Biblioteca Virtual do Poeta Sem Limites
O MUNDO DE ONTEM
Segunda Parte
As primeiras horas da guerra de 1914
Aquele Verão de 1914, mesmo sem a fatalidade que trouxe à Europa teria ficado perenemente gravado na minha memória, pois raramente vi outro mais belo, outro que mais do que ele merecesse realmente o nome de Verão. O céu era de um azul cristalino, do ar tépido dos prados evolavam-se aromas mornos e inebriantes e as florestas mostravam a pujança fresca das copas frondosas de suas árvores. Ainda hoje, quando pronuncio a palavra Verão, não posso deixar de me recordar de dias magníficos daquele luminoso Julho que passei em Baden, perto de Viena.
Tinha decidido demorar-me um mês nessa encantadora cidadezinha onde Beethoven tanto gostava de gozar as férias estivais. Dedicava-o inteiramente aos meus trabalhos. Depois, pensava ir passar o resto do Verão junto de Verhaeren, inesquecível amigo, no seu retiro campestre da Bélgica. Entretanto, sentia-me bem nesse burgo ameno, simultaneamente urbano e rural. Árvores magníficas emolduram as singelas moradias citadinas, cujo estilo e graça são ainda os que Beethoven admirou. Cada qual pode sentar-se à fresca no terraço dos cafés, passear no parque das termas, procurar a alegre companhia dos veraneantes ou deambular despreccupadamente pelas ruas tranqüilas e calmas.
Já nas vésperas daquele dia de S. Pedro, que na Áustria, país católico, é um santo, haviam chegado muitos turistas. Viam-se, com os seus trajes claros e leves, passeando sossegadamente pelo parque, onde tocava uma banda de música. Naquele dia doce e sereno os castanheiros seculares desenhavam as suas copas frondosas no azul sem rugas do céu. As férias principiavam e cada um pressentia a alegria imensa do Verão que se preparava para gozar. As fisionomias mostravam-se radiantes, num ambiente de sã e verdadeira felicidade. Esqueciam-se as preocupações da vida quotidiana. Afastara-me um pouco do bulício e dedicava grande atenção a um livro que levara consigo Tolstoi e Dostoiewski, de Mereschkowski. Apesar de absorto na leitura, não deixava de notar o murmúrio da brisa gemendo no arvoredo, o trinar das aves e as notas distantes da banda musical. Lia e, contudo, seguia também, sem que isso me causasse perturbação, a cadência da música. O nosso ouvido está tão maravilhosamente constituído que podemos abstrair de um som que continuamente vem ferir os tímpanos, como o produzido pela egitação de uma rua ou pelo marulhar de uma corrente, e notar, apesar de tudo, quando esse som se altera ou desaparece subitamente.
E foi o que sucedeu comigo, pois de repente parei de ler, notando que a banda deixara de tocar. Não tinha idéia do que ela executara, mas sabia que tocava e notei que os acordes cessaram de súbito. Desviei instintivamente a vista do livro e dirigi-a para o vaivém jovial dos passeantes entre o arvoredo, ao longe. Também esse vaivém parecia perturbado no seu despreocupado ritmo. Qualquer coisa sucedera, certamente. Levantei-me, olhei para o coreto e vi que os músicos se retiravam, acontecimento invulgar, visto que o concerto durava quase sempre uma hora ou mesmo mais. Esta brusca retirada só podia ter origem num acontecimento importante. Aproximei-me dos grupos junto do coreto e observei que liam, impressionados, uma espécie de comunicado que ali acabava de ser afixado. Era, como imediatamente soube, a cópia de um telegrama que anunciava que Sua Alteza Imperial Francisco Fernando, herdeiro do trono, e sua esposa que haviam ido à Bósnia para assistir às manobras, tinham sido vítimas de um atentado.
O espanto era enorme. A notícia circulava velozmente de boca em boca. Mas não se notava, contudo, e devo dizê-lo em homenagem à verdade, que causasse grande indignação. É certo que o herdeiro do trono não gozava de muita simpatia. Este estado de espírito da multidão contrastava singularmente com o que sucedera quando o príncipe imperial Rodolfo, único filho do imperador, fora encontrado assassinado em Meyerling. Era eu ainda criança, mas recordo-me da verdadeira emoção que de súbito se apoderou de toda a cidade. Uma multidão imensa afluiu à câmara ardente, onde estava o corpo do príncipe, e todos sentiam o luto do imperador pela perda do seu único filho, que o povo estimava e no qual depositava grandes esperanças, por se tratar de um membro da casa de Habsburgo, que, graças às suas idéias generosas e dons particulares, conquistara imensa simpatia. Francisco Fernando, pelo contrário, não tinha as qualidades sem as quais não é possível conquistar o coração dos vienenses: delicadeza, encanto pessoal e benevolência. Tive ocasião de o ver muitas vezes no seu camarote, no'teatro, solene e imponente. O olhar mantinha-se frio e impenetrável; nunca o dirigia condescendente ao público, nem um aplauso encorajador aos artistas. Dir-se-ia que não sabia sorrir. Nunca vi nenhuma fotografia sua em que o olhar não fosse duro. Não tinha inclinação para a música nem para o humor. Sua esposa era tão severa como ele e, assim, não admira que à sua volta reinasse um ambiente de franca indiferença. Sabia-se que não tinham muitos amigos e que o imperador não gostava muito deles, porque não sabiam esconder o seu grande desejo de subir ao trono. O sentimento quase ínstintivo de que este homem com pescoço de buldogue e olhos impassíveis traria consigo a desgraça não era apenas meu, pois toda a nação o pressentia. Compreende-se, pois, que a noticia do seu assassínio não tivesse despertado extraordinária tristeza. E tanto assim foi que, duas horas mais tarde, já se não notavam grandes sinais de pesar. Toda a gente conversava e ria à vontade, e nessa mesma noite continuou a ouvir-se música nos locais de divertimento. Creio até que houve quem ficasse contente, pois a sucessão do velho imperador recairia ao arquiduque Caries, que gozava de mais simpatia.
No dia seguinte, como é natural, os jornais publicavam grandes resenhas do acontecimento e verberavam-no. Contudo, não se deduzia que o atentado pudesse servir de pretexto para uma acção contra a Sérvia. No que se refere à corte, a sua primeira preocupação limitou-se por completo a um assunto muito diferente - às cerimônias e honras devidas às vítimas. Como herdeiro do trono, e, ainda mais, porque tinha perecido em serviço, era natural que Francisco Fernando fosse sepultado na cripta dos Capuchinhos, panteão histórico dos Habsburgos. Mas surgiam dificuldades, pois Francisco Fernando, depois de longas disputas com a família imperial, casara com a condessa Chotek, que, apesar de aristocrata de alta estirpe, não se podia contudo comparar com os Habsburgos. segundo os princípios tradicionalmente aceites por estes. As dissidências tornavam-se evidentes nas grandes cerimônias, em que as arquiduquesas pretendiam ter preferência sobre a mulher de Francisco Fernando, cujos filhos, de resto, não tinham direito ao trono. E eis que, mesmo em presença da morte, surgiam as questiunculas, por não se ver com bons olhos que uma simples condessa Chotek fosse sepultada na cripta imperial.
As arquiduquesas manifestaram imediatamente a sua contrariedade ao imperador e, enquanto se exigia luto rigoroso à nação, as intrigas fervilhavam no paço. Por fim, como quase sempre sucede, passou-se por cima do morto. Salvaram-se as aparências, declarando-se que Francisco Fernando havia manifestado desejo de ser sepultado em Artstetten, pequeno lugarejo perdido na província. Era um hábil argumento, que permitia dar provas de piedoso cumprimento da vontade dos falecidos, e, ao mesmo tempo, terminava com as disputas sobre os diferentes pormenores do protocolo. Os seus caixões foram, afinal, levados simplesmente para Artstetten e baixaram ali à sepultura. Viena eternamente curiosa, perdera a oportunidade de um bom espectáculo, mas a tragédia começava a entrar no domínio das coisas passadas. O povo já havia adquirido como que a convicção de que, depois da morte violenta da imperatriz Isabel, do príncipe herdeiro e das escandalosas desinteligências havidas com alguns membros da família imperial, o velho e solitário imperador acabaria enfim por sobreviver à sua casa fatídica. Umas semanas mais e, quando elas tivessem passado, a pessoa e o nome de Francisco Fernando teriam sido esquecidos.
Alguns dias depois, começaram, porém, os jornais a levantar problemas à volta do atentado, cujos crescendos eram demasiado metódicos para que se pudesse pensar na sua espontaneidade. Acusava-se abertamente o governo da Sérvia de ter tido cumplicidade no drama, e insinuava-se que a Áustria não podia consentir na impunidade de um assassino que vitimara o seu pretensamente estimado futuro imperador. Pressentia-se que a Imprensa preparava a opinião pública para uma determinada acção política a realizar, mas ninguém pensava em guerra. A vida prosseguia no seu ritmo, e tanto os bancos como as casas comerciais e os simples cidadãos prosseguiam nas suas normais actividades. Como poderíamos tomar a sério essas intermináveis disputas com a Sérvia, cuja verdadeira causa se filiava apenas em divergências relacionadas com a exportação de porcos?
Assim, neste estado de espírito, dispunha-me a visitar Verhaeren. com as maletas preparadas e tudo decorrendo magnificamente, que me poderia importar o cadáver desse arquiduque que jazia na tumba? Tinhamos um Verão encantador e que prometia tornar-se ainda mais belo. Estávamos tranqüilos e o futuro não causava apreensões. Recordo-me ainda de que, no último dia que estive em Baden, fui dar uma volta pelas vinhas na companhia de um amigo. A certa altura, encontrámos um velho vinhateiro que nos disse: "Já há muito tempo que não vejo um Verão assim. Se isto continua, teremos um vinhão e o povo lembrar-se-á deste ano".
Mas o bom velhote, cuja blusa tinha a cor do sulfato, estava longe de imaginar como a sua predição seria de uma pavorosa e dura crueldade.
A mesma encantadora despreocupação reinava também em Lê Coq, pequena praia das proximidades de Ostende, onde pensava passar duas semanas, antes da minha já habitual visita a Verhaeren. Os veraneantes estavam estendidos na areia, à sombra das suas barracas multicores, ou tomavam banho os rapazes lançavam ao vento os seus papagaios de papel, que ficavam pairando no azul, e, no cais, dançava-se à porta dos cafés. Encontravam-se ali pessoas de muitas nacionalidades que viviam pacificamente e até se ouvia com freqüência falar alemão, pois havia na Renânia um velho costume de passar as férias estivais nas praias belgas. A única nota original era dada pelos ardinas, os quais, tendo em vista uma maior venda de jornais, gritavam os estridentes caracteres garrafa dos matutinos parisienses: "L'Autriche provoque la Russie" "L'Allemagne prepare la mobilisation". Via-se que as pessoas que compravam os jornais ficavam um pouco inquietas, mas esse estado de espírito durava apenas uns minutos, porque ninguém desconhecia que os conflitos diplomáticos terminavam sempre por se solucionar, felizmente, antes mesmo de tomarem aspectos demasiado violentos. Havia a convicção de que também dessa vez se encontrariam as soluções necessárias. por isso, meia hora depois, já ninguém tinha preocupações. Os banhistas voltavam ao mar, os papagaios paravam, as gaivotas esvcaçavam e o belo Sol continuava a dourar aquela terra abençoada.
Mas as noticias eram cada vez mais alarmantes. Surgira o ultimato da Áustria à Sérvia e a evasiva resposta que esta lhe dera; depois, sabia-se que os reis trocavam telegramas e, por fim, já se falava claramente de mobilização imediata. O ambiente estreito de Lê Coq começava a não satisfazer a minha impaciência. Tinha necessidade de ir diariamente a Ostende, no eléctrico, para receber com mais rapidez as notícias que ali chegavam, e que pioravam constantemente, o movimento, porém, continuava: havia banhistas. os hotéis estavam cheios e na esplanada uma alegre multidão de veraneantes passeava, ria e conversava. Mas eis que, de súbito, surgiu qualquer coisa de verdadeiramente desusado. Pelas ruas passava um grupo de soldados, acompanhados de pequenos carros de metralhadoras puxados por cães, característica particular do exército belga. Era um caso tanto mais estranho quanto é certo que naquela zona balnear jamais se viam militares.
Estava eu então sentado à mesa de um café, em casa de James Ensor, o mais notável pintor e o poeta Crommelynck. Tínhamos passado a tarde em casa de Janes Ensor, o mais notável pintor belga da nova geração, homem extremamente raro e misantropo, que se mostrava mais orgulhoso das vulgares partituras que compunha para bandas militares, do que dos seus fantásticos quadros, a que as cores extremamente vivas davam uma nota original. Mostrara-nos as suas obras com certa relutância, pois estava sempre com receio de que alguém lhe quisesse comprar alguma. Parecia um paradoxo, mas os amigos contaram-me, depois, rindo, que Ensor gostava tanto do dinheiro como das suas obras, as quais queria vender e não vender ao mesmo tempo. Sobretudo queria vendê-las por bom preço, mas, mesmo assim, ainda hesitava. Quando sucedia desfazer-se de alguma, era certo ficar intratável durante muitos dias. Apesar das extravagâncias desse artista, tínhamos passado uma bela tarde e continuávamos satisfeitos. Pouco depois passavam mais soldados e mais carros de metralhadoras puxados por cães. Uma das pessoas que estavam connosco levantou-se e fez festas a um dos animais, gesto que contrariou o oficial que comandava a tropa. Dir-se-ia que aquela meiguice era incompatível com o aprumo militar.
"Para que servirão todos estes incompreensíveis movimentos militares?"-perguntou um dos assistentes, ao qual outro circunstante respondeu, um tanto excitado: "É necessário tomar precauções, pois não seria estranho que, em caso de guerra, os alemães quisessem atravessar o nosso país". "Isso não é possível!" exclamei com convicção, pois naquela época ainda se acreditava na inviolabilidade dos tratados. "Podeis estar convencidos - prossegui - de que, se houver um conflito entre a França e a Alemanha, é possível que as duas nações se aniquilem, mas a Bélgica será respeitada." O nosso pessimista, porém, manteve a sua opinião, afirmando que essas medidas militares tinham certamente razão de ser, tanto mais que, já tempos antes, se falava na existência de um plano secreto do Estado-Maior alemão, segundo o qual as tropas alemãs atravessariam a Bélgica para atacarem a França, apesar de todos os tratados.
"É impossível!" "- retorqui, porque não concebia que um exército alemão estivesse na fronteira, disposto a atentar contra a neutralidade daquele pequeno país onde milhares de alemães se encontravam veraneando tranqüilamente. "Essa hipótese é inadmissível". -insisti de novo. - "Podeis enforcar-me neste candeeiro se os alemães invadirem a Bélgica!" concluí. Hoje, estou muito grato aos meus amigos por não terem usado da liberdade que lhes concedera.
E depois chegaram os dias cada vez mais críticos do fim de Julho. Surgiu o telegrama do imperador Guilherme ao czar e o telegrama do czar ao imperador Guilherme. A Áustria declarava guerra à Sérvia e Jaurés era assassinado. A situação tornava-se tensa, adivinhava-se; e, assim, perpassou pelos espíritos um súbito nervosismo já parecido com o pavor. As praias ficavam desertas e os veraneantes, aos milhares, abandonavam os hotéis, tomando apressadamente o comboio. Até os mais optimistas iam preparando as malas. Comecei também a optar pela prudência e, em presença do facto do estado de guerra entre a Áustria e a Sérvia, tratei do regresso. Já não era sem tempo o comboio em que fiz a viagem foi o último que saiu da Bélgica em direcção à Alemanha. Todos os viajantes denotavam nervosismo, concentrando-se nos corredores das carruagens e falando impacientemente: uns com os outros, mesmo sem se conhecerem. Ninguém tinha coragem bastante para estar sentado tranqüilamente, eu para ler, e em todas as estações procurávamos captar com avidez as últimas notícias, pois albergávamos a consoladora esperança de que uma mão decidida poderia ainda evitar a tragédia que se aproximava. Continuava-se a não se acreditar na evidência da guerra e muito menos na possibilidade de uma invasão da Bélgica. Duvidava-se, porque ninguém supunha que tal loucura fosse possível. Entretanto, o comboio estava já perto da fronteira. Passámos Verviers, a última estação belga. Os maquinistas alemães entraram. Dentro de dez minutos estaríamos na Alemanha.
Antes de chegarmos, porém, a Herbesthal, primeira estação alemã, o nosso comboio parou subitamente em pleno descampado. Um instintivo movimento de espanto se desenhou em todas as fisionomias. Que teria acontecido? Chegámos às janelas procurando descortinar o que sucedera. Foi então que notei na penumbra que passavam comboios uns atrás dos outros, em direcção contrária à nossa. Eram constituídos por vagões de carga, cobertos com oleados. sob os quais tive a vaga impressão de reconhecer a terrível forma dos canhões. O meu coração arfava doidamente. Tudo parecia indicar que se tratava da guarda avançada do exército alemão, já em marcha, mas, contudo, quis ainda acreditar ser apenas uma medida de precaução, ou, então, uma pequena demonstração bélica, mas não a guerra. Quanto maior é a iminência do perigo, mais obstinadamente nos entregamos à esperança salvadora. Por fim, foi dado o sinal da via livre e o nosso comboio pôde prosseguir até Herbesthal. Logo que parou, saltei, nervoso e célere. Queria comprar um jornal que me desse as últimas notícias. Mas a estação estava ocupada militarmente e, quando tentei entrar na sala de espera, cuja porta se mantinha fechada, um severo empregado de barbas brancas comunicou-me que era proibido fazê-lo. Apesar de os cortinados, cuidadosamente corridos, impedirem a vista para o interior do aposento, a verdade é que eu ouvira distintamente o tinir das espadas e o som produzido pelas coronhas das espingardas batendo no chão. Não podia duvidar. A inqualificável monstruosidade havia principiado jáa invasão da Bélgica, apesar dos tratados e do" direito internacional. Fiquei terrivelmente impressionado. Retomei o meu lugar na carruagem e prossegui na viagem para a Áustria, isto é, para a guerra. Já não podia alimentar a menor dúvida.
Na manhã do dia seguinte encontrava-me na Áustria. Em cada estação havia editais anunciadores da mobilização geral. Os comboios enchiam-se de reservistas, tremulavam bandeiras e ouvia-se música. Fui encontrar a capital numa verdadeira agitação.
Aquela guerra que ninguém desejara e da qual tanto receio se tinha, que fora um espantalho nas mãos de diplomatas insensatos e que, por fim, talvez mesmo contra vontade deles, se transformara uma realidade, suscitava o delirante entusiasmo da multidão. Surgiam espontâneas manifestações nas ruas, e apareciam bandeiras e bandas de música por toda a parte. Os cidadãos chamados às armas marchavam em atitude marcial, e a alegria espelhava-se nos rostos. O povo aclamava-os, a eles, pobres e modestos seres, ainda há pouco desconhecidos.
Devo confessar que havia nesse subitâneo arrebatamento popular qualquer coisa de verdadeiramente estranho, grandioso e até fascinante, a cuja influência não era fácil resistir, Apesar da minha decidida animadversão pela guerra, tenho presente o cenário de então, e pondero-o cem freqüência. Só a guerra trouxera aos homens a certeza daquilo que eles pareciam ignorar durante a paz. -a íntima convicção de que faziam parte de um todo social indivisível. Uma cidade de dois milhões de habitantes, todo um país de cinqüenta milhões de almas despertava para uma realidade que lhe dava projecção mundial, procurando viver um momento único na História, no qual todos eram chamados a participar, entregando-lhe generosamente a dádiva suprema da sua individualidade. De súbito, desapareceram todas as barreiras que dividiam os homens. Já não havia posição social, nem crenças, nem idiomas, pois, sob o influxo desse momento incomparável, todos se fundiam no mesmo empolgante complexo de fraternidade. Pessoas que nunca se viram Começavam a conversar, e outros que há muito tempo se não falavam cumprimentavam-se. As fisionomias exultavam. Cada qual pressentia que adquiria foros de personalidade, que deixava de ser o vulgar anônimo de outrora, que fazia falta à sociedade, pois era um valor entre todos os outros valores. O modesto funcionário dos correios, que, desde manhã à noite, apenas vivera para as suas cartas, ontem e sempre, sem outra expectativa, começando na segunda-feira, e acabando no sábado para voltar de novo a recomeçar na segunda-feira, o empregado de escritório e o sapateiro, cada qual via enfim surgir outra perspectiva mais romântica no horizonte da sua vida:"-poderia ser herói. Era assim, pelo menos, que as mulheres e os que ficavam na cidade saudavam e festejavam os reservistas que partiam, e sentiam-se naturalmente empolgados por essa força imprecisa e vaga que de repente lhes dava relevo na sociedade. A própria inquietação tão espontânea da mãe e o receio tão compreensível da esposa mantinham-se invisíveis como que temendo manifestar-se nessa hora de alucinação. Estavam em acção forças psicológicas cuja natureza não seria fácil precisar. A tênue capa das convenções e da moral social fora subitamente submetida à pressão indomável de uma fúria colectiva que fizera brotar à superfície os velhos instintos gregários adormecidos pela civilização. O homem voltava ao primitivismo ancestral, dominado pelo imperativo do complexo que Freud aprofundara e denominara "Jhe Unlust an der Kultur" (1). Queria libertar-se da pressão da lei, regressar à barbárie nativa. É possível que à causa desse paroxismo também não fossem estranhos outros factores, como a emulação, os efeitos do álcool, a cegueira da credulidade e a velha magia das bandeiras e do patriotismo. Não há palavras para descrever claramente a sinistra loucura que se apoderou de milhões de homens e que, naquele momento, quase atribuiu foros de grandeza ao maior crime nessa época.
É provável que a geração de hoje, que apenas assistiu ao desencadear da segunda guerra mundial, pergunte a si própria porque não houve em 1939 tanto entusiasmo como em 1914, por que motivo a multidão,
(1) A repulsa pela ordem moral estabelecida.
pelo contrário, aparentava tristeza e uma espécie de conformação fatalista. Há quem julgue, talvez, que a diferença reside no facto de que a guerra actuaí é uma luta mais séria e mais digna, por ter origem em questões de fronteiras ou colônias.
Mas, no fundo, a verdadeira razão desse cepticismo é realmente outra, e consiste apenas em que os homens de 1939 já não são tão ingênuos e simples como os de 1914. Outrora o povo confiava sem discussão nas autoridades constituídas e não haveria ninguém na Áustria que tivesse sequer a ousadia de pensar que o venerando pai da Pátria, o imperador Francisco José, não tivesse sido forçado por motivos imperiosos, aos oitenta e três anos de idade, a chamar os súbditos às armas. Esse supremo sacrifício que o imperador pedia ao povo fora apenas causado pela crueldade e criminosa malvadez do inimigo, que ousara perturbar a paz do Império - pensava-se.
E o mesmo sucedera na Alemanha, onde todos tiveram conhecimento do telegrama que Guilherme II enviara ao czar, num último esforço para preservar a paz. Nesse tempo, o homem da rua venerava os "superiores", acreditava na sinceridade e na honradez dos ministros e dos diplomatas. Se a guerra tinha rebentado, a culpa não seria dessas personagens intangíveis e também não era, com certeza, de mais ninguém. Dentro deste critério, os culpados estavam evidentemente do outro lado da fronteira. E a guerra parecia então necessária, pois era simplesmente um acto de pura defesa contra um inimigo insolente e obstinado que sem razão "atacara" dois países, que apenas queriam viver em paz "- a Áustria e a Alemanha.
Em 1939, o estado de espírito era, porém, bem diferente, pois esta crença quase fanática na sinceridade dos governantes, ou, pelo menos, na sua competência, já havia desaparecido em toda a Europa. A diplomacia tinha perdido o prestígio que a aureolava, desde que se notara amargamente como traíra em Versalhes a causa de uma paz justa e duradoira, e ninguém havia esquecido que a esperança dos povos fora vergonhosamente defraudada em relação às promessas de desarmamento e à liquidação dos velhos processos de diplomacia secreta. O povo não respeitava os estadistas - perdera a confiança na sua acção.
O mais ínfimo e obscuro trabalhador francês permitia-se proferir afirmações pouco lisonjeiras sobre Daladier e, na Inglaterra, depois de Munique - peace for our time! (1) - já ninguém acreditava na sagacidade de Chamberlain. Na Itália e na Alemanha, o povo, aterrorizado, perguntava a si próprio aonde o arrastariam Hitler e Mussolini. É certo que ninguém se podia recusar a combater, pois a Pátria exigia sacrifícios. Assim, os soldados empunhavam as espingardas e as mulheres viam os filhos partir para a guerra, mas, na verdade, o seu estado de espírito já não era idêntico ao das mulheres de outrora. Faltava-lhes a crença firme na utilidade do sacrifício. Avançava-se, mas já se não sonhava ser herói. Obedecia-se simplesmente, e nada mais. Cada qual tinha a certeza de que era, uma vítima de uma loucura política, uma loucura bem deste mundo, ou um sacrificado nas mãos de um fatalismo imponderável e cruel.
Não era assim a situação em 1914. Vivendo há quase cinqüenta anos em paz, que poderiam saber os homens "desse tempo acerca da guerra? Era um cataclismo ignorado, no qual, de resto, quase já se perdera o hábito de pensar. Era quase um mito, que a distância povoava de heroísmos românticos. A guerra viam-na eles, esses homens, através das perspectivas dos livros escolares e dos painéis dos museus: aparecia-lhes nas cargas alucinantes da cavalaria e no tiro previdêncial que sempre atravessava o coração do herói. A batalha era, enfim, sempre, uma marcha triunfal. Não é de admirar, deste modo, que em Agosto de 1914 os soldados partissem e, dizendo adeus às
(1) Paz para a nossa geração.
mães, exclamassem: Weihnachten sind ivir wieder zu Hause. (1) Haveria alguém, de facto, no campo ou na cidade, que soubesse o que era a guerra, a "verdadeira " Na melhor das hipóteses, talvez vivessem ainda alguns velhos que haviam tomado parte na guerra de 1886 contra a Prússia - que mais tarde se havia de transformar em aliada. E como fora caricata essa guerra anacrônica, que durara apenas três semanas, e terminara quase sem vítimas nem grandes complicações! A guerra era, para o homem vulgar de 1914, uma pequena aventura romântica e máscula. Então, a juventude tinha até receio de perder a magnífica ocasião que se lhe deparava. Compreend'a-se, pois, que acorresse pressurosa às fileiras, que rejubilasse de alegria, e cantasse nos comboios que a conduziam ao matadouro. A nação inteira vibrava, subitamente vivificada por nova seiva. Mas em 1939 o caso era bem diferente, porque a geração desse tempo já conhecia a guerra e sabia que estava muito longe de ser uma marcha triunfal. Não tnha ilusões a esse respeito. Sabia que era uma monstruosidade que duraria muitos anos e também não ignorava que não é com fitinhas e bandeiras que se avança contra o inimigo. Não desconhecia a vida horrível das trincheiras, onde passaria semanas, mísero farrapo à mercê da metralha que um adversário, por vezes invisível, enviava de longe. Essa geração conhecia, pelo jornal e pelo cinema, como eram pavorosas as possibilidades destruidoras que a máquina punha ao serviço da guerra. Antevia os tanques monstruosos, esmagando os feridos na sua marcha diabólica, e a aviação assassinando as mulheres e as crianças nos seus próprios leitos. Adivinhava-se que uma nova guerra seria um cataclismo muito mais pérfido, horrível e monstruoso, pois a técnica e a máquina torná-la-iam muito diferente das de outrora. Em 1939, já ninguém julgava que a luta teria o fim que Deus quisesse e, o que era pior ainda, já ninguém
(1) Estaremos de volta no Natal.
acreditava no valor, na justiça dos tratados e na paz que com essa guerra se conseguissem, pois os efeitos do anterior cataclismo bélico estavam ainda bem gravados na memória de todos: - em vez da abundância viera a ruína e, em vez da concórdia, o ódio criara mais raízes; surgira mais miséria, desvalorizara-se a moeda, rebentaram insurreições, a Lberdade humana fora espezinhada, o Estado erguera-se em tirano do cidadão, e em toda a parte reinava a incerteza e a desconfiança. E eis a razão da diferença. Na guerra de 1939 há já certas razões de ordem moral em jogo luta-se por qualquer coisa de real, de concreto e de tangível que torna o homem mais severo, mais bruto. Em 1914 não havia idéias definidas, pois lutava-se apenas por um ideal, uma espécie de senho que antevia ou desejava um mundo melhor, mais justo, mais humano. E o que torna o homem feliz não é a realidade, mas sim o sonho. Era por isso que as vítimas da guerra de 1914 avançavam alegremente para a matança, encantadas, entre flcxes, com os capacetes enfeitados com ramos de carvalho. Nas ruas, o ambiente era de festa. Havia vibração, entusiasmo.
O facto de eu não ter sido vítima desse subitâneo trasbordar de excitação patriótica não foi, certamente, devido a possuir excepcionais qualidades, mas apenas conseqüência da vida que até então levara. Dois dias antes do desencadeamento das hostilidades, estava eu ainda "em território inimigo", e sabia perfeitamente que o estado do espírito do povo belga era tão calmo e tão pacífico como o do nosso. Por outro lado, vivera de uma forma tão cosmopolita que não era fácil começar a odiar de repente um mundo onde eu estivera sempre tão bem como na minha própria pátria. Havia já algum tempo que começara a desconfiar da política e ultimamente tivera ocasião de manifestar aos meus amigos franceses e italianos como seria abominável a possibilidade de uma guerra. O meu espírito estava de certo modo imunizado contra a peste do patriotismo exacerbado. A febre dos primeiros momentos de excitação não impediu que continuasse firmemente convencido da necessidade da união dos povos da Europa. Não era essa guerra fratricida, originada por diplomatas insensatos e industriais gananciosos que viria modificar o meu critério.
Como cidadão do mundo, a minha decisão já estava tomada, desde os primeiros momentos. Mas o mais difícil era definir a minha atitude como austríaco. Tinha trinta e dois anos. Não fizera serviço militar, por não ter sido apurado nas inspecções a que fora submetido. Isto dera-me realmente muito prazer, por duas grandes razões - primeiro, porque me evitou a sensaboria de desperdiçar um ano com a insensatez da permanência nas fileiras e, depois, porque sempre considerei um absurdo que em pleno século XX se exercitassem pessoas no manejo de armas fratricidas. A atitude digna de um homem das minhas convicções teria sido a de se declarar conscientious objzcíor (1). Mas uma tal objecção, ao contrário do que sucedia na Inglaterra, era severamente punida na Áustria. Quem estivesse disposto a tomá-la devia ter uma alma de mártir. Ora eu devo confessar - e não me envergonho de o fazer - que nunca tive inclinação para a heroicidade. A evasiva foi sempre a atitude que mais naturalmente correspondeu ao meu temperamento, quando obrigado a encarar situações delicadas, e não foi essa a única ocasião em que tive de optar, talvez acertadamente, por essa tendência que fora também outrora um traço característico do meu muito venerado mestre Erasmo de Roterdão. Como também não era muito
(1) Objector de consciência.
aceitável manter-me absolutamente à margem, esperando, em vista da minha relativa mocidade, que me fossem um dia buscar e me colocassem onde talvez eu não desejasse estar, procurei exercer a minha actividade em qualquer sector isento de belicismo. Vali-me para isso da influência de um amigo meu, oficial superior, que então estava nos serviços administrativos do exército. Graças à sua amizade, recebi um lugar de bibliotecário e os meus conhecimentos lingüísticos tiveram ensejo de se pôr à prova. Outras vezes, encarregava-me da redacção ou aperfeiçoamento de certos boletins que deveriam ser publicados, Não era uma actividade gloriosa, reconheço, aliás com prazer; mas era decerto muito mais admissível do que a de enterrar uma baioneta no ventre de qualquer camponês russo. Mas Havia ainda nessa ocupação qualquer coisa de verdadeiramente importante, que consistia em me deixar algum tempo livre para me dedicar à preocupação constante que durante essa guerra não deixou nunca de me animar - a luta pela paz.
Foi mais fácil manter-me no lugar de bibliotecário do que entre os meus confrades intelectuais. Uma grande parte dos nossos literatos ignorava o que se passava para além das fronteiras. Vivendo quase limitados ao círculo das preocupações, hábitos e costumes germânicos, julgavam-se no dever de exaltar os sentimentos bélicos da multidão ignara e de cantar as pretensas virtudes da guerra. Para esse efeito, compunham estrofes inflamadas ou escreviam teses com argumentos científicos. Os poetas alemães repetiam então, quase todos, com Hauptmann e Dehmel à cabeça, o velho costume dos antigos germanos de outrora, que levavam os bardos a alimentar com cantos guerreiros o fogo sagrado das hordas que partiam para a morte. E foi assim que começaram a aparecer cânticos e louvores à guerra, à vitória, ao sofrimento e à morte. Havia escritores que declaravam solenemente que nunca mais poderiam ser amigos de qualquer intelectual francês ou inglês e outros iam ainda mais longe, pois afirmavam que, em comparação com a grandeza da cultura alemã, a cultura francesa e a inglesa eram simplesmente risíveis. Mas atitude mais desgraçada foi a que tomaram certos eruditos. Surgiram de súbito eminentes filósofos a declarar que a guerra é um Stahlbad (1) que retempera as energias vitais dos povos. Havia cirurgiões que louvavam tanto a excelência das suas operações, que quase dava vontade a qualquer cidadão de mandar amputar uma perna para ter depois o prazer de a substituir por uma dessas maravilhas artificiais. Os ministros dos diferentes cultos religiosos julgaram também conveniente participar nessa insensata litania. Dir-se-ia uma horda de brutos alucinados, gesticulando. Nisso se transformavam homens que, algumas semanas antes, ainda nos encantavam pela lógica e pelo humanismo dos seus raciocínios.
O mais paradoxal era que uma grande parte dos que comungavam nessa insensatez agiam talvez com sinceridade. Eram demasiado velhos ou incapazes para qualquer serviço militar, mas supunham-se contudo no dever de participar, de qualquer modo que fosse, na cruzada a que não podiam assistir impassíveis. Todo o seu poder residia na palavra, nessa palavra que, afinal, era do povo. E queriam servi-lo pela palavra, dizendo-lhe por ela aquilo que ele queria ouvir, isto é: que o direito estava só do seu lado, que os outros povos tinham procedido mal e que, assim, a vitória final seria necessariamente da Alemanha. Esqueceram-se de que traíam a verdadeira e grande missão do homem superior, a qual consiste na vigilância constante,
(1) Banho de aço.
na defesa da intangibilidade dos valores morais e espirituais da humanidade. É certo que muitos dos que actuaram dessa maneira tiveram amargos de boca quando, depois, leram as palavras que haviam escrito nas primeiras horas do delírio. Mas a verdade é que nos primeiros meses de guerra só se prestava atenção a quem mais gritasse. E gritou-se furiosamente'. Era um verdadeiro batuque selvático.
Um dos exemplos mais flagrantes dessa atitude, ao mesmo tempo sincera e inqualificável, foi dado por Ernesto Lissauer. Conheci-o muito bem. Possuía o dom das pequenas poesias duras e contundentes, apesar de ser de seu natural o homem mais inofensivo que se possa imaginar. Lembro-me ainda da impressão que recebi quando me visitou pela primeira vez. Tive então de fazer um grande esforço para não sorrir, pois imaginara Lissauer alto, esbelto, imponente, por ser assim que ele transparecia através dos seus bem típicos versos, cuja preocupação constante era a concisão. Mas eis que me encontro em frente de um homenzinho atarracado, bojudo como um tonel, de rosto simplório a aparecer sobre um duplo círculo de gordura submaxilar. Era dotado de uma extraordinária vivacidade e presunção. Dir-se-ia um alucinado da poesia, pois sempre encontrava pretextos para recitar os seus versos, a despeito de todos os esforços que se fizessem para o dissuadir da tal mania. Apesar de tudo o que nele havia da caricato, atraía simpatia, pois era amável, dedicado e sincero, e um verdadeiro apaixonado pela sua arte.
Descendia de uma rica família alemã, estudara no liceu de "Frederico Guilherme", de Berlim, e era certamente o judeu mais prussiano que conheci, ou, pelo menos, um dos que mais perfeitamente assimilaram o prussianismo. Falava apenas alemão e jamais atravessara as fronteiras da Alemanha, que constituía, para ele, o mundo. Quanto mais uma coisa era alemã, mais ele a amava. Os seus heróis preferidos eram Yorck, Lutero e Ste'n e o seu tema predilecto a luta pela liberdade da Alemanha. O seu músico preferido era Bach, cujas composições tocava admiràvelmente, apesar dos seus pequenos dedos balofos. Possuía incomparáveis conhecimentos sobre poesia e língua alemãs, idioma que venerava. Como sucedia com muitos judeus descendentes de famílias que só à última hora entraram no círculo da cultura germânica, amava a Alemanha com mais fanatismo do que o mais fanático alemão.
Logo que rebentou a guerra, Lissauer correu imediatamente a oferecer os seus serviços como voluntário. Imagino o riso de ironia com que o teriam recebido o primeiro sargento e os seus ajudantes quando aquela massa disforme se lhes apresentou como candidato a soldado. Não o aceitaram. Lissauer ficou extremamente desapontado, mas não desanimou. Estava disposto a participar como todos os outros na cruzada pela Alemanha. Se não podia ser de outro modo, servi-la-ia com os seus versos. Não duvidava um momento sequer da veracidade das opiniões dos jornais alemães e das noticias e comunicados do exército. Assim estava absolutamente convencido, como a Wilhèlmstresse afirmava, de que a Alemanha fora lançada na guerra e que o pérfido Lord Grey, ministro inglês dos Negócios Estrangeiros, era um verdadeiro criminoso.
Convencido de que a culpa da guerra recaía principalmente sobre a Inglaterra, escreveu o anátema violento Hassgesang gegen England (1). Não o tenho presente, mas era uma singela poesia de extrema virulência que deu ao ódio contra esse país uma acuidade que o transformou no juramento solene de que o povo alemão jamais poderia esquecer "o "grande crime". E, mais uma vez, haveria de ficar bem patente como é fácil brincar com a paixão dos homens. Esse judeu atarracado, disforme e insensato, seguira pelo caminho que depois seria o de Hitler. Os seus versos tiveram o efeito de uma bomba que deflagrasse subitamente num depósito de munições. Nunca um cântico comseguiu
(1) Cântico do Ódio à Inglaterra.
obter na Alemanha tão rápida popularidade, nem mesmo a Wacht am Rhein (1). O imperador Guilherme ficou encantado com ele e condecorou Lissauer com a medalha da Ordem da Águia Vermelha. A Imprensa publicou-o, os professores liam-no aos discípulos nas escolas e os oficiais recitavam-no aos soldados, em plena frente de batalha. Era preciso que a diatribe do ódio se fixasse em todos os corações. Mas foi-se mais longe ainda: foi musicado e cantado em coro nos teatros, de tal modo que, dentro em pouco, dos setenta milhões de alemães não haveria um único que não soubesse de cor, desde o primeiro ao último verso. O Cântico do ódio à Inglaterra. Por fim, até o mundo o conhecia, talvez com menos entusiasmo. Ernesto Lissauer fora subitamente elevado ao máximo da glória. Nenhum outro poeta alcançara naquela guerra tanta celebridade, se bem que ela se tivesse transformado depois num mal idêntico ao que Nesso sentiu com a sua túnica, pois, quando a guerra acabou e os comerciantes quiseram iniciar os negócios e os políticos trabalhar pela concórdia, logo se reconheceu ser preciso esquecer o cântico que pregava o ódio eterno à Inglaterra. Cada qual começou então a sacudir a água do seu capote e o pobre Lissauer apareceu como único culpado do acesso, de frenética histeria que naqueles primeiros dias de 1914 irrompera por toda a parte. Assim, os que outrora o encomiavam, eram os mesmos que, depois, em 1919, ostensivamente o abandonavam. Nunca mais os seus versos surgiram nas colunas dos jornais e, se Lissauer aparecia entre confrades, era certo que à sua volta se fazia um silêncio pesado. Mais tarde, Hitler expulsou-o da Alemanha, dessa Alemanha que ele amava acima de tudo. E, por fim, o banido morreu, esquecido de todos. Fora uma pobre vítima daquele cântico, que só o elevou fulminantemente a grandes alturas para o despenhar depois no abismo.
(1) Sentinela do Reno.
Quero acreditar que, como sucedera com Lissauer, todos esses poetas, professores e exacerbados patriotas da última hora agiam honestamente. Contudo, os terríveis efeitos da sua demagogia bélica e do seu culto pelo ódio começaram logo a tornar-se bem visíveis. Mesmo sem demagogia, os povos em guerra viviam numa tal excitação que qualquer simples boato se transformava imediatamente em realidade e qualquer calúnia assumia foros de verdade evidente. Havia, assim, muito boa gente na Alemanha que jurava haver visto com os seus próprios olhos, pouco tempo antes da guerra ter rebentado, automóveis carregados de ouro avançarem da França para a Rússia. E, como sucede sempre, três ou quatro dias depois do início da guerra, os jornais começaram a publicar horripilantes histórias de pessoas a quem tinham tirado os olhos ou decepado as mãos. Os pobres que punham a circular tais absurdos ignoravam que o método de lançar calúnias sobre os soldados inimigos é uma arma de guerra como qualquer outra, e que se utiliza logo nos primeiros dias de qualquer conflito. Exigir imparcialidade e justiça durante a luta é absolutamente pueril, pois a guerra é indiferente a esses princípios, e até necessita precisamente de uma constante excitação que mantenha o entusiasmo pela causa própria e o ódio pela do adversário.
Mas a verdade é que sentimentos demasiadamente tensos não se mantêm sempre. Nem o indivíduo nem os povos podem suportá-los. Os militares não ignoram esta realidade. Para manter o nível desse entusiasmo é preciso, pois, um estimulante, um artifício, uma espécie de cloping. E essa missão recaiu sobre os intelectuais, poetas, escritores e jornalistas, que, de boa ou má vontade, tiveram de se desempenhar dela. Foi necessário que rufassem no tambor do ódio e fizeram-no de tal modo que todos aqueles que estavam animados por um princípio de imparcialidade ficaram com séries motivos de desespero e tristeza. Foram poucas as excepções, pois, tanto na Alemanha como na França, na Itália, na Rússia e na Bélgica, os intelectuais se curvaram obedientemente, colaborando no maquiavelismo da propaganda fretricida que servia ou excitava os instintos bélicos ou gregários da multidão, em vez de lutarem contra eles.
Os resultados dessa actividade foram simplesmente trágicos. Nesse tempo, ainda se acreditava na verdade de tudo o que estava impresso. Havia motivo para cepticismo, é certo, mas então ainda a propaganda não tinha perdido o prestígio. O entusiasmo espontâneo e talvez ingênuo das primeiras horas tomou logo, por isso, um caracter cego, que se transformou em verdadeira orgia que primava pela rudeza e insensatez. A guerra contra a França e a Inglaterra começou nas artérias principais de Viena e Berlim, o que, de resto, era muito mais cômoda. Os letreiros em francês e inglês de várias casas comerciais foram imediatamente banidos e até se deu o caso deveras caricato de que certo convento denominado Zu. den En gli&chen Frâulein foi forçado a mudar de nome, porque o povo protestou, ignorando que a expressão englische era apenas um adjectivo derivado da palavra alemã Engel (1) e nada tinha que ver com "inglês". Houve comerciantes que mandaram fazer carimbos ou letreiros onde se lia Gott strafe England (2) e senhoras da alta sociedade juravam solenemente nunca mais pronunciar uma única palavra em francês, fazendo até inserir nos jornais anúncios referentes a essas decisões. Shakespeare foi posto à margem do teatro alemão, e Mozart e Wagner eram simultaneamente banidos dos concertos na França e na Inglaterra. Houve professores na Alemanha que imediatamente decidiram que
(1) Anjo.
(2) Que Deus castigue a Inglaterra.
Pante fora alemão, enquanto na França outros se encarregavam de declarar que Beethoven fora belga. Já não bastava a pilhagem material que à sombra da guerra se fazia "- era preciso também alargá-la aos domínios superiores da cultura.
Não era suficiente que todos os dias milhares de homens, até aí pacíficos cidadãos, se assassinassem uns aos outros nos campos de batalha "- impunha-se também insultar a memória dos mortos ilustres que nasceram noutros países e há séculos jaziam no silêncio do túmulo. A loucura tomava proporções cada vez mais assustadoras. Aqui era uma cozinheira, atarefada à volta do fogão, e que, apesar de nunca haver saído da sua terra e desde os tempos da escola nunca mais ter pegado numa geografia, acreditava que a Áustria não podia existir sem Sandschak - pequena região perdida em qualquer parte da fronteira da Bósnia. Mais além, apareciam cocheiros disputando acaloradamente em plena rua acerca da indemnização que se deveria impor à França; uns optavam por cinqüenta biliões, outros exigiam cem, mas nenhum tinha uma idéia bastante clara acerca do que realmente fosse um bilião. Não havia excepções porque o histerismo do ódio penetrara em toda a parte. Chegara ao altar e até os próprios socialistas, que um mês antes declaravam o militarismo a maior de todas as monstruosidades, vozeavam mais que os outros para não se verem classificados de "homens sem Pátria", como o imperador Guilherme ameaçara fazer. Era decididamente a guerra de uma geração sem experiência, e o maior perigo consistia precisamente na convicção íntima de cada povo de que a sua causa era a única justa.
Era quase impossível manter naquelas primeiras semanas da guerra de 1914 uma simples conversa com algum senso, Dir-se-ia que o apelo de sangue havia embriagado até as almas mais belas e generosas. Homens que eu até então considerava espíritos selectos, e até alguns anarquistas puritanos, transformaram-se inopinadamente em arre'gados patriotas e de patriotas em decididos anexionistas. Era vulgar que as conversas terminassem com sentenças absurdas como esta: "Só quem odeia sabe amar verdadeiramente". Por vezes ia-se até mais além, pois insinuavam-se suspeitas de igual jaez. Havia amigos com quem eu mantinha desde há muito excelentes relações, que, de chofre, tinham a coragem de me dizer que eu já não era austríaco, e que faria bem melhor se tomasse o caminho da França ou da Bélgica. Deixavam transparecer que quem considerava aquela guerra um "crime" era tão-sòmente um derrotista - a bela expressão acabava de ser inventada em França- e que não seria mau que o facto fosse levado ao conhecimento das autoridades, visto tratar-se dos piores inimigos da Pátria.
Havia uma última solução - era a de me isolar, manter-me em silêncio no meio daquele tumulto alucinante. Mas não é realmente fácil viver sozinho na nossa terra. É menos difícil fazê-lo no exílio - seio-o demasiado bem. Os meus velhos amigos de Viena afastaram-se de mim, e não era aquela a ocasião mais adequada para cultivar novas relações. Apenas me dava com Rainer Maria Rilke. Fora possível conseguir que ele prestasse serviço na mesma repartição onde me encontrava, pois é evidente que o seu temperamento delicado, o seu horror pela promiscuidade e pelo desagradável ambiente caserneiro nunca lhe teriam permitido ser soldado.
Não posso deixar de me lembrar do seu aspecto caricato quando pela primeira vez o vi de uniforme. Certo dia, ouvi bater à porta da minha casa. Fui abrir e eis que se me deparou um soldado muito pouco marcial. Mas o meu espanto foi enorme quando notei que tinha Rilke na minha frente. Era verdade - Rainer Maria Rilke envergara o uniforme militar! Adivinhava-se imediatamente que se sentia bem pouco à vontade dentro dele. Parecia que o colarinho lhe apertava o pescoço e estarrecia ante a perspectiva de ter ds fazer soar os ta:ões das botas quando forçado a perfilar-se em frente, de qualquer superior. O seu velho desejo de fazer tudo com esmero também então se manifestava, levando-o a cumprir impecàvelmente todas as ninharias do regulamento militar. Mas esse desejo infundia-lhe uma constante inquietação.
"Não imagina como desde cadete detesto o uniforme militar. Julgava nunca mais o vestir, e eis que, agora, aos quarenta anos, sou obrigado a fazê-lo!" - exclamou na sua voz melodiosa. O seu infortúnio durou, porém, pouco tempo, felizmente, pois houve quem o protegesse. Submetido a uma benevolente inspecção médica, foi a breve trecho dispensado. Quando voltou a minha casa, para se despedir e agradecer os cuidados que eu tivera, por intermédio de Rolland, para salvar a biblioteca que ele tinha em Paris e fora confiscada, já vinha vestido à paisana. Entrou no meu quarto tão levemente que quase se poderia dizer que não andava, de tal modo o seu passo era delicado. Notei então que o seu olhar perdera muito da sua expressão juvenil. A tragédia tinha decerto toldado a paz do seu espírito. À hora da despedida murmurou "Ai! Se ainda tivéssemos o recurso de partir para o estrangeiro! A guerra é sempre isto - sujeição!" Depois partiu e fiquei novamente só.
Passado pouco tempo, resolvi mudar-me para outro local mais tranqüilo, onde, afastado da nevrose da multidão alucinada, poderia, em plena guerra, iniciar estoutra guerra para mim bem mais importante - a batalha contra os que, cedendo às paixões desenfreadas da multidão ignara, haviam traído a causa da Razão.
A luta pela fraternidade espiritual
Não era fácil isolar-me. O ambiente estava sobrecarregado em toda a parte. Por outro lado, adquiria a convicção de que uma atitude meramente passiva não era aconselhável. Não bastava abster-me de participar na onda de calúnias que se lançava contra o adversário. Não se é em vão escritor. Assim, sentia-me com o dever de emitir a minha opinião, na medida em que a censura o tolerasse.
E lancei mãos à obra. Principiei por escrever um artigo intitulado An dle Fretind im Frendland, (1) no qual, pondo-me absolutamente à margem da campanha de ódio, então dominante, declarava a minha fidelidade aos amigos estrangeiros e assegurava que, apesar das dificuldades do momento não permitirem relações, aproveitaria a primeira oportunidade para me dedicar com eles à idéia da fraternidade dos povos da Europa. Enviei-o ao diário Berliner Tageblatt, o mais importante jornal alemão, que, contra a minha expectativa, o publicou quase na íntegra. A censura suprimira apenas uma passagem onde se dizia wem attch
(1) Aos meus amigos do estrangeiro.
immer der Sieg zafaUen môge, (1) pois nessa altura não se admitia a mais leve dúvida de que a Alemanha alcançaria a vitória. Mas essa mutilação não impediu que alguns furiosos patriotas me escrevessem, manifestando o seu espanto pela inadmissível idéia de que naquele momento ainda existisse quem aceitasse a amizade com abomináveis inimigos. A réplica não me assombrou muito, tanto mais que não pensava em catequizar os outros. O meu desejo era o de manifestar bem claramente o meu pensamento, e nada mais.
Quinze dias depois, esquecido já completamente o caso, chega à minha mão uma carta enviada da Suíça e com o carimbo da censura. Logo que a vi, reconheci a letra de Romain Rolland, o qual lera o meu artigo, pois escrevia: "Non, je ne quítterai jamais mês amis." Adivinhei que a sua pequena missiva era uma tentativa para ver se, em plena guerra, seria possível corresponder-se com um amigo austríaco. E tendo-Lhe respondido, iniciámos então uma correspondência que devia durar cerca de vinte e cinco anos. Só a segunda guerra, muito mais brutal do que a primeira, a interromperia, isolando completamente as nações.
Foi um dos momentos mais doces da minha vida. Essa carta era como que uma pomba branca que em plena barbárie me trazia uma mensagem amorosa. Já não me sentia sozinho no mundo. O humanismo de Rolland era um lenitivo e um bálsamo para a minha alma. Sabia que ele se mantinha fiel aos seus generosos princípios e que havia encontrado o único caminho digno de um poeta em tais emergências-não ser um elemento ao serviço da destruição e da morte, mas - seguindo o magnífico exemplo de Walt Whitman, que foi enfermeiro na guerra de Sucessão dedicar-se a suavizar as misérias e os sofrimentos humanos. Rolland, que vivia na Suíça e que, devido à sua delicada saúde, estava isento do serviço militar, encontrava-se em Genebra quando a guerra rebentou.
(1) Seja para onde for que a vitória se incline.
Imediatamente ofereceu os seus préstimos à Cruz Vermelha e dedicou constante e decidido apoio àquela magnífica obra, que mais tarde quis publicamente enaltecer com o meu trabalho Das Herz Europas (1). Logo após os terríveis combates das primeiras semanas, reinava uma incerteza absoluta. Não havia correspondência e as famílias dos combatentes, nos diferentes países, ignoravam se os seus entes queridos haviam caído na frente de batalha, se estavam prisioneiros ou se haviam desaparecido. Também ninguém sabia a quem se deveria dirigir no intuito de solicitar informações e do "inimigo" nada se poderia esperar. E foi então que a Cruz Vermelha tomou sobre si o encargo de suavizar, pelo menos, no meio daquele horror, a maior de todas as angústias - a da incerteza em que se encontravam as famílias. Para esse fim, montou uma secção especial para fazer chegar ao seu destino as cartas dos prisioneiros de guerra. Mas, apesar dessa instituição existir há já alguns decênios, não estava, contudo, preparada para função de tão larga envergadura. Assim, solicitava constantemente a colaboração desinteressada de pessoas de boa vontade que a auxiliassem nesse serviço, pois uma hora de espera significava uma eternidade para os que ansiavam por notícias. No fim de Dezembro de 1914, o número de cartas recebidas era já de cerca de trinta mil por dia. Por fim, no pequeno Musée Rath, em Genebra, havia mil e duzentas pessoas empregadas somente em dar o devido destino à correspondência que diariamente ali chegava. E entre elas, sacrificando os seus próprios interesses, estava também o mais humano de todos os escritores-Romain Rolland. Mas a dedicação de que dava prova não era de molde a que se esquecesse do seu outro grande dever
- o de, como pensador, manifestar abertamente a sua opinião, mesmo que ela entrasse em litígio com a do seu país ou suscitasse até a animadversão de todos os causadores de guerra daquém e além-fronteiras. E foi
(1) O Coração da Europa.
assim que, em pleno Outono de 1914, enquanto a maioria dos escritores vociferava raivosamente, Rolland escreveu o admirável apelo Audessus de la mêlée, em que vituperava o ódio entre os povos e proclamava que o pensador tinha o supremo dever de nunca deixar de ser humano e justo, mesmo em plena guerra, Esse apelo foi um dos trabalhos mais discutidos naquela época, suscitando apaixonadas controvérsias.
Nesse particular há notável diferença entre a primeira e a segunda guerra mundial. Em 1914 a palavra era ainda espontânea e livre. Não havia sido ainda assassinada pela mentira da "propaganda organizada". Era respeitada, porque o que estava escrito tinha prestígio. Na guerra de 1939 não houve um único escritor cuja obra tivesse exercido notável influência nos espíritos, nem num sentido nem noutro. Não apareceu um soneto da envergadura daqueles simples catorze versos do Cântico do Ódio à Inglaterra, de Lissauer, ou um documento como o manifesto absurdo dos noventa e três intelectuais alemães. E também nada se pode comparar à grande amplitude então tomada por aquelas pequenas oito páginas do Au-dessus de la mêlée, de Rolland, ou do romance de Barbusse, Lê Feu.
Nessa época, a consciência moral do mundo ainda não estava tão narcotizado como hoje. Reagia-se imediatamente contra qualquer violência ou atentado, com o vigor e sinceridade de quem se habituara a uma liberdade transmitida através dos séculos. Em 1914, um atentado contra o direito internacional, como a violação da neutralidade da Bélgica pela Alemanha, ergueu em todo o mundo um clamoroso protesto. Contudo, esse mesmo facto quase passou despercebido quando Hitler, repetindo-o, deu foros de lei à brutalidade instituída como norma nas relações entre os povos. E houve acontecimentos que foram então mais nocivos para a Alemanha do que a perda de grandes batalhas, como, por exemplo, a indignação geral provocada pelo fuzilamento de Miss Cavell ou pelo torpedeamento do Lusitânia.
Portanto, nessa época, a voz do escritor não clamava no deserto. Os tímpanos e as almas ainda não estavam endurecidos pelo martelar constante da rádio. A opinião livre de um pensador eminente valia certamente muito mais do que os discursos oficiais dos políticos, pois não se ignorava que essas peças oratórias eram simples manobras previamente estudadas para atingirem determinado fim momentaneamente em vista, ou que, quando muito, apenas diziam metade da verdade. É certo que a geração de 1914-geração que, depois, tantas desilusões sofreria - confiava mais na superioridade moral e na sinceridade dos pensadores. As autoridades não ignoravam esse facto, e era por isso que procuravam atrair a si todos os pensadores de prestígio, para que influenciassem a opinião pública, afirmando, provando e reafirmando que a causa do seu país era a única verdadeiramente justa e que o inimigo era mau e não tinha razão. Mas tudo foi inútil com Rolland. porque ele compreendeu que a sua missão não podia ser a de tornar mais densa ainda a atmosfera de ódio e malquerença, mas, que, pelo contrário, tinha o dever de a purificar.
Quem ler hoje as oito páginas do célebre apelo de Rolland talvez não consiga compreender como foi grande a celeuma que ele originou, já que todas as suas afirmações aparecom absolutamente compreensíveis e razoáveis. Mas não se deve esquecer que esse trabalho foi publicado numa época em que a exaltação das multidões atingia o paroxismo de uma paixão que hoje quase se não concebe. Quando ele apareceu em público, logo os chauvinistas franceses irromperam em medonho berreiro. Dir-se-ia que tivessem inesperadamente pegado num ferro em brasa. Os seus melhores amigos condenaram-no ao ostracismo, os livreiros retiraram o Jean Cristophe das montras das livrarias e as autoridades militares, que necessitavam do veneno do ódio para estímulo dos soldados, tomaram medidas contra o pensador. De súbito, apareceram panfletos onde se defendia a tese de que Ce qu'on donne pendant la guerre à l'humanité est volé à la patrie. Mas toda esta azáfama provava simplesmente que o golpe havia sido oportunamente desferido. Já não se podia evitar a discussão acerca da atitude do pensador perante a guerra. O problema estava inevitavelmente posto em equação na consciência de cada um.
Uma das grandes penas que neste momento me acompanham é a de não ter à minha disposição as cartas que Rolland me escreveu na época a que me refiro. E a simples hipótese de que elas possam desaparecer na voragem deste cataclismo é para mim uma constante tortura. Sincero admirador de todos os seus trabalhos, julgo que essas cartas poderiam muito bem significar mais tarde o que de mais belo e humano a sua bondade e o seu gênio produziram. São cartas de uma alma generosa e compassíva, escritas com todo o calor da sua grande dor impotente, a um amigo que nascera além-fronteiras, e era naquelas circunstâncias, oficialmente, um "inimigo". Revelam, sem dúvida, um alto valor moral, pois foram redigidas numa época em que era realmente preciso grande clarividência para destrinçar a trajectória dos acontecimentos e enorme coragem para se manter fiel ao próprio pensamento. Dessa amigável correspondência havia de surgir dentro de pouco uma idéia que daria homogeneidade ao nosso esforço pela paz. Rolland propusera que se realizasse na Suíça uma conferência na qual participassem os intelectuais mais em evidência nos diferentes países. Talvez se pudesse - pensava Rolland - lançar um apelo comum a favor de um entendimento entre os povos.
Rolland, na Suíça, encarregar-se-ia de convidar os escritores franceses e os de outros países. Eu deveria abordar todos aqueles, que, na Áustria e na Alemanha, ainda não haviam comprometido o seu nome na campanha do ódio. Lancei imediatamente mãos à obra.
