabes como é: as coisas acumulam-se, até que, um dia, a mola principal parte-se e, sem que se aperceba, o cérebro começa a desobedecer-lhe, como se pertencesse a outra pessoa. Ele recua no tempo, volta à época em que presenciou coisas horríveis, e os anos e motivos de quem então conhecia misturam-se com os daqueles com quem convive na actualidade. Começa a querer responsabilizar o presente por tudo o que sucedeu no passado. Acontece a muitos homens que viveram como tu e eu. Nem sequer é invulgar.
- Terminaste? - inquiriu Havelock, com aspereza. - Porque, se não tens mais nada...
- Regressa comigo, Michael - atalhou o homem de Washington. - Precisas de ajuda e nós podemos proporcionar-ta.
- Viajaste oito mil quilómetros para me dizer isso? São os elementos, as explicações?
- Calma, rapaz.
- Não, acalma-te tu! Acalma-te, porque vais necessitar de todos os nervos frios que possuis! Tu e os teus comparsas! Principiarei aqui, em Roma, e continuarei através da Suíça, Alemanha... Praga, Cracóvia, Varsóvia... até Moscovo, se for necessário! E quanto mais eu falar, maiores os embaraços em que vocês ficarão envolvidos. Quem te julgas para diagnosticar a condição da minha cabeça? Eu vi aquela mulher. Encontra-se viva! Segui-a até Civitavecchia, onde desapareceu, mas averiguei o que vocês lhe disseram, o que lhe fizeram! Irei no seu encalço, mas cada dia que consumir custar-lhes-á caro! Começarei no instante em que sair daqui e ninguém me impedirá. Ouve o noticiário, esta noite, e lê os jornais da manhã. Há um representante vosso aqui, um adido diplomático aparentemente respeitável, membro de uma minoria, o que representa um disfarce levado dos diabos. Simplesmente, vai perder todo o valor e a sua rede antes do pôr-do-sol. Quem se julgam vocês, bastardos?
- Está bem, está bem! - suplicou, erguendo as mãos. - Reconheço que tens razão, mas não me podes censurar por tentar levar água ao meu moinho. Recebi ordens bem explícitas: "Traga-o, para o podermos informar de tudo, aqui. " Recomendaram-me principalmente que não te revelasse nada fora do país. Garanti-lhes que o estratagema não resultaria contigo e acabei por convencê-los.
- Então, fala!
- De acordo. - Exalou um profundo suspiro e abanou a cabeça, com uma expressão de desalento. - Safa, como as coisas se baralham!
- Desembaralha-as!
- Posso fumar? - perguntou, movendo a mão para a área superior esquerda do casaco.
- Está quietinho. No entanto, levantou a lapela e expôs um maço de tabaco no bolso do peito. Havelock assentiu com um gesto e Ogilvie puxou do maço e de uma carteira de fósforos. Em seguida, sacudiu um cigarro para a palma da mão direita e abriu a carteira, que estava vazia.
- Gaita... - ~iu. - Tens lume?
- O que me vais dizer deve ser convincente... - começou Michael, extraindo uma carteira de fósforos da algibeira e estendendo-lha.
Nunca conseguiu explicar se foi o leve movimento da cabeça ruiva ou a posição estranha da mão direita ou o sol que se reflectia no invólucro de celofane do maço de cigarros.
O certo é que compreendeu subitamente que a armadilha fora montada. Estendeu a perna esquerda com prontidão e atingiu o braço direito do estratego, obrigando-o a retroceder e desequilibrar-se do banco. De repente, a atmosfera encheu-se de uma nuvem sibilante de vapor. Havelock mergulhou para a direita, apertando as narinas com o polegar e o indicador e fechando os olhos, ao mesmo tempo que rolava no chão até embater na parede, fora do alcance do gás.
A pequena ampola estivera dissimulada no maço de tabaco e o odor acre que impregnava o caramanchel revelou-lhe o que contivera: um gás que atacava os centros nervosos e impedia o domínio dos músculos, cujo efeito tinha uma duração compreendida entre uma e três horas. Era empregado quase exclusivamente para raptos e quase nunca como prelúdio de uma execução.
Michael descerrou as pálpebras e apoiou-se nos joelhos, pousando a mão na parede para se amparar. Atrás do banco de mármore, o homem de Washington gatinhava, tossindo e
tentando levantar-se, o corpo sacudido por convulsões. Fora atingido pela periferia menos
perigosa da explosão, suficiente para lhe provocar a momentânea perda de domínio.
Havelock pôs-se de pé, enquanto a nuvem azulada se evaporava no ar sobre o Palatino, e desabotoou o casaco, sentindo a dor resultante das escoriações provocadas pela pesada automática, em virtude dos movimentos violentos que se vira forçado a efectuar. Puxou da pouco tranquilizadora arma munida de silenciador e aproximou-se de Ogilvie em passos ainda incertos. O ruivo respirava com dificuldade, porém tinha os olhos mais desanuviados, e interrompeu as tentativas para se erguer. Ao invés, levantou a cabeça e fixou o olhar na automática inexpressivamente.
- Não hesites, Navajo - articulou em voz quase inaudível. - Poupa-me o trabalho.
- É o que eu pensava - redarguiu Havelock, contemplando a palidez cadavérica das faces do interlocutor.
- Não penses. Dispara.
- Para quê poupar-te o trabalho? Não vieste para me matar, mas apenas para me levar contigo. E não trouxeste explicação nenhuma.
- Já ta revelei.
- Quando?
- Há uns minutos... Havlicek. A guerra. A Checoslováquia, Praga. Teus pais. Lidice. Todas aquelas coisas que não têm importância.
- Que diabo estás para aí a dizer?
- Tens a cabeça transtornada, NavaJo. Não menti a esse respeito.
- O quê?!
- Não viste Jetina. Karas. Está morta.
- Garanto-te que vive! - bradou Michael, agachando-se ao lado do ruivo e segurando-o pela lapela do casaco. - Ela viu-me! Fugiu de mim!
- Impossível. - Ogilvie sacudiu a cabeça com veemência. - Não foste a única testemunha, na Costa Brava. Havia outra pessoa, que regressou com provas irrefutáveis: pedaços de roupa. O sangue que os manchava correspondia ao tipo dela. Podes crer que morreu naquela praia da Costa Brava.
- É falso! Estive lá toda a noite. Não havia pedaços de roupa. Ela fugia dos assassinos e só lhe tocaram depois de atingida pelas balas. O corpo foi levado intacto, sem o menor rasgão no vestuário, e não ficou nada na areia! Essa testemunha mentiu!
O estratego conservava-se imóvel, olhos fixos nos de Havelock, respirando com maior facilidade. Era óbvio que raciocinava febrilmente, tentando filtrar a verdade onde conseguia detectá-la.
- Era de noite - proferiu, finalmente. - Não podias ver...
- Quando desci à praia, já tinha nascido o sol. Estremeceu e cerrou os dentes com firmeza, numa tentativa para neutralizar a dor que irrompia do peito e se lhe propagava aos braços.
- O homem que presenciou a execução soft-eu uma trombose, três semanas mais tarde
- articulou num murmúrio. - Morreu, quando percorria a baía Chesapeake na sua
embarcação... Se o que afirmas corresponde à verdade, existe um problema em Washington de que tu nem eu temos conhecimento. Ajuda-me. Precisamos de seguir para Palombara.
- Tu é que precisas. Não regresso sem respostas às minhas dúvidas, como referi.
- Tens de vir! Não podes sair daqui sem mim.
- Perdeste a prática, Apache. Confisquei esta pesada automática à moçoila que contrataste. A propósito, o seu gumbá está a fazer-lhe companhia num lago de mármore... sem
água, claro.
- Não me refiro a esses, mas a ele. - Ogilvie mostrou-se subitamente alarmado e apoiou-se nos cotovelos, para erguer a cabeça e tentar esquadrinhar a colina sobranceira.
- Está à espera, observa-nos - sussurrou. - Guarda a arma! Depressa!
- Quem? Porquê? Para quê?
- Faz o que te digo! Não percas tempo!
- Estás cheio de pequenos ardis - disse Havelock, meneando a cabeça e endireitando-se -, mas permaneceste inactivo muito tempo. Exalas o mesmo fedor que noto a cada momento, proveniente do outro lado do Potornac...
- Não!
O ruivo conservava o olhar arregalado cravado no topo da colina e, de súbito, reunindo uma reserva de energia, levantou-se, a fim de puxar Michael para fora da passagem central do caramanchel.
Este último ergueu a automática e preparava-se para a utilizar como uma clava na cabeça de Ogilvie, quando soaram duas detonações secas, quase inaudíveis. O homem de Washington soltou uma exclamação abafada e tombou, inerte. Tinha a garganta perfurada e morrera por haver interceptado a bala destinada ao antigo colega.
Havelock encostou-se à parede, enquanto se ouviam mais três estampidos. Deixou transcorrer uns segundos e espreitou por uma pequena depressão em forma de "V", no topo, à qual apoiou o cano da automática.
Silêncio. Um braço. Um ombro. Atrás de um grupo de arbustos. Agora! Fez pontaria cautelosamente e premiu o gatilho quatro vezes, em sucessão rápida. Uma mão ensanguentada descreveu um arco, seguida de um ombro. Em seguida, o homem atingido emergiu da vegetação e coxeou apressadamente em direcção ao topo da colina. Os cabelos do vulto de cabeça descoberta eram curtos e anelados e a pele escura. Da cor do mogno. O assassino potencial do Palatino era o responsável pelas actividades secretas no sector setentrional do Mediterrâneo, com base em Roma. Fizera fogo sob o impulso da cólera ou do medo ,ou da combinação de ambos, furioso e perturbado por a sua <,cobertura@> e a sua rede terem sido expostas, ou limitara-se a obedecer friamente a ordens? Mais uma interrogação para acrescentar à já longa lista das que exigiam resposta.
Michael voltou a encostar-se à parede, exausto e assustado, sentindo-se tão vulnerável
como nos primeiros tempos, nos dias terríveis. Baixou os olhos para o ruivo Ogilvie - John Philip Ogilvie, se a memória o não atraiçoava. Minutos antes, era um moribundo; agora, estava morto. Ceifado ao salvar a vida de outro que não queria ver morrer. O Apache não viera despachar o Navajo, mas para o salvar. No entanto, não se encontrava a segurança entre os estrategos de Washington, por terem sido programados por mentirosos. O comando achava-se nas mãos de mentirosos.
Porquê? Com que finalidade? Não havia tempo para conjecturas. Tinha de sair de Roma, da Itália. Em direcção à fronteira de Col des Moulinets e, se essa possibilidade se malograsse, prosseguiria até Paris.
Até Jerina. Sempre Jerma, agora mais do que nunca!
Capítulo décimo
Os dois telefonemas levaram quarenta e sete minutos a completar de duas cabinas no concorrido aeroporto Leonardo da Vinci. O primeiro destinava-se ao gabinete do directtore daAmministrazione di Sicurezzade Roma, departamento que se debruçava sobre as actividades secretas dos estrangeiros. Com alusões sucintas a operações clandestinas autênticas que remontavam a vários anos, Havelock conseguiu entrar em contacto, sem identificação, com o subdirector, que conservou na linha durante menos de um minuto para dizer de sua
justiça. A segunda chamada, de uma cabina no lado oposto do átrio do aeroporto, tinha como alvo o redattore de Il Progresso, o maior jornal romano anti-americano. Atendendo à matéria abordada, o respectivo editor acudiu com prontidão. No final, quando insistiu em que Michael se identificasse, este replicou com duas sugestões: a primeira, que contactasse o subdirector da Amministrazione di Sicurezza; a segunda, que mandasse vigiar a embaixada dos Estados Unidos durante as próximas setenta e duas horas, prestando atenção ao indivíduo em causa.
- Mezzani! - vociferou o editor.
- Addio - volveu Michael, pousando o auscultador.
O tenente-coronel 1-awrence Baylor Brown, adido diplomático e exemplo típico do reconhecimento das minorias por parte da América, estava desempregado. A missão secreta terminara e a sua rede tomara- se inútil. E, independentemente da gravidade dos seus ferimentos, seria chamado à base dentro de poucas horas, a fim de explicar a morte do enviado de Washington, em Roma.
Fora aberta a primeira comporta. Seguir-se-iam outras. Cada dia que passasse aumentaria o preço que eles teriam de pagar.
- Ainda bem que puderam vir - disse Daniel Stem, fechando a porta da sala sem janelas no segundo piso do edifício do Departamento de Estado. Os dois homens aos quais se dirigia sentavam-se à mesa de reuniões: o psiquiatra que sofria de calvície, dr. Paul Miller, consultava os seus apontamentos e o advogado chamado Dawson fixava o olhar na parede distraidamente, mão pousada num maço de papéis à sua frente. - Acabo de me inteirar dos pormenores do caso Baylor. Confirma-se tudo. Eu próprio o interroguei. É um militar dilacerado, física e emocionalmente. No entanto, resiste a Pé firme.
- Nenhum desvio do relatório inicial? - quis saber o advogado.
- Nada de substancial. A cápsula estava dissimulada entre os cigarros de Ogilvie e continha um composto pouco activo de difenilamina ejectado por meio de um cartucho GO-Dois, activado por pressão.
- Devia ser a isso que ele se referia, quando afirmou que dominaria Havelock, se o tivesse na sua frente - comentou Miller, a meia-voz.
- Quase o conseguiu - admitiu Stem, sentando-se e accionando um interruptor no pequeno painel de um telefone vermelho, pousado numa mesinha ao lado da sua cadeira. -
A descrição verbal de Baylor é muito mais impressionante do que a simples leitura de um relatório. - Fez urna breve pausa, como se procurasse coordenar as ideias. - Está calmo, quase passivo, mas quem lhe observa o rosto compreende o que vai lá por dentro. Sente profundamente a responsabilidade do sucedido.
- Perguntou-lhe como Havelock se inteirou? - inquiriu Dawson, inclinando-se para a frente. - Esse pormenor não figura no relatório.
- Não figura, porque ele não sabe. Havelock pareceu não desconfiar de nada até ao últijrno instante. Como está registado, conversavam calmamente, quando Ogilvie puxou do maço de tabaco e tudo indica que pediu lume. Havelock estendeu-lhe uma carteira de fósforos e foi nesse momento que tudo aconteceu. De repente, aplicou um pontapé no nosso homem, que caiu do banco em que se sentava e fez explodir a cápsula. Quando a nuvem de gás se dissipou, Ogilvie encontrava-se no chão e Havelock apontava-lhe uma automática.
- Por que não disparou Baylor nesse momento? - A perturbação do advogado notava-se perfeitamente na voz.
- Por nossa causa - replicou Stem. - As ordens eram bem explícitas: Havelock devia ser capturado vivo. Só poderia intervir uma decisão de "último recurso".
- Mesmo assim, podia tê-lo alvejado - insistiu Dawson. - Li o processo de Baylor, onde são referidas as suas qualidades de atirador, entre várias outras. Formou-se em
Rhodes, pertenceu às Forças Especiais e as tácticas da luta de guerrilha não têm segredos para ele.
- Sim, como se trata de um negro, tinha de ser mesmo bom, para que o admitissem. Onde pretende chegar?
- Podia limitar-se a ferir Havelock. Nas pernas, nos ombros, na região pélvica. Conjugando os esforços, ele e Ogilvie acabariam por dominá-lo.
- Isso é exigir uma pontaria extraordinária de uma distância de vinte e cinco a trinta metros.
- Quase a equivalente ao raio de acção de qualquer arma de mão, além de que Havelock estava imóvel. Não se tratava de um alvo em movimento. Interrogou Baylor a esse respeito?
- Francamente, não vi motivo algum para o fazer. Tem muito em que pensar, incluindo vários ossos da mão fracturados que podem valer-lhe o afastamento da tropa. Quanto a
mim, actuou da melhor maneira, numa situação imprevista. Aguardou até que viu Havelock apontar a automática a Ogilvie e convencer-se de que este não dispunha da mínima possibilidade de o dominar. Só então fez fogo, no momento exacto em que o nosso enviado se inclinou para a frente e recebeu a bala. Corresponde tudo ao resultado da autópsia praticada em Roma.
- A hesitação custou a vida a Ogilvie - observou o advogado, sem se mostrar satisfeito.
- Abreviou-a - corrigiu o médico. - E não muito.
- Também está registado no relatório - acrescentou Stem.
- Isto pode parecer um pouco chocante, dadas as circunstâncias, e talvez se relacione
- declarou Dawson. - Exagerámos a confiança que depositámos nele.
- Não- discordou o director das Operações Consulares. - Subestimámos as faculdades de Havelock. De que mais necessitamos? Passaram três dias desde o episódio do Palatino e, nesse lapso de tempo, ele destruiu um chefe regional de operações secretas, aterrorizou os nossos colaboradores locais de Roma, nenhum dos quais quer voltar a trabalhar para nós, e aniquilou a rede. Como se isso não bastasse, enviou um telegrama, através da Suíça, ao presidente da Vigilância do Congresso, aludindo a incompetência e a corrupção da CIA em Amesterdão. E, nesta manhã, recebemos um telefonema do chefe da segurança da Casa Branca, que não sabia se devia estar alarmado ou indignado. Também lhe chegou à s mãos um telegrama, esse em código mil e seiscentos, afirmando que havia uma toupeira soviética nas proximidades do presidente.
- Isso é o resultado da suposta confrontação de Havelock com Rostov, em Atenas -
explicou Dawson, indicando os documentos na sua frente. - Baylor mencionou esse pormenor.
- E o Paul duvida de que isso acontecesse disse Stem, virando-se para Miller.
- Fantasia e realidade - alegou o psiquiatra. Se toda a informação que recebemos é exacta, ele passa periodicamente da realidade para a fantasia. Se a informação é exacta. Existem possibilidades de se verificar um certo grau de incompetência, talvez até alguma corrupção, em Amesterdão. De qualquer modo, afigura-se-me pouco provável que uma toupeira soviética consiga introduzir-se no círculo presidencial.
- Podemos cometer, e cometemos, erros aqui e no Pentágono, assim como em Langley, sem dúvida - afirmou Stem. - Mas, lá, as hipóteses de erros desse tipo são ínfimas. Não vou ao ponto de garantir que não pode acontecer, ou nunca aconteceu, embora devamos ter presente que todas as pessoas relacionadas com a Casa Branca estão, por assim dizer, permanentemente sob o microscópio. Os recrutas são investigados como se pudessem ser herdeiros de Estaline, em obediência a um sistema que data de mil novecentos e
quarenta e sete. - Fez uma pausa e continuou com ar pensativo: - Havelock sabe que teclas deve premir, que pessoas deve abordar e que códigos deve utilizar. Tem possibilidades de criar pânico, porque confere autenticidade às suas informações... Até onde lhe parece que irá, Paul?
- Não posso apresentar um prognóstico absoluto, Daniel - redarguiu o interpelado, meneando a cabeça. - Apenas estou em condições de adiantar conjecturas.
- Conjecturas ditadas pela experiência - salientou o advogado.
- Gostava de defender um cliente sem estudo prévio do processo? - perguntou Miller.
- Você dispõe de depoimentos, estatísticas e um processo pormenorizado. Parece-me uma base sólida.
- É uma analogia pouco feliz. Lamento tê-la abordado.
- Se não conseguirmos localizá-lo, até onde irá? - persistiu Stem. - Quanto tempo temos até que comece a custar vidas?
- Já começou - lembrou Dawson.
- Não no sentido controlado - contrapôs Miller. - Foi uma reacção directa e um ataque violento à sua vida. Há uma diferença.
- Explique-a.
- Do meu ponto de vista - esclareceu o psiquiatra, debruçando-se sobre os documentos e ajustando os óculos no nariz. - Há uma ou duas coisas que lançam um pouco de luz no assunto e, para ser franco, me preocupam. A chave de tudo reside, claro, nas palavras que Havelock e Ogilvie trocaram, mas como ignoramos quais foram, temos de nos contentar
com a descrição da cena efectuada por Baylor. Li-a e reli-a várias vezes até ao instante final, a erupção da violência, e impressionou-me um pormenor que não esperava encontrar. A ausência de hostilidade persistente.
- Hostilidade persistente? - repetiu Stem. - Não sei o que isso implica em termos de comportamento, mas espero que não signifique que não discutiram, porque o fizeram. Baylor deixou esse ponto bem claro.
- Decerto que discutiram, uma vez que se tratava de uma confrontação. Houve uma explosão prolongada da parte de Havelock, durante a qual reiterou as suas ameaças, mas acabou por acalmar e chegaram a um acordo. Não podia passar-se outra coisa, em face do que se seguiu.
- Em face do que se seguiu? Mas o que se seguiu foi o ataque de Ogilvie, a difenilamina, a libertação do gás.
- Engana-se, Daniel. Houve um recuo, antes disso. Lembre-se de que, desde o momento em que Havelock se apresentou no carainanchel até que aplicou o pontapé em Ogilvie e o fez desequilibrar do banco, comprometendo o êxito do ataque deste, não se registou o mínimo sinal de violência. Apenas palavras, conversações. Depois, surgiram os cigarros, os fósforos. Foi tudo muito forçadamente razoável.
- Que quer dizer?
- Ponha-se no lugar de Havelock. O seu rancor é enorme e o homem que considera seu inimigo pede-lhe lume. Que faz?
- Não passa de um fósforo.
- Exacto, apenas um fósforo. Mas você está excitado, a cabeça lateja-lhe de ansiedade, domina-o um estado de espírito agressivo. O homem na sua frente representa a traição no aspecto mais hediondo. É-assim que um esquizofrénico paranóico reage numa situação dessas e perante um homem daqueles. E o homem, o inimigo (embora prometesse dizer-lhe tudo o que queria ouvir), pede-lhe lume. Como procederia você?
- Dava-lho.
- COMO?
- Bem... - Stem interrompeu-se e fitou o interlocutor com intensidade. - Atirava-lhe a carteira de fósforos.
- Ou dizia-lhe que continuasse a falar, sem fazer caso do pedido. Em todo o caso, não acredito que puxasse da carteira de fósforos e lha entregasse, como se acabasse de se registar
uma pausa momentânea numa conversa banal e não houvesse uma atmosfera extremamente tensa. Não, duvido de que procederia assim. Você ou qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias.
- Não sabemos o que Ogilvie lhe disse - objectou. - Podia...
- Não compreende que quase não interessa? - interrompeu o psiquiatra. - É o padrão da situação.
- Deduzido de uma carteira de fósforos?
- Sim, porque é sintomático. Ao longo de toda a confrontação, à excepção de uma
única explosão, verificou-se uma notável ausência de agressividade da parte de Havelock. Se a descrição de Baylor é tão exacta como pensamos (e estou convencido de que sim, porque se sentiria inclinado para exagerar qualquer movimento ou gesto ameaçador), Havelock teve um comportamento extraordinariamente controlado... racional.
- Que conclui daí? - inquiriu Dawson, quebrando o silêncio em que mergulhara.
- Não tenho bem a certeza - confessou Miller. - No entanto, sei que a atitude não se adapta ao homem que nos convencemos que enfrentamos. Pode afirmar-se que há demasiada sensatez presente e loucura em quantidade insuficiente.
- Mesmo com as suas passagens intermitentes da realidade para a fantasia e vice-versa?
- Isso não é relevante, neste caso. A sua realidade constitui o produto da experiência que possui, das actividades quotidianas. Por outro lado, as convicções baseiam-se largamente nas emoções. Nas condições do encontro no Palatino, deviam ter aflorado mais, para lhe distorcer a realidade, obrigando-o a escutar menos e a mostrar-se mais agressivo. Ora, ele escutou em excesso.
- Suponho que compreende o que se infere daí - articulou o advogado.
- Compreendo o que sugiro, com base em dados que aceitámos como totalmente exactos.... desde o princípio.
- Por outras palavras, o homem que compareceu no Palatino, há três dias, não corres-
ponde às conclusões que traçámos? - aventurou Dawson.
- Pode não corresponder. Não se trata de uma afirmação peremptória. Apenas de conjecturas ditadas pela experiência. Desconhecemos o que foi dito, mas há demasiada racionalidade para o meu gosto no que nos descreveram. Ou nas conclusões.
- Fundamentadas em informações que considerámos irrefutáveis - salientou o advogado. - "Desde o princípio", segundo a sua expressão. Desde a Costa Brava.
- Exacto. Mas suponhamos que não eram? Que não são?
- Impossível! - exclamou o director das Operações Consulares. - Essas informações foram passadas por umas dezenas de peneiras e depois filtradas outras tantas vezes. Não havia a mínima possibilidade de erro. Jerina Karas trabalhava para o KGB e morreu de facto na Costa Brava.
- Foi o que aceitámos - concordou o psiquiatra. - E espero sinceramente que corresponda à verdade e as minhas observações não passem de reacções sem valor a uma cena descrita de forma inexacta . De contrário, se existir a mais remota possibilidade de não estarmos perante um psicopata, mas frente a um homem que fala verdade, depara-se-nos uma situação que nem me atrevo a encarar.
Os três homens conservaram-se silenciosos, impressionados com a enormidade do que acabava de ser sugerido, até que Dawson murmurou:
- Temos de analisar a possibilidade.
- Só considerá-la, já é impressionante - disse Stem. - Havia a confirmação de MacKenzie, e era uma confirmação. Os fragmentos de vestuário pertenciam a Jerina Karas, como se comprovou. E o tipo de sangue, A negativo, também.
- E Steven MacKenzie sucumbiu a uma trombose, três semanas depois - interpôs Miller. - Tentámos aprofundar o assunto, mas os pormenores escasseavam.
- Aquele médico de Maryland é um dos mais respeitados da Costa Oriental - alegou o director das Operações Consulares. - Como se chama?... Randolph, Matthew Randolph. Aliás, foi interrogado minuciosamente.
- Gostava de voltar a conversar com ele - declarou o psiquiatra.
- E convém não esquecer que a folha de, serviço de MacKenzie é das mais admiráveis das existentes nos arquivos da Central Intelligence Agency - volveu Stem. - O que você sugere parece-me inconcebível.
- Disseram o mesmo do cavalo de Tróia - retrucou o advogado. - Quando foi concebido. - Virou-se para Miller, que tirara os óculos. - Conjecturas ditadas pela experiência, Paul. Aprofundemo-las até ao fim. Que pensa que ele fará a seguir?
- Posso dizer-lhes o que não fará. Não nos procurará, e escusamos de perder tempo com novos estratagemas, porque está ciente de que o que aconteceu foi provocado-por nós e que o ignoramos, achando-se ele fora do nosso domínio. Após o ataque que o visou, organizará todas as defesas que aprendeu nos dezasseis anos de actividade como agente de "campo". E, doravante, será implacável, porque foi traído por homens que vê em lugares onde não deveriam estar. - O psiquiatra fez uma pausa e fitou Stem. - Aí tem a resposta à pergunta, Daniel. Por estranho que nos pareça, Havelock regressou ao passado, aos dias das rajadas de metralhadora, Lidice, traição, execuções sumárias. Vagueia pelas ruas, perguntando-se quem, entre a multidão, será o seu verdugo.
Soou um zumbido no painel do telefone junto de Stem e este pegou no auscultador, sem desviar os olhos de Miller:
- Sim? - Seguiram-se trinta segundos de silêncio, até que indicou: - Não desligue.
- Premiu a tecla e dirigiu-se aos outros dois estrategos. - É de Roma. Encontraram um homem em Civitavecchia que revelou o nome de um navio. Pode ser a rapariga. Ou uma artimanha dos soviéticos. Baylor perfilhava essa teoria e continua a sustentá-la... A ordem inicial mantém-se. Capturar Havelock, mas não despachá-lo. Não se deve considerar <@ irrecuperável". Agora, tenho de fazer uma pergunta. Em particular a você, Paul, e sei que não o posso vincular a uma resposta irrefutável.
- Isso é a única coisa irrefutável.
- Actuámos com base na suposição de que enfrentávamos um homem desequilibrado, alguém cuja paranóia o podia induzir a entrar documentos ou fazer revelações sobre operações do passado a entidades estranhas. E exacto?
- Sim, basicamente. É o tipo de manipulação a que uma mentalidade esquizofrénica se entregaria, a satisfação resultante tanto da vingança como da ameaça. Note-se que essas entidades estranhas seriam elementos indesejáveis, pois as pessoas respeitáveis não contactariam semelhante indivíduo, o que, no fundo, ele não ignora. É um jogo compulsivo, involuntário. Não pode vencer, apenas tentar vingar-se, o que constitui precisamente o perigo.
- Um homem de mente sã praticaria esse jogo?
O psiquiatra reflectiu por um momento, antes de responder:
- Da mesma maneira, não.
- Explique-se melhor.
- Você fá-lo-ia?
- Por favor, Paul.
- Falo a sério. Você havia de se preocupar mais com a ameaça do que com a vingança. Pretende um coisa e a ameaça pode vir a talhe de foice, mas não figura em primeiro lugar. Interessam-lhe respostas, explicações. As ameaças podem proporcionar-lhas, mas o risco de divulgar informações confidenciais, fornecendo-as a negociadores altamente suspeitos, deturparia o objectivo básico.
- Como actuaria um homem mentalmente são?
- Provavelmente faria chegar aos ouvidos de quem ameaçava o género de informações que tencionava revelar. Depois, trataria de contactar terceiras partes, chamemos-lhes assim, qualificadas (porventura, editores ou homens e mulheres à testa de organizações que resistem legítima e abertamente ao género de actividades a que nos dedicamos), e estabeleceria um acordo. É esta a maneira de proceder de uma mente sã, o seu método de ataque, a sua ameaça final.
- Não há provas de que Havelock fizesse nada disso.
- Passaram-se apenas três dias desde o episódio do Palatino. Estas coisas levam o seu tempo.
- Teríamos de aceitar a sua lucidez mental.
- Penso que sim, e dou a mão à palmatória. No entanto, agora começo a admitir a possibilidade de suprimir o rótulo que lhe atribuí.
- Se o suprimimos, aceitamos implicitamente a possibilidade do ataque de um indivíduo lúcido. Será implacável, mais perigoso que um esquizofrénico.
- Sim - assentiu o psiquiatra. - Um homem desequilibrado pode ser repudiado, os
chantagistas neutralizados... e reveste-se de importância ter presente que nenhum extorsionista tentou contactar-nos desde o caso da Costa Brava. Por outro lado, os interesses legítimos, por mal orientados que sejam, podem produzir estragos impressionantes.
- Custando-nos redes de agentes, informadores, anos de trabalho. .. - O director das Operações Consulares estendeu a mão para a tecla do telefone. - E vidas.
- Ao mesmo tempo, se desfruta de perfeita lucidez, se foi a rapariga que viu, o problema assume uma profundidade muito mais importante - opinou Dawson, após novo silêncio prolongado. - A sua culpabilidade, a sua morte... é tudo posto em causa.
Todas as informações infalíveis filtradas naquelas peneiras de alto nível passam a apresentar-se como uma série de incoerências. São essas as explicações que Havelock pretende.
- Conhecemos as suas dúvidas e não podemos elucidá-lo - replicou Stem, que continuava com a mão suspensa sobre a tecla. Só podemos impedi-lo de provocar estragos irreparáveis. - Calou-se por um momento, de olhar fixo no telefone. - Quando entrámos nesta sala abarcámos bem a situação. A única moralidade neste ambiente é de natureza pragmática, sem qualquer filosofia além do nosso próprio grau de utilitarismo: a maior vantagem para muitos em detrimento das minorias, do indivíduo.
- Se o colocarem na categoria de "irrecuperável", não os apoiarei - preveniu o advogado a meia-voz, mas com veemência. - E não de um ponto de vista ético, mas prático.
Qual? Necessitamos dele para investigar o segundo problema, mais profundo. Se goza de lucidez, existe um método que ainda não tentámos e ao qual talvez preste atenção. Como sabemos, actuámos partindo do princípio de que estava desequilibrado, única conclusão a que podíamos chegar com os elementos disponíveis. Se tal não acontecer, ele pode escutar a verdade.
- Qual verdade?
- A de que não sabemos. Admitimos que viu Jerina Karas e que ela está viva e asseguramos-lhe que as explicações nos interessam a nós tanto como a ele. Talvez mais.
- Partindo do princípio de que conseguimos estabelecer contacto, suponha que só exige as explicações que não lhe podemos fornecer e considera tudo o resto uma artimanha para o capturar. Que faremos, nesse caso? Possuímos os elementos sobre a Costa Brava, que contêm os nomes de todas as pessoas envolvidas. Que informação útil nos pode prestar? Por outro lado, sabemos os estragos que pode provocar, o pânico que pode fomentar, as vidas que pode custar.
- A vítima converte-se no vilão - resmungou Miller. - Valha-nos Deus.
- Encaremos os problemas por ordem de entrada em cena e de prioridade e, na minha opinião, deparam-se-nos duas crises distintas - disse Stem. - Relacionadas, mas separadas. Aprofundemos a primeira. Que alternativa nos resta?
- Podemos confessar que não sabemos! - alvitrou Dawson, com ansiedade.
- Desenvolver-se-ão todos os esforços para cumprir a ordem inicial de o capturar vivo. Mas temos de admitir a opção.
- Ao admiti-Ia, reconhecemos que ele é um traidor, informação que utilizarão à mínima provocação, para o abater. Repito que não os posso apoiar.
O director das Operações Consulares contemplou o advogado em silêncio por uns segundos. Havia numerosos pequenos sulcos em tomo dos olhos, que deixavam transparecer uma expressão de dúvida.
- Se a questão assume este aspecto, é a altura - declarou, por fim.
- De quê - inquiriu Miller.
- De informar o gabinete de Mattilias. Os tipos podem ou não contactar o velho, conscientes de que o tempo urge. Eu próprio procederei a um resumo da situação. - Stem premiu finalmente a tecla do telefone. - Roma? Desculpe fazê-lo esperar, mas receio que as coisas se agravem. Mantenham o navio sob vigilância e enviem alguém a Col des Moulinets, preparado para receber novas instruções pela rádio. Se tal não acontecer até ao momento em que aterrar, deve contactar-vos cada quinze minutos. Conserve esta linha aberta apenas para sua utilização pessoal. Daremos notícias logo que possível: eu ou alguém lá de cima. No caso de outra pessoa, o código será... Ambiguidade. Tome nota. Ambiguidade. Nada mais, de momento. - Pousou o auscultador, libertou a tecla e levantou-se. -
Custa-me fazer isto, logo numa altura destas. Consideramo-nos a blindagem com mil olhos, que vê e sabe tudo.
- Não é a primeira vez que precisamos de auxílio exterior - frisou o psiquiatra.
- Só para questões de táctica fora do âmbito de Ogilvie e nunca para situações de avaliação. Nunca para um assunto destes.
- Não somos um conselho de administração empenhado em obter os maiores dividendos para os accionistas - persistiu Dawson. - Herdámos o episódio da Costa Brava, não o provocámos.
- Eu sei - murmurou Stem, dirigindo-se para a polia. - No fundo, talvez seja uma consolação.
- Quer que o acompanhemos? - perguntou Miller.
- Não, exporei os factos com imparcialidade.
- Nunca duvidei.
- Travamos uma corrida contra o tempo, em Roma - prosseguiu o director das Operações Consulares. - Quantos menos formos, menor o número de perguntas. De qualquer modo, estão reduzidas a uma. Normal ou alucinado? " Irrecuperável" ou não? Abriu a porta e voltou a fechá-la atrás dele, em silêncio.
- Já reparou que a frase "Não o posso apoiar" foi utilizada pela primeira vez, em três anos - observou Miller, voltando-se para Dawson. Não "Duvido" ou "Discordo", mas um rotundo "Não o posso apoiar".
- Eu não podia. Daniel é um estatístico. Os números (fracções, equações, totais) indicam-lhe as probabilidades. Pode considerar-se brilhante e já salvou centenas de vidas com as suas estatísticas. Indivíduos que mudam de campo. Promotores num beco sem saída, porque uma cláusula legal os impede de relacionar uma prova com outra. Criminosos indignados com minúsculas discrepâncias de testemunhas, quando a única coisa causadora de indignação são os seus crimes. Assisti a numerosos casos desses e há ocasiões em que as probabilidades não se encontram nos números, mas nas coisas que não se abarcam na altura.
- É estranho, não acha? Refiro-me às nossas diferenças. Daniel vê os números, você complicações e eu... possibilidades baseadas em partículas.
- Uma carteira de fósforos?
- Acho que sim. - O psiquiatra fitou o advogado sem pestanejar. - Acredito naqueles fósforos. Acredito no que representam.
- Eu também. Pelo menos na hipótese que sugerem. É essa a complicação. Se existe uma possibilidade de Havelock estar tão lúcido como qualquer de nós, tudo o que afirma corresponde à verdade. A rapariga (culpabilidade falsa gerada nas profundezas dos nossos laboratórios) viva, em fuga. Rostov em Atenas (um engodo, rejeitado, para atrair a Lubyanka, por razões desconhecidas), uma toupeira soviética em mil e seiscentos... Complicações, doutor. Precisamos de Havelock para nos ajudar a desfiar a meada. Se aconteceu (o que quer que seja), é assustador. - Dawson impeliu a cadeira para trás com um movimento brusco e pôs-se de pé. - Tenho de voltar para o meu gabinete. Vou deixar um bilhete a Stem, se precisar de falar comigo. E você?
- Hem? Ali, não, obrigado. - Miller parecia profundamente preocupado. - Tenho uma sessão às cinco e meia, em Bethesda. Um fuzileiro de Teerão. É de facto assustador.
- Sem dúvida, Paul. Muito.
- Procedemos como devíamos. Ninguém da secção de Matthias considerará Mikhail Havlicek "irrecuperável@>.
- Pois não. Eu contava com isso.
O director das Operações Consulares abandonou o gabinete no quarto piso, Secção L, do Departamento de Estado, e fechou a porta com lentidão, afastando igualmente uma parte do problema no seu espírito. O homem com o qual acabava de partilhar a responsabilidade -
que poderia alcançar Roma sob a designação de Ambiguidade e analisar a situação - fora escolhido meticulosamente. Pertencia ao círculo íntimo de Anthony Manhias, o qual confiava nele sem reservas. Ponderaria todas as opções, antes de tomar uma decisão - sem dúvida coadjuvado por alguém.
Os dados em jogo eram tão claros quanto possível. Se Havelock estava em plena posse das faculdades mentais e falava verdade, achava-se em condições de produzir estragos consideráveis, porque fora traído. E, nessa eventualidade, havia traição em Washington, em lugares inconcebíveis. Crises relacionadas, porém distintas. Deveria, pois, ser imediatamente rotulado de "irrecuperável", para que a sua morte impedisse os prejuízos que poderia causar nas operações secretas desenroladas em toda a Europa, ou protelar a ordem de execução, na esperança de que acontecesse algo susceptível de reconciliar um homem que não passava de uma vítima inocente com aqueles que não o trairiam?
Em Col des Moulinets, o único caminho a seguir consistia em localizar a mulher e, se fosse Jerina Karas, conduzi-Ia à presença de Havelock, para que conjugassem os esforços e pusessem termo à segunda e potencialmente maior crise registada em Washington. Todavia, se não se tratasse de Jerma Karas, mas de um ardil dos soviéticos, e só existisse como uma marioneta letal destinada a enlouquecer um homem e levá-lo à traição, qual seria o rumo a seguir? Ou se estivesse viva e não lograssem encontrá-la, Havelock escutá-los-ia? Mikhail Havlicek, vítima e sobrevivente de Lidice, prestar-lhes-ia atenção, ou veria traição onde ela não existia e decidiria, por seu turno, trair o país adoptivo? Nessa hipótese, protelar a ordem de execução representaria uma medida justificada? Decerto não se justificaria em relação a redes de operações desmanteladas ou a agentes secretos que se encontravam em Lubyanka. E se fosse essa a solução, subsistia a possibilidade - a probabilidade - de um homem ter de morrer porque estava dentro da razão.
A única moralidade nisto é a realidade pragmática, sem qualquer filosofia além do nosso grau de utilitarismo: a maior vantagem para muitos, em detrimento da minoria, do indivíduo.
Era esta a verdadeira solução, como as estatísticas comprovavam. No entanto, tratava-se do território íntimo do domínio de Anthony Matthias. Encará-la-iam assim? Era natural que não, como Stem reconhecia. O medo impeliria o homem com o qual se avistara a contactar o secretário de Estado, que protelaria a decisão.
E uma parte de Daniel Stem - não a profissional, mas a pessoal, interior - não objectava. Um homem não devia morrer porque tinha razão, porque estava mentalmente lúcido. Não obstante, ele desenvolvera os seus melhores esforços para tomar as opções bem claras e justificar a morte, se fosse caso disso. E fora afortunado num aspecto, reflectia, enquanto se aproximava da porta de saída da sala de recepção: não podia ter exposto a questão a um indivíduo mais imparcial e ponderado. Arthur Pierce era o subsecretário de Estado e situava-se muitos furos acima dos outros em rectidão e competência, num departamento em que todos os funcionários eram escolhidos a dedo. Ainda havia uns vinte nos seus gabinetes, quando Stem emergira do elevador no quarto piso, porém o nome de Pierce assumira imediatamente particular relevo. Este não se encontrava em Washington todos os
dias, pois também prestava serviço nas Nações Unidas, em Nova Iorque, como elemento de ligação entre o embaixador e o Departamento de Estado, posição determinada por Anthony Matthias, que sabia o que fazia. Com o tempo e a experiência, Pierce acabaria por ser nomeado embaixador na ONU.
E ninguém duvidava de que as suas qualidades - inteligência, integridade e decência, entre outras - eram necessárias e indispensáveis, nos tempos actuais... "Ou não?", ponderava Stem, surpreendido com a ideia, transpondo a porta da sala de recepção. "A única moralidade, aqui, é a pragmática. @> Havia decência nisso para centenas de vítimas potenciais no "campo".
De qualquer modo, o assunto achava-se fora das suas mãos. A decisão a tomar e transmitir sob o nome de código Ambiguidade passava a pesar na consciência de Pierce. Sereno, inteligente, compreensivo, o subsecretário de Estado analisaria todas as facetas da questão e consultaria outros. O veredicto partiria de uma comissão, se porventura fosse pronunciado. Todos os seus componentes partilhavam da identidade de Ambiguidade.
- Mr. Stem? - chamou a recepcionista, quando ele principiava a encaminhar-se para o elevador.
- sim?
- Tenho um recado para si. Era do seguinte teor: @<Ainda fico um par de horas no meu gabinete. Se está com disposição, venha tomar uma bebida. Depois, levo-o a casa."
Dawson não assinara, nem era necessário. O circunspecto advogado parecia adivinhar sempre quando havia conveniência numa conversa em ambiente sossegado. Os dois homens frios e analíticos careciam ocasionalmente da companhia mútua, para se entregarem à expansão das suas características menos solenes. A oferta humorística para o levar a casa representava uma alusão à aversão que o tráfego de Washington suscitava a Stem. Recorria atáxis com frequência, ante a arreliado pessoal da vigilância. Enfim, a equipa que estivesse de serviço naquela tarde poderia desfrutar de uma pausa e dirigir-se posteriormente à sua residência, na Virgínia. Até lá, os guardas de Dawson bastariam para velar por ambos.
Ogilvie não se equivocara: o assunto constituía uma insensatez, uma espécie de ressaca dos dias de embriaguez em Langley. Stem consultou o relógio e verificou que eram 19.20, mas não duvidava de que o advogado continuaria no gabinete, à sua espera.
Conversaram durante mais de uma hora antes de se dirigirem para o carro de Dawson, analisando repetidamente os acontecimentos da Costa Brava e reconhecendo que não existia qualquer explicação ao seu alcance. Tinham telefonado às respectivas mulheres, habituadas ao seu horário irregular, embora admitissem secretamente que as exigências dos lugares que ocupavam no Governo expunham o matrimónio a duras provações. No entanto, consolavam-se com a certeza de que aquela vida desgastante terminaria um dia, para ingressarem no mundo mais tranquilo fora da área do Potomac.
- Pierce consultará Matthias, que se negará a considerar a proposta - afirmou Dawson, conduzindo o carro pela estrada de acesso à Virgínia, no momento em que passavam
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por um letreiro luminoso com a advertência @<TRABALHOS DE CONSTRUÇÃO". Exigirá uma revisão do problema.
- Recebeu-me a sós - explicou Stem, lançando uma olhadela ao espelho retrovisor, consciente de que não tardaria a avistar um par de faróis no seu encalço, pois os guardas nunca se distanciavam muito. - Fui equilibrado mas firme: ambas as decisões têm méritos e deméritos. Quando ele falar com a sua comissão, talvez decidam procurar Matthias devido ao factor tempo, que, de resto, salientei. Dentro de menos de três horas, haverá pessoal nosso em Col des Moulinets. E Havelock também comparecerá. Os agentes precisam de saber como devem actuar.
- De qualquer modo, começarão por tentar capturá-lo vivo.
- É a prioridade e ninguém deseja a alternativa. Mas não me iludo. Aliás, você tinha razão, esta tarde. Se o considerarem "irrecuperável", morrerá. Representará uma autorização para abater alguém que matará, se lhe derem a oportunidade.
- Não forçosamente. Eu posso ter exagerado na minha apreciação. Se a ordem for clara (despachar só em último recurso), talvez me engane.
- Engana-se neste momento. Julga que Havelock lhes dará a escolher? Sobreviveu à armadilha no Palatino e empregará todos os ardis da sua cartilha. Ninguém se aproximará o suficiente para o apanhar. Mas existe a possibilidade de lhe apontarem a mira de uma espingarda de longo alcance. É uma coisa que se pode fazer e decerto o farão.
Confesso que sinto relutância em concordar. É preferível a não me apoiar. Mais fácil - admitiu Dawson, com um leve sorriso. - No entanto, ele ignora que localizámos o homem em Civitavecchia e que o esperarão em Col des Moulinets.
- Deduzi-lo-á. Revelou a Baylor como Jenna Karas se escapou, ou melhor, como está convencido de que se escapou, e calculará que o seguiremos. Concentrar-nos-emos nela, claro. Se se trata na verdade de Jetiria Karas, é a chave de tudo e resolvernos o imbróglio sem disparar um tiro. Depois, com Havelock, poderemos analisar a situação, aqui. É a hipótese óptima e faço força para que aconteça. Mas resta uma possibilidade de não termos essa sorte.
- E, nessa eventualidade, ficamos com um homem na mira de uma espingarda de longo alcance - resmungou, acelerando à entrada de uma recta extensa. - Se for Jenna Karas, temos de a encontrar. Temos mesmo.
- Envidaremos os melhores esforços, seja ela quem for - asseverou Stem, tomando a desviar os olhos para o espelho retrovisor, onde o par de faróis continuava a não surgir. -
É estranho. Os cães de guarda perderam-se ou não conseguem acompanhar a nossa velocidade.
- Havia muito trânsito na auto-estrada. Se tiveram de enveredar por uma faixa de andamento reduzido, podem amolgar o pára-choques ao tentar sair. Às sextas-feiras, há grande movimento de caçadores de fim-de-semana. Em noites como esta, compreendo que você deteste conduzir.
- Que equipa está hoje de serviço? A pergunta não obteve resposta. Ao invés, brotou um grito rouco da garganta do advogado no momento em que se registou o impacto ensurdecedor, que reduziu o pára-brisas a milhares de pequenas lâminas voadoras apontadas a olhos, veias e artérias. Em seguida, o lado esquerdo do carro deixou de contactar o solo e atirou os dois corpos para a ravina que ladeava a estrada.
O monstro de aço vibrava poderosamente, e a enorme máquina que removia terra e pedras das montanhas prosseguiu em frente, esmagando o veículo sinistrado e impelindo-o para a ravina, onde tombou pesadamente, antes de se incendiar e consumir os corpos aos quais fora fazer companhia.
Em seguida, o monstro retrocedeu para o arvoredo de onde surgira para proceder à obra destruidora. Uma vez aí, o condutor imobilizou-o, desligou o motor e pegou num transmissor.
- Ambiguidade concluída - anunciou secamente.
- Afaste-se daí - foi a resposta em inflexão metálica.
O longo sedan cinzento abandonou a auto-estrada e enveredou pela secundária que conduzia à Virgínia. Como a chapa de matrícula indicava, achava-se registado no Estado da Carolina do Noite, porém um investigador persistente descobriria que o residente de Raleigh indicado como proprietário era na realidade um dos vinte e quatro homens que prestavam serviço em Washington, D. C. Constituíam uma unidade, cada um dos quais possuía larga experiência de actividades na polícia militar e contra-espionagem, dependentes do Departamento de Estado. O carro que naquele momento percorria a estrada deserta fazia parte de uma frota de doze, também pertencentes àquela repartição ou, mais concretamente, à Divisão de Operações Consulares.
- Contactem a companhia de seguros de Raleigh - proferiu o homem sentado ao lado do condutor, empunhando o microfone ligado a um largo painel de rádio no tablier. - Um lunático fez uma ultrapassagem suicida e obrigou-nos a embater num tipo de Jérsia. Nós nada sofremos, claro, mas o desgraçado ficou sem porta-bagagens. Para não perdermos tempo, dissemos-lhe...
- Graham!
- Que foi?
- Lá adiante! O incêndio!
- Com a breca! Carrega no pedal!
O sedan adquiriu uma velocidade vertiginosa, enquanto o ronco do motor ecoava na estrada deserta. Transcorridos nove segundos alcançaram o ponto em que havia a ravina e o condutor travou ruidosamente. Os dois homens apearam-se com prontidão e correram para a berma, todavia o calor das chamas obrigou-os a retroceder e a levar as mãos aos olhos, numa protecção instintiva.
- Valha-me Deus! - bradou o condutor. - É o carro de Dawson! Talvez possamos...
- Não - rugiu Graham, impedindo-o de rastejar ao longo do declive e fixando os olhos no tractor imobilizado à entrada do arvoredo próximo. - Miller! - gritou em seguida. -
Onde está Miller?
- Na folha dizia Bethesda, salvo erro.
- Localiza-o! - ordenou, atravessando a estrada e puxando da automática. - Contacta Bethesda! Chama-o!
A enfermeira-chefe na Recepção do quinto piso do Hospital Naval de Bethesda mostrava-se intransigente e parecia não apreciar particularmente o tom do homem do outro lado do fio. Além disso, a ligação era deficiente, e os gritos dele só serviam para agravar a situação.
- Repito que o doutor Miller está numa sessão de psiquiatria e não pode ser interrompido.
- Chame-o imediatamente! Trata-se de uma Emergência Quatro Zero das Operações Consulares do Departamento de Estado. É uma ordem directa transmitida através do P.13.X. do Departamento. Confirme, por favor.
- Confirmado - interveio uma terceira voz, em inflexão átona. - Fala o operador um sete, para sua informação. Departamento de Estado.
- Muito bem, operador um sete, e garanto-lhe que nos certificaremos. - A enfermeira. premiu o botão que conservava a linha presa, pondo termo a ulterior palavreado, abandonou a cadeira e contornou o balcão. Eram os indivíduos estéricos como aquele que se intitulava funcionário das Operações Consulares, que mantinham as enfermarias de psiquiatria permanentemente repletas. Invocavam uma emergência ao mínimo pretexto, na maioria dos casos para tentarem impressionar os outros com a sua pretensa autoridade. Ficaria profundamente satisfeita se o dr. Miller se recusasse a atender o telefone. No entanto, sabia que tal não aconteceria, pois tratava-se de um profissional que aliava a elevada competência a uma profunda bondade. Por fim, alcançou a porta da sala T. R. 20, verificou que a luz vermelha estava acesa, e premiu o botão do intercomunicador. - Desculpe interrompê-lo, doutor Miller, mas um homem do Departamento de Estado deseja falar-lhe com urgência.
Não obteve resposta e admitiu a possibilidade de o aparelho estar avariado. Não obstante, tomou a carregar no botão, agora com mais força, e insistiu:
- Doutor Miller? Lamento incomodá-lo, mas há uma chamada para si do Departamento de Estado. A pessoa diz que se trata de um assunto urgente, e o nosso operador confirmou a proveniência da ligação.
Nada. Silêncio. Nenhum indício de que a tivesse ouvido. Era óbvio que o intercomunicador não funcionava, pelo que ela se aventurou a bater à porta.
- Doutor Miller? Doutor Miller? Nunca lhe notara indícios de surdez, pelo que devia estar profundamente concentrado.
O paciente que observava naquele momento era um fuzileiro que fizera parte dos reféns de Teerão. Não se tratava de um indivíduo violento. Na realidade, até se mostrava excessivamente passivo. Ter-se-ia verificado uma regressão? Por fim, a enfermeira estendeu a mão para o puxador e abriu a porta.
Soltou um grito agudo que lhe pareceu interminável. Agachado a um canto, tremendo, via-se o jovem fuzileiro envolto no roupão oferecido pelo Governo. Arregalava os olhos do outro lado do candeeiro em cima da secretária, contemplando o homem imóvel na cadeira rotativa. Miller tinha também os olhos desmesuradamente abertos, vítreos, como os de um cadáver que era. No centro da fronte via-se um orifício de bala do qual o sangue ainda brotava, inundando-lhe o rosto e o colarinho da camisa branca.
O homem em Roma consultou o relógio. Eram quatro e um quarto da madrugada, o seu pessoal encontrava-se a postos em Col des Moulinets, e continuava a não haver notícias de Washington. A única outra pessoa na sala de comunicações era o radiotelegrafista, enfastiado com a inactividade prolongada, que contemplava distraidamente os mostradores nos quais se viam sinais luminosos, resultantes, na sua maioria, de navios que navegavam nas proximidades. De vez em quando, reclinava-se e folheava uma revista italiana, movendo os lábios em silêncio para pronunciar as frases no idioma que era o seu terceiro - o segundo consistia na rádio.
- De súbito, a luz do telefone acendeu-se e ele levantou o auscultador, para proferir:
- Roma.
- Daqui Ambiguidade. - A voz era nítida e firme. - Esta designação confere-me autoridade absoluta em relação a todas as ordens transmitidas a essa unidade em Col des Moulinets. Suponho que o director Stem precisou bem este ponto.
- Sem dúvida.
- A linha está protegida contra interferências?
- Totalmente.
- Não deve haver gravação nem escuta. Entendido?
- Decerto. Qual é a mensagem?
- "irrecuperável.@>
- Muito bem.
- Espere. Há mais.
- O quê?
- Esclarecimento. Suponho que não houve qualquer contacto com o cargueiro!
- Com certeza que não. Vigilância por um avião de pequena envergadura, até anoitecer, e depois orientamo-nos por pontos de referência na costa.
- óptimo. Penso que a desembarcarão algures antes de San Remo.
- Estamos preparados.
- O corso encontra-se lá? - perguntou a voz de Washington.
- Aquele que entrou a bordo há três dias?
- sim.
- Montou a unidade e estamos-lhe gratos. O nosso zumbido aqui diminuiu.
- Excelente.
- A propósito de esclarecimento: julgo que a ordem do coronel ainda vigora! Trazemos a mulher.
- Negativo. Não é Jenna Karas, que foi abatida na Costa Brava, sem margem para dúvida.
- Então, que fazemos?
- Deixem que Moscovo fique com ela. Trata-se de um veneno soviético, destinado a atrair o alvo. Resultou, porque ele já falou e consideramo-lo...
- "irrecuperável."
- Exacto. Limitem-se a fazê-la sair daí. Não queremos indícios susceptíveis de nos denunciar e reacender as especulações sobre a Costa Brava. O corso sabe o que deve fazer.
- Confesso que não estou a compreender bem.
- Nem é preciso. Pretendemos apenas provas do despacho. Do despacho dele.
- Tê-las-ão. O nosso homem encontra-se lá, de olhos bem abertos.
- Desejo-lhe um bom dia, Roma. Um dia sem enganos.
- Sem enganos, nem escutas.
- Terminado - declarou a voz daquele que era conhecido somente por Ambiguidade.
O homem atrás da secretária destacava-se sob a forma de uma silhueta. Achava-se diante de uma janela sobranceira ao largo em que se situava o Departamento de Estado e o clarão suave dos candeeiros exteriores constituía a única iluminação no gabinete imerso na penumbra. O homem conservara-se voltado para fora, com o telefone próximo dos lábios. Por fim, rodou na cadeira, o semblante na sombra, pousou-o e inclinou-se para a frente, apoiando a cabeça nas mãos.
O subsecretário de Estado, Arthur Pierce, nascido com o nome de Nikolai Petrovich Malyekov, na aldeia de Ramenskoye, a sueste de Moscovo, e criado no Estado de lowa, encheu os pulmões de ar e procurou acalmar-se, como aprendera a fazer ao longo dos anos, sempre que uma crise exigia decisões rápidas e perigosas, pois conhecia bem as consequências de um desaire. Era esse, de resto, o ponto forte dos homens como ele: não receava o malogro. Reconhecia que os grandes feitos da História exigiam os maiores riscos e a própria História era moldada pelo arrojo não só da acção colectiva, mas também da iniciativa individual. Aqueles que entravam em pânico ante a perspectiva de um desaire e não agiam com clareza e determinação quando surgiam momentos de crise, mereciam as limitações a
que os seus temores os condenavam.
Houvera outra decisão a tomar, tão perigosa como a que transmitira para Roma, mas fora inevitável. Os estrategos das Operações Consulares tinham reaberto o processo sobre os
acontecimentos daquela noite na Costa Brava, tentando aprofundar a capa de logro acerca da qual não sabiam absolutamente nada. Tinha de ser tudo sepultado... juntamente com
eles. Por todo o preço, a todo o custo. O episódio da Costa Brava devia voltar a ficar submerso e converter-se num logro obscuro num mundo inundado de mentiras. Dentro de poucas horas, surgiria a mensagem de Col des Moulinets: "A ordem respeitante ao "irrecuperável- foi executada. Autorização: Código Ambiguidade, proveniente de D.S. Stem, director das Operações Consulares."
Mas apenas os estrategos sabiam a quem Stem apresentara o seu dilema. Na realidade, ele próprio não estava seguro de quem procuraria antes de surgir no quarto piso e consultar a relação do pessoal de serviço. De qualquer modo, reflectia Arthur Pierce, olhando distraidamente a fotografia autografada de Anthony Matthias, na parede, resultaria impensável não o procurarem acerca de semelhante crise. Fora simplesmente mais conveniente para ele encontrar-se no seu gabinete, quando Stem e os outros estrategos haviam decidido apresentar o problema insolúvel às instâncias superiores. Se não estivesse lá, tê-lo-iam, localizado, para escutar o seu parecer, e o resultado não diferiria: " Irrecuperável. " Só o método seria outro: um consenso unânime de uma comissão sem rosto. Tudo se desenrolara da melhor maneira e as duas últimas horas tinham sido orquestradas devidamente. O malogro fora considerado, mas não admitido. Ficara mesmo fora de causa. Os estrategos estavam mortos e todos os elos conducentes ao nome Ambiguidade quebrados. Eles necessitavam de tempo. Dias, uma semana, um mês. Tinham de encontrar o homem que conseguira o incrível... coma sua ajuda. Descobri-lo-iam, porque deixava um rasto de medo - ou melhor, de terror - possível de detectar. E quando o localizassem, não seriam os humildes que herdariam a Terra, mas a Voennaya-
Restavam poucos deles, naquele lado do mundo. Poucos, porém fortes e hábeis. Tinham visto tudo. As mentiras, a corrupção, a podridão essencial no núcleo do poder - haviam participado nisso por uma causa mais elevada, sem se esquecerem de quem e o que eram. Oupor que eram. Consideravam-se viajantes, e não existia maior aspiração. O seu conceito baseava-se na realidade e não em ilusões românticas. Eram os homens e as mulheres no novo mundo, e o velho necessitava desesperadamente deles. Embora em número reduzido
- menos de uma centena -, constituíam unidades admiravelmente afinadas, preparadas para reagir com prontidão a qualquer oportunidade ou emergência. Possuíam as posições, os documentos apropriados e os veículos necessários. A Voennaya mostrava-se generosa e
eles, por seu turno manifestavam lealdade absoluta ao corpo de élite do KGB.
A morte dos estrategos fora crucial. O vácuo resultante paralisaria os arquitectos originais da Costa Brava, reduzindo-os ao silêncio. Não diriam nada, pois o sigilo constituía o ingrediente supremo. Com efeito, o homem sentado atrás da secretária na penumbra não mentira a Roma: não devia haver especulações sobre o caso da Costa Brava.
Arthur Pierce, o paminyatchik mais poderoso do Departamento de Estado, levantou-se e dirigiu-se à poltrona encostada à parede. Sentou-se e estendeu as pernas, reflectindo que se conservaria ali até de manhã, quando o pessoal superior e subalterno começasse a encher os gabinetes do quarto piso. Nessa altura, misturar-se-ia com os outros, assinaria o livro de presença e não tardaria a retirar-se, pois necessitava regressar a Nova Iorque, a fim de exercer as funções de adido da delegação americana junto das Nações Unidas. De momento, era a voz mais sonora do Departamento de Estado no East River, todavia em breve ascenderia a embaixador, em obediência aos desejos de Anthony Matthias, como todos sabiam. Representaria mais um passo significativo na sua extraordinária carreira.
De repente, empertigou-se na poltrona. Havia um derradeiro telefonema para Roma a efectuar, uma última voz para reduzir ao silêncio: um homem numa sala de comunicações, que atendia o telefone e recebia mensagens que não deviam ser gravadas.
Capítulo décimo primeiro
- Juro que ela não está abordo! -protestou o excitado comandante do cargueiro Santa Teresa, sentado à secretária da pequena cabina junto da casa do leme. - Reviste o navio, se
quiser, signore. Ninguém se oporá. Deixámo-la em terra, há cerca de três horas e meia. Madre di Dio! Que loucura!
- Como? Onde? - inquiriu Havelock.
- Como o senhor. Surgiu uma lancha ao nosso encontro, uns doze quilómetros a sul de Arma di Taggia. Juro-lhe que eu não sabia de nada! Hei-de matar aquele suíno em Civitavecchia! Disse que era apenas uma refugiada política dos Balcãs, uma mulher com pouco dinheiro e sem amigos em França. Há muitas pessoas assim, nos tempos actuais. Onde está o mal em ajudar alguém nessas circunstâncias?
Michael inclinou-se para a frente, recolheu o velho cartão de identificação diplomático que lhe atribuía a categoria de adido consular do Departamento de Estado dos E.U. e proferiu calmamente:
- Nenhum, se acreditou.
- É verdade, signore! Há quase trinta anos que arrasto a minha cruz nestas águas. Em breve me reformarei, para cuidar de uma pequena parcela de terra. Tenciono dedicar-me à produção de vinho. Nunca narcoticiou contrabbandi! Mas pessoas, sim. De vez em quando, pessoas, e não me envergonho de o confessar. As que fogem de lugares e homens acerca dos quais não sei nada. Repito: onde está o mal?
- Em cometer erros.
- Não acredito que essa mulher seja uma criminosa.
- Eu não disse disso. Limitei-me a dizer que precisamos de a encontrar.
- Se fizer queixa de mim, estou perdido. - O comandante inclinou a cabeça, num gesto de resignação. - Troco o mar pela cadeia. Grazie, gran signore americano.
- Também não disse isso - volveu Michael, pausadamente.
- Che cosa? - O homem arregalou os olhos, desconfiado.
- Não esperava que fosse aquilo que parece.
- Che dice?
- Não interessa. Há ocasiões em que se deve evitar o embaraço. Se colaborar, o assunto não transpirará. Se colaborar.
- De todas as maneiras que desejar! É uma dávida que não esperava.
- Repita-me tudo o que ela lhe disse. E depressa.
- Muitas coisas não faziam sentido...
- Não é isso que pretendo ouvir.
- Compreendo. Estava calma, uma mulher sem dúvida muito inteligente, mas, ao mesmo tempo, muito assustada. Manteve-se nesta cabina.
- Sim?
- Não comigo, garanto-lhe. Tenho filhas da idade dela, signore. Comemos três refeições juntos. Não havia outro lugar para a instalar, e confesso que não gostaria que a tripulação se sentasse à mesa com as minhas filhas. Ela fazia-se acompanhar de uma pequena quantidade apreciável de liras. O dinheiro era-lhe indispensável, pois o género de transportes que utiliza são dispendiosos. Esperava sarilhos, esta noite.
- Que quer dizer?
- Perguntou-me se conhecia a aldeia de Col des Moulinets, nas montanhas da Ligúria.
- Falou-lhe de Col des Moulinets?
- Creio que pensava que eu estava ao corrente de tudo e era uma parte do seu percurso, conhecedor das outras. Por acaso, visitei Moulinets diversas vezes. Os navios que me confiam costumam precisar de reparações, aqui em San Remo, Savona ou Marselha, que, diga-se de passagem, é o meu porto de escala mais distante. Não sou aquilo a que chamam um capitano superiore.
- Continue.
- Estivemos na doca seca de San Remo várias vezes e aproveitei para ir até Col des Moulinets. Fica do outro lado da fronteira francesa, a oeste de Monesi, uma povoação encantadora, cheia de ribeiros que correm da montanha e... como se diz... route a pale?
- Noras. Suponho que Moulinets tem o mesmo significado.
- Si. É um pequeno desfiladeiro nos Alpes, pouco utilizado. Aliás, o acesso não se pode considerar fácil, devido à escassez de transportes. E os guardas fronteiriços são os mais indolentes da região. Quase nem se dão ao trabalho de tirar o cigarro da boca para examinar os documentos. Assegurei à minha preocupada refugiada que não teria problemas.
- Pensa que ela tentará atravessar a fronteira num posto de controlo?
- Só existe um, numa pequena ponte sobre um rio. Porque não? Duvido que necessite de subornar os guardas. Se preferir evitá-lo, terá de efectuar uma volta enorme através de arvoredo denso, além do que há o rio para atravessar.
- Obrigado. É o género de informação que procurava. Ela explicou porque abandonava o país dessa maneira?
- Invocou o motivo habitual. Os aeroportos eram vigiados, assim como as estações de caminho-de-ferro e as principais estradas de acesso a França.
- Vigiados por quem?
- Talvez por homens como o signore.
- Foi o que ela disse?
- Não falou mais do que o rigorosamente necessário, e não a interroguei. Garanto-lhe que é esta a verdade.
- Acredito.
- Há outros ao corrente disto?
- Não sei - declarou Michael. - Também é verdade.
- Porque, se houver, prendem-me. Troco o mar pela cadeia.
- Isso significaria que a informação é de domínio público?
- Sem dúvida. Seria apresentada queixa à commisione.
- Nesse caso, não creio que o incomodem. Palpita-me que este incidente é a última coisa na Terra que os homens com os quais estou envolvido desejam que se divulgue. Se não o contactaram até agora (pela rádio, numa embarcação rápida ou helicóptero), ou ignoram a sua existência ou não o querem abordar.
- Homens com os quais está envolvido? - repetiu o comandante do cargueiro, fitando o interlocutor com curiosidade.
- Não compreendo.
- Envolvido, mas não do seu lado, hem?
- Isso não tem importância.
- Pretende ajudar essa mulher? Não a persegue para... castigar?
- Acertou, em ambas as conjecturas.
- Então, vou elucidá-lo. Perguntou-me se conhecia o aeródromo de Col des Moulinets. Respondi que não, e é verdade.
- Um aeródromo? - Michael compreendeu. Tratava-se de uma informação suplementar que não teria obtido dez segundos antes. - Uma ponte sobre um rio e um aeródromo. Esta noite.
- Nada mais lhe posso revelar.
A estrada na montanha que partia de Monesi em direcção à fronteira francesa era larga, porém a abundância de pedras enormes e a vegetação que a ladeava faziam que parecesse estreita, mais apropriada para veículos pesados do que para um automóvel vulgar. Foi o pretexto que Michael empregou para percorrer os últimos oitocentos metros a pé, ante o alívio do motorista do táxi que tomara em Monesi.
Inteirara-se de que havia urna estalagem antes da ponte, local de paragem obrigatória dos membros das. patrulhas italianas e francesas, onde os dois idiomas eram suficientemente
entendidos pelas pequenas guarnições de ambos os lados, assim como pelos poucos habitantes locais e ainda menos turistas que circulavam por ali. A avaliar pelo que Havelock vira e ouvira, o comandante do Santa Teresa não se equivocara. O posto de controlo de Col des Moulinets constituía uma passagem pouco importante nos Alpes, de acesso difícil e frequência reduzida, que ainda se mantinha em funcionamento porque nenhuma legislação burocrática se dera ao trabalho de o mandar encerrar. O tráfego habitual entre os dois países utilizava as estradas do litoral, vinte e cinco quilómetros a sul, ou as passagens menos acidentadas do norte, como Col de Larche ou Col de Ia Madeleine, a oeste de Turim.
O Sol já descera atrás dos montes mais elevados e enchia o firmamento por sobre os Alpes marítimos de clarões alaranjados. As sombras na estrada primitiva alongavam-se gradualmente e não tardariam a constituir uma massa uniforme. Michael avançava ao longo da orla do bosque, preparado para desaparecer entre o arvoredo ao primeiro som suspeito. Sabia que todos os seus movimentos deviam ser ponderados com base na suposição de que Roma tomara conhecimento do interesse de que Col des Moulinets se revestia para ele. Não mentira ao comandante do Santa Teresa: havia numerosas razões pelas quais aqueles que trabalhavam para a embaixada evitariam abordar um navio em águas internacionais.
O cargueiro, de velocidade lenta, podia ser seguido e vigiado - como decerto acontecera _, mas resultaria perigoso estabelecer contacto directo. Representaria uma táctica de risco elevado, pois existiria a possibilidade de intervenção de uma commisione.
Teria Roma descoberto o homem em Civitavecchia? Michael reconhecia que outros poderiam fazer o mesmo que ele, já que ninguém era tão excepcional ou afortunado. Dominado pela cólera - ou melhor, pela indignação -, gritara o nome da cidade portuária para o bocal do telefone e BayIor repetira-o. Se este ficara em condições de funcionar, após o episódio no Palatino, ordenara ao seu pessoal que visitasse as docas de Civitavecchia e procurasse alguém interessado numa passagem ilegal.
Não obstante, havia sempre hiatos, espaços impossíveis de preencher. O homem de Civitavecchia indicaria o nome do navio, ciente de que se o fizesse não voltaria a merecer a confiança daqueles com quem costumava negociar? Pior que isso, arriscar-se-ia a ser abatido numa das vielas obscuras circundantes. Por outro lado, poderia alegar ignorância acerca daquela fase da fuga, mas revelar a hipótese de Col des Moulinets, a fim de conquistar as boas graças dos americanos poderosos de Roma, sempre generosos com os condescendentes. Onde estaria o mal em ajudar uma refugiada dos Balcãs?...
Tantos hiatos e tão poucos elementos concretos... tão pouco tempo para reflectir e tantas inconsistências... Quem imaginaria que havia o comandante de um cargueiro incapaz de se envolver no lucrativo tráfico de narcóticos e contrabando, mas perfeitamente disposto a facilitar a saída de Itália a refugiados, sobretudo porque os riscos inerentes eram igualmente avultados e tinham a prisão como corolário?
Ou o ruivo Ogilvie, um indivíduo violento, que nunca perdia tempo a justificar a brutalidade dos meios que empregava. Havia ambivalência naquela estranha justificação. Que força o impelira? Que razão leva um homem a lutar toda a vida para se libertar das grilhetas auto-impostas? Quem fora realmente o Apache? O Atirador? De qualquer modo, morrera violentamente, no momento exacto em que compreendera uma verdade violenta. Os mentirosos encontravam-se nas altas esferas de Washington.
Acima de tudo, Jerina. O amor dele que não traíra esse afecto e, ao invés, fora traído. Como pudera ela acreditar nos mentirosos? Que lhe podiam ter dito, que provas irrefutáveis lhe haveriam apresentado, para que as aceitasse? E, sobretudo, quem eram os mentirosos? Quais eram os seus nomes e de onde tinham vindo?
A verdade achava-se tão próxima, que ele conseguia farejá-la, senti-Ia a cada passo que avançava na estrada quase imersa na escuridão. Antes que o Sol poente despontasse no outro lado do mundo, obteria as respostas às interrogações que o assolavam e recuperaria o seu amor. Se os inimigos provinham de Roma, não estavam à altura de o enfrentar.
A confiança em si próprio dominava-o, com frequência injustificada, mas tomava-se indispensável. Uma pessoa não emergia dos primeiros dias, dos dias terríveis, e sobrevivia sem ela.
E quando obtivesse e recuperasse o seu amor, seria efectuada a chamada para uma cabina do outro lado das montanhas, a milhares de quilómetros de distância. Ao Blue Ridge e Shenandoah, EUA. O seu mentor, o seu pritel, Anton Matthias, tomaria conhecimento de uma conspiração que se propagava às entranhas das operações clandestinas, de existência incontroversa e finalidade misteriosa.
De súbito, descortinou um pequeno círculo de luz em frente, por entre a folhagem, à esquerda da estrada, e agachou-se, para o observar e tentar defini-lo. Não se movia, limitara-se a surgir onde até então não houvera a mínima iluminação. Principiou a mover-se para diante com lentidão, mesmerizado, apreensivo. Que seria?
Por fim, endireitou-se, aliviado. A seguir a uma curva, destacavam-se os contornos de uma construção - a estalagem, onde alguém acabava de acender o candeeiro à entrada, não tardando, decerto, a seguir-se outras luzes. Com efeito, começaram a aparecer novos clarões gradualmente, em janelas.
Michael encaminhou-se para lá, reconhecendo que não merecia a pena continuar na estrada. Se lhe estavam reservadas surpresas, queria recebê-las num local com melhor visibilidade.
Deteve-se a algumas dezenas de metros da estalagem e, dissimulado atrás de uma árvore, estudou o terreno. Havia um caminho de acesso que se prolongava até à entrada e prosseguia em direcção às traseiras, onde existia um pequeno parque de estacionamento diante de uma porta, que parecia destinada à recepção de géneros. Depois de se certificar de que a janela directamente em frente se situava a uns dez metros, abandonou o esconderijo.
Sentiu-se imediatamente ofuscado por faróis. O camião irrompeu da estrada, meia dúzia de metros à sua direita, e enveredou pelo caminho. Havelock retrocedeu para o arvoredo, atrás do tronco, e estendeu a mão para a automática presa à cintura. O veículo rolou na sua frente ao longo do piso regular, enquanto da cabina se desprendiam imprecações contra os solavancos sofridos.
Impossibilitado de determinar se fora observado, conservou-se oculto, de olhos e ouvidos atentos. O camião imobilizou-se no parque das traseiras e o condutor saltou para o chão, enquanto Michael se preparava para se internar no bosque, em caso de necessidade. Todavia, o homem espreguiçou-se e soltou mais algumas imprecações em italiano, ao mesmo tempo que se tomava claramente visível, pois alguém acendera a luz sobre a porta.
O que a luz revelou não se podia considerar tranquilizador: o condutor vestia uniforme do exército italiano, com a insígnia de guarda da fronteira. Por fim, encaminhou-se para a retaguarda da viatura e abriu a porta dupla, bradando:
- Todos cá para fora, seus bastardos! Têm cerca de uma hora para encher os rins antes de entrarem de serviço. Entretanto, vou à ponte informar os outros de que estamos aqui.
- Pela maneira como guia, sargento - redarguiu um soldado, friccionando os quadris -, devem tê-lo ouvido num raio de cem quilómetros.
- Vai-te fornicar! Aperam-se mais três homens, que se espreguiçavam e batiam com os pés no chão, todos fardados, e o sargento continuou:
- Encarrega-te do nosso novo companheiro, Paolo. Ensina-lhe o regulamento. E afastou-se com lentidão. Quando passou perto do local onde Havelock se ocultava, coçou a virilha e puxou o elástico das cuecas, indícios de uma viagem longa e desconfortável.
- Ricci! - chamou um soldado, erguendo a cabeça para a retaguarda do camião. É esse o teu nome, suponho?
- Pois é - assentiu uma voz no interior, e surgiu um quinto homem.
- Ficas com a tarefa mais agradável do exército, paesano! As nossas instalações são acolá, na ponte, mas vivemos praticamente aqui. Só visitamos o local quando entramos de serviço. Quando chegares, assinas o livro, hem?
- Entendido - proferiu o soldado chamado Ricci. No entanto, não era esse o seu nome, como Havelock verificou sem dificuldade, ao ver o homem louro, que de momento sacudia o pó do barrete batendo na mão esquerda. A sua mente evocou uma dezena de fotografias, até que escolheu uma. Na realidade, não se tratava de um soldado do exército italiano, nem de um guarda de fronteira. Era corso, um "zangão" particularmente eficiente com uma espingarda ou outra arma de mão, um pedaço de arame ou uma navalha. A sua verdadeira identidade não interessava, pois recorria a demasiados nomes para possibilitar uma recapitulação rápida. Era um @<especialista" utilizado apenas em situações "críticas", um carrasco merecedor da maior confiança, que conhecia o Mediterrâneo Ocidental como os seus dedos e se sentia tão à-vontade nas ilhas Baleares como nas florestas da Sicília. A sua foto e uma lista das sua proezas conhecidas tinham sido fornecidas a Havelock, alguns anos atrás, por uni agente da CIA, num gabinete isolado de Palombara. Michael perseguia uma unidade das Brigadas Vermelhas e preparava-se para a capturar, porém rejeitara a colaboração do louro agora a meia dúzia de metros do ponto em que se encontrava, por não confiar nele. Todavia, tudo indicava que merecia confiança absoluta de Roma.
Roma sabia. A embaixada localizara um homem em Civitavecchia e enviara um carrasco... para uma execução que não deixasse vestígios. Alguma coisa ou alguém convencera os mentirosos de que um antigo agente de "campo" constituía urna ameaça e pusera a circularo rumordeque era @<irrecuperável@> e devia desaparecer o mais depressa possível.
Os mentirosos não podiam permitir que contactasse Jenna Karas, porque fazia parte da mentira, e a sua suposta morte na Costa Brava constituía um elemento intrínseco dela. No entanto, Jenria também se achava em fuga. Estaria agora incluída na ordem de execução? Era inevitável: o engodo não podia continuar vivo, pelo que o louro não devia ser o único assassino na ponte de Col des Moulinets ou nas proximidades.
Os quatro soldados e o novo recruta encaminharam-se para a entrada das traseiras da estalagem e bateram. A porta foi aberta por um homem corpulento de expressão carregada, que articulou em voz alta:
- Se vocês, suínos, gastaram todo o dinheiro em Monesi, ponham-se a andar!
- Não fales assim, Gianni! Se nos impedisses a entrada, tínhamos de te encerrar a loja por venderes moças francesas mais caras que as nossas!
- Então, paguem!
- Este é Gianni, o ladrão - explicou um dos soldados a Ricci. - A espelunca pertence-lhe. Portanto, tem cuidado com o que comes.
- Precisava de ir à casa de banho - anunciou o novo recruta, que acabava de consultar o relógio, gesto estranho em semelhantes circunstâncias.
- Nós também! - bradou outro, enquanto entravam. No instante em que a porta se fechou, Havelock correu para a janela e verificou que dava para a sala de jantar, cujas mesas estavam cobertas por toalhas de xadrez, com talheres de qualidade modesta, mas não havia uma única ocupada. Ou era muito cedo para começar a servir refeições ou os comensais brilhavam pela sua ausência, naquela noite. Ao fundo, a seguir a uma arcada a toda a largura da parede, encontrava-se um bar com diversas mesas redondas, estas ocupadas na quase totalidade. Predominavam os homens, e as duas mulheres visíveis do ponto em que ele se achava aparentavam cerca de sessenta anos. Sentavam-se juntamente com eles e bebiam cerveja e conversavam com animação. Devia ser a hora do chá nos Alpes ligúricos. Havelock ponderou involuntariamente se haveria outras na sala, se Jeima estaria instalada num canto que não conseguia descortinar. Em caso afirmativo, necessitava ficar em condições de vigiar a porta das traseiras - porventura da cozinha
da qual os cinco soldados imergiriam no bar. Os minutos imediatos poderiam revelar-lhe o que precisava de saber: quem, de entre a clientela, seria reconhecido pelo assassino louro, ainda que fosse apenas por meio de uma olhadela fugaz, uma contracção dos lábios ou um aceno quase imperceptível.
Michael agachou-se e correu para a segunda janela ao longo do caminho que contornava parcialmente a estalagem, mas verificou que o campo visual continuava a ser muito limitado. Repetiu a operação na terceira, com idêntico resultado, e tentou a sorte na primeira da frente. Conseguiu avistar a porta, encimada pela indicação CUCINA, de onde os cinco soldados não tardariam a surgir, mas não via nenhuma das mesas. Restavam mais duas janelas na parte fronteira da casa. A segunda situava-se demasiado perto da entrada para permitir uma protecção razoável, todavia ele conteve o alento, deslizou para lá e aproximou o rosto da vidraça. O que observou fez com que expelisse o ar que continha nos pulmões. Jenna Karas não era um alvo emboscado sentado a um canto. A janela encontrava-se a
seguir à arcada, o que lhe permitia avistar não só a entrada da cozinha como todas as mesas, todos os clientes presentes. Ela não se achava lá. De súbito, desviou os olhos para a parede à direita, onde havia outra porta, estreita, com os dizeres Uomini e, por baixo, Hommes.
A porta da cozinha abriu-se e os cinco soldados entraram na sala. Gianni, o ladrão, pousava a mão no ombro do louro que não se chamava Ricci. Havelock observou este último, com profunda concentração. O dono da estalagem encaminhou-se para a porta dos lavabos.
Em dado instante, os olhos, que Havelock fixava com atenção, dirigiram-se por uma fracção de segundo para determinada mesa no centro da sala, ocupada por dois homens -
um baixou o olhar para a bebida, enquanto falava, ao passo que o outro, num deslize imperdoável, desviou as pernas para não impedir o caminho ao assassino. Mais dois membros da unidade, embora apenas um fosse activo. O outro não passava de um observador. O homem que desviara as pernas estava encarregado de confirmar mais tarde a
execução, sem que interviesse. Tratava-se de um americano, e o lapso confirmava-o. Vestia um dispendioso e pesado blusão suíço, impróprio para aquele cenário e para a época do ano, e usava um reluzente cronómetro de quartzo no pulso - tudo demasiado notório e em flagrante contraste com a descuidada indumentária montanhesa do companheiro. Portanto, era americano, encarregado de redigir um relatório que apenas seis pessoas teriam oportunidade de ler.
Havia algo mais de inconsistente: o número. Uma unidade de três elementos, somente com duas armas activas, parecia insuficiente para a prioridade do assassínio e os antecedentes do alvo a abater. Michael principiou a inspeccionar os outros rostos, a fim de verificar se alguém movia os olhos, ainda que fugazmente, para os dois ocupantes da mesa no centro da sala, ou se existia alguma incongruência do género de cronómetros de quartzo ou vestuário dispendioso. Todavia, acabou por reconhecer a impossibilidade de detectar qualquer pormenor revelador.
- Ehi! Che avete? As palavras foram-lhe disparadas pelo sargento, que pousava a mão no coldre, na semiescuridão do caminho de acesso à estalagem.
- Mia sposa - replicou Havelock, com prontidão, esforçando-se por conferir à voz uma inflexão respeitosa. - Noi siamo molto disturbati, signore maggiore. Io vado ad aiutare una ragazza francesa. Lá mia sposa mi seguira!
O homem sorriu e retirou a mão da arma, ao mesmo tempo que comentava em italiano:
- Com que então os homens de Monesi continuam a atravessar a fronteira à procura de garotas francesas, hem? Se a sua mulher não está aí dentro, provavelmente voltou para casa com um francês! Não pensou nisso?
- Coisas da vida - murmurou Michael, sem abandonar a atitude subserviente, ansioso por que o outro se afastasse, pois necessitava voltar a concentrar-se na janela...
- Você não é de Monesi - volveu o sargento, subitamente alarmado. - Você não tem o sotaque de lá.
- Da fronteira suíça, sargento. Venho de Lugano. Cheguei há duas horas. Conservou-se silencioso por um momento, semicerrando os olhos, com urna expressão desconfiada. Na sombra, Havelock moveu a mão com lentidão, em direcção à cintura, onde conservava a automática munida de silenciador. Se precisasse de fazer fogo, não podia registar-se o mínimo estampido.
Por fim, o sargento ergueu as mãos ao céu e abanou a cabeça com uma expressão de desdém.
- Um suíço-italiano, mas mais suíço que italiano! São todos iguais! Uns bastardos traiçoeiros. Eu preferia desertar a prestar serviço num batalhão ao norte de Milão. Continue a espreitar, seu suíço de uma figa. - E desapareceu na estalagem.
Lá dentro, abriu-se outra porta - a estreita, dos lavabos -, para dar passagem a um
homem, e Michael não só descobriu a terceira arma da unidade de Roma como compreendeu que tinha de haver uma quarta. O indivíduo fazia parte de uma equipa - dois peritos de demolições que trabalhavam juntos -, mercenários veteranos que haviam permanecido vários anos em África entretidos a provocar explosões, desde barragens e aeroportos a vivendas ocupadas subitamente por déspotas pretensos revolucionários. A CIA descobrira-os em Angola, do lado errado dos combatentes, porém o dólar americano era então mais saudável e persuasivo. Os dois peritos tinham sido incluídos nas profundezas dos ficheiros respeitantes às operações clandestinas.
E a sua presença na ponte de Col des Moulinets proporcionava a Havelock um elemento importante: estava previsto um veículo ou veículos. Qualquer daqueles dois especialistas de demolições podia deter-se durante dez segundos junto de um automóvel que, transcorridos dez minutos, voava em pedaços, matando todas as pessoas nas proximidades. Esperavam que Jetina Karas cruzasse a fronteira num carro e, pouco depois, deixaria de existir, em
fragmentos irrecuperáveis.
O aeródromo. Roma inteirara-se da sua existência através do homem em Cívitavecchia. Algures na estrada que partia de Col des Moulinets, qualquer transporte em que ela se
encontrasse iria pelos ares.
Michael dissimulou-se atrás de um pinheiro próximo. Através da janela, vira o perito de explosivos encaminhar-se directamente para a porta principal, ao mesmo tempo que consultava o relógio, como o assassino louro fizera, pouco antes. Achava-se em execução um plano, mas qual?
O homem transpôs a porta e principiou a caminhar mais depressa, porém a aceleração era quase imperceptível, pois tratava-se de um profissional que conhecia o valor do autodomínio. Havelock preparou-se para o seguir, mas primeiro tomou a olhar pela janela e experimentou uma sensação de alarme. Junto do balcão do bar, o sargento conversava com o recruta louro a quem chamava Ricci, sem dúvida para lhe transmitir uma ordem indesejável. O assassino parecia protestar e erguia a caneca de cerveja, como se contivesse um medicamento indispensável e, por conseguinte, um pretexto para não obedecer. Por fim, contraiu as faces nutri trejeito de contrariedade, esvaziou a caneca em tragos rápidos e
moveu-se na direcção da porta.
O plano continuava a desbobinar-se. Por meio de um sistema combinado previamente, alguém na ponte recebera instruções para chamar o novo recruta antes da hora de entrada ao serviço.
Eles sabiam. A unidade de Roma sabia que Jerina Karas se aproximava da ponte. Fora avistada uma lancha em Arma di Taggia e a rapariga seguida. O veículo em que viajava, a
caminho das montanhas, achava-se agora referenciado a poucos minutos do ponto de chegada ao posto de controlo de Col des Moulinets. Era lógico: não havia melhor altura para atravessar a fronteira do que no final de um turno de serviço, quando os soldados estavam cansados, fartos da monotonia interminável, à espera dos colegas que os renderiam, mais indiferentes do que habitualmente.
A porta abriu-se, e Michael voltou a ocultar-se atrás da árvore, de onde espreitou para a estrada. O mercenário atravessara em diagonal, movendo-se com naturalidade em direcção a Col des Moulinets, como um francês que fora tomar um copo à estalagem e regressava à procedência. Todavia, dentro de momentos, internar-se-ia no bosque, para assumir uma posição previamente determinada a leste da entrada da ponte, de onde poderia rastejar até junto de um automóvel retido por instantes pelos guardas. Entretanto, o assassino louro encontrava-se a meio caminho do candeeiro da estrada e fez uma pausa, para acender um cigarro, facto que justificava o atraso. Ouviu a porta abrir-se e mostrou-se satisfeito.
O "soldado" prosseguiu o seu caminho, enquanto os dois ocupantes da mesa do meio -o agente americano incumbido de elaborar o relatório da execução e o companheiro, a segunda arma da unidade de Roma - surgiam da estalagem.
Havelock abarcou a situação com maior clareza. A armadilha fora concebida com precisão e, dentro de poucos minutos, estaria montada. Dois atiradores exímios alvejariam o intruso que tentasse interferir no carro de Jerina Karas - atingindo-o instantaneamente, no instante em que se tomasse visível, com uma chuva de balas - e dois especialistas de demolições providenciariam para que o veículo explodisse algures nas ruas de Col des Moulinets ou numa estrada de acesso a um aeródromo.
Podia traçar-se outra conjectura além do facto de haver um plano em execução que incluía um carro a caminho da ponte. A unidade de Roma sabia que ele se encontrava ali e estaria suficientemente perto das patrulhas da fronteira para observar os ocupantes de todos os automóveis que apresentassem passaportes aos guardas. Examinariam minuciosamente todos os homens que surgissem, de armas em punho. A sua vantagem residia no número, porém ele também dispunha de uma, considerável: sabia quem eram.
O americano bem trajado e o subordinado, a segunda arma, separaram-se na estrada o primeiro virou à direita, no intuito de se afastar do terreno de execução, e o outro seguiu para a esquerda, em direcção à ponte. Apareceram duas furgonetas de carga na estrada de Monesi - uma com um único farol aceso, e a outra com os dois, mas sem pára-brisas. No entanto, o americano e o assassino contratado não lhes prestaram atenção: conheciam o veículo que esperavam e não era nenhum daqueles.
"Se conhecerem uma estratégia, podem neutralizá-la com outra", eram as palavras favoritas do pai de Havelock, nos velhos tempos. Recordava-se perfeitamente do intelectual, alto, paciente, quando explicava a uma célula de resistentes, serenando-lhes os nervos e orientando-lhes o ó dio, a maneira mais aconselhável de proceder perante o inimigo ' Lidice constituía a sua causa e a morte dos alemães o seu objectivo. Evocava agora tudo com clareza, enquanto se dirigia apressadamente para o bosque.
Descortinou a ponte pela primeira vez a uns trezentos metros de distância, junto da curva na estrada que conduzia à estalagem, a mesma que evitara quando chegara. A avaliar pelo que conseguia enxergar, era estreita e não muito extensa, o que representava uma bênção para os veículos, porque dois que a atravessassem simultaneamente, em sentidos opostos, decerto produziriam sulcos importantes nos guarda-lamas. Havia agora uma fiada de luzes acesas e o posto de controlo consistia em duas estruturas em lados contrários da ponte, com a indispensável cancela.
Dois soldados de uniforme castanho e listas vermelhas e verdes encontravam-se em lados opostos da furgoneta e conversavam animadamente com o motorista, achando-se outro à retaguarda, a atenção concentrada não no veículo, mas no bosque a seguir à ponte. Observava as áreas de ambos os lados, como um caçador na peugada de um gato montês ferido: permanecia imóvel, de olhos atentos e cabeça em movimento quase imperceptível. Era o assassino louro. Quem suporia que um soldado raso de serviço num posto fronteiriço pouco importante era um criminoso cujas proezas abarcavam toda a área costeira do Mediterrâneo?
Um quarto homem acabava de atravessar a cancela, do lado destinado aos peões, e avançava com lentidão no leve declive, em direcção ao ponto intermédio da ponte. Contudo, não tinha a menor intenção de alcançar o outro lado e trocar algumas palavras com os guardas franceses. Ao invés, conservar-se-ia a meio da ponte, numa zona pouco iluminada, preparado para utilizar a pistola-metralhadora que sem dúvida dissimulava sob a indumentária folgada de montanhês. Soltaria a mola de segurança e estaria alerta para se precipitar para o posto de controlo no momento da execução, disposto a abater os guardas italianos, se estes interferissem, e animado da intenção principal de fazer fogo sobre o homem que emergiria do bosque para se reunir à mulher que cruzava a fronteira. Aquele indivíduo, que Havelock vira na mesa do centro da estalagem, era o apoiante do assassino louro.
Tratava-se de um plano simples e bem guarnecido de executantes, com o recurso a barreiras de estrada, naturais e improvisadas. Uma vez introduzido nela, o alvo ficava impossibilitado de sair. Dois homens aguardavam com explosivos e armas à entrada, um no núcleo e um quarto na periferia da saída. Tudo bem concebido e muito profissional.
Capítulo décimo segundo
O ténue clarão de um cigarro protegido pelas mãos em forma de concha era visível entre a vegetação do outro lado da estrada. Mais um deslize. O agente incumbido de elaborar o relatório gostava de satisfazer os pequenos prazeres, não se privando dos cronómetros dispendiosos nem do vício do fumo durante a fase preliminar de uma execução. Devia ser, e decerto seria, substituído.
Havelock analisou o ângulo do cigarro e a sua distância do chão e depreendeu que o homem estava agachado ou sentado. Em virtude da densidade da vegetação, era-lhe impossível observar a estrada com a eficiência necessária, o que significava que não esperava o carro de Jerma Karas nos minutos mais próximos. O sargento dissera que os soldados dispunham de uma hora para encher os rins, e haviam transcorrido vinte minutos, restando, portanto, quarenta. Na realidade, não exactamente quarenta. Os últimos dez não seriam utilizados, em virtude da rendição dos guardas e da troca de impressões habitual nessas circunstâncias. Por conseguinte, Michael tinha pouco tempo para fazer o que se impunha: montar a sua contra-estratégia. Primeiro, necessitava de se inteirar de tudo o possível de Roma.
Retrocedeu entre o arvoredo, até que o clarão proveniente da ponte ficou virtualmente bloqueado pelos troncos, e principiou a correr para o outro lado, deslocando-se com as maiores precauções, apesar da velocidade, pois o silêncio era essencial. Por um breve e terrível momento, regressou às florestas dos arrabaldes de Praga, enquanto lhe ecoavam nos ouvidos os disparos em Lidice e gritos das pessoas martirizadas. Por fim, graças a um esforço, voltou ao presente, recordando-se de quem era e onde estava: o gato montês, cujo covil fora profanado, corrompido por mentirosos não menos execráveis que os comandantes dos pelotões de execução de Lidice... ou outros que ordenavam " suicídios" ou gulags. Encontrava-se no seu elemento, na floresta, que o protegera quando não podia confiar em ninguém, e não havia quem o pudesse compreender melhor.
O agente incumbido de redigir o relatório sentava-se numa pedra e entretinha-se com o relógio, premindo minúsculos comandos e observando o efeito. Havelock enfiou a mão na algibeira e extraiu um dos objectos que comprara em Monesi: uma faca de escamar peixe
com dez centímetros de comprimento, introduzida numa bainha de cabedal. Em seguida, afastou a vegetação à sua frente, agachou-se e saltou.
- Você! Santo Deus!... Não! Que faz?
- Se fala mais alto que um murmúrio, fica sem cara! - O joelho de Michael exercia pressão na garganta do outro, e a lâmina aguçada pousava-lhe no rosto, um pouco abaixo do olho esquerdo. - Esta faca serve para escamar peixe, seu filho da mãe, mas vou utilizá-la para lhe arrancar a pele, se não revelar o que pretendo. Já!
- É louco!
- Pior para si, se se convence disso. Há quanto tempo estão aqui?
- Vinte e seis horas.
- Quem deu a ordem?
- Sei lá!
- Até um incompetente como você tem interesse em se proteger. É a primeira coisa que se aprende no departamento de execuções. A ordem, quem a deu?
- Ambiguidade! O código era Ambiguidade - balbuciou o agente, no instante em que a ponta da lâmina começou a penetrar na pele. - Juro por Deus que não sei mais nada! Quem a transmitia pertencia às Operações Consulares de Washington. Garanto-lhe que não informaram de mais pormenores.
- Está bem. Agora, descreva o plano. Todo. Localizaram-na em Arma di Taggia e seguem-na desde então. Como?
- Mudança de veículos desde a costa.
- Onde está neste momento? Que carro é? Quando a esperam.
- Um Lancia. A hora prevista era há trinta minutos, salvo se...
- Deixe-se de rodeios! Quando?
- Sete e quarenta. Foi colocado um transmissor no carro. Chegará às oito menos vinte.
- Sei que você não possui rádio, pois seria uma prova comprometedora, se o capturassem. Como estabeleceram contacto consigo?
- Pelo telefone da estalagem. Afaste isso, por favor!
- Ainda não, rapaz. Continue com a descrição do plano. Quem segue o carro, neste momento?
- Dois homens numa carrinha amachucada, a uns quinhentos metros. No caso de você intervir, ouvirão e avançarão.
- E se não intervier?
- Tomámos providências para essa eventualidade. A partir das sete e meia, todas as pessoas que atravessarem a fronteira terão de se apear e os carros serão revistados. Assim, de uma maneira ou de outra, ela terá de se expor.
- É essa a altura que calcularam que eu entraria em cena?
- Se nós... eles... não o encontrassem primeiro. Estão confiados em localizá-lo antes que ela chegue.
- E se não conseguirem?
- Não sei! O plano foi concebido por eles!
- Por você! - O sangue começou a brotar da face do agente.
- Não faça isso, por favor!
- Fale!
- Foi tudo preparado para que parecesse que você atacou. Eles sabem que está armado. Abatem-no e depois colocam-lhe a pistola na mão, se não a empunhar. A seguir fogem. A furgoneta tem um bom motor.
- E a respeito do carro?
- Deixamo-lo passar. Ela não é Jeima Karas, mas um engodo soviético. Assim, Moscovo pode recuperá-la. Os franceses não protestam, porque subornámos um guarda.
- Mentiroso! Mentiroso imundo! - Michael fez deslizar a lâmina até à outra face.
Os mentirosos devem ser marcados! Vais ser marcado, mentiroso! - Perfurou a pele com
a ponta. - Aqueles dois palhaços que trabalharam com nitroglicerina na Tanzânia, Moçambique e Angola, não vieram para respirar o ar da montanha, mentiroso!
- Meu Deus... Mata-me!
- Ainda não, mas vai-te habituando à possibilidade. Qual é o seu papel?
- Servem só de apoio! Foi Ricci que os trouxe!
- O corso?
- Não conheço corso nenhum...
- O louro.
- Sim! Não me corte mais! Não me corte, por favor!
- Apoiantes, como o teu companheiro de mesa?
- Qual mesa? Quem é você, que diabo?
- Um observador e tu és estúpido. Para ti, não passam de armas?
- Sim! Não são outra coisa! Por conseguinte, os mentirosos de Washington até aos seus homens de Roma mentiam. Jerina Karas não existia. A mulher do carro seria despachada sem o conhecimento de Roma. Mentirosos! Assassinos!
Porquê?
- Onde estão eles?
- Estou a sangrar! Tenho sangue na boca!
- Afogas-te nele, se não falas. Onde?
- Nos dois lados! Uns sete a dez metros antes da cancela... Estou a morrer!
- Não, não estás, agente escriturário. Ficas apenas marcado, arrumado. Não mereces uma intervenção cirúrgica entre o arvoredo.
Havelock passou a faca para a mão esquerda e ergueu a direita, com os dedos tensos e os músculos da palma rígidos. Quando atingiu a garganta do homem, calculou que ficaria imobilizado durante uma hora, pelo menos. Deveria ser suficiente. Tinha de ser.
Rastejou por entre a vegetação, seguro do terreno que pisava, sentindo-se como em casa na floresta protectora.
Não tardou a avistá-lo. O homem estava de joelhos diante de um saco de lona. De súbito, registou-se o som crescente de um motor, acompanhado do ruído metálico de um tubo de escape solto ou pára-choques em contacto com o piso irregular da estrada. Michael voltou-se, contendo a respiração, e levou a mão à cintura no momento em que surgia uma furgoneta que decerto vira melhores dias. Acto contínuo, acudiu-lhe uma sensação de angústia. Teria o agente mentido? No entanto, verificou que o especialista de explosivos continuava concentrado no saco de lona e exalou um silencioso suspiro de alívio.
O veículo prosseguiu em frente e deteve-se à entrada da ponte. O assassino louro encontrava-se junto de um dos pilares e decerto fora instruído para proceder em conformidade com a sua suposta missão, mas em vez disso os olhos esquadrinhavam o bosque e a estrada. Vozes elevadas irromperam da área da ponte: o casal que viajava na furgoneta objectava à exigência inesperada para se apear. Segundo parecia, costumava atravessar a fronteira todos os dias.
Michael compreendeu que o ruído constituía a sua protecção e rastejou para a frente. Achava-se a pouco mais de dois metros do homem no momento em que a porta de trás da furgoneta se abriu e a vozearia de obscenidades se ergueu num crescendo. Quando a porta se voltou a fechar, Havelock irrompeu da vegetação de mãos estendidas, para atacar.
- Che mai?...
O especialista de explosivos não teve oportunidade de manifestar um assombro mais profundo, pois a cabeça foi comprimida contra o solo e o pescoço apertado pela mão direita de Michael, como num torno. Em seguida, este voltou o homem inconsciente, arrancou-lhe
o cinto e utilizou-o para lhe atar solidamente os braços atrás das costas. Por fim, puxou da automática Llama e atingiu-lhe a base do crânio como contribuição adicional para que o estado de inconsciência se prolongasse.
O saco de lona continha um laboratório portátil de especialista de explosivos, em que predominavam as cargas de dinamite e plástico. Os dispositivos com condutores que partiam de relógios miniaturizados eram detonadores, cujos terminais positivo e negativo deveriam ser ligados à respectiva carga. Havia outros, de um tipo diferente, pouco maiores que um relógio de pulso, destinados ao plástico. Havelock pegou em três destas últimas cargas e detonadores e guardou-os nas algibeiras. A seguir, afastou-se rastejando e levando o saco, que ocultou um pouco adiante, debaixo de um tronco caído. Por último, consultou o relógio e viu que dispunha de doze minutos.
Entretanto, os protestos à entrada da ponte tinham-se extinguido. O casal tornara a entrar na furgoneta e os guardas pediam desculpa do incómodo causado. O motor foi ligado e o veículo entrou ruidosamente no estreito tabuleiro. O fragor era agora mais intenso, quase ensurdecedor, e os guardas estremeciam e levavam as mãos às orelhas, numa tentativa para o neutralizar. O pandemónio e os faróis: o primeiro constituía uma diversão e os segundos uma distracção. Michael reflectiu que, se obtivesse um posto de observação satisfatório, talvez conseguisse eliminar o seu pretenso carrasco. No entanto, não efectuaria a tentativa até que as probabilidades se inclinassem a seu favor.
O homem trajado de montanhês conservar-se-ia a meio da ponte, encostado a um pilar, como um peão empenhado em recuperar o alento. Não havia possibilidade de contar com um único disparo, em virtude da distância. No entanto, a automática munida de silenciador
era uma arma poderosa, pelo que um atirador que fizesse fogo cinco ou seis vezes consecutivas, numa espécie de rajada, teria fortes hipóteses de alcançar o seu objectivo.
Com a concentração igualmente dividida entre a vegetação à sua frente e o assassino louro, que descortinava por entre as árvores à esquerda, continuou a rastejar o mais rápida e silenciosamente possível até à orla do desfiladeiro, no fundo do qual corria o rio.
Surgiu o clarão de uma lanterna atrás dele, que o obrigou a ocultar-se junto de uma rocha. Notou que apoiava os pés numa espécie de parede escarpada que terminava junto da água, a
algumas dezenas de metros do ponto em que se achava. Verificou que parte da folhagem fora afastada, para dar passagem ao assassino louro, agora imóvel, de lanterna em punho. Gradualmente, porém, a atenção do homem extinguiu-se, supondo sem dúvida que ouvira algum animal ou ave nocturna.
A furgoneta aproximava-se do meio da ponte, onde permanecia o montanhês, cabeça afundada na gola levantada do pesado casaco. O ruído era agora quase insuportável. Havelock voltou-se atrás da rocha, firmando bem os pés no solo. Não disporia de mais de um segundo para tomar a decisão e dois ou três para disparar a automática durante o breve lapso de tempo em que a retaguarda da furgoneta bloquearia a visibilidade a quem se encontrasse nas guaritas à entrada. Não sem uma ponta de apreensão, ele retirou a pesada arma da cintura, apoiou o braço na rocha e rodeou o pulso direito com os dedos da mão esquerda, enquanto fazia pontaria. Precisava de ter a certeza, pois não podia sacrificar a noite e tudo o que ela representava. Mas se as probabilidades se inclinassem a seu favor...
Parecia que sim. No momento em que a furgoneta passou diante do homem, este endireitou-se e converteu-se num alvo imóvel. Havelock premiu o gatilho quatro vezes, em sucessão rápida. O assassino de apoio, como o agente lhe chamara, cambaleou para trás e tombou na sombra da passagem para peões.
O ruído foi-se atenuando, à medida que o veículo se aproximava da outra margem. Todavia, não tardou a surgir outro som, proveniente de longe, do lado de Monesi. Michael inclinou o tronco ao longo da superfície da rocha e deslizou para a orla do bosque, agachando-se instantaneamente e guardando a automática ainda quente. Quando espreitou por entre, as árvores na direcção do posto de controlo, avistou os dois guardas autênticos na
guarita mais próxima, inclinando as cabeças um para o outro, corno se contassem algo que tinham nas mãos: as liras haviam chegado ao segundo nível. O impostor louro encontrava-se cá fora, um estranho no que se referia à transacção, preocupado em vigiar a estrada.
Ergueu a mão até um ponto intermédio do peito e sacudiu o pulso duas vezes, num gesto inócuo de quem restabelecia a circulação de um braço que suportara demasiado peso recentemente. Era um sinal.
O assassino levou a mão ao quadril direito, e não se tomava necessário um esforço de imaginação especial para compreender que desprendia a fivela do coldre, sem desviar os olhos da estrada. Havelock moveu-se até junto do especialista de explosivos inconsciente, enquanto o som do motor se intensificava, agora acompanhado de um leve zumbido grave à distância - um segundo veículo que aumentava a velocidade. Michael afastou a ramagem de um pinheiro baixo e olhou à esquerda. Na estrada, a algumas centenas de metros, destacava-se o vulto escuro de um automóvel longo e, quando transpôs a curva, certificou-se de que se tratava de um Lancia. Era Jerina Karas! Acto contínuo, impos ao espírito e ao corpo um domínio que nunca supusera possível. Os minutos imediatos fariam entrar em cena tudo o que aprendera desde criança, em Praga, todas as artimanhas e expedientes que absorvera do mundo das trevas em que vivera durante muito tempo.
O Lancia acercava-se gradualmente, e Michael experimentou uma sensação aguda no peito, quando fixou o olhar no pára-brisas. Em vez de Jerina, o banco da frente era ocupado por dois homens - o condutor fumava calmamente e o companheiro falava com profusão de gestos para vincar o seu ponto de vista. De súbito, o primeiro inclinou a cabeça para o lado, a fim de se dirigir a alguém no banco de trás. O carro começou a reduzir a velocidade, quando se achava a duas centenas de metros do posto do controlo.
O impostor louro aproximou-se da guarita, bateu na vidraça e apontou para o veículo que se aproximava e para ele próprio. Era o recruta ansioso por entrar em acção e demonstrar aos colegas mais experientes que podia ocupar-se do assunto. Os dois soldados voltaram-se, aparentemente contrariados com a interrupção, e inclinaram as cabeças.
Em vez de se afastar imediatamente, o assassino contratado por Roma extraiu um objecto da algibeira, ao mesmo tempo que se movia dissimuladamente para a porta fechada da guarita, por cuja frincha inferior o introduziu. Havelock tentou determinar a natureza da misteriosa actividade e não tardou a fazer-se-lhe luz no espírito. Tratava-se de uma porta de correr e o louro acabava de entalar uma chapa de aço para impedir que fosse aberta. Os dois soldados achavam-se aprisionados, sobretudo porque a vidraça devia ter espessura considerável, como acontecia em todos os postos fronteiriços. No entanto, havia um ponto frágil na maquinação: um simples telefonema aos colegas do outro lado bastaria para obter auxílio. No momento imediato, porém, Michael certificou-se de que semelhante possibilidade não existia, porquanto os fios telefónicos tinham sido cortados no poste existente a curta distância da guarita. Os assassinos de Roma dominavam a situação.
O louro colocou-se junto da cancela, assumiu uma posição militar - pés afastados, mão esquerda na cintura e direita erguida num " Alto" mímico - e aguardou a aproximação do Lancia.
Este imobilizou-se, as janelas abriram-se e os dois homens do banco da frente entregaram os passaportes. O assassino debruçou-se sobre a janela da esquerda e proferiu algumas palavras que não chegaram aos ouvidos de Havelock, ao mesmo tempo que lançava uma olhadela ao banco de trás.
O motorista explicava qualquer coisa e, de vez em quando, virava-se para o companheiro, em busca de confirmação. Em dado instante, este último inclinou-se para a frente e abanou a cabeça, como se deplorasse algo. Em seguida, o falso guarda retrocedeu dois passos e falou mais alto, com autoridade militar.
- Lastimo, signori e signora - proferiu em italiano. - As ordens que recebemos esta noite obrigam-nos a mandar descer os passageiros dos carros, enquanto os examinamos.
- Mas garantiram-nos que podíamos atravessar para Col des Moulinets o mais rapidamente possível, caporale - protestou o motorista, levantando a voz. - A pobre senhora sepultou o marido há menos de duas horas. Está acabrunhada pela dor... Tem aí os documentos e passaporte dela, juntamente com os nossos. Creia que está tudo em ordem. Esperam-nos para a missa, que vai ser celebrada às oito. A senhora é de uma família importante... Um casamento franco-italiano que terminou tragicamente num acidente horrível. Os presidentes dos municípios de Monesi e Moulinets assistiram ao funeral...
- Lastimo, signora - repetiu o assassino. - Queiram sair. Há uma furgoneta atrás, e não podem impedir a passagem.
Havelock voltou a cabeça e avistou o veículo de motor potente, que se achava vazio. Os dois ocupantes encontravam-se em lados opostos da estrada, trajados de montanheses, entretidos a observar as imediações, com as mãos afundadas nos bolsos. Apoiante de apoiantes... A fronteira pertencia à unidade de Roma, convencida de que não poderia passar ninguém sem o seu conhecimento, e, se o alvo fosse avistado, morreria.
E se não fosse avistado? Entraria em vigor a ordem secundária? O alvo secundário o engodo - seria eliminado em Col des Moulinets, porque deixara de ter utilidade? A resposta à pergunta revelava-se penosa de admitir, em virtude da sua evidência. Não havia outra saída. Ela não existia, a sua existência era demasiado perigosa para os mentirosos que transmitiam ordens aos estrategos e embaixadas, indistintamente. A unidade regressaria a Roma sem pôr em prática a execução fundamental e o único prejudicado seria um agente incumbido de relatar os factos desconhecedor do alvo secundário.
O vulto alto e esbelto trajado de negro desceu do Lancia - uma mulher de luto, com um véu opaco que descia do chapéu de abas largas e lhe cobria o rosto. Havelock arregalou os olhos, enquanto a dor no peito se tomava quase insuportável. Ela encontrava-se a uns sete metros, porém o espaço que os separava achava-se preenchido pela morte, e a dela não tardaria, mesmo que a dele não ocorresse.
- Lamento profundamente, signora - disse o assassino uniformizado. É indispensável que tire o chapéu.
- Mas para quê? - perguntou Jerina Karas, em voz baixa, dominada, embora com uma ponta de emoção, que tanto podia significar dor como medo.
- Apenas para comparar o seu rosto com a fotografia do passaporte. É costume, como
deve saber.
Ela ergueu o véu com lentidão e em seguida removeu o chapéu da cabeça. A pele, tão frequentemente bronzeada pelo sol, apresentava uma palidez cadavérica ao clarão da luz da ponte. Michael observava-a, respirando com dificuldade e desejando preveni-Ia da sua presença e do perigo que corria, e os esforços que efectuava para se dominar obrigavam-no a cerrar os dentes, com receio de uma imprudência involuntária que resultaria fatal.
- A signora tem cabelos admiráveis - volveu o assassino louro, com um sorriso. Minha mãe concordaria comigo. Também somos do Norte.
- Obrigada. Posso voltar a pôr o chapéu e o véu, caporale? Estou de luto.
- Só um momento, por favor. Ricci continuava com o passaporte na mão, mas não o olhava. Ao invés, esquadrinhava as cercanias sem mover a cabeça, a irritação intensificando-se visivelmente. Entretanto, os
companheiros de Jerina conservavam-se imóveis junto do carro, evitando o olhar do soldado.
Atrás do Lancia, de ambos os lados da furgoneta, os assassinos de apoio mantinham-se tensos, perscrutando a escuridão e voltando-se repetidamente para o lado da estalagem, com expressões de ansiedade. Dir-se-ia que esperavam que ele se materializasse das trevas, que surgisse repentinamente, caminhando com naturalidade ou de forma resoluta, procedente da estalagem ou do bosque, a fira de se reunir à mulher do Lancia. Era o que esperavam: tratava-se dos momentos que haviam previsto para o desenrolar da acção o alvo seria encontrado agora, se não o localizassem antes. E, do seu ponto de vista, tinha de acontecer. Apresentava-se tudo claro, sem o mínimo ponto obscuro. O alvo não atravessara a ponte nas últimas vinte e seis horas e, se o fizesse antes, constituiria uma estupidez. Não tinha possibilidade de saber em que veículo Jerma Karas viajava ou por que estrada seguia através de Col de Moulinets. À parte estas deduções, não existia motivo algum para que o homem destinado a ser despachado se inteirasse da existência de uma unidade de Roma no posto fronteiriço. Aconteceria agora ou nunca.
A tensão aumentava gradualmente. Compunha-se de dois soldados encerrados na guarita, que tentavam abrir a porta e gritavam, embora as vozes fossem abafadas pela espessura da vidraça. Jerina Karas e os dois companheiros não perdiam um pormenor do que se passava. O motorista movera-se para a porta e o outro para a berma da estrada, na orla do bosque. Desenrolava-se uma armadilha, mas, por razões que não compreendiam, não se lhes destinava, de contrário capturá-los-iam sumariamente.
Havelock sabia que, a partir daquele momento, se achava tudo sincronizado. Seguia-se a expectativa eterna até ao instante crucial, quando o instinto lhe indicaria que devia actuar. Não tinha possibilidade de alterar as probabilidades a seu favor, mas podia reduzi-Ias contra ele. Contra Jerma.
- Finirà in niente - disse o assassino unifon-nizado, em tom apenas suficientemente elevado para que o ouvissem.
Levou a mão à cintura e sacudiu o pulso duas vezes, como fizera antes, em novo sinal. Michael extraiu da algibeira uma carga de plástico e um detonador, cujo quadrante luminoso indicava: 0000. Em seguida, premiu o botão até surgirem os algarismos que pretendia e aplicou-o à carga, após o que se internou mais uns três metros no bosque e a lançou. No momento em que lhe abandonou a mão, tomou a mover-se no sentido da estrada, paralelamente à furgoneta imobilizada, a três metros do assassino de apoio trajado de montanhês. Restavam-lhe duas balas na pistola munida de silenciador e admitia que necessitasse de as utilizar antes do que desejava, mas os sons abafados eram preferíveis aos estampidos da automática Llania.
- As minhas desculpas pela demora, signora e signori - articulou o assassino louro, afastando-se do Lancia em direcção à manivela que accionava o mecanismo de levantamento da cancela. - As ordens fizeram-se para se cumprir. Podem entrar no carro. Está tudo esclarecido.
Passou diante da guarita, na qual os guardas continuavam a protestar, ignorando-os, pois não queria perder tempo com figurantes . O plano abortara, uma estratégia meticulosamente preparada falhara, e a cólera e a frustração que o assolavam não eram muito inferiores ao impulso que o instinto profissional lhe transmitia para abandonar a área. Faltava apenas cumprir uma formalidade, de que o agente incumbido de elaborar o relatório não teria conhecimento. Retirou uma agenda e um lápis da algibeira, como um guarda fronteiriço vulgar empenhado em anotar o número do veículo que se preparava para passar, o que constituía mais um sinal.
Faltavam escassos segundos. Jerma e os companheiros subiram para o Lancia, enquanto os rostos dos dois homens denunciavam perplexidade e uma ponta de alívio. As portas foram fechadas e, ao ouvir o som, o homem perto da retaguarda do automóvel emergiu da vegetação, encaminhando-se para o polia-bagagens, embora concentrasse a atenção no arvoredo do outro lado. Levou a mão direita à cintura e sacudiu o pulso duas vezes, intrigado ante a ausência de resposta ao seu sinal. Imobilizou-se por um momento, as rugas da fronte revelando uma ponta de alarme, mas não pânico. Os homens da sua profissão compreendiam os problemas relacionados com o funcionamento deficiente do equipamento; eram imprevistos e fatais, razão pela qual os especialistas actuavam em equipas de duas unidades. Lentamente, voltou a cabeça para o posto de controlo, onde o assassino louro aguardava com impaciência, ajoelhou, pegou num objecto com a mão esquerda e transferiu-o para a direita, antes de a estender para a parte inferior do carro, directamente por baixo do depósito de combustível.
Tinham-se esgotado os segundos. O alvo não podia esperar. Havelock apontou a pistola ao homem e puxou o gatilho. O especialista soltou um grito, ao mesmo tempo que o corpo embatia no guarda-lamas e o objecto se lhe soltava da mão. Embora imerso em agonia, pois o projéctil atingira-o na coluna vertebral, virou-se para a origem dó disparo, puxou de uma automática e apontou-a instantaneamente. Michael afastou-se com prontidão até que a densidade da vegetação lhe impediu o avanço. Os tiros ecoavam por toda a parte, enquanto ele disparava a derradeira bala da automática com silenciador. O som abafado foi seguido de uma exclamação rouca do homem junto do porta-bagagens, no instante em que o projéctil lhe atravessava a garganta.
- Dov'è? Dov'è? - rugiu o assassino louro, precipitando-se para o Lancia, que principiou a contornar.
A explosão abalou a atmosfera como o trovão mais demolidor. Ricci atirou-se ao chão e começou a disparar em todas as direcções, como um alucinado. Entretanto, o motor do Lancia entrava em actividade e o carro rolou para a ponte. Jerma estava livre.
Mais uns segundos; Havelock tinha de completar o trabalho. Endireitou-se e abandonou o bosque, com a automática recolhida no cinto e a Llama na mão. O assassino viu-o ao clarão das chamas que se propagavam na vegetação, apoiou-se nos joelhos e, amparando o braço direito com a mão esquerda, visou Havelock, premindo o gatilho repetidamente, ao mesmo tempo que este se refugiava atrás da furgoneta. No entanto, não tardou em verificar que se tratava de uma protecção precária, ou mesmo inexistente, ao ouvir passos apressados. Voltou-se, encostado à portinhola, e avistou o assassino-condutor, que o alvejou. Michael lançou-se ao solo rapidamente e ripostou com dois tiros, sentindo uma impressão aguda no ombro. Fora atingido, embora sem gravidade. Por seu turno, o condutor rolava espasmodicamente na berma da estrada e, se não morrera, faltava pouco.
De súbito, surgir'am disparos de outra proveniência. O assassino louro dispunha de plena liberdade para retomar a ofensiva, agora que o seu associado fora posto fora de combate. Havelock deitou-se no chão e rastejou sob a furgoneta, até alcançar o outro lado. Segundos. Faltavam escassos segundos. Pôs-se de pé e acercou-se da porta, enquanto o grupo de pessoas assustadas à entrada da estalagem soltava gritos e dispersava em todas as direcções. Movendo-se sem a mínima hesitação, abriu a porta, verificou que as chaves se encontravam na ignição, instalou-se ao volante e ligou o motor. O tiroteio registou uma pausa e ele compreendeu o motivo: o assassino voltava a carregar a arma. Aqueles segundos eram cruciais. Havelock acendeu os faróis, avistou o louro ajoelhado na estrada em frente, destravou o veículo e calcou o pedal do acelerador até ao sobrado.
A furgoneta partiu, disparada, com fortes guinchos de protesto dos pneus, enquanto o vidro do pára-brisas era perfurado em vários pontos. Ele conservava a cabeça levantada apenas o suficiente para ver o indispensável. O assassino achava-se no centro do clarão projectado pelos faróis. Michael prosseguiu em frente até que sentiu e ouviu o impacto, acompanhado de um grito de fúria. Em seguida, rodou o volante para a esquerda e enveredou pela ponte, notando de passagem que os dois guardas que se encontravam de bruços no sobrado da guarita.
Reinava o caos do lado francês, mas nenhuma barreira para lhe impedir o caminho. Soldados corriam de um lado para o outro do posto de controlo, vociferando ordens a todos
e a ninguém. A estrada de acesso a Col des Moulinets descrevia uma curva para a esquerda, a seguir à ponte, e depois desviava-se para a direita, estendendo-se para um aglomerado de construções baixas, típicas de milhares de aldeias alpinas. Quando entrou numa rua empedrada, vários transeuntes saltaram para o estreito passeio, tão assustados com o som como com a visão da pesada furgoneta italiana.
Havelock descortinou as luzes vermelhas... os farolins do Lancia. Achava-se distante e cortou para uma artéria lateral... só Deus sabia qual, pois havia muitas. Col des Moulinets era uma daquelas povoações em que todos os caminhos transversais tinham sido pavimentados. Não obstante, ele descobri-lo-ia, quando lá chegasse. Tinha de o descobrir.
As ruas transversais tomavam-se mais largas, com casas de habitação e lojas, e apresentavam-se mais concorridas. No entanto, o Lancia não estava visível. Desaparecera.
- Pardon! Ou est l'aeroport? - perguntou a um casal de meia-idade.
- O aeroporto? - replicou o homem, no mesmo idioma. - Não há aeroporto nenhum em Col des Moulinets. Pode seguir pela estrada do sul até Cap Martin.
- Tenho a certeza de que há, perto daqui - volveu Havelock, esforçando-se por dominar a ansiedade. - Um amigo disse-me que vinha a Col des Moulinets de avião. Prometi ir esperá-lo e estou atrasado.
- O seu amigo referia-se a Cap Martin.
- Talvez não - interveio um homem mais jovem, que estava encostado à parede de um estabelecimento encerrado. - De facto, não há aeroporto em Col des Moulinets, mas existe um aeródromo, uns vinte quilómetros ao norte, na estrada de Tenda. É utilizado pelos ricos que têm propriedades em Roquebillière e Breil.
- É esse, de certeza! Qual o caminho mais rápido?
- Corte à direita na primeira esquina e, uma vez na Rue Maritimes, vire à esquerda, até desembocar na estrada. Depois, não tem nada que saber. É sempre em frente.
- Obrigado.
O tempo constituía uma montagem vertiginosa de luz e sombra, sulcada de ruas movimentadas e pessoas que saltavam prontamente para os passeios. Minutos depois - Michael nunca saberia quantos -, rodava na estrada ladeada de colinas que representavam o prelúdio das montanhas mais adiante. Não havia a mínima luz, nem qualquer indício indicativo da presença de outro carro, ainda que distante. O Lancia desaparecera por completo. Seria aquele o rumo correcto, ou porventura a ansiedade perturbara-lhe o sentido da orientação? Tão perto e, ao mesmo tempo, tão terrivelmente longe... transposto um golfo, surgia logo outro para atravessar. Atravessar? Em Praga, diziam-no de uma forma mais apropriada. Prejezd soava melhor.
Miluji vás, má drahá. Nós compreendemos estas palavras, Jenna. Não precisamos da linguagem dos mentirosos. Nunca a devíamos ter aprendido. Não escutes os mentirosos! Eles neutralizaram-nos e agora querem matar-nos. Têm de o fazer, porque sei que estão aí. Sei e tu também saberás.
Um projector! O foco varria o céu nocturno. Atrás das colinas mais próximas, diagonalmente à esquerda. Algures, adiante, havia um aeródromo, um avião... e Jerma.
A segunda colina era íngreme e o outro lado ainda mais, com curvas, e ele segurava o volante com firmeza, transpondo-as com a prudência que a velocidade lhe permitia. Luzes. Dois largos focos em frente e dois pontos vermelhos atrás. Era o Lancia! Dois quilómetros, três, adiante e a um nível inferior. Tomava-se impossível determiná-lo com rigor, porém o aeródromo estava lá. Linhas paralelas de luzes amarelas à altura do solo assinalavam as pistas. O campo de aviação situava-se num vale, suficientemente largo e extenso para pequenos "jactos" e aparelhos movidos por hélices - utilizado pelos ricos que têm propriedades em Roquebillière e Breil.
Havelock conservava o pedal do acelerador colado ao sobrado, enquanto o pé esquerdo exercia ligeira pressão ocasional no do travão, quando o equilíbrio do carro se achava ameaçado. A estrada atingiu uma área plana e converteu-se num caminho de piso irregular que contornava a vedação, no interior da qual brilhavam asas e fuselagens de uma dezena de aparelhos imobilizados em várias posições, fora das pistas - os iates de ontem haviam cedido o lugar a tubos prateados que singravam nos céus. A vedação, com três metros de altura, achava-se reforçada com arame farpado no topo e prolongava-se cerca de um metro e
meio para dentro, com certa inclinação. Tudo indicava que os ricos de Roquebillière e Breil queriam assegurar-se de que as suas posses aladas não seriam afectadas por curiosos. Existiria uma entrada vigiada por guardas mais zelosos das suas funções que os seus homólogos militares da fronteira francesa?
Não tardou a obter resposta afirmativa. A pesada porta era encerrada na sua frente, depois de admitir o Lancia, que apagara os faróis e os farolins e rolava na direcção de um avião. Restavam apenas segundos ou fracções, pois cada minúsculo movimento do relógio encurtava o golfo ou alargava-o.
Segurando o volante com uma das mãos, Michael exerceu pressão na buzina, para transmitir o único código de alarme que lhe acudia no momento: Mayday, Mayday, Mayday!
Havia dois guardas uniformizados no interior da entrada, que se preparavam para colocar o ferrolho na pesada porta. De súbito, arregalaram os olhos ao avistarem a furgoneta, que buzinava e avançava velozmente. Obedecendo ao impulso natural ditado pelo instinto de conservação, desinteressaram-se de concluir a operação e saltaram prontamente para o lado.
Surgiu o impacto inevitável. O veículo fez a porta desprender-se dos gonzos e projectar-se contra a guarita, arrancando e seccionando fios eléctricos, que emitiram uma chuva de faúlhas. Indiferente aos estragos produzidos, Michael conduziu a furgoneta para o
campo, apercebendo-se vagamente de que as pontadas no ombro se acentuavam, e seguiu um rumo aproximado ao do Lancia, pouco antes.
Nada. Absolutamente nada! Onde estaria? Uma sugestão de luz. Movimento na extremidade mais afastada no campo, para além da fila de clarões amarelados da pista norte, agora ligeiramente acima do terreno mais distante. A cabina do avião acabava de ser aberta e a luz interior acendera-se por um instante, para se extinguir com prontidão. Ele rodou o volante para a direita, sentido o sangue do ombro ferido propagar-se à camisa, e voltou a acelerar em direcção ao ponto em que avistara o clarão.
Lá estava! Não era um "jacto", mas um bimotor, cujos hélices giravam furiosamente. Achava-se fora da pista, para além das duas fiadas paralelas de luzes, e o piloto preparava-se para o colocar na posição de descolagem. No entanto, não se movia. Parecia aguardar algo.
O Lancia. Encontrava-se atrás e à direita do avião. De novo, uma luz! Agora, não do aparelho, mas do carro. Abriram-se portas e desceram vultos, que se precipitaram para o bimotor. A porta da cabina, nova luz! Por um instante, Michael considerou a hipótese de colidir com a fuselagem ou esmagar a asa mais próxima, mas poderia constituir um erro trágico. Se atingisse um depósito de carburante, o aparelho explodiria em poucos segundos. Por conseguinte, desviou a pesada furgoneta para a direita e depois para a esquerda, até que travou com brusquidão diante do avião, e saltou para fora.
- Jenna! Jenna! Poslouchám já! Stuj! Escuta! Ela transpunha os degraus, seguida do condutor do Lancia, que depois fechou a porta. Michael principiou a correr, alheio a tudo, excepto a Jenna. Tinha de a impedir de partir!
O impacto surgiu das sombras, abafado e, ao mesmo tempo, aumentado pelos ventos furiosos provocados pelos hélices. A cabeça dele inclinou-se para trás, ao mesmo tempo que os joelhos se dobravam e o sangue brotava da região temporal direita. Viu-se no chão, apoiado nas mãos, fitando vagamente o avião em movimento, impossibilitado de o evitar. As luzes da cabina conservaram-se acesas por alguns segundos e ele descortinou o rosto dela atrás do vidro, contemplando-o fixamente. Era uma imagem que Michael jamais esqueceria... se sobrevivesse. A segunda pancada do instrumento contundente atingiu-lhe a base do crânio.
Agora, não podia pensar na imagem terrível ou nela! Ouviu as sereias ao longo do aeródromo e viu o clarão do projector que varria a pista, incidindo no metal reluzente
do bimotor que deslizava, em velocidade crescente, entre as duas fiadas de luzes amareladas. O homem que o atingira duas vezes corria para o Lancia. Ele tinha de se mover! Ejá, ou não lhe permitiriam que vivesse, que a voltasse a ver. Esforçou-se por se endireitar e puxou da automática LIama.
Disparou duas vezes para um ponto acima do tejadilho do Lancia, reflectindo que o homem que naquele momento se sentava ao volante o podia ter morto momentos antes, pelo que ele não o devia abater. De resto, tinha as mãos demasiado incertas e o clarão do projector impedia-o de visar o alvo com a segurança necessária para o atingir apenas no ombro ou nó braço. Mas necessitava de se apoderar do carro. Tomou a premir o gatilho, e a bala ricocheteou na superfície metálica, enquanto ele se acercava da janela.
- Saia ou morre! - bradou, pegando no puxador da porta. - Ouviu? Cá para fora, imediatamente!
Agarrou o homem pela gola do casaco, puxou-o e largou-o na relva. Não havia tempo para as numerosas perguntas que desejava fazer. Tinha de fugir dali! Sentou-se ao volante, fechou a porta e destravou o carro, pois o motor já se achava em movimento.
Nos quarenta e cinco segundos imediatos, atravessou o aeródromo a alta velocidade, esquivando-se à polícia de segurança por meio de manobras arriscadas, destinadas a evitar zonas abarcadas pelo projector. Em mais de uma ocasião esteve prestes a colidir com um dos aparelhos estacionados, antes de alcançar a saída, que transpôs em andamento alucinado.
Não conseguia afastar do pensamento a imagem horrível do rosto de Jetina à janela do avião em movimento. Em Roma, denunciava medo e confusão, enquanto agora se tratava de outra coisa, concentrada nos olhos.
ódio glacial, intenso.
Capítulo décimo terceiro
Havelock seguiu para sudoeste, em direcção à Provença, e depois para sul, a caminho da costa e, mais concretamente, da vila de Cagnes-sur-Mer. Trabalhara no sector setentrional do Mediterrâneo durante anos e conhecia um médico entre Cagnes e Antibes. Rasgara a manga da camisa e utilizara o tecido para fazer um nó em tomo do ferimento no ombro, mas não bastava para estancar o sangue. Tinha todo o peito empapado e desprendia-se o odor agridoce que ele conhecia perfeitamente. A base da nuca apresentava apenas uma escoriação - opinião de um paramédico que de modo algum contribuía para atenuar a dor -, todavia o ferimento na cabeça carecia de pontos. O mínimo esforço reabriria a laceração, que se achava selada unicamente com sangue coagulado.
Além de ajuda médica, precisava de outra de uma natureza diferente, que o dr. Henri Salanne lhe poderia proporcionar. Necessitava contactar Matthias, já que seria asinino protelá-lo por mais tempo. Poderiam ser estabelecidas identidades específicas a partir de ordens, de um nome de código, Ambiguidade, para o que dispunha de elementos em quantidade suficiente. A prova superficial da conspiração maciça resultava clara do facto de Jerma ter sobrevivido ao episódio da Costa Brava - quando fora declarada oficialmente morta - e da condenação dele próprio como " irrecuperável" . O primeiro podia aceitá-lo do seu pritele e o segundo seria confirmado a partir de directivas seladas nos ficheiros das Operações Consulares. Os motivos talvez se situassem fora do alcance de Michael, porém não os factos, e Matthias poderia actuar a partir deles. E enquanto o secretário de Estado o fizesse, ele tinha de se deslocar a Paris, o mais rapidamente possível, o que não constituiria uma operação fácil, pois todos os aeroportos, auto-estradas e estações de caminho-de-ferro
na Provença e nos Alpes marítimos estariam vigiados. Os factores tempo e comunicações achavam-se a favor dos mentirosos. Transmitir ordens confidenciais tomava-se mais fácil do que rescindi-Ias, porquanto se propagavam como uma nódoa de azeite em papel poroso, à medida que os destinatários desapareciam, cada um dos quais desejoso de colher os louros da execução.
Dentro de uma hora - se porventura não acontecera já -, Roma inteirar-se-ia dos acontecimentos registados em Col des Moulinets. Seriam utilizados telefones e frequências de rádio pouco procuradas para enviar a informação: O homem " irrecuperável" continua a monte. Pode custar-nos muito daquilo que é valioso para nós, incluindo tempo e vidas. Toda a rede de pessoal encontra-se em estado de alerta. Empreguem todos os recursos e armas disponíveis. Área zero: Col des Moulinets. Raio: máximo duas horas de viagem; dado como ferido. últimos transportes conhecidos: uma furgoneta com motor potente e um sedan Lancia. Encontrem-no. Matem-no.
Os mentirosos do Potomac decerto já tinham contactado Salanne, mas, como sucede com frequência no mundo das sombras, havia confidências ocultas - coisas no e do seu passado - que aqueles que aprovavam as verbas para despesas em Washington, Roma ou Paris desconheciam por completo. E quanto a "zangões" como o dr. Henri Salanne, apenas determinados homens no "campo" que haviam estado nurn dado cenário os conheciam e reservavam os nomes para futura utilização pessoal, se a necessidade alguma vez se apresentasse. Existia mesmo uma vaga moralidade em relação a essa prática, porque na maioria dos casos a informação incriminadora ou os próprios acontecimentos constituíam o resultado de uma crise de fraqueza temporária que não exigia a destruição - ou morte - do homem ou mulher.
Quanto a Salanne, Havelock estava presente quando acontecera - mais exactamente, onze horas antes de o facto acontecer, tempo suficiente para alterar as consequências.
O médico denunciara um agente americano em Cannes, que coordenava uma pequena frota de iates que singravam o litoral com a finalidade de vigiar posições navais soviéticas no sector. Denunciara-o por dinheiro a um informador do KG13, e Michael não compreendera, pois tanto a traição como o dinheiro não eram um motivo compreensível no caso de Salanne. Bastou a confrontação de baixo nível para se inteirar da verdade, e tratava-se de uma verdade - ou justaposição de verdades - tão velha como o mundo grotesco em que vivia. O afável, ainda que algo cínico, médico de meia-idade era um jogador inveterado, razão fundamental pela qual, anos atrás, um jovem e brilhante cirurgião do Hospital de Paris decidira exercer a profissão no triângulo de Monte Carlo. As suas credenciais e referências mereciam crédito e respeito absoluto em Móriaco, o que se podia considerar uma circunstância favorável, ao contrário do que acontecia quanto às suas perdas no casino.
Entrara em cena o americano, cujo disfarce consistia na posse de numerosos iates, que despendia o dinheiro dos contribuintes prudente, mas chocantemente no pano verde. No entanto, as suas actividades chocantes não se cingiam ao chemin defer, uma vez que era um mulherengo, com decidida preferência pelas jovens, imagem que, segundo o seu raciocínio, não lhe afectava o disfarce. Ora, uma das raparigas que levou para a sua concorrida cama era a filha de Salanne, Claudie, moça impressionável, que sofreu uma intensa depressão quando viu que o episódio não tinha uma sequência mais sólida e profunda.
Os soviéticos não descuraram a oportunidade: as perdas do médico podiam ser cobertas e um coureur conquistador removido do palco. Pourquoi pas? E a peça fora encenada e representada.
Foi a vez de surgir Havelock, que descobrira a traição, afastara o americano do cenário antes que os barcos fossem identificados e enfrentara Henri Salanne. Nunca comunicou a descoberta superiormente - não havia motivo para tal, e o médico mostrou-se compreensivo em face das condições do seu "perdão". Não voltaria a fazer... e foi assumida uma obrigação.
Michael descobriu uma cabina telefónica numa esquina deserta do centro de Cagnes-sur-Mer, saiu do carro com alguma dificuldade e, depois de entrar, puxou da Llama, fragmentou a lâmpada do tecto e observou o marcador na penumbra. Após um lapso de tempo que se lhe afigurou interminável, as Informações de Antibes forneceram-lhe o número de Salanne.
- Votre fille, Claudie, coniment va-t-elle? - perguntou em tom pausado. Seguiu-se um silêncio de morte, até que o médico replicou, em inglês com certo sotaque:
- Esperava mais ou menos ter notícias suas. Se é você, consta que deve estar ferido.
- É verdade.
- Com gravidade?
- Preciso que desinfecte um ferimento e aplique alguns pontos. Nada mais, suponho.
- Nada interno?
- Pelo menos, que eu note.
- Oxalá não se engane, pois a visita a um hospital seria uma ideia de gosto discutível, neste momento. Julgo que todas as salas de emergência da área estão sob vigilância.
- E o doutor? - perguntou Michael, subitamente alarmado.
- Eles lutam com falta de pessoal e não vão sacrificar o disponível com alguém que supõem preferir que morram dez pacientes na mesa de operações a deixar de contar com a sua generosidade.
- Era capaz disso?
- Inclinemo-nos para um meio-teimo. - Salanne soltou uma risada seca. - Apesar dos meus hábitos, a minha consciência não me deixaria ir além de cinco. - Fez uma pausa, mas insuficiente para que Havelock replicasse. - No entanto, pode surgir um problema. Dizem que você conduz uma furgoneta pesada.
- Já me desfiz dela.
- Ou possivelmente um sedan Lancia cinzento.
- Isso é verdade.
- Livre-se dele ou deixe-o longe. Michael volveu o olhar para o longo automóvel estacionado junto da cabina. O motor aquecera demasiado e escapava-se vapor pelo radiador, que se dissipava ao clarão do candeeiro público, pormenores que atrairiam as atenções.
- Não sei se posso andar muito.
- Perdeu sangue?
- O suficiente para dar por isso.
- Merde! Onde está? Revelou-o ao médico e acrescentou:
- Já cá estive noutra ocasião, mas não me recordo bem da topografia.
- Desorientação ou ausência de impressões?
- Que diferença faz?
- Sangue.
- Sinto-me um pouco tonto, se é a isso que se refere.
- É. Creio que sei onde fica essa esquina. Não há uma bijouterie, no outro lado? Chama-se qualquer coisa et Fils.
Espreitou pelos vidros e viu de facto um letreiro, do outro lado do Lancia.
- Ariale et Fils? Joalharia fina, relógios e diamantes. Refere-se a isso?
- Exacto. Não foi só perder no casino, e costumava comprar uma ou outra jóia. Essa casa é mais séria que qualquer dos ladrões dos Spélugues. Ora bem, vinte ou trinta metros para norte há uma rua transversal que vai a um pequeno parque de estacionamento, nas traseiras das lojas. Estarei lá o mais depressa possível, que é como quem diz dentro de uns vinte minutos. Não quero bater recordes de velocidade, em face das circunstâncias.
- Não é aconselhável, de facto.
- E você também não. Caminhe devagar e, se houver carros estacionados, deite-se de costas debaixo de um. Quando me vir chegar, acenda um fósforo. De qualquer modo, faça * mínimo de movimentos, entendido?
- Entendido. Havelock abandonou a cabina, mas, antes de cruzar a rua, despiu o casaco, que voltou * vestir depois de tirar a camisa, e torceu esta última até caírem algumas gotas de sangue no passeio. Em seguida, esfregou as solas dos sapatos nelas e moveu-se até à esquina a sul, arrastando os pés. Quem descobrisse o Lancia, concluiria que enveredara por ali. Por fim, descalçou-se e encaminhou-se para o local indicado pelo médico.
Deslizou para debaixo de um carro e deitou-se de costas, com a carteira de fósforos na mão, ao mesmo tempo que analisava a situação imediata. Supondo que o dono do automóvel reapareceria com um companheiro e entravam, que deveria ele fazer e como, sem que o vissem? A resposta à primeira parte da pergunta consistia em rolar para fora, obviamente. Mas para que lado?
O clarão de faróis surgiu à entrada do parque de estacionamento, pondo termo às cogitações. Em seguida, o carro imobilizou-se e a luz extinguiu-se, todavia o motor continuou em marcha. Era Salanne e indicava-lhe que chegara. Michael rastejou para a orla do esconderijo e acendeu um fósforo. Segundos depois, o médico ajudava-o a sair e, transcorridos poucos minutos, rolavam para sul na estrada de Antibes, com Havelock no banco de trás, reclinado ao canto.
- Se a memória não o atraiçoar, deve recordar-se de uma entrada lateral para minha casa que conduz directamente ao meu consultório.
- Lembro-me perfeitamente. Utilizei-a mais de uma vez.
- Entrarei primeiro, para me certificar de que o terreno está livre.
- Que pensa fazer, se houver carros estacionados em frente?
- Prefiro não pensar nisso.
- Talvez não fosse má ideia pensar um pouco.
- Por acaso, fi-lo. Há um colega meu em Villefranche, um homem de certa idade, acima de qualquer suspeita. Não me agradaria envolvê-lo, claro, mas...
- Aprecio o que fez por mim - murmurou, contemplando a cabeça de Salanne e verificando que os cabelos grisalhos de um ano antes se haviam tomado brancos.
- E eu apreciei o que você fez por mim. Contraí uma dívida.
- Não pense nisso.
- Perguntou por Claudie e ainda não respondi. É feliz. Casou com um interno do hospital de Nice e espera um filho em breve. Há dois anos, esteve prestes a pôr termo à vida. Faz uma ideia do que isso vale para mim, meu amigo?
- Alegra-me ouvi-lo.
- De resto, o que dizem de si C* absurdo.
- Que dizem?
- Que endoideceu e é um psicopata perigoso, que ameaça denunciar-nos a todos... se lhe permitirem que viva.
- Isso parece-lhe absurdo?
- Desde há uma hora, mon ami méchant. Lembra-se daquele tipo de Cannes que esteve envolvido na minha indiscrição?
- O informador do KGB?
- Sim. Parece-lhe que está ao corrente do que se passa nos bastidores?
- Como qualquer outro do sector - admitiu Havelock. - Porquê?
- Quando me falaram de si, telefonei-lhe (de uma cabina pública, claro!), para obter confirmação. Assim, perguntei qual a suavidade do mercado, qual a flexibilidade em
termos de preço para o adido consular americano oriundo de Praga. O que me revelou foi surpreendente e específico.
- A que se refere? - inquiriu, inclinando-se para a frente, em virtude da dor.
- Não existe mercado para si, nenhum preço: alto, baixo ou de qualquer natureza. Ninguém lhe deve tocar ou notar sequer a sua presença. Portanto, quem podia você denunciar dessa maneira? - O médico abanou a cabeça. - Roma mentiu, o que significa que alguém de Washington mentiu a Roma. <@Irrecuperável." Incrível.
- Repetiria essas palavras a alguém?
- Para provocar a minha execução? A minha gratidão tem limites.
- Garanto-lhe que não seria identificado.
- Quem acreditaria em si, sem mencionar uma fonte que pudesse consultar?
- Anthony Matthias.
- Matthias? - exclamou, contraindo os dedos no volante, sem desviar os olhos da estrada. - Porque havia ele de?...
- Porque o doutor está comigo.
- Um homem como ele acha-se acima de simples palavras bem intencionadas. Se faz uma pergunta, temos de responder.
- Nem sempre.
- Quem acreditaria em si? Em mim?
- Acaba de o dizer. O adido oriundo de Praga. Como ele.
- Compreendo. Confesso que nunca tinha estabelecido a relação. Nem sequer pensei nisso.
- É complicado e não costumo mencionar o assunto. As nossas famílias conheciam-se desde longa data.
- Tenho de reflectir. O facto de lidar com esse homem coloca as coisas numa perspectiva diferente. Nós somos pessoas vulgares, que cometemos erros. Ele não é apenas um homem vulgar. Vive noutro plano. Os americanos têm uma expressão para o que você pede.
- Um jogo de bola diferente?
- Isso mesmo.
- Não é. Trata-se do mesmo jogo e está orientado contra ele. Contra todos nós. Não avistaram qualquer carro estranho num raio de quatro quarteirões à volta da residência de Salanne, pelo que não havia necessidade de se dirigirem a Vilefranche e contactar um homem de certa idade, acima de qualquer suspeita. Uma vez no consultório, Havelock despiu o casaco e o médico ocupou-se dos ferimentos, auxiliado pela eficiente, ainda que pouco comunicativa, esposa.
- Convinha que repousasse um pouco - advertiu Salanne, quando a mulher se retirou, levando a roupa de Michael, para lavar a que fosse possível e queimar a irrecuperável. - Os pensos devem aguentar uns cinco ou mesmo seis dias, mas depois precisam de ser substituídos. De qualquer modo, acho o repouso indispensável.
- Nem pensar - redarguiu Havelock, soerguendo-se na mesa com um trejeito de dor e suspendendo as pernas para o lado.
- Só de se mexer esses escassos centímetros viu as estrelas, hem?
- Apenas no ombro.
- Não se esqueça de que perdeu sangue.
- Não foi só isso que perdi. - Uma pausa e encarou o médico com uma expressão pensativa. - Tem um gravador?
- Sem dúvida. Há cartas e relatórios (médicos, diga-se de passagem) que só posso elaborar depois de as enfermeiras e as recepcionistas saírem.
- Preciso que me ensine a utilizá-lo e quero que escute. Não demorará muito e não será identificado na gravação. Depois, necessito fazer uma chamada para os Estados Unidos.
- Matthias?
- Exacto. No entanto, as circunstâncias determinarão o que lhe devo revelar: quem se encontra com ele, até que ponto a linha está "esterilizada", etc. Depois de escutar o que eu tiver para lhe dizer, o doutor poderá decidir se falará corri ele ou não... se for caso disso.
- Coloca-me um peso nos ombros.
- Lamento, mas espero que seja o único. De manhã, precisarei de roupa. Deixei tudo em Monesi.
- Não haverá problema por esse lado. A minha não lhe serve, mas peço à patroa que trate do assunto. Irá comprar o que for necessário.
- A propósito de comprar. Tenho algum dinheiro, mas não chega para as despesas que possam surgir. Possuo depósitos em Paris e poderá reaver sem dificuldade o que me emprestar.
- Está a embaraçar-me.
- Não é essa a intenção, mas a minha sugestão traz água no bico. Para que o possa reaver, tenho de me deslocar a Paris.
- Manhias não lhe arranja transporte rápido e seguro?
- Duvido. Compreenderá porquê, quando ouvir o que ditarei. Aqueles que mentiram a Roma ocupam posições muito elevadas em Washington. Não sei quem são ou onde se encontram, mas estou certo de que só transmitirão o que lhes convier. As ordens de Matthias serão ignoradas, porque as deles já seguiram ao seu destino e não as desejam esvaziadas de conteúdo. E se eu divulgar onde me encontro, enviarão alguém para se ocupar de mim. De qualquer modo, existe uma possibilidade de conseguirem eliminar-me, e daí a necessidade da gravação. Podemos tratar disso já?
Meia hora mais tarde, Havelock extraiu a cassette do gravador e pousou-a na secretária do médico, depois de revelar tudo, desde os gritos na Costa Brava às explosões em Col des Moulinets, não conseguindo conter-se de acrescentar um comentário. O mundo civilizado poderia sobreviver aos lapsos de qualquer departamento monolítico de actividades secretas
- independentemente da raça, do credo ou da origem nacional -, mas não quando uma das vítimas era um homem no qual o mesmo mundo civilizado depositava a máxima confiança: Anthony Matthias, um estadista respeitado por amigos e adversários geopolíticos de todos os quadrantes, ao qual haviam mentido acerca de um assunto em que se
envolvera profundamente. Quantas outras mentiras lhe teriam transmitido?
Salanne sentava-se atrás da secretária, com uma expressão rígida, olhar fixo em Michael. Sentia-se abismado, impossibilitado de articular palavra. Por fim, sacudiu a cabeça, aclarou
a voz e quebrou o silêncio.
- Porquê? - articulou em tom quase inaudível. - Parece-me tudo tão absurdo como o que puseram a circular a seu respeito. Porquê?
- @ o que tenho perguntado repetidamente a mim mesmo e vou sempre parar ao que disse a Baylor, em Roma. Pensam que sei alguma coisa que não devia e os assusta.
- E sabe?
- Foi o que ele me perguntou.
- Quem?
- Baylor. E fui franco (talvez em excesso), mas o abalo sofrido ao ver Jetina perturbara-me o raciocínio. Sobretudo, depois do que Rostov disse em Atenas.
- Que foi?
- A verdade. Que eu sabia alguma coisa, já a esquecera ou não me impressionara muito.
- Nem parece seu. Consideram-no um banco de dados ambulante, capaz de se lembrar de um nome, um rosto, um facto insignificante ocorrido há anos.
- À semelhança da maioria dessas opiniões, não passa de um mito. Desenvolvi determinadas disciplinas na universidade, mas estou longe de ser um computador.
- Eu que o diga - murmurou Salarme, pausadamente. - Nenhum computador faria o que você fez por mim. - Inclinou-se para a frente e acrescentou: - Analisou os meses que precederam o episódio da Costa Brava?
- Meses, semanas, dias... tudo, cada lugar em que estivemos... em que estive. Belgrado, Praga, Cracóvia, Viena, Washington, Paris. Não houve nada de remotamente surpreendente, mas admito que se trata de uma expressão comparativa. À excepção de um exercício em Praga, onde nos apoderámos de uns documentos do Stání Bezpecnost (Central da Polícia Secreta), foi tudo mera rotina. Recolhemos informações, o que qualquer turista poderia fazer, e nada mais.
- Washington?
- Ainda menos. Estive lá durante cinco dias. É um acontecimento anual para os agentes de "campo", uma entrevista de avaliação que não passa de uma perda de tempo, embora apanhem um whacko de vez em quando.
- Whacko?
- Alguém que transpôs a divisória mental, que pensa ser outra pessoa e fantasia uma tarefa de rotina básica. Acho que se lhe pode chamar chanfrado de capa e espada. É o resultado da tensão constante e de se ter de assumir muitas identidades diferentes.
- Interessante. Aconteceu mais alguma coisa, durante a sua estada lá?
- Zero. Desloquei-me a Nova Iorque, para visitar um casal conhecido. Ele possui uma marina em Long Island, e se alguma vez um pensamento político lhe cruzou a mente, nunca me inteirei. Depois, passei dois dias com Matthias.
- Vocês eram íntimos... são íntimos.
- As nossas relações datam de longe, como referi. Estava presente quando precisei dele.
- E nesses dois dias?
- Menos que zero. Só o via ao serão, quando jantávamos juntos. E mesmo então, apesar de estarmos sós, era interrompido constantemente por telefonemas e funcionários do Departamento de Estado (suplicantes, como ele lhes chamava), que insistiam em lhe entregar relatórios. - Havelock interrompeu-se ao ver a expressão do médico alterar-se ligeiramente, mas apressou-se a prosseguir: - Ninguém me viu, se é nisso que está a pensar. Recebia-os na biblioteca, e a sala de jantar fica no outro extremo da casa. Tínhamos concordado em não divulgar a nossa amizade. Para minha conveniência, na realidade. Ninguém simpatiza com o protegido de um homem importante.
- Custa-me encará-lo desse modo.
- E seria impossível, se jantasse connosco. Limitávamo-nos a recordar testes que eu submeti à sua apreciação, há quase vinte anos. - Esboçou um sorriso, que se dissipou ao
consultar o relógio. - São horas - anunciou, estendendo a mão para o telefone.
O contacto com Shenandoah era obtido através de uma sequência de números telefónicos, o primeiro dos quais activava um mecanismo existente na residência de Matthias, em Georgetown, que, por seu turno, estava ligado a uma linha a duzentos e vinte quilómetros dali, nas montanhas Blue Ridge, e fazia retinir a campanhia do telefone particular do secretário de Estado. Se este não se encontrava presente, ninguém atendia, de contrário apenas ele o podia fazer. O número original era do conhecimento de uma dúzia de pessoas em toda a nação, entre as quais o presidente e o vice-presidente, o porta-voz da Casa Branca, o director dos chefes do Estado-Maior, o secretário da Defesa, o presidente da Secretaria de Estado e Mikhail Havlicek. Este último constituía um privilégio em que Matthias; insistira para o seu krajana, o seu spolopracovníka da universidade, cujo pai fora seu colega em intelecto e espírito, ainda que não na sorte do destino. Michael utilizara-o duas vezes nos últimos seis anos. Na primeira, quando se achava em Washington de passagem, para receber novas instruções. Matthias; deixara recado no hotel dele nesse sentido, e o telefonema fora de natureza meramente social. A segunda evocava recordações menos agradáveis a Havelock. Envolvera um homem chamado Ogilvie, que, na sua opinião, devia ser afastado do serviço externo.
A telefonista de Antibes prometeu informar quando a ligação com Washington, D. C., fosse estabelecida, porém a experiência ensinara Michael a não pousar o auscultador. Nada punha tanto à prova a concentração de uma telefonista como um circuito aberto. As chamadas eram completadas mais rapidamente permanecendo na linha. E enquanto ele escutava a série de sons agudos inerentes à transmissão internacional, Salanne perguntou:
- Porque não tentou falar-lhe antes?
- Porque nada fazia sentido e eu queria fornecer-lhe elementos plausíveis. Um nome ou nomes, uma posição, um título, alguma espécie de identidade.
- Mas, a avaliar pelo que ouvi, continua impossibilitado disso.
- Engana-se. A autorização para me eliminar teve uma origem concreta. O nome de código Ambiguidade, que só podia provir de um de três ou quatro gabinetes, e a designação em si foi aprovada por alguém de posição muito elevada no Departamento de Estado, que estava em contacto com Roma. Matthias pode falar com o destinatário da ordem e averiguar quem pôs a maquinação em movimento. Existe outro nome, mas não sei se servirá para alguma coisa. Houve uma segunda suposta confirmação na Costa Brava, que incluiu fragmentos de vestuário manchados de sangue. É mentira, porque não ficou roupa nenhuma no local.
- Então, procure esse homem.
- Morreu. Dizem que sucumbiu a uma trombose, quando passeava no seu barco, três semanas depois. No entanto, há coisas para indagar, se não foram obscurecidas. De onde veio, quem o mandou comparecer na Costa Brava, por exemplo.
- E, se me permite a sugestão, o médico que assinou a certidão de óbito.
- Tem razão. Os estalidos intermitentes desapareceram da linha, substituídos por dois breves zumbidos, um silêncio e o som normal de chamada. O mecanismo electrónico cumprira a sua missão e a campainha do telefone em Shenandoah retinia. Michael sentiu o latejar na garganta e a respiração irregular relacionada com a ansiedade. Tinha muita coisa para dizer ao seu pritele e esperava poder fazê-lo e principiar a extinguir o pesadelo. Por fim, registou-se novo estalido, este isolado, indicativo de que alguém levantara o auscultador. Graças a Deus!
- Estou? - proferiu a voz a mais de seis mil quilómetros nas montanhas Blue Ridge, masculina, mas não a de Anton Matthias. Ou o som estaria alterado e a palavra isolada era demasiado breve para identificar a pessoa?
- Jak se vám darí?
- O quê? Quem fala? Não era Matthias. O regulamento teria sido alterado? Em caso afirmativo, não fazia sentido. Tratava-se da linha de emergência, o telefone pessoal dele, que mais ninguém podia atender. Depois de cinco toques, quem tivesse marcado o número devia desligar, marcar o da linha normal e deixar o nome e mensagem que entendesse, consciente de que a segurança oferecia menos garantias. Talvez houvesse uma explicação simples para o facto,
* pedido ocasional de Matthias a um amigo mais próximo do aparelho para que recebesse
* telefonema.
- Desejava falar com o secretário de Estado Matthias - volveu Havelock.
- Diz-me o nome?
- O facto de utilizar esta linha liberta-me da necessidade de responder a essa pergunta. Chame o secretário de Estado, por favor. Trata-se de um assunto urgente e confidencial.
- Mr. Matthias encontra-se de momento em reunião e indicou que fossem anotadas todas as chamadas. Portanto, se me der o nome e...
- Não está a ouvir o que digo? Trata-se de uma emergência!
- Ele também está a contas com uma.
- Então, interrompa a reunião e diga-lhe apenas as palavras Krajan... e boure. Tomou nota? Só essas duas. Krajan e boure. Imediatamente! De contrário, ele corre consigo depois de eu lhe falar. Mexa-se!
- Krajan - proferiu a voz, hesitante. - Boure. Estabeleceu-se silêncio na linha, interrompido em dado momento por vozes à distância. A expectativa era excruciante, e Michael ouvia os ecos da sua própria respiração. Por último, a voz reapareceu:
- Precisa de ser mais explícito.
- O quê?
- Se me revelar a natureza da emergência e o número do telefone para onde podemos ligar...
- Transmitiu-lhe a mensagem? As palavras! Disse~lhas?
- O secretário de Estado encontra-se muito ocupado e pede que clarifique a natureza do seu telefonema.
- Disse-lhas ou não?
- Limitei-me a repetir as palavras dele. De momento, não pode ser interrompido, mas, se revelar os pormenores e deixar um número, alguém contactará consigo.
- Alguém? Que demónio vem a ser isto? Quem é você? Como se chama?
- Smith - informou a voz, na sequência de uma pausa.
- O nome! Perguntei-lhe o nome!
- Acabo de lho dizer.
- Chame Matthias, imediatamente!... Registou-se um estalido, indicativo do corte da ligação, e Havelock fixou o olhar no auscultador, com perplexidade, após o que fechou os olhos. O seu mentor, o seu krajan,
o seu pritel, desligara-lhe o telefone na cara. Que acontecera?
Impunha-se que o averiguasse, pois a situação não fazia o mínimo sentido. Havia outro número nas montanhas Blue Ridge, da residência de um homem que Matthias visitava com
frequência, quando se encontrava em Shenandoah, um indivíduo mais idoso, cujo interesse pelo xadrez e os vinhos de qualidade distraía Anton das suas pressões monumentais. Michael falara com Leon Zelienski diversas vezes e ficara impressionado com o espírito de camaradagem existente entre os dois académicos, congratulando-se com o facto de semelhante pessoa existir, pois as suas raízes, embora não em Praga, não se situavam muito longe, em Varsóvia.
Zelienski fora um professor altamente respeitado de História da Europa, que se transferira, há largos anos, da Universidade de Varsóvia para os Estados Unidos, a fim de leccionar e pronunciar conferências em Berkeley. Matthias conhecera-o durante uma das suas remotas incursões nos meios universitários, desenvolvera-se uma sólida amizade entre os dois homens e, após a aposentação e morte da esposa do polaco, convencera-o a fixar a residência em Shenandoah.
A telefonista de Antibes tardou muito mais a conseguir a segunda chamada, mas finalmente Havelock ouviu a voz do velho catedrático:
- Estou...
- É você, Leon?
- Quem fala?
- Michael Havelock. Não se lembra de mim?
- Mikhail! Se lembro! Nem por sombras, assim como nunca bebo uma gota de kielbasa, seu baranie! Como está? Veio visitar o nosso vale? Parece muito longe.
- E estou muito longe. Além de muito preocupado. Havelock explicou a natureza da preocupação. Não conseguia contactar o seu estimado e mútuo amigo. Porventura Zelienski tencionava avistar-se com ele, durante a sua estada em Shenandoah?
- Não sei se se encontra aqui, Mikhail. Anton é um homem muito ocupado. Às vezes, julgo-o a pessoa mais atarefada do mundo. Infelizmente, já não dispõe de tempo para me
consagrar. Deixo recados no pavilhão, mas ele ignora-os. Não é que eu não compreenda, claro. Convive com figuras importantes e não pertenç o a esse nível.
- Lamento que o evite.
- Bem, telefonam-me homens para exprimir o pesar de Anton, alegando que raramente visita o nosso vale, mas a verdade é que as nossas partidas de xadrez se ressentem disso. Tenho de passar a conceder mais atenção a outro nosso amigo mútuo. Apareceu por cá com
frequência, há uns meses. Refiro-me ao excelente jornalista Raymond Alexander. Alexandre, o Grande, como gosto de lhe chamar, embora escreva muito melhor do que joga xadrez.
- Raymond Alexander? - repetiu Michael, distraidamente. - Dê-lhe cumprimentos meus. Bem, obrigado, Leon. Estimei ouvi-lo. - Pousou o auscultador e voltou-se para Salanne. - Já não dispõe de tempo para nos conceder - informou, apreensivo.
Capítulo décimo quarto
Chegou a Paris às oito da manhã, estabeleceu contacto com Gravet às nove e às onze e um quarto percorria o concorrido Bulevard de St. Germain. O pretensioso crítico de arte e
profanador de segredos abordá-lo-ia algures entre a Rue de Pontoise e o Quai St. Bernard, pois necessitava de duas horas para consultar o maior número possível de fontes relacionadas com a informação de que Havelock carecia. Por seu turno, este aproveitou para se mover com lentidão, repousar - encostando-se, de pé, a paredes, sem nunca se sentar e melhorar o seu guarda-roupa imediato.
Não houvera tempo para a mulher de Salanne comprar peças de vestuário durante a manhã, pois ele estava empenhado em chegar a Paris o mais depressa possível, já que cada momento perdido aumentava a distância que o separava de Jenna. Ela nunca visitara a capital sem ele, pelo que se lhe apresentava um número de opções reduzido, e Michael achava-se disposto a estar presente quando as percorresse.
O médico conduzira durante três horas e meia a uma velocidade elevada até Avinhão, onde passava um comboio misto, às 13.00, com destino a Paris. Havelock seguira nele, envergando o que houvera possibilidade de recuperar do seu vestuário da véspera, além de uma camisola de lã e uma gabardina cedidas por Salanne. Agora, contemplava a sua imagem na montra'de um estabelecimento: casaco, calça, camisa de gola aberta e o chapéu que adquirira quarenta e cinco minutos antes adaptavam-se ao seu objectivo por passarem facilmente despercebidos.
Ao mesmo tempo, observou com curiosidade o rosto colocado na sombra pela aba do chapéu inclinado para a fronte. Apresentava olheiras pronunciadas e as faces alteradas pela barba de mais de vinte e quatro horas. Quando efectuara as compras, concentrara-se tanto no aspecto geral que não prestara atenção ao semblante. Ao mesmo tempo, tentara recapitular a Paris que ele e Jerina tinham conhecido juntos: um ou dois contactos na embaixada, vários colegas de actividades secretas, como eles, alguns amigos franceses, em particular do Governo, cujos ministères os levavam à sua órbita, e três ou quatro pessoas que haviam encontrado em cafés, a altas horas, sem qualquer relação com o mundo a que pertenciam.
Agora, em St. Germain, o rosto sombrio que se lhe deparava fazia realçar o cansaço e as dores que sentia, desejoso de se deitar e deixar o vigor regressar gradualmente, Como
Salanne prescrevera, necessitava de repousar. Tentara dormir no comboio de Avinhão, porém as paragens frequentes e ruidosas para cargas e descargas impediram-no de cerrar as
pálpebras por muitos minutos sucessivos. E, quando acordado, a cabeça latejava e sentia o
espírito dominado por um misto de confusão e cólera. O único homem na Terra ao qual concedera a sua confiança e estima, o gigante que substituíra seu pai e lhe modelara a vida, banira-o das suas relações, e Havelock ignorava o motivo. Ao longo dos anos, durante os períodos mais difíceis, nunca se sentira só porque a presença de Anton Matthias o acompanhava permanentemente, encorajando-o ao mínimo indício de desalento. Decerto que não se podia procurar a justificação no género de vida que escolhera, depois de combater contra os opressores e destruidores de Lidice.
Essas armas que escutaste dia e noite continuarão sempre contigo, meu príteli. Proverá
* Deus que conseguisses esquecê-las, mas não acredito. Portanto, faz aquilo que te atenua
* dor, que te proporciona uma finalidade e elimina a sensação de culpa por teres sobrevivido. A absolvição não se encontra aqui, entre os livros e teóricos argumentativos, pois não dispões de paciência para o seu conceptualismo. Tens de ver resultados práticos... Um dia, serás li.vre, com a revolta íntima dissipada, e voltarás. Espero ainda viver para o presenciar.
Estivera muito perto de se libertar, a revolta reduzida a uma abstracta sensação de futilidade, e o regresso a um mundo normal dentro do seu alcance e compreensão. Acontecera duas vezes. Uma, com a mulher que amava, a qual conferira uma nova dimensão e significado à sua vida... e a outra sem ela, sem a amar nem à sua recordação, acreditando nas mentiras de mentirosos e traindo os seus sentimentos mais íntimos... e a ela própria.
E, agora, o único homem capaz de cumprir a profecia que fizera, anos atrás, ao seu krajanu, ao seu aluno, varrera-o da sua vida. Afinal, o gigante era um ser mortal. E tomara-se seu inimigo.
- Parece um libertado de Auschwitz, mon Dieu! - murmurou o francês de sobretudo com gola de veludo e sapatos de polimento, cerca de dois metros à direita de Havelock, diante da montra. - Que lhe aconteceu?... Não me diga! Pelo menos, aqui.
- Então, onde?
- No Quai Bemard, a seguir à universidade, num pequeno parque destinado quase exclusivamente às crianças - prosseguiu Gravet, admirando a sua imagem na vidraça. -
Se os bancos estiverem ocupados, aguarde junto do gradeamento. Pelo caminho, compre uma embalagem de caramelos e esforce-se por parecer um pai e não um desencaminhador de menores.
- Obrigado pelo conselho. Trouxe alguma coisa para mim?
- Digamos que me está profundamente em dívida. Muito para além do que o seu deplorável aspecto sugere possa pagar.
- Acerca dela?
- Ainda não acabei de investigar essa faceta.
- Nesse caso, de que se trata?
- Conversaremos no Quai Bernard.
O francês endireitou desnecessariamente o nó da gravata vermelha e rectificou a posição do chapéu na cabeça, após o que rodou nos calcanhares com a ligeireza de um bailarino e se afastou.
O pequeno parque achava-se exposto ao vento frio proveniente do Seria, todavia isso não bastava para impedir as amas e jovens mães de levar lá as ruidosas crianças a seu cargo, as quais gritavam e saltitavam por todos os lados, se não podiam utilizar os baloiços, "escorregas" e outros concorridos divertimentos colocados à sua disposição. Afortunadamente para as abaladas energias de Havelock, havia um banco desocupado junto da parede mais distante da entrada, onde o pandemónio não exercia o seu raio de acção de uma forma tão directa, e ele sentou-se e abriu a pequena embalagem de caramelos que comprara pouco
antes. Ao mesmo tempo, fixava o olhar num garoto que evolucionava nas proximidades montado num triciclo, esperançado em que um observador casual o supusesse à sua guarda.
O elegante Gravet transpôs o portão no habitual caminhar pausado e, antes de se reunir a Michael, efectuou uma digressão pelo parque, detendo-se aqui e ali para dirigir uma palavra às crianças das proximidades, embora estes e o ambiente em que se encontrava lhe merecessem a mais absoluta indiferença.
- Não era melhor consultar o médico? - perguntou pelo canto da boca, parecendo concentrar-se no jornal aberto à sua frente.
- Já o fiz. O meu único mal é o cansaço.
- Folgo em sabê-lo, mas sugiro que arranje um aspecto menos desmazelado, começando por fazer a barba. A nossa presença neste parque, juntos, pode bastar para atrair os gendarmes. Os pólos opostos de um espectro obsceno, seria o seu diagnóstico.
- Não sinto disposição para tiradas humorísticas. Que conseguiu?
- Uma contradição, se as minhas fontes não mentem, e tenho todos os motivos para crer
que falam verdade. - Gravet voltou a página do jornal com naturalidade. - Uma contradição um tanto inconcebível, diga-se de passagem.
- De que se trata?
- O KGB não tem o mínimo interesse na sua pessoa. Se lho levasse numa bandeja, não recebia um sou em troca.
- Porque considera isso uma contradição? Eu disse-lhe mais ou menos a mesma coisa, há umas semanas, na Pont Royal.
- A contradição não é isso.
- Então, o quê?
- É procurado por outra pessoa. Chegou de avião, ontem à noite, porque julga que se encontra em Paris ou vem a caminho. Consta que pagará urna fortuna pelo seu cadáver. Não pertence ao KGB, na acepção habitual, mas não tenha ilusões. É um soviético.
- Na acepção habitual? - repetiu Havelock, surpreendido, embora pressentisse a aproximação de uma recordação ominosa e recente.
- Detectei-o através de uma fonte no Militaire Étranger. Faz parte de um ramo especial dos serviços secretos russos, um corpo de élite...
- A Voennaya Kontra Razvedka - atalhou com aspereza.
- Se a abreviatura disso é VKR, acertou.
- Exactamente.
- Ele procura-o. E está disposto a pagar caro.
- Um maníaco.
- Há mais um pormenor significativo. Chegou de Barcelona.
- Da Costa Brava!
- Não olhe para mim! E chegue@se para lá.
- Sabe o que acaba de me dizer?
- Está alterado. Vou-me embora.
- Não!... Está bem! - Havelock verificou que as mãos lhe tremiam, ao mesmo tempo que as dores quase o impediam de respirar. - Venha o resto!
- Não está em condições de..
- Eu depois decido. Fale!
- Palpita-me que não o devia fazer. À parte o pormenor do pagamento, que talvez nunca veja, há um dilema moral envolvido. É que simpatizo consigo, Mikhail. É um homem civilizado, porventura mesmo bondoso, metido em actividades pouco saudáveis. Decidiu aposentar-se, e não sei se me assiste o direito de o fazer regressar ao barulho.
- Já regressei!
- Por causa da Costa Brava?
- Sim.
- Dirija-se à sua embaixada.
- Não compreende que não posso? Gravet infringiu a sua regra mais sagrada: baixou o jornal e volveu o olhar para
* companheiro.
- Não me resta qualquer alternativa.
- Depressa! Onde está ele?
- Há um hotel de má morte na Rue Étienne - informou, levantando-se e dobrando
* jornal. - La Couronne Nouvelle. Ele está no Quarto Vinte e Três do segundo andar. Dá para a rua, o que lhe permite observar todas as pessoas que entram.
O vulto curvado do vagabundo assemelhava-se ao dos seus horriólogos de todas as grandes cidades. O vestuário era andrajoso, porém suficientemente espesso para neutralizar o frio das vielas desertas, à noite, e as solas dos sapatos grossas. Cobria-lhe a cabeça um gorro de lã e os olhos fixavam-se no chão, como se pretendessem evitar o mundo com o qual não podia competir e que, por seu turno, considerava a sua presença enervante. No entanto, equilibrava no ombro um saco de lona que vira melhores dias, cujas correias segurava com firmeza, como se proclamasse a dignidade da sua posse: isto é a única coisa que me resta, mas pertence-me. O homem que se aproximava de La Couronne Nouvelle não aparentava uma idade definida e, de resto, media o tempo apenas pelo que perdera. Em dado momento, deteve-se junto de um recipiente de lixo e esquadrinhou o conteúdo com paciência metódica, como um arqueólogo da rua.
Havelock separou um quebra-luz rasgado de um saco de plástico e inclinou o pequeno espelho entre eles, as mãos dissimuladas pelo material sujo do primeiro. Avistou o russo directamente acima, na janela do segundo andar, debruçado no peitoril, observando a rua e estudando os transeuntes, na expectativa. Michael conhecia-o, não de nome ou reputação ou mesmo de uma fotografia num ficheiro - conhecia a expressão do rosto, o clarão nos olhos. Já estivera no mesmo lugar daquele indivíduo. O processo fora posto em movimento, a ordem transmitida com prudência. Os executores letais tinham sido alcançados, nenhum dos quais devia obediência a ninguém ou a nada, excepto ao dólar, ao franco, à libra e ao marco alemão. Fora posta a circular uma escala variável de pagamentos de incentivo, com gratificações equiparadas ao valor das várias contribuições, sendo a mais elevada, sem dúvida, a morte comprovada. Informação e método de chegada do alvo, vigilância em lugares específicos, só ou corri auxiliares conhecidos ou desconhecidos - tudo possuía um valor definido em termos de pagamento imediato. Fora criada uma competição entre os praticantes de violência qualificados, cada um suficientemente profissional para saber que não se mentia ao posto de comando.
Mais cedo ou mais tarde, o homem daquela janela começaria a obter resultados. Alguns constituiriam mera especulação baseada em informações em segunda mão, enquanto outros seriam erros honestos, que não receberiam penalização, mas sofreriam uma análise pelo que representavam. Até que surgiria um telefonema isolado - de autenticidade estabelecida por uma frase descritiva ou reacção determinada -, e o posto de comando disporia do primeiro indício válido. Uma rua, um café, porventura um banco num parque infantil junto do Seria - os praticantes espalhar-se-iam por toda a parte. A caçada estava desencadeada e a presa equivalia muitas vezes ao rendimento de um ano. E quando chegasse ao fim, o homem da janela abandonaria a prisão móvel. Sim, reflectia Michael, ele encontrava-se ali há muito tempo. A expectativa constituía a parte mais penosa.
Consultou o relógio sem retirar a mão do recipiente de lixo. Havia outro mais adiante, do lado de lá da entrada do hotel, e ele perguntou-se se necessitaria de se aproximar e continuar a vasculhar o lixo. Passara diante de La Couronne Nouvelle por duas vezes, de táxi - para projectar os seus movimentos a pé e sincronizá-los -, antes de visitar a loja de vestuário usado para pessoas pouco exigentes, após o que adquirira munições para a arma automática munida de silenciador. Sete minutos antes, telefonara a Gravet e anunciara-lhe que o relógio principiara a funcionar. O francês faria o telefonema de uma cabina na Place Vendôme, cuja multidão tomaria o seu anonimato menos fácil de desvendar. Porque tardava tanto a efectuá-lo? Havia várias possibilidades. Cabinas ocupadas, telefonemas avariados, conversas intermináveis - tudo isto representava hipóteses admissíveis, mas Havelock reconhecia que, qualquer que fosse a causa, não poderia permanecer ali muito mais tempo. Com lentidão e dificuldade, como se fosse assolado por dores - o que na realidade não se podia considerar uma ficção demasiado forçada -, principiou a endireitar-se.
O homem da janela voltou a cabeça. Uma intrusão interrompera-lhe a concentração na rua, e desapareceu na sombra do quarto. Gravet conseguira finalmente fazer a chamada. Agora!
Michael pegou no saco de lona, depositou-o no recipiente de lixo e moveu-se apressadamente na direcção da entrada do hotel. Quando começou a subir os degraus, pousou a mão na face, enquanto os dedos seguravam a extremidade do gorro. Cerca de três metros acima, situava-se a janela onde estivera o funcionário da VKR, segundos antes, e decerto não tardaria a reaparecer. O telefonema de Gravet seria breve, profissional, para que não subsistisse a mínima suspeita da sua finalidade. Havia uma possibilidade de o alvo ter sido avistado em Montparnasse. Estava ferido? Coxeava? Quaisquer que fossem as respostas do soviético, a chamada não se prolongaria. Se se tratava do alvo, dirigia-se para o metropolitano, e o caçador voltaria a chamar.
No átrio obscuro e mal-cheiroso, Havelock tirou o gorro, endireitou as bandas do descolorido casaco e abotoou-o. Não se verificou uma melhoria considerável no seu aspecto geral, mas em virtude da iluminação deficiente, e se se empertigasse, adaptava-se ao ambiente, em geral frequentado por indivíduos de actividades suspeitas e mulheres que abraçavam a profissão mais velha do mundo. Tratava-se de um hotel que não esquadrinhava a natureza da clientela, mas apenas a legitimidade dos seus recursos materiais.
Michael preparara-se para projectar a imagem de um homem que emergia dolorosamente de uma longa bebedeira, apenas interessado em conseguir uma cama para resistir à parte final da provação. No entanto, não foi necessário: o obeso recepcionista dormia atrás do balcão de mármore estalado, reclinado numa poltrona, com as mãos unidas sobre o rotundo abdómen. Havia outra pessoa no átrio: um velho esquálido, sentado num banco, com um cigarro apagado ao canto da boca encimada por um bigode grisalho, cabeça inclinada para a frente, numa tentativa para decifrar os caracteres de um jornal sob a escassa iluminação.
Havelock largou o gorro no chão, impeliu-o para a parede com o pé e encaminhou-se para a esquerda, onde havia uma escada estreita de degraus decrépitos e corrimão partido em vários pontos. Quando principiou a transpô-los, congratulou-se por não serem em número muito elevado. Não existiam patamares nem curvas intermédias. Conduziam directamente de um piso ao imediato. Quando alcançou o segundo andar, deteve-se e apurou os ouvidos. Não se registava qualquer som além do zumbido distante do tráfego, coitado pelas explosões esporádicas de buzinas impacientes. Olhou para a porta a três metros de distância, que exibia o número 23, e não distinguiu o mínimo murmúrio de alguém ao telefone, o que indicava que a chamada de Gravet terminara e o funcionário da VKR regressara à janela, da qual não estivera ausente mais de quarenta e cinco segundos. Em seguida, desabotoou o casaco, puxou da automática com silenciador, soltou a mola de segurança com o polegar e aproximou-se da porta.
Soou um estalido nas tábuas do sobrado - não produzido pelos seus pés, mas atrás dele! Michael rodou nos calcanhares, no instante em que a primeira porta à esquerda se abria com lentidão. Como fora deixada entreaberta, não se registara o som habitualmente produzido pelo puxador, e a frincha representava uma linha de visão para alguém do interior. Emergiu um homem corpulento, de expressão dura, que apoiou os ombros e as costas à ombreira,
com uma pistola na mão. No instante em que o viu apontá-la, Havelock reagiu quase instintivamente, por falta de tempo para analisar a situação, e puxou o gatilho. O homem estremeceu e principiou a deslizar para o chão. A arma que empunhava era uma Graz-Burya, a automática mais poderosa produzida na Rússia. O funcionário do VKR não se encontrava só. E se havia um apoiante...
Um puxador começou a rodar - era o da porta directamente defronte do Quarto 23. Havelock encostou-se à parede do lado direito e ergueu acima da cabeça a mão que segurava a automática. O indivíduo que principiou a surgir empunhava igualmente uma pistola, que não teve, porém, oportunidade de utilizar. Atingido na cabeça pelo cano da arma de Michael, cambaleou para trás e este debruçou-se sobre ele, verificando que também se achava munido de uma Graz-Burya. Não subsistiam dúvidas de que o pelotão de execução enviado a Paris dispunha do equipamento mais moderno e eficiente. Por fim, guardou-a na algibeira e examinou o homem: estava inconsciente e não recuperaria os sentidos nas horas mais próximas.
Em seguida, fechou a porta por fora e fez uma pausa. Os acontecimentos violentos tinham-no esgotado, e encostou-se à parede respirando pesadamente, num esforço para afastar do espírito a sensação de cansaço e dor que lhe assolava todo o corpo. Agora, não podia deixar a operação incompleta. Faltava enfrentar o homem da janela.
A única maneira de agir consistia em irromper pelo quarto e aproveitar o factor surpresa que decerto se produziria. Encheu os pulmões de ar, retrocedeu alguns passos e, de súbito, precipitou-se para a frente. A porta saltou dos gonzos, enquanto o funcionário da VKR rodava nos calcanhares, ao mesmo tempo que levava a mão ao coldre. No entanto, suspendeu o gesto quando se apercebeu da presença da ominosa automática munida de silenciador.
- Tenho a impressão de que me procurava - disse Havelock.
- Parece que a confiança depositada nos meus colegas era injustificada - replicou
o russo em inglês quase sem sotaque, erguendo as mãos.
- Acontece.
- Você era uma presa especial.
- Perdeu a partida.
- Nunca ordenei a sua morte. Eles talvez o fizessem.
- Mente, mas não interessa. Como disse, perdeu a partida.
- Merece elogios - resmungou o funcionário da VKR, o olhar fixo na porta destruída, atrás de Michael.
- Parece que não ouviu. Perdeu a partida. O homem do quarto em frente está momentaneamente impossibilitado de lhe acudir.
- Compreendo.
- E há outro nas mesmas condições no quarto perto da escada. Impossibilitado de lhe acudir, mas com a agravante de estar morto.
- Nyet! Molniya! - Empalideceu e flectiu os dedos, num gesto de impotência.
- Podemos falar russo, se preferir.
- Não é necessário. Formei-me no Instituto de Tecnologia de Massachusetts.
- Ou na delegação americana de Novgorod, com o grau de KGB.
- Cambridge e não Novgorod - articulou, com uma inflexão de desdém.
- Não me lembrava de que a VKR é um corpo de élite. A formatura numa organização parente seria considerada um insulto.
- Não há divisões dessas no Governo soviético.
- O tanas, é que não há.
- Este vaivém de palavras é inconsequente.
- Tem razão. Que aconteceu na Costa Brava?
- Não faço a mínima ideia do que está a falar.
- Você pertence à VKR, secção de Barcelona. Portanto, a Costa Brava está incluída no seu sector. Que se passou na noite de quatro de Janeiro?
- Nada que nos dissesse respeito.
- Mova-se!
- O quê?
- Para a parede! - Havelock aguardou que o russo obedecesse e prosseguiu: - Sou tão especial, que o chefe do seu sector em Moscovo desconhece a verdade. Mas você está ao corrente. É por esse motivo que se encontra em Paris e colocou a minha cabeça a prémio.
- Informar@ 7 um crime grave, considerado traição, ocultar factos aos superiores. Quanto à minha vinda de Barcelona, suponho que compreende o motivo. Foi a sua última missão e eu o seu último adversário. Portanto, dispunha de elementos completos e actualizados a seu respeito. Não concorda que era o mais indicado para o seguir?
- É muito eficiente. Possui um grau apreciável de mimetismo.
- Não lhe revelei nada que você não soubesse ou não pudesse averiguar.
- Omitiu um pormenor. Porque sou tão especial? Os seus colegas do KG13 não têm o mínimo interesse na minha pessoa. Pelo contrário: nem me querem tocar, consideram-me material perigoso. Apesar disso, você afirma que sou especial. A Voennaya anda no meu encalço.
- Não nego a existência de uma certa rivalidade entre serviços e até entre departamentos. Talvez nos deixássemos contagiar por vocês, nesse aspecto. Possuem-na em abundância.
- Não respondeu à minha pergunta.
- Sabemos algumas coisas que os nossos camaradas desconhecem.
- Por exemplo?
- Você foi considerado <@irrecuperável" pelo seu próprio Governo.
- Conhece o motivo?
- Isso, neste momento, é secundário. Oferecemos refúgio.
- Os motivos nunca são secundários - corrigiu Michael.
- Muito bem - assentiu o agente soviético, com visível relutância. Chegaram à conclusão de que perdeu o equilíbrio mental.
- Baseados em quê?
- Hostilidade pronunciada, acompanhada de ameaças, telegramas. Ilusões, alucinações.
- Por causa da Costa Brava?
- Exacto.
- Sem nada mais? Um dia, sou uma pessoa normal e, no seguinte, um louco, que assobia à Lua? Não se está a portar em conformidade com o elevado grau de eficiência que lhe atribuí.
- Limito-me a dizer-lhe o que sei - insistiu o russo. - Não promulgo essas determinações. Obedeço a instruções. O prémio, chamemos-lhe assim, destinava-se a compensar um encontro entre nós. Porque havia de ser de outro modo? Se o objectivo fosse a sua morte, tomava-se mais simples pagar para averiguar o seu paradeiro e telefonar à sua embaixada, pedindo uma extensão especial. Garanto-lhe que a conhecemos. A informação iria parar ao pessoal apropriado e não seríamos envolvidos, sem qualquer possibilidade de erros conducentes e repercussões.
- Mas ao oferecer-me refúgio e levar-me consigo, apresenta-se com um troféu que os seus talentosos camaradas evitaram porque me julgaram uma armadilha, programada ou não.
- Basicamente, é verdade. Podemos conversar?
- É o que temos estado a fazer. - Havelock observou o interlocutor atentamente: era convincente e existiam fortes possibilidades de revelar a sua versão da verdade. Um refúgio
ou uma bala. Qual das duas coisas corresponderia à realidade? Apenas a exposição de mentiras o esclareceria. Impunha-se procurar as mentiras e não a interpretação da verdade por parte de um subordinado. Na sua visão periférica, Michael divisou o reflexo de um espelho baço na parede, sobre uma cómoda, e acrescentou: - Vocês contavam com o fornecimento de informações que sabem que possuo.
- Salvávamos-lhe a vida. Como deve compreender, a ordem para eliminar o <@irrecuperável" não será rescindida.
- Sugere que me passe para o vosso lado?
- Que alternativa lhe resta? Quanto tempo pensa que pode continuar a fugir? Quantos dias ou semanas passarão até que as suas redes de operações e computadores o localizem?
- Possuo experiência e recursos. Talvez esteja disposto a arriscar-me. Houve quem desaparecesse (não em gulags, mas noutros lugares) e fosse muito feliz. Que mais podem vocês propor?
- Que procura? Conforto, dinheiro, uma vida sem preocupações? Oferecemos-lhe tudo isso. Merece-o.
- Mas não no vosso país. Recuso-me a viver na União Soviética.
- Porquê?
- Suponha que descobri um lugar. Situa-se a milhares de quilómetros daqui, no Pacífico, nas ilhas Salomão britânicas, mais concretamente. Já lá estive. São civilizadas, mas remotas, e ninguém me encontraria. Com dinheiro suficiente, podia viver satisfatoriamente. - Pode tratar-se disso. Disponho de poderes para lho garantir.
Primeira mentira. Nenhum desertor abandonava jamais a União Soviética, e o funcionário da VKR não o ignorava.
- Chegou a Paris ontem, à noite. Como sabia que me encontrava aqui?
- Por intermédio dos nossos informadores de Roma. Como havia de ser?
- E como souberam eles?
- Não convém interrogar os informadores muito minuciosamente.
- Deixe-se de lérias.
- Se merecem confiança.
- Procura-se uma fonte. Não se abandona um posto e voa para uma cidade a centenas de quilómetros sem a certeza absoluta de que ela merece a máxima confiança.
- Muito bem. Houve uma investigação e descobriu-se um homem em Civitavecchia, que informou da sua vinda a Paris.
- Quando foram elucidados?
- Ontem, claro - disse o soviético, com impaciência.
- Em que altura?
- Ao fim da tarde. Às cinco e meia, suponho. Cinco e trinta e cinco, mais exactamente. Segunda mentira: a falsidade existente na precisão. A decisão de seguir para Paris fora-lhe imposta após o desaire de Col des Moulinets. Oito horas da noite.
- Estão convencidos de que o que posso divulgar sobre as operações dos nossos serviços secretos na Europa se reveste de tanto valor, que se prontificam a aceitar as retaliações resultantes da deserção ao meu nível?
- Naturalmente.
- Essa posição não é partilhada pela comissão directiva do KG13.
- São imbecis. Coelhos assustados e cansados no meio de lobos. Havemos de os substituir.
- Não os preocupa a possibilidade de eu estar programado? De tudo o que lhes revelar poder ser venenoso?
- Nem de longe. É por isso que o consideram "irrecuperável".
- Ou paranóico.
- Nunca. Não é paranóico nem alucinado. É o que sempre foi: um especialista altamente inteligente no seu campo.
Terceira mentira, pois fora difundida a informação da sua suposta condição psicopata. Washington acreditara e Ogilvie confirmara-o, no Palatino.
- Estou a ver - murmurou Havelock, comprimindo os lábios, num trejeito de dor que não exigia grande esforço de simulação. - Estou arrasado - prosseguiu, baixando ligeiramente a automática e desviando os olhos para o espelho. - Fui atingido por uma bala e já não me lembro da última vez que dormi. De facto, tenho de me resignar a continuar a fugir, enquanto tento compreender...
- Que mais há para compreender? - cortou o russo, imprimindo à voz uma réstia de compaixão. - É basicamente uma decisão económica, que lhes poupará tempo. Em vez de alterar códigos, redes e fontes, decidiram eliminar o homem que sabe de mais. Depois de dezasseis anos de serviç o no "campo", oferecem-lhe esta pensão: "irrecuperável."
- Tenho de pensar - proferiu Michael, deixando baixar a arma um pouco mais, ao mesmo tempo que inclinava a cabeça para o peito, mas conservando o espelho no campo visual. - E tudo tão incrível, tão impossível...
Quarta mentira - a mais flagrante de todas! O russo tentou puxar da automática! Havelock ergueu a cabeça e disparou. O funcionário da VKR levou a mão ao ombro, do qual começou a brotar sangue.
- Ubliudok! - uivou.
- E ainda vamos no princípio! - retorquiu Michael, com fúria dominada. Aproximou-se do outro, encostou-o à parede, retirou-lhe a arma do coldre e atirou-a para o lado oposto do quarto. - Está demasiado seguro de si, camarada, seguro dos seus factos! Nunca se devem expor com tanta confiança. Deixe um pouco de margem para erro, porque pode haver um. No seu caso, registaram-se vários.
Todavia, o soviético conservou-se silencioso, os olhos percorridos por uma expressão de ódio e resignação. Havelock conhecia-a bem, achava-se familiarizado com a combinação de aversão e reconhecimento da mortalidade, ingredientes intrínsecos da natureza de determinados homens, treinados durante anos para odiar e morrer. Eram reconhecíveis por diferentes nomes: Gestapo, Nippon Kail, Frente de Libertação da Palestina, Voennaya... E havia ligas de importância secundária, amadores que se concentravam exclusivamente na arrogância e no ódio, fanáticos excitados que marchavam ao rufar dos tambores do ódio santimonial.
Por fim, Michael aconselhou pausadamente:
- Não desperdice adrenalina, que não tenciono matá-lo. Sei que está preparado há longos anos, mas não posso fazer-lhe a vontade. Em vez disso, vou perfurar-lhe as rótulas e a seguir as mãos. Creio que não o treinaram para viver com o resultado dessas pequenas alterações na sua anatomia. Preferiam concentrar a instrução em ocorrências mais vulgares, como puxar de uma arma e disparar.
- Nyet - sussurrou o russo, empalidecendo, ao mesmo tempo que o lábio inferior começava a tremer.
- Da - replicou Havelock. - Só há uma maneira de o evitar. Explique-me o que aconteceu na Costa Brava
- Já o fiz! Nada! Baixou o cano da automática, visou a coxa do funcionário da VKR e premiu o gatilho.
O sangue salpicou a parede e o homem começou a gritar, enquanto se desequilibrava e caía.
- Não consegui acertar no joelho - proferiu Havelock, com desprendimento. Vejamos se à segunda tentativa sou mais bem sucedido. - E voltou a apontar a arma.
- Não! Pare! - O russo rolou sobre si próprio, apertando a perna com ambas as mãos. Compreendeu que estava fracturada, e achava-se disposto a aceitar a morte, porém não o que Michael prometera. - Vou dizer-lhe o que sei.
- Descobrirei se mente. Continuo com o dedo no gatilho e a pistola apontada à sua mão direita. À menor mentira, furo-lha.
- O que lhe disse corresponde à verdade. Não estávamos na Costa Brava, naquela noite.
- O vosso código foi decifrado por Washington. Eu próprio o vi, porque o transmiti.
- Washington não decifrou código nenhum. Tínhamo-lo posto de parte sete dias antes do episódio de quatro de Janeiro. Mesmo que vocês o transmitissem e nós aceitássemos, não podíamos ter respondido. Era fisicamente impossível.
- Porquê?
- Não havia ninguém do nosso lado na área. Fomos mandados sair de lá. - O russo tossiu de dor, contraindo o rosto. - Foram canceladas todas as actividades para o lapso de tempo em causa. Estávamos proibidos de nos aproximar menos de trinta quilómetros da praia de Montebello, na Costa Brava.
- Mentiroso!
- Não - redarguiu, conservando a perna ensanguentada dobrada sob o corpo e o olhar arregalado. - Não estou a mentir. Foram as ordens que recebemos de Moscovo.
SEGUNDA PARTE
Capítulo décimo quinto
Chovia, naquela noite, em Washington. A água tombava com intensidade, arrastada pelo vento forte, e os automobilistas e peões experimentavam dificuldade em enxergar o caminho à sua frente. O condutor ao volante da limusina que descia a 14 th Street em direcção à Porta Leste da Casa Branca não constituía uma excepção. Conservava o pé sobre o pedal do travão e alterava constantemente o rumo para evitar uma colisão que por vezes parecia iminente.
- Desculpem os solavancos - murmurou, dirigindo-se, através do intercomunicador, aos passageiros, dos quais se achava separado por uma divisória de vidro.
Todavia, eles não replicaram, como se não o tivessem ouvido, embora a luz azul junto do aparelho indicasse que este se encontrava ligado. A vermelha, ao lado, estava apagada, pelo que o condutor não podia escutar o que se dizia no compartimento de trás. Aliás, só se acendia nos momentos em que se tomava necessário transmitir ordens, e o sistema era inspeccionado duas vezes por dia, antes de o veículo abandonar a garagem. Constava que haviam sido instalados minúsculos disjuntores destinados a cortar o circuito, se algum estranho tentasse mexer-lhe.
Os homens que viajavam na limusina tinham sido escolhidos pelo presidente dos Estados Unidos, e os motoristas que os conduziam eram constantemente sujeitos às mais rigorosas medidas de segurança. Tratava-se de indivíduos solteiros, sem filhos, com experiência de campos de batalha e especialização em luta de guerrilha e tácticas de diversão. Os carros que lhes confiavam achavam-se preparados para proporcionar a maior protecção possível. As janelas podiam resistir ao impacto de balas de calibre 45, havia pequenos transmissores implantados na parte inferior da carroçaria e, em volta, situavam-se ejectores de gás especial para neutralizar eventuais atacantes. Além disso, os condutores recebiam a veemente recomendação: " Defendam os passageiros com as vossas vidas. " Com efeito, esses homens eram detentores dos segredos da nação e os conselheiros mais íntimos do presidente em períodos de crise.
O motorista lançou uma olhadela fugaz ao relógio no tablier. Eram nove e vinte, quase quatro horas desde que levara o veículo à garagem. Depois de concluir outra missão, aguardara que procedessem ao exame da parte electrónica e dera por concluído o serviço daquele dia. Trinta e cinco minutos mais tarde, tomava uma bebida num restaurante de K Street e preparava-se para encomendar o jantar, quando o silvo discreto do pequeno receptor irrompeu do estojo no cinto. Apressou-se a marcar o número secreto do Despacho da Segurança e foi mandado seguir para a garagem imediatamente: Emergência Aquário Um, descida do Escorpião. Uma mensagem aparentemente destituída de contexto, mas, apesar disso, bem clara. O Gabinete Oval premira o botão e todos os motoristas confidenciais entravam instantaneamente de serviço, com cancelamento de todas as outras missões.
De regresso à garagem, ficou levemente surpreendido ao verificar que apenas dois veículos tinham sido preparados para transportar alguém, em vez dos seis ou sete que esperava ver alinhados. Ao invés, encontravam-se somente aqueles: um destinado a um endereço em Berwyn Heights, Maryland, e o outro ao aeródromo Andrews, a fim de aguardar a chegada de dois homens provenientes, a bordo de "jactos@> militares, de ilhas nas Caraibas.
O mais novo dos dois indivíduos idosos chegou em primeiro lugar, e o motorista reconheceu-o imediatamente. Chamava-se Halyard, à semelhança do nome de uma antiga companhia de navegação, mas criara a sua reputação em terra - general Malcobri Halyard, veterano da Segunda Guerra Mundial, Coreia e Viettiame. O calvo militar iniciara a carreira comandando pelotões e companhias em França e ao longo do Rerio, depois batalhões em Kaesong e Inchon e por fim exércitos no Sueste Asiático, onde o motorista o vira mais de uma vez em Danang. Consideravam-no uma espécie de excêntrico das altas esferas militares. Nunca concedera uma conferência de Imprensa e costumava afastar os fotógrafos de onde quer que se encontrasse. Halyard, " Corda Tensa", figurava entre os estrategos mais brilhantes do país e fora um dos primeiros a deixar bem vincada no Registo do Congresso a opinião de que a campanha do Vietriame constituía uma aventura sem futuro. Evitava a publicidade com a mesma tenacidade que revelava no campo de batalha, e constava que o seu perfil profissional desfrutava das simpatias do presidente.
O general foi escoltado à limusina e, depois de saudar o motorista, instalou-se no banco de trás e aguardou sem pronunciar nem mais uma palavra.
O segundo homem chegou transcorridos doze minutos, tão diferente do "Corda Tensa" como a águia do leão, ambos exemplos admiráveis da sua espécie. Addison Brooks fora advogado, banqueiro internacional, consultor de estadistas, embaixador e finalmente também estadista e consultor de presidentes. Constituía a personificação da aristocracia do Establishment do Este, o derradeiro membro da velha escola dos engravatados, que condimentava a imagem com tiradas humorísticas ocasionais, as quais se podiam revelar suaves ou cáusticas. Sobrevivera às guerras políticas graças ao exercício da mesma agilidade que Halyard revelara nos campos de batalha. Essencialmente, os dois homens podiam transigir com a realidade, porém não com os princípios. Em todo o caso, isto não correspondia ao ponto de vista do motorista, que lera algo nesse sentido nas colunas do Washington Post em que o articulista analisava os dois conselheiros, porque conhecia o embaixador e vira o general em Danang. Conduzira-o a diversos lugares em diferentes vezes, satisfeito por o velho Brooks se recordar do seu nome e ter sempre algo de natureza pessoal para lhe dizer, como "0 meu neto diz que o viu jogar no Steelers" ou "Como se arranja para não engordar, Jack? Minha mulher obriga-me a tomar o meu gim habitual com sumo de fruta. "
Estas últimas palavras representavam, sem dúvida, um exagero, pois o embaixador não manifestava a mínima tendência para a obesidade e exibia mesmo uma elegância mais britânica que americana.
Naquela noite, todavia, não se registara qualquer alusão de natureza pessoal, no aeródromo Andrews. Ao invés, Brooks inclinou a cabeça distraidamente, quando o motorista lhe abriu a porta de trás da limusina, e fez uma breve pausa, para fixar o olhar no general. Nesse instante, apenas se ouviu uma palavra, " Parsifal", que brotou dos lábios do embaixador, em voz baixa e grave.
Depois de Brooks se instalar ao lado de Halyard, conversaram por uns momentos, de expressões carregadas, olhando-se com frequência, como se formulassem perguntas para as quais não tinham resposta. Em seguida, mergulharam em silêncio, ou pelo menos foi o que pareceu ao motorista, quando desviava os olhos momentaneamente para o espelho retrovisor. Tudo indicava que a crise responsável pela sua presença súbita em Washington não podia ser discutida num automóvel, ainda que dispusesse de isolamento completo de ouvidos indiscretos.
As recordações do motorista sentiram-se estimuladas, enquanto conduzia a limusina para o caminho de acesso à Porta Leste. À semelhança de muitos atletas universitários cuja habilidade se revelava um pouco mais notável no rectângulo do que na sala de aula ou no laboratório, frequentara um curso de apreciação de música, sugerido pelos treinadores. E embora os resultados não se pudessem considerar famosos, ainda se lembrava de que Parsifal era o nome de uma ópera da autoria de Ricardo Wagner.
O condutor do Abraão Sete abandonou a estrada de Kenilworth e enveredou pela área residencial de Berwyn Heights, Maryland. Visitara o local duas vezes, razão pela qual fora escolhido para a missão daquela noite, apesar do seu pedido para que não o tornassem a escalar para um serviço que envolvesse o subsecretário de Estado Emory Bradford. Quando
o funcionário do Despacho de Segurança lhe perguntara o motivo, só conseguira responder que não simpatizava com ele.
- Isso não conta aqui, Yahoo - advertiu o outro. - As suas antipatias e simpatias ainda não constituem elementos de peso entre nós. Cumpra a sua obrigação e não se preocupe com o resto.
É claro que a questão fundamental residia precisamente aí: na obrigação. E se fazia parte dela proteger a vida de Bradford com risco da sua pró pria, duvidava que se encontrasse à altura das circunstâncias. Vinte anos antes, o frio e analítico Emory Bradford fora um dos elementos mais brilhantes da nova geração de pragmatistas, que varriam adversários da direita e da esquerda na busca do poder. E a tragédia de Dalias em nada contribuíra para lhe atenuar a voracidade nesse capítulo - o luto fora prontamente substituído pela adaptação a uma situação alterada. A nação achava-se em perigo e os homens dotados da capacidade de compreender a natureza agressiva do comunismo faccionalizado tinham de se manter firmes e reunir as forças de resistência. Assim, o reservado e sereno Bradfôrd converteu-se num falcão impetuoso. Um jogo chamado dominó tornou-se subitamente uma teoria em que se baseava a sobrevivência da liberdade.
E, em Idaho, um possante moço de lavoura foi arrastado pela corrente. Respondeu à chamada, numa afirmação pessoal contra os indivíduos de cabelos compridos e barbudos que queimavam bandeiras e convocações de recrutamento e cuspiam em coisas decentes e... americanas. Oito meses mais tarde, o moço de lavoura encontrava-se na selva e via os que fugiam dos locais de combate e comandantes que negociavam com armamento e jipes. Entendeu desse modo aquilo que era óbvio aos olhos de todos, menos de Washington e do Comando de Saigão. As supostas vítimas das não menos pretensas hordas de ateus estavam-se nas tintas para tudo, excepto para a conservação da vida e a obtenção de lucros em actividades obscuras. Eram esses que queimavam e cuspiam em tudo que não podiam negociar e passavam o tempo a rir. E como eles riam! Dos seus chamados salvadores, os patetas de faces rosadas e olhos arregalados que se expunham ao fogo e às minas do inimigo e perdiam braços e pernas.
Até que se registara o facto até certo ponto inesperado. O falcão irredutível que era Emory Bradford viu a luz, uma luz diferente, e, numa extraordinária manifestação de mea culpa pública, apresentou-se perante uma comissão do Senado para anunciar à nação que algo correra mal: os brilhantes projectistas - ele próprio incluído - haviam errado gravemente. Por conseguinte, preconizava a retirada imediata, e o arrebatado falcão converteu-se numa pomba não menos ardente.
Concederam-lhe uma ovação de pé. Enquanto braços e pernas eram amputados nas selvas e um antigo moço de lavoura de Idaho desenvolvia esforços desesperados para não morrer como prisioneiro de guerra. Uma ovação de pé, nada menos!
Não, Mr. Emory Bradford, não arriscaria a minha vida por si. Não morrerei por si... outra vez.
A mansão colonial de três pisos era antecedida de um vasto relvado, que sugeria uma piscina e campo de ténis dissimulados algures. O moço de lavoura de Idaho perguntava-se como o subsecretário de Estado se comportaria encerrado numa jaula imersa num rio infestado por ratos, no deita do Mekong. Provavelmente, com o maior aprumo, demónios
* levassem!
O motorista estendeu a mão para a parte inferior do tablier e pegou no microfone, após
* que premiu o botão e proferiu:
- Abraão Sete para Despacho.
- Adiante, Abraão Sete.
- Cheguei ao destino. É favor levantar a carga pelo telefone.
- Entendido. Bem sincronizado. Você e Abruão Quatro devem chegar ao Aquário mais ou menos na mesma altura.
- Ainda bem que aprova. Esforçarno-nos por satisfazer.
Os três homens desceram juntos no elevador, os dois mais idosos surpreendidos pelo facto de a conferência se realizar numa das salas de estratégia subterrâneas e não no Gabinete Oval. No entanto, o subsecretário de Estado, de pasta na mão, parecia compreender o motivo. É claro que as vantagens residiam no equipamento. Havia computadores e projectores que reproduziam imagens e informações numa vasta tela na parede, dispositivos de comunicações que ligavam a Casa Branca a praticamente todos os pontos do mundo e máquinas de processamento de dados que isolavam factos de volumes intermináveis. No entanto, todo o equipamento sofisticado de Washington era, em si, inútil sem um acontecimento de importância excepcional. Teria acontecido? A interrogação pairava nas mentes dos conselheiros mais idosos. Em caso afirmativo, o presidente não o deixara transparecer. Na realidade, a informação transmitida revelava-se pouco tranquilizadora. "Descida do Escorpião", equivalia a uma catástrofe, e eles sentiam os músculos do estômago tensos, enquanto o elevador se imobilizava e a porta se abria para o corredor de paredes brancas, que transpuseram em silêncio, apenas alterado pelo som dos passos, a caminho da sala indicada, onde o presidente os aguardava.
O presidente Charles Berquist saudou-os secamente, e os recém-chegados compreenderam o motivo. Na verdade, a alteração à cordialidade habitual deixava transparecer que se tratava de um momento particularmente grave. Gesticulou na direcção da mesa de reuniões em forma de ferradura ao fundo da sala e os três homens acompanharam-no, para se
instalar. Junto de cada lugar havia um pequeno candeeiro Tensor inclinado sobre um bloco de apontamentos. Addison Brooks sentou-se à direita de Berquist, com o general Halyard à sua esquerda, e Emory Bradford a seguir ao estadista, com o intervalo de uma cadeira vaga, a fim de se poder dirigir aos três. Tratava-se de uma sequência baseada na lógica, porquanto a maioria das perguntas destinar-se-ia a este último, o qual, por seu turno, interrogaria individualmente cada um dos outros. Nas proximidades da mesa em forma de ferradura, situada sobre um estrado, via-se uma outra mesa, mais pequena e rectangular, apoiada por duas cadeiras giratórias que facilitavam aos seus ocupantes a observação das imagens projectadas na tela.
- Parece cansado, senhor presidente - disse Brooks, depois de se instalarem.
- E estou - admitiu Berquist. - Assim como estou penalizado por os convocar com este tempo pestilento.
- Desde que considerou necessário chamar-nos, o tempo é o menor dos nossos problemas - acudiu Halyard, com sinceridade.
- Tem razão. - O presidente premiu um botão embutido na mesa e indicou:
O primeiro diapositivo, por favor. - A luz do tecto foi apagada, ficando acesos apenas os candeeiros Tensor, e surgiram as fotografias de quatro homens na tela. - Conhecem algum deles? - perguntou, apressando-se a acrescentar: - A pergunta não se destina a Emory, pois sei que os conhece.
O embaixador e o general olharam Bradford por uma fracção de segundo e concentraram-se na projecção.
- O do lado superior direito chama-se Stem - declarou Addison Brooks. - David ou Daniel Stem, salvo erro. Creio que pertence ao Departamento de Estado e é um dos nossos especialistas de assuntos europeus, um homem inteligente e analítico.
- Exacto - confirmou Berquist, a meia-voz. - E você, Mal?
- Não tenho bem a certeza - replicou o general aposentado, olhando a tela. - Talvez o que está por baixo de Stem. Creio que o vi algures.
- Não se engana - confirmou Bradford. - Esteve algum tempo no Pentágono.
- Não me recordo da arma ou do posto.
- Porque não pertence às Forças Armadas. É médico e participou em vários mesas redondas sobre os traumas dos prisioneiros de guerra. Creio que você fez parte de duas ou três.
- Tem razão. É psiquiatra.
- Uma das maiores autoridades em comportamento sob pressão.
- Que é isso? - quis saber o embaixador... - Foi comportamento sob pressão que disse?
- Há alguma relação? - perguntou o militar ao subsecretário.
- Com Parsifal?
- Com que outra coisa havia de ser? Há ou não?
- Sim, mas não é isso.
- O quê? - inquiriu Brooks, apreensivo.
- A especialização de Miller. É o seu nome. Paul Miller. Não acreditamos que a ligação com Parsifal tenha algo a ver com os seus estudos sobre o comportamento sob pressão.
- Graças a Deus - murmurou o general.
- Então, de que se trata? - insistiu o velho diplomata.
- Dá-me licença, senhor presidente? - Os olhos de Bradford fixavam-se no comandante-chefe. Obtida a autorização com uma leve inclinação de cabeça, virou-se para as fotografias na tela. - Os dois homens da esquerda são, de cima para baixo, John Philip Ogilvie e Victor Alan Dawson.
- Dawson é advogado - esclareceu Addison Brooks. - Não o conheço pessoalmente, mas li várias das suas comunicações. Pode considerar-se uma individualidade brilhante na área das negociações de tratados internacionais. Tem particular propensão para os sistemas legais estrangeiros e suas cambiantes.
- Brilhante - corroborou o presidente, num murmúrio.
- O último da imagem não o era menos na sua especialidade - volveu Bradford, apressadamente. - Foi agente secreto durante cerca de vinte anos e um dos estrategos mais competentes no campo das operações encobertas.
O emprego do pretérito não passou despercebido aos dois conselheiros, que se entreolharam e em seguida viraram para o presidente, o qual assentiu com um movimento de cabeça.
- Morreram - articulou, levando a mão direita à fronte. - Todos. Ogilvie foi abatido há quatro dias, em Roma, por uma bala perdida, em circunstâncias aceitáveis. As outras mortes, porém, não resultaram de acidentes. Dawson e Stem foram assassinados simultaneamente e Miller a uns trinta quilómetros, mais ou menos na mesma altura.
- Quatro homens - proferiu o embaixador, com ansiedade, inclinando-se para a frente, olhar fixo na tela. - Um perito em política estrangeira, um advogado cuja obra se
concentrava quase exclusivamente no direito internacional, um agente secreto veterano com larga experiência e um psiquiatra considerado especialista proeminente no comportamento sob pressão.
- Uma estranha colecção de alvos - comentou o velho militar.
- Estão relacionados, Mal - asseverou Brooks. - Entre si, antes de Parsifal. Não é verdade, senhor presidente?
- Deixe Emory explicar - sugeriu o interpelado. - Serve para expandir a indignação que deve sentir. A expressão de BradfÓrd denunciava que julgava a explicação própria do seu pelouro, todavia a responsabilidade devia ser partilhada. Não obstante, a forma como respirou fundo e a inflecção tensa da voz deixavam transparecer que esperava o pior.
- Eram os estrategos das Operações Consulares.
- Costa Brava! - O nome explodiu num murmúrio dos lábios do embaixador.
- Investigaram-na, e descobriram-nos - disse Halyard, o olhar dominado pela aceitação irritada de um militar. - E pagaram o preço.
- Sim - concordou Bradford. - No entanto, não sabemos o que aconteceu.
- Como foram mortos - acrescentou o general, numa entoação de incredulidade.
- Isso sabemos - replicou o subsecretário. - Muito profissionalmente. A decisão foi tomada com rapidez.
- Nesse caso, o que é que não compreendem? - perguntou Brooks, contrariado.
- A ligação com Parsifal.
- Mas disse que ela existia - persistiu o estadista mais idoso. - Afinal, existe ou não?
- Tem de existir. Simplesmente, não conseguimos acompanhá-la.
- Confesso que não entendo.
- Comece pelo princípio, Emory - interpolou o presidente. - Tal como o concebem. A partir de Roma.
- Há cinco dias, os estrategos receberam um telegrama urgente do nosso representante em Roma, um tenente-coronel chamado Baylor, com a designação de código Brown informou BradfÓrd. - Coordena a rede de actividades clandestinas na Europa.
- Lany Baylor?
- Exacto, general.
- Um excelente oficial. Com vinte negros como ele, podíamos encerrar a Escola de Guerra.
- O coronel BayIor é preto, senhor embaixador.
- Aparentemente, senhor subsecretário.
- Por amor de Deus, Emory! - interveio o presidente.
- Prosseguindo: o telegrama do coronel BayIor referia-se a um encontro que tivera com... - Bradford fez uma pausa e divulgou o nome com relutância Michael Havelock.
- Costa Brava - murmurou o militar.
- Parsifal - acudiu Brooks, que teve uma breve hesitação e continuou: - Mas Havelock foi afastado. Após o período na clínica, submeteram-no a vigilância e testes. Observaram-no minuciosamente, ao microscópio, por assim dizer. Ficou assente que não havia nada, absolutamente nada.
- Menos que nada - confirmou o subsecretário de Estado. - Em circunstâncias preparadas, aceitou um lugar de professor (assistente, mais concretamente), na Universidade Concord, Nova Hampshire. Para todos os efeitos, achava-se completamente afastado e voltávamos ao cenário inicial.
- O que o modificou? - inquiriu o militar. - O que alterou a situação de Havelock. Bradford tomou a fazer uma pausa e a manifestar relutância, antes de revelar:
- Jerina Karas. Voltou à superfície e ele viu-a. Em Roma.
O silêncio que se estabeleceu em tomo da mesa traduzia bem o assombro produzido por estas palavras. As expressões dos dois homens mais idosos endureceram e os seus olhos fixaram-se no subsecretário, que os sustentou com resignação granítica. Por fim, o embaixador quis saber:
- Quando aconteceu isso?
- Há dez dias.
- Por que não fomos informados, senhor presidente? - perguntou Brooks, com o olhar ainda cravado em Bradford.
- Muito simplesmente porque eu também não fui - explicou este último, antes que Berquist pudesse responder.
- Afigura-se-me inadmissível.
- Intolerável - corroborou o velho militar, com aspereza. - Que diabo dirige você?
- Uma organização extremamente eficiente que satisfaz as exigências. Neste caso, talvez demasiado eficiente, demasiado satisfatória.
- Elucide-nos melhor - determinou Halyard.
- Aqueles quatro homens - começou BradfÓrd, indicando as fotografias dos quatro estrategos mortos - estavam convencidos, sem margem para a mínima dúvida, de que Jetina Karas fora abatida na Costa Brava. Não podiam pensar de outro modo, pois planeámos e executámos tudo até ao mais ínfimo pormenor. Não ficou nada ao sabor da especulação. A morte da rapariga foi presenciada por Havelock e mais tarde confirmada por meio de fragmentos de vestuário manchados de sangue. Ninguém a pôs em causa, em particular ele próprio.
- Mas ela voltou à superfície - insistiu Halyard. - Você diz que ele a viu. Suponho que essa informação figurava no telegrama do coronel Baylor?
- sim.
- Então, por que não foi comunicada imediatamente? - rugiu Brooks.
- Porque eles não acreditaram. Pensaram que Havelock enlouquecera, que era vítima de alucinações, e enviaram Ogilvie a Roma, decisão que podemos considerar extraordinária e indicativa do grau de gravidade que atribuíam à situação. Baylor confirmou tudo. Disse que, segundo Ogilvie lhe revelara, Havelock perdera o uso da razão e via coisas e pessoas inexistentes, até que acabara por explodir. Pelo menos, foi o que Ogilvie deixou entrever.
- Seria também a opinião de Miller - atalhou o presidente. - Se pensarmos bem, não podia ter outra.
- O comportamento de Havelock deteriorou-se rapidamente - prosseguiu o subsecretário. - Ameaçou divulgar operações secretas do passado e do presente, que nos comprometeriam em toda a Europa, se não lhe fornecêssemos explicações. Até enviou telegramas desestabilizadores para dar uma ideia do que podia fazer. Os estrategos encararam-no muito a sério e enviaram Ogilvie a Roma, para regressar com ele... ou matá-lo.
- Em vez disso, foi morto - murmurou o militar.
- Em circunstâncias trágicas. O coronel Baylor cobria o encontro de Ogilvie com Havelock numa área isolada do monte Palatino. Houve um momento tenso (a explosão prematura de um gás paralisante provocada por Ogilvie) e, em face do insucesso, Havelock ameaçou-o com uma automática. Segundo a sua própria versão, Baylor aguardou até ao instante crítico e fez fogo precisamente quando Havelock se preparava para matar Ogilvie, que, apercebendo-se disso, se interpôs e foi atingido na garganta. Encontra-se tudo pormenorizado no relatório do coronel, que podem consultar quando desejarem.
- Foram essas as circunstâncias aceitáveis, senhor presidente? - inquiriu Brooks.
- Apenas em termos de explicação, Addison.
- Naturalmente. - Halyard inclinou a cabeça em assentimento e dirigiu-se a Bradford.
- Se foram essas as palavras de Baylor, não preciso de consultar o relatório. Como encara ele a situação? Nunca gostou de perder ou errar.
- Ficou gravemente ferido na mão direita. Tem vários ossos fracturados e talvez não se recomponha. Por conseguinte, as suas actividades no "campo" terminaram.
- Não o coloquem na prateleira, o que constituiria um erro. Dêem-lhe um lugar de secretaria.
- Farei essa recomendação ao Pentágono, general.
- Voltemos aos estrategos das Operações Consulares - propôs o estadista. - Ainda não compreendi por que não divulgaram a informação do coronel Baylor, em particular as razões na base das acções de Havelock... os tais "telegrafistas desestabilizadores", como lhes chamou. A propósito, que desestabilização provocaram?
- " Alarmantes" afigura-se-me o termo mais apropriado, ou melhor ainda, "falsamente alarmantes". Uma das mensagens foi recebida aqui (numa cifra mil e seiscentos, de estabelecimento recente) e dizia que havia w-n agente soviético bem infiltrado na Casa Branca. Outra destinava-se à Vigilância do Congresso e denunciava a existência de corrupção da CIA em Amesterdão. Em ambos os casos, o emprego da cifra e a indicação dos nomes da Holanda conferiam credulidade aos elementos referidos.
- Houve alguma confirmação?
- Nem a mais remota. No entanto, as reacções foram voláteis e os estrategos sabiam que as acusações se poderiam revestir de maior gravidade.
- Mais uma razão para que divulgassem os motivos de Havelock - frisou Brooks.
- Talvez o fizessem - concedeu Bradford, a meia-voz. - A alguém. Tentaremos aprofundá-lo.
- Porque foram assassinados? Qual a ligação com Parsifal. - O general exprimiu-se em tom mais baixo ao acrescentar: - Com a Costa Brava.
- Não havia "Costa Brava" nenhuma até que a suscitámos, Mal - observou o presidente. - Mas isso também tem de ser revelado na devida sequência. É a única maneira de lhe extrairmos um pouco de sensatez... se existe alguma.
- Não devia ter acontecido - interpôs o estadista de cabelos grisalhos. - Não nos assistia o direito.
- Não havia alternativa, senhor embaixador - afirmou Bradford, inclinando-se para a frente. - O secretário de Estado, Matthias, compilou as provas contra Jerina Karas, como sabemos. O seu objectivo, até onde conseguimos determinar, consistiu em afastar Havelock do serviço, embora talvez nunca possamos obter a certeza. A sua amizade era sólida e remontava aos seus tempos de Praga. Havelock fazia parte dos planos de Matthias ou não? Era um peão condescendente em cumprimento de ordens, simulando fazer aquilo que outros considerariam perfeitamente compreensível, ou vítima de urna terrível manipulação? Necessitávamos de nos certificar.
- E certificámo-nos - protestou Addison Brooks, indignado. - Na clínica de Virgínia. Foi posto à prova com todos os recursos à disposição de médicos e laboratórios. Resultado: não sabia absolutamente nada. Como você referiu, voltámos ao cenário inicial, imerso na escuridão. Por que estava Matthias empenhado em o afastar? É a pergunta para a qual ainda não se encontrou resposta, porque talvez não seja possível fornecê-la. Quando compreendemos isso, devíamos ter revelado a verdade a Havelock.
- Não podíamos. - O subsecretário reclinou-se na cadeira. - Jenna Karas desaparecera e ignorávamos se estava viva ou morta. Em face das circunstâncias, Havelock levantaria questões que se não devem abordar fora do Gabinete Oval... ou de uma sala como esta.
- As quais, se fossem ventiladas, mergulhariam o mundo numa guerra nuclear generalizada em poucas horas - profetizou o presidente. - Se o soviéticos ou a República Popular da China soubessem que este Governo se encontrava descontrolado, os mísseis e submarinos atómicos sulcariam os dois hemisférios com prontidão, até à obliteração final. E encontramo-nos na verdade descontrolados.
Seguiu-se um longo silêncio, quebrado finalmente por Bradford.
- Gostava de lhes apresentar uma pessoa. Mandei-a vir de avião de um desfiladeiro nos Alpes chamado Col de Moulinets.
- A guerra nuclear - murmurou o presidente, premindo o botão embutido na mesa, para interromper a projecção.
Capítulo décimo sexto
Havelock fez deslizar o lápis sobre o décimo sétimo e o décimo oitavo nomes da lista, desligou o telefone da parede e abandonou o café em Montinartre. Não queria ir além de duas chamadas em cada aparelho, pois detectores electrónicos sofisticados poderiam localizá-lo em poucos segundos, e se algum daqueles para os quais ligasse estivesse incluído em
equipamento da embaixada americana, a situação não diferiria de se contactasse o responsável das Operações Consulares em Paris e marcasse a hora da sua própria execução. Duas chamadas por telefone e cada um destes separado do anterior e do posterior por um mínimo de seis quarteirões, sem que a ligação fosse além de noventa segundos. Já percorrera metade da lista, mas os nomes restantes teriam de esperar. Eram quase nove horas, e as luzes intensas de Montmartre inundavam as ruas de cor condizente com a cacofónia frenética do bairro em que se desenrolava uma vida nocturna intensa. E ele tinha de se encontrar com Gravet, num beco perto da Rue Norvins, pois o crítico de arte passara a tarde em visitas aos seus "contactos" do mundo suplementar em que se movia, susceptíveis de lhe fornecer alguma indicação sobre Jerina Karas.
Até certo ponto, Michael dedicara-se a uma actividade similar, embora as suas diligências preliminares fossem de natureza cerebral. Recolhera a sua roupa de um cacifo que alugara no Metropolitano, comprara artigos de uso pessoal básico, um bloco de apontamentos e uma esferográfica e alugara um quarto num hotel pouco dispendioso perto de La Couronne Nouvelle. Estava convencido de que se o funcionário da VKR ferido pedisse auxílio, não se lembraria de enviar os sequazes a um estabelecimento da mesma rua à procura do alvo. Havelock barbeara-se e tomara banho e agora conservava-se deitado de costas na decrépita cama, com o corpo em repouso e o espírito em intensa actividade. Retrocedera no tempo, disciplinando a memória, para evocar cada momento que partilhara com Jeima em Paris. Abordara o exercício academicamente, como um estudante que acompanhasse um determinado acontecimento na sua sequência cronológica através de um
período caótico da História. Ele e Jetina, Jenna e ele - onde haviam estado, o que tinham visto, com quem haviam falado, tudo na sua devida sucessão. Cada lugar e cenário tinham uma localização e um motivo por os haverem visitado, até que cada rosto significativo possuía um nome ou, pelo menos, a identidade de alguém que conhecia um dos dois ou ambos.
Após duas horas e quarenta minutos de reflexão, soergueu-se, pegou no bloco de apontamentos e na esferográfica que colocara em cima da mesa de cabeceira e principiou a
elaborar a lista. Meia hora mais tarde, achava-se concluída - tão completa como a memória lhe permitia - e voltou a reclinar-se, consciente de que o sono indispensável não tardaria a surgir. Sabia igualmente que o relógio na sua mente o acordaria no momento em que a claridade do dia se extinguisse. Assim sucedeu, na verdade, e, cinco minutos depois, encontrava-se na rua, para visitar as diversas cabinas, cada telefone a seis quarteirões do anterior.
Iniciava as conversas apressadamente, mas com naturalidade, e apurava os ouvidos para detectar algum sinal de alarme revelador nas respostas. A introdução era sempre a mesma: combinara encontrar-se com Jenna no bar Meurice, ambos provenientes de cidades diferentes, por via aérea, porém o avião dele atrasara-se algumas horas. E como ela mencionara a pessoa em causa com frequência, Michael gostaria de saber se lhe telefonara, porventura em busca de companhia numa cidade que conhecia superficialmente.
Na maioria dos casos, registava-se surpresa por ouvir Havelock, após longa ausência, e ainda mais pelo facto de Jenna se recordar dos seus nomes. No entanto, em nenhum deles se notava a menor hesitação fora da normal perante uma circunstância inesperada. Dezoito nomes e nada. Para onde teria ela ido? Que faria? Não poderia desaparecer da circulação, em Paris, sem que ele acabasse por descobri-Ia, como decerto compreendia perfeitamente. Onde estará?
Alcançou a Rue Ravignan e principiou a subir a ladeira íngreme de Montinartre, passando diante das velhas casas sombrias, outrora lares de lendas, e emergindo na pequena Place Clément, após o que iniciou a descida da Rue Norvins. A artéria apresentava-se particularmente concorrida e o beco que Gravet mencionara situava-se pouco antes da Rue des Saules.
Verificou que se apresentava quase deserto e sombrio. Os boémios que frequentavam as ruas vizinhas sabiam que havia limites para a sua pretensão de que pertenciam a Montinartre, e um assalto ou um roubo na sagrada colinas dos mártires diferia um pouco de um ataque mais violento no Soho ou East Village. Havelock começou a percorrê-lo, a mão direita instintivamente próxima da abertura do casaco à altura da cintura, onde se alojava a automática com silenciador. Gravet estava atrasado, descortesia a que o próprio crítico de arte se mostrava avesso. Que teria acontecido?
Michael encontrou uma área mais obscura, encostou-se à parede, puxou de um cigarro e acendeu um fósforo. Enquanto protegia a chama com a mão, recordou-se do que sucedera no Palatino, em que haviam intervindo uma carteira de fósforos e um homem que tentara salvar-lhe a vida e não suprimi-Ia. Um moribundo que expira poucos momentos mais tarde, consciente de que existia traição aos níveis mais elevados do Governo.
Registou-se súbito reboliço na Rue Norvins, a inflamação abrupta de ânimos no momento em que dois indivíduos colidiram. Em seguida, um homem alto e magro empertigou-se e proferiu uma torrente de invectivas em francês. O antagonista, mais jovem e corpulento, emitiu um comentário eloquente acerca dos antepassados do outro e afastou-se.
O primeiro grunhiu algo entre dentes, endireitou as bandas do casaco, virou à esquerda e entrou no beco. Gravet chegara, não sem o seu habitual élan.
- Merde! - vociferou, ao ver Havelock destacar-se das sombras. - Isto é um ambiente a todos os títulos execrável. Só Deus sabe quando esta gente tomou banho pela última vez. Desculpe o atraso.
- Foi de poucos minutos. Cheguei há momentos.
- Mas atrasei-me. Tencionava estar na Rue Norvins meia hora antes, para me certificar de que não o seguiam.
- Ninguém me seguiu.
- Sim, você havia de dar por isso.
- O que o fez tardar?
- Um jovem que cultivei e actua nas catacumbas do Quai d'Orsay.
- Ao menos, é franco.
- Não percebeu. - O francês aproximou-se da parede e só voltou a falar depois de olhar para todos os lados. - Desde que telefonou após a sua visita a La Couronne Nouvelle (telefonema com que, diga-se de passagem, eu não contava muito), estabeleci contacto com todas as fontes concebíveis capazes de estarem ao corrente de algo acerca de uma mulher solitária em Paris à procura de refúgio, documentos ou transporte secreto, mas nenhuma me pôde valer. Com efeito, depara-se-nos uma situação ilógica, pois não existem muitos lugares próprios para maquinações ilegais, e pouquíssimos que eu não conheça. Até esquadrinhei as áreas dos italianos, admitindo a possibilidade de os companheiros dela em Col dês Moulinets lhe terem indicado alguma hipótese nesse sentido. Nada... De repente, fez-se-me luz no espírito. Maquinações ilegais? Talvez eu investigasse nos locais errados e ela procurasse ajuda mais legítima, sem necessariamente pormenorizar os seus motivos ilegítimos. No fundo, trata-se de uma agente de "campo" experiente. Portanto, devia conhecer determinadas pessoas em governos aliados.
- O Quai d'Orsay.
- Naturellement. Mas nas entranhas, nas catacumbas, onde o ambiente é mais propício às actividades obscuras.
- Se é o caso, nunca me inteirei. O meu caminho cruzou-se com várias pessoas dos ministérios, sem que ouvisse mencionar as catacumbas.
- O Ministério dos Estrangeiros de Londres chama-lhes Centros de Despacho e o vosso Departamento de Estado prefere uma designação menos subtil: Divisão de Transferências Diplomáticas.
- Imunidade - disse Havelock. - Apurou alguma coisa?
- O meu jovem amigo consagrou as últimas horas à investigação do assunto e salientei que o período em causa era reduzido. Se aconteceu alguma coisa, só pode ter sido hoje. Assim, ele regressou à sua gruta após o intervalo para almoço, valendo-se de qualquer pretexto, e investigou os duplicados da segurança das últimas horas. Pensa que descobriu o pretendido, mas não tem a certeza e eu tão-pouco. No entanto, você talvez consiga estabelecer a ligação.
- De que se trata?
- Às dez e quarenta e cinco desta manhã, houve um memorando do Ministério dos Estrangeiros francês para mandar abrir uma ficha de identidade. Indivíduo em causa: mulher de raça branca, trinta e poucos anos, fluente nas línguas eslava, russa e servo-croata, cujo nome e dados estatísticos eram exigidos com urgência. Bem sei que há dezenas...
- Que secção do ministério?
- Quatro. Secção Quatro.
- Régine Broussac. Madame Régine Broussac. Subchefe da Secção Quatro.
- É essa a ligação. O nome e a assinatura figuram no pedido.
- Ocupa o vigésimo lugar na minha lista de trinta e um nomes. Vimo-la durante menos de um minuto, na rua, há quase um ano. Apresentei-lhe Jerma e nada mais. Não faz sentido. Praticamente, não a conhece.
- As circunstâncias em que se encontraram tinham algo de especial?
- Acho que sim. Um funcionário deles era agente duplo na embaixada francesa em Bona e deslocava-se periodicamente ao Leste, através de Luckenwalde. Descobrimo-lo no lado errado de Berlim, numa reunião do Geheimdienst.
- A réplica moscovita da SS. Muito interessante. - Gravet fez uma pausa. - Essa Régine Broussac é mais velha, suponho? Talvez fosse heroína da Resistência?
- Sim, ela e o marido. Ele foi capturado pela Gestapo, e o espectáculo que oferecia quando o encontraram não era agradável.
- Mas ela continuou.
- Exacto.
- Falou por acaso nisso à sua amiga? Havelock reflectiu por um momento, enquanto chupava o cigarro, que acabou por largar no chão e apagar com o calcanhar.
- É provável. Régine nem sempre se mostra cordial. Pode revelar-se brusca, cáustica mesmo, havendo quem lhe chame cadela, mas não é nada disso. Aliás, nessa altura, tinha de ser dura como granito.
- Então, permita-me outra pergunta, com cuja resposta estou vagamente familiarizado, embora se baseie em rumores e não em coisa alguma que lesse com pretensões de natureza oficial. - Gravet entrelaçou os dedos antes de inquirir: - O que levou a sua amiga a proceder assim, a viver aquele gênero de vida consigo e, obviamente, antes disso?
Mil novecentos e sessenta e oito - proferiu Michael, secamente. A invasão do bloco de Varsóvia? A cerny den de Agosto. Os dias negros. Os pais tinham morrido e ela vivia em Ostrava com dois irmãos mais velhos, um dos quais casado. Eram activistas de Dubcek, o
mais novo estudante e o outro engenheiro impedido de trabalhar em instituições oficiais pelo regime de Novotny. Quando surgiram os tanques, o mais novo foi morto nas ruas e o mais velho detido pelas tropas soviéticas, para " interrogatório " , em resultado do que ficou incapacitado para toda a vida, com a fractura dos braços e das pernas. Mais tarde, meteu uma bala na cabeça e a esposa desapareceu. Jenna seguiu para Praga, onde ninguém a
conhecia, e passou à clandestinidade. Sabia quem devia contactar, quando se tornava necessário.
Gravet inclinou a cabeça em assentimento, com uma expressão grave.
As pessoas que actuam como vocês, em silêncio, com eficiência, têm histórias
diferentes, mas sulcadas de temas comuns. Violência, dor... e morte. Além de vingança genuína.
- Que esperava? Só os ideólogos se podem dar ao luxo de gritar. Nós, em geral, temos outras coisas com que nos preocupar. É por isso que nos enviam à frente. Não é necessário muito para nos tornarmos eficientes.
- Ou reconhecerem-se uns aos outros, imagino.
- Sim, em determinadas circunstâncias. Onde pretende chegar?
- Régine Broussac. A sua amiga da Costa Brava deve lembrar-se dela. Um marido, irmãos, dor, morte... uma mulher só. Uma pessoa nessas condições recorda-se de outra que conheceu circunstâncias análogas.
- Parece que sim. Simplesmente, não me ocorreu. - Havelock inclinou a cabeça em silêncio. - Tem razão. Obrigado por colocar as coisas na sua devida perspectiva.
- Tenha cautela.
- Com quê?
- Vingança genuína. Deve haver uma sympathie entre elas. Pode empurrá-lo para a sua
própria armadilha.
- Terei cautela, e ela também. Que mais me pode dizer sobre o memorando? Foi mencionado algum destino?
- Não, ela podia dirigir-se a qualquer lugar. Será decidido nos Negócios Estrangeiros e conservado secreto.
- E a respeito de cobertura? Um nome?
- Isso foi processado, e fora das vistas do meu jovem amigo. Pelo menos, esta tarde. Talvez amanhã consiga dar uma olhadela pelos ficheiros, que se encontram fechados esta noite.
- É demasiado tarde. Você disse que o memorando exigia resposta imediata. O passaporte vai ser forjado e emitido e ela tentará abandonar o país imediatamente. Tenho de agir com rapidez.
- Que diferença faz um dia? Dentro de onze horas, é possível que consiga encontrar um nome. Se telefonar às companhias de aviação e invocar uma emergência, estou certo de que consultarão as suas listas de passageiros. Ficará a saber para onde ela seguiu.
- Mas não como.
- Je ne comprends pas.
- Régine Broussac. Se fez tudo isso por Jerina, irá muito mais longe. Não a deixaria só num aeroporto qualquer. Foram tomadas providências. Tenho de me inteirar em que consistem.
- E pensa que ela lhe dirá?
- Que remédio. - Havelock abotoou o casaco e levantou a gola, pois o beco constituía um túnel pelo qual circulava o vento glacial. - De uma maneira ou de outra, há-de falar. Obrigado, Gravet. Fico em dívida consigo.
- Sem dúvida.
- Falarei com Régine esta noite e partirei de manhã... de uma maneira ou de outra. Mas, antes, passarei pelo banco onde tenho conta e levantarei tudo. Deixarei um sobrescrito para si, a que pode chamar pagamento. É o Banque Germaine, na Avenue George Cinq.
- Agradeço a atenção mas não sei se será prudente. Sem falsa modéstia, posso considerar-me uma figura pública e devo ter cautela com as minhas associações. Pode haver alguém que o conheça.
- Não por nenhum dos nomes que você ouviu.
- Então qual mencionarei?
- Nenhum. Diga apenas que o " senhor do Texas" deixou um sobrescrito para si. Se isso o tranquiliza, acrescente que nunca me viu. Negoceio uma tela por conta de um comprador anónimo de Houston.
- E se surgirem complicações?
- Não surgem. Você sabe onde estarei esta noite e, por extensão, amanhã.
- Somos profissionais, acima de tudo, hem?
- Eu não aceitaria outra coisa. Assim, é mais limpo. - Michael estendeu a mão. Obrigado, mais uma vez. Sabe que me foi muito útil. Não esbanjarei o auxílio que me prestou.
- Pode prescindir do sobrescrito, se quiser - disse Gravet, olhando o interlocutor com intensidade. - É natural que o dinheiro lhe faça falta, e as minhas despesas foram mínimas. Há sempre possibilidade de fazermos contas na sua próxima visita a Paris.
- Prefiro não alterar as regras pelas quais nos regemos durante tanto tempo. Em todo o caso, agradeço o voto de confiança.
- Foi sempre decente comigo e não entendo nada deste assunto. Porquê ela? Porquê você?
- Isso gostava eu de saber.
- É essa a chave, não? Alguma coisa que sabe.
- Se é, não faço a menor ideia de que se trata. Adeus.
- Non, au revoir. Na verdade, não quero o sobrescrito, Mikhail. Volte a Paris. Está em dívida para comigo.
E o crítico de arte rodou nos calcanhares e afastou-se calmamente.
Não adiantava estar com evasivas perante Régine Broussac, pois ela aperceber-se-ia instantaneamente, uma vez que a coincidência da aparição de Havelock naquele momento resultava demasiado incrível. Por outro lado, proporcionar-lhe a vantagem de indicar o local de encontro era igualmente insensato, porquanto ela inundaria a área de pessoal que o Quai d'Orsay não fazia a mínima ideia de que figurava na sua folha de salários. Régine era uma
mulher dura, que sabia quando devia ou não envolver o Governo numa situação, e, consoante o que Jerina lhe tivesse revelado, poderia considerar o contacto com um agente secreto aposentado e alucinado merecedor de tratamento por meio de métodos não oficiais, que não conheciam regras nem limites e eram, portanto, duplamente perigosos. Os "zangãos", qualquer que fosse a designação empregada, achavam-se habituados à violência, quer estivessem ao serviço de Roma em Col des Moulinets, quer de um funcionário da VKR num hotel barato da Rue Étienne. Todos essencialmente letais, tratava-se apenas de uma questão de grau, devendo ser evitados, a menos que houvesse necessidade de utilizar os seus préstimos. Michael abarcava bem a situação. Tinha de se encontrar com Régine Broussac a sós e, para tal, precisava convencê-la de que não era perigoso - para ela e podia achar-se possuidor de informações extraordinariamente valiosas.
Acudiu-lhe uma ideia curiosa, enquanto descia os degraus intermináveis de Montinartre. Falava consigo próprio acerca da verdade. Revelaria parte, mas omitiria fragmentos importantes. Os mentirosos adulteravam a verdade, e ela poderia escutar a versão deles em vez da sua.
Encontrou o número na lista, com domicílio na Rue Losserand, e apressou-se a fazer a ligação.
- ...Nunca lhe forneci informações erradas e não vou principiar a fazê-lo agora. Mas trata-se de um assunto confidencial e grave. Para poder apreciar a gravidade, utilize o nome
de outra pessoa do Quai d'Orsay e telefone à embaixada. Pergunte pela minha situação, dirigindo-se ao adido das Operações Consulares. Diga que lhe falei de algures no Sul e quero marcar um encontro. Como funcionária de um Governo amigo, solicite instruções. Voltarei a telefonar dentro de dez minutos, mas não do mesmo sítio, claro.
- Claro. Dez minutos.
- Régine?
- sim?
- Lembre-se de Bona.
- Dez minutos. Havelock seguiu para sul até à Place Berlioz, consultando o relógio com frequência, disposto a acrescentar cinco a sete minutos aos dez estipulados. Atrasando um telefonema prometido, acontecia com frequência o destinatário revelar mais do que pretendia, em
virtude da tensão. Havia uma cabina na esquina, com uma mulher que gritava para o telefone, ao mesmo tempo que gesticulava freneticamente. Por fim, pousou o auscultador com violência e saiu.
- Vache! - exclamou, puxando a correia da carteira a tiracolo, quando passou diante dele.
Michael entrou e, antes de proceder à ligação, verificou que haviam passado dezanove minutos, em vez dos dez combinados.
- Estou - articulou a voz de Régine Broussac, logo após o primeiro toque. Parecia ansiosa, o que indicava que contactara a embaixada.
- Falou com o adido?
- Atrasou-se. Disse dez minutos.
- Falou com ele?
- Falei. Podemos encontrar-nos. Venha ao meu apartamento, o mais depressa possível.
- Desculpe. Volto a ligar daqui a pouco.
- Havelock! Ele pousou o auscultador, abandonou a cabina e olhou em volta, à procura de um táxi livre.
Vinte e cinco minutos mais tarde, encontrava-se noutra cabina, esta sem luz, com os algarismos do marcador indistinguíveis, o que o obrigou a acender um fósforo para discar o número.
- Estou!
- Siga de metro até à estação Bercy, saia para a rua e vá até um grupo de armazéns ao fundo, à direita. Estarei nas proximidades. Apareça só, porque o descobrirei, se estiver acompanhada, e nesse caso não nos encontraremos.
- Isso é ridículo! Uma mulher só, à noite, em Bercy! Em que está a pensar?
- Há um ano, noutra rua. Em Bona. - E cortou a ligação. A área encontrava-se deserta, com a fiada de armazéns às escuras. Eram uma hora e um local favoráveis para uma entrevista fortuita de natureza inconfessável. Os poucos residentes que emergissem da caverna iluminada do metropolitano podiam ser observados de longe, assim como a aproximação de um automóvel num local onde brilhavam pela sua ausência. No entanto, a vantagem fundamental residia em comparecer com antecedência.
Havia dois camiões estacionados, um à frente do outro, junto do passeio, diante de uma plataforma de cargas e descargas, porém não se achava vivalma nas cercanias. Tudo indicava que os tinham deixado preparados para a manhã seguinte. Michael decidiu aguardar entre ambos, donde desfrutava de visibilidade excelente, confiado em que Régine Broussac não faltaria. A impetuosa caçadora, estimulada pela curiosidade, não conseguiria resistir a uma situação que decerto ainda não lograra compreender.
Havelock ouviu em onze ocasiões diferentes o ruído surdo das composições subterrâneas e sentiu as vibrações no pavimento, passando a concentrar-se na saída a partir da sexta, pois ela não tinha tempo de se apresentar antes.
O décimo segundo abalo surdo interrompeu-se por uns momentos e, quando se reatou, ele viu-a surgir no topo da escada, precedida por um casal, que Michael observou atentamente. Tratava-se de um homem e uma mulher de meia-idade, que caminhavam com lentidão e certamente não tinham a mínima ligação com Régine Broussac, acabando por cortar à esquerda, no sentido oposto ao local onde se viam os dois camiões. Régine seguiu em direcção aos armazéns, com os passos hesitantes de uma mulher apreensiva, consciente
da sua vulnerabilidade, ao mesmo tempo que movia a cabeça para os lados com lentidão, atenta ao menor som suspeito. Deteve-se sob um candeeiro de fraca intensidade, e Havelock recordou-se do passado. A pele era tão cinzenta como os cabelos cortados curtos, testemunho de anos de tormentos, porém o rosto achava-se suavizado pelos olhos grandes azuis, tão frequentemente expressivos como enevoados. Enquanto ela reatava a marcha e se transferia para nova zona na sombra, Havelock evocou as palavras de Gravet: " Violência, dor e morte. " Régine Broussac conhecera tudo aquilo e sobrevivera, conservando a rigidez granítica de outrora. Experimentava uma satisfação especial com os poderes secretos que o
seu Governo lhe concedera e a ajudavam a ajustar contas. No fundo, ele compreendia. Na realidade, tratava-se de uma pessoa do seu nível. Uma sobrevivente.
Quando a viu alcançar as proximidades dos camiões, Michael chamou-a:
- Régine... Ela estacou e conservou-se imóvel, olhar fixo na sua frente, enquanto murmurava:
- Acha indispensável apontar-me uma arma?
- Engana-se. Tenho uma, mas não lha aponto.
- Bien! - Rodou nos calcanhares com brusquidão e ergueu a carteira. No instante imediato, uma explosão abriu um furo no cabedal e a bala atingiu um ponto a curta distância dos pés de Havelock, fazendo voar fragmentos de pedras, alguns dos quais lhe perfuraram as calças e roçaram pelas pernas. - Pelo que fez a Jenna Karas! - vociferou, de expressão contorcida. - Não se mova! Ao mínimo gesto, abro-lhe um buraco na garganta!
- Que está afazer?
- Que fez você? Para quem trabalha, agora?
- Para mim, diabos a levem! Para mim e Jenna! - Ele levantou a mão, num movimento instintivo, mas, apesar disso, de súplica, que não foi aceite.
Soou segunda explosão e o projéctil passou de raspão pela palma da mão estendida, antes de ricochetear num dos camiões e perder-se na noite.
- Arrêtez! Tanto me faz entregar um corpo vivo como um cadáver. No seu caso, talvez prefira a segunda alternativa, cochon.
- Entregar a quem?
- Prometeu telefonar "daqui a pouco"... creio que foi esta a sua expressão. Pois bem, daqui a pouco, vários colegas meus estarão aqui e seguiremos todos para uma casa no campo, onde celebraremos uma sessão animada. Depois, entregamo-lo aos Gabriel, que se mostram muito interessados na sua pessoa. Chamaram-lhe perigoso e isso bastou-me... juntamente com o que já sabia.
- Sou perigoso para eles e não par si!
- Por quem me toma? Por quem nos toma?
- Você esteve com Jerma. Ajudou-a...
- Sim, estive com ela e escutei-a. Inteirei-me da verdade.
- Como ela a supõe e não como é! Oiça-me!
- Falará nas condições apropriadas. Conhece-as tão bem como eu.
- Não preciso de produtos químicos, sua cadela! Não ouvirá nada de diferente!
- Observaremos os métodos usuais. - Régine retirou a mão e a arma da carteira furada. - Saia daí - continuou, gesticulando com a pistola. - Não gosto que esteja no escuro.
"Claro que não gostas", reflectia Havelock, vendo-a pestanejar. À semelhança do que sucedia a muitas pessoas idosas, era óbvio que a noite não lhe favorecia a visão, o que explicava a forma como movia constantemente a cabeça ao emergir das escadas do metropolitano. Impunha-se que continuasse a entretê-la com palavras, provocasse uma distracção à sua concentração.
- Pensa que a embaixada americana tolera 9 que está a fazer? - perguntou ele, emergindo da sombra.
- Não haverá nenhum incidente internacional. Fomos obrigados a aplicar-lhe um sedativo. Eles próprios o declararam perigoso.
- Sabe perfeitamente que não aceitarão essa versão.
- Que remédio. A Gabriel foi alertada da existência de uma situação de extrema anormalidade em que um antigo agente secreto americano, especialista de actividades clandestinas, pode tentar comprometer um funcionário do Quai d'Orsay. A confrontação prevista realizar-se-á a trinta quilómetros de Paris, perto de Argenteuil, e foi pedido aos americanos que tivessem um veículo com pessoal armado nas proximidades. Estabeleceu-se uma frequência de rádio para o efeito. Entregaremos o problema americano aos americanos, depois de nos inteirarmos da natureza da extorsão. Protegemos os interesses do nosso Governo. Uma atitude perfeitamente aceitável e até generosa.
- Safa, que vocês não descuram um pormenor.
- Decerto que não. Conheci homens como você. E mulheres. Costumávamos rapar-lhes a cabeça. Desprezo-o.
- Por causa do que ela lhe revelou?
- Tal como você, sei detectar a verdade. Ela não mentiu.
- Concordo. Porque acredita em tudo... como aconteceu comigo. E estava errado, como ela neste momento. Fomos manipulados.
- Pelos vossos próprios serviços? Com que finalidade?
- Não sei! - Havelock fez uma breve pausa, verificando que ela o escutava e a concentração começava a dividir-se. Não o podia evitar, de resto, porque o inexplorado se apresentava demasiado atraente. - Por que supõe que contactei consigo? Na realidade, não preciso de si. Podia averiguar o que pretendia, sem a sua ajuda. Telefonei-lhe porque confiava na sua compreensão.
- Terá oportunidade de falar... nas condições apropriadas - articulou ela, semicerrando as pálpebras, como se entretanto se entregasse a conjecturas.
- Não faça isso! - Michael deu um pequeno passo em frente, todavia a mulher não disparou, nem moveu a arma. - Pôs a engrenagem em movimento e terá de me entregar! Eles sabem que sou eu e obrigá-la-ão. Os seus amigos hão-de insistir. Não se afundarão convosco, independentemente do que eu lhes revelar... nas condições apropriadas.
- Por que havíamos de nos afundar?
- Porque mentiram à embaixada. Pessoas de alto nível. Ela voltou a pestanejar, ao mesmo tempo que estremecia. Não fizera fogo, quando Havelock se movera, segundos antes.
Agora! Ele lançou-se para a frente, a mão direita estendida, rígida, tão firme como uma barra de ferro, com a esquerda sob o pulso. Estabeleceu contacto com a pistola e desviou-a no momento em que terceira explosão abalava o silêncio da rua deserta. Em seguida, agarrou o cano com a esquerda e arrancou-lha, impelindo-a para junto da parede do armazém.
- Cochon! Traitre! - uivava Régine. - Mate-me! Não me obrigará a revelar uma única palavra!
Havelock exerceu pressão com o braço na garganta dela, esforçando-se por ignorar a dor excruciante no ombro, e obrigou-a a encostar a cabeça à parede, ao mesmo tempo que lhe apontava a arma.
- O que pretendo não posso obter à força de si - proferiu, ofegante. - Não compreende? Tem de ser concedido.
- Nada! Que terroristas o compraram? Os cobardes do Meinhof.? Os porcos árabes? Os fanáticos de Israel? As Brigadas Vermelhas! Quem pretende o que você pode vender?. . . Ela sabia. Descobriu tudo! E você tem de a matar! Liquide-me primeiro, traidor!
Aliviou a pressão do braço com lentidão e, ainda mais devagar, retrocedeu um passo. Apercebia-se do risco envolvido e não se lhe expunha irreflectidamente. Por outro lado,
conhecia Régine Broussac. No fundo, era uma deles, sobrevivera. Por fim, imobilizou-se na sua frente, olhando-a com firmeza.
- Não traí ninguém excepto a mim próprio. E, através de mim, a pessoa que mais estimo. Repito o que disse. Não posso obrigá-la a revelar-me o que preciso saber. Entre outras razões, porque podia mentir-me com a maior facilidade e eu voltaria ao ponto em que me encontrava, há dez dias. Se não conseguir encontrar Jerma e recuperá-la, talvez não tenha importância. Sei o que fiz, e sinto uma angústia insuportável. Amo-a... necessito dela. Penso que precisamos um do outro mais do que qualquer outra coisa no mundo, neste momento. Nada mais nos resta. No entanto, aprendi um pouco acerca da futilidade, ao longo dos anos. - Ergueu a arma na mão esquerda e segurou-a pelo cano com a direita, para a estender a Régine. - Disparou três vezes. Restam quatro balas.
Ela conservou-se imóvel, olhando-o com intensidade, como se pretendesse ler-lhe as
verdadeiras intenções no rosto. A seguir, pegou na pistola e apontou-lha à cabeça. Por último, a expressão do semblante atenuou-se e a admiração substituiu a hostilidade.
C'est incroyable - murmurou, baixando a arma. - Então, é verdade... É. Vire! - exclamou, consultando o relógio. - Temos de sair daqui. Eles não tardam e vão revistar tudo.
- Para onde? Não há táxis...
- O metro. Seguiremos até Rochereau. Há um pequeno parque, onde podemos conversar.
- E a sua equipa? Que lhe dirá?
- Que foi um exercício para determinar a prontidão com que actuam - explicou, segurando o braço dele, enquanto se encaminhavam para a entrada do metropolitano. É um motivo convincente.
- Resta a embaixada.
- Eu sei. Vou ter de pensar nisso.
- Diga que não apareci - sugeriu Havelock, friccionando o ombro, aliviado por a dor
se atenuar.
- Merci.
O minúsculo parque em Denfert Rochereau consistia numa área relvada com bancos de pedra, algumas árvores dispersas e um caminho empedrado que circundava um pequeno lago com um repuxo no centro. A única fonte de luz era um candeeiro público a uns dez metros de distância, cujo clarão se filtrava por entre as ramagens. Eles sentaram-se num dos bancos e Michael descreveu a Régine o que vira - e o que não vira - na Costa Brava. No final, embora com relutância, formulou a pergunta:
- Ela explicou-lhe o que aconteceu?
- Foi prevenida e indicaram-lhe que cumprisse as instruções.
- Por quem?
Uma alta individualidade do Governo, em Washington. Por que acreditou? Acompanhava-o um homem identificado como sendo o adido das Operações Consulares em Madrid.
- Madrid? Onde estava eu?
- Em Madrid.
- Mesmo no momento oportuno!
- O quê?
- Tudo. Que instruções lhe transmitiram?
- Para se encontrar com um homem, naquela noite, e abandonar Barcelona com ele.
- Fê-lo?
- Não.
- Porquê?
- Entrou em pânico. Segundo as suas próprias palavras, tinha-se desmoronado tudo à sua volta. Sentia que não podia confiar em ninguém. Fugiu.
- Valha-nos isso. Não sei quem mataram naquela praia, mas supuseram que era Jetina. Até certo ponto, isso ainda toma a situação mais obscena. Quem era essa mulher? Alguém que não sabia absolutamente nada? Indicaram-lhe que corresse atrás de borboletas ao luar e abateram-na friamente? Que espécie de gente é essa?
- Apure-o através de Madrid. Do adido das Operações Consulares.
- Não posso. Disseram-lhe mais uma mentira. Não existe nenhuma unidade de Operações Consulares em Madrid. O clima é pouco propício. Funcina nos arrabaldes de Lisboa.
Seguiu-se um breve silêncio, até que Régine perguntou a meia-voz:
- Que está a acontecer, Michael? Este não respondeu imediatamente, com os olhos fixos no lago, cujo repuxo se extinguia com lentidão. Algures, um funcionário camarário fechava a torneira, para tomar a abri-Ia na manhã seguinte.
- Actuam mentirosos nos altos níveis do meu Governo. Penetraram em áreas que eu considerava inexpugnáveis. Dominam, matam... mentem. E alguém em Moscovo trabalha com eles.
- Em Moscovo? Tem a certeza?
- Absoluta. Baseado na palavra de um homem que não receava a morte, mas tinha medo de viver da maneira que eu lhe prometera que seria forçado. Alguém em Moscovo, com o desconhecimento total dos controladores do KGB, mantém-se em contacto com os mentirosos.
- Com que objectivo? Você? Para destruir a sua credibilidade e depois matá-lo? Para esvaziar de conteúdo uma operação recente por meio da conspurcação da folha de serviço de um homem morto?
- Sou apenas uma parte do alvo da maquinação. Reconhecem-me uma importância que dantes não me atribuíam. - Havelock voltou a cabeça e contemplou Régine, que exibia agora uma expressão suave e compassiva, embora ainda cinzenta à luz ténue. - Porque vi Jetina e descobri que continuava viva. Agora, têm de me liquidar. E a ela, também.
- Porquê? Você era dos melhores!
- Não sei. De momento, a minha única certeza é que tenho de procurar a explicação na Costa Brava. Foi onde o pesadelo principiou para nós... onde se supõe que terminará. Um morto e o outro moribundo por dentro. Fora da circulação.
- É ela que está moribunda por dentro, agora. Surpreende-me que possa funcionar daquela maneira, mover-se de um lado para o outro, como faz. É admirável. - Régine calou-se por um momento. O repuxo extinguira-se e brotavam apenas gotas dispersas. Ela amava-o.
- No pretérito?
- Sim. Todos aprendemos a aceitar novas realidades, não é? Reagimos melhor que a maioria das pessoas, porque as alterações súbitas nos são tão familiares como inimigas. Procuramos constantemente a traição nos outros, prevemo-la. E, entretanto, somos submetidos a provas, em que os nossos adversários tentam seduzir-nos o espírito e os apetites. Umas vezes triunfamos, outras a vitória inclina-se para eles. É essa a realidade.
- A futilidade.
- Você é demasiado philosophe para esta profissão.
- Foi por isso que pretendi retirar-me. - Michael volveu o olhar para um ponto indefinido na noite. - Vi a expressão dela à janela do avião em Col des Moulinets. Os olhos... Foi horrível.
- Acredito. Acontece. O ódio substitui o amor. É a única defesa, nesses casos. Ela mata-o, se puder.
- Meu Deus... - Inclinou-se para a frente, apoiou os cotovelos nos joelhos e pousou o queixo nas mãos, o olhar de novo fixo no repuxo. - Amo-a. Amava-a quando a matei, naquela noite, sabendo que parte de mim ficaria na praia da Costa Brava para o resto da vida, vendo-a correr e gritar à frente dos assassinos. Queria ir ter com ela e dizer-lhe que o mundo não passava de uma mentira e nada importava além de nós! Apenas nó s... Qualquer coisa no meu íntimo tentava prevenir-me de que éramos vítimas de uma maquinação horrível, e não fiz caso. Sentia-me demasiado magoado para dar ouvidos a mim próprio. Não consegui afastar a minha pessoa do meio e escutar a verdade que ela gritava!
- Era um profissional numa crise profissional - murmurou Régine, tocando-lhe no braço. - Segundo tudo o que aprendera, tudo com que vivera ao longo de anos, procedia como devia. Como um profissional.
- Por que não fui eu próprio? - Ele voltou a olhá-la, com uma expressão amargurada. - Por que não dei ouvidos aos outros gritos, àqueles que não conseguia fazer brotar da garganta?
- Nem sempre podemos confiar naquilo a que chamamos instinto. Sabe-o bem.
- Sei que a amo... a amava, quando pensava que a odiava, quando a minha faceta profissional esperava vê-Ia morrer, porque encerrara um inimigo na armadilha. Não a odiava, arnava-a. Sabe por que tenho a certeza disso?
- Porquê, mon cher?
- Porque não senti a mínima satisfação com a vitória. Apenas repulsa, tristeza... um desejo premente de que as coisas fossem como não podiam ser.
- Foi então que decidiu afastar-se, hem? Era o que nos constara e eu tinha tanta dificuldade em aceitar. Agora, compreendo. Você amava-a muito. Lastimo profundamente.
- Que lhe aconteceu em Barcelona? - Havelock sacudiu a cabeça e fechou os olhos, sentindo-se reconfortado pela escuridão momentânea. - Repita-me o que ela lhe revelou.
- Não entende o que aconteceu. Foram os soviéticos que o compraram, ou a ordem de execução partiu de Washington? É um enigma, para ela... um enigma violento. Abandonou Espanha e seguiu para Itália, deslocando-se de cidade para cidade em busca das poucas pessoas que supunha capazes de a auxiliar, esconder. Mas surgiam sempre as perguntas inevitáveis. Quem era você? Por que se encontrava só e não consigo? A princípio, teve medo de falar, e, quando o fez, ninguém acreditou. Cada vez que descrevia os factos e os via rejeitados, sentia que devia recomeçar a fugir, convencida de que contactariam consigo e a perseguiria. Vive com o pesadelo de que você está sempre presente, no seu encalço. E quando encontrou uma protecção segura momentânea, apareceu um russo, alguém que vocês conheceram em Praga, um carniceiro do KGB. Coincidência? Quem lho podia garantir? Voltou a pôr-se em fuga, desta vez apoderando-se de uma quantia elevada do patrão.
- Era um dos pormenores que me intrigava. Como pudera pagar para sair de Itália, cruzar a fronteira e instalar-se em Paris. Em comparação com alguns outros percursos, viajou em primeira classe.
Régine sorriu, os olhos azuis brilhantes na obscuridade, numa indicação de que se seguiria um breve momento divertido.
- Ela ria-se da situação, e o facto de o poder fazer era salutar. Compreende ao que me refiro, Michael? Reagia, ainda que fugazmente, como uma garota evocando uma partida que pregara.
- Oiço-lhe o riso em sonhos... quando não são os gritos. A sua maneira de rir nunca foi ruidosa, mas sempre sincera. Fazia-o com gosto, porque se sentia aliviada das tensões da profissão. - Havelock conservou-se silencioso por uns segundos. - Como se apoderou do dinheiro? Onde?
- Em Milão.
- Há soviéticos por todos os cantos, em Milão. Quem se encontrou corri ela não passava de uma coincidência migratória... Desculpe. Que aconteceu?
- Trabalhava numa loja enorme da Piazza del Duomo. Uma que vende livros, revistas e jornais de todo o mundo. Sabe a qual me refiro?
- Recordo-me de a ver.
- Conseguiu o lugar devido ao seu domínio de várias línguas, e pintou o cabelo, além de usar óculos e recorrer às pequenas alterações habituais dessas situações. No entanto, não modificou a configuração do corpo suficientemente para evitar as assiduidades do dono da loja, um suíno casado com uma mulher corpulenta que o aterrorizava e oito filhos, o qual lhe prometia mundos e fundos em troca dos seus favores. Um dia, ao fim da manhã, o russo entrou para comprar qualquer coisa e Jenna reconheceu-o e compreendeu que tinha de fugir. Receava que estivesse em ligação consigo e fosse lá para sondar o terreno. À hora do almoço, procurou o proprietário no seu gabinete e confessou que não podia continuar a resistir às suas atenções e um pequeno empréstimo constituía o único obstáculo a um êxtase absoluto. Desvairado pelo desejo, o imbecil abriu o cofre, onde se encontravam as receitas de vários dias... Era sexta-feira, como deve recordar.
- Eu? Porquê? - estranhou Havelock.
- Já lá vamos. Resumindo: quando o pateta puxava de uns milhares de liras, Jenna pegou num pesado relógio de secretária e atordoou-o com uma violenta pancada na cabeça. Em seguida, apressou-se a esvaziar o cofre, surpreendida com a quantia elevada que continha e consciente de que representava o seu passaporte.
- E um convite à perseguição da polícia.
- Sim, mas uma perseguição que podia ser retardada o suficiente para que ela abandonasse Milão.
- Como?
- Medo, confusão e embaraço - disse Régine, com um leve encolher de ombros. -
Jetina voltou a fechar o cofre, despiu o homem e marcou-lhe os lugares apropriados do corpo com o bâton. Depois, ligou para casa dele e comunicou à empregada que atendeu que um assunto urgente exigia a presença da mulher dele na loja, dentro de uma hora exacta. Nem mais nem menos um minuto.
- Medo, confusão e embaraço - concordou Michael, inclinando a cabeça. - E aposto que levou a roupa dele - acrescentou com um sorriso, ao lembrar-se da mulher que era Jenna Karas.
- Sem dúvida. Aproveitou as horas imediatas para recolher as suas coisas e, consciente de que a polícia acabaria por emitir um mandato de captura, restituiu a cor normal ao cabelo e confundiu-se com a multidão na estação de caminhos-de-ferro de Milão.
- Na estação!... - Empertigou-se no banco e arregalou os olhos. - Seguiu de comboio para Roma! Foi aí que a vi!
- Num momento que ela nunca esquecerá. Tinha na sua frente o homem que a obrigara a fugir e a esconder-se. A única pessoa do mundo que receava a encontrasse, para a matar. De repente, inesperadamente, achava-se diante do perseguidor, sem o mínimo disfarce I
- Se o abalo não fosse tão paralisante, se eu reagisse mais depressa, tudo se passaria de maneira diferente. - Cobriu o rosto com as mãos por um momento. - Estivemos tão perto!... Chamei-a, mas desapareceu. Perdia-a na multidão. Não me ouviu... não me quis ouvir, e perdi-a. - Baixou as mãos e pousou-as no banco com firmeza. - Depois, houve o episódio em Civítavecchia. Ela falou-lhe nisso?
- Sim. Foi onde viu um animal enfurecido tentar matá-la no cais...
- Não era ela! Como pôde supor o contrário? Uma imunda prostituta das docas!
- Jeima viu o que viu - articulou Régine, a meia-voz... - Não podia adivinhar o que você pensava.
- Como calculou que eu me dirigiria a Civitavecchia? Um homem de lá disse-me que
ela supunha que eu interrogaria os motoristas de táxi. Não o fiz. Estavam em greve, embora alguns trabalhassem.
- Você é o melhor dos caçadores. Ensinou-lhe que a maneira mais segura de sair de um país sem dar nas vistas consistia em visitar as docas do porto às primeiras horas da madrugada. Há sempre alguém disposto a arranjar um lugar a bordo, nem que seja no porão de carga. Ela inteirou-se no comboio, fingindo-se mulher de um marinheiro polaco, tripulante de um cargueiro. As pessoas não eram estúpidas e concluíram que se tratava de mais um casal que se escapava das garras do Urso. Assim, indicaram-lhe que tentasse a sorte em Civitavecchia. Ora, Jerina depreendeu que você chegaria à mesma conclusão, baseada no que aprendera consigo, e efectuou preparativos. Com efeito, não se enganou, porque apareceu lá.
- Por um caminho diferente, graças ao revisor da terceira carruagem do comboio, que se lembrava da bella ragazza.
- De qualquer modo, ela admitiu a possibilidade e agiu em conformidade, colocando-se numa posição para observar. É uma mulher admirável. A tensão, as pressões de todos os lados ... Fazer tudo aquilo sem se deixar dominar pelo pânico, construir a estratégia sozinha ... Notável, de facto. É um professor excelente, Michael.
- Ela tinha dez anos de treino, quando nos conhecemos. Sabia muito que me podia ensinar, e fê-lo. Forneceu-lhe um disfarce e salvo-conduto diplomático, Régine. Para onde foi? Que preparativos efectuou?
- Como soube?
- Não me obrigue a pagar o preço que lhe devo. Em vez disso, deixe-me mandá-lo ter consigo. Não o denuncie, utilize-o. Não se arrependerá, mas preciso da garantia.
- É justo. O talento deve ser partilhado, e respeito quem o dispensa. Recordo-me de Bona.
- Para onde foi ela?
- Além de algumas ilhas remotas do Pacífico, o lugar do mundo actualmente mais seguro para ela. Os Estados Unidos.
- Como concluiu isso? - inquiriu Havelock, arqueando as sobrancelhas.
- Consultei os telegramas confidenciais do vosso Departamento de Estado, em busca de alguma alusão a Jerina Karas. E, com efeito, encontrei-a. Uma única referência datada de dez de Janeiro, com a descrição resumida dos acontecimentos da Costa Brava. Chamavam-lhe uma infiltradora surpreendida numa armadilha em que perdera a vida, sendo a morte confirmada por duas testemunhas e exame laboratorial de fragmentos de vestuário manchados de sangue. O processo foi arquivado de modo satisfatório para as Operações Consulares.
- E cómodo.
- A inverosimilhança era irrefutável, claro. As testemunhas podem enganar-se, mas um laboratório médico tem de trabalhar com material. Ora, não o podia fazer, pelo menos
de forma legítima. Não só Jenna Karas estava bem viva e sentada no meu gabinete, como não pusera os pés naquela praia da Costa Brava. A confirmação laboratorial era falsa, e alguém a forjara, alguém que queria a mentira aceite como um facto incontroverso. -
Régine fez uma pausa. - Concluí que era você, Michael... Operação levada a efeito e execução cumprida dentro dos parâmetros estabelecidos. Se tivesse sido comprado pelos soviéticos, que melhor prova poderiam obter que a fornecida pelo Departamento de Estado? Se estivesse a obedecer a ordens de Washington, não podia permitir que supusessem que o objectivo não se realizara.
- Em face do que ela lhe revelou, compreendo.
- Mas eu não estava satisfeita. A aceitação era demasiado simples, pelo que tratei de aprofundar o assunto . Dirigi-me aos computadores processadores de dados e introduzi o nome de Jerina no detector de segurança respeitante aos últimos três meses. O resultado foi xtraordinário. Ela aparecia nada menos que doze vezes, mas nenhuma em comunicados do Departamento de Estado. Provinham todos da Central Intelligence Agency e em linguagem muito estranha. A súmula era sempre a mesma, telegrama após telegrama: o Governo dos Estados Unidos transmitia um alerta geral sobre uma mulher com os sinais dela que podia usar o nome de Karas, embora se situasse no terceiro ou quarto lugar de uma lista de meia dúzia de identidades falsas. Tratava-se de uma investigação altamente secreta, mas sem dúvida minuciosa e intensa, solicitando a mais vasta cooperação. Pareceu-me tudo muito singular, quase uma história de amadores, como se um ramo da nossa comunidade dos serviços secretos não quisesse que a outra soubesse o que fazia.
- Isso não me exonerou de culpas?
- Pelo contrário. Você fora desmascarado e a mentira exposta.
- Nesse caso, por que não expediram esse alerta em meu nome?
- Fizeram-no. Há cinco dias. "Cinco dias", reflectiu Havelock. "0 Palatino."
- Mas vocês ignoravam-no.
- Os funcionários do Quai d'Orsay que o consideram um agente de ligação americano estavam ao corrente, e o assunto acabaria por me passar pelas mãos, por mera rotina. No entanto, você e eu nunca nos identificámos, nos nossos relatórios, em obediência ao que combinámos.
- O aleita é específico? Atribuem-me um rótulo?
- Não. Só refere que deve ser localizado com urgência, por uma questão de segurança interna. Uma vez mais, entreguei-me a conjecturas: tinham-no denunciado, como desertor ou por mentir aos seus superiores e desaparecer. No fundo, não importava muito a alternativa de que se tratava. De qualquer modo, por causa de Jenna Karas, consideravam-no, o inimigo, o que me foi confirmado quando telefonei para a embaixada.
- Tem razão. Sou perigoso.
- Pois é. Para alguém. Consultei Londres, Bruxelas, Amesterdão e Bona. Ambos os alertas foram postos a circular, com prioridade máxima, mas não relacionados entre si.
- Ainda não respondeu à minha pergunta. Por que a enviou para os Estados Unidos?
- Respondi, mas não prestou atenção. As pesquisas para a encontrar (e agora também a si) estão centradas na Europa. Roma, Mediterrâneo, Paris, Londres... Bona. A curva estende-se para o Norte, presumindo-se que o destino se situa no bloco do Leste. É nessa linha de desenvolvimento que se concentram, onde os seus agentes se difundiram, para explorar fontes e "contactos". Não lhes passará pela cabeça procurar no seu próprio quintal.
- Quando partiu?