Pensei em Gerhart Hauptmann, que era, então, um dos valores mais representativos da poesia alemã. Não quis, porém, dirigir-me pessoalmente a ele, pois considerei que uma intervenção indirecta colocá-lo-ia mais à vontade para emitir opinião. Resolvi assim escrever ao nosso amigo comum Walter Rathenau, pedindo-lhe que o consultasse a esse respeito, confidencialmente. A resposta que recebi - nunca consegui saber se fora tomada de acordo com Hauptmann - indicava que ainda era muito cedo para se pensar numa conferência dessa envergadura. Era o golpe de misericórdia dado na idéia. Tomás Mann estava então do outro lado da barricada, pois, num trabalho que escrevera sobre Frederico o Grande, reconhecia a justiça da causa germânica. Rilke mantinha-se -connosco, mas recusava-se, por uma questão de princípio, a tomar parte em demonstrações públicas e colectivas. Dehmel, que outrora se declarara socialista, não tinha pejo de assinar as cartas num alarde de infantil e caricato orgulho patriótico como "Tenente Dehmel". Por fim, quanto a Hofmannsthal e a Jacob Wassermann, cheguei a pensar que não se poderia contar com eles. Tal era a perspectiva do lado alemão. Em França, também Rolland não foi mais bem sucedido. Era evidente que em 1914 e 1915 ainda era muito cedo para que aqueles que não estavam nas trincheiras pensassem na paz. E, assim, ficámos sozinhos.
O nosso esforço, contudo, não fora absolutamente inútil, pois com a nossa correspondência conseguimos saber que havia alguns homens de boa vontade, tanto nos países beligerantes como nos neutrais, que estavam de acordo com o nosso ponto de vista, e com quem podíamos contar. Estabeleceu-se como que um núcleo de afinidades, que foi tomando a pouco e pouco consistência, e ao qual os próprios acontecimentos posteriores agregariam novos elementos. Podíamos actuar através de certos trabalhos intelectuais.
Tendo, com isso, adquirido a certeza de não estar absolutamente só, tomei ânimo e comecei a escrever artigos que originavam respostas que me esclareciam e tenham, além disso, o condão de fazer despertar os intelectuais isolados que, aqui e além, se encontravam dispersos, mas animados de idéias semelhantes às nossas. O meu raio de acção era bastante apreciável, pois podia dispor dos grandes jornais da Áustria e da Alemanha. Por outro lado, não havia o receio de uma intervenção dec'dida das autoridades contra mim, visto que me mantinha numa atitude puramente intelectual. E nessa época ainda era muito grande o respeito pelos valores do espírito. Lendo os artigos que então me foi possível publicar, não posso deixar de me curvar em face da tolerância que animava as autoridades militares da Áustria desse tempo. Apesar de estarmos em plena guerra, foi-me permitido tecer rasgados elogios à fundadora do movimento pacifista, Berta von Suttner, a qual apontava a guerra como o mais monstruoso de todos os crimes, e tivera a Liberdade de publicar num jornal austríaco grandes referências acerca do livro de Bisrbusse, Lê Feu.
É evidente que essa liberdade dependia também de certa prudência e técnica da nossa parte, pois não era possível de outro modo emitir durante o conflito opiniões que tão abertamente hostilizavam o pensamento quase geralmente aceite. Utilizando o Feu para demonstrar a todos quanto a guerra tinha de brutalidade, fui de certo obrigado a frisar que se tratava tão-somente das agruras sofridas por um "soldado francês". Mas as centenas de cartas que a esse respeito ou depois deveria receber da frente de batalha, provavam como os soldados austríacos sentiam uma dor que também era sua. A estratégia adoptada variava segundo as necessidades, já que o essencial era manifestar as nossas opiniões. Por vezes até se escolhia a do aparente ataque mútuo. E foi assim que um dos meus amigos franceses criticou no Mercure de France. o meu artigo Den Freunden im Frendland. A verdade é que, estabelecendo uma polêmica acerca dele, dera-o à publicidade em França, pois traduzira-o da primeira à última linha. E o fim que se tinha, em vista não era outro. Surgiam aqui e além sinais luminosos, que eram mútuos acenos de reconhecimento.
Tive mais tarde ocasião de adquirir a certeza de que esses sinais não passavam despercebidos das pessoas a quem se destinavam. O seguinte pequeno episódio é deveras interessante. Quando, em Maio de
1915, a Itália declarou Guerra à Áustria, logo neste último país se desencadeou contra a sua aliada de outrora uma verdadeira vaga de insultos. Tudo o que era italiano foi vituperado. Ora, dera-se a coincidência de que precisamente naquele momento tinha aparecido um livro de memórias de Carlos Poerio. jovem do Risorgimento, em que se mencionava uma visita feita a Goêthe. Aproveitei imediatamente o feliz acaso para lançar naquele torvelinho de malquerenças a agradável neta de que os italianos desde longa data prestavam homenagem à nossa cultura. Escrevi então um artigo intitulado Ein Italiener be;. Goeth (1). E como o referido livro fora prefaciado por Benedito Croce, aproveitei a circunstância para lhe dedicar algumas linhas de profunda admiração. Era de esperar que o duplo sentido do meu trabalho fosse compreendido pelos iniciados, mesmo além-fronteiras; nessa altura ninguém concebia a possibilidade de, na Áustria, se falar sem ódio acerca de qualquer pensador italiano. De facto, assim sucedera, pois Croce, então membro do governo italiano, contou-me mais tarde que certo dia foi abordado por um funcionário do seu ministério. o qual, penalizado, lhe dissera que no principal jornal do inimigo vinha uma notícia contra ele. O referido funcionário não conhecia o alemão, e, tendo notado o
(1) A visita de um italiano a Goethe.
artigo, concebeu imediatamente que nele só se poderia dizer mal do ministro. Croce mandou buscar um exemplar do mencionado jornal, Neue Fre'e Presse, e ficou encantado quando, em vez da injúria esperada, verificou que se lhe fazia justiça e prestava homenagem.
Não tenho a pretensão de dar a estes pequenos nadas uma importância que eles decerto não possuem. Estou convencido de que não tiveram a mais pequena influência no desenrolar dos acontecimentos. Contudo, não foram absolutamente inúteis para nós e talvez também para muitos dos que então leram os nossos trabalhos. De certo modo, agiram como lenitivo para o terrível isolamento e desespero em que então não podia deixar de se sentir, em pleno século XX, um homem de sentimentos altruístas e humanitários. Mas, vinte e cinco anos depois, esse desespero havia de reaparecer, talvez ainda mais cruelmente desolador, colocando-nos novamente sem defesa, à mercê de um fatalismo sem nome.
A certeza de que esses platonismos não tinham nenhuma eficácia começara a radicar-se no meu espírito, e pouco a pouco foi-se firmando em mim a crença de que não devia limitar-me apenas a eles, mas que era preferível integrar-me no ritmo dos próprios acontecimentos do tempo, entrar, enfim, em contacto directo com o povo, com a odisséia da guerra.
A verdade é que eu ainda não vira a guerra e não podia, pois, descrevê-la. Havia um ano que me encontrava encerrado no meu gabinete e, entretanto, a grande tragédia, o verdadeiro e monstruoso drama, desenrolava-se longe, nas frentes de batalha. Várias vezes tivera ocasião de as visitar, visto que três ou quatro dos mais importantes jornais insistiram comigo para que fosse correspondente de guerra. Recusara sempre, pois sabia que seria obrigado a dar aos meus relatórios um sentido exclusivamente unilateral e patriótico, o que vinha contrariar o juramento que eu então a mim próprio fizera - e ao qual me mantive fiel até 1940 - de jamais escrever uma palavra a favor da guerra ou que pudesse significar uma ofensa para qualquer nação. Mas eis que, de repente, surgiu uma inesperada oportunidade. A grande ofensiva austro-alemã da Primavera de 1915 rompera as linhas russas em Tarncw e, num formidável impulso, conquistara a Polônia e a Galícia. A repartição do arquivo militar em que eu prestava serviço queria coleccionar, para a biblioteca do exército, exemplares de todas as proclamações ou editais impressos pelos russos, que diziam respeito à zona recém-conquistada. Era preciso operar rapidamente, antes que esses documentos desaparecessem. O director da repartição, que conhecia a minha perícia em matéria de colecções, perguntou-me se não estaria disposto a prestar esse serviço. Aceitei imediatamente a oferta. Para me desempenhar da missão que me fora incumbida, recebi um documento que me permitia inteira liberdade de acção. Por ele, e sem depender directamente de nenhuma acção militar eu autoridade especial, podia ir aonde me aprouvesse e viajar nos comboios militares, o que por vezes dava lugar a situações curiosas. O meu posto era simplesmente o de primeiro-sargento honorário e no meu uniforme não usava distintivos especiais. Ora, quando eu apresentava o meu misterioso documento, logo à minha volta se gerava uma especial deferência, pois os funcionários ou os oficiais com quem tratava imaginavam talvez estar em presença de qualquer alta personagem militar disfarçada, ou que pelo menos teria sido incumbido de alguma missão delicada. Evitando freqüentar as messes de oficiais, procurava hospedar-me nos hotéis. Assim, ficava de qualquer modo afastado da engrenagem burocrática, adquiria a vantagem de me livrar dos "cicerones", podendo ver tudo o que me aprouvesse. A minha missão oficial dera-me muito pouco trabalho. Chegando a qualquer cidade da Galícia como, por exemplo, Tarnow, Drohobycz o-u Lemberg, logo encontrava na estação qualquer daqueles judeus denominados Faktoren, cuja função consiste em preocuparem-se com tudo aquilo de que qualquer viajante possa necessitar. Bastava apenas dizer a qualquer desses sahefetes que precisava das proclamações e editais dos russos e imediatamente ele se punha em campo, transmitindo misteriosas ordens a dezenas de subordinados. E tão bem se desempenhava da incumbência que três horas depois já eu estava na posse de tudo o que desejava, sem ter tido o menor incômodo. Fiquei, portanto, graças à prontidão dos serviços dos Faktoren, com muito tempo para as minhas observações, e confesso que tive ocasião de ver muita coisa.
Observei sobretudo a terrível agrura em que se debatia o povo, em cujo olhar estava bem patente o estigma dos sofrimentos passados. Vi o drama da vida dos judeus amontoados nos ghettos, alojados uns em cima dos outros em verdadeiros casinhotos imundos, num ambiente de verdadeira miséria. E também vi o "inimigo" pela primeira vez. Foi em Tarnow. Numa espécie de quadrilátero concentravam-se muitos prisioneiros russos. Estavam sentados no chão, conversando ou fumando, enquadrados por duas ou três dúzias de veteranos da região do Tirol, barbados e de aspecto quase tão lamentável como o que ofereciam os prisioneiros. Eram bem diferentes daqueles soldados impecàvelmente barbeados e aprumados que nós estávamos habituados a ver nas gravuras. Esta guarda nada tinha de marcial, e, como os prisioneiros não mostravam nunca o desejo de fugir, os veteranos austríacos não sentiam nenhuma vontade de aparentar severidade. Dir-se-ia até que se estabelecera entre uns e outros certa camaradagem e o facto de que não se podiam compreender nos seus respectivos idiomas punha uma nota um tanto carinhosa nos gestos. Trocavam-se cigarros e sorrisos. Um dos veteranos austríacos tirou de uma carteira sebenta a fotografia da mulher e do filho, e depois mostrou-a aos inimigos. Os russos que o circundavam observaram-na com extrema curiosidade, fazendo gestos com os dedos para perguntarem se o filhinho tinha três ou quatro anos de idade.
Esse gesto encheu-me de comoção e por ele compreendi que essa pobre gente sabia muito melhor o que era a guerra do que os doutores das nossas universidades e os intelectuais. Sabiam que era uma desgraça, uma fatalidade que desabara sobre eles e da qual não tinham culpa. Adivinhavam que, sendo vítimas da mesma tragédia, quase se poderiam considerar irmãos. E este sentimento ficou perenemente gravado na minha memória, quando depois visitei as cidades bombardeadas e os estabelecimentos saqueados, cujos destroços, amontoados em plena rua, faziam lembrar membros esmagados, entranhas abertas. Mas a vista dos campos cultivados, que não estavam nas zonas onde se combatera, dera-me uma certa esperança. Seria talvez possível reparar em poucos anos os estragos causados por aquela grande loucura béLica, pensava. Confesso, porém, que estava então muito longe de supor que a humanidade havia de a esquecer, quase no mesmo ritmo em que os vestígios da tragédia iriam desaparecendo.
Os primeiros dias da minha permanência nas zonas de combate não me mostraram logo os quadros mais lancinantes da guerra. Só depois os vi, e devo confessar que excederam em horror tudo o que eu poderia imaginar. Como não havia um serviço regular de comboios de passageiros, tive de aproveitar todas as oportunidades que se me deparavam. Certa vez, viajei num vagão aberto em que ia uma peça de artilharia, e, noutra, numa daquelas carruagens que servem para o transporte de animais, onde os soldados, num ambiente de pestilência, exaustos, se comprimiam, atirando-se para qualquer lado, meio mortos de sono. Dir-se-ia gado já abatido eu a caminho do matad'ouro. O cúmulo do horror, porém, vi-o eu nos comboios sanitários em que tive de viajar duas ou três vezes. Ah como esses comboios eram diferentes daqueles modelos alvinitentes onde as princesas e as senhoras da aristocracia de Viena se haviam deixado fotografar, como enfermeiras, nos primeiros momentos do conflito! O que eu agora via não passava de qualquer vulgar comboio de carruagens cujas janelas eram estreitas feridas. A iluminação era constituída pela pálida luz de uma candeia enegrecida. Os feridos jaziam em rústicas maças, que se encontravam colocadas ao lado umas das outras. Gemiam e suspiravam, moribundos, como que procurando ar num ambiente de peste, que causava vômitos. Os enfermeiros arrastavam-se pesadamente, pois o cansaço não lhes permitia andar, e em nenhuma parte se via a brancura das camas que as fotografias dos jornais mostravam. Os colchões eram de palha, quando não simplesmente da lona dura das maças, e os doentes cobriam-se cem mantas manchadas de sangue. Por vezes, entre os infelizes que gemiam ou agonizavam, havia já dois ou três cadáveres.
Falei com o médico, que estava desesperado, e me confessou ser simplesmente dentista numa pequena cidade húngara e há muito tempo não ter qualquer actividade relacionada com a cirurgia. Disse-me que já havia feito sete urgentes pedidos de morfina - e agora não tinha mais. Também não possuía algodão nem ligaduras que chegassem para as vinte horas que duraria a viagem até ao hospital de Budapeste. Suplicou-me que o ajudasse, porque os seus subalternos já se não podiam manter de pé. Apesar da minha inexperiência, procurei ser de alguma utilidade. Descia nas estações e ia buscar baldes de água, da que se utilizava para as locomotivas e não era certamente aconselhada para fins terapêuticos, mas que, naquelas circunstâncias, servia, pelo menos, para lavar os feridos e limpar as gotas de sangue que dos leitos caía continuamente sobre o pavimento das carruagens.
Esta inenarrável tragédia era ainda aumentada pelo facto de que os feridos empilhados naquela grande caixa rolante nem sempre se podiam fazer compreender, pois, sendo oriundos de diferentes pontos do Império, falavam os dialectos regionais. Nem o médico, nem os seus ajudantes conheciam uma única palavra das línguas da Ruténia ou da Croácia. Só um velho sacerdote de cabelos brancos podia de certo modo suavizar as dificuldades, esse padre que se queixava com tanto desespero de não ter óleo para ministrar a extrema-unção, como o médico se lamentava de não ter morfina. O bom sacerdote confessou-me que durante toda a sua longa vida não reconfortara tantos moribundos como no mês que acabava de expirar. Foram dele estas sentidas palavras, que nunca mais esquecerei: "Tenho sessenta e sete anos de idade e já vi muita coisa. Mas nunca julguei que a humanidade fosse capaz de cometer uma monstruosidade tão pavorosa".
O comboio sanitário chegou de manhã cedo a Budapeste. Procurei imediatamente um hotel onde pudesse descansar, pois estava extremamente fatigado, tanto mais que o único assento que aquele comboio me ofereceu foi a minha própria mala. Quando acordei eram onze horas. Levantei-me à pressa para tomar o pequeno almoço, mas eis que, tendo dado apenas meia dúzia de passos na rua, fui invadido pela súbita sensação de que estava a sonhar. Não acreditava no que via.
O dia deslumbrava. Era daqueles que nascem primaveris e adquirem depois as tonalidades dos de Verão. Budapeste estava exuberante, tranqüila e bela. Mulheres vestidas de branco passeavam de braço dado com oficiais, que me pareciam não pertencer àquele exército que eu vira no dia anterior. O clorofórmio da ambulância impregnava-me ainda o fato, a boca e o nariz, mas agora via esses oficiais comprarem raminhos de violetas e oferecerem-nos galantemente às senhoras e via sumptuosos automóveis, onde se reclinavam cavalheiros vestidos com elegância e impecàvelmente barbeados. E, contudo, um comboio "rápido" necessitaria apenas de oito ou nove horas, para galgar a distância que nos separava da frente de batalha.
Mas havia realmente alguma coisa de condenável na atitude dessas pessoas? Não era compreensível que elas procurassem viver o mais alegremente possível a sua vida e que, assim, e talvez mesmo até porque tivessem uma íntima sensação de que tudo estava em perigo, gozassem daquilo que ainda tinham ao seu alcance - trajes delicados e as últimas horas felizes?
Não estava muito disposto a ser severo quem acabava de ver como a vida humana é frágil, como é dolorosamente perecível esse ser a quem um simples pedaço de chumbo pode arrebatar o supremo bem da vida, numa milésima de segundo, transformando em pó muitas quimeras e muitos sonhos doces! Era desculpável, pois, que o apelo da vida atraísse os homens para aquele passeio matinal à beira do grande rio azul, numa saudação suprema ao Sol, numa quietude em que cada qual sentia que o seu eu se dilatava na grande alegria de viver. E, pouco a pouco, fui-me conformando com o que, a princípio, chocara a minha sensibilidade.
Estava neste estado de espírito quando o criado do restaurante onde me encontrava teve a amável e também infeliz lembrança de me trazer um jornal de Viena. Tentei lê-lo e, à medida que o fazia, todo o meu ser era percorrido por forte indignação em presença da inqualificável série de absurdos que se estadeavam nas suas colunas. Para se manter a esperança na vitória, mencionavam-se as insignificantes perdas sofridas pelas nossas tropas e punham-se em relevo as que o inimigo tivera, e que, como não podia deixar de ser, eram colossais. A mentira suprema da guerra aparecia-me ali em toda sua hediondez
E compreendi que não eram os que àquela hora passeavam tranqüilamente pelas margens do Danúbio que mereciam ser criticados, mas sim os que, pela mentira da palavra escrita, alimentavam o grande crime da guerra. Mas também nós seríamos dignos de vitupério, se não erguêssemos a nossa voz contra os criminosos.
Recebera o impulsso definitivo. Estava firmemente disposto a entrar na liça contra a guerra O meu espírito, desde longa data preparado, tivera necessidade desse último choque para se decidir e para reconhecer qual seria o alvo a que deveria dirigir os seus ataques. Por fim, encontrara o inimigo - a heroicidade hipócrita que envia os outros para a morte e para o sofrimento, o optimismo barato dos palradores políticos ou militares, que com o espantalho da vitória prolongam a catástrofe, aplaudidos pelo coro dos vendilhões que Werfel muito justamente, nas suas belas estrofes, apodou de Worfemacher dês Krieges (1).
Eram esses indignos vendilhões que logo acoimavam de pessimista - quem tivesse a coragem de perturbar a sua digestão patrioteira, e acusavam de ignomimosa traição o estigmatizar a guerra, à qual de resto nunca iam. Eram eles, os traficantes de sempre, os falsários de todos os tempos que chamavam cobardes aos que eram apenas conscienciosos e ponderados, e acusavam de fraqueza aqueles que eram tão somente humanos. Esses insensatos armavam-se em juizes, esses mesmos que, na hora da derrocada final, ficavam atônitos e não sabiam o que fazer para evitar o drama que a sua imprudência provocara. Já outrora haviam zombado de Cassandra em Tróia, e de Jeremias em Jerusalém. E nessa hora suprema em que os acontecimentos pareciam repetir-se, via nitidamente como foram reveladores a grandeza e o dramatismo dessas duas figuras.
Desde o início da guerra que eu não acreditava na vitória. Estava convencido de que mesmo que ela nos
(1) Os falaciosos que incitam os outros à guerra.
sorrisse seria obtida à custa de incalculáveis sacrifícios. Mas a verdade é que a minha clarividência estabelecera à minha volta o anátema do silêncio, de tal modo que, na hora da alucinação das primeiras escaramuças e dos primeiros fáceis avanços, cheguei muitas vezes a perguntar a mim próprio se eu não seria realmente um paranóico entre toda aquela gente perfeitamente equilibrada, ou se, pelo contrário, eu não seria o único homem que estivesse terrivelmente lúcido no meio da embriaguez quase geral.
Este dramatismo incitou-me a focar pelo lado trágico a posição dos chamados Defaitisten, (1) expressão inventada para atribuir o desejo da derrota precisamente àqueles que se distinguiam pela sua grande devoção pela causa da concórdia universal. E foi assim que escolhi Jeremias, o visionário em quem ninguém acredita, para símbolo da minha obra. Não era meu desejo compor um drama pacifista, e também não pensava escrever versos para dizer simplesmente a vulgaríssima trivialidade de que a paz é muito melhor do que a guerra. Queria apenas demonstrar que aqueles que na hora dos entusiasmos fáceis são tidos como débeis são também, por vezes, os únicos que têm a coragem de suportar a desgraça e até de serem superiores a ela. Desde o meu trabalho Tersites, sempre manifestara simpatia pelo tema da superioridade espiritual do vencido. Aprazia-me demonstrar que o exercício da força elimina ou oblitera os sentimentos morais, que a cegueira da vitória é capaz de tornar mais duros povos inteiros, e que a derrota acarreta sofrimentos que às vezes retemperam e sublimam as almas. Enquanto os homens do meu tempo entoavam extemporâneos hosanas à vitória, que consideravam absolutamente certa, já eu havia descido ao abismo da catástrofe e procurava o caminho da ascensão.
Escolhendo essa personagem bíblica, estava longe
(1) Derrotistas.
de supor que vinha ao encontro de uma tendência que jazia latente no íntimo do meu ser, nas profundidades do subconsciente - a minha estreita identificação com o sempiterno destino do povo hebreu. Pois não era esse povo, o meu povo, o verdadeiro protótipo do povo eternamente vencido, de ontem e sempre, e que, apesar disso, sobrevivera aos vencedores, mercê daquela força misteriosa que, pela indomável vontade de subsistir, triunfava finalmente de todos os obstáculos? E não era esse sacrifício constante, essa perseguição permanente, anunciada pelos nossos profetas, essa mesma perseguição que hoje novamente nos lança na amargura do exílio, essa dor, esse sofrimento que eles até consideravam uma provocação, que nos aproximava mais de Deus E não é o sofrimento, por vezes, uma possibilidade de redenção para as nações e para os homens?
Um sentimento de feliz êxtase me envolvia enquanto delineava Jeremias, a primeira das minhas obras que realmente amei. Compreendo hoje, perfeitamente, que, sem o sofrimento que o drama da guerra originara na minha alma, eu teria permanecido apenas o escritor encantado que fora outrora. mas jamais alcançaria o arrebatamento criador que depois me deu vida nova. Sentia que a minha obra tinha um sentido universal e era, não só um reflexo do meu espírito, mas também um sinal da minha época. Traçando-a, dei corpo ao meu livro mais expressivo, aquele que, como sucederia com o Erasmo, que deveria escrever em 1934, sob o signo de Hitler, me dera a possibilidade de sair triunfante de uma grande crise moral. Dedicando-me inteiramente a essas duas obras, sofria muito menos a cruel angústia da tragédia dessas duas épocas históricas.
Nunca pensei realmente que Jeremias estivesse destinado a alcançar grande êxito, pois, devido aos muitos problemas que abordava-proféticos, pacifistas e hebraicos, - e ainda em conseqüência dos coros das últimas cenas, que eram como que um hino oferecido pelo vencido ao seu sempiterno destino, tornara-se uma obra demasiadamente longa, cuja conscenciosa representação exigiria com certeza duas ou três sessões teatrais. Depois, havia ainda outra grande dificuldade não era fácil que subisse à cena do teatro alemão um drama que, não só anunciava, mas até glorificava a derrota, precisamente na altura em que a Imprensa martelava diariamente o conhecido lugar comum: "Siegen oder Untergehen!" (1).
Nessas circunstâncias, poder-me-ia considerar muito feliz se se permitisse que o livro fosse editado, mas, mesmo que isso não sucedesse, o meu trabalho não seria de todo inútil, pois ajudara-me a atravessar e suportar uma fase bem dolorosa. Em Jeremias dissera, na linguagem musical do diálogo, tudo aquilo que não me fora permitido desabafar nas conversas com os homens. Tirara um peso de cima da minha consciência e encontrara o caminho da minha própria ascensão. No momento em que tudo em mim era um "não" contra os acontecimentos que me rodeavam, eis que encontro o "sim" revelador da minha personalidade.
(1) Vencer ou morrer!
No coração da Europa
O aparecimento de Jeremias, na Páscoa de 1917, veio proporcionar-me uma inesperada surpresa. Escrevera-o numa atitude de franca oposição ao pensamento então dominante, sendo, portanto, de supor que seria recebido com hostilidade. Mas sucedeu precisamente o contrário. Esgotaram-se em pouco tempo vinte mil exemplares, cifra realmente inacreditável para uma obra dramática. Não se fizeram esperar os públicos encómios, não só de amigos como Romain Rolland, mas ainda daqueles que outrora observavam uma atitude oposta à minha, como Rathenau e Ricardo Dehmel. Houve até directores cênicos, a quem o livro nem sequer fora enviado, pois seria pueril acreditar na possibilidade de uma representação na Alemanha, enquanto durasse a guerra, que me escreveram, solicitando lhes concedesse os direitos para a estreia, quando surgisse a paz. Até a crítica dos belicistas se mostrou acentuadamente correcta. Foi uma verdadeira revelação
Que teria sucedido? Isto somente: Havia dois anos e meio que a guerra durava e o tempo fora cruelmente minando as belas ilusões. A terrível sangria das batalhas fizera baixar a febre. O entusiasmo dos primeiros momentos cedera o lugar a um evidente cepticismo. Duvidava-se da fraseologia prometedora dos que apontavam a guerra como um caminho para o bem-estar e, assim, a antiga coesão começara a ceder. O país dividira-se em dois sectores absolutamente distintos: - os dos soldados, que lutavam e morriam nas trincheiras e o dos que ficavam tranqüilamente em casa, muitos dos quais continuavam a gozar e até enriqueciam com a miséria dos seus semelhantes. O abismo era cada vez maior entre esses dois mundos opostos.
Murmurava-se contra o favoritismo que se observava nas repartições públicas, onde, a troco de dinheiro ou por influências, havia quem conseguisse privilégios, enquanto camponeses e operários, já meio destroçados, partiam continuamente a caminho das trincheiras. com a decepção, cada qual começara a pensar apenas em si próprio, não se esquecendo de agir em conformidade, sempre que podia. A existência quotidiana tornara-se cada vez mais difícil, o "mercado negro" florescia, a miséria tomava proporções que apavoravam, mas, sobre a hecatombe, pairava a nota revoltante do fausto dos traficantes. E, pouco a pouco, começou a desenhar-se e a tomar corpo uma evidente desconfiança. Duvidava-se de tudo e de todos: dos generais, dos diplomatas, das medidas do governo e dos comunicados militares, dos jornais e dos seus artigos e até, por fim, já se desconfiava também da guerra e se perguntava se havia realmente necessidade, dela. O extraordinário êxito de Jeremias não foi, assim, creio, uma conseqüência do seu grande valor, O segredo desse triunfo deve estar no facto de que eu tivera a coragem de dar forma a idéias que germinavam já entre o povo mas ele não ousara proclamar - o ódio contra a guerra e a incerteza da vitória.
Compreendi, contudo, que nunca me seria permitido dar às minhas imagens o ritmo vivo da cena. Representar Jeremias - anátema contra a guerra em plena guerra, provocaria sem dúvida muitos protestos. Estava nesta disposição quando, inesperadamente, recebi do director do Teatro Municipal de Zurique uma carta em que me manifestava o seu grande desejo de levar à cena a minha obra, convidando-me inclusive a assistir à primeira representação. Tinha-me esquecido - o que de resto sucedeu também nesta segunda guerra - que ainda havia um magnífico rincão de terra alemã um oásis em pleno deserto, um país democrático onde se podia pensar e viver livremente. Escusado seria dizer que aceitei imediatamente a proposta.
Só a podia aceitar, porém, em princípio, porque tudo dependia da possibilidade que eu tivesse de conseguir autorização para sair do país e licença na repartição administrativa em que me encontrava. Mas dava-se a feliz coincidência de que todos os países Beligerantes mantinham então - ao contrário do que sucede nesta guerra - serviços especiais denominados Kultur-propaganda. A propósito, é interessante não esquecer, porque dá uma idéia do estado de espírito que torna bem diferente o clima moral de cada um dos dois grandes conflitos mundiais, que, em 1914, os povos, os chefes, os imperadores e os reis, influenciados pelos tradicionais princípios de justiça e humanidade, tinham ainda como que um sentimento de relutância pela guerra. Nesse tempo, qualquer país, não só repudiava cem vigor o epíteto ofensivo de militarista, mas até fazia todos os esforços possíveis para provar que era "civilizado". Havia, então, um superior respeito pelos valores morais e espirituais, e esses imperativos hoje tão vulgares de "sacro egoísmo" e de "espaço vital" seriam simplesmente condenáveis. Assim, os beligerantes não descuravam a vida artística e intelectual e procuravam que o mundo não a ignorasse. Tanto a Alemanha como a Áustria tiveram a preocupação de enviar os seus mais famosos músicos, poetas, escritores e professores a muitos países neutros: Suíça, Holanda, Suécia, etc. Não iam esses embaixadores animados de propósitos bélicos, mas era seu objectivo demonstrar unicamente que os alemães não eram de nenhum modo "bárbaros" e que, se sabiam fabricar lança-chamas e gases tóxicos, também contavam no seu seio valores espirituais que honravam a cultura européia.
A consc-ência moral era ainda, em 1914-18, uma força que se impunha e se cultivava. Os valores superiores não eram calcados e qualquer beligerante tinha interesse em atrair simpatias que dessem relevo à sua causa, ao contrário do que sucedeu em 1939, em que a Alemanha os esmagou pela brutalidade do terror. Assim, não era absolutamente descabido pensar que o meu pedido de ir à Suíça para assistir à representação do meu drama talvez fosse deferido. A única dificuldade séria residia no facto de que o meu trabalho tinha uma tendência profundamente antimilitarista e ainda em que, apesar de eu ser austríaco, admitia é certo que apenas simbòlicamente - a hipótese da derrota. Mas tomei a decisão de visitar a autoridade que superintendia na matéria, expondo-lhe o meu desejo. A minha admiração foi grande quando esse funcionário me prometeu todas as facilidades, declarando, como que para se fundamentar: "O senhor não pertence, felizmente, a essa legião de insensatos que aplau- diam a guerra. Vá, e oxalá consiga fazer alguma coisa para que esta tragédia acabe". Quatro dias depois, recebia a licença pedida e o passaporte.
Era realmente espantoso que um alto funcionário do governo tivesse tido a coragem de me falar daquela maneira. Mas a verdade é que, devido a manter-me afastado dos bastidores da vida política, ignorava que em 1917 se desenhara na Áustria, então já dirigida pelo novo imperador Carlos, um surdo movimento nas altas esferas governamentais para desviar o país da ditadura dos pangermanistas, que o sacrificavam impunemente às suas desmedidas ânsias de expansão. O Estado-Maior austríaco não via com bons olhos a estratégia brutal de Ludendorff e no Ministério dos Estrangeiros não se simpatizava nada com a guerra submarina contra tudo e contra todos, política que não podia deixar de colocar a América contra nós. O próprio povo começava a indispor-se contra a insolência prussiana. Era um movimento de desagrado que quase não transparecia e dir-se-ia sem finalidade e coesão. Mas, dentro de pouco, eu iria conhecer outros pormenores, desvendando um dos mais importantes acontecimentos políticos da época, que, nessa altura, era ainda como que um segredo de poucos conhecido.
Fora o caso que, na minha viagem à Suíça, passei dois dias em Salzburgo, onde comprara uma casa e onde pensava fixar residência quando a guerra terminasse. Nessa cidade havia um núcleo notável de católicos, entre os quais se encontravam duas figuras que, mais tarde, como chanceleres do após-guerra, desempenhariam na história da Áustria funções de extraordinária importância - Henrique Lãmmasch e Inácio Seipel. O primeiro era um dos mais eminentes jurisconsultos do seu tempo e fora presidente da Conferência da Haia; o segundo era um sacerdote de invulgar inteligência que, depois da queda da monarquia, daria magníficas provas da sua capacidade política na direcção dos destinos da pequena Áustria. Eram dois pacifistas dedicados, católicos fervorosos e sinceros amigos da pátria que, portanto, se encontravam em decidida oposição ao militarismo alemão, prussiano e protestante, que consideravam irreconciliável com a tradição católica da Áustria.
O meu livro Jeremias encontrou enorme simpatia nesse núcleo religioso e pacifista. O conselheiro Lammasch - Seipel estava nesse momento ausente convidou-me a visitá-lo em sua casa. O notável e venerando professor teve palavras carinhosas para a minha obra, que lhe parecia condizer precisamente com o espírito austríaco da conciliação, e manifestou vivo desejo de que a sua influência não se limitasse apenas ao círculo de literatos. E foi então que me confiou o segredo de que a Áustria se encontrava na iminência de tomar uma atitude deveras extraordinária. Esta revelação demonstrava a coragem moral de Lammssch, que não hesitava em distinguir-me com a sua confiança, apesar de as nossas relações serem recentes. Desde que se observara o colapso russo, não existia, nem para a Alemanha, se esta estivesse realmente disposta a abdicar das suas tendências agressivas, nem para a Áustria, sérias razões que as impedissem de pensar na paz. Era necessário não deixar passar a oportunidade. Se a camarilha prussiana quisesse prosseguir, então, nesse caso, a Áustria deveria tomar uma decisão e agir isoladamente. Lammasch confessara-me que o jovem imperador Carlos prometera o seu apoio a esta idéia e confiava em que muito em breve, talvez, se notassem os efeitos da sua política. O êxito dependeria da energia que a Áustria empregasse para obter uma paz de compromisso, em vez de continuar atrelada à obstinação da "paz pela vitória", como impunham os pangermanistas indiferentes aos contínuos sacrifícios que o seu pensamento exigia. Em caso de necessidade, não se deveria mesmo hesitar em tomar as mais graves resoluções, como seria a de a Áustria denunciar a sua aliança com a Alemanha e isto enquanto os militaristas alemães não a arrastassem para a irremediável catástrofe. "Não nos podem acusar de deslealdade", afirmava com firmeza, "pois já perdemos mais de um milhão de vidas. Basta de sacrifícios inúteis! Não devemos dar um único soldado mais para o sonho alemão de domínio do mundo "
Estas palavras provocaram em mim verdadeira estupefacção. É certo que esses pensamentos haviam germinado muitas vezes no íntimo de muitos, mas ninguém tivera a coragem de os manifestar nem ousara dizer que nos deveríamos separar dos alemães e da sua política expansionista, pois tal doutrina seria considerada uma traição. E eis que tinha na minha frente um homem que ousava falar-me daquela maneira, um homem que, na Áustria, gozava da confiança do imperador e, no estrangeiro, devido às suas actividades na Conferência da Haia, era altamente considerado. Expusera-me o seu critério com tal convicção e serenidade, a mim, pouco menos que desconhecido, que eu não pude deixar de considerar que a idéia de uma paz separada não era apenas mera hipótese, mas, pelo contrário, ideia já em marcha. O propósito que se tinha em vista era decerto bastante temerário - pela ameaça de uma paz separada, forçar a Alemanha a inclinar-se para soluções pacíficas ou, então, materializar a ameaça. Este plano - a História viria a prová-lo depois - teria salvo o Império e a Monarquia, e também a Europa. Mas o plano falhou, infelizmente, por falta de energia.
O imperador da Áustria chegou a enviar uma carta secreta a Clemenzeau, por intermédio do seu cunhado, o príncipe de Parma, a quem encarregara de, independentemente de Berlim, fazer sondagens sobre possibilidades de paz, e de as iniciar, caso existissem. Mas, na verdade, a missão de que o príncipe de Parma fora encarregado chegou ao conhecimento da Alemanha. Ainda hoje não se sabe como esse facto se deu, creio, mas o certo é que o imperador Carlos não teve então a coragem de se manter firme na sua decisão, talvez porque, como se supõe, a Alemanha tivesse ameaçado a Áustria com uma invasão, ou ainda porque o imperador, como membro da família dos Habsburgos, tivesse à última hora hesitado em desfazer uma aliança, que fora obra de Francisco José, selada depois com tanto sangue.
Em qualquer das hipóteses, o imperador não confiou a missão de organizar governo a Lammasch ou Seipel, os dois únicos homens que, como decididos católicos e pacifistas e ainda pela sua firmeza moral, teriam tido a coragem de arcar com a decisão suprema de desviar a Áustria da aliança com a Alemanha. E foi essa hesitação que a perdeu.
Lammasch e Seipel foram presidentes do governo, é certo, mas em vez de o terem sido sob a égide da velha monarquia dos Habsburgos, só o puderam ser na nascente república austríaca. E, contudo, ninguém teria tido mais competência e prestígio para defender o passo aparentemente desleal que a Áustria poderia ter dado do que estes dois homens de grande renome e autoridade moral.
com a simples ameaça de uma paz separada ou cem ela de facto, eles não teriam apenas salvo a Áustria, mas teriam libertado a Alemanha do seu mais perigoso e cruel inimigo - a sua desmedida fúria expansionista. Estou profundamente convencido de que o destino da pobre Europa seria bem menos cruel, se a acção que aquele homem sábio e sinceramente religioso me anunciara não fosse protelada pela incompetência e pela fraqueza.
Depois, prossegui na minha viagem e cheguei à fronteira da Suíça. Não é fácil descrever o que então significava sair de um país beligerante, onde reinava já a fome, e entrar numa nação neutral. A distância que separava as duas estações fronteiriças era bem pequena, mas bastava contudo para dar, a quem a transpunha, uma doce sensação de alívio que comunicava ao corpo e ao espírito um sentimento de indizível euforia. Dir-se-ia que se deixava uma zona empestada e se entrava de chofre numa região de ar puríssimo. Essa sensação manteve-se perenemente na minha memória, de tal modo que, quando, mais tarde, vindo da Áustria;, passava por essa estação, cujo nome, Buchs, de outro modo me teria esquecido, sempre me lembrava do alívio que outrora ali sentira. Os passageiros, ao saltarem das carruagens, logo deparavam – primeiro encanto - com as iguarias que os esperavam no bufete, e que há muito tempo não viam, apesar de, antes da guerra, terem sido vulgares e acessíveis: belas laranjas, douradas bananas, chocolates e fiambre, raridades que na Áustria só por grande favor se poderiam alcançar. Abundava pão e havia carne. E pode dizer-se que os viajantes pareciam animais esfomeados, de tal modo se lançavam sobre a inesperada fartura. Ali estava à nossa disposição o correio e o telégrafo que, sem censura, nos punham em contacto com todo o mundo. Qualquer pessoa podia livremente comprar, ler ou ser portador de jornais italianos franceses ou ingleses. Tudo o que além era proibido, tolerava-se aqui. O contraste era flagrante, apesar da pequena distância que a fronteira punha entre os dois mundos.
A loucura da guerra observava-se ali de uma maneira bem patente. Do outro lado da fronteira, naquela pequena cidade, cujos letreiros eram quase visíveis' à simples vista desarmada, arrebanhavam-se os homens e enviavam-se para a Ucrânia e para a Albânia, para que assassinassem outros homens ou se deixassem assassinar e eis que, aqui, apenas separados por uma distância de alguns poucos minutos, já os homens tinham a liberdade de viver em paz, esses homens iguais aos outros, e que eu via sentados em frente das entradas verdejantes de suas casas, junto de suas mulheres, fumando despreocupadamente os seus cachimbos. Tive vontade de perguntar a mim próprio se os peixes do pequeno ribeiro que separava os dois países também se dividiam em neutrais e beligerantes, segundo a margem onde se encontrassem?
Logo que atravessei a fronteira, senti imediatamente que já não era a mesma pessoa. Dir-me-ia mais livre, mais homem, mais senhor de mim próprio. No dia seguinte, tive ocasião de verificar que a guerra não só exercia uma acção deletéria sobre o nosso espírito, mas também sobre o organismo. Tendo sido convidado para jantar em casa de alguns parentes, tomei inadvertidamente uma xícara de café natural e fumei um bom charuto, após a refeição. Devo dizer que pouco depois senti-me seriamente incomodado. A causa não fora outra senão a de que o organismo, enfraquecido durante muitos meses por produtos de contingência, já não suportava o verdadeiro café e o verdadeiro tabaco. A reacção era compreensível: - o organismo, adaptado ao artificialismo da guerra, devia sofrer a crise que o regresso à normalidade da paz originava.
Mas um fenômeno idêntico manifestava-se também na esfera do mundo mental. As árvores pareciam-me mais belas e as montanhas mais grandiosas; a paisagem mais encantadora e pura. Num país torturado pela brutalidade da guerra, parece que a paz santa que irradia dos prados é como que um cruel insulto da natureza, e o incêndio majestoso do ocaso faz pensar demasiadamente na sangueira das batalhas. Tendo regressado à paz, a magnificência da natureza adquiria todo o seu esplendor, tornando-se, enfim, podia dizer-se, de novo natural. Amei nessa altura a Suíça como nunca até então a tinha amado.
Sempre me senti bem nesse país tão pequeno e belo e de tão grandes e inesgotáveis horizontes. Mas jamais como então compreendi a grande lição que a Suíça dava ao mundo, demonstrando que até num pequeno espaço era possível povos diferentes viverem em paz e felizes, sem lutas, unidos pelo1 respeito mútuo de uma verdadeira democracia que, apesar de distinções raciais e lingüísticas, conseguira dar o exemplo de uma magnífica fraternidade. Que grande ensinamento a Suíça dava à pobre Europa dilacerada! Era o asilo seguro para todos os idealistas perseguidos, o secular oásis da paz e da liberdade, o país que sabia acolher amàvelmente, sem jamais perder o cunho particular das suas características especiais. Como era eloqüente e único o grande exemplo de fraternidade européia que a Suíça apresentava ao mundo! E compreendi então que era de justiça esse país ser abençoado pelas belezas que o distinguiam e pela sua riqueza. Nessa magnífica nação ninguém se sentia estrangeiro. Naquela hora trágica, um homem indiferente e livre podia sentir-se ali mais tranqüilo e calmo do que na sua própria pátria. Durante muito tempo em plena noite, caminhei errante pelas ruas de Zurique ou pelas margens do lago. Em qualquer parte se respirava um ambiente de paz - todos se abandonavam tranqüilamente à doçura da sua própria existência. Adivinhava que dentro das casas não se encontravam mulheres amarguradas pela insónia que a saudade dos filhos provoca - não via a legião dos feridos e dos mutilados ou a dos jovens soldados que amanhã ou depois seriam amontoados nos comboios. Sentia-me, enfim, invadido pela grande alegria de viver, enquanto que, na minha própria pátria em guerra, a minha vida era quase um peso e os meus membros não mutilados uma acusação.
Estava já em Zurique, mas devo confessar que o que menos me seduzia eram os pormenores relacionados com a representação do meu drama ou o encontro com amigos suíços ou de outros países. O que sobretudo me interessava era ver Rolland, o homem que eu adivinhava capaz de me fortalecer e reconfortar, o homem a quem eu devia agradecer o amparo espiritual que me dedicara na hora mais amarga da minha dolorosa solidão. O meu primeiro pensamento era para ele e, assim, tomei imediatamente o caminho de Genebra. Mas a nossa posição não era de facto muito simples, pois, como "inimigos", éramos obrigados a ter em atenção certos pormenores deveras caricatos. Era compreensível que as autoridades dos respectivos países não vissem com bons olhos que os seus súbditos mantivessem relações pessoais com os das nações suas inimigas. A verdade, porém, é que não havia nenhuma lei que as proibisse formalmente. O que na realidade era considerado matéria-crime e entrava no capítulo da alta traição eram as relações de certo caracter, que em geral se designavam por andei tnit dem Feinde (1). Como a expressão se prestava a muitas interpretações e nós de nenhum modo queríamos cair sob a alçada da lei, chegávamos até a levar o escrúpulo ao ponto de não oferecermos cigarros uns aos outros. Era evidente que nos vigiavam estreitamente. Para desviarmos todas as suspeitas e para provarmos que não nos animavam propósitos obscuros, adoptámos para as nossas mútuas relações de amizade o método mais simples. Éramos amigos, apesar de oriundos de diferentes países, e era assim que nos apresentávamos e vivíamos. Não tínhamos endereços falsos, não escrevíamos para a posta-restante e não nos visitávamos às escondidas, pela calada da noite. Pelo contrário, aparecíamos em público, andando juntos nas ruas ou reunindo-nos no mesmo café. E foi assim que, logo que cheguei a Genebra, dei ao poríejo do hcíel o meu nome verdadeiro e disse-lhe abertamente que desejava falar com o Sr. Romain Rolland, facilitando a missão dos agentes ao serviço da Alemanha ou da França, que já ficavam a saber quem eu era e quem ia visitar. De resto, que nos importava a nós, velhos e dedicados amigos, que se desse a coincidência de termos nascido em duas nações que casualmente se encontravam em guerra? Isso não era, certamente, uma razão que nos separasse. E se o mundo era absurdo, não julgávamos dever sê-lo também.
Afinal, cheguei ao seu quarto, que quase me parecia o de outrora, repleto de livros, nas mesas e nas cadeiras. A secretária estava completamente coberta de revistas, cartas e manuscritos. O ambiente era o mesmo-dir-se-ia a austera cela de um monge absorto no trabalho, esse trabalho criador que a sua personalidade irradiava pelo mundo e se manifestava em qualquer ponto em que se encontrasse. Quando o vi, a comoção embargou-me a voz, e só me foi possível estender-lhe a mão. Há muito tempo não via e não
(1) Relações com o inimigo.
apertava a mão de um francês. Rolland foi o primeiro que então saudei, e, apesar de não nos vermos havia já três anos, sentiamo-nos mais irmanados do que nunca. Falava uma língua que não era a minha, é certo, mas o meu coração achava-se tranqüilo, confiante e calmo. Eu tinha a noção perfeita de que este amigo era o homem mais eminente desse momento solene para o mundo; sabia que falava com a consciência moral da Europa.
Foi então que me foi dado verificar o grandioso esforço que Rolland dedicava à causa da paz mundial. Trabalhava incansavelmente, dia e noite, na solidão da sua cela. sem secretários, seguindo de perto todas as actividades internacionais; mantinha volumosa correspondência com uma infinidade de pessoas que solicitavam o seu parecer e escrevia todos os dias muitas págines do seu Diário, Rolland possuía a convicção de que vivia numa época de extrema importância histórica e tinha, assim, a preocupação de legar à posteridade os ensinamentos da hora que passava. Onde estarão hoje os volumes desse Diário, esses valiosos manuscritos que poderiam projectar muita luz sobre os conflitos morais e espirituais que caracterizaram a primeira Grande Guerra?
Paralelamente a este grande e constante esforço, publicava periodicamente os seus artigos, cada um dos quais assumia foros de acontecimento de invulgar importância internacional, e trabalhava no romance Cheram babelt. A sua preocupação suprema era dedicar-se integralmente ao seu ideal e proceder sempre com superior espírito de rectidão e justiça, naquele mesmo momento em que a humanidade delirava. Respondia a todas as cartas e lia tudo o que de qualquer modo se relacionasse com o grande drama da época. Apesar de se encontrar fraco e de a sua saúde ser então extremamente delicada, de tal modo que só podia falar muito baixo e de a sua voz ser por vezes entrecortada por pequenos acessos de tosse; apesar de não poder atravessar um corredor sem tomar a precaução de pôr um agasalho pelas costas e de ser obrigado a descansar depois de qualquer marcha um pouco mais apressada, dir-se-ia que os acontecimentos tinham o condão de lhe multiplicar as energias, pois não havia nada que o arredasse do seu objetivo. Indiferente a todos os ataques e a todas as perfídias, olhava bem de frente para esse mundo alucinado. Era realmente a encarnação viva da outra heroicidade, da moral, da espiritual. Creio nunca o ter descrito completamente, nem mesmo no livro que lhe dediquei; há sempre certa relutância em tecer demasiados elogios a uma pessoa ainda viva. Não se apagou da minha memória a profunda emoção que senti quando o contemplei, naquele pequeno e estreito quarto, onde Rolland me aparecia como que "sublimizado", nesse quarto de onde dimanavam para todos os pontos do mundo invisíveis e reconfortantes lampejos. Contemplando-o, vendo-o, adquiria-se a certeza de que a grande energia criadora que o animava, a ele, que, sozinho, ou quase, se erguia para combater o ódio estreito que enlouquecia milhões de homens, era uma daquelas forças misteriosas que estão fora de todos os cálculos e previsões. Só os que viveram naquele tempo sabem como o exemplo de Rolland foi grandioso e eloqüente. Ele afirmava, pela sua conduta, que a consciência moral da Europa não havia perecido no desvario que a perturbava.
Na conversa que tivemos nessa tarde e nas que depois se lhe seguiram, apoderou-se de mim a doce melancolia que irradiava das suas palavras e que tanto me lembrava a de Rilke, quando falávamos sobre a guerra. Criticava amargamente a insaciável insensatez dos políticos e aventureiros que, sob o manto de um falso patriotismo, lançam impunemente os outros na batalha, mas sentia-se ao mesmo tempo trasbordar de compaixão pelas inocentes vítimas, que sofriam e morriam por uma causa que ignoravam e não passava de um cruel absurdo. Lembro-me de que, numa dessas conversas, me mostrou o telegrama que Lenine lhe enviara - antes de partir da Suíça na célebre carruagem blindada - convidando-o a acompanhá-lo à Rússia. Lenine sabia perfeitamente que o prestígio moral de Rolland seria um factor de extrema importância para os objectivos que o animavam. Rolland estava, - porém, firmemente disposto a não se inclinar especialmente para nenhum grupo partidário; desejava manter-se independente e, confiando apenas em si, dedicar-se devotadamente à causa que jurara servir - a da paz universal. Expunha livremente as suas idéias, sem imposições de nenhuma natureza, pois acima de tudo prezava a independência, Queria que a sua grande lição fosse simplesmente demonstrar que o homem pode ser sempre fiel às suas convicções - mesmo quando contra elas se levante o mundo inteiro.
Em Genebra tive ocasião de me encontrar também, desde a minha chegada, com o pequeno grupo de idealistas franceses e de outras nacionalidades que giravam à volta dos dois pequenos jornais La Fettille e Demain. Entre outros, recordo-me de J. P. Jouve, Renê Arcos e Frans Masereel. Tornámo-nos rapidamente amigos, com aquele fervor próprio da juventude, mas pressentíamos que, de facto, estávamos no início de uma nova vida. Quase todas as nossas antigas amizades haviam caducado, quando o vírus do patriotismo' exacerbado contaminou aqueles que até então tinham sido nossos companheiros. Sentíamos a necessidade de cultivar novas relações e, como estávamos todos na mesma linha de combate e na mesma trincheira espiritual, e o nosso inimigo era idêntico, logo se formou entre nós uma espontânea e sincera camaradagem. Esta, vinte e quatro horas depois de trocarmos as primeiras palavres, redundou numa int midade que parecia fruto de muitos anos e que, como em qualquer frente de batalha, nos lançava na franqueza do fraternal "tu". Estávamos animados pela intima convicção - o few, we happy, we band of Brothers (1) - de que o nosso grupo era simplesmente admirável e único, tanto mais eloqüente quanto é certo que apenas a alguns quilômetros de distância um alemão que tivesse
encontrado um francês ou um francês que tivesse encontrado um alemão, teria logo pensado em lhe enterrar uma baioneta no ventre ou em o despedaçar à granada, certo de que, com esse gesto fratricída poderia obter uma citação especial. Nós não ignorávamos que havia naquele mesmo momento milhões de homens que só pensavam em se entredevorar sem dó nem piedade; que os jornais de um bando só tratavam raivosamente o outro de "inimigo", e, apesar disso, nós, aquele encantador punhado de bravos que se distinguem de milhões e milhões de homens que se odiavam, estávamos amigavelmente sentados à mesma mesa, unidos por um puro sentimento de consciente fraternidade. Não ignorávamos que o nosso gesto nos colocava em aberta hostilidade contra aquilo que as autoridades dos nossos respectivos países julgavam ser necessário e natural, e sabíamos perfeitamente que a nossa comunhão espiritual poderia trazer dissabores para cada um de nós: mas era precisamente essa certeza que nos elevava e tornava quase extático o nosso fraternal amplexo. O perigo atraía-nos e sentíamos satisfação em o defrontar, compreendendo que era ele, afinal, que dava valor ao nosso protesto. E foi assim que chegámos à temeridade de promover em Zurique uma prelecção pública - atitude verdadeiramente singular - na qual J. P. Jouve declamou em francês algumas das suas poesias e eu li em alemão alguns trechos do meu livro
Jeremias. Actuávamos com franqueza e com sinceridade, pouco nos importando o que a nosso respeito se dissesse nos consulados e embaixadas. Não receávamos ter de incendiar os navios para o regresso à pátria, como outrora Oortez, pois estávamos convencidos de que não éramos nós os "traidores", mas sim aqueles que haviam sacrificado
(1) Encantadora e magnífica confraria.
à loucura de um momento de insensatez a paz e o progresso espiritual da humanidade.
E como eram dedicados à causa da paz esses jovens franceses e belgas! Tínhamos Frans Masereel, que sabia esculpir em madeira, com a magia incomparável de seu talento, o horror sem fim das crueldades da guerra, monumentios onde palpitava uma eloqüência que não era certamente inferior à que irradia da obra de Goya - Desastres de la Guerra. Era uma artista exemplar que não se cansava de dar vida à madeira inerte e fria. A sua casa estava cheia dos seus magníficos rectângulos trabalhados, mas cada dia que passava La Feu'lle publicava um desses seus anátemas inéditos contra o grande crime. O alvo não era nunca esta ou aquela nação, mas única e simplesmente o grande inimigo de sempre - a guerra. Como teríamos desejado que os aeroplanos, em vez de vomitarem metralha, lançassem sobre as cidades e os exércitos as gravuras com que Masereel, na linguagem muda da sua arte, estigmatizava a guerra, de tal modo que todos compreendessem o que ela tem de abominável e de horrível. Estou convencido de que a chama teria terminado muito mais cedo, Mas elas saiam apenas em La Feuille, pequeno jornal cujo raio de acção quase não ia além de Genebra. Toda a nossa actividade ficava circunscrita ao circulo bem limitado da Suíça e só chegou realmente a tomar maior amplitude quando já era demasiado tarde. Tínhamos a íntima convicção de que o nosso esforço não era suficiente para lutar contra a engrenagem da política e do militarismo, forças que só nos deixavam viver em paz porque sabiam perfeitamente que a nossa oposição não podia constituir um perigo para os seus objectivos, já que a nossa palavra e o nosso dinamismo permaneciam localizados. Mas a certeza de que éramos apenas uma restrita meia dúzia tinha o condão de nos unir mais sinceramente, fundindo-nos os corações num amplo sentimento de franqueza e pura amizade. Nunca esse sentimento se repetiu depois com tanta intensidade. A recordação das horas vividas em Genebra perdurou em toda a minha vida.
Uma das figuras mais impressionantes desse grupo, no ponto de vista puramente psicológico e histórico, e não no do valor intelectual, era decerto a de Henri Guilbeaux. O seu caso provava de maneira clara um imperativo histórico, pelo qual a audácia e o verbalismo são, por vezes, e em especial em períodos agitados, como, por exemplo, uma guerra ou "ma revolução, factores muito mais importantes e decisivos, pelo menos num dado memento, do que o valor intrínseco e a persistência. Sempre que no decurso da História se produz um salto brusco ou uma súbita irrupção, surgem espíritos decididos que, num momento, se revelam e alcançam posições de relevo. Quantos exemplos não há dessas personalidades efêmeras que, como Bela Kun e Kurt Eisner, ascendem inopinadamente aos mais altos postos, para os quais não estavam de nenhum modo preparados? Pois também Guilbeaux, franzino, louro, de olhos escuros, olhar inquieto e extremamente falador, não era, certamente, um ser dotado de excepcionais qualidades. Apesar de ter sido ele quem, há cerca de dez anos, traduziu os meus versos para a língua francesa, devo dizer, em homenagem à verdade, que a sua capacidade intelectual não tinha nada de particular. A sua fluência verbal não vai muito além da mediania, e os seus conhecimentos não lhe permitiam sair da superfície. Toda a sua força residia na polêmica e, por uma infeliz modalidade de caracter, pertencia ao número daquelas pessoas que se mantêm sempre na "oposição permanente".
Não era mau rapaz, mas o seu lugar preferido era a balbúrdia o seu prazer consistia em lançar vitupérios contra tudo o que não fosse do seu agrado. Já em Paris, antes da guerra, se distinguira por ataques a determinados sectores literários. Depois, ingressara em vários partidos avançados, mas nenhum era suficientemente avançado para ele. Mas eis que a guerra o colocou, como antimilitarista em frente de um adversário de envergadura. O medo e a pusilanimidade de muitos, por um lado, e, por outro, a audácia e a temeridade de Guilbeaux, deram-lhe, num momento de extrema gravidade da história do mundo, foros de grande importância, que quase o tornavam uma personagem indispensável. Ao contrário do que sucedia com a maioria, Guilbeaux sentia-se atraído pelo perigo, e a certeza de que os outros hesitavam enquanto ele, sozinho, se lançava no combate, enchia-o de urgulho, criando à sua volta uma auréola de superioridade como Lterato e como lutador, que de modo nenhum correspondia à sua verdadeira natureza. Não era um fenômeno novo, pois exemplos desses foram dados na Revolução Francesa por alguns pequenos juristas e advogados da Gironda.
Enquanto grande parte dos partidários da paz se recolhia ao silêncio, e enquanto hesitávamos com prudência sobre aquilo que deveríamos ou não fazer, Guilbeaux lançava-se resolutamente na batalha. Não se pode esquecer que se deve a ele a fundação e a direcção de Demain. o único jornal antimilitarista de envergadura que existiu durante a primeira guerra européia, e que comstitui um importante documento, digno de ser consultado por todos aqueles que quiserem avaliar da intensidade do movimento pacifista dessa época. A ele se deve realmente a criação daquilo que nos fazia falta-um núcleo que, em plena guerra, centralizasse as nossas actividades num plano internacional. Rolland assegurara a esse empreendimento um êxito certo, pois, apoiando-o, proporcionara a Demain, com o seu prestígio e o das suas relações, dedicados colaboradores da Europa, da América e da índia. Por outro lado, alguns revolucionários russos, então ainda exilados, como Lenine, Trotzki e Lunatscharski, atraídos pelo vigor de Guilbeaux, colaboravam também regularmente nesse jornal que foi, durante mais de um ano, uma incomparável força idealista ao serviço da paz. Julgo que, se a sua publicação não tivesse sido suspensa, talvez a sua influência tivesse sido grande na evolução dos acontecimentos posteriores.