- Esta tarde, às três e meia... ou melhor, ontem à tarde, uma vez que passa da meia-noite. Num aparelho da Air France destinado a Nova Iorque, portadora de imunidade diplomática, sob uma identidade extraída de um processo arquivado... sem a mínima mácula, claro.
- E desconhecida.
- Sim, mas isso não é relevante. Pode alterar-se.
- Quais são os planos?
- Deve procurar um homem, e esse é que tratará dos planos. Não costumamos intrometer-nos na sua acção. Vocês têm pessoas do mesmo género aqui, em Paris, Londres, Amesterdão e muitos outros lugares. Não nos contactam directamente.
- Os proprietários de casas a meio caminho, que orientam as pessoas que lhes enviamos para territórios seguros, fornecendo identidades, documentos, famílias com as quais passam a viver em cidades ou povoações escolhidas meticulosamente. Efectuamos os pagamentos através de intermediários anónimos e, concluído o contacto, não somos envolvidos. Nunca ouvimos falar deles. A ignorância é a palavra de ordem. Mas existe outro aspecto da questão, hem? Não sabemos realmente o que acontece a essa gente.
- Com uma transferência segura, as nossas obrigações ficam cumpridas. Eles não exigem mais e nós não oferecemos mais, segundo o entendimento que sempre existiu entre ambas as partes. Eu, pelo menos, nunca me mostrei curiosa.
- Não sinto curiosidade, Régine. Estou simplesmente a endoidecer. Agora, posso localizá-la! Ajude-me, por favor. Quem a mandou procurar?
- Pede muito, Michael. Pretende que viole uma confidência infringindo um juramento solene. Posso perder um homem valioso.
- E eu posso perder Jenna! Olhe para mim e diga que eu não faria o mesmo por si! Se se
tratasse de seu marido e eu estivesse presente quando a Gestapo o fosse buscar, olhe para mim e diga que não o ajudaria!
- A alusão é pouco caridosa, mas não isenta de veracidade - murmurou ela, cerrando as pálpebras por uns instantes, como que atingida por um impacto físico. - Parece-se muito com ele... Sim, ajudaria.
- Faça-me sair de Paris. Imediatamente. Por favor! Manteve-se imersa em silêncio por um momento, todavia os olhos esquadrinhavam o rosto dele.
- Era preferível que se ocupasse disso sozinho. Sei que é capaz.
- Demorava dias! Precisaria de entrar por uma porta das traseiras, no México ou em Montreal. Não posso perder tempo. Cada hora que passa afasta-a mais de mim. Sabe o que pode acontecer. Ela desaparece definitivamente e não a tomarei a ver.
- Está bem. Amanhã, no voo do meio-dia do Concorde. Você será francês, membro da delegação das Nações Unidas. Faça desaparecer os documentos numa sanita, assim que desembarcar no terminal Kennedy.
- Obrigado. Passemos ao intermediário. Quem é?
- Contactá-lo-ei, mas talvez não lhe queira revelar nada.
- Quem é?
- Chama-se Jacob Handelman, da Universidade da Colúmbia.
Capítulo décimo sétimo
O homem que ostentava uma tira de adesivo em cada face apresentava-se diante da mesa da sala subterrânea de estratégia da Casa Branca. Tinha a pele do rosto rígida em virtude dos pontos naturais que lhe haviam aplicado, num efeito quase macabro. As respostas em inflexão monótona às perguntas que lhe dirigiam acentuavam a imagem de um indivíduo algo acabrunhado. Na realidade, tinha medo, mas o agente incumbido de descrever os
factos registados em Col de Moulinets sentir-se-ia mais apavorado trinta e cinco minutos antes, quando o grupo dos homens que o enfrentavam estava completo. Nessa altura eram quatro, em vez de três, pois o presidente retirara-se e assistia agora ao interrogatório de um cubículo invisível atrás da plataforma, através de um vidro que fazia parte da parede e não se distinguia dela. Eram pronunciadas palavras que não se poderiam abordar na sua presença, pois custava-lhe ouvir alusões e ordens para matar num desfiladeiro dos Alpes e comunicações anteriores que incluíam a expressão <irrecuperável".
O interrogatório achava-se mais ou menos a meio e o subsecretário de Estado, Emory Bradford, aprofundava os pontos mais salientes, enquanto o embaixador Brooks e o general Halyard inscreviam notas nos seus blocos, sob o clarão intenso dos candeeiros Tensor.
- Esclareçamos este ponto - disse Bradford. - Você era o agente de "campo" encarregado de registar os acontecimentos e o Único da unidade em contacto com Roma. Correcto?
- Sim, senhor.
- E tem a certeza absoluta de que nenhum outro componente da unidade mantinha relações com a embaixada?
- Sim, senhor. Não, senhor. Eu era o único canal. É uma forma de proceder clássica, não só por uma questão de segurança, mas também para não haver o mínimo desvio das ordens. Transmite-as um homem e recebe-as um homem.
- Diz que Havelock aludiu a dois membros da unidade como sendo especialistas de explosivos, facto que você desconhecia.
- Exacto.
- Mas, como oficial registador dos acontecimentos...
- Agente registador.
- Desculpe. Como agente registador, não devia estar ao corrente?
- Normalmente, devia.
- Mas não estava, e a única explicação que pode fornecer é que o novo recruta, um corso chamado Ricci, contratou os dois homens em causa.
- Não vejo outra explicação. Se Havelock tinha razão. Se não mentia.
- Os relatórios de Col des Moulinets indicam que houve numerosas explosões nas
proximidades da entrada da ponte, nessa altura - prosseguiu Bradford, consultando uma
folha dactilografada na sua frente. - Entre as quais uma detonação mais intensa na estrada, verificada aproximadamente doze minutos após a confrontação, que matou três soldados italianos e quatro civis. Tudo indica, portanto, que Havelock sabia o que dizia e não mentiu.
- Isso não sei. Eu estava inconsciente... sangrava. O filho da... de Havelock retalhou-me a cara.
- Estão a dispensar-lhe cuidados médicos apropriados? - interpôs o embaixador Brooks, erguendo os olhos do bloco de apontamentos.
- Acho que sim - replicou o agente, fazendo deslizar a mão direita sobre o pulso esquerdo, enquanto os dedos pareciam friccionar o cronómetro de aço inoxidável. - Só que ainda não se sabe se os ferimentos vão exigir cirurgia plástica. Eu penso que sim.
- Eles é que decidem, claro - lembrou o subsecretário de Estado.
- Sou... valioso. Sem a cirurgia plástica, fico marcado.
- Estou certo de que o subsecretário Bradford transmitirá a sua preocupação a Walter Reed - disse o general, lendo as suas notas.
- Você declarou que nunca tinha visto esse tal Ricci antes da reunião em Roma para a transmissão de ordens, após a qual a unidade seguiu para Col des Moulinets - volveu BradfÓrd. - É exacto?
- Sim, senhor. Não, senhor. Nunca o tinha visto. Era um novo elemento.
- E não o viu, quando recuperou os sentidos, na sequência dos acontecimentos na ponte?
- Não, senhor.
- Sabe para onde foi?
- Não, senhor.
- Roma também não - proferiu o subsecretário significativamente, a meia-voz.
- Consegui saber que um soldado italiano foi atingido por uma furgoneta pesada e ficou muito ferido, soltando gritos agudos. Alguém disse que tinha cabelos louros, pelo que concluí que era Ricci.
- E?...
- Um homem surgiu do bosque (alguém com um ferimento na cabeça), meteu o soldado num carro e afastou-se.
- Como se inteirou disso?
- Fiz perguntas, muitas perguntas... depois de receber os primeiros socorros É a minha missão. Aquilo parecia um manicómio, com italianos e franceses aos uivos, como loucos.
Só me retirei depois de averiguar tudo o possível... sem permitir que me interrogassem.
- Merece elogios por isso - acudiu o embaixador.
- Muito obrigado.
- Admitamos que tem razão. - Bradford inclinou-se para a frente. - O louro era Ricei e alguém com um ferimento na cabeça levou-o dali. Faz alguma ideia de quem podia ser?
- Penso que sim. Um dos homens que acompanhavam Ricci. O outro foi morto.
- Portanto, Ricci e esse desconhecido safaram-se. Mas Roma não voltou a saber dele. Parece-lhe normal?
- De maneira nenhuma. Nada normal, mesmo. Quando algum desses indivíduos é ferido, trata de nos sugar o máximo que pode e não perde tempo em começar. A nossa posição em operações obscuras é muito clara. Não podemos evacuar os feridos...
- Creio que compreendemos - interrompeu Halyard, cujo instinto militar adivinhava o resto da frase.
- Por conseguinte, na sua opinião, se Ricci e o perito de demolições se escaparam intactos, deviam ter contactado a nossa embaixada em Roma, o mais depressa possível.
- Sim, senhor. De mãos estendidas e exigindo uma pesada indemnização.
- Que lhe parece que aconteceu?
- Julgo que é evidente. Não se safaram.
- Que disse? - inquiriu Brooks.
- Não existe outra justificação. Conheço bem esses tipos. São uma autêntica escória, capazes de matar a própria mãe, se o preço lhes convier. Posso garantir que não deixariam de contactar Roma.
- Não se safaram? - repetiu Halyard, fitando o homem com intensidade. - Que quer dizer?
- Refiro-me às estradas. Sobem e descem em curvas apertadas como saca-rolhas, naquelas montanhas, às vezes sem uma única luz ao longo de quilómetros. Um homem ferido ao volante, o outro também amachucado e aos gritos... Um veículo conduzido nessas condições arrisca-se a tombar num abismo.
- Um ferimento na cabeça pode iludir um observador - comentou o general. - Um nariz a sangrar tem um aspecto muito mais impressionante que o seu estado real.
- Surpreende-me que um homem actuasse com uma presença de espírito considerável, no meio do caos - declarou Brooks. - Funcionou...
- Queira desculpar, senhor embaixador - atalhou Bradford, levantando um pouco a voz, mas sem lhe suprimir a inflexão deferente. A intromissão não constituía uma quebra da pragmática, mas um sinal. - Penso que o ponto de vista do agente de "campo@> foi devidamente entendido. Uma investigação minuciosa naquelas estradas decerto conduzirá à descoberta de um carro no fundo de um precipício.
- Sim, com certeza. - Brooks trocou um olhar com o subsecretário de Estado e assimilou o sinal. - Com efeito, não existe outra explicação lógica.
- Mais um ou dois pontos e terminamos - informou Bradford, tomando a consultar os documentos. - Como sabe, tudo o que se disser aqui é confidencial. Não há microfones ocultos nem gravadores. As palavras proferidas ficam registadas apenas nas nossas memórias. Trata-se de uma medida de protecção de todos nós (e não só sua), pelo que pode falar abertamente. Não tente suavizar a verdade, porque navegamos todos no mesmo barco.
- Compreendo.
- As suas ordens em relação a Havelock não permitiam duas interpretações. Foi considerado " irrecuperável" e as instruções de Roma consistiam em pôr termo definitivo ao inconveniente. Correcto?
Sim, senhor.
- Por outras palavras, devia ser executado. Abatido em Col des Moulinets.
- Era esse o significado exacto.
- E você recebeu instruções do adido das Operações Consulares em Roma. Um homem chamado Harry Warren.
- Sim, senhor. Eu estava em contacto constante com ele, à espera da determinação... à espera que Washington lha transmitisse.
- Como sabia que o homem com o qual falou era Hariry Warren?
O agente pareceu perplexo, corno se a pergunta carecesse de sensatez, embora quem a fôrmulara nada tivesse de insensato.
- Entre outras razões, trabalhei com ele durante mais de dois anos. Conhecia-lhe a voz.
- Só a voz?
- E o número em Roma. Era uma linha directa à sala de comunicações da embaixada, que não figurava na lista, altamente secreta. Eu também sabia isso.
- Por acaso, não lhe ocorreu a possibilidade de as instruções finais serem transmitidas sob coacção?
- Não, senhor.
- Não lhe passou sequer pela cabeça?
- Se fosse esse o caso, ele prevenia-me.
- Com uma pistola apontada à cabeça? - interpolou Halyard. - Como?
- Empregou o código que tínhamos estabelecido. Se houvesse algo de anormal não o faria.
- Explique-se melhor, por favor - indicou Brooks. - Qual código?
- Uma ou duas palavras com origem em Washington, mencionadas durante a transmissão de instruções. Assim, sabe-se que a autorização existe, sem referir nomes. Se houvesse alguma anormalidade, Harry não empregaria o código e eu ficaria inteirado. Insistiria em que o utilizasse e ele pronunciaria outro diferente. Ora, nada disso sucedeu. Usou o correcto.
- Qual era o respeitante a Col des Moulinets? - quis saber Emory Bradford.
- Ambiguidade. Veio directamente das Operações Consulares de Washington e deve estar registado nos arquivos secretos da embaixada.
- O que constitui a prova de autorização - afirmou.
- Sim, senhor. Estão lá inscritas datas, horas e origem das comunicações. Pegou numa fotografia de vinte por vinte e cinco centímetros, que representava o rosto de um homem, e voltou-se para o agente.
É Hany Warren? Sim, senhor. Obrigado. - Pousou-a e inscreveu um sinal para a margem dos seus apontamentos. Retrocedamos um pouco, pois há uma coisa que não me parece bem clara e diz respeito à mulher. Deviam deixá-la cruzar a fronteira sem a molestar, se possível. Correcto?
- A expressão empregada nas instruções era precisamente "se possível". Ninguém se devia arriscar por ela. Não passava de urna agulha.
- Agulha?
- Para cravar nos soviéticos. Moscovo ficaria a saber que não tínhamos engolido o seu isco.
- Era, portanto, um chamariz dos russos. Uma mulher de aspecto similar (porventura submetida a cirurgia cosmética), que eles faziam surgir repetidamente em lugares escolhidos, nas proximidades de Havelock, deixando-o aproximar, mas nunca o suficiente para estabelecer contacto. É a isto que se refere?
- Sim, senhor.
- O objectivo consistia em levá-lo a um estado de instabilidade que o impelisse a desertar.
- Endoidecê-lo, e creio que conseguiram. O "irrecuperável" veio de Washington.
- De Ambiguidade!
- Sim, senhor.
- Cuja identidade se pode determinar através do registo dos telefonemas da embaixada!
- Sim, senhor. Do registo.
- Ficou, portanto, estabelecido, sem margem para dúvidas, que a mulher da ponte não era Jerma Karas.
- Sem margem para dúvidas. Sabíamos que fora morta na Costa Brava. O próprio Havelock era o agente encarregado de elaborar o relatório, pelo que se encontrava nessa praia. Endoideceu.
O embaixador Brooks pousou o lápis ruidosamente e inclinou-se para a frente, com um olhar perscrutador. O som seco que ecoou e o próprio movimento constituíam algo mais que uma interrupção - combinavam-se para indicar uma objecção.
- A operação não lhe pareceu um pouco... enfim, bizarra, para não empregar um termo mais forte? Na realidade, a execução era a única solução. Sabendo o que todos vocês sabiam julgavam saber), não podiam ter tentado capturar o homem, poupar-lhe a vida, trazendo-o, a fim de ser submetido a tratamento?
- Salvo o devido respeito, isso é mais fácil de dizer do que fazer. Jack Ogilvie tentou-o, em Roma, e perdeu a vida no Palatino. Havelock matou três homens naquela noite. Isto, do nosso conhecimento, pois mais dois podem estar agora mortos. Retalhou-me a cara com uma navalha. Creiam que é um psicopata. - O agente fez uma pausa para criar efeito. -
Sim, senhor. Tudo considerado, a única solução consiste em matá-lo. Aliás, é o que a expressão "irrecuperável" indica, e não fui eu que a inventei. Limito-me a cumprir ordens.
- Uma frase muito familiar - observou Brooks.
- Mas justificada, nas circunstâncias - interveio BradfÓrd, riscando a palavra Ambiguidade na folha à sua frente e prosseguindo, antes que alguém pudesse falar: - Sabe o que aconteceu a Havelock?
- Disseram que um assassino pazzo, um assassino maluco, conduziu uma furgoneta através da ponte e desapareceu na noite. Só podia ser ele. Há alertas difundidos a todas as províncias: cidades e povoações e ao longo da costa do Mediterrâneo. Trabalhou na área e encontrá-lo-ão quando tentar contactar alguém. Não pode ir longe, porque está ferido . Não lhe dou mais de dois ou três dias, e lamento não poder ser eu a apanhá-lo.
- É uma aspiração justificada - concedeu o subsecretário de Estado. - Agradecemos-lhe a cooperação. Foi muito explícito e útil. Pode retirar-se, e felicidades.
O homem levantou-se da cadeira, inclinou a cabeça e encaminhou-se para a porta. De súbito, deteve-se, levou a mão à face e voltou-se para os três poderosos indivíduos.
- Merece a pena recorrer à cirurgia plástica.
- Sem dúvida - concordou Bradiórd. Por fim, o agente abandonou a sala e, no instante em que a porta se fechou, Halyard virou-se para o subsecretário de Estado e vociferou:
- Contacte Roma! Consulte o registo dos telefonemas e descubra a quem corresponde a designação Ambiguidade! Suponho que é o que tentou dizer-nos: trata-se do elo com Parsifal!
- Exacto, general - assentiu o interpelado. - O código Ambiguidade foi estabelecido pelo director das Operações Consulares, Daniel Stem, cujo nome figura no registo da embaixada, inscrito pelo adido do mesmo departamento, Harry Warren, o qual foi bem claro nas palavras que escreveu. A transcrição foi-me lida. É do seguinte teor. - Pegou num rectângulo de papel. - "Código: Ambiguidade. Assunto: M. Havelock. Decisão pendente. "
- Pendente? - estranhou Brooks.
- Quando foi concretizada?
- Segundo o registo da embaixada, nunca. Não houve outras inscrições, naquela noite, com a mínima alusão a Ambiguidade, a Havelock ou à unidade de Coi des Moulinets.
- Impossível - protestou Halyard. - Ouvimos o que aquele homem afirmou. Receberam ordem para avançar. Foi transmitido o código de autorização. As suas palavras não permitem outra conclusão. O telefonema tinha de se efectuar.
- E efectuou-se.
- Pretende sugerir que a respectiva entrada no registo foi apagada? - inquiriu Brooks.
- Não a inscreveram - corrigiu Bradford. - Warren nunca a escreveu.
- Então, procure-o - insistiu o general. - Ele sabe com quem falou. Não perca tempo, Emory. Pegue j à no telefone. Trata-se de Parsifal! - Voltou-se para a parede na
cadeira rotativa. - Senhor presidente?
- Não obteve resposta.
O subsecretário de Estado separou os documentos na sua frente e destacou um largo sobrescrito, do qual extraiu uma segunda fotografia, que estendeu ao antigo embaixador. Este observou-a e abafou um exclamação, pós o que a passou a Halyard, que murmurou:
- Santo Deus... Pousou-a sob o clarão do candeeiro Tensor e examinou-a pensativamente. A superfície era granulosa e as linhas infinitesimais resultantes de uma máquina transmissora, porém a
imagem revelava-se bem clara. Tratava-se da fotografia de um cadáver estendido numa mesa branca, com o vestuário rasgado e ensanguentado e o rosto sulcado de escoriações, mas reconhecível. O semblante coincidia com o da primeira foto que Bradford mostrara ao
agente de Col des Moulinets, poucos minutos antes, e pertencia a Harry Warren, adido das Operações Consulares em Roma.
- Chegou por telex à uma hora desta tarde. É Warren. Foi atropelado na Via Frascatti, de madrugada, há dois dias. Houve testemunhas, mas só puderam revelar aos nossos
investigadores que se tratava de um sedan com motor potente, o qual arrancou velozmente pouco antes do impacto. Quem conduzia quis certificar-se de que executava bem o trabalho. Apanhou Warren na borda do passeio e esmagou-o contra um candeeiro. O carro sofreu estragos consideráveis e a polícia procura-o, mas as esperanças de êxito são muito reduzidas. Neste momento, deve estar no fundo de um rio.
- Por conseguinte, o elo desapareceu - murmurou Halyard, devolvendo a fotografia a Brooks.
- Lamento a morte de Warren, mas não sei até que ponto se podia considerar um elo replicou Bradford.
- Alguém estava convencido disso - volveu o general.
- Ou tentou proteger um flanco.
- Não compreendo - confessou Brooks.
- Quem efectuou o telefonema final autorizando a eliminação do "irrecuperável" não podia saber o que Stem disse a Warren. Nós só sabemos que a decisão não fora tomada.
- Explique-se melhor.
- Suponhamos que os estrategos das Operações Consulares decidiram que não podiam tomar uma decisão. À primeira vista, não parecia muito difícil (um psicopata, um agente alucinado capaz de produzir estragos consideráveis, um desertor potencial, um assassino), pois não lhes ficaria a pesar na consciência. Mas admitamos que se inteiraram ou suspeitaram de alguma coisa que punha tudo em causa.
- Jemia Karas - murmurou Halyard.
- Talvez. Ou uma comunicação ou informação de Havelock que contradizia a conclusão de que se tratava de um maníaco e demonstrava ser um indivíduo tão normal e lúcido como eles, envolvido num dilema terrível para o qual não contribuíra.
9 que corresponde à verdade, claro asseverou Brooks. A verdade - concordou Bradford. Que fariam?
- Pediam ajuda - opinou Halyard. - Um conselho.
- Orientação - acrescentou o embaixador.
- Ou, em termos práticos, sobretudo se os factos não estivessem bem definidos, alargavam o âmbito da responsabilidade da decisão - disse o subsecretário. - Horas depois, foi tomada, eles morreram... e não sabemos quem efectuou o telefonema final. Só temos a certeza de que se trata de alguém merecedor de confiança suficiente para lhe ser
relevado o código Ambiguidade. Esse homem tomou a decisão e telefonou para Roma.
- Mas Warren não registou a chamada - observou Brooks. - Porquê? Como foi possível?
- Da mesma maneira que nas ocasiões anteriores. Utiliza-se uma linha especial de um
complexo telefónico algures em Arlington, -a autorização é verificada por código e apresentado um pedido com base na segurança interna. Não pode haver registo escrito ou gravado ou qualquer referência à transmissão. Na realidade, trata-se de uma ordem.
O destinatário sente-se lisonjeado por ter sido escolhido por indivíduos que tomam decisões importantes por o considerarem mais merecedor de confiança que os que o rodeiam. E, no fundo, que importa? A origem da autorização pode ser determinada através do código, neste caso por intermédio do director das Operações Consulares, Daniel Stem. Só que morreu.
- E incrível - reconheceu Brooks, baixando os olhos para as suas anotações. - Um homem deve ser executado porque tem razão e, como a tentativa abortou, consideram-no responsável da morte daqueles que pretendiam eliminá-lo e apodam-no de assassino. E não sabemos quem deu a ordem oficialmente. Não conseguimos descobri-lo. Que espécie de pessoas somos?
- Homens que guardam segredos. - A voz provinha da retaguarda da plataforma, de onde surgiu o presidente dos Estados Unidos. - Desculpem, mas estive a observar, a ouvir. As vezes, é útil.
- Segredos, senhor presidente?
- Sim, Mal - aquiesceu Berquist, dirigindo-se para a sua cadeira. As palavras estão todas presentes: ultra-secreto, Apenas Olhos, Altamente Confidencial, Indispensável Autorização Clara, Proibida Duplicação, Autorização Acompanhada de Código de Acesso... tantas palavras. Varremos salas e linhas telefónicas com instrumentos que nos indicam se foram instalados dispositivos de gravação ou escuta e depois desenvolvemos sistemas destinados a neutralizar tudo isso e a canalizar informações para os nossos serviços. Interferimos transmissões de rádio, incluindo as via satélite, e aplicamos feixes de raios laser que transportam as palavras que pretendemos enviar. Colocamos uma tampa de segurança nacional sobre a informação que não desejamos divulgar ao público, para deixar transpirar fragmentos seleccionados e manter o resto inviolável. Revelamos a uma determinada agência ou departamento uma coisa e a outra algo de muito diferente, a fim de encobrir. um terceiro conjunto de factos: a verdade causadora de estragos. Na era mais avançada das comunicações, esforçamo-nos por falseá-las e utilizá-las da pior maneira. - Sentou-se, pousou os olhos na fotografia de Hany Warren e voltou-a. - Guardar segredos e deturpar o fluxo de informação rigorosa tomaram-se objectivos fundamentais na nossa tecnologia em expansão constante... das comunicações. Irónico, não lhe parece?
- Infelizmente, vital, na maioria dos casos - alegou Bradford.
- Talvez. Se pudéssemos ter a certeza, quando as aplicamos... Pergunto-me com
frequência (nas noites em que o sono não surge, como acontece amiúde) se enfrentaríamos este problema, na eventualidade de não termos tentado guardar um segredo, há três meses.
- As nossas opções eram extremamente limitadas, senhor presidente - lembrou o subsecretário, com firmeza. - Podíamos enfrentar coisas mais graves.
- Mais graves, Emory?
- Ou mais cedo. O tempo é o único elemento a nosso favor.
- E temos de aproveitá-lo até ao último minuto - admitiu Berquist, lançando uma
olhadela ao general e a seguir a Brooks. - Estão ambos ao corrente do que aconteceu nas últimas setenta e duas horas e da razão pela qual os chamei a Washington.
- Excepto do facto mais relevante - salientou o embaixador. - A reacção de Parsifal.
- Nenhuma - replicou o presidente.
- Então, ele não sabe - declarou Halyard com prontidão e ênfase.
- Se mandassem esculpir isso em pedra, eu dormia mais descansado.
- Quando contactou consigo pela última vez? - perguntou Brooks.
- Há dezasseis dias. Não merecia a pena informá-los, porque se tratava de mais uma exigência, tão arrojada como as anteriores e agora tão destituída de sentido.
- Não se registou nenhum movimento relacionado com as anteriores? - indagou o embaixador.
- Nada. Desde quinze dias atrás, canalizámos oitocentos milhões de dólares em bancos através das Bahamas, Caymari e América Central. Estabelecemos todos... - o presidente interrompeu-se e ergueu uma ponta da fotografia à sua frente, até que se tomou visível uma perna de calça ensanguentada - _todos os códigos e contracódigos que ele pediu, para que pudesse verificar os depósitos quando entendesse, e enviámos dinheiro para contas numeradas em Zurique e Berna, onde lhe são acessíveis. Não levantou um cêntimo e, à parte três verificações, não contactou de modo algum os outros bancos. O dinheiro não lhe interessa. Representa apenas um meio de confirmação da nossa vulnerabilidade. Sabe que faremos tudo o que exigir. - Tomou a calar-se e concluiu, em voz quase inaudível: Que Deus nos ajude.
Seguiu-se um silêncio prolongado, que parecia contribuir para confirmar a aceitação do inconcebível, até que o general consultou as suas notas e ergueu os olhos para o subsecretário.
- Há um ou dois buracos nisto. Pode preenchê-los?
- Quando muito, posso especular. Mas, para tal, temos de retroceder no tempo. Antes de Roma.
- Costa Brava? - perguntou Brooks, com uma ponta de desdém.
- Ainda mais longe. Ao momento em que reconhecemos que tinha de haver uma Costa Brava.
- Aceito a correcção - afirmou em tom glacial. - Continue.
- Remontemos ao dia em que nos inteirámos de que foi o próprio Matthias; quem iniciou a investigação de Jetina Karas. Foi o insigne estadista, e não os seus colaboradores, quem compilou elementos fornecidos por informadores anónimos, fontes tão aprofundadas nos serviços secretos soviéticos que a simples especulação sobre as suas identidades equivalia a comprometer as nossas operações.
- Não seja tão modesto, Emory - interrompeu o presidente. - Não fomos nós que nos inteirámos de que se tratava de Matthias, mas você. Teve a perspicácia de passar por cima do "insigne estadista", como lhe chama.
- Com uma sensação de amargura. Foi o senhor presidente quem exigiu a revelação da verdade a um dos seus colaboradores, no Gabinete Oval, e ele acedeu. Declarou que não conheciam a origem da informação. Apenas que o próprio Matthias. a divulgara.
- Para sermos justos, senhor presidente - observou Brooks -, a sua intenção consistiu em não o iludir. Estava convencido de que tinha razão.
- Do que estava convencido era de que devia ser ele a sentar-se na minha cadeira, no meu lugar! E ainda está! A sua megalomania não tem limites. Siga, Emory.
- Concluímos que o objectivo de Matthias era obrigar Havelock a abandonar a actividade, recuperar o seu antigo aluno e um dos melhores agentes externos das Operações Consulares. Analisámos o assunto, então, sem apurarmos o verdadeiro motivo, que continuamos a ignorar.
- Mas concordámos, porque não sabíamos com o que lidávamos - sublinhou Berquist. - Um agente no estrangeiro que não queria continuar ou uma fraude... pior que uma fraude. Um lacaio de Matthias, disposto a assistir ao assassínio de uma mulher, a fim de poder trabalhar para o @< insigne estadista". E o trabalho que podia executar! ... O emissário internacional de São Matthias. Ou seria o imperador Matthias, chefe de todos os Estados e territórios da república?
- Então, Charley. - Halyard tocou no braço do presidente, gesto a que nenhum dos outros homens presentes se atreveria. - São coisas que já lá vã o. Não é por isso que estamos aqui.
- Se não fosse o filho da mãe do Matthias, não precisávamos de estar aqui! Confesso que tenho dificuldade em esquecê-lo. E talvez aconteça o mesmo ao mundo, um dia... se restar alguém com boa memória.
- Podemos voltar à infinitamente mais ominosa crise? - sugeriu Brooks, com brandura.
O presidente reclinou-se na cadeira, fitou o embaixador e em seguida o velho general.
- Quando Bradford me procurou e convenceu de que existia um caso obscuro aos mais altos níveis do Estado, que envolvia Anthony Matthias, pedi que os chamassem, e só aos dois. Pelo menos, para já. De facto, não sabíamos, e continuamos a não saber, por que razão ele queria Havelock afastado da actividade. No entanto, Emory trouxe-nos o cenário.
- Um cenário incrível - admitiu Bradford, pousando as mãos nos documentos, porque já não necessitava de os consultar. - A maquinação que Matthias; congeminou contra Jerma Karas constitui um estudo de inventiva meticulosa. Um terrorista arrependido da Baader-Meinhof entrega-se subitamente para que lhe perdoem, com a condição do cancelamento da sentença de morte e de um refúgio seguro em troca de informações valiosas. Bona concorda, com relutância, e nós tragamos a história. A mulher que forma equipa com um agente das Operações Consulares em Barcelona é na realidade membro de KGB. Descreve-se um método de transferência de ordens, que envolve a entrega de uma chave, por meio da qual é localizada uma pequena mala de viagem no cacifo alugado de um aeroporto, a mala dela, que contém todas as provas necessárias para a condenar: análises pormenorizadas das actividades a que se dedicou com Havelock nas últimas cinco semanas, resumos de informações confidenciais enviadas por ele ao Departamento de Estado e cópias dos códigos e frequências de rádio correntes. Havia igualmente instruções de Moscovo e o código do KGB que ele devia utilizar, na eventualidade de precisar de contactar o Sector Noroeste daquela organização. Experimentámo-lo e obtivemos resposta, o que confirmou a sua autenticidade.
Brooks ergueu a mão esquerda uns simples centímetros, próprio de quem estava habituado a dominar as atenções, e explicou:
- O general Halyard e eu estamos familiarizados com a maior parte do que acaba de referir, embora não com as minúcias. Depreendo que existe um motivo concreto para * recapitulação.
- Sem dúvida, senhor embaixador - assentiu Bradford. - Refere-se a Daniel Stem.
- Já agora, esclareça-me uma coisa - interpolou Halyard. - Como verificaram * código do KGB?
- Utilizando as três frequências marítimas básicas daquela área do Mediterrâneo. É uma maneira de proceder rotineira para os soviéticos.
- Parece-me um método um tanto ingénuo da parte deles.
- Não sou perito na matéria, general, mas penso precisamente o contrário. Estudei o nosso e não me convenci de que era mais eficiente. As frequências que escolhemos são, em geral, as mais fracas, nem sempre claras e facilmente interferidas, quando descobertas. Ora, ninguém se lembra de manipular a banda marítima, e os códigos circulam com maior ou menor facilidade.
- Está bem informado - disse Brooks.
- Frequentei alguns cursos acelerados, nos últimos três meses. Graças a uma ordem interna do senhor presidente, pude também contar com os melhores cérebros da comunidade dos serviços secretos.
- O motivo dessa ordem não foi explicado - esclareceu Berquist. - Siga, Ernory. Verificou, pois, que o código do KG13 era autêntico.
- Tratava-se do documento mais comprometedor do conteúdo da mala e não podia ter sido forjado. Por conseguinte, o nome de Jerina Karas seguiu para a engrenagem da Central Intelligence Agency... uma engrenagem muito profunda. - Bradford fez uma pausa. -
Foi neste ponto da história que entrei em cena. Não pedi que me incluíssem. Fui procurado por homens com os quais trabalhara durante a administração Jolinson... e no Sueste Asiático.
- Resíduos da benevolente AlD do Vietriame que continuaram na CIA? - inquiriu Halyard, com um sorriso sardónico.
- Exacto - redarguiu o subsecretário, sem a mínima inflexão de desculpa. - Dois homens cuja vasta experiência de operações secretas (favoráveis e desfavoráveis) lhes permitiram tomar-se aquilo a que se chama controladores de fontes de informação destinada a agentes infiltrados no aparelho soviético. Uma noite, telefonaram-me para casa e convidaram-me para lhes ir fazer companhia num bar das proximidades. Quando aleguei que era um pouco tarde, aquele que fez a chamada salientou que também se estava a fazer tarde para eles e Berwyn Heights ficava muito longe de McLean e Langley. Compreendi a alusão e compareci.
- Desconhecia isso - acudiu o embaixador. - Devo inferir que esses homens o procuraram directamente, em vez de seguirem as vias competentes?
- Exacto. Estavam muito apreensivos.
- Valha-nos a comunhão dos pecadores do passado - murmurou o presidente. -
Quando recorreram a essas vias competentes, procederam à nossa maneira. O que apuraram achava-se fora do seu pelouro e comunicaram-no superiormente. Abandonaram o palco e depositaram-no nas mãos de Bradford.
- A informação exigida acerca de Jerina Karas constituía uma investigação secreta básica - disse Halyard. - Por que ficaram apreensivos?
- Porque se tratava de um inquérito altamente negativo que pressupunha a pessoa em causa demasiado aprofundada, demasiado encoberta, para que a CIA a pudesse detectar. Seria considerada culpada independentemente das provas apresentadas.
- Nesse caso, foi a arrogância que os impressionou? - aventou Brooks.
- Não, pois estão habituados a encontrá-la, no Departamento de Estado. O que os deixou apreensivos foi o facto de a suposição poder não corresponder à verdade. Alcançaram cinco fontes diferentes em Moscovo, nenhuma ciente da existência das outras: toupeiras que tinham acesso a todos os ficheiros negros do KG13. Todas as sondagens resultaram negativas. Jetina Karas estava "limpa", mas alguém do Departamento de Estado queria-a " Suja". Quando um dos homens efectuou um telefonema de rotina destinado a um colaborador de Matthias, a fim de obter mais elementos das Operações Consulares, foi-lhe respondido simplesmente que enviasse um relatório com o que apurara, ainda que insignificante ou nulo, pois o Departamento já possuía tudo o que necessitava. Por outras palavras: ela estava condenada, independentemente do resultado do inquérito da CIA, e os dois investigadores ficaram com a impressão de que tudo o que enviassem seria arquivado. Não obstante, Jerina Karas nunca pertenceu ao KGB.
- Como explicaram os seus amigos o código do KGB encontrado na mala? - quis saber o general.
- Foi fornecido por alguém de Moscovo - replicou Bradford. - Alguém que trabalhava com ou para Matthias.
Uma vez mais, o silêncio sugeria o inconcebível, de novo quebrado por Halyard:
- Eliminámos essa hipótese!
- Gosto de a recordar - retorquiu o subsecretário de Estado.
- Explorámo-la até à exaustão - referiu Brooks. - Tanto prática como conceptual~ mente, a teoria não se reveste do mínimo mérito. Matthias acha-se ligado inexoravelmente a Parsifal: um não pode existir sem o outro. Se a União Soviética suspeitasse sequer da sua existência, dez mil ogivas múltiplas estariam em condições de destruir metade das nossas cidades e todas as instalações militares. Os russos ver-se-iam obrigados a lançá-las. Dispomos de penetração dos nossos serviços secretos para nos prevenirem de semelhantes preparativos, e não foi recebida a mínima informação nesse sentido. Como referiu há pouco, Mr. Bradford, o factor tempo é a única coisa a nosso favor.
- Continuo a afirmá-lo, senhor embaixador. Em todo o caso, o código do KGB foi parar ao conjunto de provas forJadas contra Jerma Karas, embora ela estivesse " limpa". Não acredito que fossem para vender.
- Porquê? - inquiriu o general.
- Um código daqueles, nunca. Ninguém compra um código que é alterado periodicamente, nos momentos mais inesperados.
- Onde pretende chegar? - acudiu Halyard.
- Alguém de Moscovo tinha de o fornecer - afirmou Bradford, elevando a voz. Podemos estar mais perto de Parsifal do que pensamos.
- Qual é a sua tese? - Brooks inclinou-se para a frente e apoiou os cotovelos na mesa.
- Há quem tente descobrir Parsifal tão ansiosamente como nós... e pelos mesmos motivos. Encontra-se aqui, em Washington, e pode ser alguém que vemos todos os dias. Só sei que trabalha para Moscovo, e a única diferença entre ele e nós é que as suas pesquisas datam de há mais tempo . Inteirou-se da existência de Parsifal antes de nós - Bradford fez uma pausa. - É essa a razão da crise mais profunda que este país... o mundo jamais conheceu. Há uma toupeira em Washington que pode desequilibrar a balança do poder (do reconhecimento global básico da nossa superioridade física e moral, que significa poder), se chegar junto de Parsifal primeiro. E talvez o consiga, porque sabe quem é e nós não.
Capítulo décimo oitavo
O homem de sobretudo escuro e chapéu de aba puxada para a frente, que lhe dissimulava o rosto, apeou-se do cupé de dois tons e evitou com dificuldade a poça de água do lado da porta do condutor. Os sons da chuva nocturna ecoavam por todos os lados do parque de estacionamento deserto na margem do rio Potomac. O homem introduziu a mão na algibeira, puxou de um isqueiro de ouro de butano e acendeu-o, para o apagar com prontidão e voltar a guardar, conservando a mão na algibeira. Aproximou-se do parapeito metálico e baixou os olhos para a vegetação encharcada e a faixa de lodo espesso que desaparecia na água negra. Em seguida, volveu o olhar para a margem oposta, onde as luzes de Washington se destacavam entre a cortina de chuva. Por fim, soaram passos atrás dele e virou-se.
Acercava-se um vulto, que usava um poncho de lona com os desenhos verdes e pretos característicos da camuflagem militar. Cobria-lhe a cabeça um pesado chapéu de cabedal e abas largas, que se podia considerar um cruzamento de Safari com Digger. O semblante por baixo aparentava pouco mais de trinta anos, com vestígios de barba e olhos inexpressivos pequenos. Estivera a beber, e o sorriso que se seguiu à saudação era tão grotesco como o seu conjunto.
Por último, endireitou-se, abriu a porta da ambulância, extraiu a pequena automática da algibeira e pousou-a no banco da frente, após o que meteu a mão no outro bolso e puxou de mais quatro ampolas, duas cheias e as outras vazias, cada uma das quais ostentava um pequeno rótulo com os dizeres:
Hospital Naval Bethesda Produto do Controlo de Segurança Conteúdo: C17 H, 9 N03 H20 MORFINA
Acabava de as depositar no sobrado do veículo, quando uma rajada de vento lhe arrancou o chapéu da cabeça. Com uma imprecação entre dentes, voltou-se e tratou de o recuperar.
Apesar da escuridão, notava-se-lhe perfeitamente a madeixa branca que partia da fronte e contrastava com os restantes cabelos negros ondulados. A cabeça encharcada representava apenas um dos motivos da sua irritação. O tempo começava a escassear. Na sua qualidade de subsecretário de Estado, Arthur Pierce teria de mudar de roupa e assumir um aspecto apresentável. Um homem da sua posição no Governo dos Estados Unidos não vagueava por áreas enlameadas sob chuva torrencial. Telefonaria a pedir a limusina, logo que chegasse a casa. Combinara tomar uma bebida com o embaixador britânico, pois surgira mais um problema relacionado com a OPEP.
Aquilo não correspondia ao que os seus correlegionários de Moscovo pretendiam, porém a possibilidade de se inteirarem de mais uma estratégia anglo-americana sobre o petróleo não podia ser desprezada. Toda a informação de semelhante natureza contribuía para aproximar a Voennaya do poder que procurava desde que lagoda iniciara as suas actividades, há mais de meio século. Todavia, somente o homem que não conseguiam encontrar e conhecia o segredo de Anthony Matthias poderia conduzir a Voennaya ao seu destino... para bem da Humanidade.
Arthur Pierce, criado numa herdade de lowa, mas nascido na aldeia russa de Ramenskoie, sentou-se ao volante do seu carro e ligou o motor, sob a chuva incessante. Não havia tempo para divagações, porque a charada nunca parava. Pelo menos, para ele.
O embaixador Addison Brooks fitou Bradford com estranheza.
- Afirma que essa toupeira conhece a identidade de Parsifal, sabia da sua existência antes de nós! Em que se baseia para dizer uma coisa tão surpreendente?
- Na Costa Brava - replicou o interpelado. - E nas últimas setenta e duas horas.
- Analisemo-las na sua sequência - determinou o presidente.
- Nas derradeiras horas da Costa Brava, foi fornecido a Havelock um transmissor de rádio, cujas calibrações de frequência tinham sido alteradas por técnicos da CIA em Madrid, os quais não faziam a mínima ideia da finalidade do aparelho ou de quem o utilizaria. Como sabemos, a operação da Costa Brava foi controlada por um homem chamado Steven MacKenzie, o agente de operações obscuras mais experiente da Central Intelligence Ageney. Portanto, a segurança estava garantida.
- Totalmente - interrompeu Berquist. - MacKenzie sucumbiu a uma trombose, três semanas depois de o fazermos sair de Barcelona. A morte não teve nada de suspeito.
O médico que assinou a certidão de óbito é merecedor da máxima confiança, além de que foi submetido a apertado interrogatório. MacKenzie morreu em resultado de causas naturais.
- Só ele conhecia todos os pormenores - prosseguiu Bradford. - Contratara dois homens e uma loura que falava checo e deveria gritar ao longe, na escuridão, durante a cena sinistra que se desenrolaria na praia. Tratava-se de traficantes de droga insignificantes e uma prostituta, interessados em arrecadar uma quantia substancial e pouco curiosos. Havelock enviou a sua mensagem pela rádio em código do KGB, destinada ao que supunha ser
uma unidade do Baader-Meinhof, numa embarcação ao largo. MacKenzie captou-a no seu
detector e fez sinal aos tripulantes para que avançassem. Alguns minutos mais tarde, Havelock viu o que se pretendia que visse... ou julgou ver. A operação da Costa Brava terminara...
- Volto a salientar que o general Halyard e eu estamos ao corrente dos pormenores essenciais - disse o embaixador, com impaciência.
- Terminara e, à parte o senhor presidente e nós os três, ninguém estava ao corrente. MacKenzie estruturara-a em fragmentos e nenhum grupo sabia o que o outro fazia. A única versão que divulgámos foi a da agente dupla desmascarada, sem relatórios secretos nem processo confidencial que a contradissessem. E, com a morte dele, desapareceu a última pessoa do exterior conhecedora da verdade.
- O último homem, talvez - corrigiu Halyard. - Mas não a última mulher. Jenna Karas estava ao corrente. Escapou-se e sabia a verdade.
- Sabia apenas o que lhe fora revelado, e fui eu que falei com ela, no hotel de Barcelona. A história que se lhe divulgou tinha uma dupla finalidade. Em primeiro lugar, assustá-la, para que fizesse exactamente o que lhe exigíssemos, no intuito de lhe salvam-nos a vida. Em segundo, induzi-Ia a deixar-se dominar pelo pânico, de modo que impressionasse Havelock, convencendo-o de que era na verdade uma agente do KGB. Se obedecesse às minhas instruções, não correria perigo. Ou, se conseguíssemos encontrá-la, não fugiria agora dos homens que têm de a matar (e liquidar Havelock), para que a verdade sobre a Costa Brava não transpire. Porque eles conhecem a verdade.
O embaixador Brooks assobiou em surdina, num tom grave, crescente, produzido por um homem sinceramente surpreendido.
- Chegámos às últimas setenta e duas horas, que principiaram com um telefonema de origem indetectada destinado a Roma, precedido de um código de autorização estabelecido por Daniel Stem.
- Exacto. Col des Moulinets. Li a descrição da ligação no relatório do agente registador, mas era muito confusa. Apenas formas obscuras, sombras. No entanto, as coisas tomaram-se mais claras na sequência do seu depoimento desta noite.
- Um homem chamado Ricei, que ele nunca vira, e dois peritos de demolições sobre os quais nada sabia - observou Brooks.
- E uma explosão maciça que deflagrou doze minutos depois do tiroteio junto da ponte
- volveu Bradford. - A seguir, a sua descrição da mulher como uma @<aguIha" para os soviéticos, implantada por Moscovo, à qual se podia restituir, para que aprendesse a lição.
- O que não correspondia à verdade - acudiu Halyard. - A bomba destinava-se ao carro em que ela seguia. Quantas pessoas matou? Sete, na estrada de acesso à ponte? Era suficientemente potente para pulverizar o veículo e todos os ocupantes. E os nossos enviados não sabiam de nada.
- Graças à acção de um homem chamado Ricci, um corso que ninguém conhecia, e dois indivíduos de apoio, na realidade peritos de explosivos. Foram enviados por Roma, mas os dois que escaparam com vida nunca tentaram contactar a embaixada, o que, segundo o nosso agente, não constitui maneira de proceder normal. Não se atreveram a regressar a Roma.
- Foram enviados por nós, mas não pertenciam aos nossos - frisou o presidente. Contratou-os separadamente a mesma pessoa que fez o telefonema indetectável de Washington para Roma. Ambiguidade.
- A mesma pessoa que conseguiu contactar alguém de Moscovo e obter um código do KGB autêntico... pois não se esperaria nada inferior a isso de Havelock. Alguém que conhecia a verdade acerca da Costa Brava e estava tão ansioso, porventura tão desesperado, como nós por manter tudo secreto.
- Porquê - inquiriu o general.
- Porque, se examinássemos todos os aspectos da operação, podíamos descobrir que ele se achava envolvido.
O presidente e Halyard reagiram como se acabassem de se inteirar de uma morte inesperada. Somente Brooks permaneceu impassível, observando Brafford com curiosidade, um espírito acutilante que reconhecia a presença de outro.
- É uma conjectura arrojada - comentou finalmente o general.
- Não me ocorre outra explicação - admitiu Bradford. - A execução de Havelock fora sancionada e a sanção compreendida mesmo por aqueles que respeitavam o seu
passado. Tomara-se um "psicopata", um assassino, perigoso para todos os agentes em actividade. Mas por que havia necessidade de fazer com que a mulher de Col des Moulineis atravessasse a fronteira? Por que se insistiu em que se tratava de uma "agulha"? Por que razão devia a sua fuga constituir uma lição para os soviéticos, quando, entretanto, uma
bomba preparada para explodir poucos minutos depois a faria desaparecer da face da Terra?
- Para manter a ilusão de que morrera na Costa Brava - aventurou Brooks. - Se continuasse viva, pediria asilo e revelaria o que sabia, porque não teria nada a perder.
- Fazendo com que os acontecimentos daquela noite fossem reexaminados - acrescentou o presidente, completando o raciocínio. - Tinha de ser liquidada longe da ponte, para preservar a mentira de que morrera na Costa Brava.
- E a pessoa que fez o telefonema autorizando a execução de Havelock, por meio do código Ambiguidade, e mandou Ricci e os dois especialistas de explosivos para Col des Moulinets, através de Roma, encontrava-se na praia, naquela noite? - perguntou Halyard, enrugando a fronte.
- Tudo o leva a crer.
- Mas porquê?
- Porque sabe que Jerina Karas está viva - replicou Brooks, continuando a fitar BradfÓrd. - Pelo menos, está ao corrente de que não morreu na Costa Brava. _ Não passa de especulação. O assunto talvez se mantivesse mais ou menos em segredo, mas procuramo-la há quase quatro meses.
- Sem nunca admitirmos que era ela ou mesmo que estava viva - salientou BradfÓrd. - O alerta destinava-se a uma pessoa e não a um nome. Uma mulher cuja experiência como agente poderia conduzir a indivíduos para os quais trabalhara no passado sob numerosas identidades. A ênfase concentrava-se no aspecto físico e nas línguas que dominava.
- O que não posso aceitar é a sua conclusão. - Halyard abanou a cabeça, gesto de um
estratego militar que vislumbra um ponto fraco numa manobra de campanha. - MacKenzie organizou a operação da Costa Brava em fragmentos separados e só prestava contas a você. A CIA de Langley ignorava o que se passava em Madrid, e Barcelona achava-se afastada de ambos. Nessas condições, como podia alguém penetrar no que não existia? A menos que suponha que MacKenzie deu com a língua nos dentes ou comprometeu a operação com algum deslize.
- Nem uma coisa nem outra, na minha opinião. - O subsecretário fez uma pausa. Penso que o homem que utilizou o código Ambiguidade já se achava envolvido com Parsifal há meses. Sabia no que se devia concentrar e alarmou-se quando Havelock foi enviado a Madrid com uma segurança Quatro Zero.
- Alguém com a máxima liberdade de movimentos aqui, em Washington - acudiu o embaixador. - Alguém com acesso a memorandos confidenciais.
- Exacto. Conservava-se ao corrente das actividades de Havelock e compreendeu que acontecia alguma coisa. Assim, meteu-se num avião com destino a Espanha, localizou-o em Madrid e seguiu-o até Barcelona. Eu encontrava-me lá e MacKenzie também. É quase
certo que me reconheceu e, como estive com MacKenzie por duas vezes, podemos concluir que nos viu juntos.
- Nesse caso, podemos igualmente deduzir que Moscovo possuía um processo sobre MacKenzie suficientemente volumoso para alarmar os serviços secretos soviéticos. -
Brooks inclinou-se para a frente, tomando a concentrar-se em Bradford. - Uma fotografia enviada ao KGB, e o homem que procuramos e os viu juntos em Barcelona ficou inteirado de que havia uma operação obscura em acção.
- Sim, podia ter acontecido como indica.
- Com longas conjecturas de sua parte - referiu Halyard.
- Creio que o subsecretário de Estado ainda não terminou, Mal. - O embaixador indicou com um movimento de cabeça os documentos que Bradford acabava de separar e consultava. - Duvido que deixasse a imaginação vaguear por regiões tão exóticas sem um
motivo de peso. Acertei?
- Sim, substancialmente.
- Por que não um "sim" simples?
- Muito bem - aquiesceu Bradford. - Talvez me pudessem levar a julgamento pelo que fiz naquela tarde, mas considerei-o essencial. Tinha de me afastar dos telefones e de eventuais interrupções, para reler parte deste material e estimular a imaginação que possuo. Dirigi-me aos ficheiros confidenciais das Operações Consulares, peguei o sumário de Havelock sobre a operação da Costa Brava, intitulada "Terapêutica Quín-úca", e levei-o para casa. Estive a estudá-lo desde as três horas... e tendo presente o relatório verbal de MacKenzie no seu regresso de Barcelona. Ora, detectei discrepâncias.
- Em que sentido? - inquiriu Brooks.
- Entre o que MacKenzie planeou e o que Havelock viu.
- Ele viu o que queríamos que visse - alegou o presidente. - Você mesmo sublinhou o facto, há pouco.
- Pode ter visto mais do que pensamos, mais do que MacKenzie concebeu.
- MacKenzie achava-se presente - argumentou Halyard. - A que diabo se refere?
- Encontrava-se aproximadamente a setenta metros de Havelock, dispondo apenas de uma visão periférica da praia. Preocupava-se mais com as reacções de Havelock do que com o que se desenrolava na areia a seus pés. Ensaiara a cena várias vezes com os dois homens e a loura. Segundo essas sessões, tudo decorreria perto da água, para que os tiros fossem disparados para a rebentação e a mulher caísse na parte molhada da praia. Assim, o
corpo rolaria com as ondas, nas proximidades da embarcação. A distância, a escuridão... em suma, todos os pormenores do cenário haviam sido estudados para acentuar o efeito.
- Visualmente convincente - concordou Brooks.
- Muito. Mas não foi isso que Havelock descreveu. O que viu era infinitamente mais convincente. Sob a acção de produtos químicos da clínica da Virgínia, reproduziu praticamente toda a experiência, incluindo o trauma que fazia parte dela. Referiu-se a balas que se
embebiam na areia, enquanto a mulher corria em direcção à estrada e não ao longo da rebentação, e a dois homens que levaram o corpo. Dois homens.
- Eram os que tinham sido contratados - disse Halyard, perplexo. - Onde está o problema?
- Um tinha de ficar na embarcação, a uns dez metros da praia, com o motor em
movimento. Competia ao segundo disparar os tiros, puxar a mulher para a água e colocar o "cadáver" a bordo. A distância, a escuridão e o foco de uma lanterna faziam parte da encenação de MacKenzie, que ensaiara com as três pessoas contratadas. No entanto, a
presença da lanterna é o único factor comum entre o que foi planeado e o que Havelock viu. Não assistiu à representação de uma farsa, mas ao verdadeiro assassínio de uma mulher.
- Santo Deus... - murmurou o general, reclinando-se na cadeira.
- MacKenzie não fez a menor alusão a isso? - perguntou Brooks.
- Creio que não se apercebeu. A única coisa que me disse foi: <@Os meus empregados devem ter promovido um espectáculo impressionante. " Conservou-se na colina sobranceira à estrada durante algumas horas, concentrado em Havelock, e só se retirou ao amanhecer, para se certificar de que este não o via.
- Por conseguinte - proferiu o embaixador, levando a mão direita ao queixo o homem que procuramos, que puxou o gatilho na Costa Brava, que recebeu o código Ambiguidade de Stem e que considerou Havelock "irrecuperável" é um agente soviético instalado no Departamento de Estado.
- Assim parece - confirmou Bradford.
- E procura Parsifal tão desesperadamente como nós - concluiu o presidente.
- Em todo o caso, se estou a abarcar bem o seu raciocínio, existe uma incoerência enorme - tomou Brooks. - Não transmitiu a sua surpreendente informação aos controlos normais do KGB, de contrário sabê-lo-íamos.
- Não só a guardou para si, como induziu deliberadamente em erro um dos directores do KGB. - BradfÓrd pegou numa das folhas e colocou-a respeitosamente diante do homem sentado à sua direita. - Reservei isto para o fim. Não, note-se, para os chocar, mas apenas porque não faria o mínimo sentido, se não encarássemos tudo o resto segundo a óptica apropriada. Para ser franco, não estou muito certo de entender bem a situação. Trata-se de um telegrama assinado por Pyotr Rostov, em Moscovo, director das Estratégias Externas do KGB.
- Um telegrama dos serviços secretos soviéticos? - estranhou Brooks, pegando no papel -
- Ao contrário do que muita gente pensa, os estrategos de serviços secretos adversários estabelecem contacto com certa frequência. São homens práticos envolvidos numa profissão prática letal. Não se podem permitir lapsos devidos a informações falsas. Segundo Rostov, o KGB não teve a mínima interferência no episódio da Costa Brava e quis que o soubéssemos. A propósito, o coronel Baylor refere no seu relatório que Rostov procurou Havelock em Atenas, e, embora tivesse possibilidades de o levar para a Rússia, através dos Dardanelos, não o fez.
- Quando recebeu isto? - indagou o embaixador.
- Há vinte e quatro horas - interpôs o presidente. - Estivemos a estudá-lo, em busca de algum elemento nas entrelinhas. É óbvio que não tem resposta.
- Leia o telegrama, Addison - solicitou Halyard.
- Está endereçado a D. S. Stem, director das Operações Consulares, Departamento de... - Brooks ergueu os olhos para Bradford. - Stem foi assassinado há três dias. Rostov não estaria ao corrente?
- Se estivesse, não o enviava. Não permitiria a mínima especulação de que o KGB se achava envolvido na morte de Stem. Fê-lo, porque a ignorava... assim como a dos outros.
- Só divulgámos a de Miller - esclareceu Berquist. - Não era possível guardar segredo, porque todo o Hospital Bethesda se inteirou. No entanto, não revelámos nada quanto a Stem e Dawson, pelo menos para já, até averiguarmos o que na realidade aconteceu. Transferimos as respectivas famílias para o campo de segurança de Cheyenne, em Colorado Springs.
- Leia - insistiu o general. Brooks colocou a folha sob o clarão do candeeiro Tensor e iniciou a leitura em inflexão átona.
- @< A traição da Costa Brava não partiu de nós, assim como o engodo não foi engolido em Atenas. As infames Operações Consulares prosseguem nas suas acções provocatórias e a União Soviética continua a protestar contra o seu desprezo pela vida humana e os crimes e actos de terrorismo que visam inocentes: pessoas e nações, indistintamente. E se o famigerado ramo do Departamento de Estado americano supõe que tem colaboradores no interior das muralhas da Praça Dzerzhinsky, pode crer que esses traidores serão descobertos e punidos em conformidade com a gravidade dos seus actos. Repito que a traição da Costa Brava não partiu de nós. " - Pousou o papel na mesa, sacudiu a cabeça e murmurou: - Valha-nos Deus.
- Compreendo as palavras, mas não a mensagem que ele procura transmitir-nos confessou Halyard.
- " Mais vale um Satanás conhecido do que um desconhecido>@ - redarguiu Brooks. -
Não há muralhas na Praça Dzerzhinsky.
- É isso - afirmou Bradford, virando-se para o presidente. - Foi essa parte que nos
passou despercebida. As muralhas situam-se no Kremlin.
- Fora e dentro - continuou o embaixador. - Ele revela-nos que o episódio da Costa Brava não podia acontecer sem um colaborador ou colaboradores de Moscovo...
- Entendemos isso - atalhou o presidente. - E quanto às muralhas do Kremlin? Como interpreta essa passagem?
- É um aviso. Indica-nos que não sabe de quem se trata e, por conseguinte, não os pode controlar.
- Por se encontrarem fora das vias de comunicação normais? - inquiriu Berquist.
- E até das anormais - salientou Brooks.
- Uma luta pelo poder. - O presidente dirigiu-se ao subsecretário. - Houve alguma coisa de grave nesse sentido indicado nos nossos departamentos de actividades secretas?
- Apenas os atritos habituais. A velha guarda moribunda e os comissários jovens ansiosos e ambiciosos.
- Qual a posição dos generais? - perguntou Halyard.
- Metade quer fazer ir pelos ares Ornalia e a outra metade pretende o SALT Três.
- E Parsifal pode uni-los - lembrou Brooks. - As mãos de todos estender-se-iam para os botões das armas nucleares.
- Mas Rostov desconhece a existência de Parsifal - protestou BradfÓrd. - Não o concebe sequer...
- Pressente-o - tornou o embaixador. -Sabe que o caso da Costa Brava foi uma operação do Departamento de Estado em ligação corri elementos de Moscovo. Tentou referenciá-los e não conseguiu, o que o alarma profundamente. Existe um desequilíbrio, um desvio da normalidade nos altos níveis.
- Por que diz isso? - O presidente pegou na cópia do telegrama e examinou o texto, como se tentasse detectar o que anteriormente lhe escapara.
- Não está aí - explicou Bradford. - À parte o termo "engodo", que se refere a Havelock. Lembremo-nos de que não o levou de Atenas. Apercebe-se do relacionamento muito invulgar entre Michael Havelock e Anthony Matthias. Checo e checo, professor e aluno, na realidade sobreviventes, em muitos aspectos pai e filho. Onde termina um e principia o outro? Um deles ou ambos mantêm contacto com alguém de Moscovo? Os objectivos razoáveis podem ser postos de parte, como sugere o facto de não recorrerem às vias normais. Ainda não há muitos meses, especulámos sobre o mesmo assunto. Que fizera Matthias e qual a posição de Havelock? Criámos a operação da Costa Brava em virtude disso.
- Depois, Parsifal deu sinais de vida, e deixou de se revestir de importância - interpolou Berquist. - Ficámos encostados à parede. E continuamos, apesar de agora se poder dizer que há duas paredes, sempre de costas para elas, para onde quer que nos voltemos. As pesquisas para descobrir Parsifal conjugam-se com as destinadas a desmascarar outro homem. Alguém que nos vigia todos os movimentos. Uma toupeira soviética capaz de extrair um código sepultado nas entranhas de Moscovo e suficientemente eficiente para alterar o aspecto da operação da Costa Brava. Temos de o fazer desaparecer da face da
Terra! Se contacta com Parsifal antes de nós, ele e o louco que lhe dá ordens no Kremlin podem ditar as condições que quiserem a este país.
- Sabem onde está - disse o general. - Procurem-no. Encontra-se no Departamento de Estado, a um nível elevado, com acesso aos telegramas das embaixadas, sem dúvida muito próximo de Matthias. Porque, se acabei por abarcar tudo correctamente, foi quem incriminou Jerma Karas. Mandou colocar aquele código na sua mala.
- Penso que forneceu todo o conteúdo. - BradfÓrd meneou a cabeça com lentidão, ao mesmo tempo que arqueava as sobrancelhas, como se recordasse o impossível. - A mala, o informador do Baader-Meinhof, os nossos códigos e as instruções de Moscovo. Apareceu tudo em Barcelona, como por artes mágicas. E ninguém sabe de que maneira.
- Suponho que não adianta insistir junto de Matthias? - aventou Brooks.
- Absolutamente nada. Repete o que sustenta desde o princípio. "As provas eram irrefutáveis. O assunto foi-me entregue."
- Uma toupeira no Departamento de Estado! - explodiu Halyard. - Não deve ser muito difícil de desmascarar. Com quantas pessoas teria Stem falado? Que lapso de tempo esteve envolvido? Alguns minutos? Algumas horas? Tente reconstituir todos os seus movimentos.
- Os estrategos das Operações Consulares actuavam em sigilo total - declarou Bradford. - Não havia calendários de entrevistas ou de reuniões. Podia registar-se um telefonema a uma determinada pessoa lá de cima, que cancelava todos os seus compromissos para receber o estratego em causa, sem que jamais ficasse nada escrito sobre o encontro. Segundo os nossos cálculos, podia ter-se avistado com qualquer de setenta e cinco pessoas. E o número pode pecar por defeito. Existem autoridades no seio de equipas de especialistas e especialistas entre os considerados autoridades. A lista é interminável e todos esses indivíduos gozam de plena liberdade de movimentos.
- Mas estamos a falar do Departamento de Estado - referiu Brooks, com veemência.
- Um momento indeterminado, entre a última conversa de Stem com Roma e quatro horas mais tarde, quando foi transmitida a autorização a Col de Moulinets. Isso reduz consideravelmente a margem de possibilidades.
- O que não deve ter passado despercebido ao nosso homem - replicou o subsecretário. - Nessa conformidade, tomou as devidas precauções.
- Mas ninguém viu Stem? - persistiu o embaixador. - Julgo que efectuaram diligências nesse sentido?
- Com a maior descrição possível. Nenhum dos homens que interrogámos admitiu tê-lo visto nas últimas vinte e quatro horas do período que nos interessa, mas é claro que ninguém o confessaria
- Ninguém o viu? - inquiriu o general, com uma expressão de incredulidade.
- Bem, sim, alguém - reconheceu Bradford. - A recepcionista à entrada do quarto piso, Secção L. Dawson deixara uma mensagem para Stem, que a recebeu quando se dirigia para o elevador. Podia ter visitado qualquer dos setenta e cinco gabinetes desse andar.
- Quem os ocupava, na altura? - O embaixador sacudiu a cabeça quase imediatamente, como se reconhecesse a inutilidade da pergunta.
- Exactamente - confirmou o subsecretário de Estado, aceitando a atitude do outro.
- Não adiantou nada. Havia a indicação de que vinte e três pessoas não tinham saído, devido a reuniões, secretárias para tomar apontamentos e outras actividades mais ou menos de rotina. Foi tudo confirmado. Ninguém se ausentou da presença dos outros o tempo suficiente para efectuar o telefonema.
- Mas trata-se de um andar, com setenta e cinco gabinetes e outras tantas pessoas! -
exclamou o general. - Não são cento e cinquenta ou mil. Apenas setenta e cinco, e uma delas é a nossa toupeira! Principie pelas mais próximas de Matthias. Meta-as naquela famigerada clínica, se for necessário, até lhes extrair a verdade!
- Seria o pânico generalizado e a desmoralização de todo o Departamento de Estado -
advertiu Brooks. - A menos que... Existe alguma clique, um grupo em particular, íntimo dele?
- Não conhecem Matthias. - Bradford levou os dedos entrelaçados ao queixo, procurando as palavras adequadas. - É, em primeiro lugar, último e sempre, o dr. Matthias, professor, esclarecedor, provocador de pensamento. Trata-se de um poderoso Sócrates do Potomac, em busca de discípulos onde quer que os descubra, enaltecendo aqueles que vêem a luz e verberando os descrentes com o humorismo mais cáustico a que jamais assisti. É cruel, porém sempre disposto a proferir frases brilhantes de apoio. E, à semelhança da maioria dos autonomeados árbitros de uma élite, a arrogância toma-o instável como o demónio. A secção que lhe desperta a atenção toma-se no seu conjunto de rapazes e raparigas preferidos por uns tempos, até que se destaca outro grupo, adulando-o no momento apropriado, e passa a constituir a sua nova corte. Naturalmente, no último ano, as coisas agravaram-se, mas a tendência mantinha-se. - Esboçou um leve sorriso de embaraço. É claro que sou suspeito, pois fui admitido num desses círculos privilegiados.
- Por que lhe parece que o excluíram? - quis saber o embaixador.
- Não sei bem. Eu desfrutava de certa reputação, o que talvez lhe fosse desconfortável. No entanto, creio que a razão fundamental se devia ao facto de o observar atentamente. Sentia-me fascinado, o que lhe provocava desconforto. Os <@melhores e mais brilhantes@> foram conduzidos ao longo de muitos caminhos estranhos por indivíduos como ele. Alguns cresceram, e penso que Matthias; não aprovava essa maturação. O cepticismo surgia com ela. O salto toraista já não servia. A fé cega pode destruir a visão... e a perspectiva. -
Bradford inclinou-se para a frente, e fixou o olhar em Halyard. - Lamento, general, mas a minha resposta à vossa curiosidade é que não posso indicar um grupo concreto de íntimos do secretário de Estado ou garantia de que a toupeira seria capturada antes de entrar em pânico e fugir. E não podemos permitir que isso aconteça. Se conseguirmos descobri-lo, conduzir-nos-á ao homem ao qual chamamos Parsifal. Talvez o perdesse de vista temporariamente, mas sabe quem é.
O embaixador e o general conservaram-se silenciosos por uns momentos, até que se entreolharam e viraram de novo para Bradford. Halyard franziu o sobrolho, com uma expressão interrogativa no olhar. O presidente assentiu com uma inclinação de cabeça, levando a mão direita ao queixo e voltando-se para o subsecretário de Estado.
- Importa-se que tente reconstruir o novo cenário? - perguntou Brooks a Bradford. Por razões desconhecidas, Matthias necessitou organizar uma acusação irrefutável contra Jerina Karas, conducente ao abandono da actividade por parte de Havelock. Agora, em virtude do que fez, o secretário de Estado converteu-se num títere de Parsifal (na realidade, é seu prisioneiro), mas este sabe que, em obediência aos seus interesses, deve levar a cabo a obsessão de Matthias. Contacta um agente soviético instalado nos níveis elevados do Departamento de Estado e as provas acusadoras contra Jenna Karas são fornecidas, estudadas e aceites. Só que dois agentes da CIA vão ter consigo e afirmam que não podem corresponder à verdade e você entra então em cena. Na realidade, o presidente, alarmado por aquilo que parece constituir urna conspiração nas altas esferas, faz entrar todos nós em cena, pelo que recrutamos um agente de operações obscuras para montar a encenação da Costa Brava, a qual se converte em homicídio, e, segundo a sua tese, neste ponto a toupeira perdeu Parsifal de vista.
- Exacto. Parsifal obteve o que pretendia da toupeira, largou-a e ela ficou apavorada, pois decerto fizera promessas a Moscovo (baseadas em garantias de Parsifal) de que projectavam um desaire profundo para a diplomacia externa americana ou mesmo o seu colapso.
- Qualquer das hipóteses seria uma alternativa benevolente - observou o presidente.
- E quem possuir a informação contida nos documentos de Parsifal assumirá a chefia do
Kremlin - frisou Brooks, empalidecendo. - Estamos em guerra - acrescentou a meia-VOZ.
- Insisto em que vasculhe esses setenta e cinco gabinetes do Departamento de Estado
- disse Halyard. - Monte uma vassoura gigantesca. Chame-lhe quarentena medicinal. É um pretexto simples, mas eficiente, e até aceitável. Faça-o ao fim da tarde, quando eles concluírem o trabalho. Leve-os para os seus laboratórios. Descubra a toupeira! - Baixando a voz, em tom confidencial, concluiu: - Bem sei que cheira a esturro, mas não descubro nenhuma alternativa.
- Precisaríamos de duzentos homens intitulando-se médicos e respectivos motoristas
- alegou Bradford. - Entre trinta e quarenta veículos do Estado. Sem que nenhum dos componentes dessa legião conhecesse a verdadeira finalidade da diligência.
- Para não falar das famílias, vizinhos e "técnicos" que bateriam a portas durante a noite! - vociferou Berquist. - O grande filho da mãe! - Fez urna pausa para se dominar. - Não nos safávamos. Os rumores propagavam-se como um incêndio na floresta em pleno Verão. A Imprensa descobria tudo e chamava-nos aquilo que merecemos. Prisões maciças sem uma explicação (pois não podíamos fornecer nenhuma), interrogatórios sem culpa formada, tropas de choque... produtos químicos. Seríamos crucificados nos artigos de fundo de todos os jornais, enforcados em efigies em todas as universidades, denunciados em todos os púlpitos, comícios e manifestações, para não falar das interpelações cáusticas dos nossos adversários políticos. Eu próprio não escaparia à impugnação.
- E ainda mais importante que tudo isso, a agitação geral faria Parsifal entrar em pânico
- salientou o embaixador. - Compreenderia a finalidade das nossas intenções, quem pretendíamos desmascarar para chegar até ele, e poria em prática as suas ameaças, concretizaria o inconcebível.
- Pois é. Preso por ter cão e preso por não o ter.
- Podia resultar - persistiu o general.
- Procedendo correctamente, talvez, senhor presidente - concedeu Bradford.
- Mas como?
- Quem objectasse com veemência, ao ponto de se negar a comprazer-nos ou de fugir, seria provavelmente o nosso homem.
- Ou com culpas de outra natureza no cartório - alvitrou Brooks. - Vivemos na era da ansiedade, e esta cidade dispõe de uma intimidade muito relativa. Podíamos perfeitamente encurralar uma pessoa cujo crime encoberto não fosse além do ódio a um superior ou opinião desfavorável de urna decisão do Governo. Parsifal veria apenas o que a loucura lhe permitiria.
Bradford escutou-o com atenção, embora aceitasse as palavras do embaixador com
relutância, e redarguiu:
- Há outra hipótese que não tivemos tempo de pôr em prática. Uma investigação do itinerário. Indagar o paradeiro de cada pessoa daquele piso durante a semana da operação na Costa Brava. Se temos razão... se tenho razão, não se encontrava aqui, mas em Madrid e Barcelona.
- Deve ter-se protegido com as medidas adequadas - objectou Halyard.
- Em todo o caso, teria de explicar a ausência de Washington. Quantas ausências dessas poderá haver?
- Quando pode começar? - inquiriu Berquíst.
- Amanhã, às primeiras horas...
- Por que não esta noite? - interrompeu o general.
- Só se os ficheiros estivessem acessíveis. Como tal não acontece, teríamos de chamar alguém para abrir a porta da sala em que se encontram, o que suscitaria comentários indesejáveis.
- E, de manhã, como consegue evitá-los? - perguntou Brooks.
Bradford fez uma pausa antes de responder e baixou os olhos para a mesa, enquanto ponderava uma explicação.
- Estudo do tempo - replicou, erguendo a cabeça. - Direi a quem controla os ficheiros que se trata de um estudo de rotina acerca do tempo. Há sempre alguém ocupado em inquéritos desses.
- Aceitável - concordou o embaixador. - Banal e aceitável.
- Nada é aceitável - asseverou o presidente, fixando o olhar na tela, onde, uma hora antes, haviam sido projectados os rostos dos quatro estrategos assassinados. - @<O homem de todas as estações" é a designação que atribuem a Matthias. O original foi um intelectual, um estadista, o criador da Utopia... e um incendiário de hereges. Costumam esquecer-se desta última faceta. Xondenem os descrentes, que não vêem o que eu vejo. Sou inviolável. " Se pudesse, eu fazia o mesmo que o adiposo Henry a Thomas More. Cortava a cabeça a Matthias; e, em vez de na Torre de Londres, cravava-a no topo do monumento a Washington, como advertência, Os hereges também são cidadãos da república e, por conseguinte, homem santo, não pode haver heresia! Demónios o levem!
- Decerto sabe o que aconteceria, senhor presidente...
- Pois sei, senhor embaixador. O povo contemplava o pescoço ensanguentado e o rosto invariavelmente benigno (sem dúvida com os óculos de tartaruga intactos) e, na sua sabedoria infinita, afirmava que ele tinha razão. Os cidadãos, incluindo os hereges, canonizavam-no, e é essa a amarga ironia da questão!
- De qualquer modo, ele podia reaparecer em público e as aclamações repetiam-se. Ofereciam-lhe a coroa e, se recusasse, persistiam... até se tomar inevitável. Outra ironia. Não vitoriem César, mas António... uma coroação. Seria promulgada uma emenda à Constituição na Casa dos Representantes e no Senado, e o presidente Matthias sentar-se-ia no Gabinete Oval. Por incrível que pareça, talvez ainda o conseguisse. Apesar de tudo.
- Talvez devêssemos deixá-lo - considerou Berquist, com urna ponta de amargura. -
É possível que o povo, na sua sabedoria infinita, tenha razão. Quem sabe se a razão esteve sempre do lado dele. As vezes, hesito em traçar uma conclusão. Talvez veja coisas que escapam aos outros. Apesar de tudo o que se passou.
O estadista e o general abandonaram a sala subterrânea. Os quatro homens voltariam a reunir-se na tarde seguinte, apresentando-se separadamente através da entrada do Pórtico Sul, fora dos olhares perscrutadores do corpo de Imprensa da Casa Branca. Se, de manhã, houvesse desenvolvimentos surpreendentes nas pesquisas de Bradford, a hora do encontro seria antecipada e os compromissos do presidente cancelados. A toupeira desfrutava de prioridade máxima, pois podia conduzi-los a um louco ao qual o presidente e os seus conselheiros chamavam Parsifal.
- O nosso embaixador é impagável - comentou Berquist, numa inflexão onde se descortinava um misto de inveja e de respeito. - Deve ser o último dos originais.
- Com efeito, já não há muitos, e nenhum, que eu saiba, tão empenhado na integridade da pátria - assentiu Bradford. - Os impostos e a vasta democratização eliminaram-nos... ou alienaram-nos. Sentem-se desconfortáveis, o que, a meu ver, representa uma perda para o país.
- Não seja tão sepulcral, Emory, que não lhe fica bem. Precisamos deles. Os corretores do poder do Capitólio ainda o temem. Se alguma vez existiu uma réplica de Matthias, é Addison Brooks. O Mayflower e o Rochedo de Plymouth, os Quatrocentos de Nova Iorque e fortunas construí das nas costas dos emigrantes... conducentes ao sentimento de culpa dos herdeiros. Liberais benevolentes, que choram ao ver os estômagos inchados dos negros do delta do Mississipi. Mas, por amor de Deus, não levem o Château d'Yquem.
- Sim, senhor presidente.
- "Não, senhor presidente", quer você dizer. Leio-o nos seus olhos. Isso desenha-se sempre nos olhos. Não interprete mal as minhas palavras, pois admiro o nosso embaixador e
respeito o que se passa na sua cabeça, tal como penso que Halyard, " Corda Tensa", é uma das poucas relíquias militares que leram a Constituição e compreendem o significado real da autoridade. Não é que a guerra se revista de tanta importância que se deva deixar para os generais. Isso são tretas. Trata-de do fim das guerras, das sequelas da conflagração nuclear. Os generais sentem relutância em aceitar a primeira hipótese e não possuem o mínimo conceito da segunda. Halyard é diferente, e o Pentágono sabe-o. Os chefes do Estado-Maior escutam-no, porque possui mais experiência e discernimento que eles. E nós também o necessitamos.
Concordo. É no que se resume este cargo. Necessidade. Não simpatias e antipatias. Apenas necessidade. Se me tomar a apanhar em Mountain Iron, Minnesota, vivo e inteiro, pensarei então em gostar ou não de uma coisa. Mas, de momento, não posso. Tenho de me concentrar apenas no que necessito. E necessito de eliminar Parsifal, pôr termo ao que fez a Anttony Matthias. - O presidente fez uma pausa, imerso em cogitações. - Na verdade, o seu trabalho é digno de louvor, Emory.
- Obrigado.
- Em particular, aquilo que não revelou. Havelock. Onde está?
- Em Paris, quase sem margem para dúvidas, por ser o destino de Jenna Karas. Esta tarde, telefonei a algumas pessoas que conheço na Assembleia, no Senado, em vários ministérios, Quai d'Orsay e até à nossa embaixada. Apliquei pressão, deixando transparecer que recebera ordens da Casa Branca, mas sem mencionar o seu nome, senhor presidente.
- Podia mencioná-lo.
- Ainda é cedo. Talvez nunca o faça, mas de modo algum agora.
- Nesse caso, compreendemo-nos bem.
- Exacto. Necessidade.
- Halyard podia ter compreendido, porque é um militar prático, mas Brooks não. Sob o exterior diplomático existe um moralista ferrenho.
- Foi a conclusão a que cheguei e o motivo por que não me alonguei quanto à situação de Havelock.
- Mantém-se a mesma que em Col des Moulinets. Se divulgasse a verdade acerca da Costa Brava, Parsifal entrava em pânico mais rapidamente do que em reacção a tudo o que fizéssemos no Departamento de Estado. Havelock é a figura central... desde o princípio.
- Compreendo. Os olhos de Berquist tomaram a desviar-se para a tela ao fundo da sala.
- Durante a Segunda Guerra Mundial, Churchill teve de tomar uma decisão excruciante. O código alemão Enigma fora decifrado pelos serviços secretos Aliados, o que significava que as estratégias militares dimanadas de Berlim podiam ser interceptadas e centenas de milhares, talvez até milhões, de vidas salvas. Constou que fora planeado um ataque aéreo maciço a Coventry. Tratava-se de uma transmissão isolada, codificada através do Enigma. Ora, o conhecimento do facto, a evacuação da cidade ou mesmo a montagem de meios defensivos fora do comum revelariam que o código era do conhecimento dos Aliados... Coventry teve de ser parcialmente arrasada, para que o segredo não transpirasse. Portanto, o segredo da Costa Brava não pode ser divulgado pela mesma razão: estão em jogo milhares de vidas. Localize Havelock, senhor subsecretário. Localize-o e mande liquidá-lo. Restabeleça a ordem da sua execução.
Capítulo décimo nono
Havelock sabia que fora detectado: um jornal foi baixado abruptamente, quando ele passava pelo corredor de desembarque da Air France na sala do Aeroporto Kennedy, a fim de se dirigir ao balcão da imigração. A Alfândega não lhe levantara problemas, graças aos documentos fornecidos por Régine Broussac, que lhe conferiam um cargo diplomático e deveria destruir o mais depressa possível. Fazia-se acompanhar de uma pequena mala, com um rótulo em que se destacava a palavra Diplomatique aposta em Paris, e, depois de atravessar o corredor, deixá-lo-iam transpor a pesada porta metálica, mostrando simplesmente as credenciais das Nações Unidas e declarando que não tinha outra bagagem. No fundo, parecia muito simples.
Não obstante, como medida de protecção de Régine Broussac e, em última análise, dele próprio, devia desembaraçar-se dos documentos falsos que tomavam aquilo tudo possível. Além disso, precisava de averiguar quem baixara o jornal. O homem de faces cinzentas erguera-se lentamente do banco, dobrara o periódico debaixo do braço e encaminhara-se para a secção da sala que se prolongava paralelamente ao corredor e conduzia à discutível liberdade. Quem seria aquele indivíduo?
Se não conseguisse inteirar-se, subsistiriam fortes possibilidades de o matarem antes que pudesse estabelecer contacto com um homem chamado Jacob Handelman, o que não era admissível.
O funcionário da imigração era astuto e delicado e formulou as perguntas usuais com o olhar fixo em Havelock.
- Não tem outra bagagem?
- Non, monsieur. Apenas esta mala.
- Nesse caso, não tenciona permanecer muito tempo na Primeira Avenida?
- Um dia, quarenta e oito horas - replicou Michael, com um encolher de ombros gaulês. - Une conférence.
- Suponho que o seu Governo tomou providências para o transporte para a cidade. Não espera por quem o vem buscar?
- Queira desculpar, monsieur, mas obriga-me a ser franco. - Esboçou um sorriso de embaraço, como se a sua dignidade estivesse em jogo. - Tenho uma senhora à minha espera, e vemo-nos tão pouco... Talvez esteja anotado na sua informação. O ano passado, trabalhei na Primeira Avenida durante alguns meses. Confesso que anseio por voltar a vê-Ia, mon ami.
O funcionário retribuiu o sorriso com lentidão, ao mesmo tempo que verificava o nome e premia um botão.
- Boa estada entre nós.
- Muito obrigado - replicou Havelock, principiando a afastar-se. " Vivent les amours des genti1hommesfrançais", reflectiu, divertido.
O homem de rosto cinzento encontrava-se junto de uma série de cabinas telefónicas ocupadas e era o segundo da fila dos que aguardavam diante da terceira. O jornal, que se achava dobrado debaixo do braço, foi imediatamente removido e aberto. Não conseguira fazer o telefonema e, nas circunstâncias, constituía a cena mais agradável que se podia deparar a Michael.
Principiou a caminhar na direcção do homem e passou diante dele apressadamente, o olhar fixo na sua frente. Em seguida, cortou à esquerda para um amplo corredor cheio de passageiros que se dirigiam para as diferentes portas de embarque e depois virou à direita para uma passagem mais estreita, muito menos concorrida e apenas por funcionários uniformizados das várias companhias.
Tomou a enveredar pela esquerda, ao longo de um corredor também estreito, ainda menos frequentado, agora por homens de fato-macaco ou em mangas de camisa. Entrara numa secção destinada à carga, onde não se viam telefones, mas unicamente portas de vidro despolido largamente intervaladas.
Havelock avistou as instalações sanitárias dos homens, em cuja porta figuravam os dizeres: ENTRADA RESERVADA A FUNCIONÁRIOS DO AEROPORTO. Impeliu a porta de vaivém e entrou. Era uma sala espaçosa pavimentada com azulejos, com dois ventiladores na parede oposta e sem janelas. Havia uma fiada de cubículos à esquerda e lavatórios e mictórios à direita. Um homem de fato-macaco, com as palavras Excelsior Airlaine Caterers nas costas, encontrava-se imóvel diante do quarto mictório e naquele momento soou a descarga do autoclismo num dos cubículos. Havelock aproximou-se de um lavatório e pousou a mala por baixo.
O homem do mictório retrocedeu um passo, puxou o fecho do fato-macaco, lançou uma olhadela a Michael e foi lavar as mãos ao lavatório mais próximo.
Emergiu um segundo indivíduo de um cubículo, que acabava de apertar o cinto e se encaminhou para a porta. O rectângulo de identificação que usava no peito indicava que se tratava de um chefe de equipa de cargas e descargas.
O homem de fato-macaco arrancou uma toalha de papel de um suporte, secou as mãos apressadamente, reduziu-a a uma bola e atirou-a para um receptáculo ao lado, após o que saiu. Havelock acercou-se da porta antes que se fechasse e espreitou.
O vigilante desconhecido encontrava-se a uns quinze metros, encostado com naturalidade à parede, entretido a ler o jornal. De súbito, consultou o relógio e volveu um olhar para uma porta em frente. Quem o observasse, concluiria que aguardava a saída de um amigo para irem tomar urna bebida ou dirigirem-se a um motel próximo do aeroporto. Não havia nada de ameaçador no seu aspecto ou atitude, porém Michael detectou ameaça e profissionalismo na naturalidade com que se comportava.
Reflectiu que devia esforçar-se por evitar conduzir os perseguidores até Régine Broussae e um intermediário chamado Jacob Handelman . Assim, entrou num dos cubículos, rasgou-os em numerosos pedaços, lançou-os à sanita e carregou no botão do autoclismo. A seguir, com um canivete, arrancou o rótulo com a indicação de Diplomatique, que garantira a ausência de inspecção oficial da mala, e abriu-a, para extrair a automática Llania de entre a roupa e um passaporte que continha a sua documentação autêntica. Apresentada apropriadamente, podia considerar-se essencialmente inofensiva. No entanto, o objectivo consistia em não ter de a apresentar, e, com efeito, raramente era exigida nas ruas do seu país de adopção, uma das vantagens pelas quais se sentia muito grato.
No período em que destruiu os documentos falsos e colocou o passaporte e a pistola nos lugares adequados, as instalações sanitárias foram visitadas por mais dois homens, que entraram juntos - um comandante da Air France e o seu co-piloto, a avaliar pela natureza do diálogo -, e Michael conservou-se no cubículo. Urinaram, trocaram impressões sobre as exigências burocráticas que só serviam para fazer perder tempo e especularam sobre os lucros que obteriam no bar de L'Auberge au Coin, restaurante que aparentemente se situava em Manhattan, com os charutos de Havana que possuíam.
Depois de saírem, Havelock despiu o casaco, enrolou-o e aguardou, sem abandonar o cubículo, conservando a porta ligeiramente entreaberta. Quando consultou o relógio e verificou que tinham transcorrido cerca de quinze minutos, calculou que os acontecimentos não tardariam a precipitar-se.
Foi, de facto, o que ocorreu. A porta de vaivém abriu-se com lentidão, e ele avistou parte de um ombro e depois a extremidade de um jornal dobrado. O vigilante desconhecido era na verdade um profissional: em vez de conservar a arma na algibeira, ocultava-a debaixo do jornal, de onde a poderia extrair com maior facilidade.
O homem entrou em silêncio, esquadrinhou a sala com os olhos e, satisfeito, flectiu os joelhos, mas não para espreitar pelo espaço sob as portas dos cubículos mais próximos. Na realidade, conservava-se de costas para eles. Que tencionava fazer?
A actividade a que se dedicou a seguir fez acudir à memória de Havelock outro profissional: o louro de Col des Moulinets fardado de guarda fronteiriço. No entanto, Ricci estava preparado, por conhecer antecipadamente o cenário em que actuaria, ao passo que o indivíduo de rosto cinzento necessitava improvisar. Não obstante, isso não pareceu provocar-lhe o menor embaraço. Munira-se de um pequeno pedaço de madeira pouco espesso, que tratou de fixar na parte inferior da porta de entrada. Por fim, exerceu pressão nela e verificou com satisfação que não se movia, após o que se virou para dentro.
Havelock estudou-o, postado no cubículo. A ameaça, pelo menos à primeira vista, não residia no equipamento físico do homem, o qual aparentava uns cinquenta anos, com cerca de um metro e setenta centímetros de altura e ombros estreitos, embora maciços. De repente, porém, reparou na mão esquerda - a direita achava-se oculta debaixo do jornal , e verificou que era pesada como a de um camponês, calejada por anos de trabalho com objectos e equipamento pesado.
O homem começou a mover-se ao longo dos cubículos, a um metro das portas, para poder espreitar pelo espaço inferior e inteirar-se se estavam ocupados, e como calçava sapatos com rastos de borracha, não produzia o mínimo som. De súbito, fez a mão direita descrever um círculo, para sacudir o jornal, e Havelock viu que empunhava uma automática, enquanto se aproximava dos três últimos cubículos. Exibia uma expressão rígida, mas cautelosa, e a arma era uma Graz-Burya. Por fim, o russo inclinou-se para a frente.
Agora. Michael atirou o casaco enrolado por cima do cubículo, para o lado direito,
e o som obrigou o outro a dar um salto, rodar para a esquerda e erguer a arma ao nível da cintura.
Em movimentos simultâneos, Havelock pegou na mala e abriu a porta com brusquidão, atingindo com ela o indivíduo de rosto cinzento, ao mesmo tempo que lhe arrancava a Graz-Burya da mão. Em seguida, torceu-lhe o braço até que as faces do russo se contraíram num esgar de dor, e completou o trabalho agredindo-o na cabeça com o cano da automática. No momento em que começava a desequilibrar-se, impeliu-o para a série de mictórios, onde acabou por deslizar para o chão, ficando ajoelhado e apoiado na mão direita, enquanto conservava o braço esquerdo dobrado sobre o peito, numa tentativa para atenuar a sensação pungente.
- Nyet, nyet - balbuciou, ofegante. - Conversar! Só conversar!
- Com a porta encravada, para que ninguém entre, e uma pistola na mão?
- Concordava em conversar, se o procurasse e me apresentasse? Talvez em russo...
- Podia ter experimentado.
- Importa-se? - O russo ergueu uma perna, enquanto pedia autorização para se pôr de Pé.
- Não, mas cuidadinho - replicou Havelock, conservando a Graz-Burya apontada. Há pouco tentou telefonar.
- Com certeza. Para comunicar que o tinha localizado. Que faria no meu lugar? Ou provavelmente é melhor não perguntar.
- Que sabe? Como me descobriu? - Levantou a arma e apontou-a à cabeça do outro.
- Aconselho-o a dizer a verdade. Não tenho nada a perder, se encontrarem o seu cadáver aqui.
O russo fixou o olhar no cano e em seguida em Havelock, antes de admitir:
- Pois não. Acredito que não hesitaria em disparar. Deviam ter enviado um homem mais jovem.
- Como sabia que eu vinha naquele avião?
- Não sabia. Ninguém sabe nada em parte alguma... Um agente da VKR foi atingido a tiro em Paris e teve de recorrer a nós.
- Uma firma importadora no Beaumarchais? A sede do KGB em Paris?
- Sabíamos que tinha conhecimentos no Governo francês - prosseguiu, ignorando a interrupção. - Serviços secretos militares, Quai d'Orsay, deputados... Se tencionava abandonar a França, só podia utilizar um meio: imunidade diplomática. Portanto, foram vigiados todos os voos da Air France com funcionários diplomáticos nas linhas de passageiros. Em toda a parte. Londres, Roma, Bona, Atenas, Holanda, toda a América do Sul ' etc. Para minha infelicidade, decidiu voltar para cá, ao contrário do que se esperava, devido à sua situação de "irrecuperável".
- É uma informação aparentemente divulgada por todo o planeta.
- Sim, foi posta a circular em determinados círculos.
- Era acerca disso que queria conversar? Porque, em caso afirmativo, Moscovo desperdiça muitos homens-hora em todos esses aeroportos.
- Sou portador de uma mensagem de Pyott--- Rostov. Está convencido de que, depois do que aconteceu em Roma, não se negará a escutar.
- Roma? Explique-se melhor.
- O Palatino. O episódio deve ter sido concludente para si. Queriam liquidá-lo aí.
- Parece-lhe? - Havelock observava o russo atentamente. Rostov achava-se inteirado do que sucedera no Palatino, circunstância, aliás, previsível. Haviam sido encontrados corpos: o cadáver de um antigo agente americano e os seus dois "zangãos" feridos, os quais não tinham nada a perder e alguma coisa a ganhar se revelassem a verdade. Moscovo decerto estava a par de tudo. No entanto, Rostov desconhecia o papel representado por Jerina Karas e Col des Moulinets, de contrário incluí-los-ia no seu engodo inicial. Em circunstâncias diferentes, poderia tomar-se necessário pronunciar rapidamente as palavras: Jerma Karas está viva! Col des Moulinets!... - Qual é a mensagem?
- Mandou-me comunicar-lhe que o engodo foi reconsiderado. Está disposto a aceitá-lo, e pensa que você concordará. Já não o considera seu inimigo, mas outros são-no e possivelmente também dele.
- Que quer isso dizer?
- Não posso responder. Sou um simples mensageiro. Você é que deve conhecer a substância e não eu.
- Sabia o que aconteceu no Palatino?
- A notícia da morte de um maníaco propaga-se depressa, sobretudo se é nosso adversário e, em particular, se matou muitos dos nossos amigos... Como lhe chamavam os seus comparsas? Atirador, salvo erro. Uma figura romântica dos vossos filmes do Oeste, que, diga-se de passagem, me agradam muito.
- Deixe-se de divagações.
- Rostov insiste numa resposta, mas não precisa de ser já. Posso contactar consigo noutra altura. Dentro de um dia, dois... ou algumas horas. Pode indicar o lugar. Estamos em condições de o fazer sair. Para um local seguro.
Michael voltou a estudar o rosto do interlocutor. À semelhança de Rostov, e Atenas, o homem revelava a verdade... como a conhecia.
- Que tem ele para oferecer?
- Já lhe disse. Segurança. Sabe o que o espera, aqui. Novo Palatino.
- Segurança em troca de quê?
- Isso é entre você e Rostov. Por que havia eu de inventar condições? Não acreditaria.
- Diga-lhe que labora em erro.
- Acerca de Roma? Do Palatino?
- Do Palatino - repetiu Havelock, perguntando-se se um director do KG13, a dezasseis mil quilómetros de distância, detectaria a verdade essencial dentro da mentira de maiores dimensões. - Dispenso a segurança da Lubyanka.
- Nesse caso, rejeita a oferta?
- Rejeito o engodo. Registou-se um baque surdo na porta, seguido de uma imprecação abafada e pancadas insistentes. O pedaço de madeira na parte inferior cedeu cerca de dois centímetros, que bastaram para o intruso bradar, enquanto continuava a bater:
- Que raio vem a ser isto? Abram a porta!
O russo olhou para lá, todavia Havelock não o fez, a fim de prevenir possíveis surpresas.
- Se mudar de ideias, há um estendal de contentores de lixo em Bryant Park, nas traseiras da Biblioteca Pública - explicou o primeiro. - Deixe um sinal vermelho na parte da frunte de um deles. Sugiro que utilize urna caneta de ponta de feltro ou, melhor ainda, um pouco de verniz para as unhas. Depois, a partir das dez da mesma noite, caminhe de norte para sul na Broadway, entre as Ruas Quarenta e Dois e Cinquenta e Três, no passeio do lado Nascente. Alguém contactará consigo, para lhe transmitir o endereço da pessoa à qual se deve dirigir, Será fora da cidade, claro, sem hipóteses de armadilhas.
- Que diabo se passa aí dentro! Abram lá a maldita porta!
- Pareceu-me ouvir-lhe dizer antes que podia escolher o local.
- E pode. Basta comunicar ao homem que o abordar onde quer que o encontro se realize. Conceda-nos três horas.
- Para o investigar?
- Abram, que diabo! - A porta foi submetida a nova série de pancadas violentas, e a cunha cedeu mais uns centímetros.
De súbito, surgiu uma voz autoritária:
- Que vem a ser isto?
- Encravaram a porta por dentro! Não consigo entrar, mas oiço pessoas falar! - Novo empurrão e mais uns centímetros cedidos pela cunha.
- Tomamos precauções, como vocês - disse o russo. - O que houver entre você e Rostov... é também com Moscovo. Não estamos em Moscovo e eu não sou Moscovo. Não chamo a polícia, quando me vejo em apuros em Nova Iorque.
- Escutem, vocês aí dentro! - advertiu a voz autoritária. - A obstrução ao procedimento normal num aeroporto internacional constitui um delito, e isso inclui as instalações sanitárias! Vou chamar a segurança! - Dirigindo-se ao intruso indignado, acrescentou: -
O melhor é procurar outro sítio. Esta rapaziada aguenta-se à base de drogas e pode tomar-se violenta.
- Estou aflito para urinar! De resto, as vozes não parecem de rapazes... Vai ali um polícia! Senhor guarda!
Não pode ouvi-lo. Está muito longe. Vou telefonar. Gaita! Vamos - indicou Havelock, pegando no casaco e vestindo-o. Então, conservo a vida? - perguntou o russo. - Não fica nenhum cadáver nas instalações sanitárias?
- Quero que a minha resposta seja entregue. Esqueça o verniz das unhas e os contentores de lixo.
- Nesse caso, pode devolver-me a arma?
- Não sou caridoso a esse ponto. Vocês são o meu inimigo desde longa data.
- É difícil explicar a perda de uma arma. Você sabe como é.
- Diga que a vendeu por preço superior ao de custo. É o primeiro passo, no capitalismo. Compra-se barato (ou obtém-se de borla) e vende-se caro. A Burya é uma arma automática excelente. Pode contar com um lucro elevado.
- Por favor!
- Não está a compreender, camarada. Nem faz ideia da quantidade de oportunistas de Moscovo que o respeitariam. Vamos! - Havelock segurou o homem pelo ombro
e impeliu-o para a porta. - Tire a cunha corri o pé - ordenou, colocando a abriria no cinto e pegando na mala,
O russo obedeceu e a porta abriu-se com brusquidão.
- Com a breca! - exclamou um indivíduo obeso de fato-macaco azul. - Dois invertidos!
- Eles vêm aí! - bradou um homem em mangas de camisa, emergindo de uma porta das proximidades.
- Já não chegam a tempo - volveu o outro, contemplando Havelock e o russo de olhos arregalados, - São dois borboletas que acharam o parque de estacionamento muito frio para as suas actividades.
- Vamos! - murmurou Michael, puxando o companheiro pelo cotovelo.
- Asqueroso! Revoltante! - vociferou o homem em mangas de camisa. - E corri a vossa idade! Não se envergonham? Vêem-se pervertidos em toda a parte.
- Não quer mudar de ideias acerca da pistola? - perguntou o russo, caminhando apressadamente pelo corredor, ao mesmo tempo que comprimia os lábios de dor, em virtude da pressão dos dedos de Havelock no braço lesionado. - Exponho-me a um castigo severo. Há anos que não a utilizo. É mais uma peça de vestuário que outra coisa.
- Pervertidos! Deviam estar todos na cadeia e não em instalações sanitárias públicas! São uma ameaça à moralidade!
- Garanto-lhe que o promovem, se os convencer de que obteve uma quantia elevada por ela.
- Invertidos!
- Largue-me o braço. Aquele idiota julga-nos outra coisa.
- E então? Acho-o adorável. Alcançaram o segundo corredor e voltaram à esquerda, em direcção ao centro do terminal. Como anteriormente, havia vários homens de fato-macaco e em mangas de camisa. Adiante, situava-se o corredor principal, com gente que se deslocava nos dois sentidos, em direcção às portas de embarque ou ao local de recolha de bagagem.
Não tardaram a incorporar-se na corrente humana procedente de aviões acabados de chegar. Segundos depois, três polícias abriram caminho por entre os passageiros que se preparavam para embarcar. Ao vê-los, Havelock passou para o outro lado do russo e, no momento em que se cruzaram com eles, impeliu-o contra um dos homens uniformizados.
- Nyet! Kishki! - gritou o soviético.
- Que raio! - rugiu o polícia, oscilando para a direita e colidindo com um dos companheiros, o qual derrubou uma mulher idosa de cabelos azulados, que soltou uma exclamação aguda.
Havelock estugou o passo e encaminhou-se para uma arcada de acesso ao centro do terminal, onde os raios solares da tarde penetravam pelas largas janelas. Quando se aproximava da porta encimada pela indicação Táxis, olhou em volta. Havia fiadas de balcões sob panóplias de horários de letras brancas, cujos rectângulos isolados se achavam em movimento constante, e, um pouco à frente, numerosas cabinas telefónicas. Entrou na primeira e consultou a lista, encontrando sem dificuldade o que procurava: Handelman, L, Rua 116, Momingside Heights, Manhattan.
Jacob Handelman, intermediário, corretor de santuário para perseguidos e desalojados.
O homem que forneceria refúgio a Jerina Karas.
- Para acolá - indicou Havelock, inclinando-se para a frente no assento e apontando para um toldo azul que exibia uma coroa dourada e a designação HOTEL KING'S ARMS.
Esperava não necessitar de passar lá a noite, pois cada hora que se escoava fazia aumentar a distância que o separava de Jerina, mas, por outro lado, não podia percorrer a Universidade de Colombia, de mala na mão, à procura de Jacob Handelman. Recomendara ao
motorista que seguisse pela Ponte Triborough, rumo a oeste em direcção ao Hudson e a sul para Momingside Heights, desejoso de passar diante do endereço na Rua 116 e encontrar um lugar seguro para deixar a bagagem. Eram cerca de cinco horas da tarde, e o intermediário podia achar-se em qualquer ponto das vastas instalações universitárias.
Michael estivera na Universidade de Colúmbia duas vezes, quando frequentava a de Princeton - a primeira a assistir a uma conferência sobre a Europa após a época napoleónica, pronunciada por um sensaborão qualquer de Oxford, e a segunda para participar num seminário. Nenhuma das ocasiões fora memorável, ambas breves, pelo que pouco ou nada conhecia da topografia do recinto. Isto talvez resultasse irrelevante, mas o mesmo não se aplicava ao facto de não saber absolutamente nada a respeito de Jacob Handelman.
O King's Amis situava-se na esquina imediata ao apartamento deste último e era um daqueles pequenos hotéis que conseguem sobreviver com dignidade nas proximidades de uma cidade universitária. Embora se tratasse de uma possibilidade remota, como ficava perto da residência de Handelman, podia haver alguém que o conhecesse.
- Sem dúvida, Nir. Hereford - declarou o recepcionista, lendo o nome que Havelock acabava de inscrever no livro. - O doutor Handelman visita-nos de vez em quando, para tomar uma bebida ou jantar com amigos. É um cavalheiro de trato agradável e sentido de humor. Costumamos tratá-lo por Rabino.
- Não sabia. Refiro-me ao facto de ser rabino.
- Não sei se o é, formalmente, mas penso que ninguém poria em causa as suas credenciais. É professor de Filosofia, e creio que participa com regularidade no Seminário Teológico Judaico. Gostará de conversar com ele.
- Acredito. Obrigado.
O edifício onde se situava o apartamento de Handelman erguia-se entre a Brodway e Riverside Drive, numa artéria que descia em direcção a Riverside Park e ao rio Hudson. Era uma estrutura sólida de alvenaria branca, à qual fora permitido envelhecer com naturalidade e atravessar períodos de breve renascimento, até se tornar quase numa relíquia do passado. Outrora, houvera um porteiro diante da fachada austera, porém agora existia uma fechadura dupla na porta interior e um sistema de comunicações entre o visitante e o residente.
Havelock premiu o botão da campainha, apenas interessado em verificar se ele estava em casa, mas não obteve resposta através do altifalante, pelo que voltou a tocar, com o mesmo resultado.
Cruzou a rua em direcção a uma porta e ponderou as opções que se lhe apresentavam. Telefonara ao centro de informações da universidade, que lhe fornecera a localização e o número do gabinete de Handelman. Uma segunda chamada - efectuada anonimamente, intitulando-se funcionário da administração interessado em obter o horário das actividades de quinta-feira - revelara-lhe que ele tinha compromissos até às 16.00. Agora, passava das cinco, e a frustração de Michael acentuava-se. Onde estaria metido o homem? Conquanto não existisse a mínima garantia de que seguiria directamente para casa, um fornecedor de refúgio que acabava de ser procurado por urna fugitiva de Paris tinha determinadas obrigações. Considerou a possibilidade de se dirigir ao gabinete de Handelman ou interceptá-lo na rua, mas decidiu não se precipitar, por enquanto. Talvez uma entrevista se prolongasse mais do que o previsto ou ele aceitara um convite para jantar.
O esforço desenvolvido para dominar a tensão da expectativa - prática em que costumava ser exímio - causava-lhe uma sensação penosa no estômago. Respirava pesadamente e reconhecia que não podia enfrentar o intermediário nutri gabinete, na rua ou em qualquer lugar público. O encontro tinha de se desenrolar onde houvesse nomes, números, mapas e códigos, ferramentas próprias de um intermediário, e seriam conservados onde pudesse guardá-los em segurança e alcançá-los com prontidão. Sob uma tábua do
sobrado, no interior de uma parede ou reduzidos microscopicamente e implantados nos botões da camisa ou no salto de um sapato.
Embora não tivesse visto nenhuma fotografia do homem, inteirara-se do seu aspecto, pois o loquaz recepcionista do King's Arms descrevera o "Rabino" de forma satisfatória: estatura mediana, com cabelos brancos compridos e pêra grisalha, certa tendência para a obesidade e ombros um pouco encurvados. Caminhava "com lentidão e aprumo, como se fosse um judeu de sangue real que avança permanentemente por entre as águas que se abrem ou viajasse na Arca rodeado de animais. Mas, acima de tudo, tem sempre uma expressão de bondade nos olhos e um coração de ouro".
Passavam vários minutos das cinco. Respira~. Respira bem e pensa em Jenna, no que lhe dirás. Podes esperar uma ou duas horas ou até metade da noite. Metade da noite, até que o intermediário apareça. Não te mortifiques com isso.
O clarão alaranjado do Sol incendiava os contornos de Nova Jérsia, para além do rio Hudson. A auto-estrada do West Side achava-se apinhada de veículos e Riverside Drive, paralela a ela, pouco menos. A temperatura baixava gradualmente e começavam a surgir nuvens, num possível prenúncio de neve.
E, do outro lado da rua, um homem de estatura mediana e sobretudo caminhava lentamente pelo passeio. O seu porte era na verdade aprumado, correspondendo à imagem distinta criada pelos cabelos brancos, que se prolongavam alguns centímetros abaixo da aba do chapéu preto. À luz do candeeiro junto do qual passou, Havelock distinguiu a pêra grisalha. Não havia dúvida: era o intermediário.
Jacob Handelman aproximou-se da porta exterior de vidro do prédio e ficou sob a acção directa das potentes lâmpadas da entrada. Michael arregalou os olhos, simultaneamente mesmerizado e perturbado. Conhecê-lo-ia? Teria o "Rabino" participado numa operação, oito... dez anos atrás? Porventura no Médio Oriente, Telavive, Líbano? Tinha a nítida sensação de que o conhecera. Seria devido à maneira de andar? O passo que parecia quase anacrónico, como se o homem se deslocasse envolto em vestes medievais? Ou dever-se-ia aos óculos de aros de aço, equilibrados com firmeza no centro do rosto largo?
O momento passou, e Havelock admitiu a possibilidade de o intermediário haver cruzado o seu caminho em diversas situações. Podiam ter-se encontrado no mesmo sector, numa ocasião ou noutra, um professor respeitável supostamente em férias, embora, na realidade, para se avistar com alguém como Régine Broussac. Era inteiramente possível.
Handelman transpôs a entrada, subiu os degraus interiores e deteve-se diante dos receptáculos da correspondência. Michael conteve-se com dificuldade. O desejo de atravessar a rua e abordar o intermediário era quase irresistível.
Régine Broussac advertira-o de que talvez não lhe quisesse revelar nada. Um velho sem interesse em negociar podia gritar numa escada e pedir socorro. E quem necessitava de ajuda ignorava o que se encontrava atrás de uma porta do outro lado da rua, que dispositivos um grupo de habitantes da cidade inteligentes montara para se defender de eventuais meliantes, pois o mercado estava repleto de sistemas de segurança fáceis de instalar e eficientes. Por conseguinte, tinha de aguardar até que Jacob Handelman se
encontrasse no apartamento. Depois, uma pancada na porta e as palavras "Quai d'Orsay" bastariam. Havia respeito por um homem que conseguia esquivar-se aos alarmes, ameaça inerente a alguém do lado de fora da porta que sabia que o de dentro era um intermediário. Handelman recebê-lo-ia, pois não se podia arriscar a repeli-lo.
O velho desapareceu ao fundo do átrio e Havelock deixou transcorrer três minutos, até que se acenderam luzes em várias janelas do terceiro andar. Era lógico que o número do seu apartamento fosse 3X Um intermediário tinha alguns pontos em comum com os agentes secretos de "campo" e a VKR soviética. Precisava de estar em condições de vigiar a rua.
De momento, porém, não o fazia, pois não surgiu qualquer sombra atrás das cortinas.
Michael cruzou finalmente a rua e aproximou-se da fiada de botões à entrada. R. Charles, Porteiro, ID. Exerceu pressão com o polegar e aproximou os lábios do microfone-altifalante.
- Quem é? - perguntou uma voz masculina com sotaque irrepreensível.
- Mr. Charles? - volveu Havelock, sem compreender a razão pela qual a inflexão do homem se lhe afigurava estranha.
- O próprio. Quem está aí?
- Um funcionário do Governo. Departamento de Estado.
- O quê?!
- Não há motivo para alarme. Se vier à porta, pode verificar a minha identidade através do vidro e deixar-me entrar. De contrário, indicar-lhe-ei o número pelo qual se certificará da minha idoneidade.
R. Charles conservou-se silencioso por um momento e replicou:
- Está bem, Transcorridos trinta segundos, surgiu um jovem de porte atlético no outro lado da porta. Vestia calção e camisola de algodão com um enorme 20, que constituía uma proclamação da idade ou indicação da posição a que jogava na equipa de râguebi da universidade. Era, pois, aquela a protecção que os moradores do prédio em Momingside Heights; haviam escolhido. Uma decisão lógica: cuida dos teus para que cuidem de ti. Alojamento gratuito para uma presença impressionante. Michael exibiu o cartão de identidade no invólucro de plástico, cujas datas se achavam, evidentemente, suprimidas.
R. Charles semicerrou as pálpebras, encolheu os ombros e abriu a porta.
- Que diabo significa isto? - inquiriu, com mais curiosidade que hostilidade. Um homem com a sua compleição física não necessitava de se mostrar agressivo, pois as pernas como troncos de árvore e os braços musculosos eram suficientemente intimidativos, para não falar da sua juventude.
- Mora aqui um homem com quem preciso falar sobre um assunto do Departamento de Estado, mas não está. Toquei várias vezes à campainha e não obtive resposta. Aliás, somos amigos.
- Quem é?
- O doutor Jacob Flaridelman. É nosso consultor, embora não goste de o divulgar.
- Uma excelente pessoa.
- Das melhores. No entanto, penso que se alarmaria se supusesse que me podiam reconhecer. - Havelock esboçou um sorriso. - Além disso, faz um frio dos diabos, cá fora.
- Não o posso deixar entrar no apartamento. Não quero deixá-lo entrar.
- Nem eu me atrevia a sugerir uma coisa dessas. Esperarei aqui, se não vir inconveniente.
R. Charles hesitou, voltando a baixar os olhos para o cartão de identidade, que Michael conservava na mão.
- Bom, está bem. Convidava-o a entrar para o meu apartamento, mas tenho de estudar para o teste de manhã.
- Nem pensar... Havelock foi interrompido pelo aparecimento de um jovem ainda mais atlético, numa porta ao fundo do átrio. A indumentária era quase idêntica à do porteiro e tinha um livro numa das mãos e uns óculos na outra.
- Então, pá? Ainda temos muita matéria para rever.
- Vou já. Este senhor procura o Rabino.
- Mais um? Não percas tempo. O cérebro és tu. Eu só quero apanhar umaboa classificação no teste.
- É seu companheiro de equipa? - perguntou Michael, tentando mostrar-se actualizado.
- Não. Ele pratica luta-livre. Ou faz o possível, quando não o atiram ao tapete. Vamos lá, então, Mastim.
- Obrigado.
- Não tem importância - disse R. Charles, enquanto o colega desaparecia.
O Rabino não deve tardar.
- Costuma ser pontual, hem?
- Como um- relógio suíço. - Começou a afastar-se, mas fez uma pausa e virou~se para trás. - Imaginava uma coisa assim, sabe. Quero dizer, como você.
- Não compreendo.
- É por causa das pessoas que o procuram. Às vezes, a altas horas da noite. Não se parecem corri as que frequentam a cidade universitária.
Michael reflectiu que não perderia nada em formular a pergunta. De resto, o outro encarregara-se involuntariamente de lhe dar a deixa.
- Não vejo inconveniente em lhe dizer que estamos muito preocupados com a mulher. No interesse do Rabino, esperamos que ela chegasse aqui. Viu-a, por acaso? Uma loura, com cerca de uni metro e sessenta e cinco, provavelmente de impermeável e chapéu. Ontem? Hoje?
- Ontem, ao fim da tarde - informou o rapaz. - Foi o Mastim quem a viu. Uma senhora com ares de raposa, segundo disse, mas nervosa, Enganou-se na campainha e tocou para o velho Weinberg, que mora no Três-B e ainda ficou mais nervoso que ela.
- Sinto-me aliviado por saber que chegou. Que horas eram?
- Mais ou menos nesta altura. Eu estava ao telefone, quando Weinberg me chamou pelo intercomunicador.
- Obrigado. - Vinte e quatro horas. Um intermediário, lá em cima. Ela encontrava-se ao seu alcance. Pressentia-o, sem margem para dúvidas! - A propósito, por mera casualidade, forneceu-me urna informação confidencial. Agradeço-lhe que a respeite.
- Não esteve cá, nunca o vi, Mr. Havalatch.
- Obrigado, mais uma vez.
- Sempre às ordens. - E R. Charles afastou-se em direcção à porta aberta. No instante em que se fechou, Havelock moveu-se apressadamente para a larga escada de pedra no centro do átrio, consciente de que não podia utilizar o elevador, pois o ruído decerto alertaria o atlético porteiro-estudante, o qual poderia rejeitar o conceito da informação confidencial em favor de responsabilidades menos esotéricas.
Em Paris, quando comprara os dispendiosos sapatos a condizer com o fato, Michael tivera a inspiração de lhes mandar aplicar urnas espessas capas de borracha. O facto resultava agora vantajoso para transpor os degraus em silêncio. Em menos de meio minuto, atingiu o terceiro andar e verificou que o apartamento 3-A se situava ao fundo do patamar debilmente iluminado. Conservou-se imóvel por uns momentos, a fim de recuperar o alento, e aproximou-se da porta, para premir o pequeno botão embutido na ombreira. Soou um carrilhão abafado no interior e, segundos depois, passos.
- Quem é? - perguntou uma voz aguda com sotaque europeu.
- Doutor Jacob Handelman?
- Que deseja?
- Sou portador de notícias do Quai d'Orsay. Podemos conversar?
- Vos? - O silêncio subsequente foi breve e as palavras imediatas pronunciadas apressadamente. - Está enganado. Não sei a que se refere. Não conheço ninguém no... como disse?... Quaí d'Orsay?
- Nesse caso, tenho de ligar para Paris a comunicar ao meu " contacto" que comteu um
erro horrível. Evidentemente que o nome de Jacob Handelman será retirado do terminal do computador das catacumbas.
- Um momento, por favor. Tenho de esquadrinhar a memória deste velho. Havelock distinguiu novos passos, agora mais rápidos, que se afastavam, para regressarem pouco depois. Soou o ruído metálico de várias fechaduras do outro lado da espessa porta e esta abriu-se. O intermediário contemplou-o com curiosidade e, por fim, fez sinal com a cabeça para que entrasse.
Qual seria a razão por que Michael estava convencido de que conhecia aquele homem de pêra grisalha e cabelos brancos compridos? O rosto largo exibia urna expressão suave, porém, por detrás das lentes grossas, continha algo que ele não sabia definir.
- Encontra-se em minha casa - proferiu Handelman, enquanto voltava a fechar a porta e manipulava todas as fechaduras. - Viajei com frequência, nem sempre por vontade própria, como muitos milhares na minha situação. Talvez tenhamos um amigo comum que de momento não me ocorre. No Quai d'Orsai. É certo que conheço muitos professores na Sorbona.
Seria a voz aguda e monocórdica? Ou a ligeira inclinação interrogativa da cabeça? Ou porventura a maneira como se conservava, com os pés apoiados firmemente, numa posição descontraída e, ao mesmo tempo, rígida? Não, não se tratava de um pormenor isolado, mas da combinação de todos.
- Um amigo comum não é a expressão exacta. Conhece um nome. Broussac. Ministério dos Assuntos Estrangeiros, Secção Quatro. Ela devia contactar consigo hoje e é uma pessoa de palavra. Creio que o fez.
- Tenho o gabinete cheio de mensagens que só a minha secretária conhece, Mr... Mr...
- Havelock,
- Pois, Mr. Havelock. Entre, entre. Conheci um Habemicht em Berlim, nos velhos tempos. Friedrich Habemicht. Muito parecido, não acha.
- É possível. - Seria a maneira de andar? O mesmo passo firme que observara na rua. O caminhar aprumado... arrogante, que lembrava vestes medievais ou uma sotaina eclesiástica. - Encontrámo-nos antes, não é verdade?
- Nós? - O intermediário arqueou as sobrancelhas, ajeitou os óculos no nariz e olhou Michael com curiosidade. - Não me recordo onde. A menos que fosse meu aluno numa. classe numerosa, mas teria sido há muitos anos. Nesse caso, lembrar-se-ia de mim, mas eu não necessariamente de si. A idade e a massa esmagadora dos números, compreende...
- Não tem importância. - Há muitos anos. Quantos? - Quer dizer que nunca ouviu mencionar o nome Broussac?
- De modo algum... Sente-se, sente-se... Limito-me a dizer que não sei. Afirma que essa pessoa me transmitiu uma mensagem hoje e eu garanto-lhe que recebo dezenas cada dia de que só tomo conhecimento passados vários. Uma vez mais, a idade e a massa esmagadora dos números.
- Já tinha ouvido, da primeira vez - atalhou Havelock, que se conservava de pé e movia os olhos pela sala. Havia prateleiras com livros em todos os lados, mobiliário antigo (poltronas estofadas em excesso, candeeiros com quebra-luzes de franjas e numerosas almofadas), mas nada de espartano. - Jerma Karas! - articulou subitamente, erguendo a voz.
- Outra mensagem? - inquiriu Handelman, candidamente, como um velho divertido
com um antagonista mais jovem. - São tantas... Tenho de conversar com a minha secretária. Tira-me demasiado trabalho de cima dos ombros.
- Sei que Jerina Karas o procurou ontem, ao fim da tarde!
- Três... não, quatro pessoas vieram procurar-me ontem à tarde, todas alunos meus. Até tenho os nomes aqui. - Dirigiu-se a uma secretária repleta de papéis, junto da parede.
Nas folhas de testes.
- Pare com isso! - bradou Havelock. - Indicou-lhe o destino, e preciso de a encontrar! Era essa a mensagem de Broussac.
- Tantas mensagens - entoou o intermediário, como se citasse uma passagem talmúdica. - Ah, cá estão os nomes dos alunos que me visitaram - prosseguiu, debruçando-se sobre a desordem de papéis. - Tantos visitantes... tantas mensagens... Quem pode lembrar-se de tudo?
- Escute! Broussac não me dava o seu nome ou indicava onde o podia encontrar, se eu não falasse verdade. Tenho de contactar com ela! Fizeram-lhe... nos.. . uma coisa horrível que não compreende!
- " A Rejeição de Filio que e os Concílios de Ário" - tomou a entoar, empertigando-se e segurando um maço de papéis junto do clarão de um candeeiro de pé. - Deve tratar-se do repúdio de Nicenas da Igreja Oriental, por volta do século quinto. Compreendeu-se muito pouco... por falar de compreensão.
- Para onde a enviou, que diabo? Pare de brincar comigo! Garanto-lhe que, se me vir obrigado...
- A quê? Jacob Handelman voltou a cabeça sob o clarão do candeeiro e tomou a olhar o interlocutor através das lentes de aros de aço. Em seguida, deu alguns passos para a esquerda e pousou os papéis.
Naquele momento, o quadro ficou completo. Os olhos por detrás das lentes grossas, a posição rígida do corpo mole... o andar. Não era o passo aprumado de um prelado ou de um barão medieval que penetrava num salão... mas o porte de um homem fardado . Com um uniforme negro!
Raios de luz assolaram os olhos de Havelock e registou-se urna explosão na memória. Não fora há oito ou dez anos, mas nos primeiros, nos anos terríveis! Handelman era um deles! As imagens na sua mente confirmavam-no. Michael viu o homem na sua frente como era outrora. O rosto largo, sem pêra, os cabelos lisos e compridos, não brancos, mas amarelos como os dos arianos! Movia-se em passo aprumado... ao longo das valas. Rajadas de metralhadora. Gritos.
Lidice! Como se estivesse em transe, principiou a avançar para o intermediário, as mãos tensas e rígidas, dedos curvados como garras, a postos para a luta com outro animal... um animal de forma inferior.
- Vos? - O homem emitiu o " s" sibilante na inflexão aguda. - Que tem? Enlouqueceu? Sente-se mal? Não se aproxime!
- O Rabino?... Seu filho da mãe! Seu incrível filho da mãe! Que era então... Standartenfuhrer? Stunnbannifuhrer?... Não, Obergruppenfuhrer! Era você! Em Lidice!
O velho arregalou os olhos e, ampliados pelas lentes, pareciam enormes.
- Enlouqueceu por completo! Saia de minha casa! Não é bem-vindo. Com as mágoas que sofri, não estou disposto a escutar as fantasias de um louco!
A entoação monocórdica dissimulava-lhe os movimentos, e a mão direita deslizou para a secretária, entre a confusão de papéis. Havelock deu um salto no momento em que Handelman empunhou uma automática, colocada ali três minutos antes por um Obergruppenfuhrer que não podia esquecer as suas origens. O intermediário fora um assassino de checos, polacos e judeus, um indivíduo que assumira a identidade de um internado enviado para as câmaras de gás ou para o forno crematório.
Michael segurou a mão em que se encontrava a pistola, introduzindo o dedo atrás do gatilho e fazendo-a embater repetidamente na extremidade do tampo da secretária. No entanto, não conseguia arrancar-lha! O intermediário estendeu repentinamente a mão esquerda, visando os olhos de Havelock com os dedos.
Este rodou com violência, cerrou a mão direita e atingiu o rosto do outro com a impetuosidade de um martelo-pilão.
Os óculos estilhaçaram-se, o alemão soltou um uivo e a automática soltou-se-lhe, ao mesmo tempo que levava as mãos às faces.
Havelock saltou para trás, esforçando-se por ignorar o ardor que sentia nos olhos, segurou o homem pelo braço e pousou-lhe a outra mão na boca.
- Se levantas a voz, mato-te no mesmo instante! Senta-te! Puxou-o da secretária e impeliu-o para a poltrona mais próxima com uma violência que o obrigou a inclinar a cabeça para trás. Os óculos estilhaçados, porém, permaneceram no
nariz, como parte integrante daquele rosto, daquela fealdade.
- Cegou-me! - gemeu o antigo militar de Lidice. - Entra-me um louco em casa e!...
- Deixa-te de comédias! Eu estava lá!
- Loucura! - Ofegante, ergueu as mãos para tirar os óculos.
- Deixa-os! - ordenou Havelock. - Deixa-os ficar onde estão!
- Meu rapaz, você...
- Cala-te e escuta! Posso mandar investigar os antecedentes de um homem chamado Jacob Handelman. Tudo a seu respeito: fotografias de há cinquenta anos, alemães ainda vivos que o conheceram, se porventura jamais existiu . Depois, ponho a circular uma foto tua, sem pêra, claro, em determinadas zonas de Praga. Estava lá, pois vi-te e quis matar-te. Um garoto de nove anos queria cravar-te uma faca nas costas. E alguém que ainda vive em Praga, Rudria ou Madrio faria o mesmo hoje. É essa a verdade, bastardo! Não fales, pois, de pessoas que não te procuraram, ontem à noite, mas daquela que o fez na realidade. Onde se encontra?
- Sou um homem muito valioso...
- Acredito. Quem, melhor do que tu, conheceria territórios seguros para um fugitivo se esconder? E quem se protegeria melhor do que alguém em condições de denunciar tantos? Conseguiste passar despercebido, Mõrder! Mas não comigo, entendes? Onde está Jenna Karas?
- Embora não admita as acusações absurdas que me faz, há condições de troca a encarar - balbuciou o alemão.
- Conservas a vida, que não me interessa. Basta saberes que lhe posso pôr termo em qualquer altura. É essa a tua possibilidade de troca. Onde está ela?
- Veja na gaveta de cima da secretária. - Gesticulou com a mão trémula, sem conseguir enxergar por detrás das lentes estilhaçadas. - Levante a caixa dos lápis. Há uma folha de papel verde dobrada.
Michael aproximou-se do móvel, abriu a gaveta e retirou o receptáculo côncavo que continha lápis e esferográficas. Deparou-se-lhe, na verdade, uma folha de papel verde, que desdobrou. Tratava-se de uma página de memorando da Faculdade de Filosofia da Universidade de Colúmbia, que, em maiúsculas, continha a informação pela qual Havelock estaria disposto a matar:
BROUSSAC. CANDIDATA A DOUTORAMENTO NOME: ARVIDAS CORESCU, A/C KOHOUTEK
RF13 3, MASON FALLS, PENNA.
- Corescu é o nome que ela usa? - inquiriu com brusquidão.
- Temporariamente. Os documentos são apenas temporários. Tiveram de ser preparados em poucas horas. Seguir-se-ão outros... se seguirem.
- Que queres dizer com isso?
- Têm de ser pagos. Não há nada de borla.
- Claro. O anzol foi tragado e a linha vai-se desbobinando. Deves ter peixes muito importantes espalhados por aí.
- Digamos que conto com... amigos poderosos. Em muitos lugares.
- Quem é Kohoutek?
- Um eslavo - articulou o intermediário, com um encolher de ombros de desdém. -
Possui uma herdade.
- Quando partiu ela?
- Vieram buscá-la esta manhã.
- Qual é o seu disfarce?
- Mais uma refugiada sem recursos (talvez uma sobrinha) proveniente dos Balcãs ou de outro lugar das proximidades. Empenhada em se afastar do Urso, como costumam dizer. Kohoutek arranja-lhe trabalho, pois tem amigos nos sindicatos dos têxteis.
- Com o produto do qual ela lhe paga e a ti, de contrário os documentos não seguem.
- Uma pessoa precisa deles para conduzir um carro ou recorrer a um banco...
- Ou para evitar que a Imigração a incomode - interrompeu Michael. - A ameaça está sempre presente, hem?
- Somos uma nação de leis.
- Metes-me nojo. Podia matar-te neste momento, com profunda satisfação. Vê se compreendes isto, filósofo. Não o faço porque quero que saibas o que te pode acontecer a todo o instante, de dia ou de noite. A seguir a uma pancada inesperada na porta. Passarás a viver com essa ideia, du altes Luder. Heil Hitler.
Com estas palavras, Havelock rodou nos calcanhares e começou a mover-se para a porta. Registou-se um som seco, como se alguma coisa estalasse, atrás dele. Virou-se com prontidão e viu a lâmina alongada de uma faca avançar directamente para o peito.
O intermediário retirara os óculos estilhaçados do nariz e empunhara a arma dissimulada no estofo da poltrona em que se afundara. Michael deu um salto para trás, mas não conseguiu evitar que a lâmina perfurasse o casaco e lhe produzisse um rasgão na pele, originando um traço avermelhado de sangue na camisa branca.
Acto contínuo, levou a mão à cintura para puxar da Llama, ao mesmo tempo que desferia um pontapé na sua frente, esperançado em estabelecer contacto com alguma parte do corpo do alemão. No momento em que a faca se deslocava para nova arremetida, ergueu a automática e apontou-a ao rosto largo.
Disparou duas vezes e o outro caiu pesadamente, a cabeça inundada de sangue e um dos olhos perfurado.
Uma arma silenciara outra de Lidice. Não havia, contudo, a mínima satisfação envolvida. Deixara de ter importância.
Apenas Jerina interessava. Encontrara-a! Agora, ela não o podia impedir de a procurar. Talvez o matasse, mas primeiro teria de o fitar nos olhos. Era isso que importava.
Voltou a guardar a Llama na cintura e o papel verde na algibeira e apressou-se a abandonar o apartamento.
Capítulo vigésimo
O nome é Broussac, senhor presidente - informou Emory BradfÓrd, para o bocal do telefone, no seu gabinete do Departamento de Estado. - Madame Régine Broussac. Quai d'Orsay, Ministério dos Assuntos Estrangeiros, Secção Quatro. Contactou a embaixada anteontem à noite, com instruções para que uma unidade com rádio no carro estivesse nas proximidades de Argenteuil, a fim de recolher um antigo agente secreto americano, que se encontraria lá com ela. Em circunstâncias altamente heterodoxas, segundo sublinhou.
- Havelock?
- Sim, ela admitiu-o.
E?...
O carro percorreu as ruas de Argenteuil durante toda a noite, sem que alguém tentasse estabelecer contacto.
- Que diz essa Broussac? Suponho que foi interrogada?
- Furiosamente. Afirma que ele não apareceu.
- E daí?
- O nosso pessoal pensa que mente.
- Porquê?
- Um dos nossos agentes dirigiu-se ao seu apartamento e fez-lhe algumas perguntas. Inteirou-se de que regressou por volta da uma hora da madrugada. Se foi o que aconteceu (e parece que sim, pois dois vizinhos confirmaram-no), por que não telefonou à embaixada, para mandar recolher o carro?
- Falaram-lhe nisso?
- Não. Os nossos homens aguardam instruções. Não é costume o pessoal da embaixada fazer perguntas sub-repticiamente acerca de funcionários do Quai d'Orsay.
Charles Berquist conservou-se silencioso por um momento e ordenou com firmeza:
- Diga ao embaixador Richardson que telefone a Madame Broussac e a convide a procurá-lo na embaixada quando tiver possibilidade... de preferência, imediatamente. Uma limusina irá buscá-la, claro. O presidente dos Estados Unidos deseja falar-se sobre um assunto confidencial.
- Senhor presidente...
- Faça o que lhe digo, senhor subsecretário.
- Muito bem.
- Outra coisa, Emory.
- Sim?
- Como vai a nossa tarefa? Refiro-me aos cerca de setenta diplomatas que se podem ter ausentado da cidade durante o problema espanhol.
Bradford fez uma pausa antes de responder e quando falou dir-se-ia que se esforçava por dominar a voz.
- Até agora, cinco.
- O quê?!
- Não queria dizer nada até ao meio-dia, quando espero dispor de uma informação completa, mas o último relatório indica que dezanove funcionários estavam ausentes. Há justificação para catorze, mas não para os cinco restantes.
- Despache-se com o resto da informação!
- Faço os maiores esforços nesse sentido.
- Até ao meio-dia!
A chuva glacial da noite anterior persistia, embora menos intensa, e o céu no exterior do Gabinete Oval mantinha-se encoberto. Se a temperatura descesse um ou dois graus, o relvado da Casa Branca não tardaria a cobrir-se de flocos de neve. Berquist conservava-se junto da janela e perguntava-se intimamente se também nevaria em Motintain Iron, Minnesota. Como gostaria de se encontrar lá, naquele momento! Soou um besouro na consola do telefone e ele consultou o relógio, enquanto se aproximava da secretária. Eram onze e um quarto.
- Sim?
- Está ligado a Paris, senhor presidente.
- Obrigado. - Premiu o botão apropriado e perguntou: - MadIe Broussac?
- Oui monsieur le présidente. É uma honra para mim. Sinto-me lisonjeada por lhe merecer a distinção de me telefonar.
A voz da mulher era firme, mas não isenta de perplexidade. E uma certa dose de apreensão.
- Fico-lhe muito grato, madame. Estamos sós, como recomendei?
- Sim, monsieur l président. O embaixador Richardson teve a extrema gentileza de me ceder o seu gabinete. Para ser franca, estou intrigada.
- Pode contar com a palavra do presidente dos Estados Unidos em como estamos de facto sós, madame Broussac. Não há interferências na linha ou qualquer sistema de escuta intercalado. Aceita a minha afirmação?
- Sem dúvida. Por que havia uma figura tão augusta de iludir uma modesta funcionária do Quai d'Orsay?
- Por várias razões. Mas garanto-lhe que não o faço.
- Então, fico convencida.
- óptimo. Preciso da sua cooperação num assunto da maior importância e delicadeza. Embora não afecte de modo algum o Governo francês, todo o auxílio que nos prestar redundará, em última análise, no seu interesse. Pode, mais uma vez, contar com a minha palavra em como falo verdade.
- Acredito, monsieur l président.
- É imperioso que contactemos um antigo agente secreto, recentemente desligado do Departamento de Estado. Chama-se Michael Havelock.
- S'il vous plait, monsieur l...
- Deixe-me terminar, por favor - atalhou Berquist. - Este departamento tem muitos assuntos prementes entre mãos para se envolver nas suas actividades ou nas de Havelock. Peço unicamente que nos ajude a localizá-lo. Um destino, um percurso, um nome que ele possa usar neste momento. Tudo o que me revelar será mantido confidencial.
- Monsieur...
- Além disso, independentemente do que ele possa ter afirmado, o Governo americano não lhe quer mal. Temos o maior respeito e gratidão pelos serviços que prestou, para o molestar. A tragédia em que se julga isolado é compartilhada por nós, e lamento não poder ser mais explícito. Está disposta a auxiliar-nos, madame Broussac?
Berquist conseguia distinguir a respiração pesada no outro lado do fio, a milhares de quilómetros, assim como o palpitar rítmico no seu peito. Dirigiu o olhar para a janela e
observou que os esperados flocos começavam a cair. O cenário que produziam na paisagem de Motintain Iron era mais belo ao pôr-do-Sol, quando uma pessoa se extasiava na sua contemplação, desejosa de que nunca se alterasse.
- Ele procura alguém - principiou Régine Broussac.
- Conhecemos essa parte. Aliás, nós também procuramos. Para lhe salvar a vida. Para salvar a vida dele.
O presidente cerrou as pálpebras, reflectindo que se tratava de uma mentira que recordaria quando regressasse às colinas da região Mesabi. No entanto, também evocaria Churchill e Coventry. Enigma... Costa Brava.
- Há um homem em Nova iorque.
- Nova Iorque? - Inclinou-se para a frente, surpreendido. - Ele encontra-se aqui? Ela?...
- Admira-se, monsieur l président?
- muito.
- Fui eu que a enviei. O enviei.
Esse homem em Nova Iorque... Deve ser abordado com muita, para empregar a sua expressão de há pouco, delicadeza. Não se pode comprometer. Vocês têm pessoas do mesmo género na Europa. Todos necessitamos delas, monsieur l président. Mesmo quando sabemos daqueles que pertencem a outras . . . companhias, deixamo-los sossegados .
- Compreendo perfeitamente. - Desta vez, Berquist não mentia. O aviso era bem claro. - Esse homem pode revelar-nos onde ele se encontra?
- Pode revelar-lhes onde ela se encontra. É o que precisam de saber. No entanto, convém convencê-lo de que não será envolvido.
- Enviarei apenas um homem, que será o único ao corrente do assunto. Prometo.
- Devo confessar que só o conheço através da respectiva ficha. É um homem admirável, muito compassivo, uni sobrevivente. Em Abril de mil novecentos e quarenta e cinco, foi retirado do campo de Bergen-Belsen, na Alemanha.
- Receberá todo o respeito deste departamento, assim como o sigilo que prometi. O seu nome, por favor.
- Jacob Handelman. Trabalha na Universidade de Colúmbia.
Os três homens escutavam atentamente, enquanto Emory BradfÓrd, pausada e metodicamente, expunha o que apurara, na sala de estratégia do complexo subterrâneo da Casa Branca. Exprimindo-se numa inflexão átona estudada, descreveu o paradeiro confirmado dos dezanove funcionários do Departamento de Estado do quarto piso, Secção L, ausentes de Washington no fim-de-semana do episódio na Costa Brava. Quando terminou, as expressões dos outros deixavam transparecer mágoa e frustração. Por fim, o presidente inclinou-se para a frente e proferiu, agastado:
- Esta manhã, você parecia seguro do que dizia. Falou em cinco cujos movimentos não tinham sido explicados. Que aconteceu?
- Enganei-me, senhor presidente.
- Eu não queria ouvir isso, que diabo!
- Nem o rei Ricardo, quando lhe comunicaram que Richmond tinha desembarcado
- interveio Addison. Brooks, a meia-voz. - Matou o mensageiro.
Berquist virou-se para o embaixador e, por um momento, contemplou-o em silêncio, antes de replicar:
- Ricardo IH já recebera duas mensagens que considerava falsas. Podia pensar o mesmo da terceira.
- Nunca pára de me surpreender, senhor presidente - admitiu Brooks, meneando a cabeça.
- Não devia, pois você trabalhou com Truman, que sabia mais História que todos os Commager e Schiesinger juntos. Também li urnas coisas, mas estamos a perder tempo. -
Berquist concentrou-se de novo no subsecretário de Estado. - Quem eram os cinco?
- Uma mulher internada no hospital, para se submeter a um aborto. O marido é advogado e encontra-se em litígio prolongado com a Haia há vários meses. Têm estado separados, e o aspecto geral da situação é bem claro.
- Por que incluiu uma mulher nas pesquisas? - perguntou Halyard. - Sem pretender armar em machista, havia de deixar vestígios algures.
- Não se, através de Moscovo, controlasse homens. Fiquei, por sinal, muito excitado, quando o seu nome veio à baila. Pensei que era o enquadramento perfeito. Afinal, enganei-me.
- Quem eram os outros?
- Os dois adidos da nossa embaixada no México. Foram convocados para instruções sobre alteração da política e só regressaram à Cidade do México a cinco de Janeiro.
- Explicação? - inquiriu o presidente.
- Umas miniférias. Seguiram rumos diferentes e as famílias reuniram-se-lhes. Um foi praticar esqui em Vermont e o outro preferiu tomar banhos de Sol nas Caraibas. Os cartões de crédito confirmaram-no.
- Quem mais?
- Arthur Pierce.
- Pierce? - repetiu o general, surpreendido. - O fulano das Nações Unidas?
- Exacto.
- Eu podia tê-lo elucidado acerca dele. E Addison também.
- E Matthias - admitiu Bradford. - Se houve alguém no Departamento de Estado que manteve acesso claro a Matthias por um lapso de tempo mais prolongado, não sei quem foi. Nomeou Pierce para as Nações Unidas, com a intenção óbvia de o candidatar a embaixador.
- Se me permite a correcção, fui eu quem o nomeou, quando Matthias no-lo cedeu, e depois levou-o - interpolou o presidente. - Trabalhou aqui durante um par de meses, o ano passado, antes de o grande homem declarar que precisava dele em Nova Iorque.
- E foi um dos fulanos que recomendei com veemência ao Pentágono - tomou Halyard. - Queria conservá-lo no Exército, por lhe reconhecer qualidades excepcionais. Mostrou-se contra aquela balbúrdia no Sueste Asiático, mas não lhe deram ouvidos.
- Conheço-o bem - disse o embaixador, reclinando-se na cadeira. - Foi-me apontado por um oficial da velha escola. Creio que fui tão responsável como os outros da sua vinda para o Departamento de Estado. Criou-se numa herdade de lowa, de origem humilde, mas conseguiu entrar para a universidade e formou-se com classificações brilhantes. Pode considerar-se um dos poucos da era actual que passaram de pobres para ricos. Refiro-me à riqueza de influência, embora também fizesse fortuna, se se dispusesse a isso. Cerca de dez das maiores corporações do país andavam atrás dele, para não falar da Rand e do Instituto Brookings. Fui persuasivo e prático. Salientei que, patriotismo à parte, um período de serviço no Departamento de Estado aumentaria o seu valor no mercado. Ainda é novo, claro, e se abandonar o cargo governamental, poderá estipular os seus honorários em qualquer lugar. Como concebeu uma ligação dele com Moscovo?
- Não preconcebi nada, em especial neste caso - replicou BradfÓrd. - Arthur Pierce é um amigo... e não tenho muitos. Considero-o um dos melhores que existem no Departamento de Estado. Mas, apesar da nossa amizade, analisei os relatórios que me forneceram. Apenas eu, diga-se de passagem. Não interveio ninguém da minha segurança ou qualquer colaborador. Apenas eu.
- Que obteve susceptível de admitir a possibilidade de ele se achar relacionado com os serviços secretos soviéticos?
- Um erro no registo de mensagens das Nações Unidas. O relatório inicial indicava que, durante os últimos dias de Dezembro e três primeiros de Janeiro (semana relativa. ao episódio da Costa Brava), Pierce não respondera a quatro consultas separadas da Secção do Médio Oriente. Surgiram mais tarde, claro: quatro respostas que podiam figurar num manual de analista diplomático, tão penetrantes como tudo o que de melhor li a esse respeito e sublinhadas por pareceres emitidos pelo Conselho de Segurança. Por sinal, foram utilizadas para bloquear uma proposta soviética particularmente agressiva.
- O erro no registo foi a explicação apresentada? - perguntou Brooks.
- Essa é a parte mais irritante. Há sempre uma explicação e depois a confirmação da explicação. O tráfego de mensagens é tão intenso, que vinte por cento delas se extraviam. As respostas de Pierce tinham sido fornecidas no momento necessário.
- Quem é o último? - Berquist não estava disposto a descurar um pormenor. A sua expressão deixava transparecer que não conseguia aceitar a alteração dos factos apurados.
- Um que me convenceu a tal ponto de que podia ser a toupeira, que quase mandei um piquete dos serviços secretos da Casa Branca detê-lo. Ainda bem que não o fiz, pois tem um temperamento volátil.
- O nome?
- Nikolai Sitinarin, nascido e criado em Leninegrado, filho de imigrantes dissidentes de uma dúzia de anos atrás. É o analista de assuntos internos soviéticos mais competente do Departamento de Estado, cujas conclusões se revelaram acertadas em cerca de setenta por cento dos casos. Ao investigá-lo, não pude deixar de pensar: "Que melhor maneira para Moscovo infiltrar uma toupeira no nosso seio? O filho de dezoito anos de imigrantes, dissidentes possuidores de um 'visto' familiar quando eram extremamente difíceis de obter. "
- É judeu@ - quis saber o general.
- Não, mas a maior parte das pessoas deve supor o contrário, o que, a meu ver, reforçaria o seu suposto disfarce. A dissidência soviética não provém exclusivamente dos judeus russos, embora pareça constituir a impressão geral. Por outro lado, foi focado várias vezes pelos órgãos da Informação: um Wunderkind de trinta e oito anos empenhado numa vendetta pessoal. Parecia tudo logicamente relacionado.
- E a respeito das circunstâncias? - inquiriu o presidente, com uma ponta de aspereza.
- Uma ausência inexplicável, mais uma vez. Ausentou-se do local de trabalho de meados da semana do Natal até oito de Janeiro. Não se encontrava em Washington, nem tinha atribuída qualquer missão que o justificasse. Incumbi um funcionário de contactar o chefe da respectiva secção e foi fornecida a explicação.
- Em que consiste?
- Foi autorizado a ausentar-se. A mãe encontrava-se gravemente enferma, em Chicago.
- Uma doença muito oportuna, hem?
- A tal ponto, que esteve às portas da morte. Obtivemos confirmação do Hospital Central Cook do respectivo condado.
- Mas ela não morreu - sublinhou o embaixador.
- Falei pessoalmente com o médico responsável, que se apercebeu com clareza da gravidade do meu inquérito e leu o que estava registado nos ficheiros.
- Peça-lhe que envie um relatório - ordenou Berquist. - Há demasiadas explicações. Uma delas é falsa.
- De acordo, mas qual? - redarguiu Bradford. - Não apenas acerca destes cinco. Temos de incluir os dezanove. Alguém, convencido de que faz um favor inofensivo a um superior, oculta-nos a identidade de Ambiguidade, encobre uma toupeira. Aquilo que figura como uns dias de prática de esqui, umas miniférias nas Caraibas, ou...
- Volte a aprofundar todos os elementos que lhe forneceram e descubra um que se destaque pela incoerência, ainda que ínfima.
- Que contenha uma discrepância - sugeriu Brooks. - Reuniões que não se efectuaram, uma conferência que foi adiada, despesas pagas com cartões de crédito cujas assinaturas são duvidosas... uma mulher gravemente doente à qual podem ter atribuído um nome suposto .
- Vai levar tempo - advertiu Bradford.
- Conseguiu muita coisa em pouco mais de doze horas - volveu o embaixador, com veemência.
- Dispõe da autoridade deste departamento para obter o que necessitar, seja o que for. Utilize-a! Descubra a toupeira! - Berquist sacudiu a cabeça, exasperado. - Ele e nós travamos uma corrida para alcançar um louco a quem chamamos Parsifal. Se os soviéticos chegarem primeiro, este país não dispõe de política externa viável. E se Parsifal entra em pânico, o resto deixa de interessar. - Pousou as mãos no tampo da mesa, antes de acrescentar: - Mais alguma coisa? Tenho dois senadores curiosos à espera, e o momento é pouco oportuno para lhes despertar curiosidade. Pertencem à Comissão de Relações Externas e palpita-me que estranham a ausência prolongada de Matthias. - Levantou-se
e virou-se para Bradford. - Preciso que me convença de que todos os ocupantes da ilha Poole merecem confiança.
- Sem dúvida. Foram investigados até à raiz dos cabelos, e nenhum deles sairá de lá sem nova ordem.
- Que não poderá tardar eternamente - acudiu Brooks. - Trata-se de uma situação invulgar.
- As circunstâncias também são invulgares - retorquiu Halyard. - As patrulhas estão armadas e o local pode considerar-se uma fortaleza.
- Armadas? - repetiu o presidente, num murmúrio. - Claro que estão. Simplesmente incrível!
- E quanto a Havelock? - perguntou Brooks. - Soube-se mais alguma coisa?
- Não - disse o chefe do Executivo, encaminhando-se para a porta. - Telefone-me mais tarde, senhor subsecretário - prosseguiu, sem explicação. - Por volta das três.
A neve, embora não muito densa, tombava com persistência. Os flocos ricocheteavam do pára-brisas, minúsculos mísseis que embatiam no vidro e se afastavam em silêncio, como milhares de asteróides em miniatura que atravessassem o espaço galáctico. Havelock, ao volante do carro alugado, passara pelo dístico, alguns minutos antes: MASON FALLS
5 km.
Abandonara o Hotel King's Arms, aliviado por ver outro recepcionista atrás do balcão, e seguira de táxi para o Aeroporto La Guardia. O mapa que adquirira indicava a localização de Mason Falls, Pensilvânia, e a maneira mais rápida de lá chegar consistia em utilizar um voo doméstico até Pittsburgh. De momento, não se preocupava com a continuação da vigilância por parte dos soviéticos. O russo que dominara decerto comunicara a sua chegada, mas, ainda que o não tivesse feito, La Guardia não era um terminal internacional.
O pessoal diplomático não o utilizava nos voos de e para o estrangeiro.
Obteve lugar, graças a uma desistência de última hora, no avião que descolava às 19.56, chegou a Pittsburgh às nove e um quarto e tratou de alugar um carro, pois o cartão de crédito permitia-lhe deixá-lo mais tarde em qualquer delegação da Heitz. As 21.45 rolava para o Sul, através das longas extensões de áreas descampadas que ladeavam a Estrada 51.
MASON FALLS FUNDADA EM 1858
Por entre os flocos de neve, agora mais densos, Michael descortinou o clarão avermelhado de um letreiro de néon em frente e, quando se achava mais perto, leu: BAR HARRY. Ou um habitante das margens do Monongahela tinha um sentido de humor muito apurado ou existia de facto alguém chamado Harry que ignorava a que distância de Veneza ou, Paris se encontrava. Ou talvez soubesse.
Na verdade, tudo indicava que sim. No interior, havia nas paredes fotografias ampliadas da Segunda Guerra Mundial que representavam cenas em Paris, algumas com um soldado à porta do Bar Hany da capital francesa, na Margem Direita. O ambiente era rústico, com copos pesados e bancos altos de espaldar junto do balcão. Uma máquina de discos ao canto emitia música country com intensidade agressiva, para distracção de meia dúzia de clientes de semblantes taciturnos. Condiziam, de resto, com o que os rodeava: todos do sexo masculino, numa profusão de camisas de flanela de xadrez, calças de belbutina e botins, indumentária que usavam nas herdades e nos celeiros. Tratava-se obviamente de agricultores e vaqueiros, o que Havelock podia ter deduzido das furgonetas estacionadas à entrada, porém o vento cortante impedira-o de proceder a uma inspecção, ainda que rápida.
Olhou em volta, à procura de um telefone, e verificou que se achava inconvenientemente situado a dois metros da máquina de discos. Este pormenor, todavia, contrariava-o menos
que a ausência de cabina e lista, porquanto necessitava de se inteirar de um endereço. Em La Guardia, não dispusera de tempo para procurar o volume referente a Mason Falls, e como o Aeroporto de Pittsburgh era internacional, quisera abandoná-lo o mais depressa possível. Por conseguinte, dirigiu-se ao balcão, postou-se entre dois bancos desocupados e aguardou que um Harry de expressão e maneiras sonolentas o atendesse.
- Que vai ser?
- Scotch on the rocks e a lista telefónica.
O homem observou Michael por um momento e alegou:
- É raro pedirem scotch. O que tenho não é grande coisa.
- Se me oferecesse do melhor, eu era capaz de não notar.
- Bem, a garganta é sua.
Estendeu a mão para uma prateleira atrás do balcão, mas, em vez de apresentar um copo com cubos de gelo, pousou uma lista telefónica diante de Havelock. Só então se afastou para a esquerda, onde havia uma fiada de garrafas.
Michael folheou o livro rapidamente e moveu o indicador ao longo dos nomes principiados por "K".
Kohoutek, Janos PRR 3, Caixa 12. Maldição! A Posta Restante Rural número 3 podia situar-se em qualquer ponto de Mason Falls, que, embora possuísse população pouco numerosa, contava com uma superficie vasta. Hectares e hectares de herdades e estradas sinuosas. E, se ligasse para lá, provocaria o alarme, pois, na eventualidade de existirem palavras especiais de abordagem, ele não as conhecia. Aludir a Jacob Handelman pelo telefone equivaleria a suscitar uma chamada de confirmação para Nova lorque. E ninguém responderia até que o corpo fosse encontrado, na manhã seguinte ou provavelmente só daí a dias.
- Ora, aqui tem - anunciou Hany, colocando a bebida em cima do balcão.
- Conhece um homem chamado Kohoutek? - perguntou Havelock, a meia voz. - Janos Kohoutek.
- De nome, mas não pessoalmente - informou o homem, após breve reflexão. -
É um desses estrangeiros que possuem terras na extremidade oeste.
- Sabe em que ponto, exactamente?
- Não. - Gesticulou na direcção da lista. - Aí não diz?
- Só indica uma PRR e uma caixa postal.
- Então, por que não liga para lá?
- Preferia não o fazer. Como disse, é um estrangeiro e pode não compreender pelo telefone.
- Oiçam cá! - bradou, para sobrepor a voz à música country. - Algum de vocês conhece um tipo chamado Kohoutek?
- É um estrangeiro - declarou um indivíduo de camisa vermelha.
- Tem mais de vinte hectares - acudiu outro. - Os refugiados podem dar-se a esse
luxo, com os subsídios do Governo. Nós não.
- Sabe onde? - inquiriu Havelock.
- Em Chamberlain ou Youngfield, a menos que seja em Fourforks. Confesso que não tenho a certeza. Já procurou na lista?
- Só lá vem PRR três. E o número da caixa postal.
- Estrada três - interveio outro, com barba de alguns dias e olhar congestionado. É o percurso de Davey Hooker, o mensageiro.
- Sabe onde fica?
- Com certeza. Em Fourforks Pike. Segue para oeste, a seguir ao terminal das camionetas, na Estrada 51.
Obrigado. - Michael levou o copo aos lábios e concordou com a opinião de Hany
A bebida não era grande coisa e nem sequer scotch. Em seguida, levou a mão à algibeira e pousou dois dólares no balcão. - Obrigado, mais uma vez.
- São sessenta cêntimos - informou Harry.
- O resto é por conta do passado. Do seu homónimo em Paris.
- Conhece-o?
- Estive lá, uma vez ou duas.
- Podia ter dito, para que lhe servisse uísqui decente! Em 1945, eu e...
- Desculpe, mas não tenho tempo. Havelock despediu-se com um gesto e encaminhou-se para a porta, sem se aperceber do homem sentado no banco da extremidade, que se levantou e dirigiu para o telefone.
Fourforks Me era uma estrada secundária sinuosa, interminável, que se estendia a partir do terminal das camionetas. A primeira caixa postal tinha o número 5 e achava-se num ponto bem visível, ao contrário do que sucedia com a seguinte, dissimulada entre a vegetação, e Michael só a viu por mera casualidade. As três imediatas encontravam-se cerca de dois quilómetros adiante. Duzentos metros mais à frente a estrada dividia-se e ele seguiu pela da direita, porém a caixa número 11 só surgiu passados quase dois quilómetros.
A partir daí, a expectativa foi-se acentuando, mesclada com tensão crescente, pois as curvas sucediam-se sem que aparecesse o número 12. Por fim, avistou-a. À direita. Uma caixa preta de dimensões apreciáveis, semelhante a uma cabana em miniatura, com uma abertura suficientemente larga para permitir a introdução de pequenos volumes. Havelock reduziu a velocidade e espreitou pela janela, mas não divisou luzes ou qualquer sinal de vida. Havia apenas aquilo que se assemelhava a um longo caminho que desaparecia numa muralha de árvores e escuridão mais pronunciada.
Prosseguiu em frente, atento a todos os pormenores. Por último, avistou uma área apropriada para o que tinha em mente e desviou o carro para a berma, junto de densa coberta de neve, que oferecia uma protecção satisfatória. A seguir, apagou os faróis e abriu a mala em cima do banco da frente. Removeu todos os elementos de identificação e guardou-os numa bolsa de plástico, após o que pegou num pesado saco do mesmo material, impenetrável aos raios X, do género utilizado para transportar películas impressionadas. Abriu-o e extraiu a automática Llama, cujo carregador se encontrava cheio, antes de pegar na navalha que usara em Col des Moulinets e a introduzir entre o cinto e a parte interior das costas, embora acalentasse a esperança de não necessitar de recorrer a qualquer das armas, pois as palavras eram infinitamente preferíveis e com frequência mais eficientes.
Desceu do carro, fechou-o à chave, puxou a vegetação da melhor maneira possível para o dissimular, apagou as marcas dos pneus na neve e seguiu em direcção à caixa Postal 12, PRR 3, de Mason Falls, Pensilvânia.
Percorrera apenas dez metros no caminho estreito que se desviava da estrada e parecia desaparecer numa muralha de árvores, quando se imobilizou. Não sabia determinar se se devia aos anos que passara estudando indistintamente território inimigo - consciente de que uni percurso desconhecido à noite podia conter surpresas fatais - ou ao vento cortante que o obrigava a inclinar a cabeça para a frente. A verdade é que se congratulou ao descortiná-lo: um minúsculo ponto luminoso esverdeado à sua direita, a cerca de sessenta centímetros do solo. Parecia suspenso, porém ele sabia que não era o caso. Ao invés, achava-se ligado à extremidade de um estreito tubo metálico preto afundado pelo menos meio metro na neve, para garantir a estabilidade do conjunto. Tratava-se de uma célula fotoeléctrica, com o seu complemento do outro lado do caminho e um feixe de luz invisível que cruzava a escuridão e unia os dois terminais. Qualquer obstáculo que o interrompesse durante mais de um segundo ou possuidor de uma densidade de peso superior a sete quilogramas activaria um alarme colocado algures. Os pequenos animais não bastavam para o conseguir, ao contrário dos automóveis e seres humanos.
Michael moveu-se cautelosamente para a direita e contornou o dispostivo, mas tomou a
deter-se pouco adiante, ao aperceber-se de uma linha branca oscilante à altura dos ombros: novo obstáculo, este constituído por uma vedação de arame farpado que limitava um campo adjacente. Uma determinada pressão activaria outros alarmes. Não subsistiam dúvidas de que Janos Kohoutek gostava de tomar todas as precauções e, considerando o local em que se instalara, rodeara-se do melhor existente no mercado da especialidade.
Por outro lado, Havelock chegou a uma conclusão óbvia: se havia um alarme de célula fotoeléctrica, existiriam outros ao longo do caminho, porquanto a possibilidade de uma avaria. fazia parte integrante da tecnologia de protecção. Perguntou-se se o percurso seria longo, sobretudo porque não enxergava coisa alguma além de vegetação, trevas e flocos de neve à sua frente. Recomeçou a caminhar, estendendo as mãos, a fim de afastar as ramagens que se lhe deparavam, sem deixar de prestar atenção em volta, em busca de novos pontos luminosos esverdeados.
Detectou quatro, a intervalos de cerca de cem metros, até alcançar a muralha de árvores, enquanto a vedação num dos lados se elevava gradualmente, como que comandada pela Natureza. Entretanto, encontrava-se encharcado, com as faces geladas e as sobrancelhas cobertas de neve, todavia os movimentos eram mais fáceis entre as árvores de troncos possantes, aparentemente plantadas ao acaso, mas que na realidade formavam uma parede visual. De súbito, notou que o terreno principiava a descer e prosseguiu com redobrada prudência, até que surgiu um cenário que o hipnotizou e perturbou, mais ou menos como reagÍra quando vira Jacob Handelman pela primeira vez.
primeira vista, era como qualquer herdade do interior, protegida por terreno inclinado à frente e arvoredo interminável à retaguarda. Havia um grupo de construções, maciças, simples, de madeira espessa para resistir vários Invernos, cujas janelas iluminadas cintilavam por entre os flocos: uma casa principal, diversos celeiros, um silo, alpendres para tractores, arados e equipamento geral próprio de um lugar do género. O conjunto correspondia na verdade ao que parecia, contudo ele sabia que representava algo mais. Muito mais.
Principiava com a cancela no final do declive. Compunha-se de tubos de ferro, porém tinha uma altura superior à habitual para entrada de uma herdade. Não alta em exagero, mas um pouco acima do que parecia indispensável, como se o construtor tivesse cometido um ligeiro erro de cálculo e decidido que não merecia a pena rectificá-lo. Depois, havia a vedação que se estendia para ambos os lados, também de uma altura excessiva. Mas seria apenas isso? Michael supôs que não superava muito os dois metros, embora parecesse mais baixa vista de cima do declive. De repente, detectou a anomalia. A parte superior do arame farpado apresentava um ângulo para dentro. Portanto, não se destinava a evitar que animais saltassem para dentro, sim a impedir que as pessoas saíssem por aquela via!
Inesperadamente, o clarão ofuscante de um projector brotou das regiões superiores do silo e imobilizou-se nele.
Apesar de o mundo assistir ao desenrolar de meados dos anos oitenta, Havelock encontrava-se perante um símbolo de carnificina humana que remontava à Segunda Guerra Mundial. Era um campo de concentração!
- Estávamos a ver quanto tempo demorava - proferiu uma voz atrás dele. Rodou prontamente nos calcanhares, ao mesmo tempo que estendia a mão para a automática, mas era demasiado tarde.
Braços possantes rodearam-lhe o pescoço, obrigando-o a dobrar-se para trás, e um par de mãos aproximou-lhe do rosto um pano embebido num líquido de odor acre.
O foco do projector continuava apontado a Michael, que o via, sentia, enquanto as narinas principiavam a arder-lhe. Por fim, surgiu a escuridão, que o impediu de ter consciência do que o rodeava.
Capítulo vigésimo primeiro
Sentiu o calor em primeiro lugar, que não achou particularmente agradável, mas apenas diferente do frio. Quando abriu os olhos, a visão foi-se focando gradualmente e, quase ao mesmo tempo, notou a náusea na garganta e a sensação de ardor no rosto. O odor pungente perdurava nas narinas: fora anestesiado com éter.
Descortinou chamas, toros que ardiam atrás de uma pequena divisória de amianto, numa larga lareira. Michael estava no chão, diante do lume, e tinham-lhe despido o sobretudo, pelo que a roupa molhada aquecia desconfortavelmente. No entanto, parte do desconforto localizava-se na cintura, junto da base das costas, onde a bainha da faca lhe irritava a pele. Não obstante, sentia-se satisfeito com a dor.
Rolou com lentidão, centímetro a centímetro, de pálpebras semicerradas, enquanto observava o que podia, ao clarão do lume e de vários candeeiros de mesa. Distinguiu vozes abafadas: dois homens conversavam em surdina atrás de um sofá castanho, no outro extremo da sala, à entrada de um corredor ou vestíbulo. Não se haviam apercebido do movimento, mas achavam-se ali para o vigiar. A sala, em si, harmonizava-se com as estruturas rústicas do exterior: mobiliário maciço funcional, tapetes espessos sobre o sobrado de tábuas largas e janelas dissimuladas por cortinas de xadrez que podiam provir de um catálogo da Sears Roebuck.
Era a sala simples de uma casa de campo, sem qualquer indício sugestivo de outra coisa susceptível de perturbar os olhos de um visitante. Quando muito, poderia considerar-se espartana, sem os cuidados de uma mulher, inteiramente masculina.
Havelock preparava-se para replicar, quando ouviu passos pesados que antecederam a aparição de um homem que empunhava um copo com um líquido fumegante.
- Olha, já acordou! - exclamou um dos dois homens.
- Vai chamar Mr. Kohoutek - indicou o outro, atravessando a sala em direcção a Michael. Contornou o sofá e introduziu a mão no casaco de cabedal, para puxar de uma automática, ao mesmo tempo que sorria. Era a pistola Llama de fabrico espanhol, que viajara de um cais envolto pelo nevoeiro, em Civitavecchia, através do Palatino e do Col des Moulinets, até Mason Falis, Pensilvânia. - Isto é mercadoria da boa, Mr. Sem-Nome. Há anos que não via uma igual. Obrigadinho.
Havelock preparava-se para replicar, quando ouviu passos pesados que antecederam a aparição de um homem que empunhava um copo com um líquido fumegante.
uma pessoa cheia de expedientes - bradou Janos Kohoutek. - Tenha cautela, ou ainda acaba por andar descalço na neve.
Ni shodz sniegu bez butow.
O sotaque do homem era do dialecto das montanhas dos Cárpatos, a sul de Otrokovice. As palavras que aludiam a andar descalço na neve faziam parte da advertência dos checos-morávios aos indivíduos humildes que não ganhavam o seu sustento ou vestuário. Para compreenderes o frio, anda descalço na neve.
Kohoutek contornou o guarda e postou-se diante de Havelock. Era um homem de compleição taurina, cuja camisa de gola aberta acentuava a constituição maciça do pescoço e do peito, sem que a idade lhe tivesse, por enquanto, afectado o físico. Não era alto, mas atarracado, e a única indicação dos anos residia no rosto adiposo, com rugas profundas, olhos encovados e pele crestada pela exposição ao ar livre durante mais de sessenta anos.
O líquido quente, castanho, que o corpo continha era chá preto dos Cárpatos e o homem que o empunhava descendia de checos, mas intitulava-se morávio por convicção.
- Com que então, é este o nosso invasor! - rugiu, baixando os olhos para o prisioneiro. - Um homem munido de uma pistola, mas sem identificação (nem sequer uma carta de condução, cartão de crédito ou carteira para conter essas coisas), ataca a minha herdade como um membro dos comandos! Quem é este assaltante nocturno? Que pretende? Como se chama?
- Havlicek - informou Michael, em voz baixa, pronunciando o nome com um sotaque próximo do morávio. - Mikhail HavIicek.
- Cesky?
- Ano.
- Obchodní? - uivou Kohoutek, perguntando o que pretendia.
- Má zena - respondeu Havelock. - A mulher.
- Co, zena? - tornou o touro envelhecido.
- A que foi trazida esta manhã - prosseguiu Michael, em checo.
- Trouxeram duas. Qual é?
- Loura... a última vez que a vi.
- Chlípny - articulou Kohoutek, arreganhando os dentes num sorriso desagradável...
- O corpo dela não me interessa, mas a informação que possui. - Michael começou a endireitar-se. - Posso levantar-me?
- Vzadním pripadé!
O touro montanhês soltou uma gargalhada brutal, estendeu o pé e pousou-o na garganta do prisioneiro, obrigando-o a estender-se de novo.
- Proklate! - vociferou Havelock, levando a mão ao pescoço. Era o momento de reagir com indignação, o início das palavras que interessavam. - Paguei! - gritou em checo. - Que ideia é a sua?
- Pagou o quê? Para se informar a meu respeito na estrada? Para se introduzir em minha casa a meio da noite? Eu é que lhe vou pagar!
- Fiz o que me indicaram!
- Quem?
- Jacob Handelman.
- Handelman? - O rosto adiposo do homem contraiu-se com apreensão. - Pagou a Handelman? Ele enviou-o aqui?
- Disse que lhe telefonaria a prevenir - explicou Havelock, apressadamente, recorrendo a uma verdade de Paris que o intermediário negara em Nova Iorque, por uma questão de lucro. - Eu não lhe devia telefonar em nenhuma circunstância. Tinha de deixar o carro na estrada, a seguir à caixa postal, e percorrer o resto do caminho a pé.
- Na estrada? Fez perguntas a meu respeito num bar da estrada?
- Não sabia onde ficava Fourforks Pike. Você tinha lá um homem? Ele telefonou-lhe?
- Não interessa. - O checo-morávio abanou a cabeça com veemência. - Um italiano que tem uma furgoneta. Às vezes, transporta produtos da minha herdade. - Fez uma pausa e a expressão ameaçadora reapareceu no olhar. - Mas não se limitou a percorrer o caminho. Aproximou-se como um ladrão, um ladrão armado!
- Não sou um imbecil, príteli. Sei o que tem aqui e procurei possíveis alarmes. Estive com os Podzerni. Encontrei-os e procedi com cautela. Não queria que me caíssem em cima cães ou homens armados. Porque pensa que tardei tanto tempo a vir do bar?
- Pagou a Handelman?
- E muito generosamente. Posso levantar-me?
- Sim, levante-se! Sente-se, sente-se! - ordenou Kohoutek, apontando para um banco à esquerda da lareira, o semblante mais preocupado que segundos antes. - Deu-lhe dinheiro?
- Muito. Ele disse que atingiria um ponto na estrada de onde veria a herdade em baixo. Estaria alguém à minha espera na cancela, para me fazer sinal com urna lanterna. Ora, não vi ninguém, mas como o tempo piorava, resolvi descer.
Rodou nos calcanhares, sem largar o copo de chá fumegante, e acercou-se de uma mesa
junto da parede, onde havia um telefone. Em seguida, pousou o copo, levantou o auscultador e marcou um número.
- Se vai telefonar a Handelman...
- Nada disso. Nunca lhe telefono. Ligo a um homem que contacta outro, o qual, por sua
vez, telefona ao alemão.
- Refere-se ao Rabino?
- Sim, ao Rabino.
- Não vai obter resposta.
- Porquê?
- Disse-me que partia para Boston. Ia pronunciar uma conferência num lugar chamado Brandese ou Brandeis.
- Um colégio de judeus - murmurou o checo-morávio. Após um silêncio, proferiu para o bocal: - Fala Janos. Liga a Nova Iorque e indica o nome de Havlicek. Tomaste nota? Havlicek. Quero uma explicação. - Cortou a ligação, tomou a pegar no copo e dirigiu-se de novo para junto da lareira. - Guarda isso! - ordenou ao guarda, que esfregava a Llania na manga. - Vai para o corredor. - Enquanto o homem se afastava, sentou-se diante de Havelock numa cadeira de balouço rústica. - Agora, ficamos à espera, Mikhail Havlicek. Não vai ser por muito tempo. Dez, quinze minutos, o máximo.
- Não sou o responsável da sua ausência de casa - disse Michael, encolhendo os ombros. - Não estaria aqui, se não tivéssemos chegado a um acordo. Não saberia o seu nome ou onde encontrá-lo, se ele não mo indicasse.
- Veremos.
- Onde está a mulher?
- Aqui. Temos vários edifícios - esclareceu o homem dos Cárpatos, levando o copo aos lábios e balouçando-se. - Está preocupada, claro. Não é bem o que esperava, mas acabará por compreender, como todos os outros. Somos a sua única esperança.
- Muito preocupada?
- Interessa-lhe? - inquiriu, semicerrando as pálpebras.
- Apenas profissionalmente. Tenho de a levar e não quero complicações.
- Veremos.
- Está bem? - quis saber Havelock, dominando a ansiedade com dificuldade.
- À semelhança dos outros, os educados, perdeu o uso da razão por um breve período.
- Kohoutek sorriu e acabou por soltar nova gargalhada desagradável, como se recordasse um facto divertido. - Quando lhe explicámos o regulamento, declarou que o considerava inaceitável. Inaceitável, imagine! - A risada brutal repetiu-se. - Vamos vigiá-la atentamente e acabará por compreender. Como todos.
- Não precisa de se apoquentar, porque tenciono levá-la.
- Já tinha dito.
- Paguei.
- Quanto? - inclinou-se para a frente e imobilizou a cadeira. Era a interrogação que desejara formular vários minutos antes, porém a maneira de proceder dos carpatianos desenrolava-se de fórina sinuosa.
Michael sabia que se encontrava numa posição perigosa, pois ninguém responderia de Nova Iorque e necessitaria negociar, como os dois homens sabiam perfeitamente.
- Prefere inteirar-se através de Handelman? Se estiver em casa.
- Talvez me agrade mais ouvi-lo dos seus lábios, príteli.
- Quem lhe garante que pode confiar em mim?
- Quem me garante que posso confiar no Rabino? Como sabe você que pode confiar nele?
- Por que não? Informou-me da sua existência e desta herdade. Não da maneira que eu mais desejaria, mas encontro-me aqui.
- Deve representar interesses influentes - admitiu Kohoutek, mudando bruscamente de assunto, como era hábito dos montanheses empenhados em negociações.
- Tão influentes, que não me faço acompanhar de documentos de identidade, como
teve ensejo de verificar.
- Em todo o caso, tanta influência costuma fazer-se acompanhar de dinheiro - observou, recomeçando a balouçar-se.
- Algum.
- Quanto pagou a Handelman? - A pergunta foi imediatamente seguida de interrupção de todo o movimento.
- Vinte mil dólares americanos.
- Vinte?... O rosto sulcado de rugas perdeu parte da cor e os olhos encovados pestanejaram. Uma quantia considerável, priteli.
- Ele achou-a razoável. - Havelock cruzou as pernas e notou que as calças estavam secas e haviam absorvido algum calor do lume. - Estamos preparados para casos destes.
- Estão também preparados para averiguar por que não me telefonou?
- Com o complicado sistema de comunicações que vocês têm, não me surpreende. Preparava-se para partir para Boston, e se não responderam imediatamente do número que marcou...
- Há sempre alguém junto do telefone. E você dirigia-se para uma armadilha que lhe teria custado a vida.
- Refere-se aos avisos luminosos? - perguntou, sem desviar os olhos do interlocutor e descruzando as pernas.
- Mencionou cães. De facto, temo-los. Só atacam em obediência a ordens, mas um intruso desconhece o pormenor. Cercam-no, ladrando furiosamente. Que teria feito?
- Utilizava a pistola, claro.
- O que lhe valeria ser abatido. Seguiu-se um breve silêncio, cortado finalmente por Havelock:
- E o Rabino ficava com vinte mil dólares que você desconhece e eu não lho podia revelar porque estava morto.
- Começa a compreender.
- Ele fazia-lhe isso... por vinte mil dólares?
- Podia haver outras considerações. - O homem de compleição taurina recomeçou a balouçar-se. - Tive alguns pequenos problemas, aqui (nada que não possamos dominar), mas trata-se de uma área deprimida. Gera-se alguma inveja, quando possuímos uma herdade próspera. Handelman podia querer substituir-me, arranjar um motivo para o fazer.
- Não estou a entender.
- Eu ficava com um cadáver nas mãos, que podia ter efectuado um telefonema antes de morrer, para indicar a alguém aonde se dirigia.
- Você alvejava um intruso, um homem armado, que provavelmente disparara primeiro. Limitava-se a defender a sua propriedade, ninguém o censuraria.
- Pois não - assentiu, continuando a balouçar-se. - Mas bastaria. O moraviano é um poço de problemas. Não convém mantê-lo ao serviço. Isola-se.
- De quê? Kohoutek levou o copo aos lábios e observou:
- Gastou vinte mil dólares. Está disposto a pagar mais?
- Talvez me deixe convencer. Queremos a mulher, que trabalhou com os nossos inimigos.
- "Queremos"? Quem?
- Não lho posso revelar. De qualquer modo, não significaria nada para si. Isolá-lo de quê?
É apenas o primeiro passo para essa gente... como a Corescu.
- Não é o nome dela.
- Acredito, mas isso não me preocupa. À semelhança dos outros, será pacificada, trabalhará aqui durante um ou dois meses e seguirá para outro lugar. Para o Sul, Sudoeste, Médio Oeste... onde nos convier mais. - O touro tomou a arreganhar os dentes. - Os documentos estão sempre prestes a chegar.. . só mais um mês, mais um congressista para subornar, um senador para abordar. Passado algum tempo, ficam como cordeiros.
- Os cordeiros também se podem revoltar.
- Com que finalidade? Para que os recambiem à procedência? A um pelotão de fuzilamento, um gulag, um garrote numa viela escura? Deve compreender que se trata de gente dominada pelo pânico. É um negócio fantástico!
- Os documentos alguma vez chegam?
- Sim, corri frequência. Em particular, para os indivíduos talentosos, produtivos. Os pagamentos prolongam-se por dois anos.
- Mas deve haver riscos. Alguém que recusa ou ameaça denunciá-los.
- Nesses casos, fornecemos um documento suplementar, príteli. Uma certidão de óbito.
É a minha vez de perguntar. A quem se refere o plural que emprega? E a minha de responder. Não lho posso revelar. Mas o Rabino quer irradiá-lo desde negócio fantástico. É possível. - A campainha do telefone retiniu com intensidade, e Kohoutek atravessou a sala rapidamente. - Talvez nos inteiremos agora - articulou, pousando o copo na mesa e levantando o auscultador a meio do segundo toque. - Sim?
Havelock conteve involuntariamente a respiração, reflectindo que as probabilidades não abundavam. Um atleta universitário curioso, cuja responsabilidade consistia na segurança dos inquilinos, podia ter procurado o intermediário. Ou um estudante, ansioso por esclarecer uma dúvida. As casualidades imprevistas eram em número apreciável.
- Vai tentando - disse o carpatiano. Michael voltou a respirar normalmente e o outro regressou à cadeira de balouço, deixando o copo na mesa.
- Ninguém responde de casa de Handelman.
- Está em Boston.
- Quando se deixaria convencer a pagar?
- Não costumo fazer-me acompanhar de quantias elevadas - replicou Havelock, tentando calcular mentalmente quanto teria na mala e concluindo que devia rondar os seis mil dólares... dinheiro que trouxera de Paris.
- Acompanhavam-no vinte grandes quantias para o Rabino.
- Tínhamos chegado a acordo prévio. Posso entregar-lhe uma espécie de avanço. Digamos, cinco mil.
- Avanço sobre quanto?
- Vou ser franco - proferiu em tom confidencial, inclinando-se para a frente. A mulher vale trinta e cinco mil dólares para nós. Foi a soma estipulada, da qual gastei vinte mil.
- Fora os cinco mil. Restam dez mil.
- Estão em Nova Iorque. Pode recebê-los amanhã, mas preciso de ver a mulher agora. Tenho de a levar esta noite.
- E safar-se de avião com os meus dez mil dólares?
- Porque havia de fazer uma coisa dessas? Trata-se de uma rubrica de orçamento, e não me preocupo com questões financeiras. Além disso, penso que você pode cobrar uma soma
razoável de Handelman. Quem rouba a ladrão... Tem-no na mão e dispõe de uma oportunidade de o deixar de fora da transacção.
- Vejo que é de facto das montanhas, Cechu! - Kohoutek soltou nava gargalhada estertórica. - Mas que garantias tenho?
- Mande um homem de confiança acompanhar-nos. Não estou armado. Indique-lhe que conserve a pistola apontada à minha cabeça.
- Num aeroporto? Não nasci ontem!
- Iremos de carro.
- Porquê esta noite?
- Esperam-na ao princípio da manhã. Tenho de a levar a um homem na esquina da Rua Sessenta e Dois com a Avenida Iorque, à entrada de East River Drive. Ele possui o dinheiro que falta. Depois, conduzi-la-á ao Aeroporto Kennedy, onde a espera um avião da Aeroflot.
O seu enviado pode certificar-se e ela não entrará no carro sem que o dinheiro seja pago. Que mais quer?
- O Rabino é um ladrão - considerou, balouçando-se. - O Cechu não será também?
- Não pode confiar num dos seus homens?
- Suponha que vou eu?
- Por que não?
- Combinado! Viajaremos juntos, com o mulher no banco de trás, a meu lado. Uma arma apontada à cabeça dela e outra à sua. Duas armas, príteli. Onde estão os cinco mil dólares?
- No carro que deixei na estrada. Mande alguém acompanhar-me, mas ele fica cá fora. Quem recolhe o dinheiro sou eu. Sem essa condição, não temos nada feito.
- Vocês, comunistas, são todos desconfiados.
- Aprendemos nas montanhas.
- Cechu!
- Onde está a mulher?
- Num edifício do interior do campo. Recusou comer e atirou o tabuleiro à cabeça do cubano. É uma pessoa culta, o que nem sempre constitui uma vantagem, embora sirva para elevar o preço, mais tarde. Primeiro, há necessidade de a domesticar. Talvez o cubano já principiasse. É um macho temperamental cujos testículos chegam ao chão. Aprecia as mulheres daquele tipo.
Michael esboçou um sorriso, sem dúvida um dos mais forçados de toda a sua vida.
- Os quartos têm sistemas de escuta?
- Para quê? Eles não fogem, nem podem traçar planos nesse sentido, sem ajuda exterior. De resto, a instalação de dispositivos dessa natureza podia provocar comentários desnecessários. Basta o trabalho que nos dão os da estrada, cuja manutenção está a cargo de um homem que vem propositadamente de Cleveland.
- Quero vê-Ia e depois sair daqui.
- Muito bem. Quando eu vir os cinco mil dólares. - Kohoutek parou de se balouçar, virou-se para o seu lado esquerdo e bradou em inglês: - Tu! Leva o nosso convidado ao seu carro na furgoneta. Deixa-o conduzir e aponta-lhe uma arma à cabeça!
Sessenta minutos mais tarde Havelok contava o dinheiro e transferia-o para as mãos do morávio.
- Pode ir ver a mulher, príteli - concedeu este último.
Michael atravessou o recinto rodeado por uma vedação na direcção do lado esquerdo do silo, seguido de perto pelo homem que empunhava a Llama.
- Corte à direita, aí adiante - indicou o guarda. Havia um celeiro na orla do arvoredo, embora fosse algo mais. Via-se luz em várias janelas do primeiro piso, com traços escuros e verticais, correspondentes a grades. Quem se encontrava lá dentro não podia sair. Tratava-se de uma camarata. Ein Zonzentrationslager.
Havelok sentia a pressão tranquilizadora da bainha da faca na base da coluna vertebral,
indicativo de que continuava no seu lugar. Sabia que podia dominar o guarda e apoderar-se da Llama, mas ainda era cedo. Ficaria para mais tarde, quando Jerma compreendesse, quando - e se - lograsse convencê-la. De contrário, ambos morreriam. Ele perdendo a vida e ela num inferno que a aniquilaria.
Escuta-me! Escuta-me, porque somos tudo o que resta da lucidez. Que nos aconteceu? Que nos fizeram?
- Bata à porta - ordenou o homem. Havelock, obedeceu, e uma voz com sotaque latino inquiriu:
- Quem é?
- Abre, por ordem de Mr. K. É Ryan. Depressa! A porta abriu-se cerca de cinco centímetros, para revelar um indivíduo que envergava um bolero e calça de ganga. Depois de observar Michael por um momento, viu o guarda e acabou de a abrir.
- Ninguém chamou.
- Julgávamos que estavas ocupado - disse o guarda, com um sorriso malicioso.
- Com quê? Dois porcos e urna louca?
- É com ela que queremos falar. Que ele quer falar.
- Então, bem pode ter um pénis de pedra. Espreitei há dez minutos e ela estava a dormir. Desconfio que não pregava olho há dois dias, pelo menos.
- Nesse caso, ele pode surpreendê-la. Subiram a escada e enveredaram por um corredor estreito, com portas em ambos os
lados. De aço e postigos no centro, para os guardas poderem inteirar-se do que se
passava dentro sem necessidade de abrir.
Encontramo-nos numa prisão móvel. Onde fora? Em Praga?... Trieste?... Barcelona?
- Ela está aqui dentro - anunciou o cubano, detendo-se diante da terceira porta. Quer dar urna olhadela?
- Abra e espere lá em baixo - replicou Havelock.
- Oialá...
- Ordetri de Mr. K. - acudiu o guarda. - Faz o que o homem diz.
O outro puxou de uma chave do cinto, abriu a porta da cela e desviou-se.
- Podem retirar-se - volveu Michael. Aguardou que se afastassem e entrou. O pequeno compartimento achava-se às escuras
e a única iluminação provinha da janela, repleta de flocos de neve. Ele avistou-a na cama, que na realidade se devia considerar antes um beliche. Completamente vestida, jazia de bruços, os cabelos louros em cascata sobre os ombros, com um dos braços suspenso da borda e a mão em contacto com o chão. Deitava-se em cima dos cobertores e a posição do corpo e o som da respiração profunda comprovavam a exaustão que a assolava. Ao contemplá-la, Havelock experimentou urna sensação pungente no peito pelo muito que ela sofrera, em grande parte por culpa sua. A confiança dissipara-se, os instintos haviam sido rejeitados e o amor esquecido. Ele não se comportara menos como um animal do que aqueles que lhe haviam feito aquilo. Sentia-se envergonhado. E cheio de amor.
Só então reparou que havia um pequeno candeeiro acesso do outro lado do beliche e a fraca intensidade da lâmpada contribuíra para que não se apercebesse antes. Acudiu-lhe um
temor glacial e notou uma contracção penosa na garganta. Enfrentara riscos no passado, porém nunca um perigo como aquele, uni momento que se revestisse de tanto significado para ele. Se o perdesse - se a perdesse e o elo entre ambos se fragmentasse irremediavelmente -, nada importaria, excepto a morte dos mentirosos. Estava perfeitamente ciente de que daria anos de vida para que o momento actual se imobilizasse no tempo. No entanto, a
expectativa também representava uma tortura auto-infligida. Corno eram as palavras? Entre a ameaça de uma coisa horrorosa e a sua concretização, existe um interlúdio que é
como um fantasma ou um sonho hediondo. Por fim, acercou-se do beliche.
Um braço moveu-se com brusquidão, em direcção ao seu abdómen, e Michael sentiu o impacto de um objecto aguçado, que não parecia uma faca. Deu um salto para trás, segurou a mão e torceu-a sem brutalidade, empenhado em não lhe acentuar a dor.
Recordou-se de Régine Broussac o prevenir de que ela o mataria, se pudesse. Jerma rolou para fora do beliche, a perna esquerda dobrada, com o joelho apontado aos
rins dele, ao mesmo tempo que as unhas se lhe cravavam nas faces. Havelock não podia defender-se agredindo-a, pelo que ela lhe agarrou os cabelos, puxou a cabeça para baixo e utilizou o joelho direito para lhe atingir o nariz. A penumbra foi atravessada por uma chuva de fragmentos de'luz branca.
- Cune! - exclamou Jerina, numa inflexão tomada gutural pela fúria. Ele compreendeu e reflectiu que aprendera bem as suas lições. Serve-te de um inimigo. Mata-o só se for indispensável. Mas utiliza-o primeiro. A intenção dela consistia na fuga, o
que explicava a indumentária descuidada, a saia levantada para expor uma extensão apreciável das pernas. Havelock atribuíra o facto inteiramente à exaustão, mas equivocara-se. Tratava-se de um cenário destinado a um prase que espreitasse pelo postigo da porta.
- Stuj! - murmurou ele, segurando-a com precaução, para não a magoar. -Tesíme! Libertou a mão esquerda e aproximou Jerma do candeeiro. Ela fitou-o de olhos arregalados, como se estivessem na iminência de saltar das órbitas, com a expressão mista de medo e ódio que Michael vislumbrara à janela do avião, em Col des Moulinets. O grito que se concentrava na garganta provinha do centro da sua vida e o uivo resultante foi prolongado e horrível - uma criança numa cave de terror, uma mulher que enfrentava o reaparecimento de dor infinita. De súbito, desferiu pontapés em movimentos alucinados e, libertando-se, lançou-se sobre o beliche e encostou-se à parede. Accionava a mão, tentando atingi-lo cegamente, como um animal encurralado privado de outros recursos defensivos. Brandia o instrumento que constituíra a sua única esperança de libertação - um garfo, cujos dentes apresentavam manchas de sangue dele.
- Escuta! - murmurou Havelock, em tom incisivo. - Fomos traídos! É o que vim dizer-te, o que tentei dizer-te em Col des Moulinets!
- Eu é que fui traída! Tu tentaste matar-me... quantas vezes? Se eu morrer, tu... Impeliu-a contra a parede, a fim de a imobilizar, com o braço direito dela sob o seu, e volveu:
- Régine Broussac acreditou em ti... mas depois acreditou em mim! Tenta compreender. Sabia que eu falava verdade!
- Não conheces a verdade! Mentiroso, mentiroso! Ela cuspiu-lhe na cara e recomeçou a debater-se, agitando as pernas e afundando as unhas na mão dele.
- Eles queriam que abandonasse a actividade e tu eras o meio para o conseguirem. Desconheço o motivo, mas sei que mataram homens... assim como uma mulher, que devias ser tu. Querem liquidar ambos!
- Mentiroso!
- Há mentirosos, sim, mas não sou um deles!
- És, sim! Vendeste-te à sviratal Kurva!
- Não! - Havelock segurou-lhe a mão que empunhava o garfo e aproximou-o da garganta. - Sabes o que tens a fazer - murmurou pausadamente. - Se perfurares a traqueia, não terei salvação possível... mas poderás escapar-te. Finge que alinhas com eles. Mostra-te passiva, e não tardarão a arranjar-te trabalho no exterior. Lembra-te de que só te interessa obter os documentos de identidade. Quando saíres, tenta telefonar a Régine Broussac, que te ajudará porque conhece a verdade. - Fez uma pausa e retirou a mão, soltando a dela. - Agora, não hesites. Mata-me ou acredita em mim.
O olhar fixo dela constituía uma espécie de grito interminável nas regiões tenebrosas do seu espírito, que o mergulhava no horror de mil recordações. Os lábios tremiam e, de
súbito, aconteceu. O terror e a incerteza perduravam-lhe nos olhos, porém o ódio atenuava-se. Por fim, as lágrimas irromperam, constituindo o bálsamo indicativo de que a cura podia principiar.
Baixou a mão e ele segurou-a com ternura. O garfo soltou-se dos dedos e o corpo tomou-se inerte, sacudido por fortes soluços.
Havelock limitou-se a ampará-la nos braços. Era a única coisa que podia fazer, tudo o que queria fazer.
Os soluços reduziram-se gradualmente e sucederam-se longos minutos de silêncio. Eles apenas ouviam as suas respirações e só se sentiam um ao outro, procurando apoiar-se mutuamente. Por último, Michael proferiu a meia-voz:
- Vamos sair, mas não será com limpeza. Viste Kohoutek?
- Vi, um homem horrível.
- Vai acompanhar-nos, convencido de que receberá o pagamento final da tua presença aqui.
- Mas não há dinheiro nenhum. - Jerina inclinou a cabeça para trás e fitou-o com intensidade. - Deixa-me ver-te bem.
- Não há tempo para...
- Caluda. - Pousou-lhe os dedos nos lábios. - Tem de haver, porque não existe mais nada.
- Pensei a mesma coisa quando vinha para aqui. - Ele sorriu e acariciou-lhe as faces. - Desempenhaste bem o teu papel, prekrásne.
- Magoei-te.
- Um rasgão superficial e alguns arranhões sem importância.
- Tens a cara a sangrar.
- E um leve ferimento no estômago, mas podes tratar-me mais tarde. Para já, as escoriações servem para confirmar a ideia deles. Vou levar-te do país num avião da Aeroflot.
- Continuo a debater-me?
- Não, basta que te mostres hostil. Estás resignada, porque sabes que não podes vencer. Se lutares, as coisas tomam-se mais difíceis para ti.
- E Kohoutek?
- Querque te sentes no banco de trás, a seu lado. Apontará uma arma a cada um de nós.
- Nesse caso, fartar-me-ei de fumar. A sua mão há-de baixar.
- Sim, algo do género. É um percurso longo e muita coisa pode acontecer. Uma estação de serviço, uma avaria no carro... Apesar de possante como um touro, deve rondar os setenta anos. - Havelock segurou-a pelos ombros. - Talvez decida drogar-te, mas tentarei dissuadi-lo.
- Não me dará nada de perigoso, porque quer o dinheiro. Isso não me preocupa. Estarás presente e saberás o que convém fazer.
- Vamos.
- Mikhail... - Ela apertou-lhe as mãos com veemência. - Que aconteceu? A mim... a ti? Eles disseram coisas medonhas, horríveis! Eu não queria acreditar, mas não via outra explicação para o que sucedia. Era tudo muito claro!
- Pois era. E minucioso, ao ponto de quererem que assistisse à tua morte.
- Santo Deus!...
- Ando em fuga desde então, mas a partir daquela noite, em Roma, passei a fugir numa direcção diferente. Atrás de ti, atrás dele... dos mentirosos que nos fizeram isto.
- Como conseguiram?
- Explicar-te-ei tudo o que puder mais tarde, para depois escutar a tua versão. Agora, não há tempo. Conheces os nomes e as pessoas.
Abraçaram-se com ternura por uns momentos, sentindo o conforto e a esperança que se insuflavam mutuamente. Em seguida, Michael puxou de um lenço e aproximou-o do
pescoço, todavia Jerina tirou-lho da mão e passou-o pelos arranhões nas faces, após o que examinou o nariz e ajeitou o cabelo nas têmporas.
- Trata-me com aspereza, querido - murmurou. - Empurra-me e agarra-me o braço com firmeza, como sabes fazer. Um homem que foi agredido por uma mulher, inimiga ou não, está fulo. Sobretudo diante de outros homens, pois a sua virilidade provoca mais sofrimento que as feridas .
- Obrigado, Siginund Freud. Vamos.
O guarda sorriu ao observar os arranhões nas faces de Havelock, enquanto o cubano inclinava a cabeça, como se obtivesse confirmação da ideia que formara. Em conformidade com as instruções, Michael segurava o braço de Jerina como num torno e puxava-a sem delicadeza, ao mesmo tempo que exibia uma expressão de cólera controlada.
- Procuremos Koboutek, para nos rasparmos daqui! - articulou com brusquidão. -
E não quero discussões, entendido?
- O herói varonil foi porventura agredido pela donzela indefesa? - ironizou o guarda, com uma expressão sardónica.
- Meta-se na sua vida!
- Vendo bem as coisas, ela não é assim tão indefesa. Janos Kohoutek envergava um pesado capote e gorro enterrado até às orelhas, e também sorriu ao notar os estragos produzidos no semblante de Havelock.
- Talvez seja uma bruxa dos Cárpatos - aventou, em inglês. - As velhas histórias das comadres dizem que elas têm a força de gatos monteses e a astúcia de demónios.
- Contento-me em chamar-lhe cadela, príteli - redarguiu Michael, impelindo Jerina para a porta. - Não quero perder tempo, porque a neve vai tomar a viagem mais longa.
- O pior é o velho - declarou o outro, extraindo um rolo de cordel espesso da algibeira e aproximando-se da rapariga. - Aliás, há pessoal incumbido de manter a estrada desobstruída.
- Para que é isso? - perguntou Havelock.
- Segura as mãos dela - indicou Kohoutek ao guarda. - Não estou interessado em provar as unhas desta gata.
- Preciso de fumar - alegou ela. - Estou muito nervosa. Que mal posso fazer?
- Talvez prefira uma picada? Assim, não lhe apeteceria fumar. --Os meus superiores não concordam com a aplicação de drogas - interveio Michael. Os aeroportos estão vigiados. Portanto, nada de narcóticos.
- Então, amarramo-la. Segura-lhe as mãos. - O guarda acercou-se de Jerma, que, hesitante, estendeu os braços, como que para providenciar que lhe tocassem apenas o mínimo indispensável. No entanto, de súbito, Kohoutek fez uma pausa. - Ela foi à casa de banho? - perguntou a ninguém em particular. Em face da ausência de resposta, voltou-se para a rapariga. - Foi à casa de banho?
- Não preciso - replicou Jetina.
- Durante várias horas? Não haverá paragens, ouviu? Nem que seja para se agachar na berma da estrada com uma pistola apontada à cabeça. Rozumís?
- Já disse que não preciso.
- Ate-lhe as mãos de uma vez, para partirmos. - Havelock deu mais alguns passos para a porta, com impaciência, evitando uma expressão de aprovação pela forma como Jenna procedia. - Suponho que este refugiado de um zalár nos levará no camião?
O visado mostrou-se enfurecido com a alusão, enquanto Kohoutek sorria.
Não está muito longe da verdade, Havlicek. Foi preso varias vezes por assalto à mão armada. Sim, é ele que guia. - Deu várias voltas de cordel aos pulsos de Jenna e fez alguns nós sólidos. - Axel!
- Ele tem a minha arma - referiu Michael, indicando o guarda. - Gostava que ma devolvesse.
- Há-de recuperá-la. Numa esquina de Nova Iorque. Naquele momento, surgiu o segundo guarda, aquele que se encontrava mais perto de Havelock quando recuperara os sentidos.
- Chamou, Mr. Kohoutek?
- És o encarregado das tarefas de amanhã, salvo erro?
- Sim, senhor.
- Mantém-te em contacto pela rádio com os camiões do Norte e manda um esperar-me a Monongahela, amanhã, quando o meu avião aterrar. Telefonarei do aeroporto para comunicar a hora do voo.
- Muito bem.
- Podemos seguir - decidiu, movendo-se para a porta. Michael segurou o braço de Jerina e o guarda encerrava o pequeno cortejo. Entretanto, o vento redobrara de intensidade e a neve tombava em turbilhões espessos, que lhes atingiam os rostos com violência. Com Kohoutek à frente, encaminhavam-se para a saída do recinto, onde um guarda que usava um parka branco se aproximou da cancela.
O camião era fechado, com dois longos bancos em lados opostos dos taipais, em que se viam, também, rolos de corda. Ao avistar o pequeno espaço sem janelas, Jenna mostrou-se fortemente impressionada, e Havelock compreendeu o motivo. Vira numerosas viaturas daquele tipo no seu país de origem, em comboios que transportavam homens, mulheres e
crianças dos quais não se voltava a ouvir falar. Estes encontravam-se em Mason Falls, Pensilvânia, EUA, e não na Europa, porém os seus proprietários e condutores não diferiam dos horriólogos de Praga e Varsóvia.
- Subam, subam! - bradou Kohoutek, agitando uma automática 45, enquanto o guarda baixava o taipal da retaguarda.
- Não sou seu prisioneiro! - retorquiu Havelock. - Negociámos! Estabelecemos um acordo!
- Parte desse acordo, priteli, consiste em que você é meu convidado e refém até chegarmos a Nova Iorque. Após as entregas (ambas), terei o maior prazer em guardar a arma e convidá-lo para jantar.
O morávio soltou uma profunda gargalhada, enquanto Jerma e Michael subiam para o camião. No entanto, quando se sentaram juntos, advertiu:
- A mulher fica a meu lado. Você, passe para o outro banco. Depressa.
- É paranóico - grunhiu Havelock, obedecendo.
O taipal foi encerrado pelo guarda, e Michael verificou que entrava um clarão ténue pelo pára-brisas. Reflectiu, no entanto, que os faróis seriam acesos dentro de segundos e o
reflexo iluminaria a retaguarda, ainda que com fraca intensidade. Na penumbra, desabotoou o sobretudo e estendeu lentamente a mão para o esconderijo da faca. Se não a removesse naquele momento, tomar-se-ia infinitamente mais difícil depois, quando se achasse ao volante do seu carro.
- Que é isso? - exclamou Kohoutek, erguendo a pistola e apontando-lha à cabeça. Que está a fazer?
- A gata cravou-me um garfo nas costas e o sangue colou a pele à camisa - explicou Michael, com naturalidade. E acrescentou, num grito: - Quer ver, apalpar?
- Uma carodejka carpatiana - comentou o morávio, com um sorriso malicioso.
- Deve haver lua cheia, mas não a podemos ver. - Explodiu em nova gargalhada brutal.
- Espero que a disciplina continue alerta em Lubyanka, de contrário ela devora os guardas!
Ao ouvir mencionar a temível prisão soviética, Jerina abafou uma exclamação e estremeceu.
- Valha-me Deus! Kohoutek olhou-a e Havelock compreendeu que ela procurava desviar-lhe a atenção.
Acto contínuo, retirou a faca da bainha e conservou-a na mão espalmada, operação que não tardou mais de doze segundos.
A porta da cabina da frente abriu-se e o guarda sentou-se ao volante e ligou os faróis. Em seguida, olhou para trás e pôs o motor em marcha, após o sinal de Kohoutek. O camião transpôs o declive com lentidão, mas sem dificuldade, e não tardou a alcançar a muralha de árvores onde a estrada se nivelava. Faltavam cerca de seiscentos metros de percurso sinuoso para atingirem Fourforks Pike. O guarda-motorista acelerou e, de repente, pisou o
pedal do travão, para imobilizar o veículo instantaneamente: acendera-se uma luz vermelha no tablier. Ele -estendeu a mão para um interruptor e depois para outro e soou o ruído característico de @<atmosfèricos" num altifalante invisível.
- Mr. Kohoutek! Mr. Kohoutek! - bradou subitamente uma voz metálica.
- Que há? - inquiriu o guarda, depois de pegar num microfone e premir um botão. Este é o canal de emergência.
- Acaba de telefonar o informador de Nova Iorque! Handelman morreu! Ouviu a notícia na rádio. Foi morto a tiro no apartamento e a polícia procura um homem...
Havelock segurou a navalha pelo cabo e lançou-se para a frente, ao mesmo tempo que estendia a mão esquerda para se apoderar da automática 45 e Jerina se desviava. A lâmina aguçada embebeu-se na mão carnuda de Kohoutek e atravessou-a, fixando-a no banco.
O morávio soltou um uivo de dor e o guarda virou-se no momento em que Jerina avançava para ele, desferindo-lhe uma pancada demolidora com as mãos atadas, após o que lhe arrancou o microfone e cortou a transmissão. Havelock empunhou a pistola e utilizou-a como uma clava na cabeça de Kohoutek, que deslizou pesadamente para o sobrado, embora conservasse a mão pregada ao banco.
- Mikhail!
O guarda recompusera-se do impacto e puxava a Llama do coldre, porém Havelock lançou-se-lhe em cima e atingiu-o com a automática na base do crânio.
- Ouviu, Mr. Kohoutek! - articulava a voz no altifalante. - Que deve fazer o informador?
- Diz-lhe que tomei conhecimento - ordenou Michael, respirando pesadamente. -
Que não faça nada, até ver. Depois receberá novas instruções.
O guarda sacudiu a cabeça para neutralizar parcialmente o efeito da pancada que acabava de sofrer, e proferiu num murmúrio:
- Tomámos conhecimento. O informador deve aguardar instruções. Até lá, não fará nada.
Havelock pendurou o microfone no tablier e indicou a Llama, que continuava em poder do homem.
- Entregue-ma, muito devagarinho. Utilize os dedos. Apenas dois. De qualquer modo, pertence-me.
- Tencionava restituir-lha - afirmou o guarda, em voz trémula.
- Quantos anos pode restituir às pessoas que envolveu nisto?
- Não foi obra minha! Limito-me a trabalhar para viver. Faço o que me ordenam.
- É o que todos vocês dizem. - Michael pegou na Llania e pousou o cano na cabeça do outro. - Agora, leve-nos daqui para fora.
Capítulo vigésimo segundo
O homem magro, de meia-idade e cabelos pretos lisos, abriu a porta da cabina telefónica na esquina da Rua 116 com Riverside Drive. A neve acumulava-se nos vidros e absorvia
o clarão das luzes vermelhas rotativas dos carros da polícia a meio do quarteirão seguinte. Introduziu a moeda na caixa, marcou O e mais cinco dígitos e, quando ouviu de novo o sinal uniforme, voltou a utilizar o marcador. Instantes depois, retinia a campainha de um telefone secreto na área habitacional da Casa Branca.
- Estou...
- Senhor presidente?
- Emory? Então?
- Nada feito. Ele está morto. Assassinaram-no a tiro.
O silêncio em Washington apenas era interrompido pela respiração pesada de Berquist, que acabou por murmurar:
- Explique-me o que aconteceu.
- Foi Havelock, mas divulgaram o nome incorrectamente.
- Havelock? Santo Deus! ...
- Não conheço todos os pormenores, mas inteirei-me dos suficientes. O "vaivém" foi retardado pela neve e tivemos de descrever círculos sobre La Guardia durante cerca de uma hora. Quando lá cheguei, deparou-se-me uma multidão à porta, com carros da polícia e da Imprensa e uma ambulância.
- Da Imprensa?
- Sim, senhor. Handelman era uma pessoa importante, em Nova Iorque, não só por se tratar de um judeu que sobreviveu ao campo de Bergen-BeIsen, mas também devido à sua posição na universidade. Era respeitado e até venerado.
- Bonito... Que apurou? Como se inteirou? Espero que o seu nome não venha à baila!
- De modo algum. Recorri ao meu cargo no Departamento de Estado e visitei a esquadra do bairro, cujo detective se mostrou muito atencioso. Segundo parece, Handelman tinha encontro marcado com uma finalista da universidade, que esteve no prédio duas vezes antes de tocar para o porteiro. A seguir, subiram juntos, ele viu que a porta não se encontrava fechada à chave, entrou e descobriu o cadáver. Telefonou imediatamente à polícia e declarou mais tarde que admitira no prédio um homem que apresentava credenciais do Departamento de Estado, chamado Havilitch. Não se recordava do primeiro nome, mas insistiu em que os elementos mostrados estavam em ordem. A polícia ainda lá se encontra para recolher impressões digitais e outros possíveis indícios.
- Os pormenores foram divulgados ao público?
- Há uns vinte minutos. Não me podia opor, ainda que quisesse. No entanto, há possibilidade de negarmos tudo.
O presidente conservou-se silencioso por um momento, antes de decidir:
- Quando for oportuno, o Departamento de Estado colaborará inteiramente com as autoridades. Até lá, quero que seja elaborado um relatório (posto a circular numa área restrita) sobre as actividades de Havelock desde a sua separação do Governo. Deve reflectir o nosso alarme acerca da sua condição mental, as aparentes tendências homicidas... e lealdade. Todavia, no interesse da segurança nacional, esse relatório será rigorosamente confidencial. Não chegará ao conhecimento do público.
- Receio não compreender bem.
- Os factos serão revelados, quando Havelock já não representar uma ameaça para os interesses do país.
- Perdão?...
- Um homem é insignificante - salientou Berquist, a meia-voz. - Lembre-se de Coventry, senhor subsecretário. Do Enigma... Parsifal.
- Aceito o raciocínio, mas não a conclusão. Como podemos ter a certeza de que o encontraremos?
- Ele é que nos encontrará. A si. Se tudo o que apurámos a seu respeito corresponde à verdade, como julgamos, não mataria Jacob Handelman se não tivesse um motivo importante. E nunca o faria se não se inteirasse do paradeiro de Jenna Karas. Quando o contactar, ficará ciente do papel desempenhado pelo Departamento de Estado.
- Sim, tem razão, senhor presidente - assentiu Bradford, na sequência de uma pausa.
- Regresse o mais depressa possível. Temos... tem de estar preparado. Chamarei dois homens da ilha Poole, para que se encontrem consigo no Aeroporto Nacional. Não saia de lá até eles chegarem.
- Muito bem.
- Agora, preste muita atenção, Emory. As minhas instruções serão directas e a explicação clara. Por determinação presidencial, receberá protecção permanente. A sua vida encontra-se nas mãos deles. É perseguido por um assassino que vendeu os segredos do seu
Governo ao inimigo. Estas são as palavras que eu empregarei. As suas, Emory, diferirão um pouco. Utilizará a linguagem das Operações Consulares: Havelock é <@irrecuperável". Cada hora que passa faz aumentar o perigo a que os nossos agentes secretos se expõem.
- Compreendo.
- Outra coisa.
- Sim, senhor presidente?
- Antes de tudo isto acontecer, eu não o conhecia pessoalmente. Qual é a situação em
sua casa?
Em minha casa? É onde ele o procurará. Tem lá filhos? Não. O mais velho está na universidade e o mais novo num colégio interno. Pareceu-me ouvir que também tinha filhas. Sim, duas, mas encontram-se com a mãe. No Wisconsin. Não sabia. Há outra esposa? Houve. Também duas, mas não duraram. Por conseguinte, não vivem mulheres em sua casa? Passam por lá algumas, com certa frequência, mas não a título permanente. Têm sido poucas, nos últimos quatro meses.
- Compreendo.
- Vivo só. As circunstâncias são óptimas, senhor presidente.
- Sim, acho que são.
Servindo-se dos rolos de corda, ataram o guarda ao volante e Kohoutek ao banco, após o que Michael indicou:
- Procura qualquer coisa para lhe vendar a mão. Preciso dele vivo, para que o interroguem.
Jetina encontrou um cachecol de algodão no porta-luvas, arrancou a faca da mão do morávio, rasgou o tecido ao meio e improvisou habilmente uma ligadura.
- Deve aguentar por umas horas. Talvez quatro. Depois, não garanto nada. Se acordar
e arrancar a ligadura, pode ter uma hemorragia fatal... Sabendo o que sei, não costumo recorrer a preces.
- Alguém o descobrirá e ao guarda. Vai amanhecer dentro de cerca de uma hora e esta estrada deve ser concorrida, durante o dia. - Havelock ligou o motor e, movendo o corpo do homem para a direita e a esquerda, juntamente com o volante, atravessou o camião na
faixa de rodagem, onde o imobilizou. - Pronto. Toca a andar.
- Não me podem deixar aqui! - protestou o guarda.
- Foi à casa de banho, ultimamente?
- O quê?
- Oxalá que sim, no seu interesse.
- Mikhail?
- Hem?
- O transmissor. Se passar alguém e o libertar, ele utiliza-o. Precisamos de todos os minutos possíveis.
Havelock. retirou a automática 45 de cima do banco e serviu-se dela para destruir todos os mostradores e interruptores do tablier. Por fim, arrancou o microfone do receptáculo, juntamente com os fios, abriu a porta e virou-se para Jerina.
- Vamos deixar os faróis acesos, para que não haja um acidente - explicou, descendo e fazendo sinal para que o mátasse. - Falta só uma coisa. - Em virtude do vento, a estrada apresentava menos de cinco centímetros de espessura de neve, à parte os montes intermitentes que se haviam formado ao longo da vegetação da berma. Ele entregou a automática a Jenna e passou a Llama para a mão direita. - Isso faz muito barulho e o vento podia levá-lo à herdade. Deixa-te estar aí. - Correu para a retaguarda e puxou o gatilho duas vezes, para perfurar os pneus, após o que repetiu a operação com os da frente. Por último, reuniu-se à rapariga e pediu: - Dá cá a quarenta e cinco.
- Para quê? - quis saber ela, obedecendo.
- Vou limpá-la. Não que adiante muito, pois as nossas impressões digitais estão espalhadas por todo o carriJão, mas talvez não as procurem aí. Por outro lado, uma arma de fogo é a primeira coisa a ser examinada.
- E daí?
- Confio em que o nosso condutor, no seu próprio interesse, proteste que não lhe pertence, mas ao patrão e nosso anfitrião, Kohoutek.
- Balística - aquiesceu ela, inclinando a cabeça. - Assassínios registados nos arquivos da polícia.
- Talvez mais alguma coisa. A herdade será passada a pente fino, e não me admirava nada que procedessem a escavações e descobrissem assassínios não registados.
Michael limpou a automática com a fralda da camisa e colocou-a no assento da cabina do camião.
- Seja razoável, que diabo! - exclamou o condutor, debatendo-se, preso ao volante. Tire-me daqui. Não lhe fiz nada! Metem-me dentro por mais de dez anos!
- Costumam ser compreensivos para quem fornece provas ao Estado. Vá pensando nisso. - Havelock fechou a porta e voltou rapidamente para junto de Jerina. - Deixei o carro a uns trezentos metros daqui. Sentes-te bem?
Ela olhou-o em silêncio por um momento. Partículas de neve aderiam aos cabelos louros agitados pelo vento e tinha o rosto alagado, porém os olhos brilhavam de alegria.
- Sim, querido, estou bem... Onde quer que estejamos neste momento, sinto-me em casa.
Ele pegou-lhe na mão e principiaram a afastar-se.
- Caminhemos pelo meio, para que as pegadas fiquem cobertas.
Jerina sentava-se junto dele, o braço enfiado no seu e a cabeça pousada intermitentemente no ombro, enquanto o carro deslizava na estrada coberta de neve.
Trocavam poucas palavras, entremeadas de silêncios confortáveis. Sentiam-se demasiado cansados e receosos para conversar com sensatez, pelo menos para já. Não se tratava de uma situação nova, e sabiam que surgiria um pouco de paz com a quietude... e o facto de se encontrarem juntos.
Tendo presentes as palavras de Kohoutek, Havelock rumou ao norte, em direcção à encruzilhada da Pensilvânia, e depois a leste, no sentido de Harrisburg. O velho morávio não se equivocara: era mais o vento que a neve e a intensidade e temperatura glacial conservavam o piso seco, pelo que podiam manter uma velocidade média satisfatória.
- Esta estrada é a principal? - perguntou Jerina, por fim.
- Pelo menos, nesta área.
- Parece-te prudente utilizá-la? Se Kohoutek for encontrado antes de romper o dia, é capaz de haver patrulhas a vigiar este percurso, como acontece nas Bahnen e nas dráha.
- Somos as últimas pessoas deste mundo que ele deseja localizadas pela polícia, pois sabemos o que funciona na herdade. Arranjará uma explicação qualquer, alegando que o refém era ele. E o guarda não dirá uma palavra até que não tenha outra alternativa ou descubram o seu cadastro, e depois tentará negociar. Penso que não corremos perigo imediato.
- Isso, quanto à polícia - volveu ela, pousando-lhe a mão no braço com ternura. Mas supõe que se trata de outros? Imagina que eles são encontrados por um agricultor ou o condutor de um transporte de leite. Julgo que Kohoutek pagaria uma quantia avultada para regressar a casa sem intervenção das autoridades.
Michael olhou-a ao ténue clarão do tablier. Os olhos exibiam uma expressão de fadiga, com círculos violáceos em tomo, e o medo ainda não se extinguira. Todavia, apesar da exaustão e do temor, raciocinava, e melhor do que ele. No entanto, havia que tomar em consideração que era perseguida há mais tempo. De qualquer modo, não se deixaria dominar pelo pânico, pois conhecia o valor da presença de espírito, mesmo quando a dor e o terror eram esmagadores.
- És admirável - murmurou, inclinando-se para a beijar na face.
- Tenho medo.
- E concordo contigo. As probabilidades de a polícia encontrar Kohoutek ou um cidadão comunicar às autoridades o que se lhe deparou não vã o além de setenta para trinta. Abandonaremos a estrada no primeiro desvio e seguiremos para o Sul.
- Com que destino?
- Para já, em busca de um lugar onde possamos estar sós e sem nos movermos. Sem fugir.
Ela sentava-se numa cadeira perto da janela do motel, enquanto a claridade matinal se espraiava sobre os montes Alegânis, ao longe. Os raios solares amarelados acentuavam-lhe a tonalidade dourada dos cabelos, que se alongavam até aos ombros. Jenna voltava-se alternadamente para Michael e desviava os olhos e cerrava as pálpebras, pois as palavras dele eram demasiado penosas para as escutar à luz do dia.
Quando terminou, Havelock sentiu-se, uma vez mais, dominado pelo reconhecimento pungente de que fora o carrasco dela. Matara o seu amor, e não subsistira a mínima parcela de afecto no seu íntimo.
Por último, a rapariga levantou-se e conservou-se diante da janela, para murmurar:
- Que nos fizeram? Ele contemplava-a, impossibilitado de afastar o olhar. De súbito, retrocedeu através do tempo interminável, por entre a neblina densa de um sonho persistente, obsessivo, que nunca o abandonava. As imagens achavam-se presentes e os momentos recordados, mas tinham sido arrancadas da sua vida para o atacar, inflamando-o sempre que as recordações se negavam a permanecer sepultadas. Que resta, quando a sua memória desapareceu, Mr. Smith? Nada, claro, apesar do que muitas vezes ansiara pelo esquecimento, sem imagens nem momentos evocados - trocando o vazio pela ausência de dor. Agora, porém, atravessara o pesadelo do sono interrompido e regressara à vida, tal como as lágrimas haviam acudido aos olhos de Jerina e lavado o ódio que persistira. Não obstante, a realidade era frágil e os seus fragmentos necessitavam ser reunidos.
- Temos de descobrir o motivo - disse Michael. - Régine Broussac explicou-me o que te acontecera, mas há lacunas que não entendo.
- Não lhe revelei tudo - admitiu ela, conservando os olhos fixos na neve. - Embora não lhe mentisse, omiti alguns pormenores, com medo de que se recusasse a ajudar-me.
Quais?
- O nome do homem que me procurou. Pertence ao Governo há vários anos e chegou a ser algo controverso, irias julgo que ainda o respeitam.
- Como se chama?
- Emory BradfÓrd.
- Santo Deus!... Havelock ficou surpreendido, quase abismado. Bradford era um nome que pertencia
a um passado inquietante. Fora um dos cometas políticos nascidos durante o mandado de Kennedy e guindados às altas esferas ao longo do de Jolinson. Quando os cometas se haviam extinguido do firmamento de Washington, rumo aos bancos e fundações internacionais, gabinetes de advogados prestigiosos e administrações de empresas importantes, Bradford conservara-se - menos célebre e influente, sem dúvida - onde as guerras políticas se travavam. Nunca se compreendera porquê. Podia ter enveredado por dezenas de outros caminhos mais proveitosos, mas não se mostrara interessado. Porventura permanecera durante todos aqueles anos à espera do momento oportuno para se converter noutra versão de Camelote que o transportasse a outra época de glória? Não podia haver outra explicação. Se contactara Jemia em Barcelona, encontrava-se no fulcro do episódio da Costa Brava, uma ilusão que se projectava muito para além de Michael e ela, dois amantes voltados um contra o outro. Ligava homens invisíveis de Moscovo a outros poderosos do Governo dos Estados Unidos.
- Conhece-lo? - perguntou Jerina, continuando voltada para a janela.
- Pessoalmente, não. No entanto, tens razão. Foi um homem controverso. A última vez que ouvi falar dele, era subsecretário de Estado com perfil baixo, mas reputação muito elevada... enterrado, embora valioso, por assim dizer. Disse-te que trabalhava com as Operações Consulares de Madrid?
- Explicou que participava numa missão especial com elas, uma emergência que envolvia a segurança interna.
- Eu?
- Exacto. Mostrou-me cópias de documentos encontrados no cofre de um banco das Ramblas. - Virou-se para dentro. - Recordas-te de me dizer que tinhas de ir às Ramblas, em diversas ocasiões?
- Também te referi que se tratava de um local de recepção de material de Lisboa. De qualquer modo, foi tudo orquestrado.
- Mas as Ramblas ficaram-me gravadas na memória.
- Eles providenciaram nesse sentido. Que documentos eram?
- Instruções de Moscovo que só a ti se podiam destinar. Havia datas, itinerários, etc. Tudo correspondia a onde tínhamos estado e para onde nos dirigíamos. Assim como códigos. Se não eram autênticos, nunca vi uma cifra russa.
- O mesmo material que me forneceram - murmurou Havelock, sentindo a cólera reaparecer.
- Eu compreendi-o, quando me explicaste o que te entregaram em Madrid. Não tudo, claro, mas muitos dos mesmos documentos e grande parte da informação que me mostraram. Até à minúcia da rádio no quarto de hotel.
- A frequência marítima? Pensei que fora falta de cuidado de tua parte, pois nunca escutávamos a rádio.
- Quando vi tudo aquilo, uma grande parte de mim morreu - confessou Jeima.
- Quando descobri a chave na tua carteira e verifiquei que condizia com a que as provas de Madrid afirmavam que estaria em teu poder (a chave de um cacifo alugado no aeroporto), não consegui ficar no mesmo quarto contigo.
- Sim, foi isso. A confirmação final para ambos. Eu mudara, não o podia evitar. E quando voltaste de Madrid também eras diferente, como sete puxassem violentamente em
vários sentidos, mas apenas com um compromisso verdadeiro, e não para comigo, para
connosco. Venderas-te aos soviéticos por razões fora da minha compreensão... Até tentei raciocinar com lógica. Talvez, passados trinta anos, houvesse notícias de teu pai. Sucederam coisas mais estranhas que isso. Ou tinhas de executar uma missão mais confidencial sem mim, um desertor na iminência de se tornar agente duplo. Convenci-me de que a transição, qualquer que fosse, não me incluía. - Virou-se de novo para a janela e, em tom quase inaudível, prosseguiu: - Depois, Bradford voltou a contactar-me, desta vez dominado pelo pânico, quase descontrolado. Anunciou que acabava de ser interceptada a ordem de Moscovo para a minha execução. Tu devias atrair-me a uma armadilha, naquela mesma noite.
- Na Costa Brava?
- Não, ele nunca se referiu à Costa Brava. Disse que um homem me telefonaria, por volta das seis da tarde, durante a tua ausência, pronunciando uma frase ou descrição que eu reconheceria como proveniente de ti. Alegaria que não tinhas possibilidade de telefonar e eu devia seguir no carro para Villanueva, na costa, e me aguardarias na praça principal. No entanto, eu nunca lá chegaria, porque me atacariam na estrada.
- Eu disse-te que ia a Villanueva - lembrou Michael. - Fazia parte da estratégia das Operações Consulares. Encontrando-me eu supostamente quarenta quilómetros ao sul, em serviço, dispunhas de tempo para chegar à praia de Montebello, na Costa Brava. Era a prova final contra ti. Eu testemunharia tudo... exigi-o, aliás, esperançado em que não aparecesses.
- Tudo se ajustava, em conformidade com os preparativos! - exclamou ela. BradfÓrd recomendou-me que, se me procurasses, tratasse de fugir. Outro americano estaria no átrio do hotel com ele, à espreita, para quando aparecesse alguém do KGB, e depois levar-me-iam para o consulado.
- Mas não os acompanhaste. A mulher que vi morrer não eras tu.
- Não podia. De repente, senti que não devia confiar em ninguém... Lembras-te do incidente daquela noite no café do Paseo Isabel, antes de partires para Madrid?
- O bêbado. - Havelock inclinou a cabeça, com a cena bem presente no espírito. -
Esbarrou contigo, praticamente caiu-te em cima, e insistiu em te beijar a mão.
- Rimo-nos do episódio. Tu mais do que eu.
- Não achei graça, dois dias depois. Convenci-me de que foi nesse momento que te entregaram a chave do cacifo no aeroporto.
- De cuja existência eu não fazia a menor ideia.
- E que encontrei na tua carteira, porque Bradford a colocou lá quando esteve no quarto do hotel e eu em Madrid. Suponho que te ausentaste por uns momentos.
- Encontrava-me em estado de choque, atordoada. Tenho a certeza de que o fiz.
- Isso explica a rádio e a frequência marítima... e o bêbado?
- Era o outro americano no átrio do hotel. Porque estava lá? Quem era? Voltei para trás o mais depressa possível.
- Não te viu?
- Não, porque subi pela escada. A sua expressão assustava-me, embora não consiga explicar o motivo. Talvez porque fingira ser outra pessoa, alguém muito diferente, não sei. Sei, sim, que os seus olhos me perturbavam: continham uma expressão irritada, mas não se moviam em volta. Ele não vigiava o átrio em busca de um agente do KGB. Limitava-se a consultar o relógio com insistência. Entretanto, eu entrara em pânico... confusa e mais magoada que em qualquer outro momento da minha vida. Tu ias deixar-me morrer e descobria de repente que não podia confiar neles.
- Voltaste para o quarto?
- Nem pensar, pois ficaria encurralada. Subi ao piso e fiquei no patamar, onde tentei raciocinar. Pensava que talvez reagisse com histerismo, demasiado assustada para proceder
de forma razoável. Por que não confiava nos americanos? Estava quase decidida a descer de novo, quando ouvi ruídos no corredor. Espreitei e compreendi que afinal procedera bem.
- Iam buscar-te?
- Sim, pelo elevador. Bradford bateu à porta várias vezes, enquanto o companheiro (o suposto bêbado do café) puxava de uma arma. Aguardaram um pouco, até certificarem-se de que não havia ninguém no corredor, arrombaram, a porta e entraram . Não se podia de modo algum considerar a atitude de quem pretendia salvar-me. Em face disso, fugi.
Michael observava-a em silêncio e tentava coordenar as ideias. Havia tantas ambiguidades... ambiguidades. Onde estava a descrição do homem que utilizava o código Ambiguidade?
- Como se apoderaram da tua mala de viagem? - perguntou, por fim.
- Como a descreveste, era antiga e creio que a tinha deixado na cave do apartamento que alugara em Praga.
- O KG13 encontrá-la-ia.
- O KGB?
- Alguém de lá.
- Sini, tens razão... Tem de haver alguém.
- Qual era a frase ou descrição que o homem te transmitiu pelo telefone? As palavras que devias pensar que provinham de mim.
- Disse que havia "um pátio empedrado no centro da cidade". Tratava-se de Praga, mais uma vez.
- Verejná mismost - articulou ele, inclinando a cabeça. - A polícia soviética de Praga. Eles estavam ao corrente disso. Num relatório que enviei a Washington, referia a tua fuga do local. E como eu quase morrera, enquanto te observava de uma janela, três pisos acima.
- Obrigada pelo elogio.
- Reuníamos todos os pontos comuns, recordas-te? Tencionávamos libertar-nos da nossa prisão móvel.
- E tu pretendias dedicar-te ao ensino.
- História.
- E havíamos de ter filhos...
- E mandá-los para o colégio...
- E amá-los e ralhar-lhes.
- E levá-los a desafios de hoqueibol.
- Modalidade que disseste não existir.
- Amo-te...
- Mikhail? Os primeiros passos foram hesitantes, porém a pavana foi completada subitamente. Correram um para o outro e abraçaram-se, isolando-se do tempo, das feridas emocionais e de mil momentos de angústia. As lágrimas de Jenna irromperam, para lavar as derradeiras barricadas montadas por mentirosos e homens que os serviam. Os braços tomaram-se mais fortes em tomo dos corpos e a tensão destes um impulso que eles compreendiam. Os lábios tocaram-se ternos, exploratórios, em busca da expansão que continham um para o outro . Encontravam-se encurralados como jamais no passado na sua prisão móvel, como também entendiam, mas de momento achavam-se igualmente livres.
O sonho transferira-se inteiramente para a vida, com um realismo que deixara de ser frágil. Ela encontrava-se ao lado dele, o rosto em contacto com o seu ombro, lábios entreabertos, a respiração profunda aquecendo-lhe a pele. Como tantas vezes no passado, madeixas louras pousavam no peito dele, como se pretendessem recordar que, mesmo durante o sono, pertenciam um ao outro. Michael voltou-se cautelosamente, para não
a acordar, e contemplou-a. Os círculos violáceos em torno dos olhos ainda se achavam presentes, mas atenuavam-se, à medida que uma sugestão de cor lhe reaparecia na tez pálida. Seriam necessários dias, porventura semanas, para que a expressão de medo no
olhar se extinguisse. Todavia, apesar disso, a sua energia, a sua resistência, não desapare-
cera e permitira-lhe sobreviver a provações insustentáveis.
Ela moveu-se, para se espreguiçar, e as faces ficaram sob a acção dos raios solares que se
filtravam pela janela. Enquanto a observava, Havelock ponderava o que Jerina sofrera, os
recursos que decerto tivera de reunir para não soçobrar. Onde estivera? Quem eram as
pessoas que a tinham ajudado, magoado? Havia numerosas perguntas, muitas coisas que desejava saber. Uma parte dele era um adolescente inexperiente, ciumento das imagens que não desejava conceber, enquanto outra constituía um sobrevivente perfeitamente ciente dos preços que uma pessoa tinha de pagar para permanecer viva no seu mundo agitado e
frequentemente violento. As respostas surgiriam com o tempo, reveladas com lentidão ou em erupções de memória ou ressentimento, porém ele não as provocaria. O processo de cura não podia ser forçado, pois ela expor-se-ia ao risco de voltar a afundar-se e reviver os terrores, com o que só conseguiria prolongá-los.
Jerina tomou a mover-se e, de súbito, o absurdo das suas reflexões apresentou-se-lhe com clareza pungente. Onde pensava ele que se encontrava... se encontravam? Que supunha lhes seria permitido? Como se aventurava a raciocinar em termos de tempo, ainda que a curto prazo?
Jacob Handelman morrera e o seu assassino fora praticamente identificado, agora sem
dúvida do conhecimento dos mentirosos de Washington. A caça ao homem revestir-se-ia de credibilidade, e Michael imaginava sem dificuldade a história reproduzida nos jornais: um catedrático, respeitado por todos, brutalmente assassinado por um antigo agente secreto alucinado, procurado pelo Governo por uma larga variedade de crimes. Quem acreditaria na verdade? A de que um velho e bondoso judeu que sofrera os horrores dos campos de concentração era na realidade um monstro humano responsável pela carnificina de Lídíce? Inconcebível!
Régine Broussac alteraria a sua posição e todas as pessoas com as quais ele poderia contar abster-se-iam de lhe prestar auxílio. Por conseguinte, não havia tempo para um período de convalescença, pois necessitava de todos os momentos. A prontidão dos seus ataques constituía um ingrediente essencial. Consultou o relógio, que indicava 14.45. Três quartas partes do dia já se tinham escoado. Havia estratégia a considerar... mentirosos a atingir durante a noite.
Não obstante, tinha de haver alguma coisa. Para eles, apenas para eles. Para atenuar a dor, apagar os vestígios de fragilidade. De contrário, não haveria nada.
Michael fez aquilo com que sonhara, acordando banhado em suor sempre que isso lhe acontecia, consciente de que não correspondia à realidade. Agora, todavia, essa impossibilidade desaparecera. Murmurou o nome dela, chamando-a através das profundezas do sono.
E, como se os momentos de separação nunca tivessem existido, a mão de Jerina procurou a dele. Em seguida, acordou, olhou-o por um momento e, sem urna palavra, afastou o
cobertor, para unir o corpo desnudo ao dele, rodeando-lhe o tronco com os braços e oferecendo-lhe os lábios.
Conservaram- se em silêncio, enquanto a excitação se intensificava, apenas cortado pelas exclamações abafadas de necessidade e ansiedade. A necessidade era de um pelo outro e a ansiedade não lhes provocava medo.
Fizeram amor mais duas vezes, mas a terceira resultou mais bem sucedida na tentativa que na consumação. Os raios solares já não penetravam pela janela, substituídos por um clarão alaranjado que era o reflexo do pôr-do-Sol no campo. Sentaram-se na cama
e Michael acendeu cigarros para ambos, ao mesmo tempo que sorriam pelo dispêndio de energias a que se tinham entregado e exaustão temporária.
- Acabas de me trocar por um tipo de sangue na guelra de Ancara.
- Não tens nada a recear, querido. De resto, não gosto do café turco.
- Fiquei aliviado.
- És um amor- murmurou ela, pousando os dedos na ligadura no ombro de Havelock.
- Diz antes que estou enamorado. Tenho muita coisa a pôr em dia.
- Os dois e não apenas tu. Não deves pensar nesses termos. Aceitei as mentiras, como tu. Mentiras incríveis, apresentadas incrivelmente. E não sabemos porquê.
- Mas sabemos a finalidade, o que nos fornece parte do motivo. Para me afastar da actividade e conservar dominado, ao microscópio.
- Com a minha deserção, a minha morte? Há outras maneiras de pôr de parte um homem que já não interessa.
- Matando-o? - Havelock aquiesceu com uma inclinação de cabeça, seguida de um lento meneio. - Sim, é uma maneira. No entanto, não existe maneira alguma de controlar as provas comprometedoras que ele possa ter deixado. É precisamente a possibilidade de um agente proceder assim que lhe garante a vida.
- Mas querem matar-te, agora. És <irrecuperável".
- Alguém mudou de ideias.
- Essa pessoa chamada Ambiguidade - murmurou Jenna.
- Exacto. O que sei (ou eles pensam que sei) foi suplantado por uma ameaça muito mais perigosa. Aquilo que descobri, de que me inteirei.
- Não compreendo.
- Tu. A Costa Brava. É um assunto que tem de ser sepultado.
- A ligação com os soviéticos?
- Não sei. Quem era a mulher da praia? Que supunha que fazia lá? Por que não eras tu?... E ainda bem, graças a Deus. Para onde te levavam?
- Para a sepultura.
- Nesse caso, por que não te enviaram para essa praia? Por que não te mataram lá?
- Talvez pensassem que não compareceria. Não abandonei o hotel com eles.
- Não sabiam isso, na altura. Supunham que te tinham convencido, estavas abalada com o choque e necessitavas de protecção. A questão é que nunca aludiram à Costa Brava. Nem sequer tentaram preparar-te.
- Eu seguiria para lá, naquela noite. Bastava que me chamasses e comparecia. Eles poriam em prática a execução e tu verias o que desejavam.
- Não faz sentido. - Michael interrompeu-se para acender novo cigarro. - E é essa a incoerência básica, porque quem organizou a operação da Costa Brava era um técnico perfeito, um perito em operações obscuras. Foi tudo brilhantemente estruturado, até ao mais ínfimo pormenor... Não faz sentido, repito!
Seguiu-se um longo silêncio, que Jenna acabou por quebrar, para sugerir a meia-voz:
- Duas operações.
- O quê?
- Supõe que se tratava de duas - continuou, com um clarão no olhar. - A primeira desencadeada em Madrid (as provas contra mim) e depois prosseguida em Barcelona (as provas contra ti).
- Continuaria a ser um único "cobertor".
- Mas rasgado. Convertido em dois.
- Como?
- A operação inicial foi interceptada. Por alguém que não fazia parte dela.
- E alterada - admitiu Michael, começando a fazer-se-lhe luz no espírito. - O tecido
era o mesmo, mas os pontos foram alterados, modificando a configuração geral. Um cobertor diferente.
- Apesar disso, com que objectivo?
- Controlo. Mas fugiste e o controlo perdeu-se. Régine Broussac disse-me que havia um alerta codificado para te capturar, desde o caso da Costa Brava.
- Muito codificado - confirmou Jenna, apagando o cigarro no cinzeiro da mesa-de-cabeceira. - Desse modo, quem interceptasse a operação e a alterasse podia não se inteirar de que me escapara de Barcelona, viva.
- Até que te avistei e informei todos... todos os que contavam. A partir de então, tínhamos ambos de morrer. Um em conformidade com o livro das operações obscuras: eu.
O outro por uma questão de estratégia, em resultado de uma bomba que explodiria em Col des Moulinets: tu. Ficaria tudo sepultado.
- Ambiguidade, mais uma vez?
- Não vejo outro capaz de levar o empreendimento a cabo. Só um homem possuidor do código para transmitir a autorização poderia infiltrar-se na estratégia dos acontecimentos naquela ponte.
- Ainda há muitas omissões - observou, desviando os olhos para a janela, onde o clarão alaranjado começava a atenuar-se. - Muitas lacunas.
- Preencheremos algumas. Talvez todas.
- Emory Bradford, claro.
- E mais alguém - afirmou Havelock. - Matthias. Há quatro dias, tentei contactá-lo de Cagnes-sur-Mer, pela linha confidencial que pouquíssimas pessoas conhecem, e recusou vir ao telefone. Pensei então o pior: o homem que mais afecto me merecia cortara-me da sua existência. Depois, falaste-me de Brafford e comecei a admitir que me enganara.
- Em que sentido?
- Supõe que Anton não se encontrava lá e outros haviam ocupado o lugar onde se isolara, juntamente com o telefone confidencial?
- Bradford?
- E os que restam da sua tribo. O regresso dos cometas políticos, em busca de um meio de recuperar o poder. Segundo a revista Time, Matthias partiu para umas férias prolongadas. Mas pode não corresponder à verdade. Imaginemos que o secretário de Estado mais célebre da História é mantido incomunicável. Numa clínica, algures, impossibilitado de contactar o mundo exterior.
- Mas isso é incrível, Mikhail. Precisaria de se manter em contacto com o seu departamento. Há decisões, pareceres, consultas constantes.
- Podiam realizar-se através de segundas e terceiras pessoa,,,, funcionários conhecidos.
- Parece-me inadmissível.
- Talvez não. Quando me disseram que Matthias não podia atender, não me conformei e fiz outra chamada, para um vizinho, que ele procurava sempre que se isolava na cabina de Shenandoah. Chama-se Zelienski, um professor aposentado proveniente de Varsóvia, há vários anos. Ora, afirmou que Anton deixara de o visitar e nunca o recebia, alegando que não dispunha de tempo.
- É inteiramente possível.
- Mas não consistente. Matthias arranjaria tempo. Não cortaria com um amigo sem pelo menos uma explicação. É pouco próprio dele.
- Que queres dizer?
- Recordo-me das palavras de Zelienski. Disse que deixava mensagens para Anton e depois telefonavam-lhe em nome dele para pedir desculpa e explicar que raramente visitava o vale. No entanto, estava, quando telefonei. Ou supunha-se que estava. Pretendo chegar ao seguinte: existe a possibilidade de não se encontrar lá
- Agora, a inconsistência é tua - observou Jerma. - Nesse caso, por que não se limitaram a dizer que não estava?
- Não podiam. Utilizei a linha confidencial, como referi, que só é atendida se se encontra na cabina, e apenas por ele. Em vez disso, alguém levantou o auscultador por engano e respondeu a primeira coisa que lhe acudiu à cabeça.
- Alguém ao serviço de Bradford?
- Alguém que faz parte de uma conspiração contra Matthias, pelo menos, do que não posso excluir BradfÓrd. Funcionários de Washington mantêm relações secretas com outros de Moscovo. Arquitectaram em conjunto a operação da Costa Brava e convenceram Matthias de que eras uma agente dos soviéticos. O bilhete que ele me enviou tomava-o bem claro. Não sabemos se tudo se desenrolou ou não em conformidade com os seus projectos, mas subsistem dúvidas de que Matthias não interveio no assunto, ao contrário de Bradford. Anton não confiava nele nem no seu grupo, considerando-o um oportunista da pior espécie. Mantinha-os afastados das negociações extremamente sensíveis, por acreditar que as utilizariam para os seus planos. Aliás, tinha razões para isso, porque haviam procedido assim no passado, deixando o país saber apenas o que lhe convinha. - Michael fez uma pausa e inalou o fumo, enquanto ela o olhava em silêncio. - É possível que Bradford esteja envolvido novamente em actividades desse tipo, só Deus sabe com que finalidade. Não tarda a escurecer e poderemos partir. Seguiremos para Maryland e depois inflectiremos para Washington.
- Em direcção a Bradford? - Quando ele assentiu com um movimento de cabeça, Jenna pousou-lhe a mão no braço e acrescentou: - Vão relacionar-te com a morte de Handelman e concluir que me contactaste. Portanto, compreenderão que o primeiro nome que te indicarei será o de BradfÓrd, o qual estará devidamente protegido.
- Eu sei. Vamos vestir-nos. Temos de comer algures e encontrar um jornal que publique notícias das agências. Conversaremos no carro. - Havelock começou a encaminhar-se para a mala, mas deteve-se. - Esquecia-me de que não trouxeste nada.
- Os homens de Kohoutek confiscaram tudo. Alegaram que o faziam no meu interesse, pois os rótulos da roupa indicariam a origem, se fosse capturada, e prometeram fornecer-me vestuário apropriado, mais tarde.
- Apropriado para quê?
- Estava demasiado assustada para perguntar.
- Apoderaram-se de todas as tuas posses e abandonaram-te numa cela. - Tantas dúvidas por explicar! - Vamos.
- Temos de comprar um estojo de primeiros socorros, pelo caminho. A ligadura do teu ombro precisa ser mudada. Tratarei disso.
E tanta coisa para reconstruir!
Capítulo vigésimo terceiro
Num restaurante dos arrabaldes de Hagerstown, avistaram um expositor com jornais, mas apenas restavam dois, ambos edições da tarde do Sun de Baltimore. Compraram-nos, para verificar se fora difundida alguma fotografia susceptível de despertar a atenção, pois a eliminação das probabilidades negativas constituía uma acção instintiva.
Em seguida, instalaram-se num "reservado" e apressaram-se a folheá-los, após o que respiraram mais facilmente. Não continham qualquer foto. Mais tarde leriam a reportagem, que figurava na terceira página.
- Deves estar faminta - disse Havelock.
- Para dizer a verdade, apetece-me uma bebida, se as servem aqui.
- Acho que sim. - Volveu a cabeça para o balcão e ergueu a mão. - Vou pedir qualquer coisa.
Nem sequer tinha pensado em comer. É estranho, porque, segundo Kohoutek, recusaste-te a fazê-lo, ontem à noite, e
atiraste o tabuleiro à cabeça do cubano.
- um tabuleiro com restos, uma vez que já comera. Recomendaste-me com insistência que devia alimentar-me, sempre que estava numa situação difícil, pois era impossível saber quando haveria outra oportunidade.
- Deste ouvidos à marriã.
- Dei ouvidos a uma criança que fugia num bosque, para conservar a vida.
- História. Por que lhe atiraste o tabuleiro? Para que não se aproximasse de ti?
- Para me apoderar do garfo. Não havia faca.
- És incomparável.
- Estava desesperada. Pára com os elogios. Uma empregada roliça acercou-se da mesa e contemplou Jetina com um misto de amargura e inveja. Michael compreendeu, sem satisfação nem condescendência. Compreendeu, simplesmente. Jerina Karas era a pessoa olvidada com frequência, quer se visse forçada a matar para sobreviver quer a deixar-se seduzir para viver. Era uma senhora.
Ele pediu as bebidas e a mulher aquiesceu com um sorriso profissional, antes de se afastar.
- Vejamos as más notícias - propôs Michael, abrindo o jornal.
- É na terceira página.
- Bem sei. Já leste?
- Só a linha do fundo, que diz "Segue na página onze". Receei que houvesse uma fotografia na continuação.
- Também eu. - Iniciou a leitura, enquanto Jetina o observava. Pouco depois, a empregada reapareceu com as bebidas e ele indicou: - Encomendamos o jantar dentro de momentos.
À medida que lia, o rosto exprimia alívio, a seguir apreensão e, por último, alarme. Finalmente, reclinou-se na cadeira e fitou a rapariga, que perguntou:
- Então?
- Encobrem a verdade.
- O quê?!
- Protegem-me.
- Não deves ter lido bem.
- Receio que sim. - Inclinou-se para a frente e fez deslizar o indicador pela coluna do jornal. - Ouve isto: " Segundo informação de Departamento de Estado, nenhum indivíduo com o nome, sinais ou impressões digitais referenciados pertence ou pertenceu aos seus quadros. Por outro lado, um porta-voz do mesmo departamento declarou que qualquer especulação sobre a similaridade do nome do assassino mencionado com o de algum seu
funcionário, actual ou antigo, resultaria altamente injusta e distante da verdade. Recorreu-se ao computador, após a recepção do relatório da polícia de Manhattan, e não se obteve o mínimo elemento positivo. Não obstante, a informação do Departamento de Estado indica que a vítima, professor Handelman, lhe prestara alguns serviços como consultor na área de refugiados sem recursos, com particular ênfase para as pessoas que sobreviveram ao
período nazi. Em conformidade com um porta-voz, a polícia de Nova Iorque admite a teoria de que o assassino pertence a uma organização terrorista violentamente hostil à comunidade judaica. O Departamento de Estado salientou que não é invulgar os terroristas de qualquer país assumirem identidades de pessoal do Governo. " - Calou-se e ergueu os olhos para Jenna. - Conseguiram lançar poeira nos olhos de toda a gente.
- Estarão convencidos disso?
- Não me parece possível. Para já, há centenas de pessoas do Departamento do Estado ou relacionadas com ele ao corrente da minha participação nas Operações Consulares. Decerto ligaram os dois nomes sem dificuldade. Depois, as minhas impressões digitais, que devem abundar no apartamento de Handelman, figuram nos ficheiros. Além disso, este não estava minimamente relacionado com o Governo, e era esse o seu ponto forte. Exercia as
fuções de intermediário do Quai d'Orsay, que nunca o utilizaria se suspeitasse de que se
encontrava sob vigilância governamental.
- Nesse caso, que concluis? Tomou a reclinar-se, pegou no copo e levou-o aos lábios.
- É demasiado evidente - murmurou, pousando-o com uma expressão pensativa.
- Uma armadilha. Querem que te aproximes, presumivelmente para abordar Bradford, e nessa altura apanham-te.
- Para destruir um "irrecuperável". Depois de morto, não poderei falar, e eles estarão em condições de explicar que eliminaram um assassino. Aproximar-me de Bradford é facílimo, mas afastar-me com ele é impossível... A menos que consiga atraí-lo ao exterior do seu círculo, obrigá-lo a procurar-me.
- Nunca consentiriam. Estará rodeado de guardas, com os olhos bem abertos. Abatem-te à vista. Esperam-te. Procuram-te.
- Mas ninguém me procura, à parte as pessoas que nos fizeram isto.
- Os mentirosos, como lhes chamas.
- Sim. Necessitamos de ajuda, mas depreendi que não a obteríamos, porque ninguém estaria interessado, por uma questão de prudência. Agora, a situação alterou-se, pois suspenderam a caçada.
- Não te iludas - recomendou Jenna. - Isso faz parte da armadilha. Existe um aleita geral para a nossa captura, e o teu não é em código. Todas as pessoas capazes de te ajudar têm o teu nome na sua lista. Quem pensas que merece a tua confiança, no Governo?
- Ninguém - admitiu Havelock. - E ninguém que pudesse sobreviver à associação com um "irredutível", se eu confiasse nele.
- Cagnes-sur-Mer. Em casa de Salanne, quando não consegui contactar Matthias, telefonei a Zelienski, que mencionou a pessoa em causa. Chamou-lhe "Alexandre, o
Grande" . Raymond Alexander. Não se trata apenas de um conhecimento mútuo, mas de um excelente amigo... meu e de Anton. Podia ajudar-nos.
- Como?
- Graças ao facto de se encontrar fora do Governo. Fora, mas de certo modo muito ligado a ele. Washington precisa dele e vice-versa. Escreve para a Potomac Review e está profundamente elucidado sobre os assuntos governamentais. Não permitiria que me aproximasse, se a Imprensa me tivesse identificado, o que não aconteceu.
- De que modo nos pode ajudar?
- Ainda não sei bem. Talvez consiga atrair Bradford até junto de mim. Dedica-se a entrevistas de larga audiência, e ser entrevistado por ele representa um encómio para qualquer membro do Governo. Está acima de qualquer suspeita. Talvez transportassem Bradford num tanque, mas deixavam-no entrar só na casa. Eu podia sugerir um facto inesperado, uma remodelação no Departamento de Estado corri ele no fulcro, e propor a entrevista... comigo nas cercanias, para verificar.
- Em casa?
- Alexander trabalha na sua residência. Faz parte da sua mística, como James Reston, do Times. Se um político ou um burocrata diz que esteve em Fiery Run, toda a gente compreende ao que se refere: haverá uma reportagem assinada por Reston. Se afirma que visitou Fox Hollow, as mesmas pessoas ficam inteiradas de que foi entrevistado por
Raymond Alexander. Fox Hollow é na Virgínia, a porta de Washington. Nós podíamos encontrar-nos lá em noventa minutos, duas horas, o máximo.
- Ele iria nisso?
- Talvez. Não lhe explicarei o motivo, mas é possível que concorde. Somos amigos.
- Da universidade?
- Não, mas existe uma relação. Conheci-o por intermédio de Matthias. Quando principiei a trabalhar para o Departamento de Estado, Anton deslocava-se a Washington por uma
razão ou por outra, reforçando os seus contactos e visitando pessoas influentes, e telefonava-me com frequência para jantar com os dois. Eu nunca recusava, não só em virtude da companhia, mas também porque os restaurantes ficavam muito acima das minhas posses.
- Era uma atitude muito gentil da parte do teu prítele.
- E pouco lúcida de um homem tão brilhante, considerando a natureza das minhas actividades. Ele era o ucitel que enaltecia o seu não muito dotado aluno de Praga, numa altura em que eu necessitava de tudo menos de publicidade. Quando o expliquei a Alexander, achou graça e, como resultado, passámos a jantar juntos, sempre que Manhias regressava à sua torre em Princeton, debruçado sobre os seus jardins académicos, em vez de fortalecer as suas raízes em Washington. Sim, porque não te iludas: Anton não sentia repugnância em fertilizar as sementes que lançava à terra.
- Jantavas em casa de Alexander?
- Sempre. Ele compreendia que também não era alguém com quem eu desejasse ser visto em público.
- Então, são mesmo bons amigos.
- Razoavelmente.
- E é influente?
- Sem dúvida.
- Por que não lhe revelas tudo? - sugeriu Jerma, pousando a mão no braço dele.
- Não creio que quisesse escutar-me. - Michael enrugou a fronte e cobriu-lhe a mão
com a sua. - E daquelas coisas que ele se esforça por evitar.
- Como podes dizer isso? É um escritor. Em Washington.
- Um analista e comentador. Não um repórter investigador, um explorador de assuntos obscuros. Não gosta de pisar calos. Apenas de refutar opiniões.
- Mas o que tens para lhe dizer é extraordinário.
- Remetia-me para a secção de segurança do Departamento de Estado, com base em que me escutariam com mais imparcialidade. Ora, não me resta a mínima dúvida de que teria a aguardar-me a imparcialidade de uma bala. Alexander é um indivíduo calejado de sessenta e cinco anos, que conhece todos os casos sensacionais (de Dallas a Watergate) e pensa que cento e dez por cento de tudo não passa de uma conspiração de trampa. E se descobrisse o que eu fiz, excluindo o caso de Handelman, ele próprio telefonava à segurança.
- Nesse caso, não me parece um amigo por aí além.
- Segundo a sua óptica, é, desde que não haja transgressões à lei. - Havelock fez uma pausa. - Mas à parte a possibilidade de atrair Bradford a Fox Hollow, há um pormenor que pode esclarecer. O meu prítele. Pedir-lhe-ei que averigue o paradeiro de Matthias, alegando que não telefono eu porque talvez não disponha de tempo para o procurar, o que o contrariaria. Com os conhecimentos que possui, há-de fazê-lo.
- Supõe que não faz?
- Nessa eventualidade, ficaremos elucidados de outra coisa e obrigá-lo-ei a chamar Bradford, ainda que tenha de lhe apontar uma pistola à cabeça. Por outro lado, se contactar Matthias numa cabina em Shenandoah... Significará que o secretário de Estado tem um "contacto" em Moscovo, no seio do KGB.
A povoação de Fox Hollow era pequena, com as ruas iluminadas por candeeiros de gás e arquitectura de estilo colonial por decreto camarário, além do que as lojas tinham a designação de estabelecimentos, com clientela composta pelos frequentadores mais abastados da órbita Washington-Nova Iorque. O atractivo da localidade não era apenas aparente. Destacava-se sem artifícios, embora não se destinasse aos forasteiros, pois os turistas eram desencorajados ou mesmo repelidos. A reduzida corporação policial dispunha de armamento e um sistema de comunicações que, salvas as devidas proporções, rivalizavam com
os do Pentágono, onde provavelmente tinham origem. Fox Hollow constituía uma ilha numa área isolada da Virgínia, como se estivesse circundada por uma vedação intransponível.
A atmosfera fora aquecida pelo rio Potomac e a neve recuara para a periferia de Harpers Ferry, convertendo-se em chuva glacial em Leesburg, quando Havelock já preparara o
cenário para Raymond Alexander. A sua plausibilidade burocrática conferia-lhe convicção, plausibilidade essa baseada em verdadeira ansiedade no que se referia a operações secretas actuais ou do passado. Registara-se um assassínio em Nova Iorque - se Alexander ainda não se inteirara, decerto tomaria conhecimento na manhã seguinte, pois era um devorador frenético de jornais - e o criminoso improvisara uma personificação, incluindo um documento de identidade e uma aparência desconfortavelmente próxima da de Havelock.
O Departamento de Estado fizera-o regressar de Londres num transporte militar e toda a assistência que o aposentado agente secreto das Operações Consulares prestasse seria devidamente apreciada.
A maquinação de Brafford seria pormenorizada à medida que a conversa se desenrolasse, porém o impulso básico residiria em que o outrora controverso subsecretário de Estado estava na iminência de ser reabilitado e regressar ao primeiro plano. Havelock explicaria que recebera em Londres um relatório minucioso das negociações extensivas, ainda que secretas, de Bradford acerca de um assunto delicado como a proliferação de mísseis na OTAN, o que constituía um importante desvio da política até então adoptada e suficientemente explosivo para estimular o interesse profissional de Alexander. Era o
género de inconfidência de que se alimentava e proporcionaria ampla oportunidade de proceder a uma análise exaustiva dos prós e contras. Mas se o velho cavalo de guerra pretendesse entrevistar Emory Bradford, necessitaria de o convencer a deslocar-se a Fox Hollow, de manhã. Havelock tinha passagem reservada no voo da tarde, de regresso a Londres, e, se dispusesse de tempo, ainda queria visitar o seu velho mentor Anthony Matthias, mesmo que fosse por breves minutos. Se Alexander soubesse onde localizá-lo, claro.
Quanto a Bradford, não teria qualquer alternativa. Se o temível jornalista o convocasse acudiria. Outras coisas - como o episódio da Costa Brava - poderiam revestir-se de importância suprema, mas precisava de manter o seu baixo perfil por todo o preço, e uma maneira de o perder consistiria em recusar a entrevista proposta por Raymond Alexander. E quando comparecesse na residência de Fox Hollow, com os guardas à espera da limusina, Michael assumiria o comando da situação. O seu desaparecimento intrigaria os mentirosos
e os guardas por eles contratados. A espaçosa moradia do jornalista era rodeada por quilómetros de denso arvoredo e ravinas profundas. Ninguém conhecia as florestas tão bem como Mikhail Havlicek. Levaria Bradford através da região, que lhe era familiar, até uma estrada secundária algures, onde se encontraria um carro à espera, com a mulher de que o subsecretário de Estado se servira em Barcelona. Após o encontro com Alexander, disporiam de toda a noite para estudar o mapa e percorrer os trajectos mais convenientes, conservando-se atentos à possível aparição da polícia de Fox Hollow, para a qual teriam preparada uma explicação plausível. Podiam fazê-lo. Tinham de o fazer.
- É encantadora! - exclamou Jerina, impressionada com as ruas iluminadas a gás e as pequenas colunas de alabastro das entradas dos estabelecimentos.
- E bem vigiada - murmurou Michael, descortinando um carro-patrulha azul e branco estacionado unto ao passeio, a meio do quarteirão. - Agacha-te, para que não te vei am!
- O quê?
- Por favor. Jenna obedeceu e encolheu-se no sobrado. Ele abrandou a velocidade e travou um pouco adiante do carro da polícia, ante a perplexidade da companheira.
- Qual é a tua ideia? - sussurrou, enrugando a fronte.
- Vou mostrar as credenciais, antes que mas peçam.
- Bem pensado. Havelock apeou-se e aproximou-se do outro veículo. Entretanto, o condutor deste último baixara o vidro da janela e fixara o olhar na chapa de matrícula do carro de Michael. Era precisamente o que ele queria que visse, pois o facto poderia resultar útil, mais tarde, se
fosse comunicada a presença de um "automóvel suspeito".
- Pode indicar-me o telefone público mais próximo, senhor guarda? Julgava que havia
um na esquina, mas não vinha cá desde longa data.
- Não é a sua primeira visita a Fox Hollow? - redarguiu o polícia num tom cordial, que não se transmitia aos olhos.
- Vim passar muitos fins-de-semana.
- Tem negócios na nossa povoação?
- Bem... - Havelock fez uma pausa, como se a pergunta fosse algo impertinente. Por fim, encolheu os ombros, num gesto que parecia reconhecer que a polícia devia cumprir a sua obrigação, e passou a exprimir-se numa inflexão mais atenciosa. - O assunto que tenho de tratar é com um velho amigo, Raymond, Alexander. Quero telefonar-lhe para comunicar que cheguei. Se tiver visitas, não deve desejar que o procure. É a sua maneira de proceder habitual, como decerto sabe, senhor guarda.
A atitude do polícia alterara-se visivelmente ao ouvir mencionar o jornalista, pois as
limusinas e os carros de comando militares eram frequentes no caminho de acesso ao refúgio do respeitado comentador político. De momento, não tinha na sua frente um veículo daquela natureza, porém as expressões "velho amigo" e "vim passar muitos fins-de-semana" pesavam na maneira como decidiu encarar o desconhecido.
- Há um telefone público num restaurante, a cinco quarteirões daqui.
- O Lamplighter? - perguntou Michael, recordando-se.
- Esse mesmo.
- Prefiro outro sítio. Pode estar muito concorrido. Não há urna cabina na rua?
- Sim, em Acacia.
- Se me indicar a maneira de lá chegar, eu e R.A. ficamos-lhe gratos.
- Então, queira seguir-me
- Muito obrigado. - Começou a mover-se para o carro, mas, de súbito, estacou e retrocedeu. - Das outras vezes, vim em transportes de amigos e não prestei atenção ao
percurso. Creio que sou capaz de dar com a casa, mas gostava de confirmar, se não se importa. Corto à esquerda em Webster, até Underhill Road, e sigo em frente cerca de quatro quilómetros, não é?
- Quase oito.
- Tantos? Obrigado, mais uma vez.
- Depois de telefonar, posso acompanhá-lo. Esta noite não deve haver problemas que exijam a minha presença.
- É muito amável, senhor guarda, mas não me atrevo a exigir tanto.
- Não me custa nada. É para isso que a polícia serve.
- Então, renovo os meus agradecimentos.
O telefonema para a residência de Raymond Alexander proporcionou o resultado que Michael esperava. O jornalista insistiu em que o visitasse, ainda que fosse apenas para tomarem uma bebida. Havelock disse que se congratulava por estar livre, não só para poderem reatar uma velha amizade, mas porque se inteirara de algo em Londres que Alexander decerto acharia interessante. Talvez até contribuísse para retribuir parcialmente os numerosos e dispendiosos jantares que ele saboreara à custa do jornalista.
Quando abandonou a cabina, antes de regressar ao carro, deteve-se junto da janela do veículo da polícia e disse:
- Mr. Alexander pediu-me que lhe perguntasse o nome, para mais tarde agradecer.
- Não merece a pena. Chamo-me Lewis. Não há outro guarda com este nome. L~is, reflectiu Havelock. Harry Lewis, professor de Ciências Políticas na Universidade Concord. Não podia pensar nele agora, mas teria de o fazer em breve. I-Cwis devia convencer-se de que ele se afastara da civilização. Assim sucedera, na verdade, e, para regressar, mentirosos teriam de ser encontrados e denunciados.
- Há alguma novidade?
- Não, nada. É que conheço um homem chamado Uwis e lembrei-me de que prometi visitá-lo. Muito bem. Vou segui-lo.
Havelock sentou-se ao volante e baixou os olhos para Jenna.
- Como te sentes?
- DesconfortáveI e assustada até à medula! Supõe que o homem se aproximava?
- Chamava-o da cabina, mas pareceu-me pouco provável. Os polícias de Fox Hollow conservam-se perto do rádio. Quero evitar que te vejam, se for possível. Aqui e comigo.
O percurso até à residência de Alexander tardou cerca de dez minutos. A vedação metálica que a circundava destacou-se sob o clarão dos faróis dos dois carros. A moradia, afastada da estrada, era uma combinação feliz de pedra e madeira, com luzes intensas que incidiam no caminho circular de acesso à entrada. O terreno em redor achava-se relvado, com diversas árvores dispersas. No entanto, logo após a vedação, principiava o bosque denso, que Michael tencionava utilizar para levar Bradford.
- Quando ouvires o carro da polícia afastar-se, endireita-te e espreguiça-te - indicou ele. - Mas evita sair, porque não sei que género de alarmes Alexander instalou em volta da casa.
- Tem sido uma apresentação estranha a esta tua região livre, Mikhail.
- E não fumes.
- Dekuji.
- Não tens de quê. Quando se apeou, pousou propositadamente a mão na buzina, produzindo um som abrupto e seco, facilmente explicável, que lhe permitiu verificar a inexistência de cães. Em seguida, aproximou-se do carro-patrulha, esperançado em que a buzina produzisse o efeito desejado antes de o alcançar, como na realidade aconteceu. A porta da frente da moradia abriu-se e surgiu uma empregada uniformizada, à qual Havelock gritou:
- Olá, Margaret! Só um momento. - Voltou-se para a polícia, que abarcava a cena com curiosidade. - Obrigado, mais urna vez, guarda Lewis. - Puxou de uma nota da algibeira. - Gostava de...
- De maneira nenhuma, mas agradeço à mesma. Muito boa noite.
O homem inclinou a cabeça com um sorriso, destravou o carro e afastou-se. Michael acenou-lhe, satisfeito. Não havia polícias, cães ou alarmes invisíveis. Enquanto permanecesse no carro, Jenna achava-se em segurança. Por fim, encaminhou-se para a entrada, onde a empregada continuava a aguardar e disse com sotaque nitidamente irlandês-
- Boa noite. Chamo-me Enid e não Margaret.
- Queira desculpar.
- Mr. Alexander espera-o. Nunca ouvi falar numa Margaret. A colega que vim substituir chamava-se Gretchen. Esteve cá quatro anos, que Deus tenha em paz a sua alma.
Raymond Alexander levantou-se de uma confortável poltrona na biblioteca repleta de livros ao longo das paredes e avançou de mão estendida. Movia-se com maior desenvoltura do que se poderia esperar do seu aspecto pesado. O rosto querubínico de olhos verdes aguados era encimado por cabelos abundantes e desgrenhados, que persistiam em se manter negros. Em conformidade com o seu estilo de vida anacrónico, usava casaco de veludo vermelho, indumentária que Havelock não via desde a adolescência em Greenwich, Connecticut.
- Como vai isso, Michael? - exclamou o jornalista em voz bem modulada. - Já passaram quatro... não, cinco anos!
- Aproveitou-os bem, Raymond. Está com aspecto estupendo.
- Mas você não! Desculpe, meu rapaz, mas parece que acaba de ser libertado de um asilo. Desconfio de que a aposentação lhe assenta mal. Sim, estou ao corrente disso. Sirva-se uma bebida. Conhece o regulamento da casa e tudo indica que está necessitado.
- Obrigado - agradeceu Michael, dirigindo-se ao bar junto da parede.
- Talvez fique com outro parecer depois de dormir... Era a abertura oportuna. Sentou-se diante do dono da casa e descreveu a história do assassínio em Nova Iorque e a decisão do Departamento de Estado de o mandar regressar a Londres, às 4.00, hora do Reino Unido.
- Li isso esta manhã - declarou Alexander, meneando a cabeça. - Pensei imediatamente em si, claro, devido à semelhança do nome, mas reconheci que era ridículo. Você, com os seus antecedentes? Alguém lhe roubou um documento de identidade antigo?
- Não. Calculamos que foi forjado. Em todo o caso, os últimos dois dias pareceram-me intermináveis. Cheguei a supor que estava prisioneiro.
- Duvido que o mandassem vir, se Anton fosse informado. Somente os amigos íntimos empregavam o nome de baptismo checo de Matthias e, pelo facto de Michael se encontrar ao corrente, a afirmação alarmou-o. Por necessidade, invertia a sequência que ele preparara, mas resultaria pouco natural não aprofundar o assunto. A questão de Bradford seria abordada mais tarde.
- Confesso que estranhei isso - proferiu com naturalidade, fazendo girar o copo entre os dedos. - Julgava que estava muito ocupado. Por sinal, tentava perguntar-lhe se se encontra em Washington. Gostava de o ir cumprimentar, mas disponho de pouco tempo. Tenho de regressar a Londres, e se lhe telefono... sabe como ele é. Insistia em que ficasse um par de dias em sua casa.
O jornalista inclinou-se para a frente e o rosto inteligente deixou transparecer apreensão.
- Então, não sabe?
- O quê?
- Às vezes, a paranóia do Governo vai longe de mais! Ele é como um pai para si e considera-o um filho! Não compreendo por que não o informaram.
- De quê?
- Anton está doente. Lamento que tenha de se inteirar disso por meu intermédio.
- Com gravidade?
- Os rumores variam entre gravidade e recuperação impossível. Segundo parece, conhece a verdade e, como sempre, pensa nele em último lugar. Quando o Departamento de Estado descobriu que eu estava ao corrente, enviou-me um bilhete pessoal exigindo que guardasse segredo.
- Como soube?
- Por mera casualidade. Obrigaram-me praticamente a comparecer a uma festa em Arlington, há umas semanas... Como decerto não ignora, detesto esses exercícios exaustivos de resistência verbal, mas a anfitriã era amiga íntima de minha falecida mulher...
- Lamento profundamente - interrompeu Havelock, que se recordava vagamente da esposa do interlocutor, urna mulher de aspecto insignificante, cujo interesse na vida se concentrava no arranjo do jardim e no cultivo de flores exóticas. - Não sabia.
- Já lá vão dois anos.
- Mas dizia...
- Ante o meu embaraço, uma jovem bêbada como um cacho assaltou-me virtualmente. Se se tratasse de urna mulher faminta, empenhada em encetar uma ligação sexual, eu compreenderia que se voltasse para o homem mais irresistível da sala, mas não era o caso. Aparentemente, conhecia dificuldades maritais de uma natureza pouco comum. O cônjuge era um oficial do Exército ausente do lar (lei do "leito conubial") há quase três meses, e ninguém do Pentágono lhe revelava o seu paradeiro. Ela fingiu-se doente, o que não deve ter exigido grandes recursos histriónicos, e o marido obteve a concessão de um período de licença de emergência. Quando o apanhou na rede, exigiu que lhe explicasse onde estivera e com quem. Ele recusou elucidá~la, pelo que, quando verificou que dormia, a mulher revistou-lhe os bolsos e descobriu um cartão de livre-trânsito de um lugar de que nunca ouvira falar. E eu tão-pouco, diga-se de passagem. Parece que o acordou e submeteu a apertado interrogatório, e, dessa vez, em legítima defesa, ele balbuciou que se tratava de um assunto ultra-secreto. O local era onde se encontrava em tratamento urna individualidade muito importante, e não podia adiantar mais.
- Anton?
- Só cheguei a essa conclusão na manhã seguinte. A última coisa que ela me disse (antes de um convidado caridoso ou sexualmente voraz a levar a casa) foi que o país devia ser informado dessas coisas e que o Governo procedia como a União Soviética. Mais tarde, telefonou-me, já perfeitamente sóbria e alarmada. Pediu desculpa por aquilo que classificou de "comportamento inadmissível" e suplicou-me que esquecesse tudo o que lhe ouvira. Prometi não divulgar uma única sílaba e o caso foi encerrado.
- Como descobriu que se tratava de Matthias?
- Na mesma altura, li no Washington Post que Anton prolongava umas breves férias e não participaria perante a Comissão das Relações Externas do Senado. A mulher e o que me revelara não me saíam da cabeça e acudiu-me uma suspeita. Como você, sei onde ele passa todos os seus momentos livres...
- Na cabina de Shenandoah.
- Exacto. Depreendi que, se a história correspondia à verdade e ele tirara mais alguns dias de férias, podíamos reunir-nos para ir à pesca ou disputar uma partida de xadrez. E como tinha o número do telefone, liguei para lá.
- Mas não estava.
- Não disseram isso - rectificou o jornalista. - Explicaram que não podia atender o telefone.
- Aquele telefone?
- Sim... aquele. Era a linha confidencial.
- Que ninguém atende, se Anton não está em casa.
- Precisamente. - Alexander pegou no cálice de brande e levou-o aos lábios. Entretanto, Havelock dominava-se com dificuldade. Apetecia-lhe precipitar-se para o jornalista, sacudi-lo e exigir que prosseguisse. Ao invés, porém, observou:
- Deve ter ficado surpreendido.
- Você não ficava?
- Sem dúvida. Que fez?
- Telefonei a Zelienski. Recorda-se do velho l_eon? Sempre que Matthias visitava a cabina, chamava-o para jantarem juntos, em obediência a um hábito de vários anos.
- Conseguiu contactá-lo?
- Consegui, e deu-me uma informação muito curiosa. Havia meses que não o via, Anton já não atendia os seus telefonemas e raramente aparecia no vale.
- Suponho que é amigo de Zelienski?
- Sim, através de Anton. Visita-me de vez em quando, para almoçar e jogar xadrez. Mas nunca para jantar, porque não gosta de conduzir à noite. No entanto, o que considero estranho é que Matthias não esteja no único lugar que escolheria para passar férias. De contrário, não se compreenderia que não se encontrasse com Leon.
- Tal como eu não compreendo que você deixasse o assunto ficar por aí.
- Não deixei. Liguei ao gabinete de Matthias e pedi para falar com o seu primeiro-secretário. Salientei que me interessava contactar quem representava o secretário de Estado na sua ausência. Imagine quem apareceu na linha?
- Não sei. Quem foi?
- Emory Bradford. Lembra-se dele? O boomerang, flagelo dos senhores da guerra, de quem fora porta-voz. Senti-me fascinado, porque o admiro pela coragem que manifestou em inverter a sua posição, embora estivesse convencido de que Matthias detestava todo o rebanho.
- Que lhe disse ele? - Michael segurou o copo com firmeza, subitamente receoso de o poder quebrar.
- Depois de lhe revelar o que pensava que tinha acontecido? Evidentemente que não mencionei a mulher, nem foi necessário. BradfÓrd ficou abismado e pediu-me que não dissesse nem escrevesse nada, pois o próprio Matthias contactaria comigo. Concordei e, a meio da tarde, recebi um bilhete de Anton por um mensageiro especial. Satisfiz o pedido... até agora. Na realidade, não creio que ele excluísse do sigilo o seu aluno dilecto.
- Confesso que não sei o que dizer. - Atenuou a pressão dos dedos no copo e respirou pesadamente, deixando o jornalista interpretar o momento como plFeferisse. Para ele, porém, constituía o prelúdio da pergunta mais importante que formulara em toda a sua vida.
- Recorda-se do nome do lugar onde o marido da jovem prestava serviço?
- Sim - articulou Alexander, olhando-o com gravidade. - Mas ninguém sabe que estou ao corrente. Ou como me inteirei.
- Pode revelar-mo? Prometo guardar segredo absoluto da minha fonte de informação.
- Para quê?
- Para enviar uma cesta de fruta, provavelmente - declarou Michael, com um sorriso.
- E uma carta, claro.
- Chamam-lhe ilha Poole, algures ao largo da costa da Geórgia.
- Obrigado.
O jornalista verificou que tinham os copos vazios e indicou:
- Estamos sem combustível. Renove a dose e, de caminho, a minha também. Faz parte do regulamento, lembra-se?
Havelock levantou-se e abanou a cabeça, continuamente a sorrir, apesar da tensão que sentia.
- Vou renovar-lhe a sua, mas tenho de me retirar. - Estendeu a mão para o cálice de Alexander. - Esperavam-me em McLean há uma hora.
- Vai partir? - exclamou o jornalista, arqueando as sobrancelhas. - E a informação de Londres que serviria para retribuir os nossos dispendiosos jantares?
- Pensei nisso pelo caminho - disse Michael, pegando na garrafa de brande. Cheguei à conclusão de que me precipitei.
- Desmancha-prazeres - acusou o outro, com uma risada.
- Refere-se a uma complicadíssima operação dos serviços secretos, que na minha opinião não produzirá resultados palpáveis. Interessa-lhe?
- Nem por sombras. Não tocava nisso nem com uma vara de três metros. Subscrevo
a máxima de Anton: oitenta por cento dos serviços secretos não passam de uma partida de xadrez jogada por idiotas para satisfação de obtusos paranóicos.
Michael subiu para o carro e notou imediatamente o cheiro de fumo.
- Estiveste a fumar.
- Sentia-me como uma criança num cemitério - alegou Jenna, instalada no sobrado.
- Então? O teu amigo sempre vai atrair Bradford aqui?
Havelock ligou o motor, embraiou e iniciou a manobra para conduzir o veículo em direcção à estrada.
- E a respeito de Bradford?
- Vamos deixá-lo transpirar por uns dias, estender os tentáculos.
- Que estás para aí a dizer? - inquiriu ela, acomodando-se no banco.
- Viajaremos toda a noite, descansaremos um pouco de manhã e continuaremos. Quero chegar lá amanhã à tarde.
- Chegar onde?
- A um lugar chamado ilha Poole.
Capítulo vigésimo quarto
A ilha situava-se de facto ao largo, a leste de Savannah, e, cinco anos antes, fora uma área razoavelmente povoada com menos de dez quilómetros quadrados de superfície, antes de ocupada pelo Governo para pesquisas oceânicas. Segundo revelavam os pescadores, várias vezes por semana helicópteros da base aérea de Hunter cruzavam o céu em direcção a uma pista invisível, do outro lado dos pinheiros que se erguiam na costa rochosa.