Mas a actividade de Guilbeaux não se circunscrevia apenas ao jornal. Dera vida, na Suíça aos grupos avançados da França, cuja voz a mão dura de Ciemenceau amordaçara, e desempenhara uma acção de grande envergadura nos célebres congressos de Kienhtal e Zimmerwald, em que os socialistas internacionalistas se separaram dos que enveredavam pelo caminho do patriotismo. Não houve francês que os burocratas e militares de Paris odiassem e temessem mais, durante a guerra, do que esse homem louro de aspecto quase insignificante; nem o próprio capitão Sadoul, que depois, na Rússia, havia de aderir aos bolchevistas.
Os serviços secretos franceses conseguiram, por fim, armar-lhe uma cilada. Obtiveram alguns mata-borrões e rascunhos encontrados no quarto de um agente secreto alemão, rascunhos que, sem dúvida, revelavam apenas que os alemães eram assinantes de Demain. Este facto realmente nada provava, pois era bem verosímil que os exemplares a que essas assinaturas se referiam fossem destinados a bibliotecas ou a outras repartições afins, coisa natural, devido ao interesse dos alemães pela documentação. Mas o achado foi suficiente para que as autoridades de Paris o processassem, acusando-o de agitador a soldo da Alemanha. E Guilbeaux foi injustamente condenado à pena de morte in contumaciam. Como era infundada essa decisão, prova-o o facto de que, dez anos depois, o processo foi revisto e a sentença simplesmente anulada. Mas Guilbeaux não desistia. Continuava virulento e intransigente, de tal modo que Rolland e todos nós nos encontrávamos a breve trecho em má situação. De súbito, entrou em litígio com as autoridades suíças e foi preso; mas Lenine, que tinha simpatia por ele e não esquecera a sua acção nas difíceis horas do passado, salvou-o, transformando-o de uma penada em cidadão russo. E Guilbeaux partiu para Moscovo no segundo comboio blindado.
Era de esperar que encontrasse na Rússia nova oportunidade para revelar as suas qualidades, pois levava a auréola de um verdadeiro revolucionário, a quem não faltava a honra da prisão e da condenação à morte in contumaciam, e a quem seriam, naturalmente, dadas todas as facilidades. Como outrora em Genebra, onde, graças ao apoio de Rolland, pôde ascender, conseguira então, gozando da confiança de Lenine, dedicar-se à obra da reconstrução da Rússia. O seu futuro desenhava-se largamente, e a sua acção no após-guerra teria sido de envergadura, em França, pois, devido à sua atitude e decisiva energia durante a guerra, poucos havia que tivessem tanto prestígio e fossem tão naturalmente indicados para participar na vida política desse país, onde os elementos avançados viam nele o paladino activo e dedicado chefe que se impunha. Porém, a realidade havia de demonstrar que Guilbeaux estava muito longe de ser aquilo que aparentava. Revelou-se um simples diletante, idêntico a tantos outros que o acaso das guerras ou das revoluções elevava subitamente no paroxismo de uma hora de febre para depois os projectar verticalmente no nada onde acabam todos os valores sem base. Chegado à Rússia, voltou às dissipações verbais de outrora, perdendo lamentavelmente o tempo e a oportunidade, como em Paris. Por fim, chegou até a indispor-se com os que o estimavam, primeiro com Lenine, depois com Barbusse e Rolland, e finalmente com todos nós. O seu declínio terminara do mesmo modo que o seu despertar - abandonara-se à mediocridade dos seus trabalhos literários e do seu velho hábito das contendas à volta de futilidades. E um dia, pouco depois da revisão do processo que o condenara, morreu ignorado em qualquer recanto de Paris. E assim terminou aquele que, num dado momento, se tornou o audaz paladino da guerra à guerra, aquele que, se tivesse sabido aproveitar a oportunidade que as circunstâncias lhe ofereceram, teria sido uma das mais notáveis figuras do nosso tempo. Poucos serão os que ainda se lembrem de Guilbeaux, e talvez eu seja um dos últimos que, ao pensar na audácia de Dsmain, o recorde com reconhecimento.
A minha permanência em Genebra aproximava-se do fim. Assim, alguns dias depois, regressei a Zurique para tratar dos pormenores relacionados com a representação da minha obra. Era esta uma cidade, pela qual eu nutria imensa simpatia, não só pela incomparável magia do lago e das montanhas que a rodeiam, mas também pelo seu movimento intelectual, um quase nada conservador, é certo. Contudo, a calma tranqüilidade que outrora reinava em Zurique dera lugar, devido ao facto de a Suíça ser um país neutral circundado de beligerantes, a uma certa agitação que a tornara de súbito na mais importante cidade da Europa, pois para ela convergiam muitas figuras dos movimentos idealistas de vários países, e também, deve dizer-se, muitos traficantes espiões, gente cujo inesperado amor pela cidade não deixava de inquietar justamente os seus pacíficos habitantes... Não admirava, pois, que, nos cafés, nos restaurantes, nos eléctricos e nas ruas, se ouvisse continuamente falar os mais diversos idiomas e que qualquer pessoa encontrasse conhecidos a cada momento, de bom ou de mau grado, e se visse a cada passo lançada em inevitáveis discussões. Tratava-se de uma multidão heterogênea que as circunstâncias da guerra deslocaram para essa cidade e cuja existência dependia do curso dos acontecimentos. Havia quem estivesse ali no desempenho de funções oficiais e exilados políticos. Longe do lar, sentiam todos a necessidade de um convívio que operasse como lenitivo, e, na impossibilidade de exercerem qualquer influência nos assuntos políticos ou militares, abandonavam-se a intermináveis discussões que, por vezes, atingiam o paroxismo de um ataque febril que excitava e ao mesmo tempo deprinia. Havia ainda outro factor que justificava esse delírio: quem quer que tivesse passado muito tempo com a boca forçadamente fechada no seu país, só com grande força de vontade se podia agora inibir de utilizar a liberdade de dizer, pensar ou escrever aquilo que lhe apetecia sem o fantasma da censura. Cada qual procurava vibrar tão intensamente quanto possível e foi assim que até alguns espíritos vulgares, como foi o caso de Guilbeaux, conseguiram dar provas de uma capacidade que jamais haviam alcançado e depois nunca puderam repetir.
O ambiente era de facto notavelmente extraordinário, encontrando-se em Zurique, a cada passo, escritores e políticos de todas as nações e tendências. Fora ali que Alfredo H. Fried, prêmio Nobel da paz, editara o seu livro Friedensivarte (1); Frederico von Unruh, ex-oficial do exército prussiano, nos lera alguns dos seus trabalhos dramáticos; Leonardo Frank escrevera o seu notável livro Der Mensch ist guí (2); André Latzko suscitara grande sensação com a sua obra Menschen im Kriege (3) e Franz Werfel pronunciara uma conferência. No meu velho hotel Shwerdt, onde Casanova e Goeth outrora se hospedaram também, encontrava-se agora uma verdadeira miscelânea
- russos que depois desempenharam papel importante na revolução e cujos verdadeiros nomes nunca consegui saber - italianos, padres católicos, socialistas que se mantinhiam fiéis aos velhos princípios e até alguns dos que, na Alemanha, votaram pela guerra. De entre os cidadãos suíços que estavam connosco, distinguiam-se o venerando pastor Leonardo Ragaz e o poeta Roberto Faesi.
(1) A miragem da paz.
(2) O homem é bom.
(3) Homens em guerra.
Era um labirinto. Na Livraria Francesa encontrei o meu tradutor Paulo Monsse e numa sala de música vi o regente Oscar Fried. Em Zurique concentravam-se todas as actividades, emitiam-se todas as opiniões, mesmo as mais disparatadas, fervilhava a indignação ou o entusiasmo, fundavam-se jornais, surgiam controvérsias, fundiam-se paradoxos e preparavam-se alianças ou dissidências entre grupos. Nunca mais tive ocasião de assistir a uma amálgama tão contraditória de opiniões e de critérios como a daqueles dias de Zurique ou, melhor, daquelas noites, pois a verdade é que no Café Believue ou no Odeon se discutia até à hora de se apagarem as luzes e, mesmo assim, ainda por vezes a discussão continuava em casa de um ou outro amigo, Era um mundo delirante em que ninguém tinha tempo ou disposição para contemplar a doce paisagem que rodeava a cidade, com as suas montanhas e o seu lago tranqüilo. Vivia-se apenas para as últimas notícias, para os boatos e discussões e dava-se até o absurdo de que cada qual sentia mais intimamente a guerra, então, estando em país neutro, do que quando se encontrava na pátria beligerante. A questão assumia maior amplitude. A derrota ou a vitória de um dos campos em luta perdia grande parte do seu valor. Já não se tratava apenas de um simples problema de fronteiras, mas de qualquer coisa que dizia respeito ao futuro da própria humanidade.
De todos esses homens com quem então privei, aqueles cuja situação mais me comovia - como que num vago pressentimento do que me esperava - eram os que não tinham pátria ou, pior ainda, os que tinham duas ou três e contudo não podiam optar facilmente por nenhuma.
No Café Odeon notara um jovem de barbinha loura e óculos espessos, detrás dos quais brilhavam uns olhos escuros e profundos. Tratava-se, segundo me disseram, de um poeta inglês de grande valor. Alguns dias mais tarde, quando me relacionei com James Joyce, era esse o seu nome, imediatamente me declarou que não era de nenhum modo súbdito da Inglaterra. Nascera na Irlanda e, se era verdade escrever em inglês, não pensava e não queria pensar como inglês. «Desejaria - confessou-me ?- poder escrever numa língua que não pertencesse só a uma nação, mas estivesse ao serviço de todas as nações. Escrevendo em inglês, sou forçado a moldar-me aos ditames de uma determinada tradição». Não compreendi então perfeitamente o que me queria dizer. Ignorava que estava a trabalhar no seu Ulysses. Nessa altura emprestou-me o único exemplar que possuía do seu livro Poríraií of an artisf as a young man e o seu pequeno drama Exiles, que eu, para o ajudar, me dispus então a traduzir.
Quanto mais me ia familiarizando com ele, tanto mais admiração me causavam os seus extraordinários conhecimentos Linguísticos. Dir-se-ia que os vocábulos dos idiomas que Joyce dominava se encontravam prontos, à espera que os chamasse, no interior daquele crânio cuja frente abaulada e alta brilhava como porcelana sob os raios da lâmpada eléctrica que nos alumiava. Não me esqueço de certo dia em que me perguntou como eu traduzira para alemão determinada frase bastante difícil do seu Poríraií of an artist, e tendo procurado em primeiro lugar vertê-la em italiano e em francês notei a extrema facilidade e prontidão com que encontrava quatro ou cinco sinónimos em cada um desses idiomas para cada uma das palavras que queríamos traduzir, e fazia-o com tal precisão e meticulosidade que era capaz de distinguir as suas mais pequenas e íntimas tonalidades. Havia certa iracúndia no seu carácter, mas era ela, segundo suponho, que dava dinamismo e personalidade ao seu talento. A instintiva severidade contra Dublin, a Inglaterra e determinadas pessoas, só se acentuava claramente nos seus trabalhos literários. Contudo, vendo-o, dir-se-ia que Joyce se sentia bem com essa rigidez, porque nunca o vi sorrir ou manifestar alegria. Parecia encontrar-se em tensão constante. Quando o via caminhar, sempre apressado, com a tênue linha dos lábios comprimida, adquiria, com mais força do que quando conversávamos, a certeza de como era grande a sua tendência para a concentração. Assim, não me admirei quando mais tarde soube que publicara um livro com umcunho marcada e insuspeitadamente pessoal, um livro à parte uma obra que foi como que um meteoro surgido inesperadamente.
Outro exemplo de homem que oscila entre duas pátrias era Feruccio Busoni, italiano por nascimento e por educação, mas alemão por temperamento. Era um músico exímio, que eu sinceramente amava desde a juventude. Quando se sentava ao piano, podia dizer-se sem exagero que entrava em êxtase. Os olhos adquiriam um brilho extraordinário e, enquanto dedilhava, de forma magistral, a bela cabeça, levemente reclinada para trás, parecia elevar-se no ritmo das maravilhas que criava. Dir-se-ia um iluminado. Muitas vezes me senti arrebatado, assistindo aos seus concertos, contemplando a beleza subtil do seu expressionismo, enquanto a suavidade divina das melodias me tonificava e embalava a alma. E ei-lo agora ali também. Os cabelos tinham embranquecido e nos olhos adivinhava-se uma melancolia sem fim.
"Qual é a minha pátria - perguntou-me um dia.
- Quando por vezes sonho, recordo-me, ao levantar-me, de que sonhei em italiano; mas quando escrevo e penso, sei que penso em alemão". Os seus discípulos espalham-se por todo o mundo. - "Talvez agora se estejam assassinando mutuamente", lamentou. Nesse momento, sentia-se tão abatido que ainda não se dedicara ao seu Doktor Faust, a ópera que o consagraria. Para reagir contra a imensa tristeza que o invadia, escreveu então uma pequena partitura em um acto, mas em vão, porque a sua alma permaneceu como estava, e assim se manteve durante a guerra. Aquele seu amplo e magnífico sorriso, que tanto me encantava quase desaparecera. Recordo-me de o ter encontrado certa noite, já tarde, no restaurante da estação. Mostrando-me duas garrafas de vinho que se encontravam sobre a mesa, e cujo conteúdo bebera sozinho disse-me "É para me esquecer. O álcool é realmente um veneno, mas, por vezes, faz-nos esquecer a vida. Nem sempre o refúgio da música nos ampara. Há horas em que a inspiração nos abandona"
Mas a situação mais delicada era certamente a dos alsacianos, em particular daqueles que, como Reno Schickele, se sentiam ligados à França pelo coração e que, apesar disso, escreviam num idioma que pertencia à Alemanha, A guerra surgira precisamente por causa da sua Alsácia e a guerra despedaçava-lhes o coração. Diziam-lhes que deviam optar por um ou outro campo, procurando forçá-los a tomar uma decisão que eles não podiam admitir, pois o que mais detestavam era precisamente esse dilema. O seu sincero desejo era, como o nosso, que a Alemanha e a França vivessem em paz, como duas nações irmãs. À guerra opunham a vontade de fraternal entendimento entre os dois povos e, entretanto, a realidade do cruel dualismo torturava-os.
Depois, havia ainda a multidão dos que não podiam optar, e contudo estavam parcialmente ligados aos dois sectores beligerantes: - mulheres inglesas casadas com oficiais alemães; mães francesas de diplomatas austríacos: famílias que tinham filhos nos dois grupos beligerantes e ansiavam por cartas que haviam de chegar de pontos opostos. A uns tinha-lhes sido confiscado além o pouco que tinham, e outros tinham deixado aquém o lar. Era uma legião perdida que, para evitar a suspeição com que era olhada na pátria em que nascera ou naquela em que havia ingressado, procurara o refúgio da Suíça. Para não se comprometerem e para não comprometerem os outros, chegaram até a não falar idiomas que os revelassem. Eram verdadeiras sombras, existências torturadas, contra as quais o punho que dilacerava a Europa se obstinava tanto mais ferozmente quanto mais elas procuravam manter um sentido do europeísmo.
Entretanto, chegara o dia da estreia de Jeremias. Foi um acontecimento: e o facto de o Frankfurter Zeitung ter informado a Alemanha, à maneira de denúncia, que o embaixador norte-americano e algumas personalidades dos países aliados assistiram à representação não me causou grande receio. A guerra havia perdido muito do seu vigor de outrora. Estava já no seu terceiro ano e, apesar de Ludendorff se obstinar em prossegui-la, a verdade é que, então, já não era tão perigoso manifestar-se contra ela como nos primeiros momentos de grande exaltação. Adivinhava se que o fim surgiria no Outono de 1918, mas eu não estava disposto a esperar em Zurique, pois o tempo acabara por me tornar mais perspicaz em relação a muitos dos que à minha chegada me tinham encantado pelo seu pacifismo e antimilitarismo, que o meu primeiro entusiasmo julgara ardente e sincero. Acabei por descobrir, finalmente, que entre os refugiados políticos e os mártires de uma causa generosa se haviam infiltrado personalidades duvidosas, evidentemente a soldo dos Serviços Secretos da Alemanha. Os espiões pululavam por toda a parte, nesse belo e magnífico país onde todos os beligerantes mantinham uma organização subterrânea, cuja existência era por demais compreensível. Não era de estranhar que a mulher que despejava o cesto dos papéis, a telefonista e o criado que, aparentemente despreocupado e ingênuo, nos servia o café com toda a lentidão, estivessem ao serviço de uma potência estrangeira. Por vezes até se dava o caso de que o mesmo indivíduo estava a soldo de duas nações inimigas. As malas eram misteriosamente abertas, o papel mata-borrão fotografado e as cartas desapareciam. Havia mulheres elegantes que nos lançavam olhares estranhos nos vestíbulos dos hotéis e até acontecia aparecerem de súbito exaltados pacifistas, que até então ninguém conhecera, apresentando-nos proclamações para nós assinarmos ou solicitando manhosamente endereços de "amigos de confiança". Houve certo "socialista" que um dia me convidou a realizar uma conferência para os operários de La Chaux-de-Fonds, se bem "que eles nada soubessem do convite. Foram tão desusados os honorários que me ofereceu que, evidentemente, logo se me tornou suspeito. Enfim era preciso ser prudente. Pouco a pouco, fui adquirindo a convicção de que não eram todos os que estavam e não estavam todos os que eram e, como não queria lançar-me na vertigem da politiquice, decidi afastar-me o mais possível. Até mesmo me desagradava o convívio com muitos daqueles que me mereciam confiança, devido às inúteis e infindáveis discussões em que se envolviam os que pertenciam aos diferentes grupos avançados radicais, anarquistas, bolchevistas ou apolíticos. Pela primeira vez na minha vida, encontrei então o verdadeiro ripa do revolucionário profissional, cujo revolucionarismo consiste apenas em lançar constantes imprecações contra tudo e contra todos. São geralmente criaturas medíocres, cujo complexo de inferioridade encontra nas fórmulas dogmáticas providencial refúgio.
Permanecer num ambiente desta natureza em que apenas se cultivava uma verbosidade sem limites, seria atentar contra a integridade do meu próprio pensamento. E, por isso, tomei a firme decisão de me afastar. De resto, a verdade é que nenhum desses terríveis conspiradores de mesa de café conseguiu fazer uma revolução e jamais um desses improvisados salvadores realizou qualquer obra notável. A maioria eclipsou-se ou recolheu-se à sua verdadeira insignificâncía, logo que a tarefa da reconstrução do após-guerra surgiu coon os seus imperativos insofismáveis, ou manteve-se na teimosa posição do seu oposicionismo. E o mesmo se deveria observar com os escritores inflamados de então, que, salvo raríssimas excepções, não conseguiram sobressair da vulgaridade. Dir-se-ia que foram simplesmente vagos pirilampos, a quem a febre da hora que passava emprestava fulgurações estranhas, e que morreram com o dealbar da realidade. No fundo, eram apaixonados idealistas que discutiam e sonhavam, mas tão inconsistentes que o mito que os unia se desfez, logo que acabou a guerra - monstro que os excitara.
Tratei, pois, de procurar um sítio aprazível onde fixar residência. E encontrei-o a cerca de meia hora de Zurique, num pequeno hotel de Rüschlikon, localidade de cujas colinas se via o lago e de onde se divisavam as torres de Zurique, perdidas na distância. Nesse refúgio, apenas via aqueles que desejasse ver, os sinceros amigos que eu convidasse. E eles não se fizeram esperar, os verdadeiros - Rolland e Masereel. Aí podia dedicar-me inteiramente aos meus trabalhos, enquanto o tempo, inexorável, prosseguia na sua acção corrosiva. A derrota alemã, depois da entrada da América na guerra, já nem sequer se discutia, isto para aqueles, evidentemente, cuj'o olhar não estava embaciado, cujos ouvidos não estavam ensurdecidos pela fraseologia oca dos pertinazes chauvinistas. Assim, no dia em que o imperador da Alemanha fez a súbita declaração de que começaria a governar o país segundo uma orientação "democrática", logo adivinhámos o que havia por detrás dessa novidade. Havia já muito tempo que austríacos e alemães, colocados no mesmo plano, ansiavam ardentemente por que o inevitável se produzisse. Quando o imperador Guilherme, que outrora jurara lutar até ao último sopro do último homem e do último cavalo, tomou o caminho da fronteira, e quando Ludendorff, o homem cujo obstinado lema da "paz pela vitória" tantos milhões de vidas sacrificou, fugiu para a Suécia, disfarçado com umas lunetas azuladas, nesse dia, todos nós rejubilámos. Então acreditámos - e a humanidade acreditou connosco-que, com o fim daquele conflito mundial, soara a última hora do monstro abominável da guerra, não apenas daquela, mas de todas. Confiávamos no magnífico programa de Wilson, que vinha ao encontro das nossas aspirações, naquele momento em que a revolução russa parecia inspirada por princípios humanitários, acendendo no Oriente uma vaga esperança.
Fomos ingênuos! Reconheço-o. Mas resta-nos a consolação de que não fomos nós os únicos que acreditámos nesse belo sonho. Quem é desse tempo sabe como foi grande o entusiasmo e o alvoroço com que Wilson, o salvador do mundo, foi então recebido em toda a parte. Nessa altura, havia soldados, outrora inimigos, que confraternizavam, abraçando-se e beijando-se em plena rua. Jamais houvera na Europa uma tal sede, uma tal ânsia de paz! Todos acreditavam que ia enfim surgir na Terra o reino há tanto tempo sonhado da liberdade, da fraternidade e da justiça. Tinha soado finalmente a hora única da união de todos os povos da Europa.
A tragédia pertencia ao passado. Nos nossos corações já não podia haver lugar para a dúvida. Estava em formação o Mundo do futuro, o Mundo novo, e, como éramos jovens, dizíamos - sim, será o nosso mundo, o mundo que nós sonhamos, um mundo melhor, mais humano e mais justo.
Regresso À Áustria
Regressar à Áustria derrotada, a essa Áustria que, no mapa da Europa, era já um pálido e frouxo reflexo, da poderosa monarquia imperial de outrora, foi certamente, sob o ponto de vista lógico, de uma evidente insensatez. Checos, polacos, italianos e eslovacos reivindicaram as suas regiões. O que ficou podia considerar-se apenas um tronco sem membros, gotejando sangue - um território em que viviam seis ou sete milhões de homens forçadamente classificados Como austríacos de origem germânica, e em cuja capital se concentravam cerca de dois milhões de famintos. As fábricas que até aí tinham feito a riqueza da nação estavam todas nas regiões anexadas; as linhas do caminho de ferro ficaram reduzidas à sua mais ínfima expressão; as reservas metálicas do Banco Nacional desapareceram e os pesados encargos das dívidas de guerra tornaram-se um problema angustioso. As fronteiras ainda não se achavam definitivamente marcadas, pois a Conferência da Paz acabava de iniciar os trabalhos. Reinava uma indecisão assustadora. Faltava a farinha e o pão, o petróleo e o carvão, o espectro da revolução ou de qualquer outra catástrofe semelhante pairava na atmosfera.
Era claro que uma Áustria dessa natureza, uma Áustria que os vencedores teimavam em manter independente, não podia viver abandonada aos seus próprios recursos - essa era a impressão geral, de resto plenamente manifestada em coro por todos os partidos políticos socialistas, cristãos e nacionalistas. É um caso único na História, creio, obrigar-se um país a viver numa situação de independência que ele é o primeiro a não desejar, pois a Áustria preferia viver em conjunto cem qualquer dos seus vizinhos de outrora ou com a sua irmã gêmea Alemanha, mas não aceitava uma mutilação, que a condenava a uma morte lenta por consumpção. Mas os antigos viz'nhos não manifestavam grande entusiasmo por essa união', em parte porque talvez não vissem vantagem em viver com um vizinho demasiadamente pobre e, por outro lado, porque temiam um possível regresso dos Habsburgos. Os aliados, a pretexto de que o facto poderia contribuir para o ressurgimento da Alemanha derrotada, também não toleravam que a Áustria se unisse cem ela. E foi assim que nasceu e se manteve a república austríaca, pela simples e única razão de que a um país que como tal não queria existir se lhe disse - vive! É, realmente, um caso singular nas páginas da história do mundo!
Regressar voluntariamente à Áustria, na sua hora mais dolorosa e triste, foi uma atitude que nunca cheguei a compreender perfeitamente. Mas a verdade é que nós, os homens educados na época que antedeceu a primeira Guerra Mundial, tínhamos um respeito sagrado e quase instintivo pelo cumprimento do dever. Na hora crítica, no momento supremo, não podíamos deixar de ouvir o apelo da Pátria ou da família. Assim, eu julgava não ter o direito de desertar, voltando as costas à tragédia em que se debatia o meu país. Sentia que devia juntar o meu esforço, e, em particular, como autor de Jeremias, ao daqueles que procuravam fazer frente ao drama da derrota. Tendo sido desnecessário durante a guerra, parecia que tinha agora um posto onde poderia actuar, tanto mais que a minha decidida oposição ao prolongamento do conflito me dera certo prestígio, especialmente entre a juventude. Admitindo mesmo a hipótese de que o meu esforço fosse inútil, ficava-me ainda o consolo moral de tomar a minha cota parte nas desditas que eu fora o primeiro a prever.
Uma viagem à Áustria requeria então preparativos que faziam pensar numa expedição às regiões polares. Era preciso enroupar-se prudentemente, -pois o Inverno estava à porta e sabia-se que do lado de lá da fronteira não havia carvão, e, como também faltava a sola - a que então se usava na Áustria era de madeira - mandava-se arranjar o calçado. Compravam-se tantas provisões, chocolate, etc. como a Suíça o permitia fazer, de modo que se pudesse resistir até que as senhas de racionamento nos fossem distribuídas. Como não era raro que as bagagens fossem pilhadas, tomava-se a precaução de as segurar, atribuindo-lhes o maior valor possível, já que um fato ou um par de sapatos eram riquezas simplesmente insubstituíveis. Enfim, fiz preparativos que só dez anos depois tive de repetir, quando da minha viagem à Rússia.
Quando cheguei a Buchs, pequena estação da fronteira onde um ano antes estivera cheio de alegria, permaneci um momento indeciso. Perguntava a mim próprio se não seria preferível retroceder. Era evidente que se tratava de uma decisão que teria larga influência na minha vida, mas, por fim, optei pelo caminho mais doloroso e mais cruel, o que me conduzia à Áustria.
Outrora tivera, na minha chegada à estação de Buchs, uma emoção extraordinária. No regresso, porém, a emoção que me esperava, e que não foi menos importante, devia dar-se em Feldkirch na fronteira da Áustria. Logo à chegada notei que o ambiente era um tanto ou quanto solene. Dir-se-ia que se esperava algum acontecimento iminente. As autoridades pareciam a tarefadas. Os guardas fiscais e os funcionários da polícia quase não reparavam em nós. Pareciam estar preocupados com problemas mais transcendentes. De repente, ouviu-se o sinal que anunciava a chegada de um comboio que vinha do interior da Áustria. E logo os polícias se perfilaram e os funcionários saíram apressadamente das suas repartições, concentrando-se na plataforma com as mulheres, que, evidentemente, já haviam sido advertidas do que se iria passar. Entre elas destacava-se singularmente uma senhora já de certa idade, vestida de preto, acompanhada de duas meninas. Adivinhava-se pelo vestuário e pelos modos que pertencia à aristocracia. Parecia extremamente desolada e chorosa.
Entretanto, o comboio avançava lentamente, quase majestático. Compunha-se de invulgares carruagens que nada tinham de comum com as dos outros comboios, já marcadas pela acção do tempo. Tratava-se de um verdadeiro comboio especial. Quando a máquina parou, um movimento de geral curiosidade se desenhou em todos os semblantes, movimento cuja causa eu ainda ignorava. De repente, descortinei, através da vidraça de uma das carruagens, a figura varonil do imperador Carlos, o último imperador da Áustria, ao lado de sua esposa, a imperatriz Zita, vestida de preto. Fiquei verdadeiramente assombrado - o último imperador da Áustria, o herdeiro da sete vezes secular dinastia dos Habsburgos, abandonava o seu império!
Carlos não tinha abdicado, mas a república aceitara, ou melhor, impusera a sua saída do país com todas as honras. E agora ali estava, à janela daquela carruagem, erguido e taciturno, dizendo, o último adeus às montanhas, às casas e aos habitantes do seu país. Era, de facto, um momento solene, especialmente para quem, como eu, fora educado num ambiente tradicionalista.
Nos bancos da escola, o primeiro hino que aprendera fora o imperial, e, mais tarde, no serviço militar, jurara precisamente "fidelidade em terra, no mar e no ar" àquele homem que agora estava ali na minha frente, vestido à paisana, com o olhar melancólico. À minha memória afluia a recordação das inúmeras vezes que eu tivera oportunidade de ver o velho imperador rodeado da pompa das solenidades de outrora, hoje perdida para sempre. Vira-o no cimo da escadaria de Schõnbrunn, ladeado pela família imperial e pelos generais, imponentes, recebendo a saudação de oitenta mil crianças das escolas de Viena, as quais, concentradas no tapete de rei vá que se estendia em frente do palácio, entoavam em coro, comovedoramente, o Gott erhalte de Haydn. E vira-o nas festas da corte ou no teatro, de brilhante uniforme, ou em Ischl, em traje de caça, com o típico chapéu verde da Estíria. Recordava-me de o ter observado outras vezes, incorporado, piedosamente, na procissão do Corpo de Deus, a caminho da igreja de Santo Estêvão, e, por fim, também vi, num dia sombrio de Inverno, em plena guerra, a urna do venerando ancião na sua derradeira morada.
A palavra Kaiser tinha para nós um sentido especial. Era como que o símbolo da própria Nação, da sua força, da sua continuidade, do seu poder. Haviam-nos ensinado, desde a mais tenra idade, a pronunciar esse dissílabo cem o mais profundo respeito. E eis que agora, o herdeiro desse patrimônio, o último imperador, estava ali na minha frente, quase na situação de um vulgar exilado, Era o fim. Naquele minuto supremo extinguira-se uma dinastia gloriosa que durante séculos transmitira de mão em mão o ceptro imperial. Adivinhava-se que todos os presentes tinham a sensação de que estavam naquele momento trágico a assistir a um drama que a História não poderia ignorar. Os militares pareciam atônitos e de certo modo indecisos, não sabendo se ainda deviam fazer ao exilado a continência regulamentar; as mulheres não ousavam fitar a carruagem e, no meio do silêncio profundo que reinava, distinguiu-se então sübitamente o soluço da pobre senhora vestida de luto que viera dizer, pela última vez, quem sabe de onde, o último adeus ao seu imperador. Mas eis que se ouviu o silvo agudo da locomotiva anunciando a partida. Todos os presentes estremeceram. Ia soar o segundo fatal. A máquina, como que forçando-se a si própria, deu um primeiro impulso às carruagens, e o comboio pôs-se lentamente em marcha, seguido pelo olhar comovido da assistência. Depois, os funcionários, em cujo semblante se lia aquele não sei quê que nos invade quando assistimos a um enterro, voltaram novamente para os seus postos. A monarquia quase milenária acabava realmente da dar, naquele momento, o último suspiro, e eu compreendia que regressava a uma Áustria que já não era a de outrora.
Quando o comboio imperial desapareceu, fomos convidados a descer das impecáveis carruagens suíças e a tomar lugar nas austríacas. Foi um primeiro contacto deveras elucidativo. Adivinhava-se por ele o estado em que o país se encontrava. Os empregados ferroviários que nos indicavam o lugar tinham o aspecto de famintos e andrajosos. Quase podiam dançar dentro dos velhos uniformes, de tal modo tinham emagrecido. As correias que serviam para abrir ou fechar as janelas haviam sido cortadas, porque qualquer bocado de sola representava uma riqueza, e não era raro notarem-se vestígios de faca ou baioneta de larápio ordinário nos próprios assentos, pois havia muitos cujo couro fora roubado por quem, tendo necessidade de mandar consertar os sapatos, se servia do cabedal que encontrasse à mão. O mesmo destino fora dado aos cinzeiros, roubados porque eram de metal. O vento do Outono arrastava para dentro das carruagens, através das janelas partidas, as fagulhas do mísero carvão que as locomotivas então consumiam, enegrecendo tudo. Apesar disso, havia ainda certa vantagem nesse lixo, pois neutralizava o cheiro penetrante do clorofórmio, que nos fazia pensar na imensidade de doentes e feridos de guerra que esses esqueletos de carruagens tinham transportado. Não havia razão para grandes desesperos. O que nos devia surpreender era que o comboio pudesse andar. Era um milagre, realmente, se bem que muito lento. Quando, por qualquer circunstância, as rodas das carruagens, mal cuidadas, faziam menos ruído, temíamos que a máquina, exausta, estivesse prestes a parar. A lentidão da marcha era tal que um percurso, que antes se fazia em uma hora, precisava então de quatro ou cinco. Quando a noite chegava, as carruagens ficavam submersas em densas trevas, visto que as lâmpadas eléctricas estavam fundidas ou haviam desaparecido. Quem precisasse de luz era forçado a acender fósforos, e, se não gelávamos, devia-se à circunstância de, logo desde as primeiras estações, todos os assentos ficarem ocupados, apertando-se os passageiros uns contra os outros. Contudo, a afluência subia de ritmo nas estações seguintes. Cada qual, cansado de esperar horas sem conta, se infiltrava por onde podia. Os corredores enchiam-se e por fim até havia quem viajasse nos estribos, à chuva. A bagagem e o pequeno saco de mantimentos em especial eram motivo de constante vigilância, pois ninguém se atrevia a largá-los da mão ainda que fosse tão-somente por um momento. Enfim, podia dizer-se que eu vinha da paz e regressava ao horror da guerra, a esse drama que já se supunha terminado.
De repente, a pouca distância de Innsbruck, a máquina começou a falhar, quando se arrastava por um pequeno declive. Resfolegou e tornou a resfolegar desesperadamente, mas em vão. O pessoal do comboio ia e vinha, atarefado, agitando pálidas lanternas na escuridão que nos rodeava. Porém, só uma hora depois saímos dali, quando uma máquina de socorro chegou para ajudar a rebocar o nosso comboio.
Mesmo assim, em vez de sete horas, gastámos dezassete para chegar a Salzburgo. Na estação não havia maneira de se encontrar um carregador; por fim apareceram uns soldados esfarrapados que se ofereceram para levar as bagagens ao trem, mas o cavalo deste era tão velho e esquelético que dava mais a impressão de se apoiar nos varais do que estar disposto a puxar por eles. Tive dó do mísero lazarento e, para não o sobrecarregar, deixei as malas no depósito de bagagens da estação, mas confesso que tive receio de nunca mais lhes pôr a vista em cima.
Enfim, estava em Salzburgo, onde, durante a guerra, havia comprado um prédio, já que as dissidências com os meus amigos, fundamentadas nas nossas divergências acerca da guerra, despertaram em mim o desejo de me afastar das grandes cidades e de procurar viver sem grandes atritos. Este retraimento fez-se depois sentir de maneira bastante apreciável em toda a minha actividade.
De todas as pequenas cidades austríacas, Salzburgo parecia ser a que mais correspondia aos meus desejos, não somente devido às suas belezas naturais, mas ainda em conseqüência da sua posição geográfica, por encontrar-se muito próximo da fronteira. O comboio levava apenas duas horas e meia para chegar a Munique, cinco a Viena, dez a Zurique ou a Veneza e vinte a Paris. Dir-se-ia ficar no coração da Europa. Salzburgo estava então muito longe de ser a famosa cidade onde se encontram todas as "eminências" e que no Verão adquire tonalidades de requintado snobismo. Se assim fosse, não a teria eleito para meu oásis. Nesse tempo era apenas um romântico e encantador recanto solitário que se erguia docemente no sopé dos Alpes, ali onde as montanhas terminam e nasce a imensa planície germânica. A minha casa encontrava-se precisamente no cimo de um montículo arborizado, que fazia parte das últimas ondulações alpinas. Para lá chegar era preciso ascender por um velho caminho quase talhado a pique, e, felizmente, inacessível aos automóveis. Subiam-se mais de cem degraus, mas, em recompensa desse esforço, o panorama que dessas alturas se vislumbrava era magnífico. A seus pés estendia-se o casario da cidade com as setas das suas torres e, mais além, a vista dilatava-se até às cadeias distantes dos montes, certamente até Salzbero, próximo de Berchtesgaden, onde um homem então desconhecido, cujo nome era Adolfo Hitler, se iria instalar, mesmo em frente de mim.
com referência à casa, propriamente dita, se é verdade que era romântica, nem por isso deixava de ser bastante deficiente. Tratava-se de uma espécie de pequeno castelo venatório que certo arcebispo mandara edificar mesmo junto às antigas muralhas, no século XVIII, e que um século depois fora aumentado, à direita e à esquerda, com mais duas dependências. Reminiscências do -seu prestígio de outrora encontravam-se ainda patentes num magnífico tapete antigo, numa bela que o imperador Francisco em 1907 tivera nas suas mãos quando visitara Salzburgo e em vários pergaminhos. Era uma moradia que tinha certo ar de impotência, porque possuía uma grande frente, apesar de, devido à sua pouca largura, ter apenas nove divisões. Era uma raridade histórica que mais tarde encantava as nossas visitas, mas que, naquele momento, não era bem aconselhável. Fomos encontrá-la pouco menos que inabitável. Gotejava em todos os quartos e nos corredores. O telhado requeria uma reforma imediata, mas os carpinteiros não tinham a madeira necessária e aos funileiros faltava o chumbo preciso. Não houve remédio senão improvisar algumas pequenas reparações com papelão alcatroado e tomar a precaução de tirar oportunamente à pazada a neve que se acumulara no telhado. O telefone funcionava dificilmente, pois o fio empregado era de ferro, e como se havia perdido o hábito de levar as compras ao domicílio dos fregueses, tínhamos nós próprios que tratar de as encaminhar para o nosso afastado retiro. A maior dificuldade a vencer era, porém, a do frio, pois não havia maneira de se encontrar carvão nas circunvizinhanças e a lenha que vinha do jardim era demasiado verde. Em vez de aquecer assobiava como uma serpente, e em vez de arder crepitava e destilava humidade. Como não havia outra coisa melhor, lançámos mão da turfa, que, pelo menos, tinha a vantagem de nos dar a ilusão de um pálido calorzinho, mas devo confessar que durante mais de três meses escrevi os meus manuscritos quase sempre no leito, com as mãos geladas. Quando terminava uma página e os dedos já estavam roxos, metia-as de novo sob os lençóis para as aquecer, e recomeçava. Apesar deste primitivismo, ainda era preciso suportar outras contrariedades, pois surgiam novos problemas que a penúria de casas habitáveis vinham juntar aos da falta de alimentos e de carvão. Como durante quatro anos não se construíram novas casas nem se repararam as antigas, o problema da habitação tornara-se crucial. De repente, eis que a multidão dos sem lar, constituída por infinidade de soldados, desmobilizados e prisioneiros de guerra libertados, se pôs em marcha. Era obrigatório dispor de todos os quartos vagos para essa legião. Para esse fim, fomos também quatro vezes visitados, mas a verdade é que já havíamos espontaneamente cedido dois quartos. De resto, aquilo que a princípio tinha sido uma contrariedade, transformou-se então numa espécie de trincheira protectora, pois poucos estavam dispostos a escalar cem degraus para se irem domiciliar numa geleira.
Cada vez que me decidia a descer à cidade encontrava novas emoções - o espectro macilento e descarnado da fome deparava-se-me então pela primeira vez na minha vida. O pão era hediondo e sabia a grude; aquilo a que se dava o nome de café não passava de simples cevada torrada; a cerveja era água amarelada, o chocolate era qualquer mistela intragável e as batatas não se podiam comer porque estavam geladas. Os mais felizardos criavam coelhos, para não se esquecerem totalmente do gosto da carne. Havia um rapaz que apanhava esquilos no nosso jardim para os manjares domingueiros; e gato ou cão bem nutrido que se aventurasse a um passeio mais demorado era quase certo que nunca mais regressava. Aquilo que pela força do hábito ainda se conhecia com o nome de tecidos era tão-somente papel, isto é - o artificialismo de um artifício. Porém, a grande maioria dos homens vestia velhos uniformes militares e até uniformes russos, que cada qual procurava adquirir como podia, sem se preocupar com os cadáveres que talvez já tivessem estado dentro dessas vestes. E também não era raro que se fizessem calças de simples sacos velhos. Era confrangedor contemplar as montras vazias dos estabelecimentos e os edifícios cujas paredes ameaçavam ruína devido ao abandono a que eram votados e sobretudo assistir à marcha fúnebre com que os trabalhadores, visivelmente esfomeados, se arrastavam para as oficinas.
No campo, a situação era um pouco melhor, pelo menos em referência ao problema alimentar. com o desabar vertical da moral colectiva, havia poucos camponeses que se preocupassem com a venda do leite, dos ovos e da manteiga segundo os HôchstprKsen (1) estabelecidos. Preferiam guardá-los e esperar comodamente que os compradores afluíssem com ofertas mais tentadoras. Por fim, até surgiu uma nova profissão - a dos namstern. (2) Gente que não tinha nada que fazer punha dois ou três sacos às costas e ia de camponês em camponês arrebanhando tudo o que podia. Depois, vinha para a cidade e tratava de revender quatro ou cinco vezes mais caro os artigos que havia adquirido dessa maneira ilegal. Os camponeses não deixavam, a príncipio, de bendizer esse comércio clandestino que, em troca dos seus ovos e da sua manteiga, lhes inundava a casa de notas do banco. Mas a sua decepção era grande quando, com as carteiras abarrotadas de dinheiro, vinham
(1) Preços máximos.
(2) Comerciantes do mercado negro.
à cidade fazer as suas compras, pois verificavam, então, que enquanto se haviam limitado a vender os seus produtos agrícolas cinco vezes mais caros, a foice, o caldeiro ou o martelo que queriam adquirir haviam subido de preço vinte e até cinqüenta vezes mais. Logo começou a vigorar tàcitamente uma nova escala de valores - a permuta. A trincheira havia reconduzido a humanidade ao período selvático da caverna. Só faltava abolir a convenção milenária do dinheiro e regressar ao primitivismo da troca. E foi o que se fez.
E iniciou-se então, através de todo o país, uma caricata forma de relações comerciais. Da cidade começaram subitamente a tomar o caminho da aldeia os mais desencontrados e paradoxais objectos:-jarras de porcelana, tapetes, espadas, espingardas, máquinas fotográficas, livros, candeeiros e tudo o que de qualquer modo o citadino pudesse dispensar. Era assim que, entrando-se em casa de qualquer camponês da região de Salzburgo, se tinha a inacreditável surpresa de observar que ele possuía uma imagem sagrada da índia ou um armário rococó cheio de livros franceses encadernados em pele. Contemplando essa sua nova aquisição, exclamava olímpico: "Estes estão encadernados em pele verdadeira. São franceses " O dinheiro perdera todo o seu significado. Só os objectos valiam. Assim, havia quem, para não morrer de fome, chegasse a vender o anel de casamento ou o cinto.
As autoridades foram forçadas a intervir, procurando opor um dique ao escândalo de um comércio clandestino, que apenas era útil a quem podia dispor de certos bens. Estabeleceram-se brigadas especiais encarregadas da sua repressão que, nas estradas, de bicicleta, ou nos comboios, procediam à apreensão dos gêneros, enviando-os para as repartições públicas encarregadas do serviço das subsistências. Mas a esta política responderam os traficantes com redobradas precauções, que consistiam em fazer as suas transacções pela calada da noite ou simplesmente em subornar os agentes encarregados de os vigiar, que, aliás, também tinham filhos esfomeados em casa. Contudo, por vezes, essas expedições degeneravam em verdadeiras batalhas campais, que terminavam a tiro ou à facada, armas cujo manejo haviam aprendido durante quatro anos de guerra. A essa habilidade juntavam ainda a extraordinária arte e precisão com que sabiam pôr-se em fuga no momento oportuno, outra quaLidade adquirida nas lutas passadas.
A situação piorava constantemente; o descalabro monetário era cada vez maior. As regiões que tenham feito parte do império e que dele se desassociaram, emitiram notas especiais deixando a pequena Áustria directa ou indirectamente sobrecarregada com o pesado fardo de Liquidar as antigas. Um seguro indício da crise revelava-se no facto de a moeda sonante desaparecer, como que por milagre, da circulação, pois cada qual procurava arrecadar as mais simples rodelas de cobre ou de níquel, já que, pelo menos em comparação com as notas, tinham um valor real e efectivo. Por outro lado, o governo tomara a mefistofélica decisão- de fazer ininterruptamente novas emissões de notas. Estava-se em plena inflação. A breve trecho já não havia papel que chegasse. Por fim, cada cidade começou a emitir cédulas privativas e o mesmo chegaram a fazer as aldeias. Mas esse papel-moeda de emergência não circulava nas cidades ou aldeias vizinhas, e não era raro que em certos casos se chegasse a deitá-lo fora, em vista do seu quase nulo valor. Creio que a descrição dos dramas e dos paradoxos da inflação, tanto na Áustria como na Alemanha, daria motivo a um romance deveras surpreendente, POis o caos tomava proporções cada vez mais fantásticas. Por fim, era já impossível ter-se a noção do valor das coisas. Os preços oscilavam vertiginosamente. Uma simples caixa de fósforos podia custar uma casa, cujo proprietário actualizara oportunamente o seu custo, vinte vezes mais do que noutra, onde um comerciante mais probo vendesse ainda pelo preço do anterior. O resultado dessa probidade não se fazia esperar-a notícia da barateza começava a propagar-se e as reservas do comerciante esgotavam-se num ápice. Toda a gente comprava o que lhe aparecesse e tivesse valor comercial, mesmo que não necessitasse das coisas para seu uso, como, por exemplo, objectos tão disparatados como um peixinho ou um velho telescópio, objectos vendáveis e não simples bocados de papel.
Uma das mais grotescas desproporções da vida dessa época foi, sem dúvida, a que se relacionava com as rendas das casas. O governo, tomando partido pelos inquilinos, que constituíam a maioria, não hesitou em prejudicar os proprietários, estabilizando o preço do aluguer. O resultado dessa medida não se fez esperar: - dentro de pouco a renda anual de uma casa média custava menos ao seu inquilino do que o pequeno almoço de um dia. Não se exagera se se disser que, na Áustria, toda a gente teve casa quase de graça durante cerca de dez anos, pois o decreto que proibia o aumento dos aluguéis ainda se manteve em vigor mesmo depois da tempestade passar. A loucura atingia foros de autêntico e inacreditável paradoxo; quem durante quarenta anos conseguira amealhar algum dinheiro e tivera ainda o patriotismo de o empregar nos empréstimos de guerra, via-se subitamente na situação de pedinte; quem estava sobrecarregado de dívidas respirava, enfim, pois vira-se livre delas num momento; quem era sincero e se limitava apenas à parte dos alimentos que lhe fora atribuída tinha a certeza de morrer de fome, enquanto que, por outro lado, os que não tinham vergonha e tripudiavam podiam encher o estômago; quem não tinha escrúpulos triunfava; quem especulava tinha a certeza de ganhar; quem se conformasse em vender pelos preços estipulados pela tabela, perdia quem fazia previsões, colhia desenganos. Não havia pontos de referência nessa correria vertiginosa em que o dinheiro se desfazia em pó. A única virtude consistia em correr também, em se Ber maleável, astuto e hipócrita. Quem não se adaptava, perecia.
Mas, como se tudo isso não fosse suficiente, deu-se o caso que, enquanto a queda vertiginosa de todos os valores fazia perder a cabeça aos austríacos, descobriam muitos estrangeiros que a Áustria se havia transformado no país do maná. Durante a crise, que durou cerca de três anos e se desenvolveu em contínua e assustadora progressão, os únicos valores monetários com estabilidade eram as divisas estrangeiras. Como o nosso dinheiro se volatilizava, todos queriam obter francos suíços ou dólares americanos. A ocasião era, portanto, favorável para que certos estrangeires se lançassem sobre o cadáver da coroa austríaca. E foi assim que muita gente partiu para "a descoberta" da Áustria, a qual, naturalmente, foi de súbito invadida por uma legião de novos exploradores. De repente, todos os hotéis de Viena trasbordaram desses rapinantes, que compravam tudo o que encontravam, a começar nas escovas de dentes e a terminar nos latifúndios. De caminho, encarregavam-se também de devorar tudo o que de certo valor artístico encontrassem em casas particulares ou nos estabelecimentos comerciais de antigüidades e isto antes que os seus proprietários, na aflição que os torturava, tivessem sequer tempo de se aperceber da maneira escandalosa como estavam a ser enganados. Havia simples porteiros de hotel, vindos da Suíça, e dactilógrafas da Holanda que viviam nos quartos principescos dos grandes hotéis da Rungstrasse. Posso afirmar, por muito estranho que o facto pareça, pois fui uma das suas testemunhas oculares, que o grande e luxuoso Hotel de L'Eurcpe, em Salzburgo, esteve durante muito tempo totalmente ocupado por operárias ingleses sem trabalho que, graças às opíparas subvenções de desemprego que recebiam no seu país, podiam viver mais facilmente nesse magnífico hotel do que nos seus s. tírn. (1) da Inglaterra. Tudo o que não estivesse bem Pagado era susceptível de se sumir na voragem.
(1) Pardieiros.
Dentro de pouco, a notícia do maná austríaco começou a circular mais dilatadamente, e eis que da Suécia e da França, etc. chegavam novos turistas, de tal modo que, por fim, nas ruas centrais de Viena, já era mais fácil ouvir falar italiano, francês, turco ou romeno do que alemão. Até a própria Alemanha, onde a inflação, de começo, se desenvolveu num ritmo muito mais lento-se bem que, depois, tomasse proporções ainda mais terríveis e assustadoras do que a nossa -'não teve pejo em lançar o seu marco no festim que à volta da nossa coroa moribunda se fazia. Como eu vivia em Salzburgo, cidade fronteiriça, tive ocasião de observar muitas das peripécias desse pantagruelismo insensato. Os bávaros da circunviz'nhança vinham ali às centenas e aos milhares; este mandava fazer um fato, aquele ordenava que lhe reparassem o automóvel e aquele outro ia à farmácia aviar a receita ou vinha consultar médico, e, como a nossa franquia postal ou telegráfica era mais tentadora, havia até grandes firmas de Munique que preferiam enviar da Áustria as suas cartas e telegramas para o estrangeiro. As autoridades alemãs acabaram por intervir, procurando evitar que os compradores atravessassem a fronteira para vir fazer as suas provisões em Salzburgo, onde um marco valia nada menos do que setenta coroas austríacas. Para esse efeito, estabeleciam aturada vigilância e confiscavam sem apelo todas as mercadorias que encontravam. Entretanto, havia um artigo que não podi'a ser confiscado - a cerveja que cada qual levava no estômago. E eis que os bávaros, excelentes bebedores de cerveja, começaram a consultar diariamente a tabela de câmbios, como base para os cálculos financeiros que lhes permitissem descobrir se, devido à baixa porventura sofrida pela coca, podiam beber em Salzburgo cinco, seis ou dez litros de cerveja pelo preço que lhes custaria um litro na Alemanha. Era o seu prazer predilecto. Para o satisfazerem vinham aos bandos, acompanhados das mulheres e dos filhos, de Freillassing e de Reichenhall, lugares próximos da fronteira, que atravessavam para se encharcarem de cerveja. Quando regressavam, já tarde, a estação apresentava o aspecto de um verdadeiro desmanchar de feira, em que havia bêbados que vociferavam, numa orgia sem fim de arrotos e vómitos. Um ou outro, que já se não podia ter de pé, precisava de ser conduzido em charola para a carruagem, antes que o comboio partisse para a Alemanha, levando aquela multidão que gritava e entoava hinos bávaros. Mas os bons bávaros ignoravam então que a hora da desforra também havia de soar para os austríacos. De facto, quando a coroa se estabilizou e o marco resvalou para o abismo de uma desvalorização que atingiu proporções astronômicas, a cena repetiu-se, mas, desta vez, no sentido inverso, pois então eram os austríacos que atravessavam a fronteira para se embriagarem, por pouco dinheiro, com cerveja alemã. Era aquilo a que se poderia chamar a guerra da cerveja, estoutra guerra que nasceu de duas crises monetárias e nunca se apagou da minha memória, porque, apesar de tudo quanto nela havia de grotesco e de singelo, ofereciam um quadro bem frisante dos paradoxos e absurdos daquela época.
Mas o mais interessante é que, apesar de toda a minha boa vontade, ainda hoje não consigo saber como nos foi possível arranjar diariamente na Áustria desse tempo os milhares e milhares de coroas necessárias à nossa modestíssima manutenção e, na Alemanha, os milhões e milhões de marcos. Todavia, o grande milagre operava-se, pois cada qual conseguia encontrar os maços de notas de cifras fabulosas. As pessoas adaptavam-se, viviam com a catástrofe. Qualquer estrangeiro que não tivesse sido testemunha directa desses acontecimentos poderia supor, e com razão, Que, nessa Áustria em que um ovo custava tanto como outrora um luxuoso automóvel, que mais tarde, na Alemanha, chegou até a atingir o inacreditável e inconcebível preço de quatro biliões de marcos, o que representava, em números redondos, o valor de todos os terrenos da zona urbana de Berlim, deveriam as donas de casa vaguear meio apatetadas pelas ruas da cidade; deveria pensar, também que as casas comerciais estariam completamente desertas, pois ninguém teria dinheiro para fazer compras, e, sobretudo, julgaria que os teatros e outros locais de diversão não teriam assistência. Mas a verdade é que sucedia precisamente o contrário daquilo que esse estrangeiro pudesse supor; o eterno desejo de subsistir estava mais fortemente enraizado no homem do que o fugaz e transitório apele do dinheiro. Sobre as ruínas da bancarrota, a vida prosseguia inexoravelmente a sua rota. Considerando o problema de uma maneira individual, havia, é certo, profundas modificações; os ricos viram-se, de súbito, na miséria, visto que as suas reservas bancárias ou os seus papéis de crédito perderam todo o valor; em seu lugar, porém, surgia a legião dos novos-ricos, a dos especuladores. Mas a roda da existência, indiferente a esses indivíduos que perdiam ou que ganhavam, mantinha-se indiferente na sua marcha: o padeiro continuava a fazer o pão, o sapateiro tratava do calçado, o escritor escrevia os livros, o camponês lavrava a terra, os comboios circulavam, o jornal aparecia todas as manhãs, como sempre, e, o que decerto ainda era mais estranho, os teatros e os cafés, enchiam-se completamente. Parecia que a imprevista certeza da falibilidade do dinheiro dera ao homem um sentido mais real das verdadeiras riquezas deste mundo: - o trabalho e o amor, a amizade, a cultura do espírito e a contemplação da Natureza. Era essa noção que o incitava, em plena tragédia, a viver mais intensa completamente do que antes dela. Os rapazes e as raparigas realizavam excursões às montanhas e regressavam bronzeados pelos raios solares, os bailes funcionavam até altas horas da noite e em toda a parte se abriam novas fábricas e casas de comércio. Eu próprio confesso que não me recordo de haver trabalhado tanto e vivido tão intensamente como durante esses anos de crise. Aquilo que cada qual amava tornou-se digno ainda de mais amor. Creio que jamais tivemos na Áustria tão grande fervor pela arte, pois a traição do dinheiro veio demonstrar-nos que só os valores absolutos e eternos do homem são perduráveis.
Nunca me esquecerei de um espectáculo de Ópera nesses dias de dolorosa penúria. Quem queria assistir a ele tinha de caminhar quase às apalpadelas pelas ruas da cidade, porque, devido à falta de carvão, reduzira-se a iluminação pública. Depois, puxava de um maço de notas e pagava por um lugar de galeria o que outrora teria sido suficiente para adquirir uma assinatura anual de um camarote de primeira ordem. Ia de sobretudo vestido para a sala de espectáculos, por não haver aquecimento, e encostava-se bem aos que se sentavam a seu lado para se aquecer.
Ah! Como era triste e desoladora essa sala, onde outrora refulgiam os uniformes e os luxuosos vestidos! Então assaltava-nos a dúvida acerca da possibilidade de, na semana seguinte, continuarem os espectáculos, o que era uma verdadeira incógnita, em vista da contínua desvalorização do dinheiro e das remessas de carvão que se esperavam e não chegavam nunca. Como era duplamente mísero o ambiente nessa casa onde brilhava dantes toda a deslumbrante pompa do Império! Os músicos pareciam toscos sunãmbulos nas suas velhas casacas já no fio, e, como nós, enfraquecidos e debilitados por todas as provações sofridas, davam a impressão de simples sombras num ambiente que já tinha muito de sepulcral. Mas eis que o regente levantava a batuta, o pano subia e o espectáculo começava, mais encantador do que nunca, pois cada artista fazia o dom supremo de todas as suas capacidades, pensando na possibilidade de que aquela fosse a última vez em que pisava o palco do tão venerado teatro. E nunca houve espectadores mais devotados, visto que também nós pressentíamos que talvez nunca mais nos seria dado ali voltar.
Foram semanas, meses e anos em que cada qual procurava viver o mais intensamente possível. Estávamos à beira do abismo, mas jamais um povo - pressentia-o, sentia-o eu também em mim próprio - se lançara mais decididamente na suprema batalha com tão grande vontade de viver e perdurar.
Contudo, eu não saberia explicar como foi possível àquela Áustria mutilada e agonizante sobreviver. Por um lado, a Baviera transformara-se numa república comunista de comissários do povo, enquanto que, por outro lado, a Hungria de Bela Kun se bokhevizara. Não posso compreender como a Revolução não estalou também na Áustria, tanto mais que não faltavam as matérias explosivas que a pudessem desencadear. Havia soldados famélicos e andrajosos que, tendo regressado das trincheiras, deambulavam então pelas ruas, olhando com mal contida raiva para o luxo insolente dos traficantes que tinham enriquecido com a guerra e a bancarrota. Nas casernas havia batalhões de rote ga-rde (1) armados e não existia certamente quem fosse capaz de lhes oferecer resistência. Nessa altura, duzentos homens decididos teriam podido conquistar Viena e a Áustria inteira, mas a verdade é que nunca se deu nada de extraordinário. Apenas uma vez, um pequeno grupo mais audacioso tentou uma pequena revolta, imediatamente dominada por meia dúzia de policias. O inconcebível tomou foros de realidade: eis um país que, subitamente, ficou sem as suas fontes vitais, as suas fábricas, minas e campos petrolíferos, um país mutilado cujo sistema monetário desabou estre pitosamente, que, apesar disso, resistiu ao formidável
(1) Guarda vermelha.
cataclismo que o abalou. O segredo desse milagre talvez resida em parte na própria fraqueza e no desespero das multidões, demasiado abatidas para terem ainda a coragem de lutar por qualquer coisa, mas talvez também se deva a uma característica bem intrínseca do austríaco - o seu espírito de transigência e de tolerância. Uma prova dessa tendência encontra-se no facto de, nessa hora de excepcional gravidade, os dois mais importantes partidos austríacos, o socialista-democrático e o socialista-cristão, esquecerem o abismo político que os dividia e constituírem um governo de concentração. Faziam-se mútuas concessões para evitar uma catástrofe, que teria abrangido toda a Europa. E a situação foi melhorando, lentamente, produzindo-se o fenômeno que julgávamos impossível - a Áustria, apesar de tremendamente mutilada, conseguiu sobreviver, de tal modo que, mais tarde, sentia-se até já disposta a defender a sua independência, quando Hitler surgiu para arrancar a pele a esse povo leal e bom, que sabia resistir sabiamente a todas as agruras e provações.
A verdade, porém, é que a revolução só não se manifestou na engrenagem política do país. A continuidade era mais aparente do que real. Verificou-se, assim, uma íntima e profunda quebra de todos os valores morais e espirituais nos primeiros anos do após-guerra. Havia qualquer coisa que a derrota dos nossos exércitos destruíra consigo - a crença na infalibilidade do princípio da autoridade, princípio que cuidadosamente se radicara no espírito da nossa juventude.