Havelock e Jerma chegaram a Savannah cerca das três e meia da tarde e às quatro encontraram um motel pouco espectacular na estrada marginal. Às 16.20, dirigiram-se à doca de uma marina comercial das proximidades, no momento em que algumas embarcações de pesca regressavam com o produto da faina do dia. Às 16.45, haviam conversado com diversos pescadores e, às cinco e meia, Michael sustentava breve diálogo com o encarregado da marina. Às seis menos dez, duzentos dólares haviam mudado de mãos e ele tinha à sua disposição uma lancha de cinco metros com motor de doze cavalos, por um período indeterminado, enquanto o guarda da noite era informado do aluguer.
A seguir, dirigiram-se a um centro comercial em Fort Pulaski, onde Havelock adquiriu os artigos de que necessitava: um gorro e camisola de lã , um par de calças de ganga e botins de sola de borracha, todos pretos, após o que comprou uma lanterna impermeável, um saco de oleado, uma faca de caça e cinco embalagens de atacadores de cabedal, com um metro e meio de comprimento.
- Uma camisola, um gorro, uma lanterna e uma faca - proferiu Jenna, irritada. Tens a certeza de que não te esqueceste de nada? Vou contigo.
- Nem pensar.
- Esqueceste Praga e Varsóvia? Trieste ou os Balcãs?
- Não, mas esqueceste tu. Em todos esses lugares, havia sempre um recurso disponível. Alguém numa embaixada ou consulado a quem transmitíamos as palavras que constituíam uma contra-ameaça.
- Nunca nos servimos de gente dessa.
- Porque nunca fomos apanhados.
- Que palavras tenho eu? - perguntou, olhando-o e aceitando a sua lógica, embora com relutância.
- Vou escrever-te. Vi uma papelaria peito daqui. Quero comprar um bloco de apontamentos dos grandes e papel químico.
Jetina sentava-se numa poltrona junto da secretária do motel, onde Havelock escrevia. Pegando nas cópias à medida que ele as arrancava do bloco, inspeccionava-as para verificar se eram perfeitamente legíveis. Enchera nove páginas de maiúsculas, com cada tópico numerado, cada pormenor específico e cada nome exacto. Tratava-se de um compêndio de operações e infiltrações ultra-secretas seleccionadas, perpetradas pelo Governo dos Estados Unidos por toda a Europa durante os últimos dezoito meses, e incluíam fontes de informação, informadores, agentes secretos simples e duplos, assim como uma relação de diplomatas e adidos de três embaixadas, que, na realidade, eram controladores da Central Intelligence Agency. Na décima página, descrevia a operação da Costa Brava, referindo Emory BradfÓrd e os homens com os quais contactara, que possuíam provas confirmadas que só podiam ter sido obtidas com a cooperação do KGB, e um funcionário da VKR em Paris, que admitira o conhecimento da operação por parte dos soviéticos. Na décima primeira, mencionava o encontro fatal no Palatino e o agente secreto americano que morrera ao salvar-lhe a vida e que, momentos antes, exclamara que havia mentiras proferidas por homens poderosos de Washington. Na décima segunda, relatava sumariamente os acontecimentos em Col des Moulinets e a ordem para a sua execução transmitida sob o nome de código Ambiguidade. Na décima terceira e última, revelava a verdade acerca de um assassino de Lidice que se intitulava Jacob Handelman e a finalidade de uma herdade em Mason Falls, Pensilvânia, que vendia os serviços de escravos tão eficientemente como qualquer dos campos fornecedores de mão-de-obra a Albeit Speer. A passagem final era concisa: O secretário de Estado Anthony Matthias é mantido, contra sua vontade, numa instalação do Governo chamada ilha Poole, na Geórgia.
- Aí tens as tuas palavras - declarou ele, entregando a Jerina a última página e levantando-se para se espreguiçar.
Os músculos doíam-lhe, após cerca de duas horas ininterruptas debruçado sobre o bloco de apontamentos. Enquanto ela lia, acendeu um cigarro e aproximou-se da janela sobranceira à estrada e ao oceano, um pouco adiante. Anoitecera e a Lua surgia intermitentemente por entre as nuvens. Fazia bom tempo e a ondulação do mar podia considerar-se fraca.
- São palavras fortes - reconheceu Jerina, pousando a última página na secretária.
- Correspondem à verdade.
- Desculpa não aprovar, mas podes contribuir para a perda de muitas vidas, algumas de amigos.
- Excepto com o material das últimas quatro páginas. Não há nelas a referência a qualquer amigo, excepto o Apache, e esse já não vive.
- Então, utiliza só essas.
- Não. - Havelock voltou-se da janela. - Ou todas ou nenhuma. Já não existe meio-termo, depois de chegarmos a este ponto. Eles têm de se convencer de que irei até às últimas consequências. Mais importante ainda: têm de se convencer de que tu o farás. Se surgir a mínima dúvida, posso considerar-me morto, e duvido que te deixem sobreviver. A ameaça deve ser real e não vaga.
- Partes do princípio de que te apanharão.
- Se averiguar o que penso, tenciono contribuir para isso.
- Que loucura! - explodiu ela, levantando-se.
- Enganas-te. Não costumas errar na análise dos factos, mas desta vez é o que acontece. Essa ilha representa o atalho que procurávamos. - Michael aproximou-se da cadeira onde deixara as compras do centro comercial. - Vou vestir-me e depois combinaremos uma forma de comunicação.
- Estás mesmo decidido?
- Em absoluto.
- Então, utilizamos cabinas - sugeriu Jenna, com relutância. - Nenhum telefonema com mais de doze segundos.
- Mas apenas um número. - Havelock alterou o rumo e dirigiu-se à secretária. Em seguida, pegou num lápis, escreveu no bloco, arrancou a página e entregou-a a Jerina. -
Toma. É o da recepção de emergência das Operações Consulares. Marca directamente (indico-te como) e previne-te com muitas moedas.
- Não tenho algibeiras.
- Nem dinheiro, nem roupa. - Pousou-lhe as mãos nos ombros e puxou-a para si. Remedeia isso, hem? Sempre distrais o espírito por algum tempo. Vai às compras.
- Endoideceste.
- Não, a sério. Se te despachares, ainda encontras o centro comercial aberto. Pareceu-me ler algures que encerrava às dez e meia. Depois, há um recinto de boliche, dois restaurantes e um supermercado de serviço permanente.
- Não acredito - articulou ela, inclinando a cabeça para trás, a fim de o contemplar.
- Podes acreditar. É mais seguro que uma cabina telefónica na estrada. - Michael consultou o relógio. - Faltam dez para as nove, e a ilha Poole fica apenas a uma milha e meia da costa. Devem bastar vinte minutos para chegar lá... digamos às dez, portanto. Às onze começas a ligar para esse número e pronuncias as palavras " bilhares ou pool 1 ". Entendido?
- Sem dúvida. " Bilhares ou pool. "
- óptimo. Se não obtiveres resposta imediata, desliga e utiliza outro telefone. Liga cada quinze minutos.
- Que resposta devo esperar?
- " Preferimos pool. "
- " Preferimos pool. " E depois?
- Um último telefonema, passados mais quinze minutos. Alguém, à parte o telefonista, atenderá a linha de emergência. Não mencionará nenhum nome, mas dará a resposta. No instante em que o fizer, lê-lhe as duas primeiras linhas da primeira página. Levarei os duplicados comigo, para que as palavras correspondam. Fá-lo depressa e desliga.
- E depois principia a expectativa - murmurou Jerma, apertando-o, com a face pousada na dele. - Agora, a nossa prisão imóvel.
- Muito imóvel... na realidade, estacionária. Compra comida no supermercado e mantém-te aqui. Não saias sob pretexto algum. Eu contactarei contigo.
- Passado quanto tempo?
- Não sei, ao certo. Talvez um ou dois dias, embora espere que não seja tanto.
- E se?... Não conseguiu completar a frase e as lágrimas afloraram-lhe aos olhos, ao mesmo tempo que assumia uma expressão tensa.
- Decorridos três dias, telefona a Raymond Alexander e comunica-lhe que fui morto ou feito prisioneiro e que eles mantêm Anton Matthias isolado do mundo. Informa que possuis provas escritas pelo meu punho, além da minha voz que gravei em casa de Salanne, em Cagnes-sur-Mer. Dadas as circunstâncias, ele não pode negar-se a escutar-te. Nem o fará: a sua adorada república está a ser envenenada. - Michael calou-se por um momento. Apenas as quatro últimas páginas - acrescentou pausadamente. - Queima as outras nove. Tens razão. Eles não merecem morrer.
- Não te posso prometer isso - murmurou Jenna, cerrando as pálpebras. - Amo-te muito. Se te perco, nenhum deles me preocupa. Nenhum.
Variedade de bilhar em que cada jogador tem uma bola de cor diferente. (N. do T.)
A água apresentava alguma ondulação, como acontecia com frequência quando as
correntes costeiras eram interrompidas por massas rochosas. Michael encontrava-se a quatrocentos metros da costa pedregosa da ilha, aproximando-se de sotavento, pelo que o
vento arrastava o som abafado do motor para o largo. Não tardaria a desligá-lo e a utilizar os remos, a fim de prosseguir em direcção à secção mais escura dos pinheiros circundantes, orientando-se pelo ténue clarão existente do outro lado das árvores.
Efectuara preparativos suplementares com o guarda da noite da marina, como procederia qualquer agente secreto com um mínimo de experiência, se alugasse uma embarcação com a possibilidade de ter de abandonar. Nunca se descuravam os meios de fuga a menos que se tomasse absolutamente necessário, todavia obscureciam-se o melhor possível, ainda que fosse apenas para ganhar tempo. Cinco minutos de confusão representavam por vezes a
diferença entre a captura e a retirada segura. Até ali, porém, o percurso revelara-se isento de problemas, e Havelock tencionava conduzir a lancha para o acesso mais escuro e deixá-la fora da água.
- Chegou o momento, e ele desligou o motor, após o que passou para o banco do meio e pegou nos remos. A corrente para o largo era mais forte do que previra, e acalentou a esperança de que abrandasse antes que os seus braços e ombros se fatigassem. O ferimento contraído em Col des Moulinets fazia notar a sua existência, pelo que necessitava de proceder com prudência e utilizar o peso do corpo...
Som. Não produzido por ele ou qualquer parte da embarcação. Um som abafado... de um motor.
Surgiu um clarão, um projector, que varreu a água cerca de oitocentos metros à sua direita. Era um barco-patrulha que contornava a extremidade mais distante da ilha e avançava na sua direcção. O sistema de segurança local incluiria o sonar? Feixes sónicos que se projectavam sobre a água, elevando-se e descendo em conformidade com as correntes, capazes de detectar uma pequena embarcação que se acercasse? Ou não passaria de uma
inspecção de rotina? O momento não era o mais apropriado para especular. Conservando o
corpo inclinado para a frente, Michael puxou os remos para dentro e pousou-os no fundo da lancha. Em seguida, estendeu a mão para a amarra, atirou-a por cima da popa e deslizou para a água, respirando fundo e distendendo os músculos para neutralizar o frio, após o que molhou o motor, a fim de arrefecer a superfície. Minutos depois, somente uma mão particularmente sensível conseguiria determinar que funcionara.
O clarão do projector ofuscou-o repentinamente, indicando que a lancha fora avistada,
e o barco-patrulha aumentou a velocidade. Havelock mergulhou e nadou para longe, deixando-se arrastar pela corrente. A embarcação continuava a cerca de quatrocentos metros da ilha, distância excessiva para ser transposta por um nadador com facilidade naquelas águas, facto que poderia pesar a seu favor, mais tarde.
Quando o barco-patrulha alcançou a lancha e desligou o motor, ele encontrava-se a vinte metros da popa e acabava de acudir à superfície, puxando o gorro de lã para as orelhas.
O projector explorava a água em todos os sentidos, o que o obrigou a mergulhar duas vezes, para não ser detectado. Dois homens mantinham a embarcação junto do barco-patrulha por meio de croques, e o que se achava na proa bradou de súbito:
- Pertence à marina de Leo, tenente! Número GA zero oito dois!
- Pede à base que ligue para lá e nos intercale no circuito! - ordenou o oficial a um radiotelegrafista invisível na cabina. - O número é GA zero oito dois!
- Sim, senhor!
- E informa a base da nossa posição. Que procedam a uma inspecção de segurança no
sector quatro.
- Isto não podia chegar aqui sozinho, tenente - volveu o homem que se encontrava na proa do barco-patrulha. - Era apanhado pelas nossas redes.
- Então, como diabo veio cá ter? Há roupa ou algum equipamento a bordo?
- Nada! Cheira a peixe que tresanda. Havelock assistia à cena, ao mesmo tempo que movia levemente os braços para se conservar à superfície, e sentia-se perplexo com um pormenor: os dois homens usavam uniforme de caqui, portanto do Exército, porém o barco exibia número de registo da Marinha.
- Tenente! - A voz provinha da cabina, a cuja porta assomou uma cabeça com auscultadores. - O guarda da marina diz que dois bêbados saíram com a lancha e regressaram tarde. Supõe que provavelmente não a amarraram devidamente e foi arrastada pela corrente. Agradece que lha levemos, de contrário terá de prestar contas do seu extravio. A embarcação em si não vale nada, mas o motor é potente.
- Confesso que não estou a gostar do aspecto disto.
- Quem ia nadar meia milha nestas águas? Os pescadores dizem que viram tubarões nas redondezas.
- Supõe que entrou?
- Com as redes? Nem pensar.
- Bem, que se lixe! Prende a amarra e vamos dar uma volta pelas redes e rochas. Esse Leo fica a dever-nos um favor.
E Havelock reflectiu que lhe ficava a dever muito mais do que os trezentos dólares que lhe dera. O motor do barco-patrulha tomou a entrar em actividade e não tardou a afastar-se, com a lancha na sua esteira.
Redes. Campos de fios entrelaçados e particularmente resistentes, estendidos a escassos centímetros da superfície. Os peixes não podiam quebrá-los, ao contrário do que sucederia com as hélices de uma embarcação, activando dispositivos de alarme. Rochas. Áreas ao longo do litoral da ilha vedadas a barcos de qualquer tamanho. Michael compreendeu que necessitava manter o barco-patrulha no seu campo visual, e naquele momento aproximava-se das rochas.
Tubarões. Preferia não pensar neles, dada a impossibilidade de se lhe apresentar uma forma de os evitar.
Precisava antes de se concentrar em alcançar a ilha. A corrente era quase intolerável, no entanto ele conseguia avançar com lentidão, e, quando descortinou uma dezena de projectores por entre os pinheiros, compreendeu que estava perto. O tempo constituía um factor irrelevante, pois a sua passagem só se reflectia nas dores nos braços e nas pernas, todavia a sua concentração era total. Necessitava alcançar uma rede ou uma rocha, ou qualquer outra obstrução sob os pés indicativa de que se podia apoiar em algo.
A rede apareceu primeiro. Havelock desviou-se para a direita com infinitas precauções, para não quebrar alguma malha - o que não seria fácil, uma vez que se tratava de fio de ny1on -, e acabou por alcançar terra firme, depois de executar algumas braçadas.
Emergiu da água, quase incapaz de erguer os braços, enquanto os joelhos, envoltos nas calças alagadas, pareciam empenhados em se dobrar a cada passo. A Lua fez urna das suas aparições esporádicas e iluminou uma duna coberta de vegetação, a uns vinte metros. Ele arrastou-se para lá, estendeu-se de costas, exausto, e fixou os olhos no céu.
Conservou-se imóvel durante cerca de meia hora, até a circulação se restabelecer nos braços e nas pernas, reflectindo que, dez anos atrás, ou mesmo cinco, não precisaria de mais de quinze minutos para se recompor. Agora, acolheria com satisfação a possibilidade de dispor de várias horas ou mesmo da noite inteira.
Ergueu a mão e consultou o relógio, que indicava 22.43. Dentro de dezassete minutos, Jerina efectuaria a primeira chamada para a recepção de emergência das Operações Consulares. Ele pretendera uma hora na ilha, para explorar, tomar decisões, antes do telefonema inicial, mas tomava-se impossível. Estava atrasado quarenta e três minutos. Por outro lado, não teria de se preocupar com semelhante pormenor, se não conseguisse transpor a barreira invisível que a circundava.
Levantou-se, submeteu as pernas a um breve teste, sacudiu os braços e torceu o tronco
para a direita e para a esquerda, quase sem se aperceber do desconforto da roupa empapada e
de roçar desconfortável da areia por todo o corpo. Bastava-lhe saber que funcionava e as
indicações do cérebro aos músculos continuavam a ser obedecidas. Podia mover-se, com rapidez, se fosse caso disso, e tinha o espírito desanuviado. Não precisava de nada mais.
Verificou o equipamento. A lanterna impermeável achava-se presa a uma correia em torno da cintura, junto do saco de oleado, à esquerda, com a faca de caça na bainha, à direita. Pegou no saco, puxou o fecho que o tornava estanque e inspeccionou o conteúdo. As treze páginas dobradas encontravam-se secas, assim como a automática Llania, que transferiu para a cintura. A seguir, examinou as algibeiras das calças: os atacadores de cabedal estavam encharcados, porém intactos - devidamente separados e enrolados -, cinco na da direita e os restantes na da esquerda. Se necessitasse mais de dez, poderia prescindir deles, pois seriam destituídos de valor.
Passos... Seriam passos o que ouvia? Em caso afirmativo, o som dir-se-ia deslocado no areal. Assemelhava-se a um tamborilar lento de estalidos secos, como o produzido por saltos numa superfície dura. Havelock agachou-se, correu para o refúgio das árvores e espreitou diagonalmente para a direita, na direcção do som.
Repetiu-se, agora à sua esquerda, mais longe, mas aproximando-se. Parecia-se com o primeiro - lento e firme. Internou-se mais entre os pinheiros até se encontrar a poucos metros da periferia, onde se estendeu de bruços. Acto contínuo, ergueu a cabeça para ver o
que a súbita nova luz revelaria. O que se lhe deparou explicava o som dos passos, mas nada mais. Directamente em frente, havia uma estrada asfaltada e, do outro lado, uma vedação compacta com pelo menos quatro metros de altura, que se prolongava a perder de vista nos
dois sentidos. A luz provinha de detrás dela. Era o clarão que avistara da água, agora mais brilhante e, não obstante, ainda suave, desprovido de intensidade.
O primeiro soldado surgiu da direita, caminhando com lentidão. Envergava uniforme de caqui, como os tripulantes do barco-patrulha, mas destacava-se-lhe na cintura um Colt 45 automático. Tratava-se de uma sentinela, cuja expressão enfastiada reflectia a perda de tempo e movimento. A outra emergiu da sombra à esquerda, a cerca de cinquenta metros, e
parecia deslocar-se ainda mais lentamente que o camarada. Acercavam-se uma da outra como autómatos e encontraram-se a pouco mais de dez metros de Havelock.
- Há alguma novidade? - perguntou o da direita.
- Apareceu uma embarcação motorizada ao sabor da corrente, sem ninguém dentro.
- Examinaram o motor?
- Não percebo.
- O óleo. Mantém-se quente por muito tempo, se funcionou recentemente.
- Para quê? De resto, quem podia entrar aqui?
- Eu não disse que podia. Apenas que era uma maneira de saber se o motor funcionou recentemente.
- Deixa-te disso. Estão a proceder a uma busca três-sessenta... provavelmente, para o caso de alguém ter asas. Os mandantes aqui sofrem. da bola. Imaginam coisas.
- No lugar deles, não imaginavas?
- Tens razão - admitiu o soldado da esquerda, consultando o relógio. - Bem, até logo.
- Se Jackson aparecer. Ontem à noite, chegou meia hora atrasado. Saiu-se com a desculpa de que ficou a ver como acabava a porcaria de uma fita na TV.
- Não é a primeira vez que invoca essa explicação. Willis disse-lhe, o outro dia, que, se
repete a proeza com ele, abandona o posto e afirma que o rendeu. Depois, que se desenrasque como puder.
- Havia de se safar. Rodaram nos calcanhares e afastaram-se em sentidos contrários, enquanto Michael
analisava o que acabava de ouvir. Uma equipa de busca esquadrinhava a ilha e o turno dos guardas aproximava-se do termo - um turno rigoroso, se a rendição se podia efectuar com meia hora de atraso. No fundo, tratava-se de uma incoerência: a ilha era uma fortaleza de segurança, porém o serviço das sentinelas desenrolava-se como se fosse uma necessidade fútil. Porquê?
Calculou que a resposta residia numa velha observação. O pessoal das casernas e oficiais subalternos eram os primeiros a aperceber-se das obrigações desnecessárias. O que só podia significar que os alarmes costeiros tinham dispositivos correspondentes no interior. Havelock estudou a vedação e reconheceu que não se tomava necessário possuir uma imaginação muito vasta para supor a existência de armadilhas do outro lado. A seguir, vislumbrou algo em que ainda não se concentrara: a vedação descrevia uma curva - em conformidade com a estrada asfaltada - em ambos os lados. Devia haver portões fora do seu campo visual, entradas guarnecidas por pessoal nos únicos pontos de penetração.
Uma busca de três-sessenta. Soldados munidos de lanternas esquadrinhando os pinheiros e a beira-mar, à procura da sombra de uma possibilidade. Haviam principiado directamente atrás dele, numa área denominada sector quatro, e avançavam rapidamente - porventura uma dúzia de homens. E decerto regressariam à procedência, no final da operação... além do que a noite estava escura e o luar cada vez menos frequente. A utilização da equipa de busca como parte da sua estratégia representava uma hipótese marginal - a única que lhe ocorria -, mas para que a táctica resultasse precisava de se mover. Já.
O soldado da direita não só era o mais próximo, como o mais lógico de abordar em primeiro lugar. Achava-se já quase invisível, principiando a contornar a curva, para desaparecer para além da vedação. Havelock ergueu-se, cruzou a estrada rapidamente e seguiu ao longo da berma arenosa, irritado com o som produzido pelos botins encharcados. Quando alcançou a curva, verificou que havia luzes de uma entrada adiante, porventura a duzentos metros. Após breve pausa, recomeçou a correr, a fim de encurtar a distância que o separava do guarda, esperançado em que o vento entre as copas das árvores abafasse o ruído que os passos produziam.
Achava-se a quatro metros, quando o homem estacou, alarmado, e inclinou a cabeça para o lado. Michael lançou-se-lhe em cima, pousou-lhe a mão direita na boca e utilizou a esquerda para segurar a base do crânio, controlando a queda de ambos no chão, onde o manteve imóvel exercendo pressão nas costas do guarda com o joelho.
- Não tentes gritar! - advertiu num murmúrio. - É apenas um exercício de segurança... como jogos de guerra, entendes? Metade da guarnição está ao corrente e a outra metade não. Vou levar-te para o outro lado da estrada, amarrar-te e amordaçar, mas sem apertar muito. Ficas simplesmente afastado das manobras. De acordo?
O interpelado encontrava-se demasiado perturbado para dar qualquer resposta além de pestanejar repetidamente com os olhos arregalados pelo terror. Havelock não podia confiar nele - ou, mais correctamente, não podia confiar em que não entrasse em pânico. Por fim, levantou-se, ao mesmo tempo que o obrigava a imitá-lo, sem afastar a mão da boca, e correram para os pinheiros. Uma vez na escuridão entre o arvoredo, Michael deteve-se e passou uma rasteira ao prisioneiro, que voltou a estender-se no chão.
- Agora, vou afastar a mão, mas se emites um som, tenho de te pôr a dormir, percebes? Se não o fizesse, descontavam-me pontos.
O outro assentiu com um movimento de cabeça e ele retirou a mão com lentidão, preparado para cumprir a promessa à menor tentativa de desobediência. No entanto, o guarda passou os dedos pelas faces e resmungou:
- Pregaste-me um susto dos diabos. Que diabo se passa?
- O que te expliquei - replicou Havelok, tirando-lhe o cinturão com a arma e o blusão de campanha. - É um exercício de segurança - acrescentou, extraindo da algibeira um
dos atacadores de cabedal e puxando os braços do homem para trás das costas. - Vamos entrar. - Atou-lhe os pulsos e antebraços e enrolou o atacador até aos cotovelos.
- No recinto?
- sim.
- Nem pensar, pá. Vais perder!
- Por causa do sistema de alarme?
- A outra noite, um pelicano ficou carbonizado na vedação. Esteve a gralhar durante mais de meia hora. Ninguém se admirou, quando serviram "frango" ao almoço, no dia seguinte.
- E lá dentro?
- Lá dentro, quê?
- Há alarmes?
- Só em Georgetown.
- O que é Georgetown?
- Alto lá! Conheço o regulamento. Só tenho de te dar o nome, posto e número!
- Quem está no portão? - inquiriu Michael, em tom ameaçador.
- O piquete de serviço.
- Agora, explica-me... Interrompeu-se ao notar um clarão pelo canto do olho, distante, entre as árvores, o foco de uma lanterna ao longe. A equipa de busca contornava a ilha. Não havia mais tempo para conversar. Rasgou parte da camisa do soldado, enrolou-a e introduziu-lha na boca, indiferente aos protestos, após o que utilizou outro atacador para lha colocar em tomo do rosto e atar junto da nuca, a fim de conservar a mordaça no seu lugar. Um terceiro atacador serviu para imobilizar os tornozelos.
Depois, vestiu o blusão, apertou o cinto com a arma e substituiu o gorro de lã, que guardou na algibeira, pelo barrete de campanha do guarda, que afundou quase até aos olhos. Puxou da lanterna e principiou a correr em diagonal por entre as árvores, em direcção à extremidade de uma rocha ou à praia, pois a distância e escuridão não lhe permitiam certificar-se de que se tratava.
Quando chegou, verificou que era uma rocha, colou-se-lhe o mais possível, esforçando-se por ignorar a rebentação a seus pés e o vento forte, e aguardou que o último soldado passasse nas proximidades. Assim que tal aconteceu, abandonou o esconderijo e correu
atrás dele. Com a experiência adquirida em centenas de ocasiões similares, rodeou-lhe o pescoço com um braço, impedindo que soltasse o mínimo som, e puxou-o para o chão. Trinta segundos mais tarde, o homem achava-se atado e amordaçado e Havelock apressava-se a reunir-se aos outros.
- Pronto, rapazes! - rugiu uma voz autoritária. - Chagámos ao fim! Podem voltar para o canil!
- Abóbora, capitão! -' protestou um soldado. - Julgávamos que chegara um barco cheio de gajas e isto era uma espécie de caça ao tesouro!
- Chama-lhe um treino para ganhar fôlego, gumbá. Para a próxima, talvez te saia a sorte grande.
- O número dele sai sempre branco! -afirmou o outro. -Para que queria uma gaja? Havelock seguiu os focos de luz através do arvoredo, até que surgiu a estrada, em cujo asfalto se reflectia o clarão da iluminação da entrada, e o pelotão cruzou-a sem preocupações de formatura, enquanto ele se colocava entre os primeiros, para que houvesse outros atrás. Quando atravessaram a estrutura de aço, uma das sentinelas começou a contá-los:
- Um, dois, três, quatro... Michael era o oitavo, e inclinou a cabeça para a frente, ao mesmo tempo que esfregava os
olhos com os dedos.
- Sete, oito, nove...
Entrara. Afastou os dedos dos olhos e, enquanto acompanhava os outros, ao longo de uma superfície curiosamente lisa, ergueu a cabeça.
Conteve o alento e as pernas imobilizaram-se, como que congeladas. Sentiu dificuldade em continuar em frente, porque se encontrava noutra época, noutro lugar. O que o circundava era irreal. Imagens abstractas, fragmentos isolados de uma cena sobrenatural.
Não estava no interior de um recinto vedado de uma pequena massa de terra ao largo da costa da Geórgia, denominada ilha de Poole, mas em Washington, D. C.
Capítulo vigésimo quinto
Era algo proveniente de um sonho macabro, a realidade distorcida, abstracta, deformada para obedecer a ama fantasia demoníaca. Modelos reduzidos à escala de cenas familiares achavam-se ao lado de fotografias com um metro e oitenta de altura de lugares que Havelock conhecia perfeitamente. Havia ruas pequenas, estreitas, com renques de árvores, que principiavam abruptamente e terminavam de repente em descampados, além de placas identificativas e candeeiros - tudo em miniatura. O clarão destes últimos incidia em prédios de aspecto maciço, que se resumiam às fachadas.
Figuravam no cenário as portas de vidro do Departamento de Estado, mais adiante a entrada de pedra do novo edifício do FBI e, do outro lado, a seguir a um minúsculo parque com bancos brancos, os degraus castanhos de acesso ao portão principal do Pentágono. Ao longe, à esquerda, ele avistou uma vedação de ferro elevada, com uma abertura no centro para permitir a passagem de um caminho, ladeada por duas guaritas. Era o Pórtico Sul da Casa Branca.
Incrível! E reluzentes automóveis de dimensões normais. Um táxi, dois carros de comando e duas longas limusinas, estacionados separadamente, símbolos imóveis de outro lugar. E havia os símbolos inconfundíveis observados de longe à sua direita, para lá do parque em miniatura: pequenos modelos de alabastro - com o máximo de um metro e vinte - do Memorial a Jefferson, o Monumento a Washington e duplicados maciços do Lago das Reflexões, na Alameda... tudo inundado de luz.
Não faltava um pormenor, tudo insensato! O cenário poderia considerar-se o produto de uma imaginação alucinada, de um realizador cinematográfico empenhado em explorar um pesadelo de luz branca que constituía a sua ideia deformada de Washington, D. C.
Sinistro. Um mundo bizarro, falso, criado para apresentar uma visão distorcida da realidade situada a cerca de duzentos quilómetros dali!
O espectáculo excedia a capacidade de absorção de Havelock. Necessitava de se afastar e rodear-se de uma atmosfera de lucidez, a fim de tentar conjecturar o significado daquele ambiente macabro. De súbito, ouviu uma série de imprecações atrás dele, janto da entrada, e prestou atenção.
- Onde raio está esse filho da mãe?
- Quem, sargento?
- Jackson, tenente! Está atrasado, mais uma vez!
- Faça a devida participação. O serviço começa a abandalhar-se de mais. Quero que o pessoal se compenetre da importância da sua missão.
Michael aproveitou o facto de todos se concentrarem na troca de palavras para enveredar por uma rua e dissimular-se na sombra do relvado onde terminava.
Encostou-se a uma parede de blocos de cimento que vedava qualquer coisa e não fazia
parte da falsa facha dado prédio contíguo e agachou-se para reflectir e tentar compreender o que se passava. E o problema era precisamente esse: achava-se tudo fora da sua capacidade de compreensão. Estava ao corrente do centro de treino dos soviéticos em Novgorod, denominado Cidade Americana, um vasto complexo onde tudo era "americanizado" -
lojas, centros comerciais, supermercados, motéis, estações de serviço -, só circulava dinheiro dos Estados Unidos e as pessoas exprimiam-se em inglês, com calão e diferentes dialectos. E também não desconhecia as experiências realizadas pelos russos nos montes Urais, onde tinham sido construídos acampamentos do exército dos Estados Unidos e vigoravam os regulamentos norte-americanos no capítulo da pragmática militar, igualmente com recurso exclusivo à língua inglesa. Existiam, por outro lado, os paminyatchiki
- os chamados viajantes -, operação secreta considerada uma fantasia de paranóicos por Rostov, em Atenas, mas que funcionava com eficiência. Tratava-se de homens e mulheres levados para a América na infância e colocados em lares como filhos legítimos, os quais cresciam inteiramente dentro da experiência americana, mas cuja missão, depois de adultos, consistia em servir a União Soviética. Constava - e Rostov confirmara-o - que o aparelho dos paminyatchiki fora absorvido pela Voennaya, o culto de fanáticos maniacamente secreto que o próprio KG13 sentia dificuldade em controlar. Dizia-se também que alguns deles se tinham infiltrado em posições de poder e influência. Onde terminariam os boatos e começaria a realidade? Qual era a realidade naquele ambiente da ilha Poole?
Seria possível? Poder-se-ia conceber que era povoada por pessoas treinadas em Novgorod e nos montes Urais, cujas camadas inferiores se compunham de paminyatchiki e as superiores de infiltrados em lugares influentes do Departamento de Estado, capazes de sequestrar Anton Matthias? Seria Emory Bradford um deles?...
Talvez se tratasse de rumores e nada mais. Homens de Washington trabalhavam com outros de Moscovo - essa ligação resultava, só por si, uma loucura incrível.
Havelock reconheceu que não averiguaria nada agachado na sombra. Necessitava de se movimentar, explorar e, acima de tudo, não se deixar apanhar. Aproximou-se da esquina da parede e espreitou para uma espécie de praça, da qual partiam várias ruas iluminadas. Três oficiais atravessavam o parque em miniatura na direcção dos monumentos de alabastro e quatro soldados encaminhavam-se apressadamente para um largo barracão militar situado num relvado, entre duas estruturas de tijolos que pareciam os primeiros pisos de um complexo de apartamentos. De repente, ante a perplexidade de Michael, um civil emergiu da entrada da estrutura da esquerda, seguido de outro, que usava bata branca de laboratório, o qual parecia falar a meia-voz, mas com ênfase, e ele perguntou-se se se exprimiria em russo. Os dois indivíduos cruzaram uma rua, cujos semáforos não funcionavam, e continuaram a conversar.
Quando desapareceram do seu campo visual, Havelock apercebeu-se de uma placa metálica afixada num poste, do outro lado da rua. Não a teria visto noutro lugar? Sem dúvida! Sempre que se dirigia a casa de Matthias, em Georgetown. Havia uma seta azul precedia das palavras: CHESAPEAKE E CANAL OHIO. Tratava-se do curso de água pitoresco que separava o bulício de Washington da tranquilidade dos enclaves residenciais de Georgetown, cujas ruas sossegadas alojavam os homens mais abastados e poderosos da capital da nação.
Georgetown. Há alarmes? Só em Georgetown. Anton Manhias encontrava-se algures naquela rua, algures do outro lado de uma ponte, com ou sem água, numa casa que era uma ilusão. Tê-la-iam reproduzido para ensaiar o seu rapto? A hipótese não podia ser descurada. A residência do secretário de Estado achava-se protegida por determinação presidencial, com guardas de serviço permanente para defender a integridade do bem vivo mais valioso do país. Não só era possível, como a única maneira
de levar a cabo a operação. Manhias tinha de ser levado de casa e os guardas substituídos por ordem do Departamento de Estado - emitidas por mentirosos. Uma missão fora ensaiada e executada.
Havelock avançou para a rua, caminhando com naturalidade, como um soldado vulgar disposto a respirar um pouco de ar puro ou isolar-se dos camaradas. Alcançou o edifício de tijolos à esquerda e atravessou o relvado em direcção ao passeio. A artéria que seguia era escura, sem candeeiros acesos acima das duas fiadas de árvores. Passou a mover-se mais rapidamente, sentindo-se mais confortável na sombra, e apercebeu-se das passagens que se
prolongavam para a direita, onde havia diversas casas, em algumas de cujas janelas se viam luzes ou o clarão de televisores. Ele calculou que se tratava da zona residencial dos oficiais e civis pertencentes à guarnição. Seriam produtos de Novgorod e dos montes Urais?
De súbito, a civilização extinguiu-se. A rua e o passeio terminaram, substituídos por um caminho de terra batida ladeado de vegetação elevada e escuridão. No entanto, tratava-se de uma estrada, que conduzia algures. Michael passou a mover-se mais depressa. Se o
interceptassem, alegaria que efectuava um pouco de exercício - antes de dominar quem lhe surgisse pela frente. Pensou em Jenna, que se deslocava de cabina para cabina, para contactar um operador de emergência das Operações Consulares e proferir as palavras sem
resposta: talvez essa resposta nunca surgisse. Uma pessoa aceitava os riscos da sua profissão e encarava-os com respeito, porque induziam medo e cautela - uma protecção valiosa -, mas não podia admitir a traição de um dos seus. Constituía o círculo final da futilidade, prova da simulação suprema - de uma vida desperdiçada.
Um clarão. Ao longe, à esquerda. Havelock principiou a correr e, mais perto, compreendeu de que se tratava: os contornos de uma casa, parte de uma casa, que terminava no
primeiro piso, todavia inconfundível - a fachada da residência de Anton Matthias em Georgetown, com a área da rua rigorosa em todos os pormenores. Aproximou-se do final da estrada de terra batida e deteve-se onde a superfície asfaltada se inclinava.
Era tudo exactamente idêntico ao original situado a centenas de quilómetros dali, incluindo as cortinas bordadas das janelas. As lições de Novgorod haviam sido assimiladas com eficiência e os seus frutos transplantados para uma pequena ilha a poucos minutos da costa dos Estados Unidos, a segundos, por via aérea. Que aconteceu, meu Deus?
- Quietinho, soldado! - A ordem procedia de trás. - Que diabo fazes aqui? Havelock voltou-se, dissimulando a 45 o melhor possível, e deparou-se-lhe um guarda que acabava de emergia da vegetação, de arma em punho. No entanto, não era militar.
- Que mosca lhe mordeu? - retrucou Michael. - Já um tipo não pode dar uma volta?
- Costumas correr, quando dás uma volta?
- Nunca ouviu falar de jogging?
- Todas as manhãs, amigo, quando não estou de serviço durante a noite. Mas na estrada da ilha, à vista de todos, e não aqui. Conheces o regulamento. Ninguém pode sair do sector seis.
- De súbito, irromperam acordes musicais da casa, que ele identificou sem dificuldade. Pertenciam a uma das peças favoritas de Matthias: Música na Água, de Hãendel.
O seu pritel encontrava-se lá dentro!
- Concerto todas as noites - resmungou o guarda.
- Porquê?
- Sei lá! Ele vai para o jardim e põe, aquilo a tocar uma hora ou mais. A música é para pensar, Mikhail. Quanto melhor a música, mais perfeitos os pensamentos. Existe uma relação causal, sabes.
- Nem sei como vocês consentem.
- Porque não? Não tem outro entretenimento ou lugar para onde ir. Mas tu vais para um
sítio que eu cá sei, se não desapareces daqui. - O homem guardou a arma no coldre no interior do casaco. - Andas com sorte... Que é isso? Estás armado!
Havelock segurou-o pelo pescoço, lançou-o ao chão e exerceu pressão com a perna esquerda, ao mesmo tempo que puxava a faca de caça.
- Tu é que não andas com sorte nenhuma - murmurou. - De onde és, skotina? Novgorod? Dos montes Urais? Um paminyatchik? - Pousou a ponta da lâmina entre as
narinas e o lábio superior do guarda. - Vou retalhar-te a cara, se não me disseres o que pretendo. Em primeiro lugar, de quantos homens se compõe a guarda da casa?
- Nunca... - balbuciou o homem - _nunca conseguirás sair daqui.
- Não me provoques, carniceiro. - A lâmina perfurou a pele e o sangue principiou a deslizar para, os lábios... Quantos são?
- Dois.
- Mentiroso!
- É verdade. Um lá dentro e o outro fora.
- Onde estão os alarmes? Em que consistem?
- Feixes cruzados, da altura dos ombros aos joelhos. À entrada.
- Só?
- São os únicos ligados. Para evitar que ele saia.
- E o jardim?
- O muro é muito alto. E para onde iria? Para onde irás tu?
- Veremos. Michael ergueu a cabeça do guarda pelos cabelos, largou a faca e atingiu-o com o gume da mão atrás da orelha direita. Quando o viu inanimado, puxou de um atacador de cabedal, cortou-o ao meio e atou-lhe as mãos e os tornozelos. Por fim, amordaçou-o com o seu
próprio lenço, que fixou com um dos três atacadores que restavam, e arrastou o corpo para a vegetação, após o que se aproximou da "casa".
A composição de Hãendel achava-se numa das passagens mais ruidosas, e ele dirigiu-se para um dos lados, imobilizando-se a cerca de três metros de uma das janelas. Depois de olhar em volta, transpôs a distância, agachado, e espreitou. A sala constituía a réplica exacta de uma outra de que se recordava, noutro lugar. Michael passara muitas horas nela.
Tomou a agachar-se, contornou a esquina e seguiu ao longo da casa, em direcção às traseiras, onde sabia existir um muro que antecedia o jardim. Tinha de passar diante de três janelas, e a segunda revelou-lhe o que necessitava saber. Um homem corpulento reclinava-se num sofá, com um cigarro entre os lábios, pés pousados numa mesinha à sua frente, entretido a ver televisão, com o volume do som elevado, sem dúvida para neutralizar os
acordes estereofónicos da composição de Hãendel.
Havelock correu para o muro e saltou. Segurou-se ao topo com ambas as mãos e em seguida, esforçando-se por ignorar a dor excruciante do ombro, içou-se, para permanecer de bruços, enquanto aguardava que a sensação penosa se atenuasse.
Em baixo, a reprodução do jardim correspondia ao original de que ele recordava. Luz suave proveniente da casa, de um único candeeiro na mesa de xadrez entre duas cadeiras de verga.
Avistou o seu estimado pritel, sentado numa cadeira ao fundo do jardim, de olhos fechados, decerto vendo as imagens que a música lhe evocava no espírito.
Sem produzir um som, Michael saltou para dentro e conservou-se na sombra durante alguns momentos. Entretanto, os acordes eram menos intensos e distinguia-se o som da televisão. O guarda continuaria lá dentro -pelo menos, até que ele o necessitasse cá fora. E quando dominasse o homem contratado pelos mentirosos, servir-se-ia dele ou matá-lo-ia.
Por fim, principiou a afastar-se do muro e enveredou por um caminho empedrado circular entre os canteiros, em direcção ao ponto onde Matthias se encontrava.
Sem motivo aparente, este último descerrou repentinamente as pálpebras e Michael precipitou-se para a frente, ao mesmo tempo que erguia as mãos, num gesto para recomendar silêncio... que foi ignorado.
- To je dobré srovnúní, Mikhail - proferiu o estadista, em voz grave. - Alegra-me que aparecesses. Pensei em ti, o outro dia, naquele ensaio que escreveste, há umas semanas. Como se chamava? Os Efeitos do Revisionismo Hegeliano, salvo erro. Na realidade, meu darebák akademik, Hagel foi o seu melhor revisionista. O revisionista maximus!
- Anton?... Com brusquidão, sem indicação prévia, levantou-se, de olhos arregalados num rosto contorcido, e principiou a recuar em passos incertos, braços cruzados sobre o peito, a voz agora convertida num murmúrio horrível:
- Não! Não podes... não deves... aproximar-te de mim! Não compreendes, nunca
poderás compreender! Afasta-te de mim!
Havelock fitava-o estupefacto, reflectindo que o choque era tão insustentável como a verdade.
Anthony Matthias enlouquecera.
TERCEIRA PARTE
Capítulo vigésimo sexto
- Levanta os braços! Aproxima-te da parede e abre as pernas! Já! Pousa as mãos! Como em transe, os olhos ainda fixos em Matthias, que se agachava junto de uma roseira, como uma criança, Havelock obedeceu à ordem do guarda. Encontrava-se em
estado de choque, as suas impressões totalmente confusas e a faculdade do raciocínio paralisada. O seu prítel, o seu mentor... o seu pai... enlouquecera. O homem que surpreendera o mundo com a sua inteligência brilhante agachava-se diante de flores, de cabeça trémula e olhar dominado por um terror que só ele conhecia.
Michael ouvira os passos do homem e compreendera que a agressão era iminente. No entanto, não se preocupara. Nada se revestia de importância, depois da descoberta que acabava de fazer
Uma teia de dor propagou-se a partir da cabeça e as trevas surgiram como corolário natural.
Encontrava-se estendido numa carpeta, com círculos de luz intensa projectados nos
olhos, enquanto as têmporas latejavam e as calças encharcadas e cheias de areia se lhe colavam às pernas. Ouvia passos apressados lá fora e vozes que vociferavam ordens. Quando transpuseram a porta, Havelock descobriu que lhe tinham confiscado a arma, mas não fora revistado. Tudo indicava que essa tarefa e a de o interrogar competiam aos
superiores dos guardas.
Aproximaram-se dois homens, um dos quais uniformizado, um major. Michael conhecia
* outro: um funcionário do Departamento de Estado, agente das Operações Consulares com
* qual trabalhara em Londres, Beirute ou Paris.
- É ele - disse este último. - Bradford preveniu-me, embora eu não saiba como desconfiou. Vocês não estão envolvidos.
- Levem-no daqui quanto antes - redarguiu o militar. - As vossas actividades não me interessam.
- Olá, Havelock. - O funcionário do Departamento de Estado fitou-o com desdém. Tens andado muito atarefado. Aposto que te fartaste de gozar, quando mataste aquele velho, em Nova Iorque. Levanta-te, bastardo!
Michael rolou para o lado, a fim de se esquivar aos pontapés do outro, e pôs-se de pé.
- Que lhe aconteceu? Que aconteceu?
- Não respondo a perguntas.
- Alguém tem de responder!
- Não contes com isso. - O homem virou-se para o guarda, que se encontrava no outro lado da sala. - Revistou-o?
- Não, senhor. Limitei-me a tirar-lhe a arma e a activar o alarme. Tem uma lanterna à cintura e uma espécie de bolsa.
- Deixa-me ajudar-te, Charley. - Havelock puxou o fecho do blusão e fez menção de extrair a bolsa de oleado. - Charley Loring, se a memória não me atraiçoa. Não foi em
Beirute que trabalhámos juntos?
- Foi, mas está quietinho com as mãos!
- O que procuras está aqui. Pega-lhe. Não tenhas medo, que não explode. Charley inclinou a cabeça para o major, que se adiantou e segurou as mãos de Michael, enquanto o outro lhe arrancava o saco da cintura.
- Abre-o - acrescentou Havelock. - É uma oferta minha. Para todos vós.
O agente das Operações Consulares puxou das folhas dobradas e acercou-se de um candeeiro para ler o conteúdo. Quase imediatamente, interrompeu-se, lançou unia olhadela a Michael e tomou a dirigir-se ao militar:
- Aguarde lá fora, major. Tu também - indicou ao guarda.
- Tem a certeza? - perguntou o primeiro.
- Absoluta. Ele não vai a parte nenhuma e gritarei se precisar de ajuda. - Os dois homens retiraram-se: o maior para a sala da frente e o guarda para um compartimento no lado contrário. - És o esterco mais imundo que jamais conheci.
- Isso que tens aí é uma cópia.
- Bem vejo.
- Liga à emergência das Operações Consulares. Cada quinze minutos, desde as onze horas, estão a receber uma mensagem, sob a forma de uma pergunta: "bilhares oupool" ? A resposta é: "Preferimos pool. " Diz-lhes que a dêem.
- E depois?
- Recebe a chamada seguinte, responde e escuta.
- Para outro pedaço de esterco me ler isto?
- Não. Um telefonema de apenas doze segundos, impossível de localizar. E não percas tempo com injecções. Estive sob terapia por várias vezes, pelo que tomei precauções. Garanto-te que não faço a menor ideia da origem dos telefonemas.
- Não aceito as tuas garantias nem juradas sobre a Bíblia, esterco!
- Mais vale que o faças, sob pena de cópias dessas páginas seguirem para determinados endereços dispersos por toda a Europa. De Moscovo a Atenas, de Londres a Praga, de Paris a Berlim. Pega no telefone, antes que seja tarde.
Vinte e cinco minutos depois, o funcionário do Departamento de Estado fixava os olhos arregalados na parede, enquanto dava a resposta a Jerina Karas. Transcorridos onze segundos, desligou e voltou-se para Havelock.
- És tudo o que eles disseram. Um nojo.
- E "irrecuperável"?
- Exacto.
- Então, tu também, porque estás programado. És um inútil. Esqueceste-te de como se fazem perguntas.
- O quê?!
- Aceitaste o veredicto a meu respeito. Conhecias-me, estavas ao corrente da minha folha de serviço, mas não ligaste. Surgiu a ordem das altas esferas, e o cordeiro murmurou: "Por que não?"
- Apetecia-me matar-te.
- E enfrentar as consequências? Não te atrevas. Contacta a Casa Branca.
Havelock ouviu o rugido ensurdecedor dos rotores do helicóptero e compreendeu que o presidente dos Estados Unidos chegara à ilha Poole. Eram cerca de onze horas da manhã e os raios solares da Geórgia incidiam nos pavimentos do outro lado da janela aberta. Ele encontrava-se num quarto, mas não subsistiam dúvidas de que se tratava de uma cela, embora não houvesse grades visíveis. Achava-se num primeiro piso e havia quatro soldados em baixo, além das fachadas e fotografias sinistras de edifícios familiares. Um mundo de mentiras, de artifícios, de realidade retorcida transplantada.
Michael retrocedeu para a cama - na verdade, era mais um beliche que um leito vulgar
- e sentou-se. Pensou em Jerina e na provação que atravessava - mais uma vez -, nos recursos que necessitava de reunir para sobreviver à tensão insuportável. E em Matthias. .. que acontecera, santo Deus? Evocou a cena horrível do jardim, em busca de uma sugestão de lógica.
Não deves aproximar-te de mim. Não compreendes, nunca poderás compreender. Compreender o quê? Não fazia a mínima ideia de quanto tempo permaneceu sentado, imerso em cogitações, interrompidas finalmente pelo estalido produzido pelo postigo no centro da porta. Em
seguida, esta abriu-se e entrou um coronel de meia-idade e ombros largos, que brandia um
par de algemas.
- Volte-se e estenda os braços. Havelock obedeceu e sentiu os aros de aço em tomo dos pulsos.
- Os pés não? - inquiriu com desprendimento. - Não os consideram armas?
- Terei uma muito mais eficiente na mão e não o perderei de vista um único segundo. Ao menor gesto de interpretação dúbia, morre.
- Uma conferência a sós? Sinto-me lisonjeado.
- Não sei quem é ou o que fez, mas tome nota do seguinte, vaqueiro. Aquele homem encontra-se sob a minha responsabilidade e nada me impedirá de lhe fazer saltar os miolos e interrogá-lo depois, se for caso disso.
- Quem é o vaqueiro? Como para vincar a ameaça, o oficial impeliu Michael para a parede com um gesto brusco.
- Espere aqui - indicou, e retirou-se. Trinta segundos mais tarde, a porta voltou a abrir-se, para dar passagem ao presidente Charles Berquist, em cuja mão se viam os treze duplicados das acusações de Havelock. Avançou um passo, imobilizou-se, contemplou este último em silêncio por um momento e ergueu-os significativamente.
- É um documento extraordinário, Mr. Havelock.
- Corresponde à verdade.
- Acredito. Considero grande parte do texto abaixo de todo o desdém, mas suponho que um homem com o seu passado não denunciaria e exporia à morte tantas pessoas sem um motivo de peso. Penso que, basicamente, se trata de uma ameaça (uma ameaça irresistível) para se fazer ouvir.
- Nesse caso, pensa mal - replicou Michael, imóvel junto da parede. - Consideraram-me "irrecuperável". Por que me havia de preocupar com os outros?
- Porque é um homem inteligente, que sabe que tem de haver explicações.
- Quer dizer mentiras, sem dúvida.
- Algumas, talvez, e continuarão sendo mentiras no interesse da segurança do nosso país.
- Matthias? - inquiriu, observando a rígida expressão escandinava do presidente.
- Exacto.
- Durante quanto tempo julgam que o podem manter enterrado aqui?
- Todo o que nos for possível.
- Precisa de ajuda.
- Nós também. Tínhamos de pôr termo às suas actividades.
- Que lhe fizeram?
- Fui apenas uma peça do mecanismo, Havelock. Tal como você. Como todos nós. Tomámo-lo imperador, quando não havia impérios pessoais a conceder por direito divino e
muito menos nosso. Convertemo-lo num deus, apesar de não possuirmos os céus. Há um limite para o que a mente pode absorver e utilizar quando guindada a essas altitudes, nos tempos complicados actuais. Foi obrigado a existir na ilusão perpétua de que era um ser
único, acima de todos os outros. Exigimos demasiado e enlouqueceu. A mente (esse instrumento extraordinário) cedeu, e quando deixou de se poder dominar, procurou o
domínio noutros lugares. Porventura como forma de compensação, para se convencer de que era o que se intitulava, embora uma parte dele afirmasse o contrário.
- Que quer dizer com " procurou o domínio noutros lugares@> ? Como poderia fazer uma
coisa dessas?
- Envolvendo a nação numa série de obrigações a todos os títulos inaceitáveis. Procure compreender. Ele tinha pés de mercúrio e não de barro, como você ou eu. Sim, até eu,
presidente dos Estados Unidos, o homem mais poderoso do mundo, como alguns dizem. Não é verdade. Estou vinculado ao corpo político, sujeito às famigeradas sondagens, orientado pelos chamados princípios de uma ideologia política, com a cabeça permanente--mente pousada na guilhotina do Congresso. Mas ele não. Tornámo-lo uma superestrela, sem estar vinculado a coisa alguma, nem ter de prestar contas a ninguém. A sua palavra era lei e todos os outros pareceres subordinados ao seu espírito brilhante. E existia o seu encanto pessoal, julgo oportuno acrescentar.
- Generalidades - declarou Michael. - Abstracções.
- Mentiras?
- Não sei. Quais são os pormenores específicos?
- Vou mostrar-lhos. E se depois do que vir continuar empenhado em concreta ameaça, a responsabilidade recairá inteiramente sobre a sua cabeça e não sobre a minha
- Não tenho cabeça. Sou "irrecuperável".
- Como lhe disse, li estas páginas. Todas. A ordem foi revogada. Tem a palavra presidente dos Estados Unidos.
- Por que a hei-de aceitar?
- No seu lugar, eu talvez não aceitasse. Limito-ni a expor-lhe a situação. Há muitas mentiras e continuará a haver, mas isto não é uma delas... Vou mandar retirar as algemas @ ,
O cenário na vasta sala sem janelas constituía uma reprodução tétrica de um pesadelo de ficção científica. Havia uma dúzia de écrans de televisão numa das paredes, monitores que reproduziam e gravavam as actividades captadas pelas várias objectivas. Mais abaixo, achava-se uma ampla consola comandada por quatro técnicos. Entravam diversos médicos de bata branca, observavam uma cena, consultavam gravações ou tomavam apontamentos e voltavam a sair apressadamente ou conferenciavam com colegas. E a finalidade da sofisticada operação consistia em registar e analisar cada movimento e cada palavra de Anthony Matthias.
O rosto e corpo deste último eram projectados em sete écrans simultaneamente, e junto de cada monitor via--se um quadrante digital que indicava a hora e os minutos exactos de cada filmagem, enquanto o écran do extremo esquerdo ostentava a palavra @Actual". O dia representava uma ilusão para Matthias, iniciando-se com o café matinal no jardim idêntico ao da sua residência em Georgetown.
- Dão-lhe duas injecções antes de acordar -explicou o presidente, sentando-se ao lado de Havelock, diante de uma segunda consola, de menores dimensões, na parede ao fundo.
- Uma destina-se a atenuar as tensões físicas e mentais e a outra contém um estimulante que acelera as palpitações do coração e, portanto, o ritmo da circulação, sem interferir no
primeiro narcótico. Não me pergunte as designações técnicas, porque não as conheço. Só sei que resulta. Ele dispõe de um certo grau de confiança para actuar... de certo modo, uma
réplica da sua própria personalidade.
- Começa então o seu dia? O seu... dia simulado?
- Precisamente. Consulte os monitores, da direita para a esquerda. Tem início com o pequeno-almoço no jardim, após o qual lhe levam relatórios de actividades de agentes secretos e jornais correspondentes do assunto explorado. No écran seguinte, vê-o a sair dt; "casa" com um colaborador que lhe diz qualquer coisa, para apurar as opções do problema@ preparar um processo ou lá o que for. É tudo extraído do seu memorando, que se mantém, constante ao longo do "dia". - Berquist fez uma pausa e gesticulou na direcção do terceirO monitor a contar da direita. - Aí, encontra-se na sua limusina, com o colaborador ainda a
falar, a fim de o distrair. O carro efectua várias voltas pelas proximidades e passa gradualmente por lugares que são familiares a Matthias: o Memorial a Jefferson, determinadas ruas e o Pórtico Sul... a sequência não interessa.
- Mas não formam um conjunto - argumentou Michael. - São fragmentos!
Ele não vê isso, apenas as impressões. Mas mesmo que se apercebesse de que se trata
gmentos, corno lhes chama, ou miniaturas de lugares que existem, os médicos m que a mente rejeitaria essa concepção e aceitaria a realidade das impressões. Tal se negou a admitir a sua própria deterioração e insistiu em responsabilidades cada vez
amplas, até que as tomou... Repare no quarto écran. Vai a sair do Departamento de , volta para trás e diz qualquer coisa ao colaborador, que será devidamente estudada. quinto, entra no seu gabinete (a reprodução fiei do que possuía no sétimo andar) e
-se a consultar os telegramas e a reler a indicação dos compromissos do dia, uma vez
idênticos aos verificados na data em causa. O sexto mostra-o recebendo uma série de telefonemas, os mesmos que aconteceram na altura. As suas respostas são com frequência t 'da de sentido, quando uma parte dele rejeita uma voz, mas noutras ocasiões uí s
o-nos de autênticas explosões mentais. Encontra-se aqui há cerca de seis semanas e chegamos a pensar que ainda só riscámos a superfície. Principiamos apenas a conhecer tensão dos seus excessos maciços.
- Refere-se ao que ele fez? - perguntou, impressionado com o que se lhe deparava.
- Sim, Mr. Havelock, as "coisas" que fez - replicou Berquist, olhando-o com gravidade. - Se alguém na história de um governo excedeu a autoridade do seu cargo, foi sem
dúvida Anthony Matthias. Não havia limites paras as suas promessas, para as suas garantias, em nome do Governo dos Estados Unidos. Tomemos o dia de hoje, por exemplo. Foi estabelecida uma política, mas como não satisfazia o secretário de Estado neste momento particular de irracionalidade, alterou-a... Observe o sétimo écran, por baixo do qual se lê .Actual@. Escute. Está sentado à secretária e a sua mente retrocedeu cinco meses, quando foi tomada uma decisão bipartidária para encerrar uma embaixada num novo país africano que chacinava os seus cidadãos com execuções maciças e esquadrões da morte, ante a repulsa e indignação do mundo civilizado. O colaborador elucida-o.
Senhor secretário, o presidente e os chefes de Estado-Maior, assim como o Senado, declararam opor-se a ulteriores contactos nesta altura.
Nesse caso, não se lhes diz nada. As reacções antediluvianas não podem constituir a pedra-de-toque de uma política externa coerente. Eu próprio estabelecerei o contacto e apresentarei um plano coesivo e judicioso. O armamento e a manteiga bem adocicada são lubrificantes internacionais, e fornecê-los-emos.
- Ele disse isso? Fez isso?
- Está a revivê-lo. Dentro de minutos, telefonará à missão em Genebra e assumirá mais um compromisso incrível... Isto não passa, porém, de um exemplo secundário, em que eles estão a trabalhar, esta manhã. Na verdade, por revoltante que pareça, é insignificante, se Comparado com muitos outros. Muitíssimos... perigosos... incríveis.
- Perigosos?
- Uma voz que domina todas as outras, enceta negociações inconcebíveis e estabelece acordos contrários a tudo o que esta nação representa, acordos esses que levariam o Congresso a impugnar-me, só poros considerar. Mas até esse facto (e trata-se de um facto) é insignificante. Não podemos permitir que o mundo saiba o que ele fez. Humilhava-nos, um gigante de joelhos, pedindo perdão, e se não o obtivéssemos, haveria armas e bombas. Matthias deixou tudo escrito.
- Podia fazê-lo ?
- Constitucionalmente, não. No entanto, era uma superestrela. O rei sem coroa da república tinha-se pronunciado, um deus fizera ouvir a sua voz. Quem interpela os reis ou os deuses? A simples existência desses documentos constitui o motivo mais fértil da terra para a extorsão internacional. Se não conseguirmos invalidar discretamente essas negociações, esvaziá-las de conteúdo diplomático através da rejeição antecipada do Congresso, serão denunciadas. E, nessa eventualidade, todos os tratados e acordos que concluímos nos últimos dez anos (todas as alianças sensatas que negociamos actualmente em todos os
pontos do Globo), serão postos em causa. A política externa danação ruirá e não voltarão a confiar em nós. E quando uma nação como a nossa não tem política externa, Mr. Havelock, tem a guerra.
Michael inclinou-se para a consola e fixou o olhar arregalado no écran @Actual@, ao mesmo tempo que levava a mão à fronte perlada de transpiração.
- Já chegou a esse ponto?
- Ultrapassou-o. Lembre- sede que foi secretário de Estado durante cerca de seis anos, e antes de ocupar o cargo a sua influência era significativa, talvez excessiva, nas duas administrações anteriores. Na sua qualidade de embaixador plenipotenciário, percorreu o mundo e cimentou as suas bases de poder.
- Mas eram para o bem e não para isto!
- Sim, e ninguém o sabia melhor do que eu. Fui quem o convenceu de que devia abandonar as actividades de consultor e assumir o comando das operações. Afirmei que o mundo necessitava da sua acção directa e chegara o momento oportuno. Apelei para o seu ego, e todos os grandes homens possuem egos dilatados. De Gaulle tinha razão: o homem de destino sabe-o antes que todos os outros. O que ignora é o limite das suas capacidades, como sucedia a Matthias.
- Referiu há pouco que o tomaram um deus. - Havelock abanou a cabeça, abismado.
- Exigiram demasiado dele.
- Um momento. - O presidente assumiu uma expressão glacial. - Eu disse isso a talhe de foice, para exemplificar com uma explicação demasiado simplista. Ninguém converte um homem num deus, a menos que ele o queira ser. E Deus é testemunha de que Matthias lutara toda a vida para obter essa nomeação divina! No seu espírito, saboreou a água-benta ao longo de anos... banhava-se nela. Sabe o que lhe chamaram, o outro dia?
O Sócrates oportunista do Potomac, o que corresponde inteiramente à realidade. Um oportunista brilhante, de quociente de inteligência elevadíssimo. Um homem com palavras extraordinariamente persuasivas, capaz de uma diplomacia global inexcedível, enquanto se mantivesse no olho do furacão mundial. Sempre lhe reconheci essas (e outras) qualidades e aproveitei-as ao máximo. Mas, à parte isso, era de facto um oportunista. Nunca parava de promover o omnisciente Anthony Matthias.
- E, apesar de saber isso, utilizou-o - observou Michael, sem se atemorizar com a atitude de Berquist. Promoveu-o tanto como ele próprio. Apelou para um "homem de destino", não é assim?
- Sim - admitiu o presidente, baixando os olhos para os quadrantes da consola. - Até que ele começou a desvairar. Porque eu observava uma actuação, e não o homem, o que me ofuscava a visão. Não me compenetrava do que na realidade acontecia.
- Com a breca! - exclamou Havelock, com um suspiro. É tudo tão difícil de acreditar!
- Prevendo isso, mandei preparar algumas gravações para lhe mostrar. São reconstituições de conversas desenroladas durante os seus últimos meses no Departamento de Estado . Os psiquiatras garantem a sua validade e os documentos que encontrámos confirmam a opinião. Ponha os auscultadores, que carregarei nos botões apropriados. As imagens surgirão no último monitor da direita.
O que apareceu naquele écran durante os doze minutos imediatos era um retrato de um homem que Michael não conhecia. As gravações mostravam Matthias em extremos emocionais, enquanto era estimulado psicologicamente pelos efeitos combinados de produtos químicos e das simulações visuais. Umas vezes gritava, noutras chorava, ou adulava um diplomata pelo telefone com palavras apropriadas (e humildade brilhante), para o apelidar de imbecil no final da conversa. Acima de tudo, destacavam-se as mentiras, onde outrora só existia a verdade essencial. O telefone era o seu instrumento, e a voz bem timbrada e vigorosa, de cadência europeia, o órgão.
- A primeira é a resposta que me deu, quando sugeri a revisão do auxílio a São Miguel
- esclareceu Berquist, premindo um botão com força exagerada.
A sua política é firme, senhor presidente, uma evocação clara da decadência e direitos humanos. Aplaudo-o. Adeus. . . Idiota!. Imbecil! Uma pessoa não tem de aprovar um irmão. Basta aceitar realidades geopolíticas! Ligue ao general Sandoza e marque um encontro confidencial com o seu embaixador. Os coronéis compreenderão que os apoiamos!
- Esta breve passagem seguiu-se a uma resolução conjunta da Casa e Senado, que aprovei sem reserva, para suspender o reconhecimento diplomático.. .
Deve compreender, senhor primeiro-ministro, que os nossos acordos existentes na vossa região do mundo proíbem o que propõe, mas quero que saiba que concordo consigo. Vou avistar-me com o presidente... não, garanto-lhe que me escutará de espírito aberto... e já convenci o director da Comissão de Relações Externas do Senado. Um tratado entre os nossos países constitui um progresso desejável, e se estivesse em contradição com acordos anteriores. .. bem, os interesses pessoais esclarecidos eram a essência dos domínios de Bismark.
- Não acredito - murmurou Havelock, mesmerizado.
- Nem eu, mas é verdade. - Berquist carregou noutro botão. - Estamos agora no
Golfo Pérsico...
O senhor exprime-se a título particular, claro, não como ministro das Finanças do seu país, mas como amigo, e procura garantias adicionais de oitocentos e cinquenta milhões para o seu ano fiscal corrente e mil e duzentos milhões para o próximo... Ao contrário do que possa supor, meu bom amigo, trata-se de números inteiramente plausíveis. Digo-lhe isto a título confidencial, todavia as nossas estratégias territoriais não correspondem ao
que parecem. Preparei, igualmente numa base confidencial, uma carta de intenções.
- Agora, passamos aos Balcãs, um satélite soviético, leal a Moscovo, e assediando-nos a porta... Incrível!
Senhor primeiro-ministro, as restrições à venda de armamento ao seu país, se não podem ser levantadas abertamente, serão, porém, ignoradas. Encontro vantagens específicas e consideráveis na cooperação convosco. Forneceremos "equipamento" através de determinados regimes do Norte de África supostos no campo do nosso adversário, mas com cujos dirigentes me encontrei, digamos oficialmente, com certa frequência, nos últimos tempos. Aqui para nós, está em formação um novo eLxo geopolítico...
- Em formação - explodiu o presidente. - Suicídio! Eis um golpe nos lémenes. Instabilidade em curso e derramamento de sangue garantido!
O aparecimento de uma nova grande nação independente, Sirach Bal Shazar, embora tarde a obter o reconhecimento que merece, terá o apoio discreto desta administração. Reconhecemos a necessidade de enfrentar com firmeza e realismo a subversão interna. Pode estar seguro de que os fundos que solicita serão concedidos. Trezentos milhões, cuja transferência indicará ao ramo legislativo do nosso Governo a fé que depositamos em vós.
- Finalmente - disse Berquist, premindo um derradeiro botão, com uma expressão de cansaço no semblante -, o novo louco de África.
Falando francamente e a título confidencial, major-general Halafi, aprovamos a sua
proposta incursão no Estreito. Os nossos ditos aliados da área têm-se mostrado fracos e
ineficazes, mas, naturalmente, a nossa dissociação deve ser gradual, em virtude dos tratados existentes. O processo de educação é sempre difícil e a reeducação dos entrincheirados, infelizmente, uma partida de xadrez alucinada, jogada com êxito por aqueles de nós que compreendem. Terá as suas armas. Salaam, meu amigo guerreiro.
Aquilo que Michael vira e escutara era paralisador. Alianças contrárias aos interesses dos Estados Unidos haviam sido formadas tacitamente, ou semiformadas, e tratados propostos ou negociados em franca violação dos compromissos existentes. Tinham sido dadas garantias de milhares de milhões de dólares que o Congresso nunca toleraria e o contribuinte
americano jamais aceitaria. Haviam-se assumido obrigações militares imorais em conceito, que excediam os limites da hora nacional e resultavam irracionalmente provocatórias. Era o
retrato de um espírito brilhante que se fragmentara numa profusão de compromissos globais, cada um dos quais constituía um míssil letal.
Havelock emergiu lentamente do estado de choque e, de súbito, a lacuna surgiu-lhe em
primeiro plano. Tinha de ser preenchida, explicada, pelo que afastou os auscultadores da cabeça e virou-se para o presidente.
- Costa Brava - murmurou. - Porquê? Porquê "irrecuperável"?
- Intervim na primeira, mas não propus o segundo. Até onde conseguimos determinar, não foi sancionado oficialmente.
- Ambiguidade?
- Sim. Não sabemos quem é. Devo, todavia, esclarecer que confirmei a ordem de "irrecuperável", mais tarde.
- Porquê?
- Porque aceitei um aspecto do juramento que você fez por escrito, quando entrou ao
serviço do Governo.
- Qual?
- Sacrificar a vida pela pátria, se ela a necessitasse com urgência suficiente para lha exigir. Sabe perfeitamente que qualquer de nós o faria. E julgo inútil recordar-lhe que milhares incontáveis de pessoas procederam do mesmo modo, mesmo quando essa necessidade era discutível.
- Quer dizer que a necessidade da minha vida... da minha morte... não era discutível?
- Quando dei a ordem, não era, de facto.
- E a mulher checoslovaca? - persistiu Michael, contendo o alento. - Jeima Karas.
- A sua morte nunca foi determinada.
- Foi, sim!
- Não por nós.
- Ambiguidade?
- Tudo o indica.
- E não sabem... Meu Deus! Mas a minha execução foi sancionada. Por si, senhor presidente. - Este inclinou a cabeça, o rosto nórdico menos duro que anteriormente. -
Pode o condenado saber porquê?
- Venha comigo. - Berquist levantou-se com lentidão. - É chegada a altura da última fase da sua educação, Mr. Havelock. Espero sinceramente que esteja preparado.
Abandonaram a sala dos monitores e entraram no que parecia um curto corredor branco, guardado por um possante sargento, cuja expressão e abundância de condecorações no peito sugeriam muitas viagens e combates, o qual se perfilou no instarte em que viu o presidente, que inclinou a cabeça e prosseguiu em direcção a uma larga porta ao fundo. No entanto, à medida que se aproximavam, Michael viu que não se tratava de uma porta vulgar, mas de um cofre-forte, com o volante no centro e a pequena placa de um sensor manual à direita. Berquist pousou a palma da mão nela e acenderam-se intermitentemente várias luzes coloridas na parte superior do dispositivo, acabando por ficar apenas a verde e a branca. Em seguida, estendeu a outra mão para o volante e as luzes recomeçaram a suceder-se, até se imobilizarem numa sucessão de verdes.
- Suponho que conhece estas geringonças melhor do que eu, Mr. Havelock, pelo que me limitarei a esclarecer que só eu posso abrir a porta... e outra pessoa, na eventualidade da minha morte.
O significado destas palavras era óbvio e não exigia qualquer comentário. O presidente impeliu a pesada barreira de aço para dentro e apressou-se a pousar a mão num ponto à sua direita, para desactivar um detector de feixes cruzados. Em seguida, entrou com Michael e fez sinal ao sargento, que fechou o cofre-forte por fora.
Era uma sala, mas não vulgar, pois carecia de janelas ou ornamentos de qualquer espécie. Continha uma mesa de conferências oblonga, no centro, com cinco cadeiras em volta, blocos de apontamentos, lápis, cinzeiros e um triturador de papéis no canto esquerdo. Por outras palavras, tratava-se de uma mesa numa dependência preparada para consulta imediata e destruição instantânea dos resultados registados de uma reunião. Enquanto a sala que acabavam de abandonar dispunha de doze monitores de televisão ao longo de uma das paredes, esta apresentava uma única tela reflectora e um projector no lado oposto, com um quadro de teclas circulares.
Sem proferir palavra, Berquist encaminhou-se directamente para este último, atenuou a intensidade da luz do tecto e ligou-o. Surgiu imediatamente na tela uma imagem dupla, com uma linha vertical de separação das duas fotografias, cada uma das quais representava uma página de documentos diferentes, obviamente relacionados, pois os impressos eram quase idênticos. Havelock fitou-os com perplexidade crescente, enquanto o presidente explicou:
- Isto é a essência daquilo a que chamamos Parsifal. Recorda-se do argumento da última ópera de Wagner?
- Vagamente.
- Não tem importância. Basta referir que, quando Parsifal pegava na lança utilizada na crucificação de Cristo e a pousava em ferimentos, estes saravam. Transplantando a situação para o nosso caso, quem possuir esses documentos dispõe do poder para os abrir. Por todo
* mundo.
- Confesso que... não acredito.
- Quem me dera poder dizer o mesmo - suspirou, erguendo a mão e apontando para
* documento à esquerda da tela. - Aquele primeiro acordo estabelece um ataque nuclear à República Popular da China, executado pelas forças combinadas dos Estados Unidos da América e da União Soviética. Objectivo: destruição de todas as instalações militares, centros de funcionamento do Governo, geradoras hidroeléctricas, sistemas de comunicações e sete cidades importantes, da fronteira da Mancliúria ao mar da China. - Fez uma pausa e gesticulou para o da direita. - O segundo acordo estabelece um ataque quase idêntico à União Republicana Soviética Socialista, levado a efeito pelas forças combinadas dos Estados Unidos e da República Popular da China. As diferenças são de importância secundária, vitais apenas para alguns milhões de pessoas que morrerão carbonizadas nas fogueiras nucleares. Há cinco cidades adicionais, entre as quais Moscovo, Leninegrado e Kiev. Destruição total: doze cidades eliminadas da face da Terra... O nosso país participou em dois acordos separados: um com a União Soviética e outro com a República Popular da China. Em cada caso, comprometemos toda a gama das nossas armas nucleares num ataque combinado com um parceiro para destruir um inimigo comum. Dois compromissos diametralmente opostos, e os Estados Unidos são a prostituta que serve dois garanhões alucinados. Aniquilação maciça. O mundo na iminência de uma conflagração nuclear engendrada com brilhante precisão por Anthony Matthias, superestrela.
Capítulo vigésimo sétimo
- Mas isto é... uma loucura! - balbuciou Michael, a meia-voz, sem conseguir desviar os olhos da tela. - E aliámo-nos a cada um desses países? Os documentos obrigam-nos a participar num conflito nuclear... num primeiro ataque.
E num segundo e terceiro, se for necessário, por submarinos em tomo das costas da
China e da Rússia. Dois acordos incríveis, e achamo-nos vinculados a ambos. Está tudo bem claro, o preto no branco.
- Meu Deus... Se o conteúdo for divulgado, não restará a mínima esperança para o mundo.
- Agora, ficou inteirado de tudo - murmurou o presidente, com uma expressão de amargura. - É a ameaça insuportável sob a qual vivemos, e se não obedecermos à letra às instruções entregues ao meu Gabinete, enfrentamos a catástrofe global no seu mais verdadeiro sentido. A ameaça é muito simples: o pacto nuclear com a Rússia será mostrado aos dirigentes da República Popular da China e o nosso acordo com esta às autoridades de Moscovo. Ambos compreenderão que foram traídos... pela prostituta mais rica da História. Convencer-se-ão disso, e o mundo ruirá sob o efeito de milhares de explosões nucleares. As últimas palavras pronunciadas serão: " Não se trata de um exercício, mas da guerra a sério! "
É esta a verdade, Mr. Havelock.
Este sentia as mãos trémulas e um latejar persistente nas têmporas. Algo que Berquist acabava de dizer suscitara-lhe um repentino mal-estar, mas não conseguia concentrar-se para identificar a origem. Limitava-se a conservar o olhar fixo nos dois documentos projectados.
- Não veio nada sobre datas - articulou, por fim.
- Figuram em páginas separadas. Isto são cartas de intenções. Estão previstas conferências em Abril e Maio, altura em que se decidirão as datas exactas dos ataques. Abril com os soviéticos e Maio com os chineses. Os dois próximos meses. As hostilidades serão desencadeadas dentro dos quarenta e cinco dias imediatos.
- É... inconcebível. - Michael experimentava de novo a sensação paralisadora. De súbito, voltou-se para o presidente. - Ligou-me a isto?
- Foi ligado. Não por nada que você fizesse, mas ligado perigosamente. Sabemos como, mas não porquê. No entanto, o "como" bastou para o considerar " irrecuperável".
- Mas como? -
- Para principiar, foi Matthias quem compilou as provas contra Jenna Karas.
- Matthias?
- Era ele que o queria afastado, Mr. Havelock. Mas não tínhamos a certeza. Afastara-se ou limitara-se a mudar de empresa, por assim dizer? Do Governo dos Estados Unidos para o império sagrado de Manhias, o Grande.
- Razão pela qual me vigiavam. Londres, Amesterdão.
- Onde quer que se encontrasse. Mas não nos forneceu qualquer indício.
- E isso bastava para me declararem "irrecuperável"?
- Como afirmei há pouco, não tive nada a ver com a ordem inicial.
- Está bem, proveio de Ambiguidade. Mas, mais tarde, confirmou-a.
- Muito mais tarde, quando nos inteirámos do que ele soubera. Você penetrava a manipulação, a estrutura, por detrás daqueles documentos, o elo entre homens de Washington e os seus homólogos desconhecidos do KG13. Travamos uma corrida de velocidade. Um erro de cálculo de sua parte, uma denúncia dos pontos fracos da estrutura, e ficamos com todos os motivos para supor que esses acordos, esses convites para o Armagedão, serão mostrados aos dirigentes de Moscovo e Pequim.
- Um momento! - exclamou Michael, irritado. - Foi o que disse antes! Mas foram negociados com Moscovo e Pequim!
O presidente não replicou. Ao invés, aproximou-se da cadeira mais próxima e sentou-se pesadamente, antes de declarar:
- Não, não foram. Trata-se das fantasias pormenorizadas de uma mente brilhante, mas louca, das palavras de um negociador extraordinário.
- Nesse caso, neguem tudo! Não são reais!
- Leia os termos, Mr. Havelock - volveu em tom fatigado. - Acham-se para além de
qualquer possibilidade de refutação. Há referências pormenorizadas às armas mais secretas dos nossos arsenais. Locais, códigos de activação, especificações, logística, informações que tomariam traidor quem as divulgasse, com a pena de prisão inerente. Em Moscovo e Pequim, os efeitos seriam mais drásticos e as pessoas envolvidas fuziladas. De qualquer modo, o essencial é que os dirigentes de qualquer daqueles países aceitaria a autenticidade do documento assinado pelo outro, se lho mostrassem. Cada posição estratégica, cada capacidade de míssil, cada área de responsabilidade destrutiva foi aprofundada até ao último pormenor.
- Aprofundada?
- Sim, Mr. Havelock, aprofundada. Atingiu assim o núcleo de Parsifal. Os acordos foram negociados por duas mentes extraordinárias... e extraordinariamente informadas. Dois homens aprofundaram todos os pormenores, como se a sua estatura na história dependesse da tarefa. Uma partida de xadrez nuclear, com o Universo para o vencedor... ou o que restar dele.
- Como sabe isso?
- Questão de terminologia, mais uma vez. É o produto de duas mentes. Não há necessidade de recorrer a um psiquiatra ou patologista para detectar as diferentes origens. Matthias não podia criar isso, pois não tinha os elementos indispensáveis à sua disposição imediata. Mas em colaboração com outro (um russo, tão ao corrente das capacidades dos chineses como nós), poderia fazê-lo. Pôde. Dois homens.
- E Parsifal é o outro homem - proferiu Michael em inflexão átona. - Aquele que pode abrir ferimentos por todo o mundo.
- Exacto. Possui o conjunto original desses documentos, o único que existe, segundo alega, e temos de acreditar. Mantém uma arma nuclear apontada às nossas cabeças... à minha.
- Então, pôs-se em contacto consigo. Obteve-os dele e não de Anton.
- Sim. A princípio, as suas exigências eram de natureza financeira, aumentando a cada contacto, até que se tomaram exorbitantes, astronómicas, pelo que concluímos que a sua motivação devia ser política. Ele dispunha de recursos para comprar governos pouco importantes, financiar revoluções em todo o Terceiro Mundo, promover o terrorismo. Mantivemos dezenas de países instáveis sob vigilância rigorosa dos nossos serviços secretos, esperançados em obter um indício que nos conduzisse à sua verdadeira identidade. Apurámos que o dinheiro não lhe interessa fundamentalmente. Quer ter o poder absoluto na mão. Ditar ordens à nação mais poderosa da Terra.
- Já ditou. Foi aí que cometeram o primeiro erro.
- Pretendíamos ganhar tempo. Ainda pretendemos.
- Com o risco da aniquilação total?
- Na veemente esperança de a evitar. Ainda não compreendeu, Mr. Havelock. Podemos (e talvez o façamos) apresentar Anthony Matthias ao mundo como um louco, destruindo a credibilidade resultante de dez anos de tratados e negociações, mas não obteremos resposta à pergunta fundamental. Como chegou lá a informação contida nos documentos? Foi fornecida a um homem considerado mentalmente instável? Em caso afirmativo, a quem mais a divulgou? E fornecemos livremente a inimigos potenciais os segredos mais íntimos das nossas capacidades ofensivas e defensivas? Ou deixamo-los inteirar-se da profundidade a que penetrámos os seus sistemas de armamento?... Não possuímos o monopólio de maníacos nucleares. Há homens em Moscovo e Pequim que, a um simples relance a estes documentos, estenderiam a mão para o botão de lançamento de mísseis. E sabe porquê?
- Ao certo, não... Já não tenho a certeza de nada.
- Então, seja bem-vindo ao clube. Deixe-me elucidá-lo. Porque levámos quarenta anos e consumimos milhões incontáveis para chegar onde hoje nos encontramos. Navalhas
atómicas apontadas às gargantas uns dos outros. Não há tempo, nem resta dinheiro suficiente para recomeçar. Resumindo, Mr. Havelock, na tentativa desesperada para evitar um holocausto nuclear geral, arriscamo-nos a activá-lo.
- As conjecturas simplistas estão postas de parte - articulou Michael, engolindo em seco, consciente de que empalidecia.
- Não são sequer admissíveis.
- Quem é Parsifal?
- Não sabemos. Tal como desconhecemos a identidade de Ambiguidade,
- Não sabem?
- Apenas suspeitamos de que estão relacionados.
- Mas isolaram Matthias! Submetem-no a uma charada computorizada, nesta ilha. Esquadrinham-lhe a cabeça! Dispõem de centenas de terapias! Utilizem-nas! Descubram a verdade!
- Pensa que não tentámos? Não existe nada nos anais da terapia que não fosse experimentado... e continua a ser. Ele apagou a realidade da mente, convencendo-se de que negociou de facto com os militaristas de Pequim e de Moscovo. Não pode admitir outra hipótese, pois as fantasias têm de se lhe apresentar como realidades. Protegem-no.
- Mas Parsifal está vivo! Não é uma fantasia! Tem rosto, olhos, configuração definida! Anton deve poder fornecer algum elemento nesse sentido!
- Engana-se. Em vez disso, descreve (com rigor, sem dúvida) extremistas conhecidos no Presidium soviético e no Comité Central da China. São essas as pessoas que vê, quando lhe mencionam os acordos... com ou sem produtos químicos. A sua mente, esse instrumento incrível, é tão criativo agora, para o proteger, como quando instruía o mundo de mortais inferiores.
- Abstracções! Parsifal é real! Existe! Mantém-nos em respeito com uma arma apontada. - Michael correu para a mesa e desferiu um murro no tampo. - Não posso acreditar!
- Acredite, mas não tome a fazer isso - advertiu o presidente. - Há por aí um dispositivo sónico que regista decibéis sólidos em vez de conversas. Se eu não falasse imediatamente, abriam o cofre-forte e você podia perder a vida.
- Santo Deus!
- Não necessito do seu voto. Já não existe terceiro mandato possível e, de qualquer modo, eu não o procuraria.
- Pretende gracejar, senhor presidente.
- Talvez. Em momentos destes, e se as circunstâncias lhe permitirem que envelheça, encontrará um certo conforto na tentativa rara. Mas não tenho a certeza... já não tenho a certeza de nada. Milhões para construir estas instalações, medidas de segurança e sigilo sem paralelo no passado, os melhores psiquiatras do país. Estarão a tentar iludir-me? Confesso que já não sei.
Havelock ocupou a cadeira da extremidade da mesa, sentindo-se vagamente desconfortável por se sentar na presença de Berquist sem ser convidado, e emitiu um gemido de consternação.
-- Não se preocupe com a minha posição - volveu o presidente. - Não esqueça que fui eu quem convocou o seu pelotão de fuzilamento.
- Continuo a não compreender o motivo. Diz que penetrei qualquer coisa, um ponto fraco numa estrutura qualquer, e se continuasse, aquilo... - Michael interrompeu-se e dirigiu o olhar para a tela, estremecendo - ... seria entregue a Moscovo e a Pequim.
Seria, não. Podia ser. Não convinha correr o mínimo risco de que Parsifal entrasse em pânico, de contrário apressava-se a contactar Moscovo. E creio que não ignora porquê, Mr. Havelock.
- Conta com um elemento de ligação soviético. As provas contra Jerina, tudo o que se
passou em Barcelona: nada disso seria possível sem a intervenção dos serviços secretos russos.
- O KGB nega, ou melhor, um homem nega, baseado em elementos oficiais. Segundo os registos das Operações Consulares e um tenente-coronel chamado Lawrcnce BayIor, esse homem encontrou-se consigo em Atenas.
- Rostov?
- Sim. É claro que não sabia o que negava, mas indicou-nos praticamente que, se existia uma ligação, não fora sancionada. Pensamos que está preocupado e não encontra justificação para o facto.
- Pode encontrar - sugeriu Michael. - Julga que se pode tratar de obra da VKR.
- Que diabo é isso? Não sou perito nesse campo.
- Voennaya Kontra Razvedka, um ramo do KGB, corpo de élite que aterroriza todos os que possuem um fragmento de lucidez. Foi isso que eu penetrei. - Fez uma pausa e
abanou a cabeça. - Não, não podia ser. Inteirei-me em Paris, depois do episódio em Col des Moulinets, através de um agente da VKR em Barcelona, que me perseguia. Consideraram-me "irrecuperável" em Roma e não em Paris.
- A decisão foi de Ambiguidade e não minha - reiterou Berquist.
- Mas pela mesma razão. As palavras são suas, senhor presidente.
- Sim. - Este inclinou-se para a frente. - Foi na Costa Brava. Aquela noite na Costa Brava.
- A operação da Costa Brava foi uma mistificação! - redarguiu Havelock, de novo encolerizado. - Uma fraude! Utilizaram-me e, por esse motivo, o senhor pendurou-me esse rótulo ao pescoço! Conhecia o que se passava. Declarou que fazia parte disso!
- Viu matar uma mulher, naquela praia.
- Trata-se de mais um gracejo, senhor presidente? - inquiriu, levantando-se e segurando o espaldar da cadeira com as mãos crispadas.
- Longe de mim a ideia de armar em espirituoso. Ninguém devia ser morto na Costa Brava.
- Ninguém?... Mas foram vocês que planearam tudo. O senhor, Bradford e os bastardos de Langley com os quais falei em Madrid! Não procure explicar-me o que sucedeu na
Costa Brava, pois eu estava lá! E a responsabilidade foi inteiramente vossa!
- Iniciámos a operação, mas não a concluímos. E isto, Mr. Havelock, é a verdade. Michael sentia desejos de se precipitar para a tela e rasgar as terríveis imagens. Ao invés, acudiram-lhe ao espírito determinadas palavras de Jerma: não se tratava de uma operação, mas de duas. E depois as suas: Interceptada. Alterada.
- Um momento. Iniciaram-na e, sem o vosso conhecimento, o cenário foi interpretado, absorvido por outros, e os fios alterados, passando para uma teia diferente.
- Esses termos não figuram no meu léxico.
- São muito claros. Vocês confeccionam um tapete com desenhos de cisnes que, de repente, se transformam em condores.
- Aceito a correcção. Foi o que aconteceu.
- Merda! Desculpe...
- Sou de Minnesota e deparou-se-me muita pelo caminho, sobretudo em Washington. Berquist voltou a reclinar-se na cadeira... - Compreende agora?
- Acho que sim. É o ponto fraco que o podia encurralar. Parsifal estava na Costa Brava.
- Ou o seu elemento de ligação soviético - rectificou o presidente. - Quando viu Jenna Karas, três meses depois, começou a investigar o que se passara naquela noite. Se descobrisse a verdade, podia alarmar Parsifal. Não sabemos se o conseguiria, mas, desde que a possibilidade existisse, não nos exporíamos às consequências.
- Por que não me informaram? Por que não me contactaram e explicaram a situação com clareza?
- Porque se recusou a comparecer. Os estrategos das Operações Consulares desenvolveram todos os esforços nesse sentido, mas você esquivou- se-lhes sempre.
- Não foi por causa daquilo. - Michael gesticulou na direcção da tela. - Podiam elucidar-me, em vez de tentar matar-me!
- Não havia tempo, nem possibilidade de enviar mensageiros com essa informação ou a mínima sugestão da condição mental de Matthias. Ignorávamos o que faria, o que diria acerca daquela noite ou a quem. Na nossa opinião, na minha, se o homem ao qual chamamos Parsifal estava na Costa Brava, ou fazia parte da estratégia alterada, e pensava que o poderiam identificar com essa operação, talvez se sentisse motivado para fazer o inconcebível. Ora, não podíamos permitir sequer que a hipótese se formulasse.
- Tantas dúvidas... - murmurou, pestanejando. - Tantas coisas que não consigo relacionar.
- Talvez consiga, quando e se for tomada a decisão, por ambas as partes, de o inteirar de tudo.
- O Apache - prosseguiu, ignorando o comentário de Berquist -, o Palatino, Ogilvie, o Ruivo. A sua morte foi acidental? A bala destinava-se-me ou deveria atingi-lo a ele, porque sabia alguma coisa que não devia? Referiu-se a um homem que sucumbiu a uma trombose, em Chesapeake.
- A morte de Ogilvie foi exactamente o que pareceu. Um erro. A bala era para si, Nir. Havelock. As outras, porém, não resultaram de acidentes.
- Quais outras?
- Os três estrategos que restavam nas Operações Consulares foram assassinados em Washington.
Conservou-se silencioso e imóvel por um momento, enquanto absorvia a revelação, até que inquiriu:
- Por minha causa?
- Indirectamente. No entanto, você está no fulcro de tudo, em virtude da única e imponderável interrogação: por que o tratou Matthias; daquela forma?
- Fale-me dos estrategos, por favor.
- Sabiam quem era o elemento de ligação soviético de Parsifal. Ou ficariam a saber na noite seguinte, se você fosse morto em Col des Moulinets.
- Nome de código Ambiguidade. Encontra-se aqui.
- Sim. Stem forneceu-lhe o código de autorização. Sabemos onde está, mas não de quem se trata.
- Onde?
- Não sei se deva dar-lhe essa informação.
- Com mil diabos! Salvo o devido respeito, senhor presidente, não lhe ocorreu, nem agora, utilizar-me? Não matar-me, mas utilizar!
- Para quê? Você podia ajudar-me? Ajudar-nos?
- Estive dezasseis anos no "campo", perseguindo e sendo perseguido. Domino fluentemente cinco idiomas, três de forma satisfatória e mais dialectos do que me é possível mencionar de um momento para o outro. Conheço uma faceta de Anthony Matthias melhor do que qualquer outra pessoa viva. Familiarizei-me com as suas sensações. Além disso, desmascarei mais agentes duplos do que qualquer colega da Europa. Sim, creio que os posso ajudar.
- Nesse caso, tem de me fornecer uma resposta concreta. Tenciona levar a cabo a sua ameaça? Refiro-me às treze páginas capazes de...
- Pode queimá-las - atalhou Havelock, convencido da sinceridade do interlocutor.
- São duplicados.
- Contactá-la-eL Está a poucos quilómetros daqui, em Savarinali.
- Muito bem. O nome de código Ambiguidade trabalha no quarto piso do Departamento de Estado. É urna das sessenta e cinco, talvez setenta, pessoas daquela secção.
O termo técnico, salvo erro, é "toupeira".
- Conseguiram circunscrever o campo de possibilidades apenas a essas? - estranhou, tomando a sentar-se,
- Foi obra de Emory Bradford. É um indivíduo mais útil do que supõe, Mr. Havelock. Nunca quis molestar Jenna Karas.
- Nesse caso, revelou-se incompetente.
- É o primeiro a partilhar dessa opinião. No entanto, se ela cumprisse as instruções, ser-lhe-ia revelada, eventualmente, a verdade e vocês poderiam regressar.
- Em vez disso, consideraram-me "irrecuperável".
- Diga-me urna coisa. - O presidente voltou a inclinar-se para a frente. - No meu lugar, sabendo o que sabe agora, que faria?
Michael desviou novamente os olhos para a tela, cujos documentos pareciam destacar-se em letras de fogo.
- A mesma coisa. Eu era sacrificável.
- Obrigado. - Berquist pôs-se de pé. - Antes que me esqueça: ninguém da ilha Poole suspeita sequer da existência dos documentos, e isto inclui os médicos, os técnicos e o pessoal militar. Somente cinco outros homens estão ao corrente, assim como de Parsifal. Um deles é um psiquiatra de Bethesda, especialista de perturbações alucinatórias, que vem uma vez por semana para trabalhar com Matthias, nesta sala.
- Compreendo.
- E, agora, saiamos daqui, enquanto conservamos a lucidez de espírito. - Aproximou-se do projector, desligou-o e aumentou a intensidade da luz do tecto. - Mandarei providenciar para que sigam ambos para a base aérea Andrews, esta tarde. Arranjar-lhes-emos instalações no campo e não em Washington. Não podemos arriscar-nos a que os vejam.
- Para poder actuar com a maior eficiência, preciso de ter acesso aos registos, ficheiros, etc., que não há possibilidade de transferir para o campo.
- Nesse caso, escoltá-lo-ão em circunstâncias especialmente controladas. Serão colocadas mais duas cadeiras em tomo da mesa. Receberá autorização para consultar tudo o que necessitar, sob outra identidade. E Bradford transmitir-lhe-á os pormenores, o mais depressa possível.
- Antes de abandonar a ilha, desejava conversar com os médicos. Também gostava de me avistar com Anton, mas apenas por uns minutos, atendendo à sua situação.
- Duvido que eles consintam.
- Então, passe-lhes por cima, senhor presidente. Quero falar-lhe em checo, o seu idioma materno. Preciso aprofundar uma coisa que me disse. As suas palavras foram: " Não compreendes. Nunca poderás compreender. " Talvez eu seja a única pessoa capaz de lhe arrancar a explicação. Algures, num recanto da minha cabeça, encontra-se uma bomba. Pressinto-o desde o princípio de tudo isto.
- De acordo. Não consultaremos os médicos. No entanto, recordo-lhe que permaneceu doze dias numa clínica, num total de oitenta e cinco horas sob terapia química, e não nos pôde esclarecer.
- Não sabiam onde procurar. E, aqui para nós, eu também não.
Os três médicos não conseguiram revelar nada que Havelock não pudesse depreender das palavras de Berquist e, na realidade, a terminologia psiquiátrica até tendeu para lhe obscurecer o quadro geral. A caracterização do presidente de um instrumento notável e delicado explodindo ante a pressão inumana das responsabilidades resultava muito mais gráfica do
que a explicação seca dos limites da tolerância da tensão prolongada. Em dado momento, porém, o mais jovem dos analistas declarou:
- Para ele, não existe realidade na acepção aceite do termo. Filtra as suas impressões, admitindo apenas as que apoiam o que quer ver e ouvir. É isso a sua realidade (porventura mais real do que tudo anteriormente), porque representa as suas fantasias, que têm agora de
* proteger. Não dispõe de nada mais: somente recordações fragmentadas.
- A deterioração não pode ser invertida?
- Não - asseverou outro psiquiatra. - A estrutura celular degenerou. É irreversível.
- É muito velho - volveu o primeiro.
- Quero vê-lo. Prometo ser breve.
- Expusemos as nossas objecções, mas o presidente é de opinião diferente - interpôs
* terceiro psiquiatra. - Deve compreender que trabalhamos em condições virtualmente impossíveis, com um paciente cuja situação se deteriora com uma rapidez difícil de determinar. Tem de ser reprimido e estimulado artificialmente para podermos alcançar quaisquer resultados. Trata-se de um caso a todos os títulos delicado, e um trauma prolongado corre o risco de provocar um atraso de vários dias. Ora, o factor tempo é aquilo que mais nos escasseia, Mr. Havelock.
- Serei breve, repito. Dez minutos.
- Convinha que fossem só cinco. Por favor.
- Eu acompanho-o - ofereceu-se o mais jovem. - Encontra-se onde o viu ontem. No jardim. - Uma vez na rua, conduziu Michael para um jipe do Exército nas traseiras do edifício de tijolos. - Os meus colegas não exageraram, e creio que são das maiores
autoridades do país no campo da psiquiatria. Às vezes, isto assemelha-se a um pandemónio.
- Em que sentido?
- Os resultados não surgem com a rapidez que desejaríamos. Nunca nos poremos a par.
- De quê?
- Do que ele fez.
- Compreendo - murmurou Michael, enquanto rolavam pela estrada de terra batida de acesso à réplica da residência de Matthias. - Você também não deve ser um noviço na matéria.
- Bem, publiquei algumas comunicações técnicas e possuo uma certa experiência, mas contento-me em ser moço de recados daqueles tipos.
- Onde o descobriram?
- Trabalhava com o dr. Scliramann, em Menninger. É aquele que insistiu nos cinco minutos e o melhor neuropsiquiatra da nação. Eu ocupava-me da aparelhagem: electrospectrógrafos e coisas do género. Ainda o faço.
- Há muitas coisas dessas aqui, hem?
- Não foram poupadas despesas,
- Ainda não estou em mim! - exclamou, olhando em volta, para os modelos de alabastro, ruas em miniatura e reproduções fotográficas gigantescas de paisagens de Washington. - É simplesmente incrível. Parece extraído de um filme fantástico. Quem foi o construtor e como o convenceram a guardar segredo? Os rumores devem circular por todo o Sul da Geórgia.
- Mas não devido a inconfidências dos responsáveis pela construção.
- Corno conseguiram evitar que falassem?
- Encontram-se a centenas de quilómetros daqui, concentrados em meia dúzia de outros projectos.
- O quê?
- Você acaba de o referir. Um filme - explicou o jovem psiquiatra, sorrindo. - Este complexo foi construído por uma companhia cinematográfica italiana que se supôs contratada por um produtor da Costa Ocidental empenhado em economizar nos custos. A construção do cenário iniciou-se vinte e quatro horas depois de o Corpo de Engenharia levantar a paliçada em volta da ilha e converter os edifícios existentes para nossa utilização.
- E os helicópteros que vêm de Savannah?
- Ficam do lado de lá da paliçada. De resto, à parte o que transporta o presidente e uma outra personalidade importante, pertencem às Subsistências. Os tripulantes foram informados de que se trata de um centro de pesquisas oceânicas, e não há motivos para suporem outra coisa.
- Há muito pessoal?
- Nós, médicos, os técnicos que se ocupam praticamente de tudo, alguns auxiliares, os guardas e um pelotão sob as ordens de cinco oficiais. Pertencem todos ao Exército, incluindo os tripulantes do barco-patrulha.
- Que lhes disseram?
- O mínimo possível. Além de nós, os técnicos e os auxiliares são os mais elucidados, mas foram investigados como se tencionassem enviá-los para Moscovo. O mesmo se aplica aos guardas, como decerto já descobriu.
- Sim, travei conhecimento com um - admitiu Havelock. - Não percebo é a atitude dos homens do Exército. Como conseguem que guardem segredos?
- Para já, não saem daqui. É uma das condições obrigatórias, que se aplica a todos. Mas, mesmo que se ausentassem, os oficiais não levantariam problemas. São todos do Rolodex do Pentágono e já se imaginam chefes dos Estados-Maiores. Não divulgariam uma única palavra, como garantia de uma promoção rápida.
- E os soldados? Devem constituir um poço de problemas.
- É uma ideia estercotípica. Rapazes como esses desembarcaram em muitas praias e combateram em diversas selvas.
- Queria apenas dizer que devem circular rumores, conjecturas fantasistas. Como os evitam?
- Não permitimos que vejam nada de importante. Explicámos-lhes que a ilha Poole representa um exercício simulado de sobrevivência, tudo ultra-secreto, com a "recompensa" de dez anos num posto isolado para quem infringir o sigilo.
Michael tomou a olhar em volta e recordou as palavras de Berquist: Antes que me esqueça: ninguém da ilha Poole suspeita sequer da existência de documentos, e isto inclui os médicos, os técnicos e o pessoal militar.
Entretanto, o psiquiatra prosseguia:
- Mais dia menos dia, Matthias expirará serenamente e depois os rumores que circularem deixarão de interessar. Todos os homens e mulheres importantes são heróis, positivos ou negativos, de histórias divulgadas após a sua morte. Faz parte do jogo.
Se houver jogo, doutor.
- Dobré odpoledne, príteli - proferiu Havelock, suavemente, quando emergiu da casa para o jardim banhado pelo sol. Matthias sentava-se na mesma cadeira ao fundo do caminho sinuoso entre os canteiros, protegido por um toldo. - Sei que está perplexo comigo e pretendo apenas esclarecer as dúvidas surgidas entre nós. No fundo, é o meu estimado professor, o único pai que me resta, e pais e filhos devem manter relações cordiais.
A princípio, Matthias encolheu-se na cadeira, como se pretendesse refugiar-se mais para o interior da sombra. No entanto uma névoa começou a cobrir-lhe os olhos atrás dos óculos de aro de tartaruga, uma película de incerteza, porventura recordando palavras de um passado longínquo - as palavras de um pai em Praga ou a súplica de urna criança. Não importava. A linguagem e cadência suave, deliberada, produziam efeito. Tornava-se agora vital o contacto. Resultava crucial, como símbolo do muito que pertencia a outra linguagem, a outro país - a uma confiança recordada. Michael aproximou-se, enquanto as palavras flutuavam com brandura, em cadência rítmica, evocando outra época, outro país.
- Há as colinas sobranceiras ao Moldati, o nosso grandioso Vitava, com as suas belas pontes, e o Wenceslas, quando neva... o lago Stribrne no Verão. E os vales do Váli e do Nitra, singrando com as correntes em direcção às montanhas.
Tocaram-se - a mão do aluno e o braço do professor. Matthias tremia, respirando pesadamente, enquanto a sua mão se erguia dos joelhos e cobria a de Havelock.
- Disse que eu não compreendia, que nunca poderia compreender. Não é assim, meu mestre... meu pai... Posso compreender. Sobretudo, tenho de compreender. Não deve haver nada entre nós... nunca. Devo-lhe tudo o que sou.
A névoa começou a dissipar-se e os olhos tomaram a focar, e nesse foco surgiu algo de repentinamente agitado - alucinado.
- Não, por favor, Anton - volveu Michael, apressadamente. - Diga-me de que se trata. Ajude-me a compreender.
O murmúrio vazio principiou como anteriormente, na penumbra do jardim, com a diferença de que havia agora os raios solares intensos e a linguagem era diferente, as palavras distintas.
- Os acordos mais temíveis da Terra representam a solução final. É isto que nunca poderás compreender... Mas viste-os todos... indo e vindo, os negociadores do mundo! A minha procura! Para me implorar! O mundo sabia que eu o podia fazer e veio ter comigo!
- Matthias interrompeu-se e, de repente, como na véspera, o murmúrio foi substituído por uma exclamação que pareceu ofuscar o sol, um pesadelo a meio da tarde: - Afasta-te de mim! Acabarás por me trair! Trairás todos!
- Como?
- Porque sabes.
- Não sei nada!
- Traidor! Traidor dos teus compatriotas! De teu pai! Traidor do mundo!
- Então, por que não me mata? - rugiu Michael, consciente de que não conseguiria realmente estabelecer contacto. - Porque não me mandou matar?
- Pare com isso, Havelock! - advertiu o jovem psiquiatra, da porta.
- Agora, não! - replicou Michael, em inglês.
- Sim, imediatamente.
- Já slysim! - vociferou no rosto de Matthias, recomeçando a exprimir-se em checo. - Podia ter-me matado, mas não o fez! Porquê? Sou uma insignificância, em comparação com o mundo, com as suas soluções para o mundo! O que o impediu?
- Basta, amigo.
- Deixe-me em paz! Ele tem de me dizer!
- Dizer o quê?
- Ted', stary pane? - Michael pousou as mãos nos braços da cadeira de Matthias.
O que o impediu?
O murmúrio vazio apareceu, os olhos agora despidos de incerteza:
- Abandonaste a conferência e não te vimos, não conseguimos encontrar-te. Precisávamos de saber o que fizeram, a quem o tinhas revelado.
Loucura.
- Terminou a sessão, Havelock! - gritou o psiquiatra, puxando-o pelo braço. - De que falavam? Sei que era em checo, mas não entendi nada. Que lhe revelou ele? Quero que mo diga textualmente!
Michael tentou sacudir o entorpecimento da mente, a profunda sensação de futilidade. Por fim, virou-se para o jovem médico e articulou:
- Não lhe serviria de nada. Regressou à infância... não passava de incoerências de uma criança assustada. Esperava que me informasse de alguma coisa, mas enganei-me.
- Procede assim com frequência - assentiu o outro, inclinando a cabeça, ao mesmo tempo que a expressão se descontraía. - É um síndroma degenerativo nos velhos nascidos
noutro país, com uma linguagem diferente. Não interessa muito se estão lúcidos ou loucos. Regressam sempre ao passado. E por que não? Assiste-lhes o direito ao conforto... Lamento o insucesso. Vamos, tenho de o levar daqui. Há um helicóptero à sua espera, na pista.
-- Obrigado. Michael afastou-se pelo caminho sinuoso e voltou-se para trás, a fim de contemplar Anton Matthias, (pressentia-o) pela última vez... prítel, mentor, pai. O outrora grande homem tornava a encolher-se, procurando refúgio na sombra do toldo.
Loucura. Ou seria mesmo? Seria possível? Conheceria ele, Mikhail Havlicek, a resposta? Conheceria Parsifal?
Capítulo vigésimo oitavo
Chamavam-lhe Casa Estéril Cinco - Estéril Cinco, abreviadamente - e situava-se vinte quilómetros a norte de Alexandria, nos campos de Fairfax. Outrora propriedade de um criador de cavalos, fora adquirida por um casal de meia-idade, aparentemente abastado, na realidade compradores de informações para o Governo dos Estados Unidos. Eram "proprietários" convenientes, porque tinham passado as vidas adultas no serviço externo, adidos a diversas embaixadas, havendo recebido vários títulos, mas na verdade tratava-se de dois dos mais proficientes criptanalistas dos serviços secretos norte-americanos. O seu disfarce era simples: ele fora um banqueiro de investimento radicado na Europa durante algumas décadas. A explicação resultava eminentemente aceitável para os distantes e prósperos vizinhos e justificava a presença frequente de limusinas, que abandonavam a estrada secundária e enveredavam pela passagem de oitocentos metros que conduzia à casa. Quando surgia um visitante, os "proprietários" raramente eram visíveis, a menos que a visibilidade fosse previamente estabelecida, porquanto os seus aposentos situavam-se na ala norte, secção preparada da moradia, com entrada privativa e facilidades independentes.
Estéril Cinco era outra forma de casa a meio caminho, que servia clientes possuidores de algo mais para oferecer ao Governo dos Estados Unidos que os internados réprobos de Mason Falls, Pensilvânia. Ao longo dos anos, assistira a uma procissão de desertores de alto nível através das suas portas, para períodos de interrogatório. Cientistas, diplomatas, agentes de espionagem, militares - todos tinham sido residentes, numa ou noutra ocasião. Estéril Cinco era reservada às pessoas que Washington considerava vitais para os interesses imediatos do país em momentos de crise. Havelock e Jerina Karas chegaram num veículo do Governo sem qualquer dístico, às quatro e vinte minutos, e eram aguardados pelo subsecretário de Estado, Emory Bradford.
As recriminações foram breves, pois não havia o mínimo interesse ou necessidade de evocar os erros do passado. O estadista conversara com o presidente e inteirara-se de que haveria "duas novas cadeiras à mesa". No entanto, em Estéril Cinco, sentaram-se na "biblioteca do proprietário", um pequeno aposento preparado para um fidalgo rural: um sofá e poltronas estofados e todos os adereços próprios de um ambiente de semelhante natureza. Havia uma pesada mesa de pinho atrás do sofá, na qual se via uma salva de prata com copos, gelo e garrafas. Havelock preparou bebidas para si e Jerma, porém Bradford declinou a sugestão.
- Que revelou a Miss Karas? - quis saber este último.
- Tudo o que observei na ilha Poole.
- É difícil saber-se o que dizer... o que pensar - murmurou Jerma. - Sinto-me simultaneamente abismada e aterrorizada.
É uma boa combinação - comentou o subsecretário. Pretendo de si tudo o que possui, nomes de todas as pessoas envolvidas, ainda que remotamente, desde o princípio - explicou Michael, contornando o sofá com as bebidas e sentando-se ao lado de Jetina. - Interromperei sempre que me parecer conveniente, para fazer perguntas ou tomar notas, e no final entrego-lhe uma lista do que necessito.
Não haviam transcorrido cinco minutos, quando se registou a primeira interrupção:
- MacKenzie? Da CIA? Operações obscuras. Um dos melhores provenientes de Langley.
- Disseram-me que era o melhor - sublinhou Bradford.
- Foi ele quem preparou a operação da Costa Brava?
- Exacto.
- Era a segunda testemunha, que regressou com fragmentos de roupa ensanguentados para exame no laboratório?
- Ia precisamente...
- Diga-me uma coisa - atalhou Havelock. - Ele morreu mesmo de uma trombose, em Chesapeake?
- Na sua embarcação, sim.
- Houve inquérito? Autópsia?
- Formalmente, não, mas a resposta é de novo afirmativa.
- Que quer isso dizer?
- Com um homem daqueles, não convém fomentar especulações. O médico colaborou e respondeu satisfatoriamente a todas as perguntas. É, de resto, um profissional idóneo. As radiografias foram examinadas por ele e pelos nossos especialistas, com uma conclusão unânime. A causa residiu numa hemorragia maciça da aorta. - Bradford baixou a voz. -
Foi a primeira coisa que nos ocorreu, quando nos inteirámos. Não descurárnos um pormenor.
- Obrigado - articulou, escrevendo algumas palavras no bloco. - Continue.
- Era ele que estava consigo no átrio do hotel em Barcelona? - perguntou Jerma, pousando a bebida na mesinha à sua frente.
- Era. A operação fora concebida por ele.
- Era um homem encolerizado. Os olhos emitiam um clarão de fúria.
- Participava numa operação violenta.
- Mas forçou a minha porta, de arma na mão!
- Estava preocupado. Como eu, de resto. Se tivesse descido ou ficado no quarto, Miss Karas...
- Siga, por favor - insistiu Havelock.
O subsecretário prosseguiu, enquanto Michael e Jerina escutavam atentamente, interrompendo quando lhes acudia alguma dúvida ou sentiam necessidade de esclarecimento de qualquer pormenor. Decorrida menos de uma hora, Bradford convencera-se de que Jemia Karas possuía uma mente com a qual havia que contar e experiência a condizer. Fizera quase tantas perguntas como o companheiro, explorando com frequência determinadas passagens, até que afloravam possibilidades ainda não consideradas.
A descrição chegou ao ponto em que os três estrategos tinham sido assassinados, quando o desconhecido Ambiguidade efectuara o telefonema para Roma, a fim de considerar Havelock "irrecuperável". O subsecretário de Estado mostrou-se minucioso em todos os aspectos e referiu as diligências a que procedera entre o pessoal da Secção L, do quarto piso, durante as horas em causa, chegando à conclusão de que nenhum dos investigados podia ser Ambiguidade.
- Porque as reuniões e decisões que tomavam foram... como se diz?... - Jeima consultou Michael. Potvrdit?
- Confirmadas assentiu ele. - Inscritas nos registos oficiais.
- Sim, oficiais. - Ela voltou-se de novo para Bradford. É por esse motivo que elimina os possíveis suspeitos?
-- Nenhum abandonou as suas reuniões o tempo suficiente para ligar a Roma de um circuito codificado.
- Desculpe, mas exclui a possibilidade de esse Ambiguidade ter cúmplices. Pessoas capazes de mentir para o proteger.
- Nem sequer penso nisso. No entanto, considerando a diversidade dos que estavam presentes, julgo ser matematicamente impossível. Conheço muitos deles desde longa data, alguns há quase vinte anos.
- Mesmo assim...
- Paminyatchtki? - interpôs Havelock, fitando Jerma.
- Proc ne? To je mozné.
- Nemluv o tom.
- Vy nemáte pravdu.
- Que estão para aí a dizer? - inquiriu Bradford.
- Desculpe, pensei... - comentou Jerina.
- Pensou que o facto merecia ponderação - acudiu Michael. - Expliquei-lhe que os números não condiziam. Continue, por favor.
Ela lançou-lhe um olhar fugaz e estendeu a mão para o copo.
O subsecretário de Estado falou durante cerca de quatro horas, metade das quais consagradas a respostas e apuramento de pormenores, até que a sala adquiriu um ambiente semelhante ao de um tribunal: Bradford era a testemunha hostil relutante, colocado sob o fogo cruzado de dois hábeis e irredutíveis promotores públicos.
- E quanto ao caso de Jacob Handelman?
- Foi arquivado. O presidente leu-me pelo telefone o que você escreveu. É incrível... refiro-nie a Handelinan, claro. Tem a certeza de que não se enganou?
- A pistola e a faca eram dele. Não houve engano possível.
- Berquist pensa que você precisava de ter um motivo extraordinário para o matar.
- Por estranho que pareça, não tinha. Queria que soflusse... durante anos, se possível, mas atacou-me. Tencionam divulgar a verdade acerca dele?
- O presidente decidiu que não. Que lucraríamos com isso? Ele alega que os judeus já sofreram o suficiente.
- Mais uma mentira necessária?
- Não, compassiva, suponho.
- E a respeito de Kohoutek, em Mason Falls?
- Estamos a ocupar-nos disso.
- Os clientes?
- Cada caso será estudado individualmente e tomaremos as decisões apropriadas... de forma compassiva, mais uma vez.
Havelock folheou as páginas do bloco-notas, pousou-o na mesa, pegou no copo vazio e virou-se para Jerina, que meneou a cabeça.
- Vejamos se abarquei a situação - disse, contornando o sofá para se servir nova bebida. - Ambiguidade trabalha algures no quarto andar do Departamento de Estado. onde provavelmente se mantém há anos, informando Moscovo de tudo o que lhe chega ao conhecimento e se apodera. - Fez uma pausa e aproximou-se da ampla janela. - Matthias encontra-se com o seu Parsifal e criam esses incríveis... incríveis não, inconcebíveis acordos. - Rodou subitamente nos calcanhares e cravou o olhar em Bradford. - Como foi possível? Onde estavam todos vocês? Viam-no diariamente, falavam-lhe, observavam-no! Não se apercebiam do que lhe acontecia?
- Nunca sabíamos que papel desempenhava - replicou o interpelado, sustentando o olhar e começando a deixar transparecer irritação. - O carisma tem muitas facetas, como
um diamante examinado sob luzes diferentes. Era o diácono Matthias sentado em julgamento académico ou o doutor Matthias, catedrático? Ou ainda o europeu Mr. Chips, com os acordes de Hãendel em segundo plano, elucidando os seus adoradores favoritos do momento? Vestia todas essas peles admiravelmente. Havia também o bon vivant, o habitante popular de Georgetown, Chevy Chase e Costa Oriental. Meu Deus, que atracção para uma anfitriã! E com que arte ele actuava. . . com que encanto! Com que espírito! Se fosse capaz de as satisfazer, poderia possuir todas as mulheres que desejasse. Havia, por outro lado, claro, o tirano da repartição, exigente, petulante, invejoso, consciente da sua imagem, furioso perante a mínima crítica. A propósito de crítica: que fez, o ano passado, quando um senador pôs em causa os seus motivos para participar na conferência de Genebra? Foi à televisão, e, em voz trémula, quase lacrimejante, declarou que se afastaria da vida pública. Que agitação! Esse senador é hoje considerado um pária! - Calou-se por um momento e
meneou a cabeça, como que embaraçado por se deixar arrastar pelo entusiasmo. - Restava ainda Anthony Matthias, o secretário de Estado mais brilhante da História do país... Não, Mr. Havelock, víamo-lo e, ao mesmo tempo, não o víamos. Não o conhecíamos, porque era muita gente.
- Até agora, limitou-se a enaltecer a vaidade de um homem. - Michael voltou a sentar-se no sofá. - Ele era muita gente, porque a sua posição o obrigava a isso. O seu problema, Mr. Bradford, é que o odiava.
- Engana-se. - O subsecretário sacudiu a cabeça com veemência. - Não se odeia um homem como Matthias. Pode-se ficar assombrado, assustado ou mesmerizado, mas não se odeia.
- Voltemos a Parsifal. De onde pensam que veio?
- Veio de parte alguma e desapareceu em parte alguma.
- Podia fazer o que menciona em segundo lugar, mas não o primeiro. Veio de algures. Encontrou-se diversas vezes com Matthias, ao longo de semanas e possivelmente meses.
- Inspeccionámos as agendas de Anton minuciosa e repetidamente, assim como todos os seus movimentos registados. O resultado foi sempre negativo.
- Preciso de todos esses elementos. Pode obter-mos?
- Já o fiz.
- Alguma coisa sobre um lapso de tempo?
- Sim, a análise espectrográfica do tipo página de cópia indica impressões recentes. Num @nodo de seis meses.
- óptimo.
- Podíamos tê-lo inferido.
- Faça-me um favor - solicitou Havelock, pousando o copo e pegando no bloco-notas.
- O quê?
- Nunca infira. - Escreveu algo e acrescentou: - E é exactamente o que vou fazer agora. Parsifal é um russo. Muito provavelmente, um desertor insuspeitado.
- Inferimos... bem, supusemos isso. Alguém com conhecimentos profundos das capacidades da União Soviética no campo das armas estratégicas.
- Por que diz isso? - perguntou Jenna.
- Por causa dos acordos. Contêm elementos de ataques nucleares ofensivos e defensivos que correspondem às nossas mais profundas e rigorosas penetrações dos seus sistemas.
- Por outro lado (e isto não é um pormenor menos importante), Parsifal sabia onde encontrar Ambiguidade - salientou Havelock, depois de inscrever mais algumas palavras no bloco-notas. - A ligação está feita, a toupeira contacta Moscovo e as provas contra Jeima são fornecidas... por minha causa. A seguir, Ambiguidade transfere-se para a Costa Brava e altera o cenário na praia. É aí que pensa que a quebra ocorreu?
- Exacto, e concordo consigo - declarou BradfÓrd. - Julgo que era Ambiguidade e não Parsifal quem se encontrava na praia da Costa Brava. Estou igualmente convencido de que regressou a Washington e descobriu que perdera Parsifal. Fora utilizado e posto de parte, situação que decerto lhe provocou o pânico.
- Porque, para conseguir que o KGB colaborasse, precisava de proteger algo de extraordinário? - aventou Michael.
- Sim, mas surge então o telegrama de Rostov, que introduz uma faceta incompreensível na situação. Indica praticamente que, se existiu uma ligação, não foi sancionada ou mesmo controlável.
- Tinha razão. Expliquei-o a Berquist, e ajusta-se ao puzzle... desde o princípio. É a resposta ao caso de Atenas. Rostov referia-se a um ramo do KGB, descendente do antigo matadouro de maníacos do OGPU, uma alcateia de lobos.
- Voennaya Kontra Razvedka - murmurou Jerina. - VKR.
- Ambiguidade não é apenas uma major ou coronel do KGB, mas um membro da alcateia. São esses os homens com os quais lida e, ao mesmo tempo, a pior notícia que podia ouvir, Mr. Bradford. O KGB, com toda a sua paranóia, é uma organização de recolha de informações secretas estável em comparação com os fanáticos da Voennaya.
- Os fanáticos e tudo o que seja nuclear formam uma combinação pouco tranquilizadora para a segurança do mundo.
- Se a Voennaya contacta Parsifal em primeiro lugar, o mundo ficará a contas com essa combinação. - Michael levou o copo aos lábios e pousou-o, para tomar a pegar no bloco-notas. - Temos, portanto, uma toupeira chamada Ambiguidade que cooperou com um russo que denominamos Parsifal, associado de Matthias na criação dos acordos incríveis susceptíveis de arrasar o mundo. Anton desmorona-se virtualmente, é levado para a ilha Poole e Parsifal prossegue só. E, agora, realmente só, porque largou a toupeira.
- Nesse caso, concorda comigo.
- Se estivesse enganado, nós sabê-lo-íamos. Ou talvez não e não passássemos de um monte de cinzas. Ou, de um ponto de vista menos melodramático, embora igualmente trágico, a meu ver, a União Soviética governaria este país com a bênção do resto do mundo. " O gigante enlouqueceu. Agrilhoem-no, por amor de Deus . " Moscovo podia até obter um voto de confiança dos nossos cidadãos. " Antes morto que Vermelho" constitui um eufismo que eu não gostaria de ver posto à prova. Quando as coisas atingem uma posição extrema, as pessoas preferem a vida.
- Mas tu e eu sabemos como é esse género de vida - interpôs Jerma. - Preferi-la-ias?
- É claro que não se pode modificar nada morrendo (a menos que se trate de um mártir) ou renunciando à luta - afirmou o subsecretário. - Em especial, quando se assistiu ao pior.
- Suponho que é por isso que se tem mantido nesta cidade - observou Havelock, contemplando-o com curiosidade. - Assistiu ao pior.
- Não sou uma personagem importante.
- Para nós, por uns tempos. É agradável verificar que o terreno adquiriu maior firmeza. Trate-me por Havelock, Michael ou como entender, mas ponha de parte o " Mr. ".
- Obrigado. E a mim por Emory... ou como entender.
- Pois eu sou Jenna, e morro de fome.
- Há uma copa bem abastecida com cozinheiro permanente, que acumula essas funções com as de guarda. Quando terminarmos, vamos falar-lhe.
- Só mais uns minutos - rogou Michael, arrancando uma folha do bloco. - Disse que investigou os movimentos de todo o pessoal do quarto andar, por ocasião do episódio na Costa Brava...
- Várias vezes - interrompeu BradfÓrd. - A primeira resultou inteiramente negativa. Todos os funcionários foram devidamente localizados.
Mas sabemos que um se encontrava na Costa Brava. Por conseguinte, urna das suas
diligências esbarrou numa cortina de fumo: um deles ausentou-se e regressou sem que aparentemente abandonasse o seu lugar.
- Hum... - Foi a vez de o subsecretário anotar algo, o que fez no verso de uma das inúmeras páginas. - Confesso que não encarara o caso desse ângulo. Procurei uma ausência sem explicação convincente. O que sugere é totalmente diferente.
- Sem dúvida. O nosso homem é atilado. Não haverá explicação alguma. Não procure a ausência de alguém, mas alguém que não se encontrava onde devia.
- No cumprimento de uma missão, portanto.
- É um ponto de partida - aquiesceu Havelock, destacando nova página. -
A propósito: quanto mais elevado o perfil melhor. Lembre-se que procuramos um homem que obteve a maior liberdade de movimentos, e quanto mais proeminente a sua posição melhor o funcionamento da cortina de fumo. Não esqueça a diarréia de Kissinger em
Tóquio, quando na realidade se encontrava em Pequim.
- Começo a reconhecer as suas qualidades.
- Considerando os erros que cometi - volveu, escrevendo na página que acabava de arrancar não me candidatava sequer a ter o nome impresso numa embalagem de flocos de aveia. Levantou-se e entregou duas folhas a Bradford. - Aqui tem a lista. Leia-a para ver se há algum problema.
- Pois sim. - O subsecretário de Estado aceitou-a e reclinou-se na poltrona. - Pode ser agora a bebida, se não se importa. Bourbon on the rocks, por favor.
- Estava a ver que nunca mais pedia. - Havelock voltou-se para Jenna, que inclinou a cabeça, recolheu o copo da mesinha e contornou o sofá, enquanto Bradford falava.
- Noto uma ou duas surpresas. Não há qualquer inconveniente quanto ao material de Matthias, mas para que precisa de tudo acerca do médico de Maryland? Antecedentes, situação financeira, empregados, laboratórios. Creia que o investigámos minuciosamente.
- Não duvido. Chame-lhes uma confirmação. Conheço um médico, no Sul da França, que é um cirurgião extraordinário, mas perde a cabeça diante do pano verde. Arruinou-se por duas vezes e arriscou-se a ir parar à cadeia.
- Não temos nenhum caso paralelo. Randolph não teve de trabalhar desde que saiu da maternidade nos braços da mãe. A família possui metade da Costa Oriental. A metade mais próspera.
- Características que não se aplicam às pessoas que trabalham para ele - retrucou Michael, preparando as bebidas. - Talvez nem possuam uma embarcação à vela.
BradfÓrd continuou a inspeccionar a lista e, instantes depois, abafava uma exclamação.
- Não compreendo esta parte. Quer os nomes das pessoas do Pentágono que constituem as Comissões de Contingência Nuclear?
- Li algures que são três - replicou Havelock, distribuindo os copos. - Brincam aos jogos de guerra, mudando de lado e investigando mutuamente as suas estratégias.
- Pensa que Matthias as utilizou?
- Não sei, mas tinha de recorrer a alguém.
- Com que finalidade? Não existe nada nos nossos arsenais que ele desconhecesse ou tivesse arquivado algures. Precisava de saber, para poder negociar.
- Interessa-me explorar todas as possibilidades - alegou, sentando-se ao lado de Jemia, no sofá.
- Não é a primeira vez que oiço essa frase - murmurou Bradford, com um sorriso de embaraço, tomando a baixar os olhos para a lista. - " Relação de negativos possíveis até dez anos atrás. Descrição pormenorizada de cada um. Fontes: CIA, Operações Consulares, Serviços Secretos do Exército." Não compreendo o significado disto.
- Eles hão-de compreender. Haverá dezenas.
- O que são "eles"?
- Homens e mulheres que constituíam alvos prioritários para deserção e nunca se
passaram para cá.
- Então, se não vieram...
- Moscovo não anuncia aqueles que se escapam. Os elementos fornecidos pelo computador esclarecerão as situações actuais.
O subsecretário hesitou e terminou por acenar com a cabeça e reatar a leitura. Jeima tocou no braço de Michael e, com uma expressão interrogadora nos olhos, murmurou:
- Procure paminyatchik?
- No ted.
- Que foi? - indagou Bradford, erguendo os olhos.
- Nada - esclareceu Havelock. - Ela tem fome.
- Termino já, pelo que regresso a Washington e deixo-os em paz. O resto é rotina. Os relatórios dos psiquiatras sobre Matthias têm de ser assinados pelo presidente, mas não haverá problemas. Falarei com ele, esta noite.
- Por que não me acompanha a Bethesda?
- Os relatórios não se encontram lá, mas na ilha Poole, num contentor de aço, de onde só podem ser retirados com autorização presidencial. Amanhã mesmo, seguirei para lá de avião... - O subsecretário interrompeu a leitura e ergueu a cabeça, surpreendido. - Esta última alínea... Tem a certeza? Que lhe podem revelar? Não nos indicaram nada.
- Atribua-a ao meu direito à informação, expresso na Constituição.
- Pode ser penoso para si.
- De que se trata? - interveio Jetina.
- Quer conhecer os resultados dos seus doze dias sob terapia - explicou Bradford.
Comeram à luz das velas, na sala de jantar de estilo rústico, num cenário que oscilava entre o sublime fatal e o vagamente ridículo. Para acentuar o contraste, havia um homem que era um surpreendentemente notável cozinheiro, porém o vulto de uma automática sob o casaco branco não contribuía para lhe realçar as habilidades culinárias. No entanto, não existia nada de divertido no olhar. Tratava-se de um guarda militar, tão eficiente com uma
arma na mão como imerso na preparação de um bife Wellington. Não obstante, sempre que se ausentava, depois de servir ou levar os pratos, Jerina e Michael entreolhavam-se por cima da mesa e esforçavam-se por não rir. Mas mesmo esses breves momentos de alegria não se prolongavam - o impensável nunca lhes abandonava os espíritos.
- Confias em Bradford - observou ela. - Sei que confias. Adivinho-o, sempre que uma pessoa te merece confiança.
- Tens razão. É um indivíduo consciencioso e creio que lhe pagam o suficiente para que tal aconteça. Pode-se confiar num homem assim.
- Então, por que me impediste de mencionar os paminyatchiki, os viajantes?
- Porque o tema está acima da sua capacidade e não lhe adiantaria nada. Como viste, é um homem metódico, do género " uma coisa de cada vez e analisada de forma exaustiva". Reside aí o seu valor. Com os paminyatchiki, vê-se repentinamente forçado a aprofundar tudo geometricamente.
- Geometricamente? Não entendo.
- Numa dezena de sentidos diferentes ao mesmo tempo. Todos se tomam imediatamente suspeitos. Ele não procuraria um único homem, mas inspeccionaria grupos inteiros. Ora, quero que se concentre em cortinas de fumo, escalpelize todas as missões em curso no quarto andar, a oito quarteirões ou a oitocentos quilómetros do Departamento de Estado, até que descubra alguém que podia não se encontrar onde devia.
- Explicaste-te muito bem.
- Obrigado.
- Em todo o caso, podias ter acrescentado a utilização de um títere. Havelock olhou-a através do clarão das velas, com um leve sorriso ao canto dos lábios, que ela retribuiu.
- És capaz de ter razão - acabou ele por admitir, com uma breve risada.
- Foste tu que elaboraste a lista e não eu. Não podias lembrar-te de tudo.
- Muito grato pela condescendente justificação. Abordarei o assunto, de manhã. A propósito: por que não o fizeste? Suponho que não te deixaste dominar pela timidez?
- Isso era fazer perguntas e não dar ordens ou conselhos. Há uma diferença. Não me interessa dar ordens ou conselhos a Bradford, até que me aceite. E se fosse forçada a isso, seria sob a forma de perguntas conducentes a uma sugestão.
- Acho estranhas essas tuas palavras. Foste aceite como eu. Ele ouviu-o dos lábios de Berquist, e não existe autoridade mais elevada.
- Não me refiro a esse sentido. Bradford mostra-se pouco à vontade com as mulheres. Talvez, impaciente. Não invejo a esposa ou as mulheres com as quais tenha de conviver. Considero-o um indivíduo profundamente perturbado.
- Motivos para isso não lhe faltam.
- De muito antes deste assunto. Lembra-me um homem muito brilhante e talentoso, um brilho e um talento que não se harmonizam muito bem. Creio que se sente impotente, e isso afecta as suas mulheres... todas as mulheres, na verdade.
- Devo concluir que estou perante Signmund Freud?
- Limbursky syr! - Jenna soltou uma gargalhada. - Sabes que gosto de observar as pessoas. Lembras-te daquele joalheiro de Trieste, um careca cuja loja era urna "caixa de correio", do M.I. 6? Chamaste-lhe... que termo usaste?... Houkacka?
- Dizia era que estava permanentemente com o cio e assediava as mulheres da loja com um espigão entre as pernas.
- E eu achava-o maricas.
- O que se confirmou, porque desabotoaste a blusa alguns centímetros e o filho da mãe continuou concentrado em mim.
Riram com gosto e as gargalhadas ecoaram nas paredes solenes, enquanto Jenna estendia a mão e a pousava na de Michael.
- É bom podermos voltar a rir.
- É bom poder rir contigo. Não sei com que frequência teremos possibilidade de o fazer.
- Temos de procurar mais oportunidades. Penso que é terrivelmente importante.
- Amo-te, Jenna.
- Então, por que não perguntamos ao nosso Escoffier armado onde dormimos? Não quero parecer nevyspany, mas também te amo. Quero estar junto de ti e não separada por uma mesa.
- Concluíste que eu não era maricas.
- Talvez latente. Aceitarei o que puder obter.
- Sem rodeios. Sempre afirmei que ias direita ao assunto. Naquele momento, o Escoffier armado assomou à porta.
- Mais café?
- Não, obrigado - respondeu Havelock.
- Brande?
- Não me apetece - disse Jenna.
- E televisão?
- E o quarto?
- A recepção é péssima, nesta região.
- Cá nos arranjaremos - declarou Michael.
Ele sentava-se numa poltrona diante da lareira quase apagada, no quarto, esticando o pescoço e movendo os ombros em círculos. Encontrava-se aí por determinação de Jenna, cujos favores seriam protelados por sete anos, ou algo do género, se desobedecesse. Entretanto, ela fora ao rés-do-chão procurar ligaduras, anti-séptico e sem dúvida tudo o mais que se lhe deparasse para satisfazer as inclinações para enfermeira que a assolavam.
Dez minutos antes, tinham percorrido o quarto, de mãos dadas, corpos em contacto, rindo suavemente. No momento em que ela se lhe apoiara, Michael estremecera em virtude da dor aguda no ombro. Jetina desabotoara-lhe então a camisa e examinara a ligadura ao
clarão do candeeiro de mesa.
- Deixa-te estar aí quietinho - indicou, por fim. - Não chegámos a comprar o estojo de primeiros socorros. Deve haver alguma coisa do género, lá em baixo. Tens o ombro em carne viva.
- Confesso que não o senti ultimamente - admitiu Havelock, enquanto ela se dirigia para a porta.
E e na verdade: não sentira nem pensara no ferimento, à parte em ocasiões esporádicas, devido a um espasmo mais intenso, desde Col des Moulinets. Não houvera tempo. Não se revestira de importância suficiente para o considerar. Demasiadas coisas tinham assumido prioridades prementes. Volveu o olhar para a ampla janela e avistou o clarão intermitente dos projectores que esquadrinhavam as cercanias, protegendo a santidade da Estéril Cinco. Em seguida, desviou-se para as brasas que constituíam o epílogo do lume. Demasiadas coisas... de relevo premente. .. desenroladas rapidamente. A mente tinha de as assimilar com prontidão, antes que surgissem outras de maior importância. Se queria conservar a lucidez de espírito, impunha-se que encontrasse tempo para reflectir.
É bom poder rir contigo. Não sei com que frequência teremos possibilidade de o fazer. Temos de procurar mais oportunidades. Penso que é terrivelmente importante. Jerina tinha razão. O riso não era inconsequente. O dela, pelo menos, e Michael desejou repentinamente escutá-lo. Onde se teria metido? De quanto tempo necessitava para encontrar um rolo de adesivo e uma ou duas compressas? Cada casa estéril achava-se inteiramente equipada com toda a espécie de apetrechos de enfermaria. Portanto, onde estava ela?
Por fim, levantou-se da poltrona, subitamente alarmado. Talvez outros homens -
alheios à Estéril Cinco - estivessem emboscados nas imediações. Havelock possuía alguma experiência do assunto. A infiltração achava-se facilitada por uma profusão de árvores e vegetação rasteira, e Estéril Cinco era uma casa de campo, rodeada por arvoredo e folhagem - protecção natural para peritos na arte de penetração. Onde estaria ela?
Aproximou-se rapidamente da janela, consciente de que a vidraça espessa, impenetrável a balas, também contribuiria para distorcer o movimento no exterior. Verificou que não se enganara, e principiava a dirigir-se para a porta, quando efectuou uma descoberta: não dispunha de uma arma!
A porta abriu-se antes de a alcançar e ele soltou um suspiro de alívio ao ver Jetina com uma das mãos pousada no puxador e um tabuleiro de plástico com ligaduras, compressas, uma tesoura, um rolo de adesivo, algodão e álcool na outra.
- Aconteceu alguma coisa, Mikhail?
- Não, nada... Levantei-me para desentorpecer as pernas.
- Estás a transpirar, querido. - Ela fechou a porta e aproximou-se, para lhe pousar a mão na fronte. - Que se passa?
- Deixei-me arrastar pela imaginação. Pareceu-me que tardavas mais do que o necessário. Desculpa.
- De facto, tardei mais do que o previsto. - Pegou-lhe no braço e conduziu-o para a poltrona. - Despe a camisa - indicou, pousando o tabuleiro e preparando-se para o ajudar.
- Só isso? - insistiu Havelock, sentando-se e olhando-a, enquanto obedecia. - Só mais do que o previsto?
- Bem, à parte umas breves aventuras debaixo da escada e uns apalpanços com
* cozinheiro, não houve tempo para mais... Agora,. não te mexas, para poder tirar
* penso. - Em movimentos eficientes, Jeima pegou na tesoura para retirar o adesivo e em seguida levantou a compressa com lentidão. - Afinal, está a sarar satisfatoriamente, considerando o esforço que desenvolveste - admitiu, embebendo um pedaço de algodão em álcool. - É mais irritação que outra coisa. A água salgada deve ter impedido a
infecção... Vai arder um pouco...
- Não te enganaste - confirmou ele, estremecendo. - Além dessas actividades na escada, que diabo estiveste a fazer?
- Concentrei-me no cozinheiro. - Ela aplicou a compressa e o adesivo e retrocedeu um passo, como se admirasse uma tela acabada de concluir. - Pronto. Não te sentirás melhor, mas estás com outro aspecto.
- E esquivas-te a responder.
- Não gostas de surpresas?
- Detesto-as.
- KoIáce! - exclamou, vertendo-lhe álcool nas costas e friccionando-as. - De manhã, haverá koláce.
- Crepes doces? Endoideceste. Passámos vinte e quatro horas num inferno e falas de coisas dessas!
- Temos de viver. - O movimento da mão nas costas tomou-se mais lento, embalador. - Avistei-me de facto com o nosso cozinheiro armado até aos dentes e talvez tentasse seduzi-lo. De manhã providenciará para que nos sirvam alperces e outras iguarias que vai encomendar esta noite.
- Não acredito...
- Experimenta e verás. Em Praga, descobriste uma padaria que vendia koláce, que te agradaram muito, e pediste-me que fizesse mais.
- Em Praga, os problemas eram outros. Não tinham a envergadura dos que enfrentamos actualmente.
- Mas somos nós, Mikhail. Nós, de novo, e precisamos de ter os nossos momentos. Perdi-te, uma vez, e agora tomas a estar a meu lado. Deixa-me saborear estes momentos, deixa-nos saboreá-los... apesar do que sabemos.
- Ninguém no-los tira - murmurou ele, puxando-a para si.
- Obrigada, querido.
- Adoro ouvir-te rir. Não sei se já te tinha dito...
- Muitas vezes, mas podes repetir à vontade. Disseste que ria como uma criança num espectáculo de títeres. Recordas-te?
- Sem dúvida, e é verdade. Uma criança risonha... às vezes um pouco nervosa. Régine Broussac também se apercebeu disso. Descreveu-me o que aconteceu em Milão, quando palmaste o dinheiro àquele pobre bastardo e lhe levaste a roupa.
- Sim, foi urna quantia avultada. Mas não tenho remorsos, porque era um homem horrível. Passei uns momentos que prefiro não recordar. Quando contactei Régine, estava assustadíssima. Ansiava por que me ajudasse e, ao mesmo tempo, receava que me voltasse as costas. No fundo, apegava-me a uma recordação que me divertia e acalmava. Não sei explicar a reacção, mas aconteceu noutras ocasiões.
- A que te referes?
- Quando fugi de Ostrava, após o assassínio de meus irmãos, e fiquei marcada pelos anti-Dubcek, entrei no mundo de Praga. - Jerma assumiu uma expressão de nostalgia, como se evocasse imagens de um passado que, em última análise, conservava algo de meritório. - Era um mundo cheio de ódio, tão violento que por vezes me julgava impossibilitada de o suportar. Mas sabia que devia resistir, pois não podia voltar para uma vida com a qual já nada tinha de comum. Por conseguinte, recordava-me de coisas, revivia os factos como se me encontrasse lá e não em Praga, naquele mundo de terror. Regressava a Ostrava, onde meus irmãos me levavam a passear e contavam histórias maravilhosas. Nesses momentos, sentia-me livre, não tinha medo. - Volveu os olhos para Michael. - Essas recordações não se assemelhavam a Milão, mas conseguia rir... Enfim, basta. Não estou a fazer sentido.
- Pelo contrário - redarguiu ele, abraçando-a. - Obrigado por isso. Nada faz sentido apreciável, nos tempos que correm. Em parte alguma.
- Estás cansado, querido. Mais do que cansado, exausto. Vamos para a cama.
- Não gosto de contrariar o médico.
- Precisas de repouso, Mikhail.
- Não gosto de contrariar o médico... até certo ponto.
- Zlomeny - articulou ela, rindo com suavidade.
Madeixas de cabelos louros cobriam parte do rosto de Havelock e um dos braços dela cruzava-lhe o peito, mas nenhum dos dois dormia. O conforto esplêndido, terno, da união recente não suscitava o sono - o impensável achava-se demasiado presente para permitir a serenidade absoluta.
- Não me contaste tudo o que te aconteceu na ilha Poole - observou Jerma, a cabeça pousada junto da dele, na almofada. - Disseste que sim a Bradford, mas não é verdade.
- Quase tudo - admitiu Michael, fixando o olhar no tecto. - Ainda não consegui compreender o resto.
- Posso ajudar-te? - sugeriu ela, apoiando-se no cotovelo, para o fitar.
- Duvido que alguém consiga. Trata-se da bomba na minha cabeça.
- Bomba?
- Conheço Parsifal.
- O quê?!
- Matthias afirmou que eu assistia às idas e vindas de todos, dos <,negociadores do mundo", como lhes chamou. Mas era apenas um, e eu devo tê-lo visto. Devo conhecê-lo.
- Foi por isso que te tratou assim? Nos tratou assim?
- Disse que eu nunca compreenderia... que aqueles tratados representavam a única solução.
- E eu era o sacrifício.
- Sim. Que posso dizer? Não está na posse das faculdades mentais... não estava, quando reuniu as provas contra ti. Devias morrer e eu viveria, mas sob vigilância. -
Havelock sacudiu a cabeça, num gesto de frustração. - É isso que não consigo compreender.
- A minha morte?
- Não, o facto de eu continuar a viver.
- Apesar de enlouquecido, ele estimava-te.
- Não me refiro a ele, mas a Parsifal. Se eu constituía uma ameaça, por que não me matou? Por que competiu à toupeira transmitir a ordem, três meses depois?
- Bradford explicou isso - disse Jetina. - Tinhas-me visto e reavivavas o episódio da Costa Brava, o que poderia conduzir-te à identidade da toupeira.
- A atitude de Parsifal continua por explicar. Podia mandar eliminar-me diversas vezes e não o fez. Que espécie de homem enfrentamos?
- Racional, não é de certeza, o que toma a situação ainda mais aterradora. Ele voltou a cabeça e contemplou-a em silêncio, por um momento.
- Quem sabe?...
A campainha soou com intensidade, inesperada, vibrante, no quarto. Michael emergiu de um sono profundo e estendeu a mão para uma arma inexistente. Era o telefone e ele fitou-o, indeciso, antes de levantar o auscultador de cima da mesa-de-cabeceira, ao mesmo tempo que consultava o relógio: 4.45.
- Estou...
- É Bradford.
- Há alguma novidade? Onde está?
- No meu gabinete, onde me encontro desde as onze. A propósito: mandei alguns funcionários trabalhar ao longo da noite. Tudo o que pediu estará na Estéril Cinco às dez da manhã, excepto os relatórios da ilha Poole. Esses tardarão mais algumas horas.
- Telefonou a meio da noite só para me dizer isso?
- Claro que não. - O subsecretário de Estado fez uma pausa. - Existe uma possibilidade de o ter encontrado - acrescentou, apressadamente. - Procedi como sugeriu. Procurei alguém que não estivesse onde devia. Só obterei a certeza lá para o fim da manhã, por causa do atraso das informações da ilha Poole. Se corresponder à verdade, é incrível, pois possui uma folha de serviço limpa e...
- Não diga mais - ordenou Havelock.
- O seu telefone é tão estéril como a casa.
- O meu, talvez. Mas pode não acontecer o mesmo ao seu. Ou ao seu gabinete. Preste atenção.
- Sim?
- Procure um títere. Pode estar vivo ou morto.
- Um quê?
- Alguém ligado por cordelinhos às mãos do seu homem. Compreende?
- Sim, julgo que sim. De facto, estou a ver. Faz parte daquilo que já apurei.
- Quando obtiver a confirmação, telefone. De uma cabina pública, na rua. Mas não passe à ofensiva, não faça nada. - Cortou a ligação e voltou-se para Jerina. - Há uma esperança de Bradford ter descoberto Ambiguidade. Em caso afirmativo, tinhas razão.
- Paminyatchik?
- Um viajante.
Capítulo vigésimo nono
Era uma manhã como Estéril Cinco nunca presenciara e provavelmente não se repetiria. Uma pensionista persuasiva assumira o comando do sombrio asilo. Apesar da tensão suscitada pela perspectiva do telefonema de Bradford, Jerina ocupara a cozinha às oito e meia, com o Escoffier armado relegado para a posição de ajudante. Os ingredientes foram medidos e misturados com o acompanhamento de olhares de aprovação e o derrube gradual de barreiras culinárias, até que o cozinheiro começou a sorrir. Foram seleccionadas caçarolas e outros recipientes e o forno descomunal aceso, após o que os dois guardas adicionais assomaram à porta, como se as suas narinas pertencessem a perdigueiros e a cozinha se tivesse convertido num mercado de carne.
- Podem tratar-me por Jeima - propôs ela aos outros, enquanto Havelock era afastado para uma mesa do canto com um jornal.
Foram trocados nomes de baptismo, surgiram largos sorrisos e não tardou a estabelecer-se animada conversa, entremeada de gargalhadas. Houve comparações de terras de origem - tendo as padarias como base - e o ambiente da cozinha da Estéril Cinco assumiu uma aura de frivolidade. Dir-se-ia que, até então, ninguém se atrevera a aligeirar a atmosfera opressiva do recinto, dominado pela consciência de segurança. Encontrava-se iluminada agora, e Jenna era a portadora da luz. Afirmar que os homens - profissionais familiarizados com as artes letais - se sentiram conquistados equivaleria a ficar muito aquém da verdade. Com efeito, divertiam-se como jamais no passado, e a alegria não se
podia considerar um ingrediente normal na Estéril Cinco. O mundo encaminhava-se para o inferno numa cesta galáctica e Jerma Karas confeccionava koláce.
No entanto, às 9.35, após o consumo de quantidades apreciáveis de crepes doces na cozinha e a sua distribuição pelo recinto, o aspecto circunspecto do ambiente restabeleceu-se. Irromperam estalidos secos numa dezena de altifalantes de rádios, enquanto sinetas internas e monitores de televisão entravam em funções. Uma furgoneta blindada do Departamento de Estado acabava de entrar no longo caminho de acesso. Era, aliás, esperada.
Às 10. 30, Havelock e Jerma regressavam à biblioteca, para examinar os documentos e as fotografias, separados por categorias. Havia seis maços, uns mais espessos que outros: quatro na secretária de Michael e os restantes na mesinha, que Jetina inspeccionava, sentada no sofá. Bradford revelara-se eficaz, e se algo se lhe tinha de apontar era a duplicação. Escoaram-se oitenta minutos, e os raios solares do fim da manhã incidiram na vidraça, tão espessa como a do quarto no primeiro piso e todas as outras do edifício, no meio de um silêncio apenas alterado pelo virar das páginas.
O método que empregavam era o habitual de sempre que intervinha uma massa de informações tão variada. Liam tudo rapidamente, preocupando-se com a totalidade e não com pormenores específicos, e tentavam primeiro abarcar o aspecto geral do tópico em causa, para mais tarde se dedicarem às minúcias. E, apesar da concentração na leitura, resultava inevitável um comentário ocasional.
- Embaixador Addison Brooks e general Malcohn Halyard. - proferiu Michael, lendo uma página que continha os nomes das pessoas envolvidas, ainda que remotamente, com ou sem conhecimento, no mosaico Parsifal. - São os apoiantes do presidente, se se vir forçado a denunciar Manhias.
- Em que sentido?
- Depois de Anton, são os homens mais respeitados do país. Berquist precisará deles. Alguns minutos mais tarde, Jerina anunciou:
- És mencionado aqui.
- Onde?
- Numa anotação na agenda de Matthias.
- De quando? -- Há oito... não, nove meses. Foste convidado em casa dele, na altura em que te trouxeram de avião para avaliação pessoal das Operações Consulares, salvo erro. Não havia muito tempo que nos conhecíamos.
- E apetecia-me regressar a Praga, o mais depressa possível. Essas sessões não passavam de uma monumental perda de tempo.
- Disseste-me uma vez que serviam uma finalidade, pois o campo de acção exerce efeitos estranhos em determinados agentes e devem ser examinados periodicamente.
- Eu não era um deles. De resto, reconheço casos isolados em que isso acontecia. Uma vez por outra, apanhavam um... atirador.
- Poderia ter sido nessa altura? - aventou ela, pousando a página. - Seria nessa altura que viste Parsifal?
- Há nove meses, Anton gozava de lucidez absoluta. Não existia Parsifal nenhum.
- Recordo-me de dizeres que estava muito cansado. Preocupavas-te com o seu estado.
- Com a saúde e não com a mente. Era absolutamente normal.
- Apesar disso...
- Julgas que não recapitulei tudo em pensamento? - atalhou Havelock. - Foi em Georgetown e estive lá dois dias e duas noites, período necessário para a avaliação.
Jantámos juntos duas vezes, sempre sós. Não vi nenhum estranho.
- Mas deve ter aparecido alguém.
- Sem dúvida, pois não o deixavam sossegado, de dia ou de noite.
- Então, viste essas pessoas.
- Nunca as recebia na minha presença.. A casa era uma espécie de labirinto, com uma infinidade de dependências isoladas.
- E nunca estiveste nelas?
- Com alguém de fora lá, não. Quando o interrompiam durante o jantar eu ficava à mesa. Até utilizava uma porta lateral para entrar, em vez da principal. Tínhamos uma espécie de combinação.
- Sim, recordo-me. Não querias que te vissem com ele.
- Eu não poria a questão nesses termos. Sentir-me-ia honrado em que nos vissem juntos, mas não convinha, no interesse de ambos.
- Se não foi nesses dias, quando seria que viste Parsifal?
- Teria de rever um lapso de tempo prolongadíssimo - admitiu, meneando a cabeça, com uma expressão pesarosa, - Na sua fantasia, Anton vê-me abandonado numa conferência, que pode corresponder a muita coisa entre uma sala de aula, um seminário ou algo do género. Quantos casos desses houve? Cinquenta, cem, mil? Pertenceria Parsifal a esse passado?
- Se tal acontecesse, dificilmente serias considerado uma ameaça, agora - afirmou Jetina, inclinando-se para a frente. - Ele podia eliminar-te vinte vezes, e não o fez; Não
tentou matar-te.
- Exactamente.
- Portanto, pode ser alguém que conhecesses há anos.
- Há outra possibilidade. Embora, de facto, pudesse fazer-me desaparecer, existe sempre um risco ao matar alguém ou contratar um assassino. Talvez ele não tolere a ideia de se expor a esse perigo. É possível que esteja incluído num conjunto de rostos na minha frente e eu não consiga destacá-lo. Mas se soubesse quem é ou como é, saberia onde encontrá-lo. Eu saberia, embora não necessariamente muitos outros ou mesmo ninguém na nossa profissão.
- A toupeira poderia fornecer-te a identidade e a descrição.
- Boa caçada, senhor subsecretário - murmurou Michael. - Por que será que ainda não telefonou?... Mais alguma coisa de interessante?
- Bem, noto um pormenor nos itinerários que se repete com frequência. Confesso que não compreendo. Por que é mencionado Shenandoali com tanta frequência?
Voltara a concentrar-se nos documentos, porém as palavras de Jerma obrigaram-no a erguer os olhos, sentindo uma nota dissonante ecoar num recanto do espírito.
Emory Bradford esforçava-se por conservar os olhos abertos. Com efeito, à parte breves momentos em que não conseguira resistir ao cansaço, havia quase trinta e seis horas que não dormia. Não obstante, tinha de se manter acordado. Passava do meio-dia, e as gravações e fotografias de Nova Iorque não tardariam a chegar, enviadas por uma condescendente rede de televisão, que aceitara uma explicação inócua em troca de uma nova fonte confidencial no Departamento de Estado. O subsecretário encomendara o equipamento apropriado, pelo que poderia ouvir as gravações minutos depois de lhe chegarem às mãos. E teria então a certeza.
A hipótese de se tratar de Arthur Pierce ainda se lhe afigurava incrível. Seria de facto ele?
O funcionário superior do Departamento de Estado, delegado junto das Nações Unidas, principal colaborador do embaixador, oficial de carreira com uma folha de serviço invejada por todos que trabalhavam nas altas esferas do Governo. E, antes de ingressar em Washington, distinguira-se no Exército, onde se guindaria a uma posição notável, se não
preferisse as actividades diplomáticas. Pierce chegara ao Sueste Asiático como aspirante recém-saído da Universidade de Michigan com classificação elevada e cometera proezas de que só se podiam vangloriar os indivíduos mais corajosos, além de se revelar uma autoridade no campo da estratégia. Onde estaria, pois, a ligação com Moscovo?
No entanto, ela tinha de existir, se havia validade no emprego da expressão "cortina de ftimo" por parte de Havelock e, sobretudo, a sua advertência para que procurasse um títere. Fora, porém, a primeira das suas sugestões que despertara a atenção de Bradford: que procurasse um homem que não se encontrava onde devia.
Entretivera-se a analisar de forma rotineira - demasiado rotineira, pois a ideia afigurava-se-lhe forçada - as recomendações e posições assumidas pela delegação americana nas reuniões do Conselho de Segurança no decurso da semana em que ocorrera o episódio da Costa Brava, que incluíam as discussões confidenciais no seio da delegação, resumidas por um adido chamado Carpenter. O superior deste, Pierce, era mencionado corri insistência. As suas sugestões revelavam-se concisas, astutas, particularmente apropriadas à situação, até que se deparou a Bradord uma abreviatura estranha entre parêntesis. (Ent.IF. C.)
Seguia-se uma veemente e longa recomendação apresentada por Pierce ao embaixador. Bradford não se debruçara sobre ela anteriormente, sem dúvida em virtude da terminologia diplomática demasiado complicada, porém agora inspeccionava-a com atenção. @ (Ent. IF. C.): Entregue por Franklyn Carpenter. " Tradução: "Não apresentado pelo auxiliar superior do embaixador, Arthur Pierce, a quem o texto pertencia, mas por um subordinado. @> Por outras palavras: Pierce não se encontrava presente onde devia.
O subsecretário estudou então todas as linhas subsequentes do relatório da delegação e descobriu mais duas alusões a F. C. respeitantes a quinta-feira e três a sexta. Sexta-feira. Recordou-se em seguida daquilo que era óbvio e retrocedeu ao início da semana. Fora no final do ano - a operação Costa Brava desenrolara-se na noite de domingo, 4 de Janeiro. Um fim-de-semana.
Não houvera reunião do Conselho de Segurança naquela quarta-feira, porque a maioria das delegações que ainda se falavam promoviam recepções diplomáticas respeitantes à quadra festiva. Quinta-feira, primeiro dia do novo ano, como se pretendesse demonstrar ao mundo que as Nações Unidas tencionavam saudá-lo com respeito, o Conselho reatara os trabalhos e de novo no dia seguinte, mas não no sábado e no domingo.
Por conseguinte, se Arthur Pierce não se achava presente onde devia, e transmitira instruções a um subordinado para comunicar as suas palavras, podia ter abandonado o país terça-feira ao fim da tarde, dispondo de cindo dias para efectuar o que pretendia na Costa Brava. Se, se.. . se. Ambiguidade?
Bradford telefonara a Havelock, o qual lhe indicara o que devia procurar a seguir.
O títere.
O adiantado da hora não interessava. O subsecretário acordou o telefonista de serviço no P. B. X. e ordenou-lhe que ligasse a Franklyn Carpenter, onde quer que se encontrasse. Oito minutos depois, inteirava-se de que este apresentara a demissão do cargo, cerca de quatro meses atrás, e o número existente no ficheiro de nada servia, porque o telefone fora desligado. Em face disso, Bradford indicou o nome da outra única pessoa presente naquela reunião de quinta-feira, no Conselho de Segurança, um adido menos graduado, que decerto ainda se achava em Nova Iorque.
O telefonista voltou a dar sinais de vida às 5.15, para anunciar que o adido junto das Nações Unidas se encontrava na linha.
- Fala o subsecretário de Estado, Bradord... A resposta inicial do homem caracterizou-se por profunda estranheza, mesclada de um certo alheamento resultante do sono, e uma réstia de apreensão. No entanto, Bradford consagrou os minutos imediatos a uma tentativa de tranquilização, após o que sugeriu se esforçasse por recordar aqueles dias de há cerca de quatro meses atrás.
- Lembra-se do que aconteceu?
- Mais ou menos.
- Houve alguma coisa que lhe causasse estranheza, no final dessa semana?
- Nada que me ocorra de momento.
- A equipa americana nessas sessões (e interessam-me particularmente as de quinta-feira e sexta) consistia no embaixador, o seu colaborador imediato, Arthur Pierce, você e um homem chamado Carpenter. Confirma?
- Eu inverteria a ordem dos dois últimos. A minha posição era a mais baixa da legação, na altura.
- Estiveram presentes os quatro, todos os dias?
- Bem... acho que sim. E difícil evocar todos os pormenores, passado tanto tempo.
O registo de presença pode elucidá-lo.
- Quinta-feira foi o primeiro dia do ano. Isto ajuda-o a recordar? Registou-se uma pausa antes de o homem se pronunciar e, quando o fez, Bradford fechou os olhos.
- Sim. Estou a lembrar-me. Eu talvez estivesse inscrito, mas não assisti. O Suprasumo... queria desculpar...
- Sei a quem se refere. Que fez o subsecretário Pierce?
- Mandou-me seguir de avião para Washington, a fim de compilar uma análise de toda a posição do Médio Oriente. Passei quase todo o fim-de-semana com isso... para depois ele não o utilizar. E, até hoje, nunca o fez. Foi um trabalho inglório.
- Só mais uma coisa - proferiu BradfÓrd pausadamente, tentando dominar a voz. Quando as recordações de um membro da equipa são entregues ao embaixador por outra pessoa, que significa isto exactamente?
- É muito simples. Os membros mais graduados tentam antecipar-se às propostas contrárias e elaboram estratégias e contrapropostas para as bloquear. Na eventualidade de ele estar ausente da sala de sessões quando é apresentada uma proposta controversa, encontra-se lá o seu parecer para o embaixador.
- Não é perigoso? Não poderia alguém limitar-se a escrever qualquer coisa a título oficial e entregá-lo a um dos membros?
- Não, porque o funcionamento não é esse. O interessado tem de estar presente. Trata-se de uma condição imperiosa. Suponhamos que o embaixador gosta de uma argumentação, a utiliza e enfrenta uma réplica que não consegue refutar. Necessita da presença do responsável para o livrar de apuros.
- O subsecretário Pierce apresentou várias propostas, durante as reuniões de quinta-feira e sexta.
- Sim. Ele passa o tempo a entrar e sair da sala. É uma pessoa muito eficiente e todos o respeitam. Até os soviéticos gostam dele.
Acredito, reflectiu Bradford. A tal ponto, que propostas controversas podem ser
evitadas por acordo prévio.
- Afinal, ainda não foi a última coisa. Acaba de me ocorrer mais uma.
- Estou ao seu dispor.
- Que foi feito de Carpenter?
- Isso gostava eu de saber. Nunca mais o vi nem soube nada dele. O desgosto deve tê-lo arrasado.
- Desgosto?
- A mulher e os filhos morreram num acidente de automóvel, poucos dias antes do Natal. Imagino a sensação de um homem ao ver três caixões diante da árvore de Natal, com os presentes por abrir.
- É lamentável, de facto.
- Mostrou muita coragem, ao voltar tão cedo, embora todos reconhecêssemos que era a
melhor decisão para ele. Sempre estava junto de amigos, em vez de só, em casa.
- Suponho que o subsecretário Pierce contribuiu?
- Sim, foi quem o convenceu a regressar ao trabalho.
- Hum...
- Até que, uma manhã, Carpenter não apareceu. No dia seguinte, chegou um
telegrama em que anunciava a intenção de se demitir a partir daquela data.
- Não é pouco voltar? Irregular, mesmo.
- Em face do que lhe aconteceu, não creio que alguém estivesse interessado em obrigá-lo a cumprir o regulamento.
- E, mais uma vez, o subsecretário interveio.
- Exacto. Aliás, a ideia foi dele. Carpenter desapareceu sem deixar rasto. Oxalá esteja bem.
Está morto. O títere morreu. BradfÓrd continuou acordado até ao nascer-do-Sol. Os elementos que examinou a seguir foram as folhas de presença respeitantes à noite da recepção do código Ambiguidade, em Roma, a decisão de que Havelock devia ser considerado " irrecuperável". Deparou-se-lhe o que previra: Arthur Pierce não estivera em Nova Iorque, mas em Washington, no seu gabinete do quarto piso, e, naturalmente, retirara-se pouco depois das cinco da tarde, hora que correspondia à de meia dúzia de outros. Decerto lhe resultara mais simples sair no meio de vários funcionários, assinar a folha de segurança e voltar para dentro. Podia permanecer lá toda a noite e assinar a entrada de manhã, sem que alguém se apercebesse da diferença. Tal como ele, o subsecretário Emory Bradford podia fazer agora o mesmo.
Esquadrinhou todos os outros documentos em que havia alusões, ainda que superficiais, a Arthur Pierce, mas não conseguiu descortinar a ligação com Moscovo.
Às oito horas, reconheceu a impossibilidade de se concentrar, pelo que se reclinou na cadeira e adormeceu. Às 8.35, foi acordado pelo murmúrio surdo do outro lado da porta. Principiava mais um dia de trabalho no Departamento de Estado. Os funcionários tomavam café, consultavam as agendas e estabeleciam-se prioridades, enquanto as secretárias aguardavam a chegada dos superiores. Bradford levantou-se e foi cumprimentar a sua, uma mulher de meia-idade, que ficou surpreendida com o seu aspecto: sem gravata nem casaco, cabelos desgrenhados e barba por fazer.
Ele pediu-lhe um café e dirigiu-se à casa de banho, a fim de se lavar e assumir o ar mais respeitável possível, e, quando atravessava as outras salas, apercebeu-se dos olhares dissimulados que lhe lançavam.
Às dez horas, lembrando-se da advertência de Havelock, saiu para utilizar um telefone público e providenciar para que as gravações e fotografias fossem enviadas de Nova Iorque por via aérea. Sentiu-se tentado a aproveitar a oportunidade para contactar o presidente, mas não o fez, preferindo não falar com ninguém.
Agora, consultando o relógio, verificou que eram 12.22, três minutos mais tarde do que a última vez que vira as horas. Havia transportes de Nova Iorque cada sessenta minutos. Em qual deles viria o material?
As suas cogitações foram interrompidas por pancadas discretas e o cor-respondente acelerar das palpitações do coração.
Era a secretária, que o olhou como fizera de manhã, com uma expressão apreensiva.
- Vou almoçar. Pode ser?
- Com certeza, Liz.
- Quer que lhe traga alguma coisa?
- Não, obrigado. A mulher conservou-se à entrada, com certo embaraço, antes de se atrever a perguntar:
Sente-se bem, Mr. Bradford?
- Sem dúvida.
- Não precisa mesmo de nada?
- Vá lá almoçar e não se preocupe comigo - aconselhou ele, tentando sorrir.
- Então, até logo. Pouco depois, soou o besouro do telefone interno: era da entrada, para comunicar que a encomenda de Nova Iorque acabava de chegar.
- Assine o talão e mande cá um dos guardas. Transcorridos sete minutos, a gravação era inserida no reprodutor de vídeo e surgiu no écran uma vista interior do Conselho de Segurança das Nações Unidas, com a data na parte inferior: Terça-feira, 30 Dez., 14.56. Decorria uma intervenção do embaixador da Arábia Saudita. Passados uns minutos, apareceram indícios de reacção das delegações de Israel, Egipto e Estados Unidos, e Bradford imobilizou a imagem por meio do telecomando, para a
examinar. Achavam-se presentes os quatro componentes da equipa americana: o embaixador e o seu auxiliar mais graduado, Arthur Pierce, na primeira fila, e mais dois homens atrás. Não merecia a pena continuar a assistir ao que acontecera terça-feira, 30, pelo que premiu o botão que acelerava a sequência da projecção. Pouco depois, efectuou uma pausa e verificou que o representante da Arábia Saudita ainda não terminara de falar. Preparava-se para actuar novamente no telecomando, quando observou que Arthur Pierce se ausentara.
Fez a cena retroceder até chegar ao ponto que lhe interessava. Um funcionário oficial do Departamento de Estado não abandonava a sala durante a intervenção do representante de um país amigo sem, pelo menos, uma explicação. Com efeito, deparou-se-lhe Pierce, que consultava o relógio, antes de se levantar, dirigir algumas palavras ao embaixador e depois a um dos homens atrás dele, presumivelmente o indivíduo com o qual Bradford falara pelo telefone, que inclinou a cabeça. Quase imediatamente, uma voz feminina explicou, em off.- <@ A delegação dos Estados Unidos recebeu um telefonema, possivelmente do secretário de Estado, porventura interessado em que fiquem registados os seus comentários às palavras encomiásticas de Ibri Kasbani".
Bradford voltou a acelerar a projecção até chegar ao final da intervenção, e verificou que Arthur Pierce não regressara.
Quinta-feira, 1 Jan., 10.43: Saudação do Ano Novo proferida pelo presidente do Conselho de Segurança. Pierce não se encontrava presente. No seu lugar, via-se o homem -
sem dúvida Franklyn Carpenter - que antes se sentava atrás do embaixador, agora ao lado deste, com um maço de documentos nas mãos.
Sexta-feira, 2 Jan., 16.10: Uma alocução provocatória pelo delegado de um país do Terceiro Mundo, que exigia o recurso a auscultadores para obter a tradução. Pierce continuava ausente.
Segunda-feira, 5 Jan., 11.43: Ausência de Arthur Pierce. Segunda-feira, 5 Jan., 14.46: Idem. Segunda-feira, 5 Jan., 16.45: Arthur Pierce encontrava-se no seu lugar, meneando a cabeça em resposta a comentários do embaixador do lémen.
Bradford desligou o videotape e fixou o olhar no sobrescrito que continha fotografias da recepção de Ano Novo em Nova Iorque. Na realidade, não necessitava de as consultar, pois sabia que o subsecretário da delegação americana não figurava em nenhuma.
Encontrava-se na Costa Brava. Restava uma confirmação final, que, com o sistema de rastreio computorizado, tardaria menos de um minuto. Brafford pegou no telefone interno, pediu ligação ao departamento de transportes, apresentou o pedido e, enquanto aguardava, esfregou os olhos com os dedos, consciente de que a respiração se acelerava. A resposta surgiu decorridos quarenta e
sete segundos: "Na terça-feira, 30 de Dezembro, houve cinco voos de Nova Iorque para Madrid, às dez, meio-dia, treze e quinze, catorze e trinta e dezassete e dez. Na segunda-feira, 5 de Janeiro, hora de Espanha, descolaram quatro de Barcelona, via Madrid, o
primeiro às sete e meia da manhã e chegada ao Aeroporto Kennedy às doze e vinte e um; o segundo às nove e um quarto da manhã e chegada à s três da tarde ... "
Bradford interrompeu neste ponto, pensando que já se inteirara do que pretendia. Pierce seguira no voo das 17. 10 de terça-feira com destino a Madrid e regressara no das 9. 15 da segunda seguinte, procedente de Barcelona, permitindo-lhe comparecer nas Nações Unidas às 16.45. Na relação de passageiros, decerto figuraria o nome de um que não correspondia ao subsecretário da delegação.
Fez girar a cadeira e cravou o olhar na janela, consciente de que chegara o momento de se dirigir a uma cabina pública, a fim de contactar Havelock. Com um suspiro de resignação, levantou-se, contornou a secretária e aproximou-se do cabide, para pegar no chapéu.
A porta abriu-se sem pancada prévia, e o subsecretário de Estado imobilizou-se ao ver aparecer outro subsecretário. Pierce fechou-a atrás de si, encostou-se-lhe e proferiu em voz átona:
- Parece exausto, Emory. E é muito inexperiente, sabe. A exaustão e a inexperiência constituem uma combinação muito indesejável, fazendo com que uma pessoa cometa imprudências. Quando se fazem perguntas a um subordinado, deve exigir-se-lhe que guarde segredo. O rapaz que substituiu Carpenter mostrava-se muito excitado, esta manhã.
- Você matou Carpenter - murmurou BradfÓrd, recuperando parte da presença de espírito. - Ele não pediu a demissão. Assassinou-o.
- Atravessava uma profunda crise emocional.
- Pela perda da mulher e dos filhos, que você também matou!
- Há necessidade de planear, criar circunstâncias, fomentar a dependência. Suponho que concorda? Nos velhos tempos, estava-se nas tintas para pormenores dessa natureza. E quantos matou você? Antes da sua festejada conversão, bem entendido. Assisti a tudo o que fez, Emory.
- Mas também esteve lá...
- Enojado até à medula com o desperdício de vidas. Mortes e mentiras de ambos os lados. De Washington e Saigão. Foi a chacina de filhos, vossos e deles.
- Mas porquê? Não descobri nada que justificasse a sua atitude!
- Encontramo-nos em lados opostos, Emory, e acredito muito mais no meu que você no seu. Compreende-se: viu como isto é e não pode fazer nada para o alterar. Ora, eu posso e hei-de fazer. Existem possibilidades de conseguir um mundo melhor que o vosso.
- Como o farão? Envolvendo-o numa guerra nuclear da qual ninguém escapará vivo?
- Então, é verdade - articulou Pierce, a meia voz. - Ele conseguiu.
- E vocês não sabiam... Meu Deus!
- Não se recrimine, porque estávamos prestes a descobri-lo. Disseram-nos que ele perdia gradualmente a lucidez e criava uma estratégia tão intolerável, que o mundo se indignaria e nenhum país voltaria a confiar nos Estados Unidos. No final, quando os documentos se encontrassem nas nossas mãos, disporíamos de munições para ditar ou destruir. A opção pertencer-nos-ia e, de qualquer modo, o vosso sistema estaria liquidado, varrido da face da Terra.
- Engana-se completamente. Cometemos erros enormes, sem dúvida, mas nunca nos recusámos a enfrentá-los.
- Só quando são surpreendidos em flagrante. Porque não têm coragem de soçobrar, e sem isso não podem vencer.
- Pensa que a supressão é a solução? - rugiu Bradford. - Supõe que, pelo facto de as silenciarem, as pessoas não se farão ouvir?
- Nas questões essenciais, não. É a solução prática. De qualquer modo, vocês nunca nos compreenderam. Lêem os nossos livros, mas não abarcam o significado. Até descuram os pormenores. Marx afirmou-o e Lenine confirmou-o, sem que vocês prestassem atenção.
O nosso sistema encontra-se em transição permanente, havendo necessidade de passar por
fases, até que a mudança deixe de representar uma condição imprescindível. Um dia, as nossas liberdades serão completas e não como as vossas.
- As pessoas têm de mudar sempre. Todos os dias! Em conformidade com o tempo,
* nascimento, a morte... as necessidades! Não se podem converter em autómatos, pois não
* suportarão! E é isso que vocês não compreendem. São vocês que receiam soçobrar. Não admitem que alguém discuta convosco!
- Só aqueles que poderiam destruir mais de sessenta anos de esperança, de progresso. Os nossos grandes cientistas, médicos, engenheiros... a esmagadora maioria dos seus pais não sabia ler.
- Portanto, vocês catequizaram os filhos e baniram os livros!
- Julgava-o mais esclarecido. - Pierce adiantou-se alguns passos. - Não consegue descobri-lo, hem? Apresentou os seus planos nucleares e desapareceu. Não sabem a quem os mostrou ou vendeu. Entraram em pânico.
- Vocês também não são capazes de o encontrar. Perderam-no.
- Mas sabemos quem é. Estudámos os seus hábitos, necessidades e talentos. À semelhança de todos os homens de mente excepcional, é complicado, mas previsível.
- Em todo o caso, abandonou-os.
- É uma condição temporária. O seu desentendimento foi com a burocracia, com superiores sem imaginação, e não com os objectivos do Estado. Quando me procurou, eu podia aceitar a proposta, mas apresentou um preço muito elevado. Acredita em nós e não em vocês. Seu avô era um servidor obediente nas terras do príncipe Voroshin e enforcaram-no por roubar um javali, para dar de comer à família. Não nos voltará as costas.
- A que plural se refere? Moscovo não os reconhece, como apurámos através do episódio na Costa Brava. O KGB não teve a mínima interferência nisso e nunca o sancionou.
- De facto, não o sancionou nenhuma das entidades com as quais vocês costumam negociar. Estão velhas e cansadas e não levantam problemas. Perderam de vista a nossa promessa... o nosso destino, se preferir. Nós não. - Pierce volveu o olhar para o televisor e o gravador de video ao lado e depois para a caixa em cima da secretária. - De que se trata? Imagens para serem estudadas mais tarde, em busca de elementos comprometedores? Sim, acredito que haja aí provas suficientes da ausência de um diplomata em determinada data.
- Avançou mais um passo e fitou o interlocutor com intensidade. - Havlicek regressou, hem?
- Quem?
- Preferimos o seu nome verdadeiro: Mikhail Havlicek, filho de Václav, um inimigo do Estado. Sabia que Mikhail é um nome russo e não checo? Por outro lado, talvez não fizesse a mínima ideia, pois vocês não ligam muita importância à ascendência de uma pessoa. Em circunstâncias diferentes, ele podia encontrar-se no meu lugar, neste momento. É um homem de talento, e deploro que fosse mal orientado. Regressou, não é verdade?
- Não sei de que está a falar.
- Deixe-se disso, Emory. A maneira como encobriram o verdadeiro motivo do assassínio em Momingside Heights permite entrever a realidade dos factos. Aquele velho judeu sabia alguma coisa e o patológico Havlicek liquidou-o quando tentava descobrir de que se tratava. Depois, vocês ocultaram a verdade, porque ele se inteirou das vossas maquinações e decerto também encontrou a rapariga. Agora, necessitam-no, pois pode desmascará-los. Entraram em negociações e revelaram-lhe tudo. Remonta à Costa Brava, hem?
- São vocês que remontam à Costa Brava!
- Com certeza. Preparávamo-nos para obter a colaboração de um dos homens mais poderosos do mundo ocidental e queríamos certificar-nos de que as coisas corriam da melhor maneira. Vocês não tinham entranhas para tanto.
- Mas desconheciam o motivo. Ainda não o descobriram.
- Não vê que nunca nos preocupou? Ele estava a enlouquecer. Vocês, com exigências exorbitantes, contribuíram decisivamente para isso. Era um homem excepcional, que executava o trabalho de vinte. A síndroma georgiana, Emory. Estaline não passava de um
pateta balbuciante, quando o mataram. A única coisa que tínhamos de fazer com Matthias era alimentar-lhe as fantasias, satisfazer-lhe os caprichos, rancores e suspeitas... encorajar-lhe a loucura. Porque a loucura comprometia este país na sua própria alucinação.
- Já não existe compromisso algum. Apenas aniquilação. Extinção.
- Há esse risco, claro, mas não podemos deixar-nos dominar pelo receio de falhar.
- Agora, é você o alucinado!
- De modo algum. A extinção será vossa. O tribunal de opinião mundial a que recorrem com tanta frequência intervirá nesse sentido. E, parajá, a ú nica coisa que interessa é encontrarmos o homem que levou Anton Matthias à desintegração, e apoderar-nos dos documentos. Não se preocupem com Havlicek. Eram vocês que o consideravam "irrecuperável" e não nós.
- Discordo. A ordem foi vossa.
- Na altura, era acertado ordenar a sua execução. Agora não, porque nos ajudará. É um dos vossos agentes mais experientes e eficientes. Com essas suas qualidades e os nossos conhecimentos, descobriremos o homem que colocará este país de joelhos.
- Divulguei a alguém quem você é! - afirmou Bradford. - O que você é.
- Ter-me-iam seguido no aeroporto, em particular aí, o que não aconteceu. Não revelou a ninguém, porque só obteve a certeza há poucos minutos. Sou uma figura demasiado importante para que permita semelhantes especulações nos seus lábios. Cometeu muitos erros e não se pode dar ao luxo de mais. Esta cidade não simpatiza consigo, senhor subsecretário.
- Havelock mata-o, sem fazer perguntas.
- Acredito que o fizesse, se nos visse, mas o problema dele é precisamente esse. Nós conhecemos Havlicek e ele não nos conhece, não me conhece, o que o coloca em desvantagem. Basta-nos vigiá-lo.
- Nunca o encontrarão! Com estas palavras, Bradford precipitou-se para a esquerda, porém Pierce interpôs-se e impeliu-o contra a parede.
- Nada de imprudências, Emory. Está cansado e muito fraco. Antes que conseguisse chamar alguém, eu matava-o. E quanto a encontrar Haviicek, quantos lugares seguros existem para ele? As Estéreis Um a Dezassete? Quem se recusará a revelar a uma pessoa como eu, responsável por muitas "deserções" diplomáticas, as disponíveis? Trouxe para o país muitas presas, ou presumíveis presas, invejáveis. - Pierce avançou mais um passo. -
Onde está esse catastrófico documento? Suponho que se trata de uma fotocópia, cujo original permanece suspenso sobre a vossa cabeça: uma espada nuclear presa por um fio muito ténue.
- Onde nunca o encontrará.
- Acredito. Mas você pode encontrá-lo.
- Não existe meio algum.
- Infelizmente, também acredito nisso. Registou-se um estalido seco, no momento em que ele estendeu subitamente a mão direita e a pousou na de Bradford, exercendo pressão. Com a esquerda, cobriu-lhe a boca e obrigou-o a inclinar-se para o lado. Em escassos segundos, o subsecretário de Estado arregalou os olhos, emitiu alguns sons roucos e caiu pesadamente, enquanto a toupeira extraía a agulha que utilizara. Em seguida, levantou a caixa que continha a gravação de video e viu que havia por baixo um bilhete em papel timbrado. Por fim, pegou no telefone ligado à rede e marcou um número.
- Federal Bureau of Investigation, delegação de Nova Iorque - informou uma voz metálica.
- Segurança Interna, por favor. Agente Abrams.
- Estou... - proferiu outra, momentos depois.
- Espero que fizesse boa viagem.
- Foi um voo sossegado. Continue.
- Há um dirigente da Trans American News Division, chamado R. B. Denning, que enviou material de arquivo à pessoa errada do Departamento de Estado, um desequilibrado que dá pelo nome de BradfÓrd, cujos motivos são prejudiciais aos interesses do Governo dos Estados Unidos. As gravações foram destruídas por ele, num acesso de fúria, mas, para conservação da boa imagem da Trans American, Denning deve receber instruções para guardar silêncio.
- Contactá-lo-ei imediatamente, mesmo que ainda vá no segundo martini.
- Pode acrescentar que o Departamento de Estado sentiria relutância em voltar a negociar com a Trans American, por fornecer material sem investigar a idoneidade do pedido através das vias apropriadas. No entanto, se todos colaborarem para o bem da pátria...
- A situação será exposta corri todos os pormenores - interrompeu o paminyatchik de Nova Iorque. - Vou tratar disso sem demora.
Pierce pousou o auscultador e tomou mentalmente nota para mandar remover o gravador de video para outro gabinete. Não subsistiria o menor rasto do material utilizado, nem qualquer maneira de determinar a sua origem.
Não se registou nenhum uivo de agonia prolongado ou grito de protesto por ofensa * deuses ou mortais - apenas o som do estilhaçar da larga vidraça da janela, antecedendo * lançamento do corpo do sexto piso do Departamento de Estado. Aqueles que o tinham visto naquela manhã declararam que o facto não os surpreendia muito, pois apresentava um aspecto estranho, como de um alucinado. De qualquer modo, as pressões que o assolavam eram insustentáveis: nunca se recompusera por completo da tensão profunda e longa a que estivera sujeito no final da década de sessenta. Tratava-se de um homem que tivera a sua época e pagava finalmente o preço de um esforço superior à sua capacidade de resistência.
A Imprensa mencionou o caso nas edições vespertinas, e o obituário variava de um texto condescendente à frieza quase absoluta, consoante a tendência política do signatário. No entanto, apresentava como factor comum a exiguidade do espaço consagrado. Na verdade, imperava a indiferença. A incoerência não era compatível com o mais desejável dos pecados políticos: a definição de um tipo. Mudar de ideias equivalia a manifestar fraqueza. Queremos Cristo ou o vaqueiro de expressão voluntariosa. Quem, neste mundo, pode ser ambos?
O subsecretário de Estado, Emory Bradford, falcão de origem convertido em pomba ardente, morrera. Por suas próprias mãos, claro.
E não havia nada que se parecesse com um gravador de video junto ao televisor do seu gabinete. Fora entregue ao destinatário errado, e uma repartição do segundo piso confirmou a sua requisição... para ser colocado a um canto, aparentemente inactivo.
Capítulo trigésimo
- Não o podias ter evitado - asseverou Jerina, de pé, diante da secretária ocupada por Havelock. - Não estás autorizado a entrar no Departamento de Estado, condição que aceitaste. Se a toupeira te visse, matava-te discretamente e continuava no seu posto ou fugia para Moscovo. Interessa-te encontrá-la, e se fosses lá não adiantavas nada.
- Talvez não o evitasse, mas podia contribuir para que a sua morte, a sua vida, se revestisse de maior significado. Quis revelar-me a identidade da toupeira e eu recomendei-lhe que não o fizesse pelo telefone, indiferente à sua garantia de que não podíamos ser escutados.
- A experiência que possuis não te podia conduzir a outra atitude. E continuo convencida de que existem paminyatchiki no Departamento de Estado dispostos a morrer por esse homem.
- Um paranóico chamado McCarthy pensava assim e flagelou o país, há trinta anos. Flagelou-o com medo e caça às bruxas.
- Talvez fosse um deles. Quem poderia desempenhar melhor um papel desses?
- É possível. O paminyatchik é o patriota total. Exige um juramento de lealdade a cada momento, porque não experimenta a menor relutância em assinar uni.
- É o que deves procurar agora, Mikhail. Um patriota total, um homem com um passado irrepreensível. Será esse a toupeira.
- Se conseguisse averiguar do que BradfÓrd estava à espera, ontem, creio que desmascararia ambos. Disse que contava obter a informação lá para o fim da manhã. O Departamento de Segurança comunicou que chegou uma encomenda para ele ao meio-dia e vinte e cinco, mas ninguém sabe o que continha e, evidentemente, não foi encontrada mais tarde.
- Não tinha o nome do remetente?
- Se tinha, ninguém reparou. Foi entregue por um mensageiro.
- Consulta as firmas que fornecem esses serviços. Sem dúvida que alguém se recorda da cor da farda, o que reduzirá o campo das possibilidades.
- Na realidade, tratava-se de uma mensageira. Usava casaco de tweed com gola de pele, e o único pormenor de que a Segurança se lembra é que possuía personalidade invulgar para quem entrega encomendas.
- Personalidade?
- Atraente, bem falante, desinibida.
- Uma secretária, provavelmente.
- Sim, mas de quem? A quem teria Bradford recorrido? A que espécie de provas?
- Sabes as dimensões da encomenda?
- O guarda que a recebeu diz que era um sobrescrito grande, com um vulto na parte inferior, e encorpado. Devia conter folhas de papel e mais alguma coisa.
- Folhas de papel? Jornais? - aventou Jeima. - Teria contactado alguma Redacção?
- Talvez... Recortes de há quatro meses que descreviam um acontecimento ou acontecimentos dessa altura. Ou podia ter solicitado material à CIA, onde tinha amigos. Elementos dos ficheiros relacionados com as provas forJadas contra ti ou com a Costa Brava... alguma coisa que descurámos. O campo das hipóteses é muito vasto. Tudo o que lhe revelei diz respeito a alguém destes relatórios - afirmou Havelock, pousando a mão no maço de papéis em cima da secretária. A seguir, reclinou-se na cadeira e entrelaçou os dedos. - O nosso homem é atilado. Há-de cobrir-se com uma boa camada de tinta invisível.
- Então, explora outras pistas.
- É o que tenciono fazer. Um médico de Maryland. O mais notável de Talbot County.
- Outra coisa...
- Sim?
- Antes... leste os relatórios sobre a tua terapia na clínica. A seguir ao episódio da Costa Brava.
- Como soubeste?
- De vez em quando, fechavas os olhos. Não foi uma leitura fácil para ti.
- Pois não.
- Revelaram-te alguma coisa?
- Nada, além de descreverem a tua execução e as minhas reacções.
- Posso vê-los?
- Quem me dera encontrar um motivo para te impedir, mas não descubro nenhum.
- O facto de não quereres é motivo suficiente.
- Não, não é. Como suposta vítima, assiste-te o direito de saber. - Abriu a gaveta do lado direito e puxou de um volumoso sobrescrito de margens pretas. - Confesso que não me orgulho disso - acrescentou, entregando-o a Jenna. - E terei de o suportar para o resto da vida. Compreendo agora o seu significado.
- Ajudar-nos-emos um ao outro... para o resto das nossas vidas. Ela levou o sobrescrito para o sofá, sentou-se, abriu-o e extraiu as pastas de plástico que continha dispostas por ordem cronológica. Por fim, após breve hesitação, como se se preparasse para devassar algo de horrível e, não obstante, sagrado, iniciou a leitura.
Entretanto, Havelock não conseguia mover-se, nem concentrar. Conservava-se rigidamente na cadeira, com os documentos na sua frente, as linhas que continham convertidas em traços imprecisos. Enquanto Jerina lia, ele revivia aquela noite terrível. As imagens formavam-se gradualmente e explodiam-lhe na cabeça. Tal como a vira morrer, ela presenciava agora os pensamentos, despidos de artifícios, de uma mente submetida a terapia química e via-o também morrer.
As frases, os gritos, acudiam-lhe em torrente e ela ouvia-os igualmente. Decerto era o que acontecia, pois cerrava as pálpebras e continha o alento, desenvolvendo-se-lhe um tremor nas mãos, à medida que prosseguia a leitura.
Parte depressa! Morre depressa! Deixa-me depressa! Nunca foste minha. Não passaste de uma mentira, que eu amei, mas nunca fizeste parte de mim!... Como podes ser o que és e, ao mesmo tempo, tanto do que não és? Por que nos fizeste isto? Por que me fizeste isto? Eras a única coisa que eu possuía e agora transformaste-te no meu inferno pessoal.--Morre já, desaparece já!... Não! Deixa-me morrer contigo, por favor! Quero morrer...
mas não por ti!... Apenas por mim, contra mim! Nunca por ti. Entregaste-te, mas cedeste-me uma prostituta e eu aceitei-a... para acreditar numa prostituta. Uma prostituta tinhosa e corrupta!... Meu Deus, ela foi atingida! Acertaram-lhe de novo. Corre para ela. Corre para ela, por Deus, e aperta-a nos braços!... Não, a ela nunca! Terminou tudo! Terminou tudo, passou à História, e não voltarei a escutar mais mentiras. Meu Deus, ela arrasta-se na areia, como um animal ferido. Está viva! Corre para ela! Aperta-a nos
braços! Atenua a dorfinal... com uma bala, se for necessário! Não!... Morreu. Já não se move. Há unicamente sangue nas suas mãos e na cabeça. Morreu e parte de mim também ficou sem vida. No entanto, tem de ser História, como foram os primeiros dias... Estão a arrastá-la na areia, levam o animal morto. Quem? Quem são? Terei visto fotografias, ficheiros... não interessa. Saberão o que fizeram? E ela? Assassina, tinhosa, prostituta!... Outrora, meu único amor. Agora, é tudo História, tem de ser. Desapareceu uma assas-
sina... o amor extinguiu-se. Sobrevive um imbecil.
Jerina pousou a última pasta de plástico na mesinha à sua frente e, de olhos marejados, murmurou:
- Tanto amor e tanto ódio... Como não tive de passar pelo mesmo, talvez permanecesse numa posição mais cómoda, mais fácil, de vítima. No entanto, quando a perplexidade foi substituída pela cólera, senti o mesmo que tu. Odiei-te profundamente, enquanto me detestava por reagir assim. A animosidade dominou-me na fronteira e, mais tarde, no
aeródromo de Col des Moulinets, quando julguei que pretendias matar-me. Matar-me com a violência que havias demonstrado àquela mulher de Civitavecchia. Vi o teu rosto através da vidraça da janela do avião e considerei-te meu inimigo. O meu amor era o meu inimigo.
- Recordo-me - assentiu Michael. - Vi os teus olhos e apercebi-me do ódio. Tentei gritar, dizer-te a verdade, mas não me podias ouvir. Nem eu próprio distinguia o som das minhas palavras. Mas os teus olhos eram armas mais assustadoras do que quaisquer das que enfrentei até hoje. Não teria coragem para os tomar a suportar, embora pense que, de certo modo, nunca conseguirei livrar-me deles.
- Apenas na memória.
O telefone tocou e ele levantou o auscultador, sem desviar o olhar de Jerina.
- Sim?
- Havelock?
- O próprio, senhor presidente.
- Obteve a informação acerca de Emory? - perguntou Berquist, numa inflexão mista de amargura e exaustão.
- Nada que me possa auxiliar.
- Precisa de um elemento de ligação. Escolherei alguém aqui, na Casa Branca, um homem com autoridade no qual possa confiar. Terei de o elucidar da situação, mas não o podemos evitar. Bradford foi suprimido e você necessita de ajuda.
- Ainda não. E, sobretudo, ninguém na Casa Branca. Verificou-se urna pausa no extremo do fio do lado de Washington.
- Por causa do que Rostov lhe disse em Atenas?
- Possivelmente. As probabilidades são reduzidas, mas prefiro não as pôr à prova. Pelo menos, para já.
- Acreditou nele?
- Com o devido respeito, senhor presidente, foi a única pessoa que me falou verdade. Desde o princípio.
- Por que havia de lhe revelar uma verdade dessas?
- Não sei. Por outro lado, por que enviou aquele telegrama às Operações Consulares? Em ambos os casos, a informação era suficientemente surpreendente para nos obrigar a prestar atenção. É o primeiro passo ao mandar uma comunicação.
- Addison Brooks afirmou algo do género.
- Falava diplomaticamente e tinha razão. A Voennaya não representa Moscovo.
- Compreendo. Bradford... - Berquist fez nova pausa, como se descobrisse repentinamente que se referia a um homem morto - ...Bradford explicou-mo, ontem à noite. Pensa, portanto, que há um agente soviético infiltrado na Casa Branca?
- Não o posso assegurar, mas pode haver ou, mais provavelmente, pode ter havido. Duvido que Rostov o mencionasse sem confirmação da realidade, presente ou passada. Sondava, procurava reacções. Na minha profissão, a verdade provoca as respostas mais estranhas, como ele verificou quando abordou o episódio da Costa Brava. Neste caso, não quero correr o risco.
- Está bem, mas como pode funcionar? Acha-se impossibilitado de andar por aí a interrogar pessoas.
- Posso fazê-lo sem que me vejam. Utilizarei o telefone, se as coisas forem devidamente preparadas. Sei o que quero perguntar e ao que devo prestar atenção. Como base nessas conversas, seleccionarei quem preciso de procurar. Tenho experiência na matéria, senhor presidente.
- Acredito. Como é que se preparam as coisas... devidamente?
- Arranje-me um nome e chame-me assistente de conselheiro ou algo do género. Suponho que não é invulgar o Gabinete Oval proceder a averiguações discretas de determinados a,"untos.
- Pois não e possuo pessoal para o efeito, não necessariamente discreto. Chegam centenas de relatórios à Casa Branca, todas as semanas, e têm de ser verificados, através de consultas a peritos. Sem tudo isso, toma-se impossível tomar decisões responsáveis. Na época de Lincoln, ele dispunha de dois jovens, que se ocupavam de tudo, incluindo os rascunhos de cartas. Agora, há um estendal de colaboradores e auxiliares de colaboradores e auxiliares de secretários, e apesar disso vêem-se em apuros para dar conta do recado.
- Que acontece se alguém é procurado por um colaborador ou assistente e duvida da autoridade de quem o interpela?
- Sucede com frequência, sobretudo no Pentágono, mas existe uma solução simples. Indicam-lhe que ligue ao P. B. X. da Casa Branca e peça para falar com o colaborador ou assistente em causa. Costuma dar resultado.
- Pode mandar instalar mais uma linha, com o meu nome nos ficheiros da Casa Branca, tendo origem aqui?
- Um dos prazeres mais exóticos do cargo de presidente consiste na concretização rápida dos seus desejos em matéria de equipamento electrónico. É uma coisa que se consegue numa hora. Que nome quer usar?
- Deixo-o ao seu critério, senhor presidente, de contrário arriscava-me a duplicar o de alguém ao seu serviço.
- Muito bem. Voltarei a telefonar.
- Antes que desligue...
- Sim?
- Preciso de um apoio de contexto.
- Um quê?
- Na eventualidade de alguém telefonar para a Casa Branca e querer saber exactamente o que faço, deve haver quem o possa elucidar.
- Por outras palavras, precisa de alguém que o apoie no contexto do que presume fazer ou ser.
- Exacto.
- Depois direi alguma coisa.
- Posso apresentar uma sugestão?
- Acerca de quê?
- Nos próximos dias, alguém contactará outra pessoa, na Casa Branca, para saber onde se situa o meu gabinete. Quando tal suceder, não o deixem escapar, porque nos colocará um passo mais perto do fim.
- Se tal suceder - redarguiu Berquist, irado -, essa pessoa arrisca-se a ser estrangulada por um moço de lavoura do Minnesota, antes de você poder falar com ela.
- Estou certo de que graceja, senhor presidente.
- Voltarei a telefonar. Havelock pousou o auscultador e virou-se para Jenna.
- Podemos começar a reduzir o número dos nomes. Principiaremos a telefonar dentro de uma hora.
- Você chama-se Robert Cross, é assistente especial do presidente e todas as perguntas relativas à sua posição e funções devem ser dirigidas a Mrs. Howell, conselheira da Casa Branca sobre assuntos internos, a qual se acha elucidada sobre como há-de proceder.
- E quanto ao meu gabinete?
- Arranjei-lhe um.
- O quê?!
- Até dispõe de um assistente, na área de segurança. Precisa de uma chave para entrar no corredor principal e o seu colaborador recebeu instruções para deter todas as pessoas que
perguntarem por Mr. Cross. Pertence ao piquete do Serviço Secreto e, se alguém o procurar, telefonará para aí e levá-lo-á à sua presença. Presumo ser o que você pretendia?
- Sem dúvida. Os ocupantes dos outros gabinetes na área não sentirão curiosidade?
- É pouco provável. As duas comissões de serviço são temporárias e cada um concentra-se no seu projecto, sem muitas oportunidades para se preocupar com o que acontece em volta. - Berquist fez uma pausa. - Por onde tenciona começar? Emory mostrou-me a lista daquilo que você pretendia e garantiu-me que estaria tudo nas suas mãos, pela manhã. Já o recebeu?
- Decerto, começarei pela secretária de Bradford e seguir-se-á o médico de Maryland que assinou a certidão de óbito de MacKenzie.
- Passámo-lo a pente fino. Dadas as circunstâncias, pudemos recorrer à Central Intelligence Agency, que, como deve ter ouvido dizer, conta com funcionários agressivos. Que procura?
- Não estou bem certo. Talvez alguém que ja não se encontra entre nós. Um títere.
- Prefiro não aprofundar essa explicação, para não exceder o meu consumo diário de aspirinas.
- É possível que precise da sua intervenção directa numa área, senhor presidente. Constou-me que o pessoal do Pentágono não gosta de ser interrogado por alguém da Casa Branca.
- Julgo que se refere às Comissões de Contingência Nuclear. Vi-as mencionadas na sua lista.
- Exacto.
- São, de facto, indivíduos sensíveis. E com razão, a meu ver.
- Necessito falar com todos os componentes dessas três equipas, num total de quinze funcionários superiores. Pode explicar ao director que espera que colaborem com Mr. Cross? Não na área de elementos confidenciais, mas de... avaliação dos progressos.
- Mais uma expressão codificada.
- Significa exactamente o que as palavras indicam. Se convencesse Matthias a intervir, era óptimo.
- Muito bem. Exporei o assunto ao grande homem e creio que não recusará. Indicarei ao meu adido militar que transmita a mensagem: o secretário de Estado quer que essas comissões forneçam um relatório dos progressos verificados, destinado ao Gabinete Oval. Um simples memorando ordenando cooperação dentro dos limites da confidencialidade absoluta deve bastar. Mais alguma coisa?
- A ficha psiquiátrica de Matthias. Bradford prometera obtê-la.
- Amanhã tenho de deslocar-me a Camp David. Efectuarei um desvio pela ilha Poole e regressarei com ela.
- Ainda a propósito de Mrs. Howell: além de contactar o Serviço Secreto, se alguém perguntar por mim, que lhe foi indicado para dizer? A respeito das minhas funções, por exemplo.
- Apenas que executa uma missão especial para o presidente.
- Pode substituir essa explicação?
- Porquê?
- Uma missão de rotina. Investigação de agendas antigas para completar os ficheiros da Casa Branca sobre diversos tópicos.
- Temos pessoal encarregado disso. Trata-se de um trabalho basicamente político: de que modo uma posição é defendida ou a razão pela qual determinado senador se nos opôs e maneira de evitar que isso se repita.
- Misture-me com a multidão.
- Entendido. Boa sorte... embora precise de um ingrediente muito mais poderoso do que a simples sorte. Às vezes, penso que o mundo necessita de um milagre para se aguentar
mais uma semana... Vá dando notícias do que apurar. Dei ordem para que me interrompessem em qualquer reunião, sempre que Mr. Cross telefonasse.
A secretária de Bradford, Elizabeth Andrews, encontrava-se em casa, a contas com as consequências do impacto provocado pela morte do chefe. Vários repórteres haviam-lhe telefonado e ela descrevera os acontecimentos da manhã anterior com amargura, mas serenamente, até que um deles, orientado para a possível faceta sensacionalista da questão, tendo presente o passado marital do extinto, sugerira um envolvimento de natureza sexual, o que originara o corte abrupto do telefonema.
A chamada de Havelock verificou-se vinte minutos mais tarde, numa altura em que Elizabeth Andrews já não tinha paciência para repetir a história mais uma vez, e indicou-lhe que ligasse para a Casa Branca, quando se sentisse menos consternada. No entanto, as precauções tomadas por Michael funcionaram com eficiência. O telefone na biblioteca de Fairfax tocou, sete minutos depois de ele pousar o auscultador.
- Queira desculpar, Mr. Cross, mas estou muito acabrunhada e os repórteres não me largaram em todo o dia.
- Prometo ser o mais breve possível. Ela referiu os acontecimentos da manhã da tragédia, principiando pelo aspecto insólito de BradfÓrd, quando emergira do gabinete, pouco após a sua chegada.
- Tinha um ar terrível. Era óbvio que não se deitara e estava exausto, mas havia mais qualquer coisa. Uma espécie de energia maníaca, uma excitação estranha. Além disso, falava mais alto do que lhe era habitual.
- Isso podia dever-se ao cansaço - admitiu Havelock. - Acontece com frequência. Uma pessoa tenta encontrar mecanismo de compensação para a fraqueza que sente.
- Talvez, mas duvido. Pelo menos, no caso de ontem. Pode parecer cruel da minha parte dizer isto, no entanto penso que ele já decidira cometer o acto alucinado. Dava a impressão de que aguardava com ansiedade o momento em que aconteceria. Abandonou o gabinete pouco antes das dez, dizendo que não se demorava, e ninguém me tira da cabeça que saiu para olhar a janela de onde se atiraria.
- Não poderia haver outra explicação? A visita de alguém...
- Não creio. Perguntei-lhe se estaria noutro gabinete, para o caso de lhe telefonarem, e respondeu que ia tomar um pouco de ar fresco.
- Não se referiu ao motivo por que permaneceu lá toda a noite?
- Disse apenas que estivera a trabalhar num projecto que deixara atrasar. Tinha viajado muito, ultimamente...
- Ocupou-se dos preparativos dessas deslocações, Miss Andrews?
- Não. Em geral, era ele que tratava de tudo. Como talvez não ignore, às vezes... levava alguém. Divorciara-se por mais de uma vez. Mostrava-se sempre muito reservado, Mr. Cross. E infeliz.
- Por que diz isso? A mulher guardou silêncio por um momento e declarou:
- Emory Bradford era um homem brilhante, e não lhe prestavam atenção. Foi outrora muito influente nesta cidade, até que revelou a verdade (como a via), e os aplausos extinguiram-se imediatamente, todos se afastaram dele.
- Trabalhou com ele durante muito tempo?
- Muito. Assisti a tudo.
- Pode dar-me exemplos da sua queda em desgraça, chamemos-lhe assim?
- Decerto. Para já, ignoravam-no constantemente, quando as suas experiência e competência se podiam revelar úteis. Depois, fartava-se de redigir pontos de vista, para corrigir homens e mulheres poderosos (senadores, congressistas e secretários disto ou daquilo), que haviam cometido lapsos estúpidos em entrevistas e conferências de Imprensa,
mas, se algum lhe escreveu a agradecer, nunca me dei conta. Escutava os programas de rádio e televisão matinais, onde se proferiam os maiores erros (como aconteceu ontem), e
ditava aquilo a que chamava clarificações. Eram sempre correctas, amáveis mesmo, nunca ofensivas, e surgiam as devidas rectificações, mas sem uma palavra de agradecimento.
- Estava a ver televisão, ontem de manhã?
- Sim... antes de aquilo acontecer. Pelo menos, o aparelho encontrava-se diante da secretária. Manteve um hábito antigo até ao fim. Queria que as pessoas fossem melhores do que são. Queria que o Governo fosse melhor.
- Havia alguma anotação, na secretária, indicativa do que estivera a ver?
- Não, nada. Por sinal, nunca a vira tão arrumada, apesar de ser um homem muito metódico.
- Acredito.
- Perdão?...
- Não tem importância. Sei que a senhora fora almoçar, mas havia alguém nas proximidades do gabinete que pudesse ver se ele recebeu visitas?
- A polícia investigou isso, Mr. Cross. Há sempre pessoas em volta, pois temos períodos diversificados para almoçar, mas ninguém se apercebeu de nada de anormal. No entanto, a nossa secção estava pouco concorrida, porque se realizou uma reunião de secretárias à uma e meia.
- Quem a convocou?
- A chefe deste mês... mas depois negou tê-lo feito, pelo que aproveitámos para tomar café juntas.
- Não recebeu uma notificação nesse sentido?
- Não, a notícia foi transmitida verbalmente de umas para outras, como acontece com frequência.
- Muito obrigado, Miss Andrews. Prestou-me esclarecimentos úteis.
- Foi uma pena, Mr. Cross. Uma pena horrível.
- Com certeza. Adeus. - Havelock pousou o auscultador e dirigiu-se a Jetina, conservando o olhar fixo no telefone. - O nosso homem é mesmo bom. Tinta invisível.
- Não te revelou nada de importância?
- Pelo contrário. Bradford cumpriu as minhas instruções. Saiu para telefonar de uma cabina e pedir qualquer coisa que lhe interessava. O número de que necessitamos não se encontra registado na lista de chamadas do seu gabinete. Figura entre um ou dois milhões perdidos nas linhas gerais subterrâneas.
- Nada mais?
- Talvez outra coisa. - Ergueu os olhos para ela, enrugando a fronte. - Vê se descobres por aí um exemplar do jornal de ontem. Quero saber os nomes de todos os funcionários superiores do Departamento de Estado entrevistados nos programas matinais da televisão. Por estranho que pareça, a TV foi dos últimos interesses de Bradford neste mundo.
Jeima encontrou o jornal sem dificuldade, mas ninguém do Departamento de Estado estivera diante das câmaras, na manhã em causa.
Capítulo trigésimo primeiro
Se o Talbot County, Maryland, tinha no- Dr. Matthew Randolph um médico respeitado, também o considerava um homem extremamente desagradável. Nascido numa família endinheirada da Costa Oriental, criado segundo a tradição do privilégio, que incluía as melhores escolas e os melhores clubes, e possuidor de fundos ilimitados, crucificava tudo e todos naqueles rarefeitos círculos, no interesse da medicina.
Aos trinta anos, depois de se formar com distinção na Universidade John Hopkins e completar residências patológicas e cirúrgicas no Hospital Geral de Massachusetts e no de Nova Iorque, decidiu que não conseguiria funcionar com aproveitamento máximo do seu
talento dentro das quatro, no seu entender, sufocantes paredes de um estabelecimento hospitalar oficial. A solução, para ele, foi simples: extorquiu virtualmente dinheiro às legiões de privilegiados de Chesapeake, entrou com dois milhões do seu bolso e inaugurou um centro médico de cinquenta camas.
Passou a ser dirigido à sua maneira, o que equivalia a urna ditadura de modo algum benevolente. Não existiam direitos exclusivistas no que se refere à admissão, mas apenas um princípio rígido: os ricos eram sugados escandalosamente em troca dos serviços prestados, enquanto os pobres só recebiam consideração financeira substancial depois de se sujeitarem à comprovação ignominiosa da falta de recursos e escutarem uma prelecção subordinada ao tema do pecado da indolência. Não obstante, ricos e pobres continuavam a
suportar esses insultos, pois ao longo dos anos o Centro Médico Randolph estabelecera uma
reputação ímpar.
Havelock inteirou-se destes e doutros pormenores do género através dos ficheiros da CIA, quando investigou a morte de um agente de operações obscuras chamado Steven MacKenzie, o @<organizador" do episódio da Costa Brava. Em Cagnes-sur-Mer, Henri Salanne deixara transparecer dúvidas quanto à idoneidade do médico que assinara a certidão de óbito. Por seu turno, Michael fora mais longe: considerara relatórios laboratoriais alterados, conclusões da autópsia inconsistentes com o estado do cadáver e - depois de o presidente se referir a raios X - troca óbvia de radiografias. Contudo, à luz da informação sobre Randolph e do seu estabelecimento, tomava-se difícil aceitar semelhantes possibilidades. O intratável médico podia ser ditatorial, petulante, autoritário e desagradável, porém ninguém punha em dúvida a sua integridade profissional e o seu Centro Médico achava-se acima de qualquer suspeita. Ponderados todos os factores - todos os factores -, não existia a mínima razão para que tal não acontecesse.
E, para Havelock, era precisamente esse o ponto fraco no panorama. Apresentava-se tudo demasiado simétrico. As peças raramente, se é que alguma vez, se ajustavam - ainda que negativamente - com tanta precisão. Havia sempre grutas para explorar, susceptíveis de conduzir a correntes ocultas. Ora, não existia uma única.
A primeira indicação da possibilidade de fundamento das suas dúvidas consistiu no facto de Matthew Randolph não reagir ao primeiro telefonema. Em todos os outros casos, incluindo chamadas a oito oficiais superiores das Comissões de Contingência Nuclear do Pentágono, o telefone de Fairfax tocara poucos minutos após a sua ligação para solicitar
* contacto.
No entanto, o Dr. Matthew Randolph parecia pouco impressionado pelo facto de
* telefonema provir de alguém ligado aos círculos da Casa Branca. Por conseguinte, Michael efectuou a segunda tentativa e foi informado:
- O doutor tem hoje uma agenda sobrecarregada. Disse que ligaria quando dispusesse de uns momento livres.
- Explicou-lhe que pertenço à Casa Branca?
- Sim, senhor. - A recepcionista fez uma pausa, como se hesitasse em tomar a situação mais explícita. - Pediu-me para lhe lembrar que o Centro também está pintado de branco - acrescentou com suavidade. - Foi ele quem o disse e não eu.
- Então, comunique ao Gengiscão que, se não telefonar dentro de uma hora, mando o xerife de Talbot County escoltá-lo até à fronteira do estado de Maryland, onde haverá um
piquete da segurança da Casa Branca para o trazer à minha presença.
O telefonema de Matthew Randolph verificou-se transcorridos cinquenta e oito minutos.
- Quem diabo se julga, Cross?
- Um insignificante extremamente atarefado, doutor Randolph.
- Você ameaçou-me! Não gosto de ameaças, tanto se provêm da Casa Branca, de uma
casa azul ou de uma estufa! Suponho que compreende o que quero dizer.
- Transmitirei o seu ponto de vista ao presidente.
- Não se esqueça. Não é dos piores que por lá têm passado, mas recordo-me de melhores.
- Talvez até se dessem bem.
- Duvido. Os políticos sinceros aborrecem-me. A sinceridade e a política são ingredientes antagónicos. Que pretende, afinal? Se se trata de algum donativo, podem principiar por um programa de saúde mais eficiente, a todos os níveis.
- Penso que o presidente Berquist encararia a ideia, se o doutor se lhe opusesse abertamente .
- Não está mal respondido - admitiu Randolph, após breve pausa. - Diga lá, então, o que quer. Não posso passar o dia pendurado ao telefone.
- Desejava fazer-lhe várias perguntas acerca de um homem, já falecido, chamado Steven MacKenzie.
O médico voltou a fazer uma pausa, todavia o silêncio revestia-se de características diferentes. E, quando recomeçou a falar, o tom alterara-se. Até ali, a hostilidade fora sincera, ao passo que se revelava agora forçada.
- Quantas vezes vou ter de recapitular esse assunto? MacKenzie sucumbiu a uma hemorragia na aorta, um aneurisma, para ser mais correcto. Entreguei o relatório patológico e conferenciei com os vossos médicos fantasmas, que recolheram todos os elementos.
- Médicos fantasmas?
- Pelo menos, não pertenciam a qualquer instituição conhecida. Nem tentaram convencer-me disso, diga-sé de passagem.
Fez mais uma pausa, porém Michael não sentiu o momento. Escutava com o treino apurado que possuía, e os silêncios e a respiração audível achavam-se englobados na
imagem abstracta que tentava construir. O interlocutor prosseguiu com uma réstia de precipitação, como se a confiança inicial se dissipasse gradualmente:
- Se precisa de alguma informação sobre MacKenzie, procure-os. As nossas opiniões concordaram inteiramente. Não subsistiu a menor dúvida: hemorragia da aorta pura e simples, e não tenho tempo para recapitular os pormenores. Entendido?
Foi a vez de Havelock fazer uma pausa, até vislumbrar no espírito uma boca entreaberta e detectar a respiração agressiva de quem tinha algo a ocultar.
- No seu lugar, eu arranjava tempo. O assunto ainda não está arquivado, e, por razões de pressões externas específicas, não o podemos fazer... por muito que desejássemos. Queremos chegar a uma conclusão exactamente igual à sua, mas precisamos de colaborar uns com os outros. Entendido?
- O relatório patológico não oferecia dúvidas. Suponho que concordam?
- Queremos concordar. Tente compreender isso. Convença-se disso.
- Que significa a expressão "pressões externas@> ? - A confiança do médico reaparecia e a pergunta era formulada com sinceridade.
- Digamos conflituosos da segurança interna que gostaríamos de calar definitivamente. A Costa Brava nunca se encontrava longe. Mesmo numa situação artificial. A pausa final de Randolph foi breve.
- Passe por cá amanhã, ao meio-dia.
Havelock sentava-se no banco de trás do sedan blindado, acompanhado por três homens do Serviço Secreto. As conversas estavam reduzidas ao mínimo. Os dois agentes do assento
da frente e o que se instalara ao lado de Michael tinham obviamente recebido instruções para não tomar a iniciativa nesse capítulo.
O Centro Médico Randolph estava na verdade pintado de branco e constituía um complexo hospitalar de três edifícios ligados por passagens ladeadas de numerosas janelas. O sedan imobilizou-se à entrada daquele que ostentava uma larga placa metálica com a indicação "ADMISSõES E ADMINISTRAÇÃO" e Michael transpôs os seus degraus de acesso.
- O Dr. Randolph encontra-se no seu gabinete, Mr. Cross - informou uma enfermeira uniformizada, atrás de um balcão de mármore. - Siga pelo primeiro corredor à direita. É a última porta ao fundo. Entretanto, vou prevenir a recepcionista.
- Obrigado. Enquanto atravessava o corredor imaculado, Havelock ponderava as opções disponíveis.
O que revelaria ao médico dependeria do que ele já soubesse acerca de Steven MacKenzie. Se fosse pouco, as palavras de Michael revestir-se-iam de eufemismos que não afectassem a segurança, de contrário não haveria inconveniente em que procurasse corroboração de partes da verdade. No entanto, o que o preocupava fundamentalmente era a razão por detrás do comportamento extraordinário de Randolph. Com efeito, ele admitira praticamente que alterara ou ocultara algum aspecto da morte de MacKenzie, o que constituía uma acção perigosa, tanto se o considerava grave como inócuo. A deturpação da causa da morte ou a omissão de informações pertinentes eram actos puníveis pela Lei. Que fizera ele e porquê? A simples ideia de o supor envolvido numa conspiração resultava absurda, irracional. Portanto, que fizera?
Uma mulher de expressão grave levantou-se ao vê-lo entrar, todavia a voz atenuava o aspecto austero. Era a mesma que proferira o comentário de Randolph sobre a igualdade de cor entre o Centro Médico e a Casa Branca. Tudo indicava que erguera uma muralha para se proteger do temperamento tempestuoso do médico.
- Ele não está nos seus melhores dias, Mr. Cross - anunciou a meia-voz. - Aconselho-o a entrar imediatamente no assunto, pois desagrada-lhe perder tempo.
- A mim também - retorquiu Havelock, seguindo-a em direcção a uma porta à direita da antecâmara.
Uma vez aberta, revelou um homem alto, magro, com uma espécie de franja grisalha circular em tomo de uma larga calva, e olhos perscrutadores e impacientes atrás dos óculos de aros de aço.
- É Cross? - inquiriu em voz áspera.
- O próprio.
- Está atrasado oito minutos.
- Deve ter o relógio adiantado.
- Talvez. Entre. - Desviou os olhos para a recepcionista, que aguardava instruções. - Não quero interrupções.
- Perfeitamente, Dr. Randolph. Ela retirou-se, fechando a porta, e Randolph inclinou a cabeça na direcção da poltrona diante da ampla secretária repleta de papéis.
- Antes de se sentar, quero ter a certeza absoluta de que não se faz acompanhar de um gravador.
- Dou-lhe a minha palavra.
- Vale alguma coisa?
- E a sua?
- Foi você que me procurou e não o contrário.
- Não trouxe gravador, pela simples razão de que a nossa conversa podia resultar muito mais prejudicial para nós que para si.
- Talvez - resmungou, contornando a secretária para se sentar, enquanto Michael se instalava na poltrona. - Ou talvez não. Veremos.
- É um começo prometedor.
- Não arme em esperto, meu rapaz.
- Peço desculpa, se dei essa impressão. Temos um problema, e o doutor pode ajudar-nos a solucioná-lo.
- Até agora não o fiz?
- Digamos que surgiram novas dúvidas e, na verdade, talvez sejam válidas. De facto, podem resultar embaraçosas, não só politicamente, como em termos de moral, em determinadas áreas da comunidade dos serviços secretos. Há mesmo o perigo de alguém levar o caso
para os jornais.
É o que eu queria ouvir. - Randolph inclinou a cabeça e alterou a posição dos óculos no nariz, a fim de poder olhar por cima dos aros. - Pormenorize lá o vosso problema.
Michael compreendeu. O médico queria escutar uma admissão de culpa da Casa Branca antes de se envolver em qualquer acto censurável concebível. Nessa conformidade, era razoável depreender que, quanto mais grave fosse a admissão inicial de Havelock, mais vasta a latitude que ele se permitiria em relação à sua própria duplicidade. Ladrões em consenso e diálogo. Quem se iria lamentar junto de um juiz?
- Sabe a que género de actividades MacKerizie se dedicava?
- Conhecia-o e à família há mais de quarenta anos. Os pais dele eram amigos íntimos dos meus e os seus três filhos nasceram aqui, no Centro. Eu próprio os trouxe ao mundo... e talvez à esposa, Midge.
- Isso não responde à minha pergunta.
- Mas devia responder. Cuidei dos MacKenzies a maior parte das suas vidas, o que incluía o jovem Steve e o adulto... até ao ponto em que lhe permitiam viver como adulto. Para ser mais explícito, nos últimos anos, verifiquei mais ou menos o que os médicos fizeram em Walter Reed, sem dúvida muito competentes. Quase não se podia determinar pelas cicatrizes que quatro delas se deviam a ferimentos de balas.
- Nesse caso, estava ao corrente.
- Aconselhei-o a abandonar aquilo. Na verdade fartei-me de lho repetir, nos últimos cinco ou seis anos'. A tensão a que estava exposto era horrível, e ainda exercia efeitos mais prejudiciais em Midge. Ele percorria todos os recantos do mundo, sem que ela soubesse quando o tomaria a ver. Sim, Mr. Cross. Conhecia as actividades de Steve. Não especificamente, claro, mas compreendia que não se tratava de um trabalho de secretaria.
- É curioso - murmurou Havelock, com uma expressão pensativa. - Nunca pensei em MacKenzie proveniente de um ambiente relativamente normal, com mulher e filhos. Não era um sobrevivente. Por que o fazia?
- Talvez por isso mesmo fosse tão eficiente. Quem o observasse, via um chefe de secção competente, e nada mais. Mas, por baixo, havia uma febre latente, porque vocês, bastardos, o envenenaram.
O inesperado da acusação, a brusquidão e a circunstância de ser proferida com naturalidade, no meio da conversa, resultavam enervantes, e Havelock replicou:
- É uma afirmação de peso. Importa-se de pormenorizar? Que eu saiba, ninguém lhe apontava uma pistola à cabeça e ordenava que seguisse aquela vida.
- Não era necessário, mas vou explicar-me melhor. Penso que tudo se devia à vossa habilidade para narcotizar um homem, obrigando-o a trocar uma vida normal, produtiva e razoavelmente feliz por outra em que acordava banhado em suor a meio da noite, alarmado pelo som mais inofensivo.
- Descreve a situação com notável dramatismo.
- Foi o que vocês fizeram.
- Como?
- Insuflaram-lhe uma dieta de tensão, excitação, frenesi mesmo, com doses liberais de sangue a condizer.
- Agora, está a ser melodramático.
- Sabe quando tudo principiou? - prosseguiu Randolph, como se não tivesse ouvido a interrupção. - Há treze, catorze anos, MacKenzie era um dos melhores marinheiros da Costa Oriental, provavelmente até do Atlântico e Caraibas. Sabia adivinhar a mudança de vento e farejar as correntes. Conseguia contemplar as estrelas numa noite escura e conduzir uma embarcação ao seu destino, sem problemas. Era um dom especial, inato... Depois, surgiu a guerra do Vietriame, que o surpreendeu como oficial da Marinha. As altas patentes não tardaram a descortinar-lhe as possibilidades e, num abrir e fechar de olhos, viu-se a transportar homens e material ao longo da costa. Foi então que tudo principiou.
- Não estou a compreender.
- Nesse caso, é de compreensão lenta. Conduzia equipas de assassínio e sabotagem à retaguarda das linhas inimigas. Estavam sob o seu comando autênticas frotas de pequenas embarcações. Podia considerar-se uma unidade naval independente. Até que aconteceu.
- O quê?
- Um dia, não se limitou a transportar esses homens. Tornou-se um deles.
- Estou a ver.
- Duvido. Foi então que a febre o afectou pela primeira vez. Homens que não passavam de carga tomaram-se amigos com os quais traçava planos e combatia, para morrerem diante dos seus olhos. Manteve-se nessa actividade durante vinte e oito meses, até que foi ferido e transferido para os Estados Unidos. Midge esperava-o, casaram e ele regressou à faculdade de Direito para completar o curso. Só que não conseguiu suportar o ambiente, e ainda não tinha decorrido um ano, quando abandonou os estudos e principiou a avistar-se com gente de Washington. Uma parte dele tinha saudades daquele... confesso que não sei como vocês lhe chamam.
- Não interessa - disse Michael, a meia-voz. - Compreendo ao que se refere.
- Talvez compreenda. - O médico olhou-o com intensidade. - Talvez seja por isso que me procurou. A semelhança de muitos outros, Mac voltou da guerra como uma pessoa diferente. Não superficialmente, mas no íntimo. Dominava-o uma cólera que eu nunca lhe vira, uma necessidade de competir... furiosamente... pelo trunfo mais alto que se lhe deparasse. Não conseguia estar quieto vinte minutos, quanto mais assimilar as minúcias mais subtis da Lei. Tinha de se manter sempre em acção.
- Sim, é natural - interrompeu Havelock, involuntariamente.
- E vocês, bastardos, em Washington, sabiam com que engodos lhe deviam acenar: fazê-lo voltar à excitação, à tensão. Prometiam-lhe a melhor (ou pior) competição que conseguiam descobrir e colocavam os trunfos tão alto, que nenhum homem normal os consideraria. E, ao mesmo tempo, não paravam de lhe segredar que era o melhor de todos! Ele deliciava-se com isso e, ao mesmo tempo, aniquilava-se.
Uniu as mãos sobre os joelhos, assolado por um misto de cólera e compreensão. No entanto, não era o momento apropriado para o deixar transparecer, pois necessitava obter informações.
- Nesse caso, que lhe parece que nós, bastardos de Washington, devíamos ter feito? -
perguntou calmamente.
- Só filhos da mãe como vocês fariam uma pergunta tão estúpida!
- Importa-se de responder?
- Proporcionar-lhe cuidados médicos! Conflá-lo a um psiquiatra!
- Porque não tratou disso? Era o seu médico assistente.
- E tentei! Até procurei impedi-los, a vocês!
- Como assim?
- Algures, em fichas antigas, há cópias de cartas minhas à Central Intelligence Agency, nas quais diagnosticava um homem perturbado, traumatizado. Mac regressava a casa e, durante umas semanas, aguentava-se. De carro, ia para Langley e voltava, todos os dias,
como qualquer funcionário vulgar. Depois, surgia a depressão, quase não conversava com
ninguém e, se o fazia, não escutava o que lhe diziam. Aguardava com impaciência o
momento da nova injecção de estupefaciente.
- Que nós lhe dávamos.
- Exacto! Sabiam com precisão o tempo que tardaria. Entretanto, estimulavam-no, até que os procurava, para voltar ao... não estou ao corrente do termo exacto.
- Campo.
- Isso, o famigerado campo! Midge vinha ter comigo e queixava-se de que o marido não dormia, quase não lhe falava, e eu escrevia mais uma carta. Sabe a resposta que obtinha? Umas linhas de agradecimento pelo interesse manifestado, como se sugerisse que lhe mudassem a roupa da cama com maior frequência! Midge e os filhos viviam num inferno, e vocês, bastardos, achavam que os lençóis não precisavam de ser mudados mais vezes!
Os olhos de Michael desviaram-se para a parede atrás do interiocutor. Quantas cartas haveria sepultadas em quantos ficheiros encerrados? Quantos MacKenzies... Ogilvies... e Havelocks? Qual seria o recorde do atirador, nos termos actuais? Homens preparados, máquinas afinadas pela causa da futilidade. Talentos mortais mantidos no campo, porque estava escrito algures que podiam executar um trabalho independentemente das inclinações do espírito e do corpo... das suas e das dos outros. Quem lucrava com isso!
- Com a sua autorização, repetirei as suas palavras onde não serão ignoradas declarou, por fim.
- Está autorizado. Até aqui.
- Até aqui.
- Tracei um esquema geral para lhe expor - continuou Randolph, reclinando-se na cadeira. - Não é atraente, mas tenho as minhas razões. Agora, é a sua vez, para vermos a posição em que nos encontramos.
- Pois sim. - Havelock cruzou as pernas e escolheu as palavras com meticulosidade.
- Como decerto sabe, a maior parte do trabalho do agente secreto é monótono, pedestre, por assim dizer: pesquisa de factos, leitura de jornais, relatórios e publicações científicas e recolha de elementos de uma larga variedade de outras fontes, na sua maioria pessoas razoáveis, perfeitamente dispostas a revelar os seus conhecimentos por não verem motivo para os ocultar. Há, todavia, aqueles que ganham a vida negociando os factos que possuem: compram baixo e vendem alto, em obediência a um principio ancestral. Estes últimos costumam contactar um agente de outro tipo, treinado para distinguir o facto da ficção. -
Fez uma pausa, consciente de que a oportunidade da sua mensagem se revestia de importância vital. - Em circunstâncias normais, a combinação dessas fontes e o volume dos elementos que fornecem basta para os especialistas elaborarem um padrão rigoroso de factos e acontecimentos, como o ajustamento de peças de um puzzle. Por fim, há a derradeira categoria de informação potencial, sem dúvida a mais difícil de obter, porque tem de ser extorquida a fontes cientes de que possuem segredos que lhes podem custar a vida, se os superiores descobrirem que os revelaram. Este caso requer um tipo de agente totalmente diferente, um especialista, treinado para manipular e engendrar situações em que indivíduos são convencidos de que não lhes resta qualquer alternativa senão tomar um determinado rumo de acção e acabam por divulgar segredos (ou fazer algo que, de outro modo, nem considerariam). Steven MacKenzie pertencia a esta última categoria e era um dos melhores. Não havia necessidade de o convencer. No entanto, na sua missão final, alguém interceptou e alterou a situação que ele criara. E para que a inicial continuasse a ser a aceite, foi marcado para supressão.
- Que diabo é isso? Um prato de esparguete?
- Foi abatido.
- Foi quê? - inquiriu Randolph, inclinando-se para a frente.
- Assassinado. Podíamos tê-lo evitado, se tomássemos as precauções apropriadas. É um problema nosso, doutor, facto que é do conhecimento de um número crescente de pessoas. Mac, como lhe chama, não sucumbiu a uma trombose, no seu barco. Mataram-no. Estamos cientes disso, mas não queremos reconhecê-lo. Compreende agora porque não me fiz acompanhar dum gravador? O quadro que acabo de pintar é mais hediondo que o seu.
- Sem dúvida... se correspondesse à verdade. Continuaremos agarrados à hemorragia da aorta, porque se adapta às circunstâncias. Vocês, bastardos, não podiam andar mais longe da realidade.
- Que quer dizer?
- Steven MacKenzie suicidou-se.
Capítulo trigésimo segundo
- É impossível! - exclamou Havelock, levantando-se. - Está enganado!
- Parece-lhe? Também é médico, Mr. Cross?
- Não é necessário. Conheço os homens como MacKenzie. Sou um deles!
- Desconfiava disso mesmo, e essa afirmação corresponde à minha opinião acerca de muitos de vocês.
- Não interprete mal as minhas palavras - volveu apressadamente, abanando a cabeça com ênfase. - Não se trata de uma generalização superficial. Sou o primeiro a reconhecer que a ideia de pôr termo a tudo se pode converter numa obsessão, mas não assim, só, num barco. Não faz sentido.
- Lamento, mas a patologia, a evidência, revela o contrário. Oxalá isso não acontecesse.
- Havia provas contra a mulher que amo e tinham sido forjadas!
- Não vejo o que isso tem a ver com o preço do perfume no Alasca, mas não altera nada.
- Neste caso, altera. Há uma ligação!
- Começa a tomar-se incoerente, meu rapaz.
- Escute-me, por favor. Não sou um "rapaz", nem um idiota balbuciante. Prepararam o terreno para que obtivesse esses elementos supostamente concludentes.
- Nem sabe de que se trata.
- Não preciso! Procure compreender, doutor! Um agente de operações obscuras como MacKenzie...
- Um quê? Ele era branco!
- Valha-me Deus! Um organizador, um manipulador... um homem investido de autoridade para provocar acontecimentos em que podiam morrer pessoas, por não haver outra solução. Sucede com frequência os agentes desse tipo serem assolados por dúvidas, sensações de culpa, de... futilidade! Instala-se a depressão e pensam em pôr termo à vida, mas não assim! Existem outras maneiras mais apropriadas, porque um factor arreigado neles é a função, função, função! Mais ou menos, " desaparece, mas fá-lo realizando alguma coisa de útil"! E bem!
- Isso é psicologia de jardim-escola - comentou Randolph.
- Chame-lhe o que quiser, mas corresponde à verdade. É a primeira coisa, a mais importante, que os recrutadores procuram num candidato. O senhor afirmou-o, há pouco. MacKenzie necessitava competir pelos trunfos mais elevados que se lhe deparassem.
- E acabou por fazê-lo. Sacrificou a vida.
- Não, isso foi um desperdício! Oiça: não sou médico, muito menos um psiquiatra, e
provavelmente não conseguirei convencê-lo, mas sei que tenho razão. Portanto, não insistiremos nesse ponto. Explique-me apenas o que averiguou, o que fez.
- Mac recorreu a uma seringa hipodérinica e deixou o produto actuar.
- Nunca.
- Procedeu com habilidade. Utilizou um composto esteróide de digitoxina combinada com álcool suficiente para fazer flutuar um elefante. A percentagem de álcool no sangue encobria tudo o resto, mas a digitoxina estoirou-lhe o coração. É uma combinação dos diabos.
- Nesse caso, as radiografias eram válidas?
O médico não respondeu imediatamente. Ao invés, franziu os lábios e tomou a alterar a posição dos óculos no nariz.
- Não - articulou, finalmente.
- Trocou-as pelas de outra pessoa?
- sim.
- Porquê?
- Para levar a cabo o que Mac pretendia. Ter a certeza.
- Explique-se melhor, por favor.
- Estava ciente do que os últimos anos tinham representado para Midge e os filhos e recorria àquele meio para terminar com a angústia e encontrar a paz. A mulher já não aguentava mais e deixara de lhe suplicar que mudasse de vida. Chegou ao ponto de lhe dizer que ou ele abandonava a CIA ou ela saía de casa. - Fez uma breve pausa e sacudiu a cabeça. - Mac sabia que não podia optar por nenhuma das alternativas, pelo que decidiu sair, sim, mas do mundo.
- Omitiu alguma coisa.
- Tinha um seguro de vida avultado, compreensível, dada a actividade a que se dedicava. Como decerto sabe, esse tipo de apólices não inclui o suicídio. Ora, eu preferia ser
amaldiçoado por todos os deuses a contribuir para que Midge e os filhos ficassem privados daquilo a que tinham direito... É esta a história, Mr. Cross.
Michael fitou Randolph em silêncio, por um momento, e voltou a sentar-se, sem desviar os olhos.
- Mesmo que tivesse razão, podia expor a situação à CIA, que concordaria consigo, pois a última coisa que deseja é ver um assunto desses ventilado nos jornais. Em vez disso, guardou silêncio absoluto e ocasionou prejuízos incalculáveis.
- Que raio! Ontem, pelo telefone, disse que queriam concordar comigo, calar a boca a conflituosos da segurança interna.
- Menti. Como o senhor. Mas, pelo menos, eu sabia o que fazia. Se o doutor tivesse dito a verdade, ainda que apenas a uma pessoa, todos os minutos do último dia de vida de MacKenzie teriam sido examinados e descobrir-se-ia algum indício... Ninguém se preocupou sequer em inspeccionar o barco.
- Desconfio que não me ouviu! - bradou o médico, com uma expressão apoplética. Midge apresentara-lhe um ultimato! Ele encontrava-se entre a espada e a parede. Já não podia funcionar, para usar a sua expressão! Desorientou-se por completo!
- Não duvido que isso explicasse a absorção de álcool.
- E, depois de bêbado, tomou a decisão final. Está tudo escrito!
- Não espero que acredite, doutor, mas um homem como MacKenzie nunca tomaria uma decisão em estado de embriaguez.
- Tretas!
- Deixe-me fazer-lhe uma pergunta. Imagino que toma uma bebida, de vez em quando, e sabe quando atinge a sua capacidade máxima.
- Decerto.
- Alguma vez operaria, se reconhecesse que estava toldado?
- Evidentemente que não, mas são dois casos diferentes!
- Engana-se. Quando homens como ele e eu, e três dezenas de outros que poderia mencionar, nos encontramos no "campo", somos cirurgiões. Até chamam operações à maioria dos trabalhos que executamos. Inculcam-nos na mente desde o primeiro dia de treino que cada reflexo, cada observação, cada reacção, têm de ser rigorosos e tão rápidos quanto possível. Somos preparados com esmero e as nossas máquinas afinadas.
- Joga com as palavras... suas e minhas! Mac não se encontrava no campo, corno diz.
- Se aquilo que crê corresponde à verdade, encontrava, e os trunfos elevados que procurava eram ele próprio.
- Safa, que deturpa tudo o que digo!
- De modo algum, porque muito do que afirmou era extremamente intuitivo, e respeito-o. Não compreende? MacKenzie não se suicidaria assim, visto que a digitoxina podia não actuar! E ele nunca aceitaria uma coisa dessas. Se se tratasse da decisão final, não permitiria a mais remota possibilidade de desaire.
Dir-se-ia que Randolph fora atingido por um impacto físico. Conservava os olhos arregalados e fixos, os músculos do rosto tensos e a boca rígida.
- Santo Deus!... - proferiu num murmúrio. De súbito levantou-se, tirou os óculos e respirou fundo, para repetir: - Santo Deus!
- Procedeu como devia, em obediência à sua óptica da situação - admitiu Havelock, observando-o com curiosidade. - Penso que faria o mesmo, no seu lugar. Mas no momento e do modo errados. Não obstante, podemos recapitular tudo. Talvez descubramos alguma ponta solta.
- Cale-se!
- O quê? - estranhou, pois esperara tudo menos ouvir aquilo.
- Disse que se calasse.
- É uma caixinha de surpresas.
- Talvez tenha uma para si.
- Sobre MacKenzie? Em vez de responder, o médico dirigiu-se apressadamente a um ficheiro, ao mesmo tempo que puxava de um molho de chaves, uma das quais introduziu na fechadura de cima.
- São as minhas fichas particulares, muito particulares. Podiam verificar-se muitos divórcios e alterações de testamentos, se fossem divulgadas. A de Mac encontra-se aqui.
- Que procura a seu respeito?
- Não é sobre ele, mas acerca do patologista que compilou os dados e trabalhou comigo para convencer os tipos de Langley de que fora uma deficiência cardiovascular, pura e simples.
- Uma pergunta. O relatório da CIA diz que os exames se efectuaram todos aqui. Intervieram os seus laboratórios, equipamento... e pessoal. Como se explica que não removessem o corpo para Bethesda ou Walter Reed?
Randolph voltou-se, a mão pousada numa gaveta aberta e longos dedos entre as pastas de plástico.
- Devido a linguagem forte da minha parte, com a promessa de verborreia ainda mais acutilante de Midge MacKenzie, se tentassem algo do género.
- Falaram com ela?
- Tentaram. Concedeu-lhes cinco minutos, respondeu às perguntas que lhe fizeram e mandou-os para o diabo. Eles abarcaram a situação e bateram em retirada, com receio de eventual publicidade indesejável.
- Sim, isso era o que menos desejavam.
- Por outro lado - prosseguiu, virando-se de novo para o ficheiro -, temos uma reputação sólida, pois atendemos as pessoas mais importantes da região, que exerceriam o
seu peso para nos evitar aborrecimentos. Portanto, quem se atreveria a chamar-nos mentirosos?
- Contou com isso, hem?
- Sem dúvida... Cá está.
- Que descobriu o seu patologista que nos possa interessar?
- Não se trata do que descobriu, mas dele. Era um funcionário eventual.
- Um quê? - Michael sentiu urna impressão estranha no peito.
- Ouviu-me bem - volveu o médico, levando uma pasta para a secretária e sentando-se. - Substituía um dos meus colaboradores habituais, atacado de mono.
- MononucIeose?
- Vírus de herpes. É a coisa mais fácil de transmitir, para quem estiver empenhado nisso.
- Receio não estar a acompanhar o seu raciocínio.
- Vou tentar andar mais devagar - prometeu, abrindo a pasta e começando a folheá-la.
- Alguns dias após a morte de Mac, o nosso patologista sofreu um ataque de mono. Surgiu então, com a máxima oportunidade, um voluntário para o substituir, que dispunha de um mês livre, e passava uns dias com a irmã, em Easton. Claro que não o deixei escapar.
- E?...
- Quando trouxeram o corpo de Mac, ele efectuou o trabalho preliminar e depois procurou-me. Recordo-me perfeitamente da cena. A primeira coisa que me perguntou foi: "Conhecia bem esse MacKetizie?"
- Compreendo - disse Havelock, inclinando a cabeça. - Palavra puxa palavra e chegaram à conclusão de que o corpo não podia ser submetido a uma autópsia independente.
- Encontrara pequenos vestígios de digitoxina.
- E a marca de uma picada, cuja posição e ângulo indicavam dever ter sido produzida pela própria vítima.
- Acertou.
- Aposto que também se quis inteirar do género de trabalho a que MacKenzie se dedicava, estado mental, família e existência de um seguro de vida.
- Exactamente! Com a breca!
- Não se recrimine, doutor. Esses indivíduos estudam a lição como o aluno mais aplicado.
- Quais indivíduos?
- Se as minhas conjecturas não estão erradas, chamam-se paminyatchiki.
- Como?
- Não tem importância. E não perca tempo a procurar indícios aí, porque ele tomou todas as precauções. Não lhe disse urna única mentira, e é essa a sua melhor protecção. Estava simplesmente ao corrente de tudo com antecedência. Não o poderia acusar sem se comprometer e aniquilar o seu Centro.
- Não procuro indícios - declarou Randolph, continuando a virar as páginas.
- A irmã de Easton? Nunca existiu. Ele desapareceu como se a terra o tivesse tragado.
- Engana-se. Sei onde está.
- Importa-se de repetir? - rogou Havelock, inclinando-se para a frente.
- O seu nome veio à baila, há umas semanas. Eu conversava com o delegado de uma firma fornecedora de instrumentos cirúrgicos e ele declarou que precisava de verificar as nossas encomendas, porque um patologista desejava duplicar uma peça de equipamento que possuíamos. Reconheci o nome, claro, mas não o lugar, pois não correspondia àquele para onde eu pensava que se tinha transferido. - Randolph fez urna pausa e ergueu os olhos. - Tomei urna decisão estranha. - Meneou a cabeça. - Uma criancice, no fundo.
Em vez de indicar à minha recepcionista que inscrevesse a situação actual do homem no nosso registo geral, como era hábito em circunstâncias análogas, anotei-o na ficha de Mac. Algures - resmungou, recomeçando a voltar as páginas.
Perplexo, Michael sentava-se rigidamente na extremidade da poltrona. Ao longo dos anos, no seu mundo sombrio, aprendera que os factos mais inesperados e incríveis em geral resultavam das razões mais críveis.
- Esse patologista conservou o mesmo nome por calcular que o doutor não o procuraria. Creio que, mais cedo ou mais tarde, lhe cairia em cima, para o submeter a algum género de extorsão.
- Finalmente! - O médico fitou Havelock, com uma ponta de ansiedade. - E ainda pode cair.
- Eu também, mas só o farei se destruir a informação dessa página, o que julgo pouco provável, porque não lho permitiria. Por outro lado, ele nunca se aproximará de si, uma vez que me oporei. Cometeu o único erro intolerável, nesta estranha vida. É fatal. Venha o nome, por favor.
- Colin Shippers. Patologista-chefe, Fundação Regency. É um centro de pesquisas particular.
- Vai fazer o seguinte, doutor - disse Michael. - E não vejo como poderá esquivar-se.
Era vital actuar, não só depois de afastado, mas quase cegamente, o que constituía a coisa mais difícil para Havelock. A vigilância altamente concentrada teria de ficar a cargo de outros, o que lhe custava aceitar, porque a sua equipa actuava virtualmente às escuras, sem uma explicação clara dos seus movimentos. Havia sempre riscos inerentes a semelhantes métodos, responsabilidade sem conhecimento ou autoridade que conduzia ao ressentimento, o qual era o parente mais próximo do desleixo. Ora, isso não se podia tolerar. E, de resto, infelizmente, não existia a menor possibilidade de proceder a diligências respeitantes a hábitos de rotina, amigos, associados médicos, locais frequentados, etc.; todas as minúcias susceptíveis de os ajudar achavam-se-lhes negadas.
Se a morte de MacKenzie ligava o Dr. Colin Shippers, à cobertura inicial da Costa Brava
- cobertura essa que não fazia parte da estratégia da Casa Branca -, encontrava-se no Centro Médico por indicação da toupeira do Departamento de Estado, o paminyatchik que assumira o código Ambiguidade. E um paminyatchik nessa posição nunca confiaria uma missão tão sensível como o assassínio de um agente de operações obscuras da CIA a alguém que não pertencesse à mesma " família". Por conseguinte, eles tinham de actuar partindo da suposição de que o próprio Shippers era um viajante, e o mínimo sinal de alarme faria com que desaparecesse da circulação, cortando o elo com Ambiguidade e, ao mesmo tempo, toda a possibilidade de desmascarar a touperia através dessa ligação.
Não obstante, como Rostov salientara em Atenas, a ironia da penetração soviética de longo alcance encontrava-se nos resultados práticos, pois sucedia com frequência a "experiência" americana dos agentes radicados nos Estados Unidos servir para prejudicar o compromisso soviético. Durante as suas raras, porém necessárias viagens à Praça Dzerzhinsky, em Moscovo, o paminyatchik apercebia-se das comparações inevitáveis entre os dois países. Em última análise, os viajantes revelavam-se muito menos produtivos do que o KGB considerava que tinha o direito de esperar à luz do dinheiro e esforço despendidos. No entanto, ameaçar algum deles equivaleria a desafiar a denúncia de todo o programa.
A futilidade não representava sempre um exclusivo daqueles que tinham Deus do seu lado, na opinião de Havelock.
Em todo o caso, havia as excepções, e a denúncia nunca proviria deles. Uma toupeira chamada Ambiguidade, que frequentava os corredores sacrossantos do Departamento de Estado, e um brilhante e persuasivo patologista chamado Colin Shippers, que podia saltitar
de laboratório para laboratório, justificavam as despesas e o pessoal que Moscovo atribuía à operação paminyatchiki. Ambiguidade era, sem dúvida, superior hierárquico de Shippers, o controlador local, e decerto um satélite respeitado no firmamento do KGB... mas não mantinha os canais normais deste último informados da actual crise. A Costa Brava e toda a alucinação que representava, não só eram refutadas pela Praça Dzerzhinsky, como o pouco que sabia a esse respeito alarmava homens como Pyotr Rostov.
E compreendia-se, porque se haviam verificado acontecimentos que não ocorreriam sem a cumplicidade de Moscovo. Um agente da VKR fora surpreendido e ferido em Paris pela figura central, da Costa Brava, e não era necessário possuir uma imaginação muito fértil para saber que as ordens que um a gente cumpria se encontravam ofuscadas, para não se lhes detectar a origem no seio da complexa maquinaria dos serviç os secretos russos. Era, pois, natural que Rostov estivesse alarmado, porquanto o espectro da fanática VKR bastava para assustar o marxista mais dedicado, tal como impressionava Havelock. O desconhecido Ambiguidade enviava obviamente relatórios de rotina aos seus superiores do KGB, mas
reservava a informação mais explosiva para os seus chefes da Voennaya.
Rostov pressentia a verdade, mas não conseguia assimilar os pormenores e, muito menos, denunciá-la. E isso constituía a razão da sua oferta a um antigo homólogo das Operações Consulares.
Se Rostov fizesse a mínima ideia da validade dos seus instintos, arriscar-se-ia a enfrentar um pelotão de fuzilamento para estabelecer contacto, em conformidade com o parecer de Michael. Todavia, Rostov estava equivocado, o russo era seu inimigo. Essencialmente, nenhum podia confiar no outro, porque nem Washington nem Moscovo permitiriam semelhante confiança, e o próprio horror representado por Parsifal não chegava para alterar a situação.
Futilidade num mundo enlouquecido - tão louco como o seu antigo salvador, Anthony Matthias.
- Quanto tempo pensas que demorará? - perguntou Jenna, sentada diante de Havelock, a um canto da cozinha, onde tomavam o café matinal
- É difícil de dizer. Depende da convicção de Randolph e da rapidez com que Shippers suspeitar de que uma companhia de seguros pode ser uma coisa muito diferente, susceptível de o alarmar. Hoje, amanhã, depois... não sei.
- Pensava que estavas interessado em que Randolph o obrigasse a reagir imediatamente. Podes dar-te ao luxo de aguardar que isso aconteça?
- Não me posso é dar ao luxo de o perder, pois trata-se do único elo que possuímos.
O seu nome não figurou no relatório do laboratório, no que ele pôde insistir facilmente, em virtude da decisão de Randolph de encobrir aquilo que supunha ser um suicídio. Shippers; sabe que a única maneira de ser notada a sua presença consistiria na incriminação do médico, o que este nunca faria. Para além de considerações de ordem prática, o seu ego não lho permitiria.
- Mas a rapidez é a palavra de ordem - objectou. - Confesso que não entendo a tua estratégia.
- Aqui para nós, nem eu a entendo muito bem - admitiu Michael, olhando-a com intensidade. - Sempre me convenci de que, para que as coisas funcionem nesta nossa chamada profissão, convém pensar como o inimigo e fazer aquilo que ele não deve esperar. Ora, neste caso, tenho de me colocar na pele de alguém com quem não me posso relacionar, um homem que tem de ser virtualmente duas pessoas. - Levou a chávena aos lábios, com uma expressão meditativa. - Repara: uma infância e uma adolescência americanas, amigos no liceu e na universidade, companheiras da sua idade. É a época em que se divulgam os segredos. Portanto, explica-me lá como consegue um indivíduo desses, um paminyatchik, conservar tão no fundo da sua alma o único segredo que nunca pode divulgar?
- Não sei, mas acabas de descrever alguém que conheço muito bem.
- Quem?
- Tu , querido.
- É uma situação impossível - murmurou, pousando a chávena, ansioso por abandonar a mesa.
- Achas? - Jerma estendeu a mão e acariciou a dele. - A quantos amigos do liceu e da universidade, a quantas raparigas gostavas de falar de Mikhail Havlicek e Lidice? Quantos estavam ao corrente das agonias de Praga e de uma criança que se escondia nos bosques e transportava mensagens secretas e explosivos nas algibeiras? Diz lá: quantos?
- Não interessava. Era História.
- Eu nunca teria sabido, nós nunca teríamos sabido, se os nossos chefes não insistissem numa investigação minuciosa aos antecedentes. Os teus serviços secretos nem sempre enviaram os melhores agentes ao nosso sector da Europa, e pagámos caro os erros. Mas quando recebemos o processo de Havlicek e família, vinha acompanhado do nome do homem que ocupava o cargo mais elevado do Departamento de Estado. Era óbvio que os
teus superiores imediatos, os nossos "contactos" normais, não estavam ao corrente dos teus primeiros tempos. Por razões inexplicáveis, achavam-se encobertos, eras duas pessoas. Porquê?
- Matthias e eu concordámos em que fosse assim.
- Encontrava-me contigo, quando pessoas mais velhas se referiam a esses tempos, e nunca disseste nada, não deixaste transparecer que estavas lá. Porque, se o fizesses, isso conduziria ao teu segredo, aos anos de que não desejavas falar.
- É lógico.
- Como esse Shippers, estavas lá e mantinhas-te em segundo plano, para não dar nas vistas. Estavas lá, mas a tua assinatura não aparecia em parte alguma.
- É uma situação paralela forçada.
- Diferente, talvez, mas não forçada. Não podes sequer proceder às diligências habituais acerca de Shippers, porque os informadores podiam preveni-lo e obrigá-lo a desaparecer, protegendo o 'seu segredo. Aguardas que considere o telefonema de Randolph e acalentas a esperança de que tente averiguar as intenções da companhia de seguros. E quando descobrir que esta não tomou qualquer iniciativa, ficará alarmado e tentará contactar Ambiguidade.
- Sim, penso que reagirá assim. É a única coisa segura que posso fazer, em face das circunstâncias. Qualquer outra diligência levá-lo-ia a desaparecer da circulação.
- E, entretanto, cada momento que passa faz com que aumentem as possibilidades de descobrir que é alvo de vigilância: os homens que te preocupam, porque não os conheces e não lhes podes fornecer o verdadeiro material acerca do suspeito.
- É uma situação que de facto não me agrada, mas deparou-se-me noutras ocasiões.
- Dificilmente nas actuais condições e nunca com consequências tão terríveis para o mínimo erro. A rapidez é tudo, Mikhail.
- Tentas dizer-me qualquer coisa, mas não descortino o que é.
- Estás receoso de alarmar Shippers, obrigando-o a desaparecer.
- "Aterrorizado" é o termo mais apropriado.
- Então, não, não o persigas. Concentra-te no homem que guardou silêncio, que se encontrava no Centro Médico, quando MacKenzie morreu, mas cuja assinatura não apareceu. Tal como tu em Praga, ele é duas pessoas aqui. Persegue aquele que vês, porque não tens motivo algum para pensar que é dois homens ou tem um segredo a encobrir.
- Investigar um patologista de laboratório - murmurou Havelock, fixando os olhos na chávena. - Partindo do princípio de que alguém tinha de estar ao lado de Randolph... Corroboração. A companhia de seguros insiste na confirmação de um médico.
- No meu país, são necessárias pelo menos cinco assinaturas em qualquer documento.
- Ele recusa, claro.
- Como, se estava lá?
- Dirá a Randolph que não o pode apoiar, não pode confirmar abertamente o diagnóstico de aneurisma conducente a hemorragia da aorta.
- Nessa eventualidade, o médico deve mostrar-se firme. Se é essa a posição profissional de Shippers, por que não a assumiu antes?
- Bem pensado. - Esboçou um sorriso de aprovação. - Fazer chantagem com um extorsionista recorrendo ao seu próprio material.
- Por que não? Randolph dispõe de meios para isso: idade, reputação, fortuna. Quem é Shippers para se lhe opor?
- E, no fundo, não faz a mínima diferença no resto. Limitamo-nos a obrigá-lo a actuar depressa. Para sua própria protecção (não de viajante, mas de médico), terá de determinar até que ponto a companhia de seguros insiste em esclarecer os pormenores... se se trata de uma medida de rotina ou algo de mais profundo. Depois, descobre que não existe qualquer intenção nesse sentido, e tem de voltar a mover-se.
- Qual é o programa para hoje? - perguntou Jenna.
- A vigilância inicial segui-lo-á quando abandonar o apartamento, de manhã. Depois, será a nossa vez, nas instalações da Fundação Regency.
- Como? Desculpa, mas não prestei atenção, quando combinava as coisas pelo telefone, ontem à noite.
- Dei por isso, pois observava-te. Vais ter alguma coisa para mim?
- Talvez mais tarde. Como conseguiram os teus homens introduzir-se no edifício?
- A Fundação Regency é uma firma privada, com vários contratos confidenciais do Governo. Sem dúvida a razão pela qual Shippers foi para lá, pois muitos desses contratos dizem respeito à defesa. É vulgar tecnocratas governamentais visitarem a Regency. Portanto, a partir desta manhã, esse número passa a ter mais duas unidades.
- Esperemos que ninguém faça perguntas aos teus homens.
- De qualquer modo, não responderiam, em obediência a um princípio estabelecido. De resto, dispõem dos indispensáveis rectângulos de identificação pendurados no peito. -
Havelock consultou o relógio e levantou-se. - Randolph vai telefonar a Shippers entre as dez e as dez e meia. Vamos transmitir-lhe a nova ordem.
- Se Shippers reagir, não utilizará o telefone do seu gabinete @ observou Jerina, seguindo-o à biblioteca.
- Há três unidades móveis na rua, separadas por um quarteirão, todas em contacto pela rádio e com máquinas fotográficas de pulso activadas por movimentos do braço. Se possuem a experiência que suponho, não o perderão de vista.
- Preocupam-te, hern?
- Um pouco. - Michael abriu a porta da biblioteca e desviou-se para que ela o precedesse. - Ainda me preocupariam mais se não fosse um tipo chamado Charley, que quis meter-me uma bala na cabeça na ilha Poole.
- O das Operações Consulares?
- Esse mesmo. Partiu ontem à noite, a meu pedido, o que não o encantou. Mas é bom e sabe que Shippers está envolvido na crise de Matthias, o que basta para o tomar melhor
que nunca.
Jetina dirigiu-se para a sua secretária, o sofá, diante do qual, na mesinha, havia vários maços de papéis e algumas páginas manuscritas. Sentou-se, pegou num relatório dactilografado e, enquanto o lia, perguntou:
- Contactaste a companhia de seguros?
- É um risco a que não me quero expor - replicou Havelock, instalando-se à secretária. - Que tens aí? É a mesma coisa que examinavas, ontem à noite?
- O relatório da Central Intelligence Agency. Contém a lista de desertores soviéticos potenciais dos últimos dez anos, nenhum dos quais se materializou.
- Procura um cientista nuclear ou um estratego de armamento que desaparecesse.
- Houve outros que também desapareceram - informou ela, pegando num lápis. Ele olhou-a em silêncio, por uns momentos, e acabou por se concentrar na folha em que se achavam inscritos vários números de telefone. Por fim, levantou o auscultador e accionou o marcador.
- Posso garantir-lhe que o fulano é um grande filho da mãe com sangue de nabo declarou o dr. Matthew Randolph. - Quando lhe expus a situação, fechou-se em copas, fez-me duas ou três perguntas, como um cangalheiro consultando um advogado da família, e prometeu telefonar mais tarde.
- Como lhe apresentou o assunto e de que natureza eram as perguntas? - inquiriu Michael, pousando a folha de papel que ostentava o timbre do Pentágono, na qual se encontravam enumeradas as identidades dos oficiais superiores das Comissões de Contingência Nuclear. - Procure ser o mais exacto possível.
- Serei completamente exacto - redarguiu o médico, com uma ponta de azedume.
- Refiro-me às palavras, às frases que empregou.
- Não é difícil, pois foram poucas e breves. Como você previu, disse que não me assistia o direito de o envolver, como ficara combinado. Limitara-se a comunicar-me o que descobrira, e as alterações introduzidas eram de minha exclusiva responsabilidade. Repliquei que, embora não fosse advogado, podia afirmar que qualquer tribunal o consideraria cúmplice, e estava disposto a ir tão longe quanto possível para que Midge MacKenzie e os filhos não fossem privados do direito ao seguro.
- Até aí, muito bem. Que respondeu?
- Nada, pelo que continuei a desfiar o rosário. Garanti-lhe que era parvo se supunha que passara despercebido no Centro Médico, há quatro meses.
- óptimo.
- Insistiu em saber quem estava ao corrente da sua presença. Neste ponto do diálogo, Havelock experimentou uma sensação desconfortável no peito, e o espectro de execuções desnecessárias ergueu-se-lhe diante dos olhos.
- Que lhe disse? Mencionou alguém?
- Respondi que provavelmente todo. o pessoal o vira.
- Continue, por favor - murmurou, profundamente aliviado.
- Fiz um pouco de marcha-atrás, explicando-lhe que se preocupava sem motivo.
O funcionário da companhia de seguros que me procurara dissera tratar-se de mera formalidade e necessitava de uma segunda assinatura no relatório antes de enviar o cheque. Até sugeri que telefonasse a Ben Jackson, da Talbot, um meu velho amigo, se tinha alguma dúvida...
- Mencionou o nome?
- Claro. Ben é um velho amigo e foi ele que tratou da apólice de MacKenzie. Calculei que, se alguém lhe telefonasse, contactaria comigo a perguntar o que se passava.
- E que responderia o doutor?
- Que houvera um mal-entendido. Era eu que pretendia a segunda assinatura para os registos do Centro.
- Que disse Shippers?
- Poucas palavras, proferidas como se brotassem de um computador. Quis saber se eu informara Ben ou o enviado da companhia de seguros da sua identidade.
- E?...
- Respondi que não, pois afigurava-se-me preferível conduzir tudo da forma mais discreta. Ele que viesse cá, para assinar o malfadado relatório, sem dar nas vistas.
- Como encarou a sugestão?
- Com frieza. Persistiu em saber se lhe revelara tudo. Disse que sim, pois o assunto cingia-se àquilo. Foi então que prometeu telefonar mais tarde.
Havelock respirou fundo e baixou os olhos para a folha de papel proveniente do Pentágono, concentrando-se num nome em particular.
- Posso afirmar-lhe o seguinte, doutor: ou executou um trabalho admirável ou mando cortar-lhe a enfatuada cabeça.
- Que diabo está para aí a dizer?
- Se procedesse como lhe indiquei, mencionando apenas a companhia de seguros, sem
qualquer outro nome, Shippers concluiria que a morte de MacKenzie era reexaminada por uma terceira pessoa. Agora, se telefonar a esse Jackson, ficará a saber que mentiu.
- E depois? O resultado não é o mesmo?
- Para si, não, e não podemos arriscar-nos a fazer o seu amigo subir ao palco. No seu interesse, doutor, oxalá ele tenha ido à pesca. Garanto-lhe que, se me arranjou mais uma complicação, a sua cabeça rolará na calçada.
- Já que põe a questão nesse pé, permita-me que lhe diga uma ou duas coisas. Estive a matutar no assunto e cheguei à conclusão de que podiam rolar duas cabeças. Um funcionário da Casa Branca, por outras palavras, você, confessa que o ramo executivo do nosso Governo tenta encobrir o assassínio brutal de um herói, por assim dizer, da CIA, e eu
não passo de um médico de aldeia que procura defender os interesses da viúva e dos filhos órfãos, porque sofreram muito mais do que lhes seria lícito exigir. Quer cruzar espadas comigo, seu bastardo?
- Se souber mais alguma coisa, previna-me, por favor.
O agente do Departamento Especial, Charley Loring, das Operações Consulares, ultimamente colocado na ilha Poole, esfregou os olhos e levou a garrafa-termo de café aos lábios, instalado no banco da frente do sedan cinzento, cujo motorista era, para todos os
efeitos,, um desconhecido, isto é, ele vira-o pela primeira vez às dez horas daquela noite, quando se encontrara com todos os componentes da unidade seleccionados por Havelock, baseado nos elementos fornecidos pelos ficheiros do Departamento Federal de Investigação a pedido do Departamento de Justiça. A unidade achava-se agora sob a sua responsabilidade, a missão de vigilância permanente entendida e as razoes que a justificavam encobertas, o que não constituía uma das medidas mais aconselháveis, quando se tratava de um talento superior.
A única indicação que Michael fornecera a Charley Loring consistira em que Shippers estava relacionado com a ilha Poole, e fora considerada suficiente, pelo que decidira envidar todos os esforços ao seu alcance para o ajudar. Havia ocasiões em que as simpatias e
antipatias careciam de significado especial, e a catástrofe - a tragédia - da ilha Poole era uma delas.
A unidade reuniu-se às 22.00 na Estéril Onze, em Quântico, onde se manteve até, às quatro da madrugada, para analisar as diversas variantes da vigilância total... sem conhecer o mínimo pormenor acerca do vigiado. Dispunha de uma fotografia, mas, à parte uma descrição inadequada fornecida por Randolph, nada mais possuía. De qualquer modo, datava de alguns anos, e existiam fortes possibilidades de o aspecto geral do homem se
haver entretanto alterado.
As diligências iniciais revelaram que Shippers usava óculos escuros e aumentara visivelmente de peso, únicas alterações a ter em conta. Os homens infiltrados na Fundação Regeney haviam comunicado com a base por duas vezes. Um encontrava-se ao fundo do corredor onde se situava o laboratório do patologista e o outro nas proximidades do seu gabinete, no piso inferior. Loring reflectiu que a expectativa principiara. Mas de quê?
As horas que se seguiriam decerto o indicariam. Charley só sabia que fizera todo o
possível para dispor os elementos da unidade da forma mais funcional: separados e em
contacto constante, para assegurar uma dissimulação mais eficaz. Os carros achavam-se em cruzamentos de sentido único e o dele ao fundo da rua, do lado contrário do centro de pesquisas, com uma visão perfeita da entrada e da garagem contígua destinada ao pessoal.
Soou um zumbido abafado na consola do tablier, proveniente de um dos homens no interior, e Loring pegou no microfone e premiu um botão.
- V-Cinco. Que há?
- V-Três. Ele acaba de sair do laboratório e parece apressado.
- Algum indício do motivo?
- Ouvi o telefone tocar, há três minutos. Como estava só, podia falar à vontade, mas
não passa de especulação minha, pois não consegui distinguir uma única palavra.
- Deixe-se estar aí, sem dar nas vistas. - Preparava-se para pousar o microfone, quando soou novo zumbido. - V-Cinco.
- V-Dois. Entrou no gabinete. A avaliar pela maneira como caminhava, está agitado.
- Isso condiz com a informação lá em cima. Talvez tenhamos de actuar mais depressa do que...
- Um momento! Mantenha-se na linha-indicou Vigilância, antes de desaparecer do circuito. Ocultara o transmissor no interior do casaco, sem interromper a ligação, e a voz
reapareceu transcorridos alguns segundos. - Desculpe, mas ele tomou a sair e tive de me afastar. Trocou a bata pelo casaco e o impermeável, que é castanho, com chapéu de feltro. Acho que vai sair.
- Muito bem. Terminado. - Loring conservou o microfone na mão e voltou-se para o motorista. - Prepara-te, que a encomenda vem aí. Se eu tiver de ir a pé, ocupa-te da rádio. Permanecerei em contacto.
Introduziu a mão na algibeira do casado e puxou do pequeno transmissor, verificando a carga das pilhas, em obediência a um hábito. Em seguida, afastou um pouco a manga esquerda e expôs urna máquina fotográfica minúscula presa à parte inferior do pulso. Fez girar um pouco a mão e soou um estalido, indicativo de que se encontrava a postos.
- Quem será esse Shippers? - articulou entre dentes, fixando o olhar na entrada da Fundação Regency.
O telefone tocou e quebrou a concentração de Havelock nas suas notas do Pentágono.
- Sim? - proferiu para o bocal.
- Cross?
- Diga, doutor - indicou, ao reconhecer a voz estridente de Randolph.
- Afinal, talvez consigamos manter as cabeças presas aos ombros. Ben Jackson acaba de telefonar, pior que uma barata.
- Porquê?
- Parece que o tal advogado ligou para lá, a fim de perguntar o motivo da demora do pagamento do seguro de MacKenzie.
- Shippers.
- Exacto. Não há pagamento algum a efectuar. O dinheiro foi enviado ao advogado de Midge, vai fazer dois meses.
- Como se explica que Jackson lhe telefonasse e não ao advogado dela?
- Shippers (suponho que foi ele ou alguém por indicação sua) disse que houve qualquer confusão com as assinaturas num relatório médico e queria saber se Ben estava ao corrente de alguma coisa. Este respondeu que não, naturalmente. O dinheiro fora enviado através da dependência local e o assunto ficara arrumado. E acrescentou que não gostava que a sua reputação...
- Escute - interrompeu Havelock. -Eu não perderei a cabeça, mas receio que a sua
não esteja muito segura. Não saia do seu gabinete, nem receba ninguém, até mandar aí dois
homens. Se alguém o procurar, indique à recepcionista que se encontra na sala de operações e não pode ser interrompido.
- Não é necessário! - exclamou Randolph. - Para um figurão como Shippers, ainda chego... Se se aproximar daqui, fecho-o numa cela de paredes almofadadas.
- Se o procurar alguém, não será Shippers. Quando muito, telefonará, e nesse caso diga que lamenta ter mentido, mas queria proteger-se em relação àquele relatório.
- Não vai acreditar.
- Eu também não acreditava, mas serve para ganhar tempo. Chegarão aí homens enviados por mim dentro de uma hora, o máximo.
- Não é preciso!
- Vai ter de os aguentar - concluiu Michael, cortando a ligação e voltando a concentrar-se na folha à sua frente.
- Pensas realmente que Shippers; o procurará? - perguntou Jenna, junto da janela, com o relatório da CIA na mão.
- Não, mas aparecerão outros. A princípio, não para o matar. Tentarão levá-lo, para o poderem interrogar à vontade, até descobrirem quem os desafia.
- Por outro lado, ao verificar que Randolph mentiu e será envolvido, Shippers teve de agir mais depressa do que esperávamos. Quando foi o último telefonema de Loring?
- Há mais de uma hora. Shippers seguiu de táxi para o centro da cidade e agora devem vigiá-lo a pé. Não tarda a haver mais notícias. - Michael marcou um número e obteve resposta quase imediatamente. - Fala da Estéril Cinco, Fairfax. Com este nome de código, conduziram-me, escoltado, ao Centro Médico Randolph, ontem. Talbot Courity, Maryland, Costa Oriental. Importa-se de confirmar? - Enquanto aguardava, cobriu o
bocal com a mão e explicou a Jenna: - Acaba de me ocorrer uma ideia. Com um pouco de sorte, talvez transformemos uma possibilidade numa certeza... - E de novo para o bocal do telefone: - Sim, exactamente. Uma equipa de três homens, imediatamente. O doutor Matthew Randolph deve receber protecção absoluta, mas sem contacto. Os enviados devem confundir-se com o cenário: médicos, enfermeiros, maqueiros ou algo do género.
O essencial é que se mantenham o mais perto possível de Randolph. Que partam já e liguem para aqui pelo telefone móvel dentro de vinte minutos, através daí. - Fez nova pausa e dirigiu-se de novo a Jetina, enquanto o despachante do Serviço Secreto consultava horários. - Randolph talvez nos fizesse mais um favor, à custa da sua segurança.
- Se colaborar.
- Que remédio. - O despachante reapareceu na linha e, depois de escutar, Havelock disse: - Não, está bem assim. Até prefiro homens que não foram lá ontem. Outra coisa: o
código será... - interrompeu-se e os pensamentos regressaram ao Palatino, a um homem cujas palavras o tinham conduzido à Costa Oriental de Maryland _. Apache. Comunique a Apache que contacte comigo dentro de vinte minutos.
O dr. Matthew Randolph vociferou as suas objecções, sem resultado. Havelock explicou-lhe que ou colaborava ou sujeitava-se às consequências, as quais seriam tão inevitáveis como desagradáveis. Por fim, reconhecendo que, desta vez, era ele que se encontrava entre a espada e a parede, acedeu. A equipa Apache compor-se-ia de dois visitantes cardiologistas provenientes da Califórnia, a quem não faltariam as batas brancas e os estetoscópios.
As instruções de Michael eram bem claras: não podia registar-se o menor deslize. Quem procurasse Randolph, devia ser capturado vivo. Os ferimentos achavam-se permitidos, mas
apenas nas pernas e nos pés.
Tratava-se de urna ordem Quatro Zero, a mais sacrossanta dos serviços clandestinos.
- Havelock? Daqui, Loring.
- Como vai isso?
- O meu motorista diz que não conseguiu contactar consigo.
- Estava a falar com um médico irascível, mas, em caso de emergência, ele podia ter interrompido. Que se passa?
- A questão é precisamente essa. Nada. O táxi deixou Shippers diante dos Armazéns Garfinckle e ele entrou, para fazer uma chamada. Depois, subiu ao quinto andar, onde funciona a secção de confecções para homem, e ainda não saiu. Estou a falar daí e posso vê-lo perfeitamente.
- Espera alguém.
- Nesse caso, é uma maneira estranha de proceder com discrição.
- Porquê?
- Está a comprar roupa, como se fosse embarcar num cruzeiro, provando casacos
e trocando comentários jocosos com as empregadas.
- Não é vulgar, mas muna-se de paciência. Efectuou a chamada, como pretendíamos. Agora, aguardemos o resultado.
- Quem diabo é ele? Michael reflectiu apressadamente e concluiu que Loring merecia conhecer mais pormenores. Chegara o momento de o aproximar mais da verdade, pois muitas coisas dependiam do eficiente agente das Operações Consulares.
- Um elemento secreto prestes a encontrar-se com alguém capaz de varrer a ilha Poole do porto de Savannah. Congratulo-me por se encontrar aí, Charley. Temos de conhecer a identidade desse alguém.
- Basta-me isso, e obrigado. Todos os andares e saídas estão vigiados, permanecemos em contacto uns com os outros e mantemos as máquinas fotográficas preparadas. Se tivermos de optar, largamos Shippers e seguimos o "contacto@>?
- Pode não ser necessário. Talvez o reconheçam. Pelo menos, você.
- Santo Deus! Do Departamento de Estado?
- Exacto. Penso que ocupa uma posição elevada e é qualquer coisa parecida com um especialista. Se o reconhecer, mantenha-se à distância até que se separem, detenha Shippers e traga-o aqui. Mas com a maior rapidez possível e verifique se não se faz acompanhar de cápsulas.
- Shippers está assim tão comprometido? Como diabo conseguem eles?
- Conseguiram, Charley. Há muito tempo.
A expectativa seria intolerável sem a fascinação crescente de Havelock por um comodoro chamado Thomas Decker, do curso de 1961 de Anapolis, antigo comandante do submarino Starfire e membro das Comissões de Contingência Nuclear do Pentágono, o qual era um mentiroso, sem motivo aparente para falsear a verdade.
Michael falara com os quinze oficiais superiores das CCN, telefonando a vários deles duas e mesmo três vezes, aparentemente para elaborar um relatório sobre os seus métodos de trabalho, destinado à apreciação do presidente. Na maioria dos contactos, as observações iniciais eram prudentes, porém, à medida que a conversa prosseguia e eles se apercebiam de que Havelock conhecia o tema abordado, tomavam-se menos desconfiados e mais técnicos, dentro dos limites de segurança máxima. Acontecimentos hipotéticos foram seguidos de respostas teóricas, e, para além da razão fundamental que o levara a telefonar a cada um deles, Michael sentiu-se impressionado. Se as leis da física exigiam que para cada acção havia outra igual e oposta, as equipas das CCN tinham encontrado uma equação melhor. Para cada acção nuclear por parte do inimigo, a de resposta resultaria devastadoramente superior. As próprias contribuições do comodoro Decker nesse capítulo eram avassaladoras. Explicou com toda a clareza que uma cadeia de submarinos nucleares poderia demolir todas as instalações inimigas importantes do Atlântico Norte ao Mar Negro e muitos pontos intermédios em poucos minutos. Neste capítulo, não mentia. O seu desvio da verdade
registava-se noutro aspecto: declarou que nunca se encontrara com o secretário de Estado, Anthony Matthias.