Mas poderiam os alemães ter continuado também a venerar o imperador, que jurara lutar até ao último suspiro do último soldado e do último cavalo" e que depois, pela calada da noite, fugira para o estrangeiro? Poderiam eles continuar a ter estima pelos chefes militares, pelos políticos ou pelos escritores que entoavam hinos à guerra e à vitória, e apenas trouxeram a miséria e a morte?
A verdadeira extensão do drama originado pela guerra apareceu somente quando a pólvora das trincheiras se apagou. Toda a estrutura moral do mundo oscilou, pois era compreensível que os povos duvidassem da intangibilidade de preceitos à sombra dos quais, durante quatro anos, se roubou e se matou impunemente, ainda que ao roubo e ao assassínio se chamasse apenas requisição e heroísmo. Como poderia o povo continuar a depositar confiança nos estadistas, se verificava a facilidade com que eles iludiam, sob qualquer pretexto, certos deveres que tinham contraído com os simples cidadãos? Esses mesmos burocratas ou políticos falhados, esses velhos que julgavam ter muita experiência da vida, não hesitaram em juntar à loucura da guerra o drama ainda mais monstruoso dessa paz caricata que foi a sua obra. E, contudo, todos sabem hoje - havia alguns poucos que não o ignoravam antes - que nessa ocasião surgira na História um momento único para a reconciliação geral da humanidade.
Wilson teve a clara visão dessa imensa possibilidade, e foi por isso que traçou o grande plano capaz de dar a verdadeira paz ao mundo; mas os velhos generais e os velhos políticos, em nome de mesquinhas velharias, tanto cortaram e limaram esse plano que, por fim, o reduziram a um inútil farrapo de papel. A grande promessa da paz universal, esse belo sonho de que aquela guerra seria a última da humanidade, o grande estimulante que dera vida aos soldados já desiludidos e exaustos, foi, também, cinicamente sacrificada em holocausto aos interesses dos fabricantes de canhões e das velhas raposas da política. O humanitarismo e a sabedoria de Wilson foram completamente torpedeados pelos representantes da antiga escola dos maquiavelismos diplomáticos. Os povos adquiriram a certeza de que tinham sido torpemente enganados. Foram defraudadas as mães que tinham perdido osfilhos na hecatombe da guerra; foram vilipendiados os soldados que tinham discernido o pó da trincheira; foram intrujados os que patriòticamente haviam colocado as economias nos empréstimos de guerra: forem burlados todos, todos os que acreditaram na palavra dos estadistas. E nós, os que sonháramos com o despontar de um mundo mais justo, víamos como as nossas esperanças morriam e como a loucura dos que lançavam no pano verde da jogatina política os nossos bens e as nossas vidas não tinha acabado. A aventura prosseguia, pouco importando que entre os que apostavam houvesse jogadores novos.
Que admirava, pois, nestas circunstâncias, que a nova geração olhasse com certo desdém para os velhos, que não só não tinham alcançado a vitória, mas até haviam perdido a paz, para esses que mediram e calcularam mal e tão lamentavelmente em tudo se enganaram? A falta de respeito dos novos para com os velhos surgiu, enfim, quase espontânea. Já não se acreditava nos pais, nos políticos e nos professores. Os decretos e as leis eram olhados com desconfiança e esse movimento culminou na brutal rotura da trajectória histórica da tradição. A juventude que nascera depois da guerra voltara as costas ao passado e, decidida a viver à sua maneira a sua própria vida, lançara-se no caminho do futuro. Desta forma começou a sentir sede de novas fórmulas. Criaram-se ineditismos que, naturalmente, atingiram, por vezes, estranhas excentricidades. Desprezavam-se todos os antigos padrões e valores; podia dizer-se que começava uma nova era.
E foi assim que, de súbito, os adolescentes puseram de parte o velho hábito de passear em companhia dos pai's e, iniciados já nos mistérios da vida sexual, se abalançavam a dar a volta ao país, a pé, ou a fazer excursões, como "Wandervògel" (1) até à Itália ou ao mar do Norte. Nas escolas instituíram-se conselhos de estudantes, segundo o figurino russo, os quais vigiavam os professores e instituíam os seus próprios planos de estudo, porque os alunos só queriam aprender aquilo
(1) Aves migradoras.
que lhes agradasse. Surgiu então, a oposição obstinada contra todos os valores outrora estabelecidas, pela única razão de que eram de outro tempo. Reagia-se contra tudo e até contra algumas das mais elementares leis da Natureza, como a que estabelece distinção visível entre os sexos; as raparigas cortavam o cabelo de tal modo que ficavam com uma cabeça que perdia todos os caracteres femininos, enquanto os rapazes, para adquirirem feminilidade, faziam a barba. A perversão sexual teve grande incremento, não porque resultasse de aberrações físicas, mas porque significava reacção contra o que estava estabelecido e era considerado normal.
O diletantismo revolucionário estava em moda em todas as manifestações da vida, e, naturalmente, abrangia também a arte. A nova geração de pintores afirmava que Rembrandt, Holbein e Velasquez tinham feito a sua época e lançava-se nas mais desenfreadas experiências do cubismo e do ultra-realismo. A tendência geral era para a complicação e para o disparate. Suprimia-se a harmonia na música e não se procurava que o retrato se parecesse com o retratado. Em relação à linguagem, optava-se simplesmente pela Confusão. Começou-se por suprimir o artigo e acabou-se por inverter as regras da gramática. Inaugurou-se a moda do estilo telegráfico e das orações ribombantes; decretou-se que a literatura que não fosse activista, isto é, que não se ligasse a um imediato interesse político, mal seria digna do cesto dos papéis velhos.
Os compositores musicais estabeleceram novos conceitos: a arquitectura tornou-se a antítese daquilo que fora até então; a dança viu recuar a valsa, derrotada pela rumba e pelo batuque: a moda instituía uma escala de intermináveis paradoxos em que a nudez ganhava terreno, visivelmente, e no palco representava-se Hamíet em casaca e ensaiavam-se dramas de nova contextura. Em todos os domínios da vida se patenteava uma irresistível correria para o imediatismo, para o nunca visto que eclipsasse o passado, que esmagasse a tradição. Qualquer pessoa triunfava tanto mais fàcilmente quanto mais nova e inexperiente fosse, pois a sua juventude era como que a melhor prova da sua incompatibilidade com os hábitos e os costumes das gerações anteriores. Era a juventude que, num impulso demoníaco, se lançava, vingadora, contra a ordem estabelecida. Mas o que sobretudo se tornava deveras caricato, nesse carnaval pavoroso, era, sem dúvida, a atitude inverosímil de certos intelectuais da velha geração que, com receio de serem considerados "anacrônicos", não hesitavam em aderir sem perda de tempo aos novos imperativos de uma cultura selvática, arrastando-se lamentavelmente atrás da desarvorada carripana da incongruência. Houve venerandos artistas de barba branca que não tiveram pejo em mutilar as suas antigas "naturezas mortas" com expressionismos cubistas, visto que os seus quadros, considerados demasiadamente "clássicos", não se vendiam, e os jovens directores das exposições - para -todos os carggos se procurava gente nova, o mais nova possível - mandavam irremediavelmente para o depósito das velharias tudo o que não fosse moderno. Havia escritores de impecável estilo que, de súbito, começaram a mutilar as suas orações, procurando dar idéia de que eram mais activistas do que os próprios activistas; certos responsáveis conselheiros prussianos começaram a preferir prelecções sobre as teorias marxistas e houve antigas bailarinas da corte que dançavam quase nuas e com trejeitos ridículos a Appessionata de Beethoven e a Verklàrt Natch (1) de Schônberg. Tudo o que outrora fora grande cedia insensatamente o passo a fúria da moda. Ser "novo" era a preocupação constante e cada qual procurava assombrar os seus semelhantes com um Modernismo que ofuscasse, não apenas o passado, mas que fosse, no presente, a suprema audácia da originalidade.
Como foi extravagante, desordenada e grotesca
(1) Noite transfigurada.
essa época, em que o naufrágio monetário fez desabar todos os outros valores, na Áustria e na Alemanha Foram anos em que a inquietação exacerbada e a ficção pontificaram sem limites. Dir-se-ia uma amálgama estranha de impaciência e de fanatismo, onde tudo o que era impreciso, vago e exótico encontrava ambiente e germinava - teosofia, ocultismo, espiritismo, sonambulismo, antroposofia, quiromância, ioguismo hindu e misticismo paracélsico. O que fosse paradoxal, excitasse e corrompesse encontrava aceitação. Era assim que tudo o que provocasse excitações anormais era recebido de braços abertos: as drogas estupefacientes tiveram enorme procura; o incesto e o parricídio subiram à cena dos teatros, e os irreconciliáveis extremos do comunismo e do fascismo surgiram como único dilema possível. Tudo o que fosse normal e equilibrado era banido.
Mas sejamos justos. Nem tudo o que então se observou foi absolutamente inútil e vão. Como todos os grandes solavancos morais da História, essa revolução, mesmo através da orgia das suas excentricidades, tinha a virtude de purificar a atmosfera demasiadamente entorpecida pelos miasmas da tradição. Apesar de todos os extremismos, lançaram-se contudo nessa época as bases de fórmulas que depois resistiram e perduraram. Estou até completamente convencido de que nós não tínhamos o direito de criticar a juventude dessa época, apesar de não admitirmos os seus paradoxos. Não devíamos tomar uma atitude altiva e desprezadora contra ela, pois a verdade é que a nova geração procurava de certo modo encaminhar-se, exageradamente, é certo, para os horizontes mais dilatados que nós próprios antevíramos, mas para os quais não soubéramos ou não pudéramos avançar. A sua instintiva convicção de que a realidade do após-guerra tinha necessariamente de ser diferente da anterior não era descabida.
Também nós, antes e depois da guerra, havíamos sentido a necessidade de uma nova ordem social, sonhando com um mundo melhor. E tínhamos dado, também, nós os que já não éramos novos, indiscutíveis provas da nossa incapacidade, quando, depois da guerra, não soubemos organizar uma força internacional que oferecesse resistência às nefastas pretensões dos políticos, novamente dispostos a submeterem o mundo aos seus desígnios. Recordo-me de que, logo no início da Conferência da Paz, Henri Barbusse, a quem a sua obra Lê Feu dera prestígio mundial, fundara o grupo Clarté, união de intelectuais de todos os países europeus. Era seu objectivo primordial trabalhar para a fraternidade universal, opondo-se decididamente a qualquer futura tentativa bélica. Eu fora incumbido por Barbusse de, com René Schickele, dirigir a secção alemã dessa organização, que era, certamente, uma das mais difíceis, visto que na Alemanha imperava a amarga decepção que nesse país causara o tratado de Versalhes. Não era fácil que o nosso propósito de concórdia internacional atraísse as atenções dos intelectuais alemães, enquanto a Renânia, o Sarre e a flecha de Mogúncia estivessem ocupadas por tropas estrangeiras. Todavia, creio que teríamos podido fazer alguma coisa semelhante ao que Galsworthy conseguiu mais tarde com o P. e, N. Clube, se Henri Barbusse não tivesse subitamente enveredado para outros objectivos. Foi o caso que, tendo feito uma viagem à Rússia, talvez influenciado pelo grande entusiasmo com que o povo russo o recebeu, adquirira a convicção de que o capitalismo e a pequena burguesia liberal-democrática seriam capazes de realizar a paz. Desde então, considerando que só o comunismo poderia efectivar a verdadeira união de todos os povos da terra, adivinhava-se que era seu desejo encaminhar o grupo para a doutrina da luta de classes, mas nós não estávamos dispostos a aceitar um revolucionarismo que inevitavelmente enfraqueceria as nossas fileiras. Foi outro sonho belo que se desfez. Mais uma vez, o demasiado apego às doutrinas e critérios pessoais sacrificou o ideal superior da liberdade e da paz.
Em face desta realidade, só havia uma perspectiva - retrair-me e dedicar-me em silêncio à minha própria obra. Tinha trinta e seis anos de idade e os expressionistas, talvez fosse melhor dizer os expressivistas, já me consideravam velho. Como não me curvava aos seus postulados, relegavam-me para os escombros da geração que eles consideravam morta. Por outro lado, como os livros que até então tinha escrito não me satisfaziam já inteiramente, não pensei em reeditar nenhuma daquelas obras que escrevi durante o tempo que se püderia considerar a minha época estática.
Tomei, pois, a decisão de recomeçar nova fase enquanto esperava que a onda subversedora dos "ismos" descesse de nível. Não foi tarefa difícil, porque, não tendo ambições pessoais, não me desagradava a solidão. Comecei então a grande série Os Construtores do Mundo por saber que era um trabalho que ocuparia a minha atenção durante anos, e escrevi também Amok e Carta de Uma Desconhecida. Durante muito tempo vivi em paz, completamente afastado do bulício político. Mas eu compreendia que, pouco a pouco, a calma fora penetrando nos espíritos e que chegara também a hora das grandes decisões. Encontrava-me na idade madura e já era hora de terminar a ilusão de que a minha vida poderia ser um eterno recomeçar. Já tinha passado a época dos simples projectos. Era preciso dar provas da minha capacidade criadora, -agir ou desaparecer para sempre.
Regresso ao Mundo
Os anos mais dolorosos do após-guerra, para a Áustria, foram 1919, 1920 e 1921. Passei-os como que confinado em Salzburgo, perdida a esperança de algum dia voltar a ver de novo o mundo. A extensão do desastre fora tão grande, a fúria contra tudo o que fosse germânico era tão evidente no estrangeiro, o desabar vertical da nossa moeda tinha sido tão catastrófico que me convenci de facto de que deveria ficar eternamente circunscrito ao horizonte limitado do meu país. A situação, contudo, melhorara bastante. Já se podia comer e sentia-se o ambiente geral, menos denso. A nação evitara o caos da desordem. A revolução não tinha estalado. Sentia-me despertar para a vida, perguntando a mim próprio se não teria chegado o momento de recomeçar um daqueles meus tão caros prazeres de outrora - viajar.
Não se podia pensar ainda em grandes deslocações, mas a Itália não estava longe. Não poderia aventurar-me a ir até lá É certo que, como austríaco, não Podia deixar de ser recebido como "inimigo irreconciliável" ainda que, de facto, eu nunca tivesse sentido inimizade. Por outro lado, suportaria eu malquerenças e animadversões e estaria realmente disposto a não falar aos amigos que porventura encontrasse, para não os colocar em situação difícil. Não obstante, tomei uma atitude decisiva e, em certa tarde, atravessei a fronteira.
Cheguei a Verona, já noite, e dirigi-me a um hotel, onde pedi um quarto e preenchi o boletim de entrada que o porteiro me entregou. Logo que lho devolvi, a sua admiração foi grande quando notou que eu era austríaco, perguntando-me imediatamente: "O senhor é austríaco?" Ante o seu espanto, tive o vago pressentimento do que iria dizer-me: "Está tudo ocupado". Mas não pelo contrário, a sua fisionomia iluminou-se e o bom homem exclamou "Ah, che piacere"
Esta foi a primeira saudação que recebi em terra italiana e com ela mais se arreigara em mim a íntima certeza, que de resto já tivera durante a guerra, de que a propaganda do ódio não envenenara profundamente o coração dos homens do povo, limitando-se a uma momentânea erupção epidérmica. Fui para o quarto e pouco depois o amável italiano veio bater-me à porta, perguntando-me se estava satisfeito e se precisava de alguma coisa. Teceu rasgados elogios à maneira como eu sabia exprimir-me na sua língua, e por fim despedimo-nos, com um sincero aperto de mão.
No dia seguinte, prosseguia na minha viagem até Milão, onde novamente vi a Catedral e passei pela Galleria. Sentia uma infinda sensação de bem-estar, voltando a ouvir a encantadora doçura da língua italiana e a passar pelas ruas onde outrora estivera e onde me sentia enlevar e reviver. Eis senão quando me encontrei em frente da redacção do Correre della Sera. De repente, lembrei-me que ali trabalhava o meu velho amigo G. A. Borgese, com quem passara inesquecíveis e amenas tardes de prazer espiritual, em Viena e Berlim, na companhia de Keyserling e Beno Geiger. Borgese, cuja influência entre a juventude era deveras apreciável, era um dos mais notáveis jornalistas italianos. Apesar de haver traduzido Werther e de fervoroso admirador da filosofia alemã, tomara Durante a guerra uma atitude decisiva contra a Alemanha e contra a Áustria, colaborando com Mussolini, de quem mais tarde se deveria separar, na campanha intervencionista que levou à entrada da Itália no conflito ao lado dos aliados. Nunca me esqueci da pena que então me causara o facto de, com essa atitude propusera o velho amigo tomar uma posição oposta à minha. Senti então desejos de ver o "inimigo", mas, como não adivinhava qual seria a atitude com que ele me receberia, subi e pedi que lhe entregassem o meu cartão de visita com o endereço do hotel onde me encontrava hospedado. Mas eis que, encontrando-me ainda na escadaria do edifício, notei que alguém vinha ao meu encontro apressadamente. Voltei-me: - diante de mim estava Borgese, em cuja luminosa fisionomia se espelhava agradável admiração. Cinco minutos depois, conversávamos já com a franqueza e a intimidade dos velhos tempos, e talvez ainda mais. A guerra também fora uma grande lição para Borgese, e a experiência que cada um de nós havia adquirido acabara por fortalecer a nossa mútua amizade.
E assim fui recebido em toda a parte. Recordo-me de que em Florença, o pintor Alberto Strmga, vendo-me, em plena rua, dirigiu-se para mim tão impetuosamente para me abraçar que minha mulher, que o não conhecia e nessa altura me acompanhava, teve realmente receio de que aquele estrangeiro barbudo quisesse agredir-me. Tínhamos regressado aos bons tempos de outrora. Podia mesmo dizer-se, até, que os homens eram agora mais amáveis. Enfim, podia respirar tranqüilamente, porque a tempestade passara - a guerra fora sepultada para sempre.
A verdade, porém, é que não tinha acabado. Tomando a nossa boa fé como indício da vontade geral, enganávamo-nos, simplesmente. Mas a nossa ingenuidade não deve ser para nós motivo de grande decepção. Pois, como nós também se enganaram muitos polidos, sociólogos' e banqueiros, tomando por sinônimo de paz e equilíbrio o que era apenas cansaço e miragem passageira. A tempestade não amainara. Sucedia, apenas, que mudara de centro de gravidade, passando do terreno nacional para o social. A prova disto tive-a eu depois, numa cena que observei e cujo verdadeiro significado só mais tarde deveria descobrir. Quanto à situação política italiana daquela época, nós apenas sabíamos na Áustria que a grande desilusão das massas tivera como conseqüência um súbito desabrochar de idéias revolucionárias, marcadamente socialistas e até bolchevistas, o que os dísticos de "Viva Lenine", escritos toscamente a giz ou a carvão a cada esquina bem patenteavam. Falava-se também vagamente de que um tal Mussolini, que fora um dos chefes socialistas, se afastara do partido durante a guerra e tinha organizado algures um grupo de tendências contrárias às de outrora. Eram, contudo, noticias às quais não se ligava grande importância. Que poderia significar um grupinho a mais ou a menos numa época em que fervilhavam por toda a parte os messianismos salvadores? Havia desses exaltados na região do Báltico, na Renânia e na Baviera; faziam-se demonstrações e surgiam conjuras, mas quase todas eram logo dominadas. Nas nossas condições, ninguém se preocupava demasiado com esse novo grupo, com os chamados "fascistas", que em vez da camisa vermelha das hostes de Garibaldi preferiam a preta. Estava-se muito longe de supor que chegassem um dia a ter qualquer importância na vida política da Europa. Mas a minha opinião acerca desse grupo havia de tomar nova forma quando cheguei a Veneza. Tinha partido de Milão e chegara à tarde à magnífica cidade dos canais. Não me foi então possível encontrar um carregador ou gôndola disponível para o transporte da minha bagagem. Os operários e os empregados dos caminhos de ferro giravam de um lado para o outro com as mãos nas algibeiras, numa atitude que denotava anormalidade. Como tinha duas malas bastante pesadas, olhei à minha volta em demanda de auxílio.
perguntando por fim a um sujeito de idade, que se encontrava próximo, se não seria possível arranjar-se um carregador que me quisesse ajudar. "- "Hum respondeu ele -, o senhor veio em má ocasião. Hoje há novamente greve geral. Agora sucede isto com freqüência".
Ignorava totalmente que os operários estivessem em greve e não procurei saber quais eram as causas desse movimento. Habituara-me a vê-las surgir com freqüência na Áustria, onde os socialistas democráticos abusavam dessa arma perigosa, que quase sempre redundava em seu próprio prejuízo. Preferi agarrar nas malas e arrastar-me, como me foi possível, com elas. Por fim vi um gondoleiro, que me fazia às escondidas sinais para que me aproximasse da sua gôndola, num dos canais laterais, o que fiz. Dentro de meia hora chegávamos ao hotel, não sem que antes tivesse havido populares que invectivavam com os punhos cerrados o barqueiro que furara a greve. Imediatamente me dirigi à Praça de S. Marcos, com o à-vontade e a sem-cerimônia de quem conhecia perfeitamente a cidade. Encontrei-a quase deserta. As casas comerciais tinham as portas fechadas e os cafés estavam vazios. Apenas sob as arcadas se viam alguns grupos de operários, que parecia encontrarem-se em atitude de quem esperava algum acontecimento extraordinário. Juntei-me a eles e esperei também. De facto, o acontecimento não tardou a revelar-se, na forma de uma coluna de jovens militarmente formados, que em marcha cerrada avançava para a praça, entoando uma canção que eu não conhecia e só mais tarde soube ser a Giovinezza. O seu ritmo era tão acelerado que antes mesmo que os operários, cujo número era muito maior, tivessem tido tempo de reagir, já eles se encontravam longe. Eram poucos, mas passaram como uma tromba, armados de cacetes e fizeram-no tão decidida e corajosamente que os outros só deram pela provocação quando já era demasiado tarde. Os operários juntaram-se então e levantaram ameaçadoramente os punhos, mas tudo foi em vão porque a brigada de assalto das hostes fascistas já estava longe.
Aquilo que nós vemos com os nossos próprios olhos tem por vezes grande poder revelador. Desde aquele dia, compreendi que o fascismo, que até então me parecera um movimento vulgar, tinha realmente importância, era superiormente dirigido e conseguia fanatizar jovens audaciosos e decididos. E imediatamente discordei dos meus velhos amigos que em Florença e em Rema encolhiam desdenhosamente os ombros quando se falava desse movimento, afirmando que os jovens que nele se encontravam não eram mais do que simples "mercenários", e zombando sarcàsticamente do seu "Fra Diavolo". Tive o cuidado de, por simples curiosidade, comprar alguns exemplares do Popolo d'Italia, e não me foi difícil notar no estilo contundente e cáustico de Mussolini aquela firme decisão que havia observado no audacioso grupo juvenil que irrompera na Praça de S. Marcos. Devo confessar, porém, que estava bem longe de prever nessa altura a amplitude que a batalha iria tomar um ano mais tarde. Mas, desde então, fiquei a saber que a nossa paz era bem frágil e que estávamos em vésperas de novas lutas.
Aquele foi o primeiro indício revelador de que, sob a aparente superfície tranqüila da Europa, se agitavam correntes extremamente perigosas. E o segundo indício não se fez esperar muito.
Novamente entusiasmado pelo meu velho gosto das viagens, decidira ir passar o Verão no Westerland, no litoral do mar do Norte. Nessa altura, ainda uma viagem à Alemanha tinha, para um austríaco, qualquer coisa de verdadeiramente edificante. O marco, ao contrário do que sucedera com a coroa, tinha conseguido manter-se numa posição bastante sólida, e dir-se-ia que o processo de reabilitação estava francamente em marcha. Os comboios funcionavam com normalidade, os hotéis apresentavam-se impecáveis e à direita e à esquerda da linha férrea erguiam-se novas construções. Tinha-se a impressão de que começava novamente a reinar aquela meticulosidade e ordem que antes da guerra tão criticada fora e que a catástrofe revelara ser magnífica. Não deixava contudo, de se respirar certo ambiente de expectativa, pois o povo alemão esperava com anssiedade os resultados das conferências de Génova e de Rapello, as primeiras em que a Alemanha fora admitida em situação de igualdade com as potências com as quais estivera em guerra. Julgava-se que o pesado fardo das reparações fosse de certo modo aliviado e tinha-se pelo menos a esperança de que se tentava fazer um gesto sincero de verdadeiro entendimento.
Uma das figuras de maior relevo nessas conferências de vital importância para a Europa foi, sem dúvida nenhuma, a do meu velho amigo Rathenau. Dotado de superior capacidade de organização, dera sobejas provas dela durante a guerra, pois, tendo reconhecido desde os primeiros momentos que o ponto mais vulnerável da Alemanha residia nas suas deficiências de matérias-primas - deficiências que, por fim, a derrubaram - se dedicou à difícil tarefa de ordenar e coordenar todos os capítulos desse sector da economia nacional. Nesse cargo revelara-se de uma previdência e perspicácia a toda a prova, de tal modo que, quando, depois da guerra, foi preciso encontrar um homem de envergadura para, como ministro dos Negócios Estrangeiros, enfrentar diplomaticamente os mais eminentes técnicos dos outros países, pensou-se imediatamente em Rathenau.
Confesso que não foi sem certa relutância que lhe telefonei quando cheguei a Berlim, por julgar não ter o direito de importunar um homem cujo tempo devia ser totalmente absorvido pela gigantesca missão que aceitara. "É verdade - respondeu-me Rathenau -, estou agora tão ocupado que nem sequer tenho tempo para dedicar aos amigos". Mas o seu grande poder de ordenação e conceito de economia teve logo ocasião de se manifestar. Disse-me que tinha de ir nesse dia a algumas embaixadas deixar o seu cartão de visita e, como de Grunewald necessitaria de meia hora para percorrer esse trajecto em automóvel, seria preferível que eu fosse ter com ele, pois poderíamos conversar no carro sobre esse tempo. Era um homem de tão extraordinária capacidade e tão invulgar memória que podia tratar no automóvel ou no comboio dos mais variados e complicados assuntos com o mesmo domínio, precisão e à-vontade com que o faria no seu gabinete.
Não quis perder a oportunidade de me encontrar com Rathenau e creio que a ele também lhe foi agradável conversar com alguém que se mantinha afastado dos bastidores da política e com quem há muito mantinha amigáveis relações. Conversámos animadamente e fiquei com a impressão de que Rathenau, de nenhum modo isento de vaidade, não aceitara contudo de bom grado e sem certa inquietação o posto de ministro dos Negócios Estrangeiros da Alemanha. A sua profunda perspicácia dizia-lhe que a Situação internacional ainda não permitia grandes esperanças e que, na melhor das hipóteses, apenas poderia obter um êxito muito relativo com algumas pequenas concessões, vendo que ainda era demasiado cedo para se pensar na possibilidade de uma paz verdadeira, de uma reconciliação generosa e franca. "Talvez isso seja possível dentro de dez anos" - disse-me Rathenau, ajuntando - "sobretudo se a situação for má para todos e não apenas para nós. De resto, é preciso dar tempo a que a velha geração se retire da diplomacia e os grandes generais se transformem em mudas estátuas de pedra".
Rathenau possuía a noção exacta das responsabilidades que contraía, as quais aumentavam de volume por ser judeu. Talvez não haja na História outro exemplo de um estadista tão sinceramente convencido do fatalismo da acção a que se devotara, pois não ignorava que não seria o seu mérito, mas sim o tempo, o factor que poderia resolver os grandes problemas pendentes. Sabia que se expunha a grandes perigos, desde o assassínio de Erzberger, que tomara sobre os seus ombros a pesada e inglória tarefa de tratar do armistício, à qual Ludendorff se esquivara com a fuga para o estrangeiro. Rathenau, pioneiro da concórdia, ficara também com um não sei quê de intuição que lhe fazia prever que o seu fim seria idêntico. Mas, como Vivia meio isolado e não tinha mulher nem filhos, julgou não dever manifestar demasiado receio. Confesso que nunca teria tido a coragem de lhe aconselhar prudência.
Está hoje demonstrado que a sua acção em Rapallo foi simplesmente admirável, dentro, é claro, das possibilidades do momento. Nessa conferência, revelou extraordinária capacidade e perspicácia política e nunca o seu prestígio teve ocasião de se manifestar tão plenamente. Mas nessa altura já tinham muita força na Alemanha os cenáculos que para engrossarem as suas fileiras sabiam ser preciso afirmar que o povo alemão não tinha sido vencido, proclamando que qualquer transigência seria uma traição à Pátria. Os conluios misteriosos entre essas forças subterrâneas, onde o homosexualismo tanto se estadeava, eram já bem mais perigosos do que supunham os dirigentes da jovem república, cujo conceito de liberdade era tão puritano que até tolerava a acção daqueles cujo propósito consistia em jugularem para sempre a liberdade da Alemanha.
Despedimo-nos em frente do Ministério, e eu estava então longe de supor que essa seria a última vez que o via. Depois, pelas fotografias, verifiquei que o atentado que o vitimou se deu numa rua por onde tínhamos passado e no mesmo automóvel. Foi por simples casualidade que não fui testemunha dessa tragédia de tão largo alcance histórico. Mas o nosso encontro fez-me sentir ainda mais vivamente a extensão de um drama, com o qual ia começar a desgraça da Alemanha e da Europa.
Já estava em Westerland. Os banhistas abandonavam-se, alegremente, aos prazeres da praia. Como outrora, quando a notícia do atentado que vitimara Francisco Fernando irrompeu, também uma banda de música deleitava os turistas quando o inesperado clamor dos ardinas se fez ouvir, mensageiros de iracunda tempestade: "O atentado contra Waher Rathenau " Foi o desmanchar da feira. O pânico apoderou-se de todos os espíritos e penetrou em todos os recantos do país. O marco começou a resvalar doidamente, atingindo quedas fantásticas, que criavam a situação paradoxal de existirem milhões que nada valiam. E foi então que começou na Alemanha a verdadeira orgia sem nexo da inflação monetária, em face da qual a nossa, apesar do descalabro que colocara a antiga coroa austríaca na relação de para 15. 000, era apenas uma simples brincadeira.
Descrever os pormenores desse cataclismo monetário exigiria um verdadeiro livro, e estou convencido de que os homens de hoje teriam a impressão de ele apenas relatar fábulas mirabolantes, de tal modo eram inacreditáveis as singularidades que então se observavam. Havia dias em que um jornal da manhã custava cinqüenta mil marcos e um da tarde já se pagava por cem mil. Quem tinha dinheiro estrangeiro para cambiar, procurava fazê-lo de hora a hora, porque sabia que as suas notas valiam mais às quatro horas do que às três e que às cinco valeriam ainda mais do que sessenta minutos antes. Certo dia mandei ao meu editor um manuscrito, no qual trabalhara durante um ano. Como medida de prudência, julguei que seria suficiente estabelecer no contrato que receberia um pagamento antecipado relativo a dez mil exemplares. O editor acedeu e quando, alguns dias depois, o cheque chegou às minhas mãos, já nem sequer era suficiente para cobrir as despesas que eu tivera uma semana antes com a franquia do manuscrito. Nesse tempo, quem viajava nos carros eléctricos pagava com notas de milhões de marcos e o dinheiro era transportado em carroças do Banco Imperial para os outros bancos. Não era então difícil encontrar nas valetas dos passeios notas de cem mil marcos que qualquer maltrapilho tivesse desdenhosamente lançado fora. Um atacador não custava apenas mais do que outrora um par de sapatos. o que antes teria sido suficiente para comprar uma luxuosa sapataria com dois mil pares de calçado. Uma simples portada numa janela valia mais do que outrora o prédio inteiro, e um livro custava mais do que uma tipografia com uma nota de cem dólares podiam-se comprar filas de prédios de seis andares na Kurfürstendamm uma fábrica custava dantes tanto como agora um simples carrinho de mão. Havia rapazes que tendo por casualidade encontrado uma caixa de sabão no porto conseguiam viver como nababos durante meses seguidos, pois para isso tinham o suficiente com a venda de um pouco de sabão todos os dias enquanto seus pais outrora ricos, deambulavam, reduzidos à mais extrema miséria. Havia moços de fretes que se alcandoravam a banqueiros, lançando-se em manobras financeiras de alto coturno.
Sobre todos esses aventureiros, destacava-se a figura gigantesca de Stinnes, o especulador número um. Aproveitando-se das circunstâncias excepcionais, comprava tudo o que lhe caía nas mãos
- minas de carvão e barcos, montanhas de acções, castelos e quintas e o que é mais inverosimil ainda e que comprava tudo por nada, pois isso era o que naquela altura significavam os pagamentos ou as dividas que se contraíam. Dentro de pouco, era dono da quarta parte da Alemanha, e o povo, que sempre teve um pendor de admiração para aqueles que se destacam pela audácia feliz, aclamou-o insensatamente, como se fosse um gênio.
Entretanto multidões de desempregados levantavam os punhos à passagem dos automóveis onde se réfastelavam os traficantes ou os estrangeiros que podiam adquirir ruas de prédios com a mesma facilidade com que qualquer compra uma caixa de fósforos. Vivia-se numa época em que uma pessoa que mal soubesse ler e escrever podia lançar-se decididamente na voragem da especulação, enganando e adquirindo a convicção de que era também enganado, pois adivinhava-se que esse regime de falcatrua universal fora sabiamente instituído por mão oculta para eximir o Estado do pagamento das suas dívidas e obrigações. Creio conhecer suficientemente a história do mundo, mas não me recordo de uma época em que a loucura tivesse atingido paroxismos de tal natureza - foi a derrocada total de todos os valores e não apenas dos valores materiais. Perdeu-se o respeito pela lei, pela tradição e até pela moral. Berlim transformou-se de súbito na Babel do mundo, numa feira imensa onde os bars e as tabernas surgiam como cogumelos. O que se dera na Áustria fora apenas um pálido reflexo do que sucedera na Alemanha, pois os alemães puseram ao serviço da perversão tudo quanto tinham de impetuoso e de sistemático. Pela Kurfürstendamm passeavam descaradamente rapazinhos efeminados e nem todos eram decerto profissionais do vicio; a ânsia de ganhar dinheiro endoidecia os próprios rapazes das escolas e na penumbra de certos bars chegaram-se a ver homens de Estado e altos banqueiros fazendo lânguidamente a corte a marinheiros embriagados. Creio que nem mesmo na Roma de Suetónio jamais houvera bacanais que se pudessem comparar aos bailes híbridos de Berlim, onde centenas de homens vestidos de mulher e de mulheres vestidas de homem dançavam impunemente, sob o olhar condescendente da polícia. O desabar vertical de todos os valores morais fez-se precisamente sentir com mais intensidade nas esferas sociais da burguesia, onde até então se havia observado o mais meticuloso rigorismo. As raparigas ufanavam-se de ostentar a sua perversidade, e a virgindade era quase uma vergonha aos dezasseis anos, mesmo para uma aluna de qualquer escola berlinense. Cada qual procurava viver a sua própria aventura, e quanto mais estranha e misteriosa esta fosse, tanto melhor seria. Todavia, adivinhava-se que esta fúria de erotismo demoníaco era puramente artificial. Pressentia-se que o cataclismo moral que a inflação trouxera à Alemanha fora apenas uma febre que contagiara a maior parte, mais por espírito de imitação do que por outras razões. Compreendia-se que, bem no fundo, as raparigas filhas de boas famílias teriam preferido as suas belas cabeleiras de outrora aos penteados masculinos que as substituíram, e decerto gostariam muito mais dos bons pastéis de maçã cobertos de creme do que de copos de aguardente. O povo tinha repugnância por esse legado de bancarrota, por essa febre dilacerante que o torturava diariamente. Adivinhava-se que o país, cansado da guerra, apenas aspirava à paz, à calma, à tranqüilidade. Se a nação sentia simpatia pela república não era porque o novo regime procurasse de qualquer modo reagir contra a libertinagem, mas, pelo contrário, por se manifestar demasiado frouxo e condescendente.
Quem teve ocasião de viver essa época de loucura e de insensatez, indignado e com o coração trasbordando de pena, certamente pressentia que aquela fúria daria lugar a uma cruel e inopinada reacção. Na verdade, aqueles que haviam lançado o país em tal vertigem riam cinicamente, e de relógio em punho esperavam com ânsia pela sua hora, monologando: "Quanto pior, melhor". Foi à volta de Ludendorff, mais do que à volta de Hitler, naquela altura quase um ilustre desconhecido, que começou de súbito a cristalizar a idéia da contra-revolução. Lenta mas seguramente, os oficiais que haviam sido espalhados começaram a forjar organizações secretas, e os pequenos burgueses, que haviam assistido ao volatilizar das suas economias, começaram a despertar, pondo-se incondi cionalmente ao lado de quem lhes desse esperanças de melhores dias.
Nada foi mais perigoso para a jovem república alemã do que aquele seu idealismo, que queria dar ao Povo e até aos seus inimigos liberdade plena, pois a verdade é que os alemães, habituados de longa data à disciplina, não só não sabiam viver com essa liberdade, mas até já olhavam como que com certa impaciência para aqueles que lha viriam arrebatar.
Quando em 1924 soou a hora do fim da inflação na Alemanha poderia supor-se que se tratava de um acontecimento de envergadura histórica. Desde que o velho marco, inchado artificialmente até adquirir proporções de bilião, desceu subitamente até voltar a ser uma simples unidade, tinha-se encontrado de novo um ponto de referência. A maré alta do lodo baixou imediatamente de nível, os bars e as tabernas começaram a fraquejar surgiram condições econômicas de certa estabilidade que permitia a cada qual fazer o balanço do seu deve e haver. E, naturalmente, a maioria, a gigantesca maioria tinha perdido. É deveras sintomático que as responsabilidades do desastre não fossem imputadas aos que haviam levado o país à guerra, mas tão-somente àqueles que, com verdadeiro espírito de sacrifício, tinham procurado remediar os efeitos do grande drama e restabelecer o equilíbrio perdido. Não se deve nunca esquecer que a inflação foi o fenômeno que mais amargura e desespero lançou no coração do povo alemão e também o que mais favoreceu o desencadeamento do nazismo. A guerra, por muito monstruosa que tivesse sido, tinha também dado grandes horas de exaltação, quando os clarins e os tambores lançavam acordes vitoriosos. Como país fundamentalmente militarista, a Alemanha sentia prazer até nas suas mais passageiras vitórias bélicas, ao passo que da derrocada financeira apenas ficara a certeza de uma recordação de desespero, mágoa e vergonha. A nova geração nunca pôde perdoar à república essa odisséia dolorosa, de tal modo que mais tarde preferiu lançar-se novamente nos braços dos seus algozes.
Mas, naquele ano de 1924, tudo parecia indicar que a tormenta havia passado. A confiança renascia e cada qual podia olhar para o futuro com certa tranqüilidade. E nós saudávamos com entusiasmo esses prelúdios que pareciam indicar o breve raiar de uma aurora de paz. Sim -acreditámos novamente'-ainda, pobres lunáticos! -que o espectro da guerra tinha desaparecido para sempre da face do mundo. Foi uma ilusão, é certo, mas foi contudo uma ilusão que nos ofereceu o inestimável presente de nos permitir dez anos de actividade, de esperança e até mesmo de certa vida sem cuidados.
Analisados retrospectivamente aqueles dez anos incompletos que medearam de 1924 até 1933, isto é, do fim da inflação do marco até que Hitler se instalou no poder, representam certamente, apesar de tudo, um pequeno interregno na série de catástrofes de que a nossa geração teve de ser testemunha e vítima desde 1914. Houve, é certo, nesse lapso de tempo, vários motivos de inquietação e alguns sobressaltos, particularmente o da crise econômica de 1929, mas existia a impressão de que a paz estava definitivamente consolidada na Europa, e isso era já uma grande coisa, na realidade. Depois, a Alemanha havia sido formalmente admitida na Sociedade das Nações. Facilitaram-se-lhe empréstimos para ajudar a sua reconstrução econômica, mas que de facto se empregaram no seu rearmamento secreto. Por outro lado, a Inglaterra desarmara, e Mussolini, na Itália, tomava a defesa da Áustria. Tudo parecia indicar que o mundo se dedicava à tarefa da reconstrução. As grandes cidades, tanto as dos vencidos como as dos vencedores - Paris, Viena, Berlim, Nova Iorque, Roma-tornaram-se mais belas, e" - enquanto o avião encurtava as distâncias, diminuíam as exigências em matéria de passaportes. A moeda adquirira estabilidade e já não eram precisas dores de cabeça para cada qual saber quanto possuía, quanto ganhava e quanto podia gastar. Enfim, havia já disposição para o trabalho, para a vida conforme o temperamento de cada um e para as superiores actividades do espírito. E até se podia novamente sonhar com a doce esperança de uma Europa enfim reconciliada e unida. Podia depreender-se de esses dez anos - um momento na história do mundo - que a nossa geração, que tão martirizada fora, regressava outra vez à vida normal de outrora.
No que me diz pessoalmente respeito, o que de mais notável esses anos me trouxeram foi a grande novidade de verificar que à minha porta veio bater um visitante inesperado, que entrou e condescendentemente se instalou em minha casa: -a celebridade. Compreende-se que tenha certa relutância em me referir ao êxito que os meus livros obtiveram, e, se não me encontrasse numa situação anormal, ter-me-ia dispensado de fazer a mais leve referência a esse facto, pois poderá talvez ser interpretada como indício de vaidade ou de simples bazófia. Mas creio que me assiste o direito e até mesmo o dever de não deixar passar em silêncio essa página da história da minha vida, porquanto o triunfo que então me sorriu entrou no ocaso já há sete anos, logo que Hitler ascendeu ao poder.
Dos milhares, poderia até dizer milhões, de exemplares dos livros que escrevi, e que outrora tinham lugar reservado nas livrarias e em infinidade de lares da Alemanha, não se encontra hoje um único, Quem quer que por casualidade ainda possua algum tem-no prudentemente escondido. Os que estavam nas bibliotecas públicas foram encerrados nos chamados Giftschrank (1), onde apenas os podem consultar "cientificamente" os estudiosos que apresentam licença especial das autoridades e que na verdade quase sempre os procuram com o fim de encontrar neles elementos para as suas difamações. E, quanto aos antigos leitores e amigos,
(1) Armários de veneno.
há já muito tempo que nenhum tem coragem de escrever num simples sobrescrito o nome do desterrado que agora sou. Mas isso ainda não é tudo, pois até na Itália e na França, e nos outros países que presentemente se encontram amordaçados, nações onde os meus livros traduzidos alcançaram grande êxito, as ordens de Hitler fizeram-nos totalmente desaparecer. Como escritor, eu não sou hoje mais do que uma sombra ainda viva que assiste ao seu próprio enterro, como disse o nosso Grillparzer. Tudo ou quase tudo o que levei cerca de quarenta anos a editar, num plano de actividade intelectual vivida em muitas nações, foi num momento dissipado por esse déspota.
Se ouso, pois, falar da minha «celebridade», menciono apenas um bem que foi mas já não é meu, uma riqueza perdida, como tantas outras-lar, pátria, liberdade e independência. Sobretudo, friso-a também por esta razão - apontando as alturas a que ela uma vez ascendeu, torno mais evidente a verticalidade do seu desabar, chamando a atenção para a sanha furiosa que se abateu sobre o património intelectual da nossa geração, monstruosidade sem par nas páginas da História. Jamais poderia ter previsto uma crueldade tão grande, que não me feriu apenas a mim, mas a muitos outros, de resto tão inocentes como eu.
Posso dizer que o meu renome intelectual não irrompeu subitamente. Fez-se pouco a pouco, numa lenta ascensão que perdurou até ao momento em que Hitler decidiu destruí-lo com os seus desatinos.
O primeiro passo foi dado precisamente pelo livro que publiquei logo a seguir a Jeremias, a trilogia Três Mestres, primeiro volume da série Os Construtores do Mundo. Nessa altura já os chamados expressionistas e activistas estavam em franco declínio e, assim, novamente se encontrava desimpedido para os pacientes e Ponderados o caminho que conduzia ao povo. As minhas novelas Amok e Carta de Uma Desconhecida adquiriram um êxito que outrora apenas havia sido reservado aos grandes romances. O seu sucesso foi de tal natureza que inspiraram dramas e filmes. Noutro meu pequeno trabalho-Sternstunden der Menschheit (1) - chegou a ser lido nas escolas e em pouco tempo as suas edições na Inszlbücherei atingiram a cifra de duzentos e cinqüenta mil exemplares. Em poucos anos vi formar-se à minha volta um ambiente que, para mim, constitui a mais agradável conquista de um escritor:-uma enorme massa de admiradores que me estimava e esperava com ansiedade os meus novos livros para os adquirir, distinguindo-me com a sua confiança, que eu tinha o dever de respeitar. Eram amigos cujo número aumentava sem cessar, de tal modo que, quando um novo livro meu aparecia nas Livrarias, logo no primeiro dia se vendiam na Alemanha vinte mil exemplares, e isto antes mesmo de que a Imprensa começasse a fazer-lhe referências. Cheguei até a procurar retrair-me, mas a verdade é que o renome, o prestígio e o triunfo não estavam dispostos a abandonar-me.
Recordo-me de que, tendo certo dia enviado ao meu editor o manuscrito da biografia de Fouché, que havia escrito pensando apenas numa satisfação pessoal, recebi imediatamente a notícia de que estava disposto a publicá-lo numa edição de dez mil exemplares. Respondi-lhe que tudo aconselhava que a edição não fosse tão grande, atendendo a que Fouché não era uma personagem muito simpática; por outro lado, objectava ainda não ser fácil que o livro chamasse a atenção de grande público, por não ter enredos femininos. Seria preferível, por isso, que se fizesse apenas uma edição de cinco mil exemplares. Porém, um ano depois, já estavam vendidos na Alemanha cerca de cinqüenta mil exemplares desse livro, nessa mesma Alemanha onde hoje é proibido ler uma única linha escrita por mim.
Outro episódio que caracteriza bem a quase endêmica e doentia falta de confiança que tinha nos
(1) Os Grandes Momentos da Humanidade.
meus próprios trabalhos é o do Vo/pone. Tinha decidido escrevê-lo em verso. Estava então em Marselha e em pouco tmpo tracei um breve esquema da obra em prosa. Deu-se, porém, a circunstância de que precisamente naquele momento o director do teatro de Dresde, instituição à qual me sentia moralmente grato pela primeira representa ção da minha estreia como autor dramático-quero referir-me a quem me escrevia, perguntando-me quais eram os meus novos planos. Em resposta, enviei-lhe o rascunho que fizera, mas mencionando que se tratava tão-somente de um pequeno resumo, base para a obra que planeara em verso. Pouco depois, recebi um telegrama de Dresde, onde se me pedia insistentemente que não modificasse nem uma única palavra do trabalho enviado. De facto, Volpcne subiu à cena em vários países tal qual se encontrava e em Nova Iorque chegou a ser representado no Teatro Guild, com Alfred Lunt. Foi realmente uma época de triunfo, em que tive ocasião de observar que o círculo dos meus admiradores aumentava constantemente na Alemanha.
Tendo de longa data adquirido o hábito de investigar quais as razões que operavam como principais factores determinantes da muita ou da pouca influência que certos livros ou personagens exerceram nas suas épocas, não podia inibir-me de, nas minhas horas de meditação, perguntar a mim próprio por que razão os meus trabalhos adquiriam tão evidente e inesperado êxito. E pensei que ela residia certamente numa das características mais inconfundíveis da minha maneira de ser: - leitor demasiado impaciente e cioso de seu tempo. Tenho horror a todos os excessos, aos adjectivos grandiloquentes, a tudo o que é impreciso, vago e superficial. Não há nada mais desagradável Para mim do que um romance ou um estudo em que inpere a fraseologia com a minudência impertinente, por um livro que desperte continuamente a atenção do leitor, e que o mantenha em tensão desde a primeira até à última página, é capaz de me interessar vivamente.
Ora sucede que a grande maioria dos livros que chegam às minhas mãos abundam em descrições demasiado longas, estão cheios de diálogos intermináveis ou de figuras retóricas que os tornam decididamente pesados. E isto sucede até com as obras dos grandes clássicos, onde os trechos esculpidos à força me desagradam sobremaneira. Muitas vezes cheguei a propor a alguns livreiros o ousado plano de se fazer uma edição que abrangesse todos os autores consagrados, desde Homero a Balzac, a Dostoiewski e ao Zauberberg, mas em que se suprimissem as partes demas ado monótonas e superficiais, pois tenho a firme convicção de que essas obras, que sem dúvida serão capazes de resistir à acção corrosiva da tempo, poderiam desempenhar contudo uma acção muito mais profunda na nossa época.
Esta minha natural tendência contra tudo o que seja fastidioso, e que se manifestava na apreciação das obras dos outros, não podia também deixar de me influenciar a mim próprio, quando se tratava dos meus livros. Devo dizer que redijo com relativa facilidade. e o meu princípio consiste em procurar fazê-lo com naturalidade. Quando desejo escrever um livro, agarro na caneta e dou livre curso às minhas idéias. Tratando-se de uma biografia o caso é um pouco diferente, porque é forçoso consultar documentos que forneçam dados e pontos de referência, mas esse trabalho de investigação não se torna patente. Para a realização da minha obra Maria Antonieta, consultei em boa verdade uma enorme série de elementos sobre os gastos particulares da rainha, tomei notas dos jornais e outros escritos da época e observei detidamente o seu processo. porém, quando o livro saiu a público, não havia em nenhuma das suas páginas indicios desse imenso labor, pois, desde que o primeiro esquema de uma obra minha passa a consubstanciar-se e a adquirir a forma em que pouco mais ou menos deve ficar, é então quando começa para mim o árduo e constante trabalho de limar e simplificar. Apesar de suprimir todas as superfluidades no meu ingente propósito de ser claro, concreto e preciso, nem sempre fico absolutamente satisfeito com os resultados obtidos. Há muitos escritores que não perdem nunca a oportunidade de deixar transparecer, pela minudência e pelo arabesco, como são vastos os seus conhecimentos, e, por vezes, não têm até pejo em os exagerar. Quanto a mim, sempre optei por que o meu saber fosse superior ao que se poderia depreender da leitura das minhes obras.
Mas o lento processo de clarificação não termina apenas com o manuscrito, pois volta a repetir-se ainda, uma, duas e três vezes, na revisão das provas tipográficas. A caça às últimas palavras ou orações inúteis transforma-se por fim num verdadeiro prazer. Confesso que é o que mais me agrada. Vem a propósito citar o que certo dia sucedeu em minha casa. Tinha posto fim ao meu trabalho quotidiano com uma desusada alegria, bem gravada no rosto. Minha mulher, que notara o facto, ficou surpreendida e disse-me que eu tinha decerto alcançado algum êxito bem extraordinário. "Alcancei, sim. Consegui eliminar uma oração inteira e, desse modo, obter uma transição menos lenta" - respondi, satisfeito. O fascinante dinamismo dos meus livros, que por vezes tem sido agradavelmente posto em foco, não é, de facto, fruto de uma predisposição especial ou de uma excitação momentânea, mas, pelo contrário, obedece apenas a um bem marcado desejo de eliminação sistemática de todas as passagens inúteis e de todos os arabescos desnecessários. Há uma virtude que me encanta sobremaneira - é a de saber renunciar conscientemente. E é assim que de nenhum modo lamento quando, de mil linguados de papel, lanço oitocentos para o cesto dos papéis velhos, ficando apenas com os duzentos que encerram realmente valor positivo.
A popularidade alcançada pelas minhas obras deve-se em grande parte, estou convencido disso, ao meu inabalável método de me cingr apenas ao substancial e de procurar acima de tudo a clareza e ainda, também, abordar problemas de interesse profundamente humano. Outra feliz circunstância que muito contribuiu para esse êxito foi, sem dúvida, o facto de que as minhas obras suscitaram a atenção de editores estrangeiros - franceses, búlgaros, armênios, portugueses, argentinos, noruegueses, letões e chineses. De tal modo as traduções se multiplicaram que tive de comprar uma enorme estante para guardar alguns exemplares de cada um deles e certo dia tive a surpresa de ler no boletim da Coopération Intellectuelle da Sociedade das Nações que eu era nesse momento o escritor com mais livros traduzidos. Desta vez, como sempre, de acordo com o meu hábito de duvidar do meu próprio valor, achei que havia exagero na notícia. Noutra ocasião, recebi uma carta do meu editor russo, o qual me dizia que se encontrava disposto a editar uma colectânea dos meus livros e me perguntava se aceitaria que Máximo Gorki se encarregasse de escrever o prefácio. Foi uma revelação! Quando era estudante lera em segredo as novelas de Gorki e havia muito tempo que o admirava sinceramente. Estava, porém, muito longe de supor que ele tivesse jamais ouvido falar no meu nome ou que tivesse lido qualquer trabalho meu e certamente que nem sequer pensara na hipótese de que tão insigne mestre se dignasse escrever um prefácio para os meus livros.
Depois disso, recebi em Salzburgo a surpresa da agradável visita de um editor americano. Era Benjamim Huebsch, da Viking Press, que, munido de uma carta de recomendação-'como se isso fosse necessário - vinha apresentar a proposta de adquirir os direitos de autor de todos os meus livros para os editar imediatamente. Encontrei nele o meu melhor e mais dedicado amigo. Quando o pontapé da bota hitleriana deitou por terra tudo o que era meu, desterrando-me da minha antiga e verdadeira pátria, da alemã, da européia, foi Huebsch quem me proporcionou o último refúgio onde me pude acolher.
Um triunfo em tão larga escala seria decerto susceptível de perturbar a existência de quem antes havia acreditado mais na sua sinceridade do que na real capacidade do seu talento, pois é óbvio que a demasiada notoriedade opera sempre como factor de desequilíbrio na vida normal do indivíduo. O nome é, para o homem comum, apenas um dístico sem outra importância que não seja a de ser uma espécie de marca superficial que o distingue de todos os outros homens. A sua influência é nula na maneira de ser de cada qual. Mas o caso muda de figura quando esse nome sai do anonimato. A celebridade dá-lhe novas dimensões, projecta-o para além do indivíduo, transforma-se numa força, numa espécie de entidade à parte, num capital que começa por influenciar e termina por tiranizar o indivíduo. Há até certos felizardos que acreditam piamente nos seus dotes pessoais e conseguem realmente identificar-se com a auréola do seu renome. Um simples título, uma condecoração ou certa publicidade feita à volta do seu nome, levam-nos a julgarem-se de facto sumidades. Então incham e adquirem a certeza de que são personalidades de extraordinário valor político, artístico ou social. Mas os que, com referência ao seu próprio valor, são modestos e severos por temperamento, compreendem que não devem modificar a sua atitude, mesmo quando a notoriedade lhes vem inesperadamente bater à porta.
Não quero de nenhum modo insinuar que tivesse sido indiferente à auréola que de súbito me envolveu, Pois deu-me, de facto, muita satisfação, mas aceitava-a e limitava-a apenas ao possível valor real da minha actividade literária, na qual o meu nome não era mais do que uma simples sombra. Era verdadeiramente agradável estar numa livraria, na Alemanha, e ver entrar um pequeno estudante que, sem me conhecer, pedia um exemplar do meu livro Os Grandes Momentos da Humanidade, pagando-o com os magros vinténs das suas economias, ou reconhecer que os empregados das carruagens-camas dos comboios em que eu viajava me tratavam com mais deferência assim que sabiam quem eu era, e que um guarda-fiscal na fronteira italiana, reconhecido pelo agradável prazer que um dos meus livros lhe proporcionara, tivesse a gentileza de dispensar a vistoria da minha bagagem.
Por outro lado, a certeza do dinamismo social que o seu trabalho origina é também outro motivo de prazer para o escritor. Não me esquecerei nunca da agradável surpresa que recebi certa vez em Leipzig. Chegara por pura casualidade a essa cidade no dia em que era posto à venda um dos meus livros. A azáfama era imensa, na editorial, e não pude deixar de considerar como era grande o movimento que surgira como conseqüência daqueles trezentos linguados de papel que escrevera durante três ou quatro meses. Havia operários que empacotavam exemplares da obra em grandes caixotes, que os moços logo transportavam para as camionetas e estas por sua vez conduziam à estação do caminho de ferro, de onde os comboios os levavam em todas as direcções. Na tipografia havia dezenas de jovens operárias que iam empilhando as folhas impressas que saíam das máquinas e os tipógrafos, encadernadores e empregados das agências de publicações trabalhavam desde manhã até à noite. Imaginando que esses livros fossem paralelepípedos e se alinhassem, poderiam sem dúvida revestir o pavimento de uma longa artéria citadina.
Devo confessar que também nunca fui avesso às comodidades da vida material, mas, quando comecei a escrever, nunca julguei que me fosse possível organizar a minha existência baseada nos meus trabalhos intelectuais. Mas eis que com o renome feito à minha volta os proventos que auferia eram cada vez maiores e chegaram a dar-me a impressão - quem poderia prever os dramas do futuro - de que me encontrava ao abrigo de preocupações. Desde então, pude dar margem à velha paixão que desde os tempos da juventude me seduzia: - os autógrafos. Muitas das mais belas e preciosas relíquias dessa natureza encontraram em mim um coleccionador dedicadíssimo. E foi assim que, com o produto das minhas obras, que, em relação aos valores eternos do espírito, são certamente bem efêmeras, consegui adquirir manuscritos de criações imperecíveis, originais de Mozart, Bach, Beethoven, Goeth e Balzac. Afirmar, pois, que o inesperado sucesso atingido pelos meus livros me deixou indiferente ou que não me deu mesmo viva satisfação, seria simplesmente improcedente.
No entanto, posso dizer que esta satisfação se limitava apenas à minha acivilidade como escritor e que me desagradava sobremaneira desde que o renome incidia sobre o homem, pois desde criança tive sempre grande apego à Liberdade e independência individuais. Ora, reconheço que a celebridade feita à volta de um nome limite em grande parte esses dois grandes e supremos bens. Depois, havia ainda a considerar o possível perigo de aquilo que fora para mim um prazer puramente espiritual se vir a transformar numa profissão ou até a assumir foros de comércio. O correio começou a trazer-me diariamente montes de cartas com convites, pedidos ou perguntas às quais estava obrigado a responder. Sempre que me ausentava um mês, era certo que, depois, no regresso, devia perder dois ou três dias para responder à correspondência que, entretanto, se havia acumulado. Era forçado a pôr novamente a engrenagem em movimento. A enorme procura que os meus livros tinham lançava-me, como que insensível mas forçadamente, numa espécie de actividade comercial que, para se manter e desenvolver com normalidade, exigia constância, previsão, pontualidade e destreza, virtudes muito dignas, mas cujo exercício não só não estava indicado para um homem do meu temperamento, como até ameaçava perturbar perigosamente o livre desenvolvimento dos meus devaneios e criações intelectuais. por isso, quanto mais a minha presença era solicitada em festas ou em conferências, tanto mais sentia o desejo de me retrair. Confesso que nunca consegui dominar este receio quase mórbido de identificar a minha pessoa física com o meu nome. Ainda hoje, quando entro numa sala de espectáculos, não posso fugir à instintiva tentação de me sentar nos lugares das últimas filas, onde a minha presença seja menos notada. Desagrada-me profundamente o exibicionismo, sob qualquer forma que se manifeste, e a vida anônima constitui uma imprescindível necessidade para o meu espírito.
Mesmo quando rapaz novo, já então não podia compreender a razão de certos hábitos de alguns escritores e artistas da passada geração, os quais, como, por exemplo, os meus venerandos amigos Arthur Schnitzler e Hermann Bhar, chamavam imediatamente a atenção sobre as suas pessoas, devido à sua indumentária extravagante ou, então, às suas grandes barbas e abundantes cabeleiras.
Estou firmemente convencido de que todo aquele que procura fazer-se reconhecer pelas aparências exteriores acaba por ser apenas um reflexo da sua verdadeira natureza, uma espécie de Spiegelmensch (1), segundo a expressão de Werfel. Forçando os hábitos e as atitudes, e estudando as maneiras, atenta contra a espontaneidade do seu verdadeiro "eu" intrínseco, atrofiando quase sempre a sua franqueza, a sua liberdade, a sua maneira de ser particular. Se hoje me fosse possível recomeçar novamente a mmha vida, confesso que deveria gozar dos dois grandes prazeres que são a celebridade e o anon'mato do ilustre desconhecido. arranjando um pseudônimo, um nome literário para a minha personalidade de escritor. Se a vida é tão encantadora e tão surpreendente, como seria belo se se pudesse ter duas vidas
(1) Homem-espelho.
Ocaso
Ê com saudade que me recordo dos anos de relativa tranqüilidade que, de 1924 a 1933, se viveram na Europa, até ao momento em que determinado indivíduo apareceu na cena do mundo, para o perturbar.
Para aqueles que tanto haviam sofrido com as agruras da guerra, essa tranqüilidade era como que um agradável e certamente inesperado presente. Tinha a impressão de que se podia de novo usufruir a doce liberdade, a felicidade e o abandono aos prazeres superiores da vida espiritual, que a guerra e o após-guerra nos haviam arrebatado. Trabalhava-se mais, mas cada qual sentia-se mais à vontade - viajava-se e dir-se-ia que se descobria novamente a Europa e o mundo. De facto, nunca se viajou tanto como nessa época. Seria porque dos homens se tinha apossado o indomável desejo de reagir contra o confinamento em que Haviam estado encerrados. ou porque se tinha um vago pressentimento de que era preciso gozar da relativa liberdade que se desfrutava, antes que ela desaparecesse de novo?
Também viajei então muito, mas essas viagens eram bem diferentes das que realizara durante a juventude.
As circunstâncias haviam mudado - já não era o desconhecido de outrora e a qualquer parte onde chegasse encontrava amigos, livreiros e um ambiente de admiradores. Deixei de ser um viajante anônimo e curioso para me transformar no escritor. Esse facto proporcionava-me um horizonte mais vasto que me permitia dedicar-me com mais possibilidades de êxito ao ideal constante e permanente de toda a minha vida - a fraternidade espiritual da velha Europa. Foi assim que proferi conferências na Suíça e na Holanda no Palais dês Arts, em Bruxelas, onde falei em francês em Florença, na histórica Sala del Dugentio, onde Miguel Ângelo e Leonardo estiveram, e, por fim, na América, falei em inglês numa lecture tour (1), que foi do Atlântico até ao Pacífico. Não eram, de facto, as viagens de outrora. Punham-me imediatamente em fraternal contacto com os círculos mais notáveis dos respectivos países, sem que tivesse necessidade de os procurar; e personagens para quem eu na minha juventude nem sequer teria ousado levantar os olhos ou tido a coragem de escrever duas simples palavras distinguiam-me com a sua amizade. Tive ocasião de penetrar em esferas geralmente inacessíveis aos estrangeiros - os palácios do Faubourg Saint-Germain e os italianos foram-me então franqueados e tive ocasião de examinar muitas colecções de arte particulares. Já estava bem longe do tempo em que, nas minhas visitas às bibliotecas públicas, era modestamente acompanhado por qualquer funcionário subalterno. Agora era o próprio director quem tinha a honra de me mostrar pessoalmente as suas colecções mais raras e valiosas. Em Filadélfia fui recebido em casa do famoso antiquado e multimilionário Dr. Rosenbach, em cujo magnífico estabelecimento o modesto coleccionador que eu tinha sido outrora passara despercebido. Entrara pela primeira vez em contacto directo com as camadas da chamada
(1) Viagem de conferências literárias.
"alta" sociedade na agradável situação de quem era solicitado e não na de quem solicitava.
Mas aprendia eu mais viajando desta última maneira? Não sei, mas devo confessar que tinha saudades da simplicidade das minhas viagens da juventude, quando não havia ninguém que me esperasse, quando o imprevisto lhes dava um não sei quê de agradável mistério. E, preso a essa saudade, ainda por vezes, quando ia a Paris, me abandonava ao doce prazer de andar sem nexo e sem destino pelas ruas da cidade, antes de visitar os meus amigos, mesmo os mais íntimos e dedicados, como Roger Martin du Gard, Jules Romains, Duhamel e Masereel. Preferia em primeiro lugar reviver os meus bons tempos de estudante visitando os modestos cafés e hotéis onde outrora estivera. Quando queria trabalhar em paz, era o refúgio ameno dos recantos afastados da província que eu procurava, Boulogne, Tirano ou Dijon. Agradava-me sobremaneira o contraste que me oferecia o facto de viver como um desconhecido em simples e modestos hotéis, depois de ter estado no luxo trasbordante dos palácios. Por muito que Hitler mais tarde me tivesse arrebatado, não pôde contudo, tirar-me a doce saudade desses anos que ainda consegui viver livremente e em paz, segundo o meu critério e a minha vontade de cidadão da Europa.
De todas essas viagens houve uma que me seduziu Particularmente e foi para mim muito instrutiva: a minha visita à nova Rússia. Já em 1914 fizera preparativos para ir a esse país, um pouco antes da guerra, precisamente quando escrevia o meu trabalho sobre Dostoiewski. O deflagrar do grande conflito pusera, porém, termo ao meu desejo e desde então senti-me mergulhar numa certa indecisão. Mas a verdade é que a experiência bolchevista fizera da Rússia um país que atraía sobremaneira a atenção dos trabalhadores do foro intelectual. Quase ninguém sabia o que lá se passava, apesar da obstinada paixão e do dogmático fanatismo com que muitos a defendiam ou atacavam, situação que nem a propaganda nem a contrrapropaganda conseguiam modificar. Mas não se podia negar que na Rússia se operava uma revolução, cujos resultados, bons ou maus, não poderiam deixar de ter influência considerável no futuro da humanidade.
Shaw, Wells, Barbusse, Istrati, Gide e muitos outros escritores tinham visitado esse país e regressado, trasbordando de entusiasmo ou cheios de desilusão. Compreendi que, como idealista, devia também realizar essa viagem para poder ver com os meus próprios olhos a magnitude da grande experiência. Os meus livros tinham já alcançado na Rússia um grande êxito, não apenas a colectânea prefaciada por Máximo Gorki, mas também outras edições mais baratas, cujos exemplares eram acessíveis e estavam difundidos nas grandes massas. Assim, adquirira a certeza de que seria recebido de braços abertos. Havia, porém, um obstáculo que eu não podia vencer. Consistia ele em que, naquela época, umavisita à Rússia trazia quase o dever de uma pública adesão ou crítica ao sistema soviético. Ora a verdade é que sempre fui avesso ao dogmatismo e à politíquice e não estava disposto a que, depois de algumas semanas de permanência na Rússia, me forçassem a emitir um juízo acerca de um país, tão vasto e de um sistema que se encontrava ainda numa fase de experiência. E foi por esta razão que, apesar da ardente vontade que me incitava a empreender essa viagem, nunca me decidira a ir à U. R. S. S.
Mas eis que, no princípi" do Verão de 1928, recebia um convite para ir a Moscovo tomar parte nas festas do centenário do nascimento de Leão Tolstoi, como delegado dos escritores austríacos. Pensei não haver nenhuma razão que me impedisse de aceitar o oferecimento, visto tratar-se de uma viagem sem caracter partidário e na qual a política, naturalmente, nada tinha que intervir. De resto, era evidente que Tolstoi, o apóstolo da non violence, não podia ser tido como bolchevista, e julguei que, como escritor, me assistia o direito de falar da sua obra e da sua pessoa, já que o meu livro sobre ele atingira edições de milhares e milhares de exemplares. Por outro lado, o meu ideal de fraternidade européia considerava deveras significativa uma reunião de escritores de vários países para prestarem conjunta e sentida homenagem ao insigne e incomparável pensador. Tomei, pois, uma decisão afirmativa, e devo confessar que não me arrependi.
A viagem através da Polônia deu-me logo grandes motivos de admiração, verificando a facilidade com que uma época era capaz de curar as feridas ocasionadas pelos males que ela própria originara. Aquelas mesmas cidades da Galícia que eu em 1915 havia deixado em ruínas estavam então já completamente reconstruídas, irreconhecíveis. De novo, surgiu à minha mente a certeza de que dez anos podem ser muito para um indivíduo, mas são certamente apenas um instante na história de uma nação. Quando cheguei a Varsóvia, já não encontrei vestígios dos rastos deixados pelos diferentes exércitos que uma, duas, três e quatro vezes a haviam atravessado, derrotados ou vitoriosos. Os cafés estavam cheios de mulheres elegantes, e os oficiais, esbeltos e bem aprumados, davam mais a imPressão de artistas que estivessem a representar do que de verdadeiros militares. Respirava-se uma atmosfera de grande confiança e justa satisfação pelo facto de que a jovem república polaca se consolidava, ressurgindo das cinzas do passado.
De Varsóvia prossegui na viagem até à fronteira russa, através de paisagens cada vez mais monótonas e onde a planície começava a imperar. A passagem do comboio era nesse tempo um acontecimento que atraía às estações os habitantes das aldeias, os quais, envergando os seus curiosos trajes multicores, olhavam para ele com espanto. Então havia apenas um único comboio de passageiros por dia para o país que permanecia rigorosamente isolado. Ver as luzidias carruagens do "expresso", único traço de união com o Ocidente, assumia foros de acontecimento sensacional. Por fim, chegámos a Niegorolie, primeira estação russa. Passando sob uma grande faixa vermelha - onde, em caracteres cirílicos, que não pude ler, mas cuja tradução pedi, se encontrava impressa a máxima internacional: "Trabalhadores de todo o mundo, uni-vos!" entrámos na pátria do Proletariado, na república dos Sovietes - num mundo novo.
Devo dizer que o comboio em que viajava não era de nenhum modo um comboio proletário. Tinha carruagens-camas que, com certeza, eram do tempo do antigo regime e mesmo assim bem mais agradáveis do que as dos mais luxuosos comboios do Ocidente, por serem mais espaçosas e a sua velocidade menor. Pela primeira vez na minha vida, contemplava a paisagem russa, mas, coisa estranha, dir-se-ia que todos os seus aspectos me eram já familiares: a melancolia sem fim da estepe imensa; as casinhas rústicas e as pequenas cidades com as suas cúpulas bulbiformes; os homens, de longas barbas, meio camponeses, meio profetas, que nos sorriam com ar acolhedor e bom; as mulheres, que, de grandes lenços garridos na cabeça e saias brancas, vendiam limões, ovos e pepinos.
Não era realmente inacreditável? Era um milagre que só a incomparável precisão da literatura russa tornara possível, com Tolstoi, Dostoiewskí, Ahzakow e Gorki, os quais, com tanto talento e realismo, nos haviam revelado a verdadeira vida do "povo". Apesar de não conhecer a língua russa, tinha a impressão de adivinhar o que aqueles simples camponeses de grandes blusas que eu ia vendo diziam entre si. E o mesmo sucedia com os jovens operários do comboio, que discutiam, liam ou jogavam o xadrez, essa mocidade exuberante e irrequieta firmemente disposta a perseverar, inabalável e confiante no seu próprio destino. Nãú estaria eu nesse momento também sob a influência daquele amor pelo "povo" que irradia das obras de Tolstoi e Dostoiewski? Não sei dizê-lo, mas confesso que já em pleno comboio sentia despertar no meu coração uma imensa simpatia pelo que havia de comovedor, simples, delicado e misterioso nesses homens.
Durante as duas semanas que estive na Rússia Soviética passei por todos os diferentes graus de estado de espírito vi, ouvi, admirei-me e encolhi os ombros, numa constante e paradoxal variação entre o frio e o calor. A própria capital era já um paradoxo, com a sua incomparável Praça Vermelha, onde, ao lado de magníficos monumentos de cúpulas bizantinas, algo de inconfundivelmente tártaro e oriental e, por isso mesmo, intrínseca e originalmente russo, se erguiam as moles disparatadas de ultramodernos arranha-céus americanos. A desarmonia era bem patente. Nas igrejas jaziam velhos ícones e preciosos altares de santos ainda meio enegrecidos, e, cem passos mais adiante, erguia-se o túmulo de cristal onde, vestido de preto, repousava o corpo de Lenine. Viam-se reluzentes automóveis, mas, a seu lado, os velhos istvoshniks, repelentes e barbados, chicoteavam calmamente as suas pilecas. O palácio da Ópera, onde falámos a uma massa de proletários, lembrava os imperiais faustos de outrora, e nos bairros excêntricos da cidade havia casebres que davam a impressão de velhas andrajosas que se encostassem umas às outras, num último esforço para se manterem de pé. Parecia estar-se num mundo em que tudo era velho, ferrugento e carcomido e que subitamente fora batido pela alucinante fúria de se modernizar e adaptar à última palavra do tecnicismo. Essa febre dava à cidade, cuja população parecia ser demasiado densa, uma fisionomia bastante confusa. casas comerciais encontravam-se repletas e o Público aglomerava-se em frente dos teatros. Em toda a Parte era preciso esperar, porque tudo era verificado e-Por isso mesmo não funcionava bem. Os novos funcionários encarregados de estabelecer "a ordem" mantinham-se ainda naquele período de iniciação em que as engrenagens se complicam e emperram.
A festa de homenagem a Tolstoi, anunciada para as seis horas da tarde, começou às nove e meia. Eram três horas da madrugada quando me retirei, fatigadíssimo. mas nessa altura ainda os discursos não tinham acabado. Sendo ocidental, era certo que a qualquer recepção ou encontro combinado chegava sempre uma hora mais cedo. O tempo sumia-se na voragem das visitas, dos estudos e das discussões e adquiria-se a íntima impressão de que aquela misteriosa exaltação da alma russa também nos ia invadindo a pouco e pouco, com o seu característico pendor de exteriorizar idéias e opiniões de maneira vibrante e apaixonada. comecei a notar, de súbito, que também já me exaltava com facilidade. Era influência do ambiente ou talvez se desse o caso que a minha alma se fosse lentamente eslavizando.
Havia realmente cenas maravilhosas, sobretudo em Leninegrado, essa magnífica cidade, ideada por príncipes ousados, com os seus inimitáveis panoramas - os seus palácios, essa por outro lado dolorosa e pesada Sampetersburgo das Noites Brancas e de Raskolnifcow. Não me esquecerei nunca da cena que contemplei no imponente Palácio-Museu do Eremitério, onde grupos de operários, soldados e camponeses visitavam respeitosamente as salas outrora imperiais, avançando de chapéu na mão, e procurando abafar o ruído dos seus pesados sapatos, como antes faziam em frente dos seus ícones. Lia-se-lhes nos olhos que, contemplando os quadros, pensavam, satisfeitos: "isto agora também é nosso e instruir-nos-emos para poder admirar e compreender". Viam-se grupos de crianças das escolas, bem apresentadas, dirigidas peles professores, e havia comissários de arte que explicavam o sentido dos quadros de Rembrandt e de Ticiano aos camponeses que erguiam cãndidamente os olhos, sob as pálpebras pesadas, para os contornos que o funcionário apontava. Não deixava de chocar sobremaneira esse quase infantil, mas contudo digno e respeitável, afã de procurar elevar "o povo" do analfabetismo para a intimidade das obras de Beethoven e de Vermeer, assim sem mais nem menos. Era de resto um propósito que se observava por toda a parte, esse, o de despertar inopinadamente as camadas proletárias para a beleza dos mais altos valores espirituais. Nas escolas, iniciavam-se os rapazes com desenhos e pinturas que estavam fora do alcance das suas faculdades de compreensão; viam-se raparigas de doze anos com livros de Hegel e de Sorel - obras que então eu desconhecia ainda completamente -, e havia cocheiros que mal sabiam ler, mas que já andavam com livros debaixo do braço, pela única e grande razão de significarem "cultura" e a cultura ser a divisa da nova sociedade proletária.
Sorri muitas vezes quando nos mostravam fábricas de importância muito relativa, julgando que iam provocar a nossa admiração, como se na Europa e na América nunca tal coisa se tivesse visto. "É eléctrica", disse-me um dia certo operário, apontando para uma máquina de costura e dirigindo-me olhares que esperavam descobrir em mim evidentes sinais de espanto. Como o bom povo nunca até então tinha visto tais raridades, supunha ingenuamente que seriam obra da Revolução e dos "paizinhos" Lejüne e Trotzki. Em presença dessa ingenuidade, simulava por vezes admiração, mas contudo, bem no íntimo, não podia deixar de sorrir. Como a Rússia imensa era a eterna criança de sempre, generosa e fundamentalmente boa! - pensava eu, perguntando a mim mesmo se ela chegaria de facto a aprender tão depressa a formidável lição que se tinha proposto estudar. Daria realmente fruto o plano gigantesco que se havia traçado ou terminaria por se desfazer na já Proverbial rotina e incapacidade russas? Algumas vezes sentia-me cheio de esperança e confiança, mas logo me assaltavam dúvidas. Quanto mais via e ouvia mais difícil se me tornava conjecturar.
De facto, aquilo que a mim me parecia dissonância não seria tão-somente deficiência da sua da minha parte ou pelo contrário, não seria até uma modalidade do caracter russo, uma nota bem impressa até na alma daquele Tolstoi, cujo centenário tínhamos ido celebrar? Falei a este respeito com Lunatscharski quando da nossa viagem a Poliana, e ele respondeu-me textualmente: "Afinal, o que era Tolstoi um revolucionário ou um reaccionário? Talvez nem ele mesmo o soubesse. Era russo, em toda a acepção do termo e, assim, tinha a paixão dos golpes fulminantes. O seu melhor desejo seria poder modificar, de um momento para o outro e apenas com uma fórmula, a milenária organização social do mundo
- exactamente como nós o queremos fazer também hoje", continuou Lunatscharski, sorrindo. "Aqueles que dizem que somos pacientes - prosseguiu - enganam-se profundamente se julgam que o somos em absoluto, pois, se é certo que isso corresponde à verdade em relação ao nosso corpo e ao nosso espírito, outro tanto não sucede com o nosso ideal porque nessa matéria somos tão impacientes como qualquer outro povo e temos como ele a ânsia da verdade, da verdade única. Quanto não sofreu o venerando ancião por causa dessa ânsia!?"
Devo dizer que, quando cheguei a lasnaia Poliana e visitei a casa de Tolstoi, encontrei em toda a parte um não sei quê que realmente me falava dessa ânsia que tanto o torturara - a secretária onde ele escrevera a imperecível obra que o imortalizara, essa secretária que um dia trocara pela mesa de sapateiro que estava numa modestíssima dependência e onde um insigne mestre batera a sola para os seus rústicos sapatos; a porta e depois a escada por onde ele quis um dia fugir à agrura imensa dos seus destinos; a espingarda com a qual na guerra abatera inimigos, ele, o irreconciliável inimigo de todas as guerras. O paradoxo da sua existência amargurada relembrava-o eu bem nitidamente nessa pequena casa branca de camponês. Porém, tudo o que de trágico e doloroso senti nessa visita foi depois divinamente suavizado pela impressão sem par recebida em frente da tumba onde o grande Tolstoi dorme o sono eterno.
O que de mais imponente, comovedor e grandioso vi na Rússia foi essa campa, esse lugar sagrado que jaz na arrebatadora solidão da floresta. Há um pequeno caminho que conduz até lá, a essa pequena sepultura constituída por quatro palmos quadrados de teirg, apenas protegida pela sombra amiga de algumas árvores lendárias que o próprio Tolstoi outrora plantara. Quando eram crianças, ele e seu irmão Nicolau - contou-mo sua neta à beira do túmulo -, tendo ouvido dizer a uma camponesa que quem plantasse árvores semeava a felicidade, trataram de, meio a brincar, abrir covas e dispor nelas alguns rebentos. Mais tarde, já velho, Tolstoi lembrou-se do conto da camponesa e pediu que, quando morresse, fosse sepultado à sombra das árvores que, quando criança, havia plantado. Tendo-se obedecido à sua vontade, a sua sepultura tornou-se, pela sua comovente e tocante simplicidade, na mais imponente e grandiosa do mundo inteiro: rectângulo de terra na imperturbável solidão da floresta à sombra de árvores - nulía cru, nulla. carona - sem lousa e sem epitáfio.
É ali, sem nome, que jaz o grande homem, que em vida tanto sofreu por causa do seu nome e da sua fama, sepultado como um pária encontrado à beira de um caminho ou como um soldado desconhecido! A qualquer pessoa é dado ir a essa campa, que ninguém vigia. O próprio gradeamento de madeira que a circunda não é fechado e os únicos guardas da sepultura onde repousa eternamente o homem que em vida nunca teve repouso são a gratidão e o respeito.
Há túmulos que encantam pela pompa; aquele, Porém, impõe-se pela sua comovedora sobriedade. O único murmúrio que naquele lugar se ouve é o gemido do vento, qual hálito de Deus acariciando a jazida do grande sonhador. Poderia passar-se à beira dessa sepultura e supor-se que ali dorme um homem qualquer, um russo anônimo enterrado em terra russa. Mas nem o túmulo de Napoleão na grandeza dos Inválidos, nem o sarcófago de Goethe na sua cripta de príncpes, ou os mausoléus de Westminster têm a arrebatadora eloqüência desse coval sem nome que jaz no coração silencioso da floresta, nesse lugar solitário onde só o vento balbucia e aonde as quimeras dos vivos não chegam...
Havia duas semanas que estava na Rússia e sentia-me cada vez mais dominado por aquela espécie de vaga exaltação mental que pouco a pouco se ia apossando de mim. Por que motivo vivia eu nesse estado de contínua excitação - perguntei, por fim, a mim próprio. A resposta não se fez esperar - era um reflexo do ambiente em que me encontrava, da apaixonada impulsividade que me rodeava. Todos se julgavam pioneiros de uma causa generosa e justa e estavam absolutamente convencidos de que os sacrifícios e os sofrimentos que suportavam eram-em holocausto a um ideal nobre que dizia respeito a todos os habitantes da terra. Aquele velho sentimento de inferioridade que o Oriente tinha outrora sentido em relação ao Ocidente, dera lugar ao obstinado orgulho da intima convicção, que cada qual adquirira, de que a Rússia se encontrava na vanguarda de todos os povos. Ex oriente lux - a lux nasce no Oriente, afirmavam e pensavam esses entusiastas, de resto sinceramente convencidos de que assim era. Tinham encontrado a tal "verdade", a que lhes permitia materializar aquilo que para outros não passava de um sonho. E assim, quando nos mostravam qualquer insignificância, pronunciavam, com os olhos a cintilar: - "eis a nossa obra". Quando diziam "nossa", queriam dizer do povo. Não era invulgar que qualquer cocheiro do trem que tivéssemos tomado apontasse com o chicote para o primeiro edifício novo que encontrasse e com um sorriso ingênuo e franco exclamasse - "este prédio foi feito por nós". Se visitávamos as Casas de Estudantes, era certo que tártaros e mongóis acorriam pressurosos ao nosso encontro, mostrando-nos, cheios de ênfase, os seus livros: "Darwin!" - exclamava um: "Marx!" "- afirmava outro, com a mesma satisfação e importância que teriam se se tratasse de livros que eles próprios tivessem escrito. Depois, cada qual elucidava, esclarecia e explicava, imensamente agradecidos e contentes pela visita que fizéramos à "sua" casa. Nesse tempo - muito antes de Estaline! - ainda se olhava para um homem do ocidente da Europa com bem marcada confiança e estima - os apertos de mão eram fraternais e fortes. Contudo, notava já que nas figuras mais apagadas havia certa tendência para me estimar, mas não para me distinguir, pois consideravam-me um igual, um towaritsch, um simples camarada.
Essa exaltação impulsiva também não era menos evidente entre os homens de letras. Escritores de distintas regiões, não apenas russos ou de outros pontos da Europa, mas também da Ásia, encontravam-se na casa que outrora pertencera a Alexandre Herzen, visto que cada república da Federação Sov'ética enviara os seus delegados às festas comemorativas do centenário do nascimento de Tolstoi. Não me era possível falar com todos, mas adivinhava o que pensavam e compreendia-os. Às vezes sucedia que um vinha ao meu encontro, mencionava o título de qualquer dos meus livros e depois levava a mão ao coração como que para indicar que a sua leitura lhe tinha dado grande prazer. Depois disso, estendi'a-me a mão e apertava a minha impetuosamente, trasbordando de entusiasmo, de tal modo que eu ficava com os dedos em brasa. A sua amabilidade assumia formas verdadeiramente comovedoras. Os tempos, então, ainda eram bem difíceis e esses homens não possuíam objectos de valor, mas cada qual tinha gosto em me presentear com lembranças - uma velha gravura sem importância, um livro ilegível para mim ou qualquer pequena escultura de madeira. Eu estava, naturalmente, em melhores condições para retribuir essas gentilezas, oferecendo-lhes coisas que nessa altura eram bem raras na Rússia. -uma lâmina de barbear, uma caneta de tinta permanente, um caderno de papel branco para carta eu um par de bons chinelos de couro, E de tal maneira o fiz que, quando regressei à Áustria, as minhas maletas pesavam muito menos.
Esse ambiente de sincera e vibrante camaradagem, em que a palavra quase não existia, e o sentimento era a única grande força que operava e unia os corações, era de um fascínio realmente incomparável. Jamais tivera ocasião na Áustria de viver tais momentos, pois no meu país nunca se chegava tão profundamente até ao "povo". Mas reconhecia que uma hospitalidade tão franca e tão cordial podia ser também extremamente perigosa e, de facto, houve muitos escritores estrangeires que foram obnub-lados por ela. Sabendo-se venerados como nunca até então o tinham sido pelo povo, julgavam que deviam corresponder a essa simpatia prestando homenagem ao sistema político em que as suas pessoas ou obras eram tão queridas e apreciadas. Era compreensível, pois é bem natural que o homem corresponda à generosidade com a generosidade e ao entusiasmo com o entusiasme. Devo confessar que houve momentos em que na Rússia estive quase a ceder à tentação de me deixar entusiasmar por esse contagioso arrebatamento.
A minha resistência a esse encanto deve-se mais a um desconhecido, cujo nome ignoro e ignorarei sempre, do que a uma firme decisão da minha vontade. Foi o caso que estivera numa festa de estudantes, onde fora carinhosamente recebido com abraços e apertos de mão. O entusiasmo dessa juventude causava-me verdadeira admiração. Alguns deles, quando a festa acabou, tiveram a gentileza de, com a intérprete que me fora designada, também estudante, me acompanharem até ao hotel onde me hospedava. Pouco depois, ficava sozinho. Podia dizer-se até que era a primeira vez que o facto se dava em doze dias, pois até então sempre estivera rodeado de admiradores e amigos. Fechei a porta do quarto e preparei-me para me deitar, mas, quando tirei o casaco, senti um leve frufru numa das algibeiras. Era uma carta, uma carta escrita em francês e que algum desconhecido, com certeza muito habilmente, ali introduzira, no momento dos entusiasmos e abraços. Não tinha assinatura, mas era cheia de bom senso. Não vinha de um "branco", decerto, mas erguia-se contra os contínuos cerceamentos da liberdade individual que nos últimos tempos se observavam.
"Não acredite em tudo o que lhe dizem - advertia o desconhecido-e não se esqueça de que lhe mostram muitas coisas mas que não lhe mostram o resto, que é muito. E saiba que muitos daqueles que falam consigo nem sempre manifestam aquilo que desejariam mas somente aquilo que podem. Somos todos vigiados e o senhor também não o é menos. Pode estar certo de que a sua intérprete está ao serviço da polícia, que as suas conversas telefônicas são censuradas e todos os seus passos espiados". Citava-me exemplos e pormenores cuja veracidade eu não estava à altura de poder comprovar e terminava por me pedir que queimasse a carta, porque, dizia, "se a atirar para o cesto dos papéis chegará às mãos das autoridades".
Comecei então a pensar na situação e concluí que, de facto, havia motivo para ponderar. Era ou não verdade que no meio da cordialidade e fraternal camaradagem que me rodeava eu jamais tivera ocasião de conversar à vontade, sem testemunhas, com qualquer pessoa? Afinal, não conhecendo o idioma, nunca poderia entrar em contacto directo com os indivíduos que me interessasse ouvir e, por outro lado, que podia eu ter visto desse país imenso, nessas duas simples semanas da minha visita? Assim, se quisesse ser sincero comigo próprio e com os outros, tinha de concluir que, apesar da boa impressão que recebera em presença de muitas coisas que vira, o meu testemunho não poderá deixar de ser extremamente deficiente. E, como conseqüência, quando regressei, limitei-me apenas a escrever duas palavras acerca da minha opinião sobre a Rússia, ao contrário do que faziam outros escritores que, tendo também visitado esse país, se dedicavam loga à tarefa de, no regresso, publicar um livro em que patenteavam franca apologia ou apaixonada critica. Não me arrependi de haver tomado essa atitude prudente, pois os acontecimentos desenvolviam-se num ritmo de tal modo acelerado que os factos quase sempre desmentiam, alguns meses depois, os juízos vulgarmente emitidos. Devo confessar, porém, que foi na Rússia que senti com mais veemência o extraordinário e apaixonado ímpeto que anima a nossa época.
Saí de Moscovo com as maletas quase vazias. Distribuí tudo o que podia ser oferecido e em troca conservei apenas dois ícones, os quais durante muito tempo ornaram o meu quarto. Mas o que de mais valioso trouxe dessa cidade foi a amizade de Máximo Gorki, que pela primeira vez tive ocasião de conhecer pessoalmente. Um ou dois anos depois, voltei a encontrá-lo em Sorrenfro, para onde o poeta se trasladara, devido ao seu estado de saúde. Passei então três inolvidáveis dias na sua companhia.
Foi uma vida em comum deveras interessante, pois, não conhecendo Gorki nenhum idioma estrangeiro e ignorando eu o russo, dir-se-ia que estávamos logicamente condenados a não falar, ou a fazê-lo apenas por intermédio da nossa muito querida amiga Maria Baronin Budberg. Mas Gorki não era apenas o mais brilhante e genial narrador da literatura mundial - era o narrador por excelência, a encarnação viva do artista ingénito. Quando Gorki falava, a sua fisionomia adquiria lampejos reveladores, e era por eles tão-somente que eu compreendia o que ele queria dizer. No seu aspecto exterior, Gorki era apenas um "russo"-não sei defini-lo de outra maneira. Alto e magro, de expressões vulgares, esse homem musculoso e de cabelo claro podia facilmente passar como camponês em pleno campo como cocheiro guiando um trem, como sapateiro batendo sola ou como qualquer vulgar pobretana sem eira nem beira. No fundo, Gorki era apenas "povo. ", mas povo típica e fundamentalmente russo. Qualquer pessoa passaria a seu lado sem suspeitar quem ele era. A revelação do seu poder só se tornava patente quando estávamos na sua frente e o ouvíamos, pois era então que se encarnava nas personagens das suas próprias narrativas. Nunca me esquecerei da maneira como nos pintou o encontro que certo dia tivera com um corcunda já velhote e cansado que encontrara à beira da estrada, outrora, quando caminhara errante pelo mundo. Compreendi a cena mesmo sem me ser traduzida, porque os olhos de Gorki, que antes da descrição estavam cristalinos, apareceram de súbito embaciados e tristonhos, ao mesmo tempo que a sua voz se tornava mais débil e o seu corpo se encurvava, instintivamente, decerto. Mas a vivacidade e a energia desenhavam-se-lhe imediatamente no rosto, se logo imediatamente após uma cena triste nos contasse qualquer episódio alegre. Então os olhos adquiriam esplendor e o sorriso aflorava-lhe à comissura dos lábios. Dava realmente prazer ouvi-lo, pois Gorki tinha o raro condão de saber dar vida às suas paisagens e às suas personagens.
Tudo era extremamente simples nesse homem extraordinário-o andar, o sentar-se, o conversar, o ouvir, o poder representar de repente os papéis mais desencontrados. Uma vez vestiu-se de boiardo, (1) pôs uma espada à cinta e logo o olhar se tornou altivo e imperioso e as sobrancelhas se lhe franziram. Depois de
(1) Antigo nobre russo.
severa concentração andou de um lado para o outro, como se estivesse preocupado com algum terrível desenlace. Porém, quando, momentos depois, despiu a original vestimenta, apareceu-nos rindo tão ingenuamente como se fora um jovem aldeão.
O facto da sua existência era já em si mesmo um milagre. Tinha um pulmão irremediavelmente perdido; vivia, por assim dizer, contra os princípios da medicina mas havia uma força estranha que o animava - o seu grande ideal. Reservava todas as manhãs aos trabalhos intelectuais - que escrevia à mão com a sua bela e bem iegível caligrafia - e para responder aos inúmeros problemas que os operários e os escritores russos lhe submetiam. Durante os dias que estive com Máximo Gorki, fiquei com a íntima impressão de que vivi com a Rússia, não com a bolchevista, com a de ontem ou com a de hoje, mas com a sua alma eterna, profunda, imensa e misteriosa. Nessa altura, ainda Gorki não tinha tomado uma atitude bem definida para com o partido. Como velho idealista, desejara ardentemente a Revolução, fora amigo pessoal de Lenine, mas ainda hesitava em transformar-se em "Pope ou Papa", como então dizia. Contudo, naqueles tempos, em que a cada momento surgiam acontecimentos imprevistos, Gorki tinha saudades de estar junto dos seus.
Por pura casualidade assisti então a uma cena bem reveladora do novo estado de espírito das multidões na Rússia. Pela primeira vez depois da Revolução havia chegado a Nápoles um barco de guerra russo, que andava em viagem de instrução. Viam-se jovens marinheiros, impecàvelmente fardados, a passear pela Via Toledo. Visitando o Ocidente pela primeira vez, não podiam conter o espanto que lhes causava a vista da infinidade de novidades que os seus olhos contemplavam. No dia seguinte, houve alguns que decidiram ir a Sorrento, para visitar o "seu" escritor. Mas não se deram ao trabalho de se fazerem anunciar, já que, no seu conceito bem russo da camaradagem, consideravam que o seu escritor não poderia deixar de os receber. Assim, apresentaram-se de súbito à porta da moradia de Gorki e de facto não se haviam enganado nas suas suposições, pois ele recebeu-os imediatamente. No outro dia contava-me, sorr'ndO', que os visitantes para quem a "causa" era a suprema e constante preocupação - se haviam, a principio, mostrado um pouco decepcionados com ele, porque logo que penetraram na sua confortável e bela vila, exclamaram: "Que é isto Vives aqui como um verdadeiro burguês. Porque não vais para a Rússia?" Gorki teve de lhes explicar a situação, mas, no fundo, os jovens marinheiros não eram tão severos como realmente queriam demonstrar. A sua principal intenção era tão-somente a de provarem que não se curvavam perante a celebridade e o renome de Gorki e que apenas se regulavam pelas suas próprias impressões e sentimentos. E foi assim que entraram, sentaram-se sem cerimônia, tomaram chá e conversaram, mas, quando chegou a hora da despedida, não houve um único que lhe não desse um grande abraço.
Esta cena descreveu-ma ele de uma maneira verdadeiramente maravilhosa, mostrando-se completamente admirado com o à-vontade e a confiança em si própria de que essa nova juventude dava provas. De nenhum modo se sentia contrariado por aquilo a que se poderia chamar a demasiada familiaridade dos seus hóspedes. "Que diferença entre esta e a nossa juventude! Qualquer rapaz, no nosso tempo, Podia ser submisso ou irreverente, mas jamais adquiria tal confiança no seu próprio valor", afirmou-me Gorki.
Durante toda aquela tarde, os seus olhos brilharam com inusitado fulgor, e quando eu lhe disse: "Tenho a impressão de que o seu maior prazer teria sido o de regressar à Rússia com esses marinheiros", olhou para mim bem de frente e, admirado, perguntou-me: "Como foi capaz de adivinhar o meu pensamento? Sim, é verdade, pensei realmente que devia abandonar tudo, os meus trabalhos, os meus livros e os meus papéis, e ir para bordo, com esses rapazes, viver duas semanas na imensidade do mar. Então voltaria de novo ao seio da minha Rússia, a sentir o que ela é verdadeiramente. A distância afasta-nos da realidade e nenhum de nós conseguiu no exílio fazer obra, de facto, perdurável! "
Gorki exagerava quando comparava a sua permanência em Sorrento a um exílio. Podia regressar à Rússia quando quisesse, como de facto regressou, pois não estava desterrado e os seus livros não haviam sido proibidos. Não se encontrava na situação de Mereschkowsky, o triste amargurado que encontrei em Paris, ou naquela em que nós hoje nos encontramos, "com duas madrastas mas sem mãe", parafraseando a bela imagem de Grillparzer, batidos por todos os ventos do infortúnio. Um verdadeiro exilado, e bem original, decerto, tive eu ocasião de encontrar alguns dias depois, em Nápoles:-Benedetto Croce. Este homem, que durante muito tempo fora o guia espiritual da juventude e que, como antigo ministro e senador, fora alvo de todas as honras, na Itália, tinha entrado, devido à sua franca oposição ao fascismo, em luta aberta com Mussolini. Então abandonou todos os cargos públicos e isolou-se, mas os exaltados não ficaram satisfeitos - estavam dispostos a vencer a sua oposição, mesmo à custa das maiores violências, se fosse necessário. Os estudantes, que, ao contrário do que sucedia com os de outrora, constituem hoje, em muitas partes, as tropas de assalto ao serviço da reacção, fizeram-lhe demonstrações de hostilidade, apedrejando os vidros das janelas da sua residência. Mas esse homem de estatura meã, de olhar inteligente e doce e de barbinha pontiaguda, esse homem que aparentava ser um prudente e comedido burguês, não transigiu.
Apesar de haver sido convidado por várias universidades estrangeiras, não saiu do país, encerrando-se em casa, na muralha dos livros. A sua revista Critica continuou com a mesma orientação e a sua actividade intelectual prosseguiu com igual ardor. Tinha um prestígio de tal modo grande no país que a censura, ordinariamente severa, recebera ordem de Mussolini para lhe respeitar os trabalhos, enquanto os dos amigos e discípulos eram impiedosamente tratados. Qualquer italiano ou até mesmo um estrangeiro precisaria de muita coragem para o visitar na sua cidadela intelectual, pois as autoridades não ignoravam que Croce não hesitava em expor desassombradamente o pensamento.
Desta forma vivia ele, confinado em casa, nessa espécie de ilhota no mar imenso dos quarenta milhões de italianos. Era realmente eloqüente e grandioso o exemplo desse prescrito hermèticamente cerrado numa cidade de cerca de um milhão de habitantes, num país onde havia milhões de seres humanos. Naquela altura ainda eu ignorava que essa lenta decadência espiritual era preferível à desmedida violência do ataque fulminante que mais tarde desabou sobre mim, mas, mesmo assim, não pude deixar de render justa homenagem à decidida energia e persistência manifestada por Croce, tanto mais admirável quanto ê certo que já não era muito novo. Mas o original exilado sorriu e respondeu-me: "As dificuldades rejuvenescem o indivíduo, acredite. Se ainda fosse senador, viveria de outra maneira, é certo, mas talvez o meu espírito já tivesse sido submetido ou pelo menos perdido a força criadora. Não há nada mais nocivo para o intelectual do que uma existência sem obstáculos a vencer. Já não sou novo e vivo agora isolado no mundo, mas Sinto-me rejuvenescer".
Mas muito mais tarde eu havia de adquirir a certeza de que o sofrimento retempera o homem, que as perseguições o encorajam e o isolamento engrandece, se não são de natureza a aniquilá-lo, naturalmente. Neste capítulo, como em muitos outros bem importantes da nossa vida, a sabedoria só se adquire com a nossa própria experiência e não com a dos outros.
Não ter tido nunca ocasião de falar com o homem mais em relevo na Itália, Mus&olini, deve-se, certamente, à minha natural relutância em me aproximar das grandes individualidades políticas. Mesmo na minha terra, na pequena Áustria, nunca visitei os seus estadistas, apesar da facilidade com que o poderia ter feito. Nunca vi Seipel, nem Dollfuss, nem Schuschnigg. Visitar Mussolini teria sido para mim um dever por estar obrigado a agradecer-lhe pessoalmente, a ele, que, segundo me diziam alguns amigos comuns, era um dos mais constantes apreciadores dos meus livros, a extrema gentileza com que dera imediata satisfação ao primeiro pedido que eu jamais fizera a um homem de Estado.
Vou contar o que sucedeu. Certo dia, recebi uma carta urgente de Paris, na qual um amigo me comunicava haver uma senhora italiana que vinha a Salzburgo para falar comigo sobre um assunto muito importante, terminando por me pedir que a recebesse logo que ela chegasse. De facto, a referida pessoa veio visitar-me no dia imediato e o que me contou foi deveras confrangedor. Disse-me que seu marido era um médico de renome que, sendo' de origem modestíssima, devia a Mateotti a possibilidade de ter feito os seus estudos. Quando esse chefe da oposição socialista foi barbaramente assassinado pelas milícias fascistas, crime hediondo que ainda teve o condão de agitar a consciência moral do mundo, já então fortemente combalida, o amigo fiel e reconhecido fez parte daquele temerário grupo de seis homens de coragem que tiveram a audácia de levar aos ombros, pelas ruas de Roma, o caixão da vítima desse horroroso atentado. As conseqüências desse gesto não se fizeram esperar e em breve, o seu marido fora forçado a tomar o caminho do exílio. Contudo, não deixara de pensar na família de Mateotti, e sentia-se com a obrigação moral de salvar os filhos daquele que outrora fora o seu incomparável amigo e benfeitor. Formulou então o projecto de os levar para o estrangeiro, mas, quando procurava pôr em execução este plano, caiu nas mãos de espiões ou de agentes provocadores e foi denunciado e preso. Como tudo o que lembrasse Mateotti era extremamente desagradável para a Itália, não era provável que o processo que haviam instaurado tivesse conseqüências muito severas. Entretanto, a acusação manobra habilmente e declara-o também culpado de fazer parte de uma conjura que procurara realizar um atentado contra Mussolini, e cujo processo estava também nesse momento pendente. E, assim, o médico, que nos campos de batalha tinha conquistado as mais altas condecorações, foi condenado a dez anos de penitenciária.
O golpe fora terrível para a infeliz senhora. Era preciso fazer alguma coisa contra essa condenação, à qual seu marido não poderia resistir. Julgava que os intelectuais mais eminentes da Europa deviam unir os seus esforços e protestar energicamente contra a iniqüidade. E era para esse fim que vinha visitar-me, solicitando a minha ajuda.
Procurei imediatamente fazer-lhe compreender que, segundo a minha opinião, um movimento dessa natureza não teria eficácia, pois sabia muito bem que, depois da guerra, todas essas manifestações fracassavam sempre. Havia ainda a considerar a circunstância de que nenhum país aceitaria de bom grado que o estrangeiro se intrometesse nos seus problemas jurídicos e citava o exemplo do protesto que na Europa Se fizera contra a execução de Sacco e Vanzetti, a cujos resultados foram absolutamente desfavoráveis. Aconselhei-a, pois, a mudar de parecer, manifestando-lhe a impressão de que tudo o que fizesse nesse sentido só poderia redundar em prejuízo de seu marido. Mussolini não aceitaria a rever o processo sob influência do estrangeiro, e, de resto, não o podia fazer, mesmo que estivesse disposto a isso. Mas, sinceramente comovido, prometi-lhe tentar em Itália tudo o que estivesse ao meu alcance no sentido de ajudar seu marido, visto que na semana seguinte visitaria esse país, onde tinha bons amigos em posições de relevo e que talvez, particularmente, se pudessem interessar pelo assunto.
Tentei de facto desempenhar-me dessa missão, logo nos primeiros dias da minha chegada, mas tive de reconhecer como o medo já havia endurecido as almas. Bastava pronunciar o nome do preso para que as pessoas a quem me dirigia se mostrassem inquietas, retraindo-se manifestamente e dizendo-me que a sua influência era nula e de nenhum modo se podia alcançar o que eu desejava. Todos me disseram o mesmo, desde o primeiro ao último. Por fim, regressei desiludido à Áustria, tanto mais que a amargurada poderia talvez supor que eu não tinha cumprido a minha promessa. De facto, se era verdade ter feito alguma coisa, não havia esgotado todos os recursos, pois não apelara ainda para aquele que podia decidir tudo: - Mussolini.
E foi o que fiz. Escrevi-lhe com toda a franqueza e sinceridade. Evitei lisonjas e confessei que não conhecia pessoalmente a pessoa por quem me interessava e que até ignorava a natureza do delito que se lhe imputava, mas que tinha visto sua esposa, certamente inocente, e sobre quem não deixariam também de recair as conseqüências da sentença que havia condenado seu marido, se ele tivesse de passar tantos anos encerrado numa penitenciária. Não pretendia de nenhum modo criticar a acção da justiça italiana, mas considerava que a tragédia que desolava essa mulher poderia ser suavizada, se o marido, em vez de permanecer numa cela de presidiários, fosse enviado para qualquer das ilhas para onde geralmente se conduziam os presos políticos e onde a mulher e os filhos poderiam viver com os deportados.
Dobrei a carta, meti-a no sobrescrito e, endereçando-a a Sua Excelência o Senhor Benito Mussolini, deitei-a simplesmente na caixa do correio de Salzburgo. Passados quatro dias, escreveram-me da embaixada italiana em Viena, comunicando que Sua Excelência havia recebido a minha carta e a agradecia, e que não somente se dignara atender o meu pedido mas ia providenciar no sentido de se reduzir a pena. Pouco depois, chegava um telegrama de Itália, anunciando-me que a transferência solicitada já tinha sido feita. Mussolini interessara-se pessoalmente pelo meu pedido, atendendo-o tão imediata e completamente que não tardou muito que o médico fosse indultado. Nunca uma carta foi para inim motivo de tanta alegria e íntima satisfação. Quando penso nos meus êxitos literários, recordo-me sempre e muito especialmente deste.
Naquele tempo, em que a Europa vivia as suas últimas horas de despreocupada e doce calma, era bem agradável viajar, mas também não o era menos o regresso à pátria. De súbito, tomava-se nota da invulgar maravilha que se operara, quase sem ninguém dar por isso. Ali estava Salzburgo, a pequena cidade de 40. 000 habitantes que eu havia escolhido precisamente pelo seu bucolismo, e se havia inacreditavelmente transformado, no Verão, não apenas na capital artística da Europa, mas na do mundo inteiro. Como, nos dolorosos anos do após-guerra, havia muitos artistas e músicos que durante o Verão se viam lançados na miséria, Max Reinhardt e Hugo Hofmannsthal tomaram a iniciativa de dar na praça da catedral de Salzburgo alguns espectáculos ao ar livre. Começaram por aquela bem sucedida representação da peça ledermann (1), mas, pouco a pouco, foram-se tentando outras representações, tendo-se chegado até à ópera. A princípio,
(1) Cada qual.
esses espectáculos despertaram a atenção das círcunvizinhanças e acabaram por atrair a do mundo.
E começou então a surgir para Salzburgo uma oportunidade de nova vida, pois os mais famosos músicos, cantores e artistas de teatro preferiam trabalhar para um selecto público internacional a verem-se limitados ao palco dos seus respectivos países. E foi assim que esses espectáculos se transformaram numa espécie de modernas Olimpíadas da Arte, onde cada nação primava por apresentar o que de melhor possuía nesse capítulo. Reis, príncipes, milionários americanos, estrelas de cinema, apaixonados de boa música, artistas, poetas e diletantes, todos acorriam a Salzburgo, para assistirem a essas originais competições artísticas. Jamais em qualquer outro ponto da Europa houvera tanto entusiasmo pela Arte e se alcançara tanta perfeição como nessa cidadezinha da pequena e quase ignorada Áustria.
Salzburgo ascendia à categoria de cidade da moda. Na época das férias não era difícil encontrar nas suas ruas muitos dos que, na Europa ou na América, manifestavam as mais elevadas tendências artísticas, vestidos, por vezes, com os característicos trajes da região "-calção de linho branco e jaqueta, os homens, e dirndlkostüm (1) multicor, as senhoras. Os hotéis estavam repletos, a estação trasbordava continuamente de passageiros e o movimento de automóveis em direcção aos locais onde se faziam as representações era tão imponente como outrora o fora por ocasião dos bailes na Corte Imperial. Outras cidades procuraram depois canalizar para o seu seio este fluxo áureo, mas nenhuma o conseguiu, pois Salzburgo foi durante esses dez anos o empório cultural da Europa.
E foi assim que essa cidade, outrora isolada, se transformou no coração da Europa. O destino, complacente, voltava a satisfazer um dos meus mais caros desejos, lançando-me num círculo cultural, cuja importância
(1) Traje regional.
eu nem sequer havia sonhado. A nossa casa tornou-se ponto de reunião de artistas e escritores de todos os pontos da Europa. O nosso livro de visitas podia atestar, mais completamente do que eu o poderia fazer apenas com o auxílio da memória, como foi grande esse movimento de admiradores mas o livro teve o mesmo destino da casa e de muitas outras coisas que me pertenciam - caiu em poder do nazismo. Quantas vezes não contemplámos nós, do terraço de nossa casa, embevecidos, na companhia de bons amigos, o magnífico panorama que se estendia a nossos pés, sem suspeitar que lá longe, na montanha em frente, em Berchtesgaden, estava aquele que um dia havia de nos amargurar a existência! Romain Rolland e Temas Misnn foram nossas visitas e também o foram os escritores H. G. Wells, Hotmannsthal, Jacob Wassermann, Van Loon, James Joyce, Emil Ludwig, Franz Werfe], Georg Brandes, Paul Valéry, Jane Adams, Schalom Asch e Artur Schnitzler e os compositores Ravel e Ricardo Strauss, Alban Berg, Bruno Walter, Bartok, e quantos não foram os pintores, os artistas de teatro e as sumidades intelectuais que, vindos de todos os pontos do mundo, estiveram no meu lar! Como foram belas essas horas de verdadeira fraternidade espiritual, que com o Verão surgiam em nossa casa! E eis que, certo dia, Arturo Toscanini subiu os degraus que conduziam ao meu domicílio, selando-se desde logo, entre nós, uma profunda e sincera amizade, que me fez amar a música com mais intensidade, com mais fervor, com mais consciência. Transformei-me no mais dedicado e constante freqüentador dos seus ensaios, onde tive ocasião de contemplar a apaixonada vontade e persistência com que ele adquiria aquela impecabilidade de execução que, depois, nos concertos Públicos, parecia maravilhoso dom. Procurei descrever esses ensaios, num trabalho que depois fiz exaltando a eficácia da vontade criadora que conduz o artista à suprema perfeição. Compreendi então como era verdadeira a frase de Shakespeare de que "a música é o alimento do espírito" e, contemplando tudo o que havia de grandioso nas artes, bendisse o destino que desde longa data me havia colocado sob a sua influência.
Como foram encantadores esses momentos estivais, em que a arte do homem e a paz santa da Natureza se irmanavam e confundiam! Quando me lembrava dessas horas doces e as comparava com a amargura dos primeiros dias do após-guerra, quando Salzburgo era' apenas uma pequena cidade desolada e triste e a chuva que entrava pelo telhado nos vinha regelar os membros, então reconhecia tudo o que de divinamente bom esses anos de paz deram à minha vida. A esperança renascia. Já podíamos novamente acreditar no mundo e na humanidade.
Nesses bons tempos, foi a nossa casa de Salzburgo visitada por muitos homens ilustres. Mesmo quando, sozinho, ainda à minha volta se ia formando um mundo maravilhoso e raro, que eu, pouco a pouco, procurava estudar nos seus pormenores "- eram os meus autógrafos, em cuja colecção havia manuscritos de alguns dos mais célebres pensadores de muitas gerações. Começara-a aos quinze anos, como simples diletante, mas o tempo, a experiência, outras possibilidades de aquisição e um renovado pendor, transformaram-na, de mero devaneio de curioso, num todo organizado com meticulosidade e que era, de facto, uma verdadeira obra de arte.
Inicialmente, como todos os que começam, interessei-me apenas por possuir assinaturas dos homens célebres, mas depois, por associacionismo, dediquei-me de preferência aos manuscritos, origiinais ou fragmentos que me pudessem revelar os segredos da elaboração das obras dos mestres mais ilustres. Considero que, de todos os grandes enigmas, o mais difícil de decifrar é. sem dúvida, o da criação. A Natureza mostra-se particularmente discreta neste capitulo, e julgo que jamais se poderá descobrir o mistério imenso que envolve o fenômeno da origem do mundo ou do nascimento da mais insignificante flor, do homem, ou até o da gênese de uma simples poesia. O véu que encobre esse mistério permanecerá sempre cerrado. O próprio artista não saberá nunca precisar com exactidão onde começa e onde acaba o momento de conceber ou realizar a sua obra, pois as fontes profundas de onde ela dimana são-lhe completamente desconhecidas. Nunca, ou quase nunca, o poeta ou o compositor consegue explicar como no seu espírito nasceu o minuto supremo da inspiração, ou como no cadinho do talento se fundiram as formas das suas obras imortais. O único elemento que realmente pode dar uma pálida idéia do processo seguido por esse fenômeno é o manuscrito, e particularmente o esquema primário que ainda se não destina ao tipógrafo, o original de contornos imprecisos e em formação, cheio de emendas e rectificações, esse lento metamorfosear que conduz à forma definitiva perfeita.
Juntar esses raros elementos, que provavam o obstinado hbutar dos grandes poetas, filósofos e músicos, foi o que se poderia chamar a segunda fase, e porventura a mais importante das minhas preocupações de coleccionador. Sentia verdadeiro prazer em partir à descoberta dessas preciosidades. Era uma arte ou uma ciência encontrá-las nos leilões de antigüidades ?u adivinhar até a sua presença onde menos se poderia supor que estivessem. E de tal modo fui bem sucedido e agi com conhecimento de causa que, dentro de pouco, não só tinha uma valiosa colecção de manuscritos, mas possuía também uma Pequena biblioteca, composta de obras e de uma Densidade de catálogos que se relacionavam com autógrafos e manuscritos. Essa biblioteca era certamente única no mundo - estou convencido de que nem mesmo os donos de casas de antigüidades teriam tanto tempo e paciência para dedicar apenas a um aspecto da sua actividade. Sobre isto posso afirmar - o que de nenhum modo ousaria fazer com referência à literatura ou a outras actividades-que, graças a trinta ou quarenta anos de constante lidar com autógrafos e manuscritos, adquiri notável experiência, que me permitia saber onde se encontrava tal ou tal documento de valor, a quem pertencera e como chegara às mãos da pessoa que o detinha. Tornei-me, de certo modo-, uma autoridade no assunto, podendo com facilidade emitir opinião acerca da autenticidade de um manuscrito e avaliá-lo com mais precisão do que muitos antiquários profissionais.
O meu gosto como cõleccionador foi-se desenvolvendo notavelmente e alargando cada vez mais a sua esfera de acção. Ter uma simples colectânea de manuscritos dos mais eminentes escritores e compositores do mundo não era já suficiente para mim. Queria melhorá-la, dotando-a incessantemente com novos elementos que a enriquecessem. E foi essa a minha preocupação durante os últimos dez anos. Se antes me contentara com a posse de um manuscrito que me revelava um momento feliz de qualquer poeta ou compositor, isso mais tarde já não me satisfazia, pois queria possuir aquele que mo revelasse no seu supremo, no seu mais feliz e íntimo minuto de inspiração naquele em que a sua melhor obra-prima tivesse adquirido, pelo lápis ou pela caneta, os primeiros contornes materiais. Era como que se eu quisesse com esses manuscritos insensata pretensão - deter o que esses gênios haviam legado de imortal ao mundo.
com este critério, não era de estranhar que a minha colecção estivesse submetida a constante aperfeiçoamento. Qualquer manuscrito que não reunisse as condições desejadas era logo substituído, trocado ou vendido, sempre que para o seu lugar tivesse ocasião de encontrar outro mais original ou - se é admissível empregar esta expressão - com um sentido de mais reveladora eternidade. Não era raro que os meus esforços fossem coroados de incomparável sucesso, pois havia realmente poucos coleccionadores com tanta paciência e conhecimentos como eu, na arte de saber descortinar preciosidades. A verdade é que comecei a minha colecção com uma simples pasta e depois tinha já um cofre especial, revestido de placas de metal e de asbesto, no qual conservava os fragmentos ou os originais completos das mais extraordinárias criações do pensamento humano. Obrigado a uma existência errante, não tenho agora à minha disposição o catálogo dessa colectânea há muito desfeita. Apenas posso mencionar um ou outro desses manuscritos, uma ou outra dessas relíquias, em que o génio por um momento se materializou.
Tinha uma folha que pertencera a um livro pessoal de Leonardo da Vinci, com notas e estudos sobre desenho; uma ordem de quatro páginas, quase ilegível, que Napoleão escrevera para os seus exércitos em Rivoli; um romance completo de Balzac, em primeiras provas tipográficas, no qual cada página parecia um verdadeiro campo de batalha, de tal modo as rectificações se encavalitavam umas em cima das outras, demonstrando claramente a luta do autor pela perfeição. Felizmente, salvou-se ainda uma cópia fotográfica desse manuscrito, a qual se encontra numa universidade americana.
Havia ainda um manuscrito original da obra de Nietzsche Gebiirt der Tnigôdis (1), inédito, escrito pelo filósofo para a sua amada Cosima Wagner, muito antes que a obra fosse publicada na forma definitiva que depois tomou; uma cantata de Bach, uma ária de Á/ceste, de Gluck, e outra de Hãndel, cujos originais são certamente os mais raros.
No meu constante anseio de enriquecer essa colecção, conseguia sempre, de facto, aumentar-lhe o valor. Assim tinha os originais dos Z'geunerlieder, (2) de Brahms; da Barcarola, de Chopin; da imortal obra
(1) Nascimento da Tragédia.
(2) Canções de ciganos.
de Schubert An die Musik e da incomparável melodia de Haydn Goít erhalt, hino imperial austríaco. A minha felicidade foi tanta que cheguei a possuir mais de um manuscrito de homens célebres. Era assim que, de Mozart, tinha, não somente um pequeno original que ele escrevera apenas com onze anos, mas também uma prova do seu gênio de compositor: a imortal Vei/chen (1), de Goeth possuía, da sua música de dança, o original do minuete, parafraseado no Figaro, Non piú andrai e do próprio Figaro a ária de Querubim. Possuía também as cartas demasiadamente livres que ele escrevera a Bãsle e cujo texto jamais fora publicado integralmente, um cânon escabroso e um fragmento da ária de Titãs, composta pouco antes da sua morte. Mas havia mais: tinha ainda a primeira página de uma tradução que ele fizera do latim, aos nove anos, e uma poesia que escrevera aos oitenta e dois, isto é, quase nos derradeiros momentos. Da sua obra prima, Fausto, conservava uma valiosa folha manuscrita; um trabalho sobre ciências naturais, algumas poesias dispersas e ainda diferentes desenhos feitos em várias épocas da sua existência. Eram quinze relíquias, através das quais se podia passar em revista toda a vida intelectual de Goeth.
Mas em relação a Beethoven, o mais venerado de todos, não conseguira ser tão feliz. Não guardava dele uma colecção de manuscritos tão completa. Se é verdade que, no que diz respeito a Goeth, eu tinha um concorrente, o professor Kippenberg, meu editor, o mesmo sucedia com Beethoven. Neste caso o meu competidor era um dos homens mais ricos da Suíça, o qual possuía uma colecção de manuscritos, única no mundo. Contudo, ainda tinha o seu caderno de notas, que datava dos tempos da sua infância, o lied Der Kuss (2). e alguns fragmentos musicais de Egmont.
(1) Violeta.
(2) O beijo.