Ora, o seu nome figurava em três registos de telefonemas diferentes do gabinete de Anton, todos efectuados nos últimos seis meses.
Existia, sem dúvida, a possibilidade de as palavras de Decker corresponderem à realidade: nunca se encontrara com Matthias, pois limitara-se a falar com ele pelo telefone. Nessa eventualidade, todavia, por que não fornecera a informação espontaneamente? A pessoa à qual perguntavam se conhecia um estadista da estatura de Matthias não respondia com uma negativa, mas também não se apressava a acrescentar que não o conhecia pessoalmente, mas somente através do telefone.
Portanto, Thomas Decker, da Marinha dos Estados Unidos, mentira. Conhecia Matthias e, por razões obscuras, não o queria divulgar.
Chegara o momento de lhe telefonar pela quarta vez.
- Sabe, Mr. Cross, já lhe disse tudo o que podia ou devia sobre o assunto. Decerto não ignora que há restrições que só podem ser levantadas pelo presidente... e na sua presença.
- Claro que não, mas tenho uma dúvida. Provavelmente não se relaciona com aquilo de que falámos, mas o secretário de Estado também ficou intrigado. Disse que não o conhecia, nem o tinha nunca encontrado.
A pausa de Decker foi tão electrizante como os dados fornecidos sobre os efeitos de uma guerra nuclear submarina.
- Ele queria que fosse exactamente essa a minha resposta - declarou, por fim, em voz pausada.
- Obrigado, comodoro. A propósito, o secretário de Estado, Matthias, tentou, sem êxito, recordar-se de onde conversaram pela última vez.
- Na sua cabina, evidentemente. Em Agosto ou Setembro, salvo erro.
- Sem dúvida. Na cabina. Em Shenandoah.
- Era sempre aí. Ninguém se inteirava. Não compreendo que se esquecesse.
- Obrigado, comodoro. Adeus. Em Shenandoah.
A campainha retinia sem interrupção. Era a maneira de a telefonista do P. B. X. indicar uma emergência. Havelock, que fazia as malas imerso em reflexões, atravessou o quarto apressadamente e levantou o auscultador. Era Loring.
- Vou oferecer-lhe a cauda numa bandeja e principiarei a cortá-la imediatamente! Lamento imenso...
- Perderam-no - articulou Michael, sentindo a garganta seca.
- Estou velho! Já não sirvo para isto!
- Calma, homem. Que aconteceu?
- Uma artimanha nova, que me apanhou desprevenido. Shippers pagou a roupa que escolhera e pediu que lha mandassem a casa, excepto duas caixas, que levou consigo. Entrou no gabinete de provas e reapareceu vestido para sair, com impermeável castanho, chapéu e as caixas.
- Bem à vista - murmurou Havelock, em tom fatigado, notando mais uma vez a sensação de futilidade.
- Naturalmente - concordou Loring. - Segui-o ao elevador, conservando-me a uma distância prudente. Quando entrou e a porta se fechou, preveni os agentes dos outros pisos.
O meu V-Nove viu-o na saída para a Rua 14 e foi-lhe no encalço, transmitindo a sua posição pela rádio, após o que dispersámos em carros e a pé.
- Quando desapareceu?
- Na esquina da Rua 11, quatro minutos depois de eu abandonar os armazéns, e fui o último a sair. O tipo chamou um táxi, atirou as caixas para dentro e, antes de subir, tirou o
chapéu. Verificou-se então que não era Shippers, mas um homem dez a quinze anos mais velho e quase completamente calvo.
- Que fez então o V-Nove?
- O melhor que pôde, nas circunstâncias. Tentou deter o táxi, mas não conseguiu, pois enfiou por uma aberta no trânsito. Apressou-se a alertar-nos, com o número do veículo e a descrição. Acto contínuo, cinco dos meus homens correram para a loja, sem resultado. V-Onze e Doze interceptaram o táxi, alguns quarteirões adiante, e encontraram-no vazio. Apenas havia o impermeável, o chapéu e as duas caixas.
- E quanto ao motorista?
- Disse que um lunático o mandara parar e, logo que se vira dentro do veículo, despira o impermeável e descera na esquina seguinte, depois de lhe haver dado cinco dólares. Recolhemos as caixas, para a eventualidade de conterem impressões digitais aproveitáveis.
- Não encontrarão nenhuma que corresponda às registadas nos computadores do Departamento Federal de Investigação.
- Lastimo sinceramente, Havelock. Os movimentos de Shippers não passaram de uma diversão e eu engoli-a sem pestanejar. Tinha de escolher esta altura para perder um instinto de longa data.
- Não o perdeu, Charley. Eu é que lho afastei da cabeça. Recomendei-lhe que fosse paciente e se concentrasse num homem que não devia estar lá.
- Não precisa de me consolar. Eu não o faria, no seu lugar.
- Isso diz você agora. De resto, preciso de si. Os seus instintos ainda me podem ser úteis no caso de um comodoro do Pentágono, chamado Thomas Decker. Averigue tudo o que puder a seu respeito. Tudo.
- Mais um viajante?
- Não. Um mentiroso.
Jenna apoiou a mão na extremidade da secretária de Michael, espreitando por cima do seu ombro, enquanto ele analisava a relação de nomes e breves resumos dos homens que escolhera da CIA, Operações Consulares e relatórios dos serviços secretos do Exército. Dos cento e trinta e cinco desertores soviéticos potenciais que não tinham aparecido no Ocidente e cujo paradeiro actual era desconhecido, seleccionara oito para consideração prioritária.
- Foi um dia dos diabos - suspirou ele, pousando o papel e reclinando-se na cadeira. - Não é o momento apropriado para brincadeiras.
- Não estou a brincar, Mikhail.
- Não vejo aqui um único perito de armamento, militar de patente elevada ou cientista atómico. Trata-se de médicos, especialistas... actualmente velhos, nenhum dos quais estava relacionado com qualquer projecto estratégico ou plano de ataque nuclear.
- Parsifal não precisa desses relacionamentos.
- Então, talvez eu não fosse claro acerca do que esses documentos dizem. Indicam uma série de acção nucleares, estratégias pormenorizadas que só podem ser concebidas e negociadas por peritos.
- Suponho que Matthias não conservava esses pormenores metidos na cabeça.
- Claro que não, e é por isso que me interesso pelos membros das Comissões de Contingência... um, em particular. Mas Parsifal conservava. Necessitava ter os projectos à sua disposição. Eram fichas, a sua moeda de troca no jogo alucinado a que eles se entregavam.
- Nesse caso, falta alguém - insistiu Jerina, contornando a secretária e virando-se repentinamente para encarar Havelock. - Quem falou pela República Popular? Quem negociou a posição da China? Quem forneceu os seus projectos, os seus pormenores estratégicos? Segundo a tua teoria, tem de haver um terceiro negociador.
- Acho que não. As suas fontes, combinadas, bastariam para formular um quadro
sobremaneira convincente da estratégia da China. É do conhecimento geral nos círculos dos serviços secretos que, se a penetração dos Estados Unidos e da União Soviética nos arsenais da República Popular fossem reunidas, saberíamos mais sobre a capacidade nuclear da China que qualquer entidade de Pequim.
- Um quadro convincente?
- Totalmente.
- Fontes combinadas, Mikhail? Para quê? Michael observou a expressão dela e compreendeu gradualmente aonde queria chegar.
- Uma fonte - proferiu a meia-voz. - Por que não?
O telefone tocou e ele estendeu a mão para o auscultador. Era o presidente dos Estados Unidos, e as primeiras palavras que pronunciou foram as mais ominosas que Havelock jamais ouvira.
- Os soviéticos estão ao corrente das intenções de Matthias. É impossível prever o que farão a seguir.
- Parsifal? - aventurou, num murmúrio.
- Conseguem farejá-lo, e o cheiro que notam excita-lhes as narinas. Estão prestes a entrar em pânico.
- Com nos inteirámos disso?
- Contactaram um funcionário superior da nossa diplomacia e anunciaram que estavam na disposição de denunciar Matthias. A única esperança que nos resta é que abordaram um
dos nossos melhores elementos. Respeitam-no e pode contribuir para lhes serenar os ânimos. Vou chamá-lo para fazer parte do nosso grupo, substituindo Bradford. Deve ser informado de tudo, compreender tudo.
- De quem se trata?
- Chama-se Arthur Pierce.
Capítulo trigésimo terceiro
O paminyatchik encontrava-se sentado na sala de estratégia, nos subterrâneos da Casa Branca, enquanto o presidente e dois dos homens mais influentes da nação o elucidavam. A reunião adquirira prioridade sobre todos os compromissos de Charles Berquist e prolongava-se há três horas, enquanto o incrédulo subsecretário de Estado junto das Nações Unidas tomava notas, ao mesmo tempo que os olhos cinzentos, inteligentes e perscrutadores, deixavam transparecer profunda compreensão de uma catástrofe iminente, embora na realidade se sentisse perfeitamente sereno.
A tensão assumira um carácter electrizante, apenas intermitentemente quebrado por expressões de cortesia e respeito. Arthur Pierce não podia ser apelidado de amigo do presidente ou de Addison Brooks, mas também não era um estranho. Tratava-se de um profissional com o qual os dois homens já haviam trabalhado e em quem depositavam confiança, recordando-se com gratidão das suas penetrantes análises de crises anteriores. Quanto ao general Malcolm Halyard, conhecera-o em Saigão, anos atrás, e ficara tão impressionado com a sua actuação que telegrafara ao Pentágono, a fim de recomendar que a
Escola de Guerra procedesse a um estudo aprofundado da sua folha de serviço, para lhe atribuir um lugar permanente.
Apesar disso, o notável cidadão-militar preferira um cargo civil, embora de ambiente governamental. E como, ante a sua desaprovação, o estabelecimento militar fazia frequentemente parte do Governo, o facto propagara-se com rapidez: havia um homem excepcional disponível e em busca de um trabalho estimulante; impunha-se que alguém lhe apresentasse
uma proposta sem demora, antes que as empresas privadas o recrutassem. Na verdade, Washington necessitava de todos os talentos autênticos que conseguisse encontrar.
Acontecera tudo com facilidade e lógica, na sua aritmética: um mais um mais um. Pessoas tomaram-se degraus e estes conduziram a posições elevadas. Um funcionário superior do Departamento de Estado explicou que se encontrava por casualidade num jantar em Alexandria, durante o qual o anfitrião militar lhe mencionara Pierce, pelo que se sentira naturalmente interessado em o referir por sua vez numa reunião em que participava Addison Brooks. O Departamento de Estado procurava constantemente homens de competência comprovada, possuidores de potencial para um desenvolvimento intelectual mais vasto. Assim, Arthur Pierce foi convocado para uma entrevista, que evoluiu num almoço prolongado com o aristocrático estadista, o qual redundou por seu turno numa oferta de emprego.
A toupeira ficou, pois, instalada. Na realidade, não houvera jantar algum em Alexandria ou anfitrião que discutisse em termos encomiásticos o notável combatente de Saigão. Mas não importava, porque outras pessoas falavam dele, como Brooks tivera oportunidade de verificar. Na realidade, uma dezena de empresas preparava-se para apresentar ofertas ao brilhante mancebo, pelo que ele tratou de se antecipar.
À medida que os anos se sucediam, a decisão de recrutar Arthur Pierce encontrava justificação crescente. Era de facto um talento notável, com uma capacidade bem patente para assimilar e contra-atacar as manobras soviéticas, sobretudo em confrontações cara a cara. Havia, sem dúvida, especialistas que analisavam o luestia e vários jornais e comunicados russos para interpretar posições soviéticas com frequência obscuras, porém o local onde Pierce se revelava mais eficiente era à mesa das negociações, fosse em helsínquia, em Viena, em Genebra ou em qualquer outro lugar. Por vezes, as suas percepções resultavam surpreendentes: em certas ocasiões, parecia achar-se dez passos à frente do porta-voz enviado por Moscovo, preparando contrapropostas antes de a posição soviética ter sido sequer definida, o que proporcionava à equipa dos Estados Unidos a vantagem de uma réplica imediata. A sua presença era incessantemente procurada por diplomatas de alto nível, até que o inevitável aconteceu: foi introduzido na órbita de Manhias, e o secretário de Estado não perdeu tempo em o converter num destacado diplomata.
O paminyatchik chegara. Um infante, seleccionado geneticamente em Moscovo e enviado dissimuladamente para a região fulcral da América, encontrava-se no seu lugar após uma vida inteira de preparação, e naquele momento escutava as palavras do presidente da nação, que se lhe dirigia.
- Fica assim ao corrente do hediondo cenário, senhor subsecretário. - Berquist fez uma pausa, perturbado por uma recordação penosa. - Acho estranho proferir esta designação, quando ainda há poucos dias outro subsecretário se sentava nessa cadeira.
- Espero poder contribuir, nem que seja com uma fracção do que ele fez - proferiu Pierce, baixando os olhos para os seus apontamentos. - O facto de o terem assassinado é incrível. Emory era meu amigo... e não havia muitas pessoas que pudessem dizer o mesmo.
- Ele falou de si - interpôs Addison Brooks.
- De mim?
- Disse que era seu amigo.
- Sinto-me lisonjeado.
- Na altura, talvez não sentisse o mesmo - acudiu o general Halyard. - Você era uma das dezanove pessoas que ele investigava.
- Em que sentido?
- Procurava alguém do quarto andar do Departamento de Estado que se tivesse ausentado do país, que tivesse estado na Costa Brava - explicou o presidente.
- O indivíduo que depois utilizou o código Ambiguidade? - perguntou Pierce, enrugando a fonte.
- Exacto.
- Corno veio o meu nome à baila? Emory nunca mo referiu.
- Não podia, dadas as circunstâncias - declarou o embaixador. - Algumas comunicações entre você e Washington, durante aquela semana, haviam-se extraviado. Deve calcular o abalo que ele sofreu, a princípio. Depois, tudo se esclareceu, claro.
- Há constantemente mensagens arquivadas em lugares errados - admitiu Pierce. -
Duvido mesmo que exista uma solução para o problema. O volume de tráfego, chamemos-lhe assim, é demasiado elevado e o pessoal especializado muito reduzido. Por outro lado, prefiro ver as minhas comunicações recolhidas em arquivos errados a irem parar a outra repartição.
- Do que ouviu nesta sala, o que é que pensa seja do conhecimento dos soviéticos? -
inquiriu Berquist, com uma expressão granítica.
- Menos do que me revelaram, mas provavelmente mais do que suspeitamos. Os russos são muito elípticos, por assim dizer, além do que atravessam uma fase para a qual o adjectivo "frenesi" me parece o mais apropriado. Não posso formar uma opinião definitiva até ter oportunidade de estudar esses... incríveis documentos.
- Falsos - asseverou Halyard. - Acordos entre dois loucos.
- Duvido de que Moscovo ou Pequim aceitassem essa opinião, general. Um dos loucos é Anthony Manhias, e o mundo não está preparado para lhe reconhecer esse estado.
- Porque não quer - interpolou Brooks. - Tem medo.
- Decerto - assentiu o subsecretário de Estado. - Mas, à parte Manhias, segundo o que o senhor presidente descreveu esses ditos pactos de agressão nuclear contêm informação extraordinariamente confidencial. Localizações, megatonelageni, possibilidades de entrega pormenorizadas, códigos de lançamento... e até sistemas para fazer abortar operações. A avaliar pelo que se me depara, as portas dos arsenais das duas superpotências e da China foram abertas. Acha-se tudo exposto a quem ler os acordos. - Virou-se para o militar. - Qual seria a recomendação do Pentágono, se serviços clandestinos nos trouxessem ao conhecimento a existência de um pacto sino-soviético similar, general?
- Lançamento - respondeu Halyard, sem hesitar. - Não existiria alternativa.
- Só se houvesse a certeza da sua autenticidade - advertiu Brooks.
- Eu convencia-me - volveu o general. - E você também. Quem senão homens com acesso a essa informação a poderiam incluir? Além disso, há as datas projectadas. Eu ficava convencidíssimo.
- Concordo inteiramente consigo ao apelidar os soviéticos de elipticos - disse o embaixador. - No entanto, a que aspecto se refere, no sentido cometo?
- Lançaram-me frases dispersas, para verificarem se eu acusava o toque. Há vários anos que nos confrontamos, em Viena, Berna ou Nova Iorque, pelo que detectamos facilmente as reacções dissimuladas.
- No entanto, começaram por lhe dizer que estavam a par da loucura de Manhias observou Berquist. - Foi a sua introdução, suponho?
- Exacto. Creio que há pouco não empreguei as palavras apropriadas. Encontrava-me no gabinete do embaixador soviético, a seu pedido, juntamente com o seu colaborador mais graduado. Para dizer a verdade, eu pensava que me chamara para chegarmos a um entendimento sobre a resolução pan-arábica, mas, em vez disso, acolheu-me com uma afirmação que só se podia referir a Matthias: " Inteirámo-nos, através de uma fonte fidedigna, de que determinadas férias foram prolongadas em virtude da condição mental da pessoa em causa, que se deteriorou para além de qualquer possibilidade de recuperação."
- Que respondeu? - quis saber Brooks. - As palavras exactas, por favor.
- "A tendência russa para a fantasia não difere da da época em que Dostoievski a descreveu. "
- Muito bem.
- Foi então que o fogo de vista principiou. " Ele enlouqueceu! - bradou o embaixador.
"Matthias enlouqueceu! Cometeu actos alucinados e comprometeu o que restava do degelo. " Em seguida, o colaborador interveio para perguntar onde se realizariam as reuniões seguintes, que governos instáveis Matthias; contactara e se conheciam o seu estado. O que me assusta, meus senhores, é o facto de eles me descreverem o que acabo de ouvir aqui. Se entendi bem, Matthias procedeu assim nos últimos seis meses: contactou regimes instáveis, ministros ávidos de poder por qualquer preço e juntas revolucionárias.
- É aí que os soviéticos obtêm as suas informações - afirmou Berquist. - Pensam que um Matthias demente tenciona pôr em prática várias das suas "realidades geopolíticas".
- Pensam muito mais do que isso, senhor presidente - opinou Pierce. - Julgam que pode ter fornecido material nuclear a regimes extremistas e a facções fanáticas (islâmicas, por exemplo, afegãs ou árabes) anti-soviéticas. Assola-os uma verdadeira paranóia a esse
respeito. Podemos proteger-nos uns dos outros pela vasta dimensão dos nossos arsenais, mas não de uma junta irracional possuidora de material nuclear. Na realidade, nós achamo-nos mais seguros, porque nos separam oceanos. A Rússia estratégica faz parte da nossa continental euroasiática. As suas fronteiras são vulneráveis, ainda que apenas devido à proximidade de inimigos potenciais. Se interpretei bem o seu estado de espírito, são essas
preocupações que os impelem para o botão do pânico.
- Mas não Parsifal - murmurou Brooks. - Na sua opinião, o homem ao qual chamamos Parsifal não contactou Moscovo.
- Não posso eliminar nenhuma possibilidade - redarguiu Pierce. - Havia muitas frases, ameaças, implicações... alusões elipticas, como referi. Por exemplo, eles mencionaram "próximas reuniões", "governos instáveis", "materiais nucleares", ingredientes que fazem parte dos acordos. Se pudesse estudá-los, talvez detectasse pontos paralelos aos
textos originais. - Fez uma pausa e acrescentou com firmeza: - Julgo possível que Parsifal estabelecesse contacto, embora apenas para formular insinuações provocatórias. E considero urgente e prioritário conhecer a sua identidade.
- Quer fazer-nos ir a todos pelos ares - resmungou o presidente. - Não deseja outra coisa.
- Quanto mais depressa me deslocar à ilha Poole... Pierce foi interrompido pelo zumbido emitido pelo telefone branco junto de Berquist, que levantou o auscultador.
- Sim? - Escutou durante cerca de trinta segundos e inclinou a cabeça. - Compreendo. Informe-me do que acontecer. - Cortou a ligação e voltou-se para os outros Era Havelock. Não pode vir.
- Que se passa? - perguntou o general.
- Muitas coisas, para que saia do pé do telefone.
- É pena, porque gostava de o conhecer - disse Arthur Pierce. - Considero vital mantermo-nos em contacto. Posso revelar-lhe o que sucede entre os soviéticos e ele pôr-me-á ao corrente dos factos que conhece. Preciso saber quando devo avançar ou retroceder.
- Será informado, pois transmiti-lhe instruções nesse sentido - prometeu o presidente. - Perderam o patologista.
- Demónio! - exclamou Halyard.
- Ou o tipo descobriu que o vigiavam ou, apercebendo-se de que as coisas se agravavam, decidiu desaparecer.
Ou ordenaram-lhe que desaparecesse - acrescentou Brooks. É isso que não compreendo - confessou Berquist, virando-se para o subsecretário de Estado, que assumira uma expressão pensativa. - Os russos não deixaram transparecer que estavam cientes de um envolvimento soviético neste malfadado assunto? Não mencionaram a Costa Brava ou o telegrama que Rostov nos enviou?
- Não, senhor, e talvez seja a única vantagem que possuímos. Sabemos e eles não.
- Mas sabe Rostov - insistiu o presidente.
- Nesse caso, está demasiado assustado para actuar - replicou Pierce. - Acontece com frequência entre o pessoal superior do KGB. Nunca tem a certeza de que calos pode pisar. Ou, se investiga, não chega a parte nenhuma.
- Fala como se houvesse duas Moscovos diferentes - argumentou Halyard.
- Concordo com Havelock - disse a toupeira. - Acho que há. E enquanto a Moscovo que se quer apoderar dos documentos de Matthias não alcançar o seu objectivo, aquela com a qual negoceio continua a representar o Kremlin. A inversa não se verifica. Mais uma razão para que me ponham ao corrente de tudo. Se Havelock conseguisse apanhar um homem cujos antecedentes pudéssemos determinar até à outra Moscovo, seria um trunfo a nosso favor que eu utilizaria da melhor maneira.
- Ele já nos elucidou a esse respeito - interpôs Brooks. - Um ramo dos serviços secretos soviéticos conhecido por VKR. Aliás, Rostov admitiu-o praticamente.
- Não me lembro de ter ouvido qualquer alusão a isso - declarou Pierce, surpreso.
- Talvez eu o omitisse involuntariamente - admitiu Berquist.
- De qualquer modo, é uma possibilidade muito geral. A VKR constitui uma consolidação de muitas unidades. Preciso de elementos específicos. Qual unidade? Que directores?
- Talvez os obtenha.
- Perdão? - articulou o subsecretário de Estado, em inflexão átona.
É uma das coisas que mantém Havelock na Estéril Cinco. Estéril Cinco... Talvez perdesse o tal Shippers, mas ele espera que quem lhe transmitiu ordens envie alguém a Maryland para averiguar com quem Matthew Randolph tem trabalhado. Entretanto, mandou para lá alguns homens, com instruções para o proteger. O médico, de facto, mentiu acerca das causas da morte de MacKenzie, mas por motivos diferentes dos que nos interessam.
- Sim, eu sei. - Pierce fixou o olhar nos apontamentos, enquanto guardava a esferográfica de ouro na algibeira interior do casaco. - Tomei nota dos pontos que me parecem mais importantes, porque não esperava levar os relatórios.
- De facto, não poderia permitir-lho. Bem, senhor subsecretário: tem muito em que pensar e o tempo escasseia. Como tenciona ocupar-se dos soviéticos?
- Com prudência. Se me permite, gostava de confirmar parte do que acabam de me revelar.
- Endoideceu? - explodiu o general.
- Apenas uma parte muito reduzida. Eles dispõem, sem dúvida, de uma fonte de informação fidedigna, pelo que, se negássemos tudo, torná-los-íamos mais desconfiados, mais hostis, luxo que não nos podemos permitir numa altura destas. Precisamos contê-los tanto quanto possível.
- Como se propõe consegui-lo? - inquiriu Berquist.
- Admitindo que Matthias se foi abaixo, passe a expressão, devido a excesso de trabalho. Tudo o resto foi exagerado e os médicos aconselharam-lhe algumas semanas de repouso. À parte isto, trata-se de rumores e especulação, como é natural quando estão envolvidas individualidades importantes como ele. Não esqueçamos que têm o caso de Estaline bem presente na memória. Por ocasião da sua morte, toda Moscovo acreditava que perdera o uso da razão.
- Excelente - aprovou o embaixador.
- Não podem ignorar as outras fontes - volveu Halyard, desejando obviamente concordar, embora a sua faceta de estratego lho impedisse. - As inconfidências de regimes instáveis... Matthias contactou com eles.
- Nesse caso, terão de ser mais explícitos comigo. Creio que os posso enfrentar, caso a caso. Terão, pelo menos, de conferenciar com Moscovo e confirmar as origens. - Pierce
voltou-se para Berquist. - O factor tempo é o que figura em primeiro plano no meu espírito, senhor presidente. Penso que quanto mais depressa regressar a Nova Iorque e solicitar... não, exigir uma entrevista com o embaixador soviético, maiores as possibilidades de lhes afastar as mãos dos botões. Creio que me escutarão. Não posso garantir quando, mas dentro de dias, uma semana, acabarão por fazê-lo.
- O que nos leva à pergunta óbvia - acudiu Brooks, pousando os cotovelos na mesa, com os dedos entrelaçados sob o queixo. - Por que lhe parece que contactaram consigo, em vez de recorrerem aos canais mais directos em Washington?
- É o que eu também gostava de saber - apoiou o presidente. - Há um telefone que nunca está a mais de vinte metros da minha mão, para semelhantes contingências.
Arthur Pierce não respondeu imediatamente, os olhos movendo-se alternadamente de Berquist para o embaixador, até que proferiu:
- É difícil responder sem parecer arrogante ou excessivamente ambicioso, e não me considero uma coisa nem outra.
- De acordo - aquiesceu o presidente. - Limite-se a dar-nos a sua opinião.
- Salvo o devido respeito para com o nosso embaixador em Nova Iorque... e exprimo-me com sinceridade, pois tem uma presença insinuante e uma carreira brilhante de estadista...
- Teve - corrigiu Berquist. - As qualidades foram-se deteriorando, com a idade. Mas continue.
- Os soviéticos sabem que me nomeou, a pedido de Matthias, porta-voz do Departamento de Estado. Seu porta-voz, senhor presidente.
- E de Anthony Matthias - observou Brooks, inclinando a cabeça. - O que pressupõe uma relação íntima com o nosso secretário de Estado.
- Desfrutei dessa relação até há vários meses, quando, aparentemente, todas as relações foram interrompidas pela doença.
- Mas eles pensam que se mantém - interveio Halyard. - E por que não? Você é o elemento mais próximo de nós que podemos ter lá, excepto Matthias.
- Obrigado, general. Basicamente, penso que me contactaram por suporem que estaria ao corrente, se os rumores acerca de Matthias tivessem fundamento. Refiro-me à loucura.
- E se estivessem convencidos disso, mas também de que mentia, qual seria a reacção deles?
- Ignorariam a linha quente, senhor presidente. Colocariam o mundo em alerta nuclear.
- Volte para Nova Iorque e faça o que puder. Entretanto, prepararei as medidas de segurança para a sua visita à ilha Poole. Estude os acordos até saber o conteúdo de cor. * paminyatchik levantou-se e saiu, deixando ficar os apontamentos desnecessários.
* limusina acabava de transpor o portão da Casa Branca, quando Arthur Pierce se inclinou para a frente e, em voz áspera, ordenou ao motorista que lhe fora destinado pelo Departamento de Estado:
- Conduza-me a uma cabina telefónica, o mais depressa possível.
- O telefone móvel funciona bem. Está na caixa no centro do sobrado. - O homem afastou a mão direita do volante e indicou o receptáculo preto atrás dele. - Basta puxar a lingueta.
- Não me quero servir deste! Procure uma cabina, por favor.
- Desculpe. Tentava apenas ser útil. Reconhecendo que exagerara, os subsecretário decidiu lançar água na fervura.
- Desculpe, mas os telefonistas destes circuitos levam uma eternidade a fazer a ligação e tenho muita pressa.
- De facto, não é a primeira vez que oiço reclamações a esse respeito. - O motorista acelerou, para aplicar os travões no momento imediato. - Está ali uma. Na esquina.
Píerce apeou-se e encaminhou-se rapidamente para a cabina, com as moedas na mão. Fechou a porta, introduziu vinte e cinco cêntimos na ranhura e marcou um número.
- A sua viagem? - perguntou secamente.
- Foi um voo suave. Adiante.
- A equipa já partiu para Maryland?
- Há uns quinze minutos.
- Detenham-na!
- Como?
O paminyatchik mordeu o lábio inferior, consciente de que eles não podiam recorrer
a telefones móveis ou a qualquer sistema em que tivessem de ser registados números. Necessitava fazer apenas uma pergunta, antes de transmitir a ordem.
- Há alguma possibilidade de os contactar, depois de chegarem?
- Da maneira como a operação foi orquestrada, não.
- Enviem uma segunda equipa, imediatamente. Veículo da polícia, armas automáticas, com silenciadores. Que os matem a todos. Não deve sobreviver um único.
- Mas foi você que os enviou!
- É uma armadilha.
- Diabo... Tem a certeza?
- Acabo de sair da Casa Branca.
- Mereceu a pena, hem? - articulou a voz, com um assobio de admiração.
- Não havia outra solução. Consegui introduzir-me. Outra coisa.
- O quê?
- Contactem a Mãe. Rostov está envolvido com Victor. Descubram até que ponto, encarando a hipótese da eliminação.
Lering desceu os degraus do Pentágono, enquanto pensava no comodoro Thomas Decker. Não estava bem seguro do que Havelock procurava, mas tinha a certeza de que ele não o possuía. Depois de ler a folha de serviço de Decker, Charley decidira obter o
pagamento de algumas dívidas antigas no Pentágono. Recorrendo ao pretexto de que o
oficial em causa figurava entre os possíveis candidatos a um lugar na embaixada, que exigia tacto e um mínimo de personalidade, contactou diversos amigos nos serviços secretos do Exército e explicou que necessitava de algumas entrevistas confidenciais.
Cinco pessoas - todas merecedoras da máxima confiança - foram conduzidas separadamente à sua presença. Tratava-se de três oficiais navais que tinham prestado serviço com
Decker a bordo do submarino Starfire, uma secretária que trabalhara no seu gabinete durante seis meses e um fuzileiro que pertencia à sua equipa da Comissão Nuclear.
Havelock afirmara que Decker era um mentiroso e, se tal acontecia, Loring não descobriu o menor indício confirmativo. Ao invés, revelava-se um moralizador, que mantivera a disciplina a bordo com pulso de ferro, sempre preocupado em imprimir justiça às suas decisões.
No entanto, a secretária salientou outra faceta do seu carácter: segundo parecia, desenvolvia sempre os maiores esforços para agradar e apoiar os superiores.
Era sempre muito diplomata e generoso nas apreciações do trabalho dos outros, mesmo
quando isso não correspondia ao que pensava. Havia um almirante que ele apoiou, apesar de uma directiva da Casa Branca que o punha em causa. Posso afirmar que o comodoro é o homem mais consciente das situações que jamais conheci.
A última pessoa com a qual Loring se avistou foi o fuzileiro, que tinha a patente de major e pertencia à Comissão de Contingência Nuclear de Decker, o qual se referiu às qualidades do camarada de urna forma algo mais sucinta.
Talvez seja um pouco bajulador, mas trata-se de um homem da maior competência. De resto, isso não é um exercício novo, neste meio. Tacto? Claro que o possui, embora não
esteja disposto a deixar-se enforcar por causa de uma coisa realmente importante. De qualquer modo, descobre sempre a maneira de untar um assunto de modo a que o lubrificante se espalhe por toda a mesa.
Tradução: difundir a responsabilidade de um desacordo, de preferência aos níveis mais elevados possíveis. Porém, se essa atitude representava a de um mentiroso perigoso, havia poucos homens sinceros no Pentágono... ou em qualquer outro lugar.
Loring regressou ao carro, que deixara estacionado nas proximidades, reclinou-se no assento e pegou no microfone do tablier, a fim de contactar o telefonista móvel da Casa Branca.
- Ligue à Estéril Cinco, por favor. Tencionava revelar a Havelock tudo o que apurara, muito ou pouco, enquanto o conservava bem fresco na memória.
Os componentes da unidade Apache vagueavam pelos corredores do Centro Médico e um deles seguia o Dr. Matthew Randolph à distância, aonde quer que se deslocasse. Nenhum dos dois aprovava as disposições tomadas e haviam-no manifestado à Estéril Cinco, pois reconheciam-se incapacitados para semelhante missão. Com efeito, Randolph não estava quieto um único momento, entrando e saindo de portas e corredores com uma frequência e rapidez surpreendentes. O impulso que o levara a colaborar inicialmente evaporara-se gradual e irreversivelmente. Dir-se-ia que procurava despertar a atenção, contribuir para que acontecesse alguma coisa, desafiando quem o pudesse aguardar numa sala deserta ou num recanto escuro. Para além da dificuldade intrínseca de proteger uma pessoa dessa natureza, os dois homens consideravam perigoso verem-se forçados a expor-se. Os profissionais eram, por treino e natureza, prudentes, e Randolph obrigava-os a proceder como se desconhecessem aquelas condições fundamentais. Por conseguinte, dois elementos não bastavam. Mais um no exterior do edifício aliviaria um pouco a pressão.
Estéril Cinco concordou. O contacto de emergência de Apache interrompeu o relatório de Loring a Havelock respeitante a Decker, e como Charley se achava disponível, seria transportado num helicóptero do Pentágono para um local a poucos quilómetros do Centro Médico, onde o aguardaria um carro. Assim, encontrar-se-ia no seu destino dentro de trinta e cinco a quarenta minutos.
- Como saberemos, quando ele chegar?
- Consultem a Recepção através de um intercomunicador. Entrará e perguntará o caminho mais curto para... Easton. Depois continuará de carro e voltará para trás a pé.
- Obrigado, Estéril Cinco.
O Sol encontrava-se à altura das copas das árvores no sector ocidental do firmamento e banhava os campos da Virgínia com um clarão suave amarelo-dourado. Havelock levantou-se da secretária, com uma expressão de cansaço, a mão ainda quente de segurar o telefone quase sem interrupção.
- A CIA investigará durante toda a noite. Localizaram duas fotografias. Ainda faltam seis.
- Pensei que as fotos tivessem prioridade nesses ficheiros - observou Jerma, dirigindo-se à mesinha onde se encontravam as garrafas, a fim de preparar uma bebida para Michael. - Não podes recorrer a essas pessoas se desconheceres o seu aspecto.
- Os homens que seleccionaste não foram considerados importantes a esse ponto replicou ele, notando que ela repetia palavras que escutara pelo telefone. - Eram marginais, de valor limitado.
- Mas especialistas.
- Psiquiatras, psicólogos e dois professores de filosofia. Velhos aos quais permitiram
o privilégio de exprimir o seu Ponto de vista... Alguns vagamente ofensivos e nenhum demolidor para o Kremlin.
- Mas todos puseram em causa teorias promovidas pelos estrategos soviéticos. As suas
perguntas eram relevantes quanto a tudo o que apuraste acerca de Anton Matthias.
- Bem sei. Continuaremos a procurar,
- Toma. - Jerina acercou-se dele com um uísqui simples. - Precisas disto.
- Obrigado. - Havelock pegou no copo e aproximou-se lentamente da janela. Tenho de mandar vir Decker. Pelo telefone, nunca me dirá o que pretendo. Pelo menos, tudo.
- Estás convencido de que é o teu homem?
- Sem a mínima dúvida. No entanto, quero compreender porquê.
- Loring explicou-te. Lambe os superiores, diz que concorda com eles, mesmo quando pensa o contrário. Um indivíduo desses satisfaria a intenções de Manhias.
- Por estranho que pareça, isso é apenas uma parte da realidade. - Meneou a cabeça e levou o copo aos lábios. - A descrição adapta-se à maioria dos homens ambiciosos de todos os meios. As excepções são raras. Muito raras.
- E então?
- Empenha-se em justificar tudo o que faz. Procede como Salomão, na aplicação da justiça. Por baixo desse cauteloso e diplomático exterior, tem de haver um fanático. E só um fanático na sua posição cometeria um crime que lhe valeria a execução sumária em muitos países, e, mesmo aqui, não sairia da cadeia nos trinta anos mais próximos... Muito me surpreenderia que o comodoro Thomas Decker não tivesse efectuado tudo. Por minha vontade, mandava-o fuzilar... embora pouco lucrasse com isso.
O Sol ocultava-se atrás das árvores, por entre cujas ramagens se filtravam os raios alaranjados. Charley Loring agachava-se junto de um possante carvalho na extremidade mais afastada do parque de estacionamento, com a entrada principal e a rampa de emergência no seu campo visual e o transmissor na mão. Uma ambulância acabara de chegar com a vítima de um acidente de viação e esposa, na Estrada 50. O ferido era examinado pelo Dr. Randolph, e a unidade Apache permanecia a postos no corredor de acesso à respectiva sala.
O agente das Operações Consulares viu as horas e reflectiu que se achava ali há cerca de quarenta e cinco minutos, depois de desembarcar do helicóptero do Pentágono num aeródromo particular em Denton, a oito minutos do local em que se encontrava. No fundo, compreendia as preocupações dos dois homens da unidade Apache. O indivíduo que deviam proteger dificultava as coisas, todavia Charley procederia de outra maneira. Abordá-lo-ia, e explicar-lhe-ia que não se importava que o liquidassem, pois a finalidade fundamental da vigilância consistia em capturar um, pelo menos, dos assassinos que o procura, riam. Uma explicação de semelhante natureza decerto contribuiria para tomar o médico mais cooperativo. E regalar-se com um excelente jantar algures, em vez de aguardar ali, ao frio.
O som de intensidade gradual interrompeu-lhe as cogitações. Um carro-patrulha preto e branco descreveu uma curva e imobilizou-se junto da rampa de emergência. Dois polícias desceram com prontidão e correram para a porta, o que obrigou Loting a aproximar o transmissor dos lábios.
- Apache, fala Exterior. Um carro-patrulha acaba de parar diante da entrada de emergência e apearam-se dois polícias que desapareceram por ela.
- Estamos a vê-los - foi a resposta imediata. - Informaremos do que se passar. Charley tomou a observar o veículo, notando algo que se lhe afigurou estranho. As duas portas tinham sido deixadas abertas, o que raramente acontecia, a menos que os passageiros
pretendessem permanecer nas imediações. Havia sempre a possibilidade de alguém querer apoderar-se do transmissor ou de alguma arma oculta no porta-luvas.
A unidade Apache do interior voltou a dar sinal de vida:
- Interessante, mas compreensível. Parece que a vítima do acidente na Estrada Cinquenta é um membro proeminente da Mafia de Baltimore e eles vieram para proceder à identificação e recolher declarações.
- Entendido e terminado. Loring baixou a mão em que conservava o transmissor e ponderou a possibilidade de acender um cigarro, mas renunciou, porque o clarão do isqueiro o denunciaria, e tomou a concentrar-se no carro-patrulha. De súbito, acudiu-lhe ao espírito um pormenor curioso, estranho.
Quando se dirigia ao Centro Médico, passara diante de uma esquadra de polícia e avistara diversos veículos estacionados - não pretos e brancos, mas vermelhos e brancos. E se um mafioso acabasse de dar entrada num hospital local, decerto haveria mais de um carro-patrulha para se ocupar do acontecimento.
Portas abertas, polícias a correr... devidamente armados!
- Atenção, Apache!
- Que há, Exterior? - Os polícias ainda estão aí?
- Acabaram de entrar.
- Procurem-nos! Já!
- O quê?
- Não discuta! De armas em punho! Quando puxou da automática 38, depois de guardar o transmissor na algibeira, Charley já transpusera metade do parque de estacionamento, correndo tão velozmente quanto possível em direcção à rampa de emergência. Impeliu as portas de vaivém metálicas sem abrandar a marcha, ante o assombro da recepcionista atrás do balcão à direita, atravessou o longo corredor e avistou o dístico: SALA DE OBSERVAÇõES.
Acercou-se apressadamente, esforçando-se por não produzir ruído, e, de repente, ouviu dois sons abafados e um grito terrível, o que lhe indicou que o instinto não o iludira. Fez uma pausa, para pousar a mão no puxador, e, exercendo pressão com o peso do corpo, transpôs a porta.
Os disparos repetiram-se e explodiram na parede à sua frente. Ele agachou-se, lançou-se ao chão, rolou sobre si próprio e alvejou um uniforme azul, preocupando-se em obedecer à recomendação: nas pernas ou nos pés, quando muito nos braços! É necessário apanhá-lo vivo.
O segundo uniforme azul mergulhou para uma mesa de observações e Loring não dispôs de qualquer alternativa. Visou-o directamente e atingiu-o na garganta. O homem deslizou pesadamente para o chão, ao mesmo tempo que largava a pistola-metralhadora.
Não mates o outro, não mates o outro! As palavras de advertência vibravam-lhe na
mente, enquanto disparava para os tubos fluorescentes e deixava a sala mergulhada na
penumbra, apenas alterada pelo clarão de um candeeiro numa mesa afastada da entrada.
Irromperam três detonações abafadas da escuridão e os projécteis embeberam-se no
estuque e na madeira acima da cabeça de Charley, que rolou furiosamente para a esquerda e
colidiu com dois corpos sem vida. Seriam dos Apaches? Não lhe era possível deterininá-lo, pois, de momento, a única coisa que lhe interessava consistia na captura do suposto polícia sobrevivente. E só havia duas pessoas com vida na sala.
Fora uma verdadeira chacina. Soou uma rajada e ele sentiu o calor excruciante da bala que lhe perfurou o estômago. Todavia, a dor produziu-lhe um efeito estranho, que não dispunha de tempo para analisar. Só podia experimentar a reacção. O espírito explodiu de cólera, porém controlada, com a
fúria concentrada num único objectivo. Sofrera um desaire na operação. Não podia permitir que a situação se repetisse.
Saltou diagonalmente para a direita e embateu numa mesa com rodas, que enviou na
direcção da escuridão de onde irrompera a rajada. No instante em que se apercebeu do contacto violento, ergueu-se rapidamente, segurou na automática com ambas as mãos e apontou-a para outra mão na penumbra. Premiu o gatilho, ao mesmo tempo que ecoavam gritos no corredor.
Tinha de fazer a última coisa. Depois, poderia afirmar que não perdera a partida.
Capítulo trigésimo quarto
O comodoro Thomas Decker entrou na biblioteca da Estéril Cinco, escoltado por dois homens do Serviço Secreto da Casa Branca. O rosto anguloso apresentava uma expressão grave, em que se descortinava uma réstia de determinação e ansiedade. O corpo de ombros largos dentro do uniforme azul revelava que mantinha a forma física apurada, mas era o
semblante que atraía a atenção de Havelock. Lembrava uma máscara rígida na iminência de se desmoronar, e, urna vez iniciado o processo, tudo resultaria mais fácil.
- Obrigado, meus senhores - agradeceu Michael, dirigindo-se aos agentes do Serviço Secreto. - A cozinha é à direita, ao fundo do corredor. Peçam o que lhes apetecer ao
cozinheiro. Suponho que lhes interrompi o jantar e não sei quando isto terminará. Podem servir-se do telefone, se precisarem, claro.
Quando eles se afastaram, Decker observou:
- Também interrompeu o meu e...
- Esteja calado, comodoro. A porta fechou-se atrás dos dois homens e Decker deu alguns passos na direcção da secretária, exteriorizando urna irritação que parecia forçada, possivelmente invocada para substituir o medo. - Tenho um encontro com o almirante James, do Quinto Distrito Naval, esta noite!
- Foi informado de que assuntos mais prementes o impedirão de comparecer.
- Isto é um desaforo! Exijo uma explicação!
- A única coisa que pode exigir é um pelotão de fuzilamento. Julgo desnecessário explicar-lhe porquê.
- É você que me tem telefonado, para me crivar de perguntas? - O oficial arregalou os
olhos e a cor desapareceu gradualmente das faces. - Disse que um homem excepcional como ele não se recorda! É falso!
- É verdade - afirmou Michael, com desprendimento. - Mas não consegue compreender, o que o tem intrigado... porque sabe o que fez.
Decker assumiu uma posição rígida, como um militar que divulgou o número ao seu captor e recusa submeter-se a um interrogatório, ainda que isso envolva torturas.
- Nada tenho a dizer-lhe, Nir. Cross. Suponho que é Cross que se chama?
- Pelo contrário, tem muito para dizer e vai fazê-lo, sob pena de uma determinação presidencial o encerrar na cela mais profunda de Leavenworth. Levá-lo a julgamento seria demasiado perigoso para a segurança do país.
- Não acredito! Não fiz nada de censurável. Eu tinha razão. Nós tínhamos razão!
- Os chefes dos Estados-Maiores e os membros-chaves da Casa Branca e do Senado concordarão. Será uma das poucas ocasiões em que o guarda-chuva da segurança nacional terá validade absoluta.
A máscara desmoronou-se e o medo converteu-se em desespero, enquanto o comodoro murmurava:
- Que dizem eles que fiz?
- Violando o juramento que prestou como oficial e os códigos de sigilo a que está vinculado, reproduziu dezenas dos documentos mais sensíveis da história militar do pais e levou-os do Pentágono.
- E a quem os entreguei? Responda lá a isto.
- Não interessa.
- Interessa, sim!
- Não tinha autorização.
- Esse homem possui toda a autoridade necessária! - A voz tremia-lhe, ao mesmo tempo que tentava dominar-se. - Exijo que chame o secretário de Estado, Matthias, ao telefone.
Havelock afastou-se da secretária e do telefone, declarando:
- Recebi ordens bem precisas do presidente e de alguns dos seus conselheiros mais próximos. O secretário de Estado não deve ser importunado sob pretexto algum relativo a este assunto. Ignoro porquê, mas foi o que me ordenaram.
Decker deu mais um passo, agora hesitante, e balbuciou:
- O presidente? Os seus conselheiros?... Claro que não querem que o importunem, porque tem razão e eles não. Têm medo e ele não! Supõe que, se eu desaparecesse, não saberia o que aconteceu? Julga que não enfrentaria o presidente e seus conselheiros, para os obrigar a uma explicação? Referiu-se aos chefes dos Estados-Maiores e aos membros da Casa Branca e do Senado. Ele podia convocá-lo e demonstrar-lhe que temos uma Administração fraca, ineficiente e imoral! Não restaria Administração alguma! Seria repudiada, amputada, derrubada!
- Por quem, comodoro?
- Pelo povo, Mr. Cross. - O interpelado empertigou-se, como o condenado consciente de que a justiça final lhe proporcionará o perdão. - O povo desta nação sabe reconhecer um gigante. Não lhe voltará as costas só porque um político sem valor e os seus balbuciantes conselheiros lho ordenam. Não o suportará! O mundo lamentou a perda da firmeza de pulso dos governantes, nas últimas décadas. Pois bem: produzimos um grande dirigente e o mundo sabe-o. Aconselho-o a chamar Anthony Matthias ao telefone. Não precisa de dizer nada. Eu falarei com ele.
- Acredita na verdade que podia haver uma confrontação? - Havelock conservava-se imóvel e a voz reflectia uma ponta de incerteza. - O presidente... impugnado?
- Tem alguma dúvida? Onde houve um homem corno Matthias, nos últimos trinta anos?
Regressou à secretária e instalou-se pesadamente na cadeira rotativa, após o que indicou:
- Sente-se, comodoro.
- Creio que nos exprimimos com certa aspereza e, por minha parte, peço desculpa -
disse o oficial, ocupando a cadeira que Michael colocara propositadamente diante da secretária. - Mas deve reconhecer que temos razão.
- Preciso de saber mais elementos. Sabemos que levou cópias de estratégias pormenorizadas elaboradas pelas Comissões de Contingência Nuclear, documentos que revelavam todas as existências nos nossos arsenais, além dos resultados das nossas mais profundas penetrações nos sistemas soviético e chinês. Entregou-as a Matthias ao longo de vários meses, mas nunca compreendemos porquê. Se me pudesse elucidar, indicar uma razão... Porquê?
- Pelo motivo mais óbvio do mundo, que se relaciona com a palavra-chave da designação dessas comissões. "Contingência. " Contingência, Mr. Cross, sempre contingência! Reacção... reacção a isto, reacção aquilo! Sempre a replicar e nunca a iniciar! Não
precisamos de contingências. Não podemos permitir que os nossos inimigos pensem que nos limitaremos a responder. Necessitamos de um plano director, inteirá-los de que possuímos um que garantirá a sua destruição total, se transgredirem. A nossa força e sobrevivência já não se podem basear na defensiva, mas na ofensiva! Anthony Matthias entende isto. Os outros receiam enfrentá-lo.
- E você ajudou-o a desenvolver esse... plano magistral?
- Orgulho-me de afirmar que contribuí. Sentei-me diante dele, hora após hora, para analisarmos todas as opções nucleares concebíveis, todas as respostas soviéticas e chinesas possíveis, sem descurar uma única eventualidade.
- Quando se encontraram?
- Todos os domingos, durante várias semanas consecutivas. - Decker baixou a voz, juntando o tom confidencial ao desespero que ainda o assolava. - Ele fez-me ver a natureza altamente secreta do nosso relacionamento, pelo que me deslocava num carro alugado à cabina na Virgínia, onde nos reuníamos sem testemunhas.
- Sei onde é. Estive lá. - Michael fechou os olhos por um momento, Na verdade, conhecia o local perfeitamente. Uma pequena cabina, onde Anton trabalhava nas suas
projectadas memórias. - Mais alguma coisa? Creia que lhe tenho prestado atenção, comodoro.
- É, na verdade, um homem brilhante - continuou o outro, quase num murmúrio. Aquele espírito penetrante, a profundidade de cada observação, a apreensão das realidades globais... tudo realmente notável. Um estadista como Anthony Matthias pode conduzir a
nação ao seu zénite, levando-nos aonde devemos estar aos olhos dos homens e de Deus. Sim, fiz o que fiz e repeti-lo-ia, porque sou patriota. Amo a minha pátria corno as Escrituras, e sacrificaria a vida por ela, ciente de que conservaria a honra... Não existe alternativa, Nir. Cross. Nós temos razão. Pegue no telefone e informe Matthias de que estou aqui. E eu
dir-lhe-ei a verdade. Homens mesquinhos e insignificantes que veneram ídolos surgiram da terra e tentam destruí-lo. Ele esmagá-los-á... com a nossa ajuda.
Havelock reclinou-se na cadeira, o cansaço e a futilidade tão intensos como nunca no seu espírito.
- Com a nossa ajuda - repetiu em voz tão baixa, que quase não se deu conta de que falara.
- Sem dúvida!
- Seu filho da mãe hipócrita! - disparou, meneando a cabeça.
- O quê?!
- Ouviu bem. Seu filho da mãe hipócrita! - Encheu os pulmões de ar e prosseguiu apressadamente: - Quer que telefone a Matthias? Oxalá pudesse, só para observar a sua
expressão quando ouvisse a verdade.
- Que está para aí a dizer?
- Ele não o reconheceria, tal como não sabe quem é o presidente, seus conselheiros, subsecretários ou diplomatas com os quais trabalha todos os dias... ou eu próprio, que o conheço há mais de vinte anos.
- Está... está enganado! Não pode ser!
- Pode, sim, comodoro! Matthias desmoronou-se. Ou, mais precisamente, nós desmoronámo-lo. O espírito brilhante que mencionou desapareceu. Desintegrou-se. E você contribuiu. Deu-lhe a autoridade suprema, a responsabilidade final. Roubou os segredos do mundo... sim, do mundo, e disse-lhe que o seu génio podia ocupar-se deles. Pegou num milhar de factos e uma centena de estratégias teóricas, misturou-os e converteu-os na arma mais terrível que a Terra jamais conheceu. O projecto da aniquilação total.
- Nao foi isso que fiz!
- De acordo, não se lhe deve tudo, mas forneceu a... como lhe chamam os luminares do
Pentágono... estrutura de apoio. Forneceu a estrutura de apoio para uma ficção tão real, que não existe um perito em matéria nuclear que não a aceitasse como uma realidade.
- Limitámo-nos a discutir, analisar, destacar opções.! O projecto firial seria da autoria dele. Você não pode compreender. Possuía uma faculdade de assimilação brilhante! Não havia nada que não entendesse. Era incrível!
- Eram as reacções de uma mente moribunda, na iminência de se tomar um vegetal convoluto. Queria que você acreditasse, e ainda lhe restava talento suficiente para o convencer.
- Convenci-me, e você não reagiria de maneira diferente! Ele apelava para uma verdade em que acredito. Temos de ser fortes!
- Não conheço nenhuma pessoa com um mínimo de sensatez que discordasse disso, mas há espécies e graus de força diferentes. Uns funcionam... em geral discretamente, e outros não, porque estão inchados de belicosidade. O selvagem explode devido à sua própria tensão, não se pode conter, tem de flectir. E acaba por comprometer tudo, pondo em movimento uma dezenas de respostas que são, em si, explosões.
- Quem é você? O que é você?
- Um estudante de história que se desviou do rumo. Mas eu não estou em causa. Você, sim. Tudo o que forneceu a Matthias encontra-se ao alcance dos soviéticos, comodoro. Esse plano magistral, que, na sua opinião, devia ser divulgado ao mundo, pode estar a caminho de Moscovo, com todos os pormenores. E isto porque o homem a quem o proporcionou enlouqueceu, estava prestes a enlouquecer, quando lhe entregou o material.
- Não acredito - articulou Decker, erguendo-se com lentidão.
- Nesse caso, por que estou aqui? Faz nina ideia do que significa para o país inteirar-se de que a mente do seu secretário de Estado foi destruída? Devo recordar-lhe, comodoro, que não possui o monopólio do patriotismo.
Baixou os olhos para Havelock, até que não pôde suportar a expressão incisiva deste e os desviou.
- Ludibriou-me. Obrigou-me a dizer coisas que devia guardar para mim.
- É a minha missão.
- Tudo terminou para mim. Estou liquidado.
- Talvez não. A partir deste momento, penso que é o candidato menos provável como risco de segurança no Pentágono. Foi queimado por uma lenda e nunca esquecerá a dor resultante. Ninguém melhor do que eu sabe como Matthias podia ser persuasivo... Precisamos de ajuda e não de sentenças de prisão. O seu envio para Leavenworth, comodoro, só serviria para levantar dúvidas que ninguém deseja ver abordadas. Participamos numa corrida cega e existe uma possibilidade de nos poder auxiliar.
- De todas as maneiras ao meu alcance - assentiu, pálido como um cadáver. Como?
- Para já, nada do que lhe disse deve ser divulgado - advertiu Michael, contornando a secretária, para o encarar.
- Com certeza.
- Só serviria para se enforcar.
- Para enforcar o país. Posso não ter o monopólio do patriotismo, mas sou patriota. Volveu o olhar para o sofá e lembrou-se da ausência de Jetina. Como tinham concordado que a sua presença seria inibitiva, ficara no quarto. Ou, mais exactamente, insistira em não assistir ao interrogatório. Havelock moveu-se lentamente até à parede, fixou o olhar numa placa de bronze e declarou:
- Vou formular mais uma conjectura. Chegou um momento em que Matthias não o quis receber. Acertei?
-- Sim. Telefonei-lhe repetidamente (não para o seu gabinete, claro), mas nunca queria atender.
- Não para o gabinete? - estranhou, voltando-se. - Mas telefonou para lá. Foi por isso que me inteirei do seu nome.
- Apenas três vezes. Duas para comunicar que havia conferências ao domingo no Pentágono e a outra para o informar de que ia dar entrada no hospital, a fim de ser submetido a uma pequena intervenção cirúrgica, na sexta-feira, e esperava ter alta na terça ou na quarta seguintes. Mostrou-se muito solícito, mas recomendou-me que não voltasse a ligar para o Departamento de Estado.
- Passou a telefonar para a cabina, em Shenandoah?
- Não, para a residência, em Georgetown.
- Isso foi mais tarde?
- Sim. Eu ligava todas as noites, mas ele não atendia. Procure compreender, Mr. Cross. Achava-me ciente do que fizera, da enormidade da violação cometida. Note que, até há poucos minutos, nunca me arrependi. Não posso alterar as minhas convicções, estão ameigadas no meu intimo. No entanto, há cinco ou seis meses, senti-me alarmado, abandonado...
- Estivera sob efeito de um dos narcóticos mais poderosos do mundo, Anthony Matthias. De repente, deixou de o poder consumir.
- Sim, era isso. De um momento para o outro, sem entender porquê, o meu relaciona- mento com a individualidade suprema terminava. Supus que tinha feito alguma coisa que lhe desagradara ou o material não possuía o valor que supusera. Só sabia que fora colocado à margem sem a mínima explicação.
- Compreendo - murmurou Michael, recordando-se da noite em Cagnes-sur-Mer, quando o seu prítel se negara a atender o telefone, do outro lado do Atlântico. - Admira que não insistisse, comodoro. Na verdade, tinha direito a uma justificação.
- Não foi necessário. Acabei por obtê-la.
- O quê?
- Uma noite, após mais uma tentativa para lhe falar, um homem telefonou-me. Um homem muito estranho...
A campainha do telefone interpôs-se, para quebrar a linha tensa de concentração, e Michael precipitou-se para o aparelho, cujo som persistente indicava Emergência.
- É Loring - anunciou uma voz estrangulada. - Fui atingido... Não corro perigo, mas fui atingido.
- Onde está?
- Num motel da Estrada Trinta e Sete, perto de Harrington. O Pheasant Run. Cabina Doze.
- Vou mandar um médico.
- Um médico muito especial. Recorra ao campo de Denton.
- Que quer dizer?
- Tive de me safar de lá. Utilizei um carro-patrulha...
- Um carro-patrulha?... Porquê?
- Depois lhe explico. Tudo... Um médico especial, com a maleta cheia de agulhas.
- Fale claro, homem!
- Trouxe um dos filhos da mãe. Está atado na cairia, completamente despido. Não lhe encontrei cápsulas, nem lâminas. Apanhei um!
Havelock premiu os botões do telefone da Estéril Cinco um após outro, para transmitir ordens sucessivas, enquanto o comodoro Decker permanecia rigidamente de pé, no outro lado da sala, observando e escutando, como um cruzado cuja causa se houvesse desmoronado. O presidente foi informado, e desenvolviam-se diligências para encontrar um médico muito especial, a fim de seguir de helicóptero para Maryland, acompanhado por um piquete do Serviço Secreto. Havia um segundo helicóptero preparado para descolar, assim que
Michael chegasse ao aeródromo de Quântico, a dez quilómetros de distância. Seria conduzido de carro, escoltado pelos agentes do Serviço Secreto que tinham levado Decker à Estéril Cinco. O derradeiro telefonema efectuado por Havelock destinou-se a Jenna, que aguardava no quarto.
- Tenho de me ausentar. Loring foi ferido em Maryland, mas parece que capturou um viajante. O nosso homem ainda não despejou todo o saco. Encarrega-te do resto. Até logo.
- Pousou o auscultador e voltou-se para o cada vez mais atemorizado oficial naval. -
Vem aí uma senhora para tomar nota das suas declarações, comodoro. Ordeno-lhe... ordeno-lhe que não omita um pormenor. A sua escolta voltará dentro de uns vinte minutos. Depois, pode retirar-se, se ela concordar. Uma vez em casa, não saia, seja sob que pretexto for. Previno-o de que fica sob vigilância.
- Perfeitamente, Mr. Cross. Encaminhou-se para a porta, pousou a mão no puxador e, de súbito, virou-se para trás.
- A propósito: ela é Mrs. Cross.
Todo o tráfego de baixa altitude fora desviado para outros lugares, quando os dois helicópteros pousaram no aeródromo particular de Denton, Maryland, chegando o aparelho proveniente do Hospital Naval de Bethesda onze minutos antes do de Quântico. Havelock atravessou a pista apressadamente em direcção ao carro de comando enviado de Anapolis, conduzido por um sargento conhecedor da rede de estradas da Costa Oriental, na baía Chesapeake. No entanto, este último desconhecia a razão da operação para a qual fora escalado, e o mesmo se aplicava aos outros, incluindo o médico, que recebera instruções para se ocupar de Charley LÁring em primeiro lugar e não administrar coisa alguma ao prisioneiro até que Estéril Cinco aparecesse. Entretanto, tinham sido enviados dois carros da polícia ao motel Pheasant Run, cujos ocupantes seriam elucidados pelo Serviço Secreto do que deviam fazer.
Segundo parecia, a função primordial do motel consistia em servir de local de reunião de pessoas que não desejavam estar juntas mais de um par de horas. A gerência aceitava as idiossincrasias da clientela sem protestar, e Loring conservara o facto em mente ao optar por aquele lugar. Um homem flagelado por dores resultantes de ferimentos encobertos, sem bagagem, mas com um prisioneiro que desejava ocultar, não podia apresentar-se na recepção de um hotel de categoria.
Havelock agradeceu ao sargento e indicou-lhe que regressasse a Anapolis, com a recomendação de que a emergência exigia sigilo absoluto. Além disso, Washington anotara o seu nome e a sua cooperação seria tomada na devida consideração para efeitos de uma
promoção prematura.
Um funcionário do Governo, exibindo uma insígnia metálica na palma da mão, interceptou-o, quando percorria a passagem entre as cabinas, em busca da número doze.
- Estéril Cinco - informou Michael, apercebendo-se pela primeira vez dos dois veículos da polícia estacionados na sombra.
- Siga-me, por favor. À distância, nas traseiras da Cabina Doze, via-se o capot de um automóvel, cujo aspecto não correspondia ao de um modelo vulgar. Uma faixa branca que terminava em forma de seta alterava a cor preta que cobria o resto. Era o carro-patrulha de que Loring se apoderara, única indicação de que porventura perdera parte do autodomínio tão útil até então. Alguém de Washington teria de contactar uma esquadra de polícia alarmada em Maryland, a fim de que suspendessem as buscas para localizar uma viatura roubada.
- Fico cá fora - declarou o agente federal. - Cuidado com os degraus, que estão soltos.
Havelock transpô-los apressadamente e fez rodar o puxador, porém a porta estava fechada por dentro.
- Quem é? - perguntou alguém, do interior.
- Estéril Cinco. A poria abriu-se, para revelar um homem de cabelos ruivos, que aparentava cerra de trinta e cinco anos e uma expressão desconfiada.
- Havelock?
- Exacto.
- Taylor. Entre, e temos de conversar depressa. Michael obedeceu e viu-se num quarto de pequenas dimensões. Na cama encontrava-se um homem desnudo, com as mãos ensanguentadas e os pés atados à armação, enquanto a boca se achava impedida de produzir sons elevados por uma gravata azul.
- Onde está?... Taylor gesticulou para o canto oposto. No chão, com a cabeça pousada numa almofada e sob um cobertor, encontrava-se Charley Loring, de olhos entreabertos, aturdido ou em estado de choque. Havelock preparava-se para se aproximar, todavia o médico puxou-o pelo braço.
- É sobre isso que precisamos conversar. Não sei o que se passa, mas não me responsabilizo pela vida daquele homem, se não der entrada no hospital há uma hora. Faço-me compreender?
- O mais depressa possível, mas não já - replicou Michael, meneando a cabeça. -
Tenho de o interrogar. É a única pessoa capaz de me fornecer a informação de que necessito. Todas as outras morreram.
- Talvez não ouvisse bem. Eu disse há uma hora.
- Ouvi, mas sei o que devo fazer. Lastimo.
- Não simpatizo consigo - resmungou Taylor, recolhendo o braço, como se tivesse contactado algo de hediondo.
- Prometo ser breve. Creia que ele também deseja que seja assim. Havelock acercou-se de Loring, ajoelhou e baixou o rosto para junto do dele.
- É Havelock, Charley. Ouve-me?
O outro abriu um pouco mais os olhos e os lábios estremeceram, numa tentativa para formar as palavras. Por fim, o murmúrio surgiu:
- Sim. Oiça... muito bem...
- Vou explicar-lhe o que apurei, aliás muito pouco. Incline a cabeça se o que eu disser corresponder à verdade e abane-a no caso contrário. Não desperdice palavras nem energias. Entendido? - O agente das Operações Consulares inclinou-a e Michael prosseguiu: -
Falei com os polícias, que tentam reconstituir os factos. Segundo eles, uma ambulância compareceu no Centro Médico com uma vítima de acidente de viação e a mulher, e Randolph, outro médico e uma enfermeira apressaram-se a examiná-lo, para avaliar a extensão dos ferimentos. - Loring abanou a cabeça, todavia ele continuou: - Deixe-me acabar e depois recapitularemos. Ainda não haviam passado cinco minutos, quando chegaram dois polícias, que se dirigiram aos nossos supostos cardiologistas. Desconhece-se o que disseram, mas foram admitidos na Sala de Observações. - O ferido voltou a menear a cabeça. - Pouco depois, um terceiro homem (você, sem dúvida) surgiu a correr e estabeleceu-se então o pandemónio. - Loring inclinou a cabeça.
Havelock respirou fundo e reatou a descrição:
- O pessoal da casa ouviu tiros, uns cinco ou seis. Apavorados, uns precipitaram-se para a saída, enquanto outros se escondiam em quartos de pacientes ou nas salas, ao mesmo tempo que tentavam telefonar. Quando o tiroteio se interrompeu, alguém dos que se encontravam no exterior viu você sair pela porta de emergência, acompanhado de um polícia, que coxeava, ao qual apontava a arma, e afastarem-se num carro-patrulha. As autoridades procuram averiguar quem era o outro polícia, mas as identificações foram obtidas de documentos na posse de alguns dos corpos, não todos. - Desta vez, Loring
sacudiu a cabeça com veemência, todavia Michael tocou-lhe no ombro e recomendou: -
Calma, que depois voltaremos a analisar tudo. Não preciso de lhe dizer que foi uma autêntica razia: Randolph, o outro médico, a enfermeira, a vítima do acidente, a mulher e os agentes da unidade Apaclie. Foram encontradas duas armas automáticas equipadas com
silenciadores. Os tiros ouvidos provieram da sua pistola. À parte o que acabo de lhe descrever ninguém sabe com exactidão o que aconteceu. Vamos lá, então, recapitular.
O acidente de viação.
- Não houve acidente nenhum - sussurrou Loring.
- Por que diz isso?
- Não eram polícias. Havelock volveu os olhos para o homem imobilizado na cama e o uniforme azul amarfanhado no chão.
- Claro... E o carro-patrulha era simulado. Eles dispõem de dinheiro mais que suficiente para operações dessas.
- O homem e a mulher... da ambulância... do acidente. Algum elemento de... identificação?
- Não.
- E os polícias também não?
- Exacto.
- O acidente. - Loring fez uma pausa para recobrar o alento. - Demasiado fácil. Homem ferido... mulher que não sai do seu lado. Entram... na sala... médico, enfermeira... Randolph... abateram-no.
- Como sabiam que Randolph se encontrava na Sala de Observações?
- Não interessa. Podiam dizer ao médico... ou à enfermeira que o chamasse... sob a ameaça da pistola.
- E os polícias?
- Cheios de pressa... corriam como demónios. Foram enviados para suspender a execução.
- Como chegou a essa conclusão?
- Deixaram as portas do carro abertas. Não era normal... O agente da Apache disse que a vítima do acidente era um mafioso e os. .. polícias pretendiam interrogá-lo. Se fosse, haveria uma dúzia de carros e não apenas um. - Foi interrompido por um acesso de tosse, e surgiu-lhe um fio de sangue no canto da boca.
- Francamente... - Taylor aproximou-se e sacudiu a cabeça. - Por que não lhe mete uma bala na cabeça?
- Por que não mete uma na sua? - Havelock concentrou-se de novo em Loring. - Por que pensa que foram enviados para suspender a execução?
- Não sei... Talvez me vissem... Sou capaz de ter comprometido tudo de novo.
- Não acredito.
- Escusa de estar com amabilidades... Posso aguentar mais um desaire... É da idade.
- Então, revele-nos os seus instintos, Matusalém, porque os necessitamos. Não comprometeu coisa nenhuma. Trouxe-nos um deles, Charley.
- Diga-me uma coisa, Havelock... Aquele filho da mãe é um... viajante?
- Julgo que sim.
- Então... talvez não esteja tão velho como pensava. Michael endireitou-se e voltou-se para o médico, atrás dele.
- Pronto, Taylor. Providencie para que lhe prestem a melhor assistência, em Bethesda.
- Sim, senhor - replicou o médico, sardonicamente. - Nada mais, senhor?
- Prepare a sua caixinha mágica, porque vai entrar em funções.
Loring foi levado numa maca por dois paramédicos, portadores de instruções especiais transmitidos por Taylor. Em seguida, este virou-se para Havelock e perguntou:
- Podemos começar?
- E os ferimentos? - inquiriu Michael, indicando o braço direito e o pé esquerdo ensanguentados do homem imobilizado na cama.
- O seu amigo aplicou garrotes onde eram necessários e eu juntei-lhe adesivo. A hemorragia foi estancada. Dei-lhe, naturalmente, uma injecção, para que conservasse as ideias lúcidas.
- Isso vai interferir no efeito dos produtos químicos?
- Se interferisse, não a administrava.
- Então, vamos a isso. Não posso perder tempo. Taylor dirigiu-se à maleta, que se encontrava aberta em cima de uma mesa junto da janela, inspeccionou o conteúdo por um momento, extraiu três ampolas e outras tantas seringas hipodérmicas e pousou-as na borda da cama, ao lado do homem, o qual ergueu a cabeça e contraiu as faces num trejeito de histerismo, ao mesmo tempo que se debatia. Depois imobilizou-se, dominado pela dor no braço, e fixou o olhar no tecto. Então, e de modo abrupto, parou de respirar, contendo o ar nos pulmões, e as faces começaram a adquirir um tom avermelhado, os olhos desmesuradamente abertos.
- Que diabo!... - começou o médico.
- Saia da frente! - bradou Havelock, desviando-o e atingindo o estômago do assassino com o punho.
Acto contínuo, o ar pareceu explodir da boca fechada do viajante e a expressão regressou gradualmente à normalidade.
- Safa! - articulou Taylor, adiantando-se para evitar que as ampolas rolassem da cama. - Que foi aquilo?
- Tem na sua frente um caso que talvez nunca se lhe apresentasse em toda a carreira. Estes tipos estão programados como autómatos para matar quem lhes ordenam, sem sentir a mínima preocupação. E isto aplica-se também a eles próprios.
- Então, não quererá negociar. Pensei que, ao ver estas coisas...
- Nunca. Quando muito, tentava ganhar tempo com um estenda] de mentiras. Adiante, doutor.
- Como quer fazer? Por fases, para que retroceda um passo de cada vez, ou prefere arriscar o máximo. É o método mais rápido, mas envolve riscos.
- Quais são os piores?
- Incoerência. Frases desconexas, sem sequência lógica.
- Sem sequência lógica? É o que nos convém. Proceda da melhor maneira para estimular reacções programadas.
- As coisas não funcionam bem assim. O afluxo toma-se destituído de forma. A dissociação é a primeira reacção. A chave consiste em empregar determinadas palavras...
- Já disse tudo o que eu queria ouvir e, por outro lado, estamos a perder tempo.
- Parece-lhe? - Com a rapidez e a eficiência de um cirurgião que colmatava uma erupção interna repetiria, Taylor quebrou a extremidade de uma ampola, introduziu a agulha da seringa, puxou o êmbolo desta e cravou-a na coxa do homem antes que este se apercebesse do que sucedia. Acto contínuo, o viajante começou a contrair-se violentamente e tentou libertar-se, rolando a cabeça de um lado para o outro e soltando gritos abafados. -
Quanto mais fizer isto, mais depressa surge o efeito. Um ou dois minutos devem bastar.
Entretanto, Michael observava, fascinado e revoltado, como sempre que assistia ao efeito daqueles produtos químicos num ser humano. Necessitou mesmo de se recordar de que o assassino ceifara várias vidas, poucas horas antes. Quantas pessoas as chorariam, sem jamais compreender? E quantas se deviam a um certo Michael Havelock, por cortesia de Anthony Matthias? Dois oficiais de carreira, um jovem médico, uma enfermeira e um
cirurgião chamado Randolph, cujo único crime consistira em tentar reparar uma situação terrível.
Futilidade.
- Está quase - anunciou Taylor, examinando os olhos vítreos do prisioneiro, cujos movimentos se resumiam agora a pequenos espasmos, acompanhados de gemidos.
- Deve sentir-se feliz com o trabalho que executa, doutor.
- Fui sempre um garoto abelhudo - replicou o ruivo, retirando a gravata da boca do viajante. - De resto, alguém tem de o fazer, e o Tio financiou-me os estudos, enquanto o meu velho absorvia álcool no saloon de O'Rourke. Pagarei a dívida e sairei.
Não encontrando resposta adequada para o desabafo, Havelock debruçou-se sobre a cama, enquanto o médico se desviava.
- Posso começar?
- Fale. Ele é o seu problema de palavras cruzadas.
- Ordens - principiou, acercando o lábios do ouvido do homem. - Ordens, ordens, ordens. Nenhum de nós pode actuar sem ordens! Mas precisamos de ter a certeza, para não haver enganos. Quem pode confirmar as nossas ordens, confirmá-las agora?
A cabeça do prisioneiro moveu-se para os lados, abrindo e fechando a boca, sem todavia emitir o mínimo som.
- É uma emergência... uma emergência. Temos de nos apressar...
- Apressar... apressar - repetiu o homem, num murmúrio quase inaudível.
- Mas como poderemos ter a certeza? Precisamos de ter a certeza.
- O voo... o voo foi suave. Ouvimo-lo duas vezes. É a única coisa que temos de saber.
O voo... suave.
- Claro. Um voo suave. Agora, estamos bem. Podemos apressar-nos... Voltemos atrás... antes da emergência. Descontrai-te. Dorme.
- Muito bem - aprovou Taylor. - Centrou-o mais rapidamente do que jamais vi. Isso foi uma reacção.
- Resultou fácil - disse Havelock, endireitando-se e contemplando o viajante. -
Desde que recebeu a ordem, fixaram-se-lhe três ideias na mente: emergência, rapidez e autorização. As instruções consistiam em matar (uma ordem extrema e perigosa), pelo que a autorização se revestia de importância vital. Como ouvimos, quis escutá-la duas vezes.
- O código era "voo suave". Ele revelou-lho e agora você vai devolver-lho. Segue pelo bom caminho.
- E o senhor não é um amador. Importa-se de me chegar uma cadeira? Também tenho a rapidez e a emergência na mente. As coisas podem começar a aquecer. - Sentou-se, pousou as mãos na borda da cama e tomou a dirigir-se ao prisioneiro. - Temos um voo suave... um voo suave... um voo muito suave. Agora, mata o teu companheiro! - O homem sacudiu a cabeça e os lábios moveram-se para protestar, embora não se registasse qualquer som. - Ouviste? Temos um voo suave. Portanto, mata-o!
- O quê?... - As palavras sussurradas eram guturais. - Porquê?
- És casado? Diz-me, uma vez que estamos num voo suave. Zs casado?
- Sim... sim, sou.
- Matas a tua mulher?
- Porquê?
- Estamos num voo suave! Não podes recusar!
- Porquê... porquê.
- Mata o teu companheiro! Mata a tua mulher! Tens filhos?
- Não! - O viajante arregalou os olhos, que emitiam um clarão intenso, apesar da expressão vítrea. - Não pode exigir isso... nunca!
- Posso, sim! Um voo suave! De que mais precisas?
- Autorização. Exijo autorização! E indispensável!
- De onde? De quem? Já te expliquei. Estamos num voo suave! É isso!
- Por favor!... Mate-me... estou confuso...
- Porquê? Ouviste as minhas ordens, assim como as referentes ao dia de hoje. Fui eu que tas dei?
- Não.
- Não? Não te lembras? Então, quem foi?
- A viagem... o voo suave. O... controlo.
- Controlo?
- A fonte.
- O controlo da fonte! O teu controlo da fonte. Eu sou o teu controlo da fonte! Mata
* teu companheiro! Mata tua mulher! Mata os filhos! Todos os filhos!
- Não me peça isso... por favor, não me peça.
- Não peço. Exijo, dou ordens! Queres dormir?
- Quero.
- Não podes! - Michael dirigiu-se ao médico em voz baixa. - Quanto tempo dura
* efeito?
- Se continua a consumi-lo dessa maneira, metade do nomial. Mais dez minutos, quando muito.
- Prepare outra.
- Vai projectá-lo no espaço.
- Depois desce.
- O médico é você - ironizou Taylor.
- Sou o teu controlo da fonte! - bradou Havelock, abandonando a cadeira e debruçando-se sobre o viajante. - Não tens mais ninguém, paminyatchik! Farás o que eu te mandar e só o que eu te mandar! Portanto, o teu companheiro, tua mulher, os filhos...
- Ahhh!... - O grito prolongou-se, como se o estimulasse uma fonte de energia interior.
- Ainda mal comecei... - Voltou-se de novo para o médico. - Agora. Taylor mergulhou a agulha no braço do prisioneiro e a reacção registou-se quase imediatamente. Os gritos converteram-se em uivos animais, enquanto a saliva lhe deslizava pelos cantos da boca.
- Prova-mo! - rugiu Havelock. - Prova-o ou morrerás com todos os outros! Companheiro, mulher, filhos... morrerão todos, a menos que proves a tua fidelidade. Agora, neste instante!... Qual é o código do teu controlo de fonte?
- Martelo-zero-dois! Você conhece-o!
- Pois conheço. Onde podem contactar comigo? Não mintas!
- Não sei... não sei! Telefonaram-me... telefonam a todos.
- Quando precisas de autorização! Quando tens informações para transmitir. Como contactas comigo, quando precisas de autorização ou tens informações para transmitir?
- Falo com eles... Todos o fazemos.
- Quem?
- órfão. Contactar... órfão.
- órfão?
- Noventa e seis.
- órfão-noventa e seis? Onde está? Onde?
- ó ... r ... f .. à...
O último grito era dilacerante. O viajante debateu-se com fúria e conseguiu libertar o braço esquerdo, até que arqueou o corpo num espasmo e se afundou na cama, inconsciente.
- Tem a sua conta - afirmou Taylor, pegando-lhe no pulso. - Nem consigo contar as pulsações. Não fica em condições de aguentar nova injecção antes de decorridas oito horas.
Lamento... doutor.
- Não tem importância, doutor - proferiu Michael, afastando-se da cama e puxando do maço de tabaco. - Podia ser pior. É um químico estupendo.
- Faz-se o que se pode.
- Noutras circunstâncias, talvez... - Interrompeu-se, para acender o cigarro.
- O quê?
- Convidava-o para tomar uma bebida. Confesso que me apetece.
- Pode convidar à vontade. Enviarei aqui o nosso Boris para uma clínica.
- Boris?... Então, sabe?
- O suficiente para me convencer de que não é um escuteiro.
- Talvez fosse.
- Esclareça-me uma dúvida. Um controlo da fonte podia ordenar-lhe uma coisa dessas... matar a mulher e os filhos?
- Moscovo nunca se arriscaria a esse ponto. Estes tipos funcionam como autómatos, mas têm sangue nas veias e não óleo. São comandados permanentemente, e se o KGB os quer fora da circulação, envia uma equipa de execução. Uma família normal faz parte do disfarce e, ao mesmo tempo, constitui um vínculo suplementar. Se o fulano se sente tentado, sabe o que acontece aos parentes.
- Você utilizou a mesma arma, mas ao contrário.
- É verdade, embora não me orgulhe da proeza.
- Valha-nos Santa Maria! Michael acompanhou os movimentos de Taylor com o olhar enquanto se aproximava do telefone para transmitir instruções através do Hospital Central de Bethesda. O telefone. órfão-96.
- Um momento! - exclamou, subitamente.
- Que foi?
- Deixe-me telefonar. - Levantou o auscultador e accionou o marcador, ao mesmo tempo que pronunciava o número em voz alta: - ó-r-f-ã-o... nove seis.
- Telefonista - informou a voz feminina, do outro lado do fio.
- O quê?
- Trata-se de uma chamada à cobrança, debitada a um cartão de crédito ou a outro número?
- Cartão de crédito. Fixou os olhos na parede e tentou recordar o número que lhe fora atribuído pelo Departamento de Estado, impossível de confirmar por uma entidade estranha. Por último, indicou-o à telefonista e não tardou a ouvir o sinal característico de ligação estabelecida.
- Boa tarde e obrigada por telefonar ao Voyagers, Emporium, fornecedor de malas para o viajante sofisticado. Se mencionar o número ou números do artigo ou artigos do nosso catálogo que pretende adquirir, pô-lo-emos em contacto com o representante apropriado do nosso departamento de serviço permanente.
Apressou~se a pousar o auscultador, ciente de que necessitava conhecer outro código. Encontrá-lo,~ia na clínica. Tinha de o encontrar. Falo com eles. -Todos o fazemos... Ambiguidade achava-se do outro lado desse código.
- Alguma coisa? - perguntou Taylor.
- Compete-lhe dizer-mo, doutor. Ouviu falar do Voyagers Emporium? Não o conheço, pois comprei as malas no estrangeiro durante vários anos.
- Voyagers? Com certeza. Tem filiais espalhadas por todo o país. Minha mulher adquiriu uma daquelas malas em que se colocam fatos sem os amarrotar, mas, quando recebi a conta, julguei que comprara um carro.
- Pertence ao KGB. É nisso que vai trabalhar a seguir. Cancele todos os compromissos
e acompanhe o nosso viajante à clínica. Precisamos de mais um conjunto de números. Só mais um. - Soaram passos pesados lá fora, seguidos de uma pancada seca na porta. -
Quem é? - perguntou Michael, em tom apenas suficientemente elevado para ser ouvido do outro lado.
- Chamam-no, Estéril Cinco. Comunicação urgente na rádio da polícia estatal. Deve seguir para o aeródromo sem demora.
- Vou já. - Virou-se de novo para o médico. - Trate dos preparativos e não saia do lado dele. Darei notícias, mais tarde. A bebida terá de ficar para outra oportunidade.
- Assim como Paddy O'Rourke
- Quem diabo é Paddy O'Rourke?
- Um homenzinho sentado no meu ombro, que me aconselha a não pensar de mais.
Michael subiu para o helicóptero da Marinha e o piloto fez-lhe sinal para que se aproximasse da vanguarda da cabina.
- Há um telefone, lá à frente! - bradou. - Quando fechar a porta, o barulho diminui e nessa altura efectuamos a ligação.
- Quem é.
- Nunca o saberemos! - replicou o radiotelegrafista, voltando-se da consola junto do anteparo. - A linha está filtrada.
A pesada porta foi fechada electronicamente e, na verdade, o ruído atenuou-se. Havelock acercou-se do telefone e levou-o à orelha direita, enquanto cobria a outra com a mão. A voz que vibrou na linha era a do presidente dos Estados Unidos.
- Vão conduzi-lo directamente à Base da Força Aérea de Andrews, para se encontrar com Arthur Pierce.
- Há alguma novidade?
- Ele desloca-se à ilha Poole com o especialista de cofres fortes, mas primeiro quer falar consigo. Está assustado, e não creio que se impressione com facilidade.
- Os soviéticos?
- Sim. Não sabe se aceitaram ou não a sua versão. Escutaram-no em silêncio, inclinaram as cabeças e acompanharam-no à porta. Desconfia que, nas últimas horas, souberam alguma coisa importante, que não querem divulgar e pode acelerar os acontecimentos. Advertiu-os de que não tomassem nenhuma decisão precipitada sem um contacto a alto nível.
- Qual foi a resposta?
- Desencorajadora. "Preocupem-se com os vossos problemas."
- Sabem alguma coisa, de facto. Pierce conhece o inimigo.
- Como último recurso, seremos forçados a expor Matthias, na esperança de impedir o pior, embora sem garantias de o conseguirmos. Não preciso explicar-lhe o que representaria: seríamos um governo de leprosos e ninguém voltaria a confiar em nós. Se continuássemos no mapa.
- Que posso fazer? Que pretende Pierce?
- Que lhe revele tudo o que apurou. Tenta encontrar um elemento para poder utilizar como alavanca. Progrediu alguma coisa?
- Crei que sim. Ficámos a conhecer o elo de ligação de Ambiguidade, o local de onde envia e recebe. A meio da manhã, devemos inteirar-nos de como procede e através de quem. A partir daí, será fácil descobri-lo.
- Nesse caso, talvez esteja a um passo dele.
- É, também, a minha convicção.
- Preferia ouvir-lhe um rotundo "sim".
- Sim, senhor presidente. - Havelock fez uma pausa e ponderou que necessitava de
poucas, breves, palavras para decifrar o código do Voyagers, as quais poderia escutar e gravar numa clínica. - Penso que sim.
- Oxalá! Bem, vá lá ter com Pierce e diga-lhe tudo o que descobriu. Ajude-o!
Capítulo trigésimo quinto
As pistas que se interceptavam achavam-se iluminadas por lâmpadas affoxeadas e os focos dos projectores penetravam na espessa camada de nuvens baixas, enquanto patrulhas de rotina e voos de reconhecimento emergiam da noite escura e pousavam. A Base Aérea de Andrews era uma vasta cidade militar, com actividade intensa. Como quartel-general do Comando dos Sistemas da Força Aérca, tinha responsabilidades tão extensas como intermináveis. Para milhares de pessoas, não havia dia e noite, mas apenas turnos de serviço e missões. Bancos de computadores numa dezena de edifícios coexistiam com um afluxo constante de conhecimentos de intérpretes humanos, os quais formavam deduções e emitiam decisões que afectavam a NORAD, a CONAD, as estações da linha DEW e SAC. A base ocupava cerca de vinte e dois mil hectares, a leste do Potomac e a oeste da baía Chesapeake, porém os seus interesses circundavam o Globo, sendo a sua finalidade a defesa do continente norte-americano.
O helicóptero da Marinha recebeu autofização para pousar numa área a norte da pista principal. Os projectores captaram-no a quatrocentos metros do solo, ao mesmo tempo que os esforços conjugados do radar, da rádio e da vista apurada do piloto permitiam a descida segura na vertical. Entre as instruções transmitidas pela Torre de Controlo figurava uma mensagem destinada a Estéril Cinco. Um jipe aguardaria Havelock, para o conduzir a uma pista no perímetro sul, e manter-se-ia lá até que a missão dele fosse concluída, a fim de o transportar de novo ao helicóptero.
Michael saltou para o chão e a temperatura quase glacial, agravada pela deslocação de ar produzida pelas pás dos rotores, obrigou-o a levantar a gola do sobretudo e a lamentar a ausência de chapéu.
- Por favor! A exclamação partiu de um ponto à sua esquerda, proferida pelo condutor do jipe parcialmente dissimulado na sombra, entre as lâmpadas da pista.
Havelock correu para lá e viu o sargento abandonar o volante e fazer menção de se apear, num gesto de cortesia, todavia ele indicou-lhe que se deixasse estar e instalou-se a seu lado.
- Estava tão escondido, que não o vi.
- Recebi instruções nesse sentido - explicou o sargento. - Dissimular-me na medida do possível.
- Porquê?
- Vai ter de fazer a pergunta a quem transmitiu a ordem. Penso que se trata de uma medida de prudência, e como ninguém tem nome, não me mostro curioso.
O veículo partiu imediatamente e enveredou por uma passagem asfaltada estreita, que contornava virtualmente o vasto campo, passando diante de edifícios iluminados e largos parques de estacionamento. O vento atravessava o carro aberto e forçava Michael a distender os músculos para neutralizar o frio.
- Estou-me nas tintas para os nomes - observou Havelock, apenas para não estar calado. - O essencial é que haja aquecimento no nosso local de destino.
- Receio bem que não, pois ordenaram-me que o conduzisse a uma pista do perímetro sul e aguardasse aí.
Havelock cruzou os braços sobre o peito e fixou o olhar na sua frente, sem compreender
o motivo pelo qual o secretário de Estado usava de tantas precauções no interior de um
recinto militar. No momento imediato, porém, lembrou-se das qualidades do homem, sobretudo no campo da diplomacia, e admitiu que se rodeasse de todas as cautelas numa missão de importância vital.
O sargento conduziu finalmente o jipe por um desvio, cortou à esquerda a seguir a um hangar e entrou num caminho deserto, ao fundo do qual, destacado pelo clarão dos faróis, se via o vulto de um homem. Atrás dele, a uns cento e cinquenta metros da pista, encontrava-se um pequeno avião a jacto, com as luzes exteriores e interiores acesas e um carro de abastecimento de carburante ao lado.
- Eis o homem - disse o sargento, reduzindo a velocidade. - Depois de o largar, espero ao pé da oficina de sucata.
- Da quê?
- Refiro-me ao hangar de manutenção. Quando precisar de mim, dê um berro.
O veículo imobilizou-se a cerca de dez metros de Arthur Píerce. Havelock desceu e viu o subsecretário de Estado principiar a mover-se na sua direcção - um homem alto, magro, de sobretudo escuro e chapéu, que avançava em passos largos e enérgicos. Era óbvio que o
protocolo lhe merecia uma importância secundária. Com efeito, muitos outros da sua categoria em Washington aguardariam, imóveis, que o funcionário de nível inferior se acercasse. Michael tratou de ir ao seu encontro, ao mesmo tempo que verificava que Pierce descalçava a luva da mão direita.
- Mr. Havelock? - proferiu este último, apertando-lhe a mão, enquanto o jipe se afastava.
- Senhor subsecretário?
- Claro que é - volveu Pierce, com um breve sorriso. - Mostraram-me a sua fotografia. Para ser franco, li tudo o que me veio parar às mãos a seu respeito. Agora, acho que devo tentar dominar-me.
- Perdão?...
- Confesso que estou um pouco embaraçado, o que representa uma confissão pateta da boca de quem se viu em numerosas situações delicadas. A verdade é que as suas proezas num mundo que não pretendo compreender são muito impressionantes. - Fez uma pausa, como se procurasse as palavras adequadas. - Suponho que a natureza exótica das suas actividades suscita este tipo de reacção com frequência.
- Oxalá suscitasse, pois pinta-me com cores deslumbrantes. Sobretudo, se nos lembrarmos dos erros que cometi... em particular nos últimos meses.
- Os erros não foram seus.
- Devo também dizer que li muito a seu respeito - declarou Havelock, ignorando o comentário. - Não há muitas pessoas da sua estirpe, no Departamento de Estado. Anthony Matthias sabia o que fazia (quando sabia o que fazia), no dia em que o nomeou
para o cargo que exerce actualmente.
- É o nosso factor comum. Anthony Matthias. Você de um modo muito mais profundo, e nunca me atreveria a afirmar o contrário. No entanto, o privilégio, o malfadado privilégio (não encontro outra expressão) de o ter conhecido como eu toma os anos, as tensões, a transpiração justificados. Era uma época da minha vida em que tudo se me apresentava cor-de-rosa e ele fez com que se concretizasse.
- Penso que ambos sentimos o mesmo.
- Quando li o material sobre os seus feitos, nem imagina como o invejei. Eu desfrutava de um certo grau de intimidade com ele, mas nunca pude ser o que você representava. Esses anos devem ter constituído uma experiência extraordinária.
- Sem dúvida. Mas tudo se extinguiu.
- Sim, é incrível.
- Pode acreditar. Eu vi-o.
- Quem sabe se me deixarão vê-lo, agora que vou visitar a ilha Poole.
- No seu próprio interesse, aconselho-o a não o procurar. É preferível que o recorde
como era.
- Enfim, passemos a assuntos mais prementes. - Pierce abanou a cabeça, com uma expressão grave. - Julgo que não descrevi ao presidente a proximidade a que nos encontramos do precipício.
- Ele compreendeu. Revelou-me o que lhe responderam, quando os preveniu. "Preocupem-se com os vossos problemas."
- Quando eles se exprimem com tanta simplicidade, tanta clareza, tremo. Costumo portar-me bem nos debates e não me considero mau negociador, mas você conhece os soviéticos melhor do que eu. Como interpreta a atitude?
- Da mesma maneira que o senhor. Quando se dão ao trabalho de ameaçar, são mesmo ameaçadores. Os actos substituem as palavras.
- É isso que me assusta. Apego-me apenas à convicção de que não contactaram os homens que carregam nos botões. Por enquanto. Sabem que precisam de ter a certeza absoluta. Se dispuserem de provas, e não unicamente de rumores, de que Manhias participou em actos nucleares agressivos contra a Rússia e farejarem sequer a China, não hesitarão em transferir a decisão para os níveis mais elevados, onde já não intervirá o. Nessa altura, podemos começar a escavar o chão para nos escondermos.
- Pactos nucleares agressivos? - Havelock fez uma pausa, mais alarmado do que jamais supusera possível. - Pensa que eles levaram as desconfianças a esse extremo?
- Pelo menos, não andam longe, e é o que os leva a um estado quase de frenesi. Pactos negociados por um maníaco... com outros maníacos.
- E agora, de repente, o frenesi extinguiu-se. Guardam silêncio e indicam-lhe a porta, para que se retire. Avisa-os e eles replicam que devemos antes preocupar-nos connosco. Confesso que também estou assustado, senhor subsecretário.
- Nesse caso, sabe em que penso?
- Parsifal.
- Exacto.
- Berquist disse que o senhor supunha que os soviéticos se tinham inteirado de alguma coisa nos últimos dezoito meses. É verdade?
- Não estou bem certo - admitiu Pierce. - Nem sequer tenho a certeza de que percorro o lado acertado da rua, mas alguma coisa aconteceu. Era por isso que queria falar consigo. Você é o único que sabe o que se passa, hora a hora. Se eu pudesse obter algum elemento susceptível de relacionar com uma palavra ou atitude deles, talvez chegasse a uma conclusão elucidativa. Procuro uma pessoa ou um acontecimento que me permitam passar a uma posição forte e impedi-los de alarmar os belicistas do Presidium.
- Eles não são parvos, conhecem esses nomes. Compreenderiam o peso e o perigo do material fornecido.
- Não acredito que isso servisse de impedimento. - Hesitou, como se tentasse decidir se devia citar um exemplo. - Conhece o general Halyard?
- Pessoalmente, não. Nem o embaixador Brooks. Devia encontrar-se com eles esta tarde. Porquê?
- Considero-o um dos militares mais cépticos do país.
- Concordo. E não só devido à sua reputação, pois li a sua folha de serviço.
- Esta tarde, perguntei-lhe qual supunha que seria a reacção (a dele incluída), se os nossos serviços clandestinos descobrissem um pacto sino-soviético contra nós, que projectasse datas de ataque dentro de quarenta e cinco dias e contivesse o género de informação existente nos documentos guardados na ilha Poole. A resposta resumiu-se numa palavra: " Lançamento. " Se ele reage assim, que acontecerá com homens menos ponderados, mais inseguros?
O subsecretário não dramatizava a questão, mas expunha-a com serenidade, e o arrepio que Michael sentiu tinha pouco de comum com o vento glacial que soprava.
- O presidente pediu-me que o ajudasse e farei o possível, embora não descortine como. Disse há pouco que procurava um elemento para os fazer arrepiar caminho, e eu talvez o possua. Existe uma operação do KGB de longa data que remonta aos dias do NKVD, aos anos trinta, portanto. Chama-se Operatsiya Parmnyatchik...
- Desculpe - interrompeu Pierce. - O meu russo não é grande coisa sem intérprete.
- Trata-se de uma designação de código referente a uma estratégia que envolve crianças, mesmo de tenra idade, escolhidas por médicos e trazidas para o nosso país. São instaladas em determinadas famílias (marxistas insuspeitas) e crescem como autênticos americanos. Entretanto, ao longo dos anos, são treinadas, programadas, se preferir, para as
missões futuras, que dependem da perícia e do desenvolvimento adquiridos. No fundo, resume-se a infiltração pura e simples.
- Santo Deus! Mas uma estratégia dessa natureza deve implicar muitos riscos. Têm de insuflar urna convicção extraordinária a essas pessoas.
- Decerto, e é a parte essencial do programa. Ao mínimo desvio, são eliminadas ou transferidas para a Rússia, onde lhes administram reeducação, enquanto treinam outros infiltrados potenciais nos campos dos Urais e Novgorod. O caso é que nunca conseguimos aniquilar a operação. Os poucos que capturámos não passam de arraia miúda, impossibilitados de nos fornecer elementos úteis. Agora, porém, existem fortes hipóteses de se nos deparar peixe mais graúdo. Capturámos um paminyatchik programado para matar. Os desse tipo devem ter acesso a centros de transmissão de ordens e controlos de fonte.
- Prenderam um indivíduo desses? Onde está?
- Vai a caminho de Bethesda. Está ferido e mais tarde seguirá para uma clínica na Virgínia.
- Não o percam! Há algum médico a seu lado? Um que mereça confiança?
- Penso que sim. Chama-se Taylor e não o perderá de vista.
- Nesse caso, supõe que, de manhã, poderá fornecer-me material para utilizar contra os soviéticos? Assim, refutaria os seus ataques com uma atitude ofensiva. Acusava-os...
- Forneço-lho já - atalhou Havelock. - No entanto, não poderá utilizá-lo até que eu
diga. Amanhã à tarde, na melhor das hipóteses. Consegue entretê-los durante estas horas?
- Julgo que sim. De que se trata?
- Há cerca de uma hora, submetemo-lo ao efeito de determinada droga. Não sei como contactar com as altas esferas, mas conheço a identidade do seu centro transmissor de ordens, assim como a designação de código do controlo da fonte do paminyatchik desta área, que, segundo penso, inclui a operação de Washington, a mais vital nos Estados Unidos.
- As suas palavras assombram-me - articulou o subsecretário de Estado, visivelmente impressionado. - Que posso utilizar?
- O que for necessário. A partir de amanhã, conto dispor de elementos suficientes para desmascarar a OperatsÍya Paminyatchik.
- Falei com o presidente há poucos minutos e ele deixou transparecer que você julgava estar prestes a identificar Parsifal.
- Assim espero, quando o paciente de Taylor estiver instalado na clínica. Com meia dúzia de palavras, pode colocar o homem ao qual chamamos Ambiguidade ao nosso
alcance. Depois, o nome de Parsifal surgirá naturalmente.
- Como?
- Matthias disse praticamente que eu o conhecia. Sabe da existência de uma rede de lojas de malas denominada Voyagers Emporium?
- Quase toda a minha bagagem foi comprada lá. Os rapazes fazem-se pagar bem.
- Algures no seu interior, num departamento ou numa secção está situado o centro
transmissor de ordens do KGB. Ambiguidade tem de se manter em contacto e utiliza esse elo de ligação. Desvendaremos tudo com a maior discrição.
- E a respeito do nome de código do controlo da fonte?
- Martelo-zero-dois. Não significa nada para nós e pode ser alterado de um dia para o outro, mas o facto de nos termos introduzido no círculo dos paminyatchiki provocará dores de cabeça no seio do Kremlin. -Michael fez uma pausa e acrescentou: -Quando eu lhe der luz verde, utilize tudo ou parte. Basicamente, não passa de uma diversão, embora creia que se reveste de peso. Crie uma situação de perplexidade diplomática, provoque uma tempestade de telegramas entre Moscovo e Nova iorque. O essencial é que ganhe tempo.
- Tem a certeza de que é o mais aconselhável?
- A única coisa de que tenho a certeza é de que não dispomos de alternativa.
- Arrisca-se a perder o controlo de fonte.
- Paciência. Podemos viver com um controlo de fonte, pois existem em mais de sessenta países, mas não com Parsifal.
- Aguardarei o seu telefonema. - Pierce semicerrou as pálpebras, para consultar o relógio. - Ainda disponho de uns minutos. O especialista de cofres-fortes vem de avião de Los Alamos. Há tanta coisa que lhe queria perguntar, Havelock, tantos pormenores que preciso saber...
- Só partirei quando o senhor o fizer. O presidente recomendou-me que o ajudasse em tudo o possível.
- Simpatizo com ele. E nem sempre gostei dos presidentes.
- Porque lhe é indiferente que gostemos ou não dele... pelo menos enquanto permanecer no Gabinete Oval. Também o considero simpático,, apesar de ter motivos para o detestar.
Refere-se à Costa Brava? Revelaram-me tudo. Já passou à História. Voltemos ao presente. Que mais necessita saber?
O óbvio - disse Pierce, convertendo a voz num som cavernoso. - Se Parsifal contactou os soviéticos, que poderei dizer... se me concederem a oportunidade de falar? Se aludiu ao factor China ou às vulnerabilidades nas suas capacidades de contra-ataque, que deverei alegar? Onde obteve tudo isso? A revelação do estado de Matthias é apenas parte da solução.
- Sem dúvida. - Michael tentava ordenar as ideias e mostrar-se tão claro e conciso quanto possível. - O conteúdo do chamado acordo não passa de uma mistura de mil movimentos numa partida de xadrez a três. A nossa penetração nos sistemas russo e chinês é muito mais profunda do que deixámos transparecer e existem comissões de estratégia para estudar e avaliar todas as opções concebíveis, na eventualidade de um louco dar ordem para carregar no botão.
- Estou certo de que também há comissões dessas em Moscovo e em Pequim.
- Mas eles não podem dispor de um Anthony Matthias, o homem de panaceias geopolíticas, respeitado, até venerado.
- Sim, os soviéticos consideram-no um intermediário de valor e não um adversário, enquanto os chineses promovem banquetes em sua honra e chamam-lhe visionário.
- E, quando começou a desvairar, ainda lhe restou imaginação para conceber a partida de xadrez nuclear firial.
- Mas como?
- Encontrou um fanático. Um oficial naval de uma das comissões do Pentágono cheio de teorias catastróficas até à raiz dos cabelos, que lhe forneceu tudo. Obteve cópias de todas as estratégias e contra-estratégias que as três comissões permutaram entre si, as quais continham dados autênticos. Esses jogos de guerra são muito reais no papel. Pode ser tudo confirmado através de computadores: a extensão dos estragos infligidos pelas megatoneladas, limites de ataques até o solo se tornar definitivamente improdutivo, etc. Achava-se
tudo bem explicado, e Matthias compilou-o. Ele e o homem que tem a espada suspensa sobre as nossas cabeças. Parsifal.
- Palpita-me que esse oficial naval vai conhecer um longo período de isolamento.
- Duvido que lucrássemos alguma coisa com isso. De qualquer modo, ainda não acabei de o trabalhar.
- Uma coisa... - murmurou Pierce, assumindo uma expressão excitada. - Não será ele Parsifal?
- Não é possível.
- Porquê?
- Porque acreditava no que fazia. Possui uma permanente ligação de amor para com o uniforme e a pátria. Portanto, nunca admitiria a possibilidade de um compromisso nem forneceria um grama de munições aos russos. Decker não se pode considerar um indivíduo original, mas é sincero. Duvido que a Lubyanka conseguisse vergá-lo.
- Decker... Suponho que o colocou em lugar seguro?
- Encontra-se no domicílio, com uma unidade de vigilância cá fora.
- Parece tudo incrível. - O subsecretário meneou a cabeça, enquanto levava a mão à algibeira, para puxar de um maço de tabaco e fósforos. - Fuma?
- Neste momento não, obrigado. Já atingi o contingente de quinhentos cigarros por dia. Acendeu um fósforo e aproximou-o do cigarro, mas como não protegeu a chama com a outra mão, o vento apagou-a. Tratou de acender outro e desta vez conseguiu o seu objectivo.
- Na reunião desta tarde, o embaixador Brooks levantou uma questão que não compreendi. Disse que um oficial do KGB contactara consigo e especulara sobre a identidade da facção de Moscovo que trabalhara com Matthias, na Costa Brava.
- Referia-se a Parsifal. E Rostov (é o nome desse oficial) não especulou. Sabia do que falava. Trata-se de uma colecção de fanáticos de um ramo do KGB chamado Voennaya, ou VKR, que fazem com que os nossos Deckers lembrem meninos de coro. Tenta desmascará-los, e oxalá consiga. Por estranho que pareça, um inimigo dedicado pode constituir uma das nossas esperanças.
- Que quer dizer com "tenta desmascará-los"?
- Obter nomes, averiguar quem fez o quê. Se for bem sucedido, contactar-me-á.
- Parece-lhe?
- Já me ofereceu um contacto. Verificou-se no Aeroporto Kennedy, quando regressei de Paris.
Soou um motor à distância e Pierce lançou o cigarro ao chão e esmagou-o com o pé, enquanto perguntava:
- Que mais pensa que Decker lhe pode revelar?
- Talvez falasse com Parsifal, sem se aperceber. Ou com alguém em nome de Parsifal. De qualquer modo, procuraram-no em casa, o que significa que, algures, no meio de uns dois milhares de registos de telefonemas interurbanos, existe um referente a uma chamada específica para um número específico numa altura específica.
- Por que não uns milhões?
- Não serão tantos, se obtivermos uma localização geral.
- Pensa obtê-la?
- Amanhã, talvez possa responder à pergunta. Quando regressar...
- Senhor subsecretário! Senhor subsecretário! - Os gritos foram acompanhados do rugido do motor do jipe e do chiar de pneus, no momento em que se imobilizou a poucos metros dos dois homens. - Subsecretário Pierce?
- Quem lhe deu o meu nome? - retorquiu o interpelado, friamente.
- Há uma chamada urgente para si. Parece que é do seu gabinete nas Nações Unidas.
- Qualquer coisa relacionada com os soviéticos - murmurou Pierce a Havelock. -
Volto já. Subiu prontamente para o veículo e inclinou a cabeça para o motorista, enquanto mantinha o olhar fixo no hangar de manutenção. Michael apertou a gola do sobretudo em tomo do pescoço, a atenção atraída pelo pequeno avião a jacto a algumas dezenas de metros, no sentido oposto, cujas turbinas acabavam de ser activadas. Em seguida, avistou outro jipe, que substituíra o carro de carburante junto do aparelho. O especialista de cofres-fortes chegara, e a partida para a ilha Poole não tardaria.
Arthur Pierce reapareceu transcorridos seis minutos, desceu do jipe e fez sinal ao motorista para que se afastasse.
- Era de facto por causa dos soviéticos - explicou a Havelock. - Querem uma reunião secreta, de manhã, o que implica uma emergência. Comuniquei a um dos meus colaboradores que nessa altura talvez dispusesse de informações que exigiriam larga uma de telegramas entre Nova loque, a sua embaixada em Washington e Moscovo. - Fez uma pausa ao aperceber-se dos jactos em actividade. - Penso que o especialista de cofres-fortes já chegou. Serão necessárias pelo menos três horas para entrar naquela sala. Importa-se de me acompanhar até ali adiante?
- De modo algum. Qual foi a reacção dos soviéticos?
- Muito negativa, como era de prever. Como me conhecem, pressentiram uma diversão. Consegui transferir a reunião para o fim da tarde. Espero que me dê luz verde até lá. Precisarei de todos os argumentos e armas possíveis, entre os quais um relatório médico que diagnostique a exaustão de Matthias. Oxalá não tenha de utilizar os elementos do processo psiquiátrico.
- O presidente prometeu enviar-mo ontem ... hoje.
Eu levo-lho. Quero ver como acontece.
O quê?
- A fusão de um dia noutro. Ontem, hoje ... amanhã, se houver amanhã. Uma longa e interminável noite sem sono. Quantas semanas viveu nessa situação?
- Algumas.
- Meu Deus... - O ruído dos jactos intensificava-se, à medida que eles se aproximavam do avião, e Pierce viu-se forçado a erguer a voz. - Deve ser o lugar mais seguro para conversar. Nenhum dispositivo conseguiria filtrar este barulho.
- Foi por isso que quis que nos encontrássemos na pista?
- Talvez me julgue paranóico, mas foi.
- Não - asseverou Michael. - E eu devia mesmo ter pensado nisso.
O piloto fez sinal da sua janela iluminada e Pierce acenou com a cabeça.
- Referiu-se a uma localização geral acerca do telefonema que Decker recebeu -
bradou Pierce, virando-se de novo para Havelock. - Onde é?
- Algures em Shenandoah. Não passa de especulação, mas ele entregou aí o material.
- Tem razão.
O uivo dos jactos tomou-se quase insuportável e uma rajada súbita arrancou o chapéu da cabeça do subsecretário de Estado. Michael correu no seu encalço, imobilizou-o com o pé e entregou-lho.
Obrigado! - gritou Pierce. Havelock contemplou pensativamente o rosto na sua frente, encimado por uma madeixa branca entre os cabelos pretos ondulados.
Capítulo trigésimo sexto
Escoou-se urna hora e quarenta e cinco minutos antes que Michael avistasse os projectores que assinalavam a entrada de Estéril Cinco. O percurso de Andrews para Quântico, em avião, e depois para Fairfax, no carro, resultara preocupante sem que ele soubesse determinar o motivo. Era como se uma parte da mente se recusasse a funcionar. Achava-se consciente de uma lacuna no processo de raciocínio, mas estava bloqueado por uma compulsão para não a aprofundar. Assemelhava-se à recusa de um alcoólico em admitir os embaraços da véspera: uma coisa de que não se recordasse não podia existir. E reconhecia-se incapaz de o remediar. Não sabia de que se tratava.
Uma longa e interminável noite sem sono. Talvez fosse isso. Precisava de dormir... precisava de Jemia. Mas não havia tempo para consagrar ao sono ou para se encontrarem juntos da maneira que mais desejavam. Apenas para se concentrar em Parsifal.
Que fora? Por que razão uma parte dele morrera subitamente? Apeou-se do sedan à entrada do edifício e, quando pousou o dedo no botão da campainha, ponderou que, à semelhança de muitas outras portas de muitas outras casas em que entrara, não possuía a chave para a abrir. Alguma vez disporia da chave de uma casa que lhe pertencesse (lhes pertencesse), a fim de a abrir como faziam milhões de pessoas todos os dias? No fundo, era uma ideia insensata. Qual o significado de uma casa e de uma chave? Não obstante, a ideia - porventura a necessidade - persistia.
A porta abriu-se com brusquidão e Jeima fê-lo regressar ao presente com urgência, com uma expressão de angústia.
- Graças a Des! - exclamou, segurando-lhe o braço e puxando-o para dentro. Voltaste! Julgava que enlouquecia!
- Que aconteceu?
- Vem comigo, Mikhail. Depressa! - Levou-o para a biblioteca, cuja porta deixara aberta, aproximou-se da secretária, pegou num bloco-notas e anunciou: - Tens de telefonar para o hospital de Bethesda. Extensão seis sete um. Mas primeiro precisas saber o que sucedeu!
- Que foi?
- O paminyatchik está morto!
- Com a breca! - Michael levantou o auscultador e marcou o número inscrito no bloco-notas. - Quando? - rugiu. - Como?
- Uma execução - explicou ela. - Há menos de uma hora. Dois homens. Eliminaram
* guarda com uma navalha, introduziram-se no quarto e mataram o viajante, que estava sob
* efeito de sedativos. Quatro balas na cabeça. O médico parece um alucinado.
- Seis sete um! - proferiu ele para o bocal. - Depressa.
- Fiquei desvairada - prosseguiu Jerma. - Supus que estavas lá. Garantiram-me que não, mas não sabia se falavam verdade.
- Taylor? Como foi possível? À medida que escutava a descrição do médico, Havelock sentia-se invadido por uma dor surda que se propagava a todo o corpo e lhe dificultava a respiração. Taylor ainda se achava em estado de choque e exprimia-se em frases desconexas. Com efeito, a revelação de Jerma fora mais clara e nada mais havia para saber. Dois assassinos fardados de oficiais navais tinham surgido no quinto piso, localizado o paciente de Taylor e procedido profissionalmente à execução, depois de liquidarem o guarda.
- Perdemos o rasto de Ambiguidade - murmurou Michael, pousando o auscultador tão violentamente que só conseguiu equilibrá-lo à segunda tentativa. - Mas como? É isso que não entendo! Usámos da maior segurança, com transporte militar, sem descurar uma única precaução!
- Não podiam essas mesmas precauções e o transporte despertar a atenção? - aventou Jerma.
- Sim, é uma possibilidade. Utilizámos um aeródromo, que mandámos encerrar a todo o tráfego.
- E não muito longe do Centro Médico. Alguém, atraído pelo movimento, podia acudir ao local e inteirar-se daquilo que vocês não desejavam que visse. Neste caso, uma maca bastava.
- Mas isso não explica o que aconteceu no Centro - argumentou Havelock, despindo o sobretudo e largando-o numa cadeira. - Foi enviada uma equipa de execução para fazer abortar uma armadilha, matar os seus próprios cúmplices, no intuito de evitar que alguém fosse capturado vivo.
- Paminyatchiki - observou ela. - Aconteceu noutras ocasiões.
- Mas como sabiam os controlos que se tratava de uma armadilha? Falei apenas com a unidade Apache e Loring. Mais ninguém! Como foi possível? Como podiam estar tão seguros da situação para se arriscarem a enviar assassinos? O risco era enorme! - Michael contornou a secretária e olhou os documentos dispersos no tampo com uma expressão de animosidade, pelo terror que evocavam. - Loring admitiu a possibilidade de o terem visto, mas não acredito. O falso carro-patrulha não apareceu ali por acaso. Enviou-o alguém com autoridade para tomar a decisão mais perigosa nas circunstâncias. Não o faria unicamente por haver sido avistado um homem de vigilância num parque de estacionamento.
- Não parece lógico - concordou Jenna. - A menos que os outros fossem detectados antes.
- Não creio. O controlo sabia que se tratava de uma armadilha, que o objectivo fundamental consistia em capturar um deles vivo... Como, com mil diabos?
- Falaste com outra pessoa, Mikhail - lembrou, a meia-voz.
- Claro, mas... Michael interrompeu-se e aproximou-se da janela, em cuja vidraça se projectou a sua imagem. No entanto, ele não a via. Em seu lugar, destacavam-se os traços imprecisos de outra. De repente, o nevoeiro nocturno que rolava por entre as árvores e ao longo do relvado, lá fora, converteu-se numa neblina de outra data. O ruído surdo da ressaca acudiu-lhe subitamente aos ouvidos, num crescendo ensurdecedor. Os estampidos surgiram numa sucessão rápida e transformaram-se em explosões hediondas.
Costa Brava. Regressara à Costa Brava. E o rosto na vidraça assumiu forma... distante... inconfundível. A madeixa branca destacou-se dos cabelos pretos ondulados, numa imagem isolada.
- Não... não! - ouviu a sua voz gritar. Sentiu as mãos de Jenna nos braços e a seguir no rosto... mas não no seu! O rosto na vidraça! O rosto com a madeixa de cabelos brancos!
Um boné de pescador foi repentinamente arrancado de uma cabeça pelo vento que soprava do oceano - um chapéu fora arrancado da cabeça de um homem pelo vento forte num aeródromo. Numa pista... junto de um pequeno avião de jacto... duas horas antes!
O mesmo homem? Seria possível! Concebível?
- Mikhail! - Jenna segurava-lhe o rosto entre as mãos. - Que foi? Que tens?
- Não é possível! Não pode ser!
- O quê, querido?
- Santo Deus! Estou a enlouquecer!
- Pára com isso!
- Não... não te preocupes. Deixa-me! - Havelock desprendeu-se e dirigiu-se à secretária. - Onde está?
- O quê - perguntou ela, colocando-se a seu lado.
- O relatório.
- Qual relatório.
- A meu respeito! Ele abriu a gaveta superior do lado direito e esquadrinhou furiosamente o conteúdo, até que descobriu o que procurava.
- Diz-me o que tens, por favor. O que te faz voltar ao passado? Combinámos não nos flagelarmos um ao outro!
- Não se trata de mim, mas dele!
- De quem?
- Preciso ter a certeza absoluta. Não me posso enganar. Não posso! - Encontrou a página que procurava e leu, fazendo deslizar o dedo ao longo das linhas. - <Estão a matá-la. Oli, meu Deus, ele matou-a e não suporto os gritos. Vai ter com ela, põe cobro a tudo... Não, eu não, eu nunca... Ela morreu, o meu amor morreu. O vento é forte, arrancou-lhe o boné da cabeça... O rosto? Conheço o rosto? De uma fotografia, algures? Um processo? O processo de um assassino... Não, é o cabelo. A madeixa branca. " -
Endireitou-se e fitou Jenna. - Uma madeixa... branca - articulou pausadamente. -
Pode ser ele!
Procura dominar-te, querido. Não te exprimes com coerência. Ouves o que digo? Não há tempo a perder. - Estendeu a mão para o telefone. - Estou bem e tens razão. Não falo de forma coerente, mas apenas porque é incrível. Incrível! - Marcou um número, respirou fundo e declarou: - Preciso que ligue ao P. B. X. principal da Base Aérea Andrews e transmita instruções ao oficial de dia para satisfazer todos os pedidos que eu lhe formular sobre informações.
Jenna observou-o em silêncio por um momento, aproximou-se da mesa onde se encontravam as garrafas, verteu brande num copo e entregou-lho.
- Estás pálido. Nunca te vi assim. Havelock aguardava, enquanto ouvia o chefe do Serviço Secreto da Casa Branca estabelecer contacto com a Base Aérea Andrews, e reflectia que o incrível se baseava sempre no crível. Pelas razões mais críveis do mundo, estivera na praia da Costa Brava naquela noite, para assistir a uma cena extraordinária, e uma mera rajada de vento arrancar o boné da cabeça de um homem. Agora, necessitava de determinar se existia alguma substância naquilo que testemunhara. ,
- Há chamadas de Nova loque constantemente - alegou o coronel, em resposta à sua pergunta.
- Refiro-me a esses cinco a dez minutos - replicou Michael. - Transferida para um hangar de manutenção no perímetro sul. Foi há menos de duas horas. Alguém se deve recordar. Consulte todos os telefonistas de serviço. Já!
- Calma, por favor.
- Despache-se! Nenhum telefonista da Base Aérea Andrews transferira qualquer chamada para um hangar de manutenção do perímetro sul.
- Um sargento que conduzia um jipe recebeu ordem para recolher carga da Estéril Cinco. Está a compreender?
- Inteirei-me da classificação Estéril e do voo. Helicóptero, pista noite.
- Como se chama?
- O motorista?
- sim.
O coronel fez uma pausa, obviamente apreensivo quando informou:
- O motorista inicial foi substituído por ordem verbal.
- De quem?
- Não conseguimos determiná-lo.
- Como se chama o substituto?
- Não sabemos.
- Obrigado, coronel. Paminyatchik!
- Procura o processo sobre Pierce - indicou Havelock a Jenna, pousando o dedo no botão do telefone.
- Arthur Pierce? - inquiriu ela, perplexa.
- O mais depressa possível. - Michael marcou novo número, enquanto murmurava: - Não posso cometer um erro. Neste caso ou agora... Senhor presidente? Havelock. Falei com Pierce e tentei ajudá-lo... Sim, pareceu-me corresponder inteiramente aos encómios que lhe tecem. Gostávamos de esclarecer um ponto. Não tem muita importância, mas pode ser-nos útil. Esta tarde, após o meu telefonema, mencionou a operação Apache no Centro Médico Randolph?... Então, todos estão ao corrente. Obrigado, senhor presidente.
- Pousou o auscultador, no momento em que Jenna lhe entregava uma pasta de cartolina castanha. _ Aqui tens o processo de Pierce.
Abriu-a e concentrou-se na sinopse das características pessoais: Bebe com moderação nas reuniões sociais e não existem indicações de alguma vez se ter embriagado. Não consome qualquer forma de tabaco.
O fósforo aceso sem protecção da mão, apagado pelo vento... A forma algo desajeitada como levara o cigarro aos lábios. Um sinal. Seguido, momentos depois, da aparição de um motorista uniformizado portador de um recado urgente, pronunciando um nome que não devia conhecer, o que irritara o homem ao qual se dirigia. Todas as sequências haviam sido pormenorizadas, cronometradas, e as relações consideradas. Arthur Pierce não fora chamado ao telefone. Efectuara uma chamada.
No entanto, impunha-se que se certificasse da impossibilidade de um erro, antes de actuar. Uma vez formulada a acusação, não a poderia retirar e geraria uma vaga de desconfiança aos altos níveis. Onde se encontraria a prova suprema?
Em Moscovo? Há, em primeiro lugar, o KGB. O resto segue com naturalidade. Um homem pode gravitar em torno da Voennaya, mas precisa de provir do KGB. Rostov. Atenas.
Já não o considera seu inimigo, mas outros são-no e possivelmente também ele. Um agente soviético. Aeroporto Kennedy.
- Noto-o nos teus olhos, Mikhail - murmurou Jenna. - Telefona ao presidente.
- Preciso de ter a certeza absoluta. Pierce disse que o cofre-forte não seria aberto antes de passadas três horas, e mais duas para escolher os documentos. Disponho de algum tempo. Se é Ambiguidade, está perdido.
- Como pretendes ter a certeza absoluta no caso de um paminyatchik?
- Na fonte. Moscovo.
- Rostov?
- Posso tentar. Talvez esteja tão desesperado como eu, de contrário explicar-lhe-ei que há motivos para tal. Temos os nossos maníacos e ele os seus. - Havelock tomou a pegar no telefone e marcou os três dígitos do P. B. X. da Casa Branca. - Ligue ao consulado russo em Nova loque, por favor... Não, não sei o número... Está bem, eu espero. - Cobriu o bocal com a mão e dirigiu-se a Jenna. - Vê se descobres algum indício que possamos localizar, no processo de Pierce. Pais, se ainda viverem.
- Esposa.
- Não é casado.
- Muito conveniente. Então, amantes.
É um homem discreto. Naturalmente - assentiu ela, pegando na pasta de cartolina. Dobriy vyehchyer - proferiu Michael, retirando a mão. - Ja khochu govorit's
nachal' nikom okhrany. - Todas as telefonistas de embaixadas e consulados soviéticos compreendiam, quando alguém pedia ligação com o director da segurança exterior. No momento imediato, surgiu uma voz grave na linha e ele informou em russo: - Chamo-nie Havelock e depreendo que falo com a pessoa indicada, capaz de me pôr em contacto com quem pretendo comunicar.
- De quem se trata?
- Não fixei o nome, mas ele sabe o meu. Como você decerto também o não ignora.
- Isso não nos adianta muito, Mr. Havelock.
- Creio que basta. O homem em causa encontrou-se comigo no Aeroporto Kennedy e tivemos uma longa conversa, que incluía as maneiras de eu poder voltar a contactá-lo. Um lapso de tempo de quarenta e oito horas e a Biblioteca Pública de Nova loque figuravam entre elas de modo evidente. Também trocámos impressões sobre o desaparecimento de uma automática Graz-Burya, uma arma excelente, como decerto concorda. Necessito falar-lhe com urgência... com a mesma urgência de que se revestia a sua mensagem.
- Se se recordasse da mensagem, talvez facilitasse as coisas.
- Uma oferta de refúgio por parte do director das Estratégias Externas, Pyotr Rostov, KG13, Moscovo. E eu não proferiria estas palavras, se estivesse a gravar a nossa conversa. Você pode, mas eu não me devo arriscar.
- Há sempre possibilidade da inversão da sequência dos acontecimentos.
- Arrisque-se, camarada. Não se pode permitir o luxo de o não fazer.
- Então, por que não conversa comigo... camarada?
- Porque não o conheço. - Michael baixou os olhos para a relação de números que não figuravam na lista que elaborara e repetiu um deles ao russo. - Estarei aqui durante mais cinco minutos. - Pousou o auscultador e estendeu a mão para o brande.
- Achas que ele liga? - perguntou Jenna, sentada na poltrona diante da secretária, com o processo de Pierce na mão.
- Por que não? Não precisa de dizer nada. Basta-lhe escutar... Encontraste alguma coisa?
- A mãe morreu em 1968 e o pai desapareceu oito meses depois, para não voltar a ser visto. Escreveu ao filho, para o Vietriame, dizendo que " não lhe interessava continuar a viver sem a mulher e iria reunir-se-lhe no céu".
- Naturalmente. Mas não há indícios de suicídio ou de o corpo ter aparecido. Apenas um desaparecimento cristão.
- Naturalmente. Paminyatchik Tinha muito para oferecer, em Novgorod.
O telefone tocou e o botão que se acendeu correspondia ao número que Michael indicara ao consulado soviético em Nova loque.
- Deve compreender, Mr. Havelock - principiou, em inglês, uma voz monótona, sem dúvida pertencente ao agente soviético do Aeroporto Kennedy -, que a mensagem foi oferecida no espírito de compaixão pela grande injustiça praticada pelos membros do seu Governo, que ordenaram a execução de um homem pacífico...
- Se fala assim por causa de algum gravador ligado neste lado, não perca tempo. E se é para impressionar o consulado, faça-o noutra oportunidade. Não posso perder tempo. Aceito parte da oferta de Rostov.
- Não sabia que se dividia em duas partes.
- Incluo uma comunicação anterior.
- Parece-me razoável - admitiu o russo. - Em circunstâncias extremamente limitadas.
- Nas circunstâncias que quiser. Utilize este número de telefone e mande-o contactar comigo dentro do prazo máximo de uma hora. - Havelock consultou o relógio. - São cerca das sete horas da manhã em Moscovo. Acorde-o.
Duvido que estas circunstâncias sejam aceitáveis.
- Têm de ser. Diga-lhe que talvez tenha descoberto o inimigo. O nosso inimigo.
- Confesso que não...
- Deixe-se de hesitações. Contacte-o, de contrário tentarei fazê-lo eu, o que poderá resultar altamente embaraçoso... para si, camarada. - E cortou a ligação, consciente das gotas de transpiração que lhe banhavam a fronte.
- Que pode Rostov revelar-te? - Jenna levantou-se e colocou a pasta em cima da secretária. - Não encontro nada. Apenas um herói brilhante e modesto da República.
- Claro. - Michael limpou a testa com a mão e inclinou-se para a frente, apoiando-se nos cotovelos. - Rostov referiu em Atenas que uma das suas fontes sobre o episódio da Costa Brava fora uma toupeira que actuava na Casa Branca. Na altura, não acreditei, mas agora tenho de reconsiderar. Ele podia saber que não havia possibilidade de a desmascarar. Era o viajante perfeito.
- Pierce foi nomeado para o Conselho de Segurança Nacional - informou ela, indicando a pasta com um movimento de cabeça. - Teve um gabinete na Casa Branca durante vários meses.
- Sim, e Rostov exprimia-se com sinceridade. Não compreendia, e o que se não compreende nesta profissão constitui motivo de alarme. Tudo o que apurou acerca da Costa Brava (e eu confirmei) assegurava-lhe que não podia ter acontecido sem a colaboração de alguém em Moscovo. Mas quem? Essas operações encontram-se sob o seu controlo directo, mas ele não teve a mínima interferência. Portanto, testou-me, por assim dizer, esperançado em que lhe revelasse alguma coisa e introduzindo a toupeira no cenário como medida de credibilidade. Era a verdade, como lha haviam transmitido, com a diferença de que se tratava de uma mentira.
- Proferida por um funcionário do KGB, um paminyatchik, que transferira a sua
lealdade para a Voennaya. Trocou os antigos superiores pelos novos.
- E tratou de interceptar e assumir o comando da operação da Costa Brava. Se esteve na
Costa Brava. Se... se...
- Como tencionas enfrentar Rostov? Deve haver escuta.
- Duvido. Não esqueçamos que é director das Estratégias Externas. Insistirei na tecla da luta pelo poder. O KGB contra a VKR. Ele há-de compreender.
- Sabes perfeitamente que não falará da operação dos paminyatchiki pelo telefone. Não pode.
- Nem lho pedirei. Mencionarei o nome e escutarei. Interessa-lhe o que tenho (se o tenho) como a mim o que pode confirmar. Creio que resultará. De urna maneira ou de outra. Dir-me-á se Arthur Pierce é a toupeira... se está convencido de que a toupeira lhe trocou as voltas e ingressou nas fileiras dos maníacos.
Jenna dirigiu-se à mesinha junto do sofá, pegou num bloco-memorando e sentou-se na poltrona.
- Enquanto esperas, queres falar acerca do comodoro Decker?
- Demónio! - A mão direita de Havelock precipitou-se para o telefone, enquanto a esquerda colocava a relação de números na sua frente. - Mencionei-o a Pierce -
acrescentou, accionando o marcador. - Ligue à escolta de Decker, por favor. Depressa.
- Escolta naval. As palavras através do radiotelefone eram claras, e o latejar súbito das têmporas de Michael começou a atenuar-se.
- Fala Estéril Cinco. Há motivos para supor que se registará actividade hostil nessa área.
- Por enquanto, não se notam quaisquer indícios. Está tudo calmo e a rua é bem iluminada.
- Em todo o caso, gostava que aumentassem os efectivos.
- O pessoal disponível não abunda. Por que não recorre aos agentes locais? Não precisam de saber mais do que nós, que é virtualmente nada.
- Podem ocupar-se disso?
- Sem dúvida. Chamar-lhe-emos serviço diplomático e eles ganharão horas extraordinárias. A propósito: que espécie de actividade prevê?
- Rapto, após neutralização da escolta.
- Obrigado pela informação. Vamos já tratar disso. Terminado. Havelock reclinou-se na cadeira e fixou o olhar no tecto, com uma expressão pensativa.
- Agora que sabemos que ainda existe um comodoro Decker, que te revelou ele?
- Em que ponto ficaram? Eu voltei ao princípio.
- Num telefonema, após as suas reuniões dominicais, na cabina. Tentou, durante dias, contactar Matthias, mas este não o atendia, até que alguém lhe telefonou... com uma explicação.
Jerina consultou os apontamentos, virou algumas páginas e concentrou-se numa.
- Um homem com voz cortante e apressada. Indiquei-lhe que tentasse recordar-se das palavras exactas. Vou ler-te o que anotei. O tipo intitulou-se colega do secretário de Estado e fez várias perguntas a Decker sobre a sua carreira naval, sem dúvida para se certificar de que era ele. Exprimiu-se nos seguintes termos: "0 secretário Manhias está-lhe grato por tudo o que fez e promete mencioná-lo destacada e frequentemente nas suas memórias. No entanto, deve compreender as regras, comodoro, que não podem ser infringidas. Para que a
estratégia global do secretário resulte eficiente, deve desenrolar-se sob sigilo absoluto.
O elemento surpresa é fundamental. Ninguém, dentro ou fora do Governo, pode suspeitar sequer de que foi criado um plano magistral. " - Fez uma pausa e ergueu os olhos. - Neste ponto, Decker não se mostrou muito explícito. As razões do homem para excluir membros do Governo baseavam-se aparentemente na suposição de que havia muitos que não mereciam confiança e poderiam divulgar segredos, indiferentes à sua natureza confidencial.
É natural que não fosse explícito. Falava de si e tratava-se de urna alusão penosa. Concordo... Esta parte final creio que é exacta, provavelmente palavra por palavra. "0 secretário de Estado garante que, na altura oportuna, o nomeará chefe do seu executivo, com todos os poderes nas suas mãos. Mas em virtude da sua elevada reputação no campo das tácticas nucleares, não pode existir o mínimo indício de associação entre ambos. Se lhe perguntarem se conhece o secretário de Estado, responderá que não. Isto também faz parte das regras. " - Pousou o bloco. - Nada mais. O ego de Decker ficou inchadíssimo e, na sua opinião, tinha um lugar na História assegurado.
- Não era necessário mais nada - disse Michael, endireitando-se na cadeira. Escreveste isso de maneira que eu possa ler?
- Escrevo mais claramente em inglês que tu em checo. Porquê?
- Porque quero estudá-lo várias vezes. O homem que proferiu essas palavras é Parsifal e, algures no passado, eu ouvi-o falar.
- Recua nos anos, Mikhail - volveu ela, inclinando-se para a frente e tomando a pegar no bloco, para o folhear. - Vou ajudar-te. Agora? Não é impossível. Um russo que fala inglês em voz cortante e apressada. Foi o que Decker disse. Conheces muitos com essas características?
- Vamos a isso. - Ele levantou-se, enquanto Jerina arrancava as duas folhas que continham os apontamentos sobre o telefonema a Thomas Decker e lhas estendia. -
Homens meus conhecidos que contactassem Matthias. Começaremos por este ano e andaremos para trás. Vai escrevendo os nomes que me ocorrerem.
- Por que não procedemos geograficamente? Cidade a cidade. Podes eliminar algumas rapidamente e concentrar-te nas outras.
- Associação. Riscamos Barcelona e Madrid, onde nunca contactámos soviéticos...
Belgrado, um armazém. ribeirinho no Sava, o adido do consulado russo, Vasili Yankovitch. Esteve com Anton em Paris.
- Yankovitch - repetiu ela, escrevendo.
- Ilitch Borin, professor visitador da Universidade de Belgrado, com o qual tomámos umas bebidas. Conhecia Matthias das conferências culturais de intercâmbio.
- Borin.
- Mais ninguém, em Belgrado... Praga. Aí deve haver pelo menos uma dúzia de pessoas. Os soviéticos abundam.
- Os nomes? Por ordem alfabética. Foram surgindo, uns rapidamente, outros com lentidão, outros ainda fazendo vibrar cordas de possibilidade e, finalmente, alguns improváveis. Não obstante, Jerina anotou-os todos, insistindo em que Michael esquadrinhasse a memória.
Cracóvia, Viena, Paris, Londres, Nova Iorque, Washington. Os meses converteram-se num ano, depois dois e finalmente três. A lista aumentava à medida que Havelock se esforçava por recordar nomes, obrigando a mente a funcionar como se fosse um instrumento meticulosamente afinado.
- Safa, que estou derreado - proferiu a meia-voz, fixando o olhar na vidraça, onde mais de uma hora antes tinham surgido dois rostos, um substituindo o outro, ambos de assassinos, ambos da Costa Brava. Ou não seriam?
- Dispomos de trinta e nove nomes - anunciou Jerina, aproximando-se, para lhe massajar a nuca com as pontas dos dedos. - Senta-te e analisa-os. Descobre Parsifal.
- Algum condiz com os da tua lista? Pensei nisso quando mencionei flitch Borin, que é doutorado em Filosofia.
- Não.
- Lastimo.
- Também eu.
- Rostov não telefonou.
- Pois não.
- Dei-lhe o prazo máximo de uma hora. - Havelock consultou o relógio. - Passam trinta e quatro minutos.
- Pode ter havido dificuldades técnicas, em Moscovo. Não seria a primeira vez.
- Para ele, não. Prefere não dar sinais de vida.
- Quantas vezes prorrogaste um prazo? À espera de quem aguardava a tua chamada se enchesse de ansiedade e as suas defesas abrissem brechas.
- Ele conhece-me demasiado bem para estar com esse trabalho. - Michael voltou-se para ela. - Tenho de tomar uma decisão. Se as minhas suspeitas correspondem à verdade, Pierce não pode abandonar a ilha Poole, de contrário pensarão que me fui abaixo e endoideci. Berquist ver-se-á forçado a remover-me.