Possuí também, ainda que só por um instante, o que nenhum museu do mundo se podia orgulhar de ter, e que fora precisamente testemunha do mais doloroso e trágico momento da vida do grande gênio.
Uma feliz circunstância ofereceu-me a possibilidade de entrar na posse da parte do mobiliário do quarto de Beethoven, que, por ocasião da sua morte, fora vendida em leilão e adquirida pelo conselheiro Breuning-a grande secretária, particularmente, em cujas gavetas se encontravam os retratos da suas bem amadas, as condessas Julieta Guicciardi e Erdõdy; o pequeno cofre que estivera à cabeceira da sua cama; a pequena mesa sobre a qual ele escrevera, no leito, as últimas cartas e composições; uma pequena madeixa de cabelos brancos, cortada no seu leito de morte; o convite para o funeral; o último rol de roupa que ele redigira já trèmulamente; o documento com o inventário dos seus haveres para o leilão e a lista da subscrição que os seus amigos de Viena fizeram para Sali, a sua cozinheira, que ficara sem meios de existência. Depois destas aquisições, fui ainda favorecido por outra oportunidade, com a qual o acaso parecia querer distinguir o apaixonado coleccionador que eu era. Consegui obter os três desenhos de Beethoven no leito mortuário. Sabia-se que um jovem pintor amigo de Schubert, Joseph Teltscher, procurara desenhá-lo naquele 27 de Novembro em que Beethoven era já moribundo, mas sabia-se também que o conselheiro Breuning, considerando que tal tentativa era uma impiedade, não tolerara que Teltscher prosseguisse. Nunca mais se falou nesses desenhos, que durante um século estiveram esquecidos, mas um dia procedeu-se à venda, em Brün, por uma ridicularia, de alguns cadernos de esboços que haviam Pertencido ao amigo de Schubert, Entre eles, encontravam-se os que fizera de Beethoven. E como um acaso quase nunca vem só, certo antiquado perguntou-me se desejaria possuir o original do Ffurat? e Beethoven no seu leito de morte. Respondi-lhe, naturalmente, que já o tinha, mas depois verificou-se que o que ele me oferecia era o original daquela litografia de Beethoven no leito da morte, de Danhauser, que depois se tornou tão célebre. E assim conservava na minha colecção tudo o que de uma maneira concreta lembrava esse último e inesquecível momento.
Nunca tive a pretensão de ser o dono dessas relíquias considerava-me tão-somente seu detentor momentâneo. Animava-me apenas o desejo de, pouco a pouco, ir organizando uma colecção que se transformasse numa verdadeira obra de arte. Tinha a impressão de que, juntando todos esses elementos, ficava com o mérito de haver, de certo modo, criado uma obra que era mais digna de subsistir do que propriamente a minha. Apesar de muitas vezes instado, nunca fiz um catálogo completo dessa colecção, por considerá-la ainda incompleta. Teria sido meu desejo, quando a hora da minha morte chegasse, legá-la a uma instituição que aceitasse os requisitos que eu impunha e que consistiam em completá-la cada vez mais no sentido em que eu a havia iniciado, gastando anualmente determinada quantia em novas aquisições que a enriquecessem e a impedissem de cristalizar. Seria, assim, como que uma espécie de organismo que se iria dilatando até se transformar, cinqüenta ou com anos depois da minha morte, num todo cada vez mais perfeito e notável.
Mas a nossa tão torturada geração não pode fazer projectos para o futuro. Quando Hitler chegou, tive eu de sair da minha casa, de perder o gosto pela minha colecção, e de nem sequer saber onde pôr as minhas coisas. Durante muito tempo, depositei muitos dos seus elementos em cofres fortes ou em casa de amigos, mas depois, lembrando-me da opinião de Goeth, que afirmava que os museus e as colecções se anquilosam quando se abandonam a si próprios ou não os desenvolvemos, resolvi dizer adeus a uma obra à qual não podia já dedicar toda a minha atenção e carinho. Uma parte ofereci-a, como recordação, à Biblioteca Nacional de Viena, em especial os elementos que havia recebido como presentes dos meus amigos; desfiz-me de outra parte e o que sucede ou sucedeu ao restante não me preocupa demasiadamente. Sempre me encantou mais a criação do que aquilo que resultava dela. Não lamento muito a perda dos meus bens, pois todas as vítimas desta época, cruelmente inimiga dos superiores prazeres do espírito, deviam ainda aprender estoutra arte: a de se privarem do que outrora fora motivo da sua mais cara dedicação.
Assim se foram passando os anos, trabalhando e viajando, lendo, coleccionando e divertindo-me. Depois, em certa manhã de Novembro de 1931, levantei-me e achei-me com cinqüenta anos. Foi um mau dia para o bom e já velhote carteiro de Salzburgo. Como na Alemanha havia o velho hábito de nos jornais se fazerem referências a um escritor, quando ele atingia essa idade, teve o pobre funcionário de subir a escadaria que conduzia ao meu domicílio, com uma boa carga de cartas e telegramas de parabéns. Porém, antes de proceder à sua leitura, ponderei um pouco no que esse dia realmente significava para mim.
Quando se chega à casa dos cinqüenta, atinge-se como que um promontório de onde se descortina o caminho que até lá percorremos. Então ficamos inquietos e, no silêncio das nossas preocupações, perguntamos a nós próprios se a ascensão ainda prosseguirá. Olhando a cadeia dos montes alpinos e a sinuosidade dos seus vales, absorvia-me também na contemplação das diferentes fases da minha vida e considerar-me-ia jnjusto se não me mostrasse realmente reconhecido pelas suas dádivas.
Ela dera-me mais, de facto, imensamente mais do que eu poderia esperar ou pretender. Como escritor atingira um estádio que jamais poderia ter imaginado alcançar. Ali tinha, na minha frente, uma bibliografia Que a Inselverlag editara em homenagem ao meu aniversário natalício, e onde se mencionavam todos os meus livros e traduções, que abrangiam inclusivamente o búlgaro, o finlandês, o português, o armênio, o chinês e o marata, e que era, na verdade, um outro novo livro. Havia pensamentos meus em todas as formas da escrita -'na dos cegos, em estencgrafia e em muitos idiomas e dialectos exóticos. A minha existência dilatara-se para além de espaço que a minha pessoa física ocupava. Por outro lado, conquistara a amizade dos homens mais ilustres da minha época; tivera ocasião de assistir aos mais belos espectáculos artísticos; vira as cidades mais importantes do mundo, os mais célebres museus e contemplara as mais encantadoras belezas da Natureza. Depois, tivera ainda a grande fortuna de permanecer sempre livre e independente. Não estava manietado a um emprego ou a uma profissão. O meu trabalho constituía o meu prazer e, o que era mais importante ainda, um prazer que dera prazer a outros.
Sobravam-me, por isso, razões para estar tranqüilo. Que poderia suceder-me? Não tinha publicado os meus livros? Quem poderia destruí-los? - assim pensava, insensato, nesse momento feliz. Depois, quem poderia pôr-me fora de casa E dos meus amigos, quem seria capaz de me separar? Pensei em tudo, mas não tive sequer o mínimo pressentimento do que estava para me suceder. Não adivinhei que teria de abandonar o meu lar e de caminhar errante, de terra em terra e de mar em mar, abandonado e perseguido sem descanso; que os meus livros seriam proibidos, anatematizados e queimados, e que o meu nome seria vilipendiado na Alemanha, como o de um vulgar criminoso, e que até muitos daqueles amigos que me enviaram as cartas e os telegramas de parabéns, naquele momento em cima da minha secretária, haviam de empalidecer quando, por casualidade, me encontrassem. Não tive então a mais leve idéia de que tudo o que eu levara trinta ou quarenta anos a edificar poderia desabar num momento, precisamente até no momento em que me encontrava no apogeu, lançando-me com a alma cheia de amargura, e numa idade em que as energias físicas são mais vulneráveis, no desolador imperativo do recomeçar. Mas, quem poderia, naquela altura, pensar em semelhante tragédia? Tudo era tranqüilo à minha volta. Amava a minha obra, e, por ela, amava também a vida. O futuro não podia preocupar-me, porque a minha existência estava assegurada, mesmo que não escrevesse nem mais uma linha. Os livros que já publicara eram bem suficientes para isso. Dir-se-ia, portanto, que tinha realmente atingido a meta e podia descansar. A segurança que havia usufruído na casa de meus pais e a guerra aniquilara fora novamente conquistada pelas minhas próprias forças. Poderia desejar mais!
Mas, coisa extraordinária, precisamente nessa hora em que nada mais tinha que desejar, senti invadir-me uma indizível e estranha inquietação. Dir-se-ia que no meu foro íntimo havia como que um ser misterioso - recordo-me perfeitamente que não era eu - a perguntar-me se aquela vida fácil, sempre tranqüila e calma, sem apreensões e sem choques, em que tudo estava previsto e nada faltava, era realmente a existência que mais me convinha. E, levantando-me, comecei a passear de um lado para o outro, no meu gabinete.
De facto, pensava eu, a vida fora-me realmente favorável e tudo decorrera como desejara nos últimos anos. Mas deveria eu viver sempre assim, sentar-me junto daquela secretária e continuar a escrever livros e mais livros, depois limitar-me a receber percentagens e mais percentagens, transformando-me, pouco a pouco, numa personagem importante que automaticamente se vê forçada a tratar do seu nome e da sua obra com todos os cuidados, respeites e atenções, um ser à margem dos imprevistos, dos imponderáveis e das naturais inquietações da vida? Dar-se-ia o caso que a minha carreira continuasse invariavelmente daquele modo até aos sessenta ou até aos setenta anos? Não seria preferível - continuava a indizível e estranha inquietação a sermonear-me - que esse lago tranqüilo da minha vida fosse perturbado por qualquer novo acontecimento que me arrebatasse, e me desse outro dinamismo, outra força e outra juventude, chamando-me para novas e insuspeitadas lides?
Era o eterno paradoxo que se revela sempre na existência dos pensadores-o constante anseio de calma em plena tempestade, o eterno desejo de vendavais no oásis da quietude. E era assim que, naquele dia em que festejava o quinquagésimo aniversário do meu nascimento, havia no mais íntimo do meu ser como que um secreto desejo de que me sucedesse qualquer coisa que me roubasse àquela existência sem cuidados, me forçasse, não somente a avançar, mas até a recomeçar. Seria receio da velhice, uma reacção contra o declínio, um desafio contra o entorpecimento, ou seria tão-somente uma espécie de vago pressentimento, que então me fez desejar uma existência mais dura para couraçar o meu espírito? Não sei o que foi.
Ignoro-o, pois esse estranho sentimento que nessa hora augusta eu sentia presente nas regiões obscuras do subconsciente não se manifestou de maneira clara e precisa. A minha razão mal se apercebia dele. Dir-se-ia uma idéia que não fizera mais do que passar na tangente do meu raciocínio, uma idéia tão vaga que quase não parecia minha e cuja origem me era completamente desconhecida. Mas as forças imponderáveis que presidem ao meu destino, essas, as que mais de uma vez me lançaram no caminho de realidades que eu nem sequer jamais ousara sonhar, essas compreenderam bem o aviso, creio. A mão forte que havia de despedaçar a minha existência até às profundidades dos seus fundamentos já começava a levantar-se para me coagir, entre as ruínas daquilo que eu fora outrora, a recomeçar uma nova existência, mais dura e imensamente mais difícil.
Incipt Hitler
Que os que viveram numa determinada época da História não possam precisar exactamente a génese dos principais acontecimentos que a caracterizam é certamente um lugar-comum. Não admira, pois, que não me possa lembrar de quando foi a primeira vez que ouvi pronunciar o nome de Adolfo Hitler, este nome que desde há muito está continuamente presente no meu espírito, a todas as horas, a todos os minutos e a quase todos os segundos, o nome daquele que, mais do que nenhum outro, encheu de tragédia o nosso mundo. Tenho, contudo, a vaga impressão de que deveria ter sido logo no princípio do seu aparecimento na cena, pois Salzburgo encontra-se apenas separada de Munique por uma distância que o comboio percorre em duas horas e meia, e tudo o que aí sucedia chegava imediatamente ao nosso conhecimento. Recordo-me, sem contudo poder precisar a data em que isso se deu, de que um amigo, vindo de MuniQue, me comunicou que a cidade estava novamente alvoroçada. Havia ali um agitador violento, um tal Hitler, que fazia comícios que terminavam sempre com Cenas de pancadaria e onde se lançavam vulgares vitupérios contra a república e se acirravam ódios contra os judeus.
O nome não me disse realmente nada, tanto mais que naquela altura surgiam com frequência, na convulsionada Alemanha, agitadores e movimentos revolucionários que se eclipsavam com a mesma rapidez com que apareciam; - o do capitão Ehrhardt com os seus sequazes bálticos; o do general Kapp, o dos Fememôtder; o dos comunistas na Baviera; e o dos separatistas na Renânia e o dos Freicorpsfuhrer. Estes e outros pequenos tumores, que rebentavam com facilidade, não tinham grande eficiência mas provavam que a fermentação interna, provocada pela chaga ainda aberta da Alemanha, continuava. Depois chegou às minhas mãos um exemplar do jornaleco que era o órgão do então nascente movimento nazi, o Miesbacher Anzeiger, que depois se transformou no Volkische Beobachter. Mas Miesbach era uma aldeola qualquer e o jornaleco uma simples vulgaridade. Quem poderia preocupar-se com tais coisas?
Mas, de repente, começaram a surgir nas ruas de Reichenhal e de Berchtesgaden, localidades fronteiriças aonde ia quase todas as semanas, pequenos grupos, que aumentavam continuamente de volume, de rapazes de camisa castanha, botas altas e berrante braçadeira com a cruz gamada. Faziam comícios e manifestações; atravessavam em formatura as ruas, entoando cânticos; colocavam grandes cartazes nas paredes e pintavam por toda a parte a sua cruz. Então compreendi ser impossível que por detrás daquelas milícias juvenis surgidas assim, inopinadamente, não estivesse a mão oculta que movia os cordelinhos e dispunha de muito dinheiro e influência.
Era impossível que esse tal Hitler, que nesse tempo ainda era apenas um orador de cervejaria, tivesse dinheiro para equipar esses milhares de rapazes. Por detrás dele havia, evidentemente, mãos misteriosas que apoiavam o novo «movimento». Nem de outra maneira se podia conceber o caso. pois os uniformes das cíattntrupps (1), esses sequazes que andavam continuamente de um lado para o outro, eram novinhos e magníficos, o que certamente destoava da pobreza geral e contrastava com os fardamentos já bem coçados que os veteranos, os verdadeiros soldados do exército, ainda usavam. Mas além desses uniformes dispunham ainda de magníficos automóveis, motocicletas e camiões, tudo impecàvelmente novo. Por outro lado, todos sabiam que os instrutores dessa multidão juvenil deviam ser membros da própria "Re. chswehr" (2), ao serviço da qual Hitler estivera como informador, os quais tinham a seu cargo iniciar na técnica militar, esse material humano providencialmente posto à sua disposição.
O acaso deu-me a oportunidade de assistir a uma típica e decerto bem estudada e preparada proeza dessas tropas de choque. Numa localidade fronteiriça realizava-se ordeiramente uma reunião de membros do partido socialista democrático. De repente, surgem quatro camiões repletos de nazis armados de cacetes de borracha e, exactamente como outrora vira em Veneza, na Praça de S. Marcos, surpreenderam os circunstantes, que estavam longe de esperar a incursão. Eram os mesmos métodos do fascismo, mas, segundo o hábito alemão, aperfeiçoados com o rigor e a meticulosidade da férrea disciplina militar. Subitamente, ouviu-se um apito e logo a horda saiu dos carros, empunhou os cacetes e espancou todas as pessoas que encontrou na sua frente. Depois, ouviu-se outro apito e regressou aos camiões, os quais, antes que a policia tivesse tempo de intervir ou os operários se pudessem refazer da surpresa, se puseram imediatamente em marcha. O que sobretudo me surpreendeu sobremaneira foi a inexcedível perícia da manobra, aquele inesperado ataque e aquela brusca retirada.
(1) Tropas de choque.
(2) Exército.
apenas comandados por apitos. Adivinhava-se que os rapazes haviam sido exercitados minuciosamente e já sabiam com toda a perfeição como deviam sair e entrar nos carros, de modo a não se atrapalharem e não perderem tempo comprometendo o êxito da empresa. Compreendia-se perfeitamente que não se tratava de agilidade espontânea, mas sim de destreza metódica que só podia ser o resultado de dezenas, talvez até de centenas de exercícios nas casernas e nos campos de manobras. Tratava-se de uma milícia que fora desde o início destinada a incursões terroristas, assaltos e cacetada. O exemplo observado era bem frisiante. Os ecos destas manobras secretas começaram a ouvir-se com mais freqüência em toda a Baviera. Pela calada da noite, saíam de suas casas os jovens dessas secções de assalto e juntavam-se para fazerem exercícios ou expedições, superiormente dirigidos por oficiais do exército, reservistas ou do serviço activo, pagos pelo Estado ou pelo misterioso dinheiro que alimentava o partido nazi. Tudo se passava sem que as autoridades parecessem dar muita atenção a essas misteriosas manobras nocturnas. Dormiam, realmente, ou fingiam dormir? Dar-se-ia o caso que considerassem esse movimento como de pouca ou nenhuma importância, ou facilitavam secretamente o seu desenvolvimento?
Não sei dizê-lo, mas a verdade é que até aqueles que, de maneira mais ou menos velada, o apoiavam, ficaram subitamente apavorados com a audácia e brutalidade de que ele deu provas. Assim, certa manhã, quando as autoridades acordaram, Munique estava nas mãos de Hitler. As repartições públicas haviam sido ocupadas pelas suas tropas e os jornais foram obrigados a anunciar, sob a ameaça das pistolas, que a revolução hitleriana havia triunfado em toda a linha. E eis que, como que caído das nuvens, para onde a ingênua e confiante república até então estivera sonhadoramente voltada, aparecia o general Ludendorff, o deus ex machina, o primeiro dos muitos que julgaram que se podiam servir de Hitler e não foram mais do que seus servidores. Mas - não tenho o propósito de fazer história - o certo é que a famosa revolução, que se anunciara triunfante em toda a Alemanha, havia começado pela manhã e ao meio-dia já estava terminada. Hitler fugira, mas fora preso pouco depois. Dir-se-ia que o movimento se encontrava extinto. Estávamos em 1923. As cruzes gamadas desapareceram e, com elas, eclipsaram-se também as milícias de assalto. O nome de Adolfo Hitler caiu no esquecimento e ninguém mais pensou que tal personagem pudesse ser ainda um factor político digno de nota.
Porém, alguns anos depois, Hitler surgiu novamente no cenário da vida política, e, desta vez, a onda altaneira do descontentamento popular elevouo rapidamente. A inflação, a crise de trabalho, a instabilidade política e sobretudo a inqualificável insensatez dos países estrangeiros haviam modificado profundamente o estado de espírito da nação. O povo alemão, para quem a ordem tem mais valor do que a liberdade ou o direito, estava realmente sedento de normalidade. Assim, quem aparecesse a prometer-lhe a ditosa panaceia - o próprio Goethe afirmara que tinha mais medo da desordem do que da injustiça - podia desde logo contar com o decidido apoio de milhares e milhares de adeptos.
Mas ninguém reparava verdadeiramente na gravidade da situação. Alguns dos poucos intelectuais que realmente se deram ao trabalho de ler o livro de Hitler não só não fizeram caso das suas doutrinas, mas até escarneciam da prosápia que elas revelavam. com referência à Imprensa democrática e liberal, essa, em vez de tocar a rebate, embalava diariamente os seus leitores, afirmando que o movimento hitleriano não tinha base e a sua formidável engrenagem de agitação e propaganda só era possível devido aos subsídios dos magnates da grande indústria. Por outro lado, diziam, as dívidas que contraía eram tão fabulosas que não tardaria em soçobrar. Seria apenas questão de dias. Mas eu estou convencido de que nunca no estrangeiro se soube qual era a verdadeira razão que incitava as grandes organizações políticas da Alemanha a não acreditarem em Hitler e a não darem o devido valor ao seu, então, sempre e cada vez mais, importante movimento.
Ora essa razão é a seguinte: - A Alemanha não tem sido só um país em que o espírito de classe se encontra firmemente arreigado, mas, também, um país onde existe uma espécie de supremo culto pela inteligência. E foi assim que, se exceptuarmos apenas alguns generais, todos os altos cargos do Estado foram sempre ocupados por pessoas de cultura superior, por "acadêmicos", como então se dizia. Enquanto na Inglaterra era possível que utn Lloyd George fosse um estadista, e que outro tanto tivesse sucedido na Itália com um Garibaldi e com um Mussolini, e, na França, com um Briand, personagens verdadeiramente saídas do seio do povo, não sucedia o mesmo na Alemanha pois ali não era concebível que um homem sem estudos liceais, um qualquer, que não possuía um curso superior, que dormia em albergues nocturnos e durante anos levara uma existência escura e que ainda hoje jaz envolta no maior mistério, pudesse ter sequer a ousadia de se aproximar dos cargos outrora ocupados por um barão von Stein, um Bismark ou um príncipe de Bülow. Foi esse supremo culto pelos homens ilustres, pelos "acadêmicos", que incitou os intelectuais alemães a verem em Hitler tão-sòmente o inofensivo revolucionário de cervejaria, quando ele já havia, afinal, graças a malabarismos invisíveis, penetrado profundamente em todas as camadas sociais. Ainda mesmo naquele dia de Janeiro de 1933, em que Hitler se transformou em chanceler, havia muito boa gente, e entre ela muitos dos que o haviam alcandorado, que não acreditavam que ele estivesse durante muito tempo nesse cargo, augurando de pouca dura o domínio do nazismo.
Mas foi nessa altura que o genial cinismo dos métodos hitlerianos assumiu proporções verdadeiramente insuspeitadas. Desde há muito que Hitler conseguira, fazendo promessas a torto e a direito, conquistar posições de destaque em muitos partidos de influência. Cada qual albergava a hipócrita esperança de poder utilizar para os seus objectivos particulares o estranho misticismo que animava esse "unbekannten Soldaten (1)". Hitler utilizou então magnificamente aquela mesma norma, que devia seguir mais tarde, de contrair alianças e fazer juramentos solenes de amizade com os povos que pensava amordaçar. A eficácia desses procedimentos revelou-se logo no início da sua carreira política. E tanto assim foi, tantos prometimentos fizera que no dia em que ascendeu ao poder houve ruidosa festa nos mais opostos sectores da opinião pública. Em Doorn rejubilaram os partidários do imperador, julgando que ele seria o seu mais dedicado e fervoroso servidor, e o mesmo fizeram também as hostes monárquicas de Munique, pois, como aqueles, consideravam-no o "seu" homem. Os nacionalistas esperavam que, com o advento de Hitler, a água começasse também a correr para o seu moinho, e Hugenberg, chefe do partido, conseguira obter um lugar proeminente no novo ministério, julgando que com isso poderia comandar as comportas-mas a verdade é que, algumas semanas depois, foi completamente posto de parte, apesar de todos os acordos. No que respeita aos chefes da grande indústria, a nova situação permitia-lhes respirar mais à vontade, libertados da ameaça bolchevista, graças à ascensão ao poder do homem cujo movimento político durante tanto tempo haviam secretamente subsidiado. A classe média arruinada também manifestava contentamento, pois via no governo aquele Que em centenas de comícios afirmara que o "povo não podia nem devia pagar mais", e o mesmo sucedia com os pequenos comerciantes, que não se haviam esquecido das promessas hitlerianas de combate contra
(1) Soldado desconhecido.
os grandes consórcios comerciais, seus principais inimigos e concorrentes. -outra promessa nunca cumprida, Os militares, esses, receberam-no de braços abertos, porque Hitler era militarista e abominava as idéias pacifistas. E até os próprios socialistas democráticos não viram o advento de Hitler com aquela animadversão que facilmente se poderia supor, pois pensavam que ele os libertaria dos comunistas, os fidagais inimigos que tantas dores de cabeça lhes davam.
Enfim, as correntes políticas mais irreconciliáveis viam nesse admirável "soldado desconhecido", que tudo jurar e prometera, um verdadeiro amigo. Os próprios judeus não se mostravam demasiadamente apreensivos, afirmando que um ministro "jacobino" deixava de ser jacobino e que não era concebível que um chanceler do Império Alemão se preocupasse com os exageros anti-semíticos que defendera quando era simples agitador. Que poderia ele fazer, de resto, num país onde o Direito e a Justiça estavam fortemente estabelecidos, onde havia um Parlamento cuja maioria lhe era adversa, e onde os cidadãos tinham a íntima e inabalável convicção da intangibilidade da sua liberdade e da igualdade de todos perante a lei?
Mas eis que o "Reichstag" (1) é incendiado, as hostes de Gôring tripudiam impunemente e num ápice desaba na Alemanha toda a antiga estrutura do Direito e da Justiça, com verdadeiro espanto se soube que, mesmo em tempo de paz já haviam surgido campos de concentração, e sabia-se que nos quartéis existiam celas especiais onde, em segredo, sem mais processos nem delongas, se liquidavam inocentes. Contudo, ainda mesmo assim, ninguém queria acreditar na possibilidade de subsistir tal regime em pleno século XX. Eram exageros dos primeiros momentos, pensava-se. A verdade, porém, é que se estava apenas no primeiro acto do grande drama. O mundo estremeceu, mas o seu primeiro movimento foi de dúvida, recusando-se a
(1) Parlamento.
acreditar no que era simplesmente inacreditável. Mas já então eu tivera oportunidade de ver os primeiros refugiados, que, caminhando de noite, através das montanhas de Salzburgo ou atravessando a nado o rio fronteiriço, se infiltravam na Áustria. Vinham esfomeados, com o vestuário em desalinho e sobretudo aterrorizados. Estava então bem longe de supor que esses pobres párias famélicos de olhar macerado eram como que os mensageiros que me vinham anunciar um destino idêntico, e que todos seríamos vítimas da crueldade sem fim de um insensato.
A confiança na supremacia do Direito e da Justiça, radicada durante trinta ou quarenta anos no nosso espírito, não se podia perder assim, de um momento para o outro. Estávamos, pois, firmemente convencidos de que na Alemanha, na Europa, e no mundo existia uma consciência moral inviolável, e que, por isso, havia certos exageros que a humanidade jamais poderia tolerar. Como procuro apenas ser justo e verdadeiro, devo confessar que em 1933 e até mesmo em 1934 ainda nós, na Alemanha e na Áustria, não supúnhamos que pudesse vir a suceder a centésima, posso mesmo dizer, a milésima parte daquilo que depois se verificou, se bem que admitíssemos claramente que os intelectuais independentes sofressem contrariedades ou perseguições. Assim, logo após o incêndio do "Reichstag", disse ao meu editor supor bem que os meus livros na Alemanha teriam dentro de pouco os seus dias contados. Nunca mais me esquecerei da sua resposta: "Quem seria capaz de pensar nisso? O senhor nunca escreveu uma única palavra contra a Alemanha e jamais se imiscuiu na política" - exclamou ele, em 1933, ainda incrédulo.
O facto prova que as barbaridades que depois surgiram na Alemanha, tais como queima de livros infamações públicas, ainda eram nesse momento inconcebíveis para pessoas de cultura e larga visão, apesar de Hitler se encontrar há já algum tempo no poder. É que o nazismo agia prudentemente, não revelando logo de uma vez a vastidão dos seus propósitos. Preferia actuar pouco a pouco, para não espantar. O seu método preferido consistia em avançar por etapas. Começava-se por uma primeira pílula, à qual se sucedia uma ligeira pausa para verificar a reacção que provocara, A operação repetia-se e a cada pílula se sucedia uma pausa, para dar tempo a que se visse se não se havia ido demasiado longe e se a consciência moral do mundo se revoltava. Infelizmente, essa consciência moral permanecia indiferente para vergonha e para mal da nossa civilização. Na Europa declarava-se que essas violências apenas diziam respeito à Alemanha, pois tinham lugar dentro das suas fronteiras. Entretanto, o nazismo ia aplicando pílulas cada vez mais enérgicas, que, por fim, acabaram por prostrar todo o continente. Um dos grandes segredos do triunfo de Hitler deve-se, sem dúvida, a esse seu método de tactear e depois aplicar dosagens que aumentavam lenta mas seguramente de violência contra uma Europa, que moralmente, e militarmente também depois, ia enfraquecendo sempre.
O processo que devia conduzir à desejada limitação da liberdade de palavra obedeceu também ao mesmo sistema pilular. Tacteou-se primeiro fizeram-se experiências. A lei que proibia os nossos livros não foi logo publicada - só dois anos depois deveria aparecer. Mas, entretanto, foi decidido um primeiro ataque contra a nossa obra. Encarregaram da operação os estudantes nazis, cuja actuação, extra-oficial, não podia comprometer as altas esferas. Os métodos adoptados consistiam na cópia do que desde há muito fora planeado para preparar "a cólera popular", que permitiria o desencadeamento da luta contra os judeus. No meu caso, deu-se aviso de que era necessário "protestar" publicamente contra os meus livros. E os estudantes alemães, que não deixam nunca perder uma oportunidade de se manifestarem reaccionários, obedeceram imediatamente. Saíram das universidades, irromperam nas livrarias, apanharam exemplares das minhas obras e, de bandeiras desfraldadas e marcando passo, encaminharam-se com os despejos para qualquer grande praça pública. Ali, segundo o velho hábito alemão de outrora - os costumes da Idade Média renasciam - eram pregados no pelourinho ou, como então já não era fácil queimar pessoas, lançavam-se os livros ao fogo onde, sob invectivas e cânticos patrióticos, se reduziam a cinzas. Cheguei a possuir um desses exemplares das minhas obras que estiveram expostos no pelourinho da ignomínia. Tinha ainda a marca do prego que o sujeitara ao madeiro infamante e fora-me oferecido por um estudante amigo, que depois da expedição punitiva conseguira salvá-lo.
Depois de alguns preâmbulos, o próprio Gõbbels, ministro da Propaganda, não hesitou em dar o seu público beneplácito à queima de livros, se bem que a medida ainda tivesse caracter puramente oficioso. O que sobremaneira demonstra como o grande público não era muito influenciado por essas manobras é o facto de que, apesar dos autos-de-fé, de os livreiros terem sido advertidos de que não deveriam pôr os meus livros em exposição e de se proibir a Imprensa de lhes fazer referência, as minhas obras continuaram a vender-se quase no mesmo ritmo dos anos anteriores.
A situação não mudou, enquanto os leitores não estiveram sob a ameaça da penitenciária ou do campo de concentração. Assim, só quando, "para defesa do POVO alemão", saiu o famigerado decreto que considerava crime contra a segurança do Estado a impressão, venda e propagação das minhas obras, se colocou entre mim e os milhares, poderia dizer os milhões dos meus leitores, um abismo intransponível. Fiquei desde então separado daqueles que, na Alemanha, estou convencido disso, teriam muito mais prazer em ler os meus livros do que os desses desaustinados escritores da última hora, que exaltavam o sangue e a morte, pois preferiam, decerto, continuar a manifestar-me a sua simpatia.
Essa acintosa perseguição foi, para mim, apesar de tudo, mais um título de glória do que outra coisa, pois esse absurdo atentado contra o pensamento criador colocava-me em situação idêntica à dos mais ilustres escritores, Tomás Mann, Heinrich Mann, Werfel, Freud, Einstein e alguns outros, cuja obra considero, sinceramente, muito mais valiosa que a minha. Sou tão refractário a tudo quanto me possa fazer passar por mártir, que só acidentalmente me referi ao facto de ter sido incluído num martirológio que atinge tanta gente, mas não deixa de ser assaz curioso que a minha pessoa tivesse sido precisamente aquela que mais preocupações deu aos nazis e até pessoalmente ao próprio Hitler. Houve em Berchtesgaden intermináveis discussões à volta do meu nome, pois, de todos os escritores banidos da Alemanha, foi o que mais acalorados debates suscitou nas altas esferas, e aos prazeres da minha vida posso juntar ainda estoutra modesta consolação: - a de haver algumas vezes dado dores de cabeça a Adolfo Hitler, o momentâneo senhor supremo da época que passa.
Mas já nos primeiros dias do advento do novo regime político eu fora inocentemente vítima de uma medida odiosa. Nessa altura exibia-se na Alemanha um filme baseado na minha novela Brennendes Ge/iemnis (1) e em cujo título, que era o mesmo da novela, ninguém até então reparara. Mas sucedeu que no dia seguinte ao do incêndio do "Reichstag", de cuja autoria os nazis se queriam descartar, insinuando que fora obra de comunistas, houve muita gente que, contemplando os cartazes que anunciavam o filme, não podia deixar de sorrir com certa e visível ironia. Os agentes da Gestapo não tardaram a descobrir qual era a razão que levava essa gente a sorrir quando liam o
(1) Segredo Ardente.
título Segredo Ardente. A reacção não se fez esperar. Nessa mesma noite a polícia motorizada lançou-se em campo para proibir imediatamente todas as exibições que se estavam a realizar em vários cinemas e no dia seguinte o infortunado Segredo Ardente foi inflexivelmente retirado dos cartazes e dos jornais.
Eliminar um nome que lhes causava inquietação e chegar até à queima total de todos os meus livros não eram, realmente, perspectivas de bem difícil realização. Mas a verdade é que, procurando ferir-me, não deixariam também de atingir de certo modo o homem que, naquele momento crítico, tanta falta lhes fazia para dar realce ao regime, aos olhos do mundo - Ricardo Strauss, o mais eminente compositor alemão ainda vivo e para o qual eu acabara precisamente de escrever o texto de uma ópera.
Foi essa a primeira vez que trabalhei em conjunto com Strauss, pois até essa data fora Hugo von Hofmannsthal quem se desempenhara dessa jrussão, escre vendo a letra para todas as suas óperas, desde Elekffa até Rosenkavalizr. Eu não conhecia o compositor, mas, depois do falecimento de Hofmannsthal, Strauss pedira ao meu editor que me comunicasse que tinha o desejo de compor uma nova ópera e desejava saber se eu estaria na disposição de lha escrever.
Compreendi imediatamente quanto havia de honroso, para mim, nesse convite. Desde os tempos em que Max Reger tinha composto música para as minhas Primeiras poesias, senti-me intimamente ligado a esta arte e com prazer vivia entre músicos, mantendo amigáveis relações com Busoni, Toscanini, Bruno Walter e Alban Berg. Mas confesso não haver nenhum artista Que eu estivesse disposto a servir com mais dedicação do que Ricardo Strauss, o último representante dessa Magnífica estirpe de talentosos compositores alemães que começara em Hândel e Bach e, passando por Bethoven e Brahms, chegara aos nossos dias. Aceitei o convite com decidido entusiasmo e logo no primeiro encontro que tive com Strauss lhe propus para tema de uma ópera The Silent Woman (1), de Ben Jonson. Admirou-me então extraordinariamente a maneira rápida e franca como Strauss concordava com tudo o que lhe expunha. A sua clarividência era incomparável, e nunca imaginei que o seu senso de dramaturgo fosse tão preciso, tão operante e tão requintado. Sucedia que às vezes tinha começado apenas a expor-lhe uma idéia e logo ele de súbito lhe dava contornos definidos e o que era verdadeiramente inacreditável - adaptava-a imediatamente ao seu complexo artístico, cujas possibilidades tinha a rara faculdade de vislumbrar. Conheci muitos artistas, mas nunca realmente encontrei nenhum que soubesse, como Strauss, analisar sem tergiversar as suas próprias capacidades criadoras. E foi assim que não hesitou em me declarar que, quando um músico chega aos setenta anos de idade, já não tem aquela inspiração artística que o bafejava nas primeiras horas, confessando que já quase não se sentia com disposição que lhe permitisse criar obras sinfônicas como Till Eulenspiegel ou Tod und Verfcã- (2), pois a música exige uma invulgar concentração de todos os prodígios de estilo de um artista. O talento, porém, não o havia abandonado. Sentia-se ainda disposto a dar novo brilho e nova vida a motivos já delineados, visto que dos seus diferentes aspectos irradiavam idéias que ele depois podia desenvolver. Era por isso que ultimamente tinha tido certa preferência pela ópera, não obstante considerar que nesse capítulo já nada de novo se podia fazer. Wagner subira tão alto que não havia ninguém que o pudesse ultrapassar. Apesar disso - afirmava-me, com um leal e comovedor sorriso - "creio não ter perdido o meu tempo girando de certo modo à sua volta".
Tendo ficado de acordo quanto às linhas gerais do trabalho que eu devia escrever, Strauss, deu-me ainda algumas pequenas instruções, dizendo deixar-me
(1) A mulher silenciosa.
(2) Morte e transfiguração.
absolutamente à vontade, pois o que o inspirava não eram os textos que ele havia escrito, como sucedia com Verdi, mas somente os que tinham um cunho acentuadamente original. Teria, contudo, prazer em que eu incluísse no texto algumas passagens requintadas que servissem de base a certos desenvolvimentos que dessem especial realce ao todo. "Não tenho predisposição para as grandes melodias, como Mozart. Inclino-me mais para os temas breves, mas agrada-me sobremaneira desenvolvê-los intensamente, parafraseando-os e dando-lhes toda a vivacidade possível. Creio que nesse capítulo não há actualmente quem me faça competição" - exclamou. De novo fiquei verdadeiramente encantado com a sua sinceridade. De facto, as suas melodias são parcimoniosas em compassos, mas, apesar disso - recordo O Cavaleiro da Rosa - como são cheias de vida e atingem incomparável perfeição!
Sempre que de novo tinha ocasião de me encontrar com o grande e venerando mestre, repetia-se a minha admiração pela maneira verdadeiramente sincera e persistente como ele se criticava ou observava a si próprio. Lembro-me de que certa vez estávamos sòzinhos, a assistir a um ensaio da sua Agypíischen Helena, (1) no teatro de Salzburgo. As luzes da sala mantinham-se apagadas e Strawss estava completamente absorto na representação. De repente, reparei que começou a tamborilar com certa impaciência nos braços da cadeira, e POUCO depois disse-me: "Não está bem! Não está mesmo nada bem Esta parte não me agrada " Passaram alguns minutos e Strauss voltou a murmurar "Valha-me Deus! Se eu a pudesse elminar!" Parecera-lhe oca e demasiadamente comprida " Depois calou-se e-a? fim de mais alguns minutos murmurou outra vez: "Esta agrada-me. Está bem!"
Strauss analisava e criticava a sua própria obra com toda a franqueza e imparcialidade. Dir-se-ia ouvir
(1) Helena do Egipto.
pela primeira vez aquela melodia e tratar-se de qualquer compositor desconhecido dele. Esta admirável e rara capacidade de autocrítica não o abandonou nunca. Strauss adquirira a noção do seu justo valor e sabia num dado momento quais eram as suas possibilidades criadoras. Não se preocupava muito com o que os outros podiam ou não valer em comparação com ele, e do mesmo modo importava-se também muito pouco com o valor que lhe reconhecessem. O que o encantava era sobretudo a acção,
Mas esta "acção" tinha em Strauss características invulgares. Estava muito longe daquela exaltação, daquele paroxismo que anima certos gênios, daquele desespero de depressão que nos referem as biografias de Beethoven ou de Wagner. Strauss trabalhava com toda a ponderação e calma. Como João Sebastião Bach e como toda uma plêiade de verdadeiros artífices dedicados à sua arte compunha as obras com constância e de maneira bem serena.
Sentava-se à mesa de trabalho às nove da manhã, e recomeçava exactamente no ponto em que havia ficado na véspera. Fazia os primeiros esquemas a lápis, passava a tinta as particularidades e prosseguia assim, sistemática e ordenadamente, até ao meio-dia ou, por vezes, até à uma. De tarde, jogava skat, passava a limpo duas ou três páginas da partitura e, quando era preciso, à noite, regia, no teatro. Tudo era ordenado e calmo na sua existência e, qualquer que fosse a hora do dia ou da noite, era certo que o seu talento de artista estava sempre alerta, luminoso e cristalino. Nos dias de concerto, o criado batia-lhe à porta do gabinete de trabalho e trazia-lhe a casaca. Então Strauss levantava-se, vestia-a, saía. entrava no teatro e dirigia com a mesma certeza e precisão com que algumas horas antes havia jogado uma partida de skat. Na manhã seguinte, sentava-se nova' mente à mesma mesa de trabalho e prosseguia na composição interrompida, com igual ritmo e inspiração.
Lembrando-nos da frase de Goeth, podia dizer-se que Strauss «comandava» o seu próprio talento. A arte era para ele sinónimo de poder, mas de poder vasto, como se deduzia deste seu dito gracioso: «Um bom compositor deve até saber compor uma ementa». As dificuldades, longe de o atemorizarem, excitavam a sua extraordinária capacidade criadora. Recordo-me bem ,da maneira estranha como os seus pequenos olhos azuis brilhavam quando, referindo-se a certo entrecho, me disse : «Nesta passagem dei eu à cantora qualquer coisa que não é de facto nada fácil. Deve-lhe custar muito trabalho, mas é preciso que o faça !»
Nos momentos bem raros em que os seus olhos cintilavam, descobria-se que esse homem invulgar devia possuir bem no íntimo um poder criador extraordinário que. o seu sistema de actividade extremamente ponderado, quase mecânico e sem excitações de nenhuma natureza, não deixava transparecer, tanto mais que a sua cara arredondada e gorda, a sua fronte pouco abaulada e os outros traços fisionómicos, sem nada que os distinguisse do comum, lhe davam, à primeira vista, um aspecto quase vulgar. Mas bastava contemplar aqueles olhos azuis, aqueles olhos transparentes e luminosos, para se adivinhar que, por detrás daquela máscara um tanto grosseira, havia decerto uma grande e mágica força. Foram talvez os olhos mais reveladores que jamais vi num grande artista. Não eram fascinantes, mas denotavam funda perspicácia. Eram os olhos de um homem que sabia o que queria, quanto valia o que fazia.
Após tão memorável encontro, regressei a Salzburgo e. meti imediatamente mãos à obra. Como estava ansioso por saber a impressão que os meus versos causariam em Strauss, mandei-lhe o primeiro acto da ópera logo duas semanas depois. A resposta não se fez esperar, pois recebi imediatamente um postal com a seguinte citação da ópera Meistersíngers: Her erste
(1) Mestres Cantores.
Bar gelang" (1), Quando lhe enviei o segundo acto, a saudação foi muito mais enternecedora. Citava as primeiras passagens da sua balada: Ach, dass ich dich gefunden, du liebes Kindl (2). A satisfação, podia dizer o entusiasmo, que Strauss me patenteava, tivera tal influência no meu trabalho que foi com verdadeira alegria que continuei a escrever. O texto foi aceite sem rectificações. Strauss apenas me pediu que lhe introduzisse mais três ou quatro versos, para um novo tema. Uma sincera amizade nasceu então entre nós. Ele vinha à minha casa e eu ia visitá-lo a Garmisch, onde os seus dedos longos e finos foram, pouco a pouco, tocando os trechos em que a ópera ia tomando corpo. Logo então ficou decidido, livremente, sem contratos nem cláusulas complicadas, que, após essa ópera, deveria escrever outra, cujos fundamentos já haviam sido delineados.
Quando, em Janeiro de 1933, Adolfo Hitler subiu ao poder, já a partitura para piano da nossa ópera Dre Schweigsamz Frau estava pronta e o seu primeiro acto quase totalmente instrumentado. Algumas semanas depois, era formalmente proibido representar nos teatros alemães peças de autores dramáticos não arianos, proibição que abrangia até aquelas em que autores judeus tivessem de qualquer modo colaborado. O anátema nem sequer respeitou os mortos, pois chegou-se até ao extremo, com grande indignação dos amigos da música, de mandar retirar da frente da Gewandhans de Leipzig a estátua de Merídelssohn. Pela minha parte, supus logo que a nossa ópera estava condenada. Era natural que Strauss pensasse em dar por findo o trabalho e tomasse a iniciativa de prócurar
(1) A primeira parte está bem.
(2) O! Como foi belo haver-te encontrado, querido.
outro colaborador. Mas, em vez de assumir essa atitude, escrevia-me continuamente, admirando-se do meu pessimismo e dizendo que me preparasse para escrever o texto da segunda ópera, visto não conceber que houvesse alguém que o pudese privar da minha colaboração. Devo dizer que o seu procedimento para comigo foi sempre de absoluta lealdade, enquanto isso lhe foi possível, naturalmente, se bem que tivesse, ao mesmo tempo, tomado certas atitudes que de nenhum modo me agradavam - inclinando-se para o lado dos mandantes; algumas vezes chegou a conferenciar com Hitler, Gõring e Gõbbels e nem teve relutância em aceitar o cargo de presidente da nazificada Câmara de Música da Alemanha, numa época em que o próprio Furtwangler se mantinha renitente.
O gesto de Strauss teve extraordinário significado, porque, naquele momento, não só os melhores escritores mas também os mais importantes músicos haviam decididamente voltado as costas ao nazismo. As poucas excepções que se contavam, de partidários ou de outros que depois aderiram, eram personagens de pouco renome. Poder contar então com Strauss, o mais eminente compositor alemão, significava para Gõbbels e para Hitler uma grande vitória, embora não fosse mais do que o título puramente decorativo. Hitler que, segundo Strauss me contou, já nos seus velhos tempos de austríaco errático fora a Graz, com dinheiro que conseguira arranjar sem se saber como, para assistir à primeira representação de Salame, distinguia-o de maneira bem clara, pois nas festas de Berchtesgaden dava-se a primazia a Wagner e às baladas de Strauss.
A ati'tude do grande compositor foi, porém, simplesmente ditada por imperiosas necessidades. O seu orgulho de artista, como francamente declarava, colocava-o à margem da política, Estivera ao serviço do imperador da Alemanha, como chefe da-orquestra, e instrumentara para ele marchas militares; depois estivera com a mesma facilidade ao serviço do imperador da Áustria, onde dirigira a orquestra da Casa Imperial em Viena, o que não impediu de ser mais tarde persona gratíssima da república, tanto no primeiro como no segundo país. Nessas circunstâncias, partir ao encontro do nazismo era para Strauss uma necessidade que se impunha, pois tinha contas muito graves a ajustar com esse regime. O seu filho estava casado com uma judia e o avô temia seriamente que os netos, por quem sentia grande amor, fossem postos fora da escola como indesejáveis; por outro lado, a sua nova ópera levava o perigoso estigma da minha colaboração e as anteriores tinham o de Hugo von Hcfmannsthal, que não era "ariano puro". Acrescia ainda a nada agradável circunstância de o seu editor ser judeu. Em presença destas realidades, Strauss considerou que devia deitar água na fervura, e deve confessar-se que fez todo o possível para atingir o seu objectivo. Aparecia a dirigir orquestras onde os novos senhores desejavam e chegou até a compor a música de um hino especial para os jogos olímpicos. Nessa altura escreveu-me com a sua habitual franqueza acerca desse assunto e compreendia-se que o seu entusiasmo era muito relativo. No fundo e em substância, o seu sacro egoísmo de artista tinha apenas em mira salvar a sua obra e tentar tudo para que a sua nova ópera, que sinceramente apreciava, fosse representada.
Essas transigências via-as eu, porém, com extremo desagrado. Não era difícil supor-se que eu procurava por caminhos tortuosos obter algum favor que me pusesse à margem do infamante procedimento oficial que distinguia os escritores arianos dos judeus, ou que, pelo menos, de qualquer modo o tolerasse. Houve muitos amigos que então me escreveram, pedindo que lavrasse público protesto contra a representação dessa ópera numa AleVianha nacionai-socialista. Mas considerei que não devia aceder a essa sugestão. Em primeiro lugar, porque sou por temperamento contrário aos protestos público's, e depois porque não queria criar embaraços a um gênio da envergadura de Ricardo Strauss, o maior compositor do seu tempo, o qual tinha setenta anos, gastara três com a mencionada ópera e durante todo esse tempo me distinguira com uma amizade que talvez não deixasse de revelar certa coragem da sua parte. A atitude que me parecia mais aconselhável era a de me manter silencioso e a de deixar correr os acontecimentos, tanto mais que eu sabia perfeitamente que a minha passividade seria a melhor maneira de contrariar os secretos desígnios dos novos mentores da cultura alemã; tanto a nazificada Câmara da Literatura como o Ministério da Propaganda teriam imenso prazer em encontrar qualquer pretexto que lhes permitisse desencadear uma ofensiva contra o eminente compositor. De facto, foi com esse fim que o texto que escrevera foi submetido a rigorosa censura de uma infinidade de funcionários. Como teriam gostado que na ópera Schweigsarne Frau houvesse uma passagem idêntica à que se encontra na Rosenkavalier, onde há um jovem que sai do quarto de uma mulher casada! Se assim fosse, poder-se-iam escudar com a necessidade de defender a moral alemã, mas, apesar de toda a sua boa vontade, a minha obra não continha nada de imoral. Depois da pesquisa estendeu-se a todos os meus livros, mas nem mesmo assim foi possível demonstrar que tivesse alguma vez escrito qualquer palavra contra a Alemanha (nem mesmo contra qualquer outra nação) ou que me tivesse embrenhado em questões políticas.
Como o tão desejado pretexto não surgia, só lhes restavam dois caminhos a seguir: prescindir dele e recusar abertamente ao velho mestre a representação da sua ópera, a esse mesmo mestre a cuja guarda fora confiado o estandarte da música do regime nacional-socialista, ou, se assim não fosse, teriam de admitir
- suprema afronta - que o nome de Stefan Zweig aparecesse - segundo manifesto desejo de Ricardo Strauss-como sendo o do autor do libreto e que assim, como tantas vezes, outrora, voltasse a manchar de novo os cartazes do teatro alemão. Encerrado na torre do meu silêncio, olhava com íntima satisfação para aquela desmedida azáfama dos mentores do nazismo e começava a pensar ser muito provável que, apesar da minha atitude da retraimento, ou talvez mesmo por causa dela, o meu trabalho estava na iminência de causar engulhos às altas esferas da política.
O partido nazi, que fora protelando qualquer decisão, viu-se, porém, forçado, no princípio de 1934, a tomar uma atitude. Era preciso agir contra a doutrina ou contra Strauss; chegara-se a um ponto em que já se não admitiam paleativos. Tudo estava a postos para a representação a partitura e o texto já se encontravam terminados há muito tempo; os principais papéis já distribuídos e até se havia começado com alguns ensaios e o próprio teatro de Dresde já tratara da indumentária. Porém, as diferentes entidades oficiais, Gôring e Gõbbels, a Câmara da Literatura e o Conselho Cultural, o Ministério da Instrução e a guarda de Streicher não haviam ainda conseguido entender-se. Parece inacreditável, mas a verdade é que a ópera quase se transformou num problema de Estado. Como nenhuma dessas personagens ou entidades queria assumir as responsabilidades de "autorizar" ou "proibir" a sua representação, foi o caso submetido à apreciação pessoal do senhor da Alemanha e mentor máximo do partido nazi: - Adolfo Hitler.
Os meus livros já antes haviam merecido a honra de serem lidos e discutidos pelos nazis, particularmente o "Fouché", onde encontraram o verdadeiro protótipo do demagogo, mas confesso que nunca esperei que o Führer se desse ao incômodo de estudar ex officio o meu poema, tanto mais que Gòbbels e Gõring já tinham tido esse trabalho. Mas, mesmo assim, não foi fácil tomar-se uma decisão, visto que, segundo depois consegui saber, houve ainda à volta do assunto uma boa série de conferências. Por fim, Ricardo Strauss foi convidado a ir à presença do Todo-Poderoso, o qual lhe comunicou que, embora a representação da ópera contrariasse a lei da nova Alemanha, tinha resolvido autorizá-la, a título puramente excepcional. Quero contudo acreditar que essa atitude foi tomada de tão boa vontade e boa fé como as que conduziam à assinatura do tratado com Estaline e Molotov.
Por fim, chegou o triste dia para o nacional-socialismo, em que o meu tão detestado nome apareceu nos cartazes que anunciavam a estreia de outra ópera em que colaborara. Sabendo que o teatro estaria cheio de uniformes castanhos e dizendo-se até que Hitler assistiria a uma das representações, tomei a decisão de não aparecer lá. A ópera agradou muito e devo dizer que grande parte dos críticos musicais aproveitaram o ensejo para manifestar, uma vez mais, a última, a sua aberta oposição à teoria radical, endereçando-me agradecimentos e rasgados elogios, ao mesmo tempo que os teatros de Berlim, Hamburgo, Francfort e Munique anunciavam o seu desejo de a representar também.
Estava-se nesta disposição, quando, subitamente, após o segundo espectáculo, ribombou um trovão medonho. Revogara-se pura e simplesmente a ordem dada antes - a representação da ópera foi proibida em Dresde e em toda a Alemanha. Mas isso não foi tudo, pois leu-se, com inacreditável espanto, que Ricardo Strauss pedira a demissão de presidente da Câmara de Música da Alemanha. Era inevitável: - havia sucedido qualquer coisa de muito grave nos bastidores das altas esferas políticas.
As causas dessa fulminante decisão só muito mais tarde chegaram ao meu conhecimento. O que sucedeu foi o seguinte: Strauss havia-me escrito, insistindo comigo para escrever a letra para a outra ópera, mas a carta que me enviara caiu nas mãos da Gestapo. Tendo-lhe sido apresentada, viu-se forçado a pedir imediatamente a demissão e a sua ópera foi condenada. Em língua alemã só voltou a ser representada na democrática Suíça e em Praga. Mais tarde, porém, subiu à cena, em italiano, no Scala de Milão, com o beneplácito de Mussolini, que nessa altura ainda não havia sido contaminado pelas teorias do racismo. Mas o povo alemão nunca mais teve licença de ouvir nem sequer uma única nota, da, sob muitos aspectos, notável ópera, que o maior compositor alemão daquele tempo escrevera.
Enquanto os acontecimentos se iam ruidosamente sucedendo, procurava eu trabalhar com calma no estrangeiro, pois não me era muito propícia a intranquilidade que começava a reinar na Áustria. Salzburgo estava tão próximo da fronteira que da minha casa podia ver, à simples vista desarmada, os picos de Berchtesgaden. onde Adolfo Hitler se instalara. Era, na verdade, uma vizinhança bem pouco agradável e nada tranquilizadora. Contudo, oferecia-me a possibilidade de ter da situação que se oferecia à Áustria uma ideia muito mais exacta do que os meus amigos de Viena, onde os oradores de «café» e até os familiares dos ministérios supunham que o nazismo era tão-sòmente um fenómeno «do lado de lá» que de nenhum modo os deveria preocupar.
Porque se haviam de preocupar ? Não tinham o grande partido socialista-democrático, que contava no seu seio com cerca de cinquenta por cento dos habitantes do país ? E não estavam também os democratas-cristãos firmemente dispostos a colaborar com os socialistas para a defesa comum contra o nazismo, desde que os «cristãos» da Alemanha hitleriana haviam voltado as costas à Cristandade, afirmando peremptoriamente que o seu Fiihrer estava «acima de Jesus» ? E depois.-pensavam ainda - não contamos nós com a protecção da França, da Inglaterra e com a da Sociedade das Nações e não tomou Mussolini a resolução de velar pela Áustria, transformando-se no firme guardião da sua independência ?
Os próprios judeus não se mostravam mais preocupados, como se as medidas que privavam os seus irmãos do exercício da medicina, da advocacia e das outras profissões liberais estivessem a ser tomadas na China, e não num país vizinho, apenas a alguns quilômetros de distância, e onde se falava a mesma língua que eles falavam. E continuaram no sossego dos seus lares ou guiando pacatamente os seus automóveis, tanto mais que cada qual tinha sempre de reserva a consebida sentença do "ora, ora, isso não pode durar muito tempo!" Mas eu lembrava-me muito bem do que me dissera o meu editor de Leninegrado, durante uma conversa que com ele tive, quando da minha curta viagem à Rússia. Contando-me que outrora fora rico e possuíra magníficas colecções e tendo-lhe perguntado porque não fugira oportunamente do seu país quando a revolução rebentou, como tantos outros fizeram?, respondeu-me "Ah Quem poderia então supor que a aventura de uma república de comités de operários e soldados pudesse durar mais de quinze dias!" Não havia dúvida era a mesma ânsia de perdurar que obnubilava os olhos dos que não queriam ver.
De Salzburgo, porque estava mais próximo da fronteira, o panorama era outro, evidentemente. Notava-se o contínuo vaivém misterioso de rapazes que de noite atravessavam o pequeno rio raiano e iam exercitar-se em território alemão, e os pacatos e inocentes "turistas" que, de automóvel ou de ski, atravessavam a fronteira, lançaram-se à obra de organizar por toda a parte as suas "células". Depois, começaram a falar mais alto, por fim já ameaçavam, declarando que a quem não aderisse a tempo ser-lhe-ia depois apresentada a respectiva conta. A ameaça parecia surtir efeito e adivinhava-se que os funcionários e a polícia e muitas outras pessoas das várias esferas sociais começavam a vacilar.
Os pormenores mais insignificantes da nossa existência quotidiana são por vezes os mais reveladores. Ora, em Salzburgo vivia um escritor bem conhecido com quem eu, havia cerca de trinta anos, mantinha fraternais e amigáveis relações. Tratávamo-nos por tu. Oferecíamo-nos mutuamente livros e encontrávamo-nos todas as semanas. Certo dia, avistei-o na rua, na companhia de um sujeito que não conhecia. De repente, o meu velho amigo parou em frente de qualquer montra e, voltando as costas para o meu lado, dava a impressão de estar a mostrar qualquer coisa à pessoa que o acompanhava. "É realmente estranho que me voltes as costas" - pensei - pois juraria que me tinha visto. "Todavia - ponderei ainda "- talvez não fizesse isso propositadamente". Mas eis que, no dia seguinte, esse mesmo amigo me telefona e pergunta se não poderia visitar-me naquela mesma tarde, pois teria muito gosto em falar comigo. Acedi, se bem que o pedido me causasse admiração, porque quase sempre nos reuníamos no café. Conversámos e tendo notado que nada havia que justificasse a pressa que ele manifestara, adivinhei imediatamente que o seu propósito era manter a nossa velha amizade, apesar de não querer dar provas dela em público, para que não se pudesse dizer que mantinha relações com judeus. E comecei a cismar no caso-, tanto mais elucidativo quanto ê certo que, nos últimos tempos, um bom número de habituais visitas da nossa casa começava a primar pela ausência. Havia estranhos zunzuns à minha volta, com certeza.
Não pensara até então em sair de Salzburgo, mas tomei logo a decisão de o fazer e até com mais satisfação do que nunca. Iria passar o Inverno no estrangeiro, afastando-me de um ambiente onde começava a sentir-me mal. Todavia, estava longe de supor que essa viagem seria já como que um prelúdio do meu adeus ao lar, naquele Outubro de 1933.
O meu desejo teria sido passar em França os meses de Janeiro e Fevereiro, dedicado aos meus trabalhos. Gostava imenso desse belo e culto país, para mim como que uma segunda pátria, onde eu não tinha a sensação de ser um estrangeiro. Os mais
notáveis intelectuais da época, Valéry, Romain Rolland, Jules Romains, André Gide, Roger Martin du Gard, Duhamel, VJdrac e Jean Richard Blicch, eram, desde há muito, meus amigos, e os meus livros tinham quase
tantos leitores em França como na Alemanha. Era,
enfim, um ambiente em que me sentia à vontade. Tinha especial predilecção por tudo quanto era francês e principalmente uma grande admiração por Paris, de tal modo que, quando desembarcava na Gare du Nord, não tinha a impressão de chegar a uma terra estranha, mas única e simplesmente a de "regressar" à minha.