- Não necessariamente.
- Não vislumbro qualquer alternativa. Dirá que vejo monstros em todos os recantos obscuros e perco horas valiosas com ilusões. Arthur Pierce, Santo Deus! O bem mais valioso que temos... se o temos!
- Só tu sabes o que viste de facto.
- Lê o relatório da minha permanência na clínica. São palavras de um homem racional? Que via ele na realidade? Preciso de uma palavra, uma frase, de Rostov.
- Espera, Mikhail. - Jenna pegou-lhe no braço e conduziu-o para a poltrona. - Ainda tens tempo. Estuda a relação de nomes, as palavras proferidas por Decker. Pode acabar por se fazer luz no teu espírito. Um nome, uma voz, uma frase. É possível.
Intelectuais. Militares. Advogados. Médicos. Adidos. Diplomatas. Trânsfugas. Todos soviéticos que, num momento ou noutro, tinham mantido contacto directo com Anthony Matthias. Havelock evocava cada homem, cada rosto, enquanto escutava intimamente
dezenas de vozes que se exprimiam em inglês, comparando-as com os rostos, em busca de frases, palavras cortantes e rápidas. Era enlouquecedor: rostos e vozes mesclavam-se numa cacofonia confusa. Será mencionado destacada e frequentemente. Ele dissera isso, teria dito isso? O secretário de Estado garante que o nomeará... Quantas vezes fora empregue semelhante fi---ase? Inúmeras. Mas por quem? Quem?
Transcorreu uma hora e quase outra e foi consumido mais um maço de tabaco. O prazo concedido a Moscovo aproximava-se do termo do prazo referente à ilha Poole. Impunha-se que fosse tomada uma decisão - a decisão.
- Não consigo descobri-lo! - exclamou Michael, desferindo um murro na mesinha à sua frente. - As palavras encontram-se aqui, mas não sou capaz de o descobrir.
O telefone tocou. Rostov? Ele levantou-se de um salto e cravou o olhar no aparelho, imóvel. Sentia-se esgotado, e a perspectiva de esgrimir verbalmente com o oficial dos serviços secretos soviéticos a muitos milhares de quilómetros de distância deixava-o ainda mais extenuado. A campainha voltou a vibrar e Havelock acabou por levantar o auscultador.
- Estou?... - articulou, enquanto coordenava as ideias para o embate.
- É o seu amigo do Aeroporto Kennedy que perdeu a arma...
- E Rostov? Indiquei um prazo.
- Foi cumprido. Preste atenção. Estou numa cabina da Oitava Avenida e tenho de vigiar a rua. A chamada surgiu há meia hora. Por sorte, fui eu que atendi, porque o meu superior tinha um compromisso. Espera encontrar-me lá, quando regressar.
- Onde pretende chegar?
- Rostov morreu. Foi encontrado às nove e meia da manhã, hora de Moscovo.
- De que morreu?
- Quatro balas na cabeça.
- Fazem alguma ideia de quem foi?
- Suspeita-se da Voennaya Kontra Razvedka, e acredito piamente que seja verdade. Tem havido muitos rumores do género nos últimos tempos, e se um homem como Rostov pode ser eliminado, reconheço-me demasiado velho e passo a fazer as minhas chamadas de cabinas. Vocês sã o loucos, neste país, mas prefiro viver com loucos a deitar-me ao lado de chacais capazes de me degolar, se a minha maneira de rir ou de beber não lhes agrada.
Na reunião desta tarde... uma questão que não compreendo... Um oficial do KGB contactou... especular sobre a identidade... Arthur Pierce, enquanto fumava desajeitadamente numa pista deserta.
Rostov não especulava. Sabia. Uma colecção de fanáticos num ramo do KGB chamado VKR, a Voennaya... Um assassino da Costa Brava.
Porventura o telefonema de Pierce abarcara algo mais que a execução de um paminyatchik? Teria ordenado a eliminação de um homem em Moscovo? Quatro balas na cabeça. Custara a vida a Rostov, mas podia tratar-se da prova de que Michael precisava. Seria concludente? Haveria possibilidade de alguma coisa ser concludente?
- Nome de código Martelo-zero-dois - disse, reflectindo, esquadrinhando a memória. Tem algum significado para si?
- Talvez uma parte, mas não todo.
- Que parte?
- O " martelo". Foi utilizado há uns anos, em círculos restritos, e depois abandonado. Hammarskjold. Das Nações Unidas.
- Santo Deus!... Zero, zero... dois. Zero é um círculo... um círculo. Um conselho! Dois... duplo, duas vezes, segundo. A segunda voz na delegação! É isso!
- Como deve compreender - salientou o russo -, tenho de dar o salto.
- Ligue ao gabinete do FBI em Nova loque. Ou melhor, passe por lá. Eu trato de os prevenir.
- É um dos lugares onde não irei. Isso, pelo menos, posso revelar-lhe.
- Então, vá mudando de poiso e telefone-me cada trinta minutos. Tenho de actuar com rapidez.
- Loucos ou chacais. Qual a melhor opção? Havelock premiu o botão adjacente do telefone, cortou a ligação e voltou-se para Jerina.
- É Pierce. Martelo-zero-dois. Eu disse-lhe... todos lhe dissemos... que Rostov pretendia aniquilar a Voermaya, e ele mandou matá-lo. É ele.
- Está perdido. Apanhaste-o.
- Exacto. Apanhei Ambiguidade, o homem que determinou a nossa morte em Col des Moulinets... E quando o levar para uma clínica, obrigá-lo-ei a vomitar tudo o que sabe. -
Marcou um número apressadamente. - O presidente, por favor. Diga-lhe que é Cross.
- Tens de usar da máxima cautela - recomendou Jerina, aproximando-se da secretária.
- Cautela e precisão. Lembra-te de que será um abalo profundo para ele e, acima de tudo, tem de acreditar em ti.
- É a parte mais difícil. Obrigado. Tencionava começar pelas conclusões. Tens razão. Vou proceder por etapas... Senhor presidente?
- Que aconteceu? - inquiriu Berquist, com ansiedade.
- Tenho de lhe fazer uma revelação. Vai demorar uns minutos e agradecia que escutasse atentamente .
- Está bem. Deixe-me passar a outro telefone, porque há gente na sala ao lado... É verdade: Pierce falou consigo?
- O quê?
- Arthur Pierce. Telefonou-lhe?
- A mim?
- Ligou para aqui há cerca de uma hora, dizendo que precisava de uns esclarecimentos. Falei-lhe do seu telefonema e da sua pergunta sobre se tinha mencionado o caso do Centro Médico a alguém.
- Por favor, senhor presidente! Que disse, exactamente?
- Que mosca lhe mordeu?
- Que lhe disse ele?
- Sobre quê?
- Primeiro, quero saber o que o senhor lhe disse!
- Vamos lá ver, Havelock...
- Diga-me! O tempo urge! Berquist fez uma pausa, apercebendo-se da quase angústia do interlocutor, e acabou por responder com serenidade, como um chefe consciente do alarme de um subordinado, sem compreender, mas disposto a respeitar a sua fonte.
- Disse-lhe que você me havia telefonado e perguntara se tinha mencionado o caso do Centro Médico Randolph na reunião desta tarde. A seguir, referi a minha resposta afirmativa e o seu aparente alívio por verificar que todos se achavam ao corrente.
- Que disse ele?
- Pareceu confuso e quis saber se você explicara o motivo da pergunta.
- Que respondeu o senhor?
- Que compreendia que estavam ambos preocupados, embora não entendesse bem o motivo.
- E ele?
- Perguntou se você conseguira alguns progressos corri o homem internado em Bethesda.
- O que só aconteceria amanhã, e ele sabia-o!
- O quê?
- Não tenho tempo para explicar e o senhor não pode perder um momento. Pierce já entrou no cofre-forte?
- Não sei.
- Impeça-o! É a toupeira!
- Enlouqueceu?
- Depois, pode mandar-me fuzilar, mas agora faça o que lhe digo! Ele dispõe de máquinas fotográficas em lugares inconcebíveis! Em anéis, relógios, botões de punho... Transmita a ordem! Já!
- Não se afaste do telefone - resmungou Berquist. - Talvez tenha mesmo de o mandar fuzilar.
Havelock levantou-se, porque necessitava de se mover e quebrar uma inactividade que ameaçava desesperá-lo. A neblina voltava a adensar-se, envolvendo-o ameaçadoramente. Impunha-se que se desembaraçasse dela antes que o sufocasse.
- Está perdido - murmurou Jerina.
- Eu podia tê-lo abatido na Costa Brava. Desejava fazê-lo, mas não prestei atenção. Não prestei atenção a mim próprio.
- Não o percas, agora. Michael afastou-se da secretária, fazendo chocar violentamente o punho cerrado na palma da outra mão.
- Não costumo rezar, porque não sou crente. Mas agora rezo, não sei bem a quê. -
O telefone tomou a tocar e ele precipitou-se para levantar o auscultador. - Sim?
- Escapou-se. Mandou o barco-patrulha conduzi-lo a Savarinali.
- Chegou a entrar no cofre-forte?
- Não.
- Valha-nos isso!
- Mas apoderou-se de outra coisa - informou o presidente, em voz quase inaudível.
- O quê?
- O relatório psiquiátrico sobre Matthias, onde está tudo pormenorizado.
Capítulo trigésimo sétimo
A polícia esquadrinhava as ruas de Savarinali, enquanto carros-patrulhas seguiam para o aeroporto, terminais de carreiras de camioneta interurbanas e estações de caminho-de-ferro. As agências de aluguer de carros eram visitadas em toda a cidade e erguiam-se barreiras nas principais saídas. A descrição do homem foi transmitida pela rádio a todas as unidades, acompanhada da mensagem premente: Localizem-no. Descubram o homem com uma madeixa branca nos cabelos pretos. Quem o avistar, deve abordá-lo com as maiores precauções, de arma apontada, e disparar ao mínimo movimento suspeito. Atirara matar.
Tratava-se de urna caça ao homem sem paralelo em número de efectivos e intensidade, enquanto as autoridades federais asseguravam às regionais que todas as despesas seriam cobertas por Washington. Os automóveis e transeuntes eram interceptados em toda a parte e os homens cujos sinais correspondiam, ainda que remotamente, aos do fugitivo convidados a descobrirem-se, se porventura usavam chapéu, para uma inspecção rápida ao couro cabeludo, em busca da famigerada madeixa branca ou indícios de aplicação recente de tinta. Os hotéis e estabelecimentos congéneres recebiam visitas com que decerto não contavam e os respectivos recepcionistas viam-se compelidos a responder a interrogatórios apressados, porém incisivos, enquanto, nos arredores, as herdades eram invadidas para inspecções minuciosas às suas instalações.
De manhã, os milhares de investigadores regressaram às bases extenuados, irritados, frustrados e assombrados com a ineficiência dos métodos governamentais. Com efeito, não foram distribuídas fotografias ou esboços do aspecto do homem. O único nome revelado resumia-se a um lacónico e banal "Mr. Sinith". O alarme continuava em vigor, todavia o auge das buscas terminara, e os profissionais não o ignoravam. O homem da madeixa branca escapara-se-lhes por entre os dedos. Agora, podia ser louro, calvo ou grisalho, coxear com uma bengala ou muleta e vestir roupa andrajosa ou uniforme da polícia ou militar, sem o menor vestígio do seu aspecto anterior.
Os jornais que publicavam reportagens sobre a estranha e maciça caça ao homem nas primeiras edições indicaram abruptamente aos repórteres que não aprofundassem o assunto. Os administradores e editores haviam sido contactados por fontes governamentais fidedignas, que afirmaram ignorância absoluta da situação, mas confiavam inteiramente nos seus superiores, os quais lhes haviam recomendado "discrição". Nas segundas edições, os acontecimentos não mereciam mais de meia dúzia de linhas nas páginas interiores e aqueles que publicaram terceiras já não lhe faziam a mínima alusão.
E sucedeu um facto estranho num P.B.X. que principiava pelos dígitos 0-7742. Não funcionava desde a meia-noite e, cerca das oito da manhã, quando a avaria foi súbita e inexplicavelmente reparada, "técnicos" da Companhia encontravam-se no edifício anexo ao Voyagers Emporium, onde se procedia à escuta e gravação de todas as comunicações de e para o importante estabelecimento, que eram imediatamente transmitidas para Estéril Cinco.
Os aeroportos internacionais foram discretamente invadidos por agentes federais munidos de equipamento apropriado para inspeccionar a bagagem dos passageiros, em busca de uma pasta metálica de cinco centímetros de espessura, com fecho de "segredo" num dos lados. Havia duas possibilidades: o devastador relatório não seria confiado a um compartimento de carga e conservar-se-ia no contentor governamental original, por uma questão de autenticidade. Se fossem separados, a configuração de cada um bastaria para suscitar o exame. Às 11. 30, tinham sido abertos e esquadrinhados dois mil e setecentos attaché-cases, do Aeroporto Kennedy até ao Internacional de Miami.
- Muito obrigado - proferiu Havelock para o telefone, esforçando-se por imprimir energia à voz e sentindo os efeitos de uma noite em claro. Em seguida, pousou o auscultador e voltou-se para Jentia, que servia café. - Não compreendem e eu não os posso elucidar. Pierce não telefonaria a Orfão nove seis, a menos que supusesse que conseguia transmitir a mensagem em pouquíssimas palavras. Sabe que mandei escutar e gravar todas as conversas.
- Fizeste tudo o que podias - disse ela, levando o café para a secretária. - Todos os aeroportos estão vigiados...
- Ele não se arriscava a aparecer em nenhum e, de qualquer modo, não quer abandonar o país. Pretende o mesmo que eu. Parsifal. Aquele relatório! Basta um monomotor que atravesse a fronteira do México, uma embarcação de pesca que se encontre com outra entre os Estados Unidos e Cuba ou ao largo de Galveston, na direcção de Matamoros, e o relatório segue para Moscovo, em direcção às mãos dos especialistas da Voennaya. E não posso fazer absolutamente nada para o evitar.
- A fronteira mexicana está a ser patrulhada e os portos e as marinas vigiados até ao golfo, com intercepção de todas as embarcações que seguem rumos suspeitos. Insististe nisso e o presidente deu as ordens necessárias.
É uma fronteira extensa e a superfície das águas enorme. Vai descansar um pouco, Mikhail. Não podes funcionar, se estás exausto. É uma das regras, lembras-te?
- Uma das regras?... - Havelock levou os dedos às têmporas e friccionou-as. - Sim, uma das regras, parte das regras.
- Deita-te no sofá e fecha os olhos. Eu atendo as chamadas e acordo-te, se for necessário. Dormi umas horas.
- Quando? - inquiriu ele, com uma expressão de incredulidade.
- Antes do nascer-do-Sol, quando falavas com a Guarda Costeira.
- Bem, talvez me estenda, por uns minutos. - Pôs-se de pé e espreguiçou-se, ao
mesmo tempo que olhava em volta. - Detesto esta sala! - resmungou, aproximando-se do sofá. - Obrigado pelo café, mas, de momento, não me apetece.
O telefone tocou e ele estremeceu, perguntando-se se o som se interromperia a intervalos regulares ou se prosseguiria, contínuo, indicando uma emergência. Verificou-se a primeira alternativa.
Com um suspiro de alívio, reclinou-se no sofá e deixou Jerma atender.
- Estéril Cinco... Quem fala? - Escutou, cobriu o bocal com a mão e virou-se para Michael. - É do Departamento de Estado, Nova loque, Divisão de Segurança. O teu homem regressou do consulado soviético.
Havelock levantou-se com um suspiro de resignação, fez uma pausa para se equilibrar e aproximou-se da secretária.
- Tenho de falar com ele. Julgava que ficaria lá várias horas. - Pegou no auscultador e, após identificações peremptórias, formulou o pedido. - Passe-me o candidato, por favor... Onde diabo esteve metido?
- Segundo parece, é considerado de mau gosto desertar fora das horas normais de serviço - principiou a dizer o russo, em voz fatigada. - Cheguei aqui, à Praça Federal, às quatro da madrugada, depois de sobreviver a uma tentativa de assalto no metro, e um guarda explicou-me que não podia fazer nada até à abertura da repartição! Esclareci-o da minha situação algo precária e o enternecedor imbecil prontificou-se a pagar-me um café... num estabelecimento público. Por fim, consegui introduzir-me no edifício (a vossa segurança é hilariante) e aguardei num corredor escuro e cheio de correntes de ar até às nove, quando a milícia se apresentou. Identifiquei-me então e os idiotas queriam chamar a polícia, para me prender por invasão de um recinto oficial e possível destruição de propriedade do Governo!
- Bem, mas agora encontra-se aí...
- Ainda não terminei! Desde o auspicioso começo que acabo de descrever, não parei de preencher impressos e insistir repetidamente em que queria falar consigo.
- Enfim, acabámos por entrar em contacto...
- Espere! Nesta última hora, tenho estado sentado, só, tão deploravelmente inundado de dispositivos de escuta, que quase decidi urinar para um dos microfones. E acabam de me entregar mais impressos para preencher, entre os quais um que se mostra interessado em saber quais são os meus passatempos favoritos. Tencionam, porventura, enviar-me para um camp?
Michael sorriu, congratulando-se pelo pretexto para quebrar a tensão, e replicou:
- Não, para um lugar seguro. Umbre-se de que somos loucos e não chacais. Felicito-o pela escolha que fez.
- Por que me esfalfo? Osfruktovyje golovy não são melhores na Praça Dzerzhinsky. Por sinal, até são piores. O vosso Albert Einstein seguiria a caminho da Sibéria, destinado a conduzir mulas num gulag. Onde está o sentido em tudo isso?
- Existe numa percentagem muito reduzida. Apenas o desejo de sobrevivência. De todos nós.
- Premissa que não hesito em subscrever.
- Rostov pensava da mesma maneira.
- Recordo-me da mensagem que lhe enviou. "Ele já não é meu inimigo, mas outros há que o podem ser", ou algo do género. São palavras ominosas.
- A Voennaya.
- Maníacos! Mentalmente, marcham ao lado do Terceiro Reich.
- São muito operacionais aqui?
- Quem sabe? Possuem conselhos e métodos de recrutamento privativos. Abarcam muitos que se não podem ver.
- Os paminyatchiki? Não se podem ver.
- Creia que confiavam em mim, mas não a esse ponto. Não obstante, uma pessoa pode especular... com base em rumores, que nunca faltam. Digamos que a especulação me
convenceu de que tomei a decisão acertada. - O russo fez uma pausa. - Suponho que me
tratarão como um bem valioso?
- Guardado e instalado como um tesouro. Qual é a especulação?
- Nos últimos meses, alguns homens abandonaram as nossas fileiras... aposentações mesperadas para bem merecidas dachas, doenças súbitas... desaparecimentos. Nenhum caso tão brutal como o de Rostov, mas talvez não houvesse tempo para empregar subtilezas. No entanto, parece existir uma preocupante similaridade nos afastados. Caracterizavam-se geralmente pelo realismo discreto, empenhados em encontrar soluções e evitar as confrontações. Pyotr Rostov constituía um exemplo típico do grupo. Na verdade, era o seu
porta-voz. Note-se que considerava os norte-americanos inimigos e desprezava o seu
sistema (muito para um número reduzido e pouco para muitos), mas compreendia que existia um ponto que os inimigos não podiam ultrapassar. Ou não restaria nada. Sabia que o tempo jogava a nosso favor, e não as bombas.
- Pretende dizer que aqueles que substituíram os Rostovs pensam de maneira diferente?
- Circula esse rumor, de facto.
- A Voennaya?
- É o que se especula. E se se apoderarem dos centros do poder do KG13, a chefia do Kremlin ficará muito longe? Isso não pode acontecer. De contrário... - O soviético considerou desnecessário completar a frase.
- Não restará nada? - aventou Michael.
- Mais ou menos. Eles pensam que vocês não farão nada. Julgam que os podem vencer... primeiro numa área e depois noutra.
- Isso não é novidade.
- Com armas nucleares tácticas?
- Isso é um elemento novo.
- Uma loucura. Vocês terão de reagir. O mundo exigi-lo-á.
- Como podemos impedir que a VKR actue?
- Fornecendo-lhe poucas ou nenhumas munições.
- "Munições"?
- Conhecimento de acções provocatórias ou inflamatórias de vossa parte, que possam utilizar para ameaçar os velhos e cansados do Presidium. Aqui passa-se o mesmo. Também possuem chacais. Generais e coronéis ancilosados e senadores e congressistas com mentalidades cheias de teias de aranha que prevêem calamidades, se não actuarem primeiro. Os homens sensatos nem sempre prevalecem. Nesse aspecto, vocês dispõem de vantagem. Os vossos comandos são melhores.
- Esperemos que sim - murmurou Havelock, pensando em homens como o comodoro Thomas Decker. - Mas afirma que a Voennaya se infiltrou nas fileiras do KGB.
- Especulação.
- Se corresponde à verdade, significa que vários deles podem frequentar a embaixada daqui ou o consulado de Nova loque.
- Não posso responder sequer pelo meu superior.
- E um paminyatchik reconhecê-los-ia, para estabelecer contacto e proceder à entrega de material.
- Parte do princípio de que sei uma coisa que ignoro. Que material? Fez uma pausa, enquanto tentava dominar o latejar nas têmporas.
- imagine que eu lhe dizia que munições dessas que mencionou foram roubadas, ontem à noite, por uma toupeira tão introduzida entre nós que tinha acesso a informações divulgadas apenas por ordem do Executivo. Desapareceu.
- Disposto a abandonar a sua posição?
- Foi descoberto. Faz parte da Voennaya. É o inimigo.
- Nesse caso, procurem a súbita partida diplomática de um adido de baixo nível, um agente de segurança externa ou um oficial das comunicações. Se houver um recruta da VKR, figurará entre esses. Interceptem-no, se puderem. Retenham o avião, se for necessário. Aleguein propriedade roubada, espionagem, vão até ao limite. Não os deixem ficar
com essas munições.
- Se for demasiado tarde?
- Que lhe posso dizer, sem conhecer a natureza do material?
- O pior.
- Podem negá-lo?
- Não. Uma parte (a pior) é falsa, mas está aceite como verdadeira... pelos generais e coronéis ancilosados.
O russo conservou-se silencioso por um momento e declarou pausadamente:
- Devem contactar outros de nível mais elevado, mais sensatos. Temos uma regra empírica para enfrentar esses assuntos. Consultamos os membros do Partido de idade compreendida entre os sessenta e setenta anos que viveram a Operação Barba Roxa e a
batalha de Estalinegrado. Fale com eles. Têm as memórias apuradas e podem ajudá-lo. Eu não.
- Já o fez. Sabemos o que devemos procurar na embaixada e no consulado... Terá de comparecer aqui para uma conversa mais formal, entende?
- Sem dúvida. Estarei autorizado a ver filmes americanos... nem que seja a televisão? Após as sessões de interrogatório, claro.
- Há-de conseguir-se alguma coisa nesse sentido.
- Pelo-me pelos filmes do Oeste americano... Intercepte o mensageiro da Voennaya, Havelock. Não conhece a força desses cavalheiros, se me permite a expressão.
- Penso que conheço, infelizmente. E tenho medo - acrescentou Michael, antes de pousar o auscultador.
Nas três horas imediatas, não conheceu um momento de descanso, e o café, a aspirina e
as compressas de água fria serviram para o manter acordado e atenuar as dores agudas que pareciam perfurar-lhe a cabeça. Foi estabelecido contacto com todos os departamentos de todos os serviços secretos e gabinetes de investigações possuidores de informações ou acesso à embaixada ou ao consulado soviético em Nova loque para divulgarem tudo o que Estéril Cinco solicitasse. Os horários das carreiras aéreas com destino à Rússia ou países satélites foram estudados minuciosamente, assim como as listas de passageiros. Reforçou-se a vigilância aos edifícios ocupados pelos soviéticos em Washington e Nova loque e acompanharam-se os movimentos de todas as pessoas que os abandonavam. Tomaram-se todas as providências possíveis para impedir o contacto, interceptar a encomenda a caminho de Moscovo, e nada o conseguiria com maior eficiência do que um agente da VKR ciente de que poderia denunciar o fugitivo se comparecesse a um encontro ou Pierce inteirado de que seria capturado se tentasse algo do género.
Helicópteros patrulhavam a área ao longo da fronteira mexicana e o litoral da Florida, Geórgia e Carolinas era sobrevoado por "jactos" da Marinha, a fim de localizarem embarcações com destino suspeito.
Eram 15.45, quando Havelock, exausto, voltou a reclinar-se no sofá.
- Estamos a aguentar-nos - afirmou, com um suspiro. - A menos que nos escapasse alguma possibilidade, as operações revelam-se eficientes. Tenho de recapitular os nomes.
Parsifal encontra-se entre eles e preciso descobri-lo! Berquist diz que não podemos ir além desta noite. Não se deve correr o risco, o mundo não deve correr o risco.
- Mas Pierce não chegou a entrar no cofre-forte da ilha Poole - argumentou Jetina. -
Não viu os acordos.
- O relatório psiquiátrico sobre Matthias menciona-os suficientemente. Em certos aspectos, até é mais demolidor. Um indivíduo considerado louco dirigia a política externa do país mais poderoso e temido da Terra. Somos leprosos... O presidente afirma que nos considerarão leprosos. Se continuarmos vivos.
O telefone tocou e ele respirou fundo e levou a mão à fronte. A neblina voltava a adensar-se, envolvendo-o e sufocando-o.
- Sim, muito obrigada - proferiu Jenna para o bocal.
- Que foi? - quis saber Michael.
- A CIA descobriu mais cinco fotografias. Falta apenas uma e aquele homem que supõem morto. Pode haver outros que também já morreram, claro.
- Fotografias? De quê, de quem?
- Dos velhos da minha lista.
- Hem? Velhos? Porquê?
- Tenta dormir, Mikhail. Assim, não te podes ajudar ou aos outros. - Jetina aproximou-se do sofá e ajoelhou, para pousar os lábios na face de Havelock. - Dorme, querido.
Jerina sentava-se à secretária e, de cada vez que o telefone tocava, estendia a mão para o auscultador, como uma gata empenhada em proteger as crias de animais predadores. As chamadas provinham de todos os lados: relatórios das actividades de homens que obedeciam a ordens sem conhecer o motivo.
De facto, como Havelock afirmara, estavam a aguentar-se.
O casal de botas e calção de montar e casaco vermelho galopava através dos campos. Ao longe, à sua direita, havia uma vedação indicativa do início de uma propriedade privada, seguindo-se outro campo que desaparecia numa muralha de bordos e carvalhos gigantescos.
O homem gesticulou na direcção da vedação, rindo e inclinando a cabeça. A mulher começou por simular surpresa e relutância, mas acabou por lançar a montada à frente da do companheiro, erguendo-se na sela à medida que se acercava do obstáculo. Transpô-lo com
elegância, imitada pelo homem, e prosseguiram até à orla do arvoredo, onde imobilizaram os cavalos, ao mesmo tempo que ela franzia as faces, num trejeito de dor.
- Que maçada! Contraí uma distenção no músculo da perna. É de ver as estrelas!
- Desmonta e dá uma volta a pé. Não continues sentada. Desceu e o homem aproximou-se para pegar nas rédeas. Depois, ela começou a mover-se em círculos, coxeando, ao mesmo tempo que soltava imprecações entre dentes.
- Onde estamos? - perguntou, de súbito.
- Penso que é a propriedade dos Heffernan. Que tal vai isso?
- Um horror!
- Não podes montar assim.
- E andar, ainda menos!
- Calma, calma! Procuremos um telefone. - Começaram a afastar-se ao longo das árvores, até que o homem se deteve junto de um tronco menos largo. - Vou atar os animais aqui e mais tarde venho buscá-los.
- É melhor. Assim, podes amparar-me. Garanto-te que nem consigo pousar o pé no chão.
O casal deixou os cavalos presos à árvore e prosseguiu. Por entre os troncos, conseguia descortinar um caminho semicircular de acesso a uma casa. Quase ao mesmo tempo, surgiu
um homem, aparentemente de parte nenhuma, que vestia casaco de gabardina e conservava as mãos afundadas nas algibeiras.
- Posso ser-lhes útil? Estão numa propriedade privada.
- Julgo que todos possuímos propriedades privadas, meu caro - replicou o companheiro da sinistrada. - Minha mulher sofreu uma distenção muscular, no último salto que efectuámos, e não pode montar.
- O quê?
- Cavalos, amigo. Deixámo-los atados a uma árvore. Treinávamo-nos para a caçada de sábado, mas fomos mal sucedidos. Indique-nos um telefone, por favor.
- Bem, eu...
- Aquela casa não é dos Heffeman?
- É, mas eles não estão e recebemos ordem para não deixar entrar ninguém.
- Gaita! - explodiu a mulher. - Não vê que eu não aguento mais? Preciso de transporte para regressar ao clube.
- Um dos homens terá o maior prazer em a conduzir, minha senhora.
- Prefiro que o meu motorista me venha buscar. Afinal, quem são esses Heffeman? Pertencem ao clube, querido?
- Penso que não. Escuta, o homem limita-se a cumprir as ordens que lhe deram e não tem culpa do que se passa. Aproveita a boleia, que eu trato de levar os cavalos.
- Se tentarem entrar para o clube, oponho-me - volveu ela, enquanto os dois homens a ajudavam a encaminhar-se para um carro nas proximidades.
Em seguida, o companheiro foi buscar as montadas e subiu para a sela da sua, levando a da mulher ao lado, presa pelas rédeas. Quando se certificou de que ninguém o podia observar, puxou de um potente transmissor portátil, premiu um botão e aproximou-o dos lábios.
- Há dois carros. UmUncoln preto, com matrícula MRL sete quatro zero, e um Buick verde-escuro, GW um três sete. O local está cercado por guardas e não há caminhos de saída nas traseiras. As janelas têm vidraças espessas e só com um canhão se conseguiria arrombá-las, além do que fomos detectados por raios infravermelhos.
- Entendido - foi a resposta, através do minúsculo altifalante. - Interessamo-nos especialmente pelos veículos... Por sinal, até estou a ver o Buick.
O homem com vários serrotes suspensos da cintura e empoleirado numa árvore guardou o transmissor no estojo e levou o binóculo aos olhos, para observar diagonalmente, por entre as ramagens, o automóvel que emergia do caminho arborizado.
A visibilidade era satisfatória, com todos os ângulos cobertos. Nenhum carro entraria ou sairia de Estéril Cinco sem ser referenciado, mesmo durante a noite, pois as possibilidades dos raios infravermelhos tanto se aplicavam aos aparelhos de detecção como às lentes especiais de alguns binóculos.
Por fim, o homem assobiou e outro apeou-se da furgoneta estacionada nas cercanias, em cujos lados se via a indicação GUARDA FLORESTAL.
- Põe-te a andar - indicou o primeiro. - Vem render-me dentro de duas horas.
O condutor da furgoneta rumou ao norte durante dois quilómetros, até à primeira intersecção, onde havia uma estação de serviço, com as portas da oficina abertas, o que revelava um automóvel no elevador hidráulico, voltado para fora. O homem acendeu e apagou os faróis duas vezes consecutivas e, acto contínuo, os do outro veículo imitaram-no. O sinal fora compreendido e o carro achava-se preparado. O dono da estação de serviço deixara-se convencer de que colaborava - confidencialmente - com a Divisão de Narcóticos da polícia estatal, como era dever de todo o bom cidadão.
O condutor cortou à direita e imediatamente à esquerda, descreveu uma curva em "U"
e seguiu para sul. Três minutos depois, passava diante das árvores onde o companheiro se dissimulava. Em circunstâncias diferentes, não hesitaria em buzinar. Agora, porém, impunha-se que não se registasse o menor som que despertasse as atenções para aquela área, pelo que acelerou e, transcorridos cinquenta segundos, alcançava outra intersecção, a primeira a sul de Estéril Cinco.
Num ponto em diagonal, à sua esquerda, erguia-se uma pequena pousada, cujo construtor desenvolvera esforços, não totalmente coroados de êxito, para lhe imprimir a configuração do estilo colonial. Nas traseiras, havia um parque de estacionamento asfaltado, com cerca de uma dúzia de carros. Um deles, todavia, ao contrário de todos os outros, estava voltado e próximo da saída, como que para poder partir de um momento para o outro, além do que apresentava várias marcas de ]arria.
O condutor voltou a acender e apagar os faróis duas vezes sucessivas, e o automóvel sujo
- possuidor de um motor muito mais potente que qualquer dos outros - imitou-o. Mais um sinal que fora compreendido. Tudo o que surgisse de Estéril Cinco seria referenciado, independentemente do rumo que tomasse.
Arthur Pierce observou o rosto no espelho do motel nos arrabaldes de FalIs Church, Virgínia, e sentiu-se satisfeito. A franja de cabelos grisalhos que circundava a cabeça rapada condizia com os óculos sem aros e o casaco de malha coçado por cima da camisa branca de colarinho amarrotado. Era a imagem do vencido, cujos remotos talentos e ausência de ilusões lhe permitiam vegetar, ainda que precariamente, acima do nível da indigência. Ninguém interceptava pessoas daquelas na rua.
Por fim, virou-se do espelho e aproximou-se do mapa de estradas aberto sob o clarão de um candeeiro de plástico, numa mesa encostada à parede. À direita, via-se um contentor metálico cinzento com o emblema da Marinha dos Estados Unidos na parte superior, a insígnia médica por baixo e uma fechadura de segredo num dos lados, o qual continha um documento tão letal como qualquer dos mais importantes da História: o diagnóstico psiquiátrico de um estadista que o mundo venerava e o considerava louco - enfermidade de que já sofria quando funcionava como a voz internacional de uma das mais poderosas nações da Terra. E a nação que permitira a existência de semelhante condição intolerável deixara de poder servir de dirigente da causa que defendia, Um louco traíra não só o seu próprio Governo, mas também o mundo - mentindo, ludibriando, forjando alianças com inimigos e congeminando projectos contra supostos aliados. No entanto, não importava que estivesse doido, pois tudo aquilo acontecera. Estava escrito, sem margem para a mínima dúvida.
O contentor de aço encerrava uma arma incrível, mas, para poder ser utilizada com o efeito devastador que possuía, tinha de chegar às mãos apropriadas em Moscovo. Não dos velhos e cansados condescendentes, mas dos visionários com vigor e voluntariedade suficientes para actuar com prontidão e fazer o gigante corrupto e incompetente ajoelhar. A possibilidade de o relatório sobre Matthias tombar nas mãos encarquilhadas de Moscovo resultava insustentável, pois acabariam por negociá-lo e contribuir para que o status quo se mantivesse. Não, aquele contentor de aço pertencia à VKR. À Voennaya.
Pierce sabia que não podia permitir-se o mínimo risco, e alguns telefonemas persuadiram-no de que existia perigo numa tentativa de fazer sair o material do país através das escassas fontes em que podia confiar. Como era de prever, o pessoal da embaixada e do consulado encontrava-se sob estreita vigilância e todos os aeroportos continham numerosos agentes munidos de equipamento sofisticado para examinar as bagagens e a carga.
Ele próprio o levaria para o exterior, juntamente com a arma suprema, a arma final, documentos que preconizavam ataques nucleares sucessivos contra a Rússia e a República Popular da China, assinados pelo insigne secretário de Estado. Tratava-se de fantasias nucleares concebidas por um génio alucinado que colaborara com urna das mentes mais
brilhantes jamais produzidas pela União Soviética. Fantasias tão reais, que os velhos e cansados do Kremlin se refugiariam nas suasdachas e no vodka, deixando as decisões a cargo de funcionários responsáveis, os homens da Voennaya.
Onde se encontrava a mente brilhante que tomara tudo possível? O homem que regressara à pátria para se inteirar da verdade: que se equivocara. E como! Onde estava Parsifal? onde estava Alexei Kalyazin?
Com estas reflexões presentes do espírito, Pierce debruçou-se sobre o mapa. Havelock mencionara o vale Shenandoah, afirmara que o homem ao qual chamavam Parsifal se encontrava algures na área do Shenandoali e, por implicação, a uma distância razoável da moradia de campo de Matthias. Contudo, a distância razoável implicada constituía o quociente variável. O vale Shenandoah tinha mais de cento e cinquenta quilómetros de extensão e trinta de largura. O que se poderia considerar razoável? Como não havia uma resposta razoável, a solução tinha de ser procurada no sentido oposto. Na mente perscrutadora de Michael Havelock - Mikhail Havlicek, filho de Václav, descendente de um russo de Rovno -, homem cujos talentos residiam na persistência e no grau de imaginação, e não no brilho. Havelock reduziria o arco, utilizaria uma centena de computadores para detectar um único telefonema efectuado num momento específico para um lugar específico, a um homem a quem chamava fanático. Sim, ele executaria o trabalho e um paminyatchik colheria os benefícios. O comodoro Decker seria deixado em paz, pois representava uma chave susceptível de abrir uma porta.
Concentrou-se no mapa, que percorreu com o dedo, de um extremo ao outro. O arco, o semicírculo que abarcava Shenandoali a partir de Estéril Cinco, achava-se coberto, com homens e veículos postados em pontos estratégicos.
Arthur Pierce, nascido com o nome de Nikolai Petrovich Malyekov, na aldeia de Ramenskoyc, na União Republicana Soviética Socialista, evocou subitamente os anos que o haviam conduzido à participação num destino transcendente. Nunca esquecera quem era ou a razão pela qual lhe fora concedida a suprema oportunidade de servir a causa final, tão significativa e necessária para o mundo onde uma minoria tiranizava a maioria, onde milhões e milhões de pessoas viviam à beira do desespero ou em pobreza sem esperança, para que os manipuladores capitalistas pudessem extasiar-se perante folhas de balanço globais, ao mesmo tempo que os seus exércitos utilizavam crianças em territórios distantes. Era um facto e não propaganda provocatória. Ele assistira a tudo, no Sueste Asiático.
Completara treze anos, quando foi informado pelo adorável casal que conhecia pelas designações de Mãe e Pai, os quais lhe explicaram que lhes pertencia, mas também a mais alguém. Nascera de outro casal a alguns milhares de quilómetros dali, o qual o amava tanto que o cedera ao Estado, a uma causa que construiria um mundo melhor para as gerações vindouras. E, à medida que a "mãe" e o "pai" falavam, numerosos pormenores do passado começaram a esclarecer-se no jovem espírito de Arthur Pierce. Todas as discussões - não só com a "mãe" e o "pai", mas também com os numerosos visitantes que acudiam com frequência à casa na herdade -, as quais aludiam a sofrimento e opressão de formas de governo despótico que seria substituído por outro dedicado ao povo - a todo o povo.
E ele participaria nessa mudança. Ao longo dos primeiros anos, alguns visitantes tinham-lhe oferecido jogos, quebra-cabeças, exercícios para resolver - testes avaliadores da sua capacidade. E, um dia, aos treze anos de idade, foi declarado extraordinário e elucidado do seu nome verdadeiro. Achava-se preparado para ingressar na causa.
Os "pais" advertiram-no de que não seria fácil, mas deveria recordar-se de que contaria com o seu apoio, sempre que as pressões se lhe afigurassem esmagadoras. E se lhes sucedesse alguma coisa, outros os substituiriam, para o encorajar e orientar, ciente de que se encontrava sob vigilância para apreciação dos seus progressos. Deveria ser o melhor em tudo: americano, generoso e, em particular, aparentemente imparcial. Empregaria os seus recursos para se guindar à posição mais elevada possível, sem jamais esquecer quem e o que
era ou a causa que lhe concedera a dádiva da vida e a oportunidade de contribuir para tomar o mundo melhor do que era.
A partir daquele dia auspicioso, as coisas não se apresentaram tão difíceis como os "pais" haviam previsto. Ao longo dos anos no liceu e na universidade, o seu segredo serviu para o estimular - porque se tratava do seu segredo e ele era extraordinário. Foram anos de evasão, de expansão, em que cada novo prémio ou honraria constituía uma prova da sua superioridade. Não se lhe depararam dificuldades para desfrutar de simpatia, como se, num permanente concurso de popularidade, o troféu lhe pertencesse invariavelmente. Não obstante, também havia abnegação envolvida, e serviu para lhe recordar o compromisso que assumira. Tinha muitos amigos, mas apenas superficiais, sem intimidade. Os homens simpatizavam com ele, mas aceitavam a sua distância básica, atribuindo-a em geral à necessidade de procurar empregos para custear os estudos. Utilizava as mulheres apenas para alívio sexual e não encorajava vínculos de qualquer espécie, costumando encontrar-se com elas a vários quilómetros do lugar onde vivia.
Durante os estudos posteriores à formatura, em Michigan, foi abordado por enviados de Moscovo, os quais lhe anunciaram que a sua nova vida estava na iminência de principiar. Devia alistar-se no Exército, onde encontraria determinadas oportunidades de progresso, prestaria serviço por um lapso de tempo apropriado e regressaria, não ao Médio Oeste, mas a Washington, em cujos círculos os seus talentos seriam difundidos, e embora surgissem empresas privadas empenhadas em o recrutar, aguardaria que entidades governamentais o procurassem.
Primeiro, porém, o Exército, ao qual deveria conceder o melhor dos seus esforços, para ser sempre o melhor. Os "pais" promoveram uma festa de despedida em sua honra e convidaram todos os seus amigos, entre os quais os membros da sua unidade militar. Na realidade, tratava-se igualmente de uma festa de separação definitiva, pois os "progenitores" revelaram-lhe, no final, que não o voltariam a ver. Envelheciam e haviam cumprido a sua missão: a criação do " filho". De qualquer modo, os seus talentos tornavam-se necessários noutro lugar. Ele compreendeu: a causa achava-se acima de tudo.
Pela primeira vez desde os treze anos, Arthur Pierce chorou, naquela noite. Mas podia fazê-lo, além do que eram lágrimas de alegria.
Todos aqueles anos de esforços e provações tinham sido coroados de êxito, e a prova surgiria nas próximas horas.
A expectativa principiara e a recompensa consistiria num lugar na História.
Michael abriu os olhos e sentiu-se envolvido numa espécie de manto húmido, quente e opressivo. Voltou-se, ergueu a cabeça e verificou que o clarão de que se apercebia não provinha do Sol, mas de um candeeiro distante, que iluminava a sala. Achava-se banhado em transpiração, escurecera e ele não se encontrava preparado para enfrentar a noite. Que acontecera?
- Dobry den. - A saudação proveio de algures à sua esquerda.
- Que horas são? - perguntou, soerguendo-se no sofá.
- Sete e dez - informou Jerina, sentada à secretária. - Dormiste cerca de três horas. Como te sentes?
- Não sei... Amachucado. Que há de novo?
- Pouca coisa. Como disseste, estamos a aguentar-nos. Reparaste que as luzes destes botões se acendem antes de o telefone tocar?
- Não, mas é uma descoberta interessante. Quem telefonou?
- Homens de vozes graves, que não comunicaram nada de jeito ou que não tinham nada de jeito para comunicar. Alguns perguntaram quanto tempo deviam continuar em estado de aleita. Respondi que até ordem em contrário.
- Fizeste bem.
- Chegaram as fotografias.
- As?... Ali, da tua lista.
- Estão na mesinha. Queres vê-Ias? Havelock fixou o olhar nos cinco rostos circunspectos, que lhe devolveram a mirada sem pestanejar. Passou a mão pela fronte, a fim de limpar o suor, e tentou concentrar-se. Principiou pelo da esquerda, mas não lhe dizia nada. Percorreu os outros e, perante o quarto, declarou, sem conseguir compreender bem porquê:
- Este.
- Qual?
- O quarto. Quem é"
- Trata-se de uma fotografia antiga, tirada em 1948 - informou Jerina, consultando uma folha na sua frente. - A única que conseguiram encontrar.
- Quem é? Quem era?
- Um tipo chamado Alexei Kalyazin. - Levantou-se da secretária. - Reconhece-lo?
- Sim... não. Não sei.
- É uma fotografia antiga, Mikhail. Olha-a bem. Estuda-a. Os olhos, o queixo, a configuração da boca. Onde? Quem?
- Não sei. Que fez?
- Era um psicoterapeuta, que escreveu vários estudos sobre os efeitos nos homens da tensão de combate e dos períodos prolongados sob condições anormais. Os seus conhecimentos foram utilizados pelo KGB e tomou-se aquilo a que chamamos estratego, mas com uma diferença. Examinava as informações enviadas pelo pessoal externo, em busca de indícios susceptíveis de denunciar agentes duplos ou indivíduos já sem recursos para funcionar com eficiência.
- Um avaliador. Um maníaco com propensão para descurar o óbvio.
- Não compreendo.
- Atiradores. Nunca detectam os atiradores.
- Continuo sem perceber o que estás para aí a dizer.
- Não o conheço. É um rosto como muitos outros, como tantos processos. Os rostos, meu Deus!
Talvez haja alguma coisa. É possível, mas não tenho a certeza. Continua a observá-lo. Concentra-te. Há café? Tens razão. A primeira regra ao acordar é o café forte. És mesmo checo, Mikhail. Com estas palavras, Jerina dirigiu-se à mesa atrás do sofá, onde um guarda previdente deixara o filtro de café ligado.
- A primeira regra - repetiu Havelock, repentinamente preocupado. A primeira regra?
- O quê?
- Onde estão as tuas notas sobre o telefonema de Decker?
- Ficaste com elas.
- Onde estão?
- Aí na mesa.
- Onde?
- Debaixo da última fotografia. À direita. Sirva-se uma bebida. Conhece o regulamento da casa... Michael afastou a fotografia de um rosto desconhecido com um movimento brusco e pegou nas duas folhas do bloco-notas.
- Meu Deus! O regulamento, o maldito regulamento! - E precipitou-se para a secretária.
- Que foi? - quis saber Jetina, de chávena na mão.
- Decker! Onde estão os apontamentos acerca de Decker?
- À esquerda. No bloco. Ele folheou~o com a mão trémula, à procura das palavras que lhe interessavam, até que as encontrou.
- " Uma voz cortante e apressada" - murmurou. - Mas "cortante", como? - Pegou no telefone e marcou um número. - Ligue ao comandante Decker. Tem o número na sua lista.
- Domina-te, Mikhail.
- Está calada!
O zumbido na linha significava o toque da campainha, e a expectativa tomava-se intolerável.
- Estou? - articulou, por fim, uma voz feminina.
- O comodoro Decker, por favor.
- Não está.
- Para mim, está! Diga-lhe que é Mr. Cross. Escoaram-se vinte segundos, durante os quais Michael receou que a cabeça explodisse.
- Que há, Mr. Cross? - perguntou Decker.
- Que queria dizer com "voz cortante@>?
- Perdão?...
- O telefonema! O telefonema que recebeu em nome de Matthias! Seria um sotaque estrangeiro, russo por exemplo?
- De maneira nenhuma. Aguda e muito inglesada. Quase britânica, mas não totalmente.
- Boa noite, comodoro. - Havelock pousou o auscultador com brusquidão. Sirva-se uma bebida. Conhece o regulamento da casa... Tomou a pegar no telefone, puxou a lista de nomes para a sua frente e marcou outro número. Desta vez, a expectativa quase constituía um prazer, mas não se prolongou. Ele necessitava de tempo para se adaptar. A ilha Poole!
- Fala Mr. Cross. Ligue à Segurança, por favor. Soaram dois breves zumbidos e o oficial de dia proferiu, do outro extremo da linha:
- Posto de controlo.
- É Cross. Ordem do Executivo, prioridade zero. Queira confirmar.
- Comece a contar - indicou a voz,
- Um, dois, três, quatro, cinco, seis...
- Chega. Os misturadores condizem. De que se trata, Mr. Cross?
- Quem era o oficial que se ausentou em gozo de licença de emergência, há cerca de seis semanas?
O silêncio subsequente parecia interminável, até que surgiu a informação prevista.
- Não houve qualquer pedido de licença de emergência. Ninguém se ausentou da ilha.
- Obrigado, Segurança. Alexandre, o Grande... Raymond Alexander! Fox Hollow!
Capítulo trigésimo oitavo
- É ele - disse Michael, inclinando-se para a secretária, com a mão ainda no telefone. - É Parsifal. Raymond Alexander.
- Alexander? - Jetina olhou-o com incredulidade, ao mesmo tempo que meneava a cabeça lentamente.
- Tem de ser! Está nas palavras: "o regulamento. " " Uma das regras, parte do regulamento. " Sempre o regulamento. A sua vida constitui uma série de regras rígidas. A voz cortante, o sotaque, não era estrangeiro, não era russo, mas próprio de um antigo aluno de Harvard com ênfase pretensiosa. Empregou-o em milhares de conferências e centenas de debates. Pontos de vista expressos com prontidão, réplicas disparadas inesperadamente. Alexander é assim!
- Da forma como o descreves, existe uma contradição enorme - objectou ela, com serenidade, mas firmeza. - Estás disposto a acusá-lo de conhecer a identidade da toupeira soviética e guardar silêncio? Sobretudo, tratando-se de um homem tão perigoso como um subsecretário de Estado?
- De facto, é uma contradição que não consigo explicar, mas ele há-de elucidar-me. Enviou-me à ilha Poole, graças a uma fantasia sobre um oficial em gozo de licença que revelou a sua existência à mulher. Acabo de saber que ninguém se ausentou de lá em licença de emergência ou qualquer outra espécie.
- Talvez pretendesse proteger outra fonte.
- Então, para quê a mentira elaborada? Bastava-lhe não revelar coisa alguma. Não, queria que eu acreditasse. Fez-me prometer que o protegeria, por saber que o faria!
- Com que finalidade? Por que te informou? Para que te matassem?
- Há-de esclarecer-me. - Havelock tomou a pegar no auscultador e premiu o botão da linha interna. - Preciso de um carro e escolta para me seguir. - Cortou a ligação, cravou o olhar nela por um momento e abanou a cabeça. - Não.
- O presidente? - perguntou Jenna.
- Não o vou prevenir. Pelo menos, por enquanto. Fulo como está, era capaz de enviar lá um batalhão de comandos. Desse modo, não obtínhamos a verdade. Encurralado, Alexander podia estoirar os miolos.
- Se tens razão, que mais precisas saber?
- Porquê! - bradou ele, irritado, abrindo a gaveta superior da secretária e extraindo a automática Llama. - E como - acrescentou, inspeccionando o carregador. -
A contradição que mencionaste. A sua amada República.
- Vou contigo.
- Não.
- Já disse que vou! Desta vez, não tens o direito de te opor. A minha vida encontra-se nesta sala... e a minha morte. Assiste-me o direito de estar lá.
- Talvez, mas não vais. Aquele filho da mãe preparou a tua execução.
- Quero saber porquê.
- Depois, conto-te tudo - prometeu Michael, fazendo menção de se encaminhar para a porta.
- E se não puderes? - exclamou Jerina, impedindo-lhe a passagem. - Supõe que não voltas. É possível, como sabes. Queres que enlouqueça?
- Já lá estivemos e sabemos que não há sistemas de alarme, cães ou guardas. Além disso, ele não me espera. Garanto-te que voltarei... com ele!... Por que havias de enlouquecer?
- Já te perdi, uma vez. Amava-te e perdi-te! Julgas que resistiria sequer ao risco de não te voltar a ver e ficar sem saber porquê? Quanto pretendes de mim?
- Pretendo que vivas.
- Não viverei, não posso viver, a menos que estejas a meu lado! Já tentei e verifiquei que não conseguia. O que quer que nos aguarde na residência de Alexander destina-se a ambos e não apenas a ti. Não é justo, e tu sabe-lo!
Estou-me nas tintas para o que é justo! - Michael apertou-a nos braços com cuidado,
consciente da pistola que conservava na mão, desejando que se encontrassem noutro lugar, onde não houvesse armas... jamais. - Só me preocupo contigo. Não esqueço o que passaste, o que te fiz. Quero-te aqui, para te saber em segurança. Não posso arriscar-te.
- Porque me amas?
- Muito... muitíssimo.
- Então, respeita-me! - bradou ela, inclinando a cabeça para trás. - Respeita-me, que diabo!
Havelock olhou-a em silêncio por um momento e soltou um suspiro de resignação.
- Vamos.
- Muito bem. - Jenna dirigiu-se à mesinha e recolheu as cinco fotografias.
- Para que é isso?
- Nunca se sabe.
O homem empoleirado na árvore avistou o clarão de faróis no caminho arborizado de acesso à Estéril Cinco e levou o binóculo de raios infravermelhos aos olhos, ao mesmo tempo que estraía o transmissor do estojo com a outra mão.
- Actividade - proferiu para o minúsculo altifalante-microfone. - Estejam alerta. Respondam.
- Norte em contacto - anunciou a primeira voz.
- Sul também - informou a segunda.
O homem guardou o aparelho no estojo pendurado ao pescoço e apontou o binóculo ao carro que emergia do caminho. Era o Buick, e ele rectificou a focagem, para tomar nítidas as imagens atrás do pára-brisas.
o nosso homem com a mulher - indicou. - Segue para aí, Norte. Estamos a postos. Sul, saia daí e assuma a sua posição alternativa. É para já. Norte, vá informando, e quando precisar de ser rendido diga. Entendido. Alto! Há um segundo carro... É o Lincoln, com dois agentes federais no banco da frente. Não distingo o de trás... Ali, já o estou a ver. Não vem mais ninguém.
- É uma escolta - disse um dos homens no automóvel, dois quilómetros a norte. Esperamos até que passe.
- Dêem-lhe bastante espaço - ordenou o homem empoleirado na árvore. - São pessoas curiosas.
- Não se preocupe.
O Buick atingiu a intersecção e virou à esquerda, corri o Lincoln várias dezenas de metros atrás, rumo a oeste.
No interior da oficina da estação de serviço mergulhada na escuridão, um som sibilante acompanhou a descida do elevador hidráulico, ao mesmo tempo que o motor do carro que suportava entrava em actividade. O condutor ligou o transmissor e proferiu:
- Sul, eles entraram na Estrada B. Siga para oeste pelo caminho paralelo e reúna-se-nos dez quilómetros adiante.
- Seguimos para oeste pelo caminho paralelo - foi a resposta.
- Depressa - insistiu Noite. - Eles movem-se rapidamente.
A vedação branca que assinalava o início da propriedade de Alexander destacava-se ao clarão dos faróis. Segundos depois, Havelock observava aquilo que esperava: não havia carro algum no caminho de acesso circular e poucas janelas estavam iluminadas. Em seguida, abrandou a velocidade e pegou no microfone do suporte no tablier.
- É aqui, Escolta. Deixem-se ficar aí, na estrada, não há visitantes, e quero que o homem pense que viemos sós.
- E se precisar de nós? - argumentou a Escolta.
- Não precisarei.
- Desculpe, mas essa resposta não basta.
- Está bem, avisarei. Dispararei dois tiros.
- Isso era se estivéssemos aí, perto da casa.
- Quero que fiquem na estrada.
- Desculpe, mais uma vez. Deixaremos o Abraham aqui, mas iremos para aí a pé. Michael encolheu os ombros, enquanto pousava o microfone, reconhecendo a inutilidade de discutir. Depois, desligou os faróis e o motor e deixou o Buick deslizar até um ponto a dez metros da entrada, onde o imobilizou.
- Estás preparada? - perguntou a Jenna.
- Creio que ele não queria a minha vida ou a minha morte. Pretendia ambas murmurou ela, guardando as fotografias no interior do casaco. - Estou.
Apearam-se, fecharam as portas em silêncio e transpuseram os degraus de acesso à porta da casa. Havelock tocou à campainha e, mais uma vez, a expectativa afigurou-se lhe intolerável. Por fim, a porta abriu-se e surgiu a empregada uniformizada, que se mostrou surpreendida.
- Boa noite. Enid, salvo erro?
- Sim, senhor. Muito boa noite. Não sabia que Mr. Alexander esperava visitas.
- Somos velhos amigos - replicou Havelock, pousando a mão no braço de Jeima e conduzindo-a para o vestíbulo. - Não há necessidade de convite. Faz parte do regulamento.
- Não conhecia essa alínea.
- É recente. Mr. Alexander encontra-se no lugar habitual, a esta hora? Na biblioteca?
- Sim, senhor. Vou preveni-lo. Diz-me o nome, por favor? Registou-se um eco profundo repentino, que precedeu a voz cortante e apressada:
- Não é necessário, Enid. De resto, eu esperava Mr. Havelock. Os olhos de Michael percorreram as paredes em volta, ao mesmo tempo que os dedos exerciam pressão no braço de Jeima.
- Trata-se de mais uma regra, Raymond? Certificar-se de que o visitante é quem afirma.
--É muito recente - esclareceu a voz. Atravessaram a elegante sala, com antiguidades de todos os recantos da Terra, e aproximaram-se da porta de madeira lavrada da biblioteca. Aí, ele indicou a Jenna que se desviasse para o lado, puxou da Llama automática, pousou a mão no puxador e abriu abruptamente.
- Isso parece-lhe indispensável, Michael? Este avançou um passo e semicerrou as pálpebras, para adaptar a vista à iluminação indirecta fornecida por dois candeeiros em lados opostos do aposento e dissimulados por uma espécie de biombo. Raymond Alexander sentava-se numa poltrona de couro, com um cálice de brande na mão.
- Entrem - indicou, voltando-se para uma pequena caixa em cima da mesinha a seu lado. Premiu um botão e, algures na parede da porta, o clarão de um écran de circuito interno de televisão apagou-se. - Miss Karas é uma mulher encantadora.
- Não passa de um monstro - retorquiu ela, olhando-o com desdém.
- Pior que isso.
- Quis matar ambos - prosseguiu. - Porquê?
- A ele, nunca. Mikhail, não. - Alexander levou o cálice aos lábios. - A sua vida... ou morte... nunca foi realmente encarada. Estava fora das nossas mãos.
- Eu podia abatê-lo, só por dizer isso - interpôs Michael.
- Repito: fora das nossas mãos. Francamente, pensávamos que se afastaria, regressaria
a Praga. Ela não era importante, Michael. Só você merecia as nossas atenções. Devia abandonar a actividade, e sabíamos que eles nunca o permitiriam, por o considerarem demasiado valioso. Tinha de o fazer você mesmo, insistir nisso. A sua repulsa devia ser tão profunda e penosa, que não houvesse outra solução. Resultou, pois abandonou a actividade. Foi necessário.
- Porque eu o conhecia - retorquiu com aspereza. - Conhecia o homem que conduziu um amigo enfermo à loucura, transformando-o numa coisa grotesca... Belial com o dedo pousado no botão nuclear. Eu conhecia o homem que fez isso a Matthias. Conhecia Parsifal.
- É esse o nome que lhe deram? Parsifal? Estranha ironia. Um fulano que dilacera feridas, em vez de as sarar. Em toda a parte.
- Foi por esse motivo que procedeu assim, hem? Por eu conhecer a sua identidade. Alexander sacudiu a cabeça com veemência e pareceu reflectir por um momento.
- Eu também não era importante. Anton insistiu, você tomou-se uma obsessão para ele. Era a única coisa que restava da sua integridade em extinção, da sua consciência em declínio.
- Mas você sabia como proceder. Conhecia um agente duplo soviético numa posição tão elevada do Governo que se podia tomar secretário de Estado. E acabaria por consegui-lo, se não estivesse naquela praia da Costa Brava. Você sabia onde se encontrava, conhecia o seu nome, contactou-o!
- Não tivemos a mínima interferência no episódio da Costa Brava! Só me inteirei disso quando investiguei a seu respeito, Michael. Não compreendemos, ficámos chocados.
- Mas não Matthias. Esse achava-se acima de quaisquer choques.
- Foi nessa altura que descobrimos que estava tudo fora do nosso domínio.
- "Descobrimos", não. Foi unicamente você!
- Sim. - O jornalista fitou Havelock sem vacilar. - Eu. Eu sabia.
- E resolveu enviar-me à ilha Poole, esperançado em que me matassem, e depois de morto seria culpado em virtude do silêncio.
- Não! - Tomou a sacudir a cabeça, agora com violência. - Nunca pensei que fosse lá, que lho permitissem.
- Aquela história convincente da mulher de um militar que tinha o marido na ilha não passava de fantasia sua. Não houve qualquer licença de emergência. No entanto, acreditei em si, prometi não divulgar a fonte.
- Sim, queria convencê-lo, mas não daquela maneira. Desejava que subisse a escada, através das vias normais, para os enfrentar e obrigar a dizer a verdade. E depois de conhecer a verdade, toda a verdade, compreenderia. Poderia pôr termo à maquinação... sem mim.
- Mas como?
- Creio que sei, Mikhail - interpôs Jerma, tocando no braço de Havelock e conservando o olhar fixo em Alexander. - Ele não queria dizer,< nós" . Nem "eu". Este homem não é Parsifal. Um servo, talvez, mas não Parsifal.
É verdade? - inquiriu Michael. Sirva bebidas par ambos. Conhece o regulamento da casa. Tenho uma história para contar.
- Dispensamos as bebidas. O seu regulamento deixou de vigorar.
- Ao menos, sentem-se. E guarde a arma. Não têm nada a recear de mim. Havelock consultou Jenna com o olhar e ela aquiesceu com uma inclinação de cabeça, após o que se instalaram em poltronas contíguas, diante do dono da casa. Ela puxou das fotografias e pousou-as no regaço, enquanto Michael dizia secamente:
- Somos todos ouvidos.
- Há vários anos, Anton e eu cometemos um crime - começou o jornalista, olhando o cálice na mão. - Na nossa óptica, era muito mais grave do que qualquer castigo poderia
indicar, e este seria extremamente severo. Fomos iludidos... "enrolados" e o Lerniu liluç.;uu, "enganados" o mais apropriado ou, melhor ainda, "traídos". No entanto, o facto de poder ter-nos acontecido (a nós, intelectuais pragmáticos, como nos julgávamos) era intolerável. Não obstante, "acontecera". - Esvaziou o cálice e pousou-o na mesinha. - Em virtude da minha amizade com Manhias ou pela importância de que desfrutava nesta cidade (não sei qual dos motivos interveio), telefonou-me um homem de Toronto para comunicar que obtivera um passaporte falso e seguia de avião para Washington. Tratava-se de um cidadão soviético, um indivíduo culto com cerca de sessenta anos, detentor de uma posição razoavelmente elevada no Governo do seu país. A sua intenção consistia em desertar e perguntou se podia pô-lo em contacto com Anthony Matthias. - Fez uma pausa e inclinou-se para a frente, afundando os dedos nos braços da poltrona. - Na época, toda a gente reconhecia que Anton estava predestinado para feitos extraordinários. A sua influência aumentava com cada artigo que escrevia e cada deslocação a Washington. Preparei um encontro de ambos, que se realizou nesta sala. - Reclinou-se e fixou os olhos no chão. - O homem tinha elementos notáveis para oferecer, com conhecimentos profundos dos assuntos internos soviéticos. Um mês depois, trabalhava para o Departamento de Estado. Três anos mais tarde, Matthias era conselheiro especial do presidente e, transcorridos mais dois, secretário de Estado. O homem da Rússia, que viera através de Toronto, continuava no Departamento e os seus talentos eram tão apreciados, que lhe passavam pelas mãos informações altamente confidenciais, como director da descodificação de mensagens e relatórios provenientes do bloco oriental.
- Quando se inteirou? - perguntou Havelock.
- Há quatro anos. Também nesta sala. - Alexander ergueu os olhos e continuou a meia voz: - O trânsfuga propôs um encontro com ambos, alegando que necessitava de nos comunicar algo de urgente. Sentou-se onde Miss Karas se encontra neste momento e revelou-nos a verdade. Era um agente soviético que, nos últimos seis"anos, enviara para Moscovo elementos de importância vital. No entanto, sucedera um facto imprevisto e não podia continuar a exercer essas funções. Sentia-se velho e esgotado, incapaz de suportar as pressões, pelo que queria desaparecer.
- E como você e Anton, os intelectuais pragmáticos, tinham sido os responsáveis de seis anos de infiltração, ele conservava-os exactamente onde pretendia - proferiu Michael.
- Sim, era isso, em parte, mas existia uma certa justificação, Anthony Matthias encontrava-se no seu zénite, reorganizando políticas globais, no capítulo do desanuviamento, e tornando o mundo um pouco mais seguro. Uma revelação de semelhante natureza resultaria politicamente desastrosa. Destruí-lo-ia e aos efeitos da sua acção. Eu próprio apresentei este argumento com veemência.
- Estou certo de que não teve de transpirar muito para o convencer.
- Talvez mais do que pensa. Você parece esquecer o que ele era.
- Provavelmente nunca cheguei a saber por completo.
- Disse que foi parte da razão - interpolou Jerma. - Qual era a outra?
- O homem recebera uma ordem que não podia... não queria cumprir. Indicaram-lhe que se preparasse para uma série de relatórios chocantes do bloco oriental, que deveria apresentar de modo a que Anton propusesse um bloqueio naval a Cuba, juntamente com um
Alerta Vermelho presidencial.
- Nuclear?
- Exacto, Míss Karas . Uma repetição da crise dos mísseis de mil novecentos e sessenta e dois, mas muito mais provocatória. Esses surpreendentes relatórios corroborariam "provas" fotográficas de regiões costeiras de Cuba guarnecidas de armas nucleares ofensivas, a primeira ponte de um ataque iminente.
- Com que finalidade? - inquiriu ela.
- 1 Jerma armadilha geopolítica - acudiu Michael. - Ele cai nela e fica arrumado.
- Precisamente - confirmou Alexander. - Anton conduz todo o poderio militar dos Estados Unidos à beira da guerra e, de repente, equipas de inspecção de várias nações do mundo visitam o litoral cubano e não encontram absolutamente nada. Anthony Matthias é humilhado, considerado um alarmista histérico (única coisa que nunca foi), e as suas brilhantes negociações vão por água abaixo.
- Mas esse agente soviético, esse homem que enviou segredos para Moscovo ao longo de seis anos, era um profissional - objectou Jerina. - Explicou porque recusou?
- De forma enternecedora. Alegou que Matthias era demasiado valioso para ser sacrificado a um conjunto de alucinados de Moscovo.
- A Voennaya - murmurou Havelock.
- Assim, os relatórios chegaram e foram ignorados. A crise não eclodiu.
- Matthias aceitá-los-ia como autênticos, se não fosse prevenido?
- Alguém contribuiria para isso. Homens e mulheres do departamento, perfeitamente conscientes, alarmar-se-iam e talvez procurassem alguém como eu... se não lhes explicassem antes o que deviam esperar, em que consistia a estratégia. Anton convocou o embaixador soviético para uma longa conversa confidencial e houve substituições de pessoal em Moscovo,
- Eles voltaram - afirmou Havelock.
O jornalista pestanejou, sem compreender, nem simular o contrário, e continuou:
- O homem que nos ludibriara, mas acabara por não conseguir trair uma voz no seu íntimo, desapareceu. Anton tornou isso possível. Foi-lhe proporcionada uma nova identidade, uma nova vida, fora do alcance daqueles que o mandariam matar.
- Também voltou.
- Na realidade, nunca se afastou. Mas sim, voltou. Há pouco mais de um ano, sem telefonar e sem qualquer indício prévio, procurou-me, dizendo que tínhamos de conversar. Mas não nesta sala. Não queria falar aqui, e creio que lhe fiquei grato por isso. Recordava-me com demasiada nitidez da noite em que nos revelara o que tínhamos feito. Encontrámo-nos ao fim da tarde, num lugar isolado: dois homens idosos, que caminhavam com lentidão e prudência, um profundamente assustado e o outro deveras compenetrado da situação. - Alexander fez uma pausa. - Preciso de mais um pouco de brande. Isto não é fácil para mim.
- Não estou interessado - declarou Michael.
- Onde o tem? - perguntou Jerina, levantando-se para pegar no cálice.
- Naquele armário do canto - indicou o jornalista.
- Siga - ordenou Havelock, com impaciência. - Ela pode ouvir dali.
- Preciso realmente do brande... Acho-o com mau aspecto, Michael. Cansado, barba por fazer e olheiras profundas. Deve cuidar melhor de si.
- Hei-de tomar nota disso.
- Pronto. - Jerina entregou a bebida a Alexander e voltou a sentar-se. Havelock apercebeu-se pela primeira vez de que a mão do dono da casa tremia e aguardou pacientemente que levasse o cálice aos lábios.
- Como dizia, encontrámo-nos num lugar isolado e, após uma troca de palavras banais, ele deteve-se de repente e disse: "Tem de proceder como indico, porque se nos depara uma oportunidade que não voltará a apresentar-se ao mundo." Repliquei que não estava habituado a aceder a semelhantes pedidos, sem saber de que se tratava, e ele interrompeu-me, salientando que não era um pedido, mas uma ordem, e se recusasse divulgaria os papéis que eu e Manhas tínhamos desempenhado nas suas actividades de espionagem. Denunciar-nos-ia e contribuiria para a nossa destruição irremediável. Era o que eu mais receava. Por ambos, e mais por Anton que por mim, claro.
- Que pretendia que fizesse?
- Eu seria o Boswell e os meus artigos mencionariam a deterioração e o colapso de um
homem possuidor de um poder capaz de mergulhar o mundo na loucura que o assolava. O meu Samuel Jolinson era, evidentemente, Anthony Manhias, e a mensagem destinada à Humanidade revestir-se-ia de sensatez: "Não podemos permitir que isto volte a acontecer. Homem algum deve tomar a ser elevado a semelhantes alturas. "
- Convertemo-lo num deus, sem sermos donos dos céus - articulou Havelock, recordando as palavras de Berquist.
- Bem observado. - O jornalista inclinou a cabeça. - Gostava de ter sido eu a escrevê-lo. No entanto, parafraseando Wilde, talvez o venha a fazer, se dispuser de oportunidade.
- Esse homem, o russo, revelou-lhe então o que acontecera a Matthias? - perguntou Jerina.
- Sim. Vira-o, conversara com ele e reconhecera os sintomas. Tiradas abruptas, seguidas de crises de choro, falsa humildade que só servia para propagandear os seus feitos, suspeitas crescentes de todos os que o rodeavam. Apesar disso, em público surgia sempre a
fachada da normalidade. Depois, vieram as falhas de memória, em geral sobre insucessos, que, quando abordados, se esforçava por atribuir a outros. Assisti a tudo. Costumava deslocar-me ao Shenandoah, cerca de uma vez por semana...
- Aos domingos? - inquiriu Michael.
- Exacto.
- Decker?
- Sim, o comodoro Decker. Entretanto, o homem a quem chamam Parsifal convencera o decadente Anton de que todos os seus projectos encontrariam justificação final na força total, No Plano Magistral, como o designavam. E descobriram o homem que lhes podia fornecer o que necessitavam.
- Para a partida de xadrez final! - observou Havelock.
- Pois. Decker utilizava a estrada das traseiras e encontrava-se com Matthias na cabina onde costumava refugiar-se, quando pretendia estar só.
- A cabina... Um sistema de gravação activado pela voz.
- Nunca falhava - concordou Alexander, num tom pouco mais elevado que um murmúrio. - Nunca. Mesmo mais tarde, quando Matthias e... Parsifal se entregavam ao seu jogo letal, tornava-se mais aterrador porque Anton era um dos jogadores. E também noutro aspecto, porque ele se tomava no estadista senhor da guerra, o brilhante negociador, e em vez de Parsifal, via outros homens. Generais e cientistas russos que não se achavam presentes, comandantes militares e comissários chineses do outro lado do Globo. Durante esses momentos, via-os, encontravam-se presentes. Tratava-se de um padrão uniforme de sessões auto-induzidas, uma terapia da espécie mais destrutiva. E cada vez que emergia dela ficava um pouco pior... Sim, assisti a tudo, descrevi tudo.
- Quando pensaram em mim? - quis saber Havelock. - Porquê?
- Estava sempre presente. Havia fotografias suas por toda a parte, na residência e na cabina. Um álbum de um acampamento dos dois em território canadiano.
- Já não me lembrava. Foi há muito tempo. Eu era finalista na universidade e Anton o meu conselheiro.
- Muito mais do que isso. Era o filho que ele nunca teve e lhe falava na língua materna, evocando outros lugares, outros tempos. - Alexander ergueu a cabeça e fitou Michael. -
Acima de tudo, era o filho que recusava acreditar que as suas visões e soluções para o mundo mereciam aceitação. Não conseguiu convencê-lo. Você afirmava constantemente que estava errado, coisa que ele se negava a admitir. Não podia permitir que o julgassem enganado, sobretudo tratando-se de você.
- Sabia que eu não me calaria.
- Os seus olhos desviavam-se para essas fotografias e, de súbito, via-o e começava
- Precisamente - confirmou Alexander. - Anton conduz todo o poderio militar dos Estados Unidos à beira da guerra e, de repente, equipas de inspecção de várias nações do mundo visitam o litoral cubano e não encontram absolutamente nada. Anthony Manhias é humilhado, considerado um alarmista histérico (única coisa que nunca foi), e as suas brilhantes negociações vão por água abaixo.
- Mas esse agente soviético, esse homem que enviou segredos para Moscovo ao longo de seis anos, era um profissional - objectou Jerina. - Explicou porque recusou?
- De forma enternecedora. Alegou que Manhias; era demasiado valioso para ser sacrificado a um conjunto de alucinados de Moscovo.
- A Voennaya - murmurou Havelock.
- Assim, os relatórios chegaram e foram ignorados. A crise não eclodiu.
- Matthias aceitá-los-ia como autênticos, se não fosse prevenido?
- Alguém contribuiria para isso. Homens e mulheres do departamento, perfeitamente conscientes, alarmar-se-iam e talvez procurassem alguém como eu... se não lhes explicassem antes o que deviam esperar, em que consistia a estratégia. Anton convocou o embaixador soviético para uma longa conversa confidencial e houve substituições de pessoal em Moscovo.
- Eles voltaram - afirmou Havelock.
O jornalista pestanejou, sem compreender, nem simular o contrário, e continuou:
- O homem que nos ludibriara, mas acabara por não conseguir trair uma voz no seu íntimo, desapareceu. Anton tornou isso possível. Foi-lhe proporcionada uma nova identidade, uma nova vida, fora do alcance daqueles que o mandariam matar.
- Também voltou.
- Na realidade, nunca se afastou. Mas sim, voltou. Há pouco mais de um ano, sem telefonar e sem qualquer indício prévio, procurou-me, dizendo que tínhamos de conversar. Mas não nesta sala. Não queria falar aqui, e creio que lhe fiquei grato por isso. Recordava-me com demasiada nitidez da noite em que nos revelara o que tínhamos feito. Encontrámo-nos ao fim da tarde, num lugar isolado: dois homens idosos, que caminhavam com lentidão e prudência, um profundamente assustado e o outro deveras compenetrado da situação. - Alexander fez uma pausa. - Preciso de mais um pouco de brande. Isto não é fácil para mim.
- Não estou interessado - declarou Michael.
- Onde o tem? - perguntou Jerina, levantando-se para pegar no cálice.
- Naquele armário do canto - indicou o jornalista.
- Siga - ordenou Havelock, com impaciência. - Ela pode ouvir dali.
- Preciso realmente do brande... Acho-o com mau aspecto, Michael. Cansado, barba por fazer e olheiras profundas. Deve cuidar melhor de si.
- Hei-de tomar nota disso.
- Pronto. - Jerina entregou a bebida a Alexander e voltou a sentar-se. Havelock apercebeu-se pela primeira vez de que a mão do dono da casa tremia e aguardou pacientemente que levasse o cálice aos lábios.
- Como dizia, encontrámo-nos num lugar isolado e, após uma troca de palavras banais, ele deteve-se de repente e disse: "Tem de proceder como indico, porque se nos depara uma oportunidade que não voltará a apresentar-se ao mundo." Repliquei que não estava habituado a aceder a semelhantes pedidos, sem saber de que se tratava, e ele interrompeu-me, salientando que não era um pedido, mas uma ordem, e se recusasse divulgaria os papéis que eu e Matthias tínhamos desempenhado nas suas actividades de espionagem. Denunciar-nos-ia e contribuiria para a nossa destruição irremediável. Era o que eu mais receava. Por ambos, e mais por Anton que por mim, claro.
- Que pretendia que fizesse?
- Eu seria o Boswell e os meus artigos mencionariam a deterioração e o colapso de um
homem possuidor de um poder capaz de mergulhar o mundo na loucura que o assolava. U meu Samuel Johnson era, evidentemente, Anthony Matthias, e a mensagem destinada à Humanidade revestir-se-ia de sensatez: "Não podemos permitir que isto volte a acontecer. Homem algum deve tomar a ser elevado a semelhantes alturas. "
- Convertemo-lo num deus, sem sermos donos dos céus - articulou Havelock, recordando as palavras de Berquist.
- Bem observado. - O jornalista inclinou a cabeça. - Gostava de ter sido eu a escrevê-lo. No entanto, parafraseando Wilde, talvez o venha a fazer, se dispuser de oportunidade.
- Esse homem, o russo, revelou-lhe então o que acontecera a Matthias? - perguntou Jenna.
- Sim. Vira-o, conversara com ele e reconhecera os sintomas. Tiradas abruptas, seguidas de crises de choro, falsa humildade que só servia para propagandear os seus feitos, suspeitas crescentes de todos os que o rodeavam. Apesar disso, em público surgia sempre a
fachada da normalidade. Depois, vieram as falhas de memória, em geral sobre insucessos, que, quando abordados, se esforçava por atribuir a outros. Assisti a tudo. Costumava deslocar-me ao Shenandoah, cerca de uma vez por semana...
- Aos domingos? - inquiriu Michael.
- Exacto.
- Decker?
- Sim, o comodoro Decker. Entretanto, o homem a quem chamam Parsifal convencera o decadente Anton de que todos os seus projectos encontrariam justificação final na força total. No Plano Magistral, como o designavam. E descobriram o homem que lhes podia fornecer o que necessitavam.
- Para a partida de xadrez final! - observou Havelock.
- Pois. Decker utilizava a estrada das traseiras e encontrava-se com Matthias na cabina onde costumava refugiar-se, quando pretendia estar só.
- A cabina... Um sistema de gravação activado pela voz.
- Nunca falhava - concordou Alexander, num tom pouco mais elevado que um murmúrio. - Nunca. Mesmo mais tarde, quando Matthias e... Parsifal se entregavam ao seu jogo letal, tomava-se mais aterrador porque Anton era um dos jogadores. E também noutro aspecto, porque ele se tomava no estadista senhor da guerra, o brilhante negociador, e em vez de Parsifal, via outros homens. Generais e cientistas russos que não se achavam presentes, comandantes militares e comissários chineses do outro lado do Globo. Durante esses momentos, via-os, encontravam-se presentes. Tratava-se de um padrão uniforme de sessões auto-induzidas, uma terapia da espécie mais destrutiva. E cada vez que emergia dela ficava um pouco pior... Sim, assisti a tudo, descrevi tudo.
- Quando pensaram em mim? - quis saber Havelock. - Porquê?
- Estava sempre presente. Havia fotografias suas por toda a parte, na residência e na cabina. Um álbum de um acampamento dos dois em território canadiano.
- Já não me lembrava. Foi há muito tempo. Eu era finalista na universidade e Anton o meu conselheiro.
- Muito mais do que isso. Era o filho que ele nunca teve e lhe falava na língua materna, evocando outros lugares, outros tempos. - Alexander ergueu a cabeça e fitou Michael. -
Acima de tudo, era o filho que recusava acreditar que as suas visões e soluções para o mundo mereciam aceitação. Não conseguiu convencê-lo. Você afirmava constantemente que estava errado, coisa que ele se negava a admitir. Não podia permitir que o julgassem enganado, sobretudo tratando-se de você.
- Sabia que eu não me calaria.
- Os seus olhos desviavam-se para essas fotografias e, de súbito, via-o e começava
a falar consigo, atormentado pelos seus argumentos, a sua revolta. Receava-o... e que pusesse termo à sua obra.
- Por conseguinte, eu tinha de ser afastado.
- Num lugar onde não pudesse julgar os seus actos. Você fazia parte da sua realidade quotidiana, o Departamento de Estado. Portanto, tinha de ser separado da realidade. A situação começava a consumi-lo, não podia tolerar a sua interferência. Precisava, pois, de ser removido. Não havia outra solução.
- E Parsifal conhecia a melhor maneira de o conseguir - disse Havelock, com amargura. - Estava ao corrente da toupeira do Departamento de Estado, contactou-a e explicou-lhe o que devia fazer.
- Não tive nada a ver com isso. Sabia o que pretendia, mas não de que maneira procederiam. Você falou a Anton em Miss Karas. Na devoção que tinha por ela e no desejo de abandonar a actividade, para se lhe consagrar inteiramente.
- Supôs que eu me retiraria, sem ela? Porquê?
- Porque Parsifal possuía experiência desses assuntos - interveio Jerina, escolhendo uma das fotografias e mostrando-a a Michael. - Um psicólogo ligado ao KGB. O homem chamado Alexei Kalyazin, que te despertou a atenção.
- Não o conheço! - exclamou ele, levantando-se e virando-se para Alexander. Quem é?
- Não me peça que pronuncie o nome - murmurou o interpelado, abanando a cabeça e encolhendo-se na poltrona. - Não me peça isso. Não me posso envolver.
- Envolvido já você está, que diabo! É o Boswell!... Um momento! - Havelock voltou-se para Jerina. - Era um trânsfuga. Portanto, devia figurar na lista!
- Todas as referências à deserção de Alexei Kalyazin foram suprimidas dos registos -
declarou Alexander.
- Quem é? - Michael aproximou-se do jornalista e segurou-lhe as bandas do casaco. - Diga-me!
- Observe bem a fotografia - redarguiu o outro, tremendo. - Remova a maior parte do cabelo, aplique numerosas rugas nas faces, pinte-lhe uma pequena pêra branca e vestígios grisalhos.
- Zelienski. - Havelock pegou na foto e olhou-a com assombro. - Leon Zelienski!
- Calculei que o descobriria e compreenderia. Sem a minha ajuda. A partida de xadrez final... o melhor jogador de xadrez que Anton jamais conheceu.
- É polaco, e não russo! Um professor de história aposentado de Berkeley... chegado ao nosso país, há anos, proveniente da Universidade de Varsóvia!
- Uma nova identidade, uma nova vida, domiciliado fora dos grandes centros populacionais, a menos de três quilómetros da residência de Matthias. Este sabia sempre onde se encontrava.
- Você... você e Zelienski. - Michael levou as mãos às têmporas, numa tentativa para atenuar a dor de cabeça. - Dois velhos dementes! Sabe o que faz?
- Perdi o domínio da situação.
- Nunca a dominou. No instante em que Zelienski contactou a toupeira, você perdeu! Todos perdemos! Não compreendeu o que se passava? Pensou que terminaria com uma simples mensagem? Não o podia impedir? Sabia que Matthias se encontrava na ilha Poole... Como?
- Através de um dos médicos, dominado pelo medo.
- Nesse caso, também sabia que o tinham considerado louco! Porque consentiu que * projecto continuasse?
- Você mesmo acaba de o dizer. Não o podia impedir. Recusou-se... recusa-se * escutar-me. Não o posso impedir! Está tão alucinado como Anton. Tem o complexo de Cristo... considera-se a única luz, o único caminho.
- E você negociou o seu nome sagrado na imprensa, para que ele triunfasse! De que raio é feito?
- Tente compreender, Michael. Ele tinha-me encurralado. Zelienski explicou-me que, se eu procurasse alguém ou alguém o procurasse, não efectuaria determinado telefonema diário, e os supostos acordos nucleares, assinados por Anthony Matthias, seguiriam para Moscovo e Pequim.
Havelock contemplou o jornalista, que parecia subitamente convertido num farrapo humano, e retorquiu:
- Isso é apenas parte da verdade. Você não podia sujeitar~se a ser denunciado. É como Anton: sente-se aterrorizado pela realidade dos erros que cometeu. O cego, mas omnisciente Terésias, que vê coisas fora do alcance dos outros, o mito a preservar por todo o preço.
- Olhe para mim! - uivou Alexander. - Vivi com isso... através disso, durante quase um ano! Que teria feito, no meu lugar?
- Confesso que não sei. Resta-me a esperança de que faria melhor que você... mas não sei. Encha-se de brande, Raymond. Mantenha o mito, diga repetidamente a si próprio que é infalível. Pode ser que ajude, mas, por outro lado, talvez já não faça a mínima diferença. Continue a sair à rua com a habitual expressão de superioridade. - Havelock dirigiu-se a Jenna. - Saiamos daqui. Temos uma longa viagem à nossa fi-ente,
- Sul chama Norte. Escuto.
- Norte, responde. Que há?
- Telefonem a Victor. Há movimento. Os nossos amigos saíram apressadamente e conversaram com a escolta, que se encontrava junto da casa. Há momentos, os dois carros partiram, rumo a oeste, em grande velocidade.
- Não os percam.
- Não há perigo. A escolta deixou o Lincoln na estrada e aplicámos-lhe um transmissor direccional debaixo do porta-bagagens. Nem um terramoto o arrancaria. Localizamo-nos até vinte quilómetros de distância e seguimo-los a uma centena de metros.
Capítulo trigésimo nono
O céu nocturno achava-se singularmente dividido: luar intenso na retaguarda e um tecto de trevas adiante. Os dois automóveis rolavam velozmente pelas estradas secundárias, os ocupantes do Lincoln empenhados em proporcionar protecção sem compreender porquê e Michael e Jenna compreendendo perfeitamente e receosos.
- Agora, não há regras -. declarou ele. - O livro não foi escrito.
- A única coisa que sabes é que ele pode mudar de lado. Enviaram-no aqui com uma missão definida e passou-se para a outra facção.
- Ou tropeçou nela? Zelienski disse-lhes que se sentia velho e esgotado e as pressões eram insuportáveis. Talvez renunciasse simplesmente e passasse à inactividade.
- Até encontrar outros interesses e aceitar um conjunto de pressões totalmente diferentes - aventou ela, - Pressões libertadoras, para um homem da sua idade, sem dúvida. Tem mais de setenta anos, suponho.
- Sim, à volta disso.
- Pensa na situação. O fim ainda pode tardar, mas acha-se à vista. E à medida que te aproximas, descobrem repentinamente uma solução extraordinária de que, no teu entender, o mundo necessita com desespero, uma lição que deve ser ensinada. Que fazes?
- É o que me assusta. Por que se há-de ele desviar do centro? Como posso obrigá-lo a mover-se?
- Oxalá pudesse responder-te. - Jerina fixou os olhos no pára-brisas, que começava a encher-se de gotas de água. - Temos chuva.
- A menos que exista uma solução - volveu ele, ligando os limpa-pára-brisas. -
Trocar uma lição por outra.
- Hem?
- Ainda não sei bem. Não há regras. - Pegou no microfone e acercou-o dos lábios. -
Ouve-me, Escolta?
- Seguimo-los a uns cento e vinte metros, Estéril Cinco.
- Abrande a velocidade e mantenha-se a dois quilómetros, pelo menos. Vamos entrar na área e, para muitas pessoas, o seu transporte não passa de um carro do Estado. Não quero que estabeleçam a menor relação entre nós. Se o homem que vou contactar fareja sequer a
presença de acompanhantes, nem quero pensar nas consequências.
- Uma distância tão grande não é do nosso agrado.
- Lamento, mas é uma ordem. Conserve-se fora do cenário. Conhece o destino. Siga pela estrada da montanha, em conformidade com a minha descrição. Seneca qualquer coisa. Suba cerca de oitocentos metros, que estaremos lá.
- Importa-se de repetir a ordem? Michael obedeceu e perguntou:
- Entendido?
- Sim, Estéril Cinco. Ficou gravada.
O carro sujo de lama enfiou sob o lençol de chuva e não tardou a ficar lavado. O motorista descrevia uma curva larga, no momento em que a luz vermelha do potente transmissor se acendeu.
- Estamos numa frequência diferente - disse o homem no assento do passageiro, estendendo a mão para o microfone, cujo botão premiu. - Sim?
- Sul?
- Escutamos.
- É Victor. Aproximo-me de Warrenton, na Estrada Sessenta e Seis. Onde estão?
O homem do microfone consultou o mapa sobre os joelhos com uma lanterna-lapiseira.
- A norte da dezassete, rumo a Marshall. Pode detectá-lo em Warrenton.
- Situação?
- Normal. Pensamos que, quando atingirem Marshall, continuarão para norte na dezassete ou cortarão para oeste na estrada de Front Royal. As curvas começam a abundar. Vamos entrar nas montanhas.
- Temos homens de vigia a ambas as estradas, lá em cima. Quero saber por qual eles seguem e a distância entre Estéril Cinco e a escolta. Utilize este canal. Devo avistar-me convosco dentro de dez a quinze minutos.
- Qual o plano de voo?
- O meu.
O louro sentado no sedan castanho defronte do restaurante Blue Ridge reclinou-se no banco, com o microfone na mão, sem desviar os olhos da estrada, e premiu o botão.
- É da estrada de Front Royal - anunciou, quando o Buick deslizou sob a chuva. À tabela e com uma pressa dos diabos.
- A que distância o segue o Lincoln?
- Por enquanto, não se vê.
- Tem a certeza?
- Não se vislumbram faróis acesos, e só um maluco conduziria com eles apagados, com um tempo destes.
- Não é normal. Já volto a falar. Pendurou o microfone, extraiu um cigarro do maço no porta-luvas, colocou-o entre os lábios e acendeu o isqueiro de gás. Escoaram-se trinta segundos sem que o Lincoln Continental aparecesse. Quarenta e cinco segundos, e nada. Decorrera um minuto, quando a outra voz irrompeu do altifalante.
- Onde está, Front Royal?
- No mesmo sítio, à espera. Disse que voltava a falar, lembra-se?
- A escolta já passou?
- Não, de contrário eu tinha apitado... Espere. Talvez seja agora. - Surgiu um clarão na curva ao longe e, segundos depois, o carro rolava velozmente sob a chuva torrencial. - Acaba de passar. Vou pôr-me em marcha. - O louro endireitou-se no assento e conduziu o sedan para a estrada.
- Já volto a falar.
- Está a repetir-se, amigo - replicou, pisando o pedal do acelerador. Aumentando de velocidade, enquanto conservava o olhar fixo na estrada alagada, avistou os farolins da retaguarda do Lincoln ao longe e passou a respirar mais calmamente.
- Front Royal - volveu a voz pelo altifalante.
- Escuto.
- Sintonize em mil setecentos e vinte megabertz, a fim de receber instruções separadas.
O louro estendeu a mão e premiu um botão metálico. Acto contínuo, o ponteiro do quadrante mudou gradualmente de posição, até se imobilizar na frequência indicada.
- Pronto - informou, secamente.
- Fala o homem que você não conhece.
- Muito prazer em conhecê-lo, amigo.
- Quanto recebeu pelo trabalho desta noite?
- Como é o homem que não conheço, penso que sabe melhor do que eu.
- Você é mesmo bom?
- Muito. E o seu dinheiro?
- Foi pago.
- Não pelo que pretende agora.
- Vejo que é bom entendedor.
- E você fácil de perceber.
- O homem importante da sua frente deve conhecer o destino do insignificante, não acha?
- Com certeza. Há muito espaço entre eles, sobretudo numa noite destas.
- Pensa que se pode interpor?
- Sem dúvida. E depois?
- Uma gratificação.
- De quê?
- O insignificante tem de parar algures. Quando o fizer, não quero que o importante continue nas proximidades.
- Isso merece uma gratificação enorme, senhor Anónimo. O carro é um Abraham.
- Seis algarismos - prometeu a voz. - Um condutor temerário. Muito temerário e muito preciso.
- Combinado, amigo.
Arthur Pierce inclinou a cabeça quando passou diante do carro velho, a seis quilómetros da entrada da estrada de Front Royal, pegou no microfone e falou pela frequência 1720.
- Preste atenção às instruções, Sul. Fica comigo e todos os outros podem retirar-se. Agradeça-lhes o tempo que nos concederam e diga que daremos notícias.
- E Norte?
- Que se concentre no contingente naval. Mais cedo ou mais tarde hão-de deixá-lo sair, Nessa altura, liquidem o assunto. Não queremos ouvir-lhe a voz.
Havelock travou e baixou o vidro da janela, a fim de tentar ler, através da chuva, a tabuleta pregada à árvore, convencido de que era a que lhe interessava.
DESFILADEIRO SENECA
SEM SAíDA
Conduzira Leon Zelienski a casa duas vezes - uma na tarde em que o carro do ancião não arrancava e a outra, transcorridos vários anos, numa noite como aquela, em que Matthias receara que ficasse imobilizado na lama. Leon chegara a casa sem novidade, mas fora Michael que tivera de deixar o automóvel a meio do caminho de regresso e percorrer uma distância apreciável a pé.
Levara Leon Zelienski a casa e agora voltava para se avistar com Alexei Kalyazin, Parsifal.
- Aí vamos nós - murmurou, enveredando pela estrada em que existiam apenas vestígios do asfalto de outrora. - Se nos mantivermos no centro, devemos chegar sem novidade.
O carro avançava com lentidão, sob solavancos intensos, o que em nada contribuía para lhes serenar os nervos ou permitir uma troca de impressões ponderada sobre as negociações invulgares que pretendiam encetar. Michael fora brutal com Raymond Alexander, consciente de que tinha razão, mas apenas parcialmente. Principiava a compreender o outro aspecto do medo profundo do jornalista, o qual o conduzia à beira da histeria. A ameaça de Zelienski era clara e aterradora. Se Alexander traísse os russos ou interferisse de algum modo, o telefonema diário que o soviético efectuava de diferentes cabinas não se concretizaria. O silêncio constituiria o sinal para o envio dos acordos nucleares a Moscovo e Pequim.
E não havia possibilidade de empregar produtos químicos para obrigar Zelienski a revelar o número para o qual costumava ligar, em virtude do risco representado por um homem da sua idade. Um centímetro cúbico a mais na dosagem e o coração poderia ceder, com a perda do número na explosão interna. Quais eram as palavras apropriadas para abordar uma pessoa empenhada em salvar o mundo com o projecto da sua aniquilação? Uma mente dessa natureza não continha o mínime, vestígio de sensatez, dominada totalmente por uma visão distorcida das coisas.
A casa tomou-se visível num ponto elevado à sua direita, pouco maior que uma cabana, de traçado quadrangular e constituída por alvenaria. Um curto caminho de acesso terminava num alpendre, onde se encontrava um carro de modelo antigo, protegido da chuva. Unia luz solitária brilhava através de uma janela saliente, que parecia singularmente deslocada na pequena moradia.
- Começou tudo aqui. - Havelock desligou os faróis e virou-se para Jenna. - No espírito do homem que está ali dentro. Tudo. Da Costa Brava à ilha Poole e de Col des Moulinets a Estéril Cinco. Teve o início aqui.
- Poderemos terminá-lo aqui?
- Pelo menos, tentaremos. Vamos. Apearam-se e transpuseram a distância que os separava do alpendre, esforçando-se por não se atolar demasiado na lama. Deparou-se-lhes urna porta no centro da parede, precedida de um degrau de cimento, e, depois de lançar um olhar fugaz à companheira, Michael bateu.
Decorridos uns momentos, a porta abriu-se e surgiu um homem de idade avançada, quase calvo, com uma pequena pêra branca e alguns vestígios grisalhos. Fitou Havelock por
uns segundos e os olhos arregalaram-se gradualmente, até que entreabriu os lábios trémulos e murmurou:
- Mikhail?
- Olá, Leon. Anton manda-lhe cumprimentos.
O louro avistara a tabuleta, mas a única parte que se revestia de sentido para ele eram as palavras Sem Saída. Não necessitava saber mais nada. Conservando os faróis apagados, fez avançar o sedan algumas dezenas de metros na estrada alagada e lamacenta e imobilizou-o num pequeno desvio, após o que acendeu os faróis e puxou de uma volumosa automática munida de silenciador. Compreendera as instruções do senhor Anónimo, coerentes com o resto da operação. O Lincoln não tardaria a aparecer.
Com efeito, surgiu quase em seguida, a duzentos metros de distância, à entrada da estrada. O louro soltou o travão e começou a mover o volante para a direita e a esquerda, como um condutor embriagado. Prudentemente, a limusina aproximou-se, encostando o mais possível à direita. O louro acelerou de repente e as oscilações do carro aumentaram, enquanto o Lincoln buzinava com insistência através da chuva. Quando se achava a uns dez metros, o louro calcou repentinamente o pedal do acelerador até ao sobrado e desviou-se para a direita, antes de virar com brusquidão para o lado contrário.
O impacto produziu-se e o pára-choques do sedan atingiu a porta esquerda da retaguarda do outro veículo, deslizou e provocou uma profunda depressão na do lado do condutor.
- Grandes azelhas! - bradou o louro, através da janela aberta, no tom arrastado próprio de um etilizado. - Estou a sangrar!
Os dois ocupantes da limusina apearam-se pela porta do lado contrário, e quando contornavam o capot, já no sector luminoso produzido pelos faróis, o louro ergueu a automática à altura da janela e disparou duas vezes. Certeiramente.
- Quer que o trate por Leon ou Alexei?
- Não acredito! - exclamou o russo, sentando-se diante da lareira, os olhos congestionados, cravados em Havelock. - Era degenerativo, irreversível. Não havia esperança.
- Existem muito poucas mentes, muito poucas forças de vontade como a de Anton. Embora ainda não se saiba se recuperará por completo, denota melhoras sensíveis. As drogas exerceram um efeito quase espectacular, assim como a electroterapia. Já reconhece as pessoas. E sente-se apavorado com o que fez.
Michael instalou-se numa cadeira em frente de Zelienski-Kalyazin, enquanto Jerina se conservava de pé junto da porta que dava para a pequena cozinha.
- Não chegou a acontecer!
- Nunca houve um homem como ele. Perguntou por mim e conduziram-me à ilha Poole, onde me contou tudo. Só a mim.
Ilha Poole? É onde está em tratamento, Afinal, quer que lhe chame Uon ou Alexei? Leon nunca foi o meu nome. - O interpelado abanou a cabeça com veemência. -
Sempre Alexei.
- Teve anos memoráveis como Leon Zelienski.
- Santuário forçado, Mikhail. Sou russo e nada mais. Santuário. Havelock e Jenna entreolharam-se, e a expressão dela deixava transparecer que aprovava - com enorme admiração - o rumo pelo qual decidira enveredar.
- Passou-se para o nosso lado... Alexei.
- Não me passei para o vosso lado. Contribuí para a passagem de outros. Homens que corromperiam a abria da minha pátria e excederam os limites das nossas convicções, matando sem necessidade, em busca do poder. Acredito no nosso sistema e não no vosso.
Mas eles não acreditavam. Trocariam as palavras por armas, e ninguém provaria que tinha razão. Desapareceríamos todos.
- Chacais - disse Michael, repetindo o termo que ouvira poucas horas antes. Fanáticos, que marcharam mentalmente ao lado do Terceiro Reich. Não acreditavam que o tempo jogava a nosso favor, apenas as bombas.
- Isso bastará.
- A Voennaya.
- Nunca a mencionei a Manhias! - proferiu Kalyazin, enrugando a fronte.
- Eu também não. Estive no "campo" durante dezasseis anos. Julga que não conheço a VKR?
- Não falam pela Rússia, pela nossa Rússia!.. . Anton e eu discutíamos até altas horas da madrugada. Ele não conseguia compreender, porque provinha de um meio de esplendor e respeitabilidade, dinheiro e mesa farta. Neste país, ninguém entenderá, com a possível excepção dos negros. Não tínhamos nada e advertiam-nos de que não esperássemos nada, neste mundo. Livros, escolas, a simples leitura, eram coisas que não se destinavam aos nossos milhões de almas. Fôramos lançados à Terra corno o gado, para mourejar à disposição dos "melhores"... em obediência à suposta lei de Deus. Meu pai foi enforcado por um príncipe de Voroshin por roubar caça. Roubar caça!... Tudo isso foi modificado por milhões de nós, dirigidos por profetas que não se interessavam por um Deus que decretava gado seres humanos. -Os lábios lívidos do ancião contraíram-se num sorriso estranho. -
Chamam-nos comunistas ateus. Que queriam que fôssemos? Sabíamos como eram as coisas sob a Santa Igreja! Um Deus que ameaça com o fogo eterno quem se revolta contra um inferno vivo não representa um deus para nove décimos da Humanidade. Pode e deve ser substituído, afastado por incompetência e parcialidade indesejável.
- Esse argumento não é exclusivo da Rússia pré-revolucionária - observou Michael.
- Decerto que não, mas é sintomático... e nós estávamos lã! Por esse motivo, vocês perderão, um dia. Não nesta década ou na próxima (talvez nem durante muitos anos), mas hão-de perder. Há demasiadas mesas vazias, demasiados estômagos inchados, e vocês
preocupam-se pouco.
- Se isso se provasse ser verdade, merecíamos de facto perder. Mas não creio que seja. - Inclinou-se para a frente, pousou os cotovelos nos joelhos e fitou Zelienski com intensidade. - Pretende dizer que lhe foi concedido asilo e não deu nada em troca?
- Nenhum dos segredos da minha pátria, nem Anton mo pediu segunda vez. Penso que considerava o meu trabalho (o que você executava antes de abandonar a actividade) destituído de finalidade prática. As nossas decisões contavam muito pouco e os feitos careciam de importância para as cúpulas. Não obstante, dei-lhe urna coisa que serviu ambos, Michael: Anthony Matthias. Salvei~o da armadilha cubana, que o obrigaria a abandonar o cargo oficial que exercia. Fi-lo, porque acreditava nele e não no louco que, ainda que temporariamente, teve demasiado domínio sobre o meu Governo.
- Sim, ele mencionou-o. Teria sido destruído e a sua influência extinta... Foi nessa base (a sua crença nele) que me pediu que o procurasse, Leon... Alexei. Tem de pôr termo à situação. Sabe porque você procedeu assim, mas tem de lhe pôr termo.
- Onde está o ódio nos seus olhos, minha amiga? - Kalyazin voltou-se para Jetina. Decerto se encontra lá.
- Não lhe mentirei. Está junto dos meus pensamentos. Esforço-me por compreender.
- Tinha de se fazer. Não havia outro caminho. Anton precisava ser libertado do espectro de Mikhail. Tinha de o saber afastado do Governo, com outros interesses, outros objectivos. Receava que o seu... o seu filho... se inteirasse da obra que executava e tentasse impedi-lo. - O russo virou-se de novo para Havelock. - Não conseguia afastar a sua imagem do espírito.
- Aprovava o que você fez?
- Fingiu não se aperceber, suponho, em parte revoltado consigo próprio e também ansioso por sobreviver. O seu estado deteriorava-se rapidamente e a sua lucidez suplicava que a deixassem intacta por todo o preço. Miss Karas tomou-se esse preço.
- Nunca lhe perguntou como o conseguiu? Como contactou homens de Moscovo para lhe proporcionarem o que necessitava?
- Nunca. Isso também fazia parte do preço. Lembre-se que o mundo em que você e eu vivíamos carecia de importância para ele, Depois, claro, tudo se converteu em caos...
- Perderam o domínio? - sugeriu Jerma.
- Exacto. As coisas que ouvimos eram tão incríveis, tão horríveis... Uma mulher morta numa praia...
- Que esperavam? - disparou Havelock. - Dois... três velhos dementes.
- Nada daquilo. Não éramos assassinos. Anton dera ordem para que a enviassem para Praga e a vigiassem, até que a sua inocência acabasse por ser estabelecida.
- Essa ordem foi interceptada, alterada.
- Nessa altura, ele não podia fazer nada. Você desaparecera e enlouqueceu por completo.
- Eu tinha desaparecido?
- Foi o que lhe disseram. E, ao ouvi-lo, a lucidez que lhe restava extinguiu-se. Pensava que também o matara. Era a pressão final, a que não conseguiu resistir.
- Como sabe isso? - insistiu Michael, dominando-se com dificuldade.
- Havia mais alguém, que tinha fontes de informação, um médico.
- Raymond Alexander.
- Anton revelou-lho?
- Boswell.
- Sim, o nosso Boswell.
- Você mencionou-o, quando telefonei da Europa.
- Estava assustado. Receava que falasse corri alguém que o tivesse visto em casa de Anton, pois visitava-o com frequência. Eu queria dar-lhe uma razão perfeitamente aceitável da sua presença assídua, a fim de o afastar dele.
- Porquê?
- Porque Alexander, o Grande, se converteu em Alexander, o Enfermo. Você esteve ausente, não sabe. Ele já não escreve. Bebe durante todo o dia e a maior parte da noite. Não aguenta a tensão. Por sorte, para o seu público, há a morte da mulher para o justificar.
- Matthias disse-me que você foi casado. Na Califórnia. Ela morreu e ele convenceu-o a vir viver para Shenandoah.
- Sim, fui casado. Em Moscovo. Ela foi morta pelos soldados de Estaline. Um homem que ajudei a destruir, um homem que provinha da Voennaya.
- Lamento. Registou-se um som diferente do produzido pela chuva no telhado, e Jetina consultou Havelock com o olhar, todavia Kalyazin apressou-se a esclarecer:
- Não é nada de especial. Costumo colocar uma tábua na parte inferior da porta, para evitar que bata nas noites de vento como esta, mas hoje esqueci-me. - Reclinou-se na cadeira e levou a mão sulcada de veias ao queixo. - Tem de me conceder tempo para reflectir, Mikhail. Há pouco, não lhe respondi.
- Acerca de Anton?
- Sim. Ele sabe por que procedi assim? Por que lhe fiz passar aquelas noites horríveis? Auto-sugestão e sugestão provocada, que o enalteceram até actuar como génio que era, discutindo com homens que não estavam presentes. Ele compreende realmente?
- Penso que sim - replicou Michael, sentindo um peso opressivo na base do crânio. Encontrava-se perto, todavia uma resposta errada remeteria aquele Parsifal para um silêncio inquebrável. Sob as palavras suaves do velho russo existia um compromisso forjado em
aço. Sabia que tinha razão. -Nenhum homem isolado deve receber esse poder c as tensões inerentes. Ele suplica-lhe que me entregue aqueles acordos incríveis que ambos criaram e as cópias que possam existir. Deixe-me queimá-los.
- Nesse caso, compreende. Mas será suficiente? Os outros compreenderão? Inteiraram-se?
- Quem?
- Os homens que atribuem esse poder, que permitem a canonização de pretensos santos, descobrirem que os seus heróis são simples mortais, assoberbados por egos descomunais e pelo que lhes exigem.
- Estão aterrorizados. Que mais quer?
- Quero que saibam o que fizeram, como uma única mente brilhante, arrastada pelo vórtice de pressões insustentáveis, pode lançar fogo ao mundo. A loucura é contagiosa, não termina corri um santo apeado.
- Eles compreendem. Sobretudo o único homem que a maioria das pessoas considera o mais poderoso da Terra. Disse-me que tinham criado um imperador, um deus, e não lhes assistia o direito de o fazer. Conduziram-no a uma posição demasiado elevada, ofuscaram-no.
- E Icaro caiu ao mar - articulou Kalyazin. - Berquist é um homem decente, duro mas decente. Ocupa um cargo impossível, embora o desempenhe satisfatoriamente.
- Não há ninguém que eu preferisse ver lá, neste momento.
- Concordo.
- Você está a matá-lo - salientou Havelock. - Largue-o. Liberte-o. A lição foi assimilada e não será esquecida. Deixe-o regressar ao seu cargo impossível e exercê-lo
* melhor que puder.
- Vinte e sete páginas, cada documento, cada acordo - murmurou o russo,, fixando
* olhar no lume. - Eu próprio os passei à máquina, empregando os termos usados por Bismark nos tratados de Schleswig-Holstein. Anton ficou extasiado... O dinheiro nunca me interessou. Aliás, suponho que eles o sabem.
- Sem dúvida.
- Apenas a lição.
- Exacto.
- A única cópia existente é a que enviei ao presidente Berquist num sobrescrito do Departamento de Estado, do gabinete de Matthias, com a palavra Restrito. Destinava-se apenas aos olhos dele, claro.
Havelock estremeceu ao recordar a afirmação de Raymond Alexander de que, se determinado telefonema diário não fosse efectuado, os documentos seguiriam para Moscovo e Pequim. Portanto, devia haver um original e três cópias, em vez de uma.
- Não há outras, Alexei?
- Não.
- Admira que Raymond Alexander, o vosso BoswelI, não insistisse em ficar com uma
- interpôs Jerina, aproximando-se. - É a medula dos seus escritos.
- Diga antes a medula do seu medo, minha amiga. Eu mantenho-o em respeito garantindo-lhe que, se divulgar alguma coisa seja a quem for, enviarei cópias aos vossos inimigos. Nunca foi minha intenção. Pelo contrário, jamais recorreria a semelhante decisão, pois provocaria o cataclismo que pretendo evitar. Rezo por isso.
- Reza, Alexei?
- Não a nenhum dos deuses seus conhecidos, Mikhail. Apenas a uma consciência colectiva e não a uma Santa Igreja com um Todo-Poderoso parcial.
- Entrega-me os documentos?
- Decerto - aquiesceu Kalyazin, inclinando a cabeça. - Mas não no sentido de posse. Queimá-los-emos juntos.
Porquê? Conhece o motivo, pois exercemos a mesma profissão. Os homens que permitem que os Matthias deste mundo voem tão alto que ficam ofuscados pelo Sol nunca se inteirarão da sua existência. Um velho mentiu? Eu iludi-os noutras ocasiões, no passado. Volto a iludi-los? Haverá cópias?
- Há?
- Não, mas eles nunca o saberão. - O russo levantou-se, respirou fundo e pousou os pés no chão com firmeza. - Venha comigo, Mikhail. Estão enterrados no bosque junto da estrada. Visito o lugar todas as tardes. A setenta e três passos de um cornizo, o único nessa área... Venha, vamos tratar disso. Escavaremos à chuva, ficaremos ensopados e regressaremos com as armas do Armagedão. Entretanto, talvez Miss Karas não se importe de fazer chá. Depois, queimaremos os terríveis documentos.
A porta da cozinha abriu-se bruscamente, como que impelida por uma rajada de vento, e surgiu um homem alto com uma franja de cabelos grisalhos em torno da cabeça rapada e uma automática na mão.
- Eles mentem~lhe, Alexei. Mentem sempre e você não se apercebe. Não se mova, Havelock! - Arthur Nerce estendeu a mão, segurou o braço de Jerina e puxou-a para si, apontando-lhe a arma à cabeça. - Vou contar até cinco - acrescentou, dirigindo-se a Michael. .. - Se não tiver puxado a sua pistola com dois dedos e largado no chão, assistirá à execução sumária desta mulher. Um, dois, três...
Havelock desabotoou o casaco e, utilizando dois dedos como uma pinça, extraiu a Llama do coldre e deixou-a cair.
- Empurre-a para aqui com o pé! - ordenou o viajante.
- Não sei como conseguiu entrar, mas não poderá sair - disse Havelock, obedecendo.
- Parece-lhe? - Pierce impeliu Jerma na direcção do abismado russo, - Nesse caso, devo informá-lo de que o seu Abraham foi interceptado por um inoportuno Ismael. Vocês é que não podem sair.
- Outros sabem onde estamos.
- Duvido. Se tal acontecesse, haveria um exército emboscado na estrada.
- Você - bradou Kalyazin, começando por menear a cabeça para depois a inclinar. É você!
- Alegra-me que esteja do nosso lado, Alexei. No entanto, a idade começa a exercer os seus efeitos. Não se apercebe das mentiras que lhe dizem.
- Quais mentiras?
- A recuperação de Matthias. É a maior de todas, O conteúdo da caixa metálica que tenho no carro constituirá leitura interessantíssima para todo o mundo. Apresenta Anthony Matthias com a sua verdadeira face. Um maníaco incurável, violento e paranóico, sem o mínimo conceito da realidade. Constrói ilusões e imagens, fantasias de abstracções, Pode ser programado como um autómato desvairado, para praticar os seus crimes e ofensas. Está louco varrido, declarado incurável.
- Não é possível! - Kalyazin virou-se para Havelock. - As coisas que ele me disse eram do conhecimento exclusivo de Anton.
- Outra mentira. O seu convincente amigo esqueceu-se de mencionar que vinha da aldeia de Fox Hollow, onde reside um conhecido comentarista. Um tal Raymond Alexander... Como lhe chamou Miss Karas? O vosso BoswelI, salvo erro. Irei visitá-lo. Mais um troféu que não destoará na nossa colecção.
- Mikhail? Porquê? Por que disse essas coisas? Por que me mentiu?
- Fui obrigado. Receava que não me escutasse. E por acreditar que o Anton que outrora conhecemos desejaria que o fizesse.
- Mais uma mentira - acudiu Pierce, agachando-se com prudência, para recolher a Llama e prendê-la na cintura. - Eles querem os documentos, para que tudo continue a
desenrolar-se como até aqui e as suas comissões nucleares possam prosseguir na çouguiiiinação de projectos para eliminar os ímpios da face da Terra. É a designação que nos atribuem, Alexei. ímpios. Talvez nomeiem o comodoro Decker para a vaga deixada por Manhias, no Departamento de Estado. O seu tipo está muito em voga. Os fanáticos ambiciosos acham-se na ordem do dia.
- Isso não pode acontecer, e você sabe-o, Viajante.
- Sim, viajante. Como me descobriu?
- Nunca se inteirará. Ou da profundidade a que penetrámos a operação paminyatchik. Sim penetrámos.
- Não acredito.
- É indiferente.
- De qualquer modo, ficaremos com os documentos. Todas as opções serão nossas e não restará nenhuma para você. Nenhuma. Haverá cidades em chamas, se tomarem alguma decisão errada. O mundo não os tolerará mais. - Pierce gesticulou com a automática. - Prepare-se para escavar à chuva, Havelock. "A setenta e três passos de um comizo."
- Há centenas de cornizos - retorquiu Michael. - Não conhece o caminho.
- Alexei indica-o.
- Não faça isso, Alexei.
- Você mentiu-me, Mikhail. Se tiver de haver armas supremas... ainda que apenas no papel... não podem ser as vossas.
- Expliquei-lhe por que o fiz, mas existe outra razão. Ele. Você procurou-nos não por acreditar em nós mas porque não acreditava neles. Voltaram. Este esteve na Costa Brava... matou na Costa Brava.
- Levei a cabo aquilo que vocês apenas pretendiam simular! Tinha de ser executado e não simulado!
- Não, não tinha. Mas quando existe uma alternativa, vocês matam sempre. Liquidou o homem que projectou a operação em que não se tomava necessária morte alguma.
- Limitei-me a fazer o mesmo que você no meu lugar, mas com maior subtileza e imaginação. A sua morte tinha de ser crível, aceite pelo que parecia representar. MacKenzie era a única pessoa que podia recapitular os acontecimentos daquela noite, que conhecia o seu pessoal.
- Igualmente liquidado!
- Era inevitável.
- E Bradford também?
- Com certeza. Tinha-me descoberto.
- Vê o panorama, Alexei? - rugiu Havelock, sem desviar os olhos de Píerce. Matar, matar, matar!... Recorda-se de Rostov?
- Sim.
- Apesar de seu inimigo, era um homem decente. Pois, também o mataram. Há poucas horas. Eles voltaram e marcham implacavelmente.
- Quem? - perguntou Kalyazin, vendo reaparecer imagens do passado.
- Os maníacos da VKR. Da Voennaya.
- Maníacos, não! - proferiu Pierce, com firmeza. - São homens dedicados, que compreendem a natureza do vosso ódio, do vosso embuste. Homens que não comprometem os princípios da União Soviética, aceitando as vossas mentiras hipócritas, para voltar o mundo contra nós. Chegou o nosso dia, Alexei. Estará do nosso lado.
Kalyazin pestanejou, meneou a cabeça com lentidão e proferiu a meia-voz:
- Não... nunca estarei do vosso lado.
- O quê?!
- Vocês não falam pela Rússia - volveu, em inflexão de intensidade crescente.
palavras são rriedidase existe verdade no que uucixi, comoo fazem! São animais! - Sem a mínima indicação prévia, precipitou-se para Pierce e tentou arrebatar-lhe a automática. - Fuja, Mikhaili - Registou-se um estampido abafado no momento em que a arma lhe explodiu no estômago. - Fuja...
Havelock rodou nos calcanhares e impeliu Jetina para a porta da cozinha. Em seguida, voltou-se, a fim de se lançar sobre Pierce, mas estacou, pois o que viu obrigou-o a tomar urna decisão instantânea. O moribundo Kalyazin continuava a segurar a arma, embora as forças se lhe esvaíssem gradualmente.
Ao invés, Michael entrou rapidamente na cozinha e tratou de fechar a porta, colidindo com Jenna, que tinha duas facas na mão. Ele pegou na de lâmina mais curta e correram para a porta de saída.
- Vamos para o bosque! - indicou, no alpendre. - Kalyazin não consegue detê-lo por muito tempo. Depressa! Segue para a direita, que eu vou para a esquerda, Reunimo-nos a uns duzentos metros daqui.
- Qual é o caminho que Alexei mencionou?
- Não sei!
- Pierce vai procurá-lo!
- É mais que certo. Soaram cinco detonações, mas não de uma única arma, e eles compreenderam que havia pelo menos dois inimigos nas proximidades. Separaram-se com prontidão e Michael ziguezagueou em direcção à escuridão das árvores à sua esquerda, voltando-se, no intuito de olhar para trás. Três homens. Pierce vociferava ordens a dois outros, que corriam pela passagem enlameada, munidos de lanternas e armas preparadas para disparar.
Havelock alcançou a orla da vegetação e imergiu na protecção do arvoredo, após o que se desviou para a direita e lançou-se ao chão . Passou a rastejar, olhos fixos numa das lanternas, e retrocedeu para a periferia, onde seria a sua linha de batalha, a coberto do ruído da chuva intensa, que abafava os outros sons. O homem surgiria apressadamente e deter-se-ia em virtude da barreira da vegetação e de uma medida elementar de prudência.
Enquanto o clarão se acercava, Michael atingiu a orla da vegetação, agachou~se e aguardou. O homem fez urna breve pausa, a fim de varrer as imediações com o foco da lanterna, e penetrou no bosque.
Agora. Havelock rolou na relva e encontrou-se directamente atrás do viajante. Sem perda de um segundo, empunhou a faca com firmeza e saltou para a frente. Ao mesmo tempo que embebia a lâmina nas costas do homem, puxou-lhe a cabeça para trás e cobriu a boca com a outra mão. Caíram ambos, e ele sacudiu a faca brutalmente, até não notar o menor movimento. Por fim, voltou o rosto da vítima, enquanto lhe arrebatava a automática, e verificou que não era Pierce. Em seguida, pegou na lanterna e apagou-a.
Jerina embrenhou-se velozmente no arvoredo, através de um caminho estreito, e perguntou-se se seria aquele. "A setenta e três passos de um cornízo." Se fosse, a responsabilidade recaía-lhe inteiramente nos ombros. Não permitiria que alguém passasse, e a única maneira de o conseguir revelava~se-lhe tão desagradável como assustadora.
Não obstante, aplicara-a no passado, sempre aterrorizada com a perspectiva, enojada com o resultado, embora reconhecendo que não havia tempo para se deter a ponderar semelhantes circunstâncias. Olhou para trás e verificou que o clarão da lanterna se desviava para a direita, em direcção ao caminho! Soltou uma exclamação suficientemente elevada, para ser detectada apesar do ruído da chuva, e o clarão imobílizou-se por um momento, após o que se fixou na entrada do caminho, pelo qual enveredou.
Jenna agachou-se entre os arbustos, segurando a faca com firmeza. O clarão oscilante da lanterna aproximava-se gradualmente, enquanto o assassino que a empunhava avançava, ansioso por liquidar uma mulher que supunha desarmada.
Três metros, dois... agora! Ela endireitou-se, ergueu o braço e baixou-o com todo o vigor que conseguiu reunir.
O contacto foi impressionante: brotou um jacto de sangue no momento em que a longa lâmina se afundou na carne.
O homem emitiu um grito rouco que, por um momento angustiante, se sobrepôs ao som persistente da chuva.
Jerina ajoelhou ao lado da vítima sem vida, tentando recobrar o alento, ao mesmo tempo que limpava o sangue da mão na lama macia. Em seguida, apoderou-se da lanterna e apagou-a. No instante imediato, rolou para a borda do caminho e vomitou.
Havelock ouviu o grito abrupto e fechou os olhos, para os tomar a abrir no momento imediato, aliviado por o ter soltado um homem. Jerina conseguira o seu objectivo. Eliminara o indivíduo que recebera ordem para a matar. E esse indivíduo não era Pierce. Não subsistia qualquer dúvida, pois ele observara bem as posições dos perseguidores no alpendre. Pierce achava-se do lado esquerdo, mais perto da porta, quando a caçada principiara.
Portanto, agora achava-se algures entre a área descoberta e o caminho nas traseiras da casa, perante um hectare de bosque alagado pela chuva.
Onde estaria o terceiro clarão de lanterna? No fundo, era compreensível. A luz constituía um alvo, e Pierce não se podia considerar propriamente um insensato. Havia agora dois animais, dois predadores espreitando-se mutuamente na escuridão. No entanto, um dispunha de vantagem, e Michael sabia-o instintivamente. A floresta sempre o protegera, constituíra o seu refúgio. Ele não temia as trevas entre o arvoredo, pois tinham-lhe salvo a vida numerosas vezes, ocultando-o dos olhares ávidos daqueles que não hesitariam em abater uma criança por causa do pai.
Rastejou apressadamente entre os arbustos, olhar e ouvidos atentos, numa tentativa para detectar algum movimento ou som alheio à chuva. Descreveu um semicírculo e esforçou-se por identificar as árvores que o rodeavam. Pouco antes, dissera a Pierce que havia centenas de comizos, sem saber se correspondia à verdade.
Movimento! O som de sucção e não de peso. Um pé ou joelho exercendo pressão e erguendo-se da lama.
A luz era um alvo... a luz era um alvo. Deslocou-se até uma árvore baixa, puxou um ramo com cerca de um metro de comprimento e atou-lhe a lanterna acesa, após o que o deixou regressar à posição primitiva. A seguir, foi-se postar atrás de um tronco próximo e aguardou. O som de sucção reapareceu, cada vez mais perto, até que um grupo de arbustos foi afastado à sua direita e surgiu um vulto.
Quando se viu sob o clarão, Arthur Pierce tentou evitá-lo e disparou a automática, numa série de explosões que ecoaram ao longo do bosque alagado.
- Perdeu - anunciou Havelock, puxando o gatilho e vendo o assassino da Costa Brava cambalear para trás. Tomou a disparar, e o agente da Voerinaya caiu pesadamente, para ficar imóvel. Morto... - Você não conhecia o arvoredo. Eu, familiarizei-me com ele graças a pessoas da sua índole.
- Jerma! Jerma! - bradou, precipitando-se por entre as árvores. - Terminou tudo! Saiamos daqui!
- Mikhail? Mikhail! Ele viu-a caminhar com lentidão, em passos incertos, através do denso lençol de chuva. No entanto, quando o avistou, passou a mover-se mais depressa, até que começou a correr.
Havelock seguiu-lhe o exemplo, desejando - necessitando - que a distância entre ambos desaparecesse.
Abraçaram-se com fervor e, por breves momentos, o mundo à sua volta deixou de lhes interessar.
- Há muitos comizos? - perguntou ela ofegante.
- Não vi nenhum,
- Então, encontrei-o. Vem, Mikhail. Depressa!
Encontravam-se na casa de Kalyazin, cujo corpo sem vida estava coberto por uma manta, o rosto amargurado misericordiosamente oculto.
- É altura de telefonar - declarou Havelock, encaminhando-se para o aparelho e levantando o auscultador.
- Que aconteceu? - indagou o presidente dos Estados Unidos, em voz tensa. - Tenho tentado contactar consigo toda a noite!
- O pesadelo chegou ao fim. Parsifal está morto e recuperámos os documentos. Farei um relatório em que mencionarei aquilo que penso que deve saber.
Seguiu-se um silêncio pesado, até que Berquist murmurou simplesmente:
- Sei que não mentirá.
- Pelo menos, acerca disto.
- Que pensa que devo saber?
- Não omitirei nada de essencial ao cargo impossível que exerce.
- Onde está? Enviarei um exército para o escoltar. É indispensável que os documentos cheguem cá em segurança.
- Não, senhor presidente. Temos uma última diligência a efectuar, junto de um homem chamado Boswell. Mas, antes de sairmos daqui, vou queimá-los. Existe apenas um conjunto e quero destruí-lo. Assim como o relatório psiquiátrico, claro.
- Conseguiu?...
- Poderá ler tudo no relatório. Existe um motivo prático para proceder assim. Não sei o que há lá fora... Ou melhor, julgo que sei, mas não tenho a certeza. Principiou tudo aqui e é onde vai terminar.
- Compreendo. - Berquist fez nova pausa. - Não posso obrigá-lo a mudar de ideias, nem impedir que actue como diz.
- Exacto.
- Portanto, não tentarei. Gosto de pensar que sei julgar os homens. É... ou devia ser... uma condição indispensável, para exercer este cargo... Que pode uma nação grata, uma nação muito grata, fazer por si?
- Deixar-me em paz. Deixar-nos em paz.
- Havelock...
- Sim, senhor presidente?
- Que garantias tenho? De que os queima.
- Parsifal não queria que as tivesse. Desejava que a situação não se repetisse. Que não houvesse mais Matthias. Acabaram-se as superestrelas. Ele pretendia que nunca tivesse a certeza absoluta.
- Vou ter de cismar nisso, não?
- Não era má ideia.
- Manhias morreu, esta tarde. Tentei contactar consigo para lho comunicar.
- Ele já morrera há muito, senhor presidente.
Epílogo
Outono, Nova Hampshire, alternadamente submetida a temperaturas glaciais resultantes de ventos provenientes do árctico e aquecida pelas cores vibrantes dos raios solares outonais, que dão vida aos campos e manifestam renitência em se submeter à aproximação lenta do Inverno.
Havelock pousou o auscultador, no pequeno aposento que Jetina decidira que seria o seu escritório. Ela observara-lhe a expressão, quando transpunha a porta da sala da construção antiga e se deteve, mesmerizado pelas amplas janelas panorâmicas sobranceiras a uma paisagem aprazível. Uma secretária, prateleiras com livros junto da parede interior e um conjunto singular de mobiliário tinham transformado o pequeno espaço num recanto arejado, protegido por paredes transparentes que permitiam uma vista dilatada dos campos e dos bosques que tanto representavam para Michael. Ela compreendia e ele amava-a por compreender. O que contemplaria daquele observatório invulgar não se assemelharia ao que os outros poderiam ver - não apenas a vegetação e as árvores frondosas, ao longe, mas um cenário de santuário em mutação constante.
E as recordações de tensão e sobrevivência também se achavam presentes, assolando-o de tal modo que necessitava mover-se - fisicamente - para as dominar, suprimir. No entanto, levaria o seu tempo. Em regra, não bastavam semanas ou mesmo meses.
Por baixo, havia uma febre latente, porque vocês, bastardos, o envenenavam... Insuflaram-lhe uma dieta de tensão, excitação, frenesi... Ele aguardava com impaciência o momento de nova injecção de estupefaciente. Dr. Matthias Randolph, morto, aludindo a outro morto... e a tantos outros.
Tinham discutido o assunto, Jerma e ele, e definido a febre que lhe acudia, de vez em quando, e ela era o único médico de que carecia. Dariam longos passeios. Em certas ocasiões, Havelock necessitava correr, até começar a transpirar e sentir o peito latejar. No entanto, a febre desapareceria e as explosões na cabeça dissolver-se-iam - as armas seriam silenciadas.
O sono acudia-lhe mais facilmente, e os momentos de impaciência obrigavam-no a recorrer a Jerina e não a uma arma. Aliás, não havia uma única na casa. Jamais as haveria em qualquer lugar em que vivessem.
- Mikhail? - O nome pronunciado com jovialidade foi acompanhado do abrir e fechar da porta da sala contígua.
- Estou aqui! - Ele voltou-se na cadeira de couro rotativa, que constituía a última aquisição para o escritório.
Jerina entrou no aposento banhado pelo sol, pousou no chão o saco de lona e beijou-o fugazmente nos lábios.
- Tens aqui os livros que pretendias. Telefonou alguém? - perguntou, despindo o casaco de tweed. - Colocaram-me na Comissão de Intercâmbio corri Estudantes Estrangeiros e creio que tenho de comparecer a uma reunião, esta noite.
- Pois tens. Em casa do deão Crane, às oito.
- óptimo.
- Agrada-te, hem?
- Sim, porque posso ajudar. Ajudo, Não só por causa das línguas, mas sobretudo com a papelada do Governo. Depois de tantos anos a falsificar documentos, uma pessoa fica em posição vantajosa. Há ocasiões em que tenho dificuldade em ser tão honesta. Como se cometesse um delito.
Riram e Michael pegou-lhe na mão.
Telefonou outra pessoa. Quem?
- Não falava contigo desde que lhe enviaste o relatório cendo.
- Satisfez o meu pedido. Deixou-nos em paz.
- Então, por que telefonou agora? Que pretende?
- Nada. Pensou apenas que eu gostaria de estar a par dos acontecimentos.
- Quais acontecimentos?
- Loring salvou-se, mas não poderá voltar ao "campo>@.
- Alegra-me sabê-lo. Duplamente.
- Oxalá consiga adaptar-se à nova vida.
- Julgo que sim. Podem nomeá-lo estratego.
- Foi o que sugeri.
- Calculei isso mesmo.
- Decker não se safou - acrescentou ele, largando-lhe a mão.
- O quê!
- Foi há uns meses, mas abafaram a notícia. Abateram-no quando saía de casa, na manhã após a nossa visita a casa de Kalyazin. Os guardas precipitaram-se para o carro do assassino, enviado por Pierce, e Decker também. Continuou a avançar sob o tiroteio enquanto lhe restaram forças, cantando O Hino de Combate da República. Creio que queria morrer.
- A morte de um fanático.
- A futilidade. Aprendera a lição e, à sua maneira retorcida, tinha muito para oferecer.
- É História, Mikhail,
- Sim, História.
- Tomei café com Harry Uwis - informou Jenna, abrindo o saco de lona e extraindo os livros. - Desconfio que está a criar coragem para falar contigo.
- Acerca do Vidoeiro? - Michael sorriu. - E uma coisa que vai poder contar aos netos. O professor Hany Lewis, agente secreto, com nome de código e tudo.
- Duvido que se orgulhe muito disso.
- Porquê? Não fez nada de censurável e executou tudo melhor que muitos outros. De resto, arranjou-me um emprego agradável... Convidemo-lo e à mulher para jantar. Quando o telefone tocar, direi que é para o Vidoeiro.
És implacável - disse ela, rindo. Sinto-me excitado. É da chamada. Estou a ficar muito... excitado - proferiu Michael, com um olhar significativo. Vamos dar uma volta.
Escalaram a colina a alguns quilómetros da casa, onde a vegetação elevada era agitada pelo vento e a terra endurecida pelo Sol num céu azul sulcado por algumas nuvens dispersas. Em baixo, a norte, havia um ribeiro serpenteante, cujas águas embatiam suavemente nas margens encurvadas, desafiando as ramagens baixas e deslizando para o Sul com um objectivo definido, do outro lado da elevação.
- Lembras~te daquele piquenique, em Praga? - murmurou Havelock, contemplando a paisagem a seus pés. - Em vez do ribeiro, era o Moldau que corria, lá em baixo.
- Havemos de organizar um aqui - disse Jerina, observando-o com curiosidade. Vinho gelado, salada e aquelas sanduíches horríveis que tanto te agradam.
- Presunto e queijo, com aipo, cebola e mostarda.
- Sim - assentiu sorrindo. - Infelizmente, lembro-me.
- Se eu fosse famoso, davam-lhes o meu nome. Percorriam o país e figuravam em todas
as ementas.
- Então, mantém um perfil reservado, querido.
- És mais forte do que eu - declarou ele, assumindo uma expressão grave.
- Se queres acreditar nisso, está bem, mas não. corresponde à verdade.
- Aparece com intermitências... a excitação.
- Depressão, Mikhail. E cada vez menos, como sabemos perfeitamente.
- No entanto, aparece e volto-me para ti. Tu nunca tens de te voltar para mim.
- Enganas-te.
- Mas não assim.
- Nunca passei pelo que passaste e durante tanto tempo. E há outra coisa. A responsabilidade foi sempre tua e não minha. Cada decisão que tomavas, custava-te uma parte de ti próprio. Eu podia esconder-me atrás de ti. Não poderia fazer o mesmo, porque, muito simplesmente, me faltam as forças para tal.
- Não é verdade.
- Então, a coragem, e isto é verdade. Em todas aquelas semanas em que fugia, de vez em quando tinha de parar, ficar onde estava, sem fazer nada, sem pensar em nada. Nesses momentos, não podia continuar e não me interrogava . Sabia apenas que não podia. Nada disto sucedeu contigo. Em criança e depois adulto, e o que fizeste... o que te fizeram... tem um preço. O efeito passará, está a passar.
- Em criança - volveu Havelock, fixando o olhar no ribeiro. - Vejo-a, sinto-a, mas não a conheço realmente. No entanto, recordo-me dela. Quando estava assustada, cheia de fome, cansada e com medo de dormir, trepava a uma árvore ao romper do dia e tentava detectar patrulhas. Se não havia nenhuma nas proximidades, descia e atravessava os campos velozmente. Passado algum tempo, tomava a sentir-me bem... confiante. A seguir, procurava uma cova numa ravina ou nas ruínas de um celeiro bombardeado e dormia. Um garoto de seis anos enchia os pulmões de oxigénio, e isso exercia nele o efeito de um trago de uísqui. Baixava-lhe a febre.
Jerma tocou-lhe no braço, contemplou-lhe a expressão e acabou por sorrir.
- Corre agora, Mikhail. Desce a encosta e espera por mim. Vá, preguiçoso! Corre! Ele principiou a correr, as longas pernas cortando o ar como uma tesoura, enquanto os pés pousavam no solo com firmeza e o vento lhe fustigava o rosto e arrefecia o corpo, suprimindo-lhe o fôlego e substituindo-o por outro, fresco. Quando alcançou o fundo da colina, o peito dilatava-se cada vez que enchia os pulmões de ar, ao mesmo tempo que sorria de satisfação. A febre atenuava-se e em breve desapareceria. Mais uma vez.
Ergueu os olhos para Jenna, com o Sol pelas costas, e gritou, entre inalações apressadas:
- Anda daí, preguiçosa! Vejamos quem chega primeiro a casa. À nossa casa!
- Passo-te uma rasteira no último momento! - ameaçou ela, descendo a encosta rapidamente, mas sem correr. Sabes que sou capaz!
- Não te serve de nada! Michael extraiu um objecto metálico reluzente da algibeira. - Tenho aqui a chave da porta. Da nossa porta!
- Pateta! - redarguiu Jemia, começando a correr. - Ficou fechada no trinco! Nunca a fechamos à chave!
Acercou-se dele e abraçaram-se.
- Já não é necessário - murmurou ele. - Jamais.
Robert Ludlum
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