Mas, desta vez, partira muito mais cedo de Salzburgo e o meu propósito era chegar a Paris só depois do Natal. Onde passaria os meses que ainda tinha diante de mim? Estava indeciso lembrei-me então de que havia já mais de um quarto de século, desde os meus tempos longínquos de estudante, que não voltara mais à Inglaterra. Porquê aquela contínua predilecção por Paris? Não seria bom que passasse também alguns dias em Londres, para, com outros olhos, ver novamente os museus, as paisagens e a cidade que contemplara outrora? Se bem o pensei, melhor o fiz. Em vez de tomar o expresso de Paris, tomei o de Calais e, num dia de Novembro, necessariamente nevoento, encontrei-me de novo, depois de cerca de trinta anos de ausência, em Victoria Station. A única novidade que notei foi a de não ir de cab (1) para o hotel, como dantes sucedia, mas de automóvel, pois quanto ao nevoeiro era o mesmo de sempre, aquele nevoeiro frio e levemente acinzentado que envolvia tudo. Era exactamente igual ao que vira trinta anos antes. Ainda nem sequer havia visitado a cidade, mas já reconhecia aquela sua bem característica atmosfera abafada e húmida.
(1) Trem de um cavalo.
A minha bagagem era muito reduzida e correspondia exactamente às minhas perspectivas, que eram ainda mais pequenas, pois em Londres quase não conhecia ninguém, visto que os contactos entre escritores continentais e os das Ilhas Britânicas eram raríssimos. Os ingleses viviam completamente encerrados numa atmosfera específica com a sua história própria e as suas tradições, que nos eram estranhas. Não me lembro de ter recebido nunca um livro dedicado por um escritor inglês, apesar da grande quantidade de presentes dessa natureza que, vindos de todos os pontos do mundo, continuamente chegavam a minha casa. Vira Shaw uma vez, em Hellerau; Wells viera visitar-me a Salzburgo e as minhas obras estavam traduzidas em inglês, mas eram muito pouco conhecidas. A Inglaterra foi o país onde sempre tiveram menos influência. Enquanto que com os meus editores americanos, franceses, italianos e russos mantinha relações pessoais de amizade, nem sequer tivera ainda a oportunidade de ver qualquer membro da casa editorial que publicava os meus livros na Inglaterra. Assim, tinha a impressão de que se iam repetir os dias de aborrecimento que havia trinta anos ali vivera.
Mas sucedeu precisamente o contrário daquilo que esperava. Dias depois da minha chegada, sentia-me maravilhosamente em Londres. A cidade era a mesma de uma maneira geral, mas eu é que já não era o mesmo. Tinham decorrido trinta anos e a febre da guerra e do após-guerra fizera-me ansiar por momentos de tranqüilidade e de calmo abandono, longe do delírio da política. É certo que na Inglaterra também existiam partidos, liberais e conservadores, Whigs e Tories. e trabalhistas. Todavia, eu estava à margem das duas discussões, e o mesmo sucedia quanto a possíveis atritos, antagonismos e veladas rivalidades dos círculos intelectuais. Sentia-me bem disposto no ambiente amável e calmo da vida de Londres, no qual o escalracho do ódio não penetrava. De facto, estava saturado da existência de contínua agitação dos últimos anos e cansado da luta que era obrigado a manter para me não deixar arrastar para a feira das discussões. Na Inglaterra as pessoas não estavam tão excitadas como no Continente. Observava-se mais delicadeza e seriedade nas relações sociais. A moralidade pública não fora degradada pelo vírus da inflação. Cada qual vivia em paz a sua própria vida, preocupando-se mais com a sua horta e os seus prazeres do que com os outros. Era simplesmente magnífico; podia respirar e pensar à vontade. Mas então surgiu outra perspectiva mais sedutora ainda um novo empreendimento literário.
O caso deu-se assim Tinha acabado de aparecer o meu livro Maria Antonieta e estava a ler as provas da minha obra sobre Erasmo, em que procurava traçar uma imagem espiritual do humanista que, não obstante haver visto, muito melhor do que os pretensos salvadores que tudo adivinham e sabem, o mal que contaminava a sua época, não teve infelizmente, o condão de se fazer compreender. Quando terminasse este trabalho, onde, ainda que veladamente, se sentiam muitos reflexos da minha maneira de ser e de pensar, esperava dar princípio a um romance, em que havia muito tempo pensava, cansado já de escrever biografias. Mas sucedeu que, logo no terceiro dia depois de chegar a Londres, a minha paixão por manuscritos me levou ao Museu Britânico, onde, entre muitos outros que encontrei expostos, estava um referente à execução de Maria Stuart. Quase instintivamente perrguntei a mim próprio o que havia realmente de verdade acerca desse drama. Teria Maria Stuart, de facto, responsabilidades na morte do segundo marido? Como não tinha nada para ler aos serões, decidi comprar um volume sobre o assunto. E adquiri-o, realmente.
Era um livro ingênuo e tosco, que defendia e exaltava Maria Stuart, apresentando-a como santa, insatisfeito, comprei outro no dia seguinte, o qual Afirmava, pouco mais ou menos, o contrário. E foi assim que o problema começou a interessar-me. Procurei então ler um trabalho verdadeiramente sério e imparcial, mas não me foi possível encontrá-lo. Contudo, nem por isso esmoreci, e continuei, durante semanas, a pesquisar e investigar nas bibliotecas. Deste modo, quase sem dar por isso, comecei a escrever um livro sobre Maria Stuart. Quando regressei à Áustria, no princíp o de 1934, fi-lo na firme disposição de voltar novamente à já então estimada cidade de Londres, para ali o terminar tranqüilamente.
Não necessitei de mais de dois ou três dias para ver como a situação na Áustria havia piorado durante a minha ausência. Chegar da calma e ordenada atmosfera da vida inglesa à febre e nervosismo da Áustria, era como que estar num dia ardente de Julho num ameno salão de Nova Yorque, onde o ar fosse fresco e continuamente renovado, e ser-se de súbito lançado no calor asfixiante das ruas. A pressão do nazismo começava a preocupar vivamente a burguesia e as esferas religiosas. A impaciente Alemanha apertava cada vez mais o torniquete e Dollfuss, que ansiava por salvar a Áustria das garras de Hitler, procurava desesperadamente um salvador. A França e a Inglaterra estavam, não só demasiado longe, mas até demasiado indiferentes, e Praga ainda não havia esquecido a sua velha rivalidade e rancor contra Viena. Ficava a Itália, que permanecia disposta a proteger a Áustria com decidida influência política e econômica, para assegurar o domínio das gargantas dos Aloés e de Trieste. Mas Mussolini exigia por essa protecção um preço exorbitante: - a Áustria devia abraçar o fascismo, renunciar ao parlamentarismo e, assim, à democracia. Não era possível enveredar por esse caminho sem se entrar em luta com o partido socialista, a mais forte organização política da Áustria; para o vencer, porém, só havia um meio:-a força bruta.
Fora com esse propósito terrorista que um antecessor de Dollfuss, Inácio Seipel, fundara a Heimwehr (1), organização que, vista de fora, dava a impressão de um complexo disparatado e extremamente inconsciente, constituído por advogados sem renome, oficiais reformados, engenheiros sem emprego, enfim, toda uma série de homens obscuros que de nenhum modo se poderiam entender perfeitamente. A certa altura, apareceu-lhe uma espécie de chefe na pessoa do jovem príncipe de Starhemberg, que, apesar de outrora haver estado aos pés de Hitler e de ter proferido vitupérios contra a república e contra a democracia, se levantava contra o seu antigo mestre, afirmando-se disposto a, com os seus mercenários, "fazer rolar cabeças". Na realidade, ninguém sabia quais eram os objectivos da Heimwehr, mas adivinhava-se não serem outros senão os da conquista do poder, tendo a empurrá-la para a frente a mão oculta de Mussolini. O que esses austríacos, que se diziam patriotas, ignoravam era que as armas que o fascismo lhes oferecia serviram para cortar o tronco onde eles próprios se haviam empoleirado.
O partido socialista teve uma visão mais clara das realidades. Era evidente que não tinha receio de uma luta aberta e decisiva. possuía as suas armas e Podia desencadear uma greve geral que paralisasse, de um momento para o outro, toda a actividade nos serviços de transportes e indústrias, Mas, por outro lado, não ignorava que Hitler estava precisamente à espera da "revolução social" que lhe desse o magnífico pretexto para penetrar na Áustria como "salvador". Considerou, assim, que seria preferível tomar uma atitude conciliadora que permitisse um entendimento entre todos os partidos austríacos, ainda que à custa de grandes sacrifícios, que chegavam até a incluir
(1) Milicia nacionalista.
o do parlamento. Esse entendimento era desejado por todos os homens sensatos, por a Áustria se encontrar numa posição muito delicada em presença da ameaça hitleriana. O próprio Dollfuss, ambicioso e maleável mas que tinha, contudo, o senti'do das realidades, parecia aceitar esse compromisso. Mas o jovem Starhemberg e o seu acólito major Fey, o mesmo que teve uma acção deveras estranha no atentado que vitimou Dollfuss, queriam que o Schutzbund (1) entregasse as suas armas e que as liberdades políticas fossem suprimidas. Os socialistas, porém, não estavam dispostos a aceitar essa imposição. Os dois grupos contendores ameaçavam-se e no ar havia como que indicios do próximo deflagrar de tempestade. Fiquei inquieto e, em presença do nervosismo geral, lembrei-me da frase de Shakespeare: So foul a sky clears now wont a storm (2).
Estivera apenas dois ou três dias em Salzburgo, seguindo imediatamente para a capital. De súbito, nos primeiros momentos daquele Fevereiro, desabou o temporal. A gente da Heimwehr invadiu a Casa Sindical de Linz, a pretexto de se apoderar do armamento que se dizia estar láh escondido. O operariado respondeu à agressão com a greve geral, e Dollfuss deu ordem para que a força pública liquidasse pelas armas uma "revolução" que os próprios que a faziam não tinham desejado. O exército avançou com as metralhadoras e canhões contra os trabalhadores de Viena. Durante três dias lutou-se, ferozmente, nas ruas da cidade, de casa para casa. Era a última vez, antes da guerra de Espanha, que a democracia, na Europa, procurava barrar o passo ao fascismo. Mas os operários tiveram de se render, subjugados pela superioridade do material bélico contra eles empregado.
Estive em Viena durante esses três dias e, por
(1) A Milícia democrática.
(2) Atmosfera tão carregada não se desanuvia será borrasca.
isso, deveria ter sido testemunha ocular dessa decisiva batalha que selou o suicídio da independência austríaca. Mas, como quero ser uma testemunha verdadeira, confesso, por muito inverosímil e paradoxal que o caso possa parecer, que de facto, nada vi dessa revolução. Quem está animado do firme propósito de dar uma idéia tão justa quanto possível da sua época deve ter também a coragem suficiente para não permitir que no espírito dos que o lêem se alberguem esperanças vãs. O que caracteriza precisamente as revoluções modernas é que, apesar de se verificarem em cidades imensas, se localizam quase sempre apenas em algumas das suas ruas, não admirando, desse modo, que nem todos os habitantes as possam presenciar. Foi o que sucedeu comigo, pois, se é certo que estive em Viena durante os históricos acontecimentos que ali se desenrolaram em Fevereiro de 1934, devo declarar que não assisti a eles, apesar de tudo o que significavam, e até que nem sequer estive ao corrente das diferentes fases que iam tomando. O canhão troava, assaltavam-se casas e havia mortos às centenas - mas não vi absolutamente nada. Qualquer pessoa em Nova Iorque, em Londres ou em Paris, que lesse o jornal, sabia melhor o que se estava a passar em Viena do que nós, que nos encontrávamos em plena cidade e que com razão se poderia supor sermos testemunhas de tudo quanto ali acontecia.
Vivemos numa época realmente espantosa e paradoxal. Tive muitas vezes ocasião de observar que há nas grandes cidades muitas pessoas que estão menos informadas acerca dos acontecimentos que se desenrolam a alguns passos de suas casas do que as que se encontram a muitos quilômetros de distância. Um exemplo edificante encontra-se no seguinte caso. Quando, alguns meses mais tarde, Dollfuss foi assassinado, horas depois já a notícia era conhecida em Londres, precisamente às cinco e meia da tarde, apesar de o atentado se ter dado ao meio-dia. Telefonei imediatamente para Viena e a resposta obtida foi de tal modo que adquiri a convicção de estarem os funcionários do Ministério dos Estrangeiros muito menos informados do que se passara a dois passos das suas repartições do que qualquer simples transeunte das ruas de Londres. É inacreditável, mas é assim mesmo. As minhas recordações da revolução de Viena são também dessa natureza, isto é. são negativas, por onde se prova ser hoje difícil para qualquer mortal tomar nota de acontecimentos, tantas vezes decisivos para o mundo e até propriamente para a sua pessoa, se não tem a sorte de se encontrar no momento oportuno no lugar onde eles se desenrolam. Tudo o que sei ou vi dessa revolução foi o seguinte: Devia encontrar-me à noite com Margarette Wallmann, regente dos bailados da Ópera, num dos cafés da Ringstrasse. Dirigi-me a pé para essa artéria citadina e, quando estava na disposição de a atravessar, fui subitamente abordado por guardas armados de espingardas, cujos velhos uniformes denotavam terem sido vestidos à pressa. Perguntaram-me para onde me dirigia e, tendo-lhes respondido que ia para o café J... deixaram-me seguir em paz. Ignorava completamente por que razão esses homens armados se encontravam na rua, se bem que a essa hora já houvesse tiroteio nos arredores da cidade, e que não impedia que no centro ainda nada se soubesse. Só muito mais tarde, quando regressei ao hotel e quis pagar a conta, pois desejava partir na manhã seguinte para Salzburgo, o porteiro me disse que talvez não me fosse possível fazê-lo, pois os ferroviários estavam em greve e constava que nos bairros excêntricos da cidade se estavam a dar acontecimentos graves.
No dia seguinte, os jornais anunciavam muito sumariamente ter havido uma insurreição socialista, mas que o movimento estava em vias de ser dominado. Na realidade, a luta só nesse dia devia atingir o auge, e o governo que começara por metralhadoras, terminou por ordenar que as casas onde os revoltosos se haviam entrincheirado fossem bombardeadas.
Confesso que também não ouvi o ribombar do canhão e se, nessa altura, os socialistas, os nazis ou os comunistas se tivessem apoderado da Austria, o facto ter-me-ia passado tão despercebido como fora outrora para os habitantes de Munique a ocupação da sua cidade por Hitler, de que só tiveram notícia quando se levantaram pela manhã e leram o Münchner Neuesten Nachrichten.
A vida no centro da cidade continuava no seu ritmo normal, enquanto nos bairros afastados se combatia com ardor e nós íamos ingenuamente acreditando nos comunicados oficiais. Segundo eles a ordem estava absolutamente assegurada em toda a parte. Recordo-me de que, indo à biblioteca Nacional, onde tinha que fazer, notei que os leitores estavam sentados e liam tranquilamente como se nada houvesse de anormal. O comércio permanecia aberto e o público não dava sinais de preocupação ou receio. Só ao terceiro dia a verdade começou a transparecer, mas então já tudo havia acabado. No dia seguinte, começaram os comboios a circular novamente e aproveitei a oportunidade para regressar a Salzburgo. Quando ali cheguei, fui logo interpelado em plena rua por dois ou três conhecidos, os quais, inquietos, me pediram que lhes dissesse a verdade acerca do que se passava em Viena. E eu, que, de facto, havia estado na cidade e, portanto, podia justamente ser considerado como "testemunha ocular" dos acontecimentos tive de lhes confessar sinceramente o seguinte - "Não sei nada, meus amigos. Aconselho-os a que comprem um jornal estrangeiro".
Em Salzburgo esperava-me, contudo, uma inacreditável surpresa, ainda ligada com os acontecimentos revolucionários a que assistira. Chegando a casa à tarde, encontrei uma imensidade de correspondência e de provas tipográficas. Decidi, para pôr tudo em ordem, trabalhar até altas horas da noite. Mas eis que no outro dia de manhã, estando ainda na cama, ouvi bater à porta do quarto. Era o nosso velho e bom criado, o qual, salvo se na véspera lhe tivesse dado ordem para me despertar a uma hora combinada, nunca subia, aos meus aposentos. Disse-me, espantado, que estavam lá em baixo uns sujeitos da polícia que queriam falar comigo. Levantei-me imediatamente, vesti o pijama e desci ao andar inferior, onde de facto encontrei quatro polícias à paisana, os quais me notificaram terem ordem para passar uma busca à casa dizendo-me que seria melhor entregar as armas do Schutzbund que tinha escondidas.
Fiquei tão espantado, confesso, que, nos primeiros momentos, não pude pronunciar uma única palavra. Armas do Schutzbund escondidas em minha casa Era inconcebível! Eu nunca pertencera a qualquer partido e jamais me havia preocupado com política. Estivera durante meses ausente de Salzburgo e era inverosímil que a minha casa devido à situação em que se encontrava, fora da cidade e no cimo de um monte, pudesse servir de depósito clandestino de armas. Não era possível que qualquer pessoa ali fosse ou dali saísse armada, sem que imediatamente se visse. Era realmente espantoso, mas, não obstante, tive de pronunciar um "façam favor". Os agentes deram então início à sua tarefa, abrindo várias caixas e batendo em três ou quatro paredes, mas faziam-no de um modo tão protocolar que a breve trecho adivinhei estarem a agir por mera formalidade, não acreditando que houvesse naquela casa um arsenal. Passada apenas meia hora, estava terminada a busca e os polícias desapareciam.
Necessito esclarecer por que motivo essa busca domiciliária me espantou tanto, numa época em que havia já muito tempo se esquecera o respeito devido aos direitos individuais em quase toda a Europa e até em muitos outros pontos do globo. Desde 1933 que o cidadão podia ser impunemente vexado com busca domiciliárias, prisões arbitrárias e confiscações, ou posto fora do lar e do país sem mais delongas nem processos. Não me ocorre à memória um único amigo meu que na Europa não tivesse sido vítima de qualquer dessas violências. Mas, nessa altura, nos princípios de 1934, uma busca domiciliária era ainda, apesar de tudo, na Áustria, uma medida absolutamente excepcional. Revistar a casa de um cidadão que nunca tivera qualquer actividade política e até nem sequer votava havia já muitos anos, era uma afronta que só em circunstâncias muito extraordinárias se poderia conceber. E de facto, a violência de que fui vítima foi uma das mais típicas que na Áustria desse tempo se exerceram.
Ora, o que sucedeu foi o seguinte: O chefe da polícia de Salzburgo foi nessa altura forçado a tomar enérgicas providências para meter na ordem os nazis, que todas as noites provocavam a inquietação dos espíritos com explosões de bombas. Foi preciso realmente muita coragem para exercer essa repressão. Nessa época, já o partido nacional-socialista havia posto em prática o seu consabido método terrorista. Os poderes constituídos recebiam então contínuas cartas anônimas, que ameaçavam de represálias os funcionários, se continuassem a "perseguir" o nacional-socialismo e, de facto, os nazis cumpriram sempre meticulosamente a palavra dada, desde que se tratasse de vingança. Logo nos primeiros as da irrupção hitleriana foram os mais fiéis e dedicados funcionários austríacos levados para campos de concentração. Adiv'nhava-se o verdadeiro significado da busca que se fizera em minha casa. Queria-se provar, nada menos, que, quando se tratava de manter a ordem ou da defesa da lei, não se faziam distinções entre os cidadãos. Mas, o certo é que aquela arbitrariedade, que poderia parecer simples à primeira vista, revelava apenas como a situação se tinha tornado séria na Áustria e como a pressão alemã aumentava. Já não me sentia à vontade em minha casa e tinha como que um secreto pressentimento de que a visita policial fora apenas o prelúdio de novas violências.
Por isso, logo, nessa mesma noite, comecei a embrulhar a papelada mais importante. Estava disposto a fixar residência no estrangeiro. Ia despedir-me para sempre daquela casa, mas confesso que não se tratava de um adeus vulgar a qualquer casa ou a qualquer região, pois a minha família achava-se fortemente arreigada a ela e amava o país. A decisão era grave, mas tomei-a, porque sempre considerei que o supremo bem neste mundo consiste na liberdade individual. Dois dias depois, sem dizer nada a ninguém, tomava novamente o caminho de Londres.
Quando lá cheguei, a primeira coisa que fiz foi escrever às autoridades de Salzburgo, anunciando-lhes que havia mudado definitivamente de domicílio. Era o primeiro passo no caminho que me afastava da minha pátria. Desde os trágicos dias de Viena, adquirira a certeza de que a Áustria estava perdida - mas devo confessar que me encontrava muito longe de supor o que esse drama significaria para mim.
The sun of Rome is set. Our day is gone. Clouds, dews dangers come; our deeds are done.
SHAKESPEARE, Julius Caesar
A Agonia da Paz
Podia dizer-se que os primeiros anos que vivi na Inglaterra tinham tanto de exílio como os que Gorki vivera outrora em Sorrento. Apesar daquela célebre "revolução" e do terrorismo que os nazis depois desencadearam para, graças a um golpe de Estado e ao assassínio de Dollfuss, se apoderarem do poder, a Áustria continuava a subsistir e a sua agonia devia prolongar-se ainda durante mais quatro anos.
Podi'a regressar quando quisesse, porque a minha situação não era de nenhum modo a de desterrado. Em Salzburgo estavam ainda os meus livros, e eu continuava a usar o passaporte austríaco. A Áustria continuava a ser a minha pátria, o país onde era um cidadão no uso pleno de todos os direitos. Ainda não havia soado a amargura e crueldade daquela hora em que eu seria um ente qualquer sem nacionalidade, o homem que vive a inenarrável angústia de ser lançado no abismo e de saber que a qualquer momento o podem escorraçar da providencial aresta a que se agarrou.
Então, estava apenas no início da primeira parte do drama, mas quando, naquele final de Fevereiro de 1934, cheguei a Victoria Station, devo dizer que me encontrava num estado de espírito bem estranho. É que há grande difrença entre partir para uma cidade animado apenas pelo desejo de a visitar, e desembarcar lá com o propósito de estabelecer nela residência. Não sabia bem quanto tempo permaneceria em Londres, porque havia apenas uma coisa que me preocupava e era importante:-trabalhar em paz e defender a minha liberdade individual. Assim, e como a posse de qualquer coisa encerra em si mesma o imperativo que nos força a subordinarmo-nos a ela, resolvi não me instalar numa casa, mas alugar tão-sòmente um pequeno quarto com espaço bastante para dois armários onde guardasse os poucos livros que trouxera e dos quais não queria separar-me, e uma pequena secretária. Era o mínimo indispensável para um trabalhador intelectual. Não podia pensar em receber visitas nesse quarto; contudo preferia que o meu domicílio fosse estreito mas que me permitisse deslocar-me quando quisesse. As circunstâncias haviam-me lançado novamente na existência instável.
Na primeira tarde que entrei nesse meu novo domicílio - era à hora do crepúsculo e as coisas começavam a diluir-se na penumbra - estremeci. Tive a impressão de que acabava de entrar naquele outro quarto que tivera em Viena cerca de trinta anos antes. Era eu mesmo, sim, que me recebia com a carinhosa saudação que se desprendia dos livros alinhados nos armários e com o fulgor que irradiava dos olhos daquele - King John-", Black, que sempre me acompanhava. Durante um momento fiquei como que obnubilado. pois os anos haviam-se sucedido uns após os outros e eu nunca mais me lembrara do meu quarto de Viena. Não seria realmente aquela visão como que uma advertência de que a minha vida - que durante tanto tempo se espraiara magnificamente - ia novamente regressar aos limites de outrora, um indício revelador que me anunciava o meu próprio ocaso? As coincidências eram realmente estranhas. Também há trinta anos aquele quarto de Viena fora um princípio; então, ainda eu não escrevera nada, ou nada que tivesse importância. Nessa altura ainda os meus livros não existiam e o meu nome era o de um qualquer desconhecido na minha terra, e eis que, naquele momento, em que entrava para o de Londres, também os meus livros tinham deixado de existir na Alemanha e tudo o que escrevesse seria ignorado nesse país. Estava separado dos amigos - o círculo das relações fora subitamente desfeito, e o lar, com os seus livros, as suas colecções e os seus quadros encontrava-se perdido. Podia dizer que, de facto, vivia de novo sozinho no mundo. Era como se tudo o que havia edificado durante o tempo que decorrera entre esses dois quartos se houvesse sumido.
Ia recomeçar vida nova, embora tivesse mais de cinqüenta anos de idade. E revi-me, outra vez estudante, aquele estudante que passava os dias sentado junto da secretária eu ia de manhã cedo para a Biblioteca. Mas, então, havia esta diferença, apenas:-estava mais céptico, tinha os cabelos brancos e a alma torturada por uma angústia sem nome.
Daquele período que passei na Inglaterra que vai de 1934 a 1940 não falo com muito prazer, pois aproxima-se já quase dos nossos dias, desses dias vividos por todos nós com o nervosismo e o desespero que a rádio e o jornal continuamente faziam nascer, entre esperanças e preocupações. Não é com muita satisfação que nos lembramos desses anos que nos arrastaram para o abismo em que a gera nos debatemos.
Se precisássemos de analisá-los profundamente, talvez fôssemos forçados a acusar, e alguém terá o direito de o fazer Ocorre ainda que, durante todo o tempo que estive na Inglaterra, vivi num quase constante isolamento; apesar de saber como era vã a minha preocupação de não me imiscuir no estrangeiro em discussões acerca dos acontecimentos que se iam verificando, segui esse velho hábito que me afastava da convivência social. Pensava que, não me tendo sido possível influenciar os circulos dirigentes de Viena, não poderia esperar ser mais bem sucedido nessa hospitaleira ilha, onde era apenas um hóspede e onde certamente se julgara que a nossa intransigência - fruto da experiência vivida -em apresentar Hitler como um perigo para a paz do mundo era ditada tão-sòmente por motivos de ordem pessoal. E o pior é que não era realmente fácil tomar atitudes de mudo em presença da avalanche mentirosa. Era sobretudo extremamente doloroso ver como uma propaganda hàbilmente montada abusava da proverbial rectidão, lealdade e boa fé dos ingleses. Afirmava-se aos quatro ventos que Hitler apenas desejava encorporar na Alemanha as minoriEs que a circundavam e que, depois de satisfeito esse desejo, o único, se levantaria contra o bolchevismo. O estratagema era magnífico, e bastava Hitler pronunciar a palavra "paz" em qualquer dos seus discursos para que a Imprensa rejubilasse, se esquecesse do passado e nunca mais se inquietasse com os evidentes preparativos bélicos da Alemanha. Os turistas que visitavam Berlim e ali haviam visto apenas o que lhes queriam mostrar e que, ainda por cima, tinham sido amàvelmente acarinhados, regressavam tecendo rasgados elogios à nova ordem e ao novo senhor da Alemanha. Pouco a pouco, foi amadurecendo a idéia de que as pretensões hitlerianas da Grande Alemanha não eram tão injustas como se poderia supor - ninguém acreditava que a Áustria fosse uma pedra angular e que, destruíndo-a, se provocava o desabamento da Europa. Mas eu contemplava a ingenuidade e a nobreza de coração do povo inglês e dos seus dirigentes com o cepticismo de quem vira de perto as milícias hitlerianas e as ouvira cantar: Heute gehôrt uns Deutschland, morgen die ganze Welt (1).
Quanto mais a tensão política se tornava evidente, tanto mais me afastava da vida pública. Vivi na Inglaterra uma experiência mais apagada do que trinta anos antes nos meus modestos tempos de estudante em Viena sem escrever artigos para jornais, sem falar pela rádio e sem tomar parte em discussões. Não me recordo de ter vivido jamais assim em qualquer outro país do velho mundo. Por esta razão, quase nada posso dizer acerca da Inglaterra, tanto mais quanto é certo que tive depois de confessar a mim próprio que antes da guerra não havia compreendido as extraordinárias capacidades desse país, essas incomensuráveis energias latentes reveladas somente na hera do extremo perigo.
- As minhas relações com os intelectuais também não foram mais profundas. Os dois escritores com quem começara a relacionar-me, John Drinkwater e Hugh Walpole, foram prematuramente levados pela morte e, em relação aos mais novos, devo confessar que não tinha oportunidade de os encontrar com freqüência visto que, sentindo-me francamente foreigner (2) evitava freqüentar clubes e tomar parte em jantares ou festas Mas, mesmo assim, tive ainda o grande e inolvidável prazer de assistir a um duelo oratório entre os dois incomparáveis escritores Bernard Shaw eH. G. Wells, no qual, apesar da etiqueta e do cavalheirismo havia muita ironia e sarcasmo. Shaw oferecera um lanche em sua casa a alguns amigos e sendo eu um dos convidados, encontrava-me na situação deveras curiosa e ao mesmo tempo desagradável de não saber a que atribuir uma espécie de visível animadversão que certamente existia entre os dois patriarcas, e se tornou logo visível quando se cumprimentaram.
(1) Hoje temos a Alemanha e amanhã teremos o Mundo inteiro.
( 2 Estrangeiro.
com certa familiariedade, mas também com algum ressentimento. Suspeitei imediatamente que entre os dois existira alguma divergência há pouco vencida ou que se procurara vencer nessa reunião.
Há cerca de meio século que esses dois homens de gênio, cada um dos quais era um motivo de glória para a Inglaterra, haviam estado, lado a lado, na Fabian Society, nos primórdios do sociali'smo. Mas não tardaram a surgir desinteligêncies que, a pouco e pouco, os foram separando, à medida que as suas personalidades se iam afirmando cem mais vigor - Wells, permanecendo fiel ao seu idealismo activo. continuava a dedicar-se ao futuro da humanidade; enquanto Shaw, olhando cèpticamente não apenas o futuro, mas também o presente, dava livre curso à ironia e ao sarcasmo do seu espírito. Mas não era apenas no domínio intelectual que as divergências entre ambos se manifestavam. Também a aparência física os ia tornando cada vez mais diferentes. Shaw era um octogenário inacreditavelmente bem conservado - apenas o vi comer fruta durante o lanche, e era alto e seco, com um eterno sorriso de fina ironia na comissura dos lábios, e, sempre enamorado dos dardos coriscantes dos seus paradoxos enquanto Wells, septuagenário encantado da vida, era baixo e rubicundo e inalteràvelmente tranqüilo. Shaw era fulminante no ataque e os seus golpes caíam sempre onde menos se poderiam esperar, enquanto Wells se mantinha firme e inabalável na defesa, como sempre sucede com os crentes e os obstinados.
Logo de início, adquiri a convicção de que Wells não tinha ido ali só para tomar parte num ameno ágape em que porventura se conversaria, mas onde se discutiria seriamente. Desconhecia as causas da controvérsia, é certo, mas adivinhava o antagonismo que os separava, nos gestos e até no próprio ambiente que nos rodeava, pois, embora se falasse com delicadeza, notavam-se olhares irônicos e compreendia-se que o tom das palavras era incisivo. Dir-se-iam dois pugilistas que, antes de se lançarem no combate, se exercitavam em pequenas escaramuças. Shaw era superior em agilidadde. Os seus olhos relampejavam sob as espessas sobrancelhas quando disparava o dardo da resposta, sempre matizada de ditos e sarcasmos, talento ao qual, durante sessenta anos, soubera dar foros de incomparável arte. Não podia esconder a paixão que o animava e via-se que, às vezes, a sua densa barba branca se agitava sob a acção de um sorriso duro e que a sua cabeça se inclinava como que para se certificar se o dardo disparado tinha atingido plenamente o alvo. Wells, com a sua cara arredondada e o olhar calmo, demonstrava mais profundidade e franqueza. As imagens surgiam-lhe também com facilidade e rapidez, mas era muito mais lento e comedido no ataque, parecendo deleitar-se em responder com firme e imperturbável tranqüilidade. Era um contínuo faiscar de argumentos e de arremetidas num duelo oratório que se mantinha impecàvelmente cortês, cujo decorrer o espectador imparcial, como eu, se comprazia em observar, mas onde se adivinhava uma profunda incompatibilidade espiritual que, segundo a norma inglesa, permanecia contudo dentro da esfera do respeito mútuo e da mais requintada delicadeza. Era uma contenda invulgar e de certo modo interessante, precisamente porque se tratava entre dois espíritos tão diametralmente opostos, que pareciam deixar-se inflamar pela discussão, mas cujos verdadeiros pontos da discórdia não apareciam à superfície. Enfim, como quer que fosse, o certo é que tive a agradável oportunidade de ver dois dos mais eminentes pensadores da Inglaterra num dos seus mais belos mementos.
A polêmica continuou ainda durante algumas semanas, por escrito, nas colunas da Nation, mas confesso que não me deu nem a centésima parte da satisfação que tive naquela tarde, pois os argumentos, despersonificados, já quase não deixavam transparecer tudo o que havia de característico e original naqueles dois temperamentos opostos. Jamais me foi dado o prazer de assistir a um embate espiritual tão luminoso, jamais tive ocasião de ver tão soberbamente representada a árie do diálogo em qualquer teatro, tanto mais que surgia espontâneamente e se mantinha sempre de maneira elevada e nobre.
Estava na Inglaterra, mas o meu espírito pairava também em muitos outros pontos e continuava inquieto. E foi precisamente essa doentia inquietação, que não me abandonou durante aqueles anos que decorreram entre o aparecimento de Hitler e o deflagrar da segunda Grande Guerra, que me incitou a viajar muito e até a atravessar duas vezes o Atlântico. Talvez fosse por intuição que me inclinava a fazer observações e estudos enquanto ainda era tempo, enquanto os barcos podiam seguir em paz os seus cursos, adquirindo para momentos mais sombrios tanta experiência quanta me fosse possível; talvez intuitivamente procurasse oferecer ao meu espírito o contraste de que, enquanto a velha Europa se dilacerava, havia do lado de lá do Atlântico um novo mundo em formação. Talvez até mesmo eu já fosse animado por um vago pressentimento de que a salvação do mundo e até propriamente a minha haviam de surgir da América.
Uma série de conferências que proferi nos Estados Unidos ofereceu-me a agradável oportunidade de visitar esse imenso e poderoso país em toda a sua diversidade e contudo bem sólido conjunto, desde o Norte ao Sul e do Leste ao Oeste. Mas a impressão mais extraordinária recebia-a talvez na América do Sul, aonde me levou um agradável convite para assistir a um Congresso Internacional do Pen-Clube. Foi realmente uma ocasião bem oportuna para arreigar ainda mais em mim a certeza de que o patrimônio da humanidade pairava muito por cima de limitações de fronteiras ou idiomas. Mas as últimas horas que então ainda vivi na Europa foram já bem sintomáticas.
Começara a grande tragédia da guerra civil espanhola, que poderia parecer apenas uni incidente limitado, mas onde um espírito perspicaz descortinaria sintomas anunciadores de cataclismo mais extenso. Adquiri essa convicção durante uma pequena permanência em Vigo, em cujo porto fizera inesperada escala o barco que havia tomado em Southampton.
Os acontecimentos vistos pelos nossos próprios olhos têm mais importância do que os artigos da Imprensa ou as teses dos livros e, nessa hora dolorosa, em que havia já irmãos que se matavam uns aos outros, tive o firme pressentimento da grande desgraça que se ia abater sobre a Europa. E quando, por fim, o barco levantou ferro, desci ao meu camarote, com o coração dilacerado, não querendo dirigir, um último olhar à encantadora Espanha, esse magnífico país que a tragédia assaltava, semeando nele a dor e a ruína. E temi pelo futuro da nossa Europa, berço e Partenão da cultura do Ocidente, Pátria sagrada que iria submergir-se no abismo da sua própria insensatez!
Quando, porém, do outro lado do Atlântico, os meus olhos viram a Argentina, confesso que a impressão recebida era bem mais agradável. Ali a Espanha dilatava a sua velha cultura num país imenso e jovem, num solo não ensangüentado, onde o veneno do ódio não dilacerava os corações. Todo um povo vivia em paz numa terra abençoada que possuía espaço e pão para toda a gente e onde o futuro se antevia prometedor e risonho. E, perante este quadro consolador, senti que o meu coração rejubilava. Não era verdade que as civilizações haviam sempre perdurado, espraiando-se de região em região e não era certo que, quando o machado derruba uma árvore, sempre se salvam algumas sementes que vão depois dar novas árvores e novos frutos? Das gerações passadas alguma coisa ficara e das presentes nem tudo seria vão. Compreendi que devia dilatar o horizonte dos meus raciocínios e que não era necessário circunscrever-me apenas à Europa para além das fronteiras desse continente existia ainda outro mundo. Era preciso que não me limitasse apenas à contemplação do ocaso, mas que participasse também no eterno ressurgir.
O acolhimento deveras carinhoso, dispensado pela população deste imenso país ao nosso congresso, foi magnífico. Adquirimos a convicção de lhe não sermos indiferentes e de que as nossas tão caras idéias de fraternidade espiritual germinavam no seu seio. O oceano já não era, neste século de novos padrões de velocidade, um abismo que se opunha à sua dilatação. Diante de mim abrira-se de súbito um horizonte de novas perspectivas. Em vez da missão de outrora, podia indicar-me a outra mais vasta, que atingia novas proporções. Se é certo que o meu último adeus à Europa se fizera sob o signo do desespero, causado pelo espantalho da guerra, cujo deflagrar se adivinhava, a verdade é que, sob o Cruzeiro do Sul, renascera em mim a fé e a confiança.
Uma idêntica satisfação foi a que me ofereceu também o Brasil, esse magnífico e abençoado país que possui a mais bela cidade do mundo, esse vastíssimo empório que nem caminho de ferro, nem a estrada e nem sequer o avião conseguiram ainda totalmente abarcar. Aí tudo aquilo que a Europa fora outrora encontrava-se ainda mais patente do que no próprio continente europeu; o desleixo e o desregramento que a primeira Grande Guerra trouxeram ao mundo ainda não tinham penetrado nos usos e costumes do povo. Havia mais respeito e delicadeza entre as pessoas, a cujo coração não havia chegado o veneno das teorias raciais que separam e lançam os homens uns contra os outros. Recebia-se a agradável e doce impressão de que se podia ainda viver em paz: nesse belo país, onde havia em estado virgem incalculável espaço, enquanto que lá longe, na Europa, a politiquice fazia questiúnculas e os países arreganhavam os dentes por causa da posse de quatro palmos quadrados de terra. No Brasil, a terra estava ainda à espera do homem. A civilização e a cultura do velho continente podiam subsistir e até dilatar-se, em novas formas e expressões, nesse maravilhoso mundo novo que me permitia antever um futuro mais risonho para a Humanidade.
Mas viajar, mesmo que se fosse tão longe que já se vissem outras estrelas e se estivesse em contacto com outras realidades, não significava de nenhum modo que nos afastássemos da Europa e dos seus problemas. Um dos grandes paradoxos do nosso tempo, e que quase parece irônica vingança da Natureza, consiste em que, apesar da técnica, que deu ao homem estranhos poderes sobre os elementos, a nossa alma continua mais torturada do que nunca, pois é ela, a técnica, que nos amarra, também, fatalmente, à simultaneidade mundial da hora que passa. Outrora, o homem podia isolar-se, ignorar o mundo ou os acontecimentos, mas hoje, pela primeira vez na História, já ninguém pode dispor dessa possibilidade, pois o globo transformou-se numa pequena aldeia, onde a ninguém é permitido ignorar o que se passa. Assim, por muito que me afastasse da Europa, nem por isso a sua sombra deixaria de vir atrás de mim. Estando em Pernambuco, com o Cruzeiro do Sul pairando sobre a minha cabeça e atravessando ruas cheias de gente morena, eis que chega a notícia do bombardeamento de Barcelona e do fuzilamento de um amigo espanhol, em companhia de quem, alguns meses antes, passara algumas horas inolvidáveis. Outra vez, no Texas, viajando numa carruagem-salão entre Houston e outra cidade desse país do petróleo, fui súbitamente despertado pela voz de alguém que vociferava endiabradamente em alemão-fora um inocente passageiro que ligara o aparelho de rádio da carruagem em que viajávamos e que, captando a onda de uma emissora alemã, me forçara a ouvir um discurso incendiado de Hitler, apesar de me encontrar na carruagem de um comboio que percorria a toda a velocidade a imensa planície do Texas. Não havia maneira de poder esquivar-me à ideia fixa da Europa e, através dela, da Áustria, necessariamente. Talvez pareça estranho que, numa hora em que desde a China até ao Manzanares e ao Ebro, uma terrível angústia pairava sobre o mundo, eu me preocupasse contínua e especialmente com a Áustria. Mas fazia-o porque tinha a impressão de que à volta desse pequeno país - que por coincidência era a minha pátria - se decidiam os destinos da velha Europa.
Se lançarmos um olhar retrospectivo para o passado e procurarmos localizar o mais grave erro dos estadistas que participaram na reconstrução do mundo, logo após a guerra 1914-18, temos de o encontrar na política seguida pelos europeus e também pelos americanos, em referência ao magnífico plano de Wilson, o qual considerava justa a liberdade e independência das pequenas nações, mas afirmava que essa liberdade e independência só poderiam ser uma realidade se os povos do mundo, pequenos e grandes, se fundissem numa grande comunidade de aPOiO mútuo -a grande e verdadeira Sociedade das Nações. Não se tendo realmente criado esta grande organização wilsoniana, e tendo-se apenas tratado da primeira parte do seu programa, isto é, da que criava ou mantinha a independência de certos Estados, imediatamente surgiram ma Europa os primeiros sintomas não de paz, mas de nervosismo e intranqüilidade, pois não há nada pior do que o pigmeu movido pelo desejo de ser gigante. As disputas começaram logo a surgir entre polacos e checos, húngaros e romenos, búlgaros e sérvíos, a propósito de qualquer aldeola. No meio deste colossal batuque intriguista, estava a pequenina Áustria procurando defender-se do amplexo do gigante alemão.
A Áustria, esse país despedaçado e torturado, cujo soberano fora o senhor da Europa, constituía-estava absolutamente convencido disso-a pedra angular do equilíbrio do mundo. O que todos aqueles ingleses que vira à minha volta não eram capazes de adivinhar era que com a Áustria devia cair a Checoslováquia e depois chegaria a vez dos Bálcãs e que o nazismo, apoderando-se de Viena, ponto particularmente bem situado, dispunha da alavanca que a sua mão de ferro saberia utilizar para abanar os alicerces da Europa, despertando-a, já demasiadamente tarde, do sono em que se achava mergulhada. Só nós sabíamos como era grande o ressentimento que Hitler tinha contra Viena, essa cidade que o Vira na última miséria e onde ele sonhara entrar como senhor omnipotente. Por isso, sempre que me era possível fazer uma curta visita à Áustria, ou quando de novo transpunha a sua fronteira, dizia para mim, suspirando:-"Ainda estás livre ". Contudo, lançava-lhe um saudoso adeus, pois sempre pensava que talvez fosse o último que lhe dissesse.
Via a catástrofe avançar para nós a passos de gigante, e não têm conta as vezes que o meu coração pressentia que nas colunas dos jornais, que quase toda a gente de manhã adquiria tranqüilamente, ia surgir o fatídico e há tanto tempo esperado - Finis Austrísae.
Ai! Como me enganei, se algum dia tive a veleidade de supor que poderia ficar indiferente à tragédia do seu destino! Estava longe da pátria, mas a dor da sua lenta agonia permanecia sempre presente no meu coração. Sofria mais - posso dizê-lo - do que os meus amigos que não se encontravam no estrangeiro. Esses ainda podiam albergar alguma esperança na ilusão fugaz dos paliativos patrióticos e ainda podiam dizer uns aos outros, reconfortando-se mutuamente: "A França e a Inglaterra não consentiriam que se atentasse contra nós. Mussolini não o tolerava nunca". Acreditavam na eficácia da Sociedade das Nações e nos tratados, como os doentes acreditam nos remédios que têm rótulos pomposos. Essa crença dava-lhes a tranqüilidade que a mim me faltava, pois, menos afastado da realidade, tinha mais angústia no coração. A minha última viagem à Áustria fora tão-somente ditada por um espontâneo receio alimentado por essa contínua angústia, que me anunciava o avanço inevitável da grande catástrofe. Não tinha absolutamente nada que fazer em Viena, onde estivera, no Outono de 1937, para visitar minha mãe. Não obstante algumas semanas depois-devia ter sido nos fins de Novembro
- seguia eu pela Regent Street em direcção a minha casa quando de repente decidi comprar o jornal Evening Standard. Estávamos então no dia em que Lord Halifax tomou o avião de Berlim para o seu primeiro encontro pessoal com Hitler. Na primeira página desse jornal, à direita, em caracteres normandos, recordo-me perfeitamente, estavam os pontos essenciais que Halifax procuraria abordar e solucionar na sua entrevista com Hitler. Entre eles havia um que se referia à Áustria, em cujas entreLnhas li, ou julguei ler, o abandono da questão austríaca. De resto, a esse respeito, que poderia significar um entendimento com Hitler? Os austríacos sabiam perfeitamente como ele se manteria sempre intransigente a esse respeito. Mas deu-se então um facto estranho; o plano pormenorizado dos assuntos a discutir só saiu nessa edição do Evening Standard, pois das que se lhe sucederam nada constava. Segundo mais tarde ouvi dizer, a informação partira da embaixada italiana. Naquele ano de 1937, nada seria mais desagradável para a Itália do que uma hipótese de entendimento anglo-alemão. Não sei dizer o que haveria de verdade nessa notícia que quase passou despercebida ao grande público, mas devo confessar que fiquei horrorizado com a possibilidade de que pudesse haver um compromisso qualquer entre a Inglaterra e a Alemanha hitleriana acerca da Áustria. O jornal tremia-me nas mãos, pois, falsa ou verdadeira, o certo é que já há muito tempo não havia outra notícia que tanto me tivesse consternado. Estava convencido de que mesmo que só fosse verdadeira em parte, isso significava, contudo, o princípio do fim, visto que, sacrificando-se a pedra angular, ninguém poderia evitar que tudo caísse por terra. Assim, fiz imediatamente marcha atrás e tomei o primeiro autobus que passou em direcção de Victoria Station. Apeei-me em frente da Imperial Airways e corri a perguntar se ainda podiam dispor de uma passagem para o avião que partia no outro dia de manhã. Tive a felicidade de encontrar ainda um lugar e, tendo posto à pressa meia dúzia de coisas na maleta, voei para Viena. Queria contemplar uma última vez a minha mãe, a minha família, a minha pátria.
Quando me viram, os meus amigos "ficaram simplesmente espantados com o meu inopinado regresso e ainda muito mais com a minha angústia, sorrindo e dizendo que eu continuava a ser o eterno "Jeremias". Não sabia eu - diziam eles - que a Áustria estava então sòlidamente unida à volta de Schuschnigg e que as demonstrações da "Frente Patriótica" eram cada vez mais empolgantes, dessa união que eu já em Salzburgo sabia ser apenas superficial, pois havia nela muitos que traziam o distintivo na lapela, mas que, entretanto, sobretudo depois de Munique, não se esqueceram também de se filiar prudentemente nas fileiras do partido nacional-socialista. Não era em vão que tinha lido a História e que até havia escrito algumas páginas sobre ela. Não ignorava como a multidão ignara volúvel e como corre pressurosa para o lado onde está o senhor da hera que passa sabia perfeitamente que aqueles que naquela altura; gritavam "Heil Schuschnigg" não hesitariam em rugir amanhã "Heil Hitler". Mas a verdade é que ninguém me quis ouvir. Cada qual continuava no doce sonho da vida elegante, envergando o smoking ou a aristocrática casaca, sem sequer suspeitar que, dentro de pouco, teria de vestir a farda dos campos de concentração; ou ia tranqüilamente visitar as montras para escolher e levar para o seu belo lar as lembranças próprias do Natal, sem sequer supor que esse lar seria alguns meses depois confiscado ou posto a saque. Era a eterna e já lendária despreocupação de Viena, essa paz de espírito que outrora tanto me encantara e da qual tantas saudades tenho, e que Anzengruber, o nosso tão venerado poeta sintetizara nesta frase lapidar: "Es kann dir nix gfschehn" - não há nada que te possa perturbar. Pois bem; confesso que essa imperturbabilidade me fez mal ao coração, nesse momento, pela primeira vez na minha vida. Contudo, quero acreditar que esses amigos talvez fossem mais prudentes do que eu, porque só sofreram os efeitos da tragédia quando esta soou realmente, enquanto eu a sofri duas vezes prevendo-a, primeiro, e, depois, suportando-a quando ela surgiu. Mas eu não os podia compreender e eles também não me compreendiam. Assim, dois dias depois, to-mei a decisão de não os inquietar mais, considerando que era absolutamente inútil despertar aqueles que estavam dispostos a não ouvir a voz que os chamava à realidade.
Durante esses meus dois últimos dias de Viena, ao passar em frente dos monumentos citadinos, de qualquer igreja ou jardim ou em qualquer rua dessa velha cidade que fora meu berço, e que evocava em mim mil recordações, murmurava para o meu coração: "me mehr" - nunca mais te verei. E quando soou o minuto supremo de abraçar minha mãe, no meu cérebro estava gravado este pensamento es ist das tetzte mal-"
- é a última vez que a abraço. Para qualquer parte que fosse sabia ser a última vez que ali ia, porque tinha a convicção de ser aquele o derradeiro adeus à minha Viena, à minha Áustria. "Nunca mais a verás" - era a idéia fixa sempre gravada no meu espírito. Não faço literatura, relato somente factos, digo apenas a verdade, nada mais. Depois, quando de novo tomei o caminho do estrangeiro, o comboio passou em Salzburgo. a velha cidade onde vivera durante vinte anos, mas nem sequer me apeei da carruagem, nem sequer cheguei à janela para ver aquele monte onde se erguia a minha casa e onde me prendiam tantas recordações inolvidáveis. Era inútil olhar para ela - sabia que a havia perdido para sempre. E no momento preciso em que o comboio atravessava a linha da fronteira, tinha a certeza, como outrora o velho Lot da Bíblia, que atrás de mim só ficava poeira e cinza, todo um passado que, de súbito, se havia transformado em sal amargo.
Supunha ter antecipadamente sofrido tudo o que Hitler seria capaz de fazer no momento em que, entrando em Viena como senhor omnipotente, nessa cidade que o desprezara quando ele era um desconhecido qualquer, pudesse dar livre curso ao seu rancor. Como foi, porém, infantil e mesquinha a minha previsão, como foi tosca e ingênua qualquer previsão humana comparada com a selvática brutalidade dos acontecimentos daquele memorável 13 de Março de 1938, daquele dia em que a Áustria, e com ela a Europa, foi entregue ao carrasco!
A máscara fora então subitamente desafivelada. A Europa dera suficientes provas de que estava aterrorizada e a brutalidade podia operar-se sem rodeios. Já não necessitava de se esconder sob o manto dos mais variados pretextos - que lhe importavam a Inglaterra, a França ou até o mundo inteiro - não esquecendo o consabido chavão hipócrita de que era preciso lutar contra os marxistas. Já não se tratava apenas de requisitar ou de roubar, mas de dar livre curso a todas as inconfessáveis infâmias da vingança e do ódio pessoal. Chegou-se ao inacreditável. Houve professores universitários que foram arrastados para a rua e obrigados a lavá-la com as próprias mãos, e arrastaram-se para o templo veneráveis judeus de barba branca, onde grupos de rapazes irresponsáveis e desabridos os obrigaram a ajoelhar e a entoar em coro Heil Hitler. Caçavam-se pessoas inocentes em plena rua, como quem caça lebres, arrastando-as para as casernas das tropas de assalto hitlerianas, onde sem mais delongas eram obrigadas a limpar as retretes.
Tudo o que a orgia sádica havia sonhado pôr em prática na raiva de muitas noites de insónias, surgia então à claridade do dia.
Entrar em casa do cidadão pacífico e arrancar os brincos das orelhas das mulheres, aterrorizadas, era barbarismo que o-utrora já se havia visto, muitos séculos antes, nas guerras da Idade Média, mas o que jamais se vira era aquela fúria doentia de torturar por prazer, de gozar com o selvagismo requintado de esfaquear as almas. Foram crueldades sem nome, das quais podem dar testemunho, não apenas uma pessoa, mas os muitos milhares que tiveram de as suportar.
A História registará um dia, para vergonha da Humanidade, as cenas horrorosas que a raiva de um único homem foi capaz de desencadear nessa cidade civilizada, em pleno século XX, Mas a sua resenha terá de ser feita por outra época mais tranqüila e onde o sentido moral da vida não esteja tão narcotizado, pois as mais surpreendentes vitórias hitlerianas não são os seus triunfos militares e políticos, mas as obtidas sobre as mais elementares regras do Direito e da Justiça, que um só homem conseguiu alcançar pela aplicação lenta e sistemática de doses cada vez maiores de narcótico. Antes do advento dessa chamada "Nova Ordem", ainda a execução de um homem sem julgamento e sem motivos seria suficiente para abalar a consciência do mundo as ofensas corporais eram práticas que o século XX já nem sequer sonhava admitir e aquilo a que se chamava confiscação de bens era simples e claramente designado como roubo. Mas, depois da repetição dos horrores da nova Saint-Barthélemy, que não durou apenas uma, mas muitas noites; e depois dos assassinios praticados nos calabouços das milícias hitlerianas e nos campos de concentração, que importância tinha a injustiça e o que podia significar a dor? Em 1938, depois do martírio da Áustria, a Humanidade voltou a suportar procedimentos de injustiça, tirania e brutalidade que desde há muito estavam completamente banidos dos seus hábitos. Se tivesse sido outrora, os horrores que se observaram em Viena, em 1938, teriam provocado um decidido protesto internacional, mas, então, o mundo limitou-se a formular pálidos murmúrios que se desvaneceram logo à nascença.
Esses tristíssimos dias foram certamente os mais horríveis de toda a minha vida. Sabia que na pátria distante estavam a ser torturados os meus amigos mais queridos e, apesar de tudo, não os podia socorrer. Não me envergonho de confessar - de tal modo essa época nos endureceu o coração - que, quando de súbito recebi a notícia do falecimento da minha mãe, que ficara em Viena, não só não me desesperei, mas até senti como que um certo alívio, porque compreendia que a querida estava desde então ao abrigo de todos os perigos e de todos os sofrimentos. Tinha oitenta e quatro anos de idade, estava quase surda e vivia na casa que pertencera à nossa família, de onde não podia ser desalojada, segundo o espírito da nova Ariergesetzen (1), mas de onde nós tínhamos a esperança de a poder fazer sair para o estrangeiro, um pouco mais tarde, quando o momento fosse oportuno. Mas em breve sofreu um rude golpe e humilhação. Os seus oitenta e quatro anos não lhe permitiam andar muito e tinha adquirido o hábito, nos seus pequenos passeios diários, de se sentar um pouco, depois de caminhar durante cinco ou dez minutos, nos bancos da Ringstrasse ou do Parque, para descansar. Mas eis que - não havia ainda oito dias que Hitler era o dono de Viena - apareceu a negregada ordem que proibia aos judeus sentarem-se nos bancos dos jardins, ordem que revelava bem a ânsia sádica de
(1) Lei Ariana.
humilhar, pelo simples prazer de humilhar. Ainda se podia, talvez, enfim, encontrar uma justificação para as espoliações que se faziam aos judeus, pois com as fábricas, as mobílias e os palacetes roubados, e com os empregos que ficavam vagos, podiam oferecer-se prebendas aos sectários e aos grandes corifeus. Não há dúvida que a maravilhosa colecção de quadros que Gôring possui deve o seu incomparável esplendor a esses procedimentos inconfessáveis. Mas impedir que uma pobre velhinha ou um ancião se sentassem num banco público para descansar uns momentos, essa é, realmente, uma medida que estava reservada para o século XX e que havia de ser ditada por aquele em quem milhões de seres humanos julgam ver o homem mais importante deste século.
O destino não permitiu que minha mãe suportasse durante muito tempo essa vergonha e crueldade. Morreu alguns meses depois da ocupação de Viena mas não quero deixar de registar aqui um bem significativo episódio que se relaciona de maneira directa com a sua morte. Registo-o como documento para as gerações vindouras, pois quer parecer-me que não acreditariam que ele se tivesse dado.
Certa manhã, a pobre velhinha perdera os sentidos. Chamou-se o médico, o qual logo confessou que seria muito provável que a doente expirasse naquela mesma noite. Junto do leito da moribunda, por indicação médica, ficou uma enfermeira, pessoa que devia ter cerca de quarenta anos de idade. Como se dava o caso de tanto eu como meu irmão, filhos únicos, estarmos ausentes, e como nem sequer se podia pensar na hipótese de que nos fosse permitido assistir aos últimos momentos da nossa mãe, condescendência que os representantes da Kultur alemã considerariam uma afronta, foi decidido que um primo nosso passasse a noite junto dela, para que, desse modo, pelo menos algum membro da família assistisse à sua morte. Esse primo tinha então sessenta anos de idade e muito pouca saúde, de tal modo que, um ano depois, expirava também. Mas quando começou a preparar a cama onde, no quarto contíguo ao da enferma, pensava repousar durante a noite, surgiu a enfermeira, a qual, com visível mágoa - diga-se em abono da verdade, e para sua honra -, comunicou que, sendo ele judeu e tendo ela menos de cinqüenta anos de idade, não lhe era permitido pelas leis do nacional-socialismo passar a noite numa casa em que ele estivesse; portanto, não podia continuar junto do leito da moribunda. Segundo o critério de Streicher não era concebível que o primeiro pensamento de um judeu, vendo essa mulher, fosse outro senão o de procurar atentar contra a pureza da raça.
A enfermeira manifestou-se muito entristecida por ter de se retirar, mas disse ser forçada a isso para obedecer à lei. E foi assim que esse meu primo, com sessenta anos de idade, teve de sair da nossa casa, para que a enfermeira pudesse continuar junto do leito da velhinha que estava a expirar. E talvez se compreenda agora melhor aquele não sei quê de alívio que senti, quando soube que minha mãe já não vivia num mundo onde havia gente e leis daquela natureza.
A tragédia austríaca exerceu decisiva influência na minha vida particular, embora eu, a princípio, não tivesse ligado grande importância ao acontecimento que a originou, considerando-o de valor quase nulo ou meramente circunstancial - o meu passaporte austríaco ficou sem valor e, para o substituir, tive de requerer às autoridades inglesas que me cedessem o salvo-conduto especial dos sem-nacionalidade. Outrora, no delírio dos meus sonhos de cosmopolitismo, cheguei a imaginar como havia de ser magnífico não ter nacionalidade, não depender de um país determinado e poder pertencer a todos. Mas, também neste capítulo, me foi dado reconhecer como o sonho está longe da realidade e como as mais caras lições da vida só se aprendem pela experiência própria.
Recordo-me ainda do encontro que certo dia tivera em Paris, havia dez anos, com Dimitri Mereschkowski e da ingênua resposta, cem pretensão de consolo, que eu dera aos seus lamentos provocados pela dor que lhe lançara na alma a interdição dos seus livros na Rússia, dizendo-lhe que isso era, afinal, bem pouco, comparado com o resto do mundo, onde as suas obras podiam circular livremente. Mas como mudou tudo, como era diferente o meu estado de espírito quando a desgraça bateu à minha porta, quando os meus livres foram banidos da língua alemã! Então compreendia melhor o que ele me dissera, ao lamentar-se de só poder apresentar a luz do pensamento criador no luscofusco pardacento das traduções!
O que a nacionalidade podia significar também só me foi dado aprender naquele preciso momento em que, depois de demoradas diligências nas instâncias e repartições inglesas, me foi por fim entregue o salvo-conduto que substituía o meu antigo passaporte austríaco. Havia entre esses documentos esta grande diferença: ao austríaco tivera eu direito como cidadão que se atende em qualquer consulado, enquanto que o inglês tivera de ser solicitado e fora concedido por deferência, com a agravante de que me podia ser retirado sob qualquer pretexto. Enfim, com ele tinha descido de um momento para o outro, sem o suspeitar sequer, um grau na escala dos valores. No dia anterior era ainda um respeitável visitante estrangeiro e até um gentleman que vivia dos seus rendimentos e pagava impostos, mas eis que com o salvo-conduto, me transformei de súbito no emigrante, no refugiado. Fora lançado para uma categoria social inferior, ainda que não menos digna. E começaram então para mim o fadário e a preocupação dos vistos de consulados dos países para onde queria deslocar-me. Em toda a parte se olhava com certa desconfiança para a espécie de homem em que me havia transformado, sem direitos de cidadania, sem nacionalidade, e que, caso fosse necessário, nem sequer se podia expulsar. E lembrei-me então amargamente dos queixumes que outrora ouvi a um exilado russo, o qual me dizia: "Antigamente bastava um corpo e uma alma para ser homem, mas hoje é preciso ter também um passaporte, pois, quem o não tiver, é apenas uma coisa".
De facto, uma das mais patentes provas do retrocesso sofrido pela humanidade, depois, da primeira Grande Guerra, encontra-se no cerceamento da liberdade individual. Antes de 1914, a Terra pertencia a toda a gente e cada qual ia e vinha, estava e partia, como e quando melhor lhe parecesse, Não havia necessidade de salvo-condutos, e não posso esquecer a cara de inacreditável espanto que certos jovens das minhas relações fazem, quando lhes conto que nessa época fui à índia e à América, apesar de não possuir e até de nunca ter visto um passaporte.
Nesses ditosos tempos, viajava-se sem necessidade de papelada; ninguém se incomodava com a vida alheia, perguntando para onde se ia ou de onde se vinha. Não havia salvo-condutos, nem vistos, nem complicações, e as fronteiras, que hoje, devido ao medo patológico que contaminou os povos, são verdadeiras muralhas de arame farpado, polícia e guarda-fiscal, eram somente, então, simples linhas simbólicas que qualquer mortal podia atravessar com a mesma despreocupação com que se atravessa a linha do merediano em Greenwich. Só depois da guerra é que essa liberdade começou realmente a declinar, esmagada pela fúria doentia do" nacionalismo exacerbado que deu lugar a essa epidemia bem característica do século actual: a xenofobia, isto é - o ódio ao estrangeiro, ou o medo. E surgiram as primeirras medidas coercivas, Começou-se por impor aos viajantes aquelas medidas de excepção, que outrora apenas se tomavam para com os delinqüentes. Fotografava-se do lado direito e do esquerdo, de frente e de perfil, exigindo-se que tivesse o cabelo cortado, de modo que se pudessem ver bem as orelhas. Depois avançou-se mais um pouco e tomavam-se-lhe as impressões digitais, começando-se pela do polegar e acabando-se por tomar as dos dez dedos. Como se tudo isso ainda não fosse bastante, exigiam-se-lhe certificados de saúde, de vacina e de comportamento moral, e, por fim, precisava ainda de uma carta de chamada e de provar que tinha família no páís para onde desejava ir, além de ser ainda forçado a dar outras garantias, de ordem financeira, preenchendo e assinando, duplicada, triplicada e quadruplicadamente toda uma série de documentos, desabando tudo, por fim, se um único desses intermináveis papéis se perdesse.
Parecerá tratar-se de vulgaridades e talvez até se pense que não nos deveríamos preocupar com essas ninharias. Mas nós sabemos, não obstante, quanto tempo a nossa geração perdeu e perde com esses formalismos insensatos. Quando penso na interminável montanha da papelada que fui obrigado a apresentar a propósito de cada viagem, constituída por vistos, licenças, recibos, ordens de pagamento, declarações e um nunca acabar de formalidades e mais formalidades; quando penso nas horas que perdi nas secretarias ou nas salas de espera dos consulados e de outras autoridades; quando relembro a infinidade de burocratas a quem falei e por quem fui recebido, amável ou bruscamente e quando me recordo das revistas e interrogatórios a que fui submetido nas fronteiras, não posso então deixar de considerar com tristeza como o respeito devido à pessoa humana baixou neste século, neste mesmo século que nós havíamos sonhado, na juventude, ser o da liberdade humana, da Justiça e do Direito. Que tempo imenso não se perdeu com todas essas ninharias revoltantes, com todos esses formalismos que humilhavam e nos desviavam do trabalho útil e fecundo!
A papelada burocrática tirava-nos muito do precioso tempo que poderíamos dedicar à nossa actividade espiritual, e quando chegávamos a um país estrangeiro já os nossos primeiros passos se não dirigiam para os Museus ou para a contemplação das belezas naturais, mas sim para qualquer consulado ou repartição policial, onde deveríamos solicitar qualquer "licença". E sucedia então o inacreditável: aqueles que outrora se reuniam e conversavam acerca de Baudelaire ou de qualquer assunto intelectual, quando agora se encontravam, começavam quase sem querer ou inadvertidamente a falar de Affídavits ou de Permits (1) ou a discutir a conveniência de pedir um visto que autorizasse residência ou tão-somente um de simples turista. Nos últimos tempos, era muito mais importante para a vida de todos os dias o conhecimento de qualquer simples empregada consular que tivesse a gentileza de nos evitar a maçada de uma espera, do que a amizade de um Toscanini ou de um rolland. O indivíduo tinha a constante impressão de ter nascido pária ou de constituir uma coisa e não um "ser", cujo destino dependia somente do bel-prazer da burocracia. Era classificado, registado, numerado, esquadrinhado e carimbado, de tal modo e tão insistentemente que ainda hoje a minha alma, sedenta de justiça e de liberdade, e o meu coração de homem que aspira a ser cidadão de uma ideal Federação dos Estados Unidos do Mundo, olham com indignação para esses carimbos, que no meu passaporte pareciam ferretes, e lembram com desgosto todos esses formalismos vexatórios.
Talvez sejam vulgaridades, nada mais do que vulgaridades. -numa época em que o valor da vida humana caiu mais rapidamente que o do dinheiro. Contudo, enumero-as, porque poderão servir de elementos que precisão a verdadeira natureza do pavoroso desequilíbrio moral que caracterizou a época situada entre as duas grandes guerras mundiais.
É possível que a minha vida regrada de outrora
(1) Certificados e Licenças.
sofresse um inesperado choque com estas agruras, para as quais não estava preparada, e também não é inverosímil que a minha sensibilidade tivesse sido demasiadamente perturbada pelos sofrimentos e crueldades dos ultimos tempos. Não tenho relutância em admitir essas hipóteses, tanto mais que qualquer forma de emigração produz sempre efeitos depressivos sobre o indivíduo. A natural confiança na sua energia e capacidades começa a oscilar - outra lição que só se adquire com a experiência - desde o momento em que se sente desligado do seu meio. Torna-se apático, taciturno e desconfiado em relação a si próprio. Não hesito em confessar que, desde que fui forçado a usar documentação estrangeira, fiquei com a impressão de não ser a mesma pessoa, pois pressenti que o meu "eu" recebera um tremendo e incurável golpe. Fui invadido por uma misantropia invulgar em mim e eu, o cosmopolita de outrora - sentia como que um mal-estar, nascido do sentimento de que devia agradecer até o próprio ar que me era permitido respirar num país que não era o meu. Quando raciocino, compreendo que esta sensação era absurda, mas quando é que a razão consegue triunfar do sentimento? Foi absolutamente debalde que, durante cerca de cinqüenta anos, procurei ensinar o meu coração a pulsar como se fora o de um ideal "citoyen du monde", pois devo confessar que, no dia em que fiquei sem passaporte, descobri, aos cinqüenta e cinco anos de idade, que, perdendo a pátria, perdia realmente muito mais do que um simples palmo de terra em qualquer parte do mundo.
Mas a incerteza em que me debatia estava longe de ser um caso meramente pessoal, porque a inquietação foi-se, pouco a pouco, dilatando sobre toda a Europa. O horizonte começou a escurecer no dia em que Hitler caiu sobre a Áustria, e, desde então, até aqueles que, na Inglaterra, haviam de certo modo tolerado a sua audácia, julgando que com essa atitude poderiam manter-se em paz, ficaram realmente preocupados. De
1938 em di'ante, o motivo último de todas as conversas, qualquer que fosse o seu princípio, em Londres, Paris, Roma e Bruxelas, em todas as cidades e aldeias, era procurar saber se ainda seria possível evitar a guerra, ou, pelo menos, se não haveria maneira de a protelar. Se lanço um olhar retrospectivo para esses meses, durante os quais o espectro da guerra parou sobre a Europa, só me lembro de dois ou três dias de pausa nessa tensão constante, dois ou três dias em que, pela primeira vez, tivemos a doce esperança de que a catástrofe seria evitada e a humanidade poderia novamente regressar à tranqüilidade de outrora. Mas, vistos hoje, esses dois ou três dias foram precisamente, por uma estranha ironia do destino, os mais negros e trágicos do nosso temmpo. Quero referir-me aos dias de Munique, aos da entrevista Chamberlain-Hitler.
Sei que é uma data amarga, cuja recordação desagrada essa, em que Chamberlain e Dakdier capitularam lamentavelmente diante de Hi'tler e Mussolini. Mas, como me interessa apenas focar a verdade dos acontecimentos, devo dizer que não houve ninguém na Inglaterra que não tivesse sentido viva alegria nesse momento. Naquele Setembro de 1938, a situação era realmente negra. Chamberlain regressara da segunda entrevista que tivera cem Hitler e só alguns dias depois se soube o que havia sucedido. Fora a Godesberg animado do propósito de satisfazer todas as exigências que Hitler fizera em Berchtesgaden, mas eis que aquilo que algumas semanas antes parecera suficiente já não bastava para contentar as suas ânsias exageradas de predomínio. Foi a derrocada vertical da política do appeasemení e do try and try again (1). Desde então, ficou claramente demonstrado que a Inglaterra, a França, a Checoslováquia e a Europa só tinham diante de
(1) Apaziguamento e transigência.
si dois caminhos: ceder às desmedidas exigências hitlerianas ou resistir pela força das armas. E tudo parecia indicar que a Inglaterra não hesitaria em lançar mão das medidas mais extremas, pois começava a preparar-se aberta e decididamente para as mais graves emergências. Multidões de trabalhadores apareceram de súbito a preparar abrigos subterrâneos nos jardins, especialmente em Hyde Park e Regenfs Park, e até em frente da própria embaixada alemã. A ma-rinha foi posta em pé de guerra oficiais do estado-maior voavam constantemente entre Paris e Londres, para estabelecerem as últimas medidas que as circunstâncias exigiam, e os estrangeiros lançavam-se para bordo dos barcos que partiam para a América, dispostos a porem entre si e os acontecimentos que se aproximavam a imensidade do Atlântico. Desde 1914 que não se via na Inglaterra tão firme e decidido despertar. As fisionomias tornaram-se subitamente mais graves e preocupadas, e cada qual pensava, decerto, olhando para os edifícios e para as ruas repletas, se não seria já no dia imediato que as bombas começariam a sua obra de destruição. Os corações estavam pendentes dos aparelhos de rádio, esperando ansiosamente as últimas notícias. Sobre todo o país pairava uma inquietação intraduzível, que aumentava de hora a hora.
Depois, surgiu a memorável e histórica sessão do parlamento, em que Chamberlain comunicava ter feito uma última tentativa junto de Hitler, propondo, pela terceira vez, entrar em negociações directas com ele, em qualquer ponto da Alemanha à sua escolha, no intuito de lançar ainda uma tábua de salvação à paz que se afundava, mas que a resposta à sua proposta não chegara. Um pouco mais tarde, porém, ainda durante a sessão, vinha o célebre telegrama de Hitler e Mussolini, acedendo a participar numa conferência em Munique. Nesse minuto - acontecimento certamente único nas páginas da história da Inglaterra - o parlamento perdeu o domínio sobre si próprio. Houve deputados que se ergueram dos assentos, aplaudindo ruidosamente, enquanto a assistência das galerias irrompi em manifestações entusiásticas. Havia já muito tempo que se não assistira, naquela veneranda casa, a cenas de tão vibrante alegria.
Sob o ponto de vista puramente humano, é indiscutível que essa espontânea manifestação era altamente simpática. Provava quanto se estimava a paz, de tal modo que a hipótese de a salvar originava aplausos que a comedida e proverbial imperturbabilidade inglesa não estava habituada a permitir. Mas a verdade é que nem por isso deixou de ser politicamente um grande erro, visto demonstrar que o parlamento e o país abominavam tão profundamente a guerra que estariam dispostos, para manter a paz, a aceitar todos os sacrifícios. Nesta ordem de idéias, Chamberlain partiu para Munique, não na situação de quem vai defender a paz, mas na de quem acorre a solicitá-la. Não obstante, ninguém tinha nessa altura a verdadeira noção do que iria suceder. Todos estavam convencidos, e eu também, confesso, de que Chamberlain ia a Munique para negociar, mas jamais para capitular.
Quando Chamberlain partiu, o mundo suspendeu a respiração. Passaram-se dois dias, três dias de alucinante espera. Entretanto, continuava-se a cavar abrigos nos parques da cidade, acelerava-se a produção nas fábricas do material de guerra, preparava-se a defesa antiaérea, distribuíam-se máscaras antigas, admitia-se a hipótese de se levarem para a província as crianças de Londres, faziam-se preparativos misteriosos que o homem da rua nem sempre compreendia, o que não quer dizer que se não adivinhasse imediatamente para que se destinavam. Despontava a manhã, chegava-se ao meio-dia e entrava-se na sombra da noite, e cada qual se mantinha preso ao jornal e ao aparelho de rádio. Era o nervosismo e a inquietação dos dias de Julho de 1914 que se repetiam novamente, a terrível ânsia da espera pela paz ou pela guerra.
E, de repente, chegou uma notícia que arrebatou os corações. Era como se um vento providencial tivesse dissipado as nuvens que ameaçavam desabar. Dizia-se que Hitler, Chamberlain, Mussol'ni e Daladier tinham chegado a acordo e, ainda mais, ef-rmava-se que Chamberlain tinha conseguido assinar um convênio com a Alemanha pelo qual todas as possíveis futuras divergências anglo-alemãs seriam solucionadas por negociações. Era a vitória que sorria à tenacidade e à obstinada perseverança a favor da paz que um estadista, que nada tinha de notável, havia desenvolvido. E à volta do seu nome surgiu uma auréola de gratidão. Peece for our time, ouvia-se na rádio, o que significava, para a nossa tão sacrificada geração, que podia continuar a viver ainda em paz abandonada no sonho belo de pensar num mundo melhor e mais justo. Esta divisa tinha realmente o condão de nos empolgar, diga-se a verdade. Todos acreditavam piamente na boa nova e creio que, se os habitantes de Londres tivessem sabido a hora exacta em que o avião de Chamberlain chegava ao aeródromo de Croydon, haveria milhares e milhares de pessoas que teriam ido saudar entusiàsticamente o homem que salvara a paz da Europa e defendera a honra da Inglaterra.
Porém, na manhã seguinte, apareceram os jornais com a fotografia de Chamberlain. Fora focado à porta do avião, agitando o célebre documento que garantiria ao seu povo a tão desejada Peace for our time. Na sua fis-onomia, onde geralmente se desenhava sempre um ricto estranho, que fazia instintivamente pensar em qualquer pássaro intratável e aborrecido, via-se um sorriso que denotava alegria e satisfação. Nessa mesma noite, os cinemas reproduziram a cena da sua chegada, e os espectadores trasbordavam de contagioso entusiasmo, pouco faltando para se abraçarem uns aos outros, em homenagem à nova era de fraternidade prometida. Foi um dia inesquecível para quem estava em Londres, para quem vivia então na Inglaterra.
Foram momentos históricos em que todo o meu prazer era perder-me no labirinto das ruas, respirar a sua atmosfera excitada e, assim, pulsar bem com as verdadeiras palpitações da hora que passa. A multidão dos transeuntes aglomerava-se à volta das escavações que haviam sido iniciadas nos parques e jardins citadinos, rindo ironicamente acerca de preparativos de defesa que a peace for our turn tornara evidentemente desnecessários, e surpreendi dois rapazolas gracejando em impecável cockney (1) que seria melhor adaptar aqueles abrigos à instalação de novas retretes subterrâneas, que tanta falta faziam em Londres. Todos se mostravam prazenteiros, dando a impressão de plantão que vicejavam depois de violento aguaceiro. Já não tinham aquela expressão taciturna da véspera e nos olhos dos ingleses, ordinariamente tão plácidos, brilhavam estranhas refulgências. Desde que o fantasma dos ataques aéreos havia desaparecido, voltou novamente a resplandecer a luz nes janelas, os autobuses até pareciam mais bonitos, o Sol mais claro, e milhares, até milhões de seres humanos sentiam-se rejuvenescidos pelo ardor desta esperança mágica - a Paz.
Também eu me sentia preso da mesma satisfação. Invadia-me uma alegria imensa que dava vida nova aos meus membros. Andava e já não me cansava. Sentia-me mais leve, mais ágil, bafejado pela onda do optimismo que embalava os corações. Estava eu nesta euforia a uma esquina de Piccadilly, quando notei que um transeunte caminhava apressadamente na minha direcção. Era um funcionário público que quase só conhecia de vista, um homem empertigado, cerimonioso, frio, um homem que, em qualquer outra circunstância, teria passado, limitando-se a cumprimentar-me atenciosamente. Mas, naquele momento, parou na minha frente e disparou-me à queima-roupa, extremamente radiante: "Que nos diz o senhor do nosso Chamberlain? Quem poderia supor que ele seria capaz de fazer o que fez? Ninguém acreditava nele e, no entanto, a verdade é esta - manteve-se firme, não transigiu e conseguiu salvar a paz! "
(1) Calão de certas esferas londrinas.
A opinião desse bom funcionário inglês era a geral e também a minha. Uma imensa felicidade pairava no ambiente desse dia e nos que se lhe seguiram. O tom dos jornais era magnífico; mantinha-se a animação na Bolsa; da Alemanha vinham, depois de um interregno de alguns anos, expressões de amizade, e na França chegou a pensar-se em erguer um monumento a Chamberlain, Desgraçadamente, tratava-se apenas do derradeiro bruxulear de uma luz que se extingue, pois a verdade surgia à superfície pouco depois, quando se conheceram os pormenores das conclusões a que se chegara em Munique. Acedera-se a todas as pretensões de Hitler, abandonara-se lamentavelmente a Checoslováquia, esquecendo o apoio que se lhe havia prometido. Mas isso não bastava, porque, algumas semanas mais tarde, já essa capitulação em forma se tornara insuficiente, e, mesmo antes que as assinaturas do convênio estivessem secas, Hitler tomava a liberdade de o viciar abertamente. Entretanto, Gôbbels começou a perorar desabridamente do alto da sua cátedra declarando sem rodeios que a Inglaterra fora tão-sòmente obrigada a ceder na conferência de Munique. A encantadora luz da Esperança apagara-se definitivamente, após o doce bruxuleio daqueles dias, que deram Vida nova aos nossos corações e que não posso nem quero esquecer.
Desde essa data, isto é, desde que se conheceu a verdadeira extensão do drama de Munique, as minhas relações sociais reduziram-se muito, de tal modo que, apesar de parecer incrível, estava na Inglaterra mas quase não via ingleses. É certo que a culpa era inteiramente minha, pois evitava encontros e conversações, não obstante a minha admiração e estima pela Inglaterra ser muito maior. Os ingleses recebiam os refugiados, que então começavam a chegar em número cada vez mais considerável, com todo o carinho, prestando-lhes a máxima atenção e ajuda. Apesar disso, entre nós ia-se erguendo pouco a pouco uma espécie de parede, que parecia situar-nos em mundos diferentes, o que, de resto, era bem compreensível, pois, a nós, refugiados, já nos havia sucedido o que a eles nem sequer ainda lhes passava pela memória.
Os acontecimentos não eram vistos através do mesmo prisma, porque, enquanto nós sabíamos o que se havia passado e pressentíamos o que estava para suceder, continuavam os ingleses na disposição de acreditar na seriedade dos acordos, julgando que Hitler não era intratável, desde que se procurasse ser razoável e humano com ele. Não acreditavam que se estivesse a forjar uma nova política de cinismo e de desfaçatez. Fiéis aos seus principios democráticos, não podiam conceber que a nova Alemanha fosse de súbito instituir normas de Direito contrárias aos princípios estabelecidos e consagrados, pela única e simples razão de não lhe agradarem muito. Metódicos e previdentes, essencialmente refractários a todo o espírito de aventura, estavam longe de supor que Hitler, o homem que, com tanta facilidade, ascendera e realizara muitos dos seus desejos, se lançasse no caminho das temeridades. Depois, estavam convencidos de que as suas ambições se dirigiram em primeiro lugar contra outros sectores - de preferência contra a Rússia!
- e que, por fim, com o decorrer do tempo, se tornaria mais maleável e acessível. Porém, o nosso estado de espirito era bem diferente. A única coisa que prevíamos e esperávamos era um recrudescimento da brutalidade e da tirania.
Qualquer de nós se lembrava de um amigo que havia sido torturado, de um companheiro que fora moído à paulada, e era natural que fôssemos mais cépticos e sobretudo mais realistas. Sabíamos perfeitamente, nós, os exilados, os vexados, os humilhados e perseguidos que os novos senhores não recuariam diante de nada e não existiam motivos que os impedissem de atingir os seus fins, sempre que se tratasse de usurpar e de tiramizar. Era por esta razão que havia entre as vitimas do nazismo e aqueles que só mais tarde o seriam um grande abismo. Creio não estar muito longe da verdade se disser que, naqueles dias, salvo um pequeno e de resto extremamente reduzido número de ingleses, nós éramos, na Inglaterra, os únicos que não nos enganávamos acerca do perigo que ameaçava o mundo, era a história que se repetia; como outrora na Áustria, então, na Inglaterra, o destino dera-nos a dolorosa e cruel previsão dos acontecimentos, com esta diferença, apenas - na Inglaterra éramos estrangeiros, hóspedes que se admitem por favor e não devem imiscuir-se em discussões, abusando da hospitalidade que lhes concedem.
Estávamos condenados a sofrer em silêncio, nós, os que já havíamos sido marcados pelo ferrete do destino, e como era imensa a agrura que nos dilacerava a alma, quando pressentíamos o que iria suceder ao país que tão generosamente nos acolhera! Mas, mesmo nas horas de cruel desespero, a convivência com um espírito nobre e superior enche-nos de conforto e de serenidade. Não me esqueço, pois, das inolvidáveis horas que então tive o prazer de passar com Sigmund Freud, durante os últimos meses que antecederam o desencadear da grande tragédia. Durante muito tempo, vivi preocupado com a sorte desse venerando sábio, que então já tinha oitenta e três anos e estava bastante doente. Mas os decididos esforços da admirável princesa Bonaparte, uma das mais dedicadas e fiéis discípulas do mestre, conseguiram arrancá-lo dessa Viena escravizada onde tinha ficado, trazendo-o para Londres. Foi um dia de prazer quando tive conhecimento, pela Imprensa, da chegada às Ilhas Britânicas do venerando amigo que regressava das profundidades do Hades, onde o julgara perdido para sempre.
Conheci em Viena o extraordinário e incomnparável homem de ciência que foi Sigmund Freud, o sábio que, como nenhum outro do" nosso tempo, dilatou e aprofundou os conhecimentos e investigações sobre a alma humana. Então ainda ele era considerado apenas uma espécie de obstinado maníaco e dessa forma tratado, Embora fosse apaixonado pela verdade, tinha contudo a perfeita noção da sua relatividade, pois recordo que me disse um dia: "Uma verdade cem por cento verdadeira é tão inverosímil como o álcool absolutamente puro". Tendo-se embrenhado no estudo das matérias complicadas do' subconsciente e, por conseqüência, penetrado em sectores sobre os quais existia, nesse tempo, o mais rigoroso "tabu", afastou-se do escolasticismo universitário e das suas tradicionais circunspecções, o qual pressentia que as teses deste espírito inconformista não podiam deixar de atentar contra as doutrinas estabelecidas. Temia, e com razão, que as teorias da alta psicologia freudiana pusessem em cheque que o critério oficial do lento adormecimento dos instintos por meio da "razão" e da "adaptação progressiva", abrindo caminho ao estudo dos problemas delicados que a escolástica preferia ver ignorados. Mas não eram apenas os universitários e os neurólogos da velha escola que se erguiam contra o indesejável "intruso": - era o mundo da rotina, o mundo moral da "convenção", que via em Freud o clarão a dissipar as trevas.
Pouco a pouco, foi-se desenhando contra ele uma franca hostilidade por parte dos médicos, de tal modo que Freud quase não podia exercer actividade clínica e, como não era possível combater as suas doutrinas com argumentos científicos, optou-se pelo processo muito vienense de gracejar aos salões acerca da sua teoria do sonho. à sua volta, ficou apenas um núcleo muito limitado de admiradores, em cujos serões semanais a nova ciência da Psicanálise tomou corpo e se desenvolveu.
Ainda eu nem sequer suspeitava da amplitude da imensa revolução científica que os trabalhos de Freud haviam de originar, mais tarde, e já a minha atenção e simpatia eram conquistadas por este extraordinário pensador, de energia e força moral deveras notáveis. Compreendi imediatamente estar em presença do verdadeiro homem de ciência, ponderado, calmo e prudente, que só fazia afirmações quando adquiria a certeza de que as podia sustentar, mas que não hesitava em arremeter com firmeza contra o dilúvio de críticas dos que lhe eram adversos. Era extremamente modesto em relação à sua própria pessoa, mas mantinha-se inabalável e alerta na defesa dos postulados da sua doutrina, sacrificando-se, até aos últimos momentos da vida, por uma verdade imanente que o seu espírito excepcional vislumbrara.
Não é fácil imaginar existir um pensador com mais obstinação e indomável energia do que Freud. Tinha a coragem de expor sem rodeios e com toda a franqueza o que pensava, mesmo quando soubesse que as suas idéias provocariam celeuma ou animadversão. Não- transigia nunca, nem mesmo quando, fazendo-o, pudesse melhorar as suas por vezes difíceis posições. Estou convencido de que teria conseguido expor oitenta por cento da sua doutrina sem suscitar as oposições acadêmicas, se tivesse consentido em velar prudentemente algumas das suas expressões mais contundentes e se houvesse sido mais comedido nas conseqüências a que o seu critério fatalmente conduziria. Bastava, por exemplo, que em vez de "sexualidade" se conformasse com o clássico termo "erótico" e que em vez de "líbido" adoptasse o de "eros". Mas Freud não transigia, desde que se tratasse de pontos de doutrina que havia suficientemente ponderado. Quanto mais forte era a reacção contra ele, tanto mais decidida e firme era a sua resistência. Quando procuro um símbolo para a idéia da coragem moral "- o único heroísmo que neste mundo não necessita do esforço alheio - vem-me logo à mente a bela fisionomia de Freud, com os seus traços de profunda nobreza e o olhar calmo dos seus serenissimos olhos negros.
O homem de ciência que acabava de chegar a Londres fugido da pátria, à qual dera imperecível renome, estava já numa idade bastante avançada e encontrava-se sobretudo muito doente, mas a sua combatiVidade e o seu ardor mantinham-se inalteráveis. Julguei que, depois das horas amargas que com certeza passara em Viena, iria encontrá-lo alquebrado, mas devo confessar que o vi mais ágil e mais bem disposto do que antes.
Visitei-o na casa que habitava nos subúrbios de Londres e, mostrando-me o seu pequeno jardim, disse-me com umluminoso sorriso a aflorar naquela sua fisionomia, outrora tão severa: "Creio que nunca estive tão bem instalado!" Depois, apontando para as estatuetas egípcias que tanto estimava e que Maria Bonaparte conseguira salvar, exclamou: "Não acha que estou novamente em minha própria casa?" De facto, sobre a secretária encontravam-se grandes folhas manuscritas do trabalho que estava a preparar. Aos oitenta e três anos de idade ainda o venerando mestre escrevia diariamente como no passado, com punha firme. As suas faculdades intelectuais persistiam e a sua extraordinária energia dominara a doença, a idade e e exílio, e até sucedia que a natural bondade de todo o seu ser, que durante os anos das grandes lutas estivera contida, irradiava agora espontânea e livremente das profundidades da alma. A idade e as provações sofridas davam-lhe até um ar mais venerando ainda, tornando-o mais comunicativo. Descobri nele atitudes que outrora mal se suspeitariam: via os seus olhos, cintilando por detrás do círculo transparente dos óculos, contemplando-me com doçura, enquanto a sua mão pousava por vezes sobre o meu ombro, num gesto amigável.
Conversar com Freud constituíra sempre para mim grande prazer. A sua conversa era uma lição e um encanto. compreendia-se que pesava as palavras e as dos que falavam com ele, não havendo audácia mental capaz de perturbar esse espírito de rara envergadura, cujo propósito constante consistia em ensinar com suma clareza e perfeição. Mas os contínuos encontros que com ele tive, naquele sombrio e último ano da sua vida, tinham um encanto especial. Entrando no seu gabinete, era certo que deixava atrás de mim o insensato tumulto do mundo. Então o que era cruel diluía-se e o que parecia abstracto tomava forma e sentido. Visto à luz dessa sabedoria, os acontecimentos da hera que passava e perturbava a humanidade apareciam, apenas, como simples fenômenos cíclicos. Pela primeira vez na minha vida, estive em presença do verdadeiro sábio. daquele que se ergue acima da própria natureza física e para quem a própria dor e a morte não são somente problemas pessoais, mas fenômenos que pairam para além da própria esfera do indivíduo. com o seu declínio físico dava-nos Freud uma lição moral que não desmerecia da que nos dera quando se encontrava na plenitude. A doença, que então já o minava e que no-lo havia de arrebatar, não o abandonava. A pileca palatina que trazia não lhe deixava articular as palavras com facilidade e eu sentia-me verdadeiramente contrariado por obrigá-lo a falar, mas Freud não esmorecia, querendo demonstrar que, apesar das dificuldades físicas, a sua vontade permanecia forte e dominava o corpo combalido. Com os lábios contraídos pelo sofrimento, continuava a sentar-se à secretária e a escrever, mesmo nos últimos dias da vida e, quando as dores o impediam de dormir com aquele sono profundo e reconfortante que durante oitenta anos fora o segredo da sua indomável energia - recusava terminantemente qualquer narcótico, pois não admitia que a maravilhosa lucidez do seu espírito fosse entorpecida pela acção de momentâneos calmantes. Preferia não dormir, preferia sofrer, mas não queria atentar contra o incomparâvel tesouro da inteligência. Freud foi, realmente, até aos últimos momentos da vida, um verdadeiro herói do pensamento.
O combate que travou com a morte foi gigantesco e tanto mais estrénuo quanto mais se prolongava. As faces iam ressequindo lentamente, a fronte foi-se deprimindo, por fim até a boca se lhe entortou e os lábios só muito a custo se podiriam mover. Só os olhos permaneceram firmes até ao último momento os grandes olhos desse gênio, aquelas duas estrelas cintilantes que lhe mostravam o mundo. Os olhos resistiram e resistiu também o espírito.
Numa das últimas visitas que lhe fiz acompanhava-me Salvador Dali, um dos mais talentosos pintores da nova geração segundo creio, e que, enquanto eu conversava com Freud, procurava desenhá-lo. Mas os estigmas da morte ficaram já de tal modo visíveis nesse retrato, que nunca tive a coragem de lho mostrar.
Por fim, a luta do mais extraordinário espírito do nosso tempo contra o inevitável atingiu o paroxismo. Quando chegou a hora em que Freud compreendeu não poder pensar mais, não poder escrever mais, esse gênio, para quem a maior virtude era a da consciência, tomou a estóica resolução, como outrora Os heróis lendários da velha Roma de permitir que o médico pusesse fim ao seu sofrimento. Assim precedeu com a morte aquele cuja vida havia sido uma epopeia, e até mesmo numa época em que a morte era o supremo lema - a morte de Freud foi um acontecimento. Quando o fomos levar à sua última morada sabíamos que ia ficar sepultado em terra inglesa aquele que em vida fora a maior glória da Áustria.
Falei freqüentemente com Freud acerca dos horrores do regime de Hitler e da guerra. Como homem de sentimentos altruístas mostrava-se sinceramente compungido, mas como pensador reconhecia não se poder admirar desse súbito deflagrar da barbárie. Acusavam-no de pessimismo - confessou-me - porque afirmara que a cultura não era capaz de aniquilar o instinto, e eis que os acontecimentos vinham dar-lhe razão, infelizmente, provando que o gregarismo da caverna se mantinha latente no homem civilizado. Talvez as gerações futuras soubessem encontrar o meio de atenuar a pressão dos instintos primários do homem sobre a vida colectiva dos povos, mas era indubitável que o indivíduo não se libertaria nunca da sua influência, tanto mais que talvez até operassem como elementos conservadores do dinamismo vital.
Nos últimos tempos, preocupara-se com o problema dos judeus e com as tragédias que, na nossa época, sobre eles se abatiam, mas, neste capítulo, nem a ciência nem o preclaro espírito de Freud encontravam soluções adequadas. Pouco tempo antes, havia sido publicado o seu trabalho sobre Moisés, a quem ele considerava egípcio e não hebreu. Era uma afirmação quase sem base científica e indispusera tanto os judeus ortodoxos como os sionistas. Por outro lado, Freud lamentava ter publicado esse livro na hora mais triste e dolorosa da vida dos judeus, pois, dizia-me, "precisamente na altura em que se lhes tirou tudo, apareci eu também a tirar-lhes a maior figura da sua história". Tive de admitir que, de facto, os judeus se haviam tornado extremamente susceptíveis nos últimos tempos, o que de resto se compreendia pois eles eram, indiscutivelmente, no meio da tragédia geral que abalava o mundo, as primeiras e constantes vítimas, os sacrificados que a fúria do homem mais cruel que jamais apareceu perseguia, banindo-os para os mais distantes pontos da terra e até para debaixo dela.
O fluxo dos refugiados não parava. Pelo contrário, tornava-se cada vez mais violento, à medida que as semanas e os meses iam decorrendo, com a agravante de que os recém-chegados vinham num estado mais mísero e de maior desespero que os anteriores. Aqueles que tinham tomado logo a decisão de sair da Áustria ou da Alemanha aimda conseguiram trazer maletas, salvar roupas, outros objectos e até algum dinheiro. Mas os que mais relutância mostraram em sair da pátria, esses, foram precisamente os que mais sofreram. A perseguição começara por tirar os empregos e lugares a esses judeus que, por amor pátrio, comodismo, cobardia ou orgulho optaram pela Alemanha, preferindo sofrer na terra onde haviam nascido, a mendigar no estrangeiro o duro pão do exílio. Mas eis que o torniquete foi apertando. Ao desapossar dos empregos sucedeu-se a proibição de freqüentar os teatros, os cinemas, os museus e as bibliotecas públicas, e pouco depois tiravam-lhes de casa os criados, os aparelhos de rádio e os telefones e, por fim, levaram-lhes até a própria casa. Porém, como se tudo isso não bastasse, obrigaram-nos ainda a trazer pregada no fato a estrela de David, de modo que, quais leprosos, fossem imediatamente reconhecidos, evitados ou vituperados. Despojados dos mais elementares direitos, foram submetidos a todas as tortures e todas as violências morais e materiais, de tal modo que para cada judeu se transformou de repente numa cruel realidade o velho ditado eslavo: Vor dem Bettelsack und dem Gefangnis ist nemand sic/ier (1).
Quem não tomava a precaução de se retirar a tempo tinha como certo o campo de concentração, ou então, depois de convenientemente desapossado de tudo o que lhe pertencia, era simplesmente abandonado ao acaso do destino, arremessado para fora da fronteira, levando como únicos haveres a roupa -que tinha vestida e dez marcos na algibeira. Nessa situação começava o desgraçado a sua existência de pária errante, Suplicando aqui e além uma telha protectora, quase
(1) Ninguém diga que não pedirá esmola e que não tem um lugar reservado na cadeia.
sempre negada, pois qual seria o país que de bom grado estaria disposto a receber pedintes no seu seio?
Não me esquecerei jamais da dolorosa cena a que assisti em Londres, numa agência de viagens, onde encontrei uma multidão de desesperados sem lar e sem pátria, quase todos judeus, que, havendo terminado o prazo que lhes fora dado para permanecer no país, estavam dispostos a ir para qualquer parte do mundo, para o gelo do Pólo Norte ou para as areias escaldantes do deserto do Sara. Era preciso partir, continuar a odisséia encetada, partir com a mulher e os filhos para o desconhecido, onde se adivinhava a certeza de uma realidade indiferente ou hostil. Entre eles encontrei por acaso um homem que havia sido um dos mais ricos industriais de Viena, e também um inteligente coleccionador. Confesso que tive dificuldade em o reconhecer, de tal modo havia prematuramente envelhecido. Estava tão abatido que quase não se podia ter de pé e, tendo-lhe perguntado para onde pensava ir, balbuciou "- "Não sei Quem se incomoda hoje com a nossa vontade? Vai-se para onde ainda se pode ir e nada mais. Disseram-me que talvez aqui nos autorizassem a partir para o Haiti ou para S. Domingos. E vim cá, como poderia ter ido a qualquer outro lado".
O meu coração começou a pulsar doidamente. Para aquele pobre velho, rodeado de filhos e netos, a hipótese de partir para um país que outrora nem sequer sabia bem onde ficava era uma esperança, e contudo, lá, aguardava-o a incerteza de uma vida sem lar e sem pão Mas eis que outro desesperado ao nosso lado perguntava se não seria possível ir para Xangai, pois ouvira dizer que os chineses ainda aceitavam refugiados. E junto destes dois infelizes estavam mais; uns eram lentes universitários, outros, banqueiros, comerciantes, proprietários e artistas, todos porém dominados por uma idéia fixa, uma alucinação únicafugir da Europa, partir para longe, para muito longe. Sim! fugir da Europa... mesmo que fosse para recomeçar em qualquer outro lado o drama da vida errante.
Era um quadro dilacerante, não tanto pelo que dizia respeite àqueles cinquenta infelizes que eu vira, mas porque sabia muito bem que eles eram tão-somente a guarda avançada do formidável exército de cinco, de oito, talvez de dez milhões de judeus que já estavam em marcha, essa avalancha de seres humanos roubados e vilipendiados que fugiam, com pavor do inferno de Hitler e que nas fronteiras, estações de caminhos de ferro e cadeias de muitos países europeus estavam dependentes dos socorros monetários das instituições de caridade e dos vistos consulares. Era um povo inteiro ao qual se negava o direito de ser povo, um povo que há mais de dois anos só desejava que a sua vida errante terminasse e o deixassem viver em paz.
Mas o que de mais dolorosamente trágico havia neste novo fadário dos judeus do século XX era, com certeza, que, de facto, não sabiam porque eram tão cruelmente perseguidos. Outrora, na Idade Média, os seus antepassados ainda tinham o consolo moral de saber que eram imolados à causa da fé que os animava ainda dispunham do talismã maravilhoso da ind'scutível e absoluta crença no seu Deus. crença que de há muito já não era apanágio dos judeus contemporâneos. Outrora, viviam e sofriam com a firme e inabalável certeza, louca pretensão, de que eram o povo eleito a quem o criador do Universo e dos homens dera uma missão particular na terra, povo para o qual o verbo revelador da Bíblia era a Lei e a Verdade. Nessa época distante, as labaredas calcinantes da fogueira não queimavam tanto os corpos daqueles que sabiam afrontá-las com o obstinado estoicismo da fé. Se por acaso os expulsavam da pátria tinham ainda o refúgio inviolável da mansão de Deus, de onde não havia nenhum imperador, nenhum rei, nenhuma Inquisição, nenhuma força terrestre, enfim, que os pudesse banir. Estando unidos pela religião, formavam ainda uma verdadeira comunidade, e, por isso mesmo, eram ainda uma força com suas leis, usos e costumes. Se eram perseguidos, sabiam, pois, a que atribuir a perseguição, já que, pela religião e pelos hábitos, se colocavam à margem dos restantes povos. Mas outro tanto já não se podia dizer de judeus do século XX, que, de facto, desde há muito não constituíam uma comunidade, nem sequer estavam unidos estreitamente pela fé, e para quem, ser judeu, era mais um motivo de pesar que de orgulho, acrescendo ainda que já não acreditavam na lenda do povo eleito. As leis e os preceitos sagrados de antanho foram-se transformando em letra morta, e até a língua hebraica se foi sumindo no desuso, visto que cada qual tinha apenas a preocupação de se diluir no agregado nacional onde vivia, de modo a afastar para sempre o negro fantasma do banimento, pondo um ponto final no interminável drama do judeu errante. Animados desse desejo, era natural que não se entendessem perfeitamente uns com os outros. Procurando assimilar a cultura dos povos onde viviam, sentiam-se mais franceses, alemães, ingleses ou russos do que propriamente judeus. Porém, eis que o mundo os obrigava a reconstituir à força a comunidade de outrora, tantas vezes fortalecida e desfeita desde os tempos do Egipto. O exílio forçava-os a essa união, esse banimento que lançava na via pública, como quem despeja um caixote de lixo, essa heterogeneidade complexa de banqueiros, de súbito postos fora dos seus palácios berlinenses; rabinos expulsos das sinagogas; professores de filosofia de Paris; cocheiros romenos, gatos-pingados e sumidades laureadas com o Prêmio Nobel; cantores e carpideiras; escritores e licoristas; senhores e párias, enfim, toda uma multidão paradoxal, onde havia de tudo: religiosos e ateus, argentários e ascetas, sionistas e híbridos, asquenasi e sefardim, (1) e, ainda, os pobres, que, por terem abraçado
(1) Sequazes dos ritos babilónico e hispano-português respectivamente.
a região ocidental e recebido o baptismo. já se julgavam livres para sempre do fantasma milenário da expulsão. Mas, qual era agora a causa desta nova vindicta porque os baniam? Eram perguntas que ficavam sem resposta. Eram postos fora da fronteira dos países onde viviam. mas recusavam-lhes uma terra onde viver. Dizia-se-lhes vão-se embora - mas não se curava de saber para onde poderiam ir.
Tinham sido condenados sem apelação, não havia dúvida. E cada qual, na febre que a inacreditável tragédia fazia nascer, balbuciava: Porque estou aqui? Sim. E tu? E aquele? E aqueloutro? Sim. Porque estou eu junto de ti, e daquele e deste, se não há nada que nos ligue, nem moral, nem religião, nem ideal, e se em boa verdade, somos de mundos completamente distintos? Todos formulavam a mesma pergunta e todos obtinham a mesma resposta - nada.
O próprio Freud, um dos mais geniais espíritos da época, confessava que não era capaz de encontrar uma razão para tal paradoxo, e eu por vezes sou levado a considerar que o fim primordial do judaísmo, cujo cíclico despertar permanece inexplicável, é o de perpetuar na Terra a grande lição de Job.
Não há nada que mais nos entristeça e espante que o súbito aparecimento dos fantasmas que já estavam relegados ou esquecidos. O Verão de 1939 havia terminado e encontrávamo-nos bem longe de Munique e do fugaz estribilho de peace for our time. Hitler, saltando por cima dos juramentos e das promessas, caíra sobre a desamparada Checoslováquia e devorara-a. Memel era ocupada e a imprensa alemã, previamente orquestrada, exigia ruidosamente Dantzig e o corredor polaco. Entretanto, a Inglaterra despertava amargamente da sua crença firme no respeito da palavra dada e na lealdade. O povo começava a reagir, incluindo até os que por simples questão de temperamento ou de educação detestavam a guerra. Pessoas ordinariamente retraídas tornaram-se de repente loquazes e curiosas. Até o porteiro da casa onde me hospedava procurava saber alguma coisa à minha passagem, e o mesmo fazia o rapaz do ascensor enquanto me conduzia ao meu andar, ou a criada de quarto. Não atinavam com o que se estava a passar, mas lembravam-se perfeitamente de que Chamberlain, o primeiro-ministro, tomara três vezes o avião para ir à Alemanha, com o fim de salvar a paz, e que, apesar disso, Hitler ainda não estava satisfeito.
No parlamento ouviram-se os primeiros gritos alarmados de Stop aggression e por toda a parte era manifesta a preparação para a guerra que parecia inevitável, ou, mais justamente, contra ela. Os balões cativos voltaram a pairar no céu de Londres - dir-se-iam inocentes brinquedinhos de crianças - e recomeçou-se com o trabalho nos abrigos subterrâneos, enquanto as máscaras antigas, que antes haviam sido distribuídas e depois postas de parte, se experimentavam de novo, atenta e cuidadosamente. Grosses nuvens negras pairavam no horizonte e desta vez os ânimos estavam mesmo mais excitados do que no ano precedente, visto que a confiança e boa fé do povo havia dado lugar a uma firme vontade de reagir contra a agressão.
Nessa altura já deixara Londres, retirando-me para Bath, onde senti, mais amargamente do que nunca, a estranha impotência do homem em presença dos acontecimentos da História. Ali estava eu, afastado do bulício da política, dedicado inteiramente ao firme propósito de ser útil e de transformar a minha vida em acção criadora. E eis que mais longe, aqui e além, havia meia dúzia de pessoas que quase ninguém conhecia, meia dúzia de pessoas que nem sempre haviam revelado grande talento e perspicácia e que, na Wilhelnt' strasse de Berlim, no Qual cTOtsay de Paris, no Palazzo Venezia de Roma e na Dowming Street de Londres, falavam, escreviam, telefonavam e pactuavam acerca de problemas que jaziam no mais completo segredo, tomando decisões sobre as quais não éramos consultados e que, contudo, afectavam directamente a nossa existência e a de todos os habitantes da Europa. Era nas mãos desses senhores e não nas minhas que estava o meu futuro, a minha vida. Deles dependia, em última análise, aquilo que nós seríamos, e da sua acção resultava o nosso bem ou o nosso mal, a liberdade ou a escravidão, a guerra ou a paz para milhões de homens. E enquanto se estava a decidir acerca da minha vida, eis-me confinado no meu quarto, reduzido, como tantos outros, à simples categoria de pobre mosca ou de inocente e plácido caracol, sem a menor influência sobre decisões tão transcendentes, das quais dependia o meu presente e o meu futuro, os pensamentos que ainda nem sequer se haviam desenhado no cérebro, os planos existentes e os que porventura surgissem, o meu sono e o meu despertar, a minha vontade, enfim, tudo aquilo que eu era, ou podia ser ou ter. Vivia como um condenado que estivesse encarcerado nas quatro paredes estreitas de uma enxovia e que, há força de esperar e desesperar, já tivesse perdido a noção do tempo e do espaço, enquanto à sua volta os que estavam na mesma situação perguntavam, entre desesperos e gracejos, se ainda não havia chegado a hora, como se alguém soubesse ou fosse capaz de adivinhar o que estava para acontecer.
Se o telefone retinia, era certo que se tratava de um amigo que desejava saber o que pensávamos acerca da situação. Se se compravam jornais, ficávamos a saber menos do que antes se ouvíssemos a rádio, sucedia precisamente a mesma coisa, e era matemático que o primeiro conhecido que encontrássemos na rua nos faria a consabida perg-unta se teríamos guerra ou paz, a nós, que sabíamos tanto como ele. E o que é mais caricato ainda é que, apesar de saber que não sabia nada, começava eu também a discutir e a perorar. se bem que não ignorasse que toda a minha experiência, penosamente adquirida num imenso labutar de anos sem fim, de nada valia quando se tratava de adivinhar o que esses senhores das chancelarias decídiriam. Sabia, apenas, que, como há vinte e cinco anos, estava novamente à mercê de acontecimentos não dependentes da minha vontade e que, como outrora, tinha o coração inquieto e o cérebro em delírio.
A vida na capital tornava-se simplesmente alucinante. A cada esquina encontrava cartazes, cujos grossos caracteres pareciam dentuças de cães enfurecidos, e a cada momento procurava decifrar o que se passava no foro íntimo dos que se cruzavam no meu caminho, apesar de saber que não podiam deixar de pensar, como eu, naquele fatídico sim ou não, na cartada final do jogo malabar que iria decidir do que seria a minha existência, de como viveria os últimos anos que ainda me restavam, e se poderia ou não escrever os livros que pensava lançar a público. Enfim, era um jogo em que se decidia tudo o que eu era, tinha ou queria ser.
Mas a roleta da diplomacia continuava nas suas intermináveis e nunca definidas paraJas - encarnado ou preto, uma e outra vez e sempre. Quando a esperança renascia, seguia-se logo, pouco depois, a desilusão. Era o eterno círculo das boas e das más notícias, das notícas que preludiavam outras e outras, ainda e sempre. Por fim, desesperado, disse para mim esquece tudo! Refugia-te em ti próprio, concentra-te em ti mesmo, esquece que és um cidadão, essa qualquer coisa sem importância no diabólico jogo da política. Volta a ti mesmo e impede que aquilo que porventura em ti haja de razoável e de inteligente se afunde na insensatez de um mundo subitamente endoidecido.
Não me faltava que fazer. Havia já muito tempo que começara a reunir elementos para um estudo sobre Balzac e a sua obra. Pensava em dois grandes volumes, mas até então protelara o início dí um trabalho de tão grande envergadura e complexidade. Mas eis que a própria intranqüilidade da hera me dava disposição para me dedicar a essa tarefa. E foi animado desse desejo que decidi partir para Bath, para Bath precisamente, e não para qualquer outra parte, porque essa calma cidade reflectia, melhor do que qualquer outra, o ambiente tranquilo do belo século XVIII. e porque nela viveram e escreveram as suas obras alguns dos mais eminentes escritores ingleses, especialmente Fielding. A, E como me sentia bem nesse ameno oásis, na santa quietude da Natureza, nessa doçura que oferecia flagrante contraste com a loucura do mundo e a agrura sem fim da minha pobre alma torturada!
Como outrora fora magnífico aquele Julho de 1914 que passei na Áustria, e do qual nunca mais me poderei esquecer, assim foi também, na Inglaterra, o Agosto de 1939. O firmamento, de um azul cristalino e sedoso, fazia pensar na celeste mansão de Deus, e o Sol, puríssimo, sorria nos prados e nos bosques ou nos magníficos tapetes de flores que se estendiam pelos campos. Como outrora, do lado desta paz divina da Natureza-mãe, também os homens se agitavam, indiferentes e convulsivos, no horror das discórdias que conduziram à guerra. Ai! Como era grande a insensatez dos homens, essa loucura fratricida que contrastava singularmente com a calma maravilha da Natureza entoando hinos de paz e de amor à vida nos vales de Bath, nessa terra eleita que tanto me fazia lembrar as horas doces que passara há vinte e cinco anos em Baden!
E duvidava, duvidava sempre. Talvez a guerra fosse apenas uma nuvem que em breve se dissiparia, E, assim, comecei a pensar nas férias de Verão. Ia reaLizar-se o Congresso do Pen Clube nos primeiros dias de Setembro de 1939, e como eu era o sem-pátria que de facto não podia representar nenhuma nação, recebera dos camaradas suecos convite especial esforçando-se cada qual por me rodear de amab'lidades e gentilezas. Decidira partir e já havia até mandado reservar lugar no barco que fazia a carreira da Suécia; eis senão quando começam a circular boatos de iminente mobilização geral.
A minha única atitude compreensível teria sido a de meter imediatamente todos os meus livros e manuscritos nas maletas e abandonar sem demora as Ilhas Britânicas, pois, segundo todas as probabilidades, entraria no drama da guerra o país onde eu era estrangeiro e, o que era grave, estrangeiro que, em caso de guerra, logo seria classificado na secção dos inimigos, e, possivelmente, objecto de medidas e tratamento especiais. Mas, nada disso fiz - fiquei inactivo e indeciso. Não compreendo bem porquê, mas foi assim. Contrariava-me a hipótese de uma nova debandada, tanto mais que tinha a convicção de que para qualquer parte que fosse me seguiria a desgraça e, por outro lado, estava cansado, cansado de tudo.
À minha mente ocorreu de novo a frase de Shakespeare: "Encaremos a época tal qual se nos apresenta", concluindo ser inútil reagir. Tinha sessenta anos e, por muitas incógnitas que o futuro me trouxesse, não poderia contudo desapossar-me da minha melhor riqueza - o meu passado. E decidi ficar.
Contudo, havia um problema que me preocupava e era preciso resolver imediatamente, pelas possíveis conseqüências que poderia ter na minha vida civil. Decidira casar-me em segundas núpcias e não podia perder um momento em celebrar a cerimônia matrimonial, para que, em caso de internamente ou de qualquer outro acontecimento imprevisto, não estivesse muito tempo separado da minha futura mulher. Assim, dirigi-me sem demora à repartição do Registo Civil de Bath para fazer a respectiva declaração de casamento. Estávamos precisamente no 1º dia de Setembro, sexta-feira. O funcionário recebeu-nos com toda a atenção e deferência, e, compreendendo perfeitamente que a nossa presença era justificada, agarrou na caneta e começou a escrever em belos e redondos caracteres os nossos nomes no seu livro. A cerimón'a realizar-se-ia no dia seguinte. De repente abriu-se a porta que ligava com o gabinete contíguo - seriam onze horas, pouco mais ou menos - e através dela irrompia um jovem funcionário que, enquanto vestia o casaco, exclamava: "Os alemães invadiram a Polônia. É a guerra! "
Cada uma das suas palavras foi uma martelada descarregada no meu coração, mas nós, nesse tempo, já o tínhamos endurecido por um nunca acabar de crueldades e murmurei ainda relutante e sinceramente: "Talvez não... Talvez não seja ainda a guerra!" Porém, o jovem funcionário ripostou, quase agressivo: "É a guerra! É! Não estamos dispostos a tolerar estas cenas todos os seis meses! Basta! Acabemos com isto! "
O funcionário que estava sentado na secretária colocou a caneta no tinteiro. Fez um gesto que denotava perplexidade e depois disse-nos ter muita pena mas que éramos estrangeiros, que em caso de guerra seríamos considerados inimigos e, nesse caso, ignorava se o casamento ainda se poderia realizar. Pedir instruções a Londres e agir de harmonia com elas era a única coisa que podia fazer.
A esta cena sucederam-se dois dias de esperança, de dúvida e de desespero. Depois, na manhã de domingo, a rádio anunciava que a Inglaterra tinha declarado guerra à Alemanha.
Foi uma manhã única. Nunca mais poderei esquecer esse momento. Fiquei mudo, perplexo, atônito. Acabara de ouvir uma notícia que se referia a um acontecimento que perduraria através dos séculos, um acontecimento que ia revolver o mundo e a cuja influência ninguém escaparia, e que ia decerto lançar nas garras da morte muitos milhares daqueles que, com o coração consternado e a alma dilacerada, ouviram o clarim que o anunciava. Era uma desgraça que trazia dor, luto e miséria para todos, um cataclismo cujo verdadeiro sentido talvez só dentro de muitos anos se pudesse descortinar.
Era a guerra, novamente a guerra, uma guerra que seria certamente mais terrível e longa que todas as que jamais houvera na terra, e era, também, com certeza, o ocaso de uma época e o nascimento de outra.
Durante um momento reinou um silêncio de sepulcro na sala onde nos encontrávamos, onde cada qual não tinha nem sequer a coragem de dirigir o olhar para os que o cercavam. E, entretanto - estranho paradoxo! -. até nós chegava o chilrear inocente dos passarinhos esvoaçando em paz na manhã tranquila e doce, e as folhas do arvoredo, embaladas na carícia dourada do Sol, pareciam lábios entreabertos suspirando pelo dom supremo do beijo. A Natureza continuava indiferente às quimeras, ás paixões e às agruras dos homens!
Subi aos meus aposentos e preparei uma pequena maleta, pois era muito possível que naquela mesma noite já não me fosse permitido dormir na minha cama, caso se confirmasse a notícia que me dera um amigo altamente colocado, dizendo-me que, em caso de guerra, os austríacos seriam equiparados aos alemães e tratados como tais. Fora novamente arremessado para um degrau mais baixo. Já não era somente um estrangeiro, mas sim um enemy alien, situação que me colocava à viva força num lugar que não era o meu. podia sequer sonhar-se na possibilidade da existência de um absurdo mais completo que o que classificava como alemão um homem que, devido à sua origem e à sua maneira de pensar, há muito tempo era considerado indesejável na Alemanha, um austríaco que uma simples medida burocrática se comprazia em arremessar para um sector ao qual jamais pertencera? Era realmente inacreditável que as duas linhas de um decreto pudessem de súbito lançar-me numa existência tão paradoxal, pois, se é certo que eu pensava e escrevia em alemão, a verdade é que estava de alma e coração com as nações que empunhavam as armas em defesa da liberdade.
Do passado nada ficava de pé, nada resistiria ao medonho embate. Estava convencido de que a guerra destruiria as nossas mais caras esperanças e que depois dela era preciso recomeçar novamente a edificá-las. A idéia que durante mais de quarenta anos merecera da minha parte a mais constante e dedicada atenção, o ideal da paz e da fraternidade européia, agonizava. Aí estava novamente a guerra, pela segunda vez, a lançar os homens uns contra os outros, esse abominável drama que eu temia mais que a minha própria morte. E, por ela, pela guerra, aquele que durante toda a vida sonhara apaixonadamente com a concórdia universal, via-se tragicamente desamparado e só, posto à margem, numa hora em que a união de todos os homens de boa vontade mais persistentemente se impunha.
Saí de casa e divaguei pelas ruas, como que num último adeus à paz moribunda. Encontrei a cidade tranqüila. Cada qual seguiria no seu passo habitual pelo caminho de sempre. O seu aspecto era igual ao de todos os dias, ao de todos os domingos, e de tal modo a calma nos espíritos era evidente que não pude deixar de perguntar a mim próprio dar-se-á o caso de que ainda não saibam nada do que se passa? Mas logo me lembrei de que se tratava de ingleses, de homens em cujo semblante não é fácil ler o que pensam ou sentem, Não precisavam de clarins de bandeiras ou de gritos para excitarem a sua inabalável e contudo serena decisão. Era um ambiente bem diferente daqueloutro que outrora vira em Julho de 1914, na minha Áustria. E como eu era também diferente daquele jovem cândido que fora então, e como a minha alma estava cheia de amarguradas recordações!
Sim. Não ignorava o que era a guerra Passando em frente das montras dos estabelecimentos, ainda bem repletos de gêneros, tive a impressão de serem apenas órbitas descarnadas que me recordavam a miséria sem fim de 1918. E vi, na magia daquela serena e luminosa tarde, intermináveis bichas de mulheres do povo esperando em vão à porta das mercearias e vi as mães chorando pelos filhos que nunca mais veriam: e vi o horror dos feridos e dos mutilados e todo o drama pungente daquela loucura fratricida. Lembrava-me do mísero e desolador estado em que os nossos velhos soldados regressavam das trincheiras e o meu coração sangrava, pois via em perspectiva, na guerra que ia começar, os mesmos quadros negros da de outrora.
Sim O passado estava perdido, irremediavelmente perdido. A Europa, a nossa pátria amada, ia ser subvertida por uma catástrofe, cujos efeitos se prolongariam para além da nossa própria vida. Estávamos numa curva da História... Ia nascer um mundo novo, mas quantos infernos e purgatórios não seria preciso passar antes que ele surgisse no horizonte das realidades?
O Sol brilhava intensamente e, ao regressar de novo ao meu quarto, vi desenhada na minha frente a minha própria sombra, do mesmo modo que o meu espírito vira a sombra da outra guerra na que ia deflagrar. E desde então nunca mais me abandonou vejo-a sempre diante de mim, a todas as horas e a todos os momentos, de dia e de noite, e quero acreditar que também pairou sobre muitas das páginas deste livro. Mas a sombra é, afinal, em boa verdade, filha da luz. Penso que só quem amou e sofreu, só quem viu a paz e a guerra, só quem ascendeu e caiu, só esse, creio, pode dizer que viveu verdadeiramente.
Stefan Zweig
